Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DIFÍCIL CONQUISTA
O sol escaldante daquele verão teimava em marcar presença entre os passageiros da Combi novinha em folha, último modelo, mas sem ar condicionado. Arnaldo Martinelli era de opinião que este, diminuía o desempenho do carro.
Era com satisfação que reunia toda a família para passar o dia na praia. A esposa Margarete Martinelli e a irmã de Arnaldo, dividiam com ele, o banco da frente. Na parte de trás iam o cunhado, Adolfo Borttoline, a sobrinha favorita, e única, Marília Borttoline, que levava no colo a pequena Giulia de apenas quatro anos. O marido a seu lado dedilhava uma antiga e afinada concertina que pertencera ao pai de Arnaldo, encomenda especial vinda da Itália já com o nome Martinelli gravado . Giulia dormia embalada pelo balanço do automóvel e pelo som da bela canzioni d’amore.
Vítório tinha uma belíssima voz, mas a essa altura, o repertório de músicas italianas já havia chegado ao fim. Quando saíram de casa em Santa Teresa, o sol não havia nascido. A chegada ao litoral estava prevista para dali a alguns minutos. Valia a pena a viagem de quase duas horas pela BR 101 Norte.
Precisavam chegar cedo à praia. Em alta temporada, cada metro quadrado de areia estava sendo disputado pelos banhistas. Mineiros invadiam as praias capixabas, incrementando a economia das pequenas cidades litorâneas.
Marília preferia a baixa temporada, quando era menor o número de banhistas na orla marítima, o sol mais brando, não necessitando besuntar a si e à filha com filtro solar de proteção máxima. Tinham a pele branca e sensível, os cabelos da filha lembravam os da mãe, num tom acobreado , olhos cor de esmeralda que iluminavam o rosto. Nada em Marília lembrava a beleza comum, nela, o pequeno nariz e a boca carnuda ficavam perfeitos, a minúscula cavidade no queixo, o corpo tipo violão. A voz extremamente forte, levemente rouca, contrastava com sua feminilidade. Não havia um atributo isolado que chamasse atenção, era todo o conjunto que funcionava perfeitamente. Mas havia em Marília muito mais que uma estampa agradável de se olhar, seu jeito peculiar de se importar com as pessoas, o modo como se aproximava delas diminuindo a distância, se condoía com as dores do mundo: a miséria, a fome e muito particularmente, com a falta de amor.
Em torno da filha Giulia, girava seu mundo. A família que a apoiara na gravidez prematura aos dezessete anos, tinha contribuído para o amadurecimento desse amor. Engravidara num momento mágico da adolescência, quando se acredita que nada acontece com a gente, somente com as amigas. Marília se deixou seduzir pelo namorado também adolescente, que não assumiu a gravidez. Mas a família dela sim. Fundamentalmente católica, radicalmente contra o aborto, apoiou-a moral e financeiramente. A maternidade precoce tornou-a responsável. A maturidade floresceu e a menina se transformou numa linda mulher.
Neta de imigrantes italianos, pertencia a uma família falante, alegre que se reunia para o almoço de domingo. Arnaldo Martinelli, depois do quarto copo de vinho, repetia as histórias que a “Nonna” contava quando ainda eram crianças.
_ Os imigrantes, depois de aproximadamente sete semanas em viagem de navio chegaram ao porto de Barra do Itapemirim. Aportaram no Espírito Santo pensando que fosse o Sul do Brasil, ou seja os Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde já existiam experiências migratórias.
_ Como podiam se enganar assim? _ Nice perguntou na primeira vez que ouviu a história da chegada dos avós ao Brasil.
_ O fato ocorria por, muitas vezes serem enganados pelos agentes de imigração, que recebiam grandes recompensas em dinheiro para largá-los ali. _ Havia indignação na voz do tio. _ Vieram para Vitória e para chegarem às terras prometidas, seguiram os cursos dos rios Jucú e Santa Maria de Vitória estabelecendo na Colônia de Santa Teresa.
_ O que buscavam no Brasil? Por que saiam de um país tão distante, deixavam suas famílias e se aventuravam? _ ela fez as perguntas quase para si mesma. Mas de repente todos se interessaram pela resposta.
_ Na Itália havia desemprego e muitos anúncios nos jornais e rádio propagavam que no Brasil havia terras com fartura e emprego nas lavouras de café, o que se soube depois ser só parte da verdade._ Ele não se cansava de contar.
Assim os imigrantes instalados nas colônias recebiam lotes de diferentes tamanhos onde construíam suas moradas em regime de mutirão, eram casas altas e recebiam divisão em forma de sobrado.
A casa dos pais de Marília era uma autêntica construção feita pelos imigrantes. Haviam restaurado o sobrado em várias ocasiões, mas com todo cuidado para não descaracterizá-la.
_ Mas, além de italianos, outros povos da Europa também vieram para o Brasil _ lembrou ela, se referindo especialmente aos Pomeranos.
_ Nem sempre a convivência entre os diferentes imigrantes, alemães, italianos e poloneses foi tranqüila _ lembrou Arnaldo Martinelli _ a diferença de religião por exemplo muitas vezes foi motivo de discórdia. Os alemães eram protestantes e os italianos eram católicos, mas nas horas de folga e no tempo de lazer, os colonos italianos praticavam jogos e organizavam festas contagiando assim com sua alegria toda gente do lugar.
Marília adorava ouvir esses casos. O melhor lugar do mundo era alí em Santa Teresa. Sua casa, a casa dos pais e dos tios. Todas na mesma rua. Ela era feliz e sabia disso.
Meia hora depois de chegarem ao balneário, não havia mais lugar para uma barraca ou sombrinha à beira do mar. A pequena cidade de pouco mais de trinta mil habitantes, nessa temporada recebia pelo menos tres vezes mais esse número de pessoas. Eram mineiros, baianos e até estrangeiros em férias. Instintivamente Marília apertou as mãozinhas de Giulia. Crianças que se perdiam dos pais era acontecimento rotineiro. Às vezes quando anunciavam o desaparecimento de alguém pelo serviço público de som, ela se angustiava só de imaginar o que uma mãe poderia estar sentindo com a perda do seu filho.
Quanto ao mar, não se preocupava, Giulia tinha pavor de água. O barulho das ondas a amedrontava. Marília sempre a levava no colo para brincar na parte mais rasa da praia que não oferecia perigo algum. A filha não se aventuraria a entrar no mar sozinha. Aventura que ela não incentivava, um pouco de medo não lhe faria mal.
Sob os olhos sempre vigilantes de Marília, Giulia e Vitório, construíam um castelo de areia com direito a muros, passagem secreta e lago com peixinhos. Ele era atencioso com a menina. Os dois se conheciam desde a infância. Fora um amigo leal quando ela engravidou. No dia em que a pequena Giulia completou dois anos de idade, ele pediu Marilia em casamento. No princípio ela repeliu a idéia. Vitório era jovem demais, ela também o era, mas sentia-se adulta e pronta para constituir uma família, mas não tinha certeza de que ele estivesse preparado. Às vezes era tão infantil, outras tantas exagerava na dose dos ciúmes. Mas encantava a todos com seus belos olhos cinzentos, sua voz atraente e um jeito sedutor, como se isso não bastasse era extremamente carinhoso com a filha de Marília. Ele se especializara em mecânica pesada. Trabalhava em sua própria oficina. Ela também acalentava o sonho de ter seu pequeno negócio, mas com o nascimento da filha, trocou a escola secundária pelo emprego em uma confecção de porte médio. Ali já havia experimentado de tudo: função de cortadeira, arrematadeira, costureira e atualmente exercia a função de chefe de salão. Essa experiência lhe era bastante útil, pois ela já confeccionava algumas peças de linha praia por conta própria, nas horas de folga do trabalho, usava até mesmo um nome fantasia para sua futura fábrica, “Giullia Confecções”. A gerente e também estilista, solicitava cada vez com mais freqüência, sua aprovação às peças que deveriam integrar a nova coleção. Era a parte que ela mais gostava. As idéias partiam de um estilo próprio. Suas amigas invejavam o verdadeiro milagre que ela conseguia realizar, vestir-se de maneira tão elegante com um orçamento tão apertado. O segredo, ela não escondia e sem parecer pretensiosa , ela o revelava:
_ A elegância mantém uma relação de cumplicidade com a simplicidade.
Marília olhou o relógio preocupada com o sol forte. Mãe cautelosa, não se descuidava em oferecer líquido à pequena Giulia. A caixa térmica que continha água e refrigerante estava quase vazia, havia somente algumas cervejas. Ela tomou a decisão de ir até à lanchonete mais próxima para abastecê-la novamente. Os pais e os tios tinham saído para uma caminhada pela orla marítima, era prazeroso caminhar em grupo. Sempre se podia conversar sobre tudo e sobre todos em uma caminhada.
_ Vitório, por favor tome conta de Giulia, vou até à lanchonete do outro lado da avenida comprar água mineral, está bem?
_ Contando que não se apaixone por alguém..._ Ele sempre brincava assim com ela, especialmente quando a via naquele maiô azul celeste, feito por ela mesma. Fizera um igual para Giulia, a menina adorava vestir-se como a mãe. Num gesto típico de quem não quer atrair atenção sobre si mesma, ela se envolveu em uma saída de praia que combinava perfeitamente com o maiô,
sem conseguir esconder suas formas provocantes. Deu um beijinho em Giulia e saiu apressada em voltar logo.
Na lanchonete lotada, o atendente do caixa demorou em devolver seu troco. Agoniada com a demora, Marília quase desistiu da compra, mas não teria outra opção, onde quer que fosse iria encontrar quilômetros de fila e atendimento lento.
Pegou seu troco, atravessou a pista e ganhou a areia quente. Localizou a barraca mas não havia ninguém lá. Ela estranhou. O recomendado era que não se deixasse os equipamentos e objetos pessoais sem vigilância, pois poderiam ser facilmente roubados.
O castelo de areia, abandonado ao vento, já começava a desmoronar. Olhou em direção ao mar, Vitório e Giulia provavelmente estariam na água.
Dez minutos se passaram, ela vasculhara com os olhos toda a área onde eles deveriam estar. Não havia sinal deles. Seu coração começou a ficar apertado.
Por mais quinze longos minutos ela esperou de pé ao lado da barraca tentando entender o que estava acontecendo, alguma lhe dizia que havia algo errado.
Vitório afinal chegou com uma expressão no rosto que a assustou ainda mais, e pior, ele estava só.
_ O que está acontecendo? Onde está Giulia? _ As perguntas atropelaram seus pensamentos, e antes mesmo que ele respondesse... ela já sabia.
_ Ela sumiu... num instante estava aqui, no outro não estava mais..._ havia pânico em sua voz.
_ Ai, meu Deus... minha filhinha... _ gemeu como se sentisse dor.
_ Calma, Marília. Nós vamos achá-la, ela tem que estar por perto. Não pode ter ido muito longe. _ tentava convencer a si mesmo.
Marília pensou que isto não estava acontecendo, não com ela. Devia ser outra filha perdida, de outra mãe, mas não a sua filhinha, não Giulia.
Rui Zanetti dirigia sua caminhonete em alta velocidade. Máquina ultrapassada, sua capacidade era bastante limitada. Olhou de soslaio para o banco a seu lado. A menina de maiô azul dormia exausta de tanto chorar. O que ele fizera? Perguntava-se com o peito apertado. Não queria pensar nos pais da criança, ele não os conhecia, nem ao menos chegou a vê-los. A menina estava lá na areia da praia, brincando sozinha, foi fácil convidar a pequena para tomar um sorvete. Ela segurou sua mão de maneira firme, como se o esperasse. Parecia-se tanto com sua filhinha: a cor dos cabelos, os mesmos olhos de esmeraldas, teriam o mesmo tamanho agora se a meningite não a tivesse levado. Doença terrível que aniquilou vidas e mutilou outras tantas na cidade de Colatina, extremo norte do Espírito Santo. Leila Zanetti, sua mulher, nunca se recuperou da perda da filha. Haveria de devolver o sorriso ao rosto de sua esposa quando chegasse em casa com a menina.
Ela tinha chorado bastante, mas agora dormia tranqüilamente. Assim que avistasse um posto de gasolina, faria uma parada, compraria para ela todas as porcarias que Leila reprovava: balas, doces e refrigerante. Pouca coisa satisfazia uma criança, pensou Rui, mas eles tinham muito mais para dar a ela. Em sua casa o dinheiro era escasso, mas sobrava amor, atenção e ternura. Seu pensamento voou para a mulher, quase podia vê-la definhando a cada dia, sucumbindo à tristeza por ter perdido a filha.
_ Foi a vontade de Deus, Leila. _ Ele disse tentando consolar a mulher e a si mesmo.
_ Ele nos deu um presente, e eu não fui capaz de cuidar bem dele. _ Ela dizia com os olhos cada dia mais tristes.
Durante dois anos ela tentou engravidar novamente. Não foi capaz. A tristeza da esposa era tanta que Rui não quis mais viajar e deixá-la sozinha. Mas, o preço do coco verde nas cidade litorâneas, ao norte do Espírito Santo era bastante alto e compensava dirigir alguns quilômetros para negociar. Levava a caminhonete lotada e voltava com ela vazia. Agora nunca mais iria voltar àquelas bandas. Venderia o carro e começaria um plantio de mamão papaia, de preferência em uma chácara arrendada, mais ao sul da Bahia. A família estava completa outra vez.
Todo entardecer, para Marília, sempre trazia um pouco de melancolia, o dia indo embora, a noite que vinha sem ser convidada, deixavam naqueles poucos minutos de transição, uma sensação de saudade que ela nunca pudera explicar. Agora poderia. E naquele momento, sentada na areia da praia, completamente só, soube que sem Giulia, as tardes de sua vida seriam infinitamente tristes.
Afastou esses pensamentos, teria que pensar positivamente. Iria encontrá-la. Ou ela a encontraria.
Haviam procurado por horas e horas seguidas, os pais, os tios e toda a cidade se mobilizou para ajudá-la.
_ A solidariedade ainda é o grande tesouro que a humanidade guarda dentro de si._ Marília disse à sua família quando faziam uma avaliação das buscas.
Brotara ajuda dos quatro cantos da comunidade, os recursos estavam todos esgotados, não havia mais onde procurar, estavam todos exaustos, menos Marília, que parecia disposta a virar tudo pelo avesso para encontrar a filha.
_ Reservei apartamentos num hotel da cidade, vamos pernoitar ali, amanhã veremos o que mais pode ser feito. _ Arnaldo convenceu todos, só não conseguiu convencer Marília, que alugou uma barraca de acampamento e montou-a no mesmo local onde a filha desaparecera. Ela poderia voltar. Queria estar ali quando isso acontecesse.
Sozinha na escuridão da noite, envolvida numa sensação de solidão, ela chorou como choram as crianças, deixando escapar o som da dor, em protesto a toda tristeza que estava sentindo.
A viagem tinha sido longa o bastante para que Rui pensasse em um argumento que convencesse à mulher e aos vizinhos da legalidade do seu ato ao trazer a menina para casa. Ele mesmo quase se sentia convencido de que a encontrara naquele orfanato, “ Lar das crianças”, bem próximo ao museu Melo Leitão em Santa Teresa. Afinal muitas vezes estivera lá, à procura de uma menina para adotar. Visitas em vão. Rui nunca encontrara a sua pequena. Havia bebês, meninos pequenos e maiores, mas nunca uma garotinha que se parecesse com a sua. Se essa criança que estava agora do seu lado, tivesse sido deixada no orfanato para adoção, estaria com o coração mais leve, sem o pesar de causar sofrimentos a outros. Rui afastou o pensamento da dor e resgatou o da felicidade que traria à esposa. Faria qualquer coisa para ver Leila feliz.
Com ternura tocou os cabelos anelados de Giulia. Ela se deixou tocar. Haviam se tornado amigos. Vestia um vestido barato que Rui comprara, na beira da estrada, junto com uma porção de brinquedos, o coelhinho cinza, de pêlos macios tinha sido eleito seu preferido.
_ Vamos cantar uma canção... _ ele começou uma velha canção italiana e ela o acompanhou na melodia.
Rui sorriu, ele suspeitara desde que a vira, ela descendia de imigrantes italianos. A seu lado a pequena cantava e brincava, com o desprendimento e a inocência que só as crianças conseguem ter.
Marília chorou todas as lágrimas nos trinta dias que se passaram, agarrada à esperança de novamente ter a filha nos braços. Vitório a seguia como um autômato, desorientado. Por menor que pudesse parecer uma pista, lá estava ela ocupando todos os espaços, tomando o controle da busca. Ela determinara que fosse assim. Era a mãe. A responsável. Cabia a ela a decisão de não menosprezar qualquer possibilidade.
Acordar todos os dias e levantar da cama dependia de continuar acreditando que iria encontrá-la.
Vencida sua licença do trabalho, ela compreendeu que precisava voltar para casa, para o marido e sua vida sem Giulia. Mas isso não significaria desistir. Nos finais de semana iria de cidade em cidade com a fotografia dela nas mãos. Precisava acreditar que a teria nos braços, que um dia a abraçaria novamente e juntas fariam de conta que tudo não passara de um sonho horrível que afinal chegara ao fim.
A FITEC, feira da indústria textil e de confecções é uma das mais importantes do Brasil. Ponto de encontro de conhecidos nomes da moda e grandes compradores lojistas. O Centro de Convenções de Vitória, local do evento, é um dos mais elegantes e modernos “points” da capital. Os stands estavam sendo montados em salões com ar condicionado central. Movimentaria, segundo as previsões dos organizadores, o dobro das cifras alcançadas no ano anterior. Parte desse aumento de negociações se devia ao apoio e incentivo às micro e pequenas empresas promovido pelo SEBRAE, órgão do governo. Uma espaço especial, dentro do centro de convenções de Vitória, havia sido destinado a essas empresas que fariam a exposição de seus produtos com baixo custo.
Marília olhou à sua volta, a movimentação era intensa. As pessoas pareciam formigas indo de um lado para outro enquanto montavam vitrines, carregavam manequins nus de acrílico, falavam pelo celular com alguém invisível. Estranhamente ela gostava de toda aquela movimentação. Seu stand estava praticamente pronto, faltavam apenas alguns detalhes, como aquele arranjo que estava terminando, um jarro transparente adornado com copos de leite muito brancos. Tinha conseguido um efeito belíssimo. Colocou-o bem na entrada. As peças de roupas da coleção já estavam no lugar, expostas em “araras” cobertas por um lençol. Queria manter o suspense, só retiraria o pano quando a exposição estivesse oficialmente aberta, o que aconteceria em duas horas.
_ Estou tão nervosa, Lia. Mais do que no meu primeiro encontro. _ Enquanto falava, Isadora Rassili estalava todos os dedos das mãos de uma só vez.
_ É. A primeira vez é sempre muito especial _ Marília riu, propositadamente dando duplo sentido à frase.
Ela também estava nervosa. Afinal investira muito nessa exposição. Sua empresa era pouco mais do que ela poderia chamar de “fundo de quintal”. Funcionava com oito funcionárias: cortadeira, costureiras, arrematadeiras e seu braço direito, Isadora, pau para toda obra. Onde quer que precisasse de seus serviços, lá estava ela. Tocou a mão da funcionária, amiga e conselheira com carinho.
Correu o pequeno stand com os olhos, tentando encontrar alguma coisa fora do lugar. Mas estava tudo em ordem. Restava esperar pelos compradores lojistas. Tencionava vender a produção de pelo menos dois meses. A inconstância nas vendas acabava sufocando o bom desempenho de sua pequena empresa. Às vezes não conseguia colocar no mercado toda produção, outras vezes, a procura se tornava maior do que poderia produzir. Isso afetava o equilíbrio das contas a pagar e a receber.
Buscava ali na feira, compradores em potencial, com maior solidez, que pudesse absorver toda a produção do mês.
Marília havia pedido demissão da fábrica onde trabalhava, um ano depois daquele dia em que sua vida se tranformara completamente. O dia em que se perdera da filha na praia. Precisou de autonomia para viajar e continuar as buscas por Giulia. Montou então o seu próprio negócio. No princípio ela mesma cortava, costurava e acabava as peças. Isadora veio auxiliá-la alguns meses depois colocando as peças no mercado. Os momentos em que trabalhava montando a coleção eram de raro prazer para Marília. A escolha dos tecidos, a modelagem e por fim a confecção. O produto final dava a ela o sabor de realização. Era entre os novelos de linha e o barulho das máquinas trabalhando, que ela se sentia segura.
Quinze anos haviam se passado sem Giulia. Todos os dias de sua vida esperou encontrá-la. Onde quer que estivesse, em cada esquina, esperava dar de cara com a filha. Sua menina não era mais uma menina, estaria com dezenove anos. Doía pensar que não a vira crescer. Não estava lá quando ela precisou, nem quando se tornou mocinha. Não pôde estar junto para ouvir seus segredos, estar por perto quando se magoasse...
Isadora tocou os ombros dela , num abraço. Ela sempre vinha trazê-la de volta quando percebia que a amiga “viajava” ao encontro da filha.
_ Lia... o serviço de som está anunciando a abertura oficial da feira. Por que você não vai até o salão central para ver a solenidade? Eu tomo conta de tudo por aqui.
Sorriu para dizer que estava tudo bem.
_ A melhor parte sempre sobra para mim. Você sabe como adoro discursos. _ Levantou-se decidida, ajeitando o vestido de crepe verde esmeralda da cor exata dos seus olhos. O modelo fazia parte da coleção primavera-verão, era o seu preferido. O corte simples e sofisticado, deixando seus ombros à mostra. Passou os dedos por entre os anéis dos cabelos curtos.
_ Você está linda! A modelo perfeita para divulgar a nova coleção.
_ Exagerada..._ Marília beijou de leve o rosto da amiga. Ali estava ela, sempre levantando o seu astral.
Isadora a seguiu com o olhar enquanto se misturava aos expositores que iam de um lado para outro, dando acabamento final ao trabalho de montagem dos stands. Eram amigas desde sempre. Estudaram no mesmo colégio, trabalharam juntas na única fábrica de confecções de Santa Teresa. Quando Marília pediu demissão, ela sentiu-se subitamente perdida. Meses depois, a amiga, a convidou para promover suas vendas, ela ficou extasiada. A amizade que nutria por Marília, ia além do interesse profissional, orgulhava-se em ser funcionária de alguém tão especial.
Nesses anos todos, Isadora acompanhou passo a passo, a luta travada por ela para encontrar a filha. Sofreu a cada investida que a levou a lugar nenhum. Vezes sem fim dizia à amiga que desse por encerrada essa quase obsessão, ela vivia em função de um pequeno indício que terminava sempre em frustração. Não havia garantias de que Giulia estivesse viva.
Marília escolheu um lugar não muito próximo aos palestrantes, assim poderia sair de fininho sem ser notada. O discurso se repetia a cada ano. Projetos de incentivo que beneficiava a poucos, a feira conseguia reunir grandes compradores sim, mas para visitar os grandes stands. Sentia-se como um peixe pequeno se alimentando das sobras dos tubarões.
Sorriu cumprimentando uma senhora de meia idade a seu lado e ela pareceu disposta a fazer amizade.
_ Meu nome é Natália Dalcolmo, sou de Colatina, fabricante de roupas infanto-juvenil. _ Estendeu a mão grande e afetuosa para Marília.
_ Represento a “Giulia confecções”, moda feminina. Meu nome é Marília Borttoline, moro em Santa Teresa. Somos quase vizinhas.
Natália deixou Marília muito à vontade com seu jeito alegre e extrovertido, em minutos estavam trocando impressões sobre os palestrantes e os fundamentos de seus discursos.
_ Para mim, é muita falação para pouca ação _ dizia Natália _ sou veterana neste tipo de feira.
Marília não notou o grupo que se formou logo atrás delas, aparentemente atentos ao palestrante.
_ A meu ver, o maior perigo que uma pequena empresa corre em eventos como esse é ficarmos expostos a grandes compradores sem escrúpulos que em função de negociarem grande parte da produção, regateiam os preços, nos colocando na difícil posição de “pegar ou largar”.
Ela falava tão categoricamente que chamou a atenção do homem alto e elegante, logo atrás dela. A equipe que o acompanhava ouvia atentamente o palestrante, mas ele percorreu com olhar minucioso a dona daquela voz tão deliciosamente rouca.
A voz tinha um belíssimo corpo, ele pôde notar, mesmo porque estava bem à sua frente, que seu traseiro era fenomenal. O que elas falavam também não lhe passou despercebido.
_ Mas essa preocupação não precisaremos ter, _ dizia Natália _ a área destinada às pequenas e micro indústrias como nós, fica a quilômetros de distância da área destinada às grandes empresas.
_ Concordo com você. As grandes redes de lojas nem se darão ao trabalho de nos visitar. Mas nos restam os pequenos lojistas... e falando nisso, é melhor retornar ao trabalho.
A cerimônia chegou ao fim e a feira estava oficialmente aberta. O público desfazia a concentração e começava a se encaminhar em direção aos stands.
Ela despediu-se de Natália Dalcolmo e se encaminhou ao toalete. Quando Marília saiu apressadamente, com a intenção de voltar logo para o stand, quase bateu de frente com um muro de paletó e gravata. Não chegaram a se tocar, mas ele ficou ali olhando para ela com um olhar divertido. Ela, com cara de boba. Desviou-se para a esquerda no mesmo momento em que ele também o fez. Continuaram frente a frente.
_ Você primeiro, por favor. _ Gentilmente indicou o caminho com a mão estendida.
Ela passou por ele sentindo-se infantil. Detestava se sentir assim. Não era mais nenhuma garotinha, não devia ficar encabulada com todo bonitão que atravessasse, literalmente, seu caminho.
Armani Falqueto a viu afastar-se. Ela andava suavemente, mas com a certeza de quem conhece o terreno onde pisa. Lembrou das palavras dela: “os grandes lojistas nem se darão o trabalho de nos visitar”... de repente foi tomado por uma forte curiosidade em conhecer seu trabalho, sua coleção, conhecer a dona daquela voz rouca e sensual.
Isadora já havia retirado os tecidos que cobriam os expositores de roupas da coleção, quando Marília chegou ao stand.
Lia vistoriou peça por peça pela centésima vez. Não queria que nada desabonasse seu trabalho feito com tanto cuidado e capricho. Uma ponta de linha solta, uma costura fora do lugar, nada passava à sua inspeção.
_ Tudo está impecável, amiga. Não se preocupe, vai chover na nossa horta.
Marília sorriu. Gostava do modo como Isadora “vestia a camisa” da pequena empresa, dividindo com ela a ansiedade da espera dos compradores.
Não foi preciso esperar muito. Logo eles começaram a entrar e pelos olhares de admiração, ela pôde confirmar o que já sabia: a coleção enchia os olhos. Ela a preparara com bastante antecedência. A tendência daquela estação havia sido ditada na Europa e ela fora criteriosa em absorver somente o que poderia adaptar aos padrões brasileiros. A transparência, fetiche da última estação, retornava, só que totalmente reformulada, se antes predominava os tons pastéis, agora ganhava força total os tons fortes, cores vivas e alegres.
A moda “Giulia” evidenciava um público alvo, as jovens senhoras, que por sua vez tinham pouquíssima opção no mercado. Para esse segmento, as roupas eram extravagantes ou sóbrias demais. Exatamente aí ela encontrou sua identidade.
As fábricas, já estabelecidas, não davam a devida atenção à essa fatia do mercado. Acreditando, ela preparou sua coleção basicamente voltada para jovens senhoras na faixa de trinta a quarenta anos, usando a juventude e o frescor das cores alegres mescladas aos tons pastéis. Tecidos nobres se misturavam às transparências, cortes jovialmente ousados terminavam em comprimentos comportados. Tudo discretamente sensual.
Para garantir o êxito completo nas vendas, ela havia negociado preços e prazos com maiores e melhores fornecedores de matéria prima. Nada de atacadistas encarecendo o produto final.
Marília circulava por entre as pessoas que visitavam o stand. Sempre solícita, atendendo a todos que se interessavam por preços e informações. Já estavam no final da noite e o saldo de toda aquela movimentação não tinha sido satisfatória. Pequenas encomendas que resultariam de apenas algumas semanas de trabalho.
No pequeno frigobar, instalado discretamente nos fundos do stand, ela serviu-se de um vinho de jabuticaba especialmente feito para aquela ocasião, trouxera de Santa Teresa para servir aos clientes. De costas para a entrada, ela não viu quando eles entraram. Assim que se voltou, com a taça de vinho nas mãos deu de cara com aquele sorriso divertido nos lábios novamente e para variar, sentiu-se meio ridícula, ali parada sem saber exatamente o que fazer, se oferecia o vinho ou se oferecia a coleção. Decidiu-se pelos dois:
_ Boa noite, fiquem à vontade para conhecer nossa mostra primavera-verão “Giulia”. Aceitariam um vinho especial? _ levantou ligeiramente a taça como se fosse brindar, tentando não parecer intimidada com a presença daquele homem de aparência tão impecável e seus acompanhantes.
Ela reconheceu primeiro o terno e a gravata dele, depois reconheceu seu cheiro bom. Já tinha experimentado aquele perfume quando quase cravou o nariz no peito dele.
_ Boa noite. _ ele sorriu de maneira enigmática.
Isadora, sua fiel escudeira, veio em seu socorro e livrou-a da taça de vinho para que pudesse fazer as honras da casa e apresentar seu trabalho. Dava para notar que eram peixes grandes.
_ É a proprietária? _ ele estendeu a mão para cumprimentá-la formalmente.
_ Marília Bortolline. Sim, sou a proprietária, e esta é minha auxiliar, Isadora. _sorriu para a amiga.
_ Armani Fallqueto.
_ Da “A&G”? _ Isadora estava surpresa, havia reconhecido Armani Fallqueto das revistas especializadas em moda.
Um dos homens que o acompanhava, se adiantou:
_ O sr. Armani veio a Vitória para a inauguração de mais uma loja.
As lojas “A&G” dispensavam apresentações. Estava em todos os jornais, a inauguração de mais uma loja, desta vez no centro comercial de Vila Velha. No maior shopping em Vitória, a “A&G” já era um sucesso estrondoso. Havia lojas espalhadas nas principais capitais do Brasil e no exterior. De origem italiana, seu bom gosto, preços acessíveis, solidez e o empenho na satisfação do cliente eram reconhecidos no mundo da moda.
Marília teve certeza, não eram só peixes grandes, eram tubarões.
Ele soltou sem pressa sua mão. Olhava interessado as peças dispostas em cabides que sua equipe, bastante entusiasmada vinha lhe mostrar. Não passou despercebido a Lia, os sinais discretíssimos de acentimento que ele enviava aos outros. Em certo momento ele deu por encerrada sua visita.
_ Gostaria de ficar, mas tenho um compromisso _ sua voz era suave, com leve sotaque italiano, observou ela, bastante familiarizada com o dialeto _ o sr. Silas, gerente de compras das lojas no Espírito Santo, negociará com você. Não deixe que ele a explore, regateie preços ou a coloque em posição de “largar ou pegar”. Procuramos parceria. _ piscou o olho direito para ela, sorrindo de um jeito arrasador.
“Minha Nossa, então ele tinha ouvido seu desabafo com Natália.”
Ela não teve tempo de dizer nada em sua defesa. Ele já se fora.
Marília se viu cercada por toda equipe que fazia mil perguntas a respeito de cortes e acabamento. Uma jovem modelo experimentou peça por peça, a cada prova, sorrisos de aprovação por parte do gerente que muito educadamente elogiou seu estilo, que emprestava à roupa uma elegância discreta e deliciosamente feminina.
Ela seguiu os conselhos de Armani, não cedeu um milímetro sequer nas negociações. Mesmo porque, não tinha outra escolha. Eles queriam entrega imediata, ela precisava de prazos para se estruturar e formar uma equipe de trabalho maior. Eles teimavam em receber uma quantidade de peças duas vezes maior que sua capacidade de produção, ela se manteve firme só confirmando o que poderia cumprir. Uma surpresa ficou reservada para o final, eles sugeriram uma antecipação de parte do pagamento e o restante no ato da entrega. Marília mal pôde se conter, isso resolveria alguns dos problemas que iria enfrentar para o aumento de produção.
_ Tenha uma boa noite, Marília._ Ela o proibira de chamá-la por senhora Bortolline. Eram parceiros agora. E ela teria, sim, uma ótima noite.
Acompanhou todos até à porta. Estava exausta, mas completamente satisfeita com a negociação. Quando voltou-se para Isadora, seu sorriso ia de orelha a orelha. A amiga correu em sua direção para um abraço caloroso, o sorriso evoluiu para o riso, que cresceu até se transformar em uma deliciosa gargalhada, se desfazendo em lágrimas silenciosas e soluços abafados.
Isadora compreendeu imediatamente, ela sabia que a carga sobre os ombros dela, há muito tinha ultrapassado o limite do humanamente suportável.
Depois do choro silencioso veio o alívio da tensão. A satisfação do objetivo alcançado naquela feira, preencheu uma parte do imenso vazio deixado pelas lembranças da filha desaparecida.
_ Eu sinto que chegou a hora de seguir meu caminho. _ Isadora deixou que ela fosse até o frigobar, servisse dois cálices de vinho, entregasse um a ela, secasse com as costas das mãos , todas as lágrimas antes de continuar a falar, mais consigo mesma, que com ela.
_ Preciso encarar firmemente a possibilidade de jamais rever minha filha. Preciso cuidar da minha própria vida. Essa é a minha chance de realização profissional. Vou me mudar para a “cidade grande”, trazer a fábrica, e quero que você venha comigo. Estou te oferecendo uma participação nos lucros e não aceito, não, como resposta.
Marília disse tudo num fôlego só. Acalentava essa idéia a tempos, faltava o empurrãozinho que acabara de receber.
Foi a vez de Isadora deixar as lágrimas rolarem livremente. Eram de alegria. Há muito desejava essa expansão em sua vida. Morar em Vitória significaria poder freqüentar cinemas, teatro, bons restaurantes e ainda por cima acréscimo salarial. Melhor... Impossível!
_ Quando faremos a mudança?! _ Isadora colocou um tom de urgência na pergunta, só por brincadeira.
_ Depois de uma boa noite de sono, viajaremos para Santa Teresa a fim de organizar nossa transferência para Santa Inês, o polo industrial em Vila Velha, sem atropelos, mas com uma certa rapidez. Não temos tempo a perder, se quisermos entregar as encomendas sem atraso.
A FITEC continuaria por mais vinte e quatro horas. Mas para a “Giulia confecções,” um dia apenas fora o bastante. A produção das coleções primavera-verão e alto-verão fora vendida, não havia mais o que fazer ali.
Canavieiras, cidade pequena ao sul da Bahia, quase divisa com Espírito Santo, viu Giulia crescer sendo chamada pelo nome de Luisa Grassi, homenagem carinhosa ao pai de sua mãe adotiva, Luis Grassi. Aquela criaturinha esperta e arisca preencheu todos os dias de uma mãe carente em externar seu amor materno. Naquela cidade do interior, ninguém jamais questionou a identidade da menina.
Posta de lado a enorme vontade de engravidar, Leila Grassi só se deu conta da gravidez quando suas roupas começaram a ficar justas.
Rui Bernardi cogitou a possibilidade de levar a menina de volta à cidade de Jacaraípe. Mas a dupla felicidade da esposa o impediu. E ele não tinha como negar, amara a criança desde o momento em que a vira na areia da praia.
O bebê nasceu no verão. Não demorou muito e os poucos amigos do casal foram unânimes em uma opinião: o recém-nascido tinha a fisionomia de Luisa, a mesma cor dos cabelos e nos olhos o mesmo tom verde das esmeraldas. Sendo um menino, Leila pode assim concretizar o desejo de homenagear o pai, chamando-o de Luis Grassi.
Luis Grassi, juntamente com outros imigrantes italianos vindos da cidade de Milão, aportaram em terras capixabas e seguiram quase que imediatamente para a região de montanhas em Santa Teresa e se fixaram em um pequeno vilarejo chamado Santa Júlia.
Na Itália, o único irmão de Luis Grassi, resistira em vir para o Brasil. Os dois haviam crescido em um orfanato, não tinham ninguém a não ser um ao outro. Luís abraçou fortemente o irmão, Carlos Grassi, com a voz rouca pela emoção, prometeu:
_Voltarei para visitá-lo.
Promessa que jamais cumpriu. A vida no Brasil mostrava-se extremamente difícil. Sobreviver do fruto que a terra dava era uma tarefa árdua.
Darília, filha de imigrantes, surgiu em sua vida com a mesma suavidade dos primeiros raios de sol da manhã. E assim como veio, partiu, deixando Leila nos braços de Luis pouco depois que o sol do meio dia se fizesse em sua vida. A morte da esposa o fez pai e mãe, ele nunca mais se casou.
Leila Grassi já trabalhava em um pequeno restaurante à beira da estrada poeirenta e esburacada que ligava Santa Júlia a Colatina, quando conheceu Rui Bernardi. Ele voltou muitas vezes para vê-la. Ela era a criatura mais doce que ele já vira, franzina, aquela descendente de italianos arrebatou seu coração.
_ Quero ter você comigo, todos os dias da minha vida._ Ele disse apaixonadamente. Naquele dia ele a pediu em casamento.
Leila e Rui foram morar em Colatina. Meses depois ela recebeu a notícia da morte do pai.
Rui era agora, tudo que ela teria, além dos muitos filhos que desejava gerar. Mas os anos se passavam, a ansiedade e a frustração invadiram a vida de Leila. Quando havia perdido a esperança de ser mãe, a gravidez aconteceu. Sua felicidade durou pouco. Leila e outras seis mães perderam seus filhos para a meningite, num surto da doença que varreu a cidade. A tristeza fez moradia permanente em seu coração. Mas no momento em que ela colocou os olhos na menina que supôs ser órfã, ela a quis.
_ Venha pequenina _tomou-a pela mão, não queria assustá-la _mamãe vai cuidar de você.
Canavieiras, cidadezinha de pouco mais de vinte mil habitantes, sobrevivia basicamente da atividade cacaueira. Para se chegar à chácara em que morava a família de Rui Bernardi, atravessava-se um bairro da periferia muitíssimo violento. Reduto de marginais. Com a produção de cacau em baixa, o número de desocupados crescia a cada dia na cidade. A inclinação para as coisas mal feitas e a malandragem pode ser notada desde cedo no caráter de Luis Grassi. Aos quinze anos uma personalidade rebelde e avessa aos ensinamentos caridosos de sua mãe se fazia anunciar. Pequenos furtos e uso de drogas passaram a fazer parte de sua rotina.
Rui Bernardi assistia impotente a destruição do filho e a depressão aniquilou a pouca saúde da mulher que não tinha mais disposição para se levantar toda manhã . Ele não teve dúvidas quando ela se foi. A causa de sua morte havia sido uma doença chamada desgosto.
Luisa aos dezenove anos lembrava mais um garoto que uma mulher. Cabelos muito curtos, trejeitos masculinos, sem maquilagem, usava freqüentemente as camisetas de malha do irmão, suas calças jeans, pelo menos um número a mais, atendiam a seu propósito, esconder dentro delas o corpo atraente de mulher. Maneira bastante simples, mas eficaz de afastar possíveis pretendentes daquele bairro tão violento.
Depois da morte da esposa, Rui refugiou-se na bebida, quase não trabalhava, só se espertando quando o dinheiro se tornava escasso. A maior parte do tempo passava em casa, ajudando às vezes, nos afazeres domésticos.
Sobrava assim, mais tempo para Luisa refugiar, por sua vez, no mundo das letras. A educação religiosa influenciara positivamente em sua formação.
O colégio Sagrado Coração de Jesus funcionava sob a direção da Madre Idalete Torezzani, religiosa de bondade extremada, paciente com os jovens alunos. Nutria um carinho especial pela criança viva e inteligente que nunca faltava às aulas. Luisa caminhava três quilômetros para chegar ao destino, fizesse sol ou chuva. A primeira a chegar ao colégio e a última a sair. Devorava com avidez os livros de poesias, romances e aventuras. Quando a escola foi informatizada e o mundo na telinha do computador se abriu para Luisa, ela estava cursando o último ano. Madre Idalete acompanhando o desenvolvimento dela junto à informática, convidou-a para assumir voluntariamente os trabalhos de informatização da escola.
O mundo na Internet fascinava Luisa, que passava horas grudada à tela do computador navegando por cidades, países, personalidades... curiosamente acessava páginas na Internet procurando informações de parentes dos pais adotivos. Ela conhecia de cor a história do avô materno que deixara na Itália, o irmão Carlos.
Fizera as contas, ele estaria com quase oitenta anos. Havia possibilidade dele estar vivo ou encontrar notícias de algum descendente.
A carência de uma vida familiar impulsionara Luisa a essa busca, com a permissão da Madre Idalete, usava o endereço eletrônico do Colégio Sagrado Coração de Jesus. A cada e-mail recebido, ela renovava suas esperanças de se comunicar com parentes da única família que conhecera. Catalogava e selecionava os dados que abririam espaço para novas pesquisas.
_ Como vai, minha filha? Encontrando respostas nesta máquina infernal?
Luisa achava graça nas expressões que Madre Idalete usava quando se referia ao computador. Tradicionalíssima, ela brincava sem menosprezar a importância da informática.
_ Hoje recebi mais um e-mail, estou certa de que vou conseguir, é só questão de tempo.
_ Está bem. Mas pare um pouco para lanchar. Sobre a mesa da cozinha estão os biscoitos assados de polvilho que você tanto gosta. Vou até a capela, não demoro.
Saiu da sala tão silenciosamente como entrou. Levava consigo o pensamento de que essa menina devia deixar o cabelo crescer um pouco mais e vestir roupas femininas como convinha a uma garota de dezenove anos. Por um momento ela pensou se não seria proposital o modo como ela se vestia, escondendo sua feminilidade.
Como de hábito, assim que Luisa saiu do colégio, foi direto para casa.
Ela pressentiu que alguma coisa acontecera no momento em que avistou a chácara. Carros da polícia passaram por ela em disparada, vindos de sua casa.
Trampôs a pouca distância que a separava da residência, correndo assustada, mas se preparando para o pior, sua intuição lhe dizia que o irmão aprontara mais uma.
_ Pai, o que aconteceu? _ afogueada pela corrida ela fez a pergunta num sussurro. Sua voz rouca quase sempre a traía em momentos de intensa emoção.
Puxou o rosto barbudo com as mãos, obrigando-o a olhá-la. Fazia assim desde criança, quando queria sua atenção. Viu lágrimas nos olhos do pai. Era estranho vê-las escorregarem naquele rosto que tanto amava. Ele a abraçou longamente para depois se desprender dos seus braços e fazer a confissão mais difícil de sua vida.
_ Seu irmão estava sendo procurado pela polícia. Ele está envolvido com roubos de automóveis. A polícia veio buscá-lo...
_ Mas como souberam que ele estava aqui em casa? _ interrompeu o pai. Sabia que essa não era a primeira besteira que o irmão fizera, a polícia já fora à sua casa outras vezes, mas nuca conseguira pegá-lo.
_ Eu denunciei seu irmão aos policiais... toda amargura do mundo estava na voz do pai.
Luisa o abraçou novamente tentando entender os motivos de sua atitude.
Rui Bernardi tentava a dose mais forte do remédio. Agora precisaria rezar muito para que a dose matasse somente a doença, sem matar o doente.
Madre Idalete imprimiu as mensagens eletrônicas que chegaram endereçadas a ela. Imediatamente percebeu que eram notícias da Itália, dos parentes de Luisa. Levou-as pessoalmente à chácara, preocupava-se com a pupila que a dois dias não comparecia ao colégio. Foi recebida com alívio por ela, que a colocou a par de tudo que se passava em sua casa.
_ Pobre criança._ Consternada, deixou Luisa entregue à leitura das mensagens e se dispôs a ouvir as angústias do pai aflito, ciente de que apenas ouvir o faria se sentir melhor.
Luisa mal podia acreditar no que estava lendo. Finalmente encontrara. Mais do que esperava: o tio-avô estava vivo e quem fornecia a informação era nada mais nada menos que seu neto, Francisco Grassi, que tinha ainda uma irmã, Isabela Grassi. Os pais haviam falecido em um acidente de automóveis. Mesmo sem nunca tê-los visto, Luisa sentiu por suas mortes.
Ela suspirou animada, fazendo planos para o outro dia bem cedo. Iria ao colégio para responder via computador, às mensagens eletrônicas. Francisco Grassi parecia igualmente interessado em buscar informações dos parentes.
Madre Idalete se despediu no fim da tarde, não sem antes recomendar cuidados especiais aos dois. Luisa sempre se enternecia com as preocupações da religiosa. Foi até o quarto do pai que parecia mais cansado que de costume. Ele estava deitado.
_ Pai, minhas buscas pela Internet deram resultado. Consegui conectar um neto do avô Luis Grassi. _ Esperava que essa notícia fosse alegrá-lo, no entanto só conseguiu tirá-lo de sua apatia para vê-lo mergulhar em suas recordações. Ela ficou ali pacientemente esperando alguma reação. Sem saber porque, ela de repente, teve a sensação de que o pai queria lhe dizer algo. Ficou a seu lado até ter certeza de que ele adormecera. No meio da noite, ela ouviu quando o pai a chamou. Pulou da cama rapidamente, sua voz soara estranha, como um pedido de ajuda.
A meia hora que se seguiu foi decisiva para que o pai chegasse com vida ao hospital. Depois de constatar os sintomas de um ataque cardíaco, massageou seu peito e aplicou os poucos conhecimentos de primeiros socorros, depois ela correu à casa do vizinho mais próximo que possuía telefone, chamou uma ambulância e voltou para casa rapidamente.
Somente quando o dia amanheceu, o médico de plantão permitiu que ela entrasse na UTI para vê-lo. Uns minutos apenas, dissera o médico.
_ Meu bem, preciso falar..._ ele parecia exausto.
_ Não deve, meu pai. O doutor disse que precisa descansar...
_ Vou descansar... mas antes preciso contar a você...
Ela soube que precisava deixá-lo falar. Parecia tão importante para ele.
_ Minha menina, não duvide nunca do nosso amor por você. Meu e de sua mãe. E se puder, me perdoe... _ as lágrimas corriam livres pelo rosto do pai, muito mais rápidas que ela pudesse enxugá-las._ ...fiz todos acreditarem que peguei você em um orfanato, mas essa não é a verdade, preciso dizer agora para poder partir com o coração aliviado.
Ela tomou as mãos dele entre as suas e as levou ao peito. Assustada com tudo que estava acontecendo.
_ Você estava brincando na areia da praia, sozinha, tão linda... tão minha... não pude resistir. Peguei suas mãozinhas e você me seguiu. Eu a raptei, minha filha. Esta é a verdade. Eu só espero que você me perdoe... _ ele soluçava, nos olhos dela brotavam as lágrimas, sem compreender exatamente a gravidade do momento que estava vivendo. Se o seu perdão bastasse para que ele não a abandonasse, então ela o perdoaria.
_ Eu perdôo, meu pai... perdôo. _ não sabia bem porque deveria perdoa-lo, mas se ele queria o seu perdão, ele o tinha.
O médico preocupado com a gravidade do quadro clínico do paciente, os interrompeu exigindo que ela fosse para uma sala de espera.
Ali ela permaneceu até a hora em que o homem de branco veio dizer que haviam feito o possível, mas ele sofrera mais um ataque e que este havia sido fatal. Luisa ficou sem voz. Mas não se importou, não tinha mesmo nada a dizer. Apenas chorou, silenciosamente.
Madre Idalete veio ajudá-la e tomou todas as providências para um enterro decente.
Precisava avisar o irmão. Foi até a delegacia, mas o haviam transferido para uma penitenciária na capital.
Dois dias depois ainda não tinha assimilado todos os acontecimentos e o proprietário da chácara onde morava veio pedir que ela desocupasse o lugar, sua casa onde morava desde criança. Não tinha para onde ir.
Madre Idalete, como um anjo bom, novamente a socorreu, levando-a para casa paroquial, temporariamente, até que ela pudesse se arranjar sozinha.
Surpreendeu-se ao ver que possuía tão poucas coisas. As lembranças que os pais deixaram, couberam dentro de uma pequena caixa. Alguns cartões, fotos, documentos do irmão. Só Deus saberia como ele estava.
O novo lar de Luisa tinha um aspecto limpo e acolhedor. As irmãs que lá moravam, a receberam com carinho e logo ela se sentiu confortável.
Relutava em sentar-se diante do micro, especialmente relutava em conectar-se à Internet e entrar em contato com o primo Francesco Grassi. Se o parentesco com os Grassi era apenas por consideração, sentia-se agora menos parente ainda, levando-se em conta que havia entrado pela porta dos fundos daquela família. Mas a imensa solidão que sentia , a necessidade de criar laços, a fez conectar-se. A mensagem endereçada à Madre Idalete, solicitava um diálogo direto com o neto de Luis Grassi e ela sem pensar, numa atitude impulsiva, fez-se passar pelo irmão.
A troca de informação segui-se por vários dias e a cada e-mail Francisco Grassi ia se inteirando da história do suposto primo, Luis Grassi.
Uma coisa ficou clara para Luisa, eles nada sabiam sobre a filha adotiva, haviam sido participados, através de cartas, do nascimento de uma filha que falecera aos três anos de idade e dois anos depois outro nascimento, desta vez um menino, mas ignoravam por completo a existência de uma filha adotiva.
Um novo e-mail chegou e Luisa surpresa lia a mensagem sem conseguir entender com clareza o que Francisco propunha: era um convite para ir à Europa visitá-los. O tio-avô desejava conhecer Luis Grassi pessoalmente. Deixava bem claro na mensagem, que a visita poderia se prolongar por mais tempo, caso ele demonstrasse interesse em continuar seus estudos na Itália. Minha nossa! Era um convite extraordinário! Pena que não fora dirigido a ela, e sim ao irmão. Pensou com tristeza na oportunidade que estava perdendo. O que não faria para estar no lugar dele...
Luis Grassi chegou à penitenciária no momento exato em que se iniciava mais uma rebelião. Os presos superlotavam a prisão, criando um clima de desordem e indisciplina. Haviam feito reivindicações que não foram atendidas e isso bastou para que o mal se alastrasse como rastro em direção a um barril de pólvora.
Dentro do cárcere, guardas eram feito reféns, visitantes eram agredidos com pedaços de pau e objetos pontiagudos. O caos se estabelecera.
Esse tipo de acontecimento estava se tornando fato comum, mas desta vez o número detentos mortos se superou e a rebelião passou a ser assunto discutido em âmbito nacional.
Foi assim que Luisa tomou conhecimento da morte do irmão, pela televisão.
Anestesiada pela dor, ela caminhou a noite toda pelos corredores escuros que ligavam a casa paroquial ao colégio Sagrado Coração de Jesus.
Sozinha. Irremediavelmente só.
Um pensamento muito estranho começou a tomar forma em sua cabeça quando sentiu braços protetores envolverem os seus. Irmã Clara vinha lhe fazer companhia.
_ Sei como se sente, minha filha. Também já perdi pai e mãe. Gostaria apenas que soubesse que por maior que seja a dor que está sentindo, aos poucos vai passar, e no lugar dela, vai chegando de mansinho, a saudade.
Luisa tentou sorrir, mas tudo que conseguiu foi fazer uma careta sem expressão. Conversaram durante toda a madrugada, já era de manhãzinha quando a Irmã Clara, para animá-la, contou a novidade:
_ Sexta-feira próxima, vamos fazer uma excursão à cidade de Santa Teresa, visitaremos o museu Melo Leitão, não gostaria de vir conosco?
Ela pensou em dizer não de imediato. Depois ponderou que sair um pouco lhe faria bem. Confirmou então, sorrindo.
_ Adoraria conhecer o museu.
_ A idéia esquisita que dançava em sua cabeça, poderia esperar.
Marília olhava as ruas de Santa Teresa com olhar de saudade antecipada. Ela nem se mudara e já sentia falta da cidade em que nascera e crescera.
Na venda do senhor Ângelo tinha um cheiro gostoso da pessegada preparada por ele, que a cortava em retângulos que cabiam na palma da mão, embrulhava em papel transparente e colocava à venda. Chovia menino para comprar, sentiam no ar o aroma delicioso. Sempre associara esse cheiro à sua infância feliz. Como não percebera antes, o quanto fora feliz!
A vinte anos atrás sua gravidez inesperada casou espanto e comentários, agora compeendia que seu casamento com Vitório havia sido precipitado pela necessidade que sentia em se redimir perante a sociedade Teresense. A base construída para essa união não suportou o sofrimento de Marília, causado pelo desaparecimento da filha. Vitório a deixou meses depois. Vendeu sua pequena oficina, mudou-se para outro Estado e saiu de sua vida sem olhar para trás. Marília não chorou. Já havia chorado todas. Cogitou a possibilidade de ficar sozinha pelo resto da vida, e uma sensação agradável de alívio tomou conta dela. Carregara aquele matrimônio nas costas por tempo demais. Precisava de sua liberdade para ir e vir, de cidade em cidade, na sua busca interminável.
Marília não abriu espaço para mais ninguém em seu coração. Dedicou-se ao trabalho na confecção e preenchia as noites frias de inverno em frente à lareira, com um livro bom.
Ela andava agora a pé, pelas ruas estreitas do seu lugar. Se despedia dos jardins, dos casarios, das calçadas, tocava com as mãos as pessoas que cumprimentava, sabendo estar se despedindo. Voltaria sempre que pudesse, mas pressentia que jamais seria igual. Precisava ir, se desprender dos laços que a protegiam, necessitava conquistar seu próprio espaço. Havia recordações demais ali. Jamais sairia da sombra das lembranças da filha se continuasse. Se queria mudar, daria o primeiro passo se afastando das pessoas que mais amava para poder avaliar sua própria existência.
As hortênsias desabrochavam na cor lilás, enfileiradas indicando o início da avenida, que abrigava as casas com sobrados. Todas juntinhas, a casa dos pais, a sua própria e a dos tios. Um nó veio incomodar sua garganta, esse seria o pior momento, a despedida da família. Ela tinha certeza que receberia as bênçãos dos parentes. Eles a apoiariam incondicionalmente, fossem quais fossem seus planos.
À sombra do ipê amarelo que lançava no vento suas pequenas flores, que caiam em seguida, cobrindo todo o chão por onde corriam as crianças que brincavam de pique-esconde.
_ Olha Marília, um ônibus de dois andares. _ Paulinho, menino arteiro que Marília pegara no colo desde bebê, chamou sua atenção para o imponente ônibus, que atravessava a avenida, provavelmente em direção ao museu Melo Leitão.
Era bastante comum naquela época do ano. As escolas excurcionavam com seus alunos para uma aula prática, e a meninada adorava o contato com a natureza exuberante por toda a área do museu.
O ônibus passou bem devagar, à sua frente, e ela pôde encarar rosto por rosto, aqueles jovens que teriam em média dezoito anos. Um pouco mais teria sua filha. As expressões alegres e curiosas pela janela continuavam a desfilar à sua frente. Um par de olhos verde esmeralda se deparou com os de Marília e por um breve segundo as duas mulheres se encontraram no olhar.
Marília ficou ali na calçada vendo a condução se afastar e uma inquietude tomou conta dela. Aquele rosto... aquela cor de cabelos... estava começando a duvidar de sua sanidade. Precisava com urgência urgentíssima parar com essa mania de ver o rosto da filha em todos os outros rostos.
_ Vamos Paulinho, tenho picolé de tangerina no congelador, traga a turma, tem para todo mundo.
O que a seguiu foi uma algazarra em forma de meninos e meninas. Ela adorava toda aquela confusão. Minutos depois já havia esquecido aqueles olhos tristes.
O ônibus era bastante confortável e espaçoso. Tinha dois andares. No inferior, uma pequena cozinha, a cabina do motorista e uma saleta com mesas circundadas por poltronas macias onde se podia conversar ou jogar cartas. No superior ficavam as poltronas dos passageiros. Luisa ocupava uma delas. Olhava pensativa a paisagem pela janela. Os olhos verdes daquela jovem senhora lembravam , curiosamente, os seus. “ Mas que bobagem”... pensou ela, “ naquela região, cabelos cor de mel e olhos claros eram quase uma regra devido à descendência européia”. Sacudiu a cabeça tentando afastar essas suspeitas sem fundamento.
Procurar os pais legítimos era uma possibilidade que já havia descartado. Depois, seria como procurar uma agulha num palheiro. O verdadeiro pavor de Luisa seria constatar que os pais a tinham abandonado deliberadamente. A família que aprendera a amar e respeitar era a que a havia colhido.
Horas antes de embacar nesta excursão ao museu, ela havia sentado na minúscula cama do quarto que dividia com a irmã Ana Clara e espalhado todo o conteúdo da única caixa onde guardara as lembranças de sua família e no meio dos pertences estava não uma, mas várias carteiras de identidade que Luis possuía, parecia até um colecionador delas.
A estapafúrdia idéia continuava querendo ganhar forma em sua mente. Teimando numa queda de braço com a sensatez.
_ Em que pensa minha menina?! _ Madre Idalete ocupou a poltrona vazia a seu lado.
_ Penso nos parentes de minha mãe, Madre _ Luisa suspirou melancólica _ e quanto mais penso, mais tenho vontade de conhecer cada um deles, melhor e pessoalmente.
_ O que era de se esperar, depois da intensa correspondência que você e seu primo mantém. E o que você me diz da proposta feita por seu avô? Pensou bastante no assunto, minha filha?
Era o que ela mais fazia, pensar. Poderia chamar a proposta de indecente e irrecusável. Tomou as mãos da Madre entre as suas, e sem encará-la disse parte da verdade:
_ O convite é tentador e estou pensando seriamente em aceitá-lo.
A outra parte da verdade, Luisa guardaria para si. O convite para ir morar na Itália com o avô e os primos era endereçado ao irmão, e não a ela. Eles nem ao menos suspeitavam de sua existência.
Desde a morte do pai, ela procurava não pensar sobre o delicado segredo que ele lhe revelara. Pelos Grassi fora protegida e não pretendia renegá-los. Mesmo que quisesse, e ela dizia veemente ao seu coração que não era esse o caso, a possibilidade de localizar os familiares legítimos era infinitamente remota. O pai dissera apenas que ele a pegara em uma praia, em trajes de banho. O litoral baiano era imenso, sem contar o capixaba, onde a grande maioria dos freqüentadores das praias eram turistas vindos de todos os Estados Brasileiros. Os nativos das cidades praianas não costumavam freqüentar as praias em alta temporada, pois oportunamente aproveitavam o aumento da população e trabalhavam duramente neste período. As chances dela ser filha de turistas em férias era infinitamente maior. Nenhuma lembrança a ligava a outra vida, a não ser o pequeno maiô azul que encontrara guardado cuidadosamente entre as roupas de Rui Bernardi.
_ Qualquer que seja sua decisão, minha filha, estarei sempre do seu lado. _ Madre Idalete interrompeu seus pensamentos trazendo-a de volta.
Já estava escuro quando o ônibus trouxe de volta as irmãs e Luisa à casa paroquial. Naquela noite ela não conseguiu dormir, tentando encontrar falhas no estranho plano que arquitetava em sua mente, depois de tomada a decisão de viajar para a Itália. Sim, ela iria no lugar do irmão. Tinha os documentos dele, carteira de identidade e até um passaporte, com certeza ele havia se preparado para sair do país. Nenhum laço a prendia ao Brasil. Estava decidido, iria ao encontro dos parentes, postiços sim, mas era tudo o que ela tinha. Fazer parte de uma família era tudo que ela desejava. Amar e ser amada era toda ambição que possuía .
O mais inusitado de tudo era a maneira como ela pretendia chegar à Itália: assumindo a identidade do irmão. Luisa tinha consciência de sua semelhança física com Luis, a voz rouca associada ao jeito determinado, facilitava a familiarização com o garoto. A falta de pêlos no rosto certamente não seria encarada como anormal em um garoto de quinze anos. Essa era a idade de Luis. Luisa tinha pouco busto, e poderiam ser facilmente escondidos por bustiês firmemente ajustados na altura dos seios. Ela sorriu para si mesma, lembrando-se da ocasião em que foi interceptada por dois sujeitos no caminho do colégio, bem à noitinha, queriam dela um dinheiro que o irmão devia a eles. Só depois de alguns empurrões e palavrões, eles perceberam que ela não era ele.
E aí, ela fez uma amarga comparação: se marmanjos experientes a haviam confundido com seu irmão, com que facilidade poderia se fazer passar por ele, diante de pessoas decentes.
Ponderou as chances que teria de ser aceita pelo tio-avô como filha adotiva dos Grassi. Eram praticamente nulas e o medo de perdê-los era grande demais para se arriscar. A idéia de ocupar o lugar do irmão, embora infinitamente mais arriscada, daria a ela a chance de se fazer conhecer e amar. E então segura do amor deles, poderia contar a verdade e quem sabe não ririam de toda essa idéia maluca, juntos. Juntos, como uma verdadeira família deve ficar.
Luisa releu pela décima vez, o e-mail que Francesco Grassi havia enviado aquela manhã. Era o sinal verde que ela tanto aguardava.
O primo pedia que ela enviasse todos os seus documentos. O avô tinha amigos na embaixada e com facilidade conseguiria sua dupla cidadania, uma vez que os avós dela eram italianos e não tinham sido naturalizados no Brasil. Dizia também que não se preocupasse com o inverno rigoroso que estava previsto para a Europa, na cidade de Milão ela teria tudo que necessitasse. E por último confirmava a vinda ao Brasil para buscar o primo, no máximo em trinta dias.
As semanas passaram voando e as horas pareciam conter minutos a menos. Tanto ela ansiava aprender, conhecia muitas expressões italianas, crescera ouvindo-as de seus pais, mas de repente sentia-se insegura quanto a se fazer entender. Devorou com avidez tudo o que encontrou na biblioteca do Colégio Sagrado Coração de Jesus, escrito em italiano. Leu poemas, romances, e nas mãos sempre o fiel amigo dicionário que a auxiliava nas traduções.
Madre Idalete estranhou encontrá-la ás vezes pelo corredor, imitando gestos e trejeitos masculinos, recriminava-a por isso sempre que tinha oportunidade.
_ O que é isso menina? Comporte-se como uma garota. Não vai querer que seu tio-avô pense que é um rapaz, certo?
E ela muito moleca, sorria divertida. Era exatamente o que ela esperava que ele fizesse.
O dia tão esperado chegou. A mala já estava pronta contendo as pouquíssimas roupas que Luis deixara para trás. Luisa lembrou-se das palavras de Irmã Clara, a dor havia diminuído, em compensação a saudade dos pais e do irmão já haviam invadido seu coração.
Ela aguardava com ansiedade o telefonema do primo avisando-a de sua chegada à rodoviária de Canavieiras. Ele viria de avião até a capital Salvador, ali alugaria um automóvel para buscá-la. Convenientemente ela marcou o encontro com Francesco naquele lugar, alegando que a residência paroquial estava localizada em lugar de difícil acesso. O que não deixava de ser verdade, pois a via esburacada, esquecida pelos administradores da cidade, tinha um calçamento precário. Madre Idalete quis acompanhá-la até a rodoviária.
_ Prefiro me despedir da senhora aqui. Vou ficar bem. Irmã Ana Clara pode me ajudar com a bagagem, que é muito pouca.
Não foi fácil fazê-la desistir de sua intenção. Mas depois de um forte abraço, mais alguns conselhos ao pé do ouvido, ela permitiu que Irmã Ana Clara a levasse.
Luisa tinha as mãos suadas, um suor frio, quando pegou o pequeno cartaz de papel na sacola que trouxera consigo. Tinha escrito o nome para que Francesco a reconhecesse de imediato. Tão logo se livrara da boa intenção da Irmã que queria acompanhá-la até o último instante, ela foi ao banheiro da rodoviária e trocou suas roupas femininas, pelas masculinas do irmão, enterrou um boné na cabeça, escondendo o cabelo curtíssimo. Segurou o cartaz na mão ainda enrolado, disposta somente a desenrolá-lo, para que se pudesse ler o nome escrito, quando percebesse a presença ali de alguém que pudesse ser Francesco. O que não demorou muito para acontecer. Um automóvel luxuoso parou bem na área de desembarque de passageiros. Dele desceram dois homens e Luisa instintivamente se aproximou com o cartaz aberto nas mãos, onde se lia “ Luis Grassi”.
Um dos homens era mais velho e caminhava logo atrás do outro bem mais jovem, que não deveria ter mais que vinte e cinco anos, via-se que era o líder, ela pode notar pelo andar seguro e olhar concentrado. Não sorriu ao vê-la. Caminhou em sua direção e estendeu a mão num cumprimento, somente depois de avaliá-la de cima a baixo.
_ Como stai, Luis Grassi?
O homem menor e mais velho adiantou-se para traduzir as palavras desnecessariamente:
_ Ele pergunta, como vai?
_ Molto bene. _ Ela disse com a voz mais encorpada que conseguiu.
O olhar grave diminuiu a intensidade e ela quase pode perceber um meio sorriso. Tentou reconhecer algum traço da fisionomia dele, que fosse semelhante aos poucos e antigos retratos do avô, guardados como tesouros em sua bagagem, mas não conseguiu. Tudo nele era novo, suave e de extrema beleza. Estremeceu quando ele tocou suavemente nos seus ombros e a atraiu para um abraço fraterno.
Por um breve segundo, ela se sentiu fraquejar. Meu Deus, como ele era lindo! Mas foi só por um instante, logo ela se recompôs, sentindo que o chão voltava para debaixo dos seus pés, novamente. Alguma coisa dentro dela a avisou que no futuro deveria conter esse entusiasmo. Um rapaz, era como ele a via.
Bem vinda ao clube do bolinha, disse a si mesma, não seria de todo uma má idéia, essa coisa de penetrar no universo masculino.
Marília acreditava que poderia avaliar a felicidade das pessoas, algumas vezes, pela maneira como se vestiam, isto é, se estavam de bem com a vida, se vestiam melhor. Quase podia apostar: as pessoas se arrumam mais caprichosamente quando estão felizes. Pelo modo esmerado com que ela se vestia aquela noite, podia-se supor que se encontrava em estado de graça. Vestia um vestido vermelho comportadíssimo na parte da frente, gola alta, mas nas costas exibia um ousado decote que chegava à cintura marcada por pedrinhas de strass minúsculas.
Riu do nervosismo da amiga, toda preocupada em não fazer feio na noite de estréia do espetáculo estrelado por Fallabella, no teatro Carlos Gomes.
Era a primeira saída oficial das duas amigas e Isadora já trocara de roupa uma dúzia de vezes. As entradas não foram fáceis de conseguir, destinadas a um público pequeno e específico, o espetáculo teria uma apresentação única. Isa havia pago uma pequena fortuna pelos bilhetes nas mãos de cambistas, mas elas estavam convictas de que valeria a pena.
_ Vamos nos apressar Isa, ou chegaremos no final da peça.
_ Nem pensar, Marília. Essa noite promete. Não quero perder absolutamente nada, muito menos a entrada dos grã-finos que vão comparecer em peso ao teatro essa noite.
Marília fez uma careta. Também estava interessada na “granfinagem”. Não do mesmo modo que Isa, seu interesse era mais especificamente nos trajes usados por eles.
O trabalho com a moda exigia uma constante observação das roupas usadas pelas pessoas nas ruas, festas, cinemas e mesmo na novela das oito. Pesquisa esta que Marília já incorporara no seu dia a dia com olhar atento e observador. Noite de estréia, no teatro Carlos Gomes, para a nata da sociedade capixaba, prometia ser um prato cheio.
As duas dividiam um pequeno apartamento em Itapuã, lugar pitoresco que abrigava as casa baixas dos pescadores. Ao abrir a janela não podia ver o mar, mas podia sentir seu cheiro. A maresia, principalmente à noite, se fazia anunciar, cheiro bom de verão, de férias, de crianças brincando na areia da praia.
Quando Marília deu partida no gol de mais de oito anos de uso, notou na resposta do motor que havia alguma coisa diferente. Agendou mentalmente um horário para levá-lo à concessionária no dia seguinte e seguiu adiante. Foi só bem próximo ao centro da cidade que o carro começou dar sinais de defeito.
_ Não acredito que nossa “limusine” vai nos deixar na mão, ou melhor... a pé. _ Isadora parecia sinceramente desesperada com um possível atraso que isto acarretaria.
_ Pode se acalmar, não vou deixá-lo “morrer” antes de chegarmos às portas do teatro_ disse Marília espirituosa, nem um pouco disposta a deixar que o imprevisto desagradável tornasse menos glamouroso a noite delas.
Aos trancos e barrancos conseguiram chegar à praça que ladeava o imponente prédio do teatro. Foi com alívio que Lia tirou a chave da ignição.
_ Vamos voltar para casa de táxi. Amanhã acionarei o seguro para rebocarem o carro até a oficina.
Haviam chegado bem na hora. Homens vistosos e mulheres muito bem vestidas enchiam o teatro.
Logo na entrada Isadora se deslumbrou com a arquitetura do prédio. Marília escolheu dois lugares não muito próximos ao palco e ainda de pé ela notou o grupo que se formara em uma área reservada na fila do gargarejo.
O burburinho chamou sua atenção e ela olhou sem notar, uma segunda olhada e ela reconheceu desta vez o homem alto de cabelos castanhos muito escuros, Armani Falquetto, que conversava animadamente com uma garota deslumbrante, que não deveria ter a metade de sua idade, sentenciou ela mordaz. Percebeu que ele não a viu. E daí? Se a visse provavelmente nem se lembraria dela.
O espetáculo iria começar no mesmo instante em seu braço quase foi arrancado por um cutucão intencional que Isadora lhe aplicou.
_ Não olhe agora, mas Armani Falquetto está olhando em nossa direção. Mais precisamente para você. E não é por acaso, eu já o flagrei três vezes.
_ Deixe disso, Isa. Ele, com certeza, está apenas nos reconhecendo.
_ Eu conheço aquele olhar, amiga. Um olhar assim é tudo, menos um olhar inocente.
Pelo sim, pelo não, ela resolveu checar, só por curiosidade, é claro. E o que ela encontrou foi o olhar devastador que ele lhe lançava. Sorriu e a cumprimentou com um movimento imperceptível. A primeira reação que ela teve foi a de passar os dedos por entre os anéis que seus cabelos formavam, numa preocupação que o vento sul os tivesse despenteado em demasia, depois consultou o pequeno espelho de bolso para ter certeza que não havia marcas de batons além dos lábios. Tudo checado, ela ficou se perguntando porque ele ainda lhe lançava olhares, discretos, mas que pareciam queimar seu rosto, se não tinha nada fora do lugar. Sim, porque só poderia ser por isso, porque outro motivo aquele monumento, muito bem acompanhado diga-se de passagem, seria atraído por sua figura?!
Não que Marília se sentisse uma mulher desinteressante. Mas aquele não era o momento. Naquela altura de sua vida não estava pensando exatamente “naquilo”. E ela sabia que uma mulher para ser sensual e atraente precisava se sentir exatamente assim, exalar essa vibração e nada nela, precisamente agora, denunciava isso.
Entregue de corpo e alma à fábrica, sentia-se acesa e disposta apenas para o trabalho. Romance não fazia parte dos seus planos. As únicas metas que planejara alcançar referia-se aos negócios da fábrica.
De canto do olho ela observou quando ele deixava o grupo para trás e caminhou até elas. O espetáculo chegara ao fim, a cortina estava se fechando e o elenco de mãos dadas se despedia do público.
Ela tentou pensar rápido em alguma coisa para dizer, caso ele estivesse mesmo vindo em sua direção, o que ela duvidava. Na certa iria cumprimentar alguém conhecido sentado naquela fileira de cadeiras.
Mas foi com surpresa que o viu se aproximar cada vez mais delas. E quando ele disse olá, ela discretamente olhou em volta para ter certeza de que ele não se dirigia a alguém próximo a elas.
_ Olá. _ Disse apenas, aquela coisa inteligente para dizer não veio à sua mente. Somente aquela velha sensação de fazer papel de boba.
_ Gostaria de convidá-las para tomar um aperitivo, estou com uns amigos. Seria um prazer ter a companhia de vocês duas.
O convite a pegou de surpresa, mas não o bastante para que perdesse o bom senso e antes que Isadora tomasse a decisão que estava estampada em sua cara eufórica, ela o fez:
_ Obrigada, senhor Falquetto _ foi proposital o tom cerimonioso _ mas já é bastante tarde. Agradecemos muito pelo convite, mas não podemos aceitar, não é mesmo Isadora?
Nenhuma margem para discussão, o olhar fulminante foi a única retaliação que coube a Isa.
_ Ao menos posso levá-las até em casa?
Isadora adiantou-se explicando a Armani as condições do automóvel que as levara até ali, não deixando nenhuma chance de negativa.
No luxuoso mercedes, Isadora tagarelava o tempo todo. Ele parecia divertido e nem um pouco entediado. Lia não podia deixar de concordar que ele estava sendo extremamente gentil e educado, mas era só. Negócios, negócios. Amigos à parte. Não pretendia misturar as coisa, ponto final.
A Segunda-feira foi um dia difícil na fábrica. Não queria dividir aquela preocupação com Isadora, que ainda comemorava o êxito da transferência da fábrica de Santa Teresa para Vila Velha. Algumas funcionárias mais antigas não quiseram deixá-las e haviam se mudado também. A dificuldade que esperavam enfrentar era justamente a adaptação das antigas e contratação de novas funcionárias, o que acabou não acontecendo.
Naquela manhã, Marília examinara o depósito. Restava pouca matéria-prima e o principal fornecedor, depois de contatado se posicionou com relação à entrega que ela tão ansiosamente esperava: uma greve por parte dos trabalhadores da indústria têxtil causaria um atraso de até noventa dias para fornecer os tecidos.
Isso era tudo de pior que poderia acontecer. Havia recebido parte do pagamento antecipado e repassara essa antecipação ao fornecedor. Era inominável a atitude de boicotear o fornecimento da matéria-prima. O impacto que essa medida traria seria nada mais nada menos que funcionários de braços cruzados.
A indignação dela ia crescendo na medida em que constatava sua impotência para resolver a questão. Precisaria de ajuda. E das grandes. Dos tubarões.
Sem vacilar pegou o telefone e ligou para o escritório da “A&G”. O senhor Silas muito amavelmente a atendeu. Uma hora depois ela já estava em seu escritório. Depois de se inteirar do assunto, colocou-se à disposição dela para juntos resolverem o impasse, já que esta atitude da indústria afetaria diretamente o prazo combinado para entrega da coleção às lojas. A falta de compromisso por parte da indústria deixou o gerente indignado. Enquanto discutiam uma série de medidas que poderiam tomar, a porta da sala se abriu e Armani Falquetto entrou sem se fazer anunciar.
Sério, ele a cumprimentou formalmente. Ela notou que ele já havia tomado conhecimento de sua presença no escritório da “A&G” quando entrou.
Armani chamou a secretária, que atendeu imediatamente.
_ Quero que faça umas ligações. Vamos até à minha sala. _ Voltou-se para Marília _ Espere aqui até que eu termine. _ saiu mais sério que quando entrou.
Ela ficou ali à sua espera. Não lhe agradava aquela situação de mera espectadora. Queria agir, mas sabia-se vencida naquela queda de braço. Bem que diziam que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.
A espera foi pouca, logo ele retornou à sala com um certo ar vitorioso.
_ A indústria têxtil confirmou o embarque de suas encomendas dentro de cinco dias úteis e a garantia de não haver mais cortes no fornecimento. Fique tranqüila, eu falei pessoalmente com o presidente da indústria.
Bom, viera ao lugar certo, pensou Marília. Devia-lhe esta.
Ele pareceu ler seus pensamentos, pois a expressão quase sisuda deu lugar a um meio sorriso enquanto disparava à queima roupa:
_ Janta comigo esta noite?
Lia sentiu o sangue subir rapidamente ao rosto. Então ele pretendia cobrar...
_ Não costumo misturar negócio com prazer. _ Sabia que era uma resposta nada original, sabia também que soara muito mais rude do que pretendia.
Mas ele não se abalou, ao contrário parecia estar se divertindo.
_ Proponho um jantar. Não um encontro romântico.
O jeito doce e suave com que ele proferiu as palavras foi o bastante para desconcerta-la.
_ Um encontro anti-romântico, então?! _ disse depois de ter procurado pelos quatro cantos da sala um buraco para enfiar a cabeça.
_ Às nove horas estará bem para você?!
_ Vou estar pronta à nove.
Estava arrumada desde às oito, mas não pronta para um encontro. Marília tentou lembrar desde quando não beijava alguém na boca. Minha nossa, fazia tanto tempo assim?! Ainda bem que deixara bem claro que seria apenas um jantar. Não que fosse avessa a romances. Mas não queria um caso. Não com o seu principal comprador. E o que um homem lindo, cheiroso, sensível, poderoso, haveria de querer com uma simples mortal que trabalhava pelo pão de cada dia, sofredora com a TPM , que fazia suas próprias unhas e usava um camisão de malha para dormir? Era melhor não tentar descobrir, seria como brincar com fogo. Não queria se machucar.
Isadora fora tomada de total desespero quando soube do encontro.
_ É só um jantar, Isa. Não uma proposta indecente.
_ Anti-romântico? Ai meu Deus! Aceite um conselho dessa sua amiga vivida... as cuecas dele não tem que ficar necessariamente dentro de suas gavetas, no armário. Elas poderão perfeitamente ficar jogadas displicentemente sobre as cadeiras do quarto... me fiz entender?! _ Enquanto falava, Isadora gesticulava como quem encena uma peça de teatro. Marília entendera o recado, mas não estava disposta a ter cuecas sobre a cadeira ou definitivamente no armário. Não as de Armani Falquetto. Ele não era homem de uma mulher só. Mulher só em muitos sentidos.
Tivera sua autoconfiança abalada desde o fim do seu casamento com Vitório. Não se sentia capaz de envolver e atrair alguém realmente interessante. Para ela já bastavam as experiências nada animadoras que havia tido ao longo desses anos. Conhecera muitas espécies do bicho homem: homens que adoravam falar de si mesmos, homens apressados para chegarem direto ao finalmente, sem considerar o entretanto. Homens que exigiam, sem se dar. Relações que nada acrescentaram à sua vida. Num belo dia, ou melhor, numa bela noite dissera adeus às ilusões e optou por ficar só. Disse a si mesma que havia coisas piores que a solidão, tentou pensar em algo pior, um exemplo qualquer, depois desistiu. Teve medo de descobrir.
Armani Falquetto foi pontual. Impecável num casaco marinho sobre a camisa imaculadamente branca. O suave perfume que exalava dele parecia convida-la a se aproximar. Marília se condenou, interiormente, por não ter passado a tarde toda no cabeleireiro.
_ Você está linda! _ Ele o disse sinceramente. Ela acreditou. Era justamente aí que morava o perigo.
_ Não se diz certas coisas em um encontro anti-romântico, existem regras próprias. _ Ela resolveu brincar.
_ Me desculpe, não quis transgredir as regras. _ Ele entrou no clima._ O que você sugere que eu diga?
_ Alguma coisa menos pessoal... mais impessoal... que tal “esse modelo da coleção “Giulia” valorizou suas formas”, me parece bastante apropriado.
De pé na pequena saleta do minúsculo apartamento, Armani Falquetto recostou-se no umbral da porta, cruzou os braços, olhou-a de cima a baixo com um sorriso brincalhão nos lábios e não se conteve:
_ “Esse modelo da coleção Giulia valorizou suas formas...” mas eu adoraria apreciar você sem vestido algum.
_ Bem..._ ela começou, se abanando com a bolsa de mão como se estivesse afogueada, achando graça e rindo_ depois dessa, eu já sei o que você pensa sobre regras.
O jantar apetitoso do Mario’s foi servido com o requinte habitual, mas para Marília, deliciosa iguaria estaria reservada para depois da refeição. Duas taças de um delicioso vinho tinto francês a deixaram com o riso mais fácil. A conversa saborosa tinha recheios de lembranças da infância e ele parecia realmente interessado em tudo que dizia respeito a ela. Marília falou de Giulia, sua filha perdida, sem tristeza, com mansidão e saudade, só aí ela percebeu que ele quase não falara de si mesmo, quando ela pediu que ele o fizesse, ele a convidou para dançar. Bicho raro, não conteve a observação feita em pensamento.
Somente no momento em que ficou de pé, ela se deu conta de que não tomara apenas dois copos do delicioso vinho, a sensação era tão gostosa que aceitaria mais um pouco, caso ele insistisse. Não chegaram a ir até a pista de dança.
Ele a tomou pelas mãos gentilmente, como se faz com uma criança, aproximou-se como se fosse beijá-la, mas apenas disse baixinho ao seu ouvido:
_ Vou levar você para casa...
_ É só o que vai fazer...
_ É só o que estou prometendo.
Luisa estava impressionada com a eficiência do secretário da família Grassi. Não houve qualquer transtorno, dificuldade ou incômodo nos locais de embarque e desembarque. O visto para a entrada no país estrangeiro fora concedido com antecedência. O boing não faria escala, indo direto a Milão, ela se encontrava maravilhada com a viagem de avião, o modo gentil como era tratada pelas aeromoças. Estava acostumada a servir e não ser servida. Diante de tantas novidades ficara muda.
Pensou no irmão e se tinha o direito de estar ali. Pensou nos pais e teve certeza de estar no lugar certo. Ela encontrava-se determinada a ser merecedora do amor dos Grassi. Tudo faria para ser útil e retribuir o carinho e a consideração que a família estava lhe dispensando.
Assustava-a às vezes, pensar na ousadia que fora capaz. Mas assim como entrara pela porta dos fundos dessa família involuntariamente, sentia-se agora no direito de permanecer nela deliberadamente.
Francesco Grassi a seu lado, fazia perguntas como um investigador do FBI, às quais ia respondendo por monossílabos, consultando vezes seguida um desfolhado dicionário português-italiano.
O jeito terno do primo ao falar sobre Carlos Grassi, deu a Luisa a dimensão exata do amor que ele sentia pelo avô.
Algumas vezes ela o flagrava avaliando-a minuciosamente, ao que ela despistava escondendo-se, em parte, atrás do jornal que ela já lera e relera.
Veio aquela necessidade fisiológica, bastante previsível depois de todas aquelas delícias a que não estava acostumada, ela procurou por uma toalete, mas por pura distração, se deteve diante da porta com a indicação “Ela”, sua mão já estava segurando a maçaneta da porta quando ela se tocou... com um risinho totalmente sem graça, sua reação foi verificar se o primo não tinha notado o vacilo, voltou-se e deu de cara com Francesco.
_ Uomo... alla destra. _ Indicou com a mão o enorme letreiro preso na porta que não deixava dúvidas.
Ela entendeu perfeitamente quando ele mostrou que o banheiro dos homens era o da direita. Felizmente a toalete da aeronave só recebia um visitante por vez, o que deixou Luisa menos constrangida em usá-lo. Trancou a porta por dentro e pensou seriamente em nunca mais destrancá-la.
Ao norte da Itália, Milão era o seu coração econômico.
Luisa pesquisara nos livros da limitada biblioteca do colégio. E as informações que possuia pareciam mínimas diante da grandeza vista pela diminuta janela da aeronave.
Um automóvel luxuoso ao extremo os esperava no estacionamento do aeroporto. O motorista recebeu com familiaridade Francesco Grassi e simpaticamente ofereceu-se para acomodar os pertences de Luisa. Dentro do automóvel assobiou admirada com o conforto e o luxo.
_ Agora compreendo porque um ex-presidente brasileiro, chamou os carros produzidos no Brasil, de carroças.
Francesco riu da observação do garoto que havia permanecido muito tempo calado. Feliz por voltar para casa com a missão que o avô lhe confiara, satisfatoriamente cumprida. O primo à primeira vista parecia um bom rapaz. Talvez com modos um tanto delicados, mas nada que ele não pudesse indireitar assim que tivesse a chance de iniciá-lo na arte da conquista do sexo oposto. Seu olhar era doce e sereno, excetuando aquela sombra de tristeza que o enevoava. O que não era de se admirar, levando-se em conta tudo que passara recentemente e morando sozinho naqueles confins de mundo. O avô Carlos com sua astúcia saberia avaliá-lo sabiamente.
Frondosos jardins cobriam parte da fachada da casa que mais parecia um palacete. Luisa prendeu a respiração impressionada com a suntuosidade da residência. Assustada com toda aquela pompa, preocupada em como deveria se comportar em um lugar assim, não ouviu Francesco chamar sua atenção, só se dando conta disso quando ele a pegou pelo braço e quase a arrastou para dentro mansão.
Um amplo salão elegantemente decorado tomava quase todo o andar inferior. A escada que levava ao segundo andar era majestosa e de repente Luisa se sentiu intimidade com tanto luxo. Encolheu-se apavorada com a possibilidade de esbarrar em uma das peças ornamentais que mais pareciam obras de arte.
Uma mão afetuosa a conduziu escada acima, depois por um corredor magnífico, e finalmente a um quarto que poderia abrigar perfeitamente uma família inteira. Olhou para o bondoso senhor de meia idade com um pedido de socorro.
_ Não se preocupe, meu jovem. Com certeza nos acostumamos muito mais rapidamente com as coisas boas que nos acontecem, que com as coisas ruins.
Naturalmente esse era um ditado inventado para aquela ocasião, pensou Luisa, sentindo o abismo que se abria entre ela e aquele mundo. Desejando estar no quarto, que nem era só seu, da casa paroquial em Canavieiras. Deu-se conta de que o empregado falara em português.
_ O senhor é brasileiro?
_ Capixaba, da cidade de Vitória. Estou aqui a muitos anos. Fui contratado pela família Grassi para ajudá-lo no que for necessário.
Luisa afastou-se dele assustada com a possibilidade de ter alguém tão perto o tempo todo.
_ Em que sentido exatamente? _ Perguntou desconfiada.
_ Em todos. Ajudá-lo a se comunicar com a família, servindo como intérprete, levando-o aos lugares que quiser visitar, no que for preciso para que sua adaptação aqui na Itália seja o mais fácil possível.
Comovida pela gentileza do tio-avô, ela desfez a carranca desconfiada.
_ Tudo bem, desde que o senhor não queira me ajudar a vestir, escovar os dentes e nem me ponha na cama. Estamos combinados?!_ Sorriu matreira._ E não querendo ser indelicada diante de tanta disposição em servi-la ela deixou que ele desfizesse sua bagagem. E não contendo mais sua enorme curiosidade perguntou pelo tio-avô e quando poderia vê-lo.
_ Ele está descansando como sempre faz à tarde. Mas pediu que assim que chegassem, fosse avisado. Se o senhor quiser posso ir até o térreo saber quando ele irá recebê-lo.
_ Eu gostaria muito. E por favor sr. Alberto... me chame de você.
Ele lhe devolveu um sorriso largo.
A decoração do quarto era uma mistura harmoniosa do antigo e o moderno. Algumas adaptações foram feitas para acolher o novo hóspede. Um micro computador novinho em folha de última geração, Luisa pôde notar, havia sido instalado. Um moderno fax e um aparelho de som estavam acoplados a ele. Entre os CDs sobre a mesa de som ela reconheceu Bocelli e Verdi. Nas paredes, belíssimas paisagens, ela perguntaria mais tarde ao sr. Alberto de onde eram. Procurou pelo banheiro e o que encontrou a surpreendeu, nunca havia visto um tão grande e tão bonito, poderia sentar-se ali e passar o dia. Riu de si mesma, do seu jeito quase folclórico, da roça mesmo.
Luisa ouviu as discretas batidas na porta do quarto quando já estava vestida, o cabelo cuidadosamente penteado para trás, como os de um rapaz, ela besuntara de gel para se fixarem. Uma última olhadela no espelho e o que viu foi um jovem de aparência limpa e arrumada.
Abriu com a certeza de ver o sr. Alberto.
_Vamos. _ Francesco entrou no quarto sem cerimônia, pegou-a pelos ombros reforçando o chamado em português claro. Aquele ar sério a teria tirado do sério se ela não estivesse tão ansiosa para o encontro.
Desceu as escadas com as pernas trêmulas de emoção seguindo de perto o primo que tinha a missão de escoltá-la até o avô.
Depois de atravessar o enorme salão, eles entraram numa espécie de biblioteca onde já deveria ter sido um escritório. Um ambiente acolhedor, havia ali um silêncio de paz.
Ele estava sentado em uma cadeira confortável e se levantou quando Luisa entrou.
Não houve palavras, apenas gestos. Ela se aproximou lentamente e quando estavam frente a frente, ele abriu os braços para recebê-la. Ela ficou assim em seus braços por um longo tempo. Deixou as lágrimas correrem livres, pela emoção de estar ali, pela acolhida amorosa, pela felicidade de não mais estar só. Os olhos do tio-avô também estavam úmidos e demorou a soltá-la de seus braços. Olhou-a profundamente como se quisesse ver além das aparências.
_ Buona gente. _ Sorriu usando uma expressão que Luisa tantas vezes ouvira dos pais no Brasil.
Isabela Grassi aproximou-se dos dois e Luisa quis abraçá-la também, mas se conteve, não sabia dos costumes do povo italiano, esperou que ela tomasse a iniciativa. E ela o fez respeitosamente, um aperto de mão caloroso seguido de um abraço de boas vindas, como se ela fosse um irmão mais novo.
Sentaram todos à mesa. Como uma família. Luisa saboreou cada momento: do jantar à conversa animada que se seguiu no jardim de inverno onde foi servida a sobremesa. Desejou que a noite não tivesse fim. Que o tempo parasse e ela pudesse desfrutar todo o sabor de uma deliciosa companhia familiar. O tio-avô quis saber de sua vida no Brasil, detalhes dos parentes e com saudades ela lembrou dos pais, a dura luta pela sobrevivência, a vontade que haviam expressado tantas vezes em conhecer a Itália.
Luisa sentiu o coração se apertar ao lembrar, interiormente, do irmão que teve a morte precipitada. Não culpara o pai pela denúncia que fizera do filho às autoridades, jamais o faria.
Carlos Grassi levantou-se vagarosamente da cadeira, todos entenderam que chegara a hora de descansar. Luisa fez menção de acompanhá-lo, ele não a deteve. Caminharam juntos até a porta do quarto do tio-avô. Ali ela pediu sua benção como muitas vezes o fizera com o pai. Recebeu as bençãos e um afago carinhoso. Desceu de volta as escadas para o encontro com os primos, com lágrimas nos olhos. Feliz seria pouco para se dizer do estado de total felicidade em que ela se encontrava.
Isabela educadamente pediu licença e deixou os dois para uma conversa entre rapazes.
Luisa tremeu nas bases ao ficar só com o primo. Era do seu agrado, mas não convinha. Ele falava mansamente. Sua voz soava como música romântica em noite de verão, suavemente despretensiosa, dolorosamente quente, perigosamente envolvente.
Ela pôs-se de pé imitando o gesto do tio-avô, dando por encerrada a noite, antes que sentimentos confusos viessem conturbar sua cabeça . Se havia uma coisa de que não precisava nesse momento, era mais uma situação embaraçosa em sua vida.
Seguiram juntos pelo mesmo caminho, eram vizinhos de quarto, a proximidade fez com que ela sentisse o coração acelerar. À porta, antes que ela entrasse ele segurou seus ombros com as duas mãos, olhou-a nos olhos e disse sinceramente:
_ Benvenuto!_ Ela não precisava do dicionário para traduzir as boas vindas.
_ Grazie._ Agradeceu enternecida.
Luisa acordou pela manhã bem cedo. A tempo de acompanhar Carlos Grassi em seu passeio matinal. Uma caminhada lenta, mas bastante agradável. Ele falou a respeito dos negócios, da família que passava boa parte do ano em Nápoles onde os investimentos dos Grassi haviam se intensificado nos últimos anos. Os ramos de atividade eram os mais diversificados: indústria, comércio e cultura.
Nápoles era a terceira cidade em importância da Itália, depois de Roma e Milão e o maior centro industrial e cultural do sul do país. A residência que mantinham lá ficava aberta à espera dos donos que dividiam os meses do ano entre Milão e Nápoles.
Quando chegaram do passeio, ele deixou bem claro a Francesco, que providenciasse a ida do primo juntamente com ele para o sul da Itália. Viagem que se realizaria dentro de trinta dias. Luisa engoliu seco, tentando argumentar que preferia ficar em Milão, mas não foi ouvida. O tio-avô orgulhoso de suas conquistas, fazia questão de mostrar ao sobrinho-neto o patrimônio da família. Atencioso, esquematizou também, um passeio de automóvel onde os jovens irmãos poderiam se divertir enquanto mostravam ao primo recém-chegado, a cidade de Milão.
Com alívio Luisa viu Isabela embarcar no automóvel destinado a levá-los pela cidade, pelo menos não ficaria a sós com Francesco.
Admirada, ela contou oito estações ferroviárias pela cidade de Milão. Diferente do Brasil onde a maioria das cidades caminha sobre o transporte rodoviário. Francesco mostrou com orgulho o teatro Scala, um dos mais importantes do mundo. Igrejas Católicas contendo valiosíssimas obras de arte. Ela não resistiu e pediu a eles que parasse o tempo suficiente para fazer uma oração. Ela não disse, eles não perguntaram, mas iria agradecer as recentes bênçãos em sua vida.
A próxima parada foi para o café. Muito mais denso e perfumado é o caffe italiano, com dois F, ela observou. O espresso e o cremoso cappuccino disputavam com igualdade o sabor e a qualidade.
Felizmente voltaram a tempo, antes que a necessidade de usar a toalete se fizesse presente. A simples idéia de ter que partilhar o banheiro com outros homens, constrangia Luisa terrivelmente.
Francesco foi o primeiro a saltar do automóvel e segurou gentilmente a porta para que sua irmã saltasse. Educadamente aguardou a saída do último passageiro que tropeçou e só não foi parar com a cara no chão porque ele amparou com as duas mãos na altura do tórax. Luisa sentiu suas mãos tocarem seus seios e sobressaltou por dois motivos: primeiro, o pânico de ser descoberta pela maciez que ele experimentava ao segurá-la. Segundo, a delícia do toque de suas mãos nos seios dela causara uma sensação desconhecida, totalmente nova. Ela procurou no rosto dele um indício, uma desconfiança. Nada. Ele não parecia abalado, riu do tropeço, fez chacota... e só.
Nonno Carlos estava empenhado em cuidar do sobrinho-neto. Encarregou Francesco, juntamente com Alberto, de reformular o guarda-roupa, no mínimo estranho, daquele rapaz.
Em vão Luisa sugeriu que poderia muito bem, aproveitar as roupas que o primo não estivesse mais usando.
Ela deu um risinho totalmente sem graça, não queria parecer mal agradecida mas tentou com todas as palavras que encontrou no dicionário italiano, recusar essa situação que a colocaria em grande risco. O avô ficou irredutível.
Mais uma provação.
Saíram pela manhã bem cedo, Francesco e ela. Isabela não poderia faltar às aulas da faculdade.
No automóvel, ele notou sua apreensão:
_ Porque está tão calado? _ Ele perguntou num italiano misturado com o português.
_ Não quero que me veja sem roupas. Tenho vergonha.
Ele riu:
_ Então é isso. Está com vergonha de mim... Fique tranqüilo, não há nada em você que eu já não tenha visto antes.
Ela podia apostar nisso.
_ Promete que não vai olhar?_ Perguntou como uma criança desconfiada.
_ Se você prefere assim... eu prometo._ Disse solenemente, levantando a mão direita, em tom de pilhéria. Respeitaria o jeito de ser daquele garoto, embora achasse que tanto recato continha um pouco de exagero.
As compras limitaram-se a poucas peças. Não provadas, apesar da insistência do vendedor e o oferecimento de roupas íntimas foi a deixa para que Luisa fosse tomada de uma pressa sem tamanho em deixar a loja. Francisco tomou o desconforto do primo como acanhamento, intimidação com todo aquele luxo que as melhores griffes da moda ostentavam. Perfeitamente compreensível.
Nonno Carlos deleitava-se no jardim com a leitura de um livro antigo. Chegaram a tempo de tomar um delicioso café em sua companhia.
_ Acredite Nonno, não gastamos um quinto do que nos propúnhamos com as compras. _ Disse Francesco deixando os pacotes sobre uma cadeira vazia.
_ Compramos o necessário. _ Retrucou Luisa enquanto devorava com os olhos, os fofinhos pães de queijo servidos pelo sr. Alberto. Desconfiou que tinham sido feitos especialmente para ela. Nas pequenas coisas o Nonno Carlos fazia presente sua atenção com Luisa.
Francesco pediu licença para ir à biblioteca dar uns telefonemas, ficara fora do escritório a manhã inteira. Carlos olhou o rapaz à sua frente com ternura.
_ Pretendo oferecer um jantar, para apresentar você aos meus amigos.
Ela gelou.
_ Espere um pouco mais Nonno, até que me acostume com toda essa novidade. Preciso de mais tempo para conhecer melhor minha própria família. E me dar a conhecer, compreende?
Ele compreendia.
_ Mas quero que pelo menos, pense seriamente em voltar aos estudos. _ Disse ele incansável na arte de agradá-la.
_ Prometo pensar. Peço somente que me deixe ficar um pouco mais a seu lado. Muitíssimo me agradaria desfrutar de sua companhia, fazer pequenas coisas , caminhar... ler em voz alta seus poemas...posso?
Comovido Carlos reparou no jeito manso do rapaz, era quase palpável a carência de afeto. Por quantas agruras teria passado até chegar ali?
_ É claro que sim. Estou muito feliz que tenha vindo para estar conosco.
Sentaram-se nas cadeiras confortáveis do jardim e por muito tempo falaram sobre tudo, das riquezas culturais da Itália às coisas do Brasil brasileiro. Encantado ele ouvia Luisa contar a luta das tartarugas marinhas que atravessavam meio mundo para desovar a poucos quilômetros de Canavieiras, o carnaval da Bahia, a musicalidade de um país tropical e de como ela gostaria de ter conhecido pessoalmente o Nonno Luis Grassi para poder agora contar com detalhes, todas as coisas que ele sentira e vivera no Brasil daquela época.
Ela viu lágrimas nos olhos de Carlos Grassi. Devagarinho se achegou a ele e lhe deu um forte e demorado abraço. Naquele momento ela desejou tudo, menos vê-lo chorar.
Certa do amor de Nonno Carlos, Luisa voou para Nápoles em companhia de Francesco. O coração aquecido pelo cuidado e zelo de toda família Grassi, a razão, nem tanto. Doía bater de frente com a verdade de ser quem era. Essa situação não poderia durar muito mais. Cansada de se policiar todo o tempo, o pavor de cometer gafes a angustiava terrivelmente. Perguntava-se até quando poderia agüentar.
Francesco a seu lado, interrogava com o olhar. Tudo no primo o intrigava. O mistério que o envolvia e que esperava desvendar com conhecimento travado no dia a dia, longe de se esclarecer, enevoava ainda mais o espectro que o rondava. Algo nele, muito próximo do controverso o atraía surpreendentemente. A docilidade era evidente por trás daquele rosto assustado. Havia sempre a expectativa de algo novo e esclarecedor se evidenciar nas atitudes do garoto, e a sensação de ser ele muito mais que deixava entrever, perseguia Francesco. O atraia a simplicidade madura, a imensa solidão que presenciava naqueles olhos arredondados cor de esmeralda.
Surpreso se deu conta do quanto ele o envolvera, do quanto apreciava sua companhia. Sacudiu a cabeça numa tentativa de desembaraçar os pensamentos. Muitos amigos os esperavam em Nápoles, especialmente amigas, tudo que precisam no momento era sair e se divertir um pouco. O garoto já tinha idade, se não tinha experiência ele poderia dar algumas dicas.
_ Poderia experimentar um pouco do seu martini? _ A aeromoça acabava de servi-lo. Luisa sorriu provocativa, parecendo adivinhar os planos do primo quanto à sua emancipação.
_ Não deveria, porém pode provar... apenas provar. _ a pequena ruga em sua testa denunciava a súbita preocupação.
Sabê-lo assim cheio de cuidados despertou nela ímpetos de provocação.
_ No Brasil, já tomei uma bebida chamada “caipirinha”, mistura de aguardente e limão. _ A intenção era chocá-lo.
Bingo.
_ Pois aqui não estamos no Brasil e sou responsável por você. Nada de bebidas alcóolicas.
Se já era lindo naturalmente, imagine com aquele ar de responsabilidade. Luisa sentiu uma onda quente percorrer todo seu corpo. Se perguntou se seria a bebida, teve dúvidas. Alguma coisa vinha acontecendo com ela a dias, vontades que não obedeciam a voz da razão. Desejo de permanecer mais e mais próxima de Francesco, enquanto o pensamento dizia não.
Uma sonolência deliciosa se apossou dela. Com um sorriso sapeca nos lábios se encostou gostosamente no primo, inclinou devagarinho a cabeça em seus ombros e adormeceu.
O moderno avião pousaria dentro de alguns minutos em Nápoles.
A cidade de Nápoles fica na costa oeste da península italiana, a cento e noventa quilômetros de Roma. Principal centro cultural e financeiro do sul do país. A vista panorâmica da baía de Nápoles era simplesmente maravilhosa, à direita, o castel Nuovo, também chamado fortaleza Angevina. Francesco amava aquela cidade, ali nascera e vivera a adolescência.
O aeroporto internacional de Capodichino a liga às principais cidades italianas e européias. Luisa se impressionou com a limpeza, a organização e o conforto que se verificava por todo lado que se olhasse. Mulheres elegantes com seus vestidos esvoaçantes desfilavam com leveza pelo imenso salão de desembarque. Observou os olhares lançados, alguns discretos, outros ousados, em direção a Francesco. Seu porte másculo e refinado, mesmo vestindo roupas esportivas, chamava a atenção, especialmente do público feminino. Ela olhou tristemente para suas roupas masculinas, e como um palhaço em fim de espetáculo, Luisa se viu naquele momento. A graça de viver uma fantasia havia chegado ao fim. Era chegada a hora de tirar a máscara e viver sem disfarce.
Os braços do primo em volta dos ombros trouxe a garota de volta, o sacolejar camarada e o sorriso encantador de Francesco tinham a missão de diminuir a tristeza e a melancolia que ele vislumbrou no semblante dela.
_ Andando fratello. _ Na gostosa mistura das línguas, eles se compreendiam com gestos, olhares e palavras soltas.
O carro esporte ia deslizando suavemente pela avenida em frente às casas cujas fachadas falavam por si só, enquanto Luisa pensava no seu despreparo em encontrar uma família tão abastada. Esperara sim, um certo conforto, mas não toda essa mordomia. Sentia a distância entre eles aumentar à medida que avaliava o estilo de vida em que viviam os Grassi. Positivamente não era o seu mundo, dizia a si mesma, e quanto mais longe levasse essa situação, maior a possibilidade de ser interpretada de maneira errada. Que juízo fariam dela ao tomarem conhecimento da sua verdadeira identidade, e pior tomarem conhecimento de sua falta de identidade, pois nem ao menos sabia quem era.
A senhora que os recebeu poderia ter duas vezes a sua idade e deixou Luisa completamente à vontade. Nani, como Francesco carinhosamente a chamou, cuidava da família Grassi a anos e no direito de tomar todas as decisões, levou as bagagens para um quarto decorado com o mesmo esmero dos outros cômodos da casa com aspecto limpo e refinado.
Sozinha, em pé no meio do quarto, ela sentiu a sensação que já começava a lhe ser familiar, a ansiedade misturada à expectativa revestida de medo, vinha em ondas a cada vez se imaginava dizendo a verdade. Não tinha idéia da melhor forma de fazer isso. E existiria uma “melhor forma” de dizer o que tinha que ser dito?
Girou em torno dos calcanhares olhando todos os objetos dispostos de maneira tão agradável de se olhar e nesse momento analisou a possibilidade do tio-avô não ficar tão enervado com ela e lhe dar ao menos a chance de continuar no país, ao lado deles, morando naquela casa... poderia porque não, trabalhar para os Grassi. Cozinhava bem quando se tratava de comida baiana: bobó de camarão, acarajé de milho verde, nada impedia que aprendesse rapidinho um prato mais ao gosto dos italianos. E quanto à limpeza não teriam o que reclamar, estava acostumada a pegar no pesado, em Canavieiras chegara a fazer até três faxinas por semana... sorriu com esperança, uma alternativa para se agarrar, o que mais queria era estar ali, freqüentar a biblioteca daquela casa maravilhosa e quem sabe continuar os estudos...
As batidas na porta eram de Francesco. Ela já conhecia seu jeito de andar, sabia também que ele entraria sem esperar que ela o permitisse. Seu rosto se iluminou ao vê-lo.
_ Vamos jantar? Nani já serviu. Venha, vou buscar na adega, um vinho especial, produzido pela vinícola Grassi.
Luisa o seguiu até o salão principal e dali por uma passagem mais estreita, desceram por uma escada tendo a impressão que desciam ao subsolo. Viu-se de repente num lugar secreto, quase mágico, tonéis cheios de vinho envelheciam ali. Um cheiro agridoce impregnava o ar.
Francesco escolheu uma garrafa, entre tantas, enquanto tagarelava animado sobre o apuro no sistema de produção, conservação e envelhecimento. O “Grassi Premium” ocupava o segundo lugar entre os vinhos mais vendidos no país, soma de tecnologia, experiência e preços não muito exorbitantes. Conquista pessoal, ele acompanhava de perto o processo de produção, da fabricação à comercialização.
Depois do jantar foram para uma pequena sala, um ambiente aconchegante com almofadões espalhados sobre o tapete grosso e macio. Uma sala de som, decorada especialmente para se ouvir música. As paredes revestidas de forma a proporcionar uma acústica perfeita. Francesco esparramou-se pelo chão, ligando um imenso telão, o som veio envolvê-los num torpor delicioso. Ele tornou a encher as taças. A garrafa quase vazia foi posta de lado enquanto relaxavam deixando-se envolver pela música.
Luisa recostou-se displicentemente procurando apoio para a cabeça um tanto pesada sob o efeito do álcool e encontrou o ombro de Francesco. Ele pareceu não se importar em ter o jovem primo tão próximo. Ela fechou os olhos se embalando docemente seguindo o ritmo da canção, quando ficou quieta, deu a entender que adormecera. Ele curvou-se aproximando demais dela, ela abriu os olhos e teve a nítida impressão de que ele a tocaria com os lábios, mas eles permaneceram onde estavam por uma eternidade. Tão próximo ele estava...tão deliciosamente perto... ela podia sentir sua respiração. O desejo de tocá-los, intenso e quase doloroso desobrigou-a de toda prudência. Apenas tocá-los era tudo que desejava... seu primeiro beijo. Jamais estivera tão próxima de alguém e a sensação de perda do controle da razão longe de afligi-la, a deliciava. Levemente... docemente... os lábios dela pousaram nos dele. Não ocorreu a Luisa o que fazer depois disso. Tão somente sentir a proximidade de suas bocas a transportara a uma outra dimensão. Somente mais tarde em seu quarto ela procuraria analisar sua atitude, no momento, tudo o que desejava era estar ali. Sentimentos confusos brotaram no seu peito, a tentação de abraçar e ser abraçada por aquele rapaz com ar de bom moço...
Francesco fechou os olhos um instante, para abri-los um segundo depois cheios de toda incredulidade que poderia existir no universo. Levantou-se aturdido como um criminoso comum que não se acha capaz de cometer um crime bárbaro. Olhou-a como se estivesse vendo o indivíduo pela primeira vez e saiu apressado como quem foge de si mesmo.
Francesco foi refugiar-se no quarto. Necessitava ficar só para tentar entender o que acontecera. Nunca experimentara nada igual. A atração latente em suas veias o deixava confuso e perplexo. Recusava-se a admitir o desejo de terminar o que haviam começado naquela sala. Em luta consigo mesmo, sentindo-se o último homem sobre a face da terra, ele andou em círculos pelo quarto, enjaulado nos próprios sentimentos.
Luisa tinha consciência de que fora longe demais, num caminho sem volta. Compreendia agora, que inconscientemente, quisera se expor.
Encheu a banheira. A água morna não conseguiu refrescá-la. O braseiro que se acendera teimava em permanecer por todo seu corpo. Perdeu a noção do tempo que ficou inerte, incapaz de se mexer. Por fim vestiu um roupão e saiu disposta a se encontrar com Francesco em seu quarto, abrir seu coração e expor sua vida. As conseqüências ela poderia avaliar, mas estava disposta a contar toda verdade, depois, não desprezava a possibilidade de a deixarem ficar. Ofereceria seus serviços, trabalhar e voltar a estudar, no momento era mais do que ela ousava sonhar.
O quarto estava às escuras mas ela girou a maçaneta da porta assim mesmo. Com a porta aberta, ela notou que estava vazio. O cheiro gostoso dele estava ainda no ar. Procurou uma posição confortável no pequeno sofá de dois lugares próximo à janela e se enroscou como um bebê que busca proteção.
Era de manhã quando Isabela a encontrou ainda naquela posição. Num gesto de carinho alisou os cabelos de Luisa, penteando-os com os dedos. Ela acordou imediatamente, surpresa em ver Isabela:
_ Acorde dorminhoco, estou vendo que Francesco o deixou sozinho._ sorriu se desculpando pelo irmão.
_ Não se preocupe, estou acostumado._ Disse Luisa dando graças ao fato de que pela manhã, ao acordar, sua voz se tornava naturalmente mais rouca.
_Vá se trocar, vamos ter visitas logo depois do café da manhã._ Enquanto falava ela ia empurrando carinhosamente Luisa pela porta afora._ Uns amigos virão nos visitar, isso inclui amigas também. _ Piscou os olhos com malícia.
Era só o que faltava, garotas, Luisa pensou desanimada.
_ Não faça essa cara. Mais tarde vamos cair todos na piscina._ Arrematou animadamente.
E mais isso. Era melhor não ter acordado.
A manhã caprichosamente linda, convidava a risos e brincadeiras. Nani parecia acostumada a toda aquela movimentação. Rapazes e moças educados e brincalhões iam até a cozinha perturbá-la sendo logo expulsos, não sem antes arrancarem dela a promessa de mais uma rodada de sanduíches.
Francesco não voltara para casa. Luisa ouviu o telefone e em seguida Nani o entregar a Isabela. Era ele. Chegaria mais tarde. Luisa respirou aliviada, sua ausência começara a inquietá-la.
A nítida preocupação da prima em inclui-la nas conversas comoveu Luisa, ao que ela correspondia tentando ser útil, não deixando faltar sucos e refrigerantes. O calor aumentou e todos resolveram se jogar na piscina. Luisa saiu de mansinho, foi até a cozinha, pediu um analgésico e um favor à Nani:
_ Diga à Isabela que estou com dor de cabeça. Vou descansar um pouco no quarto... por favor Nani, peça a ela que não insista. Estou pouco à vontade para usar a piscina, você compreende não é?!
É claro que ela não compreendia. Num dia lindo como aquele, um sol escaldante, onde já se viu não querer entrar na água. Mas apesar de ser um pouco estranho, aquele parecia um bom rapaz. Nani sacudiu a cabeça, vá entender essa rapaziada de hoje.
Ainda se ouvia a algazarra ao redor da piscina no momento que Francesco entrou no quarto de Luisa. Lia um livro escrito em italiano tão concentrada que não percebeu sua presença de imediato. Não soube a quanto tempo ele esteve ali a observá-la, ao vê-lo, notou seu semblante sério e o tom levemente azedo em sua voz:
_ Nani disse que você estava com dor de cabeça. Sente-se melhor agora?
_ Sinto-me melhor agora._ Disse fazendo dela, as palavras dele.
_ Esperamos que você desça, para se despedir dos nossos amigos. _ Não era um pedido, era uma intimação.
Luisa desceu timidamente as escadas. Na sua concepção, quanto menos se expusesse, menos exporia também sua farsa.
O grupo se despedia enquanto combinava sair para jantar e dançar logo mais à noite.
_ E você é nosso convidado de honra, Luís._ Isabela tentava animar o primo.
_ Não sei dançar._ O que além de ser uma boa desculpa para não acompanhá-los, não deixava de ser a verdade.
_ Pois eu vou ensinar a você, venha._ A prima tomou Luisa pela mão e carregou-a para sala de som.
Dançavam aos tropeços, rindo às gargalhadas quando Francesco entrou na sala. Parado num canto observava o estranho casal que as duas formavam.
_ Você é o cavalheiro, Luís. Deve conduzir a dama._ Era pequeno, mas ela percebeu o toque de ironia em suas palavras.
_ Então, porque você não vem me ensinar?_ Mais do que a devolução da pitada de ironia, era uma provocação.
_ Ótima idéia. Deixo Luís em suas mãos.
Isabela, alheia às insinuações, aproveitou a deixa para sair de cena, indo se aprontar para a noitada.
Ele aceitou o desafio. Segurou-a pela cintura, estranhamente fina, levou a mão dela contra seu peito e disse:
_ Primeiro, eu sou homem e você, mulher. Observe.
Enquanto ele deslizava com ela por todo canto da sala, procurou seu olhar, mas não encontrou. Ela sabiamente se esquivou desse encontro.
_ Agora é com você._ Disse soltando-a repentinamente._ Conduza.
Ela o fez. Mal, mas fez.
Impaciente, soltou-se dela bruscamente.
_ Não. Assim é que se faz!_ Irritou-se exasperado com tanta incompetência.
Segurou-a em seus braços firmemente, e no ritmo da música suave, dançaram docemente. Seus rostos muito juntos pareciam querer se tocar. A música terminou, mas eles continuaram parados no meio da sala. Com uma das mãos, ele procurou o maxilar de Luisa e a obrigou a encará-lo de frente. O que ele viu o deixou perplexo. Seus olhos estavam rasos d’água, havia neles um pedido mudo:
_ Não quero sair, vou para o meu quarto.
Ele assentiu enquanto a soltava. Deixou-se cair entre as almofadas, angustiado com o que estava acontecendo. Passou os dedos pelos cabelos despenteando-os. A atração pelo garoto, existia, não adiantava negar. E isso o estava deixando louco.
Isabela e Luisa passaram a semana sem Francesco. Ele viajara para o interior com a finalidade se supervisionar as vinculas. Elas desfrutaram a companhia uma da outra. Luisa a cada dia via crescer a vontade de se abrir com alguém. Esperaria até que o primo retornasse e então confessaria seu segredo. Confiaria a ele seu destino.
Mas a semana terminou e Isabela teve que retornar a Milão. Um curto telefonema de Francesco instruiu a irmã: Luis voltaria com ela.
Nonno Carlos esperou pelos jovens de braços abertos, tamanha era a alegria em rever os familiares. Luisa soube no momento em que o abraçou, não seria capaz de lhe contar a verdade.
Passavam os dias grudados. Amavam a companhia um do outro. A maior parte do dia liam na biblioteca. Nonno mostrava com gosto, os achados de poesias maravilhosas e Luisa estava sempre aberta a novas interpretações de textos muito antigos. Eram suas melhores horas, quando estavam juntos.
Tarde da noite, ela lia um encadernado da coleção preferida do avô. O silêncio foi quebrado pelo ruído do automóvel estacionando na garagem que comportava os quatro carros da família. Todas as noites ela acompanhava o nonno até seu quarto e com a permissão dele voltava para ler mais um pouco. Sozinha, absorta pelo mundo maravilhoso de sonhos, fantasias e prazer que a leitura proporciona, não ouviu os passos de Francesco, atraído pela luz que vinha da biblioteca.
_ Não está um pouco tarde, Luís?_ O nó frouxo da gravata, a pasta de documentos ainda na mão, indicavam que estava sob tensão. Luisa nunca o vira assim, parecia cansado e frágil.
Impulsivamente ela correu em sua direção, ignorando o comentário, deixando extrapolar a saudade que sentiu todos esses dias sem ele. Não chegou a tocá-lo. Poucos centímetros os separavam quando ela parou, alguma coisa na expressão dele a preveniu do perigo.
_ Posso cumprimentar você?! _ Tentou remendar já a meio caminho do abraço.
_ Droga! O que há com você? Porque não desgruda de mim! Dê um tempo..._ A explosão foi súbita e maldosa.
Pega de surpresa, Luisa sentiu o golpe logo abaixo do estômago, e a dor de cabeça que a ameaçara durante todo o dia, resolveu dizer a que veio. Mas sua única preocupação nesse momento foi esconder de Francesco as lágrimas que teimavam em correr pela sua face. Não daria a ele o gostinho de vê-la magoada. Isso não.
Tarde demais. O primo a seguiu com o olhar, enquanto ela corria porta a fora subindo os degraus da escadaria que levava ao segundo andar.
Nada justificava a atitude grosseira que acabara de tomar. Francesco sabia disso. Sentiu a garganta seca. Mais um martine cairia bem. O sexto só naquela noite. Deixou-se cair na poltrona, com o copo na mão, atormentado.
Luisa procurou não condená-lo. Pondo-se no lugar dele, imaginou a confusão que deveria estar vivendo. Alterado como estava, não convinha procurá-lo para uma conversa decisiva. Melhor esperar o amanhecer.
Depois de tomada essa decisão ela se acalmou e chegou à conclusão que um banho a relaxaria completamente. Uma chuveirada morna e forte, tinha, quase sempre, o poder de fazer desaparecer suas dores do corpo.
Acreditando estar segura em seu quarto, Luisa se despiu colocando as roupas cuidadosamente sobre a cama, ligou a ducha e meteu-se debaixo dela. A temperatura da água funcionou como um tônico revitalizador. Esquecida do tempo foi ficando mais um pouco, adiando a hora de sair.
Francesco subiu as escadas lentamente. Cansado e arrependido pela rudeza no tratamento concedido ao primo, um garoto com muitas carências, parou em frente à porta do seu quarto. Forçou a maçaneta. Estava aberta. Daria somente uma olhada, para o caso dele estar ainda acordado, e lhe pediria desculpas.
O quarto estava escuro, sem lâmpadas acesas, a pouca luz vinha do banheiro. Ele deu meia volta, o barulho da água caindo era mais que esclarecedor, mas a imagem refletida na penumbra do espelho que decorava quase toda a parede do quarto, chamou sua atenção.
Refletia o perfil de um corpo nu, feminino.
A um canto, as roupas masculinas, dobradas com capricho. Francesco duvidou de sua sanidade. Não podia estar vendo o que via. Com a intenção de verificar o que estava acontecendo, ele aproximou-se cautelosamente, procurando uma posição de onde poderia ver sem ser visto.
Através da transparência do box, divisou claramente... a silhueta delicada, as curvas acentuadas, os seios... um corpo de mulher!
Para entregar o convite a Marília, Isadora fez questão de esperar o momento adequado. Horário de almoço, minutos que Lia reservava para relaxar e jogar um pouco de conversa fora.
A produção na fábrica seguia sem maiores problemas, quase toda a remessa comprada pela ‘A & G” já havia sido entregue, sem atraso. O convite, endereçado à “ Giulia Confecções”, havia sido enviado pelo sr. Silas, gerente das lojas brasileiras, responsável por quase todo faturamento da fábrica. Continha uma nota pessoal acrescentada com a evidente intenção de reforçar a importância do evento.
_ Tenho uma sobremesa para você._ Isadora entregou o cartão, saboreando de antemão a surpresa da amiga.
Lia leu atentamente. Duas ruguinhas se formaram entre suas sobrancelhas. Não eram um bom presságio quando essas rugas resolviam aparecer, disso Isa sabia.
O salão Internazionale promovia a badalada semana oficial de prêt-à-porter italiana. Antenada com as novidades ela reconhecia a participação determinante de indústrias como a “Fiação Ferrari”, instalada desde 1911 na Itália. A mostra de roupas prontas e de fios acontecia ao mesmo tempo. A inovação ficava por conta dos chamados fios inteligentes, que cada vez mais adquiriam funções específicas, como por exemplo, a fibra de alumínio que serve como isolante térmico. O mix de fios naturais, artificiais e sintéticos cria novos looks, toques e funções que ficam na fronteira entre o tecnológico e o natural. Mas é o aspecto artesanal o destaque das coleções elaboradas por Marília, que preferia trocar tudo o que é simplesmente chique por tudo que é original. Os fios produzidos nestas indústrias, finos e leves, são sofisticados e ganham tratamento que fazem produtos industriais parecerem artesanais e isso era o que tanto agradava a ela, que em busca de uma identidade própria, resolvera explorar a sensualidade de maneira natural.
A nota pessoal do sr. Silas lembrava a ela o quanto o mercado europeu gosta do estilo brasileiro, dos elementos tropicais e exóticos. Deixava bem claro a possibilidade de negociações com a matriz em Milão.
Se por um lado, um frio percorreu a espinha dorsal de Lia, não acontecia o mesmo com Isadora que era pura excitação depois de ter lido um milhão de vezes o convite.
As despesas com os custos da viagem, o gerente assinalou cuidadosamente, seriam praticamente nulas, uma vez que a “A & G” se propunha a cobri-las integralmente.
Viajar para fora do Brasil. Um sonho antigo e abandonado depois da última alta do dólar. E agora, essa oportunidade a pegara de surpresa. De repente poderia ouvir do tio Arnaldo Martinelli: “ oportunidades são únicas, não se deve desperdiçá-las, ao contrário deve-se agarrá-las.”
_ Que maravilha, amiga! _ Isadora entusiasmada num instante, murchou o sorriso em outro. _ Não está pensando em recusar o convite, está?! Seria loucura. _ Remexia inquieta na cadeira, enquanto estudava a expressão indefinida no rosto de Marília.
_ Preciso pensar um pouco._ A cautela tinha sua razão de ser. Facilidades assustavam Lia. E tudo naquele convite lhe parecera simples demais. Não estava acostumada à tanta cortesia.
_ Não pense. Apenas faça. Do que você tem medo, de ser feliz?
Ela sorriu da maneira que a amiga encarava os fatos.
_ Você faz tudo parecer simples. Pode não ser assim. E depois, nem ao menos tenho passaporte...
_ Deixe tudo por minha conta, vou entrar em contato com o sr. Silas e providenciar o que for necessário, está bem?
_ Você é impossível! _ Ela desistiu de resistir ao desejo forte de acreditar que estava acontecendo um sonho bom em sua vida.
Ponderou sobre a importância dessa viagem, o quanto positivamente refletiria sobre seu desempenho.
Antes de voltar ao trabalho, sozinha na saleta reservada para o descanso após as refeições, ela se perguntou de quem teria sido a iniciativa de convidá-la para o evento, a idéia partira do sr. Silas ou pessoalmente do próprio dono da empresa?
Armani Falquetto, no seu escritório em Milão, esperava pacientemente por informações ao telefone, sobre a confirmação da participação de Marília ao evento. Silas ligaria tão logo obtivesse sua certeza.
Ela o atraía irresistivelmente. Ele se perguntava o que havia de especial naquela mulher: a docilidade sem submissão? A determinação sem arrogância? A fragilidade envolta numa fortaleza que ela mesma sabia possuir... Vira naquele par de olhos transparentes muito mais do que pretendera: a solidão de viver com a lembrança da filha, a necessidade de conquistar seu espaço profissional como meio de sobrevivência da própria identidade.
Armani percebia com nitidez, Marília não era mais uma mulher em sua vida. Ela era a mulher de sua vida. Semanas haviam se passado desde que a vira pela última vez, no Brasil. Mas todos os seus pensamentos eram para ela desde então. Imaginá-la rindo, o enchia de excitação, como um adolescente que se apaixona pela primeira vez. Desejou-a como nunca desejara nenhuma mulher: como fogo que queima primeiro, fome que consome no meio, sede de água limpa e transparente, no final. Sacudiu a cabeça, num gesto inútil de afugentar as lembranças dela. Tarde demais, ela já fizera morada no seu peito, e o pior ele constatou rindo, estava adorando esse sentimento: amar a esta altura de sua vida. Desistira dessa emoção fazia tempo. Seus relacionamentos, nos últimos anos, na melhor das hipóteses haviam sido convenientes. Terminando muito antes de começar um envolvimento mais sério.
O telefone tocou pela milésima vez naquele manhã, e como na primeira vez, aguardou ansioso a transferência da chamada. Era o gerente de compras das lojas brasileiras, confirmando a vinda de Marília, a Milão.
Depois de acertar os detalhes finais que envolviam a chegada do grupo brasileiro, especialmente convidado para o Salão Internazionale , ele instruiu à secretária:
_ Faça reserva de um apartamento em meu nome no hotel Pávia, no mesmo andar, próximo ao reservado à senhora Marília Martinelli. Faça isto, imediatamente.
Constance, a secretária que a muitos anos prestava serviço a Armani Falquetto, não entendeu absolutamente nada daquela atitude, uma vez que ele possuia um suntuoso apartamento a apenas algumas quadras de distância desse hotel.
Os trinta dias que antecederam a viagem para Itália não foram suficientes para que Marília colocasse ordem em toda a papelada e compromissos da fábrica. Ainda insegura, apesar da insistência de Isadora em dizer que estava com tudo sobre controle, pensou em desistir algumas vezes, como agora, a caminho do aeroporto. Mas a expectativa de novos conhecimentos, tendências, tecnologia, a impulsionavam. Sem contar a emoção de conhecer a romântica Itália.
Por um instante, um breve instante, avaliou a possibilidade de encontrar Armani por lá. É claro que sua presença seria indispensável. Acompanhado, naturalmente. Analisou friamente, suspirando com desdém.
_ Não se preocupe com nada que diga respeito à fábrica. Tomarei conta de tudo por aqui. _ Prometeu Isadora, vendo-a suspirar. _ Aproveite o máximo que puder. Caso voçê conheça algum italiano lindo, pergunte a ele se não teria um irmão. _ Piscou um olho, lascou um beijo na amiga e empurrou-a carinhosamente em direção ao portão de embarque.
Primeira viagem de avião. O medo se confunde com a excitação. Marília tinha no máximo, até aquele dia, viajado para regiões muito próximas de onde nascera e crescera. Tranqüilizou-a pensar que o sr. Silas lá estaria para acolhê-la e ao grupo brasileiro, todos convidados da “A & G”.
Gostoso andar de avião. Delícia pisar em terra firme. Com um certo ar de alívio, ela desembarcou em Milão. Quarenta minutos depois estava à porta do hotel mais luxuoso que já vira. Havia euforia no ar. O grupo brasileiro, animado e falante, foi recebido com carinho.
Os aposentos destinados a Marília eram imensos: sala, quarto, banheiro e uma vista maravilhosa para um parque que mais parecia uma floresta, bem no centro da cidade. Rosas vermelhas alegravam o quarto, todo decorado num tom pastel. Aproximou-se para tocá-las e surpresa observou que continham um cartão. Imaginando ser uma cortesia do gerente daquele hotel, ela abriu, totalmente despreparada para ler o que leu:
“ Seja bem-vinda. Ao lado das flores tem um presente para você. Espero ter acertado as medidas. Use-o, e eu prometo respeitar as regras.”
Propositadamente não havia assinatura. Nem precisaria. Sorrindo abriu com cuidado o pacote amarrado com uma larga fita de cetim. Dentro, envolto em papeis de seda, um vestido vermelho. De um tecido finíssimo, com certeza o mais delicado que já tocara, o mais sensual também, observou enquanto o retirava da caixa, segurando delicadamente as finas alças.
Colocou o vestido à frente do corpo e se olhou no espelho. Não podia aceitá-lo. Extravagante em beleza, excessivamente refinado... caro em demasia. Definitivamente, não poderia aceitá-lo. Mas, poderia vesti-lo só por uma noite, apenas para não ser deselegante ao recusá-lo. Riu de si mesma, estava brincando com fogo, e o que era pior, depois de aceso, duvidava se conseguiria apaga-lo.
Às dez em ponto ele veio pegá-la. Timidamente convidou-o a entrar. Havia perdido o jeito de lidar com os homens. Não sabia exatamente o que dizer ou fazer. Apenas deixou-se olhar. Ele parecia encantado em vê-la. Marília não compreendia bem o porque, talvez o vestido, que era mesmo deslumbrante.
_ Confesso, tive dúvidas de que o vestiria. Gosto de mulheres que surpreendem.
_ Gosto de homens que cumprem suas promessas._ Referia-se naturalmente à promessa escrita no bilhete.
_ Ficou extraordinário em você._ Ignorou o comentário dela.
_ Se já não conhecesse o seu firme propósito em seguir regras, eu diria que está me cortejando.
_ E se eu dissesse que você poderia estar certa?
_ Então eu diria que essa não é uma boa idéia.
_ E se eu ficasse curioso em saber porque esta não é de fato uma idéia tão boa assim?
_ Não me restaria outra alternativa, senão revelar a você que meu coração se encontra fechado para balanço.
_ Depois dessa conjetura meramente especulativa, proponho uma trégua para o jantar._ E antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ele tocou suas costas nuas, desabrigadas pelo imenso decote que ia até a cintura, de maneira terna e protetora. _ Quero apresentá-la à minha cidade. Levá-la aos lugares onde verdadeiramente me sinto em casa.
Assombrada diante da dupla capacidade italiana de conviver com as preciosas obras de arte do passado e as boas coisas da vida moderna, ela foi apresentada ao restaurante favorito dele. Uma casa de pedra, que poderia se confundir naturalmente com uma taverna. A entrada foi de queijos, após o que vieram as massas finas, seguidas de uma vitela especialmente preparada para o jantar a dois. Um tipo de vinho diferente acompanhando cada prato.
O ambiente romântico, as mãos de Armani que volta e meia tocavam as de Marília, a música suave, a fizeram desejar que a noite não terminasse jamais. Por que deveria? Conhecendo os lugares que ele freqüentava só fez aumentar nela a certeza da imensa distância que sempre os separaria. Via nele o homem bem informado, amante da arte, conhecedor da sensibilidade feminina. E quem era ela? Mulher simples do interior, lutadora contra as adversidades, sobrevivente na dura batalha pelo pão de cada dia... Lia tocou de leve, com a extremidade do dedo indicador, a ponta do próprio nariz, segredinho de grande utilidade para determinar o momento exato em que deveria parar de beber. Uma vez perdida a sensibilidade no toque, significava o seu limite de tolerância ao álcool. Não pretendia se exceder esta noite. De maneira alguma desejava dar a ele, uma impressão errada a seu respeito.
Nos braços dele, enquanto dançavam, ela sentia-se segura e confortável. Mas não preparada para amar novamente. Há muito trocara a mansidão pela inquietude. Seus sentimentos eram um torvelinho de emoções mal resolvidas. Não precisava de proteção. Precisava sim, perdoar a si mesma pela perda da filha... pelo fracasso do seu próprio casamento... necessitava provar a si mesma a capacidade de vencer sozinha profissionalmente. Olhou-se no imenso espelho do salão. Viu-se naquele vestido luxuoso e pensou que não deveria se esquecer de quem era e o que viera buscar neste país. Conhecimento, era tudo que iria levar.
_ Leve-me para o hotel. _ A voz de Marília dizia exatamente o contrário do que falavam seus olhos.
Ele não insistiu para que ficassem.
Em frente ao quarto, ela se virou para desejar boa noite. Ele a aprisionou cercando seus ombros e colocando as duas mãos espalmadas de encontro à parede. Prisioneira entre seus braços e a parede, deixou-se ficar com olhar de desafio.
_ Não pense que sou homem de desistir facilmente._ Avisou.
_ Desculpe-me, não posso aceitar seu presente, amanhã, o devolverei a você._ Desconversou.
_ Receio que minhas medidas não sejam iguais às suas.
Ela riu da careta que ele fez.
_ Posso entrar um pouco?
_ Não._ Ela disse rápida e determinada.
_ Posso te dar um beijo de boa noite?
_ Não..._ Desta vez ela foi menos rápida e menos determinada.
_ Eu conheço esse não. _ E procurou seus lábios quando ela ofereceu as maçãs do rosto.
Ele beijou-a docemente, sem libertá-la. Tocou-a apenas com os lábios. Com as mãos ainda na parede, afastou devagar seu corpo do dela, como se relutasse em faze-lo.
_ Vou ficar por perto. _ Piscou o olho direito._ Para o caso de você mudar de idéia.
Pegou no bolso da calça, as chaves do seu quarto, caminhou até ficar ao lado da porta de entrada, enquanto aguardava que ela entrasse no próprio quarto.
Surpresa, ela entrou, rindo da excentricidade dele.
Saber da presença dele, no quarto ao lado, a deixou inquieta. Tocou os lábios com a ponta dos dedos, sentindo ainda viva a ternura daquele beijo. Deitada na cama, contemplou o camisetão que vestia, jurou que compraria uma camisola decente tão logo tivesse uma oportunidade.
Por puro hábito, Marília acordou bem cedo. Constava na programação do evento que aquela manhã seria livre. Não havendo nenhum compromisso, ela vagou meio sem destino pelo hotel. Tomou o café da manhã juntamente com outros brasileiros instalados ali. Um pequeno grupo de senhoras conseguiu convencê-la a perambular por um conjunto de lojas a poucas quadras do hotel. Atraída pela idéia de comprar um presente para Isadora ela acompanhou o grupo. Deixou na recepção um pequeno recado contendo o endereço de seu paradeiro. Jamais saía sem avisar, uma mania que a acompanhava a anos.
Acabou voltando para o hotel sozinha e trazendo mais pacotes do que gostaria. Pequenas lembranças para os pais e os tios.
Enquanto aguardava o elevador que a levaria para o apartamento, chamou sua atenção o homem bem à sua frente. Seus cabelos castanhos, quase negros, como os de Armani, os mesmos ombros largos e a mesma estatura a convenceram de que se tratasse dele. Deu um passo à frente na intenção de abordá-lo. O homem elegantemente vestido, sentindo-se observado, voltou-se e deparou com o sorriso receptivo de Marília. Que toda sem graça constatou não ser Armani o dono daquele sorriso atraente que ele lhe devolveu.
Ele não pareceu constrangido. Ao contrário, bastante à vontade aproximou-se mais dela.
_ Desculpe-me, eu o confundi com alguém que conheço._ Disse isso, depois se arrependeu, lembrando que no Brasil, essa é uma técnica bastante usada para se abordar alguém interessadamente.
Ele percebeu o modo como ela disse isso e depois quis voltar atrás.
_ Eu a desculpo se me disser seu nome e deixar que eu leve seus pacotes até o seu apartamento._ O português era imperfeito, mas compreendia-se com facilidade.
_ Marília._ Disse apenas o primeiro nome, à moda brasileira de se apresentar, enquanto tentava desajeitadamente lhe estender a mão. _ As semelhanças entre Armani e este homem eram apenas físicas, o modo como a olhou não deixou dúvida de que tinham uma natureza diferente.
_ Giorgio._ Imitou-a, sorrindo.
Tomou das mãos dela, as sacolas contendo os pacotes e educadamente a conduziu até o elevador. A sós, enquanto subiam para o andar seguinte, ela sentiu o olhar dele despi-la completamente. A porta se abriu, gentilmente ele perguntou o que a trazia a Milão.
Bastante embaraçada, ela falou do evento e do convite amável da “A & G”.
Seguiu-a até a entrada do apartamento disposto a não perder de vista aquela brasileira encantadora, de modos conservadores, e voz sensual.
_ Gostaria de voltar a vê-la. Eu poderia lhe telefonar?
Quase irresistível, ela pensou. Ele demonstrava um interesse que a fazia se sentir desejada.
_ Melhor não. _ Respondeu meio sem saber como dizer isso sem magoá-lo.
_ Você está acompanhada? _ A pergunta era pessoal, e ele acrescentou um tom íntimo e indiscreto.
_ Mais ou menos... _ Totalmente sem jeito, ela não soube como encerrar aquela conversa.
Para alívio de Marília, ele pareceu contentar-se, e como quem se lembra de um compromisso, despediu-se;
_ Voltaremos a nos ver, com certeza. Arrivederci!
_ Arriverderci. _ Entrou com a sensação de que ele a acompanhava com o olhar. Colocou as sacolas sobre a cama enquanto sentia o rosto queimar.
Giorgio passou os dedos por entre os cabelos, não se importando em despentea-los um pouco. Estava trabalhando demais ultimamente, um pouco de diversão não faria mal. Sozinho, sem romance à vista, cansado da mesmice que se tornara os namoricos sem conseqüência. As mulheres latinas, em especial, as brasileiras possuíam fama de serem, além de bonitas, carinhosas e inteligentes. esperou que ela entrasse para seguir depois até o apartamento do irmão. Desistira de compreender o porque da reserva neste hotel, quando o apartamento dele ficava na mesma avenida. Fazia muito tempo que não se metiam um, na vida do outro, se o irmão tinha seus motivos e não desejava compartilhar com ele, Giorgio respeitaria.
Armani já o esperava quando ele chegou apressado, os papeis em punho, prontos para serem assinados.
_ E aí, tudo pronto para a abertura do Salão Internazionale?_ Giorgio fazia parte da comissão organizadora do evento e apesar das constantes reclamações pela trabalheira, o irmão o fazia com gosto e competência.
_ Quase. Os últimos acertos sempre ficam para a última hora, disso não há como escapar. Este ano contaremos com uma participação maior de estrangeiros, visitantes de todas as partes do mundo. Mulheres maravilhosas já desfilam por toda Milão. Essa é a melhor parte do evento.
_ Concordo plenamente com você._ Um riso de prazer ressoou pela sala, enquanto os pensamentos deles pousaram ao mesmo tempo na brasileirinha ao lado.
Marília encontrou o recado deixado por Armani, no quarto. Ele viria apanhá-la dentro de uma hora, mostraria a cidade, num breve passeio de automóvel e depois seguiriam para o local onde seria realizada a semana de moda. Teria que se apressar, olhou o relógio, daria tempo para um banho de espuma na confortável banheira do hotel. Mal acostumada com tantos mimos e assédios, espantou do pensamento a volta ao Brasil, as preocupações com a fábrica e a solidão de sua vida pessoal.
Lia vestiu azul. Sua cor preferida. A tonalidade dos olhos refletiam seu bem estar. O decote discretíssimo, ia apenas até o meio das costas. A saia do vestido terminava um pouco abaixo dos joelhos, tornando-o mais alinhado. Nos cabelos, uma tiara azul no mesmo tom do vestido, tentava sem sucesso por ordem nos anéis rebeldes, mas extremamente charmosos, que contribuíam para dar a ela aquele ar jovial.
Sentia-se bonita, independente e valorizada.
Ele chegou na hora marcada. Não resistindo à tentação de tocar seu rosto e beijar de leve sua boca. Ela estava tão linda! Armani sentiu que mergulhava de cabeça neste sentimento, que desconfiava, já a algum tempo, ser amor.
Milão, importante centro de moda, ditava com autoridade, as tendências para as próximas estações, isso Marília pode observar nas ruas. Os tons alegres e modernos das roupas usadas pelas pessoas de todas as idades, contrastavam com a arquitetura do lugar por onde desfilavam. Impressionada com a quantidade de igrejas, testava a capacidade de tolerância de Armani ao pedir que parasse a cada uma delas para uma rápida oração. Ele, pacientemente fotografava, com a pequena máquina que ela trazia a tiracolo, ilustrando todo o passeio. A ferrari seguia silenciosa pelas ruas antigas e ricas em tesouros culturais. Por um momento ela desejou continuar indefinidamente, sem se importar com o tempo.
A cerimônia de abertura do evento havia iniciado quando chegaram. Marília juntou-se ao grupo brasileiro, enquanto ele, como convidado de honra, ocupou lugar de destaque na solenidade. Logo após a formalidade, ela se viu conduzida a uma sala vip, onde um grupo considerável de pessoas, conversavam, bebiam e ao som de uma pequena orquestra, dançavam.
Obras de arte cobriam as paredes, encantada, ela aproximou-se para melhor apreciar. Armani, deixou-a por um segundo, para ir até o bar buscar uma bebida para os dois.
Ela sentiu o cristal gelado tocar sua pele, numa região sensível, próxima ao pescoço. Voltou-se sorrindo com a intimidade tomada pela brincadeira. Pensou que veria Armani. Encontrou o sorriso charmoso e irresistível de Giorgio.
_ Eu não disse que nos veríamos novamente?
Tinha nele, algo muito familiar, por isso, ela não conseguia achá-lo inconveniente. Atraente, seria mais exato.
_ Satisfeita com a assistência da “A & G”?_ Perguntou pela Segunda vez, parecendo genuinamente interessado.
_ Particularmente satisfeita._ Respondeu pensando na atenção recebida por parte de um dos sócios.
_ Poderíamos dançar!?_ Antes de ser um convite, era uma insinuação.
Procurou Armani com o olhar. Ele vinha na direção deles. Não havia decepção em sua expressão, ao contrário, um largo sorriso iluminou seu rosto à medida que se aproximou do casal.
Para surpresa de Marília, ele passou o braço pelos ombros de Giorgio, num gesto de carinhosa intimidade.
_ Então vocês já se conhecem?!_ Armani sorriu com naturalidade.
_ Nos conhecemos no hotel Pavia._ A voz de Giorgio soou meio sem graça, como menino pego fazendo arte.
_ Marília representa a “Giullia Confeções”, griffe do Brasil que comercializamos com muito sucesso em nossas lojas._ Disse voltado para o irmão. E dirigindo-se a ela _ esse é de longe meu irmão preferido.
Agora ela compreendia porque se enganara no hotel. Olhando os dois assim lado a lado, percebia-se claramente as semelhanças.
_ Ele diz isso porque sou seu único irmão. _ Retrucou invalidando o elogio._ E você ainda não respondeu à minha pergunta. Dançamos?!_ Esperar por respostas, parecia não ser do temperamento dele. Agir por impulsos também devia fazer parte de sua personalidade, pois muito antes que ela pudesse dizer alguma coisa, já se encontravam entre os casais, na área reservada para se dançar.
A música de alegre melodia terminou, mas ele não a soltou de seus braços. Reteve-a até que outro som, desta vez, romântico invadisse todo o ambiente. A sensualidade estava à flor da pele de Giorgio. Ela sentiu as vibrações no momento em que ele a trouxe para mais perto dele. Seu rosto se colou ao dela. As mãos dele buscaram a parte das costas dela onde o crepe não cobria, numa doce e discreta carícia.
“ Minha nossa”, pensou ela, ele ia rápido demais enquanto dançavam. Não com os pés, mas com as mãos.
Atordoada viu os casais se separando, não soube precisar o momento em que a música chegara ao fim. Outros braços a tomavam enquanto se soltava de Giorgio.
Sério, Armani, com o habitual autocontrole, a tomou nos braços num convite mudo para dançar.
_ Eu a vi primeiro. _ Ele não sorriu ao dizer isso para o irmão.
Giorgio se afastou do casal indo até o bar. Dali podia vê-los. Eles formavam um belo par.
Jamais tivera inveja das coisas do irmão. Até agora.
O álcool que entorpecia os sentidos de Francesco evaporou instantaneamente. Em estado de choque, mas lúcido, ele tentava absorver o que seus olhos viram e o cérebro recusava-se a confirmar: Luis não era ele. Era ela.
Em seu quarto andou quilômetros. Inquieto, procurando respostas, passou a noite em claro. As perguntas em sua mente confusa eram sempre as mesmas. Quem era aquela pessoa? Os documentos estavam em ordem, ele mesmo verificara. O parentesco era verdadeiro, tinha mesmo um primo chamado Luis Grassi, e se essa pessoa não era ele, quem então seria? E Luís, por onde andaria? Estaria conivente com os acontecimentos? E por último, a pergunta mais absurda, ela não seria ele, o próprio Luís?
Louco de tanto pensar, concluiu que havia duas maneiras de esclarecer tudo o que estava acontecendo. Uma delas, surpreender a impostora e obriga-la a confessar o embuste. Descartou logo essa possibilidade. Habilidosa, poderia revelar uma meia verdade. A outra, uma investigação minuciosa da vida dos parentes brasileiros.
Fez as malas, voaria para o Brasil.
Antes do sol nascer procurou o avô. Ele sabia que o Nonno despertava muito cedo. Disse apenas que precisava viajar a negócios, não revelou o destino, retornaria em uma semana, no máximo. Francesco amava aquele homem, como pai, avô e companheiro. A última coisa que desejava era fazê-lo infeliz. Cuidaria também para que ninguém o magoasse. Uma coisa que se encontrava clara naquela história era o apego de Nonno Carlos àquele garoto. Quem quer que ele fosse, soubera conquistar o afeto de todos naquela família, inclusive o dele.
Depois de receber as bênçãos do avô, ele partiu.
No avião traçou todo o roteiro que deveria seguir. Desembarcando em Salvador, no Brasil, seguiria com destino a Canavieras, não sem antes contratar um intérprete, o que seria de grande utilidade no conhecimento da língua e também do lugar. O primeiro ponto de investigação seria o convento Sagrado Coração de Jesus. Levava consigo o nome da Madre que acolheu o primo por alguns meses. Numa cidade tão pequena, não teria dificuldade em obter todo tipo de informações.
Sua cabeça trabalhava a mil por hora, em busca de respostas. Se ele fosse ela, compreenderia a razão de ser daquela atração que o estava consumindo. Um certo alívio tomou conta dele, que a muito, questionava a própria masculinidade.
Como ele previa, não foi difícil chegar até o Colégio Sagrado Coração de Jesus. A estrada de acesso era mesmo precária conforme dissera Luís, ou quem quer que fosse, na ocasião em que viera àquela cidade. Francesco suspirou, pelo menos nisso, ele não mentira.
Pessoa agradabilíssima, Madre Idalete recebeu o rapaz em seu escritório, com extrema cortesia quando soube que estava diante da pessoa que trazia notícias de sua querida menina.
_ Eram endereçados a mim, os e-mails que mandava, sr. Francesco._ ela o informou depois dos cumprimentos._ Disso ele tinha ciência, correspondia-se com o primo através do endereço eletrônico de Madre Idalete.
O intérprete se adiantou para traduzir as palavras dele:
_ Desculpe ter vindo sem avisá-la, mas o assunto que aqui me traz é de muita importância.
A madre o convidou a sentar. Indicou uma cadeira próxima para o intérprete e depois acomodou-se em sua velha poltrona. A expressão do jovem era de ansiedade e inquietação, o que começou a afligir a religiosa.
_ Fale meu rapaz, em que posso ajudá-lo?
_Em primeiro lugar, preciso fazer uma pergunta e necessito de uma resposta verdadeira, por isso recorri à senhora para faze-la.
Crescia nela, a vontade de saber notícias de Luisa, mas não ousou interromper Francesco, pois era claro que o motivo que o trazia ali era a própria.
_ Madre Idalete, quem é a pessoa que viajou comigo para a Itália?
Ponderação era uma atitude que a religiosa sempre lançou mão diante das questões, por mais absurdas que elas se apresentassem.
_ Meu filho, receio não ter compreendido a pergunta. _ Sempre havia a possibilidade de que o sentido da frase se perdesse ao ser traduzida.
_ A senhora compreendeu perfeitamente. Vim ao Brasil, buscar respostas para perguntas difíceis. Estou confiante que saberá respondê-las.
_ Sim... farei o possível._ Entrelaçou os dedos das mãos, como sempre fazia nos momentos de oração, num pedido mudo, que nada estivesse errado com Luisa.
_ Por favor, conte-me desde o principio, a vida dessa família.
Ela assim o fez, confiante de que em breve tudo se esclareceria.
Idalete, irmã de caridade naquela época em que veio transferida para Canavieras, encontrou essa família, os Bernardi, carente de bens materiais, mas curiosamente rica em afeto. Luisa teria então mais ou menos seis anos de idade... a essa altura da narrativa ele a interrompeu.
_ Quem é Luisa?
Surpresa, ela disse sem entender absolutamente nada:
_ Ela é a menina que você levou para a Itália...
_ Como menina? Comigo viajou um rapaz de nome Luis...
Estabelecida a confusão, chegaram a um acordo, Madre Idalete continuaria a contar a história da família. O que tentou fazer o mais calmamente possível, se atendo a detalhes.
Presenciara o nascimento de Luís, menino rebelde desde jovem, contou com amargura seu triste fim. Francesco apanhou o lenço para secar as gotas de suor que apareciam de repente pelo seu rosto, sem dúvida uma manifestação do estado nervoso em que se encontrava.
Com carinho, ela relatou a vida sofrida da garota que aprendera a amar. O interesse pelos livros antes mesmo de iniciar os estudos naquele colégio, a morte da mãe, a fidelidade no amor de filha e irmã externados pelos cuidados com o pai e o irmão. Falou da difícil luta que Luisa enfrentara até agora em seus poucos anos de vida. O bairro violento na periferia da cidade, que ficava no meio do caminho, entre a chácara e a cidade. As vezes em que se metera em brigas de rua para defender o irmão mais novo. Falou também da Luisa delicada, mas não frágil. Sofrida, mas não amargurada, que não desistia diante de qualquer obstáculo.
Era ela, pensou Francesco. Era essa pessoa que deixara em Milão. Uma garota: bem humorada, terna... apesar de tanto sofrimento.
_ Porque motivo, ela se faria passar por outra pessoa? _ Uma indagação mais para si que para a senhora à sua frente.
Tendo já desistido de tentar entender as perguntas atravessadas do rapaz, ela esperou que ele se explicasse melhor.
_ Durante o tempo que nos correspondemos pela internet, ela me fez acreditar que tratava diretamente com o primo Luis. Quando vim ao Brasil, encontrei à minha espera na rodoviária, um rapaz e não uma garota.
Madre Idalete não sabia o que dizer, tal era o seu espanto. Essa era a sua menina, capaz de artifícios. Conteve o riso, mas a expressão modificada do seu rosto despertou a atenção de Francesco.
_ Conte-me, por favor, não esconda nada._ O interesse dele por tudo que se relacionava a ela era justificado.
_ Os modos masculinos de Luisa eram sua defesa. Uma maneira simples e direta de afastar os rapazes que por ventura se aproximassem dela. No íntimo, ela sempre lidou com essa situação muito bem. Divertia-se chocando as pessoas. Moleca, com certeza não mediu as conseqüências de sua brincadeira. Mas, ao menos uma coisa posso garantir a você, meu jovem, nada há de errado com a feminilidade de minha afilhada. Apesar de não ser dada a namoricos, o que é muito comum na idade dela, como qualquer jovem, espera que o amor lhe aconteça. Agora me diga finalmente, como ela está?
Francesco então a colocou a par de todos os acontecimentos e notícias que pacientemente esperara para receber.
Enquanto ela servia um café com aroma delicioso, ele se perguntou se Luisa teria consciência da ação ilegal que cometera. Tomar o lugar de uma pessoa morta. Antes de parecer um ato de molecagem, parecia, isso sim, um ato desesperado.
A Madre trouxe a pedido do rapaz um álbum de fotografias, nele continha uma variedade de fotos exibindo uma moça faceira, cabelos quase nos ombros, vestido simples em pose indiscutivelmente feminina. A pele muito lisa. Os mesmos olhos cor de esmeralda. Luis era, sem dúvida, Luisa.
Concluiu que descobrira parte da verdade, por hora contentaría-se com o que tinha.
Passaria pelo único cartório da cidade, retiraria uma cópia do atestado de óbito de Luis. A prova definitiva de que estava morto e enterrado.
A madre os levou até o portão do colégio, depois de fazer Francisco prometer que seria compreensivo, quaisquer fossem os motivos que a levaram a mentir. Ele disse apenas:
_ Eu serei.
Ansiava voltar para Milão, não permitiria que essa moça continuasse enganando a todos, ele lhe daria certamente, uma lição.
Francesco retornou depois de uma semana. Luisa notou o cansaço do seu corpo, mas seus olhos tinham um brilho diferente, arrogante. Ela confirmou isso no abraço demorado que ele fez questão de lhe dar, depois subiu para o segundo andar e foi ter com o avô.
No jantar especialmente preparado para recebê-lo de volta à casa, o Nonno Carlos criou, propositadamente, um clima de expectativa quando anunciou sério, que ao final do jantar participaria a todos uma decisão tomada por ele, mas que dizia respeito a todos ali reunidos naquela mesa. O neto mais velho fora participado da decisão do avô, logo que chegou do Brasil. Divertia-se agora interiormente com o impacto que a decisão causaria.
Incomodava a prima aquele jeito cínico que Francesco acrescentara à própria personalidade. Perguntou-se se fora a única a nota-lo ou Isabela também percebera.
Terminado o jantar, foram todos para sala de estar.
Metódico, Nonno esperou que todos se acomodassem nas confortáveis poltronas, para então começar:
_ Falei com meu advogado, nesta semana a respeito de alterações no meu testamento. É da minha vontade beneficiar o mais novo membro de nossa família, meu sobrinho-neto, Luís. _ Sorriu na direção de Luisa.
Como que espetada por alfinetes, ela deu um pulo do sofá, indo parar em frente ao avô.
_ Não creio que seja uma boa idéia, meu avô... O senhor nem ao menos me conhece direito... e depois essas coisas não podem ser feitas assim impensadamente... _ as palavras saiam atropeladamente, sem que ela conseguisse encontrar outras mais convincentes.
_ Eu acho uma boa idéia, um dia você vai querer formar sua própria família... enfim, casar-se, ter filhos, o próprio negócio..._ Francesco tentava atormentá-la ainda mais.
_ Tudo o que desejo é estar ao lado de vocês. Desculpe Nonno, se estou sendo indelicado, mas não quero que faça nada. Deixe tudo como está. Eu já recebo muito mais do que sou merecedor._ Tal era o desespero visível de Luisa, que Isabel interviu a seu favor:
_ Não fique tão aflito assim, primo. É o desejo dele, e depois não vai fazer nenhum mal a você. _ Tentou brincar, com a intenção de aliviar a tensão.
O primo acompanhava o desenrolar da conversa como mero espectador. Divertia-o ver Luisa naquela situação, acuada. Não perderia por nada desse mundo, assistir de camarote, o que ela faria para se safar dessa.
_ Veja bem, meu filho. Corre em suas veias o meu sangue. Você é jovem demais para compreender como me sinto a respeito. Não estou pedindo sua opinião, apenas comunicando uma decisão. _ A voz era firme e pausada, acostumada a ser ouvida com extrema atenção, não deixando muito espaço para argumentação.
_ Nonno... precisa me ouvir... quem quer que eu seja, da família ou não, isso não faz de mim melhor ou pior. Dê- me mais tempo, para que eu possa me dar a conhecer... encarecidamente, eu te peço. De maneira alguma é minha intenção magoa-lo, mas eu posso não ser exatamente como me vê... _ passou nervosamente as costas das mãos pelo rosto secando duas lágrimas teimosas que desciam sem aviso pelo rosto _ Preciso que me ame muito além das aparências e parentesco. Compreende o que estou tentando dizer?
Francesco compreendia. E antes que o avô pudesse dizer algo, tomou a dianteira em sua defesa.
_ Muito sensato de sua parte, primo, se o que está tentando dizer é que necessita de tempo para abrir seu coração. _ Deu alguns passos em sua direção e a pegou pelos ombros, num gesto amigável.
Carlos Grassi , como previra não encontrara nenhuma resistência, por parte dos netos, no que dizia respeito à sua decisão de alterar a papelada, mas se surpreendia agora, com o pedido do membro que acreditava ser o mais frágil de sua família.
Pensativo mas não preocupado, Nonno Carlos cedeu aos apelos dos netos, depois que Isabela se juntou a eles, em considerar adiar por algum tempo a alteração no testamento. Aliviada, Luisa correu os olhos pela sala procurando os de Francesco a fim de agradecer por sua compreensão e pensou ter visto ali, um pouco mais que o simples ato de compreender.
Luisa não conseguiu um motivo forte bastante para ser deixada em paz naquele domingo. Teria preferido ficar com o avô lendo os últimos exemplares de revistas, jornais e livros vindos do Brasil, que ele carinhosamente adquiria para ela, através do reembolso postal.
A contragosto se encontrava entre os amigos dos primos e antes que pudesse expressar sua vontade de ficar quieta a um canto, se viu disputada como jogador para uma partida de futebol. Ela não entendeu bem o porque, mas o sorriso cínico do primo prometia sacanea-la.
Se ele pensou que a garota iria fazer feio, enganou-se redondamente. Ela era boa de bola. Comparado com o gramado ralo do campinho de futebol do ginásio de Canavieiras, onde jogava no time feminino, aquele campo todo verdinho e bem cuidado convidava a um jogo de verdade.
Jogando no time adversário, Francesco seguiu com o olhar aquela garota vestida com um shorte folgado e camisa, pelo menos dois números maiores que o seu. Na posição de atacante, ela partiu para cima do adversário marcando em cima. Cavou uma falta que fez o time adversário todo protestar. Tentando o gol, driblou um, depois outro jogador e se viu agarrada e atirada no chão por braços poderosos que muito antes de querer maltratá-la, pareciam mais dispostos a carinhá-la. Rolaram rindo pela grama macia, Francesco e ela.
_ Machuquei você? _ Preocupou-se sinceramente.
_ Acho que torci o pé._ Fez uma careta engraçada, mais parecia sentir prazer do que dor.
_ Deixe-me ver..._ soltou seus braços na intenção de socorre-la.
Tudo o que ela precisou foi desse segundo de vacilo do jogador.
No momento seguinte estava a caminho do gol. Executou e correu para o abraço. Riu malandrinha para o primo e apesar da cara de poucos amigos que ele fez, tudo o que ela quis nesse momento foi se jogar nos seus braços e confessar que desejava beijar sua boca. Estranha fascinação, o ato de beijar exercia sobre Luisa. O fato de jamais ter sido beijada verdadeiamente em sua vida criou uma expectativa, e ela tentava desacelerar a pulsação a cada vez que se imaginava em uma situação de beijo eminente. O medo de não saber como proceder no momento exato, a deixava terrivelmente insegura.
Sacolejada por integrantes do mesmo time que a empurravam para o vestiário masculino, ela não teve como recuar.
Sentada num banco gelado de granito assistiu passivamente o desfile de corpos nus dos jogadores. Sua situação só não era totalmente constrangedora pelo fato de já ter presenciado a nudez do próprio irmão que jamais se acanhou diante dela.
Francesco saía de um chuveiro reservado quando a viu ali, timidamente sentada. Recriminou-se por ter sido tão descuidado a ponto de perdê-la de vista. Sem a alternativa de poder usar o vestiário feminino, ele praticamente a obrigou a usar o reservado que acabara de desocupar. De plantão na porta, esperou que ela trocasse as roupas de futebol por outras também emprestadas por ele: camisa polo branca e shorte curto, usados para se jogar tênis. As bolinhas que encontrou na valise entregue por ele, vieram bem a calhar, colocadas uma em cada bolso lateral, davam volume na parte da frente do shorte.
Tênis na opinião de Luisa, era um esporte aristocrático, charmoso, e foi com gosto que ela acompanhou o primo até a quadra.
Ele pacientemente explicou as regras do jogo enquanto mostrava com a mão como se segura a raquete.
Os dois sozinhos naquela imensa quadra, o jeito como ele a segurou por traz, levando e trazendo seu corpo, imitando o movimento da jogada... de repente o momento se tornou único. Seus rostos muito próximos, ela sentiu que ele evitava seu olhar, mas não disfarçava a atração que seus lábios exerciam. As mãos dele deslizavam devagar, como um carinho, por toda extensão dos braços dela. Luisa sentiu a pele se arrepiar de prazer...
Ouviram vozes e risos de jogadores que se aproximavam conversando animadamente. Ela se soltou dele rapidamente e se juntou ao grupo, liderado por Isabela. Francesco ficou um pouco mais tentando controlar as emoções que tomavam conta dele e invadiam sua privacidade. Essa menina o estava tirando do sério.
Passou a tarde toda com os olhos grudados nela, seguindo-a por toda parte. Brincar de gato e rato o estava deixando maluco, o que não parecia ser diferente para Luisa.
Enquanto jantavam Nonno observou a quietude dos dois. Isabela saíra com amigos e apesar da insistência dela, não conseguiu convencê-los a irem também. Francesco concentrado, pensava numa maneira de provocar a prima e depois criar um clima de segurança para que ela finalmente se abrisse com ele.
A noite fria obrigou nonno Carlos a se retirar mais cedo e como sempre, ela o seguiu até o quarto para desejar boa noite, voltando em seguida para a biblioteca. Ele esperava por ela, com seu casaco na mão.
_ Vamos dar um passeio pelo jardim, conversar um pouco, a noite está maravilhosa._ Enquanto falava ia colocando o blusão masculino nos ombros dela.
Uma desagradável dor de cabeça ameaçava rondá-la, um pouco de ar puro lhe faria bem.
Sentaram-se no banco de ferro que compunha o cenário cinematográfico que o bem cuidado jardim inspirava. Ele tinha razão, a noite convidativa inspirava confissões, os dois sentiram isto. Ela tirou os sapatos, pisou a grama com leveza e o convidou a fazer o mesmo. A sensação era deliciosa. Silenciosamente caminhavam sobre o gramado olhando o céu coberto de estrelas. A agonia da dúvida quanto a se revelar ou não, estava estampada no rosto dela. Ele não pretendia arrancar nada que ela mesma não quisesse expor, não desejava ser eu algoz. Olhou-a de frente e tentou dizer isso com o olhar. Ela sorriu em sintonia com seu pensamento.
No desejo de quebrar a tensão, ele imitou o golpe de um boxeador que aplica um soco direto no nariz dela. Ela ri e devolve o golpe, desta vez, no estômago dele. No clima de brincadeira, ele se encolhe todo de dor caindo e rolando pelo chão. Na queda, leva Luisa junto. Segura seus braços, impedindo-a de desferir mais golpes, ela se debate, procurando se soltar dele.
_ Peça clemência! _ Ele ordenou rindo, lembrando da brincadeira de meninos.
_ Nunca! _ às gargalhadas, ela entendeu que crianças e suas diversões são iguais em qualquer lugar do mundo.
Deitados na grama, enquanto rolavam seus corpos na maciez do chão, o riso foi dando lugar a um desejo de beijar e ser beijado. A pele macia da face dela fazia um convite irrecusável para ser tocado, ele cheio de ternura, suavemente tocou seu rosto no dela, acariciando em movimentos circulares sua pele, na pele dela. Os lábios dele, perfeitos, exerciam uma atração quase obsessiva sobre ela, que não resistindo passou de leve seus dedos, fazendo o contorno sensual da boca de Francesco, que em resposta beijou docemente seus dedos, suas mãos, procurando depois seu rosto, olhos e finalmente sua boca. A suavidade do beijo a transportou num segundo para uma outra dimensão, mas no momento seguinte, o que a trouxe de volta foi a condição de rapaz que ela supostamente era. Francesco beijara o primo. Esse pensamento a confundiu completamente. Desorientada duvidou da masculinidade dele. Assustada com tal descoberta fugiu dos seus braços sem explicação, deixou para trás no jardim, seus sapatos e seu coração em pedaços.
Ele ficou durante muito tempo no jardim, antes de se decidir a procurá-la. A casa silenciosa e vazia sugeria que todos haviam se recolhido para o merecido descanso. No segundo andar tentou abrir a porta do quarto dela. Estava trancada. Ele tinha as chaves. Cópias, que por medida de segurança guardavam na biblioteca. Foi buscá-las ciente da invasão de privacidade que a estaria submetendo. Perdera sentido brincar de gato e rato, mesmo porque, de caçador passara a caça. Se estivesse dormindo, ele a despertaria, aquela era uma hora tão boa quanto outra qualquer para se dizer a verdade.
Entrou silenciosamente, descalçou os pés e notou que ela não estava na cama.
No banheiro, dentro da banheira quase transbordando, ela deitada, parecia dormir serenamente. O vapor d’água embaçava a visão envolvendo-a em uma aura misteriosa. Linda! Nua, ele a viu por inteiro. Sentou-se no chão ao lado da banheira, embevecido. Luisa abriu os olhos. Sem surpresa, parecia esperá-lo.
Ela havia desejado esse momento, quis que ele a visse, provocou esse encontro. Ele viu nos olhos dela o quanto seria difícil dizer o que tinha de ser dito.
_ Sshh!! Não diga nada agora._ Tocou com os dedos sua boca, pedindo silêncio._ Eu soube a algum tempo._ No jardim, quando a beijei, você não disse não. _ Francesco queria na verdade, saber porque ela fugira.
_ Acho que quando uma garota não diz não é porque quer dizer sim.
Ele não pediu permissão para entrar, entrou simplesmente, na banheira e na vida de Luisa. Vestido como estava, ele deitou-se a seu lado. Abraçou o objeto do seu amor com a vontade de um prisioneiro que recupera a liberdade.
Levou a mão suavemente, com receio de assusta-la, acariciando com ternura os seios dela.
_ São tão lindos! Como conseguiu escondê-los por todo esse tempo...
Tantas coisas ela queria dizer, mas as palavras podiam esperar, no momento a linguagem que usavam para se comunicar eram as mãos. Ele explorou todos os caminhos que levavam ao coração daquela moça. Suas mãos, cúmplices neste ato de infinita ternura, iam e vinham produzindo uma sensação inebriante de prazer que ela jamais experimentara. Ele tirou depois suas roupas molhadas com a intenção de caminharem juntos nesta trilha de mão única que é o amor.
Deitados depois, na cama dela, eles passaram a noite. Lado a lado, apenas ficaram. Se acariciando, se descobrindo sem consumar o ato do amor, que poderia esperar pelo amadurecimento dessas emoções que agora descobriam.
Luisa pode afinal falar das suas angústias, abrir seu peito e exorcizar toda dor que a acompanhou para esse país. Sem queixa, nem amargura contou de sua condição de filha adotiva, o que a colocava tecnicamente fora da família Grassi.
_ Você nunca teve a curiosidade de saber quem eram seus pais verdadeiros?_ Ele soube naquele momento que tocava em uma ferida, mas precisava da resposta.
_ O único pai que conheci _ disse referindo-se a Rui Bernardi _ encontrou-me sozinha numa praia lotada de gente. Conheci muitas histórias de filhos abandonados pelos pais em locais públicos, quem me garante que não é esse o meu caso?
A imensa solidão que Francesco presenciou nos olhos de Luisa fez com que ele a apertasse ainda mais em seus braços.
_ Caso o Nonno não me aceite mais como neta, eu ainda poderia lavar os banheiros, coisa que eu sei fazer muito bem._ Ela o disse seriamente. Ele riu da ingenuidade dela.
_ Nonno Carlos adora você. E isso independe de sexo, cor, raça ou posição social. No seu íntimo continua sendo a mesma pessoa, a mesma que aprendemos a gostar. Mate a minha curiosidade, de onde você tirou essa idéia maluca de travesti?
_ Dos filmes que assisti. Vítor ou Vitória foi um deles. O primeiro que eu vi em toda a minha vida. Este eu revi muitas vezes.
_ Adorável maluquinha, isso é o que você é._ Despenteou os cabelos dela, que ganhavam um toque feminino com o novo penteado.
A manhã veio surpreendê-los cochilando, um nos braços do outro, vencidos pelo cansaço das emoções que estavam vivendo.
Desceram para saborear o café matinal com a intenção de revelar ao avô e à Isabela tudo o que estava acontecendo. A neta e Carlos Grassi estavam prontos para o compromisso que haviam assumido a semanas.
Francesco e Luisa entreolharam-se totalmente esquecidos da promessa que haviam feito ao Nonno de acompanhá-lo à casa de amigos para passar o dia.
Só lhes restava desculpar-se, o desejo de ficarem juntos , a sós, era maior. O neto confessando-se cansado, disse preferir ficar em casa descansando, se isto não fosse aborrece-lo. Acrescentando logo, rapidamente, que e o primo lhe faria companhia. Um pouco surpreso pela súbita mudança de planos dos rapazes, ele cedeu às suas vontades, Isabela o acompanharia.
Tão logo os dois sairam no automóvel, Francesco deu ordem aos empregados que tirassem o dia de folga.
Sozinhos na casa, passaram horas conversando, caminhando pelo jardim, vegetando diante da televisão, preparando a própria comida. Partilhavam o mesmo gosto pela literatura e a música, isso os tornava ainda mais parceiros. Mas à medida que a tarde ia chegando, ia aproximando também o momento em que o Nonno e Isabela retornariam à casa, a hora da verdade tão esperada tornava-se de repente, um tormento para Luisa. Os dois contariam juntos ao avô, isso tornaria tudo menos difícil.
Tudo que desejara realmente, era ser aceita por eles, viver trabalhando e em paz numa família de verdade. Conseguira muito mais: o amor dos Grassi, além da simples aceitação e uma doce paixão: Francesco. O medo de perder essas conquistas bateu forte em Luisa. A dor de cabeça que não a abandonava a dias, se intensificou neste momento e ela a atribuiu à intensa pressão que estava vivendo.
Eles chegaram junto com a noite. Fugindo ao combinado, o neto levou Nonno Carlos à biblioteca e pediu privacidade às duas, para conversar a sós com ele. Surpresas, uma, por não ter sido esse o estabelecido com o namorado, a outra, pelo tom de seriedade que o irmão impôs ao pedido.
Na verdade, Francesco quis poupar aquela garota, que de mansinho conquistara seu coração, poupa-la da angústia de reviver fatos dolorosos de seu passado, das perguntas criteriosas do ancião. E sobretudo absolvê-la de qualquer julgamento precipitado.
Minutos que pareceram horas às duas. E quando finalmente os dois abriram as portas da biblioteca, Luisa tinha o coração na mão. Incapaz de encarar o avô, esperou pela sentença de olhos no chão. Quando ele se aproximou e levantou o rosto dela, havia neles um pedido mudo de perdão e inevitavelmente as lágrimas rolaram pela face molhando os dedos dele. Ele a puxou para si num abraço que parecia querer expulsar toda dor do mundo.
_ Estou muito feliz que esteja aqui, a dias venho querendo reafirmar isso a você. Essa é uma boa oportunidade para fazê-lo. _ A voz estava embargada pela emoção. _ Agora me leve para o quarto, como sempre, depois troque essas roupas ridículas, Isabele vai poder te ajudar com isso, amanhã bem cedo decidiremos qual universidade a “ senhorita” irá frequentar...
Luisa suspirou, secando as lágrimas, tudo seria como antes, com Nonno tentando organizar a vida de todos, inclusive a sua. Um pouco de paternalismo não lhe faria mal algum.
A semana foi corrida, não dando tempo para que as primas cumprissem todos os afazeres, das compras à matrícula do curso de Luisa. Sua dor de cabeça que insistia, apesar do aumento da dosagem de analgésico, começava a preocupar Isabela que chegou a marcar hora com o médico de sua confiança, não sem antes prometer a ela nada mencionar ao avô sobre essa “bobagem”, se referindo à própria dor.
O primeiro dia de aula continha toda a expectativa de um novo começo para Luisa. Francesco foi levá-las e querendo adiar a despedida percorreu com as duas os longos corredores que levariam às salas de aula. Isabela seguia falante tentando animar a novata que tinha as feições rígida e o rosto crispado. O irmão também notou a expressão modificada da garota e preocupado abraçou-a pela cintura na tentativa de transmitir confiança, acreditando que ela estivesse insegura naquele ambiente, mas ele mudou de opinião quando a sentiu, inesperadamente, desfalecer em seus braços. Acudiu-a antes que caísse no chão.
Trinta e seis horas dormindo, foi este o cálculo aproximado que Francesco fez do tempo em que ela esteve inconsciente. Ele a levara para o melhor hospital de Milão. Todos os exames haviam sido feitos e o diagnóstico dos médicos era terrivelmente definitivo: Leucemia.
Luisa possuia uma medula óssea combalida, com seu sistema imunológico severamente deficiente, o organismo produzindo uma taxa baixíssima de sangue. Sua única chance era o transplante.
Pura magia existe no ar de Veneza. Extasiada, Marília percorria a praça de São Marcos em direção à Torre do Relógio para ler o que dizia o livro aberto pelo leão alado.
Em plena rua ficaram depois, Armani e Marília, até que o mar molhou seus pés, numa marea incontrolável. Rindo como duas crianças, descalços, com os sapatos nas mãos.
_ O que você achou de Veneza?_ Ele perguntou.
_ Belíssima e santa._ Ela referia-se a suas estátuas e relíquias como o corpo de São Marcos, a cabeça de Santo Estevão, o dedo com que São Tomé tocou a chaga de Cristo.
No final da noite tomando um aperitivo no Harry’s Bar ele a olhou intensamente antes de indagar, o mais casual possível:
_ Meu irmão, Giorgio, comportou-se bem com você?
_ Civilizadamente._ Riu prevendo onde ele queria chegar.
_ Ele atrai você?
Pega de surpresa, ela não respondeu de imediato.
_ Sexualmente...quero dizer...notei como dançaram. _Nenhum tom de acusação em sua voz.
_ Giorgio é muito atraente, e dança muito bem se é o quer saber._ Desviou o olhar se desobrigando a lhe fornecer mais informações.
_ E está realmente interessado em você. Não quero disputá-la com ele...
_ Por que não pergunta minha opinião? Se estou disposta a me entregar a qualquer tipo de relacionamento amoroso?_ Ela tinha consciência de que estava sendo indelicada, mas precisava sê-lo.
_ Não espero que um homem salvador caia dos céus._ Continuou ela, em seu desabafo._ Que conserte minha instalação elétrica, que troque os pneus do meu carro. Não estou a reboque de ninguém.
Surpreso ele viu à sua frente uma mulher disposta a se manter firme na posição de continuar só.
_ Do que tem medo, Marília?_ Com doçura ele tocou no rosto dela com as costas da mão, num carinho que dizia mais que suas palavras.
_ De que você, ou quem quer que seja, parta o meu coração em milhões de pedaços.
Armani neste momento arrependeu-se de terem feito a viagem de Milão a Veneza no seu jatinho particular. Poucos quilômetros separavam as duas cidades, poderiam perfeitamente ter percorrido o trajeto de automóvel. O que normalmente impressionaria qualquer mulher, não afetou Marília, pelo menos não de maneira positiva, como ele constatou. Todo aquele conforto, longe de influencia-la, a tornava arredia e distante. Enquanto esperavam a ordem de decolagem no aeroporto, ele a puxou para si . Ela não era nada fácil, mas definitivamente valia o esforço.
Sem turbulência fizeram a viagem de volta. Mais solta, menos na retaguarda ela o deliciava com suas histórias das famílias italiana que viviam no Brasil.
À porta do quarto dela no hotel Pavia, ele se despediu com um beijo propositadamente demorado. Mas o convite para entrar não veio. Armani não insistiu. Daria a ela o tempo que precisasse, afinal estivera à sua espera a vida toda, tinha essa certeza, não se incomodaria em esperar mais um pouco.
_ Vejo você amanhã, no fim do dia. _ Armani se encontraria com representantes de fiações e produtoras de fibras de vários países que exibiam no salão Internazionale, suas últimas novidades: misturas de fios de algodão com fibras animais e alumínio, esse último misturado com poliéster funcionando como isolante térmico, podendo ser considerado um material antiestresse.
O grupo brasileiro chegou cedo à feira que prometia um dia movimentado e de muitas novidades.
O olá quase ao pé do ouvido de Marília, a fez se arrepiar. Era Giorgio.
Sentou-se a seu lado junto ao grupo, sem ser convidado. A praça de alimentação do salão estava cheia.
_ Então você é o “G” da “A & G”?! _ Era a primeira vez que conversavam depois da noite em que haviam dançado.
_ Sou. Armani e eu nos damos muito bem. Apenas em raríssimas exceções eu o invejo._ Sorriu despindo-a com o olhar._ Você já fez seu pedido?_ referia-se ao lanche.
Ela mal teve tempo de negar com a cabeça e ele tomou sua mão abrindo passagem entre as pessoas que ocupavam as cadeiras mais próximas.
_ Vou levá-la para comer a verdadeira comida italiana.
De mãos dadas ele ia conversando alegremente, como se há muito fossem amigos. Tanta naturalidade agradava Marília.
O lugar era popular e ruidoso e ao contrário do que se imagina no Brasil, o italiano não é um povo guloso e sim sábio na organização de suas refeições. Uma seqüência de pratos foi servida, de pratos verdes, passando à massas, à carne, frutas da região e vinhos deliciosos. Como um verdadeiro gourmet, Giorgio demonstrava ser um conhecedor da arte culinária. Levava aos lábios dela pequenas mostras de cada prato servido, se deliciando com o prazer que proporcionava a ela.
_ O que você está achando? _ Ele perguntou enigmático.
_ Altamente pecaminosa. _ Ela disse olhando toda aquela comida.
_ Não me referia aos pratos servidos, e sim ao que está acontecendo entre nós três. _ Ele a olhava fixamente sem perder o ar encantador.
_ Francamente não sei o que dizer. Não saio com alguém a anos... acho que estou completamente fora de forma. _ Havia na atitude dela alguma coisa que não deixava dúvida quanto à sua sinceridade.
_ Amo meu irmão. Não desejo magoá-lo. _ Suas mãos tocaram as dela. _ O que sinto por você é meio mágico, faz despertar em mim todos os sentidos. Desde o momento em que a vi, você não me saiu mais da lembrança, assim como um livro bom... Sinto vontade de fazer amor com você sobre essa mesa... beijá-la para sentir o seu gosto... _ O jeito dele de falar todas essas coisas despertou nela a eminência do perigo.
_ Completamente maluco é o que você é._ Ela riu, enquanto pelo seu corpo percorria uma onda de calor.
O poder que Giorgio exercia sobre ela era justamente esse. Um fogo que queima rápido, um almoço quando se está com muita fome.
Armani era um braseiro que ia queimando aos poucos. Um jantar à luz de velas, onde se saboreia cuidadosamente cada prato.
Podia-se ver claramente a confusão de sentimentos através dos olhos de Marília. Mas ele não pretendia por ordem em seu pensamentos, ao contrário sua pretensão era incomodar.
Levou-a para assistir aos desfiles, que certamente realizavam um espetáculo à parte. Eram vários, em pontos diferentes no salão. Lindas mulheres que exibiam as melhores e maiores griffes do mercado internacional. Algumas, Marília conhecia só de nome.
Giorgio preenchia todos os espaços à volta dela. Fazia comentários ao seu ouvido sobre os modelos e algumas observações pessoais a respeito de quem os vestia. Espirituoso, quase sempre a fazia rir da maneira como retratava tudo à sua volta.
Os amigos dele a cercaram de atenções apresentando-a a pessoas ligadas ao mundo da moda.
No meio de toda aquela agitação ela parou para pensar em como se sentia bem ali. Assedia por novos amigos, desejada por aquele belo homem, reconhecida profissionalmente. Faltava apenas e tão somente sua filha. Compreendia que nada seria perfeito sem ela. A mais difícil das conquistas não fora capaz de realizar. Encontrar sua filhinha.
_ Quero que tire do olhar essa sombra, agora mesmo, OK!_ Ele a surpreendia com todos aqueles cuidados.
_ OK! Giorgio Falquetto.
Os lábios dela estavam tão próximos dos dele, que era uma pena não tocá-los. Crescia a vontade de experimenta-los, saber se eram doces e saborosos como fruta da estação.
Havia gente demais à volta deles, mas ninguém parecia notar a energia que emanava de seus corpos. Ele a tocava de maneira sensual, passando a mão em sua nuca, por baixo dos curtos cabelos dela. Falava muito próximo de sua boca, como se fosse beijá-la a cada instante. Sentindo-se inebriada, talvez pelo vinho, talvez pela proximidade dele, ela se deixou ficar embalada pela música envolvente que se ouvia por todo pavilhão.
Marília sentiu em determinado momento que um par de olhos a buscava naquela multidão.
Era Armani.
Do outro lado bem à sua frente acompanhado por mulheres maravilhosas e alguns homens bem vestidos, estava ele.
Não se aproximou dela . ali plantado, mais parecia um animal demarcando o seu território.
O raio de visão dele alcançava também o irmão que continuava próximo demais dela.
O barulho de vozes e sons fazia com que as pessoas ao se falarem, chegassem muito próximas, quase se tocando. Isso ela compreendia, apenas não conseguia entender a presença constante de uma jovem e belíssima mulher ao lado de Armani demonstrando uma intimidade, que atravessou a garganta de Marília, como se fosse um espinho.
Com discrição perguntou a um dos amigos de Giorgio, quem era ela:
_ Sua ex-mulher. _ Disse ele olhando-a com uma pontada de despeito.
Não muito querida no mundo da moda por pessoas que conheciam seu gênio indomável, a ex-esposa de Armani sempre se manteve firme na condição favorável do prestígio que conquistara casando-se com ele.
Carolina Mosquem não estava disposta a se contentar com uma posição secundária na vida de dele. Não era mais sua mulher, mas continuava sendo sua sócia, com uma pequena participação nos lucros, o que lhe dava garantias.
Monopolizava a atenção dependurada no braço dele. E para agonia de Marília, ele não se dispunha a antagonizá-la. Ao contrário, sua atenção pareceu totalmente voltada para ela.
Extremamente insegura, Lia permaneceu no salão, esperando que ele tomasse a iniciativa de ir ao seu encontro. Mas isso não aconteceu, os olhares às vezes se cruzavam, muito rapidamente e ela não compreendia a mensagem que havia neles.
Magoada com o clima de aparente reconciliação entre os dois, a brasileira resolveu voltar ao hotel. O mais discreta possível, ela saiu como quem vai apenas ao toalete, aproveitando um momento em que Giorgio saíra para resolver um assunto de última hora.
Pegou um táxi e pelas ruas de Milão ela repassou sua estada ali. Conhecera dois homens excepcionais, além do bom caráter tinham muitas qualidades. O irmão mais novo não lhe era indiferente, despertava seu lado menina. Seus braços prometiam carícias que a muito não experimentava. Mas seu coração atrevido, sem lhe consultar já se decidira por Armani.
Decisão tardia, ele não estava mais disponível para ela.
Com essa certeza, chegou ao hotel Pávia, cansada e louca por um banho.
Solicitou ao serviço de quarto, toalhas secas e um lanche simples. No momento em que a campanhia da porta soou, ela procurou na bolsa algumas moedas com o propósito de compensá-lo pela rapidez do serviço.
Era Armani. O mesmo sorriso terno. A mesma elegância discreta. Porta adentro, caminhando em direção a Marília, ela soube que o queria muito além do bem e do mal que ele pudesse causar à sua alma.
_ Por que não me disse que já foi casado?_ Perguntou ela, certa de que isso não fazia a menor diferença.
_ Você não me perguntou... Eu esperava o momento certo para falar sobre Carolina.... _Ele já estava ao lado dela, silencioso como quem ouve uma boa música, tocou-a como quem toca numa peça rara, transbordando de ternura.
_ Pensei que você havia desistido de mim... _ Ela fez uma careta infeliz. _ Sei que já cometi muitos erros, com a probabilidade de cometer ainda muitos outros... desistir de você não é um deles.
Ela aninhou a cabeça no peito dele. Havia ali uma paz e um aconchego capaz de torná-la a mulher mais serena do mundo.
Um leve toque na campanhia anunciou que desta vez, era mesmo o funcionário do hotel, trazendo o pedido dela.
Armani resmungou qualquer coisa por conta da interrupção, a contragosto soltou-a para ir em auxílio do rapaz que se espertava para cumprir sua obrigação.
Novamente a sós, ele serviu uma bebida leve para os dois.
_ Preciso ir ao banheiro. _ Ela sorriu enquanto ele assentia.
No momento em que ela fechou a porta, ele ficou por ali, com o copo na mão, e enquanto aguardava o seu retorno, elevou a voz para continuar o diálogo, incapaz de esperar até que ela abrisse a porta e aparecesse novamente.
_ Eu sei que você não está pronta para uma intimidade maior no nosso relacionamento, por isso quero que saiba, esperarei o tempo que for necessário para que isso aconteça. Serei paciente...
A porta se abriu e ela apareceu. Por um breve instante ele não acreditou no que viu. Usando apenas uma camiseta transparente, Marília deixava entrever seu corpo, exibindo uma sensualidade que ela propiciara florescer.
_ Eu sei que vou te amar. E sei também que o meu amor será desses que duram a vida inteira. Essa é uma das poucas certezas que posso ter a cerca do meu futuro._ Na voz rouca, uma promessa. E ela pretendia cumpri-la.
Os braços longos de Armani a envolveram com sofreguidão. Ela se viu envolvida numa profusão de beijos e carícias onde o prazer se confunde entre o dar e o receber. Deliciados, em vão tentavam saciar a sede e a fome de afagos. Ele a levantou nos braços e a carregou para a cama, extasiado pela iniciativa que partira dela, desse ato de entrega.
Eles não viram a noite chegar, muito menos, ir embora. Exaustos de fazer amor, dormiram em paz, sem hora de acordar.
A tarde veio encontrá-los nos braços um do outro, olhando pela sacada, a vista deslumbrante do imenso jardim. Os cabelos dela, emaranhados, acariciavam o peito nu de Armani. A refeição para dois pedida a horas, não havia sido tocada. Conversavam, riam, se tocavam e se viam. A sombra triste que acompanharam os olhos de Marília durante anos, fora banida.
Com algum esforço, Armani conseguiu convencê-la a aceitar um convite para sair. Sem dúvida, eles preferiam continuar no aconchego do apartamento do hotel. Mas aquela seria a última noite dela em Milão, apesar dos apelos inúteis dele, para que ela ficasse mais alguns dias. Ele não pretendia deixá-la ir sem antes oficializar, de certa maneira, um compromisso entre ambos. Por isso ele escolheu o restaurante onde certamente encontraria o irmão e amigos em comum. Teria assim a chance de apresentá-la formalmente.
Maravilhosa, num vestido preto acetinado, clássico, mas sem pretensões, ela deixou-se conduzir pelos braços de Armani, salão adentro. Como ele apostara, seus amigos lá estavam.
Giorgio a um canto reservado do bar, viu quando eles entraram. O modo como eles se tocavam, a maneira intensa como se olhavam não deixou dúvidas às perguntas mudas dele. Ela fizera sua escolha. Uma forte solidão bateu de frente no seu peito. Angustiado, deixou a gorjeta sobre a mesa e saiu silenciosamente do restaurante.
Os amantes não perceberam a presença, nem a retirada dele. Carolina, por sua vez, depois de apresentada a Marília, se viu na incômoda posição de aceitar o óbvio.
Depois do jantar, desfrutaram da companhia dos amigos de Armani, que curiosos em conhecer um pouco do Brasil, encheram a brasileira de perguntas. Todos muito gentis, demonstravam uma única preocupação, a de colocá-la à vontade.
No meio da noite, ele segredou ao seu ouvido, a imensa vontade de ficar a sós com ela, num sorriso de puro prazer, ela encarregou-o das despedidas.
Chegaram ao hotel Pavia ansiosos por privacidade, na urgência de tirar proveito de cada minuto que lhes restava juntos, começando a sofrer antecipadamente, pela separação.
Armani colocara à disposição de Marília alguns cargos de gerência, dentro de suas empresas, mas ela taxativa, não aceitou. Fez mais algumas tentativas de persuadi-la a ficar mais uns dias, mas foi tudo em vão._ Preciso voltar já, meu tempo longe da fábrica se esgotou. _ Encerrou a discussão com um sorriso de saudade.
Ela voltaria ao Brasil, ali era o seu lugar. Manteria assim, ela acreditava, o elo de ligação com a filha, que acreditava estar na terra natal.
A tristeza se abateu sobre a família Grassi.
Nonno Carlos recusava-se a se alimentar direito. Tinha os olhos rasos sempre que questionava o porque da manifestação de uma doença tão terrível, em uma jovem com todo o caminho ainda por percorrer, enquanto sua estrada encontrava-se quase no fim. Por que não ele?
Isabella, em detrimento da escola, passava muito mais tempo com Luisa e o irmão, que não saía um só instante do lado da namorada. Era visível seu sofrimento, mas ele lutava para não parecer abatido.
_ Case comigo. Eu preciso de você. _ Ele sorria, mas seus olhos não escondiam toda a angústia que sentia.
No quarto do Centro Médico de Milão, onde ela se encontrava internada a oito dias para exames e a primeira sessão de quimioterapia, a luz do sol claro entrava pela janela como que para lembrá-los de que a vida do lado de fora continuava impassível.
_ Pergunte novamente daqui a alguns meses, quando eu já terei vencido essa doença e a resposta será sim. _ Sereníssima, ela sorriu de volta enquanto seus olhos se encontravam. Francesco procurou naquelas pequenas janelas da alma, a menina malandrinha que conquistara a todos e não mais a encontrou. Em seu lugar havia uma mulher. Linda mulher. Corajosa e forte. Deu-se conta da grandeza do amor que sentira pela menina e do respeito que sentia agora pela mulher.
_ Nada vai me separar de você. Eu não vou deixar. _ Prometeu ele. Os dedos das mãos de Francesco, entrelaçados com os de Luisa pactuavam entre si.
À tarde, o doutor Vitorino Degasperi deu alta à paciente para que ela pudesse passar alguns dias em casa, com a recomendação de que deveria retornar ao hospital dentro de quinze dias para novos exames.
Tudo tinha sido feito enquanto ela entrava para uma enorme lista de espera por um doador da medula óssea. Já haviam recolhido material para exames de toda família, incluindo Nani, Alberto e amigos, que fizeram questão de testar a compatibilidade, na esperança de que algum deles pudesse ser um doador em potencial.
A esperança estava em alta naquela casa, em meio a tanta gente solidária, haveria de ter um doador compatível. Flores por todo canto alegrava, embelezando a residência dos Grassi.
Luisa rodeada de atenções e carinho sentia diminuir os efeitos colaterais das drogas que tomava. Nani bateu o pé na decisão de ficar em Milão, embora Isabela dissesse que não havia necessidade de colocar suas obrigações em Nápoles, em segundo plano. Alberto, atento às novas publicações, selecionava o que havia de melhor no mercado em prosa e poesia, para que Luisa tivesse sempre à mão, algo interessante para ler. Tanta bondade a comovia.
Francesco, inconformado com a situação de espera, partiu para a ação. Procurou informações sobre a doença de Luisa, em livros, revistas especializadas e até na internet buscou conhecer mais do assunto. Pesquisas que serviram para clarear uma alternativa bastante promissora, que até então estava fora de cogitação: a autêntica família de Luisa.
Seus familiares: pai, mãe, irmãos naturais ou até mesmo primos e tios, possuíam uma carga genética com probabilidades de serem doadores em potencial.
Diante dessa perspectiva, Francesco animou-se subitamente. Encontrar a família dela poderia significar estar a um passo da recuperação de Luisa.
Cansado, finalmente se entregou ao sono que se acumulara a muitos dias e dormiu sobre os livros de pesquisa.
Quando Luisa acordou em seu quarto, Francesco estava a seu lado, vigiando seu sono. Acostumara-se com essa visão e esperava por isso todas as manhãs. Vê-lo ao acordar, era simplesmente maravilhoso.
_ Dormiu bem, meu anjo?
Ela amava quando ele a chamava assim. Sorriu sem nada dizer.
_ Preciso do seu consentimento para iniciar uma busca, que eu acredito seja vital para a sua recuperação. _ A seriedade dele a assustou. _ Sei dos seus medos com relação a esse assunto, mas creio que você possa superá-los... É imprescindível que encontremos o mais rápido possível a sua família natural.
Ela entendeu, mas não de imediato. A primeira coisa em que pensou foi que eles não existiam mais. Seu pai, sua mãe e seu irmão estavam todos mortos. Mas depois compreendeu o que ele queria dizer, referia-se à mulher que jamais conhecera e que lhe dera à luz.
O silêncio de Luisa falou por si só.
_ Entre parentes há uma grande chance de encontrarmos o doador compatível. Precisamos tentar. _ Ele sabia o quanto era difícil essa decisão.
_ Precisamos tentar. _ Ela concordou.
Ele a abraçou longamente com os olhos cheios de lágrimas. Não queria que ela o visse chorar. Com a sensibilidade à flor da pele, descobrira-se um grande chorão.
Enquanto jantavam, ele expôs seus planos a todos. Iria viajar para o Brasil novamente, por alguns dias.
Levaria consigo uma equipe de pessoas, entre elas, alguns detetives particulares, com métodos específicos para rastrear pessoas.
Aquela noite, Luisa conversou horas a respeito de seu passado. Detalhes que pareciam insignificantes eram anotados por Francesco que lhe fazia todo tipo de pergunta.
Datas, nomes e endereços eram cuidadosamente tomado notas.
E quando ele pensou que já sabia o bastante sobre a vida dela, ela pediu licença, subiu para o quarto e desceu alguns minutos depois com um pequeno pacote nas mãos. Sentou-se ao lado do avô e de Francesco. Abriu o pacote devagar e todos ali perceberam a emoção que acompanhou aquele gesto. Uma lágrima que rolou pelos rosto dela, molhou o tecido azul em suas mãos, que depois de desembrulhado mostrou ser uma pequenina peça de banho: um maiô azul, que vestira uma criança de no máximo quatro anos .
_ Fui encontrada vestindo essa roupa. Talvez isso o ajude nas buscas. _ ela entregou a peça em suas mãos.
Ele inspecionou cada detalhe da roupa. Na parte interna, presa com bastante reforço, uma etiqueta personalizada com o nome da confecção: “Giullia Confecções”.
Era muito cedo quando ele saiu. Deixou flores e um cartão sobre o criado mudo ao lado da cama dela. Aos funcionários da casa, muitas recomendações e o pedido de que o mantivessem informado permanentemente.
Encontraram-se todos no aeroporto de Milão. Montara uma equipe de cinco pessoas: um secretário, que cuidaria também dos assuntos pendentes em Milão, mesmo estando no Brasil, um tradutor, dois detetives particulares e dois auxiliares que também falavam português. Ainda no avião eles começaram a planejar os passos a serem dados.
A pista que tinham em mãos seria o ponto de partida. A etiqueta do maiô, além do nome feminino italiano, continha também uma pequena letra R, que significava no Brasil “marca registrada”, assegurando o uso do nome com exclusividade, reduzindo a possibilidade de mais de uma confecção com este nome dentro do Estado.
O raio de ação riscado no mapa que Francesco estudava juntamente com a equipe, limitava-se a dois Estados: Espírito Santo e Bahia. Mais precisamente o litoral.
Canavieiras, cidade em que crescera Luisa, se localizava mais próxima do litoral capixaba, que baiano.
No Espírito Santo havia maior concentração de confecções de linha praia do que na Bahia e o objetivo primeiro seria localizar o fabricante da peça para determinar com precisão os municípios onde a fábrica atuava fornecendo suas mercadorias, chegando assim, ao consumidor final.
Partindo desse princípio, ele decidiu se instalar na grande Vitória, em Vila Velha, cidade que abrigava o maior número de fábricas do estado.
O Porto do Sol, um dos hotéis mais luxuosos da orla capixaba ficava de frente para o mar, na praia da Costa. Pela sacada, Francesco observou crianças de mãos dadas com suas mães, pés descalços, caminhando na areia branca da praia. O céu de um azul intenso e a doce brisa marítima. Desejou com todas as suas forças estar ali de mãos dadas com Luisa. Ela fazia parte daquela paisagem.
Profissionais competentes, em poucas horas tinham o primeiro relatório das atividades. Localizadas na Bahia, duas confecções com o nome “Giullia”, uma, fabricante de roupas íntimas, outra, de linha jovem, fabricava com tecidos planos. Em Vila Velha foi localizada uma “Giullia Confecções” no pólo industrial, especializada em moda jovem - senhora. Não era exatamente o que ele procurava, uma confecção de linha praia infanto-juvenil, mas a informação veio logo em seguida: a versatilidade do fabricante brasileiro de um modo geral, era conhecida no mercado. Mudando e se adaptando à necessidade do consumidor, não era raro o fabricante que ora produzisse linha praia, passasse no outro momento a fabricar linha jovem e vice-versa.
O secretário só conseguiu marcar a entrevista com a proprietária da “Giullia Confecções” para o dia seguinte, ela acabara de chegar de viagem ao exterior.
Passaram a tarde toda bolando uma campanha para ser veiculada pelo sistema de rádio e televisão. Outra, paralela a essa, seria feita pelos jornais, aut-dors espalhados por toda capital e fechando o ciclo, um site na internet.
Francesco não esperava resultados da noite para o dia, mas tinha urgência em obtê-lo, exigindo o máximo de seus colaboradores.
Assim, a caminho da entrevista marcada, sabia tudo, ou quase tudo sobre aquela fábrica que começara pequena na cidade de Santa Teresa e o desenrolar de seu crescimento no pólo industrial.
Francesco e Marília se apresentaram no pequeno escritório, ao lado do salão de corte da fábrica. A simpatia foi imediata.
Olhos expressivos e de um verde espetacular pousaram sobre ele. Os cabelos rebeldes, formando pequenos cachos lembravam os de alguém que no momento ele não soube associar.
_ Sou a proprietária. Meu nome é Marília Bortoline. _ Apesar do acúmulo de tarefas que ainda não tivera tempo de executar desde sua chegada da Itália, ela não pode deixar de atender o rapaz que parecia ter urgência em falar com ela. Ele insistira educadamente, até convencê-la a ser recebido.
_ Meu nome é Francesco, sou italiano, vim ao Brasil à procura dos familiares de minha... _ quem era Luisa em sua vida? Namorada... era um pouco mais. Esposa... ainda não, era só uma questão de tempo. Noiva... sim... e o ar que respirava também... e o motivo pelo qual o céu daquele país lhe parecia tão azul e o mar tão infinito. Era ela que tornava sua vida cheia de razões para viver. _ ... minha noiva!
O intérprete a seu lado ia traduzindo as palavras, mas a emoção das palavras que saiam da boca do rapaz à frente dela, tinha sua própria tradução.
_ Em que posso ajudá-lo? _ O moço com ar de apaixonado despertara seu interesse.
Ao invés de falar, ele preferiu abrir a pasta que trazia nas mãos. De dentro tirou o pedaço de lycra azul e abrindo-o para que ela pudesse ver melhor, estendeu o maiô sobre a mesa que os separava.
Ela não reconheceu a roupa da filha, de imediato. A informação foi levada ao cérebro, mas levou alguns minutos para ser analisada e transformada em compreensão. De repente, tudo voltou à memória de Marília, a escolha do tecido, o carinho no corte e a confecção daquela peça sob medida para Giulia, a sua filhinha. A alegria dela ao experimentar o maiô em ponto de prova e a sua surpresa ao ver que a mãe fizera um igualzinho para si. As duas de mãos dadas nas areias da praia em Jacaraípe...
Esses minutos pareceram a Francesco uma eternidade, impaciente com o olhar fixo que ela dirigia à peça de roupa sobre a mesa, quis dizer alguma coisa para chamar sua atenção, mas notou que a cor no rosto dela sumira de repente. Sua expressão lívida o deixou sem ação. Um instante depois ela deu mostras de que iria desmaiar. Francesco contornou a mesa a tempo de ampará-la em seus braços. A correria foi geral. O intérprete que estava mais próximo dele correu em socorro. O secretário precipitou porta afora num pedido de ajuda, que mesmo em italiano, Isadora compreendeu perfeitamente, entrando na sala apavorada.
Francesco a acomodou num sofá-cama que fazia parte da decoração do escritório. Instruindo a todos, ele aplicou seus conhecimentos de primeiros socorros e minutos depois ela foi lentamente se recuperando. Isadora quis ainda chamar uma ambulância para levá-la ao hospital mais próximo, mas ela não permitiu. A forte emoção tinha sua razão de ser.
Procurou o jovem e ele estava bem a seu lado. Agarrou-se a ele como se fosse uma tábua de salvação:
_ Não vá embora, por favor fique. Eu preciso falar com você. _ Ela o disse quase em desespero.
_ Não vou. Tente se recuperar. Eu esperarei. _ Ele não pretendia ir a lugar algum sem antes compreender o que se passava com ela.
Marília fechou os olhos por algus instantes, sem soltá-lo, para abri-los novamente já refeita do golpe que acabara de receber.
Sentou-se no sofá e pediu que lhe entregassem a peça azul. Com ela nas mãos, levou-a até o peito enquanto chorava e ria ao mesmo tempo.
Só então Isadora compreendeu tudo o que estava acontecendo. Abraçou-se à amiga enquanto dizia palavras que soaram desconexas aos que estavam naquela sala:
_ Giullia... só pode ser dela... o maiô que ela vestia...
Nos olhos de Marília a pergunta calou sua voz e teve que se esforçar para se fazer entender.
_ Onde ela está? Minha filha, onde está?...
Francesco olhou aquela mulher como se a estivesse vendo pela primeira vez e percebeu subitamente, a semelhança com Luisa. O mesmo verde dos olhos. A mesma cor do cabelo e até mesmo a voz, deliciosamente rouca. Como não notara antes... as vozes eram idênticas.
Ela apontou uma fotografia tirada anos atrás, as duas ajoelhadas, brincando na areia da praia, vestindo cada qual o seu maiô azul.
Ele compreendeu que encontrara o que viera buscar.
Sentou-se ao lado dela novamente. Abraçou-a e chorou, ela era uma estranha, uma estranha que poderia salvar a vida da mulher que amava mais que a própria vida.
Conversaram durante horas, poucas vezes recorreram ao intérprete para se entenderem melhor. Ela usou dos conhecimentos da língua italiana adquiridos na recente viagem.
Ele contou toda a história de Luisa, a infância, a morte dos pais adotivos, a morte violenta do irmão, a busca dos parentes pela internet e por fim, a maneira inusitada que ela arranjou para ser aceita por sua família. Marília chorava e ria das aventuras e desventuras da menina.
Enquanto ele falava, ela pode notar a ternura e a admiração que o rapaz nutria pela filha dela. Respirou fundo antes de começar a expulsar o tormento que a acompanhou durante quase metade de sua existência. Abriu o coração para falar daquele dia que mudou o rumo de sua vida, os poucos momentos em que deixou a filha com o marido para comprar água do outro lado da rua. A procura incessante anos seguidos e o vazio que ficou por não ter acompanhado o seu desenvolvimento como pessoa.
_ Ela está realmente bem?! _ O que ela queria saber é se estava realmente viva.
Ele pensou no que diria. Optou por dizer a ela apenas meia verdade.
_ Luisa vai se sentir muito melhor quando a encontrar.
Feliz demais para perceber qualquer sombra de tristeza no rosto dele, ela devorou com os olhos, as fotografias e fitas de vídeo que ele trouxera da Itália: Luisa rindo, correndo pelo jardim, abraçada ao Nonno Carlos, de braços dados com Isabela. Uma menina feliz em detrimento de um passado difícil.
_ Traga minha Giullia de volta Francesco, aqui é a casa dela._ Era o apelo de uma mãe que já sofrera tempo demais pela separação.
Ele tomou as mãos dela. Não sabia como dizê-lo, mas precisava tentar:
_ Luisa precisa ficar um pouco mais em Milão_ ele não estava mentindo_ a sua volta ao Brasil, de imediato, faria Nonno Carlos muito infeliz _ ele continuava sem mentir _ prometi levar de volta os parentes dela que encontrasse aqui. Venha comigo! Teríamos o maior prazer em recebe-la em nossa casa. Poderá vê-la, estar com ela por uns dias e então lhe dará a chance de escolher se quer continuar na Itália ou vir para o Brasil.
Ele parou um instante sabendo que poderia magoa-la, mas devia alertá-la:
_ Não podemos nos esquecer de que ela sempre considerou como sua, a família que a acolheu. Será necessário dar a ela algum tempo para se adaptar e uma nova família...
Ele não pode continuar. Viu o quanto estava sendo verdadeiro e cruel ao mesmo tempo.
Este lado da questão, ela sempre evitara encarar de frente:
A filha crescera. Superara sozinha suas próprias dificuldades. E dar-se conta de que para ela, não passava de uma estranha, encheu seu peito de amargura.
E pensar que estivera tão perto dela em Milão...
_ Estarei pronta para viajar com vocês de volta à Itália. _ Os compromissos poderiam esperar. Nada nem ninguém a impediria de ir ao encontro da filha.
Ele prontificou-se a providenciar as passagens aéreas e ultimar os preparativos para a viajem. Eles relutavam em se separar. Se o convite para o jantar, logo mais, não tivesse partido dele, provavelmente teria partido dela.
Deu um beijo carinhoso nela, como despedida e saiu para a tarde de vento sul.
Na avenida à beira mar, ele deu instruções ao secretário, que neste momento dirigia o carro esporte de aluguel. Ele saltou ali mesmo, seguiu a pé pelo calçadão. Se encontraria com eles no hotel.
O calçadão da Praia da Costa, margeava a orla marítima. A vista do mar era lindíssima e ele não resistiu à tentação de caminhar descalço pela areia da praia sentindo a água gelada do mar, molhando seus pés.
Francesco resolvera não revelar por enquanto a doença de Luisa, à sua mãe. Não fora capaz, seria um golpe brutal. Enquanto sentia a brisa do mar no peito nu, a camisa aberta esvoaçando ao vento, ele pensou em como a felicidade é efêmera e fugidia.
Ele ficou surpreso quando ela apareceu acompanhada. Mas logo ficou à vontade quando apresentado a Armani. Já se conheciam de nome. Em Milão, suas famílias tradicionais tinham muitos amigos em comum.
O Mário’s, excepcionalmente refinado, servia sua deliciosa moqueca capixaba e por pura provocação, Armani incluiu um prato à base de sururu. E o mais interessante, Francesco se deliciou.
Armani encontrava-se agora, satisfeito consigo mesmo, pela decisão de acompanhar Marília ao Brasil. Estar ao lado dela nesse momento, era bastante oportuno. E na firme resolução em permanecer apoiando-a, ele seguiria com eles de volta a Milão.
Por uns minutos, Lia foi à toalete. Francesco viu-se a sós com o conterrâneo, e a identificação entre ambos o levou a abrir o coração para dizer rapidamente e em tom sigiloso que Luisa os esperava em Milão com uma doença bastante grave. O novo amigo compreendeu que o rapaz dividia o peso daquele segredo apenas com ele.
Essa seria mais uma razão, se ele precisasse delas para se fazer presente na vida de Marília.
O sangue pulsava forte demais nas veias dela. O chá de erva-doce que quase sempre tomava antes de ir para cama, não fez efeito calmante nesta noite. Ansiosa pelo encontro, ela se agitou no sono e em sonhos ela foi ter com a filha: uma menina raquítica com os braços estendidos em sua direção pedindo ajuda. Sem saber exatamente o que fazer, ela tentava desesperadamente tocá-la. O esforço que fazia para se aproximar era sobre-humano. Todas as tentativas eram em vão. Mas ela entendia que precisava continuar tentando e jamais a abandonaria. A angústia da mãe acentuava a cada momento ao perceber que a filha ignorando sua presença, definhava cada vez mais. Ela acordou sobressaltada, uma enorme solidão foi tomando conta de toda sua alma. Desejou não estar só em sua cama, nesta noite. A simples lembrança corpo de Armani, que se encaixava tão perfeitamente com o seu, a fez estremecer. Curvou-se sobre si mesma, em busca de proteção e afago, sentindo minar toda força que supostamente tinha.
A manhã finalmente veio em seu socorro, com cuidado arrumou entre as bagagens, uma caixa contendo, revestida com papéis de seda, um vestido da cor dos olhos de Giullia. Ela mesma tingira o tecido naquela cor. Cortara e costurara pessoalmente. Fizera surgir daquele pedaço de pano, uma roupa, uma peça para envolvê-la e acariciá-la. Um presente.
No aeroporto, Armani e Francesco a aguardavam. Silenciosamente todos caminharam juntos em direção do local de embarque. Cada um com seus próprios pensamentos. Enquanto o avião ganhava altura, ela foi deixando para trás toda aflição que a invadira. Iria ao encontro de sua menina. Era tudo o que ela mais queria.
Os últimos raios de sol se despedia da tarde e Marília se lembrou com nitidez de um outro momento como este, a tarde em Jacaraípe, em que perdia a filha.
As últimas horas haviam se transformado num verdadeiro teste à resistência dos seus limites. Seu corpo se tornara pequeno demais para carregar tamanha emoção. Saber da pouca distância que a separava de Luisa, só fazia aumentar ainda mais sua agonia.
Armani, a seu lado no automóvel, sentia as mãos dela, geladas, entre as suas. Francesco, calado, pensava no lado prático da situação: exames a fazer, equipe médica a consultar, não havia tempo a perder. As notícias recebidas, por telefone, pelo doutor Vitorino Degasperi , eram de que a doença estabilizara, não houvera regressão da doença com o tratamento e estava longe a possibilidade de descartar o transplante da medula óssea. Esperaria com bastante serenidade o momento de contar à Marília sobre a doença da filha. Certo de que ela entenderia o motivo pelo qual não havia lhe contado antes. Ele apenas quisera poupá-la.
O automóvel diminuiu a velocidade bem em frente à enorme residência dos Grassi. Impressionada com a beleza e o luxo, aguardou que o carro estacionasse na garagem, próxima ao jardim.
Ela ficou na expectativa de ver seu próprio coração saltar do peito. Bastante emocionada, tentou dizer a si mesma que não esperasse muito desse primeiro encontro, afinal ela não a reconheceria, de imediato, como mãe. Ela aprendera a amar outra mulher e outro homem como sendo seus pais e isso ela compreendia perfeitamente.
Luisa esperava por eles no salão principal. Nonno Carlos e Isabella haviam se retirado para o jardim a fim de deixar mãe e filha mais à vontade.
Quando Marília apoiou os pés no chão, sentiu as pernas fraquejarem. Armani a amparou. Ela conteve com muito custo, o choro. Conhecia sua natureza sensível e sabia que não iria muito longe sem se desmanchar em lágrimas.
Francesco havia telefonado à Luisa todos os dias, mas em todos os telefonemas, evitara dar uma opinião pessoal a respeito da mãe, deixando que ela formulasse sua própria opinião quando a visse. E agora tocava o ombro de Marília conduzindo-a para a filha com a certeza de que Luisa iria amá-la. Baseava-se no fato de ter visto nos seus olhos verdes como as águas do mar, a força e a determinação que vira nos olhos da moça que tanto amava e que estava à espera deles.
Na residência dos Grassi havia uma sala de entrada que poderia servir como ponto de referência para toda a casa. Havia ali, conforto, segurança e um toque familiar que se estendia aos outros ambientes. A primeira impressão que ficou em Marília foi a de acolhida e ela parou por alguns segundos antes de se decidir a transpor aquela porta que a separava da filha. Um medo súbito invadiu seu coração. E se ela não a compreendesse... se ela não a aceitasse como pessoa... se tivesse sua própria vida e não desejasse incluir nela, uma mãe...Francesco percebeu sua excitação:
_ Espere um minuto aqui, vou prepará-la para você.
Ela segurou firmemente as mãos dele e agradeceu assentindo com a cabeça. Precisaria desses preciosos minutos para se recompor também. Armani tocou os braços dela, amparando-a e desejando interiormente que essa tensão tivesse logo um fim. Não fazia nenhum bem a ela, nem à própria filha.
Luisa sentia-se relativamente bem desde que deixara o hospital. As dores estavam sendo controladas e apesar de não ter havido qualquer tipo de regressão da doença, os sinais de que a mantinha sob controle eram evidentes. A juventude era sua grande aliada nesta luta e seu aspecto era o melhor possível quando Francesco a viu, sentada na cadeira favorita do avô. Ela deu um salto indo parar nos braços dele. Ele sentiu no aperto do abraço que ela emagrecera. Doía fisicamente nele, vê-la definhar. Se pudesse, ele arrancaria de dentro dela esse mal que a consumia. Tocou seu rosto com carinho e beijou-a docemente, dando-se conta da importância daquela brasileirinha em sua vida. Perde-la a essa altura, seria o mesmo que ficar sem o ar que respirava. Ela estava de tal modo entranhada em seu ser que ele não saberia dizer onde ele terminava e ela começava.
_ Eu a trouxe para você._ Ele o disse como se diz de um presente.
_ Eu sei... eu sinto... estou pronta para conhecê-la.
Luisa sorriu querendo chorar, não sabia o que esperar dela, nem o que deveria dar a ela. Era sua mãe. Mas era uma estranha também. Quisera amá-la desde o dia em que o pai fizera a revelação, mas como amar uma mulher sem rosto? Infinitas vezes não se permitira pensar no motivo pelo qual ela não a quisera. Não julgar... um esforço sobre humano.
No momento em que a porta se abriu, Luisa de pé no meio da sala viu entrar uma jovem mulher, linda... e estranhamente se viu nela com alguns poucos anos a mais. Ela tinha o mesmo cabelo...curtos e rebeldes... a mesma cor de pele... e nos olhos... por detrás daquela poça d’água, o mesmo verde dos seus...
Marília, da soleira da porta olhou a moça miúda com olhos de saudade. Saudade de conhecê-la... saudade de tê-la entre seus braços e fazê-la dormir...
Saudade do que não foi...
Por um longo momento as duas apenas se olharam, com o coração nas mãos, a mãe ofereceu seus braços estendidos à filha. Luisa timidamente se aconchegou nos braços de Marília, sem pressa, sem medo, sem culpa.
_ Você é linda..._ Lia queria dizer tudo, sem saber por onde começar.
_ Linda... como você... _ ela se afastou um pouco, apenas para secar as lágrimas que corriam soltas pelo rosto da mãe._ ... não chore, mãe...
Era ela, sua filha, finalmente a encontrara.
Armani e Francesco acudiram as duas mulheres que riam e choravam ao mesmo tempo. Nonno Carlos, inquieto, veio se juntar a eles e Isabela foi à cozinha buscar Nanni para conhecer a mãe de Luisa que chegara do Brasil, o país de gente bonita, da pele dourada que ela estava curiosíssima para conhecer.
Foi amor à primeira vista. Nonno se apaixonou por Marília quase que imediatamente. Não lhe passou desapercebido o modo carinhoso com que ela tocava a filha enquanto lhe falava, o jeito doce de acariciar com os olhos, a suavidade com que usava a voz rouca, parecidíssima com a da filha, para expor seu ponto de vista. Encantado, descobriu que conhecera o pai de Armani, com quem fizera vários negócios anos atrás, ambos eram admiradores de arte.
E prevendo o quanto seria doloroso para as duas mulheres se separarem novamente, ele decidiu, com aquele jeito especial de quem não admite ser contrariado, que Marília permaneceria com eles enquanto permanecesse na Itália.
Francesco piscou os olhos para Lia, parceira naquela brincadeira que ele desejou fazer com Luisa:
_ Giullia... _ ele chamou a garota, sentada no sofá, bem à sua frente.
A princípio ela olhou para ele antenada apenas no som da voz dele. Depois o nome lhe pareceu vagamente familiar. E por fim ela desistiu de entender porque todos sorrindo, olhavam para ela.
_ Esse é seu nome de batismo, minha filha._ Marília o disse timidamente, deixando-a completamente à vontade para usá-lo ou não.
_ Giullia... eu gosto. Considerando as vezes que já mudei de nome, não terei nenhuma dificuldade em me acostumar com “Giullia”._ Riu de si mesma.
Todos na sala a acompanharam e com exceção de Marília, que não sabia ainda do mal que afligia a filha, entreolharam-se e a pergunta muda ficou no ar: de onde vinha a força e a alegria de viver que ela exalava por todos os poros?
Marília era a única pessoa naquela casa que não sabia do estado de saúde da filha. Francesco havia chegado à conclusão de que houvera emoções demais por um dia, a má notícia poderia esperar até o outro dia pela manhã.
As duas dormiram juntas aquela noite. Antonio muito solícito, arrumou logo um jeitinho de acomoda-las no mesmo quarto, ao menos por aquela noite. Mãe e filha tinham tudo para falar uma à outra. Uma vida inteira para passar a limpo. Perguntas mínimas com o máximo de resposta. Giullia quis saber do pai. Marília disse apenas que ele morrera muito cedo, não tendo assim, a chance de assumir seu papel de pai. Mas que de certo modo, ela o amara em sua juventude, na mocidade da menina sapeca, moleca de pés descalços nas ruas estreitas de Santa Teresa, correndo contra o vento frio das montanhas e dali, daquele primeiro amor, ela nascera.
Giullia dormiu em paz, nos braços da mãe, sonhando com o vôo dos colibris pelo vale do Canaã. Quase podia sentir o cheiro dos manacás floridos e o som das cachoeiras. A sensação de bem estar a acompanhou por toda a noite e pela manhã ela custou a acreditar que estivesse seriamente doente.
O sol nasceu pálido naquela dia e Marília, como de costume, levantou cedo e saiu do quarto sem acordar a filha. No jardim, ela refletiu sobre tudo o que estava acontecendo, e quase não pode acreditar que tantas coisas boas lhe aconteciam ao mesmo tempo: o reencontro com a filha, sua vida profissional que ia de vento em popa e o romance com Armani. Incrivelmente coberta de bençãos, ela sentia sua vida.
Francesco combinara encontrar-se com ela para um café da manhã a dois. Ela imaginou que naturalmente ele gostaria de participar seus planos futuros, com toda certeza envolvendo a vida da filha. Estranhou apenas o tom grave que emprestara ao convite. Outra coisa que ela observou foi o cuidado quase que excessivo de todos para com Giullia, e a quantidade de medicamentos que Nani, de hora em hora, pontualmente, lhe ministrava.
Ele passou pelo quarto de Giullia e como tudo permanecia quieto, não quis incomodá-la. Desceu as escadas para o primeiro andar à procura de Lia. Nani informou que ela se encontrava no jardim, ele então pediu que servisse lá o café para os dois.
Sorriu ao vê-la, e carinhoso, beijou seu rosto, tão parecido com o da filha, numa compensação por antecipação ao sofrimento que, independente de sua vontade, causaria a ela.
_ Se você deseja pedir minha benção para sua união com minha filha, você a tem. _ Disse sorrindo, segurando as duas mãos dele e apostando que ele queria algo mais do que lhe pedir suas bençãos.
Ele apertou com firmeza as mãos que ela havia oferecido. Nos olhos uma sombra de tristeza que a assustou.
_ Giullia não quer se casar comigo... pelo menos não, por enquanto... _ e sem soltar as mãos dela, ele completou com um nó na garganta _ ela está muito doente.
Marília sentiu o corpo esfriar subitamente.
_ Estamos fazendo todo o possível. A equipe médica, é uma das melhores do mundo, é formada por pesquisadores geneticistas experientes, que acompanham o caso com muito interesse. No momento está tudo sob controle...
_ O que ela tem? Qual o nome da doença? _ Sua voz era apenas um fio.
_ Leucemia. _ Ele disse sem acrescentar mais nada. A voz entrecortada pela emoção.
_ Meu Deus! _ Ela sentiu suas forças escapando do corpo.
Francesco soltou finalmente suas mãos e num gesto sofrido e incontido, levantou-se da cadeira, de punho fechado, socou o ar, soltando um gemido animal de fera ferida. Ficou de costas para Marília, em silêncio, por um longo tempo.
Voltou-se lentamente, secando as lágrimas silenciosas que molhavam seu rosto e tornou a sentar a seu lado.
_ Giullia necessita de um doador. Só um transplante de medula óssea pode livrá-la desse sofrimento. Por isso fui ao Brasil procurar seus parentes. As chances de encontrar um doador na família são infinitamente maiores._ Ele falava sem parar e Marília começou a entender o porque da atenção especial e os remédios em grande dosagem. Mesmo assim não concebia a idéia de sua garota doente. Ela era forte e saudável, cheia de vida, sorridente e feliz. Deveria haver algum engano. Exames trocados, algum erro médico... recusava-se a acreditar que havia algo errado com ela.
Nani trouxe o café, serviu sem açúcar para Lia, que tomou de suas mãos a xícara, como se fosse um autômato, perguntando-se interiormente porque isto estava acontecendo com ela? Qual o propósito? Encontrar a filha e perdê-la em seguida... ela não suportaria.
_ Você, como mãe, tem as chances aumentadas de carregar células sangüíneas geneticamente compatíveis com as de Giullia._ Olhou-a como a um objeto precioso.
_ Marque o teste para hoje mesmo. _ Havia lágrimas quase secas em seus olhos._ Eu sinto que posso salvar minha filha. _ Era mais que determinação em sua voz, se Giullia precisasse das estrelas, ela iria buscar.
Quando a filha desceu as escadas, desabou por terra o propósito de Marília em se manter firme. Abraçou-a e choraram juntas, uma nos braços da outra.
Foram ao hospital àquela tarde, passaram todo o tempo grudadas uma na outra e quando Armani chegou à noite, encontrou-as mais esperançosas e um pouco menos tensas. Marília havia entregue à filha o vestido confeccionado inteiramente por ela. O modelo exclusivo totalmente inspirado na garota das fotografias que Francesco levara consigo para o Brasil. O olho clínico da mãe, acertara em cheio o manequim um pouco magro, mas com curvas e a graça da mulher brasileira.
Ela desfilou cheia de charme vestindo o modelo, orgulhosa do trabalho de Lia. Francesco não resistiu, e ali mesmo, diante de todos, abraçou-a e apaixonadamente beijou seu lábios com ternura, ao que a platéia reagiu com vivas e gritinhos de bis. Os dois subiram rapidinho as escadas para o segundo andar, à procura de um pouco de privacidade, onde pudessem namorar em paz.
No início da semana Giullia se submeteu a mais uma bateria de exames e nova sessão de quimioterapia. Para isso se internou novamente no hospital. A quimioterapia interferia de modo favorável sobre a doença, mas causava efeitos tóxicos no organismo da paciente. Os efeitos colaterais pesavam dolorosamente sobre seu estado de ânimo. Com ela, sofriam todos.
O resultado do exame feito por Marília foi levado pessoalmente pelo doutor Vitorino Degasperi. Ansiosos, encontravam-se todos na ante-sala: Armani, Francesco, Isabella, Nonno Carlos e Lia esperando aflitos que ele divulgasse a compatibilidade ou não, da mãe, enquanto Giullia descansava no quarto ao lado. Encararam o médico, cheios de expectativa, enquanto Marília, aflita, unia as mãos em sinal de oração:
_ Fale pelo amor de Deus... _ Nonno explodiu impaciente.
_ Infelizmente não trago boas notícias. O resultado foi negativo. As células sangüíneas testadas não são capazes de restabelecer as funções da medula combalida. Mas não devemos desanimar... _ continuou ele, testemunhando o desamparo em cada um dos rostos _ ...ela está reagindo bem à terapia e neste meio tempo continuaremos a procurar o doador compatível.
Marília desabou sobre uma poltrona e chorou silenciosamente. Sua filha estava sendo tirada dela, pela segunda vez. E a velha sensação de impotência tomava conta dela, massacrando-a .
Enxugou as lágrimas com o lenço que Armani estendeu para ela e levantou-se decidida a não se entregar. Giullia precisava dela e permaneceria a seu lado sempre. Passou as mãos pelos cabelos, alisou o vestido e entrou no quarto seguida por Francesco e os outros, disposta a dar ela mesma, a triste notícia.
No rosto da paciente a pergunta que não precisou fazer. A resposta estava nos olhos tristes de cada um deles.
_ O resultado foi negativo, Filha. Mas não vamos desistir... _ não conseguiu terminar, os braços estendidos da filha pediam socorro e todos se precipitaram ao mesmo tempo para socorrê-la. Abraçados a ela, eles choraram. Isabella com dificuldade amparou o avô e o convenceu a sair com ela, porta afora do quarto. A forte emoção faria mal ao coração já debilitado.
Abraçada a Francesco, Giullia desabafou finalmente, demonstrando toda fragilidade dos seus dezenove anos:
_ Tenho medo, Francesco... muito medo... não quero morrer... _ sacudida por um choro convulsivo. _ Agarrou-se a ele, como se ali residisse toda sua esperança de sobreviver.
_ Você não vai... eu não vou deixar... vamos encontrar uma saída... eu prometo a você. _ Ele precisava acreditar nisso.
Marília, a um canto, nos braços de Armani, assistia ao sofrimento dela. Faria qualquer coisa para diminuir sua dor. Qualquer coisa para salvá-la.
No Brasil, as buscas foram em vão. Pais, tios, primos próximos e distantes, vizinhos e amigos de Lia, todos fizeram o teste e frustrados verificaram o resultado. Campanhas no rádio e televisão brasileiras e italianas veiculavam sem cessar, mas o doador compatível não apareceu.
Naquela semana, Francesco deixou Giullia aos cuidados de Marília e Isabella e trancou-se nos laboratórios dos geneticistas que acompanhavam o caso. Comportou-se misteriosamente durante dias, concentrado, esteve às voltas com livros sob os braços cobrindo Lia de perguntas pessoais a cerca de partes íntimas, como o funcionamento de seu útero, seu estado psicológico e outros. À medida que os dias iam passando, seu entusiasmo ia aumentando e o mistério também. Com a sensibilidade à flor da pele, todos se impacientavam com seu comportamento e às indagações, ele respondia somente:
_ Confiem em mim. Dentro em breve darei todas as respostas. _ Dizia já partindo para novas investidas que o absorviam completamente.
Dois dias depois, ele reuniu toda família, numa das salas do Centro Médico, para expor suas idéias. Alguns médicos marcaram presença explicando as questões mais complexas:
_ A idéia principal é a de gerar uma criança com características sangüíneas semelhantes às de Giullia através da fertilização in vitro. _ Apesar de fantástico, ele parecia saber do que estava falando. _ A garantia de que o embrião carregaria células sangüíneas geneticamente compatíveis já é possível através de uma análise genética, usando testes de altíssima geração, capaz de decifrar o DNA de uma única célula. _ Ele fez uma pausa para respirar e também para observar o efeito que suas palavras causavam na pessoa que seria o canal competente: Marília.
_ Atualmente, a fertilização in vitro é um recurso corriqueiro. _ Completou um dos médicos.
Todos os olhares se voltaram para Lia. Era ela o recurso, o útero materno que receberia o embrião, desenvolveria o bebê, e no momento de seu nascimento poderiam então retirar uma pequena quantidade de sangue do cordão umbilical para ser transplantado em Giullia.
_ Uma criança... uma nova vida, para salvar a vida da irmã... é realmente grandioso..._ Dentro dela uma explosão de sentimentos. Não havia planejado filhos para seu futuro. Nem ao menos tinha um relacionamento oficializado com Armani, sequer sabia dos projetos dele, quanto ao futuro. Mas de uma coisa estava certa, faria qualquer coisa pelo bem estar da filha, mesmo que isso significasse assumir total responsabilidade pela criança que seria concebida. Restava agora convence-lo a se submeter juntamente com ela à fertilização in vitro.
_ Falarei o mais rapidamente possível com Armani. _ Interiormente a idéia de ter um bebê com ele começava a se tornar prazerosa.
Armani sentiu as vibrações do celular no meio de uma reunião. Pouquíssimas pessoas conheciam o número daquele aparelho, Marília era uma delas, exatamente por isso, ele imediatamente se afastou do grupo para atender em particular. Era ela.
Ele sempre sentia uma sensação gostosa quando ouvia sua voz. As responsabilidades junto às empresas, o haviam tirado dela, aquela manhã. Mas ele estava louco para vê-la e quando ela sugeriu um jantar íntimo, só os dois, no restaurante favorito deles, sentiu a pulsação aumentar, e a tarde se arrastou interminável enquanto esperavam a noite chegar.
Marília esmerou na sofisticação. O vestido preto de crepe levíssimo, realçava seu corpo cheio de curvas, acentuando ainda mais sua pele dourada pelo sol do Brasil. O decote em “v”, deixava generosamente, suas costas à mostra, ousado, indo terminar bem abaixo de sua cintura. Propositadamente sensual.
_ Sinto-me como uma fêmea tentando atrair o macho para o acasalamento._ Riu da idéia e Isabela que a ajudara na escolha do vestido, para aquela noite, pensou em imita-la.
_ Se a tática der resultados positivos, me avise, pois vou tentar também. _ Brincou descontraída.
A esperança estava no ar. E menos tensos, todos esperavam pelo sinal verde de Marília. Entrariam então em campo, os geneticistas para fazer nascer essa criança que seria a salvação de Giullia.
Ela não o fez esperar quando ele chegou para apanhá-la, dirigindo sua Ferrari.
Ele quase se acostumara com os olhares que se voltavam para vê-los ao entrarem nos recintos públicos. Formavam um belo casal. Alto, cabelos negros abundantes, uma beleza suave e pouco agressiva, faziam dele, um colírio para os olhos. Enquanto Lia possuía uma beleza tipicamente brasileira, corpo perfeito, seios fartos, cabelos naturalmente cacheados e uma expressão feliz, vinda só Deus sabe de onde. Nenhum dos dois se importavam com a atenção que atraiam atravessando o restaurante, guiados pelo gerente, que os conduzia à mesa reservada para eles.
A mão dele tocava suas costas nuas, fazendo-a se arrepiar. Com a música ao vivo, ela podia sentir o som penetrar pelos poros da pele indo em direção à alma. A excitação tomou conta dela. Tocou o braço dele e fez o convite para dançar. Ele estava se divertindo com a conotação extremamente sensual que o encontro ganhara aquela noite.
O ritmo suave da música realçou o prazer de estarem um nos braços do outro. Ela aproximou-se o mais que pode dele, encostando seu rosto na pele barbeada e cheirosa que exalava toda sua masculinidade. As mãos dele aproveitavam a ausência de tecido em suas costas e a acariciavam com intimidade. A caminho para a boca convidativa de Marília, ele beijou seus olhos, a maçã do rosto e finalmente os lábios sedentos de suas atenções.
O jantar foi servido, as massas finas encheram os olhos de Marília, que se sentia faminta. O licor concentrado servido juntamente com a sobremesa de nozes possuía algo de divino.
Ela contou a ele toda a atividade daquele dia, incluindo cuidadosamente a proposta de Francesco, o plano que envolvia a escolha de um embrião 100% compatível com Giullia e uma fertilização in vitro.
Quieto, ele a ouvia atentamente. Apenas o olhar tristonho depositado nela a incomodou.
_ O nascimento dessa criança seria uma benção. Um avanço da ciência que não é passível de questionamento. A falência total da medula óssea pode levá-la à morte. Viver uma rotina de transfusões é doloroso demais. Sua única chance é o transplante. _ enquanto ela falava, a estranha quietude dele a afligia.
_ Por favor, diga alguma coisa... um bebê em nossas vidas, não é de todo uma idéia ruim. Imaginar um filho seu dentro de mim, me fascina. Carregá-lo em meus braços ao nascer me faria uma mulher mais completa e feliz. Um presente dos céus, é o que ele seria em nossas vidas._ Ela não conseguia compreender a atitude distante que ele assumira de repente.
Tocou as mãos dele, e ele reagiu ao toque de maneira inesperada, afastando-se dela.
_ Se o que deseja de mim é a participação neste plano... eu não posso..._ ele levantou-se fugindo dela, deixando-a sozinha na mesa do restaurante.
Ela o seguiu com o olhar. Armani sentou solitário, na área reservada para o bar. Pediu uma bebida forte, tomou-a de um só gole e voltou para onde ela estava. Sem se sentar novamente com ela, com o olhar transtornado ele a encarou:
_ Não posso ter um filho. Não posso junto com você, salvar sua filha._ E com a amargura que ela jamais vira nele ela ouviu o inesperado:
_ Sou estéril.
Dois longos dias se passaram e Armani sequer telefonou. Nenhum sinal, nenhuma notícia. Ela esperara pacientemente que ele saísse do seu ostracismo e a procurasse para conversar. Ela não poderia se dar ao luxo de esperar nem mais um dia. Logo cedo naquela manhã, Lia ligou para o número restrito do seu celular, mas para sua surpresa ele encontrava-se desligado. Resolvida, pegou um táxi até o edifício no centro de Milão, onde funcionava os escritórios das empresas Falquetto.
Constance, a secretária de Armani, reconheceu Marília assim que a viu. Haviam sido apresentadas no Salão Internazionale e se falado várias vezes por telefone. Disposta a esperar o tempo necessário para ser atendida, ela sentou-se na sala de espera. Mas Constance intuiu que alguma coisa de suma importância a levara ali e tratou logo de fazer chegar ao patrão, o conhecimento de sua estada no escritório. A secretária notara a dias, pela aparência dele, que alguma coisa o torturava, ela não sabia bem porque, mas imaginou que a brasileira tinha algo a ver com isso.
Anunciada, Marília entrou na sala dele e o encontrou de costas para ela, de frente para a vista espetacular do centro de Milão. Do vigésimo andar, tinha-se a impressão de se ter a cidade a seus pés.
_ Esperei que me telefonasse... _ começou ela timidamente, não sabendo como chegar até ele_ Precisamos conversar...
_ Não há nada o que dizer ou fazer _ ele a interrompeu sem rispidez, voltando-se finalmente para encará-la de frente_ caminhávamos juntos, agora você segue em frente enquanto eu paro por aqui. É o fim da linha para mim.
_ Porque tem que ser assim?! _ doía nela a palavra, esterilidade.
_ Não há produção de espermatozóides. Não posso dar a contribuição de que você necessita. E não suportaria sabê-la grávida de outro homem. Sinto muito.
Ele voltou novamente as costas para ela, sem permitir que ela visse o sofrimento estampado em seu rosto. Deu por encerrada a discussão. Ele precisava libertá-la para que ela seguisse em frente, isto ele compreendia, mas não estava preparado para aceitar o filho de outro homem no ventre dela. Seria doloroso demais.
Com o coração fragmentado em pequenos pedacinhos, ela saiu de sua sala. Constance viu passar pela sala uma mulher transtornada, quis ajudá-la, mas ela já se fora.
À espera do elevador no vigésimo andar, ela lutava com as lágrimas, a porta se abriu e ele surgiu bem à sua frente. Surpreso, Giorgio sorriu espirituoso.
_ Elevadores são nosso forte. _ A irreverência era sua marca.
Ela não riu. Não desta vez. Aporta do elevador se fechou atrás dele e ficaram sozinhos no imenso corredor. A angústia estava estampada em seu rosto. Ele, cautelosamente se aproximou mais dela e ela se rendeu aos braços dele, desabando num choro convulsivo, um segundo depois. Carinhosamente, ele a protegeu com os braços, acariciando seus cabelos como faria a uma criança. Pouco a pouco a crise de choro passou e ele secou as lágrimas dela com seu lenço.
_ Desculpe-me... _ ela deu uma espécie de sorriso acanhado.
_ Não há de que. Ombros amigos são para se chorar, e depois, adorei ter você em meus braços. Vamos, vou levar você daqui._ Segurando-a pelos ombros, guiou-a para fora do prédio.
O café e a companhia aqueceram Lia. Giorgio a fez confessar tudo o que se passava com ela. Num desabafo, abriu seu coração: a doença da filha e a possibilidade de cura elaborada pelos geneticistas.
_ Parece uma história de ficção. _ Ele quis brincar.
_ O futuro é agora._ Ela retrucou sem acreditar às vezes, na ousadia do que planejavam executar.
_ Armani não pode ajudá-la._ Ele sabia da esterilidade do irmão.
_ Eu não posso parar agora. É a vida de minha filha. Tenho que ir adiante.
Ele compreendia. Compreendeu também que eles davam por encerrado o caso de amor entre eles. Os olhos dela, embaçados pela angústia o estavam matando. Pegou-a pela mão e saíram para as ruas de Milão numa longa caminhada. O ar fresco fez bem para os dois que seguiram caminhando, sentando em bancos de praças e novamente prosseguindo até se sentirem exaustos. Ele a fez rir e fez chorar. Mas quando a deixou em casa, era tarde e ela se sentia agradavelmente mais leve.
Nina atravessou o jardim iluminado pelos primeiros raios de sol da manhã e levou o telefone para a mesa do café. Marília levantara-se a pouco. Muito cedo, fora a primeira a tomar o desjejum . Ela atendeu, era Giorgio.
_ Pego você dentro de trinta minutos._ Poderoso, ele brincava de ser dono dela.
_ E eu posso saber onde você pretende me levar? _ perguntou ressabiada.
_ Não confia em mim? _ Ele riu presunçoso.
_Não confio em mim quando estou com você._ Ouviu o riso contagiante dele.
Exatos trinta minutos depois, Marília saiu da residência dos Grassi deixando apenas um recado a todos: voltaria somente à noite.
Francesco o recebeu logo que encontrou Nanni nos corredores do segundo andar. Temeu por alguma dificuldade que pudesse estar ocorrendo no relacionamento entre ela e Armani, mas não se preciptou nas conclusões. Confiava na capacidade dela em transpor obstáculos. Com a mão na maçaneta do quarto de Giullia, ele riu lembrando-se do motivo pelo qual ela não criara o hábito de trancar a porta do próprio quarto, simplesmente porque não havia trancas nas portas dos quartos, em sua antiga residência no Brasil. Ela estava no banho e ele sem pedir licença, juntou-se a ela.
A velocidade da Ferrari esportiva que Giorgio dirigia, fazia os cabelos os cabelos de Marília voarem ao vento. Sensação maravilhosa de total liberdade que ela experimentava sempre que desfrutava da companhia dele, que mantinha o mistério enquanto dirigia velozmente.
Marília se deixou levar, sem questionamento, hipnotizada pela paisagem quase rural, as ruas muito arborizadas, moradas que refletiam um estilo de vida baseado na simplicidade, no conforto e na tradição. Entraram à direita numa ruazinha que terminava de repente. Estacionaram em frente a uma casa escondida parcialmente por imensas árvores. Linda e extremamente aconchegante, foi a primeira impressão de Marília, que buscou em sua memória algum sonho em que a visualizara, tão concreta era a sensação de já tê-la visto.
De mãos dadas, cruzaram o jardim. Como se fossem esperados, uma senhora de olhos muito azuis, abriu a porta principal e um sorriso maternal os acolheu.
_ Como vai o amor da minha vida? _ Giorgio a abraçou e beijou tirando-a do chão.
_ Abandonada. Duas semanas sem ver você é demais para o meu pobre coração. _ A satisfação em vê-lo estava estampada em sua face.
_ Angelina, esta é Marília. - Disse soltando-a no chão com cuidado.
Mesclado ao olhar de curiosidade, havia uma discreta aprovação e enquanto ele a guiava casa adentro, Marília ouviu-a perguntar em voz baixa em italiano a Giorgio: Amica? E ela inexplicavelmente sorriu ante a possibilidade de ser considerada a nova namorada dele.
Atravessaram toda a residência, e a cada ambiente, o cuidado nos pequenos detalhes fascinou Lia. Na decoração, as lembranças do passado, nos porta-retratos, fotografias dos dois garotos, identificados por ela, Giorgio e Armani.
Onde deveria terminar a casa, começava um jardim espetacular. Arbustos e flores davam conta de tornar encantador aquele lugar. A um canto, absorvida pelo trabalho de jardinagem, se encontrava uma mulher de cabelos cor de prata. Ao vê-los, levantou-se indo na direção deles. Evidentemente era a matriarca. Os mesmos cabelos fartos, a mesma elegância, Marília poderia distingui-la entre muitas mulheres. Depois de cumprimentar o filho com carinho, dirigiu-se a ela:
_ Seja bem-vinda, minha filha. _ Havia doçura e uma alegria genuína em sua voz.
Geovanna Falquetto tinha a seus serviços, Angelina, a tantos anos que nem os contava mais. Muito antes de ser funcionária, era amiga, confidente, companheira e entre outras tantas coisas que tinham em comum, partilham o amor por Giorgio e Armani.
Angelina preparara uma tenra vitela e numa agradável sala, foi servido a refeição para eles.
Tantas histórias as duas tinham para contar sobre as travessuras dos dois irmãos, que terminado o almoço, não haviam relatado nem um terço delas. Relembrando a infância deles, foram para o jardim tomar um gostoso licor de uva.
Os poucos momentos em que ficavam as sós, ele a cobria Lia de carinho e atenção. Segredava ao seu ouvido, palavras que a faziam sentir-se querida. Ela desconhecia este lado afetuoso de Giorgio.
_ Estou impressionada. _ Referia-se à Geovanna, Angelina, à casa fabulosa e à ele.
_ E eu, apaixonado. _ Nos olhos dele, brincava um sorriso.
Marília quase sentiu tristeza ao se despedir das duas. Fora muito bem acolhida. Elas fizeram Giorgio prometer que a trariam mais vezes para visitá-las.
Retardando a volta para casa dos Grassi, ele fez parada no charmoso Caffé Daniele, adornado por um jardim majestoso e uma linda fonte da Renascença. Sentados confortavelmente, apreciavam a vista deslumbrante, enquanto ouviam a típica música italiana. Divertido, ele tornava engraçadas as histórias pitorescas de gente daquela região. Nascido e criado em Milão, ele se deixara seduzir por aquela cidade.
Marília tinha consciência de que dava voltas em torno do tema que dominava a mente dos dois. Adiavam o momento de enfrentar com seriedade a questão da vida ou morte de Giullia. Corajosamente ela fez a pergunta que estava presa em seu coração desde aquela manhã quando ele a apanhara em casa.
_ Giorgio, você teria um filho comigo?
Como ela imaginou, ele esperava pela pergunta.
_ A resposta é sim. Minhas razões e as suas podem não ser as mesmas, mas eu desejo ter este filho tanto quanto você.
Aliviada e agradecida, ela se atirou nos braços dele, chorando e rindo ao mesmo tempo.
_ ... e já que estamos jogando aberto, eu quero que saiba das minhas segundas intenções, _ afastou-a um pouco para olhar em seus olhos enquanto prosseguia_ depois que o bebê nascer, eu pretendo pedir a mão da mãe dele em casamento.
Ela o beijou suavemente nos lábios. De uma certa maneira, o amava. Jamais esqueceria Armani. Mas ela descobria serenamente que uma mulher desconhece a verdadeira natureza do amor, até que tem um filho. E ela teria em breve, dois filhos.
Giorgio, sem constrangimento respondia às perguntas dos médicos. Nunca tivera gonorréia, sífilis, herpes e jamais tivera infecções, tumores, problemas com ereção, impotência ou qualquer doença grave.
Os resultados dos testes foram todos normais. Sua contagem de espermatozóides, normalíssima, como também estavam normais os testes de hormônio.
Uma semana depois estavam prontos para submeterem-se à fertilização in vitro. Conscientes de que talvez se fizesse necessário várias tentativas até que a análise genética decifrasse o DNA, selecionasse um embrião sadio e testasse a compatibilidade com Giullia.
_ Pense só em como vai ser divertido, só nós dois, naquele quarto, colhendo o material. _ Ele segredou para ela, a seu lado. Todos na sala riram. Estava sendo muito bom para todos os envolvidos, a maneira descontraída como ele encarava a difícil missão que tinham pela frente.
A enfermeira os levou para um quarto bastante agradável, nem parecia que estavam em uma clínica. Havia uma cama bastante confortável, um aparelho de televisão com teipes eróticos, revistas e um farto material para excitar o casal e facilitar o trabalho que tinham a realizar. Nas mãos de Marília o pequeno frasco para colher o esperma.
_ Viu no que foi que você se meteu?! _ Ela brincou com ele, desejando estar mais calma do que realmente estava.
_ Muito bem, vamos nos divertir._ Decididamente ele não levava nada a sério. E era exatamente isto nele, que mais a atraia.
Ele pôs um filme pornô no vídeo, ela ficou um pouco embaraçada, mas logo riu, relaxando enquanto o ajudava a tirar suas roupas. Giorgio tirou as dela também acariciando-a de maneira apaixonada. Esqueceram a tela, absorvidos no contato íntimo. Marília, excitada, beijava e mordiscava com desejo o parceiro. Ele não demorou a ter uma ereção, ela podia senti-lo arder numa vontade fremente de penetrá-la. Lia quase ficou triste em desperdiçar a chance de tê-lo dentro dela, segurou o frasco junto ao corpo, um minuto depois eles conseguiram o que queriam. Giorgio ainda ardia de desejo enquanto a beijava com ternura.
Tomaram um banho dividindo o chuveiro, prolongando um pouco mais os momentos de prazer em realizar o ato, que em seus corações, tinha sido um ato de amor.
A fertilização in vitro foi realizada logo em seguida. Quatro dias após, foi feita uma análise genética para decifrar o DNA. Para alegria de todos, o resultado foi a compatibilidade de 100% com Giullia.
Não cabiam em si de contentamento quando o embrião foi transferido para o útero de Marília.
Francesco mandou vir do Brasil, os instrumentos de trabalho de Lia. Amostras de tecidos, aviamentos e as publicações especializadas em moda mais recentes. O necessário para que ela confortavelmente pudesse voltar a planejar a próxima coleção, mesmo longe do Brasil. Isadora, dando o maior apoio, acompanhava passo a passo os planos da amiga, incentivando-a, cuidando e administrando da melhor forma possível tudo que se relacionava com a fábrica. Embora estivesse louca para ver Giullia.
Mãe e filha passavam a maior parte do tempo juntas. Cercadas de cuidados, elas quase não saiam de casa.
A iniciativa de Isabela comoveu Marília, interromper a faculdade por um período, foi uma demonstração de carinho e atenção que deixou a filha também bastante agradecida.
Não poderiam ser mais agradáveis as tardes aprendendo a jogar xadrez com Nonno Carlos. O espírito jovial e alegre, faziam dele, uma excelente companhia.
Giorgio vinha todas as noites, impreterivelmente, para visitá-las. Acariciava o ventre materno e às vezes cantava para o bebê, embevecido com a gravidez:
_ Podem não acreditar, mas eu me sinto um pouco enjoado. _ Falou com a cara mais séria do mundo enquanto passava a mão em círculos, bem na altura do estômago. E é claro, todos riram da evidente empatia, que ninguém duvidava, ele sentia neste período da gravidez de Lia.
Ele a levou à casa de sua mãe para colocá-la a par do plano que eles desenvolviam: o bebê que nasceria com a missão de salvar a irmã.
Os olhos de Geovanna se abriram refletindo a surpresa. Teria finalmente, um neto. A idéia de ser avó, apesar da maneira nada convencional, a emocionou profundamente. Angelina, entre risos e lágrimas de emoção, trouxe champanhe para comemorar. As três mulheres deixaram Giorgio por alguns momentos e foram a um quarto trancado a sete chaves, preparado especialmente para guardar as roupas, objetos e lembranças da infância dos dois filhos.
Marília tocou com carinho as roupas de bebê, usadas por Armani. Em todas elas havia a letra inicial do seu nome, bordada discretamente. Giovanna guardara, esperando a oportunidade de passa-las para as mãos da mãe de seu primeiro neto. E disso elas já tinham certeza. Seria um garoto. E naquele momento ocorreu à Lia, batizar o bebê, com o nome de Felipe. O mesmo nome do pai de Armani e Giorgio. O que deixou a futura vovó sem palavras para expressar seus sentimentos.
O pai do bebê levou Lia para jantar e não se cansou de dizer a ela como ficava linda esperando um neném. Como de hábito, ele quis surpreendê-la, e não disse para onde a estava levando. Ela só deu-se conta do lugar, quando reconheceu o restaurante preferido de Armani. Suspirou desejando que ele não tivesse apetite aquela noite. De maneira alguma queria que ele a visse grávida, a algum tempo já dava para perceber o volume saliente da barriga. Orgulhava-se por estar grávida, mas odiava ferir seus sentimentos.
Marília buscou com o olhar a presença de Armani. Felizmente, não o viu.
As pernas começavam a reclamar quando a sede de dançar pareceu saciada em Giorgio. Haviam dançado a noite toda e achado graça do modo como a barriga empurrava o futuro pai. O restaurante era maravilhoso, todo revestido de pedras, o ambiente agradabilíssimo, mas ela sentiu um certo alívio quando ele pediu a conta e a deixou apenas por um segundo, em sua mesa, para cumprimentar uns amigos que acabavam de chegar.
Foi o tempo suficiente para que ela observasse um outro casal que acabava de entrar. Os olhos dela encontraram os dele, depois notou que o olhar se desviava em direção à sua barriga. E na posição em que ela estava, Armani tinha a visão completa do corpo dela, agora modificado pela gestação. Instintivamente ela levou as mãos ao ventre, num gesto de pura proteção. Alguns metros os separava, mas mesmo à distância, Lia percebeu o brilho de lágrimas nos olhos dele. Tudo aconteceu muito rapidamente e no momento seguinte ele lhe deu as costas e enlaçou a bonita morena a seu lado, ignorando-a completamente. Giorgio estava a seu lado, ajudando-a a se levantar enquanto a sensação de desconforto ainda persistia. Nem mesmo depois que ele brincou com ela e cobriu-a de beijos carinhosos a caminho de casa, aquele vazio na alma foi embora.
Amante da velocidade, ele dirigia à toda, levando-a para a casa dos Grassi. Dirigir velozmente era um prazer e o olhar meio assustado dela, o divertia.
_ Ainda bem que chegamos vivos. _ Ela riu, um pouco nervosa com sua própria displicência em relação à vida tão preciosa que trazia no ventre.
Ele não deixou que ela entrasse na residência antes de acariciá-la e rouco de desejo, faze-la prometer ir com ele numa viagem à França depois que desse à luz, ela e o bebê, que ele chamou, todo orgulhoso, de Felipe.
As semanas passaram rapidamente. Com a barriga cada vez maior, Marília quase não saía de casa. A companhia de Giorgio era constante e ela simplesmente adorava a presença alegre, carinhosa e espirituosa que preenchia suas tardes. A coleção ficara pronta e todos os desenhos enviados ao Brasil, para Isadora. Giullia dera palpites em alguns detalhes, o que tornou os figurinos ainda mais arrojados. Isa notou os sutis toques ousados, imaginando que em breve a filha de Lia seguiria os passos da mãe, pois tinha o mesmo gosto apurado e a sensibilidade de uma artista.
Ela voltara ao hospital para continuar o tratamento e a doença tornava a espera do bebê, longa e penosa. Francesco mantinha tudo preparado para que tão logo Marília desse a luz, os geneticistas pudessem proceder conforme o combinado: retirar uma pequena quantidade de sangue do cordão umbilical do recém-nascido no momento do seu nascimento e fazer a transfusão especial em Giullia.
A expectativa se tornava maior à medida que os dias passavam e a hora tão esperada se aproximava.
O natal chegou trazendo o sentimento de aproximação das pessoas e Lia não pode deixar de sentir falta dos familiares e do Brasil. Com a sensibilidade aflorada pela época natalina e pela gravidez, ela procurou se manter o mais ocupada possível fazendo as guloseimas brasileiras que os Grassi tanto gostavam.
Francesco saiu bem cedo aquela manhã e só voltou à tarde. Trazia no bolso um pequeno volume e no rosto um largo sorriso. No jantar, a família toda reunida, ele meteu a mão no bolso interno do casaco e tirou de lá uma caixa vermelha revestida com o mais fino veludo. Apaixonadamente tocou as mãos da garota a seu lado e disse com a voz rouca pela emoção:
_ Quero lhe fazer um pedido. Desejo que seja minha noiva. Não diga não. Eu lhe peço. Por favor diga sim, Giullia.
_ “Sim, Giullia”. _ Ela respondeu rindo.
Todos naquela sala partilharam a alegria de viver do jovem casal. Nonno Carlos abençoou os noivos e intimamente temeu pela saúde da menina que aprendera a amar como a um de seus netos. Temeu também pela sorte de Francesco, que não suportaria perder o objeto do seu amor.
Lia sentiu, misturado à alegria, um forte sentimento de perda. Em breve, a filha teria a sua própria família, seu próprio lar. Não voltaria com ela para o Brasil, e em algum momento se separariam novamente. Solitária, pensou em Armani e a quanto tempo não o via. Uma forte saudade se abateu sobre seu peito e a angústia cobriu seu coração. Culpou a chegada do natal que sempre mexia com os sentimentos e bagunçava as emoções. Tocou a barriga enorme e pensou na criança que iria nascer. Ela seria seu alento. Com ela não estaria só.
Às vésperas do natal, as atividades no casarão haviam se intensificado. Nani preparava pãezinhos recheados com geleia de goiaba, uma das inúmeras receitas de Marília. O aroma delicioso chegou até ela, que colocava num vaso, as flores que Giorgio mandava todas as manhãs. Rosas amarelas, que combinavam perfeitamente com o ambiente iluminado daquela sala, onde o aparelho de televisão divulgava um terrível acidente de automóvel envolvendo mais de um veículo. Ela parou a atividade para dar atenção àquela notícia. O repórter relatou os acontecimentos com calma, mas a imagens mostravam uma Ferrari esportiva do mesmo modelo que ela tantas vezes fizera uso ao lado de Giorgio. Lia só começou a se alarmar quando ouviu o mesmo repórter dizer que o motorista conduzia em alta velocidade, causando o acidente.
A morte de todos os envolvidos alarmou-a e sentindo as pernas começarem a tremer, ela gritou por socorro e Nani correu ao seu encontro chamando por Francesco, que desceu as escadas de uma só vez. Ali, parados diante do aparelho de televisão, estarrecidos, ouviram a transmissão da morte de Giorgio Falquetto.
Deveria haver algum engano, por isso, Francesco correu ao telefone, enquanto Isabela e Giullia acudiam Marília que começava a sentir falta de ar e uma estranha sensação de que estava toda molhada.
Nani foi a primeira a perceber e a se apavorar:
_ A bolsa estourou. _ Aflita segurava o braço do patrão ao telefone.
_ O bebê vai nascer..._ gemeu Lia, enquanto tentava dizer a si mesma que a morte de Giorgio não era real, só fazendo parte de um sonho mau.
A correria que se seguiu não estava prevista. Tudo tinha sido meticulosamente ensaiado a dias, para que não houvesse pânico nos momentos delicados da entrada do trabalho de parto. Mas em decorrência da situação, tudo se modificara.
Acionados, os geneticistas já se encontravam no Centro Médico quando eles chegaram. A equipe médica estava pronta para iniciar o parto.
No hospital, a espera na ante-sala era angustiante.
Isabela e Nonno Carlos, ansiosos, paravam enfermeiros e médicos para pedir informações, que sempre se repetiam. Aguardavam o momento certo para fazer o parto.
Francesco trançava da sala de parto para o quarto especial em que Giullia havia sido internada.
O parto se complicara. O bebê virara de posição no último momento. Marília sentia a dor aumentar, a criança queria nascer, mas não encontrava a condição certa para isso. Segurando a mão dela, Francesco tentava acalmá-la. Impossível não pensar em Giorgio, que deveria estar ali a seu lado. Ele prometera ficar com ela naquele momento e o resto de suas vidas. Uma raiva insana se apoderou dela. Por que ele tinha que morrer? Quebrando assim sua promessa... Como pudera ser tão irresponsável, dirigindo em alta velocidade, privando seu próprio filho de conhecer o pai...
A indignação dela era tão grande que se ele estivesse, naquele momento, à sua frente, ela o teria matado.
As dores a estavam enlouquecendo. Não se lembrava de ter sofrido assim durante o nascimento de Giullia. Ela tentou se acalmar, devia isso ao filho que ia nascer. Um ambiente de serenidade e amor, era o que ele deveria encontrar quando viesse ao mundo.
Sua vida era uma benção e sua missão era de vida plena para a irmã.
Para alívio de todos, a criança deu sinais de que nasceria. Depois de uma noite em claro, Lia, exausta, seguia as instruções dos médicos, preparando-se para da à luz. Naquele momento lembrou-se de Armani e no quanto gostaria que ele estivesse presente.
Felipe veio ao mundo minutos depois. Gritou forte e alto. E os médicos acharam graça na insistência dele em se fazer notar.
Ela chorou quando o colocaram em seu peito e experimentou temor quando o levaram dela. Naquele momento eles haviam retirado uma pequena quantidade de sangue do cordão umbilical de Felipe e a transfusão seria feita alguns dias depois. A mãe adormeceu finalmente, esgotada pelo esforço que fizera durante horas seguidas, seu sono era de paz, cumprira sua missão. Só lhe restava esperar.
Do lado de fora, na sala de espera, Francesco levou a boa notícia. O bebê nascera. Um belo menino de cabelos negros como o pai. Nonno Carlos abraçou o neto. Sofrera com ele todos estes dias.
Dias depois, Giullia estava pronta para receber as células sangüíneas do irmão. Um cateter enfiado no tórax dela encarregava-se de, gota a gota, infundir o fluido em seu organismo. O transplante, sem dor, durou mais ou menos uma hora. Ela tinha a criança no colo enquanto recebia o seu sangue. Olhava para ele agradecida, ela lhe devia a vida.
Marília recebera alta e cuidava do filho na residência dos Grassi, assessorada naturalmente por Nani. Ela não desgrudava de Felipe que parecia adorar tanta atenção.
Giullia ficaria no hospital mais uma semana em observação. Mais uma série de exames seria feito.
Francesco acampara no quarto da noiva.
_ Vamos fugir esta noite. Espere-me na escada de incêndio._ Ele conspirou baixinho ao seu ouvido, com ar de cúmplice. Aproximando-se muito dela.
_ Você tem senso de humor. Gosto disso num homem. _ E com pose de mulher fatal, ofereceu seus lábios a ele.
Desabotoou a camisa dele. A pele macia das mãos dela tocaram seu peito nu. Ele disse a seu ouvido:
_ É seu, o meu coração.
_ Não sei o que faria sem você... _ ela o olhou pensativa.
_ Espero que nunca descubra..._ ele a olhou com adoração.
Beijou-a docemente e ela sentiu de volta aquela sensação de que se está lá em cima prestes a saltar, sem rede.
A casa toda florida aguardava o retorno de Giullia do Centro Médico. Marília passeava com o bebê no jardim, o banho de sol o alegrava, ele batia as perninhas, feliz.
Nina veio avisá-la. Uma visita a aguardava no salão principal da casa. Pelo tom respeitoso que usou, ela pode avaliar quem seria.
Giovanna Falquetto, de pé , no meio da sala esperava solitária. A dor da perda estava em seus olhos. Lia entrou com Felipe nos braços e as duas choraram juntas, abraçadas uma à outra e o bebê entre elas. A avó pegou a pequena criatura dos braços da mãe e a aconchegou amorosamente em seus próprios braços. A chama de Giorgio não se apagara. Uma centelha brilhava em seu neto.
Sentadas no confortável sofá, elas ficaram um longo tempo, falando de suas dores, seus medos e esperanças no futuro.
Giullia dava sinais claros de recuperação, nadava na piscina, paparicava o pequeno Felipe e cogitava voltar aos estudos. Com o passar dos dias ela ia ficando cada vez mais forte.
Naquela manhã, Lia dirigia um dos quatro carros dos Grassi. Levava o filho à casa da avó, numa última visita antes de viajar para o Brasil.
A visão daquela morada entre as árvores sempre a reconfortava. Mas a paisagem estava um pouco diferente neste dia. Ela incluía a Ferrari de Armani. Melindrada, ela entrou na casa, sem ter certeza de que era por puro acaso que os dois se encontravam ali.
Angelina atendeu à porta imediatamente, pois ela já era esperada. Havia combinado passar o dia com elas. Agora não tinha certeza de que ficaria mais do que o necessário.
Elas atravessaram a casa indo direto para o jardim, onde sempre encontravam Geovanna. Ela os viu ali. Ao primeiro olhar, Armani pareceu tão surpreso em vê-la quanto ela a ele.
Geovanna os recebeu calorosamente:
_ Como vai meu neto preferido. _ Riu por ter roubado a fala de Armani, referindo-se ao irmão. Levantou-se, deu um beijo em Lia e pegou Felipe no colo.
O olhar dele era de saudade. Dirigiu um sorriso tímido a ela e sua atenção voltou-se inteiramente para a criança que dormia como um anjo, no peito da avó.
Viu-se no pequenino. Os cabelos negros e o formato da boca eram seus. A mãe, colocou o bebê nos braços do filho, que desajeitadamente o segurou. Acordado, ele curioso, estendeu as mãos para tocar no tio.
_ Ele não morde. _ Riu Lia. _ Pelo menos, por enquanto.
Até que não era de todo mal, segurá-lo.
Estava na hora de amamentá-lo e ela constrangida, levou-o para outra sala. Era um momento de privacidade e intimidade que pertencia aos dois.
Ele dormia outra vez quando o acomodou no berço que Geovanna deixava sempre preparado, para as vezes que eles vinham visitá-la.
Propositadamente as duas mulheres refugiaram-se na cozinha deixando os dois no jardim.
_ Minha mãe me disse que você está se despedindo... _ ele colocou as duas mãos nos bolsos, sempre o fazia quando não encontrava algo útil para fazer com elas.
_ Devo voltar, minha família, meu trabalho... enfim, meus compromissos me esperam.
_ Há bastante trabalho para você aqui. A firma “A&G” sofreu uma grande perda._ Referia-se ao irmão, naturalmente._ Sua experiência seria uma grande aquisição para a empresa. E quanto à família, seus dois filhos tem nacionalidade italiana. _ O tom saiu um tanto amargurado quando ele falou em filhos.
Lia magoou-se com a pose do empresário. Não pedia que ela ficasse porque a amava, mas porque seria mais conveniente.
_ Não. Eu devo partir, minha vida está toda estruturada no meu país. Talvez um dia... _ afastou-se dele, desculpando-se foi olhar o pequeno Felipe.
Ele juntou-se a ela e ao lado do berço, ficou embevecido com a criaturinha esperta que agarrou seu dedo, com a força que ele não suspeitava que os bebês tinham.
_ Ele se parece com você. _ Ela disse, pela primeira vez se permitindo expressar uma opinião muito íntima.
De fato, ele também notara, mas não tivera coragem de dizê-lo. Na verdade, Giorgio e ele se pareciam muito, fisicamente. As diferenças ficavam por conta das personalidades totalmente opostas, onde um não se levara a sério, enquanto o outro, se levava a sério demais.
O almoço foi servido. Sentados de frente um para o outro, eles mal se olharam. Parecia haver uma barreira entre eles. Alguma coisa incomodava Armani a ponto dele não se permitir diminuir a distância entre os dois.
Ele despediu-se da mãe, de Angelina e do sobrinho. Disse um breve adeus à Marília e foi embora, como se fugisse de alguma coisa ou alguém.
Dentro de um mês, todos, inclusive Geovanna e Angelina, iriam ao Brasil, para celebrar o casamento de Francesco e Giullia, que faziam absoluta questão do acontecimento, em terras brasileiras. Por isso não foi tão difícil a despedida. Mãe e filha se abraçaram fortemente. Lia adiantaria os preparativos do casamento, a filha ficaria para resolver as últimas pendências relativas à cerimônia.
O avião sem escala para o Brasil, sairia em uma hora. Francesco levou-os, ao aeroporto. Depois que se despediu dele, ela pôs-se a movimentar pela área de embarque com o bebê nos braços. Não deveria, mas seu coração desejou que Armani viesse se despedir dela. E até o último minuto, ela esperou. Mas ele não veio.
A recepção no Brasil foi calorosa. Todos a esperam no aeroporto: Isadora, os pais e os tios. Felipe estranhou um pouco o clima, mas nos braços dos familiares, encontrou o conforto que tanto apreciava. Tudo estava igual e ela adorou passar pela orla da praia de Camburi, pegar a terceira ponte, rever o Convento da Penha e desembarcar no apartamento em Itapuã.
_ Não há lugar melhor no mundo, que a casa da gente! _ Lia disse maravilhada._ Mesmo que só tenha dois quartos._ Completou rindo, abraçada a Isadora.
Os pais e os tios ficaram com ela aquela noite e no outro dia voltaram a Santa Teresa com a promessa de que ela e o bebê se juntariam a eles no final de semana.
Isadora, eufórica, passou o relatório das atividades da fábrica, nesses meses. Ela pode constatar que a confecção passava por um momento particularmente bom. Com a coleção praticamente toda vendida, a única sombra de dúvida ficava por conta do fato de estarem nas mãos de um único comprador: as lojas “A&G”. Não que elas tivessem algo a reclamar, pelo contrário, eram ótimos clientes e qualquer aumento na produção que Isadora, milagrosamente conseguisse, era imediatamente absorvido por eles. Lia tranqüilizou-a, a parceria estava funcionado perfeitamente e havia um velho ditado em que poderiam confiar: o negócio só é bom quando os dois lados ganham. Enquanto ambos estivessem lucrando, não haveria o que temer.
Contou a ela, sem entrar em detalhes pessoais, a proposta de trabalho feita por Armani:
_ E você não aceitou?! _ ela estava incrédula.
_ Eu não poderia deixar o Brasil, agora. _ Ela não conseguiu dar uma resposta mais convincente.
Isa percebeu que havia muito mais nas entrelinhas desta história. Mas não a forçaria a falar. Ela o faria quando se sentisse à vontade.
Mas a grande novidade ela deixou para o final do dia. Levou Lia para conhecer o novo apartamento em que iriam morar. Maior, com um quarto só para Felipe e totalmente mobiliado.
_ É lindo! _ Separar-se de Isadora era impensável e achou a idéia de um lugar maior e mais bem localizado, simplesmente maravilhosa. Isa providenciara uma pessoa totalmente confiável, para cuidar do bebê. Assim, ela poderia trabalhar tranqüila.
Tudo voltou ao normal, na rotina confortável, com apenas algumas significantes modificações: ela tinha Giullia, mesmo à distância e Felipe, que solicitava o tempo todo sua atenção.
Mais uma semana e a filha viria ao Brasil para iniciarem os preparativos do casamento. Feliz por terem se decidido fazê-lo em Santa Teresa, ela já reservara o hotel onde os noivos passariam a noite de núpcias.
Os manacás estavam perfumados e floridos. Os colibris faziam festa na janela do quarto antigo de Lia, ocupado provisoriamente pela filha, de onde se via o vale do Canaã, na cidade de Santa Teresa. As passagens estreitas e ensolaradas abrigavam os casarios que emprestavam ao lugar uma paisagem bucólica. Saudada nas ruas, pelos amigos e conhecidos dos avós e da mãe, pois todos conheciam sua história e de alguma maneira fizera parte dela, Giullia quase sentia-se parte daquele mundo. Ali havia muitas cores e muitos odores, ela gostava imensamente disso.
A última prova do vestido, havia sido feita. O arranjo de flores que ela levaria nas mãos, encomendado. A igreja, impecavelmente imaculada. O noivo devidamente nervoso e ela de pés no chão pisava a grama macia do jardim em frente à casa dos avós. Naquela rua, todas as casas cultivavam um canteiro, onde se encontrava uma variedade sem fim, de flores do campo.
A igreja, lotada de fiéis, aguardava a noiva, que não ousaria se atrasar um minuto sequer, depois das súplicas feitas pelo noivo inquieto.
Marília esperava no altar, juntamente com Francesco, visivelmente nervoso.
Muito próximo dela, encontrava-se Armani. Ela o vira ao entrar na igreja. Mais belo que nunca, ele sorriu quando ela passou de braços dados com o noivo. De relance ela viu, desaparecera aquela nuvem de tristeza que se descortinava em seus olhos. Os fantasmas que o rondavam, pareciam não mais assombrá-lo. Enfim ele perdoara a si mesmo.
Os olhos dele continuaram a buscá-la e nesse encontro ela soube de todas as promessas que ele indubitavelmente cumpriria, de todo prazer que ele seria capaz de faze-la sentir, de toda doçura que ela poderia experimentar e de toda felicidade que ela ainda iria se permitir.
E como um sonho bom, ela notou que ele se aproximava. E a mão dele tocou a dela num discreto entrelace de almas que se associam comungando os sentimentos, compartilhando os segredos mais íntimos.
_ Você é paixão para a vida inteira. _ Ele segredou ao ouvido dela. E ela acreditou.
A noiva surgiu ao lado de Nonno Carlos e juntos, ao som da marcha nupcial cantada em italiano, caminharam serenamente em direção ao altar.
Armani e Lia assistiam à cerimônia e naquele momento, todas as juras, confirmação dos compromissos e os laços que uniriam o jovem casal, de uma maneira muito particular, se referiam também aos dois que os observavam.
Felipe dormia tranqüilamente no colo de Isadora. Armani pegou o garoto nos braços e o trouxe para eles. Estavam completos agora.
A festa era pura animação. Depois de muita bebida, todos dançavam e cantavam as canções italianas. Adolfo e Arnaldo Martinelli não cabiam em si de tanta felicidade. Não escondiam isso enquanto serviam aos amigos, o melhor vinho.
Giovanna e Nonno Carlos, encantados se deixaram contagiar por toda aquela animação e relembrando os tempos de juventude ensinaram danças típicas aos moços da festa. E como é costume no interior, quem não dança segura criança. Coube a Angelina, tomar conta do aceso Felipe.
O casal dançava maravilhosamente bem, chamando a atenção de todos, que fascinados, paravam para vê-los deslizando pelo salão. Cheios de alegria, descobriam o quanto era agradável a companhia do outro. Afetos e interesses comuns os aproximavam neste momento. E assustados, percebiam o quanto mais poderiam se envolver no futuro.
_ É como recarregar as baterias. _ Ele riu animado, enquanto a tinha nos braços.
_ É o que eu chamaria de estar de bem com a vida. _ Ela tivera bons momentos, este, sem dúvida era um deles. Inesperadamente, beijou o rosto de Nonno Carlos. Surpreso, mas inegavelmente satisfeito, ele retribuiu beijando-a, respeitosamente na face.
A um canto, Francesco e Giullia e Isabela, assistiam à cena, entreolhando-se apaixonados pela idéia do que estaria surgindo entre Nonno Carlos e Giovanna.
Como crianças travessas, os noivos fugiram da festa sem avisar. Ficariam fora por alguns dias apenas e numa coisa eles concordavam: não eram bons em despedidas.
A pouco mais de cem quilômetros de Santa Teresa, entre o mar e o céu de um azul intenso, a ilha de Santa Cruz era indiscutivelmente, um pedaço do paraíso. Habitada por índios capixabas, vivendo em perfeita harmonia com a natureza e sobrevivendo com a pesca e turismo.
A escuna levando Francesco e Giullia, atracou na pequena marina da ilha e imediatamente, um casal de índios veio ajudá-los a desembarcar. Haviam passado a noite no hotel da cidade próxima dali e descansados, tinham partido bem cedo com destino à terra cercada de água por todos os lados.
O café da manhã, servido especialmente para o casal ilustre, sugeria capricho e atenção aos turistas, na confortável pousada à beira mar.
Descalços, os dois, pouco vestidos, enterravam os pés, enquanto caminhavam, na areia fina e branca da praia. Crianças indígenas brincavam nas pequenas ondas que quebravam jogando-as para fora d’água. Tartarugas marinhas, de todos os tamanhos tomavam banho de sol a apenas alguns metros, sem receio do homem.
_ O lugar perfeito para se viver um grande amor. _ O romance estava no ar que eles respiravam.
_ Devo considerar como uma proposta? _ Ela quis provocar.
Ele não estava para provocação. Ali mesmo, tomou-a nos braços e buscou seus lábios com paixão. O calor invadiu seus corpos e a intensidade daquele momento de amor, tinha somente o sol, como testemunha.
Armani trocava a frauda do bebê pela décima vez e cogitou se em um milhão de anos, poderia se considerar um expert no assunto. Marília saía do banho, naquele momento e ele não pode deixar de desejar que ela estivesse nua por baixo do roupão felpudo que usava. Aproximou-se dela no firme propósito de verificar. A meio caminho lembrou-se de Felipe e voltou para identificar a razão do súbito silêncio que ele fazia. Encontrou o pequeno anjo dormindo o sono dos justos. “A paz de criança dormindo” era uma dádiva dos céus aos pais apaixonados, ele constatou.
Carinhosa, ela abraçou Armani por trás, enquanto olhavam a criança adormecida:
_ Sempre serei grato a Giorgio pelo presente que nos deu._ Emocionado, ele falava do irmão pela primeira vez.
_ Éramos ótimos como amigos, mas provavelmente não seríamos grande coisa como marido e mulher. _ Ela eliminou qualquer resquício de dúvida que pudesse existir no coração dele.
O serviço de quarto daquele hotel cinco estrelas, entre as montanhas de Santa Teresa, onde Armani se hospedara, era excelente e o vinho excepcional. Brindaram às conquistas: grandes e pequenas, dando um sabor especial à vida.
Entregue em seus braços, ela sorriu de prazer ao sentir que ele percorria o caminho das aberturas do seu roupão e deslizava suavemente as mãos pela pele nua.
_ Penso nas armas que teria de usar para convencê-la a se casar comigo..._ Ele o disse maliciosamente.
_Por que não experimenta pedir? _ Ela sorriu ao dize-lo.
_ Posso fazer melhor do que isso. Eu imploro! _ Parecia mesmo resolvido a fazer o que dizia.
_ É incrível o que você pode fazer quando encontra em que acreditar.
Eles riam enquanto rolavam pela imensa cama de casal.
Neusa Jordem
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