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DILEMA DE MÉDICO / Frank G. Slaughter
DILEMA DE MÉDICO / Frank G. Slaughter

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DILEMA DE MÉDICO

 

Craig Thomas olhava da escadaria do hospital a rede geométrica das ruas, a falange precisa de prédios, cada um dos quais projetava um cotovelo de sombra com aprumo militar, vendo além deles as águas da baía banhadas pelo luar, muito mais repousantes para um olhar perturbado. A luz da entrada brilhava sobre as suas insígnias de major com o acréscimo do caduceu médico. O chefe do Serviço de Cirurgia do Campo era um homem alto e erecto, ao qual o uniforme militar se adaptara imediatamente sem reclamar qualquer mudança pronunciada da atitude habitual da cabeça, dos ombros ou do queixo. Parecia ter nascido oficial, em contraste com muitos dos médicos recém-comissionados, de larga cintura e andar desleixado, a quem os oficiais regulares do Exército viam passar, sacudindo a cabeça com ironia e tristeza. Mas o porte militar de Craig Thomas era um segredo pessoal. Adquirira-o na vida civil para dissimular fraquezas que o afligiam.

Um soldado que se aproximava da escada em passo negligente e de cabeça baixa, absorto em algum caso pessoal, olhou para cima e fez continência em súbita rigidez. Craig Thomas retribuiu com absoluta correção, a ponta do indicador tocando o quepe acima do olho direito e a mão como um rígido prolongamento do braço. Invejava às vezes a descansada e meio relutante continência de retribuição com que alguns oficiais manifestavam a própria superioridade. Mas ele não conseguia afetar essa displicência, pois durante muito tempo havia lutado contra ela. Entretanto, agradou-lhe que o soldado se houvesse perfilado instantaneamente, afastando-se depois, decerto com o coração a bater, lembrando-se do seu passo desleixado. Havia variações sutis na continência feita aos vários oficiais, ainda que a posição da mão fosse a mesma.

Mais uma vez, Craig Thomas tinha ficado ali a admirar a energia que criara aquele acampamento e o enchera de milhares de homens dinâmicos. Naquela noite, a simetria de negro e prata do campo fazia-o sentir a solidão.

Ouviu passos no caminho de saibro e um oficial robusto apareceu no cone de luz lançado pela lâmpada da entrada. O oficial parou e sorriu ao ver Craig Thomas. Havia uma atraente aspereza nas suas feições e os olhos alegres completavam o retrato de uma personalidade capaz de ajustar-se sem dificuldades em qualquer corrente humana e provar tudo o que houvesse de aproveitável nela.

Olá, Craig, disse ele, olhando a Lua? Craig sorriu.

Estava apenas pensando, Paul.

O Capitão Paul Blount aproximou-se dele.

Você já devia saber que isso é uma coisa que não se deve fazer no Exército. O que é preciso ser é um autómato alimentado pelos regulamentos militares e condicionado para nunca se esquecer de fazer continência a um superior.

E eu nunca me esqueço, disse Craig. Aonde é que vai?

Vou ao clube tomar uma cerveja. Quer-me fazer companhia?

Craig pareceu pensar antes de dar uma resposta, mas estava muito satisfeito com a companhia de Blount. Era o único homem que não ligava ao respeito devido à sua posição profissional. Tinha uma língua acerrada e um riso animado que agradavam a Craig Thomas.

Vá lá. Cerveja.

Os dois homens saíram juntos. Dobraram o canto do Edifício da Administração e entraram na rua que levava ao Clube dos Oficiais. Ouviram música e risos através das janelas abertas porque havia mulheres lá dentro. Nas sombras da vasta varanda, um casal que se abraçava separou-se discretamente e os dois oficiais entraram no clube sem dar a menor demonstração de que tinham visto alguma coisa.

Paul Blount cumprimentou com um sorriso um major de cabelos grisalhos em cujo uniforme havia o mesmo caduceu com asas do seu uniforme, indicando um médico da aviação.

Kelly e eu tivemos um caso difícil hoje de manhã, disse ele.

Não o deixamos levantar voo. Filho de um milionário de petróleo. Um futuro ás. Ou asno, dependendo do ponto de vista.

Que é que havia de errado com ele?

- Tudo. O equilíbrio era horrível e a percepção em profundidade, errada. Devia ter bebido demais na noite anterior.

Craig Thomas pensou de novo no telegrama que tinha no bolso e na carta que precisava reler.

Sou veterano em não saber o que devo fazer numa situação assim, disse ele, tomando o primeiro gole de cerveja. Que foi que você fez, Paul?

É claro que não tivemos dúvida alguma. A verdade é que já havíamos rejeitado o rapaz na semana passada. Mas o pai dele escreveu para o seu senador e o senador telefonou para o Departamento da Guerra. Quando a bola acabou de ser passada de mão em mão, veio cair em cima de mim.

Agiu de acordo com os regulamentos com certeza?

Claro que sim. Submetemos o rapaz a novo exame. Da primeira vez, ele se tinha mostrado arrogante. Hoje, estava evidentemente amedrontado. Tive pena dele, mas a situação era a mesma. O Major Kelley chegou e conferiu tudo, mas não adiantou nada. Se ele pegasse um avião, iria destruir propriedade do governo e deixar o pai sem filho. Tivemos de rejeitá-lo.

No fim, tudo vai dar certo. Esta noite, vai beber ainda mais e não saberá o que é cama. Depois, telefonará para o pai, o pai telefonará para o senador e o senador telefonará para o Departamento da Guerra.

E aí?

A bola será passada de novo e irá cair em cima de alguém. Nessa ocasião, pode ser que o rapaz se lembre do que foi que eu disse.

Deu conselhos a ele? Não acredito, Paul.

Conselhos não, que o Exército não nos paga para isso. Disse-lhe apenas que conhecia um piloto que dormia regularmente oito horas por dia, fazia três refeições regulares e bebia oito copos de água por dia sem gelo nem nada e pilotava uma porção de aparelhos. Ele me olhou com insolência, mas você vai ver se dará resultado ou não. O rapaz é louco por aviação e afinal de contas uma vida sadia não é um preço alto demais para se poder voar.

Sei perfeitamente como é, disse Craig. Meu irmão Larry foi comissionado na semana passada e é louco assim pela aviação.

Onde é que ele está estacionado?

Vem para cá.

Cuidarei dele, disse Blount, pediu outra cerveja e acrescentou rindo: Com o devido respeito pela propriedade do governo, é claro, Craig.

Sem dúvida, disse Craig. Mas eu preferia que ele não viesse para cá. Quero vê-lo, mas já olhei demais por ele.

Você era o irmão importante?

Não. Com Larry, não.

Craig Thomas sorriu. Isso lhe dissipou as rugas de concentração que tinha quase sempre entre os olhos e o faziam parecer ter mais do que os seus trinta e seis anos. Mas o sorriso desapareceu e a concentração voltou. Havia um ponto doloroso na pergunta pilhérica de Blount. Nunca deixava de haver uma divergência quando um irmão mais moço olhava para o mais velho. Larry ainda era muitas das coisas das quais Craig se havia livrado por disciplina.

Recostou-se na cadeira e olhou para os sorridentes oficiais com as esposas e as namoradas, todos alegres e cordiais. Havia mais risos de uniforme do que à paisana e entre as mulheres os pulsos batiam mais rapidamente e havia mais olhos cintilantes, porque a guerra lançava o desafio absorvente do tempo. Alguns grupos se encostavam ao balcão do bar, outros dançavam em formação de ordem unida até à varanda, onde alguns casais olhavam a Lua num silêncio imemorial.

É verdade, disse ele. Quando se trata de Larry, pareço até uma galinha com o seu pintinho.

Paul Blount sorriu.

Deve ser o que se poderia chamar de complexo de maternidade. Seria bom você fazer um exame completo de suas glândulas. Talvez seja isso.

Como? exclamou Craig, levantando os olhos da toalha da mesa onde havia traçado o caduceu com as asas e as serpentes enroscadas, antigo símbolo de Hermes, deus dos truques e da ciência.

Estou dizendo é que você precisa dar um pouco mais de folga aos seus hormônios.

Lá vem você de novo.

Mas é claro. O seu sistema glandular é um número permanente de equilibrismo, mas não dá resultado. Você acaba caindo na rotina ou em coisa pior, se é que me está entendendo.

Entendo perfeitamente, velho devasso, disse Craig.

O sistema do choque insulínico pode produzir loucura.

Mas eu tenho o juízo perfeito.

É o que você pensa. Ter essa certeza é apenas um sintoma do seu estado mental, meu caro. Quem não sai dos seus cuidados de vez em quando para seguir alguma coisinha linda e bamboleante metida num uniforme branco não pode estar no seu juízo perfeito.

Quer dizer então que você está em seu juízo perfeito? Perguntou zombeteiramente Craig.

Sem dúvida alguma. Quando vejo alguma coisa assim, as minhas glândulas levam um choque que as põe todas em atividade, da epífise às gônadas. Alguma coisa dentro de mim diz: ”Vá em frente, rapaz, e eu...

Eu sei, disse Craig, rindo. Você não faz por menos. Blount assumiu uma expressão de falsa modéstia.

Nem sempre. Mas às vezes tenho sorte.

Claro. E quanto ao casamento? As suas intenções nunca tomaram esse rumo honesto?

Sem dúvida. Sei que algum dia me casarei e botarei no mundo os meninos mais levados da rua. Mas até minhas glândulas...

Muito bem, Paul, disse Craig, rindo. Mas que espécie de marido você acha que será?

O sonho de uma sogra. Firme e dedicado. Deixarei que os filhos me puxem os cabelos e até me metam os dedos nos olhos. E fiel, sem dúvida alguma, fiel.

Está aí uma coisa que eu quero ver. Mas a verdade é que Larry não esperou como você. Acaba de se casar.

A expressão de Blount foi de genuíno prazer.

Ótimo isso! Receber as asas do breve e ganhar uma mulher ao mesmo tempo! Você devia estar-se sentindo... Mas estou vendo que não...

Bem, orgulho-me dele. As asas, sim. Ele nasceu para isso. Mas uma mulher, não sei...

Ora, as mulheres pensam que todos os homens nasceram para elas também. Às vezes, um homem como você as desmente, guardando as glândulas na geladeira, mas paga caro por isso. Temos de oferecer um bom jantar ao rapaz. Tenho de comprar flores para a noiva. Você a conhece?

Conheço, disse Craig vagamente. Ela e Larry se criaram juntos.

Isso é um fator decisivo para um casamento feliz. Ao menos, nos romances.

Eu era interno num hospital, logo depois da formatura. Lembro-me de que Larry uma vez arrebentou a bicicleta dela, disse Craig, sorrindo. Ela deve tê-lo perdoado. A última vez que a vi era uma garotinha de pernas compridas.

E com aparelho nos dentes, bem se lembrava. Cabelos pretos em tranças. Isso devia ter sido uns dez anos antes, quando ela tinha treze anos. Mas ela não podia ter já vinte e três anos. O tempo não podia correr tanto assim. Tive paixão pela irmã dela, acrescentou.

Sério? exclamou Blount, com os olhos cheios de interesse. E ainda tem esperanças?

Nada disso. Ela se casou com o filho do dono da fábrica de móveis. Lembro-me até de que na hora do casamento eu estava na sala de operação cosendo um bêbado que levou uma queda com uma garrafa no bolso das calças.

Mas ainda se lembrava do choque experimentado quando ela havia deixado de escrever-lhe. Começou a analisar-se cheio de curiosidade, como se se tratasse de outra pessoa. Seria por isso que como Paul Blount sugeria ele desde então não tivera para com as mulheres mais do que uma polidez cheia de reservas? Era uma tolice. Lembrava-se dos talhos nas nádegas do bêbado com mais clareza do que se lembrava do rosto dela.

Craig pegou o copo de cerveja e lembrou-se do cabo estóico que havia operado aquela manhã. O homem devia ter sofrido consideravelmente. Talvez ele não fosse pessoalmente capaz de tanta resistência. No seu caso, a sensibilidade se havia cristalizado numa espécie de frio e exato profissionalismo, que lhe ganhara a reputação de operador sem nervos.

Pensou nas variadas intervenções que teria de executar em breve, com o exército em manobras. Começariam a chegar a qualquer dia: fraturas, ferimentos infeccionados, queimaduras, algumas lesões terríveis nos pontos onde a lagarta de um tanque havia entrado em contato com a carne humana. Haveria então o serviço para ele: trabalhos de reconstrução, nos quais enxertaria ossos nos pontos em que os fragmentos rompiam a carne e se perdiam, enxertos que formariam uma armação através da qual se estenderiam osteoblastos e osteoclastos, os ativos operários da reconstituição óssea, restaurando funções úteis. Lembrava-se perfeitamente do tempo em que a perda de substância óssea significava a amputação em vista da infecção, em que enxertar num campo tomado pelo pus era trabalho inútil e até temerário, pois poderia ativar os temíveis destruidores latentes da gangrena gasosa. Mas a cirurgia passara por uma transformação radical no dia em que os químicos alemães haviam afinal entregue relutantemente ao mundo a fórmula mágica da sulfanilamida, que haviam guardado em segredo durante quase três anos à espera de uma patente que lhes desse exclusividade.

Ou podia haver mais problemas como o rosto despedaçado do rapaz cujo tanque havia batido numa árvore a toda velocidade, jogando-lhe o rosto com força contra a coronha da arma com a qual estava apontando, despedaçando o malar na superfície externa do maxilar superior.

Com licença?

Um homem alto e magro com um fio de bigode castanho chegara à mesa, em companhia de uma mulher esbelta com grandes olhos luminosos.

Craig Thomas e Paul Blount se levantaram, sorrindo. O homem tinha nos ombros as folhas de prata de um tenente-coronel e no peito as asas de prata de piloto.

Coronel Flynn, Major Thomas, disse Paul Blount, fazendo a apresentação com uma inclinação de cabeça para a mulher.

Major Thomas, Capitão Blount, Sra. Flynn, disse o oficial aviador. Não conhecia ainda o Major Thomas. Mas gostei muito do que fez para nós no caso do O’Connel.

A Sra. Flynn se sentou ao lado de Craig e disse:

O Exército deve estar muito feliz em ter o Major Thomas. Sem dúvida, faz muita falta na sua clínica, mas torna a guerra mais segura para todos nós.

Craig Thomas se refugiou na grave cortesia com que defendia a sua timidez das mulheres e do impulsivo interesse que elas sentiam por qualquer médico, mas que, quase sempre, parecia torná-las ainda mais empenhadas em impressioná-lo.

Muito obrigado, disse ele. Mas o Exército nos dá muito também. Tivemos sorte no caso de O’Connel, acrescentou, olhando para Blount. Laceração do braço, com corte do nervo radial logo acima do cotovelo.

Não, exclamou Blount, a sorte não regula numa operação dessa espécie. É preciso uma mão muito hábil para encontrar o nervo e ligá-lo.

Devemos então alguma coisa ao Major Thomas, disse Flynn. O’Connel é um dos nossos melhores instrutores. Já voltou ao serviço.

Está então completamente recuperado? perguntou Craig.

Ainda outro dia vi-o jogar basebol, disse Flynn, sorrindo. E arremessava a bola com aquele braço.

Isso é que é trabalho que valha a pena, disse Blount, com um sorriso para a Sra. Flynn. Reconstitua as pessoas, tirar alguma coisa do nada. Enquanto isso, que é que eu faço? Rodo as pessoas em cadeiras de barbeiro e jogo-lhes água fria nos ouvidos. Isso quando não as mando ler as letras miúdas de um cartaz.

Creio que subestima a importância do seu trabalho, disse o Coronel Flynn. A medicina tem feito importantes contribuições à aviação.

Paul não está sendo sincero, explicou Craig Thomas. Na realidade, o que mais lhe agrada é falar sobre o seu trabalho. Devia ouvi-lo falar da teoria que tem sobre a pré-oxigenação.

Pois eu gostaria de ouvi-lo falar sobre isso, disse Flynn. Paul Blount pareceu meio constrangido.

Não sei se vai dar resultado ou não, mas estou trabalhando num novo processo de oxigenação, que aumentará o nível de oxigénio no sangue do piloto mediante inalação antes da decolagem. Isso poderia contrabalançar os efeitos de uma ascensão muito rápida.

Parece-me uma ideia muito boa, disse o Coronel, principalmente agora com os novos caças que sobem como um anjo que volta para o céu.

É isso mesmo, continuou Blount. Sobem mais depressa, do que o organismo pode adaptar-se à alteração na tensão do oxigénio. O piloto não sente que esteja precisando de oxigénio, mas apesar disso o cérebro não recebe oxigénio em quantidade suficiente para funcionar perfeitamente.

E isso numa ocasião em que o piloto está executando uma missão importante que exige o pleno uso de todas as suas faculdades mentais, disse Craig, consciente de que a Sra. Flynn o observava com mais interesse do que seguia a conversa.

Exatamente, disse Paul, voltando-se para o coronel. Não há em geral um breve período de preparação entre o primeiro alarma e o tempo em que se sabe exatamente para onde devem ir os aviões?

Flynn fez um sinal afirmativo.

Com o sistema novo de alarma aéreo que temos, pode haver um intervalo de cinco a vinte minutos.

Os pilotos poderiam então submeter-se à pré-oxigenação nesse período e, quando subissem, já estariam prontos.

Sabe que é muito convincente? disse Flynn. Já falou a esse respeito com o seu oficial superior?

Não, disse Blount, sacudindo a cabeça. Por ora, não passa de uma hipótese.

Mas muito interessante. Eu falarei pessoalmente com ele.

Para mím, disse a Sra. Flynn a Craig, o lado mais interessante da guerra é o trabalho que o senhor faz, Major Thomas.

Havia nos olhos dela um tom maternal, como é comum nas esposas de oficiais comandantes que resolvem representar o lado humano e cultural das autocracias que seus maridos dirigem. E Craig viu surgir nela o crescente desejo de mencionar mais tarde, quando houvesse maior intimidade, alguns dos sintomas perturbadores que ela vinha experimentando. Mas tudo isso fazia parte do jogo.

Temos também a nossa lista de insucessos, Sra. Flynn, disse ele e acrescentou gravemente: Muitos deles.

A preocupação contorceu as feições do coronel.

Temos tido uma porção de pequenos acidentes ultimamente. Coisas sem muita importância. Os pilotos são muito jovens. Ainda me lembro do primeiro avião que pilotei. Era uma carroça velha muito diferente dos aparelhos que temos atualmente.

E por isso mesmo mais perigosos, disse Paul Blount. Esses rapazes saem agora montados em verdadeiros coriscos.

Quando se entrega a um jovem impetuoso e entusiástico um avião moderno cheio de força há uma combinação muito interessante. Os rapazes não podem deixar de tentar coisas. É uma coisa com que contamos, aliás. Mas de vez em quando não pode deixar de haver um acidente.

Não é possível proibir acrobacias ou pelo menos a transgressão de algumas regras de segurança?

Talvez. Mas temos de manter um meio-termo entre a segurança e a imprudência. Não podemos fazer coisa alguma capaz de quebrar o entusiasmo dos nossos jovens pilotos. Depois de dizer isso, franziu a testa. Não vi um nome como o seu na ordem especial de hoje?

Meu irmão. É justamente um rapaz como esses de que estamos falando.

Será então um grande aviador. É dessa massa que eles se fazem. É um prazer tê-lo aqui conosco, disse ele a Craig com um sorriso.

Estava falando de acidentes, Coronel, disse Paul.

É verdade. Tem havido pequenas coisas como uma hélice que deixa de variar o passo corretamente. Ainda outro dia, os flaps de um rapaz enguiçaram e ele ultrapassou o campo. Felizmente, recuperou-se e desceu com mais lentidão da segunda vez. Hoje de manhã, um controle de lente se quebrou quando um dos alunos levantava voo. Mas, felizmente também, teve apenas escoriações.

Gostaria de poder ajudá-lo, disse Paul Blount. O Coronel Flynn sorriu e levantou-se.

Esse é o meu serviço. Continue no seu de nos dizer quando os homens não têm aptidão para o voo. Depois disso, tomarei nota deles. Tive muito prazer em conhecê-lo, Major Thomas.

A pequena Sra. Flynn formava um contraste interessante com o marido altíssimo.

Toda essa conversa foi muito interessante, disse ela. Ambos devem ir tomar chá conosco.

É um verdadeiro piloto, disse Paul Blount cheio de admiração enquanto o casal se afastava por entre as mesas. Faz esses outros parecerem simples crianças.

Ele pensa que poderá controlar Larry. Eu, que sou eu, só tenho conseguido isso muito raramente.

Ora, o casamento dará jeito nele. Depois, mandá-lo-ão para o estrangeiro e você terá de ser papai para a mulher e os filhos dele.

Craig riu e fez sinal ao garçom pedindo a conta.

Quer mesmo fazer de mim um pai de família por bem ou por mal, não é, Paul? Já pensou que talvez me mandem para o estrangeiro também?

Nem sonhe com isso, que você está velho demais. Guerra é para gente moça como eu. Os velhotes como você ficam por aqui mesmo e ganham todas as promoções.

Saíram do clube e caminharam até ao hospital onde Craig se despediu de Blount. Não sabia de outro homem tão repousante para ele quanto Blount. Entrou no deserto Edifício da Administração e percorreu vários dos corredores que ligavam as enfermarias com a entrada de acidentados. Viu uma ambulância com a cruz vermelha, da qual estavam tirando um homem numa maca. Teve vontade de atender o homem e examiná-lo imediatamente, mas se conteve.

O jovem tenente, que era oficial de dia, levantou-se e cumprimentou-o:

Boa noite, Major.

Boa noite, Cook, disse Craig, deixando de propósito de olhar para o paciente, porque tinha deixado Cook como encarregado.

Tudo em ordem, disse o tenente. Só este caso de fratura do rádio, acrescentou, mostrando o pulso do paciente, cuja deformidade não dava margem a dúvidas. Vou dar-lhe uma injeção intravenosa de pentotal e reduzir isso aqui mesmo antes de mandá-lo para a enfermaria.

O Major Thomas fez um sinal de aquiescência e se encaminhou para a porta. A primeira vez em que o Tenente Cook se havia apresentado para o serviço, era um jovem nervoso e incerto. A sua transformação naquele oficial calmo que assumia a responsabilidade por quinhentos casos de cirurgia durante a noite era uma coisa confortadora.

Craig foi ver o cabo cuja úlcera perfurada havia operado na manhã daquele dia. Era um robusto rapaz de origem norueguesa, que havia suportado a dor durante dezesseis horas antes de apresentar-se para baixar à enfermaria. Daí por diante, havia marchado sem qualquer demora para a sala de operação e devia estar fora de perigo. Essa resistência quase sobre-humana enchera de admiração Craig que se sabia incapaz disso e o havia operado com tão extenso cuidado que, depois, havia andado muito tempo pelos terrenos do hospital, procurando acalmar-se.

O cabo olhou-o com os olhos carregados de morfina.

Quando é que me posso levantar, Major? perguntou ele.

Vai indo muito bem, disse Craig. E é um bom soldado, muito bom mesmo. Vendo a gratidão brilhar nos olhos dopados, deu boa noite e afastou-se.

Havia muito, aprendera a disciplinar-se para não partilhar das emoções dos seus doentes.

Craig foi para o seu quarto, que nada tinha de pretensioso. Um lambris sobre a parede era o único esforço para alguma decoração interior e o banheiro era comum a todo o corredor. Os seus livros prediletos estavam nas estantes ao lado das janelas, com um volume de Chaucer imprensado entre a Anatomia Cirúrgica, de Callander, e o novo manual militar de Cirurgia Plástica e Maxilofacial. Acendeu a luz perto da cabeceira da cama. Indo até à janela, olhou os amplos gramados que se estendiam até à praia, talvez a uns quinze metros de distância. O vento soprava suavemente pela janela e Craig abriu a gravata e o colarinho, satisfeito. Pensou em Larry, que naquele momento viajava para o Sul de trem com a mulher. Seria muito bom vê-los. Agora que estava casado, Larry se encontrava nas mãos da mulher e a sua responsabilidade de olhar por um potro selvagem como era o irmão estava encerrada. A irresponsabilidade que Craig às vezes invejava seria o problema da moça, se Larry não mudasse com o casamento. Entretanto, não sentia com isso qualquer alívio, mas apenas vaga perturbação que o dominara desde que soubera do acontecido ao seu interesse humano mais próximo.

Despiu-se lentamente e deitou-se. A cama rangeu e as molas soaram a cada movimento seu, mas tinha de dormir ali tão profundamente como sempre lhe acontecia. No dia seguinte, tinha uma operação plástica para fazer. Planejara-a durante muito tempo e acreditava que estava no rumo certo. O trem de Larry só chegaria no princípio da tarde. Iria esperá-lo se não houvesse contratempos.

Apanhou os papéis que tinha tirado e colocado em cima da mesa quando se despira. No telegrama, podia perceber, através das palavras, o sorriso de Larry quando o havia redigido:

”Chegarei amanhã para servir Campo Minafer. Irei com minha esposa Jean Halstead. Larry”.

Craig sentiu satisfação com a arrogante alegria que transparecia do telegrama. Era o primeiro telegrama de Larry que não lhe trazia aborrecimentos.

A carta era escrita numa caligrafia clara e miúda e Craig tornou a lê-la atentamente. Dizia o seguinte:

”Meu caro Craig:

Sem dúvida, já deve ter sido avisado por seu irmão Larry do casamento dele com Jean. Mandamos aos dois um telegrama com os nossos melhores votos e agora lhe estou escrevendo. Saber que ele foi destacado para o mesmo campo onde você serve foi uma coisa que nos tranquilizou muito, a minha mulher e a mim. Esperamos confiantemente grandes coisas de Larry como piloto e sabemos que ele fará tudo o que for possível para ajustar-se às responsabilidades novas que vai assumir e temos toda a confiança na sua ajuda e influência, que sempre foram para o bem dele.

Craig disse de repente um nome feio e continuou a ler:

Nestes tempos confusos, parece difícil desejar a alguém uma vida conjugal longa e feliz, mas é esse o nosso mais sincero desejo para ambos. Jean é uma moça ajuizada e desempenhará o papel que lhe cabe.

Todos nos sentimos orgulhosos com o trabalho que você vem fazendo e lhe desejamos muita felicidade.

Sinceramente seu, Richard F. Halstead”

Craig jogou a carta em cima da mesa. Lembrava-se perfeitamente de Halstead, sempre bem vestido e de rosto rosado, que não se cansava de admirar as trinta e oito ou quarenta e nove espécies de árvores que lhe enchiam o magnífico jardim. Mas Craig estava com pouca paciência com Halstead.

O homem de rosto rosado conseguira um genro impetuoso, e a filha dele tinha um marido que era considerado irresistível por muitas mulheres. Tinham sem dúvida muita sorte.

Através do campo, ouviu-se o toque de silêncio e Craig apagou a luz. O que havia com Larry era uma impulsiva ausência de inibições, exatamente o contrário do que acontecia a Craig Thomas. Larry não estava preso a coisa alguma, como ele que fizera da cirurgia a paixão de sua vida. Larry era uma ave de arribação e nada havia de mais apropriado para ele do que usar asas.

Pouco depois, o Major Thomas dormia.

Os olhos do homem estavam cobertos para que ele não visse o rosto do operador ou seguisse o bisturi com os olhos arregalados de um carniceiro que sente uma faca no pescoço.

Está doendo? perguntou Craig Thomas.

Um pouco, resmungou o soldado. Mas não se importe comigo, Doutor... quer dizer, Major.

Havia um toque de animação na voz, como se o homem quisesse sorrir. Mas não podia sorrir porque os lábios deformados por um velho desastre de jipe eram mais horrorosos em movimento do que em repouso. O homem tinha sido quase um caso psiquiátrico quando Craig se encarregara da tarefa de recompor-lhe a boca.

Na primeira vez em que o examinara, o rapaz procurara defender-se dentro de uma morna apatia e lhe dissera:

Não perca tempo, Doutor. Estou massacrado mesmo.

O Major Thomas não simpatizara com ele. Conteve o impulso raivoso de replicar, sabendo que isso lhe enfraqueceria a autoridade. Queria mandar embora o soldado, mas sabia que a sua deformação psíquica era uma consequência da deformação do rosto. Apesar disso, antipatizava tanto com os doentes revoltados, que quebrou uma das suas regras e discutiu o caso com o sargento que comandava o destacamento à disposição da sala de operações, dizendo calmamente como se o soldado não estivesse presente:

O homem é válido. O Exército deveria adotar um critério mais firme nestes casos. Colocar um homem na enfermaria e fazê-lo gastar o tempo do Exército só para que ele se torne um soldado bonito pode ser justificado, mas não para mim.

Foi o Exército que fez isso comigo! exclamou exaltadamente o soldado. Defenda a sua pátria! A pátria que vá para o diabo!

Um major não podia tolerar que alguém falasse assim, mas o homem estava num estado de extrema exaltação e Craig continuou a falar com o sargento.

O êxito neste caso é problemático. Só se justificaria no caso de um bom soldado. Peça a ficha de serviço dele e me traga de novo o caso a exame na semana que vem. Pode chamar o outro caso.

Não interessa a minha ficha! gritou o homem, mas quando Craig se voltou para olhá-lo, a voz dele foi agitada por intenso desespero. Pelo amor de Deus, doutor! Se pode dar um jeito em meu rosto, não deixe de dar! Se me fizer de novo um homem apresentável, prometo que serei um herói como vem nos livros! Pelo amor de Deus, Doutor!

Major, disse Craig severamente. Major!

O caso tinha apresentado dificuldades que deixavam Craig confuso, mas o doente vinha suportando pacientemente o longo processo de reparação. E assim, Craig acabara por gostar dele.

Vou aplicar mais novocaína, disse ele.

Mas isso devia ser feito com muito cuidado, desde que uma anestesia excessiva afetava os tecidos e as linhas de incisão poderiam cair onde não deviam. O maxilar inferior mostrou sob o bisturi uma abertura em forma de losango, uma parte enxertada com um fragmento de mucosa. Craig colocara-o ali, adaptando-o ao tecido vivo, como um marceneiro que ajusta as peças de um móvel.

Quando acabou de suturar o enxerto, aplicou várias camadas de tintura aromática de benjoim evaporada, até formar um xarope grosso que se secava numa crosta anti-séptica, protegendo as bordas do enxerto da irritação da saliva.

Já perdeu a sua velha cicatriz, disse Craig tirando as luvas, enquanto o soldado estalava os dedos. Agora, terá de ter calma um dia ou dois, até tirarmos os curativos.

Obrigado, Major, disse o homem. Já estou habituado a ter calma.

Craig voltou-se para o tenente que assistira a tudo com olhos atentos e cheios de admiração e disse para ser ouvido pelo soldado:

Este caso está quase encerrado. Vai ficar com um aspecto ainda melhor do que dantes.

O jovem tenente saiu com ele da sala de operação e disse:

O seu trabalho foi brilhante, Major.

Craig franziu a testa. Não gostava de agradecimentos, nem de elogios. Nesse momento, a encarregada da sala de operação apareceu. A luz brilhava nas suas barras de segundo tenente e no caduceu de ouro de enfermeira na gola do seu uniforme branco.

Vai usar algodão ou seda naquele caso de hérnia, Major perguntou ela.

Algodão, disse Craig. Prepare tudo para as nove horas. Craig Thomas saiu pelos corredores do hospital. Havia quase um

quilómetro de um extremo a outro dos pavilhões e isso representava apenas um terço do hospital. Todos os hospitais do Exército eram construídos quase da mesma forma, nesse estilo de pavilhões: uma fila de enfermarias para cirurgia, com um edifício mais longo inteiramente cheio de salas de operação, outro com as salas de radiografia e ainda outros para os laboratórios e as clínicas de otorrinolaringologia. Todas as enfermarias eram muito parecidas, alguns quartos particulares ao lado da longa enfermaria com as suas filas de camas, cada qual com roupão e toalhas pendurados nos cabides ao lado, os chinelos sob a mesinha de cabeceira e as colchas dobradas de modo que só se vissem os quinze centímetros de lençol prescritos pelo regulamento. Os pisos lavados diariamente estavam sempre irrepreensivelmente limpos e as varandas com poltronas de vime e mesas de jogo completavam o quadro. Todas as pessoas que não estavam doentes demais trabalhavam, mesmo no hospital, e graças a isso aquelas estruturas de paredes de pinho viviam tão limpas quanto um hospital civil ou mais limpas ainda.

Às vezes, Craig se lembrava com um sentimento pungente da sua clínica particular. A princípio, tinha julgado que fizera um grande sacrifício, trocando o seu consultório confortável e luxuoso por um escritório espartano do Exército, com uma mesa pequena de carvalho - a do consultório tinha sido de mogno, grande e antiga com duas cadeiras de madeira e uma máquina de escrever a um canto. O sentimento não era de arrependimento, embora a sua clientela fosse do tipo de considerar-se frustrada e duvidar da sua competência se não tivesse de pagar muito dinheiro pelo tratamento. O gosto dos clientes, que nenhuma relação tinham com o seu critério médico direto e honesto, tinha governado o seu consultório - a recepcionista muito bem-educada, que não era nem muito moça, nem bonita demais, os tapetes grossos, a sala de exames, o armário e as cadeiras que tinham custado oitocentos dólares, o sistema de interfone e a sala de vestir das clientes, feita por um decorador em rosa e alfazema. Era paradoxal que a sua reputação, embora baseada na honestidade e na competência, tivesse exigido tanta diplomacia e traquejo social. No consultório, um trabalho como o que fizera para o jovem soldado custaria no mínimo mil dólares.

Os doentes que andavam pelos corredores com os roupões de banho do hospital, com as letras M.D. U.S.A. (Serviço Médico dos Estados Unidos) estampadas no peito esquerdo, pijamas cinzentos e chinelos constituíam um material mais forte e fisicamente mais responsável para trabalhar. Tinha recordações desagradáveis de doentes ricos e excêntricos que podiam com a mesma displicência aumentar ou afetar o seu prestígio. Tinha sido um conforto descobrir no serviço do Exército que podia tratar dos problemas médicos exclusivamente como problemas médicos.

Craig almoçou um sanduíche e um copo de leite na cantina repleta. De uma grande caixa que lembrava uma mesquita mourisca, saía uma música ruidosa, ao mesmo tempo que, acima dela, um aparelho de televisão passava um filme. Oficiais e soldados estavam sentados indiscriminadamente às mesas, pois a cantina pertencia a todos. Muitos homens usavam os macacões marrons, de rigor para os convalescentes, e já estavam evidentemente enfastiados de nada fazer, impacientes pela sua volta ao serviço ativo. Muitos deles se esforçaram por surpreender o olhar de Craig e dar-lhe um sorridente cumprimento. Respondia, quase sempre sem se lembrar do nome, nem do rosto, ainda que fosse capaz de reconhecê-los pela carta da febre ou pelas incisões.

Quando chegou à estação, soube que o trem estava atrasado. Era bastante natural em tempo de guerra com os movimentos de tropas e Craig aproveitou para telefonar para o hospital e saber como estava passando o homem que operara naquela manhã. Quando voltou para o seu carro, deparou com o carro do Coronel Flynn estacionado ao lado, com a Sra. Flynn sentada no banco de trás.

Major Thomas! exclamou ela, abrindo a porta para que ele entrasse. Que agradável surpresa! Veio esperar alguém também?

Meu irmão Larry.

Ah, sim. Agora me lembro.

Vem com a esposa, disse Craig, sorrindo.

Há quanto tempo estão casados?

Na realidade, não sabia, mas não devia ter mais de uma semana.

Há alguns dias.

Os olhos da Sra. Flynn se voltaram para o teto do carro.

Que maravilha! Espero que o casal seja muito feliz aqui. Onde é que se vão hospedar?

Não sei se já tomaram alguma providência nesse sentido.

Não me diga! exclamou ela. Não deve saber disso sendo solteiro, mas há tão poucos lugares... E ainda mais para uma recémcasada. É muito grande a falta de apartamentos. Mas vou ver o que posso fazer...

O trem ia chegando. Craig Thomas ajudou-a a sair do carro.

Tenho de apressar-me, disse ela, deixando-o. Vim esperar minha sobrinha. Tem apenas quatorze anos e ficará desorientada se não houver alguém à sua espera.

Civis, com o predomínio de mulheres, chegavam para visitar parentes no campo e muitos soldados voltavam das suas licenças. A alguma distância, no ponto onde estavam desembarcando os passageiros do Pullman, Craig avistou Larry com o quepe de banda. Quando se aproximou, estavam cuidando da bagagem estendida no chão da plataforma e olhavam para o outro lado.

Larry, homem alto e de ombros largos, estava com a mão no braço da moça. E Craig Thomas se lembrou de que todos os Halsteads eram um pouco mais altos do que a média. Ela tinha pernas firmes e por baixo de um chapeuzinho absurdo cabelos castanhos encaracolados com um tom avermelhado. Desde que as costas de uma pessoa são quase sempre muito expressivas, notou com satisfação a pose gentil dos ombros dela e o bem feito costume.

Larry! disse ele.

Oh, aqui está ele. Estávamos esperando que você aparecesse. Jean, lembra-se de Craig? E Larry, apertando vigorosamente a mão de Craig, exclamou com um traço de amistosa zombaria: Alo, Doutor!

Lembra-se de mim, Craig? perguntou a moça.

A voz tinha um tom quente e cheio que de algum modo contrastava com a sorridente tranquilidade dos grandes olhos cinzentos.

Não, não me lembro, sinceramente, disse Craig Thomas, sentindo que errara em haver falado assim, mas que ela era muito diferente da mocinha magra de voz estridente que ele havia esperado. Não me lembro absolutamente.

Teve uma pronta impressão de sensibilidade nela. Os olhos da moça mostraram uma decepção que logo se desvaneceu. Craig arrependeu-se da falta de tato das suas palavras e do rigoroso exame a que habitualmente submetia as pessoas.

Esta aqui é Jean Halstead, disse Larry. Aposto que Craig estava esperando a edição de 1930.

Lembro-me é de uma meninazinha de tranças, disse Craig. Absteve-se de mencionar outras coisas de que se lembrava, como as pernas compridas e o aparelho nos dentes. O sorriso de Jean mostrou os mesmos dentes, já então perfeitos, e as recordações de Craig se completaram. Desde menina, ela tivera aqueles olhos grandes e expressivos.

Gostaria de levar vocês dois para um coquetel, disse Craig.

Se é receita de médico, vamos lá, disse Larry, sorrindo.

Quero saber como foi que tudo aconteceu... o casamento e tudo mais.

Procuraremos explicar, não é mesmo, Larry?

Quando Jean se voltava para o marido sorridente, o olhar dela se fixou um instante no ponto que Craig havia notado abaixo do seu olho esquerdo. Observando-a, Craig viu que o luminoso sorriso de Jean não se toldara, mas que havia nele um toque de preocupação. Larry tinha uma contusão que se espalhava pela maçã do rosto e aparecia azulada perto do olho. O local estava coberto de pó, o qual não dissimulava muito a contusão mas mostrava que se havia procurado dissimulá-la. Uma pessoa sem linha poderia dizer que se tratava de um olho arroxeado em consequência de um soco. Craig baixou o olhar para a bagagem quando Larry o olhou com um ar de truculência. Guiou-os para o carro, levando nos ouvidos o agradecimento da moça, ”Obrigada, Craig”, quando ele lhe pegou as malas.

Jean Halstead, pensou ele. Jean Halstead... Era incrível. Parecia até que ninguém nunca lhe agradecera coisa alguma. Estranhou aquela inquietação e procurou ver se descobria o que a havia causado. Pensou na contusão de Larry e no que podia ser feito para atenuá-la prontamente, pois era evidentemente a marca de uma pancada e qualquer oficial a quem ele se apresentasse não teria dúvidas a esse respeito. Entretanto, Larry e a esposa não pareciam tomar conhecimento disso. Ela era decerto capaz de manter uma distinção impecável, mas tinha havido aquela leve nuvem em seu sorriso.

Craig chegou à conclusão de que poderia conseguir que Larry fosse declarado inapto para o serviço por dois ou três dias, ainda que Larry não pudesse deixar de apresentar-se ao oficial-de-dia. Não estava dentro das suas atribuições declará-lo inapto para o serviço, isso cabia à autoridade administrativa, que era o Major Brockton mas bastaria uma palavra dele ao Major Brockton para resolver o caso quase sem explicações. Isso forçaria Craig a transpor limites que até então havia zelosamente respeitado. Mas chegou à conclusão de que isso não tinha a menor importância e sentiu-se imensamente feliz. Lembrou-se então da Sra. Flynn no carro do coronel. Para dar-lhe tempo de sair, fez Jean e Larry pararem diante da estação.

Tenho um telefonema urgente para dar. Não levarei nem um minuto. Querem ter a bondade de esperar?

Dentro da cabina fechada, ficou a observá-los. Não tinha para quem telefonar, mas ainda assim permaneceu na cabina. Ocorreu-lhe então que na ordenada precisão das suas atividades jamais fizera uma coisa tão ilógica. Os dois formavam um belo casal, apesar da contusão no rosto de Larry. Tirando do bolso o isqueiro, Larry acendeu um cigarro. Jean disse-lhe alguma coisa com um sorriso e voltou à sua graciosa atitude de espera. Mas batia levemente com a ponta do pé. Parecia-se um pouco com a irmã já meio esquecida, mas Bet nunca tivera aquela voz emocionante, nem a profundidade daquele olhar. Larry era escandalosamente feliz. Quanto tempo poderia durar um telefonema? Larry tinha acabado de fumar o seu cigarro e Craig saiu da cabina.

Viu uma mocinha magra que empunhava uma raqueta de ténis e olhava timidamente para uma das cabinas fechadas. Lembrava-se de Jean Halstead quando tinha aquela idade. De repente, a cabina se abriu e a Sra. Flynn saiu, colocando a mão no ombro da mocinha.

Major Thomas, disse ela, esta é minha sobrinha, Margaret.

Craig cumprimentou com um sorriso grave, porque as mulheres mesmo naquela idade pertenciam à metade do mundo que representava sempre para ele um problema de cortesia. Observou que Larry, vendo os três aproximarem-se, falou com ar aborrecido a Jean, que sorriu tranquilizadoramente. Vendo que a mocinha o olhava ansiosamente, Craig murmurou:

Vejo com prazer que joga ténis.

A moça baixou os olhos, toda vermelha, e a Sra. Flynn pareceu muito satisfeita.

Tinha querido poupar a Jean aquele encontro, mas ele mesmo é que o provocara com o seu falso telefonema. Nada havia adiantado o seu ridículo truque. Mas Jean já estava voltada para eles com um sorriso gentil.

São esses os recém-casados, murmurou Craig. Sra. Flynn, tenho o prazer de apresentar-lhe meu irmão e sua esposa, Tenente e Sra. Thomas. Esta aqui é Margaret.

Já os estávamos esperando, disse a Sra. Flynn, sorrindo. O Coronel Flynn tem muito prazer em ter conosco o irmão do Major Thomas.

Entretanto, o seu olhar maternal se havia detido um instante atónito na contusão, antes que ela se voltasse para, por assim dizer, estender a asa sobre a noiva. E Craig sentiu que as palavras tinham sido infelizes, não porque ela tivesse falado em patentes, pois isso era muito comum entre as esposas dos militares, mas porque colocara Larry em posição inferior ao irmão. Mas admirou a linha de Larry, a adequada contração dos seus olhos ao ouvir falar em ”coronel” e a distinção do seu cumprimento. Larry tinha com as mulheres toda a segurança que faltava a Craig.

Minha cara, o nosso problema de casas... dizia a Sra. Flynn a Jean.

Craig saiu à frente com Larry. Quando chegaram aos carros, a Sra. Flynn estava dizendo:

Fique descansada que logo que souber de alguma coisa boa. telefonarei... O olhar dela tornou a passar pelo rosto de Larry. Tenho certeza de que o Major Thomas sente muito prazer em tê-los aqui. Ele é um homem precioso para nós, mas vive muito absorvido no trabalho e ter a companhia dos dois será tão agradável para ele quanto é para nós. Agora, tenho de levar Margaret...

Dizendo isso, tornou a demorar o olhar no rosto de Larry. Craig notou um olhar de decisão em Jean, embora os seus olhos passassem indulgentemente por Larry e se fixassem na Sra. Flynn.

O problema habitacional não pode ser tão grave aqui como foi para nós no trem disse ela. O máximo que pudemos conseguir foi um leito superior.

Não me diga! exclamou a Sra. Flynn. Que coisa mais incómoda!

Talvez Larry não me perdoe isso, disse ela, com um riso rápido e nervoso. Mas devem ter notado a contusão no rosto dele... Parece que está piorando, querido.

Larry empertigou-se numa atitude extremamente militar, embora se esforçasse por sorrir. Craig e a Sra. Flynn olhavam cheios de tensão para Jean, que riu para Larry e se voltou com uma expressão de bom humor para a Sra. Flynn.

É muito ridículo, disse ela, mas Larry, grande como é, entendeu de dormir do lado de fora do leito e...

Fez uma pausa e olhou para Craig, como quem pede misericórdia.

Não, minha cara! exclamou a Sra. Flyn. Não pode parar aí. Conte tudo.

Bem... Larry caiu lá de cima.

Não! exclamou a esposa do coronel, contendo a custo o riso.

Jean ficou muito corada e disse com toda a seriedade:

E o resultado foi que ele se machucou.

Ora, disse a Sra. Flynn, podia ter sido muito pior. Craig, nunca ouvi nada mais interessante!

Entrou então no carro com a sobrinha e, enquanto o chofer fazia manobras, deu adeus com o rosto contorcido pelo riso.

Pronto! disse Jean. O caso da mulher do coronel está resolvido.

Meu Deus! exclamou Larry. Já imaginou que ela vai contar essa história a todo mundo, Jean?

Bem, vamos ao coquetel, disse Craig, interrompendo a conversa.

Enraivecido com a ideia de que o irmão fora tão pouco cavalheiro que insistira em dormir num leito superior com a esposa, jogou as malas de mau humor dentro da mala do carro. Quando fazia manobra para entrar na rua, viu pelo espelho que Larry olhava zangado para a mulher, enquanto esta conservava os olhos baixos.

Não foi isso absolutamente que aconteceu, Craig, disse Larry. Jean dormiu no leito superior e eu fui ficar no vagão de fumar. A raiva de Craig pelo irmão desapareceu. Havia lá um bêbado que insistiu em dormir em cima de mim. Toda vez que ele caía para cima de mim, eu o empurrava até que ele se aborreceu e me agrediu. Brigamos e o resultado é o que você está vendo...

Mas você também bebeu alguma coisa, disse Jean, delicadamente.

Craig pensou que o irmão nunca podia livrar-se de alguma encrenca.

Mas para que foi dizer isso a ela?

Que era que você queria que eu dissesse?

Não era preciso dizer nada. Ninguém estava notando nada. Pelo espelho, Craig viu Jean abrir a bolsa e entregar um espelho

a Larry.

É, chama mesmo a atenção, disse Larry. Mas você não tinha de contar uma história dessas...

Havia necessidade de uma explicação e eu não pude pensar em outra coisa que a fizesse rir.

Esse é que foi o mal.

Mas ela tinha de rir, querido. Craig, seguindo a linha do pensamento dela, sentiu-se cheio de admiração. Assim explicada, a história cómica parecia um monumento de tato. O coronel achará graça também e estará tudo terminado. Se não fosse isso, ela teria dito ao marido que você se machucara em alguma briga.

Havia um pouco de paciência na voz vibrante que afastou definitivamente do espírito de Craig a lembrança da menina das trancinhas. Jean sorriu então para Larry e enfrentou a cara enfarruscada do marido com uma risada.

Mas cair de um leito superior! exclamou ele. E numa viagem de lua-de-mel! De repente, começou a rir também ruidosamente. Craig se lembrou de que Larry sempre tivera um riso fácil, uma alegria pronta.

Olhando Jean pelo espelho, começou a rir também. Juntar-se ao riso de Jean e às gargalhadas de Larry era para ele um prazer e uma surpresa também, porque nunca fora dado a riso.

Apesar de tudo, Craig, está mesmo de chamar atenção, disse Larry. Eu não gostaria de aparecer assim diante do oficialde-dia. Você na sua medicina deve ter um meio de resolver isso.

A medicina e a cirurgia moderna realizavam milagres, mas embora um aparelho de ondas curtas pudesse apressar a cura, um olho arroxeado era tão obstinado na idade do jato quanto o tinha sido na Idade Média.

Maquilagem! disse ele de repente, parando o carro diante de uma farmácia. Voltou com um vidro cheio de uma pasta cor-de-rosa que espalhou pela área descorada. Voltou então para a direção do carro, deixando a Jean o cuidado de aplicar a pasta porque, como mulher, não podia deixar de tocar em maquilagem e, sendo recémcasada, queria ajudar a recuperação do marido.

Larry se olhou no espelho de Jean e deu um assobio.

Maravilhoso! Parece coisa de Hollywood! Que é que acha, Jean? Qual era o olho machucado?

Não lave o rosto, disse Craig.

Entrou pelos portões do campo e parou o carro diante de um edifício quadrado, a cuja porta um sentinela passava de um lado para outro.

Isto aqui é o Edifício da Administração, Larry. O oficialde-dia está lá dentro.

Vou enfrentá-lo, disse Larry.

Entrou todo empertigado, com o quepe de lado. Jean olhou-o com amor, mas balançando levemente a cabeça. Virou-se para Craig e disse, sorrindo:

Larry me desconcerta. A vida em nosso círculo é trepidante. É um ótimo homem, Craig. E acho que nasceu para o Exército.

De fato, Larry é boa pessoa e um homem cheio de vida, disse Craig, lembrando-se de que Larry tinha já vinte e oito anos. E dessa vez tivera muita sorte. Quis dizer alguma coisa amável à cunhada, mas compreendeu que só fazia essas coisas com uma polidez formal. Por isso, a sinceridade de sua voz surpreendeu-o, como se ele fosse um estranho a escutar palavras que vinham naturalmente.

Posso dar parabéns a ambos. Mas todo o resto do mundo achará que só Larry é que merece parabéns.

Ora, Craig, está sendo muito gentil, mas exagerado! disse ela, mas era claro que tinha ficado muito satisfeita.

Ela ficou olhando para a porta por onde Larry entrara, esperando que ele voltasse, e Craig se sentiu estranhamente só.

Larry apareceu e entrou no carro com um suspiro de alívio.

Tudo resolvido! Assinei o livro e só tenho de me apresentar ao comandante amanhã.

Craig levou-os para um canto sossegado de um bar sossegado. Muitas vezes se sentara com Larry num canto sossegado para ouvir alguma história de ação impulsiva, ao fim da qual era pedida a sua ajuda. Levantou o copo e disse simplesmente:

À saúde de vocês dois.

A Jean, disse Larry, passando o braço pelo ombro dela.

A todos nós, disse ela.

Sorriam então diante de tanta cerimónia e Larry acrescentou:

À guerra. Foi a guerra que me deu esta pequena. Ao uniforme! Ela se encantou com a farda e eu estava dentro dela!

Seu irmão disse Jean a Craig fez o nosso casamento parecer um dever patriótico para mim. Qualquer demora seria traição.

Atacar, atacar, disse Larry. Atacar sempre. Contornei a extremidade da Linha Maginot.

É claro que isso não foi muito honesto, disse ela, rindo.

Na guerra como na guerra.

Craig viu que ela procurava mostrar-se despreocupada com Larry, pilheriando mais do que lhe era natural, talvez. Mas era a guerra e tudo era um turbilhão. Disse a Craig com súbita seriedade:

A licença de Larry era muito curta e nós fugimos para nos casarmos.

Ela estava sendo sitiada por um capitão de infantaria, disse Larry. Essas tropas terrestres! Estava usando munição antiquada como flores e bombons. Larry fez uma pausa, naturalmente satisfeito com as suas comparações. E Craig estranhou que, com toda a sua sorte imerecida, Larry tivesse conseguido aquela moça de luminosos olhos cinzentos, voz emocionante e um rosto cheio de sensibilidade onde as emoções se escondiam.

Fiz um voo em pique sobre Jean, disse Larry. Nem lhe dei tempo de pensar. Não foi, meu bem?

Às vezes, uma mulher não precisa de pensar, disse Jean, sorrindo. Ele me está fazendo parecer uma prisioneira de guerra.

E é o que você é, disse Larry.

Larry é um piloto, disse ela, com uma ponta de orgulho.

Eu teria gostado de deixá-lo alguns meses à espera, mas quando ele expôs o caso e disse que em breve estaria partindo e... Estendeu o braço e apertou a mão de Larry. Foi assim que nos casamos. Sempre achei que era preciso fazer planos para tudo. Agora, não sei nem onde é que vamos morar!

Craig riu. Nada havia de engraçado, mas ao observar cada expressão do rosto de Jean, o prazer borbulhava nele. Jean e Larry começaram a rir com ele, como se Craig tivesse percebido alguma coisa muito engraçada antes deles e eles quisessem apreciá-la com ele. Jean tinha no riso a mesma faculdade de emocionar que tinha na voz. Craig parou de repente porque sentiu o medo percorrer-lhe as veias como uma onda de frio. Para esconder a sua confusão, pegou um cigarro. Sentiu que a mão, tão firme e controlada na sala de operação, tremia ao segurar o isqueiro.

Infelizmente, tenho de voltar para o hospital, disse ele.

Posso deixá-los no hotel.

Jean, quero falar em particular um instante com Craig. Dá licença?

Ela se levantou prontamente com a bolsa e, quando eles se levantaram com ela, sorriu para ambos.

Irmãos, murmurou ela com um leve tremor na voz. Nunca tive um irmão. É tão bom ver vocês dois juntos.

Craig Thomas aspirou profundamente o ar. Quando ele e Larry se sentaram de novo, Larry disse:

Ela podia sentir-se embaraçada. Não sei. Mas, escute, estou gastando demais e quero um bom lugar para ela. Faltam dez dias para o pagamento. Pode-me dar um cheque de cem?

Sem fazer qualquer comentário, Craig escreveu um cheque de duzentos dólares.

Craig! exclamou Larry. Ótimo isso! Mas você pode mesmo emprestar esse dinheiro todo no momento? Vou-lhe pagar, mas...

Não quer ir para um bom lugar?

Eu lhe agradeço muito, Craig. E Jean também vai ficar muito grata.

E por que ela precisa saber disso? perguntou Craig de maneira tão abrupta que Larry se surpreendeu.

Não precisa, de fato, disse ele.

No caminho para o hotel, Craig não olhou pelo espelho, conservando os olhos fitos na rua à frente e em luta com uma sufocação no peito. Em outra ocasião, poderia interessar-se pelo fenómeno para apurar por que um estado mental podia produzir esse sentimento intenso de dor física e constrição respiratória. Mas no momento queria apenas e com desespero novo para ele, ir-se embora e ficar sozinho.

Ouviu-se dizer, ao mesmo tempo que detestava o som formal de suas palavras:

Se precisarem de alguma coisa, não deixem de me dizer, está bem? E vamo-nos encontrar de novo em breve. Felicidades para ambos.

Craig está pensando de novo na sua clínica, disse Larry, rindo. É essa a sua velha maneira profissional.

Adeus, Craig, disse Jean. Ficamos muito contentes de que você nos viesse receber.

Saiu então no seu carro, com a voz dela a cantar-lhe nos ouvidos e com o rosto sorridente a surgir no cérebro como uma miragem, enquanto a pele estava fria como uma roupa de banho molhada. Dobrou a primeira esquina depois do hotel e encostou o carro ao meio-fio. Nada de parecido jamais lhe acontecera na vida. Procurou desesperadamente uma defesa e percebeu que não a tinha. A meninazinha de tranças e aparelho nos dentes era a mulher que se devia ter casado com Craig Thomas e não com Larry Thomas. Afirmou a si mesmo que o pensamento era criminoso e imoral, inadmissível dentro de um cérebro normal e deveria ser repelido categoricamente por um homem enérgico. Mas essa ideia se desmoronou na convicção de que ele não era e nunca tinha sido um homem enérgico. Pensou em mandar flores para ela. Isso era permissível. Ela ficaria satisfeita e o seu rosto se iluminaria de uma luz suave e ela diria a Larry...

Craig saltou do carro e se encaminhou com passo militar para um varejo de cigarros. Dois soldados que lá estavam e não tinham obrigação de fazer continência portas adentro, perfilaram-se contudo ao vê-lo.

Às suas ordens, disse o homem do varejo.

Qual é a loja de flores mais perto daqui? perguntou Craig, ansiosamente.

Quando saiu, teve apenas a consciência vaga de que a conversa se reiniciara às suas costas com um riso contido.

Jesus! exclamou um dos soldados. Aquele camarada vai mandar flores. Com aquela cara, deve ser para algum enterro.

 

O Cabo Tyce nunca ficava satisfeito com o trabalho do soldado Henry Smith. Verificava e tornava a verificar tudo e corria os olhos em torno, ansioso por uma chance de o censurar, a não ser quando estava discorrendo para Henry sobre as emoções e a anatomia das mulheres.

Verifique o óleo, ordenou o Cabo Tyce, dando volta ao avião, com o rosto contorcido numa careta irónica, e tirando a tampa do distribuidor para ver as pontas.

Henry Smith já havia verificado o óleo.

Verificado! Está OK!

Muito bem, torne a verificar! acrescentou Benton Tyce. Isto aqui não é uma garagem. Temos de ter certeza absoluta de tudo. Veja estas pontas do distribuidor. Uma delas está apenas um pouquinho queimada. Eu podia limpar, não podia? Mas comigo não. Vou botar um novo.

Henry Smith movimentou o imenso corpo e dedicou-se à tarefa de verificar de novo o óleo. Era um ”jovem paciente, mas não se sentia feliz no Exército. Tinha querido voar, mas era um mecânico de aviação. Era um trabalho delicado e importante, do qual dependia a vida de outros homens. Mas as zelosas e implacáveis críticas do cabo Tyce minavam-lhe o amor-próprio e pareciam indicar que ele nunca seria capaz de fazer um trabalho perfeito. Henry sabia que a verdade não era bem essa e que o seu trabalho era bom. Mas não podia replicar a Tyce. O homem devolvia-lhe as palavras mais depressa do que elas lhe ocorriam à cabeça.

Óleo OK, disse ele.

Mude-o então, disse Tyce, labutando com o distribuidor. Isto aqui é o Exército. Ninguém lhe vai dar uma medalha por economizar dinheiro.

Henry continuou a trabalhar, mudando o óleo e limpando tudo, sem deixar uma só gota derramar-se. Pensava às vezes que era um mecânico muito mais cuidadoso do que o Cabo Tyce. Mas não poderia provar isso.

Naquele momento, Tyce, olhando de banda para Henry, pareceu satisfeito.

Que é que vai fazer esta noite, Smith?

Vou ler um livro sobre aviação.

Pois eu não, disse Tyce, rindo. Você precisa de voar, Henry, mas é com uma pequena. Não sei como é que um camarada como você pôde nascer numa cidade.

Henry Smith sentiu um aperto na garganta. Deixava de ter raiva do cabo quando Tyce começava a falar naquelas coisas, mas sentia vergonha da fascinação que o empolgava.

Tyce olhou para ele com uma alegria de ave de rapina.

Você precisa de uma mulher para começar a ser um homem. Por que não sai comigo esta noite? Já é tempo de você conhecer uma pequena.

Já saí com uma pequena.

Não é disso que estou falando. A gente só conhece uma pequena em cima de uma cama. Nua, sabe como é? Ela sem uma peça de roupa no corpo e você do mesmo jeito.

Henry ficou vermelho sob o olhar brilhante de Tyce.

Vou-lhe dizer o que deve fazer. Vá até ao centro da cidade e ande por lá até pegar uma pequena. Não é pegar com a mão não, Henry. É puxar conversa com ela. Há muitas louquinhas por uma conversa, desde que você saiba procurar. Depois, tome um ônibus com ela e vá até o Parque Bayshore. Estou-lhe dando boas informações. Está guardando tudo na cabeça?

Sei onde é o Parque, disse Henry. Já tomei banho de mar lá.

Talvez fosse bom um sujeito como você tomar nota por escrito de tudo. Muito bem. Você sabe como é que se vai até lá. Você leva a pequena para Bayshore, aluga roupas de banho e entra no mar com ela. Depois, os dois ficam cansados e se deitam na areia. Pode comprar cachorro quente e, depois, quando estiver escurecendo, você resolve dar um passeio.

Henry estava em silêncio, ressentido e desejoso de ouvir mais.

Sabe onde são as pedras, não sabe? Pois bem, você sobe pelas pedras e, ao fim de algum tempo, senta-se para descansar. Há ali uma grutazinha muito boa, mas se você algum dia me encontrar lá, tome distância.

Henry Smith teve um sorriso nervoso.

E aí? Sabe que se faz depois?

Claro que sei. Fica-se bem junto da pequena. Depois, dá-se um beijo. Se ela tenta fugir, beija-se mais até ela perder a vontade de fugir.

Henry virou a cabeça para o lado a fim de que Tyce não pudesse notar a sua respiração entrecortada. Lembrava-se de que uma vez voltara com Eloise Powell depois de uma colheita de feno e que ele a beijara no escuro, sentindo-lhe os lábios quentes e úmidos. Mas tinha perdido o equilíbrio numa curva e caíra do carro de feno. Quando voltara, ela já estava deitada no feno com outro rapaz, Harry Wilson, se não estava enganado. Podia ter sido ele, se não tivesse caído.

Quando ela ficar um tantinho quieta, você começa a se queixar do calor e então... Tyce deu uma risada. Parece que estou perdendo tempo com você, Henry. Se não está interessado, posso parar agora mesmo.

Não, não, disse Henry. Pode falar.

Então, você escorrega a mão e puxa para fora a alça de roupa de banho dela. Ela pode querer fugir de novo, mas você a abraça e beija com mais força, entendeu? Já sentiu os peitos de uma pequena no escuro, Henry?

Henry não podia falar. Limitou-se a sacudir a cabeça. Nesse momento, ressoaram passos fortes no hangar e um sargento apareceu.

Smith, acompanhe aquele grupo disse ele, indicando alguns homens que passavam pela porta e vá tomar a sua terceira dose de vacina contra o tifo.

Henry Smith obedeceu. O pulso estava disparado. Queria conversar de novo com Tyce e ouvir o resto. Mas já sabia do resto. Conversara muito sobre isso com os outros. Era quase a única coisa de que falavam. A conversa de Tyce deixara-o angustiado. Ou talvez fosse a lembrança da injeção contra o tifo. O certo é que, depois do jantar, largou o livro em cima da cama, botou o quepe na cabeça e saiu.

”Preciso tomar um pouco de ar”, murmurou consigo mesmo. Saiu no seu passo enérgico, passando pelo campo, pelos quartéis, os refeitórios e os depósitos todos pintados com faixas variáveis de cor para camuflá-los do ar. Odiava tudo aquilo. Estava com muitas saudades de casa, mas pior ainda era o desespero que sentia.

Tinha chegado ali sonhando em ser um piloto, no comando de um cintilante avião, que entrava e saía por entre as nuvens. Imaginara muitas vezes o crepitar das metralhadoras nas suas asas e o estrondo do canhão no nariz do seu avião que feria de morte um Zero japonês ou um Messerschmitt alemão. Não seria mais Henry Smith, o rapaz lento e desajeitado que vivia com o nariz metido nos livros. Seria o Tenente Henry Smith, um herói de quem todo mundo falava.

Mas tudo isso havia terminado na quente sala de exames naquela manhã em que fizera os testes do Corpo de Avião e problemasmatemáticos simples, que ele teria resolvido com a maior facilidade em casa ou no ginásio, lhe pareceram mais complexos e incompreensíveis’ do que a teoria de Einstein. Percebeu o seu fracasso nos olhos do professor que deu os testes e ouviu-os na voz do oficial que o designou para ser mecânico. Pensou em desertar. Se fosse trabalhar em alguma fábrica da defesa, estaria dando a sua contribuição, sem deslealdade para com o seu país. Quase qualquer coisa seria preferível a permanecer ali, vestido de macacão, de chave inglesa na mão, recebendo ordens do Cabo Tyce e olhando para o céu, onde outros estavam aprendendo a manobrar os controles e aprendendo a levantar voo e a pousar com os vagarosos biplanos, onde os outros ficavam a par de todos os pormenores de voo para um dia receberem as suas asas e irem ostentá-las diante das moças conhecidas.

Soldado Smith! Não era que ele se incomodasse de ser um simples soldado. Mas constituía verdadeira tortura olhar para os grandes aviões no céu e saber que nunca sentiria as vibrações do motor quando o acelerasse antes da decolagem, nunca sentiria a súbita leveza dos controles que lhe indicaria que as rodas já não estavam tocando o solo.

”Macaco sujo de graxa”, pensou ele. ”Quis ser uma águia e não passo de um macaco sujo de graxa.”

Ouviu lá em cima um ronco abafado. Sabia o que era. Era o grande bombardeiro de McDill em serviço de patrulha noturna. Imaginou-se num daqueles bombardeiros, com quatro gigantescos motores obedientes ao seu comando. Imaginou as palavras que seriam trocadas através dos fones de intercomunicação como no filme que tinha visto sobre a RAF.

”Bombardeiro a piloto. Estamos quase chegando. Firme, Hank”.

”Piloto a bombardeiro. Rumo certo. Fogo neles!”

”OK. Firme agora.”

”Está firme.”

”Bem na mira. Lá vão os ovos.”

E o clarão vermelho das bombas sobre os alvos lá embaixo, o impacto que abalava até a grande fortaleza-voadora. Podia ouvir quase o silvo do caça inimigo mergulhando sobre a cauda do bombardeiro e as exultantes exclamações do artilheiro de cauda a comunicar que havia acertado o caça em cheio. Esqueceu-se por um momento de que era o soldado Henry Smith, macaco sujo de graxa, e fez o grande avião mudar de rumo, na viagem de volta para a base.

Quando afinal deixou de ver os bombardeiros, Smith percebeu que havia caminhado até ao hospital. Era muito mau isso. O Dr. Thomas trabalhava ali e, desde que o Dr. Thomas tinha passado a ser major, Henry Smith queria a todo custo evitar um encontro com ele. Atravessou a rua e passou por um local de estacionamento dos carros dos médicos. Já estava quase chegando a uma rua de quartéis quando os seus olhos foram atraídos para um carro estacionado. Smith parou. Sentado ao volante do carro, o Major Thomas olhava para ele.

Henry Smith parou a fim de fazer continência. Craig Thomas respondeu à continência, sem que houvesse nos olhos o menor sinal de haver reconhecido o soldado.

Major, disse Henry. Desculpe, Major. Mas nunca tive a intenção... nunca pensei em calotear o senhor.

Como assim? perguntou Craig, tomando conhecimento dele.

Estou falando nos 55 dólares, Major, disse Smith. Já devia ter pago há um ano. Mas perdi o emprego. Depois, fui convocado. E a minha situação ficou então pior. Sou um soldado e o senhor é major. Se um major pode receber dinheiro de um soldado, eu pagarei agora e tirarei isso da minha cabeça. Mas se um major se sentir desconsiderado com isso, não sei o que devo fazer. Nunca me vi numa situação assim.

Craig resmungou alguma coisa ininteligível, mas com um brilho de bom humor nos olhos. Aquele jovem louro, com o nariz levemente arrebitado, ocupou vagamente um lugar entre as pessoas que havia conhecido ou atendido como médico, mas não sabia mais que isso sobre ele. Nada disse.

É verdade que eu paguei 95 dólares de entrada, continuou Henry Smith. E talvez a conta fosse um pouco alta para uma operação de apendicite, mas eu não podia reclamar. O senhor me salvou a vida.

Não sentiu mais nada depois? perguntou Craig.

Nadinha mesmo! O senhor fez de fato um bom serviço comigo.

Em vista da guerra, pode considerar a sua conta paga.

Muito obrigado, Major. Mas não sei. Talvez tudo esteja certo para o senhor e devia estar comigo, mas não está. Veja esse carro. Acho que não lhe faria mal algum uma revisão geral. Eu trabalhava numa garagem.

Já não lhe disse que a conta está paga? perguntou Craig com uma ponta de impaciência.

É que não sei o que fazer com meu tempo de folga, disse Henry. Não posso dirigir o seu carro?

Não. Eu mesmo dirijo. Mas houve um instante de hesitação em Craig Thomas. Lembro-me de você e lembro-me de seu apêndice. Só não me lembro de seu nome e isso é muito estranho.

Henry Smith, Major.

Bem, você pode fazer-me um favor, Henry. Pegue este carro e vá até ao Hotel Oleanders. Meu irmão e a mulher dele chegaram lá hoje. Diga à Sra. Thomas que o carro está à disposição dela para procurar um apartamento. Pode fazer isso?

Claro que posso. E com muito prazer. E não é só por causa da operação. Quando acabo o meu trabalho, fico quase sempre sem ter nada para fazer.

À porta do hotel, quando ele parou o carro, o porteiro viu a farda de soldado raso e disse:

Vá para o estacionamento. Não pode parar aqui.

Smith engrenou imediatamente o carro. Mas hesitou, sentindo-se numa posição embaraçosa.

Escute...

Já lhe disse que aqui não, exclamou o porteiro. No estacionamento.

Escute, disse Smith. Estava entregando o carro para o Major Thomas e não era direito que a senhora tivesse de dar a volta até ao estacionamento para encontrar o carro. Este carro é de um major.

Não diga!

Digo, sim. É o carro de um major. E você quem pensa que é?

Metido a engraçadinho, hem? Tire o carro daí. Henry saltou do carro.

Já lhe disse que o carro é de um major. Se alguém vai tirá-lo daí, só pode ser você. E se você fizer isso...

Levantou os ombros largos e sacudiu-os, passando depois pelo porteiro. Não seria bom brigar por causa do carro do Major Thomas. E Henry não gostava de brigas. Mas estava contente consigo mesmo por ter falado com tanta firmeza e, pela primeira vez desde que entrara no Exército, sentiu a espinha endurecer-se no desempenho de uma missão de autoridade. Parou um instante no vestíbulo. O hotel, sempre cheio de oficiais e de mulheres de oficiais, era um lugar para ser evitado. Mas ele contava com o apoio de um major. Foi até à portaria e deu o nome da Sra. Thomas. Esperou então numa atitude que ficava entre a posição de sentido e a de descansar, mais esta do que aquela.

Duas senhoras saíram do elevador e, a um sinal do homem da portaria, encaminharam-se para Henry.

Sou a Sra. Thomas, disse uma delas.

Trouxe o carro do Major, disse Henry e segurou a porta enquanto elas saíam. O carro estava no mesmo lugar e o porteiro ajudou as senhoras a embarcarem, evitando o olhar vitorioso de Henry.

O major não disse nada, murmurou Henry, mas se a senhora quiser, poderei dirigir o carro, com muita satisfação. Sou o Praça Smith, Henry Smith. E dirijo bem.

Ora, disse Jean, é muita bondade sua, Praça Smith. Henry sentou-se ao volante e ligou o motor. Estava radiante.

Tinha afinal um lugar no mundo. Aquelas senhoras eram de alta classe, mas ele procedera em tudo de maneira correta e um porteiro que as fizesse andar até ao estacionamento mereceria tudo o que lhe pudesse acontecer.

Estou inteiramente às suas ordens, Madame. Basta dizer o que deseja. Sou amigo do Major Thomas.

É mesmo? disse Jean, sorrindo.

Claro que sou. Faço uma porção de serviços para o Major.

Além da estrada, que marcava as divisas do condado, brilhavam as luzes de Boomtown e das suas ruas e dos seus caminhos elevava-se um pó avermelhado, levantado por centenas de pés. De Boomtown, não se via qualquer bandeira, nem se ouvia qualquer toque de corneta do campo. Alguns quilómetros discretos e a cidade de Oleanders estava de permeio. Mas Boomtown tinha quase a mesma idade do campo e os cartazes deslumbrantes da Roda Gigante e das barracas dos jogos, o toldo listrado do Chapéu de Bronze, da Cervejaria Grande e o brilhante portão cromado do Salão de Danças Bijou não tinham sido ainda desbotados pela chuva e pelo vento.

No Bijou, os pares se bamboleavam aos compassos buliçosos de uma orquestra chamada de Izzy Knowlson, e de vez em quando um rapaz vigoroso e a sua perfumada dama se destacavam numa exibição de passos complicados. As luzes da Roda Gigante giravam sem parar, mas havia muito pouca gente nela. A leve emoção de andar na roda perdia todas as noites para o estímulo mais direito do contato corporal ao som da música do Bijou ou do Alligator Club. Muitos faziam uma visita à cidade dos reboques mais adiante, onde as casas sobre rodas que outrora haviam rolado pelas estradas da Flórida e da Califórnia estavam ali encalhadas já sem pneus e ostentando nomes como Esconderijo, Paraíso, Doce Abrigo e Hotel Ritz.

De um reboque cinza e marrom chamado Solidão saiu Dolly Varn, parando um instante à porta para ter certeza de que não havia mais nem sinal do soldado que dali saíra pouco antes. Depois, sacudiu os cabelos vermelhos, retocou a maquilagem ao espelho, apagou a luz e trancou a porta, porque tinha 72 dólares escondidos no conjunto de armário e cama e nem todas as pequenas eram de coração muito puro.

Quando marchou elegantemente pela rua a caminho do Alligator Club, vários movimentos apurados a distinguiram. Graças à sua consciência social, recolhera do cinema vários gestos e expressões, de modo que um fã de cinema que observasse Dolly Varn poderia deparar sucessivamente com muitas lembranças das suas estrelas favoritas. Às vezes, Dolly refletia na negligência e falta de atrativos das boas moças em comparação com as moças esportivas como ela, que viviam sempre limpas e davam mais atenção a perfumes e produtos de beleza. Havia momentos de solidão em que Dolly sonhava em, na primeira oportunidade favorável, voltar a ser uma boa moça, mas levando uma vantagem sobre todas elas.

Um soldado desviou-se do caminho para ela passar, mas disse:

Alo, menina.

Boa noite, disse Dolly depois de um momento de hesitação. Deseja alguma coisa?

Desejo, sim. Sabe onde fica o reboque chamado Dois Cigarros no Escuro?

Oh! murmurou Dolly num tom de desprezo, é aquele ali, de alumínio.

Continuou o seu caminho, mas percebeu que o soldado ainda estava olhando para ela.

Chegando à porta do Alligator Club, olhou para tudo com o olhar experimentado de um gerente de teatro. O bar, o salão de danças e os reservados estavam com uma boa quota de fardas caqui. A fumaça dos cigarros formava uma densa névoa sobre tudo. Dolly não gostava de fumar, mas tirou um cigarro de um maço e colocou-o cuidadosamente numa longa piteira verde. Uma piteira dava um ar de elegância e ela não gostava dos dedos amarelos de algumas pequenas.

Dolly Yarn avançou até ao bar numa combinação de ondulações e arrancos.

Boa noite, Art, disse ela e o homem do bar sorriu.

Boa noite, Dolly.

Art era um bom sujeito e sempre agia como se nenhuma das pequenas já tivesse estado ali naquela noite.

Desde que conhecia todas as insígnias, sentou-se no bar ao lado de um cabo da Aviação, embora lhe parecesse que ele tinha um rosto sarcástico.

Um suco de laranja, Art, disse ela.

Merece coisa melhor, Ruiva, disse o cabo. Que tal? Dolly sorriu impessoalmente porque os homens respeitavam mais

a reserva do que a intimidade excessiva.

E não é preciso ficarmos aqui de pé, disse o cabo. Vamos para um lugar onde você se possa sentar.

Dolly tornou a sorrir e ele se encaminhou para uma mesa num reservado.

Cerveja, disse ele ao garçom, porque nada mais forte podia ser vendido no clube, embora numa casa vizinha se pudesse comprar à vontade qualquer bebida desde que fosse para levar as garrafas embrulhadas.

Suco de laranja, disse Dolly.

Deixe disso, murmurou o cabo. Ou será que não confia em mim?

Aqui o suco de laranja é mais caro do que a cerveja, se é isso que está preocupando você.

Então está bem, disse ele. Mas eu darei um jeito no seu suco.

Tirou do bolso uma garrafa de uísque de meio litro, mas Dolly estendeu a mão manicurada por cima do seu copo.

Epa, disse o cabo, que tomou um gole de uísque, acompanhando-o de um gole de cerveja. Você trabalha aqui mesmo, menina? Ou é apenas uma dama da sociedade à procura de emoções?

Dolly não gostava positivamente do homem. Tinha no rosto um jeito faminto e impaciente e devia ter mau génio. Mas ela tinha uma resposta pronta para todas as perguntas.

Que é que acha?

Não sei ainda, mas vou descobrir.

Dolly fez um gesto remoto porque calculou que tudo já estava resolvido. O cabo tomou outro gole de uísque, acabou com a cerveja e bateu com o copo na mesa.

Cerveja, disse ele. E você, menina? Mais suco de laranja?

Tenha a bondade.

O homem se mostrou mais atencioso.

Você é um número, disse ele. Tem alguma amiga?

Tenho o meu reboque, disse ela. E havia certa distinção também nisso.

Tenho um soldado que trabalha como mecânico sob as minhas ordens, disse ele, expansivamente. Nunca vi um camarada mais tapado. Creio que nunca conheceu uma mulher em toda a sua vida. Um dia, ainda vou trazê-lo até aqui só para me divertir com ele. Não sei como é que o pobre se arranja na vida.

A convocação para o serviço teve algumas consequências bem curiosas, disse Dolly Yarn.

Era uma frase de que todos os soldados gostavam. Divertiam-se com ela porque sempre julgavam que se referia a outra pessoa. Dolly sorriu. Tinha bons dentes e tinha estudado todos os anúncios de pastas de dentes até descobrir a que lhe alvejava mais os dentes.

Você é formidável, disse ele, abruptamente. Agora... quanto?

Ela não achou a pergunta embaraçosa. Ao contrário, era importante como qualquer discussão sobre salários.

Isso é uma coisa que os cavalheiros decidem.

Não me venha com essas cerimónias, menina. Três.

Acha que está sendo cavalheiro? perguntou ela. Sabendo que era absurdo, acrescentou: Cinco.

Nunca, disse o cabo. Escute... Dolly não gostava dele.

Cinco, repetiu displicentemente.

Ele bateu com o copo na mesa e tomou o último gole de sua garrafa.

Cerveja. Quer mais suco de laranja?

Desde que a gerência gostava de que as mulheres fizessem crescer as contas e desde que suco de laranja era bom para a pele, ela disse: Quero, sim, obrigada.

- Está bem. Está bem. Ganhou, disse ele, bufando. Devíamos dançar nem que fosse uma vez, disse Dolly.

Pagava-se um tanto por dança e a gerência gostava também de que as mulheres dançassem.

Eu não.

Só uma vezinha, disse Dolly, levantando-se.

Até parece que quem está pagando a festa é você e não eu.

Dolly Yarn dançava bem com qualquer homem e achava a dança um grande meio de manobrar os homens. Em geral, as coisas se combinavam na dança, em voz baixa entre a música estridente e o arrastar dos pés, a mulher rindo e um soldado solitário falando numa voz ansiosa. A gerência insistia numa aparência de respeitabilidade. Um casal não podia encontrar-se e sair imediatamente.

Quando voltaram para a mesa, Dolly colocou uma chave nas mãos dele, com uma placa de metal onde estava gravada a palavra ”Solidão”. Não havia necessidade de chave, mas isso encerrava uma promessa de segredo e a placa era útil caso o homem esquecesse o nome. Mas às vezes os homens mudavam de ideia e não apareciam. Dolly não gostava da ideia de que as chaves do seu reboque andassem perdidas pelo mundo e, por isso, usava chaves diferentes que não se ajustavam à fechadura.

Quer esperar um pouco? Não muito, apenas alguns minutos.

Está bem.

Chegando ao reboque, Dolly tirou o vestido. Estendeu automaticamente a mão para debaixo do colchão onde guardava o envelope com o dinheiro.

Estava deitada nua no escuro quando sentiu um passo nos degraus, o reboque se balançou com o peso e uma chave procurou a fechadura da porta aberta.

Pode entrar, disse ela suavemente e usou um cumprimento habitual. É você, bem?

Claro.

Ouviu-o mover-se no escuro e a fivela do cinto bater nas costas da cadeira. Mas alguma coisa nas maneiras do homem alarmou-a.

Tire os sapatos, meu bem, disse ela.

Ele resmungou alguma coisa e os sapatos bateram no chão.

Depois que ele saiu, ela se vestiu e acendeu a luz. Olhou-se ao espelho. Quase todos os rapazes que estavam com ela eram boas pessoas. Mas nenhuma mulher podia confiar naquele cabo. Havia nele alguma coisa errada. Pensando nisso, teve um alarma e, colocando a mão debaixo do colchão, descobriu que o envelope havia desaparecido.

Dolly Yarn não deu gritos como outras mulheres poderiam ter feito e tampouco disse nomes feios, como outras fariam. Mas o sangue corria mais depressa sob o impacto do insulto. Correu para o espelho a fim de observar a sua reação.

Não é o dinheiro, explicou ela pateticamente. É o desaforo. É isso.

Olhou para a sua imagem e encolheu os ombros. Tinha um rosto bonito sob a massa vermelha dos cabelos e uns ombros suaves onde ela sempre travava uma batalha contra as sardas. Levantou as mãos e abriu os dedos.

Como é que pode haver gente assim? Esse homem não é soldado. Deve ser um espião!

Ajeitou os cabelos e inspecionou a maquilagem. Estava pronta para voltar ao Alligator Club, mas faltava uma coisa. Correu os olhos à procura e sua raiva explodiu.

Cachorro! Nem ao menos deixou a chave!

Apanhou outra chave numa caixa na kitchenette. Pensou em avisar todas as mulheres a respeito daquele homem. Mas desistiu, chegando à conclusão de que elas que cuidassem de si mesmas.

 

Jean tinha encontrado um apartamento. Não era o que ela queria e o preço era bem alto, quase além do alcance do que ganhava um tenente. Como outros apartamentos em torno do Campo Buchan, a sua história era a ida e vinda de capitães e tenentes com suas famílias, que se mudavam ao sabor das transferências. Era apenas um lar provisório, onde as pessoas penduravam durante algum tempo as roupas num armário e saíam esquecendo uma revista.

Na sala de jantar conjugada com a kitchenette, Jean pôs papel novo nas prateleiras, onde ficavam as xícaras. Na sala com o quarto conjugado, a mesa de café, de ferro fundido, tinha um ladrilho rachado, mas ela a cobriu com um lenço alegre. Arrumou a mesa para esconder o maior número possível de marcas de cigarros e pensou em afastá-la um pouco das paredes. Mas não havia espaço para isso. Pensou no tempo que a lavanderia levaria ainda para entregar as cortinas.

Sorriu um pouco desconsoladamente para Mary Waller, que havia encontrado um apartamento quase idêntico, com exceção da colcha na cama.

É a primeira casa em que moramos, disse Jean e riu. Mas não faz muita diferença. É a guerra.

Os homens não se preocupam quando a gente não liga, disse Mary Waller. É espantosa a quantidade de coisas que os homens deixam de ver.

Mary era toda em castanho, cabelos, olhos, vestido e sapatos, com uma boca rasgada e muito vermelha e uma constante ruga bem-humorada entre os olhos. Jean estava contente de tê-la encontrado, mas ela e o marido tinham vindo no mesmo trem. Larry e o marido dela, Tenente Chuck Waller, já se conheciam, tendo recebido instrução de voos juntos. Graças a uma súbita simpatia, Jean e Mary tinham resolvido tratar dos seus problemas de instalação em colaboração.

Agora, disse Mary Waller indulgentemente, não se preocupe com os detalhes. Larry vai gostar de tudo. Ele gostará de qualquer lugar onde você estiver.

A observação provocou em Jean um tremor de felicidade. Desde que conhecera Craig, sentia que a vida a lançara de súbito num papel altamente dramático e difícil e não com um homem apenas, mas com dois. Com Larry, uma alegria não desmedida como a ele, mas uma alegria protetora e que pouco a pouco servisse a ele de sustentáculo. Com Craig, que era um homem desorientado sem saber que vivia sob uma tensão constante para ele uma afeição séria de irmã para fazê-lo descontrair-se.

Dizem que o lar está onde está o coração, disse ela, mas há muitos corações que têm mais espaço e se cercam de móveis melhores.

Ah, isso só pode ser depois da guerra, disse Mary. Tudo está em suspenso até depois da guerra.

Jean sentiu o coração bater bem devagar e perguntou:

Que é que você vai fazer depois da guerra?

Tenho tirado muitos artigos das revistas sobre o tipo de casa em que quero viver. Mas não sei nem onde será a nossa casa. Por outro lado, Chuck não quer saber senão de voar. Ele era bancário antes da guerra. Casei-me com um bom homem, que tinha boa posição num banco e aprendera a voar como passatempo. Agora, só pensa em aviação, embora eu lhe diga que o mundo estará cheio de aviadores depois da guerra.

Também acho.

Mas Chuck diz que o mundo cada vez mais precisará de aviadores. Acha que o futuro está na aviação comercial. Para ele, as estradas de ferro são uma coisa do passado. Os vapores também. Os caminhões só poderão percorrer alguns quilómetros. A aviação será maior do que tudo isso. É o que ele diz, mas eu sei de que é que eu gostaria.

Que é?

Espero que Chuck se farte de aviação durante esta guerra. Quando chegarmos à grande era de que ele tanto fala, desejo que ele tenha um emprego bem no centro de tudo, mas num belo edifício seja lá onde for e atrás de uma boa mesa.

E eu desejo que você realize o seu sonho, murmurou Jean, um tanto colhida de surpresa. Será ótimo para vocês dois, Mary.

E vocês dois em que estão pensando? perguntou Mary.

É muito estranho, mas nós nunca falamos sobre isso. Talvez não creia, mas nem sobre a guerra conversamos.

Mary Waller riu.

É que estão casados há tão pouco tempo que ainda não conseguiram sair das nuvens.

Era verdade, pensou Jean. Era aborrecido e de certo modo desleal com o presente pensar muito no futuro. Especialmente quando se era casada com um piloto e havia, apesar de tudo, uma incerteza total sobre o dia de amanhã. Entretanto, uma pequena preocupação ficou a atormentá-la. Ainda depois de Mary ter saído, desejou que o assunto não tivesse sido abordado. Larry era esplêndido fardado e a guerra era cheia de interesse e trepidação. Não queria nem pensar no que seria a vida depois da guerra.

Larry subiu a escada aos pulos e abriu a porta perguntando:

É aqui que mora o casal Thomas? Beijou-a e disse: É aqui, sim. Correu os olhos rapidamente pelo apartamento e disse: Ótimo. Tinha na mão um embrulho de papel verde que era tão disfarçado quanto uma garrafa embrulhada pode ser: Trouxe isto para batizar a casa. Como está meu olho?

Estava muito melhor. Quase não havia vestígios da contusão.

Só falta um beijo para completar o tratamento, disse ele.

Uhh! exclamou Jean, fazendo uma cara cómica depois do beijo. Acha que fazem esta maquilagem para ser provada? Ficou alguma coisa em meus lábios?

Ele tirou o lenço e limpou-lhe os lábios com exagerado cuidado.

’ Pronto! Não reclame mais. Onde é que há gelo dentro desta casa? Encaminhou-se para a kitchenette e anunciou de lá exultantemente: Vou começar a voar de novo amanhã!

Ótimo! disse ela, rindo. Não podia ver Larry assim tão alegre sem ter vontade de rir com ele. Pensou com espanto que já havia cogitado em saber das ideias de Larry sobre o futuro. Que tolice! Larry não pensava, nem podia pensar no futuro.

Larry preparou os drinques e entregou um copo a ela.

À nossa saúde! Nós dois, só nós dois! exclamou ele. Em seguida, puxou-a para o colo. Agora, quero um relatório sobre tudo o que andou fazendo durante a minha ausência.

Estive arrumando o apartamento. Mary esteve aqui e me ajudou...

Chuck vai fazer exame comigo amanhã. Continue, querida. Quero saber de tudo.

Deixe ver. Tirei as cortinas para mandar para a lavanderia. E Mary estava dizendo...

É assim mesmo que vivem as mulheres dos militares, sem fazer nada! disse ele, rindo. Mas de que Mary estava falando? Quero saber, ainda que tenha sido uma anedota suja.

Mary estava falando sobre os planos dela para depois da guerra.

Ora, pensou ela, não vou fazer Larry falar sobre isso. Não interessa. Mas ele está fazendo tantas perguntas que tinha de acabar nisso.

Depois da guerra? Já ouviram dizer alguma coisa a respeito de um armistício?

Não, claro que não, bobinho!

Então por que me assusta assim? Estou achando a guerra muito boa. Que é que eles pretendem fazer?

Ela está colecionando plantas para fazer uma casa. Diz que já tem uma porção.

Pobre Chuck! exclamou ele, levantando-a do colo e depositando-a suavemente no chão. Vamos tomar mais um drinque à saúde do pobre Chuck condenado.

Faça o meu bem fraco, sim?

Embora gostasse de acompanhar Larry na sua disposição alegre, não conseguia acompanhá-lo na bebida.

Está bem, disse ele, reforçando o copo de Jean. Vou voar amanhã, mas isso ainda depende. Exame. Checkup. Cirurgião de voo. Coração. Vista. Equilíbrio. Reflexos. Cada vez que um piloto é transferido de uma base para outra, devem pensar que a outra base não sabia o que estava fazendo. Por isso, abrem o livro e começam tudo de novo. Depois, pouco depois, começam a pensar que talvez não tivessem feito o exame direito. E tome tudo outra vez. Mas, de qualquer maneira, a gente continua a voar apesar deles.

Ele a levou ao clube naquela noite para tomarem uma cerveja e dançarem um pouco. Quando estavam procurando uma mesa, viram Craig e Paul Blount adiante deles. Jean sorriu, tomou a mão de Larry e se encaminhou para eles, embora notasse alguma relutância da parte dele.

Quando Craig fez as apresentações, o rosto do Capitão Blount se abriu num largo sorriso. Apertou com força a mão dela. Paul Blount se excedia sempre nas suas gentilezas na presença de uma mulher bonita e até a voz se moderava inconscientemente, tomando um tom mais delicado.

Craig me falou sobre a senhora e o Tenente Thomas, disse ele. Agora, vou pegar-lhe uma cadeira. É um prazer tê-los aqui.

Não queremos interromper, disse Larry, olhando para o caduceu de Blount. Aposto que os dois estavam com alguém na mesa de operação.

Está enganado, - disse Blount, rindo. Tome uma cerveja conosco. Na realidade, Craig e eu esterilizamos os instrumentos e os pusemos de lado há alguns minutos. Estávamos falando de anóxia.

O Capitão Blount é um dos melhores cirurgiões de voo, disse Craig.

Ah, murmurou Larry.

Jean pareceu notar algum ressentimento no marido e perguntou prontamente:

E anóxia? Que é isso?

É coisa técnica demais para uma recém-casada, disse Blount. E nada tem de interessante. Prefiro cumprimentar seu marido.

Pois nós pensamos, disse Craig, com ar muito grave, que atualmente a baixa tensão do oxigénio nos tecidos tem muita relação com o estado de choque. E nos casos fatais de choque o fator principal deve ser a anoxia celular.

Acho que ele está precisando é de uma injeção da nossa língua, disse Larry a Jean.

Blount franziu as sobrancelhas ao ouvir isso e lançou um olhar frio e rápido a Larry antes de voltar-se de novo para Jean.

A verdade é que essa conversa não interessa absolutamente a uma senhora, disse ele. Devíamos todos era ficar calados e escutá-la.

Mas o que estavam falando deve ser muito interessante, disse Jean. Tem alguma relação com a aviação?

Claro que tem. Imaginamos que, se pudéssemos conservar alta a tensão do oxigénio nos pilotos desde o início do voo, e os convencêssemos a utilizar o oxigénio depois também, logo que iniciassem a ascensão...

Com uma máscara? perguntou Larry.

Sim, com uma máscara. Mas não se esqueça de que estamos apenas debatendo uma hipótese.

Uma máscara atrapalha terrivelmente quem está voando, Capitão, disse Larry.

Claro, disse Blount. Quer fumar, Sra. Thomas?

Jean aceitou o cigarro que lhe era oferecido, um pouco inquieta com o ar belicoso que Larry assumira desde que se sentara à mesa. Craig disse então abruptamente:

O Capitão Blount é de opinião que, quanto mais oxigénio um piloto tiver no organismo, melhor poderá resistir às lesões que porventura receber.

E se pudéssemos provar aos pilotos que isso lhes aumenta a eficiência, eles decerto se interessariam, disse Blount em conclusão. Como é? Já encontraram casa para morar?

Jean passou então a falar da procura e do apartamento com uns toques de humorismo. De vez em quando, olhava rapidamente para Larry até perceber que ele sorria, orgulhoso dela.

E o soldado que mandou, Craig, disse ela, rindo. Não imagina que rapaz ótimo. Ajudou-me a sair do carro e a embarcar com tanto cuidado quanto se eu fosse um embrulho de ovos.

Ótimo! exclamou Blount. Vamos beber outra cerveja em homenagem a esse soldado, Craig.

Craig teve um riso profundo e nervoso. Ao ouvir a aprovação por Jean do soldado que mandara, sentiu-se envolto numa grande felicidade. Chegou a sentir um tremor no corpo. Tinha de agradecer ao soldado, tinha de elogiá-lo por se haver saído tão bem. Murmurou:

Fico satisfeito de que tenha gostado dele.

E quando saiu, continuou Jean, disse-me que estava inteiramente à minha disposição. Ele é um grande admirador seu, Craig. Que foi que fez a ele?

Tirei-lhe o apêndice, disse Craig, solenemente.

Ora essa, Craig, disse Paul Blount, você bem sabe que isso só não é capaz de criar uma amizade assim. Voltou-se para Jean e explicou: Esse homem é incrivelmente reservado, Sra. Thomas. Vamos, Craig, explique-nos a história toda.

Craig sorriu.

E você acha que eu, sendo reservado assim, posso revelar um grande segredo?

Ele vai contar tudo anunciou Blount.

Craig tornou a sorrir. Mas era evidente que não se sentia à vontade e Jean ficou pensando no que havia com o cunhado e por que, de todo o grupo, Blount era o único que parecia inteiramente descontraído.

O Praça Smith disse Craig, veio procurar-me e disse que nunca tivera a intenção de ficar com os 55 dólares.

Que 55 dólares? perguntou Blount.

Foi também a pergunta que eu fiz quando ele me disse isso. Então ele me disse que tinha receio de que, se um praça desse 55 dólares a um oficial, pudesse acabar preso. Acrescentou que perdeu o emprego logo depois da operação...

O rapaz tem toda a razão, disse Blount, rindo. Não podemos permitir que os nossos majores atormentem os nossos soldados por uma questão de dívida.

Vamos dançar, Jean? disse Larry. Dão licença?

Os dois se levantaram, mas, como nesse exato momento a música parou, tornaram a sentar-se.

Creio que vi seu nome em nossas ordens hoje, Tenente Thomas, disse Blount. Vai fazer exame amanhã de manhã?

É o que parece, disse Larry secamente. Espero estar voando de novo amanhã. Mas isso depende, naturalmente, do que quiserem dizer em nossos papéis.

Uma ponta contida de mau-humor transpareceu nas feições de Blount, mas ele logo se voltou num sorriso para Jean.

Não se preocupe. O exame é coisa de pura rotina. Não deve haver qualquer obstáculo para o Tenente Thomas.

A música voltou a tocar e Larry se levantou, seguido de Jean. Os dois formavam um par esplêndido no salão e os dois oficiais os olharam em silêncio. Terminada a dança, não voltaram à mesa. Larry tomou Jean pelo braço e foi dar uma volta com ela para conhecer o clube.

Bem, disse Blount, creio que nada há na vida que se compare com isso, Craig. A lua-de-mel... Foi coisa que eu não conheci.

Você não gostou de Larry, disse Craig, tomando um gole de cerveja.

Está enganado, Craig. Não tem motivo nenhum para dizer isso. Bom rapaz, ótimo material de aviação... Talvez um pouco nervoso, mas os melhores são assim mesmo. E a moça é uma maravilha, Craig! Não se sente orgulhoso dela?

É interessante.

Interessante? É só isso que você diz? perguntou Paul, olhando curiosamente para o amigo.

Paul, você não gostou de Larry, repetiu Craig. E eu tenho de explicar-lhe uma coisa.

Está enganado, tornou a dizer Paul, movendo-se inquietamente na cadeira.

Ainda assim, deixe-me explicar-lhe. Mas, antes, vou tomar outra cerveja.

Craig estranhou que tivesse de sentir-se assim esgotado sempre que via Jean. A pequena tensão que a agitara, forçando-a a falar demais para dissimular o mau humor de Larry, se refletira no sistema nervoso dele e depois renovara a sua admiração por ela. E não era preciso falar no que representava para ele vê-la e, apesar disso, participar normalmente da conversação.

Blount olhou para o novo copo de cerveja sem fazer comentário. Até então, Craig sempre se limitara, com um sorriso firme, a uma só cerveja.

Larry está atravessando uma situação difícil, Paul. A verdade é que ele sempre teve um espírito de adolescente. Agora, está ele aqui como um homem de responsabilidade, oficial do Exército e aviador. Cheio de orgulho e ainda mais pela mulher que trouxe para cá. Nunca foi mais adulto em toda a sua vida. Entretanto, o Exército o mandou para cá, onde está o irmão mais velho. Não sob o meu comando, é claro, mas basta a minha presença para encher Larry de inquietação.

Tudo isso é imaginação sua, Craig.

Você o viu, não viu? Não lhe agradou nada sentar-se aqui conosco. Especialmente quando soube que um amigo meu, que também o irritou, é quem terá de decidir amanhã da sua aptidão para voar.

Mas a nossa amizade nenhuma relação tem com isso.

É claro, mas Larry sente a minha influência em toda a parte, mesmo onde ela não existe. Deve estar suspeitando de que eu quero controlar a vida dele por completo.

Não acredito que você tenha esse efeito sobre ele, disse Blount. Você está exagerando, embora esse estado de coisas seja muito comum entre irmãos e não tenha maior importância. Em todo caso, fico satisfeito de que só tivesse tido uma irmã. Você é que está todo emaranhado, Craig.

Como assim?

Você julga ver alguma coisa que não existe e por isso culpa-se a si mesmo. Ora, Craig, há muitas maneiras de desatar nós, mas a melhor...

Larry é um bom rapaz, disse Craig. Se às vezes parece um pouco instável é porque...

É um ótimo rapaz, sim, e eu tenho muito prazer em que ele esteja aqui, disse Blount com toda a sinceridade. Agora, por falar em quem está emaranhado, posso dar-lhe uma boa receita para isso.

Craig sorriu.

A mesma receita de sempre, não é? Por que vocês, que são devassos, não podem pensar em outra coisa?

Pensamos nisso sempre que temos oportunidade. E o conselho tem sido válido desde o início dos tempos. Todos os grandes homens o seguiram. Religiosamente.

Então você terá uma estátua em praça pública algum dia, Paul!

Quando isso acontecer, o meu aviso não me servirá de nada porque eu já estarei morto. Outros estarão procurando chegar à grandeza. Algum dia, Craig, eu o apresentarei a alguém. Não será velha, nem neurótica. Boa digestão. Jovem e interessada. Deus abençoe esse tipo de mulher!

Craig resmungou alguma coisa.

Ela não vai precisar de remédios, disse Blount com um largo sorriso. Nem de operação, a não ser uma da espécie mais simples.

Hei-de encontrar algum defeito nela, disse Craig, secamente. Saúde perfeita é coisa que não existe.

De volta ao hospital, pensou nos seus casos do momento porque se tratava de coisas em que podia pensar com confiança e certeza. Sentia-se muito agitado para ir para o seu quarto espartano e esperar o toque de silêncio. Passou pela portaria do hospital para saber como ia passando um soldado que tentara o suicídio, bebendo lixívia. O caso tinha dado muito trabalho e ele e outros da sua turma tinham duvidado de que valesse a pena tudo isso para salvar um homem fraco. Ainda que prestasse toda a assistência ao caso, Craig tinha pensado que tudo isso dificilmente poderia ser considerado do interesse de um Exército ativo. O tratamento era bom demais para um homem que se mostrara covarde quando a serviço de seu país.

Boa noite, disse ele ao sargento de serviço. Vou ver o caso de suicídio. Num impulso, embora procurasse dominar todos os seus impulsos, perguntou: Já descobriram por que ele fez isso?

Já, Major. Tentou livrar-se da convocação, porque tinha receio de que com isso perderia a namorada. E perdeu mesmo. Ele foi convocado e ela se casou com outro.

De uma maneira ou de outra, pensou Craig, todo mundo no Exército vivia rodeado pelas mulheres.

O soldado sorriu ao vê-lo e cumprimentou-o com uma inclinação da cabeça. A garganta estava em parte obstruída em virtude do efeito de constrição do tecido cicatricial que se seguira às terríveis queimaduras com a substância. Craig lhe colocara um tubo no estômago, cuja ponta emergia da incisão. As enfermeiras podiam assim alimentá-lo regularmente e conservar-lhe a energia. Mas, depois, seria preciso tratar da dilatação daquela garganta.

Por isso mesmo, um capitão médico havia dito a Craig:

Ele bem que poderia ter tentado outros meios de suicídio que não nos dessem tanto trabalho!

O soldado estava na pequena sala de recuperação da enfermaria porque poderia receber melhor assistência ali, perto das enfermeiras e dos enfermeiros militares.

O pulso estava mais lento e ele já havia recebido alguma alimentação pelo tubo no estômago.

Vai indo bem? perguntou Craig delicadamente.

O rapaz murmurou de maneira quase ininteligível através da boca queimada:

Seria bom se eu pudesse sentir o gosto da sopa.

 

No fim-de-semana, como sempre acontecia, chegaram alguns casos novos para o corpo médico. E Jean havia telefonado.

Pode vir jantar conosco, Craig?

A sua habitual capacidade de decisão lhe falhou. Apertou mais de encontro ao ouvido o receptor pelo qual vinha a voz que tanto o emocionava.

É a minha primeira tentativa de um jantar de domingo. Cheguei a fazer um pastel. Não é preciso ficar alarmado. Mas Larry e eu gostaríamos muito de que você pudesse ser o nosso primeiro convidado.

Parecia até haver um apelo na voz dela. E Craig se sentiu tão irresistivelmente atraído que disse imediatamente:

É uma pena. O coronel... Espero que me convide outra vez.

Ele não tinha outro compromisso. Mas, embora ele tivesse recusado o convite de Jean, não podia recusar com a mesma facilidade o seu interesse. Gostaria de saber que espécie de pastel tinha ela feito. E Larry seria capaz de elogiá-la, quer o jantar saísse bom, quer não saísse? E os graciosos movimentos enquanto ela servia o jantar, talvez com um sorriso de orgulho... Cada vez que ele se surpreendia olhando absorto para a janela, sacudia a cabeça, fechava os olhos e voltava ao trabalho. Que direito tinha ele, com tantas responsabilidades a lhe pesarem sobre os ombros, de pensar no tipo de torta que ela havia feito?

Estava ainda trabalhando no seu quarto naquela noite quando ouviu pelo telefone a voz de Paul Blount.

Craig! Você é um homem de ação ou não é?

Que espécie de ação?

Ação rápida e decisiva! Seu carro está aí?

Está.

Então escute. Se alguém se dirigisse a pé para o clube, você poderia pegar-me aqui no carro e chegar ao clube antes dessa pessoa?

De quem se trata?

De um tipo perigoso. Craig, você está perdendo tempo! Estarei à sua espera na porta.

Paul Blount pareceu estar em ótima disposição quando entrou no carro.

Até aqui, você correspondeu à minha expectativa e esteve à altura da situação, disse ele com ar de mistério. Agora, vamos ver se pisa neste calhambeque!

Assunto do Exército? perguntou Craig, com um sorriso malicioso.

Exatamente. Como é? Tem trabalhado muito? Muita coisa lá pela cirurgia? perguntou Blount com deliberada displicência.

Como sempre nos fins-de-semana. Fraturas e desastres de automóvel. Provavelmente, teremos ainda mais trabalho esta noite. Paul...

Estamos dentro da hora, disse Paul, quando passaram por uma loura de uniforme azul. Mas continue.

Pois saiba que estou com mais vontade é de voltar.

Será que você não compreendeu ainda, Craig? Precisamos apenas de tempo para pegar uma mesa perto da porta. Nunca vi um tipo mais perigoso do que aquela loura... Quando foi que ela se apresentou para o serviço?

Ora! exclamou Craig aborrecido, mas continuou com o carro. Há uns dois dias. Está servindo na sala de operações.

E o Exército teve de me botar para examinar aviadores, em vez de obrigar-me a praticar cirurgia.

Quando estacionaram o carro e se estavam encaminhando para o clube, Craig perguntou:

Antes de irmos adiante, Paul, que é que você tem em mente? Isso faz parte do conselho que me deu?

Não, não tem nada que ver com isso. Só lhe peço, Craig, é que seja capaz de um grande desprendimento. Você poderá tomar uma cerveja.

Blount encontrou uma mesa perto da entrada.

Bem, aqui estamos, disse ele, sentando-se. Hoje é domingo e nós dois trabalhamos o dia inteiro. Pensei que você devia sair um pouco. E eu também. E chegamos bem na hora!

Uma moça tinha chegado e estava à porta à procura de uma mesa. Usava o uniforme elegante do Corpo de Enfermeiras do Exército. Uma barra dourada marcava o seu posto de segundo-tenente e um absurdo chapeuzinho azul estava pousado nas ondas douradas dos cabelos. Parecia um anúncio de revista.

Enquanto ela corria os olhos pela sala com um vago sorriso, os olhos se voltavam para ela. O corpo um pouco opulento e os profundos olhos azuis acentuados por um toque de maquilagem teriam atraído a atenção em qualquer lugar.

Chame-a para cá, disse Blount. Estou precisando de uma coisa assim.

Craig hesitou. Não tinha o menor interesse pela enfermeira. Até não apreciava o tipo, pois ela era uma ostentação gritante da mais pura feminilidade.

Ande com isso. Vamos! murmurou nervosamente Blount. Craig se levantou, cumprimentou a moça com um sorriso e fez

um gesto, oferecendo-lhe um lugar à mesa.

Ela atravessou a sala, sorridente, por entre ondas de admiração masculina e análise feminina.

Está muito cheio isto aqui, disse Craig. Gostaria de sentar-se conosco, Srta. Marrell?

Adoraria.

Até a voz cantada completava o quadro.

Este é o Capitão Blount.

Blount estava segurando a cadeira para ela se sentar, olhando embevecidamente para os cabelos dourados.

Nunca apreciamos tanto este clube, Srta. Marrell, disse ele. Sue Marrell sorriu para Craig. Os olhos dela desmentiam a pose

um tanto arrogante que ele sentira na atitude da moça quando ela corria os olhos pela sala. Eram de um azul profundo e suave, mas os cantos da boca tinham pregas alegres. Pediu um refrigerante e tirou o chapéu com um leve agitar da cabeça.

Com cabelos assim, não devia cobri-los nunca, disse Paul.

Apesar dos regulamentos do Exército?

Quem fez os regulamentos não sabia que existiam cabelos assim. Há quanto tempo está aqui?

Quatro dias. Antes de ser mandada para cá, trabalhava na sala de cirurgia do Walter Reed.

Já teve oportunidade de ver o Major Thomas trabalhar? Ela bateu com a cabeça e sorriu.

Ajudei uma operação dele no dia em que cheguei. Nunca vi maior perícia.

Craig não gostava dela e não estava com disposição para conversinhas inconsequentes. E aquela voz cantada era um tanto irritante. Observou polidamente:

Não houve nada demais naquela operação. Os antigos faziam trepanações do crânio há mais de dois mil anos.

É verdade, disse ela, mas fixou de tal maneira os olhos nele, dizendo-lhe claramente que estava sendo modesto demais, que Craig ficou vermelho. Por fim, ela afastou os olhos.

Está gostando disto aqui? perguntou Paul.

No Walter Reed, eu tinha amizades a quem não me agradou deixar. Mas aonde quer que se vá, encontram-se pessoas de quem se gosta.

De uma maneira indefinível, pelo simples tom íntimo de sua voz, os dois estavam já incluídos entre as pessoas de quem ela gostava.

Blount estava radiante. Ela era justamente o que ele esperava e o que ele queria e, desde que ela parecia saber disso, as perspectivas eram maravilhosas.

Quer dançar, Srta. Marrell?

Craig ficou a vê-los dançar. Blount se movia pesadamente, mas com dinâmico vigor e Sue Marrell dançava com uma graça abandonada, inteiramente indiferente aos olhares que lhes dirigiam os outros homens que dançavam. Tinha de achar um pretexto para sair dali. Paul não se incomodaria. Muito ao contrário. Um garçom se aproximou da mesa.

Telefone para o Major Thomas.

A voz do oficial-de-dia da cirurgia parecia nervosa e rouca pelo telefone.

Tenho alguns casos bem graves aqui, Major. Um deles é uma fratura exposta e eu não consigo encontrar o chefe da Ortopedia.

Vou já para aí. Pode dar um jeito nos outros casos?

Acho que sim, mas estamos muito desfalcados hoje. Sue Marrell e Paul tinham voltado à mesa.

Tenho de deixá-los, disse Craig. Desculpem, mas acabo de receber um chamado do hospital.

É uma pena, disse Blount, piscando alegremente o olho. Mas, Craig, não acha que está trabalhando demais?

Qual é a espécie do caso, Major? Perguntou Sue Marrell.

Vou examinar uma fratura exposta. Brown me disse pelo telefone que está assoberbado.

Vai ter de operar, Major? É o que parece.

Se precisar de mim, disse ela.

Estão desfalcados no hospital, disse Craig. Mas está de folga, Srta. Marrell.

Eu irei, disse ela, levantando-se.

Se estão mesmo desfalcados, poderei dar uma ajuda também, disse Blount.

Foram encontrar um soldado que gemia com lábios descorados e a testa banhada em suor na sala de operação da Ortopedia. Craig tomou-lhe o pulso que estava rápido e fino.

Está em choque, disse Brown, o oficial-de-dia da cirurgia. Graças a Deus, encontrei-o. Estou-me preparando para aplicar plasma.

E a perna? perguntou Craig.

Fratura exposta grave. Ambos os ossos da perna. O quadro é horrível. Perdeu muito sangue e eu tive de aplicar um torniquete.

Craig tirou com cuidado os curativos temporários. A perna estava de fato com um aspecto horrível. O terço médio estava aberto num ferimento irregular, dilacerado, do qual emergiam as pontas lascadas dos ossos quebrados.

A que horas foi o acidente?

Há duas horas apenas.

Isso é uma coisa favorável, disse Craig. Os germes ainda não tiveram muito tempo de agir nesses tecidos.

Afrouxou o torniquete acima dos destroços ensanguentados. Durante um segundo, nada aconteceu. Depois, o sangue jorrou do ferimento. Apertou de novo o tubo de borracha e o fluxo cessou.

Uma artéria importante foi secionada, disse Craig a Sue. Marrell e a Blount, que olhavam atentamente para a extensão das lesões.

Um enfermeiro chegou com um pequeno vidro de plasma sanguíneo opalino e com os tubos e aparelho para aplicá-lo.

Não seria mais simples usar plasma seco? perguntou Paul.

Seria, se o tivéssemos, disse Craig.

Mas todo o plasma seco estava sendo mandado para o estrangeiro, para ser usado no teatro da guerra, pois era mais fácil de guardar e transportar do que o líquido.

Craig voltou-se para o oficial-de-dia.

Brown, o Capitão Blount vai aplicar o plasma e ajudar-me na operação. Convém preparar alguns dos amigos do paciente que tenham o mesmo tipo de sangue. O plasma aliviará o choque, mas ele precisa de sangue.

Vou mudar a roupa, Major, disse Sue.

Ela estava tão bonita no seu uniforme azul que parecia uma pena e os olhos dela o fitavam com respeito, mas não inteiramente.

Muito lhe agradeço, disse ele. Mas espere.

Paul Blount uniu os tubos ao vidro de plasma, deixando sair todas as bolhas de ar para que nenhum ar fosse injetado nas veias. Encontrou com alguma dificuldade uma veia na qual pôde inserir a agulha. A pressão era tão baixa que as veias não se distendiam bem. Mas, por fim, a agulha penetrou e o plasma, a parte líquida do sangue, começou a correr na circulação do rapaz.

É ótimo ter o plasma para empregar com rapidez, disse Blount. Não é preciso testar o tipo de sangue.

Na última guerra, disse Craig com os dedos no pulso do soldado, muitas vidas se perderam porque não se tinha conhecimento do plasma. Não havia tempo de parar e testar o tipo de sangue dos doadores para as transfusões.

O efeito do plasma foi quase imediato. O pulso se tornou mais lento e deixou de ser filiforme. Por outro lado, Paul Blount estava verificando a pressão arterial.

Está subindo, anunciou, dentro de alguns minutos.

O rapaz estava embrulhado em cobertores para impedir a perda do calor corporal. Craig levantou os cobertores para ver o pé. Estava azulado por falta do sangue vedado pelo torniquete ou pela solução de continuidade da artéria.

Quero este pé metido no gelo enquanto você prepara a sala de operação, disse ele a Sue Marrell.

Muito bem, Major, disse ela, perplexa. Mas o senhor disse gelo?

Sim, gelo.

O pé já estava frio da perda de sangue e Blount estava com a testa franzida quando os dois entraram no vestiário.

Para que o gelo, Craig? perguntou Paul, quando tiraram os uniformes e começaram a vestir os aventais de cirurgia.

O frio reduz a atividade das células e elimina a necessidade que têm de oxigénio.

Oxigénio que não podem conseguir porque um torniquete veda a passagem do sangue.

Claro. Sabemos que os torniquetes podem ser conservados quase indefinidamente desde que a extremidade esteja refrigerada.

Paul deu um assobio.

Mais um velho princípio que se desmorona. Mas você não pode salvar aquela perna, pode? O suprimento de sangue está interrompido. Era nesse ponto que amputavam na Grande Guerra. Era a prática regular do Exército.

Isso também se desmoronou. Está provado que se pode cortar o abastecimento de sangue arterial a qualquer parte do corpo desde que se prenda a grande veia que traz o sangue de volta. Os pequenos ramos colaterais se encarregam da circulação. Isso é, claro, no caso de não haver alguma infecção grave.

Craig falava em palavras entrecortadas de pausas enquanto trocava de roupa, pensando no que tinha de fazer durante a operação. Tinha prazer, entretanto, com as informações que dava. A ciência médica tinha avançado tanto quanto a arte militar e talvez muito mais.

O Capitão Brown apareceu.

Encontramos dois rapazes com o mesmo tipo de sangue.

Craig fez um gesto de assentimento. Até aquilo tinha sido simplificado naquela guerra. Todo o soldado tinha o seu tipo de sangue marcado na placa de identificação que usava ao pescoço. Não era mais preciso testar o sangue de uma fila enorme até encontrarem-se os doadores necessários. Bastava olhar a placa de identificação.

Vamos, disse ele a Blount. Vamos lavar-nos.

Sue Marrell já estava diante de uma das grandes pias. Paul Blount olhou-a com admiração dentro do avental. Ela levantou os olhos, mas voltou ao sabão, à água e à escova, como se duvidasse da sua limpeza. Os três se entregaram às abluções como se se tratasse de um rito religioso. Craig pegou um pau de laranjeira e limpou cuidadosamente as unhas. Isto fazia parte dos preparativos para todas as operações. Se uma luva se rasgasse num momento decisivo, não haveria material infectado para anular a assepsia.

Há seis meses não me preparo para uma operação, disse Blount. Que é que acha melhor, Srta. Marrell, limpeza ou piedade?

Sabão, disse ela, sorrindo. Pode dar-me as suas suturas agora, Major Thomas?

Seguiremos a rotina. As suturas e agulhas para todas as espécies de operações eram apontadas em cartazes na porta dos armários de instrumentos. As enfermeiras tinham apenas de seguir as indicações, a menos que ocorresse alguma coisa imprevista. Precisaremos de agulhas finas e seda fina para coser a artéria.

Já as preparei.

Ótimo. Foi bom ter pensado nisso.

Muito obrigada.

Craig pensou que ela não tinha necessidade alguma de lhe agradecer. Era indiscutivelmente uma boa enfermeira, competente e inteligente. Mas não conseguia ser impessoal. Mesmo ali, obrigava a pensar-se nela.

O paciente deu entrada na sala, coberto por um lençol e preso numa mesa de fratura para que se pudesse fazer tração sobre a perna durante a operação.

Está indo bem? perguntou Craig ao anestesista.

Está, sim. Estou fazendo uma anestesia tão leve quanto possível.

A anestesia profunda era um choque em si mesma.

Craig calçou as luvas esterilizadas. Esfregou a pele em torno do ferimento, tendo o cuidado de não levar qualquer detrito de fora para dentro do ferimento. Lavou o ferimento muito delicadamente com água e sabão. Passou uma camada de anti-séptico em torno do ferimento e até às bordas cortadas da pele. Paul Blount tinha-se esquecido da enfermeira e observava tudo com olhos atentos e um inconsciente movimento dos lábios.

Nenhum anti-séptico dentro? murmurou.

Outra coisa que aprendemos, disse Craig. Estava cobrindo o ferimento com panos esterilizados que manobrava com instrumentos longos e flexíveis de modo que os dedos já contaminados nunca os tocassem. Um anti-séptico forte danifica os tecidos e retarda a cura.

Tirou as luvas e meteu as mãos no vaso de álcool ao lado da pia. Aceitou o avental comprido que Sue Marrell estendia para ele e suspendendo-o com um gesto que indicava muita prática, meteu os braços nas mangas. Ela lhe cobriu as mãos de talco esterilizado e estendeu luvas de borracha branca em que ele enfiou as mãos.

Pronto? perguntou ao anestesista.

Ao sinal do homem, pegou um bisturi. Passou-o ao longo do ferimento, cortando a pele cerca de três milímetros da borda. Segurando então essa borda com instrumentos, pegou outro bisturi de modo que as bactérias que tivessem ficado na pele não fossem levadas para o fundo do ferimento. Todos os seus movimentos eram uma batalha contra as bactérias e ele continuou. Aparou laboriosamente as franjas laceradas e maceradas da pele, dos músculos e dos tecidos até que todo o ferimento ficou aberto e limpo de carne, sangrando apenas em alguns pontos. Deu o bisturi a Sue Marrell e empertigou o corpo para descontrair-se.

Bom trabalho, muito bonito, disse Paul Blount, referindo-se ao que faria um leigo estremecer de horror.

Se não tivéssemos uma artéria lesada, disse Craig, tiraríamos agora o torniquete e fecharíamos com grampos todos os pontos de sangramento. Mas não podemos fazer isso agora. Retratores.

Estendeu a mão para os instrumentos dentados que pareciam ancinhos.

Preciso de você, Paul. Vou expor a artéria e ver a forma em que está. Mas teremos de reparar primeiro o osso. Se não fizermos isso, poderemos rasgar a artéria que trabalha no osso.

Colocou os instrumentos cuidadosamente e Blount tomou-os nas mãos, retraindo as paredes do ferimento para dar ao cirurgião visão livre no seu delicado trabalho. A retração era um serviço para mãos firmes e pacientes.

Um silêncio absoluto pairava sobre a sala, cada qual concentrado no trabalho que tinha para fazer. Craig trabalhava com a mão pronta e leve e com um rosto impassível. Abriu os tecidos até ver a ponta cortada da artéria, que palpitava para fazer jorrar a vida do paciente numa torrente vermelha no momento em que a constrição que a prendia mais acima fosse atenuada.

O bisturi fez pequenos e deliberados movimentos. Por fim, as duas pontas cortadas da artéria estavam ao lado uma da outra e então as paredes despedaçadas da veia também se mostraram. Craig derramou água estéril nas profundezas do ferimento, como havia feito em todas as fases da operação.

Não pode consertar aquela veia, pode? perguntou Paul. Craig abanou a cabeça.

Mas a artéria pode ser ligada com facilidade. Craig tornou a sacudir a cabeça.

Ainda não tratamos do osso. Isso poderia separar de novo a artéria.

Pegou novos instrumentos e olhou para o relógio. Parecia que se havia passado um tempo interminável de trabalho e tensão desde que haviam lavado as mãos, mas tinham sido apenas meia hora.

Expôs os ossos quebrados. A tíbia, o osso grande, estava rachada, obliquamente uns sete centímetros e um grande fragmento, parcialmente desprendido, estava caído de lado nos tecidos dilacerados.

Removeu cuidadosamente pedacinhos soltos de ossos e de novo derramou água na área. Trabalhando com instrumentos de cabo comprido, fez as bordas quebradas do grande osso caírem exatamente no lugar.

Não sabia que você era ortopedista, Craig. Agora, como vai prender esse osso?

Com uma chapa de metal.

Chapa de metal numa fratura exposta? Não foi assim que eu aprendi. O risco de infecção é muito grande.

Você aprendeu isso antes de haver a sulfanilamida. E eu também. Não sei como é que podíamos praticar medicina naquele tempo.

Praticar, praticávamos, disse sorrindo Blount. Os pacientes é que morriam.

Sue Marrei entregou a Craig uma chapa comprida e estreita com seis orifícios para os parafusos que prenderiam firmemente o osso contra o metal.

Obrigado, disse ele. É vitálio?

Sim, Major.

Durante toda a operação, ele havia sentido a calma eficiência da enfermeira. Tudo o que ele queria estava sempre ao alcance da mão e todos os seus movimentos eram antecipados. Ela era uma excelente enfermeira de sala de operação. Craig pretendia usá-la o mais possível.

Muito bom trabalho o seu, Srta. Marrell.

Obrigada, Major, disse ela, com um olhar satisfeito que espalhou um calor pela sala. É um prazer vê-lo operar, Major Thomas. Espero que me chame sempre.

Craig praguejou intimamente. Ela devia ter ficado no agradecimento.

Por que vitálio, Craig? perguntou Paul.

Porque é eletricamente negativo. As chapas antigas às vezes estabeleciam correntes. Prejudicavam a cura. Cãibras de Lohman.

Colocou os ossos e a chapa no lugar, mantendo-os com um grampo especial. Furou o osso com uma broca através de cada perfuração da chapa e inseriu depois longos parafusos que atravessaram o osso e ficaram firmemente presos.

Com um pouco de tensão, as duas pontas da artéria se juntaram. Craig deu um suspiro de satisfação. Às vezes, isso não acontecia com tanta facilidade.

Preciso agora das agulhas e da seda, Srta. Marrell.

Mas tudo já estava pronto na mão dela. Enquanto Paul mantinha as duas pontas da artéria na posição exata, Craig começou a costurar. Cada ponto era quase incrivelmente delicado. Cada uma das flexíveis agulhas tinha de penetrar com a profundidade suficiente para resistir à tensão que se produziria quando o sangue começasse a correr. Mas, se chegasse ao delicado revestimento interno, a sua presença poderia provocar a formação de coágulos.

Quando acabou de dar os pontos, Craig cortou um pedaço de veia danificada e cobriu com ela a parte costurada, suturando-a como uma barreira de reforço aos vazamentos de sangue.

Chamou um enfermeiro que estava auxiliando a operação e disse-lhe:

Pode tirar o torniquete.

Durante um momento, nada aconteceu. Então, houve um sangramento no canto superior do ferimento. Craig prendeu o ponto com um grampo e observou a artéria. A princípio, houve uma pulsação quase imperceptível enquanto o sangue começava a descer pelo vaso. A pulsação aumentou até que se tornou uma palpitação firme que distendia a artéria a cada contração do coração, com o sangue bombeando para a perna e o pé. Observaram durante dez minutos sem que aparecesse o menor sinal de vazamento. A satisfação abriu sorrisos no rosto dos três. Paul Blount teve vontade de dar gritos de triunfo.

Parece que está bem, disse simplesmente Craig. Tomou a lata de sulfanilamida que Sue lhe entregou e espalhou o pó estéril por todos os recantos do ferimento, cobrindo os bordos e revestiu com ele o osso e a artéria expostos. Depois, tomou uma agulha com um categute colorido.

Vai fechar? perguntou Paul. Craig sacudiu a cabeça.

Os ingleses descobriram que ferimentos desse tipo devem ficar abertos. Só vou suturar alguns músculos sobre a artéria a fim de protegê-la.

Com algumas suturas, estendeu um teto de carne sobre a artéria. Colocou frouxamente no ferimento uma longa tira de gaze impregnada de vaselina.

Gesso? perguntou Sue.

Não. Talas de Thompson. Teremos de observar isso cuidadosamente.

Afastou-se da mesa e começou a tirar as luvas. Um trabalho assim esgotava toda a energia de um homem.

Obrigado, Paul, disse ele, cansadamente. Obrigado, Srta. Marrell.

Nós é que temos de agradecer, disse Blount. A melhor operação a que já assisti. Que é que acha do nosso major Srta. Marrell?

Ela sacudiu lentamente a cabeça e o gesto foi eloquente como um elogio.

Quando acabar de mudar a roupa, disse ela, terei café pronto para nós. Querem café, não querem?

Ótimo! disse Blount. Preciso agora mesmo de café, de um cigarro e de um pouco mais de sua companhia.

Mas Craig se irritou com a ideia de que Sue Marrell quisesse transformar os seus deveres no hospital numa reunião social e disse:

Não quero café, mas muito obrigado.

Sim... Ela prolongou a palavra como se ele fosse dizer mais alguma coisa.

Boa noite, disse ele e se encaminhou para o vestiário.

Já é tarde, Srta. Marrell, disse Paul, e eu gostaria de levá-la até a sua casa.

Craig vestiu-se devagar. Passaria pela enfermaria a fim de ver o soldado e verificar se haviam colocado as talas direito. Depois, iria dormir.

Não gostou do tipo dela, não foi? perguntou Paul. Pois para mim essa pequena tem tudo.

É uma enfermeira de primeira ordem. Blount riu.

É como mulher que estou pensando nela, Craig. Quando ela fala com aqueles tremidos na voz, não sente alguma coisa em todas as suas glândulas?

Felicidades... disse Craig, rindo.

Bem, vou fazer toda a força que puder. Mas ela gosta de você, Craig. Ou da maneira de você operar.

Felicidades, Paul.

Paul Blount estava assobiando enquanto esperava por Sue Marrell à porta da seção de Cirurgia. Quando apareceu, ela estava de novo com o uniforme azul e o elegante chapéu.

Telefonei pedindo o café, disse ela. Mas ainda não estava pronto. Faz questão disso?

Claro que não. O café me tira o sono. Mas estar com você vai-me tirar o sono da mesma maneira.

Deve saber o que é preciso fazer neste caso, disse ela, sorrindo.

E sei. Mas... Escute, não foi uma ótima operação?

Magnífica.

E que é que acha do Major Thomas?

É um excelente operador. Mas é isso mesmo que quer saber? perguntou ela com uma ponta de malícia.

Claro, disse Blount lealmente. E ótimo sujeito também. Ela nada respondeu, mas tomou-lhe o braço quando chegaram à

estrada escura. Ele lhe pegou a mão. Caminharam lentamente até aos alojamentos das enfermeiras. Paul parou pouco antes de chegarem à entrada iluminada.

Quero deixar uma mensagem com você, disse ele com voz rouca. Pegou o outro braço dela sem encontrar resistência e virou-lhe o corpo até que ela ficasse de frente para ele. Você é muito linda!

Ela riu.

É essa a mensagem?

A primeira parte. O resto...

Puxou-a para os seus braços. Ela se aproximou sem resistência e a pressão do corpo dela contra o dele era desinibida e perturbadora. Os lábios eram úmidos. Muito tempo se passou até ela fazer menção de se afastar.

Capitão, disse ela, você faz uma mulher se sentir onde deseja estar.

Temos então de repetir isso, para ver se é mesmo. Mas ela sacudiu a cabeça.

Boa noite, disse ela da porta.

Até à vista! disse Paul.

Jean se vestia quando Larry chegou. Estava sentada de combinação diante da penteadeira e se voltou com alegria ao ouvir-lhe os passos. Ele sorria jovialmente e isso a alegrou, porque ela já estava aprendendo a diversidade dos estados de ânimo do marido, embora nem sempre os compreendesse. Larry se inclinou e beijou-a no rosto.

Está-se embelezando para o jantar do coronel? Por que não vai como você é, meu bem?

Já preparei sua roupa.

Obrigado. Quer que eu me vista também? Ela sorriu.

Mas não é uma festa de cerimónia?

Claro que é. Os oficiais e suas belas esposas. Mas acontece que você será a única bela esposa... O resto você é quem diz.

Mas Jean pensava exatamente assim. Outros homens apareceriam com fardas mais imponentes e mais cheias de galões, mas nenhum deles se compararia com seu querido e esbelto marido.

E você dos homens será o mais bonitinho, disse ela, rindo.

Bonitinho? Veja lá com quem está falando!

Tirou a camisa e, pegando o roupão, foi para o banheiro. Jean ouviu a água do chuveiro correr.

Craig me disse que vai chegar atrasado, disse Larry do banheiro. Pediu desculpas de não nos pegar.

Era uma recepção do comando, coisa que não se justificava em tempo de guerra. Tinha havido todo o cuidado em se dizer que não se tratava de uma recepção, mas ninguém a considerava de outra maneira. Todos os oficiais e suas esposas estariam presentes.

Larry saiu do chuveiro com o roupão de banho amarrado na cintura.

Você está tão linda que dá até vontade não sei de quê, disse ele. Vestido novo?

Com o que um tenente ganha? Não, é apenas um vestido que você ainda não conhece.

Você vai ser a rainha do baile, disse ele, apertando-lhe o braço.

Cuidado, Larry. Agora vou ter de me empoar de novo. Mas ela não estava zangada. Era aquele o Larry com quem se

havia casado, alegre, amável e imprevisível. Ele pegou uma garrafa e preparou um bom drinque.

Preciso criar coragem para esta noite, disse ele. O coronel servirá os tenentes-coronéis e os majores. Os capitães deixarão muito pouco e é com isso que eu terei de me arranjar. Jean, quer me dizer por que me casei com uma mulher em quem não posso tocar?

Ela riu e ficou na ponta dos pés para beijá-lo.

Contente-se com isso. Agora, tenho de passar mais quinze minutos para retocar a maquilagem.

Precisamos de um carro de segunda-mão, disse ele. Tinha vendido o seu último carro na Califórnia. Não sei quanto tempo vamos ficar aqui, mas tenho olhado. O pior é que não se contentam mais com uma pequena entrada como antes da guerra. Não sabem o que pode acontecer e não querem facilitar. Ou vendem à vista ou exigem mais da metade. Tenho de conversar com Craig.

Estavam muito bem, pensou Jean enquanto desciam para pegar um táxi. O novo uniforme tropical, como todos os uniformes aliás, fazia de Larry um espetáculo. E ela sabia que aquele vestido de jérsei branco a favorecia muito.

Haverá muita gente lá? perguntou ela.

Talvez centenas de pessoas. Todos os oficiais da guarnição e da base foram convidados.

Há alguém interessante?

Duvido muito. Aqueles com quem já tive contato me pareceram morais. E muitos só vão porque não têm coragem de desconsiderar o coronel. É preciso ter o máximo de cuidado numa festa assim.

Há alguma coisa especial que as mulheres dos oficiais mais novos possam fazer?

Tratar bem a mulher do coronel, disse ele, rindo. Para você, não vai ser difícil depois daquela história que você contou a ela. Muitas pedirão a ela conselhos sobre a criação dos bebés e coisas assim.

Eu bem podia inventar um bebé.

Poder, podia, mas não convém nem inventar enquanto eu ganhar apenas como segundo-tenente e de modo algum na recepção do coronel.

A sentinela ao portão apresentou armas. Continuaram no carro e pararam diante do polícia militar. O homem olhou o cartão de identificação de Larry e fez sinal para passarem.

Como foi que ele pôde saber que era eu? perguntou Larry. Ninguém sai parecido nessas fotografias do Ministério da Guerra.

Não é parecido, mas é muito lisonjeiro, Larry.

Ele fez uma careta carinhosa. Ouviram a música na casa do coronel. Quando se aproximaram, viram pares que dançavam no terraço.

Será que eu estava enganado? murmurou Larry. A coisa parece que está boa. Reserve para mim a primeira dança, querida, antes que os lobos famintos se atirem a você.

Jean subiu para o toalete das senhoras e Larry ficou no vestíbulo para fumar um cigarro. Falou com outro aviador que veio lá de dentro com uma morena pelo braço.

Como está a coisa? O piloto piscou o olho.

Os drinques são na sala leste.

Um garçom apareceu com uma bandeja de coquetéis. Larry tocou-lhe no braço.

Às ordens.

Larry esvaziou o copo e colocou-o cuidadosamente atrás de um jarro de flores numa mesa. Já havia outros copos ali. Pensou que às vezes Jean se preocupava com os drinques dele. Era tão gentil que não dizia nada, mas ele não queria que ela se preocupasse.

Quando Jean desceu, ele lhe deu o braço. Um ajudante-de-ordens se aproximou todo sorridente e tomou-lhes os nomes. Quase não havia contatos sociais durante a guerra e o comandante mal conhecia muitos dos seus oficiais, tamanha era a rapidez com que passavam por lá.

Tenente Thomas e Sra. Thomas. disse o ajudante em voz baixa, ao lado do comandante, para a fila de recepção.

Jean cumprimentou e apertou a mão do homem alto e grisalho com as asas de prata nos ombros e com a mulher magra e de rosto severo que estava ao lado dele. No fim da fila, a Sra. Flynn sorriu para ela e falou com o seu coronel. Era bom ver um rosto conhecido.

Já encontrou apartamento, querida? perguntou a Sra. Flynn. E não houve mais acidentes na sua lua-de-mel? Estou quase decepcionada, sabe?

Passaram sorrindo pela fila de recepção. A sala de estar e a de jantar tinham sido transformadas num grande salão repleto com a abertura das portas envidraçadas que havia entre as duas. O bar estava instalado numa pequena varanda. Fora, no terraço, dançavam pares. Tudo estava superlotado como uma arquibancada de estádio.

Preciso de um drinque, disse Larry. Vamos sair daqui.

Isto está divertido, Larry, murmurou ela. Temos de dançar muito. E não beba demais. Não se esqueça do seu exame amanhã.

E não sei disso? Tenha confiança em mim, meu bem. Paul Blount estava na varanda, entregando um copo de bebida a Sue Marrell.

Olá! disse ele cordialmente. É um prazer ver vocês dois.

Nas apresentações, Jean e Sue se examinaram polidamente, como se não se estivessem examinando, e Sue, no seu uniforme azul, invejou o vestido decotado de Jean. Larry, com um gentil cumprimento, tomou conhecimento imediato dos cabelos, dos olhos e do busto opulento de Sue.

Sue disse Paul, o Tenente Thomas é irmão do Major Thomas.

Estou vendo uma semelhança, disse ela, sorrindo.

E eu também, exclamou Paul, como se isso fosse uma surpresa.

Mas Craig é quem tem cabeça, murmurou Larry.

Ora essa, a coisa mais inteligente que algum Thomas já fez, foi você quem fez, disse Paul Blount, olhando com um sorriso para Jean.

O Capitão Blount gosta muito de dizer coisas justas e gentis, disse Sue a Jean. Mas há uma semelhança, não acha? É claro que o Major Thomas tem tipo de homem solteiro.

Jean aborreceu-se com os olhos profundos e o sorriso de Sue. Havia muita personalidade e audácia naquela loura. Larry deu um copo a Jean e pegou outro.

Acha que posso tomar um drinque, Capitão Blount? Paul riu.

Sei que a moderação é uma virtude, disse Larry, mas não em excesso.

Sue riu languidamente como se ele tivesse dito uma coisa muito engraçada.

Todos os pilotos gostam de beber, não acha, Paul?

A irritação de Jean já se estava transformando numa fria raiva, mas Larry sorriu para a loura. Perguntou a Blount:

Qual será o efeito sobre o meu Schneider?

Não devia dizer-lhe, disse Blount, mas você já deve saber. Alguns drinques à noite, na véspera do exame, fazem o índice de Schneider subir em vez de descer. Há muitos aviadores que se salvam assim.

Que é índice de Schneider? perguntou Jean, embora Larry já lhe tivesse falado muitas vezes sobre isso. Mas ela queria levar a conversa para um terreno mais elevado, porque aquele ambiente de brincadeiras deixava a enfermeira muito à vontade.

Índice de Schneider é uma coisa que os cirurgiões de voo inventaram para impedir os pilotos de voarem, disse Larry.

Paul riu.

Pronto, o Tenente Thomas já explicou tudo. Mas trata-se de um método de medir a aptidão de um aviador colocando-o em diferentes posições e exercícios, e vendo o que é que acontece com o pulso e a pressão arterial. Espero que dance ao menos uma vez comigo. E onde está Craig, aquele velho dançarino?

Vem aí. Mandou dizer que tinha de operar.

É mesmo? disse Sue. Não vi nada marcado no quadro dos avisos.

Jean deixou o copo no balcão do bar.

Se você quer a primeira dança, Larry. Moveu um pouco os pés, embora na presença de Sue Marreil não sentisse a menor animação. Vou dançar.

Larry passou o braço por ela e os dois se encaminharam para o terraço no compasso da música.

Esse camarada me cansa, sabe? disse ele. Fica cheio de coisas só porque eu sou o irmão de Craig. Mas você vai ver se amanhã me apertará no exame ou não.

Isso é imaginação sua, Larry. Parece um homem bom e justo. Simpatizo com ele.

Está muito bem. Mas você vai-se convencer, minha filha. Como acha você que aquele pretensioso conseguiu aquela loura?

Ela é bem bonita, disse Jean cautelosamente. Não acha?

Bem, para quem gosta do tipo, talvez, disse Larry, embora estivesse olhando, através da porta escancarada, para Sue Marrell, em cujos ombros Paul pousara uma grande mão de proprietário. Mas o tipo de que eu gosto...

Quando a música terminou, Larry disse displicentemente:

Bem, se quisermos outro drinque e precisamos de mais um, meu bem temos de voltar para lá.

Encontraram Craig com Blount e Sue Marrell. O porte erecto de Craig impunha tão grande autoridade natural quanto qualquer oficial presente à recepção. Com a farda irrepreensível, era um homem impressionante mas severo, que dava escassa atenção às palavras de Sue.

Apendicite de urgência, dizia ele. Um caso meio complicado. Ao ver Jean, sorriu e disse num tom diferente: Jean, você está muito bem. Você...

Ora, Craig, não vá pedir que ela lhe mostre a língua, disse Larry meio maliciosamente.

Blount se mostrou constrangido, mas Sue Marrell lançou olhares lânguidos para Larry e para Craig, que olhava embaraçadamente para Jean. Craig viu que ela não estava também satisfeita com a situação.

Muito bonita, disse ele desajeitadamente. Vamos dançar?

Larry disse então a Blount:

Com licença, Capitão?

A maneira de Sue dançar fez o coração de Larry dar um salto. Esperava mais ou menos aquilo, mas o corpo da pequena acompanhava o dele num movimento fluido e sem esforço. Sentia a coxa dela inteiramente colada à dele.

Achei que lhe devia dar umas férias daquele bode velho, disse ele, sondando o terreno. Ou será preconceito meu contra todos os cirurgiões de voo?

É preconceito, disse ela, com um risinho baixo, no fundo da garganta. Ele é boa pessoa. E sua mulher é muito boa pessoa.

É claro, disse Larry. Quem mais é boa pessoa?

Acho que você é, murmurou ela perto do ouvido dele.

Ou não é?

Estava falando em você, disse ele, rindo. Não em mim. Em você.

Não vamos confundir as coisas, disse ela. - Aliás, da maneira que me está agarrando, Tenente, já há confusão que chegue entre nós.

Era bem viva, pensou Larry, e gostava de jogar com as palavras. E o corpo dela estava tão ligado ao seu que ele sentia o sangue latejar-lhe as veias.

E um velho hábito meu esse de apertar, disse ele. Mas não me faça parar se eu avançar o sinal.

Quantas pequenas você já fraturou com esse hábito?

Ah! exclamou Larry.

Era daquilo que ele gostava. Sentia uma emoção como a da caçada ou de um mergulho de avião. Sorriu amplamente, pensando em como iria prosseguir com ela, quando Jean e Craig passaram ao lado deles. Os quatro se cumprimentaram com o sorriso meio pueril que as pessoas têm nos salões de dança.

Não me venha dizer que é um lobo mau, murmurou ela.

Porque não é, sabe?

Quem foi que disse que eu não sou?

Bem, você não é um lobo mau do tipo solteiro, disse ela rindo.

Larry teve a impressão de que ela se colara mais a ele de uma maneira imperceptível, mas as palavras dela de algum modo o tinham magoado.

Diz isso só porque eu sou casado? perguntou ele. Explique-se ou eu lhe fraturo mesmo umas duas costelas.

Ela sacudiu a cabeça negativamente e os sedosos cabelos roçaram pelo rosto dele.

Vamos, explique-se. Mas a música estava terminando. Com um último aperto, ele deixou que ela se afastasse. E você? Por que não é casada?

Não sei, disse ela, encolhendo os ombros. Sou apenas uma influência perturbadora.

Quero ser perturbado mais um pouco, disse ele. No momento, precisamos é de outro drinque.

Não vá beber demais, disse ela, bondosamente.

Para Craig, a dança tinha sido uma coisa inenarrável. Teve Jean nos braços com delicadeza e receio. A proximidade do rosto e dos cabelos dela, a graça com que ela dançava acompanhando-lhe os movimentos, tudo isso lhe produziu tal tremor íntimo que ele teve de fechar a cara para não deixar transparecer nada. Quando ela roçava o corpo mais de perto por ele nas voltas, ele perdia o fôlego. Não havia calculado que pudesse ser assim. Como se a sua inquietação se houvesse transmitido, Jean disse:

Senti muito que não tivesse podido ir jantar conosco ontem, Craig. Foi realmente um bom jantar, acrescentou com um risinho nervoso.

Tenho certeza disso. Foi uma pena.

E virá em breve?

Assim espero.

Procurarei avisá-lo com mais antecedência, disse ela. Bem sabemos como você é ocupado.

Passaram na dança por Larry e Sue.

Uma de suas enfermeiras? perguntou Jean.

Sim, e muito competente.

Belo tipo de moça, não é?

Paul Blount pelo menos acha.

E Larry também, disse ela, rindo. Como gosta de dançar! Olhe para ele e veja como se está divertindo.

Craig olhou para o rosto de Larry, iluminado de prazer quando ele inclinava a cabeça para escutar alguma coisa que Sue lhe estava dizendo.

Larry nunca deixa de se divertir, murmurou Craig, sentindo inveja no fundo do coração.

Nem sempre, Craig. Sinto às vezes que ele não tem nenhuma segurança. Gostaria de vê-lo feliz o tempo todo. Acho que sou tola, mas quando ele não está sorrindo, fico logo preocupada.

Não é preciso preocupar-se com Larry. Ele é muito feliz.

Você o conhece bem, Craig, e não sabe o conforto que me dá.

Quem? Eu? perguntou ele, espantado.

Tenha calma, disse ela, rindo. Todo mundo confia em você. E acrescentou, sem explicar coisa alguma: Fico muito satisfeita de que esteja aqui.

Quando a orquestra parou e eles seguiram Larry e Sue até onde havia ficado Paul Blount, Craig começou a procurar um pretexto para afastar-se. Avistou dentro da sala a pequena figura da mulher do coronel. Estava olhando para ele e sorriu imediatamente.

Lá está a Sra. Flynn, disse Craig inconsequentemente. Com licença...

Pois não, Major, disse Sue, calmamente. Dentro em pouco, Craig estava ouvindo a Sra. Flynn.

Encantadora sua cunhada, Major Thomas.

É verdade. Meu irmão teve sorte.

E o senhor está de novo trabalhando demais, não é? É o que o seu aspecto indica. Mas o coronel também trabalha assim. Não há alguma espécie de tónico...

Notou depois que Larry estava bebendo demais. Seria isso que Jean tinha em mente quando dissera que confiava nele? Ou tinha dito isso apenas para ser-lhe agradável? Tanto quanto lhe era possível, observava-lhe o rosto. Ela dançou com Larry e com Paul. Larry dançou com ela e com Sue. Craig gostaria de que ele quebrasse esse padrão, porque sentia na expressão habitualmente satisfeita de Jean uma ponta de aflição. Culpou o irmão enquanto falava com a Sra. Flynn e com o coronel. Dançou uma vez com a Sra. Flynn. Quando voltou, teve o prazer de encontrar Chuck Waller e Mary.

Estávamos admirando a lua, dizia o Tenente Waller ao coronel. Estava tentando tirar a música da cabeça de Mary, mas ela me fez entrar.

Chuck Waller era um texano de rosto magro. Mary olhou-o zombeteiramente.

Chuck dançaria perfeitamente, disse ela à Sra. Flynn, se pudesse pousar a mão em meu pescoço e me manobrasse como um pedaço de pau, mas... Vamos, Chuck.

Agora, não há pressa. Vou chamar Larry para dançar com você. Sabe onde ele está, Major?

Craig apontou vagamente com a cabeça para o terraço. Começou a falar com o Capitão Brown, que estava com a testa franzida e falava de casos do hospital, escutando atentamente as opiniões de Craig. Paul chegou do terraço para dançar com Mary e Chuck, arrastou desajeitadamente pelo salão em companhia de Jean. Mas Larry e Sue Marrell não apareceram. Depois da dança, Paul levou Jean para onde estava Craig.

Achamos que você deve tomar um drinque conosco, disse-lhe Blount, piscando quase imperceptivelmente o olho.

Deve, sim, e eu estarei com os dois dentro de um minuto, disse Jean com um sorriso. Mas Larry disse que eu devia pedir um conselho à mulher do coronel e eu estou vendo uma chance.

Craig olhou por um momento Jean que falava e sorria e a Sra. Flynn, com o rosto radiante de prazer.

Paul, onde é que Larry está? perguntou abruptamente.

Por aí, respondeu Blount. Estava ainda há pouco junto conosco. Talvez um pouco alto, mas nada de causar preocupação.

Jean chegou então e os três contornaram o salão de dança a caminho do terraço. Paul levou-os a uma mesa com copos e garrafas e um grande vaso com pedaços de gelo.

Vou fumar um cigarro desta vez, disse Jean.

Craig preparou para si um drinque forte e passou a garrafa a Paul. Um vento suave levantava de leve as pontas da toalha da mesa. Olharam para as árvores e os arbustos que se sacudiam num lento ritmo prateado.

A lua está linda, murmurou Craig, sabendo que as suas palavras tinham um tom falso. Deve estar quase cheia.

Larry e Sue saíram do meio das árvores, caminhando num passo rápido de dança, e pararam enlaçados. Quando Larry curvou a cabeça para trás, os cabelos de Sue brilhavam como prata ao luar.

Jean pousou de repente a mão no braço de Craig e ele a sentiu tremer ali. Depois, ela se voltou e olhou para os que dançavam no salão. Craig e Paul entreolharam-se e se voltaram como ela.

Não me lembro de outra ocasião em que tenha dançado tanto, disse Jean com uma voz nervosa. E acho a Sra. Flynn muito simpática. Ela se diverte à nossa custa, de Larry e de mim.

Larry disse a Sue quando Blount saiu para dançar com Mary Waller:

Agora que o capitão se foi, este camaradinha aqui vai tomar outro drinque.

E esta meninazinha aqui diz que não, disse ela.

Larry concordou, satisfeito. Gostava da maneira lânguida e brincalhona de Sue. Gostava de dirigi-la. Largou o copo em cima da mesa e notou que a beira do terraço ficava apenas alguns centímetros do gramado.

Dali poderíamos ver a lua, disse ele.

Não há perigo?

Quando eu disser três, pule, disse ele, passando o braço pelas costas dela. Um, dois, três. Está fugindo do perigo?

Deram o pequeno salto juntos. Ele continuou com o braço passado pelo corpo dela e levou-a para o caminho do jardim.

Já estou vendo a lua, disse ela sem se afastar. Isso significa que já podemos voltar a dançar.

Podemos dançar aqui mesmo, disse ele, com o sangue a correr mais depressa e vendo que os arbustos os escondiam da casa. Agora, passe esse braço pelo meu pescoço.

Virou-a de frente para ele e pensou que era como nos velhos tempos. Não havia nenhum mal naquilo. Era apenas um instante de divertimento.

Assim? perguntou ela, rindo.

Assim mesmo, disse ele, abraçando-a.

Mas quem dança tem de mover os pés.

É verdade. Tinha-me esquecido.

Vamos dançar lá dentro.

Daqui a pouco.

Curvou-se e beijou-lhe os lábios quentes e firmes. Ela apertou o corpo contra o dele e os dois ficaram imóveis. Por fim, ela levou a mão ao rosto dele e o afastou com uma leve pressão.

Vamos entrar e dançar, disse ela, com a voz embargada. Voltaram por outra entrada, misturaram-se aos convidados e

dançaram em silêncio, quase com tristeza. Quando acabou, Larry deu-lhe um cigarro e aspirou fortemente a fumaça do seu.

Acho melhor nos apresentarmos, disse ela. Encontraram Jean, Craig e Blount conversando com Chuck e

Mary Waller perto da mesa com os copos.

Chuck! exclamou Larry. Sabe que temos de nos apresentar ao Capitão Blount amanhã de manhã? Seria melhor resolvermos o caso agora mesmo. Ah, desculpe. Já conhecem a Srta. Marrell?

Depois das apresentações, Sue olhou para a expressão cansada e severa de Craig. Percebeu frieza nos olhos de Paul. Tinha notado que Jean a olhava com um firme espanto. Olhou então para o caminho entre os arbustos e, quando se voltou, tinha um leve sorriso na boca e uma calma satisfação nos olhos.

A orquestra está muito boa, não acha? perguntou ela a Mary Waller.

Quero dançar mais uma vez com minha mulher, anunciou Larry.

Está na minha hora de ir dormir, disse Craig e a seguir fez uma despedida geral: Boa noite.

Boa noite, Craig, respondeu Jean cordialmente.

Nunca a voz dela o emocionara tanto. Voltando para casa no seu carro, ouviu repetidamente a mensagem simples, a soar claramente como as notas de um carrilhão e com pungentes subtons de angústia e coragem. Quando se sentou na sua cadeira espartana, com a cabeça entre as mãos, ainda a ouvia. O rosto dela não lhe saía da imaginação. Foi até ao armário, tirou uma garrafa, serviu uma boa dose e largou o copo em cima da mesa, todo trémulo. Estendeu-se na cama e exclamou desesperadamente:

Larry bandido! Bandido, bandido!

 

Poucos minutos faltavam para as oito horas quando Larry Thomas saltou de um táxi à porta do Edifício da Administração. Mais três pilotos recém-chegados já estavam esperando no escritório do ajudante, Capitão Bland. Larry já conhecia um deles, que fora seu colega num curso de adestramento. Era um homem baixo, magro e moreno chamado Rogers. Depois de haver apresentado os seus papéis ao capitão, apertou a mão de Rogers.

Como se está saindo? perguntou com um sorriso, pois se lembrava do nervosismo do outro nos exames e nos contatos com os superiores, embora não houvesse nele timidez nem nervosismo quando se via no comando de um avião.

Mais ou menos. Estou pronto a dar um pontapé quando me derem a pancada no joelho.

Isso é um absurdo. Em cada canto que a gente vai, precisa de novo exame. Acho que isso é só para dar trabalho aos médicos. Conhece esse camarada, Blount?

Não.

- Pois parece um sujeito legal.

O Capitão Bland aproximou-se e apertou a mão de todos eles.

Os senhores foram designados para cá a fim de servirem como instrutores. Por quanto tempo, depende dos senhores. Queremos também que se familiarizem com algumas inovações que estamos recebendo.

Uma sombra caíra sobre os rostos dos pilotos ao ouvirem a primeira parte da declaração do capitão, mas desapareceu com a segunda. Acompanharam-no então ao gabinete do Comandante e foram apresentados ao Coronel Flynn. O oficial sorriu.

É com prazer que os recebemos, senhores. Desejo que formem bons aviadores e preparem os alunos o mais depressa possível.

A folha de serviço que ostentam mostra que podem conseguir isso. Vão ser submetidos agora ao exame médico. O Capitão Bland os levará ao Capitão Blount. Vigiamos de muito perto o estado dos nossos homens.

Seguiram o ajudante por um longo corredor até aos laboratórios de Medicina de Aviação onde o Capitão Bland os fez entrar, deixando-os em seguida.

O Capitão Blount não demora. Podem esperar aqui. Acenderam cigarros e se entreolharam resignadamente, pois não havia piloto que gostasse da insistente marcha do exame médico, durante o qual ficavam nus como frangos depenados através de todos os complicados exames de olhos, sistema nervoso e pressão arterial. Largaram os cigarros e levantaram-se em posição de sentido quando Paul Blount chegou com o seu avental branco.

Fazemos um exame completo de todos os pilotos que chegam aqui. Serão depois examinados de vez em quando, disse ele. Tivemos há pouco aqui um grave desastre para o qual não houve explicação. O Coronel Flynn dá muita importância ao estado físico dos pilotos. Podem entrar por aqui e tirar as fardas.

Quando iam entrando na sala do exame, ele disse particularmente a Larry:

Bom dia, Thomas. Está sentindo um pouco de ressaca?

Nada disso, Capitão, disse Larry, segurando em seguida o braço de Rogers. Capitão Blount, este aqui é o Tenente Rogers, um dos melhores que eu conheço... quando está no ar.

Blount sorriu e apertou a mão de Rogers.

É um desses que ficam cheios de nervos no consultório de um médico.

Isso mesmo, Capitão.

Bem, aqui nada há capaz de perturbá-lo. Entretanto, não me esquecerei disso.

Sorriu para Larry e Rogers pareceu um pouco mais tranquilo.

Embora Larry se estivesse despindo calmamente e saísse do vestiário com um ar de completa segurança, havia nele alguns nervos que vibravam ameaçadoramente. Isso acontecia sempre por ocasião dos exames médicos. Não era nunca uma questão de passar ou não passar no exame. Mas em duas outras ocasiões tivera a pouca sorte de fazer o exame depois de noites muito movimentadas e tardias e os médicos não lhe tinham dado uma aprovação com muito gosto. Pensou que talvez Blount estivesse aborrecido por ter ele dançado demais com Sue Marrell. Mas talvez, em vista da sua amizade com Craig, Blount exagerasse as suas exigências para mostrar-se rigorosamente imparcial.

Havia outros médicos na sala, mas Blount e um deles se encarregaram de Larry.

Faremos primeiro o Schneider, disse Blount.

Soube que estão começando a ter algumas dúvidas sobre o valor disso, murmurou Larry.

Talvez, mas vamos fazer o Schneider, disse Blount. Larry ficou deitado durante cinco minutos numa cama. Então,

Blount e um assistente lhe tomaram cuidadosamente o pulso, fazendo anotações numa folha de papel, e colocaram-lhe no braço um aparelho de pressão.

Tendo assim fornecido os primeiros dados pelos quais seria calculado o índice de Schneider, Larry ficou em descanso durante dois minutos. Tomaram-lhe de novo o pulso e a pressão e levaram-no para uma cadeira, onde Larry colocou um pé e segurou as costas da cadeira com as duas mãos. À contagem de cinco em dezesseis segundos, levantou o outro pé. O pulso foi tomado de novo com intervalos de quinze segundos até voltar ao normal. A última anotação foi o número de segundos que o pulso gastara para voltar ao normal. Blount fez então alguns cálculos a lápis, porque cada fator tinha um valor a mais ou menos e, quando todos eram somados, obtinha-se o resultado ou o índice de Schneider.

O seu Schneider é dez, disse Blount.

Então, está bem? O mínimo é sete, não é, Capitão?

O mínimo é oito. Está bem, mas na sua idade devia ser melhor. Faz algum exercício?

Dança, disse Larry, cautelosamente.

Sei disso. É só?

Quase que só, Capitão.

Havia frieza em Blount, mas talvez isso não passasse de atitude profissional. Mas Larry ficou pensando que talvez Craig tivesse dito alguma coisa a ele e os dois houvessem discutido os copos de cerveja que ele tomara na festa. Não era provável, mas não lhe agradavam tantas perguntas de um cirurgião de voo que era amigo íntimo de Craig.

Fuma demais? perguntou Blount.

Dois maços por dia. E quanto à bebida?

Sou um pouco moderado.

O Capitão Blount lançou-lhe um olhar rápido e observou:

- O seu resultado seria melhor se fizesse um pouco mais de exercício. Vamos fazer os testes de vista.

As cartas de visão Snellen eram sempre fáceis, porque nunca tinha deixado de fazer vinte-vinte nelas. As cartas de percepção de Cor de Ishihara foram resolvidas também com a mesma displicência. O íotômetro e a vara de Maddox, o teste de ângulo de conversão e da cortina tangencial, tudo isso decorreu sem obstáculo. Mas o que lhe dava preocupação era sempre o teste de percepção em profundidade. Colocou a vara no que lhe pareceu a relação exata, mas bastou olhar para Paul Blount para ver que não estava onde devia estar.

Que tal?

Dez milímetros de desvio do zero.

Ruim?

Só trinta milímetros é que desqualificam para treinamento de voo.

Afinal, os exames terminaram e os pilotos se vestiram e reuniram-se no gabinete de Blount.

Todos em forma, senhores. Conservem-se assim. Não sei quantas vezes voltarão para check-ups. Com certeza mais vezes do que os senhores ou nós gostaríamos. Mas as ordens do coronel são para que este campo seja o mais exigente de todos aqueles em que já serviram. Ele não se importa que façam algumas extravagâncias quando estiverem no ar, mas quer que tenham cuidado com as extravagâncias quando estiverem em terra. O Coronel Flynn ficou muito aborrecido com a perda de um piloto e de um avião com as últimas inovações. Parece que o piloto perdeu os sentidos e, em vista disso, o coronel ficou ainda mais exigente em matéria de estado físico. Agora, peço a Rogers e a Thomas que esperem ainda um instante. Os outros podem ir.

Os dois outros pilotos cumprimentaram e saíram. Blount olhou para o aviador nervoso e sorriu:

Rogers, veja se consegue que os outros venham para cá nervosos como você. Um pouco de suor frio na testa não faz mal a ninguém. O seu exame foi o melhor desta manhã. É só.

Muito obrigado, Capitão, disse Rogers e saiu, mas ainda com ar de preocupação.

Paul Blount ofereceu um cigarro a Larry.

Larry, seu irmão é um grande sujeito. Eu o conheço muito bem.

Eu sei disso, murmurou Larry com um toque de impaciência porque durante toda a sua vida não ouvira senão elogios a Craig.

Sendo assim, prosseguiu Blount, conheço você também. Os dois são do mesmo tipo.

Do mesmo tipo?

Claro. O que faz dele um excelente cirurgião pode tornar você um piloto excepcional.

Ora essa, disse Larry, sorrindo, aí está uma coisa em que eu nunca pensei.

O que eu quero dizer é que ambos têm o mesmo sistema nervoso altamente organizado. Levam vantagem sobre a maioria dos homens. Mas isso também tem os seus inconvenientes, não acha?

Como assim?

Uma máquina de alta velocidade exige mais cuidado. O seu resultado foi satisfatório, Larry, mas os outros três foram melhores.

A testa de Larry se franziu.

É verdade? Não sei como foi possível.

Eu sei. Houve danças ontem à noite, não houve? Do contrário, o seu resultado seria melhor. Mas é uma grande ajuda um homem ser casado, Larry.

Que quer dizer com isso, Capitão?

Um homem casado não precisa de acelerar o seu metabolismo para competir com os solteiros que andam por aí.

Larry não pôde perceber pelo rosto de Blount se se tratava de uma censura ou de uma simples observação. Mas ficou vermelho, chegando à conclusão de que era uma censura e uma advertência. Era isso mesmo que se podia esperar de um amigo de Craig. A mão de Craig andava naquilo e os olhos de Larry cintilaram.

Agradeço muito o seu interesse, Capitão. Mas que relação tem a minha vida particular com a cirurgia de voo?

Blount se levantou numa atitude de quem encerra a conversa e Larry se levantou também. Era um pouco mais alto do que o capitão e se empertigou arrogantemente num desafio polido ao sólido capitão.

Tratamos aqui de estado físico pessoal e não de casos pessoais, disse Blount. Creio que não me fiz compreender bem. Bom dia, Thomas.

Larry saiu sacudindo a cabeça. O seu temperamento se descontrolara um pouco, mas também Blount passara dos limites. A atitude que sempre encontrara entre os amigos de Craig, a atitude do homem mais velho que se julga no direito de dar conselhos, sempre o enfurecera, como se eles tivessem receio de que ele não reconhecesse plenamente as qualidades de Craig. Com certeza, isso havia influído nas observações de Blount sobre o seu estado físico. Mas não era prudente criar antagonismo com um cirurgião de voo. Um piloto tinha sempre o direito de solicitar outro exame com outro homem, mas os médicos tinham uma coisa chamada ética profissional que os obrigava a darem-se apoio mútuo.

Passou pelo escritório do ajudante e ali lhe disseram que se apresentasse ao aeroporto depois do almoço para começar a instrução. Saiu ainda cheio de ressentimento. Passaram um jipe e dois caminhões, mas a sua dignidade de oficial não lhe permitia fazê-los parar a fim de pegar uma carona. Apareceu um táxi, mas já estava ocupado. Mas o táxi parou e o rosto de Larry se acendeu. A passageira era a enfermeira de cabelos dourados, de voz lânguida e de lábios cheios de experiência.

Se vai para a cidade, pode entrar, disse ela. Levei quase meia hora para conseguir este táxi. Por que não está voando?

Larry sentou-se ao lado dela, ofereceu-lhe um cigarro e acendeu-o.

Por que não estou voando? Vou voar depois do almoço. Estive falando com seu amigo Blount. Ele me deu permissão para voar.

Paul fez muito bem! disse ela, rindo.

Mas não foi logo, não. Primeiro, me fez tirar a farda e examinou dos pés à cabeça para ver se eu não tinha urtigas em cima de mim.

Só as enfermeiras têm o direito de tratar dos homens, disse ela com a sua voz cantada.

Quando estão em serviço.

Uma enfermeira está sempre em serviço, Tenente!

Larry riu. Isso era o tipo da conversa de duplo sentido que lhe agradava. Havia nela desafio e problema e, embora os seus tempos de solteiro estivessem encerrados, podia haver também um prémio.

É claro, disse ele. Depois, tive de dar a volta à estrebaria e levantar os pés como um cavalo. Parece que achou as ferraduras no lugar.

Creio que devo transmitir a ele as impressões de um aviador dos exames que ele faz.

Não faça isso! exclamou ele num alarma fingido. Um veterinário gosta de ser chamado de médico, mas isso não acontece ao contrário. Depois, ele olhou para os meus dentes e disse a minha idade.

Não?! Vou perguntar a Paul como é que ele consegue fazer isso.

Depois de muitos outros exames, ficou satisfeito. Passei em tudo, menos numa coisa.

Um polícia militar fez parar o carro no portão, fez continência e mandou o chofer passar.

Quer dizer então que você não é um espécime perfeito?

Aos olhos dele não. Disse que eu danço demais.

Paul falou em dança?

E me perguntou se eu tinha feito outra coisa ainda.

Perguntou? disse ela, lembrando-se do beijo no jardim. E você disse que tirou todas as vantagens possíveis?

Disse a ele que a dança tinha sido uma coisa muito agradável para começar.

Tenha vergonha, disse ela. E com uma mulher distinta como a sua.

Sim, muito distinta e eu sei disso. Mas sou fiel.

Até que ponto? perguntou ela, mas não esperou a resposta, porque o táxi já havia chegado à cidade. Onde é que posso deixá-lo, Tenente?

Deixe-me no lugar para onde vai e eu seguirei no táxi para casa.

Nada disso. Quem tomou o táxi fui eu. Onde quer saltar?

Sabe que você à luz fria da manhã é tão bonita quanto sob as luzes de um salão de baile? Deixe o táxi comigo.

Ela fez sinal ao chofer para parar.

Creio que quer descer aqui, Tenente. Fico contente de que vai começar a voar. Gosta disso, não gosta?

E muito. Obrigado pela carona. Quando poderei vê-la de novo?

Quando é que o coronel vai dar outra recepção? Larry deu um suspiro.

A vida em alguns sentidos é muito cruel.

Acha mesmo? Mas o Major Thomas não gostaria de que qualquer pessoa sob as suas ordens se divertisse com seu belo e jovem irmão.

Como?

Pense nisso, Tenente!

Que coisa! murmurou Larry, enquanto o táxi se afastava.

 

O pé do soldado não estava bem. Mas a notícia da operação se havia espalhado pelo hospital e durante todo o dia chefes de enfermaria e de seção tinham ido dar os parabéns a Craig. Ele recebera os cumprimentos distraidamente, com o espírito espinhado pela preocupação.

Passou pela sala de recuperação da enfermaria onde o rapaz tinha sido colocado. Queria ver de novo aquele pé antes de fazer a primeira refeição. O soldado estava deitado quieto, sob a ação da morfina. O boletim mostrava que tinha passado bem a noite, mas não tão bem quanto a noite anterior. Recebera uma transfusão antes de ser removido da sala de operação e a cor estava bem melhor. Mas quando Craig viu o pé, sacudiu a cabeça. Não examinou o ferimento e o exame anterior não lhe dissera senão que tinha feito um bom trabalho e que a artéria emendada estava sarando sem vazamento e dando passagem ao sangue.

Sentiu o pulso atrás do tornozelo e achou que estava em ordem. Mas o pé estava inchado. A cor não era boa e o pé parecia mais frio do que devia. Comparou-o com o outro pé e teve certeza. O pé estava mais frio.

A enfermeira se aproximou.

Quer alguma coisa, Major Thomas?

Não. Vou tomar café e depois voltarei para ver o doente. Encontrou-se com o Coronel Cárter, que era o comandante do

hospital, no cassino dos oficiais. O coronel notou o rosto cansado e as olheiras de Craig e chamou-o para sentar-se ao lado dele.

Você está trabalhando demais, Thomas. Passe um pouco do seu trabalho para os outros. Por que não toma alguns dias de férias?

Podia dar um bom passeio ou então ir pescar. Sabe que a pesca descansa muito de espírito e corpo? Craig sorriu e sacudiu o corpo.

Por exemplo, a operação que fez anteontem à noite, prosseguiu o coronel. Não poderia ser feita por outro oficial de enfermaria?

Creio que não.

Sei muito bem disso, resmungou o coronel. Soube de todos os detalhes da operação. O soldado teve muita sorte de que você estivesse presente. Como vai ele?

Não vai bem, respondeu Craig com uma ruga na testa. A circulação no pé não é nada boa.

Emendou direito a artéria, não foi mesmo?

Sim, na artéria não há nada.

Então a circulação devia estar-se fazendo normalmente.

Devia, mas não está. O sangue chega sem dúvida à zona lesada, mas não consegue atingir as células que dele precisam.

O Coronel Cárter resmungou alguma coisa e tomou pensativamente o seu café. Havia muito que não exercia a medicina, mas era um bom coronel.

Se é este o caso, qual é a sua explicação, Thomas? E que pretende fazer?

Gostaria de que fosse vê-lo comigo, Coronel. Penso que se trata de um espasmo dos vasos sanguíneos menores. Já li que isso às vezes acontece depois de lesões traumáticas das artérias e veias maiores. O problema é desfazer o controle nervoso que contrai esses vasos e fazê-los deixar correr o sangue.

Bloqueio do nervo simpático, disse o coronel com súbita autoridade. Quando fizer isso, Thomas, gostarei de estar presente.

Viram que a circulação no pé estava indiscutivelmente prejudicada. Craig apontou os sintomas que o preocupavam e Cárter escutou-o atentamente. Perguntou então.

Vai levá-lo para a sala de operação?

Posso fazer o que tenho de fazer aqui mesmo, disse Craig. Telefonou para a enfermeira-chefe da Cirurgia.

Quero dois conjuntos de punção espinhal. E algumas agulhas extras. Também um pouco de novocaína extra. Mande tudo com uma boa enfermeira.

A Srta. Marrell serve? Embora contrafeito, Craig respondeu:

Serve muito bem.

Com a ajuda dos enfermeiros, virou o soldado cuidadosamente de lado, apoiando a perna nas talas de metal, de modo que não houvesse qualquer movimento capaz de causar dor. A única reação foi um gemido sonolento.

Craig correu o polegar sobre a parte inferior das costas do soldado, sentindo as espinhas ósseas que se projetavam de cada vértebra para formar o espinhaço da coluna dorsal. Marcou cada crista cuidadosamente com uma cruz de anti-séptico vermelho. Além dessas filas, à distância de dois dedos para o flanco, fez outra fila de marcas.

É preciso quase ser um agrimensor, comentou o coronel. Sue Marrell apareceu com bandeja, seguida por um enfermeiro,

e fez um cumprimento respeitoso de cabeça. O velho coronel olhou-a, satisfeito.

Tudo o que quer está aqui, Major? perguntou ela. Craig escolheu uma seringa, encheu-a de novocaína e colocou

nela uma agulha diminuta. Percorreu com rápidas espetadelas os pontos marcados nas costas do homem, levantando pequenas bolsas de anestésico sobre cada uma das cruzes da segunda fila e injetou pequenas quantidades nos tecidos mais profundos.

Pegou uma agulha comprida e fina e enfiou-a nos tecidos subcutâneos. A agulha continuou a ser enterrada. Sete centímetros da mesma desapareceram e então a ponta parou numa obstrução.

É a projeção transversal da vértebra, disse Craig ao Coronel. Cárter. Servirá de ponto de referência.

Não sei como você a alcançou assim tão longe.

Aí é que é preciso ser agrimensor, disse Craig. Empurrou levemente a agulha, fazendo-a passar sobre o osso

até encontrar um lugar que pudesse penetrar. Foi então enterrada de novo e mais alguns centímetros desapareceram.

Deve estar perto já do gânglio do simpático que queremos bloquear, disse Craig.

E então, enquanto os enfermeiros mantinham o soldado imóvel, apertando os lábios a cada longa penetração, Craig espetou agulhas em algumas das marcas que havia feito.

Pegou de novo a seringa de novocaína. O paciente murmurou alguma coisa, mas fechou os olhos cheio de paciência.

Vou colocar cinco centímetros cúbicos em cada agulha, disse Craig.

Depois de cada injeção, retirava a agulha com que a havia aplicado.

Pronto, disse ele, afinal.

Os enfermeiros deitaram de novo o soldado com o máximo cuidado, colocando de novo as talas na estrutura sobre a cama.

Vamos saber agora, disse Craig. Observe o pé. Azulado e inchado, o pé não apresentava qualquer modificação.

Depois, um leve ponto rosado apareceu na parte azulada e foi-se espalhando. Craig colocou a mão no pé ferido e, depois, no outro.

A temperatura está subindo, disse ele.

Exatamente. Já se está vendo muito bem, disse o coronel.

Maravilhoso, Thomas. Como foi mesmo que tudo se passou?

Os nervos do simpático em que apliquei a injeção controlam os vasos sanguíneos. O choque da lesão os fez contraírem-se. Fiz cessar a contração. Espetou o pé do soldado com uma agulha.

Está sentindo alguma coisa?

Estou, sim.

Que é?

Uma agulha, não é? Craig sorriu satisfeito.

Meu filho, você teve muita sorte, disse o Coronel Cárter ao soldado. Em outros tempos, teria saído daqui com uma perna de pau ou dentro de um caixão. Agora, vai ficar como se nada lhe tivesse acontecido.

Saiu com a mão no ombro de Craig.

O processo da medicina é uma coisa verdadeiramente espantosa. Infelizmente, no Exército, deixa-se de ser médico quando se fica mais velho. Dão-nos uma mesa, um carimbo e nos transformam em auxiliares de escritório.

Major Thomas? disse Sue, alcançando-os.

Sim?

Não o quis interromper antes, mas tenho um recado para o senhor.

Muito bem. Que é?

Pode telefonar para a Sra. Thomas?

O coronel riu enquanto descia o corredor com Craig.

Parece uma boa enfermeira essa. E os médicos arregalam os olhos quando ela passa. Ora, Thomas, não posso tomar conta de tudo, não é mesmo? E depois ser jovem é uma grande coisa.

Jean atendeu o telefone logo que este tocou.

Tem algum compromisso para o almoço hoje, Craig?

Eu estava pensando... Que é que há, Jean?

Por favor, não esteja ocupado desta vez. Quero que venha mais cedo. Larry vai almoçar conosco, mas eu gostaria de falar com você antes disso.

Ele não respondeu imediatamente.

Você não se lembra disso, Craig, mas um dia há muito tempo eu lhe pedi que consertasse minha boneca que estava com a perna quebrada. A história se repete, mas agora a boneca de perna quebrada sou eu.

Quer que eu bote umas talas, não é? disse ele, tentando fazer um humorismo que não sentia.

Não é caso de vida e morte, Craig, mas não deixe de vir, sim? Preciso dos seus conselhos.

Conselhos? Passou o resto da manhã com aquela preocupação na cabeça. Tinha havido um apelo pungente na voz de Jean. Seria por causa do flerte de Larry com Sue? Mas ele havia chegado à conclusão de que ela não falaria sobre isso nem com Larry, nem com ele. Mas devia ser alguma coisa a respeito de Larry, porque nada mais havia na vida dela. Craig sentiu uma opressão no coração. Não queria discutir Larry com ela. Ainda não tinha paciência quando se tratava de Larry. Encheu-se de indignação com o irmão volúvel e ocorreu-lhe então uma pergunta perturbadora: como era possível um homem, mesmo tão leviano quanto Larry era, flertar daquela maneira enquanto estava ainda na sua lua-de-mel?

Estava esperando por ela na portaria do hospital quando ela chegou num táxi. Estava com um vestido azul-marinho e um chapeuzinho azul e branco.

Muitíssimo obrigada, Craig, disse ela.

É um prazer, disse ele.

Como sempre acontecia, quando falava com Jean, arrependia-se depois da secura das suas palavras. Levou-a para o carro dele.

Olhe como este carro está brilhando, Jean. Desconfio de que anda nisso a mão de nosso amigo, o praça Henry Smith.

Jean riu.

É um ótimo rapaz aquele. Deu muito valor à sua operação de apendicite. Craig, quer-me levar pela estrada em torno da baía?

Depois que se deixava para trás a massa utilitária dos edifícios da base, a vista era bela. As águas da baía tinham vários matizes entre o verde e o azul. As aves marítimas esvoaçavam pela orla da praia. Um pelicano grotesco subiu como uma flecha e de repente mergulhou a prumo com o bico esticado. Bateu na água e se elevou pouco depois com um grande peixe prateado no bico.

Viu isso? exclamou Jean.

Vi, sim. Se pudéssemos descobrir os submarinos com metade da segurança com que os pelicanos localizam os peixes, esta guerra já estaria acabada.

Chegaram ao clube e Craig ’estacionou o carro sem muita vontade, porque era bom demais tê-la sentada ao lado dele e vendo o mesmo cenário.

Posso tomar um coquetel, Craig? perguntou ela, depois de sentar-se à mesa.

Vamos tomar um coquetel os dois, disse ele, embora costumasse abster-se rigorosamente de beber fosse o que fosse antes do almoço. Mas ela fizera o pedido com um ar muito sério e Craig se sentiu de novo dominado pela apreensão.

É sobre Larry que eu quero falar, disse ela.

Ele está bem?

Está, sim. Mas eu achei que você me podia dar uma ajuda. Não tenho mais ninguém a quem pedir. A verdade, Craig, é que parece haver um problema em nosso casamento.

Isso indicava que se tratava do caso de Sue, pensou ele, franzindo a testa. Mas ela o surpreendeu.

Preciso de alguma coisa para fazer. Pelo bem de Larry, ou pelo meu próprio bem. Não sei ao certo e isso não interessa.

Craig ficou em silêncio, confuso.

Gostaria de dar um lar a ele. Não é essa a obrigação de uma mulher casada? Mas a guerra não deixa. E não é isso que Larry deseja. Há muita trepidação nesta atmosfera. Ele gosta da vida militar e ficará desolado quando a guerra acabar.

Ele ainda vai-se distinguir muito nesta guerra, Jean.

Sei disso, tenho certeza disso. Mas para que ele seja feliz, acho que eu também tenho de fazer alguma coisa.

Pois ele me parece muito feliz.

É um pouco difícil de explicar, Craig. Se uma mulher não tiver o que fazer, ficará sempre muito apegada ao marido, importunando-o e atrapalhando-o, entende?

Com você isso não é possível, Jean.

Pois já comecei a atrapalhá-lo, Craig. Eu sei. Toda mulher, quando ama, é importuna e incómoda. E sei quanto isso é perigoso. E com Larry sei que não adianta.

Ora... murmurou Craig, sem saber o que dizer.

Mas, se eu tiver outras atividades, Craig, se for alguma pessoa além de ser apenas esposa... Não é que eu queira ser outra coisa senão isso, mas não posso ser uma fonte de preocupação para Larry... Que é que eu posso fazer aqui, Craig?

No hospital?

Não... Creio que não...

Há a cantina. É uma possibilidade.

Acho que Larry não iria gostar.

Jean, disse Craig imediatamente, cheio de raiva do irmão, nem sempre você tem de saber se Larry gosta ou não. Você também tem seus direitos.

Eu sei. Mas não quero esses direitos. Creio que devo procurar alguma coisa para fazer na cidade, alguma coisa que não tenha qualquer relação com o Exército. Isso desprenderia Larry ainda mais.

Craig nada pôde dizer. Sentia apenas uma imensa inveja de Larry.

Pareço uma conspiradora, Craig? Tenho mais tempo de casada do que você julga.

Como assim?

Estamos casados há três meses, disse ela, rindo. Não é engraçado que eu me sinta culpada em contar-lhe isso? Como se não fosse legal. Mas Larry ainda não estava brevetado. E os cadetes não se podem casar. Larry me enganou...

Ah!

Não, não como você pode estar pensando. Não me falou da proibição senão depois que nos casamos. Tivemos então de guardar segredo.

Craig não podia compreender por que isso o aborrecia tanto, ao passo que Jean não mostrava o menor ressentimento.

Tenho de conhecer Larry bem. Ele nunca foi do tipo de solteiro... Onde foi que eu ouvi essa expressão? Ah! disse ela com impaciência.

Craig viu-a tirar um cigarro e preparou-se para discutir o caso de Sue.

Ele é muito atraente. E sabe disso, murmurou ela com um toque de tristeza e de orgulho. Havia uma moça no escritório do aeroporto. Veio-me procurar depois do nosso casamento. Estava furiosa. Eu não sabia de nada. E nunca disse a Larry. Também não lhe queria dizer nada, Craig. Para mim, não fez diferença. Mas se eu tivesse alguma coisa para fazer... Ah, Larry está chegando.

Larry estava à porta, olhando para a sala. De repente, viu-a e se encaminhou para eles com um sorriso ansioso.

Craig, disse ela rapidamente, se você souber de alguma coisa, seja o que for, avise-me logo. Isso é muito importante para mim.

Bem, disse Larry, puxando uma cadeira, é engraçado encontrá-los aqui.

Jean olhou-o, os cabelos, o rosto, os ombros, a gravata.

Está atrasado, querido? perguntou com um sorriso.

Na hora. Neste exército, Thomas é conhecido como o homem que nunca se atrasa. E vocês estão bebendo! Mas eu não vou beber. Estou voando e quero continuar a voar.

Fazendo um difícil esforço de reajustamento. Craig perguntou:

Que é que está fazendo agora?

Voos de instrução, disse Larry com uma cara de desapontamento. Ensinando a garotos broncos como é que se voa. Estou vegetando, sabem? Chuck é que é feliz!

Que é que Chuck está fazendo? perguntou Jean.

Está no ar com um novo caça Thunderbolt. Gostaria de voar nele, mas nada posso fazer. Escutem...

Ouviu-se ao longe um zumbido que aumentou com assombrosa rapidez até ser um verdadeiro trovejar sobre o clube, depois do que começou a diminuir.

Deve ser Chuck, disse Larry, rindo. Ele sabia que íamos almoçar aqui.

Não voou baixo demais? perguntou Craig.

Ele sabe o que está fazendo.

Ouviu-se de novo o ronco do avião, que dessa vez foi ensurdecedor, dando a impressão de que ia explodir acima do clube, a ponto de fazer alguns fregueses presentes se agitarem nas suas cadeiras, entreolhando-se apreensivamente.

Não gosto disso, murmurou Craig. É de espantar que ainda não o tenham mandado descer.

Chuck varreu o telhado, disse Larry. O Coronel Flynn disse a ele que amansasse o avião. Ele acha isso de boa psicologia para os alunos. Dá-lhes um objetivo por que lutar.

Larry! exclamou Jean. Você usa também dessa espécie de psicologia com os seus alunos?

Não apenas com os alunos, disse ele, rindo. Espere até eu voltar a fazer serviço de combate. Precisaremos de tudo o que soubermos para manobrar esses...

Calou-se de súbito. Dos lados do campo, ouvia-se o estridente gemido de uma sirene.

Craig levantou-se imediatamente.

Vocês dois fiquem aí almoçando. Vou para o hospital, pois podem ter necessidade de mim.

- Não é possível! exclamou Jean. Teria acontecido alguma coisa a Chuck?

Larry estava muito pálido.

Pode ir pelo campo, Craig? Poderia voltar com a ambulância.

Vamos então, disse Craig.

Quando saíram correndo do clube, a sirene mais forte dos bombeiros juntou-se ao grito da sirene da ambulância.

 

Estive com uma pequena formidável ontem à noite, disse o Cabo Tyce ao Praça Smith.

Olhou para Henry, que carregava uma grande lata de óleo com a mão esquerda porque o braço direito estava dolorido e inflamado de outra vacina. Quando a testa de Henry se desenrugou ao preparar-se ele para escutar, um brilho mau se acendeu nos olhos de Tyce.

Era alguma espécie de estrangeira, continuou ele. Parece que grega ou coisa que o valha. Não falava inglês muito bem. Mas nós nos entendemos perfeitamente, Henry, porque, afinal de contas, queríamos a mesma coisa.

Este braço não vai nada bem, disse Henry Smith, flexionando o braço com uma careta.

Sabe o que eu quero dizer com a mesma coisa?

Claro que sei. Nunca se cansa disso?

Com uma mulher só, talvez eu me cansasse. Mas eu tenho uma variedade.

Não sei como consegue isso com o que ganha como cabo. Tyce ficou furioso.

Que quer dizer com isso? Vamos, explique-se! Henry Smith olhou-o espantado e disse:

Só disse que você se arranja muito bem com o seu ordenado de cabo.

Mas essa foi de graça, disse Tyce entredentes. No mato, bestalhão.

Está muito bem. Mas por que ficou tão nervoso assim?

Às vezes, fico nervoso, disse o cabo. E não é de espantar trabalhando com um idiota como você. Não é que eu não goste de você. E você estará bem comigo enquanto trabalhar direito.

Obrigado, chefe, murmurou Henry. Mas não fui eu que pedi ao Exército que me desse este lugar.

Eu sei. Pensou que iria voar num destes aviões e ser um sujeito importante, não foi? Isso é um sonho que muita gente tem.

É verdade, disse Henry.

Você está melhor onde está, garoto. Com os pés no chão. Em segurança e na ignorância. Veja a mim, por exemplo...

Para quê? resmungou Henry.

Se você tivesse visto algumas das coisas que eu já vi! Já viu um homem queimado vivo? Já sentiu o cheiro de alguém assim?

Não e nem faço questão de sentir.

Claro que não, disse Tyce, com um sentimento mórbido estampado no rosto. Você não teria coragem de aguentar uma coisa dessas. Já viu uma hélice jogar longe a cabeça de um homem?

Nunca.

Pois eu já vi. A hélice bateu direto na carlinga de outro avião. Já viu um homem debaixo de’ um motor como uma panqueca ensanguentada? Já viu...

Cale essa boca, murmurou Henry.

Eu sei que você não teria coragem de ver. Pois eu já vi tudo isso. Tenho uma coleção de fotografias. Os aviões são a minha especialidade.

Pensei que a sua especialidade fossem as mulheres.

Tyce o olhou desconfiado, demoradamente. Depois, o seu rosto sardónico se contraiu num sorriso.

Talvez eu possa utilizá-lo, Smith. Você é grande e simpático. Sairemos juntos uma noite. Muitas pequenas gostam de sair aos pares. Eu lhe arranjarei alguma coisa.

Henry Smith deu um suspiro. Estava mesmo pensando em pedir a Tyce que saísse com ele uma noite. Mas não gostava de Tyce e temia as suas zombarias.

Vou mostrar-lhe apenas como se consegue a coisa, Smith. Nem sempre a mulher está pensando nisso. É preciso proceder com tato.

E Henry escutava, fascinado sem querer, com todos os detalhes e ilustrações de Tyce a queimar-lhe a consciência, revoltando-o às vezes, mas fazendo-lhe o sangue ferver.

Quando passaram a cuidar de outro avião, um sargento apareceu e mandou Henry fazer alguma coisa na cidade.

Não posso só por causa desse braço dispensá-lo do serviço, disse o sargento. Mas vá descansado e não precisa voltar correndo. Pode levar a tarde toda, mas eu não lhe disse nada disso, entendeu?

Obrigado, disse Henry.

Obrigado de quê? perguntou o sargento.

Tem razão, disse Henry, rindo. Eu estava dizendo que já vou.

Resolveu almoçar na cidade. Comeria alguns hamburgers numa lanchonete onde havia uma garçonete de cabelos cor de café. Não sabia se ela era capaz de sair com um soldado e ainda não tivera coragem de perguntar. Gostaria de levá-la a um cinema e ver se ela o deixaria pegar-lhe a mão. Resolveu convidá-la naquele mesmo dia, mas deixaria isso para mais tarde, quando o movimento da hora do almoço tivesse diminuído.

Andou com passo rápido até sair da base. Depois, tomou um caminho comprido em passo lento, parando para ver os aparelhos de treinamento de asas amarelas que manobravam em prática simples de formação. Franziu o rosto em sofrimento. Ali é que ele devia estar. Tinha entrado para o Exército para voar.

Entrou num bosque e se sentou de encontro a uma árvore, observando no céu homens melhores do que ele. Levantou-se de repente. Do lado leste, vinha um ronco possante. Conhecia aquele motor. Pusera óleo nele. Saindo do campo, tinha ouvido o ronco dos motores do Thunderbolt diante do hangar principal. O avião trovejou sobre o bosque num barulho ensurdecedor. Passou como uma bala de asas curtas.

Henry Smith ficou olhando embevecidamente o avião até vê-lo desaparecer no céu. Voltou a caminhar para a cidade. A pequena da lanchonete ou qualquer pequena olharia para um homem que usasse as asas de um piloto. Pensou na Sra. Thomas, cujo marido era piloto.

O Thunderbolt estava de volta. O poderoso crepitar dos cilindros tamborilava-lhe nos ouvidos. Mas as árvores não deixavam vê-lo. Correu para um lugar limpo. Viu-o então, mais alto, oscilando de um lado para outro como se dançasse. Olhou atónito e então deu um grito e saiu correndo.

O pequeno avião de caça que se lançara tão impetuosamente pelo céu afora estava caindo desgovernado. Descia quase verticalmente sobre uma pequena elevação do terreno a uns trezentos metros de distância. O impacto pareceu uma tremenda cacetada.

As coisas sinistras de que Tyce havia falado lhe passaram pela cabeça enquanto corria para prestar socorro.

As chamas estendiam línguas amarelas sobre a fuselagem destroçada quando ele chegou à elevação. Parte do leme tinha sido atirada sobre uma moita e havia um silêncio fantástico quebrado apenas pelo macio crepitar do fogo.

Cobriu o rosto com um lenço e correu para a carlinga. Pulou com os pés quentes na grama incendiada para olhar para dentro. A carlinga estava vazia, a não ser que o corpo do piloto estivesse preso lá dentro.

Afastou-se em sufocação para aspirar um pouco de ar e olhou para os sapatos e as calças. Estavam fumegantes, mas não tinham pegado fogo. Correu desvairadamente para a frente do avião, procurando o piloto, e viu apenas fragmentos dispersos do aparelho.

Com o lenço no rosto, deu de novo uma volta em torno dos destroços. O fogo não estava muito forte e, entre os estalos e silvos, ouviu um gemido. O piloto estava sob a asa despedaçada que tinha caído em cima dele. Henry largou o lenço para levantar a asa com as duas mãos. O calor era intolerável. Teve tempo apenas de levantar a asa, sustentá-la com o joelho e puxar o piloto. Teve então de correr em pânico para respirar um pouco de ar puro. Voltou para arrastar o homem pelas correias dos ombros do pára-quedas. O piloto era grande, pesado e estava inerte. Dentro do tremendo calor, Henry sentiu que mal se moviam e teve de afastar-se de novo para respirar. Depois, arrastou o homem uns três metros e parou para apagar um fogo no blusão de voo. Ainda uma vez, Henry afastou-se porque o calor parecia alastrar-se mais depressa do que eles se moviam. Ouviu uma sirene ao longe. Depois, começou a arrastar o piloto sem parar e mais depressa, porque já podia respirar melhor.

Está bem. Pode deixar, disse alguém, empurrando Henry para o lado.

Deu mais alguns passos e sentou-se na grama para aspirar sofregamente o ar. Sentia o rosto repuxado e ardendo e, quando olhou para as mãos, viu que estavam ensanguentadas.

Está vivo, disse Craig com espanto, quando se curvou sobre a maca. Tomou o pulso de Chuck Waller enquanto um círculo compacto de homens o olhava. Um deles levava o pára-quedas que tinha sido cortado. A ambulância estava ao lado com o motor em funcionamento. Os aparelhos de combate ao fogo já estavam dominando o incêndio. Nas imediações, havia gente que vinha correndo e carros que freavam. Do alto, vinha um barulho cada vez maior e o céu estava cheio de aviões. Todos os alunos do campo tinham recebido ordem de voar logo que se teve notícia do acidente.

O pulso estava rápido, mas bom, nem filiforme, nem acelerado pelo choque. O braço esquerdo estava pendido num ângulo esquisito.

Talas! disse ele e os homens da ambulância entraram em ação.

Os cabelos de Chuck estavam chamuscados de um lado e uma das orelhas estava queimada. Não havia na testa qualquer escurecimento da pele que indicasse uma lesão cerebral. Não havia sinal de choque imediato, mas provavelmente isso não tardaria a suceder.

Estranho, disse Craig ao Capitão Bland, que havia vindo com a ambulância. Lembrou-se depois de que nunca deixava a sua preocupação com um caso mostrar-se nas suas palavras ou nos seus atos. Se ele se livrou disso apenas com o choque e um braço quebrado, podemos falar em milagres. Foi ele que saiu dos destroços?

Um atendente que aplicava as talas sacudiu a cabeça.

Foi aquele soldado ali que o estava puxando para longe do fogo quando chegamos. Venha cá que queremos vê-lo, rapaz!

Smith! exclamou Craig. Vou cuidar dele neste minuto. Mas Jean já estava correndo para o soldado que olhava com um rosto que parecia queimado de sol.

Major Thomas! exclamou o Coronel Flynn, surgindo através da multidão e olhando compungidamente para a maca. Como está Waller?

Só lhe posso dizer que está vivo, Coronel.

E acha que escapará.

O pulso ainda está bom pelo menos, disse Craig. Fez sinal aos atendentes para que colocassem a maca na ambulância. Vão devagar, com cuidado para não sacudi-lo muito. Digam ao oficial de dia que eu irei imediatamente. Tem de ficar na sala de emergência e todas as providências devem ser tomadas.

Não sei como ele saiu daí vivo, disse Flynn, olhando para os destroços. Acho que também nunca saberemos ao certo o que aconteceu. Tudo deve ter sido tão rápido que Waller nem soube de nada. O pior, Thomas, é que eu disse a ele que tinha toda a liberdade de experimentar o aparelho. Não é a primeira vez que voa neles. Era um excelente piloto. Sacudiu a cabeça. Soube que foi retirado por um soldado. Sabe onde ele está? Talvez possa dizer-nos alguma coisa.

Jean estava guiando Henry Smith para onde eles estavam, com a mão num cotovelo do rapaz e um braço passado em torno dele para sustentá-lo. Ele estava tentando sorrir, mas os lábios gretados doíam demais. Não precisava de apoio, mas tinha de ser gentil com ela e gostava de sentir em si aquelas mãos bondosas. Com a mão ensanguentada e suja de fuligem, fez continência ao Coronel Flynn.

Como é seu nome, meu filho? Â vontade.

Praça Henry Smith, Coronel.

Ele estava no avião quando você chegou aqui?

Não, senhor. Olhei primeiro na carlinga. Devia ter sido cuspido fora. A princípio, não o encontrei. Depois...

Está bem, disse o coronel, interrompendo-o. Viu o avião cair?

Não vi o choque com o chão, mas vi a queda.

Pode dizer o que havia de errado? O que parecia? O piloto estava fazendo alguma coisa?

O avião parecia sem controle, Coronel. Caindo muito depressa.

O coronel mordeu os lábios.

Você deve querer esse homem para tratamento, Thomas. Vou voltar ao campo. Ficaria muito grato se me comunicasse o que puder apurar a respeito de Waller. Felicidades com ele. É um homem de que precisamos. Se Waller falar alguma coisa sobre o avião, teremos de tomar nota de tudo. Mandarei um homem para lá.

Vou levar você para o hospital no meu carro, Smith, disse Craig. E outra coisa. Achamos que você fez um belo serviço.

Henry Smith entrou no banco de trás, apoiando-se nos cotovelos, para poupar as mãos. Jean sentou-se ao lado dele. Larry, que estivera até então silencioso e pensativo, perguntou de repente:

Será que Chuck ainda poderá voar, Craig?

Não sei ainda. Não sabemos coisa alguma. Smith, fique com esses dedos bem esticados até que eu possa fazer alguns curativos neles. Se os dobrar, vai doer muito quando os pusermos na posição correta.

Mary, pobre Mary, exclamou ansiosamente Jean. Será que já sabe? Devo telefonar para ela?

Temos de telefonar para ela, disse Larry. Mas... quer encarregar-se disso, Jean?

Entraram no hospital com Craig. O oficial de dia, com mais três médicos em torno dele, estava examinando Chuck. Craig tomou o pulso de Chuck e, de longe, Larry, Jean e Henry Smith observaram-lhe o rosto para ver se Waller ainda estava vivo.

O pulso estava mais fino e começava a acelerar-se. Chuck continuava pálido e imóvel, como um cadáver de rosto sujo.

Como está a pressão? perguntou Craig.

Ainda não tivemos tempo de tomá-la, disse o oficial da enfermaria. Vou tratar disso agora mesmo. Pouco depois anunciou: Nove por seis.

Craig passou a mão pelas costas de Chuck e moveu-a lentamente, parando com as pontas sensíveis dos dedos nas espinhas das vértebras. Nenhuma delas parecia deslocada. Entretanto, isso não era um método muito seguro de diagnóstico e deixou-o insatisfeito e confuso. Mas, enquanto não soubesse mais, não se atrevia a mexer muito com Chuck. Não gostou da persistente inconsciência, alem do jeito inerte dos pés quando os levantou.

Vamos arriscar uma radiografia, Cramer, disse ele ao oficial de dia. Depois, aplique-lhe um pouco de plasma sanguíneo.

Os enfermeiros levaram a maca, seguidos por Cramer. Larry e Jean se aproximaram de Craig.

Que é que sabe agora?

Nada ainda.

Nada? perguntou Larry, com voz irritada. Não pode fazer alguma coisa?

Não sabemos se ele tem uma fratura no crânio ou as costas quebradas. O que daria resultado num caso prejudicaria no outro. Por isso, estamos fazendo uma radiografia.

Fique sabendo de uma coisa, Craig! exclamou Larry. Se Chuck não puder mais voar, será melhor que morra logo!

Calma, disse Craig pacientemente... Espere um pouco com Jean. Mas não aqui. Há uma sala aí fora...

Uma enfermeira apareceu.

A Sra. Waller está aí.

Vou falar com ela, disse Jean, empalidecendo um pouco e tomando o braço de Larry. Até agora nada de muito grave, Craig? Estado de choque?

Sim, diga isso a ela. Larry gritou quase:

Nenhum piloto devia-se casar. Olhou espantado para Jean e acrescentou: O que eu quero dizer é que uma coisa dessas é demais para uma mulher.

Craig, que se havia disciplinado rigorosamente para só encarar os problemas da medicina e da cirurgia e não as pessoas, teve a ideia, ao ver Jean mover-se, de que ela tinha mais coragem do que qualquer deles.

Venha cá, Smith, que eu vou tratar dessas mãos, disse ele e acrescentou num súbito impulso que lhe era estranho: Desculpe tê-lo feito esperar.

As queimaduras eram na sua maioria superficiais, mas a carne tinha sido dilacerada pelo metal despedaçado. Craig notou com satisfação que aquelas mãos estavam firmes depois de meia hora de agitação.

Estas queimaduras devem sarar com rapidez, Smith. Vou fazê-lo baixar à enfermaria durante dois dias. Enfermeira, tome providências para que ele fique na enfermaria, com recomendação para dar-lhe um sedativo se sentir alguma dor.

Major, se fiz alguma coisa de bom àquele piloto, fico satisfeito por uma coisa. É que ele é amigo do Tenente Thomas e da mulher dele, quero dizer, de sua família.

Craig se encaminhou pelo corredor para o departamento de radiografia. Viu Jean e Larry com Mary Waller numa saleta, mas passou depressa, como se não os tivesse visto.

O Capitão Cramer estava com as chapas recém-reveladas na mão. Cramer era especialista em radiografia, mas fazia plantão como todo o pessoal.

Alguma coisa, Cramer?

Não sei. Há um pequeno espessamento na primeira vértebra lombar. Parece um deslocamento. Mas não está claro e é só o que eu posso ver. Não sei, mas ele pode estar em perfeito estado quando recuperar a consciência.

O melhor é conservá-lo em repouso, até que alguma coisa nos dê uma indicação. Se ele mostrar sinais de recuperação, quero ser chamado imediatamente.

Sentiu-se tomado de súbito cansaço. Decidiu sair do hospital, andar um pouco ou talvez ir para o seu quarto e estender-se um pouco na cama. Não queria ver a preocupação no rosto de Jean. Não queria ver Larry. Não queria o problema da aflição de Mary Waller.

Chamou uma enfermeira e entregou-lhe as chaves do seu carro.

Leve essas chaves à saleta onde estão a Sra. Waller e o Tenente Thomas com a mulher. Diga-lhes que tomem meu carro e vão para casa. Vou continuar observando o estado do Tenente Waller. Logo que houver alguma coisa, telefonarei, mas, por enquanto, ele está repousando bem.

Quando a enfermeira foi saindo, ele compreendeu que o que estava fazendo era pura covardia.

Espere aí, enfermeira. Eu mesmo levarei as chaves.

Percebeu o suspiro de alívio de Jean quando ele apareceu. Larry levantou-se para fazer perguntas. Mary Waller voltou-se para ele num apelo mudo.

Até agora, as notícias são melhores do que esperávamos, disse ele. A radiografia mostra que não há nada nas costas ou, se há, é muito pouco. Está em repouso agora. Acho melhor saírem no meu carro e levarem a Sra. Waller para casa. Telefonarei logo que houver mais alguma coisa.

Teria sido melhor dizer toda a verdade, explicando que nada sabiam ainda e que tudo poderia acontecer de melhor ou de pior. Mas não podia fazer isso, não por causa de Mary Waller, mas pela angústia que Jean sentiria e porque todo o peso do sofrimento de Mary recairia sobre ela.

Ele sofreu um violento choque, Sra. Waller. Vai precisar de tempo para se recuperar, mas até agora parece ter tido muita sorte.

Acha que ele se vai recuperar?

Saberemos logo que ele falar.

E espera que ele possa falar? perguntou Mary, com um sorriso trémulo.

Claro que sim. Agora, vá com Jean, sim? Já almoçou? Olhando-os, Jean disse em voz baixa a Larry:

Seu irmão é formidável mesmo.

Você acha?

 

Os ponteiros luminosos do despertador marcavam quase meianoite quando Craig atendeu o telefone que tocava. Era Cramer.

Ele está semiconsciente agora, Major. Creio que deve ir vê-lo. Alguma coisa definida?

Creio que sim e não é boa.

Vou para aí neste minuto.

Cramer esperava-o na entrada da enfermaria dos oficiais.

Começou a falar incoerentemente e a mover-se um pouco.

Pressão?

Melhor. Subiu a doze.

Um enfermeiro estava postado ao lado da cama e, a um canto, um cabo estava sentado com um caderno de notas e um lápis. Waller estava movendo os ombros e torcendo o rosto em expressões grotescas.

Compreenderam alguma coisa do que ele disse? perguntou Craig.

Está chamando ”Mary”, Major. E disse alguma coisa que não compreendemos sobre o Texas.

Moveu-se mais do que isso?

Não. Apenas os braços e a cabeça.

As pernas não?

Não, Major.

Era um mau sinal, justamente o que Craig temia.

Quando Craig moveu o braço são, houve uma resistência clara do tônus muscular. Mas ao levantar a perna, sentiu absoluta ausência de qualquer reação, como se a perna não fizesse parte do corpo do homem. A outra perna estava inerte também. Sentiu a artéria atrás do tornozelo.

Testou a circulação?

Ambos os pulsos bons, disse Cramer.

A pulsação se moveu contra as pontas dos dedos de Craig. Nada havia interferido com a circulação, por mais que o controle nervoso estivesse desligado. Testou os reflexos dos joelhos e da parte posterior dos tornozelos e viu que estavam funcionando. Isso também se ajustava ao quadro.

Craig pegou uma pequena escova com uma ponta de metal no cabo para testar a sensibilidade à dor. Espetou a parte posterior do pulso. A mão se afastou instantaneamente. Testou o tórax e o rosto. Chuck abriu os olhos, revirando-os.

Como sobe essa beleza! disse ele claramente e fechou os olhos.

Quando Craig chegou à parte inferior do abdome e às pernas, a ponta podia ser espetada completamente sem a menor reação dos músculos.

Acha que pode conseguir mais com outra radiografia, Cramer?

Duvido muito. Os filmes foram muito bons. Não poderíamos conseguir coisa melhor.

Quer mandar ligar os esterilizadores na sala de operação? Discou para Paul Blount. Depois, ligou para o apartamento de

Larry. Foi Jean quem atendeu.

É Craig. Creio que teremos de operar. Aja da maneira que achar melhor com Mary Waller.

Iremos todos para aí, disse ela, imediatamente. Como está ele, Craig?

Parece que há alguma coisa na espinha. Talvez uma vértebra deslocada que está afetando a coluna.

Já vamos para aí, Craig. Sei que é terrível, mas confiamos todos em você.

Ele murmurou alguma coisa e desligou. Falou depois para a enfermeira-chefe, dizendo:

Vamos fazer uma operação de espinha. Quem está de serviço?

Mas a esta hora, Major Thomas, não temos... Posso chamar a Srta. Marrell? Temos informações excelentes sobre ela. E ela se prontificou a servir nos seus casos a qualquer hora.

Chame-a então.

Paul Blount apareceu, dizendo:

Que é que há, Craig? Você me interrompeu um sonho sobre louras, um sonho melhor do que todos os que Freud estudou.

O piloto que sofreu um desastre hoje à tarde, Paul. Vou operá-lo e quero que você o examine.

Antes de entrar para o Exército, Paul Blount tinha sido um conceituado neurologista.

Quando Blount voltou do exame, estava com o rosto muito sério.

A radiografia mostrou alguma coisa?

Um espessamento da primeira lombar apenas. Pode ter importância ou não. Recuperou há pouco a consciência, de modo que podemos dizer que está paralisado da cintura para baixo.

Tudo se ajusta então. Uma lesão transversal da medula espinhal nesse ponto. Deve ter havido concussão também. Ele tem sorte em estar aqui. Mesmo com um corte na medula.

Ele não considerará sorte ficar paralisado pelo resto da vida, disse Craig. Vou abrir uma janela na vértebra para ver.

Quando chegaram à sala de operação, Sue Marrell estava preparando os instrumentos. Trabalhava com a exatidão e a presteza de sempre e não dava o menor sinal de ter sido tirada da cama para aquele serviço.

Preparei os instrumentos normais para uma laminectomia, Major Thomas, disse ela. Quer mais alguma coisa?

Craig sacudiu a cabeça.

Tudo estará pronto então dentro de quinze minutos. No vestiário, Paul abordou o assunto em voz baixa.

Devia olhar mais para ela, Craig. Você sabe que a anatomia de uma mulher é como um relógio. Já viu um relógio mais bonito do que esse? Tenho a impressão de que começará a funcionar no momento em que você quiser. Não tenho certeza de que possa acontecer o mesmo comigo.

Depois que ele e Blount estavam vestidos e enluvados para a operação, Craig fez um sinal a um enfermeiro. O homem abriu a porta. Chuck Waller estava deitado de bruços na mesa de operação, respirando ruidosamente.

Dei-lhe nembutal, disse Cramer. Acha que há necessidade de mais alguma coisa?

Não. Procederemos lentamente e teremos cuidado com a novocaína.

Uma anestesia geral, ainda que inevitável, era muito perigosa em vista da concussão.

Depois da aplicação de um anti-séptico vermelho sobre as costas, dos ombros até às nádegas, a região foi cercada de toalhas brancas, sendo cobertas por um grande lençol perfurado em cujo centro havia apenas um campo branco com a pele injetada de novocaína.

Bisturi, disse Craig.

Depois de algumas tentativas para localizar exatamente a vértebra, manejou o bisturi num golpe firme para baixo. A pele foi aberta e o sangue começou a aparecer nas bordas da abertura. Tomaram-se as precauções necessárias para estancar o sangue e impedir a presença de germes.

Bisturi limpo! pediu Craig.

A lâmina cortou até encontrar o osso. Abriu então nessa profundidade para cima e para baixo toda a incisão.

Quando, ao fim de longo tempo angustioso, Craig conseguiu ver a medula espinhal tanto quanto lhe era possível através da incisão, anunciou:

A medula está intacta. Não encontro lesão alguma, mas apenas algumas hemorragias aqui e ali.

Ah! exclamou Paul Blount ao seu lado. Magnífico isso!

Nesse momento, profundos suspiros eram dados pela sala, as faces tensas se desfizeram em sorrisos e a alegria brilhou em todos os olhos. Não pode haver aplausos numa sala de operação, nem o operador pode ser carregado em triunfo, mas o sentimento que animou a todos foi idêntico. Todos ali sabiam que uma espinha seccionada significava uma paralisia sem remédio e que a eliminação da pressão causada pelos coágulos de sangue representava uma recuperação provavelmente completa.

Vamos fechar agora, Srta. Marrell, disse Craig. Categute crômico, sim?

Por mais importante que fosse, o que se seguiu foi insignificante em face da tensão anterior. Os músculos foram repostos no lugar e a pele foi de novo unida de modo que sarasse corretamente, deixando pouca cicatriz. Por fim, Craig se afastou da mesa e começou a tirar as luvas.

Pediu depois uma das agulhas de novocaína à enfermeira e, descobrindo o pé de Chuck, espetou-o com a agulha. Não houve reação. Depois, a uma espetadela mais profunda, o pé se contraiu e moveu.

A função está voltando, disse ele. A recuperação deverá ser completa.

Paul Blount apertou-lhe demoradamente a mão. Sue Marrell voltou-se para ele com os olhos iluminados e descerrou os lábios como se fosse dizer alguma coisa.

Muito obrigado, disse-lhe Paul, para impedi-la de falar.

Tem ordem minha para só se apresentar amanhã depois do almoço.

Foi encontrar Jean, Larry e Mary Waller numa saleta de espera ao fim da enfermaria, onde todos se levantaram prontamente ao vê-lo, com os olhos cheios de alarma.

Dê-me um cigarro, Larry, disse ele. Tenho boas notícias, muito boas mesmo.

Vai ficar bom? perguntou ansiosamente Larry.

Perfeitamente bom.

Como poderemos jamais agradecer-lhe, Major Thomas? disse Mary Waller. Vai ficar bom?

Claro que sim. Havia uma pressão na coluna, mas nós a afastamos.

- Você nos assustou quando entrou, Craig, disse Jean, encarando-o. Foi difícil a operação? Não se sente muito cansado?

Não. O caso foi bem interessante.

Chuck já falou, Major Thomas? perguntou Mary Waller.

Disse alguma coisa?

O tempo todo só chamou alguém com o nome de Mary. Ela se abraçou a Jean e chorou desesperadamente, enquanto

Craig e Larry olhavam constrangidamente não para as mulheres, mas para os cigarros acesos.

Boa noite a todos, disse Craig muito sério, e saiu.

 

O soldado Henry Smith respirou o ar dos heróis durante os seus dois primeiros dias de hospital. Alguns doentes de ambulatório iam sentar-se na sua cama, fazer-lhe perguntas sobre o avião sinistrado e dizer-lhe que ele mostrara muita coragem em enfrentar a gasolina incendiada. Uma enfermeira lhe disse que o piloto ia ficar bom e Henry lançou olhares secretos de orgulho às suas mãos enfaixadas. A Sra. Thomas apareceu para fazer-lhe uma breve visita. Começou a desconfiar de que estava a caminho de uma promoção, talvez até de uma autorização para treinamento de aviação. Vários dos homens que conversavam com ele tinham sugerido imediatamente essa possibilidade.

Uma vez, o Major Thomas entrou na enfermaria, acompanhado do sargento.

Como vão as mãos, Smith?

Muito bem, Major.

Ainda doem?

Não, senhor. Muito pouco...

Com tudo isso, Smith esteve quase certo de uma promoção até o dia em que o Cabo Tyce foi fazer-lhe uma visita.

Você agiu muito direito, Smith. Todo mundo está dizendo isso. Você viu mesmo o avião cair?

Henry contou tudo mais uma vez.

E que foi que achou da queda? Notou alguma coisa estranha?

Foi tudo muito rápido para ver. Tenho a impressão de que os ailerons não estavam levantados, mas disso não posso ter certeza. O Coronel Flynn me perguntou isso mesmo.

Depois eu lhe falo no coronel, Smith. Mas o piloto estaria frito se não fosse você. O homem mereceu o que lhe aconteceu. E só escapou de pura sorte.

Como assim?

Que é que ele tinha de fazer acrobacias voando tão baixo? O erro foi esse. Não é a primeira vez que vejo isso acontecer. Ele tinha de mostrar que era um aviador maluco.

Não sei, não. Do jeito que ele estava pilotando, não me pareceu maluco. Era bom mesmo.

Nada disso, insistiu o cabo. Estava voando muito baixo e se esqueceu de onde era o chão. Eu sei bem como é. Eu já voava num circo de aviação muito antes que aquele camarada botasse um pára-quedas nas costas.

Por que não se candidatou então a treinamento de voo?

Eu não! Já estou muito velho para ir à escola.

E o que é que há com o Coronel Flynn?

Talvez lhe faça perguntas. Fez a mim e a todo mundo. Nós dois cuidamos daquele avião.

Foi. sim, murmurou Henry inquietamente.

Parecia que ele queria culpar o pessoal de terra. Todos nós dissemos a mesma coisa. Ò avião estava perfeito, em ordem. O piloto foi que se arriscou demais. Tomaram nota de tudo isso para fazer um relatório. E outra coisa, Smith. Eu nada disse sobre seu braço.

E que é que meu braço tem com isso?

Calma! disse Tyce, rindo. Não tem nada. Mas só lhe estou dizendo para você não falar nisso e dar uma chance aos homens. Se você falar no braço, o coronel virá em cima de mim querendo saber por que eu não disse nada a ele. E eu vou ficar em má situação por sua causa. Vamos esquecer o braço.

Não é preciso ninguém me proteger! O sargento sabia disso. Foi ele mesmo que...

Claro que foi. Mas o sargento não podia dizer também que dispensou você por causa do braço porque então o coronel ia querer saber por que um homem com um braço doente estava trabalhando num avião. Por isso, o sargento não disse nada. É uma dessas ocasiões em que temos de nos proteger uns aos outros, Smith.

Meu braço não teve nada com isso. Pode ir-se embora. Que é que você tinha de vir me ver?

O cabo se levantou e sorriu.

Só lhe estou mostrando que nós somos unidos, Smith. Lembra-se que eu lhe falei de uma pequena que não falava bem inglês?

Não quero saber disso.

Tenho de dizer que ela não me foi fiel. Na noite passada estava em companhia de um pára-quedista. Mas não me aborreci porque nessa mesma noite...

Não estou passando bem, disse Henry. Por que não se vai embora?

Toda a alegria do seu feito e as esperanças de promoção tinham desaparecido. O espectro de um braço dolorido o perseguia. Pensou em dizer toda a verdade ao Coronel Flynn, afirmando que o braço estava dolorido mas isso não tinha de modo algum prejudicado o seu trabalho. Mas o coronel podia perguntar; se a coisa não era importante, por que era que ele estava contando; e se era importante, por que o sargento e o cabo não lhe tinham dito nada?

Um soldado em convalescença foi sentar-se na cama dele.

Por que é que está com essa cara fechada, garoto? Não está com vontade de sair logo daqui para ir trabalhar, está? No Exército, a gente só faz contar tempo e tanto a gente conta tempo trabalhando como baixando à enfermaria. E ficar aqui não é nada ruim.

A alta não demorou. Mas havia também uma ordem de apresentação ao Coronel Flynn. E, depois de esperar nervosamente muito tempo à porta do gabinete do coronel e de três oficiais lhe perguntarem o que era que ele queria, pôde afinal entrar.

Com medo no coração e não com a segurança de um herói, Henry entrou e fez continência rigidamente.

À vontade, disse o Coronel Flynn, sentado à sua mesa e sorridente. Smith, não tive tempo de dar-lhe os parabéns na hora do desastre. Mandei chamá-lo porque quero dar-lhe os parabéns agora.

Sim, senhor. Muito obrigado, Coronel.

Sente-se. É de gente assim corajosa que precisamos na aviação. Fez parte da turma que vistoriou o avião, não fez?

Fiz, Coronel.

Lembra-se se houve alguma coisa que o pessoal de terra não achou em ordem e teve de consertar?

Não que eu saiba, Coronel.

Que foi que você fez, Smith?

Verifiquei o óleo e as velas. Lubrifiquei as rodas. E abasteci o tanque.

Estou fazendo essas perguntas, Smith, apenas para saber e não para acusar ninguém. O piloto ainda não está em condições de nos dar muitos esclarecimentos. Não fez nada de mecânico? Não tocou nos controles?

Henry Smith hesitou e o coronel o olhou de uma maneira firme, mas bondosa.

Sentei-me diante dos controles, Coronel. Experimentei-os.

Estava testando-os?

Não, senhor. Não me dão esse trabalho. Experimentei apenas.

Não compreendo, Smith. Henry ficou vermelho.

Foi só para ver a impressão que se tem nos controles de um avião. Experimentei para ter a impressão de que era um aviador.

O Coronel Flynn franziu a testa.

Isso não parece fazer parte dos seus deveres. Os controles funcionaram direito?

Sim, Coronel.

Está bem. Obrigado, Smith. Você prestou ótimo serviço por ocasião do desastre. Dispensado.

Era domingo e os grandes ônibus amarelos estavam cheios de soldados que riam e assobiavam, impacientes para partirem e passarem o dia na cidade, divertindo-se e gastando dinheiro.

Smith! gritou um colega. Suba, garoto!

Smith não embarcou, cheio de um sombrio ressentimento que não conseguia vencer. Mais tarde, arrependeu-se de não ter ido até à cidade para entrar num cinema e depois comer um bom bife.

Foi até ao hospital e encontrou o carro do Major Thomas no local de estacionamento. Limpou-o, poliu-o durante duas horas e isso fê-lo sentir-se um pouco melhor.

Voltou para o quartel vazio e andou por ali sem saber o que fazer até que encontrou as revistas de nu artístico do Cabo Tyce. Pegou-as e sentou-se na cama. Enquanto folheava lentamente as páginas, ia estudando as pequenas que o olhavam entre os cílios compridos. Infelizmente, todas estavam revestidas de gazes vaporosas e cobriam justamente o que não devia ser coberto. Pouco a pouco, uma decisão se foi formando no espírito do Praça Smith. Um homem que tinha coragem de enfrentar um avião em chamas, podia ter coragem para muito mais.

O Cabo Tyce entrou.

Ainda está aqui, Smith? Por que não foi à cidade?

Não tive vontade.

Está vendo essas revistas? Não sei por que gasto meu dinheiro nelas. Que interesse tem ver mulheres tão vestidas assim? Como é, o Coronel lhe deu uma medalha?

Não.

Que foi que ele disse?

Perguntou se o avião estava em ordem e eu disse que estava.

Que mais você podia dizer? Foi só isso?

E então ele disse ”dispensado”. Tyce riu.

Tudo está bem, Smith. Mas por que não sai deste danado quartel? Venha comigo. Eu vou a Boomtown. Podemos divertir-nos um pouco lá.

Espere até eu pentear o cabelo.

Henry já tinha estado em Boomtown para andar na roda-gigante, comer cachorro-quente e olhar cheio de admiração para as mulheres, depois do que voltava para o campo. O movimento era muito grande quando os dois saltaram de um táxi. Os soldados enchiam as ruas. Grupos andavam de braços dados, rindo, na alegria de estarem vivos e ligeiramente embriagados. Outros, com pequenas ao lado, jogavam argolas e bolas nas garrafas da feira.

Há um bom espetáculo de burlesque ali naquela esquina, disse Tyce. Soube que há uma pequena notável que faz strip. Vamos até lá?

Sentaram-se nos bancos numa sala repleta de soldados que fumavam, gritavam e riam. Cinco velhos músicos estavam sentados num espaço diante do palco. O pianista deu duas pancadas no piano e a música principiou. As luzes diminuíram e o pano subiu, mostrando um velho pano de fundo com árvores, um lago e um cisne.

Henry teve uma decepção ao ver as coristas aparecerem com vestidos compridos e levando cestas de flores artificiais. Mas as luzes da ribalta se amorteceram e no fundo do palco acenderam-se lâmpadas fortes, de modo que os vestidos se tornaram transparentes como se não existissem.

Isso é um truque muito velho, murmurou Tyce, mas ainda faz efeito.

Quando a dança terminou, as luzes do fundo do palco se apagaram e as da ribalta foram acesas. Saiu então dos bastidores uma pequena alta e loura de curvas abundantes que andava com um passo singularmente ondulante. Os soldados gritaram e bateram os pés.

É ela, disse Tyce a Henry Smith.

Sob a tremenda algazarra, ela continuou a andar no palco de um lado para outro, sacudindo a cabeça levemente para os soldados como se estes estivessem procedendo mal. Não estava dançando, mas positivamente não estava também caminhando e acabou desaparecendo de novo atrás dos bastidores.

Dois cómicos apareceram então e os soldados riram a bom rir das velhas pilhérias, embora já as conhecessem todas, especialmente porque um dos homens, que caía constantemente e estava vestido como um vagabundo, usava uma braçadeira parecida com a da Polícia Militar.

Depois de meia hora de números cómicos e de danças de coristas, a música parou de repente. Um mestre-de-cerimônias surgiu através do pano descido e ficou como uma estátua, a pedir silêncio com a mão levantada. Afinal, com a voz solene de quem anunciasse o armistício, gritou:

E agora Glory Bee na Dança do Manto!

A música recomeçou num compasso lento. Henry se sentou na beira da cadeira cheio de uma tensão que sentia que os outros estavam também sentindo. A loura alta apareceu de novo, coberta dos pés à cabeça por um manto branco e ficou sorrindo pacientemente ante a tempestade de aplausos. Então, piscando o olho, começou de novo a andar pelo palco com o seu andar terrivelmente excitante. Todos assobiavam e batiam os pés e Smith, quase sem querer, começou a bater também os pés.

A música foi subindo e em dado momento ela abriu o manto, mostrando um costume de duas peças todo cintilante de lantejoulas.

Ao compasso da música e dos aplausos dos soldados, as duas peças caíram e ela mostrou os seios com os bicos cobertos por duas rosas.

Os pés nunca paravam de bater e os assobios eram ensurdecedores. A música ia subindo e na crista de cada crescendo as duas rosas foram jogadas longe e então as calças sumárias. O manto esvoaçava a cada movimento, cobrindo-a. Os soldados começaram então num frenesi a pedir-lhe que tirasse o manto. Ela mostrou no rosto um horror fúlgido para dizer que tinha compreendido. A música recomeçou e dessa vez ela se aproximou dos bastidores. Tirou rapidamente o manto e ficou de braços abertos, tendo apenas no corpo uma minúscula tanga; com os bicos dos seios muito vermelhos. Bamboleou os quadris, virou-se de costas e curvou o corpo para a frente, depois do que desapareceu.

O espetáculo havia terminado. Henry Smith levantou-se, tonto e afogueado, sem poder falar.

Essa pequena devia ir para Nova York, disse Tyce, acendendo o cigarro. Não se pode negar que ela tem classe.

Começaram a andar sem rumo até que Henry olhou para um prédio todo iluminado onde se via um jacaré desenhado com lâmpadas verdes.

Que é aquilo ali?

O Alligator Club, disse Tyce com súbita inquietação. Não gosto disso aí.

Que é que há aí?

Cerveja. Pode-se dançar. Há muitas mulheres. Pode entrar, Smith. Depois de ver Glory Bee, a minha intenção é outra.

Henry Smith viu Tyce alcançar uma pequena que passara pouco antes por eles e sair de braço dado com ela. Era muito simples, pensou ele, encaminhando-se para a entrada do Alligator Club.

Os homens e as mulheres em volta do bar e sentados nos reservados, os pares que dançavam encheram-no de uma inibição que ele a muito custo dominou. Defronte do bar, havia um compartimento vazio e ele para lá se dirigiu. Havia muitas mulheres bonitas que dançavam com os soldados. Dançavam tão bem e eram todas tão alegres e bonitas que Henry duvidava de que elas fossem capazes de tirar a roupa para deitar-se com alguém, como lhe haviam dito.

Que é que vai? perguntou o garçom.

Uísque.

Só cerveja, amigo.

Cerveja então.

Henry cravou os olhos numa mulher que chegava à porta do clube. Colocou um cigarro numa longa piteira e se encaminhou para o bar num andar ondulante que lembrava um pouco a moça do strip. Mas era mais refinada e mais bonita. Ajeitou os cabelos ruivos e disse ao homem do bar:

Boa noite, Art.

Bons olhos a vejam. Boa noite, Dolly.

O garçom trouxe a cerveja, mas Henry ainda não tinha tirado os olhos de cima da mulher.

Está esperando companhia, amigo? Aquela ali? Vou dizer a ela onde você está.

A mulher veio então para onde ele estava, com um sorriso. Henry levantou-se apressadamente e perguntou:

Quer sentar-se comigo?

Ela sorriu para ele. Os dentes eram bonitos e muito alvos e a cabeça dela mal lhe chegava ao queixo.

Não são muitos os soldados gentis como você, disse ela, sentando-se.

Henry sentou-se cuidadosamente ao lado dela, sentindo-lhe o perfume e vendo-lhe o suave arredondado das faces e do pescoço, sem saber o que dizer.

Gostaria de beber alguma coisa? perguntou ele. Um copo de cerveja?

Não, muito obrigada. Suco de laranja.

Suco de laranja, pensou ele. Nada havia de perverso naquela mulher.

 

Você não é como as outras aqui, disse Henry.

Dolly Yarn mudou subitamente de atitude. Olhando-o, sentira os sinais indefiníveis que lhe diziam que ele era tímido e não estava habituado a frequentar lugares como o Alligator Club.

Você é muito simpático, disse ela, segurando-lhe a mão. Como é o seu nome?

Henry Smith.

E eu sou Dolly Varn.

Você é muito bonita.

Ela viu que ele estava sendo sincero, seria sincero em tudo o que dissesse e não tinha o menor truque. Resolveu ser cuidadosa no que dissesse a ele, porque estava diante de um homem educado, embora fosse apenas um soldado.

Muito não, murmurou ela. Mas estou contente de que nos tenhamos encontrado.

Se eu tivesse sabido, teria vindo antes aqui.

Você simpatiza comigo e eu simpatizo com você.

Isso é verdade. Quer outro suco de laranja? Vou tomar outra cerveja.

Ela apertou-lhe a mão para encorajá-lo e perguntou:

Que foi que você veio fazer aqui, Henry?

Ele a olhou com uma súbita audácia que, entretanto, logo se desfez em incerteza.

Vi o cartaz e entrei. Mas foi bom encontrar você aqui. Posso-lhe dar uma caixa de bombons, Dolly?

Desde que ele era grande, jovem e tímido e estava procurando desesperadamente ser gentil, a ideia de uma caixa de bombons deu-lhe um aperto no coração.

Não tem nenhuma amiguinha por aqui?

Não. A verdade é que eu não venho muito por aqui.

Não me diga que um rapaz como você não tem amiguinhas.

Tomou um gole de suco de laranja e acrescentou: Henry, tenho um reboque onde moro.

Quando viu o pescoço dele latejar, compreendeu que não tinha perdido o tempo. Mas, por mais incrível que fosse, o coração dela começou também a bater.

Gostaria de ir até lá?

Gostaria. Muito.

Estenda a mão por baixo da mesa. Colocou a chave na mão dele. É a chave do reboque, Henry. O nome está escrito na placa. Chama-se Solidão. Vou sair agora, mas você tem de esperar um pouco. Não quero que ninguém desconfie. Tome mais uma cerveja, Henry.

Está bem, Dolly, murmurou ele e levantou-se, para dizer:

Adeus.

Até já, disse ela, sorrindo.

Ela correu os olhos severamente pelo interior do reboque. Estava tudo em ordem, tirando um pé de meia que saía pela metade de uma gaveta. Ela guardou a meia e foi-se olhar no espelho. Sorriu para a sua imagem e disse, estalando os dedos:

Veja lá, Dolly. Não vá fazer nenhuma asneira.

Tirou o vestido e os sapatos. Guardou o vestido cuidadosamente no armário e colocou os sapatos numa gaveta. Olhou ao espelho o corpo compacto e bem arredondado e pegou a esponja de pó. Depois, levada por um impulso, abriu o armário. Tirou uma camisola de chiffon preto, muito diáfana. Olhou-a contra a luz e sorriu antes de vesti-la. Não sabia bem para que estava reservando aquela camisola. Vestiu um robe por cima, calçou sandálias e se olhou de novo ao espelho. Aquelas roupas lhe caíam muito bem. Com os olhos cintilantes e aquela cor de pele, ela se achava realmente bela. Deu suspiros profundos para ver os seios se levantarem e caírem.

Olhou depois para o relógio e pensou que ele talvez não aparecesse. Os homens raramente lhe falhavam, mas isso às vezes lhe acontecia e era um golpe rude para o seu orgulho de mulher. Mas aquele rapaz era tímido e não deixaria de ir.

Ouviu a chave na fechadura.

Entre, disse ela.

Henry meteu a cabeça pela porta, todo cheio de incerteza.

Pode entrar, Henry. A casa é sua, disse ela, sorrindo e trancando a porta depois que ele entrou.

Ele sorriu e lhe entregou uma caixa de bombons.

Trouxe isto para você, disse ele, metendo as mãos nos bolsos para logo depois tirá-las.

Muito obrigada. Você é muito gentil, Henry, disse ela, com um leve tremor na voz.

Colocou os bombons em cima da penteadeira e, aproximando-se dele, passou-lhe os braços pelo pescoço e beijou-o.

Não se preocupe, Henry, murmurou ela. Vou fazer você sentir-se à vontade. Quer tomar café?

Bem... Gostaria, sim.

Ela serviu duas xícaras de uma chaleira que estava no fogão e sentou-se com ele num pequeno sofá que ficava do outro lado do reboque, defronte da cama. Tomaram o café bem devagar e ela notou que a mão de Henry tremia ao segurar a xícara.

Quer pegar um bombom para mim, Henry?

Comeu o bombom como vira as estrelas fazerem no cinema e murmurou.

Hum. Ótimos esses bombons.

A simpatia que sentia pelo rapaz a enchia de um virtuoso calor. Correu os olhos pelo reboque limpo e bem arrumado, pensando que estava procedendo como uma dama que recebesse um cavalheiro para tomarem chá e que aquele encontro estava sendo muito refinado.

De onde é você, Henry?

De Illinois. Mas não de Chicago. Sou de um lugar a uns duzentos quilómetros de distância de Chicago.

Você é gentil e educado. Onde foi que estudou?

Fiz o curso secundário e comecei o pré-universitário, mas não concluí.

É também um homem da universidade!

Não foi propriamente uma universidade. Ela apalpou o braço dele e perguntou:

Jogou na equipe de futebol americano?

Certo, disse ele, sorrindo.

Dando-lhe uma pancadinha na cabeça, ela perguntou:

Quer correr minha casinha?

Quero, sim. Parece muito bonita.

Ela o levou pela mão até ao fogão que trabalhava com gasolina ou gás de bujão. Mostrou-lhe a geladeira, onde havia uma garrafa de leite, mas não suco de laranja, a copa com os pratos de plástico de pé nas prateleiras e as xícaras penduradas de pequenos ganchos, e até o pequeno banheiro, a que não faltava uma luz acima do espelho.

Quer-me dizer uma coisa, Henry? disse ela, tirando o robe. Eu sou bonita?

Ele não respondeu imediatamente. Ficou a olhar-lhe o corpo através da camisola transparente. Disse então com voz trémula:

Bonita não, você é linda!

Dolly riu baixinho. Mas nesse momento o reboque se balançou com o peso de alguém na escada e bateram com força na porta.

Quem é? perguntou nervosamente Henry.

Fique calado. Não responda nada!

Olá, menina! gritou uma voz de homem. Só quero saber é se está sozinha.

A voz tinha um tom alcoólico.

Se está, eu também estou e preciso de companhia.

Dolly ficou muito unida a Henry, como se estivesse com medo e precisasse de proteção. O homem tornou a bater na porta.

Quer que eu o ponha para fora? perguntou Henry.

Não, não. Espere.

Se você está sozinha e eu também, por que então não podemos ficar juntos?

Dolly encostou a cabeça no peito de Henry. Ele passou a mão pelo corpo dela a fim de tranquilizá-la, mas não se estava sentindo nada bem.

Pensa que não tenho dinheiro? Pois está muito enganada.

Oh! Alguns homens são terríveis, murmurou ela.

Vá-se embora daqui! gritou Henry.

Olá! exclamou o homem, dando uma gargalhada. Desculpe, amigo.

Ouviram-no afastar-se. Dolly olhou ansiosamente para Henry e disse:

Acho você muito corajoso. Uma coisa dessas me deixa amedrontada.

Acho que estava apenas bêbado. Gostaria de ter dado uma lição nele. Se quiser, saio agora mesmo e mostro uma coisa a ele.

Não me deixe, Henry. Você não me pode deixar agora! disse ela, colando-se a ele e abraçando-o com todo o seu calor. Baixou a cabeça dele e disse-lhe ao ouvido, terminando as palavras com um beijo:

Tire a roupa e venha para a cama, Henry.

Ela apagou o abajur da mesinha de cabeceira. Abriu a porta do armário e guardou o robe, as sandálias e a camisola. Esperou na escuridão comendo um bombom. A interrupção por um soldado bêbado não era coisa rara e às vezes era até bem recebida, mas naquela noite tinha sido terrivelmente inoportuna. Pensou então em Henry e na sua timidez e um sorriso lhe aflorou aos lábios. ”Estou fazendo um grande bem a esse rapaz”, pensou ela.

Fechou a porta do armário e deitou-se na cama.

Beije-me, disse ela, com o coração a bater depressa, comprimindo o corpo do rapaz contra os seus seios e colando a boca inteiramente à dele.

Que bom! murmurou ele.

Beije-me mais, disse ela, pegando a mão dele para movê-la sobre o corpo dela.

Muito tempo depois, Henry disse com um suspiro:

Acho que tenho de ir. Já estou aqui há muito tempo. De fato, pensou ela.

Quando é que você tem de voltar para o campo?

Só na hora em que tocarem o despertar. Ela lhe beijou o rosto e perguntou:

E você tem algum lugar melhor para passar o tempo até essa hora?

Claro que não, disse Henry, rindo e abraçando-a mais uma vez.

Foi ela que o acordou.

Está na hora, rapaz. Senão, vai chegar atrasado.

Ele se levantou e se vestiu, olhando de vez em quando para ela.

Quero um bombom antes de sair, Dolly. Quando posso ver você de novo?

Faça-me continência! Ele riu e fez continência.

Estarei de folga esta noite de novo.

Quer que eu fique esperando você aqui, Henry?

Pode esperar?

Ela pensou aflita que não poderia esperar todo esse tempo de graça. Mas queria muito que ele voltasse e não apenas uma noite, mas muitas...

Gostaria muito, Henry, mas...

Mas... o que, Dolly? perguntou ele.

A meninazinha tem de viver.

A meninazinha pode viver de bombons hoje, disse ele, sorrindo.

Hum, hum. Mas está na sua hora.

Ele se aproximou dela e puxou as cobertas de cima do corpo.

Então até à noite. Como você é bonita! disse ele e beijou-lhe a testa.

Ela ficou algum tempo espreguiçando-se na cama, sonolenta e lânguida. Viver de bombons! Podia fazer um pequeno lanche de ovos mexidos e bacon, torradas e café. Ele devia ter deixado alguma coisa na caixa de bombons. Com certeza, não sabia quanto devia deixar. Se ele nada tivesse deixado, não iria encontrá-la no reboque naquela noite. Levantou-se.

Encontrou na caixa de bombons duas notas de dez dólares. Dançou com o dinheiro na mão diante do espelho.

Soldado maluquinho! Ele não pode gastar isso, Dolly, sua tola, disse ela, sorrindo para o espelho. Não se esqueça de um pouco de geléia.

 

Larry fez o seu último aluno pousar pela terceira vez depois de dois pousos errados. O rapaz desceu com o avião afinal de uma maneira perfeita. Quando o avião parou, Larry tirou os óculos.

Não podia ter sido melhor! disse ele e afastou-se, deixando o rapaz a rir, cheio de felicidade.

O respeito dos cadetes era o único prémio de um piloto que se tornava instrutor apesar da sua impaciência por voar e lutar sobre alguma terra estrangeira ou sobre o mar. Os jornais e o rádio não se cansavam de falar dos feitos dos grandes ases. Mas, afinal de contas, estava ao lado de Jean e tinha outro motivo de satisfação naquele dia. Com um pequeno adiantamento de Craig, tinha conseguido comprar um carro.

O Coronel Flynn olhou para Larry quando ele entrou na sala de voo.

Os seus alunos vão muito bem, Thomas. Estava agora mesmo verificando os registros.

Obrigado, Coronel.

Gosta de ser instrutor?

O senhor gostaria, Coronel? Flynn sorriu.

Compreendo perfeitamente. Mas não tenha dúvida de que isso fará de você um melhor piloto. Continue como vai indo.

A aprovação do coronel animou-o e dissipou-lhe até a preocupação com o mau estado de dois dos pneus do carro que havia comprado.

Como vai seu amigo Waller?

Parece que vai indo bem. Vou agora mesmo vê-lo. O que mais o preocupa é não saber como ocorreu o desastre. Ia em grande velocidade, mas acha que os controles dos ailerons falharam. Não tem certeza, mas julga que alguma coisa não funcionou como devia. É essa a minha opinião, Coronel, porque já voei com ele. Trata-se de um piloto de primeira ordem.

Disso eu sei. Mas talvez nunca apuremos o que foi que houve. Dê-lhe lembranças minhas.

Larry parou o carro diante do hospital, pensando que o estofamento do carro precisava de capas, mas felizmente naquela época ninguém dava muita importância a isso. Passou pela portaria e encaminhou-se para o quarto de Chuck. Já encontrou no quarto Mary Waller e Jean. O texano escutava muito atento alguma coisa que sua mulher estava dizendo.

Alo, Larry, disse ele, sorrindo. Como é que eu vou passando?

Foi isso o que eu vim saber.

Estou-lhe perguntando o que é que Craig acha. Pedi a você que fizesse alguma espionagem junto dele.

Ele não tem certeza, disse Larry, rindo. Podem ser dois ou três meses a mais ou a menos. Cerca de dois anos de cama, depois um ano numa cadeira e mais um ano...

Chega! Que foi que ele disse?

Não se consegue arrancar muita coisa de Craig. Mas ele diz que você vai indo excepcionalmente bem. Disse que você voltará a voar. Aí, eu perguntei quando?

É justamente isso que eu quero saber, palhaço.

E ele disse que você voltará a voar quando estiver plenamente recuperado.

Chuck Waller gemeu comicamente.

É só nisso que todos os médicos estão de acordo. Escute, Larry, se eu procurasse explicar aquele desastre, isso me isentaria de culpa, não acha?

Claro que sim. Que foi que aconteceu, além de você tentar acender um cigarro?

Cigarro coisa nenhuma! Houve alguma coisa com o avião. Tenho certeza disso. A maneira pela qual os controles ficaram de repente inúteis... Gostaria de que tivesse tido bastante tempo para lembrar-me agora de tudo o que aconteceu. Bem, quais são as novidades?

Larry havia começado a falar das atividades do campo quando bateram na porta.

Sue Marrell abriu a porta e recuou um pouco ao ver que havia visitas.

Oh, desculpem. Estou procurando o Major Thomas. O Coronel Flynn telefonou dizendo que quer falar com ele. Tudo está bem? Não há necessidade de nada?

Não, obrigada, disse Mary Waller, sorrindo.

Se houver alguma coisa que eu possa fazer, não hesitem. O Tenente Waller é o nosso paciente número um.

Viu, Larry disse Chuck. Ninguém liga muito a um piloto senão depois de um desastre.

Os outros se conservam longe demais, disse Sue com um sorriso, saindo em seguida.

Mary se voltou para Jean com as sobrancelhas franzidas.

Que é que você acha dessa moça?

Aí vem a maledicência feminina, disse Chuck a Larry. Vamos só observar.

Jean sorriu para Mary.

Sei que vamos decepcionar Chuck, mas acho que ela tem tudo.

Exceto um marido, disse Mary. Mas que quer você dizer com tudo?

Soube que é uma excelente enfermeira.

Ah, isso?

E é muito bonita.

Não sei... murmurou Mary. É verdade que tem um corpo bonito.

Claro que tem.

E parece não saber disso, murmurou Mary. Chuck observou pacientemente:

Estamos esperando a maledicência. Não vão chegar lá? Mary sorriu para ele.

Acho que temos mesmo de decepcionar você, Chuck. A moça tem tudo e qualquer pessoa pode ver isso.

As mulheres nunca falam com liberdade quando há homens presentes, explicou Chuck a Larry. Sue é bonita de frente e de costas. Os travesseiros da retaguarda são maravilhosos.

Chuck! exclamou Mary. Chuck riu.

Eu tinha muito medo de Mary, quando estava bom. Agora, não tenho o menor receio dela.

Mas nesse momento Craig apareceu à porta e o rosto de Chuck encheu-se de preocupação.

Como vai? perguntou-lhe Craig.

Muito bem, mas quanto tempo ainda vou ficar assim?

Se tiver paciência, não demorará muito.

Mas não vê que assim vou perder o resto da guerra? Um dia destes, Larry e os outros serão transferidos daqui.

Ainda vai encontrar guerra de sobra quando sair daqui, disse Craig.

Quando Craig saiu, depois de examinar Chuck, Jean se levantou e seguiu-o até ao corredor.

Já pensou no meu pedido, Craig? Um serviço para mim?

Não, Jean. Você tem sido uma salvação para Mary Waller. E ainda não encontrei nada.

Acho que não devia tê-lo incomodado, disse Jean, lentamente.

Não me incomodou absolutamente. Mas tenho de ir-me agora, Jean. Tudo isso faz parte da guerra, sabe?

Ela pensou que talvez houvesse alguma censura implícita a ela nessas palavras. Podia estar enganada, mas Craig parecia inquieto e ansioso por afastar-se dela.

Espere um pouco, Craig. Quero saber se pode jantar conosco em breve, no apartamento?

Gostaria muito, Jean, mas...

Vamos dizer, na sexta-feira?

Sexta-feira? Ótimo.

Está então combinado ou quase?

Mas havia nela alguma frustração ao voltar para o quarto, embora não desse o menor sinal disso. Riu quando Larry acabou de contar a Chuck a história de um aluno que tinha acabado de aterrissar num campo à beira de uma estrada e fez parar o primeiro carro que passou para perguntar onde era que estava, mas o carro era do comando da base. De repente, Larry disse:

Acho que está na hora de irmos, meu bem. Mary, quer ir para casa conosco?

Não, obrigada. Vou tomar um táxi. Quero montar guarda a Chuck mais um pouco.

Quando iam pelo corredor, Larry estava de testa franzida. O bom humor que tinha mostrado ao chegar ao quarto de Chuck havia desaparecido. Jean pensou que a causa disso talvez fosse a conversa a respeito de Sue e esse pensamento não lhe agradou.

Que foi que você foi perguntar a Craig? Se foi alguma coisa sobre Chuck, gostaria de que me dissesse.

Pensou que eu ia chamar Craig em particular para perguntar alguma coisa sobre Chuck? Fui apenas renovar aquele convite para ele jantar conosco.

Não me falou sobre isso, Jean.

Não marcaria uma data sem falar com você.

Está bem, murmurou ele. Não achou Chuck um pouco pálido hoje?

No caminho de casa, ele disse que o Coronel Flynn o havia elogiado pelo seu trabalho junto aos cadetes. Podia ser ou não um bom sinal.

Ótimo! exclamou Jean. Fico orgulhosa de você.

Não seria bom se isso fizesse Flynn querer conservá-lo como instrutor, porque nenhum piloto queria ficar muito tempo num serviço assim. Mas seria bom se isso o aproximasse do tempo em que teria de voar contra o inimigo. Larry voltou então à conversa dela com Craig com uma pergunta abrupta.

Escute, eu me casei com você, não foi?

Bem, eu estava presente nessa ocasião.

Não me casei com você e com Craig.

Larry! exclamou ela, sem procurar dissimular a sua indignação. Por que está dizendo isso?

Vou-lhe dizer por quê. Conversaremos sobre isso quando chegarmos em casa.

Depois disso, dirigiu em silêncio, e Jean viu que ele estava com os lábios apertados e a testa franzida. Ela sentia que a intenção dele era fazer o peso daquele silêncio cair sobre ela e impressioná-la. Teve então um estranho medo, não de que tivesse feito alguma coisa errada, mas de que a incompreensível raiva de Larry fosse pueril e terminasse numa explicação pueril. O medo passou logo porque a ideia de Larry, tão grande e tão dominador, sentir aquele absurdo ciúme como se fosse um colegial, provocou-lhe no coração um crescente calor.

Ainda carrancudo, ele guardou o carro e subiu as escadas, levando-a pelo braço.

Vamos beber, disse ele. Gostaria de beber esta noite. Está levando isso muito a sério, Larry.

Não, não estou. Mas quero que saiba que foi comigo e não com Craig que você se casou.

Ela teve vontade de dar uma gargalhada. Depois, teve vontade de levar tudo na pilhéria. Mas conteve ambos os impulsos.

Larry plantou os pés firmemente no tapete da sala e disse:

Craig é uma dor de cabeça permanente!

Que foi que ele fez?

Nada. É justamente por isso.

Mas ele fez um trabalho magnífico com Chuck.

Ele sempre faz um trabalho magnífico.

E isso faz dele uma dor de cabeça?

Para mim faz, disse Larry, preparando outro uísque.

Não temos visto muito Craig, disse Jean, pensativamente. Não consegui ainda que ele viesse jantar aqui. Creio que me está evitando.

Não. É a mim que ele está evitando.

Mas por que, Larry? Qual seria o motivo dele?

Para ser honesto, apenas.

Agora, não estou compreendendo mais nada, disse Jean, alarmada sem saber por quê.

Procure saber por que você está sempre insistindo em que ele venha aqui em casa.

Sempre? Duas vezes apenas. Isso não é sempre. Depois, ele é seu irmão e eu pensei...

Claro que você pensou. Vou-lhe dizer o que você pensou. Pensou que Craig poderia ser uma boa influência sobre mim.

Jean ficou vermelha porque era justamente isso que ela havia pensado. Isso fazia parte do seu pequeno plano estratégico com o seu imprevisível mas querido Larry. Tinha querido construir uma rede imperceptível de boas influências em torno dele e achava que seria bom para ele e Craig envolvê-lo numa boa atmosfera doméstica. Mas Larry havia percebido a sua estratégia antes mesmo que ela houvesse começado e ela se sentiu de repente desesperada e indefesa.

Acho que está imaginando coisas, Larry.

É o que você pensa. Todo mundo tem tido esse plano. Por que só você é que não iria pensar nisso? Craig é um homem bem conhecido. Respeitado. Honesto. Firme. Responsável. Justo. É todo um danado catálogo de virtudes, não é?

Ele se orgulha muito de você, Larry.

Ah! Nem isso falta. Venha que eu lhe vou preparar um drinque.

Não, Larry. Escute, quer ir jantar fora ou prefere que eu prepare alguma coisa aqui mesmo?

Não podemos comer aqui mesmo? De qualquer modo, tenho planos a seu respeito.

Ela foi para a cozinha e começou a trabalhar com movimentos lentos e cheia de aflição. Havia um tom pastoso de embriaguez na voz de Larry, mas qualquer advertência da parte dela poderia exasperá-lo. A rebelião de Larry a qualquer forma de controle ou disciplina era a sua velha defesa contra a autoridade do irmão mais velho. Era evidente a partir daquele momento que ela não poderia mais contar com a ajuda de Craig, nem de ninguém. Mas seria horrível viver sempre a acompanhar Larry naquela caça ao descontrole e à irresponsabilidade e vê-lo impaciente ante as coisas mais tranquilas... Até que ponto aquilo estaria entranhado na alma dele?

Larry entrou na cozinha e colou a mão em cima do ombro dela.

Acontece, meu bem, que nós temos de viver a nossa vida juntos. Só nós dois. Marido e mulher. Não quer mesmo um drinque?

Não. E você também não quer, Larry. Vamos jantar daqui a pouco.

Tem razão. Não preciso de beber mais, mas vou beber. Não posso decepcionar a garrafa.

Voltou e se encostou à porta com o copo na mão.

Blount me trata como se eu fosse um caso especial. E sou um caso especial, sou o irmão do famoso cirurgião Craig Thomas. Não é maravilhoso? Até o Exército me destaca para o campo onde ele está. Minha mulher pensa que ele é ótimo e...

Quer parar com isso, Larry? Você não está sendo justo comigo. Não está sendo justo com Craig. Não está sendo justo nem consigo mesmo...

Não estou sendo justo com Craig. Sei muito bem disso. Mas ele sempre foi justo comigo. Isso eu sei. Vou parar de falar sobre isso se você me deixar preparar-lhe um drinque.

Sendo assim, disse ela com um riso nervoso, prepare-me um drinque.

Ótimo! Beberemos juntos.

Vai beber mais ainda, Larry?

Não seria delicado deixar você beber sozinha. E eu sou um homem gentil, acima de qualquer discussão. Nisso sou até melhor do que Craig.

Jean ainda quis discutir, mas tratou desesperadamente de beber o uísque em pequenos goles. Olhou para o pequeno forno onde tinha colocado a carne para assar.

Escute, Larry, fiquei muito satisfeita com os elogios que o Coronel Flynn lhe fez.

Foi isso mesmo. O coronel me deu parabéns pessoalmente. O irmão caçula vai-se saindo bem. Surpresa para todo mundo, menos para o irmão caçula...

Já estou ficando com dor de cabeça, Larry!

Dor de cabeça? É tensão nervosa. Vou dar um jeito nisso. Venha comigo.

Passou os braços pelo corpo dela e começou a puxá-la da sala.

Larry! Que é que vai fazer?

Ele lhe cobriu a boca com um beijo e disse:

Adivinhe o que é!

Pelo amor de Deus, agora não! A carne está queimando! Não está sentindo?

Sim, estou sentindo alguma coisa no ar...

Largue-me! Está queimando! Por favor, Larry!

Deixe queimar, disse ele.

Levantou-a do chão e começou a levá-la para o quarto. Ela se debateu furiosamente entre os braços dele.

Gatinha selvagem, murmurou ele. Gosto de você quando é uma pombinha, mas adoro quando é uma gatinha selvagem.

Com o coração cheio de amarga derrota, ela ficou inerte e indiferente. Ele a levou para o quarto e disse:

Vou fechar a porta e você não sentirá cheiro nenhum. Amo você, Jean, e quero passar a noite calmamente em minha casa.

 

Na manhã seguinte, Larry era a própria imagem do arrependimento. Jean acordou-o depois de olhar muito tempo para ele. Tinha tão bom aspecto e era tão belo que ela suspirou pensando na decisão a que havia chegado.

Ih, meu bem exclamou ele, olhando para o relógio. Vou chegar atrasado.

Ela já havia preparado o café. Larry se levantou e sacudiu a cabeça, surpreso.

Engraçado, Jean. Eu devia estar com a cabeça estalando. Bebi um bocado esta noite. Mas não estou sentindo nada!

Foi para o chuveiro e ela o ouviu bater no peito e dançar ao sentir o impacto da água fria. Vestiu-se rapidamente e, enquanto ele tomava às pressas o café, Jean se espantou de que ele pudesse estar tão calmo, sem um traço da sua expressão irada da véspera.

Desculpe, Jean. Não sei o que me deu ontem à noite. Você é boa demais para que a trate assim.

Não pense mais nisso, disse ela, sentindo um aperto na garganta. É melhor olhar a hora.

Eu sei. Você está sendo muito distinta, mas eu me sinto coberto de vergonha. Sinceramente, Jean.

Ela levantou a mão para fazê-lo calar-se.

Desde que ela lhe serviu o café com as mesmas atenções de sempre, Larry ficou certo de que o seu arrependimento era sincero e solene. Dali por diante, evitaria externar os seus absurdos preconceitos contra Craig. Só procedera daquela maneira na noite anterior porque bebera demais. Dali por diante, trataria Jean com o máximo de atenção, satisfazendo-lhe todos os desejos.

Quando ia no seu carro para o aeroporto, sentia-se empolgado pela calma satisfação da sua futura virtude. Surpreendia-o a sua sensação de bem-estar físico. Sob qualquer pretexto de dor de cabeça ou embaraço gástrico, um piloto podia ser mandado a exame médico para dispensa, porque pilotos e aviões eram por demais valiosos para serem arriscados. Mas quando levou os seus alunos para voos e pousos breves, não podia esquecer-se do que se dizia sobre a influência de alguns drinques para um bom índice de Schneider. Talvez ele, afinal de contas, não tivesse bebido tanto assim.

Pode subir, disse ele pelo tubo ao aluno que na véspera tinha ficado tão radiante com o seu pouso perfeito.

Muito bem, tenente!

O avião correu pela pista com crescente velocidade e, depois de dois solavancos que fizeram Larry franzir a testa, elevou-se no ar.

Suba lentamente e dê algumas viragens. Ao fim de algum tempo, disse:

Chega. Vamos dar alguns mergulhos. Eu tomarei os controles.

Subiu rapidamente com o avião e, quando tinham altitude suficiente, desceu num mergulho. Por fim, puxou lentamente os controles até que o avião se endireitou como um trenó que chega a uma superfície plana depois de descer uma encosta. Larry converteu um pouco dessa velocidade no início de outra subida.

Viu como é?

O aluno fez um sinal afirmativo.

Então vou dar novo mergulho.

Uma vez mais, desceu com o avião num mergulho. No começo, era uma tarefa nervosa e inquietante, mas com o tempo ficava-se muito calmo vendo o chão e os edifícios subirem, sabendo que tudo giraria no momento em que se quisesse, como se um grande trecho de paisagem rodasse em torno de um eixo. Larry via displicentemente o chão correr ao encontro dele. Sabia exatamente quando devia interromper o mergulho.

O aluno virou a cabeça e Larry viu-lhe o rosto contorcido de terror. Fez um gesto e ao mesmo tempo mudou os controles. O avião emergiu do mergulho a apenas alguns metros do solo, agitando com o deslocamento do ar as copas dos eucaliptos.

Larry enxugou o suor do rosto. Tinha escapado por pouco daquela vez. Se o tivessem observado, seria severamente repreendido. Tinha perdido muito tempo em pensamentos desconexos. Em algum ponto, havia calculado muito mal a distância. Subiu de novo rapidamente com o avião.

É capaz de fazer isso? perguntou ele ao aluno.

A cabeça coberta de capacete à frente fez um sinal de aquiescência sem muita segurança.

Vamos ver.

O aluno se mostrou meio desajeitado mas executou alguns mergulhos breves. Estava nervoso e Larry julgava que sabia o motivo.

Vamos descer, disse ele. Vamos fazer um pouso perfeito.

O aluno fez uma aterragem um pouco agitada. Quando desceu da carlinga, estava um pouco pálido.

Foi um mergulho e tanto, Tenente. Faltou pouco, não achou? Com um ar de displicente confiança que não sentia Larry disse:

Uma das primeiras coisas que é preciso aprender em aviação é calcular a altitude.

Um soldado o alcançou quando ele entrou no vestiário para tirar o blusão de voo.

O Coronel Flynn quer falar com o senhor, Tenente Thomas. O mergulho fora decerto observado por muita gente e naquele

momento o coronel estava afiando a língua. Larry foi apresentar-se com a testa franzida. Tudo podia ter sido resultado do uísque da véspera, mas sentia a cabeça tão desanuviada que tinha as suas dúvidas.

O Coronel Flynn estava escrevendo sentado à sua mesa.

Mandou-me chamar, Coronel?

Mandei, sim, Thomas. Tem feito alguns voos extraordinários ultimamente, não?

Tenho, mas não me incomodo com isso.

Sei disso. Tem trabalhado bem, como ainda ontem lhe disse.

Obrigado, Coronel, disse Larry, começando a sentir-se tranquilizado.

É por isso mesmo que não quero mais coisas como a que acaba de fazer. Essas acrobacias podem ser muito interessantes mas não quando se leva um aluno a bordo.

Eu não estava fazendo acrobacias, Coronel.

Que foi que fez então?

Não sei como, calculei mal a altitude.

Isto aqui não é lugar para erros de cálculo. Isso lhe vem acontecendo com frequência?

Foi a primeira vez que me aconteceu uma coisa assim.

Deve haver uma explicação para isso. Pediu dispensa por doença hoje?

O Coronel Flynn escreveu rapidamente alguma coisa num papel.

Passe pelo gabinete do ajudante, Thomas. Quero que seja submetido a um checkup completo amanhã de manhã. Pode ser que esteja trabalhando demais.

Mas...

Mas o quê?

Não acho que esteja trabalhando demais, Coronel. Gosto desse trabalho. Talvez eu tenha tido uma ligeira indisposição na hora do almoço. Fiz um checkup recentemente.

Checkup completo de novo, disse o coronel com um gesto que encerrava o assunto.

Larry saiu do gabinete meio agastado. O coronel não tinha sido muito áspero e a lembrança de ter visto a terra tão perto ainda o perturbava. Encontrou um soldado à sua procura.

Telefone para o senhor.

Tenente Thomas, disse ele ao telefone.

Larry. - era a voz de contralto de Jean e isso foi para ele como uma mão compassiva na testa ardente. Lembra-se de eu lhe ter falado em minha tia Catherine?

Ela havia de fato falado numa tia que tinha numa cidade próxima e da sua intenção de ir fazer-lhe uma visita.

Sim, querida. Ela está aqui?

Não. Telefonei para ela. Vou fazer-lhe uma visita de alguns dias.

Mas, quando, Jean?

Agora mesmo. Vou sair daqui a alguns minutos.

Mas hoje? Escute, Jean, isso tem alguma relação com o que aconteceu ontem à noite?

Tenho vontade de vê-la e a oportunidade me pareceu boa.

Mereço isso, murmurou ele. Mas é duro. Quando é que você volta?

Passarei o fim-de-semana lá. Voltarei na segunda-feira, Larry.

Só na segunda-feira? E tenho de aguentar isso assim?

Você tem muita resistência.

Está bem, mas ao menos deixe o endereço e o número do telefone em cima da mesa. Assim poderei telefonar para você e dizer-lhe quanto sinto a sua falta.

Passou pela sala do ajudante e o Capitão Bland pegou o telefone quando ele entregou a ordem do Coronel Flynn.

Capitão Blount? Vou mandar o Tenente Thomas amanhã de manhã para ser submetido a um exame. A que horas? desligou e disse: Apresente-se ao Capitão Blount amanhã às nove horas, Thomas.

Sem Jean para ver e com quem falar, a noite foi um deserto. Fez uma refeição leve no clube, sem tomar sequer um copo de cerveja. Pretendia ir para a cama cedo, embora a ideia de voltar para o apartamento vazio o fizesse pensar na pouca sorte daquele dia. O Coronel Flynn não o censurara apenas pela imprudência. Dera a entender que talvez houvesse alguma coisa de errado com ele. Decerto Flynn telefonara depois para Blount, dizendo: ”O jovem Thomas quase se matou hoje e a um aluno que estava com ele. Entrou num mergulho e esqueceu quase até ao último momento que havia terra embaixo. Quero que faça um exame completo e apure como ele pôde fazer uma coisa dessas.”

Blount agiria de maneira implacável, não se contentando enquanto não encontrasse um defeito, naturalmente para vingar-se de que ele lhe houvesse roubado Sue durante a recepção.

Larry pagou a conta com impaciência e saiu no carro para ir ver Chuck.

O rádio na mesinha de cabeceira transmitia um jornal e Chuck estava imóvel com os olhos fechados como se estivesse escutando. Mas Larry viu que ele estava dormindo.

Já ia saindo aborrecido quando Chuck acordou de repente e perguntou:

Olá. Que é que há?

Ia saindo, disse Larry, sentando-se numa cadeira: não quis interromper a sua cura de repouso.

Já estou cansado de tanto dormir. Quer desligar esse rádio para que eu possa ficar acordado? Onde está Jean?

Foi visitar uma tia. Só volta na segunda-feira.

Algum problema?

Não, isso não. Não há problema algum.

Ela confia em você mais do que eu confiaria, Larry. Veio-me confortar ou quer que eu o conforte?

Acho que é a sua vez agora. Quase espatifei um avião esta tarde.

Ah, está aí uma boa notícia, disse Chuck, cheio de interesse. Foi uma pena que não tivesse mesmo arrebentado o avião para aprender. A não ser que levasse um aluno.

E levava. O velho Flynn devia estar olhando da janela.

Como foi?

Eu estava fazendo um mergulho e não sei como calculei mal a altitude. Rocei algumas árvores.

Que árvores? Chuck perguntou todos os detalhes e então disse: O velho não lhe suspendeu os voos?

Não, mas quer que eu seja submetido a um exame completo. Meu velho amigo Blount vai fazer a inspeção amanhã de manhã.

É melhor beber um pouco esta noite para o seu Schneider subir.

Devia fazer isso mesmo, mas estou sem vontade. De um modo ou de outro, estou apavorado. Tive algum trabalho com o meu teste de percepção de profundidade no último exame e agora ele pode sair ainda mais errado.

Como invejo você até em ser examinado por Blount, Larry. Mas se o chão chegou muito depressa para você num avião de treinamento, imagine como foi para mim no Thunderbolt.

Sue Marrel apareceu à porta. Pareceu não ver Larry e só olhou para Chuck.

Quer alguma coisa, Tenente? Tudo bem? Ela estava sorrindo e Larry disse de repente:

Ele está bem. Quem está doente sou eu. Ela o olhou como que assustada.

Doente de quê?

Podia-me dar alguma coisa para uma dor de cabeça geral? Ela não respondeu. Voltou-se de novo para Chuck e disse:

Esta é a minha última visita antes de deixar o serviço. Não quer nada mesmo?

Não, Sue, muito obrigado.

Larry pensou que ela poderia ter conversado um pouco com ele. Por fim, levantou-se.

Vou-me deitar a ver se arranjo algumas boas reações amanhã para Blount. Até amanhã, Chuck. Depois, virei contar a você o que houver.

Felicidade, rapaz.

Saindo do hospital, Larry acendeu um cigarro e ficou parado, pensando. Um passeio de carro lhe faria mais bem do que mal. Se Sue Marrell lhe fizesse companhia, teria a mais o prazer da companhia. Ficou muito satisfeito com a ideia, achando que isso lhe daria no dia seguinte uma vantagem secreta sobre Blount.

Ela saiu do hospital caminhando rapidamente. Quando se aproximou, Larry saiu de onde estava e perguntou:

Posso levá-la de carro?

Você me assustou! disse ela.

Não calculou que eu estivesse aqui?

Mais ou menos.

Preciso de um pouco de ar livre para curar a minha dor de cabeça geral. Quer-me fazer companhia?

Não sei. Tenho algumas cartas para escrever.

Não perca tempo com isso. Posso levá-la aonde quiser.

Neste caso, vou lá dentro trocar este uniforme por um vestido.

Meu carro está ali entre as árvores. Ficarei com impaciência à sua espera.

Ela voltou menos de dois cigarros depois e entrou no carro.

Bonito esse vestido, disse ele. Aonde é que vamos?

Estou com um pouco de sede.

Tomaram a cerveja num bar à beira da estrada e, depois, saíram da estrada principal para uma estrada que contornava a baía, seguindo a linha da praia. Num espaço aberto à beira do mar, ele parou o carro. Havia outros carros. De vez em quando, um fósforo se acendia num deles e havia risos e murmúrios amortecidos. Larry apagou as luzes e ligou o rádio. As notas suaves de uma orquestra encheram o carro.

Todas as conveniências de uma casa, disse Sue.

Claro, disse ele. Sentia-se um pouco inibido e relutante, desapontado com a sua incapacidade de divertir-se com aquela oportunidade. Quer um cigarro?

Ela aceitou o cigarro e se reclinou no canto do carro, com a cabeça no encosto.

Onde está sua mulher?

Por que perguntou isso? disse Larry, zangado. Não me faça perguntas assim que eu estou nervoso. Como vai Blount?

Paul é um bom sujeito. Onde está sua mulher?

Foi visitar uma tia.

Então é isso que há com você. Está com saudades dela, não está?

Ele não respondeu.

Isso é claro como água, continuou ela. Um homem não se sabe divertir sem a certeza de que a mulher está em casa à espera dele.

Escute...

Agora, está zangado comigo... Jogou o cigarro fora e, curvando-se para ele, beijou-o. Isso é capaz de curá-lo?

Não, disse ele, tomando-a nos braços. Isso só serve para me piorar.

Pouco depois, ela se separou dele.

Escute. Tenho um turno de serviço bem cedo amanhã. E tenho plantão todas as noites.

Todas as noites?

Quase todas. Mas vou sair da cidade no domingo à tarde. Alguns amigos meus têm uma casa de campo em Gulfview.

Domingo à tarde, posso sem querer ir até lá. Seria bem recebido se aparecesse?

Acha que se estará sentindo bem sozinho no domingo? Ele riu.

Quando terá de voltar?

Na segunda-feira de manhã.

Onde é mesmo o lugar?

Conover Cottage. Antes de chegar a Gulfview.

Sentiu-se melhor, voltando para o seu apartamento. Foi para a cama sorrindo e adormeceu quase no mesmo instante.

 

O Praça Henry Smith cantava enquanto tomava um banho de chuveiro. Tinha acabado o seu trabalho e não precisava estar presente até ao despertar do dia seguinte. Dolly estava à espera dele no reboque chamado Solidão. Mas solidão era uma coisa que ele não deixava mais haver para ela.

Enxugou a cabeça vigorosamente. Saiu então de roupão e foi para o alojamento vestir um uniforme passado. Deu o laço na gravata e enfiou a ponta entre o primeiro botão e o segundo depois do colarinho, conforme mandavam os regulamentos.

Desde que ainda era cedo, resolveu ir a pé até Boomtown. Não podia ir procurar Dolly antes que o sol desaparecesse. Ela lhe havia recomendado isso, dizendo que tinha de ter cuidado com a sua reputação.

Chegando ao portão, Henry mostrou o seu passe e teve permissão para passar. Muitos soldados esperavam impacientemente o ônibus, mas ele seguiu a pé pela beira da estrada, tendo o cuidado de proteger ao máximo da poeira os sapatos engraxados.

Quando chegou à esquina do Alligator Club, tomando o estreito caminho que leva à rua de reboques, viu os letreiros de néon que brilhavam mostrando a disponibilidade das suas ocupantes. Mas o pequeno letreiro de Dolly não estava aceso. Isso deu a Henry uma absurda alegria. Bateu duas vezes na porta, como recomendara Dolly.

Mas você chegou muito cedo, Henry. Ainda estou arrumando as coisas, disse ela, passando os braços pelo pescoço dele para beijá-lo.

Quando ela o beijou, ele teve de novo a emoção de surpresa de que pudesse beijá-la a qualquer hora. Uma semana antes, teria medo até de fazer isso e a vida era vazia e triste.

Ainda não acredito que você seja verdade, disse ele, cheio de entusiasmo.

Dolly colocou um cigarro na piteira.

Comprei uma coisa para você.

Para mim? perguntou ele, encantado.

Sim.

Que é?

Não ria. Comprei-lhe um pijama, uma escova de dentes, um aparelho de barba, sabão de barba e pincel.

Ele correu a mão pelos cabelos dela e beijou-o de novo.

Ótimo, mas você não devia ter feito isso.

Tive prazer com isso, disse ela. Depois, suspirou dramaticamente. Essas são as boas notícias. O resto é ruim.

Que é, Dolly? Que quer dizer com isso?

Não podemos continuar assim. Você já esteve aqui quatro noites seguidas, Henry.

Claro. E estou de folga amanhã à noite também. Posso vir?

É que eu não vou mais ao Alligator Club e todas as outras estão falando.

Quem se importa que elas falem? É dinheiro, Dolly? Não tenho sido correto com você?

Tem sido ótimo, Henry. Não procederia melhor se fosse um sargento.

Devo ser promovido em breve.

É o reboque, Henry, o aluguel. Vão aumentar o aluguel e eu tenho de tomar outra comigo.

Mas, Dolly! Todas as horas que passamos juntos. Já estou considerando isto aqui como minha casa, quase. Não pode botar outra mulher aqui dentro.

Eu sei, Henry. E foi por isso que, quando soube da notícia, fiquei tão aborrecida que comprei uma garrafa de uísque. Vou-lhe preparar um uísque, Henry.

Henry segurou pensativamente o copo.

Isso chega a ser roubo, Henry! Vinte dólares por semana! Terei de viver entrando e saindo no Alligator Club. Você não sabe como detesto aquilo ali!

Você é boa demais para estar aqui. Deve sair daqui. E uma coisa eu lhe digo: se eu encontrar algum camarada saindo daqui, ele vai direto para o hospital.

E eu sei que você é capaz de fazer isso, disse ela, com um brilho de admiração nos olhos. Mas não se preocupe mais com isso. Vamos ser felizes por algum tempo.

Felizes? Oitenta dólares por mês por isso aqui! Quanto custaria um apartamento?

Henry, será que você me está fazendo uma proposta?

Eu gostaria de tirar você daqui. E vou-lhe dizer o que vamos fazer. Havia um tom de autoridade na voz dele. Iremos à cidade, comeremos um bom jantar. Iremos depois a um cinema. Podemos olhar algum apartamento que sirva. Há uma coisa que você não sabe. Tenho setenta e cinco dólares por mês que uma tia me deixou.

A ideia de alugar um apartamento e viver ali com Dolly como marido e mulher, ele que apenas uma semana antes tinha medo de mulheres, embriagava-o pela própria audácia.

Apronte-se então. Está levando um bom filme do Oeste, no Orfeu.

Ela lhe alisou os cabelos.

Você é muito bom para mim, Henry. Vou-lhe dar outro uísque para você tomar enquanto eu me visto. E ali há uma revista. Não vai precisar ficar olhando para mim.

Mas posso, não posso?

Claro que pode, disse ela, rindo.

Ela tirou os slacks novos e começou a andar pelo reboque de calça e soutien.

Se eu não tivesse essas sardas nos ombros, murmurou ela. São horríveis, não são?

Não. Eu gosto delas.

Ela se sentou diante do espelho e escovou os cabelos cuidadosamente. Depois, usou uma porção de vidrinhos de maquilagem e Henry olhou tudo, aspirando o perfume e a intimidade da cena. Ela vestiu um costume e virou-se para ele.

Estou bem, Henry?

Linda.

Você sempre me diz isso. Por que não diz a verdade? Alguns soldados no ônibus olharam-no com curiosidade, mas

Henry não notou e Dolly ia sentada com uma expressão de fria indiferença que aprendera num filme de Greta Garbo.

Henry se lembrou de que aquela expressão era a mesma que ela tinha tido quando ele a vira pela primeira vez no Alligator Club.

Jantaram num pequeno restaurante com um copo de vinho tinto.

Não gosto muito de filmes do Oeste, disse Dolly. Os cavalos correm tão depressa que me cansam os olhos.

Foram olhar os apartamentos. Tinham comprado um jornal no restaurante e encontraram uma lista.

Subiram escadas para ver muitos dos apartamentos anunciados. Em cada qual, uma mulher de meia-idade olhava-os com muita atenção e mostrava-lhes uma sala forrada de papel encardido com uma kitchnette e apontava o banheiro no corredor. Henry tinha a ideia de uma coisa clara e limpa com um box ladrilhado onde ele tomaria um banho de chuveiro, enquanto Dolly cuidaria das flores na janela.

Um reboque tira a vontade de morar num apartamento, disse ela. Um reboque é mais limpo e a gente tem tudo à mão.

Bem, não nego que um reboque tem as suas vantagens. Mas não quero que você volte para lá.

Pois é melhor voltarmos para lá agora mesmo. Foi uma ideia muito gentil que você teve, mas não passa de um sonho.

Estavam no fim da cidade, diante de uma casa com trepadeiras na varanda.

Uma mulher gorda e baixa desceu da varanda e se aproximou deles.

Querem saber onde fica alguma rua? perguntou ela gentilmente.

Não, disse Henry. Estávamos procurando um apartamento para alugar, mas já vamos voltar para a cidade.

Não há muitos apartamentos, disse ela.

E não são muito limpos, disse Dolly com um ar de elegante aborrecimento.

Tenho um pequeno apartamento por cima da garagem. Vou buscar a chave e poderão vê-lo.

Seguiram-na por uma escada que corria pelo exterior do prédio. Ela abriu a porta e acendeu a luz.

Um oficial e a esposa saíram do apartamento ontem. Fiquei um tanto surpresa com o estado em que deixaram tudo, mas talvez não tivessem tido tempo de arrumar. O senhor é oficial?

Não, senhora.

Ele é da aviação, explicou Dolly, entrando no apartamento.

Havia um sofá-cama e na pequena cozinha havia uma geladeira elétrica e um fogão a gás. Numa caixa de cimento na janela viam-se petunias. Dolly abriu a porta do banheiro e viu um chuveiro em cima da banheira.

Há pratos e tudo, disse a mulher. Mudo a roupa de cama e de mesa uma vez por semana.

Parece bom, murmurou Henry.

Quanto a senhora está querendo? perguntou Dolly.

Quarenta dólares por mês.

O lugar parece bom, murmurou Henry.

Só lhe posso dizer que é sossegado e limpo, disse a mulher. Quer conversar com sua mulher? Vou para casa e poderão dar-me a resposta lá.

Henry fez um sinal para Dolly.

Podemos mudar amanhã? perguntou ela. Estamos hospedados num hotel.

A mulher sorriu.

Vou arrumar tudo para amanhã. Quero avisar que essas flores morrem se não tiverem água de dois em dois dias.

Vou pagar agora um mês de aluguel adiantado, disse Henry.

Tudo foi assim fácil, mas ele ficou contente quando se viu de novo na rua com Dolly.

Ainda não acredito, disse ela. E você, Henry?

Bem, foi um pouco repentino. Mas nós nos sairemos bem. Vai ser maravilhoso. Vamos pegar um táxi.

Com o braço passado pela cintura dela, ele ficou pensando quantas noites poderia sair do quartel. Se pudesse alegar que eram casados, teria permissão para viver em casa e só se apresentar depois do café da manhã. Mas ele não tinha coragem de enganar o Exército numa coisa dessas.

Dolly preparou uísque, ovos mexidos e torradas.

Cozinhar para um sujeito de sua espécie, murmurou ela. Nunca pensei que desse para isso.

Não quero que você tente levar nada pesado na hora da mudança, disse ele. Pode chamar um táxi e levar o que é seu. Era muito curioso ele estar determinando o que ela devia fazer. Que diria o Cabo Tyce se soubesse quanto o Praça Smith estava mudado? Mas ele não iria contar nada a Tyce e arriscar-se a alguma pilhéria suja dele. Dolly Vara sentou-se no colo dele e beijou-lhe a testa.

Tem certeza de que é isso mesmo que você quer fazer, Henry? Quero apenas que você se sinta feliz.

E eu quero que você seja feliz, Dolly. Você já me fez um grande bem. Eu chegava até a odiar o Exército.

Vamos colocar na parede do apartamento uma pequena bandeira americana. Terei sempre cerveja e queijo na geladeira para você. Teremos flores na mesa... A beleza de tudo isso fez a voz dela tremer. Henry, venha para a cama e me aperte nos braços.

Sim, Dolly, faremos tudo isso, disse ele, também com a voz carregada de emoção.

E quando ela estava deitada nos braços dele, Henry disse com voz pausada:

Tenho pensado muito numa coisa, Dolly. Podemos fazer essa experiência e ver se nos damos bem. Se nos dermos, nos casaremos e então eu poderei passar todas as noites com você.

Dolly o apertou de encontro ao peito.

Por enquanto, não lhe posso dizer nada, Henry. Uma mulher tem de pensar muito antes de uma coisa assim. Mas vamos conversar sobre isso e ver como nos sentimos.

 

O porte militar de Craig Thomas era cada vez mais rígido, e sua maneira direta de decidir as coisas era cada vez mais abrupta e a sua atenção ao trabalho era marcada de tanta concentração, que o Coronel Cárter um dia observou: ”Ali está um homem que não pensa senão no cumprimento do dever e se está matando com isso”.

Mas no espírito de Craig havia um ponto fraco, que persistia em evocar as palavras e expressões dos seus poucos contatos com Jean.

Tinha havido um telefonema pouco antes da partida dela.

Craig, dissera ela na voz calma e profunda que tanto o emocionava, vou visitar minha tia na cidade. Como sabe, tínhamos um esboço de plano para um jantar na sexta-feira.

É verdade.

Seria um alívio não haver jantar na sexta-feira, porque ele tinha a intenção de cancelá-lo no último instante, alegando algum caso grave. Mas não foi só o alívio. Sentiu-se também alarmado com a partida dela.

Concorda num adiantamento para um dia que combinaremos quando eu voltar?

Claro que concordo. Espero que tudo lhe corra bem. Vai demorar-se muito?

Até segunda-feira, creio.

Ele não queria que a voz dela saísse do telefone.

Como vai esse meu irmão?

Tinha havido alguma hesitação ou era apenas imaginação dele?

O coronel elogiou-o pelo trabalho dele com os alunos, disse ela, mas o tom pareceu a Craig inerte e sem vida.

Ótimo, disse ele e, como não podia pensar em mais nada, repetiu: Ótimo...

Teve vontade de telefonar para Larry sob um pretexto qualquer para convidá-lo para jantar no clube e ver como Larry se referiria à ausência de Jean. Não duvidava de que Larry tinha feito alguma coisa para magoá-la. Mas, justamente porque desejava tanto saber, não telefonou para Larry. Debateu a questão consigo mesmo durante duas noites no silêncio do seu quarto até que ela se ramificou extraordinariamente e tomou grandes proporções. Que tinha feito Larry para obrigá-la a deixá-lo para fazer uma visita? Tentou então esquecer tudo isso, convencendo-se de que estava ficando nervoso e sujeito a descontroles de imaginação.

Todos esses pensamentos contribuíram para a sua aparência severa e para a dedicação ao seu trabalho como chefe da Cirurgia. E, em vista do seu respeito pela opinião de Craig desde o caso do soldado com o pé frio, o Coronel Cárter procurava-o quase todos os dias e levava-lhe problemas.

Temos um caso que gostaríamos que você visse, Craig. Não é caso de cirurgia ou, pelo menos, ainda não é. Parece meningite.

Encontraram numa enfermaria um jovem aviador, recém-chegado ao campo, que estava em aparente estado de coma com o corpo rígido. Um capitão médico estava ao lado dele.

Capitão Sanders, disse o coronel, trouxe o Major Thomas até aqui. Quanto mais opiniões, melhor. Que é que acha disso, Thomas? Até ontem à noite, ele estava gozando de boa saúde. Queixou-se de que estava com dor de cabeça a outro piloto e este pensa que ele tomou alguma aspirina. Hoje de manhã, deu parte de doente. Não se sentia muito mal, queria apenas passar o dia em repouso. Hoje à noite, foi encontrado na cama dele, assim. A única coisa que apuramos foi que ele sofreu um acidente de automóvel há seis meses, antes de entrar para o Exército. É só, não é, Sanders?

Sim, Coronel. É só o que sabemos.

Craig sentiu em Sanders uma ponta de ciúme profissional, uma construção de defesas.

Inclinou-se sobre o homem que dormia. Levantou as duas pálpebras sucessivamente. As pupilas estavam iguais e de tamanho normal. Apanhou um oftalmoscópio na bandeja ao lado da cama e examinou o fundo do olho. A aparência era normal. Mas o homem estava muito doente. O pulso estava acelerado e a respiração era entrecortada.

Sabem alguma coisa a respeito do acidente?

Muito pouco, respondeu Sanders. Houve uma pequena rachadura no sínus frontal. Muito pequena, mas foi só o que pudemos encontrar numa radiografia feita hoje à tarde.

Craig passou a mão pela testa quente e seca do doente e viu que a temperatura estava elevadíssima. Voltou-se então para o Coronel Cárter.

Parece um caso claro de meningite. Não posso acrescentar coisa alguma ao que o Capitão Sanders já sabe.

Sanders bateu cordialmente com a cabeça. Mas Cárter tomou o braço de Craig e saiu com ele, dizendo:

Meningite, é claro. Mas não há muitas possibilidades para o rapaz. Pensei que você pudesse achar um jeito de intervir. Mas não é possível. Resta-nos o consolo de ter feito tudo o que era possível. Agradeço que tenha vindo ver o rapaz e sinto tê-lo afastado do seu trabalho.

Havia uma ponta de mágoa na voz do coronel e ficou ressoando no espírito de Craig quando este voltou para o seu gabinete. O velho coronel tinha visto mortes, tanto nos campos de batalha quanto nos hospitais. Devia ter aprendido havia muito tempo a considerá-las percentagens inevitáveis, mas ainda havia nele compaixão pelo jovem aviador que se consumia lentamente.

Craig se levantou de repente e voltou ao gabinete do coronel.

Vamos examinar depois aquele caso de meningite, Coronel?

Por que, Thomas? Ocorreu-lhe alguma coisa?

Não sei, Ainda não sei.

Mas estava intimamente agitado e o Coronel Cárter acompanhou-o, observando-lhe atentamente o rosto.

Ante o olhar de surpresa do Capitão Sanders, explicou:

O Major Thomas tem uma ideia sobre o caso.

O pescoço do homem devia estar rígido. Isso e um teste de Kernig positivo a incapacidade de levantar a perna em ângulo reto com o corpo eram as coisas que a fratura no sínus sugeriria imediatamente.

Parece um caso de meningite pneumocócica, disse ele, depois dos exames e de olhar a radiografia.

Pneumocócica? exclamou Sanders. Por que não meningocócica?

É o que eu penso. Já fez uma punção?

Temos tudo pronto para isso. Quer fazer a punção, Major?

Não, prefiro que o Capitão Sanders a faça. Creio que pode fazê-la muito bem.

O rosto do capitão se desanuviou. Era uma punção difícil, desde que as costas rígidas do paciente não poderiam ser curvadas para abrir os espaços entre as vértebras.

O fluido retirado deveria ser claro e leve, se não houvesse infecção em torno do importante feixe nervoso. Mas o fluido colhido foi grosso e turvo.

Pus, disse o Capitão Sanders. É bom levar imediatamente para o laboratório. Quer continuar a punção, Major?

Apenas para atenuar um pouco a pressão. Mas faça isso muito lentamente.

Não esperem por mim, disse o Capitão Sanders. Mandem fazer o exame imediatamente.

No laboratório, o técnico, nervoso com a presença do Coronel Cárter, espalhou numa lâmina uma leve película do líquido turvo e ficou esperando que secasse. Colou uma gota do fluido numa lâmina graduada, cobriu-a com um vidro fino e acionou rapidamente um aparelho, contando as células.

A contagem é de cerca de três mil, disse ele, terminando.

Ê um bocado de células, observou Craig ao Coronel Cárter.

Em seguida, o técnico corou a lâmina que deixara para secar e colocou uma gota de óleo no centro antes de levá-la ao microscópio. Ajustou as lentes até focalizá-las devidamente.

Pneumococos? perguntou Craig.

É o que parece, Major.

Craig sentou-se no banco e olhou pelo microscópio binocular. Como estátuas num palco guarnecido de azul-claro, as células de pus estavam estendidas com o seu núcleo escuro de forma estranha, coradas pelo azul de metileno da preparação. O técnico já estava trabalhando em outra lâmina, aplicando o corante de Gram, que agrupava as bactérias em duas grandes categorias, de acordo com a cor que tomassem.

Há bactérias em penca, disse Craig. Quer ver, Coronel?

Havia por toda a parte germes de forma alongada em pares e cadeias, maiores do que os meningococos.

O técnico secou a lâmina que havia corado pelo processo de Gram e entregou-a a Craig. Dessa vez, os germes mostravam o roxoescuro dos pneumococos. Os meningococos seriam vermelhos.

Thomas, disse o Coronel Carter, eu gostaria de ter entrado para a faculdade agora. Seria ótimo ver o que acontece nos próximos cinquenta anos.

Veja o tipo desses pneumococos, disse Craig ao técnico. O homem misturou pequenas porções do líquido saturado de

pus com misturas de soros de uma fileira de pequenos tubos. Depois de preparar várias lâminas, começou a olhá-las em rodízio. Um momento depois, o sorriso em seu rosto mostrou que ele tinha achado o que procurava.

Veja, disse ele, saindo do banco. Parece que se trata do grupo dois.

Craig estudou de novo a lâmina. Esse exame dependia da presença de uma delicada cápsula em torno de cada germe. Misturada com um anti-soro do mesmo tipo, a cápsula engrossava até tornar-se um círculo, esticado em cujo centro ficava o germe de cor mais escura.

Dois, sem dúvida alguma, disse Craig.

O Capitão Sanders chegou com mais tubos de fluido.

Como está o rapaz? perguntou Craig.

O pescoço ainda está rígido.

Pneumococo tipo dois. Têm soro aí?

Quase não usamos mais desde que temos a sulfadiazina para aplicação nos casos de pneumonia.

Penso que ele deve tomar o soro e injeções intravenosas de altas concentrações de sulfadiazina. Está muito doente e precisa de tudo.

O Capitão Sanders foi ao telefone para ligar para o hospital de MacDill e voltou esfregando as mãos.

Vão mandar o soro imediatamente de avião. Deverá estar aqui dentro de duas horas no máximo. Enquanto isso, vamos aplicar a sulfadiazina.

O Coronel saiu satisfeito quando saíram de novo pelo corredor. Mas Craig tomando automaticamente posição à esquerda, como cabia a um oficial inferior, estava dominado por um sentimento de culpa, sabendo que estava incorrendo numa falta imperdoável por não deixar de pensar em Jean.

Foi admirável a sua intuição, Thomas, disse o coronel. Salvou um aviador para o Exército.

Bem, ele tem boas chances de salvar-se. Mas, há um ano ou dois, ficaríamos sem saber o que fazer.

Vamos até ao meu gabinete, sim, Thomas?

Chegando lá, o coronel encheu o cachimbo, acendeu-o e disse:

O Comando do Serviço tem você em mira, Thomas. A sua folha de serviço é excelente. Que é que eu posso fazer por você?

Tire-me daqui, Coronel. Mande-me servir no estrangeiro.

Oh! Está também com essa ideia?

Gostaria de ir, sim.

Compreendo isso perfeitamente. Também não me senti nada bem quando fui deixado para trás em 1917 e vi os outros embarcarem. Depois, superei isso e você talvez o possa conseguir também. No que me diz respeito, vou-lhe dar um bocado de tempo para pensar no caso.

Coronel, estou-lhe fazendo um pedido direto, disse Craig com uma decisão que a ele próprio surpreendeu. Não estou apenas pensando na ideia.

Está bem, Thomas. Longe de mim a ideia de não levar em consideração o seu pedido. Precisamos de médicos em todos os campos de batalha e imediatamente na retaguarda. É um bom serviço, mas constituído quase inteiramente de casos de emergência. Você se julgará de volta aos seus tempos de interno num serviço de pronto-socorro.

Mas é um trabalho essencial.

Sem dúvida. E temos muitos jovens médicos que podem fazer isso muito bem. Aqui para nós, Thomas, temos até médicos que me parecem mais veterinários. Passam o tempo todo aplicando torniquetes e aplicando morfina.

Nos hospitais da base da retaguarda, há verdadeiro trabalho cirúrgico.

Claro que há. Não quero diminuir a importância desse trabalho. Mas há equipamento melhor aqui e os casos mais graves são trazidos para cá. Thomas, foi um bom trabalho que você fez com aquele jovem aviador.

Craig sacudiu a cabeça obstinadamente.

O melhor serviço que eu presto, disse o Coronel Cárter, semicerrando os olhos, é manter o meu excelente equipamento nas mãos dos melhores homens que posso conseguir. Thomas, onde é que você está prestando o seu melhor serviço?

Não é aqui, Coronel.

Acha que está trabalhando demais?

De modo algum.

Posso saber qual é a causa desse pedido, Thomas?

Craig não podia explicar ao Coronel Carter nem a ninguém que ele, um oficial austero e eficiente, estava tão abalado por um amor sem esperança que até perdera a fé em si mesmo.

As razões são pessoais, Coronel. O fato de eu não poder explicar não quer dizer que não sejam muito importantes. Do contrário, eu não pediria a transferência.

O rosto do Coronel Cárter se abriu num sorriso de triunfo.

Ora, Thomas, você perdeu! Não pode haver razões pessoais no Exército e você sabe muito bem disso. As razões pessoais só são válidas na vida civil. Para um homem que deseja uma transferência, você trabalha contra si mesmo, sendo tão eficiente. Durmo melhor sabendo que conto com você, Thomas.

A opinião do coronel havia eliminado a única solução que Craig podia encontrar. De modo muito estranho, era um alívio saber que tinha feito tudo o que era possível e que, a despeito de si mesmo, continuaria num lugar onde poderia ver Jean de vez em quando.

Blount apareceu naquela noite e o chamou para irem tomar uma cerveja no clube, deparando com uma pronta e firme recusa.

Mas Blount sorriu.

Tenho um problema, Craig, e quero que você me ajude a resolvê-lo.

Não adianta, Paul. Não conte comigo hoje. Entenda-se você mesmo com as suas glândulas.

Bem, isso é parte do problema. Mas, se você não quiser vir por isso, virá pela outra parte, que diz respeito a Larry.

A reação de Paul foi violenta e nervosa.

Larry? Que é que há com ele? Explique-se, Paul!

Vamos então tomar uma cerveja.

Paul, veja lá. Se for um falso pretexto, vou ficar muito zangado.

Não é um falso pretexto. Não é muito grave, mas talvez você me possa dar um conselho sobre o caso.

Está bem. Irei de qualquer maneira com você. De que se trata?

O Coronel Flynn me telefonou hoje à tarde. Vai mandar Larry para ser examinado amanhã. Checkup completo, mas completo mesmo. Larry quase sofreu um desastre hoje.

Craig murmurou:

Jean está ausente. Foi visitar uma tia.

Foi mesmo? Vamos tomar a cerveja.

No carro, Blount contou a Craig o que o coronel lhe havia dito. Fazendo um mergulho com um aluno, Larry havia calculado mal a distância. Parecia uma acrobacia maluca, mas não tinha sido.

Muito bem, disse ele, sentando-se com o amigo à mesa no clube. Como vê, não houve falso pretexto. E, desde que você precisava mesmo de uma cerveja, estou com a consciência tranquila. Escute, Craig, não queria estar metido nisso. Mas ele é seu irmão. Tem alguma sugestão?

O fato de ser meu irmão não tem relação alguma com o caso.

Como é que não tem? Se você sabe de alguma coisa com ele, se quer que eu lhe faça alguma sugestão ou dê algum conselho...

Não, disse Craig.

Bem, é muita falta de sorte que ele, casado com uma mulher como Jean, tenha tido esse colapso. Mas talvez não seja coisa de muita importância. Tenho de fazer um exame completo, mas espero que ele se saia bem. É claro que farei o que puder. Trata-se de seu irmão.

Pare com isso, sim? exclamou Craig, mas seu espírito estava explorando todas as possíveis consequências de uma interdição de voo permanente para Larry.

Está bem, não se fala mais nisso. Mas, se você não sabia do caso com Larry, por que estava tão exasperado esta noite?

Não estava exasperado, Paul. Mas conversei com Carter a respeito de serviço no estrangeiro.

Sério? Quer então sair daqui?

E você acha que eu quero ficar aqui até ao fim da guerra? Com tanta terra para se conhecer lá fora?

E que foi que o coronel disse?

Disse não, ao fim de uma conversa muito comprida. Agora, é a sua vez, Paul, Pode falar-me sobre as suas glândulas.

Não são as minhas glândulas, mas os hormônios de Sue Marrell.

Quer dizer então que tenho tempo para tomar outra cerveja?

De sobra. Bem, Craig, já saí tanto com aquela pequena que já estou até enjoado. Mas não sei o que há comigo agora que nunca passamos disso.

Sobre que é que vocês conversam? Sobre a guerra?

Conversamos sobre anatomia, que ela conhece muito bem também. Bem, beijo-a e ela me beija. E isso tem um efeito terrível sobre mim.

É de surpreender, disse Craig.

Paul tomou um grande gole de cerveja.

Sim, o efeito é terrível e eu digo isso mesmo a ela. E sabe o que ela faz? Ri! Risos e beijos e não passamos daí. Que é que acha que eu devo fazer?

Talvez fosse bom rir também.

Já pensei nisso e já tentei isso, mas não adianta. Aquela mulher é campeã em matéria de provocar um homem e fugir. Ou talvez eu não seja o tipo dela. Talvez ela tenha certas especificações que não são preenchidas por mim, embora eu sempre julgasse as minhas especificações excelentes. Se eu fosse um tipo alto e aristocrático como você, Craig, talvez as coisas fossem diferentes. Deve haver algum tipo de homem que ela pode provocar mas de que não pode fugir.

Craig ficou calado.

Se eu fosse dar uma receita a um homem na sua situação, Craig, eu receitaria Sue Marrell.

Na minha situação, como? perguntou Craig, cheio de suspeita.

Na situação de precisar de alguém como Sue Marrell.

 

Aqui estou eu, disse Larry.

Vou atendê-lo dentro de um minuto, Thomas, disse o Capitão Blount. Pode ficar à vontade.

Larry sentou-se e acendeu um cigarro. Naquela manhã, sentia a segurança de um homem que foi dormir cedo e dormiu bem, fazendo uma boa refeição com apenas uma xícara de café. Acendeu o cigarro e ficou com o fósforo aceso um instante na mão, notando com prazer a ausência de qualquer espécie de tremor. Apagou o fósforo e exalou a fumaça com a cabeça para trás numa atitude de grande displicência e confiança. Mas com isso tentava apenas dissimular um estado de nervos que nenhuma relação tinha com uma boa noite de sono. Ainda não sabia por que tinha mergulhado com o avião até tão perto do solo e Blount ia investigar a causa até descobri-la.

Blount levantou afinal a cabeça da mesa onde estava escrevendo. Abriu a porta de uma saleta obscurecida pelas cortinas e disse:

Entre aí. Deite-se e procure descontrair-se.

Larry deitou-se. Aquilo era coisa velha, mas, quando se está deitado e os minutos vão passando, a pessoa se sente inevitavelmente calma.

Blount afinal entrou e começou a arrumar numa mesa ao lado de uma cadeira o instrumento de pressão e o estetoscópio. Larry sabia que o assento daquela cadeira ficava a exatamente quarenta e sete centímetros do chão e que ele teria de trabalhar nela como um cavalo de circo.

O Capitão Blount lhe tomou o pulso e depois a pressão. Larry tinha muita prática e conseguiu ver a coluna de mercúrio. Treze e meio. Não era mau, mas estava mais alta do que da outra vez.

Depois, novas contagens de pulso e novas tomadas de pressão, inclusive depois dos exercícios na cadeira.

Enquanto se despia, Larry teve a impressão de que o Capitão Blount estava sendo extremamente lacónico. Encaminhou-se inteiramente nu para a mesa do exame, sabendo que era um modelo de físico perfeito. Mas os aviadores em geral o eram. Os que apresentavam defeitos iam sendo eliminados ao longo da linha de produção que terminava com a concessão do breve.

Ao fim dos prolongados exames de equilíbrio, de visão e da percepção de profundidade, Blount disse:

Pode se vestir.

Larry olhou para o rosto dele, mas não percebeu coisa alguma. Vestiu-se com extraordinária rapidez.

Sente-se, Thomas, disse o Capitão Blount quando Larry se apresentou de novo diante da sua mesa. O Coronel Flynn me falou pelo telefone sobre o seu caso. Julga ele que você tem o temperamento de um bom piloto de combate. Quer me dizer por que chegou tão perto de um desastre naquele avião de treinamento?

Sinceramente, não sei.

A expressão dele era tão séria quanto se fosse a de Craig.

Não faça mistério disso. Deve ter uma impressão menos vaga do fato. Perdeu os sentidos?

Não.

Quis se mostrar? Larry ficou vermelho.

Foi coisa que eu nunca fiz. Permita que eu lhe conte tudo, Capitão. A verdade é que o senhor me está amedrontando.

Blount riu.

Está bem. Pode falar, Larry.

Larry ficou vermelho de novo, pensando que sempre fora injusto com Blount. Tratava-se afinal de um bom sujeito.

Obrigado, Capitão. Talvez eu me estivesse mostrando, sim. Pensei nos meus tempos de treinamento, quando os mergulhos me enchiam de medo até que me habituei e perdi o medo porque sabia que sempre se tem a intuição do momento exato em que é preciso mudar de controles. De repente, vi como meu aluno estava apavorado e entrei em ação.

Escolheu uma má ocasião para perder-se em devaneios. Que tinha feito na noite anterior? Bebeu muito?

Bebi um pouco além da conta. Mas, quando acordei no dia seguinte, não senti nada, nem a menor ressaca.

Sinto muito, disse Blount, mas tenho de proibi-lo de voar.

Não é possível! Isso nunca me aconteceu! Mas... a proibição não será permanente!

Duas semanas. Depois disso, novo exame.

Duas semanas, Capitão? Estamos esperando uns novos caças.

Sei disso, mas você não vai voar neles.

Larry se levantou e deu alguns passos na sala de um lado para outro.

É claro que você tem o direito de ser examinado por outro médico, disse Blount.

Não, senhor, disse ele, sentando-se de novo e fazendo um esforço para sorrir. O seu exame foi completo. Como foi que me saí?

Pressão um pouco alta. Isso pode ser consequência do álcool e do fumo. Todas as reações um pouco lentas. A percepção de profundidade muito fraca. Foi isso que quase o fez cair. O Schneider foi onze. Dentro dos limites, mas na sua idade devia ser melhor.

E que é que eu tenho de fazer? Blount sorriu.

Não há nada que você mesmo não possa corrigir. Mas o tratamento é duro. Na sua idade, ninguém gosta de fazer longas marchas e respirar ar puro.

Tem razão, é muito duro. Mas que é que eu posso fazer?

Nadar é bom. Ténis também, qualquer exercício. Durma bem. Não beba. Volte daqui a duas semanas.

Minha mulher vai me estranhar, disse ele, rindo. Obrigado, Capitão.

De nada. Felicidade, Larry.

Depois que ele saiu, Blount tamborilou com os dedos em cima da mesa durante algum tempo e, depois, pegou o telefone e ligou para Craig.

Tive de proibir Larry de voar durante duas semanas. Depois, será novamente examinado. Não tive outro jeito. Mas ele é um ótimo rapaz e superará isso. Que tal uma cervejinha esta noite?

Larry iniciou imediatamente as suas caminhadas indo fazer uma visita a Chuck para dar-lhe a notícia. Foi acolhido com uma jovial falta de solidariedade.

Foi muito bom isso. Não podemos estar arriscando um bom material. Pode ficar aí nessa cadeira o tempo que quiser. É melhor trazer o seu tricô.

O quarto de Chuck passara a ser para ele um lar melhor do que o apartamento dominado por uma desolação que fez Larry telefonar para Jean duas vezes, pedindo-lhe que voltasse imediatamente. Mas ela persistiu no seu plano original de só voltar depois do fim da semana. Teve vergonha de dizer a ela que, depois daquela noite, ele quase caíra com um avião e estava proibido de voar. Ia cedo para a cama com um rádio ao lado e dormia bem. Do seu apartamento ao quarto de Chuck havia três quilómetros de distância, que ele percorria três vezes por dia com a necessidade de melhorar alguma parte invisível da sua boa saúde.

Uma vez, Sue apareceu no quarto e pilheriou com Chuck, só tomando conhecimento da presença de Larry com um breve cumprimento. Tirara da cabeça o encontro marcado com ela, pois isso lhe iria prejudicar o tratamento, mas sabia que teria de dar-lhe uma palavra de explicação ou de desculpas. Seria melhor falar pelo telefone e adiou o telefonema sem saber o que ia dizer.

Quando afinal telefonou, Sue estava no banho e foi a companheira de quarto dela que atendeu.

Thomas, disse ela a Sue, que pusera a cabeça para fora das cortinas do box. Não o major. O tenente, o bonitão. Não é uma surpresa?

Acha mesmo que é, Hazel? - perguntou ela, enxugando-se apressadamente e saindo do banheiro.

Alo!

Alo, Sue. Como vai? Sabe que estou proibido de voar?

Ouvi dizer. Por quanto tempo?

Duas semanas.

Terrível. Deve estar um bocado amolado sem ter o que fazer.

Mas é isso mesmo que é preciso. Nada de bebidas, longas caminhadas, ir dormir cedo. Nada de festas. Exercícios visuais. Dormir depois do almoço. Não é um inferno?

Não, é um alívio. Estava com receio de que você fosse querer um pouco de animação. O lugar lá é muito calmo. Por isso é que eu vou. Bons banhos de mar. Leve os seus calções.

Bem, nadar foi uma das coisas que o médico me mandou fazer. Mas eu telefonei para dizer...

Não diga!

Não diga o quê?

O que você ia dizer.

Lê os pensamentos também?

Não gostei do tom desse ”também”. Tem de me explicar isso, Larry. Até lá.

Sue acendeu um cigarro e disse para Hazel:

Epa! Cheguei a pensar que ele ia dar marcha à ré.

Há quanto tempo esse aviador recebe ordens de enfermeiras? perguntou Hazel.

Ainda não sei se ele recebe, disse Sue, voltando para o banheiro.

A incerteza durou até às três horas quando ela estava na praia em companhia de uma moça morena com maio amarelo e de um jovem robusto de calções brancos. Ao lado do pequeno chalé, um caminho chegava até à estrada por entre os altos eucaliptos. Enquanto olhavam, um carro entrou pelo caminho e parou.

Sue se levantou e gritou:

Larry! Vista seu calção e desça!

Tenho de subir? perguntou o homem de calções brancos.

Não, disse Sue, rindo. Acho que ele pode fazer isso sozinho.

Larry saiu do quarto de banho nos fundos do chalé, vestido com o calção de banho.

Bem, disse a moça de maio amarelo, ele podia posar para um anúncio de calções de banho.

Demorou muito, Larry, disse Sue. Venha conhecer Gert e Gerry.

Vou buscar um drinque, disse Gerry, apertando-lhe a mão. Já levamos alguma dianteira sobre você.

Não, muito obrigado, disse Larry. Gostaria muito, mas...

Mas não pode, disse Sue. Eu também não quero mais.

Pois eu quero, disse a moça. Espere que eu vou com você, Gerry.

Viu como são gentis? disse Sue, sorrindo para Larry. Estendeu-se na praia, com a cabeça apoiada num braço, com o corpo abundantemente comprimido num maio de duas peças. E veja como isto é pacífico. Pode tirar o seu cochilo agora, se quiser.

Larry sentou-se e olhou para a praia estreita e deserta, o chalé e os eucaliptos, sentindo o sol aquecer-lhe a pele.

Seus amigos têm um belo sítio. Isto é que é vida.

Gostam também daqui, mas raramente os vejo. Passam quase todo o tempo no quarto.

Larry olhou para ela vivamente, mas os olhos dela continuavam cerrados e a respiração era lenta e preguiçosa como se ela estivesse mesmo dormindo.

Por que não se deita? murmurou Sue sem abrir os olhos. Larry se estendeu na areia como ela e fechou os olhos. Gerry saiu da casa e entrou na água indo até um pequeno barco

a vela, subindo nele e começando a esgotar a água dentro dele.

Que tal um passeio de barco? perguntou ele.

Seria bom, murmurou Sue. Já dormiu que chegasse? A água do Golfo cintilava ao vento e, quando a vela foi içada e se enfunou, o barco ganhou velocidade, fendendo as águas entre espumas que respingavam na pele.

Atenção! disse Gerry, virando o leme.

Larry não se abaixou com a rapidez suficiente e o pau da vela atingiu-o, fazendo-o perder o equilíbrio e cair na água. Sue mergulhou atrás dele, enquanto Gerry, rindo, voltou com o barco. Ela nadou para onde estava Larry com braçadas fortes e fáceis.

Subiram de novo ao barco, rindo e molhados. Daí por diante, Larry prestou muita atenção e Gert e Gerry riam sempre que ele se abaixava. O vento caiu à medida que o sol declinava e, quando voltaram à praia, quase não se moviam na água plácida.

Subiram para o chalé e fizeram um jantar de sanduíches e cerveja, conservas e batatas fritas, conversando e rindo. Quando acabaram, a noite tinha caído e a lua aparecia no céu. Larry pensou em voltar porque tinha passado uma tarde repousante tal como Blount aprovaria se não fosse o interesse que tinha por Sue.

A lua está linda, disse Sue. Vamos dar um passeio na praia.

Ótimo, disse Larry, mas Gert e Gerry se mostraram apáticos.

Vão vocês dois, disse Gert. Nós já somos velhos.

Mas está lindo, realmente lindo, disse Sue e Larry passou o braço pela cintura dela. A pele estava quente e seca, mas o maio ainda estava um pouco molhado. Ela passou também o braço por ele e foram assim até à beira da água em silêncio, ouvindo apenas o rumor dos passos na areia.

Olharam para o chalé onde só uma luz estava acesa. Dentro em pouco, esta se apagou também.

Gerry e Gert são sistemáticos nisso, disse Sue. Vão dormir às nove horas. Mas eu quero nadar.

Desprendeu-se dele e saiu correndo para dentro da água. Já estava na extremidade do pequeno cais quando Larry a alcançou.

Viu? Sou mais ligeira do que você.

Mas eu posso sempre pegá-la.

Ela riu e mergulhou na água. Quando reapareceu, estava do outro lado da ponte.

Fique onde está, disse ela.

Por quê?

Por um momento, ele não compreendeu o que ela estava fazendo. Viu então o braço dela levantar-se e ela atirou alguma coisa em cima da ponte. Era uma parte do maio, que logo foi acompanhada da outra.

Gosto de nadar à noite assim.

E sabe como é que eu gosto de nadar?

Não, Larry. Não faça isso, disse ela, mas estava rindo.

Larry mergulhou e, quando subiu, viu-a nadando a poucos metros de distância. Viu o corpo branco meio coberto pela água. Nadou até tocar-lhe o ombro. Depois, virou-lhe o corpo até segurar-lhe os braços. Ambos aspiraram profundamente o ar e mergulharam. Subiram à superfície nos braços um do outro. Então, com um movimento súbito, ela se desprendeu e nadou para a praia.

Adeus, gritou ela, voltando a meio a cabeça.

Ao chegar à escada da ponte, parou e Larry se aproximou.

Você não devia ter feito isso, Larry, disse ela, mas sem sombra de censura na voz.

Ele tentou agarrá-la, mas ela o empurrou de repente para a água. Colhido de surpresa, ele teve de soltar-se e mergulhou. Quando voltou à superfície, ela estava deitada de bruços na ponte, coberta por uma toalha e rindo. Larry subiu para a ponte e chegou ao lado dela.

Você devia ter vergonha, Larry. Você está... Ele a beijou, impedindo-a de falar.

Não me pode mais deter agora, murmurou ele.

De repente, os dois se engolfaram desinibidos no seu ardor.

Não, Larry, não devemos. Aqui não.

Os lábios dele eram mais exigentes e, ao fim de um momento, ela passou os braços pelo pescoço dele. Toda a resistência desaparecera. Não havia senão um ansioso e ardente desejo.

 

O ônibus estava tão cheio de soldados e de visitas para os soldados, que Jean compreendeu que tinha sido um erro voltar no domingo.

Fora em parte uma invencível curiosidade que a fizera tomar o ônibus antes da segunda-feira, como havia planejado. A curiosidade de saber como ele se estava arranjando e que a fazia a cada momento pensar no que ele estaria fazendo era para ela um sinal de que ainda o amava. Tinha pensado ao partir que o amor desaparecera. Pela sua vontade, nunca mais voltaria.

Ficou pensando nas explicações que daria a ele para a antecipação da sua volta, sem querer confessar que não poderia passar mais um dia sem vê-lo. Ia no ônibus sorridente e satisfeita, de certo modo orgulhosa do seu cativeiro. Saber se o amava e se tinham alguma coisa em comum eram questões sem sentido naquele momento em que as suas emoções vibravam ante a perspectiva de voltar a vê-lo.

Mas havia pensado lucidamente em tudo aquilo. A conclusão tinha sido terminante e cruel. O ambiente exaltado da guerra empolgara-os e ela via que nada havia de estável nele sobre que construir um futuro. As qualidades que ela respeitava num homem estavam no cunhado austero e calmo e não em Larry, que por inveja procurava justamente destruir essas qualidades em si mesmo. Tudo isso era absoluta verdade e, entretanto, ela sonhava com o sorriso de alegria que ele teria ao vê-la.

Foi uma das últimas pessoas que desceram do ônibus e não encontrou mais táxis. Enquanto esperava, telefonou para o apartamento, mas ninguém atendeu.

Quando afinal encontrou um táxi e chegou lá, encontrou uma quantidade satisfatória de desarrumação. A cama estava por fazer e o pijama estava jogado no chão. Havia toalhas no chão do banheiro e o aparelho de barba sem lavar estava dentro da pia. Lamentando as suas dúvidas foi olhar a garrafa de uísque na despensa. Estava no mesmo nível em que a deixara. Ergueu as sobrancelhas e sorriu.

Resolveu arrumar um pouco as coisas. Era tarde para jantar e Larry devia ter jantado no clube. Depois, com certeza, jogaria pôquer com alguns colegas. Mas decidiu esperar um pouco antes de preparar o jantar para ela, pois ele poderia chegar de repente. Uma gaveta da cómoda estava aberta e com as camisas todas remexidas. Quando foi arrumá-las, deu por falta do calção de banho. Larry tinha ido nadar. Era um pouco estranho isso. Preparou um sanduíche e uma xícara de chá, sentada na cozinha. Se ele chegasse tarde e ela já estivesse dormindo, encontraria a luz acesa, deixada por ela.

Quando o telefone tocou, teve um baque no coração. Mas desde que ele não sabia da volta dela, não podia ser Larry. Era uma voz de mulher.

É a Sra. Thomas?

É, sim.

Sabe onde seu marido está, Sra. Thomas?

Não. Quem está falando?

Houve um acidente. Não foi grave, mas a sua presença pode ser necessária. Ele está em Gulfview.

Acidente? Como? Quem é?

No Conover Cottage, disse a pessoa do outro lado do fio e desligou.

Acidente? Não era possível. O telefonema fora feito de pura perversidade. A pessoa queria que Jean fosse ao tal lugar e encontrasse... naturalmente Larry com outra mulher. Sentou-se e chorou desesperadamente.

Ele era tudo o que ela pensava que fosse antes de querer vê-lo de novo. Era tudo isso e ela não queria saber mais dele. Ia deixá-lo de vez. Tinha sido uma boba em pensar que uma farda fazia um homem. Era o fim, o fim de tudo.

E se tivesse havido mesmo um acidente? Craig devia saber o que era preciso fazer e tomaria as providências indicadas. Com essa decisão, as coisas começaram a ficar mais claras para ela. Telefonou para o hospital.

O gabinete dele não atende, disse a telefonista. Mas pode estar no hospital e nós vamos procurá-lo. Quer dar-me o seu telefone?

É urgente, disse Jean, dando o número do telefone. Se não o encontrar, quer me avisar?

Pouco depois, a telefonista do hospital ligou para dizer que o Major Thomas não estava lá, mas que podia ser encontrado no Clube dos Oficiais.

Telefonou para o clube, mas também sem resultado. Procurou na lista o Conover Cottage em Gulfview e não encontrou. Telefonou então para Mary Waller e, não obtendo resposta, para o quarto de Chuck.

Alo? disse a voz de Chuck. Oh, alo, Jean!. Chuck, seu carro está aí? Pode me emprestar?

Claro. Espere um minuto que Mary está aqui. Mary diz que pode levar o carro aí para você.

Não, Chuck. Obrigada. Irei até aí num táxi.

Está bem. Quando foi que você voltou? O tanque está meio cheio. Vai muito longe?

Gulfview.

Gulfview? Espere um pouco... Sim, Mary diz que a gasolina chega.

Quando Jean entrou no quarto, Mary levantou-se e beijou-a.

Já estávamos com saudades, Jean! Por onde andou? Tudo bem, Mary. Depois eu conto.

Quando Jean partiu no carro, pensou que sentiria muita falta de Waller e da sua tranquila amizade. Mas naquela noite essa amizade tinha parecido um pouco inquieta e eles não tinham feito perguntas.

 

O Exército é um pouco poupado em matéria de telefones em alojamentos de solteiros e Craig, voltando para casa, do clube, ouviu um ressoante grito lá dentro:

Telefone para o Major Thomas! Alguém quer ir bater na porta dele?

Craig subiu apressadamente a escada e disse:

Pode deixar que eu atendo!

Um segundo-tenente estendeu-lhe o receptor, dizendo:

- Boa noite, Major.

Fala o Major Thomas.

É Chuck Waller, Major. Jean telefonou ainda há pouco e veio pegar o nosso carro.

Jean! Já voltou então? Percebeu imediatamente que a pergunta era ansiosa e desnecessária. Houve alguma coisa com o carro deles? Onde está Larry?

É por isso que lhe estou telefonando. Ele está em Gulfview. E Jean foi para Gulfview em nosso carro.

Que foi que houve?

Pelas conversas que ouvi dos dois, Larry está lá com Sue Marrell.

O diabo que leve Larry! gritou Craig e viu o tenente parar e olhá-lo cheio de espanto.

Mary disse a mesma coisa. Tentamos telefonar para ele e não há telefone lá na casa. Mary diz que é melhor o senhor ir tirá-lo de lá.

Sabe o nome do lugar?

Conover Cottage. Se vai até lá, convém ir logo. Quando Jean chegar aqui, eu a farei demorar o mais possível.

Craig encaminhou-se para o seu carro meio atordoado. Acendeu luz do carro e tirou um mapa do porta-luvas. Gulfview ficava a cerca de trinta quilómetros de distância.

Mary Waller tinha dito que ele devia ir. Mas por quê? Para livrar Larry de mais uma situação difícil, ajudá-lo mais uma vez a evitar as consequências e esperar que ele aprendesse a lição? Isso tinha sido sempre um bom motivo, mas não podia mais ser. Não havia mais sentimento fraternal, mas apenas uma amarga inimizade em vista da maneira pela qual Larry estava tratando Jean. Um sorriso triste se esboçou no rosto de Craig.

Larry tinha de arrostar com as consequências. Nada jamais lhe faria bem ou mal, mas para Jean aquele casamento era um sacrifício criminoso. Quanto mais depressa ela soubesse de tudo, mais depressa o abandonaria. Craig achou que a pior coisa que poderia fazer a Jean seria ir até lá e avisar Larry. O bom seria deixá-la encarar os fatos como se fosse um remédio de gosto desagradável mas que cura.

Quando chegou a uma decisão nesse ponto, viu mentalmente Jean guiando um carro dentro da noite, num desespero que nunca havia conhecido e uma dor profunda nos belos olhos cinzentos. Não, não era possível! Ela sofreria outros choques, mas aquele ele lhe pouparia.

Os pneus do seu carro cantaram pela estrada. Ao fim de algum tempo, entrou por uma estrada de areia e seus faróis iluminaram um sinal em forma de flecha que dizia: Conover Cottage. Entrou pelo caminho e foi dar num chalé perto da praia, fechado e às escuras, junto ao qual estava parado o carro de Larry.

Craig subiu a escada da varanda e abriu a porta da sala. Larry arregalou os olhos ao vê-lo e, atrás dele, com um vestido branco, estava Sue Marrell. Tudo o que Craig queria dizer ao irmão se comprimiu e explodiu numa simples frase:

Saia imediatamente daqui!

Não pode falar assim comigo! Virou missionário? Por que não se mete com sua vida? Quem foi que lhe disse que eu estava aqui?

Major, isto é perfeitamente inocente, disse Sue. Mas como foi que soube?

Que veio fazer aqui? perguntou Larry. Saiba que para mim passou da conta. Quem vai sair daqui é você.

O alarma belicoso de Larry despertou nele um desejo que nunca sentira: esmurrá-lo até apagar aquela expressão da cara dele.

Calma, Larry, disse Sue. Vamos ouvir o Major Thomas. Ele deve ter tido uma razão para vir até aqui.

Larry, você é um cachorro, disse Craig. Não merece ter uma esposa. E agora, como um cachorro, vai ganir e fugir.

Você parece um pai de teatro, disse Larry. Ensaiou bem isso?

Jean está a caminho daqui.

Jean?! exclamou Larry. Tem certeza? Quando foi que ela voltou? E quando vai chegar aqui?

Dentro de alguns minutos, talvez.

É melhor eu ir, Sue. Apanhou o quepe em cima do balanço da varanda. Desculpe a partida rápida, mas é o melhor.

Passou por Craig na porta, mas voltou-se da escada e perguntou:

Quem disse a ela?

Não sei.

Escute, Craig. Desculpe se lhe disse alguma coisa que o ofendesse, mas foi muito decente o que você fez. Estendeu a mão. Muito obrigado. Nunca me esquecerei disso.

Craig botou a mão no ombro de Larry e empurrou-o.

Vá andando.

Era necessário isso, Major? perguntou Sue.

Era.

Muito bem, mas vamos pensar. Larry, espere um pouco e venha cá. Acha mesmo que ela está para chegar, Major?

Sem dúvida.

Não posso perder tempo então, disse Larry. Fiquem conversando que eu vou andando.

Não, Larry, disse ela. É melhor você ficar aqui mesmo. Se alguém disse a ela, você não vai enganá-la fugindo. Imagine que seu carro cruze com o dela na estrada e ela o veja. Poderá acreditar em alguma coisa que eu disser? Com isso, irá apenas piorar a situação e me fazer parecer culpada.

Isso tudo é fantasia. Temos é de sair daqui o mais depressa possível. E você também, Craig.

O caminho entre os eucaliptos começou a encher-se de uma luz que dançava entre as árvores.

Não há motivo algum para que vocês dois não pudessem vir tomar um banho de mar aqui, disse Sue.

Meu Deus! exclamou Larry. Por que essas coisas têm de acontecer comigo?

E acha que para mim é muito agradável?

Vou esperar aqui, disse de repente Craig. Danem-se, vocês dois!

Os faróis do carro estenderam-se pela água e voltaram para a praia. O carro parou perto do mar. Craig se encaminhou calmamente para lá, parando no caminho para acender um cigarro.

Craig! exclamou Jean, saltando do carro. Não esperava encontrá-lo aqui. Onde está Larry.

Está aqui comigo. Mas quando foi que você chegou? É uma completa surpresa!

Larry está bem? Não houve nenhum acidente?

Acidente? Claro que não. Por quê?

Ela murmurou como se falasse consigo mesma:

Eu sabia. Que idiota que eu fui!

Larry está na varanda. Vou levá-la lá.

Não quero vê-lo agora. Acha que devo, Craig? Ela passou a mão pelo braço dele e repetiu:

Acha que devo, Craig?

Teve vontade de dizer que não. Aquilo tudo era muito baixo e ela não devia participar daquela farsa barata. Mas disse:

Claro que deve, Jean.

Então vamos. De quem é isto aqui? Craig hesitou, formulando a resposta:

Você a conhece, Jean. É a enfermeira de Chuck, Srta. Marrell.

Jean teve um riso nervoso e ele olhou para ela com uma ruga de preocupação.

Você é admirável, Craig, murmurou ela. Larry apareceu à porta e exclamou:

Jean! Quando foi que voltou?

Passou o braço pelos ombros dela e deu-lhe um breve beijo.

Cheguei há pouco.

Boa noite, Sra. Thomas, disse Sue. Entre e sente-se. A varanda estava banhada pelo luar e todos se sentaram sem

falar, como se estivessem num enterro. Afinal, Sue falou:

Se tivéssemos sabido, Sra. Thomas, a senhora teria vindo também tomar um banho de mar conosco. Como foi que soube que estávamos aqui?

Telefonaram-me.

Ah, sim? Sue pegou um copo num dos braços do balanço e, virando-se para o outro braço, pegou outro copo: Seu uísque, Craig.

Obrigado, disse Craig. O copo estava pela metade. Era uísque puro com um cubo de gelo e ele tinha certeza de que até pouco antes, não havia copo nenhum ali, quando Larry apanhara o quepe. Sue Marrell era sem dúvida uma mulher decidida e inteligente. Es« perava que o fosse tanto quanto era preciso.

Quer um uísque também, Sra. Thomas? Quanto a Larry, tem de beber com os olhos, como sabe.

Espere aí! exclamou Larry. Ela ainda não sabe de nada!

Não tinha contado ainda a ela? Que é que eu fui fazer? Agora, estraguei tudo! disse Sue.

Saiu da varanda e Larry começou a contar a Jean com voz muito séria que a sua percepção da profundidade não andava boa e que por isso estava proibido de voar e de beber e passava o dia fazendo marchas a pé e nadando. Sue voltou com um copo para Jean.

Obrigada, disse Jean, rindo. Agora, compreendo. Fiquei realmente preocupada quando cheguei a casa e vi que a nossa garrafa de uísque não tinha sido tocada.

Não dê esse tom grave às coisas, Larry, disse Craig. Blount me disse que você vai-se sair muito bem.

E por que você não me disse nada?

Para você não relaxar o tratamento.

Disse que alguém lhe telefonou, Sra. Thomas? perguntou Sue.

É verdade, mas não compreendo. Disseram-me que Larry tinha sofrido um acidente. Foi por isso que vim logo para cá.

Um acidente? disse Sue olhando para os dois homens. E muito estranho. Quem seria?

Não sei. Parece um romance de mistério, não acha?

Já sei que hoje não vou poder dormir, disse Sue. Vocês viram algum corpo na praia?

Talvez haja, disse Jean, mas não posso ficar para procurá-lo. Estou com um carro emprestado...

Ansioso por sair dali, Craig pousou o copo com satisfação no braço do balanço e viu um homem embrulhado num roupão de banho aparecer na porta da sala.

Parece que a reunião aqui está animada, disse o homem. Acho que vou acordar Gert.

Craig e Larry levantaram-se instantaneamente e o único som que se ouviu foi um suspiro de Sue.

Ora, perdoem-me, murmurou Gerry.

Bastou falarmos em mistério para você aparecer, Gerry, disse ela. Mas a reunião já vai acabar. Não pode ficar mais um pouco, Sra. Thomas?

Desculpe, Srta. Marrell, mas...

Gostei muito do passeio de barco, Gerry, disse Larry.. Muito obrigado.

OK, mas de outra vez não se esqueça de se abaixar, disse Gerry, jovialmente.

Encaminharam-se para os carros, com o braço de Larry passado pela cintura de Jean e Sue com a mão no braço de Craig e pararam para as despedidas.

Não vá ainda, Craig, disse Sue.

Tenho de ir.

Ainda é cedo, disse ela, apertando-lhe o braço. Ainda dá tempo de nadarmos mais um pouco. De outra vez, venham todos. Estou aqui todos os domingos.

O carro de Chuck e depois o de Larry seguiram pelo caminho, iluminando os troncos dos eucaliptos.

Sue deitou a cabeça no ombro de Craig num gesto de fadiga e murmurou:

Meu Deus! Como isso nos deu trabalho! Não precisa também de um drinque?

Não, muito obrigado. Boa noite.

Não vá ainda. Temos de conversar, Major. E, ainda que não queira conversar, tem de me levar para o hospital. Eu ia no carro de Larry.

Vou levá-la então.

Tenho de ir apanhar o que é meu. Parece muito zangado. Voltaram juntos para o chalé e os passos lentos dela com a cabeça baixa fizeram Craig pensar, com uma emoção cansada, numa mulher que fazia penitência. Mas ao menos me dê tempo pra tomar um drinque.

À vontade.

Sou uma boa enfermeira, não acha? Craig franziu a testa.

É uma enfermeira excelente.

Pode conseguir a minha transferência com facilidade. O Coronel Cárter fará tudo o que o senhor pedir.

Chegaram em silêncio à varanda. Sue entrou, voltou com dois copos de uísque e perguntou:

Pode conseguir facilmente a minha transferência. Por que não o faz?

Não tenho queixas de seu serviço. O que faz nas horas de folga não é oficial.

Isso é o que me espanta no senhor, disse ela, com um leve sorriso.

Quer ir buscar o que é seu?

E isso também espanta. Sim, amanhã estarei em serviço, mas hoje à noite tenho de dizer algumas coisas. O senhor tem medo das mulheres, Major. E gosta de mim porque eu não tenho medo nem de homens, nem de mulheres. Não quer tomar um gole?

Quero, sim. Continue.

É estranho, Major. Todo mundo olha para o senhor e diz que é um homem ótimo, mas que lhe falta alguma coisa. Enquanto isso, olham para mim, Paul Blount ou para seu irmão e acham que nós não prestamos. Mas acontece que vivemos mais satisfeitos da vida do que o senhor. Como é que explica isso?

Sacudiu a cabeça lentamente, sorrindo.

Não quero que me julgue uma vagabunda. É por isso que estou falando. Não espero que concorde comigo. Mas é médico e deve saber que nem sempre os cavalheiros são cavalheiros e as senhoras distintas são distintas. Levo a vida à minha vontade quando não estou trabalhando. Sei que nunca ouviu uma mulher falar assim.

Craig pensou que ela era tão boa enfermeira que não podia ser de todo má. Não concordava com a opinião de Paul Blount sobre o assunto. Era uma opinião egoísta, mas não se podia negar que era biologicamente certa. Só uma coisa não podia aceitar.

Afaste-se de Larry, disse ele.

Eu sei. Por causa da mulher dele. O senhor me odeia porque o casamento dele não significa para ele mais do que significa para mim. Não é isso?

Larry nunca pode resistir às mulheres. Você mesma viu isso.

Vi, sim, mas vou-lhe dizer uma coisa. O contrário também acontece. As mulheres não podem resistir a ele. A mulher dele não pôde, não foi mesmo? Haverá sempre outras.

Estamos falando é de Sue Marrell. Ela sorriu.

Acha que fiz um bom trabalho enquanto a mulher dele estava aqui? Poderia ter feito melhor?

Acho que não.

Major, ficou furioso com Larry por uma coisa sem muita importância. Entre irmãos, isso não teria nenhum valor. Deve gostar muito da mulher dele.

Craig franziu a testa e pousou o copo.

Vou buscar o que é meu. Tenho de tirar este vestido, que não é meu, mas de minha companheira de quarto que ficou furiosa comigo porque me apoderei dele, impedindo-a de ter um encontro com um homem.

Craig levantou-se e olhou para o mar. Não podia guardar muito rancor dela, pois era tudo por demais complexo. Uma coisa assim fazia inevitavelmente parte da vida de Larry. Pensou no que Jean estava fazendo e no que tinha julgado de tudo aquilo e fechou os olhos para ouvi-la perguntar de novo: ”Acha que devo, Craig?”

Sue desceu a escada e ele lhe tomou a maleta. Caminharam em silêncio, mas, chegando ao carro, Sue parou e disse com voz trémula:

Major, ainda estou de folga. Sei que não gosta da minha opinião, mas quero que se lembre dela.

Passou os braços pelo pescoço dele e encostou nele o corpo quente. Beijou-lhe a boca fechada, esperando alguma reação. Deu então um suspiro.

É uma pena sua opinião. Sabe que seria bom para você. Craig recuou trémulo para abrir a mala do carro. Por um momento, ficou ali com a maleta na mão. Depois, jogou-a na areia e disse:

Vamos tomar outro drinque, Srta. Marrell.

A lua estava baixa no céu quando partiram. Durante toda a viagem até ao alojamento das enfermeiras, Craig olhou invariavelmente para a estrada e não houve uma palavra entre os dois. Mas Sue de vez em quando olhava para ele. Craig levou a maleta dela até à porta.

Obrigada, disse ela. Boa noite, Major Thomas.

Boa noite, Srta. Marrell.

Sue ficou olhando o carro dele até vê-lo desaparecer. Depois, subiu para o seu apartamento. Acendeu a luz e abriu a maleta em cima da cama. Sua companheira de quarto sentou-se na cama com os olhos assustados. Sue tirou o vestido branco e o colocou cuidadosamente nas costas de uma cadeira.

Foi um acidente, sim, disse Sue, com voz rouca. Acidentes acontecem, não é?

Estendeu-se então na cama e começou a soluçar. Hazel correu para junto dela.

Sue, meu bem, que foi que aconteceu?

Saia de junto de mim! Sinto-me como se fosse uma prostituta!

Sério mesmo? perguntou Hazel, sorrindo.

 

Durante toda a viagem de volta ao hospital, os faróis do carro de Larry permaneceram no espelho de Jean, mantendo uma distância constante, rodando com ela nas curvas, como se os dois carros estivessem ligados por um mecanismo invisível. Era bom que houvesse dois carros e ela pudesse voltar sozinha. Estava ainda envergonhada com a pequena farsa que fora representada, com a bela enfermeira no papel de estrela e os dois homens como comparsas. Ela seria a plateia atenta e ingénua.

De quem fora o telefonema? Seria possível que tivesse sido de alguma mulher enciumada e que houvesse outras mulheres interessadas em Larry, além de Sue Marrell?

Havia notado o nervosismo de Mary e Chuck. Larry tinha sido como um gato surpreendido com o canário na boca, tentando engoli-lo. Sue Marrell era uma mulher inteligente e tinha sido quase convincente. Todos se haviam ligado contra ela, até Chuck e Mary, mas nem tudo estava claro ainda.

E Craig? Estava metido também na conspiração. Ultimamente, mostrava-se muito difícil e arredio. Mas, ainda assim, sempre tivera muita consideração por ela. Isso tinha sido evidente quando ele a recebera na praia. Tinha-a cercado imediatamente de uma bondade um pouco sob tensão e a levara delicadamente para a casa.

Olhou de novo para os faróis do outro carro e voltou a pensar em Craig. Ele estava ali sentado, bebendo com Sue Marrell, quando ela havia chegado. Na hora da partida, a mulher estava segurando o braço dele. Qualquer coisa poderia ter acontecido entre Larry e ela, pois Larry não era capaz de resistir a uma boa oportunidade. E a intimidade entre Craig e Sue Morrei? Ela o chamara com muita naturalidade de Craig, mas não se lembrava de que ele a tivesse chamado de Sue. Um interesse entre os dois era impossível, inacreditável. Pensando bem, não era tão inacreditável assim. A mulher era bonita e sem consciência e Craig era tímido com as mulheres. Pensou com alarma que isso era mais do que possível. Para seu espanto, as palavras ”Pobre Craig” se lhe formaram no espírito e ela sentiu um tremendo ciúme de que aquela enfermeira houvesse colhido nas garras até seu cunhado. Não deviam ter deixado Craig ali na praia sozinho com aquela mulher a segurar-lhe o braço e a dizer: ”Não vá ainda, Craig”. Diminuiu a marcha do carro, mas não viu outros faróis atrás do carro de Larry.

Encontraram Chuck e saíram do hospital na ponta dos pés com Mary. No carro, Larry apertou-lhe o ombro um instante, antes de dar partida no carro.

Vinha contente de saber que você ia naquele carro em frente de mim, mas a sensação foi meio esquisita. Nós pertencemos ao mesmo carro.

Logo que entrou no apartamento, ele olhou para tudo arrumado e disse:

Está mostrando outra vez o dedo da dona da casa? Não calcula em que confusão estava isto aqui!

Tudo era como devia ser, como ela tinha esperado que fosse, mas as palavras tinham um som estranho e deslocado como o que diz o locutor num filme natural.

Ia comprar flores para você, Jean, mas pensei que só viesse na segunda-feira mesmo. Estava muito zangada comigo quando saiu? Vou fazer café. Foi uma coisa que aprendi, sabe?

Ela foi para o quarto, apanhou a mala que já havia aberto e arrumou tudo nela de novo, enquanto Larry estava na cozinha. Já estava tudo pronto quando Larry a chamou para tomar café.

Um momento, disse ela.

Foi até à sala e pegou o telefone para chamar um táxi. Larry apareceu nesse momento e ouviu.

Um táxi? Que é que vai fazer, Jean? Procurando mostrar-se muito calma, ela perguntou:

O café já está pronto?

Todo embaraçado, ele a levou para a cozinha e serviu-lhe café. Para que quer um táxi, Jean? Não me vai deixar de novo!

Sente-se, Larry. Ele se sentou lentamente diante dela, do outro lado da mesa. Era estranho como ela estava calma e sem o menor desejo de ser agradável a Larry. Segurando a xícara com mão firme, disse: Vou passar a noite num hotel. Partirei amanhã, Larry. Vou-me embora. Desejo-lhe felicidade.

Ele se levantou e começou a andar de um lado para outro em furiosas passadas.

Mas por que, Jean? Por quê? Só porque fui andar um pouco naquela praia?

Não sei o que foi que você fez lá. Mas sei muito bem o que faria se tivesse oportunidade. Sente-se, Larry. Não quer fazer uma cena, quer?

Deve apresentar uma razão melhor, Jean. Só voltou para casa para me dizer isso? Que foi que eu fiz de irreparável? Como é que tem coragem de ficar aí sentada e dizer que me vai deixar?

Não vamos discutir, está bem, Larry? Não gosto de telefonemas anónimos. Não gosto de mulheres enciumadas.

Mas eu não sei nada sobre esse telefonema! Nada mesmo!

Sinto muito, Larry.

Dê-me ao menos uma boa razão.

Não há motivo nenhum para continuarmos juntos. Você não devia talvez ter-se casado. Pelo menos, comigo. Há muitas mulheres em torno de você, Larry. E nenhuma delas vale muito.

Não! Você está redondamente enganada. Você é a única mulher em minha vida, Jean! Vale tudo para mim e está sendo terrivelmente injusta!

Está bem, Larry, já que você quer assim. Olhou com espanto para a xícara de café. Estava vazia e ela não se lembrava de ter bebido uma gota que fosse. Não é o táxi que está buzinando lá embaixo? Creio que é. Havia uma moça no aeroporto que veio falar comigo, Larry, durante a nossa lua-de-mel. E na recepção do coronel, você e aquela enfermeira se abraçaram no jardim à vista de todos. Hoje, uma mulher pelo telefone. Não sei o que aconteceu, Larry. Mas acreditará em mim se eu lhe disser que isso não me interessa mais? Quer-me ajudar a carregar as malas?

Ele se havia levantado da mesa, empurrando a cadeira para trás, e olhava-a em silêncio e desolação. Seguiu-a até à sala e obedientemente pegou as malas. Desceu a escada atrás dela, dando um grande suspiro. O chofer do táxi saltou para ajudar a embarcar as malas e Larry pegou-a pelo braço.

Jean, disse ele em voz baixa. Jean!

Adeus, Larry.

Descendo a rua, ela se voltou para trás e viu Larry que continuava parado no passeio a olhar para o táxi. Não havia derramado uma só lágrima e a sua voz lhe parecera muito calma, mas naquele momento começou a tremer. Não era fácil o que estava fazendo. Poderia ter sido mais fácil se tivesse agido com raiva em vez de ser impelida por uma terrível convicção de inevitabilidade. Ele estava sofrendo, mas ela esperava que não sofresse por muito tempo. Poderia sofrer por mais tempo porque ela o ofendera na sua vaidade. Mas não tinha sido fácil e, quando chegou ao quarto do hotel, estendeu-se na cama para chorar e aliviar a tensão.

Que diria Craig? Decerto não diria nada. Mas que iria pensar? Teria um choque muito grande? Decidiu falar com Craig antes de sair da cidade. Ele conhecia Larry melhor do que ninguém e ela queria fazê-lo compreender por que fizera aquilo. Depois, iria para o Norte, para a casa dos pais entre as árvores e ali procuraria um emprego.

Estava deitada calmamente na cama e sem sono, quando às duas horas da manhã o telefone tocou.

Sra. Thomas? perguntou o homem da portaria do hotel. Seu marido, o Tenente Thomas, está aqui e deseja saber se pode falar alguns minutos com a senhora.

Jean já ia abrir a boca para dizer ”Não”, quando pensou com alarma que Larry talvez estivesse embriagado.

Está bem. Pode deixá-lo subir.

Acendeu a luz, vestiu um roupão de banho e ficou esperando.

Ouviu os passos rápidos no corredor. Depois, uma pausa e ele bateu discretamente na porta. Ela abriu e, quando ele entrou, voltou para sentar-se na cama.

Jean, disse ele, solenemente, aposto que você pensou que eu estivesse bêbado.

Pensei nisso de fato.

Mas não bebi nenhuma gota. Não posso. Tenho de voar. E o que aconteceu exigia um drinque, Jean. Não sei como vou aguentar isso.

Ela não respondeu e ele continuou:

Você era minha mulher, era linda e eu a amava. E porque sou um idiota e não presto mesmo, perdi você.

Havia tal intensidade trémula na voz dele e tamanho desespero no rosto, que ela sentiu pena no fundo do coração. Nunca o tinha visto assim, mas sacudiu a cabeça.

Você está apenas fazendo tudo mais difícil, Larry.

E tenho de fazer mais difícil mesmo. Para que você não ache fácil demais. Mas não pode ser assim, Jean, não pode. Vejo a mim mesmo como você me vê, Jean. E sei que não presto.

Jean sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos e deu um suspiro. Larry, eu sei que isso é muito doloroso. Para nós dois. Mas não continue. Assim, você vai sofrer ainda mais.

Não se incomode comigo! Pensei que podia enganá-la. Mas agora sei que não presto, não presto mesmo!

Não continue, Larry. Faça o favor de ir-se embora.

Não posso enganar você! Não devia nem ter tentado! Foi assim que a perdi. Quando você não sabe, desconfia, e isso para mim é pior do que se você soubesse. Você não pode confiar em mim e, se você não pode confiar em mim, tudo está perdido. Não percebi que a estava magoando, Jean!

Pare com isso, Larry!

Não, tenho de ir até ao fim. Você tem de ver como eu sou ruim. Talvez isso lhe facilite as coisas e ajude você a endurecer o coração. Aquele maldito telefonema...

Não diga nada, Larry. Não quero saber.

Não sei nada sobre o telefonema. Tive um encontro com ela, sim, com aquela enfermeira loura... Não era essa minha intenção. Pensei que pudesse apenas conversar e nadar. Pensei que pudesse brincar com fogo. Mas não pude porque não presto. Craig apareceu para me dizer que eu tinha de sair de lá a toda pressa. Alguém telefonou para ele, Chuck, se não estou enganado. Pronto! Agora, sabe de tudo e acho que tinha o direito de saber.

Concluiu com amargura e tamanha humilhação que Jean teve de morder os lábios para não chorar.

Agradeço muito que me tenha contado tudo, Larry. Acho que já sabia. Você nada podia fazer e para mim não faz diferença. Agora, faça o favor de ir-se embora. Saia, Larry!

Vou sair, sim, Jean. Sei que você não acredita que, apesar de tudo, nunca deixei de amá-la. E não pode negar que fiz tudo para ser um bom marido. Adeus, Jean!

Apertou a mão dela e não a largou, ao mesmo tempo que ela não tinha coragem de olhar para ele.

Mereço isso murmurou ele e sei que tenho de aguentar essa infelicidade. Como, eu não sei. Se você me pudesse dar mais uma chance. Bastava ficar comigo até que me mandassem para o estrangeiro. Isso não demorará muito. Depois disso, não a aborrecerei mais. Mas se você pudesse esperar até então, eu lhe provaria, mesmo com tão pouco tempo, tudo o que estou dizendo. Mas acho que não mereço nem isso, não é?

Jean foi até à janela e, olhando através da vidraça a rua deserta, pensou que nunca tinha visto Larry tão emocionado e sentiu o coração triste de ver que ele se convencera tão completamente daquilo que dizia. E não adiantava nada. Era um fogo que arderia impetuosamente e depois se apagaria porque ele era Larry.

Sou aviador! exclamou ele, desesperado. É por minha pátria que quero voar. Ajude-me a voltar ao ar. Ajude-me a sair deste campo.

Jean se voltou com um arrepio.

Pobre Larry! Pode sair agora que eu vou voltar.

Vai mesmo, Jean? Vai voltar?

Amanhã.

Ele a impressionou, então, pelo seu comedimento. Não houve transportes de alegria, nem efusões. Beijou-lhe a testa e disse fervorosamente:

Vou sair e andar mais um pouco por aí. Não sabe o que isso significa para mim, Jean.

O chofer de táxi que a levara para o hotel foi o mesmo que a transportou para casa de novo. Carregou as malas até ao apartamento para ela de uma maneira vagamente sorridente e compreensiva.

Larry chegou a casa e começou a namorá-la de novo. A proibição de voar não representava uma licença. Tinha de apresentar-se todos os dias no campo, para fazer serviços em terra e dar aulas teóricas. Mas dispunha sempre de mais tempo do que os instrutores de voo e vinha para casa imediatamente, procurando de todas as maneiras reconquistá-la.

Preparava muito mal o café da manhã para ela. Iam nadar, jogavam ténis e caminhavam juntos. Na felicidade jovial de Larry não havia mais traços do fervor quase religioso com que ele lhe havia pedido que voltasse. Ela se divertia intimamente ao pensar nisso. Às vezes, quando caminhava com Larry e os soldados lhe faziam continência, vinha-lhe a ideia de que os dois formavam um belo par militar. Apesar de tudo, havia um ponto anestesiado no coração de Jean. Ela o ocultava com sorrisos fáceis e tentava disfarçar a impressão de que ele estava sob observação. Com o correr dos dias, esforçaram-se tanto para ser felizes que às vezes um silêncio e uma tensão se insinuavam entre eles.

Iam tomar banho na praia de Hibiscus, que ficava a poucos quilómetros do campo e se enchia de militares nos fins-de-semana mas permanecia agradavelmente vazia nos dias comuns. Larry tinha comprado um calção novo sem mencionar que havia esquecido o outro em Gulfview. Nadavam muito para fora e sorriam de ver como a praia estava longe. De vez em quando se interessavam por conchas. Larry trouxe para casa um livro e os dois começaram a organizar uma coleção.

Tenho sido perfeito há uma semana, disse ele um dia. Sou um marido irrepreensível que leva até o café para a mulher na cama. Está-me amando de novo?

Ela se levantou de repente e o corpo gracioso assumiu uma atitude vibrante e animada que era o resultado de uma intensa raiva.

Temos de encerrar a experiência, Larry? É essa a solução que você quer forçar, não é?

Não, Jean! Não é absolutamente isso!

Seria um alívio para nós dois.

Nada disso. Que foi que lhe deu? Não posso nem perguntar se você gosta de mim?

Você é um leviano, Larry. Está justamente tornando isso impossível. Não devia ter deixado que você me convencesse.

Não estou exigindo nada. Mas não pode ver o impasse em que estou?

Ela havia observado a tensão nele, ao mesmo tempo que escondia a que ela própria sentia e sabia, por isso, que havia cometido um erro. De repente, sentiu vontade de conversar com Craig e contar-lhe tudo.

Duas coisas eu quero na vida, disse Larry. Voar e ter o seu amor. Sei que foi por minha culpa que falhei nos dois sentidos. Não ligue. Estou apenas resmungando.

Então não me peça que escute.

Ela se abstinha de dizer que isso não fazia parte do contrato ou de perguntar quando ele iria servir no estrangeiro. Essas crueldades que não chegavam a ser ditas eram para ela ainda mais dolorosas porque até pouco antes o havia amado e agora tudo o que ele dizia lhe reduzia ainda mais o valor. Já estava vendo que ele se arrependera das confissões daquela noite no hotel e ficava de dia para dia mais impaciente com a sua falta de sucesso.

Telefonou para Craig naquela noite. Depois de alguma espera, ouviu-lhe a voz oficial:

Fala o Major Thomas.

Como vai, Craig?

Muito bem, Jean. E você? Como está Larry se portando?

Estamos sendo muito cuidadosos. Larry me parece em muito bom estado. Vamos à praia de Hibiscus todas as tardes.

Ótimo. Tenho prazer em saber disso, Jean.

Por que não vai encontrar-se conosco lá amanhã?

Boa ideia, Jean. Tentarei ir.

Larry, que estava lendo um jornal, perguntou:

Craig ficou de ir, Jean?

Disse que ia tentar.

Então não vai. Mas ficaremos bem sozinhos.

Ela nada disse, mas tinha esperança de que Craig fosse. Esperava-o com toda a força da solidão que sentia. Precisava de algum lugar para onde se voltasse, de alguém com quem falar e isso a fazia pensar no irmão que conhecia Larry tão bem quanto ela própria.

Na tarde seguinte, o carro de Craig foi freado perto da praia. Ele deu adeus e entrou na cabina para trocar de roupa.

O Grande Cirurgião vai tomar banho de mar. É um momento histórico, murmurou Larry.

Não compreendo, disse Jean. Que é que você tem contra ele?

Nada, Jean. Vivo irritado e ele tem o dom de me irritar. É natural. Craig nunca esteve numa dificuldade em toda a sua vida e eu estou sempre em dificuldades. Esse é o mal de quem sempre age direito. Não sabe o que é uma dificuldade e você também não sabe.

Por que não vai nadar um pouco, Larry?

Quando viu Craig sair da cabina, ficou surpresa com a semelhança entre os dois irmãos que não era apenas de rosto, como até então pensara.

Ele foi sentar-se na areia ao lado dela.

Como está, Jean? Tudo bem?

Mesmo nessas palavras convencionais, ela podia sentir a força da sua amizade por ela.

Tudo bem, Craig. Mas posso falar com você?

É claro, disse ele e ela viu uma grande preocupação estampar-se no rosto dele.

Sei tudo o que houve em Gulfview, Craig. Larry me contou...

Mas, Jean...

Nesse momento, Larry, que havia saído da água, se aproximou e estendeu-se na areia.

Alo, Craig.

Alo, Larry. Como vamos de treinamento?

Já então, de algumas pequenas alterações na voz de Craig, Jean sentiu uma hostilidade fortemente contida.

Estou ótimo. Quando Blount me examinar de novo, terá a maior surpresa de sua vida.

Dentro em pouco, você estará voando de novo, disse Craig, levantando-se. Quem vai cair na água?

Eu vou, disse Jean.

Mas Larry sorriu e pegou um maço de cigarros em cima da toalha.

Nadaram para fora lado a lado e viram Larry jogar fora o cigarro e deitar-se de bruços na areia.

Jean disse numa voz baixa de confidência.

Agora, colecionamos conchas. Larry me comprou um livro. Ajude-me a procurar algumas. Deixei Larry naquela noite, Craig. Fui para um hotel.

Ela esperou, mas ele nada disse.

Sei também o que você foi fazer lá, Craig. Larry me disse. Mary e Chuck sabiam também. Todos estavam tentando proteger-me a mim e a Larry, e proteger o nosso casamento. Mas não deviam ter feito isso.

Havia sofrimento e confusão no rosto de Craig.

Desculpe, murmurou ele. Ficou de repente muito pálido e falava com dificuldade. Não foi por Larry, Jean. Todos nós a amamos e, aconteça o que acontecer, estaremos a seu lado.

Vamos nos sentar, disse ela.

Sentaram-se em outro canto da praia, sem olhar para Larry. Ela moveu nervosamente os dedos, olhou para as águas do Golfo e pousou a mão sobre a de Craig. Ele fechou a mão sobre a dela.

Você é decente, disse ela. Tenho precisado de você. Tinha necessidade de falar. Larry foi procurar-me no hotel. Estava muito exaltado e fez uma confissão. Disse-me por que foram até lá. Disse até que me tinha sido infiel com a enfermeira.

Foi mesmo? exclamou Craig, espantado.

Acho que deveria sentir-me profundamente magoada, continuou ela, mas não. Para mim, o que importa não é tanto as coisas que Larry tem feito, mas a convicção de que sempre as fará. Assim, não podemos continuar. Não o amo mais, Craig.

Depois de uma pausa, ele disse:

Não tome uma decisão tão categórica assim, Jean. Afinal de contas, você voltou para ele.

Ela recebeu as palavras penosamente, como se fossem uma acusação.

Foi ele que me pediu que voltasse, só até que ele estivesse voando de novo e fosse mandado para o estrangeiro. Disse-me que isso o ajudaria muito e que só para conseguir essa chance havia confessado tudo.

Neste caso, fez muito bem, disse Craig, convicto.

Mas não adianta, não pode adiantar. Você não pode imaginar que situação é a nossa, Craig. Não só para mim. Para Larry também. Ele precisa de solidariedade e eu não posso dar-lhe. Quer ter certeza de que o amo e não a pode ter porque sei que é impossível voltar a amá-lo. Desejo que compreenda tudo isso quando eu o deixar.

A mão dele apertou pouco a pouco a mão dela até que começou a doer. Então levantaram os olhos um para o outro com tal calor e ternura que tiveram dificuldade em desviar o olhar.

Craig! disse ela num trémulo sussurro.

Jean, disse ele, voltando o olhar para o Golfo. Por fim, levantaram-se relutantemente.

Você é tão boa, disse ele.

Não diga isso, senão eu acabo chorando. Mas farei o melhor que puder e por tanto tempo quanto me for possível.

Quando chegaram ao lugar em que Larry estava, encontraram-no dormindo.

Já vou, Jean, disse Craig.

Jean sentou-se ao lado de Larry e ficou esperando que ele acordasse.

 

Você não está regando bem essas petunias, disse Henry Smith. Precisam de água todas as manhãs, Dolly.

Tinha acabado de chegar porque estava com a noite livre. Mas achou alguma coisa diferente no beijo de Dolly e um brilho de cautela no olhar. Interrogou-a com o olhar e teve como resposta apenas um encolher de ombros, o que fez pensar nos mistérios do temperamento das mulheres. Mas as petunias pareciam bem ressecadas.

Esqueci-me por completo delas, disse Dolly.

Henry abriu o armário e tirou os slacks cinza, uma camisa esporte azul e sapatos de ténis, preparando-se para quebrar alguns artigos do regulamento do Exército, porque gostava de deixar a farda de lado, como faziam os oficiais, quando era seguro passar a noite em casa.

Vou-lhe contar, disse Dolly. Não sei bem o que significa, mas vou contar, Henry. Eu ia mesmo molhar essas petunias, quando apareceu um homem.

Um homem? Que espécie de homem?

Não era militar como nós. Estava à paisana e começou a fazer perguntas. Acho que era da polícia.

Da polícia?! exclamou Henry. Desistiu de trocar de roupa e acendeu um cigarro com a calma fictícia do homem que enfrenta um pelotão de fuzilamento, enquanto revolvia no espírito várias possibilidades de catástrofe.

Conte-me tudo do princípio ao fim, Dolly.

Era detetive, sim. Mas não dessa polícia daqui. Era mais maneiroso. Talvez fosse do FBI. Não queria nada comigo e começou a conversar sobre você, Henry.

Sobre mim? Que foi que ele disse?

Disse que era um investigador de moradias.

Talvez seja então. Sei que estão fazendo essas investigações.

Mas o camarada não era nada disso. Disse que começa indo à companhia de eletricidade. Toma nota dos nomes e endereços de todos os consumidores novos. Vai então procurá-los. Disse que há um projeto de construção de casas portáteis e o governo quer saber quantas vão ser necessárias. Perguntou então o aluguel que pagávamos, quantas pessoas viviam aqui, quantas peças havia e o que era que fazíamos. E anotou num livro tudo o que eu disse.

Não vejo nada demais.

Espere aí! Ele disse que a conta na companhia estava em nome de Sr. e Sra. Henry Smith. E isso está certo?

Que foi que você disse? perguntou Henry, franzindo a testa.

Disse que, se era isso que a conta dizia, estava certo. Ele então olhou e disse: ”Acho que podemos chamar isto um apartamento em cima de uma garagem, com duas peças”. E foi o que ele escreveu no livro. ”E que é que seu marido faz, Sra. Smith?” ”Está no Exército”, disse eu. O sujeito aí sorriu e disse: ”Ótimo, Sra. Smith, já vi que minha visita valeu a pena. O que desejamos principalmente é melhorar as condições de vida para o pessoal do Exército, que é o setor onde mais se faz sentir a crise de habitações”. Eu então disse que agradecia muito, mas que nós estávamos satisfeitos.

Henry olhou-a com um sorriso cético de alívio.

Não tem importância. Nunca se sabe o que o governo vai fazer.

Escute aqui, você não disse que queria que eu lhe contasse tudo?

Claro que sim.

Então escute. Ele perguntou: ”Que é que seu marido faz no Exército?” ”Aviação”, disse eu. ”Oficial?” ”Não”. Não me conformo que você seja ainda praça depois de salvar aquele oficial, Henry. ”Que é ele então?” perguntou o sujeito. Eu disse: ”Praça”. E ele: ”Pois se ele é praça devem sentir-se muito felizes morando num lugar como este. Como é que conseguem?” Foi aí que eu disse: ”Não acha que o governo está querendo saber demais?” Não vi necessidade nenhuma de dizer a ele que sua tia lhe deixou um rendimento de 75 dólares por mês.

Isso é que eu não sei. E que foi que ele disse?

Disse que sentia muito deixar essa parte em branco, pois ia chamar a atenção. Uma pessoa tem de pagar o aluguel de acordo com o dinheiro que ganha e você como praça nunca poderia alugar este apartamento, a não ser que tivesse alguma renda particular. Eu então disse que tinha e ele perguntou de quanto. Aí eu mandei o camarada ir pentear macacos, delicadamente, sabe? Perguntou então onde nos tínhamos casado.

E que foi que você disse?

Tinha de dizer alguma coisa rápido e eu disse que tinha sido em Miami há dois meses. Ele perguntou a data e eu dei uma data a ele.

Nunca estive em Miami, disse Henry, Mas que era que você podia fazer? Está muito bem, Dolly. Não se preocupe com isso. Mandam esses papéis para Washington e ninguém lá olha para eles. Mas ele fez mesmo perguntas demais. Que foi que você disse?

É por aí que nos vão pegar, eu sei. Basta que eles verifiquem se você teve uma licença há dois meses. Teve?

Não. Mas o homem parece mesmo um investigador de moradias. De onde você tirou essa ideia que ele é da polícia?

Tenho certeza, Henry. Ele disse depois: ”É uma boa coisa o Exército deixar que os praças casados morem nas suas casas. Seu marido vem para casa todas as noites, Sra. Smith?” E eu tive de dizer que sim. Perguntou então que era que fazíamos à noite.

Mas ele fez mesmo perguntas demais. Que foi que você disse?

Perguntei a ele o que era que isso tinha a ver com moradias e ele me disse que os divertimentos faziam parte do projeto e por isso queriam saber o que as pessoas faziam. Disse então que às vezes íamos ao cinema. Perguntou se recebíamos muito e eu disse que não. Ele disse que naturalmente os amigos de meu marido no Exército gostariam de visitar um apartamento agradável assim. Ou os nossos amigos não eram gente do Exército? Eu disse que estávamos aqui há pouco tempo e ainda não tínhamos recebido ninguém. Henry, você acha que o governo iria fazer uma pergunta assim?

E ele escreveu isso no livro?

Não, não escreveu.

Então talvez estivesse apenas querendo ser amável. Houve mais alguma coisa?

Não. Ele se levantou e disse que agradecia muito a minha cooperação e eu disse que de nada. Mas escute, Henry. Se fosse o governo que estava fazendo todas essas perguntas, não acha que o homem deveria ter um formulário com as perguntas impressas e os lugares em branco para escrever as respostas?

É verdade.

Pois eu olhei para o livro dele enquanto ele estava escrevendo. Não havia nada impresso. E tem mais uma coisa. Estava escrevendo na segunda página. Por isso, levei-o até à porta e perguntei há quanto tempo ele estava trabalhando neste bairro e ele disse que há duas semanas, mas só agora tinha chegado à nossa casa. Que é que você acha disso? Duas páginas em duas semanas!

Henry sabia que estavam violando alguma lei vivendo juntos assim. Não era a primeira vez que se preocupava com isso, mas nunca a cadeia lhe parecera mais perto.

Teria sido a polícia? Que é que você acha, Dolly?

Já lhe disse que o homem era muito maneiroso e não podia ser da polícia. A polícia não se incomoda com as pessoas desde que não se faça barulho. Depois, Henry, basta olhar você para ver que é um homem direito. Mesmo assim, o homem estava em sua pista. Será que você se envolveu em alguma coisa sem saber?

Não creio. A minha folha de serviço é boa. Até pensei que ia ser promovido antes mesmo de salvar o piloto.

Está aí, Henry! Não acha isso muito suspeito? Se você merece a promoção e ainda não conseguiu é porque alguma coisa está pegando. E isso tem alguma relação com o tal detetive? Pense nisso.

Talvez o homem esteja procurando outro Smith, disse ele, mas uma certeza se estava formando no seu espírito.

Por que ainda não foi promovido então?

Essas coisas levam tempo. Os papéis rolam e rolam nas mesas. Mas ele estava pensando que o Coronel Flynn poderia não ter completado ainda a investigação sobre o desastre do Tenente Waller, embora o caso parecesse encerrado. Ele talvez desconfiasse ainda do pessoal de terra. O coronel fez uma porção de perguntas sobre o nosso serviço no avião. Mas eu pensei que tivesse ficado satisfeito.

Quer dizer que ele pode pensar que o avião foi estragado de propósito, Henry?

Não, não é isso que eu quero dizer. Nem pense nisso. Mas ele pode pensar que a turma de terra esqueceu alguma coisa e deixou por isso mesmo o avião fora de ordem.

Mas não iriam chamar um detetive só por isso, só porque alguém se esqueceu de botar óleo em algum lugar. Não seja bobinho, Henry! Em seguida, Dolly fechou os olhos e exclamou dramaticamente: Imaginem! Estive falando com o FBI!

Tolice, disse ele num alarma zangado. Isso é coisa de cinema.

Ela recebeu isso como uma afirmação.

É verdade, tenho visto esses homens no cinema. São todos elegantes, gentis e formados em universidades. O camarada que esteve aqui era elegante e gentil e sou capaz de apostar que estudou numa universidade. Exclamou com voz emocionada: O FBI! Se eu soubesse disso, estaria mais bem vestida!

Não fale assim! Está dizendo asneiras!

Acha mesmo? Henry, eles estão examinando todos os que poderiam ter estragado aquele avião. Não diga nada que eu estou vendo tudo. Você não será promovido enquanto não encontrarem o culpado.

Dolly, você está dizendo bobagens! Mas ele não estava convencido disso e admitia a possibilidade, pois o piloto parecia não ter encontrado os controles no seu mergulho. Mas afastou angustiadamente esses pensamentos da cabeça. Que é que você entende de aviões?

Nada, mas entendo de detetives. Não se esqueça de que ele esteve aqui fazendo perguntas sobre nós. Todos os homens que trabalharam no tal avião são correios como você?

Dolly, você é um amor. Mas não tente ser detetive.

São todos assim como você?

Todos menos o cabo. Mas não fique logo imaginando coisas. Ele conhece tudo sobre aviões e é um bom mecânico. Mas é duro e tem sido uma dor de cabeça para mim.

Um homem que procura estragar um avião tem de entender sobre aviões! Disse que ele é duro.

Pelo amor de Deus, Dolly! Você é do FBI?

Eu, não, mas o homem que esteve aqui no apartamento é. Duro como?

Tem aparência de ser duro. Anda atrás de mulheres o tempo todo.

Que mais ele faz? perguntou ela, levantando as sobrancelhas.

Lê revistas imorais.

Que mais?

Escute, disse ele em desespero, vendo-a articular uma acusação ao Cabo Tyce. Pode-se torcer tudo o que se quiser para acusar um homem. Está bem, ele é tão duro que coleciona fotografias de desastres de avião.

Quer dizer que ele gosta de desastres de avião?

Não disse que ele gostava, que diabo! Já está você torcendo tudo.

Mas lembrou-se com desprazer de como Tyce lhe tirara o entusiasmo no hospital, mostrando como até o braço dolorido dele era uma coisa suspeita.

Como é que nós podemos descobrir esse homem?

Que homem?

O do FBI. Temos de contar a ele sobre esse cabo.

Por favor, Dolly, cale essa boca. Desde que os venenos das suspeitas infundadas se tinham espalhado pela sua cabeça, ele estava com raiva dela e de si mesmo. Mas Tyce não prestava e no seu íntimo ele o detestava, sendo capaz de dar crédito a qualquer coisa contra ele. Você está me dando uma bela dor de cabeça.

Está bem, Henry querido, disse ela, baixando a cabeça numa atitude resignada de mártir. Acha então que o homem que esteve aqui era um investigador de moradia?

Não, não acho.

Neste caso, Henry querido, devia estar angariando assinaturas de revistas.

Henry gemeu.

Não vamos recomeçar com isso, está bem? Sabe o que é que eu acho que devemos fazer? Acho que nos devemos casar.

Ela se aconchegou a ele com um sorriso e disse:

Talvez não tenha pensado nisso, mas é uma coisa bem conveniente. Uma mulher não pode depor contra o marido.

Depor? Como? Onde?

Eu sei, Henry. Você sabe. Mas talvez eles não saibam. Amo você, Henry. Sei que você é inocente. Mas uma mulher tem de pensar. Parece estranho casar às pressas com você só porque um detetive fez perguntas a seu respeito. Vamos para a cama e continuemos a conversa.

Durante muito tempo, não conseguiram dormir. Dolly ficou deitada nos seus braços enquanto falavam da visita do detetive e Dolly repetia a sua cadeia de conclusões que apontavam para a presença do FBI e para a culpa do cabo.

Escute, Henry. Não diga nada a ele, nem a ninguém. Não fale da visita do detetive. Isso faria o cabo ficar de sobreaviso. Proceda da maneira mais natural deste mundo.

Henry prometeu. Estava agitado por suspeitas que não conseguia dominar e com medo do que o Exército poderia fazer, caso o detetive falasse a respeito dele e de Dolly.

Pode parecer uma má hora para pedir a você que se case comigo, Dolly. Talvez fosse melhor esperar para ver em que dá tudo isso. Mas eu nada fiz e nada tenho de que ter medo. Já experimentamos viver juntos e está dando certo.

Seria muito bom, Henry, disse ela, beijando-o. Você poderia vir para casa todas as noites, como o homem do FBI disse. Fico sem saber o que fazer dentro desta casa quando você não vem. Já estou ficando cansada. A gente precisa de viver por alguma coisa. Não se pode viver só de sexo.

Henry estava mal-humorado quando chegou ao trabalho na manhã seguinte e o Cabo Tyce percebeu imediatamente isso. O cabo não estava também com muita disposição naquele dia. Gritou do canto do caça que estavam aprontando:

Vamos acabar com essa cara azeda, Smith, senão eu vomito já o meu café!

Se quiser mesmo vomitar, vá se olhar num espelho murmurou o Praça Smith.

Desde que saíra do hospital, Tyce tratava-o ainda pior do que dantes. Contava menos casos de mulheres e esses casos significavam o máximo de bom humor do cabo. Passava a maior parte do tempo, verificando e criticando o trabalho de Henry e olhando-o cheio de desconfiança. Henry atribuía tudo isso a ressentimento pela sua possível promoção. Mas ficava indignado com o novo hábito de Tyce de chamá-lo zombeteiramente de herói.

Responda-me e vai ver o que lhe acontece, disse Tyce, brandindo uma chave inglesa.

Pode vir e não se arrependa depois, respondeu Henry, encolhendo os ombros.

Esse género de relações era normal entre eles e isso o tranquilizou. Ver o cabo pessoalmente, com a sua habitual cara enfarruscada, e ouvir as mesmas frases de provocações faziam as suspeitas de Dolly perderem a força. Tyce era apenas um sujeito mesquinho e grosseiro.

Henry verificou cuidadosamente o trem de aterrissagem escamoteável, como sempre fazia, pois aqueles pequenos aviões pousavam com uma velocidade que sempre lhe tirava o fôlego, pensando que podiam despedaçar-se e ao piloto se houvesse qualquer defeito nas rodas. Verificou a pressão dos pneus e deu-lhes mais duas libras de ar. Olhando para cima, viu que o Cabo o observava com um ar de exasperada paciência.

Está bem, herói, disse Tyce. Olhe tudo bem. Depois, venha cá em cima. O cabo desapareceu dentro da fuselagem. Mova os controles do leme.

Henry obedeceu.

Tudo certo?

  1. Os elevadores agora. OK. Este avião vai para o Campo Rand. Encha o tanque e coloque dez galões extra.

Já está cheio, disse Henry pacientemente. O cabo desceu para o chão.

Verifique isso, verifique aquilo e depois torne a verificar, disse Tyce. É isso que o coronel exige agora.

Estava olhando o trem de aterrissagem quando o sargento técnico encarregado das turmas de terra chegou para vistoriar o avião. Tyce ligou o motor para aquecê-lo.

O Tenente Larry Thomas apareceu no hangar com roupa de voo, os óculos levantados para a testa e o volume do pára-quedas batendo-lhe nas pernas enquanto ele andava. Usava as roupas que Henry Smith tinha esperado usar naquela guerra. Era assim que todo aviador devia ser, pensou Henry, olhando-o com admiração. Ele e o Cabo Tyce ficaram em posição de sentido e fizeram continência e o Tenente Thomas respondeu.

Tudo pronto?

Tudo, Tenente.

Alo Smith, disse Thomas, sorrindo. Seu amigo, o Tenente Waller, sempre me pede que lhe dê lembranças. Qualquer dia destes, estará de novo por aqui.

Muito obrigado, Tenente, disse Henry, radiante de satisfação.

Larry Thomas subiu ao avião e apertou o cinto. O motor acelerou com um ronco quando a manete alimentou a gasolina de alta octana para a pausa anterior ao voo quando o piloto corre os olhos por mostradores e alavancas e se prepara para voar. Uma mão acenou da carlinga.

Henry e Tyce sorriram respondendo ao adeus e se afastaram. Com uma explosão de ar à retaguarda que lhes colou os macacões ao corpo, o pequeno caça se moveu lentamente para a pista de concreto. Virou-se a favor do vento como um cachorro que aponta caça e ganhou velocidade sobre o piso liso de uma pista de voo. Na metade da pista, elevou-se no ar e subiu, diminuindo rapidamente até ser apenas um pontinho no céu a desaparecer. O Cabo Tyce voltou-se para Henry, encolhendo os ombros.

Isso até me faz ficar nervoso.

Que é que faz você ficar nervoso?

Não faz ainda dois dias esse camarada estava proibido de voar.

E que é que tem isso? Ele é um bom aviador. E bom sujeito também. Conheço o irmão dele e a mulher também.

E com certeza isso faz dele um Jimmy Doolittle, disse o cabo. Acontece que nós somos a turma de terra.

Com uma lancinante suspeita, Henry perguntou:

Que é que está querendo dizer, Cabo?

Você não parece amigo, Henry, disse Tyce, depois de encará-lo atentamente. Eu sei que você dá duro neste serviço, Smith. Mas é preciso. Quando trabalhamos com um bom avião como aquele, é natural que gostemos de que seja pilotado por um camarada que nunca foi proibido de voar. Há algum mal nisso?

Não, disse Henry com uma voz de quem estava descontente. Mas não é preciso ficar nervoso por causa dele.

Tyce virou-se para voltar ao hangar.

Smith, quem anda muito nervoso é você. Riu. Tenho subido a uma porção de camas e sei por quê. Sei o que é que há com meu velho amigo. Anda ultimamente muito calado. Ri sozinho e está com os olhos empapuçados. Onde foi que pegou a pequena, Smith?

Pegou quem?

Não sabe de quem estou falando? disse Tyce com uma gargalhada. Estou falando da mulherzinha que lhe dá força e fraqueza. Onde foi que a pegou?

Não fale nela com essa boca suja!

Epa! Não é que está apaixonado? É melhor você me deixar experimentá-la. Você não é capaz de distinguir uma pequena de outra.

Mandei calar a boca!

Apesar de tudo, você é um sujeito sério. Pode ser enganado. Diga a ela para convidar uma amiga e nós faremos uma farra juntos.

Henry olhou-o apertando os olhos.

Escute, garoto, continuou o cabo, você não sabe de nada. Eu sei porque tenho experiência. Você não perceberia nada ainda que estivesse numa fila de um quilómetro de comprimento.

Henry deu-lhe um soco, atirando-o de encontro à parede do hangar. Tyce olhou-o com um sorriso estranho, com o nariz a pingar sangue.

Meu amigo! E ainda agredindo um superior! Avançou e Henry cambaleou de um firme soco nos olhos.

Meu amigo!

E prontamente o lábio de Henry foi cortado. Avançou então com os braços abertos e a cabeça de Tyce foi arremessada com força contra a parede do hangar e ele escorregou por entre os braços de Henry.

O cabo tirou uma pesada chave inglesa do bolso do macacão e, com esse movimento, deixou cair no chão um pedaço de metal brilhante. Henry apanhou-o rapidamente. Era uma porca de sustentação de um controle de cabo.

A chave inglesa atingiu-o na mão e ele teve de largar a porca. Levantou então o cotovelo porque a chave inglesa estava descendo sobre a sua cabeça.

 

Major Thomas! disse a voz do Coronel Flynn pelo telefone. Estou aqui na sala de pronto-socorro com um dos meus mecânicos. Preciso do senhor imediatamente!

Craig atravessou os corredores quase na carreira. O Coronel Flynn chegou à porta ao ouvir-lhe os passos e levou-o à maca onde o Praça Smith estava estendido com o rosto pálido e a cabeça ensanguentada.

O rapaz foi derrubado numa luta. Um cabo tentou matá-lo com uma chave inglesa. Tenho de saber com urgência qual foi o motivo dessa briga, Thomas!

Craig olhou para o rapaz que salvara Chuck Waller. Um caso simples de concussão, diagnosticou tranquilizado.

Deve voltar a si dentro de quinze minutos mais ou menos, Coronel.

O Coronel Flynn levou-o para um canto.

Não pode apressar isso? O cabo diz que a luta foi por causa de uma mulher. Está sendo interrogado, mas eu tenho de saber. O avião em que eles trabalharam está no ar agora.

Craig levantou a cabeça e chamou um sargento que esperava a alguma distância.

Seringa de metrazol, Sargento.

Pode ser um falso alarma, disse Flynn. Espero que seja. É seu irmão que está levando o avião para o Campo Rand. Não deve haver nada, mas pode haver. Faça o rapaz recuperar a consciência. Só não quero é que o mate.

Larry? perguntou Craig enquanto os pensamentos corriam-lhe pela cabeça como pássaros assustados.

Pegou numa mesa um vidro de amónia e ensopou com ele um pedaço de gaze. Sentiu lágrimas nos olhos com o cheiro penetrante da amónia. Mas a gaze foi encostada ao nariz de Smith e não provocou a menor reação.

Está bem, disse Craig e começou a aspirar numa seringa o líquido de uma ampola.

Isso não o matará, Coronel. É metrazol, que se usa para acordar as pessoas que estão sob anestesia profunda. O estado dele é semelhante e deve dar resultado. É um estimulante poderoso dos centros cerebrais.

Depois de aplicada a injeção, Craig ficou a observá-lo.

Já está voltando a si Coronel.

Henry Smith abriu os olhos ainda atordoado. Virou a cabeça e olhou fixamente para o teto. Craig esticou a cabeça para ficar na mira de visão dele.

Major Thomas! exclamou Smith.

O rosto do coronel substituiu o de Craig.

Sabe quem sou eu, meu filho?

O coronel! Coronel Flynn!

Smith fez menção de levantar-se, mas Craig o segurou firmemente na cama.

Qual foi o motivo da briga, meu filho? Entre você e o cabo?

Briga? Ah, sim! Tive de bater nele, Coronel. Minha pequena. Foi preciso.

Ah! exclamou o coronel. É um alívio saber disso com seu irmão no avião, Thomas. Mas... Depois, eu lhe conto tudo.

Mas, Coronel, disse Henry, procurando ainda levantar-se, para que foi que ele tirou uma porca dos cabos de controle da cauda?

Como? Ele tinha uma porca? Onde?

No bolso. O avião saiu voando bem. Mas ele me fez cair a porca da mão com uma pancada.

Espere-me aqui! disse o coronel a Craig e correu para um telefone. Quando voltou, o passo estava mais firme e com a satisfação estampada no rosto.

Quer vir para a sala de rádio comigo, Major Thomas? Disse que transmitissem ordem a seu irmão de pousar no campo mais próximo. Já o avisaram a respeito do defeito. Deve saltar de pára-quedas ao primeiro sinal de perigo. Ele comunicou há coisa de dez minutos que tudo ia bem. Estão falando com ele neste momento.

Um jipe estava esperando à porta e o motorista pisou o arranque logo que viu o coronel.

É incrível pensar que um dos homens fosse capaz de fazer uma coisa dessas, Thomas! O avião de Waller tinha uma porca defeituosa nos controles dos elevadores. Não dissemos nada. O tal cabo trabalhou no avião de Waller. Cachorro, patife!

Falaremos dele depois, disse Craig. Acha que Larry vai cair como Chuck Waller?

Talvez não. Vamos esperar que não. Uma turbulência do ar, alguma tensão, uma acrobacia podem fazer o avião cair. Mas seu irmão não tem de fazer acrobacias e está avisado. Não se preocupe. E quanto ao soldado? Não vai ter nada? Precisamos dele para depor.

Estará em perfeito estado dentro de alguns dias. O jipe estava chegando a uma pista do aeroporto.

Waller caiu porque uma porca se partiu, continuou o Coronel Flynn. Ele não sabia disso, é claro, e o avião ficou diretamente desgovernado. Mandamos a porca para a fábrica. Disseram lá que não tinham fabricado a porca. Provaram que não tinha havido erro de vistoria e que não era nem do mesmo aço que usavam. Havia uma rachadura de ponta a ponta que não deixaria a porca resistir a qualquer tensão. Examinamos tudo mais no avião e chegamos à conclusão de que o único defeito era aquele. Sabotagem, Thomas. Fizemos uma investigação de todas as nossas turmas de terra. Submetemos a um inventário rigoroso os nossos depósitos de peças sobressalentes. Chegamos à conclusão indiscutível de que alguém havia tirado a porca do avião substituindo-a pela defeituosa. E o cabo vai ter de confessar que foi ele nem que seja preciso virá-lo pelo avesso.

Quando entraram na sala de rádio, um capitão fez continência e comunicou:

Ainda não conseguimos entrar em contato com ele, Coronel. Ele deu notícia do voo sobre Stanville há trinta e cinco minutos.

Continue a tentar. Como está o tempo ao sul de Stanville?

Chuvoso, Coronel.

Flynn teve uma exclamação de raiva.

Rand está procurando também falar com ele?

Também.

Do outro lado da sala, diante de uma grande faixa de mostradores, um sargento de fones aos ouvidos repetia firmemente num microfone:

Alo, Tenente Thomas. Campo Minafer chamando Tenente Thomas.

Dentro de dez minutos, comecem a aquecer quatro bombardeiros, ordenou Flynn. Devem levar observadores para sobrevoar a rota. Virou-se e pôs a mão no ombro de Craig. Ainda é muito cedo para haver preocupações. Ele pode estar com o rádio desligado. E se teve de saltar de pára-quedas, pode levar horas até encontrar um telefone. Quer ir esperar no meu gabinete? E tenho de pedir-lhe licença. Quero ver como vão as coisas com aquele cabo.

Vou esperar aqui mesmo, disse Craig.

O operador continuava a fazer a chamada com voz monótona e de um grande alto-falante saía um crepitar de estática.

Pensou em telefonar para Jean, mas logo desistiu. Só telefonaria quando houvesse alguma notícia definida.

O Coronel Flynn voltou e o capitão disse.

Nenhum contato, Coronel. Rand não recebeu o aviso de chegada. Já está atrasado lá.

Dentro de cinco minutos, mande os bombardeiros partirem, disse o coronel, voltando-se então para Craig: Vamos dar início a uma busca. Há muitos alagadiços com mangues na rota. Ele pode ter feito um pouso forçado que prejudicou o funcionamento do rádio. Pode ter saltado sem comunicar-nos. Tudo pode acontecer depois que um avião desaparece das nossas vistas. Há uma porção de possibilidades, mas só uma é ruim.

Num avião sabotado? perguntou Craig calmamente.

Isso de fato é desagradável, disse Flynn. O cabo ainda está resistindo. Insiste em que o motivo foi uma mulher. Talvez depois ele se arrependa de ter conhecido mulheres.

Desde que Larry está atrasado, vou dar um telefonema. Ligou o telefone para Jean.

Alo. Alo, Craig! disse ela com aquele tom emocionante e quente que sempre lhe acelerava a respiração. Muito bom ter telefonado. Que é que há?

Pode vir até aqui ao aeroporto e procurar-me na sala de rádio, Jean?

Não me diga que aconteceu alguma coisa a Larry?

Não há nada certo ainda. Deve ter feito um pouso forçado em algum ponto. Estamos à espera de notícias.

Ele ia entregar um avião no Campo Rand. Foi?

Foi. Está um pouco atrasado apenas.

Mas telefonaram para você. Irei neste momento, Craig!

À porta da sala de rádio, esperando numa dor surda pelo carro dela, Craig pensou que talvez Jean tivesse de enfrentar horas de angustiosa espera. Um avião podia desaparecer nos densos mangues da costa. Podia ficar enterrado na lama. Podia até ficar escondido entre os pinheiros. O ar se encheu com o ronco dos motores e os quatro bombardeiros levantaram voo, circulando o aeroporto e depois, tomando posição no rumo de Rand, como grandes abutres à procura de sinais de morte.

Ocorreram a Craig pensamentos vergonhosos. Assaltavam-no insistentemente, deixando-lhe um atordoado sentimento de culpa e ele os reprimiu com energia. Mas um homem apaixonado pode odiar um rival, ainda que seja um irmão, principalmente se for um irmão. Podia ver Larry voltando para Jean com um sorriso arrogante para o que acontecera e o sorriso arrogante de Larry era uma coisa odiosa. Viu Larry morto, mas isso lhe confrangia o coração. Via possibilidades ainda mais horríveis que oscilavam entre a vida e a morte.

Embora receasse aquela espécie de encontro com Jean, ficou satisfeito quando viu o carro dela chegar. Esperava que ela precisasse de ajuda. Ela saltou do carro e correu para ele, com um olhar cheio de interrogações e um sorriso ansioso. Craig teve a súbita impressão de que a ansiedade dela referia-se mais a ele do que a ela própria ou a Larry. Tinha esperado ampará-la e ficou surpreso com a firmeza de seu andar. Ela lhe apertou a mão e não a largou enquanto se encaminhavam para a sala de rádio.

Ainda não há notícias, Craig?

Nada ainda.

O Coronel Flynn foi ao encontro deles e, com uma gravidade paternal e tranquilizadora, disse:

Ainda não temos notícias, Sra. Thomas. Mas os saltos de pára-quedas sempre são dados nos piores lugares e os pousos forçados não são muito melhores. Pode haver uma espera um tanto prolongada. Onde prefere ficar?

Esperarei lá fora, Coronel. Muito obrigada.

Ela e Craig se encaminharam em silêncio para o carro e sentaram-se, acendendo os cigarros.

Larry não seria capaz de saltar de pára-quedas se ainda houvesse alguma chance de salvar o avião, disse Jean. Sei que ele se esforçaria até ao fim.

Há uma chance de que neste momento ele esteja procurando um telefone.

Estava muito feliz com essa oportunidade de levar um avião rápido para o Campo Rand. Voltaria esta noite num bombardeiro.

Um tremor lhe percorreu o corpo e ela colocou a mão firmemente sobre a dele.

Não vamos pensar no pior. Ainda não há motivo para isso.

Pobre Craig! disse ela com os olhos molhados. Procura sempre ser bravo. Sempre tem muitas vidas em suas mãos. Não sei ter bravura. Não sei esperar.

Há muitos terrenos pantanosos ao longo da rota e pode ser difícil sair deles.

Um tenente se aproximou do carro, fez continência e disse:

Major Thomas, quer ir falar com o Coronel Flynn?

Voltarei neste instante, disse Craig a Jean.

Está bem, disse ela, muito pálida a olhar para ele.

O coronel Flynn apertou gravemente a mão de Craig e levou-o para um canto.

Não sabemos ainda a extensão do caso, Major, mas saberemos dentro em breve. O avião está caído nos mangues e na lama, bem destroçado. Felizmente, não há fogo. Foi localizado por um avião do Campo Rand. Pousaram a cerca de um quilómetro de distância e estão indo para lá agora.

Em que ponto?

A quarenta quilómetros de Rand. Do ar, não se vê sinal do piloto. Ainda há a possibilidade de que tenha saltado de pára-quedas.

Se acharem meu irmão ainda vivo, Coronel... mandaram uma ambulância?

Rand vai mandar uma. Pode chegar a um quilómetro do local.

Muito obrigado.

Tiveram uma longa espera no carro. Com as mãos juntas, Jean e Craig fumaram sem parar em silêncio.

Não há meio de ir até lá agora? perguntara Jean depois que Craig lhe contara tudo.

Não.

Por fim, o tenente reapareceu evitando olhar para Jean, como da primeira vez.

Já chegaram ao avião, disse o coronel a Craig. Dois aviões sobrevoam o local. Já avisaram que seu irmão está vivo. Graças a Deus, Thomas. Não sabemos ainda do estado dele, mas está vivo. Já iniciaram a remoção. O lugar é muito difícil e parece que a remoção vai demorar. Parece que o estão transportando num pedaço de asa. Não lhe posso dizer quanto sinto que tivesse acontecido isso com seu irmão.

Quando poderemos chegar ao Campo Rand, Coronel?

Posso mandar preparar um bombardeiro para levá-lo dentro de meia hora. Poderá chegar lá ao mesmo tempo que seu irmão.

Obrigado, disse Craig, que não quis fazer nenhum comentário sobre o que poderia acontecer a uma maca improvisada e a homens que patinhavam na lama dos mangues. Estaremos prontos.

O Coronel Flynn apertou-lhe a mão.

Felicidade, Major Thomas.

Jean esperava fora do carro e foi ao encontro dele com o mesmo rosto sério e pálido.

Larry está vivo, disse ele. Estão a transportá-lo para fora do pântano onde o avião caiu. Não se sabe ainda do estado dele. Vamos partir para o Campo Rand de avião daqui a meia hora. Sente-se e espere, Jean. Tenho de telefonar.

Queria uma coleção completa de instrumentos e telefonou para Paul Blount, dando-lhe a lista. Pediu instrumentos para quase qualquer operação que fosse necessária.

Vou levar-lhe tudo, disse Blount. Sinto muito, Craig. Estarei aí.

Quer vir conosco, Paul? Talvez precise muito de você. Providenciarei junto ao Coronel Cárter.

É claro que irei.

Paul chegou com uma pesada maleta. Antes de embarcarem no avião, um mensageiro levou-lhes a notícia de que Larry e os homens que o transportavam estavam quase chegando à ambulância. Sentaram-se tão bem quanto era possível num bombardeiro que não fora feito para dar conforto a passageiros.

Quando se aproximaram de Rand, o avião inclinou levemente a asa. Olharam para baixo. Entre o verde dos mangues e a lama negra, estava caído o avião destroçado como se fosse um punhado de papéis.

 

A uns dez quilómetros do aeroporto, sobrevoaram a ambulância, coisa minúscula que se arrastava pela fita da estrada, levando Larry ou o que dele restava. Os três não puderam conter um suspiro profundo.

Quando saltaram do bombardeiro, um oficial médico se aproximou, fazendo continência.

Major Thomas? Sou o Capitão Seasons. Craig apresentou Jean e o Capitão Blount.

Avistamos a ambulância na estrada, Capitão Seasons. Deverá estar aqui dentro de alguns minutos. Já souberam alguma coisa de concreto sobre o estado do paciente?

Não, senhor. Querem esperar no meu gabinete? Ficarão mais à vontade lá.

Esperaremos aqui, Capitão. Muito obrigado. Diante do aspecto do médico, todo rosado, louro e gentil, Craig ficou satisfeito de que ele e Paul Blount tivessem ido cuidar de Larry. Trouxe alguns instrumentos, na hipótese de que não dispusesse de muito equipamento aqui.

Boa ideia, Major. O nosso hospital aqui não é muito grande. Encaminhamos os casos mais graves a hospitais maiores. Se me der licença, Major Thomas, irei tomar as providências necessárias para que tudo esteja pronto.

Craig ficou contente de terminar a conversação, para poder dar toda a sua atenção a Jean. Ela estava tão perto dele quanto podia, calma e contida, mostrando o nervosismo que a dominava apenas na mão que se movia sem cessar.

Paul andava para cima e para baixo, fumando.

De repente, ouviu-se a sirene de uma ambulância, que apareceu e foi para a porta do pronto-socorro.

O motorista e o soldado ao lado dele saltaram e abriram as portas. Um jovem oficial médico que tinha viajado dentro da ambulância desceu e informou a Craig que Larry ainda estava vivo.

Como está ele?

Tem um ferimento grave no crânio, Major, mas está vivo. Os atendentes tiraram a maca da ambulância e a colocaram na

plataforma diante da sala do pronto-socorro. Larry estava todo embrulhado em cobertores que só mostravam o rosto e, ainda assim, parte dele em vista do enfaixamento. Craig aproximou-se e tomou o pulso por baixo dos cobertores. Todos estavam em silêncio. Todos os olhos se concentravam no seu relógio enquanto ele contava os segundos. Por fim, levantou a cabeça e disse:

O pulso está muito baixo. Parecia haver muito choque?

Estava em choque quando o encontramos. Pensei em aplicar plasma lá mesmo, mas achei melhor trazê-lo quanto antes para cá, disse o oficial médico.

Fez muito bem.

O oficial mostrara bom julgamento em levar Larry para o hospital, onde a hemorragia podia ser estancada e havia outros recursos para salvar a vida de um paciente em estado adiantado de choque.

Aplicaremos plasma e córtice supra-renal antes que eu o examine, disse Craig. A hemorragia já parou?

A mancha no enfaixamento não aumentou nos últimos trinta minutos, disse o oficial médico, caminhando ao lado de Craig enquanto a maca era levada para a sala de pronto-socorro. O osso occipital está fraturado, Major.

Fratura exposta?

Sim e bem grave.

O rosto de Craig ficou pálido. Um ferimento na base do crânio, despedaçando ossos como cascas de ovo e atingindo o cérebro, era muito grave. Poucas pessoas sobreviviam aos efeitos traumáticos imediatos nessa região. Não teria muita esperança por alguém com o tipo de lesão que o oficial descrevera.

Tiveram muita dificuldade em tirá-lo do pântano, disse o oficial. Nunca vi um lugar mais inóspito.

Temos de combater o choque imediatamente, disse Craig ao Capitão Seasons ao entrarem na enfermaria. Quando o estado dele for melhor, examinarei o ferimento.

O Capitão Seasons foi buscar plasma e córtice supra-renal. Craig e Paul Blount ajudaram a transportar Larry para a cama, movendo-o com grande cuidado, embora ele já tivesse sido arrastado pela lama e pelos galhos dos arbustos. Colocaram imediatamente sobre ele uma armação com muitas lâmpadas elétricas e a ligaram. Colocaram um lençol sobre a armação, transformando-a numa tenda que concentrava o calor sobre o corpo do paciente, dilatando os vasos sanguíneos e estimulando a recuperação do choque. Elevaram os pés da cama num ângulo fechado para ajudar a fazer o sangue descer das pernas para as partes vitais do corpo. Não havia tempo para preocuparem-se com o efeito de maior afluxo sanguíneo a um cérebro lesado. O problema imediato era assegurar bastante afluxo para manter a vida até que o plasma e talvez uma transfusão restaurasse o sangue à circulação prejudicada.

Jean estava encostada à parede e Craig foi falar com ela.

Quer ir para outro lugar e sentar-se?

Não. Ainda não.

O Capitão Seasons voltou com um pacote de plasma seco que parecia açúcar mascavo claro. Mas correra antes nas veias de uma pessoa viva e iria correr nas de outra.

Depois da preparação necessária, o córtice foi injetado e o plasma aplicado em solução aquosa.

Craig aproximou-se de Jean enquanto o plasma se movia na veia de Larry.

Tudo isso é horrível, Craig, disse ela. Como está ele?

Não sei ainda. Está em grave estado de choque. Não sabemos ainda quanto sangue ele perdeu. Mas a causa principal não é essa e sim a concussão da queda e a localização do ferimento.

É grave então?

- Ainda está vivo, Jean. É só o que podemos dizer. Voltou para a cama e tomou o pulso. Um momento depois, tornou a colocar a mão de Larry debaixo dos cobertores e disse:

O pulso está melhor.

Jean foi até à cabeceira da cama e olhou para Larry. A cor estava melhor, mas o rosto ainda estava terrivelmente pálido. Mas Jean não podia respirar ali e voltou para o seu lugar, junto à parede.

Quando o plasma acabou de cair gota a gota, Craig retirou a agulha com que fora aplicado e colocou o instrumento de pressão no braço de Larry. Quando tirou o estetoscópio dos ouvidos, estava sorrindo.

Onze por sete, disse ele. Blount, podemos olhar agora o ferimento.

Foi até onde estava Jean e disse:

Acho bom você sair agora.

Está bem.

O Capitão Seasons saiu com ela.

Em seguida, Craig cortou as gazes” em torno da testa de Larry. O corpo inerte foi então virado do lado. Larry gemeu, mas não abriu os olhos. Craig tirou as ataduras e removeu as gazes que tinham sido colocadas sobre o ferimento e estavam duras e cor de chocolate com o sangue seco.

Apareceu um grande ferimento. O couro cabeludo tinha sido cortado transversalmente e estava dobrado numa grande aba, mostrando a superfície branca do crânio. Linhas escuras e irregulares corriam através do osso e havia uma estranha depressão como um ovo que se tivesse quebrado parcialmente por dentro.

Craig pegou um instrumento de um carro de cirurgia ao lado e sondou delicadamente o ferimento. Era profundo e os ossos estavam soltos. Moviam-se mesmo sob a leve pressão do grampo, balançando-se sobre a superfície meio fluida dos tecidos cerebrais embaixo. Sentiu alguma coisa com o instrumento, chegou a luz mais para perto e tirou uma lasquinha de madeira.

Muito grave, murmurou.

Haverá mais corpos estranhos? perguntou Blount.

Não sei. Só depois poderemos fazer a sondagem. Quer fazer o exame neurológico? Verificarei depois.

Paul apanhou uma lanterna elétrica. Craig é que tinha de decidir se iria operar ou se teriam de esperar o fim, que viria certamente sem a cirurgia e provavelmente com ela. Craig se arriscaria ao máximo na cirurgia se houvesse um raio de esperança.

Blount apanhou um oftalmoscópio e fez convergir a luz sobre as pupilas de Larry. Olhando através das lentes do instrumento, viu diretamente o fundo do olho. Procurou a turvação das bordas do nervo óptico no ponto em que entrava no olho, refletindo a pressão dentro do crânio e em torno do cérebro. Não havia alteração visível, mas era cedo demais para que tivesse havido alguma mudança significativa da pressão.

Testou metodicamente os nervos cranianos, os doze pares de troncos que atendiam às múltiplas necessidades da cabeça e dos órgãos vitais do peito e do abdome. Testou depois os reflexos, batendo no cotovelo, no joelho e no tornozelo e notando a reação dos músculos, o tom e o funcionamento. Testou o reflexo plantar, tocando na sola do pé e notando a reação normal dos dedos para baixo. Tocou o abdome e observou a contração dos músculos da parte abdominal. Não havia meio de testar a reação de Larry à sensação, porque não havia sinal da volta da consciência.

Nada há de definido, declarou afinal. O cérebro está perturbado pelo traumatismo, mas só isso. É claro que se pudéssemos testar a visão...

Eu sei, disse Craig, gravemente.

A parte do cérebro lesada era o lobo occipital, que controlava a função que em muitos sentidos era a mais importante, a visão. O estímulo da luz tocando a retina provocava um impulso elétrico que era transmitido através do cérebro aos lobos occipitais. A natureza havia assim planejado, colocando o centro visual atrás, onde seria protegido, onde o crânio era duro e onde não era provável que se aplicasse a força. Mas a natureza não havia contado com os aviões e os automóveis e não havia construído o organismo humano para resistir às terríveis pressões a que às vezes o sujeitam as estruturas mecânicas modernas.

Craig fez também um rápido exame, mas as suas conclusões não foram diferentes das de Paul. Não havia meio algum de saberem o que tinha realmente acontecido enquanto não levantassem os ossos quebrados, vissem o cérebro rasgado embaixo e calculassem o dano que fora feito.

Você operaria? perguntou Craig. Mas não havia dúvida

na sua voz.

É a única chance, disse Paul. É preciso limpar o ferimento. Só a sulfanilamida poderá impedir uma grave infecção. Pode haver outros corpos estranhos.

Disso é que eu tenho receio. Vamos tirar uma radiografia enquanto preparam a sala de operação.

Deu as suas ordens ao Capitão Seasons e chamou Paul para um canto.

Ele talvez não sobreviva à operação.

Eu sei.

E se Larry pudesse falar, talvez não quisesse a chance de viver.

Não se pode prometer nada numa operação dessas, Craig.

Eu sei. Mas temos de tentar. Vou falar com Jean.

Jesus! murmurou Blount. Craig voltou-se para ele e disse:

Que foi que você falou, Paul? Não ouvi bem. Paul, subitamente comovido, estendeu a mão.

Venho observando você há muito tempo, Craig. E só lhe quero dizer é que você é um homem ótimo!

Vou falar com Jean, disse Craig, cansadamente. E muito bom você estar aqui comigo para me ajudar, Paul.

Pensava que a radiografia podia até mostrar pedaços de metal cravados tão profundamente que não pudessem ser removidos. Os médicos costumavam deixá-los e alguns desses doentes se recuperavam, embora às vezes a irritação produzisse convulsões. Teria de dizer a Jean quanto tudo era grave a fim de prepará-la para tudo.

Encontrou-a na varanda.

Então, Craig? É grave?

Estamos tirando uma radiografia, Jean. E creio que teremos de operar.

E então?

Pode ser que não resista à operação.

É você que vai operar?

Sou eu.

Ele não quereria outra pessoa senão você.

Sim... murmurou ele, pensando em como poderia melhor prepará-la.

Você parece exausto, Craig.

Estou muito bem.

Está sempre muito bem, disse ela, com uma ponta de orgulho. É o seu lema, não é?

O caso é grave, Jean, muito grave.

Se ele sobreviver à operação, não ficará com nenhum defeito? perguntou ela em voz baixa.

Não havia uma resposta segura. Mas as probabilidades eram pequenas. Devia revelar a ela todas as possibilidades e até as probabilidades, porque dizer a verdade era sempre no fim o melhor e mais compassivo. Desejou ser o bom homem que Blount havia dito que ele era.

Nada posso dizer, Jean, enquanto não virmos as radiografias.

 

O aparelho portátil de radiografia foi empurrado suavemente para o quarto nas suas rodas de borracha. O Capitão Seasons bateu as radiografias com eficiência e precisão.

Obrigado, Capitão, disse Craig, quando ele acabou. Agora, quero pedir-lhe uma coisa. Sabe de algum lugar onde a Sra. Thomas possa ficar?

Já havia pensado nisso, Major, e estava com vontade de chamar minha esposa, que é uma pessoa muito boa e simpática. Que é que acha?

Seria muita bondade de ambos, Capitão, e nós ficaríamos muito gratos.

Craig foi falar de novo com Jean enquanto os filmes eram revelados.

A esposa do Capitão Seasons virá fazer-lhe companhia, Jean, e arranjar-lhe um lugar para ficar. Mas volte dentro de uma hora ou duas.

Não posso ficar aqui, Craig? Vai operar agora?

Você não almoçou, Jean. Vá com a Sra. Seasons.

Está bem, Craig... Sei que você tem uma coisa terrivelmente difícil para fazer. Se isso o ajuda em alguma coisa... Deus o proteja.

Nesse momento, a Sra. Seasons chegava no seu carro e Craig apertou brevemente a mão de Jean antes de sair.

O Capitão Seasons mostrou-lhe os filmes revelados.

Há corpos estranhos no cérebro, disse ele com ar desanimado.

Craig examinou apreensivamente as radiografias. Havia vários fragmentos de metal e um deles parecia muito profundo. Uma enfermeira estava tomando o pulso de Larry.

Alguma alteração? perguntou ele.

O pulso está mais lento.

E a pressão?

Subiu um ponto.

Pode levá-lo diretamente para a sala de operação, Capitão.

Estava na hora da operação. Larry já passara do choque imediato. A pressão em torno do cérebro estava subindo, como o indicavam a diminuição do pulso e a ascensão da pressão arterial.

Craig foi encontrar Paul Blount à porta da sala de operação conversando com o jovem oficial que levara Larry para o hospital.

Vamo-nos preparar, Paul. Já vão trazer Larry.

Blount acompanhou-o até ao vestiário e, quando começou a tirar a gravata, disse:

Felicidades.

Craig entrou na sala de operação e mergulhou as mãos na bacia de álcool ao lado da porta. Quando acabou de se preparar, ajudado pela enfermeira, a maca deu entrada na sala, Larry foi cuidadosamente removido da maca para a mesa de operação, onde fora colocada uma armação rígida com um suporte côncavo no qual foi posta a testa de Larry, estendido de bruços e com os braços estendidos ao longo da mesa junto ao corpo.

O jovem médico tirou os curativos que tinham sido colocados no ferimento depois do exame de Craig. Raspou cuidadosamente a parte posterior da cabeça de Larry, lavando depois o couro cabeludo com água e sabão.

Quando ele terminou, Craig passou anti-séptico no couro cabeludo, tendo o cuidado de não chegar aos tecidos lacerados além das bordas do ferimento. Os anti-sépticos eram particularmente perigosos para os tecidos cerebrais.

Craig colocou uma toalha sob a cabeça de Larry. O movimento da navalha fizera de novo sangrar o couro cabeludo. Pôs um tampão de gaze sobre o ferimento com uma leve pressão para estancar o sangramento.

Novocaína, disse ele e entregaram-lhe a seringa com a agulha longa e fina. Atrás do ferimento, bem longe da borda, enfiou a agulha no couro cabeludo com um movimento rápido que reduzia a dor. Com infinita paciência e cuidado, continuou a injetar a novocaína até que todo o ferimento foi bloqueado, amortecendo as fibras nervosas do couro cabeludo. Não era necessário anestesiar mais. O próprio cérebro, embora fosse o centro de todos os nervos, era incapaz da sensação de dor.

O ferimento foi então coberto com toalhas até que só se podiam ver o ferimento e a linha irregular do crânio fraturado.

Instrumentos prontos? perguntou Craig à enfermeira.

Prontos.

Sucção?

Sim.

Electrocirurgia?

Paul Blount verificou as ligações. As vibrações infinitamente rápidas da corrente de alta frequência fluiria através dos eléctrodos para o instrumento a que fosse levada, coagulando tecidos, estancando hemorragias, economizando o tempo e a perda de sangue.

Craig pegou o bisturi e balançou-o nos dedos enluvados como um pintor poderia balançar o pincel. Olhou mais uma vez os instrumentos e o campo da operação, avaliando a situação como um general antes de empenhar-se na batalha. O bisturi foi então vibrado sem hesitação através do couro cabeludo, deixando no seu rastro pequenos jatos de sangue.

Foram aplicados os hemostatos para estancar o sangue e em seguida Craig irrigou o ferimento com água esterilizada. Passou delicadamente a corrente de um lado para outro, lavando os coágulos de sangue acumulados, pedaços de madeira e destroços. Franziu a testa. Corpos estranhos significavam infecção e a infecção no cérebro podia implicar um lento processo crónico de destruição dos tecidos em locações infinitesimais que não poderiam com exatidão ser encontradas e atacadas. A presença de metal no cérebro indicava apenas que a chance de contaminação era muito maior. Se tivesse sido um pedaço de obus ou até um fragmento de bomba, a perspectiva seria um pouco menos séria, desde que os fragmentos de bala estivessem aquecidos ao rubro no momento da penetração, esterilizando as suas superfícies. Era da maior importância remover esses fragmentos antes que se tornassem dentro do cérebro um ninho de bactérias, provocando uma infecção que poderia a qualquer momento lavrar como um incêndio.

Paul viu a testa franzida de Craig e compreendeu.

Vai sondar? perguntou ele.

É preciso. Como vai a pressão? perguntou ao anestesista.

Mantém-se bem.

Não há mais elevação?

Não. Baixou um pouco.

- Se continuar a cair, avise-me.

Craig escolheu na bandeja de instrumentos um fórceps de lâminas delgadas e dentes pequenos e fortes. Levantou as pontas de tecidos lacerados no ferimento e cortou-os com a tesoura. O trabalho continuou durante cerca de quinze minutos para a remoção de todos os tecidos lesados e desvitalizados. De vez em quando parava a fim de regar o ferimento com água. Quando o sangue fluía de um dos cortes, colocava cuidadosamente um grampo para fechar o vaso.

A pressão arterial caiu meio ponto, anunciou o anestesista.

E o pulso?

Subiu.

Capitão Seasons, precisamos de sangue.

Foi tirado há pouco de um doador e está pronto aqui disse Seasons.

Esperaremos até que a transfusão comece a fazer efeito, disse Craig. Trabalhando com anestesia local, não é preciso ter pressa. Só serviria para aumentar o choque.

Foi ruim precisarmos do sangue, disse Blount.

Esperaram em silêncio durante vários minutos enquanto se fazia a transfusão.

A pressão subiu um ponto comunicou o anestesista.

Muito bem, disse Craig. Vamos continuar.

Tirou o tampão de algodão e, pegando um pequeno instrumento inseriu-lhe a ponta delicadamente numa das rachaduras que se estendiam pelo crânio de Larry. Levantou com o instrumento o pedaço de osso que saiu facilmente. Toda a ligação com os tecidos vizinhos fora cortada. Craig olhou sombriamente para Paul, pois não era um bom sinal.

Ponha numa solução salina, disse ele à enfermeira, entregando-lhe o pedaço de osso.

Experimentou a posição de outro pedaço de osso. Esse estava apenas parcialmente solto, preso por uma parte do couro cabeludo. Levantou-o e embrulhou-o em algodão molhado depois de aparar cuidadosamente as bordas do osso. Embaixo, havia tecidos lacerados, estranhamente rosados, de aspecto mole e consistência semifluida.

Tecido cerebral? perguntou Paul.

Sim, vamos expô-lo mais neste instante.

Estava abrindo uma camada de tecido interposta entre o crânio e o cérebro.

A dura-máter está bem despedaçada, disse Craig ao Capitão Seasons... Talvez tenhamos de usar uma cobertura.

Craig removeu ainda outro pedaço de osso, expondo uma parte maior do cérebro e pediu as radiografias tiradas pouco antes.

Olhadas contra a luz, mostravam os fragmentos de metal. Um deles era grande e estava enterrado quase dois centímetros no cérebro.

Esse aí, murmurou Paul Blount. Deus ajude o pobre.

Mas há uma chance, disse Craig. Se não houver infecção, há uma boa chance.

Temos de tentar. Mas ele não poderá mais voar... Acha que há alguma chance para a vista? Poderá ficar cego.

Há uma chance, reafirmou Craig. Morrerá se não tentarmos. Voltou-se para a enfermeira: Agulha para a duramáter.

A enfermeira entregou-lhe uma agulha grossa de ponta rombuda de cerca de sete centímetros de comprimento, com uma abertura lateral pouco antes da ponta. Craig tomou-a entre o polegar e o indicador e começou a sondar cuidadosamente o brando tecido cerebral, que não oferecia resistência evidente. A agulha rombuda não laceraria os vasos sanguíneos.

A princípio, Craig nada encontrou. Mas na terceira punção de exploração, a agulha bateu em alguma coisa com um leve som metálico. Craig deixou a agulha no lugar e voltou-se para Blount.

O fragmento está bem no centro visual, Paul. Pode ser que tenhamos de lesá-lo em grande parte.

Paul olhou-o com os olhos semicerrados sabendo que pela primeira vez em sua vida Craig sentia a necessidade de dividir a responsabilidade com outra pessoa.

Mas que acontecerá se você deixar o fragmento?

Uma infecção e provavelmente muito grave. Sim, disse Paul Blount.

Craig decidiu-se imediatamente.

Especulo - disse ele à enfermeira, ao mesmo tempo que o silêncio caía sobre a sala.

Ela lhe entregou um fórceps com uma estrutura cónica na ponta. Quando Craig segurou os cabos, as duas metades do cone se separaram. Introduziu delicadamente o especulo no tecido cerebral, abrindo os cabos um pouco com intervalos de alguns segundos e colocando no espaço assim aberto tiras estreitas de algodão umedecido. O instrumento penetrava ao lado da agulha que fora deixada para orientar e que Paul Blount segurava firmemente.

Por fim, o especulo bateu também no corpo estranho. Firmando o instrumento, Craig separou lentamente os cabos. Houve um jorro de sangue através da abertura. Durante longos momentos, colocou chumaços de algodão na abertura para estancar o sangue. Cada vez que os chumaços eram retirados, havia menos sangue até que a ferida pareceu seca. Craig apanhou na mesa de instrumentos um fórceps comprido e delicadamente pontudo e o introduziu até que o instrumento tocou no metal. Trabalhou durante algum tempo, desprendendo delicadamente o fragmento. Duas vezes o campo foi obscurecido pelo sangue, sendo preciso esperar que o sangramento parasse. Por fim, o fragmento começou a ser movido e Craig procurou puxá-lo com o menor dano possível para as fibras visuais.

Ninguém parecia respirar na sala até que afinal o fragmento foi retirado. Era um pedaço triangular de metal ainda com pedaços de massa cerebral aderidos à sua superfície áspera.

Passou uma hora e meia, mas a operação não estava terminada ainda. Havia no cérebro outros fragmentos menores. Mas Craig colocou antes sulfanilamida em pó dentro do ferimento. A sulfanilamida seria absorvida no próprio cérebro. Formar-se-iam fortes concentrações do medicamento nas células e nos fluidos dos tecidos e nos pontos onde as bactérias estavam à espera para iniciar a sua obra de destruição, as concentrações as eliminariam ou deteriam até que o organismo pudesse mobilizar as suas defesas contra a infecção. Era talvez a coisa maior que a medicina tinha para oferecer à cirurgia militar nessa guerra, uma quase panaceia que já havia reduzido dez vezes a mortalidade de apendicite e fraturas expostas na vida civil.

Quase outra hora passou até Craig ter certeza de que tinham sido retirados todos os corpos estranhos em condições de sê-lo. Parou afinal e curvou a cabeça para trás por um momento. Os olhos estavam parados e os ombros encurvados.

Parece que é só isso que podemos remover, disse ele, cansadamente. Os outros fragmentos não devem causar muita dificuldade.

Lavou de novo a área da operação com uma solução salina e cobriu o cérebro com uma leve camada de algodão umedecido.

Vamos precisar de uma cobertura, Paul.

Blount trocou de avental e de luvas ajudado por uma enfermeira e, descobrindo uma coxa de Larry, pintou-a com anti-séptico. Quando o novo campo cirúrgico foi demarcado, injetou novocaína e fez uma incisão. Depois de alguns minutos, levantou uma pequena lâmina de tecido que a enfermeira colocou numa toalha quente e úmida e entregou a Craig. Paul ficou tratando de coser a incisão que tinha feito.

Craig pegou o pedaço de tecido e estendeu-o sobre o lugar onde o resistente revestimento externo do cérebro tinha sido arrancado para que ali crescesse como um enxerto e protegesse o cérebro. Polvilhou a superfície do cérebro com sulfanilamida. Depois, prendeu o enxerto à dura-máter, cobrindo o cérebro. Aplicou outra camada de sulfanilamida em pó antes de recolocar no lugar os fragmentos de osso ainda presos. Havia ainda uma abertura no crânio.

Dê-me o tântalo, disse ele e a enfermeira lhe entregou um pedaço quadrado e fino de metal branco.

Craig mediu o tamanho da abertura no crânio e começou a cortar com uma tesoura própria um pedaço de metal um pouco maior do que a área a ser coberta. Depois, fixou o pedaço de tântalo entre os ossos do crânio, aplicou outra camada de sulfanilamida e juntou as pontas da pele. Depois de alguns pontos rápidos, aplicou uma bandagem.

A operação estava terminada. Olhou para o relógio e viu que três horas tinham passado. Durante todo o tempo, tinha visto os seus movimentos como o funcionamento delicadamente controlado de um mecanismo de precisão. Essa operação, a mais difícil da sua carreira e a de sucesso mais duvidoso, levara-o a proceder como se estivesse diante de um problema de laboratório num cérebro de laboratório. Não se tratava do cérebro de Larry, do cérebro de seu irmão, do cérebro do marido da mulher que ele amava. Craig trabalhara para assegurar a infelicidade futura do casal e dele próprio. Mas uma vida tinha de ser salva porque era uma vida.

Quando Craig tirou o avental e as luvas, estava de uma palidez de cera. Os médicos e enfermeiras que queriam felicitá-lo se detiveram ao ver-lhe o rosto.

Acha que ele escapará? perguntou a Paul.

Se alguém pode escapar de uma situação dessas, ele escapará. A operação foi maravilhosa.

Craig sacudiu a cabeça. O lobo occipital esmagado e o fragmento no centro visual significavam provavelmente como em breve se saberia uma morte em vida para Larry, para Jean e para ele próprio.

Obrigado, Paul, disse ele, apaticamente.

Não havia outro jeito, disse Paul, preocupado. Você tinha de fazer o que fez. Ninguém o faria melhor. E ele pode sair perfeito de tudo isso.

Pode, sim.

Tínhamos de jogar com essa possibilidade, Craig.

De fato. Acha que podemos arranjar alguma coisa para beber, Paul?

Nunca precisei tanto de beber quanto nesta noite. Vou falar com o capitão.

Craig saiu à procura de Jean. Já era noite e ele foi encontrá-la sentada sozinha no gabinete do Capitão Seasons. Ela não lhe ouvira os passos e tinha no rosto uma máscara pálida de tristeza e desânimo. Craig ficou um momento a observá-la, cheio de pena dela e imaginando como lhe iria dizer que ela talvez tivesse de passar o resto da vida cuidando de um homem cego. Ele arrastou um pé antes de entrar e ela compôs instantaneamente a fisionomia. Levantou-se com um olhar interrogativo.

Então, Craig?

Larry está vivo e tem agora uma boa possibilidade de recuperação.

Ela lhe beijou impulsivamente o rosto como se ele fosse um meninozinho cansado.

Deve ter sido horrível, Craig. Acha que ele se vai recuperar por completo?

Não se pode dizer ainda, mas creio que ele viverá.

Ouviram-se no corredor os passos pesados de Blount e ele apareceu com uma garrafa de uísque, também com aspecto pálido e cansado.

Consegui isto de Seasons. Ele diz que há copos aqui. Voltou-se para Jean e disse com uma jovialidade forçada: Trabalhamos muito e trabalhamos bem! Foi uma operação maravilhosa, mas demorada, muito demorada. Craig precisa reanimar-se.

 

Só três dias depois, Larry recuperou verdadeiramente a consciência, sendo precisos mais três dias para que pudesse ser transferido e oito dias para que se pudessem distinguir os efeitos finais do desastre e da operação. Mas, como naquela primeira noite, por volta das três horas da madrugada, quando estava a caminho da morte, teve a vida salva por um tratamento desconhecido até poucos meses antes.

Depois da meia-noite, ele começou a gemer. Em breve, começou a mover-se agitadamente. Os ombros se arqueavam e os braços batiam o ar. A enfermeira especial, observando-o, aplicou-lhe uma injeção, não de morfina mas de fenobarbital de sódio, usado largamente em lesões da cabeça. Pouco a pouco, depois da injeção, a agitação cessou e a cabeça fortemente enfaixada ficou parada e pálida.

De meia em meia hora, a enfermeira verificava o pulso e a pressão. De cada vez, os resultados eram um pouco diferentes e ela os estudava mais pensativamente. O pulso estava diminuindo e a pressão subia. Em certa ocasião, não esperou meia hora, mas quinze minutos apenas e correu para o telefone.

O Capitão Seasons havia alojado Craig no quarto de um médico de licença, mandando levar uma cama de campanha para Paul Blount. Paul acordou quando Craig falava ao telefone. Depois, ambos calçaram os sapatos, vestiram os roupões e desceram em silêncio para o quarto onde estava Larry.

Craig levantou as pálpebras de Larry para examinar as pupilas dilatadas. Tomou o pulso durante um minuto e, depois, colocou o aparelho de pressão.

Quatorze por dez, disse ele. Depois da operação era doze por oito. Isso não é bom.

Uma elevação rápida, disse Blount. E agora?

Craig olhou para o boletim da enfermeira. Tecidos lesados sempre se inflamavam, mas uma inflamação forte nos tecidos cerebrais era especialmente de recear. Fazia pressão sobre o centro que regulava o coração e diminuía o pulso, ao mesmo tempo que a pressão arterial subia para forçar o sangue no cérebro repleto, estabelecendo-se um círculo vicioso que se encaminhava para a parada do coração. Extrair fluido do cérebro, dar sais de Epson internamente ou diretamente na circulação, soluções de glicose no sangue os médicos tinham tentado tudo isso com resultados variáveis, até que alguém usara plasma sanguíneo seco de uma maneira diferente.

Craig misturou a ampola de plasma com apenas um terço da ampola de água e a mistura de um castanho-escuro tinha todas as proteínas de uma transfusão de sangue completa num terço do volume normal. Inseriu a agulha enquanto Blount o olhava atentamente.

Já ouvi falar nisso, disse ele a Craig, mas nunca vi ser aplicado. Quando o sangue se dilui de volta ao normal puxa o fluido dos tecidos e ajuda a aliviar a inflamação, não é isso?

Craig fez um sinal afirmativo. Larry não mostrou reação, pois a pressão havia aprofundado o coma além da sensação ou da reação. O líquido denso e escuro começou o seu lento gotejar através do filtro para as veias de Larry, levando quarenta minutos para deixar o vidro e o tubo vazios. Mas pouco a pouco, produziu uma transformação.

A respiração de Larry se tornou mais regular, tornando-se um pouco mais rápida e perdendo os sinais de estertor ou de ânsia. Craig tomou a pressão ao passo que Blount verificava o pulso.

Noventa, Craig. E com bom volume.

Está reagindo bem, disse Craig. Dantes, um caso assim era fatal.

A enfermeira sorria, tranquilizada.

Muito obrigado, disse-lhe Craig. Chame-me se houver alguma alteração.

Mas, quando voltaram para o quarto, nenhum deles pôde dormir. Ficaram sentados na cama, fumando.

Que é que você acha? perguntou Craig.

Acho que agora ele deverá superar a crise.

E o centro visual?

Tenho certeza de que parte dele está intacta.

Mas muitas vezes nesses casos há uma forma crónica de infecção.

Eu sei. Mas leva tempo para ser percebida.

Tenho receio da infecção, disse Craig. Já a vi aparecer depois da melhor técnica operatória.

Não poderia ter sido melhor do que a sua.

Estou com muito receio, Paul. Se houver a infecção, não poderá ser combatida. Neste caso, teria sido melhor deixá-lo morrer. Melhor para ele. Melhor para Jean. É horrível que isso tenha acontecido precisamente a Larry.

Horrível é, mas fizemos o que era preciso e possível. Agora, vamos dormir, meu velho.

O Capitão Blount voltou para o campo num trem da tarde. Craig e Jean foram levá-lo à estação e, na volta, deram um breve passeio. Daí por diante, todos os dias, passeavam ou comiam juntos. Quando se encontravam e conversavam, ficavam sempre juntos um do outro, de braços ou mãos dadas. Procuravam sempre conforto na presença um do outro e falavam em voz tranquila e diferente. No meio da catástrofe, tinham estranhos e breves momentos de felicidade. No quarto de Larry, onde Jean passava a maior parte do tempo esperando a volta da consciência do marido e Craig fazia constante verificação do seu estado, era como se Larry fosse um filho doente de ambos.

Um dia depois da operação, Larry ficou de novo agitado à tarde e a pressão voltou a subir, embora não tão perigosamente quanto na noite anterior. Nova injeção de plasma concentrado aliviou-o rapidamente e ele mergulhou num sono profundo. Craig injetava sulfadiazina em intervalos tão frequentes quanto julgava seguro, para que o medicamento agisse na corrente sanguínea contra a infecção no cérebro.

Quase sempre, ou um ou outro estava no quarto com as enfermeiras especiais, exceto nos momentos em que davam os seus breves passeios ao ar livre. Um dia, Craig teve coragem de falar-lhe.

Jean, tenho certeza de que Larry não poderá voltar a voar.

Mas isso seria horrível para ele, Craig! Por quê?

Não creio que a vista dele se restabeleça por completo. A lesão do cérebro foi no centro visual. Não podemos saber o que acontecerá.

Ela teve um gesto de horror.

Poderá ter a visão comum suficiente para todas as necessidades da vida, apressou-se Craig em dizer. Mas para um piloto isso não basta, Jean. E se houver uma infecção, não sabemos até onde poderá ir.

Poderá ficar inteiramente cego? É isso que você quer dizer, Craig?

Nada há que indique isso, mas é bem possível nesse tipo de lesão. Mas pode ser também que não aconteça nada.

Que coisa horrível!

Foi um jogo que nós fizemos. Sem isso, morreria. Com isso, poderia viver mas correndo esse risco.

Eu ia deixar Larry.

Eu sei.

Mas, se acontecer uma coisa dessas, nunca poderei fazer isso.

Não.

Ela estava mortalmente pálida, tremendo de encontro a ele.

Jean, disse ele, isso ainda não aconteceu. Não quero que pense que vai acontecer. Quero apenas prepará-la para o que ocorrer. Meu Deus! Gostaria de poupar-lhe tudo isso, Jean!

Eu sei, disse ela, com um sorriso triste. Pobre Craig.

Faremos tudo o que puder ser feito, disse ele. Eu a amo.

Sim, tudo o que puder ser feito, murmurou ela.

E de repente, passou os braços pelo pescoço dele, beijou-o na testa e soluçou desesperadamente com a cabeça no ombro dele.

Larry voltou à consciência num verdadeiro despertar. Havia momentos de lucidez em que ele a reconhecia e se expandia em perguntas acerca do acidente. Mas dormia a maior parte do tempo, quase sempre sob o efeito de injeções, que faziam descansar os tecidos lesados, ao mesmo tempo que as três injeções diárias de sulfadiazina de sódio de Craig combatiam a infecção do cérebro. As injeções mantinham no sangue um nível de concentração perigoso, mas a possibilidade de lesões mais graves justificava o risco assumido.

Quando Jean voltou do jantar uma noite, encontrou-o de olhos abertos e curiosos.

Alo, Jean!

Alo, Larry, disse ela, beijando-o levemente. Como está passando?

Como a cabeça me dói! Tem todo o jeito de uma tremenda ressaca, meu bem.

Não foi brincadeira o que você passou, sabe?

Conte-me como foi. Só me lembro até à hora em que desliguei o motor. Peguei um pouco de vento. Nada de importante, mas os controles falharam.

Não restou muita coisa do avião, Larry.

Não, hem? disse ele, com um sorriso de orgulho. Você se casou com um camarada resistente. Moveu um pouco a cabeça e a dor o fez fechar a cara e empalidecer. Bem, não tão resistente assim. Onde é que estamos?

No Campo Rand.

Cheguei aqui então. Caí num pântano, não foi? Que é que há comigo, Jean? Estou com uma tremenda dor de cabeça.

Craig entrou nesse momento e sorriu quando viu Larry.

Como é, Larry? Resolveu voltar a viver?

Sou resistente, disse ele. Mandaram chamar você também?

Vim sem me chamarem.

Ele e o Capitão Blount lhe salvaram a vida, disse Jean. Ele arqueou as sobrancelhas, sorrindo.

Então já sei por que é que a cabeça me dói tanto. Devia ter sentido o dedo de Craig. Estava muito amarrotado?

Estava quebrado em alguns pontos como um ovo disse Craig. Mas a sua recuperação foi notável. Já me entendi com o comandante, Jean. Voltaremos no avião-ambulância logo que Larry puder viajar.

E quando vai ser isso? perguntou Larry.

Daqui a uns três dias. Mas você ficará na cama lá também uma semana no mínimo.

Não será tão mau assim se Chuck ainda estiver lá. Poderemos conversar sobre as nossas operações. Mas é maravilhoso cair dentro de um pântano e acordar vendo vocês dois.

Quis saber as notícias da guerra e Jean começou a ler um jornal. Mas, dentro em pouco, os olhos se fecharam e ele adormeceu.

Voltaram com a maca de Larry bem calçada para resguardá-la das mudanças de posição durante o voo e encontraram o Coronel Flynn à espera. O rosto de Larry estava contorcido pela dor na cabeça, mas ele sorria da maca e estendeu a mão.

Alo, Thomas, disse o coronel. Muito prazer em vê-lo de volta.

Muito prazer em estar de volta. Desculpe o que houve com o avião, coronel.

Você não teve culpa, Thomas. Terá outro assim que estiver em condições.

Então já pode mandar aquecer os motores.

Mas a viagem fora exaustiva e, depois que ele dormiu muito tempo sob a ação de um sedativo, acordou no seu quarto e viu Jean e Chuck que estava numa cadeira de rodas, não houve grande alegria no encontro.

Jean ficava mais silenciosa e mais pálida de dia para dia, ainda que com Larry, Mary Waller e Craig ela se mostrasse sorridente e alegre.

Sue Marrell apareceu um dia, tendo visto da porta que Larry estava dormindo.

Sinto muito, Sra. Thomas, disse ela com toda a sinceridade. Mas esperamos que ele fique completamente curado.

Craig fazia visitas breves e regulares ao quarto de Larry, mostrando uma aparência criteriosamente satisfeita. As dores de cabeça de Larry, que às vezes, apesar da resistência do paciente, exigiam sedativos fortes, uma ponta de febre e um começo de vertigem quando ele se sentava na cama, preocupavam-no. Podiam não ser senão sintomas de uma recuperação difícil, mas podiam também ser sinais de que a infecção se estabelecera nos tecidos cerebrais.

De posse de um exame de sangue, foi conversar com Paul Blount.

O nível de sulfadiazina é de nove miligramas, disse ele a Blount. Glóbulos vermelhos, quatro milhões. Um pouco baixo, mas não significativo. Hemoglobina, sessenta e oito. Isso, sim, é baixo. Mas os glóbulos brancos, Paul. Três mil apenas! E uma percentagem muito baixa da série dos leucócitos.

Começo de leucopenia, Craig?

Que é que você acha de Larry?

O estado geral do cérebro parece lento. Mas isso talvez seja resultado de toda essa sulfadiazina que lhe está sendo injetada. Parece que você terá de suprimir toda e qualquer sulfa.

Já tomei essa providência. Não nos podemos arriscar a diminuir ainda mais a contagem dos glóbulos brancos. Logo que descobriram as sulfas, muita gente morreu assim.

É preciso cessar a medicação quando a contagem chega a três mil.

O que me preocupa é a febre.

Não pode ser provocada pelo medicamento?

Poder, pode. Às vezes, há essa reação. Mas tenho a impressão de que Larry está sofrendo dores de cabeça piores do que diz.

Não é melhor esperar um pouco? Espere até que a sulfadiazina seja eliminada do organismo dele e então avaliaremos melhor as coisas.

É, parece que não podemos fazer outra coisa.

No segundo dia em que Larry pôde sentar-se durante algum tempo numa cadeira de rodas, Craig levou-o pelo corredor para submetê-lo a testes visuais. Dissimulou o seu objetivo testando alguns reflexos e, então, disse que as dores de cabeça de Larry poderiam ser uma consequência da tensão ocular.

Ótimo! disse Larry. Tudo vale para eu me livrar dessas malditas dores de cabeça. Até óculos sou capaz de usar para me livrar disso.

Larry leu as cartas visuais. Já estava lendo jornais. Cinco minutos depois, o exame estava terminado e Larry foi levado de novo para o quarto. Craig foi então para o laboratório de Paul Blount, levando a carta do campo visual, e abriu-a em cima de uma mesa.

A carta de Larry, disse ele.

Blount estudou-a por um momento e exclamou: Meu Deus!

Continue. Diga-me o que está vendo.

Destruição da mácula da retina no olho esquerdo para começar e isso é muito ruim.

Traçou com o dedo a curva dos contornos do campo no olho direito. Num ponto, os contornos desciam até muito perto da mácula. Fora da linha curva que marcava os limites da visão, a destruição do tecido nervoso e cerebral havia removido o poder da visão. Dentro do espaço limitado pela linha, havia uma área alarmantemente pequena onde a visão era normal e a ameaçadora queda da curva quase tocava a mácula.

Como conseguiu impedir que Larry percebesse que perdeu a vista esquerda?

Tive de fazer alguns malabarismos. Acha, Paul, que isto representa mais destruição do que você havia julgado ao fim da operação?

Acho que sim.

Concordo com você. Não é certo, mas parece que a infecção está ainda destruindo o cérebro.

Não se pode fazer nada?

Que eu saiba, nada. Casos como este sempre resultam em cegueira, Paul, quando há infecção. Não posso mais recorrer às sulfas.

Não sabemos o ritmo de propagação da infecção. Talvez agora não haja mais nenhuma. Saberemos se verificarmos o campo daqui a uma semana.

Olharam-se gravemente, pensando a mesma coisa. Era provável, quase certo mesmo, que a operação em Larry fora inútil e errada. Salvara-lhe a vida.

 

O Praça Henry Smith era de novo um herói numa cama de hospital. Tivera dantes as mãos queimadas e naquele momento tinha um corte e um galo na cabeça, parecendo-lhe que para ser herói era indispensável ter gaze e ataduras em alguma parte do corpo. Recebia muitas visitas, mais até do que por ocasião do desastre com o avião do Tenente Waller, porque todos os mecânicos de aviação sabiam de uma porção de boatos sobre as consequências da sua luta com o Cabo Tyce. Até Chuck Waller tinha aparecido numa cadeira de rodas para uma longa palestra, dando-lhe as últimas notícias sobre o estado do Tenente Thomas no hospital do Campo Rand.

Tudo isso era ótimo, mas secretamente o maior desejo de Henry era que Dolly Yarn o visse com as ataduras na cabeça.

O sargento que havia iniciado a sua carreira de herói dispensando-o do trabalho em vista do braço dolorido foi o visitante mais importante do pessoal de terra. Foi também o primeiro, tendo chegado no primeiro dia, logo depois do trabalho.

Smith, fui eu um dos que tiraram Tyce de cima de você. Ele estava disposto a matá-lo sem dúvida alguma. Sabe da última, diretamente do gabinete do coronel? Ele estava trabalhando para os alemães. Ganhava quinhentos dólares por avião perdido e há quem diga que ganhava mil. Como é que se pode ser tão canalha?

Dantes eu não teria acreditado nisso. Agora, sou capaz de acreditar em tudo.

Arrancaram isso dele à força. O Exército não brinca nestes casos. Soube que ele assinou uma confissão. Não está nem aqui mais. Você podia pensar que estava na cadeia. Nada disso. Já foi.

Foi para onde?

O sargento assumiu ares misteriosos.

O Exército não faz propaganda dessas coisas. Os jornais não dizem nada. Mas ele foi levado num carro. Vai haver um conselho de guerra em algum lugar. O coronel irá. Talvez você vá também, Smith, ou talvez tomem apenas as suas declarações aqui mesmo. Na manhã seguinte, haverá alguns tiros e uma cova aberta. Só. Não interessa ao Exército divulgar essas coisas.

Era uma coisa de dar tremores no corpo. O cabo que implicava com ele e lhe contava histórias de mulheres dentro em pouco estaria debaixo da terra. Mas o tremor de Henry foi breve.

É isso mesmo que ele merece.

Tem razão, Smith. Não culpo você por não ter percebido a coisa mais depressa. Eu também não desconfiei dele. Ê verdade que achava o homem meio esquisito.

Esquisito ele era.

Eu teria percebido antes, mas acontece que ele não era alemão, continuou o sargento. Mas não calculei que um homem que não fosse alemão trabalhasse para eles. Sabe o que foi que acharam quando deram uma busca nas coisas dele? Colecionava fotografias de desastres. Já se viu?

Mas ele as mostrava a todo mundo, inclusive ao senhor, Sargento.

Se ele não era alemão, era na certa maluco. Os alemães conversaram o homem porque era maluco. Só um maluco poderia estragar bons aviões e sacrificar pilotos americanos! Que coisa horrível! O camarada vivia aqui conosco!

O mesmo choque sentiram todos os homens que trabalhavam nas turmas de terra e de maneira tão violenta que no segundo dia promoveram uma subscrição para premiar Smith por haver desmascarado a sabotagem. Três delegados apareceram com 120 dólares e um documento assinado por todos os contribuintes ao mesmo tempo que Dolly Yarn.

Como uma carta seria muito demorada e ele não tinha um mensageiro em quem pudesse confiar para dar-lhe assim conhecimento dos seus assuntos, pedira à enfermeira que lhe passasse um telegrama.

Não sabia que era casado, disse a enfermeira.

Ninguém mais sabe. E seria bom que não falasse com ninguém sobre isso.

A enfermeira olhou-o demoradamente e concordou. Dolly Yarn e os três homens das forças de terra entraram juntos. Lançaram-lhe olhares de admiração e se entreolharam quando ela atirou os braços ao pescoço de Henry. Nunca parecera tão vivaz e bonita e dançava quase de exaltação.

Como está sua cabeça, Henry? exclamou ela. Ouvi esses cavalheiros falarem sobre você lá fora. Acho admirável o que você fez, Henry. Todo mundo se orgulha de você!

A enfermeira apareceu para pedir que não o excitassem muito.

Fiz muito pouco, disse Henry. Apenas soquei o camarada. Esta é a Srta. Varn.

Apresentou Dolly aos três, mas sentiu a cabeça latejar de repente.

Um cabo chamado Clafter tinha um envelope na mão.

Fui encarregado de fazer um pequeno discurso, Smith. Mas a senhora aí me fez esquecer tudo. Bem, o pessoal fez uma lista. Aqui está. É seu e esperamos que se divirta com isso. Como ela disse, nós nos orgulhamos de você.

Obrigado, murmurou Henry. Agradeçam a todos, sim? Mas acho ainda que qualquer pessoa poderia ter feito isso. Só fiz foi dar uns socos no camarada.

Você usou a cabeça, isso sim. E agora, como vai você? Quando é que vai sair daqui? Já soube que o sujeito estava recebendo mil dólares por avião que sabotava?

Já soube, sim.

Que sujeira, hem? exclamou um soldado chamado Diamond. O pessoal quer saber a versão da briga. Conte-me tudo sem esquecer um murro.

Dolly olhava ternamente para Henry. Colocou a mão na cabeça dele e virou-lhe o olhar para ela.

Eles não sabem de nada, não é mesmo, Henry? Lembra-se do que eu lhe disse? Quem era que tinha razão? Baixou a voz, mas não muito, e acrescentou: O homem do FBI.

Escutem, disse Henry. Estou com uma tremenda dor de cabeça, essa é que é a verdade.

Bem, vamos indo, disse Diamond. Não queremos cansá-lo. Mas que é isso do FBI? O FBI estava metido também nisso?

Dolly disse misteriosamente.

Henry e eu temos de ter cuidado com o que dizemos. Mas já sabíamos tudo a respeito do cabo. Calculamos tudo. Aí então, Henry chegou lá e o atacou, não foi mesmo, Henry?

Não ouviram que o rapaz está com dor de cabeça? disse Clafter. Agora, Smith, você se importa se sairmos com a Srta. Varn para ela nos contar tudo?

Não, preciso conversar com ela. Ela não pode ir. Depois, conto tudo a vocês.

Dolly bateu com a cabeça concordando e disse:

É segredo militar.

Todos eles apertaram a mão de Henry e deram lentos e relutantes adeuses a Dolly. Diamond avisou antes de sair:

Não dispensamos essa história do FBI, Henry. É uma pena essa sua dor de cabeça. Até à vista.

Henry, disse Dolly com o olhar enternecido, você é um herói. Será que isso vai sair nos jornais?

Ainda há pouco estava muito alegre de ver você, disse Henry. Quer se acalmar um pouco, Dolly?

Por um momento, o temperamento dela ferveu.

Acha então que eu falei demais, acha?

Claro que acho. Não temos de contar os nossos particulares a esses macacos, essa é a verdade. Quer dizer, são bons rapazes, mas que é que eu vou dizer a eles sobre o FBI? Segredo militar!

Você é um homem calmo demais, Henry. Acha que é divertido ficar sozinha dentro daquele apartamento, esperando o tempo todo? Só porque você é um herói, temos de ficar de boca trancada sobre isso? Não calculei tudo sobre o tal cabo? Onde está ele agora? Não foi uma boa coisa para o país?

Claro que foi, Dolly. E você foi bem viva em tudo isso. Mas... Bem, deixe isso para lá.

Devia haver algum meio de reconhecerem o que eu fiz, Henry! Uma mulher não pode ficar calada numa ocasião dessas. Por que o Exército não diz tudo pelos jornais?

Graças a Deus, não diz.

Ela sacudiu a cabeça, desconsolada.

Eu gostaria de ter um livro de recortes. Nunca meu retrato saiu publicado num jornal. O seu, já?

Por que está pensando numa coisa dessas, Dolly? Isso só serviria para nos criar dificuldades. O Exército desmentiria tudo. Esqueça-se disso. Isso é, nós não podemos esquecer, mas não devemos falar sobre o caso. Você já falou demais.

Se você acha assim, está bem, disse ela, acariciando-lhe a testa. Quando vai sair daqui?

Dentro de poucos dias. Aí, então, festejaremos o caso. Guarde esse envelope e pense num programa.

E terá de ser um bom programa, Henry. É o mínimo que poderiam fazer por nós. Talvez estivessem ainda perdendo aviões e pilotos se não fosse você. Deviam era fazer de você um oficial.

Ela sorriu e olhou para o teto com o mesmo jeito sonhador que tinha tido no Alligator Club.

Seria formidável, murmurou ela. Trouxe alguma coisa para você, Henry, disse, tirando cigarros e chocolate da bolsa. Está sendo bem tratado aqui? Gostaria de ser sua enfermeira.

Quando ela saiu, ele se recostou nos travesseiros e ficou também olhando para o teto. Tinha sido uma falta de sorte Dolly chegar ao mesmo tempo que os mecânicos. Ficara muito nervoso e atento quando a apresentara. Talvez nenhum deles a conhecesse, mas numa vez ou outra todos os homens davam um pulo até Boomtown. Fechou os olhos, fazendo uma careta. Achava Dolly admirável, mas ela às vezes era por demais leviana e sempre que pensava no passado dela sentia-se oprimido.

Quer alguma coisa? perguntou a enfermeira, aparecendo.

Pode me dar alguma coisa para me fazer dormir. Ela sacudiu a cabeça negativamente e sorriu.

Não se dá bem com a vida de casado?

Dolly não apareceu no dia seguinte. À medida que a hora da visita ia passando e outros mecânicos lhe rodeavam a cama, ele olhava para a porta com crescente pânico. Ela só deixaria de aparecer se lhe houvesse acontecido alguma coisa. Quando a enfermaria foi fechada para visitas, pensou em doença, em desastre de automóvel. Talvez ela tivesse chegado atrasada e ficasse desapontada por lhe haverem barrado a entrada. Pensou que tinha sido áspero e nervoso com ela e que talvez ela estivesse zangada. Chamou a enfermeira e pediu-lhe que passasse outro telegrama.

Mas ela foi visitá-lo no dia seguinte, com os cabelos e as unhas feitos.

Não encontrei um táxi ontem, disse ela. E, depois, já era tarde. Segurou depois a mão dele e as lágrimas lhe chegaram aos olhos. Como está sua cabeça, Henry? Teve muitas saudades de mim?

Muitas. Pensei que estivesse zangada. Pensei que tivesse sofrido algum desastre. Nunca mais faça isso, Dolly. Já organizou o nosso programa?

Já comecei. Mas não percebe a diferença? Quando é que vai sair daqui? Não posso ficar sozinha dentro daquele apartamento.

Ainda não me disseram quando vou sair. Por que não vai ao cinema. Agora, não pode demorar muito. Se eu tivesse outra roupa que não fosse este roupão vermelho, fugiria pela janela. Estou com vontade de pedir ao Major Thomas que ache um jeito de me tirar daqui.

Você vai sair em breve.

Tenha cuidado com as petunias para mim, está bem?

Mas, quando ela saiu, ele se sentiu perturbado e cheio de suspeitas. Talvez ela não tivesse tentado tomar um táxi e ele sentiu o ciúme crescer desesperadamente dentro dele. Talvez ela tivesse ficado tão excitada com o caso da sabotagem que não pudesse ficar sozinha. Tentou lembrar se ela não tinha parecido diferente. Pensou que sim e percebeu que ela tinha ido ao salão de beleza. Por que não havia esperado que ele saísse dali? Tornou a chamar a enfermeira.

Quando é que eu vou sair daqui? Tenho de sair. Já estou bom e isso é uma coisa que todo mundo pode ver.

Não sei, disse ela com um sorriso. Quem manda não sou eu.

Mas no dia seguinte, na hora da visita, o médico lhe deu alta e apertou-lhe a mão.

Apareça quando quiser, Henry, disse ele, rindo. Felicidade.

Henry Smith vestiu a farda e levantou os ombros. Teria gostado de ver Dolly antes de apresentar-se no aeroporto, mas havia recebido ordem de apresentar-se imediatamente. Chegando lá, o sargento de dia lhe disse:

Tem de apresentar-se no gabinete do Coronel Flynn. Acho que ele tem um charuto para você.

Henry Smith saiu rindo. Tudo o que Dolly dissera sobre o fato de que ele não era promovido porque havia suspeitas em torno da turma, parecia-lhe muito lógico. Mas não havia mais suspeitas e ele tinha um ponto a seu favor. Teve, entretanto, de esperar quase uma hora enquanto os oficiais entravam e saíam. Quando afinal entrou, estava dominado pelo habitual nervosismo e fez a continência cuidadosamente.

O Coronel Flynn sorriu e perguntou:

Como está sua cabeça, Smith?

Já está boa.

Resistente, hem? Sente-se.

Muito obrigado, Coronel.

Você é casado, Smith?

- Não, senhor, disse ele gaguejando.

O coronel pareceu olhar para um papel que estava diante dele.

Tem certeza, Smith? O caso é da maior importância para você.

Não sou casado ainda, Coronel.

Bem, tive a impressão de que havia um arranjo doméstico, mas você não está recebendo o soldo de um homem casado, Henry.

E não podia porque ainda não sou casado, Coronel.

Com o soldo de um praça, isso seria bem difícil, não é mesmo? Como é que você poderia pagar um aluguel?

Henry teve certeza de que a parte do homem que Dolly tinha pensado que fosse do FBI estava ali na mesa do coronel. Só via o coronel nas ocasiões em que fazia alguma coisa que todo mundo dizia que valia uma promoção, mas sempre havia dificuldades.

Uma tia me deixou uma herança que me dá um rendimento de 75 dólares por mês.

É mesmo? O coronel pareceu tranquilizado e sorriu. Não me quero meter nos seus assuntos pessoais, Smith. Queria ter certeza de que você não era casado e até nem sei como foi que tive essa impressão. O Exército tem uma dívida para você, Smith. Já examinei a sua ficha. Você tentou um exame de voo e não se saiu bem.

É verdade, Coronel.

Por quê? Não ficou muito longe do mínimo exigido.

Bem, murmurou Henry, todo confuso, esforcei-me ao máximo, Coronel. Logo que saí vi que sabia todas as respostas ou quase todas, mas na hora não me veio nada à cabeça. Acho que se fizer o exame de novo, talvez tenha uma chance.

Homens casados não têm chance. Foi por isso que procurei ter certeza, Henry. Na próxima semana, vai haver exame para novos candidatos no Campo MacDill. Gostaria de ir de avião para lá e tentar de novo?

Sim, Coronel! Claro que sim! Era isso mesmo que eu queria fazer no Exército!

Muito bem. Vou tomar todas as providências necessárias. Serão rigorosos com você, Smith, porque já foi reprovado uma vez, mas tenho certeza de que desta vez vai-se sair bem. Estendeu a mão. Felicidade, Henry. Tenha cuidado com as suas companhias e você fará carreira no Exército.

Muito obrigado, Coronel! Garanto-lhe que passarei no exame. Muito obrigado!

Podia ter havido uma censura velada nas palavras do coronel. Henry pensava que havia, mas tinha outras coisas em que pensar naquele momento. Saiu do gabinete e viu dois aviões de treinamento que circulavam no céu e todas as perguntas do exame desfilaram pela cabeça.

Smith, perguntou o sargento, ganhou o charuto? Qual é seu posto agora?

Vou fazer exame em MacDill na semana que vem. O coronel vai-me mandar para lá de avião.

Ah! resmungou o sargento. Quer dizer que qualquer destes dias eu estarei fazendo continência a você? Mas está certo, Smith. Desejo que isso aconteça. Só que ainda não aconteceu e você tem de pegar logo o serviço. Mude este óleo aqui.

Logo que o seu dia de trabalho terminou, Henry pegou um ônibus no portão do campo com um passe para a noite no bolso. Chegando à cidade, tomou um táxi para o apartamento. Encontrou a porta trancada e se aborreceu, pensando que Dolly tinha ido ao hospital e ele se esquecera de mandar dizer a ela que tinha tido alta. Abriu a porta com a sua chave e encontrou a casa limpa, com um leve cheiro de mofo em vista das janelas fechadas. A tomada da pequena geladeira estava jogada no chão. O armário estava vazio.

No mesmo lugar onde Dolly se movera com a sua graça, embelezando-se ao espelho, beijando-o e rindo com ele, havia um apartamento vazio, silencioso e triste como a morte. Deu um grito como se tivesse levado um soco no estômago e sentou-se com o rosto entre as mãos. Mas nisso bateram na porta.

A senhorita gorda entrou e olhou-o com curiosidade.

Quando foi que ela saiu? perguntou Henry.

Há dois dias, disse a mulher, numa enxurrada de palavras. Queria que eu lhe devolvesse o dinheiro restante do aluguel, mas eu disse que não era possível. Tinham alugado o apartamento por um mês e pronto. Ela então me disse uma porção de desaforos. Vou-lhe dizer uma coisa, Sr. Smith. Sou muito amiga da paz e não gosto de discussões. Mas ela tem uma língua que eu vou lhe contar! Vou ter mais cuidado de hoje em diante. Não tenho nada que dizer do senhor. O senhor é um cavalheiro. Mas. como eu disse a ela, eu não sabia se eram casados ou não. Nunca aconteceu uma coisa assim em meu apartamento e eu fiquei sem saber o que pensar de tudo isso. Ela passava os dias andando para cima e para baixo e fumando um cigarro atrás do outro. Nunca vi ninguém fumar tanto. Não sei o que foi que os dois pensaram de minha casa.

Estive no hospital, disse Henry. Para onde é que ela foi?

Isso é que eu não sei. Não me disse nada. Recolheu o depósito da companhia de luz. Deixou sua mala comigo e chamou um táxi... Disse que... Não, não lhe quero dizer o que ela disse sobre as petunias.

Mala? Eu não tinha mala, disse Henry, entregando-lhe a chave.

A princípio, não entendi bem as coisas, continuou a mulher. E apareceu um homem aqui fazendo investigações. Conversou comigo. Disse que estava trabalhando em todo o bairro mas só esteve aqui neste apartamento. Achei muito estranho. Espero que não esteja em dificuldades.

Henry fez um gesto apático e foi saindo.

Espere um pouco que vou buscar sua mala, Sr. Smith. Era uma mala boa e nova e Henry viu com espanto que tinha

as suas iniciais em letras douradas.

Ela não lhe disse nem para onde ia? Está bem, muito obrigado.

Quando chegou à rua, abriu a mala, esperando encontrar algum bilhete. Mas nada havia senão as suas roupas de andar em casa, o pijama vermelho que ela havia comprado e uma escova de dentes. Voltou para o campo e meteu a mala embaixo da cama.

Você não está parecendo muito animado, Smith, disse um companheiro que lia um jornal. Talvez lhe tivessem dado alta antes do tempo. Como vai da cabeça?

Ainda me incomoda um pouco, disse Henry, deitando-se.

Não se apure muito por dois ou três dias, rapaz.

Henry ficou deitado, tentando indignar-se. Dolly levara o dinheiro que haviam levantado para ele. Não devia ter dado o dinheiro para ela guardar. Era muito dinheiro e ela tinha ficado com ele. Não podia mais casar-se com ela, em vista do seu treinamento para piloto. Não sabia nem se tinha querido mesmo casar-se com ela porque o reboque era um fantasma permanente em seu espírito. Mas pensava nos beijos, nos abraços ardentes e se entregava a um acesso desesperado de ciúmes.

Naquela noite, foi a Boomtown e se encaminhou para o reboque ”Solidão”. Estava aceso, mas com as cortinas descidas, e ele ouviu passos lá dentro. Mas as luzes se apagaram de repente, a porta se abriu e uma loura alta apareceu. Ao ver Smith, sorriu e perguntou:

Está procurando companhia, soldado?

Henry dirigiu-se então para o Alligator Club. Ela podia ter passado por lá ou ter deixado algum recado para ele. Podia ter ido até ali na noite em que não fora ao hospital. O clube estava repleto, pesado de fumaça de cigarro. A mesma música enchia tudo e as mesmas moças de ombros nus dançavam com os mesmos soldados. Henry pediu uma cerveja no bar.

Tem visto Dolly Yarn ultimamente? perguntou ao homem do bar.

Dolly? exclamou ele, sorrindo. Ela passou umas férias não sei onde, mas está de volta. Espere um pouco que ela não tarda a aparecer.

Henry sentiu o coração pequeno dentro do peito. Nada restava dentro dele senão uma imensa fraqueza. Foi para um reservado. Aquele em que se sentara com ela da primeira vez estava ocupado, mas havia um vazio ao lado.

Continuou a tomar cerveja e de repente se empertigou todo porque Dolly estava chegando. Olhou da porta com um vago sorriso e colocou um cigarro na piteira. Com o seu andar sinuoso que lembrava os espetáculos de burlesque, chegou ao bar.

Boa noite, George, disse ela ao homem do bar.

Boa noite, Dolly. Há alguém aí à sua procura, disse ele, apontando Henry.

Ela olhou para ele e ficou um pouco pálida, mas foi imediatamente sentar-se ao lado dele.

Já está bom, Henry? Quando foi que saiu do hospital?

Que é que vai? perguntou o garçom. Cerveja, disse Henry.

Suco de laranja, pediu Dolly. Não, não. Cerveja para mim também. Que veio fazer aqui, Henry? Recebeu a mala?

Recebi, sim.

Gostou? Foi bem cara, Henry. Gastei um pouco daquele dinheiro que você me deu. Gastei muito até, mas posso dar-lhe o que resta.

Fique com ele.

Ela baixou os olhos, deu um suspiro e disse:

Sei que você está furioso comigo, Henry. Mas eu não suportava mais ficar dentro daquele apartamento. Acho que ainda estou muito jovem para assentar a cabeça. Não aguentava mais.

Henry bebeu a sua cerveja em silêncio porque lhe era doloroso até olhar para ela.

Havia um ar de tragédia no encolher de ombros de Dolly.

Não está na minha natureza, Henry. Quero que se vá embora agora. Fico nervosa de ver você aqui. E tenho de trabalhar. Vou com você até à porta.

Ela pegou a mão dele para fazê-lo levantar-se. Henry olhou para os cabelos ruivos que caíam até aos ombros e para as macias curvas arredondadas do rosto.

Oh, Dolly!

Venha comigo, Henry.

Levou-o para longe das luzes do clube e passou os braços pelo pescoço dele para beijá-lo. Depois, tirou-lhe o quepe e alisou-lhe os cabelos.

Você foi a coisa melhor que já me aconteceu na vida, Henry. Mas vá-se embora.

Ele a abraçou vigorosamente, sem ter nada para dizer.

Pode estar comigo na hora em que você quiser, Henry, disse ela com outro beijo. Não lhe custará nada. Tenho um novo reboque, todo de alumínio. Chama-se ”Pássaro Vermelho”.

Separou-se afinal dele. Henry viu-a voltar para o Alligator, passando sob as luzes com o vulto pequeno e bem feito. Viu-a parar à porta, colocar um cigarro na piteira e entrar. Virou-se então e voltou para o campo.

Caminhou de cabeça baixa, batendo os pés com força, porque um mundo de luz e de carinho acabara para sempre. Dentro em pouco, chegaria ao campo e seria bem acolhido pelos colegas, ele, Henry Smith, o homem que não queria mais saber de mulheres.

 

Larry tinha ouvido dizer que havia sempre dores de cabeça depois de uma operação no crânio. Talvez as dores de cabeça não significassem senão o processo de cura. Mas encerravam um sofrimento implacável e terrível, que o fazia quase desesperado. Quase nunca se livrara das dores desde que havia recuperado a consciência e isso lhe cavava no rosto rugas profundas e ásperas. Mas já podia levantar-se. Craig havia retirado as ataduras e o cabelo crescia no lugar. Quando colocava o quepe num ângulo elegante, ninguém podia ver que ele tinha sido operado.

Mas ele sentia isso na cabeça quase todo o tempo. Enquanto esperava no quarto ser chamado para um teste de visão com o Capitão Blount, a dor era tão forte e lancinante que ele não sabia se poderia suportá-la. Mas não podia deixar de suportar, pois tudo isso o aproximava do momento em que poderia voar de novo. Havia um meio de esquecer a dor, deixando de pensar nela. Aquilo de que não se tomava conhecimento não existia... Esses pensamentos lhe correram pela cabeça, enquanto estava sentado no quarto banhado em suores frios. Pegou num jornal para esquecer a dor de cabeça.

Enquanto lia sem prestar muita atenção, mas empenhado numa rígida determinação, a dor o fez passar a mão pelo rosto. A mão cobriu em dado momento o olho direito e imediatamente as letras do jornal desapareceram numa névoa cinzenta. Olhou para o jornal com os dois olhos e viu a notícia sobre uma batalha naval. Fechou o olho direito e não viu mais nada senão uma vaga impressão de luz. Levantou-se e foi até à janela, cheio de terror.

Olhou para as palmeiras, para o brilhante vermelho dos hibiscos e, mais longe, para o cintilante verde do Golfo. Cobriu com a mão o olho direito e de novo não viu senão névoa.

A enfermeira lhe disse da porta:

Está na hora dos exames, Tenente Thomas. Quer ir na cadeira de rodas?

Não, irei a pé. Muito obrigado.

Quando descia o corredor, também este desapareceu quando fechou o olho direito.

O seu aspecto não está bom, Larry, disse Paul Blount. Está muito pálido. Não está andando demais?

Estou com uma terrível dor de cabeça.

É duro isso, mas é de esperar. Não vão durar muito mais, Larry. Hesitou ao dizer isso porque sabia que tais dores de cabeça podiam levar um homem à loucura. Prefere deixar o exame para hoje à tarde ou para quando se sentir disposto?

Não, Capitão. Agora mesmo.

Fez os exames com rapidez e eficiência. Quando acabou, Larry olhou para a ficha.

Há alguma anotação aí sobre meu olho esquerdo? perguntou ele. Sabe disso?

Sei. Como está ele, Larry?

Não posso ver nada com ele. É coisa permanente?

Estou fazendo os testes, Larry. Não posso ainda dizer.

Isso me inabilita para voar? Blount deu um suspiro e ficou calado.

Vou falar com Craig, Capitão. Talvez não me tenham dito tudo e eu tenho o direito de saber.

Ele me pediu que telefonasse dando o resultado do exame. Quer que eu lhe diga que precisa falar com ele?

Quer fazer isso, Capitão? Muito obrigado.

Meia hora depois, Craig chegou ao quarto de Larry, acompanhado de Jean. Estavam ambos tão pálidos e deprimidos que Larry sentiu o sangue gelar-se nas veias só de vê-los. Sentou-se de repente e olhou-os com o rosto fechado e interrogativo.

Examinei as suas fichas com Paul, disse Craig numa voz forçada e estudada. Telefonei então para Jean. Não podíamos saber antes dos exames de hoje, Larry.

Continue.

Não são boas as notícias. São muito más, meu irmão. Será duro de você ouvir e será duro de eu falar.

Larry respirou profundamente e levantou o queixo.

Meu olho esquerdo está cego?

Está, sim.

Não posso mais voar. Não posso fazer mais nada nesta guerra? Está tudo acabado para mim?

Nesta guerra, sim, Larry.

Larry escondeu o rosto nas mãos, murmurando repetidamente: ”Meu Deus! Meu Deus!” Quando levantou os olhos, viu Craig e Jean a olhá-lo cheios de compaixão. Levantou-se com um grito.

Mais alguma coisa, Craig? É só isso? Há mais ainda?

Há, Larry. O outro olho...

Vai ficar cego também? Não é possível! É isso o que está dizendo, Craig?

É isso mesmo meu irmão.

Vou ficar cego?

Perceberá a luz. Será como no olho esquerdo, Larry. Larry ficou parado a respirar penosamente, desesperado. Jean passou o braço pelas costas dele, mas ele nem tomou conhecimento disso.

Craig, deve haver algum meio de dar um jeito nisso! Não posso ficar cego! Como é que posso suportar uma coisa dessas?

Gostaria de saber, Larry, mas não há nenhum meio.

Mas... De repente, pareceu desmoronar-se. Quanto tempo, Craig? Por quanto tempo ainda?

Cerca de duas semanas.

Duas semanas! Você sabia disso quando me operou, Craig, sabia?

Havia uma chance e nós nos arriscamos. Se não fizéssemos isso, você estaria morto agora. Você tinha uma chance, Larry, e eu não podia deixar de dar-lhe essa chance!

Era melhor que eu tivesse morrido, murmurou Larry. Aquele maldito avião! Devia ter-me matado logo!

Não, Larry! exclamou Jean, beijando-o, sem que ele lhe desse a menor atenção. Ainda temos você, Larry. Não, não!

Sim, Jean, minha boa Jean. Ergueu então a cabeça e disse uma coisa magnífica e inolvidável. Duas semanas e desce o pano, não é? Pois então nessas duas semanas quero olhar para você, Jean! E para Craig! Só vocês dois e o resto que vá para o inferno!

Pousou a cabeça no peito dela e soluçou descontroladamente. As lágrimas corriam pelo rosto de Jean, enquanto ela lhe afagava os cabelos. Craig saiu do quarto, fechou a porta e encostou-se na parede do corredor com os olhos fechados.

Uma enfermeira se aproximou dele.

Alguma coisa, Major? perguntou ela, nervosamente. Alguma coisa que eu possa fazer?

Meu irmão precisa de uma injeção para dormir, disse Craig. Aplique a injeção daqui a quinze minutos. Não, daqui a cinco minutos. Agora mesmo!

Larry queria ver aviões também. Todas as manhãs, vestia-se apuradamente com a farda, que não estava autorizado a usar, e se afastava cada vez mais do hospital, coisa que não podia fazer, na direção do aeroporto. Chuck Waller ia com ele, fingindo recear a prisão.

Conversavam pouco. Na maior parte do tempo, havia silêncio entre eles. Às vezes, Larry suspirava profundamente ou gemia, e Chuck atribuía isso às dores de cabeça. Mas sempre, embora de maneira contrafeita, Larry estava pronto a falar sobre aviões. Já sabiam ambos por que os aviões tinham caído e não falavam sobre isso, depois da indignação inicial, porque o caso de certo modo era uma desmoralização para o corpo a que pertenciam. Mas a atividade no Campo Minafer era maior do que nunca e muitas histórias circulavam. Aviões estavam sendo convertidos para transportar bombas. Faziam-se experiências com aviões de caça para servirem como bombardeiros de mergulho, caso houvesse necessidade. Os aviões do campo estavam sobrevoando o Golfo para comboiar navios, desde que um submarino pusera a pique dois navios e um avião do campo atingira o submarino. O hospital fervilhava de boatos.

Todas as manhãs, ao despertar, olhava da janela para um pinheiro distante, onde haviam esquecido um machado cravado no tronco. Larry via claramente o machado e fazia depender a vida de avistar aquele machado. Tinha a esperança de que Craig e Blount estivessem errados. Achava que, se continuasse a proceder como se não fosse perder a vista, não a perderia. Começou a experimentar o olho esquerdo, à procura de alguma melhora. Mas, uma semana depois de saber da verdade, não pôde ver claramente o machado. Na manhã seguinte, não o viu absolutamente. A árvore continuava no lugar como uma vaga coluna.

Jean ia vê-lo à tarde e à noite, levando o tricô e jornais e revistas para ler para ele. Sentavam-se bem juntos, como se nada tivesse havido. Larry mostrava uma alegria que não sentia, e no dia em que deixou de ver o machado disse a Jean:

Sabe que Craig pode estar enganado? Não sinto nenhuma diferença.

Ótimo. Continue assim. O seu aspecto já está bem melhor.

Venha cá que eu quero mostrar-lhe uma coisa. Levou-a até à janela. Está vendo aquele pinheiro? Olhe uma coisa de cor diferente do lado do tronco. Sabe o que é? Um machado!

Abraçou-a e beijou-a por um momento.

Na manhã seguinte, foi até ao aeroporto. No portão, o sentinela perfilou-se a ver-lhe as asas da farda. Larry foi andando com os olhos voltados para o campo. Dois caças ganharam velocidade numa das pistas e levantaram voo. Três aviões de treinamento circulavam no alto, à espera de autorização para descer. Tudo o que Larry queria estava ali. O seu futuro estava ali também. Não lhe seria difícil pegar um avião e voar com ele para o Golfo até que a gasolina se acabasse. A única dificuldade era pensar na expressão do rosto do Coronel Flynn quando soubesse que mais um avião se perdera numa ocasião em que o país precisava tanto de aviões.

Voltou na manhã seguinte e viu um avião como aquele em que tinha caído descer num pouso rápido que era como o beijo de uma bala na pista. Na manhã seguinte, notou que havia alguma alteração no movimento do campo. Um leigo talvez não percebesse coisa alguma, mas Larry sentia que haviam ligado um comutador e a corrente elétrica estava em marcha. Três motores foram ligados ao mesmo tempo. Havia carrinhos com bombas perto de um hangar. Ao lado de um avião com a hélice em movimento, viu um aviador de capacete que, pelo jeito dos ombros e das pernas, só podia ser Peter Ryan. Aproximou-se do avião.

Alo, Pete. Que é que há? Pete estendeu a mão.

Alo, Larry! Não sabia que já tinha alta. Veja isto. Alguns homens estavam colocando três bombas sob a fuselagem e as asas do avião. Recebemos um SOS 50 quilómetros a oeste. Lá está o coronel.

Os longos braços do Coronel Flynn chamavam Ryan e mais dois pilotos.

Com licença, Larry.

Larry sorriu. A velha alegria e impetuosidade renasceram nele como uma força que anulou quase a cruciante dor na cabeça.

Pet Ryan ia ficar bem aborrecido e ele não censuraria Pete Ryan por isso. Subiu para a carlinga. Olhando para trás, viu os três pilotos agrupados em volta do Coronel Flynn, tão interessados que não havia o menor risco de olharem para ele. Um mecânico se aproximou do avião e Larry fez-lhe sinal para tirar os calços. O homem pareceu hesitar e Larry gesticulou irritadamente. O mecânico fez um sinal de assentimento e retirou os calços.

Ao acelerar o motor, Larry ouviu gritos. O mecânico olhou-o apavorado, enquanto o Coronel Flynn e Pete Ryan começaram a correr em sua direcção. O avião correu pela pista e no meio do caminho, Larry o levantou no ar. Olhou para trás e viu os dois aviões que já se moviam. Olhou para a bússola. Oeste, tinha dito Pete Ryan. Um piloto podia responder a conselho de guerra por aquilo. Mas Larry sorriu.

Dentro em pouco, os outros dois aviões estavam voando com ele, um de cada lado. O rádio de seu avião dizia:

”Campo Minafer chamando o Tenente Thomas. Está levando cinco bombas ativas no avião. Solte-as no mar. Volte imediatamente. Campo Minafer chamando o Tenente Thomas...”

Já sobrevoava o Golfo, verde e cintilante. Dos dois lados, os pilotos faziam-lhe sinais para voltar e descer. Larry riu para eles e fez sinal de que ia prosseguir. Deixou-os passar à frente, pois eles deviam saber o rumo certo. No seu rádio, a voz era diferente: ”Campo Minafer chamando o Tenente Thomas! Cumpra a ordem, Thomas!” Era a voz do Coronel Flynn, carregada de raiva.

O sorriso de Larry não se alterou. O coronel podia estar zangado quanto quisesse, mas não era possível desperdiçar bombas.

Respondeu então:

Tenente Thomas chamando Campo Minafer. Obrigado, Coronel Flynn!

Os outros dois aviões estavam bem acima dele. Estava voando baixo, como Jimmy Doolittle tinha feito no voo sobre Tóquio, mas olhava a cada instante o altímetro, sem poder julgar exatamente a distância que o separava da água. Viu então o navio, um petroleiro que vinha a toda força das máquinas com a fumaça a sair de um tiro dado com o canhão de proa. Larry voou sobre ele para seguir a direção do canhão apontado. Viu, por um instante, rostos assustados sob as suas asas. Voara de fato muito baixo.

Menos de trinta segundos depois, o submarino estava à frente, tendo emergido e apontado o grande canhão do convés para o petroleiro a fim de economizar os seus torpedos.

Thomas chamando Minafer! gritou ele. Avistei o submarino. Vou descer para atacá-lo!

O canhão se aproximou dele. A tripulação abaixou-se ou saiu correndo pelo convés. Não podia errar. Era como se estivesse voando sobre o pinheiro com o machado cravado.

Acertei-o! gritou ele antes de bater no canhão do submarino com a hélice e depois com as bombas.

Ele estava ficando cego e sabia disso, murmurou Craig.

Foi notável, Major! Uma coisa quase impossível! exclamou um dos dois pilotos. Nunca mais se verá uma coisa assim nesta guerra!

O piloto olhou para Jean, ao mesmo tempo em que o seu colega e o Coronel Flynn olhavam para ela. Mas nem a presença dela, sentada ali no gabinete do coronel, muito pálida, lhe amorteceu o entusiasmo.

Foi perfeito! Ele mergulhou diretamente sobre o submarino sem um momento de hesitação. Foi perfeito! O submarino se arrebentou como um ovo!

Muito obrigado, senhores, disse Flynn com um ar indisfarçado. Quero que ambos escrevam um relatório sobre a ocorrência. Vou propor uma condecoração póstuma. Isso é uma coisa de grande mérito para o nosso campo. Obrigado, senhores.

Depois de cumprimentarem Jean, apagando nesse instante o brilho que tinham nos olhos, os dois pilotos saíram exultantes, de braços dados.

O Coronel Flynn olhou para Craig e Jean, já então juntos, e disse:

No meu caso, não posso sentir muita tristeza. Sinto-me ao contrário muito orgulhoso. Passou os braços pelos ombros de ambos e levou-os até à porta, dizendo: Major, cumprimento-o por seu irmão. Curvou-se para a mão de Jean e disse: Minha senhora, cumprimento-a por seu marido. Mas no caso das mulheres... Sra. Thomas, queira aceitar os meus pêsames.

Jean e Craig saíram para o carro. Tudo havia acontecido tão rapidamente que ainda não era meio-dia. Num canto, havia muita gente agrupada em volta dos dois pilotos que tinham feito o voo ao lado de Larry.

Estão orgulhosos, murmurou Craig. Muito orgulhosos. Mas a atividade do campo continuava. Um avião correu pela

pista e subiu. Craig ainda segurou a mão de Jean até que ele foi diminuindo e desapareceu.

Sim, Larry, disse Jean. Foi assim que aconteceu, Craig. Tremiam ao entrarem no carro.

Leve-me para casa, Craig. Estamos ambos tão cansados, disse ela e encostou a cabeça no ombro dele.

 

                                                                                            Frank G. Slaughter

 

                      

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