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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DINHEIRO DO CÉU / Marcos Rey
DINHEIRO DO CÉU / Marcos Rey

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DINHEIRO DO CÉU

 

                                                                                                       O SABADO DE ALELUIA

 

                     DON FRANCESCO DESAPARECE

Ouvi os passos rápidos e pesados de minha mãe, o girar da maçaneta, a porta abrindo e senti a presença dela já no quarto. “Chegou a hora de fingir”, pensei sob o lençol. Seria capaz?

— Levante-se, seu avô sumiu!

Então ergui a cabeça, despreguei os olhos e fiz a cara de espanto ensaiada madrugada adentro. E a voz, acertaria o tom?

— Vovô sumiu, a senhora disse?

— Ninguém o viu esta manhã. Vá lavar o rosto, tome café e ajude a procurar o velho. Todos estão se mexendo. Até seu tio Salvador!

— Onde devo procurar, mãe?

— Na casa dos Bonelli, na barbearia, no depósito de vinhos, em todos os lugares que ele freqüenta.

A água gelada da pia do banheiro me trouxe de volta a cena da noite passada, quando Don Francesco com um olhar que só usava nos jogos de bisca e três-sete, entrou no meu quarto, sem produzir ruídos, e soprou um psiu com o dedo nos lábios. Contou tudo em dois minutos.

— Bico fechado advertiu, com seu sotaque italiano, no final. — Só conte pro pessoal lá pela hora do grude.

Quando Fúlvio chegou (dormíamos no mesmo quarto), acho que meia-noite, quase digo ao mano o que ia acontecer na família. Mas nem abri os olhos; se abrisse, a boca também se abriria. O segredo não me deixou dormir a noite inteira, zunindo e incomodando como um pernilongo. Por que Don Francesco me escolhera como confidente, sendo eu o caçula, o raspa-de-panela, quando havia o Fúlvio, a Teresa e o Roberto? Que não contasse ao tio Salvador, um boca-mole, sempre puxando, para garantir a cama do quarto dos fundos, tudo bem. O que não entendia era soltar aquela bomba e depois exigir silêncio dum garoto que não piava na casa, não tinha voz pra nada.

Ao tomar o café com leite na cozinha soube que meu pai corria os hospitais, Fúlvio fora à casa dum velho amigo de Don Francesco na Penha, Teresa, na farmácia, telefonava aos necrotérios e Roberto, que se dava com gente de rádio, percorria estações para noticiarem o desaparecimento.

Tio Salvador, o primeiro a voltar das buscas pelas redondezas, trabalhou mais com a cabeça do que com as pernas.

— Veja se ele simplesmente foi dar um passeio ou se sumiu mesmo. O guarda-roupa!

— Por que não lembrei disso antes?! — exclamou minha mãe.

Os dois abriram o guarda-roupa e viram a resposta nos cabides vazios.

— Levou até a boina!

— Diga, ele brigou com alguém? — quis saber tio Salvador.

— Que eu saiba, não. Don Francesco andava até de boa cara. Mas já sei onde está. Foi passar uma temporada com os Malagna, na Penha. Fúlvio logo chega e confirma.

A possibilidade não convenceu tio Salvador.

— Por que não disse nada a ninguém? Por quê?

Não chegara o momento combinado de revelar tudo: sai pela rua, descobrindo que guardar segredo à luz do sol ardia mais que à noite. Mesmo assim, com a maior cara-de-pau, fui procurar o nono na casa dos Bonelli, na barbearia e no depósito de vinhos. Alguém vira, sim, Don Francesco, boina na cabeça, andando ligeiro, às seis da manhã, com uma valise azul.

Ao passar pela Rui Barbosa a sorte apagou as inquietações domésticas: Mafalda chegava com o pai, que dirigia, altivo, seu carro novo. Enquanto lhe fazia sinal, à distância, tive a impressão de que crescera alguns centímetros naquela semana. Seus dezesseis anos estavam com jeito e tamanho de dezoito.

— Vai ao baile de Sábado de Aleluia? — ela perguntou.

— Lá do clube? Vou.

— Mas é à fantasia, você sabe, não?

Seria meu primeiro baile com Mafalda, oportunidade que precisava segurar com unhas e dentes.

— Você tem fantasia, Mafalda?

— Vou mandar fazer uma, e bem bacana. Se você arranjar uma, iremos juntos. Será uma festa de arromba!

Prometi que não faltaria, como se dinheiro não fosse problema e, para dar mais molho à conversa, transmiti à Mafalda uma fração do segredo de ontem, num tom especial de voz.

— Mafalda, acho que vamos ficar ricos...

— Vocês? Mas como? Seu pai está fazendo algum negócio da China?

— Depois eu conto, agora tenho de voltar. — E dando mais uma laçada no compromisso: — Não marque nada com ninguém, Mafalda. A gente vai se divertir muito no baile.

Antes de transpor o portão de sua casa, Mafalda me atirou um beijo, que apanhei no ar e guardei no bolso, O encontro valera pela noite longa e sem sono e dava-me coragem para dizer à família aonde Don Francesco fora e por quê. Sim, nós, os Marino, íamos enriquecer.

Ao dobrar a esquina de minha rua vi Roberto chegando da rádio, aborrecido com a tarefa que lhe haviam encarregado. Mesmo de manhã e em dias de semana vestia um de seus ternos novos, de cores berrantes, sempre bem passados, no capricho, embora alguns despeitados dissessem que se trajava como um cafona. Quebrara o nariz de um desses.

Reunidos na sala, todos falavam ao mesmo tempo, menos Teresa, que detinha as lágrimas com um pequeno lenço. Ninguém trouxera notícia de Don Francesco. Minha mãe e seu irmão Salvador contavam que o nono levara as roupas.

— Melhor assim — comentou meu pai. — Quer dizer que não sofreu nenhum acidente. De acordo?

— Não sofreu, mas aonde foi esse velho? — perguntou tio Salvador, a janela, como se à espera de que alguém no mundo respondesse.

O fato de Don Francesco ter saído com as roupas tornava ainda mais enigmático o desaparecimento.

— Às vezes dizia que era um peso morto, só dava despesas — lembrou minha mãe, provocando em Teresa outra cachoeira de lágrimas.

— Aí pode estar a explicação — considerou meu pai, numa suspeita dramática. — Ele deve ter-se recolhido a um asilo para a velhice desamparada!

Tio Salvador achou a hipótese provável, mas serviriam vinho nos asilos?

— Atílio, você está certo — concluiu minha mãe.

O chefe da casa tomou uma decisão:

— Fúlvio, Roberto, e você também, Salvador, vamos visitar todos os asilos de velhos da cidade. Ordinário, marche!

Quando vi que novos e inúteis esforços seriam feito, falei pela primeira vez como se cuspisse o incômodo segredo.

— Pai, eu sei onde o nono foi.

 

               UMA EXPLICAÇÃO QUE NÃO EXPLICA TUDO

               E UM JANTAR NA CANTINA

Não olharam para mim todos ao mesmo tempo, como esperava, mas um por vez, numa graduada escala de curiosidade.

— Brincadeira tem hora, filho.

— Não é brincadeira não, pai. Ele falou comigo ontem à noite.

Aí, sim, me tornei o centro das atenções, rodeado e tocado pelos seis. Os dedos de meu pai quase me quebravam o pulso.

— Ele falou com você ontem à noite?

— Falou.

— Disse que ia embora?

— Disse.

A vez de minha mãe perguntar:

— E por que você não falou até agora? Nem quando pedi para ajudar a procurá-lo?

— Porque ele me pediu pra não contar nada até a hora do almoço.

O cerco estreitou-se ainda mais, porém houve uma pausa que durou a eternidade de alguns segundos. Em cada cara vi uma espécie de sentimento. Em meu pai o receio de ter alguma culpa no sumiço; mamãe me olhava com mágoa de minha cumplicidade na fuga; Roberto queria me castigar por lhe ter feito ir à rádio à toa; Teresa saudava o fim do mistério com um princípio de sorriso; a expressão de Fúlvio significava que só um velho doido e beberrão confiaria seu segredo a um molecote; e no rosto de tio Salvador a imagem do alívio porque não lhe pediriam mais favores.

A pergunta seguinte, formulada por meu pai, só podia ser esta:

— Para onde ele foi?

“Agora que vem o estouro”, pensei.

— Para a Itália.

Então as seis caras, que antes diziam coisas diversas, ficaram todas iguais, moldadas pelo espanto. A máscara mais próxima, de meu pai, pôs uma interrogação enorme e trêmula onde eu apenas pingara um ponto final.

— Para a Itália?

— Foi o que ele disse. Por isso exigiu que não falasse nada. Para dar tempo.

— Para dar tempo de quê? De chegar à Itália?

Aquele interrogatório prometia ser pior que a noite dos pernilongos invisíveis.

— Tempo de apanhar o navio em Santos.

Meu pai afastou-se em direção à porta da rua, derrubando uma cadeira.

— Onde vai, Atílio? — gritou minha mãe.

— A Santos. Não saem navios para a Itália todos os dias.

Eu não terminara tudo que tinha para informar.

— Ele já comprou passagem, pai!

Meu pai interrompeu o passo, quase na rua.

— Comprou? Mas o navio pode não sair hoje.

Os olhares iam de mim para meu pai e de meu pai para mim como se a família assistisse a uma empolgante partida de pingue-pongue.

— Don Francesco disse que o navio partiria às dez e já é meio-dia.

Meu pai lentamente foi voltando para o grupo familiar, a pressa travada pelas últimas informações. Fez então uma pergunta importante, aguardada e sofrida por todos.

— O que foi fazer na Itália?

Minha mãe a essa pergunta acrescentou outra a que ninguém deu atenção:

— Está fazendo frio, na Itália, agora?

Achei que a resposta à pergunta de meu pai iria surpreendê-lo ainda mais e, então, resolvi parcelá-la:

— Foi para Chiaromonte.

Chiaromonte! Quantas vezes esse nome musical fora pronunciado em casa como se designasse algum lugar perto de São Paulo, Poá ou Cotia, quando ficava muito distante, bem no fim da bota. Nesse vilarejo, Don Francesco nascera no século passado, e daí partira com dezenas de milhares de emigrantes para, como diziam, fazer a América, e depois voltar.

Não enriquecera nem voltara para Chiaromonte, embora tivesse deixado parentes por lá. Chiaromonte! Principalmente ao se abrir em casa uma garrafa de vinho, no lazer dos domingos, o nome saudoso espocava com a rolha.

— Fazer o que em Chiaromonte? — indagou, encostado à janela, tio Salvador, dividindo com a população do Bexiga sua estupefação.

Naquela sala, somente eu e Deus sabíamos a resposta, mas Deus preferiu que eu falasse:

— Buscar a herança.

Roberto soltou uma gargalhada potente demais para uma sala tão pequena. Para o mano o drama matinal terminava ali, e com uma anedota. Voltou à sala, fez como sempre um largo gesto de despedida, partindo depressa para seu mundo, que ninguém sabia onde era e o que se fazia lá.

— Ele disse que foi buscar a herança?

— Disse, pai.

— Com que palavras? Concentre-se, meu filho, e repita uma a uma.

Não lembrava bem as palavras, embora tivesse dormido com elas, mas aquela era uma ordem da qual não podia fugir.

— Vovô disse que só ele podia ir a Chiaromonte, pois conhece o dialeto de lá e sabe como lidar com os parentes sem ser tapeado. Antes de sair me deu um beijo na testa, me apertou nos braços e falou: “— volto com um saco de liras”.

Meu pai levou a mão à cabeça e pôs-se a andar pela sala, em círculos, querendo absorver por ação muscular o baque da fuga e seu motivo.

— Ah, Don Francesco! Don Francesco!

Como se ouvissem o eco da gargalhada de Roberto, e contagiados por ela, Fúlvio e Teresa riram de tudo, num retorno, a partir do saco de liras. Mas mamãe fez cara feia e Teresa levou a mão à boca vedando a passagem agora de seu bom-humor.

— Existe mesmo alguma herança? — perguntou Fúlvio com a zombaria que Roberto lhe emprestara.

— Don Francesco fala dela desde que eu e seu pai casamos — garantiu minha mãe.

— Realmente Don Francesco tem alguma coisa em Chiaromonte — assegurou meu pai. Os parentes nunca responderam nossas cartas, o que para mim prova que estão muito bem. O que diz, comendador?

Tio Salvador, que não era um Marino, evitava meter-se em questões de família. Morando de camaradagem no quartinho do fundo, já que não tínhamos empregada, suportava resignado as freqüentes ironias de meu pai. Parecia ter cera nos ouvidos quando o chamava de comendador, lavoratore ou boa-vida. Mas, num momento como aquele, precisava sofrer com os outros, mostrar ansiedade e dar opinião.

— Querem saber duma coisa? Acho que Don Francesco sabe o que fez. De louco, nunca teve nada. Sou capaz de apostar que vai voltar mesmo com o saco de liras às costas. Dinheiro do céu, minha gente!

Fúlvio, o ponderado da família, fez logo uma pergunta que mamãe aprovou.

— Mas por que o mistério? Ele devia ter nos consultado.

O comendador sacudiu a cabeça negativamente para anular a pergunta.

— Se tivesse contado seus planos, avisado a gente, não permitiríamos que viajasse por causa da idade.

— Correto, comendador, correto — admitiu meu pai, voltando a andar em círculos pela sala, num diálogo com o personagem ausente.

Já se ouviam aqui e ali algumas frases soltas ou incompletas de apoio à atitude do nono, quando minha mãe, sempre com os pés no chão, fez uma pergunta que recônvocou a atenção geral.

— Mas onde Don Franeesco arranjou dinheiro para pagar o navio?

Que enigma! Uma viagem de navio à Itália, mesmo de terceira classe, custava milhares de cruzeiros, importància que o avô nunca vira, provavelmente nem em sonhos, pois sonhava em liras e não em dinheiro nacional.

Surgiram hipóteses:

Meu pai: — Será que pediu emprestado?

Minha mãe: — Teria ganho no jogo do bicho?

Teresa: — Quem sabe achou uma carteira cheia de dinheiro?

Fúlvio:     — Ou ajuntado cruzeiro a cruzeiro no colchão.

Tio Salvador: — Ele era formidável na bisca e no três-sete. Pode ter limpado os bolsos de muita gente, nas cantinas.

Todos se voltaram para mim, o confidente do velho, na esperança de que tivesse a chave do problema.

— Sobre isso Don Francesco não me disse nada. Ele apenas falou que já comprara a passagem do navio.

O dia, antes uma quarta-feira qualquer, assumiu o vagar e a cor dos feriados. Meu pai não foi à tarde à sua oficina gráfica. Que Mandrake, seu empregado, cuidasse das impressõ es. Fúlvio chegaria atrasado ao escritório, minha mãe e Teresa esqueceriam o serviço de casa e eu repetiria mil vezes meu sussurrado diálogo com o nono. Apenas tio Salvador não se abalaria de sua rotina, isto é, também não fez nada aquele dia.

Apesar daquela pergunta — onde Don Francesco arranjou dinheiro para pagar o navio? — que incomodava e nos acompanhava a todos os cômodos da casa, meu pai, com uma generosidade que guardava para ocasiões especiais, levou a família à noite para a Cantina do Afonso, em moda no Bexiga por causa da carne de cabrito. Somente mano Roberto não apareceu, mas tio Salvador não faltou e foi de todos o mais animado.

Aquele jantar, com muita comida, vinhos e sonhos, foi o inicio de uma seqüência de esperanças para os Marino. Aliás, começara pela manhã, quando eu dissera: Mafalda, acho que vamos ficar ricos . . . Enriquecer era uma obrigação que atravessara o Atlântico com meus avós. Três deles morreram sem alcançar essa graça, porém, o pequeno Don Francesco, com sua boina e sua valise azul, ainda estava na luta. Muito antes da sobremesa, chegaram os projetos. O que fazer com o saco de liras que o nono traria? Meu pai, embora anticapitalista, opinava que deveríamos viver de juros. Tio Salvador confessou seu grande desejo: ter uma cantina com músicos, onde, além de se comer bem, se pudesse dançar. Viriam turistas do País todo. Boa idéia, todos concordaram. Fúlvio, desde a infância, quando assistia Dr. Kildare, decidira ser médico, o que as liras do vovô talvez tornassem possível. Minha mãe queria ser rica para fazer o bem; a prática da caridade era o que havia de mais bonito para ela. E Teresa, a que menos falou e a que menos comeu, sintetizava seus desejos num sorrizinho umedecido pelo vinho; o pequeno sorriso, espelho de bolso de sua alma, significava que, mesmo aos vinte e seis anos, não ficaria para tia, solteirona, se os Marino enriquecessem.

A noite foi longa e boa, mas, todos já em casa, encerrou-se com a terrível pergunta-enigma:

— Onde Don Francesco arranjou dinheiro para pegar o navio, onde?

A resposta estava lá dentro, dentro de casa, quero dizer.

 

           SOLUCIONADO O MISTÉRIO DE CHIAROMONTE

Fazia cinco dias da partida do avô, quando minha mãe, para rever guardados, por intuição ou por nada abriu o arcaico baú, enfiado debaixo do tanque do quintal, móvel histórico da família. Foi só abrir e a resposta tão procurada para o “mistério de Chiaromonte”, como chamava Roberto, voou pela casa toda, como um pássaro:

— Os castiçais não estão no baú!

Meu pai, perto, estranhou:

— Os castiçais não estão no baú?

— Venha ver, Atílio!

Era domingo cedo e todos estavam em casa para ferverem com a revelação, Corremos para o baú com sua tampa em corcova aberta. Lá estavam o álbum de família, com suas fotografias amareladas, diplomas de primário e ginásio, velhos documentos amarrados com barbante, um antiquíssimo método de costura de Chiquinha del’Oso, um livro científico com retratos de mulheres nuas, que minha mãe já arrancara de minhas mãos violentamente, bijuterias de outras décadas, maços de contas já pagas, uma palheta, a última que meu pai usara nos anos trinta, e mais coisas, velhas e mofadas. Menos os castiçais.

— Estariam guardados noutro lugar?

— Os castiçais nunca saíram do baú garantiu minha mãe — a não ser nas vezes em que você os levou para o prego.

Os castiçais, um belo par em prata ramada, eram o único bem material que os Marino possuíam, nossa salvação para as épocas de dinheiro curto. Meu avô os empenhara nas revoluções de 24, 30 e 32, e meu pai, mesmo sem revolução, não sei quantas vezes.

— Esses castiçais não valiam o suficiente para uma viagem de ida e volta à Itália ponderou Fúlvio.

— Quem vai buscar uma herança não se preocupa com o dinheiro da volta — replicou meu pai com uma lógica incontestável.

Tio Salvador lembrou:

— Um dia desses entrei na cozinha e vi Don Francesco mexendo no armário. “O que está procurando, maestro?”, perguntei. “Alguma coisa que lustre”, respondeu, sem dizer o que pretendia lustrar.

— Ora, os castiçais! — exclamou minha mãe.

— Devem ter ficado bonitos, Romilda! Quando Don Francesco voltar da Itália vou pedir que os compre outra vez. Mas não voltarão ao baú. Quero-os aqui na sala e sempre bem lustrosos.

Roberto, que nem acreditava que o nono fora para a Itália, pela primeira vez deixou-se envolver pelo entusiasmo geral. Mencionou até o caso de um conhecido seu que enriquecera graças a uma herança que veio rolando através dos tempos. Esse moço, imaginem, estava desempregado e quase passava fome quando a bolada chegou. Então, deu uma enorme festa, mudou-se do Bexiga e ninguém mais o viu.

— Vai ficar para o almoço, Robertino? — perguntou minha mãe.

Para surpresa de todos, o primogênito tirou seu charmoso paletó e respondeu:

— Fico, sim, mãe. — E abrindo a carteira de dinheiro, dirigiu-se a tio Salvador: — Podia ir ao bar comprar bebida?

Decidi acompanhar tio Salvador. No caminho ele me olhou com ar malicioso.

— O que anda fazendo, artista?

Ele chamava a todos de artista e aos mais velhos de maestro.

— Nada de novo, tio.

— Digo com a filha do Vitório, aquela mocinha bonita. Vi vocês outra tarde.

— Mafalda? A gente se conhece.

Tio Salvador, o mais distante de mim pelos laços sangüíneos, e o mais afastado do centro de casa por morar no quarto dos fundos, era realmente a pessoa ideal para servir de confidente. Todo apaixonado precisa de um, como nos romances e nos filmes, não importando a idade que tenham.

— Aquilo não parecia simples amizade. Conheço as pessoas, artista. E tenho um aparelho que mede a intensidade dos olhares.

Joguei um sorriso ao chão e confessei:

— Estamos namorando.

— Qual de vocês é mais velho?

— Mafalda, apenas um mes.

— Vocês se encontram sempre?

— Não muito, mas no Sábado de Aleluia vamos ao baile do clube.

— Isso é bom, é nos bailes que os namoros se afirmam ou acabam duma vez.

Os confidentes devem também dividir com a gente as preocupações.

— O baile é à fantasia e não tenho dinheiro para comprar uma.

Chegamos ao bar, tio Salvador pensando no meu problema. Pediu dois copos de vinho.

— Beba, o amor fica melhor cem vinho.

Levei o copo à boca. O gosto que senti, amargo, foi o daquela preocupação.

— Sem fantasia não posso ir ao baile. Me barram.

        — Fantasia não exige dinheiro, basta imaginação. Esqueça, por enquanto. Vou pensar no assunto e talvez o ajude. Bom esse vinho daqui, não?

 

                     O HÓSPEDE DO QUARTO DO FUNDO

Tio Salvador, irmão de minha mãe, já quarentão quando Don Francesco foi buscar a herança dos Marino na Itália, vivia conosco há oito anos sem pagar cama nem comida. Quando lhe perguntavam se era nosso inquilino, respondia: sou um visitante. Verdade. Ele viera fazer uma visita no dia de aniversário de mamãe e, como choveu na hora de sair, ficou em casa. No dia seguinte, saiu mesmo com chuva. Voltou em quinze minutos, todo molhado e espirrando. Minha mãe desalojou Don Francesco, que passou a dormir no sofá da sala e meteu tio Salvador no quarto do fundo. Foi a gripe mais comprida de que tive notícia: quinze dias sob os cobertores. Curado, levantou-se, despediu-se agradecido, e foi embora. Voltava uma hora depois, deprimido. Por causa das faltas no emprego recebera o bilhete azul e não tinha dinheiro para continuar pagando a pensão. Minha mãe deu um jeito convencendo meu pai a deixar tio Salvador permanecer em casa até que arranjasse outro serviço.

— Nossa casa não é hospedaria — foi a objeção

— Atílio, ele anda até pensando em suicídio. Ontem estava afiando uma faca.

Eu também vira o tio afiar essa faca. Fazia varetas de um alçapão para passarinhos, uma de suas habilidades.

Todas as manhãs, após o café com leite, tio Salvador saia apressado para procurar emprego. A princípio, voltava so a noitinha. Depois passou a voltar já na hora do almoço. Até que desistiu.

Meu pai, irritado de vê-lo dormir de segunda a segunda até o meio-dia, teve uma conversa com ele.

— Eh, comendador. . . — e nesse momento nascia o apelido de tio Salvador — Como é? Brigou com o trabalho?

— Tenho procurado. Está nada fácil, maestro.

— Leia os jornais, há muitas ofertas de emprego.

— No meu caso, as coisas ficam mais complicadas — disse tio Salvador em tom de sigilo.

— Por que, comendador?

— Devido às minhas idéias socialistas.

— Ah, você é socialista? Ignorava.

— São coisas que não se deve andar espalhando por aí, mas os patrões, não sei como, percebem isso à distância e podam a gente. O mundo agora está assim, maestro.

A conversa não teve seu ponto final aí. Meu pai tinha outro argumento, que, por alguns momentos, embaraçou tio Salvador.

— Alguns amigos meus, socialistas, trabalham. Nas fábricas. principalmente. Não há melhor lugar para conseguirem novos adeptos. Ou não?

Tio Salvador levantou-se, para sair da sala. Antes, contudo, aprofundou um pouco mais sua confissão:

— É que pertenço a ala mais radical. Não estou entre os que se contentam com migalhas. — E com uma cara dramática, concluiu: Queremos a metade do bolo.

A explicação de tio Salvador do motivo de seu desemprego não foi muito eficaz na família, mas o seu “queremos a metade do bolo” ficou no ar, repetida e reaplicada, tanto que sempre que se punha à mesa um prato de prestígio, como peixe, tortas e manjares, meu pai empurrava-o na direção do tio, dizendo:

— Pode servir-se da sua metade, comendador.

Tio Salvador, muito educado, não rebatia ironias e gozações. Por outro lado, estava ciente de que possuía na casa dois poderosos aliados: sua irmã, naturalmente, e Don Francesco, a quem, quando possível, levava ao bar ou a cantina para um vinho. Isso porque, embora desempregado, faturava seus cruzeiros. Nas festas do bairro, muito ativo, ganhava gratificações. Dizendo-se infeliz nos amores, no jogo de cartas encontrava compensações. Nos teatros da Bela Vista fazia pequenos papéis ou mera figuração, recebendo pequenos cachês. E nos dias de vento fabricava pipas para a criançada empinar. Todos os trocados da vizinhança iam para seus bolsos. Mas viver de ventania nunca deu fortuna a ninguém.

O grande momento comercial de tio Salvador foram as bolas. Sim, bolas de todos os tipos, tamanhos e cores. Isso aconteceu quando, certa manhã, subindo ao telhado de casa para ajustar a antena da televisão, encontrou uma bola ainda aproveitável e, olhando noutros telhados, constatou que havia outras, dezenas, lá colocadas pelo chute desastrado de meninos. Feita a descoberta, levou a escada para a rua e, tocando a campainha das casas, pedia permissão para subir ao telhado onde, dizia, acabara de cair a bola de seu sobrinho. Em poucos dias nosso quintal ficou cheio delas. Lavou-as, remendou-as, pintou-as, acondicionou-as em sacos plásticos e, por fim, vendeu todo o lote, a preços módicos, mas em outros bairros, sem dúvida, com receio de que as crianças do Bexiga reconhecessem suas redondas. Até meu pai, sempre de olho, louvou o empreendimento do tio, apesar de não encontrar nele alguma inspiração socialista.

Graças a iniciativas desse feitio, criativas e imprevistas, tio Salvador ia vivendo, se bem afirmasse que seu maior capital eram as amizades. Bom de papo. engraçado, com excelente memória para anedotas, trocava o prazer que sua companhia proporcionava por cerveja, chope e salgadinhos. Eu morria de rir do seu jeito solto, seu à-vontade, sua gíria antiga, fora de época, que ainda usava. Expressões como “Sossega, leão!” e “Já vai tarde”, que ninguém dizia mais, ele as repetia como se fossem invenções recentes do bom-humor popular. Sinal de que o tempo para ele era uma coisa só, sem divisões, o que talvez explicasse que Don Francesco, o mais velho da família, e eu, o mais jovem, fôssemos seus amigos mais chegados dentro de casa.

Não pensem, porém, que esse homem alegre era só dar corda e tudo bem. Certa vez ficou muitos dias enfiado em seu quarto sem querer nos ver e mal vendo a luz do sol na janela. Apenas mamãe entrava com a bandeja da comida e saia depressa. Doente não estava porque não perdera o apetite; nem tinha febre, mas há enfermidades não-físicas e essas também preocupam. Lembro-me, como se fosse hoje, de, no espaço de alguns centímetros de porta aberta, para a passagem de mamãe, tê-lo visto deitado sobre o cobertor, vestido, calçado e barbudo, a lançar para o teto um olhar que oscilava entre o ódio incontrolável e o desalento absoluto.

Fora do quarto comentava-se o que teria acontecido ao comendador. Meu pai chegou a acreditar que pondo afinal em prática suas idéias políticas tio Salvador complicara-se com a polícia. Roberto simplificava: aquele exílio voluntário não passaria duma grande ressaca após uma homérica bebedeira. Fúlvio via naquele recesso apenas um jeito de comover a família e garantir sua permanência no quarto do fundo. E Teresa. que se impressiona com tudo, dizia que, embora não aparentasse, titio devia estar sofrendo de alguma doença grave. Recolhera-se à espera do fim. Essa hipótese, trágica, foi a que mais cresceu e convenceu, tomando conta de toda a família.

— Alguém tem de forçá-lo a contar a verdade — decidiu meu pai. — Romilda, vá você, que é irmã dele.

Minha mãe foi ao quarto do fundo e encontrou tio Salvador na mesma posição, imóvel e soturno, a ver no teto algo que ninguém via. Ficamos todos na sala à espera da solução da charada. Minutos depois, ela voltava.

— O que ele tem? Está mesmo doente?

— Nem abriu a boca — respondeu minha mãe um segundo antes de derramar a primeira lágrima.

Meu pai não se conformou: seguiu irritado para o quarto do fundo. Antes, bateu na porta.

— Comendador, comendador.

A visita de meu pai foi ainda mais breve. Saiu bufando.

— Nem me olhou, o boa-vida. Por mim, cortava a comida até que resolvesse falar.

Houve depois outra visita feita pelos três sobrinhos adultos, Roberto, Teresa e Fúlvio; não passou duma cena de cinema mudo. Teresa ajoelhou-se ao lado da cama, implorando que falasse. Não adiantou.

Ao saírem, Roberto comentou:

— O pai tem razão, tirem a comida dele.

Mas foi o pequeno e surpreendente Don Francesco que resolveu tudo. No fim duma tarde entrou no quarto do tio Salvador e lá ficou alguns minutos. Depois, saiu, passou pela geladeira e retornou com uma cerveja e dois copos. Do meu quarto ouvi a voz de vovô me chamando. Era para ir ao bar comprar mais cerveja.

Já anoitecia quando Don Francesco reapareceu na sala. Sentou-se com uma cara de tristeza, malfeita porque não sabia ser triste.

Minha mãe:

— Que doença é?

Don Francesco sacudiu a cabeça.

— Ele está bom, de saúde está bom.

— Então tem o quê?

O nono apertou o coração com a mão espalmada.

— Il cuore.

Minha mãe precipitou uma conclusão aparentemente lógica.

— Se sofre do coração, está doente.

Don Francesco mostrou um sorriso esmagado entre os lábios secos. Guardava ainda na boca a charada de tio Salvador, como se isso lhe desse alguma espécie de prazer. Só falou porque o cercavam de interrogações. Mas agora foi a vez de ele perguntar.

— Conhecem Norma Simone?

— Que Norma Simone? estranhou meu pai, franzindo a testa.

— A atriz? — lembrou minha mae.

Don Francesco confirmou com a cabeça, os braços, o corpo todo num movimento convulso.

— Que ele tem com ela? — quis saber meu pai, fazendo uma cara tão diferente que nem parecia um Marino.

— Não tem nada — respondeu o velho, como se nada fosse pior que tudo.

Tio Salvador, como já disse, às vezes fazia pequenos papéis e figuração em peças teatrais. Na última, trabalhara com Norma Simone, mais conhecida pelo cinema e televisão. Nessa se dizia coadjuvante porque tinha uma fala: “— Parece que vai chover, dona Beatriz.” Ao que Norma respondia: “— Acho que sim, Bonifácio”. Durante os ensaios e toda a permanência da peça em cartaz não se trocaram outras palavras nem sobre o tema meteorológico que os unira na ribalta. No entanto, o breve contato fora suficiente para que Bonifácio se apaixonasse por Beatriz, como Romeu por Julieta, paixão que não cessou quando a peça concluiu a carreira. Levou seu grande e inútil amor ao quarto do fundo, fechou a porta e reviveu-o quinze dias como um teipe projetado na parede.

À noite, a família reunida, o tresloucado amor de tio Salvador foi o assunto e a farra. Lembro-me dela como a Noite das Gargalhadas, liderada por Roberto, que gargalhou até ficar roxo e precisar de tapas nas costas.

— Ele pode não dar sorte com mulheres, mas que tem bom-gosto, isso não se discute!

Fúlvio, entre risadas, repetia:

— Logo Norma Simone, a maior beleza do País!

Para Teresa esse nome soava como um palavrão.

— Que atriz? Ela não passa duma sem-vergonha! Apareceu quase nua num filme.

— Garanto que Tio Salvador assistiu ao filme! — ironizou Roberto.

Minha mãe, preocupada com o irmão, certamente não compartilhava da gozação dos manos, nem dos risos discretos de papai.

— Doença ou paixão, ele não sai daquele quarto e vai acabar morrendo lá! — profetizava.

— Pode deixar — tranqüilizava-a Roberto, gracejando. — Quando entrar em agonia chamaremos Norma Simone; assim Bonifácio morre feliz.

— Nesse caso seria melhor trazê-la agora, antes que ele morra — brincou o pai.

— Ela não viria, pai, sem um gordo cachê. E onde iríamos arranjar o dinheiro? —— perguntou Fúlvio.

— Vendendo os castiçais! — sugeriu Roberto, iniciando nova seqüência de gargalhadas.

Quem sabe, nessa noite, ouvindo a sugestão do neto, Don Francesco lembrou-se dos castiçais, há alguns anos esquecidos no baú. Pode ser que seu ousado projeto tenha começado ali, em plena desgraça sentimental de tio Salvador. Sempre sobra algo bom dos males alheios.

No dia seguinte, ensaiava-se uma visita conjunta da família ao refúgio de tio Salvador, para lhe implorarmos que se pusesse em posição vertical e voltasse a viver, quando a porta da sala foi empurrada e, alegre, bem-disposto, banhado, barbeado, perfumado, tio Salvador surgiu diante de nós, como se nada tivesse acontecido, e logo perguntou:

— Como é, não se almoça nesta casa?

Imediatamente nos reunimos ao redor da mesa para o almoço. Ninguém perguntou nada sobre Norma Simone, porque tio Salvador, de língua solta, falou o tempo todo, variando e remoendo assuntos, política, molhos italianos e franceses, corridas de Juan Manuel Fangio, uma nostálgica reminiscência dum filme do Raul Roulien, a renúncia do presidente Jânio Quadros e uma certeza: sua participação nas próximas festas da Achiropita já em preparo no bairro.

Assim que tomou o café, tio Salvador, reapaixonado pela vida, despediu-se e saiu para a rua. À porta, vimos seu peito crescer, cheio de ar novo, e então ele se pôs a andar ágil e desinibido, a olhar pessoas, casas e logradouros como se fosse um turista no Bexiga.

Corremos às janelas.

— Será que vai procurar a tal de Simone? receou minha mãe, a julgar pelo impulso das pernas de tio Salvador.

Receio logo desfeito porque uma hora depois o comendador era visto num botequim do bairro, rodeado de amigos, a bebericar.

Engraçado, eu que fiquei triste ao lembrar disso muito tempo depois: se o tio estava mesmo curado daquela paixão por Norma Simone talvez não entendesse meu namoro com Mafalda. Tudo deveria ter sido mera curiosidade. Mas sua doença pela atriz era história velha. O coração continuava, sensível, tanto assim que na próxima oportunidade que me viu só, sorriu, interessado, e foi perguntando:

—Tem visto Mafalda?

— Eu a tenho evitado um pouco por causa do baile. Prometi que ia, mas há o problema da fantasia.

— Ah, sim, a fantasia! Não esqueci. Confie em mim, artista, vou dar jeito nisso.

Não era um interesse superficial. Quis saber mais coisas: o que eu sentia ao ver Mafalda e principalmente o que sentia quando não a via. Disse ser o primeiro amor inesquecível, uma grande marca na vida, fosse qual fosse o resultado.

        — É quando a gente descobre que existe a cor, o perfume, a música, a poesia. . . Descobre que não somos apenas um monte de vísceras. Entendeu, artista?

Apesar das palavras estimulantes do tio, sonhei aquela noite que estava num palco diante da atriz, que era Mafalda, dizendo: “— Parece que vai chover, dona Beatriz”, e ela me respondendo num tom de estrela e patroa, como Norma Simone no passado: “— Acho que tem razão, Bonifácio”.

 

                    BREVE HISTÓRIA DE UMA TARDE

Segundo um milhão de histórias os pais de Mafalda deveriam me repelir porque os Marino não eram ricos, enquanto os Ricardi prosperavam fabricando molas para automóveis. O pai de minha namorada, seu Vitor, que já havia sido Vitório, era um gordão camarada, sempre disposto a abraçar as pessoas, não porque gostasse delas, mas porque a vida lhe corria bem. Ainda hoje lembro-me dele saindo de casa apressado e entrando contente em seu Oldsmobile, sob o olhar invejoso de vizinhos. Se notava esses olhares fingia perfeitamente que não, pois a boa sorte nos negócios fazia de Vitor um homem superior às mesquinharias do mundo. Dava a partida no carro com segurança e bonita altivez como se pilotasse um avião. Foram as imagens que me ficaram dele. partindo ou chegando, sempre em movimento. Devia levar muito a sério o slogan: São Paulo não pode parar.

A mãe de Mafalda, dona Sofia, eu conhecia melhor, era mais fácil porque parava, sentava e oferecia chá com bolachas. Já fora, sabíamos, mulher simples, operária da fábrica de tecidos que seu Vitor gerenciava. Depois do casamento, com os sucessos industriais do marido, a compra da casa e do automóvel, a entrada como sócios em diversos clubes grã-finos, afinou a voz, aprendeu novos gostos, perdeu o que restava do sotaque italiano, freqüentou modistas e tornou-se chique e educada. O hábito de oferecer chá às visitas assinalara o início dessa total transformação.

— Tome uma xícara, é chá inglês.

Então eu apurava ao máximo o paladar para não perder a menor parcela da qualidade anunciada.

— Uma delícia, dona Sofia!

— Gostou? Então prove os biscoitos. Não são aqui do Bexiga, Vitor os comprou num armazém de produtos importados. Franceses, acho.

Eram chilenos, dizia o rótulo da lata de biscoitos, o que não impediu que eu fizesse uma concentração gustativa, mordendo-os lenta e caprichadamente. Essa postura de rapaz de bom-gosto bastou para convencer dona Sofia de que era digno da amizade da filha, de pisar naqueles tapetões felpudos e sentar-me em suas poltronas de luxo. Se Mafalda tivesse de ter um amigo, que fosse um rapaz assim.

— Gosta de música clássica? Toque para ele, Mafalda.

Minha namorada, geralmente de má vontade, sentava-se ao piano e tocava. Evidentemente o teclado não era sua vocação, Mafalda lutava contra ele, e devia ser um sofrimento cursar o conservatório musical apenas para agrado dos pais e complemento de sua educação.

— O que você vai estudar? — perguntou-me dona Sofia.

— Não sei, talvez engenharia — respondi, apenas para mostrar preocupação com o futuro.

— Pena que já não tenha o diploma — lamentou ela.

— Vitor está contratando um engenheiro. Chama-se Gérson. formou-se no ano passado. É um moço muito capaz, desses que vão longe.

Mas eu nem prestava atenção no piano nem pretendia ir longe. Meu futuro todo não ultrapassava o Sábado de Aleluia, felicidade já em fase de contagem regressiva.

Quando Mafalda terminou seu concerto, saímos, e ela foi acompanhar-me até a esquina. Segurou-me a mão com força suficiente para produzir calor e, bem junto de mim, perguntou:

— E ao baile do clube, você vai mesmo?

— Vou, Mafalda, está decidido.

— Sabe que o ingresso custa caro?

— O dinheiro meu tio empresta.

— E quanto à fantasia?

Sorri porque trazia novidades. Meu confidente, tio Salvador, estava me ajudando. Ele dissera que fantasia é problema de imaginação, não de dinheiro, e tinha razão o meu prezado boa-vida, quando me disse:

— Vestir-se de pirata, cigano, xeique, Arlequim ou Pierrot, além de não ser original, só chama a atenção quando se gasta uma fortuna — certo? Então pensei noutra coisa. Digamos na linha do horror. O conde Dráeula, por exemplo. Ele é a encarnação do mal, mas muito grã-fino.

— O conde Drácula, tio?!

— Sabe como é, não? Cartola e capa pretas, camisa branca e aqueles dentões, que qualquer bazar vende. Tem outra idéia melhor?

— Claro que não, tio! O conde Dráeula! É sensacional!

— Decidido, você irá de Drácula.

Uma lembrança, porém, travou meu entusiasmo.

— Mas gostaria de formar par com Mafalda. Nós dois com fantasias iguais. Aproximaria ainda mais a gente.

— Pensei nisso também: conde Drácula e sua senhora.

— Ele era casado?

— Sei lá! Não importa. Quer que lhe diga uma coisa? Se houver concurso de fantasia na categoria originalidade, vocês vão ganhar prêmio.

Ao ouvir a sugestão de tio Salvador, lá na esquina, ainda apertando minha mão, Mafalda por um instante ficou calada; depois, num impulso inesperado, abraçou-me e deu um beijo no rosto, já rindo e curtindo a idéia que eu trouxera.

— Conde Drácula e sua senhora! Esse seu tio é o máximo!

— Você vai gostar ainda mais dele quando o conhecer.

Mafalda teria me dado outro beijo, quem sabe melhor que o primeiro, se não fosse uma dúvida que a assaltou.

— Será que a modista saberá fazer a fantasia?

A resposta era um recado de tio Salvador.

— Meu tio está desenhando o modelo. Vou trazer para você. Não haverá dificuldade.

— Será uma noite maravilhosa! — exclamou Mafalda.

Vendo que tudo corria bem, achei bobagem as diferenças entre os Marino e os Ricardi, e fiz um convite gostoso:

— Que tal uma lanchonete amanhã?

Mais minha namorada que nunca, Mafalda respondeu:

— Vamos, sim, vai ser lega!! Telefone amanhã nesta hora. tá?

 

Tio Salvador não era desenhista, mas quando se dispunha a ajudar uma pessoa ia até o fim. Destacou uma folha de caderno, pegou um lápis de ponta grossa e em dez minutos traçou o modelito duma elegantérrima senhora Drácula.

— E a minha fantasia, tio, como vai ser? — preocupei-me.

— Sossega, leão, seu caso e mais fácil.

— Fácil, como?

— Vamos alugar na Loja do Ator, telefonei para lá. Tem um Drácula à sua espera. Basta acertar as medidas.

Tio Salvador dobrou o modelo de Mafalda e me entregou. Ía saindo do seu quarto, quando me lembrei do compromisso com Mafalda, na lanchonete.

— O senhor tem algum trocado? Vou lanchar amanhã com Mafalda.

Ele enfiou imediatamente a mão no bolso:

— Leve o que eu tenho.

— Não fará falta?

— Domingo ganhei algum dinheiro vendendo moedas antigas na praça da República.

Ignorava esse hobhy ou mania do comendador.

— Coleciona moedas antigas?

— Não coleciono, apenas vendo — disse sem explicar muita coisa. — Há gente que paga o que se pede por um velho quatrocentos réis ou dez tostões. É o gosto de pegar na mão um pedaço do passado.

Quis perguntar onde arranjava as moedas mas temi ser indiscreto com quem me fazia tantos favores. Além disso, já vivia o dia seguinte, quando me encontraria com Mafalda.

 

                     À TARDE NA LANCHONETE: OS EPIÕES

Tentei muitas vezes descrever meu encontro com Mafalda na lanchonete: fracassei. Não que o tempo tenha apagado os diálogos. É que não consigo descrever sensações. Para quem passasse pela rua e olhasse, ou mesmo para quem entrasse na lanchonete, éramos apenas um rapaz e uma moça comendo hambúrguer e tomando refrigerantes. Vistos por fora não passávamos de figurantes da tarde. Falei dos diálogos, porém não houve muita conversa. Apenas olhares, sorrisos e pensamentos sem palavras. Monótono para quem observasse, mas não para mim.

— Gostou do modelo do meu tio?

— Perfeito, vai amanhã para a costureira.

— Dona Sofia sabe que você vai ao baile comigo?

— Sabe e está contente. Ela gosta muito de você.

— Gosta mesmo?

— Me disse ainda ontem.

— Disse? Dona Sofia?

— Ela queria ter tido um filho do jeitinho de você.

Baixei a cabeça insatisfeito com o elogio, mas Mafalda mostrando que não me queria apenas como amigo-irmão fez sua mão rastejar sobre a mesa ao encontro da minha, que caranguejou na mesma direção. Mãos juntas, como dedos elétricos, ficamos telegrafando emoções sem perceber que a tarde encolhia. Olhamos o relógio, seis horas! Nossa felicidade vespertina não podia ir além.

Acompanhei Mafalda à casa dela, ambos andando depressa. Pretendia retê-la algum tempo no portão. Segurei sua mão; ela foi livrando dedo por dedo. Um Oldsmobile vinha vindo. Era seu Vitor que chegava, trazendo no carro um rapaz, provavelmente o novo engenheiro da fábrica.

Pensei que ninguém nos vira na lanchonete; estava cego. Hugo e Júlio, dois tipos do bairro, para mim uns chatos, atravessaram a rua. Olharam-me com uma cara que não sabia se de admiração ou de inveja, ou de ambas as coisas ao mesmo tempo. Hugo parecia querer me dar um bofetão.

— Então está saindo com a Mafalda?

— Estou.

— Vimos vocês lá na lanchonete. Amiguinhos?

— Estamos namorando — respondi com firmeza.

— Como conseguiu isso com essa cara de bobo?

— Ela gosta de mim e eu dela. Só.

O que se chamava Júlio entrou no papo:

— Não acredito em namoro. Mafalda está passando da idade de namorar moleques. Vamos.

Se fossem um e não dois, e do meu tamanho, brigaria, mas preferi reagir com fatos.

— Duvidam, sabidos? Então vão ao baile do clube, no Sábado de Aleluia. Estaremos lá.

— Os pais dela sabem? Cuidado! Eles podem soltar os cachorros!

Tiro fora do alvo. Esfriei um pouco e respondi:

— Estou sempre lá com os velhos, tomando chá. Já que gostam de espionar deviam saber. Tchau pra vocês!

O namoro com Mafalda já semeava despeito entre os rapazes do bairro. Ouvi então Hugo dizer ao amigo qualquer coisa assim:

— O pai de Mafalda já está sabendo que o velho Francesco foi buscar uma herança na Itália?

— Aposto que sim.

Tive vontade de berrar um palavrão, mas achei que doeria mais não espichar o papo. E fazer cara de quem já ganhou.

 

Certa manhã ao entrar na sala de jantar vi meu pai e Fúlvio debruçados sobre um mapa em cima da mesa. Reconheci-o, era meu; o que ignorava era o interesse deles por Geografia.

— A esta altura ele já deve estar aqui — garantiu meu pai a Fúlvio fazendo um pingo a lápis no Oceano Atlântico.

— Já bem perto da África.

Fomos espiar o pingo que cresceu aos olhos de todos. Afinal, era um transatlântico.

Minha mãe fixou o pingo com ternura.

— Será que ele vai enjoar a bordo?

— Don Francesco enjoar? — rebateu meu pai. — Você não o conhece. Tem o melhor estômago deste mundo. Nunca sofreu uma dor de barriga.

Cansado de ficar vendo o pingo fui para a cama onde me pareceu mais fácil imaginar Don Francesco em sua viagem. Lá estava ele no tombadilho olhando o mar, com a boina na cabeça, fumando um charutinho. Vi também marinheiros e passageiros descansando em rasteiras e inclinadas cadeiras brancas. Aí minha imaginação se perdeu no mar e no céu, não reencontrando mais o navio. Em seguida, o personagem não era mais Don Francesco mas eu mesmo, num salão cheio de sons e de cores, que adivinhei ser o do clube, na noite de sua anunciada festa, repleto de máscaras e fantasias. Um salão que balançava, como se sacudido por ondas vigorosas, embora os participantes do baile, numa alegria estonteante, dançando, não parecessem se importar com isso. Entre pessoas e bolas coloridas de assoprar, que subiam e desciam, escravas do ritmo musical, eu procurava alguém naquela insensata confusão, empurrando e empurrado por piratas, ciganos e palhaços, aflito, quase desesperado, sem que me contagiasse a satisfação geral. Nunca me sentira tão só com tanta gente por metro quadrado, pois quem eu procurava, com incansável insistência, parecia não estar lá. Justamente no momento em que o salão mais balançava, fato que incrementava o baile, vi a desejada fantasia, um Drácula dentuço que, apesar de suas sugestões de horror, revelava feminilidade em seus movimentos. Mesmo assim, próxima e identificada, não foi fácil alcançar a Drácula, que, não me tendo visto, misturava-se na massa de dançarinos. Precisei dar um bote de cascavel para segurar-lhe a mão e puxá-la para mim, sob o bombardeio de bolas que caíam e estouravam. Mafalda. Sim, era Mafalda. Olhou-me com um espanto tão grande que passou para os outros, parou a orquestra, a dança e os balanços do salão. Houve então um “oh!” imenso e comprido, feito em círculo ao redor de mim e com todas as luzes, milhares, acesas.

Eu fora totalmente nu e descalço ao baile do Sábado de Aleluia.

 

                  O ENIGMA DO MERCEDES PRATEADO

Os dois espiões da lanchonete espalharam por todas as ruas do Bexiga meu namoro com Mafalda. Como os antigos amoladores de facas, suas vozes entraram em todas as casas para espalhar o mexerico. Acreditei nisso porque nas calçadas ou no meio-fio sempre que um rapaz ou moça do bairro passava por mim me fixava um olhar, desses que só largam quando viramos a esquina. Moçada que nem sabia que eu existia me fitava e cochichava. Mentiria se dissesse aqui que isso fazia mal. Sentia vaidade e a impressão de ter crescido alguns centimetros. Essas reações, sempre com cara de inveja quando da parte dos homens, confirmavam o que eu achava de Mafalda: a garota mais bonita e bem-feita do bairro, e tanto, que todas as vezes que tentei descrevê-la a descrição saiu careta, sem nada a ver com ela. Quem ler, um dia, que imagine, ou que ponha outra em seu lugar, pois ainda não inventaram palavras para contar como Mafalda era.

Eu estava assim, com a cabeça nas nuvens, quando a realista dona Romilda chegou e me jogou um balde de água fria:

— Está se preparando para o reinicio das aulas, meu filho?

Eu nem estava pensando nisso, claro, mas respondi:

— Tenho dado uma olhada nos livros para esquentar os motores.

Havia mais um balde:

— Você vai estudar à noite, este ano.

A idéia não me agradava porque sabia que vinha acompanhada de outra. — Mãe, de manhã é melhor, a gente aproveita mais.

— Nem tudo é como a gente quer. Roberto e Fúlvio estudavam à noite e trabalhavam de dia.

Verdade, embora Roberto tivesse ficado apenas um ano na escola noturna.

— A senhora está esquecendo a herança de Don Francesco, e isso muda tudo, não?

Minha mãe hesitou. Era pesado estudar e trabalhar, e um caçula sempre tem privilégios, porém não tirou os pés da terra:

— A gente não pode contar tanto com o ovo... Se seu avô voltar com o saco de liras, você não precisará trabalhar até acabar os estudos e então se muda o horário da escola. Mas vá pensando num ofício que gostaria de ter.

Apesar de não estar muito preocupado com estudos e escolha duma profissão, fui ao refúgio de tio Salvador para papear sobre o assunto:

— Ainda não sei qual é minha vocação, tio.

— Você certamente tem preferência por algum tipo de trabalho.

— Acho que eu não. Todos têm uma vocação?

— Muitos já nascem com uma. Mas há gente muito boa que não tem.

Embora sabendo que o tema não era dos prediletos do comendador, perguntei:

— Qual é a sua vocação, tio?

Tio Salvador procurou pela janela e por entre as roupas molhadas do varal um pedaço de céu.

— Eu sou um homem que poderia ter sido desenhista, artista de teatro, escritor, político e não fui nada. Esta é a história de minha vida. Fim.

— Tio, eu acho o senhor fabuloso!

— Não, não sou. Do que gosto mesmo é de papear, ouvir musica e olhar a lua. Isto é bom, mas não sirvo de modelo —- advertiu. — Escute o que vou dizer. Seus tempos serão muito mais duros, sobrinho. Antigamente em toda a família havia um tio Salvador que podia ficar por fora dessa correria. Agora não é mais assim. Acho que sou o último dos tios Salvador.

Aquela tarde, não querendo pensar mais em coisas sérias, já que o pingo no mapa flutuava rumo à Itália, fui para casa de Mafalda com convite marcado para tomar chá com ela e a mãe. Aí, ao atravessar uma rua, um carrão, um Mercedes-Benz prateado, quase me atropela e pára logo ali. Olhei e o susto veio em dobro: quem estava guiando?

Encostado num poste, vi o motorista encostar o Mercedão, sair e vir ao meu encontro. Fora apanhado com a boca na botija.

— Você não viu nada disse Roberto.

— Do que está falando?

— Ora, do carro, você não viu, combinado?

Como era possível não ver aquele luxo, principalmente depois dum quase-atropelamento?

— De quem é ele?

— Ora, de quem. É meu, paspalho! Mas não vá contar nada lá em casa. Em boca fechada não entra mosquito.

Quis trocar esse contrato por uma informação:

— Como foi que comprou?

— Não interessa, garotão. Agora vá para onde tem de ir e esqueça.

Não sai do lugar, com pés de chumbo, até que Roberto voltasse ao carro e partisse. Um Marino num Mercedão daqueles, todo brilhante, e não era para falar nada! Continuei meu caminho, porém sem o mesmo impulso. O mano não precisara esperar pelo saco de liras para subir na vida! E sem comprovar a vocação profissional que me cobravam. Até onde trabalhava e o que fazia, ignorávamos. No dia em que meu pai lhe pegou no pé, respondeu: “— Sou um autônomo”. Isto é, não tinha patrão nem hora de chegar. Devia ser bom, pois rendia roupa à beça, relógio de ouro e aquele avião prateado.

— O que você tem, está doente? — preocupou-se Mafalda.

Ali estava a senhora Drácula que me fugira no sonho à minha espera no portão. E eu não estava nu.

— Nada, Mafalda, estou ótimo. E trago um presente pra você.

— Que presente?

Retirei do bolso uma caixinha; dentro, afundados no algodão, os dentões, a arma principal dos Drácula.

— Me deixe ver como fico.

Fixando os dentes postiços na boca, Mafalda começou a rir, já em tempo de festa. A alguém que passou, mostrou, para assustar, os enormes caninos. Eu trouxera os meus e resolvi colocá-los também. Pusemo-nos a rir um do outro e resolvemos dar uma volta, de boca aberta, para treinar o uso da parte mais característica de nossas fantasias. Depois do passeio os Drácula beijaram-se no portão, cena de horror tão deliciosa que só fui lembrar de retirar os dentes à mesa, na hora do jantar.

 

             UM CAPÍTULO SÓ PARA FALAR DE ROBERTO

Roberto, que em casa era mais Robertino, na rua foi chamado de Robertão assim que vestiu as primeiras calças compridas. Não era lá muito alto, mas dava a impressão de que se movia um palmo acima do nível da calçada. Ombros puxados para trás, cabeça empinada. Para os esportes não ligava, porém não perdia os bailes do clube e fazia boa figura nas festas tradicionais do bairro. Muito mais preocupado com roupas do que com os estudos, obtinha sucesso com as garotas. Todas queriam dançar com ele, pois desde os tempos do twist era um turuna nos salões, como costumava dizer tio Salvador. Acreditava-se em casa que, com tantas moças ao seu redor, Roberto casaria cedo, o que não aconteceu.

Quando entrou na casa dos vinte, Roberto começou a voar para mais longe. Parecia que a popularidade nas circunvizinhanças o incomodava. Deu de freqüentar outras distâncias, sempre caprichando no guarda-roupa, embora seu gosto, em matéria de indumentária, fosse muito contestado. As cores espalhafatosas em geral não agradavam. E seus sapatos de formatos extravagantes ainda menos. Diziam que Roberto era duma elegância fora de moda, provinciana. Um deles se atreveu a chamá-lo de cafona. O mano o nocauteou em pleno salão de baile com um soco no nariz, como já disse.

Por ter se cansado do Bexiga ou porque um marido ciumento teria disparado um tiro de revólver em sua direção, Roberto desapareceu das esquinas do bairro. Havia adquirido um hábito que favorecia a invisibilidade: o táxi. Aliás um homem como ele, digo, com aquelas roupas, destoaria numa condução coletiva. Chegando sempre tarde, parava pouco em casa. Mas o novo Roberto preocupou ao começar a faltar aos almoços dos domingos. O que haveria de melhor lá fora do que as macarronadas dominicais de dona Romilda?

—    Por onde tem andado? — às vezes lhe perguntava meu pai. — Todos têm perguntado de você.

—    O mundo não acaba na Bela Vista — respondia.

—    Há noutros lugares cantinas melhores que as nossas?

—    Quem disse que freqüento cantinas? Massas engordam, pai. E não quero ter a barriga dos Marino. Fica feio.

Outras vezes meu pai perguntava de trabalho:

— Como vai você lá no Ferranti?

— Não trabalho mais lá.

— Não era um emprego de futuro?

— Não para mim.

— O que está fazendo agora?

Roberto fazia-se misterioso:

— Estou escolhendo entre várias propostas. Me decidirei pela que pagar melhor.

Conversas breves, porque Roberto, se não estava de saída, tinha pressa de tomar banho. Depois se aprontava para nova escapada. Nunca se queixava de nada, garantindo ir de vento em popa. E, se uma vez ou outra pedia dinheiro emprestado aos velhos ou a Fúlvio, culpava a memória: esquecera-se de descontar um cheque no banco.

Para mamãe não havia nada de estranho nesse comportamento. No dia em que teve de ouvir os receios fundamentados de seu Atilho, mostrou o guarda-roupa:

— Acha que um moço sem eira nem beira, um estróina, possui tantos ternos assim?

— Tudo isso é dele?!

— Tudo, Atílio. E todos os meses compra novas roupas.

Meu pai acercava-se então de Fúlvio, o mais ponderado da família, o filho que nunca fizera loucura. Até mocinho trabalhara na tipografia do velho, e já há alguns anos fixara-se no escritório de uma imobiliária. Sua mágoa crônica: não ter podido estudar medicina.

— Sabe que seu irmão não está mais no Ferranti?

— Não sabia, pai.

— Roberto costuma lhe falar sobre a vida dele?

— A mim? Nunca.

— Não se abre com você, que é seu irmão?

Fúlvio não era companheiro de Roberto nem de bailes nem de programas. Quatro anos mais jovem que ele, pertenciam a mundos diversos. Já que não pudera ser médico, pensava em casamento, assunto que ao primogênito causava mal-estar.

— Roberto só me diz que ainda sera rico. No seu lugar, pai, ficaria tranqüilo. — E movendo a cabeça para o quarto do fundo:

— Ele não puxou nosso estimado boa-vida.

Como não conseguia desvendar o enigma da vida de Roberto, meu pai descontava no tio Salvador. Sempre que o via passar, geralmente a caminho da geladeira, cumprimentava-o:

— Lavoratore...

Ou então implicava com Teresa. Ultimamente, quando não estava ajudando nos serviços da casa, ela plantava-se à janela. Parecia esperar pacientemente pela passagem dum príncipe encantado, que chegaria ao Bexiga montado num cavalo branco. Num dia, vendo-a de lado, notei que lançava um sorriso tímido para a rua. O príncipe estaria passando? Abri a porta; nao vi ninguém. Ao mesmo tempo Teresa fechava a janela e voltava a ler fotonovelas.

Não era porém Teresa que ocupava meu pensamento. O carrão prateado de Roberto estava sempre presente, brecando a um passo de mim, ou levando-o para um mundo desconhecido. Às vezes imaginava coisas. Teria Roberto roubado o Mercedão? Seria um ladrão de carros, desses que os jornais não cansavam de falar? Essas perguntas me inquietavam tanto que nem prestava atenção quando via meu pai debruçado sobre o mapa, acompanhando o pingo-transatlântico de Don Francesco rumo à Itália.

E só esqueci Roberto certa manhã, depois do café com leite. Minha mãe entrou na cozinha, ficou me olhando dum jeito diferente, entre a censura e o espanto, e depois perguntou:

— É verdade que está namorando a filha de Vitório Ricardi?

MINHA MÃE JÁ SABE.

DIÁLOGO SÉRIO NA COZINHA

 

Levei um choque; não sabia se o namoro era proeza ou pecado.

— Eu namorando a filha de Vitório Ricardi?

— Estão dizendo.

O bairro todo já sabia. Não porque eu fosse muito conhecido, mas os Ricardi sim. Como haviam ganho fortuna em poucos anos, tornaram-se pessoas populares, sempre citadas a qualquer pretexto, principalmente quando a sorte entrava na conversa. Populares, mas não queridas, porque acusavam os Ricardi de orgulho e menosprezo às antigas relaçôes, pecha da qual nem Mafalda escapava. Ela também se afastara das outras garotas do bairro.

— Bem, tenho ido à casa deles — respondi.

Vi minha mãe fazer cara de surpresa, logo dividida com Teresa, que acabava de entrar na cozinha.

— Não diga?! Você tem ido à casa dos Ricardi?

— Tenho, sim, para tomar chá. Dona Sofia gosta muito de mim.

Minha mãe e Teresa entreolharam-se. Os Ricardi nem as cumprimentavam e agora convidavam o raspa-de-panela para tomar chá, como se fosse um de seus amigos grã-finos. Teresa quis informações mais concretas: o namoro entre pobres e ricos era o ingrediente mais comum de suas fotonovelas.

— Mas é namoro, não é?

Precisei de mais um gole de café com leite para ser mais sincero:

— Um comecinho, acho. A gente não fala muito disso. Minha mãe substituiu a cara de surpresa pela de conselheira, já tão conhecida.

— Cuidado, meu filho!

— Cuidado por quê?

— Eles são diferentes de nós. Teresa, diga para seu irmão abrir os olhos.

Eu não entendia. Diferentes em quê?

— Os Ricardi são boas pessoas. Dona Sofia é ótima. Eles se vestem bem. Algum mal nisso?

Meus argumentos não convenceram mamãe, que se pôs a retirar as compras duma cesta de feira. Imaginei o quanto se preocuparia com Roberto se soubesse do Mercedão prateado.

— O dinheiro modifica as pessoas — disse. — Não basta tomar chá com os ricos para saber como são. Evite se envolver com essa menina. Além do mais, tem de pensar nos estudos que vão recomeçar.

Eu guardara um argumento na manga da camisa:

— Nós também vamos ficar ricos quando Don Francesco voltar da Itália. E acho que não vamos mudar por causa disso.

Minha mãe ficou olhando para um ponto qualquer da cozinha e, quando pensei que não fosse dizer mais nada, disse:

— Quem sabe, meu filho, quem sabe...

 

       EU E MAFALDA, PERSONAGENS DE FOTONOVELA

Senti-me mais importante na família desde os mexericos que minha mãe trouxera da feira. Tive a impressão de que deixara de ser um menino. Fúlvio, ao saber da história, ficou a olhar-me com um sorriso repetido como uma dízima periódica. Roberto deu-me um tapa de estímulo nas costas, aprovava. Mas a pessoa mais interessada no romance, naturalmente depois do hóspede do quarto do fundo, foi Teresa. Ela que lia tudo sobre o amor, e que acompanhava a evolução desse sentimento através de quadrinhos, não podia ficar contra. E pouco lhe importavam as diferenças sociais. Nas suas fotonovelas o verdadeiro amor era aquele que conseguia saltar barreiras. Quanto mais impossível mais doce e duradouro.

Eu estava sozinho no quarto, fingindo ler os livros de estudo, quando Teresa entrou.

— Para mim você pode dizer tudo — pediu com uma nova ternura na voz. — Vocês estão namorando, não é verdade?

Comecei a falar, sentindo a cada palavra o interesse crescente de Teresa. Falei dos chás, da lanchonete e acabei revelando o ponto mais empolgante de minha história:

— Sábado de Aleluia vamos ao baile a fantasia do clube.

— E a fantasia?

— Tio Salvador arranjou uma, na Loja do Ator. De Drácula. Eu e Mafalda já temos os dentes postiços. Quer ver?

Teresa estava ávida de detalhes; saboreava cada um deles. Em dado momento tive a suspeita de que ela também me contaria um segredo de amor. Não contou. Ofereceu-me um bombom recheado com gosto de presente de namorado. Mas não fiz nenhuma pergunta indiscreta, por causa dos dez anos que nos separavam.

Meu pai não soube de nada. Toda sua preocupação concentrava-se na viagem de Don Francesco. Não pensava noutra coisa. Às vezes, dava um murro na mesa ou nas paredes. Sua impaciência chegava aos punhos.

— Calma — dizia-lhe minha mãe. — Don Francesco não foi à Europa de aeroplano.

— Eu sei, mas dá licença de ficar nervoso?

— Isso adianta alguma coisa?

— Adianta, sim. Alivia!

— Veja, você está derrubando a pintura!

— Não faz mal, quando o dinheiro vier a gente muda daqui.

— Mudar do Bexiga, onde nascemos?

— Vamos para o Morumbi! — berrou meu pai, socando novamente e com mais força a parede da sala. E saiu de casa.

Eu e minha mãe fomos à janela. Vimos meu pai dar um murro no poste.

Tio Salvador, mais calmo, afirmava que, segundo seus cálculos, Don Francesco chegara a Nápoles. Duas horas de viagem de trem ou ónibus e estaria em Chiaromonte. Seria bem ou mal recebido pelos parentes? Era a questão. Mas não tratávamos apenas da herança. Ele falava de músicas e livros de que gostava. Seu cantor predileto era Bing Crosby, que costumava imitar, no banheiro, e seus livros mais queridos, os de aventura e mistério, como O capitão Blood e Ella, a feiticeira. Quanto ao teatro, havia uma peça que vira no TBC, lá na Major Diogo, à qual sempre se referia com paixão: Nick Bar; álcool, brinquedos e ambições, de William Saroyan. Lembrando teatro, dava a impressão de que falaria de Norma Simone, mas não, e nunca. Acendia um cigarro e permanecia muito tempo em silêncio.

— Vamos à Loja do Ator disse um dia. — Precisa experimentar a fantasia. Se está curta ou comprida dão um jeito.

Fomos, Tio Salvador era conhecido lá dos tempos de Beatriz e Bonifácio. Mostraram-me a fantasia. Fui vesti-la num quartinho. Morri de rir ao ver-me refletido num espelho. Trouxera os dentes, coloquei-os na boca.

— Você vai abafar como Drácula! — exclamou tio Salvador. — Mas a fantasia precisa de reparos. Veja as mangas como estão compridas! E este bolso, descosturado. — E, muito exigente, prosseguiu: — A gola também não me parece em ordem.

O encarregado da loja:

— Pode deixar, Salvador, vamos deixar tudo na melhor forma.

— Fica pronta para Sábado de Aleluia?

— Não tenham dúvida. — E dirigindo-se a mim: —Você vai ter uma noite inesquecível, rapaz.

Diante de duas pessoas muito mais idosas, fiquei até com pudor de ser jovem e de poder gozar duma felicidade com data marcada, como seria a minha no baile de Aleluia.

À saída, não resisti:

— Vou encontrar Mafalda. Quero que ela saiba que já experimentei a fantasia.

— Vá ver a namorada, garoto! Não há nada melhor a fazer em sua idade.

Corri para a rua de Mafalda como quem disputasse uma prova de velocidade. Encontrei-a saindo dum armazém. Sempre que a via me parecia mais alta e mais adulta. Contei que voltava da Loja do Ator. Ela informou que a sua fantasia já estava sendo confeccionada. A costureira seguia à risca o modelo de tio Salvador.

Entusiasmado, e ainda com trocados no bolso da numismática do tio, arrisquei:

— Vamos à lanchonete?

Ela abriu a boca para dizer “Vamos”, mas uma lembrança lhe travou a língua.

— Hoje? Não.

— Por quê? Voltamos numa hora.

Seu não tinha este motivo:

— O Doutor Gérson vai passar em casa e os velhos querem que eu ajude a fazer sala. Uma chateação.

Cheguei a supor que ela mentia, mas, ao aproximarmo-nos de sua casa, vimos um belo carro esporte parar diante do portão e dele saiu o jovem engenheiro que ia trabalhar na fábrica de seu Vitor.

 

Os anúncios dos jornais e a publicidade da televisão faziam uma festa da volta à escola. Eu não compartilhava dessa alegria. Difícil interessar-me pelos estudos com o pensamento todo voltado à Mafalda e ao baile do clube. Além do mais, não estava acostumado a estudar à noite. Da minha carteira às vezes dava para ver a Lua; ficava orbitando em torno dela. Sentia-me preso na classe e sob a ameaça de trabalhar de dia. Então, quase não sobraria tempo para ver Mafalda; apenas nos fins de semana, se ela não viajasse com os pais. A salvação seria o regresso de Don Francesco com o saco de liras. Onde estaria o pingo-transatlântico naquele momento?

Meu pai, mão inchada de tantos socos, protestava:

— Já que chegou à Itália, por que aquele velho não escreve? Não manda ao menos um telegrama? Um cheguei bem ponto.

Tinha razão, concordava minha mãe.

— Vou à igreja — decidiu um dia. — Pedirei para que Don Francesco dê notícias o mais depressa possível.

Seu Atilio não era muito religioso, porém apegou-se à idéia:

— Vá, sim, e diga para a Nossa Senhora da Achiropita dar um puxão na orelha dele. Isso não se faz. Viaja sem avisar ninguém e nem uma palavra nos manda. E ficamos nós aqui preocupados com sua saúde.

Alguns risos foram ouvidos pela casa, pois não era por causa da saúde de Don Francesco que meu pai andava dando socos nas paredes. O fato é que minha mãe foi empurrada até a porta, já que decidira ir à igreja.

 

               OUTRA TARDE MUITO ESPECIAL

Desde que Mafalda não pudera ir comigo à lanchonete meu desejo de revê-la aumentou. No dia seguinte fui tocar a campainha de sua casa. A empregada informou que havia saído. À noite, depois do colégio, ao passar pelo seu portão, desvio de itinerário que eu fazia na remota esperança de vê-la àquelas horas, ouvi o piano da sala. Sua mãe devia estar obrigando Mafalda a tocar para o engenheiro cujo carro vi estacionado ali.

No dia seguinte tive mais sorte: Mafalda não queria ir à lanchonete, mas me convidou para entrar e tomar chá com ela e a mãe. Estava muito feliz, à noite iria ao teatro com conhecidos assistir a uma peça proibida para menores. lá não lhe barravam a entrada; passava por dezoito. Comigo, quando o espetáculo ou o filme era proibido, não adiantava nem tentar.

Descobri que não me era possível ficar um dia sem ver Mafalda. Seria como perder um pedacinho da vida. Podia vê-la à saída do colégio, mas ela estudava no Jardim América. A tarde eu passava pela sua rua diversas vezes forjando um encontro “casual”. Nem sempre tinha sorte. Aí, ficava na esquina com os olhos no portão e nas janelas. Resolvi telefonar. Quem atendia era geralmente a empregada. Uma vez disse que Mafalda não podia atender porque estava estudando piano. Desconfiado, fui para perto da casa dela e não ouvi piano algum.

— Não se aborreça por causa disso — conformou-me meu tio. — As garotas da idade de Mafalda têm indisposições periodicas e não gostam de falar disso. Entendeu?

Entendi, mas decidi não telefonar mais. Se ela quisesse dar uma desculpa, para não me ver, pelo telefone seria mais fácil. Preferível enfiar o dedo na campainha.

— Mafalda não está, volta mais tarde — dizía a empregada.

Eu ia dar um giro, ver cartazes à porta dos cinemas, uma hora depois voltava. Às vezes Mafalda recebia-me no portão, não sabia se para espiar a rua ou para se livrar mais depressa de mim. Explicou-me tio Salvador que a desconfiança é própria dos namorados. Achei a explicação boa, pelo menos até o dia seguinte.

Uma tarde, Mafalda concordou em irmos à sorveteria e depois darmos uma volta no quarteirão. Mas não estava feliz como da vez na lanchonete, e seu pensamento parecia estar longe. Tinha a cara que eu próprio fazia quando ela não podia me ver, a de quem levara um bolo.

— Como vai a fantasia?

— Que fantasia? Ah, sim, a fantasia! A costureira está fazendo. Não lhe disse?

Segurei sua mão; há coisas que se sente melhor com os dedos. Mafalda permitiu, mas quando nos reaproximávamos do portão livrou sua mão da minha com receio de que fôssemos vistos.

— Amanhã passo por aqui disse na despedida.

— Amanhã não, vou sair.

— Aonde você vai?

Mafalda não ouviu ou fingiu não ouvir a pergunta. Continuava alheia como no começo do encontro. Só olhava atenta para os carros que se aproximavam. Então a janela se abriu e nela apareceu a empregada, que, por mímica, avisou-a de que a chamavam ao telefone. Mafalda despediu-se de mim e entrou correndo.

Devo ter voltado para casa com uma cara estranha, tanto que minha mãe perguntou:

— O que aconteceu com você?

— Comigo? Nada.

— Aquela menina não lhe aprontou alguma?

— Mamãe, que idéia!

Fui para o quarto. Teresa, com quem mamãe devia ter murmurado alguma coisa, apareceu.

— Você está aborrecido?

Tentei sorrir, o sorriso saiu errado.

— Por quê?

— Nada, mano, é que está esquisito. Brigou com ela?

— Não brigamos.

— Mas vocês têm se encontrado?

Teresa sabia tudo de amor pelas fotonovelas.

— Hoje tomamos um sorvete e demos um passeio.

Teresa procurou um conselho; achou este:

— Não vá se mostrar muito apaixonado, mano. Isso pode estragar tudo.

Fiz que não dava importância ao que ouvia, mas dei. Nunca escondera a Mafalda que gostava dela. Por que não, se era verdade? Então o certo seria esconder os sentimentos?

— Fique um dia sem procurá-la — disse Teresa, disfarçando o conselho com um afago em meus cabelos. — Ela o procura correndo.

Fiz isso mesmo, não fui à casa de Mafalda no dia seguinte. Nem saí para que meus passos não me levassem para lá. O dia todo no quarto, estudando. Fiquei sabendo muito de Inglês e Geografia. No fim da tarde, Teresa me trouxe café: que aroma bom!, caprichara para festejar minha decidida atitude.

Mas eu não tinha força para “castigar” Mafalda por dois dias consecutivos. Passado o dia de retiro, fui à casa dela com o coração aos pinotes. Dona Sofia atendeu à campainha.

— Que bom que veio! — exclamou.

Entrei depressinha. Não vi Mafalda na sala.

— Ela está doente?

— Oh, não, está no escritório do pai com os cadernos e os livros. Vocês estão no mesmo ano?

— Estamos, sim.

— Vou levar você até lá.

No escritório do pai, muito engraçada, de óculos, cabelos desalinhados, debruçada sobre cadernos, Mafalda me recebeu como a um salvador. Levantou-se, abraçou-me e beijou-me no rosto diante da mãe. E não me largava.

— Oh, Dani, Dani, preciso de você!

Eu não disse até agora? Puro esquecimento. Meu nome é Danilo. Para Roberto, Fúlvio e Teresa sou Dan. Na escola, desde o primário, sempre fui Dan-Dan. Para Don Francesco sou Nilo. Para tio Salvador artista, como todas as pessoas de quem gosta. Foi minha mãe que começou a chamar-me de Dani, espalhando o apelido pelo bairro.

Ainda abraçado por Mafalda e abraçando-a, perguntei:

— Precisa pra quê?

— Estou toda atrapalhada numas lições aqui. Não tenho tido tempo para estudar. Por favor, Dani, você se vira em Inglês? Se não levar tudo pronto amanhã, a professora me come viva.

Antes de responder que era razoável no Inglês, Mafalda me fez sentar ao lado dela, enfiando-me um lápis na mão. Sua respiração, descontrolada, era um SOS. Dona Sofia, tão feliz como a filha com minha presença, foi buscar chocolate quente. A lição — era uma traduçãozinha fácil — não me dava muito trabalho. Banquei malandro. Fingi que estava quebrando a cabeça para valorizar minha participação. E também para prolongar aquela deliciosa dependência. Vi, depois, que não só no Inglês Mafalda era fraca. Já que estava lá, com a mão na massa, que fizesse as demais lições. Chegou a me aborrecer tanta tarefa, principalmente a Matemática, mas o bom era ela, bem pertinho, respirando, sorrindo, mordendo a ponta do lápis, soprando os cabelos. Melhor que o chocolate, que dona Sofia serviu, para desaparecer depois. Num momento em que cansei, devagar quase parando, Mafalda me deu um beijo rápido, o suficiente para renovar as forças. Quando acabei tudo, anoitecia.

Aí entrou a empregada, fez a mímica do telefone, e Mafalda saiu do escritório deixando-nos, a mim e à minha alegria, sozinhos uns quinze minutos. Ao voltar, ela estava outra, sem aqueles problemas todos e muito agradecida por tudo.

— Amanhã vamos à lanchonete?

— Amanhã não posso. Pra semana que vem a gente dá um jeito.

Dona Sofia agradeceu também.

— Obrigada, Dani. Essa menina neste ano não está mesmo para os estudos. Nem piano tem tocado.

Não? Ela sempre mandava dizer pela empregada, quando eu telefonava, que estava estudando piano!

No portão, acordei-a para a grande lembrança:

— Sábado, agora, já é o de Aleluia.

Mafalda contraiu o rosto, quase enfeiando.

— O próximo sábado? Está certo mesmo?

— Claro! É bom ir dando uma olhada na fantasia. A minha está jóia.

Ela parecia inconformada.

— Como o tempo voou!

O que para mim custava um século para ela voava. Mas não podia me queixar. A tarde fora ótima! Horas inteiras, coladinhos, e recebendo seu sorriso, seu aplauso, à medida que solucionava os problemas. Melhor dia, nenhum dia, só mesmo uma noite, a do Sábado de Aleluia.

Ao aproximar-me de casa vi Teresa à janela vendo o mundo passar. Percebeu logo que tudo corria bem comigo.

Esteve com Mafalda?

— Fiquei a tarde toda na casa dela.

— Puxa! Que paixão!

Entrei, jantei e fui à escola. Em minha classe eu era o único que estava de cara alegre, já um ar de fim de semana ou feriado. Um sábado que começava na quarta-feira.

 

                   UM GRILO NA CUCA

Lembram-se daqueles dois caras? Os tais Hugo e Júlio? Pois bem, eu os encontrei novamente, num virar de esquina. Como se não os visse, fui passando, de cabeça baixa. Hugo me segurou pelo braço. Inventara às pressas um sorriso ironico, que Júlio logo imitou. E fiquei eu, diante daqueles dois sorrisos imbecis, cujo significado desconhecia.

— Parece que as coisas não vão bem do seu lado — disse Hugo sem desmanchar a careta de ironia.

Vendo apenas despeito, repliquei:

— Comigo vai tudo às mil maravilhas.

Os dois se entreolharam forçando ainda mais o sorriso. Foi a vez de Júlio falar:

— Você não vai mais com Mafalda ao baile do clube, vai?

A pergunta não poderia me preocupar depois da magnífica tarde na casa de Mafalda.

— Quem disse? Vocês vão nos ver no baile.

Aí Hugo desativou o sorriso, substituindo-o por uma expressão piedosa. A inveja usa várias máscaras, como estava observando.

— Nós sabemos que você está sendo passado para trás.

Nem me abalei.

— Inventem outra, essa não cola.

Júlio representou estar surpreso com minha ignorância:

— Então não sabe? Hugo, acho que cometemos uma gafe. Vamos indo.

Hugo, porém, não se mexeu:

— Se ele não sabe é bom saber.

Eram dois artistas, até achava graça. Agora fingiam ser amigos.

— Deixem de invenções — eu disse.

Hugo voltou a tocar-me com a mão:

— Nós vimos Mafalda num carro esporte de luxo. Para falar a verdade, vimos duas vezes. Quem dirigia era um moço muito bem alinhado. Um tipo metido a bacanaço. Pararam na sorveteria.

Fiz o possível para demonstrar que não era novidade para mim.

— Sei de quem se trata, Ele está trabalhando com o pai de Mafalda. Apenas amigo da família.

Hugo não ia dizer mais nada, como se aceitando a explicação, mas Júlio retomou a palavra:

— Hugo não disse tudo. Os dois tomaram o sorvete e voltaram para o carro. Aquele não é apenas empregado do pai dela, não! É namorado no duro. Os que passavam até paravam um pouco para ver os beijos. E nós, na porta da sorveteria, observando. Só foram embora meia hora depois.

Não sei que cara eu estava fazendo, se de crença ou descrença. Hugo fez um sinal para Júlio parar de falar. Acrescentou:

— Agora que sabe, não banque o boboca. Essas coisas acontecem. Você não é o primeiro a ser enganado pela namorada.

Não lembro direito o que disse. Teria sido mais ou menos isso:

— Se querem me pôr um grilo na cuca não conseguirão. Nem estou ligando pra essa história. Tchau!

Afastei-me depressa. Se não chegava a correr era porque o ódio pesava muito. “Vejam só do que é capaz o despeito!’. exclamava sem abrir a boca. Devem ser os maiores admiradores de Mafalda. Quanto a ela ter saído com o tal Doutor Gérson, no carro dele, isso pode ser, mas nada mais.

Em casa evitei os olhos de Teresa e de tio Salvador. Deitei na cama com um livro de estudo aberto ao lado. Quando me viam estudando, não me perturbavam. Ao anoitecer fui para o colégio, porém não entendi uma só palavra do que os professores disseram.

               GOSTAM DE MÚSICA? ENTÃO VENHAM

Na manhã seguinte levantei tarde. Minha mãe disse que eu estava com os olhos vermelhos e pingou colirio neles. Temi a hora do almoço quando, diante de todos, podiam desconfiar que algo de estranho se passava comigo. Mas não chamei a atenção de ninguém.

Meu pai e tio Salvador conversavam animadamente sobre as reformas de base anunciadas pelo governo.

Agora a coisa vai — garantia meu tio. — Teremos reforma agrária e a remessa de lucros para o exterior será controlada. A terra pertencerá a quem quer trabalhar nela e nossas divisas não vão voar para fora das fronteiras. O governo federal está certo e o povo está com ele.

Meu pai não se mostrava tão otimista:

— Nem todos estão de acordo com essas reformas. Leia os jornais, Salvador. As elites estão contra as reformas de base. Dizem que são idéias esquerdistas.

O comendador, falando mais que de costume, e com um entusiasmo que desconhecia nele, protestava:

— Não se pode confundir nacionalismo com esquerdismo. As reformas são nacionalistas, O resto é intriga. Querem é jogar a classe média contra o governo para que nada seja reformulado neste País.

Apesar da animação da conversa, da qual Fúlvio também participava, não me interessei, O que ouvia eram ainda as vozes de Hugo e Júlio. Haveria alguma verdade no que disseram?

— E os militares, de que lado estão? — indagava meu pai.

Eu me perguntava se seu Vitor e dona Sofia sabiam que Mafalda andava passeando de carro com o novo engenheiro da empresa. Aprovariam isso?

— O que sei — respondia tio Salvador — é que a maioria do Congresso apóia as reformas. Não é o importante?

Para Mafalda seria importante se os pais aprovavam ou não os passeios? Ou preferia que ignorassem?

— Há muitos vira-casacas no Congresso. Um dia estão dum lado, outro não.

Talvez os pais de Mafalda opusessem alguma resistência, mas ela encontraria um jeito de fazer com que mudassem de opinião?

— Estejam certos duma coisa — disse Fúlvio agora. — A corda arrebentará do lado mais fraco.

E qual seria o lado mais fraco? Eu ou o Doutor Gérson? Fui o primeiro a deixar a mesa, esquecido da sobremesa.

Resolvi ficar a tarde toda de plantão na rua onde Mafalda morava. Vi seu pai pegar o Oldsmobile e ir para a fábrica. Se ela saisse para fazer alguma compra, não perderia a oportunidade. Quem saiu foi a empregada. Decidi aproximar-me da casa de Mafalda: apertava ou não a campainha? Perto do portão ouvi o piano. Ao invés dos estudos do conservatório, ela tocava o Samba de uma nota só. Em seguida, Corcovado. Nunca a ouvira executar tais músicas e surpreendeu-me seu desembaraço. Agora era A garota de Ipanema.

Meu dedo fez o que eu ainda não queria: apertou a campainha. Dona Sofia apareceu à porta, sorriu e me convidou a subir as escadas. Beijou-me o rosto, à Teresa, com a ternura da mana, e me levou direto para a sala.

Mafalda, empolgada pela música, muito alegre, não interrompeu o trabalho das mãos para cumprimentar-me. Ao terminar o número, abraçou-me. Mas não quis conversar, logo iniciando outro sucesso da bossa-nova. Afundado no mesmo sofá onde se sentava dona Sofia, sempre muito carinhosa aquela tarde, procurava descobrir em Mafalda algo que comprovasse os mexericos. O que notava a mais em minha namorada era apenas uma grande felicidade expressa em sons. Desejava papear com ela, mas seu repertório não permitia. Quando terminava um número se voltava para mim, perguntando:

— Conhece O barquinho? Ouça.

Mais tarde fomos tomar chá com dona Sofia. Com a mãe dela perto não dava para conversa mais solta. Mafalda falou o tempo todo das músicas que aprendera. Ela própria não entendia como estava tocando com tanta facilidade.

— Os estudos do conservatório são técnicos demais. Gosto de tocar com o coração — explicava.

Quando eu mastigava a última torradinha a empregada apareceu com a mímica do telefone, já conhecida.

— É uma amiga do colégio — disse Mafalda. — Vamos nos despedir, Dani. Essa fala pelos cotovelos.

Levantei-me, perguntando com a voz tremida:

— Então sábado a gente vai no clube?

Mafalda, já no corredor, a caminho do telefone, respondeu:

— Claro, Dani, se não houver um contratempo.

Daí, tudo foi esperar o sábado.

 

                     É HOJE, DANI!

— É hoje, artista! — exclamou tio Salvador ao ver-me na manhã do sábado. — Animado?

— Ainda é cedo para isso, tio.

— Logo depois do almoço vamos à Loja do Ator.

Preferi não dizer ao comendador o que Hugo e Júlio haviam me contado sobre Mafalda. Aliás, o que queria mesmo era esquecer tudo aquilo. No caminho da loja, tio Salvador parou em dois botequins para beber vinho. Disse que estava muito feliz com as reformas de base e precisava festejar. Num dos botequins apresentou-me um amigo seu, homem baixo e forte, duns sessenta anos, ex-cantor de óperas, chamado Gianini.

— Este é meu sobrinho, Gianini. Esta noite ele vai num baile de Aleluia a fantasia.

Gianini, que talvez não entendera, levantou um copo:

— Bebo a isso!

Na Loja do Ator o balconista que me atendera da primeira vez estava lá.

— O seu Drácula está em ordem, rapaz! Agora é vestir e farrear! Bom divertimento!

Ao voltarmos para casa, eu levando sob o braço a fantasia embrulhada, tio Salvador falando no Gianini e nas reformas, vi um Mercedão prateado passando velozmente. Deu para reconhecer o motorista: Roberto. Um poste, dobrando no alto, tomou a forma dum ponto de interrogação. Se o mano roubava carros, como é que circulava com eles pelas ruas desinibidamente?

— Vá para casa — disse tio Salvador. — Reencontro o Gianini no botequim. Ele sabe tudo sobre as reformas.

 

Teresa insistiu para ver a fantasia. Desfiz o embrulho.

— Você tem coragem de vestir uma coisa tão ensebada assim?

— Está ensebada?

— Está, sim, e cheirando mal. Mafalda vai ficar enojada. Mas deixe por minha conta, Dou um jeito.

E deu mesmo, mas não foi moleza. A tarde inteira Teresa trabalhou tirando as nódoas da fantasia, lavando-a a seco, reapertando os botões e refazendo parte do serviço feito pela Loja do Ator. Então, sim, ficou nova, traje dum Drácula que assombrava sem causar repugnância. Formidável, Teresa!

Depois do jantar teve início, diante do espelho do quarto, a nervosa transformação de Dani em Drácula. Senti-me um pouco mister Hyde, aquele personagem de O médico e o monstro, se leram e acompanharam o efeito daquela beberagem diabólica. Mas o efeito mais forte, impressionante, estava na cartola e muito mais nos dentões, que já colocava com alguma prática.

Sim, a idéia de tio Salvador fora muito boa!

Teresa abriu a porta. Gritou:

— Venham ver o Danilo, minha nossa!

Fúlvio fingiu um grande susto. Minha mãe não fingiu, levou um susto mesmo. Roberto, por acaso em casa, enfiou a mão no bolso e, assombrando Drácula, deu-lhe uma nota de mil.

— Isto é pra você torrar, Dan.

Além da fantasia e dinheiro, tinha também alvará. Minha mãe que sempre me pedia para voltar cedo para casa, não pediu. Não teria de voltar à meia-noite para o caixão.

Fui ao quarto do fundo. Tio Salvador, que ouvia as notícias políticas pelo rádio, ficou orgulhoso. Afinal, a bolação fora dele. Fez questão de acompanhar-me até a porta.

Na rua me intimidei um pouco; todos olhavam e até paravam para ver o Drácula passar. Achei que estaria mais à vontade no salão entre os demais fantasiados. Mas como ficaria Mafalda vestida de condessa Drácula? Curioso, apressei os passos.

Toquei a campainha com pontualidade inglesa. A empregada abriu a porta e eu subi. Na sala, dona Sofia parecia esperar-me, um pouco inquieta.

— Sua fantasia está ótima — disse sem grande entusiasmo. — Espero que se divirta.

— Mafalda está se aprontando?

— Ela vai falar com você. Esteja à vontade, Dani.

Dona Sofia saiu. Logo a empregada voltava com uma xícara de café, o que significava que a espera podia ser longa. À distância, ouvia vozes, eram de Mafalda e sua mãe. Discutiam, não entendi por que, mas discutiam. Quinze minutos depois eu ainda estava lá sentado.

— Quer agora um refrigerante? — era a empregada que retornava.

— Não, obrigado. — E engolindo em seco: — Mafalda vai demorar?

— Paciência.

Ouvi uma porta bater com desdém. O telefono tocou, alguém atendeu na extensão. Seguiu-se um silêncio total dentro da casa que aproximou os ruídos da rua. Comecei a ficar impaciente, levantei, dei uma volta pela sala, tornei a sentar. Se fosse um fumante seria aquele o momento de acender um cigarro. Odiei Mafalda pela demora e quase paralelamente a desculpei, crente de como são as mulheres quando se aprontam para uma festa. Teresa, muito mais simples que ela, também demorava para se vestir quando ia ao cinema.

Afinal Mafalda apareceu. Estava de cara feia; sim, discutira com a mãe.

— Ainda não vestiu a fantasia?

Era o que mais me intrigava: por quê?

— Não vou ao baile, Dani.

Foi o que ouvi. Não sei se logo ou não, perguntei:

— Está doente?

Parecia uma oportunidade que lhe dava para mentir. Ela hesitou em aproveitá-la. Decidiu-se pela franqueza, virtude tão próxima do defeito.

-— Não estou. Dani.

— Então, por que não quer sair?

Mafalda respirava forte, precisando de muito gás para ir até o fim. Fez uma pausa como quem tem de saltar uma barreira e disse o que tinha a dizer:

— Mas eu vou sair.

Havia um espelho: me senti ridículo refletido nele. E com uma dor em alguma parte do corpo, não sabia onde.

— Vai?

— Desculpe-me, Dani — apenas informou — surgiu outro compromisso.

Eu estava ouvindo aquilo? Ou seria ilusão criada pelas palavras de Hugo e Júlio, que me pareciam presentes na sala?

— Nós tínhamos combinado. . . — murmurei ou berrei, não lembro com certeza.

Dum jeito ou de outro foi um protesto inútil. Pior que isso: irritou Mafalda. Usou o tom que ouvira na discussão com a mãe:

— A gente tinha combinado, mas mudei de idéia.

— Ainda outro dia você disse que ia comigo!

— Eu não estava mentindo, queria ir ao baile. Hoje não quero mais. Entendeu, Dani?

A sala produziu eco: ENTENDEU, DANI? ENTENDEU, DANI? ENTENDEU, DANI?

Não estava nada explicado, mas estava terminado. Levantei, com a sensação de que fora nu à casa de Mafalda. Da fantasia, apenas os dentes. Falara o tempo todo com eles na boca, Retirei-os. ENTENDEU, DANI?

— Já vou indo.

Mafalda aproximou-se mais. Para ela o sacrifício já passara, pois agora já sentia até prazer em torturar-me. Disse:

— Vou sair com Gérson. Sabe quem é, não? Estamos namorando. Ele é mais velho oito anos, mas não acho muita diferença.

Sem mover os lábios roguei-lhe uma praga.

— Até outro dia.

— Apareça sempre.

Mafalda fechou a porta. Maldita! Mas reabriu outra vez. Estaria arrependida? Disposta a apagar o que dissera? Precipitado, perdoei-a.

— Se conhece alguma moça que queira ir de Drácula ao baile posso emprestar a fantasia — ofereceu. Ficou linda!

ENTENDEU, DANI? ENTENDEU, DANI? ENTENDEU, DANI?

Desci as escadas e passei pelo portão. Dona Sofia estava à janela, certamente para me dizer algumas palavras.

— Sinto muito, Dani — lamentou com sinceridade. — Mafalda é assim mesmo. Mas você vai se divertir, tenho certeza.

— Boa noite, dona Sofia.

 

             O RESTO DO SÁBADO DE ALELUIA FOI ASSIM:

Fui andando pela rua sem saber se voltava para casa, se ia ao baile ou se me jogava debaixo dum ônibus. Não sei quantos quarteirões. Ao passar diante dum botequim, ouvi:

— Ainda não foi ao baile?

Tio Salvador!

— Não vou ao baile.

Ouvi o mais comprido não interrogativo de minha vida:

— Nnnnnãããããooooo???

Contar era reviver aquilo, voltar para a casa dos Ricardi desde o botão da campainha, passando por aquela espera toda. Resumi.

— Mafalda vai sair com um engenheiro, tal de Gérson, que está trabalhando com seu Vitor. Parece que estão namorando. Não, estão, sim, ela disse.

— Que papelão! E você, como está? Não, não precisa dizer. Aonde vai?

— Estou com vergonha de voltar tão cedo para casa com essa fantasia.

— Isso não é o mais grave. Venha comigo.

Entramos no botequim e sentamo-nos a uma mesa, os únicos fregueses. Enfiei a mão no bolso e retirei o dinheiro que Roberto me dera. Como tivera uma bela noite me dispunha a pagar a conta.

— Beba, tio, hoje eu pago.

— Vou pedir uma garrafa de vinho. Se quiser. tome um trago. O vinho ajuda nessas ocasiões.

Veio a garrafa, um copo para ele, meio copo para mim. Tio Salvador fixava o olhar num ponto ou noutro sem proferir palavra. Acreditei que sofria tanto quanto eu. Uma ou outra vez cerrava o punho e sacudia-o com ódio. Aí bebia mais vinho. Disse, mais tarde, uma frase que reservava para as más situações:

— Às vezes é assim e outras nem assim é.

Olhou espantado para a garrafa: estava vazia. Quem fizera a mágica? Pediu outra.

Com o tempo ficou mais compreensivo. Mafalda não devia ser má menina. O piano provava que não. Acreditava que ela fora sincera até as vésperas do baile, então. . . Era difícil acompanhar as voltas do raciocínio de tio Salvador a seco. Tomei um gole para entender o que queria dizer agora. Precisou de mais uma garrafa para expressar-se com maior clareza.

— Mafalda gostava de você, sim, quando era menina. Mas as mulheres e os homens não têm a mesma idade sempre. Até os quinze, talvez. . . O que aconteceu, artista, é que de repente Mafalda ficou mais velha. Você continuou nos dezesseis e ela disparou. Veja, você ainda é um garotão, um filhote de Drácula, que não sabe o que vai fazer da vida. Mafalda já pensa em casamento, suas fantasias são mais concretas. Faz muito tempo que ela estraçalhou sua última boneca. Não sei se basta como explicação. Sabe que estou morrendo de fome? E você?

Saímos do botequim e fomos para uma cantina, eu já com a mesma fome de tio Salvador. Ele pegou o cardápio e ficou lendo como se fosse uma deliciosa página dum romance.

— O que me diz duma lasanha, artista?

— Pode vir.

— Com vinho?

— Não faço questão.

— Nem eu, mas com vinho é melhor.

Apesar de Mafalda, a lasanha estava um primor. Tio Salvador garantiu que o cozinheiro caprichava mais quando o pedido era dele. Depois dum intervalo de silêncio, fiz uma pergunta que o comendador não podia responder:

— Aonde será que Mafalda foi com Gérson? — Mas risquei a pergunta imediatamente: — Que interessa? Não quero saber.

— Assim, artista, reaja. Agora, se quiser ir ao baile, eu o acompanho até a porta do clube.

— Nunca fui e nunca mais irei a um baile à fantasia — asseverei com vontade de rasgar a minha.

Em dado momento, tio Salvador, falando de seu passado, esteve bem perto de pronunciar o nome da atriz que o apaixonara. Sua boca chegou a tomar a forma dum nor, a primeira sílaba de Norma, mas desistiu. Engoliu o nome com vinho.

Subitamente a cantina começou a girar como um carrossel. Mas se nada caía e um freguês continuava cantando impassível Arrivederci, Roma, os garçãos não derrubavam os pratos nos seus vaivéns, a garrafa permanecia sobre a mesa — era a minha cabeça que dava giros. Quando acabaria aquilo?

Tio Salvador olhou-me adivinhando o carrossel:

— Como está se sentindo?

Sem alarme, declarei:

— Não sabia que vinho fazia isso. Parece que o mundo vai quebrar.

Como se perguntasse que horas são, indagou:

— Acha que pode andar?

O chão ondulava, nunca vira ladrilhos curvos. Se houvesse um jacaré na cantina, seria sinuoso como uma cobra. Haviam-me feito uma pergunta?

— Se eu segurar no seu braço dá para tentar.

O comendador chamou a conta, elogiou a comida, bebeu o resto do vinho e pagou.

— Levante-se e ande. É triste essa sensação, por isso que costumo evitar o álcool.

Apertei os cinco dedos no braço do tio e dei a partida. Os primeiros passos foram maus, os cavalinhos do carrossel aceleraram. Vi luzes circulando na minha frente. Esbarrei numa mesa. Minha cartola de Drácula caiu, um garção pegou. Depois caíram os dentes postiços, quem pegou foi tio Salvador. Chutei qualquer coisa que me pareceu uma sanfona. Uma proeza passar no estreito de duas mesas. O comendador ajudou muito.

Ao chegar à rua, já madrugada, respirei fundo. Pensei que a bebedeira se fora e larguei o braço do comendador. Quase me esborracho na calçada. Passou um carro e alguém gritou:

Volte pro caixão, Drácula!

Não achei graça, nada me faria rir, apenas prestava atenção na calçada, mais curva e ondulante que a cantina. Minha maior ousadia foi olhar o céu, aquela bola arremessada com força e raiva era a Lua. O porre tornava-se cosmico. Não vi nem senti mais nada. Caíra num poço.

Claro que cheguei em casa, mas não lembro disso. Meus ouvidos porém registraram um forte e desastrado pontapé numa cadeira e a queda dum vaso. Acenderam luzes: minha mãe, Teresa e Fúlvio. Tio Salvador, com voz mole, teve de dar explicações.

Não consegui me desvestir e não permiti que me desvestissem. Entrei sob a coberta com cartola e tudo. Foi encostar a cabeça no travesseiro e dormir. Na manhã seguinte filei o lençol, como se faz nos jogos de cartas, envergonhado. Na boca, o tão falado gosto de cabo de guarda-chuva das ressacas.

Mais tarde, todos, um a um, vieram me espiar. Olhavam o Drácula de ressaca e não diziam nada. Assim que o último saiu, arranquei a fantasia e corri para o banheiro. Ninguém me condenaria por ter bebido, principalmente depois que souberam da ursada que Mafalda me fizera.

A culpa da bebedeira foi atribuida a tio Salvador. Meu pai, zangado, avisou mamãe que ia ao quarto do fundo para expulsar o boa-vida de casa para sempre.

— Mas hoje é Páscoa! — protestou minha mãe.

Meu pai foi ao quarto do fundo bufando. Ficamos todos preocupados. Não brigou com tio Salvador. Soube que conversaram longamente sobre as reformas de base. E como era domingo e Páscoa houve um grande almoço em casa com a presença de todos, inclusive de Roberto, que estreava um terno novo.

— Como está hoje? — perguntou minha mãe, talvez fazendo alusão aos azares do meu Sábado de Aleluia.

— Ainda estou com fome — disse.

— Então vocé está novo — ela concluiu, pondo mais comida no meu prato.

 

                       O SACO DE LIRAS

 

             GIANINI, PARA VER E OUVIR

Os dias daquele março de 1964 foram muito agitados até no colégio. Não prestávamos atenção nas aulas porque os próprios professores estavam com o pensamento distante. Havia sempre muito povo nas ruas, em grupinhos, fazendo passeatas ou a caminho de comícios, realizados freqüentemente no centro da cidade. Sabíamos que não era só São Paulo, todo Brasil estava assim. A agitação não parava na porta das casas, a gente podia acompanhar os acontecimentos políticos pelo rádio e principalmente pela televisão. A nossa permanecia ligada até o final da programação. Mesmo mamãe, que dizia não entender de política, assistia a todas as entrevistas, reportagens, debates e mesas-redondas. Meu pai não tirava os olhos do vídeo, e Fúlvio, que estava namorando, despedia-se mais cedo da namorada. Quanto à Teresa, o interesse maior ainda se localizava na janela.

— Agora a coisa vai! — exclamava tio Salvador, repetidamente, esfregando as mãos.

— Acha mesmo, comendador?

— A vez do povo chegou, cunhado! Estamos no poder!

Tio Salvador, porém, não se demorava em casa. Vivia na rua desde que se levantava. Queria ver tudo e participar daquela ebulição, falar, discutir, gritar, brigar. Não era mais o boa-vida do quarto do fundo. Parecia uma chama que nunca se apagava, talvez por causa do álcool que consumia.

O amigo de tio Salvador que eu conhecera, o Gianini da voz grossa, gordo e vermelhudo, às vezes o acompanhava até nossa casa. Trazia sempre de fora uma grande sede.

— Quer um copo de água? — oferecia minha mãe.

— Água?! — escandalizava-se Gianini. — Bem, se não tiver outra coisa, aceito.

Meu pai, que pouco conhecia sobre aquela figura, perguntou:

— Em que óperas o senhor cantou? Já fui freqüentador.

— Ora, não me fale agora em óperas — protestou Gianini. — Meu palco hoje é outro.

Meu pai pensou no Congresso:

— Vai candidatar-se a deputado?

— Não, Atílio, que Congresso! Meu trabalho é com a gente simples nos bares, cantinas, restaurantes. Sou uma abelha do socialismo, compreendem? Mas é devagar que se vai ao longe. É ou não é, Salvador?

Num domingo, Gianini veio almoçar em casa. Minha mãe não gostou. Para quem tinha tanta fome e sede era até feio chegar de mãos abanando. Injustiça, sem dúvida. Gianini trazia seu coração, cheio de entusiasmo e crença no futuro.

— Os tempos das vacas magras acabaram — asseverava, reforçando: — Escrevam. Ganhar a grana daqui por diante vai ser sopa! O próprio governo que diz. Estamos todos de mãos dadas. Há uns que são contra — sussurrava, em confidência. — Mas eles se calam — ilustrava tapando a boca com a mão bem espalmada. — Mas quem fala alto é quem manda. Certo ou errado, Salvador?

Eu prestava muita atenção sem entender nada. Uma frase não colava na outra. Os gestos largos e as caretas naturalmente tinham sentido, mas qual? No entanto, surpresa, o enigmático discurso às vezes apontava para mim, Gianini repousou sua pesada mão sobre minha cabeça.

— Você soube escolher o tempo para ser jovem, rapaz. Pegue seu caderno e escreva.

Minha mãe fez uma pergunta de copa e cozinha, prática:

— O senhor acha que a vida vai ficar mais barata?

Gianini ficou a olhar para ela, parado, a sorrir, como se pergunta tão pueril não merecesse resposta. Bebeu mais um copo de vinho e enxugou a boca com as costas da mão. Seus silêncios também tinham significado.

Meu pai fez sua pergunta, também prática:

— E a inflação, cai?

Gianini fechou a mão como se fosse dar um soco e soprou fortemente entre os dedos, produzindo um som trêmulo e prolongado com a intenção de ridicularizar a pergunta:

— Isto é o que diremos para a inflação!

Nossos tímpanos vibraram e doeram. O efeito fora alcançado: quanto à inflação, que subia tanto, podíamos ficar tranqüilos.

O ex-cantor de óperas voltou à nossa casa muitas vezes, sempre trazendo um grande sorriso em sua cara redonda. Lembro, era o último homem da cidade que ainda usava chapéu. e bem enterrado à cabeça. Por isso, dizia, não freqüentava cinema e teatro: obrigavam-no a tirá-lo. Apenas uma vez cantou e para atender a um pedido muito repetido de Teresa. Primeiro tomou um copo de vinho, depois tomou outro, e então nos brindou com um trecho da Traviata. Não soubemos julgar a qualidade de sua voz, mas força na garganta tinha como ninguém. Verdadeiro halterofilista vocal. Notamos que muita gente que passava pela rua parou, assustada.

— Quando eu cantava me chamavam “O quebra-vidros” — informou. — Foi na Tosca ou no Guarani, não recordo, que isso aconteceu. As vidraças do teatro se partiram. Imaginem, quiseram descontar a despesa de meu salário! Conte pra eles, Salvador!

— Gianini, de fato, foi grande no canto!

— E por que não canta mais? — quis saber meu pai.

— Para dar oportunidade aos mais jovens — declarou Gianini. — E depois, tanta ciumeira! Mas não faz mal. Agora posso beber gelados. Tudo nesta vida tem seus prós e seus contras. Certo ou errado, Salvador?

As visitas de Gianini nos faziam bem, pois, de certa forma, ajudavam a esquecer a ausência de Don Francesco, que partira há mais de um mês. Na verdade, todos em casa já se revoltavam contra seu silêncio.

— Tanto tempo e ainda não nos mandou uma única linha — protestava minha mãe.

— Ele, que tem uma letra tão bonita! — acrescentava Teresa, estando ou não à janela.

Tinham razão em reclamar. Don Francesco não agia direito. Mas, numa bela manhã, parece que de sábado, o carteiro bateu à nossa porta com um envelope tão cheio de selos que só podia ter vindo de muito longe.

Eu que peguei a carta, mas minha mãe a arrancou da minha mão.

— É de Don Francesco!

 

                 AFINAL, UM CARTÃO DE DON FRANCESCO

Minha mãe, com a carta na mão, não teve coragem de abri-la, nervosa demais. Entregou-a à Teresa. A mana, decidida, foi rasgar o envelope, porém ficou com receio de fazer o mesmo com o conteúdo. Passou-o a Fúlvio, que entrava. Meu irmão, parado no meio da sala, não sabia o que fazer com o envelope.

— Vamos levá-lo ao Salvador — decidiu mamãe.

Fomos todos ao quarto do fundo.

Meu tio pegou a carta, chegou a rasgar um pedacinho do envelope, apressado, mas interrompeu o ato.

— Quem deve abrir é o Atílio. Trata-se do pai dele e não do meu.

Esperamos uma hora até que meu pai chegasse da tipografia. Minha mãe enfiou-lhe a carta na cara:

— Isso veio de Don Francesco.

— Como sabe?

— Está o nome dele no remetente.

Meu pai notou alguma resistência no envelope.

— Não é carta, deve ser cartão-postal.

— Vamos, abra isso, o que está esperando? — exigiu minha mãe.

Era mesmo um cartão-postal, durinho, colorido.

— O Vesúvio — informou meu pai.

Um dos maiores vulcões da Europa e ninguém estava interessado nele.

— Mas o que diz? — suplicava minha mãe.

Meu pai virou o cartão e leu a mensagem, mexendo os lábios sem produzir som. Então, foi de mão em mão. Ao chegar às minhas, li: NÁPOLES — LINDO, LINDO, LINDO! Não era só isso, havia a assinatura: Don Francesco.

Teresa trouxe às pressas um copo de água para meu pai, que desabara sobre uma cadeira.

— Tantos dias e ele só manda isso?! Nenhuma palavra sobre a herança? O que será que houve com Don Francesco? Enlouqueceu?

Os outros também beberam água.

— E nem diz quando volta! — espantava-se minha mãe.

— Pode ser que nem volte aduziu Teresa.

Tio Salvador teve calma e cabeça para interpretar a redação, o menos decepcionado de todos. Ficou até corado de satisfação, abanando-se com o postal.

— É preciso saber ler nas entrelinhas. No teatro chamamos de subtexto. Então, vejamos. Se Don Francesco estivesse revoltado com os parentes não daria a mínima para a Natureza. Quem se encanta com as belezas naturais é porque está gozando de paz interior. E releu com a voz conduzida pelo novo raciocínio:

— Lindo! Lindo! Lindo! Para mim está claro como água. Escrever mais, pra quê? Ele quis dizer: tudo bem, não se preocupem, volto logo com a herança, um beijo para todos — Don Francesco. É isso que leio. Acham que devia escrever um romance num cartão-postal?

Minha mãe retomou o cartão e olhou o Vesóvio já com simpatia. O assassino de Pompéia pareceu-lhe um belo recanto para piqueniques. Novamente o postal circulou entre as mãos. Lindo! Lindo! Lindo! Agradecemos a tio Salvador que nos ensinara a ler o que não estava escrito. Havíamos sido precipitados. Demos a mão à palmatória. Titio, compreensivo, bom, não a usou.

 

             INTERVALO: UM PASSEIO DE CARRO COM ROBERTO

No colégio a agitação prosseguia. Muitas vezes os professores não compareciam, iam também aos comícios. As esquinas não eram mais dos namorados e sim daqueles que discutiam o futuro do Pais. E o rádio e a televisão, com tantas notícias, estavam sempre ligados. Tio Salvador, longe do Gianini, mostrava-se mais preocupado. Havia, murmurava-se, o perigo duma contra-revolução para dar um fim ao nacionalismo crescente e às reformas de base projetadas pelo governo.

Com tudo isso acontecendo, Mafalda ficava muito para trás. E Roberto, com o carrão, também teria ficado se não tornasse a vê-lo. Desta vez ele me viu na rua, acenou e estacionou maciamente. O mesmo Mercedão prateado.

— Quer dar um passeio, Danilo? Estou fazendo hora.

Entrei naquele avião e levantamos vôo. Roberto dirigia com orgulho e segurança. Nas curvas, mostrava-me, virava a direção com o dedo, sem o menor esforço. Apertou o acendedor e acendeu um cigarro, mais para que eu visse como a coisa funcionava. Estava ventando, premiu um botão e pronto, o vidro da janela subiu. Era tudo fácil no mundo de Roberto.

— Você não contou nada a ninguém?

— Quer que jure?

— Muito bem, eles não entenderiam.

Já que Roberto me chamara, fazendo hora, no intervalo entre nosso mundo e o seu, aproveitei a oportunidade para tocar no assunto. Eu fora discreto, guardara segredo. Podia confiar mais e contar o resto. Com dezesseis anos já não era criança.

— Roberto, diga, esse carro é seu mesmo?

Não imaginava que a pergunta o ofendesse:

— O quê? Está pensando que sou motorista particular?

— Mas um carro desses custa uma fortuna!

— Nada que é bom é barato — ensinou Roberto. — Agora vou comprar uma lancha para os domingos em Interlagos. Não é nova, mas está muito bem conservada. Um dia, talvez, você dê um passeio nela.

Arrisquei:

— Você ganhou na loteria?

Roberto sacudiu a cabeça. negativamente. Emparelhou o carro com outro, dirigido por uma moça loura, sorriu para ela. Alcançou a avenida Paulista, onde se sentiu mais à vontade. Lembrei de histórias orientais sobre tapetes mágicos, o Mercedão era o tapete voador do mano Roberto.

— Então arranjou um belo emprego!

— Pelo contrário, larguei o meu. Trabalhava demais. O corpo todo doía. O bom e viver.

Ensaiei a próxima pergunta, que precisava ser bem afinada para não ofender. Substitui a interrogação por uma exclamação:

— Até parece que anda roubando, mano!

A resposta me pareceu sincera, embora nada esclarecesse:

— Roubar, eu? Gosto demais de respirar ar livre. E não sou dos que se misturam com qualquer pessoa. Um mês atrás das grades e eu seria homem morto. Não nasci para tomar café em canequinha de ágata.

Ainda bem, um alivio. Até acomodei-me melhor no banco do carrão. Mas se não ganhara na loteria, não estava empregado e não roubava. .

— Então, como comprou o carro?

— Tudo nessa vida é questão de querer — disse com uma segurança de conselheiro que me impressionou. — Entendeu?

— Não.

— Eu também não entendia. Mas, pense, por que existem as coisas boas deste mundo? Para a gente desfrutá-las. O que acontece é que há pessoas que não sabem o que é bom. Nasceram para o pior. Preferem mortadela a caviar. — Quase cuspiu ao fazer esse confronto. — Eu me considero um cavalheiro refinado. Aí está.

— Basta querer?

— Sim, mas querer com força total. É o meu caso. Quero, logo consigo. As roupas, o carrão, depois a lancha, assim por diante. Onde quer ficar? Deixo-o naquela esquina.

Não era naquela esquina que precisava ficar, mas queria andar a pé para refletir no que Roberto dissera. Fora do Mercedes sua conversa parecia menos consistente. Ao voltar para casa, o papo do mano continuava gravado nos meus ouvidos. Afinal ia conquistando o que almejava. O carro era uma coisa concreta, não ilusão. E seu guarda-roupa estava cheio de ternos novos. Basta querer. Quem sabe Roberto me passara uma grande lição que eu não assimilara.

Aí ouvi minha mãe e Teresa falando alto na sala. Pelo tom de voz, Teresa estava muito constrangida. O que acontecia?

 

                     DESFEITO O ENIGMA DA JANELA

— Com quem estava conversando da janela?

Minha irmã não sabia se respondia ou se fugia para o quarto. Pálida e desajeitada, olhava ora para minha mãe, ora para mim. Permaneci perto para lhe dar apoio. Senti que necessitava da simpatia ou tolerância de alguém.

— Quando, mamãe?

— Agora! — Entrei na sala e ouvi. — Com quem conversava?

As moças já eram muito modernas naqueles tempos, Teresa não ainda.

— Ah, sim, com um moço.

— Que moço? A gente conhece?

— Não é do bairro.

— Onde mora?

— Lá no ABC, mãe.

— Você ficou conhecendo ele agora?

A conversa transferiu-se para a cozinha, onde Teresa tomou água.

— Não, mãe, já conversamos outras vezes.

— Saiu com ele algum dia?

— Não, mãe, sempre aqui da janela.

— Como começou, se não é do bairro?

Mais água:

— Ele sempre passava de carro e sorria. Um dia parou o carro e veio falar comigo. Agora vem sempre.

— Ah, tem carro?

— Não é novo, mas tem. Nunca entrei nele — garantiu.

— Que tal o moço? — quis saber minha mãe. — Boa pessoa?

— Farid é ótimo, mãe.

— Chama-se Farid? O que ele faz?

— Mexe com tecidos. Tem um tio rico. — E depois: — Mãe, posso amanhã dar um passeio com ele? Prometo voltar cedo.

Mamãe deu a permissão; todos temiam em casa que Teresa encaihasse definitivamente.

No dia seguinte, sábado, Teresa, muito bem vestida e perfumada, ficou toda inquieta à espera de Farid. Lá pelas quatro da tarde, ouvimos uma buzina. Ela despediu-se e saiu de casa apressada. Eu e minha mãe fomos espiar à janela. Não vimos o rapaz, vimos o carro, um Citroën, provavelmente dos últimos que ainda circulavam na cidade.

Teresa e Farid saíram outras vezes. Não tardou a que, primeiro Fúlvio, e, depois, tio Salvador ficassem sabendo que ela namorava.

Roberto, ao saber, fez gozação.

— Ah, o turquinho tem um Citroên? Pensei que só restassem os dos museus.

Teresa protestou:

— Ele ao menos tem carro. E você?

Roberto olhou para mim, piscou e riu como se tivesse pena de Teresa.

O namoro de Teresa, por mais que ela quisesse cercá-lo de discrição, tornou-se assunto em casa. Logo meu pai ficou sabendo e mostrou apreensão, talvez porque o rapaz não fosse do bairro.

— Não impliquem com ela — rogou mamãe. — Teresa tem vinte e seis anos e nunca nos deu trabalho.

— Você já conhece o rapaz? — perguntou meu pai.

— Ainda não. Atílio, mas Teresa diz que é muito bom. E a família está bem, industriais.

— Por que não vem namorar aqui em casa?

No dia seguinte, mamãe, vendo Teresa enxugar pratos na cozinha, repetiu a pergunta de papai. Ela não disse sim nem não. A tarde voltou à janela. Ao ouvir a buzina, saiu.

— Os árabes em geral só casam com moças da mesma raça — disse tio Salvador ao saber do convite. Ele não virá.

Tio Salvador geralmente acertava os palpites, mas não desta vez.

Teresa voltou, mais solta e tranqüila:

— Farid vem quando quiserem.

— Poderia vir sábado — intrometeu-se o comendador, não convencido.

Minha mãe fez objeção:

— Não seria melhor esperar a volta de Don Francesco? Teríamos dinheiro para comprar móveis novos. O sofá está com as molas à mostra.

Tio Salvador intrometeu-se outra vez:

— Se ele está mesmo apaixonado não vai reparar nas molas.

— Farid é muito educado — declarou a mana, — Não é de reparar em nada.

— Que venha sábado então para o almoço — decidiu mamãe.

 

                     MUITO PRAZER EM CONHECÉ-LO

Não foram comprados novos móveis, porém minha mãe e Teresa deram uma boa arrumação na sala. O assoalho foi encerado, a vidraça das janelas, lavada, e alguns bibelôs apareceram sobre os móveis. Decidiu-se então que naquele sábado se faria um almoço especial, como nos domingos. A novidade seria a sobremesa, bolo de chocolate, receita que Teresa aprendera num programa de televisão. Tio Salvador lembrou que devíamos comprar cerveja e vinho, mas não enfiou a mão no bolso.

No sábado desde cedo a casa já tinha um cheiro bom, que ficava ainda melhor à medida que o almoço se aproximava. Ao meio-dia Teresa ficou nervosa, com receio da nota que daríamos a seu namorado. Precisou tomar calmante. Todos estavam lá, ah, esqueci, menos Roberto. Não tinha a menor curiosidade de conhecer uma pessoa que pilotava um Citroën. Para ele era deprimente.

À uma em ponto, hora marcada, a campainha tocou. Teresa, confusa, desapareceu da sala. Mamãe foi abrir a porta, eu atrás. Sobre o ombro dela vi um homem de trinta e poucos anos, baixo e moreno que ostentava um caprichado bigodinho. Seu sorriso devia estar preparado desde que desligara o motor do carro.

Dona Romilda, também nervosa, mas querendo desfazer e evitar embaraços, mostrou-se receptiva.

— Ah, você é o Farid? Prazer em conhecê-lo. Vamos entrando. Não repare, por favor. Casa de pobre.

— Ora, sou homem simples, dona Romilda. Nasci assim.

Na sala houve uma pequena fila para apresentações. Farid insistia em estar à vontade sem conseguir muito bem. Os olhares gerais o perturbavam. Quando Teresa surgiu da cozinha houve um tímido abraço, como uma cena mal ensaiada duma peça teatral, e os dois sentaram-se no sofá. Ela escolheu o trecho que as molas estavam soltas, para escondê-las. Começou aí a difícil tarefa de esquentar a conversa.

— Então o senhor trabalha com tecido? — perguntou meu pai.

— Meu tio tem uma fábrica, trabalho no escritório.

— Que tipo de tecido fabricam? — quis saber tio Salvador, o mais meticuloso no exame do namorado de Teresa.

— Que tipo? Acho que... seda. Tecidos de inúmeros tipos. Como disse, fico no escritório.

— É um gênero que sempre deu muito dinheiro — comentou meu pai.

Modestamente percebi que Farid preferia não falar da indústria dos parentes, procedimento elegante segundo mamãe, como observou depois. O momento mais crítico da visita foi quando Fúlvio, à janela, fez qualquer referência ao Citroën. Farid não encabulou.

— Não troco meu Citroën por nenhum desses carros novos que rodam por aí. Foi uma dificuldade encontrar um. Quem tem não se desfaz dele. Nunca dá oficina e anda até de tanque vazio. Teresa o adora, não?

Jamais ouvira minha irmã referir-se a marca de automóveis, mas confirmou prontamente. Farid não devia passar adiante aquela relíquia.

Veio o almoço, que aproximou mais o pessoal. Farid, bom garfo, fez os maiores elogios. Gostava, claro, da cozinha árabe, mas para ele como a italiana não havia igual. As bebidas completaram a aproximação. Mesmo Fúlvio, geralmente muito calado, falou desembaraçadamente da sua paixão pela medicina.

— E por que não entra na faculdade?

— Vou entrar quando Don Francesco voltar da Itália.

— Quem é Don Francesco?

— Meu avô, foi buscar uma herança em Chiaromonte, perto de Nápoles.

Já que Fúlvio tocara no assunto, meu pai falou das propriedades que os Marino possuíam do outro lado do Atlântico. Nunca haviam se preocupado muito com elas, das quais não tínhamos muita notícia, porém o nono, homem decidido, resolveu ir buscar sua parte em dinheiro. Aos oitenta anos.

— E quando volta?

— Deve estar estourando por aí. Já mandou um cartão-postal.

Não se tratava de gabolice, mas da intenção de mostrar que Teresa não era uma qualquer. Farid tinha tios ricos; nos, um avô que fora buscar um saco de liras. Empatados.

Deliciosa, a sobremesa! Farid gostou tanto que comeu até a parte que me cabia. Depois, educadamente, pediu desculpas. Quando saiu, quase noite, já era um amigo da casa.

Então foi a vez das notas.

Minha mãe adorou Farid, meu pai o achou um rapaz sério e Fúlvio, aprovando-o, perguntou à Teresa quando seria o casamento.

Tio Salvador, porém, estava do contra:

— Não gostei desse tal de Farid — declarou.

— Por quê? — perguntamos em diversas tonalidades. O “Por quê?” de Teresa foi o mais imediato e indignado.

— Porque ele não olha nos olhos das pessoas. Notaram isso?

Minha mãe negou seu testemunho:

— Sempre que se dirigia a mim olhava nos olhos.

— Você está inventando essa, comendador! — disse meu pai.

Tio Salvador, espremendo as últimas gotas de vinho duma garrafa, manteve sua opinião.

— Acho que nossa Teresinha podia arranjar coisa melhor. Teresa levantou-se da mesa já chorando e correu para o quarto com o ímpeto de quem vai se jogar debaixo dum trem. No lugar que ela ocupava ficou e espalhou-se um pesado e ardido mal-estar. Olhamos de cara feia para o tio. Ele levantou-se e foi para o fundo. Logo em seguida minha mãe ia lá.

— Não devia ter feito Teresa chorar.

— Ia adivinhar?

— Você falou mal do namorado dela. Coitada, ela que nunca namorou. Por que fez isso? Você o viu hoje pela primeira vez.

— Conheço as pessoas. É só olhar e zás!

— Peça desculpas à Teresa.

— Eu? Não costumo pedir desculpas a ninguém.

Vi pela porta entreaberta a mágoa de minha mãe, e logo depois ouvi algo como uma ameaça:

— Pense bem, Salvador. Atílio pode se implicar e lhe pedir pra desocupar o quarto.

Houve uma pausa apenas preenchida pelo riscar de um fósforo.

— Bem, contrariando meus princípios vou falar com ela. Mas, para você, não retiro o que disse. Falei está falado.

Tio Salvador deu algumas batidas delicadas na porta do quarto da mana, entrou, ficou lá um minuto e voltou ao seu refúgio para ouvir o noticiário radiofônico. Não voltou atrás. Sempre que encontrava espaço numa conversa, na ausência de Teresa, falava mal do rapaz a quem chamava de mascate.

A opinião de tio Salvador sobre Farid não impressionou ninguém em casa. Pelo contrário, o cartaz do moço subiu muito mais, quando, no dia seguinte, uma floricultura trouxe uma dúzia de rosas para mamãe.

Ao ler o cartão que acompanhava as rosas, derramou uma lágrima.

— Foi a primeira vez que recebi flores em minha vida. Farid ficará sempre em meu coração.

Nem essa demonstração bonita de sentimento e gentileza convenceu tio Salvador. Quando Farid chegava em casa, o que passou a acontecer diversas vezes por semana, e todos os domingos, recolhia-se ao quarto ou ia para a rua.

Certo dia garantiu para Fúlvio, na minha frente:

— Aposto quanto quiserem. que esses dois jamais casarão!

Mas Fúlvio riu-se dele logo no dia seguinte quando Farid apareceu em casa com um par de alianças. Ao ver o ouro no dedo de Teresa, então tio Salvador se calou e voltou ao seu tema favorito: as reformas de base tão anunciadas e discutidas.

 

                       AGORA, ANTONELA

Março. último dia. Lembro de mim no meu quarto lendo Memórias de um sargento de milícias, quando ouvi vozes altas na sala em tom de catástrofe. Eram de tio Salvador, de meu pai e até de Fúlvio, que devia estar trabalhando. Havia, ainda, outra voz, de um locutor de rádio, logo sintonizada num ensurdecedor volume. Deixei o livro e fui para a sala.

— Vou para a rua ver o que está acontecendo — disse tio Salvador saindo a toda pressa.

Minha mãe com uma bandeja de café nas mãos suplicava a meu pai e a Fúlvio que se acalmassem.

Perguntei o que acontecia. Tive de insistir para que res~ pondessem.

— Deve estar havendo um golpe de Estado — informou meu pai, atento ao noticiário do rádio. Estava pálido e sacudia a cabeça em desalento.

Alguém bateu na porta ignorando a campainha: o Gianini. Não entrou, falou da porta mesmo.

— Ouviram o que o rádio está dando? — perguntou. — Querem derrubar o governo. Mas esses conservadores entraram num barco furado. Contra o povo ninguém pode. Essa gente ainda hoje estará toda nas prisões. Escrevam.

— Quer ouvir o rádio conosco, Gianini?

— Vamos para a rua, que é nosso lugar ordenou o ex-cantor. — Ganhará quem falar mais alto. Me sigam.

Meu pai e Fúlvio vestiram os paletós. Acompanharam o Gianíni.

— Cuidado! — gritou mamãe à janela. — Não vão se meter em encrenca.

Nesse exato momento chegava Farid.

— Você vai com eles? — perguntou Teresa.

Farid hesitou e decidiu ficar. Se havia alguma revolução, alguém precisava ficar com as mulheres. Gentil como sempre.

O resto do dia foi todo para ficar na memória, O povo saiu às ruas cheio de espanto e interrogações. Quando fui ao empório, a pedido de mamãe, ouvi o som do rádio vindo de todas as janelas. Era possível andar sem perder o fio das notícias. Notei medo na maioria das pessoas, disse maioria porque vi alguém muito feliz, talvez, com os acontecimentos: o pai de Mafalda, que estacionou seu Oldsmobile à porta do estabelecimento para comprar charutos.

À noite fui ao colégio. Não houve aulas. A maior parte dos professores não comparecera e os que estavam lá concentravam-se na diretoria, em torno do rádio. O número de alunos ausentes também era grande. Um deles, do último ano, dizia que, se o governo caísse, seu pai teria de fugir para o exterior.

Resolvi dar um longo passeio a pé. O espetáculo das ruas era o povo reunido nas esquinas, comentando, protestando, discutindo. Lembrei das histórias que Don Francesco e meu pai contavam das revoluções de 24 e 32. Nas duas houve muita luta e morte. A de 24 desenvolvera-se em plena cidade; uma granada explodira no galinheiro da casa de vovô. A família tivera de comer meia dúzia de galinhas, banquete sob fogo cerrado, que ninguém programara. A de 32 durara três meses; perdemos. Muitos soldados trouxeram como troféus capacetes com furos de balas. Don Francesco, mesmo sem ter participado, conseguira um desses capacetes, de tão orgulhosa memória. Amava aquele capacete como se fosse um dos heróis da revolução, Não entendi quando o trocou por um garrafão de vinho,

Com muito receio de que teríamos outra vez uma revolução demorada, para a qual Roberto e Fúlvio com certeza seriam convocados, decidi passear pelas ruas. Numa delas vi Hugo e Júlio apressados e preocupados demais para gozarem do meu fracasso com Mafalda. Não havia na cidade espaço para assuntos particulares.

Cansado de andar e sem ter encontrado nenhum amigo, voltava para casa com meia dúzia de livros e cadernos, quando uma voz feminina que desconhecia me chamou pelo nome.

— Eh, Dani! Olhe pra cá! Sou eu!

A janela iluminada duma velha casa, mais bonitona que nunca, estava Antonela sorrindo para mim. Nem sei como ainda não lhe dediquei ao menos uma linha. Ela morava lá, naquele quarto de frente, com uma tia, uma das pessoas mais antigas do bairro. Como se podia ler numa cartolina quando a janela estava fechada, as duas faziam “petits fours e outros petiscos” para as festas domésticas da Bela Vista, O que não sabia, e me surpreendia, era que ela me conhecesse.

Parei diante da casa; jamais vira Antonela tão de perto e como imagem fixa. Via-a sempre à distância e a caminho de algum lugar, levando embrulhos de coisas gostosas.

— O que está acontecendo, Dani?

— Está havendo uma revolução — respondi, tentando ser natural, mas, não sei por que, estava perturbado.

— Deve ser qualquer coisa assim, pois não tem vivalma aqui. Todos saíram como doidos. Até minha tia.

A voz de Antonela também era novidade para mim, bastante grossa e um tanto rouca.

— Não houve aula no colégio — disse, sem assunto para entabular.

— Revoluções só atrapalham a vida da gente — ela comentou. — Eu nem quero saber.

O que deveria dizer? Continuei no tema da escola.

— Pode ser que fiquemos muitos dias sem aulas.

Antonela, bem debruçada no peitoril da janela, ficava ainda mais próxima. Olhei para determinado ponto.

— E você, o que vai fazer? Ficar também andando pelas ruas como os outros?

— Estou indo para casa.

— Mas não é cedo ainda? — admirou-se, quase escandalizada.

Realmente era cedo. Então, o que fazer?

— Não tenho para onde ir — disse, como se perdido no mundo.

A moça da janela estava ainda mais perto, a casa inclinando-se sobre a rua.

— Pobrezinho! — ela exclamou com muita pena do rapaz condenado por uma revolução a voltar depressa para casa. Que graça poderia haver nisso? Mas para tudo há remédio. — Gosta de petits fours?

— O que é isso?

Minha ignorância valeu outro belo e largo sorriso.

— Um petisco pequeno. Tem de vários gostos.

Nunca experimentei.

— Dani, você já está na idade de conhecer muita coisa — disse ela com um sorriso circunscrito apenas aos olhos. — Como é, vamos ao petits jours? Só comendo você vai saber como é.

Ela ia me passar o petisco pela janela ou teria de entrar?

— Vamos?

Nesse instante um Aero-Willys novo brecou rangendo os pneus diante da janela. Três rapazes acenaram alegremente e gritaram o nome dela, alheios ao clima depressivo da cidade:

— Eh, Antonela, vamos dar um giro?

— Ah, vamos! Que é que há? Sabemos que Bruno está viajando!

— Ora, prima, o que ganha em ficar nessa janela conversando com o garoto?

Por um instante acreditei que Antonela repeliria o ruidoso convite, mas imediatamente o aceitou, despedindo-me:

— Tchau, Dani! Fica pra outro dia! E aos rapazes do Aero: — Já estou saindo, moçada! Quero estrear esse calhambeque!

Assim que Antonela fechou a janela, batendo as venezianas, pus-me a andar. Mais adiante olhei para trás e a vi entrando no carro, bem-vinda, aos berros, pelo espalhafatoso trio. Logo o Aero passava por mim, levando para longe sua alegria. Bobagem, mas senti um pouco do gosto amargo daquele já tão distante Sábado de Aleluia.

 

                           A REVOLUÇÃO

Quando cheguei em casa, Farid estava só na sala. Minha mãe e Teresa, na cozinha, faziam café.

— E a revolução? — perguntei a ele.

Farid sacudiu os ombros: não lhe interessava. Entendi. Se eu namorasse com Mafalda não daria importância nem a uma guerra atômica. Teresa apareceu com o café na bandeja e um sorriso nos lábios. Também lhe era indiferente o que acontecia no País.

Fui para o quarto tentando retomar a leitura das Memórias de um sargento de milícias. Entre as cenas do livro apareceu a cena do encontro com Antonela. Como ela sabia meu nome e por que me chamara? Afinal, tinha muitos amigos aos quais oferecer seus petits fours. Terminado o período das interrogações, procuro descrever para mim mesmo a beleza de Antonela. Tarefa que tentei com Mafalda, fracassando por falta de palavras. Desta vez havia palavras, mas me atropelei com elas. O que posso dizer é que uma não tinha nada da outra, mesmo porque Antonela devia ter quase trinta anos, era alta e morava só com a tia, independente, o que dá uma cara diferente às pessoas.

Uma hora depois ouvi Farid que se despedia; mamãe e Teresa foram dormir. Apaguei a luz e pensei no escuro tudo que havia pensado no claro. Ouvi, então, vozes. Apertei o interruptor, levantei e voltei para a sala. Meu pai e Fúlvio estavam lá num resto de conversa.

— O que está acontecendo agora, pai? — perguntei.

— Um golpe de Estado, meu filho.

— Isso é ruim?

Meu pai riu nervosamente. Dirigiu-se a Fúlvio:

— Ele ainda pergunta se e ruim. Adeus, reformas! O sonho pode acabar. Vamos esperar amanhã.

— E tio Salvador?

— Ficou na rua com o Gianini. Dizem que vão pegar em armas, se houver luta. Eu não posso, por causa da tipografia, e Fúlvio tem o escritório. Agora vamos dormir. Às vezes há milagres — concluiu com uma pálida esperança.

No dia seguinte levantei cedo. Na cozinha, eu e Roberto tomamos café com leite. O primogênito não mostrava inquietação alguma; estava o mesmo do Mercedes prateado.

— Sabe que está havendo uma revolução? — eu disse.

— Ignorava — respondeu Roberto, mentindo, certamente.

— Não ouviu o rádio?

Sorrindo, replicou, fora de qualquer problema:

— Apenas programas musicais.

Não acreditei:

— Você está brincando. Papai disse que tio Salvador vai lutar.

— Mas não se preocupe você — ele aconselhou. — Cada um tem sua guerra particular. Tenho a minha trincheira, você vai ter a sua. A vida é um salve-se quem puder, percebe? Os outros, se não ajudam, atrapalham. Quanto ao governo, não importa quem esteja em cima. Se é João ou José. O principal é cuidar de nossa pele. É o que vale, a pele! O resto, conversa mole. Pura perda de tempo. — Procurou algo sobre a mesa. — Diabo! O boa-vida do Salvador deve ter acabado com a geléia.

Roberto levantou-se já a caminho de seu mundo.

— Ainda não conhece o noivo de Teresa — lembrei.

— Quando comprar um carro mais decente, apareço.

Fui para o quarto do fundo. Tio Salvador estava lá, fumando nervosamente. Minha mãe já dissera que ele voltara de madrugada, irritado, batendo portas e chutando cadeiras.

— Soube que as coisas vão mal — eu disse.

Talvez ele também pensasse assim, mas reagia:

— Sossega, leão! Espera-se hoje uma virada. A decisão vai ser no Rio. Tudo ou nada. Mas não vou ficar aqui, me coçando. Diga à sua mãe que não me espere para o almoço. Nem para o jantar. Minha vida não me pertence mais.

A passos largos, tio Salvador atravessou o corredor e a sala. Gianini chegava, quando ele abriu a porta.

— Como é, está disposto?

— Estou.

— Para o que der e vier?

— Para o que der e vier.

— Mas não é preciso fazer essa cara! Olha pro céu, Salvador! Logo estaremos festejando. Escreva hoje e confira amanhã. Estou tão confiante que passaremos no boteco do Lucas para tomar uma cerveja bem gelada. Um pouco de malte sempre anima.

À tarde fui até a tipografia de meu pai, sem motivo, só para ouvir notícias. Antes de chegar, já ouvi, bem alto, o rádio da Tipografia Marino. Era ali naquele tanto de frente por tanto de fundo, que já fora loja de armarinho, o estabelecimento onde meu pai ganhava o pão de cada dia, imprimindo cartões de visita, cartões comerciais, convites de casamento, notas fiscais, papéis timbrados, folhetos em preto e branco, propaganda de pequenas lojas e de restaurantes da região. Fúlvio já trabalhara com ele, e tio Salvador, em dezembro, mês de muito trabalho, costumava aparecer por lá, de mangas arregaçadas, como quem fosse ajudar. Mas Fúlvio não queria mais ser tipógrafo e tio Salvador ainda não. Teve de contratar um empregado, o Mandrake, um rapaz muito elegante, magrinho, que desaparecia, magicamente, nos momentos de maior aperto.

— Estou preocupado — confessou meu pai.

— Com a revolução?

— Don Francesco. A revolução talvez o impeça de voltar.

— Acha que ela vai demorar muito?

— A da Espanha demorou anos.

A conversa foi breve porque entraram um moço e uma moça para encomendar convite de casamento. Exigiram o mostruário de tipos: queriam letras góticas e douradas. Foi uma escolha discutida e feliz. Nem todos estavam angustiados na cidade. Feita a encomenda, saíram de braços dados, alegres. Nenhum impresso modifica tanto uma vida quanto um convite de casamento.

— Você talvez ainda venha trabalhar comigo — disse meu pai. — Acho que não fiz boa cara porque ele emendou:

— Isso se as coisas não correrem bem. Mas você vai completar seus estudos. Com Roberto e Fúlvio não deu certo, com você dará. O primeiro Marino a ter um diploma! Confia em mim?

Disse que confiava, fomos tomar um café no bar, vimos o casal de noivos ainda de braços dados à espera duma condução. Voltei para casa. Sim, confiava no meu pai. E confiaria ainda mais se toda sorte da família dependesse dele.

Ao entrar em casa tive uma surpresa: esperava que tio Salvador madrugasse outra vez, mas já voltara. O rádio, depois de dias, fora desligado. Com o paletó debaixo do braço dirigiu-se ao quarto do fundo.

Entrei jogo em seguida, com uma estranheza que crescia desde a porta:

— O senhor voltou cedo.

— Tudo acabado — murmurou.

— Tudo?

— O presidente Goulart foi deposto. Não houve resisténcia. Outro governo está sendo instalado. Acabou.

— E o Gianini?

— Disse que vai para a Argélia.

Em seguida chegavam meu pai e Fúlvio com a mesma notícia e novos comentários. Tio Salvador não participou deles, foi para a cama. Minha mãe bateu à porta de seu quarto oferecendo-lhe uma cerveja. Não quis.

Nos dias seguintes soubemos que muita gente se refugiava em consulados e embaixadas. Outros, políticos e estudantes, procuravam chegar às fronteiras. Meu pai mencionou alguns conhecidos cujo paradeiro ignorava-se. Quanto ao Gianini, não foi para a Argélia. Num rápido encontro com tio Salvador disse que partia, adeus!, para o Uruguai. Mas também não foi para lá. Soubemos que para ludibriar a polícia política vestira-se de mulher. Sempre que via uma mulher baixa e gorda na rua procurava descobrir nela traços do Gianini. Mas foi visto numa cantina usando seu surrado jaquetão marrom e, claro, o chapéu enterrado na cabeça. Lançava olhos sombrios a todos os lados e bebia vinho.

Tio Salvador permaneceu alguns dias no quarto, embora não tantos como na ocasião em que se apaixonou pela atriz. Uma vez em que o visitei repetiu aquela frase azeda: “Às vezes é assim e outras nem assim é”. Mas ao retornar à luz da sala mostrava-se recuperado e menos idealista.

— Ah, então só o capitalista é respeitável! Bem, seu Atilio, vamos nos tornar capitalistas também. Essa conversa de subversão não é conosco. Ontem, proletários. Amanhã, burgueses. É o maldito dinheiro que conta? Pois não nos vai faltar! Empatamos agora!

— Que história é essa? perguntou meu pai realmente não entendendo nada. — O que é que não nos vai faltar?

— Dinheiro, cunhado, dinheiro!

— Quem disse que não vai faltar, homem? Está faltando e há muito tempo!

Tio Salvador olhou a todos com gozatíva censura:

— Vocês são uns desmemoriados! Don Francesco não está vindo com as liras? — E repetiu a sintética redação do cartão-postal: — Lindo! Lindo! Lindo! Quando a herança chegar seremos capitalistas, sim, e com a maior cara-de-pau! O     Gianini que nos perdoe! Falei?

O entusiasmo do tio Salvador pelo dinheiro a caminho fez bem a todos, pois a revolução quase nos fez esquecer a herança. Boa injeção de otimismo! Teresa até sorriu, esquecendo que ele não morria de amores por Farid. Mas estranhamos que o comendador se incluísse entre os herdeiros, não sendo um Marino e tendo sempre revelado desprezo ao que chamava “o vil metal”.

Mesmo pela janela percebia-se que o País mudara. Não havia mais grupinhos nas esquinas, a polícia não permitia, e ninguém se dirigia com faixas e cartazes para comicios. Havia uma ordem de cabeça baixa, enquanto ressurgiam os assuntos do cotidiano.

O colégio reabriu as portas. Tive de mergulhar nos livros. Uma noite, vi Antonela com um homem louro e forte que a segurava fortemente pelo braço, como se tivesse medo de que ela escapasse. Mas, para terminar o capítulo, lembro a tarde que meu pai se aproximou de mim e disse em tom de má notícia:

— O dinheiro anda muito curto e acho que seu avô resolveu ficar pela Europa. Este mês ainda deu para pagar o colégio, no próximo não sei não. — E mais isto: — Você vai ter de trabalhar, Danilo.

 

               O ATESTADO DE BOM CORAÇÃO

Fiz mais uma de minhas costumeiras visitas ao quarto do fundo. Tio Salvador cantava uma música da moda, Carcará. Havia um estribilho que repetia cada vez com mais ódio: “Pega, mata e come!” Quero aqui dizer que nem todos os dias eram de otimismo para ele. Às vezes, parecia-lhe que Don Francesco viajara para a Lua. Encontrei-o num desses dias, deprimido, revoltado:

— Meu pai acha que devo arranjar emprego.

O comendador, nem sempre resignado, sempre tivera palavras para consolar os outros.

— Trabalhar é uma chateação! — exclamou. — Mas não se aborreça: muitos se acostumam.

— O senhor nunca se acostumou, não?

— Eu podia ter feito uma bela carreira, mas os ideais me atrapalharam um pouco. Esta é a história de minha vida: um homem que sonhou demais. Fim.

Um problema urgente:

— Sabe, tio, que não tenho dinheiro nem para procurar trabalho? A condução está cara e não quero pedir aos velhos.

Foi dizer e arrepender-me: tio Salvador fez cara triste. Era um generoso a quem o destino não dera muitas oportunidades.

— Infelizmente não posso lhe dar nada, Dani.

— Não tem vendido moedas antigas?

— Acabaram. Na verdade, nunca foram meu comércio. Apenas tinha encontrado um saquinho de mil-réis no baú de Don Francesco.

— Não faz mal, tenho boas pernas e posso andar pela cidade a pé.

— Talvez não seja muito desagradável se encarar a coisa como uma espécie de turismo.

— Tchau, tio.

Enquanto falava com o comendador lembrava-me duma pessoa que podia arranjar-me emprego. Foi num sábado. Roberto aprontava-se para suas saídas noturnas; passava brilhantina nos cabelos.

— O velho quer que eu trabalhe — fui dizendo.

— Não é sem tempo; também comecei aos dezesseis. Deus ajuda a quem cedo madruga.

— Podia me arranjar um emprego?

Roberto limpava o pente com um papel colorido. Estava preocupado, perdia cabelos. Sabíamos que era das piores coisas que podiam-lhe acontecer.

— No meu gênero de trabalho não há lugar para você — disse. — É preciso malícia, muita lábia. Ser desses que roubam bolacha das mãos de crianças. Nunca dormir de touca. Manter olho-vivo dia e noite. E principalmente saber sair das sinucas. Você não teria cancha para viver num pandemônio.

Roberto não precisou falar mais que isso para convencer-me de que não podia trabalhar ao seu lado. E assustado por aquela palavra, pandemônio, sonora como um piano escorregando por uma escadaria, procurei na mente outra pessoa para ajudar-me. Achei.

Fui falar com Farid, meu futuro cunhado. Seus parentes tinham uma fábrica de tecidos, ele tinha dito.

— Ah, então você quer um emprego?

Por que não lembrara dele antes?

— Estou precisando, Farid.

— Deixe-me pensar. No momento não me ocorre nada.

— Seus parentes não têm uma fábrica?

— Boa lembrança!

— Quando pode me levar lá?

— Assim que eles concluírem a reforma dos escritórios. Estão ampliando tudo, construindo um andar a mais. Vão dobrar o número de funcionários. Aí será sua vez. Aguarde.

A atenção de Farid para comigo causou ótima impressão na família. Sentimos que estava com o futuro assegurado. Depois do casamento dele com Teresa, quem sabe eu alcançasse até um cargo de chefia na fábrica. Olhei-me no espelho o vi um jovem executivo. Mas nem tudo é como a gente deseja. A ampliação dos escritórios começou a demorar mais do que Farid previra, a arrastar-se. Passavam semanas e nada.

Preocupado, Farid veio falar comigo.

— O engenheiro encarregado das obras é uma porcaria. Deve ter comprado o diploma. Houve até um desabamento. Acho melhor você arranjar um empreguinho qualquer, para quebrar o galho, até que façamos as novas contratações. Combinado, Dani?

Outra vez Teresa e minha mãe acharam que Farid agira lealmento: não queria que eu perdesse tempo. Mas o problema continuou e doeu mais quando meu pai teve de contar os tostões para pagar nova mensalidade do colégio. Decidi não depender mais de ninguém. Compraria jornais, leria as seções “Procura-se”, abriria sozinho meu próprio caminho. Tomada a decisão, dormi mais tranqüilo.

Em casa, porém, só o noivado de Teresa era mar de rosas. Don Francesco demorava demais, um pesadelo para todos. Por que a demora? Na ocasião as preocupações e palpites eram os seguintes:

Minha mãe: — Don Francesco adoeceu na Itália e não manda dizer para que a gente não se aborreça.

Meu pai: — Ele deve estar brigando com os parentes para arrancar o dinheiro.

Tio Salvador: — Um homem que deixou a Itália há uns sessenta anos tem o direito de descansar lá alguns meses sem dar satisfações aos parentes daqui.

Fúlvio: — O azar é não termos endereço desses Marino de Chiaromonte. Don Francesco levou-o. O consulado podia nos ajudar?

Teresa: Será que ele morreu? (Já enxugando as lágrimas.)

Roberto (de passagem, apressado): — O perigo é que tenha se apaixonado por uma daquelas belas italianinhas. Qualquer homem, com um saco de liras nas costas, é ótimo partido.

Essas preocupações, porém, não chegavam à rua. Em todo o Bexiga o que se comentava era que os Marino iam receber uma grande bolada. A prova aconteceu numa tarde, quando meia dúzia de senhoras muito bem vestidas entraram em casa para conversar com mamãe. Pertenciam a uma entidade beneficente e vinham fazer um pedido, o que exigia formalismo e roupa de passeio.

A mais velha delas, uma senhora gorducha, cuja bondade seus olhos muito azuis refletiam, falou por todas:

— Sabemos que vocês vão receber uma herança da Europa e, portanto, poderão nos ajudar. Mostre a planta, Matilde — ordenou a uma das acompanhantes, que a obedeceu prontamente. — Veja este desenho, dona Romilda! Assim vai ser o Lar da Mãe Solteira! Ficaríamos gratíssimas se comprasse mil tijolos.

Minha mãe, que naquela semana não tivera dinheiro nem para fazer a feira, foi obrigada a prometer:

— O herdeiro é meu marido, mas não vai se opor. Mil tijolos, disse?

A chefe da missão sorriu, sorriso que passou de boca a boca, como água em vasos comunicantes, e atingiu o mesmo nível de satisfação. Mamãe teve de assinar um papel que atestava a doação: mil tijolos. Em troca recebeu uma espécie de diploma, escrito em letras góticas, de esmerada confecção. O nome dela seria acrescentado num espaço vazio quando efetuasse o donativo.

— A senhora pode colocar na parede — orientou a chefe. — É nosso Atestado de Bom Coração.

Quando as mulheres sairam, eu e Teresa fomos ver o atestado. Ficaria mais bonito com vidro e moldura, mas, ao contrário, mamãe preferiu escondê-lo e nos pediu que não falássemos dele ao meu pai. Quando o dinheiro chegasse, faria o donativo secretamente. A caridade sem alarde tem muito mais valor, fiquei sabendo.

Saí novamente para procurar emprego. Vi uma moça bonita, toda de vermelho e com um capuz também vermelho à cabeça: Antonela! Ela me olhou e parou, mas para chamar um táxi que passava.

 

                     PROCURANDO EMPREGO E UMA FRASE DE MANDRAKE

Esse trabalho de procurar emprego era feito todas as tardes, chovesse ou fizesse sol. Mentira, desculpem. Quando chovia preferia ficar no quarto, lendo. Eu descobria Machado de Assis e Lima Barreto e andava animado com eles. Se não desse para cursar uma faculdade, tentaria adquirir cultura assim: lendo. Aliás, esses dois escritores, por coincidência, não puderam estudar muito.

Eu me apresentava a muitos escritórios e preenchia fichas. Sempre me recusavam porque não sabia escrever à máquina, porque ainda não tinha feito o serviço militar ou por outros motivos. Num deles, que precisava dum office-boy, fui recusado por desconhecer o itinerário das linhas dos ônibus. Uma firma do centro, que comprava e vendia ouro, aceitou-me como homem-sanduíche. Vestiram-me com um cartaz, frente e costas, e empurraram-me para a rua. Não precisava andar muito, podia ficar parado nas vias de maior movimento. Quando as pessoas olhavam para mim e liam os dizeres, ficava envergonhado e sentia o peso dos cartazes, Permaneci duas horas nessa profissão. Despedi-me dela entrando no mictório dum bar, onde deixei aquele vexame duplo. Nem voltei para o escritório da firma.

Dias depois estava uniformizado como ascensorista dum edifício. Já calcularam quantas vezes um elevador sobe e desce da uma às sete horas? Para quem sonhe ser aviador talvez esse emprego tenha alguma sedução, para mim era castigo. Uma semana depois, entrou no elevador uma pessoa conhecida: tio Salvador.

— Tio, o que faz aqui no prédio?

— Apenas ver você. Satisfeito nesse serviço?

— Estou, sim — menti.

Menti mal porque:

— Vá devolver esse uniforme. Já sabe como se dirige um elevador. Deve existir coisa melhor para você.

Ordem gostosa de obedecer. Pela primeira vez vira tio Salvador agir de acordo com o nome: salvador. Fomos procurar emprego juntos. Foi divertido, porém a sorte não melhorou. Trabalhei num posto de gasolina, numa floricultura, numa loja de sapatos ortopédicos, numa grande drogaria, num dos primeiros supermercados da cidade, numa revendedora de automóveis e numa casa lotérica, tudo em poucas semanas. Já me via como um novo tio Salvador, futuro habitante do quarto do fundo na casa de Teresa quando ela casasse, quando isto aconteceu:

— Você não tem arranjado nada de bom, não é, meu filho?

— O que pagam mal dá para a condução e o colégio. Faz falta uma profissão!

— Pois de amanhã em diante vai trabalhar comigo na tipografia. Será tipógrafo até se formar e poder conseguir um emprego bem remunerado. O serviço aumentou um pouco, vou precisar de você lá.

Não fiquei jubiloso mas não disse não. Fúlvio também passara pela tipografia e já começava uma boa carreira. No dia seguinte levantei cedo e fui com meu pai para a tipografia, seis quarteirões adiante de casa. A princípio era só ver e aprender. Às vezes, fazia entregas. Anotar pedidos foi trabalho já do primeiro dia. Na tipografia meu pai era muito mais sério que em casa, agia como chefe. Só relaxava e voltava à ser pai quando lanchávamos por lá. Dei-me bem com seu auxiliar, Mandrake. Mas meu pai tinha razão: quando o serviço apertava fazia um passe de mágica e sumia. Uma das minhas tarefas era procurá-lo, sempre no bar. Um dia me disse que o chamavam de Mandrake não por causa de suas desaparições: era mágico amador. Nos fins de semana até faturava algum caché nas festas dc aniversário de crianças. No bolso costumava levar uma bengala, da qual, sei lá como, espichava e retirava lenços. Disse uma frase que ainda lembro:

— Pena, Dani, que na vida as mágicas não dão resultado. Acho que os grandes mágicos desse mundo são os milionários.

Já não se falava da revolução, e mesmo Don Francesco era assunto apenas dia sim e outro não. Aquilo que se diz — e a vida continua — é um fato, continua mesmo. Novos episódios sempre se sucedem.

 

             AFINAL, OS PETITS FOURS!

Foi num sábado em que houve duas aulas a menos. Voltava para casa passando pela casa de cômodos de Antonela, trajeto que não encurtava nada. Ela, à janela, mastigava qualquer coisa.

— Olhem quem vem vindo!

Parei, alvoroçado, embora sem motivo

— Boa noite, Antonela!

— Vai hoje um petisco?

— Não, obrigado.

A tia de Antonela, com a idade da casa e talvez do bairro, apareceu também à janela.

— É o mocinho que parece com o Dino!

— Até o nome é parecido, tia. Chama-se Dani.

— Quem é o Dino? — perguntei.

— Um irmão meu. Tinha sua idade quando sumiu de casa e nunca mais voltou. Mas entre um pouco. Titia acabou de fazer petits fours para um casamento. Vá até o portão.

Antonela surgiu no alto da escadaria esburacada da casa. Foi me buscar no portão e obrigou-me a subir os degraus. Mesmo no corredor resisti um pouco, sem nenhuma vontade de comer petiscos. A tia esperava-me à porta do quarto. Entrei.

— Aqui que eu moro, Dani! Gosta?

O quarto de Antonela devia ser um luxo naquele casarão antigo, todo atapetado e decorado com papel de parede. Fiquei imóvel à porta; era quase impossível mover-se dentro dele com tantos pufes, banquetas e poltronas. Qualquer movimento brusco derrubaria um bibelô e havia mil ali.

Acomodei-me numa poltrona enquanto a tia de Antonela servia-me, ainda quentes, seus petiscos famosos no bairro.

— Não precisa comer com tanta pressa, Dani! — suplicou Antonela.

Nunca me sentira tão confuso nem com tanta dificuldade para comer qualquer coisa. Entre uma mordida e outra naquela delícia, respondia às perguntas da moça. Queria saber em que colégio estudava, que curso pretendia fazer e qual era minha idade.

— Dezesseis. . . para dezessete — respondi, culpado por ser tão jovem.

Antonela riu. Não havia razão, mas talvez soubesse que ficava mais bonita rindo. Sua alegria no entanto me assustava mais que sua sobriedade.

— Sabe quantos anos tenho? Vou fazer vinte e oito. Sou uma velha, não acha?

— Pensei que tivesse muito menos — disse, por ser educado e por ser verdade.

A tia precisava ir ao forno para terminar a encomenda. Antes de sair, exclamou outra vez:

— A cara de Dino! Mostre-lhe o retrato, Antonela.

Antonela procurou nas gavetas um retrato, que me entregou: um rapaz vestindo um blusão de couro, encostado a uma motocicleta. Não conferi nenhuma semelhança comigo.

— Não é parecido com vocé?

— Sim, muito — confirmei. Acha que ele volta?

— Não. Foi encontrado morto, mas tia Ana não sabe disso.

Antonela guardou o retrato e sentou-se num pufe diante de mim e apertou-me as mãos, querendo saber:

— Fala-se mal de mim no bairro? Seja sincero, não ligo.

O que me perturbava não era a sinceridade ou não que Antonela me exigia, mas o contato de suas palmas, de seus dedos, de suas unhas. Tal pressão não admitia a hipótese duma mentira.

— Há gente que fala de todos — respondi. — Meu tio Salvador é chamado de dolce vita. Você se importa?

A resposta começou com um movimento negativo de cabeça, com muita ação e cabelos, terminando numa gargalhada. Mas não abandonava minhas mãos.

— Estou me lixando pros outros, Dani! Para mim são apenas pessoas que passam. Elas implicam comigo porque ainda não me casei. Há algum mal nisso? — E olhando subitamente para minhas mãos: — Por que estão tão geladas? Hoje até que faz calor! Vinte e cinco graus!

Não sabendo explicar ou justificar a temperatura de minhas mãos, fiz a pergunta que retinha desde o primeiro encontro:

— Como sabe meu nome?

— Ah, como sei o seu nome. . .? — repetiu. — Um dia você passava e me pareceu tanto com o Dino que perguntei a uma mulher, veterana do bairro, quem você era e como se chamava. Acho que foi assim.

Então a maçaneta da porta girou e entrou aquele homem louro e forte que já vira com Antonela. Tipo mal-encarado que, sem cumprimentar a gente, foi perguntando:

— Quem é esse rapaz?

Devia ser namorado de Antonela.

— Apenas um garoto da vizinhança, Bruno.

Dirigiu-se diretamente a mim, me dando medo:

-— O que veio fazer aqui?

Eu próprio não sabia o que estava fazendo lá.

— Foi convite meu — ela respondeu. — Chama-se Dani, e é um bom menino.

Não pensem que disse “muito prazer”. Avançou com insultos sobre Antonela. Indignado ficava mais alto e mais louro.

— Eu a conheço não é de hoje — era uma das coisas que dizia.

— Se me conhece tanto porque insiste em vir aqui?

— Quem faz perguntas aqui sou eu! — bradou como se quisesse ser ouvido na rua e na casa inteira.

Temendo que o tal Bruno massacrasse Antonela, abri a boca:

— Vim comer petits fours.

Não devia ter intervindo. A simples menção do petisco, sei lá por que, envenenou ainda mais o ambiente.

— Eh, pirralho! Pensa que acredito nisso? Ou está achando que nasci ontem?

Antonela, pálida mas não apavorada, rebateu:

— Dani está dizendo a verdade. Eu o chamei para isso.

Levantei-me da poltrona; melhor ir embora. Bruno, com suas mãos pesadas em meus ombros, obrigou-me a sentar outra vez.

— Não vai sair sem uma explicação, espertinho!

Antonela partiu na direção dele para atacá-lo. Bruno segurou-lhe os punhos; o que era só palavras virou briga. Força dum lado, força de outro e, no meio, minha perplexidade. Um bibelô caiu — paff! —, espatifou-se no chão.

Foi o que mais irritou a petisqueira da Bela Vista.

— Veja o que fez! Justamente o que comprei em Porto Alegre!

Saindo do tom, Bruno perguntou como se pretendesse mera informação:

— Quando você esteve no Sul?

Ajoelhada, apanhando os cacos do bibelô, como se fosse possível colá-los, Antonela disse, um segundo antes de chorar:

— Agora em janeiro.

— Então esteve em Porto Alegre em janeiro e não me disse nada? Não foi quando jurou visitar sua mãe em Amparo?

Sem esperar as respostas, o brutamontes se pôs a pisar com seus sapatões os fragmentos do delicado enfeite. Sua cólera exigia pó. Ainda ajoelhada, Antonela ergueu a barra das calças de Bruno e mordeu-lhe as canelas, reação que seria terrível se usasse os dentes de Drácula de minha fantasia. Mesmo assim houve sangue.

Bruno soltou um grito de dor e começou a capengar pelo quarto, derrubando, agora sem querer, outros bibelôs que Antonela, de quatro no chão, ia apanhando.

— Me ajude aqui, Dani, antes que ele pise em todos!

Achei que minha pele valia mais que os bibelôs — a pele, tão valorizada por Roberto. Saí do quarto. No corredor, algumas pessoas ouviam a discussão. Com palavras que encontrei no momento, pedi-lhes que socorressem Antonela. Ninguém se mexeu, como se acostumados. Vi tia Ana que se aproximava com uma bandeja. Voei para a rua.

Embora com saudade da paz do lar dos Marino não me afastei da casa de Antonela. Escondido atrás duma árvore. Não muito tempo depois, os dois saíam. Vi Bruno abrir para ela a porta de um carro, gentil.

— Será que vai esfriar? — perguntava a moça.

— Quem pode saber nesta cidade? Agora está agradável. Quando o carro partiu. abandonei o esconderijo.

Aquela noite, em meu quarto, revivi tudo muitas vezes, algumas em câmera lenta, como se vê na televisão. O grandalhão Bruno saltando sobre o bibelô. Antonela, com lentas lágrimas, recolhendo os enfeites; eu, fugindo, moroso, para o corredor. O próprio sabor dos petits fours consegui reencontrar, mais demorado e quente que na realidade.

 

           TIO SALVADOR TOMA UMA HERÓICA DECISÃO

Se até o caçula trabalhava, isso pegou mal para tio Salvador. Um dia chegou-se a meu pai.

— Tenho novidade, maestro. Acabou a dolce vita.

— Como assim, comendador?

— Amanhã começo na cantina de zia Raffaela.

— Garção?

__ Uma espécie de diretor artístico e relaçóes públicas. Levarei pessoas importantes, contratarei cantores, receberei a freguesia. Zia Raffaela gosta de mim. Conhece ela, não? Aquela gorda. Acha que vou fazer da casa a melhor cantina do Bexiga. Nisso estamos de acordo.

A notícia surpreendeu e agradou, mas, ao vê-lo sair para o trabalho, minha mãe, comovida, lamentou:

— Tudo por causa de Don Francesco, que não vem.

Uma semana depois, tio Salvador, com novas ambições, aproveitou uma hora de almoço para anunciar um plano. Quando as liras chegassem, ele e meu pai poderiam se associar num empreendimento muito lucrativo: uma cantina. Velho sonho! Tinha o exemplo em zia Raffaela; ganhava tanto dinheiro que quase todos os anos ia torrá-lo na Itália.

— Não há melhor negócio. Tenho até o nome: Cantina Chiaromonte, homenagem a Don Francesco.

— Boa idéia, comendador! — exclamou meu pai. — Vá fazendo o orçamento. Para entrar como sócio, quero tudo escrito, preto no branco.

— Cuido disso, maestro.

E cuidou mesmo, pois quando estava em casa não largava papel e lápis.

Quanto a mim, ia bem no colégio e na tipografia, sem esquecer a cena no quarto de Antonela. Passei a evitar a rua — uma semana. Certa noite ela me viu passar e logo ouvi passos apressados na calçada. De vermelho, um tanto acanhada, a moça vinha me pedir desculpas. Falou muito mal de Bruno. que era um bruto, elogiou meu comportamento, de gente educada, e fez um pedido:

— Não deixe de ser meu amigo por isso.

Despediu-se com um beijo no rosto e sumiu. Por que fazia tanta questão de minha amizade? Dias depois tornava a vê-la. Fui à quermesse da igreja e estava junto à barraca de jogos de argolas, quando me deram um tapinha no ombro. Não podia imaginar Antonela freqüentando quermesses religiosas. Mas, aquela noite, vestida de branco, com um jeito especial para o evento, mais parecia uma noiva que a melhor petisqueira do bairro.

— Vamos jogar argolas? Eh, moço, me passe uma dúzia!

Jogos de quermesse eram com tio Salvador, não comigo. Errei todas as argolas enquanto Antonela acertou as seis. Ganhou uma miniatura da Santa Achiropita, garrafinhas de suco de uva e latas de conservas. Divertia-se como uma menina. Um padre que passava pela barraca, torceu por ela. Eram conhecidos. A Igreja não fazia coro com falatórios. Percorremos outras barracas. Na de espingardas de ar comprimido, ela, atrás de mim, ajudou-me com mãos experientes, a fazer a mira. Mesmo assim, trêmulo demais, desperdicei as rolhas. Apenas na tômbola tive mais sorte, embora uma vez ou outra esquecesse de marcar a cartela; Antonela estava mais vigilante que eu.

Foram duas boas horas, que relataria num diário, se tivesse um. Quem não tem não pode passar as lembranças para o papel, fica com elas na cabeça.

— A gente se vê outra vez, num dia desses — despediu-se Antonela, tão alegre como eu, levando os brindes conquistados.

“Um dia desses” é coisa que nunca chega, pensei. Ou quem sabe chegue na quermesse do próximo ano. O fato é que ninguém falou de meus inocentes jogos com Antonela.

Falou-se, sim, e muito, em variadas versões, daquilo que Roberto fez acontecer.

 

                       O CAFONA

Roberto, que havia desaparecido do bairro, decidiu reaparecer num baile sabatino do clube. Seu interesse talvez fosse mostrar o novo Roberto para velhos conhecidos. Haviam duvidado dele, que vissem agora. Deixou o carrão a algumas quadras de distância para não esnobar demais e seguiu. Uns cem metros antes de chegar ao baile, uma voz partida não se sabe donde foi ouvida:

— Ó cafona!

Já diante do clube, cumprimentando os que o reconheciam. Roberto ouviu outra vez:

— Cafooooooooooona!

Fervendo por dentro, mas ainda frio por fora, Roberto entrou no clube, foi ao salão, papeou ligeiro com um e outro, tomou uma cerveja e tirou uma dama para dançar. Não sendo escoces nem padre, qualquer pessoa de saia adorava dançar com Roberto.

Aí a mesma voz, já dentro do salão, soou novamente cobrindo os instrumentos. O insulto, porém, era interpretado de forma diferente.

— Cafonaaaaa!

Um a espichado como elástico, embora escondido entre os pares que dançavam.

Roberto dançava olhando furioso para os lados.

A interpretação seguinte da ofensa tinha o ritmo preferido das torcidas futebolísticas:

— Ca-fo-na! Ca-fo-na! Ca-fo-na! Ca-fo-na!

O mano enlouqueceu. Dizem que começou dando pontapés nas mesas, derrubando tudo que havia sobre elas. Subiu no balcão do bar e foi chutando garrafas o baldinhos com gelo. Depois, a vez da orquestra. Saltando sobre o palco, furou a bateria com um murro. Entortou um saxofone. Arrebentou um violão elétrico numa das colunas do salão. Jogou um pistom pela janela, atingindo um automóvel que passava. O contrabaixo foi arremessado ao salão. Virou o piano. Uma flauta voou até o lustre e ficou lá.

A diretoria do clube apareceu às pressas para segurar Roberto, ajudada pelos músicos. Os garçãos não cruzaram os braços, foram à luta. Um porteiro entrou na briga, o outro foi chamar a polícia.

Vieram duas viaturas. Da janela, Roberto bombardeava-as com pedras de gelo. Imaginem isso na maior confusão, principalmente entre as moças que corriam pelo salão gritando e chorando. Não sei quantas desmaiaram. Confusão também nas escadas com aquele povaréu querendo sair, a empurrar e a pisar.

Não acredito muito, mas disseram que nesse tumulto todo, coisas quebrando, gente caindo, o dono misterioso daquela voz, prosseguia:

— Caaaafona!

Afinal a polícia algemou Roberto e levou-o. Entrou na delegacia com o belo terno em tiras e chorando. Queixou-se ao delegado:

— Visto-me nos melhores alfaiates, uso camisas sob medida, sapatos de encomenda, freqüento o Jóquei Clube, a boate Oásis, restaurantes franceses e ainda acham que sou cafona.

Apoiou a cabeça nas mãos e esqueceu-a.

Meu pai e tio Salvador correram à polícia e da policia foram ao clube. Viram o que sobrara da batalha: destroços. Se Roberto não pagasse os prejuízos a coisa ia ficar feia. Foi feito um levantamento às pressas. O presidente do clube passou uma folha datilografada ao pobre do seu Atílio.

— Mas tudo isso?

O presidente não quis conversa:

— Tudo.

A folha foi levada a Roberto. Ele deu uma olhada e disse:

— Pago.

— Meu filho, você tem esse dinheiro?

— Se me derem uma semana, pago.

Quando Roberto pisou a rua pensamos que fosse fugir para não pagar a dívida. Engano: pagou-a em três dias.

“Como?”, interrogava-se meu pai. Onde arranjara aquela pequena fortuna? Para encontrar resposta deu de seguir Roberto, investigar sua vida. Mandrake praticamente chefiava a tipografia nesses dias. Foi quando mais e mais depressa aprendi da profissão.

             BREVEMENTE: A VERDADEIRA VIDA DE

             ROBERTO MARINO. AGUARDEM!

 

Eu ia razoavelmente na escola, fazendo progressos lentos que o hábito da leitura, recentemente adquirido, compensava. O contato com os tipos, na Tipografia Marino, consolidou minha atração pelas letras de forma. Quando não tinha o que fazer, lia, e, mesmo quando tinha o que fazer, também lia. Comprando alguns livros em livrarias e sebos comecei a organizar uma biblioteca. Tio Salvador deu-me de presente As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, e O caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie. Então, ficou decidido em casa: quando quisessem me presentear, que dessem livros. Presentes mais baratos e mais do meu agrado.

Tio Salvador ia bem na cantina de zia Raffaela, para a qual arrebatava freguesia. Certa noite, Fúlvio foi até lá com a namorada. O comendador arranjou-lhe uma boa mesa e, na hora de chamar a nota, deu uma piscada:

— Guarde o dinheiro, sobrinho. Vai ficar por conta da verba de propaganda.

Ao saber disso, na noite seguinte Farid levou Teresa à cantina. Por falar nele, não tocou mais no emprego prometido porque as remodelações na fábrica prosseguiam lentamente.

Tio Salvador concluira todos os planos da Cantina Chiaromonte, aprovados por meu pai. Tivera uma idéia: quem fosse contra a ditadura que se estabelecera no País teria 10% de desconto. Até Farid, que saía de perto quando se falava de política, achou genial.

O “um dia desses” de Antonela foi breve. Encontrei-a diversas vezes, sempre por acaso, e ficamos amigos. Num sábado à tarde, ela levando petiscos para uma festa, ficamos uma hora conversando na esquina. Foi bom sentir outra vez o cheiro daquelas coisas gostosas que sabia fazer. O maior receio dela era que tivesse me assustado muito com Bruno. Garantiu que se um dia retornasse à sua casa não precisaria ter medo. Fiquei de ir outra vez.

Num fim de tarde, meu pai entrou em casa desarvorado. Largou-se numa cadeira. Havia uma mosca na vidraça. Ficou a olhar fixamente para ela. Precisava dum ponto qualquer, fixo ou móvel, para manter o equilíbrio de espírito.

— Que foi, Atílio? — perguntou minha mãe.

— Roberto — respondeu.

 

                   A VERDADEIRA VIDA DE ROBERTO MARINO

Meu pai disse que seguiu de táxi o Mercedes-Benz de Roberto. Alguém o apontou quando passava. Num dos bons bairros da cidade, o prateado entrou na garagem dum elegante edifício de apartamentos. Largou o táxi e foi entrando.

O porteiro uniformizado:

— Onde é que o senhor pensa que vai?

— O senhor conhece aí um moço chamado Roberto?

— Doutor Roberto Marino? É o terceiro, mas só pode entrar se for anunciado. Aqui não se recebe qualquer um.

— Sou o pai dele — disse o velho, tirando a carteira de identidade do bolso para provar o sobrenome. E sem esperar comunicação pelo interfone, foi para o elevador.

Uma jovem empregada de avental muito limpinho, atendeu à porta.

— Por que o senhor não foi anunciado pelo inteffone?

— Me chame o Roberto.

— Doutor Roberto está repousando.

— Diga que tem aqui uma pessoa que quer falar com ele. Assunto importante.

A empregada, com má-vontade, permitiu que meu pai entrasse. Ficou numa sala de espera. Impaciente passou para um amplo living. Desde o primeiro passo impressionou-se com o luxo do apartamento, que nem soube descrever para nós. Como o dono daquele paraíso demorasse, afundou numa poltrona de couro macio. Estaria enganado? Haveria dois Roberto Marino?

À entrada do living apareceu um moço vestindo robe de chambre: era Roberto. Fumava uma cigarrilha preta. Levou um choque elétrico.

— Pai! Como me encontrou aqui?

Meu pai levantou-se. A primeira pergunta:

— De quem é esse apartamento, meu filho?

— Moro aqui — respondeu Roberto.

— E o carro que você guardou na garagem? De quem é?

— O Mercedes? Meu. Mas não é do último ano.

Meu pai resumiu todas as suas preocupações numa única e angustiada pergunta:

— Que espécie de tramóia você faz para viver com esse luxo todo?

Roberto dirigiu-se ao bar do apartamento, que tinha o desenho de uma sofisticada canoa, e serviu-se de uma bebida.

— Nada desonesto, pai.

— A polícia não está atrás de você?

— A polícia, não — respondeu. Bebeu tudo, largou o cálice e começou a circular pelo apartamento. — Mas os credores estão — confessou.

Roberto sentou-se num sofá, próximo do pai, e para surpresa dele começou a chorar convulsivamente. Dessas lágrimas e desses soluços que só nos enterros a gente assiste. Nem adiantava perguntar nada, ele não estava em condições de responder. Quando pôde falar, disse:

— Estou liquidado.

— Explique, meu filho.

— Tenho de deixar o apartamento, devolver o carro e vender as poucas coisas que são minhas para pagar dívidas.

Isso era o fim de uma história, mas era o começo o que mais intrigava meu pai.

— Como conseguiu tudo isso? Vai contar?

Houve um momento vazio que mais pareceu o intervalo entre atos duma peça teatral.

— Sempre detestei a miséria. . . Me fazia mal.

— Muita gente detesta, mas não consegue viver assim. Conte pro seu pai. Não houve roubo mesmo?

Roberto reafirmou: não.

— A princípio foram as cartas. Muita sorte no pôquer.

Um dia fui ao jóquei só espiar. Foi um grande domingo. Acertei não sei quantos azarões. Entrei como sócio. Descobri então os cassinos clandestinos. Era como um emprego, muitas horas, todos os dias. Cartas e roleta.

— Tudo que conseguiu foi no jogo? Só no jogo?

— Fiz negócios também, mexi com terrenos e ações da Bolsa. Se não gastasse tanto, daria pra me arrumar. Peguei uma boa maré!

Meu pai olhou ao redor, ainda deslumbrado pelo living, dez vezes maior que a sala de nossa casa no Bexiga.

— Mas por que morar num lugar assim?

— Quem joga precisa ter um belo endereço. Aqui também se jogava. Recebia gente fina, com status, que não vai numa kitchenette qualquer. O Mereedes era para chegar bem. Não se chega a mansões e apartamentos de cobertura com um carro vagabundo.

Censuras no momento não cabiam: meu pai queria informações.

— E por que a derrocada?

Roberto voltou ao bar, mas não restava uma gota nas garrafas. Era mesmo o fim.

— A sorte vai como vem. Comecei a perder no jogo e de repente o negócio dos terrenos e das ações pifou. Então aconteceu aquela briga no clube do bairro. Para pagar o quebra-quebra gastei o que restava. Estou liso. Quebrado.

— Ainda tem dívidas?

— Vendendo móveis, eletrodomésticos, roupas e objetos de uso pessoal dará para saldar. Não precisaremos das liras de Don Francesco. Por falar nele, tem notícias?

Essa história, com diálogos que se alteravam em cada versão, papai contou muitas vezes em casa. Apenas Farid não ficou sabendo de nada para não envergonhar a família. O segredo que Roberto me pedira foi mantido, mesmo depois do esclarecimento: jamais disse que já sabia do Mercedes prateado.

Minha mãe deu graças a Deus por Roberto não estar envolvido com a polícia. Não acreditava no seu retorno para casa. Dizia que uma pessoa tão acostumada com o luxo não aceitaria mais nosso lar modesto. Errou e nunca se sentiu tão feliz por ter errado: uma semana depois Roberto reaparecia trazendo roupas num embrulho. Nem mala sobrara.

 

           DENTRO DO EMBRULHO,

           O ROBE DE CHAMBRE

           E A ARTE DE BLEFAR

 

Como se houvesse acordo entre pais e irmãos ninguém fez a Roberto perguntas de seu tempo de Mercedes e de Doutor. Ele, assim que se acomodou, foi procurar trabalho. Sorte, encontrou vaga no almoxarifado do Ferranti, casa de peças de automóveis onde trabalhara. Duplo retorno. Para minha mãe essa coincidência equivalia a passar uma esponja no passado.

Evidentemente no embrulho não havia todo o guarda-roupa de Roberto. Um terno, algumas camisas, cuecas, meias e o robe de chambre. peça elegante que vestia no dia do grande vexame. Aos sábados, domingos e feriados andava com ele pela casa. Ainda lhe caía bem.

Mentiria se dissesse que a derrocada (palavra usada por papai) tornara Roberto mais afetivo e chegado à família. Virara um tanto robô, um robô que apertava relógio de ponto, paciente e cumpridor de obrigações. Uma tarde aceitou uma carona de Farid no Citroën. Realmente tinha perdido as ambições.

Como agradecimento por nunca ter revelado a ninguém seu segredo, era a mim que tratava com a maior camaradagem. Eu, uma valiosa testemunha de sua glória. No embrulho trouxera também um baralho. Ensinou-me o cunca, o pife-pafe e o pôquer. Sua bagagem profissional. E depois uma habilidade indispensável nos jogos de carteado: o blefe. Isto é, fingir que se tem um grande jogo quando não se tem nada nas mãos ou fingir que nada se tem quando temos cartas para vencer qualquer aposta.

— Ai não basta ser jogador — disse. — É preciso ser artista.

Ouviu passos na direção do quarto. Era mamãe. Escondeu o baralho.

Falei de Roberto e de todos meus irmãos para Antonela. Não dispunha de muitos assuntos para uma moça tão mais velha que eu. Mas, na verdade, fora de minha família, ela e Mandrake eram as pessoas com quem tinha maior convivência. Sentia que ela fazia questão de manter minha amizade. E às vezes achava que gostava mesmo muito de mim. Essa impressão ficou mais forte durante as festas de Nossa Senhora da Achiropita, que, durante todo o mês de agosto, nos sábados e domingos, matam a saudade da terra dos italianos e descendentes que transformam o Bexiga num pedaço da Itália.

 

               VIVA NOSSA SENHORA DA ACHIROPITA!

Se tivesse algum receio de ser visto com Antonela o teria perdido naqueles dias de festa de rua, quando passeando juntos virávamos multidão. Ela freqüentava o quarteirão dos passeios porque talvez se sentisse só, ou porque se cansava de seus amigos, ou porque quisesse homenagear a santa. Havia nela muito da alma do bairro. Padres e sacristães simpatizavam com Antonela, pois jamais negava pequenos donativos aos necessitados.

O bom dessas festas são as barracas de comida; é escolher e comer. As calçadas-restaurantes atraem turistas de todo o País. Há quase um quilômetro de alegria para quem quiser. Pessoas do bairro que mal se conhecem abraçam-se nesses dias, ótimos também para refazer amizades desfeitas. Num clima assim, de descontração e euforia, passear com Antonela ou sentar com ela numa das mesas ficava por conta da casualidade e do desejo de comunicação.

Não marcávamos encontro, aparecíamos na festa.

— Eh, Dani, você outra vez aqui?

— Estava apenas passando.

— Não experimentou aqueles polpettones da barraca da Zula?

O aroma dos polpettones viajava ao encontro das minhas narinas. Embora conhecendo muito bem dona Zula, não tive coragem de pedir fiado.

— Hoje não vou comer nada.

— Vai, sim — resolveu Antonela, pegando-me pelo braço. — Eu pago. Só doido perde os polpettones da Zula.

E não comi um, comi vários. Depois, passamos a outras barracas. Então, com o estômago cheio, passeamos. Era um ir e vir gostoso de esquina a esquina; falava-se pouco, apenas um chamando a atenção do outro para o que via, sempre com um sorriso de curiosidade e constatação.

Um pequeno fato, porém, perturbou a boa seqüência. Um homem, de quem vi apenas o nariz esborrachado, saiu da multidão e puxou Antonela pelo braço, encostando-a a uma parede. Conheciam-se. Conversaram um enorme minuto, ele admoestando-a de alguma coisa e lançando olhares para mim.

Ao voltar, Antonela disse:

— Um amigo de Bruno. Pensa que é meu patrão.

— E Bruno, onde anda?

— Viajando.

No dia seguinte, domingo, o último da festa, havia sim um encontro marcado. Esperei, esperei e ela não veio. Fiquei com a cara daquele Sábado de Aleluia. Mas, bobagem. Fora tudo muito bom. Queixar-me de quê? Continuemos, O que veio depois foi muito mais importante.

 

             GRAVE CONFLITO ENTRE JOVENS E VELHOS

A briga começou por causa do rock. Num almoço de domingo. Fúlvio aumentara o volume do rádio e meu pai ordenou que baixasse.

— Isso não é música, é barulho!

Ofensa a toda uma geração. Fúlvio protestou.

— Não troco um rock por mil tangos e chorinhos!

— Então você não entende de música.

Começou já não mais uma discussão musical, mas verdadeiro choque de gerações. Para Fúlvio, tudo que era antigo era chato. Para meu pai, tudo que era novo não prestava. Roberto, em paz com a família, não tomou partido. Farid evitava contendas. Tio Salvador concordava ora com um, ora com outro. E a tímida Teresa, agora com mais personalidade, devido ao noivado, ocupou a mesma trincheira de Fúlvio, defendendo com o coração e a garganta não só o rock como também todos os novos hábitos e ideais. Falou até de feminismo, palavra que pronunciava pela primeira vez.

— A mocidade de hoje tem mais cabeça! — sentenciou Fúlvio, muito confiante em si. Acabara de receber aumento de salário.

— Mais cabeça, vocês? Me diga uma coisa: quem fez as grandes invenções? Foi a geração de seu avô que deu um Marconi, um Edson, um Ford... um. . . um. . . Olavo Bilac.

— O que tem Olavo Bilac com essa gente? Ele era poeta, não inventor.

— Queria dizer Santos Dumont — corrigiu meu pai. — Sempre confundo esses dois.

Minha mãe, que ainda não dissera nada, jogou uma bomba contra os novos:

— Meu Deus, essas saias curtas são uma indecência! Tenho até vergonha de ver.

— Pois eu acho a mocidade de hoje mais decente do que a de seu tempo rebateu Fúlvio. — Não faz as coisas escondido. Que há de mal nas saias curtas?

— Acho lindas! — aprovou Teresa.

A mana estava indo longe demais.

— Seu noivo sabia que você pensa assim? — perguntou meu pai.

Farid deixou cair um guardanapo que devia ser de ferro: não havia meio de sua cabeça voltar à tona da mesa.

— E esses tais biquinis? — indagava minha mãe, já francamente metida na discussão. — A polícia devia proibir. São imorais e ridículos!

— Ridículos eram os maiôs compridões de antigamente! Vi, outro dia, numa revista antiga, e morri de rir, O que diz, tio Salvador? — rebateu Fúlvio.

O comendador fez um movimento de cabeça que não se sabia se de aprovação ou não. Neutralidade de voz e movimentos. Voltou a atenção para o prato. A comida havia acabado.

— Vou buscar mais comida — disse minha mãe.

Meu pai levantou-se:

— Perdi a vontade de comer.

— Sente-se, Atilio. Fiz berinjela!

— Para mim o almoço acabou!

— Ora, Atilio, você gosta tanto de berinjela! Fiz pra você!

— Vou deitar.

— Dormir com o estômago cheio?

— Estou me sentindo a mais nesta mesa. Fiquem à vontade, você, os moços.

Abriram a porta da rua. A chave. Alguém que tinha chave. E um homem idoso, com uma boina descorada na cabeça, trazendo uma valise numa mão e um garrafão de vinho noutra, entrou na sala.

Não lembro se houve um “Oh!” coletivo, mas coloco-o aqui. Don Francesco voltava da Itália.

 

                   DON FRANCESCO VOLTOU.

                   ERA O QUE TODOS QUERIAMOS, NÃO?

Imaginem a cena como na televisão, quando estancam a imagem. A família inteira olhando para a porta. A reação de cada um: o espanto tem muitas caras. Meu pai, que se levantara, caiu na cadeira. Mamãe abriu a boca. Tio Salvador segurou no ar uma garrafa de cerveja. Teresa abraçou Farid. Roberto acendeu um cigarro. Fúlvio morreu. Isto é, pensei que tivesse morrido. Lentamente, Don Francesco foi liberando a primeira parcela dum sorriso.

— Don Francesco! — exclamou meu pai.

— Quem está vivo sempre aparece — disse o nono, largando a valise, mas não o garrafão.

Abraçou o filho e depois foi abraçando um a um. Farid até deu cotovelada para entrar na fila. Enquanto me apertava em seus braços Don Francesco dizia que eu crescera muito naqueles meses. Agora, sim, estava um moço. Antonela era da mesma opinião: eu já era homem feito.

— Por que demorou tanto? — perguntou meu pai.

— Vim no cargueiro mais lerdo do mundo, parando em todos os portos. Embarquei em junho, imaginem! Mas também agora nunca mais quero ver o mar em minha vida.

Afinal, Don Francesco sentou-se, lançando olhares às paredes, como se reconhecesse nelas suas velhas manchas, o que o fazia feliz. Estava em casa e, pelo seu jeito, não havia nada melhor que isso.

— E como está o pessoal de Chiaromonte? — perguntou mamãe.

— Todos estão bem. Um primo meu, Marcelo, apanhou cachumba com cinqüenta anos! Já viram coisa assim? Alguns morreram. Todos os tios já estão no cemitério. Pascoal, o primo mais velho, mais ou menos da minha idade, quase que embarca, mas já está bom. Receberam meu cartão-postal?

— Recebemos — respondemos em coro.

— Nápoles não mudou muito — disse Don Francesco. Aquele porto continua na mesma confusão! Gente do mundo todo indo para Capri e Sorrento. Sabe que os Marino de lá me levaram à Gruta Azul? Nasci perto e não conhecia. Foi uma bela viagem! Acho que Deus descansou depois de ter feito o Mediterrâneo. A baía de Guanabara é bonita, estive lá em 1910 ou 12, não recordo, mas como a de Nápoles...

A descrição das belezas naturais italianas sempre é interessante, porém o público aquele domingo não estava muito a fim.

A caminho da objetividade, meu pai quis saber:

— E como vão os Marino de finanças?

— Puxa, estiveram mal com a guerra! Quase passaram fome! Me contaram coisas de vir lágrimas nos olhos. Sofreu, aquela gente!

— Mas se recuperaram?

Don Francesco demorou a responder, aumentando a aflição da família enquanto mastigava uma pequena casca de pão, seu reencontro gustativo com a Bela Vista.

— Se eles se recuperaram? Sim, claro, alguns anos depois. Foi duro! Até as mulheres tiveram que pegar na enxada! Aí que prima Marieta morreu, picada por um escorpião. Têm raça os Marino de Nápoles.

Embora tardia, a notícia da recuperação financeira dos Marino causou um alívio que até as expressões de Farid registraram. Não se comentou a morte causada pelo escorpião.

— O senhor foi bem tratado? — perguntou mamãe.

— E por que não me tratariam bem? Deram-me o melhor quarto da casa. Se precisava de alguma coisa me serviam mesmo antes de pedir. Gente simples, mas de muito bom coração. Luís, o caçula, está em Roma estudando para padre. Apostam que chega a cardeal.

Fúlvio tinha uma pergunta a fazer, por coincidência a mesma que eu faria:

— Diga, nono, quando o senhor chegou, assim, sem avisar, eles não levaram susto, não fizeram cara feia?

— Por que cara feia? Sou um Marino como eles. Chiaromonte não é na Sicília, Fúlvio, onde um desconfia do outro. No mesmo dia, reuniram os parentes e vizinhos e fizeram um festão. Compareceu até um ajudante do prefeito. Fomos dormir às três da matina. Cara feia, você disse?

A pergunta decisiva estava para ser feita. Um olhava para o outro, como quem quisesse passar adiante a responsabilidade. Meu pai chegou a forçar minha mãe a fazê-la, com um movimento de cabeça correspondente a um empurrão. Ela fechou a boca. Não era filha de Don Francesco. Os netos também puxaram o ziper dos lábios. Farid era o mais inclinado a fazer a pergunta, mas não lhe cabia.

Meu pai com coragem, ou com toda sua coragem:

— E a herança? Fale agora da herança.

O nono não ouviu, porque naquele momento procurava um saca-rolhas sobre a mesa. Não encontrou. Foi à cozinha e voltou com um.

— Tire a rolha, Robertino, você que é forte. Esse é vinho da Basilicata, um pouco ardido, vai bem com queijo e salame. Os Marino só bebem desse. Vamos ver se vocês gostam.

Meu pai quis repetir a pergunta, mas toda a atenção do velho estava na tarefa de Roberto. Depois de três tentativas fracassadas, a rolha foi sacada.

— E a herança, pai?

— Que aroma — exclamou Don Francesco. — Cheirem o gargalo.

Cheiramos, alguns apressadamente. Farid nem aproximou o nariz.

Num tom já irritado, papai disse:

— Chega de vinho, fale agora da herança.

— O saco de liras — acrescentou Fúlvio, meio gozador, num resto de combate às velhas gerações.

— Que saco de liras?

— Não foi para buscar a herança que viajou à Itália? — perguntou minha mãe, tentando ser calma. Mas a voz saiu desafinada.

Don Francesco fez um esforço romântico como alguém que procura lembrar os versos duma velha canção. E sorriu. Atenção, todos! O velho ia contar tudo!

— Isso, Romilda! Fui para buscar a herança.

— E vendeu os castiçais para comprar a passagem.

— Vendi os castiçais.

— E só falou com Danilo, o mais novo da casa.

— Só com Danilo. Não podia falar com vocês. Nunca acreditaram muito nessa história de herança. Robertino e FúIvio diziam que era caduquice.

Meu pai não suportava mais:

— Vamos esquecer essas coisas. E a herança? Trouxe ela ou a gente tem de brigar na Justiça?

Como já supunha, Don Francesco só falaria após um gole de vinho.

— Não disse que os Marino de Chiaromonte se arrebentaram com a guerra? Pois é, tiveram de vender as terras, algumas casinhas e tudo mais. Restou uma propriedade grande, bonita sim, mas caindo aos pedaços. Agora não são mais donos de nada. Trabalham como empregados: um no Correio, outro guia ônihus, outro é fiscal, há um que faz música e tem um vidraceiro. A família Cocozza é que está agora com as terras deles. Está dito?

Lembro que não quis ver a cara de ninguém. Nem a minha, no espelho da sala.

Minha mãe tinha outra pergunta a fazer que interessava só a ela:

— Como se arranjou para voltar?

— Os primos se juntaram e compraram a passagem no cargueiro.

— Não lhe deram nada?

— Deram — respondeu Don Francesco, grato. — O garrafão de vinho.

Meu pai levantou-se com o ímpeto de quem cometeria violências. Pegou o garrafão e correu com ele para a cozinha. Minha mãe, espantada, correu atrás. Tio Salvador foi espiar à porta.

— O que vai fazer, Atilio?

— Me deixe, Romilda!

— Mas diga, o que vai fazer? — E pela primeira vez na vida ouvia-a dizer um palavrão.

— Vou derramar o vinho na pia.

A decisão estava mais na voz do que nas mãos. Elas hesitavam. Momentos depois, voltava para a sala com o garrafão, ainda cheio. Tio Salvador apanhou os copos.. Don Francesco começou a servir o vinho.

Houve então uma meia hora de silêncio terrível, Sentados à mesa os homens bebiam vinho sem proferir palavra. Com exceção de Farid; algo lhe fez mal e foi para casa mais cedo.

Afinal meu pai disse:

— Acho ótimo esse vinho. O que diz, comendador?

— Eles entendem das coisas na Basilicata. Mais um copo, maestro?

— Pode ser.

Beberam até o final do garrafão. Terminado, tio Salvador foi à esquina e trouxe uma garrafa de vinho. Queria que se constatasse a diferença entre um produto daqui e de lá.

À noite, antes de ir dormir, ouvi meu pai dizer a velha frase exigida nos momentos de resignação:

— E a vida continua!

Embora tivesse bebido tanto vinho disse minha mãe que ele não conseguiu dormir aquela noite. Às tantas levantou e foi à sala: ver se Don Francesco realmente voltara.

 

                       ALGUNS ADEUSES

Don Francesco voltou a dormir no sofá da sala. Estava feliz. Não trouxera o saco de liras, mas realizara uma grande aventura para um homem de oitenta. E, aos poucos, foi contando tudo que vivera durante a viagem. Eu era seu ouvinte predileto. Fez com que eu lhe prometesse um dia conhecer a Europa. Prometi.

Farid foi a grande decepção logo após a volta do nono. Desaparecendo, desaparecendo, sumiu duma vez. A pedido de Teresa, sofredora, Fúlvio procurou notícias dele no ABC. Soube que o ex-noivo de Teresa de fato já trabalhara com tecidos em lojas de lá. Não tinha parentes industriais. Sabia-se dele também que andava muito feliz, noivo de uma moça que ia herdar uma fortuna. A moça certamente era Teresa.

O nome de Farid foi proibido em casa. Teresa, para esquecer o noivo, concentrou-se nas telenovelas. Não perdia nenhuma e comprava assiduamente revistas especializadas nos programas de televisão. Substituía em definitivo a janela pelo vídeo da TV.

Fúlvio, seis meses depois do regresso de Don Francesco, casava-se com uma moça chamada Lia; nome pequeno que mal cabia numa moça tão alta e gorda, com a qual namorava há tempos. Não casara antes porque só perdera esperanças de estudar Medicina no inesquecível dia do garrafão. Todos ficaram muito contentes em casa. E ele, talvez.

 

Roberto, até a época do casamento de Fúlvio, mostrara-se muito ajuizado. Um dia entrei em seu quarto; apertava na mão o envelope do salário que recebera como empregado da Ferranti.

— Isto — disse-me — ganhava às vezes numa noite.

Depois passou brilhantina nos cabelos. Ajuntara dinheiro para comprar um terno novo, vestiu-o. Olhou-se no espelho; fazia questão de calças com vinco perfeito. Uma vistosa gravata. Lenço no bolsinho do paletó. Sapatos muito lustrosos. Elegante ou cafona, voltava a ser o Roberto do Mercedes-Benz. Pela janela do quarto, deu uma olhada no céu, estrelado aquela noite, como em desafio a alguém que conhecesse lá em cima.

Eu também tinha de sair e acompanhei Roberto até a esquina. Andava com passadas retas e firmes. Como tinha cópia do sorriso da janela, exibia-o na rua. Então nos despedimos.

— Diga à mamãe que dê minhas roupas a algum necessitado. Outro dia passo e pego o rcbe.

— Não vai morar mais conosco?

— Acho que não, Dani. Bem, aqui eu recomeço.

Fiquei olhando Roberto afastar-se e integrar-se na noite. Ele ia tentar outra vez.

 

Tio Salvador continuou trabalhando na cantina de zia Raffaela durante algum tempo, mas esfriou diante da impossibilidade de abrir a Chiaromonte como sócio de meu pai. Alguns disseram que seu interesse pelo serviço acabou numa noite em que Norma Simone apareceu por lá com um grupo de atrizes e atores. Recusando-se a servi-la, brigou com zia Raffaela e pediu a conta. Outra versão afirmava que a patroa se implicara com ele porque costumava convidar muitos amigos para beber gratuitamente na cantina, inclusive um tal Gianini que comia como um leão e bebia como um camelo.

Desempregado, tio Salvador voltou a passar a maior parte do dia no quarto do fundo. Minha mãe preocupava-se. Ele sofrera duas grandes desilusões: a política e o trabalho. O que seria dele no futuro? Mas não ficou totalmente inativo. Deu de escrever cartas. Para quem? Respondeu que para velhos amigos. O que dizia nas cartas? Não sabíamos.

Um dia chegou pelo correio uma resposta. Tio Salvador rasgou o envelope, leu a carta e ficou muito feliz. Passou então um telegrama. Ficou inquieto, à espera. Um dia, dois dias, três dias, uma semana. Quando ia cair em depressão, um mensageiro trouxe o telegrama-resposta. Correu para o quarto.

Na pressa, esquecera o telegrama sobre a mesa. Minha mãe e eu lemos. Dizia: PODE VIR A QUALQUER HORA. Quem mandava era um Anunciato, de quem tio Salvador nunca falara. Reapareceu na sala com sua maleta.

— Onde vai, Salvador? — perguntou mamãe.

— Vou passar uma semana na Chácara Kropotkin.

— Onde é isso? Rússia?

— Aí perto de Campinas. Pertence a alguns amigos meus. Vivem lá em comunidade. Plantam, comem e dormem.

Provavelmente faltava algum verbo ai. O fato era que tio Salvador tinha pressa. Nem esperou o cunhado voltar da tipografia. Partiu para a Estação da Luz.

Tio Salvador só voltou depois de um mês. Estava bastante queimado de sol, mais gordo e mais feliz.

— Aquele é um grupo de pessoas que sabe viver — disse a mesa. — Resolveram dizer não às preocupações. Trabalha-se só pela manhã, quando faz bom tempo. À tarde tem a rede, o pão fresco e o rio. À noite o papo, o rádio, o baralho e alguns livros.

— Por que esse nome Kropó.

— Kropotkin. Foi um anarquista.

— Ah, eles são anarquistas?

— A princípio, sim. Pensaram numa colônia anarquista. Mas ficaram mais voltados à Natureza. Podem ser chamados de naturalistas, embora desdenhem rótulos.

Entendendo tudo, meu pai até aconselhou:

— Você devia passar férias! todos os anos, com esses amigos.

Tio Salvador mergulhou no prato de sopa um sorriso de tristeza.

— O plano não é esse, maestro. Estou de mudança para a Chácara Kropotkin. Volto ainda hoje. O Bexiga é bom, mas também há outros lugares. Esse mês lá me fez muito bem.

— A casa aqui é sua — disse meu pai, sinceramente. — Volte quando quiser. O quarto do fundo sempre será seu.

— Agradeço, mas não pretendo voltar mais. Acho que lá é a última etapa.

Houve choradeira quando tio Salvador voltou para a Chácara Kropotkin. Mamãe, Teresa e Don Francesco ensoparam cada qual seu lenço.

— Voltará numa semana — garantiu meu pai. — Ele não é homem do campo.

Semanas depois recebemos uma caixa de abacates, presente de tio Salvador. Não eram bons, mas a intenção é o que conta, mesmo quando o alvo é o paladar. Às vezes escrevia cartas, breves e afirmativas. Briguei com a civilização, dizia numa delas. Aqui a comida é saudável e a água purissima. E tenho um cachorro.

Estranhamos: água era um líquido que o comendador consumia pouco, sem questionar suas qualidades. Rimos disso, mas não muito. Já convencidos de que tio Salvador, o comendador, o boa-vida, não voltaria mais.

 

                  CHEGA O CONVITE; O TIPÓGRAFO NÃO AGRADECE

Enquanto tudo isso acontecia e o tempo passava, eu continuava no colégio e na Tipografia Marino com Mandrake. Não pretendia ser tipógrafo na vida, mas fui aprendendo a arte da composição. Lembro que me senti muito responsável quando meu pai, passando um papel com dizeres, me encarregou de fazer o primeiro serviço sozinho.

— Coisa fácil, Danilo. Apenas um convite de casamento. Use cartão duplo e letras Douradas. A escolha do tipo é coisa sua. Aí estão os nomes dos noivos, dos pais e os endereços. Toque o bonde.

Quando li as informações para a produção do convite minhas pernas bambolearam. Mafalda Ricardi e Gérson Parreira eram os noivos. O casamento estava marcado para dia 18, porém não na igreja do bairro. Jamais podia imaginar que uma redação tão formal e reduzida me causasse tanto impacto. Mesmo assim caprichei na escolha dos tipos e na disposição das palavras. Ficou bonito. Eu já era um gráfico profissional.

Ao examinar a prova, meu pai sorriu, eu passara no teste. Mandrake deu-me um tapa de estímulo e camaradagem nas costas. Comemoramos a auspiciosa estréia no bar, tomando cerveja.

 

                   MAIS ANTONELA

Apesar do coice do convite de casamento, pois não esperava que Mafalda casasse aos dezessete anos, só me lembrara dela amargamente, devido às circunstâncias. Se era para pensar em alguma moça. Antonela vinha muito antes. Encontrava-a às vezes por acaso. Embora o acaso fosse mais da parte dela. Quando me via passar diante de sua casa, acenava. Acontecia de encontrá-la no supermercado, na farmácia, na quitanda, ou a serviço de minha mãe. Falava sempre de sua tia Ana, que andava doente. Uma noite fui ao cinema assistir a um musical; estava lá com uma amiga. Sentamo-nos juntos e chupamos as balas do mesmo pacote, tateando-as no escuro e fingindo que disputávamos as últimas com as pontas dos dedos. Isso nos fez rir.

Jurara nunca mais voltar à casa de Antonela depois daquele susto. Voltei, porém, duas vezes. Uma porque ela me pedira para lhe comprar pilhas para o rádio, em falta no bairro, e a outra porque cismei e fui. Na primeira estava muito ocupada com os petits fours, demorei um minuto. Na segunda, colocou um bolero na vitrola, dizendo que era música de seu tempo. Quis me ensinar a dançar.

Dançamos várias músicas do género. Com aqueles pufes, banquetas e poltronas não havia espaço para o rock. Apesar do cuidado para não tropeçarmos, quase caímos em dado momento sobre sua cama. Depois chegou tia Ana. Estava mesmo muito abatida.

Isso não estreitou mais nossa amizade, como cheguei a crer. Um dia passei diante do “Petits fours e outros petiscos”. Minha amiga estava à janela. Distraída ou fingindo estar, olhou para um lado e outro como se não me visse ou não quisesse me ver.

 

               UM QUE SE AFASTA, OUTRO QUE NÃO VOLTA MAIS

Dando um pequeno salto nesta história trago notícias de Teresa. Não continuou encalhada, como todos — e ela também — acreditavam. Conheceu um moço na banca de jornais. quando comprava uma revista de televisão. Seu nome, Diógenes Sampaio, gaúcho, o que era pena. Não que detestássemos os gaúchos, mas porque moram longe. Esse era de Canela, do Rio Grande do Sul, onde seus pais tinham uma propriedade rural. Quando ela se casou e mudou para lá, minha mãe exigiu telefone em casa para poder conversar com Teresa no minimo uma vez por semana. Todos os anos, porém, ou quase todos. Teresa visita a família. Traz os filhos, logo teve três.

Quanto a Don Francesco, morreu um ano depois de ter ido à Itália buscar o garrafão de vinho. Morreu na igreja da Achiropita, ele que não era de igrejas e tinha bronca dos papas. Não se sabe se ia pela rua e se sentiu mal ou se entrou na igreja porque assim o céu ficava mais perto. Era muito conhecido. Naquele dia a tristeza circulou e parou na esquina de todas as ruas do Bexiga.

 

                   UM RECADO DE BRUNO

O fim poderia ser aí, eu preferia, mas teve mais. Numa tarde, que me iludia ser igual a qualquer outra, três rapazes desceram dum carro e vieram em minha direção. Eu estava só e passava por um terreno baldio. Mesmo sem observar ou ouvir alguma ameaça, tentei fugir. Um deles, com as mãos ao alto, como se fosse segurar um balão que caísse, interceptou-me o caminho. Escapei deste e escapei do segundo, mas do terceiro não.

— Bruno nos mandou lhe dar um recado — disse o agressor mais ágil, segurando-me e atirando-me ao solo.

Ia levantando quando um pontapé no ombro me desequilibrou. O resto foi ver céu e sapatos. Os três queriam dar seus golpes sem escolher onde. Eu protegia o rosto com as mãos e esperneava. Num esforço olímpico pude colocar-me de pé. Foi só um instante. Desta vez cai de bruços e outras partes do meu corpo foram atingidas. Comecei a gritar por socorro; era tudo que estava ao meu alcance. Ouvi então vozes distantes. Eram os salvadores: os três correram para o carro e partiram.

Lembro que me levaram à farmácia onde fizeram curativos ligeiros e dai para minha casa. Fiquei alguns dias na cama, não dava para andar, nem para aparecer com aquela cara inchada.

— Quem eram eles? — perguntou meu pai.

—Não sei e nem mesmo por que me agrediram.

— Como está o mundo!

Retornei ao trabalho e ao colégio; há gente que se recupera de coisas muito piores. Minha mãe foi quem ficou mais traumatizada; quando eu saia, fosse à tarde ou à noite, com receio de que algo me acontecesse, sempre repetia:

— Volte cedo pra casa, Dani.

E, mesmo se ela esquecesse da advertência, eu a ouvia ao transpor a porta e continuava ouvindo-a até mais longe. Ouvia-a, verdade, até quando não saía de casa, já sob o calor das cobertas.

 

                   DEPOIS DO FIM DA HISTÓRIA

No final do curso colegial começaram as preocupações com o futuro. Para qual faculdade iria, estudar o quê, e se teríamos dinheiro suficiente. Precisava arrumar um emprego; na tipografia, claro, não tinha salário. Era o difícil momento da escolha duma profissão, o que decidisse talvez valesse para toda a vida. Mas eu adiava esse momento lendo livros — minha biblioteca crescia — e escrevendo alguma coisa. Dera pra fazer crônicas, contos e até um pequeno romance. Nada me apaixonava mais. Algum dia pediria para alguém mais velho e experiente julgar.

Confesso que vendo a casa quase vazia, apenas minha mãe, meu pai e eu, ela que já tivera gente dormindo até na sala, vinha-me o desejo de ir embora também. Porém o ímã do passado me retinha. Estávamos sempre falando de outras épocas, que meu pai chamava os bons tempos. Para eles os melhores haviam sido os da espera da herança, que não chegara. Daria o próprio saco de liras para esperar outra vez.

Por gostar de tio Salvador e porque escrever era um prazer que se tornava vício, mandava-lhe cartas. Numa delas, falei por alto de Mafalda e ainda mais por alto de Antonela. Respondeu-me, querendo consolar-me ou querendo consolar-se, que o melhor do amor é a memória. Vive-se mais um fracasso que um sucesso. Não sei se é verdade, mas anotei a frase. Suas cartas porém cingiam-se mais a coisas concretas como a terra, o rio, o sol e o lazer da Chácara Kropotkin.

Agora estou andando pela cidade a caminho do centro. Não sou mais o caçula nem Dan nem Dani. O que foi passado já pus em palavras. Piso novas calçadas. No bolso levo recortes de firmas que solicitam empregados. Vão me olhar dos pés à cabeça, fazer perguntas, apresentar testes. E dai?

Encho os pulmões de ar, poluído, mas serve. Acho que tudo vai sair bem. Piso mais firme. Enfrentarei, claro, dificuldades — sempre é assim. Olho pra frente. Vai dar certo. Aperto o passo. O futuro é como um ônibus, não posso perdê-lo.

 

                                                                                Marcos Rey  

 

                      

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