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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DINHEIRO E BALAS / Clark Carrados
DINHEIRO E BALAS / Clark Carrados

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

O telefone tocou. Revolvi-me inquieto na cama. "De­mônios, quem será o importuno que toca a esta hora"? Falei comigo. Era domingo, e aos domingos tem-se direito ao descanso. Assim, tapei a cabeça com o travesseiro e deixei que o telefone continuasse tocando.

Finalmente o maldito aparelho parou de tocar. Com­pus um beatífico sorriso e procurei mergulhar novamente em meu nirvana particular.

O telefone voltou a tilintar. Era fora de dúvidas que esse alguém que chamava tão insistentemente, tinha um verdadeiro empenho em falar comigo. Nestas circunstân­cias, não tive jeito senão estender a mão e colar o apa­relho em meu ouvido.

— Jerry Braxton falando — murmurei com voz espessa, adensada pelas libações da noite anterior.

— Olá Jerry, maldito corvo! Que faz aí, dormindo a estas horas, quando todo mundo já está de pé, aproveitando o maravilhoso sol que acaricia nossa bem-amada cidade?

— Que Satanás acabe com você e a cidade, Matt. — Era meu amigo Follingsbee, tenente de polícia. Um bom amigo meu. Por que me acordou a esta hora? Será que não tem compaixão de um honesto trabalhador que... ?

— Quanto ao trabalhador, pode ser, mas honesto, duvido um pouco, Jerry — disse o "tira" sarcasticamente. — E, já que falou em trabalho apesar de indiretamente, ouça: tenho um para você.

— Hoje é meu dia de folga, Matt — protestei. — Amanhã, a partir das nove da manhã, apareça com o su­jeito em meu escritório e marque hora com Miss Stetson, minha secretária. Então poderei atendê-lo com o máximo prazer.

— Vai fazê-lo agora, Jerry. Trata-se de um assunto urgente.

— Algum assassinato? — perguntei repentinamente in­teressado.

— Não. Pelo menos até agora. Contudo, lamento não poder ser mais explícito pelo telefone, Jerry. Posso apenas adiantar-lhe o nome de seu provável cliente. É Ofélia Drummond. Veio ver-me, pediu algo que não posso fa­zer oficialmente e por isso toquei-a para você.

— Ótimo. E você naturalmente pensou que devo ser um advogado estilo Perry Mason ou coisa assim, não?

— Pior, muito pior — riu meu amigo com o maior descaramento. — Estou certo de que tirará a Drummond de seus apuros. E não me deixe mal, Jerry.

— A propósito, Matt, ainda não me disse quem é essa senhora. Não pode adiantar-me qualquer coisa pelo telefone?

— Posso apenas dizer-lhe que já está a caminho de sua casa. Quando sugeri a ela ir vê-lo amanhã em seu escritório, negou-se a uma e outra coisa. Disse que seria hoje e em sua própria casa.

— Pelo menos espero que seja moça e bonita.

— Claro que é. Mas é caso perdido, seu velho gavião.

— Casada?

— Já!

— Que pena — respondi. — Bem, existem outras mulheres por aí, segundo imagino.

— Concordo. Como a que estava em sua companhia ontem à noite no "Regulo's".

— Que tal, Matt?

— Muito gorda e sem polimento. Além disso, pelo que pude ver e ouvir bebe como um cossaco e pragueja como um estivador. Jerry, criatura de Deus, será que não pode escolher outro tipo de mulher para suas ex­pansões?

— Apanhou-me num momento sentimental. Sozinho na vida, precisando de alguém para consolar meus sofrimentos...

— Seus sofrimentos são os mesmos que os irmãos Marx apresentam na tela, seu urubu. Bem, receba a Drummond. Peço em nome de nossa velha amizade. Ga­nhará uma boa fatia, entendeu?

E desligou.

Durante alguns segundos permaneci indeciso, perguntando-me que raios de assuntos tão urgentes teria aque­la senhora a tratar comigo. Sou um advogado igual a tantos outros, embora algumas vezes exceda os limites no aspecto profissional. Não conseguia compreender por que a Drummond me escolheria para seu... seu quê?

Balancei a cabeça e ao fazê-lo pareceu-me ter sido atingido por uma bolada no crânio.

— Ooooh... — gemi. Corri para o banheiro, engoli duas aspirinas e enfiei-me debaixo da ducha gelada.

Quando saí, esquentei água para o café. Vesti-me rapidamente e quando já ia terminando, a campainha da porta tocou.

Fui abrir e então conheci Ofélia Drummond.

 

Era alta, bem feita como uma valquíria, de cabelos escuros quase negros e olhos pardos, suaves e acariciantes. Usava um primaveril vestido cinza, o qual deixava à mostra uma bela e generosa fatia do início de um busto rijo e delicado. Tinha também um chapeuzinho de palha vermelha igual à bolsa do mesmo material, luvas e sapatos da mesma cor. Uma mulher de verdade, para que entendam melhor.

— Sou Ofélia Drummond — apresentou-se, numa voz de contralto clara e bem modulada.

— Jerry Braxton, minha senhora. Tenha a bondade de entrar.

Conduzi-a para o "living", e ela se sentou na beirada do sofá, com os joelhos muito juntos e começou a tirar as luvas.

— Se me permite — sugeri, — ofereço-lhe uma xícara de café.

— Pois não — aceitou. — Talvez me faça bem. Procurei disfarçar a admiração que me inspirava.

Eram uns magníficos vinte e oito anos e, francamente, invejei o homem que se tinha apoderado deles, não tanto pela beleza dela, mas também por sua maneira de agir e portar-se, tão natural e senhora de si, sem perder a compostura por um segundo sequer.

Voltei ao cabo de alguns minutos, trazendo o serviço. Enchi sua xícara e ofereci-lhe, colocando o açucareiro ao alcance de sua mão. Minha dor de cabeça já tinha de­saparecido e agora eu me sentia bem melhor.

— Naturalmente— começou ela a dizer — o senhor deve estar imaginando por que preferi utilizar seus servi­ços em vez de recorrer à polícia.

— É possível — respondi cautelosamente. — De que se trata?

— Já ouviu falar alguma vez em Augie, "O Verdinho"? Franzi a testa, enquanto forçava a memória. Augie, "O Verdinho"?

— Chamavam-no assim — continuou Ofélia — por gostar demais das notas de mil. Conseguia obtê-las en­sinando aos outros como funcionava sua pistola. O pior é que quando suas vítimas aprendiam, de nada mais lhes servia.

— Compreendo — murmurei. — Um virtuose do ga­tilho.

— Justamente. Eu era sua garota e digo-o assim, para não precisar empregar o termo exato, senhor Braxton.

Enquanto pronunciava essas frases, fazia-o de modo calmo e inteiramente tranquilo, sem modificar em abso­luto suas maneiras altivas.

Pensei adivinhar o que se estava passando com a jo­vem. Alguém procurava envolvê-la em chantagem, amea­çando contar seu turbulento e antigo passado a seu atual marido.

Estava enganado.

Ela disse:

— Sei no que está pensando, senhor Braxton, mas tal não se dá. Meu marido está perfeitamente inteirado de tudo a que se refere ao período anterior ao meu casamento com ele. Desde a minha primeira dor de dentes à noite de insônia que atravessei na véspera da cerimônia. Como vê, não se trata de nenhuma chantagem.

— Então?— murmurei um tanto desconcertado.

— Agora sou uma mulher honesta e decente. Minha vida passada foi turva e agitada, mas isso nada quer dizer agora. Meu marido, Clark Drummond, aceitou-me como eu era, sabendo desde o primeiro instante que o cami­nho por mim percorrido, até então, não conduzia preci­samente à santidade. Já não tocamos mais nesse assunto para nada. Eu o amo, ele me ama e somos felizes.

— Folgo imensamente em sabê-lo, senhora — res­pondi.

— Foram dois anos maravilhosos, senhor Braxton — comentou. — Mas esta felicidade perfeita está prestes a terminar. E eu desejo que o senhor a prolongue eterna­mente.

—Bem — falei, com um sorriso meio sem jeito. — Se o caso é proveniente de algum estremecimento conju­gal, acho que encontrará alguns advogados mais hábeis que eu, dedicados justamente a essa especialidade. A mi­nha se refere a questões criminosas.

— Justamente por isso vim vê-lo, senhor Braxton. Eu e meu marido continuamos tão apaixonados como no primeiro dia. Portanto, não existe, nem remotamente, al­guma desavença conjugal. Entretanto, quando me julgava tranquila e pensava que tudo que poderia existir no passado já estava esquecido, de repente sucedeu algo que trouxe novamente minha vida antiga ao primeiro plano dos acontecimentos.

— Se não é caso de alguma chantagem... — disse.

— De certo modo não é. Seria se alguém procurasse extorquir-me dinheiro para que meu esposo nada viesse saber de minha vida antiga. Mas, uma vez que ele já sabe, tal extorsão tornar-se-ia improcedente e fora de tempo, além de inútil.

— Claro — assenti.

— Bem. Sabem que amo Clark e que morreria se alguma coisa acontecesse a ele. Baseando-se nisso, recebi uma carta anônima na qual o ameaçam de morte se eu não informar onde estão os duzentos e cinquenta mil dólares provenientes do último golpe de Augie, "O Ver­dinho".

Sobressaltei-me sem poder evitá-lo. Um quarto de milhão!

Ofélia percebeu minha surpresa e seus lábios ver­melhos se entreabriram num débil sorriso.

— Sim, senhor Braxton. Nada menos que duzentos e cinquenta mil dólares! Um pequeno pacotinho, uma vez que consta apenas de notas de mil. Leve e de escasso vo­lume, tornando-se muito fácil de ser carregado para e em qualquer lugar.

— Então Augie roubou tudo isso!

— Sim, e para consegui-lo, atirou e matou o homem que levava essa importância. Não foi feliz desta vez. Prenderam-no e agora está em Alcatraz, condenado a noventa e nove anos. Nunca mais sairá da ilha, nem mesmo depois de morto, porque os condenados que mor­rem dentro do presídio são enterrados no cemitério do presídio. Sua única esperança seria um indulto, impossível de ser obtido em virtude de seus antecedentes: o

assassinato de um policial. Logo, o senhor pode ver que meu antigo amante é um ser vivo, mas sepultado.

— Claro. — Estremeci. Triste quadro: em Alcatraz, por toda uma existência!

— Muito bem. Augie tinha sua quadrilha, e seus mem­bros mais ativos, estão livres e soltos. Augie lhes fez saber que, uma vez não podendo desfrutar do dinheiro por estar preso, peçam esses dólares a mim e repartam entre si como bons irmãos. São cinco.

— Cinquenta mil para cada um. Claro.

— Sim. E para mim, nada. Acha que fui infiel e não mereço nem um centavo desse dinheiro.

— Bem, mas se a senhora o tem, sua obrigação é en­tregá-lo às autoridades para ser devolvido a seus legíti­mos donos, senhora Drummond.

— É o que teria feito, se estivesse com esse dinheiro. Mas acontece que nem sei onde está!

Fitei-a com incredulidade, e ela percebeu minha rea­ção.

— É verdade, senhor Braxton, apesar de o senhor não parecer acreditar. Augie afirma que me enviou o dinheiro para guardá-lo até sua saída do cárcere (pensava livrar-se logo, como se imagina). Contudo, jamais vi esses dólares nem tenho a menor ideia de onde possam estar.

— E... ? — murmurei.

— Os membros da "gang" me pediram o dinheiro em várias oportunidades. Começaram há uns dois meses e minha resposta foi sempre a mesma. Aí, acreditando que eu pensava guardá-lo todo apenas para mim, ameaçaram matar meu esposo se eu não entregasse o dinheiro.

— Bem, e que papel desempenho eu nisso tudo?

— Chegarei lá, senhor Braxton. Clark, meu marido, vive sempre pendente a mim e aos meus desejos. Perce­beu que alguma coisa me preocupava nos últimos tempos e quis saber. Nunca lhe ocultei nada e por isso contei tudo às suas primeiras perguntas. Começou a rir, in­clusive quando eu disse que sua vida corria um grande perigo.

— Por que não chamaram a polícia?

— Tentei fazê-lo, mas ele não quis. Disse que era coisa sem importância, mas que eu poderia procurar um particular de confiança para resolver o assunto. Então fui ver o tenente Follingsbee, meu antigo conhecido.

Pronunciou a última frase ligeiramente transtornada, sem nenhuma alteração em sua respiração.

— Follingsbee me enviou uma vez para um reformatório de jovens desencaminhadas, onde passei dois anos, senhor Braxton. Agora sabe que sou decente e quer aju­dar-me.

— Prossiga senhora Drummond, não se interrompa.

— Bem, não há muito mais a dizer. Para tranquilizar-me, meu marido disse que conseguisse algum jeito de entrar em contato com os cinco membros da quadri­lha de Augie e prometesse dez mil dólares a cada um em troca de seu silêncio definitivo. Não deseja que eu sofra mais, entende?

— Perfeitamente, senhora.

— Por isso fui ver Follingsbee, a fim de indicar-me quem poderia encarregar-se dessa tarefa. Recomendou-me o senhor. Imploro-lhe que aceite este trabalho. Recom­pensá-lo-ei com cinco mil dólares se conseguir fazer tudo conforme desejamos.

Cocei o queixo. Vacilava. Sou um advogado e não detetive à Micky Spillane. O fato de ser obrigado a enfrentar uma "gang" de sujeitos resolvidos e dispostos a tudo, segundo parecia, não tinha graça nenhuma. Mas os cinco mil sonantes eram uma isca tentadora e, demô­nios, se agisse com cautela e um pouco de sorte, talvez pudesse levar o assunto a um final feliz sem nenhum prejuízo.

— Há uma objeção — respondi finalmente. — Su­ponhamos que os sujeitos aceitem. Contudo, uma vez com os dez mil em seu poder, podem considerar-se deso­brigados de sua promessa de silêncio e tornar voltar à carga, isto é, às ameaças.

— Clark já previu. Assim que aceitarem, o senhor fá-los-á assinar um documento onde declaram, sob amea­ça de processo judicial, que não tornarão a aborrecer-me nesse sentido e que fiquem certos de que não sei onde se encontram esses duzentos e cinquenta mil dólares. Bem, deixo a redação desse documento a seu critério; o senhor é advogado e poderá fazê-lo melhor que eu. Contudo, en­tendeu minhas intenções, não?

— Certamente, senhora Drummond.

Uma luz de esperança brilhou em seus olhos.

— Então, aceita?

— Sim — respondi, após alguns instantes de reflexão.

Seu bem feito busto se distendeu num amplo sus­piro de satisfação. Sorriu e, ao fazê-lo, seu rosto se tor­nou maravilhosamente iluminado. Que sorte tivera esse felizardo Clark Drummond! Como o invejei nesses mo­mentos! Sujeito de sorte, possuindo inteiramente o amor e devoção de uma mulher como Ofélia.

A moça tirou um retângulo de papel azulado de den­tro da bolsa. Entregou-mo e li a cifra escrita sobre o mesmo. Dois mil e quinhentos. A metade dos honorários adiantadamente. E não se poderia dizer que Drummond fosse avarento. Eu também daria tudo quanto possuísse para salvaguardar minha vida e minha felicidade ao lado de uma mulher como Ofélia. Mas era solteiro e minha conta no Banco sofria de anemia crônica.

Ofélia se levantou, deixando em evidência toda a majestade de seu talhe magnífico.

— O tenente Follingsbee me assegurou que o senhor, somente o senhor, poderia resolver o caso. Como vê não lhe poderíamos dar um cunho oficial; ele precisaria fazer coisas que, como funcionário de polícia, lhe são vedadas e vice-versa. Poderá ajudá-lo discretamente e sem baru­lho, em virtude do cargo que ocupa e, assim, os repór­teres de nada saberão. Meu esposo, a qualquer preço não deseja escândalo e muito menos eu, como pode ima­ginar.

— Naturalmente, senhora.

Abriu novamente a bolsa e entregou-me um papelzinho dobrado.

— Aqui tem o nome dos cinco cúmplices de Augie.

— Todos moram na cidade?

— Acho que sim. Pelo menos os dois primeiros. Não sei seus endereços, mas o senhor pode investigá-lo e come­çar suas averiguações com os dois mencionados.

— De acordo, senhora Drummond. Deseja ser posta a par de todos os detalhes, à medida que for adiantan­do minhas investigações?

— Não. Fale comigo apenas quando já estiver tudo encerrado. Nessa altura, entregar-me-á os cinco documen­tos de renúncia, digamos assim, e eu completarei o resto de seus honorários.

— Bem — objetei, — mas para obter tais documen­tos, precisarei de dinheiro.

— É verdade — murmurou. Mordeu os lábios. — Bem, cada vez que um dos bandidos concorde em assinar, comunique-se com meu esposo, e ele entregará a quan­tia estipulada.

— Deverá ser em dinheiro batido. Essa gente não costuma aceitar cheques.

— O senhor fará como achar melhor.

Dirigiu-se para a porta, caminhando com um suave balancear de quadris. Soltei um suspiro. Que sorte têm alguns homens, demônios!

 

Ficando só, requentei o café e servi-me de uma se­gunda xícara. Relia a lista com os cinco nomes. Jamais os ouvira antes e para mim eram tão novos como se vies­sem de Marte.

Acendi um cigarro e durante alguns momentos repas­sei mentalmente a conversa mantida com Ofélia. Um quarto de milhão! Raios, onde poderia estar toda essa montanha de dinheiro?

De repente, uma súbita suspeita me invadiu o cé­rebro. E se o que pretendia Ofélia era desfrutar tranquilamente aquele dinheiro, após desfalcado em cinquenta e cinco mil dólares? Sempre ficaria sobrando cento e noventa e cinco mil, uma suculenta fatia, principalmente se sabendo que seu "proprietário", Augie, "O Verdinho", jamais poderia aproveitá-la em vida.

Mas não. Ofélia me parecera limpa e decente, pro­curando apenas assegurar-se um ambiente de tranquilidade para o resto da vida. Tornava-se lógico possuir um apaixonadíssimo marido que não se importava em pagar qualquer preço, se com isso sua esposa ficasse tranquila.

Ao mesmo tempo, os cinquenta e cinco mil dólares que Drummond parecia disposto a gastar indicavam-no como um homem rico ou pelo menos protegido por certo desafogo financeiro. Que fazia esse homem? Qual a sua ocupação?

Lamentei ser domingo. Não tinha nenhuma documen­tação à mão; todos os meus livros de consulta se acha­vam no escritório e, por outro lado, queria importunar Follingsbee o menos possível pelo telefone. Não desejava curiosidades nem infiltrações. Assim, o melhor era ir vê-lo pessoalmente na Chefatura e falar-lhe na solidão de seu gabinete.

Uma hora mais tarde estava inteirado de todas as particularidades referentes a Clark Drummond e sabia como encontrar o primeiro fora da lei de minha lista.

— Não sei onde mora atualmente e também não quero perguntar no Arquivo, a fim de não levantar a lebre. Neste assunto — acrescentou meu amigo "tira" — quanto menos se souber, melhor, compreendeu?

— De qualquer modo — disse, fitando-o intencional­mente — você não ficaria muito desgostoso em saber o paradeiro desse quarto de milhão, não é mesmo?

— Veja. — respondeu Follingsbee pensativamente: — o crime foi cometido há três anos, e o dinheiro ainda não pôde ser encontrado. Como você bem pode compreen­der, isso não deve fazer nenhum bem ao Departamento.

— Imagino. Vamos, abra o bico e diga como farei para encontrar Buddy Torano.

— Vá ao "Madeira". Uma vez lá, pergunte por Lois Nelson. É ou era sua pequena. Ela deve saber onde ele mora. É muito acessível.

— A quê? Ao dinheiro... ou aos rapazes simpáticos?

— As duas coisas, principalmente se estão juntas. Assim você já sabe como deve agir, Jerry.

Levantei-me.

— Obrigado, facínora — disse. E saí.

Apenas saíra da Chefatura e dei de cara com Selene Hyatt.      

 

Selene Hyatt é uma imponente loura que nada pre­cisa pedir emprestado a mulheres tipo Ofélia Drummond. Em minha opinião, sua única falha consiste num diploma de advocacia e uma insaciável curiosidade, além de uma viva inteligência que a torna muito útil em determinados casos que defende criminalmente. Seus olhos são azuis, cândidos, mas é mais esperta que uma raposa e mais penetrante que uma águia, com a vantagem sobre estes dois animais de que é mulher e apenas terminou de fazer um quarto de século de idade.

Ultimamente Selene se especializara na defesa de mulheres ciumentas que apunhalam o marido e conduzia-se tão bem que seu escritório está constantemente cheio de damas nessas condições. Ganha seu rico dinheirinho, permitindo-se uma vida livre, independente e sem apertos. Mas é uma garota honesta e decente a toda prova que vive suspirando por um marido, três filhos, uma cozinha e os fins de semana sob uma tenda de campanha na Península de Monterrey, em frente ao Pacífico.

A moça me fitou de soslaio, vendo-me sair da Che­fatura. Estava uma uvinha com seu vestidinho estampa­do de flores, amoldando-se deliciosamente a todas as curvas de um corpo firme e jovem. Era o retrato vivo da primavera, com saltos de oito centímetros de altura.

— Olá, sanguessuga — saudou, apenas me viu. — De que tristes despojos andou chupando o sangue?

— Ainda não sou necrófago como você — respondi sarcástico. — Vim somente cumprimentar um bom ami­go. O tenente Follingsbee, se é que você o conhece.

— Vagamente — declarou com indiferença. — É dia de seu aniversário?

Fitei-a intencionalmente.

— Ouça, riqueza, meta-se com a sua vida e deixe a minha de lado. Ajude a sair daí a infeliz que acaba de furar as tripas do marido infiel e ocupe-se apenas disso.

Selene se irritou.

-- Não é uma esfaqueadora — declarou — mas, sim, um homem.

— Pois ficará bem alegre ao vê-la. Que foi que fez?

— Apropriação indébita. Nada importante. Duzentos dólares num cheque sem fundos.

— Bem, caso encontre alguém que lhe pague a fian­ça, logo poderá sair. Na melhor das hipóteses, talvez seu próprio advogado empreste o dinheiro — acrescentei significativamente.

— Como advogada, recebo por meus serviços, não empresto dinheiro, fique sabendo Jerry. Bem, pode le­var-me em seu carro?

Eu ainda estava com a porta aberta e a gente deve ser galante em algumas ocasiões, apesar de disfarçar o aborrecimento do momento. Convidei-a a entrar, e Selene se aprumou no assento com uma dignidade de rainha.

Passei para o outro lado e dei partida ao motor.

Para onde devo levá-la?

Deu o endereço. Franzi a testa e ela percebeu o gesto.

— Por que fez isso, Jerry?

— Não gosto que você ande por esses lugares, Selene — declarei.

— Ora vamos! — debochou a moça. —Até parece que poderei ser raptada ou far-me-ão alguma coisa. Pen­sa que não sei defender-me, rapaz? Faz parte de minha profissão, não se esqueça.

— Que vai fazer lá? Essa rua não é nada recomen­dável, isso posso assegurar.

— Sei disso — respondeu ela. — Contudo, não tenho outro remédio. O preso me encarregou de ver sua es­posa e informar-lhe como proceder quanto aos duzentos dólares da fiança exigida pelo juiz para deixá-lo em li­berdade.

— Ah! — respondi apenas.

Continuamos rodando. De Lymington Place passamos para a avenida Custer e depois à rua Dezesseis. Duzentos metros mais adiante ficava a rua para onde a moça se dirigia e na qual morava a mulher a quem visitaria.

Entrei com o automóvel na rua. Era sombria e suja, constituída por velhas casas acinzentadas e lavadas pela chuva, pedindo aos gritos a picareta do demolidor. Parei o carro em frente ao número indicado por ela.

— Se não se importa, ficarei aqui à sua espera — falei.

— Formidável, Jerry. Que há com você? Nunca o vi tão amável e prestativo.

— Talvez esteja aborrecido e deseje consolar-me um pouco, desfrutando sua incomparável companhia, Selene.

Olhou-me enviesadamente.

— Jerry — exclamou. — E nos outros dias, quem o consola?

— Assunto proibido — respondi com alacridade, en­quanto apanhava um cigarro e o colocava na boca.

— Devia mandá-lo ao inferno por esta resposta, mas hoje estou com o estado mental de meus dias de festa. — respondeu ela. — Espere-me aqui; talvez depois lhe peça que me convide a comer qualquer coisa.

— E obedecerei com o maior prazer, não tenha dú­vida — falei. Precisava passar o tempo de alguma forma até a noite, quando pretendia ver Lois Nelson no "Ma­deira".

Dez minutos mais tarde Selene deixou a tal casa e parecia satisfeita.

— Eis-me aqui — falou. — Agora quer continuar a ser bonzinho e levar-me onde preciso ir?

— Sou seu humilde servidor, minha senhora — disse, colocando o carro em marcha novamente. — Corno se passaram os negócios?

— Muito bem — respondeu ela. — Agora, a senhora Merton irá ver um tal Clark Drummond e perdir-lhe-á tre­zentos dólares; duzentos e cinquenta para a fiança e cinquenta para meus honorários. Voltarei a vê-la pela tarde, a fim de entregar-me o dinheiro, e o preso será posto em liberdade.

Procurei dominar a surpresa que me invadira ao ouvir suas declarações. Não pude evitar que minhas mãos se crispassem no volante. Merton era o segundo homem da lista fornecida por Ofélia Drummond apenas duas horas antes!

Talvez fosse casualidade ou boa sorte, mas o fato era que, sem desejá-lo, acabava de encontrar a residência de um dos cinco componentes da quadrilha. Por alguns momentos cheguei a pensar em abandonar Selene e se­guir direto para a Chefatura, a fim de interrogar Lou Merton lá mesmo, mas depois caí em mim e resolvi aguardar o sujeito em liberdade. Quanto menos gente curiosa em torno, tanto melhor.

Levei Selene ao "Mac's", um dos mais famosos res­taurantes da cidade, situado quase no alto de uma das colinas que a dominam e de onde se desfruta um esplên­dido panorama. Uma vez acomodados a uma mesa, pedi licença.

— Um momento, sim? Vou dar um telefonema e voltarei em seguida.

— Como é ela, Jerry? — perguntou Selene com ma­lícia.

— Uma harpia — respondi com volubilidade.

Encerrei-me na cabina telefônica e procurei o núme­ro da residência dos Drummond no catálogo. Não demo­rei a encontrá-lo e em seguida disquei para lá.

— Desejo falar com a senhora Drummond — falei, logo que ouvi uma voz no outro lado da linha. — Meu nome é Braxton.

— Um momento — respondeu uma voz masculina, sem demonstrar o menor espanto pela chamada. Provavelmente seria seu marido, o qual devia estar a par do assunto.

Vinte segundos depois ouvi a agradável voz de Ofé­lia através do fio.

— Sim, senhor Braxton.

— Ouça um momento, senhora Drummond. Pode informar se esteve aí uma mulher chamada Merton? Des­conheço seu nome, mas o sobrenome de seu marido é esse.

— Merton! — exclamou ela, surpreendida.

— Justamente, o próprio.

— Não, não esteve. Será que... ?

— Não faça perguntas — recomendei. — Se não foi vê-los, irá dentro em pouco. Perguntará por seu esposo. Avise-o para recebê-la e entregar-lhe os trezentos dóla­res que pedirá. Não em cheques, mas em notas.

— Ouça senhor Braxton...

— Não se preocupe e faça como digo. É muito im­portante Talvez amanhã possa dar-lhe notícias sobre os dois primeiros nomes da lista, compreende?

— O senhor é muito rápido, senhor Braxton — disse Ofélia em tom admirado.

— Pagam-me para sê-lo, senhora. Bem, diga a seu esposo para fazer como já disse e não ficar preocupado com coisa alguma. Bom dia.

E desliguei.

Ainda fiquei ali um instante, pensativo; depois saí da cabina e dirigi-me para a mesa onde Selene ficara à minha espera.

Comemos maravilhosamente bem e passamos alguns deliciosos momentos. Em seguida, fomos dar um passeio pelas colinas e quando a tarde já ia em meio, voltamos à cidade.

Selene se despediu. Falou:

— Agora vou ver se a senhora Merton já conseguiu o dinheiro.

— Desejo-lhe boa sorte, beleza.

— Obrigado, corvo. Veremos quando seu convite será repetido.

— Seria feito com mais frequência se não temesse seus repentes, Selene.

— Talvez não deseje prová-los, não é mesmo? — disse ironicamente. E afastou-se esbelta e ondulante co­mo uma palmeira africana.

Quando a perdi de vista, liguei o motor e segui lentamente para a Chefatura, apesar de não pretender entrar lá. Parei o carro e enfiei-me num bar próximo, de onde poderia observar o grande portal do edifício.

Precisei esperar quase duas horas. Primeiro chegou Selene, seguramente para pagar a fiança de seu cliente. Saiu um quarto de hora mais tarde.

Nesse momento, paguei minha despesa e saí para a rua, instalando-me atrás do volante. Deixei o motor trabalhando e fiquei na expectativa.

Não esperei muito. Lou Merton saiu alguns minutos mais tarde.

Era a primeira vez que o via, mas estava certo de não me enganar. O "cara" ficou parado na porta por um momento, fingindo-se absorvido na tarefa de acender um cigarro apesar de na realidade estar investigando a rua cautelosamente. Temeria alguma coisa?

Um táxi passou preguiçosamente, Merton agitou a mão e o veículo freou. Segui atrás, procurando não me tornar visível.

Merton se dirigiu diretamente para casa. Vi-o des­cer do carro, o qual precisou parar um pouco antes de chegar à frente de sua residência, uma vez que já ha­via outro, estacionado justamente diante da porta do edifício. Naquele lugar, a iluminação era deficiente e escassa, o que tornava difícil apreender todos os detalhes da cena.

Merton atravessou a calçada, desaparecendo no pór­tico. Desliguei o motor e saí do carro, percorrendo rapi­damente os poucos metros entre mim e a casa. Queria pegá-lo antes que percebesse o que estava acontecendo.

Nesse momento, um homem saiu do edifício. Pa­recia muito apressado e encaminhou-se diretamente para o carro negro estacionado em frente à casa. Pôs o carro em movimento e arrancou, parecendo perseguido por cem legiões de demônios.

O sujeito saiu com tanta pressa que esteve a ponto de derrubar-me. Nem sequer olhou para mim e muito menos eu para ele, atento unicamente em Merton. Per­cebi apenas seu chapéu negro, cujas abas ocultavam-lhe quase todo o rosto, bem como as lapelas do sobretudo erguidas para cima.

Voltei-me para entrar. Nessa instante, Merton apa­recia no portal.

À indefinida luz que vinha da rua suja, vi o de­sengonçado rosto de Merton, com a boca aberta, pare­cendo gritar como nos filmes do tempo do cinema mudo. De sua garganta não vinha o menor ruído.

Estendeu uma das mãos em minha direção, como se quisesse agarrar-se ao meu ombro. Estava com os olhos arregalados, fora das órbitas e todo o corpo tremia convulsivamente.

— Merton! — exclamei.

Justamente nesse momento o homem caiu de bruços, após soltar um gorgolejo impossível de descrever. Quando se esparramou no chão vi aparecer, bem no meio de suas costas, o cabo de um punhal empurrado até o fim.

 

Merton estrebuchou por alguns segundos e depois ficou imóvel, esticando as pernas com medonha lentidão.

Não pude evitá-lo. Um homem acabava de ser as­sassinado ante meus próprios olhos. E o autor de sua morte — agora já não tinha a menor dúvida — fora o indivíduo que saíra daquela casa, fugindo como louco.

Imaginei a cena. O assassino devia ter-se escondido no pórtico, esperando a chegada de Merton. A casa era velha e carente de iluminação: um lugar feito sob me­dida para cometer-se um crime sem que ninguém desse pela coisa. Tornou-se, pois, muito fácil esperar protegido pelas sombras e assestar a punhalada mortal no momento oportuno.

Merton nem tivera tempo de falar. O mais estranho de tudo é que tivesse ainda suficiente força para vir para fora, carregando um punhal cravado em semelhante re­gião do corpo. Já devia estar praticamente morto, quando a arma terminara de penetrar-lhe no corpo. O assassino soubera calcular o golpe muito bem.

Por quê? No momento não me interessava saber os motivos, teria tempo de investigá-los mais tarde. Para mim, o urgente era afastar-me da cena do crime o quanto antes. Não tinha medo de ser envolvido no crime, mas tampouco sentia a menor vontade de ver meu nome em letras de imprensa. — Tal fato poderia ser de imprevi­síveis consequências na tarefa encomendada por Ofélia Drummond.

Assim, raspei-me dali, aproveitando uma ocasião em que a rua estava vazia e ninguém ainda percebera o ocor­rido. Do momento em que vira Merton estatelar-se no chão até sentar-me atrás do volante de meu carro, de­correram apenas uns vinte segundos.

Lancei-me a toda velocidade em perseguição ao sedan negro. Dobrei por Alvarado e saí na Avenida Custer, es­plendidamente iluminada. Como era de esperar, o as­sassino tivera tempo de sobra para desaparecer sem dei­xar vestígios.

Parei o carro em frente ao bar mais próximo e dali liguei para a Chefatura. Falei com Follingsbee, comunicando-lhe o fato. Depois, para não ser incomodado por meu amigo policial, tratei de dar o fora para bem longe dali.

Falei depois com Selene e disse-lhe o que acabava de acontecer.

— Santo Deus, Jerry! Tem certeza?

— Tanta certeza como de falar agora com você. Lou Merton "esfriou" para sempre, com vinte centímetros de aço metidos dentro do corpo.

— Sua mulher sabe?

— Não sei. Talvez sim, talvez já tenha ido à polícia dar parte do crime.

Selene é uma boa moça e, às vezes, tem impulsos real­mente elogiáveis. Disse:

— Irei ver a senhora Merton e procurarei consolá-la, Jerry. Acho que é o mais conveniente nesses momentos.

— É uma boa ideia, beleza. E se puder investigar algo, de passagem, não deixe de comunicar-me. Será gra­tificada convenientemente.

— Sem um simples beijo e — rua! Acha que não o conheço?

De repente interrompeu-se. Nesse instante, deve ter percebido um detalhe que passara por alto, impressionada como estava pela morte do antigo quadrilheiro.

— Jerry!

— Sim, beleza...

— Por que raios se interessa tanto por Merton? Que pretende, ao dizer-me para procurar sondar a viúva?

Mordi os lábios. Eu resvalara ligeiramente. Não devia ter demonstrado claramente minhas intenções, mas, sim, procurar uma entrevista no dia seguinte com a viúva Merton. Uma entrevista bem pessoal. Mas agora o mal estava feito e o remédio era aguentar as consequências.

— Selene, por ora nada posso dizer-lhe. Peço-lhe um pouco de paciência. Seja boazinha e faça o que pedi, de acordo?

Era desconfiada e não se conformou.

— Você me está escondendo algo, Jerry. Diga o que é.

— Por telefone? Vamos, nunca pensei que fosse tão ingênua. Faça-me o favor pedido, se quiser; caso contrá­rio eu mesmo irei ver a Merton amanhã de manhã.

— E por que não esta mesma noite?

— Pela única razão de já ter um compromisso mar­cado e não ser possível adiá-lo, compreende? E agora, adeus. Ligue amanhã para meu escritório.

Desliguei antes que pudesse objetar qualquer coisa, bastante amolado pelo pequeno deslize cometido. Soltei um profundo suspiro de resignação, o único viável no momento e saí da cabina.

Estava com algum apetite e, além disso, precisava fazer um pouco de hora. Pedi uns dois sanduíches no balcão, os quais engoli com um pouco de cerveja e rematei a tarefa com uma xícara de café. Terminei, paguei a despesa e saí para a rua com um cigarro preso no canto da boca.

Vinte minutos depois parava o carro nas vizinhanças do "Madeira". Desliguei o motor e saltei, perscrutando o ambiente à minha volta.

As luzes de neon reluziam alternativamente, com enor­mes faíscas multicores. Mesmo assim, desprezei a entra­da principal e procurei a entrada dos artistas.

Ali encontrei um velho imundo que me ameaçou com uma cara de lobo mau ao notar minha aproximação. Es­tendi-lhe a mão com um punhado de notas totalizando cinco dólares e vi a máscara de lobo mau se transformar na de Fada das Virtudes. Nem sequer me perguntou quem desejava ver e quais as minhas intenções.

Passei pelos cenários do estabelecimento, esquivando-me das garotas que iam e vinham de seus números. Fui procurando portas até encontrar uma com um nome: Lois Nelson.

Bati na madeira com o nó dos dedos, e ouvi o som de uma voz proveniente do interior:

— Entre!

Girei a maçaneta e entrei no aposento. A princípio nada vi, ouvindo apenas o ruído de roupas e alguma agi­tação atrás de um biombo.

— Se vem atrás de "gaita", Buddy dos infernos, pode dar o fora tão depressa como veio. Ande e vá pedi-lo à vovozinha, ouviu?

A voz era agradável, mesmo repleta de ira contida em suas vibrações. Mas como todo aquele rosário de in­sultos não vinha endereçado a mim, preferi guardar si­lêncio no momento.

— Buddy — tornou a voz. — Que demônios faz aí, ainda? Será que não ouviu? Dê o fora, não tenho di­nheiro! E mesmo que o tivesse.

Acendi um cigarro. Já disposto a encerrar o engano, disse:

— Não sou Buddy e muito menos vim pedir-lhe di­nheiro. De qualquer forma, posso dá-lo, se valer a pena.

Ouvi uma exclamação sufocada. Uma cabeça assomou por cima do biombo, emergindo de um par de ombros arredondados e ebúrneos, em cuja continuação podia-se adivinhar o começo de um busto perfeito.

A boquinha de Lois se transformou num O maiúsculo, vendo um perfeito desconhecido à sua frente.

— Quem é o senhor? — invectivou — Por que entrou aqui sem minha licença?

— Está enganada, senhorita Nelson. A senhorita mesma me mandou entrar.

Um relâmpago de fúria assomou em seus belos olhos negros que combinavam maravilhosamente com a brilhante catarata de cabelos da mesma cor, caindo sobre os ombros. Lois apanhou um negligé de um prego às suas costas e vestiu-o em rápidos movimentos. Depois saiu, amarrando o cinto com tanta força que pensei fosse partir-se em duas.

— Que veio fazer aqui? Aviso-o de que não gosto de besouros voando à minha volta — disse, de testa franzida.

— Imaginei inteiramente o contrário, senhorita Nel­son — falei com toda calma. — Mas não vim voar à sua volta, apesar de bem merecê-lo. Minhas intenções são outras e bem diferentes.

— Está bem. Fale. Tenho o tempo contado.

— Meu nome é Jerry Braxton — respondi — e re­presento um... digamos assim, um cliente que tem in­teresse em entrar em contacto com determinada pessoa sua conhecida. Justamente aquela que acabou de men­cionar instantes atrás.

Lois apertou os lábios.

— Advogado? Ou não passa de um "tira"? A quem pretende enganar com esse conto que não engambelaria nem um recém-nascido? — estalou os dedos da mão di­reita. — Vamos, "pé-chato", caia fora de meu camarim.

Procurei armar-me de paciência.

— Repito que sou advogado e não policial. Estou procurando seu... amigo Buddy por não saber sua atual residência. A senhorita o conhece e pode ajudar-me. É possível — acrescentei com alguma negligência — que só tenha a ganhar se mostrar-se disposta a colaborar.

—- Colaborar? Para que deseja saber a residência de Buddy? Diga-o antes e depois verei se me convém ou não dizê-lo.

— Bem — encolhi os ombros. — Talvez me possam informar na Chefatura. Neste caso a senhorita perderia uma polpuda gratificação que seria dada, talvez, ao sargento encarregado dos arquivos. Veja qual o melhor, senhorita Nelson. É claro que não procuro causar o me­nor dano ao seu Buddy...

— Meu Buddy — repetiu ela com desdém. — Aque­le rato de esgoto, porco de duas patas, esse filho da...

— Pare o carro, beleza. A senhorita tem uma bo­quinha adorável, mas costuma sujá-la com muita frequência. Acredito que Buddy seja tudo quanto disse e ainda mais, todavia não é preciso irradiar aos quatro ven­tos; basta imaginá-lo.

Lois desfranziu as sobrancelhas e um débil sorriso apareceu em seus lábios polpudos e vermelhos.

— Você é um bom menino — disse. — Tem assim tanto empenho em ver Buddy?

— Como você nem pode calcular, beleza — Apro­ximei-me dela. Que decide?

Fitou-me através dos olhos semicerrados. Minhas mãos avançaram em torno de sua cinturinha sem que ela opusesse a menor resistência.

— É esta a recompensa prometida, bom menino? — murmurou, entreabrindo os lábios um pouco

— Apenas uma pequena parte — respondi, inclinan­do a cabeça.

Senti o calor de seu corpo jovem e rijo através da leve vestimenta que o cobria. Contudo, quando já estava prestes a esmagar minha boca contra a sua, ela deu bruscamente um passo atrás e arriou-me uma bofetada que me fez girar duas vezes sobre os calcanhares. O ou­vido esquerdo começou a guinchar espalhafatosamente.

Sacudi a cabeça .Demônios! Que modos tinha aquela menina de sacudir os outros!

Lois estendeu o braço, indicando-me a porta.

— Caia fora! — disse com voz sibilante. — Que eu e Buddy estejamos brigados, não é motivo para que um "pé-chato" como você queira aproveitar-se da si­tuação. Não lhe direi onde ele mora, nem em troca de cem mil pacotes, ouviu? Dê o fora daqui ou chamo o vi­gilante!

— Você está caída por Buddy, apesar de não querê-lo confessar — respondi. — Procura fingir odiá-lo e que está brigada com ele, mas bastar-lhe-á enfiar o nariz pela porta e você soltará todo o dinheiro que tiver na bolsa e ainda mais se for preciso. Em, qualquer linguagem civilizada isso tem um nome que prefiro não dizer por decoro próprio...

— Se não der o fora daqui, infeliz...

Nesse momento, a porta se abriu e um sujeito meteu a cabeça por ela.

— Lois! Prepare-se! Faltam dois minutos para o seu número!

Ela agarrou a oportunidade com unhas e dentes.

— Macey! — berrou. — Dê um sumiço nesse sujeito. Depressa!

O cara olhou para mim e seus olhos brilharam de tal maneira que vi logo a cena que sucederia a seguir. Antes que ele começasse, aproveitei a ocasião e empurrei a porta com força, deixando-o preso pelo pescoço, quase a ponto de rebentar. Macey guinchou como um coelho ferido e procurou libertar-se da pressão, sem nada conse­guir, apesar de todos os seus esforços.

Olhei para Lois e sorri insultuosamente.

— Era este, o sujeito que me expulsaria a pontapés?

— Afastei-me da porta e Macey se mandou, procurando um massagista para seu pescoço dolorido.

Os olhos de Lois despediam faíscas. Agarrou um vaso de flores, jogou-as fora e ameaçou jogá-lo em minha direção. Entretanto não concluiu o ato.

Uma mulher penetrou violentamente no camarim. Ao que parecia, vinha às tontas e nem me viu, ou melhor, empurrou-me para o lado, fazendo-me cambalear e quase perder o equilíbrio. Lois não perdeu tempo: quebrou o vaso em minha cabeça.

Caí sentado no chão, ouvindo passarinhos cantando à volta de meu crânio magoado. Devia estar com cara de idiota imponente e alegrei-me por não haver nenhum fo­tógrafo presente num momento tão crítico para a minha dignidade.

Contudo, o golpe fora menos aparatoso do que parecia e logo pude recobrar a consciência de meus atos. Abri os olhos alguns segundos mais tarde e olhei em torno.

Lois estava atendendo a mulher, abandonada sobre uma poltrona a chorar convulsivamente, sem parecer im­portar-se com um dos mais belos pares de pernas que eu já vira nos últimos dias, inteiramente expostos aos meus olhos apreciativos. A recém-chegada soluçava aos gritos, enquanto a Nelson procurava acalmá-la em vão.

— Ajude-me — pediu a atriz ou seja lá o que for, uma vez que eu ainda não tivera tempo para investigar.

— Não sei o que há com esta garota, mas necessita ser socorrida.

Levantei-me e caminhei para a pia, onde enchi um copo de água. Voltei para junto das duas mulheres e afastei Lois para um lado.

— Saia de perto — disse, um segundo antes de jogar o conteúdo do copo em cima da outra.

A mulherzinha tossiu, espirrou e tornou a sapatear. Em seguida, agarrou-se à amiga freneticamente.

— Raios a partam, Jeannie! — praguejou a Nelson. — Que há com você?

— Mataram Lou, Lois! — Mataram Lou! — repetia monotonamente, como se não acreditasse no que dizia.

Os gritos da recém-chegada começaram a atrair gen­te. Fui até a porta e fechei-a com duas voltas da chave, voltando para junto das duas. Lois Nelson tinha o rosto branco como cera.

— Por acaso — perguntei cortesmente — esta senhora é a viúva de Lou Merton?

— Sim — respondeu a Nelson, — de vez que diz que ele está morto. — As palavras rangiam na boca. — Que demônios sabe você sobre o assunto?

— Nada — repliquei tranquilamente, colocando um cigarro na boca. — Nada, a não ser que, se você não abrir os olhos, é bem possível que Buddy tenha o mesmo fim, beleza.

 

Quando vi que a Nelson saía do "Madeira", joguei fora o cigarro e liguei o motor. Lois chegou até a cal­çada, pisando-a apressadamente com seus saltos altos e olhou para um lado e para outro.

Finalmente passou um táxi. Ela o mandou parar e entrou. O veículo arrancou, e eu parti atrás dele.

Procurei manter-me sempre a uma discreta distância, com os faróis à meia-luz. Rodamos assim durante uns quinze minutos, ao fim dos quais o outro carro parou.

Parei o meu a curta distância dele. Lois desceu e atravessou a calçada rapidamente, entrando numa porta. Comecei a correr em seu encalço, procurando evitar o menor ruído dos passos.

Entrei no prédio. Era relativamente novo e possuía um amplo vestíbulo, tendo em um dos lados um pequeno balcão destinado ao porteiro, felizmente ausente na oca­sião. Olhei para o elevador, notando que o indicador lu­minoso parava no número oito.

Quando o elevador desceu, o que aconteceu logo de­pois, recambiei-o de volta para o mesmo andar, desta vez comigo dentro. Saí e olhei para os lados do corredor, onde pude notar uma dúzia de portas.

Cocei o cangote, indeciso. Em qual delas morava Lois?

Fui olhando uma a uma. Bem, Lois não era tão pre­cavida como parecia, pois seu nome estava claramente indicado na madeira da porta. Apoiei o indicador no bo­tão da cigarra.

Esperei uns segundos e finalmente ouvi um leve ecoar de saltos altos do outro lado. A porta se abriu e o rosto de moça apareceu na fresta.

A expressão de curiosidade se transformou imediata­mente em outra de cólera.

— Você, bastardo! — bradou torpemente. E procurou fechar.

Mas já sei por experiência própria que não se pode demonstrar muita consideração com mulheres dessa espé­cie. Meti o ombro, e a Nelson saiu na disparada. Caiu, esperneando espalhafatosamente e deixou-me desiludido. Estava sem meias.

Lois soltou um grito, seguido por uma praga. Quase no momento em que eu terminava de fechar a porta, um sujeito saiu do aposento contíguo.

Era de estatura mediana, com ombros de búfalo e braços de tronco de carvalho. Estava em mangas de ca­misa, sem gravata e uma floresta de pelos negros asso­mava pela abertura da camisa, tão repugnantes como seu rosto simiesco de fronte estreita e deprimida. E dizer-se que uma mulher como a Nelson estava caída por seme­lhante gorila!

A atitude do sujeito não me assustou nem um pouqui­nho e muito menos sua aparente força física que devia ser descomunal, a julgar pelos traços. Aborreci-me ape­nas pela visão de um "Smith & Wesson" que ele empu­nhava, de cano curto e calibre trinta e oito.

— É um tira, Buddy — guinchou a mulherzinha, ain­da do solo e com a bainha da saia pela cintura.

— Um tira — grunhiu Torano — Tem certeza?

— Sim. Esteve no "Madeira", fazendo-me perguntas a seu respeito. Mande-o embora, Buddy. De qualquer jeito, ouviu?

O quadrúmano balançou o revólver.

— Já ouviu amigo — falou. — Suma. Você nada tem contra mim. Estou limpo, entende?

Procurei aparentar tranquilidade e meti um cigarro na boca.

— Se é assim, por que sua pequena não quis dizer-me onde você morava? Um homem, que nada re­ceia porque sua consciência está limpa, não tem motivos para esconder-se, creio eu. Lois já lhe disse o que há?

Torano franziu as sobrancelhas.

— Que há? Fale de uma vez; minha paciência tem limites, tira.

— Em primeiro lugar, direi o mesmo que disse à sua garota. Não sou da polícia e, sim advogado. Meu no­me é Jerry Braxton e estou representando o senhor Clark Drummond. Você talvez o conheça de nome, Torano.

— Pode ser — replicou o macaco evasivamente. — E que mais?

— Você, mais quatro outros e a esposa de Drummond fizeram parte, há tempos atrás, da quadrilha de Augie, "O Verdinho". E deve lembrar-se do quarto de milhão que ele roubou há alguns anos, não é mesmo?

— Minha memória é muito fraca, Braxton — con­testou o gorila.

— Pois procurarei refrescá-la. Augie disse ter en­viado o dinheiro à senhora Drummond, antes dela conhecer e casar-se com o homem que é hoje seu marido. Ela nega o fato. Agora recebeu uma carta ameaçando seu esposo, caso não entregue os duzentos e cinquenta mil dó­lares que serão repartidos entre os cinco homens da qua­drilha. Ameaçam-no de morte. Foi você o autor dessa carta?

— Prefiro não responder, Braxton — respondeu o bandido.

Fiz um gesto de aquiescência.

— Bem, segundo parece, existe alguém que recuperou o dinheiro e não está convencido a reparti-lo. Quer mais que os cinquenta mil dólares correspondentes à sua parte na divisão. E como consegui-lo? Muito simples: apenas ir suprimindo um a um todos os colegas restantes. Esta noite foi a vez de Lou Merton.

Torano chegou a sacudir-se fortemente, ouvindo a última frase.

— Como? Que está dizendo, Braxton?

Movi a cabeça em direção a Lois que já se tinha levantado e cruzara os braços sobre o peito, apoiada na parede contígua.

— Ela pode confirmar. Esteve falando com Jeannie Merton.

Os olhos de Torano faiscaram de cólera.

— Cadela! — bradou — Por que não me disse nada?

— Pois se mal acabei de chegar! — respondeu ela, começando a levantar-se. Mas nem pôde terminar o gesto.

Buddy Torano se atirou à mulher e assestou-lhe tal bofetada que a jogou de costas sobre o sofá. Ela nem ao menos protestou, limitando-se a olhá-lo medrosamente, encolhida sobre si mesma.

— Mas Buddy, eu...

Mas o outro não queria desculpas. Parecia ter perdido o juízo. Levantou a mão novamente para esbofeteá-la.

Nesse momento, entrei na brincadeira. Nunca apre­ciei os sujeites da classe de Torano. Claro está que ela bem o merecia por ser idiota e estúpida; contudo, se pretendia dar-lhe uma surra, não seria ante meus pró­prios olhos.

— Já chega, Torano — disse, fitando-o firmemente nos olhos.

O fora da lei me devolveu o olhar e, em seguida, procurou atirar-me o revólver no rosto.

Desviei a cabeça para um lado e, depois, agarrei seu braço, fazendo-o girar rapidamente até trazê-lo às costas de seu dono. O corpo de Torano girou também. Tive então apenas tempo de apoiar o pé no final de suas costas e arremessá-lo através do aposento.

Em sua precipitada carreira, Torano atropelou uma mesinha que saltou aos pedaços. O cara só parou quando se chocou contra as costas de uma cadeira, na direção de sua cabeça e caiu, juntamente com o móvel.

O revólver ficou a meus pés. Apanhei-o e enquadrei-o sujeito que vociferava enquanto procurava levantar-se.

— Chega — falei. Se continuar assim, chamarei o tenente Follingsbee. Você é um sujeito com antecedentes mais negros que carvão e a posse deste revólver custar-lhe-ia pelo menos um ano à sombra. Gostaria de ficar tanto tempo longe de Lois?

Consegui amedrontá-lo. Torano olhou para a Nelson e passou a língua nos beiços.

— Está bem — grunhiu. — Que quer você?

— Fazer-lhe uma proposta — e explanei os desejos de Drummond. — Diga somente se concorda e no fim de vinte e quatro horas estarei aqui com os dez mil dólares e o documento.

— Dez mil — soltou Lois bruscamente, — quando poderíamos ganhar cinquenta mil tão facilmente?

— Agora são mais — disse com tom incisivo. — Fal­ta Merton. Portanto, são doze mil e quinhentos a mais a repartir entre os quatro sobreviventes. E quando mais um de vocês morrer, a soma tornará a aumentar; subirá" para oitenta e três mil, trezentos e trinta e três centavos. Haverá ainda um terceiro assassinato e, então, o botin será de cento e vinte e cinco mil. Por último morrerá o quarto e, então, o homem que sobrar embolsará integral­mente os duzentos e cinquenta mil. Foi você o autor de tão maravilhoso plano. Torano? — terminei sarcasticamente.

— Demônios, eu... — grunhiu.

— Digo-lhe para ouvir um conselho — falei. — Ape­sar de ser advogado e neste particular termos uma pés­sima fama, não lhe cobrarei nem um centavo por ele.

Aceite os dez mil de Drummond e desapareça da cidade por uma longa temporada. É o melhor meio que conheço para atingir a velhice.

Torano hesitou. Lutava entre a segurança por mim oferecida e sua própria cobiça.

— Resolva — insisti. — Pelo visto, quem matou Merton parece estar apressado de acabar com todos vocês. Lembre-se do velho ditado: " mais vale um pássaro na mão... "

— Está bem — grunhiu. — Seja. Com que garantias posso contar?

— Com minha palavra, escudada no dinheiro do senhor Drummond e o desejo de que sua esposa não torne a ser incomodada. Agora a senhora Drummond é uma mulher direita e arrependida de tudo quanto fez de re­provável no passado. Você deveria sabê-lo melhor que ninguém, Torano.

— Estúpido! Idiota! — resmungou Lois. — Deixar escapar semelhante oportunidade. Nunca mais tornará a ter outra igual em toda a vida! pedaço de...

— Cale-se! Gritou Torano, exasperado. — Faço o que quero, entendeu. E se você não gostar, pode ir para o meio do inferno!

— Pensei que você fosse um homem — disse ela desdenhosamente. — Mas só chega até o ponto suficiente para bater numa mulher. Quanto ao resto...

Torano acabou de perder as estribeiras. Arremeteu-se contra a Nelson, mas eu interrompi seu itinerário e desci o cano do revólver em seu punho direito.

—-Afaste-se — ordenei asperamente. — Deixem suas discussões amigáveis para depois. Agora responda de uma vez: aceita ou não os dez mil?

— Claro que aceito. Não quero terminar com um buraco nas cestas como Merton. Quando "soltará a gaita"?

— Amanhã de tarde. Mas antes precisa responder, a algumas perguntas. Não pense que entregarei o dinheiro tão facilmente: Em minha qualidade de advogado dos Drummond penso que tenho direito de saber mais al­gumas cosas além das que sei atualmente.

— Está bem — grunhiu o "gangster". — Desembuche, rábula!

— Necessito saber onde estão os outros membros da quadrilha. Sei seus nomes, mas não a residência. É claro que para planejarem a ameaça devem ter-se reunido em algum lugar e concordar quanto ao modo de fazer logo a divisão, não é assim?

Torano soltou um grunhido de assentimento. Começou a falar e, como eu não pretendia soltar o revólver, mandei-o escrever tudo num papel que logo meti no bolso.

— Perfeitamente. Verificarei se é verdade. E agora, diga-me: quem teve a brilhante ideia?

— Augie nos avisou por intermédio de um cara recém-saído de Alcatraz. Disse que sua pequena... bem, a senhora Drummond sabia onde estava o dinheiro, uma vez que ele o tinha enviado. Que fôssemos pedir a ela, pois não precisava mais dele agora. Foi o que fizemos. Apenas ela declarou não ter recebido um só centavo dos duzentos e cinquenta "verdinhos".

— E...?

— Repetimos a intimação umas duas vezes. Depois, como vimos que ela continuava a negar, imaginamos a ameaça.

— E... pensavam executá-la? Torano apertou os lábios. Senti nojo.

— Não responda — disse, — não é preciso. Bem; fique preparado. Amanhã as seis virei com o dinheiro. Creio que as oito parte um avião para o Este. Compre sua passagem. Ou duas, se prefere uma agradável com­panhia — acrescentei, malevolamente, fitando a moça.

Ela me espichou a língua. Sorri, enquanto levantava os ombros.

Caminhei para a porta e, uma vez esvaziado o tam­bor de balas, atirei o revólver ao centro do aposento. Apenas saí, escutei rumor de luta, pragas e bofetões. Vamos! Que reconciliação!

 

Raios, se aquele fora um domingo dedicado ao des­canso, eu era um "coolie" chinês. Assim, mal enfiei-me na cama, os olhos se cerraram quase que automaticamente.

Fui despertado pelo soar do telefone. Quando abri os olhos, dei-me conta de que já eram quase nove da manhã. Resmunguei qualquer coisa entre dentes contra o importuno. Tratava-se de minha eficiente secretária, miss Stetson.

— Alô! Senhor Braxton?

— Olá, miss Stetson. Que há?

— Há um senhor esperando-o na salinha junto ao gabinete. Diz que precisa vê-lo com a máxima urgência.

— Irei em seguida. Mande-o esperar.

— Peço-lhe que não se demore muito, senhor Braxton. Ele insiste em dizer que é muito urgente para o se­nhor. .. e para ele.

— Está bem — comecei a afastar os lençóis com o pé, procurando ganhar tempo. A força do hábito me fez perguntar: — Como ele se chama?

— Pete Moreno, senhor Braxton.

Desliguei lentamente. Pete Moreno! Era o nome de outro dos membros da "gang". E ainda por cima viera ver-me diretamente no escritório!

Pulei da cama e corri para a ducha, vestindo-me num abrir e fechar de olhos. Sem preocupar-me com o desjejum, comecei a correr pela escada abaixo.

Ia tão cego que por pouco não atropelo uma pessoa ao atravessar o vestíbulo: Selene Hyatt! A moça pro­testava vivamente contra o brusco empurrão que quase a jogara ao solo.

— Jerry! — exclamou, indignada. — Que há com você? Quem o persegue?

— Ninguém — respondi, continuando a andar em grandes passadas. — Mas tenho um cliente no escritório, esperando-me com urgência.

—Selene se colocou a meu lado, mantendo o passo.

— Caramba! — exclamou sardonicamente. — Só as­sim tirará as teias de aranha que existem em seu covil. Já não era sem tempo...

Saímos para a rua e dobrei para a esquerda, em direção à garagem, onde deixava o carro guardado.

— O meu está aqui — ofereceu-se ela. — Assim pode poupar tempo e enquanto isso eu e você conversa­remos. Apesar de não acreditar, precisamos conversar.

Olhei-a, desconfiado.

— Que precisa dizer-me, Selene? — perguntei, en­quanto dava a volta ao carro.

Ela devolveu o olhar.

— Mas é você, meu caro, quem precisa contar-me muitas coisas — respondeu suavemente. Deu partida ao carro e saiu para o centro da rua. — Por exemplo, seu súbito interesse por Lou Merton e o resto.

Apertei os lábios.

— Lamento — respondi. — Por ora, nada posso di­zer-lhe. Meu cliente ficaria aborrecido, e com toda ra­zão, se eu desse com a língua nos dentes.

— Jeannie Merton também é minha cliente, simpá­tico — disse ela. — Portanto, tenho direito...

— ... a deixar-me em paz — concluí desabridamente, interrompendo-a. — Não me oponho às suas investi­gações, mas caso queira saber algo, precisará consegui-lo por si própria.

— Você não é nada cavalheiro — declarou ela, ofen­dida.

— Defendo os interesses de meu cliente, eis tudo.

— É seu cliente chama-se Drummond, verdade? Apesar de procurar dominar o sobressalto que sua frase me causara, não consegui dissimulá-lo totalmente. Selene riu satisfeita, olhando-me através do espelhinho retrovisor.

— As mulheres também usam a cabeça para algo mais que os permanentes — disse com falsa modéstia. — Vamos, corvo escorregadio, solte logo o que tem dentro do bucho.

— Se viesse a público, a reputação de meu cliente ficaria terrivelmente manchada. E eu, bastante desmoralizado, de vez que ninguém mais tornaria a confiar em mim.

Compreendeu que eu falava sério e seu rosto se mo­dificou um pouco.

— Falemos formalmente, Jerry. Pareço fútil, mas sei portar-me devidamente quando é preciso. De que se trata?

— Agora quase não temos mais tempo. Espere até chegarmos a meu escritório e depois contarei tudo. Em último caso, talvez você possa ajudar-me.

— De acordo — disse Selene, mais calma agora. Dez minutos mais tarde chegávamos ao edifício onde tenho meu escritório. Espantei-me ao ver um numeroso grupo amontoando-se na porta.

Ao longe, ouvi o gemido de uma sereia, e meu co­ração imediatamente ficou apertado.

— Algo aconteceu! — gritei, arremessando-me para fora do carro antes mesmo que Selene o tivesse parado.

Atravessei a multidão aos empurrões e cotoveladas. Consegui enfiar-me num elevador, toquei-o para cima e subi até o décimo oitavo andar, onde fica meu escri­tório.

Havia mais gente à sua porta.

— Afastem-se! — gritei com energia. Minha voz conseguiu maravilhas.

Atravessei a porta e quase tropeço com o sujeito que jazia atravessado na sala de espera, em meio a uma poça de sangue. Não sei o que teria sido pior: estar em jejum ou com o estômago cheio. No segundo caso, teria algo para devolver. Em jejum, como estava, meu estô­mago começou a fazer mil piruetas diabólicas.

O espetáculo não era nada agradável. O assassino atirara em Pete Moreno à queima-roupa, estraçalhando-lhe a cabeça. E paremos com os detalhes mórbidos; cada vez que evoco a cena, sinto as tripas dando voltas.

Passei como pude por cima daquela carnificina. Miss Stetson estava em meu escritório, propriamente dito.

Como secretária, miss Stetson não tem preço. É silenciosa, rápida, eficiente. Além disso, solteirona e anda beirando os cinquenta. É alta, magra é usa uns antiquados óculos que lhe dão um aspecto muito pouco atraente, mas como desejo apenas eficiência em meu escritório, isso não tem a menor importância. Inclusive sua purita­na maneira de pensar e agir, levando-a a desaprovar mui­tas das coisas que faço como, por exemplo, ter sempre uma garrafa à mão, para quando precisar dela.

Nunca vira nem ouvira dizer que miss Stetson bebesse. Pelo contrário, sabia vagamente que atuava como membro ativo de uma tal Liga Feminina Contra o Álcool, o que não impedia de, nesse momento, usar a garrafa pela via mais fácil, isto é, sem o auxílio de nenhum copo.

Também eu precisava de um bom trago; assim, agar­rei a garrafa e levei-a aos lábios. O líquido me endireitou o estômago um pouco.

— Conte-me, depressa — pedi. — A polícia não tarda a chegar.

Olhou-me, os olhos já vidrados pela bebida.

— Não... não posso dizer muito mais do que já sabe, senhor Braxton — respondeu com voz trêmula. — Apenas que... enquanto trabalhava em minha sala, ouvi vozes na sala de espera. Em seguida, dois tiros. Sai cor­rendo ... e vi apenas o senhor Moreno, caído ao solo...

Alguém gemeu perto de mim. Sem precisar virar o rosto, estendi a garrafa para Selene.

— Pegue e vire um trago — disse. Selene concor­dou, encantada.

— Não viu o assassino, Miss Stetson?

— Não. Já disse que foi tudo muito rápido. Depois dos tiros...

De repente, passos fortes e barulhentos, começaram a soar pelo corredor.

— A polícia! — exclamei. — Atenção, todas duas, não toquem no nome de Drummond para nada! Enten­deram?

Alguém soltou um grunhido lá fora. Depois, a conhe­cida voz do tenente Follingsbee abalou as paredes de meu escritório.

 

— E isso é tudo — concluí, horas mais tarde, depois de um suculento almoço que, unido à agradável presença de Selene do outro lado da mesa, conseguiu satisfazer-me inteiramente.

Selene assentiu.

— Quer dizer que agora o quinteto ficou reduzido a um trio. Logo a quantia a ser repartida aumentou bastante — falou.

— Por outro lado, reduz o número de suspeitos tam­bém a três.

— Torano não foi.

— Como pode ter certeza, Jerry?

— O homem que vi ontem à noite, saindo da porta do prédio dos Merton era alto e forte. Torano também é robusto, mas o assassino era mais alto uma cabeça, pelo menos. Além disso, quando vi Torano e falei-lhe cruamen­te, notei-o amedrontado. Com toda a sua estampa, não passa de um covarde, pode crer.

— Então, o assassino é um dos outros dois.

— Angus McCreedle ou Al George — falei.

— Tem seus endereços?

— Claro que sim, dados por Torano. Estava ansioso por colaborar.

— Bem, nesse caso, por que não vamos vê-los e con­versar com eles? — sugeriu ela.

— Pare o carro, boneca — disse. — Contei-lhe o que houve, em virtude de sua qualidade de advogada de Jeannie Merton, Mas não o é de Drummond, entendeu? De modo que, se alguém irá visitá-los, serei eu. ouviu bem? Além disso, a coisa está ficando quente e não quero que nada lhe aconteça, Selene.

Fitou-me com olhos encantados.

— Que há com você, Jerry? Desde quando se tornou tão cuidadoso para comigo? — E segurou-me a mão.

Ao inferno, as mulheres. Quando se procura fazer algo por elas, pensam que fomos atraídos per seus encan­tos. Retirei a mão, enquanto soltava um gemido áspero.

— Deixe disso, beleza. Existem coisas que apenas um homem pode e deve fazer, só isso.

Levantei a mão e o garção se aproximou. Paguei a conta e fiquei de pé.

— Onde vai agora, Jerry?

— Preciso ver Drummond. Como combinamos, deverá dar-me o dinheiro para pagar ao Torano.

— Gostaria de acompanhá-lo- — lamentou-se.

— Esqueça isso, menina. Prefiro que conserve intacta sua linda cabeleira.

— Para você? — perguntou, já com segundas inten­ções?

— Quem sabe? Seja lá como for, assenta-lhe muito bem assim como é, e não aos pedaços.

— Obrigada por tanto interesse — suspirou. — Quan­do poderei vê-lo de novo?

— Meu nome e endereço constam do catálogo de te­lefones. Adeus! — e saí.

Dalí me dirigi diretamente para a casa dos Drummond, conforme ficara combinado com ele. Fui recebido por uma saudável empregadinha que me fez entrar imedia­tamente num bem instalado escritório, onde fiquei à es­pera do dono da casa.

Apesar de provar a boa situação financeira que Clark Drummond desfrutava, a casa não era exageradamente grande. Os móveis eram caros e luxuosos, sem espalhafato, o que contribuía para acentuar ainda mais a nota de bom gosto existente em toda a mansão.

Drummond chegou um minuto mais tarde. Era um homem beirando os trinta e quatro ou trinta e cinco anos, galhardo, de bela estampa, rosto enérgico e agradável ao mesmo tempo. Vestia um paletó claro e calças cinza-escuro, de alto preço. Tinha toda a "pinta" de galã de cinema e se gostasse da profissão, faria um bocado de dinheiro, sem nenhuma dúvida.

— Alegro-me em conhecê-lo, senhor Braxton — dis­se. — Ofélia me falou muito, e bem do senhor.

— A senhora Drummond foi muito benevolente para comigo — sorri. — Na realidade, o trabalho é relativa­mente fácil.

— O senhor acha? — disse Drummond. Seu rosto se tornara repentinamente sério. — Em menos de vinte e quatro horas, já foram cometidos dois assassinatos. E os mortos foram precisamente dois dos sujeitos que tiveram o desplante de ameaçar-me!

— É verdade, senhor Drummond. Contudo, no segun­do caso, lamento sinceramente o acontecido. Pete More­no foi morto em meu próprio escritório. Fora ver-me sem que ninguém o tivesse chamado, logo, só posso ima­ginar que era muito importante o que tinha a dizer-me.

— Agora não mais poderá falar — murmurou Drum­mond. — Que lástima!

— Realmente — comentei. — De qualquer forma, ainda poderemos fazer alguma coisa. Tenho comigo os endereços dos dois outros que faltam, Foram-me dados por Torano.

— Deveras? — o resto de Drummond se iluminou. — Mas, isso é formidável! Se tiver a sorte de convencê-los como a Torano...

— Espero que sim. Irei vê-los logo que sair daqui.

— Esplêndido — aprovou o dono da casa. — Bem, dar-lhe-ei o dinheiro. Quanto pensa vê-lo?

Consultei meu relógio. Eram três da tarde e teria tempo de redigir o documento, deixando-o pronto para ser assinado.

— As seis — respondi.

— Perfeitamente. — Drummond passou por trás da secretária e abriu uma de suas gavetas, de onde tirou um bom maço de notas. Entregou-mas em seguida. — Bem, quando se faz uma promessa é preciso cumpri-la. Eis aqui dez mil dólares para Torano.

— Vou dar-lhe o recibo... — comecei a dizer, mas ele levantou a mão.

— Esqueça isso, amigo Braxton — disse benevolamente.

— Obrigado pela confiança que deposita em mim, senhor Drummond. Procurarei não desmerecê-la. — Co­mecei a caminhar para a porta. — Deixá-lo-ei ao corrente de tudo quanto fizer, em qualquer momento.

— Fico-lhe muito agradecido, Braxton.

Saímos para o vestíbulo que tinha duas portas de passagem, além das que conduziam a outras peças da casa. Por uma das primeiras, vinda do jardim contíguo, apareceu Ofélia Drummond.

Depois do ocorrido, contemplar aquela maravilhosa mulher era uma visão que reconfortava o espírito. Ofé­lia vestia um lindo modelo para jardinagem, de aspecto recatado, mas que nem por isso conseguia dissimular sua esplêndida anatomia. Apesar de vir do sol, seu rosto estava pálido, destacando-se apenas os dois lábios de colorido sangrento.

Ao ver-me, esboçou um suave sorriso de saudação.

— Senhor Braxton! — exclamou. — Como me alegro ao vê-lo!

Apertei sua mão, achando-a fria e quase sem vida. Era evidente que as preocupações não a deixavam em paz e isso se refletia em seu estado físico.

— Folgo imensamente, senhora — murmurei, inclinando-me. Ela olhou para o esposo, com ar interrogativo.

Clark Drummond sorriu.

— O amigo Braxton está fazendo tudo às mil mara­vilhas, querida. Você teve uma excelente ideia ao utilizar seus serviços. Nunca poderemos agradecer-lhe de modo suficiente.

— Estão a cumular-me de elogios que não mereço — manifestei. — Esperem que tudo fique terminado, para só então despejar os louvores em cima de mim...

— Clark tem razão — disse ela. Aproximou-se de Drummond que enlaçou a cintura da esposa a seu lado. —-Tudo quanto fizer por nós reverterá em benefício de nos­sa felicidade e, portanto, nunca poderemos dar-lhe a devida recompensa.

E ao pronunciar tais palavras, apoiou a cabeça no amplo peito do esposo, após dirigir-lhe um olhar transbordante de paixão. Como os invejei naquela hora!

— Vê-los sempre assim seria a melhor recompensa a que poderia aspirar — disse. E despedi-me.

De lá fui para o escritório, onde redigi o documento com o auxilie de miss Stetson, em parte já refeita do ter­rível susto passado pela manhã. Terminamos uma hora mais tarde e comecei a pensar em ir procurar Torano.

Quando já me dispunha a sair, miss Stetson falou:

— Gostaria de pedir-lhe desculpas, senhor Braxton. Levantei as sobrancelhas.

— Desculpas? E por que, miss Stetson?

O apergaminhado rosto de minha secretária rubori­zou-se repentinamente.

— Eu... eu pensei mal do senhor muitas vezes, se­nhor Braxton. Oh, não como meu chefe, pois sempre se portou maravilhosamente para comigo e paga-me um or­denado até superior ao que realmente mereço.

— Então... ?

Ficou ainda mais vermelha.

— Bem... — Era-lhe difícil expressar-se. — Essa garrafa de uísque que sempre tinha à mão e da qual o vi bebendo por mais de uma vez... Bem, a ver­dade é que hoje surpreendeu-me. . e... bem... Oh, que dirão de mim na Liga Feminina Contra o Álcool se vierem a saber que esta manhã estive a ponto de embria­gar-me?

Não pude evitar a gargalhada.

— Então é isso que a preocupa! Não seja tola, miss Stetson. Como a senhora, também detesto os ébrios con­tumazes, mas não deixo de reconhecer que um copinho de vez em quando traz novo calor a esta vida de cão. Faça como eu e verá como se sentirá muito melhor.

— Sim, é proyável. Talvez.. Isto... senhor Braxton.

— Sim, miss Stetson? — disse, procurando esconder minha impaciência pelo tempo que a solteirona me fazia perder.

— Esqueci-me de dizer-lhe algo esta manhã. Estava tão... tão aturdida, creia-me. Nunca me vi em seme­lhante apuro, pode crer.

— Claro, claro, imagino. De que se trata?

— Do senhor Moreno, do pobre infeliz que foi assas­sinado aqui, quase em meu próprio nariz... Oh, foi hor­rível... Bem, senhor Braxton, não quero ser mais abor­recida. Como lhe tinha dito pelo telefone, o senhor Mo­reno queria vê-lo com urgência, com real urgência. Pa­receu muito contrariado por não encontrá-lo no escritório. Quando lhe pedi que sentasse e esperasse sua chegada, começou a resmungar entre dentes. Não entendi bem o que dizia e percebi apenas: "Aquele porco do "Cara de Bo­de"... E, em seguida, um adjetivo que... Oh, não me peça para repeti-lo, senhor Braxton; nunca pronunciei em toda a minha vida palavra tão indecente!

Miss Stetson estava como a púrpura. Não pude deixar de sentir-lhe pena, apesar de sorrir de seu aspecto ex­terior.

— Está bem, está bem, mis Stetson —tranquilizei-a.

— Obrigado. A senhora tem realmente um espírito muito observador. Fico-lhe muito agradecido.

— Acha que isso poderá ajudá-lo, senhor Braxton?— perguntou a boa mulher ansiosamente.

— Naturalmente. Oh, claro que sim. Obrigado. Adeus. Despedi-me aos trambolhões e corri para o elevador.

Fui diretamente a casa de Torano. Perdi a viagem, pois Torano não estava lá. E muito menos Nelson.

 

— Quer dizer que os viu sair?

O porteiro do edifício assentiu pesadamente.

— Exatamente, senhor — respondeu. — E pelo que parecia, estavam com muita pressa. O senhor Torano carregava uma mala em cada mão. Tomaram um táxi e...

— Ouviu-o dar o endereço ao chofer? O porteiro negou vigorosamente.

— Vi apenas quando entraram no carro. Não deixaram nenhum recado, e muito menos disseram para onde iam, nem quando voltariam. Quanto a mim — encolheu os ombros com indiferença — uma vez que ela pagou o apartamento até o fim do trimestre...

Enfiei-lhe uma nota de um dólar na mão e depois pedi que eu usasse o telefone. Liguei para o aeroporto.

— Não, senhor, não reservamos nenhuma passagem em nome do senhor e senhora Torano — foi a resposta. — Por nada, obrigado, senhor.

Desliguei o telefone, imensamente preocupado. Onde, demônios, se tinha metido o parzinho? E ainda mais, será que passaria meu tempo à sua procura? Afinal, mi­nha profissão não é ser detetive e no escritório havia tra­balho acumulando-se infinitamente, se eu não o des­pachasse. E agir dessa maneira era o melhor método para perder a clientela.

Saí do edifício momentaneamente desconcertado, sem saber o que fazer. Ali estava eu com um documento inú­til por ora além de dez mil dólares no bolso, queimando-me como brasa. Isso, fora o volume que faziam em meu paletó, o que incomodava bastante.

Por um momento fiquei tentado a mandar tudo às favas e deixar que aqueles percevejos se fossem exter­minando uns aos outros.

Mas logo evoquei os Drummond vivendo tão ternamente, decentemente. Tal visão me fez desistir de tão nefando propósito.

Assim, sentei-me por trás do volante do carro e di­rigi-me para a rua Alabama onde, no número seiscentos e quinze, morava George.

 

Al George era um tipo robusto, sanguíneo, de aspecto campesino e agradável, qualidades que não me impedi­ram de olhá-lo receosamente, ao vê-lo aparecer à porta de sua residência.

— Não, senhor — atirou-me secamente, apenas ter­minei de relatar-lhe o objetivo de minha visita. — Co­migo bateu na porta errada, amigo.

— Por quê?

— Porque não fiz parte desse Comitê Pró-liquidação dos Drummond. Hoje em dia também sou um sujeito ho­nesto, sabe? Tanto quanto Ofélia. Resolvi romper comple­tamente com o passado e trabalho para ganhar a vida. Sinto-me bem e bastante tranquilo para continuar fa­zendo besteiras dessa natureza.

Fitei-o desajeitadamente.

— Torano me citou seu nome — declarei.

— Torano não passa de um verme e muitas outras coisas mais que podem ser ditas em voz alta. Talvez o tenha feito procurando prejudicar-me.

— Por acaso propuseram-lhe a unir-se a eles e você se negou?

— Qual! Pois se não os vejo há um século! Desde que "enquadraram" Augie, para ser mais exato. Aí, dis­se para meus botões: "Al, deixe isso de lado ou breve o verei em Alcatraz fazendo companhia a Augie para o resto de sua vida. Sua profissão atual não é recomendada para aqueles que não desejam visitar o cardiologista dia­riamente. Assim pensando, assim fiz e aqui me tem. Vendo aparelhos elétricos numa loja de Lymington Place. Sou muito estimado pelo proprietário, senhor Forristow. Vá vê-lo e peça-lhe informações a meu respeito.

— Não acho necessário, George — falei. — Acredito em você.

— Obrigado. O senhor parece ser um bom sujeito e gosto disso. Também estimo que Ofélia se tenha emenda­do. Tipos como Augie foram os culpados pela vida que teve. Eu faria qualquer coisa para que nada acontecesse a ela, acredite-me, senhor Braxton. Esses porcos nada me disseram porque, pouco depois que Augie foi para as grades, convidaram-me para unir-me a eles num grande golpe e respondi-lhe que "neca". E agora muito menos, pois devem ter pensado que eu iria diretamente soprar a coisa nos ouvidos da polícia. Não sou "canário", mas com relação a Ofélia, cantaria até romper a campainha.

Acariciei o queixo pensativamente.

— Então, demônios, quem poderá ser o quinto mem­bro do bando, amigo George? — perguntei, quase a falar comigo mesmo.

O antigo "gangster" encolheu os ombros.

—Quem pode saber! Talvez o bastardo do Torano o tenha enganado, senhor Braxton! Não diz que ele "pirou" sem nem mesmo esperar para receber os dez mil "pa­cotes"?  

— Claro. Mas não posso compreender.

— Francamente, nem eu tampouco. Despedi-me de George. Contudo, quando já estava prestes a sair, voltei-me para ele.

— George, já soube que Merton e Moreno morreram, sendo o último em meu próprio escritório. Mas Moreno conse­guiu falar antes de morrer. Mencionou um tal "Cara de Bode". Você o conhece?

— Um "cara" repugnante em todos os sentidos, se­nhor Braxton — respondeu o arrependido "gangster" sem vacilar. — Tenha cuidado com ele; é uma fera mal acabada. Não tem moral nem respeita ninguém, pensa apenas em dinheiro e mais dinheiro. Venderia seus próprios fi­lhos, se os tivesse, por qualquer dólar. Chama-se Burt Byles, mas nem ele próprio se lembra disso. O senhor me entende, não?

Assenti sorrindo,

— Perfeitamente, George. E agora, um conselho: mexa-se cuidadosamente. Disse-me que não tem mais rela­ções, com esses sujeitos. Mas nem por isso deixa de sa­ber algo a seu respeito, algo que um dia pode incomodar-lhes. Quando andar pela rua olhe sempre para trás.

— É o que farei, prometo, senhor Braxton — res­pondeu agradecido o antigo "gangster".

Quando saí da casa de George, entre um assunto e outro, já batiam as oito da noite. Hesitei um pouco, en­quanto entornava um traguinho no bar mais próximo e depois resolvi ir à procura de McCreedle, o último mem­bro do clã.

McCreedle morava na parte alta da cidade, bem nas colinas, num dos pretensiosos edifícios de vários pavimen­tes lá edificados, na intenção de que seus ocupantes pu­dessem desfrutar a vista do mar pela frente e do sol pe­los fundos. O endereço dado por Torano não poderia ser mais explícito e, assim, encontrei facilmente o domicílio do quarto sujeito que procurava.

Enviei o elevador até o sétimo andar que era o de McCreedle. Localizei a porta correspondente a seu apar­tamento e toquei a campainha.

Fui atendido em seguida.

— Entre — disse uma voz sem cor.

Entrei, bastante receoso por não ver viva alma à minha frente. Pensei que, como muitas outras, a porta fosse manobrada por controle remoto. Apenas cruzara o umbral, percebi o rumor de uma respiração agitada às minhas costas.

Quis virar-me, mas já era tarde. Alguma coisa muito dura abateu-se em minha nuca, proporcionando-me a visão de todas as estrelas do Universo, um segundo antes de entregar-me a uma passagem direta para o país dos sonhos.

 

Quando voltei a mim, notei que estava com o rosto apoiado em qualquer coisa tépida e de agradável consis­tência. Ouvia uma voz a chamar-me com ânsia, enquanto recebia suaves pancadinhas na outra face.

— Jerry, Jerry...

Abri um olho com relutância. Aspirei um agradável perfume e o principio de um sensacional decote a alguns escassos centímetros de minha ávida pupila. A voz parecia familiar, apesar de não conseguir identificá-la mo­mentaneamente devido à tonteira que ainda sentia.

— Jerry, acorde. Foi sem querer, juro... — Perce­bia-se claramente que estava chorando. — Pensei que era algum ladrão e... atingi-o sem pensar... Jerry...

No fim de tudo, apesar de ainda estar com a cabeça doendo bastante, não estava de todo mau, com o rosto encostado ao excitante busto de Selene. Resolvi pro­longar a sensação por mais alguns instantes, até sentir-me inteiramente refeito.

Então fingi voltar ao mundo dos vivos.

— Onde estou? — perguntei.

— Jerry! — gritou alegremente. — Esteá bem?

Claro que sim, mas precisava dissimulá-lo.   Exibi meu ar mais apalermado e respondi:

— Então foi você, hein?

A loura estava ajoelhada perto de mim e separou-se levemente, fitando-me com expressão compungida.

— Desculpe, Jerry. Pensei que fosse... Oh, Deus sabe lá quem. Temi algo e, sem pensar duas vezes... atirei-lhe a primeira coisa ao alcance da mão.

Olhei para o chão cheio de cacos de cerâmica branca. Franzi as sobrancelhas.

— É a segunda vez que me partem um vaso na ca­beça em menos de dois dias — vociferei, esfregando o lugar onde recebera a pancada. — Este aí devia ser mais robusta que o usado pela Nelson. Que demônios fazia você aqui? — perguntei de repente.

— Procurava ajudá-lo, Jerry — respondeu ela.

— Que belo modo de fazê-lo! Podia ter poupado o esforço. McCreedle mora aqui. Como des­cobriu seu endereço?

Um sorriso ardiloso apareceu no lindo rostinho de Se­lene.

— Se eu disser, você vai cair para trás, Jerry. Mas prefiro não envergonhá-lo.

— Está bem. — Levantei-me. — Pelo que vejo, o patrão não está em casa.

— Acertou. Está trabalhando.

— Onde?

Selene tornou a sorrir.

No "Madeira". É o chefe dos eletricistas.

Soltei uma praga.

— Sou o mais estúpido advogado que existe debaixo do sol. Devia ter imaginado. Agora só falta saber que você encontrou seu endereço no catálogo telefônico.

— Pois foi exatamente assim, embora você não queira acreditar, Jerry. De modo que vim até aqui para ajudá-lo. Mas nada pude fazer visto que ele não está em casa.

— E como sabe que trabalha no "Madeira"? Selene   se dirigiu a uma mesinha próxima,   onde apanhou uma carteira de fósforos com a propaganda do estabelecimento.

— Imaginei que lá talvez pudessem saber algo a respeito dele. Veja, primeiro pensei nele como um clien­te habitual, mas logo depois quase caio para trás, ao saber que era o chefe dos eletricistas!

—- De acordo, de acordo — grunhi, um tanto aborre­cido pelos esplêndidos frutos colhidos graças à perspicácia da moça. Teria eu conseguido o mesmo? — Vou ao ba­nheiro tratar da pancada. Voltarei em seguida.

— Está bem, Jerry — disse ela, acendendo um ci­garro com ar volúvel.

Fiquei no banheiro durante uns dez minutos, apli­cando compressas de água fria na parte atingida pela ­pancada, até ficar certo de experimentar alguma melhora. Depois me sequei, endireitei o nó da gravata e penteei-me. Em seguida saí.

O banheiro ficava localizado no lado oposto do apar­tamento e para chegar ao vestíbulo precisaria atravessar um dormitório. Foi o que fiz e, quando estava quase abrindo a porta, ouvi um rumor de vozes.

Meu corpo enrijeceu instantaneamente. Deixara Se­lene sozinha. Com quem estaria conversando agora?

Procurando evitar o menor ruído, entreabri a porta. Precisei dominar minhas emoções, ao ver um homem de costas, apontando uma pistola para Selene.

— Ora vamos — dizia o homem, pequeno e raquítico, com voz guinchante. — Pensa que não sei o que pretende? Você é a pequena do advogado Braxton. Soube pela viú­va de Merton que os dois trabalham juntos. Que demô­nios anda procurando por aqui, beleza?

Em homenagem a Selene, é preciso dizer que a moça não parecia alterada. Ou pelo menos, fingia estar calma. Aparentava uma grande tranquilidade, apesar de intima­mente saber que não poderia ser verdade, principalmen­te em frente a um homem ameaçando-a com uma pistola.

— O senhor é Angus McCreedle? Se não é, tenho o mesmo direito de fazer-lhe estas perguntas — respon­deu ela.

— Vê-se logo — riu o sujeitinho. — Mas você não está armada, belezinha e eu, sim. Não compreende a di­ferença? ,

— Será que vai atirar? Não sou nenhuma ladra, amigo.

— Mas está em uma casa que não é a sua. E eu aqui sou o hóspede de MacCreedle.

— Ah! — interrompeu Selene. — Então McCreedle mora aqui. Obrigada, folgo em sabê-lo. Quando poderei vê-lo?

O "gangster" soltou uma praga obscena, e Selene ficou vermelha até as orelhas.

— Modere sua linguagem, canalhazinho — disse-lhe asperamente — Ou pensa que está em frente de alguma "zinha" como as que deve frequentar?

— Falo como gosto, bisbilhoteira — grunhiu o ho­mem — E agora — avançou um passo para ela, — vai dizer o que estava fazendo aqui, ou eu...

Selene soltou uma risadinha debochada.

— Pensa que vim sozinha, projeto de homem? — procurava enraivecê-lo e estava quase prestes a isso. — Olhe, olhe para trás e veja quem está às suas costas.

— É um truque muito velho, menina. Vire as costas.

— Que pretende fazer? — perguntou Selene, um tanto alarmada.

— Logo saberá, minha cara — respondeu o outro com entonação maligna. — Faça o que mandei.

Selene encolheu os belos ombros.

— Bem, veja lá o que faz. Mas se tivesse o trabalho de virar essa sua cara de bode para trás, veria um ho­mem às suas costas, com uma banqueta nas mãos, pronto para esparramar seus miolos no tapete.

Confesso que ao ouvir o adjetivo que Selene lançara ao pistoleiro, estive a pique de perder a calma. Agora sabia quem era ele.

Mas não tive muito tempo para entreter-me em tais pensamentos, pois "Cara de Bode" se voltou para mim com uma careta de ódio em sua asquerosa caratonha.

Quanto à banqueta era verdade. Pensava estraçalhá-la na cabeça do homúnculo, mas a distância ainda era um pouco grande e assim fui forçado a jogá-la com todas as minhas forças. O golpe atingiu o nanico em pleno peito, derrubando-o de costas ao chão.

— Viva! — gritou Selene, precipitando-se para apa­nhar a pistola que ele deixara cair.

Apesar de sua aparente debilidade, o homenzinho era um tipo duro e resolvido. Levantou-se de um pulo e nisso vi uma comprida lâmina de aço brilhar-lhe na mão.

— Cuidado, Jerry! — gritou Selene. — Ele está com uma faca!

"Cara de Bode" se aproximou de mim, babando de ódio. Empunhava uma navalha de molas com fria cruel­dade.

Senti que meu estômago começava a revolver-se. "Cara de Bode" pressentiu minha perturbação e come­çou a rir.

— Bem, vamos ver de que côr são as suas tripas, "seu" rábula de meia tijela. Pode ir procurando....

— Atire, Selene — ordenei peremptòriamente.

— Ela não sabe manejar uma pistola — respondeu o "gangster" com desdém. — Nem mesmo sabe segurá-la.

— É mesmo? — disse Selene com sarcasmo. — Vi-a manobrar a arma e um pavoroso estampido soou a se­guir.

"Cara de Bode" saltou para um lado, espantado pelo disparo. Selene lhe apontou a arma.

— Atire essa faca ou furo-lhe as tripas, canalha — ameaçou a moça. — E não pretendo repetir o aviso, ouviu bem?

O pavor assomou aos olhos do quadrilheiro. Toda a valentia que pavoneara durante os últimos momentos desapareceu inesperadamente e sua cara se tornou acinzentada.

Avancei para ele:

— Moral da história — disse: — "Jamais confie numa senhora com uma pistola na mão". — E soltei-lhe um sopapo que o fez voar até o outro lado do aposento. Era uma espécie de desabafo pelos minutos de medo que me fizera atravessar.

Depois caminhei para ele. Sem faca e sem pistola, Burt Byles era, como todos os de sua marca, um des­prezível covarde que nem merecia um olhar. Contudo, como precisava fazer-lhe algumas perguntas, agarrei as lapelas de seu paletó e sucudi-o algumas vezes, até que ficou suficientemente amolecido.

— Bem — disse, — agora vamos verificar suas qua­lidades de "canário". Você viu Augie em Alcatraz?

— Sim — tartamudeou, num fiozinho de voz.

— E ele lhe falou sobre os duzentos e cinquenta mil? Assentiu com as pálpebras.

— A quem você transmitiu o recado primeiro? Se­riam repartidos por cinco e um deles não quis fazer par­te do arranjo. Sabe disso?

— Sim. Eu... eu disse primeiro a McCreedle, que depois reuniu os outros, menos Al George. Disse que ele nem queria ouvir falar no assunto.

— E acertou — disse incisivamente. — Diga, "Cara de Bode"; nesse caso, ficou resolvido que a outra quinta parte do botin seria para você?

— Sim, claro.

— Idiota! Pobre e pequeno idiota! — disse desdenhosamente. — Até parece mentira que, conhecendo como conhece esses sujeitos, pensasse que se desfariam de cinquenta mil dólares apenas para dá-los a você! Corno prêmio por seus serviços de mensageiro, não?

— Um trato é sempre um trato...

— Entre pessoas decentes, idiota. Mas nem você nem os outros o são. Quem teve a ideia de escrever à senhora Drummond?

— Foi... numa reunião que tivemos, quando nós... quando ficaram certos de que ela não soltaria a "gra­na". A ideia foi de todos, juro.

— Que belo quinteto para a câmara de gás! — mastiguei. — E agora, a última pergunta. Onde está To­rano? Ele saiu de casa e quero saber para onde foi.

— Não sei, juro.Dei-lhe um par de bofetadas para avivar-lhe a me­mória, mas o sujeitinho se trancou na negativa e daí não saiu.

— Deixe-o, Jerry — interveio Selene. — Se ele sou­besse, já teria dito. Vamos embora. Você já conseguiu bastante.

— Também acho. Mas não quero sair sem antes dei­xar uma boa lembrança minha para esse furúnculo pestilento.

Levantei-o do chão com a mão esquerda e depois atirei a direita, convenientemente fechada, até acertar seu queixo. "Cara de Bode" rolou os olhos como um za­rolho e fechou-os em seguida. Afrouxei os dedos e dei­xei-o cair sôbre o sofá.

— Vamos, beleza! — exclamei, tomando o braço de Selene. Ela jogou a pistola para um canto e saiu a meu lado, ágil e graciosa, como se nada tivesse acontecido de particular.

— Bem, que acha de tudo isso, Jerry? — disse, quando já estávamos a caminho da cidade.

— Um embrulho dos diabos — mastiguei. — Por que esse infeliz Follingsbee foi lembrar-se logo de mim?

— Não se lamente, chorão. Quando tudo estiver ter­minado, os benefícios choverão e, quem sabe, uma boa publicidade...

— Deixe-me em paz — gemi. Nesse momento, dinheiro e publicidade me importavam tanto como saber a res­posta de uma ou duas perguntas. Por que Pete Moreno fora ver-me no escritório? Por que tanta urgência em encontrar-se comigo? E finalmente, quais os motivos de seu ressentimento contra "Cara de Bode", conforme miss Stetson afirmara ouvi-lo falar?

— Rapaz, até parece que você esqueceu todas as normas de cavalheirismo e convivência com as damas — queixou-se ela ofendida.

Parei o carro. Selene tinha razão. Depois do que fizera — ou procurara fazer — por mim, não era justo mostrar-lhe uma cara azeda.

Puxei-a para mim.

— Vou pedir-lhe perdão — falei suavemente e senti o trêmulo bater de seu coração junto ao meu.

Ela me fitou. Uma estrela se refletiu duplamente em suas pupilas. Seus lábios se entreabriram, enquanto o busto começava a ofegar aceleradamente.

— Jerry — sussurrou — se promete beijar-me bem, eu o permitirei em seguida.

— Assim? — disse, um segundo antes de esmagar seus lábios frescos e úmidos com- os meus.

Empurrou-me, procurando afastar-se. Estava sem fôlego, respirava ofegante, mas contente e satisfeita.

— Suponho que depois disso estarei perdoado por algumas vezes, não? — disse brincalhonamente, enquanto tornava a dar partida ao motor.

Ela não respondeu. Pelo canto dos olhos, percebi que estava preocupada.

— Jerry?

— Sim, boneca?

— Vai ver McCreedle agora? Sacudi a cabeça vigorosamente.

— Nem fale nisso. Seu amigo do peito — falei em toda a extensão da palavra, — sente uma vontade louca de deitar e dormir. Verei McCreedle amanhã... princi­palmente quando já tiver digerido os efeitos de nossa visita à sua residência e a entrevista com "Cara de Bode".

— Jerry! Devíamos avisá-lo. Ele corre o risco de ser assassinado. Já mataram dois deles...

Encolhi os ombros.

— São sementes podres que precisam ser arrancadas, Selene. Por outro lado, sujeitos como McCreedle não costumam ser tolos e deve ter relacionado as mortes de Merton e Moreno entre si, o suficiente para andar bem prevenido. Ele mesmo se avisará, acalme-se.

— Então, não vai vê-lo?

— Claro que sim. Mas antes farei outra visita.

— A quem?

Ensaiei o melhor de meus sorrisos.

— Desculpe-me o silêncio, queridinha, mas não de­sejo que amanhã você me quebre outro vaso no cangote. Deus! Isto me está saindo a um vaso por dia!

Selene procurou mostrar-se envolvente. Estendeu a mão direita e começou a acariciar-me o queixo.

— Vamos, bichinho, solte a deixa. . . Diga tudo para a sua pombinha...

— Deixe-me, Selene; estou dirigindo e não tenho vontade de ser citado na crônica policial.

Afastou-se para o outro extremo do banco, toda enfarruscada.

— Bem sei porque não quer dizer. É alguma mulher. Que faria eu, pobre moça, enquanto você se consola con­templando outra... ou quem sabe, algo além da con­templação?

— Não creio que a mulher que penso visitar tenha muita necessidade de consolo, Selene. — E apenas pro­nunciara tais palavras, arrependi-me da leviandade.

Ela estalou os dedos.

— Descobri. Vai visitar a Drummond.

— Bem — respirei aliviado. Pelo menos não acer­tara, o que me deixou um pouco satisfeito. — Está bem, irei vê-la.     ,

— Ela é muito bonita, não?

— Não tanto quanto você, Selene — respondi. Tor­nou a enrolar-se a meu lado e soltou um profundo sus­piro.

— Você é um homem encantador, Jerry e dará um excelente esposo e pai magnífico, posso jurar.

— Esposo e pai de quem, pode-se saber?

— Quer ruborizar-me? — disse ela, toda envergo­nhada.

Soltei uma gargalhada.

— Você, ruborizar-se! Com a sua hipocrisia é para morrer-se de rir!

Plaft!

Uma bofetada me derrubou como uma chicotada. Por um momento fiquei com os olhos cheios de água e com a visão turva, o carro começou a ziguezaguear de um para outro lado da estrada. Consegui dominá-lo antes que saltasse por um barranco de cinquenta metros de pro­fundidade e depois freá-lo em seco, voltei-me para ela.

— Desculpe-me, Jerry — disse atemorizada, vendo minha cara sem expressão. — Juro que não o tornarei a fazer. Foi... bem... não pude reprimir a mão...

Puxei-a de novo para mim. Ela soltou um gritinho de alegria e aninhou-se apaixonadamente em meus bra­ços.

O facho de luz de uma lanterna nos tirou daquele êxtase.

— Vamos, vamos — disse uma voz de acento bonachão. — Por que não se refugiam em casa para tratar desses assuntos?

Selene se separou de mim e alisou os cabelos com galhardice.

— Tem razão, senhor guarda — disse ao homem do trânsito. — Amanhã mesmo iremos escolher nosso apartamentozinho...

— Isso é o que ela pensa — resmunguei eu, ligando o motor. Saí a jato e em breve entrávamos novamente na zona urbana.

Deixei Selene em seu apartamento e depois fui para o meu. Apenas entrara, quando alguém me atingiu com força, obrigando-me a rodar pelo centro do aposento.

 

Durante dez minutos banquei a bola de treinamento para alguns indivíduos, cujo número não pude calcular e muito menos os golpes recebidos. Ao terminar, tinha um olho de luto, os lábios inchados, os dentes dançando de maneira assustadora em suas próprias gengivas, os la­dos do corpo amortecidos e um regular talho na face esquerda.

— Bem — disse repentinamente uma voz, — já po­dem deixá-lo, rapazes.

Fiquei sozinho com um deles. Sabiam o que tinham entre as mãos. Enquanto durou o meu louco bailado, o qual me deixou no solo transformado quase em farrapos, não tinham pronunciado a menor palavra nem falado coi­sa alguma que pudesse delatar-lhes identidade pela voz.

Olhei para o sujeito. Era gordo, com papada, de olhos esbugalhados e lábios finos, cruéis. Sentou-se numa poltrona com uma pistola na mão direita e um custoso havana na esquerda, olhando-me pelas pálpebras semicerradas.

— Já é suficiente, infeliz curioso?

— Quem é você? perguntei dificultosamente através dos lábios inchados e partidos. Deviam ter a aparência de chouriços e sentia o gosto morno e salgado do sangue dentro da boca.

— Alguém a quem você procurava esta tarde, rábula. Chamo-me McCreedle e sei o que quer de mim. Perde seu tempo, sabe?

Tratei de encolher os ombros, mas fui impedido por uma dor aguda na omoplata esquerda. Que velhacos! Não me ficara a menor região anatômica sem seu gol-pezinho correspondente!

— Você é que perde — contestei. — Não apenas ficará sem o dinheiro que Augie lhes deixou, como tam­bém os dez mil dólares oferecidos pelo senhor Drummond, a fim de deixarem-nos em paz, ele e sua esposa.

O homem soltou uma gargalhada irônica.

— Tem muita graça! Conformar-me com dez mil dólares, quando posso conseguir, pelo menos cinquenta mil ou até mais!. Acha-me com cara de doido?

— Faça como quiser. Em seu lugar, eu aceitaria sem vacilar. É o único meio ao seu alcance para salvar algo: — Sentei-me num tapete e comecei a enxugar o sangue que me corria pelo rosto.

— Nem pense nisto! — retrucou McCreedle com vio­lência. — Esses duzentos e cinquenta mil dólares são nossos, compreende? Combinamos fazer uma sociedade e cumpriremos o acordo até o fim.

— Existe alguém que não está de acordo com a ma­neira de dividirem a quantia e por isso está suprimindo alguns dos beneficiários. Já faltam Merton e Moreno na lista. Será você o próximo? Ou por acaso é você mesmo quem se encarregou de eliminar os competidores para o Grande Prêmio dos Duzentos e Cinquenta Mil?

— Não! — resmoneou CcCreedle. — Nem uma coisa nem outra. Existe alguém interessado em ficar com todo o dinheiro e por isso procura assustar-nos. Mas eu o en­contrarei, juro!

— Procure-o. Quando o encontrar avise-me — decla­rei, calculando as possibilidades que tinha de atirar-me sobre o sujeito e desarmá-lo. Não havia a mínima e as­sim me contentei em continuar sentado no chão.

— Há certas coisas que guardo apenas para mim — replicou o fora da lei. — O rato que despachou Merton e Moreno vai pagar muito caro. Apesar de você ima­ginar o contrário, somos muito unidos.

— Bem, se não foi você, deve ter sido "Cara de Bo­de". Ou talvez Torano — raciocinei logo, ao lembrar-me da precipitada fuga do "gangster" e sua pequena.

— Torano — resfolegou McCreedle com indignação. — Aquele filho de uma cadela! Veio ver-me e contou a sua proposta. Declarei o que pensava a seu respeito e de sua covardia. Obriguei-o a voltar atrás e esconder-se para que você não o pudesse encontrar e tentá-lo de novo. Não o encontrará, isso posso assegurar.

— É o que você pensa— falei. — Amanhã a estas mesmos horas, terei Torano à minha frente.

— Deixe de bravatas que não cumprirá, rábula. — O sujeito se levantou: — E não esqueça o que vou dizer-lhe: o que fizemos hoje, foi apenas um aviso carinhoso. Se continuar, rebentar-lhe-emos o pescoço, por isso, pode pô-lo no seguro.

E saiu, sem deixar de apontar-me até fechar a porta.

Quando fiquei só, fui até o banheiro quase de rastros. Despi-me aos tropeções e gemidos e depois abri a ducha de água fria.

Meia hora mais tarde, estava mais recomposto, mas meu rosto não apresentava muito bom aspecto, depois dos golpes recebidos. Precisei de duas tiras de esparadrapo para o ferimento da face, deixando os lábios e o olho por conta do tempo.

Quando terminei, recolhi maquinalmente as roupas que atirara ao solo. Então me lembrei de algo.

Apalpei o paletó apressadamente e depois soltei uma interjeição.

— Que sujeitos mais ordinários! — invectivei in­dignado. E com carradas de razão, pois tinham-me levado os dez mil dólares entregues por Drummond para dar a Torano.

Nada mais podia fazer para recuperar o dinheiro. MsCreedle e seus cúmplices negariam insistentemente o roubo e, por outro lado, como estavam em notas pe­quenas, seria difícil seguir-lhes a pista.

Cansado, arriado e sentindo milhares de dores pelo corpo inteiro, tomei duas pastilhas soporíferas e joguei-me na cama para descansar.

 

Passei boa parte da manhã no escritório, despachando alguns assuntos que requeriam minha atenção. Deixei o trabalho em dia quando a tarde chegou e, depois, des­pedi-me de miss Stetson até o dia seguinte, recomendando lhe ignorar meu paradeiro para todos, menos para as chamadas precedentes dos Drummond.

Na verdade, miss Stetson foi de uma discrição a toda prova. Notou meus óculos escuros, lábios partidos e as tiras de esparadrapo no rosto e nada disse. Achou-me tão normal como em qualquer outro dia.

Terminando meu trabalho, comi dois sanduíches num restaurante próximo, regados com um bom jarro de cer­veja. Paguei a conta e dirigi-me a casa de Jeannie Mer­ton. Lembrei-me de que se mostrara muito amiga da Nelson no dia anterior. Não seria, pois, muito natural que a fugitiva confiasse seu novo endereço à amiga?

Chegando à residência da Merton, vi uma mulher sair de lá. Atravessou a calçada rapidamente e entrou num carro esporte branco e cereja, arrancando dali sem dar o menor sinal de ter-me visto.

Parei meu carro, profundamente preocupado ao iden­tificar Ofélia Drummond na mulher que acabava de sair. Puxei o freio e atravessei a calçada.

Bati à porta da Merton, a qual demorou alguns ins­tantes a atender.

Quando apareceu, vi-me frente à mulher que quase rompera a campainha de tanto gritar no "Madeira", duas noites atrás. Era miudinha e cheia, de carne rija, trans­bordando por todas as partes que não estavam bem com­primidas pela faixa que a empacotava do busto aos qua­dris. Olhos de um azul desbotado, cabelos de fogo e lá-

bios sensuais, eram suas mais importantes características fisionômicas. Pareceria ainda mais simpática se seu rosto não possuísse uma expressão tão dura e desagradável.

Sua roupa negra estava muito apertada ao corpo, com um decote carecendo absolutamente da mais elementar discrição. As pernas, enfiadas em meias de tonalidade muito clara. Onde estava, pois, o luto pelo defunto pran­teado tão espalhafatosamente?

— Senhora Merton? — perguntei educadamente.

— Sim, — respondeu ela em voz ferina e seca.

— Meu nome é Jerry Braxton e sou advogado. De­sejaria conversar cem a senhora.

Hesitou alguns segundos e finalmente ficou de lado.

— Entre — disse laconicamente. Ofereceu-me uma cadeira e sentou-se à minha frente sem preocupar-se muito em cobrir os joelhos.

— Em primeiro lugar — declarei, — quero expressar-lhe as minhas mais sinceras condolências pela morte de seu esposo. Compreendo que foi uma enorme perda para a senhora, difícil, talvez mesmo, impossível de ser re­parada e...

Ela ouviu minhas frases de pêsames com ar resignado e calmo, mas não parecia muito atingida. Em que, de­mônios, pensava aquela mulherzinha?

—Deve compreender — falei, pouco depois — que não vim apenas para dar-lhe os pêsames. Se não se importa muito, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas.

— Declaro — respondeu, — que já disse tudo quanto sei à polícia. Não pense o senhor...

— A pergunta que desejo fazer-lhe, senhora Merton, não foi feita pela polícia. Nem pense que eles a fariam, principalmente porque não têm motives para isso.

— E o senhor, tem? — perguntou a criatura com um leve sarcasmo.

— Sim. Estou a par de sua amizade com Lois Nelson. Estava em seu camarim ontem, à noite, quando seu es­poso foi assassinado e a senhora chegou lá, chorando a todo pano. Assim — falei, indo direto ao assunto — po­deria ter a bondade de informar-me onde Lois Nelson e Buddy Torano acham-se agora?

Ela se ergueu na cadeira, projetando seu busto protuberante para a frente. Seus olhos soltaram faíscas de raiva.

— Não acho que isso seja do interesse, meu senhor — fa­lou. — E não sei para que procura Lois. Contudo, quero avisá-lo. ..

— Sabe ou não onde está sua amiga? — interrompi seu discurso com a menor sem-cerimônia.

— Não — respondeu, gélida.

— Mente. Está mentindo desde que me ouviu pro­nunciar seu nome. Sabe que, se quisesse, poderia obrigá-la a dizer-me onde fica esse esconderijo?

— Chamaria a polícia? — expressou desdenhosamente.

— Talvez. Tenho bons amigos no Departamento de Homicídios. Inclusive, alguns deles poderiam agir um tanto fora do regulamento para satisfazer-me.

O medo assomou a seus olhos, porém manteve-se firme.

— O telefone está ali, meu senhor — disse com ener­gia. — Pode chamar seu amigo "pé chato" ou dê o fora daqui. Se sei ou não onde Lois se esconde, isso é da minha conta e não pretendo dizer-lhe, por mais que se empenhe.

Levantei-me. Fitei-a, sorrindo sarcàsticamente.

— Não parece muito sentida com a morte de Lou — disse, atirando um pouco no escuro. — Melhor dizendo, eu acho que todo o escândalo de duas noites atrás foi devido ao fato de que, morrendo Lou, ficaria sem a substanciosa parte que lhe caberia na divisão da presa de um quarto de milhão, acertei?

A cor lhe abandonou o rosto repentinamente. Meu tiro atingira o alvo.

— Bastardo miserável! — praguejou. E de repente atirou-se à minha pele, enfiando-me as unhas.

Com as mulheres não se pode descuidar. Ainda bem que fui ligeiro, caso contrário ficaria sem os olhos.

Seu gesto provou que todas as minhas suposições eram exatas. Pude agarrá-la pelos pulsos em tempo e depois, com um forte empurrão, lancei-a para longe. Deu duas voltas sobre si mesma e, em seguida, caiu ao solo, após tropeçar numa poltrona. Sua cabeça se abateu com ruído surdo e ficou imóvel.

Senti-me gelar. Tê-la-ia matado?

Corri para ela e ajoelhei-me a seu lado. Tomei-lhe o pulso, enquanto observava sua respiração. Logo res­pirei também, aliviado. A mulherzinha apenas perdera os sentidos.

Nesse momento ouvi um rumor de passos não longe de mim. De um salto fiquei de pé, agarrando como arma defensiva o primeiro objeto ao alcance das mãos, no caso uma cadeira.

— Cuidado, Hércules! — disse uma voz zombeteira, muito minha conhecida. — Passei duas horas da manhã no cabeleireiro e não gostaria que me desmanchasse o penteado.

Deixei a cadeira onde estava. Muito aborrecido.

— Você bem o merecia por ser... bisbilhoteira. Será que não consigo ver-me livre de você, infeliz?

— Cale o bico, toleirão. Ouvi tudo desde o princípio e você gastou um montão de saliva para nada conseguir. Em troca, com a centésima parte de sua verborreia, con­segui saber o que você tanto deseja.

Não pude conter uma exclamação de júbilo. Voltei-me para ela e agarrei-a pela cintura.

— Deveras? Selene, seja boazinha e conte-me isso, vamos, belezinha.

Ele me olhou de lado, com imensa malícia.

— Sob uma condição, Jerry. Soltei-a.

— Quer ir comigo — disse, resignado.

— Claro — respondeu com desenvoltura. — Por que pensa então que vim consolar esta... "atribulada" viúva? — Inclinou-se sobre a caída Jeannie Merton e cobriu-lhe os joelhos com a saia.

— Está bem — resignei-me. — Virá comigo. Mas depois, agüente as conseqüências Onde é?

—Depois que estivermos no carro, Jerry. Não tenho vontade de receber uma rasteira sua.

— Bem, bem, vamos, não percamos tempo. Encaminhei-me para a porta e ela disse:

— Espere um momento.

Caminhou para um vaso em cima da mesa, tirou-lhe as flores e, em seguida, derramou a água que continha sobre Jeannie. A mulherzinha soltou um grito e sentou-se, apavorada.

— Adeus, gordinha — saudou Selene insultuosamente. Às nossas costas, a "atribulada" viúva ficou praguejando em quantidade e qualidade tais como eu jamais ouvira até então

— Bem, para onde guio? — perguntei, uma vez ins­talados no carro.

— Siga pela estrada Vinte e Quatro até o Sul. De­pois direi o resto.

Enquanto dirigia, perguntei:

— Como conseguiu o endereço da Nelson e Torano? Selene começou a rir.

— Há mulheres — respondeu — que se julgam mui­to espertas. Ou melhor, gostam de parecê-lo, mas são tão tolas como um bando de beija-flores. A Nelson e a Mer­ton são assim. Uma por informar-lhe o esconderijo e outra por anotá-lo num pedaço de papel e deixá-lo ao lado do telefone. Avistei-o e apanhei-o. Isso é tudo.

Movi a cabeça, admirado pelos recursos que as mu­lheres têm às vezes. Ato seguido, Selene me fez outra demonstração do que acabo de dizer.

— Como soube que eu viria ver a "Merton"? — per­guntei.

— Disse-me ontem à noite que iria visitar uma mu­lher sem muita necessidade de consolo. Ofélia Drummond não poderia ser, uma vez que tem o marido à mão. Logo, por simples dedução...

— É verdade! — exclamei. — A senhora Drummond esteve visitando Jeannie Merton. Ouviu o que conver­saram?

— Não. Como ela me mandou entrar em seu quarto, quando você tocou a campainha... Ao perceber quem era a visita, achei que seria falta de discrição de minha parte.

— Caramba, que perfeito detetive você daria, beleza! — falei com desprezo. — Bastou a minha presença lá, para que você aguçasse os ouvidos, esquecida de sua discrição.

— Fiquei sem jeito, na verdade. Além disso, a Drum­mond começou a passear nervosamente de um lado para outro e cheguei mesmo a pensar que entraria no quarto onde eu estava. Não tive remédio senão me esconder atrás do armário, esperando que se fosse embora. Depois, quase em seguida, chega você... e então ouvi tudo que conversaram.

— Não entendo como a Merton pôde recebê-la bem. Que lhe prometeu você?

Selene piscou um olho.

— Prometer custa pouco. Disse que poderia obrigar os outros a dar-lhe parte do bolo que correspondia ao sem-vergonha do seu defunto marido. Isso a deixou cega e não viu mais nada...

— Claro — concordei. — Este assunto não deve tornar-se público e, portanto, Jeannie Merton não pôde fazer a menor reclamação oficial quanto ao cumprimento de sua promessa.

— Eu lhe disse ainda que poderia arrancar uma gorda fatia aos tubarões. Do jeito que ela estava feliz com a notícia; dar-me-ia até o céu se lhe pedisse. Inclusive o endereço da Nelson... mas não foi preciso. A propósito — acrescentou negligentemente: — quando tiver tempo, conte-me as razões pelas quais é obrigado a disfarçar-se desse modo em pleno dia.

Contei-lhe o que acontecera na noite anterior. Selene riu a bandeiras despregadas e ainda mais, quando soube que   tinha ficado sem os dez mil dólares.

Aquilo me deixou enfurecido e de boa vontade tê-la-ia estrangulado, mas pude conter-me a tempo. Finalmente, cortei suas risadas com uma pergunta seca:

— Onde fica o esconderijo do parzinho?

— Pare o carro — disse Selene com, aparente incon­gruência.

— Eis ali um restaurante onde poderemos beber algo até que a noite desça. Do jeito que andam as coisas, acho melhor aproximarmo-nos de lá sem que ninguém perceba.

 

Deixamos o carro a boa distância do endereço. La­mentei imensamente não ter uma arma à mão, mas como nunca as tinha usado, salvo na guerra, não fiquei muito tempo pensando nisso. O que fiz foi apanhar uma lanter­na elétrica no porta-malas, imaginando que talvez pu­desse fazer-nos falta.

Avançamos por um caminho secundário, muito mal pavimentado, serpenteando por entre árvores frondosas, cujas folhas produziam sinistros rumores, quando agitadas pelo vento. A noite estava escura como breu e enxer­gávamos apenas um palmo à frente dos nossos respectivos narizes.

— Caramba, que lugar para esconder-se! — resmun­guei uma hora, depois de extrair o pé esquerdo de uma poça inesperada, vestígio das últimas chuvas primaveris.

— Não iriam esconder-se em City Hall, não acha? Cale a boca e prossiga, choramingas.

Ao fim de uns dez minutos de marcha, chegamos a uma espécie de clareira circular, também rodeada por altas e copadas árvores. As estrelas agora proporciona­vam um pouco de claridade e, com as pupilas habituadas, conseguimos distinguir o vulto escuro de uma casa de regular tamanho, no centro daquele descampado.

— Sigamos com cuidado — sussurrei ao ouvido de minha companheira. — Não se vê nenhuma lua; talvez estejam dormindo.

Selene concordou, agarrando-se medrosamente a meu braço. Avançamos para o prédio, onde chegamos um mi­nuto depois.

O silêncio era absoluto. Ouvia-se apenas, de vez em quando, o sussurrar das folhagens das árvores, ao se­rem movidas por uma brisa irregular, o que produzia alguns ruídos de tétricas tonalidades. A meu lado, Se­lene estremeceu vivamente.

Paramos em frente à porta de entrada. Era grande e ficava situada sob um pórtico de pedra de três arcos, construído em estilo espanhol. Arriscando-me a ser visto, acendi a lanterna e tornei a apagá-la.

Ninguém respondeu ao silencioso chamado. Então, tornei a acendê-la, procurando na porta algo por onde chamar.

— Tem certeza de que é mesmo aqui, Selene? — per­guntei num fraco cochicho.

— Absoluta, Jerry. Esta é a única casa em toda a redondeza.

Sobre a madeira da porta vi uma pesada aldrava em forma de garra de ave de rapina, segurando uma bola de ferro. Segurei-a, a fim de bater com a bola e então percebi que a porta girava suavemente sobre os gonzos com um som fraquíssimo, apenas perceptível.

Selene se apertou mais contra mim.

— Está aberta, Jerry! — murmurou.

Engoli em seco. Por instantes, pareceu-me ser o pro­tagonista de um filme de "suspense". A qualquer momen­to surgiria o imprevisto, sob a forma de uma visão infernal como um sujeito pendurado ao teto por uma corda no pescoço ou outra coisa no gênero.

Acabei de abrir a porta e um vazio negro, impene­trável à vista, projetou-se à nossa frente.

Acendi a lanterna, mantendo-a assim durante alguns segundos. A visão foi rápida, mais pude notar um grande vestíbulo, em cujo lado esquerdo iniciava-se uma escada muito ampla que levava ao andar de cima.

De repente, senti algo enfiar-se em meu lado es­querdo. Apaguei a lanterna e dei um pulo a frente, tremendo dos pés à cabeça.

— Jerry — murmurou Selene.

— Estou aqui — cochichei. — Não podia avisar-me de outra maneira?

Notei que suava abundantemente. Limpei o rosto com um lenço que em seguida dobrei duas vezes e co­loquei sobre o foco da lanterna. Isto nos permitiu ver alguma coisa, sem contudo tornar-nos visíveis demais.

Começamos a subir para o andar de cima. O si­lêncio continuava absoluto e de vez em quando os de­graus deixavam escapar um melancólico rangido. Final­mente atingimos o corredor, dando para diversas portas à direita e à esquerda.

Após alguns momentos de vacilação, caminhei para a direita. Abri a primeira porta com toda cautela que me foi possível, encontrando o aposento inteiramente va­zio. O seguinte também estava nas mesmas condições.

— Onde se terão metido esses dois? — mastiguei.

Um golpe de vento abalou a casa de modo impre­visto e senti meu cabelo se levantar do crânio.

Voltei-me completamente, enfocando a lanterna pa­ra outro lado. Durante o movimento, um gelado calafrio me percorreu a espinha de cima para baixo.

— Selene! — chamei em voz alta, pouco ligando para o silêncio que devia manter.

De repente uma porta bateu com um estrondo seco e as paredes vibraram perceptivelmente. O suor começou a escorrer-me ao longo do pescoço.

Voltei sobre meus passos. Onde, demônios, se metera minha acompanhante?

Abri a porta seguinte. Dava para uma espécie de salinha de estar, onde não havia ninguém à vista. Aqui­lo começou a enfurecer-me e pensei mal-humorado na intuição das mulheres e nos idiotas que costumam dar crédito a tal sentimento.

Segui para o quarto seguinte. De repente, um som estranho me deixou a nuca gelada. Era uma espécie de gemido balbuciante, um esquisito gaguejar chiado e, apesar de muito baixo, não pude acreditá-lo preferido por garganta humana.

Ouvi passos do outro lado. Trocando a lanterna de mão, fiquei junto à porta, esperando quem iria sair. E efetivamente alguém saiu na disparada, veloz como uma bala. Tapei-lhe a boca com a mão, rodeando sua cintura com o outro braço, sem soltar a lanterna.

Os olhos de Selene me fitaram fora das órbitas. Es­tava aterrorizada, tomada pelo pânico.

— Não grite! — falei baixinho. — Por que mais queira!

Ela pestanejou em sinal de assentimento e então re­tirei a mão de sua boca. Em seguida relaxou o corpo com um profundo suspiro.

Mas a expressão de seu rosto continuava sendo do mais genuíno terror. Gaguejou:

— Je... Jerry... es... estão ali...

— A Nelson e Torano? — perguntei.

Ela respondeu com um gesto de cabeça. Seu aspecto nada indicava de bom para nossos dois perseguidos.

— Não entre — falei.

Selene crispou a mão em meu braço.

— Oh, Jerry... é... algo terrível. Não sei se po­derei ...

— Quietinha aqui e não se mova — ordenei. Tirei o lenço da frente da lanterna e atravessei a porta.

O facho de luz me mostrou um quadro como poucos já vi. E então compreendi o que Selene sentia.

Lois Nelson estava jogada a um lado do quarto com a garganta rasgada de orelha a orelha, em meio a um mar de sangue, ainda líquido e fresco. Fora prati­camente decapitada.

Seu companheiro, Torano, não tivera melhor sorte. Ou, talvez, ainda pior, conforme se queira.

O "gangster" estava estendido no chão, ainda amar­rado à cadeira da qual não conseguira soltar-se. Seus olhos fora das órbitas e as mãos crispadas, demonstravam claramente a horrível agonia que devia ter atravessado. Seria um sádico o assassino?

O nariz e a boca de Torano estavam entulhados de mechas de algodão, de tal modo que não podia respirar. Morrera aos poucos, asfixiado. Um horrível modo de mor­rer. E de matar.

Senti que meu estômago se esforçava por vir à boca. Apaguei a lanterna, dei meia volta e saí imedia­tamente dali, completamente nauseado.

Precisei apoiar-me à parede para não cair redonda­mente no chão. Durante alguns minutos nada fiz além de ofegar, procurando ar. Fora terrível a impressão re­cebida.

Senti a respiração de Selene a meu lado.

— Va... vamos embora daqui, Jerry — disse ela, alinhavando as palavras a duras penas. — Isto... causa-me muito... medo...

— Sim — concordei. Segurei-a pelo braço. — Vamos. Mas nem tivemos tempo de dar um passo, quando de repente a porta de entrada se fechou de golpe. A seguir, soaram passos.

 

Empurrei Selene para o outro lado, entrincheirando-nos atrás da parede onde desembocava a escada. O recém-chegado ainda parou por uns momentos no centro do vestíbulo, ao que parecia, irresoluto e vacilante.

Senti o riscar de um fósforo. A meu lado, a moça começou a tremer convulsivamente. Apertei seu braço com força. Se soltasse um grito, podíamos considerar-nos perdidos de vez.

O primeiro degrau da escada gemeu queixosamente. Era evidente que o recém-chegado vinha subindo para onde estávamos.

Nesse momento, outra porta se abriu no vestíbulo. Devia ser alguma das que levavam à cozinha ou aos quartos inferiores. Por que não tínhamos começado nos­sa vistoria lá por baixo? Talvez porque esperássemos sur­preender os dois adormecidos e inconscientemente, pen­samos no pavimento superior.

Subitamente todas as luzes do vestíbulo acenderam-se brilhantemente. Percebi uma maldição partindo do meio da escada.

O violento espocar de um tiro fez tremerem as pa­redes do prédio e alguém guinchou agonicamente.

Um corpo rolou escada abaixo, fazendo os degraus rangerem. Ouvimos perfeitamente quando o corpo pa­rou a descida.Estávamos lívidos de pavor, sem coragem de sair de nosso esconderijo, temendo receber outro balaço.

O ferido gemeu. Soaram mais dois tiros, bem se­guidos um do outro. Depois, a luz se apagou de súbito e ouvimos claramente o rumor de passos de alguém que fugia a toda velocidade.

Esperamos um pouco, tremendo como crianças. Não sinto vergonha em confessar que naqueles momentos, eu — e de Selene nem se fala — estava invadido por um sentimento muito próximo ao pânico. Finalmente, com grandes precauções, resolvi assomar com a cabeça e deitar um olhar para baixo.

Naturalmente nada pude ver. Agarrei a mão da ga­rota e comecei a descer a escada, grudado à parede, ainda de lanterna apagada, mas pronto para usá-la como arma contundente, se preciso fosse.

Nada aconteceu até chegarmos ao andar de baixo. Então pudemos ouvir distintamente um gemido rouco.

Acendi a lanterna e a luz caiu em cheio sobre o homem que estava esticado no chão, coberto de sangue dos pés à cabeça.

Ajoelhei-me junto a ele. McCreedle ainda respirava, mas os três balaços recebidos não deixavam a menor dú­vida, sobre seu próximo fim. Na realidade, o espantoso era que ainda estivesse vivo.

— Quem foi, McCreedle? Você lhe viu o rosto?

As pálpebras do moribundo se moveram, em sinal de assentimento. Abriu a boca, mas dela saiu apenas um leve sopro de ar.

— Diga quem foi, McCreedle. Depressa — fustiguei-o sem piedade. Se pudesse falar, pouparíamos muitos des­gostos.

O "gangster" se endireitou convulsivamente. Abriu a boca por completo, mas conseguiu soltar apenas um es­pesso jorro de sangue. Seus olhos giraram de modo hor­rível e de súbito o corpo se estirou molemente.

Deixei-o cair ao solo. McCreedle estava morto, le­vando consigo o segredo da identidade do assassino para a sepultura.

Ainda fiquei ali um pouco. De repente, Selene me tocou no ombro.

— Não está sentindo, Jerry?

Levantei a cabeça e aspirei o ar. Um cheiro es­tranho e conhecido ao mesmo tempo me feriu o olfato.

— Alguma coisa está queimando, Jerry! — exclamou a moça.

Fiquei de pé num salto. Com a lanterna percorri o vestíbulo palmo a palmo até deter o facho de luz ao pé de uma porta fechada, por onde saia um débil véu de cor cinza.

— O assassino incendiou a casa! — disse Selene.

Corri para a porta e abri-a de um golpe. Imediata­mente fui obrigado a recuar. O gesto provocara um re­pentino afluxo de oxigênio às chamas que dançavam na­quele aposento, aumentando-lhes o volume. O fogo co­meçou a rugir desvairado.

— Vamos sair, depressa! — disse, convencido de que jamais conseguiríamos extinguir o incêndio com nossos próprios e escassos meios.

Corremos para a saída como loucos, ansiando ultra­passar o terror que tínhamos atravessado enquanto permanecemos naquela casa. Quando chegamos à estrada, o clarão do incêndio já iluminava o céu sinistramente. Não falamos até chegar à cidade. Então, Selene disse:

— Jerry, estou com medo. Não gostaria de ficar em casa sozinha esta noite.

— Tem um sofá desocupado? — perguntei, compreen­dendo as razões da moça.

Ela assentiu com um gesto e então dirigi o carro até o edifício onde residia.

Chegando a seu apartamento, fechou a porta com duas voltas de chave, além de puxar o ferrolho. Com o olhar, procurei alguma coisa até encontrá-la. Uma gar­rafa de bebida e preparei duas taças de bom tamanho que bebemos sem reclamar.

A côr voltou às faces da moça e suponho que a mim também aconteceu o mesmo. Acendemos nossos cigarros e sentamo-nos no sofá.

Ficamos em silêncio por algum tempo, mergulhados em nossos próprios pensamentos. Finalmente, falei:

— De todes os cúmplices de Augie, "O Verdinho", resta apenas um: George.

— Acha que ele seja o assassino? Esfreguei o queixo.

— Amanhã — continuei — você irá a uma loja de artigos elétrico-domésticos que existe em Lymington Place e perguntará pelo proprietário. Chama-se Forristown. Peça-lhe informações sobre George.

— Por que suspeita dele?

— Parece arrependido. Contudo, um indivíduo que deve lidar com o público em sua qualidade de vendedor, como é a função de George, não usa uma linguagem tão pouco acadêmica como a que ele empregou em sua conversa comigo. Suas expressões deveriam ser mais corre­tas, entende?

— Sim — concordou a garota, aspirando um bocado de fumaça. Enquanto a expulsava, falou:

— Contudo, ainda resta o mensageiro. Também ele pode ser bem suspeito.

— "Cara de Bode"? Hum! — mastiguei com desprezo.

— Burt Byles é um tipo que apenas fere à traição, como as serpentes.

— E vai dizer-me que todas essas mortes foram praticadas cara a cara? — objetou a jovem ferinamente. — Nenhum deles deixou de ser surpreendido pela morte de modo traiçoeiro. Rememore bem a série dos assassina­tos e verá como tenho razão.

— De qualquer maneira — disse pensativamente — "Cara de Bode" não me parece homem para empresa de tal vulto. Parece mais pertencer ao ramo dos que "can­tam" e coisas assim.

— Torano morreu asfixiado, amarrado a uma cadei­ra. Era um homem robusto, um hércules, ao passo que Byles é nanico e esmurrado. Se tinha algo contra ele, não acha que poderia agir de modo tão selvagem, para satisfazer sua vaidade ferida? E a Nelson morreu dego­lada. Byles usava uma navalha muito afiada.

— Provavelmente — concordei. — Apesar disso, em toda a lista de suspeitos, temos deixado um de fora, talvez o mais indiciado e mais importante.

— Quem, Jerry?

— Ofélia Drummond.

Depois que pronunciei seu nome, houve um pesado silêncio no aposento. Selene olhou para mim, muito rí­gida, com as mãos cruzadas no colo.

— Ofélia Drummond —fo repetiu.

 

— Rememore. Foi ver Jeanne Merton. Você mesma disse que ela parecia nervosa. O papel com o endereço de Torano e Lois Nelson estava sobre a mesinha, junto ao telefone.

— Eu apanhei-o depois dela sair e antes que você Chegasse — murmurou Selene pensativamente. — Muito bem, pode ser como você diz. Nesse caso, a Drummond leria o endereço e agiria em seguida. Então, por que matou, Jerry?

— Está apaixonada pelo marido e procura continuar sua vida atual. Os quadrilheiros constituíam um obstá­culo para seus fins e por isso está eliminando-os. Eis tudo.

— E além disso, fica com os duzentos e cinquenta mil em seu poder, Jerry.

Levantei-me e sacudi a cabeça.

— Não! — exclamei. — Seja lá como for, não posso acreditar tal coisa partindo da senhora Drummond. Seria monstruoso demais.

— Mas não impossível.

Olhei-a fixamente.

— As mulheres — disse — falham muitas vezes em sua intuição. Acertam uma vez ou outra. Acho que ago­ra está acontecendo consigo, Selene.

— Você admira a Drummond, Jerry, não o negue.

Suspirei. Selene acabara de adivinhar parcialmente meus pensamentos.

— É... algo difícil de qualificar — falei.— Tomei-lhe um certo afeto, por parecer uma mulher de verdade e além disso, acredito sinceramente em suas promessas e intenções de levar uma vida diferente. E é casada.

— E se não o fosse?

Clareei a garganta com um pigarro.

— Prefiro não dar a resposta, minha cara.

Um brilho ciumento apareceu nos lindos olhos de Selene.

— Obrigada pela resposta — disse secamente. Ficou em pé e atravessou o aposento rapidamente.

Voltou um minuto depois com duas cobertas e um travesseiro, atirando tudo à minha cara.

— Que tenha sonhos felizes — desejou toscamente. E fechou a porta de seu quarto com tanta força que as paredes estremeceram.

Atirei-me ao leito improvisado, procurando dominar a exasperação que sentia. Ao inferno com as mulheres! Servem apenas para complicar-nos a existência, ape­sar de que, no fim das contas, que faríamos nós, pobres homens, sem elas?

 

Entrei no escritório. Ao ver-me, miss Stetson ficou perturbada e procurou ocultar o jornal que estava lendo sob a cobertura da mesa.

— Não se preocupe — disse-lhe benèvolamente. — Não gosto de ser considerado como capataz de escravos pelos que trabalham para mim. Se quiser, pode terminar de ler o seu jornal.

Miss Stetson emitiu um leve pigarro.

— Es... estava lendo o terrível acontecimento desta noite, senhor Braxton. Um... uma casa pegou fogo com... três pessoas dentro.

Procurei não dar importância ao assunto.

— Bem — disse, fingindo indiferença — de vez em quando isso acontece.

— Mas não assim, senhor Braxton. Os três mortos tinham sido assassinados antes.

— Caramba! — exclamei. — Isso é mais interessan­te. Onde foi? Empreste-me o jornal, miss Stetson.

A secretária obedeceu. Em manchete, na primeira página, estava a narrativa do ocorrido Títulos garrafais e três colunas de informações e fotografias nas páginas interiores. O jornalista não poupara detalhes em seu mór­bido relato e era fácil prever-se que teria um suculento pasto à sua frente para os próximos dias.

— Havia alguém nosso conhecido lá — disse a Ste- . tson.

— Nosso conhecido?

— Bem, pelo menos de nome — corrigiu-se minha secretária. — Fala em "Cara de Bode", o homem que o senhor Moreno mencionou pouco antes de morrer.

Li o referente àquele pássaro. Fora detido preventi­vamente, apesar de não parecer muito relacionado com o assunto, menos em seu conhecimento com as vítimas.

Dobrei o jornal e entreguei-o à mulher.

— Está bem — manifestei. — Mais tarde irei ver Follingsbee e contar-lhe-ei esse detalhe. Talvez possa ajudá-lo em suas investigações.

— Talvez, senhor? Bem, terminamos de redigir a escritura de cessão dos terrenos da "Mulliner Chemical"?

— Vamos a isso, Miss Stetson! — exclamei, mergu­lhando no trabalho.

Depois de comer o sanduíche do meio dia, peguei o carro e fui até a mansão dos Drummond. Fui recebido pela mesma empregadinha do primeiro dia, a qual piscou um olho ao ver-me. Era bonitinha, mas pena que eu es­tivesse tão ocupado: perguntar-lhe-ia qual o seu dia de folga.

A empregadinha me deixou no "living" e afastou-se com espalhafatoso ondular de seus protuberantes quadris. Chegando ao extremo oposto, virou-se e sorriu, atiçando-me outra vez.

Os Drummond logo apareceram, juntos os dois. Ela estava simplesmente vestida e seu rosto formoso parecia muito pálido sob a maquilagem que o cobria, perfeitamente dispensável, aliás.

Após os primeiros cumprimentos, falei:

— Preciso conversar com a senhora a sós, senhora Drummond. Ela concordou com leve inclinação da cabeça.

— De acordo, senhor Braxton. Fale com Ofélia tudo quanto quiser.

— Com um gesto, ela mostrou o caminho a seguir.

— Por aqui — disse levemente.

— Primeiro a senhora — inclinei-me galantemente. Entramos no próprio gabinete de Drummond. Uma vez lá, Ofélia me fitou ansiosamente.

— Que há, senhor Braxton? Por que tanto mistério? Bem sabe que não tenho segredos para meu marido.

— Está bem certa disso? — disse sarcàsticamente. — Já leu os jornais de hoje?

Seu rosto se cobriu de uma tonalidade cinzenta. Até seus lábios perderam a cor.

— Sim — disse surdamente.

— Então já sabe que Torano e sua pequena foram assassinados, bem como Angus McCreedle. Isso aconteceu antes de declarar-se o incêndio que carbonizou seus ca­dáveres.

Ofélia concordou com a cabeça. Mal conseguia falar.

— Resta apenas um dos membros da quadrilha: Al George.

— Não foi ele o assassino! — declarou impetuosa­mente.

— Está muito segura disso — comentei com negli­gência.

— Sempre foi o melhor deles todos. Quando quan­ Augie foi parar em Alcatraz, George disse que não queria mais saber da "gang". O. ;-. o mesmo que eu, senhor Braxton.

— Concordo com isso, senhora Drummond, mas an­tes de mais nada vim falar-lhe de outra coisa que nada tem a ver com as mortes citadas. Ontem à tarde a senho­ra foi visitar Jeannie Merton. Seu marido sabe disso?

Tinha um lencinho entre as mãos e o fino tecido sibilou ao ser despedaçado de um só golpe. Não se atre­veu a enfrentar meu olhar; virou o rosto para a janela e percebi como seu busto subia e descia rapidamente.

— Como soube o senhor? — perguntou em voz ape­nas audível.

— Como soube é o de menos. O interessante é que sei. Mas não contou a seu marido, não é verdade?

Meneou a cabeça em silêncio.

— Por quê? — insisti.

— Oh, meu Deus! — exclamou de repente. — Deixe-me em paz, Não me faça mais perguntas, peço-lhe.

— Então — respondi lentamente, — sinto muito, mas prefiro abandonar o caso.

— Não! — exclamou vivamente. — Não faça isso, senhor Braxton!

Deu um passo para mim. Estava lindíssima. Selene teria razão?

— Então — continuei implacável, — fale. Diga-me o que foi fazer em casa de Jeannie Merton. Estive lá é sei positivamente, pois a vi sair. Mais, ainda sei que enquanto durou sua conversa com a viúva de Merton, a senhora estava muito nervosa, tanto, que andou várias vezes de um lado para outro da sala. Não é verdade o que digo?

— Está muito inteirado de tudo — murmurou ela.

— É minha obrigação e sou pago para isso. Peço-lhe que responda às minhas perguntas.

— Pois bem — manifestou, decidindo-se repentina­mente. — É verdade o que o senhor disse. Já explico: Eu e Jeannie Merton fomos amigas em outros tempos. Depois... separamo-nos. Ao saber da morte de seu ma­rido, pensei ser meu dever fazer-lhe uma visita e ofe­recer-me a ela para o que precisasse. Até quis dar-lhe algum dinheiro, mas ela recusou redondamente.

— Por quê?

— Disse que tinha uma gorda fatia à sua espera. Foram essas as suas palavras.

Aquilo combinava com o que me dissera Selene. Ofélia não mentia, pelo menos nesse ponto.

— Bem, e agora, diga-me: por que ficou tão nervosa?

— Jeannie disse que eu era uma tola, que poderia con­seguir muito mais do que já possuo, se agisse com es­perteza. Naturalmente quis se referir aos duzentos e cinquenta mil dólares. Aquilo me deixou indignada e enraivecida. Além de dizer-lhe que não os tinha, declarei que havia rompido completamente com tudo quanto disses­se respeito à minha vida anterior e nada mais queria sa­ber sobre isso. Foi tudo, creia-me, senhor Braxton.

— Tem certeza disso?

Ofélia se ergueu majestosamente.

— Contei-lhe tudo quanto sabia, senhor Braxton. Se lhe prometi ser franca, não vejo per que duvidar agora de minhas palavras.

— Ainda falta uma coisa, senhora Drummond — falei.

— Diga de uma vez, peço-lhe.

— A senhora sabia o endereço do esconderijo de Torano e sua pequena?

Ela sacudiu vigorosamente a cabeça.

— Absolutamente! — respondeu num ênfase com­pleto.

— Contudo — inclinei-me para a frente — Jeannie Merton colocara esse endereço em cima de sua mesinha do telefone, ao alcance da vista e da mão de qualquer um que tivesse segundas intenções.

— E ousa pensar que fui eu quem?... Oh, senhor Braxton, que tolice está dizendo!

— Procuro averiguar a verdade e colocar todas as pedras em seus devidos lugares. Não podemos esquecer que até agora quatro homens e uma mulher foram mor­tos violentamente, sem contar a surra que recebi por defender seus interesses, senhora.

— Torno a repetir que nada sabia com respeito ao lugar onde os dois estavam escondidos, senhor Braxton.

— Está bem — disse. — Não quero continuar a insis­tir nesse assunto. Agora vou mudar de tema. A senhora viu alguma vez os duzentos e cinquenta mil que Augie disse ter-lhe enviado?

— Jamais! Nunca! — contestou taxativamente.

— Então? Por que Augie disse semelhante coisa? Levantou seus ombros bem feitos, quase descobertos pelo generoso decote do vestido.

— Não sei dizer, senhor Braxton. Não tenho a me­nor ideia quanto aos motivos que impeliram Augie a agir de tal modo.

Cocei o queixo.

— Acredito na senhora — respondi, completamente confuso. Que embrulhada, tudo aquilo! — Acho que irei a Alcatraz.

— Pretende encontrar-se cem Augie?

— Claro que sim. Creio ser essa a única maneira de descobrir a verdade sobre o assunto, senhora Drummond. Se Augie sustenta que lhe enviou o dinheiro, e a se­nhora diz não tê-lo recebido, onde demôn... perdão, onde está ele? Ou talvez seja melhor dizer: com quem está?

Levou a mão ao peito, como se quisesse controlar os tumultuosos batimentos de seu coração e fechou os olhos por um momento.

— Oh, senhor Braxton! — murmurou. — Como o agradecerei, depois que resolver todo esse mistério de uma vez!

Abriu os olhos e contemplou-me. Impulsivamente to­mou-me uma das mãos entre as suas. O contacto de sua pele, suave e aveludada, fez-me sentir algo muito seme­lhante a um choque elétrico.

— Senhor Braxton — disse com voz tensa. — Co­nheci o que é a felicidade de uma vida decente e honesta, junto ao homem a quem se ama. Amo meu marido até a loucura e morreria se algo acontecesse a ele. Descubra este mistério e em toda a minha vida ficar-lhe-ei eternamente grata. Nunca viverei o suficiente para agradecer-lhe, se conseguir o que desejo.

Engoli em seco. Que homem de sorte esse Drummond, possuindo o amor sem limites de uma criatura como Ofé­lia! Trocaria de lugar com ele, apenas para tê-la ao meu lado, com o maior prazer.

— Está bem — respondi, após um ligeiro pigarrear, procurando   afastar-me do encanto de seu   magnético olhar. — Prometo fazer o possível, senhora Drummond. E agora, se me permite, gostaria de retirar-me.

— Clark vai pedir-me que lhe conte nossa conversa — disse ela, retirando as mãos.

— Pois conte-lhe francamente. Entre marido e mulher nunca deve haver o menor segredo. Se pretendi fa­lar com a senhora a sós, foi antes de tudo, com a única finalidade de não tolher sua liberdade, e não por querer ocultar nossa conversa ao senhor Drummond.

Um doce sorriso iluminou o rosto de Ofélia, trans­formando-o inteiramente. Até mesmo as cores lhe vol­taram às faces.

— Como é bom, senhor Braxton! Como desejo que en­contre uma mulher que saiba fazê-lo tão feliz como me­rece!

— Existe uma candidata ao cargo — sorri, um tanto perturbado.

— Pois então se case com ela. Não vacile. Não existe vida melhor nem mais feliz que no casamento, quando os dois esposos se amam verdadeiramente, posso asse­gurar.

— Se é como a senhora diz, acho que tentarei a aventura.

Saí do gabinete, mas ela disse:

— Espere um momento.

Voltei-me, espantado. Ofélia colocou as mãos sobre meus ombros, levantou-se na pontinha dos pés e beijou-me na face suavemente.

— Obrigado — murmurei confuso.

Ao sair, vimos Drummond que passeava nervosamen­te pelo "living". Parou e encarou-nos.

— Sua esposa — falei — dir-lhe-á tudo quanto con­versamos, senhor Drummond. — De repente avistei um telefone sobre uma mesinha próxima. — Posso usá-lo? — pedi.

Sendo atendido, levantei o aparelho do gancho e dis­quei um número: o de meu escritório.

— Miss Stetson? É Braxton quem está falando.

— Pode dizer, senhor Braxton — respondeu a secre­tária.

— Faça-me o favor de telefonar para o aeroporto e reservar uma passagem para o avião da noite. Quero estar amanhã em São Francisco às primeiras horas do dia.

— Pois não, senhor Braxton.

— Reserve a volta, também em outro avião noturno. Estarei fora apenas durante o dia. Assim, poderei dormir enquanto viajo.

— Perfeitamente, senhor Braxton — respondeu miss Stetson.

Desliguei o aparelho. Clark Drummond enlaçava a esposa pela cintura e olhava para mim com ar especula­tivo.

— A senhora Drummond lhe contará tudo — respondi.

— Boa tarde.

 

— Você se deixou enfeitiçar pelos lindos olhos da Drummond — disse Selene com ar ressentido.

— Não seja tolinha! — resmunguei. — Ofélia é uma mulher que diz a verdade, estou certo disso.

— Pois a mim parece uma grande atriz — respondeu ela francamente. — Mas afinal, se está recebendo cinco mil "pacotes" pelo trabalho, que finja o que lhe der na veneta. Tem direito a agir assim.

— Você se aborrece por uma coisa sem importância, Selene. Raios, ainda bem que não estou casado com você, caso contrário...

— Pois é esta a sua sorte — rangeu os dentes. — Caso contrário já lhe tinha arrancado os olhos.

— Então fique sabendo que se existe alguma coisa que me aborrece a paciência, é uma mulher ciumenta. No dia em que me casar, serei para sempre fiel à esposa: mas jamais cometerei tal asneira se aquela em quem puser os olhps possuir tão triste qualidade.

— Oh, Jerry — Selene estremeceu, — prometo-lhe, desde já, nunca mais sentir ciúmes. Nunca, nunca, mesmo vendo-o com uma mulher dez vezes mais bonita que a Drummond.

— Tampouco eu disse que vou casar-me com você, Selene.

— Mas irá fazê-lo. Já comprometeu minha reputação Soltei uma gargalhada irônica.

— Sua reputação? Se você se trancou a pedra e cal em seu quarto!

— Sim, mas os outros não sabem disso, Jerry.

— Pretende apregoar no "Examiner"?

Era ela quem dirigia o carro e estávamos na estrada que vai da cidade ao aeroporto. Freou bruscamente, vol­tou-se no assento e olhou para mim com firmeza.

— Jerry... — murmurou.

Na verdade, o homem tem seu destino marcado e deve segui-lo à viva força. Puxei Selene para mim e apertei-a nos braços.

— Jerry — repetiu ela, um segundo antes que al­guma coisa estalasse no para-brisas com tremenda força.

Separamo-nos imensamente assustados, ao ouvir a detonação. À nossa frente corria um carro a toda ve­locidade, de onde tornaram a partir novos tiros.

— Abaixe-se, Selene! — gritei, unindo a ação à palavra.

Suportamos o tiroteio como pudemos. Foi intenso, mas a maior parte das balas se perdeu no vazio. Em tro­ca, outras se chocaram contra a carroçaria e o para-brisas, ricocheteando em seguida com um agudíssimo as­sobio.

Quando cessou o calor dos disparos, levantei-me. Per­cebi a silhueta do outro carro ao longe. O vulto sombrio estava estacionado em meio à estrada, infelizmente so­litária àquela hora.

Subitamente compreendi a intenção daqueles imbecis. Abri a porta do meu lado e arrastei Selene para fora.

— Corra ! — gritei, puxando-a pela mão sem dó nem piedade.

Tropeçando e cambaleando uma vez e outra, subimos o suave talude existente no lugar. Passamos para o outro lado e ficamos escondidos atrás de uns arbustos.

— Que maneira de estragar os momentos românticos dos outros — resmungou ela.

Estávamos justamente terminando a subida, quando o carro dos "gangsters" passou rugindo ao lado do nos­so. Quando aparelhou com ele, vi uma série de brilhantes chamazinhas alaranjadas, seguidas por um estrepitoso pipocar de disparos. Depois o carro perdeu-se na escuridão.

Permanecemos longo tempo na mesma posição, até ficarmos convencidos de que os bandidos não voltariam à carga. Em seguida voltamos para a estrada, parando junto ao carro em atitude de expectativa.

O carro estava em estado lastimoso. Duas de suas rodas apoiavam-se diretamente na estrada, sem contar com as possíveis avarias no motor, o que nos fez com­preender desde o primeiro instante a impossibilidade de continuar a viagem no mesmo veículo.

— Bem — disse após uma olhadela ao relógio — Se começarmos a andar depressa, ainda poderei alcançar o avião. Quando eu já tiver partido para São Francisco, ligue para Follingsbee e conte-lhe o que houve, sem mui­tos esclarecimentos. Peça-lhe que mande um carro bus­cá-la e que depois deixe um policial como seu guarda-costas, entendido?

— Você acha que voltem a atacar-me?

— Espero qualquer coisa de um assassino tão san­guinário e sem escrúpulos como esse. Ficaria com você, mas é absolutamente imprescindível esse encontro com Augie em Alcatraz. Já remeti um telegrama ao diretor da penitenciária, pedindo permissão para o encontro.

— Ouça, Jerry — disse ela de repente. — Quem está a par de sua viagem a Alcatraz?

— A senhora Drummond, lógico. E também seu ma­rido, espero.

— Mais ninguém?

— Não, claro. Bem, miss Stetson, porém esta fica fora de qualquer suspeita, Selene.

— Também acho, Jerry. Mas está tudo cada vez mais complicado, não concorda?

— Por que, Selene?

— Não posso compreender. Gostaria de saber por que não desejam seu encontro com Augie.

— Talvez por não lhes ser conveniente.

— Ora! Isso sei eu! O que gostaria de saber é: por que não lhes convém?

— A quem?

— E se dissesse que aos Drummond?

— Está louca, Selene! — exclamei. — Eles mesmos procuraram proteção, logo...

— Já se viu coisa pior, Jerry — disse ela sentenciosamente. Começamos a avistar as primeiras luzes do aeroporto. — Quando uma presa de duzentos e cinquenta mil dólares está sendo disputada, fazem-se tantas pati­farias e age-se de tantos modos, que até o mais santinho, no fundo é primo-irmão de Lúcifer.

Fiz uma careta.

— Talvez você tenha razão. Mas acho tão difícil pensar isso acerca de Ofélia Drummond... A propósito, conversou com Forristown?

— Claro que sim. Pôs George nas alturas. Disse que nunca teve um empregado tão ativo e diligente como ele, com tanta lábia para convencer os clientes.

— Lógico — resmunguei. — Basta-lhe falar Um pou­co melhor do que fez comigo...

Junto ao muro que separa os edifícios do aeroporto das pistas de voo, Selene me abraçou estreitamente.

— Cuide-se bastante, Jerry — disse, as lágrimas brilhando-lhe suspeitosamente nos lindes olhos. — Não sei o que faria se alguma coisa acontecesse a você.

Dei-lhe duas pancadinhas nas costas.

— Deixe de tolices, beleza, que você fica muito feia. Chame a polícia e deixe o resto de lado. Depois de ama­nha pela manhã estarei de volta.

— Virei esperá-lo, Jerry.

— E ficarei bem satisfeito vendo sua carinha bem bonitinha, Selene. — Inclinei-me sobre ela e beijei-a suavemente nos lábios, enquanto os alto-falantes do aero­porto irradiavam a última chamada. — Até a volta.

Comecei a correr para o avião, cujas hélices já co­meçavam a girar lentamente em torno dos eixos. Subi a escadinha.

Vendo-me voltado para ela, Selene agitou o braço em despedida. Correspondi com o mesmo gesto e logo a comissária de bordo me empurrou suavemente para dentro do aparelho. A porta se fechou às minhas costas com um estalido seco.

 

— Como anunciou sua visita para esta manhã, não quis responder-lhe com outro telegrama, senhor Braxton. Sabia ser. inútil apressá-lo, pois de qualquer modo não poderia mesmo chegar antes — disse-me o diretor da pe­nitenciária de Alcatraz.

O sol entrava suavemente em seu gabinete e ao lon­ge se avistava a Ponte da Porta de Ouro, majestosamen­te suspensa sobre a água. Um porta-aviões passava len­tamente por baixo dela naquele instante, deixando uma esteira que se desenrolava poeticamente, formando alvíssimas espumas na brilhante manhã de primavera.

— O que há? — perguntei com desconfiança.

— Augie está muito mal — disse o diretor sem ro­deios. — Ultimamente seu coração não andava muito bem e ontem teve um ataque, do qual acreditamos não saia vivo.

O coração do velho "gangster" podia estar falhando, mas o meu suspendeu suas batidas, ao ouvir tão desa­gradáveis notícias.

— Então, quer dizer que não poderei vê-lo?

— Quando recebi seu telegrama falei com o médico, senhor Braxton. Ontem, logicamente, não poderia avistar-se com o condenado. Agora estou à espera de informações e depois resolverei.

Tirei um cigarro e acendi, procurando dissimular meu nervosismo. Enquanto fumava, expliquei ao diretor, sem citar nomes, parte do que estava acontecendo, a fim de dar-lhe uma ideia da situação e de meu cliente.

O diretor assentiu várias vezes, durante minha nar­ração dos acontecimentos.

— Evidentemente, é uma bela quantia — concordou. De repente soou uma cigarra.

— O número 87.541 pode receber visitas durante dez minutos, desde que sejam evitados assuntos que possam excitá-lo demais e em minha presença, para interromper a conversa caso seja necessário.

— Obrigado, doutor — respondeu o diretor. Após cortar a ligação, moveu outra pequena alavanca: — Aguar­do o chefe dos guardas da enfermaria.

— Pois não, senhor diretor.

Cinco minutos depois, um homem uniformizado dava entrada no gabinete do diretor.

— Mathieson — disse ele, — acompanhe o senhor Braxton até a enfermaria, a fim de conversar com o 87.541 em presença do médico e durante o tempo que este julgar necessário.

— Sim senhor.

Levantei-me. Estendi a mão através da mesa.

— Obrigado por tudo, senhor diretor.

— Estamos aqui para servi-lo, senhor Braxton. Segui Mathieson por uma série de corredores gradeados em direção a um enorme salão, cujo interior, a não ser pelas grades nas janelas, em nada lembrava que es­távamos no interior de uma grande penitenciária.

O guarda me levou até um aposento no qual havia uma cama e sobre ela um homem estendido sob uma tenda de plástico. Vi dois balões de oxigênio ao lado. Com os prejuízos que Augie dera à nação, tornava-se quase incompreensível tanto esforço em prolongar-lhe a vida.

O médico se aproximou, apertando minha mão.

— Não o excite sem necessidade, senhor Braxton — disse.

Assinalei o doente com o queixo: — Como ele está? — perguntei em voz baixa.

— Muito mal. — O médico teve um gesto. — Será difícil escapar desta. Enfim, pode ir e procure ser pru­dente.

— Procurarei seguir seus conselhos, doutor. Caminhei para a cabeceira da cama e peguei uma cadeira. Após sentar-me, levantei uma beirada da tenda de oxigênio e enfiei a cabeça por ali.

O enfermo percebeu uma presença estranha a seu lado. Respirava dificultosamente e abriu os olhos.

— Quem é o senhor? — perguntou num fio de voz.

Não sei se Augie tenha sido algum dia um rapaz simpático. Talvez, mas o que agora tinha à minha frente era uma verdadeira ruína. Um rosto cor de terra, lábios violáceos, faces chupadas, fundas e olhos sem brilho, trans­formando aquele homem que ainda não chegara aos qua­renta anos num espectro físico de repelente aspecto.

— Meu nome é Braxton e represento a senhora Drum­mond — falei.

Os olhos do agonizante pareceram animar-se um pou­co e um esboço de sorriso apareceu em seus lábios descoloridoe.

— Aquela... vagabunda! — disse, arquejando peno­sa mente.

— É melhor não excitar-se, Augie — pedi.

— Não importa mais! — respondeu o condenado abruptamente. — Nada mais me resta. O senhor é advo­gado?

— Sim, Augie.

— Então... desembuche logo. Não desejo corvos à minha volta.

— O que vim perguntar-lhe é muito simples, Augie. Onde, como e quando, você enviou os duzentos e cinquenta mil dólares a Ofélia Drummond?

Um sorriso sardônico iluminou seu rosto com ex­pressão perversa. E a resposta que recebi encheu-me de estupor.

— Não é possível, Augie — murmurei atônito.

— Verá que é — respondeu. — A esta altura, que interesse poderia ter em mentir-lhe?

— O mesmo que teve em prejudicar sua antiga... a senhora Drummond — respondi severamente.

Fitou-me com ar ausente e em seguida cerrou os lábios, entreabrindo-os em seguida como se pretendesse cuspir.

— Abandonou-me... quando mais precisava dela. Que vá... para o fundo dos infernos!

Estremeci ao perceber as golfadas de ódio infinito que se desprendiam daquele cérebro em agonia. Augie fora um canalha durante a vida toda e continuava a sê-lo em seus ultimos momentos. Morria sem arrepender-se, feliz ao contemplar através das chamas do inferno o mal que causara aos outros, desde que fora preso. Com a maior boa vontade eu lhe taparia o rosto com um tra­vesseiro, apertando-o até que parasse de respirar.

Mas Augie já não precisava de nenhuma ajuda ex­terna para desaparecer deste mundo. Em breve, nada mais seria além de uma lousa com seu número escrito, enfiada num monte de terra no cemitério de Alcatraz. E antes de passado um ano ninguém mais se lembraria dele, a não ser os diretamente ligados às suas nada corajosas façanhas.

Ainda tinha umas duas perguntas na ponta da língua e não perdi tempo. Fi-las. Fechou os olhes.

— Procure o senhor descobrir — respondeu.

— Sua atitude em nada pode beneficiá-lo, Augie — insisti — mas em troca poderia ajudar outras pessoas. Por que não se mostra mais compreensivo e fala?

— Faça o que estou fazendo agora — respondeu num supremo sarcasmo. — E isto é: morra! — e virou o rosto para a parede.

Tirei a cabeça para fora da tenda de oxigênio e respirei o ar relativamente puro da célula da enfermaria. O médico me fitou especulativamente.

— Conseguiu o que desejava, senhor Braxton? — per­guntou cortesmente.

— Apenas em parte — respondi. — De qualquer modo quero agradecer-lhe pelas considerações que teve para comigo, doutor.

— Estamos ao seu dispor — respondeu o médico. Fitou a distância e sacudiu a cabeça. — Ele não verá um outro dia.

— O mundo nada perde com seu desaparecimento — comentei. — Mas quanto bem poderia espalhar se qui­sesse falar tudo o que sabe!

Mathieson me acompanhou até a saída. Cumpridas as formalidades regulamentares, deixei a penitenciária.

Embarquei no pequeno bote que alugara, o qual ficara no pequeno cais onde atracam as embarcações que só vêm à ilha de Alcatraz e regressei a São Francisco.

Uma vez lá, acomodei-me num hotel, de onde mantive algumas ligações telefônicas. Ao terminar, ordenei que me servissem algo de comer no próprio quarto e depois fui assistir um filme, a fim de passar o tempo até que chegasse a noite.

Apenas notei o que se passava na tela, preocupado inteiramente com o mistério que tinha entre as mãos. Parecia-me estar dentro de um compridíssimo túnel es­curo, vislumbrando apenas a saída ao longe, como um mi­núsculo pontinho de luz, vacilante e apenas perceptível. E parecia faltar tanto para chegar até ele...

Quando a noite caiu encaminhei-me para o aeroporto e no dia seguinte chegava à minha cidade, apenas a sol saíra. Desci do aparelho e em seguida avistei Selene. Não estava só; ao seu lado tinha companhia — o tenente Fol­lingsbee.

Selene se pendurou ao meu pescoço, apenas cheguei a seu lado. Beijei-a numa das faces, fingindo não reparar no malicioso olhar de meu velho amigo policial, o qual disse:

— Como vê, tomei conta dela, velho abutre. Pode verificar, está intacta.

— Obrigado — respondi, procurando e não conseguin­do inteiramente libertar-me dos braços da jovem. Senti que os tentáculos me estavam apertando!

— Descobriu alguma coisa, Jerry? — perguntou ela ansiosamente.

— Talvez — respondi com cautela.

— Eu gostaria de saber o que conversou cem Augie, Jerry — sugeriu o policial modestamente.

— É melhor tratarmos disso em minha casa, não acham?

Os dois concordaram, Selene se pendurou a meu bra­ço e começamos a andar em direção à saída, onde um carro da Chefatura de Polícia estava à nossa espera.

— Tomei esta providência para garantir a segurança de vocês — disse Follingsbee enquanto abria a porta. Depois se instalou por trás do volante, enquanto eu e Selene procurávamos o assento detrás. — Cuidado com as cenas mais quentes, ouviu?

O carro arrancou. Quando já tínhamos deixado a pra­ça existente em frente aos edifícios do aeroporto e pe­gávamos a estrada, Follingsbee perguntou:

— A propósito, Jerry, ainda não pensou em procurar lembrar-se da posição ocupada por Pete Moreno antes e depois de morto?

— Claro que não — respondi, muito surpreso. — Por que diz isso, Matt?

Pelo espelho retrovisor entrevi o sorriso de meu ami­go repleto de malícia.

— Pois procure fazê-lo, Jerry — respondeu. — Não se esqueça disso.

 

Enquanto Selene andava por meu apartamento como terreno conquistado, preparando nosso desjejum, eu e Follingsbee comentávamos os últimos acontecimentos. O policial me contou suas investigações enquanto eu soltava o que me convinha quanto ao que descobrira. Em seguida fizemos nosso desjejum acompanhado por um exame geral dos fatos, tal como se apresentavam, após minha viagem a Alcatraz.

— Agora — disse o policial — sou eu quem vai tomar as rédeas do negócio. Tivemos cinco mortes, e o assassino não deve continuar à solta, apesar dos desa­parecidos não serem pessoas muito recomendáveis. Peço-lhe, pois, não só a máxima discrição, como também se abster de fazer qualquer coisa que possa por minhas últimas investigações em perigo.

— Contudo, isso não quer dizer que eu fique tran­cado dentro de casa, não é mesmo, Matt? — disse eu.

O policial bebeu sua última xícara de café, olhando intencionalmente para Selene.

— Se você tivesse dois dedos de bom senso, é o que deveria fazer, Jerry. — Levantou-se. — Adeus, du­pla de pombinhos!

Quando ficamos a sós, Selene me perguntou com ar inocente:

— Que queria dizer o policial com suas duas últimas frases, Jerry?

Também fiquei de pé e fui em busca de meu chapéu.

— Poderei explicar-me em outra ocasião, beleza. Agora me vai dar licença. Preciso fazer algo que se chama trabalho, se é que você já ouviu tal palavra alguma vez na vida.

— Farei um esforço para lembrar-me, Jerry — sor­riu ela. Levantou-se e ondulou o corpo sinuosamente, dirigindo-se para mim e enrolando os braços em volta do meu pescoço.

— Querido! — murmurou.

Vinte segundos depois, Selene me limpou os lábios com seu próprio lenço e tornou a sorrir.

— Este seu apartamento é muito ensolarado, além de um pouco acanhado, Jerry. Precisamos procurar um maior, sabe?

Nem respondi à última Insinuação, carregada com alto poder explosivo. Comecei a correr e só parei quando cheguei ao lado de meu carro.

Guiei para o escritório. Como sempre, fui recebido pela eficiente miss Stetson.

— Sua viagem a São Francisco foi proveitosa, senhor Braxton? — perguntou.

— Um êxito total — respondi. Sentei-me atrás da mesa e disse: Ah, é verdade! Esqueci-me de fazer uma coisa. Poderia remediar meu descuido, miss Stetson?

— Com todo o prazer. De que se trata?

— Faça o favor de ligar para a Chefatura de Polí­cia. Entre em contacto com o Departamento de Pessoas Desaparecidas. Quero ver se eles sabem algo a respeito de uma tal Ana Hickson.

— Sim, senhor — respondeu a secretária, abandonan­do o escritório.

Comecei a examinar alguns papéis, ou, melhor di­zendo, fingi fazê-lo, enquanto esperava a resposta da polícia. O tempo passou, sem que miss Stetson tornasse a entrar novamente em meu gabinete.

Sorri para mim mesmo. Na pontinha dos pés cami­nhei para a salinha de minha secretária e abri a porta suavemente.

O aposento estava completamente vazio. E o mesmo acontecia com a salinha de espera, onde os clientes me aguardavam e na qual Pete Moreno encontrara a morte.

Apesar da repugnância que sentia, apoiei-me no portal e procurei recordar a posição de Moreno, uma vez caído ao solo. Follingsbee tinha razão. O antigo membro da quadrilha de Augie fora assassinado de dentro do escritório.

Em suas declarações à polícia, miss Stetson dissera sempre que não vira o assassino, ouvindo apenas o ru­mor de vozes e dois disparos em seguida, justamente os que tinham estraçalhado a cabeça de Moreno. Dissera a verdade, mas apenas em parte.

O assassino atirara do lugar em que eu estava, isto é, da porta que ligava a sala de espera com a salinha de minha secretária. Olhando desta direção, o sofá, onde Moreno estivera sentado, ficava à minha direita. E o homem recebera os dois impactos do lado esquerdo da cabeça.

Por quê? Foi a pergunta que imediatamente formulei. Por que miss Stetson matou Moreno? Talvez por ele tê-la reconhecido como a acima citada Ana Hickson, irmã de Augie Hickson, apelidado "O Verdinho"?

E se isto era verdade, por que viera Moreno visitar-me no escritório, manifestando desejo de ver-me com urgência? Uma hipótese me acudiu ao cérebro nesse mo­mento e imediatamente percebi que acertara.

Com certeza Buddy Torano entrou em comunicação com Moreno, falando-lhe sobre a oferta que eu lhe tinha feito. Por sua vez, Moreno resolveu aceitá-la o quanto antes e veio ao meu escritório, imaginando poupar tempo e aborrecimentos. Evidentemente reconheceu a irmã de Augie na suposta miss Stetson e esta, para não ser des­coberta, matou-o com dois tiros.

Bem, ela própria se descobrira ao abandonar o escri­tório. O único jeito agora era telefonar para o "tira" meu amigo Follingsbee, que estabeleceria uma espessa rede de vigilância em torno da cidade, a fim de impedir sua fuga. Não poderia escapar, por maior empenho que tivesse nisso.

Sacudi a cabeça! E vá a gente se fiar nas mulhe­res! Tão calma e eficiente fora Ana Hickson em seu tra­balho e de repente transformava-se numa assassina fria e sem piedade. Por que matara? Apenas para não se ver descoberta?

Subitamente uma ideia me acudiu novamente ao cérebro. Fiquei com o sangue gelado nas veias, pensando na possibilidade daquilo acontecer, se não andasse de­pressa.

Arrojei-me sobre o telefone como uma fera e dis­quei um número. Uma voz feminina, algo desafinada, atendeu.

— Residência do senhor Drummond.

— Ouça, sou Braxton, o advogado. Desejo falar ime­diatamente com a senhora Drummond. É urgentíssimo.

— Sinto muito, senhor Braxton; a senhora Drummond saiu.

— Saberá ao menos para onde ela foi? — perguntei, já desesperado.

— Não faço a menor ideia, senhor Braxton. A senho­ra Drummond não costuma dizer aos empregados aonde vai, quando sai de casa.

— Maldição! E sabe quando ela deve voltar?

— Claro que não, senhor Braxton. Em troca — a voz se tornou repentinamente insinuante — sei a minha hora de sair. Deseja saber?

— Vá para o inferno! — respondi com bem pouca educação, desligando-lhe o telefone na cara.

Estava tão aturdido que nem sequer me lembrei de ligar para o gabinete de Follingsbee e comunicar-lhe mi­nha descoberta. Agarrei o chapéu e comecei a correr, fechando a porta do escritório com um só golpe.

Chegando à rua atravessei a calçada e a porta de um carro se abriu justamente à minha frente.

O susto que levei foi tão grande que pulei para trás. Uma voz transbordando sarcasmo saiu do interior do veículo.

— Não tenha medo, corvo escorregadio, pensa que sou algum "gangster" que veio convidá-lo a dar um passeio sob a pontaria de uma pistola?

— Quase cheguei a vê-lo — resmunguei, após re­cobrar-me um pouco do enorme susto. Passei para o outro lado e sentei-me junto a Selene.

A moça deu partida ao carro.

— A propósito — falou, — que fez você à sua secretária para obrigá-la a abandonar o edifício pare­cendo perseguida por uma legião de fúrias?

— Miss Stetson não é seu nome e, sim, Ana Hickson, irmãzinha de Augie Hickson. E como se não bastasse, ainda assassinou Pete Moreno em meu escritório. E ago­ra temo que faça algo semelhante à Drummond.

Selene sacudiu a cabeça.

— Não creio — disse sentenciosamente. — Vi-a pe­gar um táxi. Ela não reparou em mim. Notei o número do carro e em seguida liguei para a Companhia, pedindo-lhes o endereço para onde seguira o veículo. Ei-lo, aqui o tem.

Selene me entregou um papel. O que me deixou estupefato.

— Garota — disse — você é formidável!

— O mesmo dizia minha avozinha, que Deus a tenha em bom lugar. Bem, vamos ver a Hickson?

Lembrando-me do sangue frio com que assassinara Moreno, senti um nó na garganta. Assenti em silêncio.

 

Ana Hickson, vulgo miss Stetson, já não estava na casa para onde fora, após ter deixado meu escritório. Mas em troca, encontramos rastros de sua passagem por lá.

Selene se voltou, escondendo a cabeça em meu pei­to, agarrando-se fortemente em minhas lapelas, pro­curando não ver o desagradável espetáculo oferecido por "Cara de Bode" com um tiro na boca. O disparo lhe atravessara a base da cabeça de fora a fora. Se Augie era ou fora mau e perverso, sua irmãzinha não lhe ficava atrás.

— Meu Deus, meu Deus! — murmurou a moça, estremecendo convulsivamente.

Levei-a dali sem perda de tempo. Outra vez no car­ro, tomei a direção e dirigi o veículo para a mansão dos Drummond. Pressentia que o último ato do drama seria desenrolado lá.

Um pouco mais longe, Selene começou a tranquilizar-se e logo se achou em situação de fazer perguntas.

— Como suspeitou de miss Stetson, Jerry?

— Ora, sempre pensei que o assassinato de Pete Mo­reno tinha sido um tanto estranho. Quem, demônios, sa­beria que ele fora procurar-me? O assassino de Merton? Não era possível; se pensava matar, um por um, a to­dos os membros do antigo bandido do "Verdinho", seria mais lógico fazê-lo num lugar menos perigoso que meu escritório, onde precisaria descer 18 pavimentos para po­der escapar. Claro que poderia descer aproveitando a confusão, mas mesmo assim, ainda era risco demais.

Acendi dois cigarros e passei um para Selene. Ela me fustigou:

— Vamos, Jerry, mais depressa! Conte o resto.

— Eis por que, depois do fato consumado, surpreendi minha secretária virando o copo, ou melhor, a garrafa.

— Bem, mas também, depois de semelhante transe qualquer um...

— Não uma mulher tão ponderada e equilibrada como ela sempre demonstrava ser. Além disso, uma mulher em suas condições ficaria com o peito sujo de bebida, pois as mãos tremeriam sem remédio. E ela, posso asse­gurar, agarrava a garrafa pelo gargalo, com mãos de profissional.

— Para mim, isso ainda é muito pouco — disse Se­lene.

— Espere um pouco, beleza. Depois da bela noite que passamos na casa de campo, já no dia seguinte, ela estava lendo a narrativa do acontecimento. Sempre de­monstrara repugnância pelos jornais sensacionalistas e es­candalosos que enchem a primeira página de enormes tí­tulos de crimes e acontecimentos. Por que havia de mudar sua maneira de proceder naquela ocasião, justa­mente quando o caso se referia a três velhos cúmplices de seu irmão?

— Nisso você tem razão, Jerry. Percebeu algum de­talhe além disso?

— Sim. Seu rosto não é tão enrugado como queria dar a parecer. Disse andar pela casa dos cinquenta e acre­ditei, em vista do aspecto que apresentava diariamente. Naturalmente, quando comecei a suspeitar dela, procurei reparar seu físico com mais atenção. Estou certo de que, apesar de não ser bonita, é muito mais simpática do que pretende ocultar sob a máscara de secretária en­velhecida nos escritórios.

— E por que teria adotado tal disfarce, Jerry?

— Para ela, era o melhor meio de passar despercebida na cidade, enquanto esperava dar com os costados no quarto de milhão. Que esconderijo mais prático que o escritório de um advogado relativamente pobre e recém começando sua carreira profissional? Lembre-se de que estava comigo apenas seis meses, Selene.

— É verdade. Agora faltam duas coisas para serem es­clarecidas. Uma delas, como suspeitou que podia ser a irmã de Augie?

— Investiguei os antecedentes do pistoleiro e des­cobri que tinha uma irmã chamada Ana. Contudo não li­guei a ele até o momento em que fomos atacados a ca­minho do aeroporto. Ninguém, além dela, você e os Drummond sabiam que eu ia a Alcatraz. Ela imaginou que Augie, já nas últimas, desse com a língua nos den­tes. Por isso, procurou eliminar-me e você também, de passagem. Depois, bem, ela mesma confirmou minhas suspeitas quando abandonou o escritório após ter-lhe ordenado para ligar para a Chefatura e pedir antecedentes sobre Ana Hickson.

— E foi embora, indo diretamente matar "Cara de Bode". Por quê?

— Evidentemente, Byles devia ser o sujeito que a acompanhava no carro, durante o tiroteio, na estrada do aeroporto. No ponto em que estamos, uma morte a mais ou a menos, que importância pode ter? E além disso, ela suprime uma incômoda testemunha.

— Estará também pensando — Selene estremeceu — em matar Ofélia Drummond?

Minhas mãos se crisparam sobre o volante.

— Deus queira que cheguemos a tempo — mur­murei, enquanto calcava o acelerador até o fundo.

Logo avistamos a residência dos Drummond. Parei o carro à porta e corri para lá, tocando a campainha fu­riosamente.

Selene chegou ao meu lado. A porta se abriu, mos­trando a maliciosa empregadinha de quadris rebolantes. Um largo sorriso apareceu em seu lindo rostinho.

— Olá, senhor Braxton — disse melosamente. — Es­tou felicíssima por vê-lo!

Deu um passo insinuante para frente empinando o busto,

muito apetitosa, aliás, mas logo surgiu a mão de Selene.

— Afaste-se, melindrosa — disse minha companhei­ra. — Não se meta em terreno alheio ou com você acon­tecerá o mesmo que ia uma conhecida minha. Agora usa peruca, sabe?

Um ar desencantado apareceu no rosto da empre­gadinha. Encolheu os ombros e falou:

— A senhora Drummond não está em casa. Selene a afastou para o lado, sem a menor cerimônia.

— Esperaremos sua volta.

E entrou. Segui-a. Olhei para a empregadinha e fiz um gesto de resignação com as mãos, como a dizer em silêncio: "Que se pode fazer? Caí no laço, beleza; você chegou tarde demais".

Ela pendurou o lábio inferior e levantou a cabeça.

— Por aqui, tenham a bondade.

Conduziu-nos à biblioteca, um enorme salão, ser­vindo também de sala de visitas. Fechou a porta e fica­mos sozinhos.

Procurei bebida. Enchi duas taças e bebemos uns goles, o que teve o dom de deixar-nos como novos. Tor­namos a fumar, esperando que a dona da casa aparecesse.

Enquanto aguardávamos, examinei o aposento. Tinha três portas: uma levava diretamente ao jardim, outra para um aposento contíguo e a terceira era a que tí­nhamos usado para entrar ali.

Comecei a passear de um lado para outro, até que Selene ficou nervosa.

— Sente-se, Jerry. Fico exasperada, vendo-o andar de cima para baixo como fera enjaulada.

— O exasperado agora sou eu. Ofélia Drummond pode correr grave perigo e não sabemos onde está agora.

Selene caminhou para o telefone. Discou um número.

— Falarei com Jeannie Merton. Talvez possa dizer-nos algo.

A tentativa resultou infrutífera. Selene desligou, imensamente pensativa.

— Não a viu mais, desde o dia em que estivemos lá — declarou.

— Bem — falei, já perdendo a paciência. — Se Ofé­lia não aparecer, eu...

— O senhor não irá a lugar nenhum — disse uma voz nesse momento.

 

A proibição vinha ameaçada por um revólver de cano curto e calibre trinta e oito, por trás do qual havia uma mulher: Ana Hickson.

Selene soltou um grito de susto e procurou refugiar-se em meus braços. Ana Hickson, ex-miss Stetson, vociferou uma praga.

— Afaste-se para um lado.

— Obedeça, Selene — falei. — É o melhor que pode fazer agora.

— Bem sabe o que tem nas mãos, senhor Braxton continuou a assassina. — Ê esperto, muito esperto, mas não tanto quanto eu. E a última palavra será minha.

— Possivelmente — retruquei. — E que pretende por ora?

Os negros olhos da Hickson brilharam com fúria homicida.

— Terminar de uma vez com este maldito assunto. Drummond e sua esposa não demorarão à chegar e en­tão...

Ana Hickson não terminou a frase, mas seu sinistro significado ficou suspenso no ar. Estremeci; aquela mu­lher trazia a morte nas veias.

Apesar de um tanto tarde, comprovei que minhas deduções eram certas. O aspecto de Ana Hickscn se trans­formara radicalmente e, apesar de não ser nenhuma be­leza propriamente dita e os anos não terem passado em vão pelas linhas de seu resto, ainda conservava boa parte da atração que devia tê-la tornado bastante agradável na juventude. Despojara-se de seus pavorosos óculos que costumava usar no escritório e seu corpo ainda esbelto exibia um vestido que a fazia parecer completamente des­conhecida. Passaria a seu lado na rua e não a identifi­caria, francamente. Também deixara de lado os sapatos quase masculinos que sempre usava e agora calçava ou­tros, bem abertos e de salto muito alto.

— Será que pretende matar mais quatro pessoas? — perguntei, mas minha voz estava trêmula de insegurança.

— Augie me ensinou a atirar — respondeu duramen­te. — E este revólver tem balas de sobra.

Olhei para Selene. A moça estava pálida, mas mantinha-se muito dona de si.

Quase no mesmo instante ouvimos o ruído de um carro esmagando as pedrinhas do jardim. Ana Hickson moveu o revólver, indicando-nos a extensão de parede perto da porta que levava ao vestíbulo.

— Fiquem ali — disse — E não se movam antes do tempo.

Segurei Selene pela mão e levei-a para onde a Hickson ordenara. Ainda não estava inteiramente con­vencido de que aquela mulher de gestos frios e aspecto enérgico fosse a tímida e pudibunda secretária que estivera a meu serviço, durante seis longos meses.

Ela se colocou do outro lado. A porta foi aberta e o casal Drummond entrou na biblioteca.

Agindo com incrível rapidez, Ana Hickson fechou a porta e deu um forte empurrão no homem. Clark Drum­mond deu alguns passos rápidos e vacilantes, até chegar ao centro da biblioteca, de onde se voltou atônito.

Ofélia Drummond deu um grito de susto ao ver a mulher empunhando o revólver. Seu rosto ficou branco como cal.

— Ana! — exclamou, provando que a conhecia. Os dentes da mulher rangeram de ódio.

— Sou eu — falou. — Ela mesma, Ofélia. Há muito tempo não nos víamos, hein?

Drummond se recobrou logo. Avançou um passo para Ana e perguntou:

— Que veio fazer aqui? Que pretende, ao entrar em minha casa de modo tão violento?

A Hickson soltou uma gargalhada histérica e colocou a mão na cintura.

— Não banque o inocente, Clark — disse, em tom íntimo. — Fitou Ofélia de relance e acrescentou: — Já sabe com que boa bisca se casou, mocinha?

— Não quero saber de nada — disse Ofélia Drum­mond. — Amo Clark e pouco me importa o que foi antes de casar-se comigo. Agora, vá embora e deixe-nos em paz.

— Vou deixá-la em paz... para sempre — um ódio infinito transbordava da voz da Hickson. — Sim, irei embora, mas com Clark. Iremos os dois, para bem longe daqui, para onde nunca ninguém possa deitar-nos a mão. Os duzentos e cinquenta mil dólares servirão para go­zarmos a vida; compreendeu?

O lábio inferior de Ofélia tremeu perceptivelmente. Olhou para o marido, sentindo tudo desmoronar dentro de si.

— Clark! Clark! — murmurou. — Por que fez isto? O homem olhou para a ponta dos sapatos, cheio de vergonha.

Sem a menor compaixão, Ana continuou:

— Foi meu homem antes de casar-se com você, mui­to antes, Ofélia. Depois, quando Augie foi preso, abandonou-me por você. Nesse momento jurei que me vingaria. E a hora da vingança soou. Esperei muito, mas valeu a pena esperar.

Ofélia correu para seu marido e fitou-o suplicantemente.

— Não, Clark, não — balbuciou ofegante. — Jure que não me deixará! Diga que não irá com essa mulher!

O homem não respondeu. A irmã de Augie o fez em seu lugar.

— Acho que irá. E sem perda de tempo. É muito conveniente para ele uma mudança de ares por uma tem­porada. A polícia pode ficar curiosa a respeito do assas­sino de Merton, Torano e sua pequena, além de McCreedle.

Se conseguissem deitar-lhe o braço, seria uma felicidade incomparável para os "pés chatos".

Uma expressão de incrível espanto apareceu no be­líssimo rosto de Ofélia. Sem poder acreditar, recuou dois ou três passos, com as feições transtornadas pela dor.

— Meu Deus! Clark... você não...! Ana tornou a rir.

— Veja que bela maneira de negar! E como poderia fazê-lo? Se é tão culpado quanto eu! Sua cabeça é re­cheada de pólvora, não se preocupe!

Ofélia Drummond escondeu o rosto com as mãos e desatou em soluços agudos. Todo o universo que cons­truíra pacientemente durante os últimos anos, todos os seus propósitos de felicidade e ventura, tudo, absoluta­mente tudo, ruía a seus pés como um frágil castelo de cartas. Amara o marido, intensa e loucamente, com cega paixão, para agora vê-lo transformado em assassino e canalha.

— Não, não...! — gritou, com o corpo crispado num supremo espasmo de terror.

— Está bem, já chega — cortou Ana, implacavelmen­te. — Precisamos ir, Clark. Onde está o dinheiro?

— Não o tenho — confessou o homem.

— Que? — guinchou a assassina. — E não conse­guiu descobrir onde ela o escondia durante todo esse tem­po? Então, que estava fazendo, pedaço de asno?

— Ofélia jamais quis dizer onde ele estava — es­clareceu o homem. — Por mais esforços que fizesse, nada mais consegui além disso.

O rosto de Ana se iluminou com uma careta de furor demoníaco.

Pois agora verá como eu o conseguirei — disse. Apesar de apontar a arma para Ofélia, não nos perdeu de vista um segundo. Por outro lado, a distância era muito grande para pensar em atirar-me sobre ela e de­sarmá-la: antes que pudesse dar dois passos, ela já teria atirado em mim.

— Vamos — grunhiu aquela mulher implacável e cruel. — Diga onde escondeu esse maldito dinheiro.

Ofélia tirou as mãos do rosto.

— Não sei — respondeu. — Augie nunca o mandou para mim.

— Está mentindo! Quer enganar-nos para poder fi­car com ele sozinha!

— A senhora Drummond falou a verdade — inter­rompi, pois chegara a hora de dizer. — Augie mentiu descaradamente. Na verdade, esse dinheiro existiu ape­nas em sua imaginação.

— Que? — guinchou Ana. — Maldito advogado! Também procura enganar-me!

— Não é verdade, Ana — repliquei serenamente. — Não estou mentindo. Augie me confessou ontem, em seu leito de morte.

A mão da Hickson se crispou sobre a coronha do revólver, virando o cano repentinamente para mim. Senti que meu estômago estava a pique de furar-me as costas, procurando fugir ao iminente balaço.

— Está mentindo, Braxton.

Levantei os ombros, num gesto indiferente.

— Seja como quiser. Mas pode revirar a casa de cima a baixo e não encontrará um único centavo. Como Augie agora deve estar se divertindo no inferno! Seu irmão era um crápula, a vida inteira o foi. Há alguns meses atrás teve o primeiro ataque do coração e o mé­dico lhe disse que seu estado não era nada bom. Revol­tado contra todos vocês, Augie imaginou esse sórdido plano por pura vingança. Contra Ofélia, per se ter casado com Drummond e contra ele pelo mesmo motivo, isto é, por ter deixado sua irmã a ver navios, ou melhor, você. Quanto aos outros, porque pensou que não o tinham ajudado o suficiente para poder escapar antes de entrar em Alcatraz. Enfim, quis divertir-se um pouco, antes de ir para o inferno...

Ofélia tornou a gemer. Ana a fitou com ar impla­cável, repleta de ódio selvagem.

— Por outro lado, Drummond também, quis entrar no jogo. Em sua própria conveniência, acreditou cega­mente na existência dos duzentos e cinquenta mil dó­lares. Seus negócios ultimamente não andavam muito bem e, por isso, imaginou a ameaça contra si mesmo e combinou com você amedrontarem sua esposa. Diga se estou mentindo, Ana Hickson.

O aspecto da mulher era infernal. Toda a graça que poderia ter no rosto agora desaparecera, substituída por demoníaca expressão.

Voltei-me para Ofélia.

— Lamento desiludi-la. Sei que amava sinceramente seu marido, mas precisa saber a verdade. A senhora é jovem e bonita e apesar disso tudo poderá refazer sua vida, quando esses dois assassinos forem castigados como merecem.

— Nunca! — bradou a Hickson, presa de incontido acesso de ciúmes. De repente atirou duas vezes.

Ofélia soltou um grito agudo e levou as duas mãos ao peito. Seu rosto foi perdendo a cor rapidamente e va­cilou, enquanto o sangue lhe escorria por entre os dedos.

Selene gemeu a meu lado. Quanto a mim, fui obrigado a contemplar com olhar fascinado, o desmoronamento de Ofélia contra o tapete.

Era um crime estúpido, meramente passional. Mas acontece que nunca se pode prever o comportamento de uma mulher.

Depois das duas explosões, fez-se um enorme silêncio. Sobre o tapete, Ofélia movia-se dèbilmente.

De repente, ouvi um rugido de raiva. Virei os olhos. Era Drummond.

Os olhos do homem pareciam querer sair das órbi­tas. Seu rosto estava congestionado e tudo nele indicava o aspecto de homem que momentaneamente perdeu a ra­zão.

— Maldita! — gritou desaforadamente. — Matou a mulher que eu amava! — E lançou-se contra a Hickson, com as mãos recurvadas como garras.

Vendo que Drummond ia atirar-se, Ana guinchou apavorada.

— Não! Não se aproxime, Clark! Não se aproxime ou,..!

Drummond não deu a menor importância ao aviso. Chegou até Ana e agarrou-lhe o pescoço com ambas as mãos.

— Vou estrangulá-la — bradou. Soou um disparo.

O corpo de Drummond estremeceu horrivelmente. Por um momento pensei que iria cair, mas logo refez-se e apertou com mais força ainda. O rosto de Ana ficou re­pentinamente enrugado.

A Hickson tornou a atirar. Mais uma vez e outra ainda, sem que nada valessem meus esforços para des­viar-lhe o braço. Quando finalmente consegui, já esva­ziara o resto da carga de seu revólver contra o corpo de Drummond.

Só então ele soltou um gemido rouco. Separou-se, com o sangue escorrendo por entre os lábios aos bor­botões e o peito completamente rubro.

Ainda ficou um momento de pé; de repente rodou bruscamente sobre os calcanhares e esborrachou-se contra o solo.

Ana Hickson contemplou sua obra com olhar estupefata, parecendo ainda não acreditar no que acontece­ra. De súbito, seu corpo estremeceu inteiramente. Não nos dando mais importância, deu meia volta e começou a correr para a saída, justamente quando um carro da polícia parava no jardim.

Enlouquecida, atravessou a porta, sem saber o que fazia. Um homem lhe interceptou a passagem.

— Atire fora a pistola! — gritou o polícia. Avistei Follingsbee por trás dele.

Ela pareceu não ouvir. Nem mesmo percebeu que o revólver agora estava descarregado. Levantou a mão e apertou o gatilho.

— Não atirem! — gritei. — A pistola está sem balas! Mas o gesto, do policial fora rápido demais. Qualquer outro em seu lugar agiria da mesma forma. Vendo-se frente a frente com uma mulher brandindo uma arma em atitude ameaçadora, apertou o gatilho de seu revól­ver regulamentar por duas vezes.

O corpo de Ana estremeceu horrivelmente, quando os dois projéteis se cravaram em sua carne. Soltou a arma e agarrou-se ao batente da porta com as duas mãos. Suas forças falharam de repente e começou a deslizar lentamente para o solo. Procurou apoiar-se no chão, mas logo teve uma convulsão, dobrou a cabeça para trás e ficou estendida de costas, imóvel.

Só então consegui despertar de minha imobilidade e corri para Ofélia, ajoelhando-me ao seu lado, sem preocupar-me com o que acontecia ao redor.

Com mão frenética, rasguei o tecido do vestido que lhe cobria o busto. As duas balas tinham penetrado por baixo do seio esquerdo. Não viveria muito.

Abriu os olhos e olhou para mim, sorrindo debilmente.

— Obrigada... senhor Braxton... — disse.

Quis falar, mas não pôde; tinha um nó atravessado na garganta que não deixava passar o menor som. Além disso, que seria aquilo que me turvava a vista? Lágrimas, por acaso?

Ofélia moveu sua mão esquerda procurando a minha e eu a dei. Tornou a olhar-me.

De repente, senti que cessava a pressão de sua mão. Soltei-a e escorregou ao longo do corpo. Fitei-a nos olhos. Estavam fixos num ponto invisível para mim.

E assim morreu uma mulher bela e bondosa, a quem o destino cruel e sem piedade negou a vida feliz e venturosa com que tanto sonhara. Alguns quadrilheiros sem coração impediram que ela conseguisse a realização de seus desejos, e o fato de que aqueles canalhas tivessem recebido o justo pagamento por seus crimes, não faria reviver a mulher à qual — digo-o com toda sinceridade e sem que Selene se sinta ofendida por isso— eu amaria de todo coração.

 

Ouvi o ruído das últimas pás de terra caindo sobre a sepultura. O sol lançava fulgores incendiários no poente e as flores nos canteiros do cemitério soltavam perfuma­dos eflúvios.

Duas andorinhas cortaram o ar num voo veloz, perseguindo-se amorosamente, em meio a agudos chilreios. Inexorável, a vida prosseguia.

A pesada lousa de mármore foi colocada sobre a sepultura. Quando os operários terminaram de ajustá-la, li as letras gravadas sobre ela.

Era uma legenda simples, muito simples, onde figu­ravam apenas seu nome e duas datas. O sobrenome não era Drummond; não gostaria que o nome daquele cana­lha figurasse no lugar em que Ofélia dormia seu último sono.

 

OFÉLIA SHERWOOD 1932   —   1960

E nada mais. Nada mais, além de um enorme ramo de sempre-vivas que lá deixei, juntamente com Selene, sem faixa ou qualquer dedicatória.

Ainda fiquei ali por longo tempo, até que as pri­meiras sombras da noite começaram a invadir o campo santo. Em seguida, soltando um profundo suspiro dei meia volta e saí.

Selene ficara à minha espera um pouco mais adiante. Segurou-me a mão, apertando-a suavemente. Seus olhos me fitaram, cheios de amor e ternura.

Foi discreta. Não pronunciou palavra durante nossa viagem de volta. Mas sabia que eu era seu e sê-lo-ia pa­ra sempre. Sabia também que nós dois lembrar-nos-íamos frequentemente da infeliz Ofélia. A pungente dor de agora ficaria transformada numa lembrança agridoce, a qual o tempo se encarregaria de suavizar. Infelizmente assim acontecia a tudo e tudo passa um dia. Inexora­velmente.

 

                                                                               Clark Carrados 

 

 

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