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NUNCA O MEU INTENTO FOI MAIS ALÉM DO QUE REFORMAR OS MEUS PRÓPRIOS PENSAMENTOS E CONSTRUIR EM BASES TOTALMENTE MINHAS."
Assim, não tenho o propósito de ensinar aqui o método que cada um deve seguir, para bem conduzir a razão, mas tão-somente fazer ver de que maneira procurei conduzir a minha."
"Se a minha obra, cujo modelo vos apresento aqui, tanto me agradou, isso não quer dizer que queira aconselhar algum a imitá-la."
"O que me levava a tomar a liberdade de trabalhar por mim todos os outros e de pensar que jamais houvera, no mundo, qualquer doutrina que fosse tal como até então me tinham levado a esperar."
"TOMANDO A RESOLUÇÃO DE NÃO PROCURAR MAIS OUTRA CIÊNCIA SENÃO A QUE PUDESSE ENCONTRAR EM MIM MESMO, OU ENTÃO NO GRANDE LIVRO DO MUNDO."
René Descartes (1596-1650)
CONSPECTO BIOGRÁFICO
1596 -- A 31 de Março, nasce Descartes, em La Haye em Touraine (após 1802, chamou-se La Haye-Descartes, e, em 1967, juntando-se a uma região vizinha, originou uma nova cidade chamada Descartes), pequena aldeia perto de Tours, pelo que Descartes se diz, em carta a Bressel, "nascido nos jardins da Touraine". Como mais tarde dirá, "herda de sua mãe uma tosse seca e cor pálida, que conservei até depois dos vinte anos e que fazia com que todos os médicos que até então me tinham examinado me condenassem a morrer cedo".
Seu pai, Joachim Descartes, filho de um médico, era Conselheiro do Rei no parlamento da Bretanha, e sua mãe, Jeanne Brochard, era filha de um tenente-general do tribunal da primeira instância de Poitiers.
Pelo nascimento, pertencia Descartes a uma família burguesa abastada, católica, com direito à "nobreza de traje", possuidora de várias quintas em Poitou.
1597 -- A 13 de Maio morre sua mãe, ao ter o seu quarto filho, que, 3 dias após o nascimento, morre. Seu pai, passados três anos, volta a casar e fixa-se na Bretanha. Em La Haye, na casa da avó materna, vive Descartes até à idade de dez anos.
1604 -- É fundado por Henrique IV (1553-1610) o Colégio dos Jesuítas de La Flèche. Para este colégio, "uma das mais célebres escolas da Europa" entra Descartes, em 1606. Durante oito anos, estuda, nesse real Colégio, como relata na primeira parte do Discurso do Método, línguas e textos antigos, história, eloquência, poesia, matemática, teologia e filosofia. O currículo escolar compreendia três anos de gramática, um ano de humanidade (a história e a poesia eram as matérias fundamentais), um ano de retórica, estudada à base dos discursos de Cícero, e três anos de filosofia, que compreendia estudos de lógica, física e metafísica, estudos estes orientados para a teologia e baseados nas doutrinas de Aristóteles interpretadas por Se. Tomás de Aquino, (1225-1274), o expoente máximo da Escolástica medieval. O estudo da matemática, feito com carácter demonstrativo e tendo em vista fundamentalmente as suas aplicações práticas, se bem que dentro do programa da filosofia, estava ligado à física aristotélica. A moral, que não era ensinada pelo Professor de filosofia, revestia-se de uma "forma mais literária" que filosófica.
Estes oito anos de estudo, ainda que feitos com grande êxito, deixam Descartes insatisfeito e desiludido. "Se bem que cada disciplina comporte um determinado aspecto, a ausência de unidade do conjunto desagrade-lhe, e apenas a matemática satisfaz o seu desejo de verdade", porque, como confessa, satisfá-lo "a evidência da certeza das suas razões".
Da formação cultural clássica, humanista e científica, e da formação moral cristã recebidas em La Flèche, parecia-lhe não ter tirado outro proveito senão o de ter descoberto cada vez mais a sua ignorância". Perturbado por "tantas dúvidas e erros", logo que a idade lhe permite sair da sujeição a seus preceptores, "abandonei completamente o estudo das letras, e, tomando a resolução de não procurar mais outra ciência senão a que pudesse encontrar em mim mesmo, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto da minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a conviver com pessoas de diversos feitios e condições, a recolher variadas experiências, a experimentar-me a mim próprio nas circunstâncias que a so me proporcionava, e a reflectir sempre sobre as coisas que se me apresentavam, de modo que delas pudesse tirar algum proveito. (...) Ora eu tinha sempre um muito grande desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas acções e caminhar com segurança nesta vida".
1610 -- Em 4 de Junho, procede-se à cerimónia da transladação do coração de Henrique IV para o real Colégio de La Flèche.
1611 -- Em 6 de Junho, aquando das cerimónias do aniversário da transladação acima referida, Descartes, com quinze anos de idade, leu um seu poema, em que são saudadas as descobertas astronómicas de Galileo Galilei (1564-1642). O poema intitula-se: "acerca do Rei Henrique e da descoberta de alguns novos planetas ou estrelas errantes em redor de Júpiter, realizada por Galileu, célebre matemático do Grão-Duque de Florença." A descoberta de Galileu deve ter exercido uma grande influência no espírito jovem de Descartes.
1612 -- Sai do Colégio de La Flèche, com 16 anos. O pai pretende que ele siga a carreira das armas, carreira que ele a final não virá a seguir assim como a da magistratura.
1613 -- Vive livremente em Paris, onde encontra o seu amigo e condiscípulo Mersenne (1588-1648), que se fará Sacerdote, e trava relações de amizade com Mydorge (1585-1647), matemático e físico célebre.
1616 -- A nove e dez de Novembro, com vinte anos de idade, Descartes obtém o bacharelato e a licenciatura em direito, na Universidade de Poitiers, onde entrara em 1614.
1618 -- parte para as Províncias Unidas, ou seja, a Holanda, a fim de se alistar, sem receber qualquer estipêndio, no exército do Príncipe protestante Maurício de Nassau (1604-1679), que, em 1652, se vem a tornar Príncipe do Sacro Império.
Em Brenda, encontra-se com Isaac Beeckman, doutor em Medicina, e ambos tentam fazer a união da física com a matemática. Neste ano, em 31 de Dezembro, Descartes oferece ao seu amigo, como "prenda de ano novo" a sua primeira obra, um Compêndio de música, escrita em latim: Conpendium Musicae. É este jovem sábio holandês Beeckman que ajudará Descartes a descobrir o "mecanismo" ou "mecanicismo", doutrina que Descartes, mais tarde, definirá como "a explicação dos fenómenos físicos pela simples extensão indefinidamente divisível das suas imagens e dos seus movimentos". Estimulado por Beeckman, "redige Descartes os seus primeiros escritos sobre a pressão dos líquidos, sobre a queda dos corpos, e bem assim quatro demonstrações matemáticas".
1619 -- Em 29 de Abril, deixa a Holanda e embarca para a Dinamarca, com a intenção de ir para a Alemanha alistar-se no exército do Duque Católico Maximiliano da Baviera (1573-1651) em luta contra a Boémia revoltada. A "guerra dos trinta anos" ainda não terminara. Devido ao rigor do Inverno, o exército onde militava (sempre sem receber qualquer estipêndio) suspendera as operações e Descartes encontra-se "só", no ducado de Neuburg, no alto Danúbio. No isolamento do seu "pouêle" (fogão de aquecimento), nas cercanias de _Ulm, mergulhado numa grande crise de cepticismo, Descartes medita profundamente e, na noite de dez para onze de Novembro tem, como no-lo diz, três sonhos importantes como "vindos do alto", importantes para o destino da cultura moderna. Lê-se nos seus papéis, nas Olumpiques (Olímpicos): "A dez de Novembro, entusiasmado, encontrei os fundamentos duma ciência admirável." Que sucedera? Fora a descoberta do seu método? Fora a descoberta intuitivamente admirável da unidade da ciência? Ou fora a visão de uma possível matemática universal?
1620 -- Ainda na carreira das armas, encontra-se na Hungria, mas a actividade militar, desiludindo-o, atingira o seu termo. Passa seguidamente a viajar muito, por sua livre iniciativa e por onde quer. Entre 1620 e 1622, Descartes resolve problemas de matemática e de óptica, põe em ordem as suas notas pessoais e pensa publicar obras em latim, com os seguintes títulos: Parnassus, Thesaurus Mathematicus, Experimenta, Studium Bonae Mentis.
1622/23 -- Depois de várias viagens, regressa a França. De Setembro de 1624 a Maio de 1625 viaja pela Itália, tendo assistido a duas memoráveis cerimónias, os esponsais do Doge de Veneza e do Adriático e o jubileu do Papa Urbano VIII (1568-1644), de seu nome Maffeo Barberini, e sob cujo pontificado foi condenado Galileu, em 1633. No cumprimento de uma promessa, é bem possível que tenha ido, como peregrino, ao Santuário de Nossa Senhora do Loreto.
1625/27 -- Fixa-se demoradamente em Paris, onde vive uma vida algo mundana. Chega a bater-se em duelo, em virtude de uma aventura feminina. Convive com espíritos cultos, mais ou menos integrados na "vida dos salões" característicos da época. Convive com Guez de Balzac [1] (1597-1654) e com o poeta Théophile de Viau (1590-1626) e com os sábios, homens de ciência e filósofos, Claude Mydorge (1585-1647), Morim Villebressieu e com teólogos, como o Padre Gibieuf, da rica Congregação do Oratório, fundada, em Itália, pelo italiano _S. Filipe de Nery (1515-1595). Muito mais íntimas são as suas relações de amizade com o Padre Mersenne, que desempenhará as funções de seu representante em Paris, precioso correspondente, que, por isso, será apelidado de "o procurador do Senhor Descartes em Paris".
Descartes "frequenta o meio do Oratório, cujo fundador em França, o Cardeal Bérulle (1575-1629), primeiro amigo e depois rival dos Jesuítas, é uma personagem influente até politicamente; conhece assim o Padre Gibieuf, que prepara uma obra sobre a liberdade. Um dos momentos marcantes deste período situa-se no fim de 1627, quando Bérulle, impressionado pela força com que Descarte refuta o conteúdo duma conferência tida junto do Núncio do Papa, lhe mostra que é seu dever consagrar-se à filosofia, a qual, liberta da escolástica, estabeleça um sistema filosófico racional, estruturalmente "mecanicista", de acordo com a ciência do tempo (Galileu, Newton, Kepler) e, simultaneamente, um sistema metafísico que, racionalmente, ou seja, independente de fé cristã, bíblica e eclesiástica, fundamente as grandes verdades tradicionais de índole religiosa: existência da alma imortal e existência de Deus.
1627/28 -- Fugindo da mundanidade parisiense, Descartes refugia-se na aldeia, onde redige para seu próprio uso e servindo-se da matemática como fundamentação do conhecimento, as Regulae adeus Directionem ingenii (Regras para a direcção do espírito), obra que ficará inacabada com as suas XXI regras, pois, segundo projectara, as Regulae completas compreenderiam três partes, contendo cada uma doze regras: a primeira parte trataria das proposições simples; a segunda parte, das questões perfeitamente compreendidas; a terceira parte versaria sobre as questões imperfeitamente incompreendidas. Apesar de circularem algumas cópias do manuscrito, a sua publicação só se efectua em 1701 In Opuscula Posthuma Phisica entendimento Mathematica (Opúsculos Postumos de física e matemática).
Como confessa ao Padre Gibieuf, sente necessidade de uma completa solidão, para construir a sua filosofia metafísica, ou antes, a sua filosofia que "é como uma árvore, cujas as raízes são a metafísica, e os ramos que saem do tronco são todas as outras ciências que se reduzem a três principais, a saber, a Medicina, a Mecânica e a moral; considera como mais perfeita a moral, que, pressupondo um inteiro conhecimento das outras ciências, é o mais alto grau da sabedoria".
1629 -- Em 26 de Abril, instala-se em Frise e matricula-se na Universidade Francker, em cujos registos se lê: "R. Descartes, Francês, filósofo." Ao tomar conhecimento da descrição dos barélios ou falsos sóis, observados em Roma, na Primavera, dedica-se ao estudo dos "meteoros".
Vive então na Holanda durante vinte anos; num país liberal, "onde, entre a multidão de um grande povo muito activo e mais preocupado com os seus próprios negócios do que curioso dos dos outros eu pude, sem que me faltasse nenhuma das comodidades, que se encontram nas cidades mais populosas, viver tão solitário e retirado, como nos desertos mais distantes" (discurso do Método, volume II, página 99). Aí pensa poder prosseguir em paz os seus trabalhos, mormente os filosóficos. No Outono, instala-se em Amesterdão, na Rua Kalverstraat, e, tendo conhecido o médico Plepius, com ele virá a realizar dissecações (ou dissecções), interessado vivamente pelos assuntos de anatomia. Espírito solitário e independente, muda com frequência de residência, a fim de não ser incomodado, chegando até a não indicar nas suas cartas o local da sua residência.
1630 -- Em 27 de Junho, matricula-se na Universidade de Leyde, em cujos registos se lê: "R. Descartes, Poitevin, matemático". Mantém relações de amizade com o matemático Golius, que virá a apresentá-lo a Constantino Huygens, pai do grande físico e astrónomo holandês Christiaan Huygens (1629-1695), que, pela primeira vez (1678), formula a "teoria ondulatória" da luz oposta à "teoria corpuscular" defendida por Isaac Newton (1642-1727).
1631 -- Constrói juntamente com o Engenheiro Villebressieu diversas máquinas. Na companhia deste seu amigo, parte para a Baixa Alemanha e Dinamarca, mas, tendo adoecido, interrompe essa viagem. mais tarde, nos anos de 1643-1644, Descartes voltará a conviver com o Engenheiro Villebressieu.
1632 -- Descartes inventa a Geometria Analítica, encontrando a solução do chamado problema de Pappus, apresentado já pelo mencionado matemático Golius.
1633 -- Ao tomar conhecimento, em Novembro, da segunda e final condenação de Galileu (1564-1642), a 22 de Junho desse ano, pelo Tribunal do Santo Ofício, em Roma, adia precavidamente a publicação do "Tratado do Mundo", (composto do Tratado da Luz e do Tratado do Homem), obras que começara a redigir, em 1629, nas quais defendia o sistema Heliocêntrico, defendido por Copérnico (1473-1543) e Galileu. De Dezembro de 1633 à Primavera de 1635, reside em Amesterdão, e ainda existe a casa em que morou na Rua Westermarkt, nº 6. Em Fevereiro de 1635, dedica-se a cuidadosa observação microscópica dos cristais da neve, cujos resultados se podem ler no "Discours sixième" de Les Météores, em que trata (de la Neige, de la pluie _et de la Grêle). No Verão de 1635, encontra-se em Utrecht com o seu amigo Reneri que ensinava filosofia.
1635 -- de uma ligação com uma certa Helena, provavelmente sua empregada, nasce, em Deventer, em 19 de Julho, sua filha Francine, baptizada em templo protestante, filha que nunca abandonou.
1636 -- Na Primavera deste ano, Descarte instala-se em Leyde, a fim de tratar da publicação do Discours de la Méthode e dos seus Essais sobre la Dioptrique, Les Météores, La Géometrie, ensaios estes de "física" escritos antes do "Discurso do método".
1637 -- Em 20 de Dezembro de 1636, fora obtida, na Holanda, autorização para a publicação do Discours de la Méthode, mas, em França, só é obtida a autorização, em 4 de Maio de 1637, devido à intervenção do seu "procurador em Paris", o seu grande amigo Padre Mersenne. Em 8 de Junho, a obra é publicada sob anonimato, segundo desejo de Descartes, o qual retira da obra as apreciações julgadas excessivas. Por carta de 30 de Agosto, Descartes, que estava instalado em Santport, manda ir para junto de si Helena e a filha Francine, que viverão na sua companhia 3 anos.
1637 -- Relativamente aos seus "Essais" e a diversas questões matemáticas, mantém correspondência com sábios, como Fermat (1601-1665), Roberval (1602-1675) e Desargues (1593-1662) e mantém discussões sobre anatomia e fisiologia com o já citado Plempius. Em 5 de Outubro de 1637, envia a Huygens um breve tratado de mecânica, o qual, retomado em 1638, pelo Padre Mersenne, será em parte incluído nos Cogitata physico-Mathematica (1644).
1639 -- Morre o seu grande amigo Reneri e Descartes vem a relacionar-se com Regius, Professor de Medicina na Universidade de Utrecht. De Novembro de 1639 a Março de 1640, Descartes redige em latim as Meditações Metafísicas.
1640 -- Estada em Leyde. Com cinco anos de idade, morre em Amersfoort, em 7 de Setembro, a filha Francine, tendo Descartes sofrido com certeza o maior desgosto da sua vida. A 17 de Outubro, morre seu pai, pelo que renuncia a viagem que projectava fazer a França.
No manuscrito das Meditações enviado ao Padre Mersenne, em 18 de Novembro, é dado conhecimento das várias objecções de vários sábios e teólogos, objecções às quais Descartes responde. E em 28 de Agosto de 1641, aparece, impressa em Paris, a obra escrita em latim com o título Renati Descartes Meditationes de prima Philosophie in Qua Dei Existentia _et Animae Immortalitas Demonstrantur". De Março de 1641 a Abril de 1643, Descartes instala-se no castelo de Endegeest., perto de Leyde.
No Inverno de 1641-42, Descartes defende Regius contra Voet teólogo protestante e reitor da Universidade de Utrecht, que acusa Descartes de Ateísmo. Os Magistrados de Utrecht, ou seja, o Conselho da cidade, condenam, em 15 de Março de 1642, a nova filosofia, ou seja, a filosofia de Descartes, sem que, contudo, o seu nome seja mencionado.
1641 -- Devido à herança recebida por morte de seu pai, instala-se, como dissemos, no castelo de Endegeest. Embora perseguido, conta com bons amigos, como, por exemplo, o abade Picot que vive com ele mais de um ano. quando o seu amigo Regius é perseguido, Descartes recebe-o em sua casa, juntamente com a sua família. Supõe-se ter sido, nesta época, que Descartes escreveu La Recherche de la Verité Par la Lumière Naturelle, diálogo inacabado escrito em francês.
"É nesta época que entra em contacto com a família, refugiada em la Haye, de Frederico V (1596-1632), eleitor Palatino escolhido como Rei, em 1619, pelos protestantes da Boémia, expulso do reino e do Palatinado em 1620, após a batalha de Monte Branco, na qual Descartes provavelmente participou".
1642 -- É publicada, em Maio, em Amesterdão, a segunda edição das Meditações, com o título ligeiramente alterado: em vez de "Immortalitas", aparece a expressão "a Corpore Distincto". nesta edição, encontram-se sete objecções e as respostas às mesmas, e uma carta dirigida ao Jesuíta Padre Dinet, na qual é relatada a polémica com o citado Voet.
De Maio de 1643 a Maio de 1644, permanece em Egmond _op den Hoef, perto de Alhmar. Não se dando por vencido, publica, em Maio de 1643, uma longa carta polémica contra Voet, e, em Julho seguinte, uma carta aberta aos Magistrados de Utrecht, ou seja, como já se disse, ao Conselho da cidade.
Descartes estabelece relações de amizade com a Princesa Isabel (Elysabeth), filha do citado Frederico V, Rei deposto da Boémia, e a mais velha de nove irmãs. Isabel tinha então 25 anos e "interessava-se pela filosofia de uma forma inteligente e sem preconceitos". Várias vezes conversaram e, após Descartes ter deixado de habitar o pequeno castelo de Endegeest, não deixou de se corresponder com ela até ao fim da vida.
1644 -- Depois de 1628, é a primeira vez que Descartes volta a França. Chega a Paris em meados de Junho e, depois dirige-se para a Bretanha. em 10 de Julho, são publicados, em Amesterdão, os Principia Philosophiae, com uma dedicatória à citada Princesa Isabel. Esta obra seria um manual de filosofia escolar que visava substituir Aristóteles, mas este continuou a ser ensinado nas escolas. Neste mesmo ano, surge uma tradução latina do Discurso do Método, da Dióptrica e dos Meteoros. Assim, obras de Descartes escritas em francês são traduzidas para latim, como obras escritas em latim são traduzidas para francês, não deixando nunca Descartes de fazer a revisão das traduções e as devidas correcções em anos sucessivos.
1645/46 -- Em Novembro de 1644, regressa à Holanda e, durante cinco anos, vive em Egmond-LInnen, perto de Alkmar, mantendo uma importante correspondência com a Princesa Isabel sobre a moral. Para ela Descartes faz a primeira redacção do Traité des Passions.
1647 -- Aparece, em Paris, a tradução das Meditações Metafísicas. Revius e Triglandius, Professores da Universidade de Leyde, não deixam de atacar Descartes. Os Jesuítas também o atacam. Voet, em Utrecht, não deixa de o atacar. A Universidade de Utrecht proibira, em 1645, a publicação fosse do que fosse a favor ou contra Descartes. O amigo Regius, que Descartes acolhera em sua casa com a família já não está a seu lado, acusando Descartes de Plagianismo, doutrina antiga de Pelágio (360-422) que negava tanto o pecado original, como a eficácia da graça divina. Outras polémicas surgem e Descartes pensa regressar a França, para se ver livre daquele ambiente odioso. Assim, em Junho passa a viajar pela França, visitando Paris, a Bretanha, Touraine e Poitou.
Em 23 e 24 de Setembro encontra-se com Blaise Pascal (1623-1662) e com ele discute o Problema do vácuo, cuja existência era negada por Descartes. Regius, na Holanda, publica, em estilo de panfleto, a Explicatio mentis Humanae, onde Descartes é fortemente atacado. Este, em 1648, responder-lhe-á com as suas Notae in Programma Quoddam.
1648 -- Descartes estuda a formação do feto humano. Não conclui a obra que virá a ser incluída no Tratado do Homem por Clerselier, em 1664. Em 21 de Fevereiro, nunca por se dando por vencido, publica em francês e flamengo, a Lettre Apologétique, dirigida aos Magistrados de Utrecht.
Logo que começaram as sublevações da Fronta, Descartes deixa a França, em 17 de Agosto, regressando à Holanda.
1649 -- Descartes é indiscutivelmente famoso. A rainha Cristina da Suécia (1626-1689), filha de Gustavo Adolfo, que se correspondia com Descartes desde 1647 e que gostava de se ver rodeada de escritores e sábios, e de intelectuais, convida, em Fevereiro, Descartes para ir para junto dela. Descartes mostra-se inicialmente indeciso, mas virá, finalmente, a embarcar, em 1 de Setembro, tanto mais que estava preocupado com a atitude dos teólogos protestantes de Leyde que o tinham passado a considerar persona non grata. Em Outubro chega a Estocolmo, encorajado por Chanut que virá a ser embaixador da França na Suécia.
Começa a escrever uma comédia pastoral, que se perdeu, na qual duas personagens simbolizavam o amor da sabedoria e a busca da verdade.
Para as festas destinadas a celebrar os 23 anos da rainha cristina e bem os tratados de Vestefália, que, em 1648, puseram termo à "guerra dos trinta anos", Descartes escreve os versos de um Ballet, "o nascimento da paz", libreto esse que foi encontrado em 1920.
1650 -- Descartes não se sente bem, em pleno Inverno, num país tão frio como a Suécia. Também não se sente à vontade "no meio de cortesãos e sábios por vezes ciumentos". A um mês da sua morte, escreve a Brègy: "não estou no meu elemento".
Em 1 de Janeiro entrega à rainha os estatutos de uma Academia das ciências, rainha que abdicará em 1654, convertendo-se ao Cristianismo e que fundará em Roma, onde morreu, a Academia dos Árcades. A rainha Cristina gostava de dedicar as primeiras horas do dia à filosofia. Numa manhã frígida de Janeiro, deseja falar com Descartes, às cinco horas. Descartes acede ao pedido, com prejuízo da sua sempre débil saúde, agora mais afectada pelo duro clima da Suécia. Em 2 de Janeiro, adoece com uma pneumonia, que lhe causa a morte, em 11 de Fevereiro, aos 53 anos de uma vida tão agitada. Convencido de que se curará sem ajuda médica, vem a reconhecer, ao fim de alguns dias, estar enganado. "Manda chamar o seu director de consciência e enfrenta a morte como um Cristão, rodeado pela família Chanut". É enterrado em Estocolmo, "no cemitério das crianças mortas sem baptismo". Em 1667, é transladado para Paris e deposto em Sainte Geneviève du Mont. Em 1793, a Convenção vota a sua transladação para o Panteão. Seus restos mortais não são levados para lá, ficando de 1792 até 1818 no Jardin Élysée des Monuments Français. Em 26 de Fevereiro de 1818 é, finalmente, deposto na Igreja de Saint Germain des Prés.
A vida de Descartes apresenta aspectos verdadeiramente contrastantes: posto que a sua saúde fosse muito precária, levou uma vida muito activa, mesmo agitada, tanto nos campos de batalha, como viajante que não se cansava de viajar, de ler no "grande livro do mundo"; levou também uma vida entregue à calma contemplação, na busca das regras que melhor servissem para dirigir o pensamento nos caminhos de uma nova filosofia e das ciências então nascentes, que viriam a "diminuir os trabalhos dos homens", tornando-se estes "como que senhores e possuidores da natureza". De facto, nos séculos XVI e XVII, uma nova cosmovisão ou mundividência nascerá: passar-se-á da medieval à "Scientia contemplativa" para a moderna "Scientia activa", ou seja, de um saber quase exclusivamente contemplativo pelos Gregos designado "teoria", para um saber activo, ao qual se deu o nome também Grego de "praxis".
OBRAS De DESCARTES
1637 -- Discours de la Méthode, seguido de La Dioptrique, Les Météores, La Géométrie. Tradução latina do Discurso do Método, da Dióptrica e dos Meteoros, em 1644.
1641/42 -- Meditationes de Prima Philosophia, in Qua Dei Existentia _et Animae Immortalitas Demonstrantur, cá objecum e respostas. (Meditações Metafísicas em que a existência de Deus e a Imortalidade da Alma se Demonstram) -- Tradução francesa, em 1647.
1644 -- Principia Philosophiae (Princípios de Filosofia) -- Tradução francesa em 1647.
1649 -- Les Passions de L'âme. [2]
A estas obras fundamentais podemos acrescentar duas publicações em latim: carta a Voet, em 1643, e Remarques sur Um placard, em 1648.
OBRAS PÓSTUMAS
1650 Abrégé de Musique, texto latino (tradução francesa de 1668).
1657/67 -- Três volumes de cartas, publicadas por Clerselier.
166 67 -- Le Monde [3] ou Le Traité de la Lumière, publicada por Clerselier. L'Homme _et Traité de la Formation du feutus, publicadas por Clerselier.
1668 -- Explication des Machines _et Ingins (ou Traité de la Mécanique).
1701 -- Excerpta Mathematica (Excertos de Matemática). Regulae adeus Direction Ingenii ([4](Regras ç a Direcção do Espírito). Aparecera, em 1648, uma tradução em Flamengo.
1859/60 -- -- Cogitationes Privatae (Parnassus, Préambules, Observations, Olympiques).
1896 -- Entretien Avec Burman.
CARTAS
Nota: falta fazer a transcrição do que vai daqui até ao título "sinopse do cartesianismo", que é o que irá ser anexado em seguida.
Sinopse do Cartesianismo
(com referência a diversas concepções filosóficas)
dúvida metódica -- temos de " tomar a iniciativa de duvidar, uma vez na vida, de todas as coisas em que encontramos a mínima suspeita". dentro de si e fora de si na historicidade do pensamento filosófico, Descartes encontrava os diversos argumentos já apresentados pelos filósofos cépticos. Eram os chamados erros dos sentidos, ou exactamente erros da percepção (deformações, ilusões e alucinações) e os erros da própria razão. esta cometia o célebre erro do "dialelo", pois, dado que a razão se engana, sendo, consequentemente um instrumento falível da distinção entre o verdadeiro e o falso, ela não pode a si mesma provar, sem "petição de princípio", a sua própria veracidade.
diz Descartes:" assim, porque os sentidos nos enganam algumas vezes, resolvi supor que não existe alguma coisa que fosse exacta, como eles a fazem imaginar. E, perfeito há homens que se enganam, ao raciocinar, até nas mais simples questões de geometria, e nelas cometem paralogismos, pensando que eu estava tão sujeito a enganar-me, como qualquer outro, vim a rejeitar como falsas todas as razões de que, anteriormente, me servira nas demonstrações" (Discurso do Método, volume terceiro, página 7).
diferentemente da dúvida céptica ou "pirrónica", que é sistemática, definitiva, um fim em si mesma, já que os cépticos "duvidam por duvidar", a dúvida cartesiana é provisória, metódica, um meio para a certeza, considerada esta como a posse consciente da verdade.
não sendo espontânea, a dúvida cartesiana é uma dúvida voluntária, "acto da vontade esclarecida e livre", como um meio ou caminho seguro para a obtenção da certeza, dúvida radical, ao atingir as fontes sensorial e intelectual no conhecimento, metafísica, ao atingir as "essências", mesmo as matemáticas, e hiperbólica (ou excessiva), ao atingir a existência do que gnoseologicamente se designa por "objecto" extramental do conhecimento, chegando até Descartes a admitir a hipótese sofisticada da existência de um "génio maligno", que se divertia a fazer-nos querer que seria real o imaginário, ou seja, o que não passava de puro aparência.
primeira certeza -- "mas, imediatamente, vi que, ao querer assim pensar que tudo era falso, eu, que o pensava, necessariamente devia ser alguma coisa. E, notando que esta verdade: penso, logo existo era tão firme e tão certa, que nenhuma das mais extravagantes suposições dos cépticos eram incapazes de a abalar, julguei que a podia aceitar sem hesitação, para primeiro princípio da filosofia que procurava" (Discurso do Método, volume terceiro, páginas 7-8).
A primeira regra da certeza que "consistia em nunca aceitar coisa alguma por verdadeira, sem que a conhecesse evidentemente como tal e não incluir nada mais nos meus juízos senão o que se apresentasse tão claramente e tão distintamente ao meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de o pôr em d}", seguida das três restantes regras: a da análise, a da síntese e a da enumeração (Discurso do Método, volume segundo, páginas 63 e 64).
Segunda certeza -- após a certeza do eu, substância pensante ou substância cuja essência é pensar, segue-se a existência de Deus, fundamento das verdades infalíveis.
Da metafísica tradicional, assim como da religião Cristã, cuja "teologia reverenciava" (Discurso do Método, volume segundo, página 31), Descartes aceita a noção de Deus como "infinito, eterno, imutável, omnisciente, omnipotente" (ibidem, volume terceiro, página 11).
além da prova ontológica, fundada na ideia de Deus, que a seguir se exporá, as provas tradicionais da existência de Deus dividiam-se em duas categorias: as provas cosmológicas, fundadas na existência do mundo físico, as provas morais, fundadas em pontos de natureza moral ou psicológica. as provas cosmológicas são as cinco vias expostas por se. Tomás de Aquino (1225-1274) na "Suma Teológica":
As provas psicológico-morais, baseadas não na experiência de um mundo externo, mas na de um mundo interno, subjectivo (todas estas provas são chamadas provas "a posteriori") são as seguintes:
de todas estas provas (não mensionámos a prova pela "experiência mística", por a considerarmos apenas de valor testemunhal). Descartes apenas se interessa por aquelas que, partindo do finito exigem o infinito, partindo do ser contingente exigem o ser necessário. Obviamente, em tais provas se encontram presentes, com valor metafísico, os princípios, de causalidade e de razão suficiente, ou, para sermos mais exactos, seguido Leibniz, apenas o princípio de "razão suficiente".
"Seguidamente, ao reflectir que duvidava, e, por :sequência, meu ser não era inteiramente perfeito, pois via claramente que saber é perfeição maior que duvidar, lembrei-me de ver donde me tinha vindo o pensamento de qualquer coisa de mais perfeito do que eu, e, com evidência, conheci que deveria ter vindo de alguma natureza, que, realmente , fosse mais perfeita." (Discurso do Método, volume terceiro, página 9).
"O mesmo, porém, não podia acontecer com a ideia de um ser mais perfeito que o meu ser, pois recebê-la do nada era manifestamente impossível. E, porque não repugna menos que o mais perfeito seja uma :sequência e uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada alguma coisa proceda, de modo algum poderia vir de mim mesmo. consequentemente, só restava que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições, acerca das quais pudéssemos ter alguma ideia, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa só palavra" (ibidem, volume terceiro, página 10).
assim, Descartes prova a existência de Deus a partir da ideia de ser perfeito que se encontra nele, ideia que tanto não pode vir do nada, como não pode ser Criação dele, que se reconhece perfeitamente ser imperfeito. Logicamente, Deus será causa dele mesmo Descartes, que tem a ideia de ser perfeito.
"é, pois, do contraste entre a finitude do seu ser e o infinito de que ele tem ideia, que surge a evidência da existência de Deus. Por aqui se revela a unidade das duas provas que segue a via da causalidade. a primeira põe Deus como causa da ideia de infinito presente num ser finito; a segunda põe Deus como causa dum ser finito que tem a ideia de infinito. ambas põem Deus como causa dum estranho efeito: um ser finito que pensa o infinito".
mas a prova da existência de Deus preferida por Descartes é a prova "a priori" ou argumento "ontológico" já apresentado por Se. Anselmo (1033-1109) e aceite por muitos escolásticos e apresentada, sob forma algo modificada, por João Duns escoto (1266-1308) e Leibniz, "discípulo" de Descartes.
tal prova ou argumento consiste em provar a existência real de Deus pela pura análise da "ideia" de Deus que está na mente. Se quisermos apresentar a prova silogisticamente e, portanto, muito sucintamente, diremos: Deus é (é concebido) ser perfeito; a existência é perfeição; logo Deus existe. ouçamos Descartes: "voltando a examinar a ideia que tinha de um ser perfeito, via que .. ou mais evidentemente ainda -- a existência estava nela compreendida, da mesma maneira que, na ideia de um triângulo, está compreendida a ideia de que os três ângulos são iguais a a dois rectos, ou, na ideia de uma esfera, está compreendida a ideia de que todos os seus pontos são equidistantes de um centro. Consequentemente, é pelo menos tão certo que Deus, que é ser perfeito, é ou existe, como qualquer demonstração de geometria pode ser certa". (Discurso do Método, volume terceiro, página 13). Note-se, nesta argumentação, a nítida tendência matematicista de Descartes.
Terceira certeza -- Descartes, preso ao "penso, logo existo", liberta-se da atitude "solipsista" (a existência apenas do eu com as suas "cogitationes", ou seja, pensamentos ou representações psíquicas), afirmando a existência de um mundo real externo, um mundo material, uma "res extensa", ou seja, uma realidade material cuja essência é a "extensão", da qual tem ideia clara e distinta", mas fundamentando-se na veracidade divina, pois Deus, ser perfeito, não pode enganar-se nem também enganar-nos (seria moralmente um ser monstruoso) acerca das ideias, embora imperfeitas, falíveis, que nos vêm através dos sentidos, ideias que Descartes designa de "adventícias", em oposição às ideias "inatas", conaturais à razão, ideias "adventícias" que servirão de matéria para a elaboração das ideias "factícias".
Rejeitada, outrossim, a hipótese do tal "génio maligno", cuja a actividade seria a de divertir-se a enganar-nos sempre, Deus é para Descartes o único fundamento ontológico ou metafísico do eu e do mundo, tornando possível ao homem o conhecimento das coisas, em seus aspectos "quantitativos" e "qualitativos", como se verá.
Racionalismo -- contrariamente ao empirismo, doutrina que, no problema da origem do conhecimento, considera o espírito uma "tábua rasa", afirmando que "a experiência é sempre necessária a qualquer conhecimento e é suficiente", o racionalismo é, em gnoseologia ou teoria do conhecimento, a doutrina que afirma haver, no acto do conhecimento, princípios e ideias que não dependem da experiência, ou seja, dos dados empíricos sensoriais, princípios esses e ideias essas que interpretam a experiência, quando necessária.
Gnoseologicamente, Descartes é racionalista, devido à sua doutrina inatista actual (tal inatismo será "virtual" com o filósofo Leibniz (1646-1716). para Descartes há ideias inatas, ideias que nasceram connosco, que são conaturais à razão, podendo algumas ser produzidas por nós, mas sem qualquer recurso à experiência externa sensorial.
Inatas são as ideias de Deus (ser infinito e perfeito) e da alma (espiritual e imortal), as noções matemáticas ou seres puramente mentais, as essências imutáveis, absolutamente verdadeiras, usando a terminologia da filosofia escolástica tradicional.
Além das fundamentais ideias inatas, admitia Descartes as ideias adventícias, às quais já nos referimos, que vinham para o espírito através dos sentidos. assim, a ideia do Sol era uma ideia "adventícia", notando-se, contudo, que, como diz Descartes, "posto que vejamos o Sol muito claramente, não devemos, por isso, julgar que ele só tem a grandeza que vemos".
Na gnoseologia cartesiana, ainda há lugar para as ideias factícias, elaboradas por nós com base nas adventícias. Tais ideias elaboradas por nós são as ideias científicas das ciências experimentais, também chamadas ciências de factos (rigorosamente, a única ciência de "facto", em sua irreversibilidade ou irrepetibilidade é a história), como por exemplo, a ideia do Sol elaborada pelos astrónomos. Também são ideias "factícias" as ideias "quiméricas", que, por não corresponderem, em sua síntese, à realidade extramental, se poderão designar de "fictícias". tais são as ideias de hipogrifos, sereias, faunos, cavalos alados, etc. "podemos também imaginar distintamente uma cabeça de leão posta no corpo de uma cabra, sem que por isso, tenhamos de concluir que, no mundo, há uma quimera, mas que a razão, de modo algum, garante que seja verdadeiro o que vemos ou imaginamos assim" (Discurso do Método, volume terceiro, página 18).
podemos esclarecer que a Descartes se oporão imediatamente os empiristas ingleses John Locke (1632-1704) empirista moderado, e David Hume (1711-1776), empirista radical. A doutrina de Locke é conhecida pelo nome de espírito "tábua rasa" (ou, em designação actualizada, "white paper"), o qual, sem, contudo, aceitar o "intelectualismo" aristotélico-tomista, não deixa de estabelecer como fundamental o princípio gnoseológico desse intelectualismo: "nada existe no intelecto que, primeiramente não tenha estado nos sentidos", ou como, muitas vezes é citado em latim: "nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu".
Locke só admitia ideias adventícias (simples) e factícias (complexas). recusando o inatismo cartesiano, afirmava que todas as ideias provinham da experiência externa (sensação) e da experiência interna (reflexão). considera-s moderado o seu "empirismo", embora em virtude de admitir uma actividade mental, por processos de "cooperação, associação e generalização", na elaboração das ideias "complexas".
David Hume, negando o valor ontológico dos princípios de causalidade e substancialidade (não negados por Locke) vai chegar logicamente, mediante um sensismo e associacionismo radicalmente empírico, a um cepticismo fenomenista ou, se se preferir, a um fenomenismo céptico.
Hume rejeita qualquer actividade mental na elaboração dos conhecimentos, por ele classificados claramente como "impressões" e "ideias", conforme seus graus de força e vivacidade. As impressões são percepções que em nossa consciência ou pensamento penetram com vivacidade objectual, ao passo que as ideias não passam de "imagens apagadas das impressões".
se nos detivemos com esta breve exposição do empirismo lockiano e humiano, foi para talvez melhor se compreender o racionalismo cartesiano, centrado no inatismo.
idealismo -- com justeza se diz que no cogito cartesiano está implícito o idealismo da filosofia moderna, se bem que tenha sido com Immanuel Kant (1724-1804), com seu "idealismo transcendental" que se operou o que veio a chamar-s a "revolução coperniciana" em gnoseologia ou "crítica do conhecimento".
em teoria do conhecimento, no problema da essência ou natureza do conhecimento, entende-s por idealismo (não se esteja a pensar no idealismo do de. Quixote e no realismo do Sancho pança...contra, de resto como a própria palavra está a sugerir, a doutrina segundo a qual não conhecemos o objecto "em si mesmo", a realidade "em si mesma" (a "res" latina, que se traduz por "coisa"), mas as coisas como elas se nos apresentam à mente, ou seja, as suas ideias ou representações mentais.
enquanto o realismo afirma peremptoriamente a "transcendência do objecto cognoscível em relação ao sujeito cognoscente, o idealismo afirma peremptoriamente a sua "imanência", imanência esta que veio a ser expressa pelo filósofo Berkeley (1685-1753), arcebispo protestante irlandês, na célebre frase "ser é perceber (percepcionar) ou ser percebido (ser percepcionado)" ou em latim "esse est percipere aut percipi". Notemos, contudo, de passagem, que a doutrina berkeliana não é um "idealismo", mas é em rigor um "realismo" imaterialista, fundado religiosamente em Deus.
Se Descartes afirmasse unicamente a existência de si mesmo como "substância pensante" com as suas "representações psíquicas", em absoluta imanência subjectiva (integral solipsismo) seria um idealista integral, mas só numa... loucura autista tal idealismo se poderá vir a dar. Podemos, de resto, reverter à dúvida universal cartesiana, para a sujeitar à crítica de David Hume, que assim se exprime: "a dúvida cartesiana, se pudesse ser atingida por uma criatura humana (e é impossível), seria inteiramente incurável" nenhum raciocínio poderia conduzir-nos a um estado de certeza e de convicção a respeito de qualquer assunto" (Inquiry concerning human understanding"). o idealismo cartesiano poder-s-á tanto um idealismo moderado ou mitigado, como um realismo crítico, diferente do realismo "ingénuo", como do realismo natural escolástico, preferentemente aristotélico-tomista.
Ao admitir a objectividade da extensão e movimento, o aspecto quantitativo dos corpos, mensurável (os chamados "sensíveis comuns" da filosofia escolástica), Descartes é um filósofo realista, mas, ao admitir a subjectividade das cores, sons, cheiros, sabores, etc. (os chamados "sensíveis !!y" da filósofo escolástica), Descartes é um filósofo idealista.
esta distinção cartesiana entre o mundo objectivo da extensão e do movimento e o mundo subjectivo das "realidades sensíveis", como a cor, o som, o sabor, etc. ficará célebre na distinção lockiana entre "qualidades primárias ou "primeiras"), que são a extensão, a figura, a divisibilidade, o movimento -- todas elas mensuráveis, e as "qualidades secundárias) ou "segundas"), que são as cores, os cheiros, os sons, os sabores, etc. -- todas elas não mensuráveis, enquanto puras reacções subjectivas.
de facto, poder-s-á dizer com Léon Brunschwich (1869-1944) que "conhecer é medir", seguido o moderno pensamento galilaico-cartesiano, plenamente confirmado, em nossos tempos, pela física-matemática, pela electrónica, pela informática e telemática, pela computorização, pela cibernética, aplicadas aos mais amplos domínios do saber e do poder humanos.
Bissubstancialismo metafísico -- Descartes estabelece uma distinção radical entre o "corpo" ou "matéria" e a "alma" ou "espírito", entre a "res extensa", inconcebível sem extensão e movimento ("donnez-moi de la matiére entendimento do mouvement entendimento je ferai un monde") e a "res cogitans", inconcebível sem pensamento, ou seja, actividade psíquica.
o corpo, como tal, não precisa da alma, para ser corpo, no "composto humano", a alma não precisa de forma alguma do corpo, para ser alma, ou "composto humano". São duas substâncias completas, irredutíveis. mas, para Descartes, filósofo metafísico espiritualista, a alma humana espiritual (para Descartes alma e espírito são sinónimos perfeitos) não é um mero conjunto de fenómenos psíquicos" transitórios, testemunhados pela consciência, fenómenos em "devir" ininterrupto, como, mais tarde virá a ser afirmado pelas doutrinas "fenomenistas" e "epifenomenistas". é, como se disse, uma substância completa, simples ou inextensa, espiritual e imortal. numa linha de pensamento platónico e de um cristianismo platonizado, o "corpo" a "matéria", será um obstáculo para o conhecimento, e mesmo um diabólico "mal", nesta tão atribulada e fugidia existência terrena.
é de notar, contudo, que Descartes afirma, seguido o pensamento aristotélico-tomista da "uni) substancial corpo-espírito", que "o homem é o verdadeiro ser por si, não por acidente, e que a alma está unida ao corpo real e substancialmente" (carta a Regius, janeiro de 1642), que "é preciso saber que a alma está verdadeiramente unida a todo o corpo" (As Paixões da alma, I -- 30), e que "na mesma sexta meditação, onde falei da distinção do espírito do corpo, mostrei também que ele lhe está substancialmente unido; para prova do que me servi de razões que são tais que não me lembro de alguma vez ter lido em algum lugar outras mais fortes e convincentes" (respostas às quartas objecções).
Contudo, para que se estabeleça a ligação entre a alma e o corpo, são necessários os "espíritos animais" (expressão de veras curiosa, na medida em que temos "espiritualidade animal" ou "animalidade espiritual"), "espíritos animais" que "são como um vento muito subtil, ou melhor, como uma chama muito pura e muito viva (Discurso do Método, volume terceiro, página 63), "partes do sangue muito subtis" que "não são mais do que matéria, com a particularidade única de serem constituídas por corpos muito pequenos e que se movem muito depressa, lembrando as partes da chama que sai dum facho" (As Paixões da alma, I -- 10). E a alma humana, se bem que "unida substancialmente ao corpo", está localizada, sediada, segundo Descartes, na "glândula pineal", corpúsculo oval, do tamanho de uma ervilha, situada no mesencéfalo, a qual, presentemente, é conhecida pelo nome de "epífise", uma das glândulas endócrinas, ou segundo outros, é a hipófise.
A cartesianamente complicada união ou relação corpo-espírito, dado que "corpo" e "espírito" eram substâncias completas e irredutíveis, virá, posteriormente, a ser explicada por influência da posição cartesiana, pelo "ocasionalismo" do Padre Malebranche (1638-1715), doutrina considerada herética pela Igreja Católica e, por isso, condenada, devido a pôr em perigo tanto a liberdade humana como a "responsabilidade divina". O filósofo Leibniz (1646-1716) virá a formular a engenhosa doutrina da "harmonia pré-estabelecida" , segundo a qual, corpo e alma, substâncias independentes criadas por Deus, tinham sido criadas tão perfeitamente que, quando numa havia uma alteração, na outra se dava também uma idêntica alteração, precisamente como dois relógios perfeitos (o "relojoeiro" da alma e o do corpo seria Deus) que marcam sempre as mesmas horas, minutos e segundos, sem que um exerça influência no outro. Belíssima metáfora... metafísica! baseando-s na definição cartesiana de "substância ser "o que não carece de coisa alguma para existir", Espinosa (1632-1677) descendente de Judeus Portugueses expulsos, no reinado de De. Manuel (1469-1521), vem a formular com toda a lógica (todo o sistema tem a sua lógica) um "panteísmo" de natureza idealista, segundo o qual apenas pode existir uma única substância necessária e infinita, que é Deus, substância que se revela numa infinidade de atributos, precisamente por ser infinita, mas desses infinitos atributos apenas temos conhecimento de dois:
o pensamento (a cartesiana "res cogitans") e a extensão (a cartesiana "res extensa"), não passando os seres particulares e contingente de "modos dos atributos divinos": assim, temos os "espíritos como "modos" do pensamento infinito, e os "corpos" como os "modos" da extensão infinita. esta doutrina, por ser "panteísta",foi também condenada pela Igreja Católica, que, em seu teísmo afirma a existência de um Deus infinito, sim, mas "pessoal" e "transcendente ao universo por si Criado, com seus atributos "entitativos" e "operativos", os quais consideramos desnecessário expor agora -- aqui.
Note-se que Leibniz, o filósofo da "théodicée" e da doutrina em que este mundo é o melhor dos mundos possíveis", optimista filósofo ridicularizado por Voltaire (1694-1778) no jovial e mordaz "Candide" (1759), recusa horrorizado o monismo de Espinosa, defendendo resolutamente uma doutrina pluralista[5] na sua "monadologia", sendo as "mónadas" substâncias simples e activas, não dotadas de extensão, figura e divisibilidade, podendo dar-se-lhes a designação de "átomos de força", de vida, de desejo, de universal apetência, comandadas pela "mónada infinita" que é Deus, ser infinitamente bom e justo (no segundo elemento grego da palavra "teodiceia", encontra-se precisamente o vocábulo grego "dikaios", que significa "justo").
Matéria e mecanismo -- já sabemos que a essência da matéria ou do corpo é a "extensão: -- sem esta é cartesianamente inconcebível um corpo. diz Descartes: "a natureza da matéria, ou do corpo tomado em geral, não consiste em ser uma coisa dura ou pesada, colorida, ou que toca os nossos sentidos de qualquer forma, mas apenas em ser uma substância extensa, em comprimento, largura e profundidade" (Principes de la Philosophie, II -- 4).
O movimento é o princípio da diversificação dos corpos" a matéria pode ser dividida em todas as partes e segundo todas as figuras que podemos imaginar; e cada uma das suas partes é capaz de receber em si todos os movimentos que podemos conceber. (Le Monde, capítulo VI).
Identificada ainda a própria extensão, a matéria é para Descartes, não descontínua, mas contínua, donde o seu mecanicismo ou (mecanismo) geométrico, que considera a matéria divisível matematicamente até ao infinito. recusa, pois, o mecanismo físico dos atomistas gregos, pois recusa a existência do "vácuo" ou "vazio", onde, segundo os atomistas gregos, giravam os átomos, partículas extensas mas "indivisíveis" (a palavra grega "átomo" quer dizer "sem divisão"), eternas e indestrutíveis.
Num universo materialmente cheio, onde não existe o "vácuo" (isso mesmo está compreendido na ideia que temos do espaço, não só daquele que está cheio de corpos, mas também daquele a que chamamos vazio" (Principes de la philosophie, II -- 22), os movimentos dos corpos explicam-se pelo choque turbilhonante exercido por uns corpos sobre os outros, em que uns vão, sucessivamente, ocupando o lugar dos outros, como se fossem esferas dentro de um rolamento, se esta comparação tem pertinência. O primeiro motor do universo foi Deus, quando o Criou, (Descartes não aceita a eternidade do universo), e o movimento impresso ou dado ao universo, no acto divino da Criação, permanece constante. os corpos não são senão "modos" das diversas partes da matéria, que, através do movimento filosófico que explica todos os fenómenos se apresentam ao nosso conhecimento, através dos sentidos. O mecanismo ou mecanicismo é, pois, o sistema filosófico que explica todos os fenómenos naturais ou materiais pelo princípio do movimento, e foi ele "o sinal distintivo de todos os cartesianos" fiéis ao mestre. não foi, porém, fiel ao mestre o cartesiano Leibniz. porque a extensão inerte não pode definir a matéria, dado que não pode explicar a "impenetrabilidade", ou seja, a resistência de um corpo a outro corpo, a "força" dos corpos, como repugna a indivisibilidade infinita da matéria, Leibniz defende a já referida doutrina da "Monadologia", na qual se afirma que os elementos constitutivos da matéria são as "mónadas" inextensas, logo indivisíveis, unidades de força, substâncias simples, e, como tais, sem extensão nem figura, dotadas de actividade intrínseca, como se fossem uns autênticos "átomos de força". para Leibniz, Deus será a "mónada infinita".
Espaço e tempo -- defendendo, neste campo da realidade, uma posição realista, Descartes não considera o espaço independente dos corpos extensos (o espaço é o conjunto de todos os corpos em sua contínua extensão), nem o tempo independente da duração das coisas. A esta concepção cartesiana do espaço e tempo virá a opor-se Newton (1642-1727), que admitia um espaço e um tempo não só independentes do sujeito (atitude realista), mas também independentes dos corpos e dos acontecimentos. Assim, segundo Newton, ainda que não houvesse corpos, haveria um espaço "vazio" indefinido, isto é, prolongando-se sem limites, subsistentes em si mesmo; se não houvesse acontecimentos, haveria, Analogamente, um tempo "vazio" indefinido, isto é, fluindo contínua e instantaneamente, subsistente em si mesmo. não seria difícil a Newton considerar tal "espaço" como a "imensidade" divina, e tal "tempo" como a "eternidade" divina, avançando-se para um "panteísmo naturalista".
Leibniz, apesar de cartesiano, discorda tanto de Descartes, como de Newton. nem identificação corpo-espaço e acontecimento-tempo, nem "receptáculos" newtonianos: o "espaço é tão-somente uma "necessidade de coexistência" e o "tempo", uma "ordem de sucessões". O tempo e o espaço são apenas "sistemas de relações" entre os acontecimentos (tempo) e entre os corpos (espaço). se não existissem corpos, não haveria "espaço"; se não se dessem acontecimentos, não haveria "tempo", pois nem um nem outro são "realidades objectivas".
Matematismo universal -- ouçamos Descartes: "tendo-me estes pensamentos feito passar do estudo específico da aritmética e da geometria para uma espécie de investigação geral da matemática, perguntei-me primeiro o que entendem todos estes por esta palavra, e porque se chamam partes da matemática não só estas duas ciências referidas, mas também a astronomia, a música, a óptica, a mecânica e muitas outras ciências. por conseguinte, deve haver uma ciência geral que explique tudo o que é possível procurar em relação à ordem e à medida, sem aval a nenhuma matéria particular; e que esta ciência se chama, não com um nome de empréstimo, mas um nome já antigo e recebido pelo uso, a matemática universal, dado que contém tudo aquilo em virtude do qual se diz doutras ciências que são partes da matemática" (Regras para a direcção do espírito -- regra IV). Como a essência da matéria é a extensão, é evidente que todo o conhecimento científico se pode reduzir à matemática. assim, Descartes matematiza a física, matematiza todo o universo que outra coisa não é que uma máquina em movimento, e será somente a matemática universal que permitirá a descoberta das ideias "claras" e "distintas", as quais (primeira regra do método) não pode haver a "certeza" imposta pela "evidência" racional.
Vida -- com um espiritualismo radical -- para Descartes "alma" é sinónimo de substância espiritual -- a vida não somente nas plantas mas também nos animais, é totalmente explicada pelas propriedades físico-químicas da matéria.
sobre a questão "alma" e "espírito" ouçamos Descartes: "procurais aqui obscuridade, por causa do equívoco que existe na palavra alma; mas esclareci-a claramente tantas vezes que me envergonho de o repetir aqui; é por isso que direi apenas que os nomes foram geralmente impostos por pessoas ignorantes, o que faz que não combinem sempre suficientemente bem com as coisas que significam; contudo, não nos é permitido mudá-los, sem apenas corrigir os seus significados, quando vemos que não são bem compreendidos. porque não julgo o espírito como uma parte da alma, mas como toda a alma que pensa." (respostas às quintas objecções).
O equívoco a que Descartes se refere cometeram-no os escolásticos que, designando a "alma" como "princípio de vida", afirmavam que as plantas tinham "alma vegetativa" e os animais "alma sensitiva" (o homem tinha "alma racional" ou "espiritual").
como o de qualquer animal, "o nosso corpo é uma máquina" (as Paixões da alma -- artigo VII) e no (Tratado do feto), publicado após a morte de Descartes, este afirma que a fisiologia de qualquer corpo é totalmente explicada por causas meramente mecânicas, não havendo nenhuma necessidade de recorrer, como fazia a filosofia escolástica, a qualquer entidade misteriosa e oculta", como princípio vital ou alma sensitiva, no caso dos animais.
Vemos, pois, resolutamente afirmado o seu "mecanismo" ou "mecanicismo", reduzindo a vida à extensão e ao movimento de substâncias físico-químicas. neste ponto, a doutrina de Descartes ficou conhecida como a doutrina dos "animais-máquinas".
Anote-se que, no prosseguimento do mecanicismo cartesiano, não considerando o ser humano em sua totalidade um ser privilegiado, mas apenas um animal mais evoluído em sua maior complexidade psíquica, fácil foi a La Mettrie (1709-1751), chegar a um materialismo, antípoda do exagerado espiritualismo cartesiano, com as obras "l.homme-plante" "l.homme Machine", não havendo, pois, necessidade alguma nem de "alma", nem de "espírito" nem de "Deus" para explicar o mundo e todos os seres vivos, fossem eles plantas, fossem animais, fossem eles homens.
Falsidade ou erro -- Na "sexta meditação", Descartes impõe claramente a sua posição quanto à existência do erro ou falsidade. ouçamo-lo: "considerando quais são os meus erros, acho que dependem do concurso de duas causas: do poder de conhecer que está em mim e do poder de escolher, quer dizer, do meu livre arbítrio, isto é, do meu entendimento e da minha vontade. porque pelo entendimento não afirmo nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas que afirmo ou nego. ora, considerando precisamente assim, nele nunca há erro, tomando a palavra erro no seu sentido próprio.
onde nascem então os meus erros? exclusivamente pelo facto de a vontade ser mais ampla e mais extensa que o entendimento, eu não a contenho nos seus limites, e alargo-a também às coisas que não compreendo; indiferente a elas, a vontade perde-se facilmente e escolhe o mal pelo bem, ou o falso pelo verdadeiro. e isto faz que me engane e peque." "quando me abstenho de concordar com uma coisa que não percebo de maneira clara e distinta, é evidente que penso bem e não me engano. mas, se eu me determino a negá-la ou a afirmá-la, e não me sirvo, como devo, do meu arbítrio, e se afirmo o que não é verdadeiro, é evidente que me engano; mesmo que julgue segundo a verdade, isso acontece por acaso, porque a luz natural nos ensina que o conhecimento do entendimento deve preceder a determinação da vontade. E é neste mau uso do livre arbítrio que se encontra a privação que constitui a forma do erro."
"Atendendo a que, por vezes, nos é permitido suspender o nosso consentimento, ainda que tenhamos a percepção da coisa, relacionei este acto do nosso juízo, que consiste apenas no consentimento que damos, isto é, na afirmação ou negação, à determinação da vontade, mais do que à percepção do entendimento" (Notes sur le placard Regius).
o erro está, pois, fundamentalmente na vontade que não tem limites, alargada às coisas que não se compreendem, vontade que facilmente se perde, "porque há poucas pessoas que queiram ou possam deter-se a meditar" (carta a Mersenne, 4 de Março de 1641).
Liberdade da vontade -- A liberdade interior que acompanha o exercício da vontade esclarecida pela inteligência, também chamada "liberdade de indiferença" ou "livre arbítrio", definir-se-á como o "poder que o homem tem de se determinar a agir, ou não agir, esclarecido por motivos da sua própria escolha". os argumentos apresentados na defesa desta "liberdade interior" são a "prova psicológica" (o testemunho da própria consciência, no acto de agir ou não agir), a "prova metafísica" e a "prova moral".
Negam a liberdade da vontade as doutrinas "deterministas", seja o tautológico determinismo "fatalista", sejam as formas, de base científica e filosófica, como os determinismos "físico", "fisiológico", "social", "psicológico" e "teleológico", sob forma panteísta ou não.
neste último caso, é célebre a frase de Espinosa (1632-1677), panteísta idealista: " a consciência da liberdade é a inconsciência da necessidade".
Disse alguém que "é um mérito de Descartes, pouco valorizado como deve o facto de ter fundamentado o seu pensamento, de uma maneira 9 hoje eficaz, a liberdade da vontade".
ouçamos o que Descartes diz na "quarta meditação": "não tenho ideia nenhuma mais lata e mais extensa do que a da vontade Û liberdade do livre arbítrio que eu experiencio. E é ela que principalmente me dá a conhecer que trago comigo a imagem e semelhança de Deus. porque, embora seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim, não a considero maior, se a considerar formalmente e precisamente em si mesmo. porque consiste em podermos fazer uma coisa Û em a não fazer. ela consiste em que, para afirmar Û negar as coisas que o entendimento nos põe, segui-las Û fugir delas, nós agimos de maneira que não sentimos que uma força exterior a isso nos obrigue. na verdade, para ser livre, não é necessário que me seja indiferente escolher um Û outro de dois contrários, mas antes, quanto mais me inclino para um deles, seja porque reconheço que o bem e o verdadeiro nele se encontram, seja porque Deus dispõe assim no interior do meu pensamento, tanto mais livremente escolho. E, certamente, a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuírem a minha liberdade, desenvolvem-na e fortimenta-na; de maneira que essa indiferença que sinto, quando não sÛ levado mais para um lado que para o outro pelo peso das razões, corresponde ao grau mais baixo da liberdade e resulta mais de uma falta de conhecimento do que da perfeição da vontade. Se conhecesse sempre claramente o verdadeiro e o bem, não teria nunca dificuldade em deliberar sobre o juízo e escolha que deveria fazer, sem nunca me ser indiferente".
é no uso devido da liberdade que está o autêntico mérito do homem. "sendo a vontade, por sua natureza, muito extensa, é para nós um vantagem muito grande poder agir por seu meio, isto é, livremente; de modo que somos de tal forma donos das nossas acções que somos dignos de elogio, quando nos conduzimos bem" (Principes de la Philosophie, I -- 37).
Mais um texto de Descartes, a mostrar o fundamento racional da liberdade: "e assim uma indiferença em Deus é uma prova muito grande da sua omnipotência. mas não é assim com o homem, o qual, encontrando já a natureza da bondade e da verdade estabelecida e determinada por Deus, e sendo a sua vontade tal que não se pode naturalmente levar senão para o que é bom, é manifesto que ele abraça tanto mais voluntariamente e, por :seguinte, tanto mais livremente, o bom e o verdadeiro, quanto mais evidentemente os conhece." (respostas às sextas objecções).
moral provisória -- Isentos da "dúvida metódica", deixou Descartes os domínios da religião e da moral: da religião (entenda-se a "Cristã", na forma católica), porque, sendo ela sobrenatural Û revelada, as suas verdades (as verdades da "fé"), ultrapassam a capacidade natural do entendimento Û razão, da moral, porque, sendo entendida como "ciência prática", não tinha, de forma ada, em vista a contemplação da verdade, mas apenas a acção, na prática do bem. Descartes deu uma grande importância à moral, como " ciência dos costumes", como o prova a correspondência trocada com a princesa Isabel, para quem escreveu o "traité des Passions", publicado em 1649, com o nome "Les Passions de ele.âme."
O problema apresenta-s claro: há que agir e tomar decisões na vida, decisões, por vezes, inadiáveis, não podendo nós manter-nos na perplexidade, na dúvida contínua, a qual impediria qualquer decisão. Descartes vê-se, assim, na necessidade de estabelecer normas Û regras que lhe permitam tomar decisões com segurança prática, que lhe dêem uma paz de espírito que permita uma felicidade, sem a qual não poderia viver nem trabalhar intelectualmente. eis as suas palavras: "do Mesmo modo, para não ficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razão me obrigava a sê-lo nos meus juízos, e, para não deixar de viver, desde ?ão, o mais felizmente possível, formei para mim próprio uma moral provisória (par provision), constituída somente por três Û quatro máximas das quais vos quero dar conhecimento":
Primeira regra: obedecer às leis e costumes do meu país, conservando firmemente a religião em que Deus me fez a graça de ser instruído desde a infância, e conduzindo-me, em tudo o resto, de acordo ainda as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero, as quais fossem comummente postas em prática pelos mais sensatos de entre aqueles com quem teria de viver."
Segunda regra: "ser o mais firme e o mais resoluto que pudesse nas minhas acções e, uma vez que me hÛvesse decidido, não seguir menos firmemente as opiniões mais duvidosas do que as seguiria, se elas fossem muito seguras."
Terceira regra: "procurar sempre vencer-me antes a mim próprio do que vencer a fortuna, e antes mudar os meus desejos do que a ordem do mundo, e, de um modo geral, habituar-me a querer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder, excepto os nossos pensamentos."
Quarta regra: "passar em revista as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, a fim de escolher a melhor." (Discurso do método, volume segundo, páginas 86-93).
como as notas ao texto nas páginas indicadas esclarecerão, Descartes com a sua "moral provisória" tem em vista procurar a felicidade, numa vida calma, através de uma razão pragmática, numa perspectivação estóica.
Notas conclusivas -- Tendo partido duma dúvida universal, caracterizada no início desta "sinopse", Descartes vem a encontrar em si mesmo a certeza (e verdade) indubitável do "penso, logo existo", pois que, no próprio acto de duvidar, a consciência afirma-lhe claro e distintamente a sua sua existência como "res cogitans", como ser Û substância pensante, Û substância cuja essência é o pensamento, Û seja, a sua actividade psíquica Û mental. O "cogito" torna-se, assim, um fundamento de toda a sua filosofia, construída pelo método intuitivo da matemática da ideia claro e distinta. a análise do pensamento feita por Descartes permite-lhe reconstruir a metafísica tradicional: a "psicologia metafísica Û racional", ao definir a "alma" (espírito) pelo seu atributo essencial, o pensamento, que lhe concede o dom da "imortalidade"; a "teodiceia" (Û teologia racional, ao admitir que, a "ideia de Deus", que se encontra em sua mente, não pode provir senão do próprio Deus, o "mundo corpóreo" Û matéria, cujo atributo essencial é a extensão (figura e movimento), mundo esse fundado, objectivamente, na veracidade e imutabilidade divinas. Pondo de parte os aspectos qualitativos das coisas, aspectos apenas subjectivos e não mensuráveis, afirma que a única e verdadeira ciência dos corpos é o mecanismo Û mecanicismo.
Seguido algumas ideias de um antigo texto do MEU, sem que seja preciso colocá-las entre parêntesis, continuemos, afirmando que o !justo cartesiano consiste na organização do saber filosófico numa estrutura sólida, ao modo da matemática, ciência que Descartes, como sabemos, muito cultivou, e cuja robustez teórica tanto o impressionava. A posição cartesiana da dúvida metódica marcará a filosofia a partir do século XVII. assim, um autêntico filósofo deverá sempre pôr em causa os conhecimentos adquiridos, para poder prosseguir frutuosamente a pesquisa da verdade. todos assim procederão, a seu modo: Gean-Paul Sartre (1905-1980) virá a dizer com o máximo de rigor: "o que interessa não é o que fizeram de nós, mas o que fazemos do que fizeram de nós." O princípio fundamental do seu existencialismo será este: "o homem não é mais do que ele faz", fazendo-se a si mesmo, numa liberdade que é o "fundamento de todos os valores", sem que ela tenha qualquer fundamento. Edmundo Husserl (1859-1938), com a dÛtrina da "fenomenologia", liberta de todos os supostos Û pressupostos, pretendendo a filosofia como "ciência de rigor", virá a estabelecer a "epochê", a qual consiste, nas suas próprias palavras, "em nos abstermos por completo de julgar acerca das dÛtrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descrições no âmbito dessa abstenção".
Ao chegar a pôr em causa não só os dados sensíveis, como até os matemáticos, supondo a hipótese de a nossa perspectiva da realidade se resumir a um sonho enganador, Descartes estabelece a distinção, ao menos possível, entre o ser e o fenómeno, entre a realidade e a sua aparência fenoménica. Se, a partir de Aristóteles (384 ou 383-322), a metafísica era a ciência do "ser enquanto ser", a partir de Descartes ela será, cada vez mais, a ciência fundada no diálogo entre o "fenómeno" e o "ser". E, assim, chegar-se-á ao "Criticismo" kantiano, assente na antinomia entre o "fenómeno" elaborado pelas "formas a priori" da sensibilidade (o espaço e o tempo) e do entendimento (as doze categorias), e o "númeno", Û seja, as "coisas-em-nós" conhecidas e as "coisas-em-si-mesmas" incognoscíveis.
confiando totalmente na "razão" (diversas correntes filosóficas se lhe virão a opor), como capacidade de apreensão do "real", o pensamento cartesiano, levado às últimas e lógicas consequências, abrirá o caminho às correntes "idealistas" que virão a reduzir a realidade ao próprio pensamento. E, assim, realismo e empirismo encontrar-s-ão em perfeita unidade na filosofia de Hegel (1770-1831), o filósofo da filosofia do "devir", mediante a tríade "tese, antítese, síntese", tríade que "preside, muitas vezes às mais falsas e perniciosas logomaquias", (Marcel Boll e Jacques Reinhardt, Les étapes de la logique, PUf, 1957, páginas 56), filosofia na qual "todo o real é racional; todo o racional é real", idealismo que é um panteísmo evolucionista, idealismo que, com base precisamente na tríade "tese, antítese, síntese", virá a ser contestado pelo materialismo histórico-dialéctico de Karl Marx (1818-1883). com Descartes atinge-se, efectivamente, um ponto de ruptura entre o homem e o universo. o homem é, em si mesmo, na sua mais funda realidade, um ser pensante, e o seu auto conhecimento é, antes de tudo, conhecimento do seu pensamento. A partir daqui, a dicotomia "res cogitans" -- "res extensa" impõe-se como fonte inesgotável de problemas.
A única e verdadeira ciência dos corpos é somente o mecanismo Û mecanicismo, já definida como a "teoria filosófica que explica todas as substâncias e todas as propriedades e transformações do mundo corpóreo por dois princípios únicos: uma matéria homogénea inerte e o movimento local".
O método cartesiano da "ideia clara" é o método intuitivo. também será bem designado com o nome de "método matemático", precisamente por ele ser completamente "a priori": o matemático, com efeito, não raciocina senão sobre grandezas abstractas, sem se preocupar se ³ corpos realizam plenamente as suas concepções. De mais, tal método é simplificado, dispensando as regras excessivamente complicadas da lógica aristotélica, já que o matemático não procede senão por comparações muito simples entre grandezas. tal método leva também Descartes a importantes descobertas matemáticas [1]e convinha especialmente à física moderna que procura reduzir os fenómenos a equações matemáticas, fornecendo-lhe as hipóteses, tais como atomismo, teoria das vibrações, etc., quadros de conjunto destinados a sustentar a imaginação no cálculo das leis. por isso, o grande sucesso do cartesianismo, ao qual não interessava um experimentalismo de Francis Bacon (1561-1626), que com as obras "Instauratio magna" e "Novum Organum" (1620) propõe uma lógica indutiva destinada a substituir a de Aristóteles e dos escolásticos.
Disse o Padre Maréchal (1878-1945): "Descartes, reunindo em si a maior parte das aspirações da sua época, soube dar uma resposta que pareceu satisfatória a muitos espíritos desencantados das filosofias oficiais. Teve o mérito de restaurar audaciosamente o sentido da metafísica que se ia perdendo; como matemático, introduziu na filósofo, enfrentando um ecletismo desagregador, a preocupação do rigor e da unidade sistemática; como físico, não menos que filósofo, ele aprendeu e dominou as tendências científicas mais fundamentais da sua época. assim, deu satisfação a três grandes e inevitáveis exigências do pensamento humano: a exigência eterna de uma metafísica, a exigência da unidade racional na especulação, e também a exigência de uma harmonia das doutrinas filosóficas com os interesses teóricos e práticos do seu tempo". de facto, como disse Huxley (1825-1895), " o sistema de Descartes não é apenas uma curiosidade intelectual para eruditos, mas é a própria alma tanto da filosofia como da ciência contemporânea". finalmente, convém frisar o intenso espírito racionalista ainda que Descartes resolutamente afirma a independência total da "razão", a sua auto-suficiência para alcançar toda a verdade natural, recusando o recurso a uma ordem sobrenatural. Deliberadamente, nunca Descartes procura qualquer forma de inspiração nos dogmas apresentados pela revelação, nem carece de iluminar a marcha de seus raciocínios com qualquer luz da fé religiosa. Poder-se-á dizer que ele "diviniza" a razão ou o bom-senso "que é naturalmente igual em todos os homens". e terminemos com as palavras de émile Lréhier (1876-1952): "nunca fez intervir espontaneamente, na textura da sua filosofia, o menor dogma especificamente Cristão e católico. Fez afirmação da sua fé, não na qualidade de filósofo, mas apenas como cidadão dum país católico".
Perspectivação Didáctica
Os alunos serão orientados no sentido de integrar Descartes no contexto científico da sua época e alertados para a modernidade do filósofo que defende a teoria de uma matemática universal comum a todos os ramos da matemática, susceptível de aplicar a outros métodos do conhecimento, e, simultaneamente, um método a partir da prática das matemáticas, que se resume às quatro regras que devem ser criteriosamente analisadas. Deverão os seus objectivos ser comparados com os da lógica aristotélica. Os alunos serão levados, ainda, a perceber que a finalidade do método consiste em guiar os espíritos nas suas operações intelectuais fundamentais: a intuição e a dedução, operações essas naturais ao bom senso, que é comum a todos os homens, mas que deve ser guiado, para poder distinguir o verdadeiro do falso. Sensibilizar-se-ão os alunos para o facto de a intuição ser considerada por Descartes a fonte fundamental de todo o conhecimento, dado que é pela intuição que se conhecem as primeiras verdades e os primeiros princípios, e que a dedução n~ão passa de um encadeamento contínuo de intuições, apenas se distinguindo pela sucessão e pelo movimento que ela implica.
Os alunos deverão ser introduzidos no itinerário filosófico deste pensador que, partindo da dúvida, chega, por intermédio da intuição do "cogito", a Deus e de Deus ao mundo. Os alunos deverão, no entanto, ser consciencializados de que os domínios da religião e da moral foram isentos da dúvida, porque, sendo a religião revelada, as suas verdades ultrapassam o entendimento, e, daí, a impossibilidade de as submeter a um método que procura distinguir o verdadeiro do falso. A moral só pode ser entendida como ciência prática, visando não a verdade, mas o bem, não a contemplação da verdade, mas a acção; daqui o situar a dúvida na ordem teórica, ou antes, o defini-la como um meio de buscar a verdade filosófica.
Os alunos aperceber-se-ão de que o "cogito" consiste na apresentação de uma natureza simples, a "res cogitans", e que esta intuição é o primeiro princípio da filosofia cartesiana, a primeira justificação da regra da evidência, pondo em relevo que o "eu" não se reduz ao fenómeno psicológico do pensamento, mas que é uma coisa pensante, uma substância, cuja essência é pensar. Sendo o "cogito" a primeira verdade da existência, é através dela que o filósofo penetra no real. Sensibilizar-se-ão os alunos para a identidade do "eu" e da "alma", que não pode ser entendida como o princípio da vida do corpo -- ela é puro espírito -- "eu e o meu espírito", dirá Descartes, que ignora ainda a existência do corpo, e só admite a existência da "res cogitans", defendendo, assim, um solipsismo.
Do "eu pensante" de ideias inatas, o filósofo caminha para Deus, a partir das ideias de "infinito" e "perfeição", as quais só se podem aplicar à divindade. Da ideia de Deus chega à conclusão da sua existência, recorrendo às provas clássicas, mas sobretudo à "ontológica", que é a que mais se aproxima do seu sistema, pois, na sua base, está a intuição que deu existência ao "eu". E, porque Deus existe como ser perfeito, Descartes vai chegar à existência do mundo. Deus é a extrema verdade, garantia das ideias inatas, entre as quais se situa a ideia de extensão e movimento. Assim, aceita a existência da matéria que é extensão e movimento; a extensão de que os corpos são puras determinações (toda a física não é senão geometria). Descartes matematiza a física, enquanto Galileu fisicalizara a matemática. O mecanismo aparece como explicação de toda a física pelo recurso à figura e ao movimento. "res cogitans" e "res extensa" -- eis o dualismo cartesiano, que os seus continuadores procurarão resolver.
Os vários tipos de ideias defendidas pelo filósofo deverão ser abordados, acentuando-se, porém, a sua posição racionalista inatista.
INTRODUÇÃO
Poder-se-á começar por dizer, com Fontenelle (1657-1757) que o "Discurso do Método" "fez da razão humana um instrumento de precisão" e com o escritor espanhol Ortega y Gasset (1883-1955) que Descartes é "o primeiro homem moderno", na ciência, sobretudo na matemática, e mais que tudo na filosofia. A leitura atenta do "Discurso do Método" patenteará a justeza desta afirmação, quando se sabe o que foi o homem medieval sujeito a "autoridades" consideradas indefectíveis.
O escritor francês Paul Valéry (1871-1945) assim se refere a Descartes e à sua obra mais conhecida: "que leio eu no Discurso do método? O que nele me prende, a partir da encantadora narração e das circunstâncias iniciais da sua obra, é a presença dele mesmo neste prelúdio de uma filosofia. É, por assim dizer, o emprego do je e do moi, numa obra desta natureza, e é isso, talvez, o que se opõe mais claramente à arquitectura escolástica. São o je e o moi que nos levam a formas de pensamento de uma completa generalidade. Tal é o meu Descartes". [2] Se a narração é encantadora ou não o leitor o dirá, que o je e o moi estão presentes no Discurso do Método do princípio ao fim é uma verdade incontroversa, como verdade é também que todo o pensamento moderno de índole idealista (idealismos psicológico, lógico e ontológico) está incontroversamente implícito no "cogito" (je pense) cartesiano.
A arquitectura filosófica escolástica era tradicionalista, ultraconservadora, realista (não é aqui o momento para apresentar e discutir a famosa questão ou "querela" dos universais"), intelectualista estruturalmente, segundo o modelo aristotélico-Tomista, e teocêntrica, de tal forma que a filosofia era considerada uma serva ou escrava da teologia (ancilla theologiae).
A arquitectura filosófica cartesiana é progressista, inovadora, apesar de ainda presa a uma forte tradição idealista, racionalista, e de índole verdadeiramente antropocêntrica, o que transparece perfeitamente na primeira certeza do "eu pensante", que frente à atitude dogmática dum realismo "ingénuo" e "natural" (este aristotélico-Tomista), se opõe numa atitude crítica, em busca da clareza e simplicidade do pensamento, garantidas pela "razão", dado que só será real o que for racional.
Filosoficamente ("a fortiori" cientificamente), é a razão individual -- razão que "é naturalmente igual em todos os homens" (Discurso do método, página 22 deste volume) e não privilégio de alguns -- que fala, que quer falar, liberta da tradição aristotélico-escolástica, esterilizante em seu verbalismo exagerado, e também liberta do dogmatismo teológico e duma moral religiosa impostos coactivamente, ou com mais exactidão, inquisitorialmente, no tempo de Descartes e anteriormente.
Descartes afirma-se crente, Cristão, católico, "conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância" (
Discurso do Método, páginas 86-87). Diz também: "reverenciava a nossa Teologia e desejava, como qualquer outro, ganhar o Céu, mas, tendo aprendido como coisa certíssima que caminho do Céu não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que lá conduzem, estão acima da nossa inteligência, não ousaria sujeitá-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender com êxito o seu exame, era precisa alguma assistência extraordinária do Céu e ser mais do que homem" (Ibidem, páginas 31-32).
Descartes nunca quis, pois, "ser mais do que homem", e nunca recebeu, a seu ver, claro e distinto, "alguma assistência extraordinária do Céu", o qual pode ser ganho sem nada se saber de teologia, donde a clara inutilidade desta. Por esta sua atitude de espírito, compreende-se que o seu contemporâneo Blaise Pascal (1623-1662), grande pensador, mas homem religiosíssimo, adepto do jansenismo, tenha dito que, em perspectiva religiosa da existência, Descartes era "inútil e incerto" (pensamento 78), conclusão do seu "pensamento" anterior que passamos a transcrever: "não posso perdoar a Descartes. Ele bem desejaria, em toda a sua filosofia, poder passar sem Deus, mas não pôde evitar pô-lo a dar um impulso inicial, um piparote (chiquenaude), para pôr o mundo em movimento. Depois do que Deus já não interessa para mais nada" (ir n'a plus que faire de Dieu").
Se Descartes, no plano teórico ou especulativo, libertando-se duma atitude solipsista, vai fundar na "veracidade divina" a existência da realidade externa, sem que haja qualquer referência a dogmas da fé cristã, no plano prático da acção moral, não fazendo qualquer referência à moral religiosa, procura orientar-se na vida somente por uma "moral provisória", como se viu, conduzindo-se "de acordo com as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero, as quais fossem comummente posta em prática pelos mais sensatos de entre aqueles com quem teria de viver" (Discurso do Método, página 87 deste volume).
Nada no discurso do método (e nas restantes obras de Descartes) se encontra que vá contra o catolicismo, tanto no campo do dogma, como no da moral, nada que vá contra a ortodoxia eclesiástica vigente no seu tempo, mas, por Decreto de 20 de Novembro de 1663, 13 anos após a sua morte, as suas "opera philosophica", (obras filosóficas) foram condenadas eclesialmente, postas oficialmente no index librorum prohiibitorum (índice dos livros proibidos) com esta observação absurda "donec corrig", isto é, "até que sejam corrigidas" ou -- o que é o mesmo -- "enquanto não forem corrigidas". Dissemos "absurda", porquanto, além de não ser dito o que devia ser corrigido, o autor (e só ele faria as correcções, se visse que as devia fazer) já nada podia corrigir, por estar morto.
Porque foi, então, condenado eclesiasticamente por Roma o "inocente" Descartes? Simplesmente, por a sua filosofia ser considerada "revolucionária", muito perigosa por conter sementes de possíveis "heresias", por, com seu individualismo e racionalismo, marginalizar a cultura filosófica tradicional e oficial, suporte da religião cristã-católica.
O Discurso do Método foi a primeira obra filosófica escrita em francês, na língua do seu país, e não em latim, "por esperar que aqueles que se servem unicamente da sua razão natural completamente pura julgarão melhor as minhas opiniões do que aqueles que não acreditam senão nos livros antigos" (Discurso do Método, volume terceiro, página 114).
A obra está escrita numa linguagem acessível a toda a gente, "la langage des honêtes gens", evitando o emprego de termos da filosofia escolástica, filosofia que ele ataca, em vários pontos do discurso.
Como muito bem diz Bertrand Russell (1872-1970) na sua "História da Filosofia Ocidental": "Descartes não escreve como um Professor, mas como um descobridor e um explorador ansioso por comunicar a outrém o que encontrou. O seu estilo é fácil e despretensioso, dirigido ao homem inteligente do mundo mais do que a alunos. É, além disso, um excelente estilo. Foi uma autêntica sorte para a filosofia moderna que o seu pioneiro tenha tido o mais admirável senso literário. Os seus sucessores, tanto no continente como na Inglaterra, à excepção de Kant, mantiveram este carácter não professoral e muitos deles conservaram muito do seu método estilístico".
Para tornar "leve" o texto cartesiano, que é uma perfeita autobiografia espiritual, pois Descartes não deseja ensinar professoralmente seja o que for, mas descrever-se a si mesmo, tomamos a liberdade de formar períodos e parágrafos que não se encontram na obra original.
Sempre que um autor é mencionado, consideramos útil (íamos a dizer "pedagógico", indicar as datas de nascimento e morte, na era cristã. Por serem supérfluas, são, pois, banidas as abreviaturas "a.C." e "d.C.", excepto no caso de serem necessárias -- o que talvez tenha sucedido umas duas vezes.
Quanto às "notas", anotemos que umas são nossas e outras (a maior parte delas) são de outros, mas a questão da sua autoria afigura-se-nos despicienda, no caso vertente, porquanto o que deve interessar, o que, de facto, interessa é que elas sejam oportunas e devidamente esclarecedoras, o mais possível "claras e distintas". Algumas "notas", sobretudo para os estudantes ou estudiosos que deram ainda poucos passos e bastante titubeantes nos longos caminhos da filosofia, precisariam de outras "notas", mas os espíritos curiosos e estudiosos, para os quais "filosofia fácil" terá sempre "cultura falsa", saberão encontrar os processos -- será tudo uma questão de "método", como queria Descartes -- d esclarecer o que não ficou completamente esclarecido.
Pode haver quem julgue que essas "notas" são de mais e algumas inúteis. Quanto à inutilidade, gostos intelectuais não se discutem, mas a quem, no caso vertente, acordar com o ditado "o que é de mais é moléstia", poder-se-á retorquir com o velho ditado latino "quod abundat, non nocet", ditado que, em vernáculo, quer dizer: "não é prejudicial o que existe em abundância..." a não ser como o excesso verborreico de crise de fartura.
Quem mais "notas" desejar, exaustivamente esclarecedoras do texto cartesiano, encontrá-las-á na obra de Étienne de Gilson, [3] nascido em 1884, porquanto quase centenário, obra em que o Discurso do Método ocupa 78 páginas e o "comentário histórico" quase 400 páginas, pois vai da página 79 à página 477, conforme a última edição que um amigo nos mostrou numa biblioteca e cujas páginas ainda se encontravam por abrir.. e por abrir ficaram. Ao referido "comentário histórico" seguiam-se ainda as "correcções e aditamentos" (da página 478 à página 485) e, finalmente, um "apêndice" (da página 486 à página 490).
Parafraseando, de certo modo, Descartes, agradecemos que Professores e Alunos (e leitores autodidactas) nos ajudem com suas sugestões, rectificações e correcções, "visto que muitos podem ver melhor do que um só", como diz Descartes; e, segundo o magnânimo espírito de Descartes, "é propriamente nada valer o não ser útil a alguém", oxalá que, neste trabalho que pouco ou nada terá de original, tenhamos sido, cartesianamente, úteis a muitos.
DISCURSO DO MÉTODO
PARA BEM CONDUZIR A RAZÃO
E PROCURAR A VERDADE NAS CIÊNCIAS
Se este Discurso parecer excessivamente longo para ser lido de uma só vez, poder-se-á dividi-lo em seis partes. Na primeira parte, encontrar-se-ão diversas considerações relativamente às ciências; na segunda, as principais regras do método que o autor procurou; na terceira, algumas regras da moral [4] que ele tirou desse método; na quarta, as razões pelas quais ele prova a existência de Deus e da alma humana, que são os fundamentos da sua metafísica; na quinta, a ordem das questões de física que ele investigou, particularmente a explicação do movimento do coração e de algumas outras dificuldades relativas à medicina, e bem assim a diferença existente entre a nossa alma e a dos animais; na última, as coisas que ele pensa serem necessárias para avançar na investigação da natureza mais do que até agora se fez, e as razões que o levaram a escrever.
PRIMEIRA PARTE
CONSIDERAÇÕES RELATIVAS ÀS CIÊNCIAS
O bom senso é a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída ([6]), porque cada um pensa estar tão bem dotado dele, que até mesmo aqueles que dificilmente se contentam com qualquer coisa não costumam desejar mais do que aquele que possuem ([7]). [5] E não é verosímil que nisto todos se enganem, mas, pelo contrário, tal facto prova que a faculdade ou poder de julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é precisamente o que se chama bom senso ou razão ([8]), é naturalmente igual em todos os homens; e, nesta conformidade, a diversidade das nossas opiniões não provém de uns serem mais racionais do que os outros, mas apenas provém do facto de conduzirmos os nossos pensamentos por caminhos [6] diversos e não considerarmos as mesmas coisas. ([9])
Efectivamente, não basta ter o espírito bom, pois que o principal é aplicá-lo bem. [7] As almas, por maiores que sejam, são capazes dos maiores vícios, assim como das maiores virtudes, e aqueles que caminham muito lentamente podem ir mais longe, se seguirem sempre o caminho direito, do que aqueles que correm e dele se desviam. [8]
Pelo que me diz respeito, jamais tive a presunção de que o meu espírito [9] fosse, em coisa alguma, mais perfeito do que os espíritos da gente comum; desejei, até, muitas vezes, ter o meu pensamento tão pronto, a imaginação tão clara e distinta, ou a memória tão ampla e rápida, como têm algumas pessoas. E não conheço outras qualidades diferentes das que servem à perfeição do espírito, pois que, no respeitante à razão ou senso, dado que é a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais, quero querer que se encontra inteiramente em cada um de nós, seguindo eu nisto a comum opinião dos filósofos [10] que afirmam não haver mais ou menos senão entre os acidentes e nunca entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie. [11]
Não recearei dizer que julgo ter tido muita sorte em me ter encontrado, desde a juventude, alguns caminhos que me levaram a considerações e máximas, mediante as quais vim a formar um método que me parece ter dado a possibilidade de aumentar gradualmente o meu conhecimento e de o elevar, pouco a pouco, ao mais alto ponto a que a mediocridade do meu espírito e a curta duração da minha vida lhe permitirão chegar ([10]). Com efeito, desse método já colhi tais frutos [12] que, embora no juízo que de mim mesmo faço, procuro sempre inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e vendo com olhar de filósofo as diversas acções e empreendimentos de todos os homens, não havendo quase nenhuma acção que me não pareça vã e inútil, não deixo, contudo, de receber uma bem grande satisfação com o progresso que penso já ter obtido na busca da verdade, e de conceber tais esperanças, para o futuro, que, se entre as ocupações dos homens merecedores deste nome há alguma que seja solidamente boa e importante, ouso crer que é precisamente aquela que escolhi. [13]
Pode, todavia, suceder que me engane e o que tomo por ouro e diamantes mais não seja que um bocado de cobre e de vidro. Sei quanto estamos sujeitos a enganar-nos naquilo que nos diz respeito, [14]e quanto devemos também desconfiar dos juizos dos nossos amigos, quando nos são favoráveis. Mas ser-me-á bem agradável mostrar, neste discurso, que caminhos segui e nele representar a minha vida, como num quadro, a fim de que cada um a possa julgar, e, conhecedor das opiniões formuladas, isso venha a ser um novo meio de me instruir, meio que acrescentarei àquele de que me costumo servir ([11]).
Assim, não tenho o propósito de ensinar aqui o método que cada um deve seguir, para bem conduzir a razão, mas tão-somente fazer ver de que maneira procurei conduzir a minha. Os que se dão ao trabalho de dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem os dão, e, se falham na mais pequena coisa, são, por isso, dignos de censura.
Mas, ao apresentar esta obra apenas como uma história, ou, se se preferir, como uma fábula, [15]na qual, entre alguns exemplos dignos de imitação, se encontrarão talvez muitos outros que não são razoavelmente de se seguir, espero vir a ser útil a alguns, sem ser nocivo a quem quer que seja, e espero que todos terão em apreço a minha franqueza.
Desde a infância, alimentei-me das letras [16] e tinha um grande desejo de aprendê-las, porque me tinham persuadido de que se podia por meio delas adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo quanto é útil à vida. Mas, logo que terminei este ciclo de estudos, no termo do qual é costume ser-se acolhido na categoria dos doutos, mudei completamente de opinião ([12]). Encontrava-me, realmente, enredado de tantas dúvidas e erros, que me parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto, cada vez mais, a minha ignorância. E, contudo, tinha frequentado uma das mais célebres escolas da Europa, [17] onde -- pensava eu -- aí se deviam encontrar homens sábios, se é que eles se encontram em algum lugar da terra. Lá aprendera tudo o que os outros aprendiam, e até, não me satisfazendo com as ciências que nos ensinavam, percorrera todos os livros que me vieram ter às mãos e que tratavam daquelas ciências consideradas como as mais curiosas e as mais raras.
Tinha, também, conhecimento dos juízos que os outros faziam a meu respeito, e, de modo nenhum, via que me julgassem inferior aos meus condiscípulos, muito embora já houvesse, entre eles, alguns destinados a substituir os meus mestres. Em fim, o nosso século parecia-me tão florescente e tão fértil em bons espíritos, como não sucedera, nos séculos anteriores. O que me levava a tomar a liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que jamais houvera, no mundo, qualquer doutrina que fosse tal como até então me tinham levado a esperar.
Não deixava, apesar de tudo, de ter em estima os exercícios em que nos ocupávamos nas aulas. Sabia que as línguas [18] nelas aprendidas são necessárias para a compreensão dos livros antigos; que a gentileza das fábulas desperta o espírito; que as acções dignas de memória da história elevam o espírito, e que, sendo lidas com discrição, ajudam à formação do juízo crítico; que a leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as pessoas mais honrosas dos séculos passados, que foram os seus autores, e até uma conversa estudiosa em que eles nos patenteiam os melhores dos seus pensamentos; que a eloquência é dotada de forças e belezas incomparáveis; que a poesia possui delicadezas e doçuras muito encantadoras; que as matemáticas têm invenções deveras subtis e que podem servir muito, quer para contentar espíritos curiosos, quer para facilitar todas as artes [19] e diminuir os trabalhos dos homens; [20] que os escritos acerca dos costumes contêm muitos ensinamentos e muitas exortações à virtude, que são muitíssimo úteis; que a teologia ensina a ganhar o Céu; que a filosofia ensina a falar com verosimilhança acerca de todas as coisas e faz-se admirar pelos menos sabedores ([13]), que a jurisprudência, a medicina [21] e as outras ciências trazem honras e riquezas àqueles que as cultivam; enfim, que é bom tê-las examinado a todas, até as mais supersticiosas e mais falsas, a fim de lhes conhecer o justo valor e evitar ser-se por elas enganado.
Julgava eu, efectivamente, ter já dedicado tempo bastante às línguas e, outrossim, à leitura dos livros antigos, às suas histórias e fábulas. [22] Com efeito, parece que o conversar com pessoas de outros séculos é o mesmo que viajar. E bom é saber-se alguma coisa acerca dos costumes de outros povos, para que possamos julgar os nossos mais rectamente e para que não pensemos que tudo quanto é contra nossos modos de ser é simplesmente ridículo e contra a razão, como costuma suceder com aqueles que nada viram. [23]
Contudo, quando se emprega tempo de mais a viajar, uma pessoa torna-se estrangeiro no seu próprio país; e, quando se é demasiado curioso das coisas que se passaram nos séculos passados, geralmente fica-se muito ignorante das que se passam no presente. De resto, as fábulas fazem imaginar como possíveis muitos acontecimentos que o não são, e até as histórias mais fiéis, se bem que não mudem nem aumentem o valor das coisas com o fim de as tornar mais dignas de ser lidas, pelo menos omitem quase sempre as circunstâncias mais baixas e menos ilustres, [24] Donde resulta que o restante não parece tal qual é, e aqueles que regulam seus costumes pelos exemplos delas tirados estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos paladinos dos nossos romances e a conceber projectos que vão além das suas próprias forças.
Tinha em grande estima a eloquência e estava apaixonado pela poesia, mas pensava que tanto uma como a outra eram mais dons do espírito do que frutos do estudo. Os que são dotados de raciocínio mais forte e digerem [25] melhor os seus pensamentos, para os tornar claros e inteligíveis, têm sempre a possibilidade de dar mais persuasão àquilo que propõem, ainda que só falem o baixo bretão e nunca tenham aprendido retórica. Do mesmo modo, os que têm as mais agradáveis invenções e as sabem exprimir com mais ornamento e doçura não deixam de ser os melhores poetas, ainda que a arte poética lhes seja desconhecida.
Sentia prazer, sobretudo, nas matemáticas, devido à certeza e evidências das suas razões, [26] mas nada notara ainda da sua verdadeira aplicação, e, pensando que elas serviam apenas para as artes mecânicas, admirava-me de que, sendo os seus fundamentos tão firmes e sólidos, nada de mais elevado se tivesse construído sobre eles.
Comparava, também, os escritos dos antigos pagãos sobre os costumes a palácios verdadeiramente soberbos e magníficos, mas construídos apenas sobre areia e lama: erguem muito alto as virtudes fazem-nas parecer o que há de mais estimável acima de todas as coisas que no mundo se encontram, mas não ensinam o suficiente para as conhecer-mos, [27] e, frequentemente, o que eles designam com um tão belo nome, mais não é que uma insensibilidade, um orgulho, um desespero ou um parricídio. [28]
Reverenciava a nossa teologia e desejava, como qualquer outro, ganhar o Céu, mas, tendo aprendido como coisa certíssima que o caminho do Céu não está menos aberto aos mais ignorantes do que aos mais doutos, e que as verdades reveladas, que lá conduzem, estão acima da nossa inteligência, não ousaria sujeitá-las à fraqueza dos meus raciocínios, e pensava que, para empreender com êxito o seu exame, era precisa alguma assistência extraordinária do Céu e ser mais do que homem. [29]
Acerca da filosofia apenas direi que, cultivada pelos mais excelentes espíritos que, há vários séculos, viveram, e não se encontrando nela ainda coisa alguma indiscutível, [30] e, consequentemente, que não seja duvidosa, eu não tinha, de forma alguma, a presunção de vir a ser mais bem sucedido do que os outros. E, considerando como sobre uma mesma matéria pode haver opiniões diversas, defendidas por pessoas doutas, sem que possa haver mais do que uma que seja verdadeira, reputava quase como falso tudo o que era apenas verosímil. [31]
Depois, quanto às outras ciências, na medida em que baseiam seus princípios na filosofia, julgava não ser possível construir nada de sólido sobre fundamentos tão pouco firmes [32] E nem a honra, nem o ganho que elas prometem eram suficientes, para mi incitarem a aprendê-las, pois que, de forma alguma, me sentia, graças a Deus, em condições que me obrigassem a fazer da ciência um ofício, para alívio da minha fortuna, [33] e, muito embora não tivesse a intenção de, como um cínico, [34] desprezar a glória, considerava de somenos importância aquela glória que podia alcançar apenas com falsos títulos. Finalmente, quanto às más doutrinas, julgava já saber suficientemente o que elas valiam de modo que já não me encontrava sujeito a ser enganado, nem pelas promessas dum alquimista, [35] nem pelas predições dum astrólogo, [36] nem pelas imposturas dum mágico, [37] nem pelos artifícios e fanfarronices de qualquer um daqueles que fazem profissão de saber mais do que realmente sabem.
Foi por isso que, mal a idade me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei completamente o estudo das letras, e, tomando a resolução de não procurar mais outra ciência senão a que pudesse encontrar em mim mesmo, [38] ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto da minha juventude a viajar, a ver cortes e exércitos, a conviver com pessoas de diversos feitios e condições, a recolher variadas experiências, a experimentar-me a mim próprio nas circunstâncias que a sorte me proporcionava, e a reflectir sempre sobre as coisas que se me apresentavam, de modo que delas pudesse tirar algum proveito.
Realmente, parecia-me que poderia encontrar muita mais verdade nos raciocínios que cada pessoa faz relativamente aos assuntos que lhe interessam, e, se julgou mal, vem logo a sofrer as consequências, do que naqueles raciocínios que faz um homem de letras, [39] no seu gabinete, relativos a especulações que nenhum efeito produzem, e que ele não têm outro resultado senão, talvez, o de lhe darem tanta mais vaidade, quanto mais afastadas estiverem do senso comum, por ter de empregar muito mais espírito e artifício, para as tornar verosímeis. Ora eu tinha sempre um muito grande desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas acções e caminhar com segurança nesta vida.[14]
É certo que, durante o tempo em que considerava os costumes dos outros homens, quase nada encontrava que me desse segurança, ao ver neles quase tanta diversidade quanta já tinha encontrado nas opiniões dos filósofos. [40] Assim, ao ver muitas coisas que, embora nos pareçam muito extravagantes e ridículas, não deixam de ser comummente recebidas e aceites por outros grandes povos, o maior proveito que disso tirei foi o de aprender a não acreditar tão firmemente no que me tinha sido transmitido pelo exemplo e pelo costume, [41] e, desta maneira, ir-me libertando, pouco a pouco, de muitos erros que podem ofuscar a nossa luz natural [42] e tornar-nos menos capazes de ouvir a razão. Mas, depois de ter, assim, empregue alguns anos a estudar no livro do mundo e a procurar adquirir alguma experiência, tomei, um dia, a resolução [43] de me estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças do meu espírito em escolher os caminhos que devia seguir, o que me deu muito melhor resultado, segundo me parece, do que se nunca me tivesse afastado, quer do meu país, quer dos meus livros.
([15])
SEGUNDA PARTE
PRINCIPAIS REGRAS DO MÉTODO.
Encontrava-me, então, na Alemanha [44] para onde fora atraído, aquando das guerras que ainda não terminaram, e, quando regressava do exército, após a coroação do Imperador, [45] o começo do inverno deteve-me num aquartelamento, onde, não encontrando qualquer conversação que me distraísse e não tendo, de resto, e felizmente, quaisquer cuidados ou paixões que me perturbassem, passava o dia inteiro, sozinho, fechado no quarto, defronte de um fogão (poêle), com tempo suficiente, para me entregar livremente aos meus pensamentos.
Destes, um dos primeiros foi dar comigo a pensar que, muitas vezes, não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela mão de vários mestres, como naquelas trabalhadas apenas por um só. [46]
Assim, vemos que os edifícios, começados e concluídos por um único arquitecto, costumam ser mais belos e mais bem ordenados do que aqueles que vários se esforçam por repara, servindo-se de velhas paredes, para outros fins construídas. [47] Igualmente, aquelas antigas cidades que, começando por ser umas aldeolas, se tornaram em grandes cidades com o decorrer do tempo, são, geralmente, tão mal traçadas, [48] comparativamente àquelas praças fortes regulares, arquitectadas numa planície, por um engenheiro, conforme sua imaginação, que, embora considerando cada edifício de per si, neles se encontra, muitas vezes, tanta ou mais arte que nos edifícios das outras cidades, onde, ao ver-se como estão dispostos, aqui um grande, além um pequeno, e ao ver-se como as ruas se tornam tortuosas e desiguais, dir-se-ia ter sido aquilo antes obra do acaso que da vontade de alguns homens, que, servindo-se da razão, assim os dispuseram. e, se também considerarmos que houve, em todos os tempos, alguns funcionários incumbidos de fiscalizar as construções dos particulares, de forma que elas se enquadrassem no embelezamento do todo, reconhecer-se-á perfeitamente quão difícil é, trabalhando-se sobre as obras de outrem, fazer coisas muito bem acabadas.
Supus, igualmente, que os povos outrora semi-selvagens e que se foram, pouco a pouco, civilizando, não fizeram as suas leis senão à medida que o incómodo dos crimes e das questões a isso os obrigou, não podiam ser tão bem governados como aqueles que, desde o momento em que se reuniram, cumpriram as constituições de algum prudente legislador. Certíssimo é também que o estado da verdadeira religião, cujos mandamentos apenas Deus fez, deve ser regulamentado incomparavelmente melhor do que todos os outros.
E, para falar das coisas humanas, creio que, se Esparta foi outrora, florescentíssima, não o foi devido à bondade de cada uma das suas leis em particular, visto que algumas eram muito extravagantes e até contrárias aos bons costumes, mas sim devido a tenderem para o mesmo fim, inventadas por um só homem. [49] E também pensei que as ciências dos livros, pelo menos aquelas cujas razões são somente prováveis [50] e não têm quaisquer demonstrações, tendo-se formado e aumentado, pouco a pouco, com as opiniões de muitas e diversas pessoas, não se aproximam tanto da verdade, como os simples raciocínios que, naturalmente, pode fazer um homem de bom senso acerca das coisas que se lhe apresentam.
E também pensei que, tendo todos nós sido crianças antes de sermos homens, [51] e, tendo sido necessariamente governados, anos e anos, pelos nossos apetites e pelos nossos preceptores, muitas vezes contrários uns aos outros, e não nos aconselhando uns e outros o que seria sempre melhor, é quase impossível que os nossos juízos sejam tão puros e sólidos, como teriam sido, se tivéssemos tido, desde o nascimento, o uso inteiro da nossa
a razão e só por ela tivéssemos sido conduzidos. [52]
É verdade que não vemos ninguém derrubar todas as casas de uma cidade, levado pelo mero propósito de as reconstruir de outra maneira e, assim, tornar as ruas mais belas, mas vemos muitos mandar demolir as suas casas, para as reconstruir, e são até, às vezes, forçados a isso, quando elas se encontram na iminência de ruir por si mesmas e os alicerces não estão muito sólidos.
Ao pensar nisto, persuadi-me de que, em verdade, não tem sentido que um particular elaborasse um projecto de reformar um Estado, mudando-lhe tudo desde os fundamentos, para, depois, o construir de novo; nem tem, igualmente, sentido que com a destruição se pretendesse reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecidos nas escolas, para, seguidamente, os ensinar. [53] Mas, quanto às opiniões recebidas até então como críveis, nada de melhor poderia fazer do que pô-las de reserva, a fim de as substituir por outras melhores, ou aceitá-las, depois de as ajustar ao nível da razão.
Acreditei firmemente que, deste modo, conseguiria conduzir a minha vida muito melhor do que se houvesse de a construir sobre velhos fundamentos, e não me apoiasse senão sobre os princípios de que me deixara convencer, na minha juventude, sem que nunca tivesse procurado ver se eram verdadeiros. E, muito embora notasse, neste labor, diversas dificuldades, [54] tais dificuldades não eram, de forma alguma, insolúveis, nem eram comparáveis às que se encontram na reforma das mais pequenas coisas concernentes à sociedade. Quando abatidos estes grandes corpos, [55] muito dificilmente podem ser soerguidos, é difícil mantê-los, quando abalados, e as suas quedas não podem deixar de ser muito violentas.
Pelo que respeita às suas imperfeições, se as há, -- sendo suficiente a diversidade que há entre eles, para garantir que vários as possuam, o costume, indubitavelmente, atenuou-as muito, e até foi evitando ou corrigindo, insensivelmente, um grande número, que, prudentemente, não se poderiam remediar tão bem. Finalmente, tais imperfeições são quase sempre mais suportáveis do que a sua mudança, [56] assim como os grande caminhos que vão serpenteando entre as montanhas se tornam, pouco a pouco, tão unidos e tão cómodos, à força de serem frequentados, que é muito melhor segui-los do que ir a direito, trepando rochedos e descendo ao fundo dos precipícios.
Por isso é que, de modo algum, poderia aprovar esses temperamentos (humeurs) complicados e inquietos que, não sendo chamados nem pelo nascimento nem pela sorte à gestão dos negócios públicos, não deixam nunca de fazer em pensamento qualquer reforma. E, se pensasse haver nesta minha obra a mínima coisa que levasse alguém a suspeitar de uma semelhante loucura, ficaria verdadeiramente desolado em consentir que fosse publicada. Nunca o meu intento foi mais além do que procurar reformar os meus próprios pensamentos e construir em bases totalmente minhas. [57] Se a minha obra, cujo modelo vos apresento aqui, tanto me agradou, isso não quer dizer que queira aconselhar alguém a imitá-la. Aqueles a quem Deus mais favoreceu com suas graças terão, possivelmente, desígnios mais elevados, mas receio bem que este seja ousado de mais para muitos. A simples resolução de nos desfazermos de todas as opiniões, que antes recebemos como críveis, não é um exemplo que qualquer um deva seguir. E o mundo é composto quase exclusivamente de duas espécies de espíritos, aos quais, de modo algum, o meu projecto convém: daqueles que, julgando-se mais hábeis do que são, não se podem coibir de precipitar os seus juízos, nem conseguem ter paciência suficiente, para ordenadamente conduzir os seus pensamentos, donde resulta que, se uma vez tomassem a liberdade de duvidar dos princípios que receberam e de se afastar do caminho comum, jamais poderiam manter-se na senda que é preciso tomar, para caminhar mais direito, e, durante a vida inteira, ficariam perdidos; e daqueles que, tendo bastante razão ou modéstia, para se julgarem menos capazes de distinguir o verdadeiro do falso do que alguns outros, por quem podem ser instruídos, devem preferentemente contentar-se em seguir as opiniões desses outros, e não procurarem eles próprios outras melhores. [58]
Quanto a mim, ficaria, sem dúvida, no número destes últimos, se tivesse tido somente um mestre ou não houvesse sabido nada das diferenças que, em todos os tempos, houve entre as opiniões dos mais doutos. Aprendi, porém, desde o tempo do colégio, que nada se pode imaginar de tão estranho e tão pouco crível, que não tenha sido dito por algum filósofo, [59]e depois, ao viajar, tendo reconhecido que todos os que têm sentimentos muito contrários aos nossos não são, por esse facto, bárbaros ou selvagens, mas, pelo contrário, muitos usam da razão tanto ou mais do que nós, e, tendo considerado como um mesmo homem, com o seu mesmo espírito, sendo criado, desde a infância, entre franceses ou alemães, não é o mesmo que seria, se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais, [60] e como até, nas modas do vestuário, a mesma coisa que nos agradou, há dez anos, e que nos agradará talvez antes de outros dez, nos parece agora extravagante e ridícula, de tal modo nos persuadem mais o costume e o exemplo que qualquer conhecimento certo; e que nem a pluralidade das opiniões constituem prova que valha para as verdades um pouco difíceis de descobrir, pois é muito mais verosímil que um só homem as tenha encontrado do que um povo inteiro, -- eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem preferíveis às dos outros e encontrava-me, assim, como que obrigado a tomar a iniciativa de me conduzir a mim próprio.
Porém, como o homem que caminha sozinho e nas trevas, resolvi seguir tão lentamente e usar de tanta circunspecção em todas as coisas que, muito embora avançasse pouquíssimo, evitaria, pelo menos, cair. De resto, não quis começar por rejeitar imediatamente qualquer das opiniões que, outrora, se tinham insinuado no meu espírito crente, sem que fossem introduzidas pela razão, antes de empregar o tempo suficiente a elaborar o plano da obra que iria empreender, e a procurar o verdadeiro método, para alcançar o conhecimento de todas as coisas de que o meu espírito fosse capaz.
Quando mais jovem, havia-me dedicado um pouco, entre as partes da filosofia, [61] à lógica e, entre as matemáticas, à análise geométrica e à álgebra, três artes ou ciências que me pareciam poder contribuir alguma coisa para o meu plano. Mas, ao examiná-las com cuidado, reparei que, quanto à lógica, os seus silogismos [62] e a maior parte das suas outras regras, em vez de ensinar, servem antes para explicar a outrem as coisas que já se sabem, ou mesmo como a arte de Lúlio, [63] para falar sem discernimento do que se ignora. E se bem que a lógica tradicional contenha, efectivamente, muitos preceitos muito verdadeiros e muito bons, encontram-se com eles misturados muitos que são ou prejudiciais ou supérfluos, quase tão difíceis de separar dos outros, como tirar uma Diana ou uma Minerva [64] dum bloco de mármore ainda não esboçado.
Depois, quanto à análise [65] dos antigos e quanto à álgebra [66] dos modernos, além de elas não se aplicarem senão a matérias muito abstractas e parecerem não ter qualquer utilidade, a primeira está sempre tão ligada à consideração das figuras, que não pode exercitar o entendimento sem cansar muito a imaginação, e a segunda sujeita-nos de tal modo a certas regras e a certos números, que se fez dela uma arte confusa e confusa, que embaraça o espírito, em vez de ser uma ciência que o cultive. Foi por isso que pensei ser necessário procurar qualquer outro método, o qual, incluindo as vantagens destas três ciências, estivesse isento dos seus defeitos. E, como o grande número das eis fornece, muitas vezes, desculpas aos vícios, de maneira que um Estado é muito melhor governado, quando, tendo pouquíssimas leis, elas são rigorosamente cumpridas, analogamente, em lugar daquele grande número de preceitos que constituem a lógica, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que eu tomasse a firme e constante resolução de não deixar uma só vez de os cumprir.
O primeiro consistia em nunca aceitar coisa alguma por verdadeira, sem que a conhecesse evidentemente como tal, ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção [67] e não incluir nada mais nos meus juízos senão o que se apresentasse tão claramente e tão distintamente ao meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de o pôr em dúvida. O segundo consistia em dividir cada uma das dificuldades que examinava em tantas parcelas quantas fosse possível e fosse necessário, para melhor as resolver.
O terceiro consistia em conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objectos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais complexos, não deixando de supor certa ordem entre aqueles que não se sucedem naturalmente uns aos outros. [68]
O último consistia em fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de nada omitir. [69]
Estas longas cadeias de razões, completamente simples e fáceis, das quais os geómetras costumam servir-se, para chegar às mais difíceis demonstrações, tinham-me dado oportunidade de supor que todas as coisas que podem cair no conhecimento dos homens se ligam da mesma maneira, e que, contanto que nos abstenhamos, simplesmente, de aceitar como verdadeira qualquer uma que o não seja, e conservemos sempre a ordem necessária para as deduzir umas das outras, é impossível havê-las tão afastadas, que, por fim, não se alcancem, nem tão ocultas que não se venham a descobrir. [70]
E não me foi difícil descobrir por quais era preciso começar, porquanto já sabia que seria pelas mais simples e mais fáceis de conhecer. E, considerando que, entre todos quantos até agora procuraram a verdade nas ciências, somente os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, ou seja, algumas razões certas e evidentes, nenhuma dúvida tive em que deveria começar pelas mesmas que eles examinaram, ainda que não esperasse delas qualquer outra utilidade se não a de habituarem o meu espírito a alimentar-se de verdades, não se contentando nunca com falsas razões.
Tendo, assim, em vista tal finalidade, não concebi um projecto de esforçar-me por aprender todas as ciências particulares usualmente chamadas matemáticas; [71] e, vendo que, embora os seus objectos sejam diferentes, elas não deixam, todavia, de estar todas de acordo, ao considerarem sempre as diversas relações ou proporções que nelas se encontram, pensei então que valia mais examinar somente essas proporções em geral e supô-las tão-somente naquilo que me servisse, para tornar o conhecimento mais fácil, sem as sujeitar, de modo algum, a essas figuras, para, depois, as poder aplicar melhor a todas as outras coisas a que conviessem.
Seguidamente, tendo notado que, para as conhecer, teria, algumas vezes, necessidade de as considerar cada uma em particular, e, outras vezes, teria somente de as reter ou de compreender várias em conjunto, pensei que, pra as considerar melhor em particular, as deveria imaginar como linhas, pois não encontrava nada mais simples, nem que pudesse mais distintamente representar à minha imaginação e aos meus sentidos. Porém, para as reter ou compreender várias em conjunto, era preciso que as explicasse por meio de alguns sinais (chiffres), o mais simples possíveis, [72] E, por este meio, viria a utilizar o que de melhor tem a análise geométrica e a álgebra e corrigiria os defeitos de uma pela outra.
Com efeito, atrevo-me a dizer que a exacta observância dos poucos preceitos que havia escolhido me deu tal facilidade em esclarecer todas as questões abrangidas por estas duas ciências, que, em dois ou três meses empregues a examiná-las, tendo começado pelas mais simples e mais gerais, e sendo cada verdade que descobria uma regra que me servia, para, depois, encontrar outras, não somente consegui resolver muitas que, anteriormente, julgara muito difíceis, como também me pareceu, para o final, que podia determinar, mesmo naquelas que ignorava, por que meios e até onde me era possível resolvê-las.
Pelo que acabo de dizer, não vos devo parecer demasiado vaidoso, se considerardes que, tendo ada coisa a sua verdade, quem quer que a encontre sabe dela quanto é possível saber; e que, por exemplo, uma criança instruída em aritmética, tendo feito uma adição, segundo as regras, pode ter a certeza de ter encontrado, quanto à soma por ela feita, tudo aquilo que o espírito humano poderia encontrar, pois, em suma, o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar, com exactidão, todas as circunstâncias do que se procura contém tudo o que dá certeza às regras da aritmética.
Porém, o que mais me satisfazia neste método era o facto de, por meio dele, estar seguro de usar em tudo a minha razão, se não perfeitamente, pelo menos o melhor que podia. Além disso, sentia que, ao pô-lo em prática, o meu espírito se acostumava, pouco a pouco, a conceber mais nitidamente e mais distintamente os seus objectos, e que, não o tendo submetido a qualquer matéria particular, prometia a mim próprio aplicá-lo tão utilmente às dificulades das outras ciências, como aplicá-lo às da álgebra. Isto não quer dizer que, por isso, ousasse empreender imediatamente o exame de todas as dificuldades que se apresentassem, visto que isso mesmo seria contrário à ordem que o método prescreve.
Tendo, todavia, notado que os seus princípios [73] se deviam tirar todos da filosofia, [74] na qual não encontrava ainda nenhum que fosse certo, pensei ser preciso, antes de tudo, esforçar-me por nela estabelecer algum, e que, sendo tal labor a coisa mais importante do mundo e onde o maior perigo eram a precipitação e a prevenção, [75] não devia empreender tal tarefa, antes e ter atingido uma idade muito mais madura do que a dos vinte e três anos que então tinha e devia antes empregar muito mais tempo a preparar-me, tendo desenraizado do meu espírito todas as más opiniões que até então recebera, como juntando também várias experiências, para serem, mais tarde, a matéria dos meus raciocínios, e exercitando-me sempre no método que me impusera, a fim de cada vez mais nele me manter firme
TERCEIRA PARTE
ALGUMAS REGRAS DE MORAL TIRADAS DO MÉTODO
Assim como, antes de se começar a construir a casa, onde se vive, não basta demoli-la e prover-se de materiais e arquitectos, ou aprendermos nós próprios a arquitectura, nem basta, além disso, traçar cuidadosamente o projecto, mas é preciso também termo-nos provido de uma outra casa, onde possamos estar comodamente instalados, durante o tempo em que na outra se trabalha -- do mesmo modo, para não ficar irresoluto na minha conduta, enquanto a razão me obrigava a sê-lo nos meus juízos, [76] e, para não deixar de viver, desde então, o mais felizmente possível, formei para mim próprio uma moral provisória (par provision), [77] constituída somente por três ou quatro máximas, das quais vos quero dar conhecimento.
A primeira era a de obedecer às leis e costumes do meu país, conservando firmemente (constamment) a religião em que Deus me fez a graça de ser instruído desde a infância, e conduzindo-me, em tudo o resto, de acordo com as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero, [78] as quais fossem comummente postas em prática pelos mais sensatos de entre aqueles com quem teria de viver.
Com efeito, começando, desde esse momento, a não contar para nada com as minhas opiniões, visto que queria submetê-las todas a exame, estava seguro de nada melhor poder fazer do que seguir as dos mais sensatos.
E, embora haja talvez entre os Persas e os Chineses pessoas tão sensatas como entre nós, parecia-me que o mais útil [79] era regular-me por aqueles com quem teria de viver, [80] e que, para saber quais eram verdadeiramente as suas opiniões, deveria prestar mais atenção ao que eles faziam do que ao que diziam, [81] não só porque, dada a corrupção dos nossos costumes, há poucas pessoas que queiram falar acerca de tudo aquilo em que crêem, mas também porque muitos o ignoram. Com efeito, sendo a actividade do pensamento pela qual se crê uma coisa diferente daquela pela qual se sabe crê-la, elas encontram-se, muitas vezes, uma sem a outra. [82]
Entre as diversas opiniões igualmente aceites, escolhia as mais moderadas, não só por serem sempre as mais cómodas na prática e verosimilmente as melhores, pois todo o excesso costuma ser mau, mas também para me afastar menos do recto caminho, no caso de errar, do que me afastaria, se, tendo escolhido um dos extremos, devesse ter seguido o outro. e, especialmente, situava entre os extremos todas as promessas que restringem alguma coisa da própria liberdade.
Com isto não quero dizer que desaprovasse as leis que, para remediar a inconstância dos espíritos fracos, quando há algum bom propósito, ou mesmo, para a segurança do comércio, [83] algum propósito não indiferente, permitem que se façam votos (voeux) [84] ou contratos que obrigam ao seu cumprimento. Mas, porque não via, no mundo, coisa alguma que permanecesse sempre no mesmo estado, [85] e, porque no meu caso particular, prometia a mim mesmo aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e não torná-los piores, pensava que cometeria uma grande falta contra o bom senso, [86] se, por ter aprovado uma vez qualquer coisa, me considerasse obrigado a considerá-la sempre boa, quando ela talvez deixasse de o ser ou eu tivesse deixado de a considerar como tal.
A segunda máxima era a de ser o mais firme e o mais resoluto que pudesse nas minhas acções, e, uma vez que me houvesse decidido, não seguir menos firmemente as opiniões mais duvidosas do que as seguiria, se elas fossem muito seguras, [87] imitando nisto os viajantes que, encontrando-se perdidos numa floresta, não devem errar, andando às voltas de um lugar para o outro, e menos ainda se quedarem num local, mas sim caminhar sempre o mais direito possível numa mesma direcção, e dela não desviarem por fracas razões, apesar de ter sido, no princípio, apenas o acaso a determinar-lhe a escolha, porque, assim procedendo, posto que não cheguem precisamente aonde queriam chegar, acabarão por chegar, ao menos, a qualquer lugar, onde, naturalmente, estão melhor do que no meio da floresta.
Da mesma forma, como as acções da vida não podem sofrer, muitas vezes, nenhum adiamento, é uma verdade certíssima [88] que, quando em nosso poder não está o discernir quais as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e, no caso de não notarmos numas mais probabilidades do que noutras, devemos, contudo, decidir-nos por algumas e considerá--las, seguidamente, não já como duvidosas no que concerne à prática, mas como bem verdadeiras e bem certas, pois que tal é a razão que nos levou a assim decidir. Desde logo, esta reflexão permitiu ver-me livre de todos os arrependimentos e remorsos que costumam perturbar as consciências daqueles espíritos fracos e indecisos, que, inconstantemente são levados à prática de acções reputadas como boas e que depois vêm a considerar más.
A minha terceira máxima era a de procurar sempre vencer-me antes a mim próprio do que vencer a fortuna, e antes mudar os meus desejos do que a ordem do mundo, [89] e, de um modo geral, habituar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder excepto os nossos pensamentos, [90] de modo que, depois de termos feito o melhor possível relativamente às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede de sermos bem sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível. [91] E apenas isto me parecia ser suficiente para me impedir de nada desejar, no futuro, que não conseguisse adquirir, e, assim, tornar-me satisfeito.
Na realidade, como a nossa vontade, naturalmente, só deseja as coisas que o nosso entendimento lhe apresenta, [92] de certo modo como possíveis, é claro que, se considerarmos todos os bens que estão fora de nós, assim como afastados igualmente do nosso poder, jamais sentiremos qualquer pesar pela falta daqueles bens que nos parecem devidos por nascimento, quando deles ficarmos privados sem culpa, precisamente como não sentiremos, por não possuirmos os reinos da China ou do México; e, fazendo, como se costuma dizer, da necessidade virtude, [93] não desejaremos ter mais saúde, se estamos doentes, ou estarmos livres, se estamos numa prisão, como não desejamos agora ter corpos duma matéria tão pouco corruptível como os diamantes, ou ter asas para voar, como as aves.
Confesso, não obstante, ser necessário um longo exercício e uma meditação muitas vezes repetida, para que nos habituemos a ver por este ponto de vista todas as coisas, e creio que era principalmente nisto que consistia o segredo daqueles filósofos [94] que, outrora, puderam subtrair-se ao império da fortuna, [95] e, apesar das dores e pobreza, disputar a felicidade aos Deuses. [96] Efectivamente, ocupando-se incessantemente em considerar os limites que lhes eram prescritos pela natureza, tão perfeitamente se persuadiam de nada estar em seu poder como estavam os seus pensamentos, que só isto lhes bastava, para os impedir de jamais serem afectados por outras coisas, e dispunham dos seus pensamentos tão absolutamente, que tinham, por isso mesmo, alguma razão de se considerarem mais ricos e poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, que, não tendo esta filosofia, por mais que favorecidos que fossem pela natureza e pela fortuna, [97] nunca dispõem, assim, de tudo aquilo que queriam.
Finalmente, como conclusão desta moral, resolvi passar em revista [98] as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, a fim de escolher a melhor, e, nada querendo dizer acerca das ocupações dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era continuar com aquela em que me encontrava, ou seja, empregar toda a vida a cultivar a minha razão, e a avançar, tanto quanto me fosse possível, no conhecimento da verdade, seguindo o método que para mim estabelecera.
Tinha experimentado tamanhas alegrias, [99] desde o momento em que começara a servir-me deste método, que não acreditava ser possível receber, nesta vida, outras mais doces e mais inocentes, e, como, dia após dia, por meio dele descobria algumas verdades que me pareciam bastante importantes e geralmente ignoradas doutros homens, a satisfação recebida enchia-me de tal modo o espírito que nada mais me interessava. Além disso, as três máximas precedentes outro fundamento não tinham senão o propósito de continuar a instruir-me, pois, tendo Deus dado a cada um de nós alguma luz, para discernirmos o verdadeiro do falso, julguei não dever contentar-me, um só momento que fosse, com as opiniões de outrem, senão tivesse resolvido empregar o meu próprio juízo em examiná-las, em seu devido tempo, e não teria sabido libertar-me de escrúpulos em segui-las, se não tivesse esperado não perder, com isso, nenhuma ocasião de encontrar melhores, se, por acaso, as houvesse. Enfim, não teria sabido limitar os meus desejos, nem ficar satisfeito, se não tivesse seguido um caminho, através do qual estava convencido de que viria a encontrar, com a aquisição de todos os conhecimentos de que seria capaz, todos os verdadeiros bens que jamais estariam em meu poder.
Uma vez que a nossa vontade não tende a seguir nem a evitar coisa alguma senão na medida em que o nosso entendimento lha apresenta como boa ou má, basta julgar bem para bem proceder, [100] e julgar o melhor possível para proceder também o melhor possível, isto é, para adquirir todas as virtudes, e, ao mesmo tempo, todos os outros bens que se podem adquirir, e, quando disso se tem a certeza, não se pode deixar de ser feliz.
Depois de estar assim, seguro destas máximas, e de as ter posto à parte, juntamente com as verdades da fé, que foram sempre as primeiras na minha crença, julguei que, relativamente a todas as outras minhas opiniões, podia livremente tentar libertar-me delas. [101] E, como esperava chegar melhor a um bom resultado, conversando com as pessoas, em vez de continuar, durante mais tempo, enclausurado diante do fogão, onde tivera todos estes pensamentos, pus-me de novo a viajar, ainda o Inverno não findara. E, durante os nove anos que se seguiram, [102] não fiz outra coisa senão andar pelo mundo, indo daqui para ali, e procurando ser mais um espectador do que um actor em todas as comédias que nele se representam, e, reflectindo, particularmente, em cada assunto, sobre o que podia tornar suspeito e dar azo a enganarmo-nos, ia, entretanto, desenraizando do meu espírito todos os erros que nele, até então, se tinham podido insinuar. Não que, ao proceder assim, imitasse os cépticos, que duvidam apenas por duvidar e afectam estar sempre irresolutos, mas, pelo contrário, todo o meu propósito só pretendia estar na posse da certeza e a rejeitar a terra movediça e a areia, para encontrar a rocha ou a argila. [103]
O que, a meu ver, resultou muito bem, tanto mais que, procurando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por débeis conjecturas, mas por meio de raciocínios claros e seguros, e, por mais duvidosas que fossem, delas tirava sempre alguma conclusão bastante certa, e, quanto mais não fosse, concluída que nada continham de certo.
E, como, ao demolir-se uma velha casa, se guardam, geralmente, materiais, para servirem da construção da nova casa, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que considerava mal fundadas, fazia diversas observações e adquiria muitas experiências, que, mais tarde, me serviram para estabelecer outras mais certas. De resto, continuava a exercitar-me no método que a mim mesmo impusera, pois, além de ter o cuidado de conduzir, geralmente, todos os meus pensamentos segundo as suas regras, reservava, de vez em quando, algumas horas, que empregava, especialmente, a praticar esse método nas dificuldades matemáticas, [104] ou em algumas outras que eu podia tornar quase iguais às das matemáticas, separando-as de todos os princípios das outras ciências, que não considerava suficientemente firmes, como tereis ocasião de ver em várias que são explicadas nesta obra. [105]
E, assim, sem viver, aparentemente, de uma maneira diferente da daqueles que, tendo como único emprego passar uma vida doce e inocente, procuram separar os prazeres dos vícios, e, para gozarem os ócios sem se aborrecerem, se servem de todos os divertimentos honestos, eu não deixava de prosseguir no meu intento de tirar proveito no conhecimento da verdade, mais talvez do que se tivesse lido livros ou convivesse com literatos (gens de lettres).
Todavia, esses nove anos decorreram, sem que tivesse tomado qualquer resolução acerca das dificuldades que costumam ser discutidas entre os doutos, nem tivesse começado a procurar os fundamentos de uma filosofia [106] mais certa que a vulgar. [107] De mais, o exemplo de muitos espíritos excelentes que, havendo tido, anteriormente, o mesmo projecto, não tinham obtido, a meu ver, qualquer êxito, fazia-me imaginar tantas dificuldades, que não teria talvez ousado empreendê-lo tão cedo, se não visse que alguns já haviam posto a circular o boato de que eu já o havia conseguido.
Não sabia em que baseavam eles tal opinião, mas, se alguma coisa contribuí para isso com os meus discursos, deve ter sido por neles confessar ingenuamente tudo quanto ignorava, mais do que costumam fazer os que estudaram um pouco, e talvez também porque, em lugar de me vangloriar de qualquer doutrina, [108] apresentava as razões que tinha em duvidar de muitas coisas que os outros consideravam certas.
Sentindo-me, porém, suficientemente orgulhoso em não querer que me julgassem por aquilo que não era, pensei que devia esforçar-me, por todos os meios, em me tornar digno da reputação que me atribuiam, e há precisamente oito anos [109] que esse desejo me levou a tomar a resolução de me afastar de todos os lugares, onde pudesse ter relações e a retirar-me para aqui, para um país, [110] onde a longa duração da guerra levou a estabelecer tal ordem, [111] que os exércitos aqui mantidos parecem não servir senão para que, nele, possamos gozar os frutos da paz, em completa segurança, e onde, entre a multidão de um grande povo muito activo e mais preocupado com os seus próprios negócios do que curioso dos dos outros, eu pude, sem que me faltasse nenhuma das comodidades que se encontram nas cidades mais populosas, viver tão solitário e retirado como nos desertos mais distantes. [112]
QUARTA PARTE
PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS
OU DA ALMA HUMANA
OU FUNDAMENTOS DA METAFÍSICA
Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí fiz, [113] porque são tão metafísicas [114] e tão pouco comuns, [115] que não agradarão talvez a toda a gente. E, todavia, a fim de se poder julgar se os fundamentos que formulei são bastante firmes, vejo-me, de certo modo, obrigado a falar delas. Desde há muito, fizera notar que, no que concerne aos costumes, era preciso, às vezes, seguir opiniões que sabíamos ser muito insertas, como se elas fossem indubitáveis, como acima dissemos. [116] Mas, porque agora desejava dedicar-me apenas à procura da verdade, [117] pensei que era preciso fazer precisamente o contrário e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse imaginar [118] a menor dívida, com o propósito de ver se, depois disso, não ficaria na minha mente (créance) qualquer coisa que fosse absolutamente indubitável. [119]
Assim, porque os nossos sentido nos enganam algumas vezes, resolvi supor que não existe coisa alguma que fosse exactamente como eles a fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam, ao raciocinar, até nas mais simples questões da geometria, e nelas cometem paralogismos, [120] pensando que eu estava tão sujeito a enganar-me, como qualquer outro, vim a rejeitar como falsas todas as razões [121] de que, anteriormente, me servira nas demonstrações. Finalmente, considerando que todos aqueles pensamentos que temos, quando acordados, nos podem advir, quando dormimos, sem que, em tal caso, algum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo quanto, até então, me entrara no entendimento não era mais verdadeiro do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, imediatamente, notei que, ao querer assim pensar que tudo era falso, eu, que o pensava, necessariamente devia ser alguma coisa. E, notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa, que nenhuma das mais extravagantes suposições dos cépticos [122] eram incapazes de abalá-la, julguei que a podia aceitar, sem hesitação (scrupule), para primeiro princípio da filosofia que procurava. [123]
Seguidamente, ao examinar com atenção o que eu era, e, vendo que podia supor [124] que não tinha corpo algum, e que não havia nenhum mundo nem nenhum lugar, onde eu estivesse, mas que, apesar disso, não podia supor que eu não existia, antes, pelo contrário, precisamente pelo facto de duvidar da verdade das outras coisas, concluída muito evidentemente e certamente que eu existia, ao passo que, se deixasse, um momento, de pensar, ainda que tudo o resto, que imaginara, fosse verdadeiro, compreendi, consequentemente, que eu era uma substância, [125] cuja essência ou natureza não é senão pensar, e que, para existir, não precisa de nenhum lugar, nem depende de coisa alguma material. [126] De maneira que este eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e mesmo mais fácil de conhecer do que este, e, posto que o coro não existisse, nada impediria que ela fosse tudo aquilo que é. [127]
Depois disso, considerei, na generalidade, o que se exige a uma proposição, para que seja verdadeira e certa, e, dado que acabava de encontrar uma que o era, pensei que devia saber também em que consistia tal certeza. E, tendo notado que, na afirmação penso, logo existo, não há absolutamente nada a garantir-me que esteja a dizer a verdade, a não ser o ver muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia tomar como regra geral que são verdadeiras todas aquelas coisas que concebemos muito claramente e muito distintamente, [128] havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente.
Seguidamente, ao reflectir que duvidava, e, por consequência, meu ser não era inteiramente perfeito, pois via claramente que saber é perfeição maior que duvidar, lembrei-me de ver donde me tinha vindo o pensamento de qualquer coisa de mais perfeito do que eu, e, com evidência, conheci que deveria ter vindo de alguma natureza, que, realmente, fosse mais perfeita. [129]
Quanto aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas existentes fora de mim, como o Céu, a Terra, a luz, o calor e Muitíssimas outras, não me preocupava saber donde tinham vindo, porque, não vendo nelas coisa alguma que, a meu ver, as tornasse superiores a mim, podia crer que, se eram verdadeiras, dependiam da minha natureza, [130] na medida em que ela tinha alguma perfeição, [131] e, se o não eram, eu as tinha do nada, ou seja, estavam em mim, porque eu tinha defeito. [132] O mesmo, porém, não podia acontecer com a ideia de um ser mais perfeito que o meu ser, pois recebê-la do nada era manifestamente impossível. E, porque não repugna [133] menos que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada alguma coisa proceda, de modo algum poderia provir de mim mesmo. Consequentemente, só restava que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita [134] do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições, acerca das quais pudéssemos ter alguma ideia, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa só palavra.
A isto acrescentei [135] quem, visto conhecer algumas perfeições que eu não tinha, não era eu o único ser existente (usarei aqui, livremente, se me permitirdes, palavras da escola), [136] mas devia necessariamente existir algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e do qual tivesse adquirido quanto tinha. Com efeito, se eu fosse o único ser e independente de qualquer outro, de modo que houvesse recebido de mim mesmo todo aquele pouco que participava [137] do ser perfeito, poderia ter tido de mim, pela mesma razão, tudo o resto que reconhecia faltar-me, e ser, assim, infinito, eterno, imutável, omnisciente, omnipotente, enfim, ter todas as perfeições que existiam em Deus.
Na sequência dos raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus tanto quanto me +é possível, [138] bastava-me considerar, relativamente a todas as coisas de que em mim encontrava alguma ideia, se era ou não perfeição possuí-as, e estava certo de que as que contêm alguma imperfeição não estavam Nele, mas estavam todas as outras perfeitas. Assim, via que a
dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam estar em Deus, pois que estar isento delas ser-me-ia deveras agradável.
Além disso, tinha ideias de muitas coisas sensíveis e corpóreas, pois que, embora me julgasse a sonhar e fosse falso tudo o que via ou imaginava, eu não podia, contudo, negar que essas ideias não estivessem verdadeiramente no meu pensamento. Mas, como já reconhecera em mim muito claramente que a natureza inteligente é distinta da corpórea, considerando que toda a composição implica dependência [139] e que esta é, manifestamente, um defeito, julguei, por isso, que, em Deus, a composição dessas duas naturezas não podia ser uma perfeição, e, consequentemente, ela não existia. Pensei ainda que, se, no mundo, havia alguns corpos, algumas inteligências [140] ou outras naturezas que não fossem completamente perfeitas, o ser desses seres devia depender do poder de Deus, de tal modo que não poderiam subsistir um só momento sem ele. [141]
Quis ainda procurar outras verdades, [142] e, pondo diante do meu espírito o objecto dos geómetras, objecto que concebia como um corpo contínuo, [143] ou um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em diversas partes, que podiam ter diversas figuras e grandezas, e ser movidas ou transportadas de todas as maneiras, pois os geómetras supõem tudo isto na matéria que tratam, segui algumas das suas mais simples demonstrações. E, tendo notado que essa grande certeza, que todos lhe atribuem, se funda tão-somente no facto de as concebermos com evidência, seguindo a regra já dita, notei também que não havia nelas absolutamente nada que me garantisse a existência do seu objecto. [144] Por exemplo, eu via bem que, dado um triângulo, era preciso que os seus três ângulos fossem iguais a dois rectos, mas, apesar disso, nada via que me garantisse que, no mundo, houvesse algum triângulo. Pelo contrário, voltando a examinar a ideia que tinha de um ser perfeito, via que -- ou mais evidentemente ainda -- a existência estava nela compreendida, [145] da mesma maneira que, na ideia de um triângulo, está compreendida a ideia de que os três ângulos são iguais a dois rectos, ou na ideia de uma esfera, está compreendida a ideia de que todos os seus pontos são equidistantes do centro. Consequentemente, é pelo menos tão certo que Deus, que é ser perfeito, é ou existe, como qualquer demonstração de geometria pode ser certa. [146] Quanto ao facto de haver muitos que se persuadem ser difícil conhecê-lo, assim como conhecer como o que é a sua própria alma, isso resulta de eles jamais elevarem o espírito além das coisas sensíveis e estarem de tal modo habituados a tudo considerarem pela imaginação
[147] que é uma maneira particular de pensar nas coisas materiais, que tudo quanto não for imaginável lhes parece ininteligível. E isto é bastante manifesto no facto de os filósofos, das escolas, terem por máxima que nada existe no entendimento sem que primeiro não tenha estado nos sentidos, [148] nos quais, todavia, é certo que as ideias de Deus e da alma jamais puderam estar.
Parece-me que aqueles que querem servir-se da sua imaginação, para as compreender, procedem precisamente como sem, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem servir-se dos olhos. Sucede ainda haver a diferença de o sentido da vista não nos garantir a verdade dos seus objectos menos do que os sentidos do olfacto ou da audição, quando, pelo contrário, nem a nossa imaginação, nem os nossos sentidos poderiam jamais dar a certeza de qualquer coisa, se o nossos entendimento não interviesse. [149]
Enfim, se ainda há quem não esteja suficientemente persuadido da existência de Deus e da sua alma pela razões que apresentei, quero que saibam que são menos certas todas aquelas outras coisas de que se julgam talvez mais seguros, [150] como ter um corpo, haver astros e uma Terra e coisas semelhantes. Ainda que se tenha sobre essas coisas uma certeza moral, [151] de tal modo que parece, pelo menos, extravagante duvidar delas, todavia, quando se trata de uma certeza metafísica, [152] não se pode negar, a menos que sejamos insensatos, que podemos imaginar, estando a dormir, que temos um outro corpo e que vemos outros astros e uma outra Terra sem que, na realidade, nada exista, o que é motivo suficiente para não estarmos inteiramente seguros de que assim seja. Com efeito, como saber que os pensamentos que temos, a sonhar, são mais falsos do que os outros, se, muitas vezes, eles não são menos vivos e claros? E, por mais que os melhores espíritos estudem este assunto, tanto quanto lhes agradar, não creio que possam apresentar qualquer razão que seja suficiente para eliminar essa dúvida, se não pressupuserem a existência de Deus. [153]
Antes de mais, com efeito, aquilo mesmo que, há pouco, tomei como regra, isto é, que as coisas que concebemos muito claramente e muito distintamente são todas verdadeiras, isso somente me é assegurado, porque Deus é ou existe, é um ser perfeito, i tudo quanto em nós existe, provém dele. Donde se segue que as nossas ideias ou noções, sendo coisas reais [154] vindas de Deus, não podem deixar de ser verdadeiras, uma vez que são claras e distintas.
Assim, se, muitas vezes, temos ideias que contêm falsidade, a razão está em elas terem algo de confuso e obscuro, pelo facto de participarem do nada, [155] isto é, pelo facto de serem em nós confusas, devido a não sermos totalmente perfeitos. [156]
É evidente haver tanta repugnância em admitir que a falsidade ou imperfeição, como tais, procedem de Deus, como há em admitir que a verdade ou a perfeição dependem do nada. Mas, se não soubéssemos que tudo aquilo que em nós existe de real e verdadeiro vem dum ser perfeito e infinito, por mais claras e distintas que fossem as nossas ideias, nenhuma razão teríamos que nos assegurasse possuírem elas a perfeição de serem verdadeiras.
Ora, depois de o conhecimento de Deus e da alma nos ter dado a certeza dessa regra, é bem pouco saber que os sonhos que imaginamos, a dormir, não devem, de forma alguma, levar-nos a duvidar da verdade dos pensamentos que temos, quando estamos acordados. E, se viesse a acontecer que, mesmo a dormir, tivéssemos alguma ideia muito distinta, como, por exemplo, a de um geómetra ter descoberto alguma nova demonstração, o sono não impediria que fosse verdadeira.
E, quanto ao erro mais frequente dos nossos sonhos, que consiste em nos representarem diversos objectos, como o fazem os nossos sentidos externos, não importa que esse erro nos proporcione a ocasião de desconfiarmos da verdade de tais ideias, porque estas podem também enganar-nos, muitas vezes, sem que estejamos a dormir, [157] como é o caso dos ictéricos que vêem tudo amarelo, e como é o caso dos astros e dos outros corpos muito afastados, os quais nos parecem muito mais pequenos do que são.
Deste modo, enfim, quer estejamos acordados, quer estejamos a dormir, nunca nos devemos deixar persuadir se não pela evidência da nossa razão. Note-se que digo da nossa razão e não da nossa imaginação, nem dos nossos sentidos. Com efeito, posto que vejamos o sol muito claramente, não devemos, por isso, julgar que ele só tem a grandeza que vemos. Podemos também imaginar distintamente uma cabeça de leão posta no corpo de uma cabra, [158] sem que, por isso, tenhamos de concluir que, no mundo, há uma quimera, pois que a razão, de modo algum, garante que seja verdadeiro o que vemos ou imaginamos assim. Garante-nos, porém, que todas as nossas ideias ou noções devem ter algum fundamento de verdade, [159] pois não seria possível que Deus, que é completamente perfeito e verdadeiro, as tivesse posto em nós sem esse fundamento.
E, porque os nossos raciocínios nunca são tão evidentes, nem tão completos, [160] durante o sono, como no estado de vigília, ainda que, por vezes, as nossas imaginações sejam então mais vivas e mais nítidas, a razão mostra-nos também que, não podendo os nossos pensamentos ser todos verdadeiros, [161] porque não somos completamente perfeitos, a verdade que eles têm deve infalivelmente encontrar-se mais naqueles que temos, quando acordados, do que nos nossos sonhos.
QUINTA PARTE
ORDEM DAS QUESTÕES DE FÍSICA
Muito estimaria prosseguir e mostrar aqui todo o encadeamento das outras verdades que deduzi destas primeiras. [162] Mas, como, para esse efeito, seria agora necessário falar de muitas questões controvertidas entre os doutos, [163] com os quais, de modo algum, quero indispor-me, penso ser melhor abster-me e dizer apenas de um modo geral quais elas são, a fim de deixar que os mais sabedores julguem se seria útil que o público fosse delas mais particularmente informado.
Permaneci sempre firme na resolução que tomara de não supor nenhum outro princípio além daquele de que acabo de me servir, para demonstrar a existência de Deus e da alma, e de não aceitar coisa alguma como verdadeira que não me parecesse mais clara e mais certa do que tinham parecido, até então, as demonstrações dos geómetras.
E, não obstante, ouso dizer que, não somente encontrei maneira de, em pouco tempo, me satisfazer, relativamente a todas as principais dificuldades que se costumam tratar na filosofia, mas também maneira de descobrir certas leis que Deus de tal modo estabelecera [164] na natureza, e das quais imprimiu tais noções nas nossas almas, [165] que, após sobre elas termos reflectido bastante, não poderíamos duvidar de que elas não sejam exactamente observadas em tudo quanto existe ou se faz no mundo.
Seguidamente, ao considerar as consequências dessas leis, julgo ter descoberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo o que, anteriormente, aprendera ou esperava vir a aprender.
Mas, como procurei explicar as principais num tratado, [166] que algumas considerações me impedem de publicar, [167] julgo que a melhor maneira de as dar a conhecer é dizer aqui, sumariamente, o que esse tratado contém. Tive o propósito de nele incluir tudo o que julgava saber, antes de o escrever, relativamente à natureza das coisas materiais.
Mas, exactamente, como os pintores que, não podendo representar igualmente bem num quadro plano todas as diversas fases de um corpo sólido, escolhem uma das principais, aquela única que põem em plano luminoso, e, deixando as outras na sombra, não as fazem aparecer senão quando as podemos ver ao olhar para aquela, analogamente, receando não poder pôr no meu discurso tudo quanto tinha no pensamento, resolvi expor nele bem amplamente o que pensava sobre a luz [168] e, depois em seu devido lugar, acrescentar alguma coisa acerca do Sol e das estrelas fixas, porque delas procede quase toda [169] a luz, e o que pensava acerca das plantas, dos cometas [170] e da Terra, por a fazerem reflectir, e, em particular, acerca de todos os corpos que existem na Terra, porque são ou coloridos ou transparentes ou luminosos e, finalmente, acerca do homem, que é o seu espectador.
De resto, para deixar um pouco na sombra todas estas coisas e poder expor mais livremente o meu pensamento, sem ser obrigado a seguir ou a refutar as opiniões que são aceites pelos doutos, resolvi deixar todo este mundo entregue às suas discussões, [171] e falar unicamente sobre o que aconteceria num mundo novo, se Deus criasse agora em qualquer parte, nos espaços imaginários, [172] matéria suficiente para compor, e se agitasse, de modos diversos, e desordenadamente, as diversas partes desta matéria, de tal modo que compusesse o caos [173] tão confuso quanto os poetas podem fingir, e, depois, nada mais fizesse que dar o seu concurso ordeiro [174] à natureza e deixando-a actuar, [175] em conformidade com as leis que ele estabeleceu. [176]
Assim, descrevi, primeiramente, essa matéria e procurei representá-la de tal modo que, no mundo, segundo me parece, nada há de mais claro e mais inteligível com excepção do que, há pouco foi dito acerca de Deus e da alma. Supus até, expressamente, que nela não havia nenhuma dessas formas ou qualidades, [177] sobre as quais se discute nas escolas, [178] nem, de maneira geral, qualquer coisa cujo conhecimento não fosse tão natural às nossas almas, que não fosse mesmo possível fingir ignorá-lo. Além disso, fiz ver quais eram as leis da natureza, e, apoiando as minhas razões apenas no princípio das perfeições infinitas de Deus, [179] procurei demonstrar todas aquelas de que pudesse haver alguma dúvida e fazer ver que elas são tais que, ainda que Deus tivesse criado muitos mundos, nenhum poderia haver, no qual elas deixassem de ser observadas.
Após isso, mostrei como a maior parte da matéria desse caos devia, em conformidade com essas leis, dispor-se e arrumar-se de uma certa maneira que a tornasse semelhante aos nossos Céus, e como algumas das suas partes deviam compor uma Terra, algumas outras, planetas e cometas e outras ainda, um Sol e as estrelas fixas. E, neste ponto, desenvolvendo o tema da luz, expliquei demoradamente qual era a que se devia encontrar no sol e nas estrelas, e como, vinda de lá, atravessava instantaneamente [180] os imensos espaços dos Céus, e como dos planetas e cometas se reflectia para a Terra. Acrescentei também muitas coisas relativamente à substância, à situação, aos movimentos e a todas as diversas qualidades destes Céus e astros.
E, assim, pensava ter dito o suficiente, para fazer compreender que nada se nota, nos Céus e astros deste mundo, que não devesse ou, pelo menos, não pudesse parecer inteiramente semelhante aos do mundo que estava descrevendo.
A partir daqui, acabei por falar particularmente da Terra: como todos as suas partes não deixam de tender exactamente para o seu centro, mesmo que tivesse suposto expressamente que Deus não tivesse posto peso algum na matéria [181] de que ela é composta; como, havendo ar e água, à sua superfície, a disposição dos Céus e dos astros, principalmente da Lua, devia causar neles um fluxo e um refluxo [182] semelhante, em todas as circunstâncias, ao que se observa nos nossos mares, e, além disso, uma certa corrente, quer de água, quer de ar, de nascente para poente, tal como se observa também entre os trópicos; como as montanhas, os mares, as nascentes (fontaines) e os ribeiros podiam naturalmente formar-se nela, e como os metais podiam surgir nas minas, e as plantas crescer nos campos, e, de modo geral, todos os corpos chamados mistos ou compostos podiam ser nela engendrados.
E, entre outras coisas, como não conhecia, no mundo, além dos astros, outra coisa que produzisse luz, além do fogo, apliquei-me a fazer compreender bem claramente tudo quanto diz respeito à sua natureza: como é que ele se produz, como se alimenta, como há, umas vezes, calor sem luz, [183] e, outras vezes, luz sem calor; como é possível introduzir diversas cores em diversos corpos e também outras qualidades; como ele funde alguns e endurece outros, como os pode consumir a quase todos e converter em cinzas e fumo; e, enfim, como é que dessas cinzas, apenas pela força da sua acção, aparece o vidro. E, porque esta transmutação das cinzas em vidro me parecia uma coisa mais admirável que qualquer outra que ocorra na natureza, tive um particular prazer em a descrever.
Não obstante, não queria inferir de todas estas coisas que este mundo tenha sido criado da maneira que propunha, pois que é bem mais verosímil que Deus o tenha feito tal qual devia ser, desde o seu começo. Mas é certo que -- e é uma opinião comummente aceite entre os teólogos [184] -- que a acção pela qual Deus agora o conserva é precisamente a mesma pela qual ele o criou. Assim, ainda que, no princípio, não lhe tivesse dado outra forma se não a do caos, contanto que, tendo estabelecido as leis da natureza, lhe prestasse o seu concurso [185] para agir, como é costume agir, podemos crer, sem ir contra o milagre da criação, [186] que todas as coisas que são puramente materiais tivessem podido, com o tempo, tornar-se tais como as vemos presentemente. E a sua natureza é bem mais fácil de compreender, quando as vemos nascer, pouco a pouco, do que quando as consideramos totalmente formadas. [187]
Da descrição dos corpos inanimados e das plantas passei à dos animais, e, especialmente, à do homem. Mas, porque não tinha ainda conhecimentos suficientes, para deles falar da mesma maneira que do restante, isto é, demonstrando os efeitos pelas causas, [188] e fazendo ver de que germes e de que maneira a natureza os deve produzir, contentei-me em supor que Deus tenha formado o corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos, tanto na forma exterior dos membros, como na configuração interna dos seus órgãos, sem o compor de outra matéria [189] que não fosse a que eu houvera descrito, e sem coisa alguma que lhe servisse de alma vegetativa, ou sensitiva, [190] tendo-se limitado a excitar no seu coração um desses fogos sem luz, que eu já explicara, e cuja natureza concebia semelhante à que aquece o feno, quando é recolhido, antes de estar seco, ou semelhante à que faz ferver os vinhos novos, quando se deixam fermentar sobre o bagaço (râpe).
Efectivamente, ao examinar as funções que, em consequência disso, podiam encontrar-se em tal corpo, encontrava exactamente todas quantas se podem encontrar em nós, sem que nelas pensemos, e sem que, consequentemente, a nossa alma, ou seja, esta parte distinta do corpo, cuja natureza, como já dissemos, consiste tão-somente em pensar, para isso contribua. E, sendo todas as mesmas, poder-se-á, por isso, disser que os animais sem razão se nos assemelham, sem que, devido a tal facto, pudessem encontrar neles algumas das funções [191] que, dependentes do pensamento, são as únicas que nos pertencem enquanto homens. [192] Mas vinha, depois, a encontrá-las todas, quando supunha que Deus criara uma alma racional e a unira a este corpo de uma certa maneira como descrevi.
Mas, para que se possa ver como, nesse livro, tratava esta matéria, quero expor aqui a explicação do movimento do coração e das artérias que, sendo o primeiro e o mais geral [193] que se observa nos animais, nos levará facilmente a julgar o que devemos pensar de todos os outros. E, para que seja menor a dificuldade em compreender o que vou dizer, quereria que os que não são versados em anatomia se dessem ao trabalho antes de ler isto, de ver cortar, na sua presença, o coração de algum grande animal que tenha pulmões, porque é em tudo muito semelhante ao do homem, e pedissem que lhes fossem mostradas as duas câmaras ou concavidades [194] nele existentes. Em primeiro lugar, a do seu lado direito, à qual correspondem dois tubos muito largos, a saber: a veia cava, que é o principal receptáculo do sangue, e como que o tronco da árvore, cujos ramos são as outras veias do corpo, e a veia arterial, [195] erroneamente assim chamada, porque é, na realidade, uma artéria, que, começando no coração, se divide, depois, em muitos ramos que se vão espalhar por toda a superfície dos pulmões. Depois, a do lado esquerdo, à qual corresponde também dois tubos, que são também tão largos ou mais que os precedentes, a saber: a artéria venosa, [196] erroneamente assim chamadas, pois é uma simples veia que vem dos pulmões, onde se encontra dividida em vários ramos entrelaçados com os da veia arterial e com os desse canal que se chama assobio (sifflet), [197] por onde entra o ar da respiração, e a grande artéria, [198] que, saindo do coração, alastra seus ramos por todo o corpo.
Desejaria também que lhes fossem cuidadosamente mostradas as onze [199] películas (petites peaux) [200] que à maneira de pequenas portas, Abrem e fecham as quatro aberturas que se encontram nessas duas concavidades, a saber: três, à entrada da veia cava, [201] onde se encontram de tal maneira dispostas que nunca podem impedir que o sangue nelas contido corra para a concavidade direita do coração, impedindo, contudo, que dele possa sair; três, à entrada da veia arterial, as quais, dispostas precisamente ao contrário, permitem que o sangue que está nesta concavidade passe para os pulmões, mas impedindo-o de regressar o que neles se encontra; duas outras, à entrada da artéria venosa, [202] que deixam correr o sangue dos pulmões para a concavidade esquerda do coração, opondo-se ao seu retorno; três, à entrada da grande artéria, [203] que permitem que o sangue saia do coração, mas não o deixam lá voltar. E não há necessidade de procurar outra razão para o número destas películas se não que, sendo oval a abertura da artéria venosa, devido ao lugar em que se encontra, pode facilmente ser fechada com duas, ao passo que as outras, como são redondas, podem ser fechadas melhor com três.
Além disso, desejaria que lhes fizessem notar que a grande artéria e a veia arterial têm uma estrutura muito mais dura e mais firme que a artéria venosa e a veia cava, e que estas se alargam, antes de entrar no coração, formando nele como que duas bolsas chamadas orelhas (oreilles) [204] do coração, composta de uma carne semelhante à deste; e que há sempre mais calor no coração do que em qualquer outra parte do corpo; e, enfim, que este calor é que faz que, se alguma gota de sangue entra nas suas concavidades, ele inche imediatamente e se dilate, tal como sucede, geralmente, com todos os líquidos, quando os deixamos cair, gota a gota, dentro de qualquer recipiente muito quente. [205]
Assim, após o que foi dito, não vejo necessidade de dizer mais nada, para explicar o movimento do coração, a não ser que, quando as suas concavidades não estão cheias de sangue, este corre necessariamente da veia cava para a sua concavidade direita, e da artéria venosa para a esquerda, visto esses dois vasos estarem sempre cheios e as suas aberturas, voltadas para o coração, não poderem ser obstruídas. Mas, logo que duas gotas de sangue nele entram, uma por cada concavidade, essas gotas, que são muito grossas, pois que as aberturas por onde entram são muito largas e os vasos donde vêm estão muito cheios de sangue, imediatamente se rarefazem e se dilatam, devido ao calor que lá encontram. E, assim, fazendo inchar o coração, empurram e fecham as cinco pequenas portas, que se encontram à entrada dos dois vasos donde vêm, impedindo, desta forma, que desça mais sangue ao coração, e, continuando a rarefazer-se, cada vez mais, empurram e Abrem as outras seis pequenas portas, que se encontram à entrada dos outros dois vasos, por onde saem, fazendo, assim, inchar todos os ramos da veia arterial e da grande artéria, quase ao mesmo tempo que o coração. Este quase imediatamente se desincha, assim como as artérias, em virtude de o sangue, que nelas entra, arrefecer, e as seis pequenas portas fecham-se, tornando a abrir-se as cinco da veia cava e da artéria venosa, dando passagem a outras duas gotas de sangue que, de novo, fazem inchar o coração e as artérias, tal como as precedentes. E, como o sangue que entra, assim, no coração passa por essas duas bolsas chamadas orelhas, daí resulta que o movimento destas é contrário ao do coração, desinchando elas, quando ele incha.
Quanto ao mais, para que aqueles que não conhecem a força das demonstrações matemáticas [206] e não estão acostumados a distinguir as verdadeiras razões das verosímeis não se atrevam a negar estas coisas sem as examinar, quero adverti-los que este movimento, que acabo de explicar, resulta tão necessariamente da própria disposição [207] dos órgãos que, a olho nu, [208] se podem ver no coração, e do calor que nele se pode sentir com os dedos, e da natureza do sangue que experimentalmente se pode conhecer, como o movimento de um relógio resulta da força, da situação e da forma de seus contrapesos e rodas.
Se alguém, porém, perguntar como é que o sangue das veias não se esgota, ao correr, assim, continuamente para o coração, e como é que as artérias não ficam demasiadamente cheias, pois que todo o sangue que passa pelo coração a elas vai ter, basta-me responder apenas o que já foi escrito por um médico da Inglaterra, [209] a quem devemos louvar, por ter vencido as primeiras dificuldades nesta assunto, tendo sido o primeiro a ensinar que há muitas pequenas passagens nas extremidades das artérias, por onde o sangue, que recebem do coração, entra nos pequenos ramos das veias, donde se dirige, de novo, para o coração, de tal modo que, o seu percurso não é mais do que uma circulação perpétua. E isto é por ele muito bem provado com a experiência vulgar dos cirurgiões, que, ligando levemente braço bem acima do ponto onde abrem a veia, fazem que o sangue saia com mais abundância do que se o não tivessem ligado. Sucederia, precisamente o contrário, se o tivessem apertado mais abaixo, entre a mão e a abertura, ou então se o tivessem ligado fortemente mais acima.
É, com efeito, evidente que o laço fracamente apertado pode impedir que o sangue, que já está no braço regresse ao coração através das veias, mas não impede, contudo, que ele deixe de vir sempre e de novo pelas artérias, pois que estas estão situadas por baixo das veias e as suas paredes mais duras estão menos sujeitas à compressão, e também porque o sangue que vem do coração tende a passar por elas com mais força, dirigindo-se para a mão, em vez de regressar ao coração através das veias. E, visto que este sangue sai do braço pela abertura feita numa das veias, deve necessariamente haver algumas passagens abaixo do laço, ou seja, nas extremidades do braço, por onde possa vir das artérias.
O referido médico prova também perfeitamente o que diz acerca da circulação do sangue, admitindo certas películas [210] que se encontram de tal maneira dispostas, em diversos pontos aos longo das veias, que não permitem ao sangue passar do meio do corpo para as extremidades, mas somente voltar das extremidades para o coração. E prova-o ainda com a experiência que mostra ser possível a todo o sangue que está no corpo sair, em muito pouco tempo, por uma única artéria, quando cortada, mesmo que esteja fortemente ligada, muito perto do coração e cortada entre este e o braço, de modo que não há qualquer dúvida em pensar que o sangue que dela sai vem de outro lado.
Há, porém, muitas outras coisas que provam que a verdadeira causa deste movimento do sangue é aquela que apresentei. Em primeiro lugar, a diferença que se nota entre o sangue que sai das veias e o que sai das artérias não pode resultar senão do facto de, tendo-se rarefeito e como que destilado, [211] ao passar pelo coração, se torna imediatamente mais subtil e vivo e mais quente, quando dele sai, isto é, quando entra nas artérias, do que o é um pouco antes de nele entrar, ou seja, quando está nas veias. E, se bem repararmos, ver-se-á que esta diferença só se mostra bem junto do coração e não nos pontos que dele estão mais afastados.
Além disso, a dureza dos tecidos que constituem a veia arterial e a grande artéria mostra bem que o sangue bate contra elas mais fortemente do que contra as veias. De facto, porque razão a concavidade esquerda do coração e a da grande artéria seriam mais amplas e largas que a concavidade direita e a veia arterial, se não fosse devido ao facto de o sangue da artéria venosa, só entrando nos pulmões, após ter passado pelo coração, ser mais subtil e se rarefazer mais intensa e facilmente do que o que vem imediatamente da veia cava? E que podem verificar os médicos, ao tomar o pulso, se não souberem que, conforme o sangue muda de natureza, assim pode ser rarefeito pelo calor do coração mais ou menos fortemente e rapidamente do que antes? E, se examinarmos como este calor se comunica aos outros membros, não seremos levados a reconhecer que é por meio do sangue que, ao passar pelo coração, nele se aquece e ele se espalha por todo o corpo? Daqui resulta que, se tirássemos de alguma parte o sangue, tirar-se-lhe-ia, dessa maneira, o calor, e, mesmo que o coração fosse tão ardente, como um ferro em brasa, não chegaria pra aquecer os pés e as mãos o necessário, se não lhe enviasse ininterruptamente novo sangue.
De resto, sabe-se também que a verdadeira finalidade da respiração é levar bastante ar fresco aos pulmões, de forma que o sangue aí chegado da concavidade direita do coração, onde foi rarefeito e como que transformado em vapores, se torne espesso e se converta novamente em sangue, antes de voltar a cair na concavidade esquerda, sem o que não poderia servir de alimento ao fogo que nela existe. Isto é confirmado pelo facto de os animais desprovidos de pulmões terem apenas uma concavidade no coração, e também pelo facto de as crianças, não podendo servir-se dos pulmões, enquanto estão encerradas no ventre materno, terem uma abertura, por onde o sangue corre da veia cava para a concavidade esquerda do coração, e um canal, por onde vem da veia arterial para a grande artéria sem passar pelos pulmões.
Além disso, como se faria a digestão (coction) no estômago, se o coração não lhe enviasse pelas artérias e com ele algumas das partes mais fluídas dos sangue, que ajudam a dissolver os alimentos nele introduzidos? E não se compreende facilmente a acção que converte o suco destes alimentos em sangue, se considerarmos que este se destila, ao passar e tornar a passar pelo coração talvez mais de cem ou duzentas vezes por dia? E que mais é preciso, para explicar a nutrição e a produção de diversos humores [212] que se encontram no corpo, do que dizer que a força com que o sangue, ao rarefazer-se, passa do coração para as extremidades das artérias, faz que algumas das suas partes se fixem entre as dos membros, onde as artérias se encontram, e tomem o lugar de outras que expulsam? E que, segundo a situação ou a figura ou a pequenez dos soros que vão encontrando, umas se dirigem para certos sítios de preferência a outros, da mesma maneira que se pode ver com diversos crivos, que, diferentemente furados, separam diversos grãos uns dos outros? E, enfim, o que há de mais digno de nota em tudo isto é a génese dos espíritos animais, [213] que são como um vento muito subtil, ou melhor, como uma chama muito pura e muito viva, que, subindo incessantemente e abundante do coração para o cérebro, deste se dirigem pelos nervos para os músculos e dão os movimentos a todos os membros, sem que seja preciso imaginar outra causa que faça com que as partes do sangue, mais agitadas e mais penetrantes, que são mais adequadas a estruturar esses espíritos, se dirijam, de preferência para o cérebro, e não para outro lado, a não ser o facto de as artérias, que a ele os levam, serem as que saem do coração mais em linha recta, e, segundo as regras da mecânica, que são precisamente as da natureza, quando várias coisas tendem a mover-se simultaneamente para um mesmo lado, onde lugar suficiente não há para todas, como acontece com as partes do sangue, que, saindo da concavidade esquerda do coração, se dirigem para o cérebro, as mais fracas e menos agitadas acabam por ser afastadas pelas mais fortes, as quais, assim, entram sozinhas no cérebro. Havia explicado, em pormenor, todas estas coisas, no tratado que antes tencionara publicar. E, seguidamente, mostrara qual deve ser a constituição (fabrique) dos nervos e dos músculos do corpo humano, para que os espíritos animais nele contidos tenham força pra mover os seus membros, [214] como se vê nas cabeças que, pouco depois de serem cortadas, ainda se movem e mordem a terra, muito embora já não sejam animadas; que alterações se devem produzir no cérebro, para causar a vigília, o sono e os sonhos; como, por intermédio dos sentidos, a luz, os sons, os odores, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objectos exteriores podem imprimir no cérebro diversas ideias; como a fome, a sede e as outras afecções (passions) interiores podem enviar-lhe também as suas; o que nele deve ser tomado como o senso comum, [215] no qual as ideias são recebidas; a memórias que as conserva; a fantasia [216] que pode transformáº-las de diversas maneiras e com elas compor outras novas, [217] e, outrossim, distribuindo os espíritos animais pelos músculos pode fazer mover os membros do corpo de maneiras tão diversas, tanto a propósito dos objectos que se apresentam aos sentidos, como a propósito das afecções interiores [218] que nele se encontram, e que se possam mover sem que a vontade os conduza. E isto não parecerá, de modo algum, estranho àqueles que, sabendo quantos diversos autómatos ou máquinas móveis o engenho humano pode fazer, empregando muito poucas peças, em relação ao grande número dos ossos, dos músculos, dos nervos, das artérias, das veias, e de todas as outras partes que formam o corpo de cada animal, considerarão este corpo como uma máquina, [219] que, feita pela mão de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada [220] e tem em si movimentos mais admiráveis que qualquer das que podem ser inventadas pelos homens.
Detivera-me, em particular, a fazer ver que, se houvesse tais máquinas com os órgãos e a figura dum macaco ou de qualquer outro animal sem razão, não teríamos processo algum de as distinguir desses animais, ao passo que, se as houvesse semelhantes aos nossos corpos e imitassem as nossas acções tão moralmente quanto fosse possível, nós teríamos sempre dois meios certíssimos de reconhecer que, apesar disso, jamais seriam verdadeiros homens, primeiramente, porque nunca poderiam servir-se de palavras nem de outros sinais que organizassem essas palavras, como fazemos para comunicar aos outros os nossos pensamentos, pois que pode conceber-se perfeitamente uma máquina feita de tal modo que profira palavras, [221] e até profira algumas a propósito das acções corpóreas que conseguem algumas mudanças nos seus órgãos, como, por exemplo, perguntar o que lhe queremos dizer, se lhe tocarmos num certo ponto, ou gritar que estamos a magoá-la, se lhe tocarmos noutro, e outras coisas semelhantes. Não se concebe, porém, que ela combine de diversos modos as palavras, para responder ao sentido de tudo quanto se disser na sua presença, como podem fazer os homens mais embrutecidos.
Em segundo lugar, é que, embora essas máquinas fizessem várias coisas tão bem ou talvez melhor que qualquer de nós, elas falhariam infalivelmente noutras, permitindo-nos descobrir que não agiriam por conhecimento, mas apenas pela disposição dos seus órgãos. Com efeito, ao passo que a razão é um instrumento universal que pode servir em toda a espécie de conjunturas, estes órgãos precisam de uma disposição particular para cada acção particular. [222] Daqui resulta ser praticamente (moralement) impossível que existam numa máquina tantos e tão diversos órgãos, capazes de a fazer agir em todas as ocorrências da vida, do mesmo modo que a nossa razão nos faz agir.
Assim, por estes dois meios, pode igualmente conhecer-se qual a diferença existente entre os homens e os animais. É, efectivamente, coisa digna de nota que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem exceptuar os próprios dementes, que não sejam capazes de combinar diversas palavras e de compor com elas um discurso, por meio do qual consigam exprimir os seus pensamentos. Ao contrário, nenhum outro animal existe, por mais perfeito que possa ser ou bem engendrado, que consiga fazer semelhante coisa. [223] E isto não sucede, porque lhes faltem órgãos, pois as pegas e os papagaios, podem proferir palavras, tal como nós, mas não podem, todavia, falar como nós, isto é, dando provas de pensar no que dizem ao passo que os homens, surdos e mudos de nascença, privados, tanto ou mais que os animais, dos órgãos que servem para falar, costumam inventar por si mesmos alguns sinais com que se fazem entender por aqueles que, vivendo habitualmente com eles, têm tempo para aprender a sua linguagem. E isto não prova apenas que os animais têm menos razão do que os homens, mas prova que não têm absolutamente nenhuma, pois vê-se não ser precisa se não muito pouca, para saber-se falar. E, posto que se note desigualdade entre os animais de uma espécie, como sucede entre os homens, sendo uns mais fáceis de ensinar do que os outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, por mais perfeitos que fossem na sua espécie, não pudessem igualar uma criança das mais estúpidas ou, pelo menos, uma criança que tivesse o cérebro perturbado, se a sua alma não fosse de uma natureza totalmente diferente da nossa. E não devemos confundir as palavras com os movimentos naturais que exprimem afecções, os quais podem ser imitados, quer pelas máquinas, quer pelos animais, nem pensar, como alguns antigos, que os animais falam, se bem que não entendamos a sua linguagem. Efectivamente, se isso fosse verdade, pois que eles têm vários órgãos semelhantes aos nossos, eles poderiam fazer-se compreender tanto por nós, como pelos seus semelhantes.
É também digno de nota que, embora haja muitos animais que revelam mais habilidade (industrie) do que nós em algumas das suas acções, vemos, todavia, que, em muitas outras, nenhuma revelam. Assim, o que fazem melhor que nós não prova que tenham espírito, porque, nesse caso, tê-lo muito mais que qualquer um de nós e agiriam melhor em tudo. Porém, pelo contrário, não o têm, e é a natureza que actua neles conforme a disposição dos seus órgãos, [224] tal como um relógio que, composto apenas de rodas e molas, pode contar as horas e medir o tempo mais exactamente do que nós com toda a nossa prudência.
Após isto, descrevera a alma racional e mostrara que ela não pode, de forma alguma, ser tirada da potência da matéria, [225] assim como as outras coisas de que falara, mas que deve ser expressamente criada. Descrevera como não basta que ela esteja alojada no corpo humano, como um piloto no seu navio, [226] talvez opara mover os seus membros, mas é preciso que esteja junta e unida mais estreitamente com ele, para ter, além disso, sentimentos e apetites [227] semelhantes aos nossos, e, assim, formar um verdadeiro homem. [228]
De resto, alarguei-me aqui um pouco mais sobre o tema da alma, por ser um dos mais importantes. E a razão está em que, depois do erro daqueles que negam Deus, erro que julgo ter anteriormente refutado suficientemente, outro não há que mais afaste do recto caminho e da virtude que o supor que a alma dos animais é da mesma natureza que a nossa, e, consequentemente, nada termos a recear nem a esperar, após esta vida, assim como as moscas e as formigas.
Sabendo-se, porém, como elas diferem, compreendem-se muito melhor as razões que provam que a nossa alma é de uma natureza inteiramente independente do corpo, e, consequentemente, não está, de forma alguma, sujeita a morrer com ele. De resto, não se vendo nenhumas causas que a destruam, somos levados naturalmente, a considerá-la imortal. [229]
SEXTA PARTE
COISAS NECESSÁRIAS PARA SE AVANÇAR
NA INVESTIGAÇÃO DA NATUREZA
Faz agora três anos que chegara ao fim do tratado que contém todas estas coisas e começava a revê-lo, a fim de o entregar a um impressor, quando vim a saber que as pessoas a quem prezo [230] e cuja autoridade sobre as minhas acções não pode menos do que a minha razão sobre os meus pensamentos, [231] tinham desaprovado uma opinião da física, publicada um pouco antes por alguém, [232] opinião à qual não quero dizer que aderisse, mas nela nada havia encontrado, antes de ser censurada, que pudesse ser prejudicial nem à religião, nem ao Estado, nem, consequentemente, nada que me impedisse de a perfilhar, se a minha razão dela estivesse convencida. [233] E isto fez-me recear que houvesse igualmente, entre as minhas opiniões, alguma acerca da qual me tivesse enganado, apesar do grande cuidado que sempre tive em nunca aceitar novas opiniões de que não tivesse demonstrações certíssimas, e nada escrever que pudesse vir a prejudicar alguém. Ora, isto foi o suficiente para me obrigar a mudar da resolução que tivera de as publicar, pois que, embora fossem muito fortes as razões que, anteriormente, me tinham levado à publicação, todavia, a minha maneira de ser que sempre me fez detestar a profissão de fazer livros, levou-me imediatamente a encontrar outras, capazes de me justificar. E essas razões, favor´áveis e desfavoráveis, são tais que não só tenho algum interesse em dizê-las, como também o público talvez o tenha em conhecê-las.
Nunca dei muita importância às coisas vindas do meu espírito, e, enquanto não recolhi do método de que me sirvo alguns frutos a não ser a minha satisfação relativamente a algumas dificuldades concernentes às ciências especulativas ou à tarefa de reformar os meus costumes pelas razões que tal método me ensinava, nunca me julguei obrigado a escrever o que quer que fosse sobre ele.
Ora, quanto aos costumes, cada um é tão senhor do seu senso, que, se fosse permitido a outrem que não àqueles que Deus estabeleceu como soberanos dos seus povos [234] ou ainda àqueles a quem deu a graça e zelo suficientes para serem profetas, empreender a sua reforma, poder-se-iam encontrar tantos reformadores, quantas as cabeças. [235] E, ainda que me agradassem muito as minhas especulações, pensei que os outros também tinham as suas, que talvez lhes agradassem mais.
Logo que adquiri algumas noções gerais de física, começando a verificá-las em diversas dificuldades particulares, notando até onde elas podem levar e como diferem dos princípios até agora utilizados, pensei que não podia tê-las comigo escondidas, [236] sem pecar muitíssimo contra a lei que nos obriga a procurar, tanto quanto possível, o bem geral da humanidade. [237]
Na realidade, tais noções fizeram-me ver como é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida, [238] e, em lugar da filosofia especulativa ensinada nas escolas, [239] é possível encontrar uma filosofia prática, e, conhecendo-se a força e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos Céus e de todos os outros corpos que nos cercam, tão distintamente como conhecemos as diversas profissões dos nossos artífices, podê-las-íamos empregar da mesma maneira para todos os usos que lhes são próprios, e, assim, tornar-nos como que senhores e possuidores da natureza. [240]
Ora, isto não é apenas de desejar para a invenção de uma infinidade de artifícios que permitiriam usufruir, sem nenhum esforço, [241] os frutos da Terra, mas, principalmente, usufruir da conservação da saúde, a qual é, indubitavelmente, o primeiro bem e o fundamento de todos os outros bens desta vida.
Com efeito, o próprio espírito depende tão fortemente do temperamento [242] e da disposição dos órgãos do corpo que, se é possível encontrar algum meio que torne, os homens mais sapientes e mais hábeis que até aqui, creio que é na medicina [243] que o devemos encontrar.
É verdade que a medicina hoje em uso poucas coisas contém, cuja utilidade seja deveras notável, mas, sem que tenha qualquer propósito de a desprezar, estou certo de que não há ninguém, nem mesmo os que dela fazem profissão, que não confesse que tudo quanto sobre ela se sabe é quase nada comparavelmente ao que falta saber, e que seria possível ver-nos livres de uma infinidade de doenças, tanto do corpo, como do espírito, e até talvez do enfraquecimento da velhice, se tivéssemos o conhecimento suficiente das suas causas e de todos os remédios que a natureza nos ofereceu. [244]
Como tivesse resolvido empregar toda a minha vida à descoberta duma ciência tão necessária, e tivesse encontrado um caminho que, a meu ver, deve, se o seguirmos, infalivelmente encontrá-la, a não ser que sejamos impedidos ou pela brevidade da vida, ou por falta de experiências, eu pensava não haver melhor remédio contra estes dois impedimentos do que comunicar fielmente ao público todo o pouco que tivesse encontrado, e instigar os bons espíritos [245] em esforçarem-se por ir mais além, contribuindo, assim, cada um conforme sua inclinação e poder, para as experiências que seria preciso fazer, e comunicando também ao público tudo quanto fossem aprendendo, a fim de os últimos começarem onde os precedentes tivessem acabado, e, desta forma, juntando as vidas e os trabalhos de vários, fôssemos todos juntos mais longe do que cada um, por si só, seria capaz de fazer. [246]
Notava, todavia, que, relativamente às experiências, elas são tanto mais necessárias, quanto mais avançados estamos em conhecimentos. Efectivamente, ao princípio é melhor servir-nos das que se apresentam aos nossos sentidos e que não podemos ignorar, desde que façamos um pouco de reflexão, do que procurar outras mais raras e aprofundadas. E a razão está no facto de, muitas vezes, as mais raras nos enganarem, quando se ignoram ainda as causas mais vulgares, porque as circunstâncias de que dependem são quase sempre tão particulares e tão pequenas, que é difícil notá-las.
Assim, eis a ordem que, neste caso, segui: primeiramente, procurei encontrar, em geral, os princípios ou primeiras causas de tudo o que existe ou pode existir no mundo, sem nada considerar para este efeito senão Deus, que o criou, e certas sementes de verdade [247] que se encontram naturalmente em nossas almas. Seguidamente, examinei quais os primeiros e mais vulgares efeitos que se podiam deduzir dessas causas, e parece-me que, assim, encontrei céus, astros, uma terra, e sobre a terra encontrei água, ar, fogo, minerais e algumas outras coisas que são as mais comuns de todas e as mais simples, e, consequentemente, as mais fáceis de conhecer. Depois, quando quis descer até às mais particulares, tantas e tão diversas se apresentaram, que pensei não ser possível ao espírito humano distinguir as formas ou espécies de corpos que se encontram na terra de uma infinidade de outras de outras que nesta poderiam haver, se essa tivesse sido a vontade de Deus, nem me pareceu possível, em consequência, utilizá-los, a não ser indo ao encontro das causas através dos efeitos e servindo-nos de muitas experiências particulares. [248] posto o que, fazendo passar pelo meu espírito todos os objectos que aos meus sentidos se tinham apresentado, ouso perfeitamente dizer que nunca nele encontrei coisa alguma que não pudesse com bastante facilidade explicar por meio dos princípios que havia encontrado. Mas devo também confessar que o poder da natureza [249] é tão amplo e tão vasto, e estes princípios são tão simples e gerais, que quase nunca encontro qualquer efeito particular que deles, a meu ver, não possa ser deduzido de muitas e diferentes maneiras, e que a minha maior dificuldade consiste, regra geral, em descobrir de qual dessas maneiras tal efeito depende. Para tal objectivo se atingir, não conheço outro expediente que não seja o de procurar, de novo, outras experiências, que sejam tais que o seu resultado não seja o mesmo, conforme se explicam de uma maneira ou de outra.
De resto, encontro-me, como creio, num ponto em que vejo perfeitamente que caminho devemos seguir, para fazer a maior parte das experiências que podem servir para esse efeito. Reconheço, porém, que são tais e em tão grande número, que nem as minhas mãos, nem as minhas posses, posto que tivesse mil vezes mais do que tenho, bastariam para todas. Assim, conforme vou tendo, doravante, maior ou menor facilidade em fazer essas experiências, avançarei mais ou menos no conhecimento da natureza.
Era isto precisamente o que prometia a mim mesmo tornar conhecido com o tratado que havia escrito, mostrando tão claramente a utilidade recebida pelo público, que obrigaria todos os que desejam, em geral, o bem dos homens, isto é, todos os que são virtuosos na realidade e não por falsa aparência, nem apenas por opinião, [250] quer a comunicar-me as experiências que haviam feito, quer a ajudar-me na busca das que falta fazer.
Tive, porém, a partir desse tempo, outras razões que me levaram a mudar de opinião e a pensar que devia, na verdade, continuar a escrever sobre todas as coisas que considerasse com alguma importância, à medida que lhes fosse descobrindo a verdade, e a dar-lhes o mesmo cuidado que daria, se as quisesse dar a luz da publicidade, não só para ter mais oportunidade de melhor as examinar, porque, sem dúvida, se presta sempre maior atenção ao que se julga vir a ser visto por várias pessoas do que àquilo que fazemos apenas para nós próprios (e, muitas vezes, as coisas que me pareceram verdadeiras, no momento em que comecei a concebê-las, apareceram-me como falsas, quando as quis pôr por escrito), como também para não perder nenhuma ocasião de ser útil ao público, se disso for capaz. E também para que, se os meus escritos têm algum valor, aqueles que os possuírem após a minha morte, deles se possam servir, como lhes aprouver. Pensei, outrossim, que, de forma alguma, devia permitir que fossem publicados, durante a minha vida, a fim de que nem as oposições e controvérsias, a que estariam talvez sujeitos, nem mesmo a reputação que me pudessem dar, me sujeitassem a qualquer ocasião de perder o tempo que tenciono empregar em instruir-me.
De facto, embora seja verdade que cada homem está obrigado, tanto quanto puder, a procurar o bem dos outros, e, efectivamente, nada vale em rigor quem não é útil a alguém, todavia, é também verdade que os nossos cuidados devem alargar-se além do momento presente, e é bom omitir as coisas que trariam talvez algum proveito aos nossos contemporâneos, quando tencionamos fazer outras que mais proveito darão aos vindouros.
Assim, quero bem que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada em comparação com o que ignoro e com o que não perdi as esperanças de poder vir a aprender. Efectivamente, aos que descobrem, pouco a pouco, a verdade nas ciências, sucede quase o mesmo que sucede aos que, ao começar a ficar ricos, têm menos dificuldade em obter grandes proveitos, do que tinham em obter outros menores, quando eram mais pobres. Ou então podem comparar-se aos chefes do exércitos, cujas forças costumam crescer na proporção das suas vitórias, os quais carecem mais de um melhor comportamento, [251] para se manterem, depois da perda de uma batalha, do que para conquistar cidades e províncias. Realmente, é mesmo um travar batalhas o esforçar-se por vencer todas as dificuldades e erros que nos impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder uma batalha o aceitar qualquer opinião falsa respeitante a uma matéria um pouco geral e importante, pois é precisa muita mais sagacidade, para voltar ao estado que se encontrava antes, do que para se fazerem grandes progressos, quando já se têm princípios bem firmes.
No que me diz respeito, se encontrei até agora algumas verdades nas ciências (e espero que as coisas contidas neste volume [252] levarão a pensar que algumas encontrei), posso dizer que não são mais do que consequências dependentes de cinco ou seis principais dificuldades que venci, e conto por outras tantas batalhas, [253] em que tive a sorte a meu lado. Não recearei até dizer que julgo não precisar de ganhar duas ou três outras semelhantes para vir a realizar inteiramente os meus planos, e que a minha idade não é assim tão avançada, [254] que, de acordo com o curso ordinário da natureza, não possa ainda vir a ter tempo bastante para isso.
Julgo-me, porém, tanto mais obrigado a economizar o tempo que me resta, quanto mais esperanças tenho de o poder empregar bem, e, sem dúvidas, teria muitas ocasiões de o perder, se publicasse os fundamentos da minha física. Embora, com efeito, sejam quase tão evidentes que é suficiente entendê-los para os aceitar, e nenhum existe de que não julgue poder dar demonstrações, contudo, em virtude de ser impossível estarem de acordo com todas as diversas opiniões dos outros homens, prevejo que seria, muitas vezes, desviado do meu labor, por causa das polémicas (oppositions) que fariam surgir.
Pode dizer-se que essas polémicas seriam úteis, não somente para que conhecesse as minhas faltas, mas também para que, se em mim houvesse alguma coisa de bom, os outros pudessem, por tal facto, comprendê-lo melhor e, como muitos podem ver melhor do que um só, [255] ao começarem, desde então, a utilizar o que de bom havia, me ajudassem com as suas invenções.
Mas, posto que me reconheça extremamente sujeito a cair em erro, e não confie quase nunca nos primeiros pensamentos que me ocorrem, contudo, a experiência que tenho das objecções, que me podem ser feitas, impedem-me de tirar delas qualquer proveito. [256] Já, com efeito, avaliei, muitas vezes, os juízos tanto daqueles que tenho tido por amigos, como de quaisquer outros, aos quais me julgava indiferente, e até mesmo de alguns, cuja maldade e inveja, como eu sabia, procurariam descobrir o que a amizade esconderia aos meus amigos.
Poucas vezes, porém, sucedeu que me tivessem apresentado qualquer objecção que eu já não tivesse previsto, a não ser que estivesse muito fora da questão. Assim, quase nunca encontrei qualquer censor das minhas opiniões que não parecesse, ou menos rigoroso, ou menos justo que eu próprio. [257] E nunca, nunca notei que, mediante as discussões [258] que se realizam nas escolas, [259] se haja descoberto qualquer verdade, até então ignorada, porque, enquanto cada um procura sair vitorioso, esforça-se mais em fazer valer a verosimilhança, do que em pensar as razões de uma e de outra parte, e aqueles que foram, durante muito tempo, bons advogados, não são, devido a isso, melhores juízes.
Quanto à utilidade que os outros receberiam da comunicação dos meus pensamentos, ela não podia também ser muito grande, tanto mais que ainda não os levei tão longe, que não haja necessidade de lhes acrescentar muitas coisas, antes de os aplicar à prática. E penso poder dizer sem vaidade que, se alguém há que disso seja capaz, esse alguém devo ser eu, de preferência a qualquer outro. O que não quer dizer que não haja, no mundo, muitos espíritos incomparavelmente melhores do que o meu, mas ´+e que ninguém saberia tão bem conceber uma coisa e torná-la sua, quando a aprende de outrem, como quando a inventa ele próprio. [260] E isto é tão verdade neste assunto, que, embora tenha, muitas vezes, explicado algumas das minhas opiniões a pessoas dotadas de muito boa inteligência, enquanto delas lhes falava, pareciam compreendê-las muito distintamente, mas, quando elas as repetiam, notava que, quase sempre, as tinham alterado de tal modo que as não podia reconhecer como minhas.
A propósito disto, sinto-me à vontade para aqui pedir aos vindouros que nunca acreditem nas coisas que dizem terem partido de mim, a não sr que eu próprio as tenha divulgado. Assim é que nenhum espanto me provocam as extravagâncias atribuídas a todos aqueles filósofos antigos de que não temos escritos, [261] nem, por tal facto, julgo que seus pensamentos tenham sido muito disparatados, dado que foram dos melhores espíritos do seu tempo, mas julgo tão-somente que nos foram mal transmitidos.
Do mesmo modo, se vê que quase nunca sucedeu que qualquer dos seus sequazes os tivesse ultrapassado, e estou convicto que os mais apaixonados dos que, agora, seguem Aristóteles se considerariam felizes, se tivessem tantos conhecimentos da natureza como ele, [262] embora tal se verificasse sob a condição de jamais terem um maior conhecimento. Eles são tal como a Hera que não consegue subir mais alto do que as árvores que a sustentam, e, muitas vezes, até volta a descer, depois de ter chegado ao cimo. [263]
Parece-me também que voltam a descer, ou seja, tornam-se de certo modo, menos sábios do que se deixassem de estudar, aqueles que, não contentes com saber o que está inteligentemente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades que ele silenciou e nas quais talvez nunca tivesse pensado. Todavia, a sua maneira de filosofar é muito cómoda para os que têm apenas espíritos muito medíocres, pois que a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem dá-lhes ocasião de falar de todas as coisas tão ousadamente, como se as soubessem, e sustentar tudo quanto dizem contra os espíritos mais subtis e mais hábeis, sem que haja meio de os convencer. E, nisto, parecem-se semelhantes a um cego que, para se bater sem desvantagem contra alguém que vê, o tivesse levado para o fundo de algum subterrâneo muito escuro. E posso dizer que estes [264] estão interessados em que me abstenha de publicar os princípios da filosofia de que me sirvo, porque, sendo muito simples e muito evidentes, se os viesse a publicar, eu faria quase o mesmo que abrir algumas janelas e deixar entrar a luz do dia nesse subterrâneo, onde desceram, para se baterem.
Sucede, porém, que nem mesmo os melhores espíritos têm ensejo de conhecê-los, porque, se querem saber falar de todas as coisas e adquirir a fama de doutos, consegui-lo-ão mais facilmente, contentando-se com a verosimilhança, que pode ser encontrada, sem grandes dificuldades, em toda a espécie de assuntos, do que procurando a verdade que não se descobre, se não pouco a pouco, em algumas matérias, e, quando se trata de falar das restantes, obriga a confessar, com toda a franqueza, que se ignoram. [265] Se, contudo, preferem o conhecimento de um tudo-nada de verdade à vaidade de parecerem nada ignorar, como, indubitavelmente, é bem preferível, e querem seguir um plano semelhante ao meu, não precisam que nada mais lhes diga do que já disse neste discurso.
Efectivamente, se forem capazes de ir mais além do que eu fui, sê-lo-ão também, com mais forte razão, de encontrar por si mesmos tudo o que julgo ter encontrado, tanto mais que, tendo eu examinado tudo ordenadamente, é certo que o que me falta ainda descobrir é mais difícil e está mais oculto do quanto pude, até agora, descobrir; e teriam muito menos prazer em aprendê-lo de mim do que de si próprios, além de que o hábito que adquirirão, na procura, primeiramente, das coisas fáceis, para passarem, depois, pouco a pouco, gradualmente, às outras mais difíceis, lhes servirá mais do que todas as minhas instruções seriam capazes de servir. [266]
Quanto a mim, estou persuadido de que, se me tivessem ensinado, desde a juventude, todas as verdades, cujas demonstrações vim a procurar depois, e não tivesse tido alguma dificuldade em as aprender, talvez não tivesse chegado ao conhecimento de algumas outras, e, de certeza, nunca teria adquirido o hábito e a facilidade, que julgo ter, para encontrar sempre outras novas, à medida em que me disponha a procurá-las. Numa palavra: se, no mundo, existe alguma obra que não possa ser tão bem acabada por nenhum outro senão pelo próprio que a começou, essa é a obra em que trabalho.
É verdade que, relativamente às experiências que podem servir à descoberta da verdade, um homem só não chega para as fazer a todas. Mas não poderia também empregar utilmente outras mãos, além das suas, a não ser as dos artífices [267] ou de pessoas a quem pudesse pagar, e a quem a esperança do ganho, que é um meio muito eficaz, levaria a fazer exactamente todas as coisas que lhes fossem ordenadas. Quanto aos voluntários que, por curiosidade ou desejo de aprender, se viessem talvez oferecer para o ajudar, além de que, geralmente, prometem mais do que fazem, e só fazem lindos projectos que a nada levam, eles quereriam, sem sombra de qualquer dúvida, ser pagos com a explicação de algumas dificuldades, ou, pelo menos, com cumprimentos e conversas inúteis que o levariam a perder tempo, ainda que fosse pouco.
Quanto às experiências que os outros já fizeram, mesmo no caso de lhas quererem comunicar -- o que nunca fariam aqueles que lhes dão o nome de secretas [268] -- tais experiências são, na generalidade, compostas de tantas circunstâncias ou ingredientes supérfluos, que muito difícil seria descobrir-lhe a verdade, além de que as encontraria quase todas tão mal explicadas, ou mesmo falsas, em virtude de os que as fizeram se terem esforçado por as apresentarem em conformidade com sos seus princípios, [269] que, se algumas houvesse que lhe servissem, uma vez mais não valeriam o tempo que seria preciso gastar na sua escolha.
Desta forma, se alguém existisse que, na opinião unânime de todos, fosse capaz de encontrar as maiores coisas e as mais úteis ao público, [270] e a quem, por esse motivo, os outros homens se esforçassem, por todos os meios, em o ajudar a realizar os seus projectos, não vejo que a favor dele pudessem fazer mais do que contribuir para as despesas das experiências que fossem necessárias, e, além disso, impedir que o tempo lhe fosse roubado pelas atitudes importunas de alguém. Mas, além de que não presumo tanto acerca de mim próprio, que queira prometer coisas extraordinárias, nem alimentar-me de pensamentos tão vãos, como imaginar que o público se deva interessar muito com os meus projectos, não tenho também a alma tão baixa, que queira aceitar, seja de quem for, qualquer favor que se possa julgar não o ter eu merecido.
todas estas considerações em sua globalidade, fizeram que, há três anos, resolvesse não divulgar o tratado [271] que tinha entre mãos, e até tomasse a resolução e não publicar, durante a minha vida, qualquer outro que fosse tão geral que dele se pudessem entender os fundamentos da minha física. [272] Mas, logo a seguir, apareceram duas outras razões que me obrigaram a publicar aqui alguns ensaios particulares e a dar ao público alguma conta das minhas acções e meus projectos.
A primeira é que, se o não fizesse, muitas pessoas, que tinham conhecimento da minha anterior intenção de publicar os meus escritos, poderiam pensar que as razões que me levaram à desistência me seriam mais desfavoráveis do que são. De facto, embora não ame excessivamente a glória, ou até, se me é permitido dizer, a deteste, na medida em que a julgo contrária à tranquilidade, a qual acima de tudo estimo, [273] nunca procurei, todavia, esconder as minhas acções, como se fossem crimes, nem me servi de muitas precauções para ser um desconhecido, não só por julgar que isso me prejudicaria, como também me daria alguma espécie de inquietação, uma vez mais contrária à perfeita tranquilidade de espírito que procuro. E, assim, tendo-me sempre mantido indiferente entre a preocupação de ser conhecido ou não, não podendo, contudo, impedir de alcançar uma certa reputação, pensei que devia tudo fazer, para que, pelo menos, evitasse que essa reputação fosse má.
A outra razão que me obrigou a escrever este discurso é que, ao ver, dia após dia, e cada vez mais, o atraso que sofre a intenção que tenho de me instruir, por causa de uma infinidade de experiências que preciso de fazer, e que me é impossível fazer sem a ajuda de outros, ainda que não tenha grandes ilusões a ponto de esperar que o público se interesse verdadeiramente com as coisas que me interessam, não quero, todavia, faltar tanto ao que a mim próprio devo, que dê azo a que os vindouros me venham a censurar, algum dia, por ter podido deixar-lhes muitas coisas muito melhores do que as que fiz, se não tivesse negligenciado excessivamente o fazer-lhes entender em que poderiam eles contribuir para os meus projectos.
Pensei, então, que me era fácil escolher alguns assuntos, que, sem estarem sujeitos a muitas controvérsias, nem me obrigarem a dizer mais do que o que desejo acerca dos meus princípios, não deixariam de lhes mostrar assaz claramente aquilo de que sou ou não capaz, no domínio das ciências. Não saberei dizer se o consegui ou não, não quero exercer qualquer influência sobre os juízos de quem quer que seja, falando eu mesmo dos meus escritos, mas ser-me-á muito agradável que os examinem, e, para que haja um maior número possível de ocasiões para esse exame, peço a quantos tiverem algumas objecções a fazer, que se dêem ao incómodo de as enviar ao meu editor, e, assim, avisado por ele, procurarei juntar-lhes, ao mesmo tempo, a minha resposta. [274] Deste modo, os leitores, ao verem juntamente objecções e respostas, julgarão muito mais facilmente da sua verdade, e prometo nunca lhe dar longas respostas, mas apenas confessar, com toda a franqueza, as minhas faltas, se as reconhecer, ou então, se não notar, dizer simplesmente o que julgar necessário, para defender o que escrevi, sem acrescentar a explicação de qualquer nova matéria, a fim de não me enredar interminavelmente de uma para outra.
Se algumas das questões de que falei, no princípio da Dióptrica e dos Meteoros, causarem, de início, impressão, por, tendo-lhes dado do nome de suposições, [275] parecer não ter a preocupação de as provar, tenham a paciência de ler tudo com atenção e espero que venham a ficar satisfeitos. Parece-me, na verdade, que, nessas obras, as razões se entrelaçam de tal modo que, assim como as últimas são demonstradas pelas primeiras, que são as suas causas, as primeiras, em perfeita reciprocidade, são demonstradas pelas últimas que são os seus efeitos. E não se deve pensar que, nisto, estou a cometer o erro a que os lógicos dão o nome de círculo, [276] porque, tornando a experiência bem certos a maior parte destes efeitos, as causas, donde os deduzi, servem mais para os explicar [277] do que para os provar, e, precisamente ao contrário, são elas que são provadas por eles. E dei-lhes o nome de suposições, a fim de que se saiba que penso poder deduzi-las daquelas primeiras verdades anteriormente explicadas. Mas não quis expressamente fazê-lo, para evitar que certos espíritos que julgam aprender num dia tudo aquilo que outro pensou em vinte anos, logo que ouvem apenas duas ou três palavras e estão tanto mais sujeitos a errar e são menos capazes da verdade, quanto mais penetrantes e vivos eles são, não pudessem aproveitar-se disso, para construírem qualquer filosofia extravagante sobre o que julgam ser os meus princípios, sendo disso eu considerado culpado.
Assim, quanto às opiniões que totalmente me pertencem, não me desculpo de as apresentar como novas, tanto mais que, se as suas razões forem bem consideradas, tenho a certeza de que achá-las-ão tão simples e tão conformes ao senso comum, [278] que parecerão menos extraordinárias e menos estranhas que quaisquer outras que se possam ter sobre os mesmos assuntos. E não me vanglorio também de ter sido o primeiro inventor de algumas, mas sim de nunca as ter recebido, por elas terem sido ditas ou não por outrem, mas unicamente porque a razão mas fez aceitar. [279]
Quanto ao factos de os artífices não poderem tão depressa executar a invenção [280] que é explicada na "dióptrica", não julgue que, por isso, se possa dizer que ela é má. Sendo necessárias muita habilidade e prática, para fazer e ajustar as máquinas que descrevi, sem que falte qualquer pormenor (circonstance), não me espantaria menos, se os artífices o conseguissem à primeira tentativa, do que se alguém pudesse aprender, num só dia, a tocar excelentemente o alaúde, só pelo facto de lhe terem dado uma nova partitura (tablature).
Se escrevo em francês, língua do meu país, e não em latim, [281] que é a língua dos meus preceptores, é por esperar que aqueles que se servem unicamente da sua razão natural completamente pura [282] julgarão melhor as minhas opiniões do que aqueles que não acreditam se não nos livros antigos. E, quanto àqueles que aliam o bom senso ao estudo, os únicos que desejo para meus juízes, tenho a certeza que não serão tão partidários do latim, que recusem ouvir as minhas razões, só pelo facto de as explicar em língua vulgar. [283]
De resto, não quero falar aqui, em particular, dos progressos que espero vir a fazer nas ciências, nem comprometer-me para com o público, com qualquer promessa que não tenho a certeza de poder vir a cumprir. Direi somente que resolvi empregar o tempo da vida que me resta a procurar adquirir algum conhecimento da natureza, do qual se possam tirar regras para a medicina, [284] mais certas do que as obtidas até agora. Por inclinação, afasto-me tão energicamente de toda a espécie de outros planos, principalmente dos que não poderiam ser úteis a uns sem prejudicar outros, que, se algumas circunstâncias me constrangessem a dedicar-me a eles, não creio que viesse a ser capaz de qualquer bom resultado. Assim, declaro aqui que sei bem não ter jeito para me tornar uma pessoa importante no mundo, mas também de forma alguma o desejo ser, e considerar-me-ei sempre mais reconhecido àqueles cujo favor me permitirá usufruir sem impedimentos o meu tempo, do que àqueles que me ofereceram os mais honoríficos empregos da Terra.
QUADRO CRONOLÓGICO
SEGUNDO MICHELLE BEYSSADE
IN DESCARTES
COM ALGUNS ADITAMENTOS
ACONTECIMENTOS
1562 -- Início das guerras da religião, em França;
1598 -- édito de Neantes;
1600 -- Suplício de Giordano Bruno;
1601 -- Prisão de Campanella (preso até 1628);
1610 -- assassinato de Henrique IV;
1611 -- Fundação do Oratório, em França;
1616 -- Primeiro processo de Galileu;
1618 -- Início da Guerra dos Trinta Anos;
1633 -- Segundo processo de Galileu;
1648 -- Tratado de Vestefália -- fim da Guerra dos Trinta Anos;
1648-1653 -- A Fronda;
1653 -- Ditadura de Cromwell;
1656 -- Condenação do Jansenismo;
1661 -- Início do reinado de Luís XIV;
1663 -- "Obra filosófica" de Descartes posta no index;
FILOSOFIA
1584 -- "Do Universo Infinito e dos Mundos" de G. Bruno;
1596 -- Nascimento de Descartes;
1602 "A Cidade do Sol" de Campanella;
1607 -- "Da Ciência Operativa" de Fr. Bacon;
1620 -- "Novum Organum" de Fr. Bacon;
1628 -- "circulação do sangue" de Harvey;
1637 -- "Discurso do Método" de Descartes;
1641 -- "meditações" de Descartes;
1644 -- "Os Princípios da Filosofia" de Descartes;
1647 -- "Gassendi de Vita Epicuri";
1649 -- "Des Passions de l'Âme" de Descartes;
1650 -- Morte de Descartes;
1651 "Leviatão" de Hobbes;
1611-1675 -- "Ética" de Espinosa;
1663 -- "Do Princípio da Individuação" Leibniz;
CIÊNCIAS
1596 -- "Mysterium Cosmographicum" de Kepler;
1609 -- "Nova Astronomia" de Kepler;
1614 -- "Logarithmum Canonis Descriptio" de Napier;
1638 -- "Discurso Sobre as Ciências Novas" de Galileu;
1644 -- "Opera Geometrica" de Torricelli;
1650 -- "Musicae Compendium" de Descartes;
1666 -- "Decomposição da Luz" por Newton;
LITERATURA
1572 -- "Os Lusíadas" de Camões;
1602 "Hamlet" de Shakespeare;
1605 -- "D. Quixote" de Cervantes;
1616 -- Morte de Shakespeare e de Cervantes;
1633 -- "Poesias" de John Donne;
1636-1637 -- "O Cid" de Corneille;
1656-57 -- "As Provinciais" de Pascal;
1666 -- "O Misantropo" de Molière;
1674 -- "Arte Poética" de Boileau;
1677 -- "Fedra" de Racine.
[1]Não confundir com Honoré de Balzac (1799-1850), o grande romancista de Eugénie Grandet, Le Père Gorint, La Comédie Humaine, etc.
[2]O vocábulo "paixão" empregue por Descarte em sentido afectivo lato, aplicando-se a qualquer estato afectivo em geral. Presentemente, a psicologia dá o nome de "paixão" a um "estado afectivo intenso e duradoiro, intelectualizado", distinguindo-a sobretudo da "emoção" passageira. Há quem defina, também, "paixão", como "tendência exacerbada predominante, dominante ou dominadora". Ribot (1839-1916) define-a como "emoção que permanece", devido à passagem de um estado agudo a um estado crónico.
[3]Quando Descartes escrevia este tratado, Galileu foi condenado (1633), em Roma, pela Inquisição, por defender o sistema Heliocêntrico, já defendido pelo Polaco Copérnico. Descartes "prudentemente" não ousou publicá-lo.
[4]Esta obra inacabada consta de XXI regras. É, ã dú, o primeiro texto cartesiano, contendo as regras fundamentais do seu método, redigido em 1628, antes de partir ç a Holanda. Embora tivessem circulados cópias do manuscrito, somente em 1701 a obra é publicada em Opuscula posthuma Physica _et Mathematica.
[5]em oposição ao monismo espinosiano, o pluralismo é a doutrina segundo a qual os seres que compõem o mundo, são múltiplos, individuais, independentes, e, consequentemente, não devem ser considerados como simples modos ou fenómenos de uma realidade única e absoluta (vocab. techn. de la philosophie, de Lalande).
[6]Qual a faculdade humana que, segundo Descartes, se encontra melhor distribuída por toda a humanidade?
[7]Qual o argumento de que Descartes se serve para justificar que o bom senso seja aquilo que está mais bem distribuído no mundo?
[8]Segundo Descartes, o que é o bom senso?
[9]De onde provém, segundo o autor, a diversidade das nossas opiniões?
[10]Qual o objectivo fundamental que Descartes se propõe levar a cabo com o seu método?
[11]Que nos irá Descartes descrever, no Discurso do Método? Com que objectivos irá ele proceder a essa discrição?
[12]Que motivos terão levado Descartes a mudar de opinião, naquilo que diz respeito às letras?
[13]a filosofia ensina a falar com verosimilhança acerca de todas as coisas e faz-se admirar pelos menos sabedores
Segundo o texto, extraído da primeira parte do Discurso do método, qual a opinião que Descarte nos mostra ter acerca de toda a filosofia que o antecede? Justifica a tua resposta.
[14]eu tinha sempre um muito grande desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas acções e caminhar com segurança nesta vida.
Que medidas terá Descartes tomado para que lhe fosse possível atingir os objectivos a que se propõe neste texto? Justifica a tua resposta.
[15]Indica quais são as principais ciências e disciplinas que Descartyes critica, na primeira parte do Discurso do Método.
Que pensa Descartes, segundo a opinião emitida na primeira parte do Discurso do método, da Teologia?
Quais as principais lições que ele terá retirado de todas as viagens que fez e que nos descreve, de forma muito sumária, nesta primeira parte?
[1].-- após ter precisado o método da álgebra, Descartes aplica-o ao estudo do espaço e inventa a geometria analítica. "a sua descoberta marca uma data capital no desenvolvimento científico da humanidade" (Chevalier, Descartes, Paris, 1921, página 118).
[2].Discurso de Abertura do Congresso Descartes, Paris, 1937.
[3].Discours de la Méthode. Texte et commentaire. J. Vrin, Paris, 1976.
[4].A moral tirada do seu método não será senão uma "moral provisória" e pragmática, como no respectivo capítulo se verá.
[5].O bom senso ou a razão, idêntica essencialmente em todos os homens, é a faculdade que permite julgar, "distinguir a verdade da falsidade ou erro", como "luz natural" que é. Há quem veja nesta afirmação de Descartes uma leve ironia, atenuada, contudo, pelas palavras seguintes. Evocar-se-ão, a propósito, a máxima de La Rochefoucauld (1613-1680): "toda a gente se queixa da sua memória, mas ninguém se queixa da sua inteligência". Evidentemente, ainda que ninguém se queixasse da sua inteligência, daí não se podia inferir que todos a tivessem igual.
[6].A palavra "método" de origem grega, é formada de "meta" que significa, aqui, "para" e de "odos" que significa "caminho". Com o mesmo significado temos a palavra "processo", de origem latina.
[7].Problema da importância do método. É evidente que o "método" é um factor de economia e de segurança, sendo, como é, ordem e disciplina. Poder-se-ão, todavia, formular as questões: "a inteligência vale o que vale o método?" (Descartes diz que sim) ou "o método vale o que vale a inteligência?". Completar-se-ão dialecticamente. Poder-se-á, então, dizer sugestivamente que "o método está para a inteligência como a alavanca está para o braço que dela se serve". Sobre o valor do método já Platão (427-347) dissera na "República": "sendo de natureza divina a faculdade de saber, jamais perde o ser poder, mas torna-se útil ou inútil, benéfica ou nociva, conforme a direcção que lhe damos."
[8].Note-se a expressiva de Francis Bacon (1561-162+6), autor do antiaristotélico Novum Organum (1620): "Claudus in via antecedit cursorem extra viam" -- "um coxo, seguindo o devido caminho, chega mais depressa do que um corredor extraviado". Não será despropositado lembrar, neste contexto, o nosso provérbio: "quem se mete por atalhos, mete-se em trabalhos".
[9].Por espírito entender-se-á a totalidade dos aspectos do psiquismo humano: aspectos cognitivo (representativo), afectivo e activo (volitivo ou conativo). Não significa, assim, apenas a "razão", mas a imaginação, a memória, os sentimentos, as volições, etc. Semelhantes essencialmente na "razão", os homens terão, contudo, mais ou menos "espírito". É óbvio que "ter espírito" não significa aqui "ter graça ou piada".
[10].Os filósofos escolásticos. Dá-se o nome de filosofia escolástica à filosofia medieval, ensinada nas "escolas". Esta filosofia, que Descartes atacou, tem o seu período áureo no século treze com S. Tomás de Aquino (1225-1274) que soube adaptar ao cristianismo a filosofia "pagã" de Aristóteles, também chamada peripatética ou do Liceu.
[11].Precisemos estes vocábulos da filosofia aristotélico-escolástica: "acidente" é o que pode ser "mais ou menos", o que varia, muda acessoriamente, conforme os indivíduos. Definido como "ens in alio" (ser em outro), distingue-se da substância que é definida como "ens in se" (ser em si) de carácter essencial ou permanente. As categorias aristotélicas eram dez: substância e nove acidentes: quantidade, qualidade, relação, acção, paixão (passividade), tempo, lugar, situação, modo ou hábito.
"forma" é um dos princípios que compõem a substância finita, sendo o outro a matéria. Nesta doutrina "hilemórfica" (Hulê: matéria e morphê: forma), a "forma" era acto com sentido de perfeição e matéria era potência, com sentido de imperfeição). O ser infinito ou Deus era, consequentemente, "acto puro", ou "ens a se": ser que em si tinha a razão da sua existência, ou ser cuja essência e a existência se identificavam.
"espécie" é essência completa, definida pelo "género próximo" e "diferença específica". Assim, o homem ou ser humano (espécie) definir-se-ia como animal (género próximo) racional (diferença específica). A essência específica é a mesma para todos os homens, indivíduos da mesma espécie. Cada indivíduo, ser concreto, era diferente de outro, também ele ser concreto, devido ao "princípio de individuação" (mas nem todos os filósofos escolásticos assim o aceitaram) que era a matéria afectada de quantidade, ou, como se lê em S. Tomás, "materia quantitate signata".
Eustáquio de S. Paulo, escolástico do século dezassete e muitas vezes citado por Descartes, exprimia-se assim: "seria absurdo que Pedro tivesse mais da "natureza humana" que Paulo, mas um pode ser "mais espiritual" (ingeniosior) do que o outro, devido à prontidão de raciocínio, vivacidade de imaginação, etc.
[12].Nas ciências, como a geometria e a física, e na metafísica esboçada neste discurso, na quarta parte.
[13].Alusão à grande ambição "tecnicista" de Descartes, revelada perfeitamente na sexta parte do seu Discurso.
[14].Note-se a máxima: "ninguém é bom juiz em causa própria."
[15].´No sentido de Narrativa. Do latim "fabula" que deu as duas formas divergentes ou alotrópicas: "fala" e "fala". O étimo de "fala" é o verbo "fabulare". Fábula não tem, pois, aqui o sentido de "fabulação". Seria uma narrativa sem carácter pitoresco ou anedótico, mas da qual se pudesse tirar uma lição moral ou um exemplo.
[16].As chamadas "humanidades": gramática, história, poesia e retórica. Na Idade Média, a cultura geral, aquilo a que hoje chamamos os estudos preparatórios para a carreira universitária, era dada pelo "trivium" (gramática, retórica e dialéctica) e o "quadrivium" (aritmética, música, geometria e astronomia).
[17].O Colégio de La Flèche, fundado em 1604 pelos Jesuítas.
[18].Latim e grego.
[19].entenda-se "artes mecânicas" e não "belas-artes". O ensino dos Jesuítas estava orientado para as aplicações práticas das matemáticas: arte das fortificações, agrimensura, cartografia, etc.
[20].Previsão do que veio a ser a nossa civilização tecnicista: a ciência aplicada ou "técnica" altamente sofisticada, como se diz, ao serviço da indústria e de todas as actividades humanas.
[21].Na sexta parte, Descartes retoma esta ideia e desenvolve-a. Deve ter obtido conhecimentos de medicina, quando cursava direito em Poitiers, onde se pacharelou e licenciou, em 1616. Do ensino de La Flèche não constava nem a medicina, nem a jurisprudência.
[22].No que se segue, Descartes critica o limitado saber livresco recebido.
[23].´Descartes está livre deste preconceito, porquanto, em suas muitas viagens, viu a variedade das coisas deste mundo. Quer no que respeita à moda e costumes, quer no que respeita ao pensamento, Descartes põe-nos de sobreaviso relativamente à "prevenção" (primeira regra do método, página 63 deste volume).
[24].Observação pertinente. Historiadores antigos e modernos "faziam a história" como um compêndio didáctico de "moral" e "patriotismo", como, por exemplo, o romano Tito Lívio (59 a.C-17 d.C) e o nosso João de Barros (1496-1570).
[25].digerir: pôr em ordem.
[26].A certeza é uma atitude subjectiva da mente que está livre de qualquer dúvida. Está, pois, liberta de uma dúvida sistemática, universal, metafísica, "hiperbólica", referida na primeira "meditação". A evidência é a clareza e distinção das noções que se impõem "coactivamente" à mente, eliminando a possibilidade de dúvida. O matematicismo será a base da ciência cartesiana.
[27].Trata-se de uma moral fundada na eloquência, na exaltação retórica, e não numa base científica. Tal base pretende apresentáº-la Descartes na psicofisiologia do "tratado das Paixões".
[28].Refere-se à moral estóica. Para os estóicos, a felicidade estava na virtude e esta consistia na impassibilidade absoluta (apatia e ataraxia) e na eliminação de toda a paixão, ou perturbação afectiva (insensibilidade); Usando apenas da razão, o homem podia igualar-se a Deus, (alma do universo) (orgulho); Em certos casos, era admissível o suicídio (desespero), e, quanto ao parricídio, talvez Descartes estivesse a pensar no assassínio de César, (15 de Março de 44 a.C) em pleno Senado, pelo seu filho adoptivo Brutus, que veio a suicidar-se.
O estoicismo foi fundado por Zenão de Sittium (336-264), que, natural de Chipre, fundou, em Atenas, uma escola, no chamado Pórtico (em grego: Stoa). Seguiriam o estoicismo filósofos antigos, como Crisipo (282-204); Séneca (4 a.C-65), Cordovês, preceptor de Nero (37-68), e que, por ordem deste tirano, se teve de suicidar, cortando as veias; Epicteto (50-127), um escravo liberto, e o imperador Marco Aurélio (121-180), autor de "pensamentos para mim próprio".
[29].Descarte coloca-se numa posição totalmente natural, servindo-se do exame racional do bom senso, pondo totalmente de parte as "verdades sobrenaturais" da fé cristã.
[30].A filosofia escolástica movia-se apenas no domínio do "verosímil", e não do certo ou verdadeiro. Dela fará Descartes tábua rasa, isto é, dela não se servirá para coisa alguma.
[31].Em oposição aos escolásticos, Descartes não admitia grau intermédio (opinião) entre a verdade e a falsidade. Só a evidência, que gera a certeza, põe de acordo as mentes.
[32].No tempo de Descartes, não estavam ainda nitidamente separadas a filosofia e as ciências, Se, em nossos dias, as incertezas metafísicas subsistem, as ciências propriamente ditas têm fundamentos bastante sólidos, em muitas zonas do saber.
Nos "Princípios da filosofia", diz Descartes: "toda a filosofia é uma árvore, cujas raízes são a metafísica, e o tronco a física, e os ramos que saem desse tronco são as outras ciências que se reduzem a três principais: a medicina, a mecânica e a moral."
[33].O acaso da vida, o chamado "destino", a sorte boa ou má.
[34].Escola filosófica, influenciada pelo estoicismo, fundada por Antístenes (444-365), discípulo de Sócrates e mestre do "cínico" mais conhecido Diógenes (413-327) por suas atitudes extravagantes. Para os "cínicos", o bem supremo da vida estava na virtude, e esta exigia o desprezo da riqueza, da ambição, do prazer e de todas as convencionais conveniências sociais.
[35].Os alquimistas passaram à história pelos seus trabalhos na busca da "pedra filosofal", capaz de tornar em ouro qualquer outro metal ou corpo, e do "elixir de longa vida", capaz de renovar o homem física e psiquicamente.
[36].Não confundir a "astrologia", suposta arte de predizer o futuro pela observação dos astros fornecendo os fantásticos "horóscopos", com a ciência dos astros, chamada "astronomia".
[37].Fabricante engenhoso de ilusões.
[38].Decepcionado, Descartes, ao passar a ler nas páginas do "grande livro do mundo", virá a contar apenas consigo mesmo, encontrando em si a primeira certeza e verdade, como no-lo dirá na segunda parte desta obra.
[39].Literato, cujas "especulações" ou suposições puramente teóricas não são sugeridas pela experiência, nem por ela julgadas. Assim, eram tidos por Descartes em pouca consideração os "homens de letras".
[40].Numa óptica pessimista, a história da filosofia não seria senão uma "colecção" das aberrações da razão humana. Disse Cícero (106-43): "nihil tam asurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum" (de Divinatione, II, 58) (nada houve, por mais absurdo que fosse, que não tivesse sido dito por algum filósofo).
[41].A experiência da vida vem reforçar a dúvida resultante dos estudos livrescos, levando-o a recusar toda a "autoridade" externa. Terá interesse ler nos "Essais de Montaigne" (1533-1592) os capítulos "do costume", "dos costumes antigos" e "apologia de Raymond Sebond".
[42].Note-se o emprego metafórico de "ofuscar". Descartes, de acordo com a educação religiosa recebida, pensa que Deus deu a cada um alguma luz natural, para discernir o verdadeiro do falso. É a questão do "bom senso" ou "razão" natural igual em todos os homens e constitutivo essencialmente da "natureza humana", como se viu, no início desta primeira parte.
[43].Note-se o tom de voluntariedade, de decisão, de reforma intelectual plenamente assumida.
[44].Durante a Guerra dos Trinta anos, que começou em 1618 e terminou com o Tratado de Vestefália (westfalen), em 24 de Novembro de 1644.
[45].Fernando Segundo de Habesburgo (1578-1637), rei da Boémia (1617) e da Hungria (1618) que, em 1619, foi coroado, em Francforte (Frankfurt), imperador germânico e governou até 1637.
[46].A ideia fundamental de Descartes a unidade das ciências, a partir dum modelo matemático, que se opõe à dispersão do saber escolástico que admitia a diversidade das ciências, segundo seus objectos. E tal unidade do saber exige a unidade de uma experiência mental subjectiva.
[47].Neste passo e seguintes, Descartes opõe-se ao trabalho de grupo: a obra realizada por um só considera-a mais perfeita do que a realizada com a cooperação de vários. É óbvio que a obra de um só, feita inteligentemente e com método, vale mais que a obra de vários feita ininteligente e desordenadamente. Pense-se, contudo, como, em nossos tempos, nos grandes empreendimentos científico-técnicos, o trabalho tem de ser feito com grupos, mais ou menos numerosos. Pensemos nos empreendimentos espaciais, que são os que mais exigem o trabalho de equipas especializadas a trabalhar para um objectivo comum. E não virá a despropósito citar a frase de Henri Poincaré (1852-1912): "L'art c'est moi; la science c'est nous" -- a arte é individual; a ciência é colectiva.
[48]."mal compassées": não medidas a compasso, desprovidas de simetria e regularidade.
[49].Alusão a Licurgo, legislador de Esparta. Na rígida e totalitarista educação esppartana, os recém-nascidos, defeituosos eram mortos, e os jovens, desde tenra idade, eram encorajados à matança dos escravos, ao roubo e à dissimulação, para formarem o carácter belicista.
[50].Essas ciências dos livros não levavam, mediante seus raciocínios, a nenhuma conclusão evidente, ou seja, certa. Evidentemente, são excluídos por Descartes os livros de matemática.
[51].Descartes afirma o que todos sabem: ninguém chegou a adulto sem passar por criança. Note-se, porém, que o que anteriormente se disse em comparações tiradas da arquitectura, da arte, da engenharia, das legislações religiosas e políticas, do saber puramente livresco e do ensino apenas provável da escolástica, pretende chamar a atenção para o facto de que nenhumas actividades ou conhecimentos são válidos, se não são dotados de uma unidade, de um princípio coerente de funcionamento. Para fundar a ciência, é preciso que a razão readquira a sua independência utilitária, depurando-se de toda a ganga sensível ou corpórea, nos conceitos. É recusada a física aristotélica, que não passava, segundo Descartes, de uma conceptualização indevida das percepções sensíveis, simplesmente qualitativas.
[52].Nesta passagem, vê-se que o melhor meio para a razão se libertar dos preconceitos, dos ensinamentos contraditórios ou imperfeitos dos mestres, consiste em começar a rever tudo, desde o início, por ela própria.
[53].Problema crucial de qualquer reforma do ensino.
[54].Mais adiante serão apresentados remédios para estas dificuldades, das quais a maior será a de permanecer num cepticismo total, todo o tempo que for preciso, para estabelecer um sistema que venha a substituir todas as opiniões do passado rejeitadas.
[55].São os Estados, já comparados por Montaigne a "vieux bâtiments qui pourant vivent et se soutiennent en leur poids" (Essais, III-9).
[56].Descartes não pretende qualquer reforma política, não alinhando com aqueles "humeurs brouillones et inquètes" de que fala a seguir. A sua reforma diz somente respeito à pura especulação.
[57].Como é possível sermos "nós", "totalmente nós", "unicamente nós", sem as "circunstâncias convivenciais com os outros e as coisas?
[58].Convém relembrar a diferença feita por Descartes entre "razão" e "espírito" (ver nota 5, página 38 deste volume). (esta nota deverá ser acertada com a nova numeração, bem como todas as outras em que seja feita uma referência a notas já existentes).
[59].Ver nota número 36, página 48 deste volume (deve ser refundida esta observação, tendo em conta as alterações introduzidas com a nova numeração de notas).
[60].Cf. Montaigne, "DEs Cannibales" (Essais I-31). Ver nota 17, páginas 48 e 49 deste volume )esta nota deverá ser refundida, em conformidade com as alterações introduzidas, aquando da transcrição deste livro).
[61].Divisão tradicional da filosofia em lógica metafísica e física.
[62].Ataque frontal à lógica formal silogística, a qual, além de não ensinar nada de novo, como Descartes afirma, nada ensinará de certo, como, mais tarde, o empirista Stuart Mill (1806-1873) procurou demonstrar, considerando o silogismo não apenas uma "tautologia", mas ainda um "círculo vicioso". O silogismo categórico, a partir de premissas conhecidas, não serve, de facto, senão para explicar a outrem o que já se sabe.
Na sua estrutura, o silogismo apresenta duas premissas, a maior que contém o termo que, na conclusão, é predicado, e a menor o termo que, na conclusão, é sujeito. Além destes dois termos, tem o termo médio, o eixo do silogismo, o qual nunca pode entrar na conclusão. Devido à posição do termo médio nas premissas, o silogismo apresenta quatro "figuras", tendo cada uma, conforme suas regras, "modos" válidos, ao todo dezanove, nas quatro "figuras": quatro modos na primeira, quatro modos na segunda, seis modos na terceira e cinco modos na quarta, chamada "figura galénica".
Exemplo de um silogismo na primeira figura: O termo médio "mamíferos é sujeito da premissa maior, que é a primeira, e predicado na segunda premissa, a menor:
Premissa M -- todos os mamíferos são vertebrados
Premissa m -- todas as baleias são mamíferos
Conclusão ou consequente -- logo todas as baleias são vertebrados.
Ou seja, por termos:
T igual a termo maior
m igual a termo médio
t igual a termo menor.
M -- T
t -- M
T -- T.
[63].Raimundo Lúlio (1235-1315), frade franciscano, natural de Palma de Maiorca e cognominado o "doutor iluminado". Foi autor da "ars magna" (magna arte), espécie e máquina de pensar que pretendia dar para tudo raciocínios infalíveis na descoberta da verdade: era uma uma especiosa espécie linguística de "computador cerebral". Apesar de ser, como diz Rousselot, "uma das mais poderosas inteligências do seu século", de forma mística e mistificadora, introduziu a arte cabalística (do Hebraico "kabbala") na filosofia cristã, com artifícios verbais, subtilezas ocas e arbitrariedades duma verborreia escolástica degenerescente. Por isso é que Descartes se lhe refere, em especial, e depreciativamente.
[64].Como se sabe, Diana e Minerva são Deusas da mitologia romana: Diana é Deusa da caça e Minerva Deusa da sabedoria. São citados estes seres mitológicos, como poderiam ser citados outros.
[65].Esta análise dos antigos refere-se à geometria tradicional presa à configuração espacial, em que têm de se ver imaginativamente todas as linhas necessárias para a construção da figura geométrica. Por isso, não pode exercitar o entendimento.
A análise pode ser, em matemática, um processo de descoberta, de invenção, subindo o raciocínio formal matemático pelo processo de decomposição ou redução (de forma directa ou indirecta "por redução ao absurdo") da "tese" para a "hipótese", ou seja, do que se pretende demonstrar "teorema" para o que já está demonstrado ou, inicialmente, é admitido como "princípios evidentes", na tradicional divisão "hoje recusada fundamente pelo axiomatismo) entre "axiomas" e "postulados".
[66].álgebra, do árabe "aljabr", significa "restauração" e é abreviação de "aljabr, wal-muquabala", (restauração e oposição), obra de um matemático árabe. Este nome era fundado na regra em virtude da qual se restabelecia num dos membros da equação a quantidade que se suprimia no outro, mudando a função positiva ou negativa desta quantidade (Antenor Nascentes, in "Dicionário etimológico da língua portuguesa"). Atribuída a origem da álgebra a Diofanto (325-410), matemático grego de Alexandria, ela é desenvolvida pelos árabes e vem a organizar-se, finalmente, no século dezasseis, pela obra do francês Viète (1540-1603). Num grau mais abstracto, em relação à aritmética, o emprego de símbolos literais com qualquer valor numérico permite a simplificação das relações e a generalização das fórmulas matemáticas, que vêm, seguidamente, a aplicar-se a todas as ciências, dando-lhe uma linguagem exacta, rigorosa.
[67].prevenção é o mesmo que "preconceito", "ideia preconcebida", "apriorística", ou mais exactamente "prejuízo" (préjugé), ou seja, "pré -- juízo" (juízo antecipado ou precipitado). A verdade ou a falsidade não se encontram, propriamente nas "ideias", mas nos "juízos" que formulamos acerca das coisas.
[68].A análise que decompõe o complexo (todo) no simples (elemento) e a síntese, que recompõe o simples no mais complexo, são processos complementares do método. A síntese completa e fortifica a análise. Certo é que "todo o conhecimento discursivo é uma análise entre duas sínteses", mas a primeira é uma "síncrese" indiferenciada, confusa e obscura, e a final, uma verdadeira síntese, pois pressupõe a análise prévia.
A sua complementaridade encontra-se expressa na conhecida frase de Victor Cousin (1792-1867): "síntese sem análise, ciência falsa; análise sem síntese, ciência incompleta".
A síntese encontra-se ligada ao raciocínio dedutivo (a priori), como a análise se liga ao raciocínio indutivo (a posteriori), e tanto nas ciências matemáticas, como nas ciências experimentais, ou seja, de factos ou fenómenos, podemos encontrar formas de análise (ascensiva) e de síntese (descensiva), que, assim, podemos esquematizar (este esquema é bastante complicado, para que possa aqui ser passado).
[69].Esta quarta e última regra é um processo de controlo que permite verificar a evidência, não de um juízo isolado, mas duma sucessão de juízos. É, pois, uma revisão do conjunto dos juízos que constituem uma demonstração completa. É uma fase que implica a possibilidade de descoberta, tal como sucede no chamado "método dos resíduos" do empirista Stuart Mill (citado na nota 19, página 74 deste volume (esta nota deve ser corrigida)) procurando a "coincidência solitária", este filósofo inglês, indo mais longe que Bacon (1561-1626), que apenas considerava a "coincidência constante", nas suas três "tábuas" -- da "presença", da "ausência" e dos "graus" -- formulou os seus quatro métodos: da concordância, da diferença, das variações concomitantes e dos resíduos.
[70].Depois de expostas as quatro regras essenciais, Descartes julga ser possível explicar tudo quanto seja objecto do conhecimento.
[71].tais eram a óptica (ver a sua obra "Dióptrica"), a astronomia e a música, com o ciência das relações harmónicas.
[72].Alusão à geometria analítica descoberta por Descartes, a qual faz a síntese do contínuo geométrico ou espacial e do descontínuo aritmético ou numérico, isto é, a forma geométrica é traduzida em símbolos algébricos e vice-versa.
"A ideia básica deste método -- simples como todas as ideias realmente fecundas -- consiste em definir a posição de cada ponto por meio de um sistema de números (dois números em geometria plana, e três em geometria no espaço), o que permite traduzir integralmente a linguagem da geometria na linguagem precisa e maleável da análise: as figuras geométricas passam então a ser descritas por meio de equações e de inequações; os problemas de geometria transformam-se em problemas de álgebra ou de cálculo infinitesimal; os teoremas da geometria tornam-se demonstráveis por meio da análise. É claro que, por tal processo, também a análise pode, reciprocamente, ser interpretada em termos geométricos. Os dois ramos da matemática passam a ajudar-se mutuamente e quase se confundem, o que reverte em extraordinário progresso para a matemática e as ciências afins." (j. Sebastião e Silva -- Geometria analítica Plana, páginas 5 e 6).
[73].No prefácio dos "Princípios da Filosofia" esclarece que se "chama propriamente filosofia" o conhecimento a partir das primeiras causas, ou seja, dos princípios. Estes devem ser evidentes de tal modo que seja deles que depende o conhecimento das outras coisas, de forma que eles possam ser conhecidos sem elas, mas não, inversamente, elas sem eles."
[74].Note-se que, para Descartes, a filosofia é o princípio de todas as ciências (ver nota 28, página 46 deste volume (esta nota deverá ser alterada, devido às mudanças efectuadas)).
[75].Ver a primeira regra do método, página 63 deste volume (esta nota deverá ser alterada, para que fique conforme com a paginação desta obra).
[76].Não são as mesmas as exigências imediatas da vida prática e as do espírito. Nas ciências, a verdade não admite outro critério que não seja a evidência racional, mas, na vida de todos os dias, as coisas acontecem de outra forma: é preciso adoptar, pragmaticamente aquele procedimento que se afigure o melhor. É preciso viver em paz, para procurar em paz, seja o que for. há, assim, em Descartes uma dicotomia entre o que pertence à esfera da vida (e da fé) e o que pertence à esfera do pensamento puro. São, inicialmente, as certezas "morais" (e não as matemáticas ou metafísicas) que poderão dar a paz da consciência.
Mais tarde, em Kant (1724-1804) esta dicotomia aparecerá de forma bem curiosa na "Crítica da Razão Pura" (que podemos conhecer?) e na "Crítica da Razão prática" (como devemos proceder? Que podemos esperar, na vida?).
[77].Esta moral provisória conformista consta de preceitos empíricos, não garantidos, de forma alguma, pela evidência ou seja, pela clareza e distinção, mas fundar-se-´«a verosimilmente nos exemplos dos que a Descartes se afiguram "mais sensatos". Esta moral provisória exigirá, contudo, constância da vontade e moderação dos desejos. A moral cartesiana virá a apresentar forma quase definitiva em cartas escritas à princesa Isabel, à rainha Cristina da Suécia e em alguns passos do "tratado das Paixões".
[78].Diz-se vir de Aristóteles a ideia fundamental de que "a virtude se situa num meio-termo entre extremos". Diz-se em latim: "in medio stat virtus".
[79].Ponto de vista pragmatista ou utilitarista, contra o qual se virá a opor Kant que não pode conceber outra moral que não seja uma moral puramente formal, na qual o que dá valor moral às acções é a "intenção" e em que o dever se impõe à vontade na forma de "imperativo categórico".
[80].De acordo com o nosso ditado: "à terra aonde fores ter faz como vires fazer."
[81].Precisamente o contrário do que diz o nosso adágio: "bem prega Frei Tomás: olha para o que ele diz, e não para o que ele faz".
[82].Separação cartesiana entre a vontade que adere e o entendimento que concebe. A vontade pode aderir cegamente e a ela se deve, principalmente, o errarmos.
[83].Negócios e, por extensão, todos os actos sociais regulados juridicamente.
[84].Alguns comentadores consideram "votos religiosos" e não quaisquer promessas.
[85].Evoquemos o início do soneto tão conhecido de Camões:
"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades."
[86].Cometeria falta contra a "razão", se considerasse como opções definitivas simples opiniões provisórias, necessárias, sem dúvida, mas apenas para viver em paz, durante o tempo das suas investigações.
[87].Urge agir, viver, sem estar à espera de um juízo plenamente esclarecido ou esclarecedor, pois que, na vida prática, a irresolução é, deveras, um grande mal. É essencial que o juízo saiba bem as que opiniões são teoricamente duvidosas, apesar de a vontade a elas aderir, provisoriamente.
[88].A moral provisória tem a sua verdade que consiste em bem distinguir o que é mais ou menos urgente, o que é mais ou menos provável "probabilismo moral".
[89].Pensamento estóico: o encadeamento absolutamente necessário das coisas, um mundo em que Deus é a "alma".
[90].Regra de inspiração estóica, perfeitamente de acordo com o pensamento de Epicteto (nota número 24, páginas 44 e 45 deste volume) e do imperador romano Marco Aurélio (mesma nota), que, num estilo perfeitamente cartesiano, diz: "as coisas não têm, por si próprias, o menor contacto com a alma; não têm acesso à alma; não podem modificá-la, nem pô-la em movimento. Ela modifica-se, põem-se em movimento ela mesma, e por si só, e faz que as contingências sejam conforme aos juízos que por si própria considera dignos." (Pensamentos para mim próprio -- Livro V -- 19).
Saliente-se no estoicismo, perfeitamente exposto na citada obra de Marco Aurélio: há bens que dependem de nós e outros que não; a felicidade está na virtude; virtude está em viver segundo a razão; independência de espírito; libertação de desejos irracionais; moderação dos desejos; aceitação da ordem natural imutável das coisas, como vontade divina; toda a sageza está na imperturbabilidade ou ataraxia.
Sobre Epicteto e Montaigne vale a pena ler o "Entretien avec M. Saci" de Pascal (1623-1662) -- Pensées de Pascal, edição Garnier, Paris, 1930, páginas 35 a 46.
[91].Tal atitude de espírito dará uma perene serenidade espiritual.
[92].Princípio naturalmente optimista próprio de todo o intelectualismo ou racionalismo moral. A vontade é considerada, por sua natureza, o "apetite do bem".
[93].Diz Séneca: "da operam ne quid umquam invitus facias: quidquid necesse futurum est repugnanti, id volonti necessitas non est" (Ad Lucilium, LXI -- 2) (esforçar-te por nunca fazeres coisa alguma contra a tua vontade: aquilo que vem a suceder necessariamente para aquele que não quer, isso não é uma necessidade para aquele que quer).
[94].Os estóicos.
[95].O acaso, a sorte, o destino, as circunstâncias causais ou fortuitas da vida.
[96].Continua a tratar-se dos filósofos estóicos que, mediante o exercício permanente da sageza, julgavam possível tornarem-se iguais aos deuses e até ultrapassá-los. Nesta pretensão, sob uma óptica cristã, vê Descartes uma soberba diabólica.
É preciso, contudo, reconhecer que, entre os sistemas dos chamados pagãos, a moral estóica foi uma das mais elevadas. Particularmente, teve o mérito de reagir contra as tendências totalitárias ou comunizantes dos velhos moralistas que levavam o indivíduo a ser absorvido pelo estado. O estoicismo faz realçar o valor da pessoa humana, a qual, graças a razão, goza de direitos inalienáveis.
[97].Como o mesmo sentido que na nota anterior.
[98].Exame cuidadoso, meticuloso, ou inspecção pormenorizada.
[99].A felicidade, como se está vendo, está ligada ao conhecimento, à alegria intelectual da descoberta e posse da verdade. Dissera Cícero: "Felix qui potuit rerum congnoscere causas" (feliz aquele que pôde conhecer as causas das coisas) constituindo a felicidade um aspecto do Bem Supremo, vai-se esboçando uma moral quase definitiva em Descartes (ver nota 2, página 101 deste volume (esta nota deverá ser refundida, devido às alterações introduzidas)).
[100].Teoria socrática e Platónica de uma moral intelectualista ou racionalista, segundo a qual basta conhecer o bem para o praticar, visto a virtude não ser senão uma ciência. Sócrates teria ensinado: "ninguém é voluntariamente mau", pois "quem faz o mal é um ignorante". Marco Aurélio afirma: "todo o pecador (entenda-se: o que faz o mal)é um bom homem que falha o seu objectivo e se transvia" (Pensamentos pra mim próprio, Livro IX, 42) e "não é preciso deitar as culpas aos homens, porque quando estes se enganam, é sempre involuntariamente" (idem, Livro XII, 12). O estoicismo panteísta negava, logicamente, a liberdade da vontade. Descartes, porém, pensando cristãmente, admitia a liberdade da vontade, desde os tempos medievais também designada "livre arbítrio", e era essa liberdade que lhe permitia escolher o que a razão lhe apresentava ao espírito.
[101].Para Descartes existe uma ordem natural e uma ordem sobrenatural. Pelo que respeita às coisas terrenas, o entendimento é suficiente, para as conhecer; quanto às verdades incompreensíveis da religião revelada, crê-se nelas somente por fé.
[102].de 1619 a 1628.
[103].Descartes mostra que a sua doutrina é diferente da dos cépticos. Enquanto a dúvida destes é universal, sistemática ou definitiva, ou seja, fim em si mesma ("duvidam apenas por duvidar"), a dúvida cartesiana é provisória ou metódica, ou seja, um meio para atingir a verdade, na forma de certeza. Na filosofia grega, a dúvida céptica, inicialmente, encontra-se em Pyrron, ou Pírron, ou Pirrão, ou Pirro (365-275). Pirronismo é o mesmo que cepticismo radical, dado que há um cepticismo moderado ou probabilismo, defendido por Arsesilau (316-241) e Carneiades (215-129) que considera legítimo o estado de "opinião", situado entre a certeza e a dúvida.
Foram cépticos os filósofos Enesidemo de Creta (80 a.C-100? d.C) e Sexto Empírico (segunda metade do século II d.C), autor da obra "hypothyposes" ou "Esqui-ços pirrónicos".
Modernamente, o cepticismo encontra-se em Montaigne (1533-1592) nos seus "Essais", sendo bem conhecida a sua frase: "que sais-je?" Encontra-se também no empirista inglês David Hume (1711-1776), que, levando às últimas consequências o empirismo de John Locke (1632-1704), destrói toda a metafísica, negando o valor objectivo dos princípios de causalidade e substancialidade. O português Francisco Sanches (1550-1632), autor da obra "Quod nihil scitur" (1581) (que nada se sabe), é considerado um precursor de Descartes, sendo a sua dúvida metódica e não céptica.
[104].Algumas horas apenas são dedicadas por Descartes ao estudo das matemáticas. Efectivamente, a sua pretensão máxima era a de explicar totalmente a realidade, ou seja, encontrar a plena fundamentação da metafísica ou teoria do ser.
[105].Refere-se à "dióptrica", aos "Meteoros" e à "Geometria".
[106].Filosofia Metafísica, cujos primeiros princípios fundamentam todos os outros conhecimentos. Antes de ser filósofo, Descartes foi apenas um cientista. Como, pois, se verá, vai fundamentar o conhecimento científico na "veracidade divina".
[107].A filosofia escolástica, fundamentalmente aristotélica-Tomista, ensinada pelos Jesuítas no Colégio de La Flèche.
[108].A metafísica cartesiana é posterior à sua lógica. Na primeira obra importante, "Regras Para a Direcção do Espírito", Descartes preocupa-se, exclusivamente, com problemas do método. No "Discurso do Método", encontra-se o essencial, como se verá, da metafísica cartesiana, fundada no "matematicismo", mas mais esboçada do que verdadeiramente aprofundada.
[109].em 1628.
[110].A Holanda.
[111].Uma disciplina rigorosa.
[112].Esta sua paixão pela solidão não é uma patológica misantropia, mas o amor do pensamento e aversão a tudo quanto o poderia perturbar.
[113].esta quarta parte é um resumo das "Meditações Metafísicas", escritas alguns meses depois do seu regresso à Holanda (1628-1629).
[114].Tanto no sentido tradicional de "filosofia primeira", como no sentido de muito abstractas, captadas apenas pelo pensamento puro.
[115].muito afastadas da vulgar maneira de pensar.
[116].Na terceira parte, onde apresenta os argumentos da sua "moral provisória", põe, como se viu, as exigências da vida não podem ficar indefinidamente à espera da evidência apresentada pela inteligência. Aqui se pode aplicar a sentença:"primum vivere deinde philosophare", (primeiro viver, depois filosofar).
[117].Problema do conhecimento e não já da acção.
[118].Note-se o carácter voluntário da dúvida.
[119].Após a dúvida universal metódica, designação esta de "metódica" que não é da autoria de Descartes. Como se viu, tal dúvida, na procura e descoberta da verdade, é um meio para se atingir a certeza (ver nota 28, volume segundo, páginas 108-110 (esta nota deverá ser revista, devido às alterações introduzidas)).
[120].Paralogismo é um erro involuntário ou de boa-fé, devido à fraqueza do nosso entendimento. Quando o erro é voluntário ou de má-fé, chama-se sofisma. Esta distinção não interessa à lógica, mas sim à moral, pois esta é que visa a "intenção".
[121].Por vários motivos: pelos erros dos sentidos (expressão inexacta, pois a expressão exacta é "erros da percepção"); pelos erros da razão; pelo "dialelo" da própria razão, e, como refere nos "princípios", pela acção brincalhona e maldosa dum Génio Maligno, à maneira de um Deus enganador (dieu trompeur).
[122].Os que duvidam por duvidar, e se mostram sempre irresolutos.
[123].O cogito (je pense), primeira verdade a emergir duma dúvida voluntária e universal, vai ser a base de um encadeamento ulterior de razões, segundo uma "sequência admirável de consequências", na expressão de Pascal (1623-1662). Eis essa sequência: duvido -- logo existo -- reconheço-me imperfeito, mas tenho a ideia de perfeito -- sou imperfeito, logo Deus existe, como ser perfeito -- logo a veracidade divina é a garantia da existência de um mundo externo -- logo o saber tem a sua garantia na existência das ideias claras e distintas -- logo a alma é realmente distinta do corpo, porque tenho a ideia clara e distinta desta separação -- logo a física matemática, fundada na distinção do psíquico (subjectivo) e do físico (objectivo) é possível.
[124].Suposição lógica, curiosa, mas sob muitos aspectos, lamentável, ao rejeitar a relação corpo-espírito e a dialéctica ou diálogo entre o "ver e o mundo".
[125].Como já se viu, (nota 7, volume segundo, páginas 39-40), o conceito de "substância" opõe-se ao de "acidente". Substância é o que subsiste em si, constituindo a natureza ou "espécie". Note-se como Descartes no idealismo dum "eu" transcendental estabelece o realismo da alma existente como realidade substancial. O filósofo alemão Kant recusará este "paralogismo cartesiano", considerando ilegítima ou ilógica a passagem de um "eu" fenoménico espacio-temporal para um "eu" numenal inespacial e intemporal (Crítica da Razão Pura).
[126].Contrariamente à escolástica, Descartes estabelece uma separação radical entre a alma (espírito) e o corpo, entre a "res cogitans" (substância pensante) e a "res extensa" (substância extensa ou material, apesar de fazer, no "Tratado das Paixões", afirmações como estas: "nada há que actue mais imediatamente sobre a nossa alma do que o corpo a que está junta" (artigo II); "a alma está verdadeiramente unida a todo o corpo" (artigo XXX), "o que chega à alma pelos sentidos fere-a mais fortemente do que o que lhe é representado pela razão" (artigo LXXXV); "há uma tal ligação entre a alma e o corpo que, quando uma vez se uniu qualquer acção corporal a qualquer pensamento, um destes termos não se torna a apresentar, sem que o outro se apresente também" (artigo CXXXVi).
[127].Exagerado espiritualismo do dualismo cartesiano, apesar das ideias anteriormente expostas. Sem corpo a alma seria o que é.
[128].Note-se que não pode haver ideia "distinta" que não seja "clara", mas pode haver ideia "clara" que não seja "distinta". Na lógica tradicional, diz-se que a "ideia clara" resulta da análise da "extensão" e a ideia "distinta" da análise da "compreensão". As ideias claras e distintas são a consequência lógica da certeza metafísica do cogito, que nos dá o modelo de toda a verdade isto é
a ideia perfeitamente clara e distinta. E será a experiência metafísica do cogito que fundará o valor matemático da ideia clara e distinta, como Descartes mostrará sobretudo nas "meditações" e nos "princípios".
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[129].Demonstrada a sua existência como "substância pensante", Descartes passa a demonstrar a existência de Deus. Como a ideia de finito implica a de infinito; como, numa perspectiva espacializada, a ideia de "imperfeito" (concebida à maneira de "efeito") implica a ideia de "todo" (concebida à maneira de "causa"), tal ideia de "natureza mais perfeita", pensada então como perfeitíssima, é Deus.
[130].Tais pensamentos dependiam do que, sendo relativamente muito mais perfeito, era suficiente para os produzir.
[131].perfeição é entendida, metafisicamente, como "grau do ser".
[132]."defeito", será, na óptica metafísica tradicional, "falta de ser". Do latim "defectus", defeito significa "não completamente feito". O seu contrário é "perfectus", que significa "totalmente feito", ou seja, totalidade do ser, isenção de imperfeição.
[133].Repugnância significa aqui o mesmo que "contradição".
[134].Com acima se disse, teria a "plenitude do ser".
[135].Segunda prova da existência de Deus: a ideia de perfeição que tenho em mim não pode provir de mim, pois sou um ser imperfeito. Não o autor ou a causa de mim mesmo; se o fosse, seria então dotado de todas as perfeições, que estão na ideia de perfeito.
[136].Filosofia escolástica ou medieval.
[137].Doutrina da "participação" do ser, professada pela filosofia cristã (uns consideram errada a designação de "filosofia cristã" e outros reputam-na correcta. Não é, agora e aqui, que se vai tratar da questão), doutrina já afirmada por Platão e todos os neoplatónicos. Santo Agostinho (354-430) aceitou a doutrina da "participação" conciliando o platonismo, neste ponto e noutros, com a doutrina dogmática cristã. O aristotélico S. Tomás de Aquino (1225-1274) perfilhou a mesma doutrina: que o ser finito participava do ser infinito imparticipado, cuja existência se identificava com a sua essência (ens a se).
[138].Talvez não venha a despropósito citar Camões:
"Mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende."
[139].Este é o pensamento cartesiano: num composto, as partes dependem umas das outras e o todo depende das partes constitutivas. Em oposição à dualidade do composto humano, a perfeição divina exige absoluta unidade e simplicidade.
[140].Apesar de usar a palavra "mundo", talvez Descartes se queira referir aos "anjos", admitidos pelo cristianismo.
[141].Trata-se, na filosofia Cristã, da doutrina da "providência concebida como criação contínua". Vindo do nada, o homem, (e todo o ser criado) voltaria ao nada, se, a cada instante temporal, a divindade intemporal (eterna) não estivesse como que a criá-lo de novo, sustendo-o. Ser finito, o homem não poderia nunca subsistir em sua contingência essencial, sem a acção continuada de Deus, ser infinito, necessário. Descartes resume, neste ponto, doutrinas metafísicas (religiosas), sem as comprovar, mas vem a fazê-lo, desenvolvidamente, nas "Meditações".
O mundo material, na concepção cartesiana, é apenas uma inércia geométrica que Deus activa. Diz Pascal: "Je ne puis pardonner à descartes; il aurait bien voulu, dans toute sa Philosophie, pouvoir se passer de Dieu; mais il n'a pu s'empêcher de lui faire donner une chiquenaude, pour mettre le monde en mouvement; Aprés cel, il n'a plus aque faire de Dieu" (Pensées, nº 77).
[142].O problema do mundo exterior de natureza corpórea.
[143].Em oposição à doutrina atomista que afirma que os elementos últimos da matéria são "átomos fisicamente indivisíveis" ("átomo" significa em grego "sem divisão") doutrina defendida pelos gregos Leucipo (cerca do ano 500 a.C) e Demócrito (460-370), posteriormente por Epicuro (341-270), e, na civilização romana, pelo poeta Lucrécio (98-55) em seu poema "De Rerum Natura" (acerca da natureza das coisas) -- Descartes defende um "mecanicismo geométrico", em que, identificando a "matéria" com o "espaço", nega a descontinuidade dos corpos, afirmando que a matéria é indefinidamente divisível. Negado o "vácuo", admitido pelos atomistas, Descartes pensa que, num mundo fechado, como as esferas num rolamento, um corpo, ao mover-se, vai ocupar o lugar daquele que se moveu, afirmando, assim, a doutrina do "movimento circular", também conhecida como a do "movimento em turbilhão".
[144].O conceber claramente e distintamente a essência dos corpos (extensão, divisibilidade, movimento) não implica a sua existência extramental. Como se viu, só Deus é o único ser cuja essência e existência são inseparáveis ou, dito de outro modo, cuja essência implica a existência.
[145].Trata-se do célebre argumento ontológico (ou a priori, ou a simultaneo), que se pode, concisamente, expor assim: o ser perfeito existe necessariamente, pois, se lhe faltasse a existência, já não seria um ser perfeito. Também se pode expor assim: a perfeição implica a existência; Deus é um ser perfeito; logo Deus existe. Este argumento constitui a terceira prova cartesiana da existência de Deus. As duas anteriores, como se viu, baseiam-se no "princípio de causalidade", uma vez que se parte dos efeitos do cogito finito e imperfeito para um cogitatum realíssimo, infinito e perfeito, causa do humano "cogito" Este argumento ontológico não é original em Descartes, pois Santo Anselmo (1033-1109) filósofo do "Credo, ut intelligam", (creio, para poder entender), apresentou-o na obra "Proslogion", considerandoº-o como meio infalível, para converter os incrédulos ou ateus, aos quais se refere a Bíblia, ao dizer: "dixit insipiens in corde suo: non est Deus" (Salmo XIII, versículo 1) (disse o insensato no seu coração: não há Deus).
Este argumento "a priori" (chamado "ontológico" por Kant, em oposição às provas "cosmológicas", baseadas na experiência externa) foi refutado por S. Tomás de Aquino de forma claríssima: há, em tal argumento, uma passagem indevida da ordem "lógica" ou do pensamento para a ordem "real" ou "ontológica". Assim: Deus é concebido como ser perfeito; a existência é concebida como perfeição; logo Deus existe na mente de quem o concebe. É claro que um ser perfeito não pode ser concebido sem a existência que é concebida como perfeição das perfeições, mas é inválido, é ilógico passar da ordem mental para a ordem real. Neste ponto, Kant está de acordo co S. Tomás de Aquino.
[146].Não se pode deixar de notar que a existência de Deus é, segundo Descartes, a certeza em que se fundamentam todas as outras certezas. Nunca é de ver que, negada essa certeza, rui o sentimento cartesiano, tal como Descartes o engendrou.
[147].Descartes distingue "imaginação" do "pensamento puro". Na imaginação, a actividade psíquica está na dependência do corpo, das impressões sensíveis e, por isso mesmo, ela é facilmente confusa. Actualmente, em psicologia, diz-se que, quando o objecto sensível do conhecimento está presente, dá-se uma "percepção", e, quando ele é representado, em sua ausência física, temos uma "imagem", a qual, como é óbvio, implica a memória.
[148].Descartes recusa o intelectualismo aristotélico-Tomista. Este rejeita a existência de qualquer conhecimento inato, afirmando que toda a ideia ou conceito (considerados como sinónimos) provém da sensação, e é obtida mediante a função abstractiva do "intelecto activo" (intellectus agens).
É muito citada a frase latina: "nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu" (nada existe no intelecto que não tenha estado, primeiramente, nos sentidos).
Esta frase foi aceite pelo empirismo anticartesiano John Locke que, ao escrever a obra "An Essay concerning human Understanding" (Ensaio Sobre o Entendimento Humano), defende a doutrina do "espírito tábua rasa" ou "white Paper".
[149].Ao "intelectualismo" da escolástica, que se lhe afigura muito próximo dum "realismo sensista", opõe Descartes o seu "racionalismo inatista e matematicista". Sem dúvida que é somente por um acto de entendimento, um acto de julgar (formulação de um juízo) que podemos afirmar corresponderem as nossas representações à realidade. Somente num acto judicativo é que se encontra a verdade ou a falsidade, considerada a lógica bivalente. Com rigor, nunca se poderá dizer que há "ideias" verdadeiras ou falsas: sê-lo-ão implicitamente, mas só na implicação dos juízos se encontra o verdadeiro ou o falso.
[150].E não o estarão, fora da perspectiva subjectivista cartesiana?
[151].Certeza puramente pragmática, de valor probabilístico, que, como se viu, é suficiente, no pensar de Descartes, para regular as nossas acções, em resoluções que não se podem adiar demoradamente.
Moral (do latim: mores (costumes) ou ética (do grego: ethos) costume) pode definir-se como ciência dos costumes, valorizados como bons ou maus, convenientes ou inconvenientes, aceites ou não aceites, numa perspectiva sociológica, ou então numa perspectiva metafísica, ou numa perspectiva racionalista, tipo kantiano.
[152].Certeza que, no plano do conhecimento, não deixa lugar a qualquer dúvida. Será fundamental, absoluta, a primeira das certezas.
[153].Houve quem visse, neste raciocínio, uma dupla "petição de princípio", chamada "círculo vicioso", falácia que consiste em provar uma coisa pela outra, ou seja, provar _a por _b e provar _b por _a. No caso cartesiano, verificar-se-ia que a evidência garantia a existência de Deus, e, por sua vez, a existência de Deus garantia a evidência. Julgamos não existir tal "círculo vicioso", pois a evidência garantirá a existência de Deus, no plano gnoseológico, ou seja, do conhecimento; e a existência de Deus garantirá a evidência, no plano ontológico, isto é, do ser. Através do "efeito" conhece-se a "causa", mas é a "causa" que explica o "efeito". O efeito não é causa, nem a causa é efeito.
[154].Entenda-se: uma realidade mental.
[155].Entenda-se: o erro e toda a imperfeição são deficiências resultantes da nossa finitude.
[156].Descartes pretende dizer que o ser humano, ser finito, é tão perfeito quanto é possível a uma criatura que tem uma perfeição participada.
[157].A propósito dos sonhos, pense-se no que disse, graciosa e profundamente (sic) um pensador chinês: "sonhei esta noite que era uma borboleta. Como sei eu agora se sou uma pessoa que julga ter tido aquele sonho, ou se, realmente, sou uma borboleta que está agora sonhando que é uma pessoa?"
[158].Esta ideia "quimérica" é designada por Descartes de ideia "factícia", formada com elementos das ideias "adventícias". As outras que não provêm da experiência e são conaturais à razão são as ideias "inatas".
[159].Se se considerar que há "ideias sensíveis", elas não deixarão de ter uma verdade, que é o seu valor subjectivo de finalidade biológica.
[160].Apenas a razão -- e não a imaginação, como tem sido dito, ligada à imperfeição dos sentidos, -- nos dá a evidência racional. Poder-se-á, porém, dizer que as "ideias" que temos, a sonhar, podem ser mais verdadeiras, porquanto mais lógicas ou racionais, do que aquelas que temos, acordados, quando nos limitamos a acreditar ingenuamente nos dados dos nossos sentidos.
[161].O erro, segundo Descartes, provém da limitação da nossa inteligência, mas, principalmente, da ilimitação, da nossa vontade, defendendo uma "teoria voluntarista do juízo". Sendo finito, o entendimento não chega a compreender certas coisas, ainda que elas sejam compreensíveis; sendo infinita a vontade, na medida em que pode querer tudo, até o que é impossível, e pode afirmar tudo, mesmo o que é absurdo, ela vai além do entendimento e formula juízos que carecem da evidência racional. É pois a vontade que afirma ou nega, segundo Descartes.
[162].A física de Descartes é, como continuamente será afirmado, tirada por dedução da sua metafísica.
[163].Doutos eram os filósofos escolásticos seguidores da filosofia aristotélica, e bem assim os poderosos dignatários eclesiásticos. Quanto a questões controvertidas, pense-se no, então crucial, problema do movimento da Terra em volta do Sol. Ele foi a "cruz" de Galileu Galilei (1564-1642), que, por afirmar o sistema heliocêntrico, já defendido por Copérnico (1473-1543), foi, aos 70 anos de idade, condenado, em Roma, pelo Magnífico Tribunal da Inquisição constituído por 10 cardeais.
[164].São as leis físicas fundadas sobre as verdades matemáticas, e todas as essências eternas criadas livremente por Deus, cuja constância é garantida, como ainda se verá, pela imutabilidade divina.
[165].Em 15 de Abril de 1630, Descartes escrevia ao Padre Mersenne que a sua física apoiaria sobre certas questões metafísicas, e que as verdades matemáticas, consideradas eternas, são criadas por Deus: "foi Deus que estabeleceu estas leis na natureza, assim como um rei estabelece as leis no seu reino", e todas elas são inatas em nossas almas "assim como um rei imprimiria as suas leis no coração de todos os seus súbditos, se o pudesse fazer". Vemos, assim, que a apresentação dedutiva da física cartesiana se funda num inatismo metafísico. Da ideia inata de Deus perfeito, logo imutável, deduz-se a lei da "conservação da quantidade do movimento".
[166].O "Tratado do Mundo ou da Luz", no qual defendia a teoria Heliocêntrica. Esta quinta parte é um resumo desse tratado, mas nenhuma referência é feita ao movimento da Terra em volta do Sol.
[167].Alusão à condenação, em 1633, de Galileu, pelo Tribunal da Inquisição romana, por admitir o heliocentrismo.
[168].Na obra acima citada, Descartes defendia a teoria "ondulatória" da luz, teoria que, mais tarde, no início do século dezanove, veio a ser comprovada pelos trabalhos de Fresnel (1788-1827).
[169].Com excepção dos astros, a única fonte da luz era o fogo.
[170].Posteriormente, veio a demonstrar que os cometas têm luz própria.
[171].Sob a prudência da sua resolução, pode vislumbrar-se uma ironia levemente desdenhosa.
[172].Espaços fictícios. Artifício empregue por Descartes para evitar as críticas dos físicos, e, mormente, para não ser considerado herético pelos teólogos, ao expor as suas opiniões cosmológicas (estava presente em seu espírito a condenação referida de Galileu). De passagem, refiramos que Descartes recusa o "vácuo" imaginado pelos Atomistas, aceitando a existência de um mundo finito e cheio de matéria, sob a forma de vários corpos.
[173].Caos (do grego: chaos) significa "desordem"; o seu oposto é "cosmos" que significa "ordem, harmonia e beleza". Esta ideia de beleza encontra-se nos hodiernos produtos... cosméticos.
[174].Conservação do mundo, segundo as suas próprias leis, sem recurso ao concurso "extraordinário", chamado "milagre".
[175].Esta afirmação de Descartes serve perfeitamente para justificar uma atitude "teísta", segundo a qual é absolutamente supérflua a acção continuada de Deus, ou seja, a providência.
[176].A física cartesiana é uma autêntica teoria da formação do mundo: são as leis do movimento, estabelecidas por Deus, que organizam a matéria, que, primitivamente, era um caos.
[177].Na filosofia escolástica (cf. nota 7, volume segundo, páginas 39-40) (esta nota deverá ser corrigida), a forma é um princípio intrínseco do ser que se julga pôr em movimento um corpo, em sua espécie, como a alma humana parece mover o nosso corpo. As qualidades, como sensações de som, odor, calor, etc. ligadas ao corpo parecem pertencer-lhe própria e objectivamente. Descartes destrói esta física qualitativa, animista, antropomórfica, quer baseando-se em Deus, quer reduzindo a natureza às leis físico-matemáticas, constitutivas da sua ordem, ordem totalmente quantitativa, redutível à geometria e às leis matemáticas do movimento, desprovida de qualquer poder interno oculto.
[178].Os escolásticos afirmavam que a "forma substancial" unida à "matéria-prima" constituía cada ser em determinada "espécie".
[179].Principalmente a "imutabilidade" e a "imensidade". Tais princípios fundamentam os princípios da física cartesiana, como, por exemplo, as leis do movimento e o princípio da sua conservação. São sete as leis fundamentais da sua física, expostas minuciosamente nos "Princípios de Filosofia" e deduzidas a partir da ideia de um Deus perfeitíssimo.
[180].Natureza infinita da velocidade da luz, defendida pelos escolásticos. Hoje, sabemos que a luz não se propaga instantaneamente, mas, assim como as ondas de rádio, à velocidade de cerca de trezentos mil quilómetros por segundo.
[181].Para os escolásticos, o peso era uma "qualidade" íntima dos corpos, semelhante a uma tendência que os levava a cair, a ocuparem o seu "lugar natural". Descartes rejeita esta noção escolástica, fundamentalmente aristotélica, que, de certo modo, tendia a confundir o corpo com a alma, pois dava ao corpo como que uma espécie de anímica tendência, inclinação, intensidade, finalidade.
[182].A acção combinada da Lua e dos Sol explicava o fluxo e o refluxo (em latim: "itus et reditus"), e não a sua própria constituição.
[183].Por exemplo, a combustão da cal viva. Quanto à luz sem calor, chamada "luz fria", ela encontra-se, por exemplo, nos pirilampos.
[184].S. Tomás de Aquino e outros escolásticos consideravam a "conservação das criaturas em seu ser" como a continuação do acto do criador que lhes dera o ser.
[185].Nada acontece sem a directa intervenção de Deus que, pela sua acção contínua, concorre imediatamente em qualquer acção humana e mundanal.
[186].Segundo a Bíblia, Deus (Jeová) criou todos os seres completamente formados, de modo que não houve qualquer forma de evolucionismo ou transformismo.
[187].Note-se, neste ponto, como Descartes não deixa de dizer que a explicação genética (evolucionista) é a única clara cientificamente, mas esta inteligibilidade não quer dizer que tenha sido a história real da formação do mundo e dos seres vivos. Conformando-se com a doutrina religiosa, aceita que a sabedoria divina agiu como muito bem entendeu, ou seja, fez o que era melhor.
[188].Tal é, como já foi frisado, o método dedutivo da física cartesiana. A física moderna, sem postergar o valor criativo da "hipótese", como ciência experimental que é, segue o método indutivo, o qual vai dos efeitos para as causas, ou, em linguagem talvez mais exacta, dos fenómenos para as leis que os regem.
[189].A vida, em relação à morte bruta ou inorgânica, não tem nenhum privilégio, pois que também se reduz à extensão geométrica: é, assim, o mecanismo ou mecanicismo cartesiano, inspirado ou fundado na matemática.
[190].Seguindo o pensamento aristotélico, a filosofia medieval distinguia no homem três almas: A vegetativa, princípio de vida (nutrição, crescimento e reprodução); a sensitiva, princípio de sensação, ou seja, do psiquismo animal; a racional, princípio do pensamento. para Descartes (este é o seu espiritualismo exagerado) só é "alma" o princípio racional, pois que tudo quanto não é pensamento é extensão com as suas propriedades geométricas e movimento espacial. Conclui, assim, que o corpo não é senão uma "máquina", sendo, logicamente, a fisiologia um capítulo da mecânica.
[191].Neste ponto, Descartes insiste na distinção radical entre o corpo e a alma. Se bem que unidos em sua existência, a sua distinção de essência é absoluta: a alma é só pensamento e o corpo é só um mecanismo físico.
[192].Como animais racionais, como seres pensantes.
[193].É do "calor do coração", fonte de toda a vida, que dependem, segundo Descartes, todas as funções fisiológicas.
[194].Os dois ventrículos.
[195].A artéria pulmonar.
[196].As veias pulmonares.
[197].É a traqueia-artéria.
[198].A artéria aorta.
[199].três válvulas tricúspidas, uma mitral e outra tricúspida e as seis válvulas sigmóides, às entradas da artéria aorta e da artéria pulmonar.
[200].Válvulas.
[201].válvula tricúspida do ventrículo direito.
[202].três válvulas sigmóides ou sigmóideas da artéria pulmonar.
[203].Válvulas sigmóides ou sigmóideas da aorta.
[204].As duas aurículas.
[205].Descarte explica a circulação do sangue por meio do calor. Não tinha razão de ser a sua explicação. Quem a tinha era Harvey (1578-1658): o coração era um músculo, que, sob o influxo do sistema nervoso, funcionava como uma bomba aspirante-premente.
[206].Toda a explicação puramente mecânica, ainda que não posta em fórmulas numéricas, é de natureza matemática, ou seja, resulta da "figura e do movimento". Note-se como, logo a seguir, é comparado o movimento do coração ao de um relógio.
[207].É, como estamos a ver, a temperatura do corpo que, segundo Descartes, explica os movimentos do coração (sístole e diástole) pelo processo da rarefacção e da condensação.
[208].Sem o auxílio do microscópio.
[209].Guilherme Harvey citado numa das notas anteriores, Professor de medicina em Londres, e que, em 1628, descobre a circulação do sangue e a expõe na obra "Exercitatio anatomica se motu cordis et sanguinis in animalibus" (estudo anatómico acerca do movimento do coração e do sangue nos animais).
[210].As válvulas já referidas em notas anteriores.
[211].Já vimos que, discordando de Harvey, Descartes explica pelo calor as sístoles e as diástoles do coração, recusando a musculatura enervada do coração, isto é, o seu músculo activo. Em 1777, Lavoisier (1743-1794), um dos fundadores da química moderna, vem a descobrir a função do oxigénio, tanto na combustão, como na respiração animal, tornando o sangue venoso em sangue arterial (hematose).
[212].Humores significa aqui líquidos orgânicos, como saliva, suor, urina, etc.
[213].São as partes mais subtis do sangue produzidas pelo calor do coração. Com a teoria dos "espíritos animais" são explicados todos os fenómenos vitais, ao nível do sistema nervoso. Em linguagem actual, diríamos que eles são a "corrente nervosa". A designação de "espíritos animais" encontra-se já em fisiologistas como Galeno (131-201), que distinguiam "espíritos naturais" saídos do fígado, "espíritos vitais" saídos do coração e "espíritos animais" saídos do cérebro. Na doutrina Tomista, estes últimos, espécie de matéria subtil, serviam de intermediários na união da alma com o corpo. Descartes, distinguindo ou separando substancialmente a alma do corpo, não atribui aos "espíritos animais" absolutamente nada de "animificado" ou "espiritual", pois são puramente materiais, muito embora lhes continue a dar, seguindo a tradição, o nome de "espíritos".
[214].Acumulando-se nos "canais nervosos", os "espíritos animais" dilatam nos músculos e provocam, assim, o movimento. Como a seguir dirá, além da motricidade, a memória e a fantasia são explicados de forma puramente mecânica, não havendo lugar, como já se viu, para a teoria aristotélico-escolástica da hierarquização de "almas".
[215].Entenda-se a consciência do ser em sua totalidade, onde a "sede" da alma estaria na "glândula pineal", em forma de pinha e do tamanho de uma ervilha, situada no mesencéfalo. Tal glândula equivaleria à epífise, segundo uns, ou à hipófise, segundo outros.
[216].A imaginação, que, tendo uma base cerebral, é capaz de forma as "imagens", na ausência dos objectos percepcionados.
[217].Ideias "factícias", como seria, a de hipogrifo, cavalo alado, etc.
[218].O aspecto afectivo do nosso psiquismo, como sentimentos (alegria, tristeza, ira, saudade, etc.), emoções e paixões (ver tratado das Paixões).
[219].É a teoria cartesiana dos "animais-máquinas".
[220].Embora feito pela divindade, o corpo não deixa de ser uma máquina e nenhuma diferença existe, fundamentalmente, entre os "autómatos" fabricados pelos homens e os corpos vivos por Deus criados, se bem que estes sejam mais complexos e perfeitos.
[221].Nos nossos tempos, tais máquinas foram construídas pelo génio inventivo dos homens. São espantosas conquistas da cibernética.
[222].É o "instinto" animal que, no parecer de Descartes, ao contrário da razão, se encontra limitado e estupidamente "especializado", não passando de um simples dispositivo mecânico.
[223].Neste ponto, Descartes opõe-se a Montaigne que afirmava serem os animais dotados de inteligência (cf. Apologie de Raymond Sebond, já referida anteriormente).
[224].Não actuará a natureza no homem conforme a natureza dos seus órgãos? -- Ocorre perguntar.
[225].Neste ponto, Descartes está de acordo com a escolástica, pois esta afirma que todas as "formas" vegetativas e sensitivas são tiradas ou deduzidas da potência da matéria (educuntor e potentia materiae" -- lê-se em S. Tomás de Aquino). Continuamos a ver como o pensamento cartesiano dá uma integral explicação mecanista do universo considerando absolutamente irredutível extensão e pensamento.
[226].Alusão à concepção platónica: o corpo é navio, a alma é o seu piloto, ela guia o corpo, como o piloto guia o navio, mantendo-se distinta do corpo, tal como piloto do seu navio.
[227].As sensações e as necessidades bastante confusas que a alma sente não podem explicar-se, nem só pela alma, nem só pelo corpo, nem por este que é apenas "extensão", nem por aquela que é claramente "inteligência", em sua simplicidade ou inextensão. Daqui resulta que Descartes vê-se obrigado a admitir qualquer coisa parecida com uma "união substancial" da alma com o corpo.
[228].Não no sentido moral, homem de carácter, mas no sentido de homem real, em que corpo e alma são duas realidades estreitamente unidas, o que é difícil de perceber, quando se pensa no exagerado espiritualismo cartesiano.
[229].Vemos nesta última asserção a prudência com que Descartes indica a imortalidade como uma possibilidade, não podendo demonstrar pelas tradicionais provas metafísicas que, de facto, esta imortalidade é real.
[230].Os Padres membros do Santo Ofício, vigilantes zeladores das questões de fé.
[231].Distinção sempre feita por Descartes entre o plano da vida, que implica sempre um certo "conformismo", e o plano do pensamento pessoal e especulativo, onde só impera a evidência racional.
[232].Referência a Galileu, condenado pela Igreja, em 23 de Junho de 1633.
[233].Estava convencido, pois, em carta dirigida ao Padre Mersenne, em 1633, dizia: "Se o movimento da Terra é falso, também são falsos os fundamentos da minha filosofia". há quem considere esta excessiva prudência de Descartes uma cobardia.
[234].Descartes aceita que todo o poder, mesmo o político, vem de Deus.
[235].Note-se o ditado latino: "quot capita, tot sententiae" (cada cabeça, cada sentença).
[236].Descartes chama-nos a atenção para as razões profundas que o levaram a publicar os elementos da sua física: a ideia ou o ideal (tão visível em nossos tempos) dos benefícios que a ciência e a técnica traziam ao homem. Esta passagem, muito citada, como a da "filosofia do engenheiro", é uma parte importantíssima do pensamento cartesiano.
[237].Nesta passagem de elevação moral, Descartes pensa que a divulgação da sua filosofia de carácter pragmático poderia ser útil ao homem e tornar-lhe melhor a vida.
[238].Ver nota anterior.
[239].Filosofia escolástica.
[240].Bacon no "Novum Organon" escreveu: "scientia et potentia humana in idem coincidunt" (a ciência e o poder humano coincidem). Lembramo-nos da "fórmula algébrica" da equação metafísica de Jacinto, em "a Cidade e as Serras": "suma ciência vezes suma potência é igual a suma felicidade".
[241].Pensemos no mundo mecanizado e computorizado em que vivemos.
[242].O temperamento é constituído pelos factores biológicos da personalidade.
[243].Descartes está vivamente integrado na medicina, que será uma forma técnica que permite agir sobre a vida do corpo e do espírito. No "Tratado das Paixões" em que a medicina é posta ao serviço da moral, ele dá, com efeito, uma grande importância às causas fisiológicas da nossa afectividade. A medicina é o "segundo ramo da árvore do saber humano", sendo a mecânica (as artes mecânicas) o primeiro, e a moral o terceiro. Todos estes ramos dependem do tronco, que é a física. Assim sendo, conhecer a física é conhecer verdadeiramente a medicina, descobrindo as causas das doenças, partindo-se dum verdadeiro conhecimento do mecanismo corpóreo.
[244].Quão grandes têm sido os progressos maravilhosos da ciência, em nossos tempos, prolongando a vida e libertando-a de muitas doenças e sofrimentos, físicos e psíquicos.
[245].A publicação da sua obra é justificada pela ajuda que ele poderá, assim, receber, vindo a ser a humanidade a grande beneficiária.
[246].Pascal, no seu "fragment d'un traité du vide", exprime-se assim: "toute la suites des hommes pendant le cours de tant de siècles doit être considérée comme un homme qui subsiste toujours et aprend continuellement" (toda a sucessão dos homens, no decurso de tantos séculos, deve ser considerada como um homem que subsiste sempre e aprende continuamente).
[247].Os princípios e ideias inatas, claras e distintas, a começar pela ideia de "extensão" e as "verdades eternas", matemáticas.
[248].De notar que Descartes emprega, inicialmente, o método dedutivo, partindo dum princípio a priori (ideia inata de Deus e ideias matemáticas inatas), mas, quando os processos dedutivos se mostram insuficientes, impõe-se o recurso ao método indutivo, à experimentação, ou raciocínio a posteriori. No método experimental, temos, inicialmente, a observação do problema ou questão a resolver, seguidamente, a formulação da hipótese, fruto da imaginação criadora e elemento axial do método indutivo, e, finalmente, a experimentação ou verificação da hipótese, em confronto com os factos. Como disse sucintamente Claude Bernard, autor da importante obra "Introdução ao Estudo da Medicina Experimental" (1865): "o facto sugere a ideia, a ideia dirige a experiência, a experiência julga a ideia". Por "ideia" entende-se a "hipótese".
[249].Ao falar em "poder da natureza", Descartes não está, de forma alguma, a pensar em força oculta, com algo de misticismo. Trata-se tão-somente de puros elementos mecânicos, combinação de "figuras" sujeitas às leis do movimento.
Galileu no "Il Saggiatore" escreverá: "a filosofia está escrita neste enorme livro que continuamente se abre perante os nossos olhos (refiroº-me ao universo), mas não a podemos entender, se, antes de mais, não aprendermos a língua e os caracteres nos quais está escrita. A língua é a matemática e os caracteres são os triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem o domínio das quais é impossível perceber o que quer que seja: é caminhar em vão num escuro labirinto".
[250].Por opinião entenda-se aqui que falam, mas não fazem, e aqueles que são virtuosos apenas por conformismo.
[251].No sentido de "prudência". Foi assim que foi traduzido em latim o vocábulo "conduite", empregue por Descartes.
[252].Os "Ensaios" ou tratados científicos: A Dióptrica, Os Meteoros e a Geometria, dos quais i discurso do Método é o prefácio.
[253].Descartes não se considera, de forma alguma, um "homem de letras" (como se encontra dito anteriormente, mas um homem de acção, que passou parte da sua vida a combater, como soldado.
[254].Descartes tinha 41 anos de idade.
[255].Parece haver uma contradição entre o que é dito aqui e o que foi dito anteriormente a respeito dos trabalhos de grupo. Apesar de duas mútuas implicações, uma coisa é a "filosofia" (obra pessoal) e outra é a "ciência" (obra colectiva).
[256].Antes de publicar as "Meditações", Descartes fez circular cópias desta obra e recolheu as objecções que lhe foram feitas. Estas objecções e as respostas a elas dadas apareceram, no final das "Meditações", sob o título de "Réponses".
[257].Louvável e digna exigência de autocrítica, sem que venha a ser deletério hipercriticismo.
[258].Controvérsias ou "questiones disputatae", em uso entre os "doutos". Descartes ataca-as, na medida em que elas não passavam de meros exercícios lógico-verbais, de valor formal-silogístico, sem qualquer contribuição para a construção do edifício científico. Mais do que o amor da verdade, era a vaidade que nessa disputas imperava. Tinham muito de "sofística" retórica.
[259].De acordo com a nota anterior, é mais uma crítica ao verbalismo escolástico.
[260].Sadio orgulho de Descartes: só tem valor o que está fundado sobre a evidência racional, como conquista pessoal. Especulativamente, nada vale o que se diz ou ensina, com base no argumento da autoridade, argumento que tem como coordenadas a ingenuidade e a cretinice, quando se limita a puro psitacismo.
[261].Refere-se à doutrina dos filósofos pré-socráticos, como seja, por exemplo, o caso do famoso Demócrito (460-370). Em carta escrita, em 1638, a Cristiano Huygens, (1596-1687), filósofo holandês, Descartes duvida que ele "ait eu des opinions si peu raisonnables qu'on lui fait accroire" (tenha tido opiniões tão pouco racionais, como fizeram crer).
[262].Elogio a Aristóteles que foi, no seu tempo, um grande naturalista.
[263].Nova crítica aos escolásticos papagueadores do aristotelismo, crítica revestida de fina ironia.
[264].Trata-se, como facilmente se vê, dos filósofos aristotélico-escolásticos.
[265].Continua a fina ironia cartesiana.
[266].Referência oportuna à terceira regra do método.
[267].Os biógrafos referem-se a um hábil operário chamado Ferrier que, para as experiências de Descartes sobre óptica, fabricou lentes hiperbólicas.
[268].Trata-se da Alquimia e da Magia.
[269].Referência às ideias preconcebidas que desvirtuam, tanto a objectividade da observação, como a da interpretação dos factos. "se experimentássemos sem uma ideia preconcebida, caminharíamos à aventura; mas, por outro lado, tal como já dissemos algures, se observássemos com ideias preconcebidas, realizaríamos observações deficientes e estaríamos expostos a confundir as concepções do espírito com a realidade." Claude Bernard, in "Introdução à Medicina Experimental").
[270].Neste ponto, "público" é sinónimo de Estado. Descartes vai afirmar que só a protecção e auxílio financeiro do Estado permitirão tornar contínuos e eficazes os trabalhos científicos. Em 1647, foi concedida a Descartes uma pensão 3.000 libras.
[271].O "Tratado do Mundo ou da Luz", como já se anotou.
[272].Os fundamentos da física cartesiana são expostos na obra "Princípios de Filosofia".
[273].Note-se a divisa escolhida por Descartes: "bene vixit qui bene latuit" (quem viveu sem dar nas vistas viveu bem).
[274].Não chegou a publicar as objecções ao seu Discurso e as suas respostas, mas era sua intenção fazê-lo, numa segunda edição. Opuseram-se a Descartes espíritos bem cultos, como Thomas Hobbes (1588-1679), autor do célebre "Leviathan" (1651), Pierre Gassendi (1592-1655), e o teólogo jansenista Antoine Arnauld (1612-1694), chamado o "grande Arnauld".
[275].Hipóteses não gratuitas, mas servindo, precisamente, de bases sólidas à dedução, e provadas pela fecundidade das consequências que elas permitem ver.
[276].O chamado "círculo vicioso" que consiste em provar uma coisa pela outra, ou _a por _b e _b por _a, também chamado "dupla petição de princípio". A simples "petição de princípio" consiste em servir-se de um dado não demonstrado, para provar certas proposições. Se destas nos servirmos como provas do dado inicial, temos o chamado "círculo vicioso". Descartes mostra perfeitamente não cometer tal erro lógico ou falácia.
[277].As "causas", ou seja, as "hipóteses" servem apenas para explicar (tornar inteligíveis) os factos da observação, que serão, seguidamente, provadas (consideradas verdadeiras) pelos factos -- tal é o esquema do método experimental.
[278].A razão enquanto tal, igual em todos os homens, com as duas ideias "inatas" e o conhecimento sensorial universal acessível. Para Descartes, a simplicidade dos seus princípios físicos é a garantia da sua verdade.
[279].Rejeição do argumento da autoridade, perante o único critério válido da verdade: a evidência racional.
[280].O fabrico ou corte das lentes de superfície hiperbólica.
[281].O Discurso do Método foi a primeira obra científico-filosófica escrita em francês. Nas obras filosóficas, científicas, teológicas, a língua até então usada era unicamente o latim, e em latim escreveu Descartes algumas, que, posteriormente, foram traduzidas para francês.
[282].A razão dos "honnêtes gens", em oposição aos "doutos" que se sujeitam ao "método da autoridade" e à doutrina escolástica.
[283].A língua francesa.
[284].É a medicina que prende o espírito de Descartes pelos bens que ela pode trazer à humanidade.
René Descartes
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