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DISSECANDO / Stephen King
DISSECANDO / Stephen King

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DISSECANDO

 

Sentados   ao   redor  da fogueira, os membros da tribo não desviam a atenção do homem  que  narra histórias através de gestos largos e palavras primitivas. 0 feiticeiro é, antes mais nada, um homem criativo que possui uma grande cacidade de perpersuasão. Suas narrativas são sobre  deuses que não   inspiram  apenas adoração, mas também temor.

Criaturas fantásticas que aterrorizam, e habitam, o coração do Homem. Antes do amor e do ódio, o medo é a mais básica das emoções humanas, pois é aquela que assegura a sobrevivência. Nascemos amedrontados, e essa emoção nos acompanha cada dia de nossas vidas. Mas ao invés de evitarmos essa herança do homem primitivo, nós a procuramos.

Fascinados pelo medo, brincamos de cabra-cega, vamos à Montanha Russa e ao Trem Fantasma, assistimos filmes e lemos livros de terror.

Alguns de nós aprendem a administrar seu próprio medo, e consequentemente, o alheio. Estes tornam-se o equivalente aos feiticeiros tribais: os ficcionistas de terror. No século dezoito, a escola gótica européia fundou as tradições que marcariam para sempre o gênero e influenciariam seus maiores mestres, como Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Guy de Maupassant: ambientação noturna, insalubridade e morbidez. Estas histórias amedrontaram muitas gerações, mas como a experiência, por mais superficial que seja, é essencial ao arrebatamento ficcional, começaram a impressionar cada vez menos o urbano, diurno e saudável homem padrão do século vinte.

Stephen King é um divisor de águas na literatura de terror, pois reconquistou o grande público, transportando o gênero das masmorras e noites tempestuosas para o cotidiano do mundo moderno e a luz do dia. O que inquieta nos livros de King, é que as situações terroríferas podem ocorrer em qualquer lugar: um coletivo, um shopping center, até mesmo onde você está lendo agora.

Através de seus megasellers e dos filmes de sucesso baseados em seus livros, King tornou-se um verdadeiro objeto de culto para legiões de fãs no mundo inteiro. Incessantemente assediado por repórteres, concede muitas entrevistas, que se tornaram famosas por serem tão cativantes e bem humoradas quanto seus livros. Dissecando Stephen King reúne as entrevistas mais importantes, que revelam a filosofia do homem e do escritor.

A respeito de sua vida pessoal, King fala da infância miserável, de sua fascinação pelo medo e pelo grotesco, sobre alcoolismo, sexo, drogas e principalmente Rock & Roll (uma de suas paixões), quais são seus livros e filmes prediletos, por que escreveu várias vezes sob pseudônimo e declarou que seus leitores são depravados, e de como a venda de seu primeiro livro, Carrie (que sua esposa resgatou do lixo), salvou seu casamento e sanidade.

Mas é falando sobre o assunto em que é especialista, que transforma uma simples conversa em um profundo ensaio sobre terror. Para King, que não lê não-ficção por julgar aterrorizante demais, a sociedade possui medos diferentes em épocas diferentes, que são exorcizados através do terror ficcional.

Dissecando Stephen King é uma obra de consulta obrigatória para aqueles que pretendem conhecer profundamente as bases do terror e as motivações e mecanismos de criação do maior mestre moderno do género.

Bem-vindos à dissecção da alma de um feiticeiro.

 

 

 

ESQUELETOS NO ARMÁRIO

Preocupo-me com os aviões. Recordo de estar num vôo internacional, já na metade do caminho... quando me ocorreu a seguinte cena: Alguém diz à aeromoça: "Preciso de um travesseiro. " Ela abre um daqueles compartimentos superiores e vários ratos a atacam no rosto. Enquanto ela se põe a berrar, os roedores, a dentadas, lhe decepam o nariz.

 

UMA NOITE NA BIBLIOTECA DE BILLERICA

Muito bem. Pretendo falar por algum tempo. Eu era um professor secundário e os integrantes desta classe são uma espécie de cachorros de Pavlov. Estes eram ensinados a salivar ao som de uma campainha e os professores secundários aprendem a escancarar suas bocas e a começar seu trabalho ao som de uma campainha por uns quarenta minutos, quando outra campainha soa, momento em que se calam e se retiram. Portanto, sou perfeitamente capaz de perceber a passagem de quarenta minutos, embora já tenha decorrido um bom tempo desde que abandonei a docência. Na verdade, sou incapaz de fazer uma conferência — não é do meu feitio — e não sei falar a partir de anotações previamente feitas.

O máximo que consigo fazer é uma chautauqua *, ótima palavra antiga que significa tagarelar por algum tempo sobre uma atividade para em seguida acomodar-se numa cadeira e esperar que o público assuma o comando. Tento, de um modo geral, responder a uma porção das perguntas que me são formuladas — as comuns — no transcorrer da minha pequena chautauqua, ou seja lá como a denominem. De todas as perguntas que me propõem, a mais difícil é: "Que tal é ser famoso?". Como não acredito que o sou, esta questão sempre me proporciona uma sensação surrealista.

 

* Chautauqua: um costume do final do século XIX e início do século XX visando proporcionar cultura popular associada a divertimento sob a forma de palestras, concertos e peças teatrais apresentadas ao ar livre ou numa tenda. Muito usado nas escolas de verão do lago Chautauqua, no Estado de Nova Iorque.

 

A idéia da fama. Vejam bem, tenho três filhos. Era eu quem trocava as fraldas deles no meio da noite; e às duas da madrugada, ao trocar algo que é uma espécie de entrega especial, com um olho aberto e o outro fechado, a gente não se sente famoso. E moro em Bangor, no Maine, cidade que não oferece nada para que alguém se sinta famoso. Sua única razão de fama é uma estátua enorme, em plástico, de Paul Bunyan. Ali as pessoas se limitam a morar e manter a cabeça baixa.

O que faço é escrever histórias e isso me parece uma coisa bastante natural. Em 1981, eu acho — meu caçula estava com uns seis anos e eu com trinta e quatro — encontrava-me em vias de realizar uma viagem promocional para o lançamento de A incendiária. Minha mulher perguntou a meu filho:

— Owen, você sabe para onde o papai está indo?

— Sei sim — retrucou ele. — Está de partida para ser Stephen King.

E é exatamente isso o que ocorre. Contudo, de quando em quando, este fato nos atinge — você é um cara conhecido, digamos, além da rua onde mora. E talvez alguém esteja pensando em você, à noite, ao lado de seus filhos. Ou mesmo deitado, duro de medo, fitando-os em suas camas. De vez em quando lhe parece ser alguém.

Mas Deus sempre o surpreende: há sempre um impulso nesse sentido. Lembro da primeira vez em que vi alguém que não era das minhas relações lendo um de meus livros. Encontrava-me num avião voando do Colorado para Nova Iorque. Não sou adepto de vôos. Ver-me dentro de uma aeronave me deixa apavorado, porque a gente fica muito distante do solo e se os motores param, morre-se, só isso. Morre-se, adeus, a gente está morto. Naquele dia havia muita turbulência e a reação de qualquer homem civilizado nessa situação é embriagar-se o mais rápido possível. Portanto, tomei uns dois ou três gins com tônica.

Isso aconteceu logo após o aparecimento de Carrie na forma de brochura. Quanto à edição em capa dura, a tiragem original da Doubleday foi de 5.000 exemplares, o que significou que muitos de meus parentes o leram, e também um punhadinho de outras pessoas, porém nunca vi alguém com um exemplar de capa dura nas mãos. Aquela senhora encontrava-se na primeira classe do avião, eu já estava bêbado e então a vi sentada, lendo aquele livro cuja capa trazia impresso o meu nome. Pensei com meus botões: ora muito bem, vou me levantar, caminhar dentro deste aparelho turbulento, preciso ir até aquele local na dianteira do avião. Quando estiver voltando, perguntarei àquela senhora que tal está achando o livro e logo que me disser que está gostando muito, vou autografá-lo para ela. Direi que fui eu quem o escreveu e, caso se faça necessário, vou mostrar-lhe a carteira de motorista para comprovar minhas palavras, eis o que farei. Fui, portanto, até o banheiro e ao voltar indaguei:

— O que está achando deste livro?

— É uma merda — retrucou ela.

— Muito bem, estarei prevenido para não o comprar — disse-lhe, e retornei ao meu lugar.

De outra feita — tinha deixado a barba crescer durante o inverno e me desfiz dela quando os Red Sox começaram a jogar algo que chamavam de beisebol — encontrava-me numa lanchonete na cidade de Nova Iorque. Isto aconteceu na época de O Iluminado. Estava lá, lendo um livro, e me deliciando com um cachorro-quente no balcão. Ergui os olhos e deparei com uma daquelas aberturas quadradas por onde chegam os pedidos feitos à cozinha para o salão e através das quais é possível divisar as atividades culinárias. Lá dentro havia um cozinheiro, um cara todo de branco, que pousou os olhos em mim. Assim que viu meus olhos a observá-lo, começou a girar as salsichas e a fritar as batatas, tudo ao mesmo tempo. Continuei a ler o meu livro; logo depois virei o rosto e lá estava ele sempre a me fitar. Isso me fez pensar com meus botões: "Reconheceu-me". Aquele me pareceu um momento inigualável. Fora reconhecido. Logo depois o cara surgiu através da porta onde se lia "Uso Exclusivo do Pessoal", limpou as mãos no avental imaculado, encaminhou-se para mim e me perguntou:

— O senhor é alguém, não é?

— Bem, todo mundo é alguém — repliquei.

— Eu sei, isso é claro, mas o senhor é alguém.

— Hum, mais ou menos isto — falei.

— O senhor será Francis Ford Coppola? — ele quis saber.

— Exato, sou eu mesmo — retruquei.

E como me pediu para lhe dar um autógrafo, assinei Francis Ford Coppola. Isto foi errado. Deus não perdoa essas coisas. Outras pessoas também perguntam:

— Por que escreve coisas como essas?

Está aí uma das perguntas mais constantes. A primeira razão é porque sou um pervertido, claro. Muitas pessoas receariam fazer uma declaração destas, mas eu não. Tenho um amigo chamado Robert Bloch, autor do livro Psicose, no qual Hitchcock calcou seu filme, que diante de uma pergunta deste tipo responderia sempre:

— Na verdade, meu coração é tal como o de um garotinho. Costumo conservá-lo num vaso em cima da minha escrivaninha.

Outro motivo de eu sempre escrever sobre horror é por ser isso uma espécie de proteção psicológica. É como traçar um círculo mágico em volta de nós mesmos e de nossa família. Minha mãe costumava dizer:

— Quando se espera o pior, ele não acontece.

Reconheço que isto nada mais é do que uma superstição, mas sempre achei que se pensasse no pior, então, não importa o quanto as coisas possam se tornar ruins (e, no meu íntimo, estive sempre convicto de que podem realmente ficar bem ruins), elas nunca serão tão ruins assim. Se você escreve um romance no qual o bicho-papão agarra o filho de alguém, talvez coisa igual nunca aconteça aos seus.

As pessoas, ao indagarem "Por que escreve essas coisas?", estão se referindo ao verdadeiro horror. Falam sobre O Iluminado, onde o garotinho entra no toalete, abre a cortina da banheira e lá está uma mulher morta que se levanta para agarrá-lo. Referem-se a vampiros e coisas do gênero. Mas para mim, escrever é como um buraquinho aberto na realidade por onde se pode entrar e sair e onde se pode estar, por algum tempo, num lugar diferente. Minha vida é bastante comum. Tenho filhos e uma mulher — e a não ser por esta coisa que faço, uma insignificância, levo uma vida normalíssima.

Ainda me lembro de um momento especial para mim quando, ainda garoto, estava lendo ficção. Há um livro de C. S. Lewis intitulado The Lion, the Witch and the Wardrobe (Wardrobe é um anglicismo para armário). Trata-se de uma das histórias de Narnia. Nela, as crianças brincam de esconde-esconde e eu estava acostumado com aquilo. A garota, Lucy, entra num armário, e a impressão que tem é de ele ser muito fundo, mas muito fundo mesmo. Ela se mete no meio dos casacos — vocês entendem, com aquele cheiro seco de naftalina e aquela sensação estranha que provoca o contato com as peles — então ela abaixa o olhar... as tábuas desapareceram e lá embaixo tudo está branco. Estende a mão e toca no solo gélido. Naquele instante, quando as tábuas se transformaram em neve, pensei, vejam bem: é isto o que quero fazer. Tem que ser algo assim. Na minha opinião, o fato de o escritor, ou o diretor do filme, ser capaz de fazer o leitor transpor aquela linha, é uma coisa maravilhosa. Para mim sempre se trata de um lugar ótimo para conhecer.

A outra razão reside no fato de que eu realmente gosto de assustar as pessoas. Gosto de verdade. Após a publicação de A Hora do Vampiro, uma senhora escreveu-me uma carta na qual dizia:

"Sabe de uma coisa? O senhor deveria sentir vergonha de si. Estou lhe devolvendo o seu livro. O senhor conseguiu mesmo me deixar apavorada. Após tê-lo lido, passei três noites sem poder dormir."

Respondi-lhe, afirmando:

— E daí? A senhora o comprou, não fui eu quem o ofereceu. Estou contente por ter passado três noites sem conciliar o sono. Quem me dera tivessem sido seis.

O mérito é ser capaz de conquistar a confiança do leitor. Não estou, realmente, interessado em matar alguém no primeiro parágrafo de um romance. Desejo ser seu amigo. Quero me aproximar de você, dar-lhe um abraço e dizer:

— Ei, sabe de uma coisa? É um trabalho maravilhoso! Espere até vê-lo! Gostará dele, e muito.

Então consigo interessá-los de verdade, conduzo-os rua acima, mando-os dobrar a esquina e entrar na avenida onde se acha aquela coisa terrível e mantenho-os ali até começarem a gritar! É muito engraçado. Reconheço que isto deve soar um tanto sádico, mas não se pode deixar de dizer a verdade.

A pergunta que, é claro, sempre se faz, é: por que as pessoas lêem essa droga? Por que as pessoas vão assistir àqueles filmes? E a resposta da qual todos fugimos — mas que é a verdadeira — é que, simplesmente, todo mundo é tão pervertido quanto eu. Talvez não tanto assim, mas quase. Vejam, houve um repórter que me pegou desprevenido na IV World Fantasy Convention em Baltimore. Isto aconteceu antes do banquete, durante o qual eu devia fazer um discurso, e então estava nervoso, como sempre estou quando preciso me erguer diante de uma porção de gente e falar.

— O que pensa de seus fãs? — perguntou ele.

— Parecem-se comigo. São um tanto depravados — eis porque apreciam esta droga.

Bem, a declaração foi veiculada no jornal. "King afirma que seus fãs são depravados" — o que é um fato, porém eu também disse àquele cara que, a meu ver, é preciso incluir algumas perversões na nossa história a fim de podermos sobreviver no tipo de vida que levamos hoje em dia.

Falando com mais seriedade, creio que também gosta das minhas histórias pelo que nelas existe de implícito. As pessoas lêem nas entrelinhas. Qualquer obra de horror, seja na forma de romance ou de filme, possui um sub texto. Há coisas entre aquelas linhas que estão repletas de tensão. Em outras palavras, a ficção de horror, de fantasia, imaginativa, é igual ao sonho.

Os freudianos afirmam que nossos sonhos são simbólicos. Talvez sejam, talvez não, mas uma grande quantidade dos medos, uma porção de pesadelos que passamos para os livros e para os filmes são realmente simbólicos. Talvez se esteja falando sobre um vampiro, quem sabe sobre um lobisomem... mas lá embaixo ou nas entrelinhas, no ponto de tensão, onde jaz o medo, há algumas coisas acontecendo simultaneamente. Por exemplo, tenho consciência de que no meu livro A Hora do Vampiro, o que realmente me aterrorizou não foram os vampiros, mas sim a cidade à luz do dia, a cidade que estava deserta, sabendo que havia coisas nos armários, que havia pessoas metidas debaixo das camas, sob as estacas de todos aqueles trêilers. E durante todo o tempo em que a estava redigindo, a televisão não parava de comentar as investigações envolvendo Watergate. Havia gente dizendo: "Nessa altura, naquele tempo." Falavam: "Não consigo repetir." Havia dinheiro transbordando de sacolas. Howard Baker não cessava de perguntar: "Me diga o que você já sabia e quando tomou conhecimento disto." Tais palavras me perseguem, não me saem da cabeça. Talvez sejam a pergunta clássica do nosso século: o que a gente sabia e quando tomou conhecimento do fato. Durante aquele tempo eu pensava em segredos, coisas antes escondidas e que estavam sendo trazidas à luz do dia. Isto aparece um pouco nos livros, embora eu creia que a maioria dos livros deva ser escrita e lida apenas como um passatempo.

Percebemos a presença desses sub textos por toda parte, porém me parecem mais engraçados nos filmes. Na década de 50 houve uma avalanche de filmes de horror nos Estados Unidos, sempre sobre insetos gigantescos. Nos anos 50 havia insetos enormes por todos os lados. Houve um filme chamado O Mundo em Perigo onde apareciam formigas monstruosas dentro do sistema de escoamento das águas pluviais de Los Angeles. Também vi um, chamado Tarântula, no qual Leo G. Carroll encontra um filhote de tarântula e o faz desenvolver-se até ficar descomunalmente grande; depois é como a gente estar rastejando pela Rota 66, e ver que um dos jatos que está atirando contra elas é pilotado por Clint Eastwood no seu primeiro desempenho cinematográfico. Mas a gente dá pouca importância ao Clint, o que nos preocupa é aquela aranha descomunal. Lembro ainda o O Começo do Fim, no qual gafanhotos gigantescos tomavam conta de Chicago. As pessoas conseguiram livrar-se deles gravando o canto de acasalamento do gafanhoto selvagem; levaram uma porção de barcos para o meio do Lago Michigan, transmitiram a gravação usando alto-falantes e todos aqueles gafanhotos abandonaram os prédios, foram para o lago e se afogaram — isto porque, em suma, sempre se acaba cedendo aos encantos do sexo.

Houve uma quantidade imensa de fitas assim, mas creio que o meu preferido foi Fúria de uma Região Perdida, um clássico de todos os tempos. Foi estrelado por William Hopper, que costumava desempenhar o papel de Paul Drake na antigo série Perry Mason. Esta película colocava em destaque um louva-a-deus gigantesco dentro de um bloco de gelo, e o inseto finalmente acaba voando sobre a cidade de Nova Iorque. Num determinado momento ele faz capotar um ônibus e pode-se ler a palavra "Tonka" escrita na parte inferior do veículo. Foi um daqueles momentos em que a gente percebe porque se continua a freqüentar o cinema durante anos e anos. É tão bom!

Contudo, a causa do horror em todos aqueles filmes era sempre a mesma: a radiação. Os filmes quase sempre começavam com imagens dos noticiários mostrando bombas explodindo no Atol de Biquíni ou no Deserto de Mojave. No final de O Mundo em Perigo, o velho cientista declara: 'Abrimos uma porta que jamais poderemos fechar, e há uma luz branca por trás daquela porta." Vezes sem conta, esses insetos surgiam em nossas cidades e causavam pânico; deixavam-nas arrasadas, descrevendo de uma forma nitidamente simbólica o que uma arma nuclear de verdade seria capaz de provocar numa cidade real. Tratava-se sempre de uma cidade sendo destruída e a causa era sempre a radiação.

Isto acontecia na época em que as pessoas começaram a se dar conta de que o nosso afável átomo não acabaria se tornando, de modo algum, um novo amigo Redi-Kilowatt. Partículas destruidoras resultantes das radiações começavam a surgir no leite de vaca e também no humano. O velho e sórdido estrôncio 90. Mas nunca houve um produtor de filmes, na década de 50, nos tempos em que a American International rodava películas em sete dias com um custo de 40.000 dólares, que declarasse: "Este é um importante assunto social." O que diziam, era: "Precisamos faturar alguma grana. Arranjem uma idéia quente. O que deixará as pessoas apavoradas?" E o que fizeram foi uma espécie de Rorschach, certos de que assim iriam aterrorizar as pessoas.

Não se passaram muitos anos desde que Jane Fonda produziu e estrelou um filme chamado Síndrome da China, que destacava este mesmo medo avassalador. Ela e seu pessoal disseram para si mesmos: "Podemos sair lucrando com isto. Vamos apavorar as pessoas e tentar fazê-las avaliar este assunto antes que aconteça algo terrível." Seis anos antes, uma dupla de empresários de drive-in em Connecticut tinha feito um filme chamado The Horror of Party Beach; foi um filme horrível, apavorante. Começava com o lixo atômico sendo atirado em Long Island Sound e então ossos de marinheiros mortos em naufrágios naquela região — estão me seguindo? — parecem retornar à vida e agarram garotas numa slumber party*.

 

* Slumber party: reunião de garotas, em geral na casa de uma delas, onde vestem suas camisolas e passam a maior parte da noite conversando em vez de dormirem.

 

É maravilhoso. Rendeu lucros fantásticos e apavorou muita gente. É chocante, conjugou películas cujo tema são festas nas praias com assuntos de horror. Quando os dois empresários de Connecticut se reuniram, e aí está a questão, eles não disseram:

— Vamos abordar a questão do lixo atômico, dos dejetos nucleares e o que pode resultar disso tudo.

Disseram: — Vamos fazer dinheiro.

O que ressalta é aquele sub texto, aquela coisa nas entrelinhas, que é outra forma de dizer:

— O que o amedronta? O que me faz medo? Vamos falar sobre nossos pesadelos.

O mesmo é verdadeiro com relação à versão original de O Monstro do Ártico, que surgiu na época de Joe McCarthy. Todo mundo estava com medo dos comunistas. Supunha-se que havia um comunista debaixo de cada cama; todos temiam a quinta coluna. Havia, na televisão, uma série com Richard Carlson que se chamava I Led Three Lives, onde ficava claro que cada bibliotecário, cada deão de universidade... todos eram comunistas. Eles estavam trabalhando para aqueles caras. Por isso o exército, na versão original de Howard Hawks de O Monstro do Ártico, descobre um monstro habitando um cubo de gelo — o eterno cubo de gelo — (e eu sempre penso nessas novidades como uma mosca em um cubo de gelo), então descobrem a tal criatura e a descongelam. Querem matá-la, todos sabem que ela é o mal — exceto o cientista, que é um daqueles sujeitos que deseja confraternizar com a gente ruim, alguém que é ingênuo, entendem?, o intelectual, que não percebe que a melhor resposta do exército para esse tipo de coisa é livrar-se dela e rápido. E o cientista diz:

— Acho que podemos aprender uma porção de novidades com esta criatura. Vamos conversar com ela.

Mas, evidentemente, ele acaba morto e Kenneth Tobey frita o monstro numa calçada elétrica. Este é o fim da criatura e a vitória cabe aos Estados Unidos.

Cerca de vinte e cinco anos mais tarde, coisa mais ou menos recente, eis que John Carpenter refilma O Monstro do Ártico. (A maioria dos críticos não deu importância à fita, porém considero-a uma refilmagem maravilhosa). Os tempos mudaram. O I Led Three Lives, de Richard Carlson, sumiu da TV. As pessoas já não se preocupam tanto com a possibilidade de encontrarem um comunista debaixo da cama, mas já adquiriram outros tipos de medo. Quando se diz a alguém:

— De que tem medo, o que o apavora?

As pessoas citam uma porção de razões. Uma delas, que deixa muita gente apavorada, é o câncer, claro. Vivemos numa sociedade que conta com uma sobrecarga de informações; estas surgem de todos os lados, insinua-se entre nós — sobretudo nos últimos dois ou três anos. Os cigarros não fazem bem, poluirão seus pulmões, você acabará com câncer pulmonar, terá ataques cardíacos. O câncer dos pulmões apavora todo mundo. Não tome café em excesso, dá câncer de estômago, de vesícula biliar. Não coma carne demais — câncer de intestinos, ah! Não inspire ar demais, os hidrocarbonos provocam misérias. Cuidado com o PVC: perigo de câncer cerebral. Os ingredientes atualmente usados na ração animal podem desencadear um câncer na gente. O câncer encontra-se por todo canto. Está à nossa volta. Resultado: a versão de O Monstro do Ártico* filmada por Carpenter concentra-se na imitação.

 

* A refilmagem de The Thing / O Monstro do Ártico foi intitulada no Brasil O Enigma de Outro Mundo.

 

Nos últimos anos da década de 70 e no início da de 80, surge uma avalanche daquilo que chamo de filmes de tumor, nos quais existem coisas que saem do tumor e têm um aspecto realmente ruim. O que estou querendo dizer é que não se parecem em nada com objetos que a gente colocaria na mesa do jantar. O exemplo que todo mundo recorda é Alien, o Oitavo Passageiro, onde há um camarada — e isso realmente acontece na hora do jantar, é como uma afronta máxima — começa a dizer:

— Não estou passando bem, sinto o estômago revirado.

E aquela coisa parece estar destruindo seu estômago para sair de dentro dele, e, quando o consegue, sai na disparada. Para mim aquilo parece uma imagem tumoral bastante clara. O mesmo ocorre em O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter, onde, novamente, vemos condições que estão se desenvolvendo internamente.

Grande parte do trabalho do canadense David Cronenberg está focalizada nessa idéia de que existem matérias crescendo dentro de você. Cronenberg estudou e diplomou-se em medicina; o câncer é um dos males com que ele se preocupa muito e isto se evidencia no seu trabalho. Nos filmes dele, é comum encontrar gente que abriga parasitas se desenvolvendo dentro do seu corpo. Outro filme, chamado The Beast Within, descreve a mesma coisa, o mesmo tema.

Mais um detalhe, e em seguida prosseguiremos. Provavelmente o mais célebre filme de horror dos últimos vinte e cinco anos é o O Exorcista, que contou com um público impressionante. Todos comentavam o fator católico inerente, uma porção de pessoas foi, supostamente, atraída por essa infusão religiosa — a idéia de que era uma história do bem e do mal com toques religiosos. Contudo, não vamos esquecer de que, naquela época, a juventude trepidante dos anos 60 ali estava. Os garotos chegavam em casa afirmando que o presidente dos Estados Unidos era um criminoso de guerra; também diziam, à mesa, uma porção de palavras que não tinham aprendido com os pais. (Ora, talvez tivessem, mas pode ser que os pais não sabiam que os garotos os estavam escutando.) Os pais encontravam objetos nas gavetas das escrivaninhas que não se pareciam absolutamente com coisas inocentes. Em meio a tudo isso surge a história de Regan, aquela menina de quatorze anos, bonitinha, que se revela uma bruxa: seus cabelos estão sujos, tem o rosto coberto de ferimentos horríveis, blasfema contra a mãe, contra o padre e pronuncia um monte de palavras horrendas. E de repente, aqueles pais atormentados percebem o que acontecera com seus filhos e filhas, que tinham deixado os cabelos crescerem demais e tinham jogado fora os sutiãs. O demônio fora o causador de tudo! O demônio os invadira, e era muito confortável poder afirmar que não lhes cabia a culpa do que estava acontecendo aos filhos.

As pessoas gostam desta interpretação "religiosa", porque ela confirma seus valores normativos. A ficção de horror sempre gozou da reputação de ser um gênero proscrito. Trata-se de algo sórdido e quando as pessoas vêem alguém lendo A Hora do Vampiro, ou uma obra semelhante, assumem que o leitor deve ser um tanto estranho ou pervertido. E, é claro, isso se estende a mim, um tipo que afinal o escreve e que pode ser comparado a um artista de circo cujo ato inclui arrancar a cabeça de uma galinha ou de uma cobra viva com uma dentada. (Por falar nisto... que tal foi o jantar de vocês esta noite?)

Contudo, a ficção de horror é, na realidade, tão republicana quanto um banqueiro na sua veste de três peças. A história é sempre a mesma quanto ao desenvolvimento. Há uma incursão pelas áreas de tabu, há um lugar onde não se deveria ir, mas se vai; é como quando sua mãe o adverte para não entrar na Casa das Aberrações do parque, porém você vai lá. E então acontece isto: você vê o cara com três olhos, ou a mulher estupidamente gorda, ou depara com o homem-esqueleto ou o Sr. Elétrico, ou com outra deformidade que esteja por lá. E ao sair, bem, você diz: "Ora, não pareço tão ruim. Sou normal. E muito melhor do que imaginava." Produz-se aquele efeito de revalidar valores, de reafirmar a auto-imagem e o amor-próprio que sentimos.

Um pequeno exemplo que faz a minha cabeça: Em 1957 foi lançado um filme intitulado I Was a Teenage Frankenstein. Nele, o bisneto do Dr. Frankenstein mora num pequeno subúrbio de Hollywood e costuma ir a uma esquina movimentadíssima onde adolescentes, com seus calhambeques envenenados, são mortos de modo violento a cada quatro ou cinco horas... Escuta-se sempre o mesmo cantar de pneus, e outro daqueles jovens tremendões de Hollywood passa desta para melhor. Embora esse cara more em Los Angeles, mantém crocodilos no porão da sua casa. Existe por lá um tipo de Jacuzzi cheio de crocodilos e também um alçapão. Sabem o que ele faz? Leva aqueles jovens mortos para casa, retira as partes de seus corpos ainda aproveitáveis e costura-as para obter uma espécie de James Dean / High School Confidential! e ao terminar — com o último sujeito que morreu — tinha criado o tipo mais horrendo que você já conheceu, com um rosto parecido com o Monte Vesúvio. Em comparação com esse camarada, Frankenstein até lembra o Robert Redford.

Naturalmente, a maior parte dos espectadores no cinema, a maioria do público de impacto, é constituído por adolescentes que, em geral, não aprova a própria aparência, que se sente confusa, que se critica no espelho e em vez de se ver como alguém melhor do que realmente é (atitude que nos inclinamos a assumir à medida que ficamos mais velhos, creio), depara sempre com alguém pior, muito pior. Esses jovens pensam: "Como posso freqüentar o colégio? Sou horrendo. Cheio de espinhas no rosto. Não tenho amigos. Ninguém gosta de mim. " Portanto, para eles, o filme ou o romance de horror tem um valor de reafirmação. Agora podem tornar a se ver de uma forma válida, como parte do geral, parte daquilo que denominamos normal. Sentem-se melhor com relação a si mesmos, e por isso a experiência é provavelmente positiva. Também é reacionária, resiste a qualquer tipo de mudança. Nesses filmes as coisas nunca deviam mudar. Boris Karloff e Elsa Lanchester jamais se casam porque, bem, imaginem os filhos dos dois. Ninguém desejaria vê-los morando na sua rua. Assim, tais personagens sempre terminam sendo queimados até a morte, ou ficam girando sem cessar num moinho de vento — sempre algo terrível lhes acontece. São eletrocutados, ou seja lá como for, ficamos livres deles.

Último motivo para se apreciar o horror: ele é um ensaio para a morte. É uma maneira de se estar pronto para isso. As pessoas costumam afirmar que nada é certo, exceto a morte e os impostos. Contudo, isso não é verdade. Vocês sabem que de absolutamente certo só existe a morte. A morte é a tal. Dentro de duzentos anos nenhum de nós estará por aqui. Estaremos todos em outro lugar qualquer. Talvez melhor, talvez pior; talvez se pareça com Nova Jersey, mas noutro mundo. O mesmo pode ser dito com relação aos coelhos, camundongos e cachorros, porém nós nos encontramos numa posição muito desagradável: somos as únicas criaturas — pelo menos até onde sabemos, embora possa ocorrer o mesmo com relação aos golfinhos, às baleias e a alguns outros mamíferos que possuem cérebros grandes — que podem avaliar o próprio fim. Sabemos que irá acontecer. O trenzinho elétrico gira, gira, passa dentro e em volta dos túneis, sobre a montanha de mentira, mas no fim acaba sempre caindo da mesa. Bum!

Precisamos fazer algo com relação a esta percepção. O fato de podermos lidar com nossas vidas diárias sem ficarmos loucos é, para mim, uma das melhores provas da existência da divindade. Seja lá como for, vamos vivendo; e a maioria de nós é boa para amigos e parentes, e ajuda a senhora de idade a atravessar a rua em vez de atirá-la na sarjeta. Mas, ao mesmo tempo, sabemos que mais cedo ou mais tarde, tudo vai terminar. Minha história predileta sobre o leito de morte é a de Oscar Wilde, que se encontrava em coma há três dias, se acabando, e ninguém esperava vê-lo voltar a si. Mas ele era resistente e reabriu os olhos, olhou ao redor e disse: "Ou se vai este papel de parede ou vou eu." E se foi. O papel de parede permaneceu.

Assim, a história ou o filme de horror se parece um pouquinho com uma volta pelo parque de diversões. Quando há um programa duplo no drive-in, ele se transforma num parque de diversões para os adolescentes — e, às vezes, o melhor não se encontra na tela. Penso nos adolescentes porque, apesar de seus problemas relacionados à própria imagem, sentem-se saudáveis, permanecem bem dentro de si mesmos. Aqueles ossos estão à vontade dentro dos braços, o coração sente-se bem dentro do peito. Não são pessoas que ficam deitadas à noite, dizendo: "Preciso adormecer sobre o lado direito, pois se ficar sobre o esquerdo vou cansá-lo mais cedo." Isso só acontece com a idade. Os adolescentes sentem-se saudáveis e podem enfrentar, digamos, as voltas no parque de diversões que simulam a morte violenta, coisas como o despencar de pára-quedas quando se experimenta como que uma queda do próprio avião, ou quando os carrinhos se chocam de frente sem qualquer dano, e assim por diante.

O mesmo vale para o filme de horror. Muito raramente vemos pessoas idosas saindo de cinemas que estão exibindo Zombie e I Eat Your Skin, isto porque não precisam daquela experiência. Elas a conhecem. Não têm que ensaiar a morte. Viram amigos partindo, assistiram ao desenlace de parentes. São elas que dormem sobre o lado direito, sofrem de artrite. Conhecem a dor, convivem com ela, e não precisam ensaiá-la, pois está ali. Quanto a nós, ensaiamos às vezes.

Também penso que um pouco da popularidade atual do horror tem algo a ver com o fracasso da religião. Minha mulher é uma católica que se afastou da Igreja e o mesmo ocorreu comigo na qualidade de metodista. Embora ambos ainda mantenhamos em nosso íntimo uma espécie de concepção divina, a idéia de que Deus deve fazer parte de um mundo racional, devo reconhecer que nossos filhos estão muito mais acostumados com Ronald McDonald do que com, digamos, Jesus, Pedro, Paulo ou qualquer outro personagem bíblico. Sabem conversar com vocês a respeito dos Reis Magos ou do Coelhinho da Páscoa, porém quanto aos outros assuntos não são muitos versados. A ficção de horror, a ficção do horror sobrenatural sugere que continuemos.

Todas aquelas possibilidades sobrenaturais estão lá. Boas ou más, negras ou brancas, sugerem prosseguir. Comecei dizendo que escrevo horror porque sou pervertido e quem o lê também é, contudo afirmei também que o faço por ser como uma viagem. É como o que Rod Serling costumava dizer: "Há uma sinalização lá adiante. A próxima parada será uma zona Além da Imaginação." De vez em quando as pessoas precisam ir até lá. Precisamos contar com um pouco de insanidade em nossas vidas, tanto na vida consciente como na inconsciente ou na vida onírica.

As pessoas indagam o que me apavora. Tudo me apavora. Os insetos são desagradáveis. Eles são realmente maus. Há momentos em que penso em dar uma dentada num sanduichão cheio de insetos. Pensem só nisso. Não é horrível? Elevadores. Ficar preso em elevadores. Ver aquela porta abrir-se diante de uma parede compacta. Sobretudo quando está repleto e a gente quase nem consegue respirar. Aviões. A escuridão é causa de meus maiores medos. Não gosto do escuro. Quartos escuros — sempre deixo uma luz acesa no banheiro quando me acho num hotel e sempre digo aos meus botões: Bem, faço isto porque se tiver que me levantar durante a noite para ir ao banheiro não quero tropeçar no fio da televisão. Mas, na verdade, é para que a coisa que se acha debaixo da cama não saia de lá e me agarre. Sei que não há nada ali, como também sei que, enquanto houver alguma claridade no cômodo, a coisa não sairá de lá. Porque aquela coisa embaixo da cama é como a kriptonita, não pode sair sem observar certas regras.

Sempre deixo a luz acesa quando saio do meu quarto de hotel, pois me imagino chegando num cômodo estranho, tateando à procura do interruptor e aí sinto uma mão fechando-se sobre a minha e levando-a de encontro a ele. Rimos de todas essas coisas e divertimo-nos agora porque as luzes estão acesas e estamos todos juntos. Depois, porém, mais cedo ou mais tarde, nos veremos sós. É como manter os pés embaixo das cobertas quando estou deitado, porque quando era criança imaginava que se os deixasse balançando do lado de fora... puft!... caía-se embaixo da cama e nunca mais se poderia sair de lá.

De uma forma ou de outra, praticamente tudo me assusta. Sou capaz de ver algo apavorante na maior parte das coisas. E penso em conseguir me libertar de tudo isto... Sabem como, não? Existem pessoas cheias de medo na nossa sociedade que pagam 75 ou 80 dólares a psiquiatras por uma hora de terapia e nem ao menos se trata de uma hora inteira, mas cerca de cinqüenta minutos. Eu me livro desses pavores escrevendo, e as pessoas ainda me pagam por isso. É maravilhoso. Eu adoro.

Por último as pessoas perguntam:

— De onde tira suas idéias?

Está aí o tipo de pergunta muito difícil de responder. Geralmente digo que de Útica, tiro minhas idéias de Útica. Não há um modo satisfatório para responder à pergunta, mas pode-se fazê-lo de modo individual e dizer que a idéia saiu daqui, saiu dali. Vejamos o assunto com relação a A Hora do Vampiro. Na ocasião eu analisava Dracula no ginásio; expliquei-o três ou quatro vezes e de cada vez me inteirava mais e mais de que aquele era um romance forte. Certa noite ventilávamos o assunto com um amigo, durante o jantar, e eu disse:

—  Vai aí uma pergunta mágica. O que aconteceria caso Drácula voltasse hoje?

Diante do que minha mulher falou:

— Ora, ele desembarcaria em Port Authority, em Nova Iorque, seria atropelado por um motorista de táxi e esse seria o seu fim.

E aquele amigo indagou:

— Mas suponhamos que reaparecesse numa cidadezinha em algum local do interior do Maine. Vocês sabem, atravessa-se algumas daquelas cidadezinhas, e todo mundo poderia estar morto, e jamais se saberia.

Muito bem, de vez em quando, antes de conciliar o sono, após ter me certificado de que meus pés estavam sob as cobertas, esta idéia voltava à minha mente; punha-me a pensar nela por algum tempo e depois afastava-a. Finalmente, a história pareceu ter-se cristalizado e tive que escrevê-la.

Há alguns meses meu filho caçula, aquele do "Papai está de partida para ser Stephen King", disse:

— Estou com um problema no jardim de infância.

— O que é que há? — falei.

— Sinto dificuldade em ir lá embaixo.

Na hora pensei que ele se referia ao porão. Não podia imaginar por que estariam mandando os meninos do jardim de infância ao porão da escola. Então, uma recordação do primário voltou à minha cabeça e pensei: Ele está se referindo ao banheiro, pois era isso o que sempre costumávamos dizer: "Posso ir lá embaixo?" Não era?

— Temos que levantar as mãos para ir lá embaixo e todo mundo fica sabendo que preciso fazer pipi.

— Ora, escute aqui, Owen, não se sinta embaraçado com isso. É perfeitamente normal — assegurei imediatamente.

Depois fiquei de boca fechada, pois me lembrei que também me sentia tremendamente embaraçado nessa situação. Então, disse alguma coisa que esperava fosse confortante, e aí surgiu uma historiazinha daquilo que era, creio, uma resposta direta àquela questão. Comecei a brincar com a idéia de professores velhos e mesquinhos que fazem a criança levantar as mãos diante de todos os colegas e todos riem enquanto ela sai da sala, pois sabem o que vai fazer. Bem que sabem.

Isto transformou-se na história Aqui há Tigres, dedicada ao meu filhinho. Mas dedicada também a qualquer outra pessoa que a aprove ou dela necessite, ou que já se viu sentado na escola e sofreu por não querer admitir, diante de todos os colegas, que tem de fazer aquelas coisas.

P: Qual o seu melhor livro, seu favorito? E como conseguiu todas aquelas baratas no filme Creepshow?

KING: Não me agradam as palavras do tipo "melhor" ou algo assim. Tenho medo de empregá-las. O que me parece funcionar melhor é Zona Morta. Para mim é que tem mais de história. E quanto às baratas em Show de Horrores, a maioria pertencia à classe das cockroachus giganticus, que vivem na América do Sul em cavernas repletas de morcegos — e, na verdade, custam muito menos do que as daqui. Organizamos uma expedição que se transformou na viagem das baratas. Não participei dela, porém ouvi uma história maravilhosa. Gastamos menos porque as baratas americanas custam 50 centavos cada nas lojas especializadas. Sei que há gente que paga para se ver livre delas, mas estou dizendo a verdade... 50 centavos cada uma é quanto se paga pelas baratas americanas; contudo, no Sul pode-se tê-las de graça. Tudo que se tem a fazer é assinar um termo de responsabilidade declarando que todas serão destruídas quando não precisarmos mais delas.

Assim, o grupo rumou para lá, aquelas pessoas cujos nomes aparecem no final do filme, que caçaram as baratas e com elas lidaram, foram até as cavernas que os morcegos habitam há milhares de anos cheias de guano de morcego. E as baratas vivem do guano. Bilhões dessas baratas gigantescas estão vivendo, se me permitem ser grosseiro por um instante, estão vivendo da merda dos morcegos. O cheiro naquelas cavernas é realmente horrível. Os caras usavam roupas de mergulho, bem como tanques de oxigênio e reguladores. E descobriram que podiam apanhá-las direto em cima do guano — estavam protegidos, é claro, por suas roupas de mergulho e tinham oxigênio; as baratas ficaram totalmente apavoradas e refugiaram-se nas suas casinhas de barata ou fosse lá o que fosse. Depois de escasso tempo, porém, esqueciam-se de tudo, pois seus cérebros são minúsculos. Elas surgiam de volta e começavam a passear pelo local. As baratas se deslocavam e os caras tinham que ir atrás delas para apanhá-las. Não lhes parece uma história maravilhosa?

Também eram mais fáceis para trabalhar, porque eram grandes. Fui entrevistado enquanto aquelas baratas enormes andavam por cima de mim. O programa era Entertainment Tonight e creio que até respondi a algumas das perguntas de modo errado. Elas viviam em latas de lixo e ingeriam uma mistura de ração e bananas. Havia um cheiro horroroso, mas tinham um trêiler só para elas e eram bem tratadas. Esta é a minha história sobre insetos.

P: Já redigiu alguma vez algo tão pavoroso que não o tivesse deixado conciliar o sono durante uma noite inteira?

KING:Sim. Contudo, isso não ocorre com muita freqüência, porque durante muito tempo a gente conserva a impressão de ter as coisas na palma da mão. Em A Hora do Vampiro, Ben Mears possui um daqueles globos transparentes que a gente sacode e provoca dentro uma nevas-ca. Para mim, as coisas realmente apavorantes parecem ser assim durante muito tempo. A gente tem a sensação de finalmente capturar a coisa; não importa o que nos tenha apavorado muito, ela está ali dentro, é sua e de lá não consegue escapar.

Mas, às vezes, acho que ela consegue sair, sim. A pior dessas situações foi a coisa na banheira em O Iluminado, quando o garotinho descobre a mulher morta, ela sai de lá e o persegue. Ao escrevê-la não me pareceu tão ruim; de repente, estava solta. Foi uma daquelas coisas que às vezes acontecem. Não se tratava de algo previamente planejado para fazer parte do livro. Aconteceu, só isso. Contudo, ao reescrevê-lo, e à medida que me aproximava daquele trecho, dizia de mim para mim: faltam oito dias para a banheira, depois seis dias para chegar lá. E, então, certo dia, era o da banheira hoje. Naquela hora, quando me sentei diante da máquina de escrever, senti medo; meu coração estava batendo depressa demais e sentia-me como as pessoas se sentem quando precisam fazer uma grande apresentação, ou quando algo deve acontecer. Eu estava apavorado. Fiz o melhor que me foi possível, porém ao terminar me senti contente.

O Cemitério foi assim, o livro inteirinho foi assim. Certa vez eu estava no Good Morning America... Creio que isto se relaciona ao que eu dizia a respeito do fato de a gente nunca se sentir como uma celebridade, e súbito, num estalar de dedos, estamos na televisão e sabemos que milhões de pessoas vão nos ver à hora do café da manhã. Estão se deliciando com bolinhos e ovos, ou seja lá com o que for, tomando bourbon ou qualquer outra coisa. Mas ficam olhando para você; talvez com o rabo do olho, mas ficam lhe olhando. Eu fiquei muito assustado. Aquela mulher me entrevistou e me fez uma pergunta que nunca me fizeram antes. (Isto acontece, mas no tocante à maioria das perguntas um gravador emerge na sua mente e você responde logo) Ela me perguntou: "Alguma vez você redigiu algo tão pavoroso que não teve coragem de publicar?" Ao que respondi: "Escrevi aquele romance chamado O Cemitério." Ora, eu o publiquei, é lógico e, ao reconsiderá-lo, não acredito que seja possível escrever num livro algo tão assustador. Algo talvez tão hediondo que as pessoas não o queiram ler; contudo, até o ponto atingido pelo terror atual, não, não acredito que se possa chegar a tanto na prosa. As únicas duas coisas que já li onde o terror atinge realmente níveis insuportáveis foram: o fim de O Senhor das Moscas e a fase final de 1984. O que eu quero dizer é que aqueles trechos foram muito penosos para mim e achei muito difícil concluir a leitura. Achei que não gostaria de voltar àquela leitura, mas o fiz. Por que não?

P: Gostei dos seus trabalhos e especialmente de A Dança da Morte...

KING:Muito obrigado, Randy Flagg, meu chapa.

P: Isto o auxilia a ficar preparado contra as pessoas más no mundo. Tive a impressão, ao ler a sua obra toda, de que há dois personagens intimamente ligados a você como pessoa: Carrie foi um deles e Harold, em A Dança da Morte, foi o outro.

KING:Harold Water, obrigado. Tenho alguns amigos que estarão na sua casa esta noite. Eles só saem depois que escurece. Qual é o tipo do seu sangue?

Harold está amplamente baseado em mim, ou em aspectos da minha personalidade. Qualquer personagem criado por qualquer autor... Procuramos sair de dentro de nós mesmos, observamos as outras pessoas, tentamos compreender um pouco os outros e o modo como pensam. Mas Harold é um solitário terrível, é alguém que se sente rejeitado por todos ao seu redor e, na maioria do tempo, julga-se gordo, feio e desagradável. Possui outros maus hábitos nos quais não me aprofundarei. E eu, às vezes, costumava me sentir rejeitado e desagradável. Lembro-me disto desde os meus tempos de escola. E, naturalmente, Harold é uma espécie de escritor frustrado. Mas no conjunto, se houvesse uma característica de Harold em mim, seria ínfima, pois sinto-me o tempo todo muito mais jovial. Jamais fui suscetível e, sem dúvida, nunca me passou pela cabeça que as pessoas à minha volta não gostavam do meu talento vibrante e rico, porque houve épocas em que pensei que se possuía um talento vibrante e rico, isso provavelmente se devia ao fato de eu enfiar a cara no estudo.

Entretanto, também há um pouco de Carrie White em mim. Vi a sociedade ginasiana sob duas perspectivas, como acontece com qualquer professor. A gente a vê da classe, onde os elásticos voam pelos ares e tornamos a vê-la outra vez por trás da cátedra. Você vê a sociedade ginasiana.

Afirmei que a ficção de horror era conservadora e que atraía os adolescentes — as duas assertivas combinam porque os adolescentes são as pessoas mais conservadoras dentro da sociedade americana. Vejam bem, as crianças pequenas consideram como um fato normal as coisas se modificarem diariamente e os adultos compreendem que todas as coisas mudam mais cedo ou mais tarde, e sua tarefa é procurar impedir que isto aconteça. Somente os garotos do ginásio estão certos de que elas nunca mudarão. Em algum ponto de seu futuro haverá sempre uma corrida difícil, bem como um ônibus repleto de público.

Sob esse enfoque, as nossas castas sociais organizam-se de modo quase tão firme quanto as castas sociais na índia, onde as pessoas mais importantes estão sempre por cima. Eles são os sujeitos — geralmente, tudo é visto sob o aspecto econômico — são os garotos que usam suspensórios e aparelhos ortodônticos, para que seus dentes não fiquem tortos quando sorrirem. Participam de Clearasil, da National Honor Society e coisas deste tipo. Em seguida temos a meninada da classe média, que parece limitar-se a ficar perto de seus armários na escola, dizendo: "Ei, como vai, cara?" E sempre dois ou três se limitam a ficar por ali. Há um personagem em Christine mais ou menos assim. Porém nunca fui realmente assim. Algumas garotas minhas conhecidas formaram as facetas do caráter de Carrie White. As meninas me parecem sempre mais maldosas nesse sentido, muito mais conscientes do que os garotos, que, contudo, realizam um bom trabalho quando se empenham.

P: The Body parecia tão real. Esta história aconteceu com você?

KING:Não. Porém, mais uma vez, estamos de volta ao "Onde vai buscar as suas idéias?" Tive um companheiro de quarto na universidade, George McCloud, a quem dediquei esta história. Foi criado numa comunidadezi-nha elegante, que eu classificaria de alta sociedade; um lugar parecido com Westin, em Massachusetts, onde todas as garotas usam saias classe A, cardigãs e todo esse tipo de coisas. Revelou-me nunca ter visto um animal morto. Onde morava havia uma turma de limpeza urbana, e quando apareciam pardais, ou marmotas, ou outro bicho qualquer estendido na rua, era como que raspado antes que os garotinhos, cujas mentes podiam ser pervertidas, acordassem e saíssem de casa.

Certo dia, no acampamento de verão para onde costumava ir, circulou uma história: um cachorro foi atropelado por um trem e o corpo inanimado encontrava-se sobre os trilhos. Os meninos diziam:

— Você devia vê-lo, cara, ficou todo inchado, as tripas saíram para fora e ele está realmente morto. Olhe, tão morto como você jamais poderia imaginar qualquer coisa morta.

E era fácil vê-lo, bastava caminhar ao longo dos trilhos e dar uma espiada, o que fizeram. George me disse:

— Gostaria de escrever, algum dia, uma história sobre esse caso. Contudo, nunca o fez. Ele agora tem um restaurante, um restaurante famoso.

Bem, há uns cinco anos fui procurá-lo e disse:

— Aproveitei a sua idéia e escrevi uma história a respeito de uns garotos que caminharam ao longo dos trilhos do trem para ver o corpo de um menino.

Não acreditava que alguém se interessasse especialmente pelo corpo de um cachorro. Agarrei o assunto principal, e muitas coisas que tinha sentido quando era garoto e coloquei tudo naquele personagem, Gordon McChance. Mas John Irving sempre afirma: Nunca acredite num escritor quando tiver a impressão de que está lhe fornecendo sua autobiografia, pois todos nós mentimos. Sempre avaliamos e dizemos com nós mesmos: ora, foi isto o que aconteceu, mas não resultará numa boa história, portanto vou modificá-la. Logo, quase tudo passa a ser uma mentira.

P: Em Cujo fiquei surpreso quando o garotinho morreu. Você sabia que iria matá-lo?

KING: Não, mas fiquei furioso. Quando falava sobre sustos, sabe, referia-me ao bicho-papão e todas aquelas coisas — elas me causam medo de verdade. Não se trata de imagens que governem a minha vida, mas uma das que realmente me aterroriza é a idéia de uma noite qualquer ir ver como estão as crianças — sabem como é, a gente se levanta durante a noite e vai ver como estão — e deparar com uma delas morta.

Muita gente diz: Deve ser maravilhoso ter imaginação, uma imaginação rica de verdade, não? Olhe só para você, ganhou um monte de dinheiro e isso é fantástico. Se quiser viajar de primeira classe poderá fazê-lo, e muita coisa mais. Porém existem outros pavores. Não se trata tão-somente da idéia de que se poderá encontrar o filho morto. Tudo é visto em Technicolor. A gente vê a garganta inchada, os olhos esbugalhados e detalhes assim. Voltei a considerar, vezes sem conta, que se descrevesse isso, do modo mais terrível que pudesse imaginar, então tudo daria certo.

Há um garoto em A Hora do Vampiro que escapa. Seu nome é Mark Petrie, e ele e o escritor, Ben Mears, escapam. Existe um menininho em O Iluminado, Danny Torrance, que também escapa. Parece-me que, na maioria das vezes, as crianças escapam. Contudo também sabemos, como adultos, como pessoas racionais inteligentes, que às vezes isso não ocorre. Há mortes perpetradas em berços, há crianças violentadas que secumbem em conseqüência disto. Não sabia que o garoto em Cujo ia morrer até ele morrer. O garoto não estava destinado à morte. Ele apenas se foi. A mãe tentou uma respiração artificial e ele simplesmente não reagiu.

P: De que forma organiza seu tempo com relação à literatura? E como escreve: numa máquina de escrever, num processador de palavras ou manualmente?

KING:Não importa como o faço, o mais importante ou mais sério é trabalhar durante a manhã. No O Talismã, feito a quatro mãos com Peter Straub, utilizamos um processador de palavras. Tenho um Wang — parece-me que ele predomina nesta região de Massachusetts —, Peter usa um IBM. O Wang é muitíssimo superior ao IBM. Além disso é mais barato. Portanto, quando trabalhava no O Talismã, usei um processador de palavras. Mas é estranho, de certa forma não me agrada, pois tenho a sensação de estar sendo mais um espectador do que qualquer outra coisa. Quando o texto está pronto, vê-se aquela tela... é muito cômodo mas é também estranho. Escrevo todas as manhãs das oito às onze, ou das oito às dez e meia, quando não estou pressionado pelo fator tempo e me divirto. Depois, à noite, quando todos já estão na cama, distraio-me, às vezes, com novas idéias. Surge uma idéia, insisto nela e me divirto um pouco. Aliás, de um modo geral, costumo trabalhar em duas obras ao mesmo tempo. Se uma delas explode, não importa.

P: Se tivesse vivenciado algum horror na vida real, se tivesse passado pela mesma experiência dos habitantes de Hiroxima, ou agüentado os bombardeios em Dresden ou no Vietnã, ainda assim escreveria livros de terror?

KING: Creio que sim, escreveria, sim. Esqueci-me de mencionar, ao me referir ao subtexto e aos filmes sobre insetos, que exatamente as pessoas que experimentaram os efeitos da bomba atômica criaram um monstro atômico... E tenho certeza, absoluta... a partir de seus pesadelos nacionais.

Em 1954, os japoneses exibiram o filme Godzilla. Este é uma criatura que surge na superfície como um resultado dos testes atômicos. Seu hálito é atômico; ele faz "huuuuh" e cidades inteiras voam pelos ares. Assistimos a uma destruição longa e como que surrealista de Tóquio e os resultados no fim da fita se pareciam muitíssimo com os efeitos produzidos por uma arma nuclear. A cidade está inteiramente em chamas e há uma quantidade imensa de pessoas mortas. Isto, quer me parecer, representa um esforço por parte dos japoneses para engolir uma situação. Assim,  respondendo à sua pergunta, acho que se a gente passou por algo ruim, sua descrição dá certo quer se queira ou não.

P: Me parece muito difícil de acreditar. Estive na Segunda Guerra Mundial e sinto ser muito duro escrever sobre ela.

KING:Sim, porém o que eu disse é verdade para uma porção de escritores que redigiram trabalhos sobre a Segunda Guerra Mundial, como Leon Uris e Norman Mailer. Leon Uris escreveu Battle Cry, Mailer encontrava-se...

P: Mas eles não passaram pelas situações sobre as quais escreveram.

KING:Passaram, sim senhor. Mailer encontrava-se naquela ilha que citou em The Naked and the Dead. Herman Wouk ao escrever The Caine Mutiny, escrevia a respeito de experiências que teve. Ele foi tripulante num caça-minas no Pacífico Sul. Suas revelações são esforços conscientes para entenderem aquilo por que passaram. Parece-me que isso é também verdadeiro com relação a uma boa quantidade de ficção de horror.

P: O A Dança da Morte vai se transformar num filme?

KING:Vai, sim. Preciso trabalhar um pouco mais no roteiro e então se transformará num filme. Seria ótimo. Robert Duval poderia desempenhar o papel de Randy Flagg.

P: Todos nós aspiramos fazer algo diferente. O senhor realiza seu trabalho muito bem. Mas o que espera de Stephen King daqui a vinte anos?

KING:Não sei, não, porque me limito a viver o dia-a-dia. Aprecio escrever, mas existem outras coisas. Gostaria de ser um jogador de boliche profissional. Como gostaria também de ser Smokey Robinson. Veja, adoraria tocar swing, ser Ike Turner, ou alguém como ele. Todo mundo tem dessas coisas. Se estiver vivo daqui a vinte anos, suponho que ainda estarei escrevendo coisas, a menos que fique sem idéias, o que sempre me parece uma possibilidade. Se isso acontecer, gostaria de saber aceitá-lo com graça e não disparar um tiro dentro da boca como fez Hemingway.

P: Julga seus livros difíceis para se transformarem em filmes?

KING:Achei o tratamento dado a Carrie* maravilhoso. Gostei de verdade do filme, porque o romance foi obra de um homem ainda muito jovem. Acho que o primeiro rascunho de Carrie foi feito quando estava com uns vinte e dois anos, e na época eu era sério demais. Talvez eu estivesse muito envolvido no tema, c a fita de De Palma é um tanto leve e superficial e nos surpreende no fim, quando a gente pensa que já terminou e está pronto para ir embora.

 

* Intitulado na Brasil Carrie, a Estranha.

 

Quem vai assistir a um filme de horror cria um defensor na mente. Está preparado para ficar apavorado mas também para gargalhar. Imediatamente. Vejam bem, a reação num filme de horror é sempre brrrr! E logo, todos riem e vão embora, "Eu estava brincando. Não estava apavorado de verdade. Gritei daquele jeito para assustar você, querida." Estas são as únicas duas verbalizações que temos nos cinemas — berrar ou rir —, porque as duas reações estão muito próximas uma da outra. A maior parte das coisas que nos faz rir é realmente horrível quando refletimos sobre elas. É engraçado e você não grita, desde que não seja com você. Quando se trata de outra pessoa, a gente consegue rir.

Tive mais problemas com O Iluminado. Sinto-me vitorioso quando penso que dei a Kubrick uma granada viva que heroicamente ele cobriu com o próprio corpo.

P: E quanto às máquinas? Exercem elas alguma fascinação sobre você?

KING:Tenho pavor das máquinas. Elas me aterrorizam, porque, na maioria das vezes, não sei como funcionam. E me fascinam porque realizam grande parte do trabalho que caberia a mim desenvolver. Eu fui o tipo de garoto que experimentou maus momentos porque, aos quatro anos, não conseguia saber se a luz da geladeira continuava ou não acesa quando se fechava a porta. Tive que remoer isso na minha cabeça.

As máquinas me apavoram. É lógico que, num pedágio, quando depara com um daqueles monstros de dez rodas na frente, outro atrás e mais outro passando pela pista ao lado, você reza seu terço. Parecem descomunais e nem se consegue ver quem está dentro. Sempre creio que os caminhões com caçambas, os grandalhões que têm aquela cobertura de lona cobrindo o que quer que esteja lá dentro... poderiam ser transmissores ou disjuntores alienígenas. Durante muito tempo sentia curiosidade em saber se havia ou não explosões de violência todas as vezes que muitos deles aparecem, porque talvez alienígenas ponham essas coisas em funcionamento para deixar as pessoas loucas.

As máquinas me põem nervoso. Mexem com os meus nervos. Vivo num mundo cercado por elas. É impossível evitá-las.

P: Quantas histórias você escreveu antes de encontrar uma que considerou suficientemente boa para ser publicada? E como terminou encontrando alguém que a publicasse?

KING:Comecei a levá-las à apreciação de outros quando tinha doze anos, e, é claro, não eram boas naquela época e suponho que no meu íntimo, bem no fundo, eu sabia disso. Contudo, mais cedo ou mais tarde, a gente precisa começar e tem que ir em frente. Minha carreira foi mais feliz do que a de muitas pessoas. Já aos dezoito anos consegui publicar um conto. Escrevi uma história realmente terrível chamada The Glass Door, que saiu numa revista de baixa qualidade chamada Startling Mystery Stories e recebi um cheque de 35 dólares por ela. Antes disso colecionei cerca de sessenta cartas rejeitando-a. Existem caras que recebem 400 ou 500, ou algo próximo disso. Acho que escrevi umas quatro ou cinco novelas, uma bastante longa, antes de fazer algo comerciável. Ainda as tenho guardadas numa pilha e são aquele tipo de relíquias que a gente procura quando já tomou algumas cervejas, e diz que não são tão ruins assim, mas ante as quais se está sóbrio, deixa-se escapar um "ui!". Ainda digo ui! com relação a Carne, mas aquela pequena me trouxe proveito.

P: Você submeteu seu trabalho à apreciação em todos os lugares que lhe foram possíveis?

KING:Não. Não fiz isso, não. Acho que se você resolve fazer isso deve se considerar como alguém penetrando num ambiente hostil onde muita gente se limitará a devorar suas histórias. Existe aquela piada famosa sobre um cara que recebeu umas seiscentas notas de rejeição e ficou pirado, certo de que ninguém realmente se dava ao trabalho de ler suas histórias. Por isso colou as páginas 9 e 10 de uma delas e a remeteu a um novo editor. A história foi devolvida com o seguinte bilhete: "Desculpe-nos, não atende às nossas necessidades", ou algo parecido. O autor procurou as páginas 9 e 10 e, claro, continuavam coladas. Escreveu então uma carta desaforada ao editor: "O senhor nem ao menos leu a minha história. Colei as páginas 9 e 10 e elas ainda estão coladas." Resposta do editor: "Só precisei chegar até a página 5 para saber como era ruim".

No início procurei a Doubleday. Procurei-a porque, naquela época, era uma verdadeira fábrica de livros, publicava umas quinhentas novelas por ano e eu pensei: eles devem querer histórias mais do que qualquer outro, porque têm mais títulos do que qualquer outra editora. Quando se pretende escrever, é preciso estar em dia com o mercado. Não se pode enviar um trabalho chamado True Romance para Fantasy & Science Fiction, porque lá ninguém sequer irá abri-lo. Não se pode mencionar condições como parto, menstruação ou mortalidade infantil em revistas como McCalls ou Good Housekeeping, pois elas negam a existência de tais coisas. Pelo menos nas suas páginas de ficções. Elas têm artigos interessantes sobre realidades tão interessantes quanto estas, porém as histórias que publicam serão sempre sobre jovens e bons casais, que se mudam para a cidade e sobre o grupo de senhoras que lhes desejam boas-vindas e dizem: "Vocês deveriam vender enciclopédias", e isso modifica a vida deles para melhor. Num sentido amplo, este continua sendo o mercado das revistas femininas. Portanto, o novo autor precisa conhecer o mercado e enviar suas histórias para os locais onde poderão ser adquiridas por um preço razoável.

P: O que faz Stephen King quando deseja se manter distante do sucesso — dos livros, dos filmes e tudo mais? Quem Stephen King gostaria de ser ao invés dele mesmo?

KING:Ah, não sei, não. Não gostaria de ser Carl Yastremski, porém me agradaria ser um cara jovem. Gostaria de ser alguém como Wade Boggs. Seria maravilhoso. Não me agradaria ser desajeitado, grande, lento, coisas assim. Quando quero me isolar de mim mesmo, gosto de jogar beisebol e softball. Aprecio tocar guitarra. Quando estava na escola fazia parte de um conjunto. Jamais tive talento algum, mas mesmo assim... O gato sai da sala quando pego a guitarra, porém insisto em tocar. Logo, faço estas coisas e tenho a sensação de estar longe de mim.

P: Pretende escrever uma continuação para A Incendiária!

KING: Na verdade, não é o meu desejo. James Clavell disse certa vez que a história termina quando não se sabe o que acontece depois. No final desse livro, uma garotinha entra no escritório do redator de uma revista e diz: "Quero lhe contar uma história", e eu, depois disso, não sabia mais nada, portanto limitei-me a escrever Fim.

Passo por momentos assim. Charlie McGee, a garotinha nesse livro, é pirocinética, o que significa que pode atear fogo, provocar incêndios apenas com o pensamento. Escrevi também sobre um menino, Danny Torrance, que tinha a habilidade de ler pensamentos e prever o futuro. O que me dizem se se encontrassem, se casassem e depois fossem morar em Salem's Lot, onde se desenvolve a trama de A Hora do Vampiro? Isso foi o máximo a que eu já cheguei. É muito raro eu pensar em continuações porque há muitos tipos de coisas novas.

P: Que autores gosta de ler?

KING:Esta é uma pergunta difícil, pois há uma porção de gente de quem gosto muito. Gosto de Evan Hunter, que também escreve sob o nome de Ed McBain. Há um escritor de Massachusetts, George Higgins, que aprecio muito. Considero-o bom. John D. MacDonald, que escreve mistérios. Há um cara que escreve originais em brochura, histórias de horror, Michael McDowell. Gosto do trabalho dele. Aprecio a obra de Peter Straub, caso contrário não teria feito parceria com ele.

P: Que tal Robert Parker?

KING:Amo demais Robert Parker e conheço-o. É um cara excelente.

P: A Dança da Morte seria sua reflexão do futuro?

KING: A Dança da Morte, como sabe, focaliza o vírus da gripe que toma conta do mundo e mata praticamente toda a população. Creio que todos já tiveram este tipo de visão de vez em quando. Vários escritores já escreveram este final para a história do mundo. Anthony Burgess acabou de publicar uma agora. E em 1909 saiu um livro de M.P. Shiel intitulado The Purple Cloud, que abordava o mesmo tema. Quando ainda estudante, li uma obra que se chama Earth Abides, sempre sobre o desenlace terminal.

Penso que o verdadeiro ímpeto para escrever A Dança da Morte surgiu com o vazamento químico-biológico ocorrido em Utah. Aquela substância — parecida com o Agente Laranja, só que é mais mortal ainda — vazou e matou um rebanho de carneiros porque o vento soprava de Salt Lake City para o descampado. Num outro dia qualquer, se o vento estivesse soprando de outra direção, poderia ter envenenado Salt Lake City e tudo teria sido muito diferente.

Reflito muito sobre a nossa sobrecarga de informações. E também há o fato de que hoje a população é muito maior do que jamais foi, e esse excesso de gente poderia resultar numa mortal moléstia contagiosa que se espalhasse rapidamente, a partir do simples vírus da gripe, que abunda por aí. Quando redigia A Dança da Morte estava apenas interessado no fato de que o vírus da gripe é mutante — razão porque é preciso estar sempre descobrindo novos recursos antigripais. A gripe ataca de uma certa maneira, depois altera seus antígenos, surge diferente e a injeção que costumava agir contra ela não produz resultado algum, porque agora é uma gripe nova e mais violenta. Vai daí, sentei-me para escrever e experimentei a sensação de que o livro brotava de mim aos borbotões.

Quando me encontrava no meio do trabalho, começaram a surgir novos boletins vindos de Filadélfia informando que todos aqueles legionários estavam morrendo e ninguém sabia de que doença. Pensei com meus botões: jamais terei oportunidade de publicar esta obra, todo mundo estará morto antes que seja lançada. Felizmente, tal coisa não ocorreu — porém neste mesmo instante, enquanto estamos sentados aqui, pode estar acontecendo algo ruim entre nós. Um de nós pode estar adquirindo tifo, difteria ou qualquer outra coisa desse gênero. Ora essa: achei que deveria contar-lhes alguma coisa que os alegrasse, agora que vocês vão para casa.

 

 

COM ERIC NORDEN

Playboy: O personagem principal em A Hora do Vampiro, um autor jovem e batalhador como seu criador, confessa num determinado momento: "Às vezes, quando estou deitado na cama à noite, imagino uma entrevista minha com a Playboy. Pura perda de tempo. Só publicam autores cujos livros são sucesso no campus universitário." Dez novelas e muitos milhões de dólares no banco, seus livros são conhecidos no campus e por toda parte. O que lhe parece isto?

KING:Parece-me maravilhoso. Estou adorando! E, sem dúvida, é muito gratificante para o meu ego pensar que serei objeto de uma de suas entrevistas, com meu nome impresso em maiúsculas e em negrito, aqueles três instantâneos na parte inferior da página com legendas nas quais realmente me atrapalhei e meti os pés pelas mãos. É uma honra ver-me na companhia de gente tão importante quanto George Lincoln Rockwell, Albert Speer e James Earl Ray. O que aconteceu, não conseguiram a participação de Charles Manson?

Playboy: Nós o escolhemos como nosso modelo assustador deste ano. Não foi preciso sequer completar a votação.

KING: Certo, façamos uma trégua. Na verdade me sinto contente, porque quando estava tentando, sem grande sucesso aparente, me firmar como escritor, costumava ler as suas entrevistas e elas sempre representaram para mim um símbolo visível de conquista, e também de fama. Como a maioria dos escritores, espremo minha memória em busca de material, porém raras vezes consigo ser realmente explícito. Aquele trecho de A Hora do Vampiro citado por você constitui uma exceção e reflete meu estado de espírito naquela oportunidade, antes de ter vendido meu primeiro livro, quando nada parecia dar certo. Naquele período eu não conseguia conciliar o sono, imerso em total escuridão noturna, com todos os medos, dúvidas e insegurança se avolumando a rosnar, vindos do escuro — aquilo que os escandinavos chamam de a hora do lobo —, e costumava ficar deitado na cama imaginando alternadamente se não devia desistir de tudo e elaborando fantasias auto-satisfatórias nas quais me transformava num autor cheio de sucesso e respeitado. E era nesses instantes que a minha entrevista imaginária com a Playboy acontecia. Via-me calmo, controlado, sentencioso, reagindo com respostas lúcidas às perguntas mais duras, quase que tirando leite de pedra. Agora que você está aqui, provavelmente nada farei exceto dizer uma porção de incoerências! Contudo, suponho que como terapia até que foi bom. Ajudou-me a passar a noite.

Playboy: O modo como passou suas noites vai ser um ponto importante nesta entrevista. Quando criança costumava ser atormentado por histórias de fantasmas?

KING:Vampiros, fantasmas e coisas que pertencem à noite — você as menciona e eu as adoro! Algumas das melhores histórias eram contadas por meu tio Clayton, um camarada maravilhoso que nunca perdeu o sentido de encantamento da infância. Tio Clayt punha seu chapéu de caça sobre a vasta cabeleira branca, enrolava um cigarro com a mão cheia de manchas hepáticas, acendia-o com um fósforo Diamond riscado na sola da bota e mergulhava em histórias maravilhosas, não apenas a respeito de fantasmas mas também sobre lendas, escândalos locais, extravagâncias familiares, as explorações de Paul Bunyan, tudo que se achasse sob o sol. Eu ficava ouvindo maravilhado o seu desfiar de palavras na varanda, nas noites de verão, e via-me num outro mundo. Talvez, um mundo melhor do que este.

Playboy: Essas narrativas foram responsáveis pelo aparecimento do seu interesse pelo sobrenatural?

KING:Não, isto remonta a muito antes, consigo me lembrar. Tio Clayt, contudo, era um grande contador de histórias, e uma pessoa fora de série. Era capaz de "rastrear" abelhas. Tinha um singular talento rural que lhe permitia seguir o rastro de uma abelha desde uma flor até a colméia — distante, às vezes, muitos quilômetros, através de bosques, espinheiros e lamaçais, e ele jamais perdeu o rastro de nenhuma. Às vezes fico imaginando se não haveria mais do que uma boa visão envolvida. Tio Clayt também possuía um outro talento: era um rabdo-mante. Podia descobrir água com o auxílio de uma forquilha. Como e por que não tenho certeza, mas ele o fazia.

Playboy:Você acreditava realmente nesses contos da carochinha?

KING:Bem, cobrir um ferimento com um cataplasma de pão bolorento também era uma superstição e precedeu a penicilina por milhares de anos. Contudo, eu não acreditava na rabdomancia no início, até que a vi funcionando e a testemunhei... quando tio Clayt desafiou peritos no assunto, descobrindo um poço artesiano no meio do nosso jardim da frente.

Playboy:Tem certeza de que não foi vítima do poder de sugestão?

KING:Evidentemente existe uma razão, ou talvez uma racionalização, porém inclino-me a duvidar dela. Eu era terrivelmente cético. Talvez haja uma possibilidade da existência de uma explicação perfeitamente lógica e nada sobrenatural para a rabdomancia — uma explicação que a ciência simplesmente ainda não entenda.

É fácil zombar de coisas assim, mas não se esqueça da lei de Haldane, uma máxima do célebre cientista inglês J.B.S. Haldane: "O Universo não é apenas mais estranho do que supomos, é mais estranho até do que podemos supor."

Playboy:Quando criança você teve outras experiências parapsíquicas?

KING:Bem, repito que, nem tenho certeza de que a rabdomancia seja parapsíquica... pelo menos não do modo como este termo é usado por aí. Diga-me uma coisa, quando as pessoas viram, no início do século XVIII, pedras caindo do céu, tratava-se de uma experiência parapsíquica? Os cientistas levaram uns cinqüenta anos para reconhecer a existência dos meteoritos. Porém, para responder à sua pergunta: não, jamais passei, quando criança, por algo que tocasse o campo da paranormalidade.

Playboy:Parece-me ter lido em algum lugar que a sua casa — aliás, o lugar onde estamos procedendo a esta entrevista — é assombrada.

KING:Ah, claro, pelo fantasma de um velho cujo nome era Conquest, e que se libertou desta Terra há umas quatro gerações. Nunca vi o velho, mas às vezes, quando estou trabalhando de madrugada, tenho a desagradável sensação de não estar só. Gostaria que ele se deixasse ver; talvez pudéssemos jogar cartas. Um daqueles jogos antigos que ninguém da minha geração sabe jogar. Aliás, ele morreu na sala de visitas, exatamente nesta peça onde nos encontramos.

Playboy:Obrigado. Podemos deduzir, através das suas experiências com a rabdomancia e coisas afins, que acredita na percepção extra-sensorial e em fenômenos parapsíquicos de um modo geral?

KING: Eu não diria que acredito neles. Um julgamento científico ainda não foi elaborado com relação à maioria desses fenômenos, e certamente não se trata de coisas que devam ser aceitas como uma questão de fé. Mas não creio que devamos ignorá-las só porque ainda não compreendemos como e por que acontecem e quais as regras que as regem. Há uma imensa e vital diferença entre o inexplicado e o inexplicável, e deveríamos ter isso em mente ao debater o que denominamos fenômeno psíquico. Para ser sincero, prefiro a expressão "talentos espontâneos", criada pelo escritor de ficção científica Jack Vance.

No entanto é bastante ruim o fato dos cientistas não se revelarem mais acessíveis a estas questões, pois deveriam ser submetidas a avaliações e pesquisas mais rigorosas — pelo menos para evitar que se tornassem propriedade exclusiva dos insanos e dos devotos que se encontram na orla da excentricidade esotérica.

Há uma série de evidências de que tanto o governo americano como o russo tratam deste assunto com muito mais seriedade do que admitem em público. Eles estão realizando pesquisas prioritárias com o objetivo de compreender e isolar toda uma gama de fenômenos esotéricos, desde a levitação e da fotografia Kirlian — um processo que revela a aura humana — até a telepatia, a teletransposição e a psicocinética.

Lástima, e talvez até nefasto, é que nenhum dos dois países investiga o assunto e o submete a uma pesquisa objetiva em prol da verdade científica. Estão interessados é no seu potencial militar e de espionagem, como afetar o cérebro dos operadores de mísseis ou influenciar as decisões dos líderes nacionais num momento de crise. Isto é vergonhoso, pois estamos falando aqui sobre o conhecimento dos segredos da mente humana e da exploração da fronteira espiritual. São as últimas coisas que deveriam ficar entregues ao critério da CIA ou da KGB.

Playboy:Tanto Carrie quanto A Incendiária abordam talentos espontâneos de garotinhas no limiar da adolescência. Foram trabalhos de ficção sobre o tema do Poltergeist, o Fenômeno, popularizado pelo recente filme de Steven Spielberg?

KING: Não, diretamente, embora eu suponha que haja uma similaridade. A atividade do Poltergeist deve ser, supostamente, uma manifestação súbita do poder psíquico semi-histérico nas crianças, geralmente meninas entrando na puberdade. Neste sentido, Carrie, em especial, poderia ser uma espécie de super-Poltergeist. Repito que não há nada objetivamente válido com relação ao fenômeno denominado Poltergeist, mas esta é uma das explicações apresentadas para ele. Confesso mesmo que jamais me dediquei seriamente à pesquisa do assunto, e os casos que li a respeito parecem muito cercados pelo estilo sensaciona-lista do National Enquirer, a ponto de não desejar emitir uma opinião. Charlie McGee, a garota de A Incendiária, possuía, na verdade, um talento específico — se esta é a palavra certa — que supera o fenômeno do Poltergeist, embora seja, de vez em quando, noticiado em conjunção com ele. Charlie pode desencadear incêndios — tem a capacidade de incendiar prédios ou, se estiver com as costas contra a parede, gente.

No tocante a todo esse assunto de talentos espontâneos, foi maravilhoso descobrir, quando da pesquisa para A Incendiária, a existência de um fenômeno muito bem documentado, embora desconcertante, chamado pirocinesia, ou combustão humana espontânea, em que um homem ou uma mulher são carbonizados por um fogo que gera temperaturas inconcebíveis — um fogo que parece partir de dentro da vítima. Casos já foram clinicamente documentados em todas as partes do mundo nos quais um cadáver apareceu carbonizado de modo irreconhecível enquanto a cadeira ou a cama onde foi encontrado não estava sequer chamuscada. Às vezes, as vítimas ficam reduzidas a cinzas e sei, a partir de pesquisas sobre incineração para um próximo livro, que o calor necessário para isso é tremendo. Não se pode conseguir o mesmo nem num forno crematório, vejam bem; razão porque, depois que o corpo sai da fornalha na esteira corrediça, há um empregado na outra extremidade, munido com um ancinho para pulverizar os ossos que vão ser colocados na pequena urna mantida no aparador da lareira.

Recordo-me de um caso divulgado em meados dos anos 60 no qual um garoto se encontrava deitado numa praia quando, subitamente, explodiu em chamas. O pai puxou-o até a água e o mergulhou, mas ele continuou a queimarão sob a água, como se tivesse sido atingido por uma bomba de napalm. O menino morreu e o pai foi recolhido ao hospital com queimaduras de terceiro grau nos braços.

Há muitos mistérios no mundo, uma grande quantidade de cantos escuros e espectrais ainda não explorados por nós. Não deveríamos ser tão presunçosos, nem descartar tudo aquilo que não podemos entender. Cara, a escuridão pode ter garras!

Playboy:A escuridão também tem sido muito lucrativa para você. Sem mencionar as fenomenais vendas dos seus livros, sabemos que A Hora do Vampiro foi negociado para a televisão como uma minissérie, e Carrie e O Iluminado transformaram-se em filmes. Ficou satisfeito com esses resultados?

KING:Hum, levando-se em conta as limitações da televisão, A Hora do Vampiro poderia ter saído bem pior. O especial em duas partes, da televisão, foi dirigido por Tobe Hooper, famoso pelo Texas Chainsaw Massacre; e à exceção de alguns disparates — como, por exemplo, ter feito o meu vampiro Barlow parecer-se exatamente com o cruel tocaia-dor noturno do célebre filme silencioso alemão Nosferatu —, realizou um trabalho bastante bom. Respirei fundo, aliviado, quando alguns planos para transformá-lo num seriado foram por água abaixo, porque hoje em dia a TV anda cautelosa e sem imaginação para lidar com o verdadeiro horror.

A Carrie de Brian De Palma foi incrível. Tratou o material com maestria e arte, conseguindo uma atuação esplêndida de Sissy Spacek. O filme, sob vários aspectos, é muito mais apurado do que meu livro; este é uma leitura que prende a atenção como poucos, sendo, porém, prejudicado por uma certa gravidade, uma espécie de Sturm und Drang ausente no filme. A versão de O Iluminado por Stanley Kubrick é bem mais difícil de julgar, pois ainda estou profundamente incerto sobre o resultado geral. Eu admirava Kubrick há muito tempo e tinha grandes esperanças no projeto, mas fiquei muito decepcionado com o que vi. Há trechos do filme que são de arrepiar, carregados de um terror claustrofóbico quase insuportável; outros, no entanto, não produzem quase efeito.

Penso que existem dois problemas básicos no filme. Primeiro, Kubrick é um homem frio demais — pragmático e racional — e encontrou grandes dificuldades para conceber, ainda que de um modo acadêmico, um mundo sobrenatural. Costumava telefonar-me da Inglaterra nas horas mais estranhas do dia e da noite, e lembro que certa vez ele me ligou perguntando:

— Você acredita em Deus? Refleti um segundo e respondi:

— Sim, acho que acredito.

— Bem, eu não acredito que exista um Deus — retrucou, e cortou a ligação.

Isto não significa que a religião deve estar envolvida no horror, contudo um cético visceral como Kubrick não poderia perceber o impiedoso mal do Overlook Hotel. Portanto, ele buscou o mal nos personagens e fez o filme como uma tragédia doméstica, com apenas ligeiros toques de sobrenatural. Esta foi a falha básica: como ele não podia acreditar, não conseguiu tornar o filme crível para os outros.

O segundo problema concentrou-se na caracterização e no elenco. Jack Nicholson, embora seja um ator maravilhoso, não era o indicado para o personagem. Seu último papel importante fora em Um Estranho no ninho, e por causa daquela fita, a platéia identificou-o automaticamente e desde a primeira cena como um louco. O livro, no entanto, é sobre a queda gradual de Jack Torrance rumo à loucura através da influência maligna do Overlook, que atua como uma bateria de acumuladores carregada com uma força funesta suficiente para corromper todos aqueles que entram em contato com ela. Para início de conversa, se o cara é louco, então toda a tragédia da sua decadência é desperdiçada. Por isso a fita não tem núcleo nem conteúdo, apesar dos ângulos da câmera sabiamente enervantes e o uso da filmagem estática, que é atordoante. Basicamente, o que está errado na versão de O Iluminado por Kubrick é ter sido rodado por um homem que pensa demais e sente de menos; por isso, apesar de todos os seus efeitos virtuosos, não consegue desencadear no espectador aquela sensação de aperto na garganta, nem deixá-lo preso à poltrona como seria de se esperar num filme de horror.

Eu gostaria de refilmar O Iluminado algum dia, talvez até dirigi-lo pessoalmente se encontrar alguém disposto a financiá-lo.

Playboy: Em A Dança da Morte, que a ser uma obra de culto para muitos de seus fãs, um vírus de gripe que se modifica com rapidez incrível, casualmente desencadeado pelas forças armadas americanas, dizima nove décimos da população mundial e cria o palco para uma luta apocalíptica entre o Bem e o Mal. Este genocídio foi pressagiado em escala menor em Carrie e A Incendiária, os quais terminam com a morte das heroínas cercadas, e a destruição de seus perseguidores e também de seus observadores; em A Hora do Vampiro onde você incendeia a cidade no final; e ainda na explosão e incêndio do Overlook Hotel na conclusão de O Iluminado. Será que existe no seu íntimo um piromaníaco ou um granadeiro louco berrando para se libertar?

KING:Claro que existe, e esse meu aspecto destrutivo encontra uma válvula de escape imensa nos meus livros. Jesus! Adoro atear fogo em tudo — pelo menos no papel. Não me parece que o incêndio premeditado pudesse ser tão divertido na vida real quanto o é na ficção. Um dos momentos preferidos em toda a minha obra surge no meio de A Dança da Morte, quando um dos meus vilões, o Homem de Trashcan, ateia fogo em todos aqueles tambores de óleo da refinaria e eles explodem como se fossem bombas. Até parece que o céu noturno se incendiou. Nossa, aquilo foi maravilhoso! É o lobisomem dentro de mim, quer me parecer, eu amo os incêndios, adoro a destruição. É o máximo, é tétrico, é excitante. Ao escrever cenas deste tipo, sinto-me como Sansão ao demolir o templo sobre as cabeças de todo mundo.

A Dança da Morte foi especialmente agradável, pois nele tive a oportunidade de arrasar com a raça humana e, cara, foi divertido, e como! Sentado diante da máquina de escrever senti-me exatamente como Alexandre ao erguer sua espada sobre o nó górdio e esbravejar: "Qual desfazer, qual nada! Agirei à minha moda!" Grande parte da sensação compulsiva, violenta, que experimentei ao redigir A Dança da Morte, nascia da onda de emoção ao imaginar a sólida organização social sendo destruída de um só golpe. Este é o aspecto destruidor — insano da minha personalidade, creio.

Contudo, o final do livro reflete o que espero seja um aspecto mais construtivo. A Dança da Morte, após todo o niilismo, sofrimento e desespero, é na verdade otimista, pois constitui uma reafirmação gradual dos valores humanos na medida em que a raça humana se ergue das cinzas e, em última análise, restaura o equilíbrio moral e ecológico. Apesar das suas cenas medonhas, o livro é também um testemunho dos sólidos valores humanos da coragem, deprendimento. amizade e amor, e no final serve de eco à observação de Camus: "A felicidade também é inevitável."

Playboy:Deve ter havido um período, antes de toda esta fortuna e fama, em que a felicidade não lhe parecia inevitável. Os primeiros tempos foram muito duros?

KING:Ora, digamos apenas que, como a maioria dos sucessos que surgem da noite para o dia, tive que pagar meus tributos. Ao sair da universidade, por volta do começo da década de 70, levando comigo um diploma de Inglês e um certificado para lecionar, descobri haver saturação no campo do ensino e fui trabalhar como frentista num posto de gasolina e depois como passador de lençóis numa lavanderia industrial, ganhando 60 dólares por semana. Éramos pobres como Jó, tínhamos dois filhinhos e, nem preciso dizer, não era nada fácil chegar ao final do mês com aquele salário. Minha mulher foi ser garçonete numa das lojas Dunkin' Donuts e voltava para casa todas as noites cheirando a biscoito. No começo até que foi um cheiro agradável, bem fresco e adocicado, mas depois de algum tempo tornou-se insuportável — a partir daí nunca mais pus uma rosquinha na boca.

Afinal, no outono de 1971 consegui um lugar de professor de inglês na Hampden Academy, do outro lado do rio Penobscot em Bangor, mas o salário anual era de 6.400 dólares, só um pouco mais do que ganhava antes. Na realidade vi-me obrigado a voltar à lavanderia, onde passei para o turno da noite, apenas para manter nossas cabeças fora d'água. Estávamos morando num trêiler no alto de uma colina ventosa e varrida pela neve em Hermon, Maine, que se não é o lugar onde Judas perdeu as botas, não fica muito longe dele. Voltava exausto da escola para casa e, acocorado no espaço reservado à caldeira de calefação, com a Olivetti portátil apoiada numa escrivaninha de criança, tinha que me equilibrar sobre os joelhos enquanto tentava produzir uma prosa brilhante.

Para dizer a verdade, ali redigi A Hora do Vampiro. Foi meu segundo livro publicado, porém o principal do livro já estava pronto antes de Carrie ser aceito pela Doubleday. E, acredite, depois de lecionar o dia todo, voltar para casa e ficar vendo Tabby buscar corajosamente uma saída para aquelas contas todas, era positivamente um prazer ficar espremido no espaço reservado à caldeira de calefação e lutar com uma horda de vampiros sedentos por sangue. Comparados com nossos credores, eles até que eram um alívio!

Playboy:Nessa época você estava negociando algum de seus trabalhos?

KING:Sim, mas apenas contos e somente para revistas masculinas com circulação restrita como Cavalier e Dude. O dinheiro era bem-vindo, sabe Deus, mas se você conhece esse tipo de mercado, deve saber que não se tira grande coisa dele. Muito bem, o pagamento por minhas histórias não era suficiente para nos manter fora do vermelho e eu não estava indo a parte alguma trabalhando em dois lugares. Já tinha escrito vários romances, classificados como ruins, medíocres ou aceitáveis, mas todos tinham sido rejeitados, embora começasse a receber algum encorajamento por parte de um maravilhoso editor da Doubleday chamado Bill Thompson. Contudo, por mais gratificante que fosse o seu apoio, eu não tinha condições de bancá-lo. Meus filhos usavam roupas velhas, oferecidas por amigos e parentes, nosso calhambeque, um Buick Special 1965, estava se desmanchando com rapidez e, finalmente, tivemos que requerer à companhia telefônica a retirada do nosso aparelho.

Além de tudo isso, eu estava me danando. Gostaria de poder dizer, agora, que sacudi a poeira e dei a volta por cima diante da adversidade e continuei impávido, mas não posso. Rumei para a autopiedade, a insegurança e comecei a beber demais, a perder dinheiro no pôquer e na sinuca. Você conhece a cena: sexta-feira à noite, a gente troca o cheque do pagamento por dinheiro vivo no bar, começa a jogar e num piscar de olhos largou nas mesas metade da quantia necessária para a compra de alimentos durante a semana.

Playboy: Como foi que seu casamento resistiu diante de todas essas tensões?

KING: Bem, por algum tempo as coisas estiveram incertas e às vezes ficaram bastante tensas. Era um círculo vicioso: Quanto mais me sentia infeliz e inadaptado à condição que considerava o meu fracasso como escritor, mais consolo buscava na garrafa, que só servia para exacerbar a pressão doméstica e me deixava mais deprimido ainda. Tabby, é claro, estava preocupadíssima com as minhas bebedeiras constantes, porém dizia entender que a razão daquilo era o fato de eu ter consciência de que nunca iria estourar na praça, que jamais seria um escritor de sucesso. E eu, naturalmente, receava que ela estivesse certa. Costumava ficar deitado à noite imaginando-me cinqüentão, os cabelos ficando grisalhos, a papada aumentando, uma rede de capilares espalhados na ponta do nariz — "tatuagem dos bêbados", é como se costuma dizer lá no Maine —, uma área cheia de romances não publicados apodrecendo no porão, lecionando inglês no segundo ciclo pelo resto da minha vida e lançando mão das poucas dicas literárias que ainda me restavam para assessorar o jornal estudantil ou, talvez, dando um curso de redação criativa. Nossa! Embora só tivesse vinte e poucos anos, e embora, racionalizando, me desse conta de que ainda tinha muito tempo à minha frente, aquela pressão para vencer na literatura estava se transformando num crescendo psíquico, e quando me pareceu que tudo era impedimento, fiquei terrivelmente deprimido, senti-me encurralado. Parecia-me estar enredado numa competição suicida, sem nenhuma escapatória daquele labirinto.

Playboy:Alguma vez chegou a pensar seriamente em suicídio?

KING:Oh, não, nunca, o que eu disse não passa de um exagero metafórico. Tenho minha cota de fraquezas humanas, mas também sou profundamente obstinado. Talvez seja uma característica do Maine, sei lá. Afinal, não foi Mencken quem disse que o suicídio é uma aquiescência tardia na opinião dos parentes de sua mulher? O que me preocupava realmente era o efeito que aquela situação estava produzindo no meu casamento. Ora, nós nos encontrávamos num terreno pantanoso naqueles tempos e eu temia que breve encontrássemos uma área de areias movediças.

Amava a mulher e os filhos, porém à medida que a pressão aumentava, comecei a nutrir sentimentos ambivalentes também com relação a eles. Por um lado, nada mais desejava do que cuidar deles e protegê-los — mas, ao mesmo tempo, despreparado como estava para enfrentar as dificuldades da paternidade, também experimentava uma gama imensa de emoções reprováveis que iam do ressentimento à ira e, ocasionalmente ao ódio puro e simples. Cheguei mesmo a rompantes de violência mental que, graças a Deus, soube dominar. Perambulando pela miserável salinha de visitas do nosso trêiler, às três da madrugada de um gélido dia invernoso, com o pequeno Joe, então com nove meses e os dentes rompendo, dependurado no meu ombro, na maioria das vezes babando a minha camisa, eu procurava imaginar como e por que estava metido naquele hospício particular. Todos os medos claustro-fóbicos surgiam então, e eu ficava me perguntando se tudo aquilo era mesmo real, se não estaria apenas sendo vítima de um sonho tolo. Um carro adaptado para a neve rangia ao longe, como um inseto enfurecido e eu dizia para os meus botões: "Que merda, King, enfrente a situação; você vai lecionar inglês para ginasianos nojentos toda a sua vida." Não sei o que teria acontecido ao meu casamento e à minha sanidade mental se em 1973 não tivesse recebido notícias, inteiramente inesperadas, de que a Doubleday aceitara Carrie, que a meu ver tinha pequenas chances de ser negociado.

Playboy: O que foi mais importante para você — o dinheiro recebido por Carne ou o fato de ser, finalmente, reconhecido como um romancista sério?

KING: Para ser sincero, as duas coisas, embora eu pudesse questionar com que seriedade a Doubleday me havia considerado um romancista. Não tenha dúvidas, ela não pretendia promover Carrie como a réplica daquele ano para Madame Bovary. Sei que há muita coisa que ainda gosto e continua válido no livro, mas sou o primeiro a reconhecer que é, várias vezes, tosco e simples. Bem, tanto do ponto de vista criativo como financeiro, Carrie foi uma espécie de saída de emergência para minha família, e através dele tivemos a oportunidade de mergulhar numa existência inteiramente diversa. Meu Deus, nossas vidas mudaram tão depressa que até mais de um ano depois ainda andávamos com um sorriso imenso e tolo estampado em nossos rostos, quase sem ousarmos acreditar que tínhamos saído definitivamente daquele atoleiro. Foi uma enorme sensação de liberdade, porque finalmente podia abandonar o ensino e satisfazer o que acredito ser minha única função na vida: escrever livros. Bons, maus ou insignificantes, cabe aos outros decidir; para mim, basta escrevê-los. Desde os meus doze anos eu escrevia com afinco, embora muito mal no início; só negociei Carrie quanto estava com vinte e seis, portanto tivera um aprendizado relativamente longo. E aquele primeiro contrato para publicação em capa dura foi uma doçura!

Playboy:A compulsão para escrever, como você diz, acompanha-o desde a meninice. Seria um modo de escapar de uma infância infeliz?

KING:Talvez, ainda que em geral seja impossível relembrar os sentimentos e as motivações da infância, muito menos compreendê-los e racionalizá-los. As crianças, graças a Deus, são deliciosa e criativamente loucas pelos nossos padrões adultos dissecados. No entanto, também é verdade que fui vítima de uma porção de emoções confli-tuosas durante a infância. Tinha amigos e tudo mais, mas muitas vezes sentia-me infeliz e diferente, afastado das outras crianças da minha idade. Eu era um garoto gordo — robusto era o eufemismo usado pelas lojas de roupas — e minha coordenação não era das melhores, por isso sempre o último a ser chamado à convocação das equipes.

Algumas vezes, especialmente na adolescência, sentia-me violento, como se desejasse escoicear o mundo, mas essa raiva eu mantinha escondida. Havia em mim um lugar secreto que não revelava a ninguém. Creio que isto ocorria porque meu irmão e eu tivemos uma infância muito sofrida. Meu pai nos abandonou quando eu tinha dois anos e o David quatro, deixando minha mãe sem um centavo. Mulher extraordinária, senhora muito corajosa no sentido antigo, foi trabalhar para nosso sustento ocupando, de um modo geral, lugares subalternos, pois não possuía profissão definida, não fora preparada para disputar um lugar melhor no mercado de trabalho. Depois que meu pai realizou sua fuga noturna, ela passou a ser um seixo a rolar, perseguindo ocupações através do país. Viajamos pela Nova Inglaterra e pelo Centro-Oeste, enfrentando um emprego mal remunerado após outro. Foi passadeira em lavanderias e preparadora de rosquinhas — como minha mulher, vinte anos mais tarde — governanta, balconista; qualquer serviço que você possa sugerir, ela enfrentou.

Playboy: O fato de ter vivido nessa pobreza deixou alguma marca duradoura em você?

KING: Não, eu não pensava em termos de pobreza — nem naquele tempo, nem agora. Nossa vida não era,  afinal,  de uma pobreza franciscana, nunca deixamos de fazer uma das refeições diárias, embora o filé raras vezes fizesse presença em nossos pratos. Finalmente, quando eu estava com uns dez anos, retornamos ao Maine, para a cidadezinha de Durham.

Durante dez anos tínhamos levado uma existência de mudanças, praticamente sem nunca vermos dinheiro vivo. Se precisássemos de comida, os parentes traziam uma sacola de mantimentos; se estávamos com pouca roupa, sempre havia roupas usadas à nossa disposição. Acredite-me, jamais estive na lista dos mais bem vestidos da escola! E o poço secava durante o verão, por isto tínhamos que usar a casinha nos fundos do quintal. Não havia banheiro ou chuveiro, e naqueles invernos rigorosos do Maine tínhamos que caminhar quase um quilômetro para tomar um banho quente na casa da tia Ethelyn. Mas que droga ao voltar para casa através da neve, como saía vapor das nossas bocas! Portanto, sim, acho que sob vários aspectos foi uma existência dura para agüentar, mas não era miserável no sentido mais amplo desta palavra. Graças à minha mãe, uma coisa que nunca nos faltava, e talvez isto pareça um lugar-comum, era o amor. Sob este aspecto, eu era muito mais afortunado do que inúmeras crianças da classe média ou de famílias ricas, cujos pais têm tempo para tudo menos para os filhos.

Playboy: Seu pai manteve contato com você depois de os ter abandonado, fosse por um sentimento de culpa ou — tendo em vista sua atual condição de riqueza — por ambição?

KING: Não, embora me pareça que, se me procurasse, sua motivação seria possivelmente a última citada por você. Na realidade, o caso dele foi uma deserção clássica, nenhum bilhete explicativo, nenhuma justificativa. Ele afirmou, literalmente, que ia até o armazém comprar um maço de cigarros e não levou nada de seu. Isto aconteceu em 1949 e nunca mais nenhum de nós ouviu falar do safado.

Playboy:Agora que você é multimilionário, com maiores recursos à sua disposição do que sua mãe jamais poderia ter imaginado, já pensou, algum dia, em proceder a uma investigação para encontrar seu pai ou, pelo menos, para saber se está vivo ou morto?

KING:A idéia passa pela minha cabeça de vez em quando, mas algo

sempre me impede de fazê-lo. Superstição, creio, e acabo achando melhor deixar as coisas como estão. Para falar a verdade, não sei como reagiria se o encontrasse e nos víssemos frente a frente. Porém, se algum dia me decidir a iniciar uma investigação, não acredito que vá dar algum resultado, pois tenho certeza de que meu pai está morto.

Playboy:Por quê?

KING:Por tudo que me contaram a respeito dele. A esta altura já deve ter desaparecido. Gostava demais de beber e farrear. De fato, através de insinuações de minha mãe, acho que teve problemas com a lei por mais de uma oportunidade. Usava nomes falsos com muita freqüência — nasceu Donald Spansky em Peru, Indiana, depois passou a se chamar Pollack e finalmente modificou legalmente seu nome para King.

Começou a vida como vendedor da Electrolux no Centro-Oeste, mas acho que meteu os pés pelas mãos em algum ponto ao longo do caminho. Como minha mãe me disse certa vez, ele era o único vendedor que realizava regularmente demonstrações dos aspiradores para jovens viúvas às duas horas da madrugada. Segundo minha mãe, ele era um mulherengo e, ao que tudo indica, tenho uma linda meia-irmã, linda e bastarda, no Brasil. Seja lá como for, ele era um andarilho por natureza, um viajante, como diz a canção. Parece-me que os problemas o perseguiam.

Playboy:Portanto não podemos dizer que sinta vontade de ser considerado um filho de peixe?

KING:Vamos esperar que a hereditariedade ocupe um segundo lugar no meu caso. Pelo que me contaram, meu pai, sem dúvida alguma, está vários corpos à minha frente na circunscrição de Lothario, onde sou notoriamente monógamo, embora tenha propensão para beber demais, coisa que tento controlar, e goste de carros velozes e motocicletas. Não compartilho, isto é certo, da sua sede de viagens, uma dentre as muitas razões por que continuei vivendo no Maine, ainda que tenha agora liberdade econômica para morar em qualquer parte do mundo. Coisa muito estranha, o único ponto de semelhança entre nós talvez seja o gosto pela literatura. Meu pai tinha especial predileção por ficção científica e contos de horror; tentou escrevê-los, oferecendo-os às mais importantes revistas masculinas daquela época, como Bluebook  e Argosy. Nenhuma das histórias sobreviveu e nem as publicações existem mais.

Playboy:Um álbum de recortes de seu desaparecido pai ocupa um lugar de destaque no estúdio de sua casa de campo. Será que o fato de preservar a memória de um homem que nem conheceu estaria insinuando que você, pelo menos mentalmente, continua lambendo a ferida?

KING:Não, a ferida curou, porém isto não exclui o interesse em descobrir como e por que foi provocada. E o fato, parece-me, ficou muito distante para ser algo relacionado a alguma cicatriz psíquica. Seja lá como for, o álbum de recortes que mencionou não é um tipo de santuário secreto dedicado à memória dele, mas apenas um punhado de souvenirs: alguns cartões-postais que enviou para minha mãe dos diversos portos por onde andou, sobretudo na América Latina; algumas fotos de vários navios nos quais viajou; o desbotado esboço de um mercado mexicano feito, aliás, de memória. Apenas miudezas que ele largou para trás, como o cadáver das histórias de horror em quadrinhos da década de 50 — ó, Senhor, eu adorava aquelas mães! — que volta de um túmulo úmido para se vingar da mulher e do namorado que puseram um fim na sua vida, porém antes lhes telefona e diz aos sussurros: "Estou indo; teria chegado antes, mas fragmentos do meu corpo não param de despencar durante o trajeto."

Pois bem, os fragmentos de meu pai que foram caindo ao longo do caminho encontram-se preservados no álbum de recortes, como se fora uma cápsula do tempo. Tudo acaba em 1949, quando resolveu desaparecer de nossas vidas. Às vezes, folheio aquelas páginas e isto me traz à lembrança um dia gélido do outono dos anos 50, quando meu irmão e eu encontramos vários filmes antigos rodados por nosso pai. Ao que tudo indica ele era um ávido entusiasta de fotografias, porém nunca vimos grande coisa desse seu talento além de uns poucos instantâneos. Minha mãe tinha guardado o celulóide no sótão de meus tios. E lá estávamos nós, duas crianças — eu devia ter uns oito anos e David, dez — procurando pôr em funcionamento um projetor obsoleto e imenso que tínhamos dado um jeito de alugar.

Quando conseguimos finalmente pô-lo em funcionamento, ficamos bastante decepcionados no início — deparamo-nos com uma quantidade de rostos estranhos, com cenas exóticas, mas não havia quaisquer sinais de nosso pai, E então, depois de termos projetado alguns rolos de filme, David saltou e disse:

— Lá está ele! Aquele ali é o nosso pai!

O pai tinha entregue a máquina de filmar a um de seus companheiros e lá estava ele, calmamente encostado na balaustrada do navio, tendo no fundo um mar todo picado, cheio de carneirinhos, meu velho. David recordou-se dele, mas para mim não passava de um rosto estranho. Pelo aspecto do mar, ele devia se achar então em algum ponto do Atlântico Norte, logo o filme deve ter sido rodado durante a guerra. Ele levantou a mão e sorriu, acenando sem querer para os filhos que nem sequer tinham nascido àquela época. Olá, papai, não se esqueça de escrever!

Playboy: Tendo em vista os temas sobre os quais escreve, já pensou alguma vez em ir a uma sessão espírita ou em descobrir algum outro meio sobrenatural para se comunicar com ele?

KING:Está brincando? Jamais fui a uma sessão espírita. Por Deus, nunca! Exatamente por saber alguma coisa sobre o assunto, esta será a última coisa que eu farei. Você não seria capaz de me arrastar para uma reunião dessas, e o mesmo acontece com relação à tábua de Ouija. Tudo isso é uma merda... fique longe disso! Sei, é claro, que a maioria dos médiuns é formada por impostores, pilantras e artistas, a pior espécie de abutres explorando o sofrimento, a perda e a solidão humanos. Porém se há coisas flutuando por aí — entidades desencarnadas, demônios, denomine-os como bem entender — então é o máximo da loucura convidá-los a nos usar como um canal para alcançarem este mundo. Eles podem gostar do que encontrarem, cara, e podem se resolver a ficar por aqui.

Playboy:Este seu medo com relação às sessões espíritas é um fenômeno isolado ou você também nutre superstições com relação a outros aspectos do sobrenatural?

KING:Mas claro, sou supersticioso por natureza. Veja bem, parte de minha mente, a parte racional, dirá: "Vamos, cara, tudo isto nada mais é do que baboseira", mas a outra parte, a parte tão velha quanto o primeiro homem das cavernas, todo encolhido de medo diante da sua fogueira, ao escutar algo imenso e faminto berrando na noite, diz: "Sim, talvez seja, mas por que me arriscar?" Eis aí a razão porque observo todas as superstições dos mais velhos: não passo embaixo de escadas; fico morto de medo e terei sete anos de azar se quebrar um espelho; procuro ficar dentro de casa, todo encolhido sob as cobertas nas sextas-feiras, 13. Meu Deus, certa vez fui obrigado a voar numa sexta-feira, 13 — não tinha escolha — e apesar da tripulação não ter precisado me carregar para dentro do aparelho tremendo e gritando, não me pareceu estar fazendo um piquenique. Também não ajuda nada o meu pavor de viajar de avião. Creio que detesto entregar o controle da minha vida a um piloto sem rosto que poderia ter passado a tarde bebendo em sigilo ou sujeito a sofrer um embolismo craniano, como uma bomba-relógio invisível. Contudo, tenho algo com relação ao número 13 de um modo geral; ele jamais deixa de provocar aquele arrepio que sobe e desce pela minha coluna. Se estou escrevendo, nunca paro de trabalhar quando a página tem o número 13 ou um de seus múltiplos; limito-me a prosseguir até alcançar um algarismo mais seguro.

Playboy: Tem medo do escuro?

KING:Claro que sim. Não ocorre isso com todo mundo? Há momentos em que não posso entender minha própria família. Sou incapaz de dormir sem manter uma luz acesa no cômodo e, nem é preciso dizer, tenho o máximo cuidado em ver se as cobertas estão bem presas sob as minhas pernas, de modo que não desperte no meio da noite sentindo uma mão pegajosa agarrada ao meu calcanhar. Assim que Tabby e eu nos casamos, estávamos no verão, ela dormia profundamente e eu permanecia com os lençóis puxados até a altura dos olhos; ela despertou e, ao me ver daquela maneira, disse:

— Por que motivo está dormindo desse jeito maluco?

Tentei explicar-lhe que era mais seguro daquele jeito, porém não tenho certeza se ela chegou a entender. E agora fez mais uma coisa que não me deixa absolutamente satisfeito: colocou grandes babados vaporosos em torno da cama de casal, até o chão, o que significa que antes da gente se deitar, para verificar o que está escondido debaixo da cama, tenho que levantar aqueles babados e enfiar ali o meu nariz. E se a coisa estiver próxima demais, pode arranhar meu rosto antes mesmo de eu conseguir localizá-la. Mas a Tabby simplesmente não aceita meu ponto de vista.

Playboy: Já chegou a ponderar sobre a possibilidade de examinar a parte de baixo da cama passando um cabo de vassoura?

KING:Não, meu chapa, seria frescura demais. Veja, às vezes temos hóspedes em casa. Já imaginou a situação se, no dia seguinte de manhã, eles dissessem:

— Puxa, estávamos indo até o banheiro ontem à noite quando vimos Steve de quatro no chão, enfiando um cabo de vassoura embaixo da cama.

Isso poderia turvar a minha imagem. Contudo, não é apenas a Tabby que não entende o problema; sinto-me perturbado, também, com a atitude assumida por meus filhos. Bem, costumo ter um pouco de insônia e, todas as noites, vou verificar como estão em suas camas, se continuam respirando, e os dois mais velhos, Naomi e Joe, sempre me dizem:

— Papai, quando sair não se esqueça de apagar as luzes e fechar a porta.

Apague as luzes! Feche a porta! Como podem suportar uma coisa dessas? Meu Deus, veja bem, qualquer coisa poderia estar no quarto deles, encolhida dentro do armário, enfiada debaixo da cama, esperando apenas uma oportunidade para se esgueirar, saltar em cima deles e neles enfiar suas garras! Essas coisas não suportam a luz, sabe disso, não?, portanto a escuridão é perigosa! Contudo, experimente dizer isso a meus filhos. Espero que não haja nada de errado com eles. Santo Deus, quando tinha a idade deles tudo que sabia era que o bicho-papão estava à minha espera. Talvez ainda esteja.

Playboy: O quê, além da sua imaginação, o deixa apavorado?

KING:Um filme que certamente jamais esquecerei é A Invasão dos Discos Voadores, estrelado por Hugh Marlowe, basicamente um filme de horror disfarçado em ficção científica. Era outubro de 1957, eu acabara de completar meus dez anos e o estava assistindo no antigo Cinema Stratford no centro da cidade do mesmo nome, em Connecti-cut — uma daquelas sessões de matinê especial para crianças. O filme era bastante banal, versava a respeito de uma invasão da Terra realizada por uma raça de alienígenas terríveis, provenientes de um planeta em fase de desaparecimento; aí, já perto do final — exatamente quando passava a melhor parte, quando Washington estava em chamas e quase acontecendo o combate final e cataclísmico interestelar — a tela, de repente, ficou sem qualquer imagem. Ora, as crianças começaram a bater com os pés e a vaiar, julgando que o encarregado da projeção tivesse cometido um erro ou que o filme tivesse arrebentado, mas então, inopinadamente, as luzes do cinema se acenderam com força total, fato que surpreendeu todo mundo, pois nada parecido jamais acontecera no meio de uma sessão. E então surgiu o gerente do cinema caminhando devagar pelo corredor central; pálido, galgou os degraus que iam até o palco e disse com voz trêmula:

— Devo comunicar a vocês que os russos colocaram em órbita um satélite espacial em torno da Terra. Chamaram-no Sputnik.

Houve uma pausa demorada e silenciosa enquanto aquela turma formada por cinqüenta garotos usando jeans, cabelos cortados à escovinha ou presos em rabos-de-cavalo, lutava para assimilar a informação; e então, de repente, uma voz quase chorosa mas também carregada com uma raiva tremenda gritou através do silêncio assombroso:

— Ora, trate de exibir o filme, seu mentiroso!

E após poucos minutos, o filme voltou a ser projetado, porém deixei-me ficar sentado ali, imóvel na poltrona, pois sabia que o gerente não estava mentindo.

Isto foi um conhecimento apavorante para um membro de toda uma geração de bebês de guerra, criados com revistas em quadrinhos do tipo Captain Vídeo, Terry e os Piratas e Combat Casey, convencidos da invencibilidade militar dos Estados Unidos bem como de sua supremacia moral, certos de que éramos os bons sujeitos e que Deus estava do nosso lado sem jamais nos abandonar. Imediatamente fiz a ligação entre o filme que estávamos vendo e o fato de que os russos tinham um satélite espacial perambulando pelos céus, carregado, pelo que me constava, com bombas H para fazê-las chover em cima de nossas cabeças ingênuas. E, naquele momento, os temores do horror fictício interligaram-se de modo vivido com a realidade de um holocausto nuclear em potencial; uma transição da fantasia para um mundo real tornou-se, inopinadamente, muito mais ameaçadora e sinistra. E enquanto me achava sentado ali, o filme terminou com as vozes dos invasores malignos ecoando na tela numa ameaça final: "Olhem para os céus... Um aviso virá dos céus... Olhem para os céus..." Ainda considero impossível fazer meus filhos entenderem o quanto me senti apavorado, sozinho e deprimido naquele momento.

Playboy: As crianças, como você mesmo declara, possuem imaginações violentas, porém a sua não era fantasiosa demais, de um modo até doentio?

KING:Acredito que a maioria das crianças compartilha algumas de minhas preocupações mórbidas, e provavelmente há algo de errado com aquelas que não compartilham. É uma questão de nível, eu creio. Uma imaginação ativa sempre fez parte da bagagem que carrego comigo, e quando se é criança, essa imaginação pode às vezes exigir um tributo muito duro. No entanto, vários dos medos com os quais tive que aprender a lidar nada tinham a ver com o sobrenatural. Eles surgiam das mesmas ansiedades e inseguranças do dia-a-dia que muitas crianças têm de enfrentar. Por exemplo, quando era menino, ponderava profundamente sobre o que aconteceria se minha mãe morresse e eu ficasse órfão. Ora, um garoto de imaginação relativamente curta, do tipo que tem grande futuro na programação de computadores ou na câmara de comércio, dirá para si mesmo: "E daí? Ela não está morta, nem mesmo está doente, portanto não pense nisto." Contudo, com o tipo de imaginação que eu tinha não se pode apagar as imagens depois que elas foram acionadas, por isso via minha mãe estendida num caixão de mogno forrado com seda branca e com alças de bronze; em seguida via a mim mesmo sendo arrastado para algum orfanato dickensiano por uma senhora de idade, terrível e toda trajada de negro.

Mas, o que me deixava realmente apavorado ante a perspectiva da morte de minha mãe não era ser internado numa instituição, por mais violento que aquilo pudesse parecer. Tinha medo de que tal fato me pusesse louco.

Playboy: Você tinha alguma dúvida sobre a sua sanidade mental?

KING: Não confiava nela, isso é certo. Um de meus maiores temores, à medida que ia crescendo, era a possibilidade de enlouquecer, principalmente após ter assistido na televisão ao filme The Snake Pit (Covil de serpentes) com Olivia de Havilland. Havia aqueles loucos num hospício do governo atormentando-se com suas decepções, suas psicoses e sendo atormentados pelos sádicos carcereiros, e não encontrei muita dificuldade para me imaginar no meio deles. Nos anos seguintes aprendi o quanto o cérebro humano é um órgão forte e resistente, e quanta pressão psicológica é capaz de suportar; naqueles dias porém, tinha certeza que se enlouquecia de repente, sem mais aquela; a gente ia andando pela rua e — bum! — subitamente pensava ser uma galinha ou começava a cortar as crianças da vizinhança com uma tesoura de jardinagem. Vai daí, por muito tempo senti um pavor imenso de endoidar.

Playboy: Há algum caso de insanidade na sua família?

KING: Ah, da parte do meu pai tivemos uma porção de excentricidades, para dizer pouco. Lembro-me da tia Beth, que minha mãe sempre afirmava ser esquizofrênica e que, ao que tudo indica, terminou seus dias num hospício. Também havia a mãe de meu pai, vovó Spansky, que David e eu conhecemos quando estávamos morando no Centro-Oeste. Era uma mulher grande, corpulenta, que tanto me fascinava como me era antipática. Ainda recordo dela tagarelando como uma velha bruxa através das gengivas desdentadas enquanto fritava um pão de fôrma inteirinho em gordura de porco, num fogão antigo, depois engolia aquilo tudo, resmungando: "Puxa, está torradinho à beça!"

Playboy:Que outros temores o atormentaram na infância?

KING: Bem, eu sentia pavor e fascinação pela morte — a morte em geral e, sobretudo, a minha — provavelmente como resultado de ouvir todos aqueles programas de rádio e assistir a alguns seriados bastante violentos transmitidos pela televisão, como Peter Gunn e Patrulha Rodoviária, nos quais a morte surgia facilmente num abrir e fechar de olhos. Estava totalmente convencido de que jamais chegaria aos vinte anos. Via-me voltando para casa uma noite, andando por uma rua escura, deserta, e alguém, ou alguma coisa, pulava em cima de mim, saindo do mato, e esse seria o fim. Portanto, a morte como um conceito e as pessoas que lidavam com a morte deixavam-me intrigado.

Lembro de ter reunido uma porção de recortes de jornais sobre Charlie Starkweather, o assassino, o chacinador que, com sua namorada, deixou um rastro de sangue através do Centro-Oeste. Meu Deus, que dificuldade encontrei para manter tudo aquilo escondido de minha mãe! Starkweather matou nove ou dez pessoas a sangue-frio, e eu costumava recortar e colar cada notícia sobre ele que me caísse diante dos olhos, e depois me sentava e procurava desvendar o horror oculto por trás daquele rosto comum. Sabia que estava olhando para um mal sociopático, não um vilãozinho estilo Agatha Christie, mas algo mais selvagem, tenebroso e desgovernado. Eu hesitava entre a atração e a repulsa, talvez porque percebesse que o rosto na fotografia poderia ser o meu.

Playboy: Novamente, estes não são os devaneios de seu Camaradinha típico. Não estava você, mesmo naquela época, preocupado pela possibilidade de haver algo incomum relativamente à sua obsessão?

KING:Obsessão é uma palavra forte demais. Tratava-se mais de uma tentativa para resolver um quebra-cabeças, pois desejava saber por que alguém podia fazer as coisas que Starkweather fazia. Penso que desejava decifrar o inexprimível, exatamente como as pessoas procuram entender Auschwitz ou Jonestown. Eu, evidentemente, não achava o mal sedutor de uma maneira doentia — isto seria patológico — porém considerava-o irresistível. E penso que a maioria das pessoas também o considera assim, ou as livrarias não estariam repletas de biografias de Adolf Hitler tantos anos depois da Segunda Guerra Mundial. A fascinação da abominação, como dizia Conrad.

Playboy:Os temores e inseguranças que o atormentaram na infância persistiram na vida adulta?

KING:Alguns dos meus fiéis e antigos suores noturnos ainda continuam a meu lado, como o pavor pelo escuro, mas alguns dos outros limitei-me a trocar por um novo conjunto. Entenda bem, não se pode ficar preso para sempre aos temores de ontem, certo? Agora, vejamos as fobias atuais. Confesso, tenho medo de engasgo, talvez porque na noite em que minha mãe morreu de câncer — aliás, praticamente no mesmo minuto — meu filho sofreu um engasgo horrível na cama dele lá em casa. Já estava ficando azul quando a Tabby, finalmente, conseguiu livrá-lo do que o sufocava. E posso ver a mesma coisa ocorrendo comigo à mesa do jantar; todos entram em pânico, ninguém se lembra da manobra de Heimlich e vou desta para melhor devido a um pedaço avultado de BigMac. O que mais? Não gosto de insetos de um modo geral, embora me tenha dado muito bem com as 30. 000 baratas no nosso filme Creepshow. Mas não suporto as aranhas! De modo algum — sobretudo aquelas enormes, cabeludas, que se parecem com bolas de beisebol com pêlos e pernas, aquelas que ficam escondidas no meio de um cacho de bananas, esperando o momento adequado para pular em cima da gente. Santo Deus, tais coisas me deixam petrificado.

Playboy:Já que menciona Creepshow, que você escreveu e no qual colaborou, talvez seja o momento para lhe perguntar por que razão o filme teve um resultado negativo nas bilheterias.

KING:Não sabemos se isso é um fato, porque o grosso das receitas por todo o país ainda não chegou, não foi computado. O resultado das primeiras semanas foi fantástico, e a partir daí não se revelou grande coisa em alguns lugares, contudo foi positivo em outros. Porém creio que talvez a posição assumida pela crítica, arrasando-o, possa ter afastado alguns adultos, embora uma porção enorme de adolescentes tenha corrido para assistir ao filme. Esperava más críticas, claro, pois Creepshow está calcado nas tradições das revistas em quadrinhos de horror dos anos cinqüenta; e não se trata absolutamente de uma mensagem, mas sim de diversão. E se os principais críticos o tivessem entendido e gostado dele, eu logo ficaria sabendo que, infelizmente, tínhamos fracassado sem alcançar nosso objetivo. Alguns críticos famosos, como por exemplo Rex Reed, é lógico, adoraram o filme, porém isto ocorreu porque tinham o hábito de ler a literatura das histórias em quadrinhos e se lembram delas com carinho.

Playboy: Nem mesmo Reed se revelou muito entusiasmado com a sua atuação, quando escreveu: "King tem a aparência e atua como um Ferdinando Buscapé peso-pesado. " Foi injusto da parte dele?

KING:Não, acertou no alvo, pois este é o tipo exato de caipira local que eu estava tentando retratar e Romero aconselhou-me a representá-lo "tão amplo quanto uma auto-estrada. " Minha mulher, claro, assegura que consegui representar o tipo perfeito, mas não vou atrás dela.

Playboy: Voltando novamente àquilo que o deixa petrificado — excluindo as bombas entregues pelo correio. Qual é o seu medo mais tenebroso?

KING:Que um de meus filhos morra, creio. Não acredito ter condições de enfrentar isso. Há, também, muitas outras coisas: o medo de que alguma coisa comece a não funcionar no meu casamento; de que o mundo exploda numa guerra; droga, nem me sinto feliz com relação à entropia. Porém estes pensamentos pertencem todos à hora do lobo, eles surgem quando não se consegue conciliar o sono, quando ficamos virando e revirando na cama e então é perfeitamente possível a gente se convencer de que está com um câncer ou um tumor cerebral ou, se dormimos sobre o lado esquerdo e podemos escutar nosso coração batendo, que nos encontramos à beira de uma crise coronariana fatal. E às vezes, sobretudo quando se trabalha em excesso, fica-se deitado no escuro e se imagina estar ouvindo algo no andar térreo. E então, com um esforço de verdade, chega-se a escutar passos subindo as escadas. E depois, santo Deus, eles estão aqui, estão dentro do quarto! São aqueles sombrios pensamentos noturnos, você sabe... a matéria de que se formam todos os sonhos agradáveis.

Playboy:Você se referiu à sua insônia e durante toda esta entrevista tem tomado Excedrin como se fossem cápsulas de gelatina. Também padece de dores de cabeça persistentes?

KING: Sim, tenho dores de cabeça insuportáveis. Elas vêm e vão, mas quando aparecem, são violentas. O Excedrin ajuda, porém quando ficam mesmo fora de controle, tudo que posso fazer é ir para o quarto, deitar-me no escuro e esperar. Mais cedo ou mais tarde elas desaparecem, e posso trabalhar de novo. Pelo que tenho visto na literatura médica, não se trata de enxaquecas tradicionais mas de "dores de estresse" que me atingem em momentos de tensão ou sobrecarga de trabalho.

Playboy: Você consome mais cerveja do que Excedrin; e revelou que já teve problemas com bebida. Também costuma puxar fumo?

KING:Não, prefiro drogas mais fortes. Ou, sei lá, costumava ser assim; há anos não as utilizo. A maconha não produz em mim um efeito muito grande; fico um pouco alegre, porém depois sempre fico enjoado. Eu estava na universidade no final da década de 60. Mesmo na Universidade do Maine não era difícil conseguir drogas. Usei muito LSD, peiote e mescalina, foram mais de sessenta viagens ao todo. Nunca influenciei ninguém para usar ácido ou qualquer outro alucinógeno, porque há as boas e as más viagens, dependendo da personalidade de quem usa este tipo de droga, e a última categoria pode causar sérios danos emocionais. Se você está fisiológica ou mentalmente mal, o uso do ácido poderá ser como jogar roleta-russa com uma automática 45 carregada. No meu caso, não posso deixar de declarar isto, os resultados eram, em geral, benéficos. Nunca perdi a percepção numa viagem, como se tivesse passado por uma lavagem cerebral; era como se um caminhão psicológico se estivesse esvaziando, retirando toda a porcaria acumulada na minha cabeça. E naquela época especial, precisava mesmo deste tipo de enema mental.

Playboy:A experiência com os alucinógenos causou algum efeito, mais tarde, na sua obra?

KING:De forma alguma. O ácido não passa de uma ilusão química, um jogo que se faz com o cérebro. É totalmente inexpressivo em termos de uma verdadeira expansão do consciente. Portanto, nunca comunguei com a tese defendida por Aldous Huxley de que os alucinógenos abrem as portas da percepção. Isso nada mais é do que um comodismo fabuloso, o tipo de merda que Timothy Leary costumava pregar.

Playboy: Você tem medo do bloqueio do escritor?

KING:Sim, é um dos meus mais fortes temores. Veja, estávamos debatendo, ainda há pouco, o medo da morte experimentado por mim na infância, porém trata-se de algo com que acabei conseguindo me conformar. Sou capaz de entender tanto intelectual como emocional-mente que chegará o meu dia de ter um câncer de pulmão terminal, ou de subir uma escada e, de repente, sentir uma dor fininha descendo por meu braço antes que a martelada atinja o lado esquerdo do meu peito e eu despenque para o pé da escada, morto. Iria me sentir um pouco surpreso, um tanto magoado, porém saberia que fora algo que havia cortejado por muito tempo e, finalmente, se decidira a casar comigo. Por outro lado, uma coisa que não posso entender, nem com ela me conformar, é ver o fim do meu talento de escritor.

Escrever é imprescindível para a minha sanidade. Como escritor, posso externar meus receios, inseguranças e pavores noturnos num pedaço de papel, coisa que aos outros custam uma pequena fortuna paga aos psicanalistas. No meu caso, ganho para me autopsicanalizar no papel. E no processo, tenho condições de "me declarar são", como afirmou a esplêndida poetisa Anne Sexton. Essa é uma antiga técnica dos terapeutas, como todos sabem: fazer o paciente pôr no papel os seus demônios. Um exorcismo freudiano. Todas as energias violentas que possuo — e são muitas — posso descarregá-las sobre o papel. Posso lançar no meu trabalho toda a revolta, o ódio, a frustração, tudo que é perigoso, doentio e hediondo no meu íntimo. Por todo o mundo existem camaradas em celas acolchoadas que não têm essa sorte.

Playboy:O que seria você hoje em dia, se não tivesse o seu talento de escritor?

KING: É difícil dizer. Talvez fosse um professor secundário de inglês, ligeiramente amargurado, tocando a vida para a frente até o dia de me aposentar e ir definhando aos poucos. Por outro lado, poderia ter acabado na torre do Texas com Charlie Whitman, lidando com meus demônios através de um rifle telescópico de longo alcance em vez do processador de palavras. Olhe, conheço o tal de Whitman. Meus livros mantiveram-me afastado daquela torre.

Playboy:Você foi sincero ao discutir seus temores mais íntimos, assim como suas inseguranças, porém há uma área, a sexual, que ainda não focalizamos. Tem algum bloqueio com relação a isso?

KING:Bem, penso ter tendências sexuais inteiramente normais, seja qual for o significado desta palavra nos dias de hoje. Não faz muito tempo passei por uma loja de artigos pornô e deparei com uma revista elegante e um sujeito na capa vomitando em cima de uma garota nua. Veja, chacun à son goút, está bem, mas aquilo, arrgh! Também não estou ligado ao sadomasoquismo, sobre o qual o seu competidor Penthouse construiu todo um império. Que inferno, pode-se tirar a foto de uma pequena despida, com uma coleira salpicada de brilhantes, sendo puxada por um camarada usando roupa de couro e botas de cano alto e, apesar do brilho artístico, das lentes delicadas e do colorido pastel, ainda assim achar inconsistente; ainda tresanda nojentamente a pornografia de campo de concentração. Há uma série de variações sexuais que me deixam ligado, mas receio que todas sejam maçantemente agradáveis.

Playboy:Isso quer dizer que não há nenhum bicho-papão escondido na sua libido?

KING:Não, nesse sentido não. O único problema sexual que já tive foi mais funcional. Há alguns anos padeci de impotência periódica e, acredite em mim, não achei nada engraçado.

Playboy:O que ocasionou isso?

KING: Bem, não sou realmente entendido em introspecção clínica para falar com certeza. Não foi um problema persistente. O excesso de bebida foi em parte responsável, é o que me parece — aquilo que os ingleses denominam de moleza do beberrão contumaz. Fielding destaca que o excesso de bebida causa um afrouxamento do apetite sexual num homem apático; logo, se for esse o caso, sou apático, pois, ao beber muito e rapidamente, fico bêbado demais para transar. A embriaguez pode estimular o desejo, mas prejudica o desempenho, não tenha dúvida. Naturalmente, parte disso tem que ser psicológica, pois a maneira mais certa de um sujeito se tornar impotente é dizer: "Oh, Cristo, e se eu ficar impotente?" Felizmente, não tenho tido qualquer problema desse tipo já faz algum tempo. Mas, droga, por que enveredei por este assunto? Agora, começarei a pensar nele outra vez!

Playboy: Acha que sua atração sexual aumentou junto com seu saldo bancário e a sua condição de celebridade?

KING:Sim, há muita mulher por aí que deseja transar com a fama, o poder ou seja lá o que for. A Síndrome da tiete. Às vezes, a idéia de uma transa anônima é atraente; entenda, uma garota se aproxima da gente numa noite de autógrafos em uma livraria e diz: "Vamos até minha casa"; como devemos partir daquela cidade no dia seguinte, somos tentado a responder: "Está bem, vamos, sim; passaremos Óleo Wesson um no outro e nos divertiremos à beça. " Contudo, o melhor é não começar a descer essa encosta escorregadia — não estou fazendo qualquer referência ao Óleo Wesson — e me abstenho. Meu casamento é muito importante para mim, e de qualquer forma, como grande parte da minha energia é aplicada no meu trabalho, na verdade não preciso manter casos extraconjugais.

Playboy:Sempre foi fiel à sua mulher?

KING:Sim. Por mais antiquado que lhe possa parecer, a resposta é sim. Sei que é isso o que você espera que qualquer um declare à imprensa, mas é verdade mesmo. Nunca colocaria em risco a afeição de minha mulher por causa de uma aventura. Sou muito agradecido a ela pela dedicação incansável que sempre me proporcionou e pela ajuda que me ofereceu para viver e trabalhar da maneira que quis. Ela é uma rosa mas também tem seus espinhos; muitas vezes já me feri neles no passado, portanto, sem considerar outros fatores, não teria a ousadia de enganá-la.

Playboy: Não se sentiu ameaçado quando sua mulher começou a procurar a própria carreira como escritora e publicou Miniaturas do Terror, seu primeiro livro?

KING: Claro que sim! Experimentei um ciúme danado. Minha reação foi igual à de uma criança: tive vontade de lhe dizer: "Ei, escute aqui, este brinquedo é meu; você não pode brincar com ele. " Porém o ciúme logo se transformou em orgulho assim que li o manuscrito final e descobri que ela tinha conseguido fazer um ótimo trabalho. Sabia que tinha aquele talento, porque Tabby era uma boa poetisa e escritora de contos quando começamos a namorar no meu último ano de faculdade, e ela já ganhou vários prêmios por seu trabalho. Portanto, tive condição de logo dominar minha possessividade infantil. Contudo, se ela começar a vender mais que eu, talvez isto venha a ser uma outra história.

Playboy:Por que razão o sexo explícito está tão conscientemente afastado da sua obra? Sente-se constrangido com ele?

KING:Bem, Peter Straub diz: "Stevie não descobriu o sexo", e procuro discutir o caso apontando para meus três filhos, mas não creio que ele esteja convencido. De fato, eu talvez me sinta pouco à vontade com ele, mas esse constrangimento tem sua origem num problema mais generalizado que enfrento para criar relacionamentos românticos verossímeis. Sem relacionamentos fortes para desenvolver, é difícil criar cenas de sexo que tenham credibilidade e impacto, ou levar a trama adiante, e eu só estaria abordando o sexo de modo arbitrário e negligente.

Decidir: "Ora, mas que droga, dois capítulos sem uma cena de transa. É preciso redigir logo uma. " Em Cujo há um pouco de sexo explícito, como também no conto "Apt Pupil" em Quatro Estações, onde o adolescente, seduzido pelo mal nazista, fantasia matar uma garota enquanto a estupra, eletrocutando-a lentamente e deliciando-se com cada espasmo e grito, até seu orgasmo coincidir com a agonia dela. Isto estava de acordo com o caráter deturpado do garoto e era mais ou menos até onde eu seria capaz de chegar no campo do S&M; porque depois deste ponto, meus freios do circuito mental disparam.

Playboy:Lado a lado com sua dificuldade para descrever cenas de sexo, também parece enfrentar problemas com relação às mulheres nos seus livros. A crítica Chelsea Quinn Yarbro escreveu: "É desalentador quando um escritor com tamanho talento, força e visão é incapaz de criar um personagem feminino verossímil entre os 17 e os 60 anos. " Considera esta crítica justa?

KING:Lastimavelmente, sim. Acredito que esta seja, com toda a probabilidade, a crítica mais justificável de todas as que já me foram feitas. De fato, estenderia a crítica de Chelsea ao modo como lido com os personagens negros. Tanto Hallorann, o cozinheiro em O Iluminado, como Mãe Abagail em A Dança da Morte são caricaturas de heróis supernegros, visualizados através de lentes róseas da culpa liberal-branca. E quando imagino estar livre da acusação de que a maior parte dos escritores americanos retrata as mulheres ou como tímidas ou como deusas-cadelas destruidoras, crio alguém como Carrie — que surge como uma vítima da timidez e, em seguida, transforma-se numa deusa-cadela, destruindo toda uma cidade numa explosão de violência hormonal. Identifico os problemas, porém ainda não posso corrigi-los.

Playboy: Seu trabalho também é criticado por ser excessivamente derivativo. Em Fear Itself, uma compilação de ensaios críticos sobre os seus romances, o autor Don Herron argumenta que "King parece satisfeito em tornar a trabalhar em dados ultra-surrados... Raramente nas histórias de King encontram-se criações sobrenaturais que, no mínimo, não surgiram de um enfoque anterior no gênero e em geral são terrivelmente maçantes. " Você contestaria este ponto?

KING:Não, eu o admitiria de bom grado. Jamais me considerei um escritor original, brilhante, no sentido de conceber tramas totalmente novas e diferentes. Naturalmente, tanto no gênero como na ficção mais em voga, não resta muita gente deste tipo mesmo, e a maioria dos escritores está essencialmente manipulando de novo alguns temas básicos, sejam eles a introspecção de uma recôndita sensação de angústia, os problemas sexuais e domésticos da escola dos contempladores do líder de John Updike, ou a tradicional fórmula de mistério, horror e ficção científica. O que procuro fazer — e de quando em quando, espero, sou bem-sucedido — é servir vinho novo em garrafas antigas. Entretanto, nunca nego que a maior parte de meus livros sejam até certo ponto derivativos, se bem que alguns dos contos resultem totalmente sui generis; e Cujo e Zona Morta são, ambos, concepções basicamente originais. Mas Carrie, por exemplo, foi calcado em grande parte num péssimo filme nível B cujo título era The Brain From Planet Arous; O Iluminado recebeu a influência da maravilhosa novela The Haunting of Hill House de Shirley Jackson; A Dança da Morte deve muitíssimo tanto a Earth Abides de George R. Stewart como a The Purple Cloud de M. P. Shiel; e A Incendiária conta com numerosos antecedentes na ficção científica. A Hora do Vampiro, claro, foi inspirado e exibe uma similaridade totalmente intencional com o grande clássico do gênero, Drácula, de Bram Stoker. Jamais fiz disto um segredo.

Playboy:Você também parece preocupado com o fenômeno do nazismo e escreveu muito sobre ele tanto em Quatro Estações como em Zona Morta, que focaliza a elevação ao poder de um Hitler americano e os esforços desesperados de um homem para detê-lo antes que seja tarde demais.

KING:Bem, a natureza do mal é uma preocupação comum para qualquer escritor de obras de horror, e o nazismo talvez seja a mais dramática encarnação deste mal. Afinal, o que foi o holocausto senão praticamente a recriação literal do inferno na Terra, uma satânica linha de montagem repleta de fornalhas ardentes e demônios humanos introduzindo a morte com forcados em covas repletas de cal? Milhões de pessoas também morreram em lugares como o Cambodja, claro, mas os crimes dos comunistas resultaram da perversão de uma filosofia essencialmente racional e apoloniana do século XIX, ao passo que o nazismo era algo novo e deformado e, por sua própria natureza, pervertido. Porém quando explodiu na cena alemã na década de 20, posso imaginar que exerceu uma perigosa atração irresistível. O lican-tropo que habita em nós jamais está muito distante da superfície, e Hitler soube libertá-lo e alimentá-lo. Logo, se eu estivesse na Alemanha no início dos anos 30, talvez me sentisse atraído pelo nazismo.

Contudo, tenho quase certeza de que por volta de 1935 ou 1936, mesmo antes da instituição dos campos de concentração e dos assassinatos em massa, reconheceria a natureza da Besta, tanto em mim mesmo como na ideologia, e teria pulado fora daquilo. A gente nunca sabe como vai reagir numa situação dessas, é claro, a não ser que a vivencie. Mas pode-se ver os ecos da alucinada máquina dionisíaca que deu força aos nazistas à nossa volta. Sou um grande fã do rock and roll, e o rock exerceu importante influência na minha vida e trabalho, porém mesmo aí podemos ouvir, algumas vezes, aquela Besta agitando suas correntes e se debatendo para libertar-se. Não há, também, nada tão dramático quanto Altamont; trata-se então das emoções brutais e frenéticas da multidão que podem ser geradas quando se encontram milhares de pessoas alucinadas pelo som e embriagadas num auditório.

Gosto demais de Bruce Springsteen e, não faz muito tempo, minha mulher e eu estávamos assistindo a um de seus concertos em Toronto, quando ele, subitamente, começou a brandir o braço, afastando-o do peito com o punho cerrado, como numa saudação fascista, e todos os fãs, aos gritos, acompanharam-no; e por um instante, tivemos a impressão de nos encontrarmos em Nuremberg. E, obviamente, não há o mínimo sinal de um violento fascismo, racismo ou niilismo em Springs-teen, como se pode perceber nos punkers ingleses, mas de repente aquela histeria coletiva capaz de ocorrer em concertos de rock se havia transformado numa atitude sombria e perturbadora. Naturalmente, o rock bom e forte pode evocar uma central elétrica de reação emocional, porque por natureza, ele se liga a uma condição que é prejudicial; é um ritmo anárquico no sentido mais atraente da palavra; trata-se de viver depressa e morrer jovem para ser um cadáver bonito. E o horror é também assim. Ambos são jugulares, ambos evocam arquétipos primitivos.

Playboy: Você é universalmente identificado como um escritor de horror; porém não deveriam os livros como A Dança da Morte, que é essencialmente um romance de desastre futurista, ser na verdade classificados como ficção científica?

KING: Do ponto de vista técnico, sim, você está certo. Na verdade, meus únicos livros que considero horror puro, não adulterado, são A Hora do Vampiro, O Iluminado e agora Christine, pois nenhum deles oferece uma explicação racional, aliás nenhuma, para todos os acontecimentos sobrenaturais que ocorrem. Carrie, Zona Morta e A Incendiária, por outro lado, encontram-se muito mais dentro da tradição da ficção científica, devido ao fato de lidarem com os talentos psicóticos violentos, a respeito dos quais já conversamos. Aliás, A Dança da Morte tem um pé em ambos os campos, porque na segunda metade do livro, que aborda o confronto entre as forças das trevas e as forças da luz, existe um forte elemento sobrenatural. E Cujo, não é horror nem ficção científica, embora seja, espero, aterrorizante. Nem sempre é fácil classificar estas obras, concordo, mas basicamente me considero mesmo um autor de livros de horror, porque adoro deixar as pessoas assustadas. Assim como Garfield declara: "A lasanha é a minha vida", posso afirmar, com toda a sinceridade, que o horror é a minha. Escreveria esse gênero mesmo se não fosse pago para fazê-lo; a meu ver, não há nada mais agradável neste maravilhoso mundo de Deus do que deixar o próximo apavorado.

Playboy:Até onde você iria para conseguir um efeito desejado?

KING:Até onde tiver que ir, até o leitor ficar convencido de estar nas mãos de um genuíno, tagarela e incontestável maníaco homicida. O gênero existe em três níveis básicos, isolados e independentes, cada qual um pouco mais violento do que o anterior. Existe horror no alto, a melhor emoção que pode ser induzida por um autor; e existe, no nível mais baixo, o instinto nauseante da indignação. Naturalmente, buscarei primeiro aterrorizá-lo e, se não funcionar, tentarei deixá-lo chocado, e se ainda não der certo, procurarei nauseá-lo. Não sou orgulhoso; vou oferecer-lhe um sanduíche cheinho de insetos ou enfiar sua mão nas vísceras podres de uma marmota morta. Farei o que quer que seja necessário; sou capaz de tudo. Posso arrancar a cabeça de um rato vivo, se for o caso — já cansei de fazer isto na minha vida. Afinal de contas, como dizia Oscar Wilde, nada faz mais sucesso do que o excesso. Portanto, se alguém acorda aos gritos por algo que escrevi, fico encantado. Se o leitor simplesmente jogar fora os seus bolinhos, também não deixa de ser uma vitória, se bem que numa escala menor. Suponho que o triunfo máximo seria saber que alguém caiu durinho para trás, vitimado por um ataque cardíaco, literalmente morto de medo. Eu diria: "Puxa, que lástima!", e seria sincero, porém uma parte de mim estaria pensando: "Santo Deus, meu trabalho funcionou de verdade!"

Playboy: Há algum ponto sobre o qual você não escreveria? Necrofi-lia, digamos, ou canibalismo ou infanticídio?

KING:Para falar a verdade, não posso imaginar nenhum assunto sobre o qual me recusasse a escrever, embora algumas coisas provavelmente não fosse capaz de enfrentar. Em A Hora do Vampiro há uma cena de infanticídio, na qual o vampiro sacrifica um bebê, porém só uma alusão ao fato, ele não é descrito em detalhe, o que, me parece, intensifica a torpeza do ato. Quanto ao canibalismo, escrevi uma história sobre um tipo particular de canibalismo. Chama-se O Sobrevivente e é a respeito de um cirurgião que, após um naufrágio, é atirado num atol de coral, minúsculo e árido, no Pacífico Sul. A fim de se manter vivo, vê-se obrigado a se comer, um pedaço de cada vez. Ele registra tudo meticulosamente no seu diário, e após ter amputado o próprio pé, escreve: "Fiz tudo de acordo com Hoyle. Antes de comê-lo, lavei-o. " As pessoas dizem que me transformei num nome privilegiado, a tal ponto que poderia vender até meu rol de roupas; contudo, ninguém quis tocar nessa história nem mesmo com uma vara de três metros, e ela ficou acumulando poeira no meu arquivo durante cinco anos antes de ser, finalmente, incluída numa antologia recente. Devo admitir que escrevi algumas coisas horríveis, nojentas, coisas que realmente me preocuparam. Neste momento estou pensando sobretudo no meu livro O Cemitério e numa cena em que um pai exuma o filho morto. Isto acontece alguns dias depois que o garoto foi vitimado por um acidente de trânsito, e enquanto o pai está sentado no cemitério deserto, ninando o filho nos braços, o cadáver cheio de gases explode em desagradáveis flatos e regurgitações — um barulho e um odor realmente medonhos que me foram descritos, com detalhes, por profissionais de casas mortuárias e por coveiros. E esta cena ainda me incomoda, pois enquanto a escrevia — na verdade, ela praticamente se escreveu sozinha pois minha máquina disparou como se fosse automática —, podia ver o cemitério, ouvir aqueles sons terríveis e sentir aquele odor horroroso. Ainda posso sentir tudo isto. Arrrr! Tabby não quis me deixar publicar o livro por causa dessa cena.

Playboy: Alguma vez censurou seu próprio trabalho porque algo era nojento demais para ser publicado?

KING:Não. Se posso pôr tudo no papel sem vomitar no processador de palavras, então considero adequado para chegar à luz do dia. Pensei que tinha deixado claro que não sou excessivamente escrupuloso. Lembre-se, não nutro qualquer ilusão sobre o gênero de horror. Talvez seja mesmo uma verdade total o fato de estarmos expandindo os limites do nosso conhecimento sobre os prodígios e nutrindo um sentido de terror sobre os mistérios do Universo e tudo mais. Porém, apesar de toda a conversa dos escritores deste gênero, assegurando que o horror está oferecendo, social e psicologicamente, uma catarse útil para os medos e agressividades das pessoas, o fato brutal e certo é que continuamos no negócio da vendagem de execuções públicas.

Acontece que, embora eu não fosse capaz de me autocensurar, já fui censurado uma vez. No manuscrito original de A Hora do Vampiro havia uma cena na qual Jimmy Cody, o médico local, é devorado no porão de uma pensão por uma horda de ratos recolhidos no depósito de lixo da cidade pelo líder dos vampiros. Eles fervilhavam sobre o médico como um tapete peludo em movimento, mordendo-o e arranhando-o com suas garras, e quando o pobrezinho tenta gritar para advertir seu companheiro, que se encontrava na parte superior da casa, um dos bichos penetra na sua boca aberta c ali fica se servindo até arrancar-lhe a língua fora. Adorei esta cena, mas o editor deixou claro que a Doubleday não ia editar, de modo algum, uma barbaridade assim. Sem outra alternativa, crivei o pobre Jimmy de facadas. Mas, ora essa, não era a mesma coisa.

Playboy: Alguma vez se preocupou com a possibilidade de um leitor, mentalmente instável, transferir sua violência ficcional para a vida real?

KING:Claro que isso me deixa preocupado; incomoda-me muito, e se declarasse o contrário estaria mentindo. E temo que já possa até ter acontecido. Houve, no ano passado, na Flórida, o caso do assassinato de um homossexual; um famoso nutricionista, conhecido como o Doutor da Comida Sem Valor, foi morto de um modo deveras lamentável. Torturaram-no e posteriormente o sufocaram lentamente enquanto os assassinos permaneciam sentados ao seu redor comendo sanduíches e assistindo à sua morte. Depois rabiscaram nas paredes a palavra REDKUM, murder (assassino) invertido, e, claro, esta é uma palavra invertida que usei em O Iluminado. Os canalhas deveriam não só ser executados, ou pelo menos condenados à prisão perpétua, como deveriam também ser processados por plágio!

Houve outros dois casos mais ou menos parecidos. Em 1977, em Boston, uma mulher foi assassinada por um rapaz com uma porção de utensílios de cozinha. A polícia declarou então, que ele teria imitado a cena da versão cinematográfica de Carrie, onde ela mata a mãe pregando-a à parede da cozinha com tudo que lá achou, desde um saca-rolhas até um descascador de batatas. E em 1980, em Baltimore, uma mulher que lia um livro num ponto de ônibus foi vítima de uma tentativa de estrangulamento. Mais do que depressa ela estava com uma faca na mão e esfaqueou o agressor até vê-lo morto. Quando os repórteres lhe perguntaram mais tarde, o que estava lendo, muito orgulhosa, ela exibiu um exemplar do A Dança da Morte, que não exorta exatamente as pessoas de bem a oferecerem a outra face aos malfeitores ao serem por eles abordadas. Portanto, talvez esteja havendo por aqui uma Síndrome de imitação, como aconteceu com os envenenamentos pelo Tylenol.

Porém, a verdade é que aquelas pessoas estariam mortas mesmo se eu não tivesse escrito uma única palavra. Por isto acho que deveríamos nos opor à tendência de matar o mensageiro pela mensagem. O mal é basicamente estúpido e sem imaginação, não necessita de nenhuma inspiração criadora de minha parte ou da parte de qualquer outra pessoa. Mas apesar de saber tudo isto racionalmente, devo reconhecer que me incomoda achar que poderia estar relacionado de algum modo, mesmo que tênue, com o assassinato de alguém. E se pareço estar na defensiva é porque é do meu feitio ser assim.

Playboy:Numa crítica ao seu trabalho em The New Republic, a romancista Michele Slung propôs que a natureza terrível dos temas talvez possa levar alguns críticos a subestimar seus talentos literários. São palavras de Slung: "De um modo geral, King não tem sido levado muito a sério pelos críticos. Seu verdadeiro estigma — o motivo porque não é visto como um competidor dos verdadeiros escritores — é ter escolhido escrever sobre coisas que à noite parecem piorar ainda mais. " Acha que os críticos o tratam de modo injusto?

KING:De um modo geral, não. A maioria dos críticos deste país tem sido boa para comigo, portanto não tenho queixa alguma. Mas ela está certa ao tocar na tendência de um pequeno, mas influente setor do círculo literário para segregar o horror e a fantasia, relegando-os a uma posição afastada dos limites da assim chamada literatura séria. Estou certo de que os críticos do século XIX, desdenhosamente, não teriam considerado Poe como o grande escriba norte-americano.

No entanto, o problema extrapola o meu gênero particular. Essa pequena elite que se agrupa nas revistas literárias e nas seções de crítica de livros em jornais e revistas com circulação de costa a costa, considera que toda a literatura popular deve ser, por definição, má literatura. Tais críticas não são, na verdade, contra a má qualidade literária; são contra todo um gênero de literatura. Meu gênero, como se pode deduzir. Esses avatares da alta cultura consideram sua atitude um artigo de fé religiosa, pontificando que a trama e a história devem estar subordinadas ao estilo. Quanto a mim, estou inteiramente convicto de que a história deva ser mais importante, porque define todo o trabalho da ficção. As outras considerações são secundárias — tema, atmosfera, até mesmo a caracterização e a linguagem.

Playboy: A revista Time, dificilmente um bastião da cultura, condenou-o como um mestre da "prosa pós-literária", e The Village Voice publicou um ataque mordaz ilustrado por uma caricatura sua como um porco balofo e barbudo esponjando-se sobre sacolas de dinheiro enquanto um rato range sobre o seu ombro numa reverente adoração. The Voice disse: "Se você valoriza a sagacidade, a inteligência ou a perspicácia, e está desejando se entregar a uma leitura com os mínimos indícios de boa composição literária, todos os livros de King são dispensáveis. "

KING: No ataque da Voice há um elemento político. Veja bem, encaro o mundo através de uma visão essencialmente antiquada. Acredito que as pessoas podem dominar seus próprios destinos, bem como confrontar e superar desigualdades terríveis. Estou convencido de que existem no Universo valores absolutos do bem e do mal lutando pela supremacia — e este é, sem dúvida, um ponto de vista basicamente religioso. E — o que me deixa numa situação ainda pior ante os olhos dos críticos "esclarecidos" — também acredito que os tradicionais valores familiares, a fidelidade e a honra pessoal não submergiram e nem se dissolveram na banheira fervente da corrente californiana da geração do "mim". Isto me coloca em pendência com o que é essencialmente uma sensibilidade urbana e liberal que equaciona toda mudança com o progresso e pretende destruir as convenções, tanto na literatura como na sociedade. Porém considero este tipo de distinção cultural radical que anda por aí de um modo tão benigno quanto o de Tom Wolfe nas suas manifestações políticas iniciais, e The Village Voice, na sua qualidade de suporte-padrão dos valores liberais da esquerda, detectou com muita astúcia que eu era, de alguma forma, o inimigo. É claro, pessoas como eu realmente irritam gente como eles. Na verdade estão dizendo: "Que direito tem você para divertir as pessoas? Este é um mundo sério, com uma porção de problemas sérios. Saiamos por aí e vamos agarrar os fura-greves; isto é que é arte. "

A estocada da crítica no Time foi um pouco diferente. Atacaram-me principalmente por eu me basear em fantasias tiradas de filmes e da televisão, sustentando que isso era, de algum modo, uma degradação para a literatura e talvez até um prenúncio da sua extinção iminente. Mas o fato é este: estou escrevendo sobre uma geração de pessoas que cresceram sob a influência dos ícones da cultura popular norte-americana, de Hollywood ao McDonald's, e seria ridículo fingir que pessoas assim ficariam sentadas o dia inteiro adorando Proust. O crítico do Time deveria ter dirigido sua opinião a Henry James, que, há oitenta anos atrás, observou que "uma boa história de fantasmas tem que estar ligada, numa centena de pontos diversos, aos objetos comuns da vida".

Playboy:John D. MacDonald, um grande fã seu, predisse que "Stephen King não vai se restringir ao seu atual campo de interesse". Ele está certo? Em caso afirmativo, para onde irá no futuro?

KING:Bem, escrevi no passado histórias, e até romances, acompanhando a corrente em voga, por assim dizer, embora os romances sejam um tanto amadorísticos e prematuros. Escreverei sobre tudo que atrair a minha fantasia, sejam lobisomens, seja beisebol. Algumas Pessoas parecem estar convencidas de que considero o horror apenas uma fórmula para conquistar o sucesso comercial, uma máquina de fazer dinheiro, cuja manivela ficarei girando pelo resto da vida, enquanto outras suspeitam que, tão logo o meu saldo bancário atinja o máximo previsto, deixarei de lado as minhas baboseiras infantis e procurarei escrever a resposta desta geração para Brideshead Revisi-ted. A realidade, porém, é que o dinheiro nada tem a ver com tudo isso, nem com uma opinião nem com a outra. Adoro escrever sobre os temas que abordo, e não faria nem poderia fazer qualquer outra coisa.

Minha maneira de contar histórias encontra-se dentro de uma tradição antiga e nobre, que data dos antigos bardos gregos e dos menestréis medievais. De certo modo, pessoas como eu são o equivalente moderno do velho galês comedor de pecados, o poeta andarilho que podia ser convocado para comparecer à casa de alguém que se achava no leito de morte. A família costumava servir-lhe as melhores comidas e bebidas, porque, ao consumir o alimento, também estava consumindo os pecados do moribundo, cuja alma, no instante da morte, voaria rumo ao céu sem manchas, alva como se tivesse sido lavada. Os comedores de pecados faziam isso ano após ano, e todos sabiam que, apesar de morrerem de barriga cheia, iriam direto para o inferno.

Portanto, eu e meus colegas escritores de horror estamos absorvendo e diminuindo os temores e as inseguranças dos outros e concen-trando-os em nós mesmos. Estamos sentados na penumbra, longe do calor da sua crepitante lareira, pronunciando palavras mágicas ante nossos caldeirões e tecendo nossas teias de palavras, sugando, sem cessar, todos os males de suas mentes e cuspindo-os na direção da profundeza da noite.

Playboy:Você reconheceu anteriormente ser uma pessoa supersticiosa. Alguma vez temeu que as coisas estivessem saindo bem demais para você e que de repente alguma força cósmica e maligna poderia modificar tudo?

KING:Não temo isso, sei disso. Quem sabe se algum desastre, doença ou outra aflição cataclísmica já não está me aguardando na rua, e contra isso nada se pode fazer. As coisas nunca melhoram, só pioram. E como John Irving observou, somos premiados moderadamente pelo que temos de bom, mas nossas transgressões são penalizadas com uma absurda severidade. Olhe só, tome uma coisa insignificante, como fumar. Trata-se de um prazer pequenino: você se acomoda numa poltrona, com um bom livro nas mãos e uma cerveja ao lado, após o jantar, e acende um cigarro para gozar dez minutos de relaxamento agradável; você não está fazendo mal a ninguém, pelo menos desde que não lhe lance fumaça em pleno rosto. E qual é o castigo infligido por Deus devido a esse pecadilho insignificante? Câncer de pulmão, ataque cardíaco, derrame cerebral] E se for uma mulher com o vício do fumo, e fumar durante a gravidez, ele tomará todas as providências para que tenha um bebê bonito, saudável e mongolóide. Ora vamos, diga-me, Senhor, onde está o seu senso de proporção? Jó, há 3 000 anos, formulou esta mesma pergunta e Jeová esbravejou do redemoinho de vento: "E onde estava você quando fiz o mundo?" Noutras palavras: "Cale-se, idiota, e contente-se com o que lhe dou. " Eis a única resposta que jamais obteremos, portanto sei que as coisas ficarão ruins. Simplesmente sei disso.

Playboy: Esta pergunta final seria um clichê para qualquer outra pessoa. Qual o epitáfio que gostaria de ver na sua sepultura?

KING: No meu conto "The Breathing Method", em Quatro Estações, criei um misterioso clube privado de arenito pardo localizado na East 35th Street, Manhattan, onde vários homens estranhamente irmanados se reúnem periodicamente para contar narrativas sobrenaturais. No andar de cima existem muitos quartos; quando um novo hóspede pergunta quantos são exatamente, o velho mordomo responde: "Não sei, mas o senhor poderia perder-se lá em cima. " Na verdade, esse clube masculino é uma metáfora para todo o processo de se contar histórias. Há tantas histórias em mim quantos são os quartos naquela casa e posso facilmente perder-me nelas. E lá no clube, toda vez que uma narração vai ser contada, um brinde a precede, ecoando as palavras inscritas na pedra principal da imensa lareira da biblioteca: O que vale é a narrativa, não o narrador. Isto tem sido um bom guia para mim na vida e creio que constituiria um adequado epitáfio para a lápide de meu túmulo. Apenas estas palavras, sem qualquer nome.

 

 

COM EDWIN POUNCEY

P: O que lhe causava medo quando criança?

KING:Monstros. Marcianos. Os marcianos de Ray Bradbury e H. G. Wells. Havia uma coleção de histórias em quadrinhos chamada Clas-sics Illustrated e grande parte dos clássicos em que se concentravam era Frankenstein, Drácula, O Médico e o Monstro, esse tipo de coisas, e um dos que foram publicados foi A Guerra dos Mundos de H. G. Wells, onde os marcianos se pareciam com lulas más e inteligentes, e aquilo me assustava muito.

P: O que acha que despertou mais o seu interesse por este tipo de coisas?

KING:Não faço a mínima idéia. Penso em algo congênito, algo com que já nascemos sem nada saber, da mesma forma como um garoto com tendência para o diabetes não tem conhecimento disso; sabe apenas que, ao se sentir cansado demais, deseja ingerir algo doce.

Não existe uma resposta para tal questão, especialmente freudiana ou junguiana. Considero essas perguntas mais interessantes do que as respostas, porque todas pressupõem a idéia de que não pode deixar de haver algum tipo incontornável de conflito infantil que provoca o aparecimento dessas histórias, mas isso não é verdade, não é mesmo verdade.

P: Como lida com os temores de seus filhos?

KING: Uma das maneiras é tratá-los, e aos temores deles, do modo como minha mãe tratou dos meus, porque foi ela quem me criou. Procuro ser simpático, tento explicar a eles, quando tenho explicações que podem tornar as coisas mais fáceis.

Ultimamente, meu filho caçula passou a ter pavor de ir à escola nos dias de chuva. Não sei por quê, alguma coisa, é claro, aconteceu a ele. Talvez um dia não o deixassem entrar no prédio, ou algo deste tipo. Tem seis anos apenas, e seja lá o que for que esteja no seu cérebro, é complicado demais para que possa expressá-lo através das palavras. Por enquanto a única coisa que posso fazer é deixá-lo dentro do carro nos dias de chuva até soar a campainha da escola convocando os alunos.

Talvez um psiquiatra diga: "Olhe aqui, você está tratando o sintoma, não a causa", mas sei lá qual é a causa! Se a minha atitude de mantê-lo dentro do carro até soar a campainha melhora a situação, tudo bem.

Por outro lado, não deixo de incutir alguns temores nos meus filhos, quando isso pode me ajudar a solucionar algo a meu modo. Por exemplo, eles sempre queriam ocupar as poltronas da terceira fila toda vez que íamos ao cinema. Aquilo não os incomodava, mas eu era obrigado a passar três horas com aquelas figuras gigantescas em cima de mim, parecendo uma avalanche.

Portanto, acabei lhes dizendo que não poderíamos mais ficar tão perto, e eles disseram:

— E por que não?

Expliquei, então, que a tela era um buraco, que poderiam despencar dentro do filme e nunca mais conseguiriam sair de lá. Fitaram-me, desconfiados e retrucaram:

— Ora, isso não é verdade.

— Mas claro que é! Estão vendo toda aquela gente no fundo? Vocês acham que eles iriam pagar a toda aquela gente para trabalhar? São pessoas que caíram lá dentro e não conseguem mais sair.

A partir daí nunca mais insistiram, nem quiseram ocupar as primeiras filas. Solucionei a questão. Ficaram com um pouco de medo, mas não importa, está tudo bem, isso não causará problema algum às crianças.

P: Muitas das coisas que você escreveu no início eram contos baseados em ficção científica. Sobre o que versavam?

KING:Várias delas eram histórias de horror disfarçadas. De fato, muitos dos livros que escrevi são, na realidade, ficção científica. A Incendiária, Carrie e Zona Morta todas são ficção científica — em outras palavras, não são romances sobre fantasmas, vampiros ou espectros. Porém mais uma vez a idéia de eu escrever pura ficção científica, de fazer algo parecido com a obra de um Arthur C. Clarice ou de um Larry Niven, é absurda. O máximo que consegui tirar em química e física foi C e D.

P: Qual será a causa da atual fascinação tanto pela ficção científica como pelo horror?

KING:Vivemos num mundo de ficção científica e num mundo que está repleto de implicações horríveis. Enfrentamos atualmente uma moléstia chamada AIDS que provoca um colapso total no sistema imunoló-gico. É uma moléstia hematológica que parece algo saído do A Dança da Morte. Muita gente procura mergulhar nos mundos da fantasia porque o mundo real está ficando horrível.

As pessoas compram A Hora do Vampiro e lêem sobre vampiros. Estes parecem otimistas quando comparados a Ronald Reagan, que é a nossa versão americana de um vampiro, de um morto-vivo. Quero dizer, Reagan é real, é uma pessoa de verdade, porém os vampiros, perto dele, parecem bons, pois podemos, pelo menos, afastar os vampiros quando o filme termina ou fechamos o livro.

P: O que acha das adaptações cinematográficas de sua obra?

KING: Sinto-me feliz por Creepshow porque estive envolvido com a filmagem do começo ao fim, e o estilo da obra era original.

Também gostei bastante da Carrie de De Palma, e me orgulho muito pelo que Tobe Hooper fez com Vampiro. Um camarada chamado Paul Monash, que casualmente produziu Carrie, escreveu o roteiro para A Hora do Vampiro e pareceu-me ter sido ele o único (muitos roteiros foram feitos) que conseguiu solucionar os problemas da adaptação.

P: Voltando a Show de Horrores, de quem foi a idéia de publicar as histórias sob a forma de revistas em quadrinhos de horror?

KING:A revista em quadrinhos foi idéia minha. Eles queriam parcia-lizá-las como romance, desejavam lançá-las em capítulos. Disse-lhes que jamais autorizaria algo assim. Insisti que devíamos agir dentro do espírito do próprio filme, que seria o das revistas em quadrinhos, em papel barato. Vamos em frente e lancemos um livro em quadrinhos.

Portanto, contratamos um camarada chamado Berni Wrightson para fazer os painéis e limitei-me a controlar a continuidade. Até que foi divertido.

P: Também trabalhou com ele no Cycle of the Werewolf, não é verdade?

KING:Esta idéia começou como um calendário, Berni fazendo as ilustrações para doze meses distintos mas contendo algum tipo de continuidade, como se houvesse uma história só.

Sugeri a idéia de uma cidadezinha que sofreria incursão de algum tipo de força sobrenatural exterior: um lobisomem. Gostei disso porque os lobisomens são criaturas da lua cheia, e como todos os meses há uma lua cheia, pensei comigo mesmo, podemos ter aqui vinte e três assassinatos novos e interessantes, um pouco parecido com Sexta-Feira 13 — exceto que tudo parecia ser muito movediço, era colocar de pé e derrubar como pedras de dominó.

Contudo, uma história desenvolveu-se a partir daí, porém as peças individuais eram demasiado longas para fazer um calendário, portanto passou a ser agora um livro com ilustrações e doze meses.

P: O que achou de desempenhar o papel de Jordy Verrill na versão cinematográfica de Show de Horrores?

KING: Não dei grande importância. Perto do final de "Jordy" fiquei numa cadeira durante seis horas por dia para que pusessem toda aquela porcaria no meu corpo.

Tom Savini foi o responsável pelos efeitos especiais. Ele preparou uma réplica da minha língua porque numa das cenas tinha que pô-la para fora cheia daquele fungo de meteoro.

Tom contava com algo feito com hortelã-pimenta que emplastrou sobre a minha língua com um pauzinho e tive que ficar sentado lá, por dez minutos, a língua estirada para fora e uns cinco quilos dependurados nela.

Quando terminou, ele tinha realizado um trabalho perfeito, estava com um molde da minha língua com o qual ele preparou quatro línguas de borracha. Pareciam-se com as luvas usadas pelos cirurgiões, só que era preciso enrolá-las sobre a língua. Era uma coisa muito real.

Havia um shopping mall ali pertinho e, certo dia rumei para lá usando aquela coisa; entrei numa loja de departamentos onde uma vendedora aproximou-se de mim e perguntou:

— Posso servi-lo?

Pus minha língua para fora e fiz:

— Blurrrrr!

A garota apavorou-se e começou a berrar.

Depois ficou furiosa, chamou um segurança e tudo mais a que tinha direito, mas valeu a pena, foi tão engraçado! Foi a melhor diversão que poderia ter.

P: De um modo geral, que outras reações recebe do público?

KING:Há pessoas que me escrevem cartas quase religiosas. Já leram tudo, procuram relacionar as coisas e encontram assuntos, mensagens e sei lá o que mais.

Outras escrevem cartas para dizer: "Obrigado pelo divertimento, afastou minha mente do trabalho e dos problemas que estava enfrentando com minha mulher", coisas assim. Gosto da idéia de estar construindo esses pequenos refúgios onde as pessoas podem se recolher por algum tempo, mergulhando num mundo de faz-de-conta.

Também existem alguns críticos que escrevem: "Aí está uma droga. " Talvez seja para eles uma "droga perigosa" ou "sensacionalismo", mas acredito, até onde possa ir qualquer julgamento, a única coisa que importa é o que eu penso a respeito. E não estou dizendo isso num sentido egotista.

Há um ponto de vista, que prevalece sobretudo entre as artes populares, segundo o qual as pessoas se mostram um tanto inseguras com o que estão realizando em termos de "arte verdadeira", e assumem uma atitude de "Sei o que estou fazendo, portanto vão se danar!", mas eu não concordo com isso. O que quero dizer é que se você tiver que olhar por cima de seu próprio ombro para dizer a algum personagem autoritário místico: "Ei, como estou me saindo, bem?", você não está fazendo nada. O melhor seria abandonar a idéia.

Gosto de sentir que proporcionei um negócio honesto por cada dólar ou libra. Veja, esses sujeitos estão vendendo o livro a 18, 95 dólares e não quero que ninguém o compre e diga: "Vejam só, consegui aproveitar dele uns 13, 50 dólares, quero o meu troco. " Que tal ouvir alguém, após pagar 18, 95 dólares por Christine, declarar: "Nossa, aproveitei o equivalente a 19, 50 dólares. "

E também há um elemento de sadismo envolvido: gosto da idéia de que alguém fique realmente apavorado, durma com as luzes acesas e todo este tipo de coisas. Gosto da sensação de poder que está envolvida em tudo isto.

P: Quanto a Christine, sua idéia era criar uma versão do Overlook Hotel, que era um estabelecimento assombrado em O Iluminado, sobre quatro rodas?

KING:Trata-se de um carro assombrado e acho que sua idéia está bem mais próxima da verdade do que as pessoas que dizem: "Ora, esse tal Roland LeBay possuiu o carro", ou: "O carro é um fantasma móvel de Roland LeBay. " Não creio que isto seja absolutamente verdade.

Penso que se há uma outra vida, se as pessoas realmente continuam existindo após a morte, então o que estava ocorrendo é que aqueles lugares absorvem as emoções dos indivíduos que por lá estiveram.

No The Yellow Wallpaper, de Charlotte Perkins Gilman, a nova locatária da casa nota a marca gordurosa no local onde uma outra mulher enlouqueceu, andando de gatinhas durante intermináveis semanas com a cabeça encostada ao papel de parede, por isso havia aquela marca de gordura. Contudo, algo ainda mais sinistro ali permaneceu. Lá havia ficado o espírito da loucura.

Isto é o que acho que ocorreu em Christine; há uma mulher que cometeu suicídio dentro do carro e a garotinha que morreu sufocada com um hambúrguer que comeu também no carro, embora tenha morrido no acostamento da estrada.

P: Isto quer dizer que o carro, Christine, está basicamente atuando como um gigantesco gravador de vídeo emocional?

KING:Sim, limita-se a reproduzir todas aquelas coisas.

O carro tem também um aspecto vampiresco. A medida que passa a se alimentar de pessoas, pondo-se a praticar todas aquelas coisas terríveis, o odômetro gira no sentido contrário e o carro começa a ficar mais novo. Fiquei empolgado diante desta idéia. Seria como um filme projetado do fim para o início. Se você vir, num filme, o chapéu de um cara voando da cabeça dele, projeta o filme ao contrário e o chapéu voltará, vuupt!, para a cabeça dele novamente. Este foi o tipo de idéia que eu tive, mas não consegui deixar isto inteiramente claro no livro.

P: O vilão Roland LeBay foi calcado em alguém?

KING:Ele não é ninguém, o carro precisava ter um dono. Christine começou como um conto, e eu desejava que fosse engraçado através de uma certa distorção, porém penso que todo o mal é gozado. Basicamente, chega-se ao ponto onde nada mais se tem a fazer além de rir porque a coisa toda parece falsa demais.

É como ler Os 120 Dias de Sodoma de Sade. Depois de algum tempo você exclama: "Meu Deus, toda essa gente perambulando com ânus encostados nos seus joelhos, o que é isso?" e simplesmente estoura na gargalhada por ser a única coisa que resta fazer.

LeBay, para inicio de conversa, devia ser um personagem engraçado, porém parece que ele cresceu na minha mente pouco tempo mais tarde e não fui capaz de pô-lo fora do livro. Mesmo após ter morrido, ele sempre voltava para receber um novo aplauso, tornando-se cada vez mais feio.

P: Acredita que muitos dos seus leitores preferem os personagens feios às vítimas em seus livros?

KING:Sem dúvida, ficamos fascinados com o mal, somos seres humanos, só isso. Quando era ainda um garotinho, mantinha um caderno de recortes com a foto de um célebre assassino carniceiro. Quando minha mãe encontrou o caderno com fotos de Charles Starkweather, exclamou: "Santo Deus, você é um pervertido. "

No entanto, só queria ver se seria capaz de imaginar o que ele pretendia. Entenda, fazia parte do mundo e ele matara toda aquela gente, aparentemente por diversão, e eu gostaria de entendê-lo, se fosse possível. Naturalmente há um aspecto mórbido com relação a isso, mas por que não seria assim?

Este é o tipo de sentimento que a maioria de nós está sempre negando, dando desculpas mais ou menos assim: "Eu leio o Guardian, essas coisas não despertam meu interesse", ou "Este tipo de assunto não me interessa, leio Jane Austen. "

Contudo, em casa, debaixo da cama, no armário, por trás dos sapatos, sabe-se lá o que essa gente mantém escondido? Revistas sadomasoquis-tas? Fotos de pessoas sendo espancadas? Podem estar guardando qualquer coisa, desde aberrações sexuais até retratos de Hitler.

Se um escritor como eu tem algum valor, é porque se atreve a dizer coisas que as outras pessoas ou não tem coragem para dizer ou as consideram embaraçosas. Segredam de si para si: "Mas se digo isto, o que irão os outros pensar a meu respeito?"

Eis porque penso que a maioria das pessoas considera os escritores de horror indivíduos depravados, estranhos, excêntricos, meio horripilantes, certamente desagradáveis — gente que deve ser pegajosa ao toque.

Dentre aqueles que conheço, a maioria, no entanto, é constituída por pessoas sadias, vigorosas, cordiais, alegres, valentes, simpáticas; e acredito que uma das razões para serem assim reside no fato de ser necessário ter uma certa confiança em si mesmo para conseguir criar um monstro humano.

Estas são coisas que muitos de nós mantemos trancafiados nos escaninhos de nossas mentes e só as deixamos escapar quando não há ninguém por perto e nossas mulheres, maridos ou amantes estão dormindo.

Ou, alternativamente, a gente lê um livro e se alguém pergunta o que está lendo, pode-se responder:

— Ah, este é dos meus filhos, peguei-o por acaso.

P: O que é que o assusta?

KING:Tenho medo de um vazamento nuclear. Enfrentaremos um tremendo acidente nuclear em algum lugar e perderemos de 40 a 50% de um dos nossos estados.

Tenho medo que neste exato momento haja algum terrorista de vinte e três a vinte e cinco anos perambulando por aí com uma arma nuclear disfarçada em uma maleta.

P: Afinal, basicamente, como o resto da humanidade, você tem medo da morte?

KING:Exatamente, tenho medo da morte.

 

ESTRUTURANDO PESADELOS

Acredito que o sucesso desses livros traduzam alguma coisa bastante melancólica sobre o público americano que lê e freqüenta os cinemas: temos ciência da bomba nuclear, do gás nervoso que tem a capacidade de ocasionar uma sobrecarga de estereotóxicos em sete segundos, mas ainda precisamos fingir acreditar no duende sob a ponte, na feiticeira dos bosques e nos espíritos traquinas do velho hotel.

 

COM MEL ALLEN

O homem alto está encostado no seu SCOUT, segurando uma man-cheia de livros de 800 páginas e uma caneta, com mãos lentas para resguardar-se do frio. O vento sopra no estacionamento do supermercado e atinge o homem que está de pé ao lado do seu carro, escrevendo algumas palavras nos livros com a rapidez cautelosa de alguém que deseja dizer algo com acerto, mas que está ficando, a cada minuto que passa, mais congelado.

Sua jaqueta tipo jeans está bastante surrada e tem buracos nas mangas. Anos antes, quando estudante da Universidade do Maine, em Orono, seu namoro com Tabitha Spruce, filha dos proprietários de um armazém do Maine nas cercanias de Milford, quase escandalizava com seu peculiar código de roupas. Certa vez, ainda estudante no ginásio em Lisbon Maine, estava ele se ajeitando diante de um espelho grande, procurando ficar parecido com seus amigos, e sua mãe, uma mulher alta, delgada, mas enérgica, que legara ao filho seus azuis olhos irlandeses, atirou-o de encontro à parede.

— Dentro de nossas roupas, estamos todos nus — esbravejara ela. — Nunca se esqueça disto.

Sua camisa adeja, solta, na parte posterior e ele quer metê-la dentro dos jeans, o que significa colocar os livros no chão, por isto interrompe o que fazia e atravessa apressado o campo de futebol entrando na escola por uma porta lateral.

O nome da escola é Hampden Academy. É pública e pequena, apesar do nome imponente, localizada em Hampden, Maine, em frente a Bangor, na margem oposta do rio Penobscot. Conhece o caminho, acredita ele, até abrir a porta do que se recorda ser a sala dos professores e deparar com um assustado estudante de fotografia pendurando alguns impressos na câmara escura.

O homem alto sente-se confuso e passa a mão pelos cabelos espessos e negros, caídos sobre a sobrancelha esquerda, como costuma estar sempre, exceto quando é penteado por um profissional careiro para posar para fotos de publicidade. O estudante olha estarrecido para o intruso, certo de que já tinha visto aquele rosto em algum lugar. É uma fisionomia impressionante, com ou sem a barba escura, que aparece e desaparece anualmente como a folhagem outonal. Após ter escrito A Hora do Vampiro, romance sobre vampiros que devastam uma cidadezinha do Maine, que aumentou sua fama já considerável e duplicou sua fortuna, o homem observou pesaroso que, ao contrário dos seus vampiros, ele, "laslimavelmente, ainda podia se ver refletido no espelho".

Abre a porta, depara com fisionomias familiares, sorrisos, diz alô, e através de várias tentativas acaba encontrando a sala dos professores que, por volta das doze e quarenta e cinco, está deserta. Um local próprio para uma fumadinha rápida. Ele fuma desde os dezoito anos e agora afirma estar tentando abandonar o vício, como prometeu no ano anterior e no anterior ao anterior. Ele combate seus demônios pessoais um a um, afirma, mas neste ele se enterrou como em areia movediça.

Já o descreveram como hipercinético, e ele perambula sem cessar pela salinha, observando os títulos adotados nos cursos de inglês. Apanha um exemplar bastante surrado de A Hora do Vampiro. A capa tinha causado sensação alguns anos atrás, com sua gota única de sangue caindo dos lábios gélidos e azulados de uma criança.

Por um momento, enquanto Stephen King permanece parado junto à porta, ele se dá conta de que o círculo se fechou. Durante os próximos cinqüenta minutos o escritor de best-sellers mundiais sobre assuntos macabros ficará de pé numa sala de aula da Hampden Academy e falará sobre vampiros, como já tinha feito há oito anos. Oito anos tão cheios de mudanças que bem poderiam ter sido 800...

KING: Eu ensinava Drácula aqui, na Hampden Academy. Também estava ensinando Our Town, de Thorton Wilder, no curso de inglês para principiantes. Fiquei impressionado com aquilo que ele tinha a dizer sobre a cidade. Esta é algo que não muda. As pessoas chegam e partem, mas a cidade permanece. Na verdade, identificava-me com a natureza de uma cidade bem pequenina.

Fui criado em Durham, Maine, uma cidadezinha realmente pequena. Freqüentei uma escola onde só havia uma sala de aulas. Concluí o primeiro grau em primeiro lugar, porém éramos apenas três alunos na classe. A linha telefônica era compartilhada por oito famílias. A gente às vezes podia ouvir a respiração ofegante da senhora idosa e gorducha que morava no final da rua quando conversava com a namorada pelo telefone. Naquela cidade havia muita coisa para amar. Contudo, também havia uma porção de coisas reprováveis. Eu pensava em Drácula demais, pensava também em Our Town.

Sempre me pareceu, quando ensinava Drácula, que Stoker quis fazer com que a ciência e o racionalismo triunfassem sobre a superstição. Mas Stoker escreveu seu livro na virada do século. Comecei o meu quando já tinha visto toda a trajetória da ciência moderna. Já não parece tão importante quando se pode ver as latas de aerossol dispersando a camada de ozônio e a biologia moderna nos oferecendo coisas como o gás paralisante e a bomba de nêutrons. Por isso resolvi modificar as coisas por aqui. No meu romance, a superstição sairá triun-fante. Nestes dias e nesta época, comparado com o que existe realmente por aí, a superstição parece quase confortante.

Sempre haverá um lugar especial no meu coração para A Hora do Vampiro. Ele me parece ter captado algo das peculiaridades do que é viver numa cidadezinha que eu conheci durante toda a minha vida. É engraçado, mas após lerem o livro as pessoas costumam comentar comigo:

— Você deve odiar o Maine de verdade.

Contudo, gosto muito daqui. O romance revela uma porção de marcas sobre a cidade. Mas muitas delas são como uma canção de amor de quem foi criado numa cidade do interior.

Muitas coisas estão desaparecendo a olhos vistos — as lojinhas diante das quais os homens ficam de bate-papo, os aparelhos de soda, as linhas telefônicas divididas pelas famílias. Talvez minha prosa resulte apenas do fato de que, ao escrever o livro, éramos muito pobres, nosso trêiler era minúsculo e frio, e eu entrava no meu quartinho onde ficava o calefator e escrevia sobre uma carteira do quarto ano equilibrada em cima dos joelhos. E quando ficava excitado, a carteira se sacudia toda enquanto eu me inclinava para diante. Talvez seja por isso que eu gosto tanto de Vampiro. Podia me enfurnar e combater os vampiros sempre que queria.

Sempre me interessei por monstros. Costumava ler a revista Fate com voracidade. Há boas explicações psicológicas para a atração exercida sobre mim pelas histórias de horror quando eu ainda era um garoto. Sem contar com a presença de um pai, necessitava criar minhas próprias viagens contra uma força maior. Meu outro eu, como criança, era Cannonball Cannon, um indivíduo temerário. Quando me sentia infeliz, caía em prostração, mas a maior parte do tempo ficava em casa e realizava boas coisas.

Meus pesadelos de criança eram sempre sonhos impróprios. Sonhos de estar me levantando para saudar a bandeira e ver que minhas calças estavam caindo. Tentando passar de ano sem estar convenientemente preparado para isso. Quando jogava beisebol, eu era sempre o último a ser escolhido.

— Ah, ah, ah, vocês ficaram com o King — diziam os garotos do outro time.

Morávamos sempre em casas alugadas. Moramos numa pintada de azul e ali pagamos todos os nossos pecados. Minha mãe trabalhava no turno da noite de uma padaria. Ao voltar da escola, tinha que andar nas pontas dos pés a fim de não acordá-la. Nossas sobremesas eram os bolinhos da padaria que se tinham esborrachado na saída do forno... Minha mãe havia freqüentado a escola de música em Nova Iorque e era ótima pianista. Chegou a tocar órgão num programa radiofônico nova-iorquino que fazia parte da rede NBC. Creio que ela levou seu talento para Nova Iorque para ver o que poderia conseguir por lá.

Ela era uma pessoa muito obstinada com relação ao sucesso. Sabia o que era estar sozinha sem contar com uma educação superior e estava determinada a fazer com que David e eu freqüentássemos a universidade.

— Vocês não vão ficar a vida inteira batendo cartão de ponto — prometeu-nos.

Sempre nos dizia que sonhos e ambições podem ser causa de amargura quando não alcançados e me encorajava a divulgar tudo aquilo que escrevia.

Eu e meu irmão conseguimos bolsas de estudos para a Universidade do Maine. Quando estudávamos lá ela nos remetia, praticamente todas as semanas, cinco dólares para termos alguns trocados no bolso. Depois que morreu, descobri que muitas vezes tinha se privado de uma refeição a fim de nos enviar aquele dinheiro que aceitávamos com tanta displicência. Esta descoberta foi muito triste.

Enfrentei algumas brigas com os professores da faculdade que zombavam da ficção popular que eu mostrava para todo mundo. Eles perambulavam o dia inteiro com livros essencialmente complicados como Esperando por Godot. Consideravam-me o bobo da corte.

— Ora essa, o King tem umas noções estranhas sobre a literatura — diziam.

Quando comecei a escrever Carrie, já lecionava há um ano. Durante o verão trabalhava na lavanderia a fim de termos com o que viver até chegar o final do mês. Nosso telefone foi retirado por não podermos pagá-lo. Nosso carro era um verdadeiro calhambeque. Quando chegou o telegrama avisando que o manuscrito fora aceito, junto com um adiantamento de 2. 500 dólares, Tabby foi me chamar na escola, do outro lado da rua. Havia uma reunião de professores e, avisado, mal pude esperar para chegar em casa e abraçá-la.

Naquela época minha mãe estava morrendo. Mas ela sentia que tudo acabaria dando certo. Mostrou-se muito retrógada com relação a Carrie. Não gostou dos trechos de sexo. Contudo, reconheceu que muito de Carrie era formidável. Se há uma moral no livro, esta é: "Não se misture demais com as pessoas. Nunca se sabe com exatidão quem se acha ao nosso lado. " Ah, se minha mãe estivesse viva, a esta altura seria a Rainha de Durham.

Depois, quando A Hora do Vampiro ficou pronto, rumamos para o Colorado, pois eu desejava escrever um livro com outro ambiente. Nenhuma idéia surgia. Alguém sugeriu que fôssemos para Estes Park, distante cerca de cinqüenta quilômetros, e nos hospedássemos no Stanley Hotel, muito famoso porque nele o legendário bandido Johnny Ringo, diziam, fora morto a bala.

Fomos para lá na véspera do Dia das Bruxas. Era o último dia da estação e todos já tinham pago suas contas. Disseram-nos que poderíamos ficar, pagando a estada adiantada, porque todos o recibos já haviam sido emitidos. Bem, pagamos logo e ali nos alojamos. Ficamos sendo os únicos hóspedes no hotel e podíamos ouvir o vento assobiando do lado de fora.

Quando descemos para o jantar, atravessamos aquelas portas de vaivém e entramos num salão descomunalmente grande. As mesas estavam cobertas com um plástico e as cadeiras estavam colocadas em cima delas. Contudo, havia uma orquestra tocando. Todos os músicos usavam smoking, mas o local estava vazio.

Fiquei no bar após a refeição, bebi algumas cervejas e Tabby subiu para ler um pouco. Quando, mais tarde, resolvi subir também, fiquei perdido. Havia uma quantidade infinita de corredores e portas; tudo parecia trancado e escuro, e o vento cantava do lado de fora. O carpete era de mau agouro, uma confusão de figuras torcidas sobre um fundo negro e dourado. Havia também extintores de incêndio muito antigos, dispostos ao longo das paredes grossas e sinuosas. Pensei algo comigo mesmo:

— Tem que haver uma história em algum lugar por aqui. Naquela noite quase me afoguei na banheira, que era grande e funda, com reentrâncias fazendo relevo no lado de dentro. Pensei: "Ah, se eu pudesse enfiar algumas pessoas dentro delas e trancafiá-las por algum tempo... "

Descrevo sempre os meus pesadelos. Ocasionalmente, alguém me diz:

— Tive um pesadelo depois de ler o seu livro. Minha reação imediata é:

— Bem feito, quem lhe mandou ler uma coisa dessas?

Isto porque, pensando bem, é fácil concluir que estou envolvido na tarefa de deixar todo mundo apavorado. Meu trabalho não é tomar chá com bolinhos, mas satisfazer os gostos mais sinistros das pessoas.

Minha cena preferida em A Dança da Morte é quando o cantor de rock Larry Underwood e sua namorada estão tentando fugir de Nova Iorque. É preciso lembrar que quase todos estão mortos no país. Larry começa a discutir com ela quando chegam perto do Lincoln Tunnel. Este está entupido de carros em ambos os lados, pois seus motoristas morreram sem conseguirem se safar dali. O único meio de sair é andar três quilômetros através do túnel, contornando todos os carros e todos os corpos dentro deles. E não há nenhuma luz funcionando.

E se dispõe a atravessar o túnel sozinho, e consegue vencer a metade do trajeto. E está pensando em todas aquelas pessoas mortas dentro dos carros quando começa a ouvir passos, as portas dos veículos se abrindo e fechando. Acho esta cena realmente maravilhosa. Vocês são capazes de imaginar aquele pobre coitado?

P: A medida que sua fama e fortuna crescem, como ficam as suas perspectivas?

KING: Sou esperto demais para pensar que sou alguém. Porque, na verdade, ninguém é ninguém. Todos são capazes de fazer algo bem-feito porém neste país existem prêmios para o estrelato. E o ator recebe um, o escritor também. Leio o Publishers Weekly e vejo, cada vez mais e mais, pessoas sendo comparadas comigo. Costumam escrever nas críticas de um romance de horror: "Seguindo a tradição de Stephen King... " E não consigo acreditar que estejam se referindo a mim. É muito perigoso levar uma coisa assim em consideração, pois pode me afastar daquilo que desejo ser, não mais que um ser humano tentando se firmar. E isto é tudo que qualquer um de nós é.

Meu editor qualifica Nova Iorque como "o mundo glamouroso da divulgação". Na realidade todo mundo é, no íntimo, uma criança, e em Nova Iorque parece estar na hora do recreio. É onde tiramos nosso traje de Clark Kent e nos transformamos em superescritores.

Almoçamos no Waldorf com os cineastas que adquiriram os direitos de filmagem de O Iluminado. Sentamo-nos em poltronas de couro com homenagens. A minha era dedicada a George M. Cohan porque nela ele costumava sentar-se e compor. Os garçons são todos franceses. E parecem deslizar na sua direção.

Ficamos sentados ao redor da mesa conversando a respeito de quem iria estrelar o filme.

— O que acham do Robert de Niro para desempenhar o papel do pai? — indagou alguém.

— Creio que o Jack Nicholson seria maravilhoso — sugeriu outro.

— Não acham que Nicholson está velho demais para o papel? — perguntei.

E assim continuamos. Estávamos dizendo aqueles nomes tirados das revistas de fãs — e era pra valer. Depois a conta chegou, 140 dólares sem as bebidas, e alguém pagou sem pestanejar.

Em seguida voltei para o Maine, recolhi os brinquedos espalhados, verifiquei se as crianças estavam bem. Fui ao escritório e preocupei-me porque andava fumando demais e mastigando muitas aspirinas, e também porque as pessoas glamourosas não estavam mais comigo. Experimenta-se uma solidão estranha. A gente tem que produzir dia após dia e tem que enfrentar as dúvidas — dúvidas de que se esteja produzindo coisas banais e, além disso, nem mesmo boas. Logo, de certo modo, quando vou para Nova Iorque tenho a sensação de que fiz jus ao que recebo. Que estou recebendo aquilo que me é devido.

 

 

COM JOYCE LYNCH DEWES MOORE

P: Tornou a raspar a barba?

KING:Certinho com a tabela. Raspo-a quando começa o campeonato de beisebol, anualmente. E quando termina a última partida da World Series, dirijo-me simbolicamente ao banheiro, jogo fora todas as lâminas e tudo mais que esteja relacionado — o aparelho de barbear elétrico é recolhido numa gaveta — e essas peças só reaparecem no ano seguinte.

P: Aí está uma resposta perfeita para uma pergunta de entrevista. Mas é a verdade mesmo?

KING:Verdade absoluta. Para mim, o início e o término do campeonato de beisebol marcam, ou simbolicamente determinam, o verão. Durante o verão não quero usar barba. Parece um cobertor: é quente. Porém no inverno, quando faz frio, ela protege o seu rosto — e onde vivo, no Maine, é frio pra valer.

P: Você disse: "Não sou um grande artista mas sempre me senti impelido a escrever." Na sua opinião, o que é necessário para ser um grande artista?

KING:(inspirando profundamente) Ter mais talento do que tenho, creio... Bem, esta é uma reação visceral à pergunta. Quando você lê um autor como Joseph Conrad ou Raymond Chandler, percebe que há muita coisa acontecendo no texto. Sempre considerei meu trabalho mais trivial ou mais mundano do que o tipo de literatura que os escritores realmente importantes produzem. Portanto, usa-se o talento que se tem e tenta-se simplesmente realizar com ele aquilo que é possível. É a única coisa que se pode fazer.

P: Mas há muita gente que considera você importante.

KING: Sei, pelas cartas que me enviam, que muita gente pensa assim. Porém há outra coisa em relação a isto, ou seja, é necessário avaliar a reação crítica ao seu trabalho e julgar, a partir daí, aquilo que está realizando. Veja bem, não acho que os escritores sejam juízes muitos bons do seu próprio trabalho. Talvez não sejam juízes maus, contudo não são melhores que ninguém. Todos têm uma opinião, porém nenhuma opinião é melhor do que a dos outros.

Não me parece que a grandeza seja algo importante, nem mesmo por parte de um grande escritor. Só se pode considerar a quantidade de tempo que é dedicada à profissão, o quanto se deseja melhorar o que se faz, e o quanto é possível gratificar-se através do trabalho. Deus é quem dá muito talento. Da mesma maneira o açougueiro é quem nos vende uma ponderável quantidade de carne. Se dispomos de bastante carne, podemos deliciar-nos com bons bifes. Caso contrário, há que preparar um ensopado. No entanto, só porque se tem de fazer um ensopado não significa que não se possa fazê-lo gostoso. Em suma, eu trabalho com aquilo que tenho.

P: John D. MacDonald, na sua introdução de Sombras da Noite, disse: "... correndo o risco de ser um iconoclasta, afirmo que não darei um vintém pelo assunto que Stephen King escolhe para escrever. " Em seguida, ele prossegue: "A gente deve avaliar tudo. " Não é o assunto, só ele, o principal num trabalho literário importante?

KING:Desconfio da palavra "importante", mas acho que se você se refere à boa literatura, uma das coisas importantes reside no fato de ele ser um antigênero. A boa literatura não é a de mistério, não é a de faroeste, nem a de horror, nem a de ficção científica. A boa literatura é a boa literatura. Pode ser apreciada por qualquer pessoa que lê o livro. Nesse sentido, quer me parecer que MacDonald está certo. Não é primordial o assunto sobre o qual você escreve, na verdade não há por aí material bom em quantidade suficiente.

P: A maior parte de seus livros tem uma trama sobrenatural. Você, ou alguém que conheça, já passou por experiências sobrenaturais?

KING:Na minha família não, nunca. Você ouve relatos. Por estar no negócio que estou, as pessoas me trazem seus casos de fantasmas. O que mais se aproxima dessa afinidade é o fato de que as últimas três casas em que minha mulher e eu moramos — acabamos por descobrir — já tinham sido palco de um suicídio. De fato durmo agora na cama de um homem morto. Isto é realmente estranho. Minha mulher com-Prou aquela linda mobília de quarto. Não posso nem sequer dizer que fui eu quem a comprou. Ela saberia lhe informar o estilo e tudo mais, quanto a mim não entendo nada disso. Ela comprou-a numa loja de móveis usados no Maine e o proprietário comentou:

— Sabe de uma coisa? É engraçado, mas a senhora é a terceira mulher a quem já vendi esta mobília.

— Como assim? — indagou ela.

Ficou então sabendo que um casal aposentado que vivia em Sebago Lake tinha-a adquirido e que o homem morrera naquela cama. A mulher achou melhor se desfazer da casa e vendeu a mobília a esse mesmo camarada, a quem chamamos de velho pagão, porque ele fica com seu estabelecimento aberto nos 365 dias do ano — não se importa nem um pouco; para ele está tudo certo — e o velho vendeu-a agora a um casal de outra cidadezinha. O casal era idoso e o marido esticou as canelas na cama. Aí ele recomprou e a vendeu à minha mulher, e é onde eu e ela estamos dormindo.

P: Se as histórias que você escreve não são calcadas em experiências pessoais, serão elas, ao menos, bem pesquisadas?

KING:É claro que pesquiso. Consigo idéias diferentes de várias fontes. Bem, muito dos fenômenos sobrenaturais sobre os quais a gente lê, coisas como telecinesia, telepatia ou pirocinesia, me fascinam. Quem ler alguns casos desses, logo estará apreciando o assunto. Então, sento-me e escrevo o livro. Só depois realizo uma pesquisa. Isto porque quando estou escrevendo, minha atitude é: "Não se confunda com fatos. Trate de prosseguir e acabar este trabalho. " Depois procuro um verdadeiro expert ou um verdadeiro globetrotter, a mesma coisa, e descubro os fatos que sustentam o meu lado.

P: Com que freqüência constata que está errado?

KING:Tal termo é relativo nesta área porque inúmeras pessoas não acreditam em nada disso. Quanto a mim, não creio nem descreio. Em algo tão subjetivo não existe nem o certo, nem o errado. É a mesma coisa que discutir a existência de Deus.

P: Com que freqüência seus textos são facilmente comprovados, verificados?

KING:Oh! Há muitos meios de apurar sobre os assuntos que abordo. Não sou um pesquisador do paranormal ou do sobrenatural, porém tenho realmente muito faro para perceber quando as pessoas são fraudes, gente em quem não acredito. Em alguns casos talvez as pessoas estejam contando a verdade, porém seus relatos não encontram apoio em qualquer outro exemplo, e então simplesmente não acredito nelas.

P: Entre aqueles que assistiram a O Exorcista existem os que o consideraram um ótimo filme de horror e simplesmente adoraram sentir-se apavorados. Outros ficaram abalados com o filme. Alguém já lhe escreveu ou conversou com você sobre uma determinada cena num de seus livros que tenha realmente abalado demais as suas vidas?

KING:Jamais. Tenho muitas cartas de gente que se sentiu bastante excitada com os livros. Quanto a mim, tive uma experiência quando fui ver A Cidade do Horror. Havia uma multidão presente e fiquei surpreso, quando as luzes se acenderam, ao constatar que havia muita gente idosa. Existe uma espécie de idade padrão para filmes de horror, talvez dezessete ou dezoito anos; o público afeito a este tipo de filme é bastante jovem. E aquela era uma multidão bem idosa, e todos se mostravam muito, mas muito mesmo, excitados ao saírem do cinema. Saíram discutindo o filme com palavras animadíssimas, conversando do jeito que todos conversam quando percebem que suas vidas, de algum modo, tocaram o desconhecido. Nos livros, esse fato é sempre descrito como uma experiência aterradora, fazendo com que os personagens fujam do desconhecido. Os seres humanos, na sua maioria, ficam excitadíssimos quando notam que tocaram alguma experiência de um outro mundo. E minha resposta para aqueles que tagarelavam ao sair do cinema após ter assistido ao O Exorcista é que são gente que se excitaria daquele modo em qualquer situação. Foi um maravilhoso filme de terror, mas tanta excitação... deixou-me assustado, cheguei a ficar nervoso. Ao sair do cinema senti que fora atingido em cheio pelo filme. Resultado que tento alcançar em meus livros.

P: E consegue. Você é uma pessoa que atinge os outros com violência, contudo jura que nunca teve nenhum tipo de contato com...

KING:Com a coisa verdadeira, pessoalmente. Não, porém fico tão excitado quanto as demais pessoas que vi saírem após a exibição de A Cidade do Horror, diante da possibilidade de que venha a me acontecer uma coisa igual. Um camarada chamado Donald Kehoe escreveu uma porção de livros sobre discos voadores na década de 50. Ele coligiu uma quantidade de casos bem documentados que lhe pareceram provir de pessoas responsáveis ou que poderiam ser sustentados. Mike Wallace perguntou-lhe, no antigo programa Neightbeat, se já tinha visto um disco voador. Kehoe respondeu que não, mas isso não significava que não existissem. Disse que até ali ninguém tinha sequer visto Plutão, porém sabia que ele estava lá por causa da distorção da órbita de Urano e Netuno. E é exatamente assim que me sinto a respeito de uma porção dessas coisas. Em Zona Morta há uma cena na qual Johnny Smith concede uma entrevista à imprensa após ter saído de um coma.

Os jornais noticiaram que ele talvez fosse um médium. Um dos repórteres, que não aceita aquela possibilidade, adianta-se com uma corrente de ouro de sua irmã e diz:

— Você é médium, diga-me algo sobre isto aqui.

E entrega a Johnny Smith a corrente. A cena que se segue é uma espécie do arquétipo da experiência mediúnica segundo a li e entendi, e é o que penso sobre o que aconteceria caso uma pessoa fosse realmente médium. Johnny simplesmente joga o camarada a distância com um sopro. O cara desmaia de pavor porque Johnny Smith é, na verdade, capaz de fazer aquilo.

P: Não acha que "sobrenatural" significa mais do que fantasmas ou mesas que se deslocam? Não poderá, também, tratar-se apenas de simples intuição?

KING:Exatamente, e não se discute sobre a existência da intuição.

P: Ser intuitivo é bom, ver espíritos é pervesão, movimentar coisas é realmente terrível, porém tudo isto não será apenas uma questão de grau?

KING:É, sim, suponho que é. Acredito que a maioria das pessoas sente a falta dessas coisas, sobretudo numa época como a que enfrentamos, em que há muita tecnologia e bastante ênfase dada à lógica, ao raciocínio dedutivo, ao raciocínio indutivo. Estamos atravessando uma época em que entramos numa loja 7-Eleven e encontramos um computador no lugar da caixa registradora.

P: Que espécie de criança você foi?

KING:Fui uma criança tranqüila. Li muito sobre Ray Bradbury e acho que me parecia bastante com ele quando criança. Ia muito ao cinema, lia muito e não era de falar muito. Olhe, um dia de entrevistas igual a este é muito duro para mim, porque, falando de um modo generalizado, não sou nada tagarela. Não estou acostumado a exteriorizar meus pensamentos a não ser sobre um pedaço de papel, atitude típica dos escritores.

P: E quanto à escola?

KING:Era um bom aluno, acho. Não tão bom a ponto de chamar a atenção para mim, e não tão ruim para minha mãe receber cartas criticando meu desempenho como estudante. Se isso tivesse ocorrido, ela teria me dado uma surra.

P: O que o levou a insistir como escritor novato, após terem sido rejeitados seis contos e quatro romances?

KING:A resposta costumeira para uma pergunta destas é dizer: "Bem, sabia em meu íntimo que estava certo", ou "Mais cedo ou mais tarde conseguiria o pretendido". No entanto, o que realmente aconteceu é que recebi sempre muito encorajamento. Quando o primeito romance foi rejeitado, eu ainda não estava pronto. Creio tê-lo escrito entre os dezesseis e os dezessete anos: era muito jovem. No entanto comecei a vender contos aos dezoito anos, e, quando se consegue vender literatura, costuma-se dizer: "Tem que haver algo de bom, alguma centelha, no que produzo, pois algo está acontecendo". Penso que estava apenas sendo protegido entre, digamos, os doze e os dezoito anos, por esta idéia: "Eles o estão rejeitando, mas o que esperava? Você é apenas um garoto. "

Na época em que Carrie foi vendido, eu já estava com vinte e quatro anos. Lembro-me que, quando trabalhava nesse livro, passei por momentos de depressão, sentindo-me realmente na fossa. Costumava então dizer para mim mesmo: "Ora, talvez você esteja correndo atrás de um sonho idiota que, finalmente, jamais terá condições de transformar em realidade; aliás, o que o faz pensar em sucesso quando bilhões de pessoas, por todo o mundo, estão tentando escrever livros?" Houve épocas na minha vida quando parecia que qualquer pessoa com quem falava me diria: "Bem, o fato é que estou escrevendo um livro. " Era como estar participando da Maratona de Boston: tantas pessoas correndo, o que o faz acreditar que será o vencedor?

Também costumava pensar, ao me sentir deprimido: "Ora, você costumava dizer que não passava de um garoto, jovem demais para ser bem-sucedido, mas que diabo acontece agora? Você já tem vinte e quatro anos. Ira Levin publicou um livro aos vinte e dois e uma porção de gente fez a mesma coisa. Logo, logo não poderá mais contar com esta desculpa. Aí, como irá enfrentar a verdade?" Contudo, a maior parte do tempo, quando retinha minha normalidade e tentava avaliar as coisas numa base real, dizia: "Muito bem, estou conseguindo vender ficção curta e as coisas demoram para acontecer; não se pode ter tudo de imediato. " E, simplesmente, continuava a lutar pelo meu ideal.

Os escritores possuem um ego imenso. Esta é a única maneira de obter condições para continuar a enfrentar todos aqueles bilhetes de rejeição. Temos a carne rija demais, é por isso, talvez, que não sangramos. Quando alguém devolve uma história e diz: "Estou lhe devolvendo o manuscrito porque a caracterização me parece errada e tenho a impressão que se perdeu nos pontos A e B", costuma-se arquivar a rejeição. Mas eu tinha uma prancha de dardos onde prendia as respostas, e quando estava realmente me sentindo por baixo costumava atirar dardos contra elas e dizia: "Pronto, isto é para você, Cosmopolitan. Ah, isto é para você, McCalls. Pegue este, Alfred Hitchcock!"

A gente lê as rejeições, as cartas que explicam por que não ficaram com as histórias, embora sejam capazes de dizer algo de bom sobre ela, e uma parte dentro de nós diz: "Ora, eles estão enganados. " Se a gente também costuma ler muito e sabe, no íntimo, que escrevemos melhor do que algumas das drogas publicadas por aí, dizemos: "Bem, se estou fazendo um trabalho melhor do que este, e este é publicado, então trata-se apenas de continuar insistindo e enviando o manuscrito para tudo quanto é lugar até que encontre uma casa. "

P: Onde costuma enfrentar mais problemas: na caracterização, no diálogo, na ambientação, na narrativa ou na trama?

KING: Diria que o mais difícil é a trama. A caracterização só é laboriosa porque às vezes fico interessado nela a ponto de sentir uma vontade imensa de me aprofundar nos personagens, e isso diminui o ritmo da história. Aí eu digo: "Ei, as pessoas querem saber o que acontecerá a seguir, não querem ficar ouvindo-o divagar sobre este ou aquele personagem. " No entanto, considero que até mesmo o vilão tem o direito de expor o seu lado da história.

P: Você inicia seus livros com uma idéia ou com uma mensagem? Sabe para onde está indo desde o começo?

KING:Começo com idéias, sei para onde estou indo, mas não faço disso uma lei. Geralmente tenho uma noção do que vai acontecer, digamos, pelas dez páginas seguintes, porém nunca faço anotações antecipadas, para não me impedir de enveredar por outros desvios interessantes que podem surgir de repente. Theodore Sturgeon certa vez me disse que, na sua opinião, o único momento em que o leitor não sabe o que irá acontecer em seguida é aquele em que o escritor não sabe o que irá acontecer em seguida. Esta é a situação em que sempre escrevi. Nunca tenho certeza de para onde a história está indo ou o que vai acontecer com ela. É ir descobrindo.

P: A respeito de O Iluminado, é verdade que escreveu a obra de um

KING:O livro desenvolveu-se por si mesmo, eu diria, em quatro a seis semanas no que considero a parte mais importante do trabalho. Jamais houve uma interrupção, nenhum atraso, porque eu trabalhava numa sala alugada naquela época. Eu o fiz. Estávamos morando numa casa pequenina em Boulder, Colorado. Não podia trabalhar em casa; simplesmente não havia lugar para mim. Portanto, aluguei uma sala na casa de uma mulher, a quem nunca mais tornei a ver. Uma vez por semana, deixava um cheque de 17, 50 dólares ao lado do seu bule de café e nunca mais voltei a vê-la! Ia para lá sabendo a continuação da história, ou pelos menos ia pensando que sabia. Somente quando já estava mergulhado no trabalho é que descobria não ter a mínima idéia do que ia escrever.

Inicialmente arquitetei o livro na forma de uma tragédia shakes-peariana e, na verdade, era tudo o que sabia. Seria em cinco atos, que, por sua vez, se retalhariam em partes: Entrevista de Trabalho e Assuntos Iniciais, Dia de Encerramento, Casa de Marimbondos, Obstrução pela Neve e Questões de Vida e Morte. Contudo, sabia qual ia ser a estrutura do livro, a moldura na qual ele ia se enquadrar, e jamais me aconteceu deparar com uma farpa ou um obstáculo durante toda a sua feitura.

P: Já aconteceu alguma vez de um personagem assumir as rédeas da narrativa?

KING:Em Carrie, o velho bêbado que fala sobre a explosão na cidade teve de ser refreado. Aquele sujeito me dominou. Ele simplesmente não queria parar de falar. E Walson, o vigia noturno em O Iluminado, devia ser, supostamente, um personagem secundário. Ele tinha muito mais coisas para dizer do que imaginei no começo, porém nunca o restringi. E agora estou feliz por ter agido assim.

P: Qual o ritmo de trabalho adotado por você?

KING:Escrevo umas duas horas por dia, mas faço isso nos sete dias da semana. Produzo seis páginas diárias e isto até parece estar gravado numa pedra. Com relação ao meu trabalho, você pode pegar o número de páginas e dividi-lo por seis que saberá quantos dias passei trabalhando num livro. A menos que aconteça algo catastrófico, como por exemplo a casa explodir, quando teria que parar. Se minha mulher me dissesse: "O Owen rolou a escada e quebrou o pescoço", eu responderia: "Está bem, trate de levá-lo a uma sala de emergência e me deixe terminar esta página. "

P: Você reescreve?

KING: Sim, três ou quatro vezes. Acho que quando se escreve um livro, a maior parte do que se quer dizer deve aparecer logo, ou há algo muito errado e isto significa que falta continuidade à obra. Na verdade, é perigoso terminar o primeiro rascunho do livro e, enquanto está sendo elaborado, o escritor ficar repetindo: "Sinto que as coisas não estão indo bem e escapam ao meu controle, porém na releitura tratarei de pô-las em seus devidos lugares. " Nunca se deve fazer isso. Não convém acreditar que no segundo rascunho será possível corrigir tudo que não está perfeito no primeiro — tal como se faz com cartas de baralho, que ajeitamos para ficarem iguais a um leque cm nossas mãos.

No terceiro rascunho concentro-me no estilo e procuro estabelecer um equilíbrio entre as frases. Penso que a boa literatura deve ser acessível. O leitor deve ser capaz de atravessar a barreira da impressão e mergulhar na história sem despender um esforço grande demais. Assim como um bom carro. Num bom carro, quando o motor está calibrado e girando bem, não se pode ouvir o motor, porém isto não significa que ele não esteja trabalhando, que não esteja cumprindo sua obrigação. Significa que tudo está ótimo. Creio que, num bom romance, a voz do escritor deve ser suficientemente moderada para que você possa empenhar a sua mente, fazer o que precisa fazer com o livro e conseguir que ele faça aquilo que você lhe pede.

P: Qual é a reação das pessoas quanto ao seu aspecto pessoal?

KING:Geralmente ficam desapontadas. Dizem:

— Você não é um monstro!

Inúmeras são as vezes que os fotógrafos olham para mim com uma expressão deprimida e triste, e pedem:

— Será que você poderia fazer algo fantasmagórico?

 

COM PAUL JANECZKO

P: É possível ensinar composição criativa?

KING:Na minha opinião, é provável que não. Penso que se pode ensinar alguns recursos com o objetivo de melhorar a composição literária àqueles escritores que já tenham atingido certa maturidade.

Pode-se, por exemplo, ensinar coisas relacionadas à perspectiva. Pode-se ensinar coisas sobre o ritmo. Porém, não se pode ensinar o escritor a descobrir uma boa história, aquela que ainda não foi contada. Com escritores que são muitos bons — os instintivos — não se pode realmente fazer nada a não ser proporcionar-lhes uma atmosfera crítica oportuna e permitir que leiam a história para a classe. Felizmente, a energia liberada pelo professor e pela classe significará algo para o escritor em termos de reescrita ou quanto à possibilidade de dominar, de modo decisivo, esta história ou a próxima.

A meu ver, a coisa mais importante que uma cadeira de composição criativa faz é proporcionar ao escritor uma atmosfera amistosa, favorável, onde ele é levado a sério e não há ninguém dizendo:

— Ora, o seu texto não passa de um monte de merda. Por que deseja fazer isso? Por que não sai dessa, aprende a consertar carros, se profissionaliza como bombeiro, ou algo assim?

As pessoas devem respeitá-lo e penso que essa é uma função importante nas aulas de composição criativa.

P: Acredita que isto possa ser realizado ao nível de segundo grau?

KING:Claro que sim. Na verdade, creio que se pode fazer mais com a composição criativa no segundo grau do que num nível universitário. Lecionei composição criativa no segundo grau, e a reação dos garotos que seguiam os cursos de composição criativa como cadeira opcional era:

— Vamos nos divertir um pouco. Isto nos serve como um agradável divertimento.

Os estudantes do segundo grau vêem a escola de um modo diverso, aí é que está. São obrigados a freqüentá-la e muitas vezes a atitude assumida por eles é esta:

— Ora, bem que poderíamos descobrir prazer nisto e aproveitá-lo ao máximo.

Ao passo que na faculdade eu tinha a impressão, junto a muitos de meus alunos em composição criativa que, pelo menos por aquele mês, eles queriam mesmo ser escritores. Seus egos ficavam envolvidos demais. Depois de algum tempo fiz a pior coisa que pode fazer um professor de composição criativa, sobretudo com as aulas de poesia. Comecei a me revelar excessivamente tímido com relação às minhas críticas, pois temia que algum estudante voltasse para casa e cometesse algo como um haraquiri. Ora, eu não queria ser o responsável pela destruição do ego de ninguém.

Já no segundo grau, eu podia dizer:

— Esta história está uma porcaria. Olhe aqui, está tudo errado no seu texto. Corte isto fora e acrescente isto aqui. E mude isto inteiramente.

— Certo, certo — retrucavam eles. E obedeciam.

Eles tinham muito mais chances e não eram tão influenciados por suas leituras. Não pretendiam ser Baudelaire. Não desejavam ser Hemingway. Nada sabiam a respeito desses sujeitos. Queriam apenas ser eles mesmos e nada mais. Lastimavelmente, com uma porção de estudantes de poesia a gente tem que agir sob cargas terríveis como Rod McKuen e Leonard Nimoy, e os cartões de Natal da Hallmark. Temos que trabalhar contra isto.

P: Há alguma coisa mais que um professor de composição literária possa fazer?

KING:Creio que sim. Pois, para as pessoas que estão escrevendo num nível em que se pensa que seus trabalhos devem ser publicados, pode-se ajudá-las nessa direção. Além disso, seria bom se elas pudessem vê-los publicados em troca de uma remuneração, simplesmente porque a maioria dos estudantes não tem dinheiro algum. Por exemplo, a gente conhece os nomes para contatos. A gente conhece ps mercados. Mas, é claro, existem vários veículos para publicar trabalhos e cabe ao professor tirar proveito deles todos. Para um garoto significa muito ver impresso aquilo que escreveu.

P: O que deveriam ler os estudantes?

KING:Bem, eu mandava meus alunos da faculdade lerem Double Indem-nity, de James M. Cain, um livro de apenas 125 páginas. E fi-los ler um romance de David Morrell intitulado First Blood. Morrell é professor universitário e produziu esta novela de predestinação com o máximo cuidado. Na verdade, sinto uma inclinação bem grande por livros naturalistas, onde tudo vai para o inferno. São estes os dois livros que me vêm à mente neste momento. Recomendei, sobretudo, que lessem romances, pois tinha a impressão de que o conto transformava constantemente o curso numa aula de literatura e queria que lessem, refletissem e escrevessem sobre o que tinham lido. No entanto nunca tentei realizar uma palestra sobre estes livros. Minha impressão pessoal é que de nada adianta, trata-se quase de um exercício pouco valioso exigir dos alunos de composição literária a leitura extra classe pois se o candidato a escritor não tem o hábito da leitura, está mesmo é em maus lençóis.

P: Quer dizer então que a leitura deve ser um hábito para o escritor?

KING: Na minha opinião, devia, sim senhor.

P: Por que é a leitura tão importante para um escritor?

KING:O mais importante da leitura é ensinar-lhe o que não fazer. Parece-me que os jovens literatos conseguem alcançar um momento verdadeiramente decisivo em suas vidas como escritores quando podem dizer para si mesmos, com toda a honestidade — talvez nem seja preciso falar em voz alta —: "O que faço é melhor do que isto. " Eles lêem um livro que foi publicado e, presumivelmente, alguém recebeu dinheiro por ele. Ou se não recebeu remuneração, ganhou, pelo menos, alguns exemplares para presentear parentes e amigos. Porém ao lerem o próprio livro podem avaliar e dizer: "Estou melhor", fazendo um julgamento crítico vital.

Quando freqüentei a escola, meu mais importante trabalho em composição literária foi realizado com base nas brochuras que lera quando ainda menino. Fui para a escola com John D. MacDonald e foi em Ed McBain que aprendi tudo a respeito de personagens. Com outros, o ritmo e a trama. E com outros ainda aprendi o que era necessário a respeito de personagens estereotipados, gente que se movimentava sem motivação. A coisa mais importante que um escritor aprenda através da leitura talvez seja o quanto é importante a motivação para a narrativa.

Aliás, por falar nisso, esta é uma das razões por que nunca mantive um relacionamento estreito com gente que faz filmes. Não me parece que elas compreendam a motivação. Desejam filmes bons; não querem uma história. Quando Stanley Kubrick fez Barry Lyndon, ele deu às pessoas uma película que, na verdade, era uma novela. Não teve um bom rendimento nas bilheterias, nem fez sucesso junto à crítica, pois os espectadores não desejam novelas. Eles querem filmes.

P: Como escritor de ficção, o que acha que deve aos seus leitores?

KING:Uma boa volta na montanha-russa, só isso. O que quer que eles descubram a mais é mérito deles mesmos. Minha intenção sempre tem sido contar uma história, e a história é quem manda. Qualquer outra coisa que possa acontecer simultaneamente, tem que ser posta no seu devido lugar, que é secundário.

Não gosto das histórias de escritores do tipo de Jacqueline Susan ou Harold Robbins, onde as pessoas parecem fantasmas e quase se pode ver a mão do autor deslocando-as de um lado para o outro. A meu ver os personagens devem ser reais e nada devem fazer durante o curso da história que pareça falso. Não me agrada essa sensação de irrealidade. Os personagens têm que ser capazes de se movimentarem por si mesmos. Acho que gosto de O Iluminado porque os personagens parecem agir assim.

P: O que torna boa uma história de horror?

KING:O personagem, creio. Você se inquieta com as pessoas, sobretudo em A Hora do Vampiro e O Iluminado, que eram sensacionais. Disseram-me que os dois romances têm uma construção lenta. E têm mesmo. Porém, entenda, desejo dar a impressão de que os personagens são pessoas com quem nos preocupamos, que existem e que estão fazendo coisas reais. Que não sejam postos de lado, de maneira que você possa pensar: "Ora, só estão fazendo isto porque esta é a vontade do autor. "

Você deve sentir a profundidade dos personagens. E quando digo profundidade, não estou me referindo a eles terem pensamentos profundos. Mas devem ter consistência. Eles saltam fora da página? Então o escritor os coloca numa posição da qual não possam escapar. Você não se apavora com monstros; apavora-se com as pessoas.

Julgo importante o leitor saber que o autor não está brincando. Esta não vai ser uma narração feliz, onde todos sobrevivem no final e não houve nenhum perigo real. Creio que você se dá conta de ter ficado adulto quando diz para si mesmo: "Não quero mais ler histórias do Super-Ho-mem pois ele, o homem de aço, sempre vai se safar das confusões, sejam elas quais forem, e nada sério lhe acontecerá realmente. "

P: Como Stephen King vê o mundo?

KING:Não sou muito otimista com relação ao mundo. Acho que deixo ver isso nos livros. As obras que me influenciaram mais quando estava crescendo foram escritas por pessoas como Thomas Hardy, Frank Norris e Theodore Dreiser. Toda essa gente da escola naturalista acreditava que, tão logo a gente puxa uma pedra, acontece uma espécie de desabamento implacável rumo ao fundo. Não creio que um ser pensante possa olhar o mundo na nossa sociedade e ver qualquer coisa muito segura. Toda a situação é ruim. Tento fazer o melhor que posso ao lado de minha família. Procuro criar meus filhos para serem boas pessoas. Você compreende, bons sujeitos. Esse tipo de coisa. Mas não me parece que o futuro será muito brilhante.

 

COM CHARLES L. GRANT

P: Corre um rumor por aí de que foram necessárias muitas autorizações dispendiosas para usar as letras das músicas da década de 50 em Christine. Como conseguiu descobrir as fontes?

KING:A maioria das citações foram obtidas junto a uma editora musical. Um camarada chamado Dave Marsh ajudou-nos. Ele costumava escrever para a Rolling Stone. Finalmente, creio, acabou se cansando de artigos sobres as roupas de Farrah Fawcett numa revista que, supostamente, devia ser sobre rock and roll. Não, não eram as roupas de Farrah Fawcett, eram as de Linda Ronstadt, o que é pior ainda. Mas existem duas organizações musicais, a ASCAP e a BMI, e na maioria dos casos conseguimos obter informações junto a elas. Contudo jamais apareceu alguém reivindicando a autoria de Teen Angel.

As autorizações musicais são realmente caras. Acredito que os royalties atingiram um total de 15. 000 dólares pelas letras usadas em Christine, e quem pagou por isso fui eu e não os editores. Quando um contrato volta às nossas mãos, parece-nos ilusório, e muito. Ele estipula apenas 50 dólares para permitir o uso da canção por cada milhar de exemplares publicados. Então a gente reflete um minuto e diz: "Ei, espere aí. " O editor diz: "Tudo certo, não há problema" — entende o que estou querendo dizer? Mas você pensa consigo mesmo: 300. 000 exemplares em capa dura e depois mais brochuras... Aí está uma resposta elaborada para uma pergunta simples.

P: Qual de suas histórias você prefere?

KING: No que diz respeito aos contos, os meus preferidos são os sinistros. Contudo, a história O Sobrevivente vai um pouco longe demais, mesmo para mim. Após quatro anos de esforços infrutíferos para conseguir publicar a coisa, Charlie Grant comprou a história.

P: Você acha realmente essa história bacana?

KING:Acho-a hilariante! Um sujeito vai cortando pedaços dele mesmo e se auto devora, peça por peça. É a coisa mais grotesca que você já leu!

P: O que lhe parece ser casado com uma romancista?

KING: Não há nada de errado. Trabalhamos em trilhas totalmente separadas, portanto o problema não é grande. De vez em quando ela me acusa de ter roubado uma das suas idéias. Ora, seria eu capaz, disto? Ela acaba de lançar um novo livro, Caretakers, agora a venda em brochura na livraria mais próxima da sua casa.

P: Em Dança Macabra você levantou a hipótese de que uma das razões por que as pessoas ficam tão fascinadas com as histórias de horror reside no fato de estarem ensaiando para enfrentar uma morte difícil ou violenta.

KING: Sob vários aspectos, acho isto uma bobagem. Não pretendo refutar o que escrevi ou o que você perguntou, mas simplesmente não acho que alguém saiba. Associei aquilo com a mortalidade porque creio sermos as únicas criaturas sencientes na Terra, com a possível exceção dos chipanzés, baleias e golfinhos, que podem contemplar o próprio fim. Quanto aos chipanzés, não estou absolutamente certo disso, pois não parecem ter uma noção de tempo.

O tempo é importantíssimo com relação à idéia da mortalidade. Dentro de 200 anos nenhum de nós estará mais por aqui. Isto me traz à lembrança algo que um de meus filhos disse. Das bocas dos bebês saem coisas... Meu garoto de seis anos queria saber como seríamos, a velha Tabby e eu, quando ele estivesse com noventa e nove anos, e Joe, que tinha então dez anos, falou:

— Eles estarão mortos, estarão enterrados; estarão negros e coisas se destacarão deles.

Isto serviu como um interruptor da conversa!

A questão é esta: somos criaturas observadoras e constatamos que a maioria dos fins é ruim. Acho que eu disse, em Dança Macabra, na verdade sei que disse, que gostaria de morrer na cama de um ataque cardíaco. Então seria assim (um estalar de dedos). Muitas vezes a coisa não acontece desse jeito e acho que devemos estar preparados para isso.

P: Seu filho Jody divertiu-se trabalhando em Creepshow'!

KING:Claro, Jody divertiu-se muito, porém por algum tempo ficou um pouco estranho. Tinha oito ou nove anos naquela época, e estar de pijama com uma porção imensa de gente em volta da sua cama, numa casa estranha, pode ser algo muito perturbador. Aquelas luzes todas e tudo mais. Simplesmente ele chegou a um ponto onde ou ficava perturbado ou trabalhava. E ele trabalhou.

Uma das primeiras coisas que se escuta no filme é uma discussão entre ele e seu pai. Diz algo ao pai e você ouve um tapa. O pessoal da maquilagem fabricou uma concussão perfeita no rosto dele. Na noite em que aquela cena foi rodada, Jody trabalhou até tarde, segundo os regulamentos, ou seja lá o que for, do Screen Actors Guild, mas tivemos de tudo no filme e eu assisti, entusiasmado, à explosão de meu filho. Àquela altura já tínhamos estourado o orçamento. Ao acabarmos de trabalhar, por volta das onze da noite, ele quis parar no McDonald's quando estávamos voltando para o local onde íamos passar a noite. Dirigimo-nos ao guichê do drive-in e aquela gata dá uma espiada para dentro do carro e fica de queixo caído. Quando saímos de lá, uns quinze minutos depois, todos os empregados tinham saído para olhar o garoto de pijama com aquela imensa marca roxa no rosto.

P: Há algum diretor em particular com quem gostaria de trabalhar e com quem não tenha ainda trabalhado?

KING: Gostaria de trabalhar com Spielberg. Acho que seria divertido. Estive muito, muito perto de escrever Poltergeist, o Fenômeno. Teria gostado de trabalhar com Don Siegel, o camarada que fez o original da primeira versão de Invasion of the Body Snatchers*. Outro é Sam Peckinpaw. Há muitos diretores de quem realmente gosto, mas, na maioria dos casos, a última coisa que os produtores de filmes desejam é trabalhar com um autor. Gostaria de fazer originais, e mais alguns ao lado de George Romero. Foi uma experiência maravilhosa. Algum dia gostaria de trabalhar a longo prazo no sistema de cabo. George, na verdade, quer que esta moda se dissemine. Conceda nove horas para esse cara c todos nos Estados Unidos terão um ataque cardíaco!

 

* Intitulada no Brasil Vampiros da Noite.

 

P: Quando uma de suas histórias está sendo filmada, costuma trabalhar lado a lado com o diretor, como aconteceu com George Romero?

KING:Trabalhei assim com George, mas com aqueles outros camaradas... não.

P: Ficou satisfeito com o O Iluminado? Muitas pessoas ficaram desapontadas.

KING:O Iluminado é um caso estranho, perverso. Há momentos em que me pergunto como foi que Bob Bloch, que c um perfeito cavalheiro, foi capaz de suportar toda aquela gente perguntando: "Gostou de Psicose?" — durante vinte e tantos anos. Já deve estar cansado dessa pergunta. Eu estou me cansando das perguntas relacionadas a O Iluminado c ainda não faz tanto tempo assim, embora às vezes me pareçam ter decorrido vinte anos. Espero que não me formulem mais essas perguntas daqui a vinte anos pois me limitarei a responder: "Não sei, deixe-me em paz. " Porque realmente não sei. Não disponho de uma resposta-padrão.

P: Quando escrever um outro filme, o que certamente fará, preferiria adaptar um de seus trabalhos, como A Dança da Morte?

KING:Não. Gostaria de fazer um filme novo: algo demorado. Valha-me Deus, gostaria até mesmo de fazer uma novela para a televisão. Todos têm seus sabres enterrados na areia e se aproximam deles duas vezes ao dia e dizem: "Mais cedo ou mais tarde terei que me atirar sobre aquele sabre — e estripar a mim mesmo. " Creio que a minha sina seja esta: estou convencido de que a rede de televisão ainda é viável. Se se conceder a alguém tempo suficiente para envolver os espectadores com os personagens, haverá condições de deixar as pessoas apavoradas. Seria possível assustar pessoas até mesmo durante seriados como Os Gatões, caso se pudesse matar aqueles garotos horripilantes.

Você é capaz de imaginar a reação de todos aqueles pirralhos de onze ou doze anos sentados diante da televisão assistindo ao Os Gatões, quando surge um caminhão de dez rodas e simplesmente atropela os meninos do Duke?! (voz bem grave) "Estou vendo globos oculares na auto-estrada — Meu Deus!" Isso seria esplêndido.

Também gostaria de reunir um punhado de atores da Califórnia, aqueles que parecem cheios de caroços por dentro, como se fossem vagens, rodar umas seis ou sete horas com eles e fazer o público, por força de repetição incrementada, levá-los a sério como pessoas, do mesmo modo como todo mundo leva a sério os atores de novela. Depois de assistir Edge of Night durante cerca de três meses, seu julgamento crítico diminui. Para você eles passam a ser pessoas de verdade. Perde-se a noção de perspectiva. Não assisto mais ao Edge of Night e o General Hospital é longo demais para mim, muito obrigado. Porém imagine algumas daquelas pessoas e em seguida apresente o monstro, a lama viscosa no celeiro, e faça algumas delas serem devoradas. Então você sabe que ninguém está a salvo, qualquer coisa pode acontecer e a classe do Neilsen iria para o espaço! Adoraria experimentar isso algum dia.

P: O que acha da versão cinematográfica de Cujo?

KING:É uma das coisas mais aterradoras que jamais assistirá. É horripilante! Cujo foi uma produção independente, com Dee Wallace representando o papel de Donna Trent. Ela fez o papel da mãe em E. T. Foi dirigido por Lewis Teague. Acho que este cara é o diretor menos badalado da América. Nunca se ouve o nome dele nas festas. Teague fez The Lady in Red e O Jacaré Assassino. Também fez um filme intitulado Fighting Back. Não tem a mínima vergonha e nem senso de moral algum. Tudo que ele quer é pegá-lo, e gosto disso!

P: Que tipo de literatura costuma ler?

KING: Leio um pouco de tudo. Leio alguns mistérios quando encontro uma oportunidade para tanto, embora seja mais comum eu comprar livros de mistérios, colocar na prateleira e dizer: "Eu devia ler isto. " Leio muitos livros de horror e aprecio os romances decentes. Quanto a não-ficção, leio pouquíssimo, porque é apavorante demais.

P: Costuma ler todos os dias, como costuma escrever?

KING:Sim. Um dia sem um livro é como um dia sem sol!

P: Até que ponto procura convencer seus leitores de que as situações em seus livros são reais?

KING: Tenho profunda consciência de que quando se escreve nesse campo, atravessa-se uma linha onde tudo se torna inacreditável. Ou seja, o público racional sabe que não existem os vampiros tradicionais — criaturas que vivem milhares de anos e despertam à noite. Portanto, penso em termos de vampiros não-tradicionais: vampiros perfeitos que talvez não sejam imortais. Pelo menos esperamos que não o sejam. Podem sofrer uma hemorragia cerebral. Tenho consciência de que entre a realidade e a fantasia é necessário passar uma costura e tento fazê-la a mais tênue possível, de modo que os leitores possam passar por cima dela. Gosto de toda ilusão de realidade. Quando a gente se diverte com a fantasia, e o fazemos de um certo modo, conseguimos destacá-la ainda mais.

Vou lhe dar um exemplo. Em Os Estranhos, escrevi uma cena que me agrada muitíssimo. No livro há uma máquina automática de Coca-Cola. É uma espécie de máquina de Coca pensante, porque o garoto colocou dentro dela todos os tipos de circuitos e de chips de memória, e a coisa funciona com uma descomunal bateria Delco para tratores. Ela levita e passeia pelas estradas do condado, bem devagarinho, num silêncio medonho — essa máquina vermelha e branca da Coca — com o sol faiscando sobre o painel de vidro por onde escapam as garrafas. De quando em quando ela encontra um pedestre e o atropela.

Um dos principais personagens é um verdadeiro chato. Fiquei satisfeito quando o vi desaparecer. É um repórter e seu carro enguiça.

Ele está caminhando e depara com a máquina de Coke vindo na sua direção. É de manhã bem cedinho e ela passeia a uns quinze centímetros do solo, a própria sombra projetada atrás dela. De algum modo a máquina percebe a presença do homem e começa a ganhar velocidade até estar na disparada — como de zero a cem quilômetros em cinco segundos.

As máquinas de Coke são na realidade geladeiras imensas. Pesam cerca de 250 quilos; mais até quando alguém coloca algumas moedas dentro dela. Então a máquina atropela o sujeito, e ele parece um inseto sobre um pára-brisas, ele fica simplesmente esmigalhado na parte dianteira da máquina de Coke, o painel de vidro se quebra e todo o dinheiro começa a sair pela ranhura de devolução de moedas.

Para mim foi perfeito. Podia ver toda a cena. Estava lá e era absurda; porém, ao mesmo tempo senti que tinha peso e realidade. Gosto de cenas assim. Elas são tudo o que sei. Gosto do modo como a irrealidade cheira, se faz presente, bem como do modo como se apresenta.

P: Quem procura para criticar ou ajudar no seu trabalho? Digamos que esteja com um rascunho bruto do qual não tem muita certeza. Quem o ajuda?

KING:Procuro minha mulher, pois está logo ali em casa, e também porque confio nela. Existem dois tipos de críticos: aquele que lhe diz não gostar de determinada coisa mas não sabe explicar por quê; o outro tipo mostra o que está errado e logo depois explica como consertar. É isso que um bom autor deve fazer.

P: Alguma vez reescreveram um trabalho seu sem o seu conhecimento?

KING:Penso que não, mas já tive trechos cortados. A gente nunca percebe a quebra de continuidade, claro, até depois do livro ser publicado. Então a gente se revolta. Por falar nisso, há uma cena em Christine, quando o sujeito mau, Buddy Repperton, entra dirigindo numa garagem com seus amigos aloprados e arrebenta o carro de outro camarada. Ele entra na garagem num Camaro, creio, e sai de lá num Duster. Oh...

P: Como está indo o roteiro de A Dança da Morte?

KING: Vou lhe contar tudo da melhor maneira que me for possível. Quando conheci George Romero, gostei dele de verdade. Fizemos um acordo de que tentaríamos fazer o roteiro, portanto escrevi um rascunho. O rascunho original era quase a metade do texto do livro, o que significa que em vez das 800 ou 900 páginas da novela, eu tinha 400 páginas de roteiro. A norma estabelecida para os roteiros é que uma página equivale a um minuto de tempo corrido de filmagem. Um roteiro de 400 páginas resulta mais ou menos em seis horas e quarenta de projeção.

Não pode ser feito. Um outro problema é aquilo que um dos executivos da Warner Bros. se referiu como "entornar e encher", que é uma das frases mais horrendas que jamais ouvi. O que ela significa é que um filme não será lucrativo a menos que possa ser exibido várias vezes ao dia, e especialmente durante aquele período de tempo quando há alguém além das pessoas utilizando os passes Golden Age, a escola de educação física JD e gente que saiu da liga de boliche à tarde para assistir ao filme. Deve haver a possibilidade de proceder a duas sessões noturnas e, às vezes, três nas cidades grandes. Um cara da Warner Bros. disse-me que uma das razões por que O Iluminado não fora lucrativo até ser exibido no exterior residia no falo dele ter duas horas e quinze minutos de projeção, por isso numa porção de cidades a última sessão não existia. Após as onze da noite os bilheteiros cobram dobrado e a coisa se transforma num problema.

Portanto, redigi um segundo rascunho do roteiro que resultou numas 300 páginas. Este já estava melhor. Também conversamos um pouco como realizá-lo, a idéia de uma novela para a televisão. Mas as redes não querem ver o fim do mundo, sobretudo no horário nobre. Os anunciantes não querem patrocinar o fim do mundo. A televisão por cabo não dispunha de dinheiro suficiente para tanto. Durante muito tempo batalhei para fazê-la em duas partes — Stand I e Stand II. Julguei ser possível criar um clímax artificial suficientemente forte no meio a fim de chamar o público para a segunda parte. Se os filmes fossem rodados, logo poderiam ser exibidos com um intervalo de três meses ou talvez quatro. A decisão final foi no sentido de fazermos um filme bem longo. Tenho que tentar reduzir o roteiro de 300 páginas pela metade. Creio saber como fazer isto agora, porém não me agrada a idéia porque sei que alguns personagens ficarão comprimidos. O filme será feito.

P: É verdade que sua mulher retirou Carrie do lixo?

KING:É verdade, sim. Tabby tirou Carrie da lata de lixo, ela fez isso. Certos críticos diriam, talvez, que deveria tê-lo deixado lá. Não importa, eu estava trabalhando numa lavanderia quando o fato aconteceu, e tinha escrito uma porção de histórias de terror para revistas masculinas. Nós nos casamos muito jovens, tivemos logo um filho e outro quase em seguida. Eu estava fazendo a principesca soma de 60 a 70 dólares por semana e trabalhando o máximo que podia. A única coisa que estava mantendo nossas cabeças fora d'água eram essas histórias para revistas masculinas. Autografei algumas delas e sempre sinto um calafrio quando penso onde estava ao escrevê-las. Naqueles tempos, minha roupa de baixo era toda esburacada.

Mas isto não vem ao caso; um de meus amigos da faculdade, que ainda estava por lá e tinha, por isso mesmo, condições de manter escrúpulos literários, procurou-me e perguntou:

— Por que razão está escrevendo toda essa porcaria machista? Expliquei-lhe que era para revistas masculinas e que as histórias não eram adequadas para o Cosmopolitan.

— Você não tem a mínima sensibilidade feminina — disse-me ele. Respondi-lhe que se quisesse teria, sim, mas ele não concordou comigo. Falei-lhe que quando se é um escritor e um realista sobre aquilo que se está fazendo, pode-se fazer praticamente tudo que se quer. De fato, quanto mais pragmático e mais aproveitador, melhor se sairá.

Eis aqui um exemplo que, me parece, comprova o meu caso. Havia um escritor de subliteratura chamado Frank Gruber que, certa vez, aceitou um desafio e escreveu uma história que acabou sendo aceita por uma daquelas revistas de literatura muito em voga. Foi saudado como o novo Faulkner, porém tinha realizado aquele trabalho devido ao desafio. Só escreveu aquela boa história, depois voltou a redigir sua subliteratura costumeira.

Eu tinha dito que podia fazê-lo, portanto sentei-me e comecei a escrever uma narração curta, e saiu Carrie. Tinha uma espécie de estrutura de conto de fadas e ia ser uma história sobre uma garota que praticava um gesto horrendo, mas justificado porque ela fora levada à loucura devido às implicâncias que lhe eram infligidas. A imagem de um urso sendo acossado por uma matilha que não parava de rosnar e de mordê-lo — mordê-la não me saía da cabeça. Percebi logo que ficaria longa demais para o mercado, e além disso eu não dispunha de tempo para redigir um romance. Não podia investir tanto tempo num projeto que talvez não fosse render dinheiro algum. Estava recebendo 200 dólares pelos contos e com eles mantinha o telefone na minha casa e comprava os remédios das crianças. Escrevi duas ou três páginas, mas continuei enfrentando problemas mundanos. Por exemplo, no início alguém ensina Carrie a usar absorventes e eu nem mesmo sabia que eram vendidos em máquinas.

Percebi que estava ingressando num mundo feminino no qual teria que enfrentar coisas que jamais conhecera antes. Talvez o camarada estivesse com a razão — "Não posso fazer isso. " Então amassei tudo e joguei fora. Tabby retirou as folhas da lata de lixo e leu-as. Achou engraçado. Creio que ela gostou, mas sentiu-se principalmente divertida.

Certa vez Samuel Johnson teceu um comentário sobre certas mulheres pregadoras, comparando-as a cães dançarinos. Não se tratava apenas de fazer as coisas bem-feitas, mas sim achar gozado ver que não iam dar em nada. Tabby pediu-me para continuar escrevendo, o que fiz. Várias vezes, no decorrer da leitura daquele livro, Tabby mostrou-se capaz de me oferecer saídas de emergência nos momentos cruciais. Um destes foi a coisa no baile da escola, quando eu, na verdade, desejava acabar com todo mundo. Não conseguia imaginar de que modo aquilo iria acontecer. Tabby foi quem sugeriu o uso dos amplificadores e do equipamento elétrico da banda de rock.

P: Quando você terminou um projeto ou está no meio de um, já aconteceu alguém mais surgir com a mesma idéia?

KING:Sim. Aconteceu com A Dança da Morte. Um cara chamado Terry Nation publicou um livro intitulado Survivors. Tratava-se exatamente da mesma idéia. Não é para dar raiva?

P: Ainda falta muito para terminar a continuação do A Hora do Vampiro?

KING: Sei como fazê-la. Tenho toda a história na cabeça, porém não vou contá-la aqui. A história também é muito boa. Não creio que vá ser tão longa quanto a outra, e todos provavelmente dirão que não passa de uma continuação fraca. Provavelmente será, mas, cara, como vou me divertir ao fazê-la! Adoro aquela cidade.

P: Pode falar também a respeito de A Coisa?

KING: Penso que a crítica mais arrasadora que já tive a oportunidade de ler foi feita a um romance de James Michener. O crítico disse: "Tenho dois conselhos a dar em relação a este romance. O primeiro é: Não comprem o livro! O segundo é: Se comprar, não o deixe cair em cima do seu pé. A Coisa tem 1. 300 páginas e comecei a escrevê-lo quando rumava para Boulder, Colorado, a fim de buscar um carro cuja transmissão tinha estourado.

As pessoas me perguntam:

— Cara, de onde você tira as suas idéias?...

Elas surgem. Esta é a parte mais extraordinária de tudo. Você tem uma idéia. Inspiração! Talvez seja boa, talvez não. Você a arquiva. Pode ser que a use, pode ser que não. Não importa, o fato é que nesse dia eu atravessava uma ponte em plena penumbra. Encontrava-me numa região do parque industrial — bem fora da cidade, mas esta podia ser vista por trás de uma área pantanosa. Eu podia ouvir o bater de minhas botas no piso da ponte. Produziam um som que ecoava muito e foi então que recebi essa "ligação telefônica" vinda da minha infância. Pensei: a qualquer instante vou escutar uma voz dizendo: "Quem está caminhando na minha ponte?" Logo depois um ente sobrenatural ia surgir, me agarraria e me devoraria. É engraçado, porém me apressei o máximo para sair daquela ponte. Todas essas coisas parecem muito reais quando a gente se acha sozinho.

Durante muito tempo pensei nesse ente sobrenatural e comecei a conjugá-lo com uma porção de outras idéias. Uma delas foi o modo como as crianças ficam adultas, o que as torna pessoas adultas, como vamos mudando e até mesmo o fato de nossos rostos sofrerem alterações. Quando sua fisionomia se modifica, aquilo que se encontra dentro da sua cabeça também se altera, porém isto não ocorre de uma vez. Ali estava uma oportunidade para regredir e explorar essas sensações que se tem na infância: os temores que não se cessam de voltar durante os anos de maturidade. Imaginei um modo de aproveitar cada um deles. Eis o que A Coisa é. Frankenstein está nesse livro; o Lobi-somen está nesse livro; o Tubarão vive no canal da cidade. Este garoto foi devorado pelo próprio pai que está sentado à beira do canal balançando os pés dentro d'água. Ele vê aquela barbatana branca — Dum, Dum, Dum... Agarra-o e o devora. A múmia também está lá. É maravilhoso. Todos se encontram reunidos, portanto é uma espécie de filme de terror épico em forma de livro.

P: Alguma vez na sua vida você imaginou uma trama que considerasse abominável demais?

KING:Não. Já tive várias que me pareceram não-funcionais e também tive idéias que considerei muito duras, material com que não saberia lidar. Fiz muitas coisas banais e algumas delas acabaram dando certo. Penso ser possível retornar aos refugos. Muitas daquelas idéias resultam até boas. Não direi que A Hora do Vampiro é um plágio de Drácula, mas decididamente baseia-se nele. Aí está um caso de ir até uma pilha de refugos e dizer: "Ora, isto ainda funciona. Vamos levar para casa!"

P: A Dança da Morte critica muito o governo. Seus sentimentos pessoais são esses?

KING:Ora, na minha opinião o governo fede! Pago meus impostos. De fato, a esta altura devo ser o proprietário de um silo para mísseis em algum ponto de Kansas. Provavelmente o meu nome está escrito no portal: The Stephen King Memorial Missile Silo. Pago meus impostos porque não quero ser preso, mas também porque este país tem sido bom para mim. Propicia uma proteção de sanidade relativa para mim e meus filhos. Contudo, creio naquilo que escrevi em A Dança da Morte. Eis a grande verdade. É como se drogar ou se embriagar. Engolir suficiente governo pode até matar. Esse é o fim. Mais cedo ou mais tarde, sempre se cai por terra.

P: Você tem filhos pequenos. O que me diz sobre os efeitos causados nas crianças pelas histórias de terror?

KING:  Não sei. Eu as faço e fiquei realmente pervertido!

 

COM KEITH BELLOWS

P: Você é inacreditavelmente fecundo. De onde tira suas idéias?

KING:Bem, na rua 42, em Nova Iorque, há uma grande livrariazinha chamada Used Ideas. Quando nada me ocorre, dou uma chegada até lá.

P: O que deixa as pessoas assustadas?

KING:Há coisas importantes que assustam as pessoas, como morrer, que é o verdadeiro grande jogo. A maioria das pessoas fica apavorada sempre que se aventura na área do tabu. Nós nos tornamos mais explícitos com coisas como o sexo, mas nos restringimos cada vez mais com relação à morte e à deformidade. Tais coisas deixam as pessoas apavoradas porque damos muito valor à beleza, à simpatia, à juventude.

P: Durante o tempo em que cursava o segundo grau você foi um monstrinho?

KING:Costumava pregar muitas peças. De vez em quando ficava em maus lençóis. Não eram coisas muito sérias, não, mas do tipo que resulta no recebimento de algumas suspensões, e de repente eu me via com sete dias de dispensa decretados. Então perguntava aos meus botões: "Afinal, como foi que arranjei tudo isto?"

P: Com tanto terror impingido à sociedade atual, julga mais difícil assustar as pessoas?

KING:Não. Em Creepshow há um segmento em que certo cara é dominado por baratas. Os camaradas que lidavam com as bichinhas, os "tratadores de baratas", trabalhavam para o Museu de História Natural de Nova Iorque e já estavam acostumados com elas. Contávamos com certa de 3. 000 baratas e, no começo, os tratadores não se importavam. Porém começaram a se sentir um pouco preocupados a cada dia que passava. Durante a filmagem, aqueles insetos que estavam morando em enormes latas de lixo e se alimentavam com uma mistura de ração para cães e bananas — uma mistura fedorenta de verdade. Quase no final das filmagens, os tratadores estavam tão apavorados que se a gente batesse nas costas de um, ele poderia ir direto para o céu.

Quanto mais assustadas as pessoas vão ficando com o mundo real, mais fácil se torna deixá-las apavoradas. Os sociólogos afirmam que as pessoas, nas cidades, ficam empedernidas com relação à violência. É possível ficar-se negligente sobre ela — e dizer: "Oh, aquela mulher está levando uma surra. O que vamos ter para o jantar?" Contudo, o medo cresce e é por isso que os filmes de terror são tão populares. As pessoas adquirem uma quantidade maior de medo do qual devem se livrar.

P: Você disse que os estudantes do segundo grau são mais sofisticados atualmente do que quando lecionava. Acha que eles encaram o mundo, agora, de um modo diverso.

KING:Eles encaram o mundo da mesma maneira como nós o fazíamos. Dentro da nossa mente há um cortador de refugo que apara todas as coisas sem valor e permite focalizar somente as importantes. Na adolescência a gente tem uma consciência profunda do mundo ao redor. A gente não quer ser como todos os demais, mas também não quer que as pessoas pensem que se é diferente. Portanto, adota-se um estilo de vida que abrange tudo, desde discos até os jeans Jordache. O video-game e seja lá o que for. Contudo, isto não passa de glacê de bolo. As mesmas coisas ocorrem sob a superfície que se formou quando nós tentávamos descobrir que diabo viemos fazer neste mundo.

P: Qual o maior terror, na sua opinião, enfrentado pelos colegiais de hoje?

KING:Não serem capazes de interagir, de ir levando a vida e estabelecer linhas de comunicação. Era esse o medo que me atormentava, o medo de não ser capaz de fazer amigos, o medo de ter medo de revelar a alguém que estava com medo. As sensações de inadequação e de não contar com ninguém a quem recorrer — um professor, um conselheiro, uma namorada, um amigo, o sujeito que ocupa o armário ao lado do seu — e confessar: "Estou com medo de não ter condições de realizar isto neste nível", não importa se a gente está se referindo a encontrar uma companhia para o baile escolar ou a passar em álgebra. Existe um medo constante de estar só. Mentalmente, você tem a sensação de febre. É aí que as pessoas precisam contar com um relacionamento bastante íntimo, sobretudo fora do âmbito familiar. No seio da família as coisas são, de um modo geral, tensas demais: as pessoas dizem pouca coisa além de "Passe a manteiga, por favor" ou "Dê-me os pãezinhos". E, o tempo todo, os garotos sentem um medo horrível de não conseguirem suportar tudo que lhes acontece.

 

COM CHRISTOPHER EVANS

KING:Realmente não me preparo para compor minhas novelas sob nenhuma forma consciente. Alguns dos meus livros levaram muito tempo para germinar. São, por assim dizer, idéias que vão aflorar. Sua mente é como uma piscina muito funda. Algumas coisas devem afundar enquanto outras se manterão flutuando, e assim você pode vê-las, você as vislumbra durante muito tempo e começa a considerá-las de um modo diverso. Nem mesmo sei qual deveria ser a palavra correta. Você aproveita todas as suas antigas lembranças, coisas que até já esqueceu, porque mais cedo ou mais tarde tudo vem à superfície; você usa tudo.

Lembro o início de Zona Morta, onde Johnny Smith cai e quebra a cabeça no gelo. Isso aconteceu comigo. É uma das primeiras coisas de que posso me lembrar: atingido por um jogador de hóquei, desmaiando e recuperando os sentidos uns cinco minutos depois. Não devia ter mais do que quatro anos. É uma daquelas cenas que você aproveita e coloca num livro porque se encaixa bem.

Ora, na minha opinião é uma história de terror. Se poder haver gente igual a esse Greg Sttilson por aí, é horrível. Bem, considero que as coisas neste país ficaram mais e mais empobrecidas, e o poder concentrou-se por um lado, enquanto por outro, tornou-se mais difuso. Na realidade, desde Nixon não temos tido um presidente forte, e a força de Nixon foi minada, nos seus dois últimos anos de governo, por Watergate. O povo deste país apreciaria contar com um presidente forte. Gostaria de ter um Greg Stillson.

Penso que a maioria dos escritores escreve aquilo que lhes interessa, coisas que sentem interessantes ou divertidas. Não confio muito nos escritores que se queixam de dificuldade para escrever. Fico imaginando como vivem, pois minha impressão é que se a gente ficar chocando um livro durante um ano e meio, às vezes até mais, será melhor arriscar-se a ser criticado pela história, ou se acabará enlouquecendo.

Zona Morta é um romance repleto de suspense. Todos os meus livros são feitos com esse objetivo. Um romance de suspense é, basicamente, um romance de terror. Esta é a diferença entre narrativas de suspense e as de mistério. Considero o romance de terror como um único cômodo numa casa imensa, que é o romance de suspense. Esta casa especial encerra clássicos como O Velho e o Mar de Hemingway e The Scarlet Letter de Hawthorne.

O que não quero fazer é escrever sempre o mesmo livro. Sou muito alerta com relação a isso. Minha impressão é que Harold Robbins vem escrevendo o mesmíssimo livro há uns dez anos. Acho que Robbins e a originalidade se separam logo depois de The Carpetbaggers.

Vejo uma correlação entre a idéia religiosa e a sobrenatural porque ambas são uma espécie de combate pelo poder, realizado por pessoas impotentes. Muitas vezes, as pessoas que acreditam no fenômeno sobrenatural são muito fanáticas, como o é Vera Smith (a mãe funda-metalista de Johnny Smith em Zona Morta); às vezes o fundamentalis-mo e a crença no sobrenatural se cruzam. Vera Smith é uma mulher de classe média, ou de classe média baixa, e me parece que quanto mais baixo se desce na escala econômica, nos Estados Unidos, maior é o número de pessoas que se descobre alcançando aquilo que julgamos serem os canais comuns do poder.

Um camarada que vive em Nova Iorque e faz 70. 000 dólares por ano sabe que o Maitre do restaurante se aproximará logo que ele entrar, e esta é a forma de poder que gente como Vera Smith e pessoas que vivem da Previdência desconhecem. Por isso lêem a revista Fate e coisas afins.

Não costumo freqüentar a igreja com regularidade, porém sigo uma espécie de religião pessoal, porque tive o cuidado de codificar tudo aquilo que acreditei. A crença em si mesmo é uma espécie de poder; e há um poder mais profundo do que este; por exemplo, se você levar sua avó entrevada até Lourdes, e ela realmente se levantar e andar, então a crença é uma espécie de linha reta na direção da Outra Coisa. Não divulgo a Outra Coisa porque esta é a província dos romancistas que são, segundo eles próprios confessam, mais literários do que eu.

É como a tábua de Ouija, exceto que não penso, em vários casos, que os escritores disponham de qualquer tipo de linha direta para o sobrenatural, a não ser a força exterior que lhes fornece as palavras. Como Deus bem sabe, muita gente acreditou nisto. Os antigos gregos acreditavam na sua musa, que era tal qual um anjinho.

Minha charge preferida até hoje saiu no The New Yorker, sobre um escritor farrista. Está sentado diante da sua máquina de escrever e um anjinho voa em volta da sua cabeça dizendo: "Quero pousar e comer uma pizza, e também tomar umas cervejas, e veja se consegue descolar algumas garotas no Paraíso. Ei, você aí, estou falando com você!"

Falando sério, acho que um escritor, se tiver sorte, conta com uma linha direta para o seu inconsciente, onde há um pequeno lexicógrafo funcionando todo o tempo. A gente puxa por ele e consegue uma quantidade de coisas antigas nas quais comumente nem se pensaria ou nem se recordaria.

 

RESQUÍCIOS DE TERROR

A história de terror nos faz crianças. Esta é a função fundamental de história de terror — acabar como todo esse lixo, a porcaria com que nos cobrimos, para nos obrigar a transpor os limites do tabu e levar-nos a lugares onde não imaginaríamos chegar. Durante muito tempo as pessoas consideraram o terror algo radical — uma coisa perigosa para se lidar. Na realidade, porém, as pessoas que lidam como o terror são como os republicanos envergando seus trajes de três botões.

 

COM ABE PECK (Rolling Stone)

P: Por que deseja apavorar as pessoas?

KING:Porque elas querem ser apavoradas. Adoro quando alguém me revela que que A Hora do Vampiro e depois foi obrigado a dormir, por três dias, agarrado a um crucifixo.

P: Você acredita em poderes sobrenaturais?

KING: Sou um ianque, nasci na Nova Inglaterra; logo, quando alguém me pergunta: "Qual é o seu signo?", minha reação é dizer: "Quantos centímetros tem o seu ânus?" Contudo, não deixo de acreditar neles. São fascinantes quando a gente diz para si: "Vamos aceitar por algum tempo que isso existe. Digamos que Abe Peck é capaz de levitar. O que faz a mulher dele ao deparar com esse cara flutuando em volta do teto? Será que sai na disparada? Será que solta gargalhadas?" Isto dá margem a uma série de especulações.

P: Por que razão adota situações comuns quando a grande maioria do terror tradicional é ambientado nos cemitérios da Transilvânia?

KING:Bem, o ambiente se alterou quando comecei a ler, na década dos 50. Weird Tales estava esgotada, só se conseguia adquiri-la nos bazares de caridade e lugares assim. Depois surgiram Richard Mathe-son e Jack Finney; The Body Snatchers encontra-se na essência de tudo que é lançado agora, desde Tom Tryon (The Other) até William Peter Blatty (O Exorcista). Além da Imaginação também tirou o terror do cemitério. Aquelas coisas formaram a minha idéia sobre o que deveria fazer uma história de terror: o monstro não devia estar num decadente cemitério da velha Europa, mas na casa do fim da rua.

P: E por que seu estilo destaca a acessibilidade?

KING:O estilo é como o enfeite no capô de um carro ou como mandar cromar a máquina. O estilo é dispensável. Não se precisa dele para contar uma história. Antes de mais nada, devemos total acessibilidade ao leitor.

P: Você declarou, certa vez, que o terror é conservador. Por quê?

KING: Eu me referia à atitude que quase todas as histórias de terror assumem: "Estou bem, você está bem, mas ufa!, olhe só para isto. " É um modo de confirmar a regra.

P: Você afirmou que escreveu sempre sobre pessoas em situações críticas.

KING:Interesso-me pelo que as pessoas fazem quando impossibilitadas de saírem de uma situação, especialmente quando tudo parece escapar ao seu controle. Insisto que minhas novelas, reunidas, formam alegoria para uma nação que se julga metida numa situação crítica e onde as coisas estão fora de controle. Encontramo-nos agora nessa situação em termos de posição mundial, de economia e de petróleo. Como prestar nossa colaboração? O que fazer?

P: Onde pretendia chegar com Carrie, e até onde conseguiu?

KING:Alguém me disse:

— Você escreveu todos esses contos, e na realidade eles são parábolas machistas. Não seria capaz de escrever sobre mulheres.

A crítica atingiu o alvo, pois eu tinha lido Love and Death in the American Novel, de Leslie Fiedler, que declara que as mulheres, na ficção norte-americana, ou são prostitutas ou zeros. Não existe nenhum meio-termo, nenhuma mulher de verdade.

Uma certa idéia andava martelando dentro da minha cabeça, seguramente, há uns seis ou oito meses. Destinava-se a ser um conto para a revista Cavalier, no valor de 200 dólares, sobre uma pequena que se revolta contra suas colegas de classe devido a uma peça sórdida que lhe tinham pregado. Mas, um conto é como uma banana de dinamite com um fusível minúsculo; você o liga e isso significa o fim. Inesperadamente, ocorreu-me que seria melhor utilizar um pavio mais longo. Queria que o leitor visse que a tal garota estava realmente sendo provocada, que sua atitude não era na realidade uma ação má, sequer uma vingança, mas apenas o modo como alguém explode contra alguém quando se sente magoado de verdade.

Eu já tinha escrito quatro livros antes de Carrie. Mantenho-os guardados num baú. Nenhum deles é uma história de terror. Não tinha me passado pela cabeça escrever um livro de terror, pois naquela época não havia nenhum deles sendo publicado. Enquanto ia trabalhando, eu não cessava de dizer para mim mesmo: "Vamos e venhamos, ninguém vai querer ler uma história fictícia sobre essa garotinha numa pequena cidade do Maine. É desalentadora, deprimente e fantasiosa". Contudo, ao concluir o rascunho, bum!, saem O Exorcista e The Other, e por isso ela foi lançada.

Sempre considerei Carrie uma parábola sobre a percepção feminina. É um livro sobre mulheres. São as únicas a usarem o cérebro, só elas têm coragem moral ou uma atitude moralista. A meu ver o filme, inconscientemente, assume a atitude de que todos os homens são uns trouxas. O cara, interpretado por John Travolta, diz: "Poxa, esta é grande. Sangue de porco. Hi-yuh, hi-yuh". Carrie expressa vários temores masculinos — sobre menstruação e sobre o modo de lidar com mulheres que nos devoram.

As pessoas dizem: "O que acha de Carrie agora? Não tenho resposta para lhes dar. O ato de redigir Carrie foi como um período de sarampo. Tudo que a gente pode lembrar é a presença de uma dor de baixa intensidade.

P: Quanto de Carrie foi calcado na sua experiência como professor secundário?

KING:Muito. Uma quantidade tremenda.

P: Atravessamos uma época em que, na realidade, os adolescentes vêm sendo perversos uns com os outros.

KING:É isso aí, trata-se do último alento do lado desagradável e bárbaro da infância. Conhece, por acaso, o livro de William Golding, O Senhor das Moscas? Pois é Carrie fora de controle — a sociedade secundarista fica desenfreada.

P: As crianças parecem desempenhar um papel muito importante nos seus livros. Por quê?

KING:Tenho três crianças em casa. Adoro-as, não as estudo no sentido em que se pesquisa os insetos num microscópio, porém oferecem-me a oportunidade de pesquisar aquilo que a infância é. Nenhum de nós, quando adultos, se lembra bem da infância. Acreditamos lembrar, o que é muito perigoso. As cores são mais vivas. O céu parece muito maior. É impossível recordar com exatidão como era. As crianças vivem num constante estado de choque. Quando freqüentava a faculdade, fiz vinte e cinco viagens de ácido, usei mescalina sintética e outras coisas assim — e algumas eram poderosas, poderosíssimas. As crianças estão se defrontando, sem cessar, com essa sensação. Elas olham uma escada rolante e pensam mesmo que, se não derem um passo bem avantajado, serão tragadas por aquilo. Tive um amigo cujo filho não queria ir para a cama à noite, de modo algum, porque tinha medo de um monstro. Os pais não paravam de comentar isso; tentando chegar à raiz do mal, acabaram descobrindo tratar-se de um monstro ao qual o pai tinha se referido certa vez: uma segadora dupla sombria.

No meu próximo livro, deixarei de me movimentar em espiral e tentarei abordar diretamente o problema que ocorre entre a infância e a idade adulta, o que se modifica e como as duas se relacionam.

P: A Incendiária também tem uma criança como heroína.

KING: A Incendiária começou devido ao fato de me sentir fascinado diante da pirocinesia. A gente lê nos jornais casos de pessoas que simplesmente se consomem em fogo, e de modo espontâneo. Comecei a ler mais e mais sobre este assunto e o resultado foi a criação de Andy McGee; em 1969 está na faculdade e vai se formar no ano seguinte. É paupérrimo, buscando um meio para suplementar sua renda, por isso participa de uma experiência psicológica na qual as pessoas ou recebem água destilada ou um alucinógeno pouco concentrado que acaba sendo uma droga telepática de baixa concentração. Primeiro surge a pirocinesia e em seguida a idéia de mutação genética, também presente em Carrie. Minha concepção é que, se existem talentos sobrenaturais, eles são transmitidos à geração seguinte, da mesma maneira como ocorre com o talento artístico de povo de Wyeth.

P: Em A Incendiária você lança Charlie McGee, uma menina de oito anos, contra um cara imenso, Rainbird. Há quase que uma trama semelhante à de Lolita.

KING:Trata-se de uma relação sexual. Desejei apenas tocar de leve no assunto, mas ele torna todo o conflito monstruoso.

P: Certa ocasião você declarou recear que A Incendiária pudesse ser recebido como Carrie II.

KING:É isso aí. Se você é seriamente considerado como alguém que se dedica à literatura como arte, tem o direito de voltar àquilo que já realizou antes: está ampliando temas anteriores. Mas se você se dedica à literatura popular e repete um tema, a concepção é de que sua cabeça está tão oca a ponto de só poder produzir um eco.

P: O que achou da versão de Stanley Kubrick para O Iluminado?

KING:Não posso responder a esta pergunta. Sinto-me indeciso demais sobre isto (suspiro profundo). Na realidade eu não queria trabalhar com Kubrick. Sua reputação diz que ele deixa os autores arrasados. Sua visão do cinema é fanática, o que resulta em filmes interessantes mas também gera um relacionamento profissional muito difícil, a menos que se lhe diga: "Stanley, aqui está seu cheque em branco. Faça o que bem entender. "

Meu roteiro, que Kubrick achou melhor não utilizar, era consideravelmente diverso daquele que resultou. Antes de mais nada, meu roteiro era ainda mais trabalhoso e pesado do que o livro num ponto que Kubrick nunca focalizou — o passado do hotel. Em A Hora do Vampiro está escrito: "Uma casa má atrai homens maus. " era esta a idéia em O Iluminado. O hotel não ficou mau porque certas pessoas foram para lá; aquela gente é que foi ao hotel porque o local era mau.

Contudo, gostei do filme por uma série de razões que nada têm a ver com o livro. O tom, o modo como ele cria terror através da atmosfera, não através de qualquer coisa sólida, usando apenas ângulos de câmera e luzes. Kubrick tem um talento descomunal e pensei que fosse acertar em cheio.

P: É isto o que acha agora?

KING:Bem, não. Visualizei uma situação em que pessoas seriam carregadas em ambulâncias, vítimas de ataques cardíacos.

P: Gostei mais do livro.

KING:Para ser sincero, também gosto mais do livro.

P: No entanto, as críticas do filme arrasam o livro.

KING:Toda vez que lanço um livro, sinto-me como um caçador de peles surpreendido pelos iroqueses. Eles estão enfilcirados uns ao lado dos outros com as machadinhas nas mãos e a idéia é correr por ali com a cabeça abaixada e cada um lhe pespega um golpe. Eles o atingem na cabeça, nas costas, no traseiro, nos testículos. Finalmente, você sai do outro lado, está sangrando e está machucado. Aí o livro é transformado em filme e você se vê outra vez diante daquela mesma fileira, todos os índios com suas machadinhas em riste.

P: Qual é a diferença entre terror de filme e terror de livro?

KING:Num filme pode-se fazer coisas num nível emocional que simplesmente não funcionam no livro. Por exemplo, no final da versão cinematográfica de Carrie, a mão que emerge do solo e faz os espectadores saltarem das poltronas. É possível relatar isto num livro, mas o sucesso não é tão grande.

Os filmes são uma experiência em comunidade. Você vai assistir a O Iluminado com um público enorme e aí se estabelece em você uma sensação: "Ora, se eu gritar, todo mundo vai dizer: 'Mas que idiota'. " Mas eles gritam mesmo, e imediatamente ocorre uma onda de gargalhadas. Este é o modo de todo mundo dizer: "A cena de fato não me apavorou. Vejam, estou rindo. Está tudo bem. " Num livro, você desgarra uma pessoa do rebanho e...

P: ... arremessa-a na ravina..

KING:É isso aí.

P: Como compararia as versões cinematográficas do O Iluminado e Carrie com a apresentação de A Hora do Vampiro na televisão?

KING: Em termos de terror, da faculdade de apavorar os espectadores, parece-me que Carrie é o melhor. Na minha opinião, Brian De Palma fez um super trabalho com Carrie. A química foi perfeita. Carrie foi um livro quente — ele simplesmente sangra nas páginas — e Brian é tão frio quanto o gelo. É uma pessoa obstinadíssima, mas também assustadoramente inteligente.

P: O que me diz de A Hora do Vampiro — o modo como a TV lida com o terror?

KING: O problema é que há muitas coisas que se pode fazer na TV. A atitude executiva da rede, porém, parece ser no sentido de que o melodrama na televisão agrada mais quando realizado em doses pequenas.

P: Ao lhe perguntarem quais de seus livros era o favorito, você respondeu que tinha uma "ligeira preferência" por A Hora do Vampiro.

KING:  É uma história sobre gente do interior, não necessariamente gente boa do interior. Desde quando eu era criança, sempre disse para mim mesmo: "Algum dia escreverei sobre o lugar onde vivo. " As pessoas criam a cidade e a cidade concebe seu próprio caráter. Usei Our Town como exemplo de como fazer isso.

P: A Dança da Morte parece ser uma mescla de diferentes tipos reunidos, mais um épico.

KING:Nunca disse isto para ninguém pois soa pretensioso demais, porém desejava fazer O Senhor dos Anéis com uma ambientação americana. Não foi esse o resultado final, mas pensei que seria divertido realizar uma fantasia épica com um pano de fundo americano. Muitas são as fantasias que acontecem numa terra de faz-de-conta. Até para ler o livro você precisa aprender uma nova língua.

Veja, comecei a considerar a crise energética como nada mais que uma pedra de dominó numa estrutura econômica complexa que ia desmoronar. Quanto mais refletia sobre este nó górdio, mais pensava: "Suponha que o corte bem no meio. Suponha que todos morreram exceto uma certa percentagem da população mundial — aí haveria petróleo em quantidade suficiente!" Comecei a burilar a idéia — as cidades vazias, as dunas.

P: Quando A Dança da Morte será transformado em filme?

KING:Provavelmente ainda levará uns dois anos até que comece a ser produzido. O roteiro precisa ser trabalhado e George Romero {A Noite dos Mortos-Vivos), que vai filmá-lo, ainda tem pelo menos um compromisso. Além disso, ele e eu temos um outro projeto chamado Creepshow que provavelmente será realizado antes, isso porque o orçamento é mais acessível.

P: Como vocês dois se uniram?

KING:George apareceu certo dia na minha porta, no Maine, quando eu ainda lecionava na escola. Disse: Estou a caminho de New Hampshire onde tenho o compromisso de realizar uma conferência; você dispõe de tempo para jantarmos juntos? Respondi:

— Sem dúvida.

Bebemos bastante, comemos um pouco e ele falou:

— Quer fazer um filme?

— Podemos fazer o filme que quisermos? — perguntei.

— Sempre fiz o que quis — retrucou ele.

Ventilamos uma porção de idéias. Finalmente, ele falou:

— O que você deseja realmente fazer?

—  Gostaria de ver as pessoas entrarem num cinema, sentirem-se imediatamente atraídas, ficarem num estado de terror profundo durante uma hora e quarenta e cinco minutos, depois saírem se arrastando.

Os olhos de George se iluminaram. Ele e eu partilhamos a idéia de que não se deve ficar remanchando à toa. Quem deseja realizar alguma coisa deve meter a cara, arrebanhar as pessoas necessárias mesmo que isso seja difícil.

P: Qual é o assunto focalizado em Creepshow?

KING:Ele começa numa casa definida, numa área definida de Maple Street, que é uma escolha deliberada de minha parte, pois lembrei-me de um episódio em Além da Imaginação, "The Monsters Are Due on Maple Street". Escuta-se um pai esbravejando com o filho pequeno porque lê um daqueles abomináveis livros de terror. O pai atira o livro em quadrinhos em cima de uma lata de lixo. Troveja e começa a ventar muito. Há relâmpagos e todas aquelas figurações góticas convencionais. O livro em quadrinhos sai voando da lata de lixo e cai na sarjeta. As páginas começam a girar e a câmera aproxima-se num zoom sobre elas. Os quadrinhos adquirem vida.

Há cinco histórias no filme, que tem umas duas horas de duração. George deseja rodar Show de Horrores neste outono, se conseguirmos um financiamento e autonomia integral. Nossa idéia não é realizar apenas uma antalogia, mas sim tornar pior aquilo que já é terrível e burilar a obra até reduzi-la ao mínimo. Na esteira de O Iluminado, eu teria uma oportunidade de dizer: "Eis aí o que julgo ser um filme de terror. "

P: O que me diz de Zona Morta?

KING:Em Zona Morta eu pretendia falar sobre a década de 70. Contudo, não era minha intenção atingir ninguém na cabeça com ele; portanto, pensei: "Farei uma coisa do tipo Rip Van Winkle", e podemos ver a década de 70 passando diante de nossos olhos como um noticiário. O que também desejava era explorar os problemas de um camarada que é um pária, não por causa de qualquer erro dele, c falar sobre coincidência e sorte. O símbolo central de Zona Morta é uma roda de fortuna que não pára de girar. Para mim, isto indica que as coisas acontecendo em Zona Morta resultam apenas de uma questão de sorte.

P: Tanto em Zona Morta como em A Incendiária você se revela contrariado com o governo. Essa revolta teve origem na década de 60?

KING: Trata-se da minha própria peregrinação política: sempre vivi no Maine. Sou descendente de anglo-saxões. Somos todos republicanos. Os dinossauros passeavam pela Terra, e minha gente já era republicana. Um dos motivos por que queria escrever um romance sobre Patty Hearst e o Exército de Libertação simbionês era por compreender aquele levante perpetrado por eles. Uma daquelas garotinhas que foi assassinada no tiroteio de Los Angeles trabalhou para Goldwater em 1964. Também fiz o mesmo. Votei em Nixon em 68. Convenci-me de que as pessoas que queimaram seus cartões de alistamento eram uns covardes. Minha idéia era: "Vamos lançá-los de volta à Idade da Pedra. " Freqüentei a faculdade de 1966 até 1970 e houve uma concre-ção dos fatos — ensino, seminários, e pouco a pouco dei a volta por cima. É como alguém que se converte...

P: Você foi dominado pelo fanatismo.

KING:  É isso aí. E as marchas e tudo mais foram uma conseqüência.

P: Alguma vez você escreveu algo que fosse demasiado radical ou fantástico para ser publicado?

KING:Bem, tenho algumas histórias que foram devolvidas por vários mercados por serem assustadoras demais. Uma é sobre um cirurgião náufrago que vai dar numa ilha deserta onde termina se devorando pedacinho por pedacinho. Autocanibalismo. Fiquei imaginando se uma coisa dessas seria possível, por isso perguntei a um cirurgião e ele me respondeu {disfarçando a voz, num sotaque de Oxford): "Ah, daria certo, por algum tempo."

Ele começa pelo pé. Está cozinhando o pé e cantando: "McDo-nald's é o lugar que lhe serve. Pois é um lugar tão alegre" (risos). Ele diz: "Tive o máximo cuidado, lavei-o antes de comer. "

P: Não estava escrevendo um livro sobre as normas de um sepultamento?

KING:Já terminei, mas coloquei-o de molho. Não tenho planos para publicá-lo num futuro próximo. É por demais assustador. É ainda pior do que O Iluminado ou qualquer outro. É apavorante*. Entreguei-o à minha mulher para que o lesse. Leu dois terços do manuscrito e — coisa que nunca fez antes — devolveu-o, dizendo:

 

*O livro foi publicado: é O Cemitério. (N. do E. )

 

— Por que não o põe de lado e vai em frente?

— Não gostou dele? — indaguei.

— Não tenho palavras para lhe explicar como me senti — retrucou ela. Na minha opinião ele é impressionante... impressionante demais. Tive a idéia quando o gato da minha filha morreu. Foi atropelado e enterramos o animal. Há uma história em Dança Macabra — uma história do Bing Crosby. Quando os filhos dele eram pequeninos, um deles tinha uma tartaruguinha que morreu. O garoto estava simplesmente arrasado. Então Bing sugeriu:

— Ora, vamos fazer o enterro e cantarei uma música para a tartaruga.

O garoto não deu a impressão de estar se sentindo consolado, porém pintaram uma caixa de preto, revestiram-na com uma folha de alumínio e colocaram um pedacinho de cetim sobre ela. Puseram a tartaruga dentro da caixa, enfiaram a caixa num buraco. Bing cantou uma música e o garotinho fez um pequeno discurso.

Os olhos do menino cintilavam, tamanha era a excitação que o dominava. Bing então perguntou:

— Não deseja dar um último olhar na sua tartaruguinha antes que a enterremos?

O garoto respondeu que sim, portanto a caixa foi aberta e a tartaruga começou a ser mexer.

O menino olhou para Bing e disse:

— Vamos matá-la.

Pois muito bem, enterramos nosso gato e comecei a pensar em sepultamentos.

Falei para os meus botões: "Se qualquer outra pessoa resolvesse escrever sobre enterros, todo mundo diria: 'Ora, vejam como ele é mórbido. ' Mas eu tenho uma reputação. Sou como uma mulher de vida fácil: mais um não fará diferença. "

Mas para ser sincero, é demais. O problema com relação a assustar pessoas é este: só se consegue fazê-lo com sucesso se o leitor vier a se importar como os personagens da história. Ora, os desse livro são os melhores personagens que jamais inventei... Mas por que estamos falando tanto sobre um livro que não irei publicar?

P: Está certo, então diga-me como desenvolve os seus escritos.

KING: O ato físico em si é igual à auto-hipnose, suporta-se uma série de passes mentais antes de começar. Depois de estar se submetendo a isso por muito tempo, cai-se logo num transe.

Só escrevo sobre as coisas que desejo escrever. Sou igual a um garoto. Tenho uma idéia e ela se parece com um brinquedo de criança que se empurra e reboca através da casa. É divertido, é esplêndido, é bonito e talvez se desenvolva de modo rápido, não importa o que se possa planejar. Gosto de fazer de conta.

P: É como num acampamento de escoteiros, onde todos se sentam ao redor do fogo e contam histórias?

KING:É bem mais sinistro do que isso. Não sei se já ventilamos isto ou não, porém alguém disse num certo momento: "O que acha que Kubrick deseja com O Iluminado?" E eu respondi: "Parece-me que o desejo dele é ferir as pessoas. "

Bem, talvez eu estivesse apenas dizendo o que queria. Minha idéia é que a gente devia ser capaz de engolir os outros e magoá-los de verdade.

 

COM MICHEL KILGORE

P: Parece que você fica inclinado para o lado horripilante quando escreve. Já pensou em escrever sobre outras coisas? Quem sabe romper o molde um pouquinho só?

KING:Já redigi outras coisas. Pode-se ter uma idéia, e trata-se de uma idéia para novela pura — uma novela romântica, uma comédia ou algo assim — e trata-se realmente de uma boa idéia e você quer mesmo escrevê-la, seria um erro incrível virar as costas e fazer outra coisa qualquer. É um erro pensar: "Se escrevo isto, os fãs não irão gostar; portanto, farei uma novela de terror que na verdade pouco me interessa", de vez que, de um modo geral, o que acontecerá é que seus fãs perceberão que está faltando alguma coisa, algo está ausente nesse trabalho.

P: Foi difícil saber se o hotel em O Iluminado era assombrado ou se o homem é que era louco? Você mesmo não sabia até surgir a primeira evidência física. Acho que eles descobriram algumas flâmulas no elevador — esta foi a primeira vez que pôde ter certeza de algo mais estava ocorrendo.

KING: Ora, considere esta pergunta: é possível uma alucinação passar de uma pessoa para a outra? Em caso afirmativo, talvez aquelas flâmulas nem estivessem por lá.

P: Tanto O Iluminado como A Hora do Vampiro foram muito impressionantes porque, até certo ponto, havia ambigüidade com relação ao sobrenatural.

KING:Bem, eu estava intimamente convencido de que eram vampiros desde que me propus a escrever A Hora do Vampiro. Meu editor sugeriu que reescrevêssemos o livro um pouquinho só, logo no início, a fim de manter o leitor no escuro durante um certo período de tempo. E eu disse: "Ora, vamos, qualquer pessoa que ler este tipo de história saberá logo que se trata de vampiros desde o primeiro sinal. " E ele, fingindo me dar uma pancada nas costas, disse: "Você não está escrevendo para um público de Weird Tales. Nem deve imaginar que escreve para um público de 40. 000 pessoas. Queremos estourar, logo esperamos um público de milhões e este não lê Weird Tales, portanto vamos logo, faça como lhe digo. " E assim fiz. E ele estava certo.

P: Isto quer dizer que você disfarçou um pouco o sobrenatural ao reescrever?

KING:Minha idéia era fazê-lo, desde o início um livro de vampiros. De fato, eu pretendia contar com uma parte no livro a que chamaria "extracta", como uma que existe no começo de Moby Dick. Contudo, essa parte a que me refiro no livro de Melville era totalmente sobre baleias e eu queria contar com muita coisa sobre vampiros, relatos da Bíblia, excertos de livros e do cinema.

P: A Hora do Vampiro é escrito de tal forma, num estilo tão inteligente, que o leitor está desprevenido quando se inicia o verdadeiro terror.

KING:Existe a suposição de que uma pessoa que esteja trabalhando de forma inteligente não tomará este rumo!

P: Que tipos de coisas o apavoram na vida do dia-a-dia?

KING:  Parece-me que um dos motivos de meus livros fazerem tanto sucesso reside no fato de que quando se trata de medo sou uma espécie de amedrontador típico. Meus medos são muito comuns. Suspeito que apenas o uso constante da minha imaginação durante o trabalho foi que os aguçou, ou aguçou a minha percepção com relação a eles. Creio que a humanidade sofre de algo que chamarei uma lagoa de medos, na qual todos podemos ver nossos rostos refletidos em sua superfície ou mergulhar nossas mãos.

P: Já foi dito que os vampiros são tão apavorantes por dois motivos isolados: um vampiro representa o morto andando, retornando à vida, e um vampiro é, com freqüência, um ser amado voltando para junto de você. A maioria dos medos surge de uma confrontação com o ser amado. Em A Hora do Vampiro, Mrs. Click...

KING:  Sim, ela volta... Adorei escrever aquilo. Você me perguntou: "Alguma vez conseguiu apavorar a si mesmo?" Isto acontece de quando em quando e ao conversar a respeito com alguns outros escritores pergunto-lhes com certo cuidado: "O que vocês sentem quando estão escrevendo uma cena realmente hedionda, assustadora de verdade?" Geralmente obtenho a mesma resposta, e ela se aplica bem ao meu próprio trabalho. Esboço uma espécie de riso escarninho em meu rosto, como heh, heh, heh, heh, peguei-os. Há algo muito animado quando se percebe que surpreendeu alguém.

P: Em O Iluminado há uma cena na qual Wendy Torrance está combatendo e lutando contra o mau espírito do hotel e, finalmente, consegue vencê-lo. Descansa então por um segundo e começa a subir de gatinhas as escadarias, quando escuta um ruído atrás dele...

KING:É ele! O que gostei aí foi a idéia de que ele sempre estará vindo. Visualizando isto na minha mente, pensei que ele sempre estaria vindo e que não havia nada capaz de detê-lo.

P: Sneak Previews tinha um programa sobre filmes de terror que se referia à mudança de tendências e como as regras tinham desaparecido. Em Halloween, A Noite do Terror a babá mata, na verdade, aquele camarada por cinco vezes e ele continua retornando à vida.

KING:Pois é. Bem, vejo-me praticamente escrevendo contra essa tendência apesar de mim mesmo, se bem que numa espécie de forma intuitiva eu compreenda isso e seja também influenciado. Fui influenciado em Halloween, A Noite do Terror. Enquanto você está sentado no cinema, experimenta uma forte sensação de não saber o que vai acontecer, porque esse sujeito, John Carpenter, não pode parar mesmo. Ele vai continuar vindo na sua direção, sempre vindo na sua direção. Nas duas primeiras vezes que isso acontece, você diz para si mesmo: "Ora, esta cena se parece com a de um filme comum chamado Wait Until Dark, onde a mulher faz isto uma vez e o cara está sempre voltando. " E isto é bastante penoso.

P: Você se recorda de filmes vistos na infância?

KING:Lembro-me de O Monstro da Lagoa Negra, de um outro chamado Invasores de Marte, que era uma espécie de repetição de Vampiros de Almas, no qual aquele menininho viu os discos voadores e portanto sabia da existência deles. Então todas aquelas pessoas começaram a ficar com uns olhinhos vermelhos espalhados pelo corpo e ele sabia que os marcianos estavam tomando conta delas. Via-se uma porção de gente despencando no chão e voltando a si com aquelas marcas vermelhas no corpo. Finalmente ele foge, relata toda a história a sua mãe, que lhe afirma ser aquilo tudo somente um sonho. Logo depois ela vai lavar a louça, seus cabelos caem para a frente e o menino vê aquelas marcas vermelhas no pescoço dela. É realmente H-O-R-R-l-P-l-L-A-N-T-E.

Assisti a todos esses filmes de terror para adolescentes. Muitas vezes fui obrigado a dizer a minha mãe que estava indo ver Bambi ou Davy Crockett, coisas desse tipo.

P: Talvez ela fosse de opinião que aquilo acabaria pervertendo a sua mente.

KING:E perverteu mesmo.

P: Seus personagens infantis são muito fortes.

KING:São, sim, e adoro as crianças.

P: O garoto de A Hora do Vampiro é muito mais forte do que os adultos.

KING:Bem, o garoto de A Hora do Vampiro é uma espécie de garoto de sonhos. Ele é o garoto que qualquer menino gostaria de ser, o tipo que qualquer menino fantasia: capaz de se livrar de poucas e boas. E é corajosíssimo. Pretende vingar os seus pais, a morte, mais isto e aquilo. Portanto, a meu ver, ele é apenas uma figura onírica. Gostei demais daquele garoto; e também do modo como ele acabou sendo. É um menino de onze anos, o arquétipo do maior-que-a-vida. E uma porção de personagens infantis nos livros são fortes e bons. Mas sempre acho as crianças fortes. E são boas, falando de um modo geral. A não ser que, de alguma forma, tenha sido pervertido. Jamais conheci uma criança que me parecesse genuinamente desprezível — embora não esteja afirmando que não existam. Simplesmente não tive ainda a oportunidade de conhecer uma.

P: Nenhum mau-caráter.

KING:Não, jamais conheci um Mau-Caráter.

P: Em A Hora do Vampiro o professor teve um ataque cardíaco e o garoto foi dormir dez minutos mais tarde. Me pareceu que você estava dizendo algo sobre as qualidades da infância.

KING:Uma das coisas que sempre me divertiu nos livros, na minha opinião, é que se está lidando com o incrível numa série de casos, como o de vampiros retornando. Tento durante toda a minha carreira não me afastar da idéia de que estou lidando com o incrível; pelo contrário, procuro me movimentar dentro dele e observar as reações das pessoas. É como se você de repente olhasse para a sua máquina de escrever e visse uma flor desenvolvendo-se nela, é mais ou menos isso. Pois muito bem, se você a viu, se pôde tocá-la ou cheirá-la, e outras pessoas a vissem também, você seria então obrigado a concordar que era mesmo uma flor. No entanto a sua reação diante desse fato me interessaria muito mais do que a própria flor. Esta seria tão-somente algo que tinha acontecido. Na minha opinião as crianças enfrentam melhor esse tipo de coisa do que os adultos. Penso que uma criança simplesmente olharia e diria: "Há uma flor crescendo na sua máquina de escrever".

P: A maioria dos personagens é gente bastante comum que conseguiu perseverar.

KING:A coisa total, é também, o conceito da realidade. Compreendemos aquilo que compreendemos através da comparação e do contraste. Se dizemos que Mark Petrie foi dormir dez minutos após ter rechaçado um vampiro, enquanto o professor, Matt Burke, sofre um ataque cardíaco, então estamos expondo algo com relação à capacidade de assimilar a realidade. Sugere esclarecimentos sobre o túnel da percepção no qual vemos coisas. Se as crianças possuem um túnel da percepção mais amplo, conviria descobrir por que isso é assim, e o que acontece para que vá encolhendo à medida que crescemos, a ponto de tornar o estranho e o incomum tão difíceis de aceitar?

O que acontece com as crianças que lhes permite olhar a coisa mais extravagante sem pestanejar e, a menos que encontrem uma reação para expressar, limitarem-se a lidar normalmente com ela? Se uma criança vê um homem morto na rua, alguém que foi atropelado por um carro, se estiver sozinha dará apenas uma espiada no cara morto e depois, quem sabe, se afastará correndo para procurar alguém — após ter espiado bastante para ver como era o corpo. Porém, se houver um ajuntamento de pessoas chorando e gritando em volta, a criança também vai gritar e chorar, porque sofre uma reação reflexa. As crianças despertam o meu interesse por isso; para mim, são o ponto à partir do qual se deveria proceder à pesquisa da origem dos seres humanos.

P: Já aconteceu alguma vez de você começar um trabalho e dizer: "Não vou escrever isto apenas com a intenção de deixar alguém apavorado. Farei também as pessoas refletirem um pouco"?

KING:Já, sim. Porém acho que quando se está fazendo um bom trabalho, isso acontece quase que automaticamente. É preciso ter na cabeça a idéia de que se vai jogar limpo, se for oferecer-lhes a história, e isto significa que virá explorar todas as ramificações daquilo que se está descrevendo. Eis por que em muitos casos começo escrevendo novelas, histórias se assim preferir, e descubro, aí pela metade do caminho, ou a três quartos, que tinha algo mais a dizer, que poderia usar a novela como um veículo para uma informação maior.

É mais ou menos como dizer: "Este carro é grande, podemos ir a muitos lugares e nos divertiremos a valer, mas também podemos levar melancias na sua traseira. " Neste caso "as melancias" seriam o tema, o símbolo ou a percepção psicológica, como quiser, ou ainda a avaliação do caráter do personagem. Não me sinto nada bem em conversar sobre essas coisas. Se as pessoas conseguem encontrá-las nos meus livros, creio que está tudo muito bem. Em O Iluminado, por exemplo, creio ter descoberto, mais ou menos no meio do caminho, que não estava escrevendo a história de uma casa mal-assombrada, mas sim sobre o esfacelamento de uma família. Foi como que uma revelação.

Uma das coisas que ninguém jamais mencionou — e não se trata de um assunto que eu costume abordar — refere-se a Jack Torrance. As pessoas indagam: "É uma história de fantasmas ou ele se encontra apenas na mente daquele cara?" Mas claro que é uma história de fantasmas, já que o próprio Jack Torrance é uma casa mal-assombrada. Ele é acossado pelo pai, o que se observa vezes sem conta. Ele fica obcecado por isso. Não importa como se queira definir "acossado", trata-se de um caso de "assombração", certo? Pois de uma forma ou de outra, há assombração acontecendo naquele livro. A questão é apenas de rótulo. Não faz diferença classificar o livro como psicológico, de terror, ou qualquer outra coisa.

P: Você lida muitas vezes com crenças religiosas, sobretudo em A Dança da Morte. O mal naquele livro era realmente o Mal. Vai mais ou menos até onde se pode ir sem que surja o próprio demônio.

KING:Na verdade não quis o demônio! O personagem é uma invocação ínfima comparado com aquilo que me parece ser o demônio numa teologia cristã, pressupondo-se que ele realmente exista. No entanto eu queria lidar, de um modo muito consciente, com aquela noção das Revelações onde você encontra uma espécie de teste, praticamente do mesmo modo como o Velho Testamento focaliza a questão.

A maneira como tudo realmente surgiu nasceu de uma decisão: "Bem, vamos fazê-lo. Começamos com o supérfluo, porém depois faremos algo mais. Exporemos uma visão do bem e do mal, aquele amplo conceito do bem e do mal. "

Muitas pessoas afirmam gostar deste livro, coisa que me agrada bastante. Ele não ocupa um lugar em nenhuma lista dos favoritos da crítica, porém parece, de certa forma, congregar tudo aquilo que eu tinha a dizer até este ponto. Os livros publicados após o A Dança da Morte foram diferentes. Zona Morta e A Incendiária são ambos diferentes dos anteriores porque com A Dança da Morte eu estava dizendo: "Agora vou reunir tudo, juntar de uma vez e colocar os pontos nos is — ou pelo menos colocar tudo de lá, mesmo que não consiga fazê-lo de uma forma totalmente certa — portanto, mexa-se e faça algo. "

P: No A Dança da Morte o aspecto do conflito biológico é muito verossímil.

KING:Inicialmente, procurei escrever um livro sério sobre os seqües-tros e a lavagem cerebral de Patty Hearst ao contrário, ou seja lá como se quiser classificar a coisa. Eu queria pegar este tormento e traduzi-lo em termos literais, uma espécie de tormento da violência. Assim, ele quase pareceria uma cadeia crescente de escuridão capaz de dominar uma garota bonita e rica sem grande inteligência.

P: Continua pensando em voltar ao tema de Patty Hearst?

KING:Não, naquela época em que eu estava querendo fazer isso ela ainda não tinha sido presa... Portanto, era a situação perfeita para um escritor, na qual se podia pegar um roman à clef e elaborar seu próprio final. Mas de alguma forma, o que aconteceu com ela desde que foi solta, tem sido mais interessante. Estou interessado na idéia de que ela poderia ter ido mais longe ainda. Thomas Wolfe disse que jamais se retorna ao lar, mas de certa forma foi exatamente isso que Patty fez.

P: Quando escreveu A Dança da Morte, havia algum significado na colocação da base do homem soturno em Las Vegas?

KING: O fato é muito simplista, você sabe disso. Eu esperava ser realmente fuzilado pelas críticas por causa dessa localização. Na mente norte-americana Las Vegas já foi identificada como a Cidade do Pecado. Portanto, pensei, é lá que vou colocar a base. Isso foi pretensioso, mas e daí?, tudo no livro é pretensioso, logo posso fazê-lo. Encontrava-me em Las Vegas quando tive a idéia de ambientar aquela parte do livro no local e lá voltei diversas vezes a fim de me certificar de que tudo estava em seus devidos lugares. Vegas é uma... Lançando mão de Vegas no final do livro reforço a idéia de que o mal é comum e, em última análise, nada criativo. O mal não tem o menor poder, nenhum poder que lhe seja inerente, saiba disso, a não ser aquele poder que lhe é dado pelas pessoas.

Vegas é um lugar muito banal. É um lugar para onde você vai e assiste um show no MGM Grand — são tantos os seios à mostra no palco de uma só vez que seus circuitos ficam sobrecarregados. Não ocorre uma ereção sexual porque, meu Deus, você fica se perguntando como elas os mantêm tão elevados — é uma antigravidade. Você se limita a observar tudo e vê que aqueles camaradas por volta dos sessenta e setenta anos ficam ali sentados e não dão a impressão de estarem se divertindo. Estão apenas tomando seus drinques aguados e assistindo àquela produção gigantesca, descomunal, e depois aparece um cara com cães, é um ato com cães, e eles molham as calças aplaudindo. Vestem calças vermelhas com cintos brancos, sapatos brancos e paletós xadrez. E você diz com seus botões: "Se esta é a Cidade do Pecado... "

A imagem que tive de Flagg foi a de um mal imenso que começará a se esvaziar próximo ao final do livro, o que não é lá um conceito excitante. Só esperava que os bons personagens ajudassem o leitor a superar isso. Realmente, acho que se no final tivesse podido fazer com que ele se transformasse numa espécie de caixeiro-viajante adulador, um sujeito que começa a ficar calvo e passa a usar calças vermelhas e sapatos brancos, eu o teria feito. Mas não tive saco para isso.

P: Você realmente conseguiu esvaziar o personagem e ainda assim manter no ar algumas perguntas, porque Flagg, ao desaparecer, deixou algumas roupas para trás. Os personagens bons no livro continuarão mantendo-se atentos contra ele — é o que dizem.

KING:Depois disso ele reapareceu no Havaí. Esta foi uma das partes retiradas do livro. Ele simplesmente reaparece, inteiramente nu. Havia alguns sobreviventes nas proximidades. Ele se limita a levantar e diz: "Meu nome é Flagg e não consigo lembrar de onde vim, mas estou contente por estar com vocês, e vocês ficarão felizes por me terem aqui. " E todos ficam prostrados na areia, naquela praia branquérrima de Waikiki, venerando-o, enquanto ele se prepara para recomeçar tudo novamente. Parece-me que isto foi retirado porque muita gente na Doubleday julgou ser um final pessimista demais, depois de todas aquelas páginas.

P: Creio que isto está implícito ante o modo como o livro acaba agora.

KING:Bem, Flagg está sempre presente na capacidade humana de perpretar o mal.

P: O que me diz você dos escritores contemporâneos?

KING:Grandes escritores? Bem, acho que Updike teve uma oportunidade, porém não me parece que ele continue fazendo um trabalho muito bom. Provavelmente Isaac Singer — oh Deus, quem mais? Thomas Williams, que conquistou o National Book Award, é realmente um grande artista. Ele possui tudo que é preciso. Vou ficar de fora. Na minha opinião Deus golpeia algumas pessoas com o bastão do talento com mais força do que outras. E o golpe acaba com muita gente. É como se fosse dinamite: elas estouram. Como Dylan Thomas ou Thomas Wolfe. Creio que colocarei Bernard Malamud na categoria dos grandes artistas; há alguns por aí, eu acho.

P: Por que pensa que seus livros sejam tão populares como veículos de filmes?

KING: Os livros são visuais, vejo-os quase como filmes na minha cabeça. Quando autografo um exemplar de Sombras da Noite, se estiver com tempo disponível, costumo escrever: "Espero que você se delicie com este filme de terror de um único rolo" — que é, fundamentalmente, o que eles são. Acho essa a razão por que tantos deles estão sendo transformados em filmes. Parece-me muito difícil uma pessoa de Hollywood vislumbrar um filme num livro que não seja muito visual — digamos, um trabalho literário envolvendo idéias como Sidarta ou O Lobo da Estepe. Não estou dizendo que não sejam transformados em filme às vezes, porém é bem mais difícil prever o meu potencial. O pessoal da indústria cinematográfica tende a desprezá-los como obras filmáveis. A maioria das pessoas ligadas ao cinema é pouco inteligente; não tem cérebro. O que elas têm, sobretudo, são olhos imensos que tendem a ver imagens sem sentido, sem motivação, ou seja lá o que for.

Larry McMurtry escreveu uma peça para Film Comment — era bastante clara — sobre a gente do cinema e motivação, apenas a idéia de motivação, que é história. Inicia-se um processo que é como uma fileira de pedras de dominó; ou seja, algo que conduz a algo, que conduz a algo. Uma história é verossímil porque você vê cada um dos elos da cadeia até onde vai a motivação.

O pessoal ligado ao cinema não enxerga dessa maneira. Eles dizem para si mesmos: "Muito bem, quero uma corrida. Quero um carro sendo perseguido sob o Elevado de Manhattan", e por isso William Friedkin vai em frente e realiza a perseguição em Operação França, estrelado por Gene Hackman. Quando a filmagem termina, Hackman se afasta. Jamais o vemos preso sob qualquer acusação; nunca o vemos saindo de uma delegacia de Nova Iorque respondendo pelo que fez, o que, sem dúvida, na vida real aconteceria. Percebemos a motivação do personagem Popeye, que é antes de mais nada um suicida, porém Friedkin jamais liga para esse ponto. Há insinuações complicadas, torturantes, naquele filme todo: Popeye gosta das mulheres que usam botas com saltos altíssimos, e coisas no gênero. Parece um personagem sádico e auto destruidor, contudo Friedkin não se interessa de forma alguma por isso. Limita-se a permitir que Hackman faça determinadas coisas.

P: Trata-se, portanto, de uma seqüência de imagens, e nada mais.

KING:Certo, como em Grand Theft Auto, com Ron Howard. Todos aqueles carros estão sendo destruídos. As pessoas gostam de ir ao cinema e ver a destruição dos carros. Também gosto. Vou, acomodo-me na segunda fila, fico olhando aqueles carros se espatifando e ajo como todos os outros. "Poxa vida, olhe só para isto!" Existe só isso e devia haver algo mais. Aí está a razão por que o pessoal de cinema necessita de bons escritores: porque pode contar com todas estas ações também com uma motivação. Ambas as coisas não são exclusivas. No entanto, muitos cineastas não conseguem ver isto. Limitam-se a declarar: "Quem precisa de um escritor? Eles só sabem complicar tudo".

P: Os escritores de terror, os diretores de cinema e seu público não se empenham no sentido de criar, ou de experimentar, o terror máximo de um modo indireto?

KING:Não, não faço isto. Tudo o que quero é deixar as pessoas assustadas. Sou muito humilde nesse sentido. Não coloco minhas opiniões numa posição tão elevada. H. P. Lovecraft tentou atingir o máximo do terror, e há momentos em que chega quase a ser cômico, pois em algumas dessas histórias ele mais parece um garotinho saltando para pegar um cacho de uvas que se encontra a uma altura inatingível para ele.

P: De que modo o sucesso provocou mudanças na sua vida?

KING: Acho que agora ando mais sossegado do que jamais andei. Sob certos aspectos, quero crer que minha vida tenha se modificado um pouquinho. Tenho a sensação de que atravessei um período durante o qual tive paz de espírito por estar realizando aquilo que queria, ganhando dinheiro com isso e não me sentindo muito entediado. Porém no último ano e meio começou a acontecer uma coisa estranha, porque me solicitam cada vez mais, exigem muito mais do meu tempo — publicidade, esse tipo de coisas. Há mais pressão para que me exponha e me projete — comparecer a entrevistas, programas e outras coisas assim.

Isto acontece, em parte, por eu ser capaz de comparecer a um programa de entrevistas e falar. Muitos autores não conseguem fazê-lo. Tomados em conjunto, os literatos inclinam-se a ser um grupo desarticulado. De fato, os programas de entrevistas, a televisão assim como o rádio, também não querem realmente que os escritores debatam seja lá o que for. Querem que você divirta o público. É preciso ir até lá e desdobrar-se. E vários autores não conseguem isso, ou, se têm condições de agir dessa maneira, recusam-se a fazê-lo, pois julgam que é uma intromissão na sua dignidade. Quanto a mim, achei não ter tanta dignidade assim, portanto — por que não? Por isso fiz o que queriam e parece que a coisa deu certo, porém depois eles querem que você volte e repita tudo outra vez. Isso já me parece meio chato.

P: Existe um risco profissional para o escritor de sucesso?

KING: O risco profissional para o escritor bem-sucedido nos Estados Unidos é que, tão logo você começa a ter sucesso, é necessário evitar que o devorem. Este país desenvolveu uma espécie de culto canibales-co com relação à celebridade, através do qual inicialmente se eleva o sujeito às alturas para depois devorá-lo. Foi o que aconteceu com John Lenon; aconteceu com uma quantidade imensa de estrelas do rock. Porém desejo evitar que isso me aconteça. Não quero servir de almoço para ninguém. Em outras palavras, adoraria ser capa da Newsweek, mas não quero que isto aconteça para anunciarem que morri.

P: Quando você escreveu seus livros, os críticos formaram um corredor polonês mantendo suas machadinhas ao alto e obrigaram-no a atravessar; quando o filme foi lançado, você teve que repetir todo esse ritual.

KING:Durante o lançamento de um filme é bem pior. Os críticos de cinema trabalham sob um complexo de inferioridade. Eles entendem que estão lidando com um meio de comunicação que qualquer analfabeto pode apreciar; desde que disponha de 4 dólares, verá até mesmo um filme de Ingmar Bergman. Paga a entrada e aproveita aquele filme, ainda que se trate apenas de uma série de imagens muito fortes que o deixam perturbado. Penso que a maioria dos críticos de cinema percebe que, quando vai assistir a Manhattan de Woody Allen, e escreve quatro ou cinco páginas, digamos, como fez Pauline Kael, o que está fazendo é basicamente pegar um filme já terminado, num nível próprio até para analfabetos, criticando-o como se fora uma obra de Immanuel Kant. Sob este aspecto, O Iluminado em livro é melhor do que o filme. Posso me lembrar de uma meia dúzia de filmes que compararia aos livros que lhes deram origem, num sentido literário. Os críticos de cinema tentarão arrasar-me declarando que "para o escritor Stephen King o cinema é dependente da literatura barata, enquadrada, popu-laresca e com um mercado imenso". Tudo que estou tentando dizer é que, para mim, os críticos de cinema inclinam-se a ser a instituição nouveau riche das letras norte-americanas... e, como os novos ricos em qualquer setor, sabem que, secretamente, ou estão servindo de galhofa para o mundo, ou são apenas criaturas inferiores...

P: Como foi que você, o autor, se sentiu com relação à tentativa de seu protagonista de cometer um assassinato no final de Zona Mortal

KING:Senti-me muito indeciso em relação a ele. Eu tinha muita vontade que ele matasse aquele canalha. Por outro lado, algo me dizia: "Você não quer fazer isso, porque se ele matar a Greg Stillson no livro, e se daqui a dez anos alguém der fim ao Presidente Anderson ou ao Presidente Carter, e lhe perguntarem: 'Por que fez isso?', e o cara responder: 'Tirei a idéia do livro Zona Morta, de Stephen King' ", eu seria obrigado a arrumar minhas coisas e mudar para a Costa Rica. Portanto, senti-me indeciso. Tinha muita vontade de matá-lo e achei que o fim ficou um tanto forçado.

P: Certa vez você declarou que todos sentem medo da solidão, de ficar só.

KING:É verdade, a alienação e todas essas coisas que julgamos ruins. Os conceitos do mal mudam de tempos em tempos e de lugar para lugar. Por exemplo, a idéia de que o aborto poderia ser regulamentado jamais seria formulada há alguns anos. Parece-me que enquanto os exemplos concretos se modificam, o conceito subjacente permanece, que o mal é quando você compra a Ponte de Brooklyn.

Ou a heroína, por exemplo. A heroína talvez possa parecer boa de verdade, mas basicamente você percebe o mal e a repetitividade do processo de tomá-la. É sempre igual, entende?: a colher, a agulha, o fogo, a aspiração através da agulha, que você espeta no braço. E depois ter que repetir, outra vez, mais uma e mais outra, não há criatividade no ato. Trata-se simplesmente de um hábito; é como acionar um relógio de ponto.

P: Como é o Dia das Bruxas na sua casa?

KING:O Dia das Bruxas é muito bonito. É o melhor dia do ano. Bem, retifico: é o segundo melhor dia do ano. Meu feriado preferido é o 4 de Julho, pois sempre tomo uma bebedeira e solto rojões. Mas gosto do Dia das Bruxas porque posso me fantasiar e visto algo realmente repulsivo; e quando aparece alguém à minha porta, escancaro-a e faço "hu-hu-hu-hu".

P: Sua vizinhança sabe quem você é e o que você faz?

KING: Sou conhecido como O Escritor antes de ser conhecido como O Escritor de Terror, penso. E creio que na cabeça de todos fervilha a indagação: "Como pode ele escrever tal coisa? Deve ser mórbido ou algo assim. " Claro, sou mesmo (gargalhadas).

A reação é deste tipo. As pessoas são bem-educadas, são amáveis. Tenho alguns amigos de verdade e as outras pessoas... a gente pode ver a pergunta refletida nos olhos delas: "Ele é bom da bola?"

P: Quer dizer que a garotada aparece, você se fantasia e procura assustá-la?

KING:Bem, na realidade não quero deixar nenhuma criancinha com medo. Adoro as criancinhas. Não me passaria pela cabeça fazer uma delas chorar ou algo parecido. É como se você colocasse uma caixa falante sobre o gramado e quando elas estivessem indo embora você dissesse: "Divirtam-se". É muito engraçado, verdade, pois elas pulam mesmo. Eu não haveria de querer saltar da escuridão sobre elas, não seria capaz de fazer uma coisa destas. Porém não me preocupa o fato de pregar-lhes um sustinho.

 

COM MAT SCHAFFER

P: Por que Stephen King goza de tamanha popularidade?

KING:Sei lá! Muitas vezes já fiz esta pergunta a mim mesmo. Creio que seja por eu escrever coisas assustadoras e estarmos vivendo um momento assustador. No entanto muito do que escrevo é mais fantasia e menos ameaçador do que, digamos, a idéia de uma avião coreano ser destruído por um míssil russo, o que parece fantástica. Lastimavel-mente, aconteceu. Em compensação os lobisomens e os vampiros, pelo que nos consta, não aparecem até ficar muito escuro e quando estamos sós. Então a gente começa a acreditar um pouco nisso. Porém acho que isto acontece por ser um susto seguro.

P: Certa vez alguém descreveu um conto de Shirley Jackson como entrar na cozinha e descobrir o terror embaixo da mesa.

KING:Isto me parece maravilhoso e muito brilhante. Gostaria de escrever um conto ou gostaria de transmitir a sensação de alguém entrando na cozinha, uma cozinha banhada de sol, e encontrar uma cabeça decepada sobre a bancada da pia. O mais próximo que já consegui chegar em qualquer um de meus livros — continua sendo uma de minhas cenas preferidas — foi em A Incendiária. Há uma cena quando o marido começa a sentir que alguma coisa terrível aconteceu na sua casa e, ao voltar para lá, constata que tudo está perfeito. Quando se dirige para a lavanderia, tudo está como deveria estar exceto que há... uma impressão digital sangrenta sobre o vidro da porta da secadora. E para mim, esta única impressão digital em meio a toda aquela normalidade resume tudo.

Um autor chamado Dennis Etchison escreveu uma história que sempre me causou inveja. Chamava-se The Late Shift e era sobre uma daquelas lojas que funcionam durante vinte e quatro horas e focalizava o turno das onze às sete. São aquelas pessoas que trabalham em horas tardias. Segundo o escritor, eram todas pessoas mortas que tinham sido reanimadas. Cadáveres ambulantes. Só conhecem umas sete palavras: por favor, obrigado, não posso fazer troco além de 20 dólares. E se já esteve alguma vez numa dessas lojas às duas da manhã, sabe que é exatamente assim que eles agem.

P: Você possui uma habilidade para desencadear o horror ou o terror lançando mão de algo comum, como um Plymouth Fury 1958.

KING:Christine. Creio que qualquer pessoa que tenha tido um carro tão velho quanto este sabe que há muito horror envolvido nele. Na verdade escolhi o Christine por ser um carro comum, que caiu no esquecimento. Não era, de modo algum, um carro clássico dos anos 50. De fato, era bastante exótico para um período que já tinha aqueles Thunderbirds 57 de que todo mundo se lembra, os Chevrolet asas-de-gaivota e outros veículos assim. Porém o máximo foi o fato de que, quando começaram a rodar o filme, só foi possível encontrar cerca de vinte e seis Plymouth Fury 58.

Recebi cartas de uma porção de pessoas referindo-se à sobrecapa posterior dos exemplares em capa dura. Lá estou eu sentado num Plymouth Fury 58. Pensava-se. Porém ficamos sabendo que aquele era um Plymouth Savoy 57. Se você pensa que as pessoas não conhecem carros, devia ter visto as cartas que me enviaram.

P: Há uma sensação de que com coisas normais também se pode produzir terror.

KING:Um dos primeiros conselhos que se escuta numa aula de composição literária é o de escrever sempre sobre aquilo que se conhece. Se eu tivesse realmente feito isso, ninguém teria lido nada do que escrevi, pois o que sei é pouquíssimo. Sou um homem comum. Não posso escrever sobre infidelidade marital porque não ando cometendo isso por aí. Não posso escrever a respeito da loucura porque ainda não cheguei a esse ponto. Você entende o que estou dizendo. Posso escrever sobre cozinhas. Posso escrever a respeito de freqüentar o McDo-nald's. Não posso escrever sobre pedir vinhos finos franceses no Ma Maison porque não conheço nenhum vinho francês. Não posso falar sobre ir até o 7-Eleven e comprar um pacote de seis Buds, ou algo assim. Não posso escrever a respeito de celebridades de Hollywood, pois moro no Maine.

Acho que quando vou para a Califórnia alguém deveria pedir para ver meu passaporte tão logo desço do avião, pois acho tudo muito esquisito. Na verdade, a única coisa que posso fazer é escrever sobre coisas comuns e envolvê-las com o elemento fantasia — atitude que, no meu caso, acaba muitas vezes sendo mórbida.

P: Há alguma área que seja proibida?

KING:Claro, há coisas que não se pode fazer por vários motivos. Algumas porque poderiam tornar-se cômicas sem querer, mas a maioria delas é simplesmente impossível. É impossível na nossa sociedade escrever uma história a respeito da coisa que saiu do vaso sanitário. Não se pode escrever sobre um monstro que tenha algo a ver com as funções excretórias ou algo parecido. Não se pode criar um monstro ranhento. Embora gostasse de fazer isto, este tipo de narrativa não se considera educado. De fato, em A Dança da Morte pelo menos, há muitas pessoas que morrem em meio àquela terrível sujeira. Ora, qualquer pessoa que já teve gripe ou mesmo um resfriado forte sabe disso, mas os críticos caíram de pau em cima de mim por causa disso, apesar de todos nós sabermos o que acontece quando seu nariz começa a escorrer e seu seio nasal fica entupido. Adoraria poder fazer algumas dessas coisas. Penso que existem outras coisas que não se pode fazer e com razão, e grande parte delas tem algo a ver com uma espécie de violência sádica.

P: A Dança da Morte marcou uma saída para você neste ponto, em termos de tema e também de estilo. Em A Dança da Morte você introduziu uma nova maneira de escrever, na qual fez uso de uma porção de personagens e linhas de narração múltiplas. Foi algo que explorou nos dois ou três livros seguintes.

KING:Correto. Isto começou com um único personagem no primeiro rascunho, uma garota chamada Franny Goldsmith. Pensei: "Este livro será muito grande e vai ser ambientado em várias regiões do país. " Que tal construir este livro como uma pirâmide? Inicia com um personagem, a garota Franny, e no capítulo seguinte temos a pequena mais aquele outro camarada, Stu Redman, e no seguinte temos Franny, Stu, mais Larry Underwood, que é o cantor de rock, e assim por diante. Finalmente, todos se reúnem e percebi que tinha nas mãos algo que estava ficando muito, mas muito atravancado mesmo e acabei fazendo algo que era mais parecido com um losango do que com uma pirâmide. Ou seja, encheu até alcançar um determinado ponto e em seguida começou a encolher até atingir um ponto único, que era o clímax. Você está certo, foi um ponto de partida. E explorei isto outra vez em outros livros, porém acho que descobri tal possibilidade de usar essa perspectiva ampla ao redigir minha segunda novela, A Hora do Vampiro.

P: Ao fazer isto parecia que você também tinha alcançado um ponto onde podia, às vezes, se inserir como o autor onipotente, através de apartes narrativos. Trata-se de algo que continuou no seu livro mais recente, O Cemitério. Por exemplo, você interrompe uma frase e fala algo como "Vamos lá, camaradas", e em seguida volta e conclui a frase.

KING:Não quero permanecer muito próximo da história. Ser um escritor é parecido, de certa forma, com uma função divina, e isso é divertido. Você banca Deus. Se está escrevendo um livro, aponta alguém com o dedo, exatamente como Deus, e diz: "Você, seu ignorante, você vai cair fora", e o personagem cai morto.

Recebi muitas cartas sobre o livro Cujo. Nele (mas não no filme) o menino morre e enviaram-me várias cartas indagando: "Como deixou aquilo acontecer?" Foi parecido com as coisas que acontecem na vida real. Minha resposta foi que às vezes as crianças morrem mesmo, morrem no berço, ou são atropeladas por um carro. Que Deus nos ajude, mas chegam até morrer por causa de cães. Veja, o verdadeiro impulso para escrever Cujo surgiu quando eu li uma notícia, num jornal de Portland, Maine, sobre um garoto pequeno que foi atacado e morto por um são-bernardo. Isto porque as criancinhas ficam na linha de visão dos cães e quando se ocupa esta posição os animais se revelam mais perigosos. Portanto, aquelas pessoas me escreveram cartas porque não podiam ter acesso a Deus quando essas coisas aconteciam. Não se pode escrever uma carta a Deus aos cuidados da Viking Press. Assim, elas me escrevem e dizem: "Como pôde deixar aquele garoto morrer?" E tudo que pude responder foi: "Não sou Deus. Limitei-me a escrever aquele livro infernal. Ele morreu. Eu não queria que ele morresse. "

P: Isto nos leva à questão global de como trama seus livros. Você costuma prender uma série de cartões contendo o esboço das cenas principais num painel preso à parede? A trama atinge um ponto onde os personagens realmente assumem o comando, de modo que se o menino em Cujo vai morrer a culpa não é sua? Ele vai simplesmente morrer?

KING:Ele morreu. O modo como esboço os meus livros é o seguinte: primeiro ocorre uma situação, depois surge a cena de abertura e em seguida imagino para onde o tema poderia se desenvolver e como poderia terminar, mesmo se depois acaba de maneira diferente, quando finalmente acaba, como aconteceu no caso de Cujo. Se puder contar com esses elementos, caso já tenha encontrado uma situação, se dispo-nho de uma cena de abertura, se puder prever uma progressão rumo ao fim, então tenho condições de escrever o livro. Os personagens não importam. Os personagens sempre servem à novela tão logo se encaixam na história.

P: Duas coisas de que gosta muito, que vemos em quase todos os seus livros, são as crianças e a música rock and roll.

KING:Sempre desejei ter condições de explorar um pouquinho como a infância é na realidade, pois mentimos para nós mesmos com relação a ela.

Quanto ao rock and roll, o fato é que eu sempre ginguei*. Você se refere à música rock. Minha mãe me deu, no Natal de 1956 ou 1957, um disco do Elvis em 78 rotações. Esse foi o primeiro disco que tive na minha vida. Hound Dog de um lado e Don't Be Cruel do outro. Toquei tanto, mas tanto, que as ranhuras chegaram a desaparecer. Foi como descobrir algo que era muito, muito forte, como uma droga, como um impacto. Tornava-nos maiores do que éramos. Dava-nos a sensação de sermos insubordinados quando isso não era verdade. Depois assistindo a American Bandstand e vendo alguns daqueles figurantes pela primeira vez, pensei: "Meu Deus, esta gente é feia de verdade. Parecem um lixo mesmo.

 

* No original, rocked, o que propicia o aparecimento de um trocadilho em inglês. (N. da T.)

 

São pessoas realmente esquisitas. Pareciam-se comigo!" Contudo a música também as tornava grandes. Simplesmente adoro o rock and roll.

Sou um pioneiro bem modesto. Porém sei, através da correspondência que recebo, que incluo nos livros uma porção de coisas que resultam num choque de reconhecimento para a minha geração que, se assim não fosse, jamais as teria percebido. As pessoas comentavam: "Você mencionou o AC/DC num livro. Como tomou conhecimento do AC/DC?" É como se estivessem admitindo que eram inferiores a qualquer pessoa que se tenha destacado na literatura, a qualquer pessoa que se dê ao trabalho de escrever seja lá o que for. Mas o rock está tão enraizado em mim que na realidade pouco me preocupo.

P: Quantos livros você escreve ao mesmo tempo? Noticiou-se que O Cemitério foi escrito entre 1979 e 1982, e durante este intervalo de tempo você lançou livros.

KING:Procure entender, tudo em mim segue em um caminho sinuoso. Por exemplo, quando se fala de 1979 a 1982 isto não significa um período de trabalho constante. Esbocei-o entre janeiro e maio de 1979. Coloquei-o de lado durante muito tempo. Abandonei o trabalho durante um ano. Pode-se pegar qualquer manuscrito largado, torna-se a lê-lo uma porção de vezes e passa-se então a saber mais sobre ele do que antes. É um ótimo recurso para alguém que pensa ter escrito não só algo bom como também algo ruim. Isto porque se você julga ter escrito algo que realmente é um horror, se consegue resistir àquele impulso inicial de rasgá-lo, de se livrar dele, há a possibilidade de voltar a lê-lo e descobrir que é um pouco melhor do que imaginava. Entre-mentes concluiria outro rascunho e quem sabe passaria a limpo algo como. A Incendiária, que também ficara de lado.

P: Você se sente como se fosse parte de uma tradição, e em caso afirmativo quais são os outros membros dessa tradição?

KING:Sinto-me exatamente assim. Veja bem, descobri Poe quando cursava o primeiro grau, creio, e a partir dele continuei e descobrir gente como Ambrose Bierce e alguns dos outros escritores clássicos de contos, e também H. P. Lovecraft. E logo depois alguns dos modernistas que retiraram a história dos ambientes brumosos e dos castelos para colocá-la nas lojas 7-Eleven e nos subúrbios. Gente como um Richard Matheson e Robert Bloch. E toda essa gente desempenhou sua parte ensinando-me como escrever e também tornou possível para mim ganhar para sobreviver. Eles criaram o gênero.

P: Você pertence a uma tradição de contadores de histórias. Seus livros não só são agradáveis para ler, mas para escutar também.

KING:A história é a única coisa importante. Todo o resto tomará conta de si mesmo. É como aquilo que dizem os lançadores de críquete. Ouve-se os escritores falarem sobre personagem, tema, clima, estilo, sensibilidade ou pessoa. No entanto os lançadores de críquete dizem: se você realiza o supérfluo, os lançamentos tomarão conta de si mesmos. Se você é capaz de contar uma história, tudo mais se torna possível. Porém sem a história, nada feito, pois ninguém quer saber o que sucede aos seus sensíveis personagens se não houver nada acontecendo na história. E o mesmo é verdade no que se refere ao estilo. A história é a única coisa que importa.

P: As pessoas andam em busca de uma boa história por estarem as coisas feias aqui fora?

KING:O mundo é velho e duro. As pessoas estão buscando algo e penso que sempre procuraram a história porque, como elas dizem, se você não sonhar à noite, ficará louco dentro de pouco tempo. Fica-se psicótico. E se não sonhar enquanto está acordado, também. Eis a razão por que Deus lhe deu a imaginação. Você tem que trabalhá-la. Vejamos a situação por um outro prisma. Supõe-se que o sal previna o aparecimento do bócio, que é quando o seu pescoço incha e você fica parecendo um pneu Goodyear. Se você não providenciar sal para essa parte imaginativa, se não alimentar sua imaginação, enlouquecerá num abrir e fechar de olhos. Portanto, todos nós sonhamos e para mim isso é maravilhoso: as pessoas me pagam em troca de todas essas fantasias e eu adoro isso.

 

COM STEPHEN JONES

P: Quanto tempo após a publicação de Carrie, Hollywood mostrou-se interessada em comprar o livro?

KING:Bem, o interesse revelado por Carrie foi imediato. Só em termos de dinheiro é que não era grande. Por isso eles decidiram esperar até o lançamento, para ver se o livro seria um best-seller encadernado e o interesse pelos direitos cinematográficos poderiam se elevar. Quando o livro saiu em capa dura, não foi fraco exatamente, mas também não se mostrou nenhum prodígio de vendas. Foi posto no mercado em abril de 1974, sendo os direitos autorais para o cinema negociados em agosto do mesmo ano. Não foi um ajuste esplêndido, mas consegui uma participação, de forma que o resultado financeiro final foi bom.

Muita gente escreve livros, o cinema os aproveita, e os autores são criticados com uma severidade excessiva. Meu exemplo predileto é O Dia do Golfinho. Nos últimos quinze anos, mais ou menos, não foram muitas as boas histórias de terror que foram transformadas em bons filmes. Logo, estou satisfeito com o meu caso.

P: Alguma vez foi convidado a escrever um roteiro?

KING:Não. Não se interessaram em me conhecer quando adquiriram os direitos de Carrie e é fácil entender isso. Foi Milton Subotsky, na Inglaterra, que me deu a oportunidade de realizar a adaptação de um meu trabalho. Ele adquiriu os direitos autorais de seis histórias de Sombras da Noite para dois filmes, e falou:

— O que me diz de dirigir o filme? Se quiser, será bem-vindo.

Isto foi uma espécie de gozação, quero crer, mas deixou-me apavorado. Veja bem, a coisa é assim: você escreve um livro, e isto é algo que faz sozinho — no seu escritório ou seja lá onde for.

Quando se fala em dirigir um filme, fala-se sobre um "entretenimento em grupo", onde muito dinheiro está em jogo, especialmente no caso de Subotsky, que anda, para início de conversa, numa corda bamba; ele sabe o valor do dólar, e é por isso que faz dinheiro. De certa forma, sinto admiração por ele exatamente por não se permitir qualquer espécie de comodismo. Faz muitos filmes que não dão grande resultado, reconheço, mas também faz outros que são muito lucrativos. A idéia para mim foi apavorante! Tive medo de concordar, não ter tempo para fazer mais nada e de finalmente fracassar. Não me agrada a idéia do fracasso.

Fiz um roteiro para um filme da NBC TV baseado em três das histórias, mas como estão sendo aproveitados, não sei. O roteiro está em Daylight Dead. A Twentieth Century Fox gostou dele, comprou-o. Há cinco anos eu teria condições de lhe afirmar: "Será rodado e você poderá vê-lo na primavera". Mas agora... o clima na televisão norte-americana com relação à violência anda terrível. Não se pode mais mostrar alguém sendo golpeado no rosto — eles cortam a seqüência. Portanto, não sei o que acontecerá com aquele roteiro.

P: Ficou surpreso ao ver que escolheram um diretor do gabarito de Kubrick para fazer O Iluminado!

KING:Não foram eles que o escolheram; ele é que escolheu o livro. Ele e mais um grupo chamado The Production Company, que estava sendo financiado com o dinheiro da Band-Aid da Johnson. Uma senhora chamada Mary Lou Johnson, herdeira da Band-Aid, formou um grupo que adquiriu os direitos e pretendia fazer o filme — provavelmente acabaria sendo uma produção do Producer's Circle-Lew Grade, como Os Meninos do Brasil ou Resgatem o Titanic! Kubrick leu o livro, resolveu filmá-lo e tinha, na ocasião, um contrato para dirigir três filmes da Warner Brothers; Bany Lyndon era um deles, acho que A Laranja Mecânica era outro, e o meu seria o terceiro. Ele declarou que desejava filmá-lo e o Producer's Circle lhe vendeu os direitos. Kubrick falava coisas agradáveis a respeito do livro. Aparentemente, tinha lido antes vários outros e se limitara a pô-lo de lado. Ouvi isto de uma terceira pessoa, alguém com quem ele tinha colaborado no passado: Kubrick surgiu como um furacão, sacudindo o livro e resolvendo: "Vai ser este aqui. É ele! Tratem de negociá-lo. Fechem o negócio!"

P: Voltando aos seus livros... Quanto tempo após o lançamento seus romances se transformaram em best-sellersl

KING:O Iluminado foi o primeiro best-sellers em capa dura. Um best-seller em todos os sentidos da palavra, não só aqui mas também na Inglaterra. Carrie em brochura — não me conheciam ainda, eu era um joão-ninguém — vendeu cerca de 1, 3 milhão de exemplares e depois do filme lançado ele foi direto para as alturas. E A Hora do Vampiro vendeu bem. Ao que tudo indica, os livros atraíram muito as pessoas mais jovens, que não dispõem de meios para adquirir exemplares em capa dura — não as compram —, só as brochuras.

P: Prefere a extensão do maior romance para desenvolver suas idéias?

KING:Adoraria escrever mais alguns contos. Não paro de repetir que no inverno pretendo acabar com todas as novelas, concluir aquelas que estou trabalhando, e durante quatro meses escrever apenas contos — mas isso simplesmente nunca acontece.

P: Você continuará a escrever o gênero terror-fantasia ou acha que passará, eventualmente, para uma ficção mais amena?

KING:Escrevo aquilo que me vem à cabeça. Na época em que Carrie foi lançado, já tinha escrito dois romances no estilo mais corrente e ainda não publiquei nenhum dos dois. Deixo-os de lado por não ter certeza de como serão recebidos. Suponho tratar-se de uma decisão sobretudo comercial. Gosto deles. Ora, eu os escrevi, portanto devo gostar deles. Veja bem, uma das coisas que vai acontecer é que algum dia acordarei e simplesmente não vou ter vontade de escrever mais sobre horror ou viagens fantásticas, ou seja lá o que for. Então, com toda a probabilidade, escreverei The Man in the Grey Flannel Suit, tomarei o metrô e nunca mais ouvirão falar de mim!

 

COM MARTY KETCHUM, PAT CADIGAN E LEWIS SHINER

P: Quanto tempo levou trabalhando em A Dança da Morte?

KING:Trabalhei nele cerca de três anos. Tinha que ser igual ao Vietnã. Após algum tempo eu me sentia como Lyndon Johnson, dizendo para mim mesmo: "Bem, outras cem páginas e verei a luz no final do túnel. " E assim a coisa foi indo e ao terminar eram 1. 400 páginas. Pus-me então a fazer cortes e mais cortes e mais cortes. Finalmente, quando chegou à Doubleday eles disseram:

— Como você não deve ignorar, isto vai sair por um preço exorbitante e vai afetar a comercialização do livro.

— Ora, santo Deus, pouco me importa! Se afetar o livro, que afete, afinal o livro é meu, que inferno! — respondi. E chegamos a uma espécie de acordo, que é como tudo acaba sempre. Mas ele continua sendo um livro bem grande.

P: O bem e o mal estão se tornando mais populares no seu trabalho?

KING:Ninguém nesta área se refere ao bem. Todo mundo fala do mal. O mal é uma força sobremodo atraente — uma força tremendamente poderosa. Ultimamente temos um maior número de livros onde o mal vence, onde o mal comprova ser o mais forte. O Bebê de Rosemary é um deles. E até mesmo O Exorcista, sobre o qual é muito difícil dizer o que acontece no fim. O padre morre, isso é mais do que certo.

Não vejo o bem como uma força inteiramente cristã. Contudo, considero-o imaculado. Imaculado. De fato tremendamente poderoso, algo que nos atropelaria se nos puséssemos no seu caminho.

P: Em A Hora do Vampiro, quando as cruzes estão brilhando, eles percebem que o brilho não é...

KING:... uma coisa cristã. Mas também é isso. Faz parte disso. As pessoas dizem que Tolkien jamais é tão bom com seus bons parceiros, como Gandalf, como o era com coisas como a aranha e Mordor, porém Tolkien é danado de bom para produzir aquela outra força. Concordo que o bem nem sempre é interessante, mas sempre está lá.

P: Você diria que está tentando apresentar essas forças de um modo realista, bem mais do que como mera fantasia?

KING:O lado que se opõe à fantasia neste caso é... a sociologia. À medida que avançava em A Dança da Morte fui ficando cada vez mais e mais interessado no fato de que se quase todos morressem, imagine só tudo que ficaria para trás. Não estou simplesmente me referindo ao bife enlatado Dinty Moore. Refiro-me a armas nucleares e coisas assim. Seria possível ter uma sociedade num lugar como Schenectady e uma outra num local como Boston e elas poderiam iniciar um debate teológico e terminar cambiando, literalmente, armas nucleares. Veja bem, tais desastres não são tão difíceis de acontecer. Se você pegasse um cara de Ma Bell, ou um de Con Edison ou algum lugar semelhante, e lhe entregasse um míssil com o painel de instrumentos, ele poderia acioná-lo. Talvez levasse algum tempo, mas não ia demorar muito. Por isso mesmo alguém poderia pegar uma ogiva nuclear, cercá-la de dinamite e talvez ela explodisse.

P: Você teve alguma ligação com o filme Carrie?*

 

* Intitulado no Brasil Carrie, a Estranha.

 

KING:Bem, o departamento de direitos subsidiários da Doubleday apareceu com três pessoas que o queriam comprar e julguei Monash o melhor das três. Após a compra, me disseram:

— Quem escolheria para dirigi-lo, se tivesse essa possibilidade?

— Há um camarada chamado Brian De Palma que fez um filme intitulado Irmãs Diabólicas. Era um monstro assustador.

P: Sente-se inclinado a dirigir?

KING:Sim, mas tenho medo. Há muito dinheiro envolvido e se eu fizer uma porcaria qualquer, será mesmo uma porcaria e todos voltarão para suas casas com fome. Quando se está sozinho, se está sozinho mesmo.

Completei trinta e um anos e não sei por quanto tempo mais estarei vivo. Tem um livro que, já fazem dois anos, estou querendo escrever, e ainda não encontrei tempo disponível. É um livro sobre... Brrr. Apavorante. Sobre uma — uma coisa numa espécie de sistema subterrâneo. Trata-se de um plano de ação assustador e ainda não achei tempo para escrevê-lo.

Se a gente se envolver na droga do filme, isto pode perdurar para todo o sempre. Eles ficam se movimentando em círculos, o que é muito destrutivo.

Gostaria de tentar. Gostaria de descobrir se sou bom nisso. Porém, nunca fui muito bom em tarefas administrativas. Fui o editor do jornal da minha escola e conseguimos publicar apenas um número naquele ano. Foi um bom número!

P: Qual foi sua primeira reação ao ver Carrie como filme?

KING:Esta é uma história muito estranha, pois a sala de projeção onde vi Carrie pela primeira vez era a mesma que costumava freqüentar, uns cinco anos antes, quando estava na faculdade. A United Artists empenhou-se ao máximo para levar bastante alunos das faculdades espalhadas pela Costa Leste para assistirem a dois filmes fracassados. Tinham consciência de que os filmes eram ruins de verdade, estavam fadados ao fracasso e pensaram que se tivessem habilidade suficiente para patrocinar a presença de alguns escritores da faculdade, eles fariam críticas favoráveis por gratidão. Mas simplesmente subestimaram a habilidade dos escritores de faculdade para morder a mão dos que os alimenta.

Portanto sentei-me no cinema entre duas lojas pornôs da Broad-way e pensei: "A história vai se repetir, esta será a terceira vez, este filme vai ser mesmo uma grossa porcaria, um fracasso total. "

Achei-o realmente muito bom. Contudo, perdi aquela primeira impressão agora, pois já vi o filme umas cinco vezes. Nunca mais quero tornar a vê-lo. Quando passou na televisão, mudei de canal e assisti às partidas de desempate do beisebol.

P: E o que me diz do O Iluminado?

KING:O Iluminado começou bem e foi assim até o fim. Não sabia o que ia acontecer até surgir a palavra Fim na tela. Isto acontece também no livro. O plano original era para todos morrerem e Danny se transformar na força controladora do hotel depois de morto. E a força sobrenatural do hotel iria crescer cada vez mais.

P: A seu ver, isso estava certo?

KING:Não. Mas ainda que me parecesse certo, ao alcançar o final do livro eu não faria mais modificação alguma. Mas fiquei ligado ao garoto. No primeiro rascunho do livro, Jack espanca sua mulher até a morte com uma marreta e havia sangue, pedaços de cérebro e tudo mais. Era realmente horrível e não consegui fazer o que pretendia. Não podia deixar o livro daquele jeito.

P: Kubrick teve carta branca com O Iluminado?

KING: Totalmente. Chamou-me, pediu minha opinião e eu não parava de lhe dizer, mas poucas vezes conversei com ele:

— Olhe. Isto é um filme. Você faz o seu filme.

Acho tolice os autores se oporem a pequenas alterações para a filmagem. Se não querem que isto seja feito, por que razão vendem os direitos? Adoro o cinema.

Jerzy Kosinski nunca vendeu direitos autorais para o cinema. Não quer, de modo algum, ver seus livros transformados em filmes.

P: Pode imaginar o The Painted Bird como filme?

KING:Fizeram-lhe uma oferta! Mas uma história muda e deve mudar. É direito que assim seja.

Gosto de cinema. Porém há coisas que me recuso a fazer. Jon Peters queria adquirir os direitos de Zona Moita*. Não podia nem imaginar, pois ele me deixa nervoso. Na minha opinião ele faz cinema apenas para ter o que fazer. Assisti a Os Olhos de Laura Mars e nada senti, e com Nasce uma Estrela foi a mesma coisa. Em outras palavras, não se negociam os direitos autorais só para ganhar dinheiro; procura-se vendê-los para alguém realizar um bom trabalho.

 

*   Os direitos acabaram sendo comprados por Debra Hille e filmado em 85 sob a direção de David Cronenberg. No Brasil, foi intitulado A Hora da Zona Morta.

 

P: Isto quer dizer que, se não gostasse do Kubrick, não lhe teria vendido os direitos autorais?

KING:Bem, eu não tive escolha. Não me encontrava numa boa situação quando os direitos autorais foram negociados.

P: Você tem preferências com relação ao elenco?

KING:Claro que sim. Queria uma porção de gente diferente que não estava "bancável". Eles usaram esta palavra, "bancável". Um cara chamado Michael Moriarty teria desempenhado bem o papel de Jack Torrance. Também pensei em Martin Sheen para esse papel.

P: A Warner não detém igualmente os direitos de A Hora do Vampiro?

KING: Sim. Finalmente vieram me procurar para conversarmos a respeito e eu falei:

—  Não vou intervir nisso. Consigam o Richard Matheson para realizar o filme. Ele afirma que sabe como pode ser feito e gostaria de fazê-lo.

Porém eles não querem. É algo quase intencional. Não querem procurar a pessoa capaz de fazê-lo. Querem entregar tudo a Sterling Silliphant.

Ainda ontem à noite declarei que Matheson é o melhor roteirista de Hollywood e alguém perguntou:

— E que tal Paul Schrader?

E concordei, Paul Schrader é muito bom, embora não seja forte em motivação. O Matheson é esplêndido e apesar disso jamais fez um trabalho importante no cinema, nunca. Podia fazer filmes, mas eles não querem lhe dar uma oportunidade.

P: Até que ponto se planeja antes?

KING: Tenho uma idéia daquilo que pode acontecer. Sei que vai acabar, provavelmente, havendo algumas variações. A mesma coisa aconteceu em A Hora do Vampiro. O livro era uma homenagem a Drácula e em Drácula todos ficam vivos à exceção de Quincy, que desiste de viver já próximo ao final. Todos deviam morrer, exceto o escritor, que ia ser carregado para fora da cidade por todos aqueles vampiros. E... apaixonei-me pelo garotinho, meu personagem, não pude abandoná-lo e ele terminou acompanhando o escritor.

Desde então as pessoas me dizem que escrevi um relacionamento homossexual clássico. Pois digo que é uma asneira, trata-se de um relacionamento pai-filho.

P: Você molda seus personagens de acordo com pessoas que conhece?

KING:São pedaços maiores ou menores de várias pessoas que conheço. Havia realmente um Weasel Graig, é um cara de verdade. Ele costumava andar de bar em bar e voltava — devia ter uns sessenta e cinco anos, um alcoólatra completo, indo para o inferno a não ser por seus cabelos brancos, que mantinha penteados para trás como o Elvis Presley, e aquela jaqueta de motociclista com uma infinidade de zíperes —, e costumava voltar com uma daquelas garotas de seios enormes, quero dizer, gigantescos, e ouvia-se o ranger das molas da cama a noite inteira, crash... crash... crash... é realmente gozado.

P: Você tem uma técnica especial para criar medo?

KING:Para dizer a verdade, não. Tudo que procuro é gerar simpatia para os meus personagens, em seguida solto os monstros.

 

COM WALDENBOOKS

KING:Já me perguntaram se Quatro Estações, meu livro com quatro novelas curtas, significa ter colocado um ponto final no meu interesse com relação a temas tumultuados e mentalmente edificantes como os de fantasmas, vampiros e outras coisas indescritíveis escondendo-se nos armários das criancinhas. Afinal, as pessoas que formulam as perguntas salientam o seguinte: três das quatro novelas focalizam assuntos que nada têm a ver com terror — fuga da prisão, garotinhos cuja curiosidade talvez seja excessiva demais para seu próprio bem, mais garotinhos numa improvável — porém inteiramente possível — indagação. Minha resposta é resaltar que a quarta história de Different Seasons / Quatro Estações (que meu caçula, Owen, insiste em chamar de Dijferent Sneezes) é bastante hedionda. Refere-se a um médico, um clube masculino muito peculiar e uma mãe solteira profundamente determinada a dar à luz o seu bebê.

Não, sempre fui um adepto das Bruxas e acho que sempre o serei. Sobre minha escrivaninha tenho um vampiro hematófago e uma cascavel — ambos felizmente empalhados — veja só. No entanto não creio que haja alguém que se restrinja a escrever somente um tipo de ficção o tempo todo. Herman Wouk, autor de épicos soturnos e impetuosos como The Winds of War e The Caine Mutiny, também escreveu uma história hilariante para crianças, The City Boy. Gregory McDonald, conhecido por aqueles dois detetives inverossímeis Fletch e Flynn, escreveu uma divertida novela sobre um colunista de corações solitários num jornal da cidade (Love Among the Mashed Potatoes). Os fãs de Travis McGee talvez fiquem surpreendidos ao tomarem conhecimento que John D. MacDonald escreveu uma boa quantidade de ficção científica, inclusive duas novelas desse gênero tremendamente boas (Wine of the Dreamers, Ballroom of the Skies). E Evan Hunter (também conhecido como Ed McBain), que é muitas vezes associado com o mundo decidido do crime urbano numa cortesia à Delegacia 87, escreveu no mínimo uma história de bangue-bangue (The Chisolms) e uma ficção científica (Find the Feathered Serpent).

Escritores de coisas horripilantes também costumam andar na linha. Richard Matheson, que criou vampiros aos montes em Eu sou a Lenda (filmado como A Última Esperança da Terra, com Charlton Heston) e é o autor de incontáveis contos clássicos {Encurralado, por exemplo, que se transformou no clássico filme do mesmo nome, de Steven Spielberg) na área do terror, publicou uma novela de guerra

(Beardless Warriors). Roald Dahl, inicialmente famoso por suas histórias sombriamente irônicas em Kiss Kiss e Someone Like You, é atualmente muito conhecido por suas inocentes narrações para crianças.

A questão é esta: quando se vive mergulhado na própria imaginação durante muito tempo, ela pode levar para qualquer lugar — qualquer lugar mesmo. As quatro histórias em Quatro Estações foram escritas por amor, não por dinheiro; e, de um modo geral, nos intervalos de outros projetos literários. Creio que transmitem uma sensação agradável e leve — inclusive nos seus momentos mais sombrios (não consegui me afastar totalmente do horror, mesmo aqui — há uma cena numa das histórias na qual um sujeito atira um gato dentro do forno e assa-o — fica avisado), há algo, espero, revelando que o autor estava se divertindo, soltando-se, sem se preocupar como o contador de histórias mas somente com as histórias em si.

Diverti-me um pouco com elas e isto é, de um modo geral, um bom sinal de que o leitor também se divertirá. Seja lá como for, espero que sim. Por enquanto é só, creio, e permita-me encerrar com apenas uma palavra cordial de advertência: lembre-se de que, ao apagar a luz esta noite e se enfiar na cama, qualquer coisa pode estar embaixo dela — qualquer coisa mesmo.

 

HORRORES HOLLYWOODIANOS

Brian De Palma realizou um bom trabalho no Carrie. Quando se pensa em todos os filmes horríveis feitos com livros recentes, tenho a sensação de que o meu não saiu tão ruim assim. O personagem de Carrie baseou-se numa garota que freqüentou a escola comigo e em algumas estudantes do segundo grau que foram minhas alunas, aquelas que eram sempre vítimas de implicâncias e, eventualmente, afastaram-se da escola porque não suportavam mais.

 

COMBHOB STEWART

P: Qual é a origem da frase "O Iluminado" como descrição de um poder sobrenatural?

KING:A origem é uma canção de John Lennon e da Plastic Ono Band denominada Instant Kanna. O estribilho dizia "We ali shine on". Usei-o porque gostei de verdade da imagem. O nome de The Shining* inicialmente era The Shine, mas me disseram:

 

*Título original de O Iluminado.

 

— Não pode usar isto porque é uma palavra pejorativa para negro. Como ninguém gosta de ser alvo de piadas, eu disse:

— Tudo bem, vamos mudá-lo. Mudaremos para o quê?

— O que acha de The Shining'! — perguntaram-me.

— Soa um tanto estranho. Porém eles retrucaram:

— Alcança o objetivo, e não precisaremos fazer modificações importantes no livro.

Assim foi feito e ele se tornou TJie Shining em vez de 77ie Shine.

P: Qual foi o escritor que trabalhou no roteiro de O Iluminado com Kubrick?

KING: Diane Johnson. Ela escreveu um livro chamado Tlie Shadow Kiwws (O Sombra Sabe). E acaba de lançar outro este ano. É uma boa escritora. De quando em quando escreve críticas para Tlie York Times BookReview; não faz muito tempo saiu uma crítica dela a respeito de um livro de cartas de ou sobre William Butler Yeats. É uma mulher profundamente inteligente.

P: Qual é o nome do seu roteiro sobre a estação de rádio assombrada?

KING:Não tem título. Penso que o título perfeito seria algo que tivesse quatro letras, mas não consigo imaginar um boa palavra — Como W e alguma coisa mais — iria ser horripilante. Meu Deus, mas que idéia maravilhosa!

P: Ah, você se refere a um título feito com as letras do prefixo de uma estação de rádio — como a wusa de Robert Stone?

KING: Sim. É isso mesmo! Assim mesmo! Apenas eu gostaria de poder fazer alguma coisa ...

P: Ah, como WEIR?

 

*Trocadilho com "Weird" (misterioso, sobrenatural)

 

KING:  Sim, WE1R. Este nome seria muito bom. Sim. É baseado nessa estação de rádio automatizada. Eles funcionam de modo inteiramente automatizado. Eles têm aqueles rolos compridíssimos de fita que fazem tudo. Entram em ação na hora exata. Fazem rosquinhas para o anunciante que surge dando a previsão do tempo. Porém trata-se especialmente disto: "Não se sentem felizes por estarem sintonizados na WEIR?... Ei! Esta é a WEIR, seu canalha idiota. Você vai morrer esta noite". Ironia desse tipo numa voz melodiosa.

P: No presente momento há alguém interessado nisso?

KING:Preciso terminá-lo. Não estou tentando fazer nada com ele a não ser concluí-lo. De vez em quando pego-o e conserto daqui, dali, mas na verdade não me parece que já tenha o necessário, a mola propulsora por assim dizer. Não há qualquer tipo de excitação. Estou com a idéia na cabeça, apenas não me parece que a tenha captado inteiramente.

P: Sombras da Noite é onde se nota mais a influência de E.C., contudo você ainda era muito jovem o E. C. Comics estava nas bancas de jornais durante os primeiros anos da década de 50, certo?

KING: Eu costumava comprar algumas revistas em quadrinhos; não creio que fossem E.C., mas costumava comprá-las com as capas rasgadas. Sempre havia alguém sendo esquartejado, atirado sobre grades de churrasqueiras e assado vivo. Na minha opinião as revistas em quadrinhos surgiram antes de 1955. Devo tê-las comprado, digamos no período entre 1958 e 1960. No entanto, isto não significa que não estivessem guardadas na casa de algum cara.

P: Qual foi a primeira vez que ficou ciente da existência de E.C.?

KING:Acho que devo ter trocado revistas por aí quando era menor. Não posso dizer com certeza quando tomei ciência delas. As pessoas conversavam sobre elas e quando se encontrava algumas, comprava-se — mesmo que custassem um dólar. Naquela época era possível comprar três por um dólar; atualmente custam muito mais. E.C. começou a produzir histórias sobrenaturais depois do pior holocausto que jamais se presenciou — a Segunda Gerra Mundial, o assassinato de 6 milhões de judeus e os bombardeios de Hiroxima e Nagasáqui. De repente, Lovecraft, os horrores barrocos e o fantasma de M. R. James, de que você já ouviu falar, começaram a parecer muito suaves. As pessoas passaram a falar mais sobre horrores físicos — os mortos-vi-vos, a coisa que sai da tumba.

P: Em criança você leu Casíle of Frankensteinl

KING:Sim, claro que sim. Tinha uns sete ou oito exemplares seguidos e não sei onde foram parar. Para todos os fãs esta é uma cantilena antiga e triste, mas tinha-os todos. Era a melhor dentre todas as revistas de monstros, não havia termos de comparação. Penso, provavelmente como aconteceu à maioria de nós, que deparei primeiro com Famous MonsterofFilmland. Descobri esta revista numa prateleira de farmácia certo dia e transformei-me no seu mais ardente fã. Mal podia esperar pelo lançamento de mais uma. E, depois, quando surgiu Castle of Frankenstein, percebi haver um assunto inteiramente diverso: na verdade, críticas de filmes responsáveis. A coisa que mais me deixou impressionado, realmente, foi o quanto eram pequeninos os tipos. Bem era um amontoado de letras; havia uma quantidade enorme de material escrito. Os desenhos tornavam-se secundários.

P: Eu era o editor.

KING:Era mesmo? Sinto-me duplamente feliz por tê-lo conhecido. Castle of Frankenstein era tão grosso, tão polpudo, que se podia levar uma semana inteira a ler. Costumava lê-lo de capa a capa e não creio que estivesse sozinho nisto. Tinha uma coluna maravilhosa sobre livros que focalizava Russell Kirk e outros escritores e que, simplesmente, não terminava nunca. Havia um projeto esplêndido segundo o qual os filmes de terror de todos os tempos iriam ser catalogados.

P: Nunca Ultrapassamos a letra R na listagem alfabética. Você credita os filmes como uma fonte para sua literatura, porém como pode isto ser aplicado à sintaxe e ao estilo? Qual o exemplo que poderia dar e como você seria capaz de traduzir a gramática cinematográfica em ficção?

KING:Talvez o melhor exemplo fosse O Iluminado. Cada capítulo era uma cena limitada a um lugar — e cada cena se passava num lugar diferente, até quase o fim, quando se transformou mesmo num filme e você vai ao lado de fora para o trecho onde Hallorann está atravessando o campo no seu carro de neve. Neste ponto é quase possível ver-se a câmera lado a lado com ele.

Você aprende a sintaxe e a gramática através de suas leituras e não as estuda na realidade. Elas simplesmente parecem estabelecer-se na sua mente depois de algum tempo porque já leu o bastante. Se você me desse agora uma frase com uma oração subordinada, não estou certo da minha capacidade para diagramá-la no papel, porém saberia lhe dizer se estava correta ou não, pois isto é o que se fixou na minha mente. Contudo, para visualizar de modo tão forte: quando menino, lá em Connecticut, assisti ao Million Dollar Aíovie sem parar. Você começa a ver as coisas à medida que redige... numa moldura como uma tela cinematogrática.

Embora nem sempre possa ver qual a aparência dos personagens, sempre sei diferençar o lado direito do esquerdo em qualquer cena e sei qual é a distância existente até a porta e as janelas, o quanto elas estão separadas e a porfundidade-de-área. O modo como você veria o todo num filme, no The Blue Dahlia ou algo desse tipo.

P: Se visualiza isto com um foco acentuado e profundidade-de-área, então por que afirma não saber qual é a aparência dos personagens?

KlNG: A aparência deles não é muito importante para mim. Não há necessidade de ser John Wayne em Bravura Indômita. Não precisa ser Boris Karloff como o monstro de Frankenstein. A meu ver isto não tem a mínima importância. Alguns atores são melhores do que outros: Lugosi, na minha opinião, foi terrível no papel de Drácula. Estava indo muito bem até abrir a boca e então explodi em gargalhadas.

P: Quando está escrevendo, deixa-se levar, alguma vez, pelos estilos dos diversos diretores?

KING:Não, de modo algum. Muito raramente chego a pensar em algo desse tipo. Uma das coisas mais estranhas que me aconteceu foi o fato de ter sido desancado pelo exemplar dominical de 77ie New York Times por causa de O Iluminado; tive uma crítica realmente terrível onde fui acusado de ter plagiado filmes estrangeiros de suspense. Creio que um deles ioiA Faca na Água e outro Perigo: Diabolik.

P: Por causa do corpo na banheira?

KING:O mais engraçado sobre a crítica é que, meu Deus, eu moro em Maine! Os únicos filmes estrangeiros que nós conhecemos são os filmes suecos de sexo. Nunca assisti ao Diabolik; jamais vi um desses filmes. Se produzi algo parecido com eles, foi apenas devido ao fato de que existem determinadas coisas que se podem fazer na área do terror. Seus movimentos são tão estilizados quanto os da dança num castelo bárbaro onde à noite se ouvem os ruídos de correntes arrastadas. Em O Iluminado, em vez de um castelo bárbaro tem-se um hotel bárbaro, e no lugar de correntes sendo arrastadas no porão, o elevador sobe e desce — o que é um outro tipo de arrastar de correntes.

Quando se tornou público que Sissy Spacek faria o papel-título de Carrie, muita gente me disse:

— Não lhe parece que houve um engano na escolha do elenco?

Isto porque Carrie é apresentada no livro como uma menina atarracada, forte, apática, com cara de pudim, que é transformada no baile da escola e fica bonita. Pouco me importava qual era a aparência dela desde que pudesse parecer um tanto feia antes e depois ficar bonita no baile. Podia ter cabelos castanhos, ou ruivos, ou de qualquer outra tonalidade, e realmente não importava quem fosse a escolhida... porque não tenho uma imagem muito nítida da personagem. Contudo, creio, tinha uma imagem perfeita do coração dela. E isto é importante para mim. Quero saber o que meus personagens sentem e o que os faz se movimentarem.

P: Está mais do que patente que a sobrecapa da edição Carrie em capa dura nada tem a ver com o livro.

KING:Sim, não tem mesmo. Meu editor e eu tínhamos nossas próprias idéias com relação a isso, mas o Bill Thompson, meu editor, era um homem com muito pouca iniluência na Doubleday e isto se manifestava de modo mesquinho e risível. Quando deixei a editora, eles o expulsaram de lá. Foi como um assomo de cólera:

— Mataremos o mensageiro que nos trouxe as más notícias.

Nossa idéia para a sobrecapa era colocar uma reprodução de um quadro primitivo do tipo Grandma Moses, retratando um vilarejo da Nova Inglaterra que deveria se destacar, ocupando também um pouco da parte posterior. Porém a sobrecapa foi entregue a Alex Golfryd, que tem uma força incrível na Doubleday. O que resultou foi a fotografia de uma modelo de Nova Iorque que parece exatamente uma modelo de Nova Iorque. Nem ao menos parece uma adolescente.

P: O que acha da montagem de capa dura de O Iluminado?

KING:Isto também pouco me importa. Faz as pessoas parecerem peculiares demais. Trata-se quase de uma capa medieval. Há algumas coisas interessantes com relação àquela capa: não concordo com os rostos de Jack, Wendy c do menininho, porém me agrada a concepção dos animais confinados. A edição cm capa dura de Sombras da Noite tem uma sobrecapa clássica na qual se empregou apenas palavras, porém é bem o tipo de sobrecapa usado pela Doubleday quando não espera tirar bons lucros com a obra. Não há nada realmente excitante naquele desenho.

P: A paisagem distante da cidade na sobrecapa da edição encadernada de^4 Hora do Vampiro não dá a menor dica sobre a verdadeira natureza do livro.

KING:Parece-me que isso foi proposital. As orelhas nos exemplares de^l Hora do Vampiro foram redigidas numa verdadeira colaboração: meu editor escreveu uma parte, eu escrevi outra, a secretária do editor uma outra e a última coube à minha mulher escrever. Tratou-se apenas de um esforço no sentido de dizer algo sem dizer nada. De todas as sobrecapas da Doubleday, acho que a que mais me agrada é a de A Dança da Morte, mas A Hora do Vampiro disputa minha preferência quase que photochan. Gosto da idéia do fundo negro com a cidade colocada dentro de uma letra do título, olha-se a cidade e se vê a casa de Marstcn. Aquela é uma sobrecapa muito boa mesmo. Foi o melhor livro produzido pela Doubleday; em tudo e por tudo, foi um bom trabalho, A ilustração para a sobrecapa de^4 Dança da Morte foi tirada de um quadro de Goya, o Combate entre o Bem e o Mal, repintado. Fiquei alucinado por não terem dado um crédito sequer para o pobrezinho do Goya. Há muita gente com uma mentalidade demasiado literal, um tanto exigente com relação às sobrecapas de livros, que não gosta delas declarando que não se parecem com o assunto da obra. Mas elas sempre se parecem com aquilo que habita o espírito do livro. A sobrecapa de A Dança da Morte, editado pela New American Library, é soberba. Acho-a muito boa; agradam-me as tonalidades azuis profundas e os turquezas ali presentes. As capas das brochuras sempre foram melhores porque as pessoas envolvidas neste tipo de editoração parecem entender mais de como comercializar livros, como agir com relação a eles. Nas brochuras os ilustradores e desenhistas não são citados, como acontece nos casos das edições encadernadas.

P: Depois há a de O Iluminado em mylar...

KING:Exceto por não ter tido continuidade, como ocorreu com a sobrecapa toda negra, sem mais nada, na parte posterior de A Hora do Vampiro. Todas as duas foram sobrecapas caras, a de A Hora do Vampiro custa 7 cents de direitos num livro inicialmente vendido por 6,95 dólares. O Mylar custava 9 centavos e, além disto, a capa feita com este material deteriora-se depressa. Não descasca, porém as letras e a ilustração desaparecem gradativamente.

Atualmente usa-se uma sobrecapa em papel comum com a mesma ilustração; não é atraente, mas sua duração é maior.

Há pessoas que guardam estes exemplares originais como se fossem tesouros; algum dia, quem sabe, valerão alguma coisa, sobretudo aqueles que estiverem em boas condições, pois os que forem lidos ficarão logo com as sobrecapas surradas. O uso de mylar foi suspenso porque não só se estragava nas mãos das pessoas, mas também nas caixas quando o livros eram transportados. Também gosto da capa da edição em brochura de Sombras da Noite; tem uma tonalidade azul profunda, escura e linda. Algumas edições estão perfeitas, mas em outras os buraco não coincidem com os olhos. Esta também foi difícil de fazer; parece algo como ser inteligente demais pela metade.

P: O que havia cm Canie antes do cinema comprar os direitos?

KING:Essa sobrccapa saiu totalmente de produção. A capa original não levava título, nem autor, nenhum tipo de material impresso na parte anterior. Limitava-se a exibir a cabeça de uma menina flutuando de encontro ao fundo azul — uma pequena bonita, com cabelos muito escuros, penteados para trás; era um pintura, aliás muito bonita. Dentro, havia uma segunda capa — originalmente, era para ser feita em degrade, resultando num efeito duplo; o título Carrie, impresso verticalmente na margem direita, devia sobressair e, no último minuto, a gráfica comunicou ser impossível executá-la. Na parte interna está a cidade em chamas, produzindo um efeito interessante. Você chega ao fim do livro c lá está uma fotografia, naquilo que eles denominam "terceira capa", da mesma cidade transformando-se em um monte de cinzas. Não sei se isto já foi feito antes: colocar uma fotografia diferente por dentro da capa posterior. As fotos eram de labaredas e de uma cidade em maquete que parecia ser uma daquelas coisas de origami elaboradas com papelão.

P: O Estúdio ONE + ONE projetou para Zona Morta (da Viking) uma repetitiva Roda da Fortuna, muito usada em todo o livro.

KING:Gostei bastante daquela capa. Foi, em grande parte, responsável pelo sucesso obtido pelo livro porque é um tipo sobremodo contrastante, algo que eu creio, a Viking talvez tenha tirado de uma daquelas casas de brochuras. Ela chama a atenção do leitor devido à grande quantidade de preto utilizado na elaboração. O que não me agrada é o efeito fotográfico; nunca dei grande importância às capas fotografadas. Nem mesmo sei explicar o porquê disto, mas me parecem excessivamente realistas. Teria apreciado ainda mais aquela capa se fosse usado o mesmo desenho, porém pintado.

Depois de lançar seis livros, seus sentimentos ficam misturados. A Hora do Vampiro foi o mais produzido daqueles editados pela Double-day; Sombras da Noite seria o segundo e, provavelmente, O iluminado o terceiro. De toda a minha obra, Zona Morta é a que teve a melhor produção. Porém, foi mais do que somente a capa. Esta é algo que, espera-se, leva o leitor que desconhece a obra a olhar o livro. Contudo, é bastante provável que não signifique tanto para as pessoas que já tiveram algum contato com a minha obra. Se elas realmente procuram estar a par daquilo que se publica, procuram o nome e é nessa base que comprarão o livro. Como acontece com o novo álbum do Led Zeppelin, elaborado em aniagem e tendo "Led Zeppclin" impresso na parte dianteira — você compra o nome. Gosto dos livros feitos com cuidado e, à exceção de A Hora do Vampiro e Sombras da Noite, nenhum dos livros publicados pela Doublcday mereceu uma elaboração especial. Eles têm um aspecto de produto feito à máquina, aba-gunçado, como se fossem destinados a serem despedaçados. Sob este aspecto, o A Dança da Moiíc é o pior: parece um tijolo. Uma coisinha insignificante parecendo bem maior do que é. O Zona Moria é realmente bonito em tudo e por tudo. Tem uma boa encadernação em tecido e 6 um excelente produto!

P: Em Strawbeny Spring você escreveu sobre Springhcel Jack. As poucas referências a respeito de Springheel Jack que já encontrei revelam que ele foi uma personalidade britânica legendária que era luminoso e foi visto dando saltos de oito a dez metros.

KING:Sim. É ele mesmo! Ele mesmo! Meu Springheel Jack é um cruzamento de Jack o Estripador com um estrangulador mitológico — como Burke e Hare ou alguém desse tipo.

P: Você embelezou a história.

KING:Sim, está certo, fiz isto. Robert Bloch também o fez e menciona Springheel Jack num terceiro contexto. Ele é como o Homem-Borra-cha ou o Super-Homem — um fantástico herói folclórico.

P: Parece-me um livro sobre UFO, de não-ficção, onde deparei primeiro com uma descrição dele sugerindo que seria...

KING:  ...uma criatura do espaço exterior.

P: O que aconteceu à antologia piloto de Sombras da Noite da TV (uma trilogia planejada com Strawbeny Spring, I Kjww Wliat You Need e Battleground)?

KING:Não vai ser realizada para a televisão porque a NBC vetou o projeto... Violento demais, hediondo em excesso, demasiado forte. Este é o clima atual na televisão; há cinco anos seria realizado, mas o pessoal de Standards and Practices simplesmente disse não. Os integrantes da companhia de produção foram então procurar Martin Poli em Nova Iorque e ele afirmou que gostaria de produzi-lo. Portanto esperaremos para ver o que acontece. Não creio que estejam ansiosos para fazê-lo logo.

P: Battleground parece mais uma história que daria certo num filme de Milton Subotsky em vez de ser conjugado a histórias passadas numa cidade universitária.

KING:O fato é que eu vejo uma porção de possibilidades que são simplesmente irrealizávcis, porque as pessoas ficam com essas opções de uma forma precipitada c depois elas são abandonadas. Discutimos isto com relação à trilogia para a NBC: Há uma casa de cômodos na cidade e o homem ferido em Batlleground mora nessa casa. A premissa é que a realidade é mais frágil nesse ambiente e as coisas são estranhas nesse local específico. Forças concentradas na cidade fazem acontecer certas coisas.

P: No O Iluminado há uma menção a outdoors publicitários em Ver-mont. Eles realmente existem, e serviram de inspiração para a sua topiaria?

KING:Existem mesmo. A idéia para a elaboração de um labirinto de sebes foi de Kubriek, não minha. Tinha pensado nisso, porém me dei conta de que já fora feito antes no filme O Terror da Torre, com Richard Carlson, e afastei a idéia do labirinto por este motivo. Não posso lhe afirmar que Kubriek tenha assistido àquele filme ou se se tratou de mera coincidência.

Os ouldoors anunciam um tipo de sorvete; podem ser vistos na Rota 2 em Vermont. Ao atingir um espaço livre onde não há árvores, pode-se clhar através desse prado sinuoso para a terra que, presumo, pertence à fábrica de sorvetes. As palavras no cartaz foram produzidas recortando-se algumas plantas. Para aumentar o contraste, as plantas foram cercadas com pedras brancas britadas de modo que as letras simplesmente saltam na sua direção. Vocês notam, tão logo as focalizam, que há algo muito especial com relação a elas, e depois percebe, à medida que vai se aproximando, que aquilo talvez seja um dos poucos anúncios vivos do mondo — porque é feito com sebes.

Contudo, a idéia de utilizar a topiaria surgiu em Camden, no Maine, onde filmaram Peyton Place. A gente vem descendo pela Rota 6, atravessa Camden, e por lá há várias casas com arbustos recortados. Não com o formato de animais, mas com formas geométricas bem-definidas. Há uma cerca viva trabalhada de modo a se parecer com um losango. Esta foi minha primeira experiência com a topiaria. Em Disneyworld a topiaria é feita para as plantas ficarem semelhantes a animais, porém só fui vê-las muito tempo após a publicação do livro.

De certo modo, gosto da idéia de Kubrick para utilizar um labirinto. Porque alguém comentou comigo — e acho que há alguma verdade nisso — que as plantas recortadas como animais no meu livro são o único acontecimento sobrenatural empírico e externo que ocorre no livro. Tudo o mais pode ser considerado como um trabalho do hotel junto às mentes das pessoas. Isto é, nada está acontecendo de modo visível. Tudo ocorre intimamente e vai se difundindo de Danny para Jack e finalmente para Wendy que, dos três, é quem possui menos imaginação. Contudo, os animais recortados nas plantas são reais, aparentemente, de modo que provocam um corte na perna de Danny num certo momento do livro. Posteriormente, quando Halloraun alcança o pico da montanha, eles o atacam. Eles estão realmente, realmente lá. Kubrick me disse, e revelou a outras pessoas também, que sua única base para retirar os animais recortados em plantas era serem eles muito difíceis de fazer com os efeitos especiais — para fazê-los parecer reais. Na minha opinião o labirinto talvez seja melhor porque também pode ser usado de uma forma interior. Alguém poderia entrar num labirinto e depois não conseguir sair de lá e, gradativa-mente, ser dominado pela idéia de que o labirinto o estava prendendo ali de forma deliberada, que estava alterando as suas passagens — como o labirinto espelhado em Somthing Wicked Tlüs Way Comes.

P: Por que razão Kubrick comprou o O Iluminado'!

KING:Ouvi uma história contada por um camarada da Warner Brothers que é até gozada. Disse-me que a secretária no escritório de Kubrick já estava acostumada com aquele "Bum! Bum! Bum!" ininterrupto que vinha lá de dentro — produzido por Kubrick pegando um livro, lendo umas quarenta páginas e em seguida atirando-o de encontro à parede. Ele eslava mesmo procurando algo para comprar. Certo dia, por volta das dez da manhã, o barulho cessou e ela interfonou. Kubrick não atendeu à ligação; a secretária ficou muito preocupada, imaginando que ele fora acometido por um ataque cardíaco ou algo parecido. Resolveu adentrar o escritório dele e deparou com Kubrick lendo O Iluminado. Já estava quase no meio do volume, levantou os olhos e falou: "O livro é este." Pouco tempo depois, a Warner, na Califórnia, desejava saber se o livro fora adquirido e, em caso afirmativo, quem detinha os direitos autorais e se haveria possibilidade de negociá-lo com o dono desses direitos — o que foi fácil, pois a própria Warner era a proprietária. Acho que se ele queria fazer um filme de terror, escolheu o livro perfeito para isso. O livro é mesmo horripilante.

P: Em O iluminado notei uma sincronicidade estranha. A experiência de Danny no quarto 267 ocorre na página 267.

KING:Outra pessoa já me tinha chamado a atenção para isso. É estranho.

Este livro de Judith Wax,Startingin theMiddle, é realmente pavoroso. Ela foi uma das pessoas que morreu naquele desastre com um DC-10 em Chicago.

P: Ela realizou a principal reportagem na Playboy anual, "That Was the Year That Was".

KING: Ela trabalhava para a Playboy e também escreveu livros humorísticos. Naquele livro ela fala sobre o seu medo de voar e diz ter certeza de que irá morrer num avião — coisa que realmente aconteceu. O trecho em que discute isso encontra-se na página 6% do livro e o número do vôo daquele avião que se espatifou era 696.

P: Ela escreveu isso como uma peça de humor?

KING:Focalizou a situação de um modo humorístico; porém coisa estranha, as pessoas que leram o livro afirmam que se pode ver o quanto ela detestava voar.

P: Tenho a impressão de que você, com freqüência, aborda a situação mais disparatada que consegue imaginar e depois parte para convencer o leitor de que se trata de algo plausível.

KING:Sim, faço isso mesmo. Tenho uma história curta, em Tripulação de Esqueletos, intitulada "O Nevoeiro". Eu disse para os meus botões: "Você conhece todos aqueles filmes de classe B, aqueles exibidos nos drive-ins." Minha intenção real era chegar à história de um cara chamado Bert. I. Gordon.

Ele descreve insetos imensos, coisas desse tipo — ou descreveria. Eles são sempre um tanto engraçados; não há de fato nada apavorante nem mesmo nos exemplares muito bem-feitos. Limitam-se a ser um tanto gozados quando são bons. O trabalho que gosto mais, Império das Formigas, é apenas divertido; trata-se de algumas pessoas inspecionando uma ilha onde serão construídos alguns condomínios e as formigas ficam fora de controle.

Falei para mim mesmo: "Vamos pegar todos estes assuntos de filmes classe B. Vamos utilizar insetos gigantescos e tudo mais, e o cenário mais comum que seja possível imaginar." Que, nesse caso, foi um supermercado. E falei: "Quero colocar estas coisas soltas do lado de fora, verificar se consigo fazê-lo e realmente deixar as pessoas apavoradas... Vejamos se posso fazer isto funcionar." E, por Deus, creio que alcancei meu intento. Você pode julgar por si mesmo. A história tem umas 40.000 palavras e acho-a realmente boa.

P: A sua crítica no New York Times Book Review, sobre David Madden, redundou num aumento de interesse pelo livro dele, Bijoul

KING:Não sei se sim, nem se não. Madden acabou de lançar uma continuação desse livro intitulada Pleasure Dome. e eu sabia que ele já estava trabalhando nisso. Mantemos uma correspondência com intervalos irregulares, quero dizer muito irregulares, porque ele não é um correspondente muito bom e o mesmo acontece comigo. Ele se interessa por uma porção de coisas que também despertam o meu interesse: os escritores turbulentos dos anos 30, tipo de escritores que produziram ofilm noir na década de 40, Cain e Dashiell Hammett e gente desta espécie. Ele tem um revista de crítica chamada Tough Guys onde escreve suas críticas, sempre muito literárias, e perguntou-me se eu não gostaria de contribuir com uma sobre Cain; respondi-lhe que sim, porém nunca cheguei a redigi-la. Principalmente porque o estilo literário, um tanto empolado, me desanima.

P: Qual era o nome do programa radiofônico da NBC no qual sua mãe tocava órgão?

KING:Ah, santo Deus! Era um programa de igreja. Ia ao ar nas manhãs de domingo, às dez horas, algo como Tlie Church Today. Acho que na realidade era uma programação transmitida diretamente da igreja onde havia um telecomando.

P: Como não quis ser o apresentador do programa Sombras da Noite na televisão, e uma vez que se recusou a aceitar uma oferta para atuar como diretor que lhe foi feita por Milton Subotsky, pode-se imaginar que você deseja evitar o jogo da fama.

KING:Não quero ser uma celebridade, mas também não quero evitar a fama apenas para deixar de ser uma celebridade. Os escritores são anônimos. Poderia sair caminhando por aí e ninguém saberia quem sou. Quando me encontro no Maine às vezes me reconhecem. Sabem qual é o meu nome e, se disser: "Sou Stephen King", talvez perguntem: "Foi você quem escreveu A Hora do Vampiro!" Se por acaso Paul Newman descesse a rua, seria logo reconhecido. Se por acaso surgisse a oportunidade certa, não permitiria que a idéia de me transformar numa celebridade me detivesse, porém a idéia de ser o apresentador num programa de televisão não é, agora, uma idéia muito boa, pois o que eu quero mesmo é assustar as pessoas. A televisão é muito limitada; tem as mãos atadas. É castrada. Não se pode assustar as pessoas na televisão. É ridículo ventilar a possibilidade de manter um seriado horripilante na TV quando estamos presos à idade do Different Strokes, As Panteras e Vega$. Se algum dia vier a fazer um programa de horror na televisão, haveria de querer que fosse um sucesso. Desde que Quinta Dimensão &Além da Imaginação saíram do ar,— não acredito realmente que tenha havido nenhuma programação de horror bem-sucedida na televisão e uma das razões disto é não acreditar que se possa deixar as pessoas apavoradas.

Ventilei este assunto com Aaron Spelling ao telefone; estava interessado num programa antológico. Ele procurou despertar meu interesse lançando esta isca diante de meus olhos:

— Não gostaria de ser Rod Serling ou Alfred Hitchcock e apresentar os programas?

— Não por seis semanas — retruquei.

Ele deixou-se ficar calado por algum tempo e depois falou:

— O que está querendo dizer com isso?

— Você se recorda do velho Tlirilleri — perguntei. Ele respondeu que sim, então continuei:

— Eles fizeram uma adaptação da antiga história de Robert Howard, Pigeons from Hell, e havia uma cena em que um sujeito desce as escadas cambaleando com uma machadinha enterrada na cabeça. Se você me assegurar que posso apresentar o programa com algo parecido a uma machadinha na cabeça, negócio fechado — disse eu.

Houve uma pausa prolongada e ele falou:

— Ora, poderíamos mostrá-lo com a machadinha no peito. -Simplesmente não posso acreditar no que estou ouvindo! — disse eu. E foi aí que as negociações se encerraram.

Quanto ao cinema, julgava Milton Subotsky muito bom, um bom homem. Na verdade, chamo-o de o Hubert Humphrey dos filmes de terror. Ele é uma constante Pollyanna e quer que todos os seus filmes tenham um final moralista e otimista. Tudo certo com relação a um sujeito ser estrangulado por uma serpente que sai da cesta, desde que tenhamos visto, antecipadamente, ser ele um cara realmente empedernido e merecedor de um fim desse tipo. Não podia deixar de haver este toque otimista. Ele mantinha sempre isso quanto à direção. Era interessante para mim, mas vi os verdadeiros problemas que teria para me dar bem com ele e manter um relacionamento profissional. Julguei preferível evitar isso desde o início do que me envolver e não ter, depois, qualquer possibilidade de recuo.

P: Você previu conflitos criativos?

KING: Sim, e quando surgem conflitos criativos neste negócio, mais cedo ou mais tarde alguém acaba sendo processado, ou aparecem as mais profundas suscetibilidades. Neste momento o que sinto por Milton é bom; ele me retribui com idêntico sentimento, contudo existe aquela diferença de opinião com relação à criatividade no tocante ao que o terror deve fazer. Logo, é melhor tratar de evitar a coisa toda.

Não desejo estar numa posição especial apenas para me destacar. Não quero ser Charo e não quero ser Monte Rock III. Se for preciso estar em destaque para poder realizar meu trabalho, tudo bem — aí são outros quinhentos. Andei fazendo um tour porque ajuda a promover o livro. Na verdade não me importo com destaque, e se a situação fosse diferente, e eu pudesse agir de outra forma, ficaria sentado em casa.

P: Atividades deste tipo poderiam ser nocivas à sua produção?

KING:Não, parece-me tratar-se tão-somente de uma questão de voltar a arrumar as prioridades um pouquinho só. Há pessoas que escrevem livros e ainda arranjam tempo para realizar outras coisas. Não creio que possa ser fácil, mas Richard Matheson continua escrevendo livros e contudo redige roteiros. O mesmo faz William Goldman. Poderia ser arranjado

Se a PBS me procurasse, dizendo:

— Vamos produzir um senado com a duração de dez semanas contendo histórias de terror. Estaria disposto a apresentá-las?

Eu aceitaria o encargo porque as pesquisas de opinião não afetam este tipo de coisa. Caso os resultados fossem muito, muito bons, talvez eles resolvessem fazer um segundo seriado, porém mesmo se só contassem com 2% de audiência, não retirariam a série do ar — pois já estão acostumados com isso. Não quero aparecer numa rede de televisão, colocar meu nome e meu rosto para anunciar uma porção de abacaxis.

 

COM FREFF

KING:New Hampshire é o centro da loucura. Não gosto sequer de passar por lá. Eperimento como que um aperto no coração. Aquela é a unidade da federação onde o governador, há três ou quatro anos, tentou conseguir armas nucleares táticas junto à Guarda Nacional. E puseram um cara na cadeia por algum tempo por ter coberto o "Live Free or Die" (Viva com Liberdade ou Morra) preso na placa de seu carro com fita adesiva. Também têm por lá — é uma grande atração turística — um lugar chamado Six Gun City; e é exatamente igual ao Westworld, exceto que usam atores em vez de robôs, e você saca contra eles a arma carregada com balas de festim e finge que os derrubou.

Contudo, até mesmo o Maine é diferente. As pessoas se guardam para si mesmas, arrancam o dinheiro do forasteiro e na superfície, pelo menos, são educadas quando o fazem. Não obstante, guardam-se para si mesmas. Esta é a única maneira como posso colocar as coisas. Estou feliz por ter nascido no Maine. Sempre penso naquela história de Shirley Jackson sobre o Povo do Verão — você sabe, onde ficam depois do Dia do Trabalho e as pessoas da cidade os apedrejam. Não se pode deixar de acreditar.

P: Que efeito teve a atmosfera rural peculiar do Maine sobre sua obra?

KING:A gente escreve sobre os lugares que conhece. Eu escreveria histórias de terror do mesmo jeito, mesmo se tivesse crescido na cidade de Nova Iorque. A única diferença é que seriam histórias de terror urbanas. Há coisas em Nova Iorque que me fascinam, sobre as quais adoraria escrever. Um motorista de táxi contou-me, certa vez, que havia um túnel de metrô abandonado embaixo do Central Park. Pensei "Isto é fantástico!" Com efeito, havia até um livro que eu desejava escrever há uns três anos onde isso se encaixaria como uma luva. Seria uma canja. Contudo nunca tentarei fazê-lo porque não acho que conheça o local suficientemente bem, apesar de conhecê-lo bem melhor do que qualquer outro lugar onde estive nos últimos três anos.

P: Porque razão não abordar o assunto, deliberadamente, como um forasteiro? Isso poderia revelar-se muito positivo.

KING:Sim, mas imagine só quanta pesquisa teria que fazer. Teria que ir até a cidade e perambular para cima e para baixo ao longo da rua 64. Fiz O Iluminado depois ter ido para o Colorado. Também, gosto de verdade do Nebraska. Causou em mim uma profunda impressão. Aqueles imensos espaços abertos, aquele céu enorme, descomunal mesmo. Muito singular. Lovecraftiano demais. Algumas das histórias em Sombras da Noite — "Children of the Corn", "The Last Rung of the Ladder" — são ambientadas ali.

P: Quando se sentiu aterrorizado pela última vez?

KING:Parece-me que alguém que redige este tipo de literatura tem uma possibilidade bem mais acentuada de sentir medo. Não estou dizendo que quem escreve sobre terror tem de ser um covarde. Pode ser um medo controlável; talvez as pessoas não saibam disto. Posso lhe dizer qual foi a última vez em que fiquei assustado. Ontem, quando voltava de Portland para casa vi aquele carro-patrulha correndo atrás de mim como se fosse o demônio, com todas as luzes acesas, os faróis e a sirene ligados — e ele não estava me perseguindo, nem outra pessoa qualquer. Desviei para o lado e ele passou por mim como um bólido. Quando recomecei a dirigir, pensei: "Jesus, imagine se ele está indo na direção de minha rua... suponha que aconteceu algo com uma das crianças., imagine se ao entrar pelo portão eu deparar com o carro-patrulha de luzes acesas, e os guardas estiverem carregando algo coberto com um plástico, vindo da minha casa — ou algo assim". Esta foi a última vez que senti medo.

A última vez em que me senti realmente aterrorizado foi, provavelmente, quando Joe recebeu um golpe de uma pá de retirar neve. Ele ia completar três anos. Nevava. Rumávamos para a biblioteca. Joe e Naomi corriam em disparada levando uma pá para retirar neve e eu carregava um monte de livros da biblioteca. Foi aí que escutei o choro de Joe e ao me voltar deparei com ele caído, o rosto enterrado na neve. Pensei: o garoto está chorando porque lavou o rosto — era assim que costumávamos nos referir àquilo, cair de cara em cima da neve — e então ele se levantou, primeiro sobre o joelhos, e não tinha mais rosto. Estava coberto de sangue de cima a baixo, havia sangue escorrendo pelo casaco. Corri para junto dele. Seu olho tinha desaparecido; era apenas uma espécie de bola imensa de sangue. Nos agarramos e depois começamos a correr desorientados como se fôssemos duas baratas tontas, minha mulher e eu. Tudo indicava que Naomi e Joe tinham disputado a pá para retirar neve e, não sabemos como, ela tinha escorregado atindindo o canal lacrimal do garoto. Ficou no hospital por uma semana. Esta foi a última vez, segundo me lembro, que fui dominado por um terror extremo, quando ele se pôs de joelhos depois daquela lavagem de rosto e não tinha mais o rosto, somente sangue.

P: Jamais pergunte a um guia nativo as direções corretas a menos que realmente as deseje.

KING:A história de terror torna-nos crianças, certo? Esta é a primeira função da história de terror — acabar com todas as bobagens, todas as tolices com que nos cobrimos.

O terror é visto como o meio simples que deve fazer-nos atravessar os limites do tabu, que nos leva a lugares onde não deveríamos estar. Por muito tempo as pessoas pensaram que o terror é um tanto radical — uma coisa perigosa para se lidar com ela. Mas, na realidade, as pessoas que lidam com o terror são iguais aos republicanos envergando seus ternos de três botões. São reacionárias em excesso. São os agentes das regras. Dizem: "Este é o monstro, é uma coisa horrível", porém estão dizendo ao mesmo tempo: "Não há problema algum com relação a você. Mantenha-se porque não se parece com esta coisa horrorosa que acabou de sair da cratera", ou seja lá o que for.

Portanto, as histórias de terror nos transformam em crianças novamente. É isto o que fazem. E as crianças são capazes de ter sensações que os adultos não percebem devido às muitas experiências por que já passaram.

P: As raízes para apreciar o terror encontram-se em todos nós e remontam aos contos de fadas que a maioria já nem se lembra de ter escutado.

KING:Uma das coisas que o conto de fadas sempre fez muitíssimo bem é fazer as crianças se sentirem mal, levá-las às lágrimas. Meus filhos ganharam um video teipe de Frosty the Snowman — e assistem-no uma porção de vezes seguidas. Porém a parte que mais apreciam é quando o sujeito mau do Norte tira o chapéu mágico de Frosty e o transforma num homem de neve comum. E todos os membros da família — seja lá como for, ele tem uma família de homens de neve; o sexo entre seres de neve deve ser estranho, mas talvez o façam com cenouras —, todos choram por ele e meus filhos também os acompanham no choro. Mas gostam muito do vídeo.

Nós temos medo das coisas que se afastam das regras, que rompem tabus. E apesar disso as crianças choram quando King Kong despenca do alto do Empire State Building e morre, porque então se sentem abaladas por algum tempo devido à simpatia natural por alguém que é um forasteiro.

P: Quais foram as emoções que o dominaram ao assistir A Hora do Vampiro?

KING:A emoção mais forte que experimentei foi de alívio, porque a TV é essa mídia mágica que parece transformar tudo o que toca numa merda e achei que A Hora do Vampiro conseguiu escapar disso. Procure me entender, não tenho qualquer envolvimento emocional nisto. Basicamente a Warner Brothers comprou os direitos e procurou transformar a obra num cinema-teatro, porém a coisa não deu certo. Se você quiser algo terrível, tem que ver alguns dos roteiros iniciais. Tem que ver o de Silliphant, que é ainda pior do que o que foi feito para O Enxame. Só vendo aqueles roteiros poderá saber qual o tipo de fuga que eu pude realmente ter.

Não aprovei o fato deles terem transformado Barlow num Nosfe-ratu, que nada diz e perde importância por comparação.

Este é um conceito totalmente diverso do meu e acho-o um tanto vazio. "Não conseguimos imaginar mais nada para fazer, eis porque voltamos àquilo." Há todo tipo de problemas possíveis com relação à sincronização. Quando Susan volta no final — isto talvez seja algo menos defensável —, ela está linda. Ora, todos os outros vampiros são feios. Absolutamente feios. Marjorie Glick estava morta há apenas um dia e quando se levanta parece mesmo morta, sabe? Entretanto, embora Susan já tivesse morrido há dois anos, dir-se-ia que não envelheceu um dia sequer. Apesar de tudo isso ele nada tem de parecido com a versão televisiva de Harvest Home, no qual se tinha a impressão de que todos os colaboradores estavam dormindo. Em comparação, este parece um trabalho realmente bom. Acho que as pessoas que o fizeram se preocuparam com ele.

P: A religião é um elemento importante no seu trabalho?

KING:Há muita gente da minha geração que adaptou seus princípios religiosos de acordo com as necessidades pessoais. Veja bem, ou você vai para o inferno caso não seja salvo pelo sangue de Jesus, ou o inferno não existe, ou reencarnamos depois de morrer ou então nos limitamos a preencher nosso próprio vazio. Contudo, não acomodei a religião de acordo com o meu interesse. Tenho plena certeza da existência de Deus, uma espécie de ser espiritual, sensível, que toma conta de tudo quanto ocorre por aqui.

As pessoas costumam me perguntar:

— Como existe um Deus se Ele permite que aconteçam coisas como o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial?

Ou então:

— Como pode haver um Deus que deixe Chad Green morrer vitimado pela leucemia?

Mas, ei! Acontece simplesmente que temos esta ionosfera que mantém a radiação afastada. E também nunca fomos atingidos por um meteoro suficientemente grande para destruir este planeta, embora o espaço esteja repleto dessa merda, como caspa num cara que sofre de psoríase. Portanto, na minha opinião a idéia de dizer: "Não pode haver Deus algum porque Ele permitiu que 6 milhões de judeus fossem mortos pelos nazistas" é o mesmo que declarar: "Não pode existir um Deus porque Ele não permitiria que alguém enfartasse no elevador." O cosmos é imenso demais.

A questão é tentar algo e imaginar o que fazer com relação a isso. Passamos de um mistério para outro, ninguém ignora isso. Não sabemos onde estávamos antes de nascermos. Sabemos que as pessoas morrem e que no instante da morte alguma coisa acontece ao ser pensante, ao espírito áomentus ou seja lá qual for o nome disso, porém ignoramos o que acontece. Talvez o ser se apague, talvez prossiga, talvez se modifique...

Portanto, muitas das obsessões religiosas presentes nos meus livros surgem da minha preocupação com esta incógnita. Estou procurando organizá-la em minha mente. Fui criado numa família fundamentalista, onde se ensinava a acreditar que lá embaixo havia labaredas e essa história toda. Freqüentava a igreja duas ou três vezes por semana. Lia muito a Bíblia. Adorava a Bíblia; gostava do que ela contém. Procure lê-la não pelo estilo, tente penetrar em seu cerne.

Minha mulher foi criada dentro da religião católica, se bem que não seja mais uma católica praticante, e eu fui educado segundo os princípios do metodismo, que também não pratico mais. Não estou querendo dizer que sou um panteísta, ou que procuro sair e observar a Natureza como uma obra de Deus — porque não é bem isso. Trata-se de tentar sentir o que o mundo tem para nos revelar a respeito de algo que é mais do que o mundo. Contudo, preocupa-me o fato de meus filhos não estarem recebendo nenhum tipo de educação religiosa formal, que a possam abandonar mais tarde. Quando você recebe uma educação religiosa e depois a abandona, você sabe o que abandonou. Deixar uma crença é algo feito inteiramente dentro da sua consciência, e algo que se faz mentalmente.

Você começa a pensar assim: A Bíblia diz que Caim matou seu irmão Abel com uma pedra, e Deus disse: "Caim, sei o que você fez, e por isso irá viver o resto de sua vida na terra de Nod". E ele obedeceu. Contudo, a Bíblia também diz que Adão e Eva foram as primeiras criaturas na Terra e que tiveram Caim, e depois tiveram Abel — portanto, com quem Caim foi viver?

Não me encontro em nenhum lugar do caminho, veja bem, a única coisa que excluí inteiramente foi a reencarnação. Sei que na índia acreditam nisto, que é um povo muito antigo e honrado, mas o que se pode esperar de uma cultura que em 1850 ainda comia bolos de excremento de vaca? Para ser sincero, não acredito mesmo na reencarnação. Porém há momentos em que digo: "Todas estas coisas fundamentalistas estão certas. Você perde sua oportunidade e vai ficar lá embaixo nos corredores do inferno para todo o sempre, pedindo aos gritos água para beber a cada minuto, todas as horas, todos os dias, todos os anos de cada século, para sempre." E há momentos em que digo para mim mesmo: "você morre, atravessa uma penumbra e em seguida se aproxima do trono de Deus — e é o Mickey Rooney." Sempre tive vontade de escrever uma história a este respeito.

 

COM CRAIG MODDERNO (USA TODAY)

P: Alguma vez você encontrou muita dificuldade imaginando novas maneiras para matar os personagens de suas obras?

KING:(explodindo de rir) Isto nem sequer me aflora à mente, nunca. Jamais me dei sequer ao trabalho de tentar — os métodos antigos funcionam muito bem. Por enquanto jamais amarrei alguém numa broca elétrica ou algo desse tipo.

P: Ficou satisfeito com o modo como Hollywood adaptou seus livros para filmes?

KING:Não me sinto satisfeito nem insatisfeito com relação a eles. Gostei demais de Cujo. Gostei muitíssimo de Carrie. Tive muita sorte por ter podido contar com Brian de Palma para adaptar o meu livro e gostaria que, algum dia, fizesse o mesmo com outro. Gostei de Cat's Eye. Ele realmente deu certo e me sinto meio desapontado por não estar rendendo mais.

P: O que é que está impedindo isso?

KING:  Provavelmente isto ocorre porque os fanáticos por esse tipo de filme devem estar indo assisti-lo sem encontrar nele o que desejam. Muita gente não se integra ao assunto. Nenhum dos filmes é realmente ruim.

Nenhum deles chega a ser desconcertante, embora A Colheita Maldita seja muito desagradável. Chamas de Vingança* quase emparelhou em qualidade com Myra Breckenridge ou Mommy Dearest. Mas não conseguiu se igualar.

P: Você escreveu um dos mais assutadores livros jamais escritos, O Iluminado. No entanto, algumas críticas afirmam que o filme não assusta. O que foi que não deu certo?

KING:Diane Johnson e Stanley Kubrick colaboraram no roteiro e, é claro, Kubrick dirigiu. Nenhum nem outro tinha experiência no ramo. Eu li uma entrevista de Diane Johnson publicada no Tlie New York Times, cerca de três meses antes do lançamento do filme, onde Diane declarou que ela e Stanley tinham lido muita literatura e haviam tentado descobrir por que as pessoas revelam sempre, e de modo instintivo, ter medo de bonecas ou de objetos inanimados com rostos e feições humanas. Tudo isto foi muito interessante, contudo nada no filme chega de fato a apavorar. Você não precisa ser necessariamente um perito em composição literária para ligar e desligar luzes elétricas.

P: O que invalidou o filme?

KING:O filme desenvolve-se até um ponto em que mostra Jack Tor-rance, desempenhado por Jack Nicholson, como o zelador do Over-look Hotel em 1926 ou 1923. Isto foi feito para ser o impacto final do filme, quando na verdade já fora explorado por duas vezes em Além da Imaginação. Portanto, esta repetição e uma ignorância básica da área do terror resultaram numa orientação rumo a um grande clímax que nada tem de grande clímax. Foi apenas uma espécie de bomba que não conseguiu explodir. Depois há outras coisas que, nem mesmo nos filmes de Sexta-Feira 13, devem ser feitas. Por exemplo, há um momento maravilhoso desperdiçado quando Jack trabalhava, trabalhava e trabalhava sem cessar naquele livro e finalmente sua mulher se arma de toda a coragem, vai pegar o manuscrito e o lê, e lá está escrito de mil modos diferentes, em mil páginas diversas: "Tanto trabalho sem diversão faz de Jack um bobão."

Como foi intitulada no Brasil a filmagem de/l incendiária (Firestarter).

P: O que foi desperdiçado neste momento?

KING:A gente sabe que ele está chegando. Qualquer pessoa que tenha visto um filme de terror sabe que ele vai pegá-la em flagrante. É isso o que acontece quando você está xeretando alguma coisa; você é surpreendido. Aprendemos isso na infância. Uma parte de nós quer que ele a surpreenda. A maioria torce para que ela se apresse, largue o manuscrito e consiga se safar. O que esperamos é que ela se volte e depare com ele ali, e então nossos corações subirão até nossas gargantas — este tipo de coisa. Kubrick, em vez disto, afasta a câmera e mostra-o caminhando para junto dela. Isto confunde tudo. É como um cara que não sabe como contar uma anedota, e não digo isto para parecer sarcástico. O Iluminado é um filme bonito. É como aquele carrão maravilhoso — sem motor, só isto.

P: Ultimamente os produtores de Hollywood têm feito muitos filmes seus?

KING:Não, não rodaram muitos. E precisam, isso sim, fazê-los melhores. Mas no momento não existe tanto material assim. Nem sei como reagir diante deste tipo de situação "filme do mês de Stephen King", pois já foram feitos vários, mas a culpa não me cabe. Não adquiro meus próprios direitos para filmá-los e impingi-los ao público. As pessoas que me xingam estão atirando a culpa na pessoa errada.

P: Como se sente diante do fato de não poder manter o controle sobre o que acontece aos seus livros tão logo os produtores de filmes assumem o comando?

KING:O que experimento com relação à maioria destes problemas é igual ao que sente um cara que manda a filha para uma faculdade longe de casa. A gente espera que ela se saia bem. Espera que não ande com as pessoas erradas. Deseja que não seja raptada numa festa de fraternidade, que está bem próximo de acontecer em A Colheita Maldita, num sentido metafórico. Portanto é impossível controlar este tipo de condição. Espera-se que tudo resulte certinho. À exceção de A Colheita Maldita, cada um dos projetos parecia maravilhoso no papel.

P: Os produtores de Hollywood costumam tratá-lo com respeito?

KING:Dino de Laurentiis tratou-me como se trata um amigo. Dedicou-me muito respeito e honra. Também tenho muito respeito por ele. Razão por que fiz mais negócios com ele do que com qualquer outra pessoa.

P: Este verão você irá dirigir seu primeiro filme, Comboio do Terror.

KING:Exatamente. É calcado num conto intitulado "Trucks". O processo através do qual entrei nesta história foi muito simples. Dino perguntou-me se poderia escrever um roteiro para ele. Disse-lhe que não.

— Muito bem, mas pense no assunto — sugeriu ele.

E voltei atrás, pensei que poderia divertir-me um pouco e, o mais importante, vi um modo como o conto poderia ser ampliado e transformar-se num filme de longa metragem. Portanto, resolvi depois aceitar o convite e ele me perguntou se não gostaria de dirigi-lo. Dino é o tipo do camarada que arriscaria a sorte com Jack o Estripador se julgasse poder tirar uma boa foto dele. Tive vontade, certa vez, de escrever um roteiro, pois pensei que seria capaz de realizar um trabalho melhor do que algumas pessoas que operam nessa área. Não me passa pela cabeça querer voltar a fazê-lo de novo. É como estar em parte numa viagem de recreio, duas partes em jornada de trabalho e três partes como monitor de corredor de prisão. Não me parece o trabalho mais glamouroso do mundo. Já estou bastante adiantado nele para ter condições de lhe afirmar tal coisa.

P: O roteiro é sobre o quê?

KING:É sobre máquinas sem controle e iremos rodá-lo lá em Wilming-ton, Carolina do Norte, onde Dino tem um estúdio. Faremos explodir muitos caminhões, teremos uma porção de ameaças de facas elétricas, cortadores elétricos de grama e coisas do gênero. Começaremos as filmagens no dia 6 de julho, parece-me.

P: Na sua opinião, qual é o seu melhor trabalho?

KING:O melhor até agora foi Zona Morta, pois é um verdadeiro romance. É muito complexo. Há uma história de verdade. A maioria das minhas fícções são apenas situações que se podem desenvolver por si mesmas. Zona Morta tem uma textura bem apresentada, uma estrutura temática que lhe serve de base, e atua em quase todos os níveis. Jamais espero que um livro faça mais do que isto. Se dá certo, fico feliz.

P: Há algo que gostaria de tornar a fazer?

KING:Se me fosse oferecida uma oportunidade assim, não teria publicado O Cemitério. Não gosto dele. É um livro terrível — não em termos de composição literária, mas ele simplesmente vai se espiralando rumo à escuridão. Ele parece estar dizendo que nada funciona, nada vale isto, e realmente em nada acredito.

P: Quando você está trabalhando num romance, escreve todos os dias?

KING:Sento-me e trabalho nele todos os dias. Basicamente, é bem isto. Escrevo cerca de seis páginas por dia, que provavelmente alcançam umas 1.800 a 2.200 palavras. Na minha opinião sou bastante disciplinado para fazê-lo conseguir isso todo santo dia.

P: Já houve assuntos com os quais não poderia desenvolver uma história?

KING:Sim. Durante muito tempo desejei escrever história de um tapete mágico. Seria uma história fantástica, porém até agora não consegui elaborar um esquema para ela. É como um carro cuja transmissão esteja em más condições.

P: Você é um grande entusiasta do rock and mil. Já pensou, alguma vez, em escrever um livro sobre ele?

KING:Aí está outro caso. Na realidade, gostaria de escrever um romance sobre Elvis. E gostaria demais de escrever um livro sobre o rock. Mas é muito, muito difícil mesmo escrever sobre música, portanto, ainda não fui capaz de elaborar um esquema para fazê-lo.

P: Por que usou um pseudônimo para o livro A Maldição do Ciganot

KING:Simplesmente porque havia, na época, muita coisa minha editada, e aquele livro era bom demais para guardar, então recorri ao pseudônimo.

P: Não imaginou que alguém acabaria descobrindo sua identidade?

KING:De certa forma não dei muita importância a isso e estava preparado para mantê-lo oculto enquanto me fosse possível. Ainda continuaria em sigilo se alguém da New American Library não tivesse escrito meu nome verdadeiro num dos formulários de requisição de direitos autorais de um dos meus primeiros livros, quando eu escrevia sob o pseudônimo de Richard Bachman. Na verdade, isto aconteceu com o primeiro livro de Bachman, que data de 1977. Os outros formulários foram preenchidos em nome do meu agente. Acho que se não fosse por isso, ainda estaria sentado por aqui, dizendo: "Pouco me importa a sua opinião, não sou Richard..."

P: Antes de começar a escrever, você tenta mergulhar num estado de espírito amedrontado?

KING:Não.

 

COM TIM HEWITT

P: É verdade que Os Olhos do Gato começou como um roteiro para Drew Barrymore?

KING:Sim, é verdade.

P: Como foi que esse roteiro conseguiu se inserir nas adaptações das outras duas histórias?

KING:Dino De Laurentiis detinha os direitos autorais de algumas histórias de Sombras da Noite, que adquirira, creio, de um grupo da Califórnia chamado The Production Company, que tinha ficado com a opção para rodar um filme de televisão para a NBC. Ele gostou de algumas dessas narrativas e também estava muito interessado em algumas outras da minha autoria cujos direitos estavam nas mãos de um inglês, Milton Subotsky. Dino conseguiu fazer um acordo com Subotsky, fato que me deixou muito contente porque eu queria ver algumas delas realizadas e pensava que, se fossem obra de Subotsky, seria realmente pior do que se nunca fossem feitas. Não gosto de torcer para que as minhas coisas não sejam realizadas, exceto em certos casos, mas...

Portanto, Dino detinha os direitos de algums histórias e possuía algumas idéias para fazer um filme onde elas seriam correlacionadas. Ele se mostrava muito interessado por Drew Barrymore e me perguntou se estaria disposto a redigir o roteiro. Naquela oportunidade encontrava-me aqui e estava com os olhos voltados para Chamas de Vingança. Para falar a verdade, tinha tido uma idéia para um conto durante algum tempo. Tratava-se de um garotinho salvo de um monstro que morava na parede de seu quarto pelo seu gatinho, e este teria uma reputação muito ruim pois a mãe pensava que os gatos podem surrupiar o nosso fôlego e coisas assim.

A idéia me agradava porque seria "Kitty, Volte para Casa" ao invés de "Lassie, volte para Casa", mas não sei ao certo se teria chegado mesmo a escrever este conto algum dia. Contudo, foi facílimo transformá-lo num roteiro breve. Depois o sexo do protagonista foi mudado de masculino para feminino, e serviu na exata para Drew.

Dino ficou muito encantado com a idéia da garotinha e do gato e achou que ele serviria maravilhosamente para funcionar como elo de ligação entre as três histórias. Foi então que me disse:

— Stephen, será que você pode colocar este gato nas três histórias? Vê algum modo através do qual isso possa ser realizado? E pensei com meus botões: "Ora, esse cara deve ser louco. O que ele quer não é possível." Contudo voltei atrás, refleti sobre a questão e vi realmente um modo como aquilo poderia ser feito. Fiquei muito excitado c telefonei a ele:

— Dino! Dino! Já sei como se pode fazer isso!

— Maravilhoso. E o que me diz sobre a garrota? (imitando o sotaque de De Laurentiis).

— Dino, sabe o que está me pedindo?

Porém, vi um modo como aquilo também poderia ser feito. Pensei então que a idéia era tão incomum e tão extensa que desejei escrevê-la pessoalmente. Julguei que talvez me oferecesse a oportunidade para fazer todo o roteiro, e quando ele o fez agarrei-a logo.

Resultou num filme que não é antológico como Creepshow. É, na realidade, um filme de verdade, e foi assim que tudo aconteceu. Foi Dino De Laurentiis foi quem me incitou.

P: Quer dizer então que o gato é o herói em Os Olhos do Gato?

KING:Sim, ele e a garota interpretada por Drew. Com isto refiro-me a A Garota. Ela é Amanda na última história, mas é sempre a mesma garota até o final. Estes são dois personagens-heróis. Contudo, o verdadeiro herói é o gato.

P: Aparentemente, você escreveu o roteiro para Cujo que foi, depois, alterado por alguns outros escritores. No entanto, até o dia de hoje seu nome só apareceu como roteirista nos dois filmes que são, ambos, antológicos. Tem algum comentário a fazer quanto a isso?

KING:Muito bem, fiz um roteiro para Zona Morta que foi uma produção de Dino De Laurentiis, mas ele o considerou muito abrangente, muito enrolado. Então foram procurar o Jeff novamente — Jeffrey Boam, que tinha feito um esboço inicial realmente horrível — e todos se sentaram em volta da mesa e acabaram conseguindo um resultado bastante aceitável.

Ao redigir o roteiro conderei-o muito bom, no entanto ele não era tão fiel ao livro como resultou no final. Isto foi conseguido pela Taft International e houve uma insistência bem grande no sentido de colocarem meu nome no filme, ah, como roteirista, porque meu nome... segundo eles, redundaria em melhores bilheterias. Acho que talvez estivessem com a razão. Meu nome foi então apresentado ao Screen Writers Guild of America como o autor do roteiro: "Screenplay by Stephen King". A esta altura, a mulher que redigira o roteiro em co-autoria, Laureen Currier, entrou com um protesto e recebi uma carta do Writes Guild indagando se eu gostaria de atender ao protesto dela e permitir um crédito duplo, ou triplo. Mandaram-me uma cópia do roteiro final, que li constatando que ainda havia nele muito de minha autoria. Contudo, na época em que a coisa explodiu, eu me achava na Inglaterra fazendo uma viagem promocional para Chiisiine e não pretendia brigar pelo roteiro. Portanto, desisti e ele surgiu como um crédito duplo dividido entre Laureen Currier e Don Carlos Dunaway.

No Colheita Maldita, mais uma vez, o roteiro foi apresentado ao Writers Guil of America com o meu nome e novamente houve um protesto, desta feita por parte de um camarada que conseguiu o crédito de roteirista, George Clayton — acho que o nome verdadeiro dele é George Goldsmith — e enviaram-me uma cópia do roteiro. Muito bem, a cópia que vi para Colheita Maldita, aparentemente o roteiro final, tinha amplos trechos do meu roteiro, escrito há quatro ou cinco anos. Cheguei até a reconhecer o tipo da Olivetti que usava naquela época. Refleti demoradamente sobre tudo aquilo e nessa altura o problema era: "Será que eu podia confiar na New World Pictures? Será que aquele era realmente o roteiro final?" Mostravam-se tão interessados em ter o meu nome no roteiro! Por outro lado, o crédito de roteirista não me fazia falta alguma — e o que acontece, primeiro, se o filme é uma droga, seu nome está nele e não deveria estar? Este é um problema. Não se pode requerer alteração depois do lançamento do filme, todos sabem disso. Em outras palavras, ficarei com o crédito se a reação for boa e não o aceitarei se todos afirmarem que o filme é uma boa droga.

E depois, a segunda, uma questão muito moral:

"Você tem algum direito, só por ser uma pessoa badalada, de roubar o crédito de alguém que é um simples desconhecido?" Portanto fiquei refletindo a este respeito durante três dias com a máxima seriedade e então decidi, basicamente, que não podia confiar na New World Pictures. Enviei um telegrama para o Writers Guil informando-os que não pretendia contestar a petição de Clayton (Goldsmith) no sentido de ele ser reconhecido como o único roteirista do filme, portanto concordava que lhe dessem o único crédito. Foi uma maravilha para mim o fato de ter sido ele o responsável. Primeiro, o filme foi uma porcaria; náo absolutamente um bom filme; número dois, foi uma situação muito desagradável, mais parecia uma camisa de onze varas.

O que fora remetido para mim e apresentado como o roteiro final nada tinha a ver com o que se usou no filme.

Quer me parecer que se tratou de um esforço para me fazer bancar o tolo aceitando um credito num roteiro que não me pertencia mesmo.

P: Creepshow foi engraçado até certo ponto. E Os Olhos do Gato foi promovido como um "thriller de humor". Trata-se de um esforço no sentido de demonstrar que Stephen King é capaz de escrever muito mais do que coisas terríveis e assustadoras?

KING:Bem, Os Olhos do Gato recebeu muita oposição. Teria adorado vê-los promover Os Olhos do Gato como "Sábado, 14" ou "Solte o seu Riso", porque assim atrairíamos muita gente para vê-lo, sobretudo criancinhas e pessoas de idade despreparadas e iríamos deixá-las assustadas e trêmulas a ponto de fazerem pipi nas calças ou sofrerem ataques cardíacos, ou seja lá o que for, pois o filme é de fato horripilante. Lewis Teague compreende isto. E de outra maneira estranha, Dino também o compreende, embora nunca fale a respeito do mesmo modo como eu penso. Mas Dino nunca assitiu a Creepshow. Não sei imitar bem o sotaque do Dino, mas quando se trata disto ele diz: — Stephen!, o problema com essas histórias é que são terríveis! — e em seguida parecia que ia falar alguma coisa um pouco desagradável ou imprópria. — Mas é engraçado. São engraçadas!

E então exclamei, "Oh", de um jeito como se fosse "Puxa vida, isto nunca me passou pela cabeça".

Bem, elas são hilariantes, são muito engraçadas. Mas nunca tive problemas com isso porque também é o tipo de filme que, se não houvesse um sistema de classificações e se a gente pudesse ir até o fim da linha, você daria tantas gargalhadas que sequer perceberia, você simplesmente vomitaria nos sapatos. Há, na verdade, vários momentos fortes, mas também existem situações hilariantes. Veja, assitia a parte de "Quitter's Inc." e ri tanto, muito mais do que jamais ri indo aos cinemas este ano, à exceção de Jornada nas Estrelas III. Dei gargalhadas e mais gargalhadas. Não conseguia me controlar.

Tenho uma referência diferente. Meu irmão ficou careca aos dezoito anos, converteu-se aos vinte e três e depois arranjou Amway aos trinta. Agora usa peruca e parece uma espécie de William Shatner degenerado. Fiz esta ligação e simplesmente comecei a rir.

Contudo, não me parece que se trate de um esforço para fazer isto ou aquilo em especial. É que Dino foi o primeiro a notar conscientemente que algumas dessas coisas eram gozadas e até o expressou de um jeito como se estivesse pensando "O que Stephen King vai fazer se eu disser isto em voz alta?" Mas ao rodarmos Creepshow, pensávamos estar fazendo um filme assustador. Passamos por momentos infernais, mas era isto o que estávamos procurando fazer. É verdade que se tratava de um livro cômico, mas então começaram a surgir certas reações: "Isto é hilariante." "Está aí uma das coisas mais engraçadas que já vimos" — partindo de pessoas associadas com o filme. É evidente que nem todo mundo se sentiu desta maneira. Muita gente achava que ele não cheirava nem fedia, que não levava a nada. Com Os Olhos do Gato houve um esforço consciente para descobrir o absurdo, mas não havia qualquer esforço no sentido de utilizar o material sob o aspecto cômico.

P: E agora também está escrevendo um roteiro para O Cemitério*.

 

*O filme já foi produzido e exibido no Brasil com o título O Cemitério Maldito.

 

KING:Sim, porém não existe qualquer tipo de pressa com relação a ele.

P: Você escreveu em Dança Macabra que há humor implícito no terror. Na sua obra há muito humor negro.

KING:Vamos colocar as coisas desta maneira: as éticas de Os Olhos do Gato são muito vagas para mim. É assim mesmo que considero as éticas de um filme como Gremlins. As crianças adoram este filme, porém acho que muitos adultos semtem-se bem constrangidos com ele, isto porque suas éticas são muito sombrias. É parecido com um cartão de Natal de Gabam Wilson, não é mesmo? Veja bem, a garota falando "Então descobri que Papai Noel não existia" — quando viu o cadáver de seu pai lodo retorcido na chaminé da lareira. Os Olhos do Gato é assim. As cenas mais engraçadas em Os Olhos do Gato surgem de algumas coisas realmente terríveis que ocorrem. Portanto, esta é a melhor resposta que posso lhe dar com relação à sua pergunta.

P: Você realmente defendeu The Evil Dead?

KING:É verdade.

P: Este filme é bastante grotesco. E temos também a famosa cena que faltou na sua novela A Hora do Vampiro.

KING: Ah! Está tentando me perguntar por que razão gosto de todas essas coisas horríveis, nojentas.

P: Não. Na realidade não se trata de saber por que gosta disso, mas por que cedeu quando quiseram cortar a cena de A Hora do Vampiro.

KING:Ora, por se tratar de meu segundo livro e eu recear que, se não concordasse, eles se limitariam a dizer: "Muito bem, é isso aí, não vamos mais publicar o seu livro." Sob certos aspectos este é o medo de todo escritor e ao mesmo tempo pode ser a salvação do autor, pois o editor pode tanto estar certo como errado. Nesse caso o meu editor talvez estivesse com a razão. Não estou totalmente certo disto, porém sei que se A Hora do Vampiro tivesse sido o meu sétimo livro em vez do segundo, e um editor me tivesse dito isso, eu poderia e provavelmente teria dito: "Não senhor, vamos deixar a coisa exatamente assim." E a cena não haveria de ser cortada.

P: Vamos deixar de lado os filmes por alguns momentos. Seus melhores romances parecem ser aqueles ambientados no Maine.

KING:Uh-huh.

P: Na sua opinião, até onde o regionalismo atua no trabalho como um fator importante? Considera-se um "escritor regionalista"?

KING:Claro que sim. É evidente que sim, pois ali vivi toda a minha vida e então não pode deixar de ser assim. Se você viveu toda sua vida num só lugar, e quer escrever a sério, você é quase que obrigado a escrever sobre aquele lugar. Olhe, há pessoas que viveram toda a vida num determinado lugar e que escrevem sobre outras terras. Sei de um camarada que jamais saiu da Inglaterra e escreve livros de bangue-bangue. Com um sucesso descomunal. Ele faz pesquisas e se sai muito bem desta maneira. Porém se você pretende escrever sobre algo com seriedade e sempre viveu num mesmo lugar, tem que escrever uma certa quantidade de coisas sobre "ele." Contudo, se eu escrevesse sobre o Maine, Nova Inglaterra, o tempo todo, teria também ensandecido. Por isso, me afasto de lá de quando em quando. Embora os romances e outras coisas que consegui fazer sejam quase que exclusivamente ambientados naquela região. Nada há de errado com relação a isto, pois pode-se descobrir fatores universais em qualquer lugar.

P: O que me diz sobre a publicação de Fearltself? Acredita que confere uma espécie de legitimidade ao seu trabalho aos olhos das pessoas que, durante anos, o criticaram?

KING:Para ser sincero, não penso assim, de vez que não o julgo um livro muito bom. Acho que muitos dos ensaios ali contidos são um tanto imaturos. Parecem-me ser o tipo de questões sobre o ensaio num nível de exame de inglês no primeiro ano da faculdade. Provavelmente o mais penoso que foi publicado é o ensaio de Alan Ryan sobre a casa de Marston, que na verdade mais parece.... Alan é um bom escritor, porém aquilo parece um ensaio tolo para um exame final de faculdade. Douglas Winter escreveu um livro intitulado Tlie Art of Darkness, publicado em capa dura pela New American Library. Há momentos em que lastimo não ter sido lançado por outro editor, pois creio que isso lhe emprestaria uma legitimidade maior. Há falhas na indústria editorial — minha mulher também publica lá — sobre a "Stephen King Publishing Company". Gostaríamos de nos afastar disto, mas o Doug realizou um bom trabalho. É um escritor maravilhoso. Nos limitaremos a aguardar e ver se suas palavras se divulgam ou não e se o livro é levado ou não a sério.

P: Durante a produção de Os Olhos do Gato você colaborou?

KING: Sem dúvida. Tomei uma resolução consciente depois de ter lido meu primeiro esboço e ter visto o modo como o material se entrosava, de que iria até o fim com ele, toda a vida. Tudo mais que realizei, até mesmo A Hora do Lobisomem, inclui aquilo que chamo uma cláusula de divórcio, uma cláusula de divórcio sem falhas. Que poderia usar caso Dino se aproxime de mim, ou até mesmo o diretor, dizendo: "Puxa, gostamos disto, porém queremos ambientá-lo no espaço exterior", ou "Gostamos disto, mas o que me diz de trocarmos o papel do lobisomem de modo que Merryl Streep possa desempenhá-lo?" ou algo no estilo... Na verdade, até que não é uma má idéia.

Mas eu gostava do que tinha, e, para ser franco, não queria que ninguém mais realizasse alterações. E pensei: ora, posso me insurgir e exigir o que me parece correto, como qualquer outra pessoa. Portanto, com Oí Olhos do Galo fiquei firme e fui até o fim.

 

COMPANHEIROS NO MEDO

Olhe para Joseph Heller. Precisou de sete anos para escrever Something Happened. Ora, não são necessários sete anos para se escrever um livro. Você está criando uma bruta confusão, é isto o que está fazendo. Você está escrevendo um pouquinho, depois se põe a criar uma bruta confusão e em seguida escreve um pouco mais. Na minha opinião, isto é pura perda de energia.

 

COM STANLEY WIATER E PETER STRAUB

Convenção do Mundo da Fantasia em 1979, Providence, Rhode Island

P: Muito bem, a primeira coisa que queremos saber é sobre esta terrível rivalidade existente entre vocês dois...

Straub:Não há rivalidade alguma. Adoro o trabalho de Steve.

KING:É isso aí... também adoro o trabalho de Peter. Não discutimos... nada disso... nada de discussões.

P: Hum, o número de escritores profissionais de terror é tão reduzido, portanto parece-me que nada mais pode haver entre vocês a não ser camaradagem.

KING:Muito bem, concordo, mas você notou que ninguém mencionou Ira Levin dentro deste problema de discussão? Ele trabalha nesta área há muito tempo! Fez alguns trabalhos maravilhosos...

Straub:Tem razão... fale sobre a corrente principal!

KING:Ele é o Senhor Corrente Principal. Sempre achei que tinha a língua um pouco solta.

Straub: Sou da mesma opinião. Ainda não assisti àquela peça dele, Deadtrap, mas gostaria de vê-la. Aposto que é muito simples.

P: Qual é a razão desse repentino respeito pelo gênero, que durante tanto tempo ficou relegando ao último lugar na pilha das brochuras, mas que agora pode ser visto ocupando os primeiros lugares nas listas dos best-sellers em capa dura?

KING: Vou lhe dizer uma coisa. As pessoas têm me perguntado por que houve uma popularização tão grande do terror nestes sete anos em que venho publicando livros. Mas isto não ocorreu na realidade! Carrie surgiu nos últimos lugares; não foi um best-seller em capa dura. Saiu-se bem em brochura depois que o filme foi lançado. Antes também saiu-se bem — venderam-se um milhão de exemplares — mas, na realidade, só decolou posteriormente. E, para falar a verdade, nunca houve nenhum grande "estouro". Houve um insignificante, perto do final da década de 60 e no início da década de 70: O Exorcista, The Other e O Bebê de Rosemary. Estes três, afinal o que temos entre eles? Um livro de Frank DeFellita, que eu diria não se tratar de um romance de terror, de jeito nenhum... e nem ao menos é um bom livro!

Straub:Audrey Rose. Este, de fato, nunca satisfez as expectativas do editor.

KING:Não, e sou da mesma opinião. E eles esperavam conseguir o mesmo tipo de sucesso de O Exorcista. Mas, veja bem, o que acontece também, muitas vezes, é quando os livros aparecem nas listas, não revelam possuir "pernas" tão longas quanto se imaginava. Não vendem e revendem. O Iluminado permaneceu na lista de best-sellers encadernados do Tlie New York Times por uma semana apenas. No entanto Os Mortos-Vivos, de Peter, lá ficou durante dezenove semanas. Girou, girou e girou. Contudo nem ele conseguiu o feito de War and Remem-brance, que nesta semana completa sua "qüinquagésima segunda semana", logo...

Straub:Steve e eu temos uma teoriazinha... isto é, Steve foi quem primeiro formulou a teoria e eu a acatei por ter acreditado nela... É que os escritores de best-sellers já firmados estão se saindo muito bem nos últimos anos. E há uma espécie de vácuo, sabia? Há uma escassez na parte superior e os editores estão tentando como loucos pressionar as pessoas rumo a este espaço. Na verdade, é uma questão da força do livro; se o livro é realmente bom, forte, há espaço para ele na lista.

KING:Um dos motivos por que Zona Morta ocupou o primeiro lugar na lista foi que na ocasião nada havia de forte. Naquele momento a lista era muito frágil. Quando os seus livros lá chegaram, War and Remembrance ocupava o primeiro lugar e Fools Die ainda estava por lá.

Straub:E isso logo depois aparecia^ Escolha de Sophia...

KING: Isso mesmo... Na época em que eu era um adolescente tentando vender meu primeiro livro, estava certo de que, mais cedo ou mais tarde, abriria meu caminho e seria publicado simplesmente porque eles seriam obrigados a editar alguma coisa, pois esses velhos chatos um dia morrerão! Olhe não são chatos, porém permanecem sempre nas listas. Como aquela mulher... Taylor Caldwell!

Straub:Cara, há quanto tempo ela anda por aí!

P: Dido bem, mas por que vocês acham que o terror finalmente decolou como um gênero verdadeiramente contemporâneo? Ele nunca saiu de cena, exceto, talvez, nos anos 50.

KING:Bem, ele estava por aí. Ainda que você retorne a um período como o dos anos 50, quando essas obras estavam muito... veja, a revista Weird Tales deixou de ser publicada por falta de interesse como qualquer outra coisa — mas o terror estava lá, e, de quando em quando, dava o ar da sua graça. Houve 77ie Search for Bridey Murphy, que foi a resposta da década de 50 para Horror em Amityville e, aparentemente, tão tolo quanto o primeiro.

Straub:Exatamente.

KING:E as pessoas não podem abrir mão do terror, aí está! Precisam dele... como um pouquinho de sal na dieta.

Straub: É, acho que é isso mesmo: as pessoas sempre gostaram e sempre gostarão. Mas tenho outra teoriazinha — que acabei de gerar — de que todo o mercado da ficção, todo o mundo editorial, mudou um pouco, de alguns anos para cá, quando o preço do papel foi para as alturas. Os editores começaram a recusar livros que normalmente teriam aceito. Tornou-se muito mais difícil ser um escritor de primeiro plano. Era bem mais duro ser um romancista de primeira grandeza em 1977 do que 1973, época em que eu ocupava essa posição. Surgiram algumas composições literárias nas paredes e creio que um subproduto disto é que vários escritores jovens liam a literatura mural nas paredes e desejavam exercer seu talento de alguma forma aceitável para os editores. Se você é muito, muito bom — se for realmente bom — tem sempre um lugar garantido: nunca deixará de ser lido, encontrará sempre uma editora.

P: Em outras palavras, alguns escritores enveredaram pelo gênero do terror só por imaginarem que poderiam ter uma oportunidade ligeiramente melhor de terem seu primeiro livro publicado?

Straub:É isso aí. Creio que sim. Tenho a convicção de que é isso o que vem acontecendo. Barry Malzberg declarou que começou a escrever ficção científica só para ter certeza de que seria publicado. Penso que tão logo você adota um gênero, descobre o quanto é rico e variado. E o quanto pode fazer com ele! E, é evidente, você gravita na direção daquele gênero do qual se sente próximo de qualquer modo, logo não se trata de um ato de "banalização". É um ato de prudência.

KING:Não sei, não... Sempre estive trabalhando nessa área. Porém, fiquei realmente surpreso quando a New American Library comprou Carrie por um preço suficiente para me colocar no alto, ter condições de abandonar o ensino e tudo mais. E sei como aquela venda evoluiu, porém ainda não posso entender por que cresceu daquela maneira. Havia um camarada chamado Bob Tanner que era, naquela ocasião, o presidente da New English Library, e a Doubleday estava com o livro nas suas mãos. Fizeram um acordo no sentido de publicá-lo mas não queriam negociar os direitos para a edição em brochura naquele exato momento. Esperavam realizar um leilão e as expectativas eram de que o preço alcançasse 80.000 dólares para a edição em brochura.

Tanner conseguiu os direitos porque eles estavam vendendo direitos estrangeiros e ele se achava em Nova Iorque negociando com Doubleday. E Bob Banker, o camarada que lidava com a venda de direitos para a Doubleday, falou: "Eis aqui um livro que estamos publicando e esperamos muito dele." É uma expressão comum; eles sempre afirmam estar em posição privilegiada ante a droga do livro do mês e tudo mais. Tanner levou o livro e leu-o no seu quarto de hotel. Numa noite. E tomou uma atitude tremendamente contrária à ética: telefonou para o pessoal da New American Library — sua filial em Nova Iorque — e passou um exemplar por baixo da mesa para Elaine Koster. Ela leu-o, mostrou-se alucinada, sei lá por que motivo, e é aí que jaz o mistério. Telefonou para Banker e disse: "Escute, pagaremos 400.000 dólares por este livro. Queremos ficar com ele." E Banker lhe respondeu: "Eu considerava sua oferta como um lance de preempção e a aceitaria. Porém... se você aguardar até o leilão, pode consegui-lo mais barato." Ao que ela retrucou: "Não estou certa disto", e assim prosseguiram com a negociação!

P: Steve, antes de chegar onde está, quando seus primeiros romances ainda eram rejeitados e só conseguia vender de modo regular os seus contos, o que o fez insistir e como sobrevivia?

KING:São duas razões. Primeira: você pensa que pode chegar até onde deseja. Acredita possuir o talento necessário para alcançar o topo da pirâmide e assim ganhar a vida. De certo modo, pensa que é aquilo o que Deus determinou para você, entende? Você não se sente satisfeito com o que está fazendo, pois sabe que não foi para aquilo que nasceu, certo? Não digo que tive uma vida triste, mas era... e continua sendo... uma vida um tanto monótona. Nada acontece de excepcional. Não saio passeando por aí numa limusine, não cheiro cocaína com uma criancinha em cada braço. Nem Peter faz isto — você provavelmente já trocou algumas fraldas e sei que se levanta às seis horas, de quando em quando por causa do bebê. Mas é divertido. Você pode se safar de toda esta droga. Trata-se de escapismo. É a mesma razão pela qual todo mundo vê televisão. Contudo, adianta tanto como "cuidado com a TV" ou "cuidado com o cinema".

Straub:Tem razão. Na realidade existem dois aspectos e, são contraditórios. Um é o grande divertimento, e todo escritor faz por que é isso o que gosta de fazer. Você se diverte. Mas há também o tédio indescritível e não acredito que muitas pessoas sejam capazes de suportá-lo.

KING:Podem, sim, cara.

Straub: Quando as pessoas dizem: "Poxa, quem me dera eu pudesse fazer o que você faz..." Sabe? Não desejaria isso a ninguém, pois a gente passa a maior parte da vida sozinho, num cômodo. E difícil a gente se adaptar a isso no início, mas acabamos nos adaptando.

KING:Quando eu vivia em Bridgeton conheci um camarada que queria que eu desse uma olhada no livro que ele tinha escrito. Era juiz no Maine, embora quando mais jovem tivesse passado algum tempo na cadeia por transportar veículos roubados para outros estados e por falsificar cheques. Na prisão conhecera Jesus, tivera experiências homossexuais e outras coisas assim. Tinha uma história para contar, porém não estava bem contada. Na verdade era um tanto... chata. Julguei que talvez ele estivesse me gozando quando ele disse: "Nossa, gostaria de ter um pouco de cola de fundilho das calças como você tem. Mas sou o tipo de camarada que está sempre se movimentando de cá para lá e não consigo ficar sentado por muito tempo!"

Straub: Ele era bom demais para ser um escritor!

KING:Certo. Era bom demais para ser escritor!

Straub: É preciso haver realmente muito amor para ficar trabalhando apenas com frases. Um encantamento que leva a fazer frases. No romance Ghost Writer de Philip Roth, há um personagem maravilhoso, um escritor de idade, e ele diz: "Acordo de manhã e escrevo uma frase. E depois modifico-a totalmente. Em seguida torno a fazer alterações e mais tarde viro-a pelo avesso." E é imprescindível gostar de fazer isso! É essencial, excludente. Você tem que tirar uma alegria profunda da própria composição. E também daquilo que os outros escrevem.

KING:Outra coisa que funcionava sempre comigo era o fato de eu estar convencido — profundamente convencido — de que em algum lugar, bem no meu íntimo, havia uma máquina de fazer dinheiro esperando para entrar em ação. E que quando eu encontrasse os instrumentos e as combinações, o dinheiro iria simplesmente jorrar.

P: E houve qualquer tipo de motivação para escrever algo que dissesse: "Eu os adverti" para os seus primeiros críticos, aqueles que não demonstraram ter fé em você? Aqueles que pensavam que você não iria se realizar?

KING:Bem... um pouquinho, houve. Mas, na verdade, nem tanto assim. Nunca foi uma questão de sentir que tinha qualquer coisa para provar algo a quem quer que fosse. Entretanto, de certa forma, com aqueles primeiros romances eu me sentia como um cara que só estivesse gastando moedas de 25 centavos na máquina que detinha o prêmio maior. E tentando sempre. Mas no início tudo acontecia de modo errado. Depois, com o livro que antecedeu Carrie, achei que tinha conseguido duas barras e um limão; e então, com Carrie, só apareceram barras... e o dinheiro jorrou. Mas a verdade é: jamais imaginei que ficaria sem moedas de 25 centavos para enfiar na máquina. Minha impressão era que eu não iria ficar toda a vida sem acertar na mosca. Na minha mente nunca houve qualquer dúvida. Algumas vezes me parecia estar perseguindo o sonho de um tolo ou algo assim, mas isso acontecia muito raramente. Passei por alguns momentos de depressão...

P: Todos sabemos que sua primeira editora de livros de capa dura foi a Doubleday e que você agora está na Viking... Por que foi procurar a Doubleday logo de saída?

KING:Fui procurar a Doubleday por ser uma fábrica de livros. Meu pensamento era: se eu ia ser publicado, o pessoal de lá o faria porque eles publicavam tudo. Eles publicam o que o Conselho aprova. Não faz muito tempo, alguém me chamava a atenção — não alguém da Doubleday — que ela é a única editora em Nova Iorque onde o livro entra no ponto A e sai no ponto Z sem nunca deixar a casa. Não é enviado a Brattleboro, Vermont, para ser impresso ou sei lá o quê. A Doubleday tem gráficas próprias, um clube do livro — oLiteraryGuild — tem tudo.

O diabo é que eles inventaram essa história de dividir o lucro das brochuras, razão por que acabei saindo de lá. A idéia é que se o lucro das brochuras chegar a 100.000 dólares, eles ficam com cinqüenta e eu com os outros cinqüenta. E acho que 50 por cento tirados diretamente dos royalties da brochura, são porcentagem exagerada a pagar por algo que não passa de uma taxa de agente. Saí de lá por causa disso. E também, quando recebem aquele dinheiro da brochura, ficam com um pássaro na mão e não querem tentar aplicá-lo e ir em busca de dois pássaros voando.

Veja bem, com Carrie, mesmo depois que a Doubleday já tinha assegurado uma receita de 200.000 dólares que iam entrar apenas por terem dito essencialmente: "Sim, publicaremos este livro", eles foram procurar a New American Library e propuseram: "Vamos anunciar isto e vocês irão pagar uma parte de publicidade... não vão?" A New American Library respondeu com uma afirmativa e, assim, a maior parte da publicidade de Carrie — em capa dura — foi financiada pela edição em brochura.

P: Não houve nenhum desmentido sobre o fato da NAL ter se empenhado ao máximo para que você fosse exibido na frente das lojas ao invés de ficar enfiado em algum canto lá dentro.

KING:Olhe só, talvez este seja o ponto principal: a New American Library deu um duro tremendo com relação a Carrie e o motivo disto residia no fato deles terem feito um investimento de 400.000 dólares nesse livro. Sabe por acaso quanto a Doubleday tinha aplicado como investimento inicial em Carrie? Dois mil e quinhentos dólares.

Straub: Eu ia dizer 1.500 dólares.

KING:Eis a natureza dessa coisa abominável, sabe?, na qual você é forçado a encher a bomba com muito dinheiro antes de chegar a algum lugar.

Straub:Pode ficar certo disso.

P: O que me diz da situação atual do filme de terror?

KING:A coisa mais assombrosa com relação a isso é que haja tantos bons filmes como acontece agora! Não se poderia imaginar que assim fosse; há uma tendência para jogar no certo, não é mesmo?

P: Mas não foi isso o que Stanley Kubrick fez com O Iluminado? Ele preferiu investir em atores de renome, como Jack Nicholson, em vez de convocar os atores certos para interpretar os personagens criados por você.

KING:É o único ponto em que Kubrick falha, ele não é dos melhores no que diz respeito à escolha dos elencos.

P: Você não se sente perturbado ao ver que Hollywood ainda está lançando muitos filmes horríveis, aia A Semente do Diabo?

KING:O que me aborrece é a Paramount, ou seja lá quem for, pagar a John Frankenheimer doze milhões de dólares para fazer um filme que parece ter sido realizado com 500.000 dólares. Não foi apenas um fracasso, Peter, o filme parecia ordinário. Contudo, fui assisti-lo três vezes. A razão que me levou a gostar de A Semente do Diabo foi ele parecer tão ordinário; havia algo relacionado com isso que me atraía. Se você gosta de filmes de terror, não pode deixar de gostar de porcarias, de pura merda!

Isto não é uma calúnia contra nenhum de nós, mas a gente se transforma em alguém que irá assistir A Ilha do Pavor quatro vezes. Sabe-se o quanto é ruim, porém há algo nessa merda que atrai. O que não significa que não se queira fazer melhor. Mas é por isso que gostei de A Semente do Diabo, porque tudo relacionado a ele estava errado. E, cara, adorei aquele velho monstro... embora a gente soubesse que era apenas um cara fantasiado de urso com o focinho imenso. Meus filhos adoraram o filme!

P: Quais foram os livros de terror que vocês dois leram ultimamente e que, na sua opinião, funcionaram?

KING:Li vários livros bons no último ano, o que é raro. Apareceu um, escrito por Anne River Siddons, intulado The House Next Door. É uma casa mal-assombrada mas uma casa nova... O segredo é este. Trata-se de uma casa recém-construída. Siddons é uma sulista e tem um modo de agir muito irritante, mas, irritante mesmo, com relação a essas coisas, tal como acontece com Flannery O'Conner. Há aquele camarada que nutre um orgulho imenso da sua masculinidade e a casa faz com que sinta um interesse sexual enorme por um outro sujeito; todos estão numa festa, uma porta é aberta e aqueles dois estão fazendo amor! E depois o camarada — Pum! — dá um tiro nos miolos. Existe também um casal que perdeu o filho adolescente no Vietnã, e quando a casa fica desocupada, esse casal a compra. E os dois começam a ver o filho na televisão, dizendo: Ainda estou vivo! Estou apodrecendo na selva... Por que me abandonaram?!" É um livro mau; muito irritante. Um livro mau de verdade!!!

Straub:Leio demais. Leio ao escovar os dentes. E se fosse possível, leria quando estou no chuveiro.

KING:Ei, escutem... Querem saber de uma coisa realmente vulgar? Já ouviram falar de pessoas que lêem quando vão ao banheiro?... Pois eu leio ao fazer pipi!

Straub:Também faço isso! Faço a mesma coisa! KING:  E também leio ao escovar meus dentes!

P: Muito bem, já tenho o título para esta entrevista! Mas, falando sério, você se preocupa quando seus fãs parecem ficar aborrecidos pela maneira como seus livros têm sido adaptados para o cinema? Como se de algum modo você ainda fosse responsável pelo jeito como as coisas saíram do ponto de vista cinematográfico?

KING:Atualmente, estou atingindo um ponto em que começo a ficar chateado quando alguém surge diante de mim e diz: "Sabe de uma coisa, eles acabaram com Carrie." Eu retruco: "Foi mesmo?" E a pessoa fala:"É isso aí... A cidade, na novela explode, no cinema se incendeia." Eu digo: "Ora... Paul Monash teve sorte ao conseguir realizar este filme." Ele foi procurar a United Artists — devia ser o terceiro ou o quarto lugar que procurou —, tinham lhe dito um redondo não na Paramount, o mesmo aconteceu na Warner Bros. E em mais duas companhias onde esteve. E finalmente a UA respondeu sim e concedeu-lhe um orçamento mínimo — Creio que foram 2 milhões, algo assim. E aquele diretor Brian de Palma teve que tirar o filme do nada — veja bem, como é possível fazer uma cidade inteira ir pelos ares com um orçamento de 2 milhões?! Nos dias de hoje, deve custar 50.000 ou 60.000 só para conseguir que alguém role um lance de escadas!

P: Existe algum filme de terror especial que tenha mexido com seus nervos? Digamos que Na Solidão da Noite seja um exemplo.

KING:Estou pensando em Na Solidão da Noite. Assisti-o na Convenção do Mundo da Fantasia no ano passado e ele simplesmente não mexeu comigo. Gostei de Wait Until Dark. Não é absolutamente um filme de terror, mas...

 

Convenção do Mundo da Fantasia, 1980, Baltimore, Maryland

 

P: Steve, seria justo afirmar que você tem escrito as adaptações de seus trabalhos por ter ficado insatisfeito com os resultados de outros roteiristas com quem lidou ultimamente?

KING:  Não, não seria justo, de modo algum. Faço isto porque às vezes é divertido e porque desejo ver como é. E várias vezes me senti como um estudante secundário que está quase começando a ficar tranqüilo, mas não totalmente. Como acontece quando a gente ainda é um estudante secundário e diz para si mesmo — Sendo um garoto! — que um dos fatores mais importantes em desejar a tranqüilidade é que, tão logo se alcance, a gente deixa de se preocupar com aquilo novamente... E às vezes penso que, conseguindo redigir um roteiro que seja produzido — não importa se bom, ou mau, ou desinteressante —, então poderia dizer: "Pronto, sou capaz de fazê-lo. Não preciso mais me preocupar com isso!" Existem mais algumas outras coisas que eu apreciaria fazer, c ultimamente creio que gostaria de tentar dirigir. Pelo menos por uma vez. Talvez fizesse uma confusão total, porém...

P: Poderia nos relatar as origens que se encontram por trás de seu livro não-ficção Dança Macabra?

KING:Claro que sim. Houve bastante pesquisa envolvida, mas não acho que isto se revele muito no livro! Ou melhor, felizmente se revela no sentido de que os fatos estão corretos, os fatos estão certos. Bill Thompson, que ditou os cinco primeiros romances que escrevi — de Carrie a A Dança da Morte — esteve na Everest House. Telefonou-me mais tarde e disse:

— Quer escrever um livro sobre o terror no cinema, na televisão, no rádio, tudo isso nos últimos trinta anos, mais ou menos?

— Não — respondi logo.

— Quantas vezes já lhe perguntaram "Por que escreve essas coisas?" — continuou ele.

— Bilhões de vezes — respondi.

—  Quantas vezes me perguntaram "Porque as pessoas lêm essas coisas, afinal?"

— Bilhões de vezes — retruquei.

—  Então escreva o livro. E toda vez que alguém lhe formular perguntas desse tipo, você pode se limitar a responder: "Escrevi um livro sobre isso." Assim venderá muitos livros e nunca mais terá que responder a tais perguntas! — sugeriu ele.

— Está certo, escreverei o livro — repliquei.

Entrei nessa de uma forma muito casual e achei muito difícil escrevê-lo.

P: Há nele algo sobre você, qualquer tipo de material autobiográfico?

KING:Há um pouco de autobiografia, sim, porque em discussões desse tipo, sempre querem retornar a Freud: Querem saber como foi a sua infância...

Straub:Sim! De fato, costumam às vezes dizer: "Não teve realmente uma infância ruim? Você deve ter tido uma infância detestável!

KING:Contei uma história — isto está no livro — numa convenção, uma convenção sobre mistério. Fazíamos parte de um grupo de debates abordando o medo. Lá estávamos eu, Robert Morasco, que fez Bumt Offerings e também Janet Jeppson, .que vem a ser mulher de Isaac Asimov e é também uma psiquiatra, uma psiquiatra clínica. Portanto, já sabendo por que ela se encontrava ali. E isto revela o que eles pretendiam ao reunir aquele grupo. Alguém da audiência falou:

— Aconteceu algo com você, durante a infância que foi realmente terrível?

Então contei um episódio que pensei que iria satisfazê-los. Veja bem, não se trata de algo que eu recorde, trata-se de um fato que me foi relatado por minha mãe. Contou-me ela que um dia eu me encontrava na rua brincando com um amigo. Devia estar então com uns quatro anos. Súbito entrei em casa, mortalmente pálido, com as calças encharcadas de pipi. E me recusava a falar. Perguntou-me o que tinha acontecido, porém corri para o andar de cima, bati a porta e fiquei fechado no meu quarto toda a tarde. Ela soube, naquela noite, que o garoto com quem eu estivera brincando tinha ficado debaixo de um trem, certo? Lembro-me dela ter me dito que recolheram os pedaços do garoto numa cesta. Uma cesta de vime.

Não me lembro de mais nada; há uma possibilidade muito grande de que, ao acontecer aquilo, o menino estivesse perambulando sozinho e que eu não me encontrasse por perto. Há uma possibilidade mínima de que eu tenha visto tudo acontecer, talvez o garoto atirasse a bola sobre os trilhos, indo buscá-la. Bem, eu contei esse episódio e disse: "Não me recordo de nada, absolutamente nada com relação ao que houve" — Imediatamente Janet Jeppson falou:

— E desde então você vem escrevendo sobre o ocorrido!

O público inteirinho aplaudiu-a — (bate palmas) — porque todos querem acreditar que você possui uma tendência excêntrica!

P: Bem, ao que tudo indica Robert E. Howard estava totalmente confuso ante a perspectiva psicológica e o mesmo acontecia com H. P. Lovecraft.

KING:Alguém quase me deu uma surra ontem à noite por causa disso; um cara cercou-me no saguão. Estava bêbado...

Straub:Ora essa, King, defendendo Lovecraft!

P: Bem, o que eu quero saber é se as pessoas ainda se revelam desapontadas quando descobrem que você não é um monstro sinistro sempre vestido de negro?

Straub:Oh, sim! Sempre! As pessoas falam:

— Você parece assombrosamente normal. Como é que um camarada assim fica redigindo livros como esses?

P: Contudo, parece-me que vocês fugiram um pouquinho do contexto: primeiro, nem um nem outro parece corresponder ao clichê de como deve ser a aparência de um literato de terror; e, segundo, porque vocês têm um aspecto "normal" demais para serem verdadeiros autores de obras que assustam. Dir-se-ia que o público realmente quer vê-los agitados, trajando uma capa negra e agindo como loucos.

Straub:É... inteiramente birutas

KING:Mas essas coisas... é estranho que devam funcionar dessa maneira. Uma das coisas que a psiquiatria — o ramo freudiano — devia fazer é permitir-lhe abrir linhas de comunicação do seu subconsciente para o exterior. Logo, dizemos por um lado que a psiquiatria nos permite externar nossos medos mais secretos, e isso é maravilhoso, ajuda-nos a ser "normais". Contudo, quando se faz aquilo que Peter e eu fazemos, chamam-nos pervertidos porque aqueles canais estão abertos. Se estivessem fechados, as pessoas diriam que somos normais porque não podemos falar sobre os nossos medos. Afinal, estamos todos fodidos. Situação normal, e todos fodidos.

Straub:Por outro lado, deve haver, provavelmente, uma parcela bem grande de verdade quando se diz que livros deste tipo surgem de conflitos que foram solucionados de modo imperfeito. E suponho que tais conflitos —  pressupondo a sua existência — são coisas de que, na verdade, não temos consciência, mas eles buscam sua solução em nossos livros. Parece-me que seriam um desastre sermos analisados! Eu jamais concordaria em ser analisado! É como ser dividido em partes e receber um polimento, e não acredito que a máquina conseguisse funcionar tão bem quanto agora. A gente deseja, afinal proteger tais problemas.

KING:Por isso, para alguém como eu, é tão assustador o que aconteceu com Ray Bradbury. Li a nova coleção dele, Tlie Síories ofRayBradbury, porque tive de fazer a crítica. E basicamente aconteceu o seguinte; a gente começa com alguém que está totalmente — ao que tudo indica —  perturbado emocionalmente, que tinha conflitos solucionados de modo imperfeito, e parece-me que Ray os tinha, sim. Pouco a pouco ele consegue pô-los para fora e sua ficção, nos últimos tempos, está ficando muito entediante.

Straub:De um modo geral, acho que uma das coisas mais satisfatórias de escrever romances é que você melhora mesmo; à medida que se vai ficando mais velho, a tendência é realmente a de melhorar.

KING:É isso aí!

Straub:Não consigo ver este tipo de banalidade acontecendo a Steve. E também não posso vê-lo acontecendo comigo mesmo.

KING: Não, também não acredito nisso. Uma das coisas que me confortou com relação ao meu trabalho é que, na maioria dos casos, eu os começava com uma premissa realmente negra. E uma resolução mais agradável forçou seu caminho sobre essa estrutura. Em A Hora do Vampiro, por exemplo, eu estava convencido de que todos iam morrer. Era o que eu desejava que acontecesse no livro. Mas não foi assim, e não tentei me intrometer no fato porque no fim sabia que era correto que nem todos morressem.

Straub:Oh, mas claro! Teria sido desastroso se todos morressem.

KING:Creio que sim. Portanto, tudo está certo, parece. Funciona das duas maneiras.

Straub:Contudo, acho que parte do que nosso trabalho está procurando fazer é exaltar determinados aspectos da humanidade que merecem ser assim tratados. Coragem. Valentia e firmeza. Estas virtudes deviam ser exaltadas.

KING: É o único campo onde se pode escrever agora, parece-me, onde ainda se pode lidar com noções românticas sem parecer irremediavelmente banal. Porém é imprescindível que se tome o maior cuidado, pois do contrário as pessoas soltarão gargalhadas. No final de Oi Mortos-Vivos, você sabe?, há uma cena que chega a ser quase transcedental. Quando o personagem entra no mar e tudo se transforma em amor, tudo resplandece. Tudo fica claro. É maravilhoso! Provoca arrepios. É lindo! E se isso estivesse num outro livro, você se limitaria a dizer: "Ah, sem dúvida! Tudo bem!" Mas onde está, dá certo. Nunca se sabe.

P: Que importância dá ao fato de procurar colocar-se no lugar do leitor? Aproximar-se realmente dos verdadeiros medos que talvez possam dominar alguém?

Straub:Esta é uma parte importante do trabalho. Temos a obrigação de nos situar na posição do leitor. E trantomá-lo. Steven usa, às vezes, a palavra "ferir" que é uma palavra maravilhosa, de certo modo, porque soa muito violenta! Você quer ferir aqueles leitores. Porém ao mesmo tempo não se quer fazê-lo de modo contundente — veja, a gente pretende mesmo feri-los em um ou outro ponto, mas não creio que depois os abandonemos assim.

KING:Não, na realidade não. E esse é um dos detalhes que não me agrada em O Cemitério.

P: Os críticos agora estão vendo toda a sorte de coisas no seu trabalho. Houve alguns "significados subjacentes", colocados de modo proposital na sua obra, que talvez os leitores teriam deixado de perceber ao longo do caminho?

Straub:Bem, sobretudo no caso dos críticos. Às vezes as pessoas apontam significados que eu pessoalmente nunca imaginei e nunca pretendi atribuir. De certa forma é interessante e não me importo nada com isso. Todos podem criar estruturas elaboradas e, quando me encontro com eles, pareço um completo idiota, pois certas minúcias nunca me passaram pela cabeça. Porém, só umas poucas vezes as pessoas voltam a atenção para o ponto que imaginei ser o cerne do livro.

KING:Recebi uma carta de David Morell, o camarada que escreveu First Blood e alguns outros romances mais. Terei algumas palestras com ele, pois assim poderemos beber através de Iowa e tudo mais, o que é um preço barato a pagar. Mas ele falou a respeito de A Incendiária e disse que tinha gostado do "tema ecológico" que encontrou sempre presente. E eu não tinha planejado isso, era algo que jamais me passara pela cabeça. Por exemplo, um editor na Viking divertiu-se com algo entre Charlie McGee e Rainbird que está dissimulada — e que mal percebi —, uma relação erótica entre ela e Rainbird, dissimulada, mas sempre presente. Ela tem um sonho em que está cavalgando nua e há um incêndio, e Rainbird está mais à frente etc. E ninguém, de modo algum, mencionou isso antes! Adorei o livro e não quis levar a coisa adiante pois não existe sexo no livro a não ser aquilo. Se for sexo, trata-se de sexo muito forte justamente por estar tão velado. Afinal, ninguém o percebeu e pouco se me dá. Eu consegui perceber.

P: Isto é verdade. Tive a impressão de que a Rainbird buscava algum tipo de "orgasmo terminal" com Charlie. Contudo, é evidente que a grande maioria de seus contos lida com o terror muito mais em termos sobrenaturais do que psicológicos. Há alguma razão para essa preferência? "The Man Who Loved Flowers" é uma das pouquíssimas histórias que se enquadra nesta última categoria.

KING:Gosto de compor coisas desse tipo. Há uma cena em Shadowland — é o meu momento isolado preferido — no qual o cara levanta os olhos da folha de exame e há um lápis flutuando no ar, e Delmar Nightingale o vê e agarra, pois não quer que ninguém mais o veja. Mas para mim esta é a essência da atração que a história é sobrenatural oferece: aquele lápis simplesmente flutuando no ar. É como os quadros de Magritte, em que os trens estão saindo das lareiras, as pinturas de Dali, onde os relógios estão colocados sobre galhos. Por exemplo, em "The Mist", na minha opinião, o grande atrativo numa narrativa como aquela era o fato de que eu realmente não dou importância ao que ocasiona aquilo ou qualquer outra coisa. É a idéia daquele trem saindo da lareira. O corriqueiro justaposto ao incomum e ao estranho. Para mim isto é o que atrai. As histórias psicológicas parecem apenas... mais enjoadas, só isto.

De fato, publicaram uma história de crime, de minha autoria, no Ellery Queen's de dezembro de 1980. Porém era uma história de crime muito melhor, antes dele a terem burilado! De certo modo, gostaria de tê-la retirado da editora, não havia necessidade de fazer aquilo. A história chama-se "The Wedding Gig" e fala de uma garota irlandesa gorda que se casa com um italiano magérrimo. O narrador é o chefe de um grupinho de jazz que toca no casamento. E a coisa que fazia a história funcionar era o fato do pianista do grupo de jazz se chamar Black e todo mundo o tratava de "moleque", ou "crioulo" ou "negro".

Mas lá na editora eles cortaram todos os pejorativos! Não lhes passava pela cabeça permitir que alguém fosse chamado por termos pejorativos ou algo assim. Acabei concordando, mas acho que teria preferido que não o fizessem. Mas naquela ocasião estavam acostumados a agir assim. A outra coisa com relação a este tipo de história sobre esses fora-da-lei vacilantes presentes na sala da recepção do casamento "com Sweet Caporals enfiados nas canecas". Ser capaz de escrever uma linha dessas é incrível.

P: Parece que Charles Beaumont, uma de minhas influências pessoais, sempre foi um dos escritores de terror e fantasia pouco elogiado. O que você pensa dele?

KING:Acho-o excelente. Notável mesmo, e creio... se estivesse vivo, seria hoje um escritor simplesmente fora de série. Quem me dera eu o tivesse encontrado alguma vez. Ele era formidável. Escreveu Tlie Magic Man e Night Ride, e outras coisas. Era bom mesmo.

P: Como você deve ler tanto horror quanto escreve, há alguém por aí que ainda seja capaz de o deixar arrepiado uma vez ou outra?

Straub: há um, na minha opinião. E é este meu companheiro aqui presente. Porém a maioria dos livros sobre terror é medíocre; acho-os tão sem graça, sem sutileza e tão mal escritos que, na verdade, enfrento uma porção de problemas para lê-los. Seja lá como for, este não é o caso com Stephen King.

KING:Ora, gosto muito mais dos livros do Peter do que de quaisquer outros, logo creio estar encantado com ele. Leio muitos romances de terror, porém pouquíssimos conseguem me deixar arrepiado. De vez em quando encontro um livro que me faz medo e que não é considerado "do gênero" — pelo menos a orelha afirma que não faz parte do gênero. Mas de um modo geral limito-me a ir a um cinema. É bem mais fácil a gente se sentir apavorado com um filme.

Straub:É, realmente é mais fácil a gente ficar aterrorizado num cinema. Mas creio que o que disse foi duro demais. Assim como o Steve, recebo uma porção de provas. Não disponho de tempo para ler nem mesmo a metade, porém às vezes, ao ler essas provas, descubro algo que é muito, mas muito bom mesmo, de algum cara jovem que, com toda probabilidade, deve estar escrevendo seu primeiro romance. Não penso ter me assustado com nenhum desses livros, mas não resta dúvida de que de alguns gostei muito. Um sujeito chamado Jonathan Carrol escreveu um livro cujo título é Land ofLauglis. Eu o li nas provas e gostei muito, mas muito mesmo. E pareceu-me que ele possui um talento real que vai se desenvolver. Contudo, não fico assustado ao ler essas coisas porque tenho muita consciência da técnica adotada. Sempre sei o que o autor está realizando... e só quero ver até onde ele é capaz de ir.

KING:De acordo!

Straub: O que não quer dizer que eu seja imune a choques. Na verdade, acho que se você pensa nesse tipo de coisa o dia inteiro, está mais predisposto ao medo, mais propenso ao choque.

KING:Porém, uma boa composição literária é um prazer por si mesma e pode seduzir você. Não me preocupa muito o estilo ou qualquer outra noção deste gênero, preocupa-me o equilíbrio. A linguagem deve ser equilibrada e deve ser um equilíbrio que o leitor possa sentir, mergulhar nele e perceber uma espécie de ritmo da linguagem à medida que prossegue na leitura. A linguagem deve ter condições de levá-lo para dentro da história, ele é levado para mais longe na leitura.

P: Falando em linguagem, quem escreve sobre terror não deveria tanto seduzir o leitor, como também apavorá-lo ou deixá-lo até mesmo zangado?

Straub:Na minha opinião, não. Você por acaso admitiria atirar um insulto no rosto do público? Não... não encontro nenhum eco aí. Não é isso o que estou tentando fazer. Não é a mesma coisa que assustar alguém, porque realmente o que devemos fazer é assustar. Mas, quanto a vulgaridades? Não me interesso por elas.

KING:Ah, mas eu sim!

Straub:É mesmo?

KING:Gosto de vulgaridades. Contudo, toda vez que lancei mão de alguma — e tive ocasião de fazê-lo — infalivelmente um editor cortou-a do livro! Havia em A Hora do Vampiro uma cena com ratos no porão. E também ratos em outras coisas... numa das histórias que estavam em Cavalier. E, por Deus, quando a imprimiram em Sombras da Noite, tiraram fora essa parte! Suprimiram essa parte da história!

P: Na versão cinematográfica de A Hora do Vampiro há uma cena onde o jovem herói é visto como um "aficionado por monstros". Pelo menos porque o quarto dele está repleto de modelos, pôsters e outras representações de monstros. Muita gente, inclusive eu mesmo, passa por esta fase quando criança. Seu quarto também era assim, quando você tinha a mesma idade do personagem?

KING:Não. Parece que tive um modelo em escala de lobisomem, montado por mim mesmo, em determinada época, mas era só isso. Gostaria de criar uma situação na qual pudéssemos acreditar numa criança lidando com monstros. Sei que certas crianças foram — e são — superfanáticas por monstros. Sabem de uma coisa? Acho que a única parte que ainda me surpreendenoFamousMonstersofFilmland, de Forry Ackerman, é a seção das cartas. E elas têm um anúncio que diz: "Procura-se — Mais leitores como Sean Beatty de Camden, Nova Jersey!" E lá está a foto de um lindo garotinho, sorrindo. Eles sempre parecem lindos e a gente pensa: "Aqui está este garoto e ele é apaixonado por monstros. Contudo, não tem a aparência de quem é louco por monstros."

Recebi algumas fotos polaróide de um garoto de nove anos não faz muito tempo. O menino tinha lido A Hora do Vampiro e mandou-me duas fotos polaróide. Uma dele mesmo, criança gorducha com cabelos louros, curtos. E a outra dizia: "Eu no papel de um Monstro Noturno com uma serpente no braço." E ali estava o mesmo garotinho gorducho... agora com uma cobra de borracha enrolada no braço. Que tal?

Straub: Isso é maravilhoso!

KING:Mas, na cabeça dele existia realmente o monstro; era mesmo assustador.

P: Peter, você também passou por alguma fase parecida enquanto crescia?

Straub:Não me fantasiei com os trajes da monstrologia, porém como criança li, certamente, aquelas histórias de terror em quadrinhos, aqueles E. C. Comics. Eram tão pavorosos que meus pais criaram objeções a este tipo de leitura! Mas eu julgava que para eles havia naquilo algo de sobrenatural. Entretanto, não tinha monstros pendurados na parede...

KING:Você declarou que Tlie Dick Cavett Show que sua imaginação era tão poderosa que foi forçado a abandonar Tlie Rats ir. the Walls uma ou duas vezes. Fazia parte daquela coleção enorme...

Straub:Foi mesmo? Oh... os Great Tales of Horror and The Supematural. Foi isso mesmo, eram contos aterradores. Um livro espetacular. E havia uma história que tinha algo a ver com câncer. Umas criaturas horríveis, lentas e brancas, semelhantes a vermes, flutuavam escadas abaixo e entravam no quarto do filho, e dois anos depois ele morria de câncer.

KING: Nossa, que horror! Não é terrível? Bloqueei essa história. Não me lembro dela... Poxa!

Straub:Recordo-me da narrativa de Arthur Machen, "The Great God Pan", e esta sim, realmente me tocou.

KING: Isso mesmo, também fiquei impressionado.

Straub: Na realidade, passei dessa história para Os Mortos-Vivos.

KING:Ah, esta é assombrosa. É uma das boas.

P: Como se sentem vocês com relação à onda de filmes violentos nos quais aparentemente apenas as mulheres indefesas são as vítimas? A imprensa está se servindo para criticar, e uma vez que a maioria desses filmes de terror, o gênero é que tem levado na cabeça ultimamente.

KING:Acho pertinente a sua observação, porém não me parece que qualquer pessoa tenha nos acusado com verdadeira autoridade. Isto porque nenhum de nós dois jamais tratou as mulheres dessa forma estereotipada. Peter, por exemplo, cria os personagens femininos tão bem qualificados como qualquer outro autor de ficção popular. Mas acho que muito dessa discriminação sempre esteve presente e continuará a estar. Peter se referia a conflitos solucionados de forma imperfeita, e creio que grande parte disso provém mesmo de conflitos sexuais mal-solucionados. Então trata-se o sexo como uma demonstração de força e não como manifestação de amor, onde um homem e uma mulher, em condições inteiramente idênticas, cada um deles tendo algo a dar ao outro. Há aí um tipo de concepção visto de modo imperfeito com relação ao sexo nesses relacionamentos...

P: Os filmes de David Cronenberg gostam, evidentemente, de lidar com um medo primitivo do sexo, sobretudo em They Carne From Within.

KING:Gostei mais de Rabid. Gostei de Rabid e de Os Filhos do Medo bem mais do que de They Carne From Within. Há algo nessa idéia que coloca Marilyn Chambers em posição ridícula, que a torna muito vulnerável e comovente no filme... Foi uma boa combinação.

P: Eu estava imaginando se poderíamos penetrar, pelo menos um pouquinho, nos hábitos de trabalho. Como é um dia de trabalho normal para vocês dois?

Straub: Bem, no meu caso, eu o realizo da mesma maneira como todo mundo. Começo sempre pela manhã. Meu dia de trabalho vai mais ou menos das onze horas até as seis da tarde. Porém, se estiver "muito motivado", se já estiver se aproximando do final do livro... e se estiver com ele mais ou menos por completo na cabeça... aí talvez escreva até bem tarde, entrando noite adentro. Mas, de um modo geral, é exatamente como "Papai está indo para o escritório" e depois "Papai já voltou."

KING:Começo a trabalhar por volta das oito e meia da manhã... Antes disso saio e ando três a cinco quilômetros... e começo a "escrever" enquanto estou andando.

Straub:Caminhar é muito bom para isso... Não sei por quê, mas é uma coisa mágica.

KING:É mesmo. E você vê as coisas. Muitas vezes enquanto estou caminhando, vejo coisas que, mais tarde nesse mesmo dia, aparecerão em algum ponto de meu trabalho. Ao voltar, tomo um copo de água gelada e, então, escrevo... digamos, das oito e meia até às onze. Depois paro, e no curso daquele dia volto para junto da máquina levando algumas cervejas e reescrevo durante mais umas duas horas e meia. Logo, devo trabalhar umas cinco horas por dia.

Straub:É mais ou menos o meu tempo também...

P: Mas você não deixa o trabalho parado... Volta à noite e reescreve um pouco mais?

KING:Não. Sempre deixo o trabalho repousar... O que realizo depois é sempre uma coisa diferente. O que faço durante o dia é aquilo em que estou trabalhando. O outro material é coisa, uma ocupação muito diferente para mim. Ocupação muito... "mecânica" não é a palavra adequada... mas é uma operação relacionada com as possibilidades especulativas. A gente mergulha até o fundo... é como regular um carburador a fim de fazê-lo funcionar direito. É isto o que se faz. Mas sempre gosto de beber cerveja ao reescrever, pois é divertido e não se trata de nada tão exigente quanto o trabalho da manhã, quando algo dentro de mim diz assim que sento diante da máquina: "Estou trabalhando de verdade!"

Straub:"Crie!" Vá para lá e crie... trabalhe!

P: Muito bem, quer dizer então que quando a musa lhes ordena "crie", vocês necessitam de um aposento especial, ou talvez de um ambiente onde possam colocar as engrenagens criativas em funcionamento?

KING:Tanto eu como Peter temos nossos aposentos especiais.

Straub: Sim, temos nossos aposentos, porém não são eles que desencadeiam a criação... pois se estivéssemos enfiados num barco, trabalharíamos ali mesmo.

KING:Talvez não tão bem!...

Straub: Mas é uma coisa que vem de dentro... Explode um relâmpago interno, ou algo assim, pelo que nos sentimos muito gratos. Ele simplesmente surge e bate no cérebro!... Você estabelece um pequeno universo e organiza-o como bem lhe aprouver, e depois a inspiração fica aquecida.

KING:É isso mesmo.

P: Você naturalmente sabe que, quando foi lançado/l Incendiária, mais de uma das críticas comparava-o a um romance antigo de John Farris, A Fúria. Você se importaria de me responder a isto?

KING:Claro que não. Li isso, sim... mas uma das coisas que antecederam a isso foi o fato de termos estabelecido um preço relativo à negociação dos direitos autorais de^4 Incendiária para o cinema, preço que foi de 1 milhão de dólares, baixíssimo. Mais tarde ouvi comentários a respeito dos produtores Zanuck e Brown estarem a ponto de comprar os direitos, e depois, ouvi dizer que os dois estavam numa sala de projeção da 20th Century-Fox assistindo à versão cinematográfica de Brian De Palma para A Fúria. E eu disse: "Ai, ai, ai, isto não vai acontecer." Ora, basicamente, a história é esta: Carrie surgiu, depois foi a vez de A Fúria, que é muito parecido com Carrie, e em seguida chegou a vez de A Incendiária. Por mim, percebia um relacionamento entre Carrie &A Incendiária, porém./! Fúria nunca me passou pela cabeça durante o período em que estava redigindo meu livro, embora tenha gostado do romance original. Não dei grande importância ao filmei Fúria.

P: A reação da crítica, de um modo geral, foi favorável &A Incendiária!

KING:Não sei se O Iluminado qualificou-me a ocupar uma posição de destaque, porém pensava que a reação da crítica a A Incendiária haveria de ser terrível. E foi até bastante positiva. Tive boa crítica no Time, má no Newsweek, ótima no The New York Times. Tlie Washington Post criticou-o sob o seguinte cabeçalho: "Inutilizado à Ia KING:  Não se pode ser vencedor sempre, todos sabem disso!"

 

COM STANLEY WIATER e ROGERANKER

Convenção do Mundo da Fantasia de 1984 Ottawa, Canadá.

P: Como surgiu inicialmente a idéia de colaboração em O Talismã! Há anos se vem falando nisso.

Straub:A primeira vez que ventilamos o assunto foi na minha casa.

KING:É, exatamente! Em Crouch End, Inglaterra. Na noite da morte de Bing Crosby. Tratou-se sobretudo de uma questão de conversar a respeito disso e decidir que gostaríamos de tentar...

Straub:... E quando poderíamos fazê-lo. Falamos sobre O Talismã durante muito tempo antes de pormos mãos à obra... Na verdade, foram anos... e algumas vezes nos reunimos e conversamos a respeito dos acontecimentos. Tínhamos mais ou menos em mente a noção básica, tirada de um sonho de Steve. Em seguida pensamos nos "Territórios" e somente depois de muito, muito tempo, fizemos um esboço. Tínhamos um plano geral extremamente longo. Algum dia as pessoas deveriam ler esse esboço extraordinário, pois não se assemelha muito com o livro.

KING:De fato não se assemelha mesmo.

Straub:E então, certo dia Steve foi à minha casa para que pudéssemos realmente iniciar a obra. E escrevemos, acho, os dois primeiros capítulos... mais ou menos... juntos. Depois disso limitamo-nos a remeter nossos trabalhos um para o outro, através dos processadores de palavras, até o final, quando fui para a casa do Steve para lá escrevermos os dois últimos capítulos.

KING:Não se trata exatamente de um romance de terror, é uma fantasia. Em alguns pontos ele é apavorante, noutros é denso. Mas no todo possui um tom de leve delírio, de nonsense, e considero-o muito divertido! E creio que, tendo terminadoFloatingDragon e O Cemitério, serviu para desanuviar nossas cucas. Possui uma linguagem muito reconhecível, porém você não consegue saber qual a linguagem está dominando. Não julga assim, Peter?

Straub:Decerto. Acredito que em 99% dos casos das pessoas que o lerem, isto será verdadeiro. Steve e eu dificilmente poderemos dizer quem redigiu o quê. Parece-me que o que aconteceu foi apenas isto: quando iniciamos o trabalho procuramos escrever uma espécie de estilo neutro, em seguida abrimos simplesmente mão dessa idéia e passamos a redigir do nosso próprio modo. Contudo, não sei explicar por quê, ele acabou tendo como que um estilo neutro, aqui e ali. Há certas coisas que o Steve faz que se destaca, e há certas coisas que eu faço... Então os leitores talvez possam isolar uma parte e dizer; "Ah, sei qual dos dois escreveu isto." Mas, normalmente, fica misterioso... porque o livro parece ter como que encontrado um estilo próprio, peculiar, que não é bem o estilo de nenhum de nós dois.

KING: Vou lhe contar o que acontece: Peter e eu somos ambos escritores profissionais. Este é o nosso meio de sobrevivência e, muitas vezes, isso fica esquecido, pois existe uma tendência no sentido de querer descobrir arte ou tentar encontrar algum tipo de santidade do trabalho, sei lá, algo nesse estilo. Contudo, acho que na maior parte dos casos percebemos que fazíamos algo parecido a produzir um casaco e tivemos o cuidado de experimentar, uniformizar todas as peças a fim de que ficassem praticamente idênticas. Há lugares onde você pode identificar o autor; em compensação, posso lhe indicar uma quantidade de lugares no livro que parecem ter sido redigidos por mim, e, no entanto, sei muito bem que quem o escreveu foi o Peter.

Straub: Na verdade, o livro está repleto de pequenas artimanhas engendradas entre nós, através das quais tentamos enganar o leitor e levá-lo a pensar que foi o outro cara quem as escreveu. E caso depare com algo que julgue ser uma revelação involuntária, a coisa não passa de um engodo, de uma burla de nossa parte...

KING:AKirkusReviews referiu-se a trechos que eram "tipicamente de King" e trechos "tipicamente de Straub", mas tomou o máximo cuidado em não os transcrever.

P: Alguma vez chegaram a um ponto da narrativa onde um de vocês teria dito ao outro: "Este tipo de cena é seu, é sua ambientação. Por que não a realiza?"

Straub:Creio que isto aconteceu de vez em quando. Quando eu via alguma coisa que Steve gostaria realmente de fazer.

KING: Ao dividirmos entre nós as linhas gerais, houve algumas situações no livro que eu, conscientemente, tentei dispor de forma que Peter as escrevesse, pois com certeza faria um trabalho melhor do que o meu.

P: Vocês trabalhavam nessa colaboração através dos seus processadores de palavras e ao mesmo tempo faziam romances separados?

Straub:Veja bem, eu não estava fazendo nada... Ele, sim, fazia outras coisas.

KING:Naquela ocasião eu estava enfronhado numa porção de obras... P: Sabemos que vocês trabalharam muito tempo nesse projeto.

Straub:Muito tempo. Creio que quase dois anos. Tivemos umas feriazinhas de vez em quando, mas não muitas.

KING:E quanto às horas, ao tempo gasto no livro, é simplesmente assombroso. Nada do que já realizei antes demorou tanto... e espero que nada venha a demorar tanto outra vez!

Straub:Amém! Poxa, foi uma trabalheira insana.

KING:E houve momentos em que Peter estava trabalhando e eu achava: "Ora, deixe pra lá, agora não preciso me preocupar com isso por algum tempo", mas não conseguia afastar meu pensamento do trabalho.

P: Vocês acreditam que por causa dessa parceria, realmente aprenderam alguma coisa um com o outro?

Straub:Creio que aprendi muita coisa com o Steve... P: O trabalho em parceria afetou seu estilo?

KING:Afetou a minha personalidade.

Straub:E arrasou com a minha! Contudo, de certa forma minha inspiração para contar histórias cresceu muito, como se alguns aspectos rudimentares tivessem desaparecidos ante a proximidade com o modo como Steve trabalha. Que é extremamente narrativo, profundamente bem-informado.

KING:Quanto a mim, aprendi muito em relação ao estilo. Não posso me lembrar de ter escrito antes com tanta consciência do meu trabalho. Veja bem, isso parece um pouco com aquela situação em que você vai jantar com uma pessoa de educação requintada e sua mãe lhe diz: "Olhe, se você comer como um bárbaro, todos vão perceber isso."

Straub:Acho que ambos agora seremos considerados bárbaros! KING:  Não concordo com você, não penso assim.

P: Prosseguindo com o óbvio, quais são os planos de Hollywood com relação a O Talismã!

Straub:Bem, é uma história muito comprida. Mas para resumir, lá vai: A Universal adquiriu os direitos, após intensas e prolongadas negociações, para Steve Spielberg. Porque Spielberg, ao que tudo indica, é quem vai dirigi-lo e já encarregou alguém de elaborar o roteiro.

KING:Uma das razões por que a negociação do filme com a Universal foi tão demorada quanto árdua — e como tenho certeza de que até mesmo Steve Spielberg concordaria ser esta a verdade, não vejo qualquer problema se publicar estas palavras — é ter Spielberg manifestado interesse simultâneo em coisas tão diversas como Michael Jackson em Peter Pan, Schindlefs List*, refilmagem de/1 Guy Nanted Joe. No ponto em que se encontra na sua carreira ele é como uma criança numa loja de doces. Por isso tem uma porção de projetos diferentes e a Universal o considera uma máquina de fazer dinheiro. Mas ao mesmo tempo, quanto desejamos bancar na suposição de que, se ele tocar na pilha, ela se transformará em ouro; e se qualquer outro o fizer, poderá virar pó? Mas finalmente o negócio foi fechado. E creio que um dos motivos principais foi o fato de Spielberg ser uma pessoa profundamente determinada. Estava resolvido a fazer coisas ao modo dele e ;stou feliz que assim seja... e Peter também gostou de vê-lo fazer as coisas x>mo queria. Agora ele está envolvido num nível de produção aconteça ) que acontecer, e que ouço falar que provavelmente ele mesmo dirigirá ) filme. Isso será bom. Acho que ele quer fazer algo perfeito.

 

*O projeto mudou de nome para Always, que já foi realizado e exibido no Brasil com o título Além da Eternidade.

 

Straub:Parece-me que seria excelente. Estivemos na Califórnia, na-juela visita que deixou um travo amargo em nossas bocas, porém entamo-nos com Spielberg — pena que ouvesse outras pessoas pre-entes — e ele de quando em quando espunha idéias que nós, real-nente, deveríamos ter tido.

KING: Concordo... Spielberg é muito inteligente.

Straub:O fato é que ele estava sintonizado. Quando a gente consegue isso entra no ritmo do livro.

KING:Uma das coisas que me deixa impressionado com relação a Spielberg e veja, já estive com ele três vezes e já papeamos por telefone umas seis, é que ele não é enjoado nem arrogante, sabia disso? Ele é o que é. Um cara tremendamente talentoso e impressionantemente qrguto. E quem acha que talvez seja um acaso feliz — três, quatro ou cinco filmes excelentes de enfiada — saiba que não é. Em suma: eu gostaria de vê-lo dirigindo o filme, acredito que seria ótimo.

Straub:Sem dúvida.

P: Vocês gostariam de dar uma mãozinha no roteiro?

KING:Creio que andaram nos sondando com relação a isso, mas não sei não. Peter pode dar a opinião dele...

Straub:Bem, nós fizemos um acordo, num táxi, para não o fazer...

KING: Foi isso mesmo. Fizemos um acordo. Estávamos voltando de na reunião com os executivos do estúdio, com aquela droga de Gremlin em nossas cabeças.

Straub: Exatamente. Por outro lado, tenho o palpite de que Spielbcrg se manterá em contato conosco e não assumirá aquela atitude típica do "não se intrometam, não nos aborreçam, agora sabemos mais do que vocês", habitualmente adotada pelos estúdios. Será bom, será agradável estarmos um pouquinho envolvidos. O que nunca passa pelas cabeças dos diretores, ou dos produtores, é que o escritor pode prestar uma ajuda ocasional. E de vez em quando pode aconselhar: "Não façam isso, não vai dar certo." Desta feita talvez eles percebam isso.

KING:O escritor pode sugerir, às vezes, um modo rápido de realizar algo que está incomodando o diretor.

P: Poderia nos relatar, em poucas palavras, o que está ocorrendo com um outro projeto longamente esperado: o filme de Romero de A Dança da Morte?

KING:O roteiro está pronto. Quanto ao mais veremos.

P: A extensão do livro nos leva a imaginar inevitável uma versão cinematográfica com quatro horas de duração.

KING:Deverá ter cerca de duas horas e meia. Algo assim. No que diz respeito ao orçamento e ao tempo, tudo certo. E tudo previsto.

P: Há alguma diferença em criar medo para um livro e medo para um filme.

KING: Este é pior. Quando escreve para um filme, sinto-me realmente nervoso. Fico ligadíssimo ao fazer literatura, porque posso ver tudo e sei que se começar a narração, minha cabeça ficará aliviada. Porém quando escreve o mesmo assunto para um roteiro, a gente parece estar diante de um público que não pode ver nem alcançar, embora a gente possa organizar-se e enfrentá-lo. Creio que seria divertido, isso sim, dirigir um filme de terror. Talvez então alcançasse o narrativo que não experimento ao redigir um roteiro, pois estaria então realizando como que um projeto literário ao invés de um filme.

P: Levando em consideração os milhões de palavras que vocês dois já publicaram durante os últimos dez anos, vocês continuam...

KING:Amigos?

P: ...Fervilhando com novas idéias? E ainda se encontram naquele estágio no qual o quanto mais fazem, melhor resultado alcançam, e por isso produzir mais ainda?

Straub:Acho, sem dúvida alguma, que tanto Steve como eu temos muitas idéias ainda. Estou consciente, agora, de que me encontro num estágio diverso no meu modo de abordar os assuntos e talvez o trabalho realizado em O Talismã tenha algo a ver com isto. Veja bem, sinto-me bem mais senhor da situação, reescrevo e reviso muito, muito mais do que antes.

KING:Acho que isto é o resultado do uso do processador de palavras.

Straub: Pois eu não acho...

KING: Eu reviso... ora, é uma loucura a quantidade de revisão que faço.

Straub: Creio que isto também se deve ao fato de ter me tornado mais consciente dos meus erros, agora posso vê-los muito melhor. Talvez isto signifique apenas que cresci um pouco como escritor. Quando leio uma página, ou quatro ou cinco páginas que escrevi durante o dia, localizo logo os pontos fracos, os erros, as passagens tolas e as partes desnecessárias. E não costumava ser capaz de ver tudo isto com tamanha exatidão. As únicas outras mudanças que percebo, neste momento, é que já não me sinto interessado pelo terror sobrenatural e não pretendo escrever sobre isso por algum tempo, pois me parece que já o fiz de forma suficiente até aqui. Realizei o que podia nesse campo.

P: Mas seus editores dizem: "Olhe, você está produzindo ótimas estórias sobrenaturais. Não arrisque tudo isto mudando de estilo"?

Straub:Não. Senti este tipo de pressão, e bem mais forte, há muitos anos. E compreendi que é meu dever, se quiser adiantamentos grandes os que tenho recebido, ser divertido e colocar nos meus livros muita narrativa e tensão. Isso para prender o leitor ao livro. Portanto, continuarei a agir de acordo. Mas não quero simplesmente colocar cadáveres abandonados por aí. Estou um pouco cansado de fazê-lo.

P: Esperemos que não esteja cansado demais. Steve, seus editores já demonstraram algum medo de que você, algum dia, também deixe de querer assustar os leitores?

KING:Não. Não, na verdade isso nem me passa pela cabeça. Não acho que seja verdade que "se lhe derem corda suficiente, você se enforcará". Parece-me já ter corda bastante, agora, para me enforcar em Times Square, ao meio-dia em ponto, com três redes de televisão realizando a cobertura do fato. Se eu dissesse a alguém que queria reescrever a Bíblia em prosa simples, seria capaz, nesta altura, de conseguir seis estilos para ela. E esse é o problema... Não estou dizendo isto para ser lisonjeiro comigo mesmo ou presunçoso, ou seja lá o que for. Mas para mim, este é o problema.

No que me diz a respeito, A Coisa é o meu exame final. Não sou capaz de dizer mais nada sobre monstros. Nada mais tenho a dizer sobre eles: enfiei todos os monstros naquele livro.

Para início de conversa, jamais tive qualquer interesse pelo terror. Nunca tive! Acontece que escrevi todos aqueles livros, não escrevi terror para fazer dinheiro, porque, Jesus, quando comecei e Peter escreveu/u//a, simplesmente não se podia fazer dinheiro escrevendo tais coisas. É ridículo... o dinheiro veio a nós, não o fomos procurar! Como O Cemitério... não sabia o que aquilo seria, achei muito divertido escrever o livro exatamente porque não sabia o que acabaria sendo. A gente apenas segue uma idéia e penso que, muitas vezes, minha mente acompanha essa trilha... As pessoas que gostam do meu trabalho, e aquelas que apreciam o de Peter, continuarão nos prestigiando a menos que as enganemos.

Straub:Sim, é isso mesmo! Se eu escrevesse uma pequenina, educada, bonita comédia de costumes, sem qualquer exposição tensional acrescida no texto, estaria procurando complicações, pois perderia muitos de meus leitores. Porém, não tenho qualquer interesse em fazer isso! Não me importaria absolutamente em escrever uma comédia de costumes que fosse extensa e original, com alguns toques de tensões narrativas nela incluídos. Cara, isso seria grande!

P: Muito bem, quer dizer então que vocês dois sabem que poderiam neste momento negociar seus róis de roupas com as editoras? Alguma vez não se sentiram tentados a experimentar e se darem bem vendendo algo que, secreta e pessoalmente, consideram não mais que um "rol de roupas"? Jamais ficam preocupados com a possibilidade de saturarem o mercado?

KING:Bem, ainda preocupado com isso. Creio ter sido quando três filmes estavam para ser lançados um atrás do outro, além de todas aquelas edições seguidas...

P: Algumas críticas chamaram a isso "o Filme de King do Mês".

KING: Eu sei. E de fato foi gozadíssimo! Sentia-me como uma estrela fodida! Depois, quando O Cemitério saiu, o resultado foi o do livro que teve 600.000 exemplares de capa dura vendidos. Houve esse salto descomunal nas vendas.

Straub:Que coice!

KING:Nenhum dos filmes é um verdadeiro fracasso, nenhum é realmente terrível. Alguns chegam perto... Acho que Chamas de Vingança poderia ter sido Myra Breckinrige com um empurrão apenas em outros sentidos e se lhe tivessem acrescentado alguma coisa um pouco grotesca. Bem, o fato é que nenhum deles foi um verdadeiro sucesso. Mas não acredito que tenham causado qualquer tipo de efeito em nossas carreiras.

P: Vocês dois já alcançaram um nível de popularidade nas suas carreiras.

KING: Eu adorei isso!

P: ...Mas têm quaisquer outros objetivos além da literatura? Esse sucesso serviu para lhes abrir outras portas?

KING: Quero ser bom marido e um bom pai ...Quero lutar e conseguir sobreviver...Não quero ficar gordo demais, nem beber cerveja em demasia. E gostaria de me sair bem em tudo.

Straub:Até parece que sou eu quem está falando!

P: Peter, e quanto a você?

Straub:Sei lá. Não sei o que dizer. Adoraria ser capaz de tocar. "Cherokee" num saxofone tenor em ritmo realmente veloz. Gostaria mesmo de ter condições para fazer isso!

KING:Caras como eu, veja bem, não estou dizendo caras como nós porque não desejo antecipar a opinião de Peter, mas caras como eu, eram todos, nos tempos do segundo grau, uns pobres coitados. Para mim o importante sempre foi a literatura. Eu era um daqueles garotos com quem ninguém simpatiza. Só não servi de saco de pancadas por ser grande, jogar regularmente futebol e coisas assim. As opiniões que eu conseguia eram apenas isto: "O King... ele é esquisito. Óculos enormes. Lê um bocado. Dentes imensos." Já pensei em parar... às vezes tenho a impressão de que poderia poupar minha vida se parasse. Porque sou realmente compulsivo com relação a isso. Levo o bebê para passear...

Straub:Não quero ser professor. Consegui escapar de ser um professor. Não quero ser um gerente da IBM, porque é uma função chata. Uma das vantagens da nossa posição é podermos nos encontrar com pessoas com quem gostamos, cujo trabalho admiramos. Steve pode andar por aí com o pessoal do rock e eu com os músicos dejazz que sei curtir. Não vou explicar como, mas temos um acesso misterioso, eles parecem acreditar em nós.

KING: Não sei exatamente o que seja, mas eles nos tratam como se fôssemos... sabidos.

P: Steve, você comprou uma estação de rádio?

KING:É verdade, comprei mesmo uma estação radiofônica. Tocamos muito rock. Podemos levar Twisted Sister até Bangor. Cara, mas que sucessão alcançamos. Dee Snyder conseguiu fazer todos os garotos dizerem: "Sou um presunçoso doentio!" Depois de algum tempo todos eles estavam gritando esta frase uns para os outros... Poxa, cara, aquele Dee Snyder... Ele já leu todos os meus livros...

P: Ora veja, aí está um sonho transformado em realidade. Li um recorte da Associated Press a respeito. Tive a impressão de que você queria ter certeza de que a estação estaria sempre sendo sintonizada; e então, para não haver erros, comprou-a.

KING:Bem, ela estaria sempre sintonizada, porém adotariam uma programação diferente e tocariam muita música suave. E agora continuamos ouvindo nosso rock and roll. É divertido.

P: Steve, a gente tem sempre a impressão de que os escritores devem levar um tipo de vida especial e tranqüila. Naturalmente sabemos que, quando alguém se torna um autor de best-sellers, sem dúvida se tornatá um pouco mais acessível ao público. Ainda assim, representou um papel em Creepshow, e acaba de rodar agora um comercial televisivo para a American Express...

KING:"Você me conhece? Ao invés de dizer 'Escrevi Carrie', carrego comigo o cartão do American Express."

P: As coisas não estão chegando a um ponto em que basta você sair de casa para que reconheçam? Esta foi uma decisão consciente com o objetivo de tornar seu rosto tão conhecido quanto o seu nome?...

KING:Não, não foi. Veja bem, se ao menos as pessoas soubessem... Esta idéia de que, de algum modo, se tem carreira planejada. Mas estávamos sentados na sala de visitas e George perguntou-me: "Quer fazer o papel de Jordy Verrill?" isto porque fiz aquele racista em Knightriders. George possui um pouco de senso de humor e isso deixou-o indócil. Achou que seria divertido... e assim desempenhei o papel de Jordy.

Fiz o comercial para a American Express... porque pensei: "Nossa, me parece realmente lisonjeiro, devo ter chegado lá!" Portanto, aceitei o comercial. Também resolvi fazê-lo pois achei que seria uma oportunidade para algo divertido, diametralmente oposto de Jordy Verrill... uma espécie de Hugh Hefner imoral do final da década de 70! Além disso, é preciso estabelecer um limite em algum ponto. Ainda outro dia recebi um telefonema de uns camaradas de outra agência. "Vimos seu comercial para a American Express. Adoramos! Quer fazer um para a Miller Lite?

E respondi:

— Nossa, claro que sim, quero fazer um comercial para a Miller Lite... eles são realmente o máximo!

Logo depois pensei com os meus botões: "Você sabe que é um escritor. Basta fazer mais umas três exibições destas e poderá ir para Hollywood Squares, diante de tanta reputação alcançada." Não que eu seja tão reputado assim. Porém, sempre há um ponto em que, antes de vender sua imagem, você diz: "Não sou um indivíduo mercenário, um objeto comercial." Bem, fiz o comercial da American Express e não sei lhe dar uma explicação melhor do que esta. Mas não foi pelo dinheiro, nem especificamente pela fama; foi, penso eu, porque nos tornamos criaturas tão comerciais que comecei a sentir que, de alguma forma pervertida, seria uma honra vender o produto deles.

Straub:Eles queriam que você se sentisse exatamente assim.

KING:Pois muito bem, senti-me assim mesmo!

P: Teve um dos cenários mais elaborados que já vimos num comercial.

KING:E eles fizeram vários takes, um depois do outro! Cara, recebi boas reprimendas por causa daquela estante que escorregava — e naquela noite tive diarréia, levei uma pancada no joelho e ao mesmo tempo pensei que ia acabar sujando as minhas calças.

Straub: Poxa vida!

P: Vocês já alcançaram um ponto onde ainda podem parar e dizer: "Não, não está suficientemente bom", e recomeçar, ou se limitam a falar: "Ora, está suficientemente bom para fazer sucesso, vejam onde o meu nome está."

Straub:Sinto-me menos satisfeito do que costumava ficar. Creio que trabalho com afinco para fazer as coisas certas. E considero esta minha atitude como parte da obrigação.

KING:Quanto a mim, veja bem, está ficando tarde e quero melhorar mais, porque a gente só encontra tantas oportunidades quando faz um bom trabalho. Não há nada que justifique não tentar, pelo menos, realizar um bom trabalho quando se está fazendo dinheiro. Veja bem, existem caras que agora mesmo estão morrendo de fome. E continuam procurando fazer um bom trabalho. Alguns deles continuam, sim.

Straub:Alguns deles... alguns deles sequer sabem o que é isso. KING:  E eis aí porque em vários casos estão morrendo de fome.

P: Vocês dois sentem qualquer responsabilidade por terem despertado, "a quatro mãos", a admiração do gênero de terror, de maneira que ele é, hoje, muito mais aceitável — e respeitável — do que jamais foi antes?

Straub: Acho que a razão disso é a seguinte: escrevemos romances que mesmo sendo de "terror", eram na verdade romances, e eram também diferentes dos romances de terror escritos anteriormente. De certo modo, parece que se tornou apropriadamente que ele era. Depois surgiram outros e começaram a insistir na idéia da literatura contida num romance de terror. Em seguida o sucesso comercial conferiu respeitabilidade ao que fazíamos. Conseguimos, em parte, sucesso comercial porque oferecemos às pessoas o terror com um conteúdo passível de ser aceito por elas e no qual podiam acreditar.

KING:E não se esperava que elas dissessem:"Ora, este é um romance de terror, portanto devo contar com toda aquela cenarização desprezível, aqueles chavões inacreditáveis, e tudo mais." Acho que é isto o que Peter pretendia ao dizer que antes de mais nada solicitamos ao público que aceitasse nosso trabalho como um romance. Não tenho certeza do quanto despertamos o interesse do terror ou lhe ministramos qualquer tipo de elemento cultural. Mas sei que propiciamos a assinatura de muitos contratos para muitos escritores, colocamos bastante dinheiro numa porção de bolsos de gente que, se assim não fora, não teria chegado lá. Considero tudo isso maravilhoso e estou encantado porque a maioria das pessoas que fazem terror não entraram nele apenas para dar uma voltinha grátis. Falam sério a respeito do seu trabalho. Neste momento — e antigamente eu não pensava assim — acho que, do jeito que vamos indo, talvez venhamos ocupar um lugar de destaque na literatura americana dentro de uns cem anos ou um pouco mais...

Straub:Mesmo que possa parecer estranho, é isso mesmo...

KING:Creio que deveríamos olhar primeiro para as pessoas como "Monk" Lewis ou Anne Radcliffe, ou a renovação do neogótico, ou algo deste tipo! Mas talvez ainda façamos uma boa quantidade de excelente trabalho e as pessoas dirão: Ei... eles não eram tão ruins assim."

Straub:E, respondendo a uma pergunta constante, informo: "Sim, cada palavra que escrevemos é autobiográfica!"

KING:Peter entregou-me este manuscrito para ler e eu o trouxe comigo a fim de termos algo para ler no elevador.

P: Estamos surpresos por saber que você não lê debaixo do chuveiro! KING:  Meu filho faz isso.

Straub:É mesmo? Isto é ótimo. Mas assim sempre se fica com um dos braços por lavar!

KING:Ora, dá para trocar o braço que segura o livro!

 

DANÇANDO NO ESCURO

Os insetos são ruins. Os insetos são realmente ruins. Imagino estar dando uma mordida num sanduíche bem grande, entende?, e... ele está cheio de insetos. Imagine isto. Não lhe parece terrível? Elevadores... aviões... o escuro 6 uma imensidão. Não gosto do escuro.

 

COM BOB SPITZ (revista Penthouse)

P: Levando em consideração a sua reputação como o principal fornecedor da ficção de terror, como se sente ao passar os olhos pelas manchetes de jornais do tipo "Bebê Congelado no Refrigerador" ou "Mãe Prega Criança na Porta"?

KING: Adoro, adoro! Veja bem, posso dizer "Não, detesto toda esta porcaria, odeio aqueles jornais" — e uma parte de mim sente realmente isto. Porém, os tablóides atraem tudo o que há de frágil na minha natureza. Deve haver muito disso também, porque, cara, abro aquele jornal e algo salta diante de meus olhos a cada virar de uma nova página. Os cabeçalhos! Meu Deus! Veja "Freira Estuprada no Broo-klin" e "Populacho Perturba Contrato com Matador". Os tablóides atingem de modo direto o que quer que haja nas pessoas que precise acompanhar as piores coisas da vida.

P: Você acha que há um lado sombrio em nossas personalidades, que está relacionado com este tipo de terror?

KING: Veja o cabeçalho: "Bebê Preso com Prego à Parede". Você diz: "Jamais fiz uma coisa dessas com meus filhos, embora tenha sentido vontade de fazê-lo algumas vezes. " E é aí que nasce o terror. Não no fato de alguém ter pregado um bebê na parede com prego, mas sim por poder recordar de momentos nos quais teve vontade de arrancar fora a cabeça do filho porque ele se recusava a ficar de boca fechada. O Iluminado surgiu de meus próprios impulsos de agressividade contra meus filhos. Trata-se de uma coisa muito triste para descobrir, na qualidade de pai, que é possível, em rápidos instantes, odiar literalmente os filhos e achar que poderia matá-los, E é aí, nesse nível, que os tablóides nos ajudam a dizer: "Graças a Deus não fui eu. " Eles ajudam as pessoas a explorar os limites sombrios do comportamento humano.

P: Existe algum ponto onde você estabeleça o limite para a violência do terror gráfico?

KING:Tudo aquilo que se pode ver na rua, a qualquer hora, deveria estar num livro. Caso a situação se apresente, você conduz o leitor diretamente para ela. Ou seja, não devemos nos afastar.

P: Mesmo que isso signifique deixar marcas, causar um efeito profundo nas mentes impressionáveis?

KING:Em 1957, Arthur Penn fez um filme chamado Um de Nós Morrerá, com Paul Newman. E nesse filme Billy the Kid acerta com um tiro um camarada que despenca para trás, morto, com as botas lhe saindo dos pés, e a gente fica com aquela imagem de uma rua do Meio-Oeste com uma bota de cowboy em pé bem no meio dela. As pessoas começaram a dizer: "Isto é violência gratuita, agora foi demais. " Toda vez que alguém diz "violência gratuita", o que está querendo dizer realmente é que mostraram a ele como as coisas realmente acontecem, o que significam aqueles pés-libras quando deixam os horríveis livros de física e penetram no mudo real.

Durante anos a fio, nos filmes de bangue-bangue, alguém era atingido com uma bala 44, a arma fazia bang e o sujeito despencava no chão. Os jovens que foram para a Segunda Guerra Mundial pensavam, pobre coitados, que era isso o que lhes aconteceria se recebessem um tiro. Não sabiam que talvez pudessem ter um dos testículos arrancados ou receber uma bala nos intestinos e nunca mais ter condições de comer o que quer que fosse a não ser um ovo escaldado. Logo, se vai fazer isso, conte a verdade, caso contrário você estará contando uma mentira muito perigosa.

P: No entanto, você obteve críticas duras devido ao modo irreverente como descreve a violência em seus livros.

KING:Muitos críticos vêem sangue e dizem que estamos transformando o país numa matilha de vira-latas que corre atrás de sangue. Isto não passa de um monte de merda! Na verdade, quando você dá um tiro na própria boca, sangue, cérebro e cabelos espalham-se por todos os lados. Se isto vai acontecer, quero ver. Tremerei, vou me sentir mal, mas quero ver o que acontece.

P: Então qual é a sua resposta àquelas pessoas que afirmam que a violência gera violência?

KING:Mostre-me a pessoa que diz: "King, a coisa que você escreve está repleta de violência gratuita, está servindo de instrumento para tendências mais ordinárias das pessoas, sua mente é igual a um ta-blóide", e mostrarei a ela alguém que não usa cinto de segurança no carro, porque não quer nem pensar na possibilidade de seus dentes descerem pela garganta abaixo e serem aspirados pelos seus pulmões. Trata-se de pessoas que, mais cedo ou mais tarde, serão como o Ronald Reagan: irão apertar aquele botão, pois não têm a mínima idéia do que estão fazendo ou do que possa ser realmente o fim de tudo.

P: É "o fim" — o esquecimento — algo com que você pessoalmente já entrou em acordo?

KING:Para mim essa noção de fim do mundo é muito discricionária. Para mim, e creio que para a maioria das pessoas é assim também. É o fim de toda esta porcaria, logo não se precisa mais ficar com medo, visto que o pior já aconteceu.

P: Isto torna o terror um mecanismo de fuga para sublimar nosso medo fundamental.

KING:Creio ser isso muito verdadeiro.

P: Então por que motivo esta geração parece tão obcecada em aterrorizar a si mesma?

KING:Somos a primeira geração que cresceu totalmente à sombra da bomba atômica. Na minha opinião, somos a primeira geração forçada a viver quase completamente sem romance e obrigada a descobrir algum tipo de saída sobrenatural para os impulsos românticos presentes em todos nós. Isso, de certo modo, é realmente muito triste.

Todo mundo vai assistir aos filmes de terror, lê livros de terror... e é quase como se estivéssemos tentando prever o fim do mundo.

P: Você afirma que nossa atração suprema para o terror emana de uma lenta paranóia?

KING: Acho que somos muito paranóicos, porém não creio que isto necessariamente resulte da bomba. Quer me parecer que temos uma razão muito boa para ser paranóicos devido ao fluxo de informações. Nossa geração recebe uma avalanche de informações, em quantidade muito maior do que a recebida por qualquer outra geração na história — exceção feita daquela que estamos educando. Na faculdade, fiquei sabendo que muitas pessoas são paranóicas, e costumava pensar: "Santo Deus... todos estão loucos!" Em seguida veio à tona aquele escândalo do Nixon; o homem estava fazendo gravações no seu escritório. Descobrimos que Agnew estava, aparentemente, recebendo suborno no aconchego da mansão vice-presidencial — dinheiro passado por baixo da mesa. Jimmy Hoffa está morando numa pilastra de ponte em algum ponto de Nova Jersey. E então você diz: "Ora, realmente temos que ser paranóicos. " Esse fluxo de informações... deixa-nos muito nervosos com relação a tudo.

P: Existe algum tênue limite onde o terror e a realidade se tornam indistinguíveis?

KING:Sim. É quando estou sentado diante de um aparelho de televisão ligado, lendo um livro ou tirando minhas conclusões, e uma voz diz: "Interrompemos este programa para transmitir um boletim especial da CBS News". Minhas pulsações logo duplicam — ou triplicam. O que quer que esteja fazendo é completamente esquecido e aguardo para ver se Walter Cronkite aparece e informa: "A linha DEW noticia a presença de ICBMs nucleares sobre o Pólo Norte. Ponha sua cabeça entre as pernas e despeça-se de seu traseiro. "

P: Não lhe parece que isto significa levar a coisa ao extremo?

KING:Sim, concordo. Apesar disso, reflita sobre as vezes em que de certo modo o pior aconteceu, em que você recebeu outra notícia: quando foram divulgados os assassinatos de Robert Kennedy em Los Angeles, de Martin Luther King, do presidente em Dallas. Isso modificou tudo.

P: Quer dizer então que existe esse limite muito indistinto onde o terror e a realidade se cruzam?

KING:É evidente que existe esse limite. E uma das razões, eu creio, porque enfrentei alguns problemas com Cujo, reside no fato das pessoas se sentirem um pouquinho preocupadas ao lerem um livro sobre uma mulher e o filho presos dentro de um carro por um são-bernardo, e essas pessoas dizem: "Isto poderia realmente acontecer. " Em seguida me escrevem uma carta dizendo: "Nossa, gostei do seu livro sobre vampiros (A Hora do Vampiro), gostei mais de O Iluminado, pois sabemos, no íntimo, que vampiros não existem e no fundo de nossos corações temos certeza de que não existem hotéis assombrados por fantasmas que retornam à vida. Mas um são-bernado com uma mulher e um garoto no carro, são outros quinhentos. "

P: É praticamente um terror real demais para durar, é o pesadelo perfeito. Trata-se de alguma situação com a qual teve problemas no passado?

KING:  A crítica publicada em The New York Times sobre A Dança da Morte foi muito pessimista. O crítico não gostou absolutamente do livro; chamou-o de Rosemary's Baby Goes to the Devil (O Bebê de Rosemary Vai para o Inferno) e arrasou com ele em cinco parágrafos. Uma das coisas que ele disse foi que gente demais fez pipi nas calças ao ler este livro. Ora, quando acontece algo a alguém que é de fato realmente assustador e surpreendente — aquele tipo de "bu!" que não é "bu!", é realmente algo pavoroso — a maioria das pessoas faz pipi nas calças. Peço-lhe desculpas se isto se torna entendiante após algum tempo. Mas não muda o fato de que acontece.

P: Não lhe parece que já recebemos bastante desse tipo de terror no noticiário das seis horas?

KING:Acho que a razão disto, e dessa coisa ser popular e bem-sucedida, reside no fato de ouvirmos terror em demasia. Se existe um objetivo utilitário, este leva à compreensão de um ato fundamentalmente irracional. Já com relação a muita ficção de terror, trata-se de um esforço para observar os atos irracionais, ou as ações terríveis, ou apenas para experimentar aquela sensação de estar fora de controle. O máximo que os filmes de terror, de modo especial, podem lhe fazer, é deixá-lo fora de controle. E isto não implica nenhum fluxo consciente... a ponto de dizer "Bem, vou assistir a Sexta-Feira 13 porque compreenderei o que aconteceu com Sadat" — pois não funcionaria neste nível. Contudo, num nível subconsciente, ou até num nível físico, você talvez possa dizer: "Ora, aí está o que estava sentindo ao saber do assassinato de Sadat" — aquele mesmo tipo de reação súbita, de terror irremediável, ou seja lá o que for. Está na tela e é controlável... e não é real. Trata-se de um esforço para contornar esses sentimentos; às vezes é um esforço para querer experimentá-los e dizer: "Posso me livrar de vocês. Não podem me fazer mal. "

P: Levando em cosideração a influência que as obras de arte exercem sobre o público, há algum tipo de pessoas que não deveria ler seus livros?

KING:Acho que não.

P: Não aconteceu alguma vez de alguém tomar emprestado um ou dois pontos da trama para dar asas à própria fantasia?

KING:Bem... houve aquela tragédia que aconteceu em Boston, onde a polícia e a imprensa chamaram o criminoso de Carrie Assassina. Ele matou a mãe... Predeu-a à porta com todos aqueles utensílios de cozinha. Evidentemente, tirou essa idéia do filme de Brian De Palma; os utensílios de cozinha não faziam parte de meu livro. Contudo, mais cedo ou mais tarde algum cara perverso fará algo e dirá: Tirei a idéia de um livro de Stephen King. " Poderia dizer que gente assim não deveria ler os meus livros. Porém se não tirassem a idéia de algo escrito por mim, haveriam de se inspirar em algo escrito por outra pessoa qualquer.

P: Portanto, existe uma possibilidade de que o terror possa, na verdade ter uma influência negativa sobre alguém que não seja bom da bola?

KING:Se ele não tivesse sido Carrie Assassina, talvez tivesse apunhalado a mãe sob o chuveiro até vê-la morrer; e aí seria chamado de Assassino de Psicose.

P: O que me diz do rapaz que culpou O Semeador no Campo de Centeio de tê-lo levado a assassinar John Lennon?

KING: Trata-se da mesma coisa, neste caso. Porém não sinto qualquer responsabilidade pelos doidos e alucinados do mundo; afinal, podemos viver a vida toda imaginando o que algum louco será capaz de fazer contra nós. Por exemplo, posso contar com um segurança para me acompanhar onde quer que vá... Mesmo assim, algum dia, durante uma sessão de autógrafos, alguém talvez ache que estou fazendo o trabalho do demônio, disparando um tiro contra minha cabeça. Todos convivemos com esta possibilidade; faz parte da vida.

P: Acha que as pessoas deveriam poder se eximir da culpa por seus atos de violência, atribuindo-os àquilo que lêem ou vêem?

KING:Não, isto para mim não tem qualquer lógica. Um caso clássico foi o dos jovens que encharcaram uma mulher com gasolina, atearam fogo, deixaram-na queimar até a morte, e depois disseram: "Ora, tivemos esta idéia depois de assitir ao Filme da Semana no ABC" — que fora Fuzz. Este fato realmente pôs um ponto final à violência na televisão. Acabaram-se as transmissões de todos aqueles seriados como Peter Gunn e Os Intocáveis. Mas isso ainda é matar o mensageiro por causa da mensagem que trouxe. Se você está dizendo a verdade, parece-me que se alguém — algum doido — fizer algo calcado naquilo que você escreveu, só lhe resta dizer que esse doido não teve a mínima originalidade para engendrar um método próprio de matar alguém, por isto utilizou o que estava no livro.

P: Já que se referiu à televisão, o que me diz sobre a situação atual da arte?

KING:Acho que estamos assitindo à morte da televisão oficializada. Agora mesmo isto está acontecendo. Veja bem, a rede de televisão é como um imenso dinossauro perambulando por aí. Quando eu estava na fase de desenvolvimento, a televisão era um fator dominante, pelo menos na minha vida: Ed Sullivan nas noites de domingo, Marverick, Sugarfoot.

P: Divertimento puro e simples.

KING:É isso mesmo. Rota 66, por exemplo, despertou a consciência de cada jovem americano. Descobrimos a existência de um modo de vida diferente daquele de freqüentar faculdades, terminá-la e defrontar-se depois com um mercado de trabalho saturado. E o que têm os meus filhos? As Aventuras de BJ.

P: E o que me diz da televisão usada como instrumento político?

KING:Pode-se afirmar que Kennedy foi o último presidente eleito sem que a televisão fosse um fator dominante. E que assim que a televisão surgiu, não tivemos mais bons presidentes. E todas as vezes que elegemos um novo presidente, afastamo-nos mais da política e das pessoas de verdade e mergulhamos ainda mais no mundo do convidado-da-semana em Três é Demais (mímica). "Oh, Suzanne, imagine só... o presidente vem jantar conosco. Precisamos arrumar tudo por aqui!" E então o presidente surge na telinha, e trata-se de alguém da Central de elenco que você já viu atuando nas novelas, com cabelos grisalhos. Até que, finalmente, chega-mos ao Reagan, onde a imagem da televisão e o político se encontram e tivemos um ex-astro de cinema na Casa Branca que, quando fala... Meu Deus! parece tão bom, parece tão real, porém você olha para os olhos dele por muito tempo e... (cantarola tema de Além da Imaginação).

P: A política está sempre presente nos seus livros quase que na mesma proporção de um outro assunto preferido de King, a religião. Será uma parte especialmente assustadora de sua vida?

KING: A religião, quando eu era criança, me apavorava, me deixava quase morto de medo. Fui criado dentro da Igreja Metodista e tinha pavor de ser mandado para o inferno. As histórias de terror com que cresci foram narrativas bíblicas. "Ló, os falsos profetas serão atirados no lago de fogo!" e "Ló, ele queimará por lá para todo o sempre!" — este tipo de coisas, Eram as melhores histórias de terror jamais escritas.

P: Se tivesse que citar a mais apavorante de todas...

KING: A mulher de Lô volta-se para olhar uma última vez na direção de Sodoma e Gomorra, apesar de ter sido advertida para não agir assim, e é transformada numa estátua de sal. Eu costumava fingir ser um daqueles caras fugindo. Chegava a escutar a cidade incendiando-se às minhas costas e os berros resultantes dos raios de fogo que desciam do céu... chegava a sentir minha cabeça fazendo "Buuuuuum!" Aquilo me deixava realmente apavorado. Portanto, talvez haja uma ligação óbvia entre o que estou tentando fazer agora e o que me atormentava na infância. Contudo, também se trata de um esforço de minha parte no sentido de escapar de toda esta papagaiada sobre religião e morte, sobre o que acontece depois da morte etc, e uma tentativa para tomar algumas  decisões relativas a mim mesmo.

P: Tornou-se uma pessoa mais cética no decorrer desse processo?

KING: Não. Na minha opinião, creio ser provavelmente mais religioso agora do que em qualquer outra época da vida. Não freqüento ne-nhuma igreja ou ambiente desse tipo. A religião organizada é sempre a mesma: mais cedo ou mais tarde alguém atravessa seu coração com uma espada. Retalham-no. Colocam estacas em seus olhos. É sempre a mesma; na realidade não sofre uma mudança acentuada.

P: Há algum aspecto na religião que julga mais tolerável?

KING:Tudo que vejo na religião organizada me deixa aterrorizado. Jerry Falwell me causa medo quando o vejo na telinha. Também me diverte, porém o temor que me inspira é mais forte, pois há uma espécie de intransigência em tudo aquilo que se encontra praticamente além da minha capacidade de entender. Ou seja, não há um modo de manter um diálogo com Jerry Falwell. Não importa o que ele faça, está sempre certo, só porque ele afirma que está certo... e permanece de pé bem no meio da igreja. Não vejo qualquer diferença entre ele e o Reverendo Moon. Falwell diz que as publicações sobre sexo, como a Penthouse, deveriam ser retiradas das prateleiras inferiores, onde as crianças podem olhar aquela depravação, ver os atos e as palavras ligadas ao sexo prostituído, e tudo mais. Ele se encontra, é claro, de pé na televisão, dizendo isso, e nunca na minha vida tive oportunidade de deparar com uma revista Penthouse numa prateleira à altura de crianças de três, quatro, ou cinco anos. Não fazem isso. É uma mentira. Esse cara está mentindo.

P: Você está na lista negra deles?

KING:Não. Os fundamentalistas até que gostam muito de mim e não poderia deixar de ser assim, de vez que meus pontos de vista são muito fundamentais. Porém quando vejo Jerry Farwell aparecer na televisão envergando um terno de 300 dólares, digo para os meus botões: "Vá a merda! Desapareça!" Não sei de onde provém o dinheiro de todos eles, porém acho que se seus livros pudessem ser fiscalizados, talvez viesse à tona que eles acobertam a Máfia pelo menos no que diz respeito ao dinheiro que entra. É só dinheiro, é só imperialismo, tudo é fascismo em grande quantidade. Sobrevivem à custa dos temores do povo.

P: E, ainda assim, há gente que afirma que você faz a mesma coisa.

KING:Não acho que me aproveite realmente dos medos das pessoas, pois os medrosos não querem ter nada a ver com aquilo que escrevo. Também não vão assitir a filmes de terror. É como a montanha-russa nos parques de diversão. As pessoas que andam na montanha-russa não são aquelas que têm medo dela. Talvez vomitem ou gritem por terem medo quando se encontram lá, mas isto é um tipo de coragem. As pessoas que sentem medo de verdade são as que se aproximam de mim e dizem: "Puxa, não leio os seus livros. Assisto ao programa Praise The Lord Club (Clube de Louvor ao Senhor)" Em outras palavras, a razão pela qual pessoas como Jerry Farwell podem dizer "Não dou ouvidos aos meus críticos" reside no simples fato de as pessoas que o estão assitindo também não darem ouvidos aos seus críticos. Elas o amam, ele as ama... basicamente o que existe ali é um círculo religioso montado.

P: O que me diz sobre a influência exercida pela religião organizada sobre assuntos como o aborto e o controle de armas?

KING:E a cadeira elétrica. Eles gostam de cadeira elétrica. P: Qual é a sua posição com relação à pena capital?

KING: Não me sinto muito bem com relação a ela. Mas posso imaginar exemplos isolados em que não me sentiria mal se uma pessoa fosse executada.

P:Algum caso em especial?

KING:Embora não seja um cidadão residente no Estado de Nova Iorque, haveria de me sentir infinitamente melhor se o Filho de Sam fosse executado, se David Berkowitz sentasse na cadeira elétrica. Sou tanto a favor como contra a pena capital. Do mesmo modo como sou contra o aborto — detesto a idéia. Considero o aborto um assassinato. Quando se mata qualquer ser com possibilidade de vida, está se cometendo um assassinato. Afinal, o que Falwell e alguns outros estão dizendo é que é preciso legislar sobre isso. E a Bíblia — a suposta palavra do Senhor — está firmemente apoiada numa idéia: o livre-arbítrio. E basicamente o que toda essa gente está dizendo ao afirmar que se deve condenar o aborto voluntário, é que se deve condenar o livre-arbítrio. Essa é uma declaração contrária à palavra de Deus.

P: Eles também se revelam resolutos quanto à questão do controle de armas.

KING:Acho que gostaria de saber que é imprescindível obter uma licença para comprar qualquer tipo de arma. Devia-se exigir que o comprador fosse fotografado e registrado. Ele não poderia ter nenhum tipo de antecedente criminal, nem ter sofrido de qualquer doença nervosa, além de ser obrigatória uma consulta com um psiquiatra nos últimos seis anos.

P: Isso quer dizer que você é favorável ao controle de armas?

KING:Não. Por mim, as pessoas poderiam dirigir-se a uma loja e comprar uma carabina ou um rifle, caso pretendam caçar. Não posso é ver um Mark Chapman aproximando-se de John Lennon com uma 410 por baixo da perna de sua calça, tirá-la dali e matar o camarada. Não acho que devêssemos ter uma legislação rígida, inflexível, contra a aquisição de armas neste país, mas creio ter chegado o momento de serem feitas algumas exigências com relação aos revólveres. A gente vê por aí muitos adesivos presos nos pára-choques dizendo: "Se as armas são proscritas, somente os proscritos terão armas. " Ora, para mim está ótimo que assim seja.

P: Aproveitando a questão do controle: porque há tão pouco sexo em seus livros?

KING: Bem, já houve um pouco... em A Dança da Morte, e acho que há um pouco também em Carrie. Porém Peter Straub (autor de Os Mortos-Vivos) afirma que nunca escrevi uma cena de sexo porque "o Stephen ainda não descobriu o sexo". Na verdade há uma espécie de cena de sexo bastante desagradável em Cujo, onde Joe Camber transa como come, como trata de tudo mais: quase mecanicamente. Porém, um dos motivos por que procuro fugir do sexo é ser ele um ato tão elementar, e seus movimentos tão familiares para toda a gente, que se torna difícil colocá-lo em linguagem de novela.

P: Contudo, para muita gente o sexo não é um terror reprimido?

KING:Claro que sim. Existe nele todo tipo de possibilidades.

P: Se tivesse que escrever uma novela de terror abordando o seu maior medo sexual, qual seria ele?

KING:São vários medos. A vagina dentata, a vagina com dentes. Uma história onde o personagem estaria transando com uma mulher e a vagina simplesmente fechasse e decepasse o pênis dele. Isso serviria. Acabei de terminar um livro intitulado Quatro Estações é uma história de horror que dele faz parte é sobre uma gravidez e seu título é "The Breather Method. "

P: Em dois de seus livros — A Incendiária, Dança Macabra... — você mencionou o Penthouse Forum.

KING: Tal como todo mundo, eu pensava que as cartas publicadas fossem redigidas pelo próprio pessoal da revista. Mais tarde mudei o meu modo de pensar. Contudo, não creio que a maioria daquelas coisas aconteça mesmo. Acredito mais que se trata de fantasias.

P: Fantasias saudáveis?

KING:Sem dúvida que sim. Diria que 90 por cento delas são saudáveis. E algumas são tremendamente inteligentes. Sinto-me até contente ao constatar que o Forum livrou-se dos amputados e todas aquelas coisas afins.

Bem, gosto do Forum por uma razão. Gosto porque, do ponto de vista sexual, não sou lá grande aventureiro... o que é o mesmo que dizer que na minha vida não há orgias. Sou fiel à minha mulher. Quando me encontro numa cidade estranha, não procuro quatro gatas pela rua e digo: "Vamos promover um ménage à trois e tomar Dom Perignon no intervalo"... ou algo dentro deste estilo. Gosto muito de sexo, sou profundamente sexy. Afinal, gosto de transar bastante, porém comparado com o requinte de Forum, seria quase que a mesma coisa que dizer que gosto de bife com batatas fritas. E depois você entra numa casa especializada e vê as pessoas fazendo aquilo! Provavelmente jamais faria uma coisa daquelas, porque ficaria embaraçado ou a alma republicana no meu íntimo viria à tona e eu diria: "Ora, não permito que ponham esta fralda de borracha em mim. "

P: Muita gente talvez dirá que lê os livros de Stephen King pela mesma razão.

KING:Essa gente pode se identificar com eles; contudo jamais teria coragem de sair por aí e fazer o que escrevo.

P: E o que me diz de todos esses imitadores de Stephen King que, de repente, estão surgindo aos montes?

KING:Apareceram realmente uns poucos. Sei lá... alguns não são nada bons.

Dão um duro danado levando o assunto a sério. Talvez sejam inteligentes demais. A gente tem a impressão de que estão obturando o assunto. Pode ser que não estejam se divertindo o suficiente. Talvez façam isto só pelo dinheiro.

P: Vários críticos o tem acusado do mesmo delito.

KING: As pessoas que dizem isso estão muito enganadas... redondamente enganadas. Isso demonstra o elitismo, peculiar à maioria das críticas. Sempre se pode sentir o aparecimento de uma crítica ruim, pois inclui a crítica do meu talão de cheques e dos meus direitos autorais. Uma crítica assim diz logo de saída: "Este é o terceiro livro de contrato multimilionário entre Stephen King e a New American Library", e então já se sabe, ora... vai começar o problema.

P: Você se importaria de mencionar alguns artistas plagiadores dos quais convém manter distância.

KING:Não citarei o nome de nenhum deles. Porém conheço vários livros que devem ter sido inspirados em alguns dos textos que faço. Repare bem, esses livros de "terror" com títulos terminando em gerún-dios encontram-se por todos os lados: The Piercing, The Burning, The Searing... Fica um pouco embaraçoso, pois The Shining (O Iluminado) foi um título que inicialmente rejeitei. Quando concluí o manuscrito, chamava-se The Shine. No contrato o livro tinha este nome. Ocorre que certo dia estávamos calmamente sentados, conversando sobre ele, quando o responsável pelos direitos autorais na Doubleday me disse: "Tem certeza de que deseja ver o livro publicado com este título, tendo um cozinheiro negro como personagem?" Perguntei a ele: "O que você está querendo dizer com isso?" Ele então me disse que na Segunda Guerra Mundial, "shine" era um termo pejorativo, significando o mesmo que "nigger" ou "coon". Explicou-me tratar-se de uma corruptela para "Shoeshine boy". Ignorávamos este detalhe e todos os presentes na sala de conferências acharam melhor trocar o nome.

Eu não receava absolutamente ser considerado racista; mas temia que as pessoas rissem da minha falta de conhecimento. Por isso, àquela altura sugeri: "Vamos mudar o nome do livro. " Era muito tarde para fazê-lo. Já estava pronta a propaganda para ser distribuída pela imprensa e já estavam adiantados os clichês. E eu falei: "Que tal se o título fosse alterado para The Shining? E limitei-me a modificar alguns detalhes no livro, a mudar o título no alto das páginas. Todos concordaram: "Está bem. "

P: Diga-me uma coisa: de um modo geral você enfrenta problemas para escolher o título adequado para um novo livro?

KING:Ora, terminei há pouco um livro sobre cinco jovens transmigra-dos. Eram crianças em 1957 e a idéia do livro é que eles cresceram, têm que voltar para a cidade da sua infância e descobrem, depois de uns telefonemas que recebem, que tinham se esquecido totalmente de todo um ano da sua infância. Percebem que algo terrível aconteceu naquele período, e que precisam voltar e enfrentar tudo novamente. Fiz uma mistura danada: Frankenstein, Tubarão, a Monstro da Lagoa Negra... até o nojento do King Kong está no livro. Olhe, é como uma corrida de monstros. Todos estão lá. Pensei que isto seria formidável. Coloquei o título de A Coisa. Deveria tê-lo intitulado A Merda.

 

COM RANDI HENDERSON

KING:Há momentos em que me sinto um tanto irritado com os editores, que parecem julgar as viagens como contribuição imprescindível para a boa comercialização dos livros. Não sei quem teve essa idéia, que os editores antigamente não tinham, de que se os seus livros vendem bem, você tem que ser algum tipo de celebridade. E mesmo se não lhe interessa, você tem de querê-la. Acham que se você escreve livros acessíveis e populares, é somente porque deseja ser célebre.

Tal idéia não se aplica a mim, de modo algum. Posso aceitá-la ou abandoná-la. Mas se tenho que aceitar, só posso fazê-lo em pequeninas doses. Para mim isso é puro veneno: Tomado em excesso, ele mata.

Não corri atrás do mercado. O mercado é que veio a mim. Escrevo sobre pessoas comuns enfrentando situações incomuns. Não creio que algum dia serei lembrado como um gigante literário. É impossível não querer ficar com a bola toda. Aliás quem não deseja estar com a bola toda é um idiota. E não compreendo por que alguém que escreve uma prosa boa e decente, que é capaz de contar uma história, que tem capacidade para pensar, haveria de virar as costas para o sucesso popular, como também não consigo entender por que um bom escritor, com muita popularidade, não haveria de querer realizar o melhor trabalho possível.

As idéias surgem como sonhos ou algo parecido. Você não ignora como se sonha e como uma porção de elementos desconexos fazem então um sentido perfeito. Ao acordar você diz para si mesmo: "Poxa, estas coisas não se encaixam. E de repente os elementos começam a se encaixar na perfeição.

A própria composição literária, o estilo criativo, o fato de apenas sentar-se e mergulhar na história, como que voando com ela, assemelha-se à psicografia ou ao escrever numa tábua de Ouija. Só que aí você substitui a tábua de Ouija por uma Selectric IBM... (Com Carrie), o filme fez o livro e o livro me fez. As pessoas imaginam um carro-forte da Brinks parando diante da sua porta, vigilantes de Wells Fargo descarregando sacos enormes de dinheiro vivo. Não é assim que a coisa funciona. O dinheiro é pago através de depósitos.

P: Por que razão os terrores manufaturados são tão populares quando são tantos os horrores da vida real?

KING:Quando se tem uma porção de ansiedades livres e soltas, a narrativa ou o filme de terror ajudam como que conceituá-los, reduzem seu tamanho, tornam-nos concretos de forma a poderem ser manipulados. Quando se pode fazer isso e no fim tudo termina e dá a impressão de ter desaparecido no ar, provavelmente há o envolvimento de uma catarse secundária.

Penso que seja um ensaio para nossas próprias mortes. Trata-se de um modo de tentar reunir os diversos elementos que formam um significado. Também acho que há na situação um elemento real que, graças a Deus, não se encontra em mim. E existe uma espécie de fascinação infantil com relação à morte, à mutilação, à tortura e a uma porção de coisas que talvez nem mesmo sejam mórbidas mas, muito mais, curiosidade infantil.

 

A SEMENTE DETERIORADA

Por que motivo todos nós não enlouquecemos ao saber que um dia vamos bater as botas? Porque a mente é um logro. A gente coloca cada coisa num departamento e vai em frente. Continua, planeja o futuro e acredita que tudo dará certo. No entanto, sabemos que, mais cedo ou mais tarde, seremos todos alimentos para os vermes, não importa se daqui a cinqüenta ou sessenta anos. Talvez seja amanhã. Talvez até hoje mesmo.

 

COM JOEL DENVER (R&R)

P: Desde a música de fundo nas suas menções às estações de rádio em quase todos os livros até a aquisição de WZON, está mais do que claro que você ama música e o rádio.

KING:É verdade sempre, sempre dei um jeito de colocar uma estação de rádio em quase tudo que tenho escrito. Em Christine mencionei Rock'n'Roll Heaven e citei frases de vários de meus rocks preferidos, mas em outros fiz muitas referências a WLAM/Lewiston, que fica perto do lugar onde cresci. Nos meus livros criei a cidade fictícia de Castle Rock, que é servida pela WLAM.

P: Qual a razão para esta constante referência ao rádio e à música?

KING: Veja bem: o rádio, e de modo especial a música, fizeram de mim uma criança de verdade. Através deles descobri minha identidade. A gente pesquisa e descobre algo que pertence, que é nosso. É difícil explicar, mas é como um par de sapatos que lhe ficam cômodos nos pés. Meu primeiro disco foi um 78 rpm: Hound Dog, de Elvis Presley. A partir daquele momento percebi o que queria, e quis tudo que pudesse conseguir.

Cresci ouvindo Joey Reynolds, Arnie Ginsberg, Cousin Brucie, Murray The K, todos esses caras. Para mim a essência disso foi sempre o rock AM. Para mim o rock FM — ou, como é chamado atualmente, AOR- nunca foi excitante. Os disc-jockeys geralmente pareciam ter deixado cair um prelúdio e murmuravam através do seu cenário. Para mim, isto é contrário ao tipo de música que tocam e ainda é uma conseqüência da década de 60. Uma espécie de visão impassível do mundo.

P: Quando você adquiriu a WACZ, por que as letras do prefixo foram mudadas para WZON?

KING:Na verdade assumi o controle da rádio próximo ao Dia das Bruxas, fato bastante estranho. A estação pertencia a um grupo chamado Acton, razão do "AC" presente no prefixo. Pensei comigo mesmo que, se estava pagando uma montanha de dinheiro por essa estação, por que haveria de conservar o prefixo deles? Como a estação me pertence, imaginei colocar minha própria identidade nela. Por causa de meu livro Zona Morta e meu amor por The Twilight Zone (Além da Imaginação), pareceu-me muito natural.

A frase "Você está na Zona do Rock" caiu à perfeição e as pessoas também gostaram muito dessa idéia. Nossos adesivos de pára-brisas e as camisetas têm logotipos de provocar arrepios e dizeres pertinentes. A idéia do esqueleto com os fones de ouvido não foi minha, mas sem dúvida funciona às maravilhas.

P: A estação sempre teve um "Z" no prefixo, certo?

KING:Há muitos anos era WLBZ, depois passou para WACZ e agora é WZON, por isso sempre foi conhecida como Z62. Meu diretor de programação, Jim Marshall, queria manter um "Z" no prefixo devido ao fator identificação.

Deve estar bufando de raiva, mas pago a ele para tomar estas decisões. Seria um idiota se não lhe desse ouvidos.

P: Quer dizer então que você confia demais na sua gente?

KING: O mesmo pode ser aplicado às pessoas que dizem: "Não entendo nada de arte, mas sei do que gosto". Na verdade, qualquer pessoa que seja proprietária de uma estação deve confiar no seu pessoal. Nos últimos meses comecei a aprender o significado de taxações, vendas, obrigações diárias e coisas desse tipo. Jim sabe o que está fazendo e o mesmo acontece com relação ao meu gerente geral, Chris Bruce. Ambos são espertos e agressivos; e eu também, mas dentro da minha área de especialização. No rádio ainda estou engatinhando, e seria uma idiotice meter o bedelho em algo que ainda conheço tão pouco.

P: O que pensa do rádio AM agora?

KING: O rádio AM transformou-se nesse hemofílico que está sangrando até morrer diante dos olhos de todo mundo. Detesto que isso aconteça. Estas emissoras transformaram-se em clubes de entrevistas campes-tres anunciando óleos vegetais, margarinas e congêneres.

P: Por que comprou esta estação de rádio, estando a par dos problemas de AM?

KING:Antes de mais nada, comprei-a porque podia. Também por estar localizada na minha cidade natal e porque tocava rock em AM. Isto é importante para mim, é uma parte do meu passado. Tocar rock em AM é uma coisa muito corajosa e pouco comum, sobretudo rock pesado como o que transmitimos. Minha estação toca rock tão pesado, se não mais pesado ainda, quanto algumas emissoras de FM. Se não a tivesse comprado, receio que a Acton a teria negociado com qualquer outro grupo de fora, o qual a programaria pelo modelo AOR ou country.

A compra foi também uma oportunidade para aplicar dinheiro na comunidade em que vivo. É fácil comprar coisas por todo o país a fim de reduzir a tributação, mas comprei esta estação para ganhar dinheiro e vê-la crescer. Quando se possui bens que ficam muito distantes de onde a gente se encontra, é impossível tratar de todos os problemas pessoalmente. Aqui, se ocorrer algum problema agudo estou disponível para agir: por exemplo, se o aquecedor da estação estiver vazando e houver risco de provocar um curto-circuito no transmissor e eletrocutar todo mundo. Também serviu como uma bonificação para o meu pessoal de vendas, que pode me apresentar aos clientes. Isto é ligeiramente duro para mim, pois sei que sou um cara do tipo recatado.

P: Você não experimenta a menor timidez para pôr seus pensamentos num pedaço de papel, isto é evidente. A WZON irá se tornar uma outra faceta da sua auto-expressão?

KING:Certo, ela ainda será isso. Tomaremos certas medidas na wzon com o intuito de transformá-la numa emissora atraente, e terei que dar um jeito de adaptar alguns dos meus talentos a ela. É como se tivesse me preparando para fazer um exame de motorista.

Eventualmente, pretendemos apresentar alguns radiodramas, ou uma programação presa ao teatro-da-mente. Quando eu era criança, costumava ouvir este tipo de coisa, e também tenho ouvido os Mystery Theaters transmitidos pela cbs. Não os achei grande coisa e agora posso dizer por quê. É preciso aprender a realizar uma história para uma pessoa cega, já que o rádio é uma mídia auditiva. Pior ainda é o ângulo de visão. Uma câmera pode estabelecer isso pra você ver, mas no rádio só se conta com o microfone, logo é preciso ser muito exato ao sugerir o cenário.

Tenho trabalhado no roteiro de A Dança da Morte com meu velho amigo George Romero. Aliás, esse roteiro serviria para a realização de um seriado incrível para uma radio-novela. Já tentamos ficar com os direitos de transmissão radiofônica de todos os meus livros, portanto este objetivo talvez possa se tornar algo em que trabalhar para matar o tempo.

P: A WZON já está transmitindo em AM estéreo?

KING:Ainda não, mas isso irá acontecer logo, o mais rápido possível, quem sabe no outono. Acho que o AM vai ter que lutar muito para penetrar na próxima década, portanto não escolhi um caminho fácil para a minha primeira aventura na radiotransmissão.

P: Pretende adquirir uma estação irmã FM ou outras propriedades FM fora do mercado?

KING:Bem, são resoluções sobre as quais venho matutando há muito tempo, mas não se enquadram num futuro próximo. Devo dar um passo de cada vez. Se puder adquirir uma FM em Bangor, ótimo. Eventualmente, uma estação de televisão também. Estou interessado em todos os níveis de comunicação, contudo não desejo que interfiram na minha carreira de escritor.

P: Deixando as entrevistas de lado, você já chegou a trabalhar como disc-jockey?

KING:Não, não sou capaz de fazer isso. Contudo, devo fazer uma experiência na WHSN, uma estação universitária, muito em breve. Perambulo por aí e não consigo colocar na minha voz aquele calor que é tão necessário. Admiro profundamente os camaradas que o fazem, inclusive o meu auxiliar na WZON. Eles trabalham como mouros e acho que são ótimos.

P: Seu diretor musical, Michael O'Hara, contou-me que a primeira coisa que você exigiu foi que a WZON tocasse rock mais pesado.

KING:É verdade. Pouco a pouco aprendi que eles estavam certos quanto a não tocar AC/DC pela manhã. Gostaria demais de animar as pessoas com esse tipo de rock, pois me parecia natural ouvir algo intenso e alto naquele horário matinal. Adoro AC/DC, Motley Crüe, Twisted Sister e muitos outros. Não sou muito chegado à música rock refinada.

P: Acredita que haja outros roqueiros secretos da sua geração?

KING:Claro que acredito. A WZON toca rock pesado e isto nos coloca numa posição de destaque. Quando os resultados das pesquisas forem divulgados, acho que estaremos ocupando os primeiros lugares como sempre. Na WGUY, eles tocam muito mais música negra do que nós. Trata-se de um hábito que vem das décadas de 50 e 60, quando a Dow Air force Base (atualmente Bangor International) existia; a população da base era constituída por 75% de negros. O resultado é que a região acostumou-se muito com a R&B, portanto também colocamos este tipo de música no ar.

P: Além das sugestões para tocar rock mais pesado, você fez mais algumas sugestões para a programação da WZON?

KING:Poucas. Não mantenho um escritório na emissora, não quero fazê-los pensar que os estou vigiando. Antes de mais nada, a literatura me absorve tanto que sequer disponho de tempo ou vontade para me imiscuir na programação. Em segundo lugar, conto com um gerente magnífico... Chris Bruce. Terceiro, aqueles camaradas ficaram agindo sozinhos por muito tempo quando a Acton não demonstrava qualquer interesse pela estação e fizeram coisas fabulosas. Se por acaso eu fosse lá todos os dias, talvez perguntassem a si mesmos: "Esse filho da mãe nunca vai para casa?" Eles sabem que eu ouço a estação e que a controlo, porém tive que deixar a administração da WZON nas mãos dos profissionais de rádio.

P: No entanto você deixou sua marca na estação contribuindo com alguns editoriais humorísticos.

KING:Foi mesmo, e tivemos nossa quota de reações a eles. Fizemos um sobre a "Napkin Barrens", que é uma área no Maine onde são produzidos guardanapos de linho para restaurantes. Também fizemos um sobre os quase cinco quilômetros que ainda faltam para a barreira do pedágio. Houve outro sobre a distribuição de novo fast-food denominado "Corpus Delicious", apresentando este tipo de alimentação servido pela morte. Adotei, na maioria deles, um tipo de voz monótona como a de Paul Harvey. Fi-lo mais por diversão do que por qualquer outra coisa. Os editoriais foram ao ar durante seis semanas, sendo interrompidos pelo receio de matar os ouvintes de tanto rir.

Minha mulher, Tabitha, também fez um; usou o pseudônimo de Ruta Magowan, lançando mão de um sotaque do sudeste do Maine. Afirmou que Papai Noel era um comunista por causa da sua roupa vermelha e mostrou como o NORAD era incapaz de detê-lo. Realmente foi tudo muito gozado, arrancou muitas gargalhadas. Transmitimos este em duas partes, a fim de não tumultuar a cabecinha das crianças, coisa que antes de ingressar no negócio não teria sequer passado pela minha cabeça.

P: Qual foi a reação despertada por você junto aos outros profissionais de rádio em Bangor?

KING: Tenho certeza de que alguns deles pensam que este é o novo brinquedinho de Stephen King. Porém a WZON é importantíssima para mim. Apesar de não me sentir otimista com relação ao AM de um modo geral, encontro-me numa boa posição relativamente à audiência, ao marketing e à quantidade de carros e lares que só possuem AM. Estamos prendendo a respiração e desejando que tudo fique mais calmo.

P: Através da sua experiência como autor, você conhece o valor da promoção. Como se sente tendo que gastar em publicidade dólares que saem do seu próprio bolso?

KING:Quando a WZON vem me pedir dinheiro para uma boa finalidade, limito-me a assinar o cheque. Se aplico 60. 000 dólares num mercado deste tamanho, estarei usando um "clube de dinheiro" para conquistar mais ouvintes. Sem dúvida, atiramos dinheiro pela janela insistindo nos adesivos de pára-brisa, porém fazemos isso em doses homeopáticas, fáceis de se lidar. Eles só vencem se os nossos forem os únicos adesivos de pára-brisa ligados ao rádio. Dizemos à nossa audiência que não queremos dividi-la com ninguém. Além disso, temos os "Z-cards", cartões que propiciam descontos por toda a região.

P: E quantos aos salários? Seus ordenados são comparáveis aos dos mercados maiores?

KING:Não, são ordenados de escravos; a maioria deles é em tíquete-restaurante! Falando sério, creio que pago muito bem a julgar pelos padrões do mercado e pelo que meus empregados recebiam da Action. É preciso pagar bem para se ter auxiliares bons e creio que estou deixando meu pessoal feliz.

 

COM MARTHA THOMASES e JONH ROBERT TEBBEL (Hing Times)

P: Por que lhe parece que a investigação parapsicológica não é vista com bons olhos entre os pesquisadores médicos e cientistas de renome?

KING:Porque não a podem ver. Não a podem usar. Trata-se simplesmente disto. Lida-se com resultados empíricos de algo que não pode ser visto, pesado, sentido, avaliado ou dividido num ciclotron. Está-se falando sobre as pessoas que podem acertar 20 vezes em 25 naqueles cartões Rhine lá no Duke, e tudo que os cientistas se limitam a observar é: "Ora eles conseguiram. Mas foi apenas uma coincidência". Mesmo que a vantagem de milhões e milhões contra um.

Eles não podem dizer: "Muito bem, iremos pesquisar isso, porque, na telepatia, por exemplo, trata-se de um fenômeno inconstante. As pessoas podem acertar 20 vezes em 25, retornar na semana seguinte e só acertar 12 vezes em 25.

P: Na sua opinião, para onde irá a pesquisa do futuro?

KING:A menos que ocorra uma espécie de ruptura significativa, não acredito que vá a parte alguma. Ficará exatamente onde tem estado. Uma das coisas que A Incendiária tentou dizer é que já se chegou ao ponto onde as pessoas dizem: "Não pense nisso, limite-se a realizar; se der certo, tratemos de aproveitar, e não nos importemos com a causa ou seja lá com o que for". Uma filosofia militar e científica que este país sempre adotou.

Quando explodimos a primeira bomba atômica em White Sands, já próximo ao término da guerra, ninguém conhecia o futuro. Desconfiava-se até de que a reação em cadeia continuaria indefinidamente. E teríamos criado um sol minúsculo, no deserto, que iria queimar até o fim dos tempos. Não se tratava de uma teoria amplamente defendida, mas era uma teoria que ainda não se tinha como refutar. Muita gente pensava que o artefato jamais se apagaria, que ia simplesmente acabar se derretendo e produzindo uma descomunal nuvem de radioatividade. Ninguém sabia.

Agora mesmo contamos nesse país com uma verba do governo para a pesquisa psicológica. Porém, quando eles dizem "pesquisa psicológica", não estão na realidade interessados na pesquisa psicológica. Estão interessados em produzir peritos capazes de ler pensamentos para que possam mandar um camarada à Tchecoslováquia ou a outro lugar assim, onde ele vai descobrir a localização dos silos, e todo esse tipo de coisas, simplesmente através da leitura de pensamentos.

Os russos estão gastando mais do que nós. Tem uma instituição na Sibéria onde realizam testes com esses camaradas. Domina a questão; "Não sabemos o que faz isso funcionar, porém também não sabíamos o que fazia a bomba funcionar. "

P: Você acredita que organizações como The Shop existiam realmente?

KING:Não acredito que exista como uma entidade autônoma sob um determinado teto. Contudo, creio que existam elementos da The Shop na CIA e com toda a probabilidade no DSA (Departamento de Atividades Científicas) neste país. E acho que muita coisa desse gênero tem se desenvolvido.

É um constante vaivém. Neste momento há provavelmente mais luz solar do que houve nos últimos dez anos. Creio que existem muitos projetos, como aquele descrito em A Incendiária, que passam pelo Senado com dizeres como: "Verba destinada ao estudo dos sinais de acasalamento das moscas tsé-tsé. " Na realidade, o dinheiro está sendo desviado, ou para a pesquisa da telepatia ou para investigar novos e melhores sistemas de aperfeiçoamento da bomba de nêutrons, ou armas químicas e biológicas — ou para coisa nenhuma.

P: Acredita numa pesquisa de drogas semelhantes àquela descrita por A Incendiária?

KING:Acho que o que eles têm feito, fundamentalmente, é usar uma espécie de chave de braço quando há necessidade de obter uma informação, uma espécie de técnica de lavagem cerebral.

Não sei se já realizaram algum teste para descobrir se o LSD, a mescalina, ou qualquer uma dessas drogas é capaz de destacar talentos psíquicos. D. H. Lawrence declarava que sim. Afirmava ter condições de se comunicar com os amigos sempre que ficava alto.

Semana passada recebi uma carta de um cara. Eu a teria considerado apenas mais uma carta maluca se esse camarada não se expres-sase muito bem, parecendo bastante tranqüilo. Ele conhecera supostamente, um sujeito que tinha visões. Este cara havia previsto, em 1948, o fim do mundo sob um cataclisma. Somente este ano se deu conta de que aquilo que o sujeito realmente tinha visto era uma cena do filme O Império Contra-Ataca. Talvez tivesse sido isso mesmo o que Edgar Cayce viu há tantos anos atrás, apenas uma parte de Guerra na Estrelas. "Está tudo bem. Não se preocupem, companheiros. "

P: Seus livros descrevem a paternidade de um modo brilhante. Você dedica grande parte do seu tempo a ela?

KING: Como estou sempre em casa, reservo muito do meu tempo à paternidade. Um amigo meu disse que, em média, um pai vê cada filho vinte e dois minutos por semana, fato que me pareceu quase inacreditável. Os meus estão o tempo todo dentro do bolso de minhas calças. E gosto que seja assim.

Ao descobrir que iria poder escrever em tempo integral, fiquei matutando: "O que vai acontecer aos relacionamentos dentro de minha família? Será que vão mudar? Vai ser o tipo de situação para gritar: 'Não agüento mais! Tirem-me daqui! Não suporto a gritaria dessas crianças'". As coisas acabaram dando certo, e tornei-me capaz de trocar fraldas de modo adequado depois de várias espetadas por alfinetes de segurança. Eu tinha uma vaga idéia de que as crianças não são difíceis de lidar. Acho que muita gente diz com os seus botões: "Se eu chegar a pai, terei que ser um pai perfeito. É uma responsabilidade imensa. É dificílimo. " Tais pessoas pensam que ser pai é espécie de serviço-de-segurança-durante-vinte-e-quatro-horas-por-dia. E não é assim, de jeito nenhum.

É uma viagem. Também é como estar dentro de uma máquina do tempo. Você retorna. Se não tem filhos, uma porção de coisas que eles esperimentam, você nunca terá oportunidade de re-experimentar: levá-los para assistirem aos filmes de Disney, ver Bambi e dizer: "Puxa, mas que droga de filme. " E depois choramingar: "Porque ele aperta antigos botões. "

P: Disney é conhecido por seus trabalhos assustadores.

KING: Aqueles desenhos são todos classificados como livres. Realmente divertidos. Há crianças espalhadas por todo o mundo que ainda se sentem culpadas porque o pai de Bambi foi morto por um caçador e a mãe sentir-se frágil. Mas as coisas sempre foram assim. Este é o tipo de assunto que atrai as crianças. Elas o entendem instintivamente. Pegam a coisa no ar.

Vivemos hoje numa sociedade onde o tabu sexual foi posto de lado. Qualquer garoto de nove anos pode ir até um 7-Eleven e verificar quem é o Parceiro do Mês, no entanto você não quer que seus filhos saibam o que é a morte. Não quer que tomem conhecimento de mutilações. Não quer que saibam de coisas horripilantes porque suas mentezinhas podem se perverter.

As mentes das criancinhas são muito, muito fortes. São flexíveis. Existe uma quantidade imensa de resistência à ruptura e elas não se romperão. Iniciamos as crianças com historinhas como "Joãozinho e Maria", que destacam o abandono de crianças, rapto, tentativa de assassinato, detenção à força, canibalismo, e finalmente assassinato por cremação. E as crianças adoram essas histórias.

P: Você concorda com a idéia de que os contos de terror são uma importante força socializante?

KING:Muitos contos de fada são mal disfarçados ataques contra os pais. As crianças que não são capazes de sobreviver sozinhas, que morreriam se fossem abandonadas.

Sempre achei que seria muito divertido atualizar "Joãozinho e Maria". Eu poria aqueles pais brancos num bairro da periferia, com um rendimento anual de 50. 000 e 60. 000 dólares. O pai perde o emprego e a madrasta perversa surge: "Poderíamos ir levando a vida, poderíamos usar o nosso Master-Card, bastava para tanto que nos livrássemos dessas crianças remelentas. " Finalmente o pai aluga uma limusine e diz ao motorista: "Deixe-os na Lenox Avenue, no Harlem, as duas da manhã. " As duas criancinhas brancas são ali deixadas. Sentem-se ameaçadas. E uma senhora negra supostamente boa lhes diz: "Gostariam de comer alguns doces?".

As crianças sabem que não podem sobreviver sozinhas e ao mesmo tempo, dentro de cada um de nós, há o instinto de conservação, que diz: "Ninguém se importa e você precisa cuidar de si mesmo; e se não o fizer, morrerá. " Estas duas alternativas trabalham uma contra a outra. Creio que a memória dos filhos sente um medo terrível dos pais e é isso o que reflete todos os contos de fadas: os pais vão te abandonar e você há de ficar sozinho. Mas, no fim, naturalmente, tudo acaba dando certo e os pais levam você de volta para casa.

P: Em A Incendiária eram os pais que se preocupavam com os poderes psíquicos do filho. Sente isso? Alguma vez ficou preocupado com relação aos seus filhos?

KING:Bem... Ainda não. O principal com os filhos é que a gente nunca sabe exatamente o que estão pensando ou como estão vendo as coisas. As crianças são subjugadas. Após ter escrito sobre crianças, que é como colocar a experiência sob uma lente de aumento, a gente se dá conta de que não tem a mínima idéia do modo como costumava pensar quando criança. A gente é capaz de lembrar de fatos da infância, porém acho que a maioria das coisas que recordamos da nossa infância é mentira. Podemos sonhar com coisas que são mais verdadeiras do que o que recordamos ao despertar. Todos guardamos lembranças dos tempos em que éramos crianças; elas se projetam da nossa memória, contudo nada mais são do que simples instantâneos. A gente não consegue se lembrar de como reagiu, porque nosso modo de ver torna-se diferente, nos colocamos a parte

P: A experiência da infância é muito mais benévola em O Iluminado do que em A Incendiária.

KING: Veja bem, Charlie McGee é uma boa garota, você sabe disto. Não é que Charlie McGee queria fazer mal a alguém. Depois de Carrie as pessoas passaram a dizer: "Por que você escreve sobre crianças más?"

Todo mundo quer psicanalisar o terror. Ninguém se preocupa em psicanalisar um livro como A Mulher do Próximo, de Gay Talese, ou algo nesse estilo. Todos acham que os americanos deviam estar interessados em saber quem estão enganando e como estão fazendo.

Mas este é o país do Popular Mechanics. O que está acontecendo aqui, na realidade, é que se discute a explosão do sexo e se diz: "Você também pode fazer isso. " O livro de Talese é uma espécie de guia Popular Mechanics. Em vez de "Como Colocar uma Porta Nova na Garagem", temos o "Como Instalar um Clube de Swingers na sua Cidade".

Mas quando se trata de terror há necessidade de analisá-lo. Ao surgir essa mania de "criança ruim", havia O Exorcista, The Other e A Profecia. As pessoas diziam: "Isto significa, na verdade, que os americanos não querem mais ter crianças. Nutrem hostilidade por seus próprios filhos. Acham que estão sendo amarrados e puxados para baixo. " O fato é que, na maioria dos casos, estes livros são sobre crianças boas atormentadas por forças que se encontram além do seu controle.

Em O Exorcista, Regan certamente não devia ser culpada pelo que lhe aconteceu. Em Carrie, não cabe a ela, também, nenhuma culpa de tudo que lhe ocorre. Ela é levada a fazer tudo aquilo. E quando perpetua a destruição na sua cidade natal, é por estar louca. Carrie não deseja mais provocar incêndios, do mesmo modo como não quer fazer pipi nas calças. Esta imagem, esta correlação, aparece no livro, contudo pouco depois ela é levada a fazê-lo.

P: A pessoa que faz essa conexão em A Incendiária é o assassino, Rainbird. Tem uma personalidade autoritária, e parece ser muito perigoso. Muitas personagens autoritários em seus livros são, sobremodo malignas. Você julga a autoridade uma força maligna?

KING:É exatamente o que penso. Acho que a desgraça da civilização reside no entrosamento social.

Quando estamos juntos, é preciso contar com uma autoridade, ou pelo menos é o que todo mundo diz. Mas isso é como um câncer. "É evidente que se vivêssemos dentro do caos ninguém teria ar-condicio-nado e ninguém contaria com telefone de teclas. Logo, cada um tem que dizer para si mesmo: "Você quer, por acaso, ficar do lado de fora plantando suas colheitas com um pedaço de pau e depois defecar em cima do seu pé de milho para fazê-lo crescer? Ou prefere o tipo de sociedade que temos?" Acredite em mim, nós mesmos a compramos.

Muitas personalidades autoritárias querem ser boas. Sinto isso, e, entretanto, ao mesmo tempo me parece que a autoridade, após algum tempo, sempre resulta em algum tipo de opressão. Quando surgem os relatórios sobre as minorias, o que se faz é expulsá-las da cidade carregando uma cruz flamejante. As coisa simplesmente são assim.

Porém mais uma vez, foi contra isso que combatemos no Vietnã. Creio que lutamos no Vietnã em favor da civilização, e certamente para nos opormos ao autoritarismo. Para mostrar nossa autoridade, para demonstrar que não éramos fracos. Não era isso que Nixon não parava de afirmar? "Precisamos mostrar ao mundo que não somos fracos. " Então, é claro, acabamos revelando ao mundo que éramos... fracos. Porque não fomos capazes de vencer aqueles jovens de pijamas negros.

P: Está querendo dizer que não pode haver o bem sem o mal, que é impossível perceber o que quer que seja sem haver seu oposto?

KING:  Não estou certo de que tudo tenha tanto a ver com o bem e o mal como com a questão do caos versus ordem. Todos tendemos a desejar ordem em nossas vidas. Já levei muitos foras de minha mulher quando eu quis fazer minhas malas. Ela não quer que eu as faça pessoalmente por achar que não sei que roupas combinam entre si. Mas tenho necessidade disso na minha vida. Tive que comparecer esta manhã duas vezes na televisão e este paletó é, na verdade, o mais surrado que tenho. No entanto é meu paletó da sorte. Põe a minha vida em ordem.

Todas as histórias de terror são na verdade sobre a invasão da ordem pela desordem. Aquele momento do início de O Exorcista, o filme, mostrando Georgetown, é a perfeita ordem. Aquilo é civilização. "É onde as pessoas sabem que vinho pedir. Ellen Burstyn está no andar de cima, na cama, acorda e ouve um barulho que parece o rugir de um leão.

Você logo imagina: "Oh, meu Deus, alguma coisa está saindo fora dos eixos. " A ordem pressupõe autoridade e esta pressupõe, mais cedo ou mais tarde, que todos nós necessitamos ser oprimidos. Isto é, o que vai acontecer mais cedo ou mais tarde, não é mesmo? Você sabe que sim.

P: Sabemos? Então por que as pessoas se acomodam?

KING:Ora, por que todos nós enlouquecemos ao saber que um dia vamos bater as botas? Porque a mente é um logro. Agente coloca cada coisa num departamento e vai em frente. Continua, planeja o futuro e acredita que tudo dará certo. No entanto, sabemos que, mais cedo ou mais tarde, seremos todos alimentos para os vermes, não importa se daqui a cinqüenta ou sessenta anos. Talvez seja amanhã. Talvez até hoje mesmo.

Sempre penso nisto quando participo de um programa de entrevistas, sobretudo se a transmissão é ao vivo. Quando J. R. Rodale compareceu ao The Dick Cavett Show e Cavett perguntou-lhe: "Você come todos esses alimentos saudáveis. Como se sente?" E Rodale respondeu: "Nunca me senti tão bem na minha vida. " Um pouco depois, ele batia as botas.

Este é o tipo de coisa que deveria deixar qualquer um louco. Contudo somos mentalmente sadios. Vamos em frente. Temos nossas neurosezinhas, mas continuamos.

E aí está porque podemos continuar apesar de sabermos que por volta da próxima década haverá grupos terroristas usando armas nucleares de fabricação doméstica e que, mais cedo ou mais tarde, alguém usará uma delas para impor suas próprias idéias de ordem no West Bank, na Irlanda do Norte ou onde quer que seja. Acontecerá. E não creio que haja qualquer questão quanto a isto. Porém, o que se pode fazer além de acomodar tudo e esperar que as coisas continuem como estão por mais algum tempo?

O que se faz com relação ao fato de Reagan ser o Presidente? O que se faz com relação a isso? Enlouquecemos? O homem me parece extremamente perigoso. Porém não posso me esconder debaixo da cama.

Tenho um filho com oito anos, Joe Hill, que durante a crise iraniana vomitava. Costumávamos ouvir o noticiário durante o jantar e ele começava a vomitar enquanto as notícias eram veiculadas. Vomitava mesmo. Ia empalidecendo, deixava a mesa e depois vomitava. Finalmente eu concluí: "É por causa do noticiário. Está mexendo com você, não está?" E ele respondeu-me: "Está sim. Toda vez que ouço as notícias meu estômago parece encolher. " Por isso tomamos cuidado de passar a assistir ao noticiário depois, mais tarde. Não sei mas o que fazer.

Ele não tinha aprendido a acomodar as coisas. Quando se tem oito anos, como o túnel de visão ainda não se desenvolveu, a gente tem uma propensão para ver tudo. Se soubéssemos das conseqüências do ângulo onde nos encontramos agora, se tirássemos mais vezes os olhos de nosso trabalho e a mente de nossos planos, seria muito, muito assustador.

P: A repressão às drogas é uma boa idéia? Consta que Gore Vidal disse que nenhuma droga precisa ser colocada na ilegalidade porque, afinal de contas, ninguém se alimenta com Drano.

KING: Isso não pode ser feito porque é o contrário da ordem, seria o mesmo que dizer que não temos autoridade para regulamentar essas coisas. Há uma luta constante para saber o que será ilegal e o que você terá a liberdade de tomar. Podemos franquear as farmácias? Podemos colocar Valium e Percodan, e outros tipos de medicamentos desse tipo nas prateleiras? Eu não tomaria. É um problema.

KING:Achei muito engraçado quando o McDonald's deixou de usar aquelas minúsculas colherinhas de café com as quais as pessoas poderiam cheirar coca. Da última vez que estive lá deram-me uma colher enorme e se poderia cheirar muita coca nela!

Sei lá por quê, mas a Califórnia sempre foi o lugar onde há muito debate sobre quanta autoridade se pode impor à vida das pessoas. É lá que isso se manifesta de modo mais ostensivo. Eles têm uma lei exigindo o uso de capacetes pelos motociclistas, e estes sempre reclamam: "O capacete limita meu campo visual. E também não consigo ouvir o desempenho do motor da minha moto. Se ela incendiasse, eu só tomaria conhecimento quando o fogo chegasse no meu traseiro. " O que os motociclistas diziam nas entrelinhas é o seguinte: "Escute aqui, a cabeça é minha, e se eu quero esmigalhar meu cérebro de encontro aos meios-fios da Costa Highway, o problema é meu e de ninguém mais. "

O uso do capacete foi mantido, e então os dentistas resolveram que deveria haver uma lei obrigando a adoção de protetores para a boca. Isto porque estavam tendo que consertar todas aquelas mandíbulas e dentes espatifados. Eles diziam: "Os jogadores de futebol americano usam protetores de boca e os pugilistas profissionais também. Conseguiremos que os motoqueiros também o usem. " Isso foi a gota d'água que faltava e os motoqueiros chegaram ao Sacramento perguntando: "O que acontecerá depois? Será que terei que usar suspensório atlético para subir na minha moto?" E assim conseguiram jogar por terra a lei do capacete.

Isto é algo terrível de dizer, mas nos meus momentos mais sombrios fico imaginando que, se tudo fosse lícito, não haveria de ser uma espécie de solução darwiniana para uma porção de problemas? Quem são os motoqueiros que se vêem por aí passeando sem capacete ou com um chapéu colocado de trás para frente como aquele ioiô no Cheap Trick? São uns palermas e se espatifarem seus cérebros pelas calçadas, não irão colecionar tíquetes-restaurane.

A única coisa que nunca consegui engolir na década de 60 foi a idéia de que Nixon e os republicanos daquela época fossem totalitários, fascistas, apenas coisas indentificáveis que desejavam dominar e destruir o movimento de resistência e tudo mais. Ainda assim, estavam dizendo: "Não estoure sua cabeça com as drogas. Não se pode fazer isto. Não se pode fazer aquilo. Não se pode fazer aquilo outro. "

Se constituíssemos uma sociedade realmente fascista e tivéssemos uma minoria que berrasse: "Pare com isto, pare com aquilo, pare com aquilo outro", o que diríamos seria: "Ora vamos tratar de lhes fornecer todas as drogas que quiserem. "

Aconteceu algo muito parecido com isso em muitos estados. Reduziram o limite de idade de venda de bebidas alcoólicas para dezoito anos e disseram: "Embriaguem-se. "

P: Existe uma teoria dizendo que a maconha é tão popular atualmente por ser a droga perfeita para manter os jovens tranqüilos. E a gente tem que dizer: "Não faça isso", para que eles o façam.

KING:"Me atire na pedra, não me atirem na água!" Até que é interessante. Na verdade, nunca pensei nisso.

P: O Maine é um estado onde existe tendência para colocar tudo dentro da legalidade. Considera isso uma boa idéia?

KING: Aprovo, sem dúvida alguma. Acho que a marijuana não só deveria ser permitida, como deveria ser uma indústria doméstica. Isso haveria de ser maravilhoso para o estado do Maine. Há algumas drogas de plantio caseiro muito boas. Tenho certeza que seriam ainda melhores se pudessem ser cultivadas em estufas e usando fertilizantes.

O que temos por aqui são lagostas e batatas. E muita gente pobre. Minha mulher diz, e concordo com ela, que seria realmente ótimo para o Maine tornar a droga lícita e fundar lojas de drogas do mesmo modo com há as lojas para a venda de bebidas alcoólicas administradas pelo estado. Você poderia comprar suas espécies preferidas: Acapulco, Augusta, ou Bangor. E as pessoas viriam de todos os outros estados a fim de comprá-las e haveria, claro, um imposto estadual a ser pago. Aí todo mundo no Maine poderia ter seu Cadillac.

Já não fumo mais uma marijuana porque tenho medo dos aditivos, que são o resultado da falta de controle e de regulamentação. Qualquer pessoa pode colocar na marijuana o que bem quiser. E isso me apavora. Essa idéia não me agrada.

Na minha opinião, a droga deve ser apenas suave. E o que faço, quando a fumo ainda, é queimar uns dois cigarros bem depressa, enquanto estou indo para o cinema, para poder sentar na primeira fila.

P: Randy Newman certa vez declarou a um entrevistador que ter vontade de ficar embriagado é o mesmo que querer ficar senil.

KING:Conheci certas pessoas tão desligadas que nem pareciam estar diante de mim. Não faria a mínima diferença se estivessem mortas.

Tomo muito cerveja e esta é a minha droga preferida. Cada um descobre a droga que dá certo para si mesmo. Conheço um cara chamado Harlan Ellison — e ele não é o único — que se vangloria demais por não inserir qualquer tipo de droga. Tenta não colocar aditivos no seu corpo, nem nada parecido. Contudo, ele tem condições de agir assim pois a droga de escolha de Harlan é o próprio Harlan.

P: Quando você escreveu sobre o terror em Dança Macabra, por que começou com a década de 50?

KING:Porque na década de 40 não havia filmes, nem livros de terror. Escolhi a década de 50 porque ela situa com perfeição minha vida como apreciador do gênero — com alguém envolvido nesse culto do terror de massa através do rádio, dos filmes nas matinês de sábado, bem como dos livros.

Nos anos 40 não havia realmente grande coisa no gênero. As pessoas não gostam de ler temas horríveis em momentos horríveis. Na década de 40 havia Val Lewton com Sangue de Pantera e A Maldição do Sangue de Pantera, porém pouca coisa mais.

P: Na sua opinião, qual a diferença entre um livro de terror e um filme também de terror?

KING: O filme reúne uma porção de gente, uma multidão, num só lugar. Há vantagens quanto a isto porque o pânico contagia a platéia. Se for um bom filme, o medo salta de uma pessoa para outra. Talvez você se surpreenda gritando, apenas porque todos os vizinhos assim se comportam. Há uma verdadeira atmosfera de terror.

Também é visual, o que significa a impossibilidade de afastar os olhos daquela coisa... Ela está acontecendo. Você permanece no escuro. Parece um pesadelo. Parece um sonho. É muito, muito visual. Funciona em todos esses níveis.

A superioridade do livro é pegar o leitor, isolá-lo dos outros e trabalhar sobre ele diretamente. Tem suas vantagens porque a pessoas que estão no cinema constituem, realmente, uma multidão. Se você pega um sujeito sozinho, pode realizar um trabalho mais eficiente para assustá-lo.

P: Houve um crítico que declarou que você adota a técnica de catalogação... Cria um mundo completo, terreno, confortável, com produtos de qualidade e linguagem familiar.

KING:Este é o meu mundo. Numa escala maior, qualquer mundo servirá, desde que o leitor possa tocá-lo. O leitor é igual a um camarada no espaço. Você cria esse mundo e as idéias têm que mantê-lo lá embaixo. Então, se a gente está escrevendo este tipo de romance, pega a nave espacial dele e levá-la para longe, de modo que ele não possa sair. Em seguida você o prende o máximo possível ao livro.

Porém, a primeira coisa a fazer é criar qualquer tipo de ambientação com a qual o leitor possa se indentificar bem. Isto não significa que tenha que ser algo conhecido de todo o mundo, ou deva citar Triscuit ou Colgate em todos os livros. Há certas coisas que correm pela sociedade. Em qualquer bairro de Nova Iorque, em qualquer lugar do país, em algum ponto haverá um anúncio da Coca-Cola. As pessoas identificam-se com a Coca-Cola. Você pode escrever uma novela sobre Nova Iorque e as pessoas do interior também a lerão se sentirem que você conseguiu fazê-las viver o clima daquela cidade.

Eis porque jamais escrevi um livro tendo aquela cidade como cenário, pois não a conheço suficientemente bem. Ali existem muitas oportunidades. Em algum ponto do Central Park há um túnel abandonado do metrô que parece estar à espera de algo.

P: Hitchcock declarou que estava realizando um serviço útil, que havia ordem demais em nossas vidas e que ele injetava um pouco do caos necessário.

KING:Na verdade, uma parte de nós reage assim. Escrevendo um romance de terror no momento em que essa desordem inexplicável domina nossas vidas organizadas, consegue-se fazer com que a ordem pareça melhor... por comparação. Contudo, há outra parte de nós que reage ao Quem danificando seus instrumentos em pleno palco. E existe uma parte muito primitiva que diz: "Faça um pouco mais".

Havia uma brincadeira na TV, não faz muito tempo, chamada Supermarket Sweep. Corria-se de um lado para outro e recolhia-se tudo que fora espalhado. Nunca tive realmente vontade de sair vencedor naquela brincadeira. Isto quando eu era bem mais jovem. Nunca quis participar e agarrar coisas. O que eu queria era que me deixassem solto por lá durante uma hora, com uma marreta. Ou, imagine só, no Tiffany's. Com uma marreta. Eles haveriam de dizer: "Durante uma hora, faça o que bem entender. " Se eu tivesse essa oportunidade não o faria, mas gostaria de fazê-lo.

Vê-se muito disso nas feiras rurais. Alguém compra um carro com certo uso e coloca num estrado. Então, por vinte e cinco e cinqüenta cents de dólar você tem direito a dar três pancadas nele, com uma marreta. Os compradores desses carros sempre saem ganhando algum.

P: Em A Incendiária você propõe The Shop como um modelo da autoridade demoníaca e mais tarde fica-se sabendo ser ela menos poderosa do que se pensava.

KING:A questão com relação a The Shop é que a gente a vê primeiro como uma autoridade monolítica, e quando se chega ao fundo vê-se que é um punhado de burocratas cabeludos fazendo seu trabalho. O que me preocupa mais do que a autoridade monolítica é a possibilidade de que tal coisa nem sequer exista e que, se fosse possível estar com Hitler, acabar-se-ia descobrindo no fim esse burocratazinho cabeludo dizendo: "Onde estão os meus mapas? Onde estão os meus exércitos? Nossa, o que aconteceu, turma?"

Muita gente ficou decepcionada com Flagg no final de A Dança da Morte, pois ele nada mais era do que um testa-de-ferro. Ora, este foi sempre o meu ponto de vista. Tenho um amigo que afirma que o demônio encontrava-se em Lyndon Johnson: "O demônio se apossou de Lyndon Johnson quando ele se tornou presidente e obrigou-o a fazer todas aquelas monstruosidades no Vietnã. "E esse sujeito afirma que quando Johnson esteve na televisão após a primária de New Hampshire, já não podendo mais concorrer à reeleição, ele viu realmente o demônio abandonar a fisionomia de Johnson. Perguntou-me se não há muito de verdade nisto tudo.

David Berkonitz, por exemplo — Filho de Sam —, se o fritassem na cadeira elétrica, será que não se estaria vingando tudo quanto ele fez? Esse é o problema. Porque agora ele é apenas um sujeito que está ficando um pouco gordo, e se limita a permanecer sentado a escrever cartas para os jornais, e esse tipo de coisas.

Manson é um jardineiro careca na Califórnia, confinado numa espécie de prisão de meia-segurança. Ele não quer sair de lá. Teme que alguém o mate se sair.

P: O que poderia fazer a sociedade em vez de penalizar o criminoso? Reduzir o tempo de ver televisão? Retirar os cartazes das auto-estradas?

KING:Não creio que nenhuma dessas coisas dê certo. Na minha opinião elas são inatas e é impossível extirpá-las, da mesma forma como não se pode tirar um ovo da casca sem fazer algum tipo de buraco nela. Estamos enterrados nisto.

Os seres humanos possuem vários impulsos bons e nobres dentro de si. A maioria das pessoas tende a ser boa e quer fazer mais o bem do que o mal. Que diabo, há muitas décadas contamos com armamentos nucleares e nada aconteceu ainda. Isto até parece um milagre. Se Reagan apertar o botão, se alguém apertar o botão na Rússia ou alguém o apertar na Costa Rica, poderão colocar uma lápide descomunal no espaço exterior com as seguintes palavras: " Fizemos uma excelente experiência. " Porque a fizemos mesmo.

A ficção de terror sempre lida com dois tipos de mal. Um deles é o tipo de mal que emana do íntimo das pessoas, como acontece em O Médico e o Monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde), onde Jekyll prepara aquela poção porque quer sair à noite, agir com violência e não quer que ninguém o reconheça.

O outro tipo de mal é o da fatalidade. Ele despenca sobre você como se fora um raio. Este é assustador, porém, de certo modo, é a coisa com a qual ninguém precisa se preocupar. Veja bem, se ao sair ficássemos preocupados com a possibilidade de ser atingidos por um raio... ora, seria demais. Devo me preocupar com a possibilidade destes cigarros estarem dando origem a um câncer. Não me venha com relâmpagos surgindo num céu claro. Se por acaso for atingido por um raio, digo apenas: "Foi isso, provavelmente, que Deus quis que acontecesse. "

Mas isso acontece em Drácula, também. Há muita gente em Drácula que desaparece e que era gente boa e você pergunta: "O que fizeram para merecer isto?" Na maioria dos casos não fizeram nada mesmo.

P: Como é que você fez parceria com George Romero?

KING:"Ele apareceu na minha casa certo dia. Estava atravessando o Maine, seguindo para uma faculdade em New Hampshire onde ia fazer uma palestra. Ligou para mim e perguntou: "O que você acha de eu dar uma passada aí?" E disse mais: "Será que podemos trabalhar juntos?" No final da tarde, como eu admirava a obra dele e tudo mais, acabei dizendo: "Há coisas que a gente não escolhe. " Com toda franqueza, falei: "O que é que você gostaria de fazer?". E ele retrucou: "Vamos fazer o A Dança da Morte. "

P: Há uma afinidade entre o humor e o medo?

KING:Pode apostar que sim. Reflita sobre todas as piadas que já ouviu e que estão ligadas à mutilação, ou a algo tão horrível, de uma forma ou de outra, mesmo que seja apenas horrível no sentido de que alguém esteja ficando embaraçado.

Do que riem as crianças? Soltam gargalhadas se a pipa de outra cair. Isto é hilariante. Para a criança cuja pipa caiu... É uma situação horrível.

A caricatura mais engraçada que já vi mostra um sujeitinho idiota num restaurante francês, o garçom inclinado em cima dele com uma expressão maníaca no rosto, Numa das mãos carrega uma bandeja com aquele prato fumegante, carbonizado, e diz aos brados ao pobre freguês; "isto é uma lista telefônica frita, e foi o senhor que a pediu. "

 

COM JACK MATTHEWS

KING: O terror é uma das maneiras de fazermos nossa imaginação divagar. É muito mais um modo de descarregar os maus sentimentos do que o motivo que o gera... Tem um efeito desagradável em algumas pessoas, deixa-as apavoradas, não conseguem dormir, sofrem de pesadelos. Porém essas pessoas, após uma ou duas experiências desse tipo, evitarão o terror da mesma maneira como uma pessoa que vomita após dar uma volta na montanha-russa evitará esse tipo de brinquedo.

Os pesadelos são outro modo de exorcizarmos nossas emoções, nossas sensações de insegurança, e brotam diretamente de nossas imaginações... Eis aí uma coisa maravilhosa.

Minha mãe detestava aqueles hediondos E. C. Comics dos anos 50, porém permitia que eu os lesse... Até que comecei a ter pesadelos. Pesadelos nos quais as pessoas estavam em equipes de beisebol evis-cerando os maus elementos demarcando o campo com seus intestinos. Este era um dos meus preferidos. Usavam a cabeça como bola e havia um olho que saltava fora quando o bastão a atingia.

Então ela disse: "Muito bem, agora chega", e começou a levar os Comics embora. Foi quando comecei a comprá-los e os enfiava debaixo da minha cama... Ela descobria e falava: "Por que teima em encher sua cabeça com toda essa porcaria?" Retruquei: "Algum dia eu é que vou escrever esta porcaria. "

Adoro a ironia contida nos E. C. Comics. Lembro-me de uma história sobre um homem gordo, casado com uma mulher magricela. Ambos estavam planejando um modo de matar o outro. Finalmente o homem gordo enfiou uma mangueira de ar comprimido pela goela da mulher e encheu-a como se fosse um zepelim até vê-la explodir.

Depois de cometer o assassinato, ele sobe as escadas onde ela tinha colocado um cofre de modo tal que desabaria em cima dele. Plaft! O cofre despenca e o achata inteiramente. Vai daí, a magra fica gorda, o gordo fica magro. Ah, ah, ah. Uma ironiazinha até que faz bem ao coração.

Não creio que algum dia me levem a sério. As pessoas me escrevem, dizem o quanto gostaram dos meus livros, mas quando alguém está andando com um livro de John Barth e outro meu nas mãos, elas me escondem para não serem surpreendidas em flagrante.

Isto pode ser culpa do gênero, mas acho que é possível realizar um trabalho à sério, tanto no terror quanto na fantasia. Pode-se atingir as pessoas de todas as idades, oferecer-lhe uma catarse e proporcionar-lhes um modo de se verem livres de alguns dos seus maus sentimentos.

De certa forma, sinto-me como aqueles galeses comedores de pecado que absorviam os pecados dos agonizantes para que tivessem condições de ir para o céu. O comedor de pecados, é lógico, iria para o inferno quando morresse, porque sua alma estaria, então, negra dos pecados que ele tinha ingerido.

Minha alma, na verdade, deve estar muito negra.

 

                                                                                            Stephen King  

 

                      

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