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A isolada e pacata cidade de Beldon, Wisconsin, fica chocada quando o corpo de uma estudante do ensino médio é encontrado no Lago Algonquin. Assim como todos na comunidade,
Daniel Byers, de 16 anos, acredita que o afogamento de Emily Jackson foi um trágico acidente. No funeral dela, contudo, ele tem uma apavorante visão - uma distorção da realidade: a garota se levanta do caixão, agarra-lhe o braço e pede que ele descubra a verdade sobre sua morte.
Convencido de que a aparição era mais do que mera alucinação, Daniel começa a investigar em busca de respostas. A verdade pode ser mais aterradora do que ele pensa. Todos são suspeitos.
Mais horripilante do que isso, está perdendo a capacidade de distinguir entre realidade e distorção. À beira da loucura e sem saber como lidar com sua mente cada vez mais dilacerada, Daniel precisa desvendar depressa o mistério, pois pode haver um assassino à solta em Beldon. Que pode matar novamente...
Daniel ergueu um cobertor acima da cabeça, fazendo-o pender verticalmente. Stacy ficou atrás da escrivaninha dele, com as costas para a parede. Ele notou que ela tamborilava os dedos nervosamente contra a perna.
- Tudo bem - disse ele. - Imagine que tudo do seu lado do cobertor seja real. São as coisas que você consegue ver, sentir o gosto, tocar etc. As coisas que realmente existem.
Do meu lado do cobertor, tudo é...
- Apenas imaginário - disse ela, completando-lhe o pensamento. - Tudo está na sua cabeça.
- Certo. Agora, do que eu descobri na semana passada, a maioria das pessoas possui um belo e espesso cobertor, uma barreira em suas mentes que as ajuda a saber de que lado elas estão.
Ela o observava com atenção; se ele não soubesse das coisas, teria dito isso com mais cautela.
- Desse modo podemos distinguir o real do imaginário - disse ela.
- Exatamente. Agora imagine que o cobertor é uma cortina de água ou alguma outra coisa através da qual se possa ver, mas tudo do outro lado está embaçado. Assim, você saberia que o outro lado está lá...
- Mas a gente seria capaz de distinguir um lado do outro - disse Stacy, com uma voz um pouco aliviada. - A diferença poderia ser notada.
- Isso mesmo.
- E é esse o seu caso?
Uma pausa.
- Não. Não exatamente - disse ele, deixando cair o cobertor. - Acabou.
- O cobertor se foi?
- Sim.
- Completamente? - perguntou ela, aproximando-se de Daniel de maneira quase imperceptível.
Ele confirmou com um movimento de cabeça.
Um breve silêncio.
- Isso a assusta? - perguntou ele.
Ela não respondeu, mas disse:
- Como é que você pode dizer que isto é real? Que eu estou realmente aqui, na sua frente, neste exato momento?
- Eu sei que está - disse ele.
Mas ele não sabia nada. Não tinha certeza de nada.
Não depois de perceber que estava ficando louco.
1
Uma semana antes
A primeira distorção ocorreu no velório de Emily Jackson.
Às 15h54, três minutos antes de acontecer, Daniel Byers estava olhando pela janela do carro, observando as sombras profundas sobre o asfalto à medida que seu pai avançava
pela estrada rural do norte de Wisconsin, ladeada por pinheiros e bétulas. Um punhado de folhas de outono agitava-se ao longo da estrada à frente deles. O céu era de um azul
de aço.
Embora ainda fosse setembro, já nevara duas vezes. A maior parte da neve tinha derretido, mas algumas manchas teimosas continuavam nos cantos da floresta que o sol nunca alcançava.
Logo haveria mais neve. O inverno não era muito generoso nesta parte do estado.
- Já estamos chegando? - perguntou Daniel baixinho, sem desviar o olhar da janela.
O pai permaneceu em silêncio.
- Pai?
- A igreja é um pouco depois da Autoestrada Quatorze. Talvez uns quinze minutos.
Lá fora, uma intrincada rede de folhas passou por sobre suas cabeças. Mergulhou na luz. Tornou a afundar na sombra.
- E sua dor de cabeça? - perguntou o pai. - Passou?
Daniel não quis preocupá-lo.
- Está tudo bem - mentiu ele.
Prepare-se. Você está quase por ver o corpo.
De repente, ele sentiu frio e ligou o aquecedor do carro.
O que, aparentemente, não ajudou muito.
Treze minutos antes da distorção
Seu pai diminui a marcha quando chegam ao estacionamento da Igreja Comunitária da Estrada Beldon.
- Não se preocupe - disse ele a Daniel. - Não vamos demorar muito.
Daniel não soube o que dizer. Como é que se lida com o fato de uma garota que frequentou o ensino médio com você, que você viu atravessando o corredor alguns dias antes, agora
estar morta?
Eles entraram no estacionamento.
- Você ouviu o que eu disse, Dan?
- Ouvi.
- Não vamos demorar.
- Certo.
Entrar na igreja pareceu um pouco estranho. Ele e o pai só tinham ido à igreja duas vezes desde que a mãe os deixara seis meses antes - uma vez na Páscoa e, então, uma semana
depois, como se estivessem prestes a adquirir um hábito, mas nunca tiveram o entusiasmo necessário para levá-lo adiante.
As vagas para estacionar mais próximas do edifício estavam tomadas, de modo que o pai avançou até o fundo do terreno e desligou o motor. Depois de um momento estranho, ele
disse o óbvio:
- Chegamos.
Nenhum dos dois se mexeu.
Por fim, o pai deu duas pancadas secas no volante e disse:
- Tudo bem, vamos lá.
E abriu a porta.
- Eu mal a conhecia, papai.
O pai hesitou.
- Eu sei - disse ele, ainda sentado no carro, mas com um pé para fora. - Mas é importante estar aqui.
Daniel sequer havia sido apresentado formalmente a Emily Jackson, nem sabia o nome dela até a notícia chegar. Afinal, ele estava na penúltima série, e ela era caloura, de
modo que não faria mesmo sentido que ele chegasse a conhecê-la bem. O fato é que ele estava mesmo triste por ela ter se afogado, estava mesmo - e, contudo, de certa forma,
ele se sentia vagamente culpado por não estar ainda mais triste.
Emily Jackson.
Uma garota que passava facilmente despercebida.
Ele tinha visto o que acontecia sempre que ela entrava na cantina e se sentava a uma mesa. De repente, os outros jovens que já estavam por ali se lembravam de alguma coisa
que tinham de fazer, levantando-se todos ao mesmo tempo e saindo. Ou quando um grupo de jovens estava conversando no corredor e ela se aproximava: eles apertavam o círculo
para que não sobrasse lugar para ela.
Então, ela passava por eles. Sozinha.
Ela não achava que eles a tratassem assim de propósito; era coisa que os jovens fazem de vez em quando.
Sempre que ele a via, ela estava sozinha.
E agora estava morta.
Uma garota de quem ninguém parecia querer se aproximar quando estava viva.
Mas agora o estacionamento estava cheio de carros.
Agora todos tinham vindo para ver a Emily.
Agora que ela estava morta.
Onze minutos antes da distorção
Daniel e o pai atravessaram o estacionamento em direção à igreja. Ele se pegou notando o que havia nos carros das pessoas à medida que passavam por eles: papéis de lanchonetes
e garrafas d'água no chão, o pelo dos bichos de estimação no banco de trás, os brinquedos de bebês e as mochilas. Por algum modo, tudo parecia estar sendo registrado em sua
mente mais que o normal. Mais que nunca.
Um velho com cabelo ralo que estava saindo da igreja acenou para o pai de Daniel:
- Xerife.
- Tony.
Daniel o reconheceu: o Sr. Kettner, o homem que narrava seus jogos de futebol. Então, ele disse:
- Lamento tudo isso, filho. Sei que vocês estavam na mesma escola.
Daniel não teve certeza de como responder.
- Obrigado - foi o que conseguiu dizer.
O Sr. Kettner hesitou por um instante, como se estivesse pensando no que devia dizer em seguida. Por fim, ele disse ao pai de Daniel:
- Foi bom vocês terem vindo.
- Achamos que era importante.
O Sr. Kettner deu um pequeno suspiro.
- Uma tragédia. Isso que aconteceu com ela.
- É verdade.
Apesar de breve, a conversa parecia já ter durado tempo demais, e ninguém mais sabia como continuar com ela.
- Então, tudo bem. Vejo vocês depois, Xerife.
- Tudo bem.
- Daniel - disse o Sr. Kettner com um aceno de cabeça. Foi sua maneira de se despedir.
- Até logo, Sr. Kettner.
À medida que ele se afastou, o pai de Daniel tornou a lhe dizer baixinho:
- Não precisamos ficar muito tempo.
Obrigado, pensou Daniel.
- Tudo bem - respondeu ele.
E subiram os degraus da igreja.
2
Uma dezena de homens e mulheres estava reunida em três grupos à porta da igreja, e, ao passar por eles, Daniel ouviu-os dizer:
- Ela está com uma boa aparência.
- Está mesmo.
- E as flores são bonitas.
- Ela ficaria muito contente de ver você aqui.
Surpreendeu-o a estranheza de as pessoas estarem dizendo coisas como essas.
Emily não podia estar com uma boa aparência, não depois de ter ficado dois dias no fundo do lago Algonquin. E que diferença fazia se as flores eram ou não bonitas? Essa gente
não entendia que a garota deitada em meio àquelas flores estava morta, e para sempre? E por que Emily ficaria contente em ver um bando de gente que ela mal conhecia? Por que,
se, quando viva, eles a ignoravam?
E você também. Você nunca conversou com ela. Nem uma só vez.
Uma pontada de culpa.
Daniel passou pelo pórtico e entrou na igreja.
Por todo o santuário, seus amigos e outros jovens que reconheceu serem colegas de escola estavam ao lado dos pais e pareciam pouco à vontade.
Alguns dos jovens pareciam ansiosos; outros, como Brad Talbot, pareciam aborrecidos. Mas todos pareciam deslocados, com os rapazes usando as gravatas dos pais e as garotas
usando roupas escuras e sombrias que as faziam parecer muito mais velhas.
No ar pairava um cheiro de pinheiro e livros velhos.
Alguém tocava piano.
Lá em cima, a poeira flutuava no ar e passava pelas listras de luz que se esgueiravam pelos vitrais altos e estreitos. Essa luz dava a tudo uma aparência irreal e etérea.
Seus colegas, mesmo os rapazes do outro time de futebol, pareciam tão frágeis. Tão machucados. Algumas garotas choravam, e também alguns dos rapazes - mas Daniel percebeu
que estavam fazendo o que podiam para esconder isso. Muitos rapazes estavam olhando para ele, como faziam no campo, enquanto esperavam que ele indicasse a jogada seguinte.
Isso o deixou sem jeito.
Lá fora, ele sabia o que fazer, como armar a defesa, como responder. Aqui, não tinha a mínima ideia.
E evitou os olhares.
A dor de cabeça de Daniel parecia estar piorando. Ele pressionou o polegar com força contra a têmpora, mas isso não ajudou em nada.
Educadamente, seu pai pediu licença e foi até o fundo da igreja para conversar com o Sr. McKinney, um dos professores de Beldon High, deixando Daniel sozinho.
Tudo em torno dele ficou em silêncio, até a música do piano que vinha da frente da igreja parecia ficar mais oca, mais fraca do que devia.
Ele viu o caixão perto do piano.
Você a ignorava.
Não, você apenas não a conhecia. É diferente.
Tentando afastar esses pensamentos, olhou para a esquerda, onde parecia não haver tantas pessoas. Perto do último banco, Stacy Clern, uma garota que acabara de se transferir
para a escola, estava em pé ao lado de uma mulher que Daniel supôs ser sua mãe.
Stacy era atraente, mas não linda. Cabelo castanho escuro. Olhos suaves. E, ao contrário das garotas fúteis que ele aparentemente atraía como moscas, Stacy parecia o tipo
de garota realista e pés no chão com quem ele realmente gostaria de se relacionar.
Na verdade, ele sempre quis pedir-lhe para sair com ele desde que a viu pela primeira vez na escola, mas nunca teve coragem suficiente para fazer o convite. No campo de futebol
ou na quadra de basquete, ele se saía bem - não tinha nenhum problema em saber o que fazer ali. Mas ao lado de uma garota como Stacy, ficaria o dia inteiro procurando a coisa
certa para dizer.
De onde estava, não conseguiu perceber se ela havia chorado, mas a moça parecia realmente triste, e ele teve vontade de ir conversar com ela, de lhe dizer que tudo estava
bem, mas não conseguiu imaginar exatamente o que poderia dizer. E duvidou de que teria coragem de dizer qualquer coisa depois de se aproximar dela.
Por fim, ofereceu-lhe um aceno de cabeça e ela lhe devolveu o mesmo gesto.
Uma fila havia se formado em direção ao caixão de Emily.
Todos se moviam lentamente, como sombras animadas, circulando e pairando uns em torno dos outros em grupos compactos. Tudo o que diziam era sussurrado.
Você tem que conversar com ela.
De alguma forma, parecia normal e anormal se sentir culpado por não ter conversado com Emily. Ele sentia que agora precisava fazer isso, vendo-a pela última vez. Talvez se
redimir, de alguma forma, por não a ter conhecido melhor. Talvez render-lhe a última homenagem - qualquer que fosse ela - o ajudaria a acalmar a vergonha obscura que sentia
rastejando dentro dele.
Daniel entrou na fila.
3
Oito minutos
Havia dezesseis pessoas à frente de Daniel Byers, e ele ficou bem atrás do cara que tirava as fotos de seu time. Uma das garotas de sua classe, Nicole Marten, entregou-lhe
um folheto da igreja. A maquiagem ao redor de seus olhos estava borrada.
- Obrigado - disse ele.
- É muito triste, não? - comentou ela. Daniel conhecia Nicole há seis anos, uma amizade muito estreita, mas que nunca passou do estágio de "apenas bons amigos". - Como é que
isso pôde acontecer?
- É mesmo - replicou ele. - Eu não sei.
Ela enxugou uma lágrima errante, e, então, sem avisar, encostou-se no ombro de Daniel e lhe deu um abraço. Isso o fez se sentir um pouco observado, mas ele não se afastou.
Por um instante, colocou o braço em torno dela; então, ela se ergueu, tornou a esfregar os olhos, deu-lhe um breve sorriso e se afastou para entregar mais folhetos.
Ele notou que Stacy estava olhando em sua direção.
Não foi a hora mais conveniente para ver outra garota abraçada a ele. Especialmente uma garota tão popular quanto Nicole.
Ele enfiou o nariz no folheto que Nicole havia lhe dado.
No topo do folheto estavam o nome de Emily e sua data de nascimento.
Mas não a data da morte.
Ela vivera durante quatorze anos, quatro meses e vinte dias.
Imediatamente, e sem se dar conta disso, Daniel calculou que ele já vivera 845 dias a mais que ela.
Ele não abriu o folheto. Não queria ver todos os quatorze anos, quatro meses e vinte dias da vida dela resumidos em um ínfimo parágrafo. Não parecia justo.
A fila avançou depois que as primeiras pessoas olharam o corpo de Emily, juntando-se a um semicírculo de pessoas de aparência abatida, presumivelmente a família de Emily,
em pé junto ao piano.
Oitocentos e quarenta e cinco dias.
A ideia de que a morte é o fim, o fim de todos os sonhos e memórias que uma pessoa terá, de cada esperança, de cada sorriso e de cada lágrima... era perturbadora.
Os adolescentes não deviam pensar em coisas como essa.
Oitocentos e quarenta e cinco dias.
O caixão estava enfeitado com flores. Só a parte esquerda havia sido deixada aberta.
A fila de pessoas desfilava lentamente em direção a ele.
Alguém havia colocado quinze fotos emolduradas de Emily numa mesa próxima.
Duas delas eram fotos de festas de seu aniversário quando criança; uma a mostrava na praia andando sozinha. Em outra, ela estava dentro de uma cabana com um homem mais velho
que devia ser seu avô. Na foto maior - uma foto de estúdio -, ela estava ajoelhada ao lado de um cão golden retriever. Nas fotos mais recentes, ela usava uma corrente de prata
com um pingente em forma de coração.
Em todas as fotos Emily estava sorrindo, mas Daniel ficou surpreso ao lembrar que nunca a vira sorrindo na escola.
Duas pessoas passaram pelo caixão e se puseram de lado. À medida que Daniel avançava, um homem que passava tocou-lhe o ombro. O rosto do homem estava abatido e triste. Daniel
não o reconheceu.
- Você era amigo da Emily? - perguntou o homem.
Na verdade não era. Eu mal a conhecia.
- Bem... de certa forma.
O homem balançou a cabeça e tornou a tocar-lhe o ombro, dizendo:
- Obrigado por vir. Isso significa muito para nós. - E, então, foi-se colocar junto ao piano. Daniel percebeu que provavelmente era um parente de Emily, talvez o pai dela,
e lamentou ainda mais por não a ter conhecido melhor, como se, de alguma forma, pudesse ter sido de mais ajuda a esse homem se tivesse sido um bom amigo de Emily.
Daniel desejou ir até ele e dizer:
- Sabe de uma coisa? Ela era uma das garotas mais legais que eu já conheci.
Mas, em vez disso, permaneceu na fila.
Agora ela estava se movimentando com mais rapidez. Só havia oito pessoas à frente dele.
Ele gostaria que sua dor de cabeça passasse.
Ao dar outro passo, ocorreu-lhe que, se Emily tivesse ido para outra escola ou morasse numa cidade a 80 ou 160 quilômetros de distância, ele poderia nem ter ouvido falar de
sua morte, e, nesse exato momento, estaria no treino de futebol - que havia sido cancelado em respeito ao funeral - e tudo correria de outra forma. Pessoas anônimas morrem
em lugares distantes a cada minuto, todos os dias, mas a morte não parece ter nenhum significado até que, de alguma forma, interfira em nossas vidas.
Quatro pessoas.
Por fim, ele viu, de relance, o rosto de Emily Jackson.
4
Um minuto
Na verdade, ele só conseguiu ver o alto do rosto dela, a testa, uma franja loira de cabelo. De algum modo, fizeram com que não parecesse que ela havia ficado embaixo d'água
todo aquele tempo, mas, mesmo assim, seu rosto não parecia natural.
Seus olhos estavam fechados. A acne da testa havia sido coberta com a maquilagem usada para os mortos. Ele nunca tinha pensado nisso, mas alguém da funerária ganhava a vida
maquiando os mortos.
Era assim que essa pessoa pagava as contas.
Daniel se forçou a não pensar mais nisso.
Só havia três pessoas entre ele e o cadáver.
Agora, ele sentiu o coração batendo mais rápido e ficou nervoso devido a um tipo de medo trêmulo e ansioso.
Então, viu o resto do rosto dela.
Algumas pessoas dizem que os mortos parecem estar dormindo, mas não era o caso de Emily. Ela parecia morta e mais nada.
Duas pessoas.
Então, uma.
Em seguida, Daniel estava diante do caixão, olhando para o rosto com a palidez da morte de Emily Jackson.
A distorção
Os lábios estavam cerrados como os olhos. As mãos, dobradas por sobre o peito.
Ela parecia menor, mais frágil do que ele se lembrava dela.
Durante um instante breve e macabro, ele desejou tocar a mão dela, para, de algum modo, confortar esta garota que nunca iria para um baile alegre, nunca ficaria acordada até
tarde na noite de formatura, não iria à faculdade, não se casaria nem formaria uma família.
Como será tocar a pele de uma pessoa morta?
A ideia se evaporou num redemoinho de medo e repulsa.
Você a ignorou.
Ela parecia familiar e estranha ao mesmo tempo.
E estava quieta, tão quieta.
E, então, Emily Jackson abriu os olhos.
5
Daniel ficou arfante e retrocedeu, chocando-se com a pessoa que estava atrás dele. Ele se virou e viu uma velhinha olhando preocupada para ele.
- Desculpe - murmurou ele. - A senhora viu aquilo? - perguntou ele, com a voz soando como poeira.
- O quê?
- Ela.
Ele apontou para Emily. E não conseguiu dizer mais nada.
A mulher se inclinou para o lado e voltou o olhar para o caixão, mas agiu como se não houvesse nada de incomum e olhou para ele com uma leve suspeita.
Devagar, com o coração martelando, Daniel tornou a olhar para o caixão.
Um arrepio profundo.
Emily ainda estava lá, mas tinha virado a cabeça e olhava para ele, com os olhos fantasmagoricamente brancos, sem nenhuma cor. Ela abriu um pouco a boca e dela saiu um desagradável
fio de água.
Ela está morta, está morta, está morta. Isso não está acontecendo. Isso não pode estar acontecendo!
Ele beliscou o braço com força, mas a imagem de Emily olhando para ele não desapareceu.
Então, seus lábios se moveram e ele ouviu seu nome pronunciado por uma voz molhada e suave:
- Daniel.
Aquilo não era real!
Bem diante dos olhos dele, algas do fundo macio do lago apareceram no cabelo dela. Suas roupas estavam encharcadas. A cor da pele havia mudado de uma imitação de branco caucasiano
para um tom cinza-azulado que devia ser o que viram os dois pescadores quando a encontraram. Então, ela tornou a falar com ele, a voz úmida e gorgolejante, com mais água escapando-lhe
da boca a cada palavra:
- Trevor estava no carro.
A dor zumbiu dentro da cabeça dele.
O momento o arrebatou. Ficou petrificado e não conseguia se mover.
- Trevor não devia estar no carro - disse ela. Então, com um movimento rápido e brusco, ela se sentou. - Encontre os meus óculos - disse ela, estendendo o braço em direção
a ele e apertando os dedos mortos em seu braço. - Por favor, Daniel. - E outro fio de água suja saiu de sua boca aberta.
Ele liberou o braço e tornou a tropeçar para trás, a cabeça latejando, palpitando, e o mundo ficando cada vez mais de um negro vertiginoso. Emily tornou a deitar no caixão
e, então, tudo começou a girar num círculo amplo e lento, e ele percebeu que estava no chão da igreja, com as pessoas se inclinando para ele, perguntando-lhe o que havia acontecido,
se ele estava bem.
A escuridão que se enrodilhava em sua mente transformou-se numa brilhante lâmina de luz que penetrava em tudo.
- Ela está viva - disse ele o mais alto que pôde, mas não conseguiu se fazer ouvir de modo nenhum. - Emily ainda está viva.
E essa foi a última coisa de que Daniel se lembrou antes de apagar.
6
Ele acordou desorientado, os pensamentos nebulosos. Pelo que percebeu, estava deitado em um dos duros sofás do saguão. Seu pai e alguns adultos que não reconheceu estavam
olhando para ele.
As luzes do teto brilhavam acima dele. Ele teve que piscar e desviar o olhar.
- Dan? - Havia preocupação e alívio na voz do pai. - Você está bem?
Daniel tornou a piscar. Agora, tudo estava lhe voltando à mente: a entrada na igreja, a aproximação do caixão, a vista de Emily...
Ela falou com você. Ela o chamou pelo nome.
- Você está bem? - repetiu o pai.
- Estou - disse ele, balançando a cabeça. - Ah, ela está...?
- Quem?
- A Emily. Ela está... - Puxa, isso ia soar estranho. - Ela está mesmo morta?
O pai confirmou com um sombrio aceno de cabeça.
- Podemos conversar mais sobre isso em casa, certo?
- Então ela...?
- Está.
A visão de Emily no caixão, a visão da água saindo de sua boca, o som gorgolejante de sua voz, sua mão agarrando-lhe o braço com firmeza, tudo tinha parecido tão real...
Como isso tudo podia ter acontecido se ela estava morta?
Mas também não podia ter sido real. Emily tinha se afogado e estava morta, e os mortos não abrem os olhos, não se sentam no caixão, não conversam com a gente e, com certeza,
não agarram nosso braço.
Você só está vendo coisas. É só isso. Sua mente está lhe pregando peças.
Mas tudo parecera tão real quanto a conversa que estava tendo com o pai.
Ele ainda estava tonto e fez um pequeno esforço para se levantar. Duas pessoas que estavam ao lado do pai abriram-lhe caminho. Então, as outras pessoas fizeram e mesma coisa,
até que Daniel ficou sozinho com o pai.
- Você desmaiou - disse-lhe o pai, como se estivesse antecipando uma pergunta que, na verdade, Daniel nem tinha a intenção de fazer.
- Eu nunca desmaiei antes.
- Foi a dor de cabeça.
- Não sei.
O pai o ajudou a ficar em pé e, entre os olhares curiosos e ansiosos de alguns de seus colegas de classe, os dois saíram da igreja.
- Acho que foi o choque - disse o pai. - Sabe, o choque de vê-la daquele jeito.
- Acho que foi isso.
Na volta para casa, Daniel tentou afastar da mente o que acontecera, tentou se convencer de que não tinha visto nada, de que não tinha ouvido Emily lhe dizer que Trevor estava
no carro, de que uma garota morta tinha lhe pedido que procurasse seus óculos.
Agora que estava pensando no ocorrido, nas fotos na frente da igreja em que estava usando óculos e na escola quando a via, ela também os usava.
Ele não sabia se era costume pôr os óculos no morto no caixão. Parecia uma coisa estranha, mas era possível que isso acontecesse, se talvez alguém usasse óculos o tempo todo
e o pessoal da funerária estivesse fazendo com que o morto parecesse o mais normal possível.
Mas, no caso de Emily, ninguém teria encontrado os óculos dela. Afinal, ela havia se afogado, e parecia muito pouco provável que, de alguma forma, ela tivesse conservado os
óculos no rosto enquanto as correntes do lago a puxavam para baixo, carregando-a para aquela enseada onde seu corpo foi encontrado.
Eles chegaram em casa, e Daniel foi direto para o seu quarto.
Ele nunca soubera o que achava sobre a existência de fantasmas. Por um lado, o sobrenatural ou o paranormal, qualquer que fosse o termo usado, não era algo que aceitasse com
facilidade. Ele acreditava que a ciência acabaria por envolver seus braços em torno dessas coisas e emergiria com uma explicação que fizesse sentido.
Por outro lado, muitas pessoas realmente viam coisas inexplicáveis, e não era possível descartar o que experimentavam: visões, assombrações, estranhos barulhos no meio da
noite, portas ou janelas que batiam sozinhas. Correntes de ar gelado onde não havia nada frio.
Antes de hoje, ele mal conseguia imaginar como seriam essas coisas.
Mas foi o fantasma de Emily que viu?
Ele não conseguia chegar a nenhuma explicação.
Daniel tirou a gravata, a única que possuía, e a pendurou no armário.
Mas, mesmo que tivesse sido o fantasma de Emily, por que ela lhe pediria para que encontrasse os óculos dela? Daniel tinha visto alguns filmes de terror e ouvira muitas histórias
de fantasmas ao redor das fogueiras de acampamentos - especialmente de seu amigo Kyle.
Segundo o que as pessoas contavam, os fantasmas, se é que realmente existiam, por vezes eram inofensivos - até benevolentes -, oferecendo ajuda aos vivos. Às vezes estavam
em busca de justiça ou de um lugar para encontrar o descanso final, ou a oportunidade de escapar do limbo e entrar na eternidade. Mas, às vezes, eram vingativos ou simplesmente
maldosos.
As histórias que Kyle gostava de contar normalmente eram sobre fantasmas vingativos ou poltergeists que só queriam aterrorizar ou prejudicar as pessoas ainda vivas.
Ou matá-las.
Às vezes tinham essa intenção.
Daniel reassegurou-se de que todas essas coisas eram apenas inventadas; na vida real, os fantasmas não existiam.
Mas, enquanto tirava a camisa, um arrepio de frio desceu-lhe pela espinha.
Ele olhou para o braço.
Marcas que lembravam as feitas por garras, inchadas, vermelhas e no formato de uma mão, podiam ser vistas em seu braço no lugar onde a garota morta o havia agarrado durante
o funeral.
7
Daniel não dormiu bem.
Não era apenas a sensação desconfortável de estar no velório, ou o fato de seu braço estar machucado; era principalmente a imagem de Emily olhando para ele, se movendo e sentando.
Essa imagem não o abandonava, nem nos sonhos. Ela ficava se levantando do caixão e falando com ele.
Trevor estava no carro. Trevor não devia estar no carro.
Encontre meus óculos.
Por favor, Daniel.
Em seu sonho, ela o chamava pelo nome, sem parar.
Por favor, Daniel.
Daniel...
As fotos na frente da igreja voltaram-lhe à mente, e ele a viu como se ela estivesse se locomovendo de uma para outra, se transformando e emergindo, de foto para foto - da
cabana para a praia, para a foto de estúdio com seu cachorro - com relances de sua movimentação pelos corredores da escola.
Por fim, quando saiu da cama, sentiu que ainda precisava de mais horas de sono.
As marcas ainda estavam em seu braço.
Ainda doloridas.
Ele pegou uma camisa de mangas compridas para que ninguém as visse.
Não sabia como as esconderia durante o treino do futebol, mas talvez os protetores de braço fizessem isso - desde que ninguém as notasse no vestiário quando estivesse se trocando.
Como de costume, seu pai estava na cozinha percorrendo as notícias em seu iPad enquanto acabava de tomar café, com uma cópia do jornal local que já tinha lido dobrada embaixo
de sua tigela de cereais. Estava usando o uniforme de xerife. Rádio. Lanterna. Algemas. Pronto para começar o dia.
- Está se sentindo melhor hoje, Dan?
- Estou. Obrigado.
Ele só percebeu depois que havia afastado o braço machucado do olhar do pai.
Puxa, tomara que eu não faça a mesma coisa na escola hoje, ou vai ser um dia realmente longo.
- A que horas você volta do treino do futebol hoje à noite?
- Nós vamos rever uns filmes dos jogos dos Pioneers depois do treino, então pode ser que eu só chegue lá pelas seis e meia. Às oito, o Kyle vai vir aqui para estudarmos para
a prova de história de amanhã.
O pai terminou o café.
- Você quer que eu traga alguma coisa para o jantar quando eu voltar?
- Vou fazer umas fajitas* - respondeu ele. Desde que sua mãe foi embora, Daniel e o pai dividiam as responsabilidades da cozinha, e a especialidade do rapaz eram tortilhas
feitas em casa, de modo que o pai não contestou a ideia de comer fajitas.
- Vai ser bom - disse ele, levantando-se e dando um tapinha no ombro de Daniel. - Ei, cara, eu sei que vai haver muito que fazer esta semana, um trabalho muito intenso. Trate
de se esforçar.
- Vou me esforçar.
As coisas corriam bem entre os dois desde o dia, na primavera passada, em que a mãe de Daniel disse coisas que mulher nenhuma deveria dizer ao marido, antes de ir embora.
A separação realmente afetara seu pai. Ele agora já não sorria muito. Trabalhava muito, era um bom pai, estava sempre por perto quando Daniel precisava dele. Mas o peso em
seu coração se abatera sobre os dois, e Daniel não sabia como ajudar o pai a se livrar dele. O divórcio, contudo, não era definitivo. A mãe de Daniel conversava com ele ocasionalmente
pelo telefone e lhe dizia que ainda queria fazer parte de sua vida, mas como ela ainda não tinha voltado sequer uma vez de Twin Cities, onde morava com a irmã, as palavras
dela não lhe diziam muita coisa. Todos sabiam que ela não ia voltar, pelo menos de maneira definitiva.
Lá fora, uma fina camada de gelo cobria tudo, e Daniel teve que remover a que se espalhava por todo seu carro antes de sair com ele.
A caminho da escola, tentou tirar da mente a morte e o velório de Emily, mas teve dificuldade em esquecer o que havia acontecido lá na frente da igreja. Tinha sido mais que
uma alucinação. Ele tinha visto o fantasma dela, ouviu-o falar e portava no braço a prova desse encontro.
Mas o que ele podia fazer com relação a isso, além de esconder a marca inchada e em formato de mão e tentar esquecer o que havia acontecido?
Essa era a questão.
Mas de uma coisa ele estava certo: tratava-se de um acontecimento que ele nunca seria capaz de esquecer.
Daniel encontrou seu tradicional lugar para estacionar no final de um terreno perto de um tranquilo bosque de pinheiros onde, pela manhã, ele conseguia ver cervos pastando,
especialmente no inverno, quando começava a amanhecer e ele se aproximava de carro. O estádio de futebol ficava à esquerda, perto do milharal de um fazendeiro nos limites
da escola.
Depois de pegar a mochila e colocá-la nos ombros, caminhou em direção ao edifício.
A escola de ensino secundário de Beldon High era relativamente grande, considerando-se o número de pessoas que viviam na cidade. Cerca de uma década atrás, alguém decidiu
que transportar de ônibus os alunos da região sairia mais barato que construir ou reformar escolas secundárias da área, e desde então esse tipo de transporte estava funcionando.
A sala de Daniel era a menor de todas, mas mesmo assim comportava cerca de cem alunos. Havia mais alunos que o suficiente na escola para que alguns se esgueirassem pelos fundos
dos muros.
Como Emily havia feito.
***
Ele encontrou seu amigo Kyle Goessel parando seu Mustang preto de vinte anos.
Kyle saiu do carro e bateu a porta.
- O que está havendo, Dan?
- Oi.
- Você está legal? Eu soube do que aconteceu no velório.
- Eu estou bem - respondeu Daniel, e os dois começaram a caminhar em direção à escola. - Então você não foi? - acrescentou ele.
- Eu cheguei depois que você saiu.
Desde que Kyle e sua família se mudaram para a cidade cinco anos antes, ele e Daniel se tornaram amigos, embora estivessem em posições totalmente opostas em muitas áreas.
Daniel gostava de esportes. Kyle vivia para sua guitarra elétrica, histórias em quadrinhos e seu trabalho no Rizzo, a pizzaria favorita dos dois.
Kyle, literatura. Daniel, matemática.
Daniel, rock tradicional. Kyle, bandas alternativas.
Nessa manhã, o cabelo de Kyle, loiro, sujo e caindo até os ombros, ainda estava um pouco molhado do chuveiro, e ele passou a mão sobre a cabeleira para assentá-la.
Kyle era mais alto que Daniel, mas um pouco magro e descoordenado - a menos que estivesse correndo. Era uma coisa estranha. Seus membros todos pareciam se movimentar em diferentes
velocidades quando ele trotava pelos corredores da escola, mas quando corria a toda velocidade, seu corpo inteiro era fluido. Liso. O rapaz sabia correr, mas, apesar de muito
assediado por olheiros e treinadores para que entrasse para seus times, ele recusava, por motivos que jamais soube explicar a Daniel.
De certa forma, ele se parecia com Jacob Lawhead, outro cara de sua classe, que gaguejava ao falar, mas, quando cantava, a gagueira desaparecia completamente.
Alguns diziam que estava tudo só na cabeça dele, mas ultimamente o que isso importava? A coisa não ficava menos real. Sempre que alguém diz que tudo está só na sua cabeça,
essa pessoa devia deixar de fora a palavra só, pois seja lá o que for que acontece na sua cabeça, isso também acontece no seu corpo. Não há como evitar.
Algum garoto apertou o botão errado do chaveiro, pois, quando eles se aproximaram da escola, um alarme de carro disparou. Kyle murmurou:
- Fico feliz que tenham inventado essas coisas. Que ideia brilhante foi essa... Quero dizer, quantos roubos os alarmes de carro já preveniram? Milhares, tenho certeza.
Passaram pela porta da frente e saíram no corredor que corria paralelo à secretaria e dava para os laboratórios de ciência.
Kyle tirou o fone de ouvido, com a calculadora na mão.
- Hoje não, Kyle.
- Só uma.
- Não estou com cabeça para...
Kyle já estava teclando.
- 1.489 vezes 783, dividido por 4,4?
- 264.974,318 - respondeu Daniel imediatamente.
Kyle balançou a cabeça.
- Cara, não tenho a mínima ideia de como você consegue isso.
- Do mesmo jeito que você toca guitarra.
- Como do mesmo jeito?
- Você lê música, você a traduz sem nem pensar no que está fazendo, e sabe exatamente como fazer, que cordas tem que dedilhar e tudo o mais. Quando olho para uma partitura,
fico completamente perdido. Fico imaginando como eu conseguiria saber qual nota é a certa, da mesma forma que distingo os símbolos matemáticos, mas eu só conseguiria isso
depois de algum tempo. Para você, a música vem naturalmente.
- E para você, a matemática.
- É, do mesmo jeito.
Kyle guardou o celular no bolso.
- Ei, eu preciso pegar uma coisa no meu armário. Venha comigo.
Atravessaram o saguão, navegando em meio a uma multidão de alunos que iam até seus armários antes das primeiras aulas.
Cinco minutos antes do sinal.
Nicole Marten passou por eles quando iam para a aula de literatura.
- Oi, Kyle. Oi, Daniel.
- Oi - responderam eles.
Depois que ela passou, Kyle olhou para Daniel.
- O que foi?
- Cara, ela está amarradona em você. Você devia pedir para levá-la para casa.
Daniel olhou para ele com indiferença. Nunca lhe ocorrera que Nicole pudesse gostar dele desse jeito.
- Ela gosta de mim?
Kyle balançou a cabeça.
- Você pode ser o gênio da turma, mas não sabe como agir quando se trata de garotas. Sem ofensa.
- Nenhuma - respondeu Daniel. Eles chegaram ao armário. Daniel apoiou uma das mãos na parede. - Eu estava pensando em convidar aquela garota nova, a Stacy.
- Isso - disse Kyle remexendo em suas coisas. - Você vive me falando dela. Quando é que eu vou conhecê-la?
Normalmente, quando uma aluna nova chegava, todo mundo queria conversar com ela, mas ninguém parecia ter se lembrado da Stacy. Daniel não tinha certeza quanto ao motivo disso
- provavelmente porque estavam preocupados com tudo o que acontecera com a morte de Emily.
- Eu vou apresentar você.
- O baile é... - começou Kyle.
- Sábado. Sim, eu sei.
- Você já está em cima da hora, amigo. Isto é, se ainda pretende convidar alguém.
- Você vai com a Mia?
Kyle confirmou com um aceno de cabeça. Ele estava saindo com Mia Young desde o começo do verão - o mais longo de seus namoros.
- Você sabe que sim.
Ele acabou de remexer em seu armário e o fechou.
- Bem, não descarte a Nicole. Ela é legal. E pelo que a Mia me conta, ela ainda não tem namorado - disse ele a Daniel. Enquanto iam para a aula de literatura, Kyle apontou
para um armário perto do fim do corredor. - Esse era o da Emily.
- Como é que você sabe?
- Eu a vi algumas vezes, aqui no corredor, pegando suas coisas. Ouvi dizer que levaram tudo embora. - Fez uma pausa. - Fico imaginando o que podem ter encontrado.
Pensar no que poderia haver no armário de Emily trouxe-lhe lembranças do velório, e era isso que Daniel menos desejava naquele momento.
O local de seu braço que ela agarrara começou a coçar terrivelmente, mas ele resistiu à coceira e, entrando com um grupo de outros alunos, ele e Kyle foram para a aula.
Todo mundo estava mais quieto do que de costume, quase com certeza por ainda estarem tentando vencer seus sentimentos com relação ao que acontecera a Emily.
Alguns colegas perguntaram a Daniel se estava tudo bem, mas, felizmente, a maioria deles não falou nada sobre o que havia acontecido no velório.
O corpo de Emily fora encontrado no domingo à tarde e, na manhã de segunda-feira, os administradores da escola convocaram psicólogos para conversar com os alunos.
Tudo tinha acontecido muito depressa. O pai de Daniel contara-lhe que, como era de costume, a família não fazia o velório logo depois de o corpo de um de seus membros ter
sido encontrado, mas, aparentemente, neste caso, a família quis que isso acontecesse o mais rápido possível.
Não havia psicólogos suficientes em Beldon para toda a escola, de modo que outros foram chamados em Superior e Ashland. A maioria dos alunos que Daniel conhecia realmente
se sentiu bem conversando com os analistas, e ele ficou imaginando se não seriam principalmente os estudantes dos primeiros anos que haviam sido ajudados por eles. Difícil
saber.
Todos os psicólogos deixaram seus números de telefone e e-mails, prometendo estar à disposição se os alunos precisassem contatá-los, e a coisa parou por aí. Eles pareciam
estar preocupados, pareciam realmente sinceros, mas, honestamente, Daniel não sabia se a ajuda deles produziria algum efeito.
O tempo consegue fechar algumas feridas, mas, quanto ao fato de sua mãe ter ido embora, ele sabia que, por vezes, a dor se intensificava ainda mais, como um machucado infeccionado
no coração que se recusa a sarar.
A Srta. Flynn, sua professora de literatura, olhou para o relógio da parede e, então, folheou a miríade de papéis espalhada sobre sua mesa. Ela era solteira, tinha vinte e
poucos anos e usava saias que nenhuma das outras professoras da escola seria capaz de usar.
Ela não era muito chegada nos clássicos, mas tinha um vivo interesse por histórias envolvendo morte, terror gótico e o macabro. Embora os alunos achassem isso um pouco estranho,
sem dúvida ela mantinha a classe interessada.
No primeiro dia de aula, ela lhes disse que gostaria de ser chamada de "prô", uma forma mais descontraída de "professora". E foi assim que eles a chamaram desde então.
Kyle inclinou-se para a carteira de Daniel e lhe disse:
- Quer apostar que ela vai nos pedir para escrever uma redação sobre como superar a dor? Ou alguma coisa parecida?
- Nisso eu concordo com você.
Por um instante, ele olhou para Nicole enquanto ela pegava seus livros, então desviou o olhar para que ela não percebesse que a estava olhando.
O resto dos alunos foi para os seus lugares, o sinal tocou e a Srta. Flynn levantou-se para começar a aula.
* Fajita é um termo genérico que se emprega na culinária da região de fronteira do México com o Texas, em referência à carne grelhada servida em uma tortilha de milho ou farinha.
(N. T.)
8
-Hoje vamos dar uma olhada numa história de Richard Brautigan, um poeta beatnik e ensaísta da década de 1960.
Muito bem, alguma coisa saída do nada. Um poeta hippie de cinquenta anos atrás - não exatamente um autor típico da Prô.
Ela se sentou junto à mesa, cruzando as pernas de uma forma que podia muito bem ter sido calculada para chamar a atenção dos rapazes da classe, focada intensamente na frente
da sala.
- A história se chama "A tragédia do galgo". Ela está em seu livro A vingança do gramado. E começa assim: "Ela queria que sua vida fosse uma tragédia de revista de cinema
como a morte de uma jovem estrela com longas filas de pessoas chorando e um defunto mais bonito que uma grande pintura, mas nunca conseguiu sair da pequena cidade do Oregon
em que nascera e crescera para ir morrer em Hollywood".
Longas filas de pessoas chorando num funeral.
O cadáver de uma jovem.
Isso soava desagradavelmente familiar.
De repente, não parecia tão estranho que a Srta. Flynn tivesse escolhido essa história para a aula daquele dia.
Ela fez uma pausa, como para deixar que a imagem do velório sumisse, para continuar lendo sobre uma moça que queria ser estrela de Hollywood. Em sua cidade natal, ela estava
a caminho de um casamento seguro e genérico, que ela não queria, com um vendedor de carros. No clímax, havia uma cena realmente triste, em que ela estava numa estação rodoviária
tentando criar coragem para buscar seu sonho, mas não conseguia fazer isso e acabava por sair sem o bilhete.
A Srta. Flynn continuou a ler:
- Ela chorou durante toda a volta para casa através da noite quente e suave do Oregon, desejando morrer toda vez que seus pés tocavam o chão. No final, a moça se casa com
o vendedor da Ford, tentando esquecer o sonho. Mas agora - disse Miss Flynn, concluindo sua leitura -, 31 anos depois, ela ainda cora quando passa pela estação rodoviária.
Ninguém disse nada. Quase ninguém se mexeu.
Ela ainda cora quando passa pela estação rodoviária.
Trinta e um anos depois.
- Os sonhos e a morte acontecem para todos nós - disse-lhes a Srta. Flynn com tranquilidade. - O que fazemos com os primeiros antes de experimentarmos a segunda faz toda a
diferença. Para a aula de sexta-feira, vocês vão escrever duas notas em seus blogs, embora não seja necessário colocá-las on-line ou algo assim, mas quero que vocês escrevam
sobre o que gostariam de realizar antes de morrer, de modo que não tenham que ficar vermelhos quando passarem por um portal trancado para os seus sonhos três décadas a partir
de agora.
Morte e sonhos.
E arrependimentos finais.
Por um instante, Daniel ficou imaginando com que Emily havia sonhado.
Talvez ser aceita como ela era.
Talvez...
Uma das garotas da primeira fileira estava com a mão erguida.
- Prô, nós vamos mesmo receber notas por nossos sonhos?
- Não vou dar nota nesta tarefa.
Alguns suspiros de alívio pela sala. Alguém atrás de Daniel sussurrou:
- Então por que temos que fazer isso?
- O que o senhor disse, Sr. Talbot?
Ele limpou a garganta.
- Eu só estava imaginando por que temos que fazer isso se a senhora não vai nos dar nota.
- Eu lhes darei uma nota complementar se eu sentir que vocês se esforçaram de maneira adequada na tarefa. E, na medida do possível, vou deixar isso por conta de vocês. Prefiro
que vocês se expressem de maneira sucinta, em vez de escreverem alguma coisa vaga e desfocada só para conseguirem um certo número de palavras. Esta unidade é sobre escrita
criativa, tenham isso em mente. Ah, e eu vou lhes pedir que compartilhem uma de suas notas para o blog com a classe na sexta-feira.
Oh, perfeito.
Daniel não se importava que centenas de pessoas o observassem quando estava num campo de futebol ou numa quadra de basquete, mas, por algum motivo, ler seu trabalho diante
da classe sempre fazia com que desejasse se enfiar num buraco.
Nicole olhou para ele de maneira compreensiva, como se ela conseguisse ler a mente dele e saber como a tarefa o deixara apreensivo.
Srta. Flynn entregou uma cópia xerox de outra história.
- Agora vamos dar uma olhada em "O Avião da Primeira Guerra de Los Angeles", a última história do livro do Sr. Brautigan.
Calhou que essa história também era a respeito da morte, ou a respeito da vida, dependendo da interpretação no final.
***
O resto da manhã correu bastante normal. Em sua maioria, a classe deixou de lado o assunto da Emily, mas houve ocasionais conversas sussurradas sobre ela, algumas lágrimas
aqui e ali. Corriam boatos a respeito de como já tinha havido outras mortes em Windy Point, que o lugar devia ser mal-assombrado ou coisa parecida, que se você chegasse muito
perto da borda, alguém - ou alguma coisa - o empurraria para a morte.
Windy Point era o costão mais alto da área. Não se tratava de nenhuma montanha, mas ele se erguia a quase 1.600 metros acima do lago Algonquin.
Daniel procurou se assegurar de que aquelas eram histórias que os jovens gostam de contar para tentar dar sentido a alguma coisa sem sentido como a que acontecera.
O que acontecera a Emily foi apenas um acidente.
Era só isso.
Talvez. Mas não foi nenhum acidente o que aconteceu no seu braço.
***
Depois do almoço, ele e Kyle voltavam para a classe quando viram um grupo de alunos perto das portas do ginásio de esportes. Pelo que deu para ver, um garoto alto, forte e
atraente estava no centro do grupo.
Daniel o reconheceu.
Ty Bell não ria muito, e quando o fazia, não ria de coisas que as outras pessoas achavam engraçadas. Era o tipo de risada distante e isolada que parecia extrair o humor do
momento e não de algo que acrescentasse algo de positivo a esse momento - quase como se ele estivesse rindo apenas porque a vida tivesse sido destituída de humor e nada mais
realmente tivesse graça.
Ele era veterano, mas havia começado a estudar tarde e repetido um ano, de modo que agora já era um rapaz enrijecido e robusto de 19 anos. Ele teve alguns desentendimentos
com Daniel antes, assim como com o pai dele.
Segundo o que diziam, Ty levava um canivete para a escola, e todo mundo procurava evitá-lo e três de seus amigos - se é que se podia chamá-los de "amigos". Eram os três caras
que ele fazia carregar seus livros, abrir-lhe a porta, comprar-lhe cigarros.
Daniel sempre achara que eles ficavam com ele porque isso os fazia se sentirem mais perigosos do que se andassem sozinhos - ou talvez porque, de alguma forma, se sentissem
mais seguros. Ele não os conhecia bem para ter certeza.
Eles não eram uma ameaça em si mesmos, mas Ty era uma bomba-relógio. Até os professores pareciam não se sentir à vontade perto dele, como se soubessem que ela era o tipo de
rapaz que podia perder o controle a qualquer momento e aparecer no dia seguinte com um revólver, pronto para começar a atirar nas pessoas, rindo com sua risada selvagem.
Um círculo de alunos havia se formado em torno dele, e, com a mentalidade típica de uma multidão, alguns o estavam desafiando. Algumas garotas diziam a ele e seus amigos que
"deixassem o cara em paz", mas ninguém estava tomando nenhuma atitude para detê-los. Quatro contra um era uma covardia, especialmente quando um deles era Ty Bell, e se ele
estava no centro do grupo, isso só podia significar encrenca.
Daniel abriu caminho em meio à multidão.
Quando chegou ao centro, pôde ver que Ty e seus amigos tinham empurrado alguém para dentro de um dos armários do corredor. Um dos rapazes estava colocando um lápis na fechadura
do cadeado para manter a pessoa presa lá dentro.
Daniel pôde ouvir o garoto preso tentando abrir a porta, mas com o lápis no cadeado, isso não era possível.
Ty sorria e chacoalhava uma lata de refrigerante para fazer o líquido se espalhar pelos orifícios de ventilação no topo do armário.
- Pare com isso, Ty.
Ele olhou diretamente para Daniel com seus olhos acinzentados.
- Ah, olhem só, é o herói do futebol que está aqui para ganhar o dia - disse ele, e seus amigos pareciam ter achado sua observação engraçada.
- Você não vai borrifar isso no armário.
Ele tornou a chacoalhar a lata e a aproximou mais da ventilação.
- Por quê? Você vai me impedir?
- Vou.
Ty fez uma pausa para avaliar o que tinha ouvido. Seus amigos se aproximaram dele, mas Daniel continuou olhando para Ty com frieza. Ele sentiu que Kyle se colocou ao lado
dele.
Ty arreganhou os dentes.
- E aí está o nosso astro do rock local. Eu sei de tudo sobre você e Emily.
- Legal - disse Kyle. - Duas sentenças completas de uma vez. Estou orgulhoso de você. A terapia parece estar dando resultados.
Ty cerrou as mandíbulas.
- Afaste-se do armário - disse-lhe Daniel.
Tudo bem, mas o que fora esse comentário sobre Kyle e Emily? Que diabos Ty disse que sabia sobre eles?
Ty tornou a chacoalhar a lata e, de repente, mirou em Daniel e a abriu. O refrigerante explodiu a se espalhou pela camisa, rosto e pescoço de Daniel.
Sorrindo, Ty virou-se para a multidão de alunos como se estivesse procurando uma aprovação, mas os únicos que riram baixinho foram seus três amigos. Os outros alunos poderiam
ter rido, pelo menos um pouco, se ele tivesse feito aquilo com outra pessoa, mas não riram nenhum pouco por se tratar de seu quarterback* mais querido.
Daniel passou a mão cuidadosamente pela camisa para tirar as gotas de refrigerante.
- Eu lhe disse para não jogar o refrigerante dentro do armário.
O olhar de Ty tornou a se endurecer.
- Se você se meter numa briga, não vai poder jogar na sexta-feira à noite, certo? Vai perder o grande jogo de volta? Será que você vai gostar disso, garotão?
Daniel não se envolvia numa briga desde o ensino básico. Naquele verão, ele e sua família tinham ido para a Costa Leste, e estava andando pela praia quando, certa noite, três
garotos o encurralaram.
Ele lhes disse que o deixassem em paz, mas eles correram para cima dele. Ele saiu da briga com um olho roxo e dois dedos da mão machucados e ensanguentados. Os outros garotos
não se saíram tão bem.
Mas hoje Ty tinha razão quanto ao jogo de sexta-feira se ele se envolvesse numa briga, e isso é coisa que ele não faria a menos que não tivesse outra saída.
Entretanto, Ty já tinha tomado uma decisão e avançou contra Daniel, que saltou de lado e evitou o soco. Ty avançou, perdeu o equilíbrio, e Daniel deu-lhe um soco no estômago,
mas ele saltou para trás. Então, agarrou o braço de Ty, o torceu e o puxou para trás das costas do oponente para mantê-lo preso. Quando o valentão tentou se desvencilhar,
Daniel colocou mais pressão sobre seu punho para detê-lo.
Daniel não conhecia artes marciais ou qualquer outra coisa desse tipo, mas seu pai lhe ensinara como imobilizar alguém se fosse necessário. Essa era uma das vantagens de ser
filho de um cara que vinha trabalhando em favor da lei há quase vinte anos.
- Abra o armário - disse Daniel -, e deixe que ele saia.
- Não, eu... Ai!
- Professor - gritou alguém. Imediatamente, a multidão começou a se dissipar.
Daniel soltou Ty, empurrando-o com firmeza em direção aos armários.
Ele sacudiu o braço com raiva e, com seus três amigos, afastou-se pelo corredor.
- Você está morto, Byers. Você vai se ver comigo.
Daniel rapidamente tirou o lápis e abriu o cadeado, enquanto Ty e seus amigos sumiam em meio à multidão que se dispersava.
Um dos professores de matemática dos novatos, o Sr. McKinney, vinha em direção a eles, mas ainda estava na metade do corredor.
Quando Daniel abriu o armário, percebeu imediatamente por que Ty e seus amigos tinham escolhido aquele rapaz. Ele estava usando roupas fora de moda, tinha o rosto coberto
de acne, era baixo e não parecia muito atlético. Gente como Ty é covarde. Eles sempre preferem escolher alguém menor ou mais indefeso. Daniel tinha visto aquele rapaz pela
escola, mas só neste ano. Imaginou que se tratava de um calouro.
Mas já o tinha visto em outro lugar.
Ontem no velório, perto da frente da igreja.
Embora o garoto estivesse se esforçando por disfarçar, Daniel percebeu que ele havia chorado.
- Como é o seu nome?
- Ronnie.
- Você está bem, Ronnie?
- Estou - respondeu ele, tentando sorrir e fingir que estava tudo bem, mas não pôde esconder que estava tremendo. Involuntariamente, engoliu uma lágrima.
- O que está havendo aqui? - perguntou o Sr. McKinney.
- Eles tornaram a aborrecer você, não é mesmo? - disse Kyle tranquilamente a Ronnie.
Ronnie confirmou com um aceno de cabeça enquanto o Sr. McKinney se aproximava.
- Eu perguntei o que está havendo por aqui.
- Nada - respondeu Kyle. - Só estávamos ajudando o Ronnie a conhecer a escola.
- Isso é verdade, Sr. Jackson?
- Sim, senhor - disse Ronnie.
O sobrenome dele é Jackson? Será que é parente da Emily?
O Sr. McKinney olhou para o outro rapaz. Daniel e Kyle tinham sido seus alunos de álgebra quando calouros. Certa vez ele disse a Daniel que ele era um dos alunos mais brilhantes
que já tivera em seus dez anos de magistério e o incentivou a entrar para o clube de matemática. Daniel não fez isso, mas eles sempre se deram bem. Além disso, embora Kyle
e Daniel tivessem se metido em algumas encrencas nesses anos todos, nunca foi nada de sério, e nunca puderam ser acusados de bullying.
Então, o Sr. McKinney olhou fixo para o seu relógio.
- Acho melhor vocês três voltarem para a aula.
Depois de se afastarem até onde não podiam mais ser ouvidos, Daniel perguntou a Ronnie:
- Você é parente de Emily Jackson?
- Ela é minha irmã - respondeu ele, enxugando uma lágrima que lhe descia pelo rosto. - É minha irmã gêmea... ou era. Até ser morta.
- Morta? - repetiu Kyle, tão surpreso quanto Daniel pelo que Ronnie disse.
- Ela sabia nadar. Não é possível que tenha caído e se afogado. Só se alguém a tivesse segurado embaixo d'água.
* Posição do futebol americano. "Cérebro" do time, lidera a equipe ofensiva, desempenhando papel fundamental na armação das jogadas de ataque. (N.E.)
9
-Mas ela pode ter caído de Windy Point - sugeriu Daniel.
- Ou ter sido empurrada - disse Ronnie.
- Você acha mesmo que ela foi assassinada?
Dessa vez, ele ficou um pouco hesitante.
- O que mais pode ter acontecido?
A explicação parecia simples demais: ela caiu no lago, a água estava fria demais para nadar até a margem e a correnteza a puxou para baixo.
Mas Daniel achou que dizer isso poderia aborrecer Ronnie ou ferir seus sentimentos e preferiu ficar quieto. Contudo, outra coisa veio-lhe à mente. Ele não tinha nenhuma ideia
de por que esse garoto tinha vindo à escola um dia depois do velório da irmã.
- Você não devia estar em casa?
- Eu quis vir - disse ele, com uma voz baixa e distante. - Para estar com os meus amigos.
Daniel não pôde evitar o pensamento de quantos amigos Ronnie realmente tinha.
- Sim, isso faz sentido - disse ele, tentando fazer o garoto se sentir melhor.
Ele se esforçou ao máximo para entender o que estava acontecendo. Parecia uma coincidência incrivelmente grande que Emily tivesse morrido e, então, Ty e seus amigos começassem
a perturbar seu irmão gêmeo um dia depois de seu velório.
Provavelmente estivessem apenas tirando vantagem da situação, sabendo que perturbá-lo hoje que ele está triste por causa da irmã só o deixaria ainda mais incomodado.
Daniel sentiu as mãos se crisparem e ficou imaginando se, afinal, não devia ter dado um murro em Ty.
Ronnie foi embora, e Kyle disse que também precisava ir, mas antes que fosse para sua aula de química, Daniel perguntou-lhe:
- O que Ty quis dizer quando falou aquilo sobre você e a Emily? Que ele sabia sobre vocês dois.
- Não faço a mínima ideia.
- Então você tinha amizade com ela ou alguma coisa assim?
- Não - respondeu ele, balançando a cabeça.
- Mas então, por que ele...?
- Já disse que não faço a mínima ideia.
Uma pausa.
- Tudo bem.
- Vejo você hoje à noite. Às oito horas. Na sua casa.
- Certo.
Kyle foi para sua aula, e Daniel parou no banheiro para tirar o refrigerante do rosto.
Enquanto se lavava, ficou imaginando por que Kyle se colocou tão na defensiva quando ele lhe perguntou sobre Emily. Isso não era coisa dele. Baseado na reação de Kyle, Daniel
não conseguiu deixar de pensar se seu amigo não estava lhe escondendo alguma coisa.
Aborrecido com esse pensamento, ele acabou de se lavar. Tentou não chamar a atenção de ninguém quando entrou atrasado no laboratório de física, mas acabou sendo advertido.
Depois disso, o dia avançou com rapidez, mas uma enxurrada de perguntas o perseguia aonde quer que fosse.
Será que Emily podia realmente ter sido assassinada?
Por que ela tinha aparecido a ele?
Ty estava só tentando deixar Kyle nervoso ou, caso contrário, por que teria feito aquela referência?
Depois das aulas, quando Daniel estava no vestiário se preparando para o treino de futebol, ficou surpreso ao descobrir que a marca em seu braço havia desaparecido. Completamente.
De alguma forma, o machucado, que lhe queimara a pele tão intensamente naquela manhã, havia desaparecido durante o dia.
Ou talvez nunca tivesse existido. Talvez você tenha imaginado tudo.
Ele esfregou a testa.
Não importa o que estivesse acontecendo, era como se a vida normal estivesse sendo distorcida pouco a pouco, e ele estivesse mergulhando em alguma coisa obscura e confusa,
alguma coisa que estava fora de seu controle.
***
O treino não correu bem.
O time estava distraído, descoordenado, e a concentração estava a zero, mas os treinadores devem ter entendido que tudo isso tinha a ver com a recente tragédia da escola e
não pressionaram ninguém.
Em seguida, Daniel e os wide receivers* reuniram-se com o coordenador de ataque e o treinador principal para rever o filme dos Coulee Pioneers acabando com os Spring River
Panthers no último fim de semana. Havia muita coisa em sua cabeça, mas ele tentou ignorar tudo, exceto o filme do jogo, e fez de tudo para se concentrar na análise das jogadas.
A defesa dos Pioneers estava jogando pesado.
- Podemos armar algumas jogadas ensaiadas para sexta-feira - sugeriu Daniel, antecipando o que os treinadores deviam estar pensando.
- Certo - concordou o Sr. Jostens, o coordenador de ataque. Ele era um cara bem apessoado e em boa forma, com quase 30 anos de idade, que tinha sido atacante do UW-La Crosse
e assistente de treinador em Beldon nos últimos quatro anos. Ele não dava aulas, e Daniel ficava imaginando que outra ocupação ele teria que lhe permitisse pagar as contas.
O treinador Jostens pausou o vídeo e apontou para o médio do Pioneers, um rapaz que pesava mais de 117 quilos.
- Eles têm uma linha enorme. Este garoto é um problema, mas vocês são bons de passe. Estudem a defesa, joguem a bola com rapidez e vamos passar por cima desses caras.
Quando terminaram, o Sr. Warner, o treinador principal, chamou Daniel a sua sala e olhou para ele com firmeza.
- Sente-se, filho.
Daniel sentou-se.
Com seus elegantes óculos redondos, o olhar perspicaz e meticulosos maneirismos, o treinador Warner parecia mais um estatístico que professor de educação física e um obstinado
treinador de futebol.
Mas as aparências enganam.
- Ouvi dizer que houve um acidente hoje de manhã entre você e Ty Bell. Você pode me contar o que aconteceu?
- Eu só tentei ajudar um garoto a se livrar de um armário. Ele é calouro.
- Você brigou com Ty?
- Não.
- Não foi o que me disseram.
- Ele veio para cima de mim. Eu não deixei que as coisas saíssem de controle. Foi só o que aconteceu.
Daniel não tinha certeza se isso seria o suficiente para tranquilizar o treinador.
- Você precisa tomar cuidado, Daniel. Bell é encrenqueiro e vai arrastar você com ele se tiver a mínima chance. Você está entendendo?
- Estou, treinador.
- Tudo bem - disse ele, deixando de lado o assunto da quase briga. - Ei, ouça, tenho boas notícias para você. Dois olheiros estiveram aqui no fim de semana. Um da Universidade
de Minnesota, o outro da Ohio State. Algum deles já conversou com você?
- Por enquanto, só cartas.
As notas de Daniel eram boas, especialmente em matemática e ciências, mas tudo com que ele podia realmente contar era uma pequena bolsa de estudos. O salário do pai não era
grande coisa - xerife de cidade pequena não era exatamente a melhor opção de carreira para ganhar muito dinheiro.
Assim, embora o pai não tivesse lhe dito com todas as letras, Daniel sabia que a única maneira de fazer faculdade sem trabalhar ou fazer grandes empréstimos seria com uma
bolsa de futebol ou, talvez, de basquete.
Ah, sim, muita coisa estava para acontecer neste ano.
Neste jogo.
Especialmente se olheiros de duas das principais faculdades estiverem aqui.
- Eles querem conversar com você depois do jogo - disse o treinador Warner. - Não há nada garantido, mas só o fato de eles virem aqui já é um bom sinal - acrescentou ele,
batendo com dedo contra a fronte. - Não deixe que isso lhe suba à cabeça. Limite-se a jogar. Detenha o ataque deles. Dê o melhor de você. Entendeu?
- Entendi.
- E fique longe do Bell.
- Vou ficar, treinador. Obrigado.
Quando Daniel estava pegando suas coisas do armário, Randall Cox, um dos wide receivers do time, foi conversar com ele.
- Como vai, Dan?
- Oi.
- Você ouviu falar do que está rolando no Coulee? Um negócio de pizza?
- Não. Do que se trata?
- O pessoal da defesa deles prometeu uma pizza para todos os que conseguirem fazer um dos nossos sair do campo na maca.
- Você está brincando.
- Minha prima estuda na escola deles. Foi o que ela disse.
- Fabuloso.
Não foi preciso muito raciocínio para entender que "um dos nossos" significava que os quarterbacks e os wide receivers seriam alguns dos alvos principais.
Randall olhou para o relógio da parede.
- Bem, até amanhã.
- Até amanhã.
***
Em casa, depois de fazer fajitas para ele e o pai, Daniel jantou e ficou esperando na sala que Kyle chegasse e que seu pai voltasse do trabalho. Passou algum tempo navegando
em seu laptop, procurando tudo o que conseguisse sobre Emily Jackson.
Encontrou a página dela no Facebook e ficou surpreso ao ver que os dados particulares estavam acessíveis, de modo que, mesmo nunca tendo sido amigo dela, pôde ver sua linha
do tempo e fotos.
Talvez ela mesma tenha definido isso tudo, ou talvez os pais tivessem mudado tudo para que as pessoas pudessem descobrir mais coisas sobre sua vida, agora que ela se fora.
Alguns rapazes e muitas garotas haviam deixado comentários desde o dia de sua morte, dizendo como sentiam a falta dela, como ela era legal, como ficaram tristes com o que
tinha acontecido, e era um pouco assustador ver postagens como essas na página de uma garota morta, mas ocorreu a Daniel que este tipo de coisa era a versão do século 21 para
as flores que são deixadas no túmulo de alguém.
Mesmo assim, não gostou de ler os comentários. Isso o fez pensar outra vez no velório e em como todos esses jovens que haviam ignorado Emily haviam aparecido quando já era
tarde demais para que ela se sentisse querida ou parte do grupo deles.
Ronnie estava listado como seu irmão.
Daniel observou quem eram seus amigos e as atualizações de status que ela fizera, o que não levou muito tempo, pois havia muito pouco das duas coisas.
E ela não tinha feito muitos comentários ou enumerado suas preferências nas postagens que fizera.
Ela parecia preferir a postagem de fotos, o que realmente ajudou Daniel a sentir um pouco de sua vida.
Uma das fotos dela com seu peludo golden retriever chamou-lhe a atenção.
Era uma selfie, com ela abraçando o cão e erguendo a câmera para tirar a foto. Atrás dela, um lago se estendia até encontrar uma floresta que se desdobrava até o horizonte.
A legenda dizia: "Eu e Trevor em Windy Point!"
Ao olhar para essas palavras, sentiu um nó no estômago.
Trevor.
Era o nome do cachorro dela.
No velório ela lhe dissera - ou, pelo menos, ele imaginara isso - que Trevor estava no carro: "Trevor não devia estar no carro".
Daniel não conseguia pensar em como poderia ter sabido, até então, que o nome do cachorro era Trevor. Ele mal sabia quem era Emily; como poderia ter sabido o nome de seu golden
retriever? Então, se não foi o espírito dela, que explicação seria cabível? Não havia jeito de isso tudo ser uma coincidência.
E, aparentemente, ela tinha estado em Windy Point sozinha pelo menos uma vez.
Ela teria caído? Teria saltado? Teria sido puxada até a borda?
Ou talvez tivesse sido empurrada.
Ronnie lhe dissera que achava que a irmã tinha sido morta.
Talvez ele tivesse razão.
* Recebedores, jogadores rápidos que se deslocam em rotas curtas e longas para receber ou corrigir passes. (N.E.)
10
O pai de Daniel teve que atender a um desentendimento doméstico e acabou chegando em casa só depois das sete. Ele esquentou uma fajita para jantar, mas não conversou muito
com o filho.
Normalmente, ele procurava ficar à vontade quando chegava em casa depois do trabalho, e os dois nem sempre conversavam muito - mas não era um silêncio imposto. Era mais do
tipo confortável que pai e filho podem desenvolver com o passar dos anos, depois de ficarem muito tempo juntos, do tipo que acaba por fazer que se respeitem cada vez mais.
Kyle apareceu antes das oito. Embora já tivesse jantado em casa, esquentou uma fajita no micro-ondas; em seguida, foram para o quarto de Daniel.
Troféus de basquete e futebol lotavam as estantes e a cômoda de
Daniel. Como o pai não gostava que ele espalhasse fotos de garotas de biquíni tiradas da revista Sports Illustrated por todas as paredes, Daniel cobriu-as de pôsteres de seus
jogadores favoritos dos Mavericks e dos Packers. Ficava claro que aquele era o quarto de um rapaz que se dedicava ao esporte.
Kyle colocou sua mochila em cima da escrivaninha, acabou de comer a fajita e pulou para a cama, começando a atirar a bola de futebol de Daniel para o ar.
- Então, você já falou com ela?
- Ela quem?
- A Stacy, cara. A garota nova. Você a convidou para o baile de sábado?
- Eu não sei o número dela.
- Ah, isso é desculpa.
- Como?
- Use o Google. Ou o Facebook. Qualquer coisa. Veja se ela está na lista. Algumas pessoas fazem isso. Você pode, pelo menos, deixar uma mensagem para ela.
- Não... não sei. Convidar alguém para sair desse jeito, eu não sei... Não quero fazer isso com uma mensagem de texto. Parece um pouco covarde.
Kyle olhou para ele incrédulo.
- Alguém já o informou que você está vivendo no século 21?
- Eu preciso conversar com ela em pessoa, ou pelo menos por telefone. Não sei. Não parece certo.
- Bem, posso perguntar se a Mia tem o número dela.
- Não sei. Acho que não. Agora não.
Kyle deu de ombros.
- Você é que sabe - disse ele, lançando a bola no ar mais algumas vezes. - Então, você já escreveu algum dos blogs para a aula da Prô?
- Ainda estou escrevendo. E você?
- Estou tendo algumas ideias. O que você já escreveu?
Daniel ligou seu laptop para que Kyle visse a página em branco do Word.
- Ah.
- Isso aí.
- Então, comece a escrever seus pensamentos.
- Esse tipo de coisa vem naturalmente para você. Eu não sou escritor.
Kyle parou de atirar a bola.
- Você tem um diário? E aquele que a sua mãe lhe deu no ano passado?
- Um diário? Você quer dizer escrever em vez de digitar?
- Exatamente.
- Então, quem é que ainda está parado no século 20?
- Ah, sem gozação.
Como o processo de escrever seu blog a mão em vez de digitá-lo poderia ajudá-lo a um resultado melhor estava além do seu conhecimento, mas se Kyle achava que era uma boa ideia,
Daniel imaginou que, no mínimo, valia a pena tentá-la.
Ele tirou o diário da escrivaninha. Havia rabiscado alguns pensamentos nele depois que a mãe fora embora, mas não tinha vontade de revê-los; então, pulou-os rapidamente até
chegar a uma página em branco.
- Então - disse Kyle -, me conte um de seus sonhos.
Ao ouvir isso, Daniel imediatamente pensou nos sonhos perturbadores que tivera na noite anterior. Mas ele sabia o que Kyle quis dizer e tentou pensar nos seus sonhos para
o futuro.
Contudo, honestamente, não era esse tipo de sonho que ele tinha em mente, mas a esperança de que fosse capaz de deixar para trás a morte de
Emily sem que mais nada de misterioso ou inexplicável lhe acontecesse.
- Ultimamente, tenho tido problemas para... bem, me concentrar. Sabe, é como se meus pensamentos se afastassem de mim.
- Se afastassem de você?
- Eles ficam vagando e não se formam. Mas isso não é sonho, é mais um tipo de...
Kyle ergueu um dedo no ar.
- Aproveite isso. É uma boa imagem. Pensamentos vagando sem se formar. Gosto disso. Escreva isso.
Daniel escreveu a frase.
- Então, você está às voltas com pensamentos que não se formam, talvez voando para longe da formação, ou alguma coisa assim. Quem sabe? Alguma outra coisa associada aos pensamentos
que voam, alguma coisa a ver com voo?
- Abutres.
- Abutres?
- Sim, devorando-os.
- Devorando os seus pensamentos?
- Limpando a carcaça dos meus sonhos - as palavras saíram sem que ele se desse conta delas.
Kyle olhou para ele com estranheza.
- Você acabou de inventar isso?
- Acho que sim.
Mas de onde essa ideia teria vindo? O que está acontecendo com você?
- Escreva isso, cara. Você está no rumo certo.
A coisa continuou pelos quinze minutos seguintes: Daniel pondo ideias para fora, Kyle o ajudando a defini-las. Isso o fez pensar nas vezes em que ajudava Kyle com os cálculos,
sem lhe dar as respostas, mas revisando as equações de modo que ele mesmo encontrasse as soluções.
Por fim, Kyle disse:
- Leia-me o que você escreveu até agora. Quero ver em que ponto está a coisa.
- Me dê um segundo - disse Daniel, enquanto desenhava linhas pela página associando uma ideia à outra, descartando as frases que definitivamente não queria usar, escrevendo
algumas frases para ligar uma ideia com outra e, então, leu.
O rapaz se lembrou de uma época não muito distante, em que estava no controle de seus pensamentos, quando eles se alinhavam onde ele indicava, apenas com as costumeiras hesitações
da espontaneidade, com as ideias soltas entrando e saindo de formação como só elas são capazes.
Nessa época, como a maioria das pessoas, ele era capaz de juntar as ideias, mantendo-as em ordem, e era um alívio fazer isso, sentindo uma sensação de sanidade e exatidão.
- Por que está em terceira pessoa? - perguntou Kyle.
- Não sei exatamente. Saiu desse jeito.
- Para mim está bem. Vá em frente.
Mas agora ele as vê como pássaros voando para espaços além de sua compreensão. E, por vezes, os abutres pousam em seu lugar.
Abutres.
Aves sombrias que se alimentam da carne de seus sonhos mortos. Bicando-os até que só restem os ossos.
Ossos brancos, reluzindo ao sol. Ossos em que seus pensamentos cuidadosamente ordenados costumavam viver.
Kyle olhou para ele.
- Nunca vi você escrever uma coisa dessas antes.
Eu nunca escrevi.
- Bem, definitivamente, não vou ler isto na frente de ninguém. As pessoas vão achar que eu estou ficando louco. Sonhos mortos sendo devorados por abutres? É uma coisa muito
deprimente. E, além disso, não é, de jeito nenhum, o que espero realizar antes de morrer.
- Não acho que a Prô vá criar problema para aceitar isso. Está implícito que você quer que os abutres voem para longe. Ela vai entender - disse Kyle, jogando a bola para Daniel.
- E, além disso, eu conheço um dos seus sonhos, mesmo que você não queira escrever sobre ele.
- Qual é esse sonho? - perguntou Daniel, devolvendo-lhe a bola.
Kyle foi até a escrivaninha, pegou o celular de Daniel e o estendeu ao amigo.
- Para que isso?
- Para ligar para a Stacy.
- Não, ouça, mesmo que eu quisesse ligar para ela, eu...
- Você vai fazer isso.
- Sim, tudo bem, vou fazer isso... mas eu já lhe disse que não tenho o número dela.
Kyle pegou seu próprio celular antes que Daniel pudesse detê-lo, foi para sua agenda e ligou para Mia.
Daniel limitou-se a balançar a cabeça e ficar ouvindo a conversa.
- Sim, não... - disse Kyle. - Eu sei... espere um pouco - e perguntou a Daniel o sobrenome de Stacy.
- Clern.
- Clern - repetiu Kyle para Mia. - Eu não sei... sério? Legal. Ok.
Fim da ligação.
- O que ela disse? - perguntou Daniel.
- Ela não a conhece. Mas vai se informar - respondeu Kyle, guardando o telefone. - Beco sem saída número um, mas isso só torna a coisa toda mais interessante. Vou ver no Facebook.
Você vai procurar no Google, como já conversamos antes. Vamos ver se descolamos um jeito de entrar em contato com ela.
- Eu não sei se quero...
- Claro que quer - disse Kyle, já abrindo seu laptop. - Você só está com medo.
- Não estou com medo.
- Sei, sei...
- Só estou... um pouco apreensivo.
- O que é classificado como medo - disse Kyle digitando. Levou só alguns segundos para fazer a busca. - Hum.... Não consegui nada. Centenas de Stacys, mas nada referente a
ela especificamente. E você?
- Nada - disse Daniel, terminando de digitar.
- Você sabe de onde ela veio? O nome dela ainda pode constar de alguma cidade ou escola anterior. Sabe, nas listas de classe.
Daniel balançou a cabeça.
- Não tenho certeza de onde ela veio. Eu... bem, eu nunca, na verdade, conversei com ela.
- Você nunca conversou com ela - disse Kyle, piscando os olhos.
- Não exatamente, mas cheguei perto disso algumas vezes.
- Você está seriamente "amarraçado" nessa garota.
- "Amarraçado"?
- Eu precisava de uma palavra, não consegui encontrá-la, então inventei essa - disse Kyle prestando atenção em seu laptop. - Bem, tenho que dizer que isso é estranho. Não
consigo acreditar que ela não tenha uma página no Facebook.
- Isso não é tão incomum. Muita gente jovem está saindo dele porque seus pais e avós já têm página nele.
- Claro, entendi.
- Talvez tenha acontecido alguma coisa com ela na outra escola, alguma coisa que ela não quer que o pessoal da nova escola saiba, e por isso fechou a página. Acontece.
- Você quer dizer que ela ficou envergonhada ou magoada por alguma coisa ou de alguma forma?
- Isso aí.
- Ou talvez ela tivesse alguma coisa para esconder.
- Eu não sei. Só estou atirando no escuro.
Nenhum dos dois parecia saber o que concluir.
Por fim, Kyle pegou seu livro de História dos Estados Unidos.
- Cara, para me sair bem nessa prova, tenho que tirar a poeira de uma parte de meu cérebro que não tenho usado.
- Bem, vamos começar essa limpeza.
Passaram a hora seguinte devorando os sumários dos capítulos e revisando perguntas. Às vezes, quando Daniel estudava com outra pessoa, a coisa estava mais para curtição, mas,
apesar de Kyle agir como se a escola não fosse tão importante, ele levava estudar juntos a sério, e Daniel sempre tinha a certeza de que, com ele, produziria mais que com
qualquer outro amigo.
Durante o tempo todo em que estavam revisando a matéria, Daniel ficou imaginando se deveria mencionar o que tinha visto no velório, ou a estranha marca que aparecera em seu
braço.
Ele já tinha contado a Kyle sobre os abutres que apareciam em seus sonhos, mas o que dizia respeito a Emily era uma coisa totalmente diferente.
No final, decidiu que não queria que seu melhor amigo achasse que ele estava perdendo o juízo e guardou tudo para si mesmo.
Talvez, quando chegasse a hora certa, ele contasse o que estava acontecendo, mas aquele instante não parecia adequado.
Quando terminaram de estudar, comeram tortillas com salada, de modo que a boca de Kyle estava cheia quando ele disse:
- Não foi nada legal o Ty atormentando o irmão da Emily hoje, não é mesmo?
- Conhecendo o Ty, não fiquei nem um pouco surpreso - disse Daniel, ainda intrigado com o que Ty quis dizer quando afirmou que sabia sobre Kyle e Emily, mas depois da reação
de Kyle à sua pergunta, ainda pela manhã, preferiu não tocar no assunto.
Kyle ainda estava mastigando quando se serviu de uma enorme tortilla para pôr nela uma montanha de salada.
- É muita salada.
- Às vezes eu gosto de exagerar.
- Gosta mesmo.
- Tenho meus momentos. Ei, ouvi dizer que abriram mesmo o armário dela. O que comentamos na escola, lembra?
- Quem abriu o armário dela?
- Não sei, acho que a diretoria. Ou os pais dela. Ou a polícia. Parece que encontraram um caderno em que ela escrevera no dia em que morreu. Podem ter sido suas últimas palavras.
Nunca saberemos - respondeu ele, devorando a tortilla cheia de salada. - Isso faz a gente ficar pensando.
Pensando no que acontecera nos últimos dias, Daniel ficou curioso quanto ao que estava escrito no caderno.
Kyle olhou as horas.
- Ouça, preciso ir embora correndo ou minha mãe me mata - disse ele, juntando suas coisas. - Vejo você amanhã.
- Certo.
Depois que Kyle saiu, Daniel se pôs junto à janela e ficou observando o carro do amigo se afastar.
Em parte, ele queria ter contado a ele sobre a Emily se erguendo do caixão e agarrando-lhe o braço para nele deixar a marca de seus dedos, mas, em parte, achava que isso era
uma coisa sobre a qual devia silenciar.
Por enquanto.
Provavelmente para sempre.
Enquanto nada semelhante tornasse a acontecer, ele ficaria bem. A vida prosseguiria e ele acabaria encontrando um sentido para aquilo tudo.
E foi o que tentou fazer ao se deitar para dormir.
Mas mesmo que não tivesse sido o fantasma dela que agarrara seu braço, ele ainda não conseguia entender como ficou sabendo que o cachorro de Emily se chamava Trevor.
11
Quinta-feira.
O tempo passava depressa.
A prova de história parecia ter corrido bem.
Em seguida, Política. Espanhol. Sala de estudo. Cálculo avançado.
Ele viu Nicole, conversou um pouco com ela, uma conversa do tipo que se tem com quem se cruza rapidamente e se pergunta como vai. Mas ele não conseguia parar de pensar no
que Kyle tinha lhe dito sobre ela, que ela não tinha par para o baile de sábado. Que ela gostava dele.
Como haveria um jogo no dia seguinte, o treino de futebol foi leve. Pelo menos naquela noite foi melhor: os rapazes estavam mais em sincronia que na noite anterior, e as coisas
estavam começando a engrenar.
Daniel demorou um pouco a sair do vestiário depois do treino e foi um dos últimos a chegar ao estacionamento.
Ele estava quase perto do carro quando viu Stacy saindo do começo do bosque.
- Oi - disse ela.
- Oi.
Ela segurava os livros contra o peito.
- Não sei se já fomos apresentados oficialmente. Eu sou a Stacy.
Ela estava esperando você. Ela queria conversar com você.
- Eu sou Baniel... Daniel... Daniel Byers.
Ah, como você é idiota!
O brilho de um sorriso.
- Eu sei quem você é.
- Eu também sei quem você é.
- Mesmo?
- Isso mesmo.
- Como?
- Tenho visto você por aí.
- Ah.
Uma longa pausa.
- Então...
- Então... - respondeu ele, indeciso. - Bem, foi um prazer ter conhecido você. Oficialmente.
- Também foi um prazer conhecer você - disse ela. Ele teve a impressão de que ela estenderia a mão para ele, mas, em vez disso, ficou olhando para o chão entre eles por um
instante, então tornou a olhar para ele. - Você jogou bem contra o Spring Hill.
- Você estava lá?
- Claro que estava - respondeu ela, mexendo um pouco os olhos.
- Nem todo mundo assiste aos jogos.
- Eu assisto.
- Eu também.
Cara, que coisa mais idiota para dizer!
- É claro que assiste.
Ele quis se esconder em algum lugar - em qualquer lugar -, mas quando ela tornou a falar, foi de maneira muito natural, longe de fazê-lo ter vontade de desaparecer num buraco.
- Hum. Eu só queria lhe desejar sorte no jogo. Quero dizer, o jogo de amanhã à noite.
- Obrigado.
Ela ficou esperando.
Convide-a para o baile de sábado - pelo menos peça o telefone dela.
- Hum... - disse ele, ajeitando os pés. - Olha, eu estava pensando...
- Sim?
- A respeito do jogo.
Não, o jogo não. O baile.
- Sim?
Ele respirou fundo.
- Bem, eu ia...
Vá em frente!
- Hum... Talvez eu veja você lá. No jogo.
- Ah, claro. Bom, boa sorte - repetiu ela.
- Certo.
Peça o telefone dela.
Mas ele não pediu.
Então, ela estava se despedindo, e ele procurando alguma coisa para dizer.
- Vejo você por aí, Stacy.
- Eu também, Baniel - respondeu ela com afabilidade.
Então, ela se afastou.
Mas, pelo menos, ele tinha conversado com ela.
Não se pode pedir para uma garota sair com a gente ou que ela dê seu telefone quando se é apresentado formalmente a ela, não é mesmo?
Hum, é.
Ele entrou no carro e encostou a testa no volante.
Cara, você parecia um bobo!
Bem, converse com ela amanhã. Ainda dá para convidá-la.
O baile era no sábado à noite, o que, pelo menos, lhe dava mais um dia.
Antes de dar a partida no carro, viu uma mensagem de texto de Kyle perguntando-lhe se ele ia ficar em casa à noite, e ele respondeu que ia ficar terminando seus deveres de
casa e iria cedo para a cama para ter uma boa noite de sono antes do jogo.
Não mencionou nada da conversa com Stacy. Ficaria ainda mais sem jeito se Kyle soubesse que ele não pareceu um ser humano inteligente quando conversou com ela.
Imagine só. Daniel Byers não sabendo como conversar com uma garota.
Qual é a outra novidade?
Naquela noite, em seu quarto, escreveu a segunda postagem em seu blog, a que teria que ler para a Prô diante da classe no dia seguinte.
Sem Kyle para ajudá-lo, sentiu-se como alguém num barco no meio do oceano, sem ter a mínima ideia de que direção tomar para chegar à terra.
Por fim, conseguiu escrever alguma coisa, desta vez sobre a esperança de afugentar os abutres, mas ficou longe da mesma qualidade que obtivera com Kyle o ajudando a escrever.
Então, foi dormir, mas pensar em Stacy o manteve acordado.
Converse com ela amanhã na escola, ou, pelo menos, antes do jogo.
Mas, além disso, descobriu, um pouco antes de adormecer, que seus pensamentos também vagavam em direção a Nicole.
12
No dia seguinte, antes das aulas, ficou procurando por Stacy, mas só a avistou por um momento numa multidão de alunos no fim do corredor. Na aula de literatura, quando viu
Nicole se sentando, sentiu-se em conflito. Na verdade, ele estava interessado nas duas, mas de maneiras diferentes.
Ele conhecia Nicole desde a quinta série; assim, eles tinham uma história juntos, mas Stacy era nova e, portanto, havia alguma coisa de misterioso nela que ele achava intrigante.
Ontem de manhã, se alguém tivesse lhe perguntado, ele teria dito que tinha certeza de que queria ir ao baile com a Stacy, ou seja, até Kyle lhe dizer que Nicole gostava dele.
Isso, aliado ao fato de que Stacy tinha esperado na escola para encontrá-lo, só deixou tudo mais confuso.
A Srta. Flynn continuou a aula, pedindo aos alunos que se levantassem para lerem o que haviam escrito em seus blogs sobre os sonhos e a morte.
Quando chegou a vez de Nicole, ela disse a Srta. Flynn:
- Escrevi minha mensagem sob a forma de uma prece.
- Uma prece?
- Sim.
É claro que eles estavam numa escola pública, um local onde não havia nada de errado em pronunciar o nome de Deus quando se jurava, mas não numa prece - algo que até Daniel,
que não era excessivamente religioso, achava ridículo.
- Bem - disse a Srta. Flynn, com uma voz pouco natural. - Vá em frente. Vamos ouvir.
Nicole leu:
Meu Deus, achei que eu deveria contar-Lhe que um demônio apareceu na minha porta ontem. Ele tinha vindo devolver meu vestido de noite. Eu devo tê-lo deixado na casa dele quando
fui visitá-lo na semana passada, e ele só estava fazendo a gentileza de devolvê-lo.
Então, para ter a certeza de que ele não havia encolhido, eu o experimentei e vi que me servia tão bem quanto antes.
Estou lhe contando isto porque notei a roupa que o Senhor deixou para mim em minha cama. E estou curiosa: o Senhor está tentando fazer com que eu renove o meu guarda-roupa?
A verdade é que estou muito satisfeita com as roupas que sempre tive.
Só me diga o que o Senhor pretende, e eu vou decidir se experimento ou não aquelas roupas brilhantes que estão esperando por mim no meu quarto.
***
Quando ela terminou, seguiu-se um longo silêncio, até que a Srta. Flynn finalmente perguntou:
- E onde fica o seu sonho nisso tudo, Nicole?
- Meu sonho é estar vestindo a roupa certa quando for a ocasião mais importante.
- Quando você morrer.
- Isso mesmo.
Todos ficaram olhando para a Srta. Flynn para avaliar sua reação.
- Acho que isso é o sonho mais admirável de todos - disse ela por fim. Então, passou para o aluno seguinte.
E o seguinte.
Passando pela sala toda.
Daniel não estava muito entusiasmado com o que escrevera na segunda postagem, mas tampouco queria ler a primeira; assim, conforme sua vez ia se aproximando, ficava mais inseguro
quanto ao que deveria ler.
Brad Talbot leu o dele, o mais curto até então:
- Meu sonho é ser rico e famoso.
A Srta. Flynn ficou aguardando.
- E...?
- É só isso.
- Bem, obrigada por não nos fazer perder tempo com uma verborreia desnecessária.
- Tudo bem, Prô.
Foi a vez de Kyle. Ele chamou sua mensagem de "Vento e chuva", e, de alguma forma, suas palavras soaram cheias de esperança e remorso ao mesmo tempo:
Grão a grão, a areia vai erodindo
Meus momentos, desbastando
As frágeis encostas dos meus dias.
E eu fico imaginando, enquanto minha vertente desmorona,
Quem poderá deter a ação do tempo
E oferecer à minha vida
Mais um momento de glória?
A Srta. Flynn aprovou com um aceno de cabeça.
- A areia escorre depressa - disse ela à classe. - Para todos nós.
Foi, com certeza, o que aconteceu a Emily. Sem discussão.
Daniel ficou imaginando quanto tempo Kyle teria demorado para escrever aquilo. Conhecendo-o, ele podia muito bem ter imaginado tudo no corredor a caminho da classe.
Dois outros alunos leram, e chegou a vez de Daniel.
Ainda se debatendo entre as duas mensagens, na última hora decidiu que se sentiria menos à vontade com a segunda, então leu o que havia escrito quando estava com Kyle.
Ficou seriamente nervoso e se sentiu como se estivesse tropeçando ao longo de toda a leitura, mas, pelo menos, conseguiu terminar sem grandes interrupções. Quando terminou,
a Srta. Flynn escreveu em silêncio alguma coisa em seu caderno de avaliação e, então, sem fazer nenhum comentário, chamou o aluno seguinte.
Em sua falta de reação, havia alguma coisa que deixou Daniel inquieto - especialmente porque ela comentara a leitura de todos, por mais fraca que fosse.
Depois que o último aluno fez sua leitura, ela recolheu os trabalhos escritos de todos e anunciou que, como o fim de semana seguinte era o do baile do festival anual, não
haveria trabalho para a segunda-feira.
- Aproveitem a folga.
Acenos de cabeça e alguns agradecimentos ao redor da sala.
- E, como vocês sabem, na próxima quarta-feira haverá reunião de pais e mestres. Portanto, não teremos aula. Só vamos nos encontrar na segunda e na sexta. Tenham um bom fim
de semana.
O sinal tocou, e todos pegaram suas coisas e saíram para o corredor.
Nicole parecia estar indo na mesma direção de Daniel.
- Oi - disse ela.
- Oi. Achei legal você ter escrito uma prece e se sentido à vontade para dividi-la com todos - disse ele com franqueza.
- Bem - disse ela, evitando discutir o que havia escrito -, eu achei a sua muito legal, mas também triste. Onde você aprendeu a escrever desse jeito?
- Pressionado. O Kyle me ajudou a escrever.
- Bem, estou contente por ter passado.
- Concordo com você.
Os dois andaram um pouco em silêncio, sem nenhuma direção. Nicole disse:
- Então, você vai ao baile com alguém?
- Se eu vou...?
Não. Mas poderia ir.
Se você tiver a coragem de convidá-la...
Ele ainda estava imaginado como terminar sua sentença, quando Nicole fez isso por ele:
- Convidar alguém para o baile? Pode me chamar de curiosa.
Diga a ela que você vai com a Stacy, que você vai...
Mas não é verdade. Você não a convidou. Você nem sabe se ela aceitaria ir com você.
- Não, ainda não - admitiu ele. Era verdade. Ele não queria iludir Nicole, mas queria ser honesto. - Mas há alguém que eu ia convidar - ele deixou escapar, mas era uma daquelas
coisas que a gente diz e imediatamente fica pensando por que disse.
- Oh? - disse ela num tom de voz impossível de decifrar.
- Sim, mas acho que ainda não tomei coragem.
- Não é nenhum bicho de sete cabeças. Só faça o convite.
Sim, eu gostaria que fosse assim fácil.
- A pior coisa é ela dizer que não - disse Nicole para incentivá-lo.
Exatamente.
- Acho que sim.
Ela parou de caminhar.
- Pratique comigo.
- O quê?
- Pratique. Peça-me para ir ao baile com você.
- Pedir-lhe para...
- Vá em frente, finja que quer ir comigo.
- Nicole, eu ia... Bem, na verdade... Só que...
Ela leu todo o necessário na hesitação dele e seus olhos ficaram maiores.
- Ah, você vai... Eu ouvi dizer que você não ia... Eu achei... - disse ela, corando e balançando a cabeça. - É sério, eu não sabia... - acrescentou ela, fechando os olhos
como se quisesse desaparecer. - Por favor, por favor, por favor, finja que isto nunca aconteceu.
- Olhe, isto não quer dizer que...
Ela ergueu a mão para detê-lo.
- Tudo bem. Sério - disse ela e, antes que ele pudesse responder, ela se virou abruptamente. - Eu preciso ir. Desculpe.
- Você não tem que se desculpar de nada, Nicole.
Mas ela já estava se afastando rapidamente pelo corredor. Ele ficou olhando como se ela fosse se virar e olhar para ele.
Mas ela não fez isso.
E estava olhando para o chão quando se afastou.
O que fez Daniel se sentir ainda pior.
Ele não quis se culpar demais pelo acontecido, mas não era um completo idiota e soube ler nas entrelinhas o que havia acabado de acontecer.
Pelo resto do dia, não viu nem Stacy nem Nicole, e se pegava voltando à desastrada conversa com Nicole repetidas vezes, modificando-a mentalmente, pensando em coisas que poderia
ter dito de maneira diferente, coisas que teriam levado a conversa para uma direção diferente e mais positiva.
Mas, em última instância, isso não tinha muita importância. Ele poderia pensar em mil outras coisas que poderia ter dito, mas não disse. Sua colega tinha ido embora se sentindo
mal, e era tudo culpa dele.
Depois da escola, tentou ignorar a dor de cabeça que começava. A última coisa de que precisava nessa noite era ficar distraído durante o jogo contra o Coulee Pioneers.
Daniel disse a si mesmo que a dor ia passar, que não era grande coisa.
Foi do que tentou se convencer quando se reuniu com alguns colegas do time na pizzaria do Rizzo, antes de ir para a escola se aprontar para o jogo das sete e meia.
13
Era outono.
A temporada do futebol.
A vez de Daniel.
Ele adorava tudo do futebol: o roçar das ombreiras, a terra sob as unhas, o gosto de sangue na boca depois de um choque violento, o aumento da adrenalina quando a bola era
agarrada. Correr entre as evoluções que as líderes de torcida fazem para os jogadores, o ar revigorante, a multidão enlouquecida. Tudo.
Hoje à noite, sentia o cheiro de chão molhado, o fogão de lenha de alguém e o leve odor de estrume de uma fazenda não muito distante do estádio de futebol, tudo trazido pela
suave brisa noturna.
E a dor de cabeça não passava.
O festival deste ano era dedicado aos alunos veteranos; assim, todos os que faziam parte do time de futebol, dos líderes de torcida, da equipe de cross-country e da fanfarra
seriam homenageados.
Antes do jogo, um por um, eles se reuniram com os pais na linha de cinquenta jardas, onde o Sr. Ackerman, um fotógrafo de jornal que fazia isso em escolas secundárias de toda
a região, tirou suas fotos. Os pais sorriam; todos os jogadores de futebol tentaram parecer durões.
A escola também parou para a coroação do rei e da rainha do festival. Em Beldon High, veteranos e novatos podiam ser escolhidos, e corriam rumores de que Daniel seria o rei.
Contudo, ele era apenas um novato e não lhe agradava a ideia de tirar essa honra de um veterano; então, retirou seu nome.
Além disso, embora fosse o capitão do time de futebol, esse tipo de atenção fora do campo o deixava um pouco sem jeito.
A barraca de comes e bebes de Beldon oferecia pipoca, chocolate quente, doces, pizza e nachos com queijo. Alguns pais haviam pressionado para que houvesse "alternativas saudáveis",
mas, pelo que Daniel sabia, a barraca nunca ofereceu esse tipo de comida, a não ser para o consumo de seus proprietários.
Estacionados depois do extremo sul do estacionamento, estavam dois veículos oficiais: o carro de polícia do pai de Daniel e uma ambulância para qualquer emergência, no campo
ou fora dele, que pudesse surgir num jogo entre dois rivais tradicionais.
***
Depois que os jogadores se aqueceram, o superintendente escolar do distrito foi até a cabine de som no topo das arquibancadas do Eagles, pegou o microfone e propôs um minuto
de silêncio em honra de Emily e sua família.
Então, a banda tocou o hino nacional, os dois times ocuparam o campo e o jogo começou.
Durante o primeiro tempo, a dor de cabeça ainda atormentava Daniel, mas ele conseguiu lançar a bola duas vezes, uma na primeira metade do tempo e a outra na segunda.
Coulee fez o segundo lançamento e, então, depois de uma mudança de posse, atirou para o gol faltando vinte segundos para o término e garantiu a vantagem no placar.
Time da casa: 14.
Visitantes: 10.
***
No vestiário, durante o intervalo o treinador Warner disse algumas palavras de incentivo para o time como um todo e, então, seus assistentes conversaram com suas unidades
ofensivas e defensivas.
- Byers - disse o treinador Jostens -, você precisa ficar de olho no canto defensivo e nos jogadores que devem marcar. Atenção nos passes por cobertura. Vamos atirar muito
a bola no segundo tempo.
- É isso aí, treinador.
Jostens gastou alguns minutos revisando os esquemas de bloqueio para a proteção dos passes com a linha ofensiva. Então, voltou-se para os receptores:
- Podemos conseguir muitos avanços no segundo tempo. Precisamos que vocês corram com disciplina. De maneira direta. Clara. Certo?
Os jogadores concordaram com acenos de cabeça.
Contudo, quando Daniel correu para o campo e ficou atirando algumas bolas para relaxar o braço, a dor de cabeça, que tinha ficando espreitando no fundo de sua mente, avançou
e tentou se apoderar de toda sua concentração e atenção.
14
A primeira metade do segundo tempo começou com os times marcando gols alternadamente, fazendo com que o placar ficasse em Eagles 21 x Pioneers 17.
Correr.
Evitar o adversário.
Passar e jogar.
Os torcedores faziam barulho e ficava difícil ouvir as instruções do treinador; assim, quando ele não estava indicando jogadas para o running back,* segurava cartazes com
os nomes de times universitários para indicar a Daniel as jogadas a serem executadas.
Primeira jogada para avançar 10 jardas e alcançar a linha de 35 jardas.
Dessa vez, o cartaz dizia "Alabama", o que significava um alinhamento entre a defesa e o ataque. Nessa jogada, Daniel teria quatro possíveis receptores para quem jogar a bola.
Durante o hudle,** ele lhes disse:
- Abram espaço entre vocês para eu lhes passar a bola.
Depois de desfazerem o hudle, os rapazes voltaram às suas posições. Daniel começou a preparação para um lançamento forte, fez a contagem e passou a bola.
Os Pioneers tinham se colocado na posição 4-2-5 de defesa, e Daniel buscou seu tight end,*** Randall Cox, no meio do campo para um avanço até a linha de doze jardas, antes
do final do terceiro quarto do tempo.
No início do último quarto, depois de uma tentativa falha de ataque, Daniel se viu na segunda tentativa de avançar dez jardas, a partir da linha de 49 jardas em que se encontrava.
A banda de Beldon High começou uma canção de incentivo; por causa do barulho, o treinador Warner ergueu um cartaz em que estava escrito "Nebraska", código para uma jogada
à direita de um atacante do adversário.
Avaliando a defesa do adversário, Daniel percebeu que seu colega que estava para avançar não conseguiria bloquear as extremidades defensivas.
Se ele se chocasse com o adversário, Daniel seguraria a bola. Se ele não se chocasse, passaria a bola para seu running back. Quando a jogada se iniciou, com a extremidade
defensiva esquerda vindo com rapidez e determinação contra ele, Daniel se decidiu e entregou a bola a seu running back para que este avançasse.
Avanço de sete jardas.
E foi então que aconteceu.
Daniel ouviu a contagem, recebeu a bola do centro e estava tentando achar uma brecha para avançar quando a viu.
Uma garota pulou a cerca para dentro do campo.
Ela caminhava de maneira estranha, rígida e aos trancos, com a cabeça baixa. Daniel só conseguiu pensar por que os juízes não erguiam a bandeira ou tentavam interromper a
partida a fim de protegê-la.
Mas ninguém fez nada, e Daniel não podia interromper a partida sozinho.
A defesa jogava com rapidez.
Mas à medida que os jogadores avançavam, o tempo parecia caminhar para uma pausa e, então, lentamente voltar a fluir, minuto a minuto, mas tudo no decorrer de um instante.
Todos em torno dele moviam-se num passo inacreditavelmente lento.
Ele conseguia ver o que nunca teria sido capaz de ver: a violenta expressão no rosto de um dos jogadores da defesa que avançava, as lâminas da grama arrancadas por seu avanço
em direção a ele.
Um som de buzina se fez ouvir.
Daniel ouviu a onda sonora produzida pela multidão ficar mais estridente e, de repente, tornar-se clara, quase como se conseguisse distinguir as pessoas gritando individualmente.
Uma buzina soou.
Ele notou as luzes que brilhavam intensamente sobre ele, a lua no alto do céu acima do milharal que ficava ao sul do estádio, o mundo rapidamente mergulhando nas trevas para
além das arquibancadas.
E o movimento lento e distinto dos jogadores em torno dele.
A única coisa que não alterou seu ritmo foi a garota, que se deixava tombar para frente, com a cabeça ainda abaixada, olhando para o chão.
Quando ela já estava a cerca de nove metros de distância, virou a cabeça e olhou diretamente para ele. E Daniel viu seus olhos vazios, a boca aberta, a pele branca e inchada.
Emily Jackson.
A garota morta.
Ela estava vindo na direção dele.
Emily ergueu a mão e agarrou a corrente prateada que estava usando, deu um puxão nela e a corrente flutuou ao redor do pescoço, deixando nele um fio de sangue fresco, como
se alguma coisa tivesse realmente atravessado seu músculo, seu osso, sua pele.
Então, ela ergueu a corrente, com um pingente oscilando no centro, e abriu a boca, tentando dizer alguma coisa, mas dela não saiu nenhuma palavra, apenas um fio de água suja.
O sangue escorreu lentamente do fino círculo vermelho em torno de seu pescoço.
Numa fração de segundo, todos os sentidos de Daniel pareciam ter se tornado um só: o som da multidão era absorvido pelo cheiro úmido de outono do gramado, a visão das luzes
brilhantes, o toque do couro liso e áspero da bola em sua mão - tudo se fundiu, deixando-o atordoado e cambaleante.
E, então, o tempo voltou a seu ritmo normal.
Com o canto dos olhos, viu Cox descendo o campo, mas não teve tempo de lançar - os adversários da linha defensiva haviam passado pelos bloqueadores e se aproximavam.
Depressa.
Ele só teve tempo de proteger a bola quando sentiu o choque com os dois adversários que o atacaram juntos, um deles segurando-lhe a máscara e torcendo-lhe a cabeça; quando
caiu no chão, sua cabeça chocou-se com alguma coisa: outro capacete, o chão, o joelho de alguém, ele não sabia dizer do que se tratava, mas isso não tinha importância.
O enorme meia, o cara que pesava mais de 120 quilos, aterrissou bem na barriga de Daniel.
E o mundo ficou escuro. Como tinha acontecido no velório de Emily Jackson.
* No futebol americano, jogador que normalmente se alinha no backfield, ou seja, na parte posterior do campo. Sua principal função é correr com a bola, passando-a para outro
companheiro ou lançando-a diretamente para marcar um gol. (N. T.)
** Formação de um grupo de onze jogadores de um time para discutir a jogada seguinte. Isso é sempre possível entre duas jogadas. (N. T.)
*** Jogador ofensivo que serve como receptor e também bloqueador. (N. T.)
15
Perdido e acordado num sonho.
A garota.
O jogo.
Ele ouvia palavras que pareciam brotar do interior de sua cabeça e não do mundo exterior: Concentre-se nisso. Busque a verdade. Descubra o que aconteceu.
O médico do time estava inclinado sobre ele quando Daniel abriu os olhos; era a segunda vez em menos de uma semana que ele apagava e acordava vendo o rosto ansioso de alguém
inclinado sobre ele.
- Oi, rapaz. Tudo bem? - perguntou o médico. - Você consegue me ver?
Daniel sentiu que estava confirmando com um movimento de cabeça.
- Consigo - disse ele. Era diferente de quando acordou na igreja na terça-feira. Desta vez, ficara sem ar devido ao choque e ainda sentia dificuldade para respirar.
- Como é o seu nome?
- Meu nome? - murmurou ele.
- Isso mesmo.
- Daniel.
- E o seu sobrenome?
- Byers. Daniel Byers.
- Você sabe onde está, Daniel?
Ele virou a cabeça e olhou para ver se Emily estava vindo em sua direção, mas não a viu.
- Sei. Estou no estádio. É o festival da escola.
O médico ergueu quatro dedos.
- Daniel, você consegue ver quanto dedos estou levantando?
- Quatro.
A atenção de Daniel se desviou para os lados do campo, mas nem sinal de Emily.
Onde está ela?
Onde...
- E que dia é hoje?
Pessoa, lugar e tempo. Daniel praticava esporte há muito tempo para saber que essas eram as três coisas que perguntam a um jogador quando ele acorda de um desmaio. Isso e
a verificação da acuidade visual, que o médico estava testando quando lhe perguntou quantos dedos ele estava erguendo.
- Sexta-feira. Dia 29 de setembro - disse Daniel.
A preocupação no rosto do homem se abrandou. Ele olhou para o lado, fazendo contato visual com o treinador Warner, que estava por perto.
- Muito bom - disse ele, se afastando, e duas pessoas ajudaram Daniel a ficar em pé.
Ele se levantou lentamente, sentindo-se um pouco trêmulo. Um aplauso de alívio da multidão o saudou quando ele caminhou para fora do campo com os treinadores a seu lado.
Pelo menos, não estava numa maca. Randall havia lhe contado que a defesa do Coulee estava tentando ganhar uma pizza atingindo um adversário com muita força, mas sem fazer
que ele saísse de campo. Pelo menos nessa jogada, nenhuma pizza foi ganha.
Ao sair do campo, Daniel olhou para toda sua extensão, para a raia que o cercava, as arquibancadas, com o coração disparado, mas não a viu. Graças a Deus, não a viu.
Por favor, não me deixe vê-la de novo.
Não me deixe vê-la nunca mais.
Ele sabia que não devia dizer nada ao médico e aos treinadores sobre o aparecimento de Emily. Eles achariam que ele tivera uma alucinação, que a pancada na cabeça fora pior
do que tinham imaginado. E, sem dúvida, fariam que ele passasse por uma bateria de exames, pois ficariam convencidos de que ele via coisas que não existiam.
E estariam certos.
Você está vendo o que não existe.
Ele procurou afastar esse pensamento.
Quando chegou à lateral do campo, percebeu que já tinham tirado seu capacete e o escondido. Isso sempre acontecia se o treinador ou o médico se convencesse de que um jogador
não podia voltar a campo.
Daniel foi forçado a encarar o fato de que não voltaria a jogar naquela noite.
Com a recente atenção nacional para com os ferimentos de cabeça provocados pelo futebol, os treinadores de Beldon High conversaram bastante com o time a respeito disso no
começo do ano: sempre que um jogador perder a consciência momentaneamente, isso será considerado uma concussão de terceiro grau, e depois de qualquer concussão, pelo menos
para as escolas de ensino médio, o jogador fica fora do jogo até o final.
A atenção da opinião pública também estava voltada para os repetidos traumas cranianos - especialmente com relação aos adolescentes -, para que não se corresse esse risco.
Mas quando voltou a si, Daniel teve a esperança de que as coisas pudessem ser diferentes dessa vez. Que ele seria uma exceção.
Normalmente, o jogador era até levado para o hospital para ser examinado, mas como Daniel havia respondido corretamente às perguntas do médico, não teria que passar por esse
processo depois do jogo.
Ele havia perdido a consciência.
Sim.
Mas não sabia se essa perda de consciência tinha sido provocada pela dor de cabeça ou pelo choque de tornar a ver Emily, ou mesmo por ter batido a cabeça devido ao choque
com o adversário.
Enfim, nada disso importava. Ele viu o que viu. Não havia como negar isso.
Agora já eram duas vezes.
Primeiro ela falou com ele.
Depois ela segurou sua corrente, depois de tirá-la do pescoço.
Emily Jackson, a garota morta, tinha aparecido para ele.
E como ninguém mais estava agindo de maneira estranha - como no velório, quando ninguém reagiu ao que ele tinha visto no caixão -, evidentemente ela só tinha aparecido para
ele.
Seus colegas de time lhe deram soquinhos e tapinhas nos ombros, dizendo-lhe que estavam felizes por ele estar bem, bem como por ele ter jogado tão bem e se mostrado tão forte
ao sair do campo depois de um golpe como aquele.
Seu pai veio até o campo, correndo em sua direção.
- Foi um golpe e tanto na cabeça, Dan. Você está bem?
- Estou ótimo.
- Tem certeza?
- Estou legal, eu...
Mas não terminou a frase. Marcaram uma falta quando Daniel foi atingido, mas o jogo prosseguiu, e o quarterback deixou a bola escapar.
Seis jogadores se empilharam uns sobre os outros na tentativa de recuperar a bola, e não ficou claro qual time conseguiu pegá-la, mas os jogadores do Pioneers estavam todos
apontados para o seu lado do campo.
Os árbitros abriram caminho através da pilha de jogadores, e quando chegaram ao fundo, determinaram a posse da bola.
Era dos Pioneers.
Alguns dos colegas de Daniel xingaram devido à frustração. Ele teve vontade de fazer a mesma coisa.
Como tinha perdido a consciência, embora por apenas uns instantes, o pai estava disposto a ficar com ele na lateral do campo para qualquer emergência, mas depois que se certificou
de que Daniel estava bem, fez um chamado pelo rádio e saiu para se ocupar de uma briga perto da barraca de comes e bebes.
Depois que o pai saiu, Daniel ficou observando o desalentador final da partida.
Os Pioneers marcaram.
Conseguiram um ponto extra.
E elevaram o placar para 24 a 21.
Puxa, como ele queria estar lá no campo! Garantiu aos treinadores que estava bem, mas as regras da escola eram claras: depois do que havia acontecido, ele ficaria fora até
o fim do jogo.
Depois de deter três jogadas dos Eagles, o time de Coulee High controlou a bola o resto do jogo até os últimos segundos, quando conseguiu marcar três pontos num único lance,
ampliando o placar para 27 a 21.
A única esperança de Beldon era marcar mais de um ponto por vez, mas isso não aconteceu.
O time sequer conseguiu marcar.
Perdeu o jogo do festival.
Para os Pioneers, seu arquirrival.
Porque você se distraiu com um fantasma e não se concentrou no jogo!
Embora não houvesse como ter certeza, Daniel sabia - ele sabia - que não teria deixado aquela bola escapar. Ele teria conseguido suplantar Cox, estabelecendo uma vantagem.
E eles teriam avançado e marcado. Se ele não tivesse visto Emily Jackson caminhando em sua direção, tudo teria dado certo.
O que está acontecendo?
O que há de errado com você?
Por que você está vendo essas coisas?
Talvez ele tivesse tido a alucinação depois de bater a cabeça, o que explicaria as coisas, pelo menos um pouco - mas não tinha sido isso. A coisa tinha acontecido antes do
choque, e foi por isso que se deixou atingir.
Embora tivesse batido a cabeça, ela, na verdade, agora incomodava menos que antes do jogo. A dor de cabeça que o tinha atormentado a tarde toda tinha ido embora.
Ele percebeu que tudo era similar ao momento em que desmaiara no velório - nas duas vezes a dor de cabeça tinha ido embora depois da visão de Emily.
***
O clima no vestiário era de desânimo, um senso coletivo de desapontamento, mas o time preferia não culpar ninguém especificamente.
Fazia parte da filosofia do treinador: a gente ganha ou perde como um time, e não como indivíduo.
- Ninguém é culpado quando se perde, e não se deve agradecer a ninguém quando se ganha - ele já dissera mais de uma vez. - Nós somos um time. Não apontamos o dedo para ninguém,
nem nos vangloriamos na vitória. Vamos para o campo, lutamos, vencemos ou perdemos com dignidade. Deixamos tudo o que temos no campo e saímos de cabeça erguida. Todos juntos.
Como um time.
Alguém poderia dizer que isso tudo não passava de psicologia de vestiário, mas Daniel teve a impressão de que o treinador Warner acreditava piamente no que dizia.
Um homem que Daniel nunca tinha visto estava esperando por ele fora do vestiário. Ele usava um blusão com o brasão da Universidade do Estado de Ohio.
- Olá, Daniel. Meu nome é Evers. Sou treinador. Eu gostaria de conversar um instante com você.
16
-Você está bem, filho?
- Estou.
- Você tomou uma bela pancada.
- Eu estou bem.
- Bem, você fez uma boa partida - disse o treinador Evers, que levou algum tempo para mencionar as diferentes coisas que o haviam impressionado nas jogadas de Daniel e em
seu conhecimento do campo. Os elogios deixaram Daniel um pouco sem graça, mas ele sabia como era importante conhecer este recrutador e se limitou a agradecer-lhe.
- Ouça - disse o treinador por fim -, eu queria lhe pedir... Eu fiquei... bem, curioso. Para o que você estava olhando quando foi atingido?
- Para o que eu estava olhando?
- Você estava olhando para um lugar do campo onde não havia nenhum receptor. Foi a única vez durante o jogo que eu vi você fazer isso. Fiquei imaginando o que teria distraído
sua atenção do jogo.
Daniel quase disse "Achei que tinha visto alguém no campo", mas se deu conta de que isso soaria estranho, especialmente porque não havia nenhum receptor para onde ele olhou.
- Tudo aconteceu rápido demais - murmurou ele por fim.
- Claro - disse Evers, parecendo aceitar o que ele falou. - Eu entendo - acrescentou ele. Continuaram a conversar por mais alguns minutos e, por fim, ele prometeu que voltaria
na semana seguinte para ver como Daniel estava se saindo.
Ele agradeceu ao selecionador da Universidade do Estado de Ohio e, depois que este se foi, Daniel ficou perto da porta do vestiário durante mais algum tempo, na esperança
de que o selecionador da Universidade de Minnesota também conversasse com ele, mas ninguém apareceu. O homem não devia ter se entusiasmado com o desempenho de Daniel naquela
noite.
Ainda havia o resto da temporada. E o ano que vem. Você ainda vai ter tempo de impressionar alguns selecionadores para ganhar uma bolsa.
Mas, honestamente, faculdades, bolsas de estudo e selecionadores não eram as coisas mais importantes que lhe passavam pela cabeça.
Tampouco era o jogo do festival, embora fosse algo tão importante.
Não, era ver Emily outra vez, vê-la tirando a corrente do pescoço inchado - era isso que mais o perturbava.
Uma corrente de prata.
Um pingente no meio.
Ela estava usando isso nas fotos do velório, as que pareciam as mais recentes.
Você precisa fazer alguma coisa para que essas alucinações - ou seja lá o que forem - deixem de acontecer.
Mas Daniel não tinha a mínima ideia de como fazer isso.
Por fim, seguiu o corredor, um pouco inseguro com relação à perspectiva de encarar os alunos que, provavelmente, estavam deixando a escola.
Concentre-se nisso. Busque a verdade. Descubra o que aconteceu.
Ele pensou no lago. O lugar em que o corpo dela fora encontrado. Foi lá que todas essas coisas terríveis tinham começado na semana passada.
Não tinha havido uma partida de futebol uma semana atrás, na noite da sexta-feira em que Emily desaparecera. Segundo as notícias dos jornais, dois pescadores haviam encontrado
o corpo dela na margem leste do lago Algonquin, dentro da pequena enseada perto de Windy Point dois dias depois, na tarde de domingo.
Durante anos, Daniel tinha frequentado muito aquela parte do lago, principalmente pescando com o pai. O lugar era conhecido por suas percas, embora alguns salmões tivessem
sido ali pescados, inclusive o de 75 centímetros que estava pendurado na Pousada Antler, na autoestrada G.
Vá lá amanhã, vá ao lago amanhã. Dê uma olhada por lá você mesmo. Talvez isso ponha fim às visões.
Ele estava imerso nesses pensamentos quando viu Nicole abrindo caminho em meio à multidão de alunos que se espalhava pelo estacionamento.
- Você está bem, Daniel? - perguntou ela, não escondendo a preocupação em sua voz.
- Estou.
- Tem certeza?
- Eu estou bem.
- Mesmo? Porque eu...
- Estou legal. Não se preocupe.
Isso pareceu tranquilizá-la.
- Tudo bem, eu só... - e mudou de assunto: a última conversa entre eles. - Eu preciso lhe contar... hum... Lamento sobre o que aconteceu mais cedo, você sabe, hoje na escola.
Eu não estava tentando... Bem, de qualquer modo, tenho certeza de quem quer que você convidar vai lhe dizer sim.
- Ok - foi só o que Daniel conseguiu dizer.
- Tem certeza de que você está bem? - perguntou ela, parecendo que ia se inclinar e tocar o braço dele, mas retrocedeu. - Eu estava preocupada com você.
- Mesmo, Nicole. Eu estou bem. Pode acreditar.
Sim, mas eu tornei a ver a Emily, desta vez durante o jogo. Ah, e por falar nisso, às vezes ela também conversa comigo.
- Então - disse Nicole com indecisão -, estamos acertados?
- Estamos.
Lembra o que o Kyle disse? Não desconte nela. Ir ao baile do festival com ela seria...
O treinador Warner chamou a atenção dele no final do estacionamento.
- Ótimo - disse Nicole, num tom de voz que deixava claro como ela se sentia aliviada. - Isso é ótimo.
- Vejo você mais tarde.
O treinador veio em direção a ele, parecendo frustrado, e Daniel pressentiu que não era apenas por terem perdido o jogo do festival.
Depois que Nicole lhe disse mais uma vez que estava feliz por ele se sentir bem, Daniel se desculpou e foi falar com o treinador para descobrir o que estava havendo.
17
-Oi, eu vi você conversando com o recrutador da Ohio. Foi tudo bem?
- Foi bom - respondeu Daniel. - Ele disse que vai entrar em contato comigo nesta semana para ver se minha cabeça está melhor. Mas ela já está melhor. Estou me sentindo ótimo.
- Fico contente em ouvir isso - disse o treinador, com o olhar se deslocando de Daniel para a escola. - Ouça, você conhece o regulamento, Daniel. Não deixar passar nada. Hoje
em dia é uma questão de responsabilidade. A direção da escola, os advogados.
- Regulamento?
O treinador Warner olhou para a esquerda. Um dos paramédicos tinha trazido a ambulância da extremidade do campo e agora se aproximava do fim do estacionamento.
- Não, treinador. Você não está falando sério.
- Aguente firme. Deixe que examinem sua cabeça, vá para casa e descanse. Você jogou bem esta noite. Não há nada do que se envergonhar. Agora se cuide. Vamos enfrentar os Bulldogs
na semana que vem e vou precisar que você esteja em plena forma.
- Eu vou estar.
Daniel levou um segundo para se recompor mentalmente e se preparar.
Enquanto andava até a ambulância, Kyle apareceu e se pôs ao lado dele.
- Cara, você foi nocauteado.
- Fui mesmo. Sem brincadeira.
- Você quer que eu lhe dê uma carona ou faça alguma outra coisa?
Ele apontou para a ambulância.
- Eles querem me examinar no hospital, mas talvez você possa me encontrar lá e me trazer de volta para eu pegar o meu carro.
O pai de Daniel vinha na direção deles.
- Combinado. Ou talvez a gente possa ir direto para a sua casa depois que você for dispensado e pegar seu carro de manhã.
- Tudo bem.
Enquanto Daniel entrava na ambulância, o treinador Warner e o paramédico explicaram a seu pai o que estava acontecendo.
Ele foi pegar a viatura.
- Sigo vocês até o hospital.
***
Felizmente, a visita ao pronto-socorro não foi muito complicada. Os médicos disseram a Daniel que ele precisava ter cuidado durante uns dois dias, fazer compressa de gelo
e tomar um analgésico se a cabeça ainda doesse.
Eles insistiram em que não dirigisse aquela noite, mas o liberaram para o treino na segunda-feira, desde que não voltasse a ter dor de cabeça.
O pai de Daniel teve que atender a um chamado da central e deixou que Kyle o levasse para casa. Ficou combinado que um deles iria buscar Daniel de manhã para buscar seu carro
na escola.
Quando Kyle parou diante da casa de Daniel, já eram quase onze horas.
Daniel desceu do carro.
- Me mande uma mensagem amanhã - disse Kyle.
- Mando sim.
A noite tinha esfriado. O ar parecia pesado e áspero, como se o inverno estivesse mastigando o outono, ansioso por chegar e tomar-lhe o lugar.
Kyle foi embora, e enquanto Daniel caminhava até a porta da casa, viu um movimento nas sombras perto da garagem.
Ele ficou gelado.
Uma onda de apreensão varreu seu corpo quando se lembrou da visão que tivera no campo de futebol e esperava, esperava muito, que não fosse Emily outra vez.
A imagem dela sentada no caixão, olhando para ele, segurando sua corrente, tudo lhe voltou à mente.
No frio da noite, sua respiração ficou visível quando ele falou.
- Quem está aí?
Uma figura saiu das sombras para a luz da entrada.
Uma garota.
Mas não era Emily Jackson.
Era Stacy Clern.
18
-Stacy? O que você está fazendo aqui?
- Eu vi o que aconteceu com você no jogo. Procurei você depois, mas não consegui encontrá-lo. Alguém disse que você tinha ido para casa, mas depois me disseram que estava
no hospital. Como eu não tinha certeza se devia ir ao hospital ou aqui para a sua casa para...
- Mas como você descobriu onde eu moro?
- Seu pai é o xerife, lembra? Não é difícil localizar você. Você está bem? Afinal, teve que ir para o hospital.
- É o que eles sempre fazem quando alguém bate a cabeça. Não foi nada sério.
- Ah, que bom... quero dizer, que não tenha sido nada sério, não que você tenha batido a cabeça.
- Claro. Eu entendi.
- Hum... O que você tem que fazer agora? Ficar na cama alguns dias? Descansar?
- Eles querem que eu vá devagar, então vou ficar descansando até amanhã. Acho que vou ao lago de manhã.
- Ao lago?
- O lago Algonquin.
- Foi onde acharam a Emily.
- Isso mesmo.
- Por que você vai até lá?
- Não sei exatamente. Acho que quero uma resposta.
- Posso ir com você? - perguntou ela depois de uma pausa.
- Ao lago?
- É. Acho que eu também ia gostar de ter uma resposta.
- Bem... - Embora a pergunta o tivesse pegado desprevenido, a ideia de ficar com ela definitivamente era algo que o interessava. - Claro.
- Não é longe da minha casa. Que tal nos encontrarmos lá?
- Ok. Há um estacionamento no atracadouro do lado leste. A enseada fica a uns dez minutos a pé. Às dez está bem?
- Que tal dez e meia?
- Claro.
- Tudo bem. No atracadouro. Margem leste do lago. Às dez e meia. Entendi. Vejo você lá.
Depois de se desejarem boa noite, ela foi embora e Daniel entrou para se trocar e dormir.
Quando já estava deitado, descobriu-se pensando na correntinha que Emily estava usando quando a viu no campo, mas que não estava com ela no caixão.
Uma resposta.
Foi o que ele disse a Stacy que queria. E era o que iria encontrar na manhã seguinte, no lago, quando visitassem a enseada em que o corpo de Emily tinha sido encontrado.
19
Nenhum pesadelo assombrou seu sono.
Não havia nenhuma cicatriz em seu braço quando ele acordou.
Sim, ele sentia aquela rigidez típica, com os músculos doloridos, devido ao jogo da noite anterior, principalmente nas costas, perto dos quadris, embora seu joelho direito
também estivesse inchado, mas era só isso.
Ele havia ficado preocupado com a possibilidade de ter uma dor de cabeça pela pancada que recebera, mas sua cabeça revelou-se surpreendentemente bem.
Talvez as coisas estivessem finalmente voltando ao normal.
Depois do café da manhã, seu pai saiu para trabalhar e Daniel deu uma olhada nos jornais que estavam no cesto para reciclagem, em busca de artigos sobre Emily.
Enquanto lia os jornais, ele se deu conta de que os tinha visto antes, ainda que de passagem, talvez na mesa da cozinha, onde seu pai sempre os deixava depois do café da manhã,
pois alguns detalhes do desaparecimento e da morte de Emily pareciam vagamente familiares.
Trevor era mencionado num dos artigos, que continha uma foto dele com Emily. A mãe dela havia sido entrevistada e disse que encontrara o cachorro na frente da casa tarde da
noite na sexta-feira. Aparentemente, sua filha havia deixado um bilhete dizendo que o estava levando para dar uma volta em torno do lago Algonquin, perto de onde eles moravam,
mas a garota nunca retornou.
Daniel raciocinou que, se ele tivesse notado os jornais em cima da mesa quando seu pai os estava lendo, teoricamente ele teria sabido a respeito de Trevor, mesmo antes do
velório.
Tudo bem, mas por que isso não ficou registrado?
Talvez fosse uma daquelas coisas que a princípio não notamos conscientemente, mas, de algum modo, é lembrada mais tarde, quando algo a traz a nossa lembrança.
Esse tipo de coisa acontecia quando ele sentia o cheiro de biscoitos com gotas de chocolate e se lembrava da visita à casa da avó: a aparência de sua cozinha, o que ela pusera
na bancada, o tique-taque de seu velho relógio na sala ao lado.
Eram coisas que não tinha necessariamente notado quando lá estivera no mês anterior, mas, quando se lembrava delas, tudo lhe voltava à mente com detalhes precisos.
Talvez fosse o que estava acontecendo: lembranças enterradas que subiam à superfície, trazidas à luz pelo estresse do velório e pelo jogo.
Daniel ficou folheando os jornais até Kyle aparecer, às 9h45, para levá-lo à escola a fim de buscar o carro.
Eles não conversaram muito sobre o jogo, a pancada ou a visita ao hospital, mas Daniel lhe contou que encontrara Stacy na noite anterior e que ela iria ao lago com ele naquela
manhã.
- Ela apareceu na sua casa?
- Foi. Ela estava me esperando quando você me deixou lá.
- Eu não a vi.
- Ela estava perto da garagem.
- Isso não lhe parece estranho? Que ela tenha ido à sua casa no meio da noite, escondendo-se na sombra e esperando que você voltasse?
- Ela não estava se escondendo.
- Você sabe o que eu quero dizer.
- Ela só queria conversar comigo.
- Tudo bem, e como é que ela soube onde você mora?
- Meu sobrenome não é nenhum segredo de Estado, Kyle. Existe uma coisa chamada internet.
- Tudo bem. Eu só... não sei. Aí tem alguma coisa errada.
- Ok, talvez seja um pouco estranho, admito, mas pelo menos ela teve a preocupação de ir me ver. - Daniel hesitou. - De qualquer modo, vou pedir a ela se quer ir comigo ao
baile desta noite. Você sabe, quando eu a encontrar no lago.
- Me conte o resultado depois - disse Kyle vagamente.
- Você acha que eu não devia convidá-la.
- Eu não disse isso - replicou Kyle, entrando na rua que levava à escola.
- Não, não disse.
Kyle respirou fundo.
- Ouça, cara, eu não a conheço, você a conhece. Só acho um pouco estranho que ela tenha aparecido em sua casa quase às onze da noite para ver se você estava bem, quando podia
ter falado com você depois do jogo. Nicole falou.
- Falou sim.
- Ok - disse Kyle quando chegaram ao estacionamento de Beldon High, e seu Mustang parou junto ao carro de Daniel. - Eu vi vocês conversando.
- Ah, você tem razão.
- Com relação a quê?
- O que você disse sobre a Stacy. Que você não a conhece.
Fez-se silêncio entre os dois.
Kyle estacionou o carro.
- Ok - seu tom de voz era frio e distante. - Aqui está o seu carro.
- Depois eu falo com você - disse Daniel, abrindo a porta do carro.
- Claro.
Pegou as chaves e, depois que Kyle se afastou, foi para o lago Algonquin para encontrar Stacy.
Ele não gostou que Kyle desconfiasse dela.
Mas isso era assunto para depois.
Agora estava na hora de encontrar a garota que havia esperado por ele depois da escola na quinta-feira e que tinha ido até sua casa na noite anterior para saber como ele estava.
20
O dia se mostrava lânguido sob um céu cinzento e sombrio. Nuvens pesadas ameaçavam chuva, mas estavam paradas, como se esperassem algum sinal antes de se derramarem sobre
o lago e a floresta circundante.
Embora algumas árvores estivessem mudando de cor, nenhuma exibia um tom que se destacasse contra o dia nublado, e a maioria das que não eram pinheiros exibiam apenas um castanho
desbotado, fazendo com que a área já parecesse cansada do outono e pronta para mudar para a estação seguinte.
Quando Daniel estacionou perto do embarcadouro, não havia outros carros no local, mas assim que fechou a porta atrás dele, viu Stacy esperando por ele perto da margem e usando
uma capa de chuva cinza-escura.
Quando ela ouviu a porta batendo, virou-se e sorriu para ele.
- Seus pais lhe deram uma carona? - perguntou ele.
- Eu preferi vir caminhando. Como eu disse, não é longe.
Uma trilha circundava o lago, e à medida que eles avançavam em direção à enseada onde o corpo de Emily havia sido encontrado, passaram por vários locais de acampamento abandonados,
com pedaços de madeira queimada em fogueiras cercadas por grandes pedras tiradas da margem do lago.
Nos fins de semana, muitos jovens iam ao lago para se divertir, e muitas fogueiras estavam cheias de cacos de vidro de garrafas de bebidas alcoólicas, bem como de latas de
cerveja amassadas, enegrecidas e meio desintegradas, mas que nunca ficariam completamente queimadas por mais fortes que fossem as fogueiras dos acampamentos.
Uma das fogueiras ainda estava fumegando, provavelmente feita por jovens que ali tinham vindo depois do jogo de futebol da noite anterior. A fumaça lenta e escura se elevava
para logo desaparecer, dispersada pela brisa forte que soprava do lago.
Quando Daniel e Stacy chegaram à enseada, o vento tinha ficado ainda mais forte e ondas agitadas avançavam pelo lago na direção deles.
Aproximaram-se, então, de uma faixa de dezoito metros de praia que fazia um contraste gritante com a margem rochosa que circundava a maior parte do lago.
Essa área era bem conhecida pelos jovens que moravam na vizinhança, e no verão, com o lago mais quente, eles vinham nadar à tarde, nas noites de luar ou quando as estrelas
do norte tremulavam em sua trajetória ansiosa e misteriosa pelo céu.
O lago afundava rapidamente depois desses dezoito metros, e circulavam histórias de pessoas que se exibiam saltando de Windy Point para aquele trecho, onde, supostamente,
a profundidade era suficiente para um mergulho desses, mas Daniel não conhecia ninguém que tivesse realmente feito isso. Quando perguntou ao pai, este tampouco conhecia alguém
que tivesse realizado o feito.
Daniel ficou ao lado de Stacy, enquanto os dois olhavam para além do lago, sentindo o vento forte fustigando-lhes o rosto como minúsculas pinças invisíveis.
Um arrepio percorreu-lhe o corpo. Ele suspeitou que não era devido apenas ao vento e à temperatura, mas também por estar perto do local onde uma garota havia efetivamente
morrido.
- Foi bem ali - disse Stacy, apontando para um trecho raso à direita deles. - Foi ali que a encontraram. Eu li no jornal. Havia uma fotografia, quero dizer, não dela, mas
do lago, do lugar onde os pescadores estavam quando... - E sua voz morreu na garganta.
Ele se lembrou de ter lido o artigo.
- Foi isso mesmo.
Começou a chuviscar: gotas que pareciam alfinetes afiados caindo com uma estranha energia e trazidas pelo vento que agora provocava ondas cheias de espuma no lago.
Daniel olhou para a areia à sua volta, para as taboas que cresciam perto da grama agitada pelo vento na borda do bosque. Ali também havia uma fogueira apagada.
- E agora? - perguntou Stacy.
- Não tenho certeza.
Durante algum tempo, os dois ficaram olhando em silêncio para a água e a paisagem que a cercava. O silêncio entre eles pareceu apropriado a Daniel, quase como se fosse uma
maneira singela de honrar a memória de Emily.
Por fim, enquanto a chuva continuava a cair, Stacy puxou seu capuz sobre a cabeça, e Daniel ergueu a gola de sua jaqueta.
- Talvez fosse melhor a gente ir embora - sugeriu ela.
Concentre-se nisso. Busque a verdade. Descubra o que aconteceu.
- Primeiro me deixe dar uma olhada por aí - disse ele, indicando-lhe que esperasse embaixo de um dos pinheiros que se erguia na margem; em seguida, caminhou pela praia.
Ele suspeitava que as pegadas que já estavam na areia eram de pessoas que tinham estado ali à procura do corpo de Emily, ou talvez de jovens que ali haviam feito fogueiras
no fim de semana. Além disso, não viu nada de extraordinário.
Durante alguns minutos, examinou a área, procurando alguma coisa que pudesse ajudá-lo a dar sentido aos eventos dos últimos dias, às aparições fantasmagóricas que vira, mas
tudo o que viu foi a agitação das ondas no lago, a margem distante, o capim escuro, a areia batida pela chuva.
Nenhum fantasma.
Nenhum cadáver surgindo das águas se aproximando dele, falando com ele, agarrando-o, tirando a correntinha do pescoço ou acenando-lhe para que também entrasse no lago.
Nenhuma aparição.
Felizmente.
Melhor voltar para casa. Não havia nada ali.
Ele caminhou até a margem uma última vez e observou alguns gravetos que haviam sido levados para a areia, bem como alguns montes de folhas e ervas encharcadas do fundo do
lago. Tudo isso deixava claro que as ondas não tinham avançado pela margem além desse ponto havia muito tempo.
Finalmente, quando viu que nada havia a ser encontrado, achou que Stacy estava certa. Estava na hora de ir embora.
Ele havia dado dois passos em direção a ela quando notou os óculos na areia perto do bosque.
Embora estivessem semienterrados, ele os reconheceu imediatamente: eram os que Emily Jackson estava usando nas fotos colocadas na frente da igreja durante o velório.
21
Com o coração batendo aceleradamente contra o peito, Daniel se aproximou dos óculos.
Emily havia lhe pedido que os encontrasse. Quando ela se ergueu do caixão, ela pediu a você que encontrasse seus óculos!
A água escorria em riachos pela encosta e caía no lago. Um deles passava embaixo dos óculos e havia levado embora parte da areia e os tornara mais visíveis.
Ele os apanhou.
Uma das hastes estava dobrada para o lado, e a lente esquerda tinha desaparecido, mas definitivamente eram do mesmo estilo que os que Emily usava nas fotos, os mesmo que ele
a tinha visto usando na escola antes de seu desaparecimento.
- Stacy, aqui.
Logo ela estava ao lado dele.
- O que foi?
- São os da Emily - disse Daniel, erguendo os óculos.
- Você tem certeza?
- Absoluta. Quero dizer, não tenho certeza tão absoluta, mas são do mesmo tipo que ela usava.
- Estão quebrados - apontou Stacy, com certo mal-estar.
- Talvez alguém tenha pisado nele - disse ele, mas não era exatamente o que estava pensando.
- Pode ser - disse Stacy, embora tampouco parecesse convencida.
- Bem, não tem chovido o suficiente para elevar o nível da água até aqui; então, eles não foram trazidos pela água. E a localização não está certa. Quero dizer, a distância
de Windy Point, a menos que alguém tenha o arremesso melhor que o meu para tê-los jogado aqui.
Ele suspeitou que os policiais tinham examinado o lugar onde estavam, mas os óculos estavam perto do ponto mais alto da praia e semienterrados, então era possível que até
seu pai e seus homens tivessem investigado a área, mas não os tivessem encontrado.
- Ela pode tê-los tirado e deixado aqui para ir nadar - disse Stacy.
Como se quisesse lembrá-los de alguma coisa, o vento soprou uma golfada de chuva fria contra eles.
- Está frio demais para nadar - ele replicou. - E estava mais frio na semana passada. Além disso, ela nunca estaria usando jeans e tênis se tivesse decidido nadar sozinha,
não é mesmo?
- Não sei. O que você quer dizer com "sozinha"?
- Quero dizer que ela não teria decidido nadar vestida daquele jeito.
- Sozinha.
- Sim, sozinha. A menos que alguém a empurrasse na água - disse ele.
- Ou a impedisse de voltar à superfície.
Foi quase isso que Ronnie havia dito quando estava conversando sobre suas suspeitas com relação à morte da irmã.
Daniel olhou com estranheza para Stacy, sem saber exatamente por que ela teria dito aquilo.
- Isso, exatamente.
Ela ficou olhando para um ponto em que a margem se elevava bem acima do lago.
- Você lembra? Disseram que ela teria caído na água ali. A corrente pode tê-la carregado para cá.
- Mas, então, por que seus óculos estariam tão longe da margem, se a água não subiu tanto?
- Mas se ela não os tirou, ou se eles não foram trazidos para a margem depois que ela se afogou...
Daniel pressentiu que Stacy estava pensando a mesma coisa que ele.
- Eles podem ter se quebrado se ela lutou com alguém.
- E ela pode não ter se afogado acidentalmente.
- Não, pode ser que não.
Por um longo tempo, nenhum dos dois disse uma palavra.
- Devíamos contar isso ao seu pai - disse ela por fim.
- Primeiro vamos dar mais uma olhada por aí.
- O que vamos procurar?
- Acho que a outra lente, ou talvez alguma outra coisa que possa nos mostrar que houve luta - disse ele, colocando os óculos cuidadosamente no bolso. - Ou qualquer coisa que
pareça não pertencer a este lugar.
Então, um pensamento.
- Procurar uma correntinha - disse ele.
- Uma correntinha?
- Sim. Uma correntinha de prata e um pingente.
Ela olhou para ele com curiosidade.
- Isso é muito específico.
- É só um pressentimento - disse ele, evitando olhar nos olhos dela. - Quero dizer, Emily estava usando uma nas fotos que exibiram em seu velório. Fico imaginando se essa
corrente não foi varrida para a margem.
- Você não acha que talvez devêssemos esperar que seu pai, os guardas ou qualquer outra pessoa venham para cá?
- Bem... - disse ele, mostrando a água que vinha até a margem e se afastava. - Se a chuva continuar, ela pode levar qualquer coisa embora antes que eles cheguem.
- Você não quer dizer qualquer coisa. Você quer dizer uma prova.
- Sim - disse ele, sentindo que era um pouco desagradável falar nisso. - Prova.
Eles passaram os quinze minutos seguintes percorrendo a praia e a margem cheia de pedras, examinando as fogueiras apagadas e áreas cobertas de grama das proximidades e até
mesmo as taboas, mas sem encontrar nada estranho. A outra lente continuava desaparecida. Nada indicava que poderia ter havido uma luta na praia.
- Ok - disse Daniel. - Vamos voltar. Vou levar estes óculos para o meu pai, para ver o que ele acha. Talvez ele consiga descobrir se outra pessoa mexeu neles. Impressões digitais,
ou qualquer outra coisa assim.
Ele sabia bem que, embora os policiais da televisão sempre fizessem testes de DNA, isso não acontecia na vida real, pelo menos numa zona rural como aquela.
Não que não houvesse crimes violentos na área, mas o exame era caro demais e, além disso, o pai de Daniel certa vez lhe contou que houve um enorme acúmulo de testes de DNA
em nível estadual, solicitados por advogados que tentavam reabrir inquéritos sobre pessoas que haviam sido condenadas por crimes.
Mas talvez desta vez, se houvesse suspeitas suficientes de que alguém havia efetivamente matado Emily, o teste pudesse ser levado a sério e realizado.
Quando estavam se aproximando do estacionamento, ela balançou a cabeça.
- É mesmo muito tétrico, sabe, pensar que alguém possa tê-la matado. É loucura achar que ela tenha se afogado, mas... quem faria isso?
- Não faço a mínima ideia - replicou ele, lembrando o que Ronnie havia dito sobre suas suspeitas de que a irmã tinha sido assassinada.
- Só de pensar nisso, sinto um arrepio.
- Meu pai vai chegar ao fundo da questão. Por enquanto, não vamos contar a ninguém sobre os óculos. Se é possível que ela tenha sido morta, e não morrido acidentalmente, precisamos
deixar que o departamento dele se ocupe do caso. Falar sobre isso a alguém pode não ser uma boa ideia.
- Ok.
Quando falou em não mencionar os óculos a ninguém, não deixou de pensar sobre onde todos estariam naquela noite - o baile - e como seria fácil deixar escapar alguma coisa,
principalmente sobre uma novidade importante como os óculos.
E quando o baile lhe veio à mente, lembrou que mais cedo havia dito a Kyle que ia convidar Stacy para ir com ele.
Mas, por algum motivo, não pareceu que aquele fosse o melhor momento para fazer o convite, não depois de ter encontrado os óculos e ficar pensando na possibilidade de que
Emily tivesse sido realmente assassinada, em vez de ter se afogado acidentalmente.
Haveria outra oportunidade para convidar Stacy.
Quando? O baile era de noite.
Passaram pela última fogueira de camping e chegaram ao estacionamento onde haviam se encontrado. Havia outro carro ali, uma perua SUV marrom estacionada perto do embarcadouro.
Provavelmente pescadores. Não havia ninguém à vista.
Quando estavam para se despedir, seus olhos se encontraram por um longo momento. Apenas uma fração de segundo quando se sabe que é preciso afastar o olhar, que, se se isso
não for feito, alguma coisa maior que um interesse passageiro será comunicada.
Ele mordeu o lábio e desviou o olhar para a água.
Depois que o momento se prolongou e virou algo extremamente eloquente, ele tornou a olhar para ela. Sob o capuz, os olhos dela olhavam para ele com expectativa.
Ele sentiu vontade de afastar uma mecha de cabelo molhada que havia tombado sobre o rosto dela.
Vá em frente. Convide-a. Não é tão difícil.
Ele estava prestes a limpar a garganta para fazer o pedido, mas antes que fizesse isso, ela falou primeiro.
- Bem, me conte o que o seu pai achar dos óculos.
- Conto sim.
- Obrigada por ter me deixado vir com você.
- Não conseguimos uma grande resposta, não é mesmo?
- Não mesmo - respondeu ela. Eles ficaram olhando um para o outro debaixo da chuva, que não dava sinal de parar. - Ok - acrescentou ela, hesitante. - Vejo você mais tarde.
- E se eu lhe der uma carona?
- Não precisa. Eu já estou ensopada.
- É sério. Não quero que você fique andando debaixo dessa chuva.
- É muito gentil da sua parte, mas eu já estou bem molhada.
O tempo passava, esvoaçando por entre eles. E, então, ele deixou escapar.
- O baile do festival é esta noite - disse Daniel.
- Ouvi dizer.
- Você vai?
- Não. E você?
- Também não.
- Ok.
- Hum... talvez eu pudesse...
Ela afastou do rosto aquela mecha de cabelo que ele tivera vontade de recolocar no lugar.
- Sim?
- Quero dizer, se você quisesse, nós podíamos, você e eu... quero dizer, a menos que... talvez... se você não for fazer outra coisa?
- Você está me convidando para o baile, Daniel Byers?
Puxa vida.
- Hum... estou.
- Ah.
- Podemos nos encontrar lá se você quiser.
Ela olhou para os bosques além dele, e ele achou que isso era, sem dúvida, um mau sinal, que ela ia lhe agradecer, mas dizer não, obrigada.
Mas não disse. Em vez disso, tornou a olhar para ele através da chuva.
- Está combinado.
Sim, sim, sim!
- Mesmo?
- Claro. Você tem o meu número?
- Não - respondeu ele, balançando a cabeça.
Ela lhe deu o número.
- Ligue hoje à tarde.
- Vou ligar.
Ela afundou mais a cabeça no capuz e caminhou rapidamente pelo estacionamento até uma trilha que levava ao bairro mais próximo, que, na verdade, era apenas um grupo de uma
dúzia de casas ao longo de uma estrada de terra que margeava a floresta em torno do lago.
Quando entrou no carro, ligou para Kyle para lhe contar que havia convidado Stacy. O amigo o congratulou por ter tido a coragem de convidá-la.
- Eu sabia que você ia ter coragem para convidá-la.
- Obrigado, cara.
- Na verdade, eu não sabia, mas me pareceu a coisa certa a dizer.
- Tudo bem.
Kyle sequer mencionou como era estranha a maneira como Stacy agira na noite anterior.
- Talvez vocês queiram depois se juntar a mim e a Mia.
- Vou perguntar quando telefonar para ela hoje à tarde.
- Legal.
Então, Daniel foi para o escritório do pai para lhe dar o par de óculos e lhe dizer que havia a possibilidade de Emily, afinal, não ter morrido acidentalmente.
22
O escritório do xerife ficava perto do tribunal, na rua Principal.
O condado não tinha dinheiro suficiente para contratar um funcionário em tempo integral para ficar na recepção controlando o punhado de visitantes que entravam no local durante
o dia; portanto, não havia nenhum tipo de segurança na entrada.
Em vez disso, havia uma recepcionista uns dois anos mais velha que Daniel sentada atrás do balcão em tempo parcial. Ele já a tinha visto: Shawna. Ela estava mascando um chiclete
colossal e enviando uma mensagem de texto a alguém.
Ela o olhou de maneira ausente, terminou de soprar uma bola que se esparramou por seu queixo quando estourou e então disse:
- Você veio falar com seu pai?
- Ele está?
- Ocupado com uma papelada - confirmou ela, olhando para o corredor e com a atenção já voltada para o celular, digitando com uma das mãos enquanto juntava chiclete suficiente
para soprar outra bola.
Quando Daniel chegou ao final do corredor, encontrou a porta aberta.
O escritório do pai era indefinível, com duas cadeiras e uma mesa de metal cinzento que lá estava desde que Daniel se conhecia por gente. Papéis se amontoavam sobre ela, com
uma intimidadora pilha deles aguardando na caixa de entrada. Uma estante cheia de manuais da polícia ficava entre a janela e o armário de armas trancado.
Em Wisconsin, as armas são tratadas de maneira diferente de muitas regiões dos Estados Unidos. Aqui, especialmente nessa parte do Estado, as pessoas podem ter uma arma para
caçar, para proteger a família ou a comunidade como um todo. Não se tratava de um departamento suficientemente grande para ter um amplo arsenal, e, assim, seu pai guardava
os rifles e revólveres ali mesmo no escritório.
Daniel bateu ligeiramente na porta e entrou.
- Oi, pai.
O pai ergueu o olhar dos papéis que examinava.
- Dan, como você está?
- Ótimo - respondeu ele, sentando-se na cadeira dura diante da mesa do pai.
- Você andou na chuva, não é mesmo? - perguntou o pai, indicando as roupas encharcadas de Daniel.
- Foi sim. Lá no lago.
- No lago?
- O lago Algonquin.
- Mesmo? - perguntou o pai, olhando para Daniel com curiosidade.
- Mesmo.
Daniel ficou pensando num modo de explicar o que tinha em mente.
- Ouça, preciso conversar com você.
- Tudo bem.
Conte-lhe tudo. Veja o que ele diz.
- Na verdade, é sobre Emily Jackson.
- Ok.
- Eu... hum... acho que a morte dela pode não ter sido um acidente.
- Do que você está falando?
- Acho que talvez ela tenha sido assassinada.
O pai pousou a caneta.
- Assassinada?
- Sim.
- O que o faz pensar assim?
Daniel colocou os óculos na mesa.
- O que é isso?
- Os óculos de Emily.
O pai ficou observando os óculos, mas não os pegou.
- Como você os conseguiu?
- Eles estavam na enseada onde ela foi encontrada.
- Por que você foi lá?
- Eu queria... - e acabou usando a mesma palavra que tinha usado com Stacy - respostas.
- E você os encontrou na margem?
- Sim. Perto do mato.
- A rapaziada vai lá para se divertir o tempo todo. O que o faz pensar que estes óculos eram de Emily?
Quando o pai usou eram em vez de são, isso lembrou Daniel mais uma vez que Emily havia partido e não mais voltaria, o que só tornava mais difícil falar sobre seu achado.
- Ela os estava usando nas fotos que estavam na frente da igreja no velório. E eu me lembro de tê-la visto usando-os na escola.
- Mas talvez sejam de alguém que usa o mesmo estilo.
- Eu acho... - disse Daniel, hesitante. - É possível, mas...
- Dan, o legista fez a autópsia na noite de sábado. Não há motivo para acreditarmos que Emily Jackson foi assassinada.
- Os óculos estão quebrados, pai. E eu os achei na margem, longe da água. Se ela lutou com alguém, eles podem ter sido derrubados. Talvez tenha sido assim que se quebraram.
- Lutando com alguém.
- Isso mesmo.
Daniel duvidava que mencionar a visão do fantasma de Emily no velório pedindo-lhe que achasse os óculos poderia ajudá-lo, então preferiu guardar a coisa toda só para ele.
- Além disso, o nível da água não subiu tanto para carregá-los para bem longe da margem.
- Como você sabe disso?
- Eu conferi o nível da água. Está frio demais para nadar. E se ela caiu acidentalmente no lago, como teria a precaução de tirar os óculos e deixá-los perto do mato?
O pai ficou em silêncio.
- Há muitas razões para estes óculos terem se quebrado. Eles podem nem ser os de Emily, e sabe-se lá quanto tempo ficaram lá na areia.
- Mas se é possível que sejam dela, que ela não morreu acidentalmente, você não acha que deveria investigar? Talvez procurar impressões digitais, DNA ou algo assim.
Ele tamborilou os dedos na mesa duas vezes.
- Alguém mais sabe sobre os óculos?
- Só a Stacy. Ela estava lá comigo.
- Stacy?
- A garota nova da escola. Nós vamos ao festival juntos hoje à noite. Ao baile.
- Eu não sabia que você está namorando.
- Não estamos namorando oficialmente, ela só vai comigo ao baile.
- Puxa.
- É uma coisa de última hora. Eu a convidei hoje de manhã.
Seu pai ficou um momento pensativo.
- Tudo bem. Ouça, eu vou investigar. Mas não quero saber de falatórios de que Emily Jackson foi assassinada. Não comente nada com ninguém. Nem mande mensagens. Não use o Twitter.
Nada desse tipo.
- Não se preocupe. Não vou dizer nada.
- E o mesmo vale para a Stacy. Não quero que ela fique falando sobre isso com as amigas.
Daniel ficou contente por já ter falado com ela sobre isso.
- Vou cuidar disso. Obrigado, pai.
Ele se recostou em sua cadeira.
- E quais são seus planos para o resto do dia?
- Acho que vou para casa. Me secar. Almoçar. Provavelmente malhar um pouco. Fazer hora até o baile.
- E sua cabeça? Melhorou depois de ontem à noite?
- Sim, ela está bem.
- Se você malhar, não quero que pegue pesado, não sem ter dado um ou dois dias para sua cabeça se recuperar.
- Vou tomar cuidado.
- Bem, só vou ter certeza disso quando eu voltar para casa. Se eu não o vir antes do baile, quero que esteja de volta à meia-noite.
- Certo. Sem problema.
Daniel ficou esperando o resto. Nada de farra depois. Não quero que você faça nada de errado..., mas o pai não completou a frase. Aparentemente, ele acreditava que Daniel
já conhecia as regras.
- Tudo bem - disse o pai, voltando sua atenção para os óculos, e quando falou, pareceu distraído. - Vejo você mais tarde.
***
Daniel saiu do escritório do pai sentindo-se seguro e um pouco preocupado.
Estava agradecido pelo pai ter concordado em investigar o caso, mas o fato de o estar fazendo dizia a Daniel que havia uma chance, ainda que pequena, de que a morte de Emily
não tivesse sido acidental.
Tentou ligar para Stacy para contar-lhe sobre o encontro com o pai e lembrá-la de não contar a ninguém sobre os óculos, mas ela não atendeu e ele só ouviu a voz genérica pedindo
que deixasse uma mensagem. Pediu-lhe que ligasse e lhe mandou uma mensagem de texto no caso de ela não ouvir a de voz.
Chegando em casa, enquanto juntava algumas sobras para almoçar, recebeu uma mensagem de texto. Achando que seria Stacy, checou o telefone imediatamente, mas viu que era apenas
um dos colegas do time, perguntando como estava sua dor de cabeça. Ele respondeu que estava bem.
Um pouco mais tarde, depois do almoço, enquanto estava terminando de levantar pesos no porão, seu pai ligou e explicou que havia mandado os óculos pelo correio para o escritório
do FBI em Milwaukee.
Não era uma coisa que ele tinha a obrigação de compartilhar com Daniel, mas ter agido tão rapidamente num sábado revelava que o pai não estava para brincadeira; ele realmente
havia levado a sério as preocupações de Daniel.
Tornou a enviar uma mensagem de texto a Stacy e tentou falar com ela. Nada. Manteve o telefone perto dele, mas uma hora depois ainda não tinha notícias dela.
Daniel repassou mentalmente a conversa que tinham tido no lago, mas não conseguia se lembrar se ela havia concordado especificamente em encontrá-lo na escola à noite, ou apenas
concordado, num sentido mais amplo, em ir com ele ao baile.
No entanto, ela havia lhe dito para ligar para ela à tarde. Disso ele se lembrava com certeza.
Às cinco, quando ela ainda não tinha entrado em contato, ele se reassegurou de que ela devia ter dito que ele deveria encontrá-la no baile.
Era só isso.
Uma pequena falha na comunicação.
Apenas uma coisa para esclarecerem quando se encontrassem na escola à noite.
Enquanto repassava tudo isso, não conseguia deixar de pensar que tinha havido uma luta na margem do lago, uma luta que resultara na morte de Emily.
Agora, pelo menos, o FBI estava examinando os óculos.
Ele queria conversar com alguém a respeito disso, mas não podia contar nada a ninguém.
Exceto para Stacy.
Bem, ele ia poder fazer isso quando a visse dali a algumas horas.
23
As sete da noite, Stacy ainda não tinha telefonado nem mandado uma mensagem de texto.
O baile começava às oito.
Ela havia dito que morava perto do lago, mas não onde morava exatamente - embora devesse ser perto para ela voltar a pé, e era mais provável que fosse naquele bairro perto
da margem do lago.
Entretanto, ele não sabia qual era o modelo do carro dela, de modo que não podia sair pelas ruas do bairro procurando-o estacionado diante da casa.
Ele e Kyle ficaram procurando na internet para ver se descobriam um pouco mais sobre ela, mas sem resultado. Como não tinham um endereço, a busca revelou-se inútil.
Daniel achou que, se mandasse mais mensagens a ela, isso o faria parecer desesperado. E ficar rodando em busca da casa dela sem dúvida pareceria perseguição.
Ele acabou por ficar sem saber como entrar em contato com ela, e quando contou a Kyle o que estava acontecendo, seu amigo lhe disse que devia ir ao baile e procurar por ela.
- Como você não teve a chance de conversar com ela de tarde, ela vai pressupor que você a encontrará na escola. Quero dizer, como foi dito na conversa que vocês tiveram, certo?
Não faz sentido?
- A menos que eu tenha anotado o número errado e agora ela está achando que eu mudei de ideia e que não vou levá-la ao baile.
- As mensagens foram realmente enviadas?
- Meu celular diz que sim.
- Então, talvez ela tenha mudado de ideia e está ignorando você.
- Muito obrigado.
- Claro. Bem, só tem um jeito de descobrir o que está acontecendo.
- Ir ao baile.
- Mia e eu encontramos vocês lá.
Daniel ficou com vontade de lhe contar sobre a visita ao lago, os óculos e, acima de tudo, como o FBI estaria se envolvendo no caso, mas sabendo como a confidencialidade era
importante para seu pai, acabou por não dizer nada.
***
Ty Bell e seus amigos estavam andando pelo exterior da escola quando Daniel chegou.
Não era permitido fumar no recinto da escola, mas eles estavam sendo discretos e puxando as tragadas só quando não havia professores e inspetores por perto. Pelo cheiro, pelo
menos um deles estava fumando alguma coisa que não era apenas cigarro.
Eles ficaram encarando Daniel quando ele entrou, mas sem dizer nada. Ty jogou o cigarro no chão e o apagou com o salto do sapato.
Havia dois bailes anuais em Beldon High: o do festival de outono e o de formatura, na primavera. Em contraste com a formalidade do baile de formatura, o do festival era muito
mais descontraído. Algumas pessoas se vestiam formalmente, mas a maioria dos alunos se vestia de maneira casual.
O tema deste ano era "Sob as Estrelas", e o grupo de música espalhou estrelas brilhantes de papel alumínio pendendo do teto por toda a entrada da escola e na cantina, que
permaneceu aberta para os alunos que preferiam ficar lá a dançar no ginásio ao lado.
Daniel encontrou Kyle e Mia perto do acesso que ia da cantina ao ginásio.
Mia era uma garota esbelta e pálida, com cabelo negro e liso, um piercing no lábio, um na língua e outro no umbigo. Sob a jaqueta jeans, usava uma camiseta antiga que revelava
sua barriga lisa e o umbigo. Talvez não fosse a roupa adequada para um baile de outono, mas era o que Mia costumava usar.
Um de seus braços estava em torno da cintura de Kyle.
- Como vai, Daniel?
- Mia, que bom ver você. Como vai seu livro?
- Hibernando.
Daniel nunca tinha conhecido alguém que estivesse tentando escrever um romance, principalmente alguém da idade dele, mas Mia era quase tão boa em literatura quanto Kyle, e
essa provavelmente era uma das coisas que atraía um ao outro.
O livro dela seria uma história de fantasmas, que, em vista de tudo o que estava acontecendo naquela semana, Daniel achou ironicamente apropriada.
- Muitas "mariposas" por aqui esta noite - disse Mia quando viu como algumas garotas olhavam para Daniel.
- Mariposas? - perguntou ele com curiosidade.
- Isso mesmo. E você é a lâmpada, Senhor Quarterback.
- Ah.
- E onde está essa tal de Stacy?
- Não sei. Vou apresentá-la a vocês assim que a encontrar.
Daniel não sabia onde procurar Stacy, mas ela não estava nem lá fora nem na cantina, e ele imaginou que estivesse no ginásio.
Embora tivessem perdido o jogo do festival na noite passada, a derrota não parecia ter afetado muito a animação do baile.
Balões e bandeirolas erguiam-se por todo o ginásio. Na primavera passada, alguns alunos haviam colocado bebida alcoólica no ponche; assim, embora corresse o boato de que não
haveria ponche no baile dessa noite, uma mesa foi armada perto das arquibancadas, e um grupo de inspetores e professores ficou por perto do ponche para vigiá-lo.
Daniel tinha a impressão de que as pessoas que tencionavam pôr álcool no ponche viam isso mais como um desafio, em vista de todos os adultos que vigiavam a bebida, e achariam
um modo de colocar bebida alcoólica nas tigelas.
O treinador Jones estava junto à mesa com alguns professores, observando a multidão de alunos como se estivesse procurando alguém. Ele reconheceu Daniel, fazendo-lhe um pequeno
aceno, que foi retribuído da mesma forma. A Srta. Flynn e o Sr. McKinney estavam conversando perto de um grupo de pais.
O Sr. Ackermann, o fotógrafo que tinha estado no jogo, instalara-se num dos cantos para tirar fotos dos alunos que as desejassem de maneira profissional. Não havia fila para
isso.
Algumas pessoas, as que realmente sabiam dançar, estavam na pista, mas a maioria das garotas estava em pé junto a uma parede. Os rapazes se colocaram junto a uma outra.
As coisas iam ficar mais descontraídas. Isso sempre acontecia.
Daniel não tinha ideia de como os bailes aconteciam antes da invenção do celular, mas muitos jovens estavam mandando mensagens e checando as recebidas para que parecesse que
estavam ocupados com alguma coisa, quando, na verdade, não estavam dançando, não tinham com quem dançar ou estavam ansiosos demais para tirar alguém para dançar.
Os esportes eram muito populares em Beldon High, e quase todo mundo reconheceu seu ídolo local do futebol, Daniel Byers. Os rapazes o cumprimentavam ou lhe abriam caminho;
as "mariposas" giravam à sua volta e flertavam com ele, especialmente quando viam que não estava acompanhado de nenhuma garota. Ele fez o que pôde para educadamente ignorá-las.
Atravessou a multidão em busca de Stacy, mas não a viu em nenhum lugar. Nem mesmo nos grupos de moças que agora estavam se formando na pista de dança.
Uma luz estroboscópica erguia-se precariamente acima da multidão. Havia até uma máquina de fumaça.
Um telão erguia-se numa extremidade do ginásio, exibindo vídeos das músicas sendo tocadas. Depois que o baile começou, o telão, na verdade, ajudava alguns jovens que tinham
dificuldade em saber como dançar.
No começo do ano, parecia que Kyle e alguns de seus amigos que estavam tentando formar uma banda iam tocar no baile, mas, por algum motivo, isso não se concretizou - provavelmente
porque a música não era tão apropriada para um baile de escola, estando mais para a vibração de uma cantina de universidade.
Um veterano que Daniel conhecia só de vista era o DJ e estava selecionando principalmente música pop e eletrônica. Todas as que escolhia pareciam bastante conhecidas, pois
os rapazes e moças inundavam a pista de dança.
A música se intensificou. Os alunos no meio do ginásio, onde os inspetores preferiam não ir, começaram a dançar twerk,* aproximando-se freneticamente uns dos outros sob a
luz errática e pulsante.
Stacy não estava em lugar algum.
Tentando não ser muito observado, ele abriu caminho pelo ginásio procurando por ela, mas se ela estava por ali, também tinha ficado invisível, pois não a via em parte alguma.
Checou o celular e acabou voltando à mesa do ponche.
Nada.
Nada de nada.
Mas ele viu Nicole sozinha no fundo do salão, segurando um copo de plástico.
Ele mal conseguia acreditar que uma garota popular como Nicole não estivesse dançando com alguém, e a única coisa em que conseguiu pensar foi que o cara com quem ela estivesse
devia ter se afastado um instante.
Deixando-a sozinha.
Como Emily também estava.
Antes de morrer.
Por um instante, ele tornou a pensar na margem do lago, nos óculos, no que Ronnie havia lhe contado no outro dia sobre suas suspeitas de que a irmã tinha sido assassinada.
Nicole pareceu ficar um pouco sem jeito quando viu Daniel, mas fez um aceno para cumprimentá-lo. Quando lhe perguntou como estava, ela sorriu de maneira um tanto forçada.
- Bem. Estou bem. E você? Pelo jeito já está se divertindo.
- Eu acabei de chegar - disse ele. A música barulhenta tornava um pouco difícil continuar a conversa, e eles tiveram que se se aproximar um do outro para que pudessem se ouvir.
Ela olhou para além de Daniel, que imaginou se ela estava tentando verificar se ele tinha vindo com alguém. Por um instante, pensou em lhe contar que estava procurando Stacy,
mas decidiu não fazer isso.
Alguns segundos depois, uma das amigas de Nicole se aproximou; então, ele se desculpou e voltou a procurar Stacy.
Dez minutos depois, ainda não a tinha encontrado nem recebido nenhuma mensagem dela.
Quando estava saindo do ginásio para procurá-la na entrada mais uma vez, encontrou Kyle e Mia. Nenhum deles parecia estar apreciando muito a seleção musical do DJ. Quando
Kyle viu que Daniel estava sozinho, ergueu as mãos como se perguntasse "e então?" ao amigo.
Daniel balançou a cabeça negativamente e foi para junto deles.
- Não sei quanto tempo devo esperá-la.
Kyle se virou para Mia.
- Opinião feminina. O que você acha?
- Você quer que eu seja franca ou educada?
- Franca.
- Acho uma sacanagem, e esta é minha maneira de ser franca - disse ela a Daniel. - Deixar você esperando desse jeito? Muita desatenção. Especialmente por não responder suas
mensagens.
- Dê-lhe mais um tempo - sugeriu Kyle. - Depois podemos nos conformar e ir curtir na minha casa.
Embora Daniel fosse realmente muito amigo de Kyle e Mia, às vezes se sentia segurando vela quando os três saíam juntos. Por outro lado, era muito chato ficar no baile sem
uma companhia.
Vá para casa. Se Stacy não aparecer, vá embora. Você não precisa ficar.
A música terminou, e quando o DJ começou uma lenta, Mia pegou Kyle pela mão. Quando estavam indo para a pista, ela disse a Daniel:
- Ei, a gente se vê daqui a pouco.
- Certo.
Daniel seguiu-os com o olhar até o ginásio e viu Nicole sozinha outra vez, desta vez perto da porta do vestiário dos visitantes. Desde que falara com ela, não a tinha visto
dançando com ninguém.
Talvez ela tivesse mesmo vindo sozinha.
Ou talvez seu acompanhante tivesse falhado com ela, como Stacy fizera com ele.
Por alguns segundos, ficou tentado a tirá-la para dançar, mas acabou por achar que isso não pegaria bem se Stacy acabasse aparecendo.
Então, foi ao estacionamento procurá-la e tornar a verificar suas mensagens.
Ainda nada.
A noite tinha ficado fria, e fiapos de neblina saíam do bosque das proximidades.
Seus pensamentos tornaram a voltar para os acontecimentos incomuns e trágicos da última semana, e sua frustração por Stacy não ter aparecido de repente se transformou em preocupação.
E se alguma coisa tivesse acontecido com ela?
Alguma coisa ruim?
Não, isso era ridículo.
Ela estava bem.
Por algum motivo, ela tinha decidido não aparecer.
Tudo bem. Ele era adulto. E podia aceitar isso. Não havia motivo para começar uma paranoia.
Estava começando a enviar uma mensagem a Kyle dizendo-lhe que estava indo para casa quando Nicole saiu de trás do prédio.
Ela juntou as mãos.
- Honestamente, não estou perseguindo você - disse ela. - Eu só queria tomar um pouco de ar puro.
- Você também está esperando alguém?
- Na verdade, Brent Beslim devia ter me encontrado 45 minutos atrás - respondeu ela, balançando a cabeça. - Cretino - acrescentou, provavelmente com uma palavra mais forte
a ser acrescentada, mas preferiu não dizer, para não parecer deselegante.
Daniel conhecia Brent, e se ele deveria estar ali com Nicole, ela não era o tipo de garota com quem ele costumava se envolver. Não era o tipo de cara que Daniel imaginaria
acompanhando Nicole no baile, mas como ontem ela ainda não tinha companhia quando conversaram na escola, Brent, obviamente, não tinha sido sua primeira escolha.
A primeira escolha dela tinha sido você.
- Isso aí - disse ele por fim. - Um cretino.
Daniel sabia que, pessoalmente, ele não teria deixado Nicole esperando se a tivesse convidado para o baile. Não, isso não teria acontecido de jeito nenhum.
Por um instante, ele se lembrou de Emily, de seu velório, do fato de ela ter sido aquele tipo de garota que as pessoas ignoram e...
- Então, eu a conheço? - perguntou Nicole.
- Você a conhece?
- A garota que você está esperando, seu bobo. Vir a uma coisa como esta sozinho não é do seu feitio. Você costuma ser mais discreto. Além disso, você está procurando alguém
desde que chegou aqui.
- Você me conhece muito bem.
- Conheço, sim.
- Stacy.
- Stacy? - disse ela, parecendo um pouco confusa.
- A garota nova.
- Ah.
- Ela ficou de me encontrar aqui.
- É claro.
Ty e seus amigos ainda estavam zanzando por ali. Tinham parado de fumar, mas estavam rindo de alguma coisa entre eles. De vez em quando, um deles olhava para Nicole, sorria
com malícia e sussurrava alguma coisa para o cara a seu lado.
Daniel não gostou do jeito que estavam olhando para ela. Nem um pouco.
Ela recebeu uma mensagem e balançou a cabeça.
- Eu ia para casa, sabe? Mas a Gina ia me dar uma carona e agora ela decidiu ficar - disse ela, suspirando. - Perfeito.
Nicole tinha trabalhado com Daniel num projeto de biologia no ano anterior, e seu grupo de estudo se reunia na casa dela. Não era longe da casa dele.
- Então você está sem carona para voltar - disse ele.
- Só vou ter mais tarde.
Isso significava que Daniel tinha uma escolha a fazer.
Ele podia ficar e esperar Stacy, podia ir para casa ou podia oferecer uma carona a Nicole até a casa dela.
Sim, e se ele fizesse isso, podia imaginar Stacy aparecendo bem na hora em que Nicole estivesse subindo em seu carro. Ah, isso seria brilhante.
Mas Stacy não estava ali, não tinha feito contato o dia inteiro e, obviamente, tinha mudado de ideia em relação ao baile.
E então? Ficar?
Ir embora?
Oferecer uma carona?
Nicole parecia estar esperando que ele dissesse alguma coisa.
Por fim, ele disse.
- Posso deixá-la em casa se você quiser.
- Não, eu vou... bem... - disse ela, titubeando e obviamente reconsiderando. - É sério?
- Não é nenhum incômodo. De qualquer modo, eu já estava indo embora.
- Tudo bem? Quero dizer, como... - Ela interrompeu a frase, mas Daniel entendeu que ela estava pensando que ele poderia encontrar Stacy.
- Não. Tudo bem.
- Na verdade, isso vai ser ótimo. Eu vou avisar a Gina. Volto logo.
Ela voltou para o prédio, Daniel passou uma mensagem para Kyle avisando que estava indo embora e, quando ergueu os olhos do celular, viu que Ty e seus amigos tinham partido.
Alguns minutos depois, Nicole voltou, foi com Daniel até o carro e os dois partiram em direção à casa dela na parte oeste da cidade.
* Estilo de dança em que a maior parte dos movimentos se concentra nos quadris e em agachamentos. O twerk apareceu na mídia com o DJ Jubilee, que gravou em 1993 a música "Do
The Jubilee All" para ser dançada nesse estilo. (N. T.)
24
Quanto mais avançavam com o carro, mais denso se tornava o nevoeiro.
Era como se estivessem passando para outro lugar, um mundo obscuro e inexplorado que lentamente se desdobrava do nada diante deles à medida que nele penetravam.
- Então, sua cabeça está legal? - perguntou Nicole.
Embora gostasse que todos se preocupassem com ele, já estava ficando um pouco cansado das perguntas que faziam sobre seu estado de saúde.
- Minha cabeça é osso duro de roer.
- Nem diga.
- Você não devia concordar com isso.
- Bem, como eu já disse, conheço você muito bem.
- Acho que conhece mesmo.
Mas não era exatamente o que passava por sua mente. Em vez disso, ele estava se perguntando se sua cabeça estava realmente bem.
Ele teve vontade de dizer a ela: "Sabe, quanto mais penso nisso, mais me parece que desmaiei no jogo não por ter batido a cabeça quando fui derrubado, mas por causa do fantasma
de Emily, da mesma forma que aconteceu no velório dela. Então, eu realmente não sei se estou bem de verdade".
Não, provavelmente não seria a melhor coisa do mundo se abrir desse jeito e ser franco com Nicole naquela noite.
Por outro lado, talvez fosse bom conversar com ela, no mínimo porque não tinha certeza quanto ao que lhe aconteceria.
- Eu sei que o vou perguntar não tem nada a ver com nada, mas você acredita em fantasmas? - perguntou ele.
- Fantasmas? Você andou conversando com Mia sobre o livro dela?
- Não, só estava pensando nisso.
- Não sei. Você acredita?
Acho que estou começando a acreditar.
- Não tenho certeza - respondeu ele, lembrando-se do registro no blog que Nicole tinha lido na escola no dia anterior. - Na oração que você escreveu para a aula da Prô, você
mencionou o demônio. Foi para valer? Você acredita nele ou foi simbólico?
- Não, eu acredito.
- Mas não em fantasmas?
- Bem... talvez - disse ela, um pouco pensativa. - Sabe, quando eu estava escrevendo esse trabalho do blog, encontrei essa história na Bíblia, você sabe, sobre um cara chamado
Saul... Ele era rei de Israel. Ele acabou encontrando uma médium e a convenceu a invocar o espírito de um profeta chamado Samuel para que voltasse dos mortos a fim de conversar
com ele.
- E o que aconteceu?
- Funcionou. Samuel apareceu, ou pelo menos o fantasma dele. Não sei exatamente o que foi.
- Mas Samuel estava morto quando apareceu a Saul?
- Estava.
- Então me parece que era o espírito dele.
- É - admitiu ela. - Eu também acho.
- Então, é possível que os mortos se comuniquem com os vivos?
- Nesse caso, foi.
Daniel já tinha ouvido falar de gente que fazia o que Saul fez: tentar consultar os mortos. Por um instante, ficou imaginando se essa seria uma forma de obter respostas.
Mas só por um instante.
Porque, na verdade, a última coisa que ele precisava fazer era pedir que os mortos aparecessem e conversassem com ele. Eles estavam muito bem sozinhos lá onde estavam.
Pelo menos um deles estava.
- E - prosseguiu Nicole - Jesus aparentemente acreditava em espíritos. Duas vezes seus discípulos o confundiram com um fantasma, e ele lhes disse que não era. Na segunda vez
ele provou que não era, deixando que eles lhe tocassem as mãos e o flanco.
- E como isso mostra que ele acreditava em espíritos?
- Bem - prosseguiu ela -, ele disse que um espírito não tem carne nem ossos. Mas se os espíritos não existissem, por que ele diria isso?
- Ah, entendi. Se os espíritos não existissem, ele simplesmente teria dito a seus amigos que elas estavam bancando os idiotas, pois como é que ele podia ser um espírito se
os espíritos sequer eram reais?
- Isso mesmo, em vez de provar a eles que ele não era um fantasma - disse Nicole. - Por que o interesse em demônios e espíritos? - perguntou ela, olhando para ele interrogativamente.
- Eu estava só divagando.
Espíritos. Demônios. Que grande conversa para se ter quando se dirige pela zona rural numa noite coberta de neblina.
Eles estavam apenas a alguns quilômetros da casa de Nicole quando, ao sair de uma curva, Daniel viu alguma coisa à frente deles, no meio da estrada.
A princípio não conseguia distinguir o que era, mas diminuiu a marcha e percebeu que era uma piscina de plástico de criança. Naquele ponto, a estrada descia ligeiramente,
e os faróis revelaram que a piscina estava um pouco amassada num dos lados e parcialmente cheia de uma água escura.
E estava bem no meio da pista.
Daniel parou.
Deixou o carro em ponto morto.
A neblina se espalhava pela noite e, levando em consideração que ele estivera conversando com Nicole apenas alguns minutos antes a respeito do estado de sua cabeça, ocorreu-lhe
um pensamento de que não gostou.
Talvez a piscina não estivesse realmente ali. Talvez ele apenas a estivesse imaginando, e o fantasma de Emily ia se erguer da água e caminhar em direção ao carro.
Ficou aguardando, na esperança de que Nicole dissesse alguma coisa sobre a piscina para provar que a coisa estava lá, pois se não estivesse, isso definitivamente significava
que ele estava perdendo o contato com a realidade.
Daniel ficou estudando o rosto dela à luz fraca que vinha do painel. Ela ainda estava olhando para o meio da estrada. Imaginou que, se não estivesse vendo a piscina, ela provavelmente
estaria olhando para ele, tentando adivinhar por que ele havia parado o carro. Ele entendeu seu olhar intenso através do para-brisa como um bom sinal.
O silêncio prosseguiu até ficar desconfortável.
- Passe do lado dela, Daniel. Vá para a outra pista - disse ela por fim.
Bem, estava tudo certo. Pelo menos ela também estava vendo a coisa.
- Acho que devíamos tirá-la da estrada.
- Deixe-a onde está. Não estou gostando disso.
Ele colocou a mão na maçaneta e sentiu a mão dela sobre seu outro braço.
- Alguma coisa está errada. Ela não pode ter simplesmente caído do caminhão de alguém ou algo assim. Ela não estaria com água.
- Eu sei. Espere aqui. E trave as portas.
Daniel saiu do carro.
A noite fria o envolveu. Algum tipo de coruja que ele não conseguiu identificar piou a distância, e ligeiros ruídos na escuridão sinalizaram que devia ter perturbado algum
animal escondido nas sombras ao longo do acostamento.
Fiapos da lúgubre neblina entrelaçavam-se na noite, esvoaçando sinistramente pela luz dos faróis.
Nenhuma estrela. Nem lua.
Daniel não ouviu as portas travarem e tornou a abrir a porta do motorista. O carro ainda estava ligado.
- Trave as portas, Nicole. Eu já volto.
- Daniel, esqueça isso.
- Confie em mim.
Ele fechou a porta e, um instante depois, ela travou as portas.
A neblina o cercou à medida que avançava.
A piscina era azul e tinha alegres figuras de golfinhos e peixinhos verdes impressas. O lado esquerdo estava amassado e deixava um pouco da água vazar.
Quando ele estava cerca de cinco metros de distância, tornou a ouvir um ligeiro ruído do lado da estrada. Alguma coisa amassando as folhas.
- Olá?
Nenhuma resposta.
Ele se aproximou da piscina e a pegou pela extremidade para tirá-la da estrada. A água tornava a tarefa um pouco difícil, mas quando ele ergueu um dos lados, parte dela foi
para o outro lado, e ele conseguiu arrastá-la pelo asfalto em direção ao acostamento.
Já estava quase lá quando viu a primeira figura sair da escuridão e se colocar junto aos faróis do carro.
Ty Bell.
E como seus três amigos sempre o acompanhavam, Daniel imaginou que ele não estivesse ali sozinho.
25
Embora Ty estivesse contra a luz dos faróis, seu rosto era parcialmente visível e ele lançava um olhar firme e determinado contra Daniel.
- Byers.
Daniel deixou cair a ponta da piscina de plástico.
- Afaste-se do carro, Ty.
Ele ficou medindo Daniel enquanto, um a um, seus três amigos saíam de seus esconderijos ao lado da estrada.
Daniel se lembrou de que um dos rapazes tinha uma picape, em que eles poderiam ter facilmente transportado a piscina.
Eles devem ter ouvido sua conversa com Nicole na escola, oferecendo-se para levá-la para casa.
Mas será que estavam suficientemente perto para ouvi-lo? Há quanto tempo estavam planejando aquilo? Era...
Naquele momento, o mais importante era tirar Nicole dali.
Ty fez um sinal para os amigos, que se aproximaram do carro.
- Afastem-se - ordenou-lhes Daniel.
Mas um dos rapazes tentou abrir a porta do passageiro e disse um palavrão quando verificou que estava trancada.
Daniel avançou em direção a eles.
- Eu disse para se afastarem do carro.
Mas os outros rapazes começaram a andar em torno do carro, tentando todas as portas. Daniel ouviu Nicole chamando-o de dentro do carro.
Tudo bem.
Então seria assim.
Ele correu para Ty, que sacou um canivete automático assim que Daniel avançou.
- Ui, ui, ui. Seja um bom menino. - Enquanto Daniel diminuía a marcha para avaliar a situação, dois dos outros rapazes ficaram de cada lado de Ty, enquanto o terceiro batia
nas janelas do carro, gritando para Nicole abrir as portas.
As mãos de Daniel se crisparam.
- Você não está querendo que aconteça.
Ty olhou para os amigos, que se aproximaram mais dele, e tornou a encarar Daniel.
- Eu acho que é você que não quer que aconteça.
Ainda que fosse suspenso dos jogos na semana seguinte, Daniel ia fazer o que fosse para proteger Nicole, mesmo que tivesse que lutar com os quatro caras.
Tendo jogado futebol há anos, ele sabia como atacar, mas Ty tinha uma faca. Lutar com ele poderia muito bem significar um corte.
Mas se isso era necessário para manter Nicole a salvo, ele o faria.
Daniel percebeu que, se estivesse sozinho, valeria a pena ter corrido, abandonado o carro e voltado para casa a fim de chamar o pai para que ele viesse buscar o veículo.
Mas não estava sozinho.
A presença de Nicole mudava tudo.
O rapaz que tinha batido nas janelas mergulhou na escuridão e acendeu uma lanterna.
- A-ha! - disse ele um instante depois. Quando voltou, estava segurando uma grande pedra angular. - Isto vai resolver o problema.
E olhou para a janela.
- Ligue o carro. Vá embora! - gritou Daniel para Nicole. - Vá.
Mas ela não fez isso.
Hora de mudar de alvo.
O cara com a pedra parecia representar o maior perigo para Nicole, então Daniel primeiro avançou contra ele.
Enquanto ele levantava a pedra, Daniel atacou-o com força, jogando-o para fora da estrada, para baixo dos arbustos.
De algum modo, o rapaz conseguiu não largar a pedra quando os dois aterrissaram, tentando atingir o oponente com ela, mas Daniel o deteve e a tirou dele.
Quando ia atirá-la no mato, sentiu que dois dos rapazes o agarraram pelas axilas, puxando-o de volta para a estrada. Tentou se virar para o lado, mas eles o estavam segurando
com força e ele não conseguiu se livrar.
Jogaram-no no asfalto.
Rolando para o lado, num instante estava em pé outra vez.
Daniel ergueu a pedra.
- Quem chegar mais perto do carro vai se arrepender. Agora saiam daqui antes que alguém se machuque.
O rapaz que Daniel tinha derrubado estava se levantando e xingando, mas seus olhos estavam fixos na pedra e ele não parecia tão agressivo quanto antes.
Contudo, Ty, que ainda estava segurando a faca, deu dois passos em direção a Daniel, aproximando-se mais dele. A lâmina da faca brilhava ameaçadora à luz dos faróis.
A neblina envolveu os dois como uma fumaça ansiosa.
- Nicole - gritou Daniel. - Vá embora. Agora.
Ela gritou alguma coisa para ele, mas Daniel não entendeu e ela não foi embora.
Ty e Daniel continuavam segurando suas armas. Nenhum dos dois se afastou. Nenhum deles desviou o olhar.
Daniel dobrou o braço para trás.
- Eu consigo lançar uma bola a quase trinta metros. Não vou deixar de acertar você desta distância de três metros.
Uma expressão de desconforto passou pelo rosto de Ty. Ele cerrou os lábios num riso de escárnio.
- Você ouviu falar do que encontraram no caderno de Emily?
Daniel não respondeu.
- As notícias correm.
- Do que você está falando?
Ty balançou a cabeça lentamente.
- Não acredito que você não saiba. Eu estava no lago. Eu vi você lá.
- O quê? Quando? Hoje de manhã?
- Isso mesmo - respondeu ele com zombaria. Então, fez um sinal para que os amigos o seguissem, e os quatro bateram lentamente em retirada para dentro da escuridão cheia de
neblina.
Daniel ficou junto a seu carro até que uma picape que tinha sido empurrada para fora da estrada uns trinta metros adiante teve o motor ligado, e Ty e seus amigos se afastaram
com pressa. Então, pôs a mão na maçaneta do carro e Nicole destravou a porta.
Abrindo a porta, perguntou se ela estava bem. Ela confirmou com um aceno de cabeça, mas sua respiração estava acelerada e entrecortada.
- Você ligou para a polícia?
- Não cheguei a pensar nisso... - disse ela. - Eu estava...
- Tudo bem. Eu já volto - replicou Daniel, rapidamente afastando a piscina para fora da estrada e logo voltando para o carro.
Quando tocou a mão dele, os dedos dela estavam tremendo.
- Tudo bem. Vamos sair daqui, certo? - Ele sentiu os dedos dela se entrelaçarem com os seus. E não se opôs.
Ela tornou a balançar a cabeça.
- Vamos.
Depois de um instante, largou a mão dela, avançou com o carro e dirigiu em silêncio até Nicole perguntar:
- O que foi aquele papo de caderno?
- Em se tratando do Ty...
Mas Daniel ficou imaginando se Ty, de alguma maneira, realmente descobrira o que estava escrito no caderno de Emily.
- O que ele quis dizer com ter visto você no lago? - perguntou Nicole.
- Eu estive lá de manhã. Eu não o vi, mas havia dois carros no estacionamento quando voltamos. Eu não os reconheci, mas ele deve ter estado lá nos observando de algum modo.
- Nós?
Ele hesitou.
- Stacy estava lá comigo.
- Ah, claro - disse ela com suavidade. - Isso faz sentido.
- Ouça, eu não estou...
- Não se preocupe, não, não. Eu entendi. Sério mesmo, eu entendi.
Ele quis lhe explicar tudo, que tinha convidado Stacy para o baile, mas ela lhe dera o cano e nem lhe mandou uma mensagem para avisá-lo que não ia, mas não conseguiu encontrar
as palavras certas.
Alguns minutos depois, chegaram à casa de Nicole; Daniel esperou até ela ter entrado em segurança e passado uma mensagem dizendo que as portas estavam trancadas. Só depois
se afastou do local para voltar para casa, sempre pensando no que exatamente poderia estar escrito no caderno de Emily.
E por que Ty também tinha estado no lago de manhã?
26
Em casa, o pai de Daniel estava sentado no sofá da sala. A televisão instalada na parede do fundo da sala mostrava o noticiário da CNN. O pai lhe perguntou como tinha sido
o baile.
- Foi bom.
- Você chegou um pouco cedo.
- As coisas aconteceram mais cedo do que eu esperava.
- Mas você se divertiu com essa nova garota, a Stacy?
Daniel não conseguiu pensar em nenhum motivo para esconder a verdade do pai.
- Na verdade, ela não apareceu.
- Oh, sinto muito em ouvir isso.
Eu também.
Acho.
- Tudo bem.
Daniel decidiu não contar nada sobre o fato de ter levado Nicole para casa ou o confronto com Ty e seus amigos.
- Então, você teve alguma notícia do laboratório do FBI?
- Isso depende de quantos testes eles estão fazendo. Eu lhes disse para darem prioridade para o meu caso, mas acho que não vou ter nenhuma notícia pelo menos até o meio da
semana.
Pergunte a ele. Que mal pode haver nisso?
- Ei, você ouviu alguma coisa sobre o caderno da Emily? O que estava na escola, no armário dela?
Então, o pai abaixou a televisão e deu toda atenção a Daniel.
- Não sei nada sobre esse caderno.
- Tudo bem.
Daniel avançou em direção à escada, mas o pai o chamou.
- Espere um instante.
Quando se virou para encará-lo, viu que o rosto do pai tinha uma expressão séria.
- O que está acontecendo?
- O que você quer dizer com isso?
- Todo esse interesse por Emily e pela morte dela.
Ela está aparecendo para mim...
- Eu só... Ela sabia nadar.
- Ela sabia nadar?
- Sabia. Eu conversei com o irmão dela na escola um dia desses. Ele me contou.
- O irmão dela lhe contou.
- Sim. Tudo indica que ela não se afogou por acidente.
Seu pai deu um suspiro profundo.
- Ouça, não quero mais que você fique xeretando esse caso.
- Eu não estou xeretando.
- Ah, está sim - disse o pai, inclinando-se para frente. - Quero que você me prometa que não vai mais fazer isso.
- Pai, eu...
- Prometa.
Daniel ficou quieto.
- Daniel?
Ele se lembrou das palavras que ouviu quando estava despertando no campo de futebol na noite anterior. Concentre-se nisso. Busque a verdade. Descubra o que aconteceu.
- Ok - disse ele por fim. - Eu prometo.
- Tudo bem. Muito bom. Boa noite.
- Boa noite.
Enquanto ia para o quarto, Daniel se repreendeu por ter mentido ao pai.
Não, ele não podia esquecer tudo, não enquanto Emily - o espírito dela ou fosse lá o que fosse - continuasse a lhe aparecer. De alguma maneira, ele tinha que fazer isso parar.
E agora, aparentemente, precisava fazer isso de modo que não chamasse a atenção do pai.
27
Daniel preparou-se para dormir.
Quem poderia saber o que estava escrito naquele caderno?
Ty sabia, ou pelo menos Daniel achava que ele sabia.
Outra pessoa lhe veio à mente: Ronnie, o irmão gêmeo de Emily, o rapaz que Ty e seus amigos tinham trancado no armário no outro dia na escola. Ele provavelmente sabia.
Daniel não tinha o número do celular de Ronnie, mas encontrou sua página no Facebook, clicou no ícone de mensagens e ficou olhando para o retângulo em branco que surgiu na
tela. Tudo o que tinha a fazer era deixar uma pergunta para Ronnie e poderia desvendar aquilo, finalmente conseguir algumas respostas, por fim entender o que estava acontecendo.
Enquanto tentava decidir o que escrever, seu telefone indicou a chegada de uma mensagem.
Ele observou a tela.
Kyle. Ele tinha alguma coisa para conversar com Daniel e lhe perguntou se podiam se encontrar no dia seguinte. Que tal almoçar no Rizzo's?
Marcaram para o meio-dia.
Embora não houvesse nenhuma notificação na tela do telefone, Daniel tornou a verificar se havia alguma mensagem de Stacy.
Não. Nada.
Tudo bem. Aquele relacionamento parecia ter terminado antes de sequer ter começado. Se ele não tivesse notícia dela no dia seguinte, tentaria descobrir o que estava acontecendo
quando a visse na escola na segunda-feira, mas, francamente, essa era uma conversa que não estava ansioso por ter.
Seus pensamentos voltaram para Nicole, àqueles breves momentos em que ela lhe segurara a mão depois que Ty e seus amigos foram embora.
Nicole.
Stacy.
Ele começava a se sentir preso no meio de alguma coisa que acabaria por ferir alguém, fosse qual fosse o desenlace, e ele não gostava nem um pouco dessa possiblidade.
Voltando para a caixa de mensagens na página de Ronnie Jackson, tentou decidir o que fazer, se devia ou não entrar em contato com ele.
Enquanto avaliava as coisas, reviu o que sabia.
No velório, Emily lhe dissera que Trevor estava no carro, mas que ele não deveria estar lá. Mais tarde, soube que Trevor era o cachorro dela. Mas como essa informação tinha
aparecido no artigo do jornal, era algo de que ele podia ter tomado conhecimento, pelo menos inconscientemente, antes do velório.
Ela lhe pedira que encontrasse seus óculos, que ele acabou por localizar perto do local onde ela morrera.
Quebrados. Longe da água.
Ela sabia nadar.
Levantando do caixão, ela lhe agarrara o braço e nele deixara uma marca. Nicole tinha razão ao afirmar que os fantasmas não tinham nem carne nem ossos, que não se podia tocá-los,
que não era provável que ele tivesse visto um deles.
Mas se não foi isso, o que teria sido?
A dica seguinte, se é o que essas aparições realmente continham, foi a corrente de Emily. Claro, ela a estava usando em algumas fotos, mas por que a teria mostrado a ele no
dia do jogo? Ela estava tentando lhe dizer alguma coisa?
E se estivesse, o que seria?
Era como se fossem todas as coisas de que ele conscientemente não se lembrava, mas depois percebeu que estavam alojadas em alguma parte de seu cérebro, como aquelas lembranças
da cozinha de sua avó.
E ainda havia o caderno e o comentário de Ty no outro dia sobre Kyle e Emily.
Francamente, Daniel não tinha a mínima ideia de como tudo isso se encaixava, exceto que, como cada vez mais parecia, Emily não tinha morrido acidentalmente.
Além disso, parecia que ela estava querendo alguma coisa dele, e ele pressentia que era muito mais que apenas encontrar seus óculos na beira do lago.
Sim, ele havia prometido ao pai que pararia de investigar o caso, mas como podia fazer isso, como deixar tudo de lado, quando havia tantas coisas estranhas acontecendo, tantas
coincidências que não poderiam ser coincidências?
Por fim, decidiu que precisava ir em frente e dar um passo específico para resolver as coisas, mesmo que fosse um pequeno passo.
Daniel deslizou o cursor para a caixa de mensagens na página de Ronnie e digitou: "Tenho uma pergunta a lhe fazer. Mande-me uma mensagem de texto amanhã". Deixando seu nome
e número, enviou a mensagem.
Na manhã seguinte, passou algum tempo revisando todas as coisas, depois se encontrou com Kyle para almoçar e descobrir o que estava acontecendo.
Felizmente, também teve notícias de Ronnie e Stacy.
E pôde começar a entender as coisas que estavam acontecendo, as coisas que pareciam estar irrompendo pelo tecido de sua sanidade.
O tecido de sua sanidade?
Outra frase que soava como alguma coisa da autoria de Kyle, e não de Daniel.
Como aquela sobre os abutres bicando seus sonhos.
Ele precisava saber lidar com a situação.
Precisava mesmo.
Antes que o tecido se rompesse inteiramente.
28
Daniel sonhou com morte.
Ele sabia que estava só sonhando, que não era real, mas isso não tornava o sonho menos aterrorizante. Quando se está acordado, pode-se fechar os olhos para os horrores da
vida; pode-se virar o rosto, correr, esconder-se, mudar de canal.
Mas não quando se está dormindo.
Mesmo sabendo que estamos dormindo, ficamos à mercê de nossos sonhos. Quem está dormindo simplesmente não pode decidir acordar. Os pesadelos não nos deixam com facilidade.
Eles nos mantêm em suas garras até decidirem, a seu bel-prazer, nos deixar partir.
Assim é.
O sonho.
É hora do pôr do sol, e ele está entrando no estacionamento do lago. A água escurecida pelo óleo é margeada por pinheiros, o céu está riscado com as cores escuras e embotadas
do dia que morre.
É só quando sai do carro que percebe que não está sozinho. É um sonho, e os sonhos funcionam segundo suas próprias regras; assim, ele não está surpreso. Uma garota que não
tinha notado antes está no carro com ele, e agora ela desce para se juntar a ele.
Emily.
Mas ela não se parece com a garota que viu algumas vezes no mundo desperto. Agora seu cabelo está penteado, limpo e livre das algas do fundo do lago. Sua pele está com uma
cor normal, e não mais de um azul acinzentado. Seu pescoço não está inchado. Seus olhos não estão vitrificados e pálidos, da cor lavada da morte.
Ela está usando sua corrente, a que tem um pingente no formado de coração. E está usando seus óculos.
Ele ouve um som abafado vindo do carro e nota que o cachorro dela agora está lá, no banco de trás. Talvez já estivesse lá, talvez só tenha aparecido agora, é impossível dizer.
Ela quer levar Trevor consigo, mas ele a convence a deixá-lo no carro.
- Não vamos demorar - ele diz a ela. - Se o levarmos, ele vai fugir.
- Ele vai ser bonzinho - ela protesta. - Ele não vai fugir.
- Não vamos demorar.
Eles deixam a janela aberta, trancam as portas e caminham juntos em direção à praia perto do sopé de Windy Point.
Tudo vai bem até chegarem à faixa de areia da enseada. Então, começam a discutir.
Trata-se de um sonho que não tem que fazer sentido: eles discutem a respeito de alguma coisa boba, não fica claro do que se trata. Alguma coisa que aconteceu na escola. Alguma
coisa a ver com o armário.
Eles estão perto do bosque, perto da fogueira. Ele segura o braço dela. Ela tenta se livrar, lutar com ele, se desvencilhar, mas ele é mais forte e a arrasta até a água. Ela
grita, mas estão longe de qualquer casa. Ninguém consegue ouvi-la.
Ele afunda a mão no cabelo dela e empurra-lhe a cabeça para frente, mantendo-a sob a água.
Ela se debate.
Sim.
E tenta se desvencilhar, tenta erguer a boca até a superfície, mas logo sua luta cessa e ela fica inerte nas mãos dele.
Ele a larga, com o coração acelerado pelo medo e a horrível consciência do que acaba de fazer. Afasta-se e tenta apagar os vestígios da luta entre eles, arrastando o pé pela
areia para apagar as marcas produzidas quando a arrastou até a água.
Na areia, vê algo reluzir ao luar, pois agora é noite, e se trata de um sonho, de algum modo faz sentido que tenha anoitecido.
Sabendo que é um sonho, tenta acordar. Ele diz a si mesmo que não, nada daquilo é real e se dispõe a abrir os olhos, mas o pesadelo o sufoca de maneira mais forte e não vai
libertá-lo.
Apanha o pequeno pedaço arredondado de vidro e procura a armação, mas não consegue encontrá-la no escuro. Mesmo usando o celular como lanterna, não consegue vê-la e, por fim,
desiste da busca.
Ele abre a correntinha do pescoço dela, a retira e a coloca no bolso e, então, empurra o corpo mais para o fundo, para onde as correntes o levarão para longe.
Ninguém nunca descobrirá. Ninguém saberá.
Ninguém.
Nunca.
Saberá.
***
Daniel acorda tremendo e olhando para o teto.
Nessa manhã não foi como de costume: uma lenta transição do mundo dos sonhos, as imagens se diluindo uma a uma no reino obscuro de seu inconsciente.
Não, dessa vez ele acordou completamente e de repente. E as imagens não se diluíram, mas permaneceram fortes e vívidas em sua mente.
Trevor.
O lago.
Emily Jackson.
E embora tenha sido apavorante sonhar com ela desse jeito, ele se sentiu compelido a descobrir mais, a ver o que aconteceria em seguida.
Tornou a fechar os olhos e tentou voltar ao sonho para ver como ele prosseguiria.
Mas foi como tentar penetrar nos pensamentos de outra pessoa: tudo era indecifravelmente emaranhado e desfigurado, e ele não conseguia reentrar na história.
Por fim, desistiu e abriu os olhos.
E pensou no sonho.
Ele tinha visto os acontecimentos daquela noite através dos olhos da pessoa que a matara. Uma versão aterrorizante do que poderia ter acontecido. Uma explicação para os óculos
quebrados, a lente desaparecida, as palavras que Emily tinha lhe dito no velório sobre Trevor ficar no carro. A maneira como ela devia ter morrido.
Mas ela podia apenas ter caído na água.
Ou pulado. Ou ter sido empurrada.
Ou podia ter acontecido exatamente como Daniel havia sonhado, enquanto sua mente tentava dar sentido a tudo o que estava acontecendo.
Tudo parecera terrivelmente real.
Mas essa é a natureza dos pesadelos. Às vezes, a gente acha que está acordado quando eles acontecem. Às vezes, a gente sabe que está dormindo e só quer acordar, mas quando
a gente está tendo um pesadelo, parece que tudo está realmente acontecendo.
Como as visões que você tem tido.
Por algum motivo, ele tinha visto Emily viva outra vez. E seu cachorro Trevor estava no carro. Era como se sua mente estivesse percorrendo os fatos e preenchendo os detalhes
que ninguém saberia a menos que estivesse lá.
Contudo, era horripilante descobrir que a garota morta que o estava assombrando durante o dia agora começava a persegui-lo em seus sonhos à noite.
Quando finalmente se levantou, já passava das nove.
Seu pai normalmente passava os domingos fora, mas isso não acontecera nesse fim de semana, e quando Daniel foi até a cozinha, encontrou um bilhete lhe dizendo que o pai estaria
de volta às quatro, que havia suco de laranja na geladeira e que ele o amava.
Daniel estava processando o sonho enquanto despejava leite nos cereais, quando recebeu um telefonema.
Era de alguém de quem ele não tinha notícias há mais de um mês.
Sua mãe.
29
-Daniel? Como vai?
- Bem. - Receber um telefonema da mãe era algo inusitado, mas a essa hora de uma manhã de domingo era ainda mais estranho. Era difícil pensar no que dizer.
- Seu pai me contou que você tem tido dores de cabeça. Que você chegou a desmaiar na igreja, durante o velório. E também durante o jogo na sexta-feira à noite. Que você bateu
a cabeça tão forte que apagou.
- Eu estou bem, mãe. Não se...
- Mas tudo isso é verdade?
- Eu apaguei por alguns instantes no jogo. Só isso. Não é uma coisa tão grave. E no velório foi uma coisa passageira. Eu não sei. As dores de cabeça se foram. Agora eu estou
bem.
- Seu pai disse que levaram você para o pronto-socorro depois do jogo.
- É o que eles sempre fazem quando isso acontece com alguém - disse ele, percebendo que a frase "que toma uma pancada" poderia preocupá-la ainda mais, então a omitiu. - Eles
me examinaram e não encontraram nada de errado.
Ele se serviu de suco de laranja, colocando a jarra de volta na geladeira.
- Eu quero que você vá a um médico.
- Eu já lhe disse, mãe. Estou bem.
- Conversei com seu pai a respeito disso. Ele concorda comigo.
Seu pai não tinha mencionado nada disso a ele, e pareceu que se tratava de algo sobre o qual ele devia ter sido informado.
- Estou pensando em ir até aí. Para uma visita.
- O quê? Vir até aqui?
- Sim.
- Quando?
- No próximo fim de semana. Assim, talvez eu possa vê-lo no jogo de sexta-feira à noite.
Ele deu um pulo da mesa.
- Você conversou com o pai sobre isso? Sobre vir aqui?
- Ainda não. Eu queria primeiro falar com você, ver se você concordaria.
- Você quer vir para o meu jogo?
- Quero.
Era a primeira vez no ano que ela expressava seu interesse por assistir a um de seus jogos.
- Você está perguntando se eu concordo com que você venha para o jogo de sexta-feira à noite?
- É o que eu estava pensando - disse ela, soando um pouco surpresa por ele a estar pressionando. - É isso mesmo.
- E você quer que eu seja franco?
Uma pequena pausa.
- Isso soa como uma negativa.
- É uma negativa.
- Você não quer me ver?
- Não foi isso que eu disse.
- Então, o que você...
- Eu só quero que você venha se for em definitivo.
- Isso não é possível, Daniel. Seu pai e eu, bem, nós...
- Meu pai e você o quê? O que é? Já faz seis meses e você ainda não me contou por que foi embora.
- É complicado.
- Não, não é. Você se casou com ele. Vocês tiveram um filho. Então, um dia você foi embora e os abandonou. Que parte disso tudo é complicada? O que foi que eu não entendi?
- Não é hora de falar disso. - E ele percebeu certa irritação na resposta.
- Já faz seis meses. Quando é que você vai se explicar? Só estou perguntando porque quero me certificar de que vou estar pronto quando o grande dia chegar.
- Seu pai e eu tivemos nossos motivos para nos separar. Quando chegar a hora certa, eu explico tudo a você.
Pelo que Daniel sabia, seu pai não tinha nenhum motivo para se separar dela. Só ela tinha motivos.
Ele sentiu os dedos apertarem o telefone com mais força.
- Quando foi que o papai ligou para você? Quero dizer, a respeito do médico.
- Sexta-feira à noite.
- Ele ligou para você na sexta à noite e você esperou até agora para falar comigo? - Daniel sequer tentou suavizar o tom de suas palavras.
- Não fale assim comigo, Dan. Eu...
Ele desligou.
E ficou olhando para o telefone, esperando para ver se ela ligaria de novo.
Ela não ligou.
Ele contou os segundos.
Um minuto se passou.
Ainda nada.
Ele não tinha certeza se estava ou não decepcionado.
Quando olhou para a tigela de cereais em cima da mesa, percebeu que tinha perdido o apetite.
Afastando a cadeira, jogou o cereal na pia e, embora fossem apenas flocos umedecidos, não precisava ter feito isso; então, ligou o triturador de lixo e ficou ouvindo as lâminas
barulhentas trabalhando enquanto tomava café.
As lâminas jogavam pedacinhos de cereal e gotas de leite para cima, que ele fez descer pelo ralo.
Ele tinha que encontrar Kyle só ao meio-dia, e não estava com vontade de fazer serviço doméstico nesse intervalo; então, foi para a internet em busca de informações sobre
as alucinações. Pelo menos, era uma forma de distrair a mente da conversa com a mãe e o fato de ela querer que ele consultasse um médico.
Uma coisa em relação à qual seu pai concordava com ela.
Daniel ficou pesquisando nos sites sobre alucinações: os diferentes tipos, suas causas e estratégias de tratamento. Ele imprimiu alguns artigos, escaneou outros e tomou nota
do que leu.
Evidentemente, às vezes as pessoas viam coisas, outras vezes ouviam vozes conversando com elas e, ainda outras vezes, também sentiam coisas que não existiam, particularmente
a sensação de que tinham insetos percorrendo seus corpos.
Isso, pelo menos, não acontecia com ele.
Ainda.
Só marcas doloridas no braço.
Mas isso seria só uma alucinação? Ele realmente tinha sentido Emily agarrando-lhe o braço, tinha prova inegável disso quando foi para a cama naquela noite e acordou na manhã
seguinte.
Ver. Ouvir. Sentir.
As três coisas ocorreram.
O que mais lhe chamava a atenção não eram os tipos de alucinações, mas a causa delas. Alguma coisa o estava afetando, alguma coisa estava errada com ele, e quando leu a respeito
dos motivos de as pessoas terem alucinações, nenhum deles parecia muito lógico.
Tudo está só na cabeça da gente.
Não.
Deixe de fora esse só.
Estava também no corpo dele.
Os primeiros artigos que encontrou listavam o que pareciam motivos suficientemente óbvios: álcool e drogas. Metanfetamina, cocaína, crack, LSD, ecstasy - qualquer alucinógeno,
até a maconha, podia provocar alucinações.
Mas Daniel não usava drogas.
A abstinência delas também podia provocar alucinações. Mas, obviamente, não era o caso dele.
Às vezes, o limite entre realidade e fantasia fica impreciso quando se está pegando no sono ou despertando; elas são chamadas de alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas.
Era como aquele obscuro estado mental que os cientistas não compreendem inteiramente, mas que pode fazer com que as pessoas acreditem estar vendo coisas que não existem de
verdade.
Isso poderia explicar o estranho sonho que ele tivera essa manhã, mas nas vezes em que vira Emily estava longe de sequer sentir sono. Na verdade, na segunda vez foi exatamente
o oposto: ele estava no meio de uma jogada de uma partida de futebol.
Às vezes, as alucinações são causadas por traumatismo craniano, embora, além de algumas entradas pesadas no campo nesses anos todos, não conseguisse pensar em nenhum traumatismo
que lhe tivesse acontecido.
Convulsões às vezes causam alucinações. E também a enxaqueca.
Então, as dores de cabeça poderiam ser a causa, mas não eram do feitio de enxaquecas, e as coisas detalhadas e elaboradas que ele via e ouvia não aconteceriam devido apenas
a uma enxaqueca ou mesmo uma pequena convulsão.
O estresse, a exaustão, às vezes a falta de sono também podem fazer com que as pessoas não sejam capazes de distinguir entre o sonho e a realidade.
Ele esperava que fosse isso.
Mas isso não explicava as marcas em seu braço.
Talvez fosse um tumor no cérebro, particularmente no lobo temporal. Aparentemente, existem partes do cérebro que processam o sentido da visão e da audição. Se forem pressionadas
ou receberem impulsos que não devem, é possível que a pessoa acabe por ver ou ouvir coisas.
Um dos sites que Daniel consultou contava como alguns cientistas pesquisaram pessoas durante cirurgias, fazendo-as rir, ouvir vozes que não eram reais e ver coisas, apenas
estimulando partes de seus cérebros com suaves correntes elétricas.
Uma doença no cérebro poderia explicar suas dores de cabeça.
Não havia restado muitas possibilidades.
Exceto a principal: esquizofrenia.
Ficando louco lentamente.
Embora as dores de cabeça normalmente não fossem um precursor da esquizofrenia, ele tinha a idade apropriada e outros sintomas, ou fosse lá o que fosse: alucinações visuais
e auditivas, pensamento desorganizado, ilusões...
Então. Esquizofrenia.
Ou talvez um tumor no cérebro.
Duas possibilidades realmente impressionantes.
Quando recebeu uma mensagem de Kyle perguntando-lhe onde estava, Daniel percebeu que já passavam quinze minutos do meio-dia e ele estava atrasado para o almoço com o amigo.
Na noite anterior, Kyle havia passado uma mensagem dizendo que precisava lhe contar uma coisa.
Daniel respondeu que estava a caminho e foi para o restaurante.
30
O Rizzo's tinha uma falsa aparência italiana, com toalhas xadrezes nas mesas, música italiana de fundo, gravuras do interior da Sicília nas paredes. Perto de uma delas, havia
uma nota de um dólar emoldurada que, aparentemente, fora a primeira a ser ganha por Rizzo em 1989, quando ele abriu o restaurante.
Se Rizzo não era italiano, com certeza se encaixava no estereótipo: ossos grandes, cabelos negros, um vasto bigode, gesticulação ao falar. Ele era perito na manipulação de
massas, e parte da experiência de comer em seu restaurante era observá-lo girar e controlar os discos de pizza.
O cheiro de massa fresca no interior do restaurante era incrível e quase valia o preço de uma pizza.
Daniel e Kyle pediram uma extragrande de pepperoni e foram pegar bebidas na máquina de refrigerantes.
- Você já pensou em Dakota do Norte? - perguntou Kyle.
- Dakota do Norte?
- Rizzo. Ele é de lá.
- Mesmo?
- Isso aí. Não sei por que isso me surpreendeu, mas a maioria dos estados tem alguma coisa que os torna famosos. Até Dakota do Sul tem o Monte Rushmore. Acho que a Dakota
do Norte é o último estado que não é único.
- Isso não o tornaria único?
- É. É verdade. Então talvez o lema deles deva ser: "A única coisa que nos distingue é o fato de sermos indescritíveis".
- O pessoal de Dakota do Norte não gostaria de ouvir você dizer isso.
- Eles são gente boa. Não vão ficar zangados - disse Kyle. - Além disso, eles podem se orgulhar de ser o local de origem de Rizzo, o mais famoso pizzaiolo do mundo, pelo menos
num raio de 16 quilômetros de seu restaurante.
Sentaram-se no fundo do restaurante.
- Bem, oficialmente faz uma semana - disse Kyle solenemente, pousando sua Pepsi.
- Que o corpo de Emily foi encontrado.
- Isso aí.
- Por um lado, parece que faz muito mais tempo e, por outro lado, parece que acabou de acontecer.
- Eu sei o que você quer dizer - disse Kyle, engolindo um pouco de refrigerante. - É estranho.
- Grão a grão.
- O quê?
- Foi o que você escreveu no outro dia para a aula da Srta. Flynn sobre como, grão a grão, a areia vai desgastando nosso momento.
- Erodindo as frágeis encostas de nossos dias - disse Kyle pensativamente. Então, citou o resto de seu poema palavra por palavra: - "E eu fico imaginando, enquanto minha vertente
desmorona, quem poderá deter a ação do tempo e oferecer à minha vida mais um momento de glória". Foi o que escrevi.
- Cara, você tem boa memória.
- Bem, você é bom com números, e eu sou bom com as palavras. Especialmente com as frases que invento - observou Kyle. Daniel decidiu que, antes de perguntar ao amigo sobre
o que ele precisava conversar, devia lhe contar o que havia acontecido na noite anterior.
- Ouça, na noite passada eu acabei levando Nicole para casa. No caminho, Ty e seus amigos tentaram nos atacar.
- O que você quer dizer com "tentaram nos atacar"?
- Eles puseram uma coisa no meio da estrada. Quando parei para retirá-la, eles saíram de onde estavam escondidos. Um deles pegou uma pedra. Acho que ia tentar quebrar o vidro
do carro, talvez para pegar Nicole.
- Isso é loucura. O que você fez?
- Tirei a pedra do cara. Ty tinha uma faca. Achei que ele fosse me atacar, mas no final acabou retrocedendo.
- Aposto que Nicole ficou apavorada.
- Ela se assustou, mas deve estar bem. Mas antes de eles irem embora, Ty disse alguma coisa sobre o caderno da Emily, sobre o que havia nele. Você ouviu falar disso?
- Eu não - disse Kyle, balançando a cabeça. - Ele disse o que era?
- Não. Fico imaginando por que ele se referiu ao caderno. Além disso, parece que ele esteve no lago Algonquin ontem de manhã quando eu estava lá com a Stacy. Ele disse que
me viu no lago.
- Duvido que ele tenha ido lá pescar.
- O que você quer dizer com isso?
- Você o conhece. Ele não é exatamente do tipo que gosta de atividades ao ar livre.
- O que você acha que ele foi fazer lá?
- Beber, passear. Sei lá.
- Àquela hora do dia?
- E por que você foi lá? - perguntou ele, dando de ombros.
- Acho que para... - Ele não queria mencionar as alucinações. - Bem, processar o que tem acontecido. Achei que pudesse encontrar algumas respostas.
- Talvez ele estivesse lá pelo mesmo motivo.
Daniel não soube o que dizer.
Ficaram quietos por algum tempo, com Daniel tentando definir mentalmente o que havia acontecido na noite anterior: Stacy que não apareceu, Nicole que o encontrou fora da escola,
Ty e seus amigos que ficaram esperando por eles ao lado da estrada.
- Em que você está pensando? - perguntou Kyle.
- Bem, por um lado, estou pensando que não tenho ideia do que vou dizer a Stacy quando a encontrar na escola amanhã. Quero dizer, ela se convida para ir ao lago comigo e,
quando eu a convido para o baile, ela aceita, me diz para lhe telefonar, mas acaba por não responder o telefone ou aparecer. Ela não ligou, não passou nenhuma mensagem. Nada.
Quero dizer, como é que vou lidar com isso?
- Como você quer lidar?
- O que você está querendo dizer?
- Quero dizer se você quer um pedido de desculpa, uma explicação ou o quê? O que ela poderia dizer para deixá-lo contente?
Daniel puxou distraidamente o papel que cobria o canudinho.
- Não sei. Acho que a verdade.
- Às vezes a verdade machuca.
- Às vezes é tudo o que se tem.
- Boa resposta, sensei. Sempre serei seu discípulo.
- Vou me lembrar disso.
A conversa mudou para o que estava acontecendo na escola e os eventos da semana anterior. Kyle ainda não dissera por que lhe passara uma mensagem dizendo que queria se encontrar
com ele hoje, e durante toda a conversa. Daniel ficou pensando no motivo disso.
Também ficou imaginando o quanto deveria contar a Kyle sobre as coisas estranhas que tinha visto, ouvido e sentido - como a realidade tinha se obscurecido até o ponto de ser
difícil dizer o que era ou o que não era real.
O tempo passou, a pizza chegou e eles começaram a almoçar.
Por fim, Daniel percebeu que, se não queria contar a seu melhor amigo parte das coisas que estavam lhe acontecendo, não poderia contar a mais ninguém.
Mesmo assim, a ansiedade o atormentava internamente enquanto ele ficava imaginando a melhor maneira de contar o que devia.
- Oi, ouça, Kyle...
Puxa, ele não queria fazer isso.
- O que foi?
Mas também queria, queria conversar com alguém sobre o que tinha lhe acontecido e o que poderia estar provocando essas alucinações.
- O que foi? - repetiu Kyle, pondo um pedaço de pizza na boca.
Lá vai.
- Eu tenho visto coisas.
- O que você quer dizer com isso? - disse Kyle, engolindo a pizza. - Que tipo de coisas?
- Coisas que não existem.
- Cara, normalmente é isso que as pessoas querem dizer quando afirmam que estão vendo coisas. Fico imaginando que tipo de coisa que não existe você tem visto - disse o amigo,
servindo-se de um dos três pedaços de pizza restantes.
- Fantasmas. Tenho visto fantasmas. Bem, na verdade, um fantasma. O de Emily Jackson.
Kyle parou de comer quando ouviu essas palavras e ficou encarando Daniel.
- Você tem visto o fantasma de Emily Jackson?
- Eu já o vi duas vezes. Uma vez no velório dela, a segunda vez no campo de futebol, um pouco antes de eu ser atingido. É por isso que eu não lancei a bola, porque hesitei
naquele lance. Ou é o fantasma dela ou... eu não sei. Estou tendo alucinações.
Pronto.
Agora.
Não era mais segredo. Ele tinha contado a alguém e, por fim, as coisas mudariam.
Kyle iria ou não acreditar nele, mas, de qualquer modo, as coisas iam ficar diferentes. E, por fim, o segredo não ficaria mais preso dentro de Daniel. Por fim, havia a possibilidade
de ele obter algumas respostas para o que estava acontecendo.
O amigo não disse nada durante um longo tempo, brigando com o pedaço de pizza de que havia se servido. Ele parecia mergulhado em pensamentos.
O fato de ele não responder deixou Daniel ansioso.
- Acho que ela está tentando me dizer alguma coisa, Kyle.
- Emily está morta, Daniel.
- Eu sei, mas...
- Não há nenhum "mas". Ela está morta e fantasmas não existem.
- Você não acredita em fantasmas?
- Não - respondeu Kyle. - Não acredito. Nem em espíritos que voltam, nem em espectros, em nada disso.
- Espíritos que voltam e espectros?
- Diferentes tipos de fantasmas.
- E as histórias que você conta quando vamos acampar durante as viagens e todo esse tipo de coisas?
- Não passam de histórias, como você mesmo disse. Lendas urbanas, coisas contadas ao redor da fogueira, só isso. Você sabe.
- Mas e todas as coisas que as pessoas veem, espíritos, espectros, assombrações? Você acredita mesmo que não passam de produtos da imaginação?
- Só porque as pessoas veem coisas, isso não significa que essas coisas existam. Às vezes nossos olhos nos pregam peças.
- O que está me acontecendo é muito mais do que os meus olhos me pregando peças.
Kyle ficou quieto.
Não havia mesmo muitas explicações possíveis para o que estava acontecendo. Ou ele estava vendo fantasmas ou vendo alguma coisa que não existia.
Ou vendo gente morta ou tendo alucinações.
Que belas opções!
Pessoas normais não têm alucinações. Só as pessoas que estão perdendo o contato com a realidade.
Só gente que está ficando louca.
Kyle cobriu outro pedaço de pizza com pimenta vermelha amassada até a coisa parecer incomível.
- Então me conte tudo. Você está vendo fantasmas, e no jogo você não desmaiou porque foi atingido? É isso que você está dizendo?
- Não sei com certeza. Tudo que posso dizer é que a vi caminhando na minha direção pelo campo.
- Emily.
- Sim.
- Tudo bem - disse Kyle, dando uma mordida em seu pedaço de pizza coberto de pimenta vermelha. Isso teria deixado em fogo a boca da maioria das pessoas. Mas não parecia incomodar
Kyle. - Conte tudo. Dê detalhes.
Daniel contou tudo o que havia antecedido as vezes em que perdeu os sentidos.
Contou o que Emily lhe dissera sobre Trevor e seu pedido de que encontrasse seus óculos; em seguida, contou a Kyle sobre a correntinha e como ela a tirou do pescoço e a segurou
para que ele a visse.
- Não acho que isso vá parar até ela conseguir o que deseja - concluiu Daniel.
- O que é isso? O que ela quer?
- A verdade.
- A verdade do quê? Da morte dela? Do afogamento?
- Sim.
- Como no filme O sexto sentido? Quando os fantasmas ficavam aparecendo? Aquele menino que via gente morta?
- É, acho que sim.
- Por que você?
- Não tenho a mínima ideia.
Daniel queria muito lhe contar sobre os óculos quebrados que ele e Stacy tinham encontrado na margem do lago, mas sabia que não podia.
- Se não existem fantasmas, você está me dizendo que estou tendo alucinações? É isso?
- Talvez. Sim. Eu não sei. Estou só dizendo que não acho que você esteja vendo o fantasma de Emily Jackson.
Daniel se lembrou de sua pesquisa sobre alucinações naquela manhã. Não gostava de pensar na possibilidade de ter algum tipo de tumor no cérebro ou estar ficando louco, então
se ateve ao tópico dos fantasmas.
- Ela agarrou meu braço no velório. No outro dia, havia uma marca no lugar.
- Me mostre.
- Já sumiu. Desapareceu.
- Ok.
Seu amigo ficou olhando um instante para uma das gravuras pendurada na parede e, então, tornou a olhar para Daniel.
- Eu já lhe contei a história da boneca na janela?
- Acho que não.
- Bem, não tenho muita certeza se ela ainda está lá, mas quando nós morávamos em Minnesota, tínhamos que passar por Janesville toda vez que viajávamos. Se você pegar a Autoestrada
15 que passa pela cidade, avançando para o oeste, quando você cruza a rua Principal, existe um velho sobrado do lado direito da rua.
- O que aconteceu? - perguntou Daniel, imaginando aonde isso iria parar. - Alguém foi morto lá?
- Não. Mas se você olhar para a janela do sótão, vai ver uma boneca pendurada nela. Era uma dessas bonecas antigas, feita de madeira, e estava pendurada numa viga, com uma
corda no pescoço.
- Isso é mesmo estranho.
- Sem brincadeira. Bem, há muitas histórias sobre a boneca e por que ela está lá. Algumas pessoas dizem que ela se movimenta; outras dizem que alguém morreu na casa e o lugar
é mal-assombrado. Pelo que eu ouvi, havia uma garota que morava lá, e as outras crianças faziam pouco dela porque ela era o tipo de garota que os adultos chamam de "especial",
e as crianças chamam de outras coisas. Você sabe o que eu quero dizer.
- Claro - disse Daniel tranquilamente.
- De qualquer modo, as outras crianças da cidade eram implacáveis, fazendo pouco dela, dizendo-lhe palavrões etc. A história diz que até quando ela era adolescente levava
aquela boneca para todo lado, o que só fazia com que os outros a ridicularizassem ainda mais. Um dia, a mãe dela a estava procurando, sem encontrá-la em nenhum lugar.
Ele fez uma pausa, como se quisesse enfatizar o tempo em que a mãe da garota a procurou.
- Por fim, ela saiu para procurá-la e, quando foi para a parte de trás da casa, viu a filha pendurada na janela do sótão onde havia se matado, se enforcado numa das vigas.
E dizem que, depois do velório, seus pais pegaram a mesma corda que a filha tinha usado e penduraram a boneca na janela como lembrete constante do que a filha fora levada
a fazer.
Daniel ficou em silêncio.
- Então, no mês passado eu estava fazendo esse trabalho de Assuntos Contemporâneos e achei que poderia tentar descobrir o que realmente tinha acontecido. Encontrei um artigo
de jornal de 1974 que afirmava que, certa vez, anos atrás, o cara que morava na casa estava lendo uma revista National Geographic e viu a foto de uma casa na Pensilvânia que
tinha uma boneca pendurada na janela e disse: "Hum. Não seria legal se nós também pendurássemos uma boneca na janela?", e ele fez isso.
Daniel esperou.
- Só isso?
- Só isso.
- Nada de suicídio? Nenhuma garota ridicularizada? Nada disso?
- Nada. Só um cara lendo uma revista.
Daniel ficou pensando no que ouvira.
- Acho que não entendi. O que quer dizer isso?
- Antes de morrer, meu pai me contou um ditado africano: "Alguma coisa acontece, e uma história surge quando a encontra". Foi o que aconteceu lá em Janesville. Um cara pendurou
uma boneca na janela, e um monte de histórias a descobriram.
- E é isso que você acha que está acontecendo aqui?
- A garota morreu. Emily morreu. É terrível. Começam a correr histórias para explicar sua morte. É normal, sabe? Da mesma forma como as pessoas da escola estão dizendo que
alguma coisa lá em Windy Point pode tê-la empurrado da beirada, um fantasma. Não tenho certeza; não sei o que está rolando. Às vezes não há como fazer sentido de alguma coisa.
Só existem os simples fatos do dia a dia, e apenas isso.
- Então, você não acredita em mim.
- Acredito no que você está me contando, que você viu o que diz que viu, que ouviu a coisa, mas...
- Mas você acha que tudo está na minha cabeça. Então, como explicar o arranhão no meu braço, no formato da mão dela, que ficava queimando minha pele, isso tudo também está
na minha cabeça?
- Você disse que o arranhão sumiu?
- Sim. No dia seguinte. Antes do treino do futebol.
- Uma marca que parece ter sido cravada em seu braço, uma marca do tamanho de uma mão, some em apenas 24 horas.
- Estou lhe dizendo a verdade.
Kyle ficou em silêncio.
- Vamos sair daqui. Preciso pensar nisso tudo.
Ele se levantou e, sem dizer mais nada, agarrou o último pedaço de pizza e foi pagar a conta ao Rizzo, que estava atirando um disco extragrande de massa para o ar.
Kyle mostrou uma nota de vinte dólares.
- Abra a registradora e pegue seu troco - disse-lhes Rizzo em seu forte sotaque italiano, mas agora Daniel notou um ligeiro sotaque de Dakota do Norte.
- Fique com o troco, cara.
- Grazie.
- Foi uma boa gorjeta - disse Daniel quando saíram.
- Era dinheiro da minha mãe.
- Ah.
E foram para seus carros.
- Ouça - disse Kyle -, quando a mente acredita em alguma coisa, ela afeta seu corpo. As pessoas ficam doentes e são curadas por seus pensamentos, placebos, sabe? Usando-os,
soldados no campo de batalha conseguem nem sentir as amputações. E existe aquela coisa estranha sobre a dor fantasma, em que uma pessoa que perdeu um membro ainda sente que
ele dói. Ouvi dizer que elas até sentem o membro que não está mais lá bater nas coisas. É incrível.
- Então, a marca no meu braço apareceu porque eu acreditei que Emily me agarrou?
- Não sei. Acho que sim, ou estou totalmente errado sobre tudo isso, e os fantasmas existem e esse vai assombrar você até conseguir o que deseja, seja lá o que for.
- Às vezes você é um pouco honesto demais.
O celular de Daniel vibrou.
- Às vezes, a verdade é tudo o que temos.
Daniel checou a tela e encontrou uma mensagem de Ronnie Jackson: "Vc pode vir a minha casa às 4 h? Preciso falar c vc".
- De quem é? - perguntou Kyle.
- De Ronnie, o irmão da Emily. Ele quer me encontrar hoje às quatro da tarde. Você também devia vir.
- Ronnie não mandou a mensagem para você?
- Eu pedi que mandasse. Eu queria conversar com ele sobre a Emily.
- Porque você acha que ela foi assassinada.
- Isso mesmo.
- Minha mãe vai mostrar uma casa hoje. Tenho que tomar conta de Michele.
A irmãzinha de 4 anos de Kyle tinha sido uma surpresa para toda a família. Depois que o pai morreu num acidente de carro dois anos atrás, Kyle, sua mãe e Michele ficaram sozinhos.
Muitas vezes a mãe tinha que trabalhar nos fins de semana, e Kyle ajudava a tomar conta de Michelle sempre que preciso. Embora ele às vezes se queixasse disso, Daniel sabia
que, no fundo, ele não se importava, que adorava a irmãzinha e que faria qualquer coisa por ela.
Kyle abriu seu carro com o controle.
- Me conte o que Ronnie disser, e se vir mais alguma coisa, você sabe, algum espectro.
- Espectro. Certo. Ei, na noite passada você me mandou uma mensagem dizendo que tinha algo para conversarmos. Foi esse o motivo para o nosso almoço. O que está havendo?
- Isso pode esperar.
- Não faça isso.
- Tudo bem.
- Conte, Kyle.
- Estou dizendo que...
- Kyle, vá em frente. O que foi?
- Ok, tudo bem. Você precisa saber... - mas não prosseguiu.
- Saber o quê?
- Bem, ouvi dizer que as pessoas estão pondo coisas no túmulo da Emily. Se você acha mesmo que ela foi assassinada, talvez o assassino volte lá, você sabe, como acontece na
televisão, quando eles vão ao velório da vítima ou ao cemitério, deixam coisas no túmulo, levam lembranças, esse tipo de coisa. Fiquei imaginando que você gostaria de ir lá,
dar uma olhada e ver se encontra alguma coisa estranha.
- Você quer dizer alguma coisa que possa me dizer quem é o assassino?
- Que mal vai fazer só dar uma olhada?
Provavelmente nenhum, exceto que Daniel tinha prometido ao pai que ia parar de investigar.
Ah, é por isso que você vai conversar com o irmão de Emily?
O cemitério.
Sim.
Se havia lugar para ver um fantasma, era o cemitério.
- Eu não sei.
- Ouça - disse Kyle, escancarando a porta do carro -, me telefone, me diga como foi com o Ronnie. Podemos falar das coisas do cemitério mais tarde.
Eles se despediram, e Kyle foi embora.
Daniel tinha algumas horas antes de ir à casa dos Jackson, então foi para casa pesquisar sobre assassinos. Não demorou para descobrir que, com frequência, eles realmente voltam
à cena do crime, bem como assistem aos funerais e visitam os túmulos de suas vítimas, exatamente como Kyle havia sugerido.
Tornou a ler sobre as alucinações, especialmente as táteis, tentando descobrir como aquela marca havia aparecido em seu braço e como tinha sarado tão depressa. Contudo, depois
de uma hora, ainda não tinha descoberto nada de útil ou incentivador.
Basicamente, se você começa a ver, ouvir ou mesmo sentir coisas que não existem, quase sempre está acontecendo alguma coisa seriamente errada com você.
Talvez sua mãe e seu pai estivessem certos. Talvez ele devesse consultar um médico, quem sabe um psiquiatra, para descobrir o que estava realmente acontecendo.
Mandou uma mensagem de texto para Ronnie para saber seu endereço e descobriu que ele morava perto do lago Algonquin, provavelmente no mesmo bairro de Stacy.
Daniel saiu de casa pensando em suas suspeitas de que Emily havia sido assassinada, e na possibilidade de que o assassino poderia visitar o túmulo dela e deixar alguma coisa
lá ou levar embora alguma coisa como lembrança.
31
Daniel chegou à casa de Ronnie Jackson um pouco antes das quatro da tarde. Por algum motivo, ele estava nervoso. Embora não quisesse ser inconveniente, percebeu que precisava
ir ao banheiro assim que entrasse na casa.
Depois de estacionar e dirigir-se até a casa, bateu à porta.
Um cachorro latiu dentro da casa.
Trevor.
Alguns segundos depois, ouviu os passos de alguém.
Levou um minuto para essa pessoa abrir a porta, mas finalmente ela se abriu e um homem apareceu.
Daniel reconheceu a pessoa que, no velório, lhe expressara gratidão por ele ter comparecido, que isso significava muito para ele. Pela pesquisa de Daniel na internet sobre
a vida de Emily, ele sabia que se tratava do pai dela.
- Sim? - perguntou o Sr. Jackson, parecendo não reconhecê-lo, apesar de ter falado com ele no velório, mas Daniel suspeitou que ele sequer se lembrasse daquele dia. Trevor,
o golden retriever de Emily, de pelo espesso e impermeável, resfolegava agitando a cauda.
Daniel se apresentou.
- Eu vim visitar o Ronnie. Eu o conheço da escola - disse ele. - Ele pediu para eu vir aqui - acrescentou.
- Bem, o Ronnie e a mãe estão fora no momento - disse hesitante o Sr. Jackson, como se estivesse pensando no que diria em seguida. - Mas eles vão chegar em alguns minutos.
Por favor, entre.
Havia um piano numa das extremidades da sala. Surpreendentemente, não havia uma televisão ali, apenas um sofá listrado de marrom, duas poltronas reclináveis, duas lâmpadas
de chão e uma mesinha de centro com quatro revistas cuidadosamente dispostas no tampo de vidro.
O sofá e as poltronas estavam cobertos de pelos do cachorro. Não devia ser tarefa fácil conservá-los limpos com o Trevor pela casa. Um corredor na outra extremidade da sala
passava pela sala de jantar e ia até a cozinha.
Muito bem, chegamos à parte embaraçosa.
- Hum, posso usar o banheiro?
- Claro. Estamos reformando o daqui de baixo; suba as escadas, segunda porta à direita.
- Obrigado.
Quando Daniel chegou ao topo da escada e viu os adesivos na primeira porta à direita, seu coração quase parou. Uma folha de papel fora colada na porta. Escritas numa floreada
caligrafia de garota, havia três palavras: "Quarto da Emily".
Daniel ficou parado olhando a porta. Uma corrente de imagens e perguntas percorreu-lhe o corpo. O velório, o jogo de futebol, os comentários crípticos de Ty, o horrível sonho
da noite anterior.
E então, vinda de lugar nenhum, ele ouviu uma voz dentro da cabeça: Entre, vá dar uma olhada.
Não, de jeito nenhum ele faria isso.
Mas a voz insistiu: Dê só uma olhada, só isso.
Ele ouviu o Sr. Jackson guardando pratos na cozinha, que ficava longe da escada. De lá, ele não conseguiria ver Daniel entrando no quarto.
Mas, apesar disso, não abriu a porta. Em vez disso, foi para o banheiro.
Contudo, quando chegou lá, não conseguiu aplacar a curiosidade, voltou e empurrou suavemente a porta do quarto de Emily e a abriu.
Só um minuto. Só para ver onde ela costumava ficar.
Então, Daniel entrou no quarto de Emily Jackson.
32
As paredes de tom rosa tinham pôsteres de bandas masculinas, cavalos e gatinhos. Um calendário acima da escrivaninha mostrava os dias cuidadosamente marcados, terminando no
dia anterior ao desaparecimento dela.
Emily não tinha espaço para todos os seus livros. As prateleiras estavam lotadas e havia livros empilhados no chão e até colocados horizontalmente em cima dos que estavam
nas prateleiras.
Ela gostava de literatura fantástica: Tolkien, Rowling, Paolini e outros, e preferia as capas duras às brochuras. As prateleiras pareciam fortes, mas um pouco arqueadas devido
ao peso de grandes volumes.
Sua cama estava meticulosamente arrumada, com uma pilha de animais de pelúcia distribuída sobre ela, junto ao travesseiro.
Havia um pequeno cesto de lixo enfeitado de bolinhas ao lado do guarda-roupa, e as únicas coisas sobre a escrivaninha eram um laptop fechado, um caderno espiral, uma foto
emoldurada dela e Ronnie com o logotipo do Estúdio Ackerman impressa num dos cantos e um porta-lápis com sete itens: um marca-texto, duas lapiseiras, três canetas e um pincel
atômico Sharpie vermelho.
O quarto era arrumadinho. Arrumadinho demais. Do tipo de arrumação que as mães esperam mostrar quando têm visitas.
Ou, talvez, quando estão tentando manter tudo arrumado para preservar a memória da filha.
Daniel ficou imóvel no umbral da porta.
Ele não ia remexer as coisas de Emily, abrir as gavetas da cômoda ou examinar o guarda-roupa. Já se sentia suficientemente estranho por estar olhando o quarto dela, mas havia
uma coisa que quis fazer antes de sair: dar uma olhada no caderno espiral que estava na escrivaninha dela.
Ficou, então, imaginando se esse era o caderno de que as pessoas estavam falando, o que supostamente estava em seu armário da escola, o que Ty mencionara.
Daniel se inclinou para o corredor e ficou ouvindo com atenção. Parecia que o Sr. Jackson ainda estava na cozinha.
Não levaria muito tempo para folhear o caderno e dar uma olhada em seu conteúdo, sair do quarto, ir ao banheiro e descer as escadas.
Por fim, Daniel reassegurou-se de que teria tempo suficiente para examinar o caderno antes que o Sr. Jackson ficasse intrigado por não ouvir a descarga do banheiro e foi até
a escrivaninha.
Quando pegou o caderno, uma folha solta caiu e aterrissou no chão.
Ele se ajoelhou para apanhá-la e viu que estava escrita com a mesma caligrafia que aparecia no cartaz da porta.
Daniel a examinou rapidamente.
É depois do segundo período de aulas. Ao meu redor, as pessoas conversam, riem e tiram salgadinhos das máquinas automáticas.
Fico observando o grupo das alunas populares da escola. Eu as observo, desprezo-as, invejo-as e me odeio por querer ser como elas.
Então, uma das meninas se desloca e deixa uma pequena abertura no círculo; eu vou até lá.
Mas elas não me notam. Só ficam conversando e rindo de maneira indiferente, e eu não sei o que dizer. Não tenho nada para dizer. A conversa prossegue sem mim.
Eu sou invisível para elas.
Toda vez que penso em alguma coisa para dizer, elas já mudaram de assunto.
O restante estava escrito com caneta de outra cor, como se ela tivesse interrompido e depois retomado o que estava escrevendo:
Então, por fim, eu me afasto e o círculo torna a se fechar... como uma ferida que se fecha... e eu vou até a janela, desembrulho meu doce e fico observando os gansos voarem
para o sul, fugindo do inverno.
Enquanto eu como alguma coisa doce.
Perto das máquinas de aço e vidro.
As palavras eram tristes, e Daniel tornou a pensar nos sonhos, na morte e na história que a Srta. Flynn tinha lido na aula de inglês: a história de uma garota que queria ser
estrela de cinema e nunca encontrou coragem para deixar sua cidade natal.
Lembrou-se do que estava pensando na terça-feira quando foi ao velório de Emily: que era o tipo de garota que todos ignoravam na escola, ignorada no almoço, para quem ninguém
nunca tinha tempo.
Até ela morrer. Então, todos os alunos encontraram tempo para ir a seu velório.
Algumas coisas deste mundo são tragicamente irônicas.
Guardou a folha no caderno e começou a folheá-lo.
E se sentiu imediatamente inquieto.
Um nome aparecia dezenas de vezes, escrito nas colunas e nas margens. Um nome com corações desenhados ao redor dele.
O nome de seu melhor amigo.
Kyle Goessel.
33
Daniel ficou olhando para as palavras e continuou a folhear o caderno. Não havia o nome de nenhum outro rapaz nas colunas ao lado das anotações da aula de literatura e das
equações de álgebra, apenas o de Kyle.
Obviamente, Emily tinha uma queda por ele, mas no outro dia Kyle disse que sequer a conhecia.
Mas sabe onde fica o armário dela.
E ele agiu de maneira um pouco estranha quando você lhe perguntou sobre ela.
Além disso, quando foram ao armário em que Ty havia trancado Ronnie, Ty dissera que sabia sobre Kyle e Emily. O que significava tudo isso?
Mas Kyle estava com Mia e não teria enganado a Emily. Ele não era desse tipo. E desde que Daniel o conhecia, ele nunca tinha namorado garotas mais novas, quanto mais as que
tinham dois anos a menos que ele.
Fosse o que fosse, alguma coisa estava acontecendo e constituindo um novo nível de significado, como num quebra-cabeça ou num enigma nos quais o que se vê não é o que se entende,
em que as aparências enganam e as coisas não são exatamente o que parecem ser.
E ele não conseguiu afastar a sensação de que tudo isso não tinha a ver apenas com Emily, mas também com sua morte.
Seu assassinato.
Enquanto Daniel pensava em tudo isso, percebeu que não estava mais ouvindo os sons vindos da cozinha.
Pela janela, o movimento da rua lá embaixo chamou-lhe a atenção.
Um carro se aproximava da casa.
Com rapidez, fechou o caderno e o colocou de volta na escrivaninha, tentando se certificar de que estava na mesma posição em que o encontrara.
No andar de baixo, passos avançavam pelo corredor que levava às escadas.
Daniel correu para fora do quarto, fechando a porta com cuidado. Correu para o banheiro, usou-o rapidamente e deu a descarga. Lavou as mãos.
Quando saiu do banheiro, o pai de Emily estava no topo da escada, como se estivesse vigiando a única saída de Daniel.
- Ele chegou. Ronnie já chegou. Eu lhe disse que você desceria em seguida.
- Obrigado - disse Daniel, tentando ler no rosto do homem se este já sabia o que ele havia feito. Antes de o Sr. Jackson se virar para a escada, seu olhar passou pelo quarto
de Emily. Daniel sentiu o nervosismo percorrendo-lhe o corpo.
O Sr. Jackson ficou observando a porta mais tempo que o necessário, mas acabou por não dizer nada e acompanhou Daniel até a sala.
Daniel suspirou aliviado enquanto descia as escadas atrás do pai de Emily.
Ronnie estava dependurando sua jaqueta perto da porta da frente.
- Oi, Daniel.
- Oi, Ronnie.
- Obrigado por vir.
- Não por isso.
A Sra. Jackson apareceu no umbral da porta, apresentou-se e apertou a mão de Daniel. Ela olhava para ele com curiosidade.
- Então, você conhece Ronnie da escola?
- Ele é o quarterback do time - disse-lhe Ronnie. - Do time de futebol.
- O filho do xerife Byers?
- Isso mesmo - disse Daniel, balançando a cabeça.
- Não foi você que desmaiou no velório da Emily?
Ele não esperava a pergunta, uma pergunta que não se sentia muito motivado a responder.
- Eu fiquei tonto. Sinto muito. Eu...
- Seria melhor se você fosse embora - disse ela, interrompendo-o
- Mãe - objetou Ronnie. - Está tudo bem.
Daniel não teve certeza se ela queria que ele se fosse por ser o rapaz que havia desmaiado no velório de Emily, a menos que ela achasse que seu desmaio tinha interrompido
seriamente a cerimônia ou porque ele estivesse brincando.
- Querida - disse-lhe o Sr. Jackson -, deixe o Ronnie e seu amigo conversarem, eles estão só...
Ela o olhou de maneira severa e, então, virou-se e foi para o outro cômodo. Daniel sequer podia imaginar o que aquela família estava passando no momento, e quaisquer que fossem
os motivos da Sra. Jackson, ele não ficaria se isso fosse o desejo dela.
- Tudo bem - disse ele a Ronnie e ao pai dele. - Acho melhor eu ir embora.
- Mas você acabou de chegar - objetou Ronnie.
Daniel queria conversar com Ronnie, mas não queria perturbar a família.
- Podemos nos encontrar amanhã na escola. Certo?
O Sr. Jackson olhava para o cômodo em que a mulher se refugiara. E parecia determinado quando foi ao encontro dela, deixando Ronnie e Daniel sozinhos.
- Posso conversar com você no seu carro? - perguntou Ronnie.
- Claro. Vamos lá.
- Meus pais, você sabe. Minha mãe, ela acabou de... - disse Ronnie quando saíam da casa.
- Eu sei. Entendi. Não se preocupe com isso.
Daniel lembrou-se da foto que Emily havia tirado dela com Trevor em Windy Point.
- Ei, eu li no jornal que Emily saiu de casa para dar uma volta no lago. Ela fazia isso com frequência?
- Não muita, mas acontecia. Ela deixou um bilhete dizendo que ia levar o Trevor para um passeio antes de, bem... você sabe.
Daniel pensou em Emily lhe dizendo que Trevor estava no carro. Quis perguntar a Ronnie sobre isso, mas não encontrou um modo de fazê-lo sem que parecesse estranho. Afinal,
como é que poderia saber sobre o cachorro estar no carro, se é que isso era verdade?
Então, desviou a conversa para outra direção.
- Você sabe como era o pingente que estava na correntinha dela?
- Como é que você soube disso? - perguntou Ronnie, olhando-o com curiosidade.
- Ela o estava usando em algumas fotos expostas no velório. Eu achei que ela gostasse da corrente, pois a usava muito.
- Sim, hum, eu não sei. Acho que era a foto de algum cara de quem ela gostava. Mas é sobre outra coisa que eu queria falar com você: o celular dela.
- O que tem ele?
- Ela não estava com ele quando foi encontrada.
- Ela não o carregava na bolsa?
- Não, quase sempre no bolso.
O celular cairia do bolso se ela apenas entrasse na água?
Não.
A menos que ela tenha caído de Windy Point, mas, então, como explicar os óculos quebrados na margem?
Daniel ficou imaginando se o fato de ela não estar com o celular havia levantado alguma suspeita da polícia, ou se seu pai tinha procurado por ele. Ele não tinha mencionado
nada, mas, mais uma vez, seu pai não estava realmente autorizado a lhe dar detalhes de seus casos.
Se tivesse trazido os óculos quebrados, isso poderia ter ajudado Daniel a obter informações de Ronnie, mas sabia que o pai não queria que eles fossem mencionados. E, honestamente,
as últimas pessoas do mundo que Daniel desejava preocupar com a suspeita de que Emily podia ter sido assassinada eram os membros de sua família.
Ronnie também está pensando em assassinato.
Apesar disso, Daniel preferiu não mencionar os óculos. Em vez disso, perguntou a Ronnie sobre o assunto que ele havia abordado na escola.
- Então, sua irmã sabia nadar?
- Não só sabia, como nadava o tempo todo na Associação Cristã de Moços lá em Madison, antes de nos mudarmos para cá. Ela era muito boa em natação.
- Mais alguma coisa?
- Ela estava pensando em entrar para o clube de matemática do Sr. McKinney no semestre que vem - respondeu Ronnie, fazendo uma pausa. - Tentar fazer novas amizades.
- Ok.
- Você vai descobrir o que aconteceu lá no lago Algonquin? O que realmente aconteceu?
Não faça uma promessa que você não conseguirá cumprir.
Mas Daniel prometeu.
- Vou. Vou, sim.
34
Depois de voltar ao carro, Daniel mandou uma mensagem para Kyle para que ele ligasse assim que pudesse.
Então, foi para casa.
Nuvens corriam pelo céu.
Uma tempestade se aproximava.
***
Daniel encontrou o pai na garagem, limpando sua pistola Glock na bancada.
Em parte, ficou tentado a mencionar alguma coisa sobre o celular desaparecido, mas sentiu que o pai não ia ficar nada satisfeito ao descobrir que ele ainda estava investigando
a morte de Emily.
- Mamãe me ligou hoje de manhã.
O pai pousou o pano com que estava limpando o tambor da arma.
- É mesmo?
- É. Ela quer vir assistir ao meu jogo na sexta-feira. Ela me disse que você ligou para lhe dizer que eu desmaiei no jogo do festival.
- Ela é sua mãe, Dan. Ela tem o direito de saber como você está. Você consegue imaginar o que ela me diria se, mais ou cedo ou mais tarde, descobrisse que você foi parar no
pronto-socorro sem que eu contasse a ela?
- Por que ela foi embora?
O pai ficou em silêncio.
- Eu pedi que ela me contasse. Quero dizer, qualquer um perceberia que vocês dois estavam tendo problemas, eu entendo isso, mas...
- Não estou com vontade de falar sobre isso agora, Dan.
- Claro, eu sei, mas...
- Não agora.
Mas Daniel não desistiu.
- Havia... outro homem?
- Quando chegar a hora, eu lhe explico tudo.
- Sabe, foi o que ela também disse. Que não era a hora certa.
- Lá vem você.
- Eu perguntei a ela quando seria a hora certa. Ela não me disse. Talvez você possa me dizer.
- Não, não havia outro homem. Ela apenas preferiu ficar sozinha a ficar comigo.
E comigo, pensou Daniel. Ela preferiu ficar sozinha a ter o filho por perto.
Ele não teve certeza de que a resposta do pai realmente o satisfez, mas a aceitou por enquanto.
- Ela quer que eu consulte um médico. Disse que você também quer - disse ele, em vez de insistir nos motivos da separação.
- Nós achamos que seria melhor. Eu ia lhe contar, mas nós não temos encontrado muita oportunidade de conversar. Eu marquei uma consulta para você amanhã em Superior.
- O quê? Eu tenho escola e treino do futebol amanhã à noite. Não posso perder nada.
- Vou ligar para a escola para justificar sua ausência e vou conversar com o treinador Warner. Ele com certeza vai entender.
- Pai, ouça. Eu não quero consultar médico nenhum.
- Entendo. Mas, neste caso, não estou pedindo.
- Nós temos um jogo na sexta-feira e...
- Daniel. Nós queremos que você seja examinado.
- Examinado! - Isso o deixou surpreso. - Por que em Superior? Por que não o nosso médico?
- Eu tive uma referência. Ela é especialista. Uma neurologista.
- Não posso acreditar que você não tenha falado comigo antes de marcar essa consulta - exclamou Daniel. - Não é certo.
A tensão aumentou entre eles.
O pai falou primeiro.
- Vamos sair daqui às oito da manhã.
Em sua escola, havia uma regra que dizia que se o aluno perdesse as aulas do dia, não poderia nem treinar nem disputar nenhum jogo naquela noite. Assim, ir ao médico no dia
seguinte também significava perder o treino.
Além disso, se ele perdesse as aulas do dia seguinte, tampouco poderia encontrar Stacy para lhe perguntar por que ela não tinha aparecido no baile, ou conversar com Kyle sobre
Emily e saber se ela tinha mesmo uma queda por ele.
Tudo bem, ele podia ligar para eles ou enviar uma mensagem, mas parecia mais adequado discutir essas coisas pessoalmente. Além disso, Stacy não ia mesmo responder sua mensagem.
Daniel não disse nada, limitando-se a ir para a cozinha. Deu-lhe vontade de bater a porta para mostrar sua indignação, mas preferiu deixá-la aberta. Por algum motivo, parecia
ser mais incisivo que batê-la atrás dele.
Contudo, quando chegou a seu quarto, bateu a porta.
A raiva tomou conta dele, uma raiva que vinha de todo lugar e de nenhum lugar.
Ele cerrou o punho e socou a parede ao lado da janela.
Seu soco deixou uma marca na parede.
Ele ficou olhando para ela.
Este não é você.
O que está acontecendo?
Você está mudando. Está perdendo o controle.
Ficou um pouco assustado com o que acabara de fazer, com o que estava acontecendo com ele. Colocou um pôster dos Mavericks* para cobrir o buraco e, então, se deixou cair na
cama.
Começou a olhar suas mensagens.
Nada do Kyle ou da Stacy.
Ele foi até a escrivaninha, tentou tirar tudo da mente e se concentrar no dever de casa.
Tudo inútil.
Sem fazer nenhum dever, afastou os livros. Depois de erguer pesos até seus braços e peito ficarem doloridos, pegou um sanduíche e um resto de macarrão para jantar.
Tornou a verificar o celular, e desta vez encontrou uma mensagem de texto: Nicole, agradecendo-lhe por tê-la levado para casa na noite passada e perguntando se ele encontrara
um de seus brincos no carro.
Não demorou a localizar o brinco entre os assentos. Ele mandou uma mensagem de volta, dizendo que estaria fora no dia seguinte, mas o levaria à escola na terça-feira.
Ela disse que tudo bem e que o veria na terça.
Ele se preparou para deitar e fechou os olhos na tentativa de ter uma noite completa de um sono muito necessário.
Mas não foi o que aconteceu.
Em vez de dormir direto, acordou às 3h14 da manhã, com a roupa gelada e completamente molhada.
* O Dallas Mavericks é um time profissional de basquete, com sede em Dallas, Texas. (N. T.)
35
Daniel abriu os olhos.
Seu quarto ainda estava mergulhado na escuridão, com apenas uma fresta de luz filtrada pela janela e proveniente da rua.
Caíra uma tempestade e, a princípio, ele achou que devia ter acordado por causa do barulho dos trovões rolando pela noite.
Sim, ele confirmou que ainda estava na cama. Quando olhou para baixo, pôde ver que não tinha tirado a roupa e tudo estava encharcado: sua camisa, suas calças, suas meias,
as cobertas.
O que aconteceu? Por que você está encharcado? Por que ainda está de roupa? Será que foi um sonho?
Daniel piscou os olhos, contraiu a mão e sentiu dor onde havia socado a parede.
Sim.
Ele estava acordado.
Ele sentiu a cama.
Sim, sem dúvida, estava molhada.
Ele estava esperando que Emily aparecesse em seu quarto ou à janela, arranhando o vidro como no antigo filme de terror A Mansão Marsten, em que os vampiros aparecem na casa
das crianças e arranham a janela com as pontas dos dedos, tentando ser convidados a entrar.
Mas ela não apareceu.
Não aconteceu nada fora do normal
Ele olhou as horas. Marcava 3h15 da madrugada.
Achou que ficar molhado daquele jeito o teria despertado imediatamente; então, nada parecia fazer sentido: por que ele estava usando suas roupas? E pior, por que elas estavam
molhadas?
Daniel sentou-se na cama.
A chuva caía lá fora.
Ele tinha que ter saído na tempestade.
Acendeu a lâmpada da cabeceira, olhou pelo quarto e notou suas botas descartadas ao lado da cômoda.
As solas estavam cobertas de lama.
Pegadas enlameadas e uma trilha de pingos de água levavam de seu quarto até o corredor.
Sonambulismo? Isso nunca tinha lhe acontecido antes, pelo menos que ele soubesse, mas não conseguia pensar em nenhuma outra explicação para o que estava acontecendo.
Mesmo? Sonâmbulo? Você foi lá fora durante a tempestade e não acordou, e então tirou as botas e voltou para a cama? Tudo isso enquanto dormia?
Parecia totalmente incrível, mas não mais maluco que as outras coisas que tinham lhe acontecido durante toda a semana.
Daniel pôs os pés no chão. Embora se sentisse apreensivo quanto a seguir as pegadas, quanto a ver aonde elas o levariam, também sentiu a necessidade de fazer isso. Ele tinha
estado lá fora. Por quê?
Se você estivesse sonâmbulo na tempestade, a chuva o teria acordado.
Mas não acordou.
Ele não se lembrava de ter se vestido, saído do quarto ou voltado para a cama, e não tinha a mínima ideia de quanto tempo estivera deitado antes de acordar um pouco antes.
Sonâmbulo ou não, de alguma forma ele estivera na chuva, e não iria tornar a dormir sem saber onde tinha estado.
Ele já estava molhado; então, faria sentido sair sem mudar de roupa, mas não quis espalhar mais lama pela casa e decidiu pôr as botas quando chegasse à porta de entrada.
Pegou as botas, saiu do quarto e desceu em silêncio, seguindo as marcas de lama.
Se o pai viesse para o vestíbulo, ele não tinha ideia de como explicar por que estava pingando de molhado ou por que havia deixado uma trilha de água e lama na sala, ou, acima
de tudo, o que tinha feito lá fora.
No final do vestíbulo, luz suficiente, proveniente da vizinhança, entrava pelas janelas da sala de estar e caía no chão, tornando visíveis as marcas no piso de madeira.
O vento fustigava o telhado, e o ruído dos trovões chacoalhava as janelas, mas, pelo que Daniel percebeu, o pai ainda dormia em seu quarto.
Tirando o barulho da tempestade lá fora e o zumbido na geladeira na cozinha, a casa estava em silêncio.
Tentando não acordar o pai, Daniel arrastou-se o mais silenciosamente que conseguiu ao longo do corredor, especialmente quando passou pela porta do quarto do pai.
Ele nunca soubera se o pai tinha o sono leve, mas ouviu a cama ranger suavemente enquanto ele se virava no sono; se não fosse isso, estaria se levantando.
Daniel ficou imóvel, ouvindo se a cama rangia outra vez.
Seu coração batia com força e se contorcia como se tivesse vida própria.
Ele ficou ouvindo, esperando que a porta se abrisse e o pai aparecesse, mas nada o saudou exceto o silêncio ansioso e expectante.
A água que pingava de suas roupas foi lentamente formando uma poça a seus pés.
Pareceu-lhe que passou uma eternidade, mas provavelmente foi pouco mais que um minuto ou dois. Quando Daniel não ouviu mais nenhum som vindo do quarto do pai, começou a descer
para a sala outra vez, seguindo as marcas de lama e os respingos de água.
Seus olhos foram se acostumando com a escuridão e, assim, foi ficando mais fácil distinguir onde o fim do corredor desembocava na cozinha, de um lado, e na sala de jantar,
do outro.
Ele achou que as marcas o levariam à porta da frente, mas agora pôde ver que isso não era verdade. Em vez disso, levavam à porta dos fundos, a que dava para o terraço que
se elevava acima do jardim e da faixa de bosque nos fundos da casa.
As marcas desapareciam lá fora.
Quando ele abriu a porta, o clarão de um raio iluminou o quintal, e ele notou uma pá encostada no lado da casa. Ela estava posicionada debaixo da calha, o que a protegia da
chuva.
A pá ostentava torrões de terra fresca e molhada.
Então, ele tinha cavado alguma coisa.
Ou enterrado alguma coisa.
Por alguma razão, provavelmente por causa da chuva, a noite exalava o odor de terra úmida da primavera, e não o das folhas que se deterioravam lentamente no outono, mas isso
só acrescentou mais confusão ao que Daniel estava sentindo.
Era quase como se ele tivesse saído de sua vida normal e aterrissado num lugar em que o tempo era fluido e podia avançar e retroceder, abrindo caminho entre as estações, levando-o
com ele.
Ele tentou mais uma vez lembrar se estivera ali mais cedo, na esperança de que pudesse surgir alguma coisa - uma nesga de imagem, uma impressão, um fragmento de lembrança,
qualquer coisa que lhe pudesse dar uma pista do que estava acontecendo ou do motivo de ele ter saído de casa.
Mas foi em vão; não foi capaz de se lembrar de nada.
As luzes das ruas próximas lançavam um brilho indefinido sobre o bairro, mas esse brilho era úmido e obscurecido pelas rajadas de chuva.
Ele conseguiu divisar a fraca linha do bosque se estendendo diante dele, assim como as formas vagas e escuras das casas da vizinhança, mas era só isso. Duvidou de que houvesse
luz suficiente para descobrir o que poderia ter cavado - ou enterrado - em meio à escuridão.
Outro clarão de raio rasgou a noite.
As marcas de bota enlameadas terminavam no fim do terraço.
O jardim ficava quinze metros adiante dele.
Dali para frente erguia-se o bosque.
Ele não quis arriscar acordar o pai acendendo a luz do terraço.
Voltando para dentro, pegou a lanterna que usava para explorar cavernas, uma lanterna que ficava estrategicamente numa gaveta da cozinha para ser usada na falta de energia.
Então, agarrou a pá e saiu para a chuva.
36
A chuva implacável fustigava a noite, e o vento batia contra ele como se estivesse tentando fazer que voltasse para a casa.
Ele dirigiu o facho da lanterna para o chão diante dele, usando a outra mão para proteger os olhos da chuva.
Embora tivesse recolhido as folhas uns dois dias antes, o vento havia trazido uma nova camada delas, que se colava à grama. O som da chuva batendo contra elas enchia a noite
a seu redor.
A tempestade tinha apagado todas as marcas de bota nas folhas.
Virando-se, não viu nenhum sinal de que alguém havia cavado nos canteiros de flores mortas pelo outono que acompanhavam os fundos da casa.
Ele se alinhou na direção das marcas enlameadas que saíam do terraço, tentando adivinhar aonde teria ido mais cedo quando se aventurou na chuva; então, posicionou a luz da
lanterna em direção ao bosque numa linha reta a partir de onde terminavam as marcas das botas.
O jardim estava entre ele e o bosque. Sua mãe costumava cuidar dele, mas agora o mato crescia por toda parte, e nele começava a trilha para o bosque e...
Não.
Um pensamento lhe ocorreu. Um pensamento que ele não queria levar em consideração.
Quando sua mãe foi embora seis meses antes, deixou seu cachorrinho com o pai e ele, e quando Akira saiu de casa e foi atropelado por um carro três meses depois da partida
da mãe, Daniel e o pai o haviam enterrado ali, cerca de dez metros depois do jardim, na trilha que ia para o bosque.
Os dois haviam colocado uma grande pedra sobre a cova do cachorrinho para marcar o lugar e impedir que animais carniceiros viessem desenterrar o corpo.
Daniel subiu e baixou o foco da lanterna, vendo que o chão estava remexido no local em que Akira tinha sido enterrado. Um monte de terra estava ao lado de um buraco vazio.
A pedra tinha sido movida para o lado, contra uma árvore perto da pilha de terra.
Alguém tinha escavado o túmulo de Akira.
Ele o tinha escavado.
De onde ele estava, não dava para ver a cova aberta.
Carregando a pá e tentando ver com dificuldade através do facho de luz da lanterna castigada pela chuva, Daniel se aproximou do buraco.
37
Vazio.
Então, onde estava a carcaça, os ossos ou fosse o que fosse que teria sobrado do cãozinho?
Você deve ter posto os restos de Akira em algum lugar.
Enquanto esse pensamento o assaltava, a tempestade rugia na noite em torno dele.
Ele passou alguns minutos vasculhando a área, mas nada encontrou: nada de ossos, nada de corpo dissecado, nenhum sinal de que tivesse havido um cachorrinho morto enterrado
naquele buraco. Ele chegou a examinar a trilha que levava ao bosque, mas não encontrou nenhum sinal dos restos do cachorro.
Por fim, convencido de que não havia mais nada a fazer por ele, encheu de novo o buraco com terra e o nivelou o melhor que pôde com a pá; depois, espalhou folhas pela área
e empurrou a pedra de volta a seu lugar.
Se alguém soubesse o que estava procurando e tivesse vindo exatamente para este lugar, Daniel poderia ser capaz de dizer que aquilo havia sido desenterrado, mas não conseguia
imaginar nenhum motivo pelo qual alguém teria vindo até ali para examinar o túmulo de Akira.
Onde você colocou o corpo, Daniel? O que você fez com os ossos?
A pergunta pareceu algo sólido caindo sobre ele.
Mais uma vez, tentou se lembrar do que havia acontecido mais cedo, quando deveria estar dormindo cama, mas saiu na chuva.
Depois de disfarçar o buraco, voltou para casa, limpou a pá e a guardou na garagem. Trocou de roupa e colocou a molhada na máquina de lavar.
Com o maior silêncio possível, limpou as marcas de lama do corredor com trapos e velhas toalhas molhadas.
Enquanto fazia isso, pensou na conversa que tinha tido com Kyle a respeito de ir dar uma olhada no túmulo de Emily.
Visitar um cemitério em busca de pistas.
Talvez fosse isso que estava em sua mente, pelo menos inconscientemente.
Talvez tenha sido por isso que procedeu assim esta noite durante o sono.
Algumas vezes, enquanto estava limpando a casa, pensou que poderia ter acordado o pai, mas ele não saiu do quarto.
Por fim, Daniel lavou as toalhas e trapos sujos e os colocou na máquina de lavar com suas roupas, pensando que poderia fazer a lavagem logo pela manhã, e não agora, pois poderia
acordar o pai.
Depois de guardar a lanterna, foi para o quarto, tirou os lençóis molhados da cama e também os colocou na máquina de lavar.
Como o colchão ainda estava molhado, ele o deixou descoberto para que pudesse começar a secar. Em vez de dormir nele, passou o resto da noite no chão em seu saco de dormir,
esforçando-se por conciliar o sono.
Mas não foi fácil.
Com os restos de Akira na mente, ele ficou dormindo e acordando em meio a uma névoa de sonhos até o despertador soar às 7h30 da manhã.
Eles iriam ao médico em Superior em trinta minutos.
Vestiu-se bocejando. Embora normalmente não tomasse café, provavelmente fosse precisar de um pouco de cafeína ou não conseguiria se manter desperto e ficaria pescando o dia
inteiro.
Ele ia apertar o botão da máquina de lavar quando o pai veio até ele.
- Você está fazendo isso cedo demais.
- Eu precisava lavar algumas roupas.
- Elas não vão ficar prontas antes de sairmos. Só vamos poder secá-las quando voltarmos à tarde. Por que você não espera até voltarmos?
A tensão da conversa de ontem à noite na garagem ainda não tinha desaparecido, e tudo o que eles diziam era marcado por uma distância fria e objetiva.
- Eu já coloquei sabão na roupa. Agora é preciso lavar.
O pai ficou pensativo. Daniel tinha a impressão de que iria pressioná-lo, mas mudou de assunto.
- Você já tomou café?
- Não. Já vou tomar.
- Tudo bem. Lembre que temos que sair às oito se quisermos chegar a tempo para a consulta.
- Ok. Eu estarei pronto.
O pai foi para a cozinha, e Daniel se encostou na máquina de lavar, soltando um suspiro profundo.
Ele não tinha ideia do que diria se o pai olhasse na máquina e visse as toalhas enlameadas.
Você fez tudo enquanto dormia.
Embora fosse algum tipo estranho de sonambulismo, sem ser oficialmente uma alucinação, a pesquisa que fez sobre as causas das alucinações veio-lhe à mente.
Um tumor no cérebro.
Algum problema na cabeça de que não se dera conta.
Ou, talvez, baseado na maneira como ele parecia estar perdendo o contato com a realidade, fosse esquizofrenia.
Talvez ele estivesse mesmo ficando louco.
Honestamente, a ideia de estar ficando louco o assustava ainda mais que a possibilidade de ter um tumor crescendo no cérebro.
Em vez de cavar o túmulo, e se ele tivesse andado até a rua enquanto um carro se aproximava? Ou tivesse ido para o seu carro e saído da estrada para baixo de um barranco ou
caído no rio?
Ele tinha ouvido falar de gente que chegava a matar membros da própria família enquanto dormia. E se ele atacasse o pai?
Não, isso não podia continuar. As visões, os pesadelos, o sonambulismo. Ele precisava de respostas antes que alguma coisa séria acontecesse.
Embora não gostasse de admitir, quanto mais cedo fosse examinado, melhor, para descobrirem o que havia de errado com ele.
Depois de começar a lavagem, pegou uma xícara de café e um pedaço de pão, pôs o laptop na mochila para que pudesse trabalhar no relatório de história dos Estados Unidos no
carro ou enquanto estivesse na sala de espera do consultório; então, saiu de casa com o pai.
E viu o que tinha feito com o cadáver de Akira.
Ele o tinha colocado no capô do carro do pai.
38
O pai ficou olhando para a carcaça do cachorro molhada de chuva e, então, voltou-se para o filho.
- Você sabe como aconteceu isso, Daniel?
Por que você deixou o corpo de Akira ali? O que está havendo com você?
- Não sei por que alguém faria isso - respondeu Daniel, sentindo-se hesitante e um pouco tonto, como se estivesse pisando em areia e mergulhando num mundo em que não mais
conseguia distinguir o real do irreal.
Desfazendo-se num pesadelo. Preso para sempre num sonho.
As palavras lhe vinham como as frases para o seu blog na outra noite com Kyle. Pássaros escuros que se alimentam da carne de seus sonhos mortos. Devorando-a até só sobrarem
os ossos.
Sim.
São eles.
E eles estão arrancando o tecido de sua sanidade.
De sua sanidade.
Felizmente, o corpo do cão não era tão velho, e a área não ficou fedendo a podridão e morte, mas havia um leve odor de apodrecimento, provavelmente enfatizado pelo ar úmido
da manhã.
- Quantas pessoas sabiam onde Akira estava enterrado? - perguntou o pai.
- Só nós e o Kyle.
Ele começou a juntar as coisas.
- A lavanderia, hein? Mas por que você faria isso? O que está acontecendo com você?
Daniel teria ficado mais à vontade se o pai tivesse ficado zangado, mas ele não parecia nem um pouco bravo. Apenas profundamente preocupado.
- Eu não sei - disse Daniel. - Não me lembro de nada.
- Mas não foi Kyle, foi?
Uma longa pausa.
- Não.
É agora.
- Vamos, entre no carro.
O pai foi buscar um saco de lixo e pegou a pá da garagem, usando-a para carregar os restos do cão para os fundos da casa.
- Vamos cuidar disso quando estivermos outra vez em casa - disse ele ao voltar.
- Honestamente, pai, não sei o que aconteceu. Eu acordei molhado. Eu devo ser sonâmbulo.
- Tudo bem. - Mas pelo tom de voz do pai, não parecia que achasse que estava tudo bem. - Uma dor de cabeça? Você estava com dor de cabeça quando foi para a cama ontem à noite?
Está tendo uma agora?
- Não. Será que eu já andei durante o sono antes? Talvez quando eu era pequeno.
- Só uma vez.
- Quando foi isso?
- Quando você tinha 5 anos. Depois que seu avô morreu. Sua mãe e eu estávamos na sala e você passou por nós em direção à porta da frente.
- Aonde eu estava indo?
- Nós lhe perguntamos isso. Você disse que ia encontrá-lo.
- Encontrar quem? O vovô? Mas ele estava morto.
- Estava - disse o pai, dando partida no carro. - Estava morto.
A conversa se transformou em silêncio, parada como a água estagnada de um lago.
Então, os dois partiram para Superior para descobrir o que realmente havia de errado com Daniel.
39
Uma série de exames foi feita durante toda a manhã: uma ressonância magnética, uma tomografia do cérebro e outros de que Daniel nunca tinha ouvido falar. Era quase meio-dia
quando a neurologista finalmente veio ter com ele e o pai para falar do resultado dos exames.
Ela era uma mulher de estatura pequena, com penetrantes olhos castanhos, óculos de aro de metal e cabelo curto. De alguma forma, seu sorriso era incerto, provavelmente de
tentar dar uma aparência positiva às más notícias que frequentemente tinha que compartilhar com seus pacientes.
Daniel podia ver uma tempestade de preocupação prestes a desabar no rosto do pai e ela dizia o quanto ele realmente se preocupava com o filho.
Ele imaginou que o pai provavelmente estivesse pensando em muitas outras coisas além das duas vezes em que seu filho apagara na semana passada. Sem dúvida, o incidente com
o corpo de Akira ainda estava em sua mente.
Os dois se sentaram no consultório da médica, nas cadeiras de couro diante de sua escrivaninha. Diplomas pendiam da parede, e grossos volumes de medicina enchiam as estantes.
A janela atrás da escrivaninha dava para um pequeno parque que ficava do outro lado da rua, onde algumas crianças brincavam com a mãe à luz do sol.
A médica estava olhando para eles.
- Bem, pelo que posso ver, um tumor está descartado, e isso é uma coisa pela qual devemos ficar gratos - disse ela, fazendo uma pausa, como se estivesse esperando a concordância
deles, mas eles permaneceram quietos, atentos, esperando ansiosamente que ela lhes dissesse o que realmente estava acontecendo.
Ela levou um certo tempo resumindo os resultados dos exames e concluiu dizendo:
- A verdade é que não encontro nada de fisicamente errado com você, Daniel. E isso é boa notícia - comentou ela, de uma forma que fez Daniel pensar que parecia estar prestes
a anunciar más notícias.
Nada de fisicamente errado. Então, deve ser a sua cabeça, é isso que ela está dizendo.
E isso já era uma má notícia em si mesmo, pois se não havia tumor, não sobravam muitos motivos para ele estar tendo alucinações. Só uma coisa: esquizofrenia.
- E, então - perguntou o pai de Daniel -, o que devemos fazer?
- Bem, há outro médico que vocês devem consultar. Na verdade, é lá em Beldon. - Sua voz soou como se ela estivesse se esforçando um pouco demais para parecer indiferente.
- Uma segunda opinião?
Uma ligeira pausa.
- Num certo sentido, sim.
Daniel tinha um palpite de que já sabia o tipo de médico que ela ia recomendar.
- Mas vocês já fizeram os exames - disse o pai. - A senhora disse que podemos descartar um tumor de cérebro. A senhora está dizendo que acha que outros olhos devem interpretar
os resultados?
O silêncio que se seguiu deixou Daniel desconfortável, e ele esperava que agora seu pai certamente percebesse o que estava acontecendo. Talvez ele estivesse apenas esperando
que a médica mencionasse a coisa.
- Não é exatamente o que estou sugerindo - disse ela por fim. - O que estou dizendo é que não há nada de errado com Daniel.
- Fisicamente. - A maneira como o pai disse isso deixava claro que ele estava na mesma linha de pensamento de Daniel.
- Sim - disse a médica, como se não quisesse ter aquela conversa. Ela tirou um cartão de visitas do bolso. - Eu escrevi o número do celular dele no verso deste cartão. Ele
tem experiência com este tipo de coisa.
- E que tipo de coisa é essa? - disse o pai numa voz mais ríspida.
- Hum... bem, o senhor me contou sobre o sonambulismo da noite passada e...
- O que a senhora está dizendo? Um psiquiatra? Que meu filho precisa de um psiquiatra?
- Pelo que o senhor me contou, Daniel tem estado muito estressado ultimamente: o velório da garota da escola, a pressão para jogar bem na partida de futebol diante dos observadores
das faculdades...
- Não é estresse - disse Daniel. - Não é isso que está provocando tudo. - Mas não mencionou as alucinações. Isso não ajudaria em nada.
O pai de Daniel balançou a cabeça.
- Meu filho não precisa consultar um psiquiatra.
Ela ainda estava lhes oferecendo o cartão de visitas.
- Não é nada de mais consultar...
- Obrigado por sua atenção - disse o pai de Daniel se levantando.
- Ele é muito bom - assegurou ela. - Marque uma consulta imediatamente. Se não der certo, pelo menos vocês tentaram.
- Obrigado, mas vai ficar tudo bem - disse o pai, fazendo um sinal para que Daniel saísse da sala com ele.
Parecia que a médica ia guardar o cartão, mas ela tornou a estendê-lo.
- Caso vocês mudem de ideia.
Embora Daniel pressentisse que o pai não tinha a mínima intenção de levá-lo ao psiquiatra, ele acabou por aceitar o cartão e o colocou no bolso.
Então, com o que pareceu uma polidez um tanto forçada, ele agradeceu à medida que saía com o filho do consultório.
Daniel ficou intrigado pelo fato de seu pai ser tão contra uma consulta ao psiquiatra. Ele só conseguia pensar num motivo: um pouco antes da separação, os pais de Daniel tinham
consultado um conselheiro psicológico algumas vezes, e o resultado não fora excepcionalmente bom.
Psicólogo, psiquiatra, não importava quem fosse.
Os dois vão procurar a mesma coisa: algo errado com a sua cabeça.
Algo que não é apenas fisicamente ruim.
Depois que saíram do consultório, o pai jogou o cartão de visitas na lata de lixo mais próxima.
- Vamos almoçar.
- Claro.
Quando já estavam no carro voltando para casa, Daniel perguntou:
- O que você vai dizer à mãe?
- Exatamente o que a médica disse.
- E o que é?
- Que não há nada de errado com você.
É claro que não foi exatamente isso o que a médica disse, mas Daniel achou que dizer a verdade não seria uma ideia muito boa.
- O que você quer comer? - perguntou o pai.
- Qualquer coisa. Qualquer coisa está bem.
- Então, um Subway. Eu vi um no caminho.
Além de mencioná-lo à médica, eles não haviam trocado uma palavra sobre o incidente envolvendo os restos mortais do cachorrinho desde que saíram de casa pela manhã, e Daniel
achava que, a qualquer momento, seu pai voltaria ao assunto.
Mas não voltou.
***
Eles estavam a quinze minutos de Beldon quando o pai saiu da autoestrada e dirigiu-se a uma estrada municipal pouco usada perto da floresta nacional e da trilha que levava
à Caverna do Lobo.
- Aonde vamos? - perguntou Daniel.
- A um lugar que eu gostaria que você me levasse.
- Onde é isso?
- Quero que você me mostre exatamente onde encontrou aqueles óculos na margem do lago Algonquin.
40
Daniel foi orientando o pai ao longo da trilha que ladeava o lago e, por fim, chegaram ao trecho da margem aonde ele havia trazido Stacy.
A tempestade da noite anterior havia se dissipado, e em contraste com o sábado, quando ali no lago estava frio, nublado e chuvoso, hoje o céu estava de um azul penetrante,
com apenas alguns fiapos esparsos de nuvens, dispostos em finas linhas ao longo do horizonte.
Parecia mais um dia de verão que de metade de outono, especialmente porque o lago era circundado por pinheiros verdes que conservam sua cor o ano inteiro.
Mais uma vez, como na noite anterior, quando lá fora cheirava a primavera, as estações pareciam estar flutuando ao acaso em torno dele.
- Foi bem aqui, pai.
O pai foi até o local onde ele havia encontrado os óculos.
Ele ficou em silêncio, examinando a área, e Daniel achou que ele estivesse procurando alguma coisa específica, embora não soubesse dizer do que se tratava.
O pai chutou um pouco de areia para o lado, observou a posição da fogueira de acampamento e a distância até a trilha que levava pela encosta até o topo de Windy Point.
Com toda a paciência, Daniel esperou que ele dissesse alguma coisa e, por fim, como ele não falasse, perguntou:
- Em que você está pensando?
- Você tinha razão quanto à distância da encosta e ao fato de a água não chegar a esta altura na margem. Tem certeza de que os encontrou aqui?
- Absoluta.
Ele se ajoelhou e escavou a areia perto do local, provavelmente procurando a lente que faltava. Alguns minutos depois, como não encontrasse nada, se levantou.
- Você me disse que veio aqui em busca de solução.
- Foi.
- Solução para o quê?
- O que o senhor quer dizer com isso?
- O que eu quero saber é se você estava procurando uma solução para alguma coisa que lhe atormentava a mente.
- Foi a morte da Emily. Eu estava tentando achar um jeito de lidar com ela.
Isso, em parte, era verdade.
Também era verdade que ele estava tentando lidar com o fato de Emily começar a lhe aparecer depois de morta.
- E como você conseguiria isso vindo aqui? - perguntou o pai. - Obter uma solução?
Daniel ficou indeciso se poderia contar a ele sobre o que estava acontecendo. Se confessasse o que tinha visto, com certeza seu pai acharia que ele estava ficando louco, especialmente
depois do que acontecera com Akira naquela manhã.
Ele já sabe que está acontecendo alguma coisa. Quero dizer, você sai vagando no meio de uma tempestade, desenterra o cachorrinho de sua mãe e o coloca no capô do carro dele...
Sério? E depois não se lembra de nada do que aconteceu.
Seu pai ficou esperando uma resposta.
- Eu tenho visto coisas.
- Coisas?
- A Emily. Ela me apareceu duas vezes. Pediu-me que encontrasse seus óculos. Contou-me que Trevor estava no carro.
- Trevor?
- O cachorro dela.
Daniel ficou esperando que o pai respondesse como Kyle, com um comentário a respeito de Emily estar morta e, portanto, não poder conversar com ele.
Mas ele ficou em silêncio.
Devia estar pensando que alguma coisa séria estava acontecendo com o filho. Alguma coisa muito séria. Só podia ser isso.
Agora que Daniel havia revelado as alucinações, ele achou que poderia muito bem contar todas as outras coisas.
- Eu a vi se sentando no caixão quando estávamos no velório, e eu a vi andando pelo campo de futebol no jogo do festival.
- E você achou que vir aqui faria essas visões pararem.
Ele examinou o rosto do pai para tentar discernir seu pensamento.
- Eu não sabia - disse Daniel. - Eu esperava que sim.
- Você disse que ela lhe apareceu antes de você se machucar no jogo de futebol?
- Disse. Foi o que me fez hesitar. É por isso que eu fui atingido.
Houve uma longa pausa.
- Você acha que estou ficando louco?
- Não. - Mas a resposta do pai não foi imediata, o que fez Daniel imaginar o quanto ele estava sendo sincero.
- Você está pensando naquele outro médico? - perguntou Daniel. - O psiquiatra?
Dessa vez ele respondeu de imediato.
- Independentemente do que estiver acontecendo, precisamos dar um fim a essas visões, ou seja lá o que forem.
Eu concordo.
- Então, você acha que eu deveria consultá-lo?
- Não vou mentir para você. Depois do que aconteceu na noite passada, eu estou... Bem, não pode ser tão ruim. Contar as coisas para alguém.
- Em Superior você não gostou da ideia.
- Em Superior eu não sabia que uma garota morta conversava com você.
Daniel não mencionou a marca no braço.
- Ok. Eu vou me consultar com ele.
- Eu vou telefonar para ele amanhã cedo.
- Você jogou o cartão dele fora.
- Eu lembro o nome dele - disse o pai, começando a descer a trilha. - Dr. Fromke.
- Mas e o número do telefone?
- E o número do telefone.
É preciso prestar muita atenção para memorizar um número de telefone quando só se dá uma olhada num cartão de visitas. Então, talvez o pai estivesse pensando em fazer com
que Daniel consultasse o psiquiatra quando saíam do consultório da médica.
***
Daniel mergulhou profundamente em seus pensamentos enquanto voltavam para casa.
Quando chegaram, o pai lhe disse que se ocuparia de Akira, que ele não precisava se preocupar com aquilo.
Daniel ficou imaginando se ele estava enterrando o cachorro sozinho para que o filho não soubesse onde estavam os restos mortais e não conseguisse encontrá-los se se levantasse
outra vez no meio da noite.
Parecia que a confiança que eles tinham estabelecido nos últimos meses estava começando a se desfazer. E tudo por causa de coisas que estavam fora do controle de Daniel.
***
Depois do jantar, ele percebeu que ainda não tinha falado com Kyle, Stacy ou Nicole e sentiu que precisava entrar em contato com os três.
Ele avaliou as coisas.
Kyle. Nicole. Stacy.
Decidiu começar por Nicole.
41
-Alô? - disse ela.
- Oi, é o Daniel.
- Oi. Onde você esteve ontem?
Na noite anterior, ele lhe contara que não iria à escola no dia seguinte, mas não lhe disse aonde ia.
- Eu tive uma consulta médica.
- Está tudo bem?
- Está. Eu estou ótimo.
- Eu anotei as tarefas de casa para você - disse-lhe Nicole. - Quero dizer, para as disciplinas que fazemos juntos.
- Obrigado.
- A Srta. Flynn perguntou por você. Achei isso um pouco estranho, pois os alunos ficam doentes ou perdem aulas o tempo todo. Mas ela me perguntou onde você estava.
- Hum.
Por que ela perguntou a Nicole? Ela sabe que seu melhor amigo é o Kyle. Por que ela não perguntou a ele?
Por fim, lembrou por que estava telefonando para ela.
- Quero encontrar você amanhã para lhe devolver o brinco.
- Ah, claro, quando você quiser, vai ser ótimo. - Então, ela disse: - Daniel, eu preciso lhe contar uma coisa.
- Sim?
Ela deu um longo suspiro.
- A respeito da outra noite. Quando você estava me levando para casa. Quando eu estava no carro e o Ty puxou aquela faca, com aqueles caras me cercando, batendo nas janelas...
Eu fiquei... Bem, eu fiquei apavorada.
- Eu entendo.
- Você também ficou?
- Fiquei.
- Eu não percebi.
- Às vezes sou bom em disfarçar o que sinto.
- Oh - ela deixou escapar, sem saber o que dizer. - Mas, além disso, você me fez sentir segura. Eu confiei em você. Quero dizer, quando você se dispôs a brigar com os quatro.
Para me proteger. Foi muito legal.
- Eu não deixaria que nada lhe acontecesse.
- Eu sei.
E não vou deixar que nada lhe aconteça.
- De qualquer forma, obrigada.
- De nada.
- Vejo você amanhã.
- Encontro você depois da quarta aula?
- Depois da quarta aula - disse Nicole. - Perfeito.
***
Em seguida, Kyle.
Emily tinha escrito o nome dele em todo seu caderno, e Daniel ainda não tivera a chance de falar sobre isso com ele. Ele gostaria de fazer isso pessoalmente, mas não quis
esperar mais e telefonou para o amigo.
Quando Kyle atendeu, começaram uma conversa informal, do tipo que cria o contexto para se falar sobre o que realmente importa.
- Por que você faltou à escola?
- Fui consultar um médico.
- Para quê?
- A minha cabeça.
E por aí foi.
Daniel concluiu contando ao amigo sobre seu sonambulismo e o que ele tinha feito com o corpo de Akira.
- Puxa, cara, tenho que dizer que isso é perturbador. Você sabe disso, não é?
- E o pior é que eu fiz tudo isso, vestir as roupas, cavar o buraco, tirar o corpo de Akira e voltar para a cama, e não me lembro de ter feito nada. Fico pensando se fiz isso
tudo por causa da nossa conversa sobre visitar o cemitério.
- Bem, não sei. Acho que faz sentido, quero dizer, se isso ficou na sua cabeça. Ou talvez você tenha desenterrado o cachorro de sua mãe porque estava pensando naquele outro
cachorro, o Trevor.
Daniel não tinha pensado nisso.
- Ei, ouça - disse Kyle -, quando eu estava com Michele ontem, fiquei pensando naquilo sobre o que conversamos: fantasmas e essas coisas. Ela tem um gatinho imaginário, o
Toni, com quem ela conversa o tempo todo, e isso me fez pensar sobre as coisas irreais que as pessoas veem, sabe, o que é real e o que não é. Ainda não tenho certeza se acredito
em fantasmas, mas andei pesquisando na internet ontem. Você já ouvir falar em pesadelo diurno?
- Pesadelo diurno?
- É um pesadelo, só que acontece durante o dia, obviamente. É como sonhar acordado, só que uma coisa horrível. Parecido com o pesadelo, mas a gente tem quando está acordado.
- Então, são alucinações?
- Acho que sim. Não sei qual é a diferença. Fico imaginando se não é isso que está acontecendo com você.
- Vou ler sobre isso. Amanhã meu pai vai me levar a um psiquiatra para ver se descobrimos o que há de errado comigo.
- Um psiquiatra?
- É.
Pergunte-lhe sobre a Emily. Conte-lhe sobre o caderno dela.
Mas Kyle falou antes de Daniel.
- Então você contou ao seu pai. Sobre as visões e tudo o mais?
- Bem, encontrar o corpo do Akira no capô do carro foi uma boa amostra de que o que está acontecendo comigo não é nada bom.
- E parece que está ficando pior.
- Obrigado pelo lembrete.
- De nada, cara.
Daniel olhou para sua agenda na beira da escrivaninha diante dele.
- Lembra o que eu escrevi no meu blog para a Prô, a respeito de meus pensamentos vagarem sem tomar forma?
- Lembro.
- Outra imagem me veio à mente quando estávamos voltando da médica hoje.
- O que foi?
- Bem, era como respingos de cor escapando quando eu limpo a mão no que parece ser real e eu acabo por limpar uma camada de realidade.
- Você disse respingos de dor?
- De cor.
- Puxa.
Daniel tornou a pensar nas dores de cabeça que tivera.
Respingos de dor.
Afinal, não era uma descrição ruim.
- Você parece estar tendo todo tipo de imagem forte: respingos de realidade, abutres devorando a carne de seus sonhos. De onde você acha que está vindo isso tudo?
- Sinceramente, não sei.
- É como se uma parte de seu cérebro que nunca esteve ativa agora começasse a despertar.
Talvez seja por isso que você está vendo coisas, andando no sono e tudo o mais.
Talvez isso tenha alguma coisa a ver com as dores de cabeça.
- É possível.
Mas por quê?
E por que agora?
- E como foi o seu encontro com o Ronnie ontem? - perguntou Kyle.
- Tudo bem. Ele me disse que o celular da Emily nunca foi encontrado.
- Pelo seu tom de voz, você está achando isso suspeito.
- Ele disse que ela normalmente o carregava no bolso, e não na bolsa. Duvido que a correnteza tenha sido capaz de arrancar um celular do bolso dela.
E baseado na localização dos óculos quebrados, não parecia que tivesse caído do penhasco, pensou ele, mas não disse nada.
- Eu fico pensando - disse Kyle - quem terá sido a última pessoa com quem ela falou ou para a qual mandou uma mensagem de texto.
- Sem brincadeira. Se ela foi morta, isso poderia nos dizer com quem ela estava lá no lago.
Como houve uma pausa na conversa, Daniel decidiu que estava na hora de perguntar o que tinha em mente quando ligou.
- Kyle, você sabia que a Emily tinha uma queda por você?
- Do que você está falando? Ronnie lhe disse isso?
- Não. Eu vi o caderno dela enquanto estive lá. Ela escreveu seu nome nele inúmeras vezes. E desenhou corações do lado dele, como você sabe que as garotas gostam de fazer.
Silêncio.
- Eu não tinha ideia de que fosse tão sério.
- Então você sabia?
- Quero dizer, ouvi dizer que ela gostava de mim, mas eu estou com a Mia. Além disso, Emily era caloura e não era possível que eu a convidasse para sair.
Era isso mesmo que Daniel tinha pensado mais cedo.
- Mas você me disse que não a conhecia.
- Sim, não, quero dizer... eu a cumprimentei algumas vezes no corredor. Só isso. O armário dela ficava bem embaixo do meu. Eu só estava tentando ser educado - disse ele e
fez uma pausa. - Ela deve ter tido uma impressão errada.
- Acho que sim. E acho que o Ty deve ter visto o caderno dela.
- Foi por isso que ele o mencionou a você no sábado?
- Foi, e também por ele ter dito que sabia tudo a respeito de você e Emily, já da primeira vez que encontramos o Ronnie quando eles o estavam atormentando.
- Então, você acha mesmo que alguém matou a Emily?
- Acho.
Kyle ficou um instante pensativo.
- Você acha que pode ter sido o Ty?
Até então, Daniel tinha apenas considerado a possibilidade de Emily ter sido morta. Ele não tinha pensado em ninguém em particular que pudesse ter sido o autor.
- Eu não sei.
- Isso explicaria como ele soube o que havia no caderno dela.
- Pode haver muitas explicações para isso.
- Talvez.
- Meu pai não quer mais que eu investigue a morte dela. Ele acha que eu estou xeretando demais. E quer que eu deixe tudo com ele.
- Então, por que você contou a ele?
- Eu prometi que não continuaria a investigar.
- Ahã. E como fica a visita ao cemitério?
- Bem, vamos ver. Eu comecei a ver e fazer coisas realmente assustadoras: desenterrar o Akira é apenas uma das últimas. Eu preciso encontrar respostas e preciso encontrá-las
depressa antes que eu exceda os limites e acabe fazendo alguma coisa realmente perigosa ou da qual eu possa me arrepender.
- E você acha que resolver isso vai lhe dar as respostas?
- Eu espero mesmo.
- Bem, eu vou ajudar como puder, mas por enquanto, se ela foi mesmo assassinada, pode ter sido qualquer pessoa. Acho que você não devia confiar em...
- Por favor, não me diga para não confiar em ninguém - disse Daniel.
- Por que não?
- Nos filmes, é sempre o cara que adverte o personagem principal para não confiar em ninguém que acaba por traí-lo no final.
Por um momento, Kyle não deu resposta.
- Ok. A última coisa que eu desejo é que você tenha suspeita de mim.
- Ou você de mim.
- Vejo você amanhã, cara.
- Tudo bem.
Respingos de dor.
Realmente, não é uma má imagem.
Daniel voltou-se para a agenda e escreveu suas impressões sobre os flocos de dor; então, prosseguiu:
O rapaz nem sempre fora assim, nem sempre escorregava para uma terra cinzenta.
Ele conseguia se lembrar de como era. Essa era a parte mais difícil: saber que antes ele não perdia o controle da realidade. De volta aos tempos em que ele achava que era
normal, que estava bem, tão normal quanto qualquer pessoa normal.
Mas agora as coisas eram diferentes. Ele tinha passado do mundo do comum para os limites da insanidade.
Tudo em questão de dias.
Quanto tempo é preciso para avançar o limite? Sempre existe um momento para isso, como se fosse uma avalanche, sempre aqueles poucos flocos de neve inconsequentes que fazem
toda a diferença.
E, então, depois que a avalanche começa, não há como detê-la.
Daniel não conseguia deixar de pensar se uma dessas visões não faria isso, empurrá-lo para além do limite, de uma forma que ele não conseguisse se recuperar.
Depois que se entra na loucura, será possível sair dela?
Uma terra cinzenta.
Preso entre o preto e o branco.
Entre o bem e o mal.
Um pensamento aterrorizante.
Ele procurou informações na internet sobre os pesadelos diurnos e os noturnos, descobrindo que as pessoas normais, de maneira típica, têm alguns pesadelos perturbadores por
ano. As pessoas artísticas e extraordinariamente criativas - pintores, escultores, compositores, romancistas - podiam ter vários deles por mês.
Os esquizofrênicos podem ter diversos sonhos vívidos e perturbadores por semana.
Alguns enquanto estão acordados.
Parecia que a barreira entre a realidade e a fantasia era mais espessa para algumas pessoas que para outras. E, para ele, ela estava se tornando cada vez mais fina.
Ou talvez nem existisse mais.
Com isso em mente, foi levar o lixo para fora e viu que a porta da frente estava fechada e trancada.
Papai fez isso para que você não saísse. Se você tiver uma crise de sonambulismo, não vai poder sair.
É claro, seria impossível para um sonâmbulo destrancar uma porta, em vez de simplesmente abri-la. Ainda assim, pelo que Daniel sabia, seu pai não costumava trancar aquela
porta, e o fato de ter feito isso naquela noite só confirmava o quanto ele estava preocupado.
De volta, depois de ter cuidado do lixo, Daniel tentou passar uma mensagem para Stacy.
Nenhuma resposta.
O colchão ainda estava úmido da noite anterior, então ele tornou a ir para o seu saco de dormir.
Antes de fazê-lo, empurrou a cômoda para a frente da porta de seu quarto. Ele não sabia se isso ajudaria, mas caso tentasse sair durante a noite para procurar o corpo de Akira,
isso o impediria por algum tempo.
42
Nada de sonambulismo na noite passada.
Felizmente.
Na escola, Kyle pediu-lhe novamente para apresentá-lo a Stacy, e Daniel prometeu que faria isso, embora soubesse que ia ser uma conversa esquisita, pois ela o havia deixado
esperando na noite de sábado.
- Lembra nossa conversa sobre a visita ao cemitério? - perguntou Kyle.
- Lembro.
- Acho que podemos ir esta tarde depois do seu treino de futebol. Eu trabalho algumas horas no Rizzo's depois da escola, mas saio às seis.
- No meio da agitação do jantar?
- Ele tem alguém para me substituir.
- Você acha mesmo que vamos encontrar alguma coisa no cemitério?
Kyle deu de ombros.
- Quem sabe. Talvez você encontre algumas respostas.
Daniel lembrou que o cemitério de Santo André constava no folheto distribuído no velório de Emily como o local onde ela seria sepultada.
- E talvez ajude você a não ter mais crises de sonambulismo se for até lá - sugeriu Kyle. - Sabe, se pensar em ir ao cemitério provocou o que você fez na outra noite com o
Akira.
Eles combinaram de se encontrar no cemitério às seis horas.
Depois da terceira aula, Daniel verificou suas mensagens e viu que uma delas era de seu pai. Ele marcara uma consulta com o psiquiatra na quarta-feira seguinte, às quatro
da tarde. "Posso conversar com seu treinador se você quiser, para que ele o libere do treino", escreveu ele.
Daniel tinha perdido o treino na noite anterior, e a perspectiva de perder mais um na semana seguinte não era nada motivadora.
"Que tal amanhã?", respondeu ele ao pai. "Não vai haver aula."
"Já tentei isso. Mas é a única data disponível."
"Eu mesmo converso com o treinador", digitou Daniel.
Ele encontrou Nicole depois das quatro e lhe devolveu o brinco. Eles conversaram um pouco sobre a noite de sábado. Ela lhe agradeceu pelo brinco, e depois que voltou para
a aula, ele pegou o celular. Nada de mensagem da Stacy. Ele não a tinha visto o dia inteiro. Talvez estivesse doente. Ou talvez ela o estivesse evitando de propósito.
Ele se sentiu tentado a procurar por ela nos corredores um pouco mais, mas acabou decidindo que já tinha lhe telefonado, mandado mensagens de texto o suficiente. Se quisesse
conversar com ele, ela tinha o número dele. A essa altura, ela é que devia decidir.
O resto da tarde e do treino de futebol transcorreram de maneira agradavelmente normal. Era bom ver que as coisas não estavam avançando pelo limite entre fantasia e realidade.
Depois do treino, Daniel disse ao treinador Warner que faltaria na quarta-feira seguinte porque tinha uma consulta médica.
- Você foi ao médico ontem - observou o treinador de maneira ambígua.
- Quero dizer... - Daniel não queria explicar por que tinha que consultar um psiquiatra. - Bem, é uma espécie de confirmação.
- Alguma coisa com que eu tenha que me preocupar?
- Não. Estou bom para jogar esta semana. Não se preocupe.
- Mantenha-me informado.
- Prometo.
A caminho do cemitério para encontrar Kyle, recebeu um telefonema do recrutador da Ohio Sate que estivera no jogo da sexta-feira à noite. Ele perguntou como Daniel estava;
o rapaz lhe disse que estava bem, agradeceu ao homem pela atenção e os dois combinaram de entrar em contato novamente na semana seguinte.
A estrada que levava ao cemitério de Santo André se mostrou bem conservada e pavimentada com cascalho assim que ele saiu da estrada municipal e entrou na área do cemitério.
Quando chegou, viu Kyle esperando por ele, com Nicole e Mia a seu lado.
43
Quando eles se cumprimentaram, Daniel soube que Kyle tinha convidado Mia para vir, e esta convidara Nicole.
- Isso me lembra de que as garotas sempre vão juntas ao banheiro - observou Kyle. - Você já imaginou um cara dizendo para o outro "Ei, cara, preciso fazer xixi. Você vem comigo?".
- Ui, isso realmente não seria legal - concordou Mia. - Mas a coisa é diferente com as garotas, não é mesmo, Nicole?
- Sem dúvida.
Mesmo assim, parecia um pouco estranho Mia a ter convidado, e Daniel imaginou que foi só porque ele estaria lá.
Os quatro já tinham estado naquele cemitério, para um projeto da escola na oitava série.
Eles tiveram que copiar as lápides dos túmulos, segurando um pedaço de papel contra a lápide e esfregando um carvão contra o papel para transferir os dados da pessoa morta,
como o nome, a data de nascimento e a de falecimento.
Foi uma tarefa meio macabra, e alguns alunos ficaram realmente assustados com ela.
Daniel tinha copiado a lápide de alguém que morrera em 1924. Era de um bebê que só vivera sete dias.
Emily Jackson tinha vivido 5.250 dias a mais que aquele bebê.
Então, em retrospecto, Daniel se deu conta de que ele tinha vivido 6.103 dias a mais.
Números.
Ele não conseguia deixar de notar os números.
Sim, a Srta. Flynn estava certa quando comentou o registro do blog de Kyle na semana passada, aquele sobre o tempo deslizando pelas encostas do dia. "A areia escorre depressa
para todos nós", ela dissera à classe.
Grão a grão.
Momento por momento.
Escapando.
- Vocês sabem onde é o túmulo da Emily? - a pergunta de Mia ao grupo afastou Daniel de seus pensamentos.
- Não - respondeu Kyle. - Vamos nos espalhar para encontrá-lo. Vamos em pares. Mia, você vai comigo.
- Você é boa nisso? - perguntou Daniel a Nicole.
- Sou, com certeza.
- Deve ser um túmulo recente - observou Mia sombriamente. - Faz só uma semana.
A mesma duração da vida do bebê.
Cara, havia muito em que pensar.
O cemitério era grande e de terreno acidentado, de modo que Daniel percebeu que levaria um certo tempo para descobrir onde Emily estava enterrada. Os pinheiros que cresciam
por toda a área tornariam ainda mais difícil a localização do túmulo.
Crepúsculo.
O sol estava baixo no horizonte, prolongando as sombras.
O que parecia muito apropriado para quem estava num cemitério.
Enquanto procuravam, Daniel começou a conversar com Nicole. Ele não lhe contou sobre as perturbadoras visões que tivera, mas falou que ele e Kyle estavam começando a suspeitar
que Emily tinha sido assassinada.
- Ronnie, o irmão dela, contou-nos que ela sabia nadar.
- Antes de você chegar, Kyle nos disse que vocês dois queriam vir aqui para ver se alguma coisa tinha sido deixada no túmulo - disse Nicole com tranquilidade. - Talvez por
alguém que estava com ela quando morreu.
A maneira como ela disse isso o surpreendeu: Estava com ela quando morreu. Não, com alguém que a assassinou.
- Sim.
- Isso é meio assustador.
- Concordo com você.
- Você acha mesmo que vamos encontrar alguma coisa?
Quando Kyle sugeriu vir ao cemitério, a ideia tinha feito sentido para Daniel, mas agora, quanto mais ele pensava nela, ficava imaginando se a sorte estaria realmente do lado
deles.
Provavelmente não.
- Eu não sei mesmo.
Quando ele mencionou o caderno de Emily e confiou a Nicole que o nome de Kyle tinha sido escrito nas margens, ela lhe contou que tinha ouvido falar que uma caloura tinha uma
queda por Kyle, mas não sabia quem era.
- A irmã de Jessica Tray viu a Emily desenhando corações no caderno certa vez. Deve ter sido para ele.
Eles subiram uma pequena colina e encontraram o túmulo.
O nome de Emily e as datas de seu nascimento e morte estavam numa lápide temporária, bem como a inscrição "Nascida para ser amada". A lápide definitiva ainda devia estar sendo
gravada no granito.
Ao ver o túmulo, Daniel pensou outra vez na mãe de Ronnie e como ela agira estranhamente quando ele esteve lá.
Ela deu à luz esta menina.
E, então, teve que enterrá-la.
Era impossível imaginar como tinha sido duro fazer isso e, a despeito do modo áspero como aquela mulher falara com ele, seu coração pendeu para ela.
Ao lado da lápide provisória havia vários buquês de flores, murchos e batidos pelo vento das tempestades que haviam atingido a área na última semana.
As flores fizeram Daniel relembrar os comentários na página de Emily no Facebook, e como ele havia achado que essa era a maneira pela qual alguém seria lembrado no século
21.
Aparentemente, as duas maneiras, essa e a tradicional, ainda existiam.
E isso era bom.
Alguém tinha fincado um pequeno cata-vento no chão, mas ele estava imóvel na penumbra sem vento. Havia alguns porta-retratos mostrando Emily sorridente e com a marca do estúdio
fotográfico do Sr. Ackerman no canto esquerdo inferior. As fotos estavam em sacos plásticos para protegê-los da intempérie, mas Daniel viu que a correntinha pendia do pescoço
dela em todas as fotos. Dois bichinhos de pelúcia tinham sido deixados no túmulo e estavam molhados e respingados de lama por causa da chuva da outra noite.
Por um instante, nem ele nem Nicole disseram uma palavra. Por fim, eles chamaram Kyle e Mia para que se juntassem a eles.
Juntos, os quatro ficaram mudos ao redor do túmulo de Emily.
- Espere um instante - disse Mia. - Essas flores... eu vi outras parecidas com elas num outro túmulo.
Ela os conduziu pelo cemitério.
Em cima de um túmulo perto da alameda, encostado tranquilamente ao lado da sepultura, havia um buquê de flores idêntico a um dos que estavam no túmulo de Emily.
Na lápide se via o nome de Grace McKinney.
A esposa do Sr. McKinney, o professor de matemática das primeiras séries.
Ela havia morrido dois anos antes.
A inscrição dizia: "Esposa amada, que partiu tão cedo".
- É um pouco estranho, vocês não acham? - disse Mia. - Que estas flores estejam tão frescas quanto as que estão no túmulo de Emily?
- Não sei - replicou Kyle. - O Sr. McKinney provavelmente esteve aqui para colocar flores no túmulo da Emily e aproveitou para trazer algumas também para sua esposa. Ou vice-versa.
- Ele era professor da Emily - lembrou-lhes Daniel. - Não há nada de estranho em colocar flores no túmulo dela.
Ninguém lembrou como Grace McKinney tinha morrido.
- Ela não morreu apenas - disse, por fim, Daniel. - Lembram? Ela se afogou.
Nicole ficou olhando para o túmulo.
- Isso mesmo. Na piscina deles, não foi? Ela mergulhou e bateu a cabeça no fundo.
- Foi isso mesmo - replicou Mia. - Pelo menos é o que dizem.
- Você não está achando que... - Nicole começou a dizer.
- Não sei.
Daniel voltou com eles para o túmulo de Emily, e Nicole e Mia tentaram tirar a lama dos bichos de pelúcia que ali tinham sido deixados.
- Podemos fazer uma coisa? - disse Nicole, aninhando o ursinho de pelúcia com delicadeza em seus braços. - Dizer uma prece ou algumas palavras ou... não sei o quê. Mas parece
que devíamos...
Mia se virou para Kyle.
- Tome a iniciativa.
Ele ficou um instante pensativo e, então, disse suavemente:
- Quando percorro os caminhos noturnos, encho meus pulmões com fiapos de escuridão; quando caminho pela melodia da aurora, as sombras começam a retroceder... - Ele fez uma
pausa. - Espero que você tenha caminhado pela melodia da aurora, Emily. Espero mesmo.
Grão a grão.
Alguns momentos passam.
E, então, todos nos vamos.
Nicole pousou o ursinho de pelúcia.
- Será que alguém foi capaz de descobrir se Emily caiu do penhasco? Quero dizer, ela deve ter quebrado alguns ossos quando caiu na água ou ter machucados internos.
- Acho que teríamos ouvido falar disso se ela estivesse com algum osso quebrado - disse Daniel, lembrando que seu pai lhe disse que a autópsia não revelou nada incomum. Ele
preferiu não mencionar a localização dos óculos de Emily, o que indicava que, provavelmente, ela não tinha caído de Windy Point.
Voltando aos carros, Kyle perguntou a Daniel se podia falar com ele um instante, e os dois se afastaram para as garotas não os ouvirem.
44
-Acho que não é como no caso da boneca - disse Kyle.
- O que não é como a boneca?
- O que está acontecendo aqui. Acho que não é como a boneca na janela em Minnesota. Você sabe... da história que lhe contei.
- Acho que não estou entendendo.
Kyle pegou o celular.
- A respeito de uma coisa acontecer e, então, surge uma história e a descobre - disse ele, tocando na tela em busca da calculadora.
- Não, é sério, Kyle, hoje não. Não é hora disso.
- Não, eu só queria lhe lembrar do que você é capaz.
- Eu sei do que sou capaz. Guarde isso.
Ele ergueu o celular e mostrou a tela a Daniel.
- Ouça, sua mente é capaz de fazer cálculos que ninguém mais consegue. Ela faz isso de modo inconsciente, de uma forma que você não entende. Lembra? Como eu com a música.
- Claro, mas o que isso tem a ver com o que está acontecendo aqui?
- Acho que, de alguma forma, você está juntando pistas, coisas que ninguém mais está notando, como a ida de Trevor ao lago, a correntinha que Emily está usando em todas aquelas
fotos.
- Mas como?
Kyle guardou o celular.
- Você está vendo isso tudo, sei lá, no jornal, na internet, lembrando o que você viu na escola, não tenho muita certeza, mas seu cérebro está absorvendo tudo - disse ele,
dando uma pancadinha na fronte. - Você está tentando resolver as coisas, mas tem essas visões. O negócio é que só precisamos decifrar o que a sua mente está tentando lhe dizer.
- E o Akira? Por que você acha que eu fiz aquilo?
- Para nos trazer ao cemitério.
- Mas essa ideia foi sua.
- É verdade - reconheceu Kyle. - Mas talvez, de alguma forma, isso despertou alguma coisa na sua cabeça e você percebeu que vir aqui poderia nos ajudar. Ou, como eu já disse,
talvez tenha a ver com você pensar em Trevor.
- Mas por quê? E por que tudo isso está começando agora?
Kyle balançou a cabeça.
- Para descobrir como Emily realmente morreu? Não tenho certeza. Você disse que era como flocos da realidade se dispersando. Como é quando acontece? Quando você vê essas coisas?
- A realidade fica borrada. Sei que está acontecendo alguma coisa que não devia acontecer, mas todo o resto é igual. Parece completamente real. Soa como uma coisa real.
- E parece concretamente real, como quando seu braço foi ferido.
- Isso mesmo.
- Então, é diferente de um pesadelo diurno ou de uma alucinação. E eu não acho necessariamente que tem a ver com fantasmas - disse Kyle e ficou um instante pensativo. - Vamos
chamar isso de distorção, quero dizer, quando você vê essas coisas.
Mesmo que fosse uma espécie de alucinação, Daniel ficou feliz de ouvir um nome diferente para o que via.
- Distorção me parece legal.
- Acho que devíamos investigar melhor como foi que a Sra. McKinney morreu.
- Também acho - concordou Daniel. - Assim que pudermos.
- Você quer dizer hoje à noite?
- Por que não? Vamos nos encontrar na minha casa?
Kyle ficou pensando na proposta.
- Vamos nos encontrar na minha casa. Assim, o seu pai não vai cruzar conosco acidentalmente e descobrir que você está investigando as coisas.
- Bem pensado.
Como Daniel havia dito ao pai que não continuaria a investigar, sentiu uma pontada de culpa, mas continuar a investigação, descobrir a verdade sobre o que tinha acontecido
a Emily parecia suplantar todo o resto, até a promessa que ele tinha feito.
Antes de saírem do cemitério, disseram a Mia e Nicole o que estava acontecendo, e as garotas pediram para também encontrá-los na casa de Kyle.
- Agora nós também fazemos parte disso - lembrou Mia com firmeza. - Precisamos encontrar as respostas tanto quanto vocês dois.
- Ok - disse Kyle. - Mas antes eu tenho que me ocupar da minha irmãzinha... Preciso contar uma história para ela dormir. Vamos nos encontrar na minha casa em uma hora.
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As paredes do quarto de Kyle, localizado no sótão, eram cobertas de pôsteres de suas bandas favoritas. Sua guitarra elétrica estava devidamente acomodada numa case depositada
num canto, ao lado de sua escrivaninha incrivelmente atulhada.
Mia já estava lá quando Daniel chegou, mas Nicole ainda estava se ocupando de algumas coisas em sua casa.
- Bem - disse Mia -, qual é o plano?
Os três estavam com seus laptops abertos.
Daniel deu a largada.
- Precisamos descobrir o que for possível sobre a morte da Sra. McKinney. Além disso, correm histórias sobre outros afogados em Windy Point. Eu quero saber se é apenas o que
o povo costuma contar, ou se realmente houve outros casos de pessoas que morreram lá.
- Eu me ocupo de Windy Point - propôs Kyle.
- Eu cuido da morte da Sra. McKinney - disse Mia.
- Tudo bem - disse Daniel, avaliando a situação. - Eu vou investigar o passado do Sr. McKinney, ver o que podemos saber sobre ele, se surge alguma coisa suspeita.
Eles trabalhavam em relativo silêncio. Depois de algum tempo, Mia pediu-lhes que lhe dessem mais informações sobre o que estava acontecendo.
- Quero dizer, o que realmente está acontecendo. Existe alguma coisa que vocês não estão me contando?
- Trata-se de suposição ou percepção? - perguntou Kyle.
- Percepção. Eu sou uma garota. Vão em frente.
Devido à pressão, Daniel acabou por falar sobre as alucinações.
Mia ouviu tudo com atenção.
- Uma espécie de macropsia.
- O que é isso?
- Quando eu estava pesquisando para o meu romance sobre coisas inexplicáveis que as pessoas veem, para escrever sobre aparições de fantasmas, deparei-me com um distúrbio realmente
bizarro: a macropsia. Em vez de ver as coisas como elas realmente são, as pessoas que padecem disso veem certos objetos como se fossem enormes. A escova de cabelo de uma garota
pode parecer maior que ela própria. Ou pode parecer que sua boneca é do tamanho da casa; seu cobertor dobrado fica do tamanho de uma montanha. Micropsia é o oposto. A gente
vê as coisas menores do que são.
- E como isso se relaciona com o que está acontecendo comigo?
- Bem, o problema é a percepção e a diferenciação entre o que sua mente está lhe dizendo que é real e o que é efetivamente real.
- Então - perguntou Kyle -, como é que se pode saber se os nossos olhos estão nos enganado?
- Aí é que está o problema. Nossos olhos não nos enganam; é a nossa mente que faz isso. Nós vemos o que os nossos cérebros nos mandam ver, não o que os nossos olhos veem.
É assim que funciona a ilusão de ótica. Seu cérebro está tentando dar sentido às coisas, mas acaba ficando confuso. Muito confuso.
Nicole chegou, e como Daniel havia contado a Mia o que estava acontecendo, fez o mesmo com Nicole.
Ela ouviu em silêncio. Era difícil imaginar o que ela estava pensando.
- Foi por isso que você ficou me perguntando sobre fantasmas e demônios no outro dia?
- Foi.
Por um instante, ninguém disse nada.
- Sabe - disse por fim Daniel -, as flores não foram a única coisa que observei no túmulo da Emily. Havia também os bichos de pelúcia e algumas fotografias do estúdio do Sr.
Ackerman. Ele é o cara que tira as fotos de todos os nossos jogos de futebol. Às vezes ele é visto pelos corredores tirando fotos para o álbum de formatura. Ele foi contratado
para tirar fotos do baile do festival.
- Você está pensando a mesma coisa que eu? - perguntou Mia.
- Não sei. Eu o vi no velório. Se vamos investigar o Sr. McKinney, acho que devíamos fazer a mesma coisa com relação ao Sr. Ackerman.
- Vou pesquisar sobre o estúdio dele na internet - propôs Nicole - para ver se acho alguma foto da Emily ou da Sra. McKinney.
Eles começaram a pesquisar.
O tempo passou.
O Sr. Ackerman?
O Sr. McKinney?
Seria mesmo possível que um deles tivesse matado a Emily?
Mas e quanto a Grace McKinney? A morte dela estaria ligada à de Emily?
Perguntas demais, respostas de menos.
Por fim, eles se reuniram num círculo para compartilhar o que haviam conseguido.
- Bem - disse Mia -, pelo que encontrei na internet, a Sra. McKinney estava nadando sozinha quando se afogou. O marido estava no porão trabalhando num projeto em madeira,
pelo menos foi o que ele contou à polícia. Ele disse que, pela janela, viu-a mergulhar, mas sem voltar à superfície. Quando chegou à piscina, já era tarde demais para salvá-la.
Nicole olhou para ela inquisitivamente.
- Vamos dizer que ele esteja mentindo. Que motivos ele teria para isso? Havia algum seguro de vida ou uma herança no caso de ela morrer?
- A internet não diz nada. Parece que ele nunca foi tido como suspeito.
- Mas e quanto à Emily? - perguntou Kyle. - Se ele realmente matou as duas, seria preciso outro motivo para matar uma garota de sua classe, certo?
- Acho que sim - concordou Mia. - Sim, isso faz sentido.
- Os motivos são como as enguias - disse Daniel, lembrando-se de uma coisa que seu pai certa vez lhe dissera. - Elas são escorregadias e agitadas, e quando você acha que as
está segurando, elas escapam. Foi ambição? Foi raiva? Ódio? A gente sempre acaba decepcionado quando tenta descobrir os motivos que movem as pessoas, e sempre existe mais
do que um como possibilidade.
Kyle não descobriu nenhuma evidência de que outras pessoas tivessem morrido em Windy Point. Pelo que conseguiu apurar, os boatos e lendas não passavam disso: o tipo de história
inventada que acaba por adquirir vida própria, como as histórias sobre a boneca na janela em Janesville, Minnesota.
- Ok - disse ele, voltando-se para Daniel. - O que sabemos sobre o Sr. McKinney?
- Nada de muito útil. Do que pude verificar em seus perfis nas redes sociais, seus hobbies são caça ao cervo, pescar e explorar cavernas; ele gosta de música country e filmes
de Jason Statham, e se mudou para a nossa cidade três anos atrás. É membro da Whitetails Unlimited, declara não ter nenhum relacionamento atualmente, sem filhos, graduado
com honra pela UW-Madison doze anos atrás.
- Então, nada de especial - disse Mia.
- Nada.
Com mais nada a informar sobre o Sr. McKinney, Daniel desviou o rumo da conversa.
- Ainda quero saber como Ty descobriu o que estava escrito no caderno de Emily.
- Não há nenhum mistério nisso - replicou Mia. - Acho que um daqueles caras que andam com ele tem um irmão que é calouro. Mesmo Emily não sendo popular, teria sido fácil para
ele ficar sabendo de alguma coisa.
Nicole disse o que descobriu sobre o Sr. Ackerman: não havia nenhuma foto da Sra. McKinney ou de Emily em seu site. Ela não achou mais nada de anormal nele. Nenhuma ligação
entre ele e a Sra. McKinney além de seu estúdio ficar perto da casa dela.
Quando Nicole terminou, todos processaram as coisas por um instante; então, ela olhou no relógio e lhes disse que precisava ir para casa.
- Eu a levo até o carro - ofereceu-se Daniel, pegando sua jaqueta.
***
A noite estava uma pouco fria.
Ele ofereceu a jaqueta a Nicole e ela a colocou sobre os ombros.
- Obrigada.
- De nada.
- Deve ter sido horrível ver essas coisas - disse ela. - Fantasmas ou seja lá o que for.
- Distorções.
- Distorções?
- É o termo que o Kyle inventou. Parece servir. É quando a linha entre o real e o que não pode ser real fica indefinida para mim.
Ou, na verdade, essa linha nem existe.
- Ouça - disse ela -, lembra quando eu disse que Jesus provou a seus discípulos que não era um fantasma? Como ele lhes disse que o tocassem, pois os fantasmas não têm carne
nem ossos? Foi o que os convenceu de que ele era uma pessoa de verdade depois de ter ressuscitado. Tocá-lo.
- Mas e se o fantasma nos toca? No velório, Emily agarrou meu braço. E deixou uma marca nele. Então, de acordo com o que você está dizendo, isso não deveria ter acontecido,
certo?
E se fossem só alucinações, será que eu sentiria alguma coisa?
Bem, você sentiu a mão dela em seu braço.
É difícil definir as coisas.
- Hum... - Nicole pareceu estar pensando alto. - Não posso dizer que entendo como a coisa toda funciona, mas vale a pena tentar, não é mesmo? Quero dizer, da próxima vez que
você vir Emily, tente tocá-la.
- Você não tem ideia de como essa sugestão é pouco atraente.
- Pensando bem, concordo com você.
A noite se intensificava em torno deles.
Ele não conseguiu se decidir quanto à despedida. Um pequeno abraço seria legal, mas seu nervosismo perto das garotas tornou a assaltá-lo, e em vez de um abraço, ele apenas
colocou a mão suavemente sobre o braço dela.
- Se alguém realmente matou a Emily, nós vamos descobrir quem foi.
- Vamos, sim.
Mia saiu da casa.
- Oi, vocês dois.
Ele percebeu que ainda estava com a mão no braço dela e a tirou rapidamente.
- Oi.
Nicole tirou a jaqueta e a devolveu a ele.
Daniel refreou o abraço, todos se desejaram boa noite, e, então, voltou para o quarto de Kyle para conversarem antes de ir embora.
46
-Amanhã é dia de reunião de pais e mestres - disse Kyle. - Seu pai vai levar você para conversar com algum professor?
- Não. Minhas notas são todas boas.
- As minhas também. Minha mãe está contente com o meu desempenho. Então, o que você vai fazer?
- Bem, nós temos treino de futebol às 15h30, mas é só isso.
- O Sr. McKinney vai estar na escola antes disso. - Havia uma certa sugestão de cumplicidade em sua voz.
- E daí?
- Daí que ele não vai estar em casa.
- Obviamente. Você vai... Oh, você não está sugerindo que nós...
- Estou. Vamos à casa dele, damos uma olhada fora, checamos a piscina em que a esposa se afogou, vamos ver se descobrimos alguma coisa.
- Isso foi há dois anos. Duvido que, a esta altura, vamos encontrar alguma coisa que possa implicá-lo.
- Mas e a janela do porão? Podemos checar se ele estava ou não mentindo quando disse que a viu mergulhar na piscina.
- E se os vizinhos nos virem?
- Talvez a gente só precise passar pela casa. Nada há nada de ilegal nisso. Talvez pela maneira como ela está posicionada, se o ângulo for o correto, nós possamos ver o quintal
de trás da rua. De qualquer maneira, ele vai estar na escola em reunião com os pais. Se ele realmente matou Emily e a esposa, precisamos descobrir o que for possível sobre
ele antes de falarmos com seu pai.
Falar com o pai sobre o que estava acontecendo fazia sentido, mas, naquele momento, tudo o que eles tinham eram conjecturas. Com certeza, precisavam de alguma coisa mais sólida
antes de conversar com o xerife.
- Acho que passar por lá e dar uma olhada na casa dele não vai prejudicar ninguém - disse Daniel. - A que horas você está pensando?
- Bem, eu preciso trabalhar até um pouco mais tarde hoje, e você precisa estar na escola para se trocar para o treino do futebol. Você tem que estar lá um pouco depois das
três?
- Isso mesmo.
- Que tal uma hora?
- Pode ser.
Descobriram o endereço do Sr. McKinney na internet.
- Eu conheço esse bairro - disse Kyle. - Há uma faixa de bosque por trás da casa dele, perto da casa do Sr. Ackerman; uma amiga de Mia tirou fotos como veterana lá na casa
dele. Podemos ir pelo bosque, dar uma olhada e ir embora. Ir e vir. Rápido e limpo.
- Rápido e limpo?
- Eu li isso num livro em algum lugar. O tipo de coisa que um agente do FBI gosta de dizer. Então, o que você acha?
- Sim, pelo bosque parece melhor que passar a pé pela casa. Além disso, deve haver uma cerca em torno da piscina e a gente não a conseguiria ver lá da rua.
- Tudo bem.
- E existe uma rua do outro lado desse bosque?
- Existe.
- Podemos deixar os carros lá - disse Daniel.
- Perfeito.
Essa, provavelmente, não era uma boa ideia de jeito nenhum, mas enquanto voltava para casa, pareceu-lhe que entrar pelo bosque e dar uma olhada na casa não era tão comprometedor.
Especialmente se aquele cara tivesse matado duas pessoas.
47
Todas as luzes estavam apagadas quando Daniel chegou em casa. Ele imaginou que o pai já tivesse ido para a cama, então teve o cuidado de não fazer barulho quando foi para
seu quarto.
Estava para tirar a roupa para se deitar quando ouviu um leve ruído na janela.
E outra vez.
Alguém estava batendo na vidraça.
A única pessoa em quem conseguiu pensar que poderia ser era Kyle, mas isso seria estranho; ele teria mandado uma mensagem antes.
E ele poderia ter vindo até aqui tão depressa?
Seria a Emily?
Outra distorção?
Não lhe agradou muito afastar as cortinas, mas sabia que precisava ver quem - ou o que - estava do outro lado.
Quando estava para fazer isso, ouviu outra batida.
Apreensivo, Daniel afastou as cortinas e viu Stacy Clern do outro lado do vidro.
Ele abriu totalmente a cortina.
- Desculpe se eu o assustei - disse ela.
- O que você está fazendo aqui?
Ele ficou surpreso ao vê-la, ah, ficou sim, mas ela já tinha um antecedente de aparecer tarde em sua casa sem avisar, então não ficou completamente assustado.
- Preciso conversar com você. Posso entrar?
Seu primeiro impulso foi dizer que não.
- O que foi?
- Não quero ficar conversando pela janela - sussurrou ela, e apontou para o peitoril da janela. - Posso?
Não lhe agradava a ideia de deixá-la entrar, mas aquela conversa pela janela não era ideal, e nem a sala de estar, pois poderiam facilmente acordar seu pai.
Ele abriu completamente a janela. Ela recusou a ajuda dele e pulou para dentro sozinha.
- Gosto do seu quarto.
- Obrigado. Então, o que foi? O que é tão importante para você vir até aqui a essa hora da noite?
- Eu não tinha certeza do que fazer, pois você parece ter me evitado na escola.
- Do que você está falando? Eu não evitei você.
- Eu achei que fosse por causa do baile.
- Não, eu estou... O baile?
- Eu pensei que você fosse me telefonar no sábado. Quando estivemos no lago, você me disse que ia me telefonar de tarde.
- Eu tentei. Mandei um monte de mensagens. Você nunca respondeu nenhuma delas.
- Você mandou? - perguntou ela, parecendo confusa. - Eu não recebi nenhuma.
- Nenhuma?
- Foi.
Ele pegou o celular e verificou se tinha anotado o número certo.
- Sim, é esse mesmo - ela lhe disse. - Eu não entendo. Isso é muito estranho.
- Você recebeu mensagens de outras pessoas?
- Recebi. Talvez seja alguma coisa com a operadora.
- Vamos tentar mandar uma agora.
- Meu celular está em casa. Mande-me uma mensagem. Vou verificar quando chegar lá.
Ele mandou a mensagem.
Honestamente, estar em seu quarto sozinho com Stacy o deixava um pouco sem jeito, especialmente porque parecia que as coisas estavam se deslocando em direção a Nicole: amigos,
claro, mas ele sentia que eles estavam se aproximando um pouco mais além da amizade casual.
- Eu estive pensando muito nos óculos - disse Stacy. - Seu pai descobriu alguma coisa?
- Não que eu saiba. Não.
- Você pensou em verificar quando Emily foi ao lago? Talvez possa descobrir quem mais esteve lá ao mesmo tempo.
- Meu pai não quer que eu investigue mais nada - disse ele com franqueza.
- Ah - disse ela, fazendo uma pausa. - Ouvi dizer que você foi ao médico ontem.
Puxa, como as notícias correm!
- Está tudo bem? - perguntou ela.
- Tudo.
Na verdade, eu não tenho certeza. Andei tendo essas distorções.
- Por que a consulta? Por causa do jogo? Por causa da sua cabeça?
- Mais ou menos.
- Mais ou menos?
Ele pensou em como responder, no quanto ele poderia compartilhar com ela.
- Aconteceu uma coisa.
Ela olhou para ele preocupada.
- Você está bem, Daniel? Mas bem mesmo? Parece que alguma coisa está... bem... o que está havendo?
Ele não queria lhe contar sobre as distorções, mas decidiu contar-lhe alguma coisa do que estava acontecendo, por que, pelo menos indiretamente, ele precisou consultar um
médico no dia anterior.
- É por causa do jeito que eu vejo as coisas.
- Do jeito que você vê as coisas?
- O que é real e o que não é.
- O que você quer dizer com isso?
Tentando pensar em como lhe explicar, ele olhou ao redor do quarto e finalmente teve uma ideia. Daniel ergueu um cobertor acima da cabeça, fazendo-o pender verticalmente.
Stacy ficou atrás da escrivaninha dele, com as costas para a parede. Ele notou que ela tamborilava os dedos nervosamente contra a perna.
- Tudo bem - disse ele. - Imagine que tudo do seu lado do cobertor seja real. São as coisas que você consegue ver, sentir o gosto, tocar etc. As coisas que realmente existem.
Do meu lado do cobertor, tudo é...
- Apenas imaginário - disse ela, completando-lhe o pensamento. - Tudo está na sua cabeça.
- Certo. Agora, do que eu descobri na semana passada, a maioria das pessoas possui um belo e espesso cobertor, uma barreira em suas mentes que as ajuda a saber de que lado
elas estão.
Ela o observava com atenção; se ele não soubesse das coisas, teria dito isso com mais cautela.
- Desse modo podemos distinguir o real do imaginário - disse ela.
- Exatamente. Agora imagine que o cobertor é uma cortina de água ou alguma outra coisa através da qual se possa ver, mas tudo do outro lado está embaçado. Assim, você saberia
que o outro lado está lá...
- Mas a gente seria capaz de distinguir um lado do outro - disse Stacy, com uma voz um pouco aliviada. - A diferença poderia ser notada.
- Isso mesmo.
- E é esse o seu caso?
Uma pausa.
- Não. Não exatamente - disse ele, deixando cair o cobertor. - Acabou.
- O cobertor se foi?
- Sim.
- Completamente? - perguntou ela, aproximando-se de Daniel de maneira quase imperceptível.
Ele confirmou com um movimento de cabeça.
Um breve silêncio.
- Isso a assusta? - perguntou ele.
Ela não respondeu, mas disse:
- Como é que você pode dizer que isto é real? Que eu estou realmente aqui, na sua frente, neste exato momento?
- Eu sei que está - disse ele.
Mas ele não sabia nada. Não tinha certeza de nada.
Não depois de perceber que estava ficando louco - pelo menos, essa era a única explicação em que ele podia pensar, pois, de acordo com a neurologia, não havia nada de fisicamente
errado com seu cérebro.
Mas ele não estava a fim de se abrir totalmente com Stacy naquela noite.
- Acho que é melhor eu ir embora - disse ela, parecendo ter ficado repentinamente pouco à vontade por estar ali com ele.
- Não se preocupe, é só que... acho que estou tentando dizer coisas demais agora.
- Sim - disse ela, aproximando-se da janela.
Ele se ofereceu para ajudá-la a saltar para fora, mas ela olhou para ele de maneira estranha e lhe disse que não era preciso, que ela estava bem e que o veria no dia seguinte;
então, foi embora, deixando Daniel pensando se deveria ter dito a ela o que disse, e qual seria o próximo passo para descobrir o que estava acontecendo.
Os bichos de pelúcia, as flores no túmulo, os óculos quebrados, a correntinha, os indícios que apontavam para o Sr. McKinney - tudo isso o intrigava e o deixava confuso.
Talvez você deva descobrir quem pode ter estado no lago no dia em que Emily despareceu, como Stacy sugeriu.
Como?
Ele não sabia.
Mais uma vez ele ouviu, vinda de algum lugar de dentro dele, uma voz lhe dizendo para não desistir. Concentre-se nisso. Busque a verdade. Descubra o que aconteceu.
Sim.
Amanhã.
Visitar a casa do Sr. McKinney.
Ele e Kyle buscariam a verdade, descobririam o que pudessem e depois se afastariam antes que alguém percebesse que tinham estado lá.
48
Embora não houvesse aula naquele dia, Daniel acordou no horário costumeiro e sentiu-se frustrado por não ter conseguido cair no sono.
Talvez a falta de sono estivesse provocando aquilo tudo.
Distorções.
Pesadelos diurnos.
Preso para sempre num sonho.
Foi até a cozinha no momento em que o pai estava se preparando para sair para o trabalho.
- Você vai conseguir tirar um dia de folga esta semana? - perguntou-lhe Daniel.
- Espero que, pelo menos, amanhã cedo. Ei, pensei que ouvi você conversando com alguém no seu quarto a noite passada. Era com o Kyle?
- Não, eu estava... - ele quase mentiu, quase disse que havia um seminário que tinha que apresentar na escola, que estava praticando, mas desta vez preferiu contar a verdade
ao pai. - Era a Stacy. A garota de quem lhe falei no outro dia.
- No seu quarto? Àquela hora?
- Não foi nada. Nós só estávamos conversando.
- Não gosto que você receba garotas até tarde. Você sabe disso. Não sozinho no seu quarto.
- Eu sei. Desculpe. Foi apenas... Bem, ela surgiu do nada.
- Então, quando é que eu vou conhecê-la?
Daniel lembrou que a última vez que o pai ouvira falar de Stacy foi quando ela não apareceu no baile em que iria com ele.
- Hum... eu vou apresentá-la a você. A próxima vez que ela aparecer.
- Mas não àquela hora da noite.
- Certo.
- A propósito, o FBI me mandou um e-mail esta manhã. As únicas digitais que eles acharam naqueles óculos eram apenas parciais que não puderam ser identificadas, além das suas.
- Foi quando eu os peguei.
- Certo.
- Como é que eles tinham minhas digitais no arquivo?
- Eu tinha. Daquele projeto de criminologia que vocês fizeram ano passado para a aula de ciência política. Eu as incluí quando enviei os óculos.
- Ah.
Outro beco sem saída.
Como Daniel não tinha ido à escola na segunda-feira, seu dever de casa se acumulou, e ele passou a manhã terminando-o para o dia seguinte, a fim de que estivesse livre aquela
tarde para a excursão à casa do Sr. McKinney com Kyle.
Nicole tinha lhe passado os deveres, e agora tinha que ler os dois capítulos que a Srta. Flynn tinha pedido para sexta-feira.
Poesia.
Honestamente, Daniel nem entendera alguns dos poemas. Contudo, em vez de analisá-los, a Srta. Flynn normalmente preferia que os poemas falassem por si mesmos e não oferecia
nenhuma explicação analítica como outros professores pareciam fazer. Assim, pelo menos, ele não teria que dissecá-los.
Considerando as coisas pelas quais ele vinha passando ultimamente, um deles realmente o impressionou.
Existe um momento além deste momento,
eu o sinto, frágil, delicado e esperançoso,
Tirado suavemente do tecido do
manto do tempo. Eu o toco, observando
as pontas de meus dedos em suas promessas.
E alguma coisa se agita dentro de mim
vagando,
flutuando
e desvairando.
Seria porque
tudo é realmente importante?
O vento tem gosto
de liberdade com um toque de primavera
nesta época do ano.
ALEXI MARENCHIVEK
Quando ele o leu, não tentou entendê-lo palavra por palavra, preferindo "beber sua essência", como dizia a Srta. Flynn. "Parem de tentar entender os poemas", ela certa vez
lhes disse na aula, "e tentem entender melhor vocês mesmos depois de lê-los".
Bem, ele entendeu uma coisa: não sentia o gosto da liberdade com um toque de primavera há muito tempo, pelo menos desde que soubera da morte de Emily.
A tarde chegou depressa, e às 13 horas encontrou-se com Kyle na rua que corria ao longo da extremidade do bosque atrás da casa do Sr. McKinney.
- Tem certeza de que quer fazer isso? - perguntou Kyle.
- Não, não tenho. Mas quero respostas. E se pudermos descobrir alguma coisa enquanto ele estiver fora, podemos contar ao meu pai e fazê-lo investigar. Mas acho que precisamos
confirmar que o Sr. McKinney não está em casa antes de fazermos qualquer coisa.
- Não tenho certeza de como podemos fazer isso sem batermos na porta dele, e isso pode ser um pouco contraproducente.
- Que tal se fizermos isto? - propôs Daniel. - Ligamos para a escola, perguntamos se ele está lá, dizemos que precisamos mudar o horário de um pai com ele esta tarde, alguma
coisa assim.
- Ótimo - disse Kyle, que pegou seu celular e, sem hesitar, descobriu o número e ligou para a secretaria da escola. - Alô - disse ele, tentando disfarçar a voz, mas soando
mais como se tivesse alguma coisa presa na garganta que como o pai de algum aluno. - O Sr. McKinney está aí? Preciso remarcar um horário de uma reunião sobre o meu filho para
um pouco mais tarde.
Ele ficou esperando uma resposta e, então, disse:
- Só um instante, nosso bebê está chorando. Eu volto a ligar. Obrigado.
E desligou.
- Ele está lá.
- Tudo bem - disse Daniel. - Vamos lá.
49
Enquanto caminhavam pelo bosque, Daniel disse:
- A Stacy foi à minha casa ontem à noite depois que eu cheguei.
- Mesmo? Stacy aparecendo no meio da noite na sua casa. Deve ter sido sensacional.
- Ela foi me perguntar sobre os óculos.
Daniel não teve a intenção de dizer isso. A coisa apenas escapou, e só quando Kyle lhe perguntou a que óculos ele estava se referindo é que ele se deu conta do que tinha dito.
Ele respirou fundo e explicou tudo sobre os óculos quebrados que tinha achado na margem do lago, sobre a lente desaparecida, sobre como o FBI os tinha examinado à procura
de impressões digitais, mas só tinha conseguido identificar as dele.
- Por que você não me contou isso antes?
- Acho que foi por causa da promessa que fiz a meu pai e que eu estava tentando manter.
- Bem, isso torna a morte dela ainda mais suspeita.
- Eu sei. De qualquer modo, como eu estava dizendo, Stacy me perguntou a respeito deles. Aparentemente, ela achou que eu a estivesse evitando, pois não recebeu nenhuma das
minhas mensagens no sábado, você sabe, quando eu estava tentando entrar em contato com ela sobre o baile. Acho que alguma coisa está errada com a conta dela, com a operadora
ou algo assim.
Quando disse isso, lembrou que ainda não tivera retorno depois de lhe passar uma mensagem na noite anterior; era possível que ela também não tivesse recebido essa.
- Ela sugeriu - prosseguiu Daniel - que a gente tente descobrir quem mais estava no lago quando Emily foi para lá.
- Faz sentido. Mas como?
- Ficar perguntando por lá, eu acho. Não tenho certeza.
- Bem, o que você está achando dela?
- Da Stacy?
- É.
- O que você quer dizer com isso?
- Quero dizer se você ainda quer sair com ela.
- No lugar da Nicole?
- É isso aí.
Eles já estavam quase no fim do bosque, e Daniel pôde ver os fundos da casa do Sr. McKinney. Parecia haver uma cerca de madeira, talvez com 1,20 m de altura, ao redor da piscina.
- Eu não sei. Não tenho certeza. Achei que a Stacy estivesse me evitando, mas agora acho que não. Com tudo o que está acontecendo, esta é uma semana difícil para resolver
as coisas.
- Concordo.
Depois de verificarem a área, para terem certeza de que não havia ninguém por perto, entraram na casa do Sr. McKinney, aproximaram-se da piscina e viram que estava vazia.
Aparentemente, havia sido esvaziada para o inverno e se abria diante deles como uma boca gigante, aberta, faminta e esperando. Nada de trampolim. Uma marca de água embolorada
corria pelo interior da borda.
Ao olhar para a casa, Daniel viu que uma das janelas do porão realmente dava para a piscina, então era possível que o Sr. McKinney tivesse dito a verdade. Contudo, com a cerca
ao seu redor, a piscina não parecia oferecer o ângulo certo para que ele tivesse visto a esposa saltar do trampolim.
Kyle devia estar pensando a mesma coisa.
- Talvez ele tenha construído a cerca depois que ela se afogou.
- Talvez.
Daniel imaginou a piscina cheia de água e a aparência que devia ter o corpo da Sra. McKinney no fundo dela. Por um instante, a imagem se tornou terrivelmente real - não tão
distante quanto as distorções quando ele vira Emily, mas a água, o corpo e até o verão varrendo o bosque surgiram diante dele e...
- Você está bem, cara?
Ele desviou o olhar da piscina.
- O quê?
- Você. Você está bem? Eu estava perguntando sobre o porão.
- O porão?
Kyle apontou para uma entrada externa para o porão, uma daquelas portas duplas de madeira que abrem para fora para que se tenha acesso à escada para o porão. Havia um cadeado
no fecho, mas não estava fechado.
- O que exatamente você está me perguntando? - disse Daniel, mas achou que já sabia.
- O que você acha? Só dar uma olhada?
- Lá dentro?
- Para verificar o ângulo, sabe, da janela do porão para a piscina.
Daniel e Kyle ficaram olhando os degraus por um longo tempo.
A esposa do Sr. McKinney estava morta.
Emily estava morta.
Mas não havia provas de que tivessem sido assassinadas.
Talvez ele tenha alguma coisa que revele que estava no lago; talvez tenha ido lá pescar ou alguma outra coisa no dia em que Emily morreu. Isso poderia ser suficiente para
seu pai começar a investigar.
- Ele está na escola. Podemos dar uma entradinha - disse Kyle. - Ele nunca vai saber.
Você examinou o quarto da Emily. Isto não é diferente.
Bem, na verdade é.
Esgueirar-se na casa de alguém era muito mais que apenas abrir a porta errada a caminho do banheiro.
- Não existem provas suficientes que apontem para ele ainda - disse Kyle, olhando para o cadeado aberto. - Não há jeito de seu pai vir aqui, conseguir um mandado de busca
ou alguma outra coisa. Nós estamos aqui, o Sr. McKinney não está. Esta é a nossa chance de conseguir alguma resposta.
Daniel verificou a vizinhança. Parecia que só umas duas casas davam para os fundos da casa do Sr. McKinney, mas não havia ninguém nelas. As venezianas pareciam estar fechadas.
A única forma de parar com aquelas distorções era descobrir o que estava acontecendo.
E a única forma de fazer isso era eliminar o Sr. McKinney como suspeito.
Esta poderia ser a única chance de eles fazerem isso.
Aproximaram-se da casa, e Daniel tirou o cadeado do fecho.
Abriu as portas e eles começaram a descer os degraus para o porão do Sr. McKinney.
50
O ar do porão era bolorento e úmido, cheirando vagamente a fruta podre.
Kyle fechou as portas atrás deles.
Uma leve réstia da luz do sol conseguia penetrar pelo espaço entre as portas. Isso e mais duas pequenas janelas sujas nos lados opostos do porão proporcionavam luz suficiente
para enxergarem.
Desceram as escadas.
Os blocos de concreto que formavam as paredes estavam se desagregando em alguns lugares, deixando escapar areia, que se acumulava em pequenos montes no chão.
Uma velha prateleira de madeira com potes e vidros de conservas de fruta se estendia por uma das paredes.
Uma espessa camada de poeira havia se instalado entre eles; devia estar lá há muito tempo mesmo, pois as tampas de metal da maioria dos recipientes estavam enferrujadas ou
cobertas por algum tipo de corrosão.
Havia uma fornalha no fundo do porão, com uma bancada de trabalho a seu lado. Acima da bancada, uma prateleira com uma porção de ferramentas: chaves de fenda, alicates, martelos
e outras. Algumas pareciam fora de moda, talvez com décadas de idade.
- Aquela janela só abre para o lado - observou Kyle.
- É verdade.
Eles foram até ela para olhar a piscina.
Sim, a cerca era visível, mas ver alguém mergulhar na piscina? Seria preciso um grande esforço para isso.
Projetos de trabalho em madeira por terminar se espalhavam pela bancada. Uma pilha de serragem de quase meio metro de altura tinha se formado embaixo de um torno preso a um
banco e que devia ser usado para segurar as tábuas que o Sr. McKinney cortava com um serrote guardado ali perto.
Espalhados pelo porão, havia pedaços de móveis velhos, caixas de papelão guardadas em pilhas de 1,5 metro a 2 metros, prateleiras com livros empoeirados e cobertos de fungos.
Uma pequena fornalha bojuda estava encosta na parede, perto da escada.
Daniel reconheceu um equipamento para a exploração de cavernas: cordas, joelheiras, um capacete, lâmpadas de cabeça, um estojo de primeiros socorros em cima das prateleiras.
Duas caixas de equipamento de pesca e algumas varas de pescar estavam ao lado dele.
Ele procurou ouvir atentamente algum movimento na casa acima deles, mas não ouviu nada. Contudo, escutou alguma coisa no porão: o som fraco de algo arranhando a parede perto
da prateleira com as conservas.
Quando se aproximou para investigar, um rato saiu do esconderijo, correu ao longo da parede e desapareceu num buraco de um bloco de concreto.
Então, tudo ficou em silêncio.
Daniel não queria examinar todas as caixas empilhadas no chão, mas caminhou por todo o perímetro do porão examinando as prateleiras em busca de algum item que não deveria
estar lá - especificamente lúgubres lembranças que um assassino pudesse guardar, como as roupas ou as joias de uma garota. Mas não achou nada.
Vá lá para cima. Ver se há algum indício do esquema dele.
Não!
Sim. Você já está na casa dele. Que diferença faz? Você está aqui. Tire vantagem disso. Descubra o que puder.
Talvez ele estivesse pronto para fazer isso.
Talvez não estivesse.
Em todo caso, quis se assegurar de que ninguém tivesse chegado ou estivesse para chegar.
A janela que eles já tinham verificado localizava-se no fundo da casa. A outra ficava do outro lado do porão, bem no alto da parede. Fazia sentido que ela tivesse uma vista
do jardim da frente e da saída da casa se pudesse subir o suficiente para olhar por ela.
Daniel colocou um caixote debaixo da janela estreita e suja, subindo nele.
Ele afastou algumas teias de areia que cobriam seu lado do vidro e olhou para fora.
Embora não conseguisse enxergar muito, foi capaz de ver a entrada para a casa sem pedregulhos.
- Vamos dar uma olhada rápida lá em cima e dar o fora daqui - disse ele.
- Agora mesmo.
Daniel recolocou o caixote no lugar e eles cruzaram o porão em direção à porta de madeira que subia para a parte principal da casa.
Então, começaram a subir em direção da fresta da luz que se infiltrava pela porta no topo da escada.
51
Embora Daniel acreditasse que o lugar estivesse vazio, agiu lentamente e fez o mínimo possível de barulho, numa resposta natural de alguém que está em casa alheia naquela
situação.
O sexto degrau a partir de baixo rangeu ao ser pressionado por ele.
Quando chegou ao último degrau, sentiu um certo mal-estar quando girou a maçaneta e abriu a porta.
A cozinha.
Pratos na pia, uma mesa com quatro cadeiras, armários fechados. A luz estava apagada, mas a janela acima da pia deixava entrar a luz do sol da tarde.
A porta da geladeira estava cheia de ímãs segurando uma lista de compras e uma variedade de fotos, de listas de coisas por fazer, quadrinhos cômicos e lembretes.
Num breve espaço de tempo, ele contou 28 ímãs segurando 19 objetos.
Procurou um item na lista de coisas a fazer que mencionasse uma pescaria no dia em que Emily desapareceu, mas não encontrou nenhum.
O fogão tinha uma frigideira sobre uma das bocas e uma chaleira sobre a outra.
Fecharam a porta do porão. Daniel não notou nada de extraordinário. Tentou a porta perto da geladeira e viu que ela se abria para a garagem vazia.
Kyle examinou as fotos e as notas na porta da geladeira.
- Está vendo alguma coisa? - perguntou Daniel.
- Nada de comprometedor. Nada ainda.
A sala de estar também parecia normal. Tudo estava quieto. Tudo normal.
Um relógio na parede marcava os segundos. Era um daqueles sons com que alguém morando sozinho numa casa provavelmente se acostumasse, mas para Daniel o som estava cem vezes
mais alto.
Era como o ruído do trem que cruzava a cidade - ele tinha se acostumado de tal modo que nem o notava mais, a menos que alguém lhe chamasse a atenção para o som.
Mas se você fosse novo na área, acabaria por ouvi-lo.
Tique.
Ele olhou para o corredor, para as fotos que se alinhavam pela parede.
Taque.
Começou a estudar as fotos.
Havia uma foto de casamento e outra da Sra. McKinney ao lado do marido na encosta de uma montanha. Ao lado havia duas fotos de cavernas subterrâneas. Das vezes em que Daniel
tinha estado na Caverna do Lobo com o pai, reconheceu as imagens como sendo de duas de suas principais câmaras. Em uma das fotos da caverna, o professor de matemática estava
com o fotógrafo da escola. A última foto mostrava o Sr. McKinney e o coordenador de ataque de Daniel, o treinador Jostens, junto a um lago segurando um peixe que um deles
devia ter pescado.
Então eles eram amigos.
Daniel não sabia disso.
Enquanto olhava ao seu redor, seu coração pareceu encontrar um novo ritmo, batendo em sincronia com o relógio da parede.
Tique... taque... tique... taque.
A porta do banheiro no final do corredor estava parcialmente aberta. A porta ao lado dela...
Tique.
Provavelmente fosse a do quarto principal.
Taque.
Enquanto esperava Kyle, entrou no quarto principal e o examinou. Quando Kyle chegou, Daniel atravessou o quarto, enquanto o amigo examinava o guarda-roupa do aposento.
No escritório do Sr. McKinney, Daniel encontrou três prateleiras de livros num semicírculo em torno de uma mesa de computador de madeira feita à mão com um modelo antigo de
laptop e uma impressora. Diante da mesa, uma cadeira giratória. A seu lado, um cesto cheio até a metade de papel amassado.
Uns 12 anuários de escola secundária estavam dispostos numa das prateleiras; os três últimos eram de Beldon High. Os outros eram de Roosevelt High e Coulee High, duas escolas
da região. O Sr. McKinney devia ter lecionado primeiro em Coulee, antes de passar um ano na Roosevelt e, depois, transferir-se para Beldon. Uma foto de um clube de matemática
com o emblema de uma cobra enrolada no nome do time - The Adders -, do ano em que ele estava na Roosevelt, era vista em cima da mesa.
Um suporte de armas exibia uma escopeta e dois rifles de caça.
Não havia agendas que pudessem dar indicação de ele ter estado no lago Algonquin. Depois de um breve debate interno, Daniel pegou alguns papéis que estavam no cesto, mas não
descobriu nada.
Ao contrário do quarto de Emily Jackson, o escritório não era impecavelmente ordeiro.
Apenas normal.
Tudo parecia total e notavelmente normal.
- Ei - chamou Kyle do quarto. - Venha aqui. Descobri alguma coisa.
Quando Daniel juntou-se ao amigo, viu a porta do guarda-roupa aberta e Kyle ajoelhado no chão ao lado de uma caixa de sapatos.
A tampa estava do lado.
A caixa estava vazia, mas havia três celulares no carpete.
O invólucro cor de rosa de um deles e os adesivos e acessórios dos outros dois deixavam claro que não eram aparelhos de um homem adulto.
52
Daniel agachou-se ao lado do amigo.
- Isto não é nada bom.
- Isso mesmo. Por que um cara que não tem filhos teria os celulares de três garotas escondidos no armário?
- Neste caso, só consigo pensar em um motivo.
- Eu também.
- Precisamos contar ao seu pai.
- Contar o quê? Que invadimos a casa do Sr. McKinney e encontramos três celulares no quarto dele? O que é que ele vai achar disso? Não é crime ter telefones velhos em casa.
- Depende de quem são seus donos.
Daniel se deu conta de que os telefones estavam no chão.
- Espere, você os tirou da caixa ou já tocou neles?
Kyle mordeu o lábio.
- Cara, eu não pensei nisso. Eu só... - disse ele, com o tom de voz ficando mais intenso. - Agora eles estão cobertos com as minhas digitais, não é mesmo?
- Talvez. Não sei. Depende - respondeu Daniel, mas, para dizer o mínimo, não era uma boa coisa que Kyle tivesse mexido naqueles aparelhos. - Você tentou ligá-los para ver
de quem são?
- Não.
Daniel colocou a mão embaixo da fralda da camisa para que não tivesse que tocar diretamente em nenhum dos telefones.
Ele pressionou a tecla "liga" de cada um deles e esperou.
Ou as baterias tinham acabado ou tinham sido removidas, pois nenhum deles ligou.
- Faz sentido - disse Kyle. - Eu ouvi dizer que as operadoras conseguem localizar os celulares mesmo quando estão desligados.
Ainda evitando tocá-los diretamente, Daniel colocou os telefones na caixa de sapatos e guardou tudo.
Embora ele e Kyle estivessem na casa do Sr. McKinney, se os celulares apresentassem as digitais de Kyle, isso poderia implicá-lo. Limpá-los poderia remover suas digitais,
mas também as do Sr. McKinney se estivessem lá, o que provavelmente era o caso.
Um advogado poderia argumentar que Kyle os tinha posto lá, que os tinha plantado lá.
- Será que eu vou ter que especificar o óbvio? - disse Kyle.
- São três telefones.
- O que significa que três garotas...
- Isso mesmo - disse Daniel, fechando o armário. - Havia mais alguma coisa lá que...
Mas antes que pudesse concluir a frase, ouviu barulho de passos lá na entrada da casa e o ranger simultâneo da porta da garagem.
O Sr. McKinney tinha voltado para casa.
53
-Podemos sair pelo porão - disse Daniel. - Vamos embora.
Kyle desapareceu dentro do armário com a caixa de sapatos e, quando voltou, correram para o corredor.
Quando chegaram à metade do caminho para a cozinha, a porta da garagem estava começando a se fechar.
Não, não, não!
- Corra - sussurrou Daniel todo agitado.
Correram pela cozinha em direção à porta do porão. Kyle abriu-a. Quando entraram, a porta do carro bateu na garagem.
Em silêncio, Daniel fechou a porta do porão atrás dele e eles começaram a descer as escadas, andando com o maior silêncio possível.
Ele ouviu a porta que ia da garagem para a cozinha se abrindo.
- Olá? - disse o Sr. McKinney para a casa vazia.
Como é que ele sabia que havia alguém lá?
Alguém te viu entrar e foi avisá-lo!
Daniel contou os passos. O sexto degrau é aquele que range!
Kyle estava à frente, e Daniel colocou a mão no ombro do amigo para detê-lo, mas foi tarde demais. Ele pôs pressão no degrau, que fez o mesmo barulho de quando os dois estavam
subindo a escada.
O coração de Daniel quase parou de bater.
Ele e Kyle congelaram.
Os passos começaram a atravessar a cozinha.
- Vamos - disse Daniel, fazendo o possível para manter a voz baixa.
Os dois rapazes se apertaram no resto da escada e correram pelo portão. Os degraus que levavam para fora foram galgados com toda a rapidez.
- Tem alguém aí embaixo? - perguntou o Sr. McKinney em voz alta.
Kyle empurrou a porta do porão, eles saíram e Daniel a estava fechando quando ouviu a porta da cozinha para o porão se abrindo.
Esperando que o Sr. McKinney não tivesse visto nenhuma luz descendo pelos degraus do porão, atravessaram o quintal em direção ao bosque e mergulharam atrás de dois grandes
carvalhos para tomar fôlego e se assegurar de que a área estava livre antes de prosseguirem pelo mato.
Respire, respire, respire.
Daniel sentiu o pulsar da adrenalina, exatamente como durante os jogos. Seu coração batia, acelerava e depois se acalmava no peito.
Você precisa verificar se ele está vindo atrás de vocês.
Não. Espere aqui. Não se mova...
Mas ele poderia vir pelo gramado. Você precisa olhar. Você precisa descobrir se ele os está seguindo.
Daniel finalmente decidiu que precisava verificar antes de continuar avançando pelo bosque.
Lentamente, saiu de trás da árvore para olhar.
O Sr. McKinney estava em pé perto da porta do porão, olhando diretamente para eles no bosque.
Daniel voltou rapidamente para trás da árvore.
Não, não, não!
Ele viu você, viu sim!
Não, ali no bosque havia sombras demais, ele não teria conseguido ver.
Não, ele viu!
Olhou na direção de Kyle, ergueu uma das mãos no ar e pôs o indicador da outra contra o lábio, fazendo-lhe sinal para não fazer barulho.
Daniel se esforçou para ouvir qualquer movimento em sua direção, ouvindo um leve roçar nos arbustos e folhas, mas nenhum som de alguém correndo em direção a ele pelo gramado.
Ninguém emitiu som algum.
Ele ficou sentado por um espaço de tempo que lhe pareceu uma eternidade. Kyle também esperou. Nenhum dos dois rapazes mexeu um centímetro do corpo.
Daniel não quis espiar a casa outra vez, mas sabia que, antes de escapar pelo bosque, eles precisavam se certificar de que o Sr. McKinney não estava mais olhando ou vindo
atrás deles. Respirando fundo, olhou cuidadosamente para além da árvore.
Agora o quintal estava vazio.
O Sr. McKinney tornara a entrar em casa.
Chamar a polícia?
Para lhe tomarem a escopeta?
- Precisamos sair daqui - disse Daniel ao amigo, mas Kyle já estava se movendo e não precisava mais se assegurar de nada.
Correram pelo bosque, sem dizer nada, e saíram perto dos carros.
Olhando para trás, Daniel confirmou que ninguém os havia seguido. Não havia carros no restante da rua. Nenhuma sirene de polícia cortava a tarde.
- Um dos vizinhos deve ter nos visto e o chamou - disse Daniel.
- Ou ele saiu mais cedo da escola. Não é longe daqui; talvez ele tenha ficado desconfiado quando eu telefonei para a escola para remarcar uma reunião - disse Kyle, pensativo.
- Eu disse que precisava disso para o meu filho. E se o Sr. McKinney só tivesse alunas marcadas para o resto do dia?
- Acho que isso não seria suficiente para fazê-lo voltar.
- Seja lá o que for, ele suspeitou de alguma coisa; ele chamou para ver se havia alguém na casa assim que entrou.
Daniel decidiu comentar o que tinha descoberto.
- Quando nós estávamos lá, vi uma porção de anuários na prateleira do escritório dele. Eram de diferentes escolas de nossa região.
Ele listou as escolas e os anos acadêmicos dos anuários.
- Precisamos seguir na mesma linha, descobrir se outras garotas desapareceram ou se afogaram quando o Sr. McKinney estava lecionando em suas escolas.
- Legal.
- Só que não dispomos de muita coisa para prosseguir, mas talvez eu devesse contar ao meu pai, ou, pelo menos, podíamos fazer um telefonema anônimo. Pois se o Sr. McKinney
estiver achando que alguém esteve em sua casa, agora mesmo ele pode estar se livrando dos celulares - disse Daniel, observando que alguma coisa estava incomodando seu amigo.
- O que está havendo?
- Não ligue para o seu pai.
- Por que não?
- Você não vai gostar disto.
- Gostar do quê? - perguntou Daniel, começando a imaginar o pior: que Kyle havia deixado as chaves de seu carro na casa ou alguma outra coisa, mas nunca poderia ter imaginado
o que Kyle tinha feito.
O amigo procurou nos bolsos da jaqueta e tirou os três celulares da casa do Sr. McKinney, colocando-os sobre o capô de seu carro.
54
-Você pegou os celulares! - gaguejou Daniel.
- Eu não estava raciocinando. Eles tinham as minhas digitais. Eu surtei.
- Você consegue se dar conta do que fez? Você pegou a prova de uma possível cena de crime, para não falar que agora está de posse de três celulares que provavelmente pertenciam
a garotas que podem muito bem terem sido assassinadas.
- Sei. - Sua voz era suave e baixa. - Como eu disse, eu surtei.
Kyle estava de olho na vizinhança. Ele viu um sedã entrar na rua em que estavam e escondeu rapidamente os telefones em seu carro.
- Se os mostrarmos a Ronnie, ele vai nos dizer se um deles é o da irmã. O carregador ainda deve estar na casa, você não acha? Podemos usá-lo e verificar se há mensagens de
pessoas com as quais ela estava planejando se encontrar no lago.
- Kyle, isso não faz sentido. E depois? O que vai ser? Invadimos a casa do Sr. McKinney outra vez e colocamos os telefones de volta no guarda-roupa? Além disso, se ele achou
que havia alguém na casa, provavelmente já verificou se os celulares ainda estão lá!
- Não se preocupe, ele nunca chamaria a polícia. É sério. Para contar que alguém invadiu sua casa e roubou três celulares que ele tirou de garotas mortas?
- Mas você acabou por se implicar.
- Eu fiz isso quando pus a mãos nos telefones.
Daniel não sabia o que dizer.
Tampouco Kyle.
- Eu preciso ir para o Rizzo's - disse ele por fim. - Não conte nada para ninguém, certo?
- Você está brincando? Para quem eu contaria?
- Vamos conversar depois que eu sair do trabalho, e você, do treino de futebol.
Um pouco confuso, Daniel ficou olhando Kyle se afastar.
Incrível.
O que é que eles iam fazer agora?
Nada lhe vinha à mente.
Pelo menos, nada que os ajudasse a sair do buraco que eles mesmos cavaram.
***
Sua cabeça não estava no treino. Havia muitas outras coisas em sua mente. Tudo parecia se resumir em como juntar as coisas e separá-las ao mesmo tempo.
Havia os três celulares da casa do Sr. McKinney.
Todos de garotas.
E Kyle os tinha tirado da casa.
Como é que eles podiam pedir que o xerife investigasse o Sr. McKinney se Kyle estava com os telefones?
Então, outro pensamento lhe ocorreu: ele não havia posto o cadeado de volta no trinco quando fugiram da casa. Se o Sr. McKinney notar isso, terá certeza de que alguém esteve
na casa.
Depois do treino, Jostens disse ao time que no dia seguinte estaria fora, mas deu-lhes instruções para prosseguir com o treino.
- Vou estar aqui alguns minutos depois das aulas se vocês tiverem alguma pergunta. Não se preocupem, vou estar de volta na sexta-feira para o jogo. Eu não o perderia por nada
deste mundo.
Quando Daniel saiu do vestiário, ligou imediatamente para Kyle e descobriu que ele ainda estava no trabalho.
- Esqueci que vou sair com a Michele hoje à noite - disse-lhe Kyle. - Não vou poder ir à casa do Ronnie para ver se ele consegue identificar qual dos celulares era o da irmã
dele.
- Bem, eu sei que a mãe dele não vai ficar muito contente em me ver, então não posso pegar os telefones com você e levá-los até lá sozinho, mesmo que eu queira. Além disso,
se ela descobrir que estamos com o celular da Emily, bem, isso poderia gerar todo tipo de mal-entendido.
- É mesmo.
- Vou mandar uma mensagem para o Ronnie. Talvez possamos encontrá-lo amanhã no intervalo entre as aulas. Vou pedir a ele que traga o carregador da Emily.
- Ele vai saber que estamos com o celular dela se você lhe disser isso - observou Kyle.
- Só vou lhe dizer que talvez a gente tenha uma pista. Se nos encontrarmos na biblioteca, eles devem ter cópias dos anuários da escola de anos antes de nossa entrada, quem
sabe, talvez até de outras escolas da nossa área. Deve haver alguma coisa neles.
- Você está me deixando impressionado, cara. Estou vendo que você andou pensando nisso.
- Minha mente não estava no treino hoje de tarde. Além disso, você sabe como os celulares evoluem e mudam de estilo a cada ano ou dois, não é mesmo? Bem, nós temos os celulares.
Pesquise na internet hoje à noite, veja se descobre, pelo formato da entrada do carregador, pelo estilo, ou por qualquer outra coisa, de que anos eles são. Vamos tentar associar
as datas com os casos de garotas que podem ter desaparecido ou morrido nas cidades em que o Sr. McKinney lecionava.
- Isso parece um plano.
Depois que desligaram, Daniel foi para casa e entrou na internet, em busca de listas de aulas dos anos em que o Sr. McKinney esteve nas outras escolas; então, procurou artigos
sobre garotas que podiam ter desaparecido.
Descobriu que, no ano anterior, uma garota da Roosevelt High aparentemente havia se suicidado com monóxido de carbono, ligando o carro na garagem com as portas fechadas, e
que uma garota do Coulee High foi encontrada morta devido a uma overdose de drogas dois anos antes.
As duas haviam morrido em noites em que Beldon High participou de jogos de futebol nas escolas das garotas.
O coração de Daniel pareceu parar e, de alguma forma, acelerar ao mesmo tempo.
Conte ao seu pai. Você precisa contar ao seu pai.
Mesmo? E contar-lhe o quê? Você não tem nenhuma prova de que elas foram assassinadas. Não existem provas. É tudo circunstancial.
Não, não era suficiente, ainda não.
Mas no dia seguinte, quando encontrasse Kyle e Ronnie, ele descobriria mais.
E, então, contaria a seu pai sobre as outras garotas. E sobre o que o Sr. McKinney tinha feito com elas.
55
Quinta-feira.
Daniel acordou com dor de cabeça.
Dores de cabeça fortes haviam precedido cada uma das vezes em que Emily lhe aparecera. Assim, esse era um mau começo para o dia.
Seu pai estava de folga pela manhã e continuava dormindo.
Daniel se levantou, vestiu-se e tomou café da manhã.
Antes de ir para a escola, passou uma mensagem a Ronnie, pedindo-lhe que levasse o carregador. Eles combinaram de se encontrar na biblioteca entre a quinta e a sexta aula.
Durante a manhã, Daniel viu Stacy duas vezes no fim do corredor, mas ela o evitou. E com base no que havia dito a ela na outra noite sobre perder o contato com a realidade,
não ficou exatamente surpreso.
***
Ronnie e Kyle o estavam esperando num canto sossegado da biblioteca, atrás de uma grande fila de prateleiras.
Daniel não viu os celulares e presumiu que Kyle estivesse esperando que ele chegasse para mostrá-los a Ronnie.
Ele não tinha ideia de como Ronnie reagiria ao vê-los.
Como estavam na biblioteca, baixou a voz enquanto pedia a Ronnie que se controlasse.
- Com relação a quê?
- Nós descobrimos uma coisa e não temos certeza absoluta do que significa.
- Você me pediu que trouxesse o carregador do telefone dela. Foi ele que vocês acharam? - Sua voz estava ansiosa e exaltada. - Vocês acharam o celular dela?
- Pode ser. Eu não sei - disse Daniel, fazendo um gesto a Kyle para que lhe mostrasse os aparelhos. Usando uma bandana que trouxera com ele para não deixar mais digitais,
Kyle tirou-os cuidadosamente de sua mochila.
- Esse é o dela! - disse Ronnie, apontando para o modelo mais velho de Samsung Galaxy com capa cor de rosa. - Meu pai deu a ela quando recebeu uma promoção.
- Coloque o carregador na tomada - disse Daniel.
Ronnie encontrou uma tomada junto a uma das mesas de estudo e ligou o carregador.
Os três ficaram olhando, quase sem respirar, enquanto o aparelho começava a funcionar.
A página inicial ficou visível.
Uma foto de um golden retriever.
- Trevor - sussurrou Ronnie.
Não houve solicitação de senha.
Por um instante, nenhum dos rapazes falou. Por fim, Kyle disse:
- Daniel, ele não poderia estar com este celular se Emily tivesse se afogado acidentalmente.
- Concordo.
- Quem? - perguntou Ronnie, ansioso. - Quem estava com ele?
- Depois lhe contamos - replicou Daniel. - Nós precisamos...
- Quem? Diga!
- Psiu! Nós vamos...
- Espere - disse Ronnie de repente, olhando para eles com desconfiança, os olhos arregalados. - Por que são três telefones?
- Não temos certeza - disse-lhe Daniel com franqueza. Ele não quis segurar o celular de Emily, então, como Kyle fizera, usou a bandana sob os dedos quando tocou na tela para
verificar as mensagens mais recentes.
Além das mensagens da mãe de Emily na noite anterior ao seu desparecimento, perguntando-lhe onde ela estava, a última mensagem de texto dizia: "Encontre-me em Windy Pt 6h30.
Kyle G".
Daniel e Ronnie olharam para Kyle com desconfiança.
- Foi você! - gaguejou Ronnie. Embora fosse muito menor, empurrou Kyle com força contra a parede.
- Calma - pediu Kyle, mantendo Ronnie afastado a um braço de distância. - Não fui eu. Verifique o número. Outra pessoa mandou a mensagem para atraí-la até lá.
- Você pode ter usado outro telefone.
- Silêncio - pediu Daniel, segurando Ronnie pelos ombros e o afastando de Kyle. - Não faça a bibliotecária vir aqui. Controle-se. Vamos entender isso.
Ronnie se desvencilhou de Daniel, mas, pelo menos por um instante, não avançou mais contra Kyle, embora o ficasse encarando e parecendo pronto para atacá-lo novamente a qualquer
momento.
Foi preciso apenas um segundo para verificar que o número não era o de Kyle. Daniel perguntou-lhe:
- Haveria algum jeito de a Emily saber que a mensagem não vinha de você? Quero dizer, ela não tinha o seu número verdadeiro, tinha?
- Não. De jeito nenhum.
- Então, de alguma forma, quem mandou a mensagem sabia que ela tinha uma queda por você e...
- Ela tinha uma queda por você? - perguntou Ronnie com rispidez.
- Isso só quer dizer - disse Daniel - que alguém usou isso para fazê-la ir até Windy Point sozinha. Não quer dizer que foi Kyle.
Ele percorreu as outras mensagens e não viu nenhuma outra daquele número. Quando verificou as chamadas feitas e recebidas, o número tampouco apareceu.
- Só temos um jeito de saber que número é esse - disse Kyle, pegando seu celular. - Vamos ligar para ele.
56
Kyle digitou o número.
Ninguém atendeu.
Nada de secretária eletrônica.
Nenhuma surpresa.
Quem mandou a mensagem podia ter facilmente usado um telefone pré-pago e o destruído; talvez a pessoa - ele ou ela - simplesmente não estivesse atendendo.
Os três rapazes só tinham alguns minutos antes que o sinal da aula tocasse.
Ronnie tinha aula no outro lado do prédio e teve que ir embora, mas pediu que o avisassem se descobrissem alguma coisa. Ele não pareceu convencido da inocência de Kyle, mas
aparentemente confiava em Daniel para deixar as coisas correrem por enquanto.
Daniel e Kyle tinham aula naquela ala, então decidiram que ainda dispunham de um ou dois minutos.
Kyle guardou os três telefones na mochila.
- Quando eu estava procurando informação sobre eles, descobri que todos são bastante novos, com dois anos no máximo.
- Isso bate com a época que as garotas das outras escolas morreram.
- Você encontrou alguma delas?
- Encontrei. Uma garota morreu no carro em sua garagem; a outra, de overdose. No primeiro caso, foi suicídio. O segundo foi tido como acidental. Ambas morreram - acrescentou
ele - em noites em que estávamos jogando futebol em suas escolas.
- O Sr. McKinney pode muito bem ter assistido aos jogos - replicou Kyle. - E se ele matou as garotas nessas outras cidades, quem suspeitaria dele? - acrescentou, apontando
para uma das prateleiras de livros próxima. - Venha. Precisamos ver se existem fotos desses jogos.
Os dois percorreram rapidamente as cópias dos anuários de Beldon High dos anos em que as garotas haviam morrido.
Encontraram fotos de todos os jogos de futebol.
Na foto que o fotógrafo da escola havia tirado do jogo em Roosevelt High, Daniel reconheceu uma das líderes de torcida que estava na foto do clube de matemática que o Sr.
McKinney presidia lá, a foto que tinha visto na casa dele.
Ela estava no fundo, caminhando bem perto do treinador Jostens.
- Esta é a garota da overdose - disse ele calmamente.
O sinal chamando para a aula tocou, e os dois saíram da biblioteca, concordado em se encontrar à noite assim que pudessem, depois do treino de Daniel.
Durante o resto do dia, Daniel brigou com a dor de cabeça, mas estava ficando cada vez mais difícil conseguir se concentrar.
Ele tentou desesperadamente juntar as coisas.
Os jogos de futebol.
Três garotas mortas.
Três celulares no guarda-roupa do Sr. McKinney.
Ele é amigo do treinador Jostens, além de professor. Faz sentido ele ter ido aos jogos.
Depois da escola, Nicole encontrou-se com Daniel quando ele estava a caminho do vestiário. Ela sorriu para ele calorosamente.
- Obrigada, Daniel.
- Por quê?
Ela olhou para ele com curiosidade.
- Você sabe.
- Desculpe, mas eu...
- A correntinha, seu bobo.
- Do que você está falando?
Ela levou a mão ao colo e puxou a correntinha que estava usando.
Era a que Emily Jackson usava nas fotos do velório e do túmulo, a correntinha que ela havia puxado pelo pescoço quando apareceu a Daniel no jogo de futebol.
Ele mal conseguiu pronunciar as palavras:
- Onde você arrumou isso?
- Estava no meu armário.
- Mas não fui eu que a coloquei lá.
- É claro que foi - disse Nicole, abrindo o fecho do pingente.
Dentro havia uma foto de Daniel, recortada de um artigo de jornal sobre o jogo da última semana.
Ele olhou para a foto.
- Não... Nicole, isso é...
- Você está dizendo que outra pessoa colocou sua foto no pingente e o deu para mim? Quem faria isso? Não faz nenhum sentido.
O Sr. McKinney.
Ele jogou a correntinha pelos orifícios de ventilação no topo do armário dela.
Mas por que Nicole?
O baile. Ele estava lá, na mesa do ponche. Ele pode ter visto você conversando com ela, talvez até tenha visto vocês dois saírem juntos. Os professores também ouvem coisas.
Talvez ele tenha ouvido que ela gosta de você.
Ele sabe.
Ele deu a ela a correntinha de Emily.
Ele está preparando você para...
O Sr. Reicher, diretor da escola, estava descendo o corredor na direção deles.
- Tem alguma coisa acontecendo, Nicole - disse Daniel. - Quero que vá direto pra casa.
- O que é? - perguntou ela, com a confusão em seu rosto se transformando em medo. - Tem alguma coisa a ver com...?
Antes que ela pudesse concluir a frase, o diretor Reicher chegou.
- Daniel, eu poderia falar com você, por favor?
- Hum, claro. - E, virando-se para Nicole, acrescentou: - Eu lhe mando uma mensagem.
- Ok.
Daniel não tinha ideia do que se tratava, mas achou que iriam até a diretoria. Contudo, foram até o vestiário dos meninos.
Lá dentro, um grupo de rapazes estava se aprontando para o treino de futebol e cross-country e olharam com incerteza para o astro do time entrando com o diretor da escola.
Os treinadores de Daniel, o Sr. Warner e o Sr. Jostens, estavam esperando por ele ao lado de seu armário.
E também seu pai.
57
-Quer abrir seu armário para nós, Dan? - disse seu pai.
- O que está acontecendo?
- Informaram-nos que você tem alguma coisa no seu armário que não lhe pertence - respondeu o Sr. Reicher.
Informaram-nos - o que significa isso? E por que chamaram seu pai?
- Não - disse Daniel, com uma estranha e inquietante sensação quando lembrou que Nicole achara a correntinha no armário dela. - Eu não pego nada de ninguém.
- Quer abrir o seu armário, por favor? - repetiu o pai.
Daniel acionou a combinação e abriu a porta.
Seu pai colocou luvas de látex e tirou o equipamento de futebol de Daniel, examinando peça por peça.
Não demorou para que ele achasse o que não deveria estar no armário.
A lente.
A dos óculos de Emily.
Seu pai a ergueu.
- Não sei como isso foi parar aí - disse Daniel com a voz alterada, tentando se explicar.
Mas ele sabia como aquilo tinha ido parar lá.
Sim.
O Sr. McKinney.
Os olhos de Daniel pousaram nos orifícios de ventilação do armário.
Sim, como no armário de Nicole. Ele havia empurrado a lente por ali!
- De onde veio isso? - perguntou o diretor Reicher ao pai de Daniel.
- Vamos ter que verificar.
- O que está acontecendo? - perguntou o treinador Warner, olhando para eles interrogativamente.
- Alguém deve ter colocado isso lá dentro - exclamou Daniel.
- Acho que Daniel vai perder o treino hoje - disse seu pai aos treinadores.
- Eu estou lhe dizendo - replicou Daniel. - Eu não coloquei isso aí.
O treinador pareceu aflito, o que era natural, dadas as circunstâncias.
- Bem, diga se há alguma coisa que possamos fazer.
Daniel não gostou do tom como isso foi dito. Poderia muito bem significar que eles não o deixariam jogar na noite seguinte.
Seu pai olhou o resto das coisas no armário, mas não encontrou mais nada de estranho.
Sem dizer uma palavra, ele recolocou as coisas no armário e fez um gesto para que Daniel o seguisse. Do outro lado da sala de armários, o treinador Jostens seguiu-os com o
olhar até a porta.
- Você me disse que não tinha encontrado as lentes - disse-lhe o pai com uma voz tranquila.
- E eu lhe disse a verdade. Ele a colocou aqui. Ele está tentando me incriminar.
- Quem está tentando incriminar você?
- O Sr. McKinney.
- Do que você está falando?
Daniel sabia que o pai conhecia o Sr. McKinney, mas sentiu que agora não tinha outra opção a não ser contar a verdade, mesmo que isso lhe trouxesse problemas por ter invadido
a casa do professor.
Ele contou ao pai sobre a descoberta do celular de Emily, mas não citou o nome de Kyle.
- E como você sabe que era o telefone dela?
Mencionar Ronnie e o carregador também não seria prudente.
- Hum...
- O que é que você está escondendo?
Finalmente, ele percebeu que precisava ser o mais transparente possível.
- Kyle está com ele. Foi ele que o encontrou no quarto do Sr. McKinney, junto com os celulares de duas outras garotas que nós achamos que o Sr. McKinney matou.
Daniel não tinha certeza se devia contar ao pai sobre a mensagem que tinha atraído Emily até Windy Point, a mensagem supostamente enviada por Kyle.
Ele decidiu ir em frente.
Seu pai ficou ouvindo em silêncio. Daniel achava que, sem dúvida, ele o repreenderia por ter invadido a casa do Sr. McKinney, mas, em vez disso, ele perguntou sobre os celulares.
- E você disse que o Kyle está com esses telefones?
- Está. Ele não tinha a intenção de tirá-los da casa.
Nenhuma reação.
- Seus livros estão no armário?
- Você ouviu o que eu disse?
- Ouvi. Vamos dar uma olhada no seu armário.
- Para quê?
O pai não respondeu.
- Vamos.
Não encontraram nada de incomum no armário de Daniel. O pai lhe disse para pegar os livros de que precisasse para os deveres do dia seguinte e segunda-feira.
- O que está havendo, pai?
Os alunos ainda estavam pelos corredores observando - mas fingindo que não estavam -, quando o xerife, usando seu uniforme, acompanhou o filho até a entrada da escola.
Enquanto caminhavam, Daniel mandou uma mensagem para Nicole dizendo que ficasse na escola, com Kyle, em vez de ir para casa.
Ela não respondeu.
O pai de Daniel esperou até que estivessem longe dos outros alunos e disse:
- Na segunda-feira, quando estivemos no lago, você me disse que tinha ido lá atrás de pistas.
- Foi. Das coisas que eu encontrasse.
- Você disse que foi o Kyle que encontrou os celulares na casa do Sr. McKinney?
- Foi.
- Você entrou no quarto antes dele?
- O quê?
O pai parou de andar. Daniel ficou ao seu lado.
- Você entrou lá primeiro, Dan?
- Entrei, mas foi só um minuto. Eu me concentrei mais no escritório do Sr. McKinney.
O pai ficou em silêncio.
Daniel sentiu uma pontinha de preocupação.
Por que ele lhe perguntou isso?
- Por que você não vem comigo? - perguntou o pai, mas não parecia uma pergunta. Ele abriu a porta. - Pegamos o seu carro mais tarde.
Não, não, não.
Ele acha que você teve alguma coisa a ver com tudo isso.
Isso é ridículo.
Você não fez nada.
Mas ele tem razão. Você esteve no quarto primeiro. Você podia ter colocado os telefones lá.
Não, você se lembraria.
Você teve essas distorções. Se você pôde ter andado no sono debaixo de chuva e não lembrar, também pode...
Não.
Não pode.
Você sabe detalhes da morte dela que ninguém mais parece saber. Você sabia do Trevor, dos óculos. Você sonhou que a estava matando.
Um pensamento terrível, terrível: foi um sonho ou teria sido uma lembrança?
Um pesadelo ou uma realidade?
A terra cinzenta.
Preso entre o negro e o branco.
Entre o bem e o mal.
Naquela noite em que Ty e seus amigos tentaram atacar Nicole, ele disse que viu você no lago. E se ele não estivesse falando do sábado de manhã, mas da noite em que Emily
morreu?
Não.
A lente estava em seu armário.
Você desmaiou no velório. E continua a vê-la.
Concentre-se nisso. Procure a verdade. Descubra o que aconteceu.
Não!
A dor de cabeça o invadiu, foi ficando pior, dominando tudo. Espinhos brilhantes, como agulhas, invadindo-lhe a mente.
Uma distorção.
Tudo era uma distorção.
A barreira caíra, como você disse a Stacy.
A fantasia encontrando a realidade, misturando-se, enredando-se, tornando-se uma só.
Não houve jogo de futebol na noite em que Emily morreu.
Você estava livre. Você pode...
Os dois estavam para entrar no carro.
- Pai, eu esqueci uma coisa no meu armário - disse ele, tentando parecer natural. - Eu já volto. Certo?
Uma ligeira pausa.
- Tudo bem. Eu espero aqui.
Quando Daniel passou pela entrada, estava confuso.
Tinha que conversar com Kyle.
Quando chegou ao armário, certificou-se de que o pai não o estava seguindo, então pegou um corredor lateral, dirigiu-se a uma saída dos fundos da escola e telefonou para o
amigo.
- Daniel? Onde você está? Eu recebi uma mensagem da Nicole. Por que você pediu para ela ficar comigo?
- Ela está aí?
- Não, estou com a Mia. Eu disse a ela para nos encontrar. Estamos esperando por ela.
Bem, pelo menos ela está a caminho.
- Você já pensou que um dia seria capaz de fazer uma coisa terrível? - perguntou-lhe Daniel.
- Do que você está falando?
- Estou falando de coisas que acontecem a toda hora. Alguém surta e sai atirando a esmo numa escola, ou um pai acaba com a família com um machado, ou uma mãe joga o carro
no mar com os filhos no banco de trás.
- Tudo bem, você está conseguindo me assustar um pouco, cara.
- Só estou perguntando se você já imaginou que chegaria a um ponto de sua vida em que pudesse fazer uma coisa assim.
- Eu não. Algumas pessoas são neuróticas. E acabam surtando.
Como eu surtei.
Na semana passada.
Distorções.
A dor de cabeça não tinha melhorado, só se eriçado e reagrupado, atacando-o em ondas consumidoras, cada uma pior que a anterior.
- Mas como você sabe se um dia isso não vai lhe acontecer?
Uma pausa.
- Mas por que você está dizendo isso tudo?
- Acho que eu posso ter feito uma coisa terrível.
- O quê?
- Acho que eu posso ter matado Emily Jackson.
58
-Por que você faria uma coisa dessas?
- As outras duas garotas morreram em noites em que jogamos em outros lugares. Eu estive lá, eu posso... Não consigo me lembrar das coisas ultimamente, como desenterrar o Akira.
Pode ter sido eu que coloquei as flores naqueles túmulos.
- Não, isso não é nem...
- Como é que aparentemente eu sei mais sobre isso tudo que qualquer outra pessoa?
- Nós conversamos sobre tudo isso antes, sua mente, você juntando as coisas, você está...
- Eu sonhei que a matei.
- Bem, boa parte da semana você suspeitou que alguém a tinha matado. Está tudo na sua mente.
- E o Trevor? E os óculos? Como foi que eu os descobri? Só as minhas digitais estavam neles.
Kyle demorou a responder.
- Onde você está? Fique aí. Eu vou até você. Vamos resolver isso juntos.
- Atrás da escola. Mas acho que meu pai está desconfiado. Ele vai me procurar, então não me encontre aqui. Sabe o bosque que fica aqui atrás? Encontre-me do outro dele, na
River Drive.
Era uma rua tranquila, sem muito trânsito. Ninguém os veria.
Enquanto Daniel se esgueirava para o bosque, ouviu sirenes de polícia se aproximando da escola.
Sim, o pai estava procurando por ele.
E já tinha chamado reforço.
59
Daniel tinha acabado de entrar no bosque quando ouviu alguém dizendo seu nome, mas não era o pai gritando que parasse.
- Daniel, espere!
Ele se voltou e viu Stacy correndo em sua direção.
- Stacy, agora não.
- É importante. Preciso lhe contar uma coisa.
O celular dele tocou: era o toque do pai. Ele não atendeu.
- Eu preciso ir. Podemos conversar mais tarde.
Mas ela não parou. Havia um estranho olhar em seu rosto. Talvez fosse medo. Talvez fosse...
Um pensamento o atingiu: lá no lago, foi Stacy quem lhe mostrou onde o corpo de Emily tinha sido encontrado. Ela usou quase a mesma frase que Ronnie quando estava explicando
suas suspeitas quanto à morte de Emily, quanto a alguém a prendendo debaixo d'água.
Apenas Kyle e você estavam lá quando Ronnie disse isso.
Daniel deu um passo para trás.
O que é real?
O que não é?
Terra cinzenta.
Uma distorção.
Stacy mora perto da casa dos Jackson, nas proximidades do lago Algonquin.
Foi ela quem sugeriu que você descobrisse quem estava no lago quando Emily morreu.
O celular de Daniel vibrou. Uma mensagem de texto.
Stacy se aproximou.
- Espere - disse ele. - Onde você estava na noite em que Emily desapareceu?
O celular parou de vibrar.
- O quê?
- Você esteve no lago?
- Ouça, Daniel. - Ela estava a apenas alguns passos dele. - Isso é muito importante.
Uma distorção.
É tudo uma distorção.
Ele deu uma olhada no celular e viu que a mensagem era de Nicole: "Caverna do Lobo. 30 minutos".
O quê?
Ele tornou a olhar para Stacy.
Ela deu outro passo adiante e segurou-lhe a mão.
- Daniel, tome cuidado. Você tem que...
Ele estendeu a mão para afastá-la, mas seus dedos se fecharam no ar.
A princípio achou que, de alguma forma, ela havia afastado o braço antes que ele pudesse tocá-la, mas então percebeu que ela não tinha feito isso.
Não.
Ela.
Não tinha.
Os dedos dele atravessaram o braço dela, como se ele não existisse. Ele tornou a se aproximar dela, tentou segurar-lhe o pulso, mas não conseguiu.
Ele cambaleou para trás, enquanto ela simplesmente permaneceu lá, observando-o em silêncio.
Não. Não pode ser.
Os pensamentos se atropelavam em sua mente, girando um em torno do outro, competindo por sua atenção, fechando-se e desaparecendo como se fossem neblina carregada pelo vento.
Ela não é real.
Ela é...
Toda vez que você conversou com ela, vocês estavam sozinhos: depois da escola, no lago, na sua casa, no seu quarto.
Ela não deixou que você a ajudasse a saltar a janela em sua casa. Ela não quis que você a tocasse. Ela sabia onde você mora e que você tinha estado no médico na segunda-feira,
embora só tivesse contado a Kyle e Nicole.
Ela nunca atendeu seus telefonemas nem respondeu suas mensagens.
Porque ela não está aqui.
Ela não é real.
Ele olhou para as mãos. Elas estavam tremendo.
- Daniel - disse ela. - Olhe para mim. Está na hora de detê-lo. Não é quem você está pensando.
A dor de cabeça fragmentou-se em sua mente.
Ele ergueu a cabeça e fixou os olhos nos dela.
Mia não conseguiu localizar ninguém que a conhecesse.
Nicole ficou confusa quando você mencionou o nome dela.
Stacy não tinha página no Facebook.
Não apareceu nada sobre ela quando digitaram o nome dela no Google.
Tudo era uma ilusão. Tudo um sonho.
Uma distorção.
A maior de todas.
Stacy Clern só existia na mente dele.
Ou talvez fosse um fantasma.
Talvez...
- Os jogos em outras escolas - disse ela. - As outras garotas. Aí está a chave. Quem esteve em todos esses jogos? Pense nas fotos, nas garotas. Examine. Concentre-se nisso,
Daniel. Procure a verdade. Descubra o que aconteceu. Não desista. - E, enquanto falava, começou a se transformar diante dos olhos dele.
Sua pele ficou toda salpicada, o cabelo passou de castanho-escuro para loiro, as roupas secas ficaram molhadas. Sua carne parecia inchada e ficou azulada. Pedaços de algas
do fundo do lago surgiram em seu cabelo, como acontecera na primeira vez que viu Emily no velório.
Seu rosto se transformou de uma garota para outra.
Ele não estava mais olhando para Stacy Clern.
Mas para Emily Jackson.
Como é que as pessoas despertam de um sonho? Elas se beliscam.
Ele tentou fazer isso, beliscando o braço com força, como acontecera na primeira vez que viu Emily se levantando do caixão, as unhas penetrando-lhe a carne, mas a imagem não
desaparecia.
Você está acordado. Isto está realmente acontecendo.
Stacy.
Emily.
Concentre-se. Procure. Descubra.*
Stacy Clern.
Não, não, não!
Não podia ser.
Mas era.
Então, ela começou a se desintegrar diante dos olhos dele, sumindo no tempo e no espaço, enquanto as lembranças de Stacy giravam, emergiam, se combinavam com as lembranças
de Emily, até começarem a se tornar uma parte inseparável daquele momento.
A imagem foi se desintegrando até ficar apenas o contorno de uma garota.
Então, até isso desapareceu.
Outra mensagem de texto chegou.
Também do telefone de Nicole.
Enquanto lia, um terrível arrepio o percorreu:
- Venha. Ela está aqui.
Não!
Stacy lhe disse que a chave está nas fotos.
As fotos.
Usando o celular, percorreu rapidamente os artigos que registravam as mortes das outras duas garotas e viu que ambas estavam usando uma correntinha com um pingente em forma
de coração nas fotos sorridentes que os jornais tinham usado nas reportagens sobre suas mortes.
Ele deu uma correntinha a cada uma delas.
Ele deu uma para Nicole.
Ela é a próxima.
Caverna do Lobo.
Vá para lá.
Vá!
Agora!
Com o pessoal do xerife o procurando na escola, usar o próprio carro estava fora de questão.
Ele cortou o bosque na direção do local onde havia combinado encontrar Kyle.
* No inglês: Stay. Seek. Learn. (N. do E.)
60
Mia e Kyle estavam ao lado do Mustang dele esperando Daniel quando este irrompeu do bosque.
- Nicole está em perigo! - gritou ele.
- Acho que fomos seguidos - replicou Kyle.
- O quê? Quem?
- Uma picape.
Ty?
Seus amigos?
Como se fosse uma sugestão, uma SUV marrom dobrou a esquina diante deles. A mesma que Daniel tinha visto no lago quando esteve lá com Stacy.
Não, quando você esteve lá sozinho.
- Precisamos ir. - A realidade parecia estar desmoronando ao redor dele. - Ele está com Nicole, e Stacy não é real.
O som de um motor roncando atrás deles chamou-lhes a atenção e eles se voltaram e viram uma picape virando a esquina.
Daniel não tinha visto direito a picape que os amigos de Ty estavam dirigindo na noite do sábado quando ele e Nicole foram interceptados, mas achou que era aquela.
- Stacy Clern - disse Daniel a Mia. - Ela me disse o que eu preciso fazer. Concentrar-me. Procurar. Descobrir.
Ele ia dizer a Kyle onde Nicole estava, mas então se lembrou de que a mensagem do telefone dela pedia-lhe para ir sozinho.
- Você disse que ele está com a Nicole - exclamou Kyle. - Quem? O Sr. McKinney?
- Sim. Eu acho. Eu estou...
A SUV e a picape estavam se aproximando rapidamente.
Kyle escancarou a porta do passageiro de seu carro.
- Entre, Daniel. Precisamos salvá-la. Vamos cuidar de tudo. Confie em mim.
Daniel ficou olhando para ele.
Ele queria confiar no amigo.
Para...
De repente, tudo que Daniel acreditava ser real começou a se deslocar, a esmaecer, a girar num redemoinho de perguntas e dúvidas.
Foi Kyle quem descobriu os telefones.
Ele os tirou da casa... Ele podia tê-los colocado lá.
Daniel ficou imóvel.
- O que foi? - perguntou Kyle. - O que está havendo?
A SUV brecou diante deles, e a picape se aproximou por trás, bloqueando o carro de Kyle.
- Daniel - disse o amigo -, temos que dar o fora daqui.
Foi ele quem sugeriu que você fosse ao cemitério. Ele sabia que os assassinos visitam os túmulos de suas vítimas. Ele podia ter colocado as flores lá com antecedência.
Emily tinha uma queda por ele.
A mensagem convidando-a para ir ao lago tinha sido no nome dele.
Ele sugeriu que Ty podia ser o culpado - para fazer você suspeitar de outra pessoa?
Ele pode ter entrado na sala dos armários e colocado as lentes no seu armário. Pode ter posto a correntinha no de Nicole...
Stacy disse que não é quem você pensa.
- Você? - disse Daniel baixinho ao amigo.
- O quê?
- Como é que você soube que alguém tinha encontrado o caderno de Emily no armário dela?
- Como eu lhe disse, ouvi alguém dizer na escola.
Daniel examinou a SUV com cuidado. As janelas eram escuras, ficando impossível ver quem estava dentro.
- Vamos - disse Kyle.
Ty e um de seus amigos saíram da SUV. Os outros dois caras saíram da picape.
- Byers e Goessel - berrou Ty. - Eu sabia que nossos caminhos iam se cruzar outra vez esta semana. Ah, e a garota emo também. Eu vou gostar disso.
Ela lhe fez um gesto ameaçador.
- Tome esta.
Os pensamentos voaram na cabeça de Daniel.
O anuário.
As garotas.
Não é quem você está pensando.
As outras garotas também tinham correntinhas.
As garotas morreram nas noites em que ele jogou fora de casa.
As correntinhas
As fotos nos anuários.
As que estavam nos jornais.
Garotas que morreram nos últimos dois anos.
Não, Kyle não dirige há tanto tempo.
Não foi ele. De jeito nenhum. Não pode ter sido.
Como é que você pode suspeitar que seja ele?
Como é que você sabe o que...
Ty se aproximou dele.
Daniel pensou em Nicole na Caverna do Lobo. A mensagem dizia trinta minutos.
- Não tenho tempo para isso, Ty.
- Não vai demorar muito.
Kyle jogou suas chaves para Daniel.
- Vá. Eu cuido disto.
- Mesmo? - zombaram Ty e seus amigos.
- Mesmo - replicou Mia, colocando-se ao lado do namorado.
Por um instante, Daniel ficou indeciso se deveria ir.
Ty sacou seu canivete automático.
- Isso é o melhor que você tem? - perguntou Mia, sacando um canivete tipo butterfly e o manipulando com gestos suaves e seguros.
Bem, ele não esperava isso.
Conhecendo Mia, talvez não fosse tão inesperado.
Os amigos de Ty retrocederam alguns passos, e a expressão de seus rostos disseram a Daniel que Mia e Kyle provavelmente fossem ficar bem.
- Vá - disse Kyle para apressar Daniel. - Vá em socorro dela.
O assassino está com Nicole.
Você precisa detê-lo.
Mas, quando ia para o carro, Ty foi em direção a ele. Atacou-o com o canivete e Daniel saltou para o lado, mas a lâmina riscou seu braço esquerdo, deixando um sulco estreito
e vermelho. Não profundo; ele ia ficar bem, mas foi suficiente para chamar a atenção de Daniel. Na escola e na estrada, perto da casa de Nicole, ele evitou atingir Ty.
Agora não dava.
Ele ficou gingando de um lado para outro; com a esquerda em riste para proteger a direita, a mão com que arremessava a bola, atingiu a lateral da mandíbula de Ty, fazendo-o
girar sem equilíbrio, mas ele só levou um instante para se recuperar. Voltou a atacar Daniel com a lâmina.
Mas Daniel cerrou os punhos e lançou-os simultaneamente contra a mão de Ty, acertando um deles em seu punho e o outro nas costas da mão, como seu pai lhe ensinara para tirar
a faca de alguém. Ao atingir os terminais dos nervos, a mão se abre involuntariamente. E foi o que aconteceu: a lâmina caiu no asfalto.
Enquanto Ty ficou momentaneamente confuso, Daniel deu-lhe outro soco, desta vez um direto no queixo que o derrubou no chão. Com toda força.
Vá. Vá encontrar Nicole.
- Vá embora! - disse Kyle, pegando o canivete antes que Ty pudesse recuperá-lo. - Nós vamos ficar bem.
Daniel pulou para dentro do carro e ligou o motor.
Para cortar a SUV que bloqueava a estrada, ele teve que ir para o acostamento e amassar a lateral da perua para conseguir passar. Mas não se importou.
Nesse momento, precisava chegar à caverna.
Ty se ergueu num pulo e ficou gritando com ele por causa da SUV, chegando a correr atrás do carro.
Bem, azar dele.
Daniel ligou para o pai e lhe disse onde Kyle e Mia estavam, pedindo-lhe para ir ao local.
- Você está com eles?
Ele não respondeu e encerrou a chamada.
River Drive não ficava longe da escola, seu pai estaria lá em dois minutos, e Kyle e Mia poderiam se aguentar até ele chegar.
Seu pai ligou de volta. Daniel não atendeu.
A casa deles ficava no caminho para a Caverna do Lobo. Se Nicole e seu raptor estivessem lá dentro, Daniel percebeu que precisaria de uma lanterna para chegar até ela. Ele
parou em casa, correu para dentro, agarrou sua lanterna e seu equipamento de explorar cavernas, voltou para o carro, manobrou-o em direção a oeste e acelerou para a Caverna
do Lobo.
61
Não havia um estacionamento perto da caverna, apenas um espaço coberto de pedregulhos perto do início da trilha.
Quando Daniel se aproximou dele, pôde ver que um carro desconhecido já estava lá.
Era uma caverna pouco explorada, e era preciso saber se movimentar por ela. Não havia luzes indicativas, nenhum caminho pavimentado, nada de coisas como essas.
Além dos espaços estreitos em que era preciso se arrastar e as pedras soltas, havia buracos e encostas a serem evitados - um poço vertical descia a mais de sessenta metros.
As crianças chamavam-no de Garganta do Diabo. Uma corrente subterrânea serpenteava pelo lado oeste da caverna. Com as recentes chuvas, ela devia ter crescido e ficado mais
rápida.
Não era uma caverna convidativa.
Era uma caverna agressiva.
Ele estacionou o carro.
E olhou pela janela do outro carro. Sim. Pelos de cachorro por todos os assentos de tecido negro. Ele tinha visto esse carro no velório, notou-o momentaneamente, mas só agora
se lembrou dele. Só agora fez a ligação.
Trevor estava no carro. Foi o que Emily disse.
O cara o tinha posto no carro enquanto esteve com Emily. Ele podia não saber que ela levaria o cachorro com ela até o lago. Ele precisava pegá-la sozinho.
Embora a mensagem de Nicole tivesse mencionado que ele viesse sozinho, Daniel sabia que acabaria por precisar do pai. Ele ainda demoraria algum tempo para chegar até ali,
então lhe enviou uma mensagem com sua localização e, em seguida, pegou seu equipamento de explorar cavernas.
Da estrada, eram dez minutos de caminhada até a caverna.
Daniel correu, em vez de caminhar.
Enquanto seguia a trilha, tentou juntar as coisas.
Havia flores nos túmulos de Emily e de Grace McKinney.
Mas você não sabia se o Sr. McKinney as colocara lá.
Stacy disse que não é quem você está pensando.
Mas Stacy não era real, era só um fragmento de sua imaginação, uma invenção de seu subconsciente, de modo que a resposta estava em algum lugar de sua mente. Ele precisava
descobrir esse lugar, escavá-lo, descobrir o que já sabia.
As garotas morreram em noite de jogo. Tem que ser alguém que estava nessas cidades naquelas noites.
McKinney?
Talvez.
Ele se aproximou da caverna.
Não houve jogo duas semanas atrás, na noite em que Emily desapareceu. Então, talvez...
Ele chegou à entrada da Caverna do Lobo e fez uma parada.
O chão se abriu num buraco inclinado que descia rapidamente para a total escuridão.
Enquanto estava em pé ao lado desse buraco, tentando acalmar a respiração, sentiu uma brisa vindo da entrada, como se a terra estivesse se evaporando em torno dele.
Ele sabia que eram as correntes de ar passando pela caverna e encontrando o ar mais quente do exterior iluminado pelo sol, mas, mesmo assim, davam a impressão de que a caverna
fosse algum enorme animal vivo enterrado na encosta da colina, respirando em cima dela.
Daniel colocou o capacete com lâmpada e começou a descer.
62
O caminho descendente estava enlameado e era coberto por pedras cheias de musgo, o que tornava a trilha que levava à escuridão ainda mais escorregadia e perigosa do que parecia.
Apesar de observar cuidadosamente onde punha os pés, ele escorregou duas vezes enquanto descia para as sombras profundas da primeira câmara da caverna.
A luz do sol que vinha da entrada não mais aquecia, sendo superada pelo interior frio da caverna.
Abafada. Úmida.
Cheirando a líquen e mofo.
Já tendo estado no lugar, ele sabia que havia três seções principais na caverna, mas também havia numerosos túneis laterais que se ramificavam, supostamente descendo para
o rio subterrâneo que desaguava no lago Algonquin.
Quem é ele? Quem está com ela?
Onde ela estaria?
As fotos no corredor da casa do Sr. McKinney mostravam duas câmaras diferentes, e Daniel reconheceu ambas.
A primeira estava perto, bem à esquerda.
Para chegar lá, ele precisava passar por uma câmara relativamente estreita, mais ou menos do tamanho de duas minivans. Uma passagem apertada para o outro lado dela levava
a uma das maiores câmaras da caverna, ampla e espaçosa, com mais de vinte metros de comprimento e quinze de largura.
Daniel passou da sala pequena para a maior.
Enormes estalagmites e estalactites erguiam-se do chão da caverna ou pendiam espessos e pesados do teto. Algumas colunas chegavam até o teto da caverna, formadas por estalagmites
e estalactites que haviam se encontrado num passado distante.
Alguém havia acendido velas sobre uma das pedras, e a cera derretida tinha escorrido pelas laterais da rocha e resfriado, fazendo-a parecer um tipo de formação artificial.
- Estou aqui - disse Daniel em voz alta. Nenhuma resposta ao eco produzido por sua voz. - Eu vim sozinho.
Sozinho... sozinho... sozinho..., respondeu a caverna.
- Onde está ela? - suas palavras reverberaram pela caverna. - Eu sei que você está aqui.
Aqui... aqui... aqui...
Quando os ecos se dissiparam, os únicos sons que ouvia era o ritmo de sua respiração ofegante, o pingar da água que descia do teto e o rápido murmúrio do rio que passava pela
câmara ao lado e então desaparecia nas seções não mapeadas da caverna.
Tudo bem, parecia que eles não estavam ali. Talvez na outra câmara das fotos.
Para chegar lá, Daniel teve que se esgueirar por uma série de passagens estreitas que desciam mais fundo na terra.
Se o raptor havia trazido Nicole para cá, isso não era bom. Esta era a parte mais perigosa da caverna, a que terminava na Garganta do Diabo.
Daniel a tinha explorado duas vezes com o pai. A última vez que tinham feito rapel ali, descobriram a carcaça de um guaxinim no fundo. Parecia improvável que um animal tivesse
penetrado tão fundo na caverna no escuro, e Daniel ficou pensando se alguém o havia trazido depois de morto e jogado lá embaixo.
A carcaça estava coberta por um mofo branco de aparência esponjosa. Foi um pouco difícil identificar o animal devido à força do impacto quando aterrissou no fundo cheio de
pedras.
Ele ajustou a luz do capacete e avançou pela passagem.
Uma linha de finas estalactites com cerca de meio metro descia do teto. Ali não havia grandes formações.
O som do rio foi ficando cada vez mais fraco à medida que Daniel avançava pela caverna.
Ele se apoiou nas mãos e joelhos e rastejou por um pequeno buraco. Dali, a câmara com a Garganta do Diabo não ficava longe. Só mais uns quinze metros.
Daniel repassou o que sabia, tentando dar sentido a tudo que havia acontecido desde que chegou à igreja para o velório da Emily.
As garotas das fotos estavam usando correntinhas, todas usando correntinhas com o pingente em forma de coração.
Talvez você tenha visto as fotos nos jornais depois que elas morreram, e as fotos, como a referência a Trevor, alojaram-se em sua mente e só se liberaram quando você soube
da morte da Emily.
Talvez...
Dizem que nossos cérebros registram tudo, e o de Daniel sempre fora capaz de notar as coisas, de calculá-las, de uma forma que ninguém parecia ser capaz de fazer...
Foi por isso que Emily lhe mostrou a correntinha no jogo. Porque você já sabia que ela era a chave para isso tudo.
Ela fez isso no jogo de futebol.
E havia a foto de seu coordenador de defesa perto daquela garota que morrera.
Ele pensou nas fotos dos jogos de futebol.
Quem de sua escola poderia ter estado neles?
O time. Os treinadores.
Roosevelt High.
Coulee High.
As fotos das garotas nos jornais...
Quem teria acesso às suas coisas no armário?
Quem teria visto você e Kyle entrando na casa do Sr. McKinney enquanto todos os professores estavam na reunião de pais e mestres na escola?
Os professores estavam lá. Sim, mas não...
Oh!
Sim.
Daniel sabia quem era.
Ele estava no baile do festival. Ele pode ter visto você sair com Nicole.
Ele estava perto dos alunos o tempo todo. Podia ouvir quem tinha uma queda por quem. Pode ter ouvido sobre Emily gostar de Kyle.
Ele pode entrar ou sair das escolas sem que ninguém suspeite.
É claro.
E ele tinha que estar em todos os jogos. Era seu trabalho.
Daniel dirigiu a luz para frente.
Estava quase na câmara da Garganta do Diabo.
O futebol.
Sim, os anuários, as partidas de futebol, todas as fotos apontavam para uma pessoa.
- Estou aqui - gritou Daniel quando chegou à entrada para a sala. - Eu sei quem você é!
- Oh, é mesmo? - gritou o homem.
Mesmo?... Mesmo?... Mesmo?..., replicou o eco. O som era distorcido pela acústica da caverna, tornando impossível identificar quem estava falando.
Mas isso não importava para Daniel.
Ele já sabia quem o estava esperando naquela caverna.
Sim, o coordenador da defesa, o treinador Jostens, tinha estado em todos aqueles jogos.
Mas não era ele.
Era o homem que o havia fotografado ao lado da garota da Roosevelt High que morrera.
- Sim, eu sei - gritou ele. - E é bom que o senhor não a machuque, Sr. Ackerman!
63
-Fique onde eu possa vê-lo - disse o fotógrafo.
Daniel entrou na sala, ficou em pé e direcionou a luz para a extremidade da câmara.
Num átimo de segundo, apreendeu todo o lugar.
A sala se estendia diante dele: seis metros de largura por vinte e um de comprimento. O lugar não continha nenhuma formação em declive suave, apenas pedras pontudas e declives
ásperos.
A Garganta do Diabo ficava na extremidade e se abria no chão da caverna como um ferimento desigual, que avançava pela câmara e chegava a 3,5 metros de largura.
Um afloramento natural se estendia pelo outro lado, três metros mais alto que o chão, e Daniel estava em cima dele. Sua largura era suficiente para comportar até cinco pessoas,
bem juntas uma da outra. Sobre ele também havia algumas pedras grandes.
Ao longo do lado direito da Garganta do Diabo havia uma estreita saliência de rocha, com largura suficiente para se poder caminhar, permitindo aos exploradores de cavernas
atravessarem o fosso, atingindo a saliência mais alta. Alguém tinha amarrado uma corda grossa a uma das pedras de modo que as pessoas pudessem acessar aquele nível da caverna
se ousassem fazê-lo.
A corda tinha nós a cada trinta centímetros para evitar que os escaladores escorregassem e caíssem no buraco. Era precária e perigosa. Daniel tinha subido lá duas vezes.
No final do facho de luz de sua lâmpada do capacete, Daniel viu Nicole e Ackerman em pé na plataforma de pedra do outro lado da Garganta do Diabo. O fotógrafo estava atrás
dela, segurando-a com força.
- Nicole! Você está bem? - gritou Daniel.
- Estou! Saia daqui, Daniel. Ele quer que você...
- Daniel, venha cá - disse Ackerman, interrompendo-a.
- Vá embora, ele quer... - começou a dizer Nicole.
Ele a agarrou pelo cabelo com uma das mãos e a puxou.
- Agora, fique quieta.
- Ai!
- Pare com isso! - gritou Daniel.
Ackerman também estava usando um capacete com lâmpada. Nicole não estava usando nada. Foi uma maneira de se certificar de que ela não fugiria enquanto ele a trazia para lá.
Sem luz, ela teria se perdido na total e completa escuridão se tentasse fugir.
Daniel atravessou a câmara na direção deles, tentando pensar numa maneira de salvá-la.
Vamos, cara, pense! Como é que você vai fazer isso? Você precisa afastá-la dele!
- Você gritou o meu nome antes de entrar aqui - disse Ackerman. - Como soube que era eu?
- As fotos nos artigos dos jornais sobre as garotas mortas: nelas, as garotas estão todas usando o mesmo tipo de correntinha. Não podia ser coincidência. Foi você que tirou
as fotos. Era o único que sabia que as moças as estariam usando. Você enviou as fotos para os jornais. E achou um jeito de dar as correntinhas a elas; além disso, quem matou
aquelas garotas tinha que estar em nossos jogos fora de casa. Você foi a eles para tirar fotos para o nosso jornal.
Daniel chegou à borda da Garganta do Diabo.
- Já basta - disse Ackerman.
- Havia uma foto no corredor do Sr. McKinney com vocês dois aqui na caverna. A chave são os celulares, alguém os colocou no guarda-roupa dele. Ele é seu amigo, você explora
cavernas com ele. Você plantou os telefones, talvez teve acesso à casa dele porque o conhece, talvez tenha entrado na casa pelo porão destrancado, eu não sei. Seu estúdio
fica bem perto, nas vizinhanças. Não é verdade? Foi assim que você nos viu entrar na casa do Sr. McKinney?
- Muito bem.
- E depois? Você passou pela casa à noite para verificar se os telefones tinham sido levados embora?
- Muito bem deduzido. Foi então que eu me convenci de que era hora de acabar com tudo.
- Daniel, vá embora... - implorou Nicole.
- Quieta! - disse Ackerman, tornando a interrompê-la. Ele a fez se aproximar ainda mais da borda.
- Não! - gritou Daniel.
Você precisa fazer cera até seu pai chegar aqui. Fazer com que ele continue a falar.
- Você escolheu garotas das escolas em que o Sr. McKinney lecionou de propósito, selecionando as que foram alunas dele quando lecionou lá - disse Daniel. - Você planejou isso
durante anos. Por quê?
- Para garantir que as evidências apontassem para outro que não fosse eu.
Por que ele está lhe contando isso? Isso não é bom. Ele não vai deixar você sair daqui vivo.
- Mas por que você plantou os celulares agora, esta semana?
- Fiquei sabendo que o seu pai estava investigando a morte de Emily mais atentamente. Esse foi um bom motivo.
- Houve outras além dessas três garotas? - perguntou Daniel, deixando seu equipamento cair no chão.
- Só essas. Mas vai haver outras. Depois que se começa - disse ele, respirando fundo e com satisfação - é muito difícil parar. Agora...
- Mas por quê? - a voz de Daniel foi ficando tensa, à medida que pensava nos crimes horrorosos que Ackerman tinha cometido. - Por que você as matou?
- A excitação. O desafio. A adrenalina. Você deve conhecer tudo isso dos seus jogos. Pode ser viciante, não é mesmo? Agora chega. Você está vendo aquela saliência de rocha
à sua direita?
Daniel olhou para ela.
O celular de Nicole estava no meio de algumas pedras. A menor era do tamanho de uma bola de futebol, as outras tinham o tamanho de bolas de boliche.
- E a Sra. McKinney? Você também a matou? - perguntou Daniel.
- Aquilo foi realmente um acidente. Foi por isso que eu preferi afogar a Emily. Para que também parecesse um acidente. Chega de conversa. Agora, jogue o seu celular no buraco.
Daniel ainda tinha algumas perguntas a fazer, mas Ackerman parecia ter pensado muito bem nas coisas, e agora Daniel percebeu que precisava se concentrar completamente em salvar
Nicole e não se preocupar mais com a ligação de todos os fios da história.
- Jogue o celular - repetiu Ackerman.
Daniel atirou-o na Garganta do Diabo.
O aparelho bateu contra as paredes e, então, depois do que pareceu um tempo impossivelmente longo, despedaçou-se com um ruído seco no fundo do poço.
- Agora pegue o de Nicole. Você vai digitar sua confissão e uma nota suicida.
- O quê?
- Você atraiu a Emily para o lago, onde a afogou. Atormentado pelo remorso, desmaiou no velório dela. Nicole descobriu tudo, e você também teve que matá-la. Você a trouxe
aqui para isso. E, então, sufocado pelo remorso, foi levado a tirar a própria vida.
- Não. Ninguém vai acreditar nisso.
Mas Daniel sabia que isso seria possível, considerando que seu pai já suspeitava dele: ele havia lhe contado sobre as distorções; depois houve a história de desenterrar o
Akira, o interesse que ele havia demonstrado pela morte de Emily, a lente em seu armário, suas digitais - as únicas - nos óculos.
Se Ackerman tivesse apagado as últimas mensagens do celular de Nicole, com o de Daniel destruído - a menos que a operadora tivesse os registros delas -, não haveria nenhuma
prova de que Daniel não tinha passado para pegar Nicole depois de deixar Kyle...
- E o seu carro? - perguntou Daniel. - O fato de você ter estado aqui?
- Eu vim aqui para impedir você, mas, tragicamente, foi tarde demais para salvar os dois.
Não, isso nunca...
- Eu confio em você, Daniel - disse Nicole.
- Eu vou... - Daniel começou a dizer.
- Pegue o celular, Daniel - disse-lhe Ackerman. - Eu vou ditar a mensagem que você vai digitar.
Ele vai matá-la de qualquer jeito!
Você precisa de alguma coisa para barganhar com ele. Alguma coisa para...
- Eu confio em você! - ela tornou a gritar.
Os olhos dela estavam fixos na parede ao lado dele, onde o telefone jazia entre as pedras.
Ela está se referindo ao telefone ou...
Ele olhou para ela e a viu colocar a perna furtivamente entre duas pedras para se manter no lugar.
Não. Ela não estava se referindo ao telefone.
Estava se referindo à pedra.
- Pegue o telefone, Daniel - ordenou Ackerman.
- Ok - disse ele, estendendo as mãos espalmadas para tentar acalmá-lo. - Vou fazer isso, mas não a machuque.
Só os ombros e a cabeça de Ackerman ficaram visíveis enquanto ele mantinha Nicole na frente dele.
Ele está a uns dez metros de distância. Você poderia atingi-la.
Não, você não vai fazer isso. Você é muito preciso com uma bola de futebol a duas vezes essa distância; daqui, você pode atingi-lo com uma pedra.
Quando ele olhou para trás na direção de Nicole, ela fez um sinal de ok com os dedos.
Faça isso.
Estendendo a mão para o telefone, Daniel pegou uma pedra do tamanho de uma bola de futebol e se virou para Ackerman. Instantânea e subconscientemente, ele calculou a velocidade,
a trajetória, a flexão do músculo, o peso da pedra, a distância - tudo num canto particular e escondido de sua mente, como fazia no campo, como fazia quando resolvia um problema
de matemática.
E atirou a pedra em direção à cabeça de Ackerman.
Instintivamente, o homem se retraiu e, quando o fez, soltou Nicole, que se afastou e pulou habilmente para o lado.
A pedra se espatifou contra a parede da caverna, resvalou pela plataforma e caiu na Garganta do Diabo.
Se as outras pedras fossem pequenas, Daniel poderia ter tentado outra vez, mas todas eram grandes demais para serem atiradas.
Ele não tinha escolha. Precisava tirar Nicole com segurança da plataforma o mais rápido possível, e só havia uma maneira de fazer isso.
Primeiro tirar Ackerman da plataforma...
... a pedra atingiu o fundo...
A Garganta do Diabo apareceu indistintamente diante dele, um buraco com 3,5 metros de largura no chão do mundo.
A corda pendia do outro lado. Se ele efetivamente conseguisse passar para o outro lado, talvez conseguisse agarrá-la, mas o impulso para o salto poderia fazer com que ele
se chocasse com força contra a parede.
Atravessar até lá vai demorar muito. Ackerman vai atirá-la na garganta antes que você chegue até eles!
Mas se você fizer isso, não pode errar a corda.
Não há escolha.
Vá!
Ele se afastou para tomar impulso, correu em direção à fissura que mergulhava doze andares dentro da terra, mirou a corda pendurada do outro lado e se lançou no ar.
64
O tempo pareceu rastejar enquanto ele voava por sobre a Garganta do Diabo, da mesma forma que tinha rastejado no jogo em que Emily apareceu para ele no campo. Ele viu Nicole
se afastando o mais que podia de Ackerman, o olhar assassino no rosto do homem, a corda se aproximando e então...
Com as mãos abertas, tentou agarrá-la. Falhou com a esquerda, mas conseguiu segurá-la com a direita. Ele girou o corpo para receber a força do impacto no flanco, mas foi seu
joelho que primeiro se chocou contra a parede de pedra.
Por um breve momento, a adrenalina suavizou a dor, mas depois ela subiu-lhe pela perna.
Embora estivesse segurando a corda com toda força possível, o impacto o atingiu bastante, e sua mão escorregou para o nó seguinte, arrancando a pele da palma.
Sua mão ficou em fogo, que desceu pelo braço, mas ele não largou a corda. Em vez disso, agarrou-a com as duas mãos e, ignorando a dor da palma dilacerada, escalou em direção
à saliência, pressionou o pé sobre uma pequena depressão e saltou pela borda para cima da plataforma.
Ficou em pé e encarou Ackerman.
A expressão do homem havia mudado, com ele se transformando em alguma coisa sombria e demoníaca, como se o mal dentro dele tivesse subido para a superfície, destruindo qualquer
tipo de bem que ali houvesse. Ele mal parecia a mesma pessoa. Olhos apertados. Punhos cerrados. Dentes descobertos. Feroz. Primitivo.
Você é a maior ameaça.
Ele vai matar você, e depois a jogará no buraco.
Não.
Não vai.
Daniel tentou impedir que a perna machucada sustentasse seu peso, tentando disfarçar a dor que estava sentindo.
- Não se preocupe, Nicole. Está tudo bem.
Ackerman disse com frieza:
- Ninguém vai conseguir tirar os ossos de vocês lá do fundo.
Ele avançou contra Daniel, que conseguiu girar para o lado, como faria se estivesse evitando uma entrada no campo de futebol, mas a perna se dobrou e ele caiu. Antes que pudesse
se levantar, Ackerman chutou-o com força nas costelas.
A dor percorreu todo seu corpo, mas Daniel não se permitiu gritar.
Você deve estar com uma costela quebrada.
Bem, mais tarde a gente vê isso.
Ackerman tornou a chutá-lo, mas Daniel conseguiu rolar para o lado, agarrou uma pedra e a atirou contra o pé do oponente.
O fotógrafo deu um soco com um movimento circular do braço, e Daniel ergueu o braço para bloqueá-lo. A força do golpe jogou-o contra a parede de pedra. Ele tentou dar um soco
no outro, mas Ackerman saiu da frente mais rápido do que Daniel teria imaginado e o rapaz quase perdeu o equilíbrio, quase tornou a ir para o chão.
Atrás de Ackerman, Nicole foi em direção à corda. Agarrou-a, puxou-a em direção a outra pedra e a esticou entre as duas, formando uma linha à altura dos joelhos, atrás de
Ackerman.
- Vá em frente! - gritou ela.
Ackerman avançou para Daniel, atingindo-o violentamente no rosto, jogando-o contra a parede da caverna outra vez.
- Agora! - gritou Nicole.
- Diga adeus, Daniel - silvou Ackerman.
Daniel se apoiou na parede para usá-la como alavanca, ergueu a perna esquerda e chutou Ackerman com força no peito, jogando-o na direção da corda.
- Adeus.
O fotógrafo cambaleou para trás, bateu as panturrilhas contra a corda que Nicole estava segurando com firmeza e tombou em direção à fenda.
Ele pareceu flutuar um instante na borda da garganta, sem conseguir que seus braços lhe dessem equilíbrio, então tombou para trás e desapareceu. O facho de luz de seu capacete
girou loucamente pela garganta enquanto ele caía. Um grito prolongado e fraco ficou para trás enquanto ele caía em direção ao fundo.
Então, o grito cessou quando um baque pesado ecoou pela fenda, com a luz se apagando e a Garganta do Diabo devorando o homem que havia matado três pessoas.
Mas a atenção de Daniel não se concentrou no grito.
Nem no baque.
Ela se concentrou em Nicole, que havia escorregado para o lado com a força das pernas de Ackerman se chocando contra a corda que ela estava segurando.
- Daniel! - gritou ela, enquanto suas pernas mergulharam por sobre a borda e o resto de seu corpo começou a segui-las.
Não!
Ele mergulhou em direção a ela, tentando fazer com que seu impulso não o jogasse por sobre a saliência.
Quando os braços dela estavam começando a desaparecer, ele agarrou-lhe o pulso com a mão direita. O peso dela o arrastou para frente até a altura do estômago, curvando-se
sobre a borda e a segurando apenas com a mão direita.
- Eu peguei você! Está tudo bem!
Puxe-a depressa. Você não pode continuar assim parado, você precisa...
Alguém gritou da outra extremidade. A princípio, Daniel não conseguiu distinguir quem era, mas quando dirigiu o facho de sua lâmpada para lá, viu que era seu pai, com uma
lanterna na mão, surgindo na entrada.
Ele gritou para que eles aguentassem firme e começou a correr em direção a eles, mas Daniel não achou que houvesse tempo para seu pai avançar e vir ajudar a erguer Nicole.
Ele agarrou o outro pulso dela com a mão livre, procurando erguê-la para a borda do abismo para que ela pudesse se aguentar enquanto ele se reposicionava para ajudá-la.
- Você consegue - ele lhe disse.
- Não me deixe cair - gaguejou ela.
- Não deixo.
Ele ergueu seu braço direito, trazendo a mão dela para a borda. Ela agarrou-se ali enquanto ele conseguia segurá-la melhor, inclinando-se para trás e conseguindo trazê-la
para cima.
Ela colocou as pernas por sobre a borda, rolou para a saliência e tombou nos braços dele.
Por um longo momento, nenhum dos dois disse nada. Os dois estavam ofegantes, devido à adrenalina e ao medo persistente que corriam por seus corpos.
- Foi uma boa ideia - disse ele por fim -, essa da corda.
- Foi um bom arremesso - replicou ela -, o da pedra.
- Eu poderia ter acertado você.
- O que realmente poderia ter estragado o meu dia.
Demorou um pouco para retomarem a respiração normal; então, ele se afastou dela ligeiramente.
- Ouça, eu preciso explicar uma coisa sobre a Stacy - disse ele, sem saber se essa era uma boa ocasião, mas sentiu que precisava fazer isso.
- Não, está... - disse Nicole, de repente soando um pouco distante. - Está tudo bem, eu...
- Ouça, nunca houve nada entre nós.
- O que você quer dizer?
- Tudo o que eu achava que sentia por ela era... bem, posso dizer honestamente que não passava de uma ilusão.
- Tem certeza? - perguntou ela, olhando para ele com curiosidade.
- Tenho. Ela não é uma pessoa que tenho a intenção de rever. Quando olho para você, é como se ela nunca tivesse existido.
- Mesmo? - disse ela, esboçando um leve sorriso.
- Mesmo.
Então, enquanto o pai de Daniel mais uma vez lhes dizia para ficarem onde estavam e avançava pela borda da Garganta do Diabo, Daniel abraçou Nicole com força.
Ele sentiu o coração dela batendo forte contra ele.
Não como um fantasma.
Não como uma distorção.
Apenas como uma garota a quem ele deveria ter se ligado há muito tempo.
65
O dia seguinte
Daniel achou que deviam faltar à aula, mas não fizeram isso.
- Muito bem, Sr. Byers - disse a Srta. Flynn quando a aula começou oficialmente. - Sei que você não gosta de falar diante da classe, mas todos nós queremos ouvir o que aconteceu
na caverna... Bem, pelo menos os que ainda não conhecem todos os detalhes, porque não lhes contaram ou porque não receberam mensagens de texto sobre eles.
Na noite anterior, depois de sair da Caverna do Lobo, ele e Nicole contaram tudo a Kyle e Mia.
- Kyle é um contador de histórias muito melhor que eu - disse Daniel. - Talvez ele possa...?
- Deixe comigo, Prô - disse Kyle à Srta. Flynn. - Sem nenhum problema.
Ele foi para a frente da sala e contou toda a história, omitindo os detalhes investigativos que o pai de Daniel havia lhes informado na noite anterior e que precisavam permanecer
confidenciais. Também omitiu suas suspeitas de que o assassino fosse o Sr. McKinney.
Ou Daniel.
Ou ele mesmo.
Ou a garota que nunca existiu.
Além disso, Daniel e os amigos concordaram em não revelar as distorções, de modo que Kyle tampouco as mencionou.
Na verdade, tudo isso diminuiu o que ele poderia contar, mas, de alguma forma, conseguiu resumir os fatos restantes de uma maneira que continha a verdade essencial do que
havia acontecido, mesmo que o relato não fosse exato e inteiramente sincero.
Quando terminou, a classe crivou-os - a ele, Daniel e Nicole - de perguntas. Responderam aquelas para as quais tinham respostas, não deram as respostas que desconheciam e
preferiram não responder algumas perguntas.
Brad Talbot disse a Kyle:
- Então, o seu Mustang ficou amassado? Que chato. Isso não é legal.
- Mas ficou menos amassado que a perua SUV do Ty.
- E você brigou com ele?
- Bem, foi principalmente o Daniel que deu um jeito nele, mas um dos amigos dele sorriu para a Mia de um jeito que não me agradou, e eu fiquei realmente tentado a lhe dar
um murro na cara.
- E o que aconteceu?
- Eu não resisti à tentação.
- Legal.
Ty e seus três amigos tinham ido embora antes que o pai de Daniel chegasse a River Drive e não apareceram na escola naquele dia. Contudo, Daniel havia desarmado Ty diante
de seus amigos, sem dúvida deixando-o muito constrangido, e tinha o palpite de que aquela não seria a última vez que ouviria falar de Ty Bell.
Depois que a classe encerrou as perguntas, a Srta. Flynn disse:
- Tenho mais um poema que eu gostaria de compartilhar com vocês antes que o sinal toque.
Ela leu:
E eis a verdade da qual todas as outras emanam;
eis a primavera da qual todas as outras fluem:
em breve estarei morto.
Em breve, como determinado pela poeira das estrelas e pelo tempo.
Em breve, como determinado pelos cometas e pelos sonhos.
Em breve. Em breve.
Em breve estarei morto.
E eis a pergunta que determina tudo:
o que farei até isso ocorrer?
O sentido do poema não era tão difícil de ser percebido.
Em breve estarei morto.
O que farei até isso ocorrer?
E a resposta também era evidente, ressoando pela mente de Daniel: Viva cada momento, cada precioso momento de que você dispõe. Viva cada um deles como se fosse o último. E
o seu primeiro.
A Srta. Flynn pediu-lhes que escrevessem um breve ensaio para a segunda-feira, a aula terminou e, enquanto os alunos estavam guardando suas coisas, ela pediu para conversar
com Daniel um instante.
Ela esperou até que a sala se esvaziasse.
- Eu queria falar um instante sobre o que você escreveu em seu blog na semana passada.
Ah, tudo bem. Ela não tinha comentado nada sobre o que ele escrevera. Daniel nem sabia se ela ia lhe dar uma nota complementar.
- Tudo bem - disse ele, com um certo desconforto.
- Você escreveu sobre abutres devorando seus sonhos. Primeiro foi isso e agora tudo o que aconteceu esta semana com o Sr. Ackerman, o que houve na caverna. Fico imaginando...
como você está se sentindo.
- Eu estou legal.
- Tem certeza?
Não, mas se as distorções cessarem, eu vou ficar.
- Vamos ver.
Ela se mostrou hesitante, evidentemente por não saber o que dizer.
- Ok.
Depois de lhe devolver o trabalho escrito com uma nota complementar, ela disse:
- Daniel, procure se apegar a uma coisa que os abutres nunca conseguirão devorar, a menos que você permita.
- O que é?
- Este momento.
***
Encontrou Kyle esperando-o no corredor.
Eles não haviam tido oportunidade de conversar antes das aulas, e agora Kyle lhe perguntou:
- Então, o que o treinador lhe disse sobre o jogo de hoje à noite?
Daniel mostrou a mão queimada pela corda e envolta por um curativo. Além disso, embora tivesse colocado uma joelheira ortopédica na perna machucada, estava mancando um pouco.
Pelo menos, os raios X da noite anterior mostraram que ele não estava com nenhuma costela quebrada, e o corte produzido pelo canivete de Ty não fora profundo.
- É só um corte superficial - tinha dito Kyle na noite anterior, imitando a maneira de falar do grupo Monty Python.
- O treinador disse que eu não devo participar - disse Daniel. - E acho que concordo com ele. Não sei se vou conseguir fazer lançamentos.
- Na próxima semana?
- Estarei de volta se depender de mim.
Eles começaram a descer o corredor.
- E a sua mãe?
- Vai chegar amanhã. Depois de saber de tudo o que me aconteceu, ela me disse que vem, independentemente do que eu ache.
- O que você disse a ela?
- Eu disse que vai ser bom vê-la - disse Daniel, fazendo uma pausa. - Vamos ver o que vai rolar.
- E é a primeira visita dela? Quero dizer, desde que ela foi embora?
- Isso mesmo.
Eles caminharam mais um pouco e, então, Kyle disse baixinho:
- Agora seu pai sabe tudo sobre as distorções.
- Sabe e está preocupado, eu lhe digo. Mas quando eu expliquei como elas me ajudaram a entender as coisas, ele disse que precisava pensar. Não sei o que vai acontecer. Pelo
menos, ele não suspeita mais de mim. A propósito, lamento sobre ontem, quando achei que você podia ser um serial killer.
- Tudo bem. Você suspeitou até de você mesmo. E da Stacy, que nem existia.... o que devo confessar que foi um pouco neurótico. De qualquer maneira, pelo menos estou em boa
companhia. Acho.
- Como está a Mia?
- Como ela diria, "hibernando".
- O que foi aquela faca que ela puxou?
- Ela é uma garota cheia de surpresas.
- Seu tipo de garota.
- Meu tipo de garota.
Daniel recebeu uma mensagem de Nicole, e quando Kyle ia para a aula, decidiu se atrasar um pouco e encontrou-a perto das máquinas de salgadinhos sobre as quais Emily havia
escrito na folha de papel que caíra de seu caderno quando ele o pegou na casa dela.
Cumprimentou Nicole, mas se surpreendeu olhando para além das máquinas, pensando nas palavras de Emily sobre ficar observando as garotas mais populares conversando e seu desejo
de fazer parte daquele grupo, mas sem nunca saber como realizar esse desejo.
As palavras devem ter se alojado na mente dele, naquele cantinho secreto que não deixava escapar nada e que parecia estar se abrindo cada vez mais ultimamente - talvez até
demais. Ele ouviu as palavras sobre o seu desejo de pertencer ao grupo tão claramente como se ela própria as estivesse lendo: "Eu as observo, desprezo-as, invejo-as e me odeio
por desejar ser como elas".
- Daniel? - disse Nicole, agitando a mão diante do rosto dele.
- Hã? - disse ele, levando um instante para se recompor. - Sim?
- Você está bem? Você voou para longe de mim!
- Desculpe, eu estava só me lembrando...
- Se lembrando do quê?
- De uma coisa que a Emily escreveu.
- E o que é?
- Sobre como ela queria ser aceita.
Nicole entendeu de imediato.
- Acho que todos nós queremos.
Ninguém deveria ter que entrar pelas frestas.
É tão fácil fechar os círculos para que garotas como Emily não consigam entrar. É muito mais difícil conseguir rompê-los.
Mas, pelo menos, vale a pena tentar. Era uma coisa que ele podia fazer, uma coisa que decidiu que faria.
- O que você estava dizendo quando eu desliguei? - perguntou ele a Nicole.
- Que ainda há uma coisa que eu não entendo.
- O que é?
- As marcas no seu braço. Elas apareceram por causa dos seus pensamentos? Porque você se convenceu de que Emily o havia tocado?
- Não sei. Talvez eu entenda isso na próxima semana. Tenho uma consulta com o psiquiatra na quarta-feira. Espero que ele finalmente me diga o que há de errado comigo.
- Ou o que há de certo.
- O que você quer dizer?
- Quero dizer que você tem essa... não sei, habilidade, dom, embora não pareça um dom, seja lá o que for que ajudou você a solucionar tudo. Talvez não seja uma coisa que precise
ser diagnosticada e tratada, mas uma coisa que você precise entender para tornar a usá-la.
- Sim, mas não estou tão seguro quanto a isso. Acho que já chega de ver distorções... pelo menos espero que não as veja mais.
Ele não achou que mencionar o que contara a Stacy naquela noite em seu quarto - que a barreira entre a realidade e a fantasia não mais existia para ele - tranquilizaria Nicole.
Então, preferiu não dizer nada.
O último sinal para a aula soou.
- Este vai ser meu terceiro atraso esse ano - suspirou Nicole.
- Eu sou uma má influência para você.
- Acho que posso conviver com ela.
Ele pensou em tudo que havia acontecido nas últimas duas semanas. De certo modo, tudo lhe lembrava os temas das histórias e poemas que a Srta. Flynn preferia, os que se referiam
à morte - ou à vida, dependendo de como se encarava seus finais.
Em breve, como determinado pelos cometas e pelos sonhos.
Em breve. Em breve.
Em breve, eu estarei morto.
E eis a pergunta que determina tudo: o que vou fazer até isso ocorrer?
Sim, essa era a chave. Perceber que não diz respeito aos sonhos e à morte.
Diz respeito aos sonhos.
E à vida.
Ele pegou a mão de Nicole enquanto iam para a aula e começou a calcular há quantos minutos estava vivo, mas se deteve e simplesmente abraçou aquele minuto, que era seu.
Steven James
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