Biblio VT
E, no entanto — nunca é demais repeti-lo —, criar uma ilha artificial, uma ilha que se desloca pela superfície dos mares, não é porventura transcender os limites concedidos ao génio humano, e não será defeso ao homem, que não dispõe dos ventos nem das ondas, usurpar tão temeràriamente o que pertence ao Criador?
AS ILHAS DE COOK
HÁ seis meses que Standard-Island, tendo partido de Madeleine-bay, anda de arquipélago para arquipélago por meio do Pacífico. Nem um único acidente ocorreu no decurso da sua maravilhosa navegação. Nesta quadra do ano, as paragens da zona equatorial são serenas, sopram regularmente os alisados, ou ventos gerais, entre os trópicos. Além disso, quando se desencadeia alguma borrasca ou algum temporal, a base sólida que sustenta Milliard-City, os dois portos, o parque, o campo, não sofre o mínimo abalo. Passa a borrasca, abranda o temporal. Mal se deu por eles na superfície da Jóia do Pacífico.
O que haveria motivo de recear nestas condições era a monotonia de uma existência uniforme em demasia. Mas os nossos parisienses são os primeiros a concordar que tal não se dá. Neste imenso deserto do oceano sucedem-se os oásis — tais são os grupos que já se visitaram: as Sanduíche, as Marquesas, as Pomotu, as ilhas da Sociedade, tais os que se hão-de explorar antes de seguir derrota para o norte, as ilhas de Cook, as Samoa, as Tonga, as Fiji, as Novas Hébridas e porventura outras ainda. Outras tantas escalas variadas, outros tantos ensejos esperados, que permitirão percorrer esses países, tão interessantes no ponto de vista etnográfico.
Pelo que respeita ao Quarteto Concertante, como lhe ocorreria a ideia de se queixar, mesmo que lhe dessem tempo para isso?
Acaso pode considerar-se como isolado do resto do mundo? Não se fazem com toda a regularidade os serviços postais com os dois continentes? Não só os navios de petróleo trazem os seus carregamentos para as necessidades das fábricas quase em dias de antemão marcados, mas não decorre uma quinzena sem que os vapores descarreguem, em Tribord-Harbour ou em Babord-Harbour, provisões de todas as espécies, e também o contingente de informações e de notícias que entretém os ócios da população milliardense.
É escusado dizer que os honorários atribuídos aos artistas são pagos com pontualidade que demonstra os recursos inesgotáveis da Companhia. Caem-lhes nos bolsos milhares de dólares, que se vão acumulando a ponto de, ao expirar o contrato, eles deverem ficar ricos, riquíssimos. Nunca houve músicos que se vissem numa folia destas, e não lhes é lícita a saudade pelos resultados ((relativamente medíocres» das suas excursões artísticas pelos Estados Unidos da América.
- Ora vamos a ver — perguntou um dia Frascolin ao violoncelista—, já te deixaste das tuas prevenções contra Standard-Island?
— Não — responde Sebastião Zorn.
— E, no entanto — observa Pinchinat—, lambemo-nos com grossa maquia quando a viagem acabar!
— Não basta ter maquia grossa, o caso é ter a gente a certeza de a levar consigo!
— E tu não tens a certeza?
— Não.
Que resposta se há-de dar a isto? E, contudo, nada havia a temer com respeito à tal maquia, por isso que o produto dos trimestres era remetido para a América em letras de câmbio, e arrecadado nos cofres do Banco de Nova Iorque.
Portanto, o melhor é deixar aquele cabeçudo incrustar-se nas suas desconfianças injustificáveis.
Com efeito, o futuro afigura-se mais que nunca assegurado. Parece que as rivalidades das duas secções entraram num período de apaziguamento. Cyrus Bikerstaff e os seus adjuntos têm razão para se congratularem por este facto.
O superintendente multiplica-se desde «o grande acontecimento do baile do palácio municipal». Sim! Walter Tankerdon dançou com Miss Dy Coverley. Dever-se-á concluir daí que as relações entre as duas famílias estejam menos tensas? O que é certo é que Jem Tankerdon e os seus amigos já não falam em fazer de Standard-Island uma ilha industrial e mercantil. Enfim, na alta sociedade, conversa-se muito sobre o incidente do baile. Alguns espíritos perspicazes vêem nele uma aproximação, mais do que isso: uma conciliação, que porá termo às dissensões privadas e públicas.
E, a realizarem-se estas previsões, um rapaz e uma menina, certamente dignos um do outro, poderão ver levado a efeito o seu sonho mais fagueiro, assim nos julgamos no direito de o afirmar.
Não sofre dúvida que Walter Tankerdon não pôde ficar insensível aos encantos de Miss Dy Coverley. Esta inclinação já data de um ano. Em vista da situação, a ninguém confiou ele o segredo dos seus sentimentos. Adivinhou-o Miss Dy, compreendeu-o, ficou sensibilizada com esta discrição. Dar-se-ia o caso que ela visse claramente no próprio coração e porventura este coração estará prestes a responder ao de Walter? Seja como for, ela nada deixou transparecer. Manteve-se na reserva que lhe indicam a sua dignidade e o afastamento que uma pela outra manifestam as duas famílias.
Todavia, um observador perspicaz poderia reparar que Walter e Miss Dy nunca tomam parte nas discussões que se levantam por vezes, tanto no palacete da Décima Quinta Avenida como no da Décima Nona. Quando o intratável Jem Tankerdon se entrega a alguma diatribe fulminante contra os Coverley, seu filho curva a cabeça, cala-se, afasta-se. Quando Nat Coverley vocifera contra os Tankerdon, sua filha baixa os olhos, empalidece-lhe o rosto encantador, e ela procura desviar a conversação, sem o conseguir, verdade seja. Que os dois chefes de família nada tenham percebido, e é essa a sina comum dos pais a quem a natureza pôs uma venda nos olhos. Mas — pelo menos afirma-o Calistus Munbar — Mrs. Coverley e Mrs. Tankerdon é que já não estão nesse grau de cegueira.
Não é para não ver que as mães têm olhos, e este estado de alma de seus filhos é objecto de constante apreensão, visto que é inaplicável o único remédio possível. No íntimo, elas bem sentem que, perante a inimizade dos dois rivais, perante o seu amor-próprio, constantemente melindrado por questões de precedência, não é admissível nenhuma reconciliação, nenhuma ligação... E, contudo, Walter e Miss Dy amam-se... Já de há muito que as duas mães o descobriram.
Já por mais de uma vez que o mancebo foi solicitado para fazer a sua escolha entre as donzelas casadoiras da secção bombordense. Há-as ali encantadoras, perfeitamente educadas, numa situação de fortuna quase igual à dele, e cujas famílias estimariam deveras uma tal união. Seu pai a isso o induziu de uma forma bem terminante, assim como sua mãe, embora esta houvesse mostrado menos empenho. Walter recusou sempre, dando por pretexto o não sentir propensão nenhuma para o casamento. Ora o antigo negociante de Chicago faz-se surdo para estas lérias. Quem possui muitos centos de milhões de dote não deve ficar celibatário. Se acaso o filho não encontra em Standard-Island uma menina que lhe agrade — da sua classe, está bem de ver—, com a breca! Viaje, vá percorrer a Europa ou a América! Com o seu nome, a sua fortuna, não falando dos seus atractivos pessoais, só se verá abarbado com o embaraço da escolha, muito embora lhe apeteça uma princesa de sangue imperial ou real! Assim se expressa Jem Tankerdon. Ora, de cada vez que o pai o colocou entre a espada e a parede, Walter sempre teve relutância em transpor a tal parede, para ir ao estrangeiro em cata de consorte. E como sua mãe lhe dissesse uma vez:
— Meu querido filho, então há aqui alguma menina que te agrade?
— Há, sim, minha mãe — respondeu ele.
E, como Mrs. Tankerdon não chegou a perguntar-lhe quem era a tal menina, ele não julgou oportuno nomeá-la.
Que uma situação análoga exista na família Coverley, que o antigo banqueiro da Nova Orleães deseja casar a filha com um dos rapazes que frequentam o palacete, cujas recepções estão muito em moda, é isso que não sofre dúvidas. Se nenhum deles lhe convém, nesse caso os pais podem levá-la ao estrangeiro... Visitarão a França, a Itália, a Inglaterra... A isto responde Miss Dy que prefere não sair de Milliard-City. Acha-se bem em Standard-Island. O que ela deseja é deixar-se ali ficar. O Sr. Coverley não deixa de ficar bastante inquieto com a resposta, cujo verdadeiro motivo lhe escapa.
Em todo o caso, Mrs. Coverley é bem de ver que formulou a sua filha uma pergunta tão directa como a de Mrs. Tankerdon a Walter, e é provável que Miss Dy não se abalançasse a responder com a mesma franqueza — a sua mãe que fosse.
Eis em que estado se acham as coisas. Desde que deixou de haver sombra de equívoco sobre a natureza dos seus sentimentos, se o rapaz e a linda herdeira cambiaram algumas vezes um olhar, nunca trocaram palavra. Quando se encontram, é só nos salões oficiais, nas recepções de Cyrus Bikerstaff, por ocasião de alguma cerimónia à qual os notáveis milliardenses não podem dispensar-se de assistir, quando mais não seja para manterem a sua posição social. Ora, nestas circunstâncias, Walter Tankerdon e Miss Dy Coverley observam uma completa reserva, visto acharem-se num terreno em que a mínima imprudência poderia produzir consequências desagradáveis.
Calcule-se, pois, o efeito produzido após o extraordinário incidente que assinalou o baile do governador, incidente em que os espíritos inclinados ao exagero quiseram ver um escândalo, e sobre o qual a cidade inteira se fartou de dar à língua no dia seguinte. Quanto à causa que o provocou, não há nada mais simples. O superintendente convidara... Miss Coverley para dançar... desapareceu ao começar a quadrilha — o espertalhão! Walter Tankerdon apresentou-se em lugar dele, e a rapariga aceitou-o para par...
Que em seguida a este facto tão considerável na alta sociedade de Milliard-City tivesse havido explicações de uma e de outra parte, é até certíssimo.
O Sr. Tankerdon por força que interrogou seu filho, e o Sr. Coverley sua filha a tal respeito. Mas que respondeu Miss Dy? Que respondeu Walter? Porventura intervieram Mrs. Tankerdon e Mrs. Coverley, e qual foi o resultado desta intervenção? Com toda a sua perspicácia de furão, com toda a sua finura diplomática, Calistus Munbar não conseguiu sabê-lo. Por isso, quando Frascolin o interroga sobre o caso, ele nada mais faz do que responder com um piscar do olho direito, o que nada significa, visto que ele não sabe absolutamente nada. O que é digno de reparo é que, desde esse dia memorável, quando Walter encontra Mrs. Coverley e Miss Dy no passeio, inclina-se respeitosamente, e as duas senhoras correspondem ao cumprimento.
A acreditar-se no superintendente, é esse um passo imenso, «uma grande pernada a caminho do futuro!»
Na manhã de 25 de Novembro, ocorre um facto marítimo, que nada tem com a situação das duas famílias preponderantes da ilha de hélice.
Ao nascer do dia, as vigias do Observatório dão sinal de alguns navios de alto bordo, que seguem no rumo de sudoeste. Estes barcos navegam em linha, mantendo as distâncias. Não pode ser senão a divisão de uma das esquadras do Pacífico.
O comodoro Simcoe previne telegràficamente o governador, e este dá ordem para salvar a esses navios de guerra.
Frascolin, Yvernés e Pinchinat dirigem-se para a torre do Observatório, com desejo de assistir à troca de cumprimentos internacionais.
Assestam-se os óculos para os navios, em número de quatro, a cinco ou seis milhas de distância. No penol não há bandeira desfraldada, e não é possível reconhecer-se-lhes a nacionalidade.
— Não há nada que indique a que marinha pertencem? — pergunta Frascolin ao oficial.
— Não — responde este—, mas pela aparência, não se me dava de apostar que são de nacionalidade britânica. Demais a mais, nestas paragens não se encontram divisões de esquadra que não sejam inglesas, francesas ou americanas.
Em todo o caso, ficaremos certos quando eles se aproximarem uma ou duas milhas.
Os navios seguem com velocidade muito moderada, e, a não mudarem de rumo, devem passar a poucas amarras de Standard-Island.
Um certo número de curiosos vai para a bateria do Esporão, donde segue com interesse o andamento dos navios.
Passada uma hora, acham-se eles a menos de duas milhas. São cruzadores de antigo modelo, armados com três mastros, muito superiores de aspecto a esses navios modernos, reduzidos a uma mastreação militar. Dos seus amplos canos escapam-se volutas de vapor, que a brisa de oeste varre até aos extremos confins do horizonte.
Quando estão apenas a milha e meia, o oficial pode afirmar sem receio que eles constituem a divisão britânica do Pacífico Oeste, onde alguns arquipélagos, os de Tonga, de Samoa, de Cook, são possuídos pela Grã-Bretanha ou colocados sob o seu protectorado.
O oficial está prestes a içar o pavilhão de Standard-Island, cujo filete, ornamentado com um sol de ouro, há-de desfraldar-se livremente à brisa. Espera-se que o navio almirante cumprimente.
Decorrem uns dez minutos.
— Se são ingleses — observa Frascolin-—, não mostram grande empenho em ser delicados!
—Que queres? — responde Pinchinat.—John Buli tem quase sempre o chapéu aparafusado à cabeça, e o desaparafusá-lo é uma operação que leva tempo deveras.
O oficial encolhe os ombros.
— Bem se vê que são ingleses — diz ele. — Conheço-os de sobra, não cumprimentam.
Com efeito, na mezena do navio chefe não aparece bandeira nenhuma. A divisão passa, fazendo tanto caso da ilha de hélice como se ela não existisse. E, afinal de contas, com que direito existe ela? Com que direito vem ela servir de pejamento nestas paragens do Pacífico? Por que motivo é que a Inglaterra lhe concederia atenção, se nunca cessou de protestar contra a fabricação desta enorme máquina, que, com risco de produzir abalroamentos, se desloca por estes mares e corta as derrotas marítimas?
A divisão afastou-se como um sujeito mal-educado, que se recusa a reconhecer as pessoas nos passeios de Regent-strect ou de Strand, e o pavilhão de Standard-Island permanece arriado na base do respectivo pau.
Fácil é calcular por que maneira, na cidade, nos portos, se trata essa altiva Inglaterra, essa pérfida Albion, essa Cartago dos tempos modernos. Toma-se a resolução de nunca mais corresponder a um cumprimento britânico, se acaso lho fizerem — o que está fora de todas as hipóteses.
— Que diferença com a nossa esquadra, por ocasião de ela chegar a Taiti! — exclamou Yvernés.
— É que os Franceses-—replica Frascolin — são sempre de uma polidez...
— Sostenuta con espressione! — acrescenta Sua Alteza, batendo o compasso com toda a graciosidade.
Na manhã de 29 de Novembro, as vigias reconhecem as primeiras alturas do arquipélago de Cook, situado por 20° de latitude sul e 160° de longitude oeste. Baptizado com os nomes de Mangia e de Harvey, e depois com o nome de Cook, que a ele aportou em 1770, compõe-se este arquipélago de várias ilhas, como Mangia, Raro-tonga, Watim, Mittio, Hervey, Palmerston, Hagemeister, etc. A sua população, de origem maore, desceu de vinte mil a doze mil habitantes. É formada de malaios da Polinésia, que os missionários europeus converteram ao cristianismo. Estes ilhéus, muito aferrados à sua independência, têm sempre resistido à invasão estrangeira. Julgam-se ainda senhores da sua terra, embora pouco a pouco se vão dispondo a sofrer a influência protectora — sabe-se o que isto significa — do Governo da Austrália inglesa.
A primeira ilha que se avista do grupo é Mangia, a mais importante e a mais povoada — verdadeiramente a capital do arquipélago. O itinerário inclui uma demora de quinze dias nesta ilha.
Será finalmente neste arquipélago que Pinchinat travará conhecimento com os selvagens a valer, esses selvagens à moda de Robinson Crusoé, que ele anda farto de procurar debalde nas Marquesas, nas ilhas da Sociedade e de Nouka-Hiva? A sua curiosidade de parisiense ficará afinal satisfeita? Deparar-se-lhe-ão canibais absolutamente autênticos, tendo já dado as suas provas?
— Meu velho Zorn — diz ele nesse dia ao colega—, se aqui não há antropófagos, já os não há em parte nenhuma!
— Eu podia responder-te: que tenho eu com isso? — replica o ouriço do quarteto.-—Mas prefiro perguntar-te: porque pensas isso?
— Porque uma ilha que se chama «Mangia» não pode ser habitada senão por canibais.
E Pinchinat mal tem tempo de se furtar ao murro que merece a sua abominável graçola.
Em todo o caso, que haja ou que não haja antropófagos em Mangia, Sua Alteza não terá possibilidade de entrar em comunicação com eles.
Com efeito, quando Standard-Island chega a uma milha de Mangia, apresenta-se no pier de Tribord-Harbour uma piroga que saiu do porto. Traz o ministro inglês, simples pastor protestante, o qual, mais que os chefes mangianos, exerce a sua importuna tirania no arquipélago. Nesta ilha, que mede trinta milhas de circuito, povoada de quatro mil habitantes, cuidadosamente cultivada, rica em plantações de taros, em campos de araruta e de inhames, é este reverendo que possui as melhores terras. É dele a mais confortável habitação de Ouchora, capital da ilha, no sopé de uma colina eriçada de árvores-de-pão, de coqueiros, de mangueiras, de pimenteiras, não falando de um vergel florido, onde desabrocham, entre outras, as gardénias e as peónias. O poder do ministro inglês firma-se nos mutois, polícias indígenas, que formam uma esquadra perante a qual se curvam Suas Majestades mangianas. Esta polícia proíbe o trepar às árvores, a caça e a pesca aos domingos e dias santificados, o passear depois das nove horas da noite, a compra de objectos de consumo por preços diferentes dos arbitrariamente taxados, tudo sob pena de multas pagas em piastras — cada piastra vale cinco francos —, as quais vão quase na totalidade para as algibeiras do pouco escrupuloso reverendo.
Quando este homenzinho, gorducho e atarracado, desembarca, o oficial do porto adianta-se ao encontro dele, e trocam-se as saudações.
— Em nome do rei e da rainha de Mangia — diz o inglês—, apresento os cumprimentos de Suas Majestades a Sua Excelência o governador de Standard-Island.
— Estou encarregado de os receber e agradecer, senhor ministro — responde o oficial—, enquanto o nosso governador não vai pessoalmente apresentar os seus respeitos...
— Sua Excelência será bem recebido — diz o ministro, cuja fisionomia bisbilhoteira é realmente uma amálgama de astúcia e de avidez.
Depois continua em tom açucarado:
— O estado sanitário de Standard-Island não deixa nada a desejar, suponho eu?
— Nunca foi melhor.
— No entanto, podia muito bem suceder que aparecessem algumas moléstias epidémicas — influenza, tifo, bexigas...
— Nem sequer a coriza, senhor ministro. Queira portanto dar-nos carta limpa, e, logo que tomemos o nosso pouso de escala, estabelecer-se-ão em condições regulares as comunicações com Mangia...
— É que...—respondeu o reverendo, não sem uma certa hesitação—, se houve moléstias...
— Repito-lhe que não há sombra delas.
— Então os habitantes de Standard-Island tencionam desembarcar?
— Sim... como têm feito nos outros grupos de Leste.
— Muito bem... muito bem...—responde o gorducho.— Fiquem certos de que serão acolhidos às mil maravilhas, contanto que nenhuma epidemia...
— Nenhuma, já lhe disse.
— Então que desembarquem... em grande número... Os habitantes hão-de recebê-los de braços abertos, porque os Mangianos são hospitaleiros... Mas cumpre-me preveni-los...
— De quê?
— De que Suas Majestades, de acordo com o Conselho dos Chefes, decidiram que em Mangia, assim como nas outras ilhas do arquipélago, os estrangeiros teriam de pagar um imposto de desembarque.
— Um imposto?
— Sim... duas piastras... Pouco é como vê... duas piastras cada pessoa que puser os pés na ilha.
Evidentemente, é o ministro o autor desta proposta, que o rei, a rainha e o Conselho dos Chefes aceitaram com avidez, reservando uma avultada percentagem para Sua Excelência.
Como nos grupos do Pacífico Oriental nunca se houvesse pensado em semelhantes impostos, o oficial do posto não deixou de expressar a sua surpresa.
—Isso é sério?-—pergunta ele.
— Seríssimo — afirma o ministro—, e a não se pagarem essas duas piastras, a ninguém poderemos permitir...
— Bem, bem!—responde o oficial.
Depois, cumprimentando Sua Excelência, dirige-se à estação telefónica e transmite ao comodoro a tal proposta.
Ethel Simcoe põe-se em comunicação com o governador. Porventura convém que a ilha de hélice se demore defronte de Mangia, em vista das pretensões tão formais quanto injustificadas das autoridades mangianas?
Não se faz esperar a resposta. Depois de conferenciar sobre o caso com os seus adjuntos, Cyrus Bikerstaff recusa submeter-se a esses impostos vexatórios. Standard-Island não fará escala nem diante de Mangia nem em nenhuma das outras ilhas do arquipélago. O sôfrego reverendo ficará corrido mais a sua proposta, e os Milliar-denses seguirão para as paragens próximas, a visitar indígenas menos ávidos e menos exigentes.
Transmite-se, pois, aos maquinistas a ordem de soltar as rédeas aos seus milhões de cavalos-vapor, e aqui está como Pinchinat ficou privado do prazer de apertar a mão a dignos antropófagos, caso os houvesse. Mas console-se! Os habitantes das ilhas de Cook já não se devoram uns aos outros, sabe Deus com que pesar!
Standard-Island segue derrota pelo amplo braço de mar que se prolonga até à aglomeração das quatro ilhas que ficam de enfiada ao norte. Aparece uma porção de pirogas, umas de construção e de aparelho bastante finos, as outras simplesmente cavadas num tronco de árvore, mas tripuladas por pescadores arrojados, que se aventuram à caça das baleias, tão numerosas por estes mares.
Estas ilhas são muito viçosas, muito férteis, e compreende-se que a Inglaterra lhes impusesse o seu protectorado, enquanto as não inclui no número das suas propriedades do Pacífico. À vista de Mangia, puderam distinguir-se-lhe as costas fragosas, guarnecidas de um bracelete de coral, rebocadas de uma cal viva, que é extraída das formações coralígenas, as colinas atapetadas da verdura fosca das essências tropicais, e cuja altitude não excede duzentos metros.
No dia seguinte, o comodoro Simcoe reconheceu Rarotonga pelos seus montes arborizados até às cumeadas. No centro, pouco mais ou menos, aponta a mil e quinhentos metros um vulcão, cujo pico emerge duma mata espessa. Por entre os maciços sobressai um edifício alvejante, de janelas góticas. É o templo protestante, edificado no meio de grandes florestas de mapés, que descem até à beira-mar. As árvores, de troncos caprichosos, são corcovadas, amolgadas, tortas, como as macieiras velhas da Normandia ou as velhas oliveiras da Provença.
Talvez que o reverendo que dirige as consciências de Rarotonga, de meias com o director da Sociedade Alemã Oceânica, nas mãos da qual se concentra todo o comércio da ilha, não tenha estabelecido impostos sobre os estrangeiros, a exemplo do seu colega de Mangia? Talvez que os Milliardenses pudessem, sem alargar os cordões à bolsa, ir apresentar os seus respeitos às duas rainhas que ali disputam a soberania, uma na aldeia de Arognani, outra na aldeia de Avarua? Mas Cyrus Bikerstaff é que não julga conveniente surgir nesta ilha, e é aprovado pelo Conselho dos Notáveis, habituados a serem recebidos como reis que viajam. Em suma, quem fica a chuchar no dedo são os indígenas, dominados por anglicanos desastrados, por isso que os nababos de Standard-Island têm as algibeiras recheadas e as mãos pródigas.
Ao descair do dia, já não se vê mais do que o pico do vulcão, erguendo-se no horizonte como um ponteiro enorme. Miríades de aves marinhas embarcaram sem licença e pairam por cima de Standard-Island; mas, logo que chega a noite, fogem rapidamente para as ilhotas, batidas incessantemente pelas vagas ao norte do arquipélago.
Convoca-se então uma reunião presidida pelo governador, na qual se propõe uma modificação do itinerário. Standard-Island atravessa umas paragens onde predomina a influência inglesa. Continuar a navegar para oeste, pelo paralelo de vinte graus, conforme se decidira, o mesmo é que soltar o rumo para as ilhas Tonga, para as ilhas Fiji.
Ora o que se passou nas ilhas Cook não é já muito animador. Não conviria antes aproximarem-se da Nova Caledónia, do arquipélago de Loyalty, possessões onde a Jóia do Pacífico será recebida com toda a urbanidade francesa? Depois, passado que fosse o solstício de Dezembro, voltar-se-ia francamente para as zonas equatoriais. É verdade que isso era afastarem-se dessas Novas Hébridas, onde é preciso repatriar os náufragos do ketch mais o seu capitão...
Durante esta deliberação a propósito do novo itinerário, os malaios deram mostras de uma inquietação aliás explicável, visto que, adoptada a modificação, mais difícil será o repatriá-los. O capitão Sarol não pode disfarçar o seu desapontamento, digamos até a sua cólera, e quem o ouvisse falar com os seus homens por certo que acharia mais que suspeita a sua irritação.
— Não querem ver esta? — repetia ele. — Desembarcarem-nos em Loyalty... ou na Nova Caledónia! E os nossos amigos que nos esperam em Erromango! E o nosso plano tão bem preparado nas Novas Hébridas! Querem ver que nos foge das mãos este rico ensejo?
Por fortuna para os malaios —, por desgraça para Standard-Island— o projecto de mudança de itinerário não é admitido. Os notáveis de Milliard-City não gostam que tragam modificações aos seus hábitos. Continuará a viagem, na conformidade do programa determinado à saída da baía Madalena. A única diferença é que, para substituir a demora de quinze dias, que devia fazer-se nas ilhas de Cook, resolvem dirigir-se para o arquipélago de Samoa, subindo para nordeste, antes de se aproximarem do grupo das ilhas Tonga.
E quando se dá a conhecer esta decisão os malaios não podem dissimular o seu contentamento...
Afinal de contas, não há nada mais natural. Não é razoável que eles se regozijem por o Conselho dos Notáveis não renunciar ao projecto de os repatriar nas Novas Hébridas?
DE ILHAS PARA ILHAS
Se o horizonte de Standard-Island parece estar por um lado mais sereno, desde que são menos tensas as relações entre os Estibordenses e os Bombordenses, se estas melhoras são devidas ao sentimento que Walter Tankerdon e Miss Dy Coverley experimentam um pelo outro, se, finalmente, o governador e o superintendente têm motivos para crer que o futuro nunca mais será comprometido por dissensões intestinas, a Jóia do Pacífico nem por isso está menos ameaçada na sua existência, e difícil lhe é poder escapar à catástrofe preparada com grande antecedência. À medida que se efectuar o seu deslocamento para oeste, aproxima-se das paragens onde é certa a sua destruição, e o autor desta maquinação criminosa não é outro senão o capitão Sarol.
Com efeito, não foi uma circunstância fortuita que conduziu os malaios ao grupo das Sanduíche. Foi só para esperar a chegada de Standard-Island, na época da sua visita anual, que o ketch tocou em Honolulu. Segui-la depois da partida, navegar nas suas águas, sem despertar suspeitas, fazer com que recolham como náufragos a ele e aos seus, visto que não puderam ser admitidos como passageiros, e então, sob pretexto de ser repatriado, dirigi-la para as Novas Hébridas, tal foi o verdadeiro intento do capitão Sarol.
Sabe-se como se pôs em execução a primeira parte deste plano. A colisão do ketch era imaginária.
Nenhum navio abalroou com ele nas proximidades do equador. Foram os próprios malaios que abriram água no seu barco, mas de maneira que ele pudesse manter-se a nado até o momento em que chegassem os socorros pedidos por meio de tiros e de maneira também que ficasse prestes a ir a pique, quando a embarcação de Tribord-Harbour houvesse recolhido a tripulação. Desde esse momento, não haveria que suspeitar do abalroamento, não se contestaria a qualidade de náufragos a mareantes cujo navio acabava de soçobrar, e não haveria remédio senão conceder-lhes asilo.
É verdade que talvez o governador se recusasse a conservá-los a bordo. Talvez resolvessem desembarcá-los no arquipélago mais próximo... Era uma cartada a jogar, e o capitão Sarol sujeitou-se à sorte. Mas, depois do parecer favorável da Companhia, tomou-se a resolução de conservar os náufragos do ketch e de os conduzir até à vista das Novas Hébridas.
Assim se passaram as coisas. Há já quatro meses que o capitão Sarol mais os dez malaios se demoram com plena liberdade na ilha de hélice. Tiveram tempo de sobra para a explorar em todos os sentidos, para lhe penetrar todos os segredos, e não perderam para isso um único ensejo. Vai correndo tudo à medida dos seus desejos. Por um momento, tiveram razão de temer que fosse modificado o itinerário pelo Conselho dos Notáveis, e foi tamanha a sua inquietação que chegaram a correr o risco de se tornarem suspeitos! Felizmente para os seus projectos, o itinerário não sofreu nenhuma alteração.
Mais três meses decorridos, e Standard-Island chegará às paragens das Novas Hébridas, onde deve produzir-se uma catástrofe como igual nunca haverá nos sinistros marítimos.
É perigoso para os navegadores este arquipélago das Novas Hébridas, não só por causa dos escolhos disseminados pelas suas circunvizinhanças, pelas trovoadas que por ali se propagam, mas também em consequência da ferocidade nativa de uma parte da população.
Desde a época em que Queirós o descobriu em 1606(1), depois de ter sido explorado por Bougainville, em 1768, e por Cook, em 1773, foi este arquipélago teatro de morticínios monstruosos, e acaso a sua péssima reputação tende a justificar os receios de Sebastião Zorn sobre o final desta expedição marítima de Standard-Island. Canacas, papuas, malaios, andam ali de mistura com negros australianos, pérfidos, cobardes, refractários a todas as tentativas de civilização. Algumas ilhas deste grupo são verdadeiros ninhos de piratas, e os habitantes vivem apenas do latrocínio.
O capitão Sarol, malaio de origem, pertencente a esse tipo de pechilingues, baleeiros, carregadores de sândalo, negreiros, que, conforme observou o médico Hagon por ocasião da sua viagem às Novas Hébridas, infestam estas paragens. Audacioso, empreendedor, habituado a correr os arquipélagos suspeitos, muito prático no seu ofício, tendo-se por mais de uma vez encarregado de dirigir expedições sanguinolentas, este Sarol não faz agora a sua estreia, e as suas proezas já lhe têm dado celebridade nesta parte do Pacífico Oeste.
Ora, meses antes, o capitão Sarol e os seus companheiros, tendo por cúmplice a sanguinária população da ilha Erromango, uma das Novas Hébridas, prepararam um lance que lhes permitirá, caso tenha bom êxito, irem viver à laia de homens de bem em qualquer parte que lhes aprouver. Conhecem de reputação esta ilha de hélice que, desde o ano precedente, anda de passeio entre os dois trópicos. Mas, como ela não deve alongar-se tanto para oeste, trata-se de atraí-la às alturas desta selvática Erromango, onde tudo está prestes para levar a cabo a sua completa destruição.
Por outra parte, embora reforçados pelos naturais das ilhas próximas, estes neo-hebridenses devem contar com a sua inferioridade numérica em vista da população de Standard-Island, não falando nos meios de defesa de que ela dispõe. Por isso, não é ideia deles o atacá-la no mar,
*1. Outra vez o erro de data: 1706 no original. Isto alivia de responsabilidade os tipógrafos franceses e tende a carregá-las sobre Júlio Verne, que tem melhores costas. (N. do T.)
como um simples navio mercante, nem lançar-lhe à abordagem uma flotilha de pirogas. Graças aos sentimentos de humanidade que os malaios tiveram a habilidade de explorar, sem despertar a mínima suspeita, Standard-Island acercar-se-á das paragens de Erromango... Surgirá à distância de poucas amarras... Milhares de indígenas a invadirão de surpresa... Atirarão com ela para cima das rochas... Aí se fará em pedaços... Ficará entregue à pilhagem, à mortandade... Realmente, esta maquinação tenebrosa tem probabilidades de êxito. Em prémio da hospitalidade que concederam ao capitão Sarol e aos seus cúmplices, os Milliardenses encaminham-se para uma catástrofe suprema.
A 9 de Dezembro, o comodoro Simcoe atinge o meridiano dos cento e setenta e um graus, na intersecção com o paralelo dos quinze. Entre este meridiano e o dos cento e setenta e cinco fica o grupo das Samoa, visitado por Bougainville em 1768, por La Pérouse em 1787, por Edwards em 1791.
A ilha Rose é a primeira que se marca ao noroeste, ilha desabitada, que nem sequer merece a honra de uma visita.
Dois dias depois, reconhece-se a ilha Manua, flanqueada pelos dois ilhéus de Olosaga e de Ofu. O seu ponto culminante eleva-se a setecentos e sessenta metros acima do nível do mar. Conquanto conte cerca de dois mil habitantes, não é a mais interessante do arquipélago, e o governador não dá ordem de paragem ali. Mais vale demorarem-se uns quinze dias nas ilhas Tu-tuila, Upolu e Savai, as mais formosas do grupo, que é formoso entre todos. Manua goza contudo de certa celebridade nos anais marítimos. Efectivamente, foi no seu litoral, em Ma-Oma, que pereceram muitos dos companheiros de Cook, no fundo de uma baía à qual ficou o nome, de sobra justificado, de baía do Massacre.
Umas vinte léguas separam Manua de Tutuila, sua vizinha. Standard-Island aproxima-se dela durante a noite de 14 para 15 de Dezembro. Nessa noite, o quarteto, que passeia pelas proximidades da bateria do Esporão, cheirou-lhe a esta Tutuila, conquanto ela esteja ainda a uma distância de muitas milhas.
O ar está embalsamado pelos mais deliciosos perfumes.
— Isto não é uma ilha — exclama Pinchinat—, é o armazém de Piver... é a fábrica de Lubin... é uma loja de perfumista da moda...
— Se a Sua Alteza não vê nisso inconveniente — observa Yvernés—, prefiro que a compares a uma caçoila...
— Pois seja uma caçoila! — exclama Pinchinat, que não quer contrariar os adejos poéticos do colega.
E, na verdade, é como se uma corrente de eflúvios perfumados fosse trazida pela brisa à superfície destas águas admiráveis. São as emanações dessa essência tão penetrante, a que os canacas samoanos deram o nome de mussooi.
Ao nascer do Sol, Standard-Island contorna Tutuila a seis amarras da costa setentrional. Parece um açafate verdejante, ou antes, uma sobreposição de florestas, que se desenvolvem até às últimas cumeadas, a mais alta das quais excede mil e setecentos metros. Precedem-na algumas ilhotas, entre outras a de Anuu. Vogam pressurosas a fazer escolta à ilha de hélice alguns milhares de pirogas elegantes, guarnecidas por vigorosos indígenas seminus, manejando os remos ao compasso dois por quatro de uma canção samoana. Cinquenta a sessenta remadores não é conta exagerada para estas compridas embarcações, de uma solidez que lhes permite frequentar o mar alto. Os nossos parisienses compreendem então porque é que os primeiros europeus deram a estas ilhas o nome de arquipélago dos Navegadores. Em suma, o seu verdadeiro nome geográfico é Hamoa, ou, de preferência, Samoa.
Savai, Upolu e Tutuila, escalonadas de noroeste para sueste, Olosaga, Ofu e Manua, disseminadas ao sueste, tais são as principais ilhas deste grupo de origem vulcânica. A sua superfície total é de dois mil e oitocentos quilómetros quadrados, e a sua população é de trinta e cinco mil e seiscentos habitantes. Devem-se, pois, reduzir a metade os recenseamentos que foram indicados pelos primeiros exploradores.
Observemos que qualquer destas ilhas pode oferecer condições climatéricas tão favoráveis como Standard-Island. A temperatura mantém-se nelas entre vinte e seis e trinta e quatro graus. Os meses mais frios são Julho e Agosto, e é em Fevereiro que se acusam os calores extremos. De Dezembro a Abril, são os Samoanos inundados de chuvas copiosas, e é também nesta época que se desencadeiam borrascas e tempestades, tão fecundas em sinistros.
Quanto ao comércio, a princípio entre as mãos dos Ingleses, depois dos Americanos, por último dos Alemães, pode elevar-se a um milhão e oitocentos mil francos de importação e novecentos mil francos de exportação. Os seus elementos consistem em certos produtos agrícolas, o algodão, cuja cultura cresce de ano para ano, e a copra, isto é, a amêndoa seca do coco.
Além disso, na população, que é de origem malaio-polinésica, apenas se misturam umas três centenas de brancos e alguns milhares de trabalhadores recrutados nas diversas ilhas da Melanésia. Desde 1830, os missionários converteram ao cristianismo os Samoanos, que guardam, apesar disso, certas práticas dos seus antigos ritos religiosos. A grande maioria dos indígenas é protestante, graças à influência alemã e inglesa. Todavia, o catolicismo conta ali alguns milhares de neófitos, cujo número os padres maristas se empenham em aumentar, a fim de combater o proselitismo anglo-saxónico.
Standard-Island deteve-se ao sul da ilha de Tutuila, defronte da embocadura da enseada de Pago-Pago. É esse o verdadeiro porto da ilha, cuja capital é Lome, situada na parte central. Desta vez não há dificuldade nenhuma entre o governador Cyrus Bikerstaff e as autoridades samoanas. Concede-se livre prática. Não é em Tutuila, é em Upolu que habita o soberano do arquipélago, e onde estão estabelecidas as residências inglesa, americana e alemã.
Não há pois recepções oficiais. Um certo número de samoanos aproveita-se da facilidade que se lhes oferece de visitarem Milliard-City e seus arredores.
Quanto aos Milliardenses, esses têm a certeza de que a população do grupo lhes fará um acolhimento benévolo e cordial.
O porto fica ao fundo da baía. O abrigo que lhes oferece contra os ventos do mar é excelente, e fácil o seu acesso. Os navios de guerra ali fazem muitas vezes escala.
Entre os primeiros que desembarcam nesse dia, não é de espantar que se encontrem Sebastião Zorn e os seus três colegas, acompanhados pelo superintendente, que quer ser do grupo. Calistus Munbar está, como sempre, de um humor expansivo e alegre. Soube que entre três ou quatro famílias de notáveis se organizou uma excursão até Lome, em carruagens tiradas por cavalos neozelandeses. Ora, visto que lá se devem encontrar os Coverley e os Tankerdon, possível é que se torne a realizar uma certa aproximação entre Walter Tankerdon e Miss Dy, a qual está longe de lhe desagradar.
Enquanto anda a passear com os quatro artistas, conversa ele sobre este grande acontecimento; anima-se, vai fantasiando na forma do seu costume.
— Meus amigos — repete ele—, nós estamos em plena ópera-cómica. Com um incidente feliz, chega-se ao desenlace da peça... Um cavalo que tome o freio nos dentes... uma carruagem que se vire...
— Um ataque de salteadores! — sugere Yvernés.
— Um morticínio geral dos excursionistas! — acrescenta Pinchinat.
— E isso não é nada difícil que aconteça!—resmunga o violoncelista com voz fúnebre, como se arrancasse notas lúgubres à sua quarta corda.
— Não, meus amigos, isso não! — exclamou Calistus Munbar. — Não é preciso chegar ao morticínio! Isso será de mais! Basta um acidente aceitável, no qual Walter Tankerdon tivesse a fortuna de salvar a vida de Miss Coverley...
— E isso acompanhado com música de Boildieu ou de Auber — diz Pinchinat, fazendo com a mão fechada o gesto de dar à manivela de um realejo.
— Com que então -— torna Frascolin —, o Sr. Munbar continua empenhado nesse casamento!
— Ora se continuo, meu caro Frascolin! Sonho com ele de noite e de dia! Até me faz perder a alegria! (Ninguém o havia de dizer.) Até emagreço... (Também não era coisa que se percebesse.) Estouro, se ele se não realizar...
— Há-de realizar-se, senhor superintendente — assegura Yvernés, dando à voz uma sonoridade profética—, porque Deus não quereria a morte de Vossa Excelência...
— Tinha tudo a perder com ela! — responde Calístus Munbar.
E dirigem-se todos para uma taberna indígena, onde bebem à saúde dos futuros noivos alguns copos de água de coco, fazendo boca com saborosas bananas.
Um verdadeiro mimo, para os olhos dos nossos parisienses, esta população samoana, espalhada pelas ruas de Pago-Pago, por entre os maciços que cercam o porto. Os homens são de estatura mais que mediana, tez de um moreno-amarelado, cabeça arredondada, peito pujante, musculatura sólida, fisionomia atraente e jovial. É possível que mostrem tatuagens de mais nos braços, torso, e até nas coxas, mal encobertas por uma espécie de saia de ervas ou de folhagem. Quanto às melenas, são negras, ao que se diz, lisas ou ondeadas, segundo o gosto do dandismo indígena. Mas, sob a camada de cal viva de que andam untadas, aparentam a forma de uma cabeleira.
— Selvagens à Luís XV!—faz notar Pinchinat.— Nada lhes falta, a não ser a casaca, a espada, os calções, as meias, os sapatos de tacões vermelhos, o chapéu de plumas e a caixa de rapé, para figurarem nas recepções matutinas de Versalhes.
Quanto às samoanas, mulheres feitas ou raparigas, tão rudimentarmente trajadas como os homens, tatuadas nas mãos e no peito, com a cabeça engrinaldada de gardénias, o colo enfeitado de colares de hibisco vermelho, justificam a admiração que trasborda nas narrações dos primeiros navegadores — pelo menos enquanto são novas. Muito reservadas, em todo o caso, de um acanhamento um pouco afectado, graciosas e sorridentes, encantam os quatro artistas, saudando-os com o «Kalofa», quer dizer, os bons-dias, pronunciado com voz suave e melodiosa.
Uma excursão, ou antes, uma romaria, que os nossos turistas quiseram fazer, e que levaram a cabo no dia seguinte, proporcionou-lhes ensejo de atravessar a ilha de lado a lado. Uma carruagem da terra condu-los à contracosta, à baía de França, cujo nome lhes traz memórias da sua pátria. Aí, sobre um monumento de coral branco, inaugurado em 1884, destaca-se uma placa de bronze, onde estão gravados os nomes inolvidáveis do comandante De Langle, do naturalista Lamanon e de nove marinheiros — os companheiros de La Pérouse — massacrados naquele sítio em 11 de Dezembro de 1787.
Sebastião Zorn e os seus companheiros regressaram a Pago-Pago pelo interior da ilha. Que admiráveis maciços de arvoredo, enleados de cipós, coqueiros, bananeiras bravas, uma porção de essências indígenas próprias para marcenaria! Estendem-se por ali fora campos de taros, de canas-de-açúcar, de cafezeiros, de algodoeiros, de caneleiras. Por toda a parte, laranjeiras, goiabeiras, mangueiras, abacateiros, e também plantas trepadeiras, orquídeas e fetos arborescentes. Surde uma flora prodigiosamente opulenta deste solo fértil, fecundado por um clima húmido e quente. Pelo que respeita à fauna samoana, reduzida a algumas aves, a alguns répteis quase inofensivos, não conta entre os mamíferos senão um rato pequeno, único representante da família dos roedores.
Quatro dias depois, a 18 de Dezembro, afasta-se Standard-Island de Tutuila, sem que haja ocorrido o ((acidente providencial» tão desejado pelo superintendente. Mas a olhos vistos se percebe que as relações entre as duas famílias continuam a tornar-se cada vez menos tensas.
Não chegarão a uma dúzia as léguas que separam Tutuila de Upolu. Na manhã seguinte, o comodoro Simcoe costeia sucessivamente, a um quarto de milha, as três ilhotas Nemtur, Samusu e Salafuta, que defendem esta ilha como outros tantos fortes destacados. O comodoro manobra com grande habilidade, e à tarde vem tomar o seu ponto de escala em frente de Apia.
Upolu é a ilha mais importante do arquipélago, com os seus dezasseis mil habitantes. Foi nela que a Alemanha, a América e a Inglaterra estabeleceram os seus residentes, reunidos numa espécie de conselho, para a protecção dos interesses dos seus respectivos compatriotas. O soberano do grupo, esse, ((reina» no meio da sua corte de Malinuu, no extremo leste da Ponta Apia.
O aspecto de Upolu é o mesmo que o de Tutuila: um acervo de montanhas, dominado pelo pico do monte da Missão, que constitui o espinhaço da ilha no sentido do comprimento. Estes antigos vulcões extintos estão actualmente cobertos de florestas espessas, que os envolvem até à cratera. Da falda destas montanhas, ligam-se umas planícies e umas campinas à faixa aluvionária do litoral, onde a vegetação se expande em toda a luxuriante fantasia dos trópicos.
No dia seguinte, o governador Cyrus Bikerstaff, os seus dois adjuntos e algumas notabilidades vão desembarcar no porto de Apia. Trata-se de fazer uma visita oficial aos representantes da Inglaterra, da Alemanha e dos Estados Unidos da América, essa espécie de municipalidade compósita, em cujas mãos se concentram os serviços administrativos do arquipélago.
Enquanto Cyrus Bikerstaff e o seu séquito se dirigem às residências, Sebastião Zorn, Frascolin, Yvernés e Pin-chinat, que foram a terra com eles, entretém os ócios a percorrer a cidade.
E logo à primeira vista os impressiona o contraste que apresentam as casas europeias, onde os negociantes têm as suas lojas, e as choupanas da antiga aldeia canaca, onde estes indígenas se obstinam em manter domicílio. Estas habitações são confortáveis, higiénicas, encantadoras numa palavra. Disseminadas pela margem do rio Apia, os seus telhados baixos abrigam-se sob o elegante guarda-sol das palmeiras.
Não falta animação no porto. É o mais frequentado do grupo, e a Sociedade Comercial de Hamburgo mantém nele uma flotilha, destinada à cabotagem entre as Samoa e as ilhas circunvizinhas.
Todavia, se neste arquipélago prepondera a influência comercial desta tríplice aliança inglesa, americana e alemã, a França é ali representada por missionários católicos, cuja dignidade, cuja dedicação, cujo zelo, lhes têm granjeado uma boa fama entre a população samoana. Apodera-se dos nossos artistas uma verdadeira satisfação, uma comoção profunda até mesmo, ao deparar-se-lhes a pequena igreja da Missão, que não tem a severidade puritana das capelas protestantes, e, um pouco mais adiante, na encosta da colina, uma casa de escola, cuja cimalha é coroada pelo pavilhão tricolor.
Para esse lado se encaminham e, passados poucos minutos, são recebidos no estabelecimento francês. Os Ma-ristas fazem aos falanis — é assim que os Samoanos denominam os estrangeiros—-um acolhimento patriótico. Residem ali três padres, empregados no serviço da Missão, a qual conta outros dois em Savai e um certo número de freiras instaladas nas ilhas.
Faz gosto conversar com o superior, homem de idade avançada, que habita em Samoa há bastantes anos. Mostra-se tão contente em receber compatriotas, e, demais a mais, artistas da sua terra! A conversação é cortada com bebidas refrigerantes de que a Missão possui a receita.
— E, em primeiro lugar — diz o ancião—, não pensem os meus queridos filhos que as ilhas do nosso arquipélago sejam selvagens. Não é aqui que hão-de encontrar indígenas que pratiquem o canibalismo...
— Até agora ainda não encontrámos sombra deles — faz notar Frascolin.
— Com grande pesar nosso! — acrescenta Pinchinat.
— Ora essa! Com pesar?
— Desculpe, meu padre, esta confissão de um parisiense curioso! É por amor da cor local!
— Oh! — acode Sebastião Zorn. — Ainda não chegámos ao fim da viagem, e talvez que nos fartemos de ver, mais do que desejaríamos, desses antropófagos reclamados pelo nosso colega...
— É possível—responde o superior. — Pelas proximidades dos grupos de Oeste, pelas Novas Hébridas, pelas Salomão, não devem aventurar-se os navegadores senão com extrema cautela. Mas, nas Taiti, nas Marquesas, nas ilhas da Sociedade, assim como nas Samoa, a civilização tem feito progressos notáveis. Bem sei que o morticínio dos companheiros de La Pérouse valeu aos Samoanos a reputação de indígenas ferozes, dedicados à prática do canibalismo. Mas que mudança depois disso, graças à influência da religião de Cristo! Os indígenas deste tempo são criaturas civilizadas, que gozam de um governo à europeia, com duas câmaras à europeia, e revoluções...
— À europeia! — observa Yvernés.
— É como diz, meu querido filho, as Samoa não são isentas de dissensões políticas!
— Isso é sabido em Standard-Island — responde Pinchinat. — Pois acaso há coisa que se não saiba, meu padre, nessa ilha abençoada pelos deuses! Por sinal que nós até imaginávamos cair aqui no meio de uma guerra dinástica entre duas famílias reais.
— Com efeito, meus amigos, houve luta entre o rei Tupua, que descende dos antigos soberanos do arquipélago, e que nós sustentamos com a nossa influência, e o rei Malietoa, homem dos Ingleses e dos Alemães. Correu sangue a jorros, sobretudo na grande batalha de Dezembro de 1887. Esses reis viram-se sucessivamente proclamados, destronados, e, finalmente, Malietoa foi declarado soberano pelas três potências, em conformidade das disposições estipuladas pela corte de Berlim... Berlim!
E o velho missionário não pode reter um movimento convulsivo, quando este nome lhe sai dos lábios.
— Percebeu? — continua ele. — Até aqui foi dominante nas Samoa a influência dos Alemães. Estão nas mãos deles nove décimas partes das terras cultivadas. Nos arredores de Apia, em Suluafata, obtiveram eles do Governo uma concessão muito importante, na proximidade de um porto que pode servir para abastecer os seus navios de guerra. As armas de tipo rápido foram introduzidas por eles... Mas tudo isto há-de acabar mais dia menos dia...
— Em proveito da França? — pergunta Frascolin.
— Não... em proveito do Reino Unido!
— Oh! — exclama Yvernés. — Entre a Inglaterra ou a Alemanha...
— Isso não, meu querido filho!—objecta o superior. — Convém que se veja a diferença notável...
— Mas o rei Malietoa?—-pergunta Yvernés.
— Pois aí está! O rei Malietoa foi outra vez destronado, e sabem os meus amigos qual é o pretendente que mais probabilidades reuniria de lhe suceder? Um inglês, uma das personagens mais consideráveis do arquipélago, um simples romancista.
— Um romancista?
—-Sim... Robert Lewis Stevenson, o autor da Ilha do Tesouro e das Noites Árabes.
— Ora aqui têm aonde pode levar a literatura! — exclamou Yvernés.
— Que exemplo a seguir para os nossos romancistas da França!—replica Pinchinat. —Hem! Zola I, feito soberano dos Samoanos... reconhecido pelo Governo britânico, sentado no trono dos Tupua e dos Malietoa, e a sua dinastia sucedendo à dinastia dos soberanos indígenas... Que sonho!
Finaliza a conversação, depois de o superior ter dado diversos pormenores sobre os costumes dos Samoanos. Acrescenta ele que, se a maioria pertence à religião wesleyana, lhe queria parecer que o catolicismo dia a dia fazia progressos. A igreja da Missão é já pequena de mais para os ofícios, e a escola reclama um próximo alargamento. Mostra-se satisfeito por esse facto, e os hóspedes acompanham-no nessa satisfação.
Prolongou-se três dias a estadia de Standard-Island na ilha Upolu.
Os missionários vieram pagar aos artistas franceses a visita que deles haviam recebido. Levaram-nos de passeio por Milliard-City, que os maravilhou. E é escusado ocultar que, na sala do Casino, o Quarteto Concertante fez ouvir ao padre superior e aos seus colegas alguns trechos do seu repertório. Chorou de enternecimento, o bom velho, porque adora a música clássica, e, com grande pesar seu, não são as festas de Upolu que lhe dão jamais ensejo de a ouvir.
Na véspera da partida, Sebastião Zorn, Frascolin, Pin-chinat e Yvernés, acompanhados desta vez pelo professor de dança e de etiqueta, vêm despedir-se dos missionários maristas. Trocam-se adeuses tocantes, esses adeuses de pessoas que apenas se viram durante alguns dias e que nunca mais se tornarão a ver. O velho abençoa-os, abraçando-os, e eles retiram-se profundamente comovidos.
No dia seguinte, 23 de Dezembro, o comodoro Simcoe apresta-se para viagem logo de madrugada e Standard-Island põe-se em movimento no meio de um cortejo de pirogas, que devem escoltá-la até à ilha próxima de Savai.
Esta ilha está separada de Upolu apenas por um estreito de sete a oito léguas. Mas, como o porto de Apia está situado na costa setentrional, é necessário contornar esta costa durante o dia todo antes de chegar ao estreito.
Conforme o itinerário determinado pelo governador, não se trata de rodear a ilha de Savai, mas de evolucionar entre ela e Upolu, a fim de se aproximar por sudoeste do arquipélago das Tonga. Por conseguinte, Standard-Island segue com velocidade muito moderada, não querendo internar-se de noite por esse canal flanqueado pelas duas pequenas ilhas de Apolinia e de Manono.
Ao despontar do dia seguinte, o comodoro Simcoè manobra entre estas duas ilhotas, uma das quais, Apolinia, não conta mais de duzentos e cinquenta habitantes, e a outra, Manono, um milhar. Estes indígenas têm a reputação justificada de serem os mais valentes, assim como os mais honrados samoanos do arquipélago.
Daquele ponto pode-se admirar Savai em todo o seu esplendor. É protegida por penedias inabaláveis de granito contra um mar que os temporais, os tornados, os ciclones do período invernoso tornam formidável. Esta Savai é coberta de uma espessa floresta, dominada por um antigo vulcão de mil e duzentos metros de altura, povoada de aldeias cintilantes, sob o dossel das palmeiras gigantescas, regada por cascatas tumultuosas, esburacada de cavernas profundas, donde surde em ecos violentos a arrebentação do litoral.
E, a dar-se crédito às lendas, foi esta ilha o único berço das raças polinésicas, cujo tipo mais puro tem sido conservado pelos seus onze mil habitantes. Chamava-se então Savaiki, o famoso Éden das divindades maores.
Standard-Island afasta-se dela lentamente e perde de vista as suas últimas cumeadas ao anoitecer de 24 de Dezembro.
CONCERTO NA CORTE
Desde 21 de Dezembro que o Sol, no seu movimento aparente, depois de se haver detido no trópico de Capricórnio, recomeçou o seu curso na direcção do norte, abandonando estas paragens às intempéries do Inverno e trazendo novamente o Estio ao hemisfério setentrional.
Standard-Island está apenas a uns dez graus deste trópico. Descendo até às ilhas de Tonga-Tabu, ela atingirá a latitude extrema fixada pelo itinerário, e voltará para o norte, mantendo-se assim nas mais favoráveis condições climatéricas. Verdade seja que não poderá evitar um período de extremos calores, enquanto o Sol irradiar no seu zénite; mas estes calores serão temperados pela brisa mareira e diminuirão à proporção que se afaste o astro de que emanam.
Entre as Samoa e a ilha principal de Tonga-Tabu contam-se oito graus, ou cerca de novecentos quilómetros. Não há motivo para forçar a velocidade. A ilha de hélice irá flanando por esse mar constantemente belo, não menos sereno do que a atmosfera, apenas perturbada por tempestades raras e rápidas. Basta estar em Tonga-Tabu lá para os princípios de Janeiro, demorar-se ali uma semana, depois dirigir-se para as Fiji. Daí, Standard-Island singrará para os lados das Novas Hébridas, onde desembarcará a equipagem malaia; depois, fazendo proa ao nordeste, alcançará as latitudes da baía Madalena, e finalizará a segunda excursão.
Continua, pois, a vida em Milliard-City no meio de um sossego inalterável. Sempre essa existência de uma grande cidade da América ou da Europa, comunicações constantes com o Novo Continente pelos vapores ou pelos cabos telegráficos, visitas habituais das famílias, aproximação manifesta que se opera entre as duas secções rivais, passeios, jogos, concertos do quarteto sempre gozando da predilecção dos diletantes.
Chegado o Natal, o Christmas, tão querido dos protestantes e dos católicos, é celebrado com grande pompa no templo e em Saint-Mary Church, assim como nos palácios, nos palacetes, nas casas do bairro mercantil. Esta solenidade vai encher a ilha inteira de festas desde a semana que começou no Natal para acabarem a 1 de Janeiro.
Entrementes, os jornais de Standard-Island, o Star-board-Chronicle e o New-Herald, não cessam de oferecer aos seus leitores as notícias recentes do interior ou do estrangeiro. E até se publica nas duas folhas uma notícia que dá margem a comentários à farta.
Com efeito, no número de 26 de Dezembro lia-se que o rei de Malecárlia se dirigira ao palácio municipal, onde o governador lhe dera audiência. Que intuitos teria a visita de Sua Majestade... que motivo? Percorrem a cidade boatos de toda a espécie, e nas mais inverosímeis hipóteses se apoiariam eles por certo, se acaso no dia seguinte os jornais não houvessem dado uma informação positiva a tal respeito.
O rei de Malecárlia solicitou um lugar no Observatório de Standard-Island, e a administração superior deferiu imediatamente o pedido.
— Esta é nova em folha! — exclama Pinchinat.— É preciso uma pessoa habitar Milliard-City para ver coisas assim! Um soberano, com os olhos no telescópio, à espreita das estrelas no horizonte!
— Um astro da Terra, que interroga os seus irmãos do firmamento!—comenta Yvernés.
Era um bom rei, este rei de Malecárlia; era uma boa rainha, a princesa, sua consorte. Faziam o bem que podiam, num dos Estados medianos da Europa; eram espíritos esclarecidos, liberais, sem pretenderem que a sua dinastia, apesar de ser uma das mais antigas do Velho Continente, tivesse uma origem divina. O rei era muito instruído em coisas de ciência, muito apreciador de coisas de arte, apaixonado sobretudo pela música. Sábio e filósofo, não se deixava cegar com ilusões sobre o porvir das soberanias europeias. Por isso estava pronto sempre a sair do reino, apenas o seu povo o dispensasse. Não tendo herdeiro directo, não prejudicaria a família, quando lhe parecesse chegado o momento de largar o trono e de se descoroar.
Esse momento chegou, há três anos. Não houve em todo o caso revolução no reino de Malecárlia, ou, pelo menos, se houve um simulacro dela, não foi sangrenta. De comum acordo, rompeu-se o contrato entre Sua Majestade e os seus súbditos. O rei voltou a ser um homem, os súbditos tornaram-se cidadãos, e ele partiu sem mais cerimónias do que um viajante que tomou bilhete no caminho de ferro, deixando um regime substituir-se a outro.
Ainda vigoroso aos sessenta anos, o rei gozava de uma constituição melhor talvez do que aquela com que o seu antigo reino procurava dotar-se. Mas a saúde da rainha, precária bastante, reclamava um ambiente que estivesse ao abrigo de mudanças bruscas de temperatura.
Ora esta quase uniformidade de condições climatéricas, difícil fora encontrá-la noutra parte que não fosse Standard-Island, desde o momento em que não podiam afadigar-se a correr atrás das belas estações em latitudes sucessivas. Parecia, pois, que o engenho de Standard-Island Company apresentava estas diversas vantagens, visto que os nababos mais cotados dos Estados Unidos dela haviam feito a sua cidade de adopção.
É por isso que, desde que se criou a ilha de hélice, o rei e a rainha de Malecárlia resolveram domiciliar-se em Milliard-City. Concedeu-se-lhes essa autorização, contanto que eles vivessem como simples cidadãos, sem distinção nem privilégio nenhum. Pode-se ter a certeza de que Suas Majestades não pensavam em viver doutra forma. Alugaram um palacete pequeno na Trigésima Nona Avenida de Estibordo, cercado por um jardim, que deita para o grande parque. É ali que moram os dois soberanos, muito isolados, não se intrometendo por maneira nenhuma nas rivalidades e nas intrigas das secções rivais, contentando-se com uma existência modesta. O rei gasta o tempo em estudos astronómicos, pelos quais teve sempre um gosto muito acentuado. A rainha, católica sincera, leva uma vida meio claustral, não tendo até ensejo de se consagrar a obras de caridade, visto ser desconhecida a miséria na Jóia do Pacífico.
Tal é a história dos antigos monarcas do reino de Malecárlia, história que o superintendente contou aos nossos artistas, acrescentando que aquele rei e aquela rainha eram as melhores pessoas deste mundo, embora fosse relativamente muito medíocre a sua fortuna.
O quarteto, muito comovido perante esta decadência régia, suportada com tanta filosofia e resignação, experimenta uma respeitosa simpatia pelos soberanos destronados. Em vez de se refugiarem na França, essa pátria dos reis exilados, Suas Majestades escolheram Standard-Island, como as pessoas opulentas escolhem Nice ou Corfu por motivos de doença. É certo que eles não estão exilados, não foram expulsos do seu reino, poderiam ter lá ficado se quisessem, podiam para lá voltar, reclamando apenas os seus direitos de cidadãos.
Mas tal ideia não têm e acham-se bem nesta pacífica existência, conformando-se com as leis e os regulamentos da ilha de hélice.
Ricos é que não são com certeza o rei e a rainha de Malecárlia, em comparação com a maioria dos milliar-denses e em relação às exigências da vida em Milliard-City. Que se há-de fazer numa cidade com cem mil francos de renda, quando um palacete modesto se aluga por cinquenta mil? Ora, os ex-soberanos já não eram lá muito abastados no meio dos imperadores e dos reis da Europa, os quais já não fazem grande figura ao lado dos Gould, dos Vanderbilt, dos Rothschild, dos Astor, dos Mackey e de outros deuses da finança. Por isso, muito embora a sua maneira de viver não comportasse luxo nenhum-—apenas o estritamente necessário—, nunca deixaram de estar mais ou menos embaraçados. Ora a saúde da rainha dá-se tão bem nesta residência que ao rei nem sequer lhe passou pela mente o largá-la. Quis então aumentar os seus rendimentos pelo trabalho, e, tendo vagado um lugar no Observatório, lugar cujos emolumentos são muito avultados, foi requerê-lo ao governador. Cyrus Bikerstaff, depois de ter consultado por um cabograma a administração superior de Madeleine-bay, dispôs desse lugar em favor do ex-monarca, e aqui está como os jornais puderam noticiar que o rei de Malecárlia acabava de ser nomeado astrónomo em Standard-Island.
Que assunto de conversações em qualquer outro país! Aqui falou-se nisso dois dias, depois ninguém mais em tal pensou. Parece naturalíssimo que um rei procure no trabalho a possibilidade de continuar essa tranquila existência de Milliard-City. É um sábio: aproveitar-lhe-ão o saber. Nada há nisto que não seja muito respeitável. Se ele descobrir algum astro novo, planeta, cometa ou estrela, dar-se-lhe-á o seu nome, o qual figurará com honra no meio dos nomes mitológicos que enxameiam nos anuários oficiais.
Andando a passear pelo parque, Sebastião Zorn, Pin-chinat, Yvernés e Frascolin cavaquearam sobre este incidente. Pela manhã, tinham visto o rei dirigir-se para a sua repartição, e ainda não se acham suficientemente americanizados para aceitarem uma situação destas, que é pelo menos pouco vulgar. Portanto, vão dialogando sobre o assunto, até que Frascolin faz esta observação:
— Parece que, se Sua Majestade não fosse capaz de desempenhar as funções de astrónomo, poderia dar lições como professor de música.
— Um rei a calcorrear pelas casas dos discípulos!—exclama Pinchinat.
— Isso que tem? Puxados como seriam os preços das lições...
— Efectivamente, dizem que ele é excelente músico - observa Yvernés.
— Não me espanta que ele seja doido por música — acrescenta Sebastião Zorn—, porque o temos visto firme como uma estaca à porta do Casino, nas noites de concerto, por não poder alugar uns fauteuils para a rainha e para ele!
— Olhem lá, seus filarmónicos, tenho uma ideia! — diz Pinchinat.
— Uma ideia de Sua Alteza — declara o violoncelista -—há-de ser fresca!
— Seja fresca ou não seja, meu velhote — responde Pinchinat—, tenho a certeza de que a hás-de aprovar.
—Vamos lá a ouvir a ideia de Pinchinat — diz Frascolin.
— Era irmos dar uns concertos a Suas Majestades, só aos dois, na sala, e tocarmos lá os melhores trechos do nosso repertório.
— Cáspite! — exclama Sebastião Zorn. — Olha que não é nada má a tua ideia!
— Ora adeus! Ideias deste teor, tenho eu a cabeça atulhada delas, e em eu a sacudindo...
— Tilinta que nem um guizo!—responde Yvernés.
— Meu caro Pinchinat — afirma Frascolin—, por hoje contentamo-nos com essa tua proposta. Estou certo de que vamos dar um grande prazer a esse excelente rei e a essa bondosa rainha.
— Amanhã escrevemos-lhes a pedir uma audiência — sugere Sebastião Zorn.
— Qual história! — objecta Pinchinat. — Esta noite mesmo, apresentemo-nos na régia mansão com os nossos instrumentos, como um grupo de músicos que vão tocar uma alvorada.
— Uma serenada, queres tu dizer — replica Yvernés—, visto que é de noite...
— Pois seja, ó primeiro-violino severo, mas justo! Nada de armar chicana por causa de palavras! Está decidido...
— Está decidido.
É realmente um pensamento magnífico.
Não sofre dúvida que o rei diletante ficará muito penhorado com esta delicada atenção dos artistas franceses e satisfeitíssimo por os ouvir.
Por conseguinte, ao cair da noite, o Quarteto Concertante, carregado de três estojos de rabeca e de uma caixa de violoncelo, sai do Casino e encaminha-se para a Trigésima Nona Avenida, situada na extremidade da secção estibordense.
Habitação muito simples, precedida por um pàtiozinho com relvões verdejantes. De um lado, as cozinhas; do outro, as cocheiras, que não são utilizadas. A casa compõe-se apenas de um rés-do-chão, com acesso por uma pequena escada exterior, e de um andar, tendo por cima uma janela mezzanina e um telhado com mansardas. À direita e à esquerda, dois soberbos lódãos espalham sombra pela vereda dupla que conduz ao jardim. Sob os maciços desse jardim, que não chega a medir duzentos metros quadrados, estende-se um tapete de verdura. Ninguém se lembra de comparar este cotagge(1) aos palacetes dos Coverley, dos Tankerdon e de outros notáveis de Milliard-City. É o eremitério de um filósofo, de um sábio, que vive apartado do mundo. Contentar-se-ia com ele Abdolonimo, ao descer do trono dos reis de Sídon.
O rei de Malecárlia tem por único camarista o seu criado de quarto, e a rainha não tem outra dama de honor que não seja a sua criada grave. Junte-se a isto uma cozinheira americana, e é esse todo o pessoal desses soberanos decaídos, que outrora tratavam de mano a mano com os imperadores do Velho Continente.
Frascolin carrega num botão eléctrico. O criado de quarto abre a porta do gradeamento.
Frascolin comunica-lhe o desejo que têm os seus companheiros e mais ele, artistas franceses, de apresentar os seus respeitos a Sua Majestade, e rogar-lhe se digne recebê-los. O criado pede-lhes que entrem, e os músicos param diante dos degraus da porta.
Passado um instante, o criado volta a preveni-los de que
*1. Chalé, casa de verão.
o rei terá muito gosto em os receber. Introduzem-nos no vestíbulo, onde deixam ficar os instrumentos, depois na sala, onde Suas Majestades entraram imediatamente.
Nisto consistiu todo o cerimonial dessa recepção.
Os artistas inclinaram-se, cheios de respeito, diante do rei e da rainha. Esta, vestida de escuro e com grande simplicidade, tem a descoberto os cabelos abundantes, cujos anéis grisalhos dão um extraordinário encanto ao semblante um pouco pálido, ao seu olhar levemente velado. Vai sentar-se numa poltrona, colocada ao pé da janela que deita para o jardim, além do qual se debuxam os arvoredos do parque.
O rei, de pé, responde ao cumprimento dos visitantes, e pede-lhes se sirvam comunicar-lhe qual o motivo que os levou àquela casa, perdida no bairro extremo de Milliard-City.
Sentem-se os quatro comovidos ao contemplarem este soberano, em cuja personalidade se revela uma dignidade inexprimível. O olhar brilha vivamente sob a espessura das sobrancelhas quase negras — olhar profundo de sábio. Cai-lhe ampla e sedosa a barba branca sobre o peito. A fisionomia, cujo carácter um pouco sério é temperado pela bonomia do sorriso, só pode concitar-lhe a simpatia de quem dele se aproxima.
Toma Frascolin a palavra, e diz com voz levemente trémula:
—Agradecemos a Vossa Majestade o ter-se dignado receber uns artistas que desejam apresentar-lhe a homenagem do seu respeito.
— Tanto a rainha como eu — responde o rei — agradecemos-lhes, meus senhores, e estamos penhoradíssimos com a vossa delicadeza. Parece que e os senhores trouxeram a esta ilha, onde nós esperamos terminar uma existência tão cheia de vicissitudes, uns bafejos desse belo ar da vossa França! Os senhores não são uns desconhecidos para um homem que, ao mesmo tempo que se dedica às ciências, tem uma enorme paixão pela música, a arte que lhes valeu tamanho renome no mundo artístico. Conhecemos os triunfos que têm alcançado na Europa e na América.
Nos aplausos que em Standard-Island acolheram o Quarteto Concertante também nós tomámos parte, um pouco de longe, é certo. Por isso, a única coisa que temos a lamentar é não os termos ouvido como cumpre ouvi-los.
O rei aponta cadeiras aos seus visitantes; depois coloca-se diante do fogão, cujo mármore suporta um magnífico busto da rainha, ainda nova, por Franquetti.
Para entrar em matéria, basta que Frascolin responda à última frase pronunciada pelo rei.
— Tem Vossa Majestade razão — diz ele—, sobretudo tratando-se do género de música de que nós somos intérpretes. A música de câmara, esses quartetos dos mestres da música clássica, requerem mais intimidade do que comporta uma assembleia numerosa. Precisam um pouco do recolhimento de um santuário...
— Sim, meus senhores — declara a rainha -, essa música deve ser escutada como se escutariam algumas páginas de uma harmonia celeste, e é exactamente um santuário o que lhe convém.
—Permitam-nos, pois, Vossas Majestades — diz então Yvernés—que transformemos por uma hora esta sala em santuário, e que sejam Vossas Majestades os nossos únicos ouvintes...
Ainda mal Yvernés acabara de pronunciar estas palavras, quando se anima a fisionomia dos dois soberanos.
— Ora essa! — exclama o rei. — Pois os senhores querem... pois tiveram essa ideia...
— É esse o fim da nossa visita.
— Ah! — diz o rei, estendendo-lhes a mão. — Reconheço nesse passo o coração dos artistas franceses, igual ao seu talento! Agradeço-lhes em nome da rainha e em meu nome, meus senhores! Nada há... absolutamente... que tamanho prazer nos pudesse dar!
E enquanto o criado particular recebe ordem para trazer os instrumentos e arranjar a sala para este concerto improvisado, o rei e a rainha convidam as visitas a acompanhá-los ao jardim. Aí se enceta uma cavaqueira sobre música, tal como poderia travar-se entre artistas na mais completa intimidade.
O rei deixa-se levar pelo seu entusiasmo por essa arte, como quem lhe aprecia todos os encantos e lhe compreende todas as belezas. Chega a espantar os seus ouvintes, pela maneira por que mostra conhecer os maestros que daí a instantes lhe será dado escutar. Celebra o génio, a um tempo ingénuo e engenhoso, de Haydn... Recorda o que um crítico disse de Mendelssohn, esse compositor eminente da música de câmara, que exprime as suas ideias na língua de Beethoven... E Weber, que refinada sensibilidade, que espírito cavalheiresco, que fazem dele um maestro à parte! Beethoven, esse é o príncipe da música instrumental... Nas suas sinfonias revela-se uma alma... As obras do seu génio não cedem nem em grandeza nem em valor às obras-primas da poesia, da pintura, da escultura e da arquitectura, astro sublime que veio a extinguir-se no derradeiro ocaso com a sinfonia com coro, em que a voz dos instrumentos tão intimamente se confunde com as vozes humanas!
— E, no entanto, nunca foi capaz de dançar a compasso!
Deve imaginar-se que é do Sr. Pinchinat que provém esta observação das mais inoportunas.
— Exacto — responde o rei, a sorrir—, o que prova, meus senhores, que o ouvido não é o órgão indispensável ao músico. É com o coração, com o coração somente que ele ouve! E não o prova Beethoven nesta incomparável sinfonia de que eu lhes falava, composta quando a surdez não lhe permitia já distinguir os sons?
Depois de Haydn, de Weber, de Mendelssohn, de Beethoven, é de Mozart que Sua Majestade fala com uma eloquência arrebatadora.
—-Ah! meus senhores — diz ele—, deixem-me expandir o meu arroubamento! Há que tempos que a minha alma se vê privada de desabafar assim! Pois não são os senhores os primeiros artistas de quem tenho podido fazer-me compreender, desde a minha chegada a Standard-Island? Mozart! Mozart! Um dos compositores dramáticos do seu país, o máximo, deles, ao que penso, do fim do século dezanove, consagrou-lhe umas páginas admiráveis. Li-as, e nada poderá jamais apagar-mas da memória!
Mostrou ele a simplicidade com que Mozart dá a cada palavra a sua parte especial de justeza e de entoação, sem nunca prejudicar o andamento e o carácter da frase musical. Disse ele que à verdade patética juntava Mozart a perfeição da beleza plástica. Pois não foi Mozart o único que adivinhou, com tão constante e completa segurança, a forma musical de todos os sentimentos, de todos os seus cambiais de paixão e de carácter, isto é, de tudo que é o drama humano? Mozart não é um rei, e o que é um rei hoje em dia? — acrescenta Sua Majestade, abanando a cabeça—; direi antes que é um deus, visto que ainda se tolera a existência de Deus! É o Deus da música!
O que é impossível de reproduzir, o que é inexprimível, é o ardor com que Sua Majestade manifesta a sua admiração. E depois que o rei e a rainha tornaram a entrar na sala, seguidos pelos artistas, pega numa brochura, que está sobre a mesa. Esta brochura, que ele por certo se tem farto de ler e de reler, tem o seguinte título: D. João, de Mozart. Então, abre-a, lê algumas linhas, caídas da pena do maestro que melhor penetrou e mais amou Mozart, o ilustre Gounod: «Ó Mozart! Divino Mozart! É mister que bem pouco te compreenda quem não te adore! Tu, verdade constante! Tu, beleza perfeita! Tu, encanto inexaurível! Tu, sempre profundo e sempre límpido! Tu, humanidade completa e singeleza infantil! Tu, que tudo sentiste, tudo exprimiste numa frase musical, que nunca ninguém excedeu, que nunca ninguém excederá!»
Então Sebastião Zorn e os seus colegas pegam nos instrumentos e, à claridade da âmbula eléctrica, que espalha pela sala uma luz suave, tocam o primeiro dos trechos que haviam escolhido para este concerto.
É o segundo quarteto em lá menor, Op. 13, de Mendelssohn, que proporciona ao régio auditório um prazer infinito.
A este quarteto segue-se o terceiro em dó maior. Op. 75, de Haydn, isto é, o Hino Austríaco, executado com uma mestria incomparável. Nunca houve executantes que mais se aproximassem da perfeição do que os nossos artistas, na intimidade deste santuário, tendo apenas por ouvintes dois soberanos destronados!
E depois de terminarem este hino realçado pelo génio do compositor, tocam o sexto quarteto em si bemol, Op. 18, de Beethoven, essa Malinconia, de um carácter tão triste, de intensidade tão penetrante que nos olhos de Suas Majestades ressumam as lágrimas.
Depois vem a admirável fuga em dó menor, de Mozart, tão perfeita, tão isenta de todo o artifício escolástico, tão natural, que parece jorrar como uma água límpida, ou coar-se como a brisa através de uma folhagem leve. Finalmente, é um dos mais admiráveis quartetos do divino compositor, o décimo em ré maior, Op. 35, que põe termo a este inolvidável sarau, como nunca os nababos de Milliard-City tiveram igual.
E não seriam os franceses que se cansariam com a execução destas obras admiráveis, porque o rei e a rainha, esses, não se cansam de as ouvir.
Mas são onze horas, e Sua Majestade diz-lhes:
— Recebam os nossos agradecimentos, meus senhores, e creiam que eles partem do íntimo de nossas almas! Graças ao impecável da vossa execução, acabamos de experimentar gozos artísticos cuja recordação nunca mais se apagará! Fez-nos isto tanto bem...
— Se Vossa Majestade deseja — diz Yvernés—, nós ainda podemos...
— Muito obrigado, meus senhores, pela última vez, muito obrigado! Não queremos abusar da vossa amabilidade! É tarde, e depois... esta noite estou de serviço...
Esta expressão na boca do rei revoca os nossos artistas ao sentimento da realidade. Perante o soberano que assim lhes fala, sentem-se quase confusos... baixam os olhos.
— É como lhes digo, meus senhores — prossegue o rei, em ar de brincadeira. — Acaso não sou eu astrónomo no Observatório de Standard-Island... e — acrescenta ele, não sem uma leve comoção — inspector das estrelas... das estrelas cadentes?
ULTIMATO BRITÂNICO
Durante esta última semana do ano, consagrada às alegrias do Christmas, expedem-se inúmeros convites para jantares, saraus, recepções oficiais. Um banquete, oferecido pelo governador às principais personalidades de Milliard-City, aceito pelos notáveis bombor-denses e estibordenses, testemunha uma certa fusão entre as duas secções da cidade. Encontram-se à mesma mesa os Tankerdon e os Coverley. No dia de Ano Bom haverá trocas de bilhetes entre o palacete da Décima Nona Avenida e o da Décima Quinta. Walter Tankerdon até recebe um convite para um dos concertos de Mrs. Coverley. O acolhimento que lhe é feito pela dona da casa parece de bom agouro. Mas daí até formar laços mais apertados ainda vai longe, embora Calistus Munbar, com o seu fantasiar crónico, não cesse de repetir a quem quer ouvi-lo:
— É coisa feita, meus amigos, é coisa feita!
Entretanto, a ilha de hélice continua na sua pacífica navegação, dirigindo-se para o arquipélago de Tonga-Tabu. Nada parecia mesmo dever perturbá-la quando, na noite de 30 para 31 de Dezembro, se manifesta um fenómeno meteorológico assaz inesperado.
Entre as duas e as três horas da madrugada ouvem-se umas detonações à distância. As vigias não se preocupam com elas mais do que o facto comporta. Não se pode supor que se trate de um combate naval, a não ser entre navios dessas repúblicas da América Meridional que andam tanta vez engalfinhadas. Afinal de contas, por que motivo se haviam de inquietar com isso em Standard-Island, ilha independente, em paz com as potências dos dois mundos?
Demais a mais, estas detonações, que provêm das paragens ocidentais do Pacífico, prolongam-se até ser dia e não há decerto meio de as confundir com o ribombo amplo e regular de uma artilharia longínqua.
O comodoro Simcoe, prevenido por um dos seus oficiais, veio observar o horizonte do alto da torre do Observatório. Não se divisa clarão de espécie nenhuma à superfície do largo segmento de mar que se alonga à sua vista. Todavia, o cariz do céu não se apresenta como habitualmente. Há uns reflexos de chama que o coram até ao zénite. A atmosfera parece enevoada, conquanto o tempo esteja óptimo e o barómetro não indique, por uma depressão repentina, nenhuma perturbação nas correntes do espaço.
Ao despontar do dia, os madrugadores de Milliard-City têm ensejo de experimentar uma surpresa estranha. Não só as detonações continuam a ouvir-se, mas mistura-se ao ar uma bruma vermelha e negra, espécie de poeira impalpável, que começa a cair à laia de chuva. Faz lembrar a modo duma bátega de matérias fuliginosas. Em poucos instantes, ficam as ruas da cidade e os telhados das casas cobertos de uma substância em que se combinam as cores do carmim, do ruivo, do nácar, da púrpura, com escórias anegradas.
Todos os habitantes estão na rua, à excepção de Atanásio Dorémus, que nunca na sua vida se levantou antes das onze horas, depois de se ter deitado às oito. É escusado acrescentar que o quarteto saltou da cama para fora e encaminhou-se para o Observatório, onde o comodoro, os seus oficiais, os seus astrónomos, incluindo o régio funcionário, procuram reconhecer a natureza do fenómeno.
— O que é pena - nota Pinchinat — é que esta matéria vermelha não seja líquida, e que esse líquido não seja uma chuva de vinho de Pomard ou de Château-Lafite.
— Beberrão! — comentou Sebastião Zorn.
Ao certo, qual é a causa do fenómeno? Citam-se numerosos exemplos dessas chuvas de poeiras vermelhas, compostas de sílica, de alumina, de óxido de crómio e de óxido de ferro. No princípio do século, a Calábria, os Abruzos, foram inundados por estas bátegas, nas quais os habitantes supersticiosos queriam ver gotas de sangue, quando, como em Blancenberghe, em 1819, não passavam de cloreto de cobalto. Há igualmente exemplos de transporte de moléculas de sebo ou de carvão, produzidas por incêndios distantes. Não se chegaram a ver cair chuvas de seda, em Pernambuco, em 1820, chuvas amarelas, em Orleães, em 1829, e nos Baixos Pirenéus, em 1836, chuvas de pólen arrancado aos abetos em flor?
Que origem se deve atribuir a esta queda de poeiras, misturadas com escórias, que parece encher todo o espaço e que projecta sobre Standard-Island e sobre o mar circundante essas grandes massas avermelhadas?
O rei de Malecárlia emite a opinião de que essas matérias devam provir de algum vulcão das ilhas de Oeste. Os seus colegas do Observatório inclinam-se para a sua opinião. Apanham-se muitos punhados dessas escórias, cuja temperatura é superior à do ar ambiente, e que não arrefecem na sua passagem através da atmosfera. Uma erupção de grande violência explicaria as detonações irregulares que ainda se ouvem. Ora, nestas paragens enxameiam as crateras, umas em actividade, outras extintas, mas susceptíveis de se reacender sob uma acção intertelúrica, sem falar daquelas que por um impulso geológico se levantam às vezes do fundo do oceano, e cujo poder de projecção é muitas vezes extraordinário.
E não foi precisamente no meio deste arquipélago das Tonga, de que Standard-Island se aproxima, que alguns anos antes o pico de Tufua cobriu de matérias eruptivas uma superfície de cem quilómetros? Não se propagaram as detonações do vulcão, durante horas e horas, à distância de duzentos quilómetros?
E, no mês de Agosto de 1883, as erupções do Krakatoa não desolaram a parte das ilhas de Java e de Samatra, que confina com o estreito de Sonda, destruindo aldeias inteiras, fazendo numerosas vítimas, provocando tremores de terra, sujando o solo com uma lama compacta, erguendo as águas em remoinhos formidáveis, infectando a atmosfera de vapores sulfurosos, ocasionando a perda de navios?
É caso para perguntar, realmente, se a ilha de hélice não está ameaçada de um perigo dessa ordem.
O comodoro Simcoe não deixa de estar bastante inquieto, porque a navegação está em risco de se tornar deveras difícil. Depois de dar a ordem de moderar a velocidade, Standard-Island desloca-se apenas com grande lentidão.
Apodera-se da população milliardense um tal ou qual susto. Dar-se-á o caso que os desagradáveis prognósticos de Sebastião Zorn, com respeito ao resultado da viagem, estejam a pique de se realizar?
Cerca do meio-dia, é profunda a escuridão. Os habitantes saíram de suas casas, que não resistiriam se o casco metálico se levantasse ao embate das forças plu-tónicas, perigo que não era menos de recear, caso o mar passasse por cima das armaduras do litoral e despenhasse os seus macaréus sobre os campos!
O governador Cyrus Bikerstaff e o comodoro Simcoe dirigem-se à bateria do Esporão, seguidos por um grande número de habitantes. Mandam-se oficiais aos dois portos, com ordem de lá se conservarem sem interrupção. Os maquinistas estão prontos a produzir a rotação da ilha de hélice, caso seja necessário fugir numa direcção oposta. O pior é que a navegação cada vez é mais dificultosa, à medida que o céu se cobre de espessas trevas.
Pelas três horas da tarde, custa a ver a dez passos de distância. Não há vestígios de luz difusa, tão absorvidos são os raios solares pela massa das cinzas. O que há sobretudo a recear é que Standard-Island, sobrecarregada com o peso das escórias caídas na sua superfície, não consiga manter a linha de flutuação acima do nível do oceano.
Ela não é um navio que se possa aliviar, alijando as mercadorias, desembaraçando-o do lastro! Que se há-de fazer senão esperar, confiando na solidez do aparelho!
Chega a noite, e a sua chegada nem pode ainda certificar-se senão pela hora dos relógios. A escuridão é completa. Debaixo daquele chuveiro de escórias é impossível manterem-se no ar as luas eléctricas, que são abaixadas até ao solo. Escusado é dizer que a iluminação das habitações e das ruas, que funciona todo o dia, se prolongará enquanto durar este fenómeno.
Cerrada a noite, a situação não se modifica. Parece, contudo, que as detonações são menos violentas. As fúrias da erupção tendem a diminuir, e a chuva de cinzas, arrastada para o sul por uma brisa bastante rija, começa a abrandar.
Os Milliardenses, um pouco tranquilizados, decidem-se a reinstalar-se nas suas habitações, com a esperança de que no dia seguinte Standard-Island se encontre em condições normais. Apenas haverá que proceder a uma completa e demorada limpeza da ilha de hélice.
Embora! Que triste dia de Ano Bom para a Jóia do Pacífico, e como faltou pouco para que Milliard-City tivesse a sorte de Pompeios ou de Herculanum! Conquanto não esteja situada nas faldas do Vesúvio, porventura a sua navegação não a expõe a encontrar um farto número desses vulcões que se eriçam pelas regiões submarinas do Pacífico?
Em todo o caso, o governador, os seus adjuntos e o Conselho dos Notáveis ficam em permanência no palácio do Município. As vigias da torre espreitam qualquer mudança que se produza no horizonte ou no zénite. A fim de manter a direcção de sudoeste, a ilha de hélice não parou nunca, mas seguiu apenas com a velocidade de duas a três milhas por hora. Quando voltar o dia — ou pelo menos logo que se dissipem as trevas — aproará de novo para o arquipélago das Tonga. Aí decerto se ficará sabendo qual das ilhas desta parte do oceano foi teatro de tal erupção.
Seja como for, é manifesto que, à proporção que se adianta a noite, o fenómeno tende a atenuar-se.
Pelas três horas da manhã, outro incidente, que provoca novo terror nos habitantes de Milliard-City.
Standard-Island acaba de receber um choque, cuja repercussão se propagou através dos compartimentos do casco. É certo que esse repelão não teve força bastante para provocar qualquer abalo nas habitações ou desarranjo nas máquinas. As hélices não pararam no seu movimento propulsivo. No entanto, não pode restar dúvida de que houve colisão para a proa.
Que seria? Teria Standard-Island encontrado algum baixio? Não, porque continua a deslocar-se. Teria então batido num cachopo? No meio desta escuridão tão profunda, ter-se-ia produzido um abalroamento com qualquer navio que cruzasse a sua derrota e que não pudesse descortinar os seus faróis? Resultariam desta colisão avarias graves, se não de tal natureza que comprometessem a sua segurança, pelo menos que exijam reparações importantes no seu porto de escala próximo?
Cyrus Bikerstaff e o comodoro Simcoe transportam-se, não sem dificuldade, pisando essa espessa camada de escórias, até à bateria do Esporão.
Aí, os guardas de alfândega informam-nos de que o choque fora efectivamente devido a abalroamento. Um navio de grande tonelagem, um vapor que corria de oeste para leste, foi de encontro ao esporão de Standard-Island. Embora este choque não tivesse gravidade para a ilha de hélice, é possível que o mesmo não sucedesse com relação ao vapor. Descortinou-se a sua massa no momento da colisão. Ouviram-se gritos, que não duraram mais de alguns instantes. O chefe do posto fiscal e os seus homens, acudindo à ponta da bateria, nada viram nem ouviram.
Soçobraria o navio imediatamente? Esta hipótese, por desgraça, é muitíssimo admissível.
Quanto a Standard-Island, verifica-se que o abalroamento não lhe ocasionou nenhum dano sério. É tal a sua massa, que lhe bastaria, mesmo com pequena velocidade, roçar-se por um barco, por poderoso que seja, mesmo quando fosse um couraçado de primeira classe, para que este ficasse em risco de se perder totalmente. Foi isto que aconteceu, sem dúvida.
Quanto à nacionalidade desse navio, o chefe do posto aduaneiro julga ter ouvido umas ordens proferidas em voz áspera-—um desses rugidos peculiares às vozes de comando da marinha inglesa. Não lhe é possível, no entanto, asseverar isto de uma maneira formal.
Caso gravíssimo e que pode ter consequências não menos graves. Que dirá o Reino Unido? Um navio inglês é um pedaço da Inglaterra, e é sabido que a Grã-Bretanha não se deixa amputar impunemente. Que reclamações e que responsabilidades poderão cair sobre Standard-Island?
Assim se estreia o novo ano. Nesse dia, até às dez horas da manhã, o comodoro Simcoe não está habilitado a empreender pesquisas pelo mar largo. Está ainda o espaço enxovalhado de vapores, embora o vento, que refresca, comece a dissipar o chuveiro de cinzas. Por fim o Sol rompe as brumas do horizonte.
Em que estado se acham Milliard-City, o parque, os campos, as fábricas, os portos! Que trabalheira de limpeza! Deixá-lo! Isso é com a repartição da via pública. Simples questão de tempo e de dinheiro. Não há falta nem dum nem doutro.
Começa-se pelo mais urgente. Em primeiro lugar, os engenheiros dirigem-se à bateria do Esporão, para o lado do litoral, onde se deu o abalroamento. Avarias insignificantes por essa banda. O sólido casco de aço não sofreu mais do que o machado quando se enterra num cepo, que, na hipótese, vem a ser o navio abalroado.
Ao largo, nem sinal de destroços. Do alto da torre do Observatório, os poderosos óculos não deixavam ver coisa nenhuma, conquanto, desde a colisão, Standard-Island não chegasse a deslocar-se duas milhas.
Convém prolongar as investigações em nome da humanidade.
O governador conferencia com o comodoro Simcoe. Dá-se ordem aos maquinistas para parar as máquinas e às embarcações eléctricas dos dois portos para se fazerem ao mar.
As pesquisas, que se alongam por um raio de cinco a seis milhas, não dão resultado nenhum. Não pode haver dúvidas: o navio, arrombado nas obras vivas, soçobrou com certeza, sem deixar vestígios da sua desaparição.
O comodoro Simcoe ordena então que se volte à velocidade regulamentar. Ao meio-dia, a observação indica que Standard-Island se encontra a cento e cinquenta milhas a sudoeste das Samoa.
Entrementes, recomenda-se às vigias que se conservem cuidadosamente de olho à mira.
Pelas cinco horas da tarde, dá-se sinal de uma fumarada espessa a desenvolver-se para o sueste. Será esta fumarada devida aos últimos arrancos do vulcão, cuja erupção perturbou tão profundamente estas paragens? É pouco de presumir, por isso que as cartas não indicam nem ilha nem ilhota pelas proximidades. Teria, pois, surgido nova cratera do fundo do oceano?
Não, e é manifesto que os fumos se aproximam de Standard-Island.
Uma hora depois, avizinham-se rapidamente, a toda a força de vapor, três navios, singrando de conserva.
Passada meia hora, reconhece-se que são navios de guerra. Uma hora mais tarde, não pode haver dúvidas sobre a sua nacionalidade. É a divisão da esquadra britânica que, cinco semanas antes, se recusou a saudar a bandeira de Standard-Island.
Ao cair da noite, os navios não estão a mais de quatro milhas da bateria do Esporão. Irão passar ao largo e prosseguir na sua derrota? Não é possível; marcando-se-lhes os faróis de posição, reconhece-se logo que eles permanecem estacionários.
—Aqueles navios fazem por certo tenção de comunicar connosco — diz o comodoro Simcoe ao governador.
— Aguardemos.— replica Cyrus Bikerstaff.
Mas por que maneira há-de o governador responder ao comandante da divisão, se este vier reclamar a propósito do abalroamento recente? É, com efeito, possível que tal seja a sua intenção, e pode ser que a guarnição do navio abalroado tivesse sido recolhida e se salvasse nos seus escaleres.
Afinal, será tempo de tomar uma resolução quando souberem de que se trata.
Fica-se sabendo no dia seguinte, logo ao amanhecer.
Ao nascer do Sol, flutua o pavilhão do contra-almirante no mastro de mezena do navio chefe, o qual se conserva a pouca força de vapor a duas milhas de Babord-Harbour. Destaca-se dele uma embarcação, que se dirige para o porto.
Um quarto de hora depois, o comodoro Simcoe recebe o seguinte despacho:
O capitão Turner, do cruzador Herald, chefe do estado-maior do almirante Sir Edward Collinson, pede para ser conduzido imediatamente à presença do governador de Standard-Island.
Cyrus Bikerstaff, prevenido, autoriza o capitão do porto a deixar efectuar-se o desembarque e responde que espera o capitão Turner no palácio da municipalidade.
Passados dez minutos, um car, posto à disposição do chefe do estado-maior, que é acompanhado por um tenente de marinha, transporta estas duas personagens até à porta do palácio municipal.
O governador recebe-os imediatamente na sala contígua ao seu gabinete.
Trocam-se os cumprimentos normais — muito rígidos de parte a parte.
Depois, pausadamente, acentuando as palavras, como se recitasse um trecho de literatura correntia, o capitão Turner exprime-se assim, numa frase única e interminável:
— Tenho a honra de levar ao conhecimento de Sua Excelência o governador de Standard-Island, neste momento a cento e setenta e sete graus e treze minutos a leste do meridiano de Greenwich, por dezasseis graus e cinquenta e quatro minutos de latitude sul, que, na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, o steamer Glen, do porto de Glásgua, com três mil e quinhentas toneladas de arqueação, carregado de trigo, de anil, de arroz, de vinhos, carga de valor considerável, foi abalroado por Standard-Island, pertencente à Standard-Island Company Limited, cuja sede social é na Madeleine-Bay, baixa Califórnia, Estados Unidos da América, conquanto este steamer levasse os faróis regulamentares, branco no mastro do traquete, faróis de posição, verde a estibordo e encarnado a bombordo, e que, tendo-se desembaraçado depois do abalroamento, foi encontrado no dia seguinte a trinta e cinco milhas do teatro da catástrofe, prestes a ir a pique, em consequência de um rombo na amura de bombordo, e que soçobrou efectivamente, depois de ter conseguido, por fortuna, meter o capitão, os oficiais e a guarnição a bordo do Herald, cruzador de primeira classe de Sua Majestade Britânica que navega sob o pavilhão do contra-almirante Sir Edward Collinson, o qual denuncia este facto a Sua Excelência o governador Cyrus Bikerstaff, rogando-lhe se sirva reconhecer a responsabilidade de Standard-Island Company Limited, sob a garantia dos habitantes da dita Standard-Island para com os armadores do dito Glen, cujo valor em casco, máquinas e carga monta à importância de um milhão e duzentas mil libras esterlinas, ou seis milhões de dólares, a qual soma será depositada nas mãos do dito almirante Sir Edward Collinson, aliás se procederá mesmo pela força contra a dita Standard-Island.
Uma frase apenas de cerca de trezentas palavras, cortada por vírgulas, sem um único ponto! Mas como diz tudo, sem deixar lugar a subterfúgios! Sim ou não, resolve-se o governador a admitir a reclamação feita por Sir Edward Collinson e aceita os seus assertos com respeito: 1.o, à responsabilidade incorrida pela Companhia; 2.o, ao valor estimativo de um milhão e duzentas mil libras, atribuído ao steamer(1) Glen, de Glásgua?
Cyrus Bikerstaff responde pelos argumentos normais em matéria de colisão.
O tempo estava escuríssimo em consequência de uma erupção vulcânica, que devia ter-se produzido nas paragens de oeste. Se o Glen trazia os seus faróis, também Standard-Island trazia os seus. De parte a parte, era impossível distingui-los. É, pois, este um caso de força maior.
*1. Navio a vapor.
Ora, segundo os regulamentos marítimos, cada um deve lançar as suas avarias à conta de ganhos e perdas, e não pode haver nelas motivo de reclamação nem de responsabilidade.
Resposta do capitão Turner:
Por certo que teria razão Sua Excelência o governador, caso se tratasse de dois navios que navegassem em condições normais. Se o Glen cumpria estas condições, é notório que a Standard-Island não as cumpre, que não pode ser assimilada a um navio, que constitui um perigo iminente, movendo a sua massa enorme através das derrotas marítimas, que equivale a uma ilha, a uma ilhota, a um cachopo, que se deslocasse sem que pudesse marcar por forma definitiva a sua posição nas costas, que a Inglaterra sempre protestou contra este obstáculo impossível de fixar por levantamentos hidrográficos, e que Standard-Island deve sempre ser considerada responsável pelos acidentes provenientes da sua conformação especial.
É evidente que os argumentos do capitão Turner não carecem de certa lógica. No fundo sente-lhes Cyrus Bikerstaff a justiça. Mas, só por si, não pode tomar uma decisão. Levar-se-á a causa à presença dos tribunais competentes e não lhe cumpre a ele resolver desde já sobre a reclamação do almirante Sir Edward Collinson. Por felicidade não houve perdas pessoais...
— Por felicidade — respondeu o capitão Turner—, mas houve a perda de um navio e submergiram-se milhões por culpa de Standard-Island. Acaso o governador consente desde já em depositar nas mãos de Sir Edward Collinson a quantia representativa do valor atribuído ao Glen e à sua carga?
Como há-de o governador consentir nesse pagamento?
Afinal de contas, Standard-Island oferece abonações suficientes... Ali está ela para responder pelos danos incorridos, se os tribunais julgarem que ela é responsável, depois da vistoria dos peritos, tanto pelas causas do desastre como pela importância da perda causada.
— É essa a última palavra de Vossa Excelência? — pergunta o capitão Turner.
— É a minha última palavra — declara Cyrus Bikerstaff -, pois que não tenho competência para empenhar a responsabilidade da Companhia.
Novos cumprimentos, mais rígidos ainda, trocados entre o governador e o oficial inglês. Partida deste no car, que o reconduz a Babord-Harbour, e regresso ao Herald na lancha a vapor, que o transporta a bordo do cruzador.
Quando o Conselhos dos Notáveis toma conhecimento da resposta de Cyrus Bikerstaff, dá-lhe plena e inteira aprovação, e depois do Conselho dá-lha também toda a população de Standard-Island. Não se devem submeter à insolente e imperiosa intimação dos representantes de Sua Majestade Britânica.
Firmada esta resolução, o comodoro Simcoe dá as suas ordens para que a ilha de hélice prossiga a sua derrota a toda a velocidade.
Ora, se a divisão do almirante Collinson teimar, será possível escapar às suas perseguições? Não têm os seus navios um andamento muito superior? E se ele apoiar a sua reclamação com algumas granadas de melinite será possível resistir? É certo que as baterias da ilha são capazes de responder aos Armstrongs de que estão armados os cruzadores da divisão. Mas o campo oferecido aos tiros ingleses é infinitamente mais vasto... Que há-de ser das mulheres, das crianças, na impossibilidade de encontrarem abrigo? Todos os tiros serão aproveitados, ao passo que as baterias do Esporão e da Popa perderão, pelo menos, cinquenta por cento dos seus projécteis num alvo restrito e móvel!
É melhor, pois, esperar o que vai decidir o almirante Sir Edward Collinson.
Não se espera muito tempo.
Às nove horas e quarenta e cinco, parte da torre central do Herald um primeiro tiro de pólvora seca, ao mesmo tempo que se iça no tope do mastro a bandeira do Reino Unido.
Sob a presidência do governador e dos seus adjuntos, o Conselho dos Notáveis discute na sala das sessões do palácio municipal. Desta feita, Jem Tankerdon e Nat Coverley são do mesmo parecer. Estes americanos, como homens práticos, não lhes passa pela ideia experimentar uma resistência que poderia ocasionar a perda pessoal e material de Standard-Island.
Reboa segundo tiro de canhão. Desta vez, passa uma granada sibilando, dirigida de modo que caia à distância de meia amarra no mar, onde rebenta com formidável violência, levantando enormes massas de água.
Por ordem do governador, manda o comodoro Sim-coé arriar a bandeira que foi içada em resposta à do Herald. O capitão Turner volta a Babord-Harbour. Aí recebe letras de câmbio, assinadas por Cyrus Bikerstaff e endossadas pelos principais notáveis, representando a soma de um milhão e duzentas mil libras.
Três horas passadas, dissipam-se a leste os derradeiros fumos da divisão e Standard-Island continua a sua derrota para o arquipélago das Tonga.
O TABU EM TONGA-TABU
- E então - diz Yvernés — tocaremos nas principais ilhas de Tonga-Tabu?
— Sim, meu rico amigo! — responde Calistus Munbar. — Terá ensejo de travar conhecimento com esse arquipélago, que tem o direito de chamar arquipélago de Hapai, e mesmo arquipélago dos Amigos, conforme o intitulou o capitão Cook, em reconhecimento da maneira amistosa como ali foi recebido.
— E decerto que seremos lá mais bem tratados do que o fomos nas ilhas de Cook? — pergunta Pinchinat.
—É provável.
— E visitamos todas as ilhas desse grupo?—interroga Frascolin.
— Com certeza que não, visto que elas andam por cento e cinquenta.
— E depois? — inquire Yvernés.
— Depois, iremos às Fiji, depois às Novas Hébridas, depois, em repatriando os malaios, voltaremos a Madeleine-bay, onde terminará a nossa viagem.
— Standard-Island toca em muitos pontos das Tonga? — prossegue Frascolin.
— Apenas em Vavao e em Tonga-Tabu — elucida o superintendente — e não é ainda aí que o meu caro Pinchinat há-de encontrar os selvagens autênticos dos seus sonhos!
— Decididamente, já os não há, mesmo na parte oeste do Pacífico!—replica Sua Alteza.
— Perdão... existem em número respeitável para as bandas das Novas Hébridas e das Salomão. Mas em Tonga os súbditos do rei Jorge I são pouco mais ou menos civilizados, e acrescentarei que as súbditas são encantadoras. Não o aconselharia, no entanto, a desposar uma dessas fascinantes tonguianas.
— Por que motivo?
— Porque os casamentos entre os estrangeiros e indígenas não passam por felizes. Há geralmente incompatibilidade de génios!
— Bonito — exclamou Pinchinat—, e aquele velho zangarreado Zorn que estava com tenção de casar em Tonga-Tabu.
— Eu!—replica o violoncelista, encolhendo os ombros.— Nem em Tonga-Tabu nem noutra parte, entendes, trocista?
— Decididamente, o nosso regente é um sábio — observa Pinchinat.—Vê você, meu caro Calistus, e permita-me mesmo que lhe chame Eucalistus, tanta é a simpatia que você me inspira...
— À vontade, Pinchinat!
— Pois, meu caro Eucalistus, uma pessoa não anda tantos anos a arranhar nas cordas de um violoncelo sem ficar filósofo, e a verdadeira filosofia ensina que o único meio de se ser feliz em casamento é não casar.
Na manhã de 6 de Janeiro aparecem no horizonte as alturas de Vavao, a ilha mais importante do grupo setentrional. Este grupo é diferentíssimo, pela sua formação vulcânica, dos dois outros, Hapai e Tonga-Tabu. Todos três ficam compreendidos entre os dezassete e os vinte e dois graus sul, e os cento e setenta e seis e cento e setenta e oito oeste, uma área de dois mil e quinhentos quilómetros quadrados pela qual se repartem cento e cinquenta ilhas povoadas de sessenta mil habitantes.
Por ali passearam os navios de Tasman em 1643 e os de Cook em 1773, durante a sua segunda viagem de descobertas através do Pacífico. Depois de derribada a dinastia dos Finare-Finare e de fundado, em 1797, um estado federativo, uma guerra civil dizimou a população do arquipélago. Foi nessa época que desembarcaram os missionários metodistas, que fizeram triunfar esta ambiciosa seita de religião anglicana. Actualmente o rei Jorge I é o soberano incontestado deste reino, sob o protectorado da Inglaterra, enquanto... Esta reticência tem por fim reservar o futuro, como faz vezes sem conto a protecção britânica aos seus protegidos do ultramar.
É bastante difícil a navegação pelo meio deste dédalo de ilhotas e de ilhas, plantadas de coqueiros, e que é necessário seguir para chegar a Nu-Ofa, capital do grupo das Vavao.
Vavao é vulcânica, e, como tal, exposta a terramotos. Isto fez com que houvesse um certo cuidado na construção das habitações, a qual não comporta um único prego. As paredes são formadas de juncos entretecidos, que revestem ripas de madeira de coqueiro, e um telhado oval apoia-se em pilares ou troncos de árvores. O conjunto é muito fresco e asseado, e por isso atrai mais particularmente a atenção dos nossos artistas, postados na bateria do Esporão, enquanto Standard-Island atravessa os canais marginados de aldeias canacas. Donde em onde, algumas casas europeias desfraldam as bandeiras da Alemanha e da Inglaterra.
Mas se esta parte do arquipélago é vulcânica, não é a um desses vulcões que se deve atribuir o formidável derramamento, erupção de escórias e de cinzas, vomitado sobre essas paragens. Os Tonguianos nem chegaram a ficar mergulhados numa treva de quarenta e oito horas, visto que as brisas de oeste varreram as nuvens de matérias eruptivas para o horizonte oposto. A cratera que as expectorou é mais que provável pertença a qualquer ilha isolada, lá para leste, a não ser que seja vulcão de formação recente entre as Samoa e as Tonga.
Standard-Island não se demorou mais de oito dias em Vavao. Esta ilha merece ser visitada, embora, muitos anos antes, tivesse sido devastada por um terrível ciclone, que derribou a igreja dos Maristas franceses e destruiu um grande número de habitações indígenas. Todavia, o campo conservou os seus atractivos, com as suas aldeias numerosas, cingidas de laranjas, as suas planícies férteis, os seus campos de cana-de-açúcar, de inhames, os seus maciços de bananeiras, de amoreiras, de árvores-de-pão, de sândalos. Pelo que respeita a animais domésticos, apenas porcos e galináceos. Quanto às aves, somente pombos aos milhares e papagaios de cores festivas e de chalreada tumultuosa. Quanto a répteis, algumas serpentes inofensivas e uns lindos lagartos verdes, que dão ideia de folhas caídas das árvores.
O superintendente não exagerou a beleza do tipo indígena— aliás comum a esta raça malaia dos diversos arquipélagos do Pacífico Central. Homens soberbos, de estatura elevada, talvez um pouco obesos, mas de uma estrutura admirável e de atitude nobre, olhar altivo, tez cambiando desde o acobreado-escuro até ao azeitonado. Mulheres graciosas e bem proporcionadas, com as mãos e os pés de tal delicadeza de formas e de tal pequenez, que não raro excitam o pecado da inveja nas alemãs e nas inglesas da colónia. O que é certo é que as mulheres indígenas apenas se empregam no fabrico das esteiras, dos cestos, dos panos semelhantes aos de Taiti, e os dedos não se deformam nestes trabalhos manuais. E, depois, fácil é poder julgar de visu sobre as perfeições da beleza tonguiana. Nem as abomináveis calças, nem o ridículo vestido de cauda foram ainda adoptados pelas modas da terra. Uma simples tanga ou uma cinta para os homens, o casabeque e a saia curta com ornatos de fina cortiça seca para as mulheres, que são a um tempo reservadas e garridas. Ambos os sexos usam a trunfa sempre cuidada, levantada elegantemente pelas raparigas para cima da testa e mantida por uma redezita de fibras de coqueiro à laia de pente.
E, contudo, nenhuma destas vantagens tem o condão de dissipar as prevenções ao rabugento Sebastião Zorn. Nem se casará em Vavao, nem em Tonga-Tabu, nem seja em que terra for deste mundo sublunar.
É sempre uma viva satisfação, para ele e para os seus colegas, o desembarcarem nestes arquipélagos. É certo que Standard-Island lhes agrada muito; mas, enfim, isto de pôr os pés em terra firme também não é coisa que lhes desagrade.
Montanhas verdadeiras, campos a valer, cursos de água genuínos, tudo isto é uma variante dos riachos factícios e das costas artificiais. É preciso ser um Calistus Munbar para dar à sua Jóia do Pacífico a superioridade sobre as obras da Natureza.
Se bem que Vavao não seja a residência normal do rei Jorge, possui ele em Nu-Ofa um palácio, digamos antes um lindo cottage, onde habita com bastante frequência. Mas na ilha de Tonga-Tabu é que se elevam os paços régios e os estabelecimentos dos residentes ingleses.
Standard-Island vai fazer ali a sua derradeira escala, quase no limite do trópico de Capricórnio, ponto extremo que ela deverá atingir na sua viagem pelo hemisfério austral.
Depois de saírem de Vavao, os Milliardenses gozaram, durante dois dias, de uma navegação muito variada. Ao perderem de vista uma ilha tratam logo de marcar outra. Todas, apresentando o mesmo carácter vulcânico, são devidas à acção plutónica. A este respeito, é a mesma coisa tanto no grupo setentrional como no grupo central das Hapai. As cartas hidrográficas destas paragens, desenhadas com extrema precisão, permitem ao comodoro Simcoe o aventurar-se sem risco por entre os canais deste dédalo, desde Hapai até Tonga-Tabu. Demais a mais, não lhe faltariam pilotos, se fosse mister recorrer aos seus serviços. Circula ao longo das ilhas um grande número de embarcações — na sua maioria escunas com bandeira alemã, empregadas na cabotagem, ao passo que os navios de comércio exportam o algodão, a copra, o café, o milho, principais produtos do arquipélago. Não só os pilotos acudiriam pressurosos, se Ethel Simcoe os reclamasse, mas também as tripulações dessas pirogas duplas de balanceiros, reunidas por uma plataforma e podendo conter até duzentos homens. Sim! Centenas de indivíduos teriam acorrido ao primeiro sinal, e que pechincha para eles se acaso o preço da pilotagem fosse calculado sobre a tonelagem de Standard-Island! Duzentos e cinquenta e nove milhões de toneladas! Mas o comodoro Simcoe, a quem são familiares todas estas paragens, dispensa-lhes os bons ofícios. Apenas em si deposita confiança e conta com o mérito dos oficiais que executam as suas ordens com absoluta exactidão.
Avista-se Tonga-Tabu na manhã de 9 de Janeiro, quando Standard-Island já não dista dela mais de três a quatro milhas. Muito baixa, pois que a sua formação não é devida a esforço geológico, não surdiu do fundo submarino, como tantas outras ilhas imobilizadas depois de terem vindo respirar à superfície das águas. Foram os infusórios que a construíram, a pouco e pouco, edificando os seus andares madrepóricos.
E que trabalho aquele! Cem quilómetros de circunferência, uma área de setecentos a oitocentos quilómetros quadrados, onde vivem mil habitantes!
O comodoro Simcoe detém-se em frente do porto de Maofuga. Estabelecem-se imediatamente relações entre a ilha sedentária e a ilha ambulante, irmã dessa Latona de mitológica memória! Que diferenças que este arquipélago oferece das Marquesas, das Pomotu, do arquipélago da Sociedade!
Domina aqui a influência inglesa, e, sujeito a este domínio, o rei Jorge I não terá grande alvoroço em acolher amavelmente estes milliardenses de origem americana.
Entretanto, em Maofuga, encontra o quarteto um pequeno centro francês. Reside aí o bispo da Oceânia, que andava então em visita pastoral pelos diversos grupos. Elevam-se aí a Missão católica, o convento das freiras, as escolas dos dois sexos. É escusado dizer que os parisienses são cordialmente recebidos pelos seus compatriotas. Oferece-lhes hospitalidade o superior da Missão, o que os dispensa de recorrer ao Hospício dos Estrangeiros. Quanto às suas excursões, essas devem apenas conduzi-los a dois outros pontos importantes, Nakualofa, capital dos estados do rei Jorge, e a aldeia de Mua, cujos quatrocentos habitantes professam a religião católica.
Quando Tasman descobriu Tonga-Tabu, deu-lhe o nome de Amesterdão, nome que não é nada justificado pelas suas casas feitas de folhas de pandano e de fibras de coco.
É certo que não faltam habitações à europeia, mas o nome indígena coaduna-se melhor com esta ilha.
O porto de Maofuga fica situado na costa setentrional. Se Standard-Island houvesse escolhido o ponto de escala mais algumas milhas a oeste, ter-se-lhe-ia desenrolado diante dos olhos Nakualofa, com os seus jardins reais e o seu paço régio. Se, pelo contrário, o comodoro Sim-coê se tivesse dirigido mais para leste, ter-se-lhe-ia deparado uma baía que corta com bastante profundidade o litoral e cujo fundo é ocupado pela aldeia de Mua. Se o não fez, é porque o seu aparelho teria corrido risco de encalhar pelo meio dessas centenas de ilhotas, cujos canaletes não dão acesso senão a navios de tonelagem medíocre. A ilha de hélice deve, pois, permanecer defronte de Maofuga durante o prazo que lhe é dado para a sua escala.
Se um certo número de milliardenses desembarcam neste porto, bem raros são os que se lembram de percorrer o interior da ilha. E, contudo, ela é encantadora e merece os elogios com que Eliseu Reclus a colmou. Verdade é que o calor é de tremer, a atmosfera tempestuosa, e algumas chuvas de extrema violência tendem a acalmar o ardor dos excursionistas, e é mister estar atacado pela loucura das digressões para percorrer semelhante terra. Todavia, fazem-nos Frascolin, Pinchinat e Yvernés, por ser impossível resolver o violoncelista a largar o seu quarto confortável do Casino antes da tarde, no momento em que a viração do mar refresca as praias de Maofuga. Até o superintendente se desculpa de não poder acompanhar aqueles três doidos.
— Era capaz de me derreter pelo caminho! — diz-lhes ele.
— Que tinha isso! Trazíamo-lo engarrafado!-—responde Sua Alteza.
Esta atraente perspectiva não logra convencer Calistus Munbar, que prefere conservar-se no estado sólido.
Por grande fortuna para os Milliardenses, há já três semanas que o Sol ascende para o hemisfério setentrional, e Standard-Island saberá manter-se a distância desse foco incandescente, por forma que conserve uma temperatura normal.
Por consequência, no dia seguinte saem os três amigos de Maofuga, logo ao amanhecer, e dirigem-se para a capital da ilha. É certo que faz calor; mas este calor é suportável ao abrigo dos coqueiros, dos leki-laki, dos tuis-tuis, das cocas, cujas vagas vermelhas e pretas se formam em cachos de gemas deslumbrantes.
Por volta do meio-dia, depara-se-lhes a capital em toda a sua esplêndida florescência, expressão que é sobremaneira exacta nesta quadra do ano. O palácio do rei parece surdir de um gigantesco ramalhete de verdura. Existe um frisante contraste entre as cabanas indígenas, todas floridas, e as habitações de aspecto muito britânico, como a que pertence aos missionários protestantes. Em todo o caso foi considerável a influência desses ministros wesleyanos, e, depois de terem dado cabo de bastantes deles, os Tonguianos acabaram por lhes adoptar as crenças. Observemos, no entanto, que eles não renunciaram de todo às práticas da sua mitologia canaca. Para eles, o sumo sacerdote é superior ao rei. Na sua extravagante cosmogonia, representam um papel importante os génios bons e os maus. O cristianismo não desarreigará facilmente o tabu, que continua em voga, e, em se tratando de o romper, não é isso coisa que se faça sem cerimónias expiatórias, nas quais por vezes se sacrifica a vida humana...
Cumpre-me mencionar, de acordo com as narrativas dos exploradores — particularmente o Sr. Aylie Marin, nas suas viagens em 1882—, que Nakualofa ainda não passa de um centro meio civilizado.
Frascolin, Pinchinat e Yvernés não tiveram desejo nenhum de ir depor as suas homenagens aos pés do rei Jorge. Não se tomem estas palavras no sentido metafórico, pois que o costume é beijar os pés deste soberano. E por isso se congratulam os nossos parisienses, quando, na praça de Nakualofa, avistam o tui, como chamam a Sua Majestade, trajando uma espécie de camisa branca e um saiote de fazenda da terra, apertado em volta dos rins.
Este beijar de pés ficaria por certo entre as recordações mais desagradáveis da sua viagem.
— Bem se vê — observa Pinchinat — que as correntes de água são pouco abundantes aqui por estes sítios!
Com efeito, em Tonga-Tabu, em Vavao, assim como nas outras ilhas do arquipélago, a hidrografia não comporta nem um regato, nem uma lagoa. A água das chuvas, recolhida nas cisternas, é tudo quanto a Natureza oferece aos indígenas, e de que os súbditos de Jorge I se mostram tão poupados como o seu soberano.
No mesmo dia, os três excursionistas voltam estafados ao porto de Maofuga e sentem uma grande satisfação ao entrarem nos seus aposentos do Casino. Diante do incrédulo Sebastião Zorn, asseveravam eles que a sua excursão foi das mais interessantes. Mas as poéticas indicações de Yvernés não conseguem decidir o violoncelista a acompanhá-los no dia seguinte à aldeia de Mua.
Esta viagem deve ser bastante demorada e fatigante. Poupar-se-iam facilmente a essa fadiga querendo utilizar uma das lanchas eléctricas que Cyrus Bikerstaff de bom grado poria à disposição dos excursionistas. Mas explorar o, interior desta curiosa região é uma consideração de algum peso e os artistas partem pedibus cal-cantibus para a baía de Mua, contornando um litoral de coral, guarnecido de ilhéus, onde parece terem-se reunido em prazo dado todos os coqueiros da Oceânia.
A chegada a Mua só pôde efectuar-se de tarde. Há pois necessidade de lá pernoitar. Um local existe, naturalmente indicado para receber viajantes franceses. É a residência dos missionários católicos. O superior mostra ao acolher os hóspedes uma alegria tocante — o que lhes recorda o modo por que foram recebidos pelos Maristas de Samoa. Que bem que se passa a noite! Que interessante conversação, em que se tomou por assunto mais a França do que a colónia tonguiana! Aqueles frades lembram-se sempre com saudade da terra natal, tão afastada! Mas, a falar verdade, não serão compensadas essas saudades por todo o bem que eles fazem por aquelas ilhas? Não serve de consolação o verem-se respeitados naquele microcosmo, que subtraíram à influência dos ministros anglicanos e que converteram à fé católica? Tão bons resultados têm tirado que os metodistas se viram forçados a fundar uma espécie de anexo na aldeia de Mua, a fim de promover os interesses do proselitismo wesleyano.
É com certo orgulho que o superior faz admirar aos seus hóspedes os estabelecimentos da Missão, a casa que foi construída gratuitamente pelos indígenas de Mua, e a linda igreja devida aos arquitectos tonguianos, a qual não envergonharia os seus colegas da França.
À noitinha, passeiam pelos arredores da aldeia, atingem até os túmulos antigos de Tui-Tonga, onde se mesclam o xisto e o coral numa arte primitiva e encantadora. Visitam mesmo essa antiga plantação de méas, banianas ou figueiras monstruosas de raízes entrelaçadas como serpentes, e cuja circunferência excede às vezes sessenta metros. Frascolin embirra em as medir; a seguir, toma nota da medida na sua carteira, e pede ao superior que verifique. Depois disto ponha-se lá em dúvida a existência de semelhante fenómeno vegetal!
Boa ceia, boa noite passada nos melhores quartos da Missão. Em seguida, bom almoço, boas despedidas dos missionários que residem em Mua, e regresso a Standard-Island, no momento em que batem as cinco horas no campanário do palácio municipal. Desta vez, os três excursionistas não têm de recorrer às amplificações metafóricas para afiançar a Sebastião Zorn que a digressão lhes deixara recordações indeléveis.
No dia seguinte, Cyrus Bikerstaff recebe a visita do capitão Sarol; exponhamos, pois, os motivos que a determinaram:
Havia sido recrutado nas Novas Hébridas e conduzido a Tonga-Tabu um certo número de malaios — coisa de um cento deles — para trabalhos de arroteamento, recrutamento indispensável em vista da indiferença, digamos antes, da preguiça inata dos Tonguianos, que vivem à mercê do acaso. Ora, tendo acabado há pouco esses trabalhos, os tais malaios estavam à espera de ensejo para voltarem ao seu arquipélago. Dignar-se-ia o governador permitir-lhes a passagem em Standard-Island?
É esta permissão que vem pedir o capitão Sarol. Daí a cinco ou seis semanas, deve a ilha de hélice chegar a Erromango, e o transporte daqueles indígenas não poderá representar um grande encargo para o orçamento municipal. Não seria generoso o recusar àqueles pobres diabos um serviço tão fácil de prestar. Por isso o governador concede a autorização pedida, o que lhe vale os agradecimentos do capitão Sarol e também os dos Maristas de Tonga-Tabu, para os quais haviam sido recrutados os malaios.
Quem poderia desconfiar que o capitão Sarol arrebanhava assim os seus cúmplices, que esses neo-hebridianos o auxiliariam quando chegasse a ocasião, e não tinha ele motivo de se congratular por os ter encontrado em Tonga-Tabu e por os ter introduzido em Standard-Island?
Esse dia é o último que os Milliardenses devem passar no arquipélago, visto estar marcada a partida para o dia seguinte.
De tarde, têm eles ensejo de assistir a uma dessas festas meio civis, meio religiosas, em que os indígenas tomam parte com grande entusiasmo.
O programa destas festas, de que os Tonguianos são tão amigos como os seus congéneres das Samoa e das Marquesas, compreende muitos números de danças variadas. Como é natural que elas interessem aos nossos parisienses, põem-se eles a caminho de terra por volta das três horas.
Acompanha-os o superintendente e, desta vez, quis juntar-se a eles Atanásio Dorémus. A presença de um professor de prendas de sala não é, com efeito, de molde para uma cerimónia deste género? Sebastião Zorn resolveu-se a seguir os colegas, decerto mais desejoso de ouvir a música tonguiana do que de assistir aos exercícios coreográficos da população.
Quando chegaram à praça, estava a festa no seu auge. O licor de kava, extraído da raiz seca da pimenteira, circula das cabaças e escoa-se pelas goelas de uma centena de dançarinos, homens e mulheres, rapazes e raparigas, estas últimas garridamente enfeitadas com os seus compridos cabelos, que devem conservar assim até ao dia do casamento.
A orquestra é das mais simples. Os instrumentos são aquela flauta nasal, denominada fanghu-fanghu, mais uma dúzia de najas, que são tambores nos quais se dobra o rufo, até a compasso, como nota Pinchinat.
Evidentemente, Atanásio Dorémus, que é o supra-sumo da elegância, não pode furtar-se ao mais profundo desdém por umas danças que não entram na categoria das quadrilhas, polcas, mazurcas e valsas da escola francesa. Por isso encolhe os ombros sem-cerimónia, ao contrário de Yvernés, a quem estas danças parecem repletas de verdadeira originalidade.
E, em primeiro lugar, execução das danças sentadas, que se compõem apenas de atitudes, de gestos mímicos, de balanços de corpo, num ritmo lento e triste de efeito estranho.
A este balançar seguem-se as danças de pé, nas quais tonguianos e tonguianas se abandonam a todo o ardor do seu temperamento, ora executando figuras graciosas, ora reproduzindo por gestos as fúrias do guerreiro nas diversas vicissitudes da guerra.
Os quatro contemplam um tal espectáculo como artistas, pensando a que grau chegariam estes indígenas se fossem sobreexcitados pela música arrebatadora dos bailes parisienses.
E então Pinchinat—esta ideia é mesmo dele — faz a seguinte proposta aos colegas: mandarem buscar os instrumentos ao Casino, e servirem àqueles bailarinos os mais furiosos seis por oito e os mais formidáveis dois por quatro dos repertórios de Lecoq, de Andrau e de Offenbach.
A proposta é aprovada e Calistus Munbar não duvida de que o efeito deve ser prodigioso.
Meia hora depois, chegam os instrumentos, e começa logo o baile.
Surpresa extrema dos indígenas, e extremo é também o prazer que manifestam ao ouvir o violoncelo e as três rabecas, vibradas com toda a bravura, das quais se escapa uma música ultrafrancesa.
Fiquem certos de que os indígenas não ficam insensíveis a efeitos tais, e prova-se até à evidência que essas danças características dos bailes musettes são instintivas, que se aprendem sem mestre, diga Atanásio Dorémus o que disser. Tonguianos e tonguianas rivalizam no serpentear, no desnalgar, no voltear, quando Sebastião Zorn, Yvernés, Frascolin e Pinchinat atacam os ritmos endiabrados do Orfeu nos Infernos. Até o superintendente sai do seu sério, e ei-lo que, numa quadrilha descabelada, se entrega às inspirações do «cavalier seul», ao passo que o professor de boas maneiras tapa o rosto diante de um horror assim. No cúmulo desta cacofonia, à qual se juntam as flautas nasais e os tambores sonoros, a fúria dos dançarinos atinge o máximo de intensidade, e ninguém sabe aonde isto iria parar se não sobreviesse um incidente que pôs termo a esta coreografia infernal.
Um tonguiano — latagão alentado—, maravilhado com os sons que o violoncelista arranca do seu instrumento, precipita-se sobre o violoncelo, deita-lhe as mãos e foge com ele, gritando:
— Tabu! Tabu!
O violoncelo fica tabuado! Ninguém lhe pode mexer sem sacrilégio! Os grandes sacerdotes, o rei Jorge, os dignitários da corte, toda a população da ilha se revoltaria, caso se violasse este costume sagrado.
Sebastião Zorn é que não quer saber disso. Tem apego àquela obra-prima de Gand & Bernardel. Por isso, atira consigo na peugada do ladrão. Os colegas precipitam-se logo no seu encalço. Metem-se de permeio os indígenas. Segue-se uma balbúrdia geral.
Mas o tonguiano dá às pernas com tal rapidez que é força renunciar a apanhá-lo. Em poucos minutos, está longe... muito longe!
Sebastião Zorn e os outros, esfalfados, voltam para junto de Calistus Munbar, que está a deitar os bofes pela boca fora. Dizer que o violoncelista está num estado de indescritível furor, fora dizer bem pouco! Escuma, sufoca de raiva! Tabuado ou não tabuado, ponham-lhe para ali o seu instrumento! Ainda que Standard-Island tenha de declarar guerra a Tonga-Tabu — não se têm visto rebentar guerras por motivos mais insignificantes? —-o violoncelo deve ser restituído a seu dono.
Por felicidade, as autoridades da ilha intervieram na contenda. Daí a uma hora, consegue-se agarrar o indígena e obrigá-lo a trazer o instrumento. Esta restituição não se efectuou sem custo, e estava quase iminente o ultimato do governador Cyrus Bikerstaff, que, a propósito de uma questão de tabu, iria porventura excitar as paixões religiosas de todo o arquipélago.
Em todo o caso, a ruptura do tabu teve de se executar religiosamente, em conformidade com as cerimónias culturais do jata, usadas nestas circunstâncias. Segundo o costume, procede-se à matança de um número considerável de porcos, assam-se num buraco cheio de pedras candentes, de batatas doces, de taros e de frutas do macoré, e depois comem-se, com grande satisfação dos estômagos tonguianos.
Quanto ao seu violoncelo, cujas cordas bambearam um pouco no meio da barafunda, Sebastião Zorn teve apenas que o afinar pelo diapasão, depois de verificar que ele nada perdera das suas qualidades em consequência das feitiçarias indígenas.
UMA COLECÇÃO DE FERAS
Saindo de Tonga-Tabu, Standard-Island faz proa ao noroeste, para o arquipélago das Fiji. Começa a afastar-se do trópico, seguindo o Sol que ascende para o equador. Não é preciso apressar-se. Separam-na do grupo fijiano duzentas léguas apenas, e o comodoro Simcoe mantém-se em andamento de passeio.
A brisa é variável. Mas que importa a brisa para este poderoso engenho marítimo? Se uma ou outra vez rebentam violentos temporais neste limite do vigésimo terceiro paralelo, a Jóia do Pacífico nem por sombras se apoquenta com eles. A electricidade, que satura a atmosfera, é sugada pelas numerosas hastes de que estão armados todos os seus edifícios. Quanto às chuvas, embora torrenciais, que despejam sobre ela as nuvens tempestuosas, bem-vindas são elas. O parque e os campos verdejam debaixo dessas bátegas, aliás raras. Decorre, pois, a existência nas mais prósperas condições, no meio de festas, de concertos, de recepções. Agora tornaram-se frequentes as relações entre uma e outra secção, e parece que nada pode de ora avante ameaçar a segurança do futuro.
Cyrus Bikerstaff não tem razões de se arrepender da passagem que concedeu aos neo-hebridianos embarcados por empenho do capitão Sarol. Esses indígenas procuram tornar-se úteis. Ocupam-se em trabalhos de lavoura, como faziam nos campos tonguianos. Sarol e os malaios não os largam nem um momento durante o dia, e, em chegando a noite, dirigem-se para os dois portos por onde a municipalidade os repartiu. Não se levanta contra eles uma só queixa. Talvez que fosse ocasião azada para converter aqueles pobres diabos. Até então ainda não adoptaram as crenças do cristianismo, para o qual grande parte da população neo-hebridiana se mostra refractária, apesar dos esforços dos missionários anglicanos e católicos. O clero de Standard-Island pensou nessa conversão, mas o governador não quis autorizar tentativa nenhuma desse género.
Esses neo-hebridianos, cuja idade oscila entre os vinte e os quarenta anos, são de estatura meã. De tez mais fusca do que os Malaios, se apresentam tipos menos belos do que os naturais de Tonga ou das Samoa, parecem dotados de extrema paciência. O pouco dinheiro que ganharam ao serviço dos Maristas de Tonga-Tua, guardam-no preciosamente, sem lhes passar pela ideia gastá-lo em bebidas alcoólicas, que aliás só lhes seriam vendidas com grande parcimónia. Quanto ao mais, fornecidos de tudo o que precisam, decerto que nunca foram tão felizes no seu arquipélago selvático.
E, contudo, graças ao capitão Sarol, estes indígenas, unidos aos seus compatriotas das Novas Hébridas, vão ser coniventes na obra de destruição que está iminente. Nesse momento, reaparecerá toda a sua nativa ferocidade. Acaso não são eles os descendentes desses assassinos que deram reputação tão temível às populações desta parte do Pacífico?
Entretanto, os Milliardenses vivem na ilusão de que coisa nenhuma poderia comprometer uma existência em que tudo está tão logicamente organizado. O quarteto continua a obter o mesmo êxito. Ninguém se cansa de o ouvir nem de o aplaudir. A obra de Mozart, de Beethoven, de Haydn, de Mendelssohn, há-de executar-se por inteiro. Além dos concertos regulares do Casino, Mrs. Coverley dá saraus musicais, que são muito frequentados. O rei e a rainha de Malecárlia muitas vezes os têm honrado com a sua presença. Se os Tankerdon ainda não se visitam com o palacete da Décima Quinta Avenida, pelo menos Walter é frequentador assíduo destes concertos. É impossível que o seu casamento com Miss Dy não se realize qualquer dia... Fala-se disso desassombradamente nos salões estibordenses e bombor-denses. Até se designam os padrinhos dos futuros noivos... Não falta senão a autorização dos chefes de família... Pois não há-de surgir uma circunstância que obrigue Tankerdon e Nat Coverley a pronunciarem-se?
Não tarda a produzir-se essa circunstância, tão impacientemente aguardada. Mas à custa de quantos perigos, e de que terrível ameaça para a segurança da Standard-Island!
Na tarde de 16 de Janeiro, aí pelo centro desses paramos marítimos que separam as Tonga das Fiji, dá-se sinal de um navio ao sueste. Parece soltar o rumo para Tribord-Harbour. Deve ser um vapor de setecentas a oitocentas toneladas. Não flutua no penol bandeira nenhuma, e nem a içou quando se aproximou a uma milha de distância.
Qual é a nacionalidade desse vapor? As vigias do Observatório não podem reconhecê-lo pela sua construção. Como não honrou com um cumprimento esta detestada Standard-Island, é muito possível que seja inglês.
Em todo o caso, o tal navio não procura aportar a qualquer dos portos. Parece querer passar de largo, e com certeza que dentro em pouco não se avistará.
Chega a noite, escuríssima, sem luar. O céu está coberto por umas nuvens altas, semelhantes a essas fazendas felpudas, impróprias para a radiação, que absorvem toda a luz. Nem sopro de vento. Calma podre nas águas e no ar. Silêncio profundo no meio daquelas espessas trevas.
Cerca das onze horas, mudança atmosférica. O tempo torna-se borrascoso. O espaço é sulcado pelos relâmpagos até depois da meia-noite, e o ribombar do trovão continua intermitente, sem cair uma gota de chuva.
É possível que estes ribombos, devidos a alguma trovoada distante, impedissem os guardas da alfândega de serviço na bateria de Popa de ouvir uns sibilos singulares, uns urros estranhos, que perturbaram esta parte do litoral.
Não são nem os sibilos do raio nem o rugir do trovão. Este fenómeno, seja qual for a sua causa, produziu-se apenas entre as duas e as três horas da madrugada.
No dia seguinte, espalha-se pelos bairros excêntricos da cidade uma novidade inquietante. Os guardas do gado que andam a pastar pelo campo, num excesso de terror e pânico repentino, acabam de dispersar em todas as direcções, uns para os portos, outros para as grades que cercam Milliard-City.
Facto de maior gravidade: de noite foram meio devorados uns cinquenta carneiros, cujos restos ensanguentados jazem nas cercanias da bateria de Popa. Algumas dúzias de vacas, de corças, de gamos, nos recintos das pastagens e do parque, cerca de vinte cavalos, igualmente sofreram a mesma sorte.
Não há dúvida de que estes animais foram atacados por feras... Mas que feras? Leões, tigres, panteras, hienas? Pois isso é lá admissível? Porventura alguma vez apareceu em Standard-Island um único desses temíveis carnívoros? Pois seria possível que estes animais lá chegassem por mar? Finalmente, acaso a Jóia do Pacífico se encontra na vizinhança das índias, da África, da Malásia, cuja fauna possui esta variedade de bestas-feras?
Não! Standard-Island nem mesmo está na proximidade da foz do Amazonas ou das bocas do Nilo, e, contudo, pelas sete horas da manhã, duas mulheres, que acabam de ser recolhidas no square do palácio municipal, foram perseguidas por um enorme jacaré, o qual, ao chegar à margem da Serpentine-river, se sumiu na água. Ao mesmo tempo, o bulício das ervas, ao longo das margens, indica que outros sáurios ali se debatem neste momento.
Imagine-se o efeito produzido por estas incríveis notícias! Passada uma hora, as vigias verificam que andam aos pulos pelos campos casais de tigres, de leões, de panteras! Muitos carneiros, que fugiam para o lado da bateria do Esporão, são chacinados por dois alentados tigres. De diversas direcções concorrem os animais domésticos, apavorados pelos rugidos das feras. O mesmo acontece ao pessoal que desde madrugada se encaminha para os seus mesteres agrícolas.
O primeiro tramway para Babord-Harbour mal tem tempo de recolher à gare. Perseguiram-no três leões, e por um triz, por uns cem passos, quando muito, que o não apanham.
Não restam dúvida: Standard-Island foi de noite invadida por uma alcateia de animais ferozes, e Milliard-City vai sofrer a mesma invasão, se se não tomam precauções imediatas.
Foi Atanásio Dorémus quem pôs os nossos artistas ao corrente da situação. O professor de boas maneiras, tendo saído mais cedo como de costume, não se atreveu a voltar para casa, e refugiou-se no Casino, donde não há poder humano que consiga arrancá-lo.
— Ora adeus! Isso de leões e de tigres são maranhões — exclamou Pinchinat—, e os tais jacarés são peixes de Abril!
Mas não há remédio senão submeterem-se à evidência. Por conseguinte, a municipalidade deu ordem de fechar as portas gradeadas da cidade, depois de obstruir a entrada dos dois portos e dos postos aduaneiros do litoral. Ao mesmo tempo suspende-se o serviço dos tramways e proíbe-se a quem quer que seja que se aventure pelo parque ou pelos campos, enquanto senão tiverem conjurado os perigos desta inexplicável invasão.
Ora, no momento em que os agentes fechavam a extremidade da Primeira Avenida, do lado do square do Observatório, saltaram à distância de cinquenta passos dois tigres, de olhar afogueado, de fauces sangrentas. Mais uns segundos, e essas feras teriam transposto a grade.
Do lado do palácio municipal tornou-se a mesma cautela, e Milliard-City não tem nada a recear de uma agressão.
Que caso este! Que assunto palpitante de notícias, de crónicas, para o Starboard-Chronicle, o New-Herald e outros jornais de Standard-Island!
Na realidade, o terror chegou ao seu auge. Palacetes e casas estão defendidos com barricadas. Os armazéns do bairro comercial cerraram as portas. Nem uma ficou aberta. Às janelas dos andares superiores apareceram cabeças assombradas. Não se vêem na rua senão piquetes da milícia às ordens do coronel Stewart e destacamentos da polícia dirigidos pelos seus oficiais.
Cyrus Bikerstaff, os seus adjuntos Bartolomeu Ruge e Hubley Harcourt, tendo acudido logo de começo, mantêm-se em serviço permanente na sala da administração. Pelos aparelhos telefónicos dos dois portos, das baterias e dos postos do litoral, a municipalidade recebe notícias deveras assustadoras. As feras surdem por toda a parte... centos delas pelo menos, dizem os telegramas, nos quais talvez o medo houvesse colocado um zero a mais... O que é certo é que pelos campos corre um não determinado número de leões, de tigres, de panteras e de jacarés.
Que se passou pois? Ter-se-ia espalhado por Standard-Island alguma colecção de feras, fugidas das jaulas? Mas donde viria ela? Que navio a transportava? Seria o vapor avistado na véspera? Se foi, onde pára esse vapor? Teria atracado de noite à ilha? Dar-se-á o caso que as feras, tendo escapado a nado, conseguissem alcançar o litoral na parte abatida que serve de escoamento da Serpentine-river? Enfim, teria soçobrado em seguida o navio? E, contudo, a quanto pode alongar-se a vista das vigias, a quando pode alcançar o óculo do comodoro Simcoe, não se enxerga o mínimo destroço à tona de água, e o deslocamento de Standard-Island foi quase nulo desde a véspera! Além disso, se o navio soçobrou, como é que a tripulação não procuraria abrigo em Standard-Island, como os carnívoros fizeram?
O telefone da municipalidade interroga os diversos postos a este respeito, e os diversos postos respondem que não houve abalroamento nem naufrágio. Por mais profunda que fosse a escuridão, qualquer desses casos não escaparia à sua atenção. Decididamente, de todas as hipóteses, é essa ainda a menos admissível.
— Mistério! Mistério! — repete continuamente Yvernés.
Os artistas estão reunidos no Casino, onde Atanásio Dorémus vai compartilhar do seu primeiro almoço, o qual será seguido, se preciso for, do segundo almoço ao meio-dia, e do jantar às seis horas.
— Palavra de honra! — comenta Pinchinat, tasquinhando o seu jornal de chocolate, que vai ensopando na taça fumegante—, palavra de honra que ando às aranhas com estas feras... Seja lá como for, vamos nós comendo, Sr. Dorémus, enquanto não somos comidos...
— Quem sabe? — replica Sebastião Zorn. — E quer seja por leões, por tigres, ou por canibais...
— Cá por mim, preferia os canibais! — declara Sua Alteza. — Cada qual tem o seu gosto, não é verdade?
E ri-se, este infatigável trocista, mas o professor de boas maneiras é que se não ri, e Milliard-City, vencida pelo pavor, não tem vontade nenhuma de se divertir.
Logo às oito horas da manhã, o Conselho dos Notáveis, convocado no palácio municipal, não hesitou em ir ter com o governador. Já não anda vivalma pelas avenidas e pelas ruas, a não serem os piquetes dos milicianos e dos polícias encaminhando-se para os postos que lhes são indicados.
O Conselho, presidido por Cyrus Bikerstaff, começa logo a sua deliberação.
— Meus senhores—diz o governador—, conhecem a causa deste pânico, muito justificado, que se apossou da população de Standard-Island. Esta noite, a nossa ilha foi invadida por uma alcateia de feras carniceiras e de sáurios. Urge proceder ao extermínio dessa alcateia, e lá chegaremos, fiquem certos disso. Mas os nossos administrados têm de conformar-se com as medidas que nos vimos forçados a tomar. Se ainda está autorizada a circulação em Milliard-City, cujas portas estão cerradas, não deve ela permitir-se pelo parque e pelos campos. Portanto, até nova ordem, ficarão proibidas as comunicações entre a cidade, os dois portos, as baterias da Popa e do Esporão.
Aprovadas estas medidas, passa o Conselho à discussão dos meios que permitirão destruir os temerosos animais que infestam Standard-Island.
— Os nossos milicianos e os nossos mareantes-—prossegue o governador — vão organizar montarias nos diversos pontos da ilha. Àqueles de entre nós que já foram caçadores, rogamos-lhes se unam a eles, lhes dirijam os movimentos, procurem prevenir tanto quanto possível uma catástrofe.
— Eu noutro tempo — afirma Jem Tankerdon — cacei na índia e na América, e não sou aprendiz no assunto. Estou pronto, e meu filho mais velho há-de acompanhar-nos...
— Agradecemos ao digno Sr. Jem Tankerdon — volveu Cyrus Bikerstaff— e. por mim, hei-de imitá-lo. Ao mesmo tempo que os milicianos do coronel Stewart, um piquete de marinheiros há-de operar às ordens do comodoro Simcoe, e estão-lhes abertas as suas fileiras, meus senhores!
Nat Coverley faz uma proposta análoga à de Jem Tankerdon e, finalmente, todos os notáveis a quem a idade o permite oferecem pressurosos o seu concurso. Não faltam em Milliard-City as armas de tiro rápido e de grande alcance. Não sofre pois dúvida que, graças à dedicação e à coragem de cada um, Standard-Island fique a breve trecho desembaraçada dos seus temíveis hóspedes. Mas, conforme repete Cyrus Bikerstaff, o que é essencial é que não haja a lamentar a morte de ninguém.
— Quanto às feras, cujo número não podemos avaliar — acrescenta ele—, importa que sejam destruídas dentro em pouco. Deixar-lhes tempo para se aclimarem, para se multiplicarem, seria comprometer a segurança da nossa ilha.
— É provável — observa um dos notáveis — que a alcateia não seja considerável.
— Com efeito, ela não pode provir senão de algum navio que transportasse uma colecção de feras, algum navio expedido da índia, das Filipinas ou das ilhas da Sunda, por conta de alguma casa de Hamburgo, onde se faz especialmente o comércio destes animais.
É nesta cidade o principal mercado das feras, cujos preços atingem doze mil francos pelos elefantes, vinte e sete mil pelas girafas, vinte e cinco mil pelos hipopótamos, cinco mil pelos leões, quatro mil pelos tigres, dois mil pelos jaguares, belos preços, ao que se vê, e que tendem a elevar-se, ao passo que há baixa nas serpentes.
E a propósito disto, como um membro do Conselho observasse que talvez se incluíssem na colecção aludida alguns representantes da classe dos ofídios, o governador responde que ainda se não deu sinal de nenhum réptil. Demais a mais, se houve leões, tigres, jacarés, que puderam introduzir-se a nado pela embocadura da Serpentine, não seria possível que outro tanto fizessem as serpentes.
É isso que faz notar Cyrus Bikerstaff.
—Suponho, pois — diz ele—, que não temos a recear a presença de jibóias, corais, cascavéis, capelos, víboras, e outros espécimes da mesma ordem. No entanto, faremos tudo quanto for mester para tranquilizar a população a tal respeito. Mas não percamos tempo, meus senhores, e, antes de investigar qual foi a causa deste assalto de animais ferozes, o que é preciso é que eles não fiquem cá.
Nada mais sensato, nem mais explícito, deve-se concordar. Ia levantar-se a sessão do Conselho, a fim de que os notáveis tomassem parte nas montarias com o auxílio dos mais destros caçadores de Standard-Island, quando Hubley Harcourt pede a palavra para apresentar uma observação.
Sendo-lhe concedida, eis o que o digno adjunto julga conveniente expor ao Conselho:
— Senhores notáveis, eu não pretendo retardar as operações decididas. O que é urgente é começar a caça. Permitam-me, todavia, que lhes comunique uma ideia que me ocorreu. Talvez que ela ofereça uma explicação muito plausível da presença dessas feras em Standard-Island.
Hubley Harcourt, de uma antiga família francesa das Antilhas, americanizada durante a sua permanência na Luisiana, goza de extrema consideração em Milliard-City. É um espírito muito grave, muito reservado, não se comprometendo nunca ao de leve, muito parco de palavras, e merecendo as suas opiniões grande confiança. Por isso o governador lhe pede que se explique, o que ele faz em algumas frases de uma lógica cerrada.
— Senhores notáveis, ontem de tarde deu-se sinal de um navio à vista da nossa ilha. Este navio não deu a conhecer a sua nacionalidade, decerto no empenho de que ela ficasse ignorada. Ora não sofre dúvida, no meu parecer, que ele transportava esta carga de carnívoros.
—É evidentíssimo — apoiou Nat Coverley.
— Pois, meus senhores, se há nesta assembleia quem pense que a invasão de Standard-Island é devida a uma casualidade marítima... por mim... não penso tal.
— Mas então — exclama Jem Tankerdon, que julga entrever a luz através das palavras de Hubley Harcourt — seria voluntariamente... de caso pensado... com premeditação?
— Oh!—brada o Conselho.
— Tenho essa convicção — assevera o adjunto em voz firme-—e uma trama destas só pode ser obra do nosso eterno inimigo, desse John Buli, a quem servem todos os meios contra Standard-Island...
— Oh!—repete o Conselho.
— Não tendo o direito de exigir a destruição da nossa ilha, quis torná-la inabitável. Daí essa colecção de leões, de jaguares, de tigres, de panteras, de jacarés, que esse vapor atirou pela calada da noite para os nossos domínios!
— Oh! — clama pela terceira vez o Conselho.
Mas, de dúbia que era a começo, a interjeição tornou-se afirmativa. Sim! Deve ser uma vingança desses encarniçados Ingleses, que diante de coisa nenhuma recuam, em se tratando de manter a sua soberania marítima! Sim! Essa embarcação foi fretada para essa obra criminosa; depois, cometido o atentado, sumiu-se! Sim! O Governo do Reino Unido não hesitou em sacrificar uns milhares de libras no propósito de tornar impossível a habitabilidade de Standard-Island.
E Hubley Harcourt acrescenta:
— Se fui levado a formular esta observação, se as suspeitas que eu concebera se transformaram em certeza, meus senhores, é que a minha memória me sugeriu um facto análogo, uma maquinação perpetrada em circunstâncias pouco mais ou menos idênticas, e da qual os Ingleses nunca se lavaram...
— Pois não é a água que lhes falta! —observa um dos notáveis.
— A água salgada não lava!—responde outro.
— Assim como o mar não seria capaz de apagar a nódoa de sangue na mão de Lady Macbeth! — exclama um terceiro.
E notem que estes dignos conselheiros acodem com estas réplicas antes mesmo que Hubley Harcourt lhes conte o facto ao qual acaba de aludir:
— Senhores notáveis — continuou ele—, quando a Inglaterra teve de abandonar à França as Antilhas francesas, quis lá deixar um vestígio da sua passagem, e que vestígio aquele! Até então, nunca houvera uma única serpente na ilha de Guadalupe, nem na Martinica, e depois da partida da colónia anglo-saxónica, esta última viu-se inçada de serpentes. Era a vingança de John Buli. Antes de se pôr a andar, lançara centos de répteis no domínio que lhe escapava das unhas, e desde essa época multiplicaram-se espantosamente esses animais peçonhentos, com dano imenso dos colonos franceses!
É certo que esta acusação contra a Inglaterra, a qual nunca foi desmentida, torna assaz plausível a explicação dada por Hubley Harcourt. Mas, acaso é lícito supor que John Buli tenha querido tornar inabitável a ilha de hélice, e será certo que o mesmo tentasse fazer a uma das Antilhas francesas? Nunca foi possível provar nem um nem outro destes factos. Contudo, pelo que respeita a Standard-Island, devia o facto ser dado por autêntico pela população milliardense.
— Pois bem! — exclama Jem Tankerdon. — Se os Franceses nunca conseguiram expulsar da Martinica as víboras que os Ingleses lá tinham deixado em seu lugar...
Uma trovoada de hurras e de hipes acolheu esta comparação do fogoso americano.
— ...Os Milliardenses, esses saberão desembaraçar Standard-Island das feras que a Inglaterra largou para cima dela.
Nova trovoada de aplausos, que cessam apenas para recomeçarem com mais força, depois de Jem Tankerdon acrescentar:
— Ao nosso posto, meus senhores, e não esqueçamos que, ao perseguir esses leões, esses tigres, esses jacarés, é aos Ingleses que nós damos caça.
E levanta-se a sessão.
Passada uma hora, quando os principais periódicos publicam a acta estenografada dessa sessão, quando se sabe quais foram as mãos inimigas que abriram a jaula a essa bicharada flutuante, quando se percebe a quem é devida a invasão dessas legiões de bestas-feras, sai de todos os peitos um grito de indignação, e a Inglaterra é amaldiçoada nos seus filhos e nos seus netos enquanto o seu nome detestado se não apagar, afinal, da memória humana.
MONTARIAS
Trata-se de proceder ao extermínio total dos animais que invadiram Standard-Island. Se escapar um casal que seja desses temerosos bichos, sáurios ou carniceiros, acabou-se a segurança futura da ilha. Esse casal há-de multiplicar-se, e o mesmo seria ir-se viver para as florestas da índia ou da África. Ter fabricado um aparelho de chapas de aço, tê-lo lançado por esses vastos paramos do Pacífico, sem que ele tenha nunca tido contacto com as costas ou os arquipélagos suspeitos, ter tomado todas as medidas para que fique ao abrigo das epidemias, assim como das invasões, e de repente, numa noite... A falar verdade, a Standard-Island Company deve sem hesitação demandar o Reino Unido perant» um tribunal internacional e reclamar-lhe formidáveis indemnizações por perdas e danos! Pois o direito das gentes não foi medonhamente violado nesta circunstância? Sim! Foi-o por certo, e se alguma vez se apresentarem provas...
Mas, conforme decidiu o Conselho dos Notáveis, é necessário tratar do que é mais urgente.
E antes de tudo, ao contrário do que pediram certas famílias dominadas pelo terror, não se pode admitir que a população se refugie nos vapores dos dois portos e fuja de Standard-Island. Demais a mais, nem os vapores chegavam para semelhante êxodo.
Não! Vai-se dar caça a esses animais de importação inglesa e, destruídos eles, a Jóia do Pacífico em breve há-de recuperar a sua antiga segurança.
Os Milliardenses lançam-se a esse trabalho sem perda de tempo. Alguns não hesitam em propor meios extremos, entre outros introduzir o mar na ilha de hélice, propagar o incêndio através dos maciços do parque, das planícies e dos campos, por forma que se afogue ou se queime toda essa bicharada. Mas, em todo o caso, ineficaz seria o meio pelo que respeita aos anfíbios, e mais vale proceder por batidas organizadas com circunspecção.
Dito e feito.
Mencionemos aqui que o capitão Sarol, os malaios, os neo-hebridianos, ofereceram os seus serviços, que o governador aceita pressuroso. Aquelas boas almas querem mostrar o seu reconhecimento pelos serviços recebidos. No seu íntimo, o capitão Sarol receia sobretudo que este incidente interrompa a viagem, que os Milliardenses e suas famílias queiram sair de Standard-Island, que obriguem a administração a dirigir-se imediatamente para a baía Madalena, o que reduziria a nada os seus projectos.
O quarteto mostra-se à altura das circunstâncias e digno da sua nacionalidade. Ninguém poderá dizer que quatro franceses não arriscam o pêlo, em havendo perigos a correr. Alistam-se sob a direcção de Calistus Mun-bar, o qual, ao que afirma, já viu coisas muito mais feias, e encolhe os ombros em sinal de desdém por esses leões, tigres, panteras e outros animais inofensivos! Quem sabe se este neto de Barnum já foi domador, ou, pelo menos, director de alguma colecção ambulante de feras?
Começaram as batidas nessa mesma manhã, e corre próspera a estreia.
Durante esse primeiro dia, dois crocodilos tiveram a imprudência de se aventurarem fora da Serpentine, e é sabido que esses sáurios, temíveis a valer no líquido elemento, muito menos o são na terra firme, pela dificuldade que têm em se voltar para trás. O capitão Sarol e os seus malaios atacam-nos corajosamente, e livram o parque desses importunos hóspedes, embora fique ferido um dos malaios.
Entrementes, deu-se conta de mais uma dezena deles — o que, sem dúvida, constitui a alcateia. São animais de tamanho considerável, que medem entre quatro e cinco metros, por conseguinte perigosos deveras.
Como se refugiaram debaixo de água, a maruja apressa-se a enviar-lhes algumas dessas balas explosivas que fazem rebentar as mais rijas couraças.
Por outro lado, os grupos de caçadores espalham-se pelos campos. Um dos leões é morto por Jem Tankerdon, o qual teve razão em dizer que não era aprendiz no ofício, e que reassumiu o sangue-frio e a destreza de antigo caçador do Far West. É soberbo o animal—desses que podem valer de cinco a seis mil francos. Atravessou-lhe o coração um zagalote de aço no momento em que pulava para cima do grupo dos quatro artistas, e afirma Pin-chinat que lhe sentiu de passagem o vento da cauda!
De tarde, por ocasião de um ataque em que um dos milicianos apanha uma dentada no ombro, o governador dá cabo de uma leoa magnífica.
Se John Buli contou que estes formidáveis animais fizessem criação, ficam-lhe baldadas todas as esperanças de progénie.
Antes do fim do dia, ainda dois tigres caem às balas do comodoro Simcoe, à testa de um destacamento de marinheiros, um dos quais, gravemente ferido pelas garras de uma das feras, foi transportado para Tribord-Harbour. Segundo as informações recolhidas, parece que estes terríveis felinos são os mais numerosos entre os carnívoros desembarcados na ilha de hélice.
Ao cair da noite, as feras, depois de resolutamente perseguidas, refugiam-se nas matas para o lado da bateria do Esporão, donde se propõem a desalojá-las logo de madrugada.
Até pela manhã não pararam os urros tremendos, lançando o terror na população feminina e infantil de Milliard-City. Esse pavor não tende a declinar, nem mesmo oferece probabilidades de cessar de todo. Com efeito, que certeza há de que Standard-Island tenha dado cabo dessa vanguarda do exército britânico?
Por isso, em todas as classes milliardenses é um desfiar constante de rosários intermináveis contra a pérfida Albion.
Ao despontar da aurora, recomeçam os voluntários como na véspera. Por ordem do governador, conforme a opinião do comodoro Simcoe, o coronel Stewart dispõe-se a empregar a artilharia contra o grosso das feras, a fim de as enxotar dos seus valhacoitos. Para as bandas da bateria do Esporão são trazidas duas peças de artilharia de Tribord-Harbour, das que lançam metralha como os Hotchkiss.
Neste local, as matas de almezes são atravessadas pela linha do tramway, que se ramifica para o Observatório. Ao abrigo destas árvores é que passou a noite um certo número de feras. Por entre as ramadas interiores surgem algumas cabeças de leões e tigres, de pupilas lampejantes. Os marinheiros, os milicianos, os caçadores, dirigidos por Jem e Walter Tankerdon, Nat Coverley e Hubley Harcourt, tomam posição à esquerda daquelas matas, esperando a saída dos animais ferozes de que a metralha não tiver logo dado cabo.
Ao sinal do comodoro Simcoe, as duas peças disparam simultaneamente. Respondem-lhes uns urros formidáveis. Não há dúvida de que foram alcançados muitos dos carnívoros. Os restantes — uns vinte — arremessam-se para fora da mata, e, ao passarem junto do quarteto, são saudados com uma fuzilaria que fere mortalmente dois. Nesse instante, arroja-se sobre o grupo um tigre enorme, e Frascolin recebe com o pulo da fera uma pancada tão terrível que vai parar a dez passos de distância.
Precipitam-se os companheiros em seu socorro. Levantam-no quase com os sentidos perdidos. Mas dentro em pouco volta a si... Foi um choque apenas que apanhou... Mas que choque!
Entretanto, trata-se de perseguir os jacarés nas águas da Serpentine-river, e o difícil é ficarem com a certeza de se verem livres desses vorazes animais. Por fortuna, o adjunto Hubley Harcourt tem a ideia de levantar as comportas do rio, e é possível atacar os sáurios em melhores condições, e com vantagem.
A única vítima a lamentar é um cão pertencente a Nat Coverley. Agarrado por um jacaré, o pobre animal é cortado em duas partes por uma dentada. Mas uma dúzia de sáurios caíram às balas dos milicianos, e é possível que Standard-Island se veja, enfim, definitivamente liberta desses temíveis anfíbios.
Em todo o caso, o dia correu bem. Entre as feras mortas contam-se seis leões, oito jaguares, nove panteras, entre machos e fêmeas.
Chegada a noite, o quarteto, incluindo Frascolin, já restabelecido do abalo, veio sentar-se à mesa no restaurante do Casino.
— Ora queira Deus que a gente chegasse ao termo dos nossos trabalhos!—disse Yvernés.
— A não ser que aquele steamer, segunda Arca de Noé — responde Pinchinat—, tivesse no seu bojo todos os bichos da criação...
Isso não era provável, e Atanásio Dorémus sentiu-se bastante tranquilizado para regressar ao seu domicílio da Vigésima Quinta Avenida. Aí, na casa barricada, encontra a criada velha, cheia de desespero ao pensar que de seu velho amo não deviam àquelas horas restar senão farrapos informes!
Decorreu a noite em bastante sossego. Apenas ao longe se ouviam uns bramidos, para os lados de Babord-Harbour. É de supor que no dia seguinte, procedendo-se a uma batida geral pelos campos, fique completa a destruição das feras.
Logo de madrugada, tornam a organizar-se os grupos dos caçadores. Escusado é dizer que há vinte e quatro horas Standard-Island permanece estacionária, visto que todo o pessoal da máquina está empregado na obra comum.
Os piquetes, compreendendo cada um cerca de vinte homens armados de espingardas de tiro rápido, têm ordem de percorrer toda a ilha. O coronel Stewart não julgou conveniente empregar a artilharia contra as feras, que estão agora dispersas. Acossados nos arredores da bateria da Popa, são derribados pelas balas treze desses animais. Mas foi preciso livrar, com algunm custo, dois guardas do posto aduaneiro próximo, que, derrubados por um tigre e uma pantera, receberam feridas graves.
Esta última caça eleva a cinquenta e três o número dos animais destruídos desde a primeira montaria da véspera.
São quatro horas da manhã. Cyrus Bikerstaff e o comodoro Simcoe, Jem Tankerdon e seu filho, Nat Cover-ley e os dois adjuntos, alguns dos notáveis, escoltados por um destacamento da milícia, dirigem-se para o palácio municipal, onde o Conselho está à espera dos relatórios expedidos dos dois portos, das baterias do Esporão e da Popa.
Ao aproximarem-se, estando a menos de cem passos do edifício, rebenta de súbito uma gritaria estridente. Vê-se uma porção de gente, mulheres e crianças, num acesso de terror pânico, a fugir pela Primeira Avenida fora.
Imediatamente o governador, o comodoro Simcoe e os seus companheiros precipitam-se para o square, cuja grade devia estar fechada... Mas, por uma inexplicável negligência, está aberta essa grade, e por certo que uma das feras, talvez que a última, a havia transposto.
Nat Coverley e Walter Tankerdon, que são os primeiros a chegar, precipitam-se para o square.
De repente, estando a três passos apenas de Nat Coverley, Walter é lançado por terra por um tigre enorme.
Nat Coverley, não tendo tempo de meter um cartucho na espingarda, tira da cinta a faca de mato, e lança-se em socorro de Walter, no momento em que as garras da fera se abatem sobre o ombro do mancebo.
Walter está salvo, mas o tigre volta-se, empina contra Nat Coverley...
Este fere o animal com a faca, sem poder chegar-lhe ao coração, e cai de costas...
O tigre recua, de fauces rugidoras, de mandíbulas escancaradas, com a língua sangrenta...
Estala a primeira detonação...
É Jem Tankerdon que faz fogo.
Retumba a segunda...
É a bala da espingarda que faz explosão no corpo do tigre.
Levantam Walter, com o ombro meio despedaçado.
Quanto a Nat Coverley, se não está ferido, pelo menos nunca viu tão próxima a morte.
Ergue-se, e dirige-se para Jem Tankerdon, dizendo-lhe em voz grave:
— Salvou-me... Obrigado!
— Salvou meu filho... Obrigado! — responde Jem Tankerdon.
E apertam mutuamente a mão em testemunho de um reconhecimento que bem pode acabar em sincera amizade ...
Walter é imediatamente transportado ao palacete da Décima Nona Avenida, onde se refugiou sua família, ao passo que Nat Coverley se recolhe a casa pelo braço de Cyrus Bikerstaff.
Pelo que respeita ao tigre, o superintendente encarrega-se de utilizar-lhe a magnífica pele. O soberbo animal deverá ser primorosamente embalsamado, e figurar no Museu de História Natural de Milliard-City, com esta inscrição:
OFERECIDO PELO REINO
UNIDO DA GRÃ-BRETANHA
E IRLANDA A STANDARD-ISLAND,
INFINITAMENTE RECONHECIDA
Supondo-se que o atentado se deve atribuir à Inglaterra, não pode haver vingança mais espirituosa.
Pelo menos, é esse o parecer de Sua Alteza Pinchinat, perito em assuntos desta laia.
Não é de espantar que, logo no dia seguinte, Mrs. Tankerdon faça uma visita a Mrs. Coverley para lhe agradecer o serviço prestado a Walter, e Mrs. Coverley visite Mrs. Tankerdon para lhe agradecer o serviço prestado a seu marido. Podemos até acrescentar que Miss Dy quis acompanhar sua mãe, e acaso não é natural que elas lhe tenham pedido notícias do seu prezado ferido?
Enfim, tudo vai às mil maravilhas e, desembaraçada dos seus temíveis hóspedes, Standard-Island pode com toda a segurança prosseguir a sua derrota para o arquipélago das Fiji.
FIJI E FIJIANOS
— Quantas é que tu dizes? — pergunta Pinchinat. — Duzentas e - cinquenta e cinco, meus amigos — elucida Frascolin. — Sim... contam-se duzentas e cinquenta e cinco ilhas e ilhotas no arquipélago das Fiji.
— Que temos nós com isso - responde Pinchinat — desde o momento em que a Jóia do Pacífico não tenha de fazer no arquipélago duzentas e cinquenta e cinco escalas?
— Nunca hás-de perceber nada de geografia! — proclama Frascolin.
— E tu... percebes de mais! — replica Sua Alteza.
E é sempre deste modo que é acolhido o segundo-vio-lino, em querendo instruir os seus recalcitrantes colegas.
Todavia, Sebastião Zorn, que lhe dava mais atenção, deixava-se levar para defronte do mapa do Casino onde todos os dias se marca o ponto. É fácil de seguir nele o itinerário de Standard-Island desde que partiu da baía Madalena. A derrota forma uma espécie de S grande, cujo anel inferior se desenrola até ao grupo das Fiji.
Frascolin mostra então ao violoncelo este acervo de ilhas, descoberto por Tasman em 1643, um arquipélago compreendido entre os paralelos dezasseis e vinte sul. e entre os meridianos cento e setenta e quatro oeste e cento e setenta e nove leste.
— Com que então vamos meter a nossa incómoda máquina pelo meio desses centos de calhaus semeados no seu caminho? — observa Sebastião Zorn.
— Sim, meu velho companheiro de corda — responde Frascolin — e se tu observares com alguma atenção...
— E fechando a boca... — acrescenta Pinchinat.
— Porquê?
— Porque, como reza o provérbio, em boca cerrada não entra mosca!
— E de que mosca queres tu falar?
— - Da que te apoquenta, quando se trata de declamar contra Standard-Island!
Sebastião Zorn encolhe desdenhosamente os ombros, e volta-se outra vez para Frascolin:
— Dizias tu então?
— Dizia eu que, para chegar às duas grandes ilhas de Viti-Levu e de Vanna-Levu, existem três passagens que atravessam o grupo oriental: o canal de Nanuku, o canal de Lakemba, o canal de Oneata...
— Sem contar o canal em que a gente se pode desfazer em milhares de pedaços! — exclama Sebastião Zorn. — É o que há-de acabar por nos acontecer! Pois isto tem lá jeito algum, andar a navegar por mares destes, com uma cidade inteira e com uma população inteira nessa cidade? Sebo! Isto é até contra as leis naturais!
— A mosca! — acode Pinchinat. — Lá está ela, a mosca de Zorn... Lá está ela!
Com efeito, não há meio de acabar com estes sinistros prognósticos do cabeçudo violoncelista!
A falar verdade, nesta parte do Pacífico, o primeiro grupo das Fiji é como uma barreira oposta aos navios que vêm de leste. Mas não há que recear: as passagens são largas bastante para que o comodoro Simcoe possa aventurar por elas o seu aparelho flutuante, sem contar as que indicou Frascolin. Entre essas ilhas, as mais importantes, além das duas Levu, são Ono, Ngaloa, Kandabu, etc.
Há um mar encerrado entre estas cumeadas emergidas do fundo do oceano, o mar de Koro, e se este arquipélago, entrevisto por Cook, visitado por Bligh em 1789, por Wilson em 1792, é tão minuciosamente conhecido, é porque as notáveis viagens de Dumont d'Urville em 1828 e em 1833, as do americano Wilkes em 1859, do inglês Erskine em 1853, depois a expedição do Herald, capitão Durham, da marinha britânica, permitiram traçar as cartas com uma precisão que faz honra aos engenheiros hidrógrafos.
Portanto, o comodoro Simcoe não tem um momento de hesitação. Vindo de sueste, aboca o estreito Voulanga, deixando a bombordo a ilha deste nome, espécie de pudim encetado, servido na sua bandeja de coral.
No dia seguinte, Standard-Island penetra no mar interior, o qual é protegido por essas rijas serranias submarinas contra os vagalhões do mar largo.
Escusado é dizer que ainda se não extinguiram todos os receios com respeito aos animais ferozes aparecidos sob a protecção da bandeira britânica. Os Milliardenses continuam alerta. Organizam-se montarias incessantes pelos bosques, pelos campos e pelas águas. Não se nota mais nenhum vestígio de feras. Nem de dia nem de noite se ouvem bramidos. Durante os primeiros tempos, alguns timoratos recusam-se a sair da cidade para se aventurarem pelo parque ou pelo campo. Não é de recear que o vapor haja desembarcado uma carga de serpentes — como na Martinica — e que delas esteja infestada a espessura do mato? Promete-se, por isso, um prémio a quem quer que se apodere de um exemplar desses répteis. Será pago pelo seu peso de ouro, ou, conforme o seu comprimento, a tanto por centímetro, e, se ele chegar ao tamanho de uma jibóia, a quantia é já de convidar! Mas, como as pesquisas não deram resultado, há motivos para se ficar tranquilo. A segurança de Standard-Island voltou de todo. Os autores daquela maquinação, quem quer que fossem, desperdiçaram inutilmente as suas feras.
O resultado mais positivo é o ter-se efectuado uma reconciliação completa entre as duas secções da cidade. Desde os casos Walter-Coverley e Coverley-Tankerdon, as famílias estibordenses visitam-se, mutuamente se convidam e se recebem. Recepções e mais recepções, festas e mais festas. Todas as noites, baile e concerto em casa dos principais notáveis, mais particularmente nos palácios da Décima Nona e da Décima Quinta Avenida. O Quarteto Concertante não tem mãos a medir. Além disso, o entusiasmo que eles provocam não diminui, antes pelo contrário.
Enfim, uma bela manhã, enquanto Standard-Island fustiga com as suas hélices possantes a superfície tranquila do mar de Koro, espalha-se a grande notícia. O Sr. Jem Tankerdon dirigiu-se oficialmente ao palacete do Sr. Nat Coverley e pediu-lhe a mão de Miss Dy Cover-ley, filha deste, para seu filho Walter Tankerdon. E o Sr. Nat Coverley concedeu a mão de Miss Dy Coverley, sua filha, a Walter Tankerdon, filho do Sr. Jem Tankerdon. A questão do dote não levantou dificuldade nenhuma. Será de duzentos milhões para cada um dos juvenis noivos.
— Sempre terão com que viver... mesmo na Europa! — observa judiciosamente Pinchinat.
De todos os lados chegam as felicitações às duas famílias. O governador Cyrus Bikerstaff não tenta disfarçar a sua extrema satisfação. Graças a este casamento, desaparecem as causas de rivalidade tão comprometedora para o futuro de Standard-Island. O rei e a rainha de Malecárlia são dos primeiros a enviar os seus cumprimentos e as suas congratulações ao juvenil par.
Os bilhetes de visita, impressos a ouro sobre alumínio, chovem na caixa postal dos palacetes. Os jornais fazem crónicas e crónicas a propósito dos esplendores que se aprestam, e tais como nunca se terão visto nem em Milliard-City, nem noutro qualquer ponto do Globo. Expedem-se cabogramas para França, com respeito à confecção da corbelha. As lojas de modas, os estabelecimentos das grandes modistas, as oficinas dos grandes artífices, as fábricas de bijutarias e de objectos de arte recebem encomendas inverosímeis. Um vapor especial, que partirá de Marselha, deve vir por Suez e pelo oceano Índico, a fim de transportar estas maravilhas da indústria francesa. Está fixado o casamento para daí a cinco semanas, para o dia 27 de Fevereiro. Em todo o caso, mencionemos que os comerciantes de Milliard-City devem ter o seu quinhão de benefícios nesse sucesso.
Devem fornecer o seu contingente à corbelha nupcial, e só com as despesas a que se sujeitam os nababos de Standard-Island poderão realizar-se fortunas.
O organizador naturalmente indicado para estas festas é o superintendente Calistus Munbar. É forçoso renunciar a descrever o estado da sua alma, ao ser declarado publicamente o casamento de Walter Tankerdon com Miss Dy Coverley. Sabido é quanto ele o desejava, quantos esforços fizera para o levar avante! É a realização do seu sonho, e, como a municipalidade está resolvida a dar-lhe carta branca, fiquem certos de que ele estará à altura das suas funções, organizando um festival ultra-maravilhoso.
O comodoro Simcoe faz saber, por uma nota enviada aos jornais, que, na data escolhida para a cerimónia nupcial, achar-se-á a ilha de hélice entre as Fiji e as Novas Hébridas.
Antes disso, vai aproximar-se de Viti-Levu, onde a demora deve ser de uns dez dias- — a única escala que se tenciona fazer no meio deste vasto arquipélago.
Navegação deliciosa. Na superfície do mar brincam numerosas baleias. Com os mil jactos de água dos seus respiradoiros, dão ao oceano a aparência de um tanque enorme de Neptuno, em confronto com o qual o de Versalhes não passa de um brinquedo de crianças, observa Yvernés. Mas também aparecem aos centos tubarões colossais, que escoltam Standard-Island como se seguissem a esteira de um navio.
Esta parte do Pacífico limita a Polinésia, que confina com a Melanésia, onde se acha o grupo das Novas Hébridas(1). É cortada pelo meridiano cento e oitenta, linha convencional que divide as duas metades desse imenso oceano. Ao transporem este meridiano, os mareantes que vêm de leste cortam um dia do calendário, e, inversamente, os que vêm de oeste acrescentam um. Se não fosse esta precaução, deixaria de haver concordância de datas. No ano precedente, Standard-Island não tivera
*1. Estas marcações são criadas conforme as cartas francesas em que o meridiano zero não passa por Paris, meridiano que era igualmente adoptado nesta época.
de fazer esta mudança, visto que não se adiantaria a oeste para além do dito meridiano. Mas desta vez tem que se conformar com a regra, e, visto vir de leste, o dia 22 de Janeiro muda para 23.
Das duzentas e cinquenta e cinco ilhas que compõem o arquipélago das Fiji, apenas umas cem são habitadas. A população total não excede cento e vinte e oito mil habitantes, fraca densidade para uma extensão de vinte e um mil quilómetros quadrados.
Dessas ilhotas, simples fragmentos de atóis ou cumeadas de montes submarinos, cingidos por uma franja de coral, não há nenhuma que meça mais de cento e cinquenta quilómetros quadrados. Este domínio insular não passa, a bem dizer, de uma divisão política da Austrália, dependente da Coroa desde 1874, o que significa que a Inglaterra o anexou de vez ao seu império colonial. Se os Fijianos se decidiram por fim a submeter-se ao protectorado britânico foi por terem sido em 1859 ameaçados por uma invasão tonguiana, a qual o Reino Unido estorvou pela intervenção do seu ultrafamoso Pritchard, o Pritchard das Taiti. O arquipélago é actualmente dividido em dezasseis distritos, administrados por subchefes indígenas, mais ou menos aliados à família soberana do último rei Thakumbau.
— Será isto consequência do sistema inglês — pergunta o comodoro Simcoe, conversando a este respeito com Frascolin — , e sucederá com as Fiji o mesmo que sucedeu com a Tasmânia? Ignoro. Mas o que é certo é que o indígena tende a desaparecer. A colónia não está em via de prosperidade, nem a população em via de acréscimo, e o que o demonstra é a inferioridade numérica das mulheres em relação aos homens.
— É esse, com efeito, o indício da próxima extinção de uma raça, e, na Europa, há já alguns Estados ameaçados por essa inferioridade.
— Aqui, demais a mais — prossegue o comodoro — os indígenas não passam de verdadeiros servos, tanto como os naturais das ilhas vizinhas, recrutados pelos plantadores para os trabalhos de arroteamento. Além disso, dizima-os a moléstia, e em 1875 só as bexigas deram cabo de mais de trinta mil. E, contudo, é uma terra admirável, como poderá avaliar, este arquipélago das Fiji! Se a temperatura é elevada no interior das ilhas, pelo menos é moderada no litoral, muito fértil em frutos e legumes, em árvores, coqueiros, bananeiras, etc. É só o trabalho de colheita dos inhames, dos taros(1), e da medula alimentícia da palmeira, que produz o sagu...
— O sagu! — exclama Frascolin.- — Que recordações que ele traz do nosso Robinson suíço!
— Quanto aos porcos, às galinhas — continua o comodoro Simcoe- — , esses animais multiplicaram-se desde a sua importação de uma maneira extraordinária. Daí deriva toda a facilidade de satisfazer às necessidades da existência, ao far niente, apesar de terem uma inteligência vivíssima, um génio muito espirituoso.
— E, em tendo inteligência viva de mais... — diz Frascolin.
— As crianças vivem pouco! — conclui o comodoro. De facto, todos esses indígenas, polinésios, melanésios
e outros, em que é que se diferençam das crianças?
De caminho para Viti-Levu, Standard-Island marca muitas ilhas intermédias, tais como Vanna-Vatu, Moala, Ngan, sem se deter nelas.
De todos os lados singram, contornando o litoral, flotilhas dessas pirogas compridas de balanceiros, feitas de bambus cruzados, que servem para manter o equilíbrio do aparelho e para alojar a carga. Circulam, fazem evoluções graciosas, mas não tentam entrar, nem em Tri-bord-Harbour, nem em Babord-Harbour. É provável que não lho permitissem, em vista da péssima reputação dos Fijianos. Estes indígenas abraçaram o cristianismo, é certo. Desde que os missionários europeus se estabeleceram em Lecumba, em 1835, quase todos eles são protestantes wesleyanos, mesclados com alguns milhares de católicos. Mas, antes disso, por tal forma se dedicavam às práticas do canibalismo, que não perderam talvez de todo o gosto pela carne humana. Demais a mais, é facto
*1. Esta aróidea é grandemente utilizada na alimentação dos indígenas do Pacífico.
que prende com a religião. Os seus deuses tinham o amor ao sangue. A benevolência era considerada nessas populações como uma fraqueza e até como um pecado. Devorar um inimigo era até prestar-lhe honra. O homem que se desprezava cozia-se, mas não se devorava. As crianças constituíam a principal iguaria nos banquetes, e não vai longe o tempo em que o rei Thakumbau gostava de se sentar debaixo de uma árvore, de cujas ramadas pendiam membros humanos reservados à régia mesa.
Até por vezes — aconteceu isto com a tribo dos Nulo-cas, em Viti-Levu, perto de Namosi — se devorou uma tribo inteira, menos algumas mulheres, uma das quais viveu até 1880.
Decididamente, se Pinchinat não encontra numa qualquer destas ilhas alguns netos de antropófagos, que tenham conservado os velhos costumes de seus avós, deve renunciar para todo o sempre a exigir um resto de cor local a estes arquipélagos do Pacífico.
O grupo ocidental das Fiji compreende duas grandes ilhas, Viti-Levu e Vanna-Levu, e duas ilhas medianas, Kandavu e Taviuni. Mais a noroeste é que jazem as ilhas Wassava e que se abre a passagem da ilha Redonda, pela qual o comodoro Simcoe deve sair, soltando rumo para as Novas Hébridas.
Na tarde de 25 de Janeiro desenham-se no horizonte as alturas de Viti-Levu. Esta ilha montanhosa é a mais considerável do arquipélago, com mais um terço de extensão do que a Córsega, isto é, dez mil e seiscentos e quarenta e cinco quilómetros quadrados.
As suas cumeadas apontam a mil e duzentos e mil e quinhentos metros acima do nível do oceano. São vulcões extintos, ou, pelo menos, adormecidos, e cujo despertar é, em geral, bastante maçador.
Viti-Levu está ligada à sua vizinha do norte, Vanna-Levu, por uma barreira submarina de recifes, que sem dúvida emergia na época da formação telúrica. Por cima desta barreira podia Standard-Island aventurar-se sem perigo. Por outro lado, ao norte de Viti-Levu, as profundidades são avaliadas entre quatrocentos e quinhentos metros, e, ao sul, entre quinhentos e dois mil.
Antigamente, a capital do arquipélago era Levuka, na ilha de Ovalau, a leste de Viti-Levu. Talvez até que as feitorias, fundadas por casas inglesas, sejam ali mais importantes ainda do que as de Suva, a actual capital, na ilha Viti-Levu. Mas este porto oferece grandes vantagens à navegação, por estar situado na extremidade sueste da ilha, entre dois deltas, cujas águas banham à larga este litoral. Quanto ao porto de escala dos paquetes em relação com as Fiji, esse ocupa o fundo da baía de Ngalao, ao sul da ilha de Kandava, que é a situação mais próxima da Nova Zelândia, da Austrália, das ilhas francesas da Nova Caledónia e de Loyalty.
Standard-Island vem fazer alto na abertura do porto de Suva. No mesmo dia se preenchem as formalidades e se concede livre prática. Como destas visitas só podem originar-se benefícios, tanto para os colonos como para os indígenas, os Milliardenses têm a certeza de um excelente acolhimento, no qual existe porventura mais interesse do que simpatia. Não se deve esquecer que as Fiji dependem da Coroa, e que continuam tensas as relações entre o Foreign Office e a Standard-Island Company, tão ciosa da sua independência.
No dia seguinte, 26 de Janeiro, os comerciantes de Standard-Island, que têm compras ou vendas a efectuar, vão para terra logo de manhãzinha. Os turistas, entre os quais os nossos parisienses, não tardam a segui-los. Muito embora Pinchinat e Yvernés gostem de troçar com Frascolin — o discípulo distinto do comodoro Simcoe — , por causa dos seus estudos «etnomaçadorogeográficos», como diz Sua Alteza, nem por isso menos se aproveitam dos seus conhecimentos, às perguntas dos colegas sobre os habitantes de Viti-Levu, sobre os seus costumes, as suas práticas, o segundo-violino tem sempre alguma resposta instrutiva para dar. Sebastião Zorn não põe dúvida em o interrogar nesta conjuntura, e, logo de começo, quando Pinchinat sabe que estas paragens eram, não há muito, o principal teatro do canibalismo, não pode conter um suspiro, dizendo:
— Sim... mas já chegamos tarde, e vocês verão que
estes Fijianos, enervados pela civilização, caíram no frango de fricassé e nos chispes panados!
— Antropófago! — brada-lhe Frascolin. — Tu o que merecias era ter figurado na mesa do rei Thakumbau...
— Eh! Eh! Ora essa! Uma costeleta de Pinchinat à bordolesa...
— Mau! — replica Sebastião Zorn — , se estamos a perder tempo com recriminações ociosas...
— Não realizaremos o progresso pela marcha em frente! — exclama Pinchinat. — Aqui tens uma frase bem a teu gosto, não é assim, meu velho violonceluloidista! Pois então, ordinário, marche!
A cidade de Suva, edificada à direita de uma baiazinha, tem as habitações disseminadas no reverso de uma colina verdejante. Tem cais dispostos para a atracação dos navios, ruas com passeios assombrados, nem mais nem menos como as praias francesas das grandes estações balneares. As casas de madeira, de andar térreo, e, uma vez por outra, mas raro, com mais um andar, são alegres e frescas. Nos subúrbios, as cabanas indígenas ostentam as empenas que se arrebitam em bicos corniformes, ornados de conchas. Os telhados, muito sólidos, resistem às chuvas do Inverno, de Maio a Outubro, que são torrenciais. Com efeito, em Março de 1871, segundo conta Frascolin, que é danado para a estatística, Mbua, situada a leste da ilha, recebeu num dia trinta e oito centímetros de água.
Viti-Levu, assim como as outras ilhas do arquipélago, está sujeita a desigualdades atmosféricas, e a vegetação difere de um litoral para outro. Do lado exposto aos gerais do sueste, a atmosfera é húmida, e cobrem o solo florestas magníficas.
Do outro lado estendem-se imensas savanas, próprias para cultura. Observa-se, todavia, que certas árvores começam a definhar-se, entre outras o sândalo, quase inteiramente esbotado, e também o dakua, esse pinheiro especial das Fiji.
Contudo, nos seus passeios, verifica o quarteto que a flora da ilha é de uma exuberância tropical. Por toda a parte, florestas de coqueiros e de palmeiras, com os troncos colgados de orquídeas parasitas, maciços de casuarinas, de pandanos, de acácias, de fetos arborescentes, e, nos terrenos pantanosos, um grande número desses paletúvios, cujas raízes serpeiam fora da terra. Mas a cultura do algodão e a do chá não deram os resultados que prometia este clima tão pujante. Na realidade, o solo de Viti-Levu, o que é comum neste grupo, argiloso e de cor amarelada, é formado apenas de cinzas vulcânicas, às quais a decomposição deu faculdades produtivas.
Quanto à fauna, não é mais variada do que nas diversas paragens do Pacífico: umas quarenta espécies de aves, periquitos e canários aclimados, alguns morcegos, ratos que formam legiões, répteis de espécie não peçonhenta, muito apreciados pelos indígenas no ponto de vista comestível, lagartos que é uma coisa por demais, e baratas repugnantes, de uma voracidade de canibais. Mas, a respeito de feras, não se encontram, o que provoca este gracejo de Pinchinat:
— O nosso governador Cyrus Bikerstaff devia ter conservado alguns casais de leões, de tigres, de panteras, de crocodilos, para abastecer as Fiji de carnívoros... Não era mais do que uma restituição, visto que estas ilhas pertencem à Inglaterra.
Estes indígenas, mescla das raças polinésia e melanésia, apresentam ainda belos tipos, menos notáveis, contudo, do que nas Samoa e nas Marquesas. Os homens, de tez acobreada, quase negros, com a cabeça coberta de uma trunfa encarapinhada, entre os quais se encontram numerosos mestiços, são altos e vigorosos. O seu vestuário é bastante rudimentar, as mais das vezes uma simples tanga, ou uma cobertura, feita de fazenda indígena denominada o masi, extraída de uma espécie de amoreira, que produz também o papel. No primeiro grau de fabrico, esta fazenda é de uma brancura perfeita; mas os Fijianos sabem tingi-la, matizá-la, e em todos os arquipélagos do Pacífico Oriental a procuram. Convém acrescentar que estes homens não se dignam vestir, uma que outra vez, fatiota velha de europeus, saída dos adelos do Reino Unido ou da Alemanha. É assunto de troça para um parisiense o ver esses fijianos envergando umas calças deformadas, um sobretudo arqueológico e até uma casaca preta, a qual, depois de várias fases de decadência, veio a acabar nas costas de um natural de Viti-Levu.
— Com uma dessas casacas fazia-se um romance! — observa Yvernés.
Pinchinat acrescentou:
— Um romance que se arriscava a acabar em jaqueta! Quanto às mulheres, é a saia e o casabeque de masi o
que as veste de uma forma mais ou menos decente, a despeito dos sermões wesleyanos. São airosas e, com o atractivo da juventude, algumas podem passar por bonitas. Mas que detestável hábito o delas, e dos homens também, o de besuntarem de cal a trunfa negra, que se transforma numa espécie de chapéu calcário, o qual tem por fim preservar das insolações! E, depois, elas fumam, tanto como os maridos e os irmãos, esse tabaco da terra, que tem um cheiro a feno queimado, e, quando o cigarro não é triturado entre os dentes, enfiam-no no lóbulo das orelhas, no sítio onde geralmente na Europa se vêem brincos de diamantes e de pérolas.
Em geral, essas mulheres estão reduzidas à condição de escravas encarregadas dos mais árduos trabalhos caseiros, e não vai longe o tempo em que, depois de se terem esfalfado para manter a indolência do marido, eram estranguladas sobre o túmulo dele.
Repetidas vezes, durante os três dias que consagraram às suas excursões em torno de Suva, os nossos turistas tentaram visitar algumas choças indígenas. Foram repelidos, não por falta de hospitalidade dos proprietários, mas pelo fedor abominável que delas provém. Todos esses indígenas untados de óleo de coco, a promiscuidade deles com os porcos, as galinhas, os cães, nessas nauseabundas palhoças, a iluminação sufocante obtida pela combustão da goma resinosa do dammana... nada! Não havia meio de se suportar! E, além disso, depois de penetrar no lar fijiano não seria forçoso, sob pena de faltar às conveniências, aceitar o convite de molhar os lábios na taça de kava, o licor fijiano por excelência? Apesar de inaceitável para paladares europeus esse kava mordente, extraído da raiz seca da pimenteira, acresce ainda a maneira como é preparado.
Não é para excitar a mais invencível das repugnâncias? Essa pimenta não é moída, é mastigada, triturada entre os dentes, depois cuspida para a água de uma vasilha e oferecida às pessoas com uma insistência selvagem, que não permite a recusa. E não há remédio senão agradecer, pronunciando as palavras que têm curso no arquipélago: uE mana ndinan, que é como quem diz ámen.
Só para memória falamos das baratas que enxameiam no interior das palhoças, das formigas-brancas que as devastam, e dos mosquitos — mosquitos aos milhões — , dos quais se vêem falanges numeráveis a correr pelas paredes, pelo chão, pelo fato dos indígenas.
Não é pois de espantar que Sua Alteza, com esse sotaque cómico britânico dos clows ingleses, tenha exclamado ao ver as nuvens destes formidáveis insectos:
— Miuskit! Miuskit!
Enfim, nem ele nem os companheiros tiveram a coragem de penetrar nas choças fijianas. Por isso, nessa parte, ficam incompletos os seus estudos etnológicos, e até o sábio Frascolin recuou, o que constitui uma lacuna nas suas recordações de viagem.
UM aCASUS BELLI
Entretanto, ao passo que os nossos artistas se fartam de dar passeios e de colher observações sobre os costumes do arquipélago, alguns notáveis de Standard-Island não puseram dúvida em entabular relações com as autoridades indígenas da ilha.
Os papalangis — é assim que se chama aos estrangeiros nestas ilhas — não tinham que recear ser mal recebidos.
Quanto às autoridades europeias, essas são representadas por um governador-geral, que é ao mesmo tempo cônsul da Inglaterra para estes grupos de Oeste, que mais ou menos eficazmente estão sujeitos ao protectorado do Reino Unido.
Cyrus Bikerstaff não julgou conveniente fazer-lhe visita oficial. Por duas ou três vezes se entreolharam aqueles dois molossos de gesso, mas as suas relações não passaram dos olhares.
Pelo que respeita ao cônsul da Alemanha, que é ao mesmo tempo um dos principais negociantes da terra, as relações limitaram-se a uma troca de bilhetes.
Durante a demora na ilha, as famílias Tankerdon e Coverley tinham organizado excursões aos arredores de Suva e pelas florestas que eriçam os seus altos até às derradeiras cumeadas.
E, a propósito disto, Calistus faz aos seus amigos do quarteto uma observação muito justa.
— Se os nossos milliardenses se mostram tão gulosos por estes passeios em altitudes elevadas — diz ele — , o motivo é por não ser suficientemente acidentada a nossa Standard-Island... É chã de mais, demasiado uniforme. Mas espero que qualquer dia se fabrique um monte artificial, que possa rivalizar com os mais altos cumes do Pacífico. Entretanto, todas as vezes que se lhes depara o ensejo, os nossos cidadãos apressam-se a ir respirar, a alguns centos de pés, o ar puro e vivificante do espaço... É a satisfação de uma necessidade da natureza humana.
— Muito bem — aprova Pinchinat. — Mas um conselho, meu caro Eucalistus! Quando vocês construírem esse monte de chapas de aço ou de alumínio, não se esqueçam de lhe meter nas entranhas um bonito vulcão... um vulcão com cápsulas fulminantes e fogos de artifício.
— E porque não, senhor trocista? — responde Calistus Munbar.
— É exactamente o que estou perguntando a mim mesmo: Porque não? — replica Sua Alteza.
É evidente que Walter Tankerdon e Miss Dy Coverley tomam parte nestas excursões, e sempre de braço dado.
Não ficou esquecida a visita, em Viti-Levu, das curiosidades da sua capital, esses mburé-kalu, os templos dos seus espíritos, e também o local destinado às suas assembleias políticas.
Estas construções, erectas numa base de pedras secas, compõem-se de bambus entrelaçados, de vigas cobertas por uma espécie de passamanaria vegetal, de ripas engenhosamente dispostas para suportarem os colmos do telhado. Os turistas percorrem também o hospital, estabelecido em excelentes condições de higiene, e o jardim botânico, em anfiteatro por detrás da cidade. Estes passeios prolongam-se diferentes vezes até à noite, e então faz-se o regresso de lanterna na mão, como nos belos tempos de outrora. Nas ilhas Fiji, a edilidade ainda não chegou ao gasómetro nem aos bicos Auer, nem às lâmpadas de arco, nem ao gás acetilene, mas lá há-de chegar, «sob o protectorado esclarecido da Grã-Bretanha!)) — insinua Calistus Munbar.
E o capitão Sarol, mais os seus malaios, mais os neo-hebridianos embarcados nas Samoa, que fazem durante esta escala? Nada que esteja em desacordo com a sua existência habitual. Não põem pé em terra, visto conhecerem Viti-Levu e as ilhas próximas, uns por as terem frequentado na sua navegação de cabotagem, outros por terem nelas trabalhado por conta dos plantadores. Preferem deixar-se ficar em Standard-Island, que exploram sem descanso, não se fartando de visitar os portos, o parque, os campos, as baterias da Popa e do Esporão. Daí a poucas semanas, graças à complacência da Companhia, graças ao governador Cyrus Bikerstaff, essa honrada gente desembarcará na sua terra, após uma demora de cinco meses na ilha de hélice...
Às vezes os nossos artistas conversam com Sarol, que é muito inteligente, e fala correctamente a língua inglesa. Sarol fala-lhes com entusiasmo das Novas Hébridas, dos indígenas deste grupo, do seu sistema de alimentação, da sua cozinha — o que interessa particularmente Sua Alteza. A ambição secreta de Pinchinat seria descobrir lá uma iguaria nova, cuja receita comunicaria às sociedades gastronómicas da velha Europa.
A 30 de Janeiro, Sebastião Zorn e os colegas, à disposição dos quais o governador pôs uma das lanchas eléctricas de Tribord-Harbour, partem no propósito de subir o curso do Rewa, um dos principais rios da ilha. O patrão da lancha, um maquinista e dois marinheiros embarcaram com um piloto fijiano. Foi debalde que convidaram Atanásio Dorémus a acompanhar os excursionistas. Extinguiu-se o sentimento da curiosidade no professor de prendas de sala... E depois, durante a sua a usência, podia chegar-lhe algum discípulo, e por isso prefere não sair da sala de dança do Casino.
Logo às seis horas da manhã, a embarcação, bem armada, municiada com provisões, porque só à noite deve regressar a Tribord-Harbour, sai da baía de Suva e costeia o litoral até à baía do Rewa.
Mostram-se em grande número, nestas paragens, não só os escolhos, mas também os tubarões, e tanto de uns como de outros convém acautelarem-se.
— Puf! — observa Pinchinat. — Os tais tubarões nem sequer já são canibais de água salgada! Os missionários ingleses são capazes de os terem convertido ao cristianismo, como converteram os Fijianos! Uma aposta em como estes bicharocos já perderam o gosto pela carne humana...
— Não se fie nessa — responde o piloto — , assim como é bom não se fiar muito nos fijianos do interior.
Pinchinat apenas encolhe os ombros. Lérias, os tais antropófagos, que nem sequer já «antropofagam» nos dias de festa!
Quanto ao piloto, esse conhece a palmos a baía e o curso do Rewa. Neste rio importante, também denominado Wai-Levu, a maré sente-se a uma distância de quarenta e cinco quilómetros e os barcos podem subir até oitenta.
A largura do Rewa excede cem toesas na embocadura. Corre entre margens arenosas, baixas à esquerda, escarpadas à direita, onde sobressaem vigorosamente, sobre um amplo fundo de verdura, as bananeiras e os coqueiros. O seu nome é Rewa-Rewa, conforme a duplicação do vocábulo, que é quase geral nas populações do Pacífico. E, como observa Yvernés, não é essa uma imitação da pronúncia infantil, como se encontra nas palavras, papá, mamã, totó, bebé, titi, etc? E, de facto, esses indígenas mal saíram ainda da infância!
O verdadeiro Rewa é formado pela confluência do Wai-Levu (água grande) e do Wai-Manu, e a sua principal embocadura é designada pelo nome de Wai-Ni-Ki.
Passada a curva do delta, a lança segue por diante da aldeia de Kamba, meio oculta no seu açafate de flores. Não param ali, a fim de não perder a corrente da preia-mar, nem na aldeia de Naitasari. Demais a mais, nesta época, esta aldeia acabava de ser declarada tabu, com casas, árvores, habitantes, e até as águas do Rewa que lhe banham a praia. Os indígenas a ninguém teriam permitido que lá pusesse os pés. É um costume, senão muito respeitável, pelo menos muito respeitado, este do tabu — Sebastião Zorn já tinha vislumbres disso — , e portanto respeitaram-no.
Quando os excursionistas passam por Naitasari, o piloto convida-os a olharem para uma árvore bastante alta, uma tavala, que se ergue num ângulo da margem.
— E que tem esta árvore de notável? — pergunta Fras-colin.
— Nada — respondeu o piloto — , a não ser o ter a casca sulcada de incisões, desde as raízes até o nascer dos ramos. Ora, estas incisões indicam o número dos corpos humanos que foram cozidos neste sítio, comidos depois...
— Como quem diz, os entalhes que os padeiros fazem nos pães — observa Pinchinat, encolhendo os ombros em sinal de incredulidade.
Mas não tem razão. As ilhas Fiji foram por excelência a terra do canibalismo, e cumpre insistir que essas práticas não se extinguiram de todo. A gula há-de conservá-las ainda muito tempo nas tribos do interior. A gula, sim!, porque, no dizer dos Fijianos, não há nada comparável, no gosto e na delicadeza, à carne humana, muito superior à do boi. A dar-se crédito ao piloto, houve um certo chefe, Ra Undrenudu, que mandava erigir pedras nos seus domínios, e, quando morreu, o número delas elevava-se a oitocentas e vinte e duas.
— E sabem o que indicavam essas pedras?
— É-nos impossível adivinhar — responde Yvernés — , mesmo que apliquemos ao problema toda a nossa inteligência de instrumentistas.
— Pois indicavam o número de corpos humanos que esse chefe tinha devorado!
— Ele só?
— Ele só!
— Que tremendo comilão! — contenta-se em responder Pinchinat, que tem já opinião feita sobre estas «patranhas fijianas».
Por volta das onze horas, ressoa um sino na margem direita. A aldeia de Naililii, composta de algumas palhoças, aparece entre a folhagem, à sombra dos coqueiros e das bananeiras.
Na aldeia está estabelecida uma Missão católica. Não poderiam os turistas demorar-se uma hora, o tempo preciso para apertarem a mão do missionário, que é seu compatriota?
O piloto não vê nisso nenhum inconveniente, e amarra-se a embarcação a um tronco.
Sebastião Zorn e os colegas desembarcam e, antes de dois minutos andados, encontram o superior da Missão.
É um homem dos seus cinquenta anos, de fisionomia simpática, de rosto enérgico. Contentíssimo por poder cumprimentar uns franceses, condu-los à sua choupana, no meio da aldeia, que encerra um centro de fijianos. Insiste para que os seus hóspedes aceitem alguns refrescos da terra. Não há que recear, não se trata do repugnante kava, mas de uma espécie de beberagem, ou antes, caldo de menos mau paladar, obtido pela cozedura das cyreae, conchas muito abundantes nas praias do Rewa.
Este missionário dedicou-se de alma e coração à propaganda do catolicismo, não sem grandes dificuldades, por se ver forçado a lutar com um pastor wesleyano, que lhe faz uma concorrência séria na vizinhança. Em suma, está satisfeitíssimo com os resultados obtidos, e concorda em que tem muito que fazer para arrancar os seus fiéis ao amor do bukalo, isto é, da carne humana.
— E visto que vão subir para o interior, meus caros hóspedes — acrescenta ele — , tenham prudência e acautelem-se.
— Ouves, Pinchinat! — diz Sebastião Zorn.
Partem dali, pouco antes de tocar à oração do meio-dia no campanário da igrejita. Pelo caminho, a embarcação cruza-se com algumas pirogas de balanceiros, levando nas plataformas cargas de bananas. É a moeda corrente que o recebedor do fisco acaba de cobrar aos administrados. As margens continuam a ser orladas de loureiros, de acácias, de limoeiros, de cactos com flores de um vermelho-sanguíneo. Por cima, as bananeiras e os coqueiros erguem as altas ramadas carregadas de cachos, e toda esta verdura se prolonga até aos planos inferiores das montanhas, dominadas pelo pico de Mbugge-Levu.
Entre estes maciços avultam uma ou duas fábricas à europeia, pouco em relação com a natureza selvática da terra. São manufacturas de açúcar, munidas de todos os engenhos de mecânica moderna, e cujos produtos, como disse um viajante, o Sr. Verschnur, «podem sustentar vantajosamente o confronto com os açúcares das Antilhas e das outras colónias».
Cerca de uma hora depois, chega a lancha ao termo da sua viagem pelo Rewa. Daí a duas horas começa a vazante, e convém aproveitá-la para descer o rio. Esta navegação de regresso efectuar-se-á em pouco tempo, visto que a corrente é impetuosa. Os excursionistas devem estar de volta a Tribord-Harbour antes das dez horas da noite.
Há, pois, um certo tempo de paragem neste sítio; e não há melhor forma de o empregar do que visitando a aldeia de Tampoo, cujas primeiras choupanas se descortinam a meia milha de distância. Combinou-se que o maquinista e os dois marinheiros ficassem a guardar a lancha, enquanto o piloto trata de guiar os seus passageiros até à aldeia, onde se conservaram os antigos costumes na sua pureza fijiana. Nesta parte da ilha, os missionários têm perdido trabalho e sermões. Ainda ali reinam os feiticeiros; ali funcionam as feitiçarias, sobretudo as que têm o nome complicado de Vaka-Ndrau-ni-Kan-Tacka, isto é, o esconjuro praticado pelas folhas. Adoram-se ali os Katoavus, deuses cuja existência não teve começo, nem terá fim, e que não dispensam sacrifícios especiais, que o governador-geral é sobretudo impotente para prevenir e até para castigar.
Talvez que fosse mais prudente não se aventurarem pelo meio destas tribos suspeitas. Mas os nossos artistas, curiosos como parisienses, insistem tanto que o piloto consente em acompanhá-los, recomendando-lhes que se não afastem uns dos outros.
Ao princípio, à entrada de Tampoo, formado de um cento de palhoças, encontram-se mulheres, verdadeiras selvagens. Vestidas com uma simples tanga, atada em volta dos rins, não mostram espanto nenhum à vista dos estrangeiros que vêm perturbá-las nos seus trabalhos. Estas visitas não têm o condão de as incomodar desde que o arquipélago está submetido ao protectorado da Inglaterra.
Estas mulheres ocupam-se no preparo do curcuma, espécie de raízes conservadas em covas previamente alcatifadas de ervas e de folhas de bananeira; tiram-nas dali, grelham-nas, raspam-nas, primem-nas em cestos guarnecidos de fetos, e o suco que delas se extrai introduz-se em hastes de bambu. Este suco serve a um tempo de alimento e de pomada, e, por este duplo motivo, o seu uso é vul-garíssimo.
O pequeno grupo entra na aldeia. Nem sinal de acolhimento da parte dos indígenas, que nem tratam de cumprimentar os visitantes nem de lhes oferecer a hospitalidade. Também, o aspecto exterior das choupanas nada tem de atraente. Em vista do aroma que delas se exala, no qual domina o fartum rançoso do óleo de coco, o quarteto felicita-se por não estarem aqui em grande voga as leis da hospitalidade.
Todavia, ao chegarem defronte da habitação do chefe, este —- um fijiano de estatura elevada, de ar bravio, de fisionomia feroz — adianta-se para eles no meio de um cortejo de indígenas. Tem a carapinha caiada. Envergou o traje de cerimónia, uma camisa de riscado, uma cinta, o pé esquerdo calçado de uma chinela velha de tapete, e — como é que Pinchinat conseguiu não desatar às gargalhadas? — uma antiga cas aca azul de botões dourados, em vários sítios, cujas abas desiguais lhe batem de encontro às barrigas das pernas.
Ora dá-se o caso que, ao adiantar-se para o grupo dos papalangis, este chefe tropeça num tronco, perde o equilíbrio, e ferra consigo no meio do chão.
Imediatamente, em conformidade com a etiqueta do bale muri, todo o séquito tropeça por sua vez e trata de se estatelar respeitosamente, a fim de tomar o seu quinhão no ridículo da queda.
Isto é explicado pelo piloto, e Pinchinat aprova esta formalidade, que não é mais ridícula do que tantas outras usadas nas cortes europeias — pelo menos na opinião dele.
Entretanto, quando todos se levantam, o chefe e o piloto trocam algumas frases em língua fijiana, das quais o quarteto não percebe palavra. Estas frases, traduzidas pelo piloto, não têm outro fito mais do que interrogar os forasteiros sobre o que vêm fazer à aldeia de Tampoo.
Respondido que desejam simplesmente visitar a aldeia e fazer uma excursão pelos arredores, outorga-se esta autorização depois de uma troca de perguntas e respostas.
O chefe, em todo o caso, não manifesta nem prazer nem contrariedade com esta chegada de turistas a Tampoo, e, a um sinal que ele fez, os indígenas recolhem-se às suas palhoças.
— Afinal de contas, eles nem por isso têm cara de muito maus! — observa Pinchinat.
— Isso não é razão para que cometamos qualquer imprudência! — adverte Frascolin.
Durante uma hora, os artistas passeiam pela aldeia sem serem incomodados pelos indígenas. O chefe da casaca azul meteu-se na sua cabana, e notaram-se no acolhimento dos naturais sinais da mais profunda indiferença.
Depois de circularem pelas ruas de Tampoo, sem que nenhuma palhoça se tenha aberto para os receber, Sebastião Zorn, Yvernés, Pinchinat, Frascolin e o piloto dirigem-se para umas ruínas de templos, espécie de casebres abandonados, situadas perto de uma casa que serve de morada a um dos feiticeiros do sítio.
Este feiticeiro, pespegado à porta, dirige-lhes um olhar pouco animador, e os seus gestos parecem indicar que lhes deita algum mau quebranto.
Frascolin tenta entabular conversação com ele por intermédio do piloto. O feiticeiro assume então uma carranca tão desagradável que é forçoso perder qualquer esperança de arrancar uma palavra a este porco-espinho das Fiji.
Durante este tempo, e a despeito das recomendações que lhe fizeram, Pinchinat afastou-se, transpondo uma mata espessa de bananeiras estendidas pela falda de uma colina.
Quando Sebastião Zorn, Yvernés e Frascolin, repelidos pelos maus modos do feiticeiro, se aprestam a sair de Tampoo, não vêem o colega.
Entretanto são horas de embarcar. Não tarda a vazante, e não é demais a sua duração de algumas horas para descer o curso do Rewa.
Frascolin, inquieto por não ver Pinchinat, chama por ele em altos gritos.
Mas fica sem resposta.
— Onde pára ele? — pergunta Sebastião Zorn.
— Eu sei lá... — responde Yvernés.
— Algum dos senhores viu o vosso amigo afastar-se? — interroga o piloto.
Ninguém o viu.
— Provavelmente voltou para a lancha pelo atalho da aldeia... — lembra Frascolin.
— Pois fez muito mal — responde o piloto. — Mas nada de perder tempo, e vamos ter com ele.
Partem, mas com bastante ansiedade. Este Pinchinat há-de sempre fazer das suas. Isto de ter por imaginárias as ferocidades destes indígenas, tão obstinados na sua selvajaria, pode expô-lo a perigos deveras reais.
Ao atravessarem Tampoo, o piloto nota, com certa apreensão, que não aparece nem um fijiano. Estão fechadas todas as portas das palhoças. Já não há aglomerações de gente diante da choupana do chefe. Sumiram-se as mulheres que estavam tratando de preparar o curcuma. Parece que a aldeia foi abandonada há uma hora.
O grupo estuga o passo. Por várias vezes chamam o ausente e o ausente não responde. Não teria ele chegado ao local da margem em que está amarrada a embarcação? Ou dar-se-á o caso que esta já não esteja no mesmo sítio, à guarda do maquinista e dos dois marinheiros?
Ainda lhes falta percorrer uns cem passos. Apressam-se, e, logo que transpõem as últimas árvores, divisam a lancha e os três homens no seu posto.
— O nosso companheiro? — grita Frascolin.
— Não está junto com os senhores? — interroga o maquinista.
— Não... há meia hora...
— Não veio aqui ter? — pergunta Yvernés.
— Não.
Que é feito do imprudente? O piloto não disfarça a sua extrema inquietação.
— Temos de voltar à aldeia — diz Sebastião Zorn. — Não podemos abandonar Pinchinat.
Deixa-se a lancha à guarda de um dos marinheiros, embora talvez seja perigoso o fazê-lo. Mas mais vale não voltarem a Tampoo senão com força e bem armados, desta feita. Ainda que seja forçoso fazer pesquisas em todas as palhoças, não sairão da aldeia, não regressarão a Standard-Island sem encontrarem Pinchinat.
Encaminharam-se novamente para Tampoo. A mesma solidão na aldeia e pelos arredores. Onde é que Se refugiou toda esta população? Não se ouve nas ruas o mínimo rumor e as palhoças estão vazias de gente.
Desgraçadamente, não há que conservar dúvidas... Pinchinat aventurou-se pelo bosque de bananeiras... foi apanhado... foi arrastado... para onde? Quanto à sorte que lhe reservam esses canibais de que ele zombava, não há dificuldades em a imaginar! Pesquisas pelos arredores de Tampoo não produziriam nenhum resultado. Como é que se há-de encontrar uma pista pelo meio dessa região florestal, através desse matagal que só os fijianos conhecem? Além disso, não é de recear que eles queiram apoderar-se da embarcação, guardada por um marinheiro apenas? Se tal desgraça acontece, perder-se-ia toda a esperança de libertar Pinchinat e comprometer-se-ia a salvação dos companheiros.
É impossível exprimir o desespero de Frascolin, de Yvernés, de Sebastião Zorn. Que se há-de fazer? O piloto e o maquinista não sabem por que expediente se resolvam.
Frascolin, que conservou o sangue-frio, diz então:
— Voltemos a Standard-Island...
— Sem o nosso companheiro? — diz Yvernés.
— Que ideia!- — acrescenta Sebastião Zorn.
— Não vejo outro partido a tomar — insiste Frascolin. — É preciso prevenir o governador de Standard-Island... que se avisem as autoridades de Viti-Levu e que lhes exija uma acção imediata.
— Sim! Partamos — aconselha o piloto — , e para aproveitar a vazante não temos um minuto a perder!
— É o único meio de salvar Pinchinat — exclama Frascolin — , se é que já não é tarde!
O único meio, com efeito.
Saem de Tampoo, cheios de apreensões de já não encontrarem a lancha no seu posto. Debalde todas as bocas gritam o nome de Pinchinat! E, se estivessem menos perturbados, talvez que o piloto e os seus companheiros pudessem lobrigar por detrás das moitas alguns desses ferozes fijianos, à espreita da sua partida.
A embarcação não foi inquietada. O marinheiro não viu ninguém rondar pelas margens do Rewa.
É com um aperto inexprimível que Sebastião Zorn, Frascolin e Yvernés se decidem a tomar lugar na lancha. Hesitam... Chamam ainda... Mas é forçoso partir, disse Frascolin, e tem razão em o dizer, e eles têm razão em lhe seguir o conselho.
O maquinista põe os dínamos em actividade, e a lancha, impelida pela corrente, desce o curso do Rewa com uma rapidez prodigiosa.
Às seis horas, dobra-se a ponta oeste do delta. Daí a meia hora, atraca-se ao pier de Tribord-Harbour.
Dentro de um quarto de hora, Frascolin e os dois colegas, transportados pelo tramway, chegam a Milliard-City, e dirigem-se para o palácio municipal.
Apenas informado do caso, Cyrus Bikerstaff transporta-se a Suva, onde pede ao governador-geral do arquipélago uma entrevista, que lhe é concedida.
Quando este representante da rainha sabe o que se passou em Tampoo, não dissimula que o facto é gravíssimo. Esse francês nas mãos de uma das tribos do interior, que se furtam a qualquer autoridade.
— Por desgraça, nada podemos tentar antes de amanhã — acrescenta ele. — Contra o refluxo do Rewa, as nossas lanchas não poderiam subir até Tampoo. Demais a mais, é indispensável ir com força numerosa, e o mais seguro seria atravessar o matagal...
— De acordo — responde Cyrus Bikerstaff — ; mas não é amanhã, é hoje, é já que se deve partir...
— Não tenho à minha disposição os homens necessários — volve o governador.
— Temo-los nós — replica Cyrus Bikerstaff. — Trate o senhor governador de lhes juntar os soldados da sua milícia, e às ordens de um dos seus oficiais que conheça bem a terra.
— Perdão — -responde secamente Sua Excelência — , não tenho por costume...
— -Perdão, direi eu também — replica Cyrus Bikerstaff — , mas previno-o de que, se não tomar desde já qualquer deliberação, se nos não for restituído o nosso amigo, o nosso hóspede, recairá a responsabilidade sobre Vossa Excelência, e...
— E...? — pergunta o governador com expressão de altivez.
— As baterias de Standard-Island arrasarão totalmente Suva, a sua capital, todas as propriedades estrangeiras, quer sejam inglesas quer alemãs!
O ultimato é formal e não há remédio senão submeter-se. Os poucos canhões da ilha não seriam capazes de lutar contra a artilharia de Standard-Island. O governador submete-se, pois, e é força confessar que mais valera fazê-lo desde logo de melhor grado, em nome da humanidade.
Daí a meia hora desembarcam em Suva cem homens, marinheiros e milicianos, às ordens do comodoro Sim-coé, que quis dirigir pessoalmente a operação. Ao seu lado estão o superintendente, Sebastião Zorn, Yvernés e Frascolin. Presta-lhes auxílio um piquete de gendarmaria de Viti-Levu.
A expedição mete-se logo pelo matagal, contornando a baía do Rewa, sob a direcção do piloto, que conhece estas difíceis regiões do interior. Cortam pelo caminho mais curto, a passo rápido, a fim de chegarem a Tampoo no menor espaço de tempo possível.
Não foi necessário ir até à aldeia. Por volta da uma hora da noite, dá-se ordem à coluna para fazer alto.
Na parte mais densa de uma mata quase impenetrável distinguiu-se o brilho de uma fogueira. Sem dúvida que há ali um ajuntamento dos naturais de Tampoo, visto que a aldeia fica a menos de meia hora de caminho para leste.
O comodoro Simcoè, o piloto, Calistus Munbar, os três parisienses adiantam-se...
Ainda não deram cem passos, quando estacam e permanecem imóveis...
Defronte de uma grande fogueira, cercado por uma multidão tumultuosa de homens e de mulheres, Pinchinat, seminu, está amarrado a uma árvore... e o chefe fijiano corre para ele de machado erguido...
— Avante! Avante! — grita o comodoro Simcoè aos marinheiros e milicianos.
Surpresa repentina e terror justificadíssimo dos indígenas, para os quais o destacamento não é avaro nem de tiros nem de coronhadas. Num abrir e fechar de olhos, está a clareira limpa, e toda a malta dispersa pelo bosque...
Pinchinat, desamarrado da árvore, cai nos braços do seu amigo Frascolin.
Como expressar a alegria destes artistas, destes irmãos, na qual se mesclam algumas lágrimas e também algumas censuras bem merecidas?
— Mas, ó desgraçado — diz o violoncelista — , que ideia foi essa de te afastares?
— Desgraçado, muito embora, meu velho Sebastião — responde Pinchinat — , mas não estejas a ralar um pobre violeta tão insuficientemente vestido como eu estou neste momento... Passem para cá o meu fato, para eu poder apresentar-me de forma mais correcta às autoridades!
Encontra-se o fato ao pé de uma árvore, e ele reveste-o, conservando sempre o máximo sangue-frio. Depois, só quando se considera «apresentável», é que vem apertar a mão do comodoro Simcoè e do superintendente.
— Então — diz-lhe Calistus Munbar — , e agora acredita... no canibalismo dos Fijianos?
— Não são tão canibais como tudo isso, os perros — responde Sua Alteza — , visto que me não falta nem um pedaço de corpo!
— Sempre o mesmo, raio do trocista! — exclama Frascolin.
— E sabem vocês o que me humilhava mais
nessa situação de caça humana, a pique de ser espetado na brocha? — pergunta Pinchinat.
— Enforcado eu seja, se adivinho! — replicou Yvernés.
— Pois bem! Não era o servir de ceia a esses indígenas! Isso sim! Era ter de ser devorado por um selvagem de casaca... de casaca azul e botões amarelos... com um guarda-chuva debaixo do braço... um medonho embrião de inglês!
MUDANÇA DE PROPRIETÁRIOS
A partida de Standard-Island está fixada para 2 de Fevereiro. Na véspera, acabadas as suas excursões, os diversos turistas recolheram a Milliard-City. O caso Pinchinat fez um barulho enorme. Toda a Jóia do Pacífico teria tomado a peito a causa de Sua Alteza, tamanha é a simpatia universal de que goza o Quarteto Concertante. O Conselho dos Notáveis deu plena aprovação ao enérgico procedimento do governador Cyrus Bikerstaff. Os jornais felicitaram-no calorosamente. Por isso Pinchinat se tornou o homem da moda. Imaginem um violetista terminando a carreira artística no estômago de um fijiano! Ele não tem dúvida em concordar que os indígenas de Viti-Levu não renunciaram de todo aos seus gostos antropófagos. Afinal de contas, é tão saborosa a carne humana, no dizer deles, e aquele diacho do Pinchinat é tão apetecível!
Standard-Island parte logo de madrugada, e solta o rumo para as Novas Hébridas. Este desvio vai afastá-la assim uns dez graus, ou duzentas léguas para oeste. Não há meio de o evitar, visto ser preciso desembarcar o capitão Sarol e os seus companheiros nas Novas Hébridas. Em todo o caso, não há razão para o lamentar. Todos estimam prestar serviço a essa honrada gente — que tamanha coragem mostrou na luta contra as feras. E depois eles parecem tão satisfeitos por serem repatriados nestas condições, depois de uma ausência tão prolongada!
Além disso, aproveita-se o ensejo de visitar este grupo, que os Milliardenses ainda não conhecem.
Efectua-se a navegação com uma pachorra calculada. Com efeito, é nas paragens compreendidas entre Fiji e as Novas Hébridas, por cento e setenta graus e trinta e cinco minutos de longitude leste e por dezanove graus e treze minutos de longitude sul que o vapor, expedido de Marselha por conta das famílias Tankerdon e Cover-ley, deve encontrar-se com Standard-Island.
Inútil é dizer que o casamento de Walter e de Miss Dy é mais do que nunca objecto das preocupações universais.
É lá possível pensar-se noutra coisa! Calistus Munbar não tem um minuto de seu. Prepara, combina os diversos elementos de uma festa que há-de ficar marcada nos fastos da ilha de hélice. Se emagrecesse com a azáfama, não era caso de espantar ninguém.
Standard-Island não anda mais de vinte a vinte e cinco quilómetros em vinte e quatro horas. Adianta-se até chegar à vista de Viti, cujo soberbo litoral é orlado de florestas luxuriantes de um verde sombrio. Levam-se três dias a percorrer estas águas tranquilas, desde a ilha Wanara até à ilha Redonda. O canal, que as cartas designam com este último nome, oferece larga estrada à Jóia do Pacífico, que nele penetra vagarosamente. Uma grande quantidade de baleias, assarapantadas e apavoradas, batem com a cabeça de encontro ao casco de aço, que estremece com as pancadas. Não há que recear; as chapas dos compartimentos são rijas, e não há perigo de avarias.
Enfim, na tarde do dia 6, desaparecem no horizonte as derradeiras cumeadas das Fiji. Neste momento, o comodoro Simcoe abandona o domínio polinésio pelo domínio melanésio do oceano Pacífico.
Durante os três dias seguintes, continua Standard-Island a descair para oeste, depois de ter atingido o paralelo dos dezanove graus. A 10 de Fevereiro, acha-se nas paragens onde deve encontrá-la o vapor que se espera da Europa.
O ponto, reproduzido nos cartazes de Milliard-City, é conhecido por todos os habitantes. Estão alerta as vigias do Observatório. Perscruta-se o horizonte com centos de óculos, e apenas se der vista do navio... Toda a população está à espera... Não é como que o prólogo dessa peça tão reclamada pelo público, que terá por desfecho o casamento de Walter Tankerdon e de Miss Dy Coverley?
Standard-Island não tem nada a fazer senão permanecer estacionária, manter-se contra as correntes destes mares apertados entre os arquipélagos. O comodoro Sim-coé dá as suas ordens nesse sentido, e os seus oficiais vigiam a execução delas.
— A situação é decididamente das mais interessantes! — disse nesse dia Yvernés.
Era durante as duas horas de far niente que os quatro artistas tinham por hábito tomar para seu gozo depois do almoço do meio-dia.
— Decerto que é — respondeu Frascolin — , não há razão de lastimarmos esta nossa viajata a bordo de Standard-Island... diga o que disser o nosso amigo Zorn.
— Cegarrega eterno... Cantochão fanhoso! — comenta Pinchinat.
— Sim... sobretudo quando a viagem acabar — replica o violoncelista — , e quando nós tivermos embolsado o último trimestre dos ordenados que tão bem temos ganho...
— Ora! — exclama Yvernés. — Três já a Companhia nos pagou desde que partimos, e aprovo plenamente Frascolin, o nosso precioso guarda-livros, por ter remetido esta importante quantia ao Banco de Nova Iorque!
Com efeito, o precioso guarda-livros julgou prudente arrecadar esse dinheiro, por intermédio dos banqueiros de Milliard-City, numa das casas bancárias mais sólidas da União. Não foi por desconfiança, mas unicamente porque um cofre sedentário parece oferecer mais condições de segurança do que um cofre flutuante, acima dos cinco a seis mil metros de profundidade que mede geralmente o Pacífico.
É no decurso desta cavaqueira, entre as volutas perfumadas dos charutos e dos cachimbos, que Yvernés é levado a fazer a seguinte observação:
— As festas do casamento prometem ser esplêndidas, meus amigos. O nosso superintendente não se poupa a trabalhos nem a despesas de imaginação, é já sabido. Haverá chuva de dólares, e as fontes de Milliard-City jorrarão vinhos generosos, tenho a certeza disso. No entanto, sabem vocês o que faltará a essa cerimónia?
— -Uma catarata de ouro líquido, escorrendo sobre rochas de diamante! — exclama Pinchinat.
— Qual! — responde Yvernés. — -Uma cantata...
— Uma cantata? — -replica Frascolin.
— Sem dúvida — torna Yvernés. — Há-de haver música, nós havemos de tocar os nossos trechos mais em voga, apropriados ao caso... mas se houver cantata, hino nupcial, epitalâmio em honra dos noivos...
— Porque não, Yvernés? — pergunta Frascolin. — Se tu quiseres encarregar-te de rimar coração com paixão e flores com amores numa dúzia de versos de diferentes tamanhos, Sebastião Zorn, que já deu as suas provas como compositor, certamente aproveita o ensejo que se lhe oferece de pôr em música a tua poesia...
— Excelente ideia! — brada Pinchinat. — Valeu, meu velho serrazina? Alguma coisa bem matrimonial, com muitos spiccatos, attegros, molto agitatos, e uma coda delirante... a cinco dólares por nota...
— Nada... desta vez é de graça — declara Frascolin. — É o óbolo do Quarteto Concertante a estes nababíssimos de Standard-Island.
Está decidido, e o violoncelista declara-se pronto a implorar as inspirações do deus da Música, se o deus da Poesia derramar as suas no coração de Yvernés.
E era desta nobre colaboração que ia surdir a Cantata das Cantatas, à imitação do Cântico dos Cânticos, em honra dos Tankerdon unidos aos Coverley.
Na tarde do dia 10 corre o boato de estar à vista um grande vapor, vindo do nordeste. Não se lhe pode reconhecer a nacionalidade, porque está ainda a umas dez milhas de distância, no momento em que as brumas do crepúsculo escureceram o mar.
O navio parecia vir com tiragem forçada, e não pode haver dúvida de que se dirige para Standard-Island. Segundo todas as probabilidades, só no dia seguinte, ao nascer do Sol, é que ele deve atracar.
A notícia produz um efeito indescritível. Alvoroçam-se todas as imaginações femininas ao pensarem nas maravilhas de joalharia, de costura, de modas, de objectos de arte, trazidas por esse navio transformado numa corbelha enorme de casamento... da força de seiscentos a setecentos cavalos!
Não se enganaram, e o navio destina-se com efeito a Standard-Island. Por isso, logo de manhãzinha, dobrou o quebra-mar de Tribord-Harbour, desfraldando no penol a bandeira da Standard-Island Company.
De repente, outra notícia transmitida pelos telefones a Milliard-City: a bandeira do navio está colhida.
Que aconteceu? Algum desastre... um falecimento a bordo? Deplorável agouro para esse casamento, que deve assegurar o futuro de Standard-Island.
Mas outra novidade ainda. O barco de que se trata não é o que se espera e não é da Europa que chega. É precisamente do litoral americano, da baía Madalena, que ele vem. Demais, o vapor, carregado de riquezas nupciais, não vem atrasado. A data do casamento está fixada para 27. Como se está ainda a 11 de Fevereiro, tem tempo de chegar.
Então que pretende esse navio? Que novas traz? Qual o motivo daquela bandeira colhida? Porque é que a Companhia o expediu até estas paragens das Novas Hébridas, onde tinha a certeza de encontrar Standard-Island?
Dar-se-á o caso que ela tenha que fazer aos Milliar-denses alguma comunicação urgente de uma gravidade excepcional?
Tem, e não tarda muito que se saiba.
Apenas o vapor atraca ao cais, desembarca um passageiro.
É um dos agentes superiores da Companhia, que se recusa a responder às perguntas dos numerosos e impacientes curiosos que afluíram ao pier de Tribord-Harbour.
Estava prestes a partir um tramway, e, sem perder um momento, o agente salta para um dos cars.
Dez minutos depois, chegando ao palácio municipal, pede uma audiência ao governador «para negócio urgente», audiência que imediatamente é concedida.
Cyrus Bikerstaff recebe o agente no seu gabinete, cuja porta se fecha.
Não decorre um quarto de hora quando cada um dos membros do Conselho dos trinta notáveis é prevenido telefonicamente para reunir com urgência na sala das sessões. Às oito horas menos vinte, está reunido o Conselho sob a presidência do governador, assistido dos seus dois adjuntos.
O agente fez então a declaração seguinte:
«Na data de 23 de Janeiro a Standard-Island Company Limited foi posta em estado de falência, e o Sr. William T. Pomering foi nomeado liquidador com plenos poderes para proceder da forma mais conveniente aos interesses da dita sociedade.»
O Sr. William T. Pomering, que se acha revestido destas funções, é o agente em pessoa.
Espalha-se a notícia, e a verdade é que não provoca o efeito que teria produzido na Europa. Que querem? Standard-Island é um «trecho destacado da grande partitura dos Estados Unidos da América», como diz Pinchinat. Ora, uma falência não é coisa que espante os Americanos, e ainda menos que os apanhe de improviso... Não é essa uma das fases naturais do negócio, um incidente aceitável e aceito? Os Milliardenses encaram, pois, o caso com a sua fleuma habitual...
A Companhia soçobrou... acabou-se. Isso pode acontecer às mais respeitáveis sociedades financeiras... O passivo é considerável? Muito, pelo que se conclui do balanço estabelecido pelo liquidador: quinhentos milhões de dólares, ou, por outra, dois mil e quinhentos milhões de francos.
E que deu causa a essa falência?... Especulações insensatas, se assim quiserem, visto que deram mau resultado, mas que podiam ter bom êxito... um negócio colossal para a fundação de uma cidade nova nos terrenos de Arcansas, os quais se sumiram em virtude de uma depressão geológica que nada podia fazer adivinhar... Afinal de contas, a culpa não é da Companhia, e, se os terrenos se afundam, não é de espantar que da mesma feita vão ao fundo os accionistas. Por sólida que pareça a Europa, pode muito bem suceder-lhe o mesmo qualquer dia. Com Standard-Island é que não há a temer coisa deste género, e acaso não demonstra isso a sua superioridade sobre o domínio dos continentes ou das ilhas terrestres?
O essencial é proceder. O activo da Companhia compõe-se hic et nunc do valor da ilha de hélice, casco, fábricas, palácios, casas, campo, flotilha, numa palavra, tudo o que é transportado no aparelho flutuante do engenheiro William Tersen, tudo o que a isso está ligado, e, além disso, os estabelecimentos de Madeleine-bay. Será conveniente que se funde uma nova sociedade para a comprar em bloco, por contrato amigável ou por arrematação judicial? Decerto... a tal respeito não há hesitações, e o produto da venda aplicar-se-á à liquidação das dívidas da Companhia... Mas, para fundar nova sociedade, seria porventura mister recorrer a capitais estrangeiros? Pois os Milliardenses não são ricos de sobra para entrarem na despesa de Standard-Island, apenas com os seus próprios recursos? De simples locatários, não é preferível que se tornem proprietários desta Jóia do Pacífico? Não valerá a sua administração tanto como a da Companhia que deu em pantana?
Os vastos biliões que existem nas carteiras dos membros do Conselho dos Notáveis é coisa sabida. Por isso, a opinião deles é que convém comprar Standard-Island e sem mais tardar.
Acaso o liquidador tem poderes para fazer o contrato? Tem. Demais a mais, se a Companhia tem algumas probabilidades de encontrar em breve prazo as quantias indispensáveis para a sua liquidação, é com certeza na algibeira dos notáveis de Milliard-City, alguns dos quais entram já no número dos seus principais accionistas. Agora, que acabou a rivalidade entre as duas principais famílias e as duas secções da cidade, a coisa vai num sino. Entre os anglo-saxões dos Estados Unidos os negócios não demoram. Dito e feito. Os fundos aparecem logo in continenti. Na opinião do Conselho dos Notáveis é escusado abrir-se subscrição pública. Jem Tankerdon, Nat Coverley e alguns outros oferecem muitos milhões de dólares. Não há que discutir o preço... É pegar ou largar... e o liquidador aceita.
Reunira-se o Conselho às oito horas e treze na sala do palácio municipal. Ao levantar a sessão, às nove horas e quarenta e sete, a propriedade de Standard-Island passou para as mãos dos dois «arqui-riquíssimos» milliardenses e de alguns outros amigos seus, sob a razão social Jem Tankerdon-Nat Coverley and Co.
Da mesma forma que a notícia da falência da Companhia não trouxe por assim dizer perturbação nenhuma à população da ilha de hélice, também a notícia da aquisição feita pelos principais notáveis não produziu a mínima comoção. Acha-se o caso naturalíssimo, e mesmo que fosse preciso reunir uma quantia mais confortável, o capital arranjava-se num abrir e fechar de olhos. É uma profunda satisfação para os Milliardenses o sentirem que estão em sua casa, ou, pelo menos, que já não dependem duma sociedade estrangeira. Por isso, a Jóia do Pacífico, representada por todas as suas classes, empregados, agentes, funcionários, oficiais, milicianos, mareantes, quer dirigir agradecimentos aos dois chefes de família que tão bem compreenderam o interesse geral.
Nesse dia, num meeting realizado no meio do parque, apresenta-se uma moção sobre o assunto, a qual é acolhida com uma tríplice salva de hurras e de hipes. Nomeiam-se logo os delegados, e envia-se uma deputação aos palacetes Coverley e Tankerdon.
Recebida a primor, leva a certeza de que nada mudará nos regulamentos, usos e costumes de Standard-Island. A administração fica como está. Conservar-se-ão todos os funcionários e todos os empregados.
E que outra coisa havia a fazer?
Disto resulta, pois, que o comodoro Ethel Simcoè continua encarregado dos serviços marítimos, tendo a alta direcção dos movimentos de Standard-Island, conforme os itinerários marcados no Conselho dos Notáveis. O mesmo com respeito ao comando das milícias, no qual se mantém o coronel Stewart. O mesmo quanto aos serviços do Observatório, que não são modificados, e o rei de Malecárlia não é ameaçado na sua situação de astrónomo. Enfim, ninguém é destituído do lugar que ocupa, nem nos dois portos, nem nas fábricas de energia eléctrica, nem na administração municipal. Nem sequer se exonera Atanásio Dorémus das suas inúteis funções, se bem que os discípulos se obstinem a não frequentar o curso de dança e de prendas de sala.
É escusado acrescentar que se não faz mudança nenhuma no contrato concluído com o Quarteto Concertante, o qual continuará até ao fim da viagem a receber os emolumentos inverosímeis que lhe foram atribuídos na sua escritura.
— Esta gente é extraordinária! — comenta Frascolin, ao saber que o negócio está regulado com satisfação comum.
— Isso é por terem biliões à ufa! — responde Pinchinat.
— Talvez que tivéssemos podido aproveitar esta mudança de proprietários para rescindir o nosso contrato... — -observa Sebastião Zorn, que continua a teimar nas absurdas prevenções contra Standard-Island.
— Rescindir! — exclama Sua Alteza. — Essa é boa! Experimenta se és capaz!
E com a mão esquerda, cujos dedos se abrem e fecham como se premisse a quarta corda, ameaça o violoncelista com um daqueles murros que realizam uma velocidade de oito metros e cinquenta por segundo.
Entretanto, vai efectuar-se uma modificação na situação do governador. Cyrus Bikerstaff, sendo representante directo da Standard-Island Company, julga-se no dever de resignar as suas funções. Em suma, esta resolução parece lógica no estado actual das coisas.
Por isso se aceita a demissão, mas nos termos mais honrosos para o governador. Quanto aos dois adjuntos, Bartolomeu Ruge e Hubley Harcourt, meio arruinados pela falência da Companhia, de que eram grandes accionistas, esses têm tenção de sair da ilha de hélice num dos próximos paquetes.
Todavia, Cyrus Bikerstaff aceita ficar à testa da administração municipal até ao fim da viagem.
Assim se executou sem ruído, sem discussões, sem desavenças, sem rivalidades, esta importante transformação financeira do domínio de Standard-Island. E com tanta prudência e rapidez se operou o negócio, que logo naquele dia o liquidador pôde embarcar, levando as assinaturas dos principais compradores, com a garantia do Conselho dos Notáveis.
Quanto a essa personagem, de tão prodigiosa importância, que tem o nome Calistus Munbar, superintendente das belas-artes e dos recreios da incomparável Jóia do Pacífico, essa é simplesmente confirmada nas suas atribuições, emolumentos, benefícios, e, na verdade, acaso seria possível encontrar sucessor para este homem insubstituível?
— Belo! — observa Frascolin. — Tudo vai às mil maravilhas, está garantido o futuro de Standard-Island, nada há já que temer...
— Veremos! — murmura o casmurro violoncelista.
Eis as condições em que vai agora realizar-se o casamento de Walter Tankerdon com Miss Dy Coverley. As duas famílias ficarão unidas por esses interesses pecuniários que, na América como em qualquer outra parte, formam os mais sólidos laços sociais. Que garantia de prosperidade para os cidadãos de Standard-Island! Desde que pertence aos principais milliardenses, parece que ela é mais independente do que dantes, mais senhora dos seus destinos! Outrora, ligava-a uma amarra a essa baía Madalena dos Estados Unidos; essa amarra, acaba ela de a partir!
E, agora, é pensar só na festa!
Será preciso insistir na alegria das partes interessadas, exprimir o que é inexprimível, pintar a felicidade que em volta delas irradia? Os dois noivos nunca mais se apartam. O que pareceu ser um casamento de conveniência para Walter Tankerdon e Miss Dy Coverley, é realmente um casamento de inclinação. Ambos eles se amam com um afecto no qual não entra nem partícula de interesse, podem acreditá-lo. Ambos possuem essas qualidades que devem assegurar-lhes a mais ditosa das existências. Aquele Walter é um coração de ouro, e convençam-se de que o coração de Miss Dy Coverley é feito do mesmo metal, no figurado, fica entendido, e não no sentido material, que os seus milhões autorizariam. Foram criados um para o outro e nunca esta frase, um pouco-chinho banal, teve um sentido mais estrito. Contam os dias, contam as horas que os separam dessa data ambicionada, de 27 de Fevereiro. Apenas uma coisa lhes faz pena: é que Standard-Island não se dirija para os cento e oitenta graus de longitude, porque, vindo agora de oeste, teria de cortar vinte e quatro horas no seu calendário. Adiantar-se-ia um dia a felicidade dos noivos. Não! À vista das Novas Hébridas é que deve realizar-se a cerimónia, e eles não têm remédio senão resignar-se.
Observemos, além disso, que ainda não chegou o navio, carregado de todas essas maravilhas da Europa, o «navio-corbelha».
Ora aí temos nós um luxo de coisas que os dois noivos dispensariam de bom grado; que necessidades têm eles dessas magnificências quase régias? Fazem dádiva mútua do seu amor; que mais lhes é preciso?
Mas as famílias, mas os amigos, mas a população de Standard-Island é que desejam que a cerimónia seja cercada por extraordinário esplendor. Por isso assestam-se obstinadamente os óculos para o horizonte de leste. Jem Tankerdon e Nat Coverley até prometeram um prémio avultado ao primeiro que desse sinal desse vapor, cujo propulsor não lhe dará velocidade que corresponda à impaciência geral.
Entrementes, elabora-se cuidadosamente o programa da festa. Compreende os jogos, as recepções, a dupla cerimónia no tempo protestante e na catedral católica, o sarau de gala no palácio municipal, o festival no parque.
Calistus Munbar não tem mãos a medir: tudo espreita, tudo investiga, gasta-se, prodigaliza-se, pode-se bem dizer que se arruina no ponto de vista de saúde. Que querem! Arrasta-o o temperamento: é tão difícil fazê-lo parar, como a um comboio lançado a toda a velocidade.
Quanto à cantata, está pronta. O poeta Yvernés e o músico Sebastião Zorn mostram-se dignos um do outro. A cantata será entoada por massas corais de uma sociedade orfeónica que se fundou de propósito. O efeito será magnífico, quando ela reboar no square do Observatório, iluminado elèctricamente ao cair da noite. Depois seguir-se-á a comparência dos dois esposos perante o funcionário civil, e o casamento religioso celebrar-se-á em sendo meia-noite, no meio do mágico abrasamento de Milliard-City.
Enfim, avista-se ao largo o navio esperado. É uma das vigias do Observatório quem ganha o prémio, o qual monta a um número respeitável de dólares.
São 9 horas da manhã, a 19 de Fevereiro, quando o vapor dobra o quebra-mar do porto, e dá-se logo começo à descarga.
É inútil dar a nomenclatura minuciosa dos artigos, jóias, vestidos, modas, objectos de arte, que compõem este carregamento nupcial. Basta saber-se que a exposição que deles se faz nas vastas salas do palacete Coverley alcança um êxito sem precedentes. Toda a população de Milliard-City quis desfilar diante destas maravilhas. Que um certo número de sujeitos, podres de ricos, possam conseguir estes magníficos produtos, não fazendo questão de preço, admite-se. Mas é preciso também contar com o gosto, como o sentimento artístico que presidiram à escolha, e isso é que é deveras para admirar. Demais, os estrangeiros que tenham curiosidade de conhecer a nomenclatura dos ditos artigos podem consultar os números do Starboard-Chronide e do New-Herald referentes a 21 e 22 de Fevereiro. Se não ficarem satisfeitos, é que a satisfação absoluta não é deste mundo.
— Safa! — diz simplesmente Yvernés, ao sair das salas do palácio da Décima Quinta Avenida em companhia dos seus três colegas.
— Safa!, parece-me a expressão mais acertada — observa Pinchinat. — Faz vontade de casar com Miss Dy Coverley sem dote... só por ela!
Quanto aos noivos, a verdade é que apenas concederam uma vaga atenção a esse stock de obras-primas da arte e da moda.
Entretanto, desde a chegada do vapor, Standard-Island retomou o rumo de oeste a fim de se acercar das Novas Hébridas. Se se chegar à vista de uma das ilhas do grupo antes do dia 27, o capitão Sarol desembarcará com os seus companheiros, e Standard-Island encetará a viagem de regresso.
O que vai facilitar a navegação por estas paragens do Pacífico Oeste é o serem elas muito familiares ao capitão malaio. A pedido do comodoro Simcoe, que reclamou os seus serviços, o capitão conserva-se permanentemente na torre do Observatório. Apenas surjam as primeiras alturas, nada mais fácil do que aproximarem-se da ilha Erromango, umas das mais orientais do grupo, o que permitirá evitar os numerosos escolhos das Novas Hébridas.
Ou seja por acaso, ou porque o capitão Sarol, desejoso de assistir às festas do casamento, tratou de manobrar com certa lentidão, o facto é que só se dá sinal das primeiras ilhas na manhã de 27 de Fevereiro — precisamente o dia fixado para a cerimónia nupcial.
Embora! Isso pouco importa! O casamento de Walter Tankerdon e de Miss Dy Coverley não será menos ditoso por ter sido celebrado à vista das Novas Hébridas, e, visto que tanto prazer isso parece dar a esses pobres malaios — eles não dissimulam — , deixe-se-lhes a liberdade de tomarem parte nas festas de Standard-Island.
Encontram-se primeiro algumas ilhotas ao largo, e, transpostas elas sob as indicações muito exactas do capitão Sarol, a ilha de hélice dirige-se para Erromango, deixando ao sul os montes da ilha Tanna.
Nestas paragens, Sebastião Zorn, Pinchinat, Yvernés e Frascolin não estão muito longe — a trezentas milhas quando muito — das possessões francesas dessa parte do Pacífico, as ilhas Loyalty e a Nova Caledónia, essa penitenciária que está situada nos antípodas da França.
Erromango é muito arborizada no interior, acidentada de colinas múltiplas, ao sopé das quais se estendem amplas planícies cultiváveis. O comodoro Simcoe pára a uma milha da baía de Cook, na costa oriental. Não seria prudente aproximar-se mais, porque as faixas coralígenas avançam à flor da água, até meia milha pelo mar fora. Demais, a intenção do governador Cyrus Bikerstaff não é estacionar em frente da ilha, nem fazer escala em nenhuma outra do arquipélago. Depois das festas, desembarcarão os malaios, e Standard-Island tomará de novo a direcção do equador para voltar à baía Madalena.
Por ordem das autoridades, todos têm licença, funcionários e empregados, milicianos e mareantes, à excepção dos guardas aduaneiros de serviço nos postos do litoral, que nada deve distrair da vigilância.
É escusado dizer que o tempo está magnífico, refrescado pela brisa mareira. Segundo a expressão consagrada, «o Sol também entrou na festa».
— Positivamente, aquele disco orgulhoso parece estar às ordens destes capitalistas! — exclama Pinchinat. — Se eles lhe intimassem que prolongasse o dia, como outrora fez Josué, estou certo que ele obedecia! Oh, poder do ouro!
Não há tempo de insistir nos diversos números do programa de sensação, tal qual o redigiu o superintendente dos prazeres de Milliard-City. Logo às três horas, todos os habitantes, os do campo assim como os da cidade e dos portos, afluem ao parque, ao longo das margens da Serpentine. Os notáveis misturam-se familiarmente com o povoléu. Os concursos despertam grande entusiasmo, ao qual não é porventura estranho o isco dos prémios a ganhar. Organizam-se bailes ao ar livre. Mas o mais brilhante realiza-se numa das salas grandes do Casino, onde os rapazes, as senhoras, as meninas, rivalizam em graça e animação. Yvernés e Pinchinat tomam parte na dança, e a ninguém cedem, em se tratando de ser par das mais lindas milliardenses. Nunca Sua Alteza esteve tão amável, nunca teve tanto espírito, nunca alcançou tamanho êxito.
Não é de admirar se, no momento em que um dos seus bonitos pares exclama:
— Oh, senhor, estou num lago de água! Ele se atreveu a responder:
— Água de Vais (valse), miss, água de Vais. Frascolin, que o escuta, cora até à raiz dos cabelos,
e Yvernés, que o ouve, pergunta a si próprio se os raios do Céu não irão rebentar sobre a cabeça do criminoso!
Acrescentemos que as famílias Tankerdon e Coverley estão por completo, e as graciosas irmãs da noiva mostram-se muito felizes com a felicidade dela. Miss Dy passeia pelo braço de Walter, o que não pode ferir as conveniências, tratando-se de cidadãos originários da livre América. Aplaude-se este grupo simpático, aclamam-no, oferecem-lhe flores, dirigem-lhe cumprimentos, que ele recebe mostrando perfeita afabilidade.
E, durante as horas que se seguem, os refrescos, profusamente servidos, não deixam de manter o belo humor do público.
À noite, o parque resplende com fogos eléctricos, que as luas de alumínio derramam a jorros. O Sol teve muito juízo em desaparecer debaixo do horizonte! Acaso não ficaria humilhado diante destas irradiações artificiais, que tornam a noite tão clara como o dia?
Canta-se a cantata entre as nove e as dez horas, e, a respeito do êxito, não compete ao poeta nem ao compositor o dizê-lo.
E talvez até que nesse momento o violoncelista sentisse dissolverem-se as suas injustas prevenções contra a Jóia do Pacífico...
Ao bater das onze, dirige-se para o palácio do Município um longo cortejo processional. Walter Tankerdon e Miss Dy Coverley seguem no meio das respectivas famílias. Acompanha-os toda a população, subindo a Primeira Avenida.
O governador Cyrus Bikerstaff acha-se na sala grande do palácio municipal. Vai realizar-se o mais belo de todos os casamentos que lhe tem sido dado celebrar durante a sua carreira administrativa...
De repente, levanta-se alarido no bairro extremo da secção bombordense...
O cortejo pára a meio da avenida.
Quase imediatamente, com esses gritos, que vão aumentando, ouvem-se detonações longínquas.
Um instante depois, precipita-se para fora do square do palácio municipal um grande número de guardas aduaneiros — muitos dos quais feridos.
A ansiedade está no seu auge. Propaga-se pela multidão esse pavor irreflectido que nasce de um perigo que se não conhece...
Cyrus Bikerstaff aparece na escadaria do palácio, seguido pelo comodoro Simcoe, pelo coronel Stewart e pelos notáveis, que vieram ter com eles.
Às perguntas que lhes fazem respondem os guardas aduaneiros que Standard-Island acaba de ser invadida por uma multidão de neo-hebridianos — três ou quatro mil — e que à frente deles está o capitão Sarol.
ATAQUE E DEFESA
Tal é o início do abominável conluio preparado pelo capitão Sarol, ao qual concorrem os malaios com ele recolhidos em Standard-Island, os neo-hebridianos embarcados nas Samoa, os indígenas de Erromango e das ilhas próximas. Qual será o desfecho? Não é possível prevê-lo, dadas as condições em que se produz esta súbita e terrível agressão.
O grupo neo-hebridiano não compreende menos de cento e cinquenta ilhas, que, sob a protecção da Inglaterra, formam uma dependência geográfica da Austrália. Todavia, aqui como nas Salomão, situadas ao noroeste das mesmas paragens, esta questão do protectorado é um pomo de discórdia entre a França e o Reino Unido. E mesmo os Estados Unidos não vêem com bons olhos o estabelecimento de colónias europeias no meio de um oceano do qual sonham em reivindicar o gozo exclusivo. Implantando a sua bandeira nesses diversos grupos, a Grã-Bretanha procura criar uma estação de abastecimento, que lhe seria indispensável, caso as colónias australianas escapassem à autoridade do Foreign Office.
A população das Novas Hébridas compõe-se de negros e de malaios, de origem canaca. Mas o carácter destes indígenas, o seu temperamento, os seus instintos, diferem conforme pertencem às ilhas do Norte ou às do Sul — o que permite dividir este arquipélago em dois grupos.
No grupo setentrional, na ilha Santo, na baía de SÃO Filipe, o tipo é mais nobre, a tez menos fusca, o cabelo menos encarapinhado. Os homens, atarracados e fortes, mansos e pacíficos, nunca assaltaram as feitorias nem os navios europeus. O mesmo sucede na ilha Vate ou Sanduíche, a qual possui muitas povoações florescentes, entre outras Port-Vila, capital do arquipélago — que também é conhecida pelo nome de Franceville — , onde os colonos franceses utilizam as riquezas de um solo admirável, as suas exuberantes pastagens, os campos propícios à cultura, os terrenos favoráveis às plantações de cafezeiros, bananeiras, coqueiros e à frutífera indústria dos copra-hmakers *. Neste grupo, os hábitos dos indígenas modificaram-se completamente desde a chegada dos europeus. Alteou-se-lhes o nível moral e intelectual. Graças aos esforços dos missionários, deixaram de reproduzir-se as cenas de canibalismo, outrora tão frequentes. Infelizmente, a raça canaca tende a desaparecer, e salta aos olhos que há-de acabar por extinguir-se em detrimento deste grupo do Norte, onde ela se transformou ao contacto da civilização europeia.
Mas seriam deveras deslocados estes queixumes a propósito das ilhas meridionais do arquipélago. Por isso, não sem razão foi que o capitão Sarol escolheu este grupo do Sul para organizar a criminosa tentativa contra Standard-Island. Nestas ilhas, os indígenas, que ficaram verdadeiros Papuas, são entes degradados para o extremo inferior da escala humana, tanto em Tanna como em Erromango. Desta última sobretudo, dizia com razão um negociante de sândalo ao Dr. Hayen: «Se esta ilha pudesse falar, contava coisas de arrepiar os cabelos!»
Com efeito, a raça dos Canacas, de origem inferior, não se revivificou com o sangue polinésio como nas ilhas setentrionais. Em Erromango, sobre dois mil e quinhentos habitantes, os missionários anglicanos, cinco dos quais foram massacrados de 1839 para cá, não converteram mais de metade ao cristianismo. A outra metade permaneceu apegada ao paganismo. Além disso,
* Indústria que utiliza as nozes do coco, as quais, depois de fendidas e secas ao sol ou ao forno, fornecem essa polpa designada pelo nome de «copra», que entra na composição dos sabões de Marselha.
Convertidos ou não, todos eles representam ainda esses indígenas ferozes, que merecem a sua triste reputação, embora sejam de estatura mais enfezada, de constituição menos robusta do que os nativos da ilha Santo ou da ilha Sanduíche. Daí provêm perigos sérios, contra os quais devem precaver-se os turistas que se aventuram por este grupo do Sul.
Diversos exemplos que convém citar:
Há cerca de cinquenta anos, exerceram-se actos de pirataria contra o brigue Aurora, que tiveram de ser severamente reprimidos pela França. Em 1869, o missionário Gordon é morto à cacetada. Em 1875, a tripulação de um navio inglês, atacada à traição, é massacrada, depois devorada pelos canibais. Em 1894, nos arquipélagos vizinhos da Luisiana, na ilha Rossel, um negociante francês e os seus operários, o capitão de um navio chinês com a sua tripulação, perecem aos golpes destes antropófagos. Finalmente, o cruzador inglês Royalist é obrigado a empreender uma campanha, a fim de castigar estas populações selvagens por terem feito o morticínio de um grande número de europeus. E quando lhe contam esta história, Pinchinat, recentemente escapo aos terríveis molares dos fijianos, abstém-se agora de encolher os ombros.
Tal é a população entre a qual o capitão Sarol recrutou os seus cúmplices. Prometeu-lhes o saque desta opulenta Jóia do Pacífico, da qual não se deve poupar nem um habitante. Desses selvagens, que lhe espreitavam a aparição nas vizinhanças do Erromango, há muitos que vieram das ilhas próximas, separadas por estreitos braços de mar — principalmente de Tanna, que apenas dista umas trinta e cinco milhas para o sul. Esta ilha é que vomitou os robustos naturais do distrito de Wanissi, bravíssimos adoradores do deus Teapolo, e cuja nudez é quase completa, os indígenas da Praia Negra, de San-galli, os mais temíveis e mais temidos do arquipélago.
Mas, pelo facto de ser relativamente menos selvagem o grupo setentrional, não se deve concluir que não houvesse dado contingente nenhum ao capitão Sarol. Ao norte da ilha de Sanduíche fica a ilha Api, com os seus dezoito mil habitantes, onde se devoram os prisioneiros, cujo tronco se reserva para os mancebos, braços e coxas para os homens feitos, intestinos para os cães e porcos. Há a ilha de Paama, com as suas tribos ferozes, que não ficam a dever nada aos naturais de Api. Há a ilha de Mallicolo, com os seus canacas antropófagos. Há, finalmente, a ilha Aurora, uma das piores do arquipélago, onde não reside nenhum branco, e onde, alguns anos antes, fora massacrada a tripulação de um cúter de nacionalidade francesa. Destas diversas ilhas é que vieram reforços ao capitão Sarol.
Apenas apareceu Standard-Island, apenas chegou à distância de algumas amarras de Erromango, o capitão Sarol enviou o sinal esperado pelos indígenas.
Dentro de poucos minutos, as rochas à flor da água deram passagem a três ou quatro mil selvagens.
O perigo é dos mais graves, por isso que estes neo-hebridianos, caídos à solta sobre a cidade milliardense, não recuarão diante de nenhum atentado, de nenhuma violência. Têm por si a vantagem da surpresa, e estão armados não só de longas azagaias de ponta de osso, que produzem feridas perigosíssimas, de frechas ervadas com uma espécie de peçonha vegetal, mas também dessas espingardas Snyders, cujo uso está espalhado pelo arquipélago.
Logo no começo deste extraordinário caso, de longa data preparado, visto ser Sarol quem marcha à testa dos assaltantes, foi forçoso convocar a milícia, os mareantes, os funcionários, todos os homens válidos em estado de combater.
Cyrus Bikerstaff, o comodoro Simcoe, o coronel Stewart, conservaram todo o sangue-frio. O rei de Malecárlia ofereceu os seus serviços, e, se já não tem o vigor da mocidade, possui-lhe pelo menos a coragem. Os indígenas ainda estão afastados para os lados de Babord-Harbour, onde o oficial do porto tratou de organizar a resistência. mas não sofre dúvida que os grupos não tardarão a precipitar-se sobre a cidade.
Dá-se logo de princípio ordem de fechar as portas do recinto de Milliard-City, onde a população afluíra quase toda para as festas do casamento.
Que sejam talados os campos e o parque, é isso bem de esperar. Que os dois portos e as fábricas de energia eléctrica sejam devastados, é deveras de temer. Que sejam destruídas as baterias do Esporão e da Popa, não é coisa que se possa impedir. A maior desgraça seria que a artilharia de Standard-Island se voltasse contra a cidade, e não é impossível que os malaios saibam manobrá-la...
Antes de tudo, por proposta do rei de Malecárlia, meteu-se no palácio municipal a maior parte das mulheres e das crianças.
Este vasto palácio está mergulhado numa escuridão profunda, assim como a ilha inteira, porque os aparelhos eléctricos cessaram de funcionar, em consequência da fuga dos maquinistas.
Entretanto, graças ao cuidado do comodoro Simcoe, as armas que estavam depositadas no palácio municipal são distribuídas pelos milicianos e pelos mareantes, e não lhes faltam as munições. Depois de ter deixado Miss Dy com Mrs. Tankerdon e Mrs. Coverley, Walter veio juntar-se ao grupo onde estão reunidos Jem Tankerdon, Nat Coverley, Calistus Munbar, Pinchinat, Yvernés, Frascolin e Sebastião Zorn.
— Sim, senhor, parece que desta maneira é que isto devia acabar! — murmura o violoncelista.
— Qual acabar! — exclama o superintendente. — Não está tal acabado, e não é a nossa querida Standard-Island que há-de sucumbir diante de um punhado de canacas!
Dizes bem, Calistus Munbar! Compreende-se que te devore a cólera, ao pensar como aquela malandragem dos neo-hebridianos interrompeu uma festa tão bem organizada! Sim, é de esperar que eles sejam repelidos... Por desgraça, se não são superiores em número, têm a vantagem da ofensiva.
Contudo, continuam a estoirar as detonações ao longe, na direcção dos dois portos. O capitão Sarol começou por interromper o funcionamento das hélices, a fim de que Standard-Island não possa afastar-se de Erromango, onde está a sua base de operações.
O governador, o rei de Malecárlia, o comodoro Simcoe, o coronel Stewart, reunidos como comissão de defesa, lembraram-se primeiro de fazer uma surtida. Não, isso seria sacrificar uma porção de defensores de que há tanta necessidade. Não há que esperar desses indígenas selvagens mais misericórdia do que dessas feras que, quinze dias antes, invadiram Standard-Island. Além disso, não é de recear que eles tentem encalhá-la nas rochas de Erromango para a saquearem à vontade?
Passada uma hora, os assaltantes chegaram defronte das grades de Milliard-City. Tentam abatê-las, elas resistem. Procuram transpô-las, impede-lho a fuzilaria.
Visto que Milliard-City não pode ser logo colhida de improviso, torna-se difícil forçar o recinto no meio desta escuridão profunda. Por isso, o capitão Sarol concentra-se com os indígenas no parque e nos campos, onde esperará pelo romper do dia.
Entre as quatro e as cinco horas, os primeiros alvores da madrugada tingem o horizonte a leste. Os milicianos e os marinheiros, sob as ordens do comodoro Simcoè e do coronel Stewart, dividem-se em dois grupos, um dos quais fica no palácio municipal, o outro forma em coluna cerrada no square do Observatório, na ideia de que o capitão Sarol queira por esse lado forçar o gradeamento. Ora, como de fora não pode vir socorro nenhum, urge a todo o custo impedir que os indígenas penetrem na cidade.
O quarteto seguiu os defensores, levados pelos oficiais para o extremo da Primeira Avenida.
— Ter escapado dos canibais de Fiji — exclama Pinchinat — e ver-se uma pessoa obrigada a defender as próprias costelas contra os canibais das Novas Hébridas!
— Que diabo! Eles não nos hão-de devorar inteirinhos! — responde Yvernés.
Sebastião Zorn, esse permanece silencioso. É sabido o que ele pensa desta aventura, o que não o eximirá de cumprir o seu dever.
Logo aos primeiros clarões matutinos, trocam-se tiros através das grades do square. Defesa corajosa no recinto do Observatório. Há vítimas de parte a parte. Do lado dos Milliardenses, é ferido Jem Tankerdon num ombro, levemente, mas recusa abandonar o seu posto.
Nat Coverley e Walter batem-se na primeira fila. O rei de Malecárlia, afrontando as balas das Snyders, procura visar o capitão Sarol, o qual não se poupa no meio dos indígenas.
Realmente, são de mais, esses invasores! Toda a gente de combate que puderam fornecer Erromango, Tanna e as ilhas próximas está encarniçada contra Milliard-City. Há, contudo, uma circunstância favorável, que o comodoro Simcoe teve ocasião de verificar: é que Standard-Island, em vez de se abater para a costa de Erromango, se dirige para o grupo setentrional, sob a influência de uma leve corrente, embora fosse preferível que se amarrasse.
Entretanto vai passando o tempo, os indígenas redobram de esforços, e, apesar de uma corajosa resistência, os defensores não poderão contê-los. Por volta das dez horas, são arrancadas as grades. Diante da turba ululante que invade o square, o comodoro Simcoe vê-se obrigado a retirar para o palácio municipal, onde terá de defender-se como numa fortaleza.
Recuando sempre, os milicianos e os marinheiros vão cedendo palmo a palmo. É impossível agora que, forçado o recinto da cidade, os neo-hebridianos, arrastados pelo instinto da pilhagem, se dispersem pelos diversos bairros, o que permitiria aos defensores alcançarem alguma vantagem...
Baldada esperança! O capitão Sarol não deixará os indígenas precipitarem-se para fora da Primeira Avenida. Por aí é que eles hão-de chegar ao palácio municipal, onde debelarão os derradeiros esforços dos sitiados. Quando o capitão Sarol se assenhorear dele, será definitiva a vitória. Terá soado a hora do morticínio e do saque.
— Decididamente... são de mais! — repete Frascolin, cujo braço acaba de ser arranhado por uma azagaia.
E é uma chuva contínua de frechas e de balas, enquanto se acentua a retirada.
Cerca das duas horas, os defensores foram rechaçados até ao square do palácio municipal. Dos dois lados contam-se já uns cinquenta mortos, o duplo ou o triplo de feridos.
Antes que o palácio municipal seja invadido pelos indígenas, as tropas defensoras precipitam-se para dentro dele, fecham as portas, obrigam as mulheres e as crianças a refugiar-se nos aposentos interiores, onde ficarão a salvo dos projécteis. Depois Cyrus Bikerstaff, o rei de Malecárlia, o comodoro Simcoe, o coronel Stewart, Jem Tankerdon, Nat Coverley, os seus amigos, os milicianos e os marinheiros, postam-se às janelas, e o fogo recomeça com grande violência.
— É preciso aguentar-nos aqui — diz o governador. — É o nosso último recurso, e praza a Deus fazer um milagre para nos salvar!
Dá-se imediatamente o assalto por ordem do capitão Sarol, que se julga seguro da vitória, por árdua que seja a tarefa. Com efeito, as portas são valentes, e difícil será arrombá-las sem artilharia. Os indígenas saltam nelas às machadadas, debaixo do fogo das janelas, o que ocasiona grandes perdas nas suas fileiras. Mas isso não é coisa que detenha o chefe, e contudo, se o matassem, talvez que a sua morte mudasse o aspecto da situação...
Decorrem duas horas. O palácio municipal continua a resistir. Se as balas dizimam os sitiantes, a sua massa renova-se incessantemente. Debalde os mais hábeis atiradores, Jem Tankerdon e o coronel Stewart, procuram derribar o capitão Sarol. Enquanto um grande número dos seus cai em redor dele, parece que ele tem o condão da invulnerabilidade.
E, no meio de uma fuzilaria nutrida como nunca, não é a ele que a bala de uma Snyder veio ferir na varanda central. É a Cyrus Bikerstaff, o qual é atingido em pleno peito. Cai, mal pode pronunciar algumas palavras abafadas, sobe-lhe o sangue à garganta. Levam-no para a antessala, onde não tarda a exalar o último suspiro. Assim sucumbiu aquele que foi o primeiro governador de Standard-Island, administrador hábil, coração magnânimo.
Prossegue o assalto com duplicada fúria. As portas vão ceder ao machado dos indígenas. Como impedir a invasão desta última fortaleza de Standard-Island?
Como salvar as mulheres, as crianças, todos os que estão ali encerrados, de um morticínio geral?
O rei de Malecárlia, Ethel Simcoè e o coronel Stewart discutem então se não conviria fugir pelas traseiras do palácio. Mas onde se há-de procurar refúgio? Na bateria da Popa? Poderão lá chegar? Num dos portos? Mas os indígenas não estão senhores de ambos eles? E os feridos, já numerosos, resolver-se-ão a desampará-los?
Neste momento, produz-se um lance feliz, que tende a modificar a situação.
O rei de Malecárlia adiantou-se na varanda, sem se importar com as balas e as frechas que chovem em torno dele. Mete a arma à cara, aponta para o capitão Sarol, no instante em que uma das portas vai dar passagem aos invasores...
O capitão Sarol cai redondo...
Os malaios, surpresos por esta morte, recuam, levando o cadáver do seu chefe, e a turba dos indígenas atira-se para o gradeamento do square.
Quase ao mesmo tempo, ressoam gritos no alto da Primeira Avenida, onde estoira, cada vez mais intensa, a fuzilaria.
Que novidade é esta? Dar-se-á o caso que tenham recuperado vantagem os defensores dos portos e das baterias? Teriam eles corrido para a cidade? Tentarão atacar os indígenas pela retaguarda, não obstante o seu número limitado?
— Aumenta a fuzilaria do lado do Observatório! — anuncia o coronel Stewart.
— Algum reforço que chega a essa malandragem! — responde o comodoro Simcoè'.
— Não creio — observa o rei de Malecárlia — , porque os tiros não se explicam...
— Sim! Há alguma novidade — exclama Pinchinat — e novidade em nosso favor...
— Olhem... olhem! — -grita Calistus Munbar. — Olhem como essa cambada começa a pôr-se ao fresco...
— Vamos, meus amigos! — diz o rei de Malecárlia. — Expulsemos estes miseráveis da cidade! Avante!
Oficiais, milicianos, mareantes, todos descem ao andar térreo e se precipitam para a porta principal.
O square está deserto da turba de selvagens, que fogem, uns pela Primeira Avenida fora, outros pelas ruas circunvizinhas.
Qual é ao certo a causa desta mudança tão rápida e tão inesperada? Deve atribuir-se à desaparição do capitão Sarol? À falta de direcção que dela resultou? Pode admitir-se que os sitiantes, tão superiores em força, se desanimassem a tal ponto pela morte do seu chefe e no momento em que o palácio municipal ia ser invadido?
Arrastados pelo comodoro Simcoe e pelo coronel Stewart, cerca de duzentos homens da marinha e da milícia, e com eles Jem e Walter Tankerdon, Nat Goverley, Fras-colin e os seus colegas, descem pela Primeira Avenida, repelindo os fugitivos, que nem sequer olham para trás a fim de lhes atirarem uma derradeira frecha, e largam de mão Snyders, arcos, azagaias.
— Avante! Avante! — grita o comodoro Simcoe em voz vibrante.
Entretanto pelos arredores do Observatório redobram os tiros... É certo que há ali um combate encarniçado e terrível.
Chegaria, pois, algum socorro a Standard-Island? Mas que socorro... e donde poderia ele vir?
Seja como for, os invasores fogem para todos os lados, assaltados por um pânico incompreensível. Dar-se-á o caso que sejam atacados por alguns reforços provindos de Babord-Harbour?
Sim... cerca de mil neo-hebridianos invadiram Standard-Island, sob a direcção dos colonos franceses da ilha Sanduíche!
Não é de espantar que o quarteto fosse saudado na sua língua nacional, quando deu de cara com os seus corajosos compatriotas!
Eis em que circunstâncias se efectuou esta intervenção inesperada, pode-se dizer quase milagrosa.
Durante a noite anterior e desde o romper do dia, Standard-Island não cessara de descair para esta ilha Sanduíche, onde, devem lembrar-se, residia uma colónia francesa em via de prosperidade. Ora, apenas os colonos farejaram o ataque operado pelo capitão Sarol, resolveram, com o auxílio do milhar de indígenas sujeitos à sua influência, vir em socorro da ilha de hélice. Mas, para os transportar, não bastavam as embarcações da ilha Sanduíche.
Calcule-se a alegria destes honestos colonos quando de manhã, Standard-Island, impelida pela corrente, chegou às alturas da ilha Sanduíche. Imediatamente, atiram-se todos para as lanchas de pesca, seguidos pelos indígenas — a maior parte a nado — e todos vêm desembarcar em Babord-Harbour.
Num instante, os homens das baterias do Esporão e da Popa, os que tinham ficado nos dois portos, conseguiram juntar-se-lhes. Pelos campos, pelo parque fora, dirigiram-se para Milliard-City, e, mercê desta divisão, o palácio municipal não caiu nas mãos dos invasores, já desalentados com a morte do capitão Sarol.
Duas horas passadas, os grupos neo-hebridianos, acossados por toda a parte, apenas encontraram salvação precipitando-se no mar, a fim de alcançarem a ilha Sanduíche, e ainda assim a maior parte afunda-se sob as balas da milícia.
Agora, Standard-Island já não tem que recear: está salva do saque, do morticínio, da destruição.
Pareceria natural que o desfecho deste terrível incidente ocasionasse manifestações de alegria pública e de acções de graça... Qual! Oh! Muito extraordinários são sempre estes americanos! Parece que este resultado final os não surpreendeu... que o tinham previsto... E. contudo, por um triz que a tentativa do capitão Sarol não rematou numa tremenda catástrofe.
É lícito todavia acreditar que os principais proprietários de Standard-Island se felicitassem in petto por terem conseguido conservar uma propriedade de dois biliões, e isto no momento em que as bodas de Walter Tankerdon e de Miss Dy Coverley iam assegurar-lhe o futuro.
Mencionemos que os dois noivos, quando se tornaram a ver, caíram nos braços um do outro. É claro que ninguém viu nisto uma falta de conveniências. Não deviam eles estar casados há vinte e quatro horas?
Em todo o caso, onde se não deve procurar um exemplo dessa reserva ultra-americana é no acolhimento feito pelos nossos artistas parisienses aos colonos franceses da ilha Sanduíche. Que troca de apertos de mão! Que de felicitações que o Quarteto Concertante recebe dos seus compatriotas! Se as balas se dignaram poupá-los, nem por isso deixaram de cumprir com arrogância o seu dever, esses dois violinos, essa violeta e esse violoncelo! Quanto ao excelente Atanásio Dorémus, que se deixou ficar tranquilamente na sala do Casino, esse estava à espera de um discípulo, o qual teima em não chegar... e quem é capaz de lhe cominar censuras?
Uma excepção pelo que respeita ao superintendente. Por ultra-ianque que seja, foi delirante a sua alegria. Que querem? Corre-lhe nas veias o sangue do ilustre Barnum e é bem admissível que o descendente de um antepassado tal não seja sui compôs, como os seus concidadãos da América do Norte.
Depois do desfecho do incidente, o rei de Malecárlia, acompanhado pela rainha, voltou para a sua residência da Trigésima Nona Avenida, onde o Conselho dos Notáveis deve levar-lhe os agradecimentos que merece a sua coragem e a sua dedicação pela causa pública.
Standard-Island está pois sã e salva. Custou-lhe cara a salvação — Cyrus Bikerstaff morto no fervor da peleja, uns sessenta homens, entre milicianos e marinheiros, atingidos pelas balas e pelas frechas, outros tantos, pouco mais ou menos, entre os funcionários, os empregados, os negociantes, que tão valorosamente se bateram. A este luto público associar-se-á a população inteira, e a Jóia do Pacífico não deve obliterar-lhe a memória.
Quanto ao mais, com a rapidez de execução que lhes é próprio, os Milliardenses vão num pronto repor as coisas no seu lugar. Por esse lado, não há dificuldade, nem questões de competência. Nem Jem Tankerdon nem Nat Coverley emitem pretensão alguma a tal respeito. Mais tarde, a eleição resolverá a importante questão do novo governador de Standard-Island.
No dia seguinte, uma imponente cerimónia atrai a população aos cais de Tribord-Harbour. Deitaram-se ao mar os cadáveres dos malaios e dos indígenas; o mesmo não deve suceder aos cidadãos mortos na defesa da ilha de hélice. Os seus corpos, piedosamente recolhidos, conduzidos ao templo e à catedral, aí recebem as merecidas honras. Tanto o governador Cyrus Bikerstaff como os mais humildes defensores são objecto dos mesmos sufrágios e da mesma saudade.
Depois confia-se este fúnebre carregamento a um dos rápidos vapores de Standard-Island, e o navio parte para Madeleine-bay, levando estes preciosos despojos para uma terra cristã.
LEME A BOMBORDO, LEME A ESTIBORDO
Standard-Island largou a 3 de Março das paragens da ilha de Sanduíche. Antes da partida, a colónia francesa e os seus aliados indígenas foram objecto de vivo reconhecimento da parte dos Milliardenses. São amigos que eles não tornarão a ver, são irmãos que Sebastião Zorn e os seus companheiros deixam nesta ilha do grupo das Novas Hébridas, que de ora avante figurará no itinerário anual.
Sob a direcção do comodoro Simcoe, fizeram-se as reparações. Demais a mais, as avarias eram pouco importantes. As máquinas das fábricas de electricidade estão intactas. Com o que resta do stock de petróleo, está garantido por umas poucas de semanas o funcionamento dos dínamos. Além disso, não tarda que a ilha de hélice se encontre nessa parte do Pacífico onde os seus cabos submarinos lhe permitam comunicar com Madeleine-bay. Por conseguinte, há a certeza de que a viagem se levará a cabo sem obstáculos. Antes de quatro meses estará Standard-Island na costa americana.
— Tenhamos essa esperança — diz Sebastião Zorn, enquanto o superintendente vai fantasiando, conforme o costume, sobre o futuro do seu maravilhoso aparelho marítimo.
— Mas — observa Calistus Munbar — que lição que nós apanhámos! Aqueles malaios, tão serviçais, aquele capitão Sarol, ninguém era capaz de suspeitar deles.
Também, é com certeza a última vez que Standard-Island concede asilo a quaisquer estrangeiros.
— Mesmo que um naufrágio atire com eles para o seu caminho? — pergunta Pinchinat.
— Meu rico... eu é que já me não deixo engrolar por náufragos, nem por naufrágios!
Entretanto, pelo facto de estar o comodoro Simcoe encarregado, como até ali, da direcção da ilha de hélice, não se segue que tenha nas mãos os poderes civis. Desde a morte de Cyrus Bikerstaff, Milliard-City não tem maire, e, como se sabe, os antigos adjuntos não conservaram as suas funções. Por consequência, é necessário nomear novo governador de Standard-Island.
Ora, pelo motivo da ausência deste oficial do estado civil, não se pode celebrar o casamento de Walter Tankerdon com Miss Dy Coverley. Mais uma dificuldade, que não surgiria se não fossem as maquinações desse miserável Sarol. E não só os noivos, mas todos os notáveis de Milliard-City, como toda a população, tem pressa de que esse casamento se realize por sua vez. Está nele uma das mais seguras garantias do futuro. Urge acabar com isto, porque já Walter Tankerdon anda a falar em embarcar num dos vapores de Tribord-Harbour, dirigir-se com as duas famílias ao arquipélago mais próximo, onde um maire possa proceder à cerimónia nupcial! Que demónio! Há-os nas Samoa, nas Tonga, nas Marquesas, e em menos de uma semana, andando a toda a força de vapor...
Os espíritos prudentes fazem entrar na razão o impaciente mancebo. Trata-se de preparar as eleições... Dentro de alguns dias ficará nomeado novo governador. O primeiro acto da sua administração será celebrar com grande pompa o casamento tão ansiosamente aguardado... Continuar-se-á a realizar o programa das festas... Um maire! Um maire! É o grito unânime que sai de todas as bocas!
— Deus queira que as eleições não reavivem rivalidades... mal apagadas ainda talvez! — observa Frascolin.
Não; Calistus Munbar está resolvido a meter agulhas por alfinetes, como se costuma dizer, para levar as coisas a cabo.
— E, demais a mais — exclama ele — , não temos aí os nossos namorados? Creio que você deve concordar que o amor-próprio não leva a melhor contra o amor!
Standard-Island continua a dirigir-se para nordeste, para o ponto onde se cruzam o paralelo doze sul e o meridiano cento e setenta e cinco oeste. Para estas paragens é que os últimos cabogramas, expedidos antes da escala das Novas Hébridas, convocaram os navios de abastecimento saídos da baía Madalena. Em todo o caso, a questão de provisões não é coisa que preocupe o comodoro Simcoè. As reservas chegam para mais de um mês, e por esse lado não há que ter inquietações. Verdade seja que a ilha está privada de notícias do estrangeiro. A crónica política é magra. Starboard-Chronicle queixa-se e New-Herald aflige-se... Deixá-lo! Pois Standard-Island não é só por si um mundozinho completo? Que se importa ela com o que se passa no resto do esferóide terrestre? Acaso é a política que faz comichões? Ora adeus! Não tarda que se faça muita política dentro dela... até talvez de sobra!
Com efeito, está aberto o período eleitoral, Influi-se sobre os trinta membros do Conselho dos Notáveis, onde os Bombordenses e os Estibordenses contam número igual de apaniguados. É certo, desde já, que a escolha do novo governador originará discussões. Jem Tankerdon e Nat Coverley vão encontrar-se em campos rivais.
Decorreram alguns dias em reuniões preparatórias. Logo de começo percebeu-se que não havia meio de se entenderem, ou, pelo menos, era difícil consegui-lo dado o amor-próprio dos dois candidatos. Por isso, sente-se na cidade e nos portos uma agitação surda. Os agentes das duas secções tentam provocar um movimento popular, a fim de exercer pressão sobre os notáveis. Vai passando o tempo, e não parece possível qualquer acordo. Não é porventura de recear agora que Jem Tankerdon e os principais bombordenses queiram impor as suas ideias, repelidas pelos principais estibordenses, voltando à carga com esse desastrado projecto de fazer de Standard-Island uma ilha industrial e comercial? Isso é que a outra secção não aceitará! Em suma, ora parece que o partido de Coverley leva a vantagem, ora se supõe que o partido de Tankerdon o suplante. Daí provêm as reclamações malsoantes, azedume entre os dois campos, manifesto resfriamento entre as duas famílias, resfriamento que Walter e Miss Dy nem mesmo querem perceber. Que têm eles com toda essa farragem da política? Há, contudo, um meio simplicíssimo de conciliar as coisas, pelo menos no ponto de vista administrativo: é decidir que os dois competidores desempenhem alternadamente as funções de governador, seis meses um, seis meses outro, ou até um ano, se assim parecer preferível. Isto acabaria com as rivalidades e seria uma convenção de molde a satisfazer os dois partidos. Mas o que é de bom senso nunca tem probabilidades de ser adoptado neste vale de lágrimas, e, pelo facto de ser independente dos continentes terrestres, nem por isso Standard-Island está menos sujeita às paixões da humanidade sublunar.
— Ora aqui têm — diz um dia Frascolin aos colegas — , aqui têm as dificuldades que eu temia...
— E que temos nós com essas desavenças? — volve Pinchinat. — Que dano podem elas causar-nos? Daqui a poucos meses estamos nós na baía Madalena, chega o termo do nosso contrato, e cada um de nós tornará a pisar a terra firme... com o seu belo milhãozinho no bolso...
— Se não surdir ainda por aí alguma catástrofe! — augura o intratável Sebastião Zorn. — Uma máquina flutuante como esta pode lá alguma vez estar certa do futuro! Depois do abalroamento com o navio inglês, a invasão da bicharada; depois da bicharada, a invasão dos neo-hebridianos... depois dos indígenas, os...
— Cala-te lá, ave de mau agouro! — exclamou Yvernés. — Cala o bico, senão fechamos-to a cadeado!
Todavia, há grandes motivos de lamentar que não se celebrasse na data marcada o casamento Tankerdon-Coverley. Unidas as famílias por este novo laço, talvez que a situação fosse menos difícil de aplanar... Os dois esposos interviriam então de uma forma eficaz. Em todo o caso, esta agitação não pode ser duradoira, visto que a eleição deve realizar-se a 15 de Março.
É então que o comodoro Simcoe tenta uma aproximação entre as duas secções da cidade. Pedem-lhe que não meta o nariz onde não é chamado. Tem de conduzir a ilha, pois que a conduza! Tem escolhos a evitar, pois que os evite! A política não é da sua competência.
O comodoro Simcoe fica inteirado.
Até as paixões religiosas se intrometeram no debate, e o clero, no que talvez ande mal, intervém nele mais do que lhe cumpre. E, contudo, viviam em tão boa harmonia o templo mais a catedral, o reverendo mais o bispo!
Quanto aos jornais, é claro que entraram na arena. O New-Herald combate pelos Tankerdon e o Starboard-Chronicle pelos Coverley. Corre em jorros a tinta, e é mesmo de recear que a esta tinta se misture sangue! Deus Grande! Pois o sangue não regou já de sobra este solo virgem de Standard-Island, durante a luta com os selvagens das Novas Hébridas?!...
Em suma, a população média interessa-se sobretudo pelos dois noivos, cujo romance se interrompeu no último capítulo. Mas que poderia ela fazer para lhes assegurar a ventura? Já cessaram as relações entre as duas secções de Milliard-City. Acabou-se com recepções, convites, saraus musicais! Se assim continua, os instrumentos do Quarteto Concertante vão cobrir-se de bolor dentro dos estojos, e os nossos artistas ganharão de mãos nas algibeiras os seus enormes emolumentos.
O superintendente, embora o não queira confessar, não deixa de se sentir devorado por uma inquietação moral. É falsa a sua situação, bem o percebe , porque toda a sua inteligência se emprega em não desagradar nem a uns nem a outros, meio seguro de desagradar a todos.
A 12 de Março, Standard-Island aproximou-se muito do equador, não ganhando, todavia, latitude bastante para se encontrar com os navios expedidos de Madeleine-bay. Em todo o caso, não deve tardar o encontro; é provável, porém, que as eleições se realizem antes, por estarem marcadas para 15.
Entrementes, Estibordenses e Bombordenses fazem apostas múltiplas. Sempre prognósticos de igualdade. Não há maioria possível, se de um lado ou de outro não saírem alguns votos. Ora estes votos estão firmes como as presas na queixada de um tigre.
Surge então uma ideia genial. Parece ter nascido ao mesmo tempo no espírito de todos os que não deviam ser consultados. É simples e digna essa ideia, que poria termo às rivalidades. Até os próprios candidatos se curvariam, decerto, diante desta justa solução.
Porque se não há-de oferecer ao rei de Malecárlia o governo de Standard-Island? Este ex-soberano é um sábio, um espírito largo e firme. A sua tolerância e a sua filosofia seriam a melhor das garantias contra as surpresas do futuro. Conhece os homens por os ter visto de perto. Sabe que é mister ter em linha de conta a ingratidão e as fraquezas humanas. Já não o move a ambição, e nunca lhe ocorrerá o pensamento de substituir pelo poder pessoal estas instituições democráticas, que constituem o regime da ilha de hélice. Será apenas presidente do conselho de administração da nova sociedade Tankerdon-Coverley and Co.
Um grupo importante de negociantes e de funcionários de Milliard-City, ao qual se reúne um certo número de oficiais de terra e mar dos dois portos, decide ir apresentar ao seu régio concidadão esta proposta sob a forma de um desejo múltiplo.
É na sala do andar térreo da habitação da Trigésima Nona Avenida que Suas Majestades recebem a deputação. Benevolamente escutada, dá de cara com uma recusa irrevogável. Os soberanos decaídos recordam-se do passado, e, dominado por esta impressão, o rei responde:
— Agradeço-lhes do coração, meus senhores. Esse pedido penhora-nos deveras, mas estamos satisfeitos com o presente e temos esperanças de que nada virá de ora avante perturbar o futuro. Acreditem! Já nos deixámos das ilusões inerentes a qualquer soberania! Eu não passo de simples astrónomo no Observatório de Standard-Island, e nada mais quero ser.
Não há meio de insistir perante uma resposta tão formal, e a deputação retira-se.
Nos últimos dias que precedem o escrutínio aumenta a sobreexcitação dos espíritos. É impossível entenderem-se. Os partidários de Jem Tankerdon e de Nat Coverley até nas ruas evitam encontrar-se. Os de uma secção não entram na outra. Nem Estibordenses nem Bombordenses transpõem a Primeira Avenida. Milliard-City é agora formada por duas cidades inimigas. A única personagem que corre de uma para a outra, agitado, moído, esfalfado, suando por todos os poros, dando conselhos por um sarilho, repelido da direita, repelido da esquerda, é o desesperado superintendente Calistus Munbar. E, três ou quatro vezes por dia, vem enxurrar, como um navio sem governo, nas salas do Casino, onde o quarteto o maça com inúteis consolações.
Quanto ao comodoro Simcoe, esse limita-se às funções que lhe são atribuídas. Dirige a ilha de hélice segundo o itinerário convencionado. Tendo um santo horror pela política, aceitará o governador, seja ele quem for. Os seus oficiais, assim como os do coronel Stewart, mostram-se tão desinteressados como ele na questão que faz ferver tantas cabeças. Não é em Standard-Island que há a recear pronunciamentos.
Entretanto, o Conselho dos Notáveis, reunido em sessão permanente no palácio municipal, discute e questiona. Chega-se às injúrias pessoais. A polícia é obrigada a tomar certas precauções, porque a multidão aglomera-se desde pela manhã até à noite diante do palácio, soltando gritos sediciosos.
Por outro lado, circula por toda a parte uma notícia deplorável: Walter Tankerdon apresentou-se na véspera no palacete Coverley e não foi recebido. Proíbe-se aos dois noivos que se visitem, e visto que o casamento se não celebrou antes do ataque da quadrilha neo-hebridiana, quem se atreve a prever que ele chegue a realizar-se?
Enfim, chega o dia 15 de Março. Vai proceder-se à eleição na sala grande do palácio municipal. O square está atulhado de um público tumultuoso, à semelhança do que sucedia outrora com a população romana diante
do palácio do Quirinal, onde o conclave procedia à exaltação de um papa ao trono de São Pedro.
Que vai surdir dessa suprema deliberação? Todos os cálculos dão sempre uma distribuição igual aos votos. Se os Estibordenses ficarem fiéis a Nat Coverley, se os Bombordenses continuarem no seu apego por Jem Tankerdon, qual será o resultado?
Chegou o grande dia. Entre a uma hora e as três parece como que suspensa a vida normal na superfície de Standard-Island. Agitam-se debaixo das janelas do edifício municipal umas cinco ou seis mil pessoas. Estão à espera da votação dos notáveis, cujo resultado será imediatamente comunicado pelo telefone para as duas secções e para os dois portos.
O primeiro escrutínio realiza-se à uma hora e trinta e cinco.
Os candidatos obtêm número igual de votos.
Daí a uma hora, segundo escrutínio.
Não modifica por forma nenhuma os resultados do primeiro.
Às três horas e trinta e cinco, terceiro e último escrutínio.
Ainda desta feita, nenhum dos nomes obteve a maioria de votos.
Levanta-se a sessão, muito justificadamente. Se o conselho continuasse, a tal ponto estão exasperados os notáveis que eram capazes de vir às mãos. Na ocasião de atravessarem o square para se dirigirem uns ao palacete Tankerdon, outros ao palacete Coverley, a multidão acolhe-os com murmúrios de desagrado.
Urge, no entanto, sair desta situação, que não pode prolongar-se, por poucas horas que seja, Prejudica de sobejo os interesses de Standard-Island.
— Aqui para nós — diz Pinchinat quando ele e os colegas são informados pelo superintendente dos resultados dos três escrutínios — , parece-me que há um meio muito simples de cortar o nó górdio.
— Qual é? — pergunta Calistus Munbar, levantando os braços com desespero. — Qual é?
É cortar a ilha ao meio... dividi-la em duas talhadas iguais, como se fora um pastelão, navegando cada uma das metades para seu lado com o governador da sua escolha.
— Cortar a nossa ilha! — exclama o superintendente, como se Pinchinat lhe propusesse a amputação de um dos membros.
— Com uma tesoura mecânica, um martelo e uma chave de parafusos — acrescenta Sua Alteza — resolve-se a questão pelo desencavilhamento e ficam existindo na superfície do Pacífico duas ilhas ambulantes em vez de uma!
Ora que este Pinchinat nunca há-de ser sério, mesmo quando as circunstâncias têm um carácter tal de gravidade!
Seja como for, se não devem seguir-lhe o conselho — pelo menos materialmente — , se se não reclama a intervenção do martelo nem da chave de parafusos, se se não pratica o desencavilhamento segundo o eixo da Primeira Avenida, desde a bateria do Esporão até à bateria da Popa, nem por isso se realiza menos o apartamento no ponto de vista moral. Os Bombordenses e os Estibordenses vão tornar-se tão estranhos uns aos outros como se os separassem cem léguas de mar. Com efeito, os trinta notáveis decidiram votar em separado, visto não poderem entender-se. Por um lado, Jem Tankerdon é eleito governador da sua secção, que governará a seu arbítrio. Por outro lado, Nat Coverley é eleito governador da sua, que administrará como lhe der na cabeça. Cada uma delas conservará o seu porto, os seus navios, os seus oficiais, os seus marinheiros, os seus milicianos, os seus funcionários, os seus negociantes, a sua fábrica de energia eléctrica, as suas máquinas, os seus motores, os seus maquinistas, os seus fogueiros, e ambas passarão sem auxílio alheio.
Pois sim! Mas o que há-de fazer o comodoro Simcoe para se desdobrar e o superintendente Calistus Munbar para desempenhar as suas funções a contento de ambas as partes?
Pelo que respeita a este último, é certo que o caso não tem importância. O seu lugar vai ser apenas uma simples sinecura. Pode-se lá pensar em recreios e em festas quando a guerra civil ameaça Standard-Island por se ver a impossibilidade de uma reconciliação!
Calcule-se por este indício: no dia 17 de Março, anunciaram os jornais a ruptura definitiva do casamento de Walter Tankerdon com Miss Dy Coverley.
Sim! Rompeu-se, apesar das súplicas dos noivos, e contra o que disse uma vez Calistus Munbar, não foi o amor mais forte! Pois não há tal! Walter e Miss Dy não se hão-de apartar... Abandonarão as famílias... irão casar-se ao estrangeiro... sempre hão-de encontrar um cantinho na Terra onde se possa ser feliz sem ter tantos milhões em volta do coração!
Entretanto, depois da nomeação de Jem Tankerdon e de Nat Coverley, não houve nenhuma mudança no itinerário de Standard-Island. O comodoro Simcoe continua a dirigir-se para nordeste. Logo que cheguem à baía Madalena, é provável que, cansados com este estado de coisas, um grande número de milliardenses torne a reclamar do continente a tranquilidade que já lhes não oferece a Jóia do Pacífico. Até talvez que a ilha de hélice seja abandonada! E nesse caso hão-de liquidá-la, pô-la em praça, vendê-la a peso, como sucata velha e inútil, mandá-la outra vez para a fundição.
Seja assim, mas as cinco milhas que faltam a percorrer exigem cerca de cinco meses de navegação. Durante esta travessia não ficará comprometida a direcção pelo capricho ou pela teimosia dos dois chefes? Demais a mais, infiltrou-se no ânimo da população o espírito de revolta. Chegarão a vias de facto os Bombordenses e os Estibordenses, batendo-se a tiro, banhando de sangue as calçadas de folha de ferro de Milliard-City?
Não! Os partidários não chegarão a tais extremos, por certo! Não se tornará a ver uma outra Guerra de Separação, se não entre o Norte e o Sul, entre Bombordo e Estibordo de Standard-Island... Mas sucedeu o que era fatal, com risco de provocar uma catástrofe.
A 19 de Março pela manhã, o comodoro Simcoe está no seu gabinete, no Observatório, onde espera que lhe comuniquem a primeira observação da altura.
Pela sua estima, Standard-Island não pode andar muito longe das paragens em que deve encontrar os navios de abastecimento. No cimo da torre estão colocadas vigias, que observam o mar num vasto perímetro, para darem sinal dos vapores que aparecerem ao largo. Ao pé do comodoro acham-se o rei de Malecárlia, o coronel Stewart, Sebastião Zorn, Pinchinat, Frascolin, Yvernés, um certo número de oficiais e de funcionários, daqueles que se podem chamar neutros, por não terem tomado parte nas dissensões intestinas. Para eles o essencial é chegar quanto antes a Madeleine-bay, onde se porá termo a este deplorável estado de coisas.
Neste momento retinem duas campainhas eléctricas e transmitem-se duas ordens ao comodoro pelo telefone. Vêm do palácio municipal, onde Jem Tankerdon, na ala direita, Nat Coverley, na ala esquerda, se conservam com os seus principais partidários. Daí é que eles administram Standard-Island e, como é de supor, atiram para fora com decretos absolutamente contraditórios.
Ora, nessa mesma manhã, a propósito do itinerário seguido por Ethel Simcoe e sobre o qual os dois governadores deveriam ao menos entender-se, não foi possível chegar a acordo. Um deles, Nat Coverley, decidiu que Standard-Island tomasse o rumo do nordeste, a fim de se aproximar do arquipélago das Gilbert. O outro, Jem Tankerdon, com a teima de criar relações comerciais, resolveu seguir derrota, pelo sudoeste, para as paragens australianas.
Veja-se a que ponto chegaram os dois rivais, tendo os amigos de cada um jurado sustentá-los.
Ao receber as ordens simultâneas, o comodoro exclama:
— Aqui está o que se receava...
- — E o que não é possível prolongar-se por interesse público!- — acrescenta o rei de Malecárlia.
— Que decide o comodoro? — -perguntou Frascolin.
— Com a breca! — exclama Pinchinat. — Sempre tenho curiosidade de saber como é que o Sr. Simcoe há-de manobrar!
— Mal! — -observa Sebastião Zorn.
— Em primeiro lugar, façamos saber a Jem Tankerdon e a Nat Coverley — responde o comodoro — que as suas ordens são inexequíveis, visto que se contradizem. Demais, parece-me que o melhor é Standard-Island não se mover enquanto espera os navios que marcaram o ponto de encontro nestas paragens.
Esta resposta, muito judiciosa, é telefonada imediatamente para o palácio municipal.
Decorre uma hora sem o Observatório receber aviso de qualquer outra comunicação. É bem possível que os dois governadores renunciassem a modificar o itinerário, cada um deles em sentido oposto...
De súbito, produz-se um movimento singular no casco da ilha. E que indica este movimento? Que Jem Tankerdon e Nat Coverley levaram a birra até aos limites extremos.
Todos os circunstantes olham uns para os outros, formando outros tantos pontos de interrogação.
— Que é isto? Que é isto?
— O que é? — responde o comodoro Simcoe, encolhendo os ombros. — É que Jem Tankerdon enviou ordens directas ao Sr. Watson, maquinista de Babord-Harbour, ao mesmo tempo que Nat Coverley mandava ordens contrárias ao Sr. Somwah, maquinista de Tribord-Harbour. Um deu ordem de andar avante, para ir para nordeste, outro, de ciar a ré, para ir para sudoeste. O resultado é que Standard-Island está a andar como um pião e que este movimento giratório há-de persistir enquanto durar o capricho desses dois cabeçudos!
— Bonito! — exclama Pinchinat. — Isto devia acabar por uma valsa! A valsa dos dois caturras! Atanásio Dorémus é melhor que se demita... Os Milliardenses dispensam-lhe as lições!
É possível que esta absurda situação — cómica por um lado — se prestasse à gargalhada. Infelizmente, a dupla manobra é perigosa em extremo, como faz observar o comodoro. Empuxada em sentidos inversos sob a tracção dos seus dez milhões de cavalos, Standard-Island corre o risco de se desengonçar.
Com efeito, as máquinas trabalham a toda a força, as hélices funcionam com o máximo de velocidade, e sente-se isto pelos estremeções do subsolo de aço.
Imaginem uma parelha em que um dos cavalos puxasse para a mão e o outro para a sela, e far-se-á ideia do que se está passando!
Entretanto, com o movimento que se acentua, Standard-Island gira sobre o seu centro. O parque, os campos, descrevem círculos concêntricos, e os pontos do litoral situados na circunferência deslocam-se com uma velocidade de dez a doze milhas por hora.
Chamar à razão os maquinistas, cuja manobra provoca este movimento giratório, é melhor nem pensar em tal. O comodoro Simcoe não tem autoridade nenhuma sobre eles. Ambos obedecem às mesmas paixões que os Estibordenses e os Bombordenses. Servos fiéis de seus chefes, os Srs. Watson e Somwah teimarão até ao fim, máquina contra máquina, dínamos contra dínamos...
E, então, produz-se um fenómeno, cujo incómodo deveria serenar as cabeças e acalmar os ânimos.
Em consequência da rotação de Standard-Island, um grande número de milliardenses, sobretudo do sexo fraco, começa a sentir-se singularmente perturbado em todo o organismo. No interior das habitações manifestam-se náuseas e agonias, principalmente nas mais afastadas do centro, que são arrastadas num movimento de valsa mais pronunciado.
Que querem? Em presença deste resultado patusco e burlesco, Yvernés, Pinchinat e Frascolin desatam a rir desatinadamente, embora a situação tenda a tornar-se crítica deveras.
E, com efeito, a Jóia do Pacífico está ameaçada por um dilaceramento material, que igualará, se o não exceder, o seu dilaceramento moral.
Quanto a Sebastião Zorn, sob a influência deste redemoinho contínuo, está pálido, muito pálido... «Arriou a bandeira vermelha!», como diz Pinchinat, e sente-se agoniado a valer.
Não acabará por uma vez esta brincadeira de mau gosto? Estar prisioneiro em cima desta imensa mesa girante, que nem sequer ao menos tem o condão de desvendar os segredos do futuro...
Durante uma semana interminável, Standard-Island não cessou de girar sobre o seu centro, que é Milliard-City. Por isso, a cidade está sempre atulhada de uma turba, que vem ali procurar refúgio contra as náuseas, visto que neste ponto de Standard-Island é menos apreciável o redemoinho. Debalde o rei de Malecárlia, o comodoro Simcoe, o coronel Stewart, tentaram intervir entre os dois poderes que rivalizam no palácio municipal... Nenhum deles quis arriar bandeira... Até o próprio Cyrus Bikerstaff, se vivesse, veria os seus esforços malograrem-se de encontro a esta tenacidade ultra-americana.
Ora, para cúmulo de infelicidade, o Sol tem estado por tal forma nublado durante esses oito dias que não tem sido possível tomar a altura... O comodoro Sim-coé já não sabe qual é a posição de Standard-Island. Arrastada em sentido oposto pelas suas poderosas hélices, sentiam-na estremecer até às chapas dos seus compartimentos. Por isso ninguém pensa em recolher a casa. O parque regurgita de gente. Acampam ao ar livre. De um lado rompem os gritos: «Hurra por Tankerdon», do outro: «Hurra por Coverley!». Os olhos lançam chispas, estendem-se punhos cerrados.
Acaso irá manifestar-se a guerra civil pelos mais terríveis excessos, agora que a população chegou ao paroxismo do desatino?
Seja como for, nem uns nem outros querem ver o mínimo indício do perigo que está iminente. Ninguém cede, embora a Jóia do Pacífico tenha de se desfazer em milhares de estilhas; há-de continuar no mesmo torvelinho desesperado até que, por falta de corrente, os dínamos deixem de actuar sobre as hélices...
No meio desta irritação geral, em que não toma a menor parte, Walter Tankerdon está dominado pela mais viva angústia. Receia não por si, mas por Miss Dy Coverley, alguma deslocação súbita que aniquile Milliard-City. Há oito dias que não consegue tornar a ver aquela que foi sua noiva e que devia ser sua mulher. Por isso, desesperado, vinte vezes suplicou a seu pai que não persistisse nesta deplorável manobra... Jem Tankerdon repeliu-o sem sequer lhe dar ouvidos.
Então, na noite de 27 para 28 de Março, aproveitando-se da obscuridade, Walter Tankerdon tenta encontrar-se com a namorada. Quer estar junto dela se se realizar a catástrofe. Depois de se ter escoado pelo meio da turba que atulha a Primeira Avenida, penetra na secção inimiga, a fim de chegar ao palacete Coverley...
Um pouco antes do romper do dia uma formidável explosão sacode a atmosfera até às zonas altas. Levada a pressão além do que podem suportar, as caldeiras de bombordo acabam de ir pelos ares com as edificações do maquinismo. E como desse lado se estancou de súbito a fonte de energia eléctrica, metade de Standard-Island está mergulhada numa obscuridade profunda...
A SITUAÇÃO DEFINIDA POR UM DITO DE PINCHINAT
Se as máquinas de Babord-Harbour estão agora inutilizadas em consequência da explosão das caldeiras, as de Tribord-Harbour estão intactas. Verdade seja que é como se Standard-Island não possuísse nenhum aparelho de locomoção. Reduzida às suas hélices de estibordo, continuará a girar sobre si mesma, não seguirá avante.
Este acidente agravou, portanto, a situação. Com efeito, enquanto Standard-Island possuía duas máquinas, susceptíveis de trabalhar simultaneamente, bastaria um acordo entre o partido Tankerdon e o partido Coverley para pôr termo a este estado de coisas. Os motores teriam voltado aos seus bons hábitos de se moverem no mesmo sentido, e o aparelho, tendo apenas sofrido uns dias de demora, retomaria o rumo da baía Madalena.
Agora, o caso é diferente. Embora se fizesse qualquer acordo, a navegação tornou-se impossível e o comodoro Simcoe já não dispõe da força propulsiva necessária para se afastar destas longínquas paragens.
Se ao menos Standard-Island tivesse ficado estacionária durante esta última semana, se os vapores esperados tivessem podido encontrar-se com ela, talvez que fosse possível chegar ao hemisfério setentrional...
Não! E, nesse dia, uma observação astronómica permitiu verificar que Standard-Island se deslocou para o sul durante esta giração prolongada. Foi abatendo desde o paralelo doze sul até ao dezassete.
Com efeito, entre o grupo das Novas Hébridas e o grupo das Fiji existem certas correntes devidas à compressão das águas entre os dois arquipélagos, as quais se dirigem para sueste. Enquanto as máquinas funcionaram em perfeito acordo, Standard-Island pôde sem custo vencer essas correntes. Mas, desde o momento em que a vertigem se apossou dela, foi irresistivelmente arrastada para o trópico de Capricórnio.
Reconhecido este facto, o comodoro Simcoe não oculta a essa honrada gente, que nós compreendemos sob o nome de neutros, a gravidade das circunstâncias. Eis o que ele lhes diz:
— Fomos arrastados uns cinco graus para o sul. Ora o que um mareante pode fazer a bordo de um vapor com a máquina desmantelada, não o posso eu fazer a bordo de Standard-Island. A nossa ilha não tem velas que permitam utilizar o vento e nós estamos à mercê das correntes. Para onde nos impelirão elas? Isso é que eu não sei. Quanto aos navios que partiram da baía Madalena, esses debalde nos procurarão nas paragens combinadas, e é para essa parte menos frequentada do Pacífico que nós vamos abatendo com uma velocidade de oito a dez milhas por hora!
Nestas poucas frases, Ethel Simcoe acaba de estabelecer a situação e a sua impotência para a modificar. A ilha de hélice é como uma imensa jangada, entregue aos caprichos das correntes. Se elas se dirigem para o norte, levá-la-ão para o norte. Se se dirigem para o sul, para o sul descerá ela, talvez até aos limites extremos do mar Antárctico. E então...
Este estado de coisas em breve chega ao conhecimento da população, em Milliard-City assim como nos dois portos. Concebe-se nitidamente o sentimento de um risco extremo. Daí — o que é natural à humanidade — deriva um certo apaziguamento dos espíritos dominados pelo terror desse novo perigo. Já se não pensa em vir às mãos numa luta fraticida, e, se os ódios persistem, não se traduzirão pelo menos em violências. Pouco a pouco, cada um recolhe à sua secção, ao seu bairro, a sua casa. Jem Tankerdon e Nat Coverley renunciam a disputar o cargo supremo.
E, por proposta dos próprios governadores, o Conselho dos Notáveis adopta o único alvitre razoável, que era ditado pelas circunstâncias: entrega todos os seus poderes nas mãos do comodoro Simcoe, único chefe a quem de ora avante fica confiada a salvação de Standard-Island.
Ethel Simcoe aceita a missão sem vacilar. Conta com a dedicação dos seus amigos, dos seus oficiais, do seu pessoal. Mas que pode ele fazer a bordo deste vasto aparelho flutuante, de uma superfície de vinte e sete quilómetros quadrados, indirigível desde que não dispõe das suas duas máquinas!
E, em suma, não há razão para se dizer que isto é a condenação dessa Standard-Island, considerada até então como a obra-prima das construções marítimas, visto que acidentes destes devem torná-la joguete dos ventos e das ondas?
É certo que este acidente não é devido às forças da Natureza, que a Jóia do Pacífico, desde a fundação, afrontara vitoriosamente, nas borrascas, nos temporais, nos ciclones. É culpa das desavenças intestinas, das rivalidades entre milliardenses, da furiosa teimosia de uns em descerem para o sul e de outros em subirem para o norte! Foi a sua incomensurável loucura que provocou a explosão das caldeiras de bombordo!
Mas de que servem as recriminações? O que urge é examinar quanto antes as avarias do lado de Babord-Harbour. O comodoro Simcoe reúne os seus oficiais e os seus engenheiros. Junta-se a eles o rei de Malecárlia. Não é decerto este régio filósofo quem se espanta por ver as paixões humanas levarem a uma catástrofe tamanha!
A comissão nomeada transporta-se para o sítio onde se erguiam as edificações da fábrica de energia eléctrica e do maquinismo. A explosão dos aparelhos evaporatórios, sobreaquecidos, tudo destruiu, causando a morte de dois maquinistas e de seis fogueiros. Os estragos não são menos completos na oficina onde se fabricava a electricidade para os diversos serviços desta metade de Standard-Island.
Por fortuna, continuavam a funcionar os dínamos de estibordo, e, como observa Pinchinat:
— Ainda estamos com sorte, por ficarmos apenas zarolhos!
— Pois sim — responde Pinchinat — , mas é que perdemos também uma perna, e a que nos resta não nos serve de nada!
Zarolho e manco, era de mais.
Resulta do inquérito que, não sendo reparáveis as avarias, é impossível travar o andamento para o sul, donde se segue a necessidade de aguardar que Standard-Island saia desta corrente que a arrasta para além do trópico.
Reconhecidos estes estragos, convém verificar o estado em que se acham os compartimentos do casco. Acaso não sofreram com o movimento giratório que tão violentamente os abalou durante estes oito dias? Afrouxaram as chapas, deram de si os rebites? Se tem água aberta, qual é a maneira de tapar os rombos?
Os engenheiros procedem a este segundo inquérito. Os seus relatórios, comunicados ao comodoro Simcoe, não são nada tranquilizadores. Em muitos pontos, os repelões fizeram estalar as chapas e quebraram as cruzetas. Saltaram fora milhares de cavilhas, produziram-se fendas. Alguns compartimentos estão já invadidos pelo mar. Mas, como a linha de flutuação não baixou, a solidez do solo metálico não está seriamente comprometida e os novos proprietários de Standard-Island não têm que recear pela sua propriedade. É na bateria da Popa que são mais numerosas as fendas. Quanto a Babord-Harbour, afundou-se um dos seus piers depois da explosão. Mas Tribord-Harbour está intacto, e os seus portos interiores oferecem toda a segurança aos navios contra os vagalhões do mar largo.
Entretanto dão-se ordens para se executarem quanto antes os consertos possíveis. É indispensável que a população fique tranquilizada no ponto de vista material. Já é bastante, de mais até, que, por falta de motores de bombordo, Standard-Island não possa dirigir-se para a terra mais próxima. Para isto é que não há remédio.
Resta a questão gravíssima da fome e da sede... Serão suficientes as reservas para um mês... para dois meses...
Eis as notas fornecidas pelo comodoro Simcoe:
A respeito de água, não há que recear. Se foi destruída pela explosão uma das oficinas de destilação, a outra, que continua a funcionar, deve chegar para todas as necessidades.
Pelo que respeita aos víveres, a situação é menos tranquilizadora. Feitos os cálculos, não vai além de quinze dias a sua duração, a não ser que se imponha um severo arraçoamento aos dez mil habitantes da ilha. À excepção das frutas, dos legumes, sabe-se que tudo vem de fora... E esse fora... onde está ele? A que distância ficam as terras mais próximas, e como chegar lá?
Portanto, por deplorável que seja o efeito desta medida, o comodoro Simcoe vê-se obrigado a promulgar um decreto relativo às rações. Nessa mesma tarde os fios telefónicos são percorridos pela funesta nova.
Daí provém um terror geral em Milliard-City e nos dois portos, e o pressentimento de catástrofes maiores ainda. O espectro da fome, para usar de uma imagem banal mas frisante, não se erguerá porventura dentro em pouco no horizonte, visto não haver meio de renovar as provisões? Com efeito, o comodoro Simcoe não tem um único navio para expedir para o continente americano. Logo por fatalidade, o último largou três semanas antes, levando os despojos mortais de Cyrus Bikerstaff e dos defensores que sucumbiram na luta contra Erromango. A ninguém passava então pela ideia que umas questiúnculas de amor-próprio levassem Standard-Island a uma situação mais deplorável que no momento em que era invadida pelos grupos neo-hebridianos!
Realmente, para que serve possuir biliões, ser opulento, como os Rothschild, os Mackey, os Astor, os Vanderbilt, os Gould, quando não há riqueza que seja capaz de conjurar a fome! É certo que esses nababos têm o melhor da sua fortuna em segurança nos bancos do Novo e do Antigo Continente! Mas quem sabe se não vem próximo o dia em que nem um milhão possa proporcionar-lhes um arrátel de carne ou um arrátel de pão!
Afinal de contas, a culpa é das suas desavenças absurdas, das suas rivalidades estúpidas, do seu desejo de lançar mão do poder! Eles é que são os culpados, a causa de todo este dano são os Tankerdon, os Coverley! Acautelem-se contra as represálias, contra a cólera desses oficiais, desses funcionários, desses negociantes, de toda a população, que puseram num risco tal! A que excessos poderão levá-la as torturas da fome?
Devemos dizer que estas censuras nunca serão cominadas nem a Walter Tankerdon nem a Miss Dy Coverley, aos quais não pode atingir este labéu, que recai merecidamente sobre suas famílias! Não! Nem ele nem ela são responsáveis! Constituíam o laço que devia assegurar o futuro das duas secções, e não foram eles que o despedaçaram!
Durante quarenta e oito horas, em vista do estado do céu, não se fez observação nenhuma, e a posição de Standard-Island não pôde determinar-se com certa exactidão.
A 31 de Março, logo de madrugada, mostrou-se o zénite bastante limpo, e as brumas do mar largo dissiparam-se a breve trecho. É lícito esperar que se possa tomar a altura do Sol em boas condições.
Aguarda-se a observação com impaciência febril. Na bateria do Esporão estão reunidas muitas centenas de habitantes. Juntou-se a eles Walter Tankerdon. Mas nem seu pai, nem Nat Coverley, nem nenhum dos notáveis aos quais se pode com tanta justiça imputar este estado de coisas, saíram de suas casas, onde se sentem como que murados pela indignação pública.
Um pouco antes do meio-dia, prepararam-se os observadores a apanhar o disco do Sol, no momento da sua culminância. Assestaram-se para o horizonte dois sextantes, um nas mãos do rei de Malecárlia, outro nas mãos de comodoro Simcoe.
Tomada a altura meridiana, procede-se aos cálculos, com as correcções exigidas, e o resultado é este:
29° 17' de latitude sul.
Por volta das duas horas, uma segunda observação, feita também em condições favoráveis, indica a longitude:
179° 32' de longitude leste.
Assim, desde que de Standard-Island se apossou essa loucura giratória, as correntes arrastaram-na cerca de mil milhas para sueste.
Posto o ponto na carta, eis o que se reconhece:
As ilhas mais próximas — a cem milhas, pelo menos — constituem o grupo das Kermadeck, rochedos estéreis, quase desabitados, sem recursos, e, além disso, como se se há-de chegar lá? A trezentas milhas para o sul, estende-se a Nova Zelândia, mas como acercar-se dela, se as águas correm para o largo? Para oeste, a mil e quinhentas milhas, fica a Austrália. Para leste, a alguns milhares de milhas, fica a América Meridional, pela altura do Chile. Para além da Nova Zelândia, está o oceano Glacial com o deserto antárctico. Irá, pois, Standard-Island despedaçar-se nas terras polares? Será nessas costas que a futuros navegadores se depararão os restos de uma população inteira, morta de miséria e de fome?
Quanto às correntes desses mares, o comodoro Sim-coé vai estudá-las com o máximo cuidado. Mas que sucederá se elas se não modificarem, se ele não encontrar correntes opostas, se se desencadear um desses temporais formidáveis tão frequentes nas regiões circumpo-lares?
Estas notícias são bem azadas a provocar o pavor. Os espíritos cada vez se exasperam mais contra os autores do mal, esses nababos malfazejos de Milliard-City, que são responsáveis pela situação. É preciso toda a influência do rei de Malecárlia, toda a energia do comodoro Simcoe e do coronel Stewart, toda a autoridade destes sobre os mareantes e os soldados da milícia, para impedir uma sublevação.
Passa-se o dia sem alteração. Cada um teve de sujeitar-se ao arraçoamento no que respeita a alimentação e limita-se ao estritamente necessário, os mais abastados assim como os menos favorecidos da fortuna.
Entrementes, estabelece-se com extrema atenção o serviço das vigias e perscruta-se cuidadosamente o horizonte. Apenas apareça um navio, logo se lhe fará sinal, e talvez que seja possível restabelecer as comunicações interrompidas. Infelizmente, a ilha de hélice foi abatendo para fora das derrotas marítimas, e poucos navios há que atravessem estas paragens próximas do mar Antárctico. E lá para o sul, diante das imaginações desatinadas, surde o espectro do pólo, iluminado pelos clarões vulcânicos do Erebus e do Terror!
Entretanto, dá-se uma circunstância favorável na noite de 3 para 4 de Abril. O vento do norte, tão violento há dias para cá, cai subitamente. Sucede-lhe uma calma podre, e a brisa roda bruscamente para sueste, por um desses caprichos atmosféricos tão frequentes nas épocas do equinócio.
O comodoro Simcoè retomou algum alento. Basta que Standard-Island seja impelida umas cem milhas para oeste para que a contracorrente a aproxime da Austrália ou da Nova Zelândia. Em todo o caso, parece travado o seu movimento na direcção do mar polar, e é possível que se encontrem quaisquer navios pelas vizinhanças das imensas terras da Austrália.
Sol nado, a brisa do sueste é já muito fresca. Standard-Island sente-lhe a influência por forma bastante notável. Os seus altos monumentos, o Observatório, o palácio municipal, o templo, a catedral, fazem até certo ponto parede ao vento. Desempenham o ofício de velas a bordo deste colossal navio de quatrocentos e trinta e dois milhões de toneladas!
Se bem que o céu seja sulcado por nuvens rápidas, como o disco do Sol aparece de quando em quando, por certo que será lícito obter uma boa observação.
Com efeito, por duas vezes, consegue-se apanhar o Sol por entre nuvens.
Os cálculos estabelecem que, desde a véspera, Standard-Island ganhou dois graus para noroeste.
Ora, é difícil admitir que a ilha de hélice tenha obedecido apenas ao vento. Daí se conclui, pois, que ela entrou num desses redemoinhos que separam as grandes correntes do Pacífico.
Se ela tiver a fortuna de encontrar a corrente que se dirige para noroeste, as probabilidades de salvação tornam-se sérias. Mas, pelo amor de Deus! que isso venha depressa, porque mais uma vez foi preciso restringir as rações. As reservas diminuem numa proporção que deve criar sobressaltos em presença de dez mil habitantes a alimentar!
Quando se comunica a última observação astronómica aos dois portos e à cidade, produz-se nos espíritos um tal ou qual apaziguamento. É sabido com que rapidez uma multidão pode passar de um sentimento ao outro, do desespero à esperança. Foi o que aconteceu. Esta população, tão diferente das massas de miseráveis empilhadas nas grandes cidades dos continentes, devia ser, e era com efeito, menos sujeita aos desvairamentos, mais reflectida, mais paciente. Verdade seja que, sob as ameaças da fome, nada há que não seja de temer...
Durante essa manhã, o vento indica tendência de refrescar. O barómetro baixa lentamente. O mar encapela-se em vagalhões largos e alterosos, prova de que sofreu grandes perturbações ao sueste. Standard-Island, dantes impassível, já não aguenta como de costume estes enormes desnivelamentos. Em algumas casas sentem-se de cima para baixo umas oscilações ameaçadoras e os objectos deslocam-se dentro delas. Tal qual como os efeitos de um terramoto. Este fenómeno, novo para os Milliardenses, é natural que origine vivíssima inquietação.
O comodoro Simcoe e o seu pessoal conservam-se em serviço permanente no Observatório, onde se concentram todos os ramos da administração. Estes abalos, que sacodem o edifício, não deixam de os preocupar, e eles vêem-se obrigados a reconhecer-lhes a extrema gravidade.
— Não resta dúvida — diz o comodoro — de que Standard-Island sofreu nas suas bases... Os compartimentos estão desconjuntados... O casco já não oferece a rigidez que o tornava tão sólido...
— E queira Deus — acrescentou o rei de Malecárlia — que ele não tenha de aguentar algum temporal violento, porque não lhe oferecia agora resistência suficiente!
Sim! E a população já deixou de ter confiança neste solo factício...
Sente que está em riscos de lhe faltar o ponto de apoio... Mais valia cem vezes a eventualidade de se despedaçar nas rochas das terras antárcticas! Este recear a cada momento que Standard-Island se abra de meio a meio, se afunde no meio dos abismos do Pacífico, cuja profundidade ainda a sonda não pôde atingir, é isso principalmente o que os ânimos mais vigorosos não podem encarar sem desfalecimentos.
Ora, é impossível pôr em dúvida que se produziram novas avarias em certos compartimentos. Houve anteparas que cederam, deram-se disjunções que fizeram saltar fora a rebitagem das chapas. No parque, ao longo da Serpentine, à superfície das ruas excêntricas da cidade, notam-se caprichosos empenos provenientes da deslocação do solo. Já se inclinam muitos edifícios, e, caso abatam, arrombarão a infra-estrutura que lhes suporta os alicerces! Quanto aos rombos por onde entra a água, nem pensar em tapá-los. Que o mar se tenha introduzido em diversas partes do subsolo, é certíssimo, visto que a linha de flutuação se modificou. Em quase toda a periferia, tanto nos dois portos como nas baterias do Esporão e da Popa, essa linha mergulhou cerca de um pé, e, se o seu nível continuar a baixar, as vagas invadirão o litoral. Comprometida como se acha a estabilidade de Standard-Island, a sua submersão seria apenas questão de horas.
Esta situação, desejaria o comodoro Simcoe ocultá-la, por ser apropriada para determinar pânico, e talvez que ainda pior! A que excessos chegarão os habitantes contra os autores responsáveis de tantos males! Não podem procurar na fuga a salvação, como fazem os passageiros de um navio, meter-se nas embarcações pequenas, construir uma jangada em que se refugia uma tripulação na esperança de ser recolhida no mar... Não! Essa jangada é a própria Standard-Island, prestes a soçobrar!
De hora para hora, durante esse dia, o comodoro Simcoe toma nota das alterações na linha de flutuação. O nível de Standard-Island não cessa de baixar. Portanto a infiltração continua através dos compartimentos, lenta, mas persistente, irresistível.
Ao mesmo tempo, o aspecto do tempo apresenta-se mau. O céu coloriu-se de tons lívidos, avermelhados, acobreados. O barómetro acentua o movimento descensional. A atmosfera apresenta todas as aparências de tempestade próxima. Por detrás das brumas acumuladas reduziu-se por tal maneira o horizonte que parece circunscrever-se ao litoral de Standard-Island.
Ao cair da noite rompem medonhas rajadas de vento. Sob a violência das vagas, que o impelem pela parte inferior, rangem compartimentos, quebram-se cruzetas, despedaçam-se chapas. Por toda a parte se ouvem estalidos metálicos. As avenidas da cidade, os relvados do parque ameaçam entreabrir-se... Por isso, ao chegar a noite, Milliard-City é abandonada pelos campos, que, menos sobrecarregados de pesadas edificações, oferecem mais segurança. A população inteira dissemina-se entre os dois portos e as baterias do Esporão e da Popa.
Por volta das nove horas, um brusco repelão sacode Standard-Island até aos seus fundamentos. A fábrica de Tribord-Harbour, que fornecia a luz eléctrica, acaba de se despenhar no abismo. É tão profunda a escuridão que não deixa ver nem céu nem mar.
Dentro em pouco, novos tremores de terra anunciam que as casas começam a desmoronar-se como castelos de cartas. Daí a poucas horas, nada restará da superstrutura de Standard-Island!
- — -Meus senhores — diz o comodoro Simcoe — , não podemos permanecer mais tempo no Observatório, que ameaça ruína. Vamos para o campo, onde aguardaremos o fim da tempestade.
— É um ciclone — elucida o rei de Malecárlia, mostrando o barómetro, que desceu a 713 milímetros.
Com efeito, a ilha de hélice está sob a influência de um desses movimentos ciclónicos que actuam como possantes condensadores. Estas tempestades giratórias, constituídas por massa de água redemoinhada em torno de um eixo quase vertical, propagam-se de oeste para leste, passando pelo sul para o hemisfério austral. Um ciclone é por excelência o meteoro fecundo em desastres e, para lhes escapar, é preciso chegar ao centro, que é relativamente sereno, ou, pelo menos, à parte direita da trajectória, o «semicírculo manejável», subtraído à fúria das vagas. Mas esta manobra é impossível por falta de motores. Desta vez não é nem a tolice humana nem a teimosia imbecil dos seus chefes que arrasta Standard-Island, é um formidável meteoro que vai acabar de aniquilá-la.
O rei de Malecárlia, o comodoro Simcoe, o coronel Stewart, Sebastião Zorn e os seus colegas, os astrónomos e os oficiais abandonam o Observatório, onde já não estão seguros. Era tempo! Duzentos passos dados, desaba a alta torre com um estrondo horrível, fura o solo do square, e some-se no abismo.
Dali a um instante, o edifício inteiro não passa de um montão de ruínas.
Entretanto, o quarteto lembra-se de subir pela Primeira Avenida e de correr ao Casino, onde se acham os seus instrumentos, que os artistas querem salvar, sendo possível. O Casino conserva-se ainda de pé, conseguem chegar lá, sobem aos seus quartos, levam os dois violinos, a violeta e o violoncelo para o parque, aonde vão procurar refúgio.
Aí estão reunidos muitos milhares de pessoas das duas secções. Encontram-se ali as famílias Tankerdon e Cover-ley, e talvez que para elas seja uma fortuna não poderem ser vistas nem reconhecidas no meio das trevas.
Walter teve, contudo, a felicidade de se reunir a Miss Dy Coverley. Procurará salvá-la no momento da suprema catástrofe... Tentará agarrar-se com ela a qualquer destroço...
A rapariga adivinhou que o seu namorado está perto dela, e escapa-lhe este grito:
— Ah! Walter!
— Dy... minha querida Dy... estou aqui! Nunca mais a largarei.
Quanto aos nossos parisienses, esses não quiseram separar-se. Conservam-se uns ao pé dos outros. Frascolin não perdeu nem de leve o sangue-frio. Yvernés está muito nervoso. Pinchinat tem a resignação irónica.
Sebastião Zorn, esse repete a Atanásio Dorémus, o qual se decidiu por fim a reunir-se aos seus compatriotas:
— Bem prognostiquei eu que isto havia de acabar mal! Bem dizia eu!
— Deixa-te de tremolos em tom menor — grita-lhe Sua Alteza — e enfia pela goela abaixo os teus salmos da penitência!
Cerca da meia-noite, o ciclone redobra de violência. Os ventos que convergem encapelam vagas monstruosas e precipitam-nas de encontro a Standard-Island. Para onde a levará esta luta dos elementos? Acaso irá despedaçar-se em algum escolho? Desconjuntar-se-á em pleno oceano?
Agora, o seu casco está esburacado em mil pontos. As juntas estalam por todos os lados. Os monumentos, Saint-Mary Church, o templo, o palácio municipal, acabam de desabar e de se sumir nessas chagas hiantes pelas quais o mar jorra em repuxos potentes. Desses edifícios magníficos não se encontraria já um único vestígio. Que de riquezas, que de tesouros, quadros, estátuas, objectos de arte, aniquilados de vez! A população não tornará a ver um só resquício dessa soberba Milliard-City, quando romper o dia, se antes disso ela não se submergir com Standard-Island!
Com efeito, já o mar começa a estender-se pelo parque, pelos campos, onde o subsolo resistiu. A linha de flutuação baixou mais ainda. O nível da linha de hélice chegou ao nível do mar, e o ciclone arremessa para cima dela os vagalhões tremendos do mar largo!
Já não há abrigo nem refúgio em parte nenhuma. A bateria do Esporão, que está então a barlavento, não oferece nenhuma protecção nem contra os escarcéus, nem contra as rajadas, que açoutam como a metralha.
Escancaram-se os compartimentos, e o desconjuntamento propaga-se com um estrondo capaz de dominar os mais violentos ribombos do trovão... Aproxima-se a suprema catástrofe.
Pelas três horas da madrugada, fende-se de meio a meio o parque, conforme o leito da Serpentine-river, e por essa incisão jorra o mar em catadupas espessas.
Urge fugir quanto antes, e toda a população se dispersa pelos campos. Uns correm para os portos, outros para as baterias. Há famílias separadas, mães que debalde procuram os filhos, enquanto as vagas desenfreadas varrem a superfície de Standard-Island, como o faria um macaréu gigantesco.
Walter Tankerdon, que se não afastou de Miss Dy, quer conduzi-la para o lado de Tribord-Harbour. Ela não tem forças para o seguir. Ele ergue-a quase inanimada, leva-a nos braços, vai assim através dos gritos de pavor da multidão, no meio desta escuridão horrorosa...
Às cinco horas da manhã, ouve-se um novo dilaceramento de metais na direcção de leste.
Acaba de se desligar de Standard-Island um pedaço de uma meia milha em quadrado.
É Tribord-Harbour, são as suas fábricas, as máquinas, os seus armazéns que vão à tona de água...
Sob as lufadas cada vez mais medonhas do ciclone, então no cúmulo da violência, Standard-Island é sacudida como um destroço de naufrágio... O casco acaba de se desconjuntar... Separam-se compartimentos, e alguns, sobrecarregados de água, somem-se nas profundezas do oceano.
— Depois do crack da Companhia, o crack da ilha de hélice! — exclama Pinchinat.
E este dito resume a situação.
Agora, da maravilhosa Standard-Island restam apenas pedaços dispersos, semelhantes aos fragmentos esporádicos de um cometa despedaçado, que flutuam, não no espaço, mas na superfície do Pacífico!
DESENLACE
Ao romper da alvorada, eis o que teria lobrigado um observador se tivesse dominado estas paragens à altura de algumas centenas de pés: três fragmentos de Standard-Island, medindo entre dois e três hectares cada um, flutuam por aqueles paramos; uns doze de menor tamanho sobrenadam à distância de umas dez amarras uns dos outros.
O decrescimento do ciclone começou às primeiras claridades do dia. Com a rapidez especial destas grandes perturbações atmosféricas, o seu centro deslocou-se coisa de trinta milhas para leste. Todavia o mar, tão medonhamente sacudido continua monstruoso, e estes destroços, grandes ou pequenos, jogam e balançam como navios num oceano furioso.
A parte de Standard-Island que mais sofreu foi a que servia de base a Milliard-City. Essa soçobrou de todo ao peso dos edifícios. Debalde se procurava qualquer vestígio dos monumentos, dos palácios que marginavam as principais avenidas das duas secções! Nunca foi mais completa a separação dos Bombordenses e dos Estibor-denses e não era decerto assim que eles a sonhavam!
Acaso é considerável o número das vítimas? Há motivos para ter esse receio, se bem que a população se houvesse refugiado a tempo nos campos, onde o solo oferecia mais resistência ao desmembramento.
E então agora? Estão satisfeitos esses Coverley, esses Tankerdon, com os resultados que se devem à sua criminosa rivalidade? Não será já um deles quem governe com exclusão do outro! Subverteu-se Milliard-City, e com ela o preço enorme por que a pagaram! Mas nada de ter piedade pela sua sorte! Restam-lhes ainda milhões de sobra nos cofres dos bancos americanos e europeus para que lhes fique garantido na velhice o pão quotidiano!
O fragmento de maiores dimensões compreende esse trecho de campo que se estendia entre o Observatório e a bateria do Esporão. A sua superfície anda por três hectares, nos quais os náufragos — não é o nome que lhes convém — estão acumulados em número de três mil.
O segundo fragmento, de dimensões um pouco menores, conservou certas edificações que estavam próximas de Babord-Harbour, o porto com muitos depósitos de provisões e uma das cisternas de água doce. Quanto à fábrica de energia eléctrica, edifícios das máquinas e das fornalhas, esses desapareceram com a explosão das caldeiras.
É este último fragmento que serve de refúgio a dois mil habitantes. Talvez se possa estabelecer comunicação com o primeiro destroço, se é que não desapareceram todas as embarcações de Babord-Harbour.
Pelo que respeita a Tribord-Harbour, está na memória dos leitores que esta parte de Standard-Island se desprendeu violentamente pelas três horas da madrugada e sem dúvida soçobrou, porque, por mais que se alongue a vista, não se vê sinal dela.
Com os dois primeiros fragmentos vê-se um terceiro à tona de água, de uma superfície de quatro a cinco hectares, compreendendo a porção de campo que confinava com a bateria da Popa, e no qual se encontram cerca de quatro mil náufragos.
Finalmente, uma dúzia de pedaços, medindo cada um alguns centos de metros quadrados, dão asilo ao resto da população salva do desastre.
Eis tudo o que resta do que foi a Jóia do Pacífico!
Cumpre, pois, avaliar em muitas centenas as vítimas da catástrofe. E ainda se devem dar graças a Deus por Standard-Island não ser tragada de todo pelas ondas do Pacífico! E acaso sobreviverá uma única testemunha deste sinistro, sem precedentes na necrologia marítima?
Não, urge não perder a esperança. Esses pedaços, que vogam ao deus-dará, transportam homens enérgicos, que porão em prática tudo quanto possa concorrer para a salvação comum.
É na parte adjacente à bateria do Esporão que estão reunidos o comodoro Simcoe, o rei e a rainha de Malecárlia, o pessoal do Observatório, o coronel Stewart, alguns dos seus oficiais, um certo número dos notáveis de Milliard-City, os membros do clero, finalmente, uma parte importante da população.
Aí também se encontram as famílias Coverley e Tankerdon, acabrunhadas pela medonha responsabilidade que pesa sobre os seus chefes. E não se sentem elas já feridas nas suas mais caras afeições, pela desaparição de Walter e de Miss Dy? Seriam recolhidos em qualquer dos outros fragmentos? Poderão conservar-se esperanças de os tornar a ver?
O Quarteto Concertante, assim como os seus preciosos instrumentos, está completo. Para empregar uma fórmula conhecida, «só a morte poderia separá-los!» Fras-colin encara a situação com sangue-frio e não perdeu todas as esperanças. Yvernés, que tem por hábito considerar as coisas pelo lado extraordinário, exclamou perante este desastre:
— Difícil seria imaginar um fim mais grandioso!
Quanto a Sebastião Zorn, esse está fora de si. Nem o consola o facto de ter sido bom profeta, prognosticando as desventuras de Standard-Island, como Jeremias as desgraças de Sião.
Tem fome, tem frio, está constipado, tem ataques de tosse muito violentos, sucedendo-se sem interrupção. E o incorrigível Pinchinat a dizer-lhe:
— Ai! meu velho Zorn! Vê lá se pões aí um compasso de espera!
O violoncelista tem ganas de estrafegar Sua Alteza, o caso era ter força para isso.
E Calistus Munbar? Esse é simplesmente sublime! Sim. sublime! Não quer desesperar nem da salvação dos náufragos, nem da salvação de Standard-Island. Hão-de expatriar-se... Há-de consertar-se a ilha de hélice... Os fragmentos ainda não estão em mau estado, e não se há-de dizer que os elementos tenham levado o melhor dessa obra-prima de arquitectura naval!
O que é certo é que o perigo deixou de ser iminente. Tudo o que devia soçobrar durante o ciclone soçobrou com Milliard-City, os monumentos, os palácios, as habitações, as fábricas, as baterias, toda essa superstrutura de considerável peso. Naquele momento, os destroços estão em boas condições, a sua linha de flutuação elevou-se manifestamente, e as vagas já não lhes varrem a superfície.
Há, pois, um sério recalmão, umas melhoras tangíveis, e, como está afastada da ameaça de submersão imediata, é melhor o estado sintomático dos náufragos. Renasce um pouco a serenidade nos espíritos. Apenas as mulheres e as crianças, incapazes de raciocinar, não podem dominar o pavor.
E que aconteceu a Atanásio Dorémus? Logo no começo da catástrofe o professor de dança e de prendas de sala se viu arrebatado com sua velha criada em cima de um dos destroços. Mas uma corrente veio trazê-lo para o fragmento onde se encontravam os seus compatriotas do quarteto.
Entretanto, o comodoro Simcoe, como um capitão de um navio desmantelado, auxiliado pelo seu zeloso pessoal, pôs mãos à obra. Em primeiro lugar, será possível reunir os pedaços que flutuam isolados? Sendo isso impossível, poderá estabelecer-se comunicação entre eles? Esta última questão é sem demora resolvida afirmativamente, porque há muitas embarcações intactas em Babord-Harbour. Mandando-as de um para outro destroço, o comodoro Simcoe ficará sabendo de que recursos se pode dispor, quanto resta de água doce, quanto resta de víveres.
Mas haverá meio de marcar a posição desta flotilha de destroços em latitude e em longitude?
Não! À falta de instrumentos para tomar a altura, não é possível determinar o ponto, saber se a dita flotilha está próxima de um continente ou de uma ilha.
Pelas nove horas da manhã, o comodoro Simcoe embarca com dois dos seus oficiais numa lancha que foi mandada de Babord-Harbour. Esta embarcação permite-lhe visitar os diversos fragmentos, e eis o que se verifica no decurso desse inquérito.
Os aparelhos destilatórios de Babord-Harbour estão destruídos, mas a cisterna ainda contém água potável para uns quinze dias, se se reduzir o consumo ao estritamente necessário.
Quanto às reservas dos armazéns do porto, podem elas assegurar a alimentação dos náufragos durante um lapso de tempo pouco mais ou menos igual.
É, pois, indispensável que dentro de duas semanas, quando muito, os náufragos tenham aportado a algum ponto do Pacífico.
Estas informações são até certo ponto tranquilizadoras. Todavia, o comodoro Simcoe vê-se constrangido a reconhecer que esta noite terrível fez muitas centenas de vítimas. Quanto às famílias Tankerdon e Coverley, é inexprimível a sua dor.
Nem Walter nem Miss Dy foram encontrados nos destroços visitados pela embarcação. No momento da catástrofe, o mancebo, levando nos braços a noiva desfalecida, dirigira-se para Tribord-Harbour, e desta parte de Standard-Island nada resta à superfície do Pacífico...
De tarde, tendo o vento abonançado de hora para hora, o mar caiu também, e os fragmentos mal sentem as ondulações largas. Graças à carreira estabelecida pelas embarcações de Babord-Harbour, o comodoro Simcoe ocupa-se em prover à alimentação dos náufragos, distribuindo-lhes apenas o que basta para não morrerem de fome.
Demais a mais, as comunicações cada vez são mais fáceis e mais rápidas. Os diversos fragmentos, obedecendo às leis da atracção, como pedaços de cortiça à superfície de uma bacia cheia de água, tendem a aproximar-se uns dos outros. E como é que isto não havia de parecer de bom agouro ao esperançado Calistus Munbar, que entrevê a reconstituição da sua Jóia do Pacífico?
Decorre a noite em profunda escuridão. Vai longe o tempo em que as avenidas de Milliard-City. as ruas dos bairros mercantis, os alfobres do parque, os campos e os prados resplandeciam à luz dos focos eléctricos, em que as luas de alumínio jorravam profusamente uma claridade deslumbrante pela superfície de Standard-Island.
No meio das trevas deram-se algumas colisões entre muitos dos fragmentos. É impossível evitar estes choques, mas por fortuna não tiveram eles tanta violência que causassem danos sérios.
Ao romper do dia, averigua-se que os destroços estão muito próximos e flutuam de conserva sem se chocarem no mar sereno e chão. Com algumas remadas passa-se de um para outro. O comodoro Simcoe facilitou tudo para regularizar o consumo dos víveres e de água doce. É essa a questão capital, bem o compreendem os náufragos, que se resignam.
As embarcações transportam muitas famílias, que andam à procura dos seus que não tornaram a ver. Que júbilo o daquelas que conseguem reunir-se, sem se afligirem com os perigos que as ameaçam.
Que angústias para as outras, que debalde invocaram os ausentes!
Evidentemente, uma das maiores felicidades é ter o mar abonançado. É talvez lamentável, contudo, que o vento não tenha continuado a soprar do sueste. Teria ajudado a corrente que, nesta parte do Pacífico, se dirige às terras australianas.
Por ordem do comodoro Simcoe, postam-se vigias de forma que possam observar o horizonte em todo o seu perímetro. Se aparecer algum navio, far-lhe-ão sinais. Mas raros são os que passam por estas paragens longínquas nesta época do ano em que rebentam as tempestades equinociais.
É, pois, bem falível a probabilidade de descortinar algum fumo a enovelar-se acima da linha do céu e da água, alguma vela a recortar-se no horizonte... E, no entanto, por volta das duas horas da tarde, recebe o comodoro Simcoe a seguinte comunicação de uma das vigias:
— Ao rumo de nordeste, avista-se um ponto que se desloca sensivelmente, e embora se não distinga o casco, é certo que passa um navio à vista de Standard-Island.
Esta notícia provoca uma agitação extraordinária. O rei de Malecárlia, o comodoro Simcoe, os oficiais, os engenheiros, todos convergem para o lado onde acabava de se avistar o navio. Dá-se ordem para lhe chamar a atenção, já içando bandeiras no tope das antenas, já por meio de detonações simultâneas das armas de fogo de que se pode dispor. Se chegar a noite antes de se perceberem estes sinais, acender-se-á uma fogueira no fragmento testa de coluna, e, durante a noite, como será visível a grande distância, é impossível não darem por ele.
Não foi preciso esperar até à noite. A massa de que se trata aproxima-se visivelmente. Por cima dela desenvolve-se uma fumarada espessa, e não há dúvida de que ela procura acercar-se dos restos de Standard-Island.
Os óculos não a perdem de vista, conquanto o casco esteja pouco elevado acima do nível do mar e ela não possua mastreação nem velame.
— Meus amigos — exclama de repente o comodoro Simcoe — , não me engano! É um pedaço da nossa ilha... e não pode ser senão Tribord-Harbour, que foi arrastada para o largo pelas correntes! Somwah conseguiu fazer reparações na máquina e dirige-se para nós!
Acolhem esta notícia demonstrações de júbilo que atingem a loucura. Parece que está agora certa a salvação de todos! É como uma parte vital de Standard-Island que lhes volta com esse pedaço de Tribord-Harbour!
Com efeito, o caso passou-se como supôs o comodoro Simcoe. Depois do dilaceramento, Tribord-Harbour, apanhado por uma contracorrente, foi impelido para o nordeste. Quando raiou o dia, o Sr. Somwah, oficial do porto, depois de fazer alguns reparos na máquina levemente danificada, voltou para o teatro do naufrágio, trazendo ainda consigo muitas centenas de sobreviventes. Passadas três horas, Tribord-Harbour está apenas à distância de uma amarra da flotilha... E que transportes de alegria, que brados entusiásticos acolhem a sua chegada! Junto um do outro, tendo conseguido refugiar-se ali antes da catástrofe, vêem-se Walter Tankerdon e Miss Dy Coverley...
Entretanto, desde a chegada de Tribord-Harbour com as suas reservas de víveres e de água, entrevêem-se algumas esperanças de salvação. Esses armazéns possuem uma quantidade suficiente de combustível para mover as máquinas, alimentar dínamos, actuar sobre as hélices durante alguns dias. Esta força de cinco milhões de cavalos, de que ele dispõe, deve permitir-lhe o alcançar a terra mais próxima. Essa terra é a Nova Zelândia, segundo as observações feitas pelo oficial do porto.
Mas a dificuldade é que esses milhares de pessoas possam tomar passagem em Tribord-Harbour, cuja superfície não excede seis a sete mil metros quadrados. Ver-se-ão reduzidos a mandar buscar socorros a cinquenta milhas de distância?
Não! Esta navegação exigiria um tempo considerável, e as horas estão contadas. Não há um dia a perder, com efeito, se se quiser livrar os náufragos dos horrores da fome.
— Temos recurso melhor — lembra o rei de Malecárlia. — Os fragmentos de Tribord-Harbour, da bateria do Esporão e da bateria da Popa podem transportar a totalidade dos sobreviventes de Standard-Island. Liguemos estes três fragmentos com fortes amarras, e ponhamo-los em fila, como os lanchões atrás de um rebocador. Depois, Tribord-Harbour que tome a dianteira, e, com os seus cinco milhões de cavalos, levar-nos-á à Nova Zelândia!
O conselho é excelente, é prático, tem todas as probabilidades de êxito, desde o momento em que Tribord-Harbour dispõe de tão poderosa força locomotriz. Volta a confiança ao ânimo da população, como se já estivesse à vista de um porto.
Emprega-se o resto do dia nos trabalhos necessários para a amarração por meio de correntes de ferro fornecidas pelos armazéns de Tribord-Harbour.
Calcula o comodoro Simcoè que, nestas condições, esse rosário flutuante poderá andar de oito a dez milhas em vinte e quatro horas. Portanto, dentro de cinco dias, auxiliado pelas correntes, terá vencido as cinquenta milhas que o separam de Nova Zelândia. Ora há a certeza de que as provisões podem durar até essa data. Todavia, por prudência, na eventualidade de qualquer demora, manter-se-á com todo o rigor o arraçoamento.
Terminados os preparativos, Tribord-Harbour toma a frente do rosário pelas sete horas da noite. Sob a propulsão das suas hélices, os dois fragmentos, por ele rebocados, deslocam-se lentamente por esse mar chão.
No dia seguinte, ao romper da alva, as vigias perderam de vista os últimos destroços de Standard-Island.
Não há incidente a mencionar nos dias 4, 5, 6, 7 e 8 de Abril. O tempo é favorável, a vaga mal se percebe e a navegação efectua-se em condições excelentes.
Pelas oito horas da manhã, a 9 de Abril, dá-se o sinal de terra pela amura de bombordo — terra alta, que se pode avistar a grande distância.
Marcado o ponto com os instrumentos conservados em Tribord-Harbour, não há dúvida nenhuma sobre a identidade desta terra.
É a ponta de Ika-Na-Mawi, a grande ilha setentrional da Nova Zelândia.
Passa-se ainda um dia e uma noite, e na manhã seguinte, a 10 de Abril, Tribord-Harbour vem encalhar a uma amarra do litoral da baía Ravaraki.
Que satisfação, que segurança não experimenta toda esta população ao sentir debaixo dos pés a terra verdadeira e não esse solo factício de Standard-Island! E, todavia, quanto tempo não teria durado este sólido aparelho marítimo se as paixões humanas, mais fortes que os ventos e os mares, não houvessem trabalhado para a sua destruição!
Os náufragos são recebidos com toda a hospitalidade pelos neozelandeses, que se apressam a abastecê-los de tudo quanto necessitam.
Logo à chegada a Auckland, capital de Ika-Na-Mawi, celebra-se, finalmente, o casamento de Walter Tankerdon e de Miss Dy Coverley, com toda a pompa que as circunstâncias comportam. Acrescentemos que o Quarteto Concertante faz-se ouvir pela última vez nesta cerimónia, à qual quiseram assistir todos os Milliardenses. É essa uma união que deve ser próspera, e pena é que se não tivesse realizado mais cedo, para interesse comum! É certo que os noivos não possuem mais de um pobre milhão de rendimento cada um...
Mas, como observa Pinchinat, tudo leva a crer que ainda encontrarão felicidade nesta medíocre situação da fortuna!
Quanto aos Tankerdon, aos Coverley e outros notáveis, o seu projecto é voltarem para a América, onde não terão mais desavenças sobre o governo de uma ilha de hélice.
A mesma determinação pelo que respeita ao comodoro Simcoe, ao coronel Stewart, e aos oficiais, ao pessoal do Observatório e até ao superintendente Calistus Munbar, que está, em todo o caso, bem longe de renunciar à ideia de fabricação duma nova ilha artificial.
O rei e a rainha de Malecárlia não dissimulam as saudades que têm dessa Standard-Island, na qual esperavam terminar a existência! Esperamos que os ex-soberanos sempre encontrem um cantinho da Terra onde acabem os últimos dias ao abrigo de dissensões políticas!
E o Quarteto Concertante?
Pois diga lá o que disser Sebastião Zorn, o Quarteto Concertante não fez mau negócio, e seria ingratidão estar ainda zangado com Calistus Munbar, por o ter embarcado contra sua vontade.
Com efeito, desde 25 de Maio do ano anterior até 10 de Abril do presente, decorreram pouco menos de onze meses, durante os quais os nossos artistas viveram a vida regalada que se sabe. Receberam os quatro trimestres do seu ordenado, três dos quais estão depositados nos bancos de São Francisco e de Nova Iorque, os quais os entregarão à sua ordem em lhes convindo...
Depois da cerimónia do casamento em Auckland, Sebastião Zorn, Yvernés, Frascolin e Pinchinat foram despedir-se dos seus amigos, sem esquecer Atanásio Dorémus.
Em seguida embarcaram num vapor com destino a San Diego.
Chegados a 3 de Maio a esta capital da Baixa Califórnia, o seu primeiro cuidado é desculparem-se, por intermédio dos jornais, por terem faltado à sua palavra onze meses antes, e expressarem o seu vivo pesar por se terem feito esperar.
— Meus senhores, ainda éramos capazes de estar à vossa espera vinte anos mais!
Tal é a resposta do amável director dos saraus musicais de San Diego.
Não é possível ser-se mais indulgente nem mais delicado. Por isso, a única maneira de reconhecer tamanha cortesia é dar o concerto há tanto tempo anunciado!
E perante um público tão numeroso quanto entusiasta, o quarteto em fá maior, Op. 9, de Mozart, vale aos virtuosos, escapos do naufrágio de Standard-Island, um dos maiores triunfos da sua carreira de artistas.
Assim termina a história dessa maravilha do mundo, dessa incomparável Jóia do Pacífico! Bom é tudo quanto acabe bem, diz o vulgo, mas mau é tudo quanto acaba mal, e não é esse o caso de Standard-Island?
Acabada, não! Qualquer dia há-de ela ser reconstruída, ao que pretende Calistus Munbar.
E, no entanto — nunca é demais repeti-lo — , criar uma ilha artificial, uma ilha que se desloca pela superfície dos mares, não é porventura transcender os limites concedidos ao génio humano, e não será defeso ao homem, que não dispõe dos ventos nem das ondas, usurpar tão temeràriamente o que pertence ao Criador?
Júlio Verne
O melhor da literatura para todos os gostos e idades