Horácio Nunes
PERSONAGENS: MAJOR ANACLETO DA TRINDADE (45 anos) PANTALEÃO PEROBA (50 anos) JUCA (25 anos) SERAFIM (35 anos) ANTÔNIO (30 anos) ROMUALDO (20 anos) QUINCAS (28 anos) JOSÉ CAOLHO (personagem mudo – 40 anos) MANDUCA (18 anos) ROSALINA (17 anos) RITA (60 anos) CONVIDADOS RAPAZES Ação: na roça. Ano: 1881.
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ATO I O CANDIDATO
(Sala da roça, simples, mas bem arranjada. — Ao fundo e à esquerda, portas. — À direita, no primeiro plano, uma janela; no segundo plano, uma porta — Entre a porta e a janela, um aparador com espelho e dois vasos com flores. — À esquerda, entre portas, outro aparador com vasos e um lampião com o competente abajur. — Sofá e cadeiras. — Junto do sofá uma cadeira de braços; ao lado oposto da cena, outra cadeira igual. — É dia)
CENA I Juca e Rosalina.
(Juca, sentado no sofá, lê um livro. — Rosalina, que principia a cantar, dentro, termina a última parte em cena, entrando pela esquerda alta. — Apenas começa o canto, Juca fecha o livro e fica como embevecido) ROSALINA Amor! amor! O amor é riso, é canto, aurora, aroma flor, o mais divino encanto, o júbilo maior! Amor! amor! Amor! amor! O sol das alegrias, da vida o são calor, o céu das harmonias, o riso, o canto, a flor! amor! amor! Alma que vive sem ter amores, sem ter os gozos da uma paixão, é fria e triste — bem como as flores já desfolhadas — no pó do chão! Amor afasta todas as dores, mata as tristezas da solidão, traz dos prazeres as puras flores, enche de galas o coração! Amor! amor! O amor é riso, é canto, aurora, aroma, flor, o mais divino encanto, o júbilo maior! Amor! amor!
Amor! amor! O sol das alegrias, da vida o são calor, o céu das harmonias, o riso, o canto, a flor! Amor! amor! JUCA (tomando-lhe as mãos, com ardor) Rosalina! ROSALINA Achas bonita a minha canção de amor? JUCA Acho-a divina... divina como tu! ROSALINA (coquete) Obrigada. Lisonjeiro... como sempre! JUCA Tu não és mulher, não! — Esplêndido composto de perfumes sutis e pétalas de rosas, de alvoradas de maio e luz de céus de agosto, dos ardores do sol e pérolas custosas. Um dia apareceste, e as lúcidas auroras, as pérolas do mal e os célicos perfumes, o sol, o céu, a luz, as vibrações sonoras, curvaram-se a teus pés, — frementes de ciúmes... Do teu berço gazil — conjunto primoroso de suspiros de amor e azul vago do espaço, surgiste, como surge um astro vaporoso de nuvens de ouro e luz no lúcido regaço. Cresceste, como cresce a flor púrpura e bela, cheia de amor e seiva e seduções e festa, somo cresce com a treva o brilho de uma estrela, como cresce com a noite a sombra da floresta... Tu não és mulher, não! — Esplêndido composto de perfumes sutis e pétalas de rosas, de alvoradas de maio e luz de céus de agosto, dos ardores do sol e pérolas custosas. ROSALINA (fitando-o, como que receosa) Sabes?... Há momentos em que tenho medo de ti! JUCA (sorrindo) Por quê? ROSALINA Porque, quando me falas, como agora, há tanto ardor nas tuas palavras, tanto brilho nos teus olhos, tanta veemência na tua voz, que tetransfiguras, que deixas de ser um homem, para ser uma visão de sonho, uma idealidade produzida pela febre, um ser encantado, que me atrai, que me deslumbra, que me leva nas asas douradas de um desejo sem limites a terras maravilhosas, cheias de sol, de flores, de canções extraordinárias, de amores suavíssimos, que não nos é dado gozar na terra!... Por que é que me olhar assim e me falas com tamanho ardor? JUCA Porque tenho os olhos cheios da tua beleza e o coração cheio da tua imagem... Quando te contemplo assim, parece-me que estou sonhando... parece-me que a minha alma desprende-se de tudo quanto é terreno, que voa às regiões infinitas e que adeja serenamente nos espaços translúcidos de uma felicidade suprema! ROSALINA (sentando-se no sofá e tomando o livro que Juca deixara) Ainda há pouco, li isso mesmo... JUCA Onde?
ROSALINA Nos teus olhos... e neste livro. JUCA (sentando-se na cadeira junto do sofá) Já houve quem afirmasse que os poetas não dizem o que sentem; que nas suas estrofes, mesmo as mais inspiradas, as mais sublimes, não é o coração que fala, não é a alma que canta, mas unicamente a ambição do renome, o desejo da glória... ROSALINA E não é? JUCA Não. Caluniaram os pobres cisnes que, mesmo agonizantes, cantam, como canta o cisne moribundo das ribas... o amor, a saudade, as tristezas, as próprias agonias, que hão de um dia matá-los. ROSALINA Ah! JUCA (tomando o livro) Se a verdade já foi alguma vez dita na terra, ela está aqui neste livro, inteiramente divina na sua pureza celestial. A poesia é a mais perfeita e a mais ampla expressão do sentimento. Tentem embora sufocá-la, tentem destruí-la para sempre os materialistas que tudo encaram pelo lado mau, ela triunfará sempre de todos os ataques, porque anima-a o sopro divino, porque vem do céu toda a sua força... Já um grande homem disse que a poesia formulada e medida, — a poesia em verso, — não tardaria a desaparecer. Esse homem foi Eugênio Pelletan. E outro homem — um poeta — respondeu: — “Eu sento-me pacífico à beira da corrente dos destinos; contemplo o que me passa por diante, e com o que ainda lá vem de longe não me altero. Se eu for vivo quando já se não fizerem versos, deitar-me-ei no loureiral dos cisnes que foram e consolarme-ei facilmente ouvindo-lhes os cantares — milagrosos cantares — cujos ecos, em lugar de esmorecerem com o tempo e com a distância, se reforçam e se eternizam”. — Esse poeta foi Antônio Feliciano de Castilho. ROSALINA Conheço. Já li os “Ciúmes do Bardo.” (Recita) “Mulher pura e fiel não há nem houve Raça infame de víboras dolosas, Pudesse uma só não contê-las todas E o piloto fosse eu”... Ingrato e sem piedade para com as mulheres! JUCA Se ele não te conhecia! Uma só vez que te ouvisse, estou certo que o seu modo de pensar e de sentir sofreria uma transformação completa. ROSALINA Por quê? JUCA Porque havia de amar-te, amar-te louca, perdidamente como eu te amo! ROSALINA Mas disseste há pouco que a poesia é a mais perfeita e a mais ampla expressão do sentimento, e que se a verdade já foi alguma vez dita na terra, ela está neste livro... JUCA Sim... ROSALINA Mas quando escreveste este livro, não me conhecias, nunca me tinhas visto talvez... JUCA E o que prova isso?
ROSALINA Prova que hoje estás aqui, a meu lado, que és meu noivo, quase meu marido, e que no entretanto todos estes versos foram escritos para outra, cuja imagem enchia-te então a alma, inspirando-te com a sua beleza e os seus encantos... JUCA Estás enganada, minha querida. ROSALINA O amor que me tens jurado não é o primeiro amor da tua vida... JUCA Ainda um engano. És o meu primeiro amor, posso jurar-te. Nunca senti o meu coração palpitar por mulher alguma, como palpita por ti, nunca a minha alma recolheu-se estática na contemplação de outra mulher, como, muda, mas ardente, contempla os teus encantos. ROSALINA (sorrindo) Poesia! JUCA Sim: poesia, porque a poesia é a verdade, e eu estou dizendo a verdade. O poeta, minha querida, é um ser privilegiado, extraordinário. A sua vida é um sonho que não tem fim. Vive entre os homens, e não os vê; atravessa as multidões, e não lhes ouve o tumulto... O seu pensamento paira, além, nos espaços, voa em todas as direções, adeja no infinito do idealismo, em demanda de uma visão encantada... Como todos os poetas, criei na minha imaginação ardente, na minha alma sonhadora, no meu coração de moço, uma mulher para o meu amor, a quem eu consagrasse todo o meu sentir, todo o meu pensar, todas as minhas paixões... uma mulher bela, meiga, carinhosa, que me compreendesse e que me amasse também... Nos bailes, nos teatros, nos passeios, nas igrejas, fitava todas as mulheres, procurava ler-lhes nos olhos, no rosto, um sinal, um traço, que me dissesse: — “Eu sou a realidade do teu sonho, sou a encarnação da tua visão: — ama-me!” — Mas aqueles olhos nada me diziam, aquelas fisionomias passavam ante o meu olhar frios e mudos como o mármore, e o meu coração continuava a palpitar, — calmo e sereno como antes... ROSALINA Peregrino, não em busca da terra santa, mas de uma quimera, — viveste viúvo de um amor verdadeiro, até que vieste encontrar-me aqui... (Rindo) É poético! JUCA Encontrei-te, e encontrei em ti a realização do meu ideal, a corporização do meu sonho... Amei-te! ROSALINA (em tom de dúvida) E assim fica provado que a poesia é — a expressão da verdade? JUCA Sem dúvida. Se eu, para escrever estes versos, idealizei uma mulher, se tu és a encarnação viva, palpitante, bela do meu ideal, este livro foi escrito para ti, porque foste tu que me inspiraste... ROSALINA (rindo) A conclusão pode ser lógica; mas... JUCA Não duvides. És o meu primeiro amor. Acredita que, se por uma fatalidade qualquer, se uma desgraça inesperada viesse a quebrar os laços que nos unem, o meu sofrimento seria tão grande, como é grande a minha paixão por ti... ROSALINA Deixe estar, meu senhor. Deus é bom e não permitirá que suceda essa desgraça... Como já disse uma vez, e, com fraqueza, repito, fui volúvel, fui caprichosa, fui, às vezes, leviana mesmo... Mas a tua presença transformou-me completamente... Hoje, se me amas, não plantaste em canteiro estéreo as rosas do teu amor. Amo-te também, amo-te e tenho orgulho deste amor, que é para mim a maior, a única felicidade da minha vida... JUCA Oh! fala! A tua voz fala-me ao coração como uma harmonia dulcíssima... como uma música do céu!... Fala! fala sempre! CENA II Os mesmos e Major. MAJOR (consigo) Para deputado geral — Panta... não, Pantaleão, não... Anacleto da Trindade — major da invicta guarda nacional. ROSALINA Então, papai, como passou a noite?... Deitou-se tão tarde... MAJOR Deus te abençoe... Bom dia “seu” Juca. Como vai isso? JUCA Perfeitamente. Nem podia deixar de assim ser desde que foi aqui que vim encontrar a felicidade. MAJOR Pois sim... compreendo... Mas eu já não posso dizer o mesmo. Em primeiro lugar, a cabala para a minha eleição tem-me dado água pela barba; depois, a ausência do Pantaleão tem-me feito pensar seriamente... Três dias para ir à cidade buscar os epitáfios!... ROSALINA Talvez que os cartões não estejam prontos... MAJOR É uma razão, é. Mas o diabo é estar a escola fechada há três dias... sobretudo agora, que o Pantaleão tem dois alunos... O inspetor das escolas, o Zé Caolho, pode dar uma parte contra o Pantaleão, e fazêlo passar um mau bocado... JUCA Não tenha receio, major. Quem faz os ofícios do Zé Caolho é o Pantaleão, porque o inspetor mal e mal assina o nome com quatro pernas de aranha. Já vê, pois, que o Pantaleão está garantido... E a propósito do Zé Caolho, informe-me de uma coisa: o homem é mudo? MAJOR Não. Por quê? JUCA Porque desde que aqui estou ainda não o ouvi dizer uma única palavra. Para cumprimentar, sim, é um “barra” tão “barra” como o Pantaleão para fazer discursos... MAJOR Não é mudo, não. É acanhado. Diante de gente não abre o bico, nem que o rachem de meio a meio... Mas é muito atencioso, muito cortês. ROSALINA E muito aborrecido com os seus cumprimentos. MAJOR Pois não sei mesmo a que atribuir esta demora do Pantaleão. Para dizer que o rapaz está doente... Mas se tivesse adoecido, escrevia-me logo... Ouvi dizer que estava aberto o recrutamento... Ora, não me fossem catrafilar o Pantaleão para soldado! JUCA Ora, qual! O pantaleão já não está em idade de ser soldado. ROSALINA É muito velho já, papai. Não tenha cuidado. O que pode suceder é o senhor Pantaleão arder de paixão por alguma moça da cidade... E ele que é tão sensível! MAJOR Pode muito bem ser assim. Por que não?... O Pantaleão é velhusco, mas ainda tem sangue no olho, ainda se entusiasma à vista de uma moça bonita! Houve tempo em que pensei que aquilo era bananeira que já tinha dado cacho; mas depois que o vi formalizar-se pela filha do Zé Caolho e por ti, convenci-me de que nas veias daquele mariola ainda corre sangue... JUCA Debaixo dos gelos há vulcões... MAJOR Mas é infeliz nos amores... Coitado! Pois não merece aquele caiporismo... Instruído, talentoso, elegante, profundo mesmo... O meu amigo, que já o conhece, sabe-lhe a força. A minha opinião a respeito dele é inabalável: — o Pantaleão é um poço! JUCA De que, major? MAJOR (admirado) De quê?... Ora, essa! É um poço de “saberância”! Convença-se, “seu” Juca! o Pantaleão, em outra parte, ia longe, ia muito longe... Mas meteu-se aqui, a ensinar rapazes, quando os tem, e a dormir, quando não tem rapazes para ensinar, perdendo-se assim um homem extraordinário! ROSALINA É exato, papai. O senhor Pantaleão dorme mais do que ensina, porque há meses em que não vai à escola um só aluno. JUCA Um dia destes, passei pela escola, e lá o vi... adivinham fazendo o que... MAJOR À janela, aquecendo-se ao sol, como um lagarto. É o costume dele. JUCA Nada. Vi-o armado com uma cana, a matar traçar nas paredes. Quanto a alunos, se fosse preciso fazer uma cataplasma de um aluno do Pantaleão para um doente... o doente morria por falta de remédio. MAJOR Tem agora dois alunos: o filho do João Pelota e o sobrinho da Rita Barbada, o Manduca. Ouvi dizer que também vai entrar o afilhado do Manoel Carocha... Diz o Pantaleão que o sobrinho da Rita é um talento!... JUCA Um poço, major, um poço! MAJOR Nada... Há de ser mais tarde, se não abandonar os estudos com o Pantaleão. ROSALINA Mas já podia ser também um poço... não tão grande como o senhor Pantaleão, mas... um poçinho! JUCA É exato: um poçinho! MAJOR O “seu” Juca sabe que o Pantaleão tem obrigação de ensinar somente primeiras letras aos rapazes; mas verificando que o rapazola...
ROSALINA (rindo) É um poçinho... MAJOR Ora bolas! Não me cortes o discurso!... Como ia dizendo: verificando que o rapazola é um talento, principiou a ensinar-lhe história e geografia... JUCA E ele que sabe história como gente! MAJOR E sabe, lá isso sabe... Diz ele que o pequeno é uma coisa admirável!... que aprende com a mesma facilidade com que um burro carrega uma carga de laranjas! JUCA (rindo) Bravo! ROSALINA (ao mesmo tempo) Muito bem! MAJOR Por que é que vocês riem-se? ROSALINA Pela bonita comparação do senhor Pantaleão. MAJOR Está tão entusiasmado o homem, que pretende levar brevemente o Manduca à cidade para apresentá-lo ao diretor geral como raridade... (Incomodado) E no entretanto, a tia, a Rita Barbada — uma estúpida, um animal de saias — quer tirar o rapaz da escola do Pantaleão para mandá-lo aprender a tocar gaita!... Ora, “seu” Juca, isto é uma miséria! Um rapaz que ainda pode vir a fazer um figurão na política!...
ROSALINA Oh! papai, pois aquele amarelo pode fazer figura nenhuma! MAJOR Essa é boa! Tu não entendes disto, rapariga... Mete-te com os teus livros de verso e de histórias da carochinha, e deixa a política para nós... Pois, mesmo assim amarelo, pode fazer um figurão, sim, senhora, se souber ser velhaco... Eu, que aqui estou, meu amigo, fui feito alferes da invicta guarda nacional pelos conservadores, tenente pelos liberais, capitão pelos conservadores e major pelos liberais... Entretanto, não vai pensar que tenho vivido a mudar de partido. Nada! Firme como uma rocha: governista sempre! JUCA Sim, hein?... Mas confesso que não posso compreender... MAJOR Oh! homem de Deus! Fui sempre governista convicto! Os governos mudavam, é verdade, com a subida dos partidos; mas eu não mudava: era sempre do governo! JUCA Ah! compreendo agora. Eram os governos que viravam casaca... MAJOR Mas eu — firme, sempre firme como uma estaca! JUCA Mas como é hoje oposicionista? MAJOR Eu lhe conto. Um dia, já aborrecido de ser major, pedi ao partido que então dominava que me arranjasse o posto de coronel comandante superior. Responderam-me os chefes da capital que sentiam muito não poder servir-me, porque já estavam comprometidos com outro que tinha incontestáveis direitos ao lugar... Zanguei-me, e quis ir para o “Jornal do Comércio” dizer meia dúzia de desaforos; mas o Pantaleão, a quem tinha encarregado de escrever a descompostura, lembrou-me outro meio: — “Seja oposicionista, major” — disse-me ele. Aceitei o conselho, que me economizou pelo menos dois mil réis do anúncio no “Jornal”, e... JUCA E fez-se oposicionista? MAJOR É verdade. (Indo ao fundo) E o demônio do Pantaleão, que não aparece! Esta demora já me vai dando cuidado... Preciso distribuir sem perda de tempo os epitáfios... (Consigo) — “Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da invicta guarda nacional.” – (Outro tom) Ah! meu futuro genro, vou fazer um papelão! JUCA E conta com o triunfo na eleição? MAJOR Se conto! Segundo os cálculos do Pantaleão, — e o Pantaleão em cálculos é um... ROSALINA (que desde o começo da cena tem ido sentar-se no sofá, a ler) É um poço, papai. MAJOR É exato, é um poço... Pois — segundo os cálculos do Pantaleão, — devo vencer por força. JUCA Mas, major, compreende perfeitamente que estando eu para fazer parte de sua família, devo interessar-me pelos seus negócios, e, sobretudo, pelo seu nome... MAJOR Certamente, não há dúvida.
JUCA Pois, na minha opinião, o major deve desistir da sua candidatura. MAJOR (recuando) Desistir? (Assoando-se com força) Desistir! JUCA Sem dúvida, porque mais vale uma retirada honrada do que uma derrota. MAJOR (tornando a assoar-se) Uma derrota! JUCA Com franqueza, major: o resultado da sua eleição é uma derrota. Não vá atrás das presas do senhor Pantaleão, e desiste enquanto é tempo. MAJOR (zangado) Ora, meu amigo... ora... ora, bola! Então pensa que eu nasci ontem!... (Passeando) Desistir! Nunca!... Em primeiro lugar, seria um fiasco... em segundo lugar, a despesa dos epitáfios está feita, e não é tão pequena! JUCA Mas major, atenda... ROSALINA (indo a ele) Mas, papai, ouça... MAJOR (sempre zangado) Uma eleição tão bem encaminhada!... Se o Pantaleão não tivesse levado os apontamentos, eu lhe provava que aquilo é — pá — pu — terra, que são favas contadas!... Forte teima!... ROSALINA Está bom, papai... Não se incomode...
JUCA (à parte) Não há meio de dissuadi-lo. É uma mania! MAJOR Querem que lhes diga uma coisa? Vão passear, e deixem-me cá com a minha eleição! A minha eleição não é da conta de ninguém!... JUCA Faça o que entender. Cumpri um dever de amizade sincera, aconselhando-o. Não quis aceitar o meu conselho. É o mesmo. Lavo as minhas mãos. Se lhe suceder uma infelicidade, — o que é certo, — não poderá dizer que não houve quem lhe abrisse os olhos... Com licença... Aceito o seu conselho: — vou passear. (Sai)
CENA III Major e Rosalina.
ROSALINA (que tem indo à janela, desce, afagando o pai) Papaizinho... MAJOR (suspendendo o passeio, zangado) O que temos ainda? ROSALINA Desista, papai, desista... MAJOR Ora, já se viu uma birra igual! Parece que estão todos resolvidos a incomodar-me!... ROSALINA Mas, papai, lembre-se que os cálculos do senhor Pantaleão podem falhar... MAJOR Falharem os cálculos do Pantaleão... do Pantaleão Peroba!... do primeiro calculista do mundo!... ROSALINA Lembre-se que os votantes com quem o papai conta podem votar no outro candidato, no candidato do governo, e que o papai não obtenha voto nenhum... Que vergonha será, meu papaizinho! MAJOR Ora, que espiga! que espiga! ROSALINA Ainda se o papai fosse apresentado pelo governo, podíamos estar descansados, porque tenho ouvido dizer que os candidatos do governo ganham sempre, embora percam... Mas não é... Vai arriscarse em um jogo, cujas probabilidades são todas contra si... MAJOR Oh! senhores, que espiga!... Estou quase rebentando! De repente, rebento!... Pois se o Pantaleão garante, e quando o Pantaleão garante, duvidar da sua palavra é o mesmo que duvidar da infalibilidade do papa!... As afirmações do Pantaleão são sentenças!... “Magister dixit”... diz ele!... ROSALINA Ainda é tempo, papai... Diga que não quer ser mais deputado... que resolveu desistir... que não quer incomodar-se... MAJOR (furioso) Oh! rapariga! ROSALINA Papaizinho! MAJOR Já! Pire-se pra dentro!
ROSALINA Papai! MAJOR Pra dentro! pra dentro!... (Passeando) Estou danado! estou furioso! Estou possesso!... (Parando) A primeira vez que me vieres com essas cantigas de desistência da minha eleição, arrumo-te um puxão de orelhas tão bonito, que te arranco os dois abanos!... Salta pra dentro, já!... ROSALINA (à parte) Não há meio de convencê-lo! (Sai) CENA IV MAJOR (passeando) Desistir!... Mas é muito boa!... Este meu genro, se não é idiota, é... é... besta!... Bem queria eu que a Rosalina casasse com o Pantaleão. Aquilo, sim, é que é um homem!... (Outro tom, parando) “Para deputado geral — Anacleto Pantaleão da guarda nacional Peroba da Trindade...” Não, não é isto... CENA V Major e Serafim. SERAFIM (aparecendo à porta, receoso) Pronto, “sô manjor”. MAJOR Venha cá. SERAFIM (encostando à porta, mordendo a aba do chapéu) Estou bem, “sô manjor”... (À parte) “Exe”! MAJOR Entre, homem; não tenha medo. Não mandei chamá-lo para ir-lhe ao pelego, mas para sermos bons amigos. O que lá vai — lá vai. Você foi um pouco atrevido, foi; mas perdoo-lhe, tomando em consideração a sua estupidez... Vamos: não tenha medo, e entre. SERAFIM (como acima) Estou bem, “sô manjor”... (À parte) “Exe”! MAJOR Mau! mau! Principia você como da outra vez. Se lhe disse que não quero esmurrá-lo, conquanto tenha razões de sobre para isso... Mas sou bom homem, e não guardo raiva a ninguém... Desça e sente-se. Vamos! SERAFIM (como acima) “Exe”! O “sô manjor” está me enganando. Quer que eu entre pra me pegar à unha... Mas eu não sou “ova”!... MAJOR Ora, que diabo de homem! Oh! Serafim, você é maluco? Se eu quisesse meter-lhe o “tira-teimas”, já tinha tido muitas ocasiões de fazê-lo... SERAFIM Mas o “sô manjor” não me agarra, não? MAJOR Não agarro, não; descanse. SERAFIM “Mas porém", palavrinha? MAJOR (incomodado) Palavrinha, sim. SERAFIM (receoso, descendo pelo lado oposto ao em que está o major) Ora, vamos a ver se o “sô manjor” tem palavra...
MAJOR (à parte) É um animal esta besta! Mas como preciso do voto... (Muito amável) Sente-se, Serafim, sente-se... Olhe que eu sou seu amigo... De cá o seu chapéu... (Toma-lhe, depois de uma pequena resistência, e atira-o no chão, para o fundo) Então, meu amigo, tome uma cadeira... SERAFIM (à parte) Ou este canalha precisa de mim, ou quer me fazer alguma bandalheira! MAJOR (pondo-lhe as mãos nos ombros) Sem cerimônia... a casa é sua... Sem cerimônia... sem cerimônia... SERAFIM (obrigado pela pressão das mãos do major, cai sentado no chão) Ai! ai! “sô manjor”! MAJOR (levantando-o) Oh! meu amigo... Desculpe... Mas a culpa foi sua... (Leva-o para uma cadeira) Agora, sim. Abanque-se. SERAFIM (apalpando o assento, senta-se na beira da cadeira) Puxa palmada levei eu!... MAJOR (sentando-se) Agora tratemos do nosso negócio. Como o amigo Serafim não ignora, a eleição está nos batendo à porta, e vai ser uma eleição danadinha... vai haver um reboliço dos meus pecados. SERAFIM É, “sô manjor”, a “inleição” está chegando. (À parte) Eu não disse? O cachorro precisa de mim! MAJOR Eu sou candidato, como sabe... SERAFIM Sei, sei...
MAJOR O meu amigo é votante, — e um bom votante, diga-se a verdade. — E como eu: — firme como uma rocha em suas opiniões políticas... SERAFIM (à parte) Ora o bobo! MAJOR A minha eleição, segundo as contas do Pantaleão, está ganha. Entretanto, como o seguro morreu de velho, não quero deixar de trabalhar para o maior brilhantismo do meu triunfo. (Tira do bolso dois enormes cigarros de palha e oferece um) Experimente o meu fumo. Serafim, experimente o meu fumo. Afianço-lhe que é bom. SERAFIM (aceitando) Obrigado, “sô manjor”. (Risca um fósforo, acende o cigarro e saboreia uma fumaça) Puxa papa-terra bom! MAJOR (depois de acender o cigarro) Quer uma pingazinha, Serafim?... Nada de acanhamento... SERAFIM Os pois, “sô manjor”, os pois... MAJOR Pois quando lhe apetecer, peça. SERAFIM Pois o seu fumo é um veludo, “sô manjor”... MAJOR Hei de dar-lhe um pedaço... Mas, como ia dizendo, a minha eleição está garantida e o governo vai desta vez levar um rombaço do diabo... (Pausa) Estou certo que o amigo ainda não se comprometeu com ninguém...
SERAFIM (à parte) É agora! (Alto) Já, “sô manjor”, já me “compremeti”. O “se” Zé Caolho me falou “trás antonte” pra eu votar com ele, e eu disse que sim. MAJOR Oh! Serafim! mas que asneira fez você! Por que não veio falar comigo, homem de Deus?... SERAFIM (tirando uma fumaça) Eu não sabia, “sô manjor”... (À parte) Hei de passar-te o pé, cara de todos os bichos! MAJOR Mas, diga-me: o meu amigo não se compromete de graça, sim... quero dizer... firme, como é, em suas opiniões políticas, não podia comprometer-se de graça... SERAFIM De graça? (Cruzando a perna e tirando uma grande fumaça) “Exe”! O “sô” Zé Caolho queria que eu fosse de graça; “mas porém”, eu que não sou burro, sacudi as orelhas e fui andando. Ele, “antão”, vendo que não arranjava nada assim, deu um berro por mim, e eu voltei... (Tira uma fumaça) “Antão” ele “prispiou” a contar-me umas histórias, a me dizer que eu fazia mal, que o “arrecrutamento” estava aberto, e que o governo não era de brincadeiras... MAJOR Que patife é o tal Zé Caolho! que canalha, hein, Serafim? E aquele traste a mostrar-se muito meu amigo! E depois? SERAFIM Os pois, “prispiou” a me meter medo, a falar na praça, no xadrez, na cadeia... MAJOR (passeando, zangado) Ah! canalha!... E depois? e depois?
SERAFIM Os pois?... (Fumando) Mais nada. MAJOR Não. Houve por força mais alguma coisa. Não se acanhe, Serafim, diga. SERAFIM Pois “antão”, lá vai. Os pois, vendo que a coisa não pegava, meteume na mão... MAJOR O que foi que ele lhe meteu na mão, Serafim? SERAFIM Duas “pelegas” de dois. MAJOR Ah! sovina! Animar-se a dar quatro mil réis! (Passeando) Então o Zé Caolho comprou-lhe a consciência por quatro mil réis! SERAFIM A consciência, não, “sô manjor”... O voto... MAJOR É a mesma coisa. Pois, meu amigo, eu sou mais generoso do que o Zé Caolho: dou-lhe cinco mil e quinhentos... SERAFIM Mas se eu não posso, “sô manjor”... se seu já vendi a fazendo ao “sô” Zé... MAJOR Homem, isso não quer dizer nada. Vende a mim também. SERAFIM “Mas porém”, como? MAJOR Ora, como! Você é tolo, Serafim! SERAFIM (tirando uma grande fumaça e soprando-a para o ar) Tolo! “exe”! MAJOR Nada mais simples; guarde os quatro mil réis do Caolho, receba os meus cinco mil e quinhentos e vote comigo. Isto é um negócio como outro qualquer... (Pausa) Então, está dito, hein? SERAFIM Mas, “sô manjor”, e se o outro descobre a bandalheira? MAJOR Mas isto não é bandalheira, Serafim! É até uma coisa muito natural. Há muitos votantes de opiniões firmes e convicções inabaláveis, como você, que procedem da mesma forma: votam em todos os partidos, recebem dinheiro de todos os lados e vendem a consciência por qualquer preço... E, depois, o Caolho não pode descobrir... SERAFIM “Mas porém”... MAJOR Olhe: você recebe a chapa dele e a minha; mete a dele no bolso do paletó e a minha no bolso da calça, e vai para e igreja. Enquanto espera pela sua vez, vai mostrando a todos a do Zé Caolho. Quando a mesa gritar pelo seu nome, você mete a outra vez a do Zé no bolso do paletó, tira disfarçadamente a minha do bolso da calça, e zás! dentro da urna com ela... E aí está tudo arranjado. SERAFIM Pois está dito. Venham os cinco e quinhas, “sô manjor”.
MAJOR Já?... (À parte) O animal aceitava até dois mil réis! SERAFIM Pois “antão”! Negócios, negócios, amigos à parte. O “sô manjor” mesmo disse que isto era um negócio. MAJOR Tem razão, tem... (À parte) O tratante vendia o voto até por quatro patacas! (Dando dinheiro) Tome lá... Mas cuidado... não vá enganarme, não vá roer-me a corda, entende, Serafim? SERAFIM (guardando o dinheiro) Oh! “sô manjor”! Era preciso que eu fosse um canalha!... MAJOR (à parte) E ainda julga que é um homem de bem, o patife! SERAFIM Obrigada, “sô manjor”. Descanse, que o meu votinho é seu... (À parte) Se não aparecer outro que me dê seis “min” réis, voto com o Zé Caolho! MAJOR Logo ou amanhã hei de falar com os outros rapazes. Estou certo que todos eles hão de seguir os passos do Serafim... SERAFIM Eu também falo com eles, “sô manjor”. MAJOR Também? (Abraçando-o) Oh! amigo Serafim! SERAFIM Ai! que me quebra a espinha! Ai!...
MAJOR Pois vá, meu amigo, vá conversar com os outros, o Antônio, o Quincas, o Romualdinho... SERAFIM (à parte) Eu vou, mas é convida a rapaziada pra uma bisca a vintém na venda do Piolho... (Alto) Já vou... Até logo... Viva o “sô manjor”!... (À parte apanhando chapéu) “Exe”! (Sai) CENA VI MAJOR Mais cinco mil e quinhentos para corda do sino!... E por falar em sino: esta demora do Pantaleão já está me assustando. Embora minha candidatura esteja correndo normalmente, qualquer coisa me assusta... E no entretanto, não tenho razão, porque estou aqui, estou na câmara dos deputados, estando na câmara dos deputados, estou no senado; estando no senado, estou na pasta da guerra!... Ah! que tapona no Zé Caolho!... Tenho vontade de rir, de cantar, de dançar!... A minha pele parece que é pequena para conter-me!... Deputado! senador! ministro!... Que papelão! quepapelão!... Já hei de levar daqui o meu primeiro discurso escrito pelo Pantaleão. Há de ser coisa de encher o olho... pois não! O Pantaleão tem dedo e tem talento... Mas que alegria! que alegria!... (Dança, cantarolando) PANTALEÃO (ao longe) Oh! major! major! MAJOR (prestando atenção) Hein?... Parece que me chamaram... PANTALEÃO (mais perto) Oh! major! major! MAJOR (alegre) É o Pantaleão! Finalmente! Chegou o Pantaleão! (Corre ao fundo)
CENA VII Major e Pantaleão.
PANTALEÃO (precipitando com um embrulho na mão e com grande entusiasmo)
Eis-me cá! eis-me cá! O grande Pantaleão cá está! cá está!... trazendo aqui a eleição, a eleição, a eleição do maior Anacleto da Trindade, a sapiente, esdrúxula entidade da freguesia das Três pessoas! Os cartões! os cartões! os cartões de visita aqui ‘stão; ilustre senhor deputado major! MAJOR (abraçando-o) Meu amado Pantaleão! sábio dos sábios, rei da sabedoria! A tua demora, preclaro e dileto amigo, já estava me dando cruéis receios. Julguei que tivesses adoecido, que te tivessem recrutado para soldado... Ah! Pantaleão, quando se ama como eu te amo... sim, porque tu és o meu braço direito, o meu braço esquerdo, a minha perna esquerda, a minha perna direita, e sobretudo — a minha cabeça! PANTALEÃO (senta-se no sofá, deixa o embrulho ao lado, e passa o lenço pela fronte) Ah! major, não me foi possível vir mais cedo. Em primeiro lugar, fui à tipografia, pelos cartões...
MAJOR Epitáfios, Pantaleão, epitáfios. PANTALEÃO Chego e faço a encomenda — “Quando ficam prontos?” — perguntei! — “Daqui a três dias.” — respondeu-me o dono da quitanda. — “Três dias! — exclamei — Nada; é muito tempo; queroos para amanhã sem falta.” — “Pois bem, amanhã estarão prontos; venha amanhã.” — Quando dei o letreiro, o sujeito olhou para mim, depois de o ler, e fez assim uma cara de quem quer dar uma risada. Encalistrei a princípio; mas levantei-me em seguida, tomei uma posição majestosa e perguntei: — “Por que é que o senhor ri-se?” — Quem me mandou fazer tal pergunta? O maldito levou as mãos à barriga, e teve um frouxo... MAJOR (admirado) Um frouxo? PANTALEÃO De riso, major, de riso. Perdi a tramontana. Enterrei o chapéu até ao pescoço, agarrei o letreiro e embarafustei para a porta; mas o danado, ainda gago de riso, pegou-me pelo cangote, gritando: — “Não se incomode... Vou explicar-lhe o motivo porque estou rindo”... MAJOR E explicou? PANTALEÃO Explicou. Disse-me ele que aqui há tempos atrás... (Assoa-se) MAJOR (impaciente) Adiante, adiante. Guarda o nariz para depois. PANTALEÃO Tinha feito uns cartões com um letreiro quase igual, e que o resultado foi o candidato ganhar... MAJOR O quê? o quê? PANTALEÃO Uma derrota, major, uma derrota. MAJOR (dando um pulo) Oh! diabo! PANTALEÃO Mas não se aflija. O nosso caso é outro, e o seu triunfo é infalível como a lua nova. MAJOR (rindo) He! He! He! PANTALEÃO Bom. Mas a minha demora não foi somente por causa dos cartões... foi também por causa do sino... MAJOR Do sino? PANTALEÃO Refleti que o major fazia um papelão se oferecesse um sino novo à nossa igreja, e pus-me à procura do sino... MAJOR Oh! Pantaleão, você é um gênio! Mas, um sino deve custar carinho... PANTALEÃO Nem por isso. Achei um quase de graça, em segunda mão. E que sino, major! que sino! Quatro palmos de boca e badalo deste tamanho! (Mostra o tamanho com as mãos) Hei de repicá-lo no dia do seu triunfo! Tem umas vezes de anjo!... Parece a menina Rosalina quando canta, ou o Juca... MAJOR Não me fale na Rosalina, Pantaleão! não me fale no Juca! PANTALEÃO (admirado) Então, por quê?... (À parte) Dar-se-á o caso que durante a minha ausência os dois pombinhos... É duro de roer, é, e o major tem razão para estar escamado... MAJOR Pois os desgraçados não queriam ainda há pouco que eu desistisse da minha candidatura, Pantaleão? PANTALEÃO (dando um salto) O que me diz, homem? MAJOR E teimara... Mas pus-me teso e não desisti. PANTALEÃO Perfeitamente. Uma candidatura tão bem aceita, com tantas probabilidades de um triunfo esplêndido! (Outro tom) Quer que lhe diga uma coisa, major? A menina Rosalina e o Juca que vão dormir, se estão com sono! Desistir! Nunca, major! MAJOR (trágico) Nunca! nunca! nunca! PANTALEÃO O sino vem aí atrás. Amanhã ou depois havemos de colocá-lo e atirar fora o sino velho, aquela vergonha sem beiços! Agora, major, vou mostrar-lhe os cartões. (Abre o embrulho, desatando vagarosamente os cordões que o atam) MAJOR (consigo)
Para deputado geral — Anacleto Pantaleão... não, não é isto... PANTALEÃO (dando um cartão) Veja isto, major, veja isto, e diga-me se é possível ser derrotado quem se apresenta candidato com semelhante luxo! MAJOR Mas, Pantaleão, o outro foi... PANTALEÃO Ora! O outro foi; mas o major não há de ser... Digo-lhe eu! Veja... MAJOR (lendo com dificuldade) “Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da...” (Outro tom, zangado) Está errado, Pantaleão, está errado! PANTALEÃO Não é possível, major. Leia bem. MAJOR Oh! Pantaleão, basta que eu diga que está errado, para estar errado! Então eu não sei ler? (Lê com dificuldade) “Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da guarda nacional”. PANTALEÃO (triunfante) E então? MAJOR E então? Onde é que está aqui a palavra — “invicta”, Pantaleão? PANTALEÃO (vencido) Desculpe, major. Escapuliu-me involuntariamente... MAJOR Pois não devia ter escapulido. Você devia ter mais consideração pela minha pessoa! Esta foi mesmo uma dos diabos! E eu que fazia questão da palavra — “invicta”?
PANTALEÃO Oh! major, que todas as dificuldades fossem como essa. Eu escreverei em todos os cartões a palavra — “invicta” — e está salva a pátria! MAJOR Mas o Pantaleão tem uma letra medonha e vai borrar os papelinhos que estão tão limpos... PANTALEÃO Então peça ao Juca que escreva. MAJOR (contemplando um momento o cartão) Mas, Pantaleão, a palavra — “invicta” — é indispensável? PANTALEÃO Não, major. É perfeitamente dispensável. Até a minha opinião é que essa palavra aí constitui um pleonasmo. MAJOR O que é isso, Pantaleão? PANTALEÃO É uma figura, major, uma figura chinesa... (Declamando) Invicta guarda nacional! Ora! Basta dizer guarda nacional — para estar subentendido que é invicta... sobretudo a nossa! MAJOR Lá isso é exato. Pois fica abolida a palavra — “invicta”, Pantaleão! CENA VIII Os mesmos e Serafim. SERAFIM “Sô manjor”, já falei “ca” rapaziada.
MAJOR Você é um — “quera”, — Serafim! E eles querem? SERAFIM Ora, se querem! (Baixo) Mas cada um quer três paus, menos nem um x. MAJOR (à parte) Isto é o diabo! A coisa já me vai entrando muito pelos cobres... Mas, que remédio!... (Baixo) E quantos são? SERAFIM É o Quincas, o Antônio, o Romualdo e o Zé. MAJOR (à parte) Upa! Três vezes quatro... (Contando pelos dedos sempre à parte) Doze mil réis!... Desta vez fico em mangas de camisa!... (Baixo, dando dinheiro) Tome lá; mas olho vivo com os “mecos”... Que não vão me fazer alguma... SERAFIM Agora, “exe”! Ficam por minha conta... (À parte) Cinco e quinhas com mais quatro e mais doze — vinte e um e quinhentão! Vou comprar um chapéu novo e uns sapatos envernizados! (Alto) Ah! “sô manjor”, que dia vai ser o da sua “inleição”!... que festança! que pagode! E viva o “sô manjor”! PANTALEÃO (que tem estado, desde a entrada de Serafim a contemplar um cartão e a gesticular, levanta-se como impelido por uma mola) Viva! MAJOR (que desde a sua última fala, passeia; resmoneando e a contar pelos dedos, ao mesmo tempo) Viva! SERAFIM Viva o “sô Espantaleão”! MAJOR Viva! PANTALEÃO (ao mesmo tempo, agitando o lenço) Viva! viva! Viva eu! SERAFIM E eu também! PANTALEÃO Ai! que dia!
MAJOR (falado) Mas que dia! SERAFIM Este dia... PANTALEÃO Da eleição! MAJOR (falado) Que triunfo! SERAFIM (à parte) Já ‘stou rico! PANTALEÃO Que glória! MAJOR (falado) Pantaleão PANTALEÃO Que rumor na freguesia! que festas! que barulhão! SERAFIM (à parte) Já tenho os cobres no bolso...
MAJOR (falado) Meu rico Pantaleão! TODOS Ai! que dia! mas que dia este dia da eleição! que rumor na freguesia! que festas! que barulhão! ai! que dia! mas que dia, este dia da eleição!
CENA IX Os mesmos, Rosalina, Juca, Quincas, Antônio e Romualdo.
ROSALINA Que cantoria é esta, papai? PANTALEÃO Nada, menina. Estamos festejando antecipadamente o triunfo do papai! JUCA (à parte) Que idiotas! QUINCAS (baixo a Serafim) Escorregou? ANTÔNIO (idem, ao mesmo tempo) Escorregou? ROMUALDO (idem, ao mesmo tempo)
Escorregou? SERAFIM (baixo) Caluda! Temos cobre... Dez “tustas” pra cada um. ROMUALDO (baixo) É pouco... Ai! ai! QUINCAS (baixo, espirrando e limpando o nariz nos dedos) Atchi! Eu quero mais. ANTÔNIO (baixo) E eu também. SERAFIM (baixo) Ele disse que amanhã dá mais. Por hoje, só dez “tustas”. PANTALEÃO (indo ao grupo, baixo) Oh! rapazes, vocês vão salvar-me de um grande aperto. O diretor geral comunicou-me que depois de amanhã vem visitar a escola. Como vocês sabem, eu só tenho dois alunos — o filho do João Pelota e o sobrinho da Rita Barbada. Ora, será uma vergonha para mim que o diretor encontre somente dois tramanzolas na escola. O que eu quero é que vocês e mais alguns amigos, no dia em que o homem chegar, façam-me o favor de ir servir de meus alunos por uma ou duas horas. Lá o serem já taludes e meio barbados, não quer dizer nada... JUCA (que tem estado a conversar com o major e Rosalina, rindo) O que é isso, senhor Pantaleão?... PANTALEÃO (tomando-o à parte) O que quer, meu amigo? É o único meio que tenho de salvar quase trinta anos de bons e reais serviços. JUCA Está bom, está bom.
PANTALEÃO Mas escute...
(Conversam) SERAFIM (à parte, muito satisfeito) Tenho cobre... PANTALEÃO (indo ao grupo dos rapazes) O que resolvera? SERAFIM (baixo) O “sô Espantaleão” dá um “quinhentão” a cada um? PANTALEÃO (baixo) Dou... Que remédio! (À parte) É o diabo! Mas se não fizer um sacrifício, estou apertado... SERAFIM Viva o “sô Espantaleão”! JUCA Então, major, insiste? ROSALINA Papai... MAJOR Ora, não me amolem! (Aos outros) Meus amigos, viva o deputado Anacleto da Trindade! TODOS Viva! JUCA Meu sogro...
ROSALINA Papaizinho... PANTALEÃO (tomando o major à parte) Duro com eles, major, duro com eles! Não desista! MAJOR Nunca! (Solene) É uma questão de honra! Hei de trabalhar sem descanso, e hei de triunfar! Meus amigos, tenhamos coragem uma vez e vençamos o inimigo que quer suplantar-me nesta eleição! CORO Sejamos, pois, valentes, pra triunfar dos inimigos que querem nos suplantar nesta eleição, nesta eleição, e que, traidores nos ferem com a traição, com a traição! (Tanto nos viva como no coro Rosalina e Juca não entram)
ATO II A ESCOLA
(Sala caiada, mas suja de borrões de tinta em vários pontos das paredes. — Uma mesa pequena, ordinária. — Duas classes velhas. — Quatro cadeiras velhas. — Um quadro negro com um pedaço de giz no rebordo e uma esponja amarrada com um barbante. — Sobre a mesa, uma campainha grande, livros velhos, papéis, canetas e um tinteiro de barro. — Encostada à mesa, ou sobre ela, uma cauda de foguete. — É dia)
CENA I
PANTALEÃO (sentado, com os braços sobre a mesa, servindo-lhe de travesseiro, ressona. — Sonhando) Silêncio, meninos... não façam barulho... (Ronca) Olha essa lição, João Pelota... (Ronca) Napoleão I foi o último bispo do Rio de Janeiro... e Napoleão III foi o primeiro subdelegado da freguesia da Lagoa... (Ronca) Limpa esse nariz, João Pelota... Não sejas porco, rapaz! A porcaria é uma virtude... menos no nariz!... (Ronca) A nossa freguesia está situada tão perto do polo norte, que qualquer um de nós, estendendo a mão, pode tocar... (Ressonando, estende a mão, pega uma campainha e toca com força. — Acorda, sobressaltado, vai a cair da carteira, mas segura-se à mesa, deixando ir ao chão a campainha e olhando admirado para todos os lados. — Pausa) Parece que estive a dormir. Parece, não: é certo que passei por uma soneca. (Levanta-se e apanha a campainha, que coloca na mesa) E o casa é que o diretor geral podia apanhar-me com o focinho na botija... Focinho — é um modo de dizer, porquefocinho têm os porcos irracionais... os racionais, como eu, têm nariz! (Tomando a cauda do foguete e sentando-se) Hoje vou ter um triunfo! O Manduca, o sobrinho da Rita Barbada, vai por o diretor de boca aberta!... Se eu já não sei o que hei de ensinar-lhe de história e geografia... O rapaz decora como um papagaio, e o que lhe entra... fica! (Indo à porta) Mas o diabo é que já devem ser nove horas, e a rapaziada não aparece... (Desce) Estão talvez por aí a jogar os cunhos ou o pião, mas hão de vir... (Senta-se. Pausa) Mas que logro, e que ideia a minha de arranjar alunos a cinco tostões cada um!... É puxadinho, é; mas, afinal, quem paga é o major; porque pedi-lhe uns cobres para a compra de votos... Não compro os votos, e pago aos rapazes... (Erguendo-se) Se eu não tivesse recebido a comunicação da visita do diretor estava frito! O homem apresentava-se aqui, e só encontrava na escola a mim, as traças e as moscas, as traças, sobretudo, porque as traças andam aqui as pencas! (Reparando para a parede) Lá vai uma subindo... (Dando com a cauda do foguete) Anda, sem vergonha! Então isto aqui é nosso!... (Reparando) Olha outra... uma... duas... três... quatro... Chi!... (Dando com o foguete a torto e a direito) Não é à toa, que os livros e os papéis estão numa desgraça! (Sentando-se) Mas, como ia dizendo: depois de cinco ou seis meses de uma ausência absoluta de frequência, matricularam-se — à força das minhas choradeiras — o filho do João Pelota e o sobrinho da Rita Barbada, — o Manduca, um talento! Entretanto, eu não podia apresentar ao diretor dois alunos somente, quando o regulamento exige que o mínimo da frequência seja dez... Para salvar-me do apuro, comprei o Serafim, o Romualdo e mais alguns para virem hoje fazer número. Lá o terem já algumas barbicas, não quer dizer nada, porque assim como nasceu aqui há tempos uma criança com orelhas de burro... — e por sinal que toda a freguesia disse que era o meu retrato... podiam eles também ter nascido barbados... Isto é da natureza! (Afugentando uma mosca) Sai-te, diabo! Moscas e traças, traçar e moscas, — eis o que tenho aqui com fartura! (Reparando para a parede) Lá vai outra... (Dando com afrecha nas paredes) Se eu tivesse alunos, como tenho traças, estava bem aviado! (Continuando a bater com a frecha) Fora! fora! fora! (Descendo, alegre) Mas o logro ao diretor! Esta é exatamente como a história dos cartões de visita: — só lembraria ao diabo ou aos franceses... E o direto há de engolir a coisa sem achar uma espinha!... (Põe a frecha no ombro, à guisa de espingarda) Ai! que logro! que trapaça! que pedacinho de truz! que pagode! que chalaça! que velhacada! Jesus! Com certeza — tenho graça: num momento — catrapus: o Peroba a perna passa no visitante! Jesus! Que troça! que troça! que grande chalaça! que logro! que logro! que graça! que graça!
CENA II
Pantaleão e Rita.
RITA (da porta, falando cantando) Oh! “sô Espantaleão”?... PANTALEÃO (sem olhar, à parte) É a Rita Barbada — a tia do Manduquinha... Esta mulher é pior do que um catarro crônico! RITA (da porta) Oh! “Sô Espantaleão”?... PANTALEÃO (à parte) Já sei. Vem com a ladainha do costume. Quer tirar o sobrinho da escola para mandá-lo aprender a tocar gaita. É uma besta esta mulher! RITA (gritando) Oh! “sô Espantaleão”?... Está surdo, “home”? PANTALEÃO (à parte) Se eu pudesse transformar-se em mosca ou traça, era uma pechincha!... (Reparando para a parede) Lá vai outra... (Começa de novo a bater com a frecha na parede e a gritar) Saia! Já daqui pra fora, lambisgoia! Xô, carocha! RITA (segurando-o por trás, pelos ombros, e sacudindo-o) Oh! “home” do diabo, “vancê” está maluco! PANTALEÃO (fingindo-se admirado de a ver) Ah! é a “sinhá” Rita?... Era por causa das traças... Aqui há muita traça... RITA Cara de traça me parece “vancê”, “sô Espantaleão”! Há um bandão de tempo que estou “le” chamando, e “vancê”... muita... fingindo que não “oivia, sô marreco”!
PANTALEÃO (à parte) Marreco! Ainda se me chamasse galo, vá lá; mas marreco!... (Alto) Não ouvi, tia Rita. RITA Tia, não; veja lá como fala! Tia é negra velha! PANTALEÃO (à parte) É preciso levá-la por bem, se não, lá se me vai o Manduquinha pela água abaixo... (Alto) Está bom, está bom... não se zangue, D. Ritinha... Nem sabe a alegria que tenho quando a vejo aparecer cá em casa... Ora, a D. Ritinha!... (À parte) É um homem de saias... um perfeito homem de saias! RITA Pois, “sô Espantaleão”, eu vim cá... PANTALEÃO Mas sente-se, D. Ritinha... Ora, a D. Ritinha de pé!... (Dando uma cadeira) Sente-se. RITA (sentando-se) “Brigada”. PANTALEÃO A D. Ritinha!... A senhora quando vem cá é o mesmo que o sol me entrando pela porta... porque a senhora é um sol... Quem a vir, não acredita... mas ó: basta que eu diga que é... RITA Pois, “sô Espantaleão”... PANTALEÃO (à parte) Sou até capaz de pedi-la em casamento, para que ela não leve o rapaz! (Alto, com atitude de galã) Ah! D. Ritinha, se soubesse...
RITA (à parte, desconfiada) Este “home” não está “bão” hoje, não... (Alto) Pois, “sô Espantaleão”... PANTALEÃO Se soubesse, D. Ritinha!... Mas é sempre assim... é sempre assim... A senhora não sabe... Se soubesse... RITA (desconfiada) O que, “home”? PANTALEÃO Não sabe... Está visto que não sabe... E sofra um homem... e passe dias em claro e noites sem comer e... Ah! D. Ritinha! D. Ritinha! A senhora é uma ingrata!... RITA (à parte) Coitadinho! Parece que está meio virado da bola! PANTALEÃO É uma ingrata, sim... uma grande ingrata! Pois não compreendeu ainda... (À parte) Que purgante!... (Alto) Não adivinhou... (À parte) Já estou com o estômago como se tivesse tomado um litro de jalapa!... Mas o Manduquinha fica na escola, fica... (Alto) Ainda não verificou... RITA (desconfiada) Mas o que, “home”? Que “diacho”! PANTALEÃO Ah! coração de gelo! ah! alma de esterco! Não! alma de esterco, não!... (À parte) Estou quase vomitando, mas o Manduquinha fica! RITA (à parte, desconfiada) Ficou maluco, ficou... Aquele juizinho não está “bão”... PANTALEÃO (dramático)
Não compreendes os grandes sentimentos, os amores loucos, as enormes paixões que inspira com a sua beleza!... (À parte, querendo vomitar) Vomito, decididamente, vomito! RITA (admirada) “Hâim”?... Que é que “vancê” está dizendo?... PANTALEÃO (caindo de joelhos) Digo... digo que te amo!... que morro por ti!... (À parte) O Manduca fica... RITA (levantando-se assustada e recuando) “Zesus”!... Chegue pra lá “home”!... Que coisa! PANTALEÃO (tomando-lhe a mão) Ritinha da minha alma! RITA (recuando) “Vancê” está doido, “home”!... “Vancê” não está “bão”, não... “Ué”! PANTALEÃO Mas eu te amo!... RITA (pasma) Ama! (Outro tom) Oh! “sô Espantaleão, vancê” não tem “vregonha”? PANTALEÃO Mas, Ritinha, o amor nunca teve vergonha, e eu amo-a... amo-a doidamente! RITA Ora, já se viu pra o que deu o diacho do velho! (Afastando-se) Chegue pra lá, “home”!... PANTALEÃO Vem cá, minha Vênus... meu sol... minha lua... meu cometa de cauda... (Que abraçá-la)
RITA (afastando-se) “Zesus”! Santa Maria!... Este “home” comeu cobra! PANTALEÃO (seguindo-o) Quero casar contigo, Ritinha! RITA (parando, admirada) Ca... PANTALEÃO Casar! RITA Oh! “home, vancê” está xingando a gente! PANTALEÃO Por quê? RITA Porque... porque... (Com um grande suspiro, virando os olhos para Pantaleão) Ai! ai! PANTALEÃO Por que suspiras, minha pomba rola?... RITA Mas o “sô Espantaleão” não está maluco, não? PANTALEÃO Maluco! Ora, essa! Estou mas é furioso por si, Ritinha... (À parte, querendo vomitar) Parece que tomei jalapa! RITA Mas “qué memo casá” comigo? PANTALEÃO Pois não: é o meu maior desejo... Ah! Ritinha, do nosso casamento depende... (À parte) Depende que o Manduquinha fique na escola até amanhã... (Alto) Ritinha, você acha-me bonito? RITA “Home”, eu não sei “pregá” mentira. “Vancê” é feio como a “gueixa” do Zé Caolho! PANTALEÃO (empertigando-se, zangado) Oh! mulher, essas coisas pensam-se, mas não se dizem! Feio como a “gueixa” do Zé Caolho! Olha a franqueza! RITA Mas, “memo” assim, eu casava com “vancê”. PANTALEÃO (alegre) Casava? Pois está dito. Com franqueza: a Rita parece mais um camaleão do que uma mulher... mas eu adoro-a mesmo assim. Então somos noivinhos, hein? (À parte) Eu bem disse que o Manduca ficava. Amanhã digo à velha que estava brincando; e mandoa à fava! Ora, a coruja! RITA E quando há de “sê” o “casóro”? PANTALEÃO Veremos isso depois... (À parte) Que pressa! RITA Quanto mais depressa, “mió”; se “fô amanhã”, bem “bão”. PANTALEÃO (à parte) E esta! (Alto) Amanhã, não; para a semana... RITA Chi! Leva muito tempo!... Eu quero já, já!
PANTALEÃO (à parte) Ora, o diabo da lesma! (Alto) Já, já, não é possível, Ritinha... mas depois de amanhã, sem falta. RITA (batendo palmas) Está dito! “Dispois” de “aminhã”! PANTALEÃO Agora, que o nosso casamento está assentado de pedra e cal, e que só aguardamos, — com uma impaciência fácil de compreender, atentes o verdor dos nossos anos e os nossos encantos pessoais, — o momento psicológico da nossa feliz união, diga-me, adorada Ritinha, o que veio fazer ao humilde tugúrio desse pobre pastor arcádico... RITA Eu vim pra “tirá” o Manduca da escola... PANTALEÃO Mas, para quê? O Manduca é um talento... No pouco tempo que o tenho cá, já sabe tanto como eu! Aquele rapaz, com mais um ano de escola, vai longe... RITA “A mode” que é assim... Porém eu queria que ele aprendesse... PANTALEÃO A tocar gaita, já sei. RITA Pra “ganhá” dinheiro nos “fandango”... PANTALEÃO Mas tocar gaita não é uma profissão... É um divertimento; mas não é uma profissão. Deixe o pequeno comigo, deixe-o, e verá que coisa sai dali...
RITA Pois sim... Mas eu queria que ele aprendesse... PANTALEÃO A tocar gaita? Pois que aprenda, mas nas horas vagas, sem prejuízo das lições. RITA Pois “antão”... (Revirando os olhos para Pantaleão) Ai! ai! O Manduca fica... Eu queria que ele aprendesse... PANTALEÃO A tocar gaita, já sei... RITA É, Porém “vancê qué” que fique, eu deixo “ficá”... (Estendendo a mão) “Antão”, até loguinho, “mô” noivo... Logo vá “tomá” um caneco de café lá em casa, sim?... PANTALEÃO Vou, vou. Pois então! Um caneco de café, em amável palestra com a minha Ritinha... (À parte) É um vomitório de poaia! RITA “Antão”, vai? PANTALEÃO Vou, vou... (Apertando-lhe a mão) Até logo, minha noivinha. (À parte) Pôr um óculo! RITA Adeus, “mô” anjo! PANTALEÃO Adeus, minha “anja”!
RITA (da porta) Adeus, “mô” cachorrinho! (Envia beijos) PANTALEÃO Adeus, minha gatinha! (Envia beijos, — Rita sai) CENA III PANTALEÃO (dando uma risada) Ora, o diabo da velha!... Pois a carocha não está pensando que o casamento é sério!... (Pausa) E se quando eu lhe disser que aquilo era troça, ela lembrar-se de fazer aí um barulho dos meus pecados! É muito capaz de pôr-se a gritar que eu sou um perverso, um desalmado, um sedutor! Aquilo é um homem de saias, um brutamonte! Antes dez purgantes e uma má hora de morte, do que um casamento com aquela ratazana!... Por minha causa, não deixará ela de enterrar-se vestida de branco! (Outro tom) Nada! É preciso procurar um meio de terminar o negócio sem escândalo, porque se ela fizer escândalo, estou perdido... O Zé Caolho dá uma parte, e rua “me fecit”! (Indo matar traças com a frecha) Ora, o diabo da velha!... Que espiga!... (Afugentando uma mosca) Oh! maldita!... (Perseguindo a mosca) Espera, que não me escapas... espera! (Vai matar a mosca e dá com a mão no rosto. Encolhendo-se) Ai! que foi mesmo no olho com toda a força!... (Esfrega os olhos. — Pausa) E os rapazes que não aparecem... Ora, não vão aqueles canalhas fazer-me alguma tratantada! São muito capazes de deixar-me a ver navios, porque todos eles são uns patifes de marca!... O Romualdinho, por exemplo... O Romualdinho é um monturo de maus costumes. Quem não o conhece, que o compre... (Vai matar traças) CENA IV Pantaleão e Manduca. MANDUCA (com um livro velho debaixo do braço) Bom dia, “sô professô”.
PANTALEÃO (sem deixar as traças) Bom dia, Manduca. Por que é que se demorou tanto hoje? MANDUCA Eu estava aprendendo... PANTALEÃO A tocar gaita, já sei. Toque de noite, Manduquinha, toque de noite, que não faz mal; mas de dia, nunca! O dia é para as lições da escola. Sabe o menino que vou apresentá-lo hoje ao diretor? MANDUCA Ao “diretô”? PANTALEÃO Sim. O menino vai hoje fazer um examezinho de história e geografia, para pôr o homem de boca aberta. Mas não se acanhe,Manduquinha. Quando eu fizer a pergunta, responda logo sem hesitar, ferindo bem os rr e os ss das palavras... MANDUCA Eu “há de falá direto”, sim, “senhô”... (Senta-se na classe e abre o livro) PANTALEÃO Manduquinha, leia um pouco o seu Manual de Achilles Monteverde... (Pronuncia com x o ch de Achilles) MANDUCA (lendo com custo) “A palavra “zigreja” segundo a “linguage” comum, é o “memo” que o “lugá” ou “edifiço” destinado ao “curto” divino; porém, na sua “acepição” mais “gerá”, é uma “sociadade” estabelecida por “Zisus” Cristo, a “qua”, governada por certa “otoridade”, e “especiamente” pelo “papa”... PANTALEÃO (matando traças) Papá, não, Manduquinha: papa...
MANDUCA (lendo) “Papa ou sumo pontífice”... (Carrega na penúltima sílaba da palavra — pontífice) PANTALEÃO Pontífice, menino, pontífice... (Indo à porta) O menino já lê como o major Anacleto, e no entretanto, ainda nem alferes o fizeram! (Falando para fora) Olá! Então passa de largo? Também preciso do senhor hoje. Entre um bocadinho. CENA V Os mesmos e Juca. JUCA (apertando-lhe a mão) Como passou?
(Descem) PANTALEÃO Assim, assim... Sabe o meu amigo que é hoje o grande dia da visita do diretor? JUCA Mas onde estão os alunos que contratou para hoje? PANTALEÃO (atrapalhado) Não sei... A ausência deles já está me dando pensão. JUCA Pois sei eu. Estão na encruzilhada, na venda do Chico Piolho, jogando a bisca... PANTALEÃO Na venda do Chico Piolho? Isto é uma imoralidade, meu amigo, é um desaforo! Se fosse verdadeiramente meus alunos, eu sei o que fazia: rachava-os a bolos e... JUCA Mas como não são seus alunos, não os racha... Deixe-os lá, senhor Pantaleão, deixe-os lá... (Outro tom) Sabe que foi uma felicidade para mim encontrar hoje a escola aberta e o senhor na escola?... Temos um negócio de suma importância... MANDUCA (lendo) “O sumo pontífice”... PANTALEÃO Um negócio!... Sentemo-nos. Manduca, vá continuando a ler, mas baixinho, para não nos atrapalhar o negócio... (A Juca) Sentemo-nos. (Sentam-se) Estão às suas ordens. JUCA É incontestável — e tenho muitas vezes notado — que o senhor Pantaleão exerce uma influência ilimitada sobre meu futuro sogro... PANTALEÃO (vaidoso) Qual! Não é tanto assim... MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO Mais baixo, Manduquinha, mais baixo. (A Juca) O major tem a delicadeza de ouvir-me sempre em todas as questões e de seguir os meus conselhos... JUCA Nada de modéstias, senhor Pantaleão. Meu sogro não dá um espirro nem outra qualquer coisa, sem consultá-lo primeiramente. O senhor é o seu “fac totum”...
PANTALEÃO (à parte) Fac totum! Que bonita palavra! Não sei o que significa, mas hei de aproveitá-la! JUCA Para o major, o senhor Pantaleão é o mesmo que um cachorro para um cego... salva a comparação do cachorro. O senhor leva-o para onde quer e faz dele o que lhe parece... PANTALEÃO (vaidoso) Não é tanto assim, não é tanto assim, não, senhor... (À parte) Fac totum! MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO Mais baixo, Manduquinha, mais baixo. JUCA Pois, senhor Pantaleão, venho fazer-lhe um pedido, e espero que o senhor não deixará de pôr em campo toda a sua influência para satisfazê-lo... PANTALEÃO De que se trata, meu amigo? JUCA Trata-se da eleição. PANTALEÃO Da eleição?... Dar-se-á o caso que o meu amigo também queira ser candidato? JUCA (sorrindo)
Nada... Ainda tenho bastante juízo para querer fazer papéis tristes... (Outro tom) O senhor não ignora que, para que um candidato adverso ao governo, triunfe em uma eleição, é indispensável que possua muitos e fortíssimos elementos, que tenha um nome feito, que disponha de vasta influência e que tenha fortuna para gastar... MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO Mais baixo, menino, mais baixo... Oh Manduquinha, guarda a língua no bolso!... (A Juca) E então? JUCA Ora, meu sogro não está em tais condições. O seu nome é conhecido somente aqui na freguesia, a sua influência estende-se apenas sobre meia dúzia de votantes e a sua fortuna é demasiado modesta. Assim, pois, a sua candidatura é uma cartada muito perigosa e a sua derrota é tão certa, como é certo que o Serafim e os outros foram contratados pelo senhor a cinco tostões cada um, para virem hoje fazer de seus alunos... PANTALEÃO (atrapalhado) Mas, meu caro amigo... JUCA É preciso, pois, que o senhor — que é um Evangelho para o maior — faça com que ele desista, sem perda de tempo, das suas pretensões, evitando, assim, a vergonha de uma derrota... PANTALEÃO (erguendo-se) Nunca, meu amigo! Nunca! MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO (zangado)
Oh! Manduquinha, já te disse que metesse a língua no bolso! JUCA (erguendo-se, calmo) Nunca?... Por quê? PANTALEÃO Porque é tão certo que o major vencerá, como é certo que eu namorava a Rosalina, e que o senhor passou-me o pé e vai casar com ela! JUCA (sorrindo) Mas, senhor Pantaleão... PANTALEÃO É inútil insistirmos neste ponto. O major não desiste e há de triunfar. Quem lhe diz sou eu, e quando eu digo, digo. O negócio está perfeitamente dirigido. Pelos meus cálculos — e os meus cálculos são infalíveis como o papa... MANDUCA (lendo) “O papa ou sumo pontífice”... PANTALEÃO Cala a boca, Manduca! Oh! (A Juca) Pelos meus cálculos, o major vai ter toda a votação, com discrepância apenas de três votantes, que não tiveram vergonha de vender as consciências ao governo, um para ser subdelegado, o para ser escrivão do juiz de paz e o terceiro para ser inspetor de quarteirão. O mais é carga cerrada. Há de ver. JUCA Mas, senhor Pantaleão, compreenda que o major não pode ser eleito somente com a votação da freguesia... PANTALEÃO Já escrevi para todos os pontos da província e as respostas que tenho recebido são muito animadoras. Ouça isto. (Tira do bolso uma carta muito amarrotada e abre-a) Ouça lá.
MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO Oh! Manduca, quem é que lê, és tu ou sou eu? Guarda a língua no bolso, já te disse duas vezes! (Lê) “Ilustre senhor Pantaleão Peroba Ferrabrás de Alexandria”... (A Juca) Ilustre! Veja bem! (Lê) “Nunca tinha ouvido falar no seu grande nome e fiquei sabendo que vossa senhoria existia ao ler a sua carta”... (A Juca) Grande nome! Vá tomando nota! (Lê) “A apresentação do senhor major Anacleto da Trindade, a quem ninguém aqui também conhece, é uma ideia luminosa e digna de uma cabeça como a sua”... (A Juca) Vá tomando nota” — ideia luminosa e digna de uma cabeça como a minha! (Lê) “Pode ficar certo que todos os votantes deste município, tanto liberais como conservadores, irão às urnas. — Sempre às suas ordens & & — Laguna & & — (Guardando a carta) E como esta, tenho recebido muitas outras... JUCA (à parte) Mas este homem é um idiota! Pois não compreende que aquela carta é um ridículo! PANTALEÃO Agora vou mostrar-lhe a circular que dirigi às influências políticas das localidades. (Procura, na mesa, entre os papéis e os livros, e tira um pedaço de papel amarelo de embrulhão) MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO (zangado) Manduca! Manduquinha! Se não quiseres guardar a língua no bolso, mete-a onde te parecer, mas cala-te! (Lê) “Ilmo. Sr. — A salvação da pátria e da lavoura da mandioca e da cana depende de muito juízo e de um bom deputado. O major Anacleto da Trindade, sumidade política desta localidade, reúne todas as condições para ser um representante de primeira qualidade. Apresento-o, pois, aos sufrágios dos votantes desse município, que, votando nele, votarão num sábio, num talento, numa ilustração extraordinária, num grande homem, finalmente. Posso afirmar isso tudo, porque estou na altura de julgar. O programa do major é o mais patriótico possível: — abolição de impostos pequenos e criação de outros maiores; aumento de cento por cento sobre o subsídio dos deputados; propaganda sobre o plantio da batata inglesa em larga escala, e outras medidas de vasto interesse político e social. Esperando que vossa senhoria não deixará de acolher sob as asas arcangélicas da sua proteção uma tão bela candidatura, subscrevo-me & &. — (Dobrando o papel) E então?... Em vista disto, o que diz o meu amigo? JUCA Mas, apesar de tudo, o senhor deve... PANTALEÃO Basta, meu amigo, basta. Nem mais uma palavra a respeito. Em negócios eleitorais sei o que faço, e — desculpe a franqueza, — o meu amigo não sabe o que diz. O major não há de desistir e há de ganhar, tão certo... JUCA Como é certo que o senhor é o homem mais teimoso de toda a freguesia. Fique desde já sabendo, senhor Pantaleão: se o major for derrotado, a responsabilidade é sua... PANTALEÃO Minha? JUCA Sem dúvida. Quem foi que meteu o major em camisa de onze varas?... Adeus, senhor Pantaleão. Divirta-se com os seus alunos a cinco tostões cada um... (Sobe) PANTALEÃO (encalistrado)
Já ainda agora o senhor falou em alunos a cinco tostões cada um... Não compreendo o seu pensamento... Explique-se... JUCA O senhor sabe perfeitamente o que quero dizer. PANTALEÃO Mas, meu amigo... JUCA Pergunte ao Serafim e ao Romualdinho... (Sai) PANTALEÃO Mas, venha cá, homem de Deus! venha cá! (Sobe) CENA VI Pantaleão e Manduca. MANDUCA (lendo) “A palavra “zigreja”, segundo”... PANTALEÃO (descendo) Cala-te, Manduca! Mete essa língua no... bolso da calça, mas não me incomodes! MANDUCA (lendo) “O sumo pontífice”... PANTALEÃO (gritando) Cala-te, diabo! MANDUCA (pulando, com cara de choro) “Zisus”, sô mestre!... PANTALEÃO (animando-o)
Está bom... não chores... (Dando dinheiro) Toma dois vinténs para amendoim... MANDUCA (guardando o dinheiro) “Brigado”! PANTALEÃO (descendo) É uma aplicação extraordinária a deste menino... Quando se agarra aos livros, é isto: fica cego, surdo e mudo!... E lê bem, lê como gente!... (Outro tom) Oh! Manduquinha, dá um pulo ali à venda do Chico Piolho e diz aos rapazes que deixem a bisca e que venham. O diretor não tarde por aí, e não quero que me apanhe descalço... Anda, vai, meu lindinho, meu querubim virado do avesso... MANDUCA Vou num corcovo, “sô professô”... (À parte) Vou “comprá” uma rosca de “porvio”... (Sai) CENA VII PANTALEÃO (sentando-se, depois de uma pausa) Vai ser um momento solene este! Um exame de história e geografia! Ah! “seu” Pantaleão, você é um “quera”! (Outro tom) E a Rita Barbada não está pensando que o casamento é sério! Ora, a tartaruga da velha!... A Rita deve ficar bonita mas é vestida de branco, depois de morta!... Se eu ia casar-me com aquela caninana!... (Pausa) Desejo e tenho necessidade de contrair matrimônio... mas há de ser com uma menina de quinze anos, gordinha e espevitada... A Rosalina estava a calhar, mas não quis, e não sabe o que perdeu... Mas hei de achar outra que queira... Em último recurso, irei procurar na cidade... Olá! olé! olá! ajuda Deus a quem trabalha, e no céu se casamento e mortalha!
A Rosalina certo verá, em poucos dias, em poucos dias, ai! que alegrão! com moça bela, gentil, formosa, como uma rosa, cheia de graças e de negaças, casado o grande cidadão, glória, ufania, sol, alegria da freguesia, bem casadinho com um peixão, o cidadão Pantaleão Pantaleão!
(Sentando-se) Há aqui uma rapariga que me agrada bastante... mas também não quer casar comigo, porque tem um namorado... É a filha do Zé Caolho. Ele é um estúpido, que não fala para não dizer asneiras... Mas a filha, a Margarida, é um pedaço de mulher! Aquilo era um arranjo para mim! CENA VIII Pantaleão, Serafim, Antônio, Quincas, Romualdo, Manduca e mais alguns rapazes. (Cada um traz um livro velho debaixo do braço. — Serafim entra adiante, comandando a troça)
SERAFIM (à porta) A um de fundo, rapazes, a um de fundo! (Colocam-se a um de fundo) Marcha!
(Todos desfilam em redor da cena e terminam o coro em linha, defronte de Pantaleão)
SERAFIM Viva a troça! que pagode! marche, marche pra lição, vamos dar vivas e vivas ao nosso Pantaleão!
CORO Vive a alegria do coração, e viva o mestre Pantaleão!
SERAFIM Marche, marche, que são horas de dar a nossa lição, e ficar despertado o nosso Pantaleão!
CORO Vive a alegria do coração e viva o mestre Pantaleão!
SERAFIM (parando, com os outros em linha, defronte de Pantaleão) Viva o “sô Espantaleão”!
TODOS Viva! SERAFIM Apresentar, armas! (Apresentam os livros a Pantaleão) Descansar, armas! (Metem os livros debaixo do braço)
PANTALEÃO (que tem assistido a tudo, pasmo, de boca aberta e com a frecha no ombro, à guisa de espingarda) Obrigado, rapazes! obrigado, meu povo!... (Pausa) Meus amigos, meus ilustres amigos, meus caríssimos amigos! Esta manifestação de consideração e admiração à ilustração do grande cidadão Pantaleão, põe-me o coração numa palpitação em que não posso ter mão! SERAFIM Bonito! parece verso! ROMUALDO (suspirando) Muito bom! Ai! ai! MANDUCA Se eu “sabesse”, tinha trazido a gaita... ANTÔNIO “Quá”, gaita, nem “quá” carapuça, “lambisome”! QUINCAS (espirrando) Atchi! (Limpa o nariz nos dedos e passa-os na cara de Manduca) MANDUCA Sai pra lá, “porcão”! “Sô” mestre, o “sô” “Antonho” está me chamando “lambisome”, e o “sô” Quinca está me sujando a cara de ranho! ANTÔNIO Olha que eu te quebro a focinheira! QUINCAS E eu te arrebento as ventas! SERAFIM Rapaziada, marche! Viva o “sô Espantaleão”! TODOS Viva!
(Desfilam outra vez a um de fundo e rodeiam a cena. — À proporção que desfilam, vão atirando os chapéus no chão, no mesmo lugar. — Findo o coro, sentam-se nas classes, pela seguinte forma: — na primeira classe — Serafim, Manduca, Antônio, Romualdo e Quincas; na segunda classe — outros rapazes) Marche, marche, que são horas de dar a nossa lição, a ficar desapertado o nosso Pantaleão! CORO Vive a alegria do coração, e viva o mestre Pantaleão! PANTALEÃO (depois de estarem todos sentados) Ilustres concidadãos! Quando o imperador Carlos “Magano” e o marechal duque de Saldanha encontraram-se nos campos do Rio Grande do Sul, defendendo a religião maometana, as gloriosas tropas dos dois valentes cabos de guerra não fizeram certamente aos seus grandes comandantes uma manifestação tão expressiva como a que acaba de ter lugar... Carlos V em Maratona... — bem não recebeu tantas provas de estima e apreço; Cleópatra, na república Argentina, idem idem; Napoleão III, na China, a mesma coisa; o duque de Caxias, na Ásia Menor, duas espinhas!... Sim, ilustres concidadãos: esta manifestação tem para mim uma dupla significação: — a primeira, é que todos vocês compreendem o meu alto mérito, e a segunda é que os meus cobres já produziram antecipadamente efeito na bodega do Piolho!... TODOS (lendo alto) B-a-bá: passa pra cá; b-e-bé: vai pra Bagé; b-i-bi: salta pra li; b-o-bó: vai-te tu só; b-u-bu: curucucu!
SERAFIM (imitando voz de galo) Ki-ki-ri-ki! ROMUALDO (imitando cabra) Mé... mé... mé!... ANTÔNIO (fingindo porco) Rom... rom... rom!... QUINCAS (fingindo rato) Huim... huim... huim!... MANDUCA (imitando foguete) Chi... chi... chi... tá! tá! tó! PANTALEÃO Oh! meninos, isto aqui é escola; não é exposição de animais irracionais. Não confundam! TODOS (lendo alto) B-a-bá; b-e-bé; b-i-bi; b-o-bó; b-u-bu! ANTÔNIO (empurrando Romualdo) Chega-te pra lá! ROMUALDO (dando-lhe com o livro na cara) Toma! ANTÔNIO (erguendo-se e armando dois socos) Oh! canalha! PANTALEÃO Oh! rapazes, contenham-se. O diretor estoura por aí adentro de repente, e vocês comprometem-me. Contenham-se. MANDUCA (lendo)
“A palavra “zigreja”, segundo”... SERAFIM (segurando Manduca pelo nariz e sacudindo-o) Oh! amarelo, vai buscar a tua gaita! TODOS A gaita! a gaita! “que saia”! MANDUCA (esfregando o nariz) “Sô” mestre, o “sô Sarafim” está me puxando a penca! PANTALEÃO Por favor, senhor Serafim, deixe tranquilo o nariz do menino. SERAFIM Ora, nariz! Uma cabeça de inhame que tens aí no meio da cara! (Medindo-o de alto a baixo) Amarelo! Feições de porco do mato! (Gritando) Amarelo! amarelo! PANTALEÃO Por favor, meus amigos! O diretor entra-me de repente, e se ouve esta inferneira, é capaz de fazer-me alguma... Não me comprometam!... TODOS (lendo alto) C-a-ca; c-e-cé; c-i-ci; c-o-có; c-u-cu... PANTALEÃO Agora, sim. Juizinho... Meus amigos, quando aparecer o diretor ou o inspetor das escolas, não se esqueçam de levantar-se e cantar o verso que eu ensinei. Lembram-se ainda? SERAFIM Ora, “s’alembramos”! Quer ver? Rapaziada, levantar!
(Todos levantam-se)
PANTALEÃO Basta. Guardem isso para a ocasião própria. SERAFIM Rapaziada, sentar!
(Todos sentam-se) TODOS (lendo alto) D-a-dá; d-e-dé; d-i-di; d-o-dó; d-u-du... PANTALEÃO (que tem ido à porta) Ah! vem o inspetor. Sentido! Também vem o Juca e o major Anacleto. (Vai recebê-los) CENA IX Os mesmos, Caolho, Juca e Major. SERAFIM Rapaziada, levantar! (Todos levantam-se) Preparar goelas! (Todos tossem) Um! dois! três! (Serafim canta)
Vivam as visitas que vêm, — isto consola, trazer mil alegrias aqui à nossa escola! CORO À nossa escola, à nossa escola, à nossa escola! SERAFIM Vivam as visitas que vêm dar luz à bola de todos os rapazes daqui da nossa escola! CORO À nossa escola, à nossa escola, à nossa escola! PANTALEÃO Muito bem! Admirável! (Às visitas) Mas desçam, desçam, meus senhores. (Leva-os para as cadeiras) Sentem-se... (Sentam-se) Creiam que tenho tido dois grandes dias na minha vida: este e... a noite em que nasci!
(Durante o resto da cena os rapazes fazem caretas uns aos outros, ameaçam-se com murros etc.) JUCA (sorrindo) É natural. (Caolho cumprimenta) MAJOR Pois viemos ver o seu portento, Pantaleão. PANTALEÃO (mostrando Manduca) Está ali. É o sobrinho da Rita Barbada, o Manduca Barbado. JUCA (fazendo óculo com a mão e olhando para Manduca) Mas é justamente o que eu não vejo... PANTALEÃO O quê? JUCA Barbas no Manduca. PANTALEÃO Não tem ainda, mas hão de vir com o tempo. Agora só esperarmos o diretor. Apenas ele chegue... (Caolho cumprimenta, tira do bolso um ofício e entrega a Pantaleão. — Volta-se para os rapazes e cumprimenta-os) PANTALEÃO Temos ofício! O senhor inspetor permite? (Abre o ofício) (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO (lendo) “Diretor Geral & & — Não me sendo possível ir hoje, como desejava, visitar a escola do sexo masculino dessa freguesia, recomendo a vosmecê que vá a mesma escola e que verifique o grau de adiantamento dessa incumbência. — Deus Guarda a vosmecê. — Senhor Inspetor das escolas & &” — (Dobra o ofício e restitui a Caolho) Inteirado, senhor inspetor, inteirado, perfeitamente inteirado. (Caolho guardando o ofício, cumprimenta) PANTALEÃO Podemos então começar os trabalhos. O senhor inspetor, inteligente e ilustrado como é, sabe que nas escolas de primeiras letras, os professores só ensinam primeiras letras. Entretanto, tenho um aluno, o Manduca Barbado, que vou apresentar como um gênio em história e geografia... Dá licença que principio por ele, não? (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Menino Manduca, queira ter a bondade de ir para a lousa. MANDUCA Sim, “sinhô” (Vai ao quadro negro) PANTALEÃO Os senhores vão ver. É uma coisa extraordinária! MAJOR Vamos ver, vamos ver... JUCA Aquela cor amarela indica alguma coisa... (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Manduca, risque o mundo aí no quadro. MANDUCA (fazendo um quadrado a giz) Pronto. JUCA O mundo quadrado! (À parte) Ora, bolas! MAJOR Muito bem! Perfeitamente! (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Estão vendo? É uma águia! Diga-me, Manduca: onde está aí a China? MANDUCA (fazendo um sinal dentro do quadrado) Aqui. MAJOR Admirável! Posso gabar-me de que já vi a China! JUCA (comprimindo o riso) Estupendo!
(Caolho cumprimenta) PANTALEÃO E a França onde está, Manduca? MANDUCA (fazendo outro sinal ao lado do primeiro) Aqui. MAJOR Mas isto é maravilhoso! maravilhoso! JUCA (comprimindo o riso) É milagroso até! (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO (vaidoso) Manduca, marque aí o lugar onde está a nossa freguesia. MANDUCA (fazendo um sinal entre os dois primeiros) Aqui. JUCA (comprimindo o riso) Sim, senhor: entre a França e a China! MAJOR É extraordinário! é extraordinário! JUCA O menino é realmente uma águia... amarela! (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO (vaidoso) Faz honra cá à pessoa, faz... (Outro tom) Manduca, é a terra que anda ou é o sol?
MANDUCA É o sol. JUCA Mas é esplêndido! MAJOR Não é só esplêndido; é milagroso também! Que cabeça de rapaz! (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Vão ouvir agora uma definição de arromba! (A Manduca) Mas por que é que é o sol que anda e não a terra? (Aos outros) Atenção! MANDUCA Porque se fosse a terra “c’andasse, se fazia-se” uma casa hoje, e “aminhã” estava no chão; porque os “home” e as “muié” havia de “aminhecê” de cabeça “pra riba” e “anoitecê” de cabeça “pra” baixo, porquê... PANTALEÃO Muito bem! Perfeitamente! JUCA Soberbo! Uma definição de mestre! MAJOR De mestre, sim, senhor! É milagroso! (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Manduca, qual é o rio maior do mundo? MANDUCA É o “corgo” dos “fundo” do “sô” Chico Piolho.
MAJOR Cada vez a melhor! JUCA É inconcebível! Parece até embruxamento! (Caolho cumprimenta e dá um grande espirro) TODOS Dominus vobiscum! JUCA (à parte) Ora, graças a Deus, que já disse alguma coisa! (Caolho cumprimenta para todos os lados, limpando o nariz aos dedos) PANTALEÃO Passemos agora à história. Vão ouvi-lo também. Responde com uma prontidão de cavalo parelheiro! (Outro tom) Manduca, quem foi o primeiro imperador da África? MANDUCA Foi Luiz XV, rei de França. PANTALEÃO E a primeira rainha da China? MANDUCA Foi Santa Filomena. MAJOR Maravilhoso! maravilhoso! (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Querem que prossiga? JUCA Não é preciso. O menino dá coisa. As suas respostas são tão claras, que é um gosto ouvi-lo! PANTALEÃO (vaidoso) Faz honra cá à pessoa, faz... (A Caolho) O senhor inspetor está satisfeito, não? (Caolho cumprimenta) PANTALEÃO Desejam ouvir um trecho de leitura? JUCA Dispensamos. Se o Manduquinha estiver adiantado em leitura, como está em história e geografia... faz honra à sua pessoa! PANTALEÃO (a Caolho) Agora, senhor inspetor, na comunicação que fizer à diretoria não deixe de falar nos meus esforços e na minha dedicação pelo ensino... (Caolho cumprimenta) JUCA (à parte) É boa! Pois se é o próprio Pantaleão quem faz os ofícios para o Caolho assinar de cruz! PANTALEÃO Pois a coisa é assim, meu caro major... (Conversa com o Caolho e o Major) JUCA (indo à classe e batendo no ombro de Manduca) Estude, Manduquinha, estude, que, com a instrução que vai tendo, há de acabar no hospício de Pedro I!
PANTALEÃO Podem levantar-se, meninos. SERAFIM Oh! “sô Espantaleão”! (Pantaleão sobe. — Fazendo sinal de dinheiro, sem que os outros vejam) Passe pra cá... PANTALEÃO (com disfarce, dando dinheiro) Tome lá... Reparta com os outros. SERAFIM (metendo o livro debaixo do braço, depois de guardar o dinheiro) Viva o “sô Espantaleão”! TODOS (metendo os livros debaixo do braço) Viva! PANTALEÃO Meninos, agora um cumprimento aos nossos ilustres hóspedes. Vamos! SERAFIM Rapaziada, chega à forma! (Todos, com os livros debaixo do braço, formam linha ao fundo) Apresentar armas! (Apresentam os livros) Descansar, armas! (Metem os livros debaixo do braço) MAJOR Meus senhores, estou realmente encantado. O nosso ilustre Pantaleão Peroba Ferrabrás de Alexandria acaba de provar com o simpático e lindo menino Manduca Barbado o quanto é dedicado ao seu emprego e o quanto é profundo em todos os conhecimentos humanos! O grande Pantaleão Peroba Ferrabrás de Alexandria tem um nome respeitável... JUCA Muito respeitável até! MAJOR (continuando)
E não é só uma glória nossa, meus caríssimos e fiéis ouvintes... é uma glória de todo mundo, é uma glória universal, é uma glória... é uma glória... (Atrapalha-se e tosse) PANTALEÃO Major, você é verdadeiramente a deusa Vênus, a deusa da justiça! JUCA Assim como a deusa Têmis é a deusa da formosura! SERAFIM Rapaziada, marche, marche!
(Desfilam todos a um de fundo, rodeando a cena. À proporção que passam pelo lugar onde deixaram os chapéus, apanham-nos e os põem na cabeça, continuando a marcha; — Serafim canta)
Marche, marche, que já demos, que já demos a lição, e ficou desapertado o nosso Pantaleão! CORO Vive a alegria do coração, e viva o mestre Pantaleão!
(Os alunos saem. Os convidados saem logo também. O coro é repetido até cair o pano. — Pantaleão vai sair, mas esbarra-se com Rita, e foge por outra porta. — Rita segue-o)
ATO III A DERROTA
(A mesma vista do primeiro ato. É dia) CENA I Romualdo e Quincas. ROMUALDO (entrando de costas, pela esquerda, a chorar) Ham! ham! ham! QUINCAS (entrando de costas, pela direita, a chorar) Ham! ham! ham! ROMUALDO (voltando-se e encarando Quincas, que também se volta) Oh! Quincas, não “me arremedes”! QUINCAS (encarando-o) És tu que estás “me arremedando”, Romualdo! ROMUALDO (dando-lhe as costas, a chorar) Ham! ham! ham! QUINCAS (dando-lhe as costas, a chorar) Ham! ham! ham! ROMUALDO (voltando-se) Oh! Quincas, por que é que estás chorando?... Ai! ai! QUINCAS (voltando-se) Ai! Romualdinho, é por causa dela! E tu, Romualdinho, por que é que estás chorando? Atchi! (Limpa o nariz nos dedos) ROMUALDO É por causa dela, Quincas! QUINCAS (dando as costas, a chorar) Ham! ham! ham!... Ai! Romualdinho!
ROMUALDO (dando as costas, a chorar) Ham! ham! ham! Ai! Quinquinhas! QUINCAS (voltando-se) Sabes?... Já estive com uma corda no pescoço para enforcar-me... ROMUALDO “Zesus”! E por que é que não te enforcaste, Quincas?... QUINCAS Porque tive medo, Romualdinho! ROMUALDO E eu já estive por um “triste” a me atirar no poço... QUINCAS Credo! E por que é que não te atiraste, Romualdo? ROMUALDO Porque o poço é muito fundo e a água estava muito fria, Quincas! (Chorando) Ham! ham! ham! QUINCAS (chorando) Ham! ham! ham!
(Abraçam-se, a chorar, a fazer — ai! ai! — a espirrar)
ROMUALDO Aquela ingrata, que lá se vai co’ pisa-flores... (Suspirando) Ai! ai!
QUINCAS Eu não sei mesmo que sinto em mim, creio que morro (Espirrando) Atchim!
ROMUALDO Para a cidade ela se vai... morro de dores... (Suspirando) Ai! ai!
QUINCAS Lá vai a ingrata... triste de mim... meu Deus! eu morro... (Espirrando) Atchim!
ROMUALDO Ai! que tristeza n’alma me vai!... adeus, “cachopa”... (Suspirando) Ai! ai!
QUINCAS Mulher ingrata não vi assim... adeus, oh! Rosa... (Espirrando) Atchim!
(Abraçam-se a chorar com grande rumor) ROMUALDO Oh! Quincas, vamos nos matar? QUINCAS Não, Romualdinho... É perigoso... ROMUALDO Mas o que havemos de fazer, Quincas?
QUINCAS Chorar, Romualdo... chorar... ROMUALDO Então choremos, Quincas!
(Choram) QUINCAS Romualdinho? ROMUALDO Quinquinhas... QUINCAS Abandonemos esta casa... vamos chorar no mato, longe daqui, para que ela não veja as nossas lágrimas... ROMUALDO Vamos, Quincas... A ingrata ainda era capaz de rir-se e fazer pagode de nós com o pisa-flores... QUINCAS (subindo, abraçado com Romualdo) Ai Romualdinho do meu coração! ROMUALDO Ai! Quincas da minha alma! QUINCAS (voltando) Oh! Romualdo, tenho uma ideia! ROMUALDO Ai! ai! Pois tu tens ideias? QUINCAS Tenho, sim... A Rosalina casa-se amanhã, não é?
ROMUALDO É... QUINCAS Pois matemos o Juca hoje! ROMUALDO (recuando) Matar? “Zesus”! E a cadeia?... QUINCAS (esfriando) É verdade... Mas o que havemos de fazer? ROMUALDO Chorar, Quincas, chorar!... QUINCAS Então choremos... (Subindo, abraçando com Romualdo) Ai! Romualdinho!... Ham! ham! ham! ROMUALDO “Zesus”! Quinquinhas! ham! ham! ham! CENA II Os mesmos e Antônio. ANTÔNIO (chorando) Ah! rapazes, que desgraça! Amanhã ela casa-se, vai-se embora pra cidade, e nos deixa só cá com as nossas “sodades”! ROMUALDO Desprezar, a nós, os rapazes mais bonitos da freguesia! QUINCAS Rapazes elegantes e atirados como nós, que se fossemos pra cidade havíamos de pintar o Simão e o Calunga com as moças!
ANTÔNIO Quem “havera” dizer? (Ameaçando com os punhos cerrados) Ah! Juca de uma figa! ROMUALDO (ao mesmo tempo, com o mesmo gesto) Ah! Juca de uma figa! ANTÔNIO “Mas porém”, o que resolvem vocês? Sim, porque isto não pode ficar assim... Precisamos tirar uma desforra. Eu tenho uma ideia! ROMUALDO Ai! ai! Que todos hoje têm ideias! O Quincas já teve uma “indagurinha”, agora tu tens outra... Só eu não tenho nenhuma... Sinto o coração tão apertado! “Zesus”! QUINCAS Não é só o coração, não; há de ser o cós das calças também! ROMUALDO (a Antônio) Mas que ideia é a tua, menino? ANTÔNIO Já não é uma ideia só; agora são duas. ROMUALDO Ai! ai! Com a do Quincas, três, e uma que ainda não tive, mas que hei de ter, quatro... QUINCAS Qual é a primeira? ANTÔNIO (misterioso, levando os dois à boca de cena) A primeira é matar o Juca. QUINCAS Ora! Essa é minha! ROMUALDO Ai! ai! Eu não me meto nisso... Eu, que não tenho “corage” de matar uma barata! ANTÔNIO Sai daí, maricas! Mas tens coragem pra outras coisas que deviam valer-te uma sova! ROMUALDO (grimpando) Antonico! ANTÔNIO (chegando-se) “Haim”?... O que é?... ROMUALDO (encolhendo-se) “Zesus”! QUINCAS Oh! Antonico, deixa o Romualdinho... ANTÔNIO (a Romualdo) Cara de morcego! (Dá-lhe as costas) ROMUALDO (à parte) Feições de mico! QUINCAS A tua ideia de matar o Juca, não é tua, é minha, mas não serve por causa da cadeia. ANTÔNIO E você tem medo da cadeia? ROMUALDO Ai! ai! A cadeia não foi feita pra os cachorros...
ANTÔNIO Nem pra os medrosos como tu! QUINCAS Ora, deixa-te de prosas, Antônio!... Atchi! Bem sabes que eu te conheço... Aposto que se o sujeito aparecesse aqui agora, tu disparavas por aí afora, como se levasses o diabo dentro da barriga!... Passemos à outra ideia. ANTÔNIO A outra ideia é roer a corda ao major. ROMUALDO Ai! ai! “Mas porém”, como? ANTÔNIO A eleição é hoje, e ele conta com os nossos votos. Pois vamos votar no outro para pô-lo danado... QUINCAS A ideia não é má. Mas isso não impede que a Rosalina case com o “pachola”... ANTÔNIO Não impede; mas o moleque fica furioso, e... ROMUALDO “Mas porém”, ela casa-se! (Abraçando Quincas, a chorar) Ai! Quincas! Quincas! QUINCAS (chorando) Ai! Romualdo! Romualdo! ANTÔNIO Mas o que é que vocês arranjam com essa berraria, não me dirão?
QUINCAS E é amanhã que ela vai... Ah! quem dera que a noite de hoje fosse do tamanho de um ano inteiro! ROMUALDO De dois, Quinquinhas, de dois... ANTÔNIO Então que fosse do tamanho de três! ROMUALDO O Pantaleão disse que um dia um homem mandou parar a lua... QUINCAS Foi o sol, Romualdo. ROMUALDO O sol?... Tens certeza disso? ANTÔNIO Foi, foi o sol. ROMUALDO Se eu pudesse fazer o mesmo... não mandava parar o sol, não; mandava mas era parar todos os relógios pra nunca anoitecer hoje! ANTÔNIO Tu és besta! Embora parasses todos os relógios, haverá de anoitecer por força. ROMUALDO Há de ser isso, Antônio... Ai! ai!... Tenho andado numas agonias, meninos, que já nem sei o que digo... Se vocês não ficarem desta vez sem o Romualdinho, nunca mais!... QUINCAS Eu digo o mesmo...
ANTÔNIO E eu também! (Trágico) Ah! Rosalina! Rosalina! Não sei o que me tem impedido de cometer um crime!... ROMUALDO (encolhendo-se) “Zesus”, menino! ANTÔNIO Ainda ontem à noite, vinha eu perto da igreja, pensando nas nossas mágoas e com os olhos rasos d’água... aflito estava que não via um palmo adiante do nariz... ROMUALDO Vinha da venda do Piolho? ANTÔNIO Como sabes? ROMUALDO Ai! ai! Dissestes que não vias um palmo adiante do nariz, e eu vi logo que não podias vir senão da venda do Piolho. ANTÔNIO O que é que queres dizer na tua?... Parece que pensas que eu saí da venda do Chico vendo sol à meia noite... Tu andas brincando comigo, Romualdo. Toma sentido!... De repente, quanto menos esperares, dou-te uma sova, que te mando pra o meio do inferno! QUINCAS Ora, que hás de andar sempre de ponta com o Romualdinho e a querer esmurrar o coitadinho! Mas, olha que perdes o teu tempo! No dia em que tocares com um dedo, — vê bem, — com um dedo só, no Romualdinho, enterro-te uma faca até o cabo! ANTÔNIO (recuando)
Oh! Quincas, aí estás tu como da outra vez, quando eu quis dar uns cascudos neste maricas! Que diabo de homem! QUINCAS Isso! Chegamos ao ponto. E justamente por ser ele um maricas — que até tem medo de uma aranha — que te fazes um valentão com ele! Por que é que nunca ameaças a mim e ao “Sarafim”?... ANTÔNIO Ora, porquê!... Porque... QUINCAS Porque tens medo, confessa. Tu não vales nada... És um prosa, um porco, que só tens língua! Deixa-te de lambanças, e não andes amolando o Romualdinho. Quem ofender o Romualdo, comigo se tem de haver. E eu não aturo desaforos, fica sabendo!... ANTÔNIO (com arreganho) Ora! QUINCAS (arregaçando as mangas e avançando) Ora! Ora, o quê?... (Segurando-o pelo peito da camisa) Fala, anda, fala, que eu quero fazer-te engolir a língua! ROMUALDO (segurando-se a Quincas) Oh! Quinquinhas da minha alma! Não brigues, pelo amor de Deus! ANTÔNIO (tremendo) Que diabo de homem! Oh! Quincas... olha que eu estou brincando... QUINCAS Não estás brincando, não; estás com medo! (Dá-lhe um boléu e larga-o) ANTÔNIO Pois sim... seja como quiseres... Mas tens um gênio danado! ROMUALDO Ai! ai! Mas desta maneira não podemos concordar em coisa nenhuma... nem o Antônio pode continuar a história que estava contando... ANTÔNIO Aquela em que não vias um palmo adiante do nariz quando saíste da venda do Piolho!... CENA III Os mesmos, Major e Pantaleão. PANTALEÃO (com um lápis e lendo uma tira de papel) Dois... e um — três... e seis — nove... e cinco — quatorze... (Senta-se no sofá, lendo sempre) MAJOR (consigo) Para deputado geral — Anacleto da Trindade — major da... (Vendo o grupo) Oh! rapazes, pois vocês ainda estão aqui? Vão para a igreja... Já tem cada um a sua chapa? QUINCAS Não, “sô manjor”... Nós votamos em vossa senhoria, mas é preciso que vossa senhoria... sim... quero dizer... MAJOR Dizer o que, homem? QUINCAS Sim... quero dizer que vossa senhoria bem podia... MAJOR (como que impaciente) O quê? o quê?... QUINCAS Sim... quero dizer...
ANTÔNIO Oh! estafermo! Põe isso pra fora de uma vez! (Ao major) Ele quer dizer que vossa senhoria bem podia chegar mais uns cobrinhos... ROMUALDO Ai! ai! O “sô manjor” deu muito pouco... MAJOR Dei pouco?... Como! Pois vocês tão persuadidos que cada um vale mais de três mil réis?... ANTÔNIO Três “min” réis! Como é lá isso, “sô manjor”? MAJOR Entendi-me com o Serafim para falar-lhes, e ele disse-me que cada um de vocês exigia três mil réis para votar comigo. Entreguei-lhe logo os cobres e... OS TRÊS (olhando-se pasmos) Três “min” réis! MAJOR Sim. Três mil réis, nem mais, nem menos. Foi puxadinho, mas cuspios logo, porque o Serafim disse-me que vocês queriam o dinheiro adiantado... OS TRÊS (como acima) Três “min” réis! MAJOR (já zangado) Sim! Pois então! Três mil réis! três mil réis! três mil réis! ANTÔNIO Ai! que o cachorro nos passou a perna! Sabe quanto deu ele a cada um de nós, “sô manjor”? Dez “tustas”!
MAJOR (recuando) Três patacas e dois vinténs!... Mas então o Serafim é um gatuno! PANTALEÃO (sem deixar de olhar a tira de papel) No dia do exame, eu também dei ao Serafim cinco tostões para cada um de vocês. QUINCAS Cinco “tustas”! Uma pataca e nove vinténs! Mas ele não nos deu coisa nenhuma! ROMUALDO Ai! ai! Não é à toa que ele ontem à noite estava na venda do Chico Piolho, dizendo que tinha tirado a sorte grande! ANTÔNIO Olha que ladrão! Rapazes, vamos procurá-lo! QUINCAS Pra quê?... Se ele te fizer uma careta, te corres. ANTÔNIO Nada! Aquele patife precisa uma lição... Vamos procurá-lo, e se ele não vomitar os cobres, vintém por vintém, rachamo-lo de meio a meio! Vamos, rapazes! QUINCAS Aí principias tu com as prosas outra vez! Sai daí, porcalhão! Tu tens “corage” de rachar ninguém! ANTÔNIO Pois, vamos lá, e eu mostrarei! (Sai) MAJOR Acomodem-se, rapazes. A hora da votação está chegando, e se vocês foram à cata do sem vergonha, podem deixar de votar. Depois da eleição, agarrem o meco e metam-se o pau!
ANTÔNIO (descendo) É isso mesmo. O melhor é guardar pra depois. QUINCAS Tu não ias agora, e não vais depois... Deixa-te de histórias! MAJOR (distribuindo envelopes, que tira do bolso) Tomem lá as chapas e vão já para a igreja. Quanto aos cobres, descansem. Eu farei com que o Serafim entregue tudo. ROMUALDO Ai! ai! “Mas porém” o “sô manjor” podia chegar mais uns níqueis... Eu que precisava agora tanto de um quinhentão! PANTALEÃO Oh! Romualdo, pois além de todos os vícios que já tens, deste também agora em ambicioso? ROMUALDO (fazendo um momo e revirando os olhos) Vícios, “sô” Pantaleão?... Vícios, eu?... Ai! ai! PANTALEÃO Não lhe dê nada, major. Você não conhece o Romualdinho como eu... Isto é uma joia! (Segreda ao ouvido do major) MAJOR (que não ouve o segredo) Hein? PANTALEÃO Não ouviu? (Segreda outra vez) MAJOR (admiradíssimo) O que está dizendo, homem? PANTALEÃO É o que lhe digo. (Pondo o dedo indicador no olho direito) Com estes que a terra há de comer. MAJOR E eu que nunca pensei!... Pois o Romualdo!... (Erguendo os olhos e as mãos ao céu) Oh! mundo! mundo! ROMUALDO Ai! ai! O que é, “sô manjor”? MAJOR Nada... nada! (À parte, olhando de esguelha para Romualdo) O que tu precisas não é dinheiro, não; é um bom vergalho no lombo, cachorro! ANTÔNIO (que tem estado a conferenciar com Quincas) “Antão”, o “sô manjor” não dá mais nada? MAJOR Não, meu amigos. Já dei até demais. Não posso. QUINCAS Pois “antão”, recebe o dinheiro do “Sarafim” e guarde, porque nós não votamos. (Sobe) ANTÔNIO Sim, positivamente, não votamos. (Sobe) ROMUALDO Ai! ai! Eu também não voto. (Sobe) PANTALEÃO (agarrando o major, baixo) Dê mais uns cobres, major, dê... Não podemos perder estes três votos. MAJOR (baixo) Mas, Pantaleão, tenho gasto um “ror” de dinheiro!
PANTALEÃO Dê, major, dê... (Chamando) Oh! rapazes, venham cá... (Os três descem) O major vai dar-lhe mais alguma coisa, não porque precise dos votos de vocês, mas porque não quer que o chamem de sovina... MAJOR (incomodado) Vamos lá: chega uma pataca para cada um? ROMUALDO Ai! ai! É pouco, “sô manjor”... MAJOR Cala a boca, maricas! QUINCAS Um quinhentão, “sô manjor”, um quinhentão! ANTÔNIO (baixo) Oh! diabo, pede mais! (Alto) O “sô manjor” obriga o “Sarafim” a vomitar os três paus de cada um e nos dá agora mais três “min” réis pra nós três... MAJOR (recuando) O quê?... PANTALEÃO (baixo) Dê, major, dê ANTÔNIO Senão, não votamos. PANTALEÃO (baixo) Um rasgo de heroísmo, major! Dê os três mil réis. MAJOR (à parte)
Desta maneira, não me deixam somente em mangas de camisa, como eu pensava... Deixam-me nu! PANTALEÃO (baixo) Não regateie, major, não regateie... MAJOR (baixo) Mas, Pantaleão, desta maneira, deixam-me nu... deixam-me nu! PANTALEÃO (baixo) Depois de eleito, recuperará tudo... Dê os cobres. MAJOR (baixo) Mas são precisos estes três votos? PANTALEÃO (baixo) Precisos, não; mas quantos mais, melhor. MAJOR (à parte) Fico nu, fico! A maldita eleição leva-me até as ceroulas! (Indo ao grupo e dando dinheiro a cada um) Tomem, mas não me venham mais para cá com histórias, porque não lhes dou nem mais um x! (Vai para Pantaleão) QUINCAS (baixo) Agora, rapazes, vamos ao Zé Caolho. Se o bicho der dois paus a cada um, votamos com ele... Atchi! ANTÔNIO (baixo) Eu cá, por mim, só voto com quem me der seis “pelegas”! ROMUALDO (baixo) O meu votinho não vai por menos de cinco “min” réis... Ai! ai! QUINCAS (baixo) Vamos ao Caolho. Se ele não quiser dar o que pedirmos, vamos jogar a bisca na venda do Chico.
ANTÔNIO Pois vamos. (Sobem os três) MAJOR (que tem estado a discutir calorosamente com o Pantaleão) Já vão para a igreja? PANTALEÃO Não se demorem no caminho. QUINCAS Vamos direitinhos... (À parte) Pra venda do Chico! PANTALEÃO Ouçam cá, rapazes. Vejam o que fazem. A honra de vocês está vendida ao major... Cuidado, não vão fazer papel triste. MAJOR Sim. Tenham consciência, ao menos na ocasião de votar. QUINCAS Dê por onde der, havemos de votar no “sô manjor”... (À parte) Se o Caolho não der mais! ANTÔNIO Nós somos homens de bem, e não fazemos bandalheiras. ROMUALDO Ai! ai! Eu sou um rapaz honrado! PANTALEÃO Oh! Romualdinho, o melhor é calares-te. Quando quiseres vender o teu peixe, vai pra outra freguesia... ROMUALDO (fazendo um momo) “Zesus”!
MAJOR Vão para a igreja, rapazes, vão. QUINCAS Vamos. (Saem os três) CENA IV Major e Pantaleão. MAJOR (sentando-se, abatido) Jesus! Quando me vir na câmara dos deputados, ainda pensarei que estou sonhando! PANTALEÃO (mostrando a tira de papel) Aqui está o meu cálculo, major. Em vista das castas que recebi dos diversos pontos da província, e que lhe mostrei, não podemos duvidar da nossa vitória... MAJOR Mas então para que mandou dar mais dinheiro àquela súcia que saiu agora daqui? PANTALEÃO (atrapalhado) Deixemos isso... O que lá vai, lá vai... (Outro tom) O major podia terse apresentado somente pelo primeiro distrito; mas procedeu bem, seguindo o meu conselho e apresentando-se também pelo segundo. Se falhar o primeiro, sai pelo segundo; se falhar o segundo... MAJOR Oh! Pantaleão, e se falharem os dois?... Sinto-me sobre brasas... o coração parece saltar-me pela boca... tenho a cabeça pesada... creio até que estou com febre! Esta incerteza é um martírio! O pior calo, a pior dor de estômago não são comparáveis a isto!... Nunca pensei que um futuro deputado sofresse tanto! PANTALEÃO Mas que desânimo é esse, major?... Seja homem! Se a sua candidatura perigasse, vá lá que estivesse assim... mas uma candidatura garantida! MAJOR (com desânimo) Mas, Pantaleão, se me falham os dois distritos?... PANTALEÃO (hesitando) Se lhe falharem os dois distritos... o major não sai deputado por nenhum... (Resoluto) Mas não falham! Aqui está o cálculo... (Mostra a tira de papel) Um triunfo infalível! Acredite, major, já o estou vendo eleito, já o estou vendo na câmara, já o estou vendo subir à tribuna, já o estou ouvindo engatilhar o primeiro discurso!... MAJOR (mais animado) E por falar nisso: vá tratando de escrever o primeiro discurso para eu ter tempo de decorar. Quero coisa boa! Um palavreado graúdo cheio de figuras chinesas! PANTALEÃO (rindo) Já lhe tenho dito muitas vezes que ninguém me apanha descalço, meu amigo! (Afasta-se do major, tira do bolso um maço de tiras de papel e mostra-as com ar triunfante) Veja! MAJOR O que é isso? PANTALEÃO O que é isto?... Adivinhe. MAJOR São apontamentos da escola... PANTALEÃO Pois não! Apontamentos da escola! MAJOR É a relação dos votantes... PANTALEÃO Qual relação, nem qual carapuça, major! MAJOR É... é a conta dos epitáfios... PANTALEÃO (sacudindo as tiras) É o seu primeiro discurso! MAJOR (contente) O meu primeiro discurso!... Ah! Pantaleão, você vale o que pesa em moedas de dois vinténs do tempo antigo!... Vamos lá. Leia um pedaço para eu ouvir. PANTALEÃO Isto é um monumento, major! Há um mês que trabalho dia e noite — diurna e noturnamente — na construção deste monumento... mas posso gabar-me de que está coisa boa! Fiz isto com um mimo, um carinho, um amor e uma dedicação iguais à dedicação, ao amor, ao carinho e ao mimo de uma mãe por um filho! Sim, porque eu posso considerar-me mãe desta criança! Dei à luz depois de um mês de laborioso trabalho, lavei-a nas águas lustrais do meu talento, penteei-a com o pente de ouro da minha ilustração e amamentei-a com o leite virginal do meu gênio... MAJOR Mas leia, Pantaleão, leia... PANTALEÃO Trabalhei como um burro, mas este discurso há de ser transcrito em todos os jornais da Europa, Ásia, África, América e Oceania! MAJOR Mas leia, Pantaleão, leia...
PANTALEÃO O mundo civilizado, desde a terra dos esquimós até a nossa freguesia, há de ficar pasmo, de boca aberta e olhos arregalados ante a profunda ciência e os vastíssimos conhecimentos aqui revelados... Emílio Castellar, o próprio Emílio Castellar, duvido que seja capaz de escrever uma coisa igual! MAJOR Mas leia, Pantaleão, leia... PANTALEÃO No dia em que o major proferir este discurso, em todas as casas da corte não ficará um gato! Todos correrão para ouvi-lo... E se mandar publicar editais com o prazo de três dias... então... até da China há de ir gente à Câmara! MAJOR (zangado) Com mil raios! Leia, Pantaleão! PANTALEÃO (desdobrando as tiras) Atenção, major! (Vai precipitar a ler, mas suspende-se) Major, devo em primeiro lugar preveni-lo, para evitar arrependimentos futuros, que o senhor vai defender o comunismo. MAJOR Mas, Pantaleão, como posso eu defender gente que não conheço?... Pois eu lá sei que crimes cometeu esse sujeito, para defendê-lo! E se depois condenam o homem a galés perpétuas “por toda a vida” e multa correspondente ao dobro do tempo? Responda agora! PANTALEÃO (com profunda comiseração) Oh! major, mas o comunismo não é um homem: — é uma ideia!... MAJOR É boa! Por que é que não disse logo? PANTALEÃO Atenda, major, atenda! (Tosse, assoa-se forte e lê enfaticamente) — “Senhor presidente! — Da cratera do meu peito — me sobem à boca, em chamas, — as lavas deste discurso — em mil tremebundos dramas!” MAJOR Isso é verso, Pantaleão? PANTALEÃO Não, major. (Mostra o papel) Olhe: o papel está escrito de cabo a rabo. Mas a linguagem é tão elevada, que quem a ouvir pensará que estou lendo versos. Atenção, major! (Lê como acima) “Eu sou um canhão, senhor presidente! A minha palavra é granada, o meu entusiasmo é metralha, o meu patriotismo é lanterneta, o meu coração é Krupp, o meu cérebro é Manulicher!...” MAJOR (aplaudindo) Bravo! bravo! Não há fortaleza nem encouraçado que resista a uma linguagem destas! PANTALEÃO (lendo como acima) “Desde o papa Luiz XVI até ao rei da França Leão XIII, nunca apareceu um homem da minha altura intelectual. Senhor presidente, o mundo vai mal, vai mesmo pessimamente. Para endireitá-lo, o que é preciso fazer?... Destruí-lo, arrasá-lo, pô-lo em pedaços, para fazerse outro em melhores condições... Pois arrasemos o mundo, senhor presidente!” MAJOR (entusiasmado) Sim! sim! Arrasemos o mundo! PANTALEÃO (lendo como acima) “E depois de termos feito outro mundo, estabeleçamos o comunismo, que é a melhor coisa conhecida! Todos teremos os mesmos direitos: vossa excelência pode entrar em minha casa e vestir a minha fatiota para ir ver a namorada; eu posso entrar na casa de vossa excelência e pegar todo o dinheiro que encontrar para metê-lo na pandega! Tudo é comum: os sapatos, a roupa, o chapéu, o dinheiro, e até as pontas de um cigarro! Os meus ilustres colegas serão uns quadrúpedes, se não quiserem o comunismo!” MAJOR (entusiasmado) Sim! Estabeleçamos o comunismo... das pontas do cigarro! PANTALEÃO (ponto as tiras em cima do sofá) E assim encho trinta tiras de papel! Ah! O major há de sair da câmara em triunfo! MAJOR Ah! Pantaleão, que dia! que dia! PANTALEÃO Que dia, major! (Dão nove horas, dentro) MAJOR Nova horas! Vamos para a igreja, Pantaleão. PANTALEÃO Vá indo, major. O seu nome é o primeiro chamado. Vou por em ordem as tiras do seu discurso, e já o sigo. MAJOR Então, avie-se. Olho vivo! Até já. (Sobe) PANTALEÃO Até já, major. MAJOR (voltando-se da porta) Não te demores, Pantaleão... (Sai)
CENA V
PANTALEÃO (depois de uma pausa, durante a qual junta as tiras do discurso e guarda-as no bolso) Estou metido num torniquete!... Não tenho remédio senão roer a corda ao major e votar no candidato do governo... (Tirando uma carta do bolso) Em vista desta maldita carta, que hoje recebi, se não votar com o governo, perco decididamente os meus vinte e tantos anos de bons serviços... (Lê) “Senhor Pantaleão Peroba. — Acabam de comunicar-me que vosmecê cabala fortemente contra o nosso candidato, e que tem chegado até a meter medo aos votantes, ameaçando-os com a cadeia se não votarem no major Anacleto, dizendo alto e em bom som que a situação está podre e que não tarde a cair, isto é, — a levar o diabo, na sua gíria... O caminho que vosmecê vai seguindo é mau. Já ontem falou-se aqui da sua demissão; mas eu impedi que ela fosse levada a efeito, declarando que vosmecê votaria conosco. Assim, pois, ou vosmecê vota com o governo hoje, ou está amanhã no meio da rua. — Seu criado & & — Post-scriptum. — Inclusa remeto-lhe a chapa com que vosmecê deve votar.” — (Guarda a carta. — Pausa) É esta! E aqui está ao que no Brasil, em pleno ano de 1881, se chama liberdade de consciência e eleição livre!... Está fresca a tal liberdade de consciência! (Pausa) E agora?... (Pausa) Agora... agora... voto com o governo! O major que tenha paciência... Se até dentro da carta já vinha a chapa! Voto com o governo! (Pausa) Mas como hei de escapar-me do major?... (Passeando) Isto é o diabo!... (Batendo na frente) Achei! Finjo uma dor de barriga, e meto-me na cama! (Pausa) Mas assim também não voto com o governo, e os termos da carta são bem claros: — ou vota com o governo, ou olho da rua! — (Resoluto) Ora, dê por onde der! Voto com o governo! Nada, nada, isto não serve, e pra não viver inferno, mando o major à tabua, e vou votar no governo! (Sobe, para sair, mas esbarra-se com Manduca — Roda nos calcanhares e desce — À parte) O que quererá este malandro?
CENA VI
Pantaleão e Manduca.
MANDUCA (com uma gaita de foles debaixo do braço) “Sô Espantaleão”, a tia Rita manda “dizê” que hoje vá lá “tomá” café... PANTALEÃO (zangado) Hoje não posso... não posso... MANDUCA Ela “qué” também “falá” do casamento. PANTALEÃO Que casamento, rapaz? MANDUCA “Ué”! O casamento dela com “vancê”! PANTALEÃO Oh! Manduca, a tua tia está doida? MANDUCA Doida?... Ela está doida, “mas porém” é pra “casá” com “vancê”... está “memo” doidinha! PANTALEÃO (à parte) Olha a lambisgoia! (Alto) Manduca, vai dizer à tua tia que não me amole, que cuida das galinhas e dos porquinhos, e que se esqueça de casamento, porque há mais de quarenta anos que o casamento esqueceu-se dela! MANDUCA E “vancê pra” que foi “pedi” ela em “casóro”? PANTALEÃO Ora, deixe-me! Eu nem sei como foi aquilo... Eu estava idiota, doido varrido, porque deves compreender que só um doido varrido podia pedir a Rita barbada em casamento! MANDUCA (zangado) Oh! “sô Espantaleão”, isso é desaforo!... A tia Rita é uma “muié” de bem... PANTALEÃO Naquela idade, qualquer mulher é santa! MANDUCA É uma “muié” de bem... “Vancê” é que não tem “vregonha”! PANTALEÃO Oh! cachorro! MANDUCA (gritando) Não tem “vregonha”! Si “vancê” tivesse “vregonha”, não fazia a “bandaiera” de “pedi” ela em casamento por pagode! PANTALEÃO Manduca! MANDUCA (agitando a gaita) “Mas porém”, eu hei de “ensiná” a “vancê, sô” patife!... (Outro tom) E a ti a Rita que estava tão contente e que andou “espaiando” que ia “casá” com “vancê”! PANTALEÃO Quem a mandou ser linguaruda? Ora, a velha! MANDUCA “Veia”! Oh! “sô Espantaleão”, eu “le” corto a língua!... E corto, “pra vancê” não “andá” pedindo as “moça” em “casóro, pra” não “casá ospois”... “Mas porém”, deixe “está”... Eu indo pra cidade... PANTALEÃO Queres que te diga uma coisa, Manduca?... Vai te catar, e a tua tia que vá também se catar! Ora, a saracura da velha!... (Sai correndo) MANDUCA (segurando-o a gritar e a tocar gaita) Oh! “sô” pandorga!... Espera, cachorro!... (A cena fica vazia um momento) CENA VII SERAFIM (pensativo; para um momento ao entrar, olha para todos os lados e desce) Amanhã... É amanhã que ela se casa!... Quem “havera” de dizer “ca” Rosalina não casa comigo, pra casar com outro!... (Pausa) Não preguei o olho toda a santa noite, pensando nela!... Nunca senti tanta pulga e tanto mosquito! De vez em quando... (Fingindo que morde) Ham! Uma pulga do tamanho de um boi, em cima do coração, a me chupar o tutano!... Depois... (Imitando um mosquito) Fuim... fuim... fuim... Um mosquito maior do que um “bizerro” a me fazer comichão na ponta do nariz!... Virava-me pra todos os lados, pra direita, pra esquerda, de pança pra baixo, de pança “pra riba”... e nada! O sono não chegou... (Pausa) E tudo por causa dela... Agora é que eu sei o amor que lhe tinha! (Pausa) Ainda estou aqui sem almoço, e creio que ficarei também sem jantar! Sinto uma bola na goela, que não me deixa engolir o “cuspe”, quanto mais o pirão! (Pausa. Com voz de choro) Ah! Rosalina! Rosalina! Nem tu sabes as desgraças que vais fazer com este casamento... Mas casa-te, casa-te! Que importa que deixes aqui um coração machucado, uma alma amarrotada, se vais te “adivertir” na cidade! Ingrata! ingrata! ingrata!... Menina dos olhos negros e de falar adorado, tu nem sabes quanto sofre este triste desgraçado! Do meu coração no meio plantei um cravo amarelo: o cravo nasceu formoso, que era mesmo um gosto vê-lo! Esse cravo primoroso era o meu amor “cachopa”, que agora, por ti, chorando, em pranto todo se ensopa! Agora ficou sozinho, e tu vais para a cidade... mas dentro de pouco tempo há de matar-me a “sodade”! Eu sei... eu sei que não fico muito tempo neste mundo... Se eu soubesse que não doía muito, metia... mas era uma faca ao coração, e acabava com isto de uma vez! (Pondo a mão no peito) Ai! coração aflito... não batas com tanta força, que me fazes dor de cabeça!... Deixa que ela vá, que se “adivirta”, que seja feliz... embora tu fiques aqui morrendo de “sodades”! Ai! que tristezas no peito! que mágoas no coração! somente na sepultura estas dores fim terão! Esta dor que me esborracha, ninguém, ninguém saberá!... ela vai para a cidade, eu fico triste... só cá!
(Olhando) Lá vem ela... Como é bonita! Mal comparando, parece uma santa!... (Ameaçando com a mão fechada) Ingrata! ingrata! ingrata!... Vou me esconder! (Esconde-se atrás do sofá)
CENA VIII
Serafim e Rosalina.
ROSALINA Está chegando, está chegando o grande dia do meu enlace, do meu enlace ai! que alegria! Sinto no peito vivo calor... minh’alma canta: – amor! amo! – Para a cidade, para a cidade vou de partida, pra ter com o Juca, pra ter com o Juca formosa vida! Sinto no peito vivo calor... minh’alma canta: – amor! amor! – SERAFIM (à parte, encolhendo-se, para não ser visto) Como está alegre! ROSALINA (sentando-se no sofá) Consegui, enfim, a realização do meu maior desejo: casar com um moço da cidade... SERAFIM (à parte) O que diz ela! ROSALINA Aqui há bons rapazes... mas são todos uns brutos que só sabem dizer tolices...
SERAFIM (à parte) Mau! mau! mau! ROSALINA Com o Juca a coisa muda de figura. O Juca é um marido perfeito... SERAFIM (à parte) Mau! mau! mau! ROSALINA O Serafim, por exemplo: pode ser muito bom rapaz... mas é um brutamonte, um língua de trapos. SERAFIM (à parte) Hein?... Pior! pior! ROSALINA Ora, uma moça educada como eu não vai certamente sujeitar-se toda a vida a um tolo como o Serafim. SERAFIM (que se tem levantando por trás do sofá, gritando-lhe ao ouvido, furioso) Tola é ela, ouviu? ROSALINA (tapando os ouvidos e correndo para o outro lado) Ai! SERAFIM (com voz chorosa, tomando cena) Pois casa-te com o outro, “cachopa” de uma figa... casa-te... e deixa o tolo... Vai pra cidade... anda... vai com o teu Juca... e quando te forem dizer que eu morri... podes dizer logo: — “Foi por minha causa!” — Mas não chores por mim, não... porqueninguém chora quando morre um tolo!... ROSALINA (voltando-se) Mas, Serafim...
SERAFIM (no mesmo tom) Não chores, não... Canta antes, como cantava “indagurinha”, e vai dizer ao teu marido, ao teu belo Juca: — “Sabes quem morreu? Foi o tolo do “Sarafim”! (Tira uma faca do bolso) ROSALINA (recuando e cobrindo o rosto com as mãos) Jesus! SERAFIM (no mesmo tom) Não tenhas medo de que eu te meta o ferro, não... Esta faca é pra mim, ouviste? Hei de enterrá-la até o coração... e “os pois... os pois”... (Chorando baixo) “Os pois”... os outros só têm o trabalho de me carregar e de me atirar dentro do buraco do coveiro! Adeus!... Casa com o Juca... casa... e sê feliz! (Sobe, chorando) ROSALINA (comovida) Mas, Serafim... SERAFIM (voltando-se, a limpar os olhos) Adeus!... Adeus! (Sai, soluçando) CENA IX ROSALINA Tenho pena... E se ele mata-se?... (Pausa) Não se mata, não. O Serafim não tem coragem para isso. Mas que mania! Querer por força que eu case com ele! (Ao espelho) Ora! O Serafim que se deixe de tolices!...
Se o casamento é destino, que não se pode quebrar, com o meu Juca de certo, é meu destino casar! Ao lado dele, cantando, numa alegria sem par, hei de eterna felicidade eternamente gozar!
CENA X Rosalina e Major.
MAJOR (furioso) Cem mil raios! com um milhão de demônios! ROSALINA (indo a ele) O que é, papai? MAJOR Com trezentas maçarocas de milho! com seiscentas raízes de mandioca! com cem quarteirões de laranjas! ROSALINA (seguindo-o) Mas o que é, papai? MAJOR Deixa-me, rapariga! Não me desesperes ainda mais!... (Passeando) Ah! que se eu soubesse que havia de suceder-me isto!... Se eu adivinhasse!... ROSALINA Mas por que está tão zangado, papai? MAJOR (passeando) Desaforo!... pouca vergonha!... bandalheira!... Quem me mandou ir atrás das cantigas do maluco do Pantaleão e da palavra de meia dúzia de patifes, que o que queriam era chupar-me os cobres?... Ah! mas hei de vingar-me! Canalhas!... Enganaram-me até a última hora!... ROSALINA (à parte)
Está realizada a profecia do Juca. Lá se foi a eleição! MAJOR (passeando) Ah! mas eu queria ser Deus por dois minutos somente! Havia de fazer cair tantos raios sobre essa súcia de patifes, que não ficaria um para remédio!... E o meu rico dinheirinho, o meu rico dinheirinho, que tanto me custou a ganhar!... e a vergonha!... e o fiasco!... (Indo à porta e ameaçando para fora) Ah! bandidos!... ah! a corja de ladrões... ROSALINA Acalme-se, papai... Tenha paciência... MAJOR (passeando) Paciência!... A paciência é boa para as bestas!... (Outro tom) Quando eu contava com a votação toda, com um triunfo completo; quando já me preparava para principiar a decorar o discurso do Pantaleão; quando já me via levado em charola pelas ruas da sorte e cantando em prosa e verso por todo mundo... obter um único voto... e esse mesmo... o meu!... De modo que se eu tivesse ficado em casa, nem mesmo o meu voto teria!... Agora o Pantaleão que meta no... que meta no fogo o seu discurso!... ROSALINA O Juca bem o preveniu. Por que não seguiu o seu conselho? MAJOR Tens razão... Mas, o que queres?... O Pantaleão garantia-me a coisa... dizia que era infalível a minha eleição... chegou a escrever o primeiro discurso que eu havia de proferir na câmara dos deputados!... Acreditei, e deixei-me embalar como uma criança de mama!... No entretanto, até o canalha do Pantaleão vai votar no candidato do governo!... Mas o cachorro há de vir para cá!... Mas hei de pô-lo... hei de pô-lo... Cá o espero... ROSALINA Não lhe diga uma palavra, papai... O que é preciso agora é fazer esquecer tudo. Venda o sítio e vá morar conosco na cidade. Fica livre do Pantaleão, e não se incomoda mais... MAJOR É o que vou fazer sem perda de tempo. Não posso mais viver aqui! Não posso! não posso!... CENA XI Os mesmos, Juca, Pantaleão, Serafim, Romualdo, Quincas, Antônio e Manduca. JUCA Aceite os meus pêsames, major. Se tivesse ouvido a minha opinião, não passaria pelo fiasco de uma derrota e pelo dissabor de se ver atraiçoado pelos que se diziam seus amigos. MAJOR Oh! Pantaleão! Pois até você, homem... você votar contra mim! PANTALEÃO (encalistrado) O que quer, major?... Se eu não votasse no governo, estava no olho da rua... Fui ameaçado, major, fui ameaçado!... Ainda aqui tenho a carta!... (Mostra a carta) JUCA (tomando o centro da cena) Foi ameaçado?... É sempre assim! Que importa o direito de pensamento?... que importa a liberdade de consciência?... Seja tudo calcado aos pés, seja tudo despedaço pela mão de ferro da prepotência, contanto que das ruínas da honra e do brio do povo — saia vitorioso um nome qualquer, que era ontem inteiramente desconhecido, que é hoje endeusado pelos donos do poder, e que será amanhã apedrejado pelos mesmos que o elevaram, fazendo como os abissínios, que adoram o sol que nasce e que insultam o sol que declina!... E quando a voz da consciência nacional tenta erguerse para anatematizar os seus carrascos aí está a garra terrível da violência para sufocá-la, para estrangulá-la ao primeiro grito!... E depois, na tribuna e na imprensa, nas praças e nas esquinas, apregoam os arautos da corrupção, os assassinos da dignidade nacional — da dignidade do povo — que a liberdade de consciência é um fato; que o direito de pensamento é uma realidade! Mas, um dia, no coração entusiasta, no grande coração do povo — de onde ressaltam, como chispas incandescentes, as enormes revoluções que esmagam; e as sublimes evoluções que elevam; nesse mar gigante, que incessantemente tumultua, batido incessantemente pelos vendavais das opiniões desencontradas, dos opostos anelos, dos desejos heterogêneos, há de surgir — como surge do meio das nuvens convulsionadas das noites de tempestade o olhar luminoso e puro de uma estrela perdida — o clarão deslumbrante de uma reação poderosa, extraordinária, tremenda, para a conquista da liberdade de consciência e do direito de pensamento! MAJOR (aos rapazes) E vocês, súcia de... QUINCAS Atchi!... O “sô” subdelegado berrou que nos mandava “arrecurutar”, se nós não déssemos o voto a ele... nós ficamos com medo, e... ROMUALDO Ai! ai! O “sô” subdelegado gritou tanto! “Zesus”! Eu fiquei logo a tremer e fui recebendo a chapa... SERAFIM Eu não votei porque não quis! QUINCAS (a Serafim) E vai te calando! Lá fora hás de vomitar todo o cobre que o “sô manjor” e o “sô Espantaleão” te deram pra repartires conosco. ANTÔNIO (a Serafim) Gatuno!
ROMUALDO (ao mesmo tempo) Gatuno! MANDUCA (baixo) “Sô Espantaleão”, a tia Rita manda “dizê”... PANTALEÃO (afastando-se) Ora, vai pro diabo que te leve! MAJOR Mas que gente! que amigos! que companheiros! que súcia!... JUCA Resigne-se, meu sogro. O que está feito, não tem mais remédio. MAJOR Ah! meu amigo, se eu tivesse tomado os seus conselhos... JUCA Mas não tomou, e aí está o seu prejuízo. PANTALEÃO (choroso) Oh! major, você não fica com raiva de mim?... Eu fui ameaçado, major! MAJOR (choroso) Fizeste mal, Pantaleão, mas não te tenho gana. Em ti falou mais alto a barriga do que a consciência... mas sou teu amigo! (Abraçam-se e desandam a chorar) JUCA Mas o que é isso, meus senhores! Não vale a pena derramar lágrimas... Coração à larga! MAJOR (aos rapazes)
Rapazes, vocês procederam como uns canalhas; mas sejam felizes com os cobres que lhes dei. É a primeira e última vez que me apresento candidato. Estou despedido da política e retiro-me à vida privada. ANTÔNIO Oh! “sô manjor”, e o dinheiro que o “Sarafim” embolsou? MAJOR Isso não é comigo; é com ele. QUINCAS Ah! é com ele! ANTÔNIO Então, espera lá... Avança, rapaziada! (Arregaçam as mangas os três e avançam) SERAFIM (tranquilamente, tira a faca do bolso e mostra-lhes) Cuidado, rapazes! (Os três recuam e conversam calorosamente, enquanto Rosalinacanta) ROSALINA Esqueçamos, cantando, as tristezas da derrota na grande eleição, e contentes, sorridentes, saltitantes, felizes, gostosos, aos formosos, primorosos grandes rasgos de bom coração, olvidemos, perdoemos a traição, a traição, a traição!
CORO Esqueçamos, cantando, as tristezas da derrota na grande eleição, e contentes, & & &
ATO IV OS NOIVOS
(A mesma sala do 1º ato. Capas de crochê nas cadeiras e no sofá. Flores em profusão. Cortinas nas portas e janela, apanhadas com laços de fita. Sobre o sofá, um véu e uma grinalda de noiva. — É dia) CENA I Major, Pantaleão, Juca, Rosalina, Serafim, Romualdo, Quincas, Antônio, Manduca, José Caolho e convidados. CORO Viva a alegria no grande dia deste himeneu! que risos, flores, cantos, amores desçam do céu! Que os anjos lindos coros infindos de fé gentil, entoem belos, cheios de anelos, no céu de anil! Todos os gozos, os mais formosos, de mais ardor, venham, em bandos, serenos brandos, para este amor! MAJOR Ah! meus amigos, sinto-me tão alegre, tão feliz que esqueço tudo, a minha eleição, a minha derrota, os meus trabalhos perdidos, o meu dinheiro deitado fora! (Mostrando Rosalina e Juca) Vejam, admirem aquele par! Que maior felicidade pode ambicionar um pai do que ver seus filhos felizes?... E a minha filha é feliz, não és, Rosalina? ROSALINA Sim, meu querido pai; muito feliz! JUCA E eu então! Como o mergulhador que vai ao desconhecido fundo dos mares acariciar aos maravilhosos e encantados palácios das Nereides a esplêndida pérola que se irisa de mil cintilações ardentes aos raios acariciadores do sol — eu, mergulhador dos mares do belo, encontrei também no fundos silenciosos desta solidão a pérola sedutora dos meus amores, a mulher dos meus sonhos, a realização do meu ideal! (Tomando a mão de Rosalina) Rosalina, em nome do Cristo, que contemplou e abençoou a nossa união, eu, mais uma vez, juro que arrastarei todos os sacrifícios, que vencerei todas as contrariedades, para fazer-te feliz! No meu grande amor, na minha enorme dedicação por ti — encontrarei a força, a coragem, o heroísmo para lutar contra tudo e para de tudo triunfar! E quando tiver conseguido o meu mais íntimo desejo, a minha ambição mais sagrada — a tua felicidade, — julgar-me-ei generosamente recompensado se vir em teus olhos cintilar a dulcíssima alegria da tua formosa alma, se vir em teus lábios um sorriso meigo do teu amor por mim! ROSALINA Meu amigo, Deus abençoou o nosso amor e sinto que minha mãe sorri-se no céu e abençoa-nos também. A felicidade não é uma palavra vã. O júbilo que me enche o coração, a alegra que me banha a alma — não são uma mentira, não são um sonho, que se dissipa ao romper da aurora! Hão de durar sempre, sempre — até o derradeiro dia da minha vida!... Amo-te! amo-te! PANTALEÃO Meus amigos, não venho fazer uma preleção de história; venho simplesmente dizer o que sinto, venho, em poucas palavras, exprimir o pensamento que me anima neste momento. Ambos são moços e belos, ambos são generosos e bons, ambos amam-se com a mesma reciprocidade, com o mesmo encanto, com a mesma paixão. Hão de ser felizes, porque a felicidade do lar não consiste na riqueza, no luxo, nas grandezas e nas vaidades: — consiste no amor verdadeiro e na consciência pura! JUCA Obrigado, senhor Pantaleão: as suas palavras ficam-nos gravadas na memória e no coração! MAJOR (abraçando Pantaleão) Obrigado, meu amigo, obrigado! SERAFIM (que tem estado a conferenciar com os companheiros, adiantando-se, timidamente) Senhor Juca, menina Rosalina... agora, que já estão casados e que vão em breve deixar a freguesia... consintam que eu diga a verdade... ROSALINA (comovida) Diga, Serafim... SERAFIM (timidamente) Todos nós a amávamos, menina... todos, mas Deus determinou outra coisa... e nós não nos queixamos... porque bem sabemos que não a merecíamos... (Pausa) Menina Rosalina... não em nome do nosso amor... mas da nossa amizade... eu e eles... oferecemos-lhe... no dia do seu casamento... como uma lembrança... este modesto ramo de flores... e pedimos-lhe... que nos perdoe qualquer ofensa... que de nós tenha recebido... (Oferece o ramo que tem na mão e abaixa a cabeça, extremamente comovido) ROSALINA (tomando o ramo) Aceito, Serafim! Obrigada! SERAFIM (mostrando Juca) E ele... ele consente?... ROSALINA (a Juca) Meu amigo, posso aceitar? JUCA (abraçando Serafim) Aí tens a resposta! Serafim, neste abraço leal vai o meu reconhecimento a todos, vai a todos a minha gratidão! SERAFIM Obrigado! (Depois de um esforço, aos companheiros) Rapazes, haja alegria! Vivam os noivos: TODOS Vivam! JUCA — Recitativo Se foi aqui que a dita, a divinal ventura, o sorriso, o prazer, a luz eu encontrei; se foi aqui que a crença, ampla, serena e pura, – a crença que avigora a vida, forte, — achei; se aqui foi que a minh’alma abriu-se à luz divina, à luz vitalizante e sã do casto amor; se aqui foi que da vida, — olente e peregrina, alegre e festival, — eu vim achar a flor; se aqui foi que meu peito — ardente, apaixonado – veio um peito encontrar cheio de amor por mim, se aqui foi que o sorriso alegre e perfumado da ventura do lar, veio afagar-me, — assim: – eu não posso partir, sem vos deixar, no instante da minha despedida, em grande emoção, provas do meu afeto, — um raio cintilante da minha verdadeira e eterna gratidão! PANTALEÃO Meu amigo, pelo povo da freguesia, aceito e agradeço a sua despedida. JUCA Que é tão sincera, como é sincero e profundo o pesar que sinto ao separar-me de todos... PANTALEÃO Sabemos... ROSALINA Adeus, montanhas, adeus, valados, adeus, oh! serras onde vivi; adeus, serenos, formosos prados, adeus, oh! fontes onde me vi! Vou separar-me de vós! Quem sabe o que o destino de mim fará?... Na mente humana fraca não cabe ler no futuro... ninguém lerá! Tenho esperança de ser ditosa, tenho esperança de ser feliz... diz-me a sua alma cavalheirosa, seu belo gênio também o diz! Levo de todos uma lembrança, uma saudosa recordação: nas tempestades ou na bonança, há de lembrar-vos meu coração! E quando, um dia, no fim da vida, fechar os olhos, pra sempre, enfim, lembrai o dia desta partida... lembrai a morta... chorai por mim! CORO Que doce ventura — risonha, infinita, serena, bendita de gozos gentis, brilhante matize de flores seus dias, de sãs alegrias, de risos gasis! MAJOR E quando partem? JUCA Apenas chegue a carruagem que mandei vir para levar-nos. PANTALEÃO (aos rapazes) Então, rapazes, ainda há tempo. Vão jantar e estejam de volta dentro em dez minutos para acompanharmos os noivos até a encruzilhada. SERAFIM (aos outros) Vamos jantar! vamos jantar! MANDUCA (a Pantaleão) “Sô Espantaleão”m na “vorta” eu posso “trazê” a minha gaitinha?... Eu já sei “tocá” o Bitu e a Canaverde... Serve “praacompanhá” os “noivo”... PANTALEÃO Ora, Manduca, tu és tolo! Deixa a gaitinha e vem sozinho. (Baixo) Olha, de caminho diz à tua tia que aquele negócio de casamento era uma brincadeira: que já que cheguei solteiro aos cinquenta, não quero casar-me mais... com ela... ROMUALDO (olhando para Rosalina) Ai! ai! QUINCAS (olhando para Rosalina) Atchi! ANTÔNIO Oh! rapazes, vamos jantar! Com a fome que tenho sou capaz de comer a freguesia toda! ROMUALDO Oh! Antonico, a mim é que tu não comes!... Ai! ai! CORO DOS RAPAZES Vamos, vamos, rapazes, avante, e afoguemos no peito a aflição, vamos, vamos comer, sem demora, carne seca, toucinho e feijão!
(Enquanto cantam desfilam a um de fundo, dirigidos por Serafim. — Saem. Caolho cumprimenta para todos os lados e sai)
MAJOR Pantaleão, uma pingazinha do meu vinho para matar as mágoas. Tenho um vinhozinho novo, puro, perfeitamente puro!
PANTALEÃO Vamos prová-lo, major. (À parte) Se o vinhozinho puro for tão puro como o outro... é cachaça pura!
MAJOR Adiante, Pantaleão, adiante.
(Saem. — Os convidados seguem-nos, a um gesto do major) CENA II Rosalina e Juca. JUCA (que tem ido sentar-se ao lado de Rosalina, que está no sofá, pensativa) Por que estás triste? ROSALINA (colocando no pé de si, no sofá, o ramo que tem conservado na mão) Sim... Estou triste... JUCA Mas não te julgas feliz? ROSALINA Muito feliz até! JUCA E então? Supões que o meu amor esfrie, que eu deixe de amar-te um dia? ROSALINA Quem sabe? JUCA Como? ROSALINA Tudo é possível no mundo. A natureza é caprichosa, e, dia a dia, vai tudo passando por uma transformação — insensível a princípio, vaga depois, e clara finalmente... O imortal poeta de Marília disse uma vez
“Minha bela Marília, tudo passa... a sorte deste mundo é mal segura”... JUCA Mas isso, minha querida, é duvidar de mim, dos meus sentimentos... ROSALINA
Não. Amo-te e creio em ti. Mas há momentos em que uma tristeza vaga, indefinida nos invade o coração, e faz-nos ter ideias extravagantes, que nunca julgamos que nos ferissem a imaginação. O pensamento de separar-me de meu pai, de deixar esta casa, onde nasci e onde minha mãe morreu, beijando-me, enluta-me o coração... Sei que o teu amor por mim não tem limites, e que esse amor é uma garantia do meu futuro e da minha felicidade... mas... JUCA Rosalina! ROSALINA Não tomes a mal as minhas palavras... Mas deves compreender que uma transformação tão completa como esta que acaba de dar-se na minha vida, há de forçosamente produzir a meditação... (Levanta-se) JUCA Sei... (Levando-a à boca da cena) Mas, vamos... não te entregues à tristeza, não te abandones a essa cisma, que me faz mal. O futuro é de Deus, e Deus há de permitir que sejamos felizes, completamente felizes... Vamos, Rosalina... lembra-te da tua canção de amor, e canta-a mais uma vez. Ela será o doce talismã do nosso amor, o elo de ouro da nossa mútua paixão... (Recordando a poesia) Lembra-te... “O amor é riso, é canto, aurora, aroma, flor...” ROSALINA Amor! amor! o amor é riso, é canto, aurora, aroma, flor, o mais divino encanto, o júbilo maior! Amor! amor! Amor! amor! o sol das alegrias, da vida o são calor, o céu das harmonias, o riso, o canto, a flor! Amor! amor! JUCA Vês?... O amor é o riso da ventura, o canto da alegria, a aurora da alma, o aroma da pureza, a flor divina do maior sentimento inspirado pelo céu! O amor é o sol dourado dos júbilos, o calor vitalizante do coração, o céu das harmonias arrebatadoras!... E esse amor, eu sinto-o aqui, no meu coração, que palpita junto do teu, na minha alma, que é tua, que te adora no êxtase mudo de uma paixão eterna!... Longe, pois, as tristezas, minha bem amada, as meditações, as saudades! ROSALINA Sim... tens razão... És meu, unicamente meu! O que posso eu mais ambicionar?... (Alegre) Olha, estou alegre... rio... canto... nado num oceano de luz, de júbilos, de rosas e de amor!... JUCA Ah! assim é que eu quero ver-te sempre! ROSALINA Juca, é uma puerilidade o que vou dizer-te... não te rias... mas queria despedir-me das minhas flores, dos meus canteiros, do meu jardinzinho, onde tantas horas felizes e descuidosas passei... JUCA Pois vamos, minha querida, vamos...
(Saem de mãos dadas, conversando) CENA III PANTALEÃO (zangado) E a tartaruga da velha!... Ora, que espiga! Pois a maldita não está quase a armar um escândalo! (Outro tom) Bem feito, “seu” Pantaleão, bem feito! Quem o mandou procurar sarna pra se coçar! Deixasse que a Barbada tirasse o barbado da escola e não se pusesse com história!... (Outro tom) Se não foi o diabo que me soprou a declaração que fiz àquela cara de pergaminho!... Foi o diabo, foi: pois quem mais havia de ser? (Outro tom) Pois a estúpida não manda o sobrinho dizer-me que eu sou um perverso, um mau homem, um assassino, um... Mau homem!assassino! Eu, que nunca matei ninguém, fora as traças da escola! Que não me atazane a velha, que não me seja gaiteira, que não venha com lambanças, porque senão... faço asneira! Sou bem capaz de agarrá-la... é — aqui, que ninguém nos ouve, – passo-lhe a corda ao pescoço e enforco-a... num pé de couve! CENA IV Pantaleão e Manduca. MANDUCA “Sô Espantaleão”, a tia Rita manda “dizê”... PANTALEÃO Ora, vai pro inferno com a tua tia! Que espiga! MANDUCA Mas ela manda “dizê”... PANTALEÃO De mazelas estás tu cheio! Ouviste, gafanhoto? MANDUCA Mas ela manda “dizê”... PANTALEÃO Já sei o que ela manda dizer... Já o disseste ainda agora, e eu não estou para ouvir a mesma ladainha a cada instante! MANDUCA Mas agora é outra coisa. Ela manda “dizê”... PANTALEÃO Oh! filho espúrio de Satanás!... mete a língua na bainha, e deixa-me sossegado! MANDUCA Mas ela manda “dizê”... PANTALEÃO Oh! senhores! Este crocodilo é capaz de fazer Santo Antônio matar um homem! Que praga! MANDUCA Mas ela manda “dizê”... PANTALEÃO Oh! “sô” Manduca Barbado, sobrinho da Rita Barbada e filho do Diabo Barbado... fique sabendo que eu não caso com a filha da sua tia, porque ela é uma jaguatirica, um gato do mato, um porco espinho, uma ladraia, uma bruxa, uma carocha, uma minhoca, uma arca de Noé de todos os bichos feios!... Ora, aí está! MANDUCA “Hein”! Diga outra vez, diga, “sô”... “sô”... cara de “lambisome”!... PANTALEÃO (contendo-se) Manduca, vai-te embora... vai-te catar... A tua tia comigo está frita! Só um jumento pode casar com ela!... Se me incomodar muito, mando recrutá-la e sento-lhe praça! Aquilo é um suados de sabugueiro, um vomitória de jalapa e um purgante de óleo de rícino... tudo junto!... MANDUCA Oh! cabeça de mamão! Bem disse a tia Rita que “vancê” é um “canaia”! PANTALEÃO (furioso) Um canalha! MANDUCA (subindo) Um “canaia”! um “canaia”! um “canaia”! (Voltando-se da porta) Um “canaia”! (Sai) CENA V PANTALEÃO Um canalha! Mas isto é o diabo! Desta maneira, a maldita velha é capaz de perseguir-me até depois de morta!... Mas, que mania! Uma múmia de quase setenta anos com entusiasmos de casamento, como qualquer moça! (Outro tom) Estou vendo que não tenho remédio senão tirar um mês de licença e ir para cidade, roer os feijões do Juca! (Passeando) E não há uma epidemia que rape aquele diabo e o leve lá bem para o fundo das caldeiras do inferno! Não caso, positivamente, com ela não caso!...
Não caso, não caso, não quero casar, não quero, não quero purgante tomar! Não caso, não caso, não quero casar, e a velha danada que vá se catar!
CENA VI Pantaleão e Major.
MAJOR (choroso) Oh! Pantaleão! Pantaleão!... E lá se vai a Rosalina, Pantaleão!... a menina Rosalina da Trindade, Pantaleão!... a filha do major Anacleto “duas aspinhas”, Pantaleão!... Ah! Pantaleão... tenho o coração do tamanho de uma melancia!... PANTALEÃO Ânimo, major! ânimo!! Com a breca! A menina Rosalina não vai pra cova! Ao contrário, vai gozar a bela vida da cidade. MAJOR Mas eu estou triste, Pantaleão, triste como um caixão de defunto da câmara municipal!... PANTALEÃO O que é que é da câmara municipal, major: o caixão ou o defunto? MAJOR O caixão, está claro, Pantaleão! PANTALEÃO Pois eu pensei que era o defunto!
MAJOR Tenho uma vontade de chorar, que é uma coisa por demais... PANTALEÃO Ah! major, sabe quem é que tem a culpa dessa tristeza?... É a própria Rosalina... Se ela tivesse aceitado a minha mão, não iria para a cidade, e passaríamos aqui uma vidinha de anjos, sim, de anjos, porque debaixo dessa careca, major, há fogo, há chamas, há um Etna, há um Vesúvio, há um Hecla em perpétua ebulição!... Nas minhas veias não é sangue que corre: é chumbo derretido! MAJOR (meio desconfiado, afastando-se) Chega-te pra lá, Pantaleão!... (À parte) E que tal!... Em que perigo estou eu metido! PANTALEÃO É o que lhe digo, major: a culpa é dela... MAJOR Mas Deus não quis, Pantaleão... Paciência. PANTALEÃO É do que precisam os cegos... e nós também! MAJOR (abraçando-o, a chorar) Pantaleão! PANTALEÃO (a chorar) Major!
(Ficam abraçados, à boca da cena, a chorar, com os lenços nos olhos) CENA VII Os mesmos, Serafim, Quincas, Antônio e Romualdo. SERAFIM (que vem na frente, volta-se, fazendo sinal para os outros) Olhem como eles choram!
OS OUTROS (formando em linha, ao fundo) É verdade! ROMUALDO (esfregando os olhos) Eu já estou me derretendo!... Ai! ai! QUINCAS (esfregando os olhos) Atchi! Eu também! SERAFIM (esfregando os olhos) Pois não estou quase berrando! ANTÔNIO (esfregando os olhos) Até eu! MAJOR (chorando alto) Pantaleão da minha alma! PANTALEÃO (chorando alto) Major do meu coração! AMBOS (chorando) Ham! ham! ham! OS OUTROS (em linha, ao fundo, chorando) Ham! ham! ham! MAJOR (subindo) Ah! rapazes, ela vai-se embora! TODOS Vai-se embora! MAJOR A Rosalina!
TODOS A Rosalina! MAJOR A nossa filha! TODOS A nossa filha! MAJOR (abraçando Pantaleão) Ah! Pantaleão amado! PANTALEÃO (abraçando o major) Ah! querido Anacleto! AMBOS (chorando) Ham! ham! ham! OS OUTROS (chorando) Ham! ham! ham! MAJOR (caindo numa cadeira) Pantaleão... ampara-me... eu morro!... (Esperneando) Hu! hu! hu!
(Todos o rodeiam) PANTALEÃO Serafim, vai lá dentro e traz... SERAFIM Água da “Clonha”? PANTALEÃO Não, homem; isso não serve de nada... Uma garrafa de vinho... Depressa! (Descendo) Desconfio que o homem há pouco afogou demais as mágoas... E dizem que a mordedura do cão cura-se com o pelo do próprio cão!... (A Serafim) Oh! estafermo, ainda estás aí?
SERAFIM Vou numa disparada. (Sai e volta logo com uma garrafa, cujo conteúdo vem saboreando) PANTALEÃO (tomando a garrafa) Dá cá, dá cá! MAJOR (esperneando) Hu! hu! hu! SERAFIM (estalando a língua) É bom que dói? PANTALEÃO O major não está bom, rapazes... (Mete o gargalo da garrafa na boca do major) Beba, major, beba a garrafa toda, se puder! Isto é remédio santo! É como a sua receita da folha de peri-peroba com azeite! MAJOR (bebe, depois abre os olhos e começa a estalar a língua no céu da boca e a lamber os beiços) Remédio santo! remédio santo! PANTALEÃO (que logo após ter o major bebido, vai para um canto e bebe também) É santo, major, é... (Bebe) Eu também estava me sentindo aflito... (Bebe) Mas já estou melhor... (Volta a garrafa de boca para baixo) Acabou-se a receita! Agora ninguém mais terá tremeliques! (Deita a garrafa pela janela e volta ao major) MAJOR (levantando-se) Onde está a Rosalina? PANTALEÃO Há de andar por aí por algum canto, conversando com o marido... É natural... O meu prazer é não ser eu que...
ROMUALDO Ai! ai! Eu sei onde ela está... SERAFIM Onde é? ANTÔNIO Desembucha, “alimal”! QUINCAS Diz lá... Atchi! ROMUALDO Ai! ai! Estava no caminho do “corgo” conversando “cô sô” Juca... (Encolhendo-se) “Zesus”! E como estavam agarradinhos! MAJOR (abraçando Pantaleão) Ah! Pantaleão! PANTALEÃO Cuidado, major... não vá ter outro ataque... A receita acabou-se. ROMUALDO (abraçado com Quincas) Ai! ai! QUINCAS Atchi! ANTÔNIO (abraçado com Serafim) Ai! “cachopa”!... “cachopa”! SERAFIM Que “sodade”! TODOS (desatando a chorar) Ham! ham! ham!
PANTALEÃO (com o lenço nos olhos, sobe, encontra o Caolho e abraça-o, pensando ser Rosalina) Ai! menina Rosalina! CENA VIII Os mesmos e Caolho. (Caolho dá um boléu em Pantaleão e desce, cumprimentando para todos os lados) ROMUALDO (dando um enorme suspiro) Ai! ai! QUINCAS (grande espirro) Atchi! Viva o “sô” Zé! (Caolho cumprimentando para todos os lados) PANTALEÃO (envergonhado) Desculpe, senhor inspetor... Estou tão comovido... (Caolho cumprimenta para todos os lados. — Estalos de chicote e rumor de carro, fora) CENA IX Os mesmos, Juca, Rosalina, Manduca, convidados. JUCA Meus amigos, acaba de chegar a carruagem que tem de nos conduzir para a cidade. Mais uma vez, com muito reconhecimento, agradeço o bom acolhimento que me dispensaram, ficando todos certos da minha gratidão e da minha simpatia. (Abraçando o major) Adeus, meu sogro. A cidade é perto, e todos os dias por ir ver-nos. Neste abraço que lhe dou, despeço-me de si e de todos os nossos amigos.
ROSALINA (dando uma carteira) Meu pai, aqui tem esta carteira. Peço-lhe que em lembrança minha distribua pelos pobres da freguesia o dinheiro que ela contém. Sou feliz, e quero que todos abençoem a minha felicidade! MAJOR (abraçando-a, comovido) Filha!... (Sentimento geral) ROSALINA (comovida) Adeus, meus amigos! Não pensam que a cidade me fará esquecê-los. Hei de lembrar-me sempre de todos, e espero que todos se lembrem também de mim!... (Vai no sofá buscar o ramo de flores, e desce) No momento da partida, sinto minh’alma ferida, e o meu coração chorar! Se vou ter a felicidade, levo comigo a saudade, a tristeza de os deixar! Que gozem horas benditas, mas que no meio das ditas, das ditas que vêm dos céus, a ventura peregrina implorem pra Rosalina ai! adeus! adeus! adeus!
CORO Que gozem horas benditas, que tenham ditas, mil ditas, as ditas que vêm dos céus! que a ventura peregrina te acompanhe, Rosalina... ai! adeus! adeus! adeus!
Rosalina abraça o pai e sobe. — Juca segue-a. — Os outros dispõem-se a acompanhá-los. — Cai o pano.
Horácio Nunes
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