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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DIVERTINDO - SE À VALER / Enid Blyton
DIVERTINDO - SE À VALER / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

OS CINCO

DIVERTINDO - SE À VALER

 

Um homem que engole fogo, outro que faz milagres com o chicote, uma jovem que se deixa enrolar por cobras. são os saltimbancos que acabam de chegar ao acampamento onde os Cinco se encontram a passar férias.

Simultaneamente, os jornais publicam a notícia do desaparecimento de dois cientistas famosos.

Estarão os saltimbancos envolvidos no caso? É o que os valentes Cinco e a sua amiga João, a pequena cigana, vão tentar descobrir...

 

 

                   A Zé está sozinha

- Eu acho que isso é mesmo uma maldade - disse a Zé num tom furioso. - Por que razão não posso ir onde os outros vão! Passei duas semanas em casa e não os vejo desde que a escola terminou. E agora eles vão passar fora quinze dias maravilhosos e eu fico aqui.

- não sejas tonta, Zé - disse a mãe. - Podes ir assim que melhorares da constipação.

- Mas eu já estou melhor - disse a Zé rabugenta. - Sabes bem que sim.

- Basta, Maria José - disse o pai por cima do jornal. - Há três dias que andámos a falar do mesmo ao pequeno‑almoço. Cala‑te.

A Zé nunca respondia quando lhe chamavam Maria José - por isso, por muito que lhe tivesse apetecido responder, fez beicinho e olhou noutra direcção.

A mãe deu uma gargalhada.

- Oh, Zé, querida. não estejas tão zangada. Foi por tua culpa que apanhaste essa constipação - ir nadar e ficar na água durante tanto tempo - e afinal estamos apenas na terceira semana de Abril.

- Eu vou sempre tomar banho em Abril! - disse a Zé, amuada.

- Eu disse «Cala‑te» - disse o pai, batendo com o jornal na mesa. - Mais uma palavra, Zé, e não vais mesmo ter com os teus primos.

- Uauf! - fez o Tim, do outro lado da mesa. não gostava quando falavam mal à Zé.

- E tu não comeces a refilar também - disse o pai da Zé, dando um toque no Tim com a ponta do pé.

A mãe riu‑se.

- Oh, acalmem‑se vocês os dois - disse ela. - Zé, sê paciente, querida. Deixo‑te ir ter com os teus primos amanhã , se te portares bem e se não tossires muito hoje.

- Oh, mãe, porque não dissestes isso antes! - disse a Zé, como se a sua zanga tivesse passado como por magia. - não tossi uma única vez esta noite. Estou perfeitamente bem. Oh, se eu for para o castelo de Faynights amanhã , prometo que não tusso hoje.

- Que é isso de castelo de Faynights? - perguntou o pai, levantando os olhos novamente. - É a primeira vez que ouço falar dele!

- Oh, não, querido Alberto. Falei‑te nele pelo menos três vezes - disse a mulher. - Um amigo de escola emprestou duas antigas roulotes ao David, ao Júlio e à Ana. Eles estão instalados num acampamento junto ao castelo de Faynights.

- Ah, então estão hospedados num castelo - disse o pai da Zé. - Bem, bem. não vou consentir que a Zé chegue a casa toda vaidosa.

- A Zé não poderia de forma alguma chegar vaidosa - disse a mulher. - Tenho de me esfalfar para manter as unhas limpas e vestir calças de ganga lavadas. Sê razoável, Alberto. Sabes perfeitamente que a Zé e os primos gostam de ir passar férias juntos.

- E ter aventuras - sorriu a Zé, que agora estava com uma óptima disposição só de pensar que iria juntar‑se aos primos no dia seguinte.

- não, não me parece que desta vez vás participar numa dessas terríveis aventuras - disse a mãe. - Seja como for, não sei como isso seria possível num sítio tão pacato como o castelo de Faynights e instalada numa velha roulote.

- Eu já não confio na Zé - disse o marido. - Dêem‑lhe apenas um cheirinho de aventura e ela vai logo atrás. Nunca conheci ninguém como a Zé. Ainda bem que só temos uma filha. não sei se conseguiria aguentar duas ou três Zés.

- não há muitas pessoas como a Zé - disse a sua mulher. - O Júlio e o David, por exemplo, sempre envolvidos em qualquer coisa, sempre com a Ana atrás, a suspirar por uma vida sossegada.

- Bem, estou farto desta conversa - disse o pai da Zé, empurrando a cadeira vigorosamente e batendo acidentalmente no Tim, que ganiu.

- Que cão mais estúpido! - disse o pai da Zé, impaciente. - Fica sempre debaixo da mesa à hora da refeição e espera que eu me lembre que ele está lá! Bem, vou trabalhar um pouco.

Saiu da sala e bateu com a porta. Depois, ouviu‑se bater a porta do escritório. Em seguida, ouviu‑se a janela fechar com estrondo, e a lareira a ser atiçada vigorosamente. Depois, ouviu‑se o ranger de uma cadeira e de alguém a sentar‑se pesadamente. Por fim, fez‑se silêncio.

- Agora o teu pai fica fora da realidade até à hora do almoço. Oh, minha querida, falei‑lhe pelo menos três vezes sobre o castelo de Faynights, onde estão os teus primos. Acho que realmente podes ir amanhã. Pareces bem melhor hoje. Podes ir preparar as tuas coisas para eu te fazer a mala esta tarde.

- Obrigada, mãe - disse a Zé, abraçando‑a de súbito. - Seja como for, o pai vai ficar satisfeito por me ver fora de casa durante uns tempos! Sou muito barulhenta para ele!

- Que dois! - exclamou a mãe, lembrando‑se das portas a bater umas nas outras. - Por vezes, vocês são muito aborrecidos, mas não conseguiria viver sem vocês. Oh, Tim, ainda estás debaixo da mesa? Gostaria que não deixasses a cauda em todo lado! Magoei‑te?

- Oh, ele não se importa que lhe pises a cauda, mãe - disse a Zé. - Vou preparar as minhas coisas imediatamente. Como vou para o castelo de Faynights? De comboio?

- Sim. Levo‑te até à estação de Kirrin e podes apanhar o das dez e quarenta - disse a mãe. - Depois farás o transbordo em Limming e apanhas o comboio que vai para Faynights. Se mandares uma carta ao Júlio, ele recebê‑la‑á amanhã de manhã e irá ter contigo.

- Vou escrever‑lhe imediatamente - disse a Zé alegremente. - Oh, mãe, começo a recear que esta maldita constipação se vá prolongar durante as férias! não volto a tomar banho num dia de Abril.

- Disseste o mesmo o ano passado e no ano anterior também - disse a mãe. - Tens memória curta, Zé.

- Anda, Tim! - disse a Zé, e saíram os dois da sala pela porta como um furacão. Bateram a porta atrás deles e a casa estremeceu toda.

De imediato a porta do escritório abriu‑se e ouviu‑se uma voz zangada gritar:

- Mas quem é que anda a bater as portas desta maneira quando eu estou a trabalhar? Será que nesta casa ninguém consegue fechar uma porta sem fazer barulho?

A Zé sorriu enquanto subia as escadas a correr. Quem batia mais com as portas era o pai, mas ele só ouvia as outras pessoas a fazê‑lo. A Zé revolveu a sua caixa de correspondência para encontrar um bilhete postal. Tinha de o enviar imediatamente para o Júlio o receber o quanto antes - e seria tão bom ter os três primos à espera!

- Vamos embora amanhã - disse ela ao Tim, que olhou para ela e abanou a cauda vigorosamente. - Tu também vens, claro, e os Cinco estarão novamente reunidos. Os valentes Cinco! A ideia agrada‑te, não te agrada, Tim? A mim também!

Rabiscou o postal e foi a correr pô‑lo no correio. Bateu com a porta da frente, o que fez o pai saltar da cadeira. Era um cientista muito inteligente e trabalhador, impaciente, temperamental, bondoso e muito esquecido. Como gostava que a filha não fosse tão parecida com ele e fosse como a sua sossegada e simpática sobrinha Ana.

A Zé mandou o postal. O conteúdo era breve e preciso:

 

«Passou a constipação. Chego à manhã às 12 h 05 m, por isso vão buscar‑me a mim e ao Tim. Temos as caudas a abanar de contentamento.

           Zé.»

 

A Zé abriu as gavetas e começou a tirar as coisas que queria levar com ela. A mãe foi ajudá-la. Havia sempre discussão na hora de fazer as malas, porque a Zé queria sempre levar o menos possível e nada de agasalhos, e a mãe tinha opiniões exactamente contrárias às dela.

Contudo, entre as duas conseguiram encher a mala com coisas razoáveis. Como de costume, a Zé recusou‑se a levar qualquer tipo de vestido.

- Pergunto‑me quando deixarás de querer ser um rapaz ou de te portares como tal! - disse a mãe, exasperada. - Está bem, leva essas horríveis jeans velhas se quiseres, e a camisola vermelha. Mas o Júlio disse que tens de levar agasalhos e um cobertor quente. As roulotes não são muito quentes com este tempo.

- Pergunto‑me como serão - disse a Zé, emalando os agasalhos. - O Júlio disse na carta que são engraçadas e antigas. Talvez sejam como aquelas que os ciganos usam e não daquelas modernas e aerodinâmicas, que são puxadas por automóveis.

- Amanhã verás - disse a mãe. - Oh, Zé, estás a tossir outra vez!

- É do pó, só isso - disse a Zé, pondo‑se vermelha ao tentar conter a comichão na garganta. Bebeu rapidamente um copo de água. Seria péssimo se a mãe lhe dissesse que assim não poderia ir.

Mas a mãe achava realmente que a Zé estava melhor. Tinha estado na cama durante uma semana, a fazer uma fita terrível e tornando‑se uma doente muito difícil. Agora, depois de estar a pé durante uns dias, parecia ter voltado a ser ela mesma.

«Vai fazer‑te bem ir até a Faynights, o ar é bom», pensou a mãe. «Também precisa de companhia - ela não gosta de estar completamente sozinha, sabendo que os outros estão de férias sem ela.»

A Zé estava contente nessa noite. Apenas mais uma noite e estaria de partida para quinze dias de caravanismo. Se ao menos o tempo estivesse bom, como iriam divertir‑se!

De repente, o telefone tocou. A mãe da Zé foi atender.

- Sim? - disse ela. - Ah, és tu, Júlio. Está tudo bem?

A Zé saiu disparada. Oh, de certeza, de certeza que nada tinha acontecido! De certeza que não era o Júlio a telefonar‑lhe dizendo que ela não poderia ir! Escutou o telefonema, contendo a respiração.

- Que dizes, Júlio? não consigo compreender o que estás a dizer, querido. Sim, claro, o teu tio está bem. Por que não haveria de estar? não, não desapareceu. Júlio, de que estás a falar?

A Zé escutou impacientemente. Que se passaria?

Mas afinal não era nada de especial. Quando, por fim, a mãe desligou o telefone, contou à Zé.

- não estejas tão ansiosa, Zé. Está tudo bem, podes ir amanhã. O Júlio estava a ligar apenas para saber se o teu pai não tinha sido um dos cientistas que desapareceu de repente. Ao que parece apareceu hoje no jornal uma notícia sobre dois cientistas que desapareceram por completo e o pobre do Júlio queria saber se o teu pai estava a salvo!

- Como se o pai desaparecesse! - disse a Zé, em jeito de gozo. - O Júlio deve ter enlouquecido! Devem ser mais dois daqueles cientistas patetas que são desleais com o seu país, e desaparecem para outro país para vender os seus segredos! Eu podia tê‑lo dito ao Júlio!

 

 

                   Juntos de novo

Na manhã seguinte, na encosta de uma colina húmida de orvalho, a uma boa distância de Kirrin, onde vivia a Zé, dois rapazes desceram os degraus de uma roulote e encaminharam‑se para outra ali perto. Bateram à porta.

- Ana! Estás acordada? Está um dia espantoso!

- Claro que estou acordada! - gritou uma voz. - A porta está aberta. Entrem. Estou a tomar o pequeno‑almoço.

O Júlio e o David abriram a porta pintada de azul. A Ana estava de pé junto a um pequeno fog o numa das extremidades da sua roulote, a cozer ovos numa caçarola.

- não posso olhar agora - disse ela. - Estou a contar a cozedura pelo relógio. Só falta um minuto.

- O carteiro acabou de trazer um postal da Zé. Diz que a cauda dela e a do Tim estão a abanar!

- Estou contente por ela vir finalmente, e o velho Tim também.

- Vamos todos ter com ela - disse a Ana, sem tirar os olhos do relógio. - Só mais vinte segundos.

- Só chegamos há três dias, por isso ela não perdeu muito - disse o David. - Esses ovos já estão mais que cozidos, Ana!

A Ana parou de olhar para o relógio.

- não, não estão. estão no ponto. - Tirou‑os da pequena caçarola com uma grande colher. - Põe‑nos nos suportes de ovos, David. estão aí mesmo debaixo do teu nariz.

O David agarrou num ovo do prato onde a Ana os tinha posto. Estava tão quente que o deixou cair com um grito e partiu a casca. A gema escorreu para fora da casca.

- David! Tu viste‑me tirá‑lo da água a ferver! - disse a Ana. - Agora tenho que cozer outro. É uma pena o velho Tim não estar aqui. Lamberia imediatamente o ovo do chão e poupava‑me ter de limpar esta porcaria.

- Vamos tomar o pequeno‑almoço sentados nos degraus da tua roulote, Ana - disse o Júlio. - Está tão bom ao sol.

Sentaram‑se a comer ovos cozidos, pão com manteiga e compota caseira com pedaços de fruta e, a seguir, maçãs suculentas. O sol abriu e o Júlio despiu o casaco.

As duas roulotes estavam instaladas numa encosta suave coberta de erva. Atrás delas crescia uma sebe alta que resguardava o vento. As primaveras desenhavam uma barra dourada na base da sebe, e havia celidónias berrantes que brilhavam ao sol, virando as faces polidas para ele.

Não muito longe estavam outras duas roulotes, mas essas eram modernas. As pessoas que nelas habitavam ainda não estavam a pé e as portas estavam totalmente cerradas. Os três jovens não tinham tido oportunidade de fazer amizade com eles.

No lado oposto da colina erguia‑se um velho castelo em ruínas, cujas paredes imponentes desafiavam ainda as ventanias que por vezes varriam os montes.

Tinha quatro torres. Três delas estavam bastante deterioradas, mas a quarta estava perfeitamente intacta. As janelas eram frestas construídas há séculos quando os archeiros disparavam de lá as suas flechas.

Um caminho muito íngreme conduzia ao castelo. Ao cimo havia um portão, imensamente forte, construído em grandes blocos de pedra. O portão estava agora coberto por uma grande malha de ferro forjado para impedir a entrada de pessoas, e a única entrada era feita por uma pequena torre em que havia uma porta estreita. Ali havia uma cancela através da qual os visitantes poderiam entrar e ver o velho castelo.

Uma muralha alta e grossa rodeava o castelo, ainda de pé ao fim de tantos anos. Alguns pedaços do topo da muralha tinham caído na colina e jaziam meio enterrados nas ervas. Em tempos, fora um castelo magnífico, erguido na colina, alta e íngreme, por razões de segurança, um sítio de onde as sentinelas podiam ver facilmente a região que o rodeava, numa distância de muitos quilómetros.

Tal como o Júlio dissera, qualquer pessoa que estivesse numa das torres, ou mesmo numa das muralhas, podia ver os inimigos aproximar‑se vindos dos sete condados em redor. Haveria mais do que tempo suficiente para fechar o grande portão, instalar a guarnição nas muralhas e aprontar tudo para suportar um cerco prolongado, se necessário.

Os três ficaram sentados nos degraus, preguiçando ao sol depois de terem tomado o pequeno‑almoço.

Olharam para o velho castelo em ruínas e viram corvos a rondar as quatro torres.

- Deve haver milhares de corvos ali - disse o David. - Quem me dera que tivéssemos binóculos para podermos olhar para eles. Seria tão bom como no circo. Adoro a forma como voam todos juntos em círculos sem nunca chocarem contra os outros.

- Farão ninho no castelo? - perguntou a Ana.

- Oh, sim, enchem as torres com raminhos - disse o David - e fazem os ninhos no cimo. Aposto que se fossemos ver, daríamos com o chão debaixo das torres com uma altura de raminhos que nos chegaria ao tornozelo.

- Bem, vamos lá um dia quando a Zé cá estiver - disse a Ana. - A entrada é barata. Gosto de castelos antigos.

- Eu também - disse o Júlio. - Espero que a Zé traga os binóculos que lhe deram nos anos. Podemos levá‑los connosco para o castelo e ver toda a região em redor. Podemos até encontrar os sete condados!

- Tenho de lavar a loiça - disse a Ana levantando‑se. - Quero arrumar as roulotes antes da Zé chegar.

- não achas mesmo que a Zé vai reparar se estão arrumadas, pois não? - disse o David. - Será uma perda de tempo, Ana.

Mas a Ana gostava de manter sempre tudo em ordem e arrumar as coisas nos armários e nas prateleiras. Gostava de ter as duas roulotes ao seu cuidado. Tinha acabado de se adaptar muito bem a cuidar delas e estava ansiosa por mostrá‑las à Zé.

Correu até à sebe e apanhou um ramo de primaveras. Voltou para trás e dividiu o ramo em dois. Meteu metade numa jarra azul, dispôs as folhas verdes amarrotadas e rugosas à volta e pôs as outras numa segunda jarra.

- Assim combinam bem com as cortinas verdes e amarelas! - disse ela. Pouco depois, andava atarefada a varrer e a limpar o pó. Hesitou em pedir ao David que fosse ao ribeiro lavar a loiça do pequeno‑almoço, mas decidiu não o fazer. O David podia partir a loiça, que não era deles mas do dono das roulotes.

Eram onze e meia e as roulotes estavam impecáveis. Os lençóis e cobertores da Zé estavam na prateleira por cima do seu beliche, que de dia, se dobrava perfeitamente contra a parede para dar mais espaço. A Ana tinha um beliche no lado oposto.

- É deste tipo de férias que eu gosto - disse a Ana para consigo. - Um sítio pequeno, campos e colinas mesmo ao pé, piqueniques, e não muitas aventuras.

- Que estás a murmurar, Ana? - perguntou o David, espreitando pela janela. - Dissestes alguma coisa sobre aventuras? Já andas à cata de uma?

- Credo, não! - disse a Ana. - É a última coisa que quero! E também a última coisa que iremos ter, neste sítio tão pacato, e ainda bem.

O David fez uma careta.

- Bom, nunca se sabe - disse ele. - Estás pronta para irmos receber a Zé, Ana? Temos de nos pôr a andar.

A Ana desceu os degraus e juntou‑se ao David e ao Júlio.

- É melhor trancar a porta - disse o David. - Nós trancamos a nossa. - Ele trancou a porta da Ana e partiram os três pela colina cheia de relva até à passagem que conduzia ao caminho mais abaixo. O velho castelo da colina oposta parecia agigantar‑se, à medida que eles desciam em direcção à aldeia.

- Vai ser óptimo ver novamente o Tim - disse a Ana. - E vou ficar muito contente em ter a Zé connosco outra vez, na minha roulote. não me importo de ficar sozinha à noite, mas é sempre bom ter a Zé por perto e o Tim a roncar durante o sono.

- Se gostas de roncos, gemidos e grunhidos, devias dormir com o David - disse o Júlio. - Com que sonhas, David? Deves ter imensos pesadelos!

- Eu nunca ressono, gemo ou grunho - disse o David com indignação. - Alguma vez te ouvistes? Sim, porque.

- Olhem, não é o comboio que vem ali? - perguntou a Ana. - Deve ser! Só há um comboio de manhã aqui! É melhor apressarmo‑nos!

Desataram a correr. O comboio entrava na estação no momento em que eles estacaram na plataforma. Uma cabeça de cabelo curto encaracolado assomava de uma das janelas - e mais abaixo uma cabeça castanha.

- A Zé e o Tim! - gritou a Ana.

- Olá! - gritou a Zé, quase caindo da porta.

- Uauf! - ladrou o Tim, e saltou para o cais, quase para cima do David. A seguir, saltou a Zé, com os olhos a brilhar. Deu um abraço à Ana e um murro ao David e ao Júlio.

- Cheguei! - disse ela. - Senti‑me mal só de pensar que vocês estavam a acampar sem mim. Fiz a minha mãe passar um mau bocado.

- Aposto que sim - disse o Júlio, dando‑lhe um abraço. - Deixa‑me levar‑te a mala. Vamos só até à aldeia comer uns gelados para celebrar. Há uma loja aqui perto que tem uns muito bons.

- Óptimo, apetece‑me mesmo um gelado - disse a Zé alegremente. - Olha, o Tim percebeu o que dissestes. Já tem a língua de fora, pronta para um gelado. Tim, não estás contente por estarmos reunidos de novo?

- Uauf! - fez o Tim e lambeu a mão da Ana pela vigésima vez.

- Eu devia trazer uma toalha comigo quando vou ter com o Tim - disse a Ana. - As lambidelas dele são tão molhadas! Oh, não, Tim, outra vez, não! Vai lamber o Júlio, vai!

- Olhem, a Zé trouxe os binóculos - disse o David, reparando de repente que a fita castanha que ela trazia ao pescoço não era de uma máquina fotográfica mas de uma caixa de cabedal com muito bom aspecto onde ela transportava os binóculos novos.

- Óptimo! Agora já podemos ver melhor os corvos - e há também algumas garças‑reais no pantanal.

- Bem, achei que os devia trazer - disse a Zé. - são as primeiras férias que tenho a possibilidade de os usar. A mãe não me deixou

levá‑los para a escola. Bom. ainda falta muito para chegarmos à tal loja de gelados?

- É nesta leitaria - disse o Júlio, fazendo‑a entrar. - E sugiro‑te que comeces com baunilha, passes para o morango e acabes no chocolate.

- Tens ideias óptimas! - disse a Zé. - Espero também que tenhas dinheiro se vamos passar a comer gelados desta maneira. A minha mãe não me deu muito.

Sentaram‑se e pediram gelados. A empregada da loja, baixa e gordinha, sorriu‑lhes. Já os conhecia.

- Está um tempo muito bom - disse ela. - Há muitos caravanistas no acampamento Faynights?

- não, não muitos - respondeu o Júlio, começando a comer o gelado.

- Bom, vão aparecer mais uns - disse uma senhora baixinha e forte. - Disseram‑me que vêm aí uns artistas de circo. Costumam acampar no terreno onde vocês estão.

- Ah, óptimo! - disse o David. - Poderemos fazer algumas novas amizades. Nós gostamos de artistas de circo, não gostamos, Tim?

 

                     Uma manhã bem passada

- Isso quer dizer que vai haver uma feira aqui perto? - perguntou a Zé, começando a comer o seu gelado de morango. - Que tipo de feira? Uma espécie de circo?

- não. Um espectáculo variado - disse a lojista. - Vai haver um engolidor de fogo, e isso irá atrair os aldeões. Um engolidor de fogo! Alguma vez ouviram coisa assim? Pergunto‑me como alguém pode ganhar a vida assim!

- E que mais haverá? - perguntou a Ana. Ela não conseguia imaginar alguém a comer fogo!

- Bem, haverá um homem que se consegue libertar em menos de dois minutos, por muito amarrado que esteja com uma corda. - disse a mulher. - Deve ser quase um milagre! E depois haverá um homem chamado o Homem Borracha, porque consegue dobrar‑se todo e contorcer‑se à volta de tubos e entrar pela fresta de uma janela.

- Ena! Daria um bom ladrão! - disse a Zé. - Quem me dera ser como borracha! Esse homem consegue ressaltar quando cai.

Todos se riram.

- E que mais? - perguntou a Ana. - Isto parece excitante.

- Há também um homem com cobras - disse a gorda com um arrepio. - Cobras! Imaginem só! Eu teria medo que me mordessem. Desataria a correr se visse uma aproximar‑se de mim.

- Ele terá cobras venenosas? - perguntou o David. - Nem quero pensar ter uma roulote junto à nossa com um monte de cobras venenosas rastejando de um lado para outro.

- Nem penses nisso! - disse a Ana. - Vou‑me já embora para casa.

Entrou outro cliente e a empregada teve de deixar os jovens e ir atender a mulher. Os quatro estavam muito entusiasmados. Que sorte terem pessoas tão interessantes a acampar no mesmo sítio que eles!

- Um engolidor de fogo! - disse o David. - Sempre quis ver um. Aposto que ele realmente não come o fogo. Queimaria a boca e a garganta.

- Já toda a gente acabou? - perguntou o Júlio, tirando o dinheiro do bolço. - Se todos já tiverem acabado, vamos levar a Zé até ao acampamento e mostrar‑lhe as nossas roulotes pintadas. não são nada parecidas com aquelas em que estivemos uma vez, Zé, estas são das antigas. Vais gostar. são muito coloridas e pitorescas.

- Quem vo‑las emprestou? - perguntou a Zé, quando saíram da loja. - Foi algum amigo da escola?

- Sim, ele e a família vão sempre acampar nas férias da Páscoa e de Verão - disse o Júlio. - Mas esta Páscoa, vão para França e, em vez de as deixarem vazias, pensaram em emprestá‑las e fomos os sortudos!

Subiram o caminho e chegaram à entrada. A Zé olhou para cima, para o altaneiro castelo, que brilhava ao sol na coluna oposta.

- O Castelo de Faynights - disse ela. - Centenas de anos de idade! Como eu gostaria de saber tudo o que ali aconteceu ao longo dos séculos. Adoro coisas antigas. Voto que vamos lá explorar.

- E vamos. A entrada é barata - disse o David. - Vamos aproveitar bem o dinheiro da entrada. Pergunto‑me se terá catacumbas. Escuras, húmidas, lúgubres e medonhas!

Subiram a encosta de ervas até ao campo onde estavam as roulotes. A Zé ficou encantada.

- A vermelha, com desenhos pretos e amarelos, é nossa - disse o David. - A azul, decorada a preto e amarelo, é tua e da Ana..

- Usuf! - fez o Tim, imediatamente.

- Oh, desculpa, e tua também, Tim - disse o David, e todos deram uma risada. Era engraçada a forma como o Tim soltara de repente uma interjeição adequada, como se tivesse percebido realmente todas as palavras. A Zé, claro, tinha a certeza que sim.

As roulotes estavam assentes sobre grandes rodas. Tinham uma janela de cada um dos lados. A porta era à frente e também os degraus, é claro. Cortinas coloridas cobriam as janelas e um friso esculpido contornava o tecto.

- são roulotes antigas de nómadas pintadas e modernizadas - disse o Júlio. - são também muito confortáveis dentro: têm beliches, que se dobram contra a parede durante o dia, um pequeno lavatório para as lavagens - embora usemos sempre o ribeiro porque é uma maçada ir sempre buscar água ‑, uma pequena dispensa, um armário e prateleiras, chão em cortiça, com tapetes quentinhos para que não entrem correntes de ar.

- Até parece que queres vender‑mas! - disse a Zé, dando uma gargalhada. - não precisas. Gosto de ambas e acho‑as muito mais engraçadas do que aquelas mais modernas ali em baixo. De alguma forma, estas parecem mais verdadeiras!

- Oh, as outras também são verdadeiras - disse o Júlio. - E têm mais espaço, mas o espaço não nos interessa porque vamos passar grande parte do tempo fora das roulotes.

- Temos uma fogueira? - perguntou a Zé, ansiosa. - Oh, sim, já vi que temos. Lá estão as cinzas, onde tinham a vossa fogueira. Oh, Júlio, vamos fazer uma fogueira à noite e sentarmo‑nos à volta dela no escuro!

- Com mosquitos a morder‑nos e morcegos a bater‑nos na cara - disse o David. - Sim, claro que sim. Entra, Zé.

- Ela vai entrar na minha roulote primeiro - disse a Ana e puxou a Zé pelos degraus acima. A Zé estava realmente encantada.

Estava muito contente pensando que ia passar duas semanas sossegada com os seus três primos e o Tim. Abriu e fechou o beliche para ver como funcionava. Abriu as portas da dispensa e do armário. Depois, foi ver a roulote dos rapazes.

- tão arrumadinha! - disse ela. - Esperava que a da Ana estivesse arrumada, mas a vossa está mesmo reluzente. Ah, espero que vocês não se tenham tornado um modelo de limpeza. Eu não!

- não te preocupes - disse o David, fazendo uma careta. - A Ana tem andado atarefada; sabes como ela gosta de ter tudo arrumado. não precisamos de nos preocupar com isso quando a Ana está por perto.

- Mesmo assim, a Zé tem de dar uma ajuda - disse a Ana, em tom firme. - Todos temos de manter tudo arrumado e cozinhar.

A Zé resmungou:

- Está bem, Ana. Eu faço a minha parte, às vezes. não vai haver muito espaço para o Tim no meu beliche, à noite, pois não?

- Bom, para o meu não virá com certeza - disse a Ana. - Ele pode ir dormir no chão em cima de uma manta. não podes, Tim?

- Grrr - fez o Tim, sem abanar a cauda. Parecia muito reprovador.

- Vês? Ele diz que nem sonha fazer uma coisa dessas! - disse a Zé. - Ele dorme sempre a meus pés.

Saíram novamente. Estava realmente um belo dia. As primaveras abriam cada vez mais as suas flores amarelas e um melro iniciou subitamente uma melodia, pousando num ramo de espinheiro, na sebe próxima.

- Alguém comprou o jornal na aldeia? - perguntou o David. - Ah, tu compraste, Júlio. Óptimo. Vamos dar uma olhadela pela previsão meteorológica. Se previrem bom tempo, poderemos ir dar um longo passeio esta tarde. O mar não fica muito longe.

O Júlio tirou o jornal dobrado do bolço e atirou‑o ao David.

Sentou‑se nos degraus da roulote e abriu‑o.

Andava à procura da secção de meteorologia quando um cabeçalho atraiu a sua atenção. Soltou uma exclamação.

- Eh, lá! Cá estão mais notícias sobre aqueles dois cientistas desaparecidos, Júlio!

- Oh, não pensei tal coisa - disse imediatamente o Júlio. - Claro que não! - Ele nunca pensaria que o tio Alberto faria uma coisa dessas. Só no jornal de ontem diziam que dois dos mais famosos cientistas tinham desaparecido e pensei que talvez tivessem sido raptados. E como o tio Alberto é realmente famoso, pensei telefonar para me certificar de que estava tudo bem.

- Oh - exclamou a Zé. - Bem, como a minha mãe não sabia de nada ficou muito surpreendida quando lhe perguntaste se o meu pai tinha desaparecido. Especialmente quando ele andava a bater com as portas no escritório, à procura de algo que tinha perdido.

- E em que se sentara, como é costume, se bem o conheço - disse o David com uma careta. - Mas ouçam isto: não parece que os dois homens tenham sido raptados. Parece que se foram embora e levaram papeis importantes com eles.

- Patifes! Há muito disso actualmente, parece‑me.

Leu um ou dois parágrafos em voz alta.

 

«Derek Terry‑Kane e Jeffrey Pottersham estão desaparecidos há dois dias. Encontraram‑se em casa de um amigo comum para conversar sobre um aspecto do seu trabalho e saíram juntos para ir tomar o metropolitano. Desde então nunca mais foram vistos.

No entanto, apurou‑se que Terry‑Kane tinha o seu passaporte em dia e comprara bilhetes de avião para Paris. não foram dadas notícias sobre a sua chegada».

 

- Cá está! Justamente o que tinha dito a minha mãe! - exclamou a Zé. - Foram vender os segredos a outro país.

- O tio Alberto não vai ficar satisfeito com isto - disse o Júlio. - Ele não trabalhou com Terry‑Kane uma vez?

- Sim, acho que sim - disse a Zé. - Ainda bem que não estou em casa hoje - o meu pai deve estar desvairado por todo o lado, a dizer à minha mãe centenas de vezes o que se pensa sobre os cientistas traidores!

- Deve estar de certeza - disse o Júlio. - Também não o recrimino. É uma coisa que eu não compreendo: trair o próprio país. Só de pensar nisso, fico enjoado. Vá, vamos começar a pensar em jantar, Ana. Que vamos comer?

- Salsichas fritas com cebolas, pêssegos de conserva e vou fazer leite‑creme - disse a Ana de repente.

- Eu frito as salsichas - disse o David. - Vou acender o lume e buscar a frigideira. Alguém quer salsichas?

Toda a gente quis.

- Quero as minhas bem passadas e tostadas - disse a Zé. - Quantas calham a cada um? Só comi aqueles gelados desde o pequeno‑almoço.

- Há doze - disse a Ana, passando o saco ao David. - Dá três a cada um. Nenhuma para o Tim. Mas tenho um grande osso suculento para ele. Júlio, vais buscar‑me água, por favor? Está ali o balde. Quero descascar as batatas. Zé, importas‑te de cortar os pêssegos sem te cortares como da última vez?

- Sim, meu capitão! - disse a Zé, com uma careta. - Ah, isto é como nos bons velhos tempos. Boa comida, boa companhia e bom tempo. Três vivas para nós!

 

                   Chegaram os artistas de circo

Estava um tempo óptimo naquele primeiro dia em que se reuniram. Desfrutaram‑no plenamente, especialmente a Zé, que se atormentara durante duas semanas em casa. Disparava atrás dos coelhos, alguns deles imaginários, para cima e para baixo no campo e a entrar e a sair das sebes.

E depois tim atirava‑se para o chão junto dos seus quatro amigos, arquejando como uma locomotiva a subir uma serra com a sua longa língua cor‑de‑rosa dependurada da boca.

- Só de olhar para ti fico com calor, Tim - disse a Ana, afastando‑o. - Olha, Zé, ele está com tanto calor que até deita fumo! Um destes dias, o Tim rebenta!

À tarde foram dar um passeio mas não chegaram a ir ao mar. Viram‑no da colina, azul e brilhante, à distância. Pequenos iates brancos salpicavam a água azul como cisnes distantes com as assas abertas. Lancharam numa quinta, com uma série de miúdos do campo, de olhos esbugalhados, a assistir.

- Querem levar um pouco de compota caseira? - perguntou a mulher do proprietário quando eles lhe foram pagar o lanche.

- Ah, sim, claro - disse o David. - E talvez nos possa vender uma parte desse bolo de frutos. Estamos acampados em roulotes em Faynights Field, mesmo do lado oposto ao castelo e por isso fazemos piqueniques todos os dias.

- Sim, podem levar o bolo - disse a mulher do dono da quinta. - Fiz bolos ontem e por isso ainda há muitos. E querem levar um pedaço de presunto? E também tenho algumas cebolas em conserva.

Aquilo era óptimo. Compraram toda a comida muito barata e levaram‑na alegremente para casa. O David abriu o frasco das cebolinhas de conserva e cheirou.

- É o melhor cheiro do mundo - disse ele. - Cheira lá, Zé.

A coisa não se ficou pelos cheiros. Todos tiraram uma cebola - excepto o Tim que recuou imediatamente. Cebolas era uma das coisas que ele realmente não suportava. O David fechou novamente o frasco.

- Acho que devia ser outra pessoa e não o David a levar as cebolas - disse a Ana. - Por este andar, não irão sobrar muitas quando chegarmos às roulotes.

Quando saltaram a cancela à entrada do acampamento, o Sol estava a pôr‑se. As estrelas apareciam no céu e brilhavam intensamente. Quando chegaram às roulotes, o Júlio parou e apontou.

- Uau! Olhem! Há duas roulotes ali, muito parecidas com as nossas. Pergunto‑me se não serão artistas de circo a chegar.

- E ali está outra a subir o caminho - disse o David. - Terá de entrar pelo portão principal, porque não poderá ir pelo mesmo caminho que nós e passar por cima da vedação. Lá vai ela.

- Em breve teremos vários vizinhos excitantes! - disse a Ana, encantada.

Subiram até às suas roulotes e observaram com curiosidade uma roulote vizinha. Era amarela, com enfeites a azul e preto, e a precisar de uma nova demão de tinta. Era muito parecida com as roulotes deles, mas devia ser mais antiga.

Não parecia haver ninguém nas roulotes. As portas e janelas estavam fechadas. Ficaram os quatro de pé a olhar com curiosidade para elas.

- Está uma caixa enorme debaixo desta roulote mais próxima - disse o Júlio. - Pergunto‑me o que estará dentro dela.

Era uma caixa comprida, larga e baixa. Tinha buracos redondos dos lados, separados por espaços regulares. A Zé foi até à roulote e baixou‑se para observar a caixa, perguntando‑se se dentro dela haveria algum ser vivo.

O Tim foi atrás dela, farejando com curiosidade os orifícios. De repente, recuou e começou a ladrar muito alto. A Zé agarrou‑lhe na coleira para o arrastar, mas ele recusou‑se a obedecer‑lhe. Ladrava sem parar.

Ouviu‑se um som vindo de dentro da caixa - um ruído semelhante a folhas secas a arrastar‑se, que fez o Tim ladrar ainda mais.

- Pára com isso, Tim! Pára! - ordenou a Zé, dando‑lhe fortes puxões. - Júlio, vem ajudar‑me. Existe algo nesta caixa que o Tim nunca viu antes, sabe‑se lá o quê, e ele está meio confuso, meio assustado. Está a ladrar em desafio e não irá parar enquanto não o tirarmos daqui!

Uma voz zangada surgiu do fundo do acampamento junto da cancela.

- Eh, vocês aí! Levem esse cão daqui para fora! Que é isso de andarem a mexer no meu material e incomodarem as minhas cobras?!

- Ohhh, cobras! - disse a Ana, afastando‑se. - Zé, há cobras ali dentro. Afasta o Tim.

O Júlio e a Zé conseguiram afastar o Tim dali para fora, estrangulando um pouco a coleira, embora ele não parecesse dar‑se conta disso. A voz zangada estava agora por detrás deles. A Zé virou‑se e viu um homem baixo e escuro, de meia‑idade, com olhos pretos brilhantes. Agitava o pulso, ainda a gritar.

- Desculpe - disse a Zé, puxando o Tim com mais força. - Por favor, pare de gritar, ou o meu cão pode atirar‑se a si.

- Atirar‑se a mim! Atirar‑se a mim! Vocês têm um cão perigoso como esse, que anda a farejar as minhas cobras e vai atirar‑se a mim! - gritou o pequeno homem furioso, gingando como um pugilista em bicos dos pés. - Ah! Esperem até eu soltar as minhas cobras e ver o o vosso cão a fugir!

Era uma ameaça alarmante. Com um forte puxão, o Júlio, o David e a Zé conseguiram controlar finalmente o Tim, empurrá‑lo pelos degraus acima da roulote da Ana e fechá‑lo lá dentro. A Ana tentou acalmá‑lo, enquanto os outros três voltaram novamente para junto do pequeno homem famoso.

Puxara a enorme caixa e abrira a tampa. Os três ficaram a olhar, fascinados. Que cobra teria ele ali? Cascavéis? Cobras‑capelo? Estavam prontos para desatarem a correr se as cobras se enfurecessem tanto quanto o seu tratador.

Uma cabeça enorme ergueu‑se da caixa e balanceou‑se de um lado para outro. Dois olhos escuros fixos brilhavam e depois um longo corpo rastejou e subiu, deslizando pelas pernas do homem acima, em torno da cintura e em volta do pescoço. Ele acariciou o animal, falando‑lhe em voz baixa e carinhosa.

A Zé estremeceu. O Júlio e o David assistiam à cena, espantados.

- É uma pitão - disse o Júlio. - Uau, que monstro. Nunca tinha visto uma tão de perto. Pergunto‑me se ela não se enrolará em volta do sujeito e não o esmagará até à morte.

- Ele tem‑na presa pela cauda - disse o David, observando. - Oh, espera. lá está outra!

Havia de facto uma segunda pitão a sair da caixa; a pele brilhava, anel atrás de anel. Também se enrolou em torno do seu tratador, emitindo silvos enquanto o fazia. O corpo dela era mais grosso do que a perna do Júlio.

A Ana estava a olhar da janela da sua roulote, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam. Nunca na sua vida tinha visto cobras tão grandes. Nem sabia o que eram. Começou a desejar que as roulotes estivessem a quilómetros de distância.

O homenzinho sossegou por fim as suas cobras. Quase o tapavam com os seus grandes anéis! De cada um dos lados da sua cabeça erguia a cabeça de uma cobra, achatada e brilhante.

O Tim estava também a espreitar pela janela, com a cabeça ao lado da da Ana. Ficou surpreendido ao ver as cobras deslizar e parou imediatamente de ladrar. Desceu da janela e foi para debaixo da mesa. O Tim não estava a gostar nada daqueles animais.

O homem acariciou as cobras e depois, continuando a falar‑lhes com ternura, pô‑las novamente na caixa. Deslizaram para dentro da caixa e empilhou‑as lá dentro, anel sobre anel. O homem tapou a caixa e fechou‑a à chave.

Depois, voltou‑se para os três jovens que assistiam à cena.

- Viram como as minhas cobras ficaram perturbadas convosco? - disse ele. - Agora, mantenham‑se à distância, ouviram? E mantenham o vosso cão longe daqui também. Ah, vocês, miúdos! A interferir, a meter o nariz onde não são chamados, a espiolhar! não gosto de crianças, nem eu nem as minhas cobras. Fora daqui, ouviram?

Gritou as últimas palavras com tanta fúria que os três deram um pulo.

- Olhe - começou o Júlio ‑, só viemos pedir desculpa pelo facto do nosso cão ter ladrado daquela maneira. Os cães costumam ladrar com coisas estranhas que não conhecem ou compreendem. É muito natural.

- Eu também detesto cães - disse o homenzinho, entrando na sua roulote. - Mantenham‑no afastado daqui, especialmente quando eu tiver as minhas cobras por aqui, ou uma ainda lhe dá um apertãozinho carinhoso. Ah!

Desapareceu para dentro da sua roulote e fechou a porta com determinação.

- Azar - disse o Júlio. - Parece que começamos mal com a gente da feira e eu que esperava que eles fossem simpáticos e nos ensinassem alguns dos seus truques.

- não gostei nada da última coisa que ele disse - disse a Zé, preocupada. - Um «apertãozinho carinhoso» dado por uma das pitões seria o fim do Tim. É certo que irei manter o Tim afastado quando vir aquele homem pequeno e estranho a tirar as cobras. Ele parece gostar realmente delas, não parece?

- Sem dúvida - disse o Júlio. - Bem, pergunto‑me quem viverá na segunda roulote que acaba de chegar. Mal me atrevo a espreitar para o caso de conter gorilas ou elefantes ou hipopótamos, ou...

- não sejas parvo - disse a Zé. - Anda lá, está a escurecer. Olhem, aí vem a roulote que vimos passar pelo caminho à pouco!

Ia a subir lentamente a colina coberta de erva, numa marcha irregular. De um dos lados, tinha pintado um nome a letras grandes e escarlates:

Homem Borracha.

- Oh, o homem de borracha! - disse a Zé. - David. deve ser o condutor, não achas?

Todos fitaram o condutor. Era alto e magro e dobrava‑se para a frente, e parecia estar prestes a irromper em lágrimas a qualquer momento.

- Bem. deve ser realmente o Homem Borracha - disse o Júlio. - Mas de certeza que não deve ter muita capacidade de saltar! Olhem, está a apear‑se.

O homem desceu com uma agilidade incrível, que não pareceu ajustar‑se ao seu corpo curvado. Tirou o cavalo dos varrais e deixou‑o à solta no campo. O cavalo afastou‑se, mordiscando aqui e ali na relva, continuando a parecer triste e curvado como o dono.

- Bufflo! - gritou o homem de repente. - Estás aí?

A porta da segunda roulote abriu‑se e um rapaz salta do interior, um rapagão de cabelo louro despenteado, uma camisola vermelha e um sorriso largo.

- Eh, Borracha! - chamou ele. - Nós chegámos primeiro. Entra. A Skippy tem a comida pronta.

O Homem Borracha subiu tristemente os degraus da roulote de Bufflo. A porta fechou‑se.

- Isto é realmente muito excitante - disse o David. - Um homem de borracha - Bufflo e Skippy, sejam lá quem forem - e um homem com cobras domesticadas ao pé de nós. Sabe‑se lá o que virá a seguir!

A Ana chamou‑os.

- Entrem. O Tim está a ganir como um doido.

Subiram os degraus da roulote dela e deram com a Ana a preparar um jantar leve: uma sanduíche de presunto para cada um, uma fatia de bolo e uma laranja.

- Eu quero uma cebola de conserva na minha sanduíche, por favor - disse o David. - Vou picá‑la e espalhá‑la por cima do presunto. Tenho sempre ideias brilhantes, não há dúvida!

 

                   Durante a noite e na manhã seguinte

Quando acabaram de jantar, conversaram sobre os estranhos recém‑chegados. O Tim ficou sentado junto da Zé, tentando expressar como lamentava ter causado tanta confusão. Ela fazia‑lhe festas ao mesmo tempo que ralhava com ele.

- Percebo muito bem que não gostes de cobras, Tim, mas quando eu te digo para parares de ladrar e te afastares, tens de me obedecer. Percebes?

A cauda de Tim desceu e ele poisou a cabeçorra sobre o joelho da Zé. Soltou um ganido.

- Acho que nunca mais se aproximará da caixa agora que viu as cobras saírem de lá - disse a Ana. - Devias ter visto como ficou assustado quando olhou para fora da janela e as viu. Foi a correr esconder‑se debaixo da mesa.

- É uma pena termos tido um mau começo com os artistas de circo - disse o Júlio. - não conto que gostem muito de crianças, porque em regra os miúdos só dão problemas: metem o nariz em todo o lado.

- Acho que estou a ouvir as roulotes a chegar - disse a Zé, e o Tim arrebitou as orelhas e rosnou. - Está quieto, Tim. não somos os únicos a ter o direito a estar neste acampamento!

O David foi à janela e espreitou para a penumbra. Vislumbrou umas grandes sombras numa outra zona do acampamento, que se percebiam no meio da escuridão. Uma pequena fogueira ardia com intensidade em frente de uma delas e mostrava uma pequena figura debruçada sobre ela.

- Estas sanduíches estão óptimas, Ana - disse o David. - Alguém quer mais uma cebola de conserva?

- não, David - disse a Ana com firmeza. - Já comestes a tua sanduíche.

- Bom, eu posso comer uma cebola de conserva sem uma sanduíche, não posso? - perguntou a David. - Passa‑me uma, Ana.

A Ana não lha deu.

- Esconde‑as - disse ela. - Queres algumas para amanhã , não queres? não sejas glutão. Come um biscoito se ainda estiveres com fome.

- É verdade! Será que podemos fazer uma fogueira lá fora, hoje à noite? - perguntou a Zé. - Mas estou tão ensonada que acho que iria deixar‑me dormir se me sentasse à fogueira!

- Também tenho sono - disse a Ana. - Vamos arrumar isto, Zé, e enfiar‑nos nos beliches. Os rapazes podem ir para as suas roulotes e ler ou jogar se lhes apetecer.

O David bocejou.

- Acho que vou ler um pouco - disse. - Espero que tenhas água suficiente, Ana, para as coisas de que costumas precisar, porque eu não tenciono atravessar este campo escuro às apalpadelas até ao ribeiro e tropeçar em cobras ou em qualquer outra coisa que os artistas de circo tenham espalhado pela relva.

- não achas que as cobras vão soltar‑se, pois não? - perguntou a Ana, ansiosa.

- Claro que não! - respondeu o Júlio. - Seja como for, o Tim irá ladrar desalmadamente se aparecer um ouriço‑cacheiro, por isso não terás de te preocupar com as cobras!

Os rapazes deram as boas‑noites e foram para a sua roulote. De repente, as raparigas viram uma luz acender‑se e viram sombras a moverem‑se pelas cortinas corridas nas janelas.

- O David acendeu a luz - disse a Ana. A delas já estava acesa e a roulote parecia confortável e simpática. A Ana mostrou à Zé como abrir o beliche. Ficou em posição com um clique, e pareceu ser agradável e firme, com um aspecto muito convidativo.

As raparigas fizeram as camas nos beliches, e puseram lençóis, cobertores e mantas.

- Onde está a minha almofada? - perguntou a Zé. - Ah, é o estofo da cadeira durante o dia, é isso? Que óptima ideia!

Ela e a Ana tiraram as duas almofadas das cadeiras, e por baixo estavam as fronhas sobre as almofadas, preparadas para a noite.

Despiram‑se, lavaram‑se na água do ribeiro no pequeno lavatório, lavaram os dentes e escovaram o cabelo.

- A água vai para baixo da roulote quando eu tiro o tamp o do lavatório? - perguntou a Zé. - Vai, pois!

A água gorgolejou ao sair e espalhou‑se pelo chão por debaixo da roulote. O Tim arrebitou as orelhas e pôs‑se à escuta. Ele podia perceber que ali teria de se habituar a uma grande quantidade de sons novos!

- Tens a tua lanterna? - perguntou a Ana, quando por fim, se enfiaram nos seus beliches. - Vou apagar a luz. Se precisares de alguma coisa durante a noite terás de acender a tua lanterna, Zé. Olha para o Tim sentado no chão tão quieto. não percebe que já fomos para a cama! Tim! Estás à nossa espera para subirmos a escada?

O Tim bateu com a cauda no chão. Era exactamente disso que ele estava à espera. Quando a Zé ia para a cama, ela subia sempre escadas, quer estivesse na escola ou em casa e embora ele ainda não tivesse descoberto as escadas na roulote, ele tinha a certeza de que a Zé sabia onde estavam!

O Tim levou uns minutos a perceber que a Zé ia passar a noite a dormir no beliche. Depois, com um salto, trepou para cima dela e instalou‑se sobre as suas pernas. Ela soltou um gemido.

- Oh, Tim, que bruto! Sai de cima das minhas pernas, vai mais para baixo, junta‑te mais à curva dos meus joelhos.

O Tim achou o beliche demasiado pequeno para ser realmente confortável. No entanto, conseguiu enrolar‑se no menor espaço possível: pousou a cabeça sobre um joelho da Zé, soltou um dos seus suspiros profundos e adormeceu.

Mantinha, contudo, um ouvido atento durante todo o tempo - um ouvido para uma ratazana que por alguma razão estranha percorreu o telhado, um ouvido para um coelho atrevido que mordiscava a erva por debaixo da roulote - e um ouvido alerta para um grande escaravelho que voara de encontro ao vidro da janela da direita, mesmo por cima do beliche da Zé.

Zás! Foi de encontro à vidraça e caiu de costas, aturdido. O Tim não fazia a mínima ideia do que era aquilo mas rapidamente adormeceu, ainda com um ouvido à escuta. O melro do espinheiro acordou‑o cerdo. Tinha criado uma melodia totalmente nova e estava a ensiná‑la muito alto e deliberadamente. Um tordo que estava por perto juntou‑se‑lhe.

Bem afinado, bem afinado, cantou o tordo com toda a força. O Tim sentou‑se e espreguiçou‑se. A Zé acordou imediatamente, porque o Tim pisara‑lhe pesadamente a barriga.

A princípio, não conseguiu perceber onde estava, depois lembrou‑se e sorriu. É claro - numa roulote, com a Ana. Como cantava aquele melro - uma melodia muito melhor do que o tordo! As vacas mugiam ao longe e o sol da manhã entrava pela janela e iluminava o relógio e a jarra de primaveras.

O Tim instalou‑se. Se a Zé não se levantava, ele também não. A Zé fechou os olhos e voltou a adormecer. Lá fora, o acampamento começava a acordar. Ouviam‑se as portas das roulotes a abrir. As fogueiras estavam acesas. Alguém foi ao ribeiro buscar água.

Os rapazes vieram bater à porta da roulote das raparigas.

- Acordem, suas dorminhocas! são sete e meia e estamos esfomeados!

- Credo! - exclamou a Ana, sentando‑se, ainda ensonada. - Zé! Acorda!

Pouco depois estavam sentados em volta de uma fogueira de onde vinha um cheiro muito agradável. O David fritava bacon e ovos, e o cheiro deixou todos esfomeados. A Ana tinha aquecido a chaleira no seu fogãozinho e fez chá. Desceu os degraus com um tabuleiro onde colocara o bule com água quente.

- A Ana faz sempre tudo como deve de ser - disse o David. - Toma, segura o teu prato, Júlio, o teu bacon está pronto. Tira o nariz do caminho, Tim, cão parvo. Vais ficar outra vez com gordura no nariz. Zé, toma conta do Tim enquanto eu cozinho. Já devorou uma fatia de bacon.

- Bem, pelo menos poupou‑te o trabalho de a cozinhar - disse a Zé. - Ouçam lá, não há muitas roulotes aqui hoje? Devem ter chegado ontem à noite.

Olharam em redor do acampamento. Além da roulote do homem das cobras, da do Bufflo e da do Homem Borracha, havia mais quatro ou cinco.

Uma deles despertou bastante atenção dos jovens. Era amarela com chamas vermelhas pintadas dos lados. Tinha escrito:

 

               ALFREDO, O ENGOLIDOR DE FOGO

 

- Deve ser um tipo muito feroz - disse o David. - Um engolidor de fogo normal, com um temperamento feroz, uma voz estrondosa e de passada grande.

- Talvez seja um homem pequeno e enfezado com andar de pónei.

- Está alguém a sair da roulote dele - disse a Zé. - Olhem!

- É uma mulher - disse a Ana. - Deve ser a mulher dele. É tão magra, mas tem um ar muito meigo. Parece ser espanhola, é tão morena.

- Deve ser o engolidor de fogo que vem atrás dela - disse a Zé. - Claro que é! É tal e qual o imaginavas, David. Que esperto!

Um homem enorme desceu os degraus atrás da sua mulher minúscula. De facto, parecia muito feroz pois tinha uma juba de cabelo alongado, como um leão, e uma grande cara avermelhada, com uns olhos grandes e cintilantes. Caminhava com enormes passadas e a sua mulher, que era baixinha, tinha de correr para conseguir acompanhá‑lo.

- É justamente a ideia que eu fazia de um engolidor de fogo - disse o David com agrado. - Ache que é melhor não nos aproximarmos dele até sabermos se também não suporta miúdos como o homem das cobras. Ele tem uma mulher minúscula! Aposto que a faz andar a correr à volta dele e a servi‑lo como uma escrava!

- Bem, pelo menos vai buscar água para ela ao ribeiro - disse a Ana. - Dois baldes enormes. Ele parece realmente um engolidor de fogo, não parece?

- Está ali outra pessoa, olhem! - disse o David. - Quem será? Vejam como se dirige ao ribeiro. Caminha como um tigre ou um gato, todo sinuoso e cheio de força.

- É o homem que se consegue libertar das cordas depois de ter sido amarrado! - exclamou a Ana. - Tenho a certeza que é ele.

Era muito excitante observar os recém‑chegados. Pareciam conhecerem‑se uns aos outros. Paravam para conversar, riam‑se, visitavam as roulotes uns dos outros, e por fim, três das mulheres partiram juntas com cestos.

- vão às compras - disse a Ana. - Era o que eu pensava fazer. Vens, Zé? Dentro de dez minutos parte uma camioneta que vai lá baixo à aldeia. Quando regressarmos, arrumaremos tudo.

- Ok - disse a Zé, levantando‑se também. - Que irão os rapazes fazer entretanto?

- Oh, vão buscar mais água e arranjar lenha para a fogueira - disse a Ana, alegremente.

- A sério? - disse o David, fazendo uma careta. - Bem, é possível. Por outro lado, talvez não. Seja como for, vão porque estamos a ficar com pouca comida. E a ideia é terrível! Ana, traz‑me mais pasta de dentes, sim? E se me conseguires descobrir mais daqueles doughnuts da leitaria, traz‑me uma dúzia.

- Sim, e vê se consegues arranjar uma lata de ananás - disse o Júlio. - não te esqueças de que também precisamos de leite.

- Se continuarem a pedir coisas, é melhor virem connosco para nos ajudar a transportá‑las - disse a Ana. - Mais alguma coisa?

- vão aos correios e vejam se chegou alguma carta - disse o David. - E não se esqueçam de comprar um jornal. É melhor sabermos se aconteceu alguma coisa no mundo exterior. não que eu tenha muito interesse no que por lá vai neste momento.

- Ok - disse a Ana. - Anda, Zé, ainda perdemos a camioneta.

E lá foram com o Tim atrás delas.

 

                   Gente desagradável

Os dois rapazes decidiram que iriam buscar água e empilhar alguma lenha na ausência das raparigas. Também fizeram os beliches, pelo simples processo de arrancar todas as roupas e de as encafuar na prateleira, e depois dobrando os beliches contra a parede.

Depois desta operação, não tinham nada para fazer a não ser esperar pelas raparigas. Por isso, foram dar um passeio pelo acampamento. Mantiveram uma boa distância do homem das cobras, que estava a fazer qualquer coisa estranha a uma das suas pitões.

- Parece que está a poli‑la, mas não pode ser - disse o Júlio. - Quero aproximar‑me o mais possível, mas aquele homenzinho temperamental pode atiçar uma daquelas pitões!

O homem das cobras estava sentado em cima de uma caixa, com uma cobra num dos joelhos, alguns de seus anéis em volta de uma das pernas, e os outros anéis em torno da cintura. A cabeça dela parecia espreitar por baixo do sovaco do homem. O homem estava a esfregar com vigor o corpo escamoso da cobra e a pitão parecia estar a gostar!

O Bufflo estava a fazer habilidades com o chicote. Tinha um punho magnífico, incrustado com pedras semipreciosas que reflectiam o sol e cintilavam as suas muitas cores.

- Olha para o chicote - disse o Júlio. - Tem metros de comprimento. Gostaria de o ver fazer estalar!

Quase como se tivesse ouvido, o Bufflo levantou‑se e girou o longo chicote na mão. Depois, ergueu‑o e, no momento seguinte, ouviu‑se um som exactamente igual ao tiro de uma pistola!

A ponta do chicote estalou ao ser lançada pelo ar e os dois rapazes deram um salto, apanhados de surpresa pelo estouro.

O homem fez saltar o chicote de novo. Depois assobiou e uma mulherzinha rechonchuda assomou aos degraus da roulote dele.

- Já o consertaste? - perguntou ela.

- Talvez - respondeu o Bufflo. - Dá‑me um cigarro, Skippy. Despacha‑te.

A Skippy levou a mão ao interior da roulote, percorreu uma prateleira e tirou um maço de cigarros. não desceu os degraus, mas ficou ali de pé, segurando o cigarro entre o indicador e o polegar.

O Bufflo fez girar o chicote. CRAQUE! O cigarro desapareceu como por magia! Os rapazes olhavam espantados. A ponta do chicote teria feito desaparecer o cigarro dos dedos da Skippy? Tal não parecia possível.

- Está ali - exclamou o Bufflo, apontando para algo distante. - Pega nele outra vez, Skippy. Acho que este chicote está bom agora.

A Skippy apanhou o cigarro e pô‑lo na boca.

- não! - exclamou Bufflo. - Ainda não estou muito confiante neste chicote. Segura‑o na mão.

A Skippy tirou o cigarro da boca e segurou‑o novamente entre o indicador e o polegar.

CRAQUE! Como o tiro de uma pistola, o chicote estalou de novo e mais uma vez o cigarro desapareceu.

- Oh, Bufflo, partiste‑o ao meio - disse a Skippy, em tom de censura, apontando para onde fora parar no chão, cortado bem ao meio. - Que descuido da tua parte.

O Bufflo não fez comentários. Limitou‑se a virar as costas à Skippy e voltou a trabalhar com o chicote, embora nenhum dos rapazes tivesse conseguido perceber exactamente o que ele estava a fazer. Aproximaram‑se um pouco mais para ver. O Bufflo estava de costas para eles mas deu mostras de os ter ouvido aproximar.

- Vocês, afastem‑se - disse, mal levantando a voz. - Aqui não são permitidos miúdos. Afastem‑se ou eu faço estalar o meu chicote e arranco‑vos os cabelos do alto da cabeça.

O Júlio e o David tiveram a certeza absoluta de que ele cumpriria a sua ameaça e retiraram‑se com toda a dignidade possível.

- O homem das cobras deve‑lhe ter contado sobre a confusão que o Tim armou ontem com as cobras - disse o David. - Espero que isso não tenha estragado as coisas para nós junto dos artistas de circo.

Atravessaram o campo e pelo caminho encontraram o Homem Borracha. não puderam deixar de reparar nele. Parecia realmente feito de borracha - tinha um curioso tom de pele acizentado, como as borrachas da escola.

Ralhou com os dois rapazes.

- Saiam daqui - disse ele. - Os miúdos não podem vir para o nosso acampamento.

O Júlio ficou aborrecido.

- O acampamento é tão vosso como nosso - disse ele. - Temos duas roulotes aqui. são aquelas duas.

- Bem, este sempre foi o nosso acampamento - disse o Homem Borracha. - Por isso, vão para outro.

- Mesmo que quiséssemos ir, e não queremos, não temos cavalos para puxar as nossas roulotes - retorquiu o Júlio, zangado. - Seja como for, porquê tantas objecções contra nós? Gostaríamos de ser seus amigos. não lhe vamos fazer mal nenhum, nem armar confusão.

- Nós e vocês não combinamos - disse o homem, obstinado. - não os queremos cá, nem aquelas roulotes de luxo - e apontou para três roulotes modernas, que se encontravam a um canto. - Este sempre foi o nosso acampamento.

- não vamos discutir por causa disso - disse o David, que tinha estado a observar o homem com enorme curiosidade. - O senhor é tão elástico que consegue entrar e sair de canos, e coisas dessas? É?

Mas não teve tempo de acabar as perguntas porque o homem de borracha atirou‑se ao chão, fez algumas estranhas contorções, passou entre as pernas dos rapazes e de repente estavam ambos deitados no chão! O homem de borracha afastou‑se, parecendo muito contente consigo próprio.

- Bom! - disse o David, sentindo um galo na cabeça. - Tentei agarrar‑lhe as pernas e realmente pareciam borracha! Que pena estas pessoas não gostarem que estejamos no acampamento deles. não vai ser muito agradável tê‑los todos contra nós. Afinal, somos todos iguais. Sempre nos demos bem com toda a gente.

Mal se atreveram a aproximar‑se das outras roulotes, embora ansiassem olhar de perto o Alfredo, o Engolidor de Fogo.

- É exactamente como eu o imaginava - disse o David. - Talvez ele seja o chefe dos artistas de circo - se é que têm um chefe.

- Olha, lá vem ele - disse o Júlio. E de facto, mesmo ao virar da esquina, surgiu o Fred a correr velozmente. Vinha em direcção aos rapazes e, a princípio, o Júlio pensou que ele iria correr com eles. não queria fugir do Alfredo, mas também não era agradável ficar ali quieto com aquele homenzarrão a correr na direcção deles, com as faces vermelhas como fogo, com a sua grande madeixa de cabelo a saltitar para cima e para baixo.

E foi então que perceberam o que fazia correr Alfredo! Atrás dele vinha a sua mulher minúscula e morena. Gritava com ele em língua estrangeira, e corria atrás dele com uma colher de pau.

O Alfredo passou pesadamente pelos dois rapazes, parecendo assustado de morte. Desceu até à vedação, saltou por cima dela e desapareceu pela vereda.

A mulher viu‑o desaparecer. Quando ele se voltou para olhar, ela brandiu‑lhe a colher de pau.

- Bandido! - gritou ela. - Queimar pequeno‑almoço outra vez! Sempre, sempre! Eu bater com a colher de pau, malandro. Anda, Alfredo, anda!

Mas o Alfredo não fazia tenções de regressar. A mulherzinha furiosa virou‑se para os dois rapazes.

- Ele queimar sempre o pequeno‑almoço - disse ela. - Ele não ver, ele queimar sempre.

- Parece estranho um engolidor de fogo queimar algo que esteja a cozinhar - disse o Júlio. - Embora, pensando melhor, talvez não.

- Ora! Comer fogo, fácil! - exclamou a pequena mulher enraivecida. - Cozinhar não ser fácil. Ser preciso miolos e olhos e mãos. Mas Fred não ter miolos e as mãos dele desastradas - só saber comer fogo, e isso serve para quê?

- Bem, acho que ele ganha dinheiro a fazê‑lo - disse o David, divertido.

- É o meu grande malvado - disse a pequena mulher. Deu meia volta para se ir embora e depois virou‑se novamente com um sorriso inesperado. - Mas ele é muito bom às vezes - disse ela.

Voltou para a sua roulote. Os rapazes olharam um para o outro.

- Pobre Alfredo - disse o David. - Parece corajoso como um leão e é realmente um gigante, mas é tímido como um rato. É engraçado vê‑lo a fugir daquela mulherzinha minúscula.

- Bem, eu próprio não sei se não o faria também, se ela viesse a correr pelo campo atrás de mim, brandindo com a colher de pau de aspecto ameaçador - disse o Júlio. - Ah, quem é ele?

O homem que a Ana pensara poder ser o artista que conseguia desembaraçar‑se de cordas vinha a descer a cancela. Caminhava com facilidade e leveza, em tudo parecido com um gato. O Júlio olhou para as mãos dele: eram pequenas mas pareciam muito fortes. Sim, certamente ele seria capaz de desatar nós com umas mãos daquelas. Eles olharam para ele com curiosidade.

- não são permitidos miúdos aqui - disse o homem ao aproximar‑se.

- Desculpe mas também somos caravanistas - disse o David. - Diga‑me, o senhor é aquele que consegue desembaraçar‑se de cordas quando está todo amarrado?

- É possível - disse o homem, e prosseguiu. De repente, deu meia volta. - Querem que os amarre? - perguntou. - Era mesmo o que me estava a apetecer. não tentem meter‑se connosco, ou fá‑lo‑ei!

- Credo, que gente tão simpática! - disse o Júlio. - Parecem estar mesmo atrás de nós, sabe‑se lá porquê. Conseguem fazer coisas realmente desagradáveis. não vamos continuar a bisbilhotar mais esta manhã. Vamos manter‑nos afastados até que eles se habituem um pouco mais a nós. então talvez se tornem mais amigáveis.

- Vamos ter com as raparigas - disse o Júlio. Desceram a cancela e foram ter à paragem da camioneta. A camioneta chegou arquejando pela colina nesse preciso momento, e as raparigas desceram, com as três mulheres da feira atrás delas.

As raparigas juntaram‑se aos rapazes.

- Fizemos imensas compras - disse a Ana. - Os nossos cestos estão tremendamente pesados. Se quiseres transportar o meu, agradeço‑te, Júlio. O David pode levar o da Ana. Viram aquelas mulheres que desceram connosco?

- Sim - respondeu o Júlio. - Porquê?

- Bem, tentamos falar com elas mas foram muito antipáticas - disse a Ana. - Sentimo‑nos muito pouco à vontade. E o Tim rosnou imenso, claro, o que piorou ainda mais a situação. Acho que ele não gostou muito do cheiro delas.

- Também não nos saímos muito bem com os artistas de circo - disse o Júlio. - Na verdade, não posso dizer que eu e o David tenhamos feito muito sucesso. Só nos queriam à distância.

- Trouxe‑te o jornal - disse a Ana. - E a Zé recebeu uma carta da mãe. Vem dirigida a todos nós, por isso não a abrimos. Lê‑la‑emos quando chegarmos às roulotes.

- Espero que sejam horas de jantar - disse a Zé. - Que achas, Tim?

O Tim conhecia a palavra jantar. Ladrou alegremente e liderou o caminho. Jantar? não poderia haver ideia melhor!

 

                   Uma carta, um passeio e uma surpresa.

Quando terminaram a refeição, a Zé abriu a carta da mãe.

Todos acharam que tinha sido um almoço excelente - dois ovos cozidos para cada um, alface, tomate, agriões e batatas assadas com casca, seguidos daquilo que o Júlio pedira: fatias de ananás em conserva, muito doces e sumarentas.

- Muito agradável - disse o Júlio, estendendo‑se ao sol. - Ana, és realmente muito boa dona de casa. Agora, Zé, vamos ouvir o que a tia Clara tem a dizer na sua carta.

A Zé abriu o envelope e desdobrou a carta.

- Vem dirigida a todos nós - disse ela.

 

         «Queridos Zé, Ana, Júlio e David

Espero que a Zé tenha chegado bem e que todos a tenham encontrado. Estou a escrever‑vos para lembrar a Zé de que sábado é o aniversário da avó dela e que lhe deve escrever. Esqueci‑me de lembrar a Zé antes de ela partir, por isso achei que deveria escrever‑lhe rapidamente.

Zé, o teu pai está muito aborrecido com o desaparecimento dos dois cientistas. Ele conhece Derek Terry‑Kane muito bem e trabalhou para ele durante algum tempo. Diz ter a certeza absoluta de que ele não anda a trair o seu próprio país; acha que ele foi raptado e escondido em qualquer lado, e o Jeffrey Pottersham também, provavelmente levados de avião para longe, para um país onde os irão forçar a revelar os seus segredos. Ainda bem que te foste embora porque esta manhã o teu pai anda a passear pela casa a grandes passadas, falando incansavelmente e a bater as portas todas que apanha pela frente. Deus o ajude.

Se escreveres, não menciones o assunto dos cientistas, porque espero que ele se acalme em breve. Ele está realmente muito perturbado e passa o tempo a dizer: "Onde é que o mundo irá parar?" quando ele sabe perfeitamente que o mundo irá parar onde os cientistas tiverem planeado.

Divirtam‑se e não te esqueças de escrever à avó, Zé!

          A tua querida mãe (tia) Clara»

 

- Estou mesmo a ver o pai andar de um lado para o outro como um. como um.

- Engolidor de fogo - disse o Júlio, com uma careta, enquanto a Zé procurava uma palavra melhor. - Um dia, ele vai fazer com que a tia Clara ande atrás dele com uma colher de pau! Mas a história dos cientistas é estranha, não é? Apesar de tudo, Terry‑Kane tinha planeado deixar o país, comprou o bilhete de avião e tudo, por isso, Zé, embora o teu pai acredite nele, parece um pouco estranho, não parece?

- Vem alguma coisa sobre o assunto no jornal? - perguntou o David, abrindo‑o. - Sim, cá está.

«Cientistas desaparecidos

Parece agora certo que Jeffrey Pottersham estava a soldo de um país inimigo e planeava juntar‑se a Terry‑Kane na sua viagem ao estrangeiro. Nada se sabe sobre o paradeiro dos dois cientistas, embora tenhamos recebido informação de fontes que os viram em muitos sítios no estrangeiro».

- Está explicado - disse o Júlio. - Dois patifes. Olhem, aqui está a fotografia deles.

Os quatro debruçaram‑se sobre o jornal, olhando para a fotografia dos dois homens.

- Bem, julgo que alguém reconhecerá Terry‑Kane se o vir - disse a Ana. - Aquelas grandes sobrancelhas espessas e arqueadas e aquela testa enorme. Se eu visse alguém com umas sobrancelhas assim pensaria que não eram verdadeiras.

- Ele irá rapá‑las - disse o David. - Depois irá ficar completamente diferente. Talvez as cole acima do lábio superior e as use como bigode!

- não sejas pateta - disse a Zé, com uma risada. - O outro fulano tem um aspecto normal, à excepção da cabeça em bico. É pena que nenhum de nós tenha uma testa muito alta! Devemos ser muito estúpidos!

- não somos assim tão maus - disse o Júlio. - Já tivemos de usar o cérebro em muitas das nossas aventuras, e não nos saímos assim tão mal!

- Vamos arrumar isto e dar uma volta outra vez - disse a Ana. - Se não formos, ainda adormeço. Este sol está tão quente que ainda vou torrar.

- Sim, é melhor irmos dar um passeio - disse o Júlio,

levantando‑se. - Que acham de irmos ver o castelo? Ou deixamos o castelo para outro dia?

- Sim, deixamos - disse a Ana. - Sinceramente não me apetece agora uma escalada íngreme. Acho que de manhã é a melhor altura!

Arrumaram tudo, fecharam as duas roulotes e puseram‑se a caminho. O Júlio olhou para trás. Alguns dos artistas de circo estavam sentados em grupo, a tomar uma refeição. Olhavam para os jovens em silêncio. De alguma forma, não era muito agradável.

- Eles não gostam exactamente de nós, pois não? - disse o David.

- Agora escuta, Tim, não aceites comida daquela gente ali, vês?

- Oh, David! - exclamou a Zé, alarmada. - Achas realmente que eles fariam mal ao Tim?

- não, não acho - respondeu o David. - Mas é melhor termos cuidado. Tal como o homem de borracha fez questão de referir de manhã , nós e eles pensamos de forma diferente sobre certas coisas. não gosto deste tipo de situações.

- Bem, seja como for, vou andar sempre com o Tim debaixo de olho - disse a Zé, com determinação. - Tim, aqui! Compreende, por favor, que desde que estejamos no acampamento deves estar sempre perto de mim! Compreendes?

- Uauf! Uauf! - fez o Tim e aproximou‑se imediatamente tanto dos tornozelos da Zé que o focinho não parava de bater neles.

Decidiram apanhar a camioneta até à Tinkers' Green, e depois ir até ao mar. Teriam tempo para lá chegar e voltar antes do escurecer. A camioneta estava à espera na esquina, e eles correram para a apanhar. Ficava a cerca de três quilómetros de Tinkers' Green, que era uma pequena aldeia luminosa, com um terreiro e um pequeno lago com patos brancos.

- Vamos comer um gelado? - sugeriu o David enquanto entravam numa mercearia que tinha um sinal com um gelado na montra.

- não - disse o Júlio com firmeza. - Acabamos agora de almoçar, vamos guardar o gelado para a hora do lanche. Nunca chegaremos a ver o mar se ficarmos a comer gelados a tarde toda.

Foi um passeio maravilhoso, por carreiros ladeados por violetas e depois por campos cheios de primaveras - e mesmo umas raras campainhas, para grande felicidade da Ana, que as adorava.

- Lá está o mar! Oh, que baíazinha encantadora! - exclamou a Ana. - E vejam como é azul, tão azul quanto as centáureas. Quase podíamos tomar banho.

- não irias gostar - disse o Júlio. - A água deve estar fria como gelo! Vá lá, vamos descer até ao pequeno cais e dar uma olhadela aos barcos de pescadores.

Desceram até ao cais de pedra, aquecido pelo sol, e começaram a falar com os pescadores. Alguns estavam sentados ao sol a remendar as suas redes e estavam muito conversadores.

- Como é bom sermos bem tratados em vez dos olhares fixos e antipatia dos artistas de circo! - disse o David ao Júlio, que assentiu com a cabeça.

Um dos pescadores levou‑os no seu barco e explicou‑lhes uma série de coisas que eles já sabiam e outras que ainda não sabiam. Foi agradável ficarem sentados a ouvir o seu sotaque e a olhar para os seus olhos azuis brilhantes enquanto falava. Era escuro como um tição.

- Poderíamos alugar um barco se quiséssemos? - perguntou o Júlio. - Poderá arranjar‑nos algum? Somos bons a navegar.

- O velho Joseph, acolá, tem um barco que vos poderia alugar, se quisessem - disse o homem com quem falavam. - Alugou‑o no outro dia, e julgo que ele vo‑lo alugaria se acham que realmente conseguem andar nele.

- Obrigado. Iremos ter com ele se nos decidirmos a sair - disse o Júlio. Olhou para o relógio. - É melhor irmos lanchar a um sítio qualquer. Queremos chegar às roulotes antes de anoitecer. Estamos acampados no castelo de Faynights.

- Oh, sim? - exclamou o pescador. - Os artistas de circo estão ao pé de vocês, não estão? Estiveram cá há duas semanas. Bom, aquele engolidor de fogo é espantoso! E o homem das cordas - bom! Só vos digo - atei‑o com o meu fio de pesca - podem vê‑lo aqui, é forte como duas cordas! Atei‑o com todos os nós que sei - e em menos de um minuto levantou‑se e o fio escorregou por ele abaixo!

- Sim, é verdade - disse o velhote chamado Joseph. - Esse homem é uma maravilha. E o Homem Borracha também. Ele pediu um tubo como este, vêem? E meteu‑se por ele adentro, rápido como uma enguia. Pregou‑me um susto, lá isso pregou, vê‑lo a sair pela outra ponta.

- Iremos vê‑los actuar quando começar o espectáculo - disse o Júlio. - De momento estão muito hostis connosco. não gostam que estejamos no acampamento deles.

- Eles são muito metidos com eles - disse Joseph. - Tiveram problemas no local onde estavam antes de vir ter connosco, alguém mandou a Polícia atrás deles e agora não fazem amigos com ninguém.

- Bom, iremos ver - disse o Júlio. Despediram‑se dos pescadores e partiram.

Pararam numa casa de chá e rumaram até às roulotes.

- Alguém quer vir connosco? - perguntou o Júlio. - Facilmente chegaremos a casa antes de escurecer se formos a pé, mas se as raparigas estiverem cansadas poderemos apanhar a camioneta em Tinkers' Green.

- É claro que não estamos cansadas! - disse a Zé, indignada. - Alguma vez me ouviste dizer que estava cansada, Júlio?

- Está bem, está bem, era apenas uma atenção da minha parte - disse o Júlio. - Vá, vamos continuar.

O caminho era mais longo do que estavam à espera. Estava a ficar escuro quando chegaram à cancela que conduzia ao acampamento das roulotes. Saltaram por cima dela e caminharam lentamente até ao seu canto.

E de repente, pararam e ficaram a olhar. Olharam em volta e fitaram novamente.

As duas roulotes tinham desaparecido! Podiam ver os sítios onde tinham estado e onde tinham feito a sua fogueira. Mas as roulotes não estavam lá!

- Bom! - exclamou o Júlio, atónito. - Isto é o máximo! Estamos a sonhar? não vejo sinal das nossas roulotes em lado algum!

- Sim. mas. para onde teriam ido? - disse a Ana, quase praguejando com a surpresa. - Quero dizer, não tinham cavalos que as levassem para outro lado! não poderiam ter ido por si próprias.

Fez‑se um silêncio. Estavam completamente fora de si. Como poderiam duas grandes e sólidas roulotes desaparecer de um momento para outro.

- Olhem, há marcas de rodas na erva - disse o David, de repente. - Olhem, as nossas roulotes foram por aqui. Vamos segui‑las colina abaixo!

Espantados, os quatro jovens e o Tim seguiram as marcas das rodas. O Júlio olhou para trás uma vez, pressentindo que estavam a ser seguidos. Mas não viu nenhuma pessoa da feira. «Talvez estivessem a vê‑los por detrás das cortinas das roulotes», pensou o Júlio.

Os trilhos das rodas seguiam pelo acampamento abaixo e iam até ao portão. Este estava fechado, mas deveria ter sido aberto para as duas roulotes passarem, porque havia marcas na relva junto ao portão, marcas que passavam por ele e se perdiam no caminho.

- Que vamos fazer? - perguntou a Ana. - Desapareceram! não temos onde dormir. Oh, Júlio. que vamos fazer?

 

                   Onde estão as roulotes?

O Júlio não sabia o que fazer! Parecia que alguém roubara as duas roulotes. e as levara para um lado qualquer.

- Acho que é melhor telefonarmos à Polícia - disse ele. - Eles procurarão as nossas roulotes e prenderão os ladrões. Mas isso não nos irá ajudar muito para esta noite! Temos de encontrar um sítio onde dormir.

- Acho que deveríamos falar com um ou dois artistas de circo - disse o David. - Mesmo que nada tenham a ver com o roubo, podem ter visto alguém levar as roulotes.

- Sim, acho que tens razão - disse o Júlio. - Eles devem saber o que aconteceu. Zé, fica aqui com a Ana, para o caso dos artistas de circo serem mal‑educados. Vamos levar o Tim. poderá ser‑nos útil!

A Zé não poderia ficar para trás, mas viu que a Ana queria! Por isso, ficou com ela, seguindo os dois rapazes com os olhos enquanto eles voltavam a subir a colina, seguidos de perto pelo Tim.

- não vamos ao homem das cobras - disse o David. - Ele pode estar a brincar com as cobras na roulote!

- Que jogo será possível fazer com cobras? - disse o Júlio. - Ou estás a pensar em saltar à corda?

- Que piada - disse o David, educadamente. - Olha, está alguém junto da nossa fogueira. acho que é o Bufflo. não, é o Alfredo. Bem, nós sabemos que não é tão feroz como parece. vamos abordá‑lo sobre as roulotes.

Foram até ao grande engolidor de fogo, que estava sentado a fumar junto à fogueira. Ele não os ouvira a aproximar‑se e deu um salto quando o Júlio lhe dirigiu a palavra.

- Senhor Alfredo - começou o Júlio ‑, pode dizer‑nos para onde foram as nossas roulotes? Quando chegámos, vimos que tinham desaparecido.

- Perguntem ao Bufflo - disse o Alfredo, bruscamente, sem olhar para eles.

- Mas não sabe nada sobre elas? - insistiu o Júlio.

- Perguntem ao Bufflo - respondeu o Alfredo, libertando nuvens de fumo.

O Júlio e o David deram meia volta, aborrecidos, e dirigiram‑se à roulote do Bufflo. Estava fechada. Bateram à porta, e o Bufflo apareceu, com a sua trunfa de cabelo dourado a brilhar à luz do candeeiro.

- Senhor Bufflo - recomeçou educadamente o Júlio ‑, o senhor Alfredo disse‑nos para vir ter consigo e perguntar‑lhe sobre as nossas roulotes, e...

- Perguntem ao homem de borracha - disse o Bufflo, sucintamente, e bateu com a porta.

O Júlio estava furioso. Bateu novamente. A janela abriu‑se e Skippy, a pequena esposa de Bufflo, espreitou.

- vão perguntar ao homem de borracha - respondeu ela e fechou a janela com uma risota.

- Estarão a pregar‑nos uma partida parva? - disse o David com agressividade.

- Assim parece - disse o Júlio. - Bom, vamos tentar o homem de borracha. Vamos. Mas é o último que vamos tentar.

Foram até à roulote do homem de borracha e bateram na porta com força.

- Quem é? - ouviu‑se do homem de borracha.

- Apareça. queremos perguntar‑lhe uma coisa - disse o Júlio.

- Quem é? - repetiu o homem de borracha.

- Sabe muito bem quem é - respondeu o Júlio, levantando a voz. - As nossas roulotes foram roubadas e queremos saber quem as levou. Se não nos ajudarem, vamos telefonar à Polícia.

A porta abriu‑se e o homem de borracha apareceu ao cimo das escadas, olhando para o Júlio.

- Ninguém as roubou - disse ele. - Absolutamente ninguém. vão perguntar ao homem das cobras.

- Se você pensa que vamos andar a perguntar a todas as pessoas do acampamento, está enganado! - disse o Júlio, zangado. - Eu não quero ir à Polícia. Nós queríamos ser amigos dos artistas de circo, não inimigos. Isto é um absurdo. Se as roulotes foram roubadas, não temos outro remédio seNão ir à Polícia e imagino que vocês não os queiram no vosso encalço novamente. Sabemos que eles andaram atrás de vocês há umas semanas.

- Vocês sabem muitas coisas - disse o homem de borracha, numa voz muito aborrecida. - As vossas roulotes não foram roubadas. Vou mostrar‑lhes onde estão.

Desceu com leveza os degraus da roulote e caminhou à frente dos dois rapazes na escuridão. Atravessou a colina relvada, dirigindo‑se para onde tinham estado as roulotes dos jovens.

- Para onde está a levar‑nos? - disse o Júlio. - Nós sabemos que as roulotes não estão aí! Por favor, não se porte como um idiota, já estamos fartos disto!

O homem nada disse, mas continuou. Os rapazes e o Tim nada podiam fazer seNão segui‑lo. O Tim não estava a gostar nada daquilo. Continuava num rosnar baixo e contínuo, como uma trovoada distante. O homem de borracha nem reparou. O Júlio perguntou‑se se ele não teria medo de cães porque eles não conseguiam morder borracha!

O homem conduziu‑os até à sebe que bordejada um dos lados do acampamento, atrás do qual tinham estado as duas roulotes.

O Júlio começou a sentir‑se exasperado. Sabia perfeitamente que as duas roulotes tinham sido levadas até ao portão e pelo caminho - então porque razão estaria aquele homem a conduzi‑los em direcção oposta?

O homem de borracha esgueirou‑se através da sebe, seguido pelos rapazes e lá, mesmo do outro lado, viram duas enormes sombras escuras que se destacavam no lusco‑fusco: as roulotes!

- Bom - disse o Júlio, surpreendido. - Quem teve a ideia de pôr as nossas roulotes aqui, no acampamento ao lado?

- Nós e vocês não combinamos - disse o homem. - não gostamos de miúdos a fazer confusão do nosso lado. Há três semanas tivemos um homem que trabalhava com canários, com mais de cem canários que faziam um espectáculo com ele e uma noite alguns miúdos abriram todas as gaiolas e soltaram‑nos!

- Oh! - exclamou o Júlio. - Eles morreriam, claro, se fossem lançados em liberdade. eles não sabem como arranjar comida. Foi azar. Mas nós não fazemos coisas dessas.

- Agora não permitimos miúdos connosco - disse o homem de borracha. - Foi por isso que atrelamos os cavalos às vossas roulotes e as levamos pelo portão até ao acampamento vizinho. e aqui estão elas. Pensamos que viriam ainda de dia e que as veriam.

- Bem, é agradável ver que de repente você pode ser mais conversador - disse o Júlio. - Pára de rosnar, Tim. Está tudo bem. Encontramos as nossas roulotes!

O homem de borracha desapareceu sem dizer mais nada.

Ouviram‑no comprimir‑se com facilidade através da sebe. O Júlio tirou a chave da sua roulote, subiu os degraus e abriu a porta. Procurou pelo interior e encontrou a sua lanterna. Acendeu‑a e fez passar a luz em redor. Nada fora mexido.

- então foi isso que aconteceu - disse ele. - Apenas uma vingança por parte dos artistas de circo, que nos quiseram castigar por aquilo que aqueles miúdos horríveis fizeram aos canários. Foi uma estupidez terem aberto as gaiolas. metade deles deve ter morrido. não gosto de ver os pássaros em gaiolas, mas os canários não podem viver nesta região, a menos que alguém trate deles. É cruel deixá‑los em liberdade e morrerem à fome.

- Concordo contigo - disse o David. Desciam agora pela colina até a uma abertura na sebe através da qual as roulotes deviam ter sido puxadas colina acima. A Zé e a Ana iriam ficar muito aliviadas ao saber que eles tinham encontrado as roulotes!

O Júlio deu um assobio e a Zé respondeu‑lhe imediatamente.

- Ainda aqui estamos. O que aconteceu?

- Descobrimos as roulotes - gritou o Júlio de volta, alegremente. - estão neste acampamento.

As raparigas juntaram‑se‑lhes de imediato, muito surpreendidas com as novidades. O Júlio explicou.

- Os artistas de circo têm mesmo azar com crianças - disse ele. - Ao que parece, tiveram um homem que trabalhava com canários cantores, com quem dava um espectáculo, e uma noite os miúdos libertaram os canários todos. por isso, metade deles morreu. E agora os artistas de circo não querem crianças ao pé deles.

- Acho que o homem das cobras tem medo que nós soltemos as cobras dele - disse o David, com uma risada de troça. - Bom, ainda bem que encontrámos as roulotes. Estava com a sensação que hoje teríamos de passar a noite num monte de feno!

- Eu não me teria importado - disse a Zé. - Eu gosto de montes de feno.

- Vamos fazer uma fogueira e cozinhar qualquer coisa - disse o Júlio. - Estou esfomeado depois de todas estas mudanças.

- Eu não - disse a Ana. - Detesto sentir que os artistas de circo não são nossos amigos. É parvo da parte deles. não estamos habituados a isto.

- Sim. estão a portar‑se como crianças - disse o Júlio. - Alguém lhes fez algo muito desagradável, por isso estão em birra, e esperam por uma oportunidade para se desforrar. e depois há alguém que lança a Polícia no encalço deles, não se esqueçam. e imaginem que estejam muito sensíveis de momento.

- Bom, é uma pena - disse a Zé, vendo o David acender uma fogueira. - Contava divertir‑me com eles. Acham que o dono da quinta vai importar‑se por estarmos aqui?

- Oh, não pensei nisso - disse o Júlio. - Se calhar não podemos acampar neste sítio. Espero que não tenhamos um fazendeiro zangado e aos gritos pela manhã !

- Oh, e estamos tão longe do ribeiro, agora - disse a Ana. - Fica do outro lado do acampamento onde estávamos. e precisamos mesmo de água.

- Temos de passar sem ela esta noite - disse o David com firmeza. - não quero que o meu escalpe seja arrancado pelo Bufflo nem ter uma corda atada às pernas, atirada pelo homem das cordas, nem uma cobra atrás de mim. Aposto que eles irão ficar à espreita para quando formos buscar água. Isto é tudo um grande disparate.

Tiveram uma refeição muito solene. De repente, as coisas

tinham‑se complicado bastante. não podiam ir à Polícia por algo tão pateta. nem queriam. Mas se o dono da quinta quisesse correr com eles do acampamento, como iriam voltar para o acampamento inicial? Ninguém queria viver num acampamento rodeado por inimigos!

- O sono é bom conselheiro - disse, por fim, o Júlio. - não se preocupem, meninas. Encontraremos uma saída para o nosso problema. Somos óptimos a sair de dificuldades. Desistir, nunca!

- Uauf! - fez o Tim concordando.

A Zé fez‑lhe uma festa.

- É um dos nossos lemas, não é, Tim? - perguntou ela.

- E o outro lema é «deixar dormir os cães que dormem» - disse o David, numa grande careta. - Ele detesta ser acordado quando está a fazer uma boa soneca, a sonhar com milhões de coelhos para apanhar!

- Bom, por falar em sonecas, e que tal irmos até aos nossos beliches? - disse o Júlio, num bocejo. - Fizemos um longo passeio hoje e estou cansado. Vou deitar‑me no beliche e ler.

Todos acharam que era uma ideia excelente. Arrumaram a loiça do jantar e as raparigas deram as boas‑noites aos rapazes. Foram para a roulote com o Tim.

- Espero que estas férias não sejam um fracasso - disse a Ana, enquanto se deitava no beliche.

A Zé soltou um dos seus roncos de troça.

- Um fracasso! Espera e verás! Tenho um pressentimento que vão ser fantásticas.

 

                   Uma grande surpresa

Na manhã seguinte não pareceu que o pressentimento da Zé de que as férias iriam ser um sucesso estivesse de todo certo. Mesmo antes de acordarem, ouviram alguém que batia com força na porta da roulote dos rapazes.

De repente, uma grande cara vermelha olhou pela janela, sobressaltando consideravelmente o Júlio.

- Quem lhes deu autorização para acamparem aqui? - disse a cara, parecendo negra como uma nuvem de trovoada.

O Júlio foi à porta de pijama.

- Este acampamento é seu? - perguntou ele, educadamente. - Bem, nós estávamos acampados no acampamento do lado e...

- Que está alugado a campistas e caravanistas - disse o homem, que estava vestido como um proprietário rural. - Este, não.

- Como eu disse, estávamos no acampamento do lado - repetiu o Júlio - e por alguma razão os artistas de circo que lá estão não gostam de nós, e quando estávamos ausentes trouxeram as nossas roulotes para aqui! Como não temos cavalos para as levar daqui, não tivemos outro remédio seNão ficar!

- Pois bem, não podem ficar - disse o dono da quinta. - Eu não alugo este acampamento. Uso‑o para as minhas vacas. Terão de se ir embora hoje, ou porei as vossas roulotes na estrada.

- Sim, mas repare. - começou o Júlio, e depois deteve‑se.

O dono da quinta tinha‑se ido embora. As raparigas abriram a janela e chamaram o Júlio.

- Ouvimos o que ele disse. E agora que vamos fazer?

- Vamos levantar‑nos e tomar o pequeno‑almoço - disse o Júlio. - E depois vou dar uma última oportunidade aos artistas de circo - eles vão ter de nos emprestar dois cavalos e levar‑nos de volta ao nosso para onde estávamos devidamente. De outra forma, receio muito que tenha de recorrer à ajuda da Polícia!

- Ai, credo - disse a Ana. - Detesto este tipo de coisas. Estávamos a divertir‑nos tanto antes dos artistas de circo terem chegado. Mas parece impossível fazer com que sejam nossos amigos.

- Sim, parece - disse o Júlio. - Agora nem sei se quero ser amigo deles. Prefiro dar as férias por terminadas e ir para casa do que termos sempre sarilhos à nossa volta! Eu e o David vamos falar com os artistas de circo depois do pequeno‑almoço.

O pequeno‑almoço foi tão solene quanto o jantar. O Júlio estava muito silencioso. Estava a pensar no que iria dizer às pessoas simpáticas do acampamento do lado.

- Tens de levar o Tim contigo - disse a Zé, dando voz ao que todos estavam a pensar.

O Júlio e o David partiram com o Tim às oito e meia. Todas as pessoas já estavam levantadas e a tratarem das suas vidas e o fumo das suas fogueiras erguia‑se no ar da manhã.

O Júlio pensou dirigir‑se ao engolidor de fogo, por isso os dois rapazes dirigiram‑se à roulote dele. Os artistas de circo assistiram à cena e um a um saíram das roulotes, formando um círculo em torno dos rapazes. O Tim mostrou os dentes e rosnou.

- Senhor Alfredo - começou o Júlio ‑, o dono da quinta quer expulsar‑nos daquele acampamento. Temos de voltar para aqui. Queremos pedir‑vos emprestados os vossos dois cavalos para as nossas roulotes.

Uma onda de gargalhadas espalhou‑se pela audiência. O senhor Alfredo respondeu educadamente, com um sorriso no rosto.

- Que pena! Nós não alugamos os nossos cavalos!

- Eu não quero alugar os vossos cavalos - disse o Júlio, pacientemente. - Cabe‑vos decidir se no‑los emprestam para trazer as nossas roulotes. De outra forma. bem, terei de ir à Polícia pedir ajuda. Aquelas roulotes não são nossas, sabiam?

Ouviu‑se um murmúrio furioso por parte da multidão atenta. O Tim rosnou mais alto. Um ou dois artistas de circo recuaram apressadamente quando o ouviram.

CRAQUE! O Júlio virou‑se imediatamente. Os artistas de circo recuaram imediatamente e os dois rapazes perceberam que estavam diante de Bufflo, que, exibindo uma careta desagradável, fazia oscilar o chicote na mão.

CRAQUE! O Júlio deu um grande pulo, pois alguns cabelos do topo da cabeça tinham sido cortados pela ponta do chicote.

A multidão voltou a rir‑se às bandeiras despregadas. O Tim arreganhou os dentes e rosnou.

O David agarrou na coleira do cão.

- Tornem a fazer isso e não conseguirei manter o cão preso! - exclamou ele, em tom de aviso.

O Júlio ficou ali de pé, sem saber o que fazer de seguida. não suportava a ideia de dar meia volta e fugir acompanhado pela troça dos outros. Estava tão furioso que não conseguia dizer o que quer que fosse.

E depois algo aconteceu. Algo tão totalmente inesperado que ninguém fez nada, a não ser deixar acontecer.

Uma figura arrapazada subiu a correr a colina relvada. alguém muito parecido com a Zé, de cabelo curto encaracolado e uma cara cheia de sardas. contudo, alguém vestido com uma saia verde curta e não jeans, como a Zé.

Vinha a correr, a gritar a plenos pulmões.

- David! David! Eh, David!

O David virou‑se muito surpreendido.

- Oh. é a João! João! A rapariga cigana que uma vez participou connosco numa aventura! Júlio, é a João!

Sim, não havia dúvidas. Era a João! Vinha disparada, com as faces a brilhar de alegria, e disparou excitada em direcção do David. Sempre gostara mais dele.

- David! não sabia que estavas aqui! Júlio! Os outros também estão aqui? Oh, Tim, querido Tim! David estás acampado aqui? Oh, isto é demasiado fantástico para ser verdade!

A João parecia lançar‑se novamente sobre o David, e ele desviou‑a.

- João! De onde apareceste?

- Bem - disse a João. - Eu também tenho férias de escola como vocês. e pensei ir visitar‑vos ao Casal Kirrin. Por isso, lá fui. Mas já todos tinham partido. Foi ontem.

- Continua - disse o David, quando a João parou, sem fôlego.

- Bem, depois não quis voltar logo para casa - disse a João. - Por isso, pensei em fazer uma visita ao meu tio - irmão da minha mãe - e eu sabia que ele estava acampado por aqui, por isso vim à boleia todo o caminho, e cheguei ontem à noite.

- Estou espantado - disse o Júlio. - E quem é o teu tio, se é que se pode saber?

- Oh, é o Alfredo. o engolidor de fogo. - Foi a surpreendente resposta da João. - não sabiam? Oh, David, oh, Júlio! Posso ficar convosco enquanto cá estiverem? Sim, digam que sim! não se esqueceram de mim, pois não?

- Claro que não - disse o David, pensando que ninguém jamais poderia esquecer aquela miudinha selvagem, com as suas maneiras tresloucadas e a sua forte afeição.

Foi então que pela primeira vez a João se apercebeu que algo se passava! Que fazia aquela multidão em torno do Júlio e do David?

Olhou em volta e sentiu imediatamente que os artistas de circo estavam de pé atrás com os dois rapazes - embora a principal expressão nos seus rostos fosse agora de espanto!

Perguntavam‑se como é que a João conheceria aqueles rapazes. Como poderia ela ser tão simpática com eles? Estavam confusos e baralhados.

- Tio Alfredo, onde estás? - perguntou a João, olhando em volta. - Ah, aí estás! Tio, estes são os meus melhores amigos. e as raparigas também, estejam lá onde estiverem. Contar‑lhes‑ei tudo sobre eles e foram amáveis para comigo! Vou contar a todos!

- Bem - disse o Júlio, sentindo‑se muito embaraçado com o que a João acabava de revelar ‑, diz‑lhes, João, e eu vou já dar a notícia à Zé e à Ana. Elas vão ficar surpreendidas ao saber que estás cá. E que o Alfredo é teu tio!

Os dois rapazes e o cão viraram‑se para partir. A pequena multidão abriu‑se para dar passagem. Fechou‑se novamente em torno da entusiasmada João, que falava em voz tão alta que os rapazes a podiam ouvir enquanto atravessavam o acampamento.

- Bom, bom, bom! - exclamou o David, enquanto passaram através da sebe. - Que coisa espantosa! Mal quis acreditar quando a João apareceu, não achas? Espero que a Zé não se vá importar. Ela sempre teve muitos ciúmes da João e das coisas que ela faz.

As duas raparigas ficaram surpreendidas com as notícias dos rapazes. A Zé não ficou muito satisfeita. Ela preferia a João à distância. Gostava dela e admirava‑a contra a sua vontade. A João era demasiado parecida com a própria Zé para esta lhe dar toda a sua simpatia.

- Bem, imaginem a própria João aqui! - disse a Ana, sorrindo. - Oh, Júlio. foi óptimo ela ter aparecido. não gostei nem um pouco do Bufflo a agitar o chicote para ti. Podia ter‑te tirado o cabelo todo!

- Oh, foram apenas alguns cabelos - disse o Júlio. - Mas foi um choque para mim. Acho que os artistas de circo também foram apanhados de surpresa quando a João apareceu como um pequeno furacão, a gritar a plenos pulmões e se atirou ao pobre David. Quase o atirou ao chão!

- não é má miúda - disse o David ‑, mas pensa antes de agir. Pergunto‑me se as pessoas com quem está saberão onde ela foi. não ficaria nem um pouco surpreso se ela desaparecesse sem deixar rasto.

- Tal como os dois cientistas - disse o Júlio, com uma careta. - Céus, ainda não quero acreditar! A João era a última pessoa que esperava ver aqui.

- Bom, não exactamente, se pensares um pouco - disse a Ana. - O pai dela é de etnia cigana, não é, e a mãe trabalhava num circo, ela disse‑nos isso. Treinava cães, não te lembras, Júlio? Por isso, é muito natural a João manter relações com pessoas como os artistas de circo. Mas imagine‑se ter um tio engolidor de fogo!

- Sim. tinha‑me esquecido que a mãe da João trabalhava num circo - disse o Júlio. - Ela devia conhecer as pessoas de todo o país! Que estará ela a contar‑lhes sobre nós?

- Deve estar a tecer elogios ao David - disse a Zé. - Ela sempre pôs o David nos píncaros da lua. Talvez os artistas de circo não sejam tão desagradáveis connosco quando souberem que a João gosta muito de nós.

- Bem, estamos metidos numa alhada - disse o David. - não podemos ficar neste acampamento, ou o dono da quinta virá ter connosco novamente. e não acredito que a gente da feira nos empreste os cavalos. e sem cavalos não conseguimos sair deste acampamento!

- Poderíamos pedir ao dono da quinta que nos emprestasse os seus cavalos - sugeriu a Ana.

- Mas teríamos de lhe pagar e não vejo por que o devamos fazer - disse o Júlio. - Apesar de tudo, não temos culpa das nossas roulotes terem vindo para aqui.

- Acho que este local é horrível e hostil - disse a Ana. - E não quero ficar aqui nem mais um dia.

- Anima‑te! - disse o David. - Nunca desanimes!

- Uauf! - fez o Tim.

- Olhem. vem alguém atravessar a sebe, junto à estrada - observou a Zé, apontando. - É a João!

- Sim. e não acredito, trás dois cavalos com ela! - gritou o David. - Boa, João! Ela traz os cavalos do Alfredo!

 

                   De novo com os artistas de circo

Os quatro, com o Tim atrás deles, foram a correr ter com a João. Ela riu‑se abertamente para todos.

- Olá, Ana! Olá, Zé! Que bom encontrar‑vos novamente. Grande surpresa!

- João! Como arranjaste esses cavalos? - disse o David, levando um à rédea.

- Foi fácil - disse a João. - Bastou‑me contar tudo ao tio Fred. a maravilha que vocês são. e o que fizeram por mim. e qual não é o meu espanto ao saber que eles vos tinham expulsado do vosso acampamento! Descontrolei‑me! Disse‑lhes o que pensava deles, tratarem os meus melhores amigos daquela forma!

- Disseste mesmo, João? - perguntou a Zé, com desconfiança.

- não me ouviste? - perguntou a João. - Eu gritei a plenos pulmões com tio Fred e depois com a mulher dele, a tia Anita, ela também gritou com ele. e depois gritamos as duas com toda a gente.

- Deve ter sido uma discussão - disse o Júlio. - E o resultado disso foi que levaste a tua avante e trouxeste os cavalos para levarmos as nossas roulotes, João?

- Bem, a tia Anita disse‑me que tinham levado as vossas roulotes para o acampamento do lado e as deixaram lá e que não vos iam emprestar os cavalos para as trazer de volta, eu disse‑lhes umas quantas coisas - disse a João. - Eu disse. não, é melhor não vos dizer o que lhes disse. não fui muito educada.

- Aposto que não - disse o David, que já tivera uma curta experiência da língua desabrida da João no ano anterior.

- E quando lhes disse que quando o meu pai foi para a prisão vocês me arranjaram um lar com alguém simpático que cuida de mim, eles pediram desculpas por vos terem tratado tão mal - disse a João. - E por isso disse ao tio Fred que ia buscar dois cavalos e levar as vossas roulotes de volta para o acampamento.

- Compreendo - disse o Júlio. - E os artistas de circo deixaram‑te?

- Ah, sim - disse a João. - Por isso vamos atrelá‑los, Júlio, e regressar imediatamente. não é o dono da quinta que aí vem?

Era, e parecia aborrecido. O Júlio apressou‑se a meter um cavalo nos varais da roulote das raparigas e o David fez recuar o outro cavalo para os varais da segunda roulote. O dono da quinta aproximou‑se e pôs‑se a assistir.

- então sempre conseguiram os cavalos, hem? - disse ele. - Vejo que sim. A contarem‑me tretas sobre estarem aqui encavalados e não conseguirem sair!

- Grrrrrr - fez o Tim de imediato, mas foi o único a fazer comentários.

- Vá - disse a João, agarrando nas rédeas do cavalo que puxava a roulote das raparigas. - Vamos, vamos!

O cavalo arrancou, e a João conduzi‑o maldosamente tão perto do dono da quinta que ele teve de se afastar rapidamente. Resmungou‑lhe algo. O Tim, dando a volta à roulote, rosnou‑lhe em resposta. O homem afastou‑se um pouco mais e acompanhou com o olhar as duas roulotes a descer a encosta.

Chegaram ao portão e a Ana abriu‑o. Passaram os cavalos, que agora tinham de fazer força, porque iam colina acima e as roulotes eram pesadas. Por fim, chegaram ao local onde as roulotes estavam a princípio. O Júlio fê‑las recuar até ao mesmo pedaço de terreno.

Desatrelou os cavalos e atirou as rédeas do segundo cavalo ao David.

- Vamos levá‑los nós mesmo - disse ele.

Então os dois rapazes levaram os cavalos ao Alfredo, que estava a pendurar numa corda roupa lavada para secar. Parecia uma tarefa muito inadequada para um engolidor de fogo, mas o Alfredo não parecia importar‑se.

- Senhor Alfredo, obrigado por nos ter emprestado os cavalos - disse o Júlio, na sua entoação mais educada. - Devemos atá‑los em qualquer lado, ou deixamo‑los à solta?

O Alfredo voltou‑se e tirou algumas molas da sua grande boca. Parecia muito envergonhado.

- Deixem‑nos à solta - disse ele. Hesitou antes de voltar a pôr as molas na boca. - não sabíamos que eram amigos da minha sobrinha - disse ele. - Ela contou‑nos tudo sobre vocês. Deverias ter‑nos dito que a conheciam.

- E como poderia ele tê‑lo feito se não sabia que ela era tua sobrinha? - gritou a mulher do Alfredo, da porta da roulote. - Fred, tu não tens miolos, nem um pouco. Ahhhhh! Agora deixaste cair a minha melhor blusa ao chão!

Ela saiu disparada a grande velocidade e o Alfredo ficou a olhar, alarmado. Felizmente, daquela vez, ela não trazia uma colher de pau. Virou‑se para os dois rapazes divertidos.

- O Alfredo lamenta ter levado as vossas roulotes - disse ela. - não lamentas, Fred?

- Bom, foste tu quem. - começou o Alfredo, com uma expressão de espanto. Mas não pôde acabar. A sua minúscula esposa deu‑lhe um violento empurrão e voltou a falar, com as palavras a atropelarem‑se umas às outras.

- não faças caso deste grandalhão mau! Ele não tem miolos. Só sabe engolir fogo e isso é pouca coisa! Agora a João, essa sim, essa tem miolos. Bem, não estão contentes por estarem de volta ao vosso espaço?

- Eu estaria mais contente se tivessem sido simpáticos connosco - disse o Júlio. - Acho que não nos apetece ficar por aqui mais tempo. É provável que nos vamos embora amanhã.

- Ouviste, Fred, viste o que fizeste? Correste com estes miúdos tão simpáticos! - gritou a mulher do Alfredo. - Estes rapazes têm maneiras, uma coisa que nem sabes o que é, Fred.

O Fred tirou umas molas da boca para dar uma resposta indignada, mas a mulher dele deu um guincho de repente e correu para a roulote.

- Está qualquer coisa a queimar‑se! A queimar‑se!

O Alfredo soltou uma gargalhada tão franca que surpreendeu os rapazes.

- Ah! Vai deixar queimar o bolo! não tem miolos aquela mulher! Miolos nenhuns!

O Júlio e o David deram meia volta para se irem embora. Alfredo falou‑lhes em voz baixa.

- Agora podem ficar aqui neste acampamento. Vocês são amigos da João. Isso é suficiente.

- Pode ser - disse o Júlio. - Mas receio que não seja suficiente para nós. Vamos embora amanhã.

Os rapazes voltaram para junto das roulotes. A João sentou‑se na relva com a Zé e a Ana, contando entusiasmada a sua vida com uma família muito simpática.

- Mas não me deixam usar jeans ou ser um rapaz - terminou com tristeza. - É por isso que trago uma saia. Podes emprestar‑me uns jeans, Zé?

- não, não posso - disse a Zé, com firmeza. A João já estava muito parecida com ela, sem usar jeans. - Bem, pareces ter começado uma nova vida, João. Já sabes ler e escrever?

- Quase - disse a João, e desviou o olhar. Achava as lições muito difíceis, pois nunca andara numa escola quando vivia com o pai, que era cigano. Voltou a olhá‑los com olhos brilhantes.

- Posso ficar convosco? - perguntou ela. - A minha mãe adoptiva deixar‑me‑ia ficar, eu sei. se pudesse ficar convosco.

- não lhe disseste que vinhas para aqui? - perguntou o David. - Isso não foi muito simpático, João.

- não pensei nisso - disse a João. - Manda‑lhe um cartão por mim, David.

- Manda‑lhe tu um - disse a Zé imediatamente. - Disseste que já sabias escrever.

A João não ligou àquela observação.

- Posso ficar convosco? - perguntou ela. - não dormirei nas roulotes, enrosco‑me por baixo. Eu fazia sempre isso quando o tempo estava bom e vivia com o meu pai na roulote dele. Seria uma mudança para mim não viver numa casa. Gosto de imensas coisas nas casas, mas gosto mais de dormir no chão ao ar livre.

- Bom, poderias ficar connosco se nós próprios ficássemos - disse o Júlio. - Mas não estou muito inclinado a fazê‑lo, por termos tido uma recepção tão antipática por parte de todos.

- Vou dizer a todos que sejam amáveis para convosco - disse a João imediatamente, e levantou‑se como se fizesse menção de ir obrigar toda a gente a ser amável.

O David obrigou‑a a sentar‑se.

- não. Vamos ficar aqui mais um dia e uma noite e decidiremos amanhã. Que dizes, Júlio?

- Ok - disse o Júlio. Olhou para o relógio. - Vamos festejar a chegada da João com uns gelados. E julgo que vocês duas tenham compras a fazer, não têm?

- Sim - respondeu a Ana e foi buscar os sacos das compras. Começaram a descer a colina, os cinco e o Tim.

Quando passaram pelo homem das cobras, ele cumprimentou‑os alegremente.

- Bom dia! Belo dia, não está?

Depois da má vontade que os jovens tinham visto nos artistas de circo até então, aquela reacção foi uma surpresa.

A Ana sorriu, mas os rapazes e a Zé limitaram‑se a acenar com a cabeça e a prosseguir. não eram tão prontos a perdoar como a Ana!

Passaram pelo homem de borracha, que tinha vindo buscar água. Atrás dele vinha o homem das cobras. Ambos acenaram com a cabeça e o homem de borracha, de olhar triste, chegou mesmo a fazer um meio sorriso.

Depois viram o Bufflo, a praticar o seu chicote -

craque‑craque‑craque! Aproximou‑se deles.

- Se quiserem experimentar o meu chicote, é só dizerem - disse ele ao Júlio.

- Obrigado - disse o Júlio, educada mas secamente. - Mas é provável que nos vamos embora amanhã.

- não levantes cabelo! - disse o Bufflo, sentindo‑se à distância.

- Já não posso - disse o Júlio de imediato, passando a mão sobre a parte de cima da cabeça onde o Bufflo lhe tinha cortado alguns cabelos eriçados.

- Oh, oh! - riu o Bufflo e depois parou abruptamente receando ter sido ofensivo. O Júlio sorriu‑lhe. Ele gostava bastante do Bufflo, com a sua cabeleira amarela e fala arrastada.

- Continuem connosco - disse o Bufflo. - Eu empresto‑vos um chicote.

- É provável que nos vamos embora amanhã - repetiu o Júlio.

Ele acenou‑lhe com a cabeça e continuou com os outros.

- Afinal, começa apetecer‑me ficar - disse a Zé. - Faz muita diferença se as pessoas forem simpáticas.

- Bom, mas não ficamos - disse o Júlio, secamente. - Estou quase decidido, mas vamos esperar até amanhã. É uma questão de orgulho próprio. Vocês, as raparigas, não percebem bem como eu me sinto em relação a toda a situação.

E não perceberam. Mas o David percebia e concordava com o Júlio. Desceram até à aldeia e encaminharam‑se para a loja de gelados.

Passaram um dia muito agradável. Fizeram um lanche excelente na relva junto às suas roulotes. e para grande surpresa a mulher do Alfredo presenteou‑os com um bolo feito por ela. A Ana agradeceu‑lhe muito, para a compensar de uma certa secura nos agradecimentos dos dois rapazes.

- Talvez vocês tenham ido um pouco longe demais - disse‑lhes ela em tom reprovador. - Ela é mesmo uma mulherzinha simpática. Honestamente, agora não me importaria de ficar.

Mas o Júlio estava curiosamente obstinado com a ideia. Abanou a cabeça.

- Partiremos amanhã - disse ele. - A menos que algo de inesperado nos aconteça e nos faça ficar. E tal não irá acontecer.

Mas o Júlio enganava‑se. Algo inesperado iria acontecer. Algo muito estranho.

 

                   Algo muito estranho

O acontecimento inesperado deu‑se nessa noite, depois do chá. Tinham tido um lanche muito tardio e também muito agradável. pão com manteiga e mel - doughnuts frescos da leitaria - e o bolo que a mulher do Alfredo lhes tinha oferecido e que tinha um recheio delicioso.

- não consigo comer mais - disse a Zé. - Aquele bolo era muito pesado. Acho que nem consigo levantar‑me e arrumar a loiça. por isso, não o surgiras, Ana.

- Eu, não - disse a Ana. - Temos muito tempo. Está a ser uma noite de sonho. vamos ficar sentados um pouco. Lá vai aquele melro, de novo. Ele tem um tema diferente sempre que canta.

- É por isso que eu gosto de melros - disse o David, preguiçoso. - são compositores autênticos. Fazem as suas próprias músicas. não são como os tentilhões que cantam sempre a mesma canção repetidas vezes. A sério, havia um esta manhã que cantou a mesma coisa cinquenta vezes sem parar.

- Piu‑Piu‑Piu, Repiu‑Piu‑Piu, Piupiu‑UU‑I‑Ar! - gritou o tentilhão, despejando tudo como se tivesse aprendido a música de cor. ‑

Piu‑Piu‑Piu.

- Lá está ele novamente - disse o David. - Se ele não cantar aquilo, grita "pinque‑pinque‑pinque" como se estivesse a música gravada no cérebro. Olhem para ele ali. não é uma beleza?

Era, sem dúvida. Voou até à relva para junto dos miúdos e começou a apanhar os pedacinhos de comida, tendo chegado a aventurar‑se no joelho da Ana uma vez. Ela ficou imóvel, realmente encantada.

O Tim rosnou e o tentilhão levantou voo.

- Tim, meu tonto - disse a Zé. - Com ciúmes de um tentilhão! Oh, David vez aquelas garças a voar em direcção ao pântano na parte leste da colina do castelo?

- Sim - disse o David, levantando‑se. - Onde estão os teus binóculos, Zé? Poderíamos ver muito bem os pássaros com eles.

A Zé foi buscá‑los à roulote. Passou‑os ao David. Ele focou‑os no pântano.

- Sim, quatro garças! Céus, têm umas pernas compridíssimas, não têm? estão a chapinhar, felicíssimas, de um lado para o outro. agora uma delas está a tentar apanhar alguma coisa com o longo bico. Que terá apanhado? Sim, é uma rã. Consigo ver‑lhe as patas de trás!

- não é possível - disse a Zé, tirando‑lhe os binóculos. - És um aldrabão. Os binóculos não são assim tão potentes a ponto de se poder ver as pernas de uma rã a esta distância!

Mas era. Era realmente excelente, demasiado bom para a Zé, que não era muito cuidadosa com objectos valiosos.

Ela foi a tempo de ver as pernas da pobre rã a desaparecerem no bico longo e forte da garça. Foi então que algo assustou os pássaros e todos levantaram voo.

- Como batem as asas lentamente - disse o David. - Aposto que devem bater as asas mais lentamente do que qualquer outro pássaro. Passa‑me os binóculos outra vez, Zé. Vou dar uma olhadela aos corvos. Há centenas deles a voar novamente sobre o castelo. o passeio da noite, suponho eu.

Levou‑os aos olhos e moveu‑os para a frente e para trás, observando os intermináveis círculos e mergulhos dos corvos. O ruído de muitas vozes fez‑se ouvir alto e bom som no ar nocturno.

Xaque‑Xaque‑Xaque!

O David viu alguns voarem para a única torre completa do castelo. Baixou os binóculos para os acompanhar. Um corvo voou até ao parapeito da fresta junto ao topo da torre, e o David seguiu o seu voo. Pousou durante meio segundo no parapeito e levantou voo quando se assustou.

E depois o David viu algo que fez o seu coração dar um pulo de repente. Os binóculos estavam apontados para o parapeito e ele viu lá algo completamente surpreendente! Ficou a olhar como se não acreditasse no que os seus olhos viam.

- Júlio! Vê com os binóculos. Aponta para o parapeito perto do topo da única torre que está completa. e diz‑me se vês o mesmo que eu. Depressa!

Surpreendido, o Júlio estendeu a mão para agarrar os binóculos. Que teria o David visto? O Júlio levou os binóculos aos olhos e focou‑os na janela para a qual o David estivera a olhar. Olhou atentamente.

- Sim. Vejo, vejo. Que coisa extraordinária. Acho que deve ser um efeito de luz.

Por aquela altura, as raparigas já estavam num estado de curiosidade tal que não conseguiram resistir mais. A Zé arrancou os binóculos ao Júlio.

- Deixa‑me ver! - disse ela furiosa. Apontou‑os para a janela. Olhou, olhou e tornou a olhar.

Depois, baixou os binóculos e ficou a olhar para o Júlio e para o David.

- É para rir? - perguntou ela. - não vejo nada de especial. nada, a não ser uma janela vazia!

A Ana arrancou‑lhe os binóculos das mãos, antes do David tentar agarrá‑los novamente. Também ela os apontou para a janela. Mas não havia absolutamente nada para ver.

- Nada - disse a Ana, desconsolada, e o David tirou‑lhe os binóculos nesse momento focando‑os uma vez mais na janela.

Baixou‑os.

- Desapareceu - disse ele ao Júlio. - Já lá não está.

- David! Se não nos dizes o que viste, mandamos‑te pela colina abaixo - disse a Zé, zangada. - Estás a pregar‑nos alguma partida? Que viste, afinal?

- Bom - disse o David, olhando para o Júlio. - Vi uma cara. Uma cara não muito longe da janela, a olhar para fora. Que viste tu, Júlio?

- O mesmo - disse o Júlio. - Fez‑me medo.

- Uma cara? - disseram a Zé, a Ana e a João ao mesmo tempo. - Que queres dizer?

- Bem. o que acabei de dizer - respondeu o David. - Uma cara. com olhos, nariz e boca. Mas ninguém mora no castelo.

- É uma ruína - disse a Zé. - Seria alguém a explorar?

- não, não pode ter sido um visitante, tenho a certeza. o castelo fecha às cinco e meia e já passa das seis. parecia uma cara. hum. uma cara desesperada.

- Sim. também tive essa sensação - disse o David. - Bem, é muito estranho, não é, Júlio? Deve haver uma explicação qualquer razoável para o que vimos mas não consigo deixar de pensar que há algo estranho.

- Era uma cara de homem? - perguntou a Zé. - Ou de mulher?

- Acho que era de homem - disse o David. - não vi cabelo nenhum no escuro da janela. Ou roupa. Mas parecia a cara de um homem. Reparaste nas sobrancelhas, Júlio?

- Sim, reparei - disse o Júlio. - Eram muito pronunciadas, não eram?

Isso fez lembrar algo à Zé.

- Sobrancelhas! - disse ela de imediato. - não se lembram. a fotografia daquele cientista, Terry‑Kane, mostrava umas sobrancelhas espessas. Tu até disseste que ele podia rapá‑las e usá‑las ao contrário como bigode, não te lembras, David?

- Sim, lembro‑me bem - disse o David, e olhou para o Júlio.

O Júlio abanou a cabeça. - não reconheci a semelhança - disse ele ‑, mas afinal a distância ainda é grande. Só conseguimos ver a cara à janela de tão longe porque os binóculos da Zé são extraordinariamente bons. Na verdade, deve haver uma explicação normal. só que nós estávamos tão espantados que aquilo nos pareceu estranho.

- Quem me dera ter visto a cara - suspirou a Zé. - Afinal, os binóculos são meus. e não cheguei a ver a cara.

- Bem. podes continuar a ver se volta a aparecer - disse o David, passando‑lhe os binóculos. - Pode ser que consigas.

Então a Ana, a Zé e a João revezaram‑se, olhando ansiosamente pelos binóculos, mas não viram cara alguma. Por fim, acabou por ficar tão escuro que já era difícil vislumbrar a torre, quanto mais a janela ou uma cara!

- Eu digo‑vos o que poderíamos fazer - disse o Júlio. - Poderíamos ir visitar o castelo amanhã. E subir àquela torre. Veremos então se existe ou não a tal cara.

- Mas eu pensei que nos fôssemos embora amanhã - disse o David.

- Ah, sim. pensámos em partir, não foi? - disse o Júlio, que com a excitação se esquecera por completo da sua própria ideia. - Bom, é melhor não irmos embora sem termos explorado o castelo primeiro, e encontrarmos a explicação para a cara.

- Pois, claro - disse a Zé. - Imagine‑se, vermos uma coisa daquelas e ir‑mos embora sem descobrir nada sobre ela. não é possível.

- Seja como for, eu vou ficar - anunciou a João. - Se forem, posso ficar com o meu tio Alfredo, e avisar‑vos se a cara voltar a aparecer. se a Zé me deixar ficar com os binóculos dela.

- Mas eu não vou deixar - disse a Zé, com grande determinação. - Se eu me for embora, os meus binóculos irão comigo. Mas eu não me vou embora. Agora vais ficar, não vais, Júlio?

- Sim, vamos ficar e descobrir mais sobra aquela cara - disse o Júlio. - Sinceramente, estou terrivelmente confuso. Eh, quem vem lá?

Uma grande figura surgiu no crepúsculo. Era o Alfredo, o engolidor de fogo.

- João? Estás aí? - perguntou ele. - A tua tia está a convidar‑te para jantar. a ti, e a todos os teus amigos. Venham.

Houve uma pausa. A Ana olhou ansiosamente para o Júlio. Iria ele continuar a portar‑se soberba e orgulhosamente? Ela esperava que não.

- Obrigado - disse o Júlio, por fim. - Aceitamos com todo o gosto. Quer que vamos já?

- Sim, seria óptimo - disse o Alfredo, com uma pequena vénia. - Eu como fogo para vocês. Querem?

Aquilo era demasiado tentador para se resistir. Todos se levantaram de imediato e seguiram o grande Alfredo pela encosta até à roulote dele. Cá fora havia uma bela fogueira, e nela uma grande panela preta que deitava um aroma muito agradável.

- O jantar ainda não está pronto - disse o Alfredo.

Os cinco jovens ficaram aliviados. Depois do grande lanche, ainda não tinham apetite para a refeição que cheirava tão bem e que estava na panela! Sentaram‑se junto à fogueira.

- Vai mesmo comer fogo para nós? - perguntou a Ana. - Como faz isso?

- Ah, é muito difícil! - disse o Alfredo. - Só o farei se me prometerem não tentarem imitar‑me. Vocês não iriam gostar de ficar com bolhas na boca, pois não?

Todos estavam certos que não.

- Eu também não quero que tenha bolhas na sua boca - acrescentou a Ana.

O Alfredo pareceu ficar chocado.

- Eu sou óptimo engolidor de fogo - assegurou‑lhe ele. - Os bons nunca ficam com bolhas na boca. Agora, sentem‑se e fiquem sossegados e eu vou buscar as minhas tochas e engolir fogo para vocês verem.

Uma pessoa sentou‑se ao lado deles. Era o Bufflo. Sorriu‑lhes. A Skippy aproximou‑se e sentou‑se também. então o homem das cobras apareceu e sentou‑se do outro lado da fogueira.

O Alfredo regressou trazendo umas coisas nas mãos.

- Um verdadeiro circulo familiar! - disse ele. - Agora vejam. vou engolir fogo para vocês!

 

                   O engolidor de fogo e outras coisas

O Alfredo sentou‑se na erva, um pouco distante da fogueira. Colocou uma bacia de fogo, que cheirava a petróleo, à sua frente. Ergueu dois paus.

- As tochas - disse a mulher dele, orgulhosamente. - Ele engole o fogo das tochas!

Alfredo disse algo ao homem das cobras, mergulhando as suas duas tochas na bacia. Ainda não estavam acesas, e para os jovens pareciam ganchos muito grandes, com uma bola de algodão presa à parte curva.

O homem das cobras inclinou‑se para a frente e tirou um pauzinho a arder do fogo. Com um gesto rápido atirou‑o para a bacia. Acendeu imediatamente o petróleo, e as chamas elevaram‑se na escuridão.

O Alfredo mantivera as tochas afastadas, mas daquela vez mergulhou primeiro uma depois outra no petróleo a arder.

Incendiaram‑se de imediato, e começaram a produzir chamas vermelhas quando as ergueu, uma em cada mão. Os seus olhos brilhavam com a claridade das chamas, e os cinco miúdos ficaram sentados imóveis, fascinados.

Então, o Alfredo atirou a cabeça para trás - para trás, cada vez mais para trás - e para trás - e abriu a boca enorme. Meteu uma das tochas acesas lá dentro, e fechou a boca, de modo que as bochechas brilharam com um vermelho estranho e inacreditável devido às chamas dentro da boca. A Ana soltou um gritinho e Zé abriu a boca de espanto. Os dois rapazes sustiveram a respiração. Só a João assistia a tudo aquilo com descontracção. Vira o tio fazer aquilo muitas vezes.

O Alfredo abriu a boca e as chamas saíram velozmente, como uma cascata de fogo. Com a outra tocha a arder na mão esquerda, o petróleo a arder na bacia, a tocha na mão direita e as chamas a saírem da boca, aquilo era realmente um espectáculo extraordinário!

Fez o mesmo com a outra tocha, e mais uma vez as suas bochechas brilharam como uma lâmpada. então, da sua boca voltou a sair fogo, que a brisa da noite agitou de um lado para o outro.

O Alfredo fechou a boca. Engoliu. Em seguida, olhou em volta, abriu a boca para mostrar que já não tinha chamas lá dentro e esboçou um amplo sorriso.

- Ah, gostaram de me ver engolir fogo? - disse ele, e apagou as tochas. A bacia já não estava a arder e agora só a luz da fogueira iluminava o cenário.

- É maravilhoso - disse o Júlio, muito admirado. - Mas não queima a boca?

- Quem? Eu? nem pensar! - riu‑se o Alfredo. - A princípio, talvez, há muitos, muitos anos, quando comecei. Mas agora, não. Seria uma vergonha queimar a boca. Deixaria tombar a cabeça de vergonha e desapareceria.

- Mas como consegue não queimar a boca? - perguntou o David, baralhado.

O Alfredo recusou‑se a dar qualquer explicação. Isso era parte do mistério da sua actuação e ele não iria revelá‑lo.

- Eu também sei comer fogo - declarou a João, de forma casual e inesperada. - Tio! Passa‑me uma das tuas tochas.

- Tu? Nem penses nisso! - rugiu o Alfredo. - Queres queimar‑te?

- não. Eu não vou queimar‑me - disse a João. - Já te vi fazer esse número muitas vezes e sei como o fazes. Já experimentei.

- Aldrabice! - disse imediatamente a Zé.

- Escuta - recomeçou o Alfredo. - Se tentares comer fogo, eu dou‑te com o chicote até me pedires misericórdia. Eu...

- Oh, Alfredo - disse a mulher ‑, não vais fazer nada disso. Eu trato da João se ela começar a fazer disparates. Quanto a comer fogo. bem, se há mais alguém que o vai fazer, sou eu, a tua mulher.

- Tu não vais comer fogo - disse o Alfredo, obstinado, receando que a sua mulher tempestuosa o tentasse fazer.

De repente, a Ana deu um grito de pavor. Um longo e espesso corpo deslizava entre ela e o Júlio. era uma das pitões do homem das cobras! Ele trouxera uma com ele, sem os jovens saberem. A João agarrou nela e segurou‑a com toda a força.

- Deixa‑a à solta - disse o homem das cobras. - Ela volta para mim. Ela quer dar um passeio.

- Deixa‑me segurá‑la um pouco - implorou a João. - É tão macia e fria. Eu gosto de cobras.

O Júlio estendeu receosamente a mão e tocou na grande cobra. Era inesperadamente macia e muito fria. Que sensação extraordinária! Parecia tão escamosa e áspera.

A cobra deslizou pela João acima e depois começou a deslizar pelas costas dela.

- Agora não deixes que ela te enrole a cauda - avisou o homem das cobras. - Já te avisei.

- Vou usá‑la ao pescoço - disse a João e começou a puxar o longo corpo da cobra até a ter em volta do pescoço como um lenço. A Zé assistia àquilo com uma admiração contrariada. A Ana afastou‑se o mais possível da João. Os rapazes olhavam espantados com um novo respeito pela rapariguinha nómada.

Alguém começou a tocar uma doce melodia numa guitarra. Era Skippy, a mulher do Bufflo. Murmurava uma cançoneta triste que tinha uma parte coral alegre, a que os artistas de circo se juntaram. Agora praticamente todo o acampamento estava ali reunido.

Era excitante estarem ali sentados em volta da fogueira, a ouvir o gemer da guitarra e o som da clara voz baixa da Skippy, ela sentada junto da fogueira, e à distância de um braço de uma cobra que também parecia estar a apreciar a melodia. Ela oscilava ao ritmo do coro e, de repente, deslizou pelo corpo da João e dirigiu‑se como que por magia para o seu dono, o homem das cobras.

- Ah, minha beleza - disse o homenzinho curioso deixando a cobra deslizar entre as suas mãos, com os anéis a vibrarem vigorosamente à medida que se deslocava. - Gostas de música, minha linda?

- Realmente, ele adora a cobra - murmurou a Ana à Zé. - Como é possível?

A mulher do Alfredo levantou‑se.

- É altura de irmos embora - disse ela à assistência. - O Alfredo precisa de jantar. não é, meu pirata grande?

O Alfredo concordou. Poisou novamente o cadeirão de ferro em cima da fogueira e, passados poucos segundos, um aroma de tal forma magnífico emanou dele que os miúdos se apressaram a cheirar, ansiosos.

- Onde está o Tim? - perguntou a Zé, de repente. não estava à vista.

- Ele fugiu com a cauda baixa quando viu a cobra - disse a João. - Eu vi‑o afastar‑se. Tim, anda cá! Está tudo bem! Tim, Tim!

- Eu chamo‑o, obrigada - disse a Zé. - É o meu cão. Tim!

O Tim apareceu, com a cauda ainda em baixo. A Zé fez‑lhe festas e a João também. Ele lambeu‑as. A Zé tentou afastá‑lo da João. não gostava que o Tim mostrasse afeição pela pequena cigana. mas ele fazia‑o sempre! Ele adorava‑a.

O jantar estava delicioso.

- Que está dentro da sua panela? - perguntou o David, aceitando uma segunda dose. - Nunca provei um guisado tão bom na minha vida.

- Galinha, pato, carne de vaca, coelho, lebre, ouriço cacheiro, cebola, nabos. - começou a mulher do Alfredo. - Pus tudo aquilo que me veio à mão. Vai cozinhando e eu vou mexendo. Uns dias leva perdiz, outros dias leva faisão.

- Tem tento na língua, mulher - rugiu o Alfredo, que sabia muito bem que os proprietários das redondezas podiam fazer perguntas quanto a algumas coisas que estavam naquele guisado.

- Estás a mandar‑me calar? - gritou a mulher do Alfredo, zangada e brandindo uma colher. - Mau, mau.

- Uauf! - fez o Tim ao levar com algumas gotas deliciosas do cozinhado no nariz, e lambendo‑as em seguida. - Uauf! - Levantou‑se e foi em direcção à colher, ansiando por mais.

- Oh, tia Anita, dá uma colher de guisado ao Tim - pediu a João e, para grande alegria do Tim, recebeu um prato cheio só para ele. Ele mal podia acreditar!

- Muito obrigado por um jantar tão agradável - disse o Júlio, percebendo que chegara o momento de partir. Levantou‑se e os outros seguiram‑lhe o exemplo.

- E obrigada por ter comido fogo para nós, Alfredo - disse a Zé. - O espectáculo não parece ter‑lhe tirado o apetite!

- Ora - disse o Alfredo, como se tal coisa nunca lhe tivesse ocorrido. - João. se quiseres ficar connosco esta noite, serás bem‑vinda.

- Só preciso de uma manta velha, tia Anita - disse a João. - Vou dormir debaixo da roulote da Zé.

- Podes dormir no chão lá dentro, se quiseres - disse a Zé. Mas a João abanou a cabeça.

- não. Já estou farta de dormir dentro de casa. Quero dormir ao relento. Debaixo da roulote será bom. Os nómadas costumam dormir assim quando o tempo está bom.

Voltaram para as roulotes atravessando a encosta escura. Viam‑se as estrelas, mas a Lua ainda não estava visível.

- Foi uma noite muito interessante - disse o David. - Eu gostei. Gostei dos teus tios, João.

A João ficou encantada. Gostava sempre de ouvir elogios do David. Foi para debaixo da roulote das raparigas e enrolou‑se numa manta. A sua mãe adoptiva com quem vivera durante alguns meses ensinara‑a a lavar os dentes e a lavar e pentear o cabelo. mas tudo isso era esquecido agora que ela voltava à vida de nómada.

- Dentro de poucos dias estará a miúda malcriada, suja e desgrenhada que conhecemos quando a vimos pela primeira vez - disse a Zé, penteando o seu cabelo muito bem. - Estou contente por ficarmos, não estás também, Ana? Os artistas de circo estão agora muito simpáticos connosco.

- Graças à João - disse a Ana. A Zé nada disse. não gostava da ideia de ficar a dever favores à João. Acabou os preparativos para se ir deitar e foi para o beliche.

- Quem me dera ter visto aquela cara à janela. - disse ela. - Pergunto‑me quem seria. e por que razão estaria ali, a olhar para o exterior.

- Acho que não me apetece falar de caras à janela agora - disse a Ana, enfiando‑se no beliche. - Vamos mudar de assunto. - Apagou a lanterna e aninhou‑se. Conversaram durante alguns minutos, e foi então que a Zé ouviu um som vindo do exterior da roulote. Que seria aquilo? O Tim levantou a cabeça e soltou um pequeno uivo.

A Zé olhou para a janela à sua frente. Uma estrela solitária brilhava através da vidraça. e depois algo apareceu à frente da estrela, escondeu a estrela e foi de encontro ao vidro da janela. O Tim rosnou novamente, mas não muito alto. Seria algo que ele conhecia?

A Ana acendeu a lanterna e viu imediatamente o que era. Deu uma risadinha e depois chamou a Ana.

- Ana! Ana! Depressa, está uma cara à janela. Ana, acorda!

- não estou a dormir - disse a voz da Ana, e sentou‑se, assustada. - Que cara? Onde? não estás a pregar‑me uma partida, pois não?

- não. está ali, olha! - disse a Zé, e apontou a lanterna para a janela. Uma cara longa, grande e escura olhava para o interior e a Ana soltou um guincho. Depois uma gargalhada.

- Sua malvada, Zé. é apenas o cavalo do Alfredo. Oh, pregaste‑me um susto. Tenho vontade de te arrancar do beliche e de te atirar ao chão. Vai‑te embora, ó cavalo bisbilhoteiro. xô, vai‑te embora!

 

                   Ruma ao castelo

Na manhã seguinte, ao pequeno‑almoço, os jovens conversaram novamente sobre a cara que tinham visto na janela do castelo. Eles tinham apontado os binóculos por diversas vezes para a janela, mas nada havia para ver.

- Vamos ao castelo assim que abrir - disse o David. – Mas lembrem‑se, nada de falar de caras à janela, ouviste, João? Tu é que não consegues ficar calada às vezes.

A João disparou.

- Que mentira! Eu sei guardar um segredo!

- Está bem, comedora de fogo - disse o David numa careta. Olhou para o relógio. - Ainda é muito cedo para irmos.

- Eu vou ajudar o senhor Slither com as cobras - disse a João. - Alguém quer vir? - não me importo de ir ver, mas não me agrada a forma como andam em cima das pessoas - disse o David.

Dirigiram‑se todos para a roulote do homem das cobras excepto a Ana, que disse que preferia arrumar a loiça do pequeno‑almoço.

O homem das cobras tinha cobras fora da caixa.

- Está a dar‑lhes lustro - disse a Zé, sentando‑se ao pé dele. - Vejam como ele põe os corpos delas a brilhar.

- Vá, João. Limpa a Beauty por mim - disse o senhor Slither. - O produto está naquele frasco além. Ela está outra vez com aquelas incómodas traças por baixo das escamas. Limpa‑a com o produto para a livrar das pestes.

A João parecia saber o que fazer. Agarrou um pano, embebeu a ponta no líquido amarelo do frasco e começou a aplicá‑lo suavemente numa das cobras, deixando a loção infiltrar‑se nas escamas.

A Zé, para não ficar ultrapassada, ofereceu‑se para ajudar a polir a outra cobra.

- então agarra nela - disse o senhor Slither, e estendeu a cobra à Zé. Depois levantou‑se e foi para a roulote dele. A Zé não estava exactamente à espera disso. A cobra ficou junto aos joelhos dela e depois começou a enrolar‑se à volta do corpo.

- não deixes que ela te enrole com a cauda - avisou a João.

Depressa os rapazes se cansaram de ver a João e a Zé a competirem uma com a outra por causa das cobras e foram até junto do Bufflo, que ensaiava o lançamento de laço. Traçava círculo atrás de círculo, fazendo lindos desenhos no ar com a corda. Sorriu para os rapazes.

- Querem experimentar? - perguntou ele. Mas nenhum deles conseguia fazer o que quer que fosse com a corda.

- Queremos vê‑lo a arrancar qualquer coisa com o chicote - disse o David. - Acho que o faz muito bem.

- Que querem ver‑me apanhar? - perguntou o Bufflo, agarrando o seu chicote fantástico. - As folhas mais altas daquele arbusto?

- Sim - disse o David. O Bufflo fitou‑as, fez girar o chicote uma ou duas vezes, levantou‑o e fê‑lo estalar.

Como por magia, as folhas de cima desapareceram do arbusto. Os rapazes assistiam, espantados.

- Agora aquele malmequer acolá - disse o Júlio, apontando.

Craque! O malmequer desapareceu.

- É fácil - disse o Bufflo. - Vejam, segurem num lápis ou em qualquer coisa, um de vocês. Eu tirá‑lo‑ei sem vos tocar nos dedos.

O Júlio hesitou. Mas o David meteu a mão ao bolso e tirou um lápis vermelho. Estendeu a mão, com o lápis entre o indicador e o polegar. O Bufflo olhou para ele com os olhos semicerrados como a medir a distância. Ergueu o chicote.

Craque! A ponta do chicote enrolou‑se em torno do lápis e arrancou‑o da mão do David. Voou pelo ar, e o Bufflo alcançou com a mão e apanhou‑o!

- Muito bem! - exclamou o David, cheio de admiração. - Isso leva muito tempo a aprender?

- Uns vinte anos, mais ou menos - respondeu o Bufflo. - Mas a pessoa tem de começar de muito jovem. com, digamos, três anos. Foi o meu pai que me ensinou. e se eu não aprendia depressa, ele arrancava‑me a pele das orelhas com a ponta do chicote!

Os rapazes fitaram as grandes orelhas do Bufflo. Realmente pareciam um pouco ásperas nas pontas!

- Também sei atirar facas. - disse o Bufflo, orgulhoso da admiração dos rapazes. - Encosto a Skippy a um painel de madeira e atiro‑lhe facas em volta. de forma que quando no fim ela se afasta do painel, a silhueta dela está toda delineada com facas. Querem ver?

- Bem, não, agora, não - disse o Júlio olhando para o relógio. - Vamos ao castelo. Já o foi visitar, Bufflo?

- não. Quem é que vai andar a perder tempo num castelo em ruínas? - disse o Bufflo, zombeteiro. - Eu, não.

Foi para a sua roulote, fazendo laços com a corda pelo caminho com tanta desenvoltura que o David não pôde deixar de sentir alguma inveja. Que pena ele não ter aprendido a fazer aquelas coisas quando era mais pequeno. Agora receava nunca mais poder vir a ser realmente bom naquilo. Era demasiado velho!

- Zé! João! É altura de irmos - chamou o Júlio. - Pousem essas cobras e venham daí. Ana! Estás pronta?

O senhor Slither foi recolher as suas cobras. Elas escorregaram sobre seu corpo, delicadas, e ele passou‑lhes a mão sobre o corpo macio e brilhante.

- Tenho de lavar as mãos antes de ir - disse a Zé. - Cheiram a cobra. Vens, João?

A João não via realmente necessidade de lavar as mãos, mas foi com a Zé ao ribeiro e lavaram as mãos. A Zé secou as mãos num lanço muito sujo e a João fez o mesmo na ponta da saia, muito mais suja. Olhou com inveja os jeans da Zé. Que pena ter de usar saias!

Não fecharam as roulotes à chave. O Júlio tinha agora a certeza que os artistas de circo estavam de boa fé para com eles e não lhes roubariam nada ou permitiriam que outros o fizessem. Todos desceram a encosta, com o Tim alegremente aos saltos, com a impressão que os ia levar a passear.

Escalaram a cancela, subiram um pouco da estrada e chegaram ao portão de madeira que se abria para a íngreme passagem até ao castelo. Agora que estavam tão perto, quase parecia que ia cair sobre eles!

Subiram o caminho e chegaram à pequena torre na qual estava a porta que dava para a entrada do castelo. então, viram uma velha com o ar de bruxa. Se ela tivesse olhos verdes, a Ana tê‑la‑ia tido na conta de uma descendente de bruxa! Mas ela tinha os olhos pretos como contas de um rosário. Era desdentada e, por isso, tornava‑se difícil perceber o que dizia.

- Cinco, por favor - disse o Júlio, estendendo‑lhe o dinheiro.

- não podem entrar com o cão - disse a velha, resmungando de tal forma que não conseguiram perceber nada. Apontou para o cão e repetiu a mesma coisa, sempre a abanar a cabeça.

- Oh. não podemos mesmo entrar com o cão? - perguntou a Zé. - Ele não faz mal nenhum.

A velha apontou um letreiro:

 

         O É PERMITIDA A ENTRADA A CÂES

 

- Está bem. Vamos deixá‑lo cá fora, então - disse a Zé, zangada. - Que regra tão parva! Tim, fica aqui. não nos demoramos.

O Tim desceu a cauda. Ele não aprovava aquilo. Mas sabia que não podia entrar em certos sítios, como igrejas, e julgava que aquilo devia ser uma igreja enorme. o tipo de sítio onde a Zé desaparecia tantas vezes ao domingo. Deitou‑se a um canto ensolarado.

Os cinco entraram pela cancela giratória. Abriram a porta e entraram no pátio do castelo. A porta fechou‑se atrás deles.

- Esperem. devíamos ter um guia - disse o Júlio. - Quero saber algo sobre aquela torre.

Voltou para trás e comprou um guia. Os jovens consultaram‑no durante alguns momentos. Contava a história daquele lugar antigo. uma história de guerra e paz, lutas e tréguas, brigas familiares, casamentos e todo tipo de coisas de que a história é feita.

- Seria uma história excelente se fosse escrita como deve de ser - disse o Júlio. - Vejam. o mapa. Aqui são as masmorras.

- «Não estão abertas ao público» - citou o David, desapontado. - Que pena.

- Outrora foi um castelo muito forte e poderoso - disse o Júlio olhando para o mapa. - Esta muralha existe desde o início. e o próprio castelo foi construído no meio de um grande terreiro que o rodeia. Diz aqui que as muralhas do castelo têm dois metros e meio de espessura. Dois metros e meio de espessura. não admira que se tenha conservado na sua quase totalidade.

Olharam para as ruínas silenciosas, com profunda admiração. O castelo erguia‑se, com algumas zonas em ruínas e todas as portas deformadas.

- Existiam quatro torres, é claro - disse o Júlio, ainda de nariz colado ao guia. - Diz aqui que três delas estão praticamente em ruínas. mas que a quarta está em boas condições, embora a escada de pedra que conduz ao topo tenha caído.

- então, pronto. não poderias ter visto uma cara naquela janela - disse a Zé, olhando para a quarta torre. - Se a escada ruiu, ninguém consegue subir.

- Hum. Vamos ver até que ponto ruiu - disse o Júlio. - Pode ser perigoso para o público e talvez encontremos um aviso a dizer‑nos para não entrar. mas é provável que se possa subir em alguns pontos.

- Se assim for, subimos? - perguntou a João, com os olhos a brilhar de entusiasmo. - Que faremos se encontrarmos a cara?

- Vamos esperar até a encontrarmos primeiro - disse o Júlio. Fechou o livro e meteu‑o ao bolço. - Bem, parece que somos os únicos aqui. Vamos continuar. Vamos dar a volta ao pátio.

Deambularam pelo terreiro que rodeava o castelo. Estava cheio com as grandes pedras brancas que tinham caído das paredes do próprio castelo. De um dos lados, ruíra uma parede, e os jovens podiam ver o interior do castelo, escuro e ameaçador.

Deram a volta à volta do castelo novamente.

- Vamos entrar pela porta principal. se é que se pode chamar porta àquela grande arcada de pedra - disse o Júlio. - não conseguem imaginar cavaleiros a cavalgarem por este terreiro, impacientes por partir para torneios, com os cascos dos cavalos sempre a bater no chão?

- Sim! - disse o David. - Eu imagino muito bem.

Foram até à entrada em arco e vaguearam de sala em sala de chão e paredes de pedra, e com pequenas janelas em fresta que lhes davam pouca luz.

- não usavam vidros naquele tempo - disse o David. - Aposto que ficavam contentes pelo facto da abertura das janelas ser tão pequena nos dias mais frios e ventosos. Brrrrrr! Isto deve ter sido um sítio terrivelmente frio para se viver.

- O chão costumava ser coberto com capachos, e havia tapeçarias nas paredes - disse a Ana lembrando‑se de uma lição de história. - Júlio. vamos procurar agora a tal escada para aquela torre. Vamos lá! Estou ansiosa por descobrir se há de facto uma cara naquela torre!

 

                   O castelo Faynights

Xaque‑xaque‑xaque! Xaque‑xaque‑xaque! Os corvos circundavam o velho castelo, chamando‑se uns aos outros nas suas vozes alegres e amigáveis. Os cinco jovens olharam para cima e ficaram a observá‑los.

- Pode ver‑se o cinzento na parte de trás dos pescoços - disse o David. - Pergunto‑me há quantos anos viveram os corvos à volta deste castelo.

- Suponho que os paus que estão neste pátio devem ter sido deixados cair por eles - disse o Júlio. - Eles fazem os seus ninhos a partir de pauzinhos. devem deixar cair mais do que aquilo que usam! Vejam só aquela pilha!

- Grande desperdício da parte deles! - disse o David. - Quem me dera que os deixassem cair junto às nossas roulotes para me pouparem o trabalho de arranjar lenha todos os dias para a fogueira!

Estavam de pé junto ao grande arco que dava entrada para o castelo. A Ana estava impaciente.

- Vamos ver as torres agora - disse ela.

Foram até à torre mais próxima, mas era quase impossível perceber que aquilo fora uma torre. Era somente uma grande pilha de pedras caídas umas sobre as outras.

Foram até à única torre em bom estado. Contavam encontrar alguns vestígios de uma escada de pedra, mas para grande desapontamento deles, nem conseguiam olhar para o interior da torre! Uma das paredes interiores ruíra e a parede estava empilhada, completamente bloqueada. não havia sinais de escada. Ou tinham caído ou estava tapada pelas pedras da parede em ruínas.

O Júlio estava espantado. Parecia óbvio que ninguém conseguiria subir à torre a partir do interior. então, como seria possível ter visto uma cara na janela da torre? Começou a sentir‑se muito intrigado. Seria uma cara verdadeira? Se não, o que seria?

- Isto é estranho - disse o David, pensando o mesmo que o Júlio, e apontando para as pedras empilhadas no chão junto à torre. - Parece completamente impossível alguém subir até ao cimo da torre. Bem, então e quanto àquela cara?

- Vamos perguntar à velha se há alguma forma de subir até à torre - disse o Júlio. - Ela deve saber.

Por isso, deixaram o castelo, atravessaram o pátio, de volta à pequena torre na parede externa que guardava a grande entrada. A velha estava sentada junto à cancela, a coser.

- Por favor, pode dizer‑nos se existe alguma maneira de ir até àquela torre? - perguntou o Júlio.

A velha respondeu algo, mas era difícil compreender o que dizia. Contudo, dado que abanou a cabeça vigorosamente, parecia evidente que não havia forma de chegar até à torre. Que estranho!

- Há um mapa melhor do que este? - perguntou o Júlio, mostrando o seu guia. - Um mapa das catacumbas, por exemplo. e um mapa das torres tal como eram antes de se terem transformado em ruínas?

A velha disse algo que se assemelhou a «Sociedade de Preservação de qualquer coisa».

- Como? - perguntou o Júlio, pacientemente.

A mulher com ar de bruxa estava obviamente cansada de tantas perguntas. Abriu um grande livro onde estava registada a quantidade de pessoas e entradas, e consultou‑o. Apontou para um nome.

- «Sociedade de Preservação de Monumentos Antigos» - leu o Júlio. - Ah, veio cá alguém de lá recentemente? Eles saberão mais do que aqui vem escrito no guia?

- Sim - disse a velha. - Vieram dois homens. Passaram todo o dia aqui na passada quinta feira. Perguntem à Sociedade o que querem saber. a mim, não. Eu só recebo o dinheiro.

De repente, parecia muito inteligível. Depois, retomou os seus arrumos, e ninguém conseguiu compreender uma única palavra.

- Seja como for, ela já nos disse o que queríamos saber - disse o Júlio. - Vamos telefonar à tal Sociedade e perguntar‑lhes se nos podem fornecer mais dados sobre o castelo. É possível que existam passagens secretas e coisas que não aparecem descritas neste guia.

- Que fixe! - disse a Zé, entusiasmada. - Sugiro que vamos àquela torre e olhemos por fora. Talvez a possamos escalar a partir daí.

Foram lá ver. mas não era escalável. Embora as pedras em que estivessem construídas fossem suficientemente irregulares para formarem apoios para as mãos e para os pés seria demasiado perigoso para uma pessoa tentar subir. mesmo para a ágil João. Fosse como fosse, não era possível dizer quais das pedras estavam soltas e a desfazer‑se até o trepador se ter firmado. e depois cairia por ali abaixo.

Mesmo assim, a João estava disposta a tentar.

- Talvez eu consiga - disse ela, tirando um dos sapatos.

- Calça o sapato - disse o David imediatamente. - não vais tentar habilidades nenhumas. Nem sequer a hera para te agarrares.

A João voltou a calçar o sapato, amuada, parecendo‑se surpreendentemente com a Zé ao resmungar. E foi então que, para grande surpresa de todos, o Tim apareceu aos saltos.

- Tim! De donde saíste? - perguntou a Zé, surpreendida. - não há maneira de entrar excepto através da cancela, e a porta de trás está fechada. Fechámo‑la nós! Por onde entrámos?

- Uauf! - fez o Tim, tentando explicar. Correu para a torre, saltou sobre os blocos de pedra caídos e deteve‑se junto a um pequeno espaço entre três ou quatro pedras.

- Uauf! - fez ele de novo e tocando com a pata numa das pedras.

- Ele veio por ali - disse a Zé e empurrou uma grande pedra, sem a conseguir mover nem um milímetro. - não sei como é que o Tim se conseguiu espremer para passar por aquela fenda. não parece suficientemente grande para um coelho passar. Certamente nenhum de nós consegue entrar!

- O que me confunde - disse o Júlio - é como o Tim entrou do exterior. Deixámo‑lo mesmo fora do castelo. por isso deve ter dado a volta pela muralha exterior e encontrado uma pequena abertura. Deve ter passado por aí.

- Sim, foi isso - disse o David. - Sabemos que as pedras têm dois metros e meio de espessura, e por isso ele deve ter encontrado um sítio onde um espaço se tenha partido na base e ter forçado a entrada. Mas. haverá uma abertura com dois metros e meio de espessura?

Aquilo era realmente confuso. Todos olharam para o Tim e ele abanou a cauda, cheio de expectativas. Depois ladrou alto e deu alguns saltos como se quisesse brincar.

A porta do pátio abriu‑se de repente e a velha apareceu.

- Como é que esse cão apareceu aqui? - perguntou ela. - Ele tem de se ir embora, já!

- não sabemos como entrou - disse o David. - Há um buraco na parede de fora?

- não - respondeu a velha. - Nem um. Devem ter deixado o cão entrar quando eu não estava a olhar. Ele tem de sair. E vocês também. Já cá estão há muito tempo.

- É melhor irmos - disse o Júlio. - Já vimos o que havia para ver. tudo o que nos é permitido ver. Estou certo de que existe uma forma de subir até àquela torre embora a escada esteja em ruínas. Vou telefonar para a Sociedade de Preservação de Monumentos Antigos e pedir que me ponham em contacto com os fulanos que examinaram o castelo a semana passada. Devem ser especialistas.

- Sim. Eles devem ter um mapa completo - disse o David. - Passagens secretas, catacumbas, salas escondidas e tudo. se é que existem!

Levaram o Tim pela coleira e saíram pela cancela rotativa,

clique‑clique‑clique.

- Apetece‑me ir comer uns doughnuts à leitaria - disse a Zé. - E beber limonada. Alguém quer vir?

Todos quiseram, incluindo o Tim, que ladrou imediatamente.

- O Tim fica doido por aqueles doughnuts - disse a Zé. - Devora‑os!

- Que grande desperdício - disse a Ana. - Comeu quatro da ultima vez. mais de que qualquer um de nós.

Desceram até à aldeia.

- vão andando e pedindo o que quiserem - disse o Júlio - e eu procurarei a tal Sociedade. Deve ter um escritório algures.

Foi até aos correios para telefonar e os outros dirigiram‑se à leitaria. A lojista gordinha recebeu‑os com grande regozijo. Tinha‑os na conta dos melhores clientes, e, de facto, eram.

Iam no segundo doughnut quando o Júlio chegou.

- Novidades? - perguntou o David.

- Sim - disse o Júlio. - Mas são novidades estranhas. Descobri a morada da Sociedade. têm um escritório a cerca de oitenta quilómetros daqui. que lida com monumentos antigos num raio de centenas de quilómetros. Perguntei se tinham um folheto recente sobre o castelo.

Parou para agarrar num doughnut e deu‑lhe uma dentada. Os outros esperaram pacientemente enquanto ele mastigava.

- Disseram que não tinham. A última vez que visitaram o Castelo Faynights foi há dois anos.

- Mas e então aqueles dois homens da Sociedade que lá foram na semana passada? - perguntou a Zé.

- Pois. foi o que eu disse - respondeu o Júlio, dando outra dentada. - E isso é que foi estranho. disseram‑me que não sabiam do que eu estava a falar e que ninguém da Sociedade lá tinha ido, acabando por perguntar quem era eu afinal.

- Humm! - fez o David, raciocinando rapidamente. - então. aqueles homens estavam a examinar e a explorar o castelo por sua conta!

- Também acho - disse o Júlio. - E não posso deixar de pensar na cara à janela e que aqueles dois homens não tinham nada a ver com uma entidade oficial. apenas apresentaram isso como um pretexto para entrar no castelo e descobrirão o tipo de esconderijo que ele proporcionava.

Os outros fitaram‑no, começando a sentir um entusiasmo já conhecido crescer dentro deles. Aquilo que a Zé chamava uma «sensação de aventura».

- então havia mesmo uma cara verdadeira naquela janela da torre e existe uma forma de lá chegar - disse a Ana.

- Exacto - disse o Júlio. - Sei que parece muito rebuscado, mas acho que há hipótese dos dois cientistas terem lá ido. não sei se leram o jornal, mas um deles, o Jeffrey Pottersham, escreveu um livro sobre ruínas famosas. Ele sabe tudo sobre o castelo de Faynights, porque é muito conhecido. Se eles quiserem esconder‑se num sítio qualquer até que as coisas se acalmassem e fugir depois para o estrangeiro.

- Eles podiam esconder‑se na torre e depois sair silenciosamente do castelo uma noite, ir até ao mar e alugar um barco de pesca! - gritou o David, tirando as palavras da boca do Júlio. - Estariam no outro lado do Canal da Mancha num ápice.

- Sim, foi o que pensei também - disse o Júlio. - Acho que vou telefonar ao tio Alberto e contar‑lhe tudo isto. Vou descrever‑lhe a cara o melhor que puder. Pressinto que o assunto é demasiado importante para ser tratado só por nós. Aqueles homens podem estar a guardar segredos extremamente importantes.

- É mais uma aventura! - disse a João, numa expressão séria mas com os olhos a brilhar. - Oh. ainda bem que estou convosco!

 

                   Um dia interessante

Todos começaram a sentir‑se entusiasmadíssimos.

- Acho que vou apanhar a camioneta até a aldeia seguinte - disse o Júlio. - É demasiado fácil escutar o que se diz nesta cabina. Prefiro ir a uma outra cabina da rua, em que ninguém ouça o que estou a dizer.

- Está bem. Vai - disse o David. - Vamos fazer umas compras e voltar para as caravanas. Pergunto‑me o que irá dizer o tio Alberto.

O Júlio foi para a paragem das camionetas. Os outros entraram nas poucas lojas da aldeia e fizeram as suas compras. Tomate, alface, mostarda e agriões, pãezinhos, bolos de frutos, latas de frutos e muitas garrafas de leite.

Encontraram alguns artistas de circo na rua e todos foram muito simpáticos. A mulher do senhor Alfredo trazia um cesto enorme, quase tão grande como ela. Ela sorriu e chamou‑os.

- Vêem? Tenho de andar a fazer as compras sozinha! Aquele homem é demasiado preguiçoso para mim. E não tem miolos. Digo‑lhe para levar carne e ele leva peixe, digo‑lhe para ele levar couves e ele leva alfaces. não tem miolos!

Os miúdos riram‑se. Era estranho imaginar o grande e poderoso Alfredo, um engolidor de fogo a valer, a receber ordens e reprimendas de uma mulher minúscula.

- É uma mudança radical vê‑los tão simpáticos - disse a Zé, satisfeita. - Que fiquem assim durante muito tempo. Lá está o homem das cobras, o senhor Slither. mas não trás as cobras.

- Teria a aldeia toda por sua conta, se as tivesse trazido! - disse a Ana. - Que comprará ele para alimentar as cobras?

- são alimentadas apenas de quinze em quinze dias - disse a João. - Elas engolem.

- não, não contes - disse a Ana, apressadamente. - não quero saber. Olhem, lá está a Skippy.

A Skippy acenou alegremente. Levava sacos cheios até cima. Sem dúvida que os artistas de circo se tratavam bem.

- Devem ter imenso dinheiro - disse a Ana.

- Bem, vão gastando enquanto o têm - disse a João. - Nunca poupam. Atravessam fases boas e outras muito más. Devem ter tido imenso sucesso no último espectáculo. parecem todos muito ricos.

Voltaram para o acampamento e passaram um dia muito interessante, porque os artistas de circo pareciam ansiosos para se redimirem do seu comportamento antipático e fizeram‑nos sentir muito bem‑vindos. O Alfredo forneceu mais alguns dados sobre o seu número de engolir fogo e mostrou‑lhes como punha as almofadas de algodão em rama na ponta das tochas e depois as molhava em petróleo para arderem com facilidade.

O homem de borracha esgueirou‑se várias vezes pelo espaço entre os raios das rodas da sua caravana, uma proeza notável. Dobrou‑se para trás e torceu os braços e as pernas de tal forma que ficou a parecer‑se mais com um polvo de quatro tentáculos do que com um ser humano.

Ofereceu‑se para ensinar o David a fazê‑lo, mas o David nem sequer conseguia dobrar‑se para trás. Ficou desapontado porque não deixou de pensar como seria fantástico fazer aquele truque no pátio da escola.

O senhor Slither contou‑lhes coisas muito interessantes sobre cobras e concluiu com informações sobre cobras venenosas.

- Vejamos o caso das cascavéis - disse ele - ou das mambas, ou de qualquer cobra venenosa. Se quiserem apanhar uma para a domesticar, não vão atrás dela com um pau, nem a apertem com o pau contra o chão. Isso assusta‑a e depois não se consegue fazer nada dela.

- então, que se faz? - perguntou a Zé.

- Bom, há que observar a língua bifurcada - disse o senhor Slither, com seriedade. - Sabem que elas deitam a língua de fora fazendo‑a tremer e abanar?

- Sim - disseram todos.

- Bem, tenham muito cuidado se uma cobra venenosa imobilizar a língua - disse o senhor Slither, em tom solene. - não lhe toquem. Mas se a língua estiver a tremer, façam deslizar os braços pelo corpo da cobra e ele deixar‑se‑á agarrar.

Ele começou a fazer os movimentos que descrevia, agarrando uma cobra imaginária e deixando o corpo dela deslizar pelos seus braços. Embora muito estranha, era uma cena fascinante.

- Muito obrigado - disse o David. - Sempre que agarrar uma cobra venenosa vou fazer exactamente assim.

Os outros riram‑se. O David falava como se agarrasse em cobras todos os dias! O senhor Slither estava encantado com aquela assistência tão atenta. Contudo, tanto a Ana como a Zé estavam firmemente decididas a nem sequer olharem para a língua de uma cobra se ela se pusesse de fora. sairiam disparadas a correr!

Estavam ali alguns artistas de circo de que os jovens pouco sabiam. Daca, a dançarina de sapateado, que calçou as suas botas altas e faz sapateado no degrau de cima da sua roulote. Pearl, que era acrobata e conseguia andar numa corda, aterrando sempre em segurança. e outros que faziam parte do espectáculo apenas como ajudantes.

A João não conhecia todos, mas integrara‑se tão bem que os jovens começaram a perguntar‑se se alguma vez ela voltaria para a sua mãe adoptiva.

- Ela é exactamente como eles agora - disse a Zé. - Alegre e suja, descuidada e generosa, perigosa mas trabalhadora! O Bufflo pratica com o laço durante horas mas também está sem fazer nada durante horas. são pessoas estranhas mas gosto muito delas.

Os outros concordaram com ela. Almoçaram sem o Júlio pois ele ainda não regressara. Por que estaria a demorar‑se tanto? Tinha apenas de telefonar ao tio, mais nada.

Por fim, o Júlio regressou.

- Desculpem‑me o atraso - disse ele ‑, mas primeiro não me atenderam, por isso tive de esperar para o caso da tia Clara e o tio Alberto terem saído e fui almoçar enquanto esperava. Depois voltei a telefonar e a tia Clara atendeu‑me, mas o tio Alberto tinha ido a Londres e só volta à noite.

- A Londres! - exclamou a Zé, espantada. - Ele raramente vai a Londres.

- Aparentemente foi à procura dos dois cientistas desaparecidos - disse o Júlio. - Ele tem tanta certeza de que o seu amigo Terry‑Kane não é um traidor que foi dizer isso mesmo à Polícia. Bom, é claro que não pude esperar até à noite.

- então não lhe contaste as novidades? - perguntou o David desapontado.

- Sim, tive tempo de contar à tia Clara - disse o Júlio. - Ela disse‑me que repetiria tudo ao tio Alberto quando ele chegasse. É uma pena não ter podido falar com ele para ficar a saber o que pensa sobre o assunto. Pedi à tia Clara para ele me escrever o mais depressa possível.

Depois do lanche, sentaram‑se na encosta, a apanhar sol. Estava um tempo maravilhoso. O Júlio olhou para o castelo em ruínas, na encosta oposta. Ficou a olhar a torre onde tinham visto a cara. Estava tão distante que ele só conseguia distinguir a fresta da janela.

- Vai buscar os binóculos, Zé - disse ele. - Podemos dar uma espreitadela à janela. Foi por esta altura que vimos a cara da outra vez.

A Zé foi buscá‑los. Mas não os passou logo ao Júlio. olhou por eles e observou a janela. A princípio, não viu nada. e foi então que, de repente, apareceu uma cara à janela. A Zé ficou tão espantada que soltou um grito.

O Júlio tirou‑lhe os binóculos. Focou‑os na janela e viu imediatamente a cara. Tanto quanto podiam ver, a cara não se mexia, olhava apenas. Depois, quando a Ana estava a olhar para ela, desapareceu de repente e não voltou.

- Bom, então ontem não foi imaginação nossa - disse o Júlio. - Existe, de facto. E onde há uma cara, há geralmente um corpo. Hum. algum de vocês reparou que a cara tinha uma expressão. hum. desesperada?

- Sim - respondeu o David, e os outros concordaram.

- Também pensei o mesmo ontem - disse o David. - Acham que o fulano, seja lá quem for, está prisioneiro?

- Assim parece - disse o Júlio. - Mas como é que ele foi ali parar? não há dúvida de que é um lugar excelente para o esconder. Ninguém se lembraria de um esconderijo daqueles. e não fosse o facto de nos termos posto a observar os corvos por uns óptimos binóculos, nunca o teríamos descoberto. Era uma possibilidade em mil de o vermos.

- Num milhão - disse o David. - Olha, Júlio. acho que devemos ir até ao castelo e gritar ao sujeito. pode ser que ele possa gritar ou atirar‑nos uma mensagem.

- Ele já o teria feito se pudesse - disse o Júlio. - Quanto a gritar, ele teria de se debruçar daquela janela de paredes grossas para se fazer ouvir. Lembrem‑se de que ele está mesmo na parte de trás, e a fresta é muito profunda.

- não podemos ir tentar descobrir alguma coisa? - perguntou a Zé, que estava ansiosa por acção. - Afinal de contas, o Tim entrou por um lado, e é possível que consigamos entrar também.

- É uma boa ideia - disse o Júlio. - O Tim de facto encontrou forma de entrar e esse pode ser o caminho que leva ao topo da torre.

- então, vamos - disse imediatamente a Zé.

- Agora, não - disse o Júlio. - Podíamos ser vistos se andássemos de um lado para o outro junto das muralhas do castelo. Temos de ir à noite. Podemos ir quando a Lua aparecer.

Um arrepio de excitação percorreu os cinco jovens. O Tim bateu com a cauda no chão. Ele tinha estado a ouvir, como se percebesse tudo.

- Também te levamos, Tim - disse a Zé ‑, para o caso de virmos a ter problemas.

- não iremos ter problemas - disse o Júlio. - Só vamos explorar. e não acho nem por um minuto que iremos encontrar muito porque tenho a certeza de que não iremos conseguir subir até à torre. Mas espero que todos se sintam como eu. não podemos deixar o mistério da cara por resolver, temos de fazer algo quanto a isso, nem que seja só andar à volta das velhas muralhas à noite.

- Sim, é exactamente o que eu acho - disse a Zé. - Nem conseguiria dormir esta noite, aposto. Júlio, isto não é excitante?

- Muito - respondeu o Júlio. - Ainda bem que afinal não nos fomos embora hoje! Teríamos ido se não tivéssemos visto aquela cara à janela.

O Sol pôs‑se e o ar arrefeceu bastante. Foram até à caravana dos rapazes e jogaram às cartas. A João jogava muito mal e depressa se fartaram de jogar. Ela ficou a assistir, com o braço em volta do pescoço do Tim.

Fizeram o jantar de pãezinhos de salchicha e morangos de conserva.

- É uma pena ele não fazerem destas refeições na escola - disse o David. - não dá trabalho nenhum a fazer e é muito saboroso, Júlio. já está na hora de irmos?

- Sim - disse o Júlio. - Vistam umas camisolas quentes. e vamos! Rumo a uma noite de verdadeira aventura!

 

                   Caminhos secretos

Esperaram até a Lua se esconder por detrás de uma nuvem e depois, movendo‑se como sombras, desceram a encosta o mais depressa que puderam. Passaram por cima da cancela e percorreram a encosta até ao castelo, mas, quando chegaram à pequena torre onde estava a cancela giratória, viraram à direita e contornaram o sopé das grandes e espessas muralhas.

Era difícil andar ali, porque a inclinação da encosta era muito grande. O Tim foi com eles, excitado com aquele passeio inesperado.

- Agora, Tim, presta atenção. queremos que nos mostres como entraste - disse a Zé. - Estás a ouvir, Tim? Entra, Tim, entra por onde entraste esta manhã.

O Tim abanou a longa cauda, arfou e deixou a língua dependurada como sempre fazia quando queria mostrar que estava a ser o mais útil que podia. Correu à frente, a farejar.

Foi então que parou de repente e olhou para trás. Soltou um pequeno uivo. Os outros apressaram‑se a seguir no seu encalço.

Por azar, a Lua escondeu‑se por detrás de uma nuvem. O Júlio sacou de uma lanterna e acendeu‑a na direcção do Tim. O cão ficou ali, parecendo muito satisfeito.

- Bom, porque estás tão contente, Tim? - disse o Júlio confuso. - não há aqui buraco algum. não foi por aí que entraste certamente. Que estás a tentar mostrar‑nos?

O Tim soltou um pequeno latido. De repente, deu um salto de mais de um metro até às pedras desiguais da parede, e desapareceu!

- Eh! Para onde foi ele? - perguntou o Júlio, atónito. Levantou a luz da lanterna. - Olhem! Falta ali uma pedra, um grande bloco. e o Tim entrou por lá.

- Lá está o bloco. caído na encosta - disse o David, apontando para uma grande pedra branca, quase cúbica. - Mas como é que o Tim entrou, Júlio? Esta parede é imensamente grossa, e mesmo que uma das pedras tenha caído, deve haver muitas mais por detrás!

O Júlio subiu. Chegou a um espaço onde a pedra estivera e apontou para lá a lanterna.

- Bem. isto é interessante! - exclamou ele. - A parede aqui é oca. O Tim meteu‑se pelo espaço vazio!

De imediato, uma onda de excitação inundou todo o grupo.

- Podemos entrar e seguir o Tim? - perguntou a Zé. - Grita‑lhe, Júlio, e vê onde é que ele está.

O Júlio chamou pela passagem vazia.

- Tim! Tim, onde estás?

Um latido distante e muito abafado respondeu‑lhe e depois os olhos do Tim brilharam de repente lá em baixo. O cão estava em pé no espaço vazio por detrás da pedra caída.

- Está aqui - respondeu o Júlio. - Dá‑me ideia que, quando esta enorme muralha foi construída, deixaram um espaço cá dentro. ou para economizar pedras ou para fazer uma passagem secreta, não sei bem. E essa pedra que caiu deixou à mostra um espaço vazio. Vamos explorá‑lo?

- Oh, sim - foi a resposta imediata.

O Júlio meteu‑se pela abertura da parede. Apontou a lanterna em redor.

- Sim - disse ele ‑, é uma espécie de passagem. Mas é pequena. Vamos ter de nos dobrar para entrar. Ana, podes vir a seguir que eu ajudo‑te.

- não teremos falta de ar? - perguntou o David.

- Cheira um bocado a bafio - disse o Júlio. - Mas se for realmente uma passagem, deve haver aberturas algures para meter o ar fresco. Isso mesmo, Ana. segura‑te a mim. João, vem a seguir, depois a Zé, e depois o David.

Pouco depois estavam todos na curiosa passagem, que mergulhava no centro da muralha. Era realmente muito pequena. Sentiam‑se cansados por caminharem dobrados. Também estava escuro como breu e embora todos, excepto a João, tivessem lanternas, era difícil ver.

A Ana agarrou‑se fortemente ao blusão do Júlio. Ela não estava a gostar muito daquilo, mas não ficaria de fora, nem por nada.

O Júlio parou de repente e todos chocaram com o da frente.

- Que se passa? - perguntou o David.

- Aqui há degraus! - gritou o Júlio. - Há degraus muito, muito íngremes que vão a descer. quase como uma escada de mão de pedra. Tenham atenção, todos.

Os degraus eram de facto muito íngremes.

- É melhor descermos às arrecuas - decidiu o Júlio. - então podemos ter apoio para as mãos e para os pés. Ana, espera que eu desça para te ajudar.

Os degraus continuavam cerca de três metros. O Júlio desceu são e salvo e depois a Ana virou‑se de costas e começou a descer também, como se estivesse a descer um escadote em vez de uma escada. Era muito mais fácil daquela maneira.

No fim havia outra passagem, mais ampla e mais alta, pelo que todos ficaram profundamente agradecidos.

- Onde nos leva isto? - perguntou o Júlio, parando para pensar. - Esta passagem é perpendicular à muralha. já deixamos a muralha. estamos debaixo do caminho do pátio. Acho eu.

- Aposto que não estamos muito distantes daquela torre - disse o David. - Quero dizer, espero que isto conduza à torre.

Ninguém sabia dizer onde aquilo iria dar! Fosse como fosse, parecia ir a direito, e a cerca de vinte e cinco metros da entrada o Júlio voltou a parar.

- Degraus para cima, novamente! - disse ele. - tão íngremes como os outros. Acho que estamos a subir para o interior das muralhas do castelo. Talvez isto seja uma passagem secreta para uma das antigas salas do castelo.

Subiram cuidadosamente os degraus íngremes de pedra e viram‑se, não numa passagem, mas numa divisão muito pequena que parecia ser escavada na própria muralha do castelo. O Júlio deteve‑se, surpreendido, e todos se amontoaram na minúscula divisão. Na verdade, não era muito maior do que um grande armário. Havia um catre estreito de um dos lados, com umas prateleiras por cima. Havia um velho jarro na prateleira, com o bico partido, e sobre o banco estava uma pequena adaga, enferrujada e partida.

- Olhem! Olhem para isto! Isto é uma sala secreta. como costumava haver nos sítios antigos, para o caso de haver necessidade de alguém se esconder - explicou o Júlio. - Estamos dentro de uma das próprias paredes do castelo. talvez esta seja a parede de um antigo quarto!

- E cá está um jarro velho que tinha água dentro - disse a Zé. - E uma adaga. Quem se teria escondido aqui. e há quanto tempo?

O David apontou a lanterna para ver se descobria mais alguma coisa. Soltou uma exclamação repentina e manteve a lanterna apontada para um canto do quarto.

- O que é? - perguntou o Júlio.

- Papel. papel de prata azul e vermelho - disse o David. - Papel de embrulho de chocolate! Quantas vezes compramos este tipo de chocolate, embrulhado em papel prateado com riscas vermelhas e azuis!

Apanhou‑o e alisou‑o. Sim, lá estava a marca!

Todos estavam silenciosos. Aquilo só poderia significar uma coisa. Alguém estivera naquele quarto recentemente. alguém que comera chocolate. alguém que atirara para o chão o papel de chocolate sem contar que alguma vez fosse encontrado!

- Bem - começou o Júlio, rompendo o silêncio. - Isto é surpreendente. Alguém mais conhece este caminho. Onde nos levará ele? Aposto que até àquela torre.

- não seria melhor termos cuidado! - disse o David, baixando a voz. - Quero dizer, seja quem for que cá esteve pode muito bem andar por perto.

- Sim, talvez seja melhor voltarmos - disse o Júlio, pensando nas raparigas.

- não - disse a Zé, furiosa. - Vamos continuar. Com muito cuidado.

Saía um corredor do pequeno quarto. Manteve‑se nivelado durante uma curta distância e depois chegaram a uma escada de caracol que subia a pino, como um saca‑rolhas.

Quando chegaram ao cimo, depararam com uma porta pequena, muito estreita. Tinha uma grande argola de ferro antiga, que servia de puxador.

O Júlio ficou quieto, hesitante. Deveria abri‑la ou não? Ficou parado durante meio minuto, tentando decidir‑se.

- Cheguei a uma pequena porta. Abro‑a? - murmurou.

- Sim - disseram‑lhe num sussurro.

O Júlio agarrou cuidadosamente a argola de ferro. Rodou‑a e não fez qualquer ruído. Perguntou‑se se a porta não estaria fechada do outro lado. Mas não estava. Abriu‑se silenciosamente.

O Júlio olhou lá para dentro, esperando ver um quarto, mas, em vez de um quarto, deparou‑se com uma pequena galeria que parecia contornar o interior da torre. O luar entrava através da fresta que servia de janela e o Júlio só conseguiu perceber que devia estar a olhar do cimo de uma galeria para a escuridão de um salão no segundo ou terceiro piso da torre. talvez o terceiro.

Puxou a Ana para fora e os outros três seguiram‑se‑lhe. Tudo estava em profundo silêncio. O Júlio sussurrou aos outros:

- Viemos parar a uma galeria, que dá para um dos salões do interior da torre. Pode bem ser um quarto do segundo andar porque sabemos que o tecto do segundo andar ruiu. Ou talvez seja o terceiro andar.

- Deve ser o terceiro - disse o David. - Estamos bastante alto.

O seu murmúrio percorreu a galeria e regressou a eles. Falara mais alto do que o Júlio. Isto fê‑los dar um salto.

- Como é que subimos ainda mais? - murmurou a Zé.

- Haverá forma de subirmos a partir desta galeria?

- Vamos contorná‑la e já se vê - disse o Júlio. - Façam o menos barulho possível. não creio que haja aqui alguém, mas nunca se sabe. E vejam por onde andam, para o caso da pedra não estar fixa. está muito esboroada aqui e ali.

O Júlio liderou o caminho em torno da pequena e estranha galeria. Teria aquela sala da torre sido usada para representações? Seria a galeria dos espectadores? Sentiu vontade de recuar no tempo e debruçar‑se para ver o que se passava no quarto debaixo, quando o castelo estava repleto de pessoas.

A cerca de três quartos do caminho em torno da galeria um pequeno lanço de degraus conduzia ao quarto debaixo. Mas mesmo atrás do local onde os degraus começavam havia outra porta na parede, muito semelhante àquela por onde tinham passado.

Tinham também uma argola de ferro como puxador. O Júlio girou‑a lentamente. não se abriu. Estaria fechada? Havia uma grande chave na fechadura de ferro e o Júlio rodou‑a. Mas mesmo assim, a porta não se abriu. então reparou que estava trancada.

A tranca estava totalmente encaixada no seu alojamento. então sempre havia alguém prisioneiro do outro lado! Seria o homem da cara? O Júlio voltou‑se e sussurrou muito baixinho ao ouvido da Ana.

- Há aqui uma porta trancada do meu lado. Parece que chegámos perto da cara. Diz à Zé para mandar o Tim vir ter connosco.

A Ana sussurrou o recado à Zé e a Zé empurrou o Tim para a frente. Passou pelas pernas da Ana e parou ao lado do Júlio.

«Talvez estejamos a chegar às escadas que conduzem à sala mais alta da torre, onde está a janela com a cara», pensou o Júlio, ao mesmo tempo que retirava a tranca com muito cuidado. Empurrou a porta, e esta abriu‑se. Ficou à escuta com a lanterna apagada. Depois acendeu‑a.

Tal como pensava, uma outra escada de pedra subia com uma inclinação acentuada. No topo devia estar o prisioneiro, fosse quem fosse.

- Vamos subir - disse o Júlio suavemente. - Silêncio, todos!

 

                   Grandes sustos

O Tim fez força para a frente, mas o Júlio tinha a mão na coleira dele. Subiu a escada de pedra que era muito íngreme e estreita. Os outros seguiram‑no sem fazer qualquer barulho. Todos, excepto a João, tinham ténis calçados; ela estava descalça. O Tim foi quem mais barulho fez, porque as unhas batiam na pedra.

Havia outra porta no topo. Atrás dela, ouviu‑se um ruído curioso. gutural e rosnado. O Tim rosnou surdamente. A princípio, o Júlio não conseguiu perceber que ruído era aquele. então, de repente, percebeu.

«É alguém a ressonar! Bom, estamos com sorte. Posso dar uma espreitadela e ver quem é. Devemos estar no cimo da torre agora».

A porta à sua frente não estava trancada. Empurrou‑a e olhou lá para dentro, ainda com a mão na coleira do Tim.

O luar entrava pela estreita janela e incidia sobre a cara do homem adormecido. O Júlio fitou‑o num espanto crescente. Aquelas sobrancelhas! Sim. era aquele o homem da cara que aparecia à janela!

«E sei também de quem se trata. é o Terry‑Kane!», pensou o Júlio, entrando no quarto como uma sombra. «É tal e qual como na fotografia que vimos no jornal. Talvez o outro homem também cá esteja.»

Deu uma vista de olhos prudente ao quarto, mas não viu mais ninguém, embora pudesse estar alguém na parte mais escura. Pôs‑se à escuta.

Apenas se ouviu o ressonar do homem deitado ao luar. não se ouvia a respiração de mais ninguém. Ainda com a mão na coleira do Tim, acendeu a lanterna e percorreu‑a pelo quarto da torre, com o feixe a investigar os cantos escuros.

Não havia ali ninguém a não ser um homem. e num choque repentino, reparou que ele estava atado com cordas! Os braços estavam atrás das costas e tinha também as pernas atadas. Se aquele era o Terry‑Kane, então o seu tio tinha razão. O homem não era um traidor. fora raptado e feito prisioneiro.

Todos estavam no quarto agora, a olhar fixamente para o homem adormecido. Tinha a boca aberta e ressonava profundamente.

- Que vais fazer, Júlio? - murmurou a Zé. - Acordá‑lo?

O Júlio anuiu. Dirigiu‑se ao homem adormecido e abanou‑lhe o ombro. Ele acordou de imediato e olhou espantado para o Júlio, que estava totalmente iluminado pelo luar. Debateu‑se para ficar sentado.

- Quem és tu? - disse ele. - Como vieste aqui ter. e quem são aqueles ali nas sombras?

- Ouça. chama‑se Terry‑Kane? - perguntou o Júlio.

- Sim. Mas quem são vocês?

- Estamos acampados do lado oposto ao castelo - disse o Júlio. - E vimos a sua cara à janela, através dos nossos binóculos. Por isso viemos à sua procura.

- Mas como sabem quem sou? - perguntou o homem ainda aturdido.

- Lemos as notícias sobre si nos jornais - disse o Júlio. - E vimos a sua fotografia. não pudemos deixar de reparar nas suas sobrancelhas. até as conseguimos ver pelos binóculos.

- Ouçam. podem libertar‑me destas cordas? - perguntou o homem, ansioso. - Tenho de fugir. Amanhã à noite os meus inimigos vão contrabandear‑me daqui para fora, num carro, até ao mar. e vão alugar um barco para me levar para o continente. Querem que lhes conte tudo sobre as minhas experiências. É claro que não lhes contei nada, mas hão‑de fazer‑me passar um mau bocado.

- Vou cortar as cordas - disse o Júlio e tirou o canivete do bolço.

Cortou os nós que amarravam os pulsos de Terry‑Kane e depois libertou‑lhe as pernas. O Tim estava imóvel a assistir a tudo aquilo, pronto para se lançar sobre o homem se ele fizesse algum gesto ameaçador!

- Ah, sinto‑me muito melhor - disse o homem, esticando os braços.

- Como conseguiu chegar à janela? - perguntou o Júlio, vendo o homem a esfregar os braços e os joelhos.

- Todas as noites, um dos homens que me trouxe vem trazer‑me de comer e de beber - disse Terry‑Kane. - Desamarra‑me as mãos para eu poder comer. Senta‑se e começa a fumar enquanto como, ficando indiferente à minha presença. Eu arrasto‑me até à janela para apanhar uma lufada de ar fresco. não posso ficar à janela durante muito tempo porque pouco depois sou amarrado novamente, é claro. não faço ideia como é que alguém consegue ver a minha cara nesta janela, que é tão estreita e profunda!

- Foi com os nossos binóculos - disse o Júlio. - são óptimos. Foi bom ter conseguido chegar à janela. de outra forma, nunca o teríamos visto.

- Júlio. ouvi um barulho - disse a João, de repente. Ela tinha ouvidos de gato, e era capaz de captar o mais leve ruído.

- Onde? - perguntou o Júlio, voltando‑se de repente.

- Ao fundo das escadas - sussurrou a João. - Esperem, vou lá ver.

Esgueirou‑se pela porta e pela escada íngreme. Chegou à porta do fundo, a que dava para a galeria.

Sim. Vinha aí alguém! Caminhava pela galeria. A João pensou rapidamente. Se ela regressasse disparada escadas acima para avisar os outros, o recém‑chegado poderia subir e seriam apanhados. Ele poderia trancar a porta no topo e teria seis prisioneiros em vez de um! Decidiu acocorar‑se no chão da galeria atrás da porta que conduzia ao cimo.

Ouviram‑se passos fortes na galeria até chegar à porta. O estranho encontrou a porta destrancada e ficou imobilizado com a inquietação. Ficou totalmente imóvel, à escuta. A João pensou que ele deveria conseguir ouvir o coração dela, de tanta força com que batia. não se atreveu a gritar para avisar os outros. se o fizesse eles iriam cair directamente nos braços dele.

E foi então que a João ouviu a voz do Júlio a chamar ao de leve para o fundo das escadas.

- João! João! Onde estás?

E então com o coração aos pulos, pensou:

«Oh, não! Ele vai descer as escadas para vir ter comigo. Oh, não, não venhas, Júlio, não venhas!»

Mas o Júlio desceu. e atrás dele, vinha Terry‑Kane e o David, com as raparigas e o Tim, a caminho da saída.

O estranho que estava à porta ficou ainda mais baralhado ao ouvir vozes e passos. Fechou a porta de repente e empurrou a grossa tranca. Os passos nas escadas pararam, assustados.

- Eh, João? És tu? - ouviu‑se a voz do Júlio chamar. - Abre a porta!

O estranho falou com agressividade.

- A porta está trancada. Quem são vocês?

Fez‑se silêncio. então Terry‑Kane respondeu:

- Com que então estás de volta, Pottersham! Abre imediatamente a porta!

«Oh, oh», pensou o Júlio, então o outro cientista também lá estava - o Jeffrey Pottersham. Ele deveria ter raptado Terry‑Kane. Que teria acontecido à João?

O homem deixou‑se ficar à porta como se não soubesse o que fazer. A João agachou‑se na galeria e prestou a maior atenção. O homem voltou a falar.

- Quem te libertou? Quem está aí contigo?

- Escuta, Pottersham - disse Terry‑Kane. - Estou farto de todo este disparate. Deves ter enlouquecido para te portares desta forma! Drogando‑me, raptando‑me, dizendo‑me que vamos num barco de pesca para o continente e tudo o resto. estão quatro miúdos comigo que viram a minha cara à janela e vieram investigar.

- Miúdos! - exclamou Pottersham, apanhado de surpresa. - Mas. a meio da noite?! Como conseguiram eles chegar até à torre? Eu sou a única pessoa que conhece o caminho de acesso!

- Pottersham! Abre a porta! - gritou Terry‑Kane, furioso. Deu‑lhe um pontapé mas a velha porta era bem construída e forte.

- Podem voltar para a torre, todos vós - disse Pottersham. - Eu vou aguardar novas ordens. Parece que vamos ter que levar esses miúdos connosco, Terry‑Kane. eles irão arrepender‑se de ter visto a tua cara à janela. Eles não irão gostar da vida que vão levar no sítio para onde vamos!

Pottersham deu meia volta e tomou o caminho de regresso. A João adivinhou que ele conhecia o mesmo caminho que eles tinham descoberto. Esperou até concluir que a costa estava livre e depois correu novamente para a porta. Martelou a porta com os punhos.

- David! David! David! Onde estás?

Como resposta, ouviu um grito do cimo das escadas por detrás da porta, e depois o David desceu a correr.

- João! Destranca a porta, depressa!

A João destrancou‑a, mas a porta não se abriu. O Júlio já descera também e disse:

- Roda a chave, João. Pode estar também fechada à chave.

- Júlio, a chave desapareceu! - gritou a João empurrando a porta em vão. - Ele deve tê‑la trancado. e levou a chave consigo. Oh, como irei poder libertar‑vos?

- não podes - disse o David. - Mas tu estás livre, João. Podes ir chamar a Polícia. Raspa‑te. Sabes o caminho, não sabes?

- não tenho lanterna - respondeu a João.

- Oh, não. e nós não conseguimos passar‑te uma das nossas - disse o David. - então é melhor esperares até ser dia, João. Podes perder‑te nessas passagens escuras. Sim. espera até de manhã.

- As passagens continuarão escuras! - disse a pobre João. - É melhor ir agora.

- não. Espera até ser dia! - disse o Júlio, temendo que a João se perdesse naquelas passagens escuras e desaparecesse para sempre! Talvez ela fosse para as catacumbas! Que pensamento terrível!

- Está bem - disse a João. - Vou esperar até ser dia. Vou ficar agachada aqui na galeria. Está quentinho aqui.

- Vai ser muito difícil! - disse o David. - Nós vamos voltar para o quarto lá em cima, João. Chama‑nos se precisares. Que alívio estares livre.

A João agachou‑se na galeria, mas não conseguiu adormecer. O chão era muito duro e a pedra muito, muito fria. De repente, pensou no pequeno quarto onde vira o jarro, a adaga e o papel de chocolate. Seria um sítio muito melhor para dormir. Poderia deitar‑se no catre!

Levantou‑se e planeou o caminho. Bastava‑lhe contornar a galeria até chegar a uma pequena porta que abria para a escada de caracol que ia da galeria até ao pequeno quarto escondido.

Percorreu o caminho com muito cuidado. Tacteou a argola de ferro, girou‑a e abriu a porta. Estava muito escuro e não conseguia ver nada à sua frente. Deu um passo cauteloso. Estaria no cimo da escada de caracol?

Assim era. Esticou os braços, tocando nas paredes de pedra da curiosa e pequena escada e desceu muito lentamente, degrau a degrau.

«Oh, céus. estarei a ir no bom caminho? Os degraus parecem não ter fim!», pensou a João. «Não estou a gostar nada disto. mas tenho de continuar!»

 

                   A João tem uma aventura sozinha

A João chegou finalmente ao fim da escada em espiral.

Encontrou‑se uma vez mais no corredor plano, e lembrou‑se da pequena e estreita passagem que conduzia ao quarto secreto perto da escada. Em breve estaria no quarto e poderia deitar‑se no catre.

Passou pela porta do quarto secreto sem o saber, porque estava muito escuro. Apalpou o caminho e de repente sentiu a esquina do banco.

- Cá está! - disse ela em voz alta, agradecida.

E foi então que a pobre João apanhou um susto horrível. Dois fortes braços rodearam‑na e prenderam‑na rapidamente! Ela gritou e debateu‑se com o coração aos saltos. Quem seria? Oh, se ao menos tivesse uma luz!

Nisto, acendeu‑se uma luz que lhe foi apontada à cara.

- Oh, oh! Tu deves ser a João - disse a voz de Pottersham. - Pensei que só poderias ser tu quando um dos miúdos gritou por ti! Pensei que andarias por aqui. Julguei que viesses para aqui e sentei‑me no catre à tua espera.

- Solte‑me! - disse a João em tom ameaçador e debateu‑se como um gato selvagem. O homem agarrou‑a ainda mais firmemente. Era muito forte.

De repente, a João baixou a cara e mordeu‑lhe a mão. Ele soltou um grito e largou a presa. A João estava quase a libertar‑se quando o homem a deixou cair para o chão para cuidar da mão. A João tentou chegar à porta do quarto, mas novamente o homem foi mais rápido e ela viu‑se presa de novo.

- Vou amarrar‑te - disse o homem, furioso. - Vou amarrar‑te com cordas de tal forma que não serás capaz de te mexer! E vou deixar‑te aqui no escuro até voltar.

Agarrou uma corda que trazia à cintura e começou a amarrar a João com tal vigor que ela mal conseguia mexer‑se. Tinha as mãos atrás das costas e as pernas atadas nos joelhos e tornozelos. Rolou pelo chão, chamando ao homem todos os nomes que conhecia.

- Bem, por agora não representas um perigo - disse Pottersham, chupando a mordidela da mão. - Agora, vou‑me. Espero que te agrade o chão frio e a escuridão, minha gatinha selvagem!

A João ouviu os passos perderem‑se ao longe. Ficou zangada consigo própria por não ter adivinhado que ele podia estar ali deitado à sua espera. Agora não podia ir pedir ajuda para os outros. Na verdade, estava ainda pior do que eles pois estava amarrada e eles não.

Pobre João! Adormeceu, exausta pela excitação da noite e pela sua luta feroz. Encostou‑se contra a parede, sentindo‑se tão desconfortável que estava sempre a acordar.

E então ocorreu‑lhe uma ideia. Lembrou‑se do homem das cordas, todo amarrado em metros e metros de cordas com nós. Tinha‑o visto libertar‑se muitas vezes. Poderia algum daqueles truques ajudá‑la agora?

«O homem das cordas conseguiria libertar‑se desta corda em minutos», pensou ela e começou a contorcer‑se e a debater‑se. Mas ela não era o homem das cordas e, passada uma hora, estava tão exausta que tornava a adormecer uma vez mais.

Quando acordou, sentia‑se melhor. Conseguiu sentar‑se e obrigou‑se a pensar clara e lentamente.

«Desata um nó de cada vez», disse ela para consigo, lembrando‑se do que o homem das cordas lhe dissera. «A princípio, não sabes qual é o melhor nó. Quando souberes, conseguirás libertar‑te em dois minutos. Mas primeiro encontra esse nó!»

Ela repetiu tudo isto para si própria enquanto tentava encontrar o nó que se podia soltar primeiro. Por fim, descobriu um que lhe pareceu mais solto do que os outros. Era um dos que lhe ligavam o pulso esquerdo ao direito. Torceu o pulso e conseguiu enfiar o polegar no nó. Puxou e repuxou e, por fim, conseguiu soltá‑lo um pouco.

Agora tinha mais controle sobre essa mão. Se ao menos tivesse um canivete! Conseguiria pô‑lo entre o indicador e o polegar e talvez usá‑lo para cortar outro nó.

De repente, perdeu a paciência e encostou a cabeça ao catre, forçando e esticando a corda. Bateu contra qualquer coisa e caiu no chão de pedra com grande estardalhaço. A João não sabia o que era aquilo mas, de repente, percebeu.

«É aquela adaga! Aquela velha e ferrugenta adaga! Oh, se eu conseguisse encontrá‑la podia fazer alguma coisa com ela!»

Rebolou pelo chão até sentir a adaga por debaixo dela. Pôs‑se de costas e tentou agarrá‑la com o indicador e o polegar, e por fim conseguiu agarrá‑la.

Sentou‑se, inclinou‑se para a frente e tentou forçar a adaga ferrugenta para cima e para baixo na corda que lhe amarrava as mãos por detrás das costas. Mal a conseguia mover porque as suas mãos ainda estavam fortemente amarradas. Mas não desistiu.

Ficou tão cansada que teve de desistir durante algum tempo. Depois, voltou a tentar e, em seguida, voltou a descansar. À terceira vez, teve sorte. De repente, a corda partiu‑se! Puxou as mãos com força, achou‑as mais soltas e tentou desatar um nó.

A João levou muito tempo a libertar as mãos, mas, por fim, acabou por conseguir.

A princípio, não conseguiu libertar as pernas porque tinha as mãos a tremer. Mas depois de um longo descanso, conseguiu desatar os nós apertados e soltou as pernas.

- Ainda bem que aprendi alguns truques com o homem das cordas - disse ela. - Se não os soubesse, não conseguiria libertar‑me!

Tentou adivinhar que horas seriam. É claro que naquele quarto estava escuro como breu. Levantou‑se e ficou surpreendida ao reparar que as pernas lhe tremiam. Subiu a tremer alguns degraus e depois voltou a sentar‑se. Mas pouco depois as suas pernas recompuseram‑se e mais uma vez se pôs de pé.

«Agora tenho de encontrar a saída!», pensou ela. «Como gostaria de ter uma lanterna!»

Percorreu cuidadosamente o lanço de degraus de pedra que desciam a partir do quarto, e depois chegou a uma passagem ampla que ficava sob o pátio.

Caminhou, satisfeita por não ter de se inclinar, e depois chegou aos degraus de pedra. Subiu, sabendo que aquele era o caminho certo, embora estivesse às escuras.

Chegava agora à pequena passagem onde teve de se dobrar pela cintura, aquela que passava pelo centro das espessas muralhas exteriores. A João soltou um suspiro de alívio. Decerto que em breve chegaria ao ponto em que a pedra caíra e poderia ver a luz do dia!

Viu a luz do dia antes de chegar ao local onde faltava a pedra.

Viu‑a algures à sua frente, uma manchinha enevoada que a princípio não conseguiu identificar. Depois, sim.

«A luz do dia! Ah, até que enfim!»

Foi tropeçando até que chegou lá e subiu até à abertura onde a pedra caíra. Ficou ali sentada, gozando a luz do Sol. Era brilhante, quente e reconfortante.

Depois da escuridão das passagens, a João sentia‑se bastante estonteada. então de repente, percebeu que o Sol ia muito alto! Meu Deus, já deveria ser de tarde!

Olhou cuidadosamente para fora da abertura da muralha. Agora que estava tão perto da liberdade não queria ser apanhada por alguém que estivesse à espera dela! não havia ninguém. A João saltou pela abertura e correu pela encosta abaixo. Desceu com agilidade, aos saltos até chegar à estrada. Atravessou‑a e dirigiu‑se ao acampamento das roulotes.

Estava prestes a passar por cima da cancela quando parou. O Júlio tinha‑lhe dito que deveria ir à Polícia. Mas a João, tal como os outros ciganos, tinha medo da Polícia. Nunca nenhum nómada pedira ajuda à Polícia. A João tremeu ao pensar que tinha de falar com um deles.

«Não. Vou ter com o tio Fred», pensou ela. «Ele saberá o que fazer. Vou contar‑lhe tudo.»

Ia a subir pelo acampamento quando viu um estranho. Quem seria? Seria aquele homem horrível que a amarrara? não o tinha visto à luz do dia e receava que fosse ele. Reparou que falava insistentemente com alguns artistas de circo. Eles escutavam‑no educadamente, mas a João percebeu que eles o achavam um louco.

Aproximou‑se um pouco mais e descobriu que ele perguntava onde é que o Júlio e os outros estavam. Estava a ficar furioso com os artistas de circo que lhe asseguravam que não sabiam onde estavam os jovens.

«É o homem a que chamas Pottersham», disse a João para consigo e mergulhou para debaixo da roulote. «Deve saber o que dissemos aos outros sobre a cara.»

Ficou escondida até ele se ir embora pela encosta abaixo, com a cara vermelha e a gritar que ia chamar a Polícia.

A João saiu do esconderijo e as pessoas juntaram‑se imediatamente à volta dela.

- Onde estiveste? Onde estão os outros? Aquele homem queria saber tudo sobre vocês. Parecia louco!

- É um malandro - disse a João. - Vou contar‑vos tudo sobre ele. e onde estão os outros. Temos de os ir salvar!

E a João começou a contar a história com todo o entusiasmo, começando no meio, depois recuando até ao princípio, acrescentando coisas que se esquecera e baralhando totalmente todos os que a escutavam.

Quando acabou o relato, todos olharam para ela, entusiasmados. não percebiam tudo, mas tinham compreendido o mais importante.

- Dizes que os jovens estão fechados naquela torre? - perguntou o Alfredo, espantado. - E com eles está um espião?

- não, não é um espião. é um homem bom - explicou a João. - É o que eles chamam um cientista, um homem sábio e muito inteligente.

- Aquele homem que se foi agora embora. disse que era um. um cientista - disse a Skippy, tropeçando naquela palavra pouco conhecida.

- não, esse é o malandro - disse a João com determinação. - Talvez seja um espião. Raptou o homem bom e aprisionou‑o naquela torre para o levar para outro país. E também me prendeu a mim, como já vos contei. Vêem os meus pulsos e os meus tornozelos?

Ela mostrou‑os, cortados e cheios de nódoas negras. Os artistas de circo olharam‑na em silêncio. então, o Bufflo fez estalar o chicote e todos deram um salto.

- Vamos salvá‑los! - disse ele. - Isto não é trabalho para a Polícia. É trabalho para nós.

- Olhem! Aquele cientista vem aí novamente - disse a Skippy, de repente.

E na verdade, lá vinha ele a subir, apressado, pelo acampamento para vir fazer mais perguntas!

- Vamos apanhá‑lo - murmurou o Bufflo.

Os artistas de circo esperaram em silêncio que o homem chegasse junto deles. Depois, cercaram‑no totalmente e começaram a subir a encosta. O homem foi levado com eles. não podia escapar‑se! Foi levado para uma roulote e, antes que a multidão se dispersasse novamente, já ele estava no chão, bem amarrado pelo homem das cordas!

- Bom, apanhámo‑lo - disse o homem das cordas. - E agora passamos ao assunto seguinte!

 

                   A João volta ao castelo

O «cientista», tal como a Skippy persistia em chamar‑lhe, foi posto numa roulote vazia, de janelas e portas fechadas porque gritava muito alto. Quando o homem das cordas abriu a porta e meteu lá dentro uma das suas pitões, o cientista parou imediatamente de gritar.

O homem das cobras voltou a abrir a porta e a sua pitão deslizou novamente para fora. Mas o homem na caravana aprendera a lição. não tornou a emitir nem mais um som!

Depois todos se juntaram para conferenciar. não havia pressa porque fora decidido que só iriam agir depois de anoitecer.

- Se os formos salvar à luz do dia, a Polícia aparecerá - disse o Alfredo. - Eles irão interferir. não irão acreditar numa só palavra. Eles nunca acreditam.

- Como iremos salvá‑los? - perguntou a Skippy. - Iremos por aquelas passagens estranhas e subimos aquelas escadas íngremes? não me parece nada agradável.

- não é nada agradável - assegurou‑lhe a João. - E de qualquer forma, não seria lógico. A porta que dá para o quarto da torre está trancada, já vos disse. E aquele homem tem a chave.

- Ah! - exclamou o Bufflo, girando de imediato sobre si mesmo. - não nos disseste isso antes! Ele tem a chave? então vou tirar‑lha!

- não pensei nisso - disse a João, vendo o Bufflo a subir os degraus da roulote.

Regressou passado um minuto.

- Ele não tem chave nenhuma com ele - disse ele. - Diz que nunca teve. Diz que somos doidos e que vai chamar a Polícia.

- Ele vai ter dificuldades em chamar a Polícia agora - disse a mulher do Alfredo, dando uma pequena gargalhada. - Talvez ele tenha deitado a chave fora. ou dado a um amigo.

- Bom, então está decidido que vamos poder passar pela porta que dá para o quarto da torre - disse o homem das cobras que parecia ter uma visão mais global da situação do que os outros. - Certo. Há outro caminho para o quarto?

- Só pela janela. - disse a João. - Aquela fresta, estão a ver? É claro que é demasiado alta para qualquer escada de mão. Seja como for, temos de entrar primeiro no pátio para passarmos por cima da alta muralha do castelo.

- Isso é fácil - disse o homem de borracha. - Consigo subir qualquer parede. Mas talvez não a uma torre tão alta.

- Alguém consegue entrar pela fresta? - perguntou o Bufflo, semicerrando os olhos para fitar a torre.

- Oh, sim. é maior do que pensas - disse a João. - É muito profunda. as paredes são muito grossas. embora ache que não são tão grossas em cima como em baixo. Mas, Bufflo, como é que alguém consegue chegar à janela?

- Consegue‑se - disse o Bufflo. - não é assim tão difícil! Podes emprestar‑nos uma corda com cavilhas? - perguntou ele ao homem das cordas.

- Sim - disse o Jekky. A João conhecia aquele tipo de corda. era uma corda grossa com pequenos paus atravessados a distâncias regulares, para servirem de apoio para os pés.

- Mas como vais fazer subir a corda? - perguntou a Zé, confusa.

- Consegue‑se - disse novamente o Bufflo, e a conversa prosseguiu.

De repente, a João começou a sentir‑se incrivelmente esfomeada e levantou‑se para ir comer. Quando regressou, tudo estava combinado.

- Mal escureça partiremos - disse o Bufflo. - Tu não vens connosco, João. Isto é trabalho para homens.

- É claro que vou! - disse a João, espantada por alguém achar que não iria. - são meus amigos, não são? Claro que vou!

- Não, não vais! - disse o Bufflo, e imediatamente a João decidiu que iria desaparecer antes dos homens partirem e esconder‑se em qualquer lado para que os pudesse seguir.

Já eram seis da tarde. O Bufflo e o homem das cordas meteram‑se na roulote do Jekky e ficaram muito ocupados lá dentro. A João foi espreitar à porta para ver o que estariam a fazer mas eles mandaram‑na embora.

- Já não tens nada a ver com o assunto - disseram eles e correram com ela quando ela se recusou a obedecer‑lhes.

Quando escureceu, um pequeno grupo saiu do acampamento. Tinham andado à procura da João para terem a certeza de que ela não iria mas ela tinha desaparecido. O Bufflo chefiava o grupo, parecendo extremamente gordo porque tinha uma grande quantidade de corda com cavilhas enrolada no corpo. Depois, apareceu o senhor Slither com uma das suas pitões ao pescoço. Depois, o homem de borracha, com o senhor Alfredo.

O Bufflo trazia também o seu chicote, embora ninguém percebesse muito bem para quê. Fosse como fosse, o Bufflo andava sempre com um chicote; fazia parte dele, por isso ninguém lhe pediu explicações.

Atrás deles, como uma pequena sombra, deslizava a João. Que iriam eles fazer? Ela tinha estado a observar a janela da torre nas últimas duas horas e quando escureceu viu uma luz. uma luz a acender e a apagar.

«Deve ser o Júlio ou o David a fazerem sinais», pensou. «Devem estar admirados por eu não os ter ido socorrer. não sabem que fui capturada e amarrada! Terei algo para lhes contar quando estivermos juntos novamente!»

O pequeno grupo passou por cima da cancela, para a estrada e subiu o caminho para o castelo. Chegaram à muralha. O homem de borracha subiu para a muralha e pareceu correr literalmente por ela a cima, rolou por cima do topo, e desapareceu!

- Já lá está - disse o Bufflo. - O que faz ser feito de borracha! não acredito que alguma vez se magoe!

Ouviram um assobio baixo do outro lado da muralha. O Bufflo desenrolou uma corda fina da cintura, atou‑a a uma pedra e atirou‑a por cima da muralha. A corda foi puxada pela pedra, por cima da muralha, como se fosse um verme longo e fino.

Ouviram a pedra a cair no chão do outro lado. Um assobio discreto avisou‑os de que o homem de borracha já a tinha. Depois, o Bufflo desatou a corda com cavilha da cintura, e os outros esticaram‑na entre eles, fazendo fila. Uma das pontas foi atada à corda fina cuja outra extremidade prendia a pedra.

Do outro lado da muralha, o homem de borracha começou a puxar a corda fina. Quando toda a folga desapareceu, a corda com cavilhas começou a também a subir a muralha pois estava atada à corda fina e seguia‑a!

A João assistia. Sim. era uma boa ideia. Uma forma fácil e eficaz de transpor a alta e espessa muralha. Mas não iria ser tão fácil fazer a corda com cavilhas subir até à fresta.

Ouviu‑se outro assobio. O Bufflo largou a corda com cavilhas: esta estendeu‑se ao longo do seu lado da muralha. Deu‑lhe um puxão. Estava firme. Parecia evidente que o homem de borracha a tinha amarrado a qualquer coisa. Era seguro subir. Poderia suportar o peso de qualquer pessoa sem escorregar pela muralha abaixo.

O Bufflo subiu em primeiro lugar, usando as cavilhas como apoios para os pés e elevando‑se pela corda. Cada um deles trepou rapidamente a corda. A João esperou que o último começasse a subir a corda e depois saltou, ela também para a corda.

Lá foi ela como um gato e aterrou ao lado do Bufflo. Ele ficou espantado e deu‑lhe um puxão de orelhas. A João escapuliu‑se e

pôs‑se de lado, a observar. Ficou a pensar como tencionariam os homens alcançar a janela superior da alta torre. Talvez ela pudesse ajudar.

Os quatro homens ficaram imóveis ao luar, a olhar para a torre. Falavam baixo, enquanto o homem de borracha desatava a corda fina da corda com cavilhas e a enrolava em anéis. A corda com cavilhas foi deixada na muralha.

A João ouviu um carro a subir a colina do castelo. Ouviu‑o parar e recuar um pouco. Parte da sua atenção estava centrada nos quatro homens e a outra parte no carro.

O motor do carro parou. não ouviu mais nada. A João esqueceu‑o durante alguns minutos e depois ficou novamente alerta. um murmúrio grave se aproximava.

A João conteve a respiração. teria aquele homem horrível. qual era mesmo o nome dele. Pottersham. combinado com os seus horríveis amigos irem buscar o senhor Terry‑Kane e os jovens naquela noite para os levar para a costa? Talvez já tivessem alugado um barco de pesca ao Joseph, o velho pescador, e desapareceriam para sempre sem deixar rasto!

Assim corriam os pensamentos na mente alerta da João. O senhor Pottersham deveria ter tido imenso tempo para receber novas instruções e combinar tudo antes de ir ao acampamento onde ficaria fechado numa roulote! Oh, céus, deviria ela ir avisar o tio Alfredo de que ele estava ao luar a combinar algo com os outros?

«Ele vai dar‑me um puxão de orelhas assim que me aproximar», pensou a João, esfregando a orelha esquerda, que ainda doía do puxão do Bufflo. «Eles não me irão ouvir, eu sei. Mas vou tentar.»

Aproximou‑se cuidadosamente do grupo. Viu o Bufflo sacar de uma adaga do cinto, e atá‑la à ponta da corda fina que o homem de borracha segurava. Adivinhou imediatamente o que ele ia fazer e correu para ele.

- não, Bufflo, não! não atires a corda lá para cima. Vais magoar alguém! não, Bufflo, não!

- Desaparece daqui - disse o Bufflo, zangado, e levantou a mão para lhe bater. Ela recuou.

Contornou o grupo e foi ter com o tio.

- Tio Fred - disse ela, implorando. - Escuta, eu ouço vozes. acho que aqueles.

O Alfredo empurrou‑a violentamente.

- Paras com isso, João? Queres uma boa tareia? Estás a portar‑te como uma mosca teimosa!

O senhor Slither chamou‑a.

- Escuta, João. se queres ser útil, segura na Beleza. Daqui a pouco só vai atrapalhar.

Ele pôs a grande cobra sobre os ombros dela e a Beleza assobiou com força. Começou a enrolar‑se à volta da João e ela agarrou‑lhe a cauda. Ela gostava da Beleza, mas naquele momento não estava com disposição para ela.

Recuou para ver o que o Bufflo ia fazer. Ela sabia‑o, é claro, e o coração batia‑lhe desenfreado no peito. Ele ia atirar a faca através daquela fresta, algo que seguramente só o Bufflo, com a sua pontaria infalível, conseguia fazer!

«Mas se ele conseguir passá‑la pela janela, pode espetar‑se num dos quatro que estão lá em cima. ou no senhor Terry‑Kane», pensou ela, em pânico. «Pode magoar o David. ou o Tim! Oh, quem me dera que o Bufflo não fizesse aquilo.»

Tornou a ouvir vozes ao longe. desta vez vindas do outro lado da muralha! Os homens iam seguir aquelas passagens secretas e iriam ter ao quarto da torre! A João sabia que eles iriam fazê‑lo! Eles estariam ali antes do Bufflo e dos outros concluírem o seu plano de fuga. Imaginou os quatro jovens a serem arrastados escadas abaixo com o Terry‑Kane. Será que o Tim iria defendê‑los? Iria. mas os homens iriam certamente impedi‑lo. Eles sabiam que havia ali um cão, pois o Tim ladrara na noite anterior.

«Oh, céus!», pensou a João desesperada. «Tenho de fazer qualquer coisa. Mas o quê?»

 

                   Grande excitação

De repente, a João tomou uma decisão. Iria seguir os homens através daquelas passagens, e ver se conseguia avisar os outros gritando‑lhes quando se aproximasse o suficiente do quarto da torre. O Bufflo e os outros chegariam demasiado tarde para os salvar.

A João correu para a muralha. Subiu pela corda com cavilhas que lá estava e desceu pelo outro lado como um relâmpago. Encaminhou‑se para o local onde faltava a pedra na parede.

Beleza, a pitão, estava espantada por se ver atirada ao chão, mesmo antes da João correr para a muralha. não estava habituada a que a tratassem daquela forma. Ali ficou, a enrolar‑se e a desenrolar‑se. Aonde teria ido aquela rapariga simpática. A Beleza gostava da João, a rapariga sabia tratar dela.

Deslizou atrás dela. Também ela subiu e desceu a muralha facilmente, embora não precisasse da corda com cavilhas como a João. Continuou a deslizar rapidamente atrás dela. Era incrível a velocidade que atingia quando queria ser realmente rápida.

Chegou à abertura da muralha. Ah, ela gostava de buracos. Deslizou atrás da João. Apanhou‑a quando ela estava a chegar ao fim da pequena passagem, através da qual tinha de andar toda dobrada. Atirou‑se de encontro às pernas dela e depois enrolou‑se em volta dela.

A João soltou um pequeno grito e depois percebeu o que se passava.

- Beleza! Ainda te vais meter em sarilhos com o senhor Slither, por teres vindo atrás de mim. Volta para trás! Pára de te enrolar à minha volta. tenho coisas importantes a fazer.

Mas a Beleza não era como o Tim. Só obedecia quando achava que o devia fazer e daquela vez não o iria fazer.

- Está bem. vem comigo se quiseres - disse a João, por fim, depois de ter empurrado a grande cobra em vão. - Acho que me irás fazer companhia. Pára de assobiar dessa maneira, Beleza. Pareces uma máquina a vapor!

Pouco depois, a João descera os degraus íngremes que conduziam até ao corredor debaixo do pátio. A Beleza rastejou também pelos degraus abaixo, muito surpreendida pela súbita descida. Seguiram pela passagem ampla com a Beleza agora na dianteira e com a João a tropeçar de vez em quando na poderosa cauda da cobra.

Voltaram a subir degraus até ao interior da parede do castelo. A João parou de repente ao ver algo a brilhar à sua frente. Pôs‑se à escuta mas não ouviu nada. Avançou cuidadosamente e viu que no pequeno quarto secreto havia uma lanterna, deixada ali provavelmente por um dos homens que seguiam à frente.

Reparou na adaga enferrujada no chão onde a deixara na noite anterior e subiu. A corda também lá estava, aquela que mantivera amarrados os seus braços e pernas.

A João prosseguiu pela passagem que conduzia à escada em espiral. Nesse momento, julgou ter ouvido um ruído. Subiu as escadas íngremes, zangada com a Beleza porque a cobra a empurrou ao ultrapassá‑la e quase a fez desequilibrar. Chegou à porta que dava acesso à pequena galeria. Ousaria abri‑la? E se os homens lá estivessem?

Abriu‑a lentamente. Claro que do outro lado estava escuro como breu, mas a João sabia que estava prestes a encontrar a pequena galeria. De repente, a Beleza subiu por ela acima e enrolou‑se ternamente em volta dela. A João não conseguiu fazer com que a cobra se desenrolasse e passou a pequena galeria com a Beleza firmemente agarrada a ela.

E então ouviu um barulho e tanto! Ficou muito espantada. Que estaria a passar‑se? Ouviu vozes excitadas. uma delas era certamente a de Bufflo. E aquele estalo teria sido um tiro de pistola?

Que teria acontecido lá em baixo quando a João desaparecera pela parede com a Beleza? Nenhum dos homens reparou que ela tinha desaparecido. Estavam demasiado concentrados no seu plano.

O Bufflo estava prestes a fazer uso da sua habilidade para atirar facas. mas de uma forma diferente da habitual! Ia atirar a faca ao ar e fazê‑la curvar para entrar na fresta no topo da torre!

O Bufflo era um especialista a atirar facas, ou melhor, a atirar fosse o que fosse. Ficou ali no pátio a olhar para a janela. Semicerrou os olhos, avaliando a distância e fixando a direcção no seu cérebro. De súbito, a Lua escondeu‑se e ele baixou a mão. não podia atirar com precisão no escuro!

A Lua voltou a aparecer novamente, muito brilhante. O Bufflo não perdeu mais tempo. Mais uma vez, fez pontaria com os olhos semicerrados. e então a faca disparou alto no ar, brilhando e deixando para trás uma longa cauda de corda muito fina.

Bateu no peitoril da fresta e caiu para trás. O Bufflo apanhou‑a com habilidade. O luar mostrava bem que a faca não era afiada. o Bufflo tinha limado a ponta, que estava bastante redonda. A João não precisava de se preocupar com o facto de alguém na torre se poder magoar com uma adaga afiada!

Mais uma vez o Bufflo fez pontaria, e mais uma vez a faca foi por ali acima, veloz como uma andorinha, com um brilho de prata à medida que subia. Daquela vez passou totalmente pela janela, deslizou pelo friso de pedra dentro do quarto e caiu no chão com grande ruído.

Provocou uma enorme surpresa lá dentro. O senhor Terry‑Kane, os jovens e o Tim estavam todos amontoados a um canto para se aquecerem. Tinham fome e frio. Ninguém lhes trouxera comida e não tinham com que se agasalhar excepto uma manta que pertencia a Terry‑Kane. Tinham passado todo o dia no quarto da torre, espreitando por vezes pela janela, outras vezes gritando a plenos pulmões. Mas ninguém os ouvira ou vira.

- Porque é que a João não traz ajuda? - tinham‑se perguntado várias vezes naquele dia tão longo. Ignoravam que a pobre João passara horas a tentar libertar‑se das cordas em volta das pernas e pulsos.

Tinham olhado pela janela para o campo na colina oposta onde os artistas de circo andavam nos seus afazeres, parecendo formigas na encosta distante. Estaria lá a João? A distância era demasiado longa para poderem distinguir fosse quem fosse.

Quando escureceu, o Júlio acendera e apagara a sua lanterna por diversas vezes à janela. Depois com frio e sentindo‑se mal, tinham‑se amontoado, com o Tim a lamber todos à vez, não entendendo muito bem por que razão tinham de estar naquele quartinho.

- O Tim deve estar com tanta sede - disse a Zé. - Ele está sempre a lamber a boca, como costuma fazer quando quer beber água.

- Bem, também me apetece lamber a boca - disse o David.

Estavam meio adormecidos quando a faca irrompeu no quarto. O Tim deu logo um salto e ladrou desenfreadamente. Ficou a olhar para a faca que luzia ao luar e ladrava sem parar.

- Uma faca! - disse a Zé, apanhando‑a. - A ponta foi limada. Que significará isto? E por que terá um fio atado?

- Tem cuidado, não vá outra faca entrar por aqui dentro - avisou Terry‑Kane.

- Isso não vai acontecer - disse o Júlio. - Isso deve ter a ver com a João. Ela não foi à Polícia. Foi pedir ajuda aos artistas de circo. Tenho a certeza de que esta é a faca do Bufflo.

Estavam todos em volta dele, a examiná‑la.

- Vou até à janela - disse o Júlio. - Vou olhar para o pátio.

Segura‑me nas pernas, David.

Subiu para o parapeito de pedra e rastejou um pouco para a frente através da fenda profunda. Chegou ao exterior da janela e olhou para baixo. O David agarrou‑lhe as pernas com medo de que o parapeito se desmoronasse e o Júlio caísse.

- Estou a ver quatro pessoas lá em baixo no pátio - disse o Júlio. - Oh, óptimo. um é o Alfredo, outro é o Bufflo e não consigo perceber quem são os outros dois. Eh, aqui!

Os quatro homens lá em baixo estavam de pé a olhar atentamente para cima. Viram a cabeça do Júlio aparecer fora da janela e acenaram‑lhe.

- Puxa a corda! - gritou o Bufflo. Atara agora a ponta da segunda corda com cavilhas à corda fina e ele e os outros levantaram‑na para que ela pudesse deslizar facilmente pela parede.

O Júlio deslizou novamente para o interior do quarto. Estava muito empolgado.

- Este fio na faca vai pela muralha abaixo e está atado a uma corda mais grossa - disse ele. - Vou puxá‑la. e depois há‑de aparecer uma corda por onde poderemos descer!

Puxou o fio e cada vez mais o fio foi aparecendo, vindo da janela. então, o Júlio sentiu algo mais pesado e percebeu que a corda mais grossa vinha a subir. Agora teria de puxar mais lentamente. O David ajudou‑o.

No parapeito da janela, apareceu a primeira parte da corda com cavilhas. Os jovens nunca tinham visto uma assim, estavam habituados a escadas de corda vulgares. Mas Terry‑Kane sabia o que era.

- Uma escada com cavilhas - disse ele. - As pessoas das feiras e dos circos fazem‑nas. são mais leves e mais fáceis de manejar do que as escadas de corda. Temos de atar a ponta a algo bastante forte, para que possa aguentar o nosso peso.

A Ana olhou assustada para a corda com cavilhas. não lhe agradava nada a ideia de descer por aquilo, oscilando enquanto descia a alta muralha de pedra da torre. Mas os outros olharam para ela com prazer e entusiasmo - era uma fuga ‑, uma corda boa e forte para descer e sair daquele horrível quarto frio.

Terry‑Kane olhou em volta em busca de algo onde pudesse prender a corda. Num dos lados da parede havia uma enorme argola de ferro, embutida na pedra. Ninguém sabia qual fora em tempos a sua utilidade, mas certamente iria servir naquela situação.

Não havia cavilhas no primeiro metro de corda. O Terry‑Kane e o David cortaram o fio que a trouxera e depois puxaram‑na até aparecer a primeira cavilha. Em seguida dobraram a ponta à volta dela e fizeram nós grandes e fortes, que não se desfariam.

O Júlio agarrou na corda e apoiou‑se com todo o peso, puxando‑a com toda a força.

- Até aguentaria com doze pessoas ao mesmo tempo! - disse ele. - Vou eu primeiro? Depois poderei ajudar todos a descer se estiver lá em baixo. O senhor e o David podem ajudar as raparigas quando elas descerem.

- E o Tim? - perguntou a Zé, de imediato.

- Vamos embrulhá‑lo na manta, amarrá‑lo com firmeza e descê‑lo pela corda mais fina - disse o David. - Embora mais fina, aguenta bem com ele.

- Vou descer agora - disse o Júlio e dirigiu‑se para a janela.

Depois parou. Alguém subia ruidosamente os degraus de pedra que conduziam à torre. Alguém estava à porta. Quem seria?

 

                   No quarto da torre

A porta escancarou‑se e um homem parou à entrada, arquejante. Atrás dele, vinham três outros.

- Pottersham! - exclamou Terry‑Kane. - Com que então, voltaste!

- Sim, voltei - disse o homem, ofegante.

O Tim começou a ladrar e tentou fugir da mão da Zé.

Arreganhou‑lhe os dentes e todos os pêlos se lhe eriçaram no pescoço. Parecia realmente um cão muito selvagem.

Pottersham recuou. não gostou nada do ar do Tim.

- Se soltares esse cão, dou‑lhe um tiro - disse ele, e como que por magia apareceu uma pistola na sua mão direita.

A Zé tentou refrear a fúria do Tim e pediu ajuda ao Júlio.

- Júlio, agarra‑o também. Ele ainda se atira ao homem de tão furioso que está.

O Júlio acorreu a ajudá‑la. Entre eles conseguiram arrastar o cão furioso para um canto, onde a Zé tentou em vão acalmá‑lo. Estava com medo que lhe dessem um tiro.

- não podes comportar‑te desta maneira, Pottersham! - começou Terry‑Kane, mas foi logo interrompido.

- não temos tempo a perder. Vamos levar‑te a ti, Terry‑Kane, e a um dos miúdos. Poderemos usá‑lo como refém se houver muita confusão em torno do teu desaparecimento. Vamos levar este - e agarrou no David. O David deu‑lhe imediatamente um soco no queixo, dando graças por ter aprendido boxe na escola. Mas de repente, foi parar ao chão! Aqueles homens não estavam ali para aturar disparates. Estavam com muita pressa!

- Agarra‑o! - disse Pottersham a um dos homens atrás de si, e o David ficou subjugado. Depois Terry‑Kane foi levado também e prenderam‑lhe os braços atrás das costas.

- E quanto aos outros miúdos? - perguntou. - não vão deixá‑los fechados neste quarto, pois não?

- Vamos, sim - disse Pottersham. - Vamos deixar um bilhete à velha da cancela a dizer‑lhe que eles estão cá em cima. A Polícia que venha salvá‑los, se conseguir.

- Sempre foste um. um. - começou Terry‑Kane e depois baixou‑se para evitar um soco.

O Tim ladrava furiosamente durante todo o tempo e quase se estrangulava ao tentar libertar‑se da Zé e do Júlio. Estava louco de raiva e quando viu o David a ser maltratado por pouco não se conseguiu soltar.

- Leva‑os - ordenou Pottersham. - E depressa. Vá! Desçam com eles.

Os três homens forçaram o Terry‑Kane e o David em direcção às escadas de pedra. e depois todos rodaram sobre si mesmos, cheios de espanto! Uma voz forte veio subitamente da janela.

A Ana abriu a boca. Era o Bufflo! não tinha percebido por que razão ninguém descera pela corda e por isso subira para ver o que se passava. E para sua grande surpresa, parecia haver uma grande confusão!

- Eh! Que se passa aqui? - gritou ele, e deslizou para dentro do quarto, parecendo muito deslocado com a sua cabeleira amarela, camisola aos quadrados coloridos e chicote!

- BUFFLO! - gritaram os quatro rapazes, e o Tim mudou o seu latido feroz para um de boas‑vindas. Terry‑Kane estava boquiaberto, com os braços ainda presos atrás das costas.

- Quem diabo é este? - gritou Pottersham, alarmado com a chegada repentina de Bufflo pela janela. - Como conseguiu ele entrar por ali?

O Bufflo viu a pistola que Pottersham empunhava e fez estalar vagarosamente o seu chicote uma ou duas vezes.

- Afaste essa coisa - disse ele, na sua voz arrastada. - Deveria saber que não se anda com pistolas na mão quando há jovens por perto. Vá. afaste isso!

Fez estalar novamente o chicote. Pottersham apontou‑lhe a arma, furioso. E foi então que aconteceu algo espantoso.

A pistola desapareceu da mão de Pottersham, voou pelo ar e foi apanhada calmamente pelo Bufflo! E tudo com um estalo de chicote!

Craque! Só isso. e a pistola tinha sido arrancada da sua mão pela poderosa ponta do chicote e magoando os dedos do Pottersham com uma força que ele gritava de dor e tentava cuidar da mão magoada.

Terry‑Kane estava de boca aberta. Que belo truque. mas que perigoso! A pistola poderia ter disparado. Agora a bola fora parar ao lado contrário, pois era Bufflo quem tinha a pistola e não Pottersham. E este último parecia realmente muito pálido.

Ficou pasmado a olhar como se não soubesse o que fazer de seguida.

- Soltem‑nos! - ordenou o Bufflo, acenando com a cabeça na direcção de Terry‑Kane e do David.

Os três homens libertaram‑nos e recuaram.

- Parece que temos de chamar a Polícia, afinal de contas - observou Bufflo, numa entoação muito normal, como se aquele tipo de situações fosse frequente. - Podes soltar o cão, se quiseres, Júlio.

- não! não! - gritou Pottersham, aterrorizado. e nesse momento a Lua escondeu‑se por detrás de uma nuvem e o quarto da torre mergulhou na escuridão, não fosse a lanterna que Pottersham tinha pousado no chão quando ali chegara primeiro.

Entreviu uma oportunidade de fuga para ele e para os outros. De súbito, deu um pontapé na lanterna que voou pelo ar e bateu em Bufflo, desligou‑se e deixou o local imerso na escuridão. O Bufflo não se atreveu a disparar. Poderia acertar na pessoa errada!

- Soltem o cão! - rugiu ele. mas era demasiado tarde. Quando o Tim chegou à porta, já a tinham fechado. e a tranca foi colocada em posição do outro lado! Ouviram‑se passos apressados deslizando e tropeçando pelas escadas de pedra na escuridão.

- Oh! - disse o Bufflo, quando a Lua surgiu novamente e revelou as caras de espanto e consternação dos cinco na sala. - Fizemos asneira algures, não? Eles desapareceram!

- Sim. Mas sem nós - disse Terry‑Kane, deixando que o David lhe desamarrasse as pernas. - Talvez tenham escapado por aquelas passagens. E agora temos mesmo de fazer o truque da corda pela parede da torre, uma vez que a porta está trancada!

- Vamos lá então - disse o Júlio. - Vamos embora antes que mais alguma coisa aconteça.

Foi até à janela, passou para o friso exterior e agarrou a corda. Foi muito fácil descer, embora não fosse agradável olhar para baixo, para o pátio. Parecia muito distante.

A Ana foi a seguir, muito amedrontada, mas sem o mostrar. Era muito boa trepadora, por isso não achou a corda muito difícil. Ficou muito, muito contente quando, por fim, aterrou em segurança ao lado do Júlio.

Depois chegou a Zé com algumas novidades.

- não consigo perceber o que aconteceu aos quatro homens - disse ela. - Eles pareceram continuar a andar, a vaguear. e gritaram como doidos. Parece que andam aos círculos naquela galeria que ladeia as paredes do salão da torre.

- Deixa‑os lá! - disse o Júlio. - Se demorarem mais um pouco, teremos tempo de ir até ao buraco da parede exterior e esperar que saiam um a um! Isso seria óptimo!

- O Tim vem a descer agora - disse a Zé. - Envolvi‑o naquela manta e atei‑a muito bem. O David vai descê‑lo agora. Reforçámos a corda para nos certificarmos de que suportaria o seu peso. Olhem. lá vem ele! Pobre Tim! Ele não faz ideia do que se está a passar.

O Tim desceu devagar, balouçando um pouco e batendo na muralha de pedra de vez em quando. Sempre que tal acontecia, soltava um pequeno uivo, e a Zé tinha a certeza de que ele ficaria cheio de feridas! Olhava‑o com grande surpresa à medida que ele ia descendo.

- O Tim já deveria de estar habituado a este tipo de coisas - disse o Júlio. - Já teve muito disto nas aventuras que partilhou connosco. cão lindo! Aposto que vai ficar feliz quando se vir em solo firme.

E assim foi. Deixou que a Zé o tirasse da manta e depois experimentou dar uns passos para se certificar de que pisava solo firme. Saltou alegremente para a Zé, muito contente por estar novamente no exterior.

- Lá vem o David - disse o Júlio. A corda com cavilhas oscilou um pouco e o Alfredo foi segurá‑la para que ficasse mais estável. Ele, o homem de borracha e o senhor Slither estavam agora extremamente preocupados com tudo e mais alguma coisa, tão preocupados que mal disseram uma palavra ao Júlio, à Zé e à Ana.

De repente, tinham dado falta da João e da cobra! O homem das cobras não se ralava com a João, mas estava muito preocupado com a sua preciosa e querida pitão! Já tinha andado à procura dela no pátio.

- Se a João a levou com ela para o acampamento, arranco‑lhe os cabelos! - resmungou o homem das cobras, infeliz, e o Júlio olhou para ele espantado. Que estaria ele a resmungar?

Terry‑Kane desceu a seguir e, por fim, o Bufflo, que pareceu deslizar de uma forma admirável, sem sequer usar as cavilhas. Saltou para o chão, ao lado deles, sorrindo.

- Vai uma confusão tremenda lá em cima! - disse ele. - Só se ouvem gritos, berros e tropeções. Que acham que se passa com aqueles fulanos? Vamos conseguir apanhá‑los facilmente se formos à abertura da parede. Acho que eles devem estar prestes a sair. Vamos!

 

                   A beleza e a João divertem‑se

Decerto algo acontecera ao consternado Pottersham e aos seus três amigos. Depois da porta do quarto da torre ter sido fechada e trancada, os homens tinham descido ruidosamente os degraus de pedra. Tinham chegado à porta que dava para a galeria, tinham‑na aberto e entrado na própria galeria.

Mas antes que pudessem encontrar a escada em caracol um pouco mais à frente, Pottersham tinha tropeçado em algo. algo que silvava como um motor que deixasse escapar vapor e que se tinha enrolado nas pernas.

Gritou. A princípio, pensou que era um homem que ali estava à espera dele, que lhe tinha saltado para as pernas. mas agora sabia que não era um homem. Homem nenhum saltava daquela forma!

Um dos homens apontou a lanterna para baixo para ver o que se passava com Pottersham. O que viu fê‑lo gritar e quase deixar cair a lanterna.

- Uma cobra! A maior cobra que alguma vez vi! Apanhou‑te, Pottersham!

- Ajuda‑me, homem, ajuda‑me! - gritou Pottersham, batendo na cobra tanto quanto podia. - Está a apertar‑me as pernas nos seus anéis.

O outro homem acorreu em seu auxilio. Quando eles começaram a puxar, a Beleza desfez os nós e deslizou para a escuridão.

- Para onde foi aquela coisa horrível? - perguntou Pottersham. - Quase me desfez as pernas! Depressa, vamos embora antes que ela volte. De onde terá vindo?

Deram alguns passos. mas a cobra estava deitada à espera deles! Fê‑los cair enrolando‑se e desenrolando‑se nas pernas deles e depois começou a enrolar‑se em torno da cintura de um dos homens.

Então começaram a ouvir‑se gritos e urros! Se alguma vez existiram verdadeiramente homens assustados, aqueles quatro eram um excelente exemplo. Fossem para onde fossem, aquela cobra parecia estar sempre presente, enrolando‑se, desenrolando‑se, rastejando, apertando!

É claro que tinha sido a João que tinha posto a cobra no encalço dos homens. A João ficara na galeria enquanto toda aquela confusão se passava em cima, com a Beleza em volta do pescoço. A rapariga tentou em vão perceber o que se passava.

E depois ouvira uma porta a bater, a tranca a ser colocada e passos de homem a descerem rapidamente os degraus de pedra! Julgou que seriam os quatro cujas vozes ouvira antes, à noite, os homens que tinham ido pela passagem.

- Beleza! Agora é a tua vez de fazer alguma coisa - disse a João e tirou a cobra dos ombros. a cobra deslizou pela João abaixo e fluiu para o chão num movimento gracioso. Deslizou na direcção dos homens, que estavam naquele momento a sair da galeria. Depois disso, a pitão divertiu‑se imenso. Quanto mais os homens gritavam, mais a enorme cobra ficava excitada.

A João estava encolhida a um canto, a rir tanto que as lágrimas lhe corriam pela cara abaixo. Ela sabia que a cobra era inofensiva a menos que desse um forte apertão a um dos homens.

«Oh, não. lá se foi mais um!», pensou ela, quando ouviu cair um dos homens que a Beleza fizera tropeçar. «E mais outro! Eu vou morrer a rir! Ela nunca se porta assim normalmente. Deve estar a divertir‑se imenso!»

Por fim, os homens não conseguiram aguentar mais.

- Vamos para o quarto da torre! - gritou Pottersham. - não volto para aquelas passagens escuras com cobras atrás de mim. Deve haver dúzias de cobras lá. Vamos ser mordidos!

A João deu uma gargalhada. Dúzias delas! Provavelmente a Beleza parecia uma dúzia de cobras aos olhos dos homens espantados que caíam uns por cima dos outros na escuridão. Mas a Beleza não mordia. não era venenosa.

Os homens lá conseguiram subir até ao quarto da torre e deixar a cobra para trás. A Beleza estava farta de brincadeiras e foi ter com a João, quando esta a chamou. Pô‑la ao pescoço e pôs‑se à escuta.

A porta do quarto da torre batera com estrondo. A João subiu os degraus, tacteou a tranca na escuridão e puxou‑a suave e lentamente. A partir daquele momento, a menos que os homens se aventurassem a descer pela escada com cavilhas, que ela imaginava que Bufflo tinha colocado contra a muralha para salvar os outros, estavam bem encurralados. E se descessem pela corda encontrariam certamente pessoas lá em baixo à espera deles.

- Vá lá, Beleza, vamos embora - disse a João e desceu os degraus, desejando ter uma lanterna. Lembrou‑se da pequena lanterna que fora deixada no quarto secreto, e ficou mais animada. Ela poderia usá‑la naquelas passagens escuras. Óptimo!

A Beleza rastejou à frente dela. Ela sabia muito bem o caminho. Chegaram ao pequeno quarto e a João apanhou a lanterna, agradecida. Olhou para baixo para a grande pitão e esta ficou a olhar para a rapariga com olhos brilhantes que não pestanejavam. O seu comprido corpo enrolava‑se e desenrolava‑se, castanho e brilhante à luz da lanterna.

- não me importava de te ter como animal de estimação se fosses um pouco mais pequena - disse a João. - não sei por que razão as pessoas não gostam de cobras. Oh, Beleza. faz‑me rir só de pensar na forma como trataste aqueles homens!

Sorriu ao percorrer as passagens secretas, mantendo a lanterna alta, excepto quando chegou à última passagem e teve de caminhar toda dobrada. A Beleza esperou por ela quando chegou à abertura da parede. A cobra ouvira ruídos lá fora.

A João subiu primeiro e ficou muito espantada por se sentir agarrada. Retorceu‑se, gritou e por fim mordeu a mão que a prendia.

Depois, alguém lhe apontou uma lanterna e ouviu‑se um berro.

- É a João! João, onde tens estado? E, ouve, se me mordes assim vou dar cabo de ti!

- Bufflo! Desculpa. mas por que me apanhaste? - gritou a João.

De repente, a lua apareceu e iluminou a cena. Ela viu o Júlio e os restantes aproximando‑se a toda a pressa.

- João! Estás bem? - perguntou o tio. - Estávamos preocupados contigo. Onde te meteste?

A João não lhe respondeu. Correu para o David e para os outros.

- Conseguiram fugir! - gritou ela. - Desceram pela corda de cavilhas?

- não há tempo para te contar a história agora - disse o Bufflo, vigiando a abertura da parede. - E quanto àqueles fulanos? Estamos à espera deles aqui. Ouviste alguma coisa deles?

- Ah, sim. Eu segui‑os. Oh, Bufflo, foi tão engraçado. - disse a João, e começou a rir. O Bufflo abanou‑a mas ela não conseguia parar de rir. E quem vinha a deslizar através da abertura se não a Beleza?

O senhor Slither viu‑a imediatamente e soltou um grito.

- Beleza! João, levaste‑a contigo? Que malvadez! Anda cá, Beleza!

A cobra deslizou e enrolou‑se ternamente à volta dele.

- Eu não sou má - disse a João, indignada. - A Beleza quis vir comigo e veio e, oh, ela meteu‑se com aqueles homens, e... - E mais uma vez irrompeu em gargalhadas. O David sorriu, imitando‑a. A João ficava muito engraçada quando não conseguia parar de rir.

O Alfredo abanou‑a com vigor.

- Conta‑nos o que sabes sobre esses homens - ordenou ele. - Eles vêm por aqui? Onde estão?

- Ah, os homens - disse a João, limpando os olhos e tentando parar de rir. - estão bem. A Beleza correu com eles para o quarto da torre e eu tranquei‑os. Ainda lá estão, espero. a menos que se atrevam a descer pela corda com cavilhas, o que aposto que não o farão.

O Bufflo soltou uma pequena gargalhada.

- Fizeste bem - disse ele. - Tu e a Beleza!

Deu uma breve ordem ao Alfredo e ao homem de borracha que voltaram à muralha e ao pátio para ver se os homens tinham deslizado pela corda.

- Acho que seria uma boa ideia chamar a Polícia agora - disse com Terry‑Kane, começando a pensar que deveria estar numa espécie de sonho extraordinário, com escadas com cavilhas e chicotes e cobras a surgirem de forma tão esquisita. - Aquele fulano, o Pottersham, é perigoso. É um traidor e tem de ser apanhado antes de revelar tudo o que sabe sobre o trabalho que eu e ele temos estado a desenvolver.

- Certo - respondeu o Bufflo. - Temos também outro fulano preso numa roulote vazia.

- Mas então ele não fugiu? - perguntou a Zé, surpreendida. - Pensei que Pottersham que está lá em cima agora no quarto da torre fosse o que fechamos na caravana.

- O que fechamos ainda está fechado - disse o Bufflo, sombriamente.

- Mas quem é ele, afinal? - disse Terry‑Kane, espantado.

- Em breve, descobriremos - disse o Bufflo. - Vá, vamos embora agora. É muito tarde. Vocês, miúdos devem estar cheios de fome. Alguém deveria ir à Polícia e eu quero voltar para o acampamento.

- O Alfredo e o homem de borracha irão ficar de vigia à escada de corda - disse o senhor Slither, ainda a acariciar a Beleza. - não há necessidade de ficarmos aqui mais tempo.

Então lá desceram a colina, falando animadamente. Terry‑Kane foi à esquadra telefonar às pessoas a que chamava «autoridades superiores». Esfomeados, os cinco jovens pensaram em algo de comer e beber! O Tim foi até ao ribeiro assim que chegaram ao acampamento e começou a beber sofregamente.

- Vamos ver se vocês conhecem o fulano que prendemos na roulote - disse o Bufflo, quando chegaram ao acampamento. - Parece ser a única coisa que falta explicar.

Abriu a porta da roulote e chamou em voz alta.

- Saia! Queremos saber quem é! - O Bufflo segurava uma lanterna e o homem lá dentro aproximou‑se lentamente da porta.

Todos os jovens soltaram um grito de espanto.

- Tio Alberto! - gritaram o Júlio, o David e a Ana.

- Pai! - gritou a Zé. - Que estás aqui a fazer?

 

                   Divertiram‑se muito

Fez‑se um minuto ou dois de silêncio. Estavam todos espantados. Pensar que o pai da Zé estivera trancado daquela maneira! Tinha sido engano da João, é claro. pensara que era o senhor Pottersham.

- Júlio - disse o tio Alberto, muito ferido na sua dignidade e também muito zangado. - Tenho de te pedir que vás chamar a Polícia. Saltaram‑me para cima e trancaram‑me nesta roulote sem qualquer motivo.

O Bufflo começou a ficar muito perturbado. Virou‑se para a João.

- Por que não nos disseste que ele era o pai da Zé? - perguntou ele.

- Eu não sabia quem era - respondeu a João. - Nunca o tinha visto e, seja como for, pensei que.

- não interessa o que pensaste - disse o tio Alberto, olhando com desagrado para a miúda suja. - Insisto para que chamem a Polícia.

- Terry‑Kane? Onde é que ele está? Que aconteceu? Foi encontrado?

- Sim. É uma história muito longa - disse o Júlio. - Tudo começou quando vimos uma cara à janela. Eu telefonei à tia Clara e ela disse‑me que lhe daria o recado assim que regressasse de Londres. Bom, afinal era o senhor Terry‑Kane à janela!

- Foi o que eu pensei! Bem disse à Clara que tinha a sensação de que era ele! - disse o tio. - Foi por isso que vim o mais depressa que pude. mas nenhum de vocês estava cá. Que vos aconteceu?

- Bem, isso é apenas uma parte da história, tio - disse o Júlio, pacientemente. - Mas o tio importa‑se que vamos comer qualquer coisa? Estamos praticamente a morrer de fome. não comemos nada desde ontem.

Assim terminou o interrogatório. A mulher do Alfredo apareceu e, pouco depois, os cinco esfomeados estavam perante uma refeição deliciosa. Sentaram‑se em redor da fogueira e comeram com um apetite voraz.

A mulher ficou com a panela praticamente vazia. O Tim estava rodeado de pratos de restos e grandes ossos trazidos por todos os elementos do acampamento! Quase a todo o minuto, alguém surgia da escuridão e trazia um prato com uma coisa ou outra para os jovens esfomeados, ou para o Tim.

Por fim, já não conseguiam comer mais e o Júlio começou a contar a sua extraordinária história. O David retomou‑a e a Zé acrescentou mais umas coisas. A João estava constantemente a interromper e até mesmo o Tim chegou a ladrar um pouco. Só a Ana ficou calada. Estava encostada ao tio, a dormir.

- Nunca ouvi uma história destas na minha vida - dizia continuamente o tio Alberto. - Nunca! Curioso aquele indivíduo Pottersham raptar daquela forma o Terry‑Kane. Eu sabia que Terry‑Kane era uma pessoa de bem; ele não deixaria ficar mal o seu país. Agora, o Pottersham? Nunca gostei dele. Bom, continuem.

Os artistas de circo estavam tão entusiasmados quanto o tio Alberto com aquela história. Aproximaram‑se cada vez mais à medida que ia sendo narrada a aventura pelas passagens secretas, o quarto secreto, as escadas de pedra e o resto.

Ficaram muito excitados quando souberam a forma como o Bufflo aparecera no quarto da torre e sacara a pistola de Pottersham.

O tio Alberto atirou a cabeça para trás e riu de alegria quando ouviu esta parte.

- Que susto aquele indivíduo deve ter apanhado! - disse ele. - Gostaria de ter visto a expressão da cara dele. Bem, bem nunca ouvi uma história dessas na minha vida!

E depois foi a vez de a João contar a forma como seguira os quatro homens pelas passagens secretas e tinha posto a Beleza no seu encalço. Desatou novamente às gargalhadas enquanto contava a sua história e pouco depois todos os artistas de circo estavam a rir‑se de simpatia, oscilando a cabeça de um lado para o outro, com lágrimas a escorrerem‑lhe pela cara.

Apenas o tio Alberto pareceu muito solene nesta parte.

Lembrou‑se da forma como se sentira quando, por causa da sua gritaria, os artistas de circo tinham posto a pitão na caravana e quase lhe pregaram um susto de morte.

- Senhor Slither, vá buscar a Beleza, por favor - pediu a João. - Ela devia ouvir a parte dela na história. Portou‑se lindamente. Divertiu‑se imenso. Tenho a certeza de que se riria às gargalhadas se as cobras se pudessem rir.

O pobre tio Alberto não quis objectar quando o homem das cobras foi buscar a sua querida Vitor. Na realidade, até trouxe as duas e fizeram‑lhes uma festa como nunca lhes tinham feito. Deram‑lhes pancadinhas e as cobras foram acariciadas de uma forma que ambas pareceram adorar.

- Deixem‑me agarrar na Beleza, senhor Slither - disse por fim a João e pô‑la em volta do pescoço como um longo e brilhante lenço.

O tio Alberto parecia que ia vomitar. Decerto se teria levantado e ido embora não fora o facto da sua sobrinha preferida Ana estar a dormir a sono solto no seu ombro.

«Que amigos invulgares tem a Zé», pensou ele. «Devem ser pessoas boas, mas sinceramente! Com chicotes, facas e cobras, tenho de admitir que tudo isto é muito invulgar.»

- Vem alguém a subir a colina - disse a João, de repente. - Parece o Senhor Terry‑Kane e vêm três polícias com ele.

Quase de imediato todos os artistas de circo desapareceram na escuridão. Sabiam perfeitamente que a Polícia ali fora chamada não por causa deles, mas por causa do senhor Pottersham e dos seus amigos desagradáveis. Mas mesmo assim nada queriam ter a ver com os três polícias enormes que vinham a subir a colina com Terry‑Kane.

- Meu querido amigo - disse o tio Alberto. - Estou tão contente por estares bem. Disse a toda a gente que não eras um traidor e que jamais poderias sê‑lo! Fui a Londres e disse‑lhes. Estou contente por estares bem.

- Bom, estou, graças a estes jovens - disse Terry‑Kane, que parecia exausto. - Julgo que já te tenham contado toda a extraordinária e invulgar história da cara da janela.

- Sim, é tudo tão extraordinário que não acreditaria se o lesse num livro - disse o tio Alberto. - E contudo, tudo foi verdade! Meu querido amigo, deves estar muito cansado.

- E estou - disse o Terry‑Kane ‑, mas não me vou deitar e adormecer sem aqueles patifes estarem atrás das grades - o Pottersham e os seus belos amigos! Importas‑te que te deixe por uns instantes e volte ao castelo? Temos realmente de apanhar aqueles fulanos. Vim aqui perguntar se um dos miúdos podia vir connosco porque, ao que sei, é preciso percorrer todo o tipo de passagens e galerias e escadas em espiral e sabe‑se lá o que mais.

- Mas não foi por esse caminho quando Pottersham o levou para lá a primeira vez e o escondeu naquele quarto? - perguntou o David, surpreendido.

- Sim, devo ter ido - disse o Terry‑Kane. - Mas estava de olhos vendados e meio drogado com algo que me deram a beber. não faço ideia do caminho. É claro que o Pottersham conhecia o caminho de cor; ele escreveu livros sobre castelos antigos e não há quem conheça melhor castelos do que ele. E fez bem uso desse conhecimento esta semana.

- Eu vou contigo - disse a João. - Já percorri aquelas passagens quatro vezes. Conheço‑as de cor! Os outros só lá estiveram uma vez.

- Sim, vai tu - disse o Bufflo.

- Leva o Tim - disse a Zé, num gesto muito generoso, uma vez que em circunstâncias normais nunca deixaria ir o Tim com a João.

- Ou leva uma cobra - sugeriu o David com um sorriso.

- não levo nada - disse a João. - Eu ficarei bem com os três polícias fortes! Desde que não venham atrás de mim, gosto deles!

Na verdade, não gostava, mas não resistiu a gabar‑se um pouco. Partiu com o Terry‑Kane e os três polícias, a pavonear‑se um bocado e sentindo‑se uma heroína.

Todos os outros recolheram às suas roulotes, estafados. O tio Alberto sentou‑se junto à fogueira e ficou à espera da chegada de Pottersham e dos seus três amigos.

- Boa noite - disse o Júlio às raparigas. - Gostaria de esperar pelo grupo, incluindo o homem de borracha e o Alfredo, mas daqui a pouco adormeço em pé. não foi um jantar magnífico?

- Foi fixe! - disseram os outros. - Bom, até amanhã.

Todos dormiram até muito tarde no dia seguinte. A João voltou muito antes dos outros acordarem, tremendamente ansiosa por lhes contar a captura de Pottersham e dos outros e a forma como eles tinham caminhado até à esquadra, com ela atrás deles durante todo o tempo. Mas a mulher do Alfredo não a deixou acordar os quatro jovens.

Contudo, eles acordaram por fim, e levantaram‑se ansiosos ao recordarem os excitantes momentos do dia anterior. Pouco depois desceram os degraus das suas roulotes, impacientes por ouvirem as últimas novidades.

- Olá, pai! - gritou a Zé, ao avistá‑lo.

- Olá, tio Alberto! Olá, João! - disseram os outros, e pouco depois ouviram as últimas notícias da boca da João, que estava muito orgulhosa por ter participado no desfecho.

- Mas eles não ofereceram qualquer resistência - disse ela, muito desapontada. - Acho que a Beleza lhes tirou a agressividade toda ontem à noite e renderam‑se sem dizer uma palavra.

- Agora, vocês, meninos! - chamou a mulher do Alfredo. ‑

Guardei‑vos algo para o pequeno‑almoço. Querem vir?

Queriam, é claro. A João também foi, embora já tivesse tomado o pequeno‑almoço. O tio Alberto foi sentar‑se com eles. Olhava em volta, espantado com toda a animação do acampamento.

O Bufflo estava a fazer alguns truques de laço e a fazer estalar o chicote. O homem de borracha estava a passar pelos raios das rodas da roulote. O senhor Slither dava lustro às cobras. A Dacca estava a fazer sapateado sobre uma tábua, clique, clique.

O Alfredo apareceu com as suas tochas e a sua bacia de metal.

- Vou actuar para si - anunciou ele ao tio Alberto. - Quer ver‑me a comer fogo?

O tio Alberto ficou a olhar para ele como se o homem tivesse enlouquecido de vez.

- Ele é um engolidor de fogo, tio - explicou o David.

- Oh! não, obrigado. Prefiro não o ver a comer fogo - disse o tio Alberto, educada mas firmemente.

O Alfredo ficou muito desapontado. Queria fazer uma óptima actuação para aquele homem se redimir pelo facto de o ter trancado na roulote. Afastou‑se tristemente, com a mulher a gritar atrás dele.

- Seu pateta! Quem quer ver alguém a comer fogo? Tu não tens miolos. És um homem muito grande e pateta. Deixa de comer fogo!

Depois, meteu‑se na roulote e o tio Alberto seguiu‑a com o olhar, espantado com o seu acesso repentino.

- Isto é de facto um local extraordinário - disse ele. - E as pessoas são de facto extraordinárias. Eu regresso hoje a casa, Zé. Queres vir comigo? não me parece que seja bom meterem‑se em aventuras tão estranhas.

- Oh, não, pai - disse a Zé, horrorizada. - Ir para casa agora que mal nos instalámos! Claro que não. Nenhum de nós quer ir, não é, Júlio? - perguntou ela, olhando para ele implorando.

O Júlio respondeu de imediato.

- A Zé tem razão, tio. Mal nos começámos a divertir. Acho que todos concordamos com isso.

- Sim, - disseram todos, e o Tim bateu com força com a cauda no chão e soltou um sonoro uauf!

- Muito bem - disse o tio Alberto, levantando‑se. - Tenho de ir, então. Vou apanhar a camioneta à paragem. Venham comigo.

Foram vê‑lo partir na camioneta. Chegou bem a horas e ele entrou.

- Adeus - disse ele. - Que recado dou à tua mãe, Zé? Ela está a contar ouvir qualquer coisa dos cinco.

- Bem - gritaram todos, enquanto a camioneta se afastava ‑, diga‑lhe que os cinco estão a divertir‑se a valer! Adeus, tio Alberto, adeus!

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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