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Ela era de estatura mediana e ele, Gérard Van Bever, ligeiramente mais baixo. Na noite de nosso primeiro encontro, naquele inverno de trinta anos atrás, eu os acompanhara até um hotel do Cais de La Tournelle, e me encontrara no quarto deles. Duas camas, uma perto da porta e outra embaixo da janela. Esta não dava para a rua, e me parece que era em forma de mansarda.
Não notara qualquer desordem no quarto. As camas estavam feitas. Não havia malas. Não havia roupas. Nada além de um grande despertador, numa das mesas-de-cabeceira. E, apesar do despertador, eles pareciam morar ali de maneira clandestina, evitando deixar vestígios de sua presença. Aliás naquela primeira noite, ficáramos apenas um breve instante no quarto, só o tempo de ali deixar as obras de arte que eu estava cansado de carregar, e que não conseguira vender a um livreiro da praça Saint-Michel.
E fora justamente na praça Saint-Michel que eles me abordaram ao cair da tarde, no meio da torrente de pessoas tragadas pela boca do metrô e daquelas que, em sentido inverso, subiam o bulevar. Perguntaram-me onde poderiam encontrar um correio ali perto. Eu receara que minhas explicações fossem demasiado vagas, pois jamais soube indicar o mais curto trajeto de um ponto a outro. Então preferira guiá-los eu mesmo até o correio do Odéon. No caminho ela havia parado num bar e comprara três selos. Colara-os no envelope,o que me deu tempo de ler:Maiorca.
Enfiara a carta numa das caixas sem verificar se era mesmo aquela onde estava escrito:Exterior-via aérea.Havíamos dado meia volta em direção à Praça Saint-Michel e ao cais.Ela ficara preocupada ao me ver carregar os livros porque "deviam ser pesados".Depois dissera a Gérard Van Bever,com voz seca:
-Você bem que poderia ajudá-lo.
Ele sorrira e pegara um dos livros, o maior,colocando-o debaixo do braço.
No quarto deles, no Cais de La Tournelle, eu pousara os livros ao pé da mesa-de-cabeceira, aquela onde estava o despertador. Não ouvia o tique-taque. Os ponteiros marcavam três horas. Uma mancha no travesseiro. Ao me curvar para pousar os livros, sentira um cheiro de éter que pairava sobre aquele travesseiro e aquela cama. Seu braço me roçara, e ela acendera a lâmpada da mesa-de-cabeceira.
Jantáramos num café, no cais, perto do hotel deles. Só pedíramos o prato principal do cardápio. Van Bever pagara a conta. Naquela noite eu estava sem dinheiro, e Van Bever achava que lhe faltavam cinco francos. Vasculhara os bolsos do sobretudo e do paletó, e acabara por juntar a o quantia em moedinhas. Ela o deixava agir e o fixava com um olhar distraído, enquanto fumava um cigarro. Fizera com que repartíssemos o que pedira, contentando-se em pegar algumas garfadas do prato de Van Bever. Voltara-se para mim e me dissera, com sua voz meio rouca:
— Na próxima vez, iremos a um restaurante de verdade...
Mais tarde, ficáramos ambos diante da porta do hotel, enquanto Van Bever ia buscar meus livros no quarto. Eu rompera o silêncio perguntando-lhe se fazia muito tempo que moravam aqui, e se vinham do interior ou do estrangeiro. Não, eram originários dos arredores de Paris. Já fazia dois meses que moravam aqui. Isso fora tudo o que ela me dissera, naquela noite. E seu primeiro nome: Jacqueline.
Van Bever voltara e me devolvera meus livros. Queria saber se eu ainda tentaria vendê-los no dia seguinte, e se esse tipo de comércio era lucrativo. Disseram que poderíamos nos rever. Era difícil marcar encontro numa hora precisa, mas eles costumavam estar num café, na esquina da rua Dante.
Às vezes volto ali, em meus sonhos. Outro dia, um sol poente de fevereiro me ofuscava, ao longo da rua Dante. Ela não mudara, passado todo esse tempo.
Parei diante do terraço envidraçado e olhei o balcão, o flipper e as poucas mesas dispostas como que em volta de uma pista de dança.
Quando cheguei ao meio da rua, o grande prédio em frente, no bulevar Saint-Germain, projetava ali sua sombra. Mas, atrás de mim, a calçada ainda estava ensolarada.
Ao despertar, o período de minha vida em que conhecera Jacqueline me apareceu sob o mesmo contraste de sombra e luz. Ruas embaçadas, hibernais, e também o sol que se filtra através das fendas das persianas.
Gérard Van Bever usava um sobretudo riscado em ziguezague, demasiado grande para ele. Posso revê-lo de pé, no café da rua Dante, diante doflipper. Mas é Jacqueline quem joga. Os braços e o busto mal se mexem, enquanto se sucedem os estalidos e os sinais luminosos do flipper. O sobretudo de Van Bever era largo, e chegava até abaixo dos joelhos. Ele se mantinha muito empertigado, com o colarinho abaixado, as mãos nos bolsos. Jacqueline vestia uma blusa cinza de gola rulê com enfeites trançados e um casaco marrom de couro macio.
Na primeira vez em que os encontrei, na rua Dante, Jacqueline virou-se para mim, sorriu e continuou sua partida de flipper. Sentei-me a uma mesa. Os braços e o busto me pareciam delicados, diante do aparelho pesado, cujas sacudidelas podiam jogá-la para trás,de repente. Esforçava-se por permanecer de pé, como alguém que corre o risco de perder o equilíbrio e cair. Voltou para a mesa onde eu estava, e Van Bever foi se postar diante doflipper. No início, espantou-me que eles jogassem aquele jogo durante tanto tempo. Muitas vezes era eu que interrompia a partida, senão ela continuaria indefinidamente.
No começo da tarde, não havia quase ninguém no café, mas a partir das seis horas os clientes se amontoavam em volta do balcão e das poucas mesas da sala. Eu não distinguia logo Van Bever e Jacqueline, no meio da algazarra das conversas, dos estalidos do flipper e daquelas pessoas apertadas umas contra as outras. No início, percebia o sobretudo riscado em ziguezague de Van Bever, e depois Jacqueline. Viera várias vezes sem encontrá-los, e sempre esperara muito tempo, sentado a uma mesa. Pensava que nunca mais teria oportunidade de encontrá-los, e que se tinham perdido na multidão e no alarido. E um dia, no início da tarde, no fundo da sala deserta, eles estavam ali, um junto ao outro, diante do flipper.
Mal me lembro dos outros detalhes daquele período de minha vida Quase esqueci os rostos de meus pais. Morara ainda durante algum tempo no apartamento deles, depois abandonara os estudos e ganhava dinheiro vendendo livros antigos.
Foi pouco depois de ter conhecido Jacqueline e Van Bever que morei num hotel vizinho ao deles, o Hotel de Lima. Eu me envelhecera um ano, modificando a data de nascimento que constava em meu passaporte, de modo que atingira a maioridade.
Na semana que precedeu minha chegada ao Hotel de Lima, como não sabia onde dormir, eles me entregaram a chave de seu quarto, e partiram para um daqueles cassinos da província que estavam habituados a freqüentar.
Antes de nosso encontro, começaram pelo cassino de Enghien e dois ou três outros cassinos de pequenas estações balnearias normandas. Depois se fixaram em Dieppe, Forges-les-Eauxe Bagnolesde-1’Orne. Partiam no sábado e voltavam na
segunda-feira,com o dinheiro que haviam ganho, e que jamais ultrapassava mil francos. Van Bever descobrira uma combinação engenhosa ”em volta do cinco neutro” — como ele dizia, mas isso só podia ser produtivo se a pessoa apostasse quantias modestas na roleta.
Jamais os acompanhei a esses lugares. Esperava-os até a segunda-feira, sem deixar o bairro. Depois, ao fim de certo tempo, Van Bever ia a ”Forges”
— segundo sua expressão —, pois era menos longe que Bagnoles-de-1’Orne, e Jacqueline ficava em Paris.
Durante as noites que passei sozinho no quarto deles, sempre pairava ali aquele cheiro de éter. O frasco azul estava arrumado no aparador do lavabo. O armário continha roupas: um casaco de
homem, uma calça, um sutiã e um daqueles pulôveres cinzentos de gola rulê que Jacqueline usava.
Eu dormira mal aquelas noites. Acordava e já não sabia onde estava. Demorava um bom tempo até reconhecer o quarto. Se me tivessem feito perguntas sobre Van Bever e Jacqueline, teria ficado muito embaraçado para responder e para justificar minha presença ali. Será que eles voltariam? Acabava por duvidar. O homem que ficava na entrada do hotel, por trás de um balcão de madeira escura, não se incomodava que eu subisse para o quarto e que guardasse a chave comigo. Cumprimentava-me com um aceno de cabeça.
Na última noite, eu acordara por volta das cinco horas e não conseguia adormecer de novo. Creio que estava na cama de Jacqueline, e o tique-taque do despertador era tão forte que quis guardá-lo no armário ou escondê-lo debaixo de um travesseiro. Mas tinha medo do silêncio. Então me levantara e saíra do hotel. Caminhara pelo cais até as grades do Jardin des Plantes, depois entrara no único café que já estava aberto, em frente à estação ferroviária de Austerlitz.
Na semana anterior, eles tinham ido jogar no cassino de Dieppe e haviam voltado muito cedo, de manhã. Hoje ia ser a mesma coisa. Mais uma ou duas horas esperando... Os suburbanos saíam da estação ferroviária de Austerlitz cada vez em maior número; tomavam um café no balcão e mergulhavam na boca do metrô. Ainda estava escuro. Eu ladeava de novo as grades do Jardin des Plantes e depois as do antigo Mercado de Vinhos.
De longe, percebi as silhuetas deles. O sobretudo riscado em ziguezague de Van Bever fazia uma mancha clara na noite. Ambos estavam sentados num banco, do outro lado do cais, diante das longas caixas fechadas dos vendedores de livros usados. Acabavam de chegar de Dieppe. Tinham batido à porta do quarto, mas ninguém respondia. E momentos antes eu saíra com a chave no bolso.
Minha janela, no Hotel de Lima, dava para o bulevar Saint-Germain e para o alto da rua des Bernardins. Quando estava esticado na cama, via recortar-se na moldura da janela o campanário de
uma igreja cujo nome esqueci. E as horas soavam durante a noite, depois que se extinguia o ruído do trânsito. Muitas vezes Jacqueline e Van Bever me acompanhavam na volta. Tínhamos ido jantar num restaurante chinês. Assistíramos a uma sessão de cinema.
Naquelas noites, nada nos distinguia dos estudantes com os quais cruzávamos no bulevar Saint-Michel. O sobretudo um pouco gasto de Van Bever e o casaco de couro de Jacqueline
fundiam-se no cenário melancólico do Quartier Latin. Quanto a mim, usava uma velha capa de chuva cujo bege se sujara, e tinha livros na mão. Não, realmente não sei o que em nós poderia ter chamado a atenção.
Eu escrevera na ficha do Hotel de Lima que era "estudante do curso superior de letras”, mas era pura formalidade, pois o homem que ficava na recepção jamais me pedira a mínima informação. Bastava que eu pagasse o quarto todas as semanas. Num dia em que saía com uma sacola de livros para tentar vendê-los a um livreiro conhecido meu, ele me dissera:
— Então, os estudos vão bem?
No início eu pensara sentir certa ironia em sua voz. Mas ele estava mesmo falando sério.
O Hotel de La Tournelle oferecia a mesma tranqüilidade que o de Lima. Van Bever e Jacqueline eram os únicos clientes. Explicaram-me que o hotel ia fechar em breve e seria transformado em edifício residencial. Aliás, durante o dia, ouviam-se marteladas nos quartos vizinhos.
Teriam eles preenchido uma ficha, e qual seria sua profissão? Van Bever respondeu-me que em seus documentos constava ”vendedor ambulante”, mas eu não sabia se ele gracejava. Jacqueline deu de ombros. Não tinha profissão. Vendedor ambulante: afinal de contas, eu também poderia ter reivindicado esse título, já que passava o tempo a transportar livros de uma livraria para outra.
Fazia frio. A neve derretida na calçada e nos cais, os tons pretos e cinzentos do inverno retornam à minha memória. E Jacqueline sempre saía com seu casaco de couro demasiado leve para a estação.
A primeira vez que Van Bever partiu sozinho para Forges-les-Eaux e Jacqueline permaneceu em Paris era justamente um desses dias de inverno. Atravessamos o Sena para acompanhar Van Bever até a estação de metrô Pont-Marie, pois ele devia pegar o trem em Saint-Lazare. Disse-nos que talvez fosse também ao cassino de Dieppe, e que desejava ganhar mais dinheiro do que de costume. Seu sobretudo riscado em ziguezague desapareceu na boca do metrô, e ficamos só nós dois, Jacqueline e eu.
Sempre a vira em companhia de Van Bever, sem que se apresentasse a oportunidade de realmente falar com ela. Aliás, acontecia-lhe não pronunciar uma palavra durante toda uma noite. Ou então, às vezes pedia num tom seco a Van Bever para ir buscar cigarros, como se desejasse livrar-se dele. E de mim também. Mas pouco a pouco eu me habituara a seus silêncios e a sua brusquidez.
Naquele dia, no momento em que Van Bever descia os degraus do metrô, pensei que ela lamentava não ter partido com ele, como de costume. Seguíamos pelo cais do Hôtel-de-Ville, em vez de passar para a margem esquerda do Sena. Ela não falava. Eu esperava que se despedisse de mim a qualquer momento. Nada disso. Continuava a caminhar a meu lado.
Flutuava uma bruma sobre o Sena e os cais. Jacqueline devia estar gelada naquele casaco de couro demasiado leve. Ladeávamos a praça de 1’Archevêché, na ponta da ilha da Cité, e ela teve um acesso de tosse. Acabou recobrando o fôlego. Disse-lhe que devia beber alguma coisa quente, e entramos no café da rua Dante.
Reinava ali a habitual algazarra do fim da tarde. Duas silhuetas estavam diante do flipper, mas Jacqueline não tinha vontade de jogar. Pedi um grogue, que ela bebeu fazendo uma careta, como se estivesse engolindo veneno. Disse-lhe:
— A senhora não devia sair com esse casaco.
Desde que nos conhecêramos, não conseguia
chamá-la de você, pois ela punha uma espécie de distância entre nós dois.
Estávamos sentados a uma mesa do fundo, bem perto do flipper. Ela curvou-se para mim e me disse que só não acompanhara Van Bever porque não se sentia em boa forma. Falava muito baixo, e aproximei o rosto do dela. Nossas testas quase se tocavam. Fez uma confidencia: assim que o inverno terminasse, esperava deixar Paris. Para onde iria?
— Para Maiorca...
Lembrei-me da carta que ela pusera no correio no dia de nosso primeiro encontro, em cujo envelope estava escrito: Maiorca.
— Mas seria melhor se pudéssemos partir amanha...
Bruscamente, ficou muito pálida. Um de nossos vizinhos fincara um cotovelo na beirada da nossa mesa, como se não nos visse, e continuava uma conversa com a pessoa em frente. Jacqueline refugiara-se na ponta do banco. Os estalidos doflipper me oprimiam.
Eu, por minha vez, também pensava em partir quando a neve tivesse derretido nas calçadas
e quando estivesse usando meus velhos mocassins.
— Por que esperar o fim do inverno? — perguntei. Ela me sorriu.
— Primeiro precisaríamos ter economias.
Acendeu um cigarro. Tossiu. Fumava demais. E sempre os mesmos cigarros com cheiro um pouco insípido, de fumo lavado francês.
— Não será vendendo seus livros que poderemos ter economias. Eu estava feliz por ela dizer ”nós”, como se dali em diante estivéssemos os dois ligados para o futuro.
— Certamente Gérard vai trazer muito dinheiro de Forges-les-Eaux e de Dieppe — disse eu.
Ela deu de ombros.
— Faz seis meses que jogamos repetindo a combinação dele, mas isso não nos rende muito.
Aquela combinação engenhosa ”em volta do cinco neutro” não parecia convencê-la.
— Conhece Gérard há muito tempo?
— Sim... Nós nos conhecemos em Athis-Mons, na periferia de Paris...
Fitava-me direto nos olhos, em silêncio. Com certeza queria me dar a entender que não havia mais nada para dizer sobre aquele assunto.
— Então é de Athis-Mons?
— Sou.
Lembrava-mebem do nome daquela cidade, próximo de Ablon, onde morava um amigo meu. Ele pedia emprestado o carro dos pais e, à noite, me levava a Orly. Freqüentávamos o cinema e um dos bares do aeroporto. Ficávamos até muito tarde escutando os anúncios de chegadas e partidas de aviões para seus destinos longínquos e perambulávamos pelo grande saguão. Quando ele me trazia de volta a Paris, não pegávamos a auto-estrada, mas fazíamos um desvio por Villeneuve-le-Roi, Athis-Mons e outras pequenas cidades da periferia sul... Naquela época eu poderia ter cruzado com Jacqueline.
— A senhora já viajou muito?
Era uma dessas perguntas que servem para reanimar uma conversa banal, e eu a formulara num tom de falsa indiferença.
— Viajar, propriamente, não — respondeu ela.
— Mas agora, se conseguirmos ter um pouco de dinheiro...
Falava ainda mais baixo, como se desejasse me confiar um segredo. E era difícil ouvi-la, por causa de todo aquele alarido à nossa volta. Debruçava-me para ela, de novo nossas testas quase se tocavam.
— Gérard e eu conhecemos um americano que escreve romances... Vive em Maiorca... Vai nos arranjar uma casa lá... É um cara que encontramos na livraria inglesa, no cais.
Eu ia ali com freqüência. Essa livraria compunha-se de um labirinto de salinhas cobertas de volumes, nas quais qualquer um podia isolar-se. Os clientes vinham de longe e ali faziam escala. Ficava aberta até muito tarde. Eu comprara ali alguns romances da coleção Tauchnitz, que tentara revender. Prateleiras ao ar livre, com assentos e até um sofá. Parecia um terraço de café. Dali se via a Notre-Dame. E contudo, assim que a pessoa entrava, podia imaginar que estava em Amsterdã ou em San Francisco.
Assim, a carta que ela pusera no correio no Odéon era endereçada àquele ”americano que escrevia romances”... Como se chamava? Talvez eu já tivesse lido algum de seus livros...
— William Mc Givern...
Não,não conhecia esse Mc Givern.Acendeu outro cigarro. Tossiu. Continuava pálida como antes.
— Devo ter apanhado uma gripe — disse.
— Devia tomar outro grogue.
— Não, obrigada.
De repente parecia preocupada.
— Espero que tudo corra bem com Gérard...
— Eu também...
—- Fico sempre preocupada quando Gérard não está aqui...
Ela pronunciara ”Gérard”, alongando as sílabas, de um modo muito terno. Claro, às vezes
era brusca com ele, mas segurava seu braço na rua, ou pousava a cabeça em seu ombro, quando estávamos sentados a uma das mesas do Café Dante. Numa tarde em que eu batera à porta do quarto deles, ela me mandara entrar, e estavam os dois estendidos numa das camas estreitas — a que ficava perto da janela.
— Não posso passar sem Gérard...
Deixara escapar a frase como se falasse consigo mesma e tivesse esquecido minha presença. De repente eu estava sobrando. Talvez fosse melhor deixá-la sozinha. E no momento em que procurava um pretexto para me despedir, ela pousou o olhar sobre mim, primeiro um olhar ausente. Depois acabou por me ver.
Fui eu que rompi o silêncio:
— E sua gripe, melhorou?
— Preciso arranjar uma aspirina. Conhece alguma farmácia aqui perto?
Em suma, meu papel, até então, consistia em indicar a eles as farmácias e os correios mais próximos.
Havia uma, perto do meu hotel, no bulevar Saint-Germain. Ela não comprou só aspirina, mas também um frasco de éter. Caminhamos ainda por alguns instantes juntos até a esquina da rua des Bernardins. Parou diante da entrada do meu hotel.
— Encontramo-nos para jantar, se quiser.
Apertou minha mão. Sorriu-me. Tive de me conter para não lhe pedir para ficar com ela.
— Venha me buscar por volta das sete horas
— disse. Virou a esquina. Não pude deixar de
vê-la afastar-se na direção do cais, com seu casaco de couro tão pouco próprio para o inverno. Enfiara as mãos nos bolsos.
Fiquei no quarto a tarde toda. Já não havia aquecimento, e me estendera na cama sem tirar o sobretudo. De vez em quando, caía numa sonolência, ou então fixava um ponto do teto, pensando em Jacqueline e em Gérard Van Bever.
Teria ela voltado a seu hotel? Ou teria um encontro em algum lugar de Paris? Lembrei-me de uma noite em que me deixara sozinho com Van Bever. Ambos tínhamos ido ver um filme, na última sessão, e Van Bever parecia preocupado. Se me arrastara para o cinema, era simplesmente para que o tempo passasse mais depressa. Por volta da uma hora da manhã, tínhamos encontrado Jacqueline num café da rua Cujas. Não nos dissera como ocupara sua noite. Aliás, Van Bever não lhe fizera qualquer pergunta, como se minha presença os impedisse de falar com toda a liberdade. Naquela noite eu estava sobrando. Acompanharam-me devolta ao Hotel de Lima. Guardavam silêncio. Era uma sexta-feira, a véspera do dia em que
partiam, como costumavam, para Dieppe ou
Forges-les-Eaux. Eu lhes perguntara a que horas pegariam o trem.
— Amanhã; hoje ficamos em Paris — dissera Van Bever com voz seca.
Deixaram-me diante da entrada do hotel. Van Bever me dissera ”até amanhã”, sem me apertar a mão. Quanto a Jacqueline, sorrira-me com um sorriso um tanto constrangido. Parecia apreensiva por ficar sozinha com Van Bever, e teria preferido a presença de um terceiro. No entanto, quando se afastavam, vi que Van Bever tomara o braço de Jacqueline. Que diziam um ao outro? Jacqueline justificava-se de algo? Van Bever a censurava? Ou era eu que estava imaginando coisas?
Quando saí do hotel, fazia muito tempo que a noite caíra. Passando pela rua des Bernardins cheguei ao cais. Bati à sua porta. Ela veio abrir. Usava um de seus pulôveres cinzentos de tranças e gola rulê, e a calça preta apertada nos tornozelos. Estava descalça. A cama, perto da janela, estava desfeita, e as cortinas puxadas. Tinham tirado o abajur da luminária da
mesa-de-cabeceira, mas a lâmpada minúscula produzia zonas de sombra. E sempre aquele cheiro de éter, ainda mais forte do que de costume.
Ela sentou-se na beira da cama, e eu na única cadeira que ficava encostada na parede, perto do lavabo.
Perguntei-lhe se estava melhor.
— Um pouquinho...
Surpreendeu meu olhar, que pousara no frasco de éter destampado, no meio da mesa-de-cabeceira. Com certeza viu que eu sentia o cheiro.
— Uso isso para evitar a tosse...
E, num tom de alguém que procura justificar-se, repetiu:
— É, sim... é muito bom para a tosse.
E, como percebesse que eu estava disposto a acreditar, disse:
— Nunca experimentou?
— Não.
Estendeu-me um chumaço de algodão embebido em éter. Hesitei alguns segundos antes de pegá-lo, mas se aquilo podia criar um elo entre nós... Aspirei o algodão, depois o frasco de éter. Ela, por sua vez, fez o mesmo. Um frescor invadiu-me os pulmões. Estava estendido a seu lado. Apertados um contra o outro, caíamos no vazio. A sensação de frescor era cada vez mais forte, e o tique-taque do despertador se destacava no silêncio, cada vez mais nítido, a ponto de eu poder ouvir seu eco.
Saímos do hotel por volta das seis da manhã, e andamos até o café da rua Cujas, que ficava aberto a noite inteira. Fora ali que haviam marcado encontro comigo na semana anterior, quando voltaram de Forges-les-Eaux. Tinham chegado por volta das sete horas, e tínhamos tomado café da manhã juntos. No entanto, não estavam com a aparência de quem acaba de passar a noite em claro, e mostravam-se muito mais animados do que de costume. Sobretudo Jacqueline. Tinham ganhado dois mil francos.
Dessa vez, Van Bever não voltaria de Forges de trem, mas no carro de uma pessoa que haviam conhecido no cassino de Langrune e que morava em Paris. Ao sair do hotel, Jacqueline dissera-me que ele talvez já estivesse na rua Cujas.
Perguntei-lhe se não preferia ir encontrá-lo sozinha e se minha presença era realmente necessária. Mas ela deu de ombros e disse-me que queria que eu a acompanhasse.
Não havia ninguém mais além de nós no café. A luz dos néons me ofuscou. Lá fora ainda estava escuro, e eu perdera a noção do tempo. Estávamos sentados lado a lado no banco, perto da grande janela envidraçada, e eu tinha a sensação de que a noite estava começando.
Através da vidraça, vi um carro preto parar na altura do café. Van Bever saltou, com seu sobretudo riscado em ziguezague. Curvou-se para o motorista antes de bater a porta. Procurou-nos com o olhar, mas não nos viu. Pensava que estivéssemos no fundo da sala.
Seus olhos piscavam por causa dos néons. Depois veio sentar-se diante de nós.
Não parecia surpreso com minha presença, ou estaria cansado demais para se fazer perguntas? Pediu logo um café duplo e croissants.
— Afinal fui a Dieppe...
Continuava com o sobretudo e a gola levantada. Curvava as costas e mergulhava a cabeça nos ombros, atitude que lhe era familiar quando estava sentado, e que me lembrava a de um jóquei. De pé, ao contrário, mantinha-se muito ereto, como se desejasse parecer mais alto.
— Ganhei três mil francos em Dieppe...
Dissera aquilo com uma ponta de desafio. Talvez assim marcasse seu descontentamento por eu estar com Jacqueline. Tomara a mão dela. Ignorava-me.
— Que bom — comentou Jacqueline. Ela acariciava a mão dele.
— Poderiam comprar uma passagem de avião para Maiorca— disse eu.
Van Bever lançou-me um olhar espantado.
— Falei-lhe de nossos projetos — disse Jacqueline.
— Então o senhor já sabe? Espero que venha conosco...
Não, decididamente ele não parecia zangado com minha presença. Mas continuava a me chamar de senhor. Eu tentara várias vezes chamá-lo de você. Sem sucesso. Sempre me respondia com ”o senhor”.
— Irei se quiserem minha companhia — respondi.
— Mas claro que queremos — disse Jacqueline.
Sorria para mim. Agora, pousara a mão sobre a dele. O garçom trazia os cafés e os croissants.
— Faz vinte e quatro horas que não como nada — observou Van Bever.
Seu rosto estava pálido sob os néons, e tinha olheiras. Devorava vários croissants, um atrás do outro.
— Agora está melhor... Ainda há pouco, no carro, eu adormeci...
Quanto a Jacqueline, parecia em melhor forma. Já não tossia. Efeito do éter? Imaginei se não tinham sido um sonho as horas passadas com ela, aquela sensação de vazio, de frescor e de leveza, nós dois na cama demasiado estreita, as sacudidelas que nos tomavam como um turbilhão, o eco de sua voz, que ressoava mais forte que o
tique-taque do despertador. Ela me chamara de você. Agora dizia ”o senhor”. E Gérard Van Bever estava ali. Seria preciso esperar de novo que ele fosse a Forges-les-Eaux ou a Dieppe, e nem sequer era certo que ela ficasse em Paris comigo.
— E o senhor, o que fez?
Por um instante, tive a impressão de que ele suspeitava alguma coisa. Mas fizera aquela pergunta com ar distraído, talvez por rotina.
— Nada de especial — disse Jacqueline. — Fomos ao cinema. Fitava-me direto nos olhos, como se quisesse me fazer cúmplice daquela mentira. Continuava com a mão sobre a dele.
— E que filme viram?
— Moonfleet— respondi.
— Era bom?
Afastou a mão da de Jacqueline.
— Muito bom.
Observou-nos com atenção, um após o outro. Jacqueline sustentou seu olhar.
— Gostaria muito que me contassem o filme... Mas num outro dia... tem tempo...
Adotara um tom irônico, e eu notava uma leve apreensão no rosto de Jacqueline. Ela franzia as sobrancelhas. Acabou dizendo:
— Quer voltar para o hotel?
De novo, pegara a mão dele. Esquecia minha presença.
— Já, não... Vou tomar outro café...
— Depois voltamos para o hotel — repetiu ela, com voz terna.
Bruscamente me dava conta da hora matinal, e estava desiludido. Tudo o que fizera o encanto daquela noite se dissipava. Nada além de uma moça morena, com um casaco de couro marrom, tez pálida, sentada diante de um cara de sobretudo riscado em ziguezague. Estavam de mãos dadas num café do Quartier Latin. Iam voltar juntos para o hotel. E um novo dia de inverno começava, após tantos outros. Seria preciso ainda vagar pela atmosfera cinzenta do bulevar Saint-Michel, em meio a toda aquela gente que caminhava para suas escolas ou faculdades. Tinham a minha idade, mas para mim eram estrangeiros. Mal compreendia sua língua. Um dia, confiara a Van Bever que gostaria de mudar de bairro, pois me sentia mal no meio de todos aqueles estudantes. Ele me dissera:
— Seria um erro. Com eles, não chamamos a atenção. Jacqueline virara a cabeça, como se o assunto não lhe interessasse, e temesse que Van Bever me fizesse confidências.
— Por quê? — eu perguntara. — O senhor tem medo de chamar a atenção?
Ele não me respondera. Mas eu não precisava de explicações. Também estava sempre com medo de ser notado.
— Então? Vamos voltar para o hotel?
Ela continuava a falar com aquela voz terna. Acariciava a mão dele. Lembrei-me do que dissera à tarde, no Café Dante: ”Não posso passar sem Gérard.” Iam entrar no quarto. Será que iam cheirar éter, como havíamos feito na véspera? Não. Pouco antes, quando deixáramos o hotel, Jacqueline tirara do bolso do casaco o frasco de éter e o jogara numa abertura de esgoto, um pouco adiante, no cais.
— Prometi a Gérard não usar mais essa porcaria.
Aparentemente eu não lhe inspirava tais escrúpulos. Estava decepcionado, mas também experimentava uma sensação perturbadora de cumplicidade, pois era comigo que ela desejara partilhar aquela
”porcaria”.
Acompanhei-os até o cais. No momento de entrar no hotel, Van Bever me estendeu a mão. — Até logo. Ela evitava meu olhar.
— Encontramo-nos um pouco mais tarde no Café Dante —disse.
Vi quando subiam a escada. Ela o segurava pelo braço. Eu estava ali, imóvel, na entrada. Depois ouvi a porta do quarto deles fechar-se.
Segui o Cais de La Tournelle, ao longo dos plátanos desnudados, dentro da neblina e do frio úmido. Ao menos me sentia aliviado por estar usando botas quentes, mas aquele quarto mal aquecido e a cama de madeira marrom me causavam uma ligeira apreensão. Van Bever ganhara três mil francos em Dieppe. Como poderia eu arranjar uma quantia tão expressiva? Tentava avaliar os poucos livros que me restavam para vender. Não era grande coisa. De qualquer modo, se estivesse com muito dinheiro, creio que isso teria deixado Jacqueline totalmente indiferente.
Ela me dissera: ”Encontramo-nos um pouco mais tarde no Café Dante.” Não se definira. Então seria preciso esperá-los uma tarde, depois outra, como fizera da primeira vez. E à medida que esperasse, um pensamento acabaria por me ocupar o espírito: ela já não queria me ver, por causa do que acontecera entre nós, na noite passada. Eu me tornara uma testemunha constrangedora.
Subia de novo o bulevar Saint-Michel, e tinha a impressão de percorrer há muito tempo as mesmas calçadas, prisioneiro daquele bairro, sem razões precisas. Menos uma: tinha no bolso uma carteira de estudante falsa para estar em ordem, e por conseguinte era melhor freqüentar um bairro de estudantes.
Quando cheguei diante do Hotel de Lima, hesitei em entrar. Mas não podia ficar o dia inteiro fora, no meio daquelas pessoas que carregavam pastas de couro e mochilas, e que se dirigiam aos liceus, à Sorbonne, à escola de engenharia. Estendi-me na cama. O quarto era pequeno demais para que eu pudesse fazer outra coisa: nem cadeira nem poltrona.
O campanário da igreja recortava-se na moldura da janela, e também os galhos de um castanheiro, que eu lamentava não estarem cobertos de folhagem, mas teria de esperar ainda um mês pela primavera. Não me lembro mais se pensava no futuro, naquele tempo. Antes penso que vivia no presente, com vagos projetos de fuga, como hoje, e a esperança de reencontrar Jacqueline e ele, dali a pouco, no Café Dante.
Foi mais tarde, por volta de uma hora da manhã, que me apresentaram Cartaud. À noite, eu os havia esperado em vão no Café Dante, e não ousara passar no seu hotel. Comera um prato num dos restaurantes chineses da rua du Sommerard. A perspectiva de nunca mais rever Jacqueline me tirava o apetite. Então tentava me acalmar: eles não deixariam o hotel de uma hora para outra e, mesmo que saíssem, deixariam com o porteiro o endereço para mim. Mas que motivos precisos teriam para me deixar o endereço? Paciência, eu iria me arrastar à procura deles, no sábado e no domingo, nos cassinos de Dieppe e de Forges-les-Eaux.
Fiquei muito tempo na livraria inglesa do cais, perto de
Saint-Julien-le-Pauvre. Comprei ali um livro: A High Wind in Jamaica, que lera quando tinha uns quinze anos, em francês, com o título de Un Cyclone à la jamaíque [Um ciclone na Jamaica]. Caminhei ao acaso, antes de esbarrar em outra livraria, também aberta até tarde, na rua Saint-Séverin. Depois voltei para o quarto e tentei ler.
Saí de novo, e meus passos me arrastaram para o café da rua Cujas, onde estivéramos juntos de manhã. Senti um aperto no coração: estavam sentados à mesma mesa, perto da janela, em companhia de um homem moreno. Van Bever estava à sua direita. Eu só via Jacqueline diante deles, sozinha no banco, com os braços cruzados. Estava ali, por trás da vidraça, na luz amarela, e lamento não retroceder no tempo. Iria reencontrar-me na calçada da rua Cujas, no mesmo lugar de outrora, mas tal como sou hoje, e não teria qualquer dificuldade em tirar Jacqueline daquele aquário, para traze-la de volta ao ar livre.
Estava constrangido por me dirigir à mesa deles, como se quisesse surpreendê-los. Ao me ver, Van Bever fez-me um sinal amistoso com a mão. Quanto a Jacqueline, sorriu-me sem manifestar a menor surpresa. Foi Van Bever que me apresentou ao outro:
— Pierre Cartaud...
Apertei-lhe a mão e me sentei no banco, ao lado de Jacqueline.
— Estava passando pelo bairro? — perguntou Van Bever, no tom polido com que se dirigiria a um conhecido distante.
— Sim... Totalmente por acaso...
Estava decidido a permanecer no meu lugar, no banco. Jacqueline evitava meus olhares. Seria a presença de Cartaud que os tornava tão distantes comigo? Sem dúvida, eu interrompera sua conversa.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou Cartaud. Tinha uma voz grave, bem empestada, de alguém que tem o hábito de falar e de convencer.
— Um suco de romã.
Era um homem mais velho que nós, de cerca de 35 anos. Moreno, traços regulares. Usava terno cinza.
À saída do hotel, eu enfiara no bolso da minha capa de chuva o exemplar de AHigh Wind in Jamaica. Tranqüilizava-me guardar comigo, permanentemente, um romance de que gostava. Coloquei-o sobre a mesa, enquanto procurava no fundo do bolso um maço de cigarros, e Cartaud notou o livro.
— O senhor lê inglês?
Respondi-lhe que sim. Como Jacqueline e Van Bever ficaram calados, acabou por dizer:
— Faz tempo que se conhecem?
— Encontramo-nos no bairro — disse Jacqueline.
— Ah, bem... Entendo...
Que é que ele entendia, exatamente? Acendeu um cigarro.
— E o senhor os acompanha também aos cassinos?
— Não.Van Bever e Jacqueline continuavam reservados. Afinal, em que
é que minha presença poderia embaraçá-los?
— Então nunca os viu jogar três horas seguidas na boule... Deu uma risada.
Jacqueline virou-se para mim.
— Nós o conhecemos em Langrune — disse.
— Logo me chamaram a atenção — disse Cartaud. —Tinham um modo tão peculiar de jogar...
—- Peculiar por quê? — indagou Van Bever, num tom falsamente cândido.
—Aliás, perguntamo-nos o que afinal o senhor estaria fazendo em Langrune — disse Jacqueline, lançando-lhe um sorriso.
Van Bever voltara a sua atitude habitual de jóquei: costas encurvadas, cabeça nos ombros. Aparentava estar pouco à vontade.
— Joga no cassino? — perguntei a Cartaud.
—Jogar, propriamente, não. Acho divertido entrar ali, assim... nas horas vagas...
E qual seria sua atividade fora das horas vagas?
Pouco a pouco, Jacqueline e Van Bever se descontraíram. Teriam receado que eu pronunciasse uma palavra que pudesse descontentar Cartaud, ou então que ele revelasse na conversa algo que ambos desejavam esconder-me?
— E na semana que vem... E Forges? Cartaud lhes lançava um olhar divertido.
— Melhor Dieppe — disse Van Bever.
— Eu poderia levá-los lá de carro. É muito rápido... Virou-se para Jacqueline e para mim:
— Ontem, levamos pouco mais de uma hora para retornar de Dieppe...
Assim, fora ele que trouxera Van Bever de volta a Paris. Lembrei-me do carro preto, estacionado na rua Cujas.
— Seria muita gentileza sua — disse Jacqueline. — É tão aborrecido pegar o trem toda vez...
Fitava Cartaud com um jeito engraçado, como se estivesse impressionada com ele, e não pudesse defender-se de certa admiração. Teria Van Bever notado isso?
— Ficaria encantado por lhes prestar esse favor — disse Cartaud. — Espero que o senhor nos acompanhe...
Fixava-me com seu olhar irônico. Parecia que a partir daquele momento estabelecera um julgamento sobre mim, e que eu lhe inspirava uma ligeira condescendência.
— Não freqüento os cassinos da província — disse-lhe, secamente.
Aquilo o atingiu. Jacqueline também ficou surpresa com minha resposta. Van Bever não se mexeu.
— É um erro. Os cassinos da província são muito divertidos... Seu olhar endurecera. Eu o molestara, decerto. Não esperava uma reflexão daquele tipo na boca de um rapaz aparentemente tão tímido. Mas eu desejava dissipar o mal-estar. Então disse:
— Tem razão... É divertido... Sobretudo Langrune...
Sim, afinal de contas eu gostaria de saber o que estaria ele fazendo em Langrune, quando encontrara Jacqueline e Van Bever. Conhecia aquele lugar, pois passara ali uma tarde com amigos, um ano atrás, durante uma viagem à Normandia. Tinha realmente dificuldade em imaginá-lo lá, vestido com seu terno cinza e andando ao longo das velhas mansões decadentes da orla marítima, sob a chuva, em busca do cassino. Tinha a vaga lembrança de que este não ficava em Langrune, mas algumas centenas de metros mais adiante, em Luc-sur-Mer.
— O senhor é estudante?
Acabara me fazendo a pergunta. De início quis dizer que sim, mas essa resposta muito simples complicava as coisas, pois teria de precisar em seguida o tipo de estudo.
— Não. Trabalho para livreiros.
Esperava que isso lhe bastasse. Teria feito a mesma pergunta a Jacqueline e a Van Bever? E que lhe teriam eles respondido? Van Bever lhe dissera que era vendedor ambulante? Eu duvidava.
— Quanto a mim, fui estudante, bem em frente... Designava-nos um pequeno prédio, do outro lado da rua.
— Era a escola francesa de ortopedia... Fiquei um ano lá... Depois, fiz a escola de odontologia, na avenida de Choisy...
Falava-nos agora em tom de confidência. Seria realmente sincero? Talvez procurasse nos fazer esquecer que não tinha nossa idade, e que já não era estudante.
— Escolhi a escola de odontologia para me orientar para algo mais preciso. Tinha mais tendência a vadiar, como vocês...
Decididamente, só via uma explicação para o fato de esse homem de 35 anos, de terno cinza, estar ali até tão tarde, conosco, num café do Quartier Latin: interessava-se por Jacqueline.
— Quer beber outra coisa? Para mim, mais um uísque...
Van Bever e Jacqueline não davam o menor sinal de impaciência. Quanto a mim, permanecia sentado no banco, como naqueles pesadelos em que você já não consegue se levantar, pois suas pernas pesam como chumbo. De vez em quando, virava-me para Jacqueline, e gostaria de lhe propor que deixássemos o café e andássemos ambos até a estação de Lyon. Tomaríamos um trem noturno e chegaríamos na manhã seguinte à Cote d’Azur, ou à Itália.
O carro estava um pouco mais acima, na rua Cujas, estacionado naquele lugar da calçada onde havia degraus e balaustradas de ferro. Jacqueline sentou-se no assento dianteiro.
Cartaud perguntou-me o endereço do meu hotel e, passando pela rua Saint-Jacques, chegamos ao bulevar Saint-Germain.
— Se entendi bem — disse ele —, vocês moram todos em
hotel...
Virou-se para Van Bever e para mim. De novo, consideravanos com um sorriso irônico, e me dava a impressão de que, para ele, éramos todos insignificantes.
— Em suma, é a vida de boêmio...
Talvez desejasse encontrar um tom de gracejo e de cumplicidade. Então fazia isso desajeitadamente, como as pessoas mais velhas que ficam intimidadas com a juventude.
— E até quando vão morar em hotéis?
Dessa vez, dirigia-se a Jacqueline. Esta fumava e deixava cair a cinza do cigarro pelo vidro entreaberto.
— Até podermos deixar Paris — respondeu ela. —Vai depender de nosso amigo americano que mora em Maiorca.
Pouco antes, eu procurara em vão um livro desse Mc Givern, na livraria inglesa do cais. A única prova de sua existência era o envelope que vira no primeiro dia, na mão de Jacqueline, e que levava o endereço de Maiorca. Mas não estava certo de que o nome do destinatário fosse mesmo ”Mc Givern”.
— Podem mesmo contar com ele? — perguntou Cartaud. Van Bever, a meu lado, parecia constrangido. Foi Jacqueline
quem acabou dizendo:
— Claro... Ele nos propôs irmos a Maiorca.
Falava com uma voz nítida, que eu não conhecia. Parecia-me que desejava impressionar Cartaud com aquele ”amigo americano”, e fazê-lo entender que ele, Cartaud, não era o único a se interessar por ela e por Van Bever.
Parou o carro diante do meu hotel. Assim, tinha de deixá-los, e temia não tornar a vê-los, como naquela tarde em que os esperei no Café Dante. Cartaud não os levaria logo de volta ao hotel, e certamente iriam terminar a noite juntos, em algum lugar na margem direita do Sena. Ou então tomariam um último drinque no bairro. Mas primeiro preferiam livrar-se de mim.
Van Bever saiu do carro, deixando a porta aberta. Pareceu-me ver a mão de Cartaud roçar o joelho de Jacqueline, mas talvez fosse uma ilusão provocada pela meia-sombra.
Ela me dissera ”até logo”, sem convicção. Cartaud me agraciara com um ”boa-noite” indiferente. Decididamente, eu estava sobrando . Quanto a Van Bever, esperara que eu, de pé na calçada, acabasse me afastando. Apertara minha mão.
— Talvez um dia desses, no Café Dante — disse.
Na entrada do hotel, virei-me. Van Bever me fez um sinal com a mão e entrou no carro. A porta bateu. Agora estava sozinho no banco de trás.
O carro arrancou e tomou a direção do Sena. Era também o caminho da estação d’Austerlitz e da estação de Lyon, e imaginei que iam deixar Paris.
Antes de subir para meu quarto, pedi ao vigia noturno uma lista telefônica, mas ainda ignorava a grafia exata de ”Cartaud”, e tinha sob os olhos: Cartau, Cartaud, Cartault, Cartaux, Carteau, Carteaud, Carteaux. Nenhum deles se chamava Pierre.
Não conseguia adormecer, e lamentava não ter feito perguntas a Cartaud. Mas ele teria respondido? Se realmente fora aluno da escola de odontologia, exerceria agora a profissão? Tentava imaginá-lo vestido com um jaleco branco de dentista, recebendo em seu consultório. Depois, meus pensamentos me levaram de volta a Jacqueline e à mão de Cartaud no joelho dela. Talvez o próprio Van Bever me pudesse dar algumas explicações. Tive um sono agitado. Em meu sonho, os nomes desfilavam em caracteres luminosos. Cartau, Cartaud, Cartault, Cartaux, Carteau, Carteaud, Carteaux.
Acordei mais ou menos às oito horas: alguém batia à porta do meu quarto. Era Jacqueline. Eu devia ter o ar esgazeado de alguém que sai de um mau sono. Ela me disse que esperaria lá fora.
Estava escuro. Eu a via da janela. Sentara-se no banco, do outro lado do bulevar. Levantara a gola do casaco de couro e enfiara as mãos nos bolsos, para proteger-se do frio.
Caminhamos ambos para o Sena, e entramos no último café antes do Mercado de Vinhos. Por que acaso estaria ela ali, diante de mim? Na véspera, ao sair do carro de Cartaud, eu jamais imaginaria uma coisa tão simples. Minha única expectativa era esperá-la, por longas tardes, em vão, no Café Dante. Explicou-me que Van Bever partira para Athis-Mons para buscar suas certidões de nascimento, a fim de obter novos passaportes. Tinham perdido os antigos durante uma viagem à Bélgica, fazia três meses.
Não me demonstrava mais aquela indiferença que me desnorteara, a noite anterior, quando surpreendera os dois com Cartaud. Reencontrava-a tal como era, durante os momentos que passáramos juntos. Perguntei-lhe se ainda estava gripada.
Deu de ombros. Fazia ainda mais frio que na véspera, e ela continuava usando aquele casaco de couro macio.
— Devia ter um casaco de verdade — disse-lhe. Fitou-me direto nos olhos e deu um sorriso meio zombeteiro.
— Para o senhor, o que é um casaco de verdade?
A pergunta me pegou de surpresa. E, como se quisesse me tranqüilizar, disse:
— De qualquer modo, o inverno logo vai terminar.
Aguardava notícias de Maiorca. E estas não podiam tardar. Esperava partir na primavera. Evidentemente eu iria com eles, se quisesse. Fiquei tranqüilo com aquela confirmação.
— E Cartaud? Tem notícias dele?
Ao ouvir o nome de Cartaud, franziu o cenho. Eu usara o tom anódino de alguém que fala sobre o tempo.
— Lembra-se do nome dele?
— É um nome fácil de guardar.
E esse Cartaud exercia uma profissão? Sim, trabalhava num consultório de cirurgiáo-dentista, no bulevar Haussmann, junto ao museu Jacquemart-André.
Acendeu um cigarro, num gesto nervoso.
— Ele poderia nos emprestar dinheiro. Isso nos ajudaria em nossa viagem.
Parecia espreitar minha reação.
—È rico? — perguntei.
Sorriu.
—Ainda há pouco falava de casaco... Pois bem, vou pedir a ele
que me dê um casaco de pele...
Pousou a mão sobre a minha, como a vira fazer com Van Bever no café da rua Cujas, e aproximou o rosto do meu.
— Fique tranqüilo — disse. — Não gosto de modo algum de casacos de pele.
No meu quarto, ela puxou as cortinas pretas. Eu nunca tinha feito isso antes, pois a cor daquelas cortinas me inquietava, e todas as vezes era acordado pela luz do dia. Agora a luz passava através da fenda das cortinas. Era estranho ver suas roupas e seu casaco espalhados no soalho. Muito mais tarde adormecemos. Um vaivém na escada me tirou do sono, mas eu não me movia. Ela continuava a dormir, a cabeça apoiada em meu ombro. Olhei para o relógio de pulso. Eram duas horas da tarde.
Ao deixar o quarto, ela me disse que era melhor não nos vermos aquela noite. Van Bever com certeza já voltara de Athis-Mons há muito tempo, e a esperava no Cais de La Tournelle. Não quis perguntar-lhe como justificaria sua ausência.
Quando tornei a me ver sozinho, tive a sensação de ter voltado ao mesmo ponto da véspera: de novo, não estava mais certo de nada, e não tinha outro recurso senão esperar ali, ou então no Café Dante, ou talvez passar pela rua Cujas por volta da uma hora da manhã. E de novo, no sábado, Van Bever partiria para Forges-les-Eaux ou para Dieppe, e iríamos acompanhá-lo à estação do metrô. E se ele a deixasse ficar em Paris, seria exatamente como da outra vez. E assim até o fim dos tempos.
Enfiei três ou quatro livros de arte na minha grande bolsa bege e desci a escada.
Perguntei ao homem que ficava atrás do balcão da recepção se tinha um catálogo de endereços de Paris e ele me estendeu um, de cor azul, que parecia novo. Consultei todos os números do bulevar Haussmann, até encontrar, no 158, o museu Jacquemart-André. No 160 havia mesmo um dentista, um certo Pierre Robbes. Por via das dúvidas, anotei o número do seu telefone: Wagram 13 18. Depois, com a grande bolsa bege na mão, andei até a livraria inglesa de Saint-Julien-le-Pauvre, onde consegui vender uma das obras que transportava — Italian Villas and Their Gardens—pela quantia de 150 francos.
Hesitei um momento diante do prédio do n° 160 do bulevar Haussmann, e transpus o portão. Num painel afixado à parede, em grandes letras impressas, os nomes e os andares:
Doutor P. Robbes - P. Cartaud
2° andar
O nome de Cartaud não estava escrito com o mesmo tipo de letra que os outros, e parecia ter sido acrescentado à lista. Resolvi tocar a campainha da porta do segundo andar, mas não tomei o elevador, cujas grades e portas envidraçadas brilhavam na penumbra. Galguei lentamente os degraus da escada, preparando o que ia dizer à pessoa que viesse abrir: ”Tenho hora marcada com o Dr. Cartaud.” Se me levassem até ele, falaria no tom jovial de alguém que visita um amigo inopinadamente. Com um porém: ele só me vira uma vez, e poderia não me reconhecer.
Na porta estava afixada uma placa dourada, onde li:
CIRURGIÃO-DENTISTA
Toquei uma vez, duas vezes, três vezes, mas ninguém atendeu.
Saí do prédio. Depois do museu Jacquemart-André, um café com terraço envidraçado. Escolhi uma mesa de onde podia vigiar a entrada do 160. Esperava a chegada de Cartaud. Nem sequer estava certo de que ele fosse muito importante para Jacqueline e Van Bever. Era um desses encontros casuais. Talvez nunca mais na vida tornassem a ver Cartaud.
Já tomara vários sucos de romã, e eram cinco horas da tarde. Estava acabando por esquecer exatamente por que razão esperava no terraço daquele café. Fazia meses que não punha os pés na margem direita do Sena, e agora o Cais de la Tournelle e o Quartier Latin me pareciam a milhares de quilômetros de distância.
A noite caía. O café, deserto quando eu escolhera minha mesa,
enchia-se pouco a pouco de clientes que deviam sair dos escritórios da vizinhança. Escutava o barulho do flipper, como no Café Dante.
Parou um carro preto, na altura do museu Jacquemart-André. De início, olhei para ele distraidamente. Depois, senti um aperto no coração: o carro de Cartaud. Reconheci-o porque era um modelo inglês, bem pouco comum na França. Ele saiu do carro e foi abrir a porta da esquerda para alguém: era Jacqueline. Ao andar para o portão do prédio, eles podiam me ver, por trás da vidraça do terraço, mas não me movi de minha mesa. E até mesmo não tirava os olhos deles, como se desejasse chamar sua atenção sobre mim.
Passaram sem notar minha presença. Cartaud empurrou a porta para dar passagem a Jacqueline. Usava um sobretudo azul-marinho, e Jacqueline, seu casaco de couro leve.
Peguei uma ficha de telefone no balcão. A cabine era no subsolo. Disquei Wagram 13 18. Atenderam.
— É Pierre Cartaud?
— Quem quer falar?
— Posso falar com Jacqueline? Alguns segundos de silêncio. Desliguei.
Encontrei Jacqueline e Van Bever no dia seguinte à tarde, no Café Dante. Estavam sozinhos, bem no fundo, diante do flipper. Não interromperam a partida quando cheguei. Jacqueline usava uma calça preta apertada nos tornozelos, e alpargatas vermelhas com cadarços. Não eram sapatos de inverno.
Aproveitei um instante em que Van Bever foi buscar cigarros e Jacqueline e eu ficamos a sós, um diante do outro, para lhe dizer:
—E Cartaud? Correu tudo bem ontem, no bulevar Haussmann?
Ficou muito pálida.
— Por que me pergunta isso?
— Eu a vi entrar com ele no prédio. Esforçava-me por sorrir e falar num tom leve.
— Estava me seguindo?
Tinha os olhos arregalados. No momento em que Van Bever voltava para perto de nós, inclinou-se para mim e disse, em voz baixa:
— Isso fica entre nós.
Pensei no frasco de éter — aquela porcaria, como ela dizia — que me fizera compartilhar na outra noite.
— Parece preocupado...
Van Bever estava de pé diante de mim e batera no meu ombro, como se quisesse me tirar de um mau sonho. Estendeu-me um maço de cigarros.
— Quer jogar outra partida de flipper? — perguntou-lhe Jacqueline.
Parecia querer afastá-lo de mim.
— Agora, não. Me dá dor de cabeça.
A mim também. Ouvia o barulho do flipper, mesmo depois de sair do Café Dante.
Perguntei a Van Bever:
— Tem notícias de Cartaud?
Jacqueline franziu o cenho, talvez para me fazer entender que não devia abordar aquele assunto.
— Por quê? Interessa-se por ele?
Fizera a pergunta num tom seco. Parecia surpreso por eu ter guardado o nome de Cartaud.
— É um bom dentista? — perguntei.
Lembrava-me do terno cinza e da voz grave, bem empestada, aos quais não faltava certa distinção.
— Não sei — disse Van Bever.
Jacqueline fingia não ouvir. Olhava para outro lugar, na direção da entrada do café. Van Bever sorria, um sorriso um tanto crispado.
— Ele trabalha a metade do tempo em Paris — disse.
— E afora isso, onde trabalha?
-— Na província.
Na outra noite, no café da rua Cujas, pairava entre eles e Cartaud um constrangimento que não se dissipara, apesar das palavras anódinas que havíamos trocado quando eu me sentara à mesa deles. E era esse constrangimento que eu reencontrava agora, no silêncio de Jacqueline e nas respostas evasivas de Van Bever.
— O problema com aquele cara é que ele é um pouco importuno — disse Jacqueline.
Van Bever pareceu aliviado por ela ter tomado a iniciativa de me fazer aquela confidência, como se, a partir daquele momento, não tivessem mais nada para me esconder.
— Não temos nenhum motivo especial para vê-lo — acrescentou. — É ele que vem nos assediar...
Sim, era isso mesmo que Cartaud dissera na outra noite. Tinham se conhecido dois meses antes, no cassino de Langrune. Ele estava sozinho jogando na roleta, distraidamente, para matar o tempo. Convidara-os para jantar no único restaurante aberto, um pouco mais longe, em Luc-sur-Mer, e lhes explicara que era dentista na região. No Havre.
— E acham que é verdade? — perguntei.
Van Bever pareceu surpreso com o fato de eu poder manifestar uma dúvida sobre a profissão de Cartaud. Dentista no Havre. Muito tempo atrás eu fora muitas vezes àquela cidade tomar um barco para a Inglaterra, e passeara nas cercanias dos cais. Tentava lembrar-me da chegada à estação e do trajeto até o porto. Grandes prédios de cimento, todos semelhantes, ao longo de avenidas muito largas. As construções monumentais e as esplanadas me haviam causado uma sensação de vazio. E agora era preciso imaginar Cartaud naquele cenário.
— Ele chegou a nos dar seu endereço no Havre — disse Van Bever.
Não ousei perguntar-lhe, diante de Jacqueline, se também conhecia seu outro endereço, em Paris, no bulevar Haussmann. De repente, ela lançou um olhar irônico, parecendo pensar que Van Bever simplificava as coisas e as tornava muito menos complicadas do que eram: um homem que encontramos numa estação balnearia da Normandia e que é dentista no Havre — nada mais banal, em suma. Lembrava-me de esperar sempre o embarque num café dos cais: o da Porta Océane... Cartaud freqüentaria aquele estabelecimento? E lá, usaria o mesmo terno cinza? Amanhã eu compraria um mapa do Havre e, quando estivesse sozinho com Jacqueline, ela me explicaria tudo.
— Pensávamos que ele perderia nosso rastro em Paris, mas o revimos faz três semanas...
E Van Bever curvava um pouco mais as costas e enfiava a cabeça nos ombros, como se fosse transpor um obstáculo.
— Encontraram-no na rua? — perguntei.
— Sim — disse Jacqueline. — Esbarrei nele por acaso. Esperava um táxi na praça do Châtelet. Dei-lhe o endereço de nosso hotel.
Parecia bruscamente acabrunhada por continuarmos a conversar sobre aquele assunto.
— Agora, que ele está em Paris a metade do tempo, quer ver-nos
— disse Van Bever. — Não podemos recusar...
Ontem à tarde, Jacqueline saía do carro depois que Cartaud abrira a porta, e entrara atrás dele no prédio do bulevar Haussmann. Eu observara os dois muito bem. O rosto de Jacqueline não deixava transparecer a menor contrariedade.
— São realmente obrigados a vê-lo?
— De certo modo — disse Van Bever. Sorriu-me. Hesitou um instante, antes de acrescentar:
— O senhor pode nos fazer um favor... E ficar conosco toda vez que esse cara vier nos assediar...
—-Sua presença nos facilitaria as coisas — disse Jacqueline. — Isso não o aborrece?
— Claro que não. Farei isso com prazer. Faria qualquer coisa por ela.
No sábado, Van Bever partiu para Forges-les-Eaux. Por volta das cinco horas da tarde, eu os esperava diante de seu hotel, como me haviam pedido. Foi Van Bever quem saiu primeiro. Propôs-me andar um pouco ao longo do Cais de Ia Tournelle.
— Conto com o senhor para zelar por Jacqueline.
Fiquei surpreso com aquelas palavras. Explicou-me de maneira um tanto confusa que Cartaud lhes telefonara na véspera, para dizer que não podia levá-lo de carro a Forges-les-Eaux porque tinha trabalho. Mas não deviam confiar naquelas palavras aparentemente corteses, nem naquela falsa cordialidade. Cartaud só queria aproveitar a ausência dele, Van Bever, para ver Jacqueline.
Então, por que não a levava com ele a Forges-les-Eaux?
Respondeu-me que, se o fizesse, Cartaud iria encontrá-los lá,e daria no mesmo.
Jacqueline estava saindo do hotel e vinha juntar-se a nós.
— Tenho certeza de que estavam falando de Cartaud — disse. Fitava-nos alternadamente.
— Pedi-lhe que ficasse com você — disse Van Bever.
— É gentil.
Como da outra vez, nós o acompanhamos até a estação do metrô Pont-Marie. Ambos guardavam silêncio. Quanto a mim, já não tinha vontade de fazer perguntas. Deixava-me levar pela minha displicência natural. O principal era ficar sozinho com Jacqueline. Tinha até autorização de Van Bever, que me confiara um papel de protetor dela. Que mais poderia esperar?
Antes de descer as escadas do metrô, ele me disse:
— Tentarei estar de volta amanhã de manhã.
No fim da escada, permaneceu um instante imóvel, muito ereto, em seu sobretudo riscado em ziguezague. Fixava Jacqueline com o olhar.
— Se por acaso você quiser ir me encontrar, tem o telefone do cassino de Forges...
Bruscamente uma expressão de cansaço lhe invadiu o rosto. Empurrou uma das portas, cujo batente se fechou atrás dele.
Atravessávamos a ilha de Saint-Louis, em direção à margem esquerda do Sena, e Jacqueline tomara meu braço.
— Quando é que vamos esbarrar em Cartaud? Minha pergunta parecia
ter-lhe causado leve contrariedade. Não respondeu.
Esperava que me deixasse diante da porta de seu hotel. Mas ela me arrastou para seu quarto.
Anoite caíra. Acendeu a lâmpada da cabeceira, ao lado da cama.
Eu estava sentado na cadeira perto do lavabo, e ela no chão, encostada à beira da cama, com os braços em volta dos joelhos dobrados.
— Tenho de esperar o telefonema dele — disse. Tratava-se de Cartaud. Mas por que era obrigada a esperar seu telefonema?
— Seguiu-me ontem no bulevar Haussmann?
— Sim.
Acendeu um cigarro. Desde a primeira baforada, tossiu. Levantei-me da cadeira e me sentei no chão, ao lado dela. Apoiávamos as costas na borda da cama.
Tomei-lhe o cigarro da mão. A fumaça não lhe fazia bem, e eu gostaria que parasse de tossir.
— Não queria que falássemos disso diante de Gérard... Ficaria constrangido diante do senhor... Mas eu faço questão de dizer-lhe que ele está ciente de tudo...
Fitava-me direto nos olhos, com um ar de desafio:
— Por enquanto, não posso agir de outro modo... Precisamos desse cara...
Estava prestes a lhe fazer uma pergunta, mas ela estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira e apagou a luz. Curvou-se para mim e senti a carícia de seus lábios em meu pescoço.
— Não quer que agora pensemos em outra coisa?
Ela tinha razão. Não se sabia que aborrecimentos o futuro reservava.
Por volta das sete da noite, alguém bateu à porta, e uma voz enrouquecida disse: ”Estão chamando ao telefone.” Jacqueline levantou-se da cama e, sem acender a lâmpada, enfiou minha capa de chuva e saiu do quarto, deixando a porta entreaberta.
O aparelho estava fixado na parede do corredor. Eu a ouvia responder ”sim” ou ”não”, e repetir ”que não era realmente necessário que ela fosse esta noite”, como se seu interlocutor não compreendesse o que dizia, ou como se quisesse se fazer de rogada.
Fechou de novo a porta, e veio sentar-se na cama. Tinha uma aparência engraçada, com aquela capa de chuva grande demais para ela, e cujas mangas arregaçara.
— Marquei encontro com ele para daqui a meia hora... Vem me buscar... Pensa que estou sozinha aqui...
Tornou a aproximar-se de mim e, em voz mais baixa, disse-me:
— Preciso que me faça um favor...
Cartaud a levaria para jantar com amigos dele. Depois, ela não sabia muito bem como a noite iria terminar. O favor que esperava de mim era o seguinte: que eu deixasse o hotel antes da chegada de Cartaud. Ia me dar uma chave. Era a do apartamento do bulevar Haussmann. Eu iria buscar uma mala, num dos armários do consultório dentário — ”o que ficava do lado da janela”. Pegaria a mala e a traria para ali, para aquele quarto. Pronto, era muito simples. Por volta das dez horas, ela me telefonaria para me dizer onde encontrá-la.
O que continha a mala? Ela deu um sorriso embaraçado e me disse: ”um pouco de dinheiro”. Não me espantei além da conta. E qual seria a reação de Cartaud quando já não a encontrasse? Pois bem, não poderia jamais imaginar que fôramos nós que a havíamos roubado. Claro que ignorava que tínhamos uma duplicata da chave do apartamento. Ela a mandara fazer sem que ele soubesse no chaveiro de um minuto, na estação Saint-Lazare.
Estava sensibilizado pelo ”nós” que ela empregara, pois se tratava dela e de mim. Mesmo assim, quis saber se Van Bever estava a par desse projeto. Sim. Mas ele teria preferido que fosse ela que me falasse no assunto. Portanto, eu não era mais que um comparsa, e o que esperavam de mim era que efetuasse uma espécie de arrombamento. Para tirar meus escrúpulos, ela me esclareceu que Cartaud não era
”uma pessoa de bem” e que, de qualquer modo, ”ele lhe devia isso”...
— Essa mala é pesada? — perguntei-lhe.
— Não.
— Porque não sei se é melhor pegar um táxi ou o metrô. Pareceu espantada por eu não manifestar qualquer hesitação.
— Não se incomoda de fazer isso por mim? Provavelmente queria acrescentar que não havia risco, mas eu não precisava de encorajamento. Para dizer a verdade, desde a infância vira meu pai transportar tantas bagagens — malas de fundo falso, bolsas e pequenas malas de couro, ou mesmo aquelas pastas pretas que lhe davam uma falsa aparência de respeitabilidade... E sempre ignorara qual podia ser, afinal, seu conteúdo.
— Vou fazê-lo com prazer — disse.
Ela me sorriu. Agradeceu, acrescentando que era mesmo a última vez que me propunha uma coisa assim. Decepcionava-me um pouco que Van Bever estivesse a par, mas quanto ao resto não me incomodava mesmo. Estava habituado com malas.
Na soleira da porta ela me deu a chave e me beijou. Despenquei-me pela escada e atravessei o cais num passo rápido, em direção à ponte de la Tournelle, esperando não encontrar Cartaud.
No metrô, era ainda a hora do rush. Sentia-me bem ali, apertado contra os outros passageiros. Não corria o risco de chamar a
atenção.
Ao voltar com a mala — estava decidido —, pegaria de novo
o metrô.
Esperava a conexão para Miromesnil na estação Havre-Caumartin. Tinha tempo de sobra. Jacqueline não telefonaria para o hotel antes das dez horas. Deixei passar duas ou três composições. Por que é que havia confiado aquela missão a mim, e não a Van Bever? E será que dissera mesmo a ele que eu ia buscar a mala? Com ela, nunca se podia saber.
Na saída do metrô, senti apreensão, mas esta logo se dissipou. Cruzava com raros passantes, e as janelas dos prédios estavam escuras: escritórios que seus ocupantes acabavam de deixar. Diante do
160, levantei os olhos. Só as janelas do quarto andar estavam iluminadas.
Não acendi a luz. O elevador subiu lentamente, e a luz amarela do globo, acima de minha cabeça, projetava na parede da escada a sombra das grades. Deixei a porta do elevador entreaberta, só o tempo de enfiar a chave na fechadura, aproveitando aquela luz.
Em torno do vestíbulo, as portas duplas das salas estavam todas escancaradas, e uma luz branca vinha dos postes do bulevar. Entrei à esquerda, no consultório dentário. A cadeira dos pacientes no meio da sala, com seu encosto de couro rebatido para trás, formava uma espécie de divã elevado, onde se podia esticar as pernas.
À luz do poste, abri o armário metálico — o que ficava do lado das janelas. A mala estava mesmo ali, numa prateleira, uma simples mala de folha-de-flandres, como as que carregam os soldados em licença.
Peguei a mala e me vi de novo no vestíbulo. Em frente ao consultório dentário, uma sala de espera. Liguei o interruptor. A luz caiu de um lustre de cristal. Poltronas de veludo verde. Sobre uma mesinha, pilhas de revistas. Atravessei a sala e entrei num pequeno quarto com uma cama estreita, cujos lençóis estavam desarrumados. Acendi a lâmpada da mesa-de-cabeceira.
Um paletó de pijama estava embolado sobre o travesseiro. No armário, pendurados em cabides, dois ternos do mesmo cinza e do mesmo corte daquele usado por Cartaud, na rua Cujas. E, ao pé da janela, um par de sapatos marrons, dentro de fôrmas.
Portanto, era o quarto de Cartaud. Na cesta de vime, vi um maço de Royales, a marca de cigarro de Jacqueline. Devia tê-lo jogado fora na outra noite, quando estivera ali com ele.
Abri maquinalmente a gaveta da mesa-de-cabeceira, onde estavam amontoadas caixas de soníferos e de aspirina, e cartões de visita com o nome de Pierre Robbes, cirurgião-dentista, bulevard Haussmann 160, Wagram 1318.
A mala estava fechada à chave, e eu hesitava em forçar a fechadura. Não era muito pesada. Provavelmente, continha dinheiro em notas de banco. Vasculhei os bolsos dos ternos, e acabei encontrando uma carteira preta, e dentro desta uma carteira de identidade expedida um ano atrás, com o nome de Pierre Cartaud, nascido em 15 de junho de 1923, em Bordeaux (Gironda), domicílio: bulevar Haussmann, 160, em Paris.
Portanto fazia ao menos um ano que Cartaud morava ali... E também era o domicílio do tal Pierre Robbes, cirurgião-dentista. Era tarde demais para fazer perguntas ao zelador, e eu não podia me apresentar a ele com aquela mala de folha-de-flandres na mão.
Sentara-me na beira da cama, e sentia um cheiro de éter que me provocava um aperto no coração, como se Jacqueline acabasse de deixar aquele quarto.
Antes de sair do prédio, resolvi bater à porta envidraçada do zelador, onde havia luz. Um homem baixo e moreno abriu e passou a cabeça pela porta entreaberta. Fitava-me com desconfiança.
— Gostaria de falar com o Dr. Robbes — disse eu.
— O Dr. Robbes não está em Paris no momento.
— Não sabe onde posso encontrá-lo?
Ele parecia cada vez mais desconfiado, e seu olhar demorava-se na mala que eu tinha na mão.
— Não tem o endereço dele?
— Não posso dá-lo. Não sei quem o senhor é.
— Sou um parente do Dr. Robbes. Estou fazendo o serviço militar e me deram alguns dias de licença.
Esse detalhe pareceu tranqüilizá-lo um pouco a meu respeito.
— O Dr. Robbes está em sua casa de Behoust.
Os sons desse nome não me pareciam muito claros. Pedi-lhe que o soletrasse: BEHOUST.
— Desculpe — disse. — Mas pensei que o Dr. Robbes não morasse mais aqui. Há um outro nome na lista dos inquilinos.
Apontei para a lista e para o nome de Cartaud.
— É um colega do Dr. Robbes...
De novo, li a desconfiança nos traços de seu rosto. Ele disse:
— Até logo, senhor.
E fechou bruscamente a porta.
Lá fora, decidi caminhar até a estação Saint-Lazare. A mala na verdade não pesava muito. O bulevar estava deserto, as fachadas dos prédios apagadas, e de vez em quando passava um carro, na direção da Étoile. Talvez tivesse cometido um erro ao bater à porta do zelador, pois ele daria minha descrição. Para me tranqüilizar, dizia a mim mesmo que ninguém — nem Cartaud, nem aquele fantasmático Dr. Robbes, nem o zelador do 160 — podia fazer alguma coisa contra mim. Sim, o que fizera — entrar num apartamento desconhecido e pegar uma mala que não me pertencia, gesto que para outro se revestiria de certa gravidade — para mim não tinha conseqüências.
Não queria voltar logo ao Cais de la Tournelle. Subi as escadas da estação e desemboquei no amplo vestíbulo, a sala dos Passos Perdidos. Muita gente ainda se dingia para as plataformas dos trens
de subúrbio. Sentei-me num banco, pus a mala entre as pernas. Pouco a pouco, tinha a impressão de ser também um viajante ou um soldado em licença. A estação Saint-Lazare me oferecia um campo de fuga mais amplo do que o subúrbio e a Normandia, para onde partiam os trens. Comprar uma passagem para o Havre, a cidade de Cartaud. E no Havre, desaparecer em qualquer lugar, no vasto mundo, pela porta Océane...
Por que aquele hall de estação se chamava sala dos Passos Perdidos? Sem dúvida, bastava permanecer algum tempo aqui, e nada contava mais, nem sequer nossos passos.
Andei até o bar, bem no fundo. No terraço, dois soldados em licença estavam sentados, com malas iguais à minha. Quase lhes pedi a chave de suas malas, para tentar abrir a que carregava. Mas temia que, uma vez aberta, os maços de notas de banco que ela continha fossem vistos por meus vizinhos e, em particular, por um dos inspetores à paisana dos quais ouvira falar: a polícia ferroviária. Essas duas palavras me evocavam Jacqueline e Van Bever, como se eles me tivessem arrastado para uma aventura em que, dali em diante, me arriscava a ser preso pela polícia ferroviária.
Entrei na sala do bar e fui sentar-me a uma das mesas próximas das janelas envidraçadas que se projetavam sobre a rua Amsterdam. Não tinha fome. Pedi um suco de romã. Conservava a mala apertada entre as pernas. Um casal, na mesa vizinha à minha, falava em voz baixa. O homem era moreno, de uns trinta anos, a pele do rosto marcada à altura das maçãs. Não tirara o sobretudo. Também a mulher era morena, e usava um casaco de pele. Estavam acabando de jantar. A mulher fumava Royales, como Jacqueline. Encostadas ao banco em que estavam sentados, uma grande pasta preta e uma mala de couro da mesma cor. Eu não sabia se acabavam de chegar a Paris, ou se estavam partindo. A mulher disse, numa voz mais clara:
— Podíamos pegar só o próximo trem.
— Quando?
— Às dez e quinze...
— Está bem — disse o homem.
Fitavam-se de um modo engraçado. Dez e quinze. Era mais ou menos a hora em que Jacqueline me telefonaria para o Cais de la
Tournelle.
O homem pagou a conta e os dois se levantaram. Ele pegou a pasta preta e a mala. Passaram diante da minha mesa, mas não prestaram a menor atenção em mim.
O garçom me perguntou:
— Já escolheu? Apontava para o cardápio.
— Aqui é a parte do bar onde se janta... Não posso servir-lhe um simples lanche...
— Estou esperando alguém — disse eu.
De repente, pela janela de vidro, vi o homem e a mulher na calçada da rua Amsterdam. Ela lhe dera o braço. Entraram num hotel, um pouco à frente.
De novo, o garçom plantou-se diante da minha mesa:
— Precisa decidir-se, senhor... Estou terminando meu horário...
Consultei o relógio. Oito e quinze. Preferi ficar ali a perambular lá fora, no frio, e pedi o jantar. A hora do rush passara. Todos já haviam tomado seus trens de subúrbio.
Embaixo, na rua Amsterdam, havia gente por trás das vidraças do último café antes da praça de Budapest. A luz ali era mais amarela e mais turva do que no Café Dante. Durante muito tempo quisera saber por que toda aquela gente vinha se perder pelas bandas da estação Saint-Lazare, até o dia em que me disseram que aquela área era uma das mais baixas de Paris. Escorregava-se até ali por uma encosta suave. O casal de ainda há pouco não resistira àquela encosta. Deixara passar a hora do trem para encalhar num quarto onde as cortinas eram pretas, como no Hotel de Lima, mas o papel das paredes era mais sujo, e os lençóis amarrotados pelas pessoas que os haviam precedido. Na cama, ela nem sequer tiraria o casaco de pele.
Acabara de jantar. Pousei a mala sobre o banco, a meu lado, e peguei a faca, cuja extremidade tentei introduzir na fechadura, mas esta era pequena demais. Estava fixada por pregos que eu poderia arrancar com um alicate. Para quê? Esperaria estar com Jacqueline, no quarto do Cais de la Tournelle.
Podia também partir sozinho, e nunca mais lhes dar sinal de vida, a ela e a Van Bever. Minhas únicas boas lembranças, até o momento, eram lembranças de fuga.
Tive vontade de cortar uma folha de papel em quadradinhos. E em cada um desses quadradinhos, escreveria um nome e um lugar:
Jacqueline
Van Bever
Cartaud
Dr. Robbes
Bulevar Haussmann, 160, 2° andar
Hotel de la Tournelle, Cais de la Tournelle, 65
Hotel de Lima, bulevar Saint-Germain, 46
Le Cujas, rua Cujas, 22
Café Dante
Forges-les-Eaux, Dieppe, Bagnoles-de-l’Orne, Enghien,
Luc-sur-Mer, Langrune
Havre
Athis-Mons
Embaralharia os papéis, como num jogo de cartas, e os espalharia sobre a mesa. Então era isso minha vida presente? Então, nesse momento, para mim, tudo se limitava a uns vinte nomes e endereços disparatados, entre os quais eu não era outra coisa senão o único elo? E por que aqueles e não outros? O que tinha eu de comum com aqueles nomes e lugares? Estava num sonho em que sabemos que podemos acordar de uma hora para a outra, quando perigos nos ameaçam. Se decidisse, deixaria aquela mesa e tudo se desprenderia, tudo desapareceria no vazio. Nada mais restaria, a não ser uma mala
de folha-de-flandres e alguns pedaços de papel onde estavam rabiscados nomes e lugares, que não teriam mais qualquer significado para quem quer que fosse.
Atravessei de novo o hall da estação, quase deserto, e me dirigi para as plataformas. Procurei no grande painel o destino do trem de
22:15, que o casal de ainda há pouco devia tomar: HAVRE. Tinha a impressão de que aqueles trens não levavam a parte alguma e de que estávamos condenados a perambular do bar ao hall da estação, e deste à galeria do comércio e às ruas vizinhas. Mais uma hora para perder. Perto das linhas de subúrbio, parei diante de uma cabine telefônica. Voltar ao bulevar Haussmann, 160, para recolocar a mala em seu lugar? Assim, tudo voltaria à ordem e eu nada mais teria a me reprovar. Na cabine, consultei a lista telefônica, pois esquecera o telefone do Dr. Robbes. Os toques de campainha sucediam-se. Não havia ninguém no apartamento. Telefonar para Behoust, para aquele Dr. Robbes, e lhe confessar tudo? E afinal, onde, naquele momento, estariam Jacqueline e Cartaud? Desliguei. Preferia guardar a mala e levá-la para Jacqueline, pois era o único meio de manter contato com ela.
Folheava a lista. As ruas de Paris desfilavam sob meus olhos, assim como os números dos prédios e os nomes de seus ocupantes. Esbarrei em: SAINT-LAZARE (estação), e fiquei surpreso ao verificar que também ali havia nomes:
Rede de Polícia:Lab 28 42
WAGONS-LITS:EUR 44 46
CAFÉ ROME: EUR48 30
HOTEL TERMINUS:EUR 36 80
Cooperativa dos carregadores EUR 58 77
Gabrielle Debrie, flores, hall da estação Lab 02 47
Galeria dos comerciantes:
l Bernois;EUR 45 66
5 Biddeloo e Dilley Sras.EUR 42 48
Calçados Geo EUR 44 63
CINÉAC Lab 8074
19 Bourgeois (Renée)EUR 35 02
25 Stop correio privado EUR 45 96
25 bis Nono-Nanette EUR 42 62
27 Discobole (au)EUR 4143
Será que se poderia entrar em contato com essas pessoas? Àquela hora, Renée Bourgeois estaria em algum lugar, na estação? Por trás das vidraças de uma das salas de espera, só distingui um homem com um velho sobretudo marrom, arriado num dos bancos, dormindo, com um jornal saindo por um dos bolsos do sobretudo. Bernois?
Pela escada gigantesca, cheguei à galeria comercial. Todas as lojas estavam fechadas. Ouvia o ruído do motor diesel dos táxis, em fila de espera, no pátio d’Amsterdam. A galeria comercial estava iluminada por uma luz muito viva, e de repente temi esbarrar num daqueles inspetores da ”Rede de Polícia” — como estava escrito na lista. Ele me pediria para abrir a mala, e eu teria de fugir. Eles me apanhariam facilmente, e me arrastariam para a delegacia da estação. Era burrice demais.
Entrei no Cinéac e paguei os dois francos e cinqüenta na caixa. A lanterninha, uma loura de cabelos curtos, quis me guiar com sua lanterna de bolso para as primeiras filas, mas preferi me sentar no fundo da sala. As imagens das notícias da semana se sucediam, e o locutor as comentava com uma voz de matraca que eu conhecia bem, a mesma voz, fazia mais de vinte e cinco anos. Eu a ouvira no ano anterior, no cinema Bonaparte, que apresentava um filme de montagem de velhas notícias.
Pus a mala sobre o assento, à minha direita. Diante de mim, contei sete silhuetas dispersas, sete pessoas sozinhas. Pairava na sala o cheiro tépido de ozônio que nos envolve quando andamos sobre uma grade de metrô. Mal prestava atenção às imagens dos acontecimentos da semana. De quinze em quinze minutos, aquelas imagens iam voltar à tela, intemporais, como aquela voz aguda, que me fazia imaginar se não funcionaria graças a uma prótese.
As notícias passavam pela terceira vez, e olhei para o relógio. Nove e meia. Só restavam duas silhuetas diante de mim. Provavelmente tinham adormecido. A lanterninha ocupava uma banqueta de dobradiça, encostada à parede do fundo, perto da entrada. Escutei o estalido da banqueta. O facho da lanterna de bolso varreu a fila de cadeiras onde eu estava, mas no setor que ficava do outro lado do corredor. Ela guiava um jovem de uniforme. Apagou a lâmpada e os dois sentaram. Surpreendi algumas palavras da conversa. Também ele ia pegar o trem do Havre. Tentaria voltar a Paris dali a quinze dias. Telefonaria para dizer a data certa da volta. Estavam bem perto de mim. Só o corredor nos separava. Falavam em voz alta, como se ignorassem minha presença e a das duas silhuetas adormecidas diante de nós.
Calaram-se. Apertavam-se um contra o outro e se beijavam. A voz de matraca continuava a comentar as imagens da tela: desfile de grevistas, cortejo de um estadista estrangeiro através de Paris, bombardeios... Gostaria de que aquela voz se calasse para sempre. A idéia de que permaneceria inalterável, comentando as catástrofes futuras sem a menor compaixão, me provocava um frio na espinha. Agora, a lanterninha estava montada no colo de seu companheiro. Movia-se em cima dele num movimento irregular e num rinchar de molas.
E logo seus suspiros e gemidos acabaram por cobrir a voz esganiçada do locutor.
No pátio de Rome, vasculhei o bolso para ver se me restava dinheiro suficiente. Dez francos. Podia tomar um táxi. Seria muito mais rápido que o metrô: teria sido preciso fazer a conexão na estação Ópera e carregar a mala ao longo dos corredores.
O motorista já se dispunha a arrumar a mala no porta-malas do carro, mas preferi guardá-la comigo. Descemos a avenida de l’Opéra e seguimos os cais. Paris estava deserta aquela noite, como uma cidade que eu deixasse para sempre. Ao chegar ao Cais de la Tournelle, temi ter perdido a chave do quarto, mas ela estava mesmo num dos bolsos da capa.
Passei diante do pequeno balcão da recepção e perguntei ao homem que costumava ficar ali até a meia-noite se alguém telefonara para o quarto três. Respondeu que não, mas eram só dez para as dez.
Subi a escada sem que ele me fizesse qualquer pergunta. Talvez não estabelecesse nenhuma distinção entre mim e Van Bever. Ou então não, queria mais se preocupar com as idas e vindas, num hotel condenado a fechar em breve.
Deixei a porta do quarto entreaberta para ouvi-lo bem, quando me chamasse ao telefone. Coloquei a mala no chão, deitada, e me estendi na cama de Jacqueline. O cheiro de éter persistia no travesseiro. Será que ela cheirara, de novo? Será que aquele cheiro, mais tarde, ficaria para mim sempre associado a Jacqueline?
A partir das dez horas, estava ansioso: ela não telefonaria, e eu jamais voltaria a vê-la. Muitas vezes eu esperava que as pessoas que conhecera desaparecessem de uma hora para a outra, sem nunca mais dar notícias. Também a mim acontecia marcar encontros aos quais não comparecia, ou até mesmo aproveitar um momento de desatenção de alguém com quem andava na rua e desaparecer. Um portão da praça Saint-Michel muitas vezes me tinha sido de uma ajuda preciosa. Passando por ele, chegava-se, através de um pátio, à rua Hirondelle. E eu fizera, num caderninho preto, a lista de todos os prédios de saídas duplas...
Ouvi a voz do homem na escada: telefone para o quarto três. Eram dez e quinze e eu já não acreditava naquilo. Ela faltara a um encontro com Cartaud. Estava no 17° distrito. Perguntou-me se trouxera mesmo a mala. Devia pôr numa bolsa de viagem suas roupas e buscar também meus pertences no Hotel de Lima, e em seguida esperá-la no Café Dante. Mas era preciso deixar o mais rápido possível o Cais de la Tournelle, pois seria o primeiro lugar a ser procurado por Cartaud. Falara com uma voz muito calma, como se tudo aquilo estivesse preparado com antecedência, em sua cabeça. Tirei do armário uma velha bolsa de viagem e enfiei nela as duas calças, o casaco de couro, os sutiãs, as alpargatas vermelhas, o pulôver de gola rulê e os poucos objetos de toalete que estavam arrumados no aparador do lavabo, entre os quais um frasco de éter. Restavam apenas as roupas de Van Bever. Deixei a luz acesa, para que o zelador pensasse que alguém ainda ocupava o quarto, e fechei a porta. A que horas voltaria Van Bever? Podia muito bem ir encontrar-nos no Café Dante. Teria ela telefonado para Forges ou Dieppe, e lhe teria dito a mesma coisa que dissera a mim?
Desci a escada sem acender a luz. Temia chamar a atenção do zelador com aquela bolsa de viagem e aquela mala. Ele estava debruçado sobre um jornal, e parecia fazer palavras cruzadas. Não pude deixar de olhá-lo ao passar, mas ele nem sequer levantou a cabeça. No Cais de la Tournelle, tinha medo de ouvi-lo gritar, atrás de mim: ”Senhor, senhor... Volte já, por favor...” E esperava também ver parar perto de mim o carro de Cartaud. Mas ao chegar à rua des Bernardins, recobrei a calma. Subi muito rápido ao meu quarto e arrumei na bolsa de Jacqueline as poucas roupas e os dois livros que me restavam.
Depois desci e pedi a conta. O zelador da noite não me fez qualquer pergunta. Lá fora, no bulevar Saint-Germain, experimentei a embriaguez habitual que sentia invadir-me toda vez que fugia.
Sentei-me à mesa do fundo e coloquei a mala deitada sobre o banco. Ninguém na sala. Um único cliente apoiava os cotovelos no balcão. Lá no fundo, na parede, acima das prateleiras de maços de cigarros, os ponteiros do relógio marcavam dez e meia. A meu lado, pela primeira vez, o flipper estava silencioso. Agora estava certo de que ela viria ao encontro.
Entrou, mas seu olhar não me procurou logo. Foi comprar cigarros no balcão. Sentou-se no banco. Notou a mala, depois pousou os cotovelos na mesa e soltou um longo suspiro.
— Consegui livrar-me dele — disse.
Jantavam num restaurante próximo à praça Pereire — ela, Cartaud e outro casal. Queria fugir quando terminou a refeição, mas do terraço do restaurante eles poderiam vê-la andar na direção da estação de táxis ou da boca do metrô.
Deixaram o restaurante, e ela teve de entrar no carro com eles. Arrastaram-na para bem perto dali, para o bar de um hotel chamado Marronniers, para ali tomar um último drinque. E fora no Marronniers que conseguira escapar. Uma vez na rua, me telefonara de um café do bulevar de Courcelles.
Acendeu um cigarro e começou a tossir. Pousou a mão sobre a minha, como a tinha visto fazer com Van Bever, na rua Cujas. E continuava a tossir, com sua tosse ruim.
Tomei-lhe o cigarro e o esmaguei no cinzeiro. Ela me disse:
— Precisamos deixar Paris, nós dois... Concorda? Claro que eu concordava.
— Para onde gostaria de ir? — perguntei.
— Para qualquer lugar.
A estação de Lyon estava bem próxima. Bastava seguir o cais até o Jardin dês Plantes e atravessar o Sena. Tínhamos tocado o fundo, os dois, e chegara o momento de dar um impulso com o pé no lodo para subir de novo à superfície. Lá longe, no Marronniers, Cartaud devia estar começando a se preocupar com a ausência de Jacqueline. Talvez Van Bever ainda se encontrasse em Dieppe ou em Forges.
— E Gérard, não vamos esperá-lo? — perguntei-lhe.
Fez que não com a cabeça, e seus traços se crisparam. Ia debulhar-se em lágrimas. Compreendi que, se desejava que partíssemos os dois, era para romper com um período de sua vida. E eu também deixava atrás de mim os anos sombrios e incertos que vivera até ali.
Tive vontade de lhe dizer de novo que talvez fosse bom esperar Gérard. Calei-me. Uma silhueta de sobretudo riscado em ziguezague permaneceria congelada para sempre no inverno daquele ano. Voltavam palavras à minha memória: o cinco neutro. E também um homem moreno, de terno cinza, com quem eu mal tivera tempo de cruzar, sem saber se era dentista ou não. E os rostos cada vez mais embaçados de meus pais.
Tirei do bolso da capa a chave do apartamento do bulevar Haussmann, que ela me confiara, e a coloquei sobre a mesa.
— Que fazemos com ela?
— Vamos guardar de lembrança.
Já não havia nenhum cliente no balcão. No silêncio, à nossa volta, ouvia o crepitar dos néons. Projetavam uma luz que cortava o negro das vidraças do terraço, uma luz muito viva, como uma promessa das primaveras e dos verões vindouros.
— Seria bom descer para o sul...
Experimentava prazer ao pronunciar: o sul. Naquela noite, naquela sala deserta, sob os néons, a vida ainda não tinha o mínimo peso, e era tão fácil fugir... Passava da meia-noite. O proprietário veio até a nossa mesa, para nos dizer que estava na hora de fechar o Café Dante.
Na mala, encontramos dois magros maços de notas de banco, um par de luvas, livros que versavam sobre cirurgia dentária e um grampeador.Jacqueline pareceu decepcionada com a magreza dos maços.
Antes de ir para o sul e para Maiorca, resolvemos passar por Londres. Abandonamos a mala no depósito de bagagens da estação du Nord.
Teríamos de esperar o trem por mais de uma hora no bar. Comprei envelope e selo, e enviei o tíquete do depósito a Cartaud, ao bulevar Haussmann, 160. Acrescentara um bilhete no qual lhe prometia reembolsar o dinheiro em futuro muito próximo.
Em Londres, naquela primavera, era preciso ser maior e casado para se hospedar num hotel. Fomos dar numa espécie de pensão familiar de Bloomsbury, onde a proprietária fingiu pensar que éramos irmãos. Propôs-nos uma peça que servia de sala para fumantes ou sala de leitura, mobiliada com três sofás e uma biblioteca. Só podíamos ficar ali cinco dias, com a condição de pagar adiantado.
Depois, um de cada vez, apresentando-nos na recepção como se não nos conhecêssemos, conseguimos arranjar dois quartos no Cumberland, cuja fachada compacta se erguia sobre Marble Arch. Mas dali também saímos ao fim de três dias, pois perceberam o embuste.
Não sabíamos sequer onde dormir. Depois de Marble Arch, caminhamos reto ao longo do Hyde Park, e enveredamos por Sussex Gardens, uma avenida que levava à estação de Paddington. Pequenos hotéis se sucediam na calçada da esquerda. Escolhemos um ao acaso, e dessa vez não nos pediram documentos.
A dúvida nos visitava numa hora regular, à noite, no caminho do hotel, diante da perspectiva de nos encontrarmos de novo no quarto onde vivíamos como clandestinos, enquanto o proprietário nos permitisse.
Antes de atravessarmos a soleira do hotel, andávamos de um lado para o outro, ao longo de Sussex Gardens. Nenhum de nós dois tinha a menor vontade de voltar a Paris. Doravante, estava interditada nossa permanência na área do Cais de la Tournelle e do Quartier Latin. Claro que Paris é grande, e poderíamos mudar de bairro sem correr o risco de reencontrar Gérard Van Bever ou Cartaud. Mas era melhor não voltar atrás.
Quanto tempo se passou até conhecermos Linda, Peter Rachman e Michael Savoundra? Quinze dias, talvez. Quinze dias intermináveis, durante os quais chovia. Para escapar daquele quarto com papel de parede semeado de manchas de mofo, íamos ao cinema. Depois andávamos, e era sempre ao longo da Oxford Street. Chegávamos a Bloomsbury, à rua da pensão de família onde passáramos nossa primeira noite em Londres. E de novo seguíamos a Oxford Street, em sentido inverso.
Tentávamos retardar o momento da volta ao hotel. Não podíamos continuar a andar sob aquela chuva. Tínhamos sempre o recurso de assistir a outra sessão de cinema, ou então entrar numa loja de departamentos, ou num café. Mas depois era preciso mesmo nos decidirmos a voltar a Sussex Gardens.
Num fim de tarde, em que nos tínhamos aventurado até mais longe, até a outra margem do Tâmisa, senti o pânico invadir-me. Era a hora do rush: uma onda de suburbanos dirigia-se para a estação e atravessava a Waterloo Bridge. Andávamos em sentido inverso na ponte, e temi que fôssemos arrastados na contracorrente. Mas conseguimos nos livrar. Sentamo-nos num banco, em Trafalgar Square. Não trocáramos uma só palavra durante o trajeto.
— Não está se sentindo bem? — perguntou-me Jacqueline. — Está muito pálido...
Sorria-me. Eu bem sentia que fazia um esforço sobre si mesma para conservar o sangue-frio. A perspectiva de voltar ao hotel andando de novo no meio da multidão da Oxford Street me acabrunhava. Não ousava perguntar-lhe se ela experimentava a mesma apreensão. Disse:
— Não acha que é uma cidade grande demais?
Tentei sorrir, por minha vez. Ela me observava, franzindo as sobrancelhas.
— E uma cidade grande demais, e não conhecemos ninguém... Minha voz era sem timbre. Já não conseguia articular uma só palavra.
Ela acendera um cigarro. Usava seu casaco de couro muito leve, e tossia um pouco, como em Paris. Eu tinha saudade do Cais de la Tournelle, do bulevar Haussmann e da estação Saint-Lazare.
— Era mais fácil em Paris...
Mas eu falara tão baixo que não sabia se ela me ouvira. Estava absorta em seus pensamentos. Esquecera minha presença. Diante de nós, uma cabine telefônica vermelha, de onde uma mulher acabava de sair.
— Pena que não tenhamos ninguém a quem telefonar... —disse-lhe.
Ela virou-se para mim e pousou a mão em meu braço. Vencera o desânimo que, por sua vez, também devia ter experimentado ainda há pouco, quando seguíamos o Strand, rumo a Trafalgar Square.
— Só é preciso um pouco de dinheiro para ir para Maiorca... Era sua idéia fixa, desde que a conhecia e que vira o endereço no envelope.
— Em Maiorca estaremos tranqüilos. Você poderá escrever seus livros...
Um dia eu lhe confidenciara que gostaria de escrever livros no futuro, mas nunca mais evocáramos esse assunto. Talvez aludisse a isso agora, para me acalmar. Decididamente, tinha muito mais sangue-frio do que eu.
De qualquer modo, queria saber de que jeito ela esperava arranjar dinheiro. Não se embaraçou:
— Só nas cidades se pode arranjar dinheiro... Imagine se estivéssemos perdidos numa aldeiazinha, em pleno campo...
Mas claro, tinha razão. Bruscamente, Trafalgar Square me pareceu um lugar muito mais tranqüilizador. Olhava a água correr das fontes, e aquilo me acalmava. Não estávamos condenados a permanecer naquela cidade, e a nos afogar na multidão da Oxford Street. Tínhamos um objetivo muito simples: arranjar um pouco de dinheiro para ir para Maiorca. Era como a combinação engenhosa de Van Bever. Havia tantas ruas e encruzilhadas à nossa volta que aquilo aumentava nossas possibilidades, e acabaríamos por provocar um acaso feliz.
Desse momento em diante, evitávamos a Oxford Street e o centro, e andávamos sempre para oeste, rumo ao Holland Park e ao bairro de Kensington.
Uma tarde, na estação de metrô do Holland Park, tiramos uma foto na cabine automática. Posamos aproximando nossos rostos. Guardei essa lembrança. O rosto de Jacqueline ocupa o primeiro plano, e o meu, ligeiramente recuado, está cortado pela borda da foto, de tal modo que não se vê minha orelha esquerda. Depois do flash, tivemos um ataque de riso, e ela queria continuar no meu colo, na cabine. Depois, seguimos a avenida que beira o Holland Park, ao longo das grandes casas brancas com pórtico. Desde nossa chegada a Londres, pela primeira vez havia sol, e me parece que, a partir daquela tarde, o tempo ficou sempre bom e quente, um tempo de verão precoce.
Na hora do almoço, num café de Notting Hill Gate, ficamos conhecendo uma certa Linda Jacobsen. Foi ela quem nos dirigiu a palavra. Uma moça morena, da nossa idade, cabelos longos, maçãs altas e olhos azuis ligeiramente puxados.
Queria saber de que região da França nós vínhamos. Falava lentamente, como se hesitasse em cada palavra, de modo que era fácil manter com ela uma conversa em inglês. Pareceu espantada por morarmos num daqueles hotéis suspeitos de Sussex Gardens. Mas lhe explicamos que não podíamos fazer outra coisa, pois éramos ambos menores.
No dia seguinte voltamos a encontrá-la no mesmo lugar, e veio sentar-se à nossa mesa. Perguntou-nos se ficaríamos muito tempo em Londres. Para minha grande surpresa, Jacqueline lhe disse que pretendíamos ficar ali vários meses, e até mesmo procurar trabalho.
— Mas então não podem continuar a morar nesse hotel...
Todas as noites tínhamos vontade de partir, por causa do cheiro que pairava no quarto, um cheiro adocicado, que eu ignorava se vinha dos esgotos, de uma cozinha ou do carpete apodrecido. De manhã, fazíamos um longo passeio no Hyde Park, para nos livrarmos daquele cheiro que impregnava nossas roupas. Desaparecia, mas voltava durante o dia, e eu perguntava a Jacqueline:
— Está sentindo o cheiro?
Estava desanimado diante da idéia de que ele nos perseguiria a vida inteira.
— O que é terrível — disse-lhe Jacqueline em francês — é o cheiro do hotel...
Tive de traduzir, do jeito que pude. Linda acabou compreendendo. Perguntou-nos se tínhamos algum dinheiro. Dos dois magros maços da mala, só nos restava um.
— Não muito — disse eu.
Ela nos olhava, um após o outro. Sorria-nos. A cada vez eu ficava espantado com o fato de as pessoas nos demonstrarem simpatia. Bem mais tarde, encontrei, no fundo de uma caixa de sapatos cheia de velhas cartas, a foto automática de Holland Park, e fiquei impressionado com o candor de nossos rostos. Inspirávamos confiança. E não tínhamos qualquer mérito nisso, a não ser o que a juventude concede por muito pouco tempo a qualquer pessoa, como um vago juramento que jamais será cumprido.
— Tenho um amigo que poderia ajudá-los — disse Linda. — Amanhã vou apresentá-lo a vocês.
Encontrava-se com ele muitas vezes naquele café. Morava bem perto dali e ele, o amigo, tinha seus escritórios um pouco mais acima, em Westbourne Grove, a avenida dos dois cinemas que Jacqueline e eu freqüentávamos, íamos à última sessão, para retardar nossa volta ao hotel, e pouco nos importava ver ali, toda noite, os mesmos filmes.
No dia seguinte, por volta do meio-dia, estávamos em companhia de Linda, quando Peter Rachman entrou no café. Sentou-se à nossa mesa, sem sequer nos dizer bom-dia. Fumava um charuto, cuja cinza espalhava nas lapelas do casaco.
Fiquei surpreso com seu físico: pareceu-me velho, mas não tinha mais de quarenta anos. Era de estatura média, muito corpulento, rosto redondo, a fronte e o crânio quase calvos, e usava óculos de tartaruga. As mãos de criança contrastavam com os ombros largos e fortes.
Linda lhe expôs nosso caso, mas falava rápido demais para que eu pudesse entender. Ele fixava seus pequenos olhos enrugados em Jacqueline. De vez em quando, puxava uma baforada nervosa do charuto, e soprava a fumaça no rosto de Linda.
Ela se calou e ele lançou um sorriso a Jacqueline e a mim. Contudo, seus olhos permaneciam frios. Perguntou-me qual era o nome do hotel em que morávamos, em Sussex Gardens. Eu lhe disse: o Radnor. Deu uma breve risada:
— Não precisam pagar a conta... O proprietário sou eu... Digam ao porteiro que mandei dizer que para vocês é gratuito...
Virou-se para Jacqueline:
— Será possível que uma mulher tão bonita viva no Radnor? Esforçara-se por assumir um tom frívolo, e isso o fazia cair na risada.
— Trabalha em hotelaria?
Não respondeu à minha pergunta. De novo soprou a fumaça do charuto no rosto de Linda. Deu de ombros.
— Don’t worry...
Repetia essa frase com freqüência, e a dirigia a si mesmo. Levantou-se para telefonar. Linda sentiu que estávamos um pouco desconcertados, e quis nos dar algumas explicações. Peter Rachman ocupava-se da venda e revenda de imóveis. Imóveis era uma palavra bem forte, pois se tratava de habitações vetustas, e até mesmo de casas de cômodos que, na maioria, ficavam nos arredores da cidade, nos bairros de Bayswater e Notting Hill. Ela não entendia muito bem seus negócios. Contudo, sob os modos brutais, até que era — fazia questão de nos dizer logo — um cara bastante legal.
O Jaguar de Rachman estava estacionado um pouco mais longe. Linda subiu para o assento dianteiro. Virou-se para nós:
— Podem vir morar na minha casa, enquanto Peter arranja outro lugar para vocês...
Ele arrancou, e seguiu por Kensington Gardens. Depois, enveredou por Sussex Gardens. Parou diante do Hotel Radnor.
— Vão fazer as malas — disse. — E sobretudo não paguem a conta...
Não havia ninguém na recepção. Tirei do gancho a chave de nosso quarto. Desde que morávamos ali, deixávamos nossas roupas em duas sacolas de viagem. Peguei as sacolas, e descemos logo. Rachman andava de um lado para o outro, diante do hotel, com o charuto na boca e as mãos nos bolsos do casaco.
— Contentes por deixar o Radnor?
Abriu a mala do Jaguar, e ali arrumei as duas sacolas de viagem. Antes de arrancar, ele disse a Linda:
— Preciso passar um instante no Lido. Depois levo vocês... Eu ainda sentia o cheiro adocicado do hotel, e me perguntei quantos dias se passariam até que ele desaparecesse para sempre de nossas vidas.
O Lido era uma casa de banhos no Hyde Park, ao longo do lago Serpentine. Rachman comprou quatro bilhetes de entrada, no guichê.
— Engraçado... Parece com a piscina Deligny — disse eu a Jacqueline.
Mas depois da entrada desembocamos numa espécie de praia fluvial, à beira da qual estavam dispostas algumas mesas com guarda-sol. Rachman escolheu uma, na sombra. Continuava com o charuto na boca. Sentamo-nos. Ele enxugava a testa e o pescoço com um grande lenço branco. Virou-se para Jacqueline:
— Se quiser, pode tomar banho...
— Não tenho maiô — disse Jacqueline.
— Pode-se arranjar... Vou mandar alguém buscar um maiô...
— Não vale a pena — disse Linda, secamente. — Ela não está com vontade de tomar banho.
Rachman baixou a cabeça. Continuava a enxugar a testa e o pescoço.
— Quer tomar um refresco? — propôs. Depois, dirigindo-se a Linda:
— Marquei encontro com Savoundra aqui.
Aquele nome me evocava uma silhueta exótica, e esperava ver
aproximar-se de nossa mesa uma mulher hindu vestida com um sari.
Mas foi um homem louro, de uns trinta anos, quem agitou a mão em nossa direção, e veio bater no ombro de Rachman. Apresentou-se a Jacqueline e a mim:
— Michael Savoundra.
Linda disse-lhe que éramos franceses.
Foi pegar uma cadeira da mesa vizinha e sentou-se ao lado de Rachman.
— E então? Quais as novidades? — perguntou-lhe Rachman, fixando-o com seus olhinhos frios.
— Trabalhei mais no roteiro... Vamos ver...
— Sim... Como diz, vamos ver.
Rachman adotara um tom de desprezo. Savoundra cruzava os braços, e seu olhar demorava-se em Jacqueline e em mim.
— Faz muito tempo que estão em Londres? — perguntou em francês.
— Três semanas — respondi.
Parecia muito interessado em Jacqueline.
— Morei em Paris algum tempo — disse, em seu francês hesitante. — No Hotel de la Louisiane, na rua de Seine... Tentei fazer um filme em Paris...
— Infelizmente, não deu certo — disse Rachman, com sua voz de desprezo, e me espantou que tivesse entendido a frase em francês.
Houve um instante de silêncio.
—Mas estou certa de que desta vez vai dar certo — disse Linda. — Não é, Peter?
Rachman deu de ombros. Savoundra, constrangido, perguntou a Jacqueline, sempre em francês:
— Mora em Paris?
— Sim — disse eu, sem deixar que Jacqueline tivesse tempo de responder. — Não muito longe do Hotel de la Louisiane.
O olhar de Jacqueline cruzou com o meu. Deu uma piscadela. Senti uma vontade súbita de estar diante do Hotel de la Louisiane, de chegar até o Sena e de passar pelas caixas dos vendedores de livros usados, seguindo até o Cais de la Tournelle. Por que aquela brusca saudade de Paris?
Rachman fez uma pergunta a Savoundra, e este lhe respondeu de maneira muito loquaz. Linda intervinha na conversa. Mas eu já não fazia esforços para compreendê-los. E via bem que Jacqueline também não prestava atenção alguma às palavras deles. Era o momento do dia em que nos acontecia muitas vezes adormecer, pois dormíamos mal no Hotel Radnor, mal chegava a quatro ou cinco horas por noite. E como saíamos cedo de manhã e voltávamos o mais tarde possível, fazíamos a sesta nos gramados do Hyde Park.
Eles continuavam a falar. De vez em quando, Jacqueline fechava os olhos e eu, por minha vez, também temia adormecer. Mas trocávamos pequenos pontapés sob a mesa, quando sentíamos que um dos dois ia mergulhar no sono.
Devo ter cochilado por alguns instantes. O murmúrio da conversa deles misturava-se a risos e gritos de praia, ruídos de mergulhos. Onde estávamos? À beira do Marne, ou do lago de Enghien? Aquele lugar assemelhava-se a um outro Lido, o de Chennevières, e ao Sporting de La Varenne. Naquela noite, Jacqueline e eu retornaríamos a Paris, pelo trem de Vincennes.
Alguém me bateu com força no ombro. Era Rachman.
— Cansado?
Diante de mim, Jacqueline esforçava-se por conservar os olhos bem abertos.
—Não deviam dormir muito no meu hotel — disse Rachman.
— Onde estavam? — perguntou Savoundra em francês.
—Num lugar muito menos confortável que o Hotel de la Louisiane — respondi.
— Ainda bem que os encontrei — disse Linda. — Vão morar na minha casa...
Gostaria de saber por que demonstravam tanta solicitude para conosco. O olhar de Savoundra estava sempre fixado em Jacqueline, mas ela o ignorava, ou então fingia não notá-lo. Quanto a ele, lembrava-me de um ator americano cujo nome eu procurava. Ah, mas é claro... Joseph Cotten.
—Vão ver — disse Linda. — Ficarão muito bem instalados na minha casa...
— De qualquer modo — disse Rachman — não faltam apartamentos. Posso emprestar-lhes um, a partir da semana que vem...
Savoundra nos observava com curiosidade. Virou-se para Jacqueline:
— Vocês são irmãos? — perguntou, em inglês.
— Pode desistir, Michael — disse Rachman, numa voz glacial. — São marido e mulher.
À saída do Lido, Savoundra nos apertou a mão.
— Espero revê-los em breve — disse em francês. Depois, perguntou a Rachman se lera seu roteiro.
— Ainda não. Preciso de tempo. Mal sei ler...
E seu riso breve explodia, enquanto os olhos continuavam tão frios quanto antes, por trás dos óculos de tartaruga.
Para dissipar o constrangimento, Savoundra dirigiu-se a Jacqueline e a mim:
— Gostaria muito que lessem esse roteiro. Há cenas que se passam em Paris, e poderiam corrigir os erros de francês.
— Boa idéia — disse Rachman. — Eles que o leiam... Assim me farão um resumo...
Savoundra afastara-se por uma alameda do Hyde Park, e de novo estávamos sentados no banco traseiro do Jaguar de Rachman.
— É bom o roteiro dele? — perguntei.
— Oh, sim... Tenho certeza de que deve ser muito bom — disse Linda.
— Podem pegá-lo — disse Rachman. — Está no chão. Realmente, havia uma pasta bege ao pé do banco traseiro. Apanhei-a e a coloquei no colo.
— Ele queria que eu lhe desse trinta mil libras para fazer seu filme — disse Rachman. — E muito, para um roteiro que jamais vou ler...
Havíamos voltado ao bairro de Sussex Gardens. Tive medo de que ele nos levasse de volta ao hotel e, de novo, senti o cheiro adocicado do corredor e do quarto. Mas ele continuava a rodar rumo a Nottingham Hill. Virou à direita, na direção da avenida onde ficavam os cinemas, e enveredou por uma rua guarnecida de árvores e casas brancas, com pórtico. Parou diante de uma delas.
Saímos do carro com Linda. Rachman permaneceu ao volante. Peguei as duas bolsas de viagem na mala do carro e Linda abriu a porta de ferro batido. Uma escada muito íngreme. Linda nos precedia. Duas portas no patamar. Linda abriu a da esquerda. Um quarto de paredes brancas. As janelas davam para a rua. Nenhum móvel. Um enorme colchão estendido no soalho. A peça vizinha era um banheiro.
— Ficarão bem aqui — disse Linda.
Pela janela, via o carro negro de Rachman, no meio de uma poça de sol.
— A senhora é muito gentil — disse eu.
— Que nada... É Peter... Isto pertence a ele... Tem montes de apartamentos...
Quis mostrar-nos seu quarto. Entrava-se nele pela outra porta, no patamar. Havia roupas e discos espalhados na cama e no chão. Pairava um cheiro tão penetrante quanto o do Hotel Radnor, porém mais doce: o cheiro de haxixe.
— Não liguem — disse Linda. — Meu quarto está sempre desarrumado...
Rachman saíra do carro e estava diante da entrada da casa. De novo enxugava a testa e o pescoço com seu lenço branco.
— Com certeza estão precisando de uns trocados?
E nos estendia um envelope azul-celeste. Eu estava quase lhe dizendo que não precisávamos, mas Jacqueline, sem o menor constrangimento, pegou o envelope.
—Agradeço-lhe muito—disse ela, como se aquilo fosse muito natural. — Logo vamos reembolsá-lo...
— Espero que sim — disse Rachman. — Com juros a mais... E, de qualquer modo, vai me reembolsar em espécie...
Estava estourando de rir.
Linda me estendia um pequeno molho de chaves.
— Há duas — observou. — Uma para a porta da rua, outra para o apartamento.
Entraram no carro. E, antes que Rachman arrancasse, Linda baixou o vidro da porta:
— Vou lhes dar o endereço do apartamento, para o caso de se perderem...
Escreveu nas costas do envelope azul-celeste: Chepstows Villas, 22.
Ao voltar ao quarto, Jacqueline abriu o envelope. Continha cem libras.
— Não devíamos ter aceitado esse dinheiro — disse eu.
— Claro que sim... Precisamos dele para ir para Maiorca... Percebia que eu não estava convencido.
— Necessitamos de mais ou menos vinte mil francos para arranjar uma casa e viver em Maiorca... Uma vez lá, não precisaremos de mais ninguém...
Entrou no banheiro. Ouvi a água correr na banheira.
— É maravilhoso — disse ela. — Fazia tanto tempo que não tomava um banho...
Estendera-me no colchão. Fazia força para não adormecer. Ouvia o barulho do banho dela. Passado um momento, ela disse:
— Você vai ver como é agradável, a água quente...
No lavabo do nosso quarto, no Hotel Radnor, só corria um fino filete de água fria.
O envelope azul-celeste estava a meu lado, no colchão. Invadia-me um doce torpor que dissolvia meus escrúpulos.
Por volta das sete horas da noite, fomos acordados por uma música jamaicana, que vinha do quarto de Linda. Antes de descermos a escada, bati à sua porta. Sentia o cheiro do haxixe.
Ela abriu, depois de um longo momento. Usava um roupão de atoalhado vermelho. Passou a cabeça pelo vão da porta:
— Desculpem... Estou com uma pessoa...
— Era só para lhe desejar uma boa-noite... — disse Jacqueline. Linda hesitou, depois se decidiu a falar:
— Posso confiar em vocês? Quando estivermos com Peter, ele não deve saber que recebo alguém aqui... É muito ciumento... Na última vez, veio de improviso e faltou pouco para quebrar tudo e me atirar pela janela.
— E se vier esta noite? — perguntei eu.
— Ausentou-se durante dois dias. Foi para a beira-mar, em Blackpool, para comprar velhas casas.
— Por que é tão gentil conosco? — perguntou Jacqueline.
— Peter gosta muito dos jovens. Quase não anda com pessoas de sua idade. Só gosta de jovens...
Uma voz de homem a chamava, uma voz muito surda, que a música quase abafava.
— Desculpem... Até logo... E façam como se estivessem em casa...
Sorriu e fechou a porta de novo. A música tocou mais forte, e nós ainda a ouvíamos, de longe, na rua.
— De qualquer modo, esse Rachman me parece um cara estranho — disse eu a Jacqueline.
Ela deu de ombros.
— A mim ele não assusta...
Era como se já tivesse conhecido homens daquele tipo, e o julgasse inteiramente inofensivo.
— Em todo o caso ele gosta dos jovens...
Eu pronunciara essa frase num tom lúgubre, que a fez rir. A noite caíra. Ela tomara meu braço e eu já não queria fazer perguntas a mim mesmo, nem me preocupar com o futuro. Andávamos na direção de Kensington, através de pequenas ruas calmas e provincianas. Passou um táxi, e Jacqueline levantou a mão para fazê-lo parar. Deu o endereço de um restaurante italiano, no caminho de Knightsbridge, que notara durante um de nossos passeios, pensando que iríamos jantar lá quando fôssemos ricos.
O apartamento estava silencioso e nenhuma luz se filtrava pela porta de Linda. Entreabrimos a janela. Nenhum barulho na rua. Em frente, à sombra das árvores, uma cabine telefônica vermelha e vazia estava iluminada.
Naquela noite, tínhamos a impressão de morar no apartamento há muito tempo. Eu deixara no chão o roteiro de Michael Savoundra. Comecei a
lê-lo. O título era Blackpool Sunday. Os dois heróis — uma moça e um rapaz de vinte anos — vagavam no subúrbio de Londres. Freqüentavam o Lido, à beira do lago Serpentine, e a praia de Blackpool, no mês de agosto. Eram de origem modesta, e falavam com o sotaque cockney. Depois, deixavam a Inglaterra. Iam reaparecer em Paris, e depois numa ilha do Mediterrâneo, que poderia ser Maiorca, e onde viviam enfim a
”verdadeira vida”. À medida que avançava na minha leitura, resumia a trama para Jacqueline. O desejo de Savoundra, tal como o expunha no preâmbulo, era rodar aquele filme como um documentário, escolhendo um rapaz e uma moça que não fossem atores profissionais.
Lembrava-me de que ele me propusera corrigir os erros de francês, na parte do roteiro onde o assunto era Paris. Havia alguns trechos assim, e também alguns erros, muito pequenos, que diziam respeito às ruas do bairro de Saint-Germain-des-Près. No correr das páginas, eu imaginava detalhes para acrescentar, ou então outros para modificar. Desejava comunicar isso a Savoundra, e talvez, se assim o desejasse, trabalhar com ele em Blackpool Sunday.
Nos dias seguintes, não tive oportunidade de rever Michael Savoundra. A leitura de Blackpool Sunday me deu de repente vontade de escrever uma história. Certa manhã, levantei-me muito cedo e fiz o mínimo de barulho possível para não interromper o sono de Jacqueline, que costumava prolongar-se até o meio-dia.
Comprei um bloco de papel de carta numa loja de Notting Hill Gate. Depois, continuei a andar reto ao longo da Holland Park Avenue, numa manhã de verão. Sim, durante nossa permanência em Londres, estávamos no auge do verão. Assim, a lembrança que guardo de Peter Rachman é uma silhueta negra e pesada na contraluz, à beira do lago Serpentine. Não distingo os traços de seu rosto, de tal modo é nítido o contraste entre a sombra e o sol. Gargalhadas. Ruídos de mergulhos. E aquelas vozes de praia, de sonoridade límpida e longínqua, sob o efeito do sol e da bruma de calor. A voz de Linda. A voz de Michael Savoundra, que pergunta a Jacqueline:
— Faz muito tempo que está em Londres?
Sentei-me numa cafeteria próxima do Holland Park.Não tinha a menor idéia da história que desejava contar.Parecia-me que devia alinhar várias frases ao acaso.Era como acionar uma uma bomba de água ou pôr em marcha um motor emperrado.
A medida que escrevia as primeiras palavras percebia a influência que Blackpool Sunday exercia sobre mim.Mas pouco importava que o roteiro de Savoundra me servisse de trampolim.Os dois heróis chegam à estação du Nord numa noite de inverno. Estão em Paris pela primeira vez na vida. Caminham por muito tempo naquele bairro, à procura de um hotel. Encontram um, no bulevar de Magenta, cujo porteiro aceita acolhê-los: o Hotel d’Angleterre et de Belgique. No hotel vizinho, o de Londres et d’Anvers, recusaram-lhes um quarto, sob o pretexto de que eram menores.
Não saem do bairro, como se tivessem medo de se aventurar mais longe. À noite, no café na esquina das ruas Compiègne e Dunkerque, bem em frente à estação du Nord, estão sentados à mesa vizinha à de um casal estranho, os Charell, sobre quem se pode perguntar o que, afinal, estarão fazendo por estes lados: ela, uma mulher loura de aparência muito elegante, e ele, um moreno de voz suave. O casal os convida para um apartamento, no bulevar de Magenta, não muito longe do hotel deles. Os quartos estão na penumbra. A Sra. Charell lhes oferece um drinque...
Parei aí. Três páginas e meia. Ao chegarem a Paris, os dois heróis de Blackpool Sunday vão logo para Saint-Germain-des-Près, para o Hotel de la Louisiane. E eu os impedia de atravessar o Sena, e deixava que desaparecessem pouco a pouco e se perdessem no fundo do bairro da estação du Nord.
Os Charell não existiam no roteiro. Mais uma liberdade de minha parte. Tinha pressa de escrever a continuação, mas era ainda novato demais, e demasiado preguiçoso para me concentrar por mais de uma hora, e para redigir mais de três páginas por dia.
Toda manhã eu ia escrever perto do Holland Park, e já não estava mais em Londres, mas diante da estação du Nord, e caminhava ao longo do bulevar de Magenta. Hoje, trinta anos mais tarde, em Paris, tento evadir-me deste mês de julho de mil novecentos e noventa e quatro para aquele outro verão em que a brisa acariciava mansamente as folhagens das árvores de Holland Park. Os contrastes da sombra e do sol eram tão fortes que jamais vi outros semelhantes.
Conseguira livrar-me da influência de Blackpool Sunday, mas era grato a Michael Savoundra por ter acionado em mim uma espécie de disparador. Perguntei a Linda se podia encontrá-lo. Reunimo-nos uma noite
— Jacqueline, Linda e eu — no Rio, em Notting Hill, um lugar freqüentado por jamaicanos. Naquela noite éramos os únicos brancos, mas Linda conhecia bem o café. Creio que era ali que ela arranjava o haxixe cujo cheiro impregnava as paredes do apartamento.
Eu disse a Savoundra que tinha corrigido os erros de francês da parte de seu roteiro que se passava em Saint-Germain-des-Près. Ele estava preocupado. Perguntava a si mesmo se Rachman ia lhe dar dinheiro e se não seria melhor entrar em contato com produtores em Paris. Aqueles, sim, estavam dispostos a confiar em ”jovens”...
— Mas parece que Rachman também gosta dos jovens — observei.
E olhei para Jacqueline, que me sorriu. Linda repetiu, com um ar pensativo:
— É verdade... Ele gosta dos jovens...
Um jamaicano de cerca de trinta anos, de estatura baixa, aparência de jóquei, veio sentar-se ao lado dela. Passou-lhe o braço em volta do ombro. Ela o apresentou a nós:
— Edgerose...
Guardei seu nome, ao longo de todos esses anos. Edgerose. Disse-nos que tinha muito prazer em nos conhecer. Reconheci a voz surda daquele que chamava Linda por trás da porta, em seu quarto.
E no momento em que Edgerose me explicava que era músico, e que voltava de uma turnê pela Suécia, Peter Rachman fez sua aparição. Dirigia-se à nossa mesa, com o olhar demasiado fixo por trás dos óculos de tartaruga. Linda fez um movimento de surpresa.
Ele plantou-se diante dela e lhe deu uma bofetada com o dorso da mão.
Edgerose levantou-se e prendeu a bochecha esquerda de Rachman entre o polegar e o indicador. Rachman fez um movimento de cabeça para se soltar e perdeu os óculos de tartaruga. Savoundra e eu tentávamos separá-los. Os outros clientes jamaicanos já cercavam nossa mesa. Jacqueline conservava o sangue-frio e parecia totalmente indiferente àquela cena. Acendera um cigarro.
Edgerose segurava Rachman pela bochecha e o puxava para a saída, como um professor que expulsa da sala um aluno recalcitrante. Rachman tentava escapar-lhe e, com um gesto brusco da mão esquerda, mandou-lhe um murro no nariz. Edgerose soltou a presa. Rachman abriu a porta do café e ficou imóvel, no meio da calçada.
Fui encontrá-lo e lhe entreguei os óculos de tartaruga que apanhara no chão. De repente ele ficou muito calmo. Acariciava a bochecha.
— Obrigado, meu caro — disse. — Não vale a pena arrumar preocupação por causa de putas inglesas...
Tirou do bolso do casaco o lenço branco, e enxugou cuidadosamente as lentes dos óculos. Depois, ajustou-as num gesto cerimonioso, as duas mãos apertando as hastes.
Entrou no Jaguar. Antes de arrancar, baixou o vidro:
— A única coisa que lhe desejo, meu caro, é que sua noiva não seja como todas essas putas inglesas...
Em volta da mesa, eles estavam silenciosos. Linda e Michael Savoundra pareciam preocupados. Edgerose fumava tranqüilamente um cigarro. Tinha uma gota de sangue numa narina.
— Peter vai ficar com um humor de cão — afirmou Savoundra.
— Vai durar alguns dias — disse Linda, dando de ombros. — Depois passa.
Jacqueline e eu trocamos um olhar. Senti que nos fazíamos as mesmas perguntas: seria bom continuar a morar em Chepstows Villas? E o que fazíamos nós exatamente, em companhia daquelas três pessoas? Amigos jamaicanos de Edgerose vinham cumprimentálo, e havia cada vez mais gente e barulho no café. Fechando os olhos, poderíamos pensar que estávamos no Café Dante.
Michael Savoundra fez questão de nos acompanhar durante um trecho do caminho. Deixáramos Linda, Edgerose e seus amigos, que tinham acabado por nos ignorar, como se fôssemos intrusos.
Savoundra andava entre mim e Jacqueline.
— Devem ter saudade de Paris — observou.
— Nem tanto — observou Jacqueline.
— Comigo é diferente — disse eu. — Toda manhã estou em Paris.
E expliquei que estava trabalhando num romance cujo início se passava no bairro da estação du Nord.
— Inspirei-me em Blackpool Sunday — confessei. — É também a história de dois jovens...
Mas ele não pareceu ficar ressentido. Fitou-nos, um após o outro.
— E a história de vocês dois?
— Não inteiramente — respondo eu.
Ele estava preocupado. Procurava saber se seus negócios iam dar certo com Rachman. Este era capaz de entregar as trinta mil libras líquidas no dia seguinte de manhã, numa mala, sem ter lido o roteiro. Ou então lhe dizer que não, soprando-lhe uma baforada de charuto no rosto.
Segundo ele, a cena a que assistíramos há pouco se reproduzia com freqüência. No fundo aquilo divertia Rachman. Era um meio de se distrair de sua neurastenia. Poderiam escrever um romance sobre sua vida. Rachman chegara a Londres logo após a guerra, entre outros refugiados que vinham do Leste. Nascera em algum lugar nas fronteiras confusas da Áustria-Hungria, da Polônia e da Rússia, numa daquelas cidadezinhas que abrigavam tropas, que mudaram de nome várias vezes.
— Deviam lhe fazer perguntas — disse Savoundra. — Talvez a vocês ele responda...
Chegáramos a Westbourne Grove. Savoundra chamou um táxi que passava:
— Não vão ficar zangados comigo por não acompanhá-los até o fim... Mas estou morto de cansaço...
Antes de se enfiar no táxi, escreveu num maço de cigarros vazio seu endereço e telefone. Esperava que eu lhe desse notícias o mais rápido possível, para que víssemos juntos as correções que fiz em Blackpool Sunday.
Estávamos ambos de novo sozinhos.
— Poderíamos dar um passeio, antes de voltar para casa — disse a Jacqueline.
O que nos esperava em Chepstows Villas? Rachman jogando os móveis do apartamento pela janela, como nos contara Linda? Ou talvez ele ficasse à espreita para surpreendê-la, a ela e a seus amigos jamaicanos.
Chegamos diante de uma praça cujo nome esqueci. Ficava próxima ao apartamento, e muitas vezes consultei o mapa de Londres para
procurá-la. Seria Ladbroke Square, ou então se situava mais longe, para o lado de Bayswater? As fachadas das casas que a ladeavam estavam escuras e, se tivessem apagado as lâmpadas dos postes naquela noite, poderíamos guiar-nos pela claridade da lua cheia.
Tinham esquecido uma chave na fechadura da pequena porta gradeada. Eu a abri, entramos na praça e, já do lado de dentro, dei uma volta na chave. Estávamos trancados ali, e ninguém mais podia vir. Um frescor nos envolveu, como se enveredássemos por um caminho na floresta. As folhagens das árvores eram tão espessas, acima de nós, que mal deixavam passar os raios de luar. Fazia muito tempo que o mato não era cortado. Descobrimos um banco de madeira, em torno do qual haviam espalhado cascalho. Sentamo-nos. Meus olhos se habituavam à penumbra, e eu distinguia, no meio da praça, um pedestal sobre o qual se erguia a silhueta de um animal abandonado ali e que eu não sabia se era uma leoa ou um jaguar, ou pura e simplesmente um cão.
— Está bom aqui — disse Jacqueline.
Apoiou a cabeça em meu ombro. As folhagens das árvores escondiam as casas em torno da praça. Já não sentíamos o calor abafado que há alguns dias esmagava Londres, aquela cidade onde bastava virar a esquina de uma rua para desembocar numa floresta.
Sim, como dizia Savoundra, eu poderia ter escrito um romance sobre Rachman. Uma frase que ele lançara, gracejando com Jacqueline no primeiro dia, me preocupava:
— Vai me reembolsar em espécie...
Acontecera quando ela pegara o envelope que continha as cem libras. Uma tarde eu tinha ido passear sozinho, no caminho de Hampstead, pois Jacqueline queria fazer compras com Linda. Voltei ao apartamento por volta das sete horas da noite. Jacqueline estava sozinha. Jogado na cama estava um envelope da mesma cor azul-celeste e do mesmo formato que o primeiro, mas este último continha trezentas libras. Jacqueline parecia constrangida. Esperara Linda à tarde toda, mas Linda não viera. Rachman passara. Também ele esperara Linda. Entregara-lhe aquele envelope, que ela aceitara. Quanto a mim, naquela noite dissera a mim mesmo que ela o reembolsara em espécie.
Pairava no quarto um cheiro de desinfetante Synthol. Rachman guardava sempre consigo um frasco desse remédio. Pelas confidências de Linda eu ficara sabendo quais eram seus hábitos. Quando jantava no restaurante, levava seus próprios talheres e visitava as cozinhas antes das refeições, para verificar se eram limpas. Tomava banho três vezes por dia e se friccionava com Synthol. Nos cafés, pedia uma garrafa de água mineral, que fazia questão de abrir pessoalmente, e bebia no gargalo para evitar que seus lábios tocassem num copo que estivesse mal lavado.
Mantinha relações com mulheres muito mais jovens que ele, e as instalava em apartamentos semelhantes ao de Chepstows Villas.
Ia visitá-las à tarde e, sem se despir, sem qualquer preâmbulo, exigindo que lhe virassem as costas, tomava-as muito rápido, de maneira fria e mecânica, como se escovasse os dentes. Em seguida, jogava uma partida de xadrez com elas, num pequeno tabuleiro que transportava sempre em sua pasta preta.
Desse momento em diante estávamos sós no apartamento. Linda desaparecera. À noite, já não ouvíamos a música jamaicana, nem os risos. Estávamos um pouco desambientados, pois nos habituáramos àquele raio de luz que se filtrava por baixo da porta de Linda. Muitas vezes tentei telefonar a Michael Savoundra, mas a campainha tocava incessantemente e ninguém respondia.
Era como se nunca os tivéssemos encontrado. Tinham simplesmente sumido e nós, por nossa vez, acabávamos sem conseguir explicar muito bem nossa presença naquele quarto. Chegávamos a ter a sensação de ter sido introduzidos ali por arrombamento.
De manhã, eu escrevia uma ou duas páginas do meu romance, e passava no Lido, para ver se Peter Rachman não estaria sentado à mesma mesa que ocupara da outra vez, na praia, à beira do lago Serpentine. Nada disso. E o homem do guichê, que eu interrogara, não conhecia nenhum Peter Rachman. Fui à casa de Michael Savoundra, em Walton Street. Toquei em vão, e entrei na confeitaria do térreo, que trazia na tabuleta o nome de um certo Justin de Blancke. Por que esse nome permaneceu na minha memória? O tal Justin de Blancke também não podia informar-me. Conhecia vagamente Savoundra, de vista. Sim, um louro que se parecia com Joseph Cotten. Mas em sua opinião ele não devia vir ali com muita freqüência.
Jacqueline e eu andamos até o Rio, até o fim de Notting Hill, e pedimos ao proprietário jamaicano notícias de Edgerose e de Linda.
Respondeu-nos que fazia muitos dias que não sabia deles, e tanto ele quanto os clientes pareciam desconfiar de nós.
Certa manhã, ao sair de casa, como de costume, com meu bloco de papel de carta, reconheci o Jaguar de Rachman, estacionado na esquina de Chepstows Villas com Ledbury Road. Passou a cabeça pelo vidro arriado.
— Tudo bem, meu caro? Quer dar uma volta comigo? Abriu a porta e sentei-me a seu lado.
— Não tínhamos idéia do que acontecera com o senhor —disse eu.
Não ousava lhe falar de Linda. Talvez estivesse há muito tempo em seu carro, espreitando.
— Muito trabalho... Muita preocupação... E sempre a mesma coisa...
Fixava-me com seu olhar frio, por trás dos óculos de tartaruga.
— E o senhor? Está feliz?
Respondi com um sorriso constrangido. Ele parou o carro numa pequena rua cujas casas estavam em ruína, como se acabassem de sofrer um bombardeio.
— Está vendo? — perguntou. — E sempre nesse tipo de lugar que trabalho...
Na calçada, tirou um molho de chaves de uma pasta preta que tinha na mão, mas mudou de idéia e o enfiou no bolso do casaco.
— Isso não serve para mais nada...
Com um pontapé, abriu a porta de uma das casas: uma porta com a pintura descascada, que tinha apenas um buraco no lugar da fechadura. Entramos. O chão estava cheio de entulho. Um cheiro igual ao que pairava no hotel de Sussex Gardens, porém mais forte ainda, me sufocou. Tive uma náusea. Rachman vasculhou de novo a pasta e tirou dela uma lanterna elétrica. Girou o facho da lanterna em volta de si, descobrindo no fundo da peça um velho fogão enferrujado. Chegava-se ao primeiro andar por uma escada íngreme, cujo corrimão de madeira estava arrebentado.
— Já que tem papel e caneta, pode tomar notas... — disse ele.
Inspecionou as casas vizinhas que estavam no mesmo estado de abandono e, à medida que as visitava, foi me ditando algumas informações, depois de consultar um caderninho que tirara da pasta preta.
No dia seguinte, continuei a escrever meu romance no verso da página em que essas notas estavam escritas, e as conservei até hoje. Por que as ditara? Talvez quisesse que subsistisse em algum lugar uma duplicata delas.
O lugar onde tínhamos parado primeiro, no bairro de Notting Hill, chamava-se Powis Square, e se prolongava por Powis Terrace e Powis Gardens. Ditados por Rachman, listei os números 5, 9,10,
11, 12 de Powis Terrace, os números 3, 4, 6 e 7 de Powis Gardens, e os números 13, 45,46 e 47 de Powis Square. Fileiras de casas com pórtico, da época ”edwardiana” — esclareceu Rachman. Desde o fim da guerra eram ocupadas por jamaicanos, mas ele, Rachman, as comprara em bloco no momento em que se pensava em destruí-las. E agora, que ninguém mais morava ali, metera na cabeça a idéia de reformá-las.
Encontrara os nomes dos antigos habitantes que haviam precedido os jamaicanos. Assim, no número 5 de Powis Gardens, anotei um certo Lewisjones, e no 6, uma Srta. Dudgeon; no 13 de Powis Square, um Charles Edward Boden; no 46, um Arthur Philip Cohen; no número 47, uma Srta. Marie Motto... Talvez Rachman precisasse deles vinte anos depois, para fazê-los assinar algum papel, mas na verdade ele não acreditava nisso. A uma pergunta que lhe fizera sobre essas pessoas, respondera-me que a maior parte delas provavelmente se perdera durante a Blitz.
Atravessamos o bairro de Bayswater, aproximando-nos da estação de Paddington. Dessa vez, encalhamos em Orsett Terrace, onde as casas com pórtico, mais altas que as precedentes, ladeavam uma estrada de ferro. As fechaduras ainda estavam fixadas nas portas de entrada, e Rachman teve de usar seu molho de chaves. Não havia entulho, nem papéis de parede mofados, nem escadas arrebentadas no interior, mas as peças não conservavam traço algum de presença humana, como se aquelas casas fossem um cenário erguido para um filme, que tivessem esquecido de desmontar.
— São antigos hotéis de viajantes — disse Rachman.
Que viajantes? Imaginava sombras à noite, saindo da estação de Paddington, no momento em que as sirenes começavam a tocar.
No fim de Orsett Terrace, tive a surpresa de ver uma igreja em ruínas que estavam demolindo. A nave já estava a céu aberto.
— Devia ter comprado também essa aí — disse Rachman.
Passamos Holland Park e estávamos chegando a Hammersmith. Eu nunca tinha ido tão longe. Rachman parou em Talgarth Road, diante de uma fileira de casas abandonadas com aspecto de cottages, ou de pequenas mansões de praia. Subimos ao primeiro andar de uma delas. As vidraças das janelas em sacada estavam quebradas. Ouvia-se o alarido do trânsito. Num canto da peça, notei uma cama de armar, e em cima desta um terno envolvido em celofane, como se viesse do tintureiro, e um paletó de pijama. Rachman surpreendeu meu olhar:
— Às vezes venho fazer uma sesta aqui — disse.
— O barulho do trânsito não o incomoda?
Deu de ombros. Depois, pegou o terno envolvido em celofane, e descemos a escada. Ele me precedia, com o terno dobrado no braço direito, a pasta preta na mão esquerda, parecendo um representante de vendas que sai de seu domicílio para uma turnê no interior.
Colocou delicadamente o terno no banco traseiro do carro e se pôs de novo ao volante. Fizemos meia-volta, em direção a Kensington Gardens.
— Já dormi em lugares muito menos confortáveis... Fitou-me com seu olhar frio.
— Tinha mais ou menos a sua idade...
Seguíamos a Holland Park Avenue, e íamos logo passar diante da cafeteria onde, àquela hora, costumava escrever meu romance.
— No fim da guerra, escapei de um campo de concentração... Dormia no porão de um prédio... Havia ratos por toda a parte... Pensava que, se adormecesse, eles iam me comer...
Dava um riso esganiçado.
— Eu tinha a impressão de ser um rato como os outros... Aliás, fazia quatro anos que tentavam me persuadir de que eu era um rato...
Deixamos a cafeteria para trás. Sim, eu podia introduzir Rachman no meu romance. Meus dois heróis cruzariam com Rachman nos arredores da estação du Nord.
— Nasceu na Inglaterra? — perguntei.
— Não. Em Lvov, na Polônia.
Dissera aquilo num tom seco, e percebi que não ia ficar sabendo mais nada.
Agora ladeávamos o Hyde Park, em direção a Marble Arch.
— Estou tentando escrever um livro — disse eu, timidamente, para renovar a conversa.
— Um livro?
Como ele nascera em Lvov, na Polônia, antes da guerra, e sobrevivera a esta, poderia encontrar-se agora nas bandas da estação du Nord. Era só uma questão de acaso.
Diminuiu a marcha diante da estação de Marylebone, e pensei que ainda íamos visitar casas vetustas à beira de uma estrada de ferro. Porém, seguindo por uma rua estreita, desembocamos no Regent’s Park.
— Aí está, enfim, um bairro rico.
E soltou um riso que parecia um relincho.
Fez-me anotar os endereços: Park Road, 125, 127 e 129, na esquina de Lorne Close, três casas verde pálido, com janelas em sacada, das quais a última estava meio destruída.
Depois de consultar as etiquetas presas às chaves do molho, abriu a porta da casa do meio. E nos vimos no primeiro andar, numa peça mais espaçosa que a de Talgarth Road. As vidraças da janela estavam intactas.
No fundo da peça, a mesma cama de armar que em Talgarth Road. Ele sentou-se nela e colocou a pasta preta a seu lado. Depois enxugou o rosto com o lenço branco.
O papel de parede estava arrancado em alguns lugares, e faltavam ripas no soalho.
— Devia olhar pela janela — disse. — Vale a pena. Realmente, eu descortinava os gramados do Regent’s Park e as fachadas monumentais, à volta toda. A brancura do estuque e o verde dos gramados me proporcionavam uma sensação de paz e de segurança.
— Agora vou mostrar-lhe outra coisa...
Levantou-se, seguimos por um corredor onde velhos fios elétricos pendiam do teto e desembocamos numa pequena peça na parte de trás da casa. A janela desta dava para a via férrea da estação de Marylebone.
— Os dois lados têm seu charme — disse Rachman. — Hein, meu caro?
Depois voltamos para o quarto, do lado do Regent’s Park.
Ele sentou-se de novo na cama de armar e abriu a pasta preta. Tirou dois sanduíches embrulhados em papel laminado. Ofereceu-me um.
Sentei-me no chão, diante dele.
— Creio que deixaria esta casa assim, e viria morar aqui para sempre...
Mordeu o sanduíche. Pensei no terno envolvido em celofane. O que usava agora estava todo amarrotado, faltava até um botão no paletó, e os sapatos estavam sujos de lama. Certos dias, tinha-se a impressão de que ele, tão maníaco, tão preocupado com a limpeza, lutando com tanta obstinação contra os micróbios, desistia disso tudo e ia se transformar, pouco a pouco, em mendigo.
Acabou de devorar o sanduíche. Esticou-se na cama de armar. Estendeu a mão e vasculhou a pasta preta que pusera no chão, ao lado da cama. Tirou o molho de chaves e separou uma delas.
— Tome... Pegue a chave... E me acorde daqui a uma hora. Pode dar um passeio no Regent’s Park.
Virou-se de lado, de frente para a parede, e soltou um longo suspiro.
— Aconselho uma visita ao zoológico. É bem perto. Fiquei um instante imóvel diante da janela, no meio de uma poça de sol, antes de perceber que ele adormecera.
Uma noite, quando Jacqueline e eu voltamos a Chepstows Villas, havia um filete de luz sob a porta de Linda. A música jamaicana tocou de novo até muito tarde, e o cheiro de haxixe invadiu o apartamento, como nos primeiros dias em que ali morávamos.
Peter Rachman organizava noitadas em seu estúdio, em Dolphin Square, um conjunto de prédios à beira do Tâmisa, e Linda nos arrastava para lá. Ali reencontramos Michael Savoundra, que se ausentara de Londres para se entrevistar com produtores em Paris. Pierre Roustang lera o roteiro e estava interessado. Pierre Roustang. Mais um nome sem rosto que flutua em minha memória, mas cujas sílabas guardam uma ressonância, como todos os nomes que ouvimos aos vinte anos.
Pessoas diversas freqüentavam as noitadas de Rachman. Dali a alguns meses, uma baforada de frescor invadiria Londres com novas músicas e roupas multicores. E me parece ter cruzado em Dolphin Square, numa dessas noites, com alguns daqueles que se tornariam os personagens de uma cidade bruscamente rejuvenescida.
Não escrevia mais de manhã, mas a partir da meia-noite. Não queria aproveitar a paz e o silêncio. Simplemente retardava a hora de trabalhar. E sempre conseguia vencer a preguiça. Escolhera essa hora por outra razão: temia que voltasse aquela angústia que sentira tantas vezes, nos primeiros dias em que estávamos em Londres.
Certamente Jacqueline experimentava a mesma inquietude, mas precisava de gente e de barulho à sua volta.
À meia-noite ela deixava o apartamento, com Linda. Iam às noitadas de Rachman, ou a lugares afastados, para o lado de Notting Hill. Na casa de Rachman, travava-se conhecimento com várias pessoas que também faziam convites. Pela primeira vez em Londres — dizia Savoundra — já não se tinha a impressão de estar na província. Parecia haver eletricidade no ar.
Lembro-me de nossos últimos passeios. Eu a acompanhava à casa de Rachman, em Dolphin Square. Não queria subir e me ver no meio de toda aquela gente. A perspectiva da volta ao apartamento me assustava um pouco. Precisava ainda alinhar frases sobre uma página em branco, mas não tinha escolha.
Naquelas noites, pedíamos ao chofer do táxi que parasse diante da estação de Victoria. E dali, andávamos até o Tâmisa, através das ruas de Pimlico. Era o mês de julho. O calor estava sufocante, mas toda vez que ladeávamos as grades de uma praça envolvia-nos uma brisa com os odores de alfena ou de tília.
Eu a deixava sob o pórtico. A massa dos prédios de Dolphin Square se recortava à claridade da lua. A sombra das árvores projetava-se sobre a calçada, e suas folhagens permaneciam imóveis. Não havia sequer um sopro de ar. Do outro lado do cais, à beira do Tâmisa, um restaurante numa barcaça erguia sua tabuleta luminosa e o porteiro se mantinha em pé, à entrada do pontão. Mas aparentemente ninguém ia àquele restaurante. Eu observava aquele homem congelado para sempre em seu uniforme. Àquela hora, os carros já não passavam no cais, e eu chegara enfim ao coração tranqüilo e desolado do verão.
Ao voltar a Chepstows Villas eu escrevia, estendido na cama. Depois, apagava a luz e esperava no escuro.
Ela voltava mais ou menos às três horas da manhã, sempre sozinha. Fazia algum tempo que Linda desaparecera de novo.
Abria suavemente a porta. Eu fingia dormir.
Depois, ao fim de alguns dias, eu velava até de madrugada, mas nunca mais ouvi seus passos na escada.
Ontem, sábado, 1° de outubro de mil novecentos e noventa e quatro, voltei da praça d'Italie para casa de metrô. Tinha ido buscar fitas de vídeo numa loja que — ao que parece — oferecia mais opções do que as outras. Fazia muito tempo que eu não revia a praça d’Italie, e esta mudara bastante, por causa dos arranha-céus.
No vagão do metrô, mantinha-me de pé, perto das portas. Uma mulher estava sentada no banco do fundo, à minha esquerda, e eu a notara, pois usava óculos escuros, um lenço atado sob o queixo e uma velha capa de chuva bege. Pensei reconhecer Jacqueline. O metrô aéreo seguia o bulevar Auguste-Blanqui. À luz do dia, seu rosto me parecia emagrecido. Distinguia bem o desenho da boca e do nariz. Era ela, tinha quase certeza.
Não me via. Seus olhos estavam escondidos por trás dos óculos escuros.
Levantou-se na estação Corvisart, e eu a segui na plataforma. Levava uma cesta na mão esquerda e andava com um passo cansado, quase titubeante, que não era o de outrora. Não sei por quê, sonhara muitas vezes com ela nesses últimos tempos: eu a via num pequeno porto de pesca do Mediterrâneo, sentada no chão e tricotando interminavelmente sob o sol. A seu lado, um píres onde os passantes jogavam moedas.
Atravessou o bulevar Auguste-Blanqui e enveredou pela rua Corvisart. Desci atrás dela a rua íngreme. Entrou numa mercearia. Quando saiu, percebi pelo andar que a cesta estava mais pesada.
Na pracinha que precede o square, uma tabuleta anuncia o café Muscadet Júnior. Olhei pela vidraça. Ela estava em pé diante do balcão, com a cesta a seus pés, e se servia de um copo de cerveja. Não quis abordá-la nem continuar a segui-la para ficar sabendo seu endereço. Depois de todos esses anos, temia que não se lembrasse mais de mim.
E hoje, primeiro domingo do outono, encontro-me de novo na mesma linha, no metrô. Este passa por cima das árvores do bulevar Saint-Jacques. As folhagens curvam-se sobre a via. Então, tenho a impressão de estar entre céu e terra, e de escapar à minha vida presente. Nada me liga mais a coisa alguma. Daqui a pouco, à saída da estação Corvisart, que parece uma estação de província com sua vidraça, será como se eu deslizasse por uma brecha do tempo e desaparecerei de uma vez por todas. Descerei a rua íngreme e terei talvez uma chance de encontrá-la. Deve morar em algum lugar desse bairro.
Quinze anos atrás, lembro-me, já tinha o mesmo estado de espírito. Numa tarde de agosto, tinha ido buscar na prefeitura de Boulogne-Billancourt uma certidão de nascimento. Voltara a pé pela porta d’Auteuil e pelas avenidas que ladeiam a pista de corridas de cavalos e o Bois. Morava provisoriamente num quarto de hotel, na direção do cais, depois dos jardins do Trocadéro. Não sabia ainda se ficaria definitivamente em Paris, ou então se, continuando o livro que começara sobre os ”poetas e romancistas portuários”, passaria uma temporada em Buenos Aires, à procura do poeta argentino Hector Pedro Blomberg, autor de certos versos que me haviam intrigado:
"Schneider foi morto esta noite
No bistrô da paraguaia
Tinha olhos azuis e rosto muito pálido..."
Um fim de tarde ensolarado. Pouco antes de chegar à porta de la Muette, sentara-me no banco de uma praça. Esse bairro me evocava recordações de infância. O ônibus 63, que tomava em Saint-Germain-des-Près, pára na porta de la Muette, e era preciso esperá-lo às seis horas da tarde mais ou menos, depois de um dia passado no Bois de Boulogne. Mas por mais que juntasse outras lembranças mais recentes, estas pertenciam a uma vida anterior que eu não estava inteiramente certo de ter vivido.
Tirara do bolso minha certidão de nascimento. Nascera durante o verão de mil novecentos e quarenta e cinco, e uma tarde, às cinco horas mais ou menos, meu pai fora assinar o registro da prefeitura. Eu via sua assinatura na fotocópia que me haviam dado — uma assinatura ilegível. Depois ele voltara para casa a pé, pelas ruas desertas daquele verão, em que se ouviam as campainhas cristalinas das bicicletas, no silêncio. E era a mesma estação de hoje, o mesmo fim de tarde ensolarado.
Tornara a guardar a certidão de nascimento no bolso. Estava num sonho, do qual precisava mesmo acordar. Os laços que me ligavam ao presente estiravam-se cada vez mais. Realmente, teria sido uma pena acabar naquele banco, numa espécie de amnésia e de perda progressiva de identidade, e já não poder indicar aos passantes meu domicílio... Ainda bem que tinha no bolso aquela certidão de nascimento, como os cães que se perderam em Paris, mas trazem na coleira o endereço e o telefone do dono... E tentava explicar para mim mesmo a hesitação que sentia. Fazia muitas semanas que não via ninguém. As pessoas a quem telefonara não tinham voltado das férias. Além disso, errara ao escolher um hotel afastado do centro. No início do verão, pretendia passar ali apenas uma temporada muito breve, e alugar um pequeno apartamento ou um conjugado. A dúvida insinuara-se em mim: teria eu realmente vontade de ficar em Paris? Enquanto durasse o verão, teria a ilusão de ser apenas um turista, mas no início do outono as ruas, as pessoas e as coisas retomariam sua cor cotidiana: cinza. E eu não sabia se ainda tinha coragem de me fundir de novo naquela cor.
Sem dúvida, chegara ao fim de um período de minha vida. Este havia durado uns quinze anos, e agora eu atravessava um tempo morto, antes de mudar completamente devida. Tentava retroceder mais quinze anos. Naquela época, também alguma coisa chegara a seu termo. Afastava-me de meus pais. Meu pai se encontrava comigo nos fundos de cafés, em saguões de hotéis ou em bares de estação, como se escolhesse locais de passagem para se livrar de mim e fugir com seus segredos. Permanecíamos silenciosos, um diante do outro. De vez em quando, ele me olhava com o canto do olho. Quanto a minha mãe, falava comigo cada vez mais alto, e eu adivinhava pelos movimentos irregulares de seus lábios, pois havia entre nós uma vidraça que lhe abafava a voz.
Depois, os quinze anos seguintes se decompunham: apenas alguns rostos embaralhados, algumas lembranças vagas, algumas cinzas... Isso não me provocava qualquer tristeza: ao contrário, aliviava-me. Ia partir de novo de zero. Daquela melancólica sucessão de dias, os únicos que ainda se destacavam eram aqueles em que conhecera Jacqueline e Van Bever. Por que esse episódio, e não um outro? Talvez porque tivesse permanecido indefinido.
O banco que eu ocupava estava agora do lado da sombra. Atravessei o pequeno gramado e me sentei ao sol. Sentia-me leve. Não tinha mais contas a prestar a quem quer que fosse, nem desculpas e mentiras a gaguejar. Ia me tornar outra pessoa, e a metamorfose seria tão profunda que nenhum daqueles com os quais cruzara ao longo desses últimos quinze anos ainda poderia me reconhecer.
Ouvi um barulho de motor atrás de mim. Alguém estava estacionando o carro na esquina da praça com a avenida. O motor parou. Uma batida de porta. Uma mulher ladeava a grade da praça. Usava um vestido de verão de cor amarela e óculos escuros. Seus cabelos eram castanhos. Não distinguira bem o rosto, mas logo reconheci o andar, um andar preguiçoso. Seu passo tornava-se cada vez mais lento, como se hesitasse entrevarias direções. Depois, parecia ter encontrado o caminho. Era Jacqueline.
Deixei a praça e a segui. Não ousava alcançá-la. Talvez não se lembrasse muito bem de mim. Tinha os cabelos mais curtos do que quinze anos atrás, mas aquele andar não podia pertencer a outra pessoa.
Entrou em um dos prédios. Era tarde demais para abordá-la. E, de qualquer modo, o que lhe teria dito? Aquela avenida estava tão longe do Cais de la Tournelle e do Café Dante...
Passei diante da entrada do prédio e anotei o número. Seria realmente seu domicílio? Ou estaria indo visitar amigos? Acabei perguntando a mim mesmo se é possível reconhecer alguém de costas, pelo andar. Fiz
meia-volta em direção à praça. Seu carro estava ali. Tive a tentação de lhe deixar um bilhete no pára-brisa, com o telefone do meu hotel.
Na garagem da avenida de New-York, o carro que alugara na véspera me esperava. Tivera a idéia no meu quarto de hotel. O bairro me parecia tão vazio, e tão solitários os trajetos a pé ou de metrô, naquela Paris do mês de agosto, que a perspectiva de dispor de um carro me reconfortava. Teria a impressão de poder deixar Paris a cada instante, se quisesse. Durante os últimos quinze anos, sentira-me prisioneiro dos outros e de mim mesmo, e todos os meus sonhos eram semelhantes: sonhos de fuga, partidas de trem, que infelizmente perdia. Jamais chegava à estação. Perdia-me nos corredores do metrô e, na plataforma, as composições não chegavam. Sonhava também que, ao sair de casa,
sentava-me ao volante de um enorme carro americano, que deslizava ao longo das ruas desertas, em direção ao Bois, sem que eu ouvisse o ruído do motor, e experimentava uma sensação de leveza e bem-estar.
O garagista me entregou a chave de ignição, e vi sua surpresa no momento em que dei marcha a ré e quase bati numa das bombas de gasolina. Temia não conseguir parar no próximo sinal. Era assim nos sonhos: perdia os freios, avançava todos os sinais e entrava na contramão.
Consegui estacionar o carro diante do hotel e pedi ao porteiro uma lista de endereços. No número da avenida, não havia nenhuma Jacqueline. Passados quinze anos, provavelmente se casara. Mas de quem seria esposa?
Delorme (P.)
Dintillac
Jones (E. Cecil)
Lacoste (René)
Walter (J.)
Sanchez-Cirès
Vidal
Não me restava outra coisa senão telefonar para cada um desses nomes.
Disquei o primeiro número na cabine. Os toques se sucederam por muito tempo. Depois atenderam. Uma voz de homem:
— Sim... Alô?
— Poderia falar com Jacqueline?
— Deve estar enganado, senhor.
Desliguei. Já não tinha coragem de discar outros números.
Esperei o cair da noite para deixar o hotel. Sentei-me ao volante e arranquei. Eu, que conhecia bem Paris e que, se estivesse a pé, teria seguido o caminho mais curto até a porta de la Muette, navegava ao acaso a bordo daquele carro. Fazja muito tempo que não dirigia, e ignorava quais eram as ruas de mão única. Resolvi andar sempre em frente.
Fiz um longo desvio pelo Cais de Passy e pela avenida de Versailles. Depois enveredei pelo bulevar Murat, deserto. Poderia avançar os sinais, mas sentia prazer em respeitá-los. Dirigia devagar, na marcha displicente de alguém que, numa tarde de verão, passeia por uma avenida da orla marítima. Os sinais só se dirigiam a mim, com seus avisos misteriosos e amigáveis.
Parei diante da entrada do prédio, do outro lado da avenida, sob as folhagens das primeiras árvores do Bois, no lugar onde os postes de luz deixavam uma zona de penumbra. Os dois batentes envidraçados do pórtico, com suas ferragens pretas, estavam iluminados. E também as janelas do último andar. Estas estavam escancaradas e, numa das varandas, eu distinguia algumas silhuetas. Ouvia música e o murmúrio das conversas. Carros vieram estacionar ao longo do prédio, e eu tinha a certeza de que as pessoas que saíam deles e que passavam pelo pórtico subiam todas para o último andar. De repente alguém se debruçou na varanda e interpelou duas silhuetas que se preparavam para entrar no prédio. Uma voz de mulher. Indicava o andar aos dois outros. Mas não era a voz de Jacqueline, ou ao menos eu não a reconhecia. Decidi não ficar mais ali espreitando, mas subir. Se era Jacqueline quem recebia, ignorava qual seria sua atitude ao ver entrar em sua casa, de improviso, alguém de quem já não sabia nada, fazia quinze anos. Nosso conhecimento durara um lapso de tempo muito breve: três ou quatro meses. E pouco, comparado a quinze anos. Mas ela decerto não esquecera aquele período... A menos que sua vida presente o tivesse apagado como uma luz muito forte de projetor que rechaça para o fundo das trevas tudo o que não está no seu campo.
Esperei que chegassem outros convidados. Dessa vez, eram três. Um deles fez um sinal com a mão, na direção das varandas do último andar. Juntei-me a eles no momento em que entravam no prédio. Dois homens e uma mulher. Cumprimentei-os. Para eles, não havia qualquer dúvida: eu também era um convidado lá de cima.
Subimos no elevador. Os dois homens tinham sotaque, mas a mulher era francesa. Eram um pouco mais velhos do que eu. Esforcei-me por sorrir. Disse à mulher:
— Vai ser muito simpático, lá em cima... Também ela sorriu.
— É amigo de Darius? — perguntou.
— Não. Sou amigo de Jacqueline. Ela pareceu não entender.
— Faz muito tempo que não vejo Jacqueline—disse eu. — Ela vai bem?
A mulher franziu as sobrancelhas.
— Não a conheço.
Depois trocou algumas palavras em inglês com os dois outros. O elevador parou.
Um dos homens bateu à porta. Minhas mãos estavam úmidas. A porta se abriu e ouvi o burburinho das conversas e a música, no interior. Um homem de cabelos castanhos puxados para trás e tez fosca nos sorria. Usava um terno de brim bege.
A mulher o beijou nas duas faces.
— Olá, Darius.
— Olá, amiga.
Tinha uma voz grave e um leve sotaque. Os dois homens o cumprimentaram também com um ”olá, Darius”. Apertei-lhe a mão sem dizer nada, mas ele não parecia espantado com a minha presença.
Precedeu-nos através do vestíbulo e desembocamos numa sala com as janelas de sacada abertas. Pequenos grupos de convidados estavam de pé. Darius e as três pessoas com as quais eu subira no elevador dirigiam-se para uma das varandas. Eu lhes seguia os passos. Foram fisgados por um casal, à beira da varanda, e puseram-se a conversar entre eles.
Eu me mantinha afastado. Tinham-me esquecido. Refugiei-me no fundo da peça e me sentei na extremidade de um sofá. Na outra ponta, dois jovens, apertados um contra o outro, falavam em voz baixa. Ninguém prestava a menor atenção em mim. Tentava descobrir Jacqueline no meio de todo aquele grupo. Umas vinte pessoas. Observei o tal Darius lá adiante, na entrada da varanda, com uma silhueta muito esbelta em seu terno bege. Dava-lhe cerca de quarenta anos. Seria possível que esse Darius fosse o marido de Jacqueline? O burburinho das conversas era abafado pela música que parecia vir das varandas.
Por mais que encarasse as mulheres, uma a uma, não via Jacqueline. Enganara-me de andar. Nem sequer estava certo de que ela morava no prédio. Agora Darius se encontrava no meio da sala, a alguns metros de mim, em companhia de uma mulher loura muito graciosa, que o ouvia com m•c–c”‘
uita atenção. De vez em quando ela ria. Eu prestava atenção para saber em que língua ele falava, mas a música abafava sua voz. Por que não ir até esse homem e lhe perguntar onde se encontrava Jacqueline? Ele me revelaria, em seu tom grave e cortês, aquele mistério que na verdade não era mistério: se conhecia Jacqueline, se era sua mulher, ou então em que andar ela morava. Era muito simples. Ele estava diante de mim. Escutava agora a mulher loura, e seus olhos me fitaram por acaso. Primeiro tive a impressão de que não me via. Depois, fez-me um pequeno sinal amistoso com a mão. Parecia espantado por eu ficar sozinho naquele divã, sem falar com ninguém, mas eu estava muito mais à vontade do que quando entrara no apartamento, e uma lembrança de quinze anos atrás ressurgiu. Jacqueline e eu tínhamos chegado a Londres, pela estação de Charring Cross, mais ou menos às cinco horas da tarde. Tomáramos um táxi para nos levar a um hotel escolhido ao acaso, num guia. Nenhum de nós dois conhecia Londres. No momento em que o táxi enveredava pelo Mall, e ao se abrir diante de mini aquela avenida sombreada de árvores, os vinte primeiros anos de minha vida se desmancharam como um peso, como algemas ou um arreio do qual não pensara um dia poder me livrar. Pois bem, era isso mesmo, já não restava nada de todos aqueles anos. E se a felicidade era a embriaguez passageira que eu experimentara naquela noite, então, pela primeira vez na vida, era feliz.
Mais tarde, estava escuro e passeávamos ao acaso pelo lado de Ennismore Gardens. Ladeávamos as grades de um jardim abandonado. Risos, música e um burburinho de conversas vinham do último andar de uma das casas. As janelas estavam escancaradas e, na luz, recortava-se um grupo de silhuetas. Permanecíamos ali, encostados à grade do jardim. Um dos convivas, que se sentara na borda da varanda, nos tinha notado e nos fizera sinal para subirmos. Nas grandes cidades, no verão, pessoas que se perderam de vista há muito tempo, ou então que não se conhecem, reencontram-se uma noite num terraço, depois se perdem de novo. E nada realmente tem importância.
Darius aproximou-se de mim:
— Perdeu seus amigos? — indagou, sorrindo.
Demorou um momento até eu entender o que ele queria dizer: referia-se às três pessoas do elevador.
— Na verdade, não são meus amigos.
Mas logo me arrependi dessas palavras. Não desejava que se interrogasse sobre minha presença ali.
— Não os conheço há muito tempo — disse. — E tiveram a boa idéia de me trazer à sua casa...
Sorriu de novo:
— Os amigos de meus amigos são meus amigos.
Mas eu o embaraçava, pois não sabia quem eu era. Para deixá-lo à vontade, disse-lhe, na voz mais suave possível:
— Organiza muitas vezes festas tão agradáveis assim?
— Sim. No mês de agosto. E sempre na ausência de minha mulher.
A maioria dos convidados deixara a sala. Como podiam todos ficar em pé nas varandas?
— Sinto-me tão só quando minha mulher não está...
Seu olhar assumira uma expressão melancólica. Continuava a me sorrir. Era o momento de lhe perguntar se sua mulher se chamava Jacqueline, mas eu ainda não ousava arriscar-me.
— E o senhor, mora em Paris?
Com certeza me fazia essa pergunta por simples polidez. Afinal de contas, recebia-me em sua casa e não queria que eu ficasse sozinho num divã, afastado dos outros convivas.
— Sim, mas não sei se vou ficar...
Subitamente, tive vontade de lhe fazer confidências. Fazia mais ou menos três meses que não falava com ninguém.
-—Posso exercer minha profissão em qualquer lugar, contanto que tenha uma caneta e uma folha de papel...
— Ê escritor?
— Se podemos chamar a isso escritor...
Queria que eu lhe citasse os títulos de meus livros. Talvez tivesse lido algum deles.
— Não creio — disse eu.
— Deve ser apaixonante escrever, não?
Ele não devia estar habituado às conversas a dois, sobre assuntos tão sérios.
— Estou tomando seu tempo — disse eu. — E tenho a impressão de fazer com que seus convidados fujam.
Realmente, já não havia quase ninguém na sala e nas varandas. Ele riu levemente:
— De modo algum... Subiram para o terraço...
Algumas pessoas tinham ficado na sala e ocupavam um sofá, do outro lado da peça: um sofá branco parecido com aquele onde eu estava sentado, junto a Darius.
— Tive muito prazer em conhecê-lo — disse ele.
Depois, dirigiu-se para os outros, entre os quais estava a mulher loura com quem falava há pouco, e o homem de blazer ao elevador.
— Não acham que está faltando música aqui? — perguntou, muito alto, como se seu papel se reduzisse ao de animador. — Vou pôr um disco.
Desapareceu na peça vizinha. Um instante depois, elevou-se a voz de uma cantora.
Sentou-se com os outros, no sofá. Já me esquecera.
Para mim, já era hora de partir, mas não conseguia me impedir de escutar o burburinho e os risos da varanda, e a gritaria de Darius e seus convidados, lá adiante, no sofá. Não ouvia muito bem o que diziam, e me deixava embalar pela canção.
Bateram à porta. Darius levantou-se e dirigiu-se para a entrada. Na passagem, lançou-me um sorriso. Os outros continuavam a falar uns com os outros e, no calor da discussão, o homem do blazer gesticulava muito, como se quisesse convencê-los de alguma coisa.
Vozes no vestíbulo. Aproximavam-se. Era a voz de Darius e a de uma mulher, com entonações graves. Virei-me. Darius estava acompanhado de um casal, e os três se encontravam na entrada da sala.O homem era um moreno de estatura alta, terno cinza, traços bastante pesados, olhos azuis saltados. A mulher usava um vestido de verão amarelo, que lhe descobria os ombros.
— Estamos chegando tarde demais — disse o homem. — Todos já partiram...
Tinha um leve sotaque.
— De modo algum — disse Darius. — Estão nos esperando lá em cima.
Tomou os dois pelo braço.
A mulher, que eu via meio de perfil, virou-se. Senti um aperto no coração. Reconheci Jacqueline. Avançavam em direção a mim. Levantei-me, como um autómato.
Darius os apresentou:
— Georges e Thérèse Caisley.
Cumprimentei-os com um aceno de cabeça. Fitei a tal Thérèse Caisley direto nos olhos, mas ela não pestanejou. Aparentemente não me reconhecia. Darius parecia constrangido por não poder me apresentar por meu nome.
— São meus vizinhos de baixo — esclareceu. — Estou contente por terem vindo... De qualquer modo, não teriam podido dormir, por causa do barulho...
Caisley deu de ombros:
— Dormir?... Mas ainda é muito cedo — disse. — O dia apenas começou.
Eu tentava encontrar o olhar dela. Aquele olhar estava vazio. Não me via, ou então ignorava deliberadamente minha presença. Darius
arrastou-os para o outro lado da sala, até o sofá onde estavam os outros. O homem do blazer levantou-se para cumprimentar Thérèse Caisley. A conversa recomeçou. Caisley era muito loquaz. Ela permanecia um pouco afastada, parecendo amuada ou aborrecida. Tive vontade de chegar até ela, chamá-la de lado e lhe dizer, em voz baixa:
— Olá, Jacqueline.
Mas permanecia petrificado, à procura de um fio de Ariadne que pudesse ter subsistido entre o Café Dante ou o Hotel de la Tournelle de quinze anos atrás e aquela sala de janelas de sacada abertas sobre o Bois de Boulogne. Não havia nenhum. Eu era vítima de uma miragem. E contudo, se refletíssemos bem, aqueles lugares se encontravam na mesma cidade, a pouca distância uns dos outros. Esforçava-me por imaginar o itinerário mais curto possível até o Café Dante: chegar à margem esquerda do Sena pela via periférica, e, da porta de Orléans, rodar reto em direção ao bulevar Saint Michel... Àquela hora, no mês de agosto, bastariam apenas quinze minutos.
O homem do blazer estava falando com ela, que o escutava, indiferente. Sentara-se num dos braços do sofá e acendera um cigarro. Eu a via de perfil. O que fizera dos cabelos? Quinze anos atrás, eles lhe chegavam até a cintura, e agora os usava um pouco acima dos ombros. Fumava, mas não tossia mais.
— Quer subir conosco? — perguntou-me Darius. Abandonara os outros no sofá, e estava em companhia de Georges e Thérèse Caisley. Thérèse. Por que mudara de nome? Entraram à minha frente numa das varandas.
— E só subir a escada da amurada — disse Darius. Designava-nos uma escada com degraus de cimento, na extremidade da varanda.
— E para onde zarparemos, capitão? — perguntou Caisley, batendo familiarmente no ombro de Darius.
Thérèse Caisley e eu estávamos lado a lado, atrás deles. Ela me sorriu. Mas era um sorriso de polidez, que se dirige a um desconhecido.
— Já foi lá em cima? — perguntou-me.
— Não. Nunca. E a primeira vez.
— A vista deve ser muito bonita lá de cima.
Eu já nem sequer sabia se era a mim que ela se dirigia, de tal modo formulara aquela frase de maneira impessoal e fria.
Um grande terraço. A maioria dos convidados ocupava as cadeiras de tecido bege.
Na passagem, Darius parou diante de um dos grupos. Estavam sentados em círculo. Eu avançava atrás de Caisley e de sua mulher, que pareciam ter esquecido minha presença. Cruzaram com outro casal, à beira do terraço, e os quatro começaram a conversar, em pé; ela e Caisley se apoiavam no parapeito. Caisley e os outros dois falavam em inglês. De vez em quando ela pontuava a conversa com uma pequena frase em francês. Também eu fui me encostar ao parapeito do terraço. Ela estava bem atrás de mim. Os outros três continuavam a falar em inglês. A voz da cantora cobria o murmúrio das conversas e eu comecei a assobiar o refrão da música. Ela virou-se.
— Desculpe — disse eu.
— Não há de quê.
Ela me sorriu, com aquele sorriso vazio de um instante atrás. E como se mantinha em silêncio, tive de acrescentar:
— Uma bela noite...
A discussão entre Caisley e os outros dois se animava. Caisley tinha uma voz um pouco fanhosa.
— O que é agradável, sobretudo — disse eu —, é o frescor que vem do Bois de Boulogne...
— Sim.
Pegou um maço de cigarros, tirou um e me estendeu o maço:
— Obrigado. Não fumo.
— Faz bem...
Acendeu o cigarro com um isqueiro.
— Tentei parar várias vezes — disse ela —, mas não consigo...
— E isso não a faz tossir?
Pareceu surpresa com minha pergunta.
— Eu parei de fumar porque o fumo me fazia tossir. Ela não reagiu. Não parecia mesmo reconhecer-me.
— Pena que se escute o barulho da periférica — disse eu.
— Acha? Não o escuto da minha casa... E contudo, moro no terceiro andar.
— A periférica tem também suas vantagens — observei. — Ainda há pouco, levei apenas dez minutos para chegar aqui, vindo do Cais de la Tournelle.
Mas estas últimas palavras a deixaram indiferente. Continuava a me sorrir, com seu sorriso frio.
— É amigo de Darius?
Era a mesma pergunta que a mulher me fizera no elevador.
— Não — disse eu. — Sou amigo de uma amiga de Darius... Jacqueline...
Evitei encontrar o olhar dela. Fixava um dos postes de luz, embaixo, sob as árvores.
— Não a conheço.
— Vão ficar em Paris durante o verão? — perguntei.
— Vou partir na semana que vem, com meu marido, para Maiorca.
Lembrei-me de nosso primeiro encontro, naquela tarde de inverno, na praça Saint-Michel, e da carta que ela levava, em cujo envelope eu lera: Maiorca.
— Seu marido não escreve romances policiais?
Ela deu uma gargalhada. Era estranho, pois Jacqueline jamais rira assim.
— Por que acha que ele escreveria romances policiais? Quinze anos atrás, ela me indicara o nome de um americano que escrevia romances policiais, e que podia ajudar-nos a partir para Maiorca: mc Givern. Mais tarde, eu descobrira algumas obras suas, e cheguei a pensar em descobrir a pista dele, para lhe perguntar se por acaso conhecia Jacqueline, e se sabia o que fora feito dela.
— Eu o confundi com outra pessoa que mora na Espanha... William mc Givern...
Ela me fitou direto nos olhos, pela primeira vez, e pensei perceber uma conivência em seu sorriso.
— E o senhor? — perguntou. — Mora em Paris?
— Por enquanto. Não sei se vou ficar...
Atrás de nós, Caisley continuava a falar com sua voz fanhosa, e agora estava no meio de um grupo muito numeroso.
— Tenho uma profissão que posso exercer em qualquer lugar — disse eu.
— Escrevo livros.
De novo o sorriso polido, a voz distante:
— Ah, sim?... É uma profissão muito interessante... Gostaria muito de ler seus livros...
— Receio que a aborreçam...
— De modo algum... Precisa trazê-los, um dia em que volte à casa de Darius...
— Com prazer.
Caisley pousara o olhar em mim. Com certeza tentava descobrir quem eu era, e por que falava com sua mulher. Aproximou-se dela e lhe passou o braço em volta dos ombros. Os olhos azuis saltados não me deixavam.
— Ele é amigo de Darius, e escreve livros.
Eu devia ter-me apresentado, mas fico sempre constrangido ao declinar meu nome.
— Não sabia que Darius tinha amigos escritores.
Ele me sorria. Tinha uns dez anos a mais que nós. Afinal, onde poderia ela tê-lo encontrado? Em Londres, talvez. Sim, certamente ficara em Londres, depois que nos perdêramos de vista.
— Ele pensava que você também escrevesse — disse ela. Caisley foi sacudido por um forte riso. Depois retomou a atitude de momentos antes: o busto empertigado, a cabeça ereta.
— Pensou mesmo isso? Acha que tenho cara de escritor?
Não me fizera a pergunta. Era indiferente à profissão que aquele Caisley pudesse exercer. Por mais que me dissesse que era o marido dela, não se distinguia de todas as pessoas reunidas naquele terraço. Estávamos perdidos, ela e eu, entre figurantes, num estúdio de cinema. Ela fingia saber seu papel, mas eu nem sequer chegava a enganar. Logo perceberiam que era um intruso. Permanecia mudo, e Caisley me encarava. Era preciso, a todo o custo, que encontrasse uma réplica:
— Eu o confundi com um escritor americano que mora na Espanha... William mc Givern...
Pronto, ganhara um pouco de tempo. Mas isso não bastava. Era urgente encontrar outras réplicas e pronunciá-las com naturalidade e desenvoltura, para não chamar a atenção. Minha cabeça girava. Temia me sentir mal. Transpirava. A noite me parecia sufocante, a menos que fosse a luz crua dos projetores, o burburinho das conversas, os risos.
— Conhece a Espanha? — perguntou Caisley.
Ela acendera outro cigarro e continuava a me fitar com seu olhar frio. Articulei, com dificuldade:
— Não. De modo algum.
— Temos uma casa em Maiorca, onde passamos mais de três meses no ano.
E a conversa ia prosseguir durante horas, naquele terraço. Palavras vazias, frases ocas, como se ela e eu sobrevivêssemos a nós mesmos e não pudéssemos sequer fazer a menor alusão ao passado. Ela estava muito à vontade nesse papel. E eu não lhe queria mal: também quase havia esquecido tudo de minha vida, à medida que o tempo passava, e cada vez que painéis inteiros desta se desfaziam experimentava uma sensação agradável de leveza.
— E qual é o período do ano que prefere em Maiorca? — perguntei a Caisley.
Agora me sentia melhor, o ar estava mais fresco, os convivas à nossa volta menos barulhentos e a voz da cantora muito doce. Caisíey deu de ombros.
— Todas as estações têm seu charme em Maiorca. Virei-me para ela:
— Também pensa a mesma coisa?
Ela deu aquele sorriso de momentos antes, no qual eu pensava perceber uma conivência.
— Penso exatamente a mesma coisa que meu marido. Então, como que tomado por uma vertigem, disse-lhe: -— Engraçado. A senhora já não tosse quando fuma. Caisley não ouvira minhas palavras. Alguém lhe dera um tapa nas costas, e ele se virara. Ela franziu as sobrancelhas.
— Já não precisa cheirar éter para parar de tossir... Pronunciara essa frase no tom da conversa mundana. Ela me lançou um olhar espantado. Mas não perdera o sangue-frio. Quanto a Caisley, conversava com seu vizinho.
— Não entendi o que me disse...
Agora seu olhar já não exprimia nada, e evitava o meu. Sacudi vivamente a cabeça, para dar a impressão de alguém que desperta sobressaltado.
— Desculpe... Estava pensando no livro que escrevo no momento...
— É um romance policial? — perguntou ela, num tom de cortesia distraída.
— Não inteiramente.
Aquilo não adiantara nada. A superfície permanecera calma. Águas adormecidas. Ou antes uma camada espessa de gelo que era impossível perfurar, depois de quinze anos.
— Vamos embora? — disse Caisley.
Envolvia os ombros dela com o braço. Tinha uma silhueta pesada, e ela parecia pequena perto dele.
— Também estou de saída — disse eu.
— Temos de nos despedir de Darius.
Fomos procurá-lo em vão entre os grupos de convidados, no terraço. Depois descemos para a sala. Bem no fundo, quatro pessoas estavam sentadas à volta de uma mesa e jogavam cartas em silêncio. Darius estava entre elas.
— Decididamente o pôquer é mais forte do que tudo... comentou Caisley.
Apertou a mão de Darius. Este se levantou e beijou a mão dela. Por minha vez, apertei a mão de Darius.
— Volte quando quiser — disse ele. — A casa está aberta para o senhor.
No patamar, eu me preparava para tomar o elevador.
— Vamos deixá-lo aqui — disse Caisley. — Moramos logo embaixo.
— Hoje à tarde esqueci minha bolsa no carro — disse ela.
Já volto.
— Então até logo — disse-me Caisley, com um aceno displicente. — E muito prazer em conhecê-lo.
Desceu a escada. Ouvi uma porta bater. Estávamos os dois no elevador. Ela levantou o rosto para mim:
— Meu carro está um pouco mais longe, perto da praça...
— Eu sei — disse eu.
Ela me fitava, com os olhos arregalados.
— Por quê? Está me espionando?
— Hoje à tarde eu a vi por acaso, saindo de seu carro.
O elevador parou, os dois batentes se abriram deslizando, mas ela não se mexia. Continuava a me fitar, com os olhos ligeiramente arregalados.
— Você não mudou muito — disse ela.
Os dois batentes fecharam de novo, com um ruído metálico. Ela baixou a cabeça, como se quisesse proteger-se da luz que caía do globo do elevador.
— E eu, acha que mudei?
Não tinha a mesma voz de ainda há pouco, no terraço, mas aquela, um pouco rouca, um pouco roufenha, de outrora.
— Não... Além dos cabelos e do nome...
A avenida estava silenciosa. Ouvia-se o farfalhar das árvores.
— Você conhece o bairro? — perguntou ela.
— Conheço.
Eu já não tinha mais muita certeza. Agora que ela andava a meu lado, tinha a impressão de que passava por aquela avenida pela primeira vez. Mas não estava sonhando. O carro continuava ali, sob as árvores. Apontei-o:
— Aluguei esse carro... E mal sei dirigir...
— Isso não me espanta...
Ela me tomara o braço. Parou e me lançou um sorriso:
— Você deve confundir o freio com o acelerador, se ainda o conheço bem...
Eu também tinha a sensação de conhecê-la bem, embora não a tivesse visto durante quinze anos e nada soubesse de sua vida. De todas as pessoas que encontrara até agora, era ela a que permanecera mais presente em meu espírito. À medida que caminhávamos de braços dados, acabava me persuadindo de que nos deixáramos na véspera.
Chegamos à praça.
—Acho que seria mais prudente se eu dirigisse para levar você em casa...
— Bem que eu queria, mas seu marido está esperando você... Mal pronunciara esta frase, pareceu-me que ela soava falso.
— Não... Ele já deve estar dormindo. Estávamos sentados lado a lado no carro.
— Onde mora?
— Não muito longe. Num hotel, para o lado do Cais de Passy. Ela pegou o bulevar Suchet, na direção da porta Maillot. Não era o caminho, de modo algum.
— Se nos revirmos a cada quinze anos — disse ela —, na próxima vez você se arrisca a não me reconhecer mais.
Que idade vamos ter, nessa época? Cinqüenta anos. E isso me pareceu tão estranho que não pude deixar de murmurar:
— Cinqüenta... — para tentar encontrar nesse número uma sombra de realidade.
Ela dirigia com o busto um pouco empertigado, a cabeça ereta, e diminuía a marcha nos cruzamentos. Tudo estava silencioso à nossa volta. Menos as árvores, que sussurravam.
Entramos no Bois de Boulogne. Ela parou o carro sob as árvores, perto dos guichês de onde parte o trenzinho que faz o percurso de ida e volta entre a porta Maillot e o Jardin d’Acclimatation. Estávamos na sombra, à beira da alameda e, diante de nós, os postes iluminavam com uma luz branca aquela estação em miniatura, a plataforma deserta, os minúsculos vagões parados.
Ela aproximou o rosto e roçou minha face com a mão, como para se certificar de que eu estava mesmo ali, vivo, a seu lado.
— Foi engraçado, há pouco — disse ela —, quando entrei e vi você na sala...
Senti seus lábios no meu pescoço. Acariciei-lhe os cabelos. Não estavam tão compridos quanto outrora, mas na verdade nada mudara. O tempo parara. Ou antes, voltara à hora que os ponteiros do relógio do Café Dante marcavam, na noite em que nos havíamos encontrado lá, momentos antes do fechamento.
Na tarde do dia seguinte, fui buscar o carro que deixara diante do prédio dos Caisley. No momento em que me sentava ao volante, vi Darius andando na calçada da avenida, em pleno sol. Usava um short bege, uma camisa pólo vermelha e óculos escuros. Fiz-lhe um aceno. De modo algum parecia espantado que eu estivesse ali.
— Que calor... Não quer subir para tomar alguma coisa? Declinei do convite, pretextando um encontro.
— Todos me dão o bolo... Os Caisley partiram esta manhã para Maiorca... Têm razão... É idiota ficar em Paris no mês de agosto...
Ontem, ela me dissera que só partiria na semana seguinte. Mais uma vez roera a corda. Eu esperava por isso. Ele curvou-se para a porta:
— Venha assim mesmo uma noite dessas... Precisamos de ajuda mútua, no mês de agosto...
Apesar do sorriso, adivinhava nele uma vaga preocupação. No som de sua voz.
-— Virei -— disse.
— Sem falta?
— Sem falta.
Arranquei, mas dei uma ré demasiado brusca. O carro bateu no tronco de um dos plátanos. Darius abriu os braços, num gesto desolado. Tomei a direção da porta d’Auteuil. Pretendia voltar ao hotel pelos cais do Sena. A traseira da carroceria devia estar bastante danificada, e um dos pneus roçava nela. Eu andava o mais lentamente possível.
Comecei a experimentar uma sensação engraçada, talvez por causa das calçadas desertas, da bruma de calor e do silêncio à minha volta. À medida que descia o bulevar Murat, meu mal-estar se tornava preciso: descobrira enfim o bairro onde passeava muitas vezes com Jacqueline, em meus sonhos. Contudo, jamais havíamos andado juntos por ali, ou então era durante uma outra vida. Meu coração bateu mais forte, como um pêndulo que se aproxima de um campo magnético, antes de desembocar na praça da Porte-de-Saint-Cloud. Reconheci as fontes, no meio da praça. Estava certo de que Jacqueline e eu costumávamos seguir uma rua à direita, atrás da igreja, mas não a encontrei naquela tarde.
Quinze anos se passaram ainda, numa tal bruma, que se confundem uns com os outros, e eu não tive mais notícias de Thérèse Caisley. O telefone que me dera não respondia, como se os Caisley nunca mais tivessem voltado de Maiorca.
Talvez esteja morta desde o ano passado. Talvez a encontre num domingo próximo, para o lado da rua Corvisart.
São onze horas da noite, em agosto, e o trem diminuiu a marcha ao atravessar as primeiras estações do subúrbio. Plataformas desertas sob a luz lilás do néon, ali onde sonhávamos com partidas para Maiorca, e combinações engenhosas em volta do cinco neutro.
Brunoy. Montgeron. Athis-Mons. Jacqueline nasceu por aqui.
O ruído cadenciado dos vagões cessou, e o trem parou um instante em Villeneuve-Saint-Georges, antes da estação de triagem. As fachadas da rua de Paris que beira a via férrea são escuras e estragadas. Outrora se sucediam, em toda a extensão, cafés, cinemas, garagens, cujas tabuletas ainda se podem distinguir. Uma delas está acesa, como uma lamparina, para nada.
Patrick Modiano
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