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Todo artista é, a seu modo, um místico. Uma fé permanente sustenta e consolida o arcabouço geral da grande obra arquitetada ao longo de toda uma vida. Qual Prometeu, ele rouba o fogo sagrado, luz criadora de mundos, chama que anima sua criação e suas criaturas.
Assim é Zola, cuja crença naturalista alcança os contornos de uma verdadeira utopia. Afirmativa capaz até de surpreender o público já habituado à leitura picante ou à visão pessimista de um escritor responsável, entre outras coisas, por textos como Naná e A Besta Humana. Felizmente, porém, Zola não se reduz a vulgares estereótipos de amplo consumo e descartáveis. Para fazer-lhe justiça, impõe-se muito além de qualquer verniz pornoerótico ou sadodeterminista.
Qual o seu credo, afinal? Na base, sem dúvida, um enfoque negativo da condição humana centrada na sua dimensão natural e sem o reconforto de nenhum suporte espiritual: coisa no universo das coisas o homem está condicionado pelo meio ambiente e pelo estigma hereditário que se renovam sem parar no ciclo vida-morte.
Como a pedra e a planta, o ser humano tem o seu destino inscrito no cosmos universal, e não escrito numa bíblia qualquer. A metafísica cede seu lugar à física, mesmo se o mistério persiste... E se, no imaginário zoliano, Eros e Tânatos presidem o movimento do eterno retorno como propriedades da matéria ou como divindades anônimas, pouco importa! Queira-se ou não, toda uma mitologia cosmonatural e bioorgânica acaba povoando a sua vasta criação, que descreve forças geradoras e destruidoras. E, de permeio a tanta miséria, luzem os vislumbres otimistas da constatação pura e simples de que a vida sadia teima em renovar-se sempre e sempre, como o ilustra de modo quase poético o Doutor Pascal, elo derradeiro da saga dos Rougon-Macquart.
Além do que, como um espírito autêntico de seu tempo, Emile Zola vai introduzir, nessa visão naturalista, a esperança moderna por excelência do milagre científico. Pois na verdade a ciência torna-se, para ele como para sua época, um álibi espiritual. Com ingenuidade, acredita-se então no poder sobre-humano de um progresso científico apto a regenerar e apurar a espécie humana. E é isto mesmo que seus livros dizem. Cada romance descreve a mecânica humana em funcionamento — donde, às vezes, o aspecto francamente demonstrativo ou obsceno —, mas para detectar o órgão doentio a fim de saná-lo ou extirpá-lo. Novo sopro otimista estremece dessa forma o conjunto de uma obra, toda ela voltada para o futuro mirífico onde se implantará sobre a Terra uma sociedade perfeita para a raça regenerada. Médico e sociólogo implícito, Zola aparece como um místico materialista trabalhando por uma ciência e um socialismo forjadores da miragem paradisíaca. Que esta crença impregne seus escritos já não há dúvida alguma para os seus leitores não-ocasionais, bem como para a crítica especializada, que tem enfatizado o arranjo por assim dizer messiânico da arquitetura global de uma produção artística em que o ciclo dos Rougon-Macquart figura uma espécie de Antigo Testamento precedendo o conjunto final dos Evangelhos. Essa postura profunda vai, como é lógico, sedimentar todas as suas convicções de artista. Emile Zola remete aliás, por analogia, a certos outros escritores-pensadores franceses; e, sem possuir a ironia irreverente de um Voltaire nem o pensamento sistematizado de um Sartre, acaba por confundir-se ele também com a imagem do filósofo que se exprime através da ficção. Existe portanto nele uma concepção de arte como coisa séria, que se opõe desde logo ao lúdico ou ao ornamental. O que não é difícil constatar ao longo dos textos teóricos e críticos reunidos neste volume.
Que não se espere, entretanto, nenhuma teoria do romance de alguém que nunca foi teórico do gênero. No fundo, trata-se de reflexões mais ou menos teóricas a serviço da prática. E de uma prática que, por sua vez, vem impregnada daquela vocação humanitária evocada linhas atrás. Com a certeza ferrenha ou feroz que o excita, Zola ataca o inimigo e defende seus princípios, ao mesmo tempo humanitários e artísticos. A arte confunde-se com o pensamento, ambos a serviço da crença pessoal. Donde a veemência de muitas de suas diatribes, a começar pelo contundente Meus Ódios, com que abriu os combates no início da carreira.
Nas páginas que seguem, o tom moderado de quem fala de colegas e amigos segue ímpetos mais arrebatadores. O primeiro texto discute aspectos um tanto técnicos e portanto não necessariamente polêmicos, da arte romanesca; os três finais discorrem sobre escritores que estão — ou, pelo menos, deveriam estar — ao lado de Zola no campo de batalha.
O capítulo sobre "o senso do real" ataca os contistas imaginativos, para melhor defender os romancistas sérios que sacrificam o imaginário ao real. Não é a primeira vez, nem a última, que Zola questiona a imaginação em literatura, e de modo particular no romance. Como também o nome de Victor Hugo não surge por acaso no alvo de suas flechadas, pois esse virtuose da linguagem encabeça a coorte dos românticos "podres de lirismo", que escrevem obras de pura imaginação, baseiam-se no sobrenatural e no irracional, admitem forças misteriosas e permanecem no nível dos sentimentos, sem jamais respeitar a realidade e o determinismo dos fatos nem controlar as reações e comportamentos pela experiência etc. etc. Enfim, quem, em tudo e por tudo, não respeita o receituário naturalista da arte literária que ele próprio está codificando.
Não deixa todavia de ser curioso o modo pelo qual Emile Zola acaba por escamotear a mesma imaginação na sua estética pessoal. Pois o que vem a ser afinal aquela famosa "experiência", que ele tanto apregoa, senão uma operação puramente imaginária, associada por metáfora aos procedimentos dos cientistas? O romancista naturalista não faz experiência alguma; ele reúne, apenas, a mais vasta documentação sobre o tema romanesco escolhido e, diante da página em branco, deixa trabalhar as suas faculdades imaginativas, que vão urdindo tramas e redigindo textos, como qualquer outro escritor de ficção.
Onde intervém, então, o tal de sentido da realidade ou dom de "sentir a natureza e exprimi-la tal qual"? Como se a natureza fosse algo perceptível com objetividade absoluta! Quando muito, tal qual a capta Zola; e, aí sim, tem-se algo que lhe é peculiar. Para prová-lo, basta percorrer muitas das belas páginas espalhadas por diversos de seus textos mais tocantes, como O Pecado do Padre Mouret, Uma Página de Amor, A Besta Humana, O Doutor Pascal, nos quais se revela um romancista-poeta dotado de rara sensibilidade. A este aplica-se com toda propriedade o "sinto, logo existo", aforismo cartesiano adaptado através da leitura do fisiologista Letourneau, que faz parte do abundante material coletado e comentado nas anotações prévias à elaboração do ciclo dos Rougon-Macquart.
No tópico sobre "a expressão pessoal", flagra-se nova proposta contraditória. Sua postulação teórica nunca se cansa de proclamar em alto e bom som que o autor deve desaparecer por trás da obra. Ideal de impassibilidade que só um Flaubert quase logrou alcançar, mas com grandes riscos de escrever para ninguém!... Em todo caso, e pelo menos no plano teórico, Zola institui o princípio sagrado do artista imparcial, objetivo tanto quanto o cientista que, por exemplo, não se irrita com as reações imprevistas do azoto utilizado em sua experiência.
Ora, nestas rápidas elucubrações, o leitor depara-se com o oposto simétrico desse postulado, visto que o escritor autêntico passa a ser aquele que, como seu amigo Daudet, tem a virtude de fundir vida e arte. Apenas a vivência humana decantada e trabalhada pode subsidiar o ato criativo. Sem ela, a arte degenera em artifício que os mais hábeis conseguem ate dominai ou copiar, mas que permanecera morto enquanto molde não preenchido por matéria viva, que cada um só pode tirar de si mesmo. Logo, a expressão pessoal, ou — para usar um termo mais desgastado — a originalidade, não implica nem aspectos formais nem existenciais. Pouco importam a gramática e o estilo se, através da prosa correta e envernizada, não se sente vibrarem seres palpitantes de vida.
Reaparece, dessa forma, a obsessiva fidelidade à natureza. Feitas as contas, não causa tanta perplexidade vê-lo, apesar de tudo, elogiar os escritores que riem e choram com os seus protagonistas ou exigir deles que insuflem sua vida pessoal na reconstituição do real. E o arauto da literatura científica conforma-se ao fato comumente admitido de que as criações artísticas constituem sempre uma percepção personalizada do universo ou um universo recriado por uma sensibilidade única e inconfundível. Na falta desse princípio integrador, fica apenas a retórica, desembocando seja no ornamento, seja nos exercícios de abstração laboratorial. Em ambos os casos, revela-se incompatibilidade com o mandamento zoliano que investe o ato criador de uma missão muito mais austera. Como acontece em nossa era pós-estruturalista, também impôs-se ao sonho científico do século passado uma sub-reptícia reinserção do "sujeito" na arte.
Com pequena variante, Emile Zola remexe outra temática que andou extasiando bastante a crítica literária pré-pós-moderna, a saber, o sempre servido e às vezes requentado prato da "crítica-criação". Inverta-se tão somente a ordem dos fatores: hoje a crítica se diz arte, ao passo que então o romance procurava afirmar-se como crítica. Reiteradas vezes, chefe e sectários da escola naturalista reivindicaram o enobrecimento do romance que no dizer dos irmãos Cronpourt por exemplo, evoluíra da simples categoria de leitura anódina e fútil de leitura anódina e fútil para o honroso status de estudo crítico e aprofundado. Tal valorização do gênero passa, portanto, por essa pleiteada afinidade com o trabalho de crítica, que abrange por seu turno arte e sociedade.
Estes pressupostos sustentam a argumentação de "a fórmula crítica aplicada ao romance". A equação é clara e eloqüente: o romancista procede, com relação à personagem, exatamente como o crítico face ao autor. Não obstante, mais que a similitude metodológica, interessa a de conteúdo, que faz com que, na óptica naturalista, o romance se transforme em análise crítica das paixões e comportamentos contextualizados. Aliás, a própria palavra "romance" incomodava Zola, que a aceitou por exclusão, depois de ter tentado substituí-la por outras, como "estudo" ou "relatório", mais adequados ao almejado enfoque científico, com a vantagem suplementar de facilitar a troca da imaginação gratuita por uma espécie de imaginação dedutiva.
Imprópria lhe parecia, da mesma forma, a palavra "descrição", agora também enobrecida com a missão de "completar e determinar". Não mais, portanto, os encantos do belo estilo, mas sim o detalhamento minucioso da ecologia humana. Por isso mesmo, as melhores performances descritivas devem ser creditadas, não aos exercícios arte-pela-arte à maneira de Théophile Gautier, mas antes à pintura necessária de Flaubert ou à escrita humana dos Goncourt.
De súbito, irrompe inesperado mea culpa, com Zola arrependido em parte pelos excessos descritivos com os quais procurou ampliar o quadro humano e natural desenhado em certos romances. O caso e a justificativa das ultra-simétricas cinco descrições de Uma Página de Amor tem muito de sintomático. De novo, a arte suplanta a teoria. Dizer que a descrição apenas completa o gráfico do homem em seus condicionamentos naturais é reduzi-la por demais a uma simples técnica de pesquisa científica... Por trás do ideário de prosélito ocultam-se "intenções sinfônicas" que se apossam do artista, apesar dele. Zola se documenta, planeja, classifica, esboça mas, no instante único em que a chama criativa se acende, quem pega da pena mesmo e conduz o processo é o demônio da arte. E os ímpetos artísticos, que assim triunfam, nascem da experiência vivida, confirmando de certa forma a justeza do binômio vida-arte que, neste ponto pelo menos, dá razão ao teórico.
Nos três estudos que formam o núcleo destes textos críticos escolhidos, Emile Zola prossegue em sua tarefa de codificação artística, mas agora mais propenso, como em outras ocasiões, ao mapeamento dos domínios do Naturalismo. Duas preocupações de base orientam, aqui e alhures, sua démarche argumentativa: congregar os componentes da escola, opondo-os, via de regra, aos adversários; definir, o mais das vezes de modo inconsciente, a especificidade de sua estética pessoal.
O "Stendhal", que encabeça a tríade examinada, vai caracterizar-se por contraste com o todo-poderoso e ainda idolatrado Victor Hugo. Por sinal, quem quiser ter uma idéia mais enfática da guerra sem trégua que Zola moveu contra o autor de Os Miseráveis ganhará em ler a veemente "Carta à Juventude", que ataca com igual vigor Ernest Renan, outro monstro, mais ou menos sagrado porém. Para Zola, Stendhal faz parte do grupo dos reconhecidos como afins, apesar de certos matizes particulares de sua arte. Valorizando desde o início a documentação disponível, Zola procede a uma interessante resenha dos trabalhos assinados por Balzac, Sainte-Beuve e Taine, cujos perfis ganham em nitidez, tanto quanto o do próprio Stendhal. A grande virtude deste, aos olhos do teórico naturalista, é chegar, sem arroubos retóricos, à pintura da natureza humana tal como ela é; seu grande defeito, tratar a alma humana com abstração e sem encarná-la num corpo mergulhado na natureza, além da ausência de lógica na composição e no estilo. Em outras palavras, Stendhal, que tem o grande mérito de repudiar o falso brilho verbal dos românticos e trazer em si um fundo de verdade humana indiscutível, não chega a ser um naturalista legítimo e, menos ainda, um escritor zoliano capaz de compor com toda lógica e clareza possíveis textos-documentos extraídos da natureza. Também não se lhe deve atribuir nenhuma superioridade sobre os naturalistas, visto que a concepção psicológica do homem não é superior à fisiológica. De qualquer forma, subsiste uma admiração contida e, até certo ponto, estratégica que sempre contrabalança um pouco a onipresença hugoana.
Dentre os parceiros literários, quem ocupa o lugar de destaque é sem dúvida alguma Gustave Flaubert, amigo estimado e mestre cooptado. A quantidade certamente, mas sobretudo a qualidade das páginas que lhe são dedicadas testemunham essa marcante influência artística e humana. Zola compartilhou, com um pequeno grupo de colegas, da intimidade do homem e do artista Flaubert, que os recebia no isolamento normando de Croisset e os freqüentava nas suas espaçadas estadias parisienses. Seu testemunho pessoal, comovida homenagem póstuma, retraça circunstâncias e lutas vividas por Flaubert, revelando assim um pouco da pessoa que o grande escritor francês sempre procurou ocultar por trás de suas produções artísticas. O discípulo naturalista ajuda portanto a resgatar em parte o homem Flaubert, que, segundo este, devia deixar para a posteridade a impressão de não ter existido.
Mas há também na homenagem zoliana o resgate do artista. Além de reiterarem a prova de amizade, as considerações sobre o artista denotam o incansável ânimo proselitista do Emile Zola chefe de escola literária brindando, mais uma vez, o leitor com um flagrante de rotulagem naturalista. Esse texto, como boa parte de seus escritos críticos, situa-se por volta de 1880, clímax do movimento naturalista, centrado todo ele na figura do chefe inconteste da nova geração literária. E, como digno chefe, este demarca seu território e elenca os seus, entre vivos e mortos. Com que segurança não encampa ele o ilustre e recém-desaparecido criador de Emma Bovary!
Pouco importa se a questão tinha ou não sentido para Flaubert, mas Zola o inclui sem o menor escrúpulo no patrimônio do Naturalismo. Madame Bovary? Ora, nada mais é do que o protótipo do romance naturalista, súmula das características da escola! Seu autor? O modelo do observador-experimentador segundo o estrito figurino naturalista! E, mesmo se um certo entusiasmo pela força poética da prosa flaubertiana desponta de vez em quando na análise de seus demais romances, a leitura que Zola faz de Flaubert baliza, no seu todo, um itinerário eminentemente naturalista. Malgrado a admiração sincera, transparece aquele espírito partidário sempre em busca do posições consolidadas. Com efeito, qual melhor represa contra eventuais transbordamentos românticos do que o recém-falecido autor de A Educação Sentimental?
O leitor avesso a polêmicas será, por sua vez, sensível à penetrante avaliação zoliana que vê em Flaubert a síntese das duas tendências maiores das gerações pós-1830: a análise exata de Balzac e o brilho do estilo à Victor Hugo, admirado apesar de combatido. Nesta ordem de idéias surgem os melhores lances do estudo crítico de Zola, com fórmulas lapidares sobre o estilo "sóbrio e brilhante" ou as imagens "precisas e soberbas" de um prosador que é "poeta com um sangue-frio que faz ver com precisão". Esse mesmo leitor notará ainda a perplexidade implícita de Zola diante das aparentes contradições de Flaubert, eremita e mártir do fazer artístico, gênio que levou as letras francesas a um prodigioso salto à frente, mas que execra e abomina tudo o que traz marcas de modernidade. Como se em Flaubert também houvesse um conflito entre a teoria e a prática... Equívoco que, logicamente, diz respeito ao próprio Zola teimando em fazer de Flaubert um espírito bem do seu tempo, moderno-progressista-positivista-naturalista, quando ele mesmo se diz, coerente consigo, um escritor acima de qualquer suspeita temporal, um asceta da arte eterna e cujo grande combate consiste em vencer os obstáculos que se opõem a uma perfeição sempre perfectível: "Tudo foi dito antes de nós, resta-nos apenas redizer as mesmas coisas, numa forma mais bela, se for possível".
Por não ser este o seu sonho, Zola vai mostrar-se pouco traumatizado pelo calvário artístico do amigo e muito perplexo com suas intolerâncias estilísticas, preferindo celebrar nele o filósofo experimentador que se ignora. que se ignora. Nas entrelinhas esboça-se o perfil de um cético e satírico que pode contar como aliado precioso na cruzada zoliana pela verdade e pela justiça.
No fecho desse percurso crítico cumprido por Emile Zola, os irmãos Edmond e Jules de Goncourt completam, não por acaso, a simetria da coletânea, que começa e termina pela apologia das sensações. Realmente, salta aos olhos que o grande fascínio exercido pela dupla de requintados estetas franceses resulta daquele tão apregoado sentido, ou senso, do real, maneira muito particular de sentir e que é comunicada por um estilo inventado de propósito. Graças a uma sensibilidade diferente, delicada e como que nervosa ou doentia, os Goncourt, ainda por cima hábeis manipuladores da linguagem, realizaram, segundo Zola, a proeza de abrir um novo caminho ao romance francês, que se encontrava num beco sem saída após o fenômeno Balzac. Caminho este que, como reivindica novamente o chefe de escola, assegura-lhes um espaço muito particular na marcha naturalista. Pois, mais uma vez, presencia-se um caso de encampamento literário, mesmo se a produção de seus dois contemporâneos desliza às vezes para uma elegância e um maneirismo incompatíveis com os caminhos estéticos do austero Naturalismo.
Como era de se esperar, é para Germinie Lacerteux que vão as preferências de Zola quanto ao conjunto de oito romances compostos a quatro mãos pelos irmãos siameses das letras francesas. Todos os clichês naturalistas parecem ter sido empregados no verdadeiro exame clínico do triste destino da doméstica Germinie: fisiologia patológica, dissecação cirúrgica, estudo de temperamentos, determinismo orgânico-erótico, degradação moral e física, impulsos coercitivos do meio sócio-natural e — evento capital- a entrada do povo miúdo na literatura séria. O romance é um é um marco na história da literatura francesa (e ocidental, como dirá Auerbach na sua magistral Mimesis). Talvez mais pelas intenções do que pela realização.
Um significado simbólico agrega-se a esse receituário de escola, para justificar ainda mais o empenho proselitista de Emile Zola. Aqui, como no caso de Flaubert, aceita-se corajosamente o desafio da indiferença pública e a hostilidade crítica para projetar de modo mais provocante o Naturalismo como movimento alvissareiro à procura de pelejas consagradoras. E Zola, espécie de mata-mouros das letras, sai à liça de peito aberto e conclamando à briga... No registro implícito, caberia comentar também os acertos de contas com os próprios parceiros, como esses mesmos Goncourt ou o sempre admirado Balzac.
Contudo, se os meios revelam egoísmo partidário ou pessoal, os fins jamais deixam de ser generosos: a Germinie, dos Goncourt, como muitos dos tristes e sofridos protagonistas zolianos, será salva quando se puder subtraí-la do ambiente viciado e degenerador em que a sociedade a condenou a viver. De novo, sobe no horizonte o clarear da utopia naturalista anunciando a sociedade perfeita e o paraíso terrestre. Ingenuidade humanitária, tão ilusória quanto o próprio sonho positivista por excelência de uma ciência e de uma arte absolutamente precisas e transparentes.
O SENSO DO REAL
O mais belo elogio que se podia fazer a um romancista, outrora, era dizer: "Ele tem imaginação". Hoje, esse elogio seria visto quase como uma crítica. É que todas as condições do romance mudaram. A imaginação já não é a qualidade mestra do romancista.
Alexandre Dumas, Eugène Sue tinham imaginação. Em Notre-Dame de Paris, Victor Hugo imaginou personagens e uma fábula do mais vivo interesse; em Pauprat, George Sand soube apaixonar toda uma geração pelos amores imaginários de seus heróis. Mas ninguém ousou associar a imaginação a Balzac e a Stendhal. Falou-se de suas faculdades poderosas de observação e análise; eles são grandes porque retrataram sua época, e não porque inventaram contos. Foram eles que conduziram essa evolução, foi a partir de suas obras que a imaginação deixou de contar no romance. Vejam nossos grandes romancistas contemporâneos, Gustave Flaubert, Edmond e Jules de Goncourt, Alphonse Daudet: seu talento não vem do que eles imaginam, mas do fato de reproduzirem a natureza com intensidade
Insisto nesse declínio da imaginação porque vejo nisso a própria característica do romance moderno. Enquanto o romance foi uma recreação do espírito, um divertimento ao qual não se pedia senão graça e verve, compreende-se que a grande qualidade era antes de tudo mostrar nele uma invenção abundante. Mesmo quando o romance histórico e o romance ilustrando uma tese apareceram, ainda era a imaginação que reinava onipotente, para evocar os tempos idos ou para chocar como os argumentos das personagens construídas segundo as necessidades da justificação. Com o romance naturalista, o romance de observação e de análise, as condições mudam imediatamente. O romancista inventa ainda mais; inventa um plano, um drama; apenas, é uma ponta de drama, a primeira história surgida, e que a vida cotidiana sempre lhe fornece. Em seguida, na estruturação da obra, isso tem bem pouca importância. Os fatos só estão lá como desenvolvimentos lógicos das personagens. O grande negócio é colocar em pé criaturas vivas, representando diante dos leitores a comédia humana com a maior naturalidade possível. Todos os esforços do escritor tendem a ocultar o imaginário sob o real.
Seria um estudo curioso dizer como trabalham nossos grandes romancistas contemporâneos. Quase todos estabelecem suas obras a partir de notas, tomadas longamente. Quando estudaram com um cuidado escrupuloso o terreno onde devem caminhar, quando se informaram em todas as fontes e têm em mãos os múltiplos documentos dos quais necessitam, somente nesse momento decidem-se a escrever. O plano da obra lhes é trazido por esses próprios documentos, pois acontece de os fatos se originarem logicamente, este antes daquele; estabelece-se uma simetria, a historia se compõe de todas as observações recolhidas, de todas as notas tomadas, uma puxando a outra, pelo próprio encadeamento da vida das personagens, e a conclusão nada mais é que uma conseqüência natural e inevitável. Vê-se, nesse trabalho, o quanto o imaginário tem pouca importância. Estamos longe de George Sand, por exemplo, que, segundo dizem, ficava diante de um caderno em branco e que, tendo partido de uma primeira idéia, avançava sem parar, compondo à medida que, confiando com toda certeza em sua imaginação, acrescentava tantas páginas quantas eram necessárias para fazer um volume.
Um de nossos romancistas naturalistas quer escrever um romance acerca do mundo dos teatros. Ele parte dessa idéia geral sem ter ainda um fato nem uma personagem. Seu primeiro cuidado será reunir em notas tudo o que puder saber a respeito desse mundo que pretende retratar. Conheceu tal ator, assistiu a tal cena. Eis aí documentos, os melhores, aqueles que amadureceram nele. Em seguida, sairá a campo, ouvirá os homens mais bem informados sobre a matéria, colecionará as expressões, as histórias, as descrições. Não é tudo: irá, depois, aos documentos escritos, lendo tudo o que lhe pode ser útil. Enfim, visitará os locais, viverá alguns dias num teatro para conhecer seus mínimos recantos, passará suas noites num camarim de atriz, impregnar-se-á o máximo possível do ar ambiente. E, uma vez completados os documentos, seu romance, como já o disse, se estabelecerá por si mesmo. O romancista terá apenas que distribuir logicamente os fatos. De tudo o que tiver apreendido resultará a ponta do drama, a história que ele necessita para montar o arcabouço de seus capítulos. O interesse já não se encontra na estranheza dessa história; ao contrário, quanto mais banal e geral ela for , mais típica se tornará. Fazer mover personagens reais num meio real, dar ao leitor um fragmento da vida humana, aí se encontra todo o romance naturalista.
Visto que a imaginação já não é a qualidade mestra do romancista, o que, então, a substituiu? É preciso sempre uma qualidade mestra. Hoje, a qualidade mestra do romancista é o senso do real. E é a isso que eu gostaria de chegar.
O senso do real é sentir a natureza e representá-la tal como ela é. Parece, inicialmente, que todo mundo possui dois olhos para ver e que nada deve ser mais comum do que o senso do real. Entretanto, nada é mais raro. Os pintores sabem muito bem disso. Coloquem alguns pintores diante da natureza, eles a verão do modo mais barroco do mundo. Cada um a perceberá sob uma cor dominante; um a fará tender ao amarelo, um outro ao violeta, um terceiro ao verde. Para as formas, os mesmos fenômenos se produzirão; um arredonda os objetos, outro multiplica os ângulos. Cada olho tem, assim, uma visão particular. Enfim, há olhos que não vêem absolutamente nada. Possuem sem dúvida alguma lesão, o nervo que os liga ao cérebro sofre de uma paralisia que a ciência ainda não pôde determinar. O certo é que de nada adiantará observarem a vida se mover ao seu redor, jamais saberão reproduzir exatamente uma cena.
Não quero citar aqui nenhum romancista vivo, o que torna rainha demonstração bastante difícil. Os exemplos esclareceriam a questão. Mas todos podem observar que alguns romancistas permanecem provincianos, mesmo depois de terem vivido vinte anos em Paris. São ótimos nas descrições de sua região, e, assim que abordam uma cena parisiense, perdem-se, não conseguem dar uma impressão justa de um meio, no qual, entretanto encontram se há anos. Eis aí um primeiro caso, uma ausência parcial do senso do real. Sem dúvida, as impressões de infância foram mais vivas, o olho fixou os quadros que o arrebataram inicialmente; depois, a paralisia se declarou, e é inútil o olho observar Paris, ele não a vê, jamais a verá.
O caso mais freqüente é, por sinal, o da paralisia completa. Quantos romancistas crêem ver a natureza e só a percebem através de todos os tipos de deformações! Eles são de uma boa-fé absoluta, na maioria das vezes. Persuadem-se de que puseram tudo num quadro, que a obra é definitiva e completa. Sente-se isso pela convicção com a qual acumularam os erros de cores e formas. Sua natureza é uma monstruosidade que eles reduziram ou ampliaram, desejando cuidar do quadro. Apesar de seus esforços, tudo se dilui em tintas falsas, tudo clama e se aniquila. Poderão, talvez, escrever poemas épicos, mas nunca construirão uma obra real, porque a lesão de seus olhos se opõe a isso, porque, quando não se tem o senso do real, não é possível adquiri-lo.
Conheço contistas encantadores, fantasistas adoráveis, poetas em prosa de cujos livros gosto muito. Esses não se ocupam em escrever romances e permanecem excelentes, fora do real. O senso do real só se torna absolutamente necessário quando nos prendemos às pinturas da vida. Então, nas perspectivas em que nos encontramos hoje, nada poderia substituí-lo, nem um estilo apaixonadamente elaborado, nem o vigor da pintura, nem as tentativas mais meritórias. Vocês pintam a vida, vejam-na antes de tudo tal como ela é e dêem a exata impressão dela. Se a impressão é barroca, se os quadros são mal-estruturados, se a obra descamba para a caricatura, quer seja épica ou simplesmente vulgar, é uma obra natimorta, que está condenada a um rápido esquecimento. Não está amplamente assentada sobre a verdade, não tem nenhuma razão de ser.
Esse senso do real me parece muito fácil de constatar num escritor. Para mim, é uma pedra de toque que decide sobre todos os meus julgamentos. Quando leio um romance, condeno-o se me parece faltar senso do real ao autor. Quer ele esteja num fosso ou nas estrelas, embaixo ou em cima, é-me igualmente indiferente. A verdade tem um som sobre o qual estimo que não nos poderíamos enganar. Ás frases, os parágrafos, as páginas, o livro inteiro devem soar a verdade. Dir-se-á que são necessários ouvidos delicados. São necessários ouvidos justos, nada mais. E o próprio público, que não poderia pretender uma grande delicadeza de sentidos, compreende, todavia, muito bem as obras que soam a verdade. Ele vai pouco a pouco a estas, enquanto faz rapidamente silêncio sobre as outras, sobre as obras falsas que soam o erro.
Assim como se dizia outrora de um romancista: "Ele tem imaginação", peço, portanto, que se diga hoje: "Ele tem o senso do real". O elogio será maior e mais justo. O dom de ver é ainda menos comum do que o dom de criar. Para melhor me fazer entender, volto a Balzac e a Stendhal. Ambos são nossos mestres. Mas confesso não aceitar todas as suas obras com a devoção de um fiel que se inclina sem exame. Só os acho verdadeiramente grandes e superiores nas passagens em que tiveram o senso do real.
Não conheço nada de mais surpreendente em O Vermelho e o Negro do que a análise dos amores de Julien e de madame de Renal. É preciso levar em consideração a época em que o romance foi escrito, em pleno romantismo, quando os heróis se amavam no lirismo mais desenfreado. E eis um rapaz e uma mulher que se amam, enfim, como todo mundo, loucamente, profundamente, com as e quedas e os sobressaltos da realidade. É uma pintura superior. Darei por essas páginas todas aquelas em que Stendhal complica o caráter de Julien, mergulha nos duplos temas diplomáticos que adorava. Hoje, ele só é verdadeiramente grande porque, em sete ou oito cenas, ousou mostrar o elemento real, a vida no que ela tem de verdadeiro.
O mesmo com Balzac. Há nele um sonolento desperto, que sonha e cria, às vezes, figuras curiosas, mas que não engrandece, com certeza, o romancista. Confesso não ter admiração pelo autor de A Mulher de Trinta Anos, pelo inventor do tipo de Vautrin na terceira parte das Ilusões Perdidas e em Esplendor e Miséria das Cortesãs. É a isso que chamo a fantasmagoria de Balzac. Também não gosto de seu grand monde, que ele inventou inteiramente e que faz rir, com exceção de alguns tipos magníficos imaginados por seu gênio. Em resumo, a imaginação de Balzac, essa imaginação desregrada que se lançava em todos os exageros e que queria criar o mundo de novo, sobre planos extraordinários, essa imaginação me irrita mais do que me atrai. Se o romancista tivesse tido somente essa imaginação, seria apenas, hoje, um caso patológico e uma curiosidade em nossa literatura.
Felizmente, entretanto, Balzac possuía além disso o senso do real, e o senso do real mais desenvolvido já visto até aquele momento. Suas obras-primas o atestam, essa maravilhosa A Prima Bette, na qual o barão Hulot é tão colossal de verdade, essa Eugênia Grandet que contém toda a província em uma determinada época de nossa história. Seria ainda preciso citar O Pai Gonot, La Rabouilleuse, O Primo Pons, e tantas outras obras saídas todas vivas das entranhas de nossa sociedade Aí está a imortal glória de Balzac. Ele fundou o romance contemporâneo, porque foi um dos primeiros a mostrar e empregar esse senso do real que lhe permitiu evocar todo o mundo.
Todavia, ver não é tudo, é preciso reproduzir. E por isso que, depois do senso do real, há a personalidade do escritor. Um grande romancista deve ter o senso do real e a expressão pessoal.
A EXPRESSÃO PESSOAL
Conheço romancistas que escrevem corretamente e que conquistaram, com o tempo, renome literário. São muito laboriosos, abordam todos os gêneros com a mesma facilidade. Ás frases fluem sozinhas de suas penas, e eles têm por tarefa produzir quinhentas ou seiscentas linhas todas as manhãs antes do almoço. E, repito, é um trabalho correto, a gramática não é absolutamente estropiada, o movimento é bom, a cor aparece, às vezes, em páginas que fazem o público dizer, tomado de respeito: "É muito bem escrito". Em resumo, esses romancistas têm toda a aparência de verdadeiros talentos.
A infelicidade é que eles não têm a expressão pessoal, e é o bastante para torná-los para sempre medíocres. Será inútil amontoar volumes sobre volumes, usar e abusar de sua incrível fecundidade; nunca emanará de seus livros senão um odor repugnante de obras natimortas. Quanto mais produzirem, mais a pilha mofará. Sua correção gramatical, o esmero de sua prosa, o verniz de seu estilo poderão iludir durante um certo tempo o grande público; mas tudo isso não bastará para dar vida a suas obras e não terá finalmente nenhum peso no julgamento que os leitores farão deles Não têm a expressão pessoal, estão condenados, ainda mais porque, quase sempre, também não tem o senso do real, o que agrava sobremaneira seu caso.
Esses romancistas assumem o estilo que está no ar. Agarram as frases que voam em torno deles. Nunca as frases emanam de sua personalidade, eles as escrevem como se alguém, por trás deles, as ditassem; e talvez seja por isso que lhes basta abrir a torneira de sua produção. Não digo absolutamente que plagiam estes ou aqueles, que roubam de seus colegas páginas inteiras; ao contrário, são tão fluidos e superficiais que não se encontra neles nenhuma forte marca, nem mesmo a de algum ilustre mestre. Apenas, sem copiar, eles têm, em vez de um cérebro criador, um imenso depósito repleto de frases conhecidas, locuções-correntes, um tipo de média do estilo usual. Esse depósito é inesgotável, lá eles se podem servir com pás para cobrir o papel. Eis um monte, e ainda mais! Sempre, sempre pás cheias de matérias frias e terrosas, que enchem as colunas dos jornais e as páginas dos livros.
Ao contrário, vejam um romancista que possui a expressão pessoal, vejam Alphonse Daudet, por exemplo. Refiro-me a esse escritor porque é um daqueles que mais vivem suas obras. Alphonse Daudet assistiu a um espetáculo, a uma cena qualquer. Como possui o senso do real, mantém-se impressionado com essa cena, conserva dela uma imagem muito intensa. Podem passar os anos, o cérebro conserva a imagem, o tempo, amiúde, só faz aprofundá-la ainda mais. Ela acaba por se tornar uma obsessão, é preciso que o escritor a comunique, descreva o que viu e fixou. Ocorre, então, um fenômeno, a criação de uma obra original.
E inicialmente uma evocação. Alphonse Daudet se lembra do que viu, e revê as personagens com seus gestos, os horizontes com suas linhas. É-lhe preciso descrever isso. Desde esse momento, ele representa as personagens, habita os locais, entusiasma-se ao confundir sua própria personalidade com a personalidade dos seres e mesmo das coisas que quer retratar. Acaba por se tornar apenas um com a obra, pois absorve-se nela e ao mesmo tempo a revive por sua conta. Nessa íntima união, a realidade da cena e a personalidade do romancista já não são distintas. Quais são os detalhes absolutamente verdadeiros, quais são os inventados? É o que seria muito difícil dizer. O que há de certo é que a realidade foi o ponto de partida, a força de impulsão que lançou possantemente o romancista; ele continuou, em seguida, a realidade, ampliou a cena no mesmo sentido, dando-lhe uma vida especial e que lhe é própria, unicamente a ele, Alphonse Daudet.
Todo o mecanismo da originalidade encontra-se ai, nessa expressão pessoal do mundo real que nos cerca. O encanto de Alphonse Daudet, esse encanto profundo que lhe valeu uma posição tão elevada em nossa literatura contemporânea, vem do sabor original que ele dá à frase mais simples. Ele não pode narrar um fato, apresentar uma personagem sem se colocar por inteiro nesse fato ou nessa personagem, com a vivacidade de sua ironia e a suavidade de sua ternura. Reconhecer-se-ia uma de suas páginas entre cem outras, porque suas páginas possuem vida própria. E um encantador, um desses contistas meridionais que representam o que contam, com gestos que criam e uma voz que evoca. Tudo se anima sob suas mãos abertas, tudo assume uma cor, um odor, um som. Eles choram e riem com seus heróis, tratam-nos com intimidade, tornam-nos tão reais que a gente os vê em pé, enquanto falam.
Como querem vocês que semelhantes livros não emocionem o público? Eles são vivos. Abram-nos e os sentirão palpitar em suas mãos. E o mundo real: e é ainda mais, é o mundo real vivido por um escritor de uma originalidade extraordinária e intensa ao mesmo tempo. Ele pode escolher um tema mais ou menos feliz, tratá-lo de um modo mais ou menos completo; a obra não será menos preciosa por isso, posto que ela será única, visto que só ele pode dar-lhe essa aparência, esse tom, essa existência. O livro é dele, isso basta. Classificá-lo-ão um dia, mas não deixa, por isso, de ser um livro à parte, uma verdadeira criatura. Apaixonam-se por ele, amam-no ou não, ninguém permanece indiferente. Já não se trata de gramática, de retórica, e não se tem mais sob os olhos somente uma pilha de papel impresso; um homem se encontra lá, um homem do qual se ouve pulsar o cérebro e o coração a cada palavra. Entregam-se a ele, porque ele se torna o senhor das emoções do leitor, porque tem a força da realidade e a onipotência da expressão pessoal.
Compreendam agora a impotência radical dos romancistas dos quais falei mais acima. Nunca eles arrebatarão e fixarão a atenção dos leitores, pois não sentem e não reproduzem um modo original. Buscar-se-ia em vão em suas obras uma impressão nova, expressa em um tour dephrase1 inventado. Quando fazem estilo, quando colhem aqui e acolá frases felizes, essas frases, tão vivas num outro, neles soam o nada não ha por trás dela um homem que verdadei-ramente sentiu e traduz por um esforço de sua criação; há somente um bâcleur2 de prosa, abrindo as torneiras de sua produção. E será inútil aplicar-se, desejar escrever bem, acreditar que se pode fazer um belo livro como se faz um belo par de botas, com mais ou menos cuidado, jamais criarão uma obra viva. Nada substitui o senso do real e a expressão pessoal. Quando não se tem esses dons, melhor seria vender candeia do que se ocupar em escrever romances.
Citei, há pouco, Alphonse Daudet, porque ele me oferecia um exemplo surpreendente. Contudo, eu teria podido citar outros romancistas que estão longe de possuir seu talento. A expressão pessoal não se dá necessariamente numa fórmula perfeita. Pode-se escrever mal, incorretamente, de maneira descuidada, ainda que possuindo uma verdadeira originalidade na expressão. O pior, na minha opinião, é, ao contrário, esse estilo correto, fluindo de uma maneira fácil e prática, esse dilúvio de lugares-comuns, de imagens conhecidas, que faz o grande público apresentar este juízo irritante: "Está bem escrito". Pois bem, não, está mal escrito, uma vez que isso não tem uma vida particular, um sabor original, mesmo em detrimento da correção e das conformidades da língua!
O maior exemplo da expressão pessoal em nossa literatura é o de Saint-Simon. Eis um escritor que escreveu com seu sangue e sua bílis, e que deixou páginas inesquecíveis de intensidade e vida. Estou mesmo errado em chamá-lo de escritor; ele era melhor do que isso, pois não parece ter-se preocupado em escrever, e alcançou de uma só vez o mais elevado estilo a criação de uma língua, a expressão viva. Em nossos mais ilustres autores sente-se a retórica a afetação da frase; um cheiro de tinta escapa das páginas. Nele, nada dessas coisas; a frase nada mais é do que palpitação da vida, a paixão secou a tinta, a obra é um grito humano, o longo monólogo de um homem que vive com altivez. Isso está bem longe de nossa maneira romântica de entender uma obra, em que nos consumimos em todos os tipos de esforços artísticos.
O mesmo vale para Stendhal. Este procurava dizer que, para obter o tom, lia todas as manhãs algumas páginas do Código Civil, antes de se pôr ao trabalho. Deve-se ver nessa declaração uma simples bravata lançada à escola romântica. Stendhal queria dizer que o estilo, para ele, era apenas a tradução mais clara e mais exata possível da idéia. Ele também possuía a expressão pessoal em um grau muito elevado. Sua aridez, sua frase curta, tão incisiva e tão penetrante, torna-se em suas mãos um maravilhoso instrumento de análise. Não se poderia imaginá-lo escrevendo amenidades. Ele tinha o estilo de seu talento, um estilo de tal forma original, em sua incorreção e aparente indiferença, que permaneceu típico. Já não é a intensa torrente de Saint-Simon, arrastando maravilhas e escombros, esplêndida de violência; é como um lago congelado na superfície, talvez fervendo em suas profundezas, e que reflete com uma verdade inexorável tudo o que se encontra em suas margens.
Balzac foi, como Stendhal, acusado de escrever mal. Escreveu, entretanto, nos Contos Engraçados, páginas que são jóias primorosas; não conheço nada de mais esplendidamente inventado como forma, nem de mais finamente executado. Mas censuraram-no pelos pesados começos de seus romances, pelas descrições muito densas, sobretudo pelo mau gosto de certos exageros na pintura de suas personagens. E evidente que ele tem a mão enorme e que esmaga, em alguns momentos. Contudo, deve ser julgado no conjunto colossal de sua obra. Vê-se, então, um lutador heróico, que lutou contra tudo, mesmo contra o estilo, e que saiu cem vezes vitorioso do combate. Por sinal, é inútil ele aventurar-se em frases difíceis, seu estilo lhe é sempre próprio. Ele o modela, o refunde, o refaz inteiramente em cada um de seus romances. Procura incessantemente uma forma. Encontramo-lo, com sua vida de produtor gigante, nas mínimas alíneas. Encontra-se lá a forja rimbosa, e ele malha com toda a força sua frase, até que ela tenha a sua marca. Essa marca, ela a conservará eternamente. Quaisquer que sejam os exageros, trata-se aí de um grande estilo.
Tive simplesmente a intenção, ao dar alguns exemplos, de melhor explicar o que entendo por expressão pessoal. Um grande romancista é, hoje em dia, aquele que possui o senso do real e que exprime com originalidade a natureza, fazendo-a viva por sua própria vida.
A FÓRMULA CRÍTICA APLICADA AO ROMANCE
Recentemente lia eu um comentário em que um romancista era tratado bastante desdenhosa-mente como crítico. Negavam-se seus romances, admitiam-se seus estudos literários, sem perceber que as faculdades do crítico tendem hoje a se confundir com as faculdades do romancista. Há nisso uma questão que me parece interessante discutir.
Sabe-se o que a crítica se tornou hoje em dia. Sem fazer a história completa das transformações por que ela passou desde o século passado — história que seria das mais instrutivas e que resumiria o movimento geral dos espíritos —, basta citar os nomes de Sainte-Beuve e do Sr. Taine para estabelecer a que distância estamos dos julgamentos de La Harpe e até mesmo dos comentários de Voltaire.
Sainte-Beuve foi um dos primeiros a compreender a necessidade de explicar a obra pelo homem. Recolocou o escritor em seu meio, estudou sua família, sua vida, seus gostos, viu, em resumo, uma página escrita como o produto de todos os tipos de elementos que se deveria conhecer se se quisesse elaborar um julgamento justo, completo e definitivo. Daí os estudos profundos que escreveu, com uma leveza de investigação maravilhosa, com um senso refinado das mil nuanças, das contradições complexas do homem. Estava-se longe dos críticos julgando como pedagogos segundo as regras da Escola, fazendo abstração completa do homem nos escritos, aplicando a todas as obras a mesma medida comum e considerando-as desdenhosamente como gramáticos e como retóricos.
Taine veio, por sua vez, e fez da crítica uma ciência. Reduziu a leis o método que Sainte-Beuve empregava um pouco como virtuose. Isso deu uma certa rigidez ao novo instrumento de crítica; mas esse instrumento adquiriu uma força indiscutível. Não preciso lembrar os admiráveis trabalhos de Taine. Conhece-se sua teoria dos meios e das circunstâncias históricas aplicados ao movimento literário das nações. Taine é atualmente o chefe de nossa crítica, e é de se lamentar que se feche na história e na filosofia, em vez de se imiscuir em nossa vida militante, em vez de dirigir a opinião como Sainte-Beuve, julgando os pequenos e os grandes de nossa literatura.
Eu gostaria simplesmente de constatar como procede a crítica moderna. Por exemplo, Taine quer escrever o belo estudo que fez sobre Balzac. Começa por reunir os documentos imagináveis, os livros e os artigos publicados sobre o romancista; interroga as pessoas que o conheceram, aqueles que podem prestar informações verdadeiras sobre ele; e isso não basta, preocupa-se ainda com os locais onde Balzac viveu, visita a cidade onde nasceu, as casas que ocupou, os horizontes que atravessou. Tudo se encontra, assim, investigado pelo crítico, os ascendentes, os amigos, até que ele conheça absolutamente Balzac, em seus mais íntimos recônditos, como o anatomista conhece o corpo que acaba de dissecar. Assim, ele pode ler a obra. O produtor lhe dá e lhe explica o produto.
Leiam o estudo de Taine. Verão o funcionamento de seu método. A obra está no homem; Balzac, perseguido por seus credores, acumulando projetos extraordinários, atravessando noites para pagar seus billets3, a cabeça sempre fumegante, desemboca em A Comédia Humana. Não julgo aqui o sistema, exponho-o, e digo que a crítica atual é essa, com mais ou menos parti pris. Doravante, já não se separará o homem de sua obra, estudar-se-á aquele para compreender esta.
Pois bem! Nossos romancistas naturalistas não têm, eles próprios, outro método. Quando Taine estuda Balzac, faz exatamente o que o próprio Balzac faz quando estuda, por exemplo, o pai Grandet. O crítico age sobre um escritor para conhecer suas obras como o romancista age sobre uma personagem para conhecer seus atos. Dos dois lados, é a mesma preocupação com o meio e com as circunstâncias. Lembrem-se de Balzac determinando exatamente a rua e a casa onde vive Grandet, analisando as criaturas que o cercam, estabelecendo os mil pequenos fatos que decidiram acerca do caráter e dos hábitos de seu avaro. Não se trata aí de uma aplicação absoluta da teoria do meio e das circunstâncias? Repito-o, o trabalho é idêntico.
Dir-se-á que Taine caminha sobre o terreno do real, que só aceita os fatos provados, os fatos que realmente acontecem, enquanto Balzac é livre para inventar e usa com certeza dessa liberdade. Mas sempre se reconhecerá que Balzac fundamenta seu romance sobre uma verdade inicial. Os meios com que descreve são exatos, e as personagens que constrói têm os pés no chão. Dessa maneira, pouco importa o trabalho que se vai seguir, desde que o método de construção empregado pelo romancista seja idêntico ao do crítico. O romancista parte da realidade do meio e da verdade do documento humano; se em seguida ele a desenvolve num certo sentido, já não é imaginação, a exemplo dos contistas, é dedução, como entre os cientistas. Por sinal, não tive a pretensão de que os resultados fossem completamente semelhantes no estudo de um escritor e no estudo de uma personagem; aquele, com certeza, aproxima-se do real mais de perto, ainda que deixando um amplo espaço para a intuição. Todavia, digo-o ainda, o método é o mesmo.
Ainda mais, trata-se de um duplo efeito da evolução naturalista do século. No fundo, se se investigasse, chegar-se-ia ao mesmo solo filosófico, à investigação positivista. Com efeito, hoje o crítico e o romancista não concluem. Contentam-se em expor. Eis o que eles viram; eis como tal autor deve ter produzido tal obra, e eis como tal personagem deve ter chegado a tal ato. Dos dois lados, mostra-se a máquina humana no trabalho, nada mais. Da comparação dos fatos, acaba-se, é verdade, por formular leis. Entretanto, quanto menos nos apressamos em formular as leis, mais sábios somos; pois o próprio Taine, por ter-se apressado um pouco, pôde ser acusado de ceder ao sistema. Estamos, por um momento, a colecionar e a ordenar os documentos, principalmente no romance. Já é uma tarefa bem grande procurar e dizer o que é. É preciso deixar a ciência pura formular leis, pois, por enquanto, não fazemos senão verbalizar, nós romancistas e críticos.
Portanto, para me resumir, o romancista e o crítico partem hoje do mesmo ponto, o meio exato e o documento humano apreendido na natureza, e empregam, em seguida, o mesmo método para chegar ao conhecimento e à explicação, de um lado, da obra escrita de um homem e, do outro, dos atos de uma personagem, a obra escrita e os atos considerados como os produtos da máquina humana submetida a determinadas influências. Daí, é evidente que um romancista naturalista é um excelente crítico. Basta-lhe introduzir no estudo de um escritor qualquer o instrumento de observação e análise do qual se serviu para estudar as personagens que ele apreendeu na natureza. É um erro crer que o diminuem como romancista quando dizem frivolamente dele: "É apenas um crítico".
Todos esses erros vêm da falsa idéia que se continua a fazer do romance. É, inicialmente, desagradável que não tenhamos podido mudar essa palavra "romance", que nada mais significa, aplicada a nossas obras naturalistas. Esta palavra traz uma idéia de conto de fabulacão, de fantasia, que destoa de modo singular das nossas verbalizações. Há quinze ou vinte anos já se sentira a impropriedade crescente do termo, e houve um momento em que se tentou colocar nas capas a palavra "estudo". Mas isso ficava muito vago, e apesar de tudo a palavra "romance" se manteve. Seria necessária, hoje, uma feliz descoberta para substituí-la. Por sinal, esses tipos de mudanças devem se produzir e se impor por si próprios.
No que me diz respeito, a palavra não me feriria, se se quisesse admitir, ainda que a conservando, que a coisa se modificou por completo. Encontraríamos cem exemplos, na língua, de termos que exprimiam outrora idéias radicalmente contrárias àquelas que eles exprimem hoje. Nosso romance de cavalaria, nosso romance de aventuras, nosso romance romântico e idealista tornaram-se, portanto, uma verdadeira crítica dos costumes, das paixões, dos atos do herói representado, estudado em seu ser próprio e nas influências que o meio e as circunstâncias tiveram sobre ele. Conforme escrevi, para grande escândalo de meus colegas, a imaginação já não representa aí um papel dominante; torna-se dedução, intuição, age sobre os fatos prováveis que se pôde observar diretamente e sobre as conseqüências possíveis dos fatos que se trata de estabelecer logicamente segundo o método. É esse romance que é uma verdadeira página de crítica, que coloca o romancista diante de uma personagem da qual ele vai estudar uma paixão, nas condições exatas em que se encontra um crítico diante de um escritor do qual quer demonstrar o talento.
Preciso concluir? O parentesco do crítico e do romancista deve-se unicamente ao fato de que ambos, como já o disse, empregam o método naturalista do século. Se passássemos ao historiador, nós o veríamos, ele também, fazer na história um trabalho idêntico, e com o mesmo instrumento. O mesmo sucede com o economista, com o homem político. Esses são fatos fáceis de provar e que mostram o cientista à frente do movimento, conduzindo hoje a inteligência humana. Valemos mais ou menos conforme a ciência nos tenha tocado mais ou menos profundamente. Deixo à parte a personalidade do artista, indico aqui apenas a grande corrente dos espíritos, o sopro que nos arrasta a todos ao século XX qualquer que seja a nossa retórica individual.
DA DESCRIÇÃO
Seria bem interessante estudar a descrição em nossos romances, desde Mlle de Scudéry até Flaubert. Seria fazer a história da filosofia e da ciência durante os dois últimos séculos; pois, sob essa questão literária da descrição, não há outra coisa além do retorno à natureza, essa grande corrente naturalista que produziu nossas crenças e nossos conhecimentos atuais. Veríamos o romance do século XVII, bem como a tragédia, fazer mover-se criações puramente intelectuais sobre um fundo neutro, indeterminado, convencional; as personagens são simples mecânicas de sentimentos e paixões, que funcionam fora do tempo e do espaço; e assim, o meio não importa, a natureza não tem nenhum papel a representar na obra. Depois, com os romances do século XVIII, veríamos despontar a natureza, mas em dissertações filosóficas ou em parti pris de emoção idílica. Enfim, nosso século chega com as orgias descritivas do romantismo, essa reação violenta da cor, e o emprego científico da descrição, seu papel exato no romance moderno, só começa a se estabelecer graças a Balzac, Flaubert, os Goncourt e outros mais. Tais são os marcos de um estudo que não tenho tempo para fazer. Basta-me, por sinal, indicá-lo, para dar aqui algumas notas gerais acerca da descrição.
Inicialmente, essa palavra "descrição" tornou-se imprópria. Ela é hoje tão ruim quanto a palavra "romance", que não significa mais nada quando aplicada a nossos estudos naturalistas. Descrever não é mais o nosso objetivo; queremos simplesmente completar e determinar. Por exemplo, o zoólogo que, ao falar de determinado inseto, se achasse forçado a estudar longamente a planta sobre a qual vive esse inseto, do qual extrai sua existência, até sua forma e sua cor, faria uma descrição; mas essa descrição entraria na própria análise do inseto, haveria aí uma necessidade de cientista, e não um exercício de pintor. Isso significa dizer que já não descrevemos por descrever, por um capricho e um prazer de retóricos. Achamos que o homem não pode ser separado de seu meio, que ele é completado por sua roupa, por sua casa, por sua cidade, por sua província; e, dessa forma, não notaremos um único fenômeno de seu cérebro ou de seu coração sem procurar as causas ou a conseqüência no meio. Daí o que se chama nossas eternas descrições.
Atribuímos à natureza, ao vasto mundo, um espaço tão amplo quanto ao homem. Não admitimos que só o homem exista e que só ele importe, persuadidos, ao contrário, de que ele é um simples resultado e de que, para ter o drama humano real e completo, é preciso buscá-lo em tudo o que existe. Sei muito bem que isso agita as filosofias. É por essa razão que nos situamos no ponto de vista científico, nesse ponto de vista da observação e da experimentação que nos dá, atualmente, as maiores certezas possíveis.
Não podemos habituar-nos a essas idéias, porque elas quebram nossa retórica secular. Querer introduzir o método científico na literatura parece algo de um ignorante, de um vaidoso e de um bárbaro. Por Deus! Não somos nós que introduzimos esse método; ele se introduziu sozinho, e o movimento continuaria, mesmo que se quisesse eliminá-lo. Apenas constatamos o que acontece em nossas letras modernas. A personagem já não é uma abstração psicológica, eis o que todo mundo pode ver. A personagem se tornou um produto do ar e do solo, como a planta; é a concepção científica. A partir desse momento, o psicólogo deve se duplicar num observador e num experimentador, se quiser explicar claramente os movimentos da alma. Deixamos de estar nas amenidades literárias de uma descrição em belo estilo; estamos no estudo exato do meio, na constatação dos estados do mundo exterior que correspondem aos estados interiores das personagens.
Definirei, portanto, a descrição: um estado do meio que determina e completa o homem.
Agora, é certo que não nos manteremos absolutamente nesse rigor científico. Toda reação é violenta, e reagimos ainda contra a fórmula abstrata dos últimos séculos. A natureza entrou em nossas obras com um élan tão impetuoso que as invadiu, afogando, às vezes, a humanidade, submergindo e arrastando as personagens, no meio de uma destruição de rochas e grandes árvores. Era fatal. É preciso dar tempo à nova fórmula para se balancear e atingir a sua expressão exata. Por sinal, mesmo nesses excessos da aprender, muito a dizer. Encontram-se aí documentos excelentes que seriam preciosos numa história da excelentes, que seriam preciosos numa evolução naturalista.
Disse eu, algumas vezes, que gostava pouco do prodigioso talento descritivo de Théophile Gautier. É que, justamente, encontro nele a descrição pela descrição, sem nenhuma preocupação com a humanidade. Quanto ao estilo, ele era descendente direto do padre Delille. Nunca, em suas obras, o meio determina um ser; ele permanece pintor, tem apenas palavras como um pintor tem somente cores. Isso introduz em suas obras um silêncio sepulcral; só há nelas coisas, nenhuma voz, nenhum estremecimento humano emana dessa terra morta. Não posso ler cem páginas seguidas de Gautier, pois ele não me emociona, não me arrebata. Após admirar nele o feliz dom da língua, os procedimentos e as facilidades da descrição, só me resta fechar o livro.
Vejam, ao contrário, os irmãos Goncourt. Esses também nem sempre permanecem no rigor científico do estudo dos meios, unicamente subordinado ao completo conhecimento das personagens. Deixam-se levar pelo prazer de descrever, como artistas que brincam com a língua e que são felizes de dobrá-la às mil dificuldades do representado. Só que eles põem sempre sua retórica a serviço de sua humanidade. Já não são frases perfeitas sobre um dado assunto; são sensações experimentadas diante de um espetáculo. O homem aparece, junta-se às coisas, anima-as pela vibração nervosa de sua emoção. Todo o gênio dos Goncourt encontra-se nessa tradução tão viva da natureza, nesses estremecimentos observados, nesses cochichos balbuciados, nesses suspiros tornados sensíveis. Neles, a descrição respira. Sem dúvida, ela transborda, e as personagens dançam um pouco em horizontes muito dilatados, entretanto, mesmo que se apresente so, que não permaneça em sua condição de meio determinante, ela é sempre observada em suas relações com o homem e assume um interesse humano.
Gustave Flaubert é o romancista que até aqui empregou a descrição com maior medida. Nele, o meio intervém num sábio equilíbrio: ele não submerge a personagem e quase sempre se contenta em determiná-la. É, inclusive, o que faz a grande força de Madame Bovary e de A Educação Sentimental. Pode-se dizer que Gustave Flaubert reduziu à estrita necessidade as longas enumerações de leiloeiro oficial com as quais Balzac obstruía o começo de seus romances. Ele é sóbrio, qualidade rara; emprega o traço proeminente, a grande linha, a particularidade que se mostra, e isso basta para que o quadro seja inesquecível. É em Gustave Flaubert que aconselho estudar a descrição, a pintura necessária do meio, cada vez que ele completa ou explica a personagem.
Nós outros, na maioria das vezes, fomos menos sábios, menos equilibrados. A paixão pela natureza amiúde nos arrebatou, e demos maus exemplos, por nossa exuberância, por nossa embriaguez de ar livre. Nada perturba mais, seguramente, um cérebro de poeta do que uma insolação. Sonha-se, então, com todos os tipos de loucuras, escrevem-se obras em que os córregos põem-se a cantar, carvalhos conversam entre si, rochas brancas suspiram como peitos de mulher ao calor do meio-dia. E são sinfonias de folhagens, funções dadas à grama, poemas de luzes e perfumes. Se há uma desculpa possível para tais desvios, é que sonhamos em dilatar a humanidade e a aplicamos até nas pedras dos caminhos
Ser-me-á permitido falar de mim? O que me censuram, sobretudo, mesmo espíritos simpáticos, são as cinco descrições de Paris que retornam e terminam as cinco partes de Uma Página de Amor. Vêem nisso apenas um capricho de artista de uma repetição fatigante, uma dificuldade vencida para mostrar a destreza da mão. Posso ter-me enganado, e me enganei, com certeza, visto que ninguém compreendeu; mas a verdade é que tive todos os tipos de boas intenções quando persisti nesses cinco quadros da mesma paisagem, vista em horas e estações diferentes. Eis a história. Na miséria de minha juventude, eu morava em águas-furtadas de subúrbio, de onde se descobria Paris inteira. Essa grande Paris imóvel e indiferente, que estava sempre enquadrada em minha janela, aparecia-me como o testemunho mudo, o confidente trágico de minhas alegrias e de minhas tristezas Tive fome e chorei diante dela; e diante dela amei, tive minhas maiores felicidades. Pois bem, desde meus vinte anos desejei escrever um romance do qual Paris, com o oceano de seus telhados, seria uma personagem. Alguma coisa como o coro antigo. Eu precisava de um drama íntimo, três ou quatro criaturas num pequeno cômodo, em seguida a imensa cidade no horizonte, sempre presente, olhando com seus olhos de pedra o tormento pavoroso dessas criaturas. Foi essa velha idéia que tentei realizar em Uma Página de Amor. Eis tudo.
É verdade, não defendo minhas cinco descrições. A idéia era ruim, visto que ninguém a compreendeu e defendeu. Talvez também a tenha construído por procedimentos muito rígidos e muito simétricos. Cito o fato unicamente para mostrar que, no que denominamos nosso furor de descrição, não cedemos quase nunca à exclusiva necessidade de descrever; isso sempre se complica em nós pelas intenções sinfônicas e humanas. A criação inteira nos pertence, fazemo-la entrar em nossas obras, sonhamos com o imenso arco. É diminuir injustamente nossa ambição desejar nos encerrar numa mania descritiva, não indo além da imagem mais ou menos cuidadosamente borrada.
E terminarei por uma declaração: num romance, num estudo humano, censuro absolutamente toda descrição que não é, segundo a definição dada mais acima, um estado do meio que determina e completa o homem. Pequei o suficiente para ter o direito de reconhecer a verdade.
STENDHAL
Stendhal é com certeza o romancista menos lido, mais admirado e mais negado pelas informações. Nada se escreveu sobre ele de definitivo, e ele permaneceu um pouco em estado de legenda. Muito preocupado com seu talento, muito desejoso de estudá-lo, hesitei, todavia, longamente antes de me lançar nesse trabalho, por temor de não estabelecer a figura do escritor sob uma luz franca e límpida. Entretanto, o papel de Stendhal em nossa literatura contemporânea é de tal forma considerável que devo aventurar-me, com o risco de não lançar tanta luz quanto gostaria sobre obras complexas, que determinaram, com as de Balzac, a evolução naturalista atual.
E preciso dizer que ao próprio Stendhal aprouve, em vida, envolver-se de mistério. Não era um espírito de bonomia, uma natureza ampla e reta, de velho sangue gaulês, produzindo tranqüilamente diante de todos. Ele complicava sua tarefa com todos os tipos de raciocínios e finuras, com ares de diplomata que viaja incógnito e que se deleita com prazeres solitários a escarnecer do público. Inventava pseudônimos imaginava farsas das quais era o único a compreender o chiste. Isso, naturalmente, não se dava sem um desdém simulado pela literatura. Nascido em 1783, homem do século passado por laços mundanos e filosóficos, sentia-se vexado pela nossa grande produção literária, não imaginando que se pudesse viver da pena, nada fazendo para isso, por sinal, e encarando desde o princípio as letras como um entretenimento, uma recreação do espírito, e não como uma carreira. Tentou sucessivamente a pintura, o comércio, a administração; em seguida, depois de ter feito a campanha de 1812, seguindo os passos de nossos exércitos, acabou entrando na diplomacia, para onde o chamava certamente a estrutura de seu intelecto; mas lá conservou uma situação modesta, foi durante muito tempo e morreu simples cônsul em Civitavecchia. Seus contemporâneos representam-no como mais orgulhoso de seu posto de funcionário do que de seu título de escritor; conta-se que, quando o Governo de Julho o condecorou, quis absolutamente que essa cruz recompensasse o cônsul, e não o romancista. A posição de Stendhal foi a de um escritor amador. Distinguia-se assim dessa pululação de homens de letras, de dedos manchados de tinta, dos quais tinha horror. Escapava da arregimentação, mostrava pela retórica o desdém de Saint-Simon, permanecia a seus próprios olhos o homem de ação que sempre sonhara ser. A se crer nisso, sua obra permanecia como o acidente em sua existência.
O que chamarei de legenda de Stendhal partiu daí. Apesar do que ele escreveu de si mesmo, apesar do que os contemporâneos puderam deixar, nele o homem é muito pouco reconhecido. Desconfia-se, teme-se incessantemente uma mistificação com esse espírito complicado que sempre parece desejar "enrolar" a massa, como um diplomata "enrolaria" um rei, junto ao qual ocuparia uma embaixada. Li tudo o que apareceu sobre Stendhal, e declaro não ter avançado mais por isso. Os contemporâneos, como Sainte-Beuve, do qual falarei mais tarde, parecem tê-lo julgado à flor da epiderme. Ele não se entregava absolutamente, e não se fazia nenhum esforço para conhecê-lo. Hoje, a tarefa se torna ainda mais difícil. Sei muito bem que o melhor é tomar as coisas de forma ingênua, não se deixar aturdir por todos esses subterfúgios, dizer que, em suma, as máquinas mais carregadas de engrenagens são com mais freqüência aquelas que ocultam o motor mais simples; é o que vou fazer, por sinal. Entretanto eu quis antes de mais nada constatar o estado da questão, mostrando quão pouco, neste momento, conhecemos Stendhal, em conseqüência dos disfarces e das complicações em que ele se comprouve, de um modo bem natural, sem dúvida. Sua natureza estava aí.
Só nos resta procurá-lo em suas obras. É o meio mais seguro de chegar a uma verdade, pois as obras são testemunhos que ninguém pode recusar. Não obstante, deve-se dizer que as obras de Stendhal, até aqui, redobraram a obscuridade em torno dele. Julgadas com paixão, e em sentidos contrários, são negadas ou aclamadas, sem que ainda exista sobre elas um juízo exato, que coloque em definitivo o autor em seu lugar. Reencontramos mesmo aqui a legenda. No campo dos artistas, citam-se sempre estas palavras de Stendhal: "Todas as manhãs leio uma página do Código para pegar o tom"; e isso basta para fazê-lo execrado pelo bando romântico, enquanto as palavras são aplaudidas pelos raros adversários da retórica triunfante. A frase pode ter sido dita e reescrita, mas não basta realmente para etiquetar um escritor. Penso que o estudo do papel de Stendhal no movimento de 1830 muito esclareceria a história desse movimento, pois Stendhal começou apoiando o romantismo; só se separou dele mais tarde, quando o ato de loucura lírica dos grandes poetas da época triunfou definitivamente. Hoje, erra-se em acreditar que Victor Hugo criou o romantismo inteiro, apresentando-o com sua originalidade própria. A verdade é que, ao contrário, ele o encontrou todo formado e apenas o conquistou, por suas poderosas faculdades de retórico; fez dele coisa sua, dobrou-o ao seu despotismo. Dessa forma, viu-se afastarem-se os espíritos originais, que não aceitavam ser absorvidos. Stendhal, que era vinte anos mais velho que Victor Hugo, permaneceu nas tradições de estilo do século XVIII, muito chocado com a nova linguagem, repleta de zombarias contra esse fluxo de epítetos que ele julgava inútil, esses festões e esses astrágalos sob os quais o velho estilo francês perdia sua clareza e sua vivacidade. Acrescentemos que a ênfase dos sentimentos e dos caracteres, a demência e o humanitarismo das obras o vexavam ainda mais. Ele desejava a evolução filosófica, a revolução nas idéias, mas recusava com toda a sua natureza essa insurreição de carnaval, fantasiando os eternos gregos e os eternos romanos em cavaleiros da Idade Média. Daí sua expressão sobre o Código, que ainda amotina os artistas e que permaneceu, para muitas pessoas, a característica de seu talento. Na verdade, o documento é insignificante. Repito-o, continuamos na legenda.
Escreveu-se muito pouco sobre Stendhal, sobretudo se pensa na massa enorme de artigos e até mesmo de livros que temos sobre Balzac. Só conheço três estudos consagrados sobre Stendhal que realmente contam: os de Balzac, Sainte-Beuve e Taine. Ora, a concordância está longe de se dar. Balzac e Taine são a favor, Sainte-Beuve é contra; acrescento que os três não me parecem ir ao fundo do tema, que cada um vê o romancista por um lado, sem mostrá-lo em seu verdadeiro lugar e no papel que representou. Após ter lido os três estudos, permanecemos inquietos, não ficamos plenamente satisfeitos, sentimos muito bem que Stendhal ainda nos escapa.
O estudo de Balzac é um élan de entusiasmo. Admira tudo, elogia seu rival em frases extraordinárias. E essa admiração era sincera, pois a reencontramos em sua correspondência. Em 29 de março de 1839, ele escrevia a Stendhal, após ter lido o episódio da Batalha de Waterloo em Le Constitutionnel: "É feito como Borgognone e Wouwerman, Salvatore Rosa e Walter Scott". Em seguida, depois de ter lido o livro, em 6 de abril, escrevia de novo: "A Cartuxa é um grande e belo livro: digo-vos sem lisonja, sem inveja, pois eu seria incapaz de fazê-lo, e podemos elogiar francamente o que não é de nosso ofício. Faço um afresco e vós fizestes estátuas italianas [...]. Aqui, tudo é original e novo [...]. Explicastes a alma da Itália". Tudo isso está repleto de boa-fé e élan, mas confesso não compreender muito bem as estátuas italianas opostas ao afresco; e, por outro lado, o Borgognone e o Wouwerman, o Salvatore Rosa e o Walter Scott, essa estranha salada de nomes, me surpreendem e me incomodam. Em crítica, creio que não são necessárias idéias claras. Balzac sentia fortemente o gênio de Stendhal. Procurou comunicar-nos sua admiração, sem demonstrar a personalidade do romancista, sem nos fazer encostar o dedo no mecanismo desse raro espírito, funcionando, no início do século, nas letras francesas. Se passamos a Sainte-Beuve, encontramos um estudo repleto de bosquejos engenhosos, girando em torno do assunto sem nunca concluir. Isso é fino e vazio. Entretanto, Sainte-Beuve deixou-se levar um dia, a propósito de Stendhal, até o ponto de exprimir um julgamento decisivo, o que lhe acontecia bem raramente. Escreveu, num artigo consagrado a Taine:
Uma vez, Taine menciona Stendhal; ele o citará sobretudo em seu livro Filósofos, e o qualificará nos termos do mais magnífico elogio: "grande romancista, o maior psicólogo do século". Mesmo que eu tivesse de me perder a invocar da parte de Taine mais severidade nos julgamentos contemporâneos, direi que, tendo conhecido Stendhal, tendo-o analisado, tendo relido ainda bem recentemente ou tentado reler seus romances tão preconizados (romances sempre mal sucedidos, apesar de belos trechos e, em resumo, detestáveis), é-me impossível partilhar da admiração que professam hoje por esse homem de espírito, sagaz, fino, penetrante e excitante, mas desconexo, afetado, privado de invenção
A palavra foi pronunciada, os romances de Stendhal são detestáveis.
Em outra parte Sainte-Beuve declara preferir Viagem ao redor de Meu Quarto, de Xavier de Maistre. Há aqui, evidentemente, um choque de dois temperamentos diferentes. Deve-se recusar Sainte-Beuve, que, apesar de sua finura de análise habitual, se atém a uma apreciação superficial. Sem dúvida Stendhal é desconexo, sem dúvida é às vezes afetado; entretanto, concluir que seus romances são detestáveis, sem fornecer outras razões, sem fazer um esforço para ir mais fundo, é arriscar uma condenação sem fundamento, é pelo menos apresentar um julgamento brutal, negligenciando fazer-nos conhecer os motivos. O estudo de Sainte-Beuve é o discurso de um letrado a quem revolta uma natureza oposta à sua, nada explica e não pode concluir.
Com Taine, entramos numa admiração absoluta. Sei que seu estudo sobre Stendhal, publicado em 1866 em seus Ensaios de Crítica e de História, não é para ele completo e definitivo; ele teria desejado retomá-lo, ampliá-lo, pois o considera como indigno de Stendhal. Todavia, também não encontramos nele as razões muito claras de sua admiração. Inicia com estas linhas: "Procuro uma palavra para exprimir o gênero de espírito de Stendhal; e essa palavra, parece-me, é espírito superior". Dessa forma, parte daí, e empregando seu procedimento sistemático atribui a essa palavra, ou melhor, faz derivar dela tudo o que encontra na personalidade de Stendhal. Contentar-me-ei com a citação seguinte. Após ter dito que Victor Hugo é um pintor e Balzac um fisiologista do mundo moral, acrescenta: "No mundo infinito, o artista escolhe seu mundo. O de Stendhal só compreende os sentimentos, os traços de caráter, as vicissitudes de paixão, em resumo, a vida da alma". Está tudo dito, a admiração de Taine está explicada. O filósofo que há nele encontrou seu romancista no ideólogo Stendhal, como ele próprio o designa, no psicólogo e no lógico ao qual devemos O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma. É igualmente desse ponto que partirei; em todo caso, não concluirei como Taine, dizendo, em relação a Julien Sorel, que "semelhantes caracteres são os únicos que merecem que por eles nos interessemos hoje". A fórmula literária atual é mais ampla e, ainda que colocando Stendhal à frente mesmo do movimento, é preciso determinar estritamente sua ação e não fechar a via através dele, em conseqüência de uma pura admiração de filósofo. Após os elogios exuberantes de Balzac, o discurso revoltado de Saint-Beuve e a satisfação filosófica de Taine, é tempo, creio, de se procurar dizer sobre Stendhal a verdade exata, analisando-o sem parti pris de nenhum tipo e dando-lhe sua verdadeira contribuição ao século.
Quando apareceram, os dois principais romances de Stendhal, O Vermelho e o Negro (1830) e A Cartuxa de Parma (1839), não tiveram nenhum sucesso. O estudo tão elogioso de Balzac não motivou o grande público a lê-los; permaneceram nas mãos dos letrados, e ainda por cima foram pouco apreciados. foi somente por volta de 1850 que um tipo de ressurreição se produziu. Ela surpreendeu muito Sainte-Beuve, que acabou por se mostrar escandalizado. Em seguida, Taine, exprimindo sem dúvida a opinião do grupo de amigos que conhecera na Escola Normal, lançou as palavras de "grande romancista" e "o maior psicólogo do século". Assim, declararam abertamente admirar muito Stendhal, sem que fosse mais lido e sem julgá-lo melhor. Essa é a questão entre os artistas que o negam e os lógicos que o exaltam.
Estudarei nele apenas o romancista, e mesmo assim ater-me-ei a dois de seus romances, O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma, negligenciando suas numerosas novelas e não me detendo em sua primeira obra, Armance, Algumas Cenas de um Salão de Paris, publicada em 1827.
Para facilitar minha análise, definirei de início o talento de Stendhal, em seguida passarei ao exame de seus livros e apoiarei meu julgamento sobre exemplos. Antes de tudo, darei aqui, invertendo a tarefa, uma conclusão das notas que tomei ao reler, de caneta em punho, O Vermelho e o Negro e A Cartuxa de Parma. Entretanto, penso que é a única maneira de ser claro.
Stendhal é antes de tudo um psicólogo. Taine definiu muito bem seu domínio, dizendo que ele se interessava unicamente pela vida da alma. Para Stendhal, o homem é composto apenas de cérebro, os outros órgãos não contam. Situa, evidentemente, os sentimentos, as paixões, os caracteres, no cérebro, na matéria pensante e agente. Ele não admite que as outras partes do corpo tenham uma influência sobre esse órgão nobre, ou pelo menos essa influência não lhe parece de modo algum bastante forte nem bastante digna para que nos inquietemos com ela. Além disso, raramente leva em conta o meio, quero dizer, a atmosfera da qual impregna sua personagem. O mundo exterior mal existe; não se preocupa nem com a casa onde seu herói cresceu, nem com o horizonte onde viveu. Eis, portanto, em resumo, toda a sua fórmula: o estudo do mecanismo da alma pela curiosidade desse mecanismo, um estudo puramente filosófico e moral do homem, considerado apenas em suas faculdades intelectuais e passionais e tomado à parte na natureza.
E, em suma, a concepção dos dois últimos séculos clássicos. Sem dúvida, as primeiras idéias sobre o homem, os dogmas puderam mudar; mas nos encontramos ainda diante de uma metafísica que estuda a alma como uma abstração, sem desejar averiguar a ação que as engrenagens da máquina humana e que a natureza inteira exercem evidentemente sobre ela. Assim, Taine foi levado a comparar Stendhal a Racine. Diz ele:
Foi o aluno dos ideólogos, o amigo de Tracy, e esses mestres da análise ensinaram-lhe a ciência da alma. Elogia-se muito em Racine o conhecimento dos movimentos do coração, de suas contradições, de sua loucura, e não se observa que a eloqüência e a elegância pronunciadas, a arte de desenvolver, a explicação sábia e detalhada que cada personagem dá de suas emoções lhes retira uma parte de sua verdade [ ] Stendhal não possui em absoluto esse defeito, e o gênero que escolheu ajuda a preservá-lo disso
O paralelo pode no princípio surpreender, mas é estritamente justo No poeta trágico e no romancista, o procedimento é o mesmo; porém ele é empregado com retóricas diferentes. É sempre, repito, uma psicologia pura, libertada de toda fisiologia e de toda ciência natural.
Num psicólogo, há um ideólogo e um lógico. É aí que Stendhal triunfa. É preciso vê-lo partir de uma idéia para mostrar, em seguida, o desabrochar de todo um grupo de idéias que nascem umas das outras, que se complicam e se resolvem. Nada de mais fino, de mais penetrante, de mais imprevisto do que essa análise contínua. Ele se compraz nisso, desenrola a cada minuto o cérebro de sua personagem, para fazê-la sentir suas mínimas tortuosidades. Ninguém conheceu em semelhante grau a mecânica da alma. Uma idéia se apresenta, é a engrenagem que vai dar o impulso a todas as outras; em seguida outra idéia nasce à direita, outra à esquerda, outras à frente, outras atrás; e há avanços, retornos, um trabalho que se organiza pouco a pouco, que se completa, que acaba por mostrar a alma inteira no trabalho, com suas faculdades, seus sentimentos, suas paixões. Isso enche páginas; pode-se inclusive dizer que a obra é feita dessa análise. O lógico conduz suas personagens com um rigor extremo, no meio dos desvios mais contraditórios na aparência Sentimo-lo sempre lá, friamente atento ao funcionamento de sua máquina. Cada um dos caracteres que cria é uma experiência de psicólogo que se aventura sobre o homem. Inventa uma alma com certos sentimentos e certas paixões, lança-a numa seqüência de fatos e se contenta em constatar o funcionamento dessa alma no meio de circunstâncias dadas. Stendhal, para mim, não é um observador que parte da observação para chegar à verdade graças à lógica; é um lógico que parte da lógica e que amiúde chega à verdade passando por cima da observação.
Mencionam com muita freqüência Stendhal ao lado de Balzac e não parecem ver o abismo que há entre eles. Taine, que os compara, permanece vago. Dá a Stendhal a psicologia, a vida da alma, e acrescenta para Balzac:
O que é que Balzac constatava em sua Comédia Humana? Todas as coisas, dirão vocês, sim, mas como cientista, como fisiologista do mundo moral, como doutor em "ciências sociais", conforme ele próprio se denominava, de onde resulta que suas narrativas são teorias, que o leitor, entre duas páginas de romance, encontra uma lição da Sorbonne, que a dissertação e o comentário são a peste de seu estilo.
Não compreendo absolutamente a conseqüência que o crítico estabelece aqui. Um doutor em ciências sociais não precisa dissertar nem comentar: basta-lhe expor. Taine observa a natureza do temperamento literário de Balzac e a apresenta sem razão como o defeito fatal de sua fórmula. O que é verdade é que Balzac partia como cientista do estudo do tema; todo o seu trabalho tinha por base a observação da criatura humana, e achava-se assim levado, como o zoólogo, a atribuir uma importância imensa a todos os órgãos e ao meio. Deve-se vê-lo numa sala de dissecação, escalpelo na mão, constatando que não há apenas um cérebro no homem, descobrindo que o homem é uma planta provinda do solo, e decidido desde logo, por amor ao real, a nada subtrair do homem, a mostra-lo em sua inteireza, com sua verdadeira função, sob a influência do vasto mundo. Enquanto isso, Stendhal permanece em seu gabinete de filósofo, remoendo idéias, utilizando do homem só a cabeça e contando cada pulsação do cérebro. Não escreve um romance para analisar um canto de realidade, seres e coisas; escreve um romance para aplicar suas teorias sobre o amor, para aplicar o sistema de Condillac sobre a formação das idéias. Tal é a grande diferença que há entre Stendhal e Balzac. Ela é capital, não provém somente de dois temperamentos opostos mas, ainda mais, de duas filosofias diferentes.
Em suma, Stendhal é o verdadeiro elo que liga nosso romance atual ao romance do século XVIII. Ele era dezesseis anos mais velho que Balzac, pertencia a uma outra época. É graças a ele que podemos saltar por sobre o romantismo e nos ligar ao velho gênio francês. Entretanto, o que posso sobretudo fixar é seu desdém pelo corpo, seu silêncio sobre os elementos fisiológicos do homem e sobre o papel do meio ambiente. Nós o veremos levar em conta a raça em A Cartuxa de Parma; dará esse primeiro passo de nos mostrar italianos reais, e não franceses disfarçados; contudo, nunca a paisagem, o clima, a hora do dia, o tempo que faz, a natureza, numa palavra, intervirá ou agirá sobre as personagens. A ciência moderna ainda não passou, evidentemente, por aí. Ele permanece numa abstração desejada, põe o ser humano à parte na natureza e declara, em seguida, que só a alma, sendo nobre, só ela tem prerrogativas na literatura. E é por essa razão que Taine, como lógico, declara-o superior. Segundo ele, Stendhal está acima dos outros porque permanece na máquina cerebral, no espírito puro. Isto quer dizer que ele é tanto mais elevado quanto desdenha a natureza, castra o homem e se encerra numa abstração filosófica. Para mim, ele é menos completo, eis tudo.
É preciso insistir, pois o ponto interessante encontra-se aí. Tomem uma personagem de Stendhal: é uma máquina intelectual e passional perfeitamente montada. Tomem uma personagem de Balzac: é um homem em carne e osso, com a vestimenta e a atmosfera que o envolve. Onde está a criação mais completa, onde está a vida? Em Balzac, evidentemente. É verdade, tenho a maior admiração pelo espírito tão sagaz e tão pessoal de Stendhal. Todavia, ele me diverte como um mecânico genial que faz funcionar diante de mim a mais delicada das máquinas, enquanto Balzac me arrebata por inteiro, pela força da vida que evoca.
Não compreendo o alto e o baixo no homem. Dizem-me que a alma está em cima e que o corpo está embaixo. Por que isso? Não me posso imaginar alma sem corpo, e coloco-os juntos. Em que Julien Sorel, por exemplo, que é uma pura criação especulativa, é superior ao barão Hulot, que é uma criatura viva? Um raciocina, o outro vive. Prefiro este último. Se separarem o corpo, se não levarem em conta a fisiologia, já não estarão mesmo na verdade, pois sem descer aos problemas filosóficos é certo que todos os órgãos têm um eco profundo no cérebro e que seu funcionamento, mais ou menos bem regulado, ajusta ou desajusta o pensamento. O mesmo acontece com os meios; eles existem, têm uma influência evidente, considerável, e não existe nenhuma superioridade em suprimi-los, em não fazê-los entrar no funcionamento da máquina humana.
Eis, portanto, a resposta que se deve dar aos adversários da fórmula naturalista quando censuram os romancistas atuais por se deterem no animal, no homem e por multiplicarem as descrições. Nosso herói já não é o puro espírito, o homem abstrato do século XVIII; ele é o sujeito fisiológico de nossa ciência atual, um ser que é um composto de órgãos e que está mergulhado num meio pelo qual é penetrado a cada momento. Dessa forma, devemos levar em conta toda a máquina e o mundo exterior. A descrição é apenas um complemento necessário da análise. Todos os sentidos vão agir sobre a alma. Em cada um de seus movimentos, a alma será acelerada ou retardada pela visão, pelo cheiro, pela audição, pelo paladar e pelo tato. A concepção de uma alma isolada, funcionando sozinha no vazio, torna-se falsa. É mecânica psicológica, já não é vida. Sem dúvida, pode haver abuso aí, sobretudo na descrição; o virtuosismo arrebata amiúde os retóricos; luta-se com os pintores para mostrar a leveza e o brilho de sua frase. Mas esse exagero não impede que a indicação clara e precisa dos meios e o estudo de sua infância sobre as personagens sejam necessidades científicas do romance contemporâneo.
Tomarei um exemplo para melhor me fazer compreender. Há um episódio célebre em O Vermelho e o Negro, a cena em que Julien, numa noite, sentado ao lado de Renal, sob os ramos escuros de uma árvore, obriga-se a tomar-lhe a mão, enquanto ela conversa com Derville. É um pequeno drama silencioso de grande força, e nele Stendhal analisou maravilhosamente os estados de alma de suas duas personagens. Ora, o meio não aparece uma só vez. Poderíamos estar em qualquer lugar, em quaisquer condições, a cena permaneceria a mesma, desde que estivesse escuro. Compreendo perfeitamente que Julien, na tensão de vontade em que se encontra não seja afetado pelo meio Nada vê nada ouve nada sente quer simplesmente segurar a mão de Renal e conservá-la na sua. Entretanto, de Renal, ao contrário, deveria sofrer todas as influências exteriores. Dêem o episódio a um escritor para quem os meios existem, e no infortúnio dessa mulher ele introduzirá a noite, com seus odores, suas vozes, suas volúpias indolentes. E esse escritor estará dentro da realidade, seu quadro será mais completo.
Não se trata, repito-o, de escrever frases, mas de constatar cada uma das circunstâncias que determinam ou modificam o funcionamento da máquina humana. Pois bem: essa observação, eu a farei em todos os lugares, nas obras de Stendhal. Prova de superioridade, repetirão. Por que isso? Ele não é retórico, e tanto melhor para ele. Todavia, permanece na abstração, e não vejo em que isso pode colocá-lo acima daqueles que vão às realidades. Não há nenhuma razão para que um psicólogo seja um grau mais elevado do que um fisiologista.
Qual é, então, o golpe de gênio de Stendhal? Para mim, está na intensidade da verdade que freqüentemente obtém com seu instrumental de psicólogo, por mais incompleto e por mais sistemático que possa ser. Digo que não via nele um observador. Ele não observa e não descreve, em seguida, a natureza com bonomia. Seus romances são obras de cabeça, humanidade quintessenciada por um procedimento filosófico. Ele bem viu o mundo, e muito; contudo, não o evoca em sua rotina real, submete-o a suas teorias e o pinta por meio de suas próprias concepções sociais. Ora, acontece que esse psicólogo, desdenhoso das realidades e por inteiro imerso em sua lógica, deságua, pela pura especulação intelectual, em verdades audaciosas e extraordinárias que nunca ninguém havia ousado antes dele no romance. E isso o que me entusiasma. Confesso ser pouco sensibilizado por suas sutilezas de análise, pelo tique-taque contínuo do relógio que ele faz ouvir sob o crânio de suas personagens; seu movimento me parece, às vezes, discutível, e por sinal não se trata da vida plena e franca. Filósofos podem se extasiar; um espírito amoroso do que é, do que se passa diariamente sob seus olhos, sempre experimentará um mal-estar ao se sentir engajado em teorias mais ou menos paradoxais. Todavia, bruscamente, cenas se abrem e a vida fala. Desse ponto de vista, prefiro O Vermelho e o Negro a A Cartuxa de Parma. Não conheço nada de mais surpreendente do que a primeira noite de amor de Julien e Mlle de La Mole. Existe aí um embaraço, um mal-estar, uma falta ao mesmo tempo estúpida e cruel, de rara força, de tanto que os fatos parecem soar a verdade. Sem dúvida isso não é observado, é deduzido; contudo, o psicólogo se livrou de suas complicações laboriosas para ascender de um salto à simplicidade, direi à tolice do real. Eu poderia citar assim vinte trechos em que ele chega a observações extraordinárias por pouco, apenas pela lógica. Ninguém antes dele pintara o amor com mais realidade. Quando não se embaralha em seu sistema, apresenta documentos que desordenam todas as idéias recebidas e que denotam clarezas sutis. Pensem nas dissertações sobre o amor, nas banalidades dos romanos, e observem a análise tão clara e cruel de Stendhal. Aí está sua verdadeira força. Se é um de nossos mestres, se está à frente da evolução naturalista, não é porque foi apenas um psicólogo, é porque o psicólogo que existe nele teve bastante força para chegar à realidade, por sobre suas teorias e sem o socorro da fisiologia nem de nossas ciências naturais.
Portanto, para concluir, Stendhal e a transição, no romance, entre a concepção metafísica do século XVIII e a concepção científica do nosso. Como os escritores dos dois séculos que tem atrás de si, ele não sai do domínio da alma, não vê no homem senão uma nobre mecânica de pensamentos e paixões. Mas, se ele ainda não está para o homem fisiológico, com o funcionamento dos órgãos, atuando no meio e sob a influência da natureza, deve-se acrescentar que sua metafísica já não é a de Racine, nem mesmo a de Voltaire. Condillac passou por aí, o positivismo aparece, sentimo-nos no limiar de um século de ciência. Nenhum dogma esmaga mais as personagens. A investigação está aberta, e o romancista parte para a conquista da verdade; como ele próprio diz, leva um espelho ao longo de um caminho; entretanto, esse espelho só reflete a cabeça do homem, a parte nobre, sem nos dar o corpo nem os lugares circunvizinhos. É realidade reduzida por um temperamento de lógico e diplomata, que nem a ciência nem a arte tocaram. Acrescentem um espírito que se despojou de todos os preconceitos para cair amiúde em sistemas, uma inteligência livre e penetrante, que sua superioridade torna irônica e que, não contente de zombar dos outros, zomba, às vezes, de si mesma.
Abordo agora O Vermelho e o Negro. Não é, por sinal, uma análise regular que procuro dar aqui. Acabo de reler o romance, com um lápis na mão, e eis as reflexões que esta leitura fez nascer em mim.
Entretanto, antes de tudo é preciso falar sobre a grande influência que o destino de Napoleão exerce sobre a obra de Stendhal. O Vermelho e o Negro permaneceria incompreensível se não nos reportássemos à época em que o romance foi concebido, e se não levássemos em conta o estado cerebral em que a prodigiosa ambição satisfeita do imperador havia deixado a geração à qual pertencia Stendhal. Esse cético, esse trocista frio, esse moralista sem preconceitos, esse escritor que se preserva de todo entusiasmo, estremece e se inclina à simples menção do nome de Napoleão. Não toma diretamente a palavra, mas sentimo-lo sempre vibrando por uma admiração antiga, e sob o golpe dos estragos causados nele e ao redor dele pela queda do colosso. Desse ponto de vista, é preciso ver seu Julien Sorel como a personificação dos sonhos ambiciosos e dos pesares de toda uma época.
Irei mais longe. Na minha opinião, Stendhal pôs muito de si mesmo em Julien. Imagino-o de bom grado tendo sonhado com a glória militar, num tempo em que os simples soldados tornavam-se marechais da França. Depois, o Império desmoronou, e toda a juventude da qual ele fazia parte, todos esses apetites exaltados, todas essas ambições que pensam encontrar uma coroa numa cartucheira, caem de uma só vez numa outra época, nessa Restauração, governo de padres e cortesãos; as sacristias e os salões substituem os campos de batalha, a hipocrisia iria ser a arma todo-poderosa dos parvenus. Tal é a chave do caráter de Julien, no início do livro; e não há nada, inclusive esse título enigmático, O Vermelho e o Negro, que não pareça indicar o reino eclesiástico sucedendo ao reino militar.
Insisto, porque nunca vi estudar a influência muito real que Napoleão exerceu sobre nossa literatura. O Império foi uma época de produção literária bem medíocre; mas não se pode negar o golpe de martelo com que o destino de Napoleão havia fendido os crânios de seu tempo. Foi mais tarde que a influência se produziu e se pôde ver o tremor das inteligências. Em Victor Hugo, a lesão se revelou por toda uma torrente de lirismo. Em Balzac, houve uma hipertrofia da personalidade; ele quis, evidentemente, criar um mundo no romance, como Napoleão tinha sonhado com a conquista do Velho Mundo. Todas as ambições inflavam, as ações degeneravam para o gigantesco, só se sonhava, nas letras como em tudo mais, com a realeza universal. Todavia, o que mais me surpreende é ver Stendhal também afetado. Não zomba mais, parece considerar Napoleão como um deus que arrastou consigo a franqueza e a nobreza da França.
Eis, portanto, Julien, tendo feito em segredo seu deus de Napoleão e forçado a ocultar sua devoção, se quisesse elevar-se acima de sua condição. Todo esse caráter, tão complicado e à primeira vista tão paradoxal, vai ser construído sobre esse dado, uma natureza nobre, sensível, delicada, que, não mais podendo satisfazer sua ambição às claras, lança-se na hipocrisia e nas intrigas mais complicadas. Com efeito, suprimam a ambição, Julien é feliz em suas montanhas; ou então dêem a Julien um campo de batalha digno dele, triunfará extraordinariamente, sem descer a contínuas astúcias de diplomata. Ele é, portanto, o filho dessa hora histórica, rapaz de uma inteligência superior obrigado por temperamento a fazer uma grande fortuna, que veio muito tarde para ser um dos marechais de Napoleão e que resolve passar pelas sacristias e operar como criado hipócrita. Dessa forma seu caráter se esclarece, compreendem-se suas submissões e suas revoltas; suas franquezas. Vai, por sinal, a todos os extremos, demonstra tanto ingenuidade quanto astúcia, é ainda mais ignorante do que inteligente. Stendhal quis mostrar o homem com seus contrastes, segundo as circunstâncias. É verdade, a análise é das mais extraordinárias; nunca se vasculhou um cérebro com tanto cuidado. Deploro apenas a tensão contínua da personagem; ele não vive mais, é sempre e em todos os lugares um "sujeito", sob o olhar do autor, a ponto de seus pequenos atos chegarem a fornecer muito mais matérias do que os atos decisivos de sua existência.
O início do romance é muito interessante para se estudar. Ainda não se é tomado pelo interesse, pode-se perceber o procedimento literário de Stendhal. Esse procedimento é, grosso modo, o do bel-prazer. Não há nenhuma razão para que a obra comece por uma descrição da cidadezinha de Verrières e por uma descrição do Sr. de Renal. Sei muito bem que é preciso sempre começar; mas quero dizer que o autor não cede a idéias de simetria, progressão, ordenamento qualquer. Escreve ao acaso do parágrafo. Aquele que se apresenta primeiro é o bem-vindo. Assim, enquanto a narrativa não se inflamou, isso provoca alguma confusão; crê-se em contradições e se é forçado a retroceder para assegurar-se de que o encadeamento não se rompeu.
Estudemos, sobretudo, o modo como as personagens fazem sua entrada na obra. Parecem introduzir-se nelas de viés. Quando Stendhal necessita delas, menciona-as, e elas chegam, com freqüência, ao fim de um parágrafo. Dessa forma, sua cidadezinha de Verrières, à qual retorna de vez em quando, permanece de uma organização muito complicada sentimo-Ia inventada, não a vemos. Em suma, falta ordem, não tem lógica. Eis a grande palavra pronunciada. Sim, esse lógico das idéias é um trapalhão do estilo e da composição literária. Há aí uma inconseqüência que me surpreendeu e que para mim é característica. Retornarei a isso, e longamente.
Mme de Renal é uma das excelentes figuras de Stendhal porque ele não a oprimiu muito. Deixou a essa alma uma certa liberdade. Entretanto, constato que ainda quis levá-la à superioridade. Essa é uma das características de Stendhal, a qual Taine crê dever elogiar; repugna-lhe a personagem medíocre, eleva-a sempre, por um ideal de inteligência. De início, Mme de Renal parece apenas uma burguesa bem nula; mas em breve o romancista faz dela uma mulher superior, e isso em todos os momentos. Nada é tão belo como o primeiro encontro entre Julien e essa bela senhora; seus amores, com a lenta entrega da mulher e os cálculos tão friamente ingênuos do jovem, possuem um tom de verdade um pouco afetado que faz dele um capítulo das Confissões. Todavia, confesso minha surpresa quando, em seguida, vejo os dois superiores, e quando Mme de Renal, a todo instante, fala do gênio de Julien. "Seu gênio", diz Stendhal, "ia até apavorá-la; ela imaginava perceber mais claramente a cada dia o grande futuro homem nesse jovem padre". Considerem que Julien ainda não tem vinte anos e que não fez absolutamente nada, e inclusive nunca fará algo provando esse gênio com o qual o sobrecarregam. Ele é um gênio para Stendhal, sem dúvida porque Stendhal, que é o único senhor desse cérebro, põe nele o que acredita ser o funcionamento do gênio. Essa é a lesão com que Napoleão fendeu as cabeças: para Stendhal, como para Balzac, por sinal, o gênio é o estado ordinário dos personagens. Reencontraremos isso em A Cartuxa de Parma.
Citarei esta frase de Julien sobre Mme de Renal: "Eis uma mulher de gênio superior reduzida ao cúmulo da infelicidade por ter-me conhecido". Ora, o pior é que Julien formula alhures juízos de imbecil sobre essa mulher. Assim, faz mais à frente esta reflexão: "Deus sabe o quanto ela teve de amantes! Talvez só se decida a meu favor por causa da facilidade dos encontros". Isso me enfurece, visto que é realmente preciso que Julien seja bem pouco clarividente para não conhecer Mme de Renal, pela cidadezinha onde vivem e por seu contato de todos os dias. Há, desse modo, saltos de análise singulares, com freqüência a algumas linhas de distância; são contínuos desvios bruscos que desconcertam e que dão à obra um caráter desejado. Sem dúvida, o homem é cheio de inconseqüências; contudo, essa dança da personagem, essa vida do cérebro marcada minuto a minuto, e nos mínimos detalhes, prejudica, na minha opinião, a maneira mais ampla e mais simples da vida. Estamos quase sempre aí na exceção. É assim que os amores de Mme de Renal e de Julien, sobretudo no papel desempenhado por este último, têm em cada página rangidos de máquina, rigidez de sistemas cujas engrenagens não obedecem o suficiente. Um único exemplo: Julien está embriagado por ter segurado na sua a mão de Mme de Renal, e Stendhal acrescenta: "Mas essa emoção era um prazer, e não uma paixão. Retornando ao seu quarto, só pensou numa felicidade, a de retomar seu livro preferido; aos vinte anos, a idéia do mundo e do efeito a produzir nele sobrepuja tudo". Não se poderia conceber o quanto essa distinção filosófica do autor sobre o prazer e a paixão me incomoda; e vocês vêem que, de imediato, ele acompanhou essa distinção por um exemplo, fazendo Julien preferir a leitura do Memorial de Santa Helena à recordação ainda ardente de Mme de Renal. Não nego o fato, ele é possível. Entretanto, perturba-me, pois sinto-o colocado lá, não em conseqüência de uma observação, mas pelo desejo de sustentar por uma prova sua teoria do prazer e da paixão no amor. Em toda parte o autor aparece do mesmo modo como demonstrador, como lógico que observa os estados de alma nos quais situa suas personagens. Todas as personagens de Stendhal parecem ter enxaqueca, de tanto que faz seus cérebros trabalharem. Quando o leio, sofro por elas, sinto amiúde vontade de gritar-lhe: "Por piedade, deixai-as um pouco tranqüilas; deixai-as algumas vezes viverem a boa vida dos animais, simplesmente, na pulsão do instinto, no meio da sã natureza; sede com elas simples como um bom homem".
Onde aparece sobretudo esse caráter desejado da obra é no estudo da hipocrisia de Julien. Pode-se dizer que O Vermelho e o Negro é o manual do perfeito hipócrita; e o que é característico é que o estudo da hipocrisia é longamente retomado em A Cartuxa de Parma. Uma das grandes preocupações de Stendhal foi a arte de mentir. Como outros nascem policiais, ele parecia nascido diplomata, com as complicações de mistério, de duplicidade hábil que faziam a glória legendária do ofício. Mudamos isso, sabemos que um diplomata é geralmente um homem tão simples quanto outro. Stendhal colocava igualmente a superioridade humana nesse ideal de um espírito poderoso que se dá o prazer de enganar os homens e de ser o único a fruir de seus embustes. Observem, como já disse, que Julien é no fundo o mais nobre espírito do inundo, desinteressado, terno, generoso. Se perece, é por excesso de imaginação: é muito poeta. Assim, Stendhal lhe impõe unicamente a mentira como o instrumento necessário à sua fortuna. Faz dele um fanfarrão de hipocrisia, e sentimo-lo feliz quando o conduziu a alguma boa duplicidade. Por exemplo, exclamará com uma satisfação de pai: "Não se deve pensar muito mal de Julien; ele inventava corretamente as palavras de uma hipocrisia cautelosa e prudente. Nada mal na sua idade". Em outra parte, como Julien tem uma revolta de homem honesto, o autor tomará a palavra para fazer esta declaração: "Confesso que a fraqueza da qual dá prova nesse momento me dá uma pobre opinião dele". Entramos no conto filosófico de Voltaire. É ironia, Julien se torna um símbolo. No fundo, há uma concepção social; em seguida, sobretudo, demonstram um grande desprezo pelos homens, uma adoração das inteligências excepcionais que governam por quaisquer armas. Mais uma vez tudo isso é tenso, a propensão da existência é mais suave. Quando Stendhal escreve: "Julien prometera nunca dizer senão coisas que lhe pareciam falsas", ele nos adverte contra a personagem, que, do começo ao fim do livro, é mais uma vontade do que uma criatura.
Com isso, abundam páginas extraordinárias. Encontramos em todos os lugares esse golpe de gênio da lógica de que falei; a verdade eclode em cenas inesquecíveis, como a primeira noite de Julien e Mme de Renal. Nunca o amor, com suas mentiras e generosidades, suas misérias e delícias, foi analisado de modo tão profundo. O retrato do marido é sobretudo uma maravilha. Não conheço uma tempestade num homem mais magistralmente descrita, sem falsa grandeza e com o som exato da realidade do que essa terrível luta que ocorre entre o Sr. de Renal, quando recebeu a carta anônima denunciando-lhe os amores de sua mulher. Insisti sobre esse começo do romance porque ele é com toda a certeza a melhor parte da obra, e porque me permitiu estabelecer claramente as maneiras de ver e os procedimentos de Stendhal. Vou agora poder passar com maior rapidez sobre as outras partes.
A vida de Julien no seminário é ainda um episódio admirável. Aqui, a hipocrisia tão estudada do herói já não incomoda, porque ele se encontra num meio onde luta contra hipócritas. Por sinal, esse pobre Julien sente-se bem pequeno, com sua arte da mentira, diante dos folgazões que empregam a mentira com naturalidade, sem esforço. De imediato, abandonaria a hipocrisia se a ambição não o perseguisse. Stendhal devia se sentir à vontade num seminário, onde reinam a espionagem e a desconfiança, da mesma forma como se sentiu, mais tarde, na corte do rei de Panna. Assim, deixou uma pintura surpreendente, se não de uma grande observação imediata, pelo menos de uma dedução extraordinária de força. A chegada de Julien, sua primeira entrevista com o padre Pirard, a vida interior do seminário estão entre as melhores páginas do livro.
Chego aos amores de Julien com Mlle de La Mole, que ocupam uma boa metade da obra. É para mim a metade inferior, pois entramos na aventura e na singularidade.
Não bastava a Stendhal ter criado um Julien, essa mecânica cerebral tão excepcional; quis criar a fêmea desse macho, inventou Mlle de La Mole, outra mecânica cerebral no mínimo igualmente surpreendente. É um segundo Julien. Imaginem a moça mais friamente, mais cruelmente romanesca que se possa ver; mais um espírito superior que tem desprezo por seu entourage e que se lança nas aventuras, por uma complicação e uma tensão extraordinárias da inteligência. "Ela só dava o nome de amor", diz Stendhal, "a esse sentimento heróico que se encontrava na França no tempo de Henrique III e de Bassompierre". E ela parte daí para amar Julien, numa decisão longamente refletida. É ela que lhe faz uma declaração, e quando ele chega em seu quarto pela janela, só a idéia do dever que traçou para si a decide a se entregar a ele, cheia de mal-estar e repugnância. A partir daí, seus amores tornam-se o mais abominável dos precipícios. Julien, que não a amava, põe-se a adorá-la e a desejá-la loucamente pela lembrança. Todavia, ela teme ter-se dado um senhor, esmaga-o de desprezo, até o dia em que é tomada de paixão, em conseqüência de uma cena na qual imaginou que seu amante queria matá-la. De resto as desavenças continuam. Julien, para reconquistá-la, é forçado a torná-la ciumenta, obedecendo a uma longa tática. Enfim, Mlle de La Mole engravida e confessa tudo a seu pai, a quem declara que desposará Julien. Não conheço amores mais difíceis, menos simples e menos sinceros. Os dois amantes são perfeitamente insuportáveis, com sua contínua preocupação de sutilizar em excesso. Stendhal, como analista de primeira grandeza, comprouve-se em complicar seus cérebros ao infinito, como esses jogadores de bilhar ilustres que se impõem dificuldades, a fim de demonstrar que não há posição capaz de lhes impedir uma carambola. Só existem aí curiosidades cerebrais.
De resto, o autor compreendeu perfeitamente. Ele próprio observa isso, mas com essa ironia pretensiosa que zomba ao mesmo tempo de suas personagens e do leitor. Ele pára bruscamente sua narrativa para escrever:
Esta página prejudicará de várias maneiras o infeliz autor. As almas gélidas o acusarão de indecência. Ele não injuria em absoluto as jovens pessoas que brilham nos salões de Paris ao supor que sequer uma dentre elas seja suscetível dos movimentos de loucura que degradam o caráter de Mathilde. Essa personagem é completamente de imaginação e inclusive imaginada bem fora dos hábitos sociais que, entre todos os séculos, assegurarão uma posição tão distinta à civilização do século XIX.
Eis o que é mordaz e bonito; mas isso não impede Mathilde de ser muito mais uma experiência de autor do que uma criatura viva.
O procedimento de Stendhal é sobretudo muito visível nos longos monólogos que elabora para suas personagens. A cada instante Julien, Mathilde e outros mais fazem exames de consciência, escutam seus pensamentos, com a surpresa e a alegria de uma criança que encosta o ouvido num relógio. Desenrolam interminavelmente o fio de seus pensamentos, param em cada nó, raciocinam a perder de vista. Todos, a exemplo do autor, são psicólogos muito distintos. Compreende-se isso, pois são eles todos mais filhos de Stendhal do que da natureza. Assim, eis uma das reflexões que Stendhal faz para Mathilde, falando das pessoas que a cercam: "Se elas ousam abordar um assunto sério, ao fim de cinco minutos de conversação chegam sem fôlego, e como se fizessem uma grande descoberta, a uma coisa que lhes repito há uma hora". É Mathilde, é Stendhal quem fala? Evidentemente, é este último, e a personagem é aí apenas um disfarce.
Deixo de lado o meio parisiense no qual Julien se situa. Há aí excelentes retratos; entretanto, na minha opinião, todas essas pessoas simulam um pouco; Stendhal raramente nos dá a vida, suas mulheres da sociedade, seus grandes senhores como seus parvenus, seus conspiradores como seus jovens fátuos, têm não sei que de seco e inacabado ao mesmo tempo que os deixa em estado de esboço nas memórias. Nunca os meios são reconstruídos plenamente. As cabeças permanecem simples silhuetas, recortadas sobre o papel branco ou negro. São anotações de autor há pouco ordenadas.
E sempre cenas surpreendentes de verdade, como numa emanação da lógica. Citei o primeiro encontro de Julien e Mathilde. Seria preciso apresentar essas quatro páginas, para fazer ouvir seu som justo e profundo. Isso se parece tão pouco com o duo de Romeu e Julieta, que a primeira impressão é um estremecimento desagradável; em seguida, somos tomados pela realidade dos mínimos fatos. Leiam estas linhas:
Mathilde se esforçava para tuteá-lo, ela estava evidentemente mais atenta a essa estranha maneira de falar do que ao conteúdo das coisas que dizia. Esse tuteio, despojado do tom da ternura, não proporcionava nenhum prazer a Julien Surpreendia-se com a ausência da felicidade, enfim, para senti-la, recorreu à sua razão.
Eis o bom Stendhal, o psicólogo chegando à verdade sobre determinados temas pela simples análise dos movimentos da alma. Numa outra cena, quando o marquês de La Mole sabe de tudo e manda chamar Julien, fui surpreendido pelo modo como ele o recebe. Dêem a cena a um romancista retórico, e terão o pai de cabelos brancos, fazendo sermão, com um nobre desespero. Escutem Stendhal: "Julien encontrou o marquês furioso: pela primeira vez em sua vida, talvez, esse senhor foi grosseiro: humilhou Julien com todas as injúrias que lhe vieram à boca. Nosso herói se surpreendeu, se impacientou; mas seu reconhecimento não foi absolutamente abalado". E mais à frente: “O marquês estava realmente enlouquecido. Em vista desse movimento (Julien cairia de joelhos), recomeçou a humilhá-lo com injúrias atrozes e dignas de um cocheiro de fiacre. A novidade dessas blasfêmias era, talvez, uma distração". Tal é o grito humano, a reflexão verdadeira e nova no romance. E o estudo do homem tal como é, despojado das roupagens da retórica e visto fora das convenções literárias e sociais. Stendhal ousou por primeiro essa verdade.
Conhecemos o belo episódio que termina O Vermelho e o Negro. Mme de Renal levada por seu confessor, escreve ao marquês de La Mole uma carta que rompe o casamento de Mathilde e Julien. Este, cedendo a um movimento de loucura, retorna a Verrières e dá um tiro de pistola em Mme de Renal, ajoelhada numa igreja. Prendem-no, julgam-no e guilhotinam-no. As cinqüenta últimas páginas analisam as idéias de Julien em sua prisão, diante da morte próxima. Stendhal se deu aí um regalo, uma profusão de raciocínio, e nada seria mais curioso do que comparar o episódio ao Último Dia de um Condenado, de Victor Hugo. É muito penetrante, muito original; não ouso acrescentar muito verdadeiro, pois um cérebro como Julien é de tal forma excepcional que os pontos de comparação estão por completo ausentes na realidade, pois os condenados à morte dessa estrutura intelectual são muito raros. Deve-se ler isso como um problema de psicologia, apresentado em condições particulares e brilhantemente resolvido. Nesse desfecho, sobretudo, sente-se o quanto a história é inventada, quão pouco é escrita sobre a observação imediata. Taine diz: "A história é quase verdadeira, é a de um seminarista de Besançon denominado Berthet; o autor só se ocupa em anotar os sentimentos desse jovem ambicioso e em retratar os costumes das sociedades em que se encontra ; há mil fatos verdadeiros mais romanescos do que esse romance". Pois bem! E verdade que, se um processo forneceu a Stendhal a idéia inicial de seu livro, ele a retomou e inventou todos os caracteres. Sem dúvida o conteúdo da obra não é romanesco, ainda que as aventuras de um pequeno padre que se torna amante de duas damas, assassinando uma pelo amor da outra, e enfim chorado pelas duas, até a loucura e a morte, já constituam um bonito drama; mas onde entramos no romanesco, ou melhor, no excepcional, é quando Stendhal nos explica com amor e sem interrupção os movimentos de relógio que fazem as personagens agir.
Isso sai absolutamente da realidade cotidiana, da realidade com que estamos em contato, e estamos no extraordinário tanto com Stendhal psicólogo quanto com Alexandre Dumas contista. Para mim, do ponto de vista da estrita verdade, Julien me causa as mesmas surpresas que d'Artagnan. Cai-se igualmente nos abismos da invenção, seja porque se apóia muito à esquerda ao imaginar fatos incríveis, seja porque se apoia muito à direita ao criar cérebros fenomenais, nos quais se acumula todo um curso de lógica. Lembrem que Julien morre aos vinte e três anos, e que seu pai intelectual o apresenta como um gênio que aparenta ter descoberto o pensamento humano. Creio, de minha parte, que entre o abismo dos contistas e o abismo dos psicólogos há uma via muito larga, a própria vida, a realidade dos seres e das coisas, nem muito baixa, nem muito alta, com sua cadência média e sua bonomia poderosa, de um interesse ainda maior porque ela nos dá o homem mais completo e com maior exatidão.
Gosto menos de A Cartuxa de Parma, porque sem dúvida as personagens manifestam-se num meio que me é menos conhecido. E, se quiserem saber de imediato o que penso, confessarei que sinto grande dificuldade em aceitar a Itália de Stendhal como uma Itália contemporânea; na minha opinião, ele retratou sobretudo a Itália do século XV, com sua orgia de venenos, suas estocadas, seus espiões e seus bandidos mascarados, suas aventuras extraordinárias em que o amor impele levianamente ao sangue. Não sei o que pensa Taine do romanesco dessa obra, mas para mim nada é mais complicado como intriga, nada destoa mais da idéia que faço da Europa em 1820. Encontro-me aí em pleno Walter Scott, excetuando a retórica. Talvez eu esteja errado.
Eu já disse, por sinal, que A Cartuxa de Parma é certamente o único romance francês escrito sobre um povo estrangeiro que tenha o cheiro desse povo De modo geral, nossos romancistas, e os maiores, contentam-se com pinceladas de cor local completamente superficiais, enquanto Stendhal foi ao âmago da raça. Ele a vê menos banalmente burguesa, mais voluptuosa, obedecendo menos ao dinheiro e ao amor-próprio. Desconfio que a viu através de seus gostos e de sua natureza. Todavia, não deixou de representar com um traço definitivo as grandes linhas desses temperamentos vivos e livres, cuja grande questão é amar e gozar a vida, pouco se importando com a opinião alheia.
Aqui, ainda, encontramos espíritos superiores, gênios. Chego a contar quatro: a duquesa Sanseverina, Fabrice, Mosca e Ferrante Palia. Estamos sempre na inteligência pura.
Essa duquesa Sanseverina, que ocupa o livro, é filha de Stendhal. Colocou nela todos os encantos e todas as complicações da paixão. Ela roça o incesto, vai até o envenenamento, e nem por isso deixa de ser a heroína simpática que Stendhal adora. Sentimo-lo encantado com os crimes dela; creio mesmo que a arrasta ao atroz por ódio à banalidade. É orgulhoso dela, diria de bom grado, em sua alegria de surpreender o mundo: "Eis uma mulher como não se vê amiúde!" Escutem esta biografia. Gina del Dongo desposa o conde Pietranera, um oficial de Napoleão, que ela ama ardentemente, o que não a impede de enganá-lo com um jovem denominado Limercati. Seu marido morre, ela tem outros amantes; enfim Mosca, o ministro do príncipe de Parma, apaixona-se por ela, e ela se torna sua amante. Todavia, ao mesmo tempo ela é tomada de paixão por seu sobrinho Fabrice, do qual poderia ser mãe, dezesseis anos mais velha do que ele; e, a partir daí, é essa paixão que vai ocupar sua vida, sem impedi-la de continuar suas relações com Mosca e viver outros amores. Para salvar Fabrice da morte, ela decide envenenar o príncipe de Parma por Ferrante Palia, um louco genial que a adora. Não é tudo; quando o príncipe morre, ela deve salvar Fabrice de novo, e desta vez chega ao ponto de se vender ao herdeiro do trono. Enfim, vive tranqüila com Mosca, depois de ter sido torturada de ciúme pelos amores de Fabrice e Clélia. Stendhal quis poupá-la da queda com Fabrice. Esquecia-me de dizer que Mosca, antes de desposá-la, casa-a com o velho duque Sanseverina-Taxis, um ambicioso muito rico, que tem o bom gosto de morrer e de quem ele é herdeiro; negócio que, na França, bastaria para enlamear uma mulher. Tal é a heroína. Acrescente-se que é bela, possui uma inteligência extraordinária e que o romancista coloca-a numa glória contínua. Não me sinto chocado, apenas não vejo a duquesa em nossa época, eis tudo. Ela viveu na França. É outra Mlle de La Mole com diferenças de natureza, Stendhal me parece sempre mostrar retratos históricos. Não conheceu nem a mulher nem o homem modernos.
Quanto a Fabrice del Dongo, ele tem muito de Julien Sorel. No início, ainda encontramos a paixão por Napoleão, e isso nos dá esse episódio tão extraordinário da Batalha de Waterloo, que não se apóia em nada no romance. Em seguida, vem igualmente a luta do espírito eclesiástico e do espírito militar. Como Julien, Fabrice, que queria ser soldado, vê-se obrigado a vestir a batina. As situações e as idéias são idênticas. Depois, é verdade, Fabrice se entrega à paixão; é uma alma mais terna, mais flexível, mais meridional. Um verdadeiro herói, por sinal, à moda dos romances de aventuras. Percorre os caminhos distribuindo estocadas. Taine, que cita com admiração o modo seco com que Stendhal conta em duas linhas o duelo de Julien em O Vermelho e o Negro, não se deu conta da maneira bem romântica como o romancista dramatizou os duelos de Fabrice em A Cartuxa de Parma. Há inicialmente seu caso com Giletti, o ator, seguido do caso com o conde M***, num pátio de albergue. Salto as cartas anônimas, cujo emprego é muito freqüente, os criados disfarçados, todo esse estranho meio que, para mim, parece pertencer aos contos de fadas; e chego ao delicioso episódio da Torre Farnese, aos amores de Fabrice, prisioneiro, com a bela Clélia, filha do governador. A situação é, grosso modo, a mesma que a de Julien na prisão de Besançon, pois Fabrice está igualmente sob a ameaça de uma morte próxima; todavia, ainda que o psicólogo não abandone a contínua análise das idéias, transforma-se aqui em contista, e os fatos romanescos assumem o lugar mais importante. São todos os tipos de detalhes singulares e pouco verossímeis : o modo como Fabrice se vê com Clélia, sua correspondência com a duquesa graças a um sistema de sinais luminosos, em seguida cartas enviadas em balas de chumbo, depois o uso de cordas e ainda essa milagrosa descida de uma altura prodigiosa sem que uma sentinela se mova; e, no meio de tudo isso, histórias de veneno em cada página, como no tempo dos Bórgia. Nada é de interesse mais vivo; mas eis que estamos longe da simplicidade e da nudez do real. Mais tarde, Fabrice, que volta a se tornar prisioneiro por amor, escapará ainda de ser envenenado. Clélia se casa; ele se torna arcebispo e a possui durante vários anos, num cômodo escuro, porque ela fez voto para não vê-lo e entende observar o termo de seu juramento; esse casuísmo é um traço de costumes italianos que nos faz sorrir um pouco. Enfim, quando Clélia morre, Fabrice também morre, e é a última página do romance.
O conde Mosca é a figura que mais entusiasmava Balzac. Sabe-se que Stendhal passava por ter desejado fazer o retrato do príncipe Metternich. Escreve Balzac:
Stendhal tanto exaltou o sublime caráter do primeiro ministro do Estado de Parma que é duvidoso que o príncipe Metternich seja tão grande quanto Mosca, ainda que o coração desse célebre homem de Estado ofereça, a quem bem conhece sua vida, um ou dois exemplos de paixão de uma amplitude pelo menos igual à de Mosca [..]. Quanto ao que Mosca é em toda a obra, quanto à conduta do homem que Gina vê como o maior diplomata da Itália, foi preciso gênio para criar os incidentes, os acontecimentos e as tramas inumeráveis e renascentes no meio das quais esse imenso caráter se manifesta. Quando se pensa que o autor tudo inventou, tudo confundiu, tudo clarificou, como as coisas se embaralham e se clarificam numa corte, o espírito mais intrépido e a quem as concepções são familiares permanece aturdido, estúpido diante de semelhante trabalho [...]. Ter ousado colocar em cena um homem de gênio da força de Choiseul, de Potemkin, de Metternich, criá-lo, provar a criação pela própria ação da criatura, fazê-lo se mover num meio que lhe seja próprio e onde suas faculdades se manifestam, não é obra de um homem, mas de uma fada, de um encantador.
Fiz questão de citar toda essa página porque ela nos mostra exatamente a idéia que nossos antepassados tinham do gênio. Confesso, no que me diz respeito, que não vejo absolutamente gênio em Mosca. Não há sequer uma página na obra em que eu o ache verdadeiramente grande. Como político, não faz nada. Encontra-se simplesmente envolvido em intrigas cortesãs, no meio das quais tergiversa, como homem prudente e hábil que quer conservar seu lugar e não perder sua amante. Tudo isso me parece compor um homem gentil, nada mais; Mosca inclusive comete erros, por mediocridade de adulador. É verdade que o gênio de Metternich, assim como o de Choiseul e o de Potemkin, não nos tocam hoje. Mosca foi se juntar a seus modelos. Agora, se quisermos nos contentar com ver em Mosca um tipo curioso e maravilhosamente escrutado, sem esmagá-lo com palavras de homem sublime e de imenso caráter, é certo que Stendhal demonstrou o maior talento na criação de tal personagem. Balzac tem razão de se extasiar como homem de ofício com a pintura da corte de Parma, com esse emaranhado de intrigas que analisa pelos próprios fatos o caráter de Mosca. É realmente um prodígio de invenção, no bom sentido do termo. Dir-se-iam os anais verdadeiros de uma pequena corte. Não me arrisco a resumir essa ação tão múltipla, esse tipo de diário elaborado a cada hora, onde passam retratos tão claramente pintados, o próprio príncipe com suas necessidades de crueldade e seu fundo de vaidade, e o terrível Rassi, e a marquesa Raversi, e toda a súcia sussurrante dos cortesãos. Uma vez mais, todavia, protesto contra o sublime, nada vejo de sublime nisso. E como esta estranha apreciação de Balzac, resumindo sua opinião sobre A Cartuxa de Parma: "Enfim, ele escreveu O Príncipe moderno, o romance que Maquiavel escreveria se vivesse banido da Itália no século XIX"; não compreendo essa opinião, pois ao diabo se o Ernesto IV de Stendhal representa para mim o príncipe moderno, com suas preocupações de uma outra época e sua idéia fixa de se parecer com Luís XIV! É uma cáustica caricatura da realeza feita por um homem infinitamente espirituoso, e nada mais.
Deter-me-ei um instante ainda em Ferrante Palla, essa figura bizarra cuja impressão permanece tão viva na memória do leitor. Esse Ferrante Palla é um proscrito político, um tribuno condenado à morte que é levado a roubar para sobreviver. Eis algumas das frases que ele dirige à duquesa e que resumem sua história:
Desde que, ao cumprir meus deveres de cidadão, fui condenado a morte, vivo nos bosques, eu a seguia, não para pedir esmola ou para roubar-lhe, mas como um selvagem fascinado por uma beleza angelical Fazia muito tempo que eu não via duas belas mãos brancas [ ] Tomo nota dos nomes das pessoas que roubo, e se porventura tenho alguma coisa, devolverei a elas as quantias roubadas Penso que um tribuno do povo como eu executa um trabalho que, em razão de seu perigo, vale muito bem cem francos por mês, assim, evito pagar mais de mil e duzentos francos por ano.
E é esse estranho ladrão que a duquesa encarrega de envenenar o príncipe. A cena do pacto é longa. Quando ele aceita, e se retira, ela o chama novamente: "Ferrante!", exclama; "homem sublime!" Regressa, torna a partir, e ela o chama uma vez mais: "Ele voltou com um ar inquieto; a duquesa encontrava-se em pé no meio do salão; ela se atirou em seus braços". Após um instante, Ferrante quase desmaia de felicidade; a duquesa livra-se de seus abraços e com os olhos mostra-lhe a porta. "Eis o único homem que me compreendeu", diz ela, "é assim que teria agido Fabrice, se ele tivesse podido me entender". Essa é uma das cenas nas quais Balzac mais insiste, para testemunhar seu entusiasmo transbordante; é verdade que ele sempre retorna à comparação com Walter Scott, o que hoje compromete um pouco o elogio. Creio que não se deve analisar muito a cena do ponto de vista do valor exato dos fatos. O homem sublime ainda me escapa em Ferrante Palla, e esse ladrão original que parece realizar uma aposta, esse tribuno que se pendura ao pescoço das duquesas pertence muito mais à invenção do que à realidade. Todavia, o que me surpreende ainda mais é a admiração que ele produz na duquesa. Ela é amada, isso não deveria surpreendê-la. Muitos republicanos, por um beijo dela, iriam matar o príncipe, ainda mais porque estão bem dispostos a matá-lo, mesmo por nada. É verdade que Balzac vê nisso a alma da Itália, e inclino-me, pois ele penetra numa questão que não aprecio mais. Na minha opinião, Ferrante Palia é uma das boas figuras de Walter Scott. Stendhal já não é aqui o grande psicólogo; torna-se um contista, impressiona a imaginação. Assim também Ferrante Palia permanece na lembrança como um herói de Alexandre Dumas ou de Victor Hugo. Eu gostaria simplesmente de sustentar essa opinião manifestada por mim: A Cartuxa de Parma é pelo menos tanto um romance de aventuras quanto uma obra de análise.
Se eu resumisse meu julgamento, diria que vejo nesse livro sobretudo uma aplicação das teorias de Stendhal sobre o amor. Sabemos que ele tinha um sistema tão engenhoso quanto complicado. Ora, em A Cartuxa de Parma reencontraríamos sem dificuldade todos os gêneros de amor que ele classificou, desde o amor-vaidade até o amor-paixão. É como uma vasta experiência, e a Itália foi particularmente escolhida porque lá essa experiência podia ser feita com maior facilidade. Sem dúvida reencontramos, assim, o ideólogo; por exemplo, há conversações de Sanseverina com o conde Mosca em que os dois interlocutores são evidentemente dois compadres que dirigem um ao outro as idéias do próprio Stendhal. Além disso, as personagens sempre procedem por longos monólogos, é ainda a mesma mecânica cerebral em movimento. Assim, os fatos têm aqui mais espaço.
O que também é preciso observar é que Stendhal, ainda que exibindo o desdém pelo mundo exterior, foi o primeiro romancista a obedecer à lei dos meios geográficos e sociais. Faz esta observação em seu prefácio à Cartuxa de Parma, observação profundamente justa: "Parece-me que todas as vezes que avançamos duzentas léguas ao sul e ao norte surge uma nova paisagem assim como um novo romance". Toda a lei dos meios encontra-se aí. Comparem, por exemplo, os amores de Mlle de La Mole com os da duquesa Sanseverina: antes de tudo, os temperamentos não são os mesmos; em seguida, é certo que essas devastações diferentes produzidas por esses amores se devem às diferenças dos climas e das sociedades onde se produzem. E preciso analisar as duas obras desse ponto de vista. Stendhal aplicava como filósofo teorias que procuramos hoje aplicar como cientistas. Sua fórmula ainda não é a nossa, mas a nossa decorre da sua.
Não se deveria crer, por sinal, que Balzac poupou as críticas à Cartuxa de Parma. Resumo essas críticas. Falta método ao livro; o autor deveria ter começado por seu magnífico esboço da batalha de Waterloo; todo o começo do livro, demasiado longo, ganharia se fosse resumido numa curta narrativa; falta de unidade, não se sabe muito bem onde está o tema, se ele diz respeito a Fabrice ou à corte de Parma; enfim, o desfecho é um outro livro que começa. Balzac escreve ainda esta frase: "O lado fraco dessa obra é o estilo". Essas críticas são justas. Eu as resumirei assim: falta lógica tanto na composição da obra quanto no estilo em que é escrita. É o que me resta estudar antes de concluir.
Vejamos, portanto, a composição e o estilo nos romances de Stendhal.
Para todos nós, filhos mais ou menos revoltados do romantismo, essa composição relaxada e esse estilo incorreto de Stendhal são grandes tormentos. Permitir-me-ão fazer uma confissão pessoal? Explicando meu caso, estou pelo menos certo de conduzir a questão a um terreno que eu conheço. Nunca pude ler Stendhal sem ser tomado de dúvida quanto à forma. A verdade está do lado desse espírito superior que sente absoluto desdém pela retórica? Ou está do lado dos artistas que fizeram em nossa época um instrumento tão sonoro e tão rico da língua francesa? E se me responderem que a verdade está entre os dois, em que juste-milieu eu deveria, portanto, me deter? Problema inquietante para os jovens escritores que tratam de ter uma percepção exata de sua época literária e têm a bela ambição de legar obras duradouras.
Sei bem o que se diz num campo e no outro. Taine, que concorda com Stendhal, silencia sobra a questão de estilo e de composição. Inclusive, parece fazer um elogio ao romancista por não se deter nesses vãos detalhes de retórica. Para ele, Stendhal é superior, e justamente porque não é um retórico. No campo oposto, grandes escritores, que é inútil citar aqui, negam radicalmente Stendhal, porque não tem a simetria latina e porque se gaba de empregar o estilo bárbaro e incolor do Código; e acrescentam, com alguma razão, que não há absolutamente exemplo de que um livro escrito sem retórica tenha se transmitido de uma a outra época com a admiração dos homens. Tudo isso é excelente. Evidentemente, faz parte de um espírito superior libertar-se das palavras e ver simplesmente na língua um intérprete dócil; todavia, por outro lado, a arte, melhor ainda, a ciência da língua, existe, a retórica nos legou obras-primas e parece impossível dispensá-la.
Eis, portanto, as duas opiniões contrárias, entre as quais estamos assediados. Quantas vezes detestei minhas frases, tomei desgosto por esse ofício de escritor que todo mundo hoje possui! Ouvia soar o vazio sob as palavras e sentia vergonha dos inumeráveis epítetos inúteis, dos ornamentos aplicados no final das tiradas, dos procedimentos que retornavam sem pausa para introduzir na escrita os sons da música, as formas e as cores das artes plásticas! Sem dúvida, existem aí curiosidades literárias sedutoras, um refinamento de arte que ainda me encanta; mas, é preciso dizê-lo, no fim das contas isso não é nem grande, nem saudável, nem verdadeiro, levado ao eretismo nervoso a que chegamos. Sim, precisamos de simplicidade na língua se quisermos fazer dela a arma científica do século. Entretanto, cada vez que eu me punha a ler Stendhal, ocupado com essas idéias, sentia-me desencorajado quase de imediato. Eu o aceitava mentalmente em teoria quando não o lia. Tão logo o estudava sentia-me tomado por um mal-estar; em resumo, ele não me satisfazia em absoluto. Eu desejava uma composição simples, uma língua clara, algo como uma casa de vidro que permite ver as idéias no interior; sonhava inclusive com o desprezo da retórica, com os documentos humanos mostrados em sua nudez severa. Todavia, decididamente, Stendhal não me fascinava. Algo nele me incomodava. Admirava-o em seu princípio e recusava-o tão logo ele passava à aplicação.
Pois bem, compreendi de onde vinha meu mal-estar. Stendhal, esse lógico das idéias, não é um lógico da composição nem do estilo. Aí está sua lacuna, o defeito que o diminui. Não é surpreendente? Eis um psicólogo de primeira ordem, que aclara com uma lucidez extraordinária a complicação das idéias no crânio de uma personagem; mostra o encadeamento dos movimentos da alma, estabelece sua ordem exata, possui, para explicar cada estado, um método de análise sistemática. E assim que passa à composição, tão logo deve escrever, toda essa admirável lógica desaparece. Apresenta suas notas ao acaso, lança suas frases ao sabor da pena. Sem método, sem sistema, sem ordem de nenhum tipo; é um cafarnaum, e um cafarnaum afetado, do qual parece se envaidecer. Entretanto, há uma lógica para a composição e o estilo, que não é, em suma, senão a própria lógica dos fatos e das idéias. A lógica de tal fato acarreta a lógica da ordem na qual se deve apresentá-lo; a lógica de tal idéia, numa personagem, determina a lógica das palavras que devem exprimi-la. Observem que não se trata em absoluto de retórica, de estilo figurado e brilhante. Digo apenas que, nesse espírito superior de Stendhal, havia uma lacuna, ou pior ainda, uma contradição. Ele renegava seu método assim que passava das idéias à linguagem.
Não me posso estender, e trata-se aqui sobretudo de considerações tecidas. Por sinal, é inútil provar a ausência de composição lógica nos romances de Stendhal; essa ausência de composição salta aos olhos, sobretudo em A Cartuxa de Parma. Balzac, tão entusiasta, sentiu muito bem que o romance não tinha centro; o tema vai ao sabor dos episódios, e o livro, que começou com uma entrada em matéria interminável, termina bruscamente, justo na hora em que o autor iniciara uma nova história. Quanto ao estilo, corre, assim, todos os riscos. O julgamento de Balzac ainda é muito correto. "O lado fraco dessa obra é o estilo", diz ele, "enquanto disposição de palavras, pois o pensamento eminentemente francês sustenta a frase" Essa disposição das palavras é precisamente a lógica do estilo; e, repito-o, surpreendo-me por não encontrá-la em Stendhal, que é um mestre no ordenamento das idéias. Não o censuro por suas negligências dos "quem", dos "que" aos montes, das repetições de termos que retornam até dez vezes numa página, e inclusive erros gramaticais usuais; censuro-o pela estrutura ilógica de suas frases e de seus parágrafos, o desprezo por todo método na arte de escrever, em resumo, uma forma que não é para mim a forma de suas idéias. Ele é lógico, apresenta seu sistema de ideólogo em estilo negligente e me causa um mal-estar, porque não é completo e porque algo range em sua obra.
Fala-se de Saint-Simon. Mas Saint-Simon é um mestre da linguagem em sua incorreção extraordinária. Seu estilo é uma torrente que arrasta ouro, ao lado do córrego de Stendhal, amiúde muito claro, mas que se quebra e se turva em cada acidente do terreno. Por sinal, não quero julgá-lo como poeta. Ele tem a pretensão de não ser figurado, de não ter epítetos que pintam, não ceder nem à eloqüência, nem à fantasia. Tomemo-lo, portanto, pelo que quer ser. Ora, o que não é correto não é claro, o que carece de lógica não se sustenta. Façamos pouco caso da retórica, mas nesse caso conservemos a lógica.
Eis, portanto, para mim, o que seria desejável: ter essa bela simplicidade que Taine celebra, cortar todos os nossos penachos românticos, escrever numa linguagem sóbria, sólida, correta; entretanto, escrever essa linguagem como lógicos e como eruditos da forma na medida em que pretendemos ser eruditos e lógicos da idéia. Não vejo nenhuma superioridade em chafurdar nas palavras, quando se tem a ambição de não chafurdar nas idéias. Se Stendhal escreveu incorretamente e sem método para mostrar o quanto era superior, o quanto um psicólogo de sua força desdenhava a língua, só chegou a esse belo resultado de ser inconseqüente e de se reduzir. Todavia, creio que se estaria errado em ver nisso o desprezo de um metafísico pela matéria, ele obedecia a suas faculdades, nada mais. O que quero dizer, em suma, à nossa juventude a quem as questões literárias apaixonam é que o ódio legítimo da retórica romântica não deve lançar ninguém nesse estilo ilógico de Stendhal. A verdade não está nessa reação. Admitindo que se possa fazer um estilo, é preciso procurar fazê-lo pelo método científico que hoje triunfa. Assim como uma personagem tornou-se para nós um organismo complexo que funciona sob a influência de um certo meio, assim também a língua é uma estrutura determinada por circunstâncias humanas e sociais. Disseram com razão que uma língua era uma filosofia; também se pode dizer que uma língua é uma ciência. Escrever mal não é se mostrar nem bom filósofo nem bom cientista. Tratemos a forma como tratamos nossas personagens, pela análise lógica. Um livro de composição capenga e de estilo incorreto é como um ser estropiado. Desejo uma obra-prima, um romance em que o homem se encontre por inteiro, numa fórmula sólida e clara, que seria sua veste certa.
Antes de terminar, quero fazer uma observação que me atormenta. De onde vem que as personagens de Stendhal não se impõem ainda mais à memória? Diz-se que ele escreveu para as pessoas superiores e que vem daí a pouca popularidade dos tipos por ele criados. É uma razão, mas ela não é suficiente, pois Stendhal é hoje bastante lido para que o público o conheça. Ora, é certo que nem Julien Sorel, nem Mosca, nem a Sanseverina estão na nossa intimidade, como, por exemplo, o pai Goriot e o pai Grandet. Isso vem, evidentemente, conforme mostrei, do fato de que as personagens de Stendhal são muito mais especulações intelectuais do que criações vivas. Julien Sorel não deixa nenhuma idéia clara; ele é complicado como uma máquina da qual se termina por não ver mais claramente a função; sem contar que aparenta, na maioria das vezes, desdenhar o mundo. Acrescente-se que ele não traz sua atmosfera, que se destaca em ângulo agudo, assim como um raciocínio. O pai Goriot, ao contrário, move-se em seu ar próprio, vemo-lo vestido, caminhando, falando; a análise, em vez de complicá-lo, simplifica-o; e é sincero, e vive por sua conta. Eis por que ele se impõe, por que não mais o esqueceremos após tê-lo encontrado uma vez. Não é singular que Balzac, tão tumultuoso e tão excessivo, seja, em suma, o gênio que simplifica e insufla a vida em suas personagens, enquanto Stendhal, tão seco, tão claro, só consegue complicar suas personagens, ao ponto de fazer delas puros fenômenos cerebrais, que parecem fora da existência? Isso me leva a concluir. Stendhal só tomou a cabeça do homem, para fazer com ela experiências de psicólogo. Balzac tomou o homem por inteiro, com seus órgãos, com os meios naturais e sociais, e completou as experiências do psicólogo com as do fisiologista.
Termino. Formou-se, por causa de Stendhal e Balzac, todo um grupo de estranhos admiradores, que vão buscar nas obras desses mestres as partes fantasmagóricas, os exageros de sistemas, as ênfases do temperamento. Assim, de Balzac reterão a História dos Treze e A Mulher de Trinta Anos; sonharão com o grande mundo singular que o romancista havia criado inteiramente de sua cabeça; desejarão ser Rastignac ou Rubempré, para subverter a sociedade e experimentar as fruições desconhecidas. É o acesso de loucura romântica que fendeu o talento de Barbey d'Aurevilly. Quanto a Stendhal, será para eles um alquimista extraordinário do pensamento humano, que extrai do cérebro a quintessência do gênio. Julien e Mosca lhes aparecerão como poços de profundidade onde se afogarão, e amarão Sanseverina pela sedução de sua ingênua perversidade. Com esses perigosos discípulos, todo passante se torna um grande homem, o sublime corre às ruas. Eles não podem conversar dez minutos com alguém sem imitar Balzac e sobretudo Stendhal, procurando sob as palavras, manipulando os cérebros, descobrindo abismos. Não se trata aqui de fantasia; conheço rapazes muito inteligentes que compreendem desse modo os mestres do naturalismo moderno. Pois bem, declaro claramente que estão no pesadelo. Pouco me importa que Balzac tenha sido o sonhador mais prodigioso de seu tempo e que Stendhal tenha vivido na miragem da superioridade. Somente suas obras estão em causa, e elas só têm de bom, hoje, a soma da verdade que trazem. O resto pode servir de estudo curioso; nossa admiração não deve chegar a isso, principalmente se essa admiração se traduz depois em regras de escola. Ver o mundo através de Mlle de La Mole e tomar Mosca como um gênio extraordinário não é compreender nem amar Stendhal. Stendhal é grande todas as vezes em que sua admirável lógica o conduz a um documento humano incontestável; mas é apenas um precioso da lógica quando tortura sua personagem para singularizá-la e torná-la superior. Confesso francamente nesse momento, então, não poder segui-lo; seus aspectos de mistério diplomático, sua ironia pinçada, essas portas que ele fecha e atrás das quais só há amiúde um vazio laborioso irritam-me os nervos. Ele é nosso pai como Balzac, trouxe a análise, foi único e extraordinário, mas faltou-lhe a bonomia dos grandes romancistas. A vida é mais simples.
GUSTAVE FLAUBERT O ESCRITOR
Quando Madame Bovary apareceu, houve toda una evolução literária. Parecia que a fórmula do romance moderno, dispersa na obra colossal de Balzac, acabava de ser simplificada e claramente enunciada nas quatrocentas páginas de um livro. O código da nova arte estava escrito. Madame Bovary tinha uma clareza e uma perfeição que faziam dele o romance típico, o modelo definitivo do gênero. Bastava, para cada romancista, seguir a via traçada, afirmando seu temperamento particular e procurando fazer descobertas pessoais. É verdade, os contistas de segunda ordem continuaram a fabricar dinheiro com suas histórias de fazer dormir em pé; os escritores que talharam para si uma especialidade divertindo as damas não abandonaram suas narrativas à água-com-açúcar. Todavia, todos os principiantes de algum futuro experimentaram um profundo tremor; não há ninguém hoje, entre aqueles que cresceram, que não reconheça em Gustave Flaubert ao menos um iniciador. Repito-o, ele trouxe o machado e a luz para a floresta às vezes inextricável de Balzac. Disse a palavra verdadeira e justa que todos esperavam.
Não quero fazer aqui nenhuma comparação entre Balzac e Flaubert. Ainda estamos muito próximos, não temos o distanciamento necessário; e em todo o caso, os méritos são muito diferentes para que semelhante julgamento possa ser pronunciado sem considerandos muito complicados. Entretanto, ainda que evitando pronunciar-me de outra maneira, sinto-me forçado a lembrar quais são os grandes traços característicos das obras de Balzac, a fim de melhor explicar o novo método dos romancistas naturalistas.
A primeira característica do romance naturalista, do qual Madame Bovary é o tipo, é a reprodução exata da vida, a ausência de todo elemento romanesco. A composição da obra consiste apenas na escolha das cenas e numa certa ordem harmônica dos desenvolvimentos. As cenas são elas próprias as primeiras que chegam: contudo, o autor as selecionou e equilibrou cuidadosamente, de modo a fazer de sua obra um monumento de arte e de ciência. Trata-se da vida real apresentada num quadro admirável de estilo. Toda invenção extraordinária é, portanto, banida da obra. Não encontramos mais nela crianças descritas ao nascer, em seguida perdidas, para serem reencontradas no desfecho. Não se alude mais a móveis com segredo, papéis que servem, no bom momento, para salvar a inocência perseguida. Falta inclusive qualquer intriga, por mais simples que seja. O romance vai à frente dele mesmo, contando as coisas de modo regular, não reservando nenhuma surpresa, oferecendo, quando muito, a matéria de uma notícia; e, quando termina, é como se deixássemos a rua para entrar em casa. Balzac em suas obras-primas, Eugênia Grandet, Os Pais Pobres, O Pai Goriot, criou, assim, imagens de uma nudez magistral, onde sua imaginação contentou-se em criar o real. Entretanto, antes de chegar a essa preocupação única com as pinturas exatas, perdeu-se durante muito tempo nas invenções mais singulares, na busca de um terror e de uma grandeza falsos; e pode-se até mesmo dizer que ele nunca se libertou completamente de seu amor pelas aventuras extraordinárias, o que dá a uma boa metade de sua obra a atmosfera de um sonho enorme feito francamente por um homem desperto.
Onde a diferença é mais fácil de ser apreendida é na segunda característica do romance naturalista. Fatalmente, o romancista mata os heróis, se só aceita a maneira ordinária da existência comum. Por heróis, entendo as personagens exageradamente ampliadas, os títeres transformados em colossos. Quando nos preocupamos pouco com a lógica, com a relação das coisas entre si, com as proporções precisas de todas as partes de uma obra, somos em pouco tempo levados a mostrar força, a dar todo o sangue e músculos à personagem pela qual sentimos ternuras particulares. Daí, essas grandes criações, esses tipos fora do normal, aprumados, e cujos nomes permanecem. Ao contrário, homens simples se reduzem e se colocam a seu nível, quando experimentamos a preocupação única de escrever uma obra verdadeira, ponderada, que seja o termo fiel de uma aventura qualquer. Se se tem o ouvido apurado nessa matéria, a primeira página dá o tom das outras páginas, uma tonalidade harmônica se estabelece, acima da qual não é mais permitido elevar-se, sem emitir a mais abominável das desafinações. Desejou-se a mediocridade usual da vida e é preciso permanecei nela. A beleza da obra não se encontra mais na ampliação de uma personagem, que cessa de ser um avaro, um glutão, um libertino, para se tornar a avareza, a glutonaria, a libertinagem, elas mesmas; ela está na verdade indiscutível do testemunho humano, na realidade absoluta das pinturas em que todos os detalhes ocupam seu lugar, e nada além desse lugar. O que incomoda quase sempre nos romances de Balzac é o exagero de seus heróis; nunca crê fazê-los gigantescos o bastante; seus poderosos punhos de criador só sabem forjar gigantes. Na fórmula naturalista, essa exuberância do artista, esse capricho de composição movendo uma personagem de grandeza fora do normal no meio de personagens anãs, são forçosamente condenados. Semelhante nível abaixa todas as cabeças, pois são raras as ocasiões em que se pode realmente colocar em cena um homem superior.
Insistirei, enfim, sobre uma terceira característica. O romancista naturalista procura desaparecer completamente por trás da ação que narra. Ele é o metteur en scène oculto do drama. Nunca se mostra ao fim de uma frase. Não o ouvimos nem rir nem chorar com suas personagens, assim como ele não se permite julgar seus atos. É inclusive esse desinteresse aparente o traço mais distintivo. Procuraríamos em vão uma conclusão, uma moralidade, uma lição qualquer extraída dos fatos. Não há exposições, esclarecimentos, unicamente fatos, louváveis ou condenáveis. O autor não é um moralista, mas um anatomista que se contenta em dizer o que encontra no cadáver humano. Os leitores concluirão, se quiserem, buscarão a verdadeira moralidade, cuidarão de tirar uma lição do livro. Quanto ao romancista, esse se mantém afastado, sobretudo por razões de arte, para deixar à obra sua unidade impessoal, seu caráter de termo escrito para sempre sobre o mármore. Ele pensa que sua própria emoção incomodaria a de suas personagens, que seu julgamento atenuaria a altiva lição dos fatos. Eis aí toda uma nova poética cuja aplicação muda a face do romance. E preciso se reportar aos romances de Balzac, à sua contínua intervenção na narrativa, a suas reflexões de autor que aparecem em todas as linhas, às moralidades de todos os tipos que ele acredita dever extrair de suas obras. Está incessantemente aí, explicando-se diante dos leitores. E não falo das digressões. Alguns de seus romances são uma verdadeira conversação com o público, quando comparados aos romances naturalistas desses vinte últimos anos, de uma composição tão severa e tão ponderada.
Balzac ainda é para nós, repito-o, uma potência com a qual não se discute. Ele se impõe, como Shakespeare, por um sopro criador que engendrou todo um mundo. Suas obras, talhadas a golpes de machado, na maioria das vezes apenas desbastadas, oferecendo a mais surpreendente mistura do sublime e do vil, permanecem, apesar de tudo, o esforço prodigioso do mais vasto cérebro deste século. Entretanto, sem diminuí-lo, posso dizer o que Gustave Flaubert fez do romance depois dele: submeteu-o a regras fixas de observação, liberou-o da falsa ênfase das personagens, transformou-o numa obra de arte harmônica, impessoal, vivendo de sua própria beleza, assim como um belo mármore. Tal é a evolução realizada pelo autor de Madame Bovary. Após o desabrochar literário, a fecunda produção de 1830 achou meios de inventar um gênero e lançar os preceitos de uma escola. Seu papel foi sobretudo falar em nome da perfeição do estilo perfeito da composição perfeita, da obra perfeita, desafiando as idades. Ele parece ter vindo, depois desses anos de fecundidade febril, após a terrível avalanche de livros escritos no dia-a-dia, para trazer os escritores ao purismo da forma, à busca lenta do traço definitivo, ao livro único no qual se sustenta toda uma vida de homem.
Gustave Flaubert nasceu em Rouen. É um normando de ombros largos. Há nele a criança e o gigante. Vive numa solidão quase completa, passando alguns meses do inverno em Paris, trabalhando o resto do tempo numa propriedade que possui perto de Rouen, às margens do Sena. Censuro-me por alguns detalhes íntimos que ora apresento. Gustave Flaubert está por inteiro em seus livros; é inútil procurá-lo alhures. Não tem paixão, nem a de colecionar, nem a de caçar, nem a de pescar. Escreve seus livros e nada mais. Entrou na literatura como outrora entrava-se para uma ordem, para lá experimentar todas as suas alegrias e morrer. Foi assim que se enclausurou, gastando dez anos a escrever um volume, vivendo-o durante todas as horas do dia, trazendo tudo a esse livro, respirando, comendo e bebendo por esse livro. Não conheço um homem que mereça mais do que ele o título de escritor; deu toda a sua existência à sua arte.
E preciso procurá-lo, portanto, unicamente em suas obras. O homem, que vive como burguês, não forneceria nenhuma observação, nenhuma explicação interessante. Os grandes trabalhadores fizeram, em nossos dias, sua existência mais trivial e mais simples possível, a fim de regular as horas e consagrá-las ao trabalho de manhã à noite, tudo como comerciantes metódicos. O trabalho em horas fixas é a primeira condição das tarefas de longo alento, conduzidas firmemente até o fim.
Gustave Flaubert trabalha como um beneditino. Baseia-se unicamente em anotações precisas, das quais ele próprio pôde verificar a exatidão. Se se trata de uma pesquisa em obras especiais, condenar-se-á a freqüentar por semanas as bibliotecas, até que tenha encontrado a informação desejada. Para escrever, por exemplo, dez páginas, o episódio de um romance em que colocará em cena personagens ocupando-se de agricultura, não recuará diante do incômodo de ler vinte, trinta volumes tratando da matéria; além disso, irá interrogar homens competentes, levará as coisas ao ponto de visitar lavouras, para abordar seu tema apenas com completo conhecimento de causa. Se se trata de uma descrição, dirigir-se-á aos locais, e lá viverá. Assim, para o primeiro capítulo de A Educação Sentimental, que tem como quadro a viagem de um barco a vapor subindo o Sena, de Paris a Montereau, margeou o rio em cabriolé, pois não se fazia mais o trajeto em barco a vapor já havia muito tempo. Assim, quando escolhe, para introduzir uma cena, um horizonte imaginário, põe-se em busca desse horizonte tal como o desejou, e só se satisfaz quando descobre um recanto que lhe dê aproximadamente a impressão imaginada. E, a cada detalhe, é assim uma preocupação contínua com o real. Consulta as gravuras, os jornais da época, os livros, os homens, as coisas. Cada página, para os hábitos, os acontecimentos históricos, as questões técnicas, o cenário, custa-lhe jornadas e estudos. Um livro o faz agitar um mundo. Em Madame Bovary, colocou as observações de sua juventude, os recantos da Normandia e os homens que viu durante seus primeiros trinta anos. Quando escreveu A Educação Sentimental, vasculhou vinte anos de nossa história política e moral, resumiu o enorme material fornecido por toda uma geração de homens. Enfim, para Salambô e A Tentação de Santo Antão, o trabalho foi ainda mais considerável: viajou pela África e pelo Oriente, condenou-se a estudar minuciosamente a Antigüidade, a sacudir a poeira de vários séculos.
Essa ciência é um dos traços característicos do talento de Gustave Flaubert. Parece nada querer dever à sua imaginação. Trabalha unicamente sobre o objeto que posa diante dele. Quando escreve, não sacrifica sequer uma palavra à pressa do momento; quer se sentir apoiado de todos os lados, apoiar os pés sobre um terreno que conhece em profundidade, avançar como senhor no meio de um país conquistado. E tamanha probidade literária vem desse desejo ardente de perfeição, que é em suma toda a sua personalidade. Recusa um único erro, por menor que seja. Precisa dizer a si mesmo que sua obra é verdadeira, completa, definitiva. Uma mancha torna-o muito infeliz, persegue-o qual remorso, como se cometesse uma má ação. Só fica perfeitamente tranqüilo quando está convencido da verdade exata de todos os detalhes contidos em sua obra. Trata-se de uma certeza, de uma perfeição na qual repousa. Em todas as coisas, entende dizer a última palavra.
Compreendem-se as lentidões fatais de semelhante procedimento. Isso explica por que, sendo um trabalhador incansável, Gustave Flaubert só produziu quatro obras, que apareceram em longos intervalos: Madame Bovary, em 1856; Salambô, em 1862; A Educação Sentimental, em 1869; A Tentação de Santo Antão em 187l. Trabalhou nessa última obra durante vinte anos, abandonando-a, retomando-a, não conseguindo se satisfazer, forçando a consciência até refazer quatro ou cinco vezes trechos inteiros.
Quanto a seu trabalho de estilo, é igualmente laborioso. Sempre hesito em me inclinar sobre os ombros de um escritor para surpreender sua criação. Entretanto, há revelações instrutivas, que são do domínio da história literária. Gustave Flaubert, antes de escrever a primeira palavra de um livro, tem, em anotações classificadas e etiquetadas, o equivalente a cinco ou seis volumes. Com freqüência, toda uma página de informações dá-lhe apenas uma linha. Trabalha sobre um plano estudado com muita ponderação e decidido em todas as suas partes, de um mundo muito detalhado. Quanto ao resto, ao próprio método de redação, creio que ele redige de uma só vez, e relativamente bem rápido, um certo número de páginas, um trecho completo; em seguida, volta às palavras deixadas em branco nas frases pouco felizes; e é então que se retarda sobre as negligências mais insignificantes, insistindo sobre certos aspectos, aplicando-se a procurar a expressão que escapa. O primeiro esboço é apenas uma espécie de rascunho, sobre o qual trabalha em seguida durante semanas. Quer que a página saia de suas mãos como uma página de mármore gravada para sempre de uma pureza absoluta, mantendo-se firme por si mesma durante séculos. Esse é o sonho, o tormento, a necessidade que o faz discutir longamente cada vírgula; durante meses, um termo impróprio o ocupa, até que tenha a alegria vitoriosa de substituí-lo pela palavra certa.
Chego ao estilo de Gustave Flaubert. É um dos mais castigados que conheço; não que o autor tenha absolutamente a aparência clássica, fixada numa correção gramaticalmente estreita; mas ele se preocupa, conforme já disse, ate com as vírgulas, emprega jornadas, se for preciso, sobre uma pagina, para obtê-la tal como a imaginou. Persegue as palavras repetidas até trinta ou quarenta linhas de distância. Enfrenta uma dificuldade infinita para evitar as consonâncias incômodas, as reduplicações de sílabas que oferecem alguma dureza. Sobretudo, proscreve as rimas, os retornos de fim de frase que proporcionem o mesmo som; nada lhe parece estragar tanto uma obra de estilo. Com freqüência ouvi-o dizer que uma página de bela prosa era duas vezes mais difícil de escrever do que uma página de belos versos. A prosa possui, por si mesma, uma suavidade de contornos, uma fluidez que a torna muito difícil de escoar num molde sólido. Ele a desejaria dura como o bronze, resplandecente como o ouro. Com Gustave Flaubert, sempre retornamos a uma idéia de imortalidade, à ambição poderosa de fazer eternamente. E só ele pode se aventurar nessa luta corpo a corpo com uma língua suave que sempre ameaça escorrer entre seus dedos. Conheço jovens que, levando essa busca da prosa marmórea até a monomania, chegaram a ter medo da língua. As palavras os apavoram, não sabem mais quais empregar, e recuam diante de todas as expressões; fazem-se poéticas estranhas que excluem isso e aquilo; são de uma severidade exagerada sobre certas tournures, sem se dar conta de que caem, por outro lado, nas negligências mais lamentáveis. Essa tensão contínua do espírito, essa vigilância severa sobre todos os erros da pena, acabam, nos espíritos estreitos, por esterilizar a produção e estancar o desenvolvimento da personalidade. Gustave Flaubert, que, nisso, é um modelo bem perigoso a seguir, ganhou aí sua elevada posição de escritor impecável. Seu sonho deve ter sido certamente o de escrever um único livro em sua vida. ele o teria refeito incessantemente, melhorado sem pausa, só teria decidido entregá-lo ao público em seu último momento, quando, tendo a pena caído de seus dedos, não teria mais forças para refazê-lo. Ele, às vezes, o repete: um homem só tem um livro em si.
A qualidade mestra de Gustave Flaubert, com semelhante trabalho, é naturalmente a sobriedade. Todos os seus esforços são para ser sucinto e completo. Numa paisagem, contentar-se-á em indicar a linha e a cor principais; todavia, desejará que essa linha desenhe, que essa cor pinte a paisagem por inteiro. O mesmo com suas personagens: cria-as com uma palavra, com um gesto. Quanto mais avança, mais se põe a algebrizar de algum modo suas fórmulas literárias. Procura escamotear as ações secundárias, vai de um extremo ao outro de um livro sem retornar sobre si mesmo. Além disso, como se desinteressa, nunca intervém pessoalmente, recusa-se a deixar transparecer sua emoção, cuida para que seu estilo caminhe sempre com um passo rítmico, sem um tremor, tão claro em todos os lugares como um espelho, refletindo com clareza seu pensamento. Essa comparação com o espelho é muito correta, pois sua ambição é certamente encontrar uma forma de cristal, mostrando atrás dela os seres e as coisas, tais como seu espírito as concebeu. Some-se a isso que Gustave Flaubert não tem só esse desejo de clareza. Ele quer o sopro. Possui esse vento poderoso que vai da primeira palavra de uma obra à última, fazendo ouvir, em cada linha, o rumor extraordinário dos grandes estilos. A forma límpida, seca e brusca do século XVIII não é absolutamente seu mister. Com a clareza, tem necessidade imperiosa da cor, do movimento e da vida. Tocamos aqui a personalidade do romancista, o próprio segredo de seu talento e da nova fórmula que ele introduziu.
Gustave Flaubert nasceu em pleno período romântico. Tinha quinze anos no momento dos grandes sucessos de Victor Hugo. Toda a sua juventude foi animada pelo esplendor da plêiade de 1830. E conservou diante de si como que uma chama lírica da época de poesia que atravessou. Deve inclusive haver em suas gavetas, se os conservou, numerosos versos em que é sem dúvida difícil reconhecer o prosador exato e minucioso de A Educação Sentimental. Mais tarde, nessa hora em que se olha para si e em torno de si, compreendeu qual era sua originalidade, tornou-se um grande romancista, um pintor implacável da estupidez e da vilania humanas. Mas a dualidade permaneceu nele. O lírico não morreu; tornou-se, ao contrário, todo-poderoso, vivendo lado a lado com o romancista, exigindo às vezes seus direitos, bastante sábio, entretanto, para saber falar na hora certa. É dessa dupla natureza, dessa necessidade de ardente poesia e de fria observação que brotou o talento original de Gustave Flaubert. Eu o caracterizarei definindo-o: um poeta que tem o sangue-frio de ver corretamente.
Seria preciso descer mais fundo ainda no mecanismo desse temperamento. Gustave Flaubert só tem um ódio, o ódio da estupidez; mas é um ódio sólido. Escreveu seus romances certamente para satisfazê-lo. Os imbecis são para ele inimigos pessoais que procura confundir. Cada um de seus livros realiza um aborto humano. Quando muito, mostra-se, às vezes, afável a uma mulher; ama a mulher, coloca-a à parte com uma espécie de ternura paternal. Quando fixa sua lupa sobre uma personagem, não negligencia uma verruga sequer, procura as mínimas feridas, detém-se nas enfermidades entrevistas. Durante anos condena-se a ver o feio, assim, de bem perto, a viver com ele, unicamente pelo prazer de pintá-lo e ultrajá-lo, exibi-lo em zombaria aos olhos de todos. E, apesar de sua vingança satisfeita, apesar da alegria que experimenta em imobilizar o feio e o estúpido em suas obras, talvez haja aí uma abominável corvéia, bem pesada para seus ombros; pois o lírico que se encontra nele, o outro ele próprio, chora de desgosto e tristeza por ser assim arrastado, as asas cortadas, na lama da vida, no meio de uma multidão de burgueses estúpidos e aturdidos. Quando o autor escreve Madame Bovary ou A Educação Sentimental, o lírico se desola da pequenez das personagens, da dificuldade que existe em fazer algo de grande com esses simplórios ridículos; e ele se contenta em introduzir aqui e acolá uma palavra de flama, uma frase que alça vôo amplamente. Depois, outras vezes, em certas horas fatais, o romancista naturalista consente em passar ao segundo plano. Aí então, são escapadas esplêndidas rumo aos países da luz e da poesia. O autor escreve Salambô ou A Tentação de Santo Antão; encontra-se em plena Antigüidade, em plena arqueologia da arte, longe do mundo moderno, de nossas vestes cerradas, de nossas ferrovias e de nosso céu cinzento, que ele abomina. Suas mãos remexem tecidos de púrpura e colares de ouro. Não tem mais medo do grandioso, não vigia mais sua frase, por temor de que ela coloque na boca de um farmacêutico de aldeia as imagens expressivas de um poeta oriental. Entretanto, ao lado do lírico, o romancista naturalista permanece de pé, e é ele que segura a rédea, exige a verdade, mesmo por trás da ofuscação.
Compreende-se, então, a originalidade do estilo de Gustave Flaubert tão sóbrio e tão resplandecente Ele é feito de imagens corretas e imagens extraordinárias. É verdade vestida por um poeta. Com ele, caminhamos sempre em terreno sólido, sentimo-nos sobre a terra; mas caminhamos amplamente, no ritmo de uma beleza perfeita. Quando desce à familiaridade mais vulgar, por necessidade de exatidão, conserva não sei que nobreza que põe perfeição nas negligências desejadas. Sempre, ao segui-lo no meio de aventuras banais, sentimos o escritor e o poeta ao nosso lado; é, ao final de um parágrafo, no meio de uma página, uma frase, uma única palavra, algumas vezes, que lança um clarão, provoca bruscamente o estremecimento do grande. E, por sinal, nada é feio nessa contínua pintura da feiúra humana. Pode-se até ser trivial, o quadro sempre terá a beleza do estilo. Basta que um grande artista tenha desejado isso. Eu disse que Gustave Flaubert havia trazido o machado à floresta amiúde inextricável de Balzac, para lá cortar uma ampla avenida onde se pudesse enxergar com clareza. Acrescentarei que ele resumiu em sua fórmula os dois gênios de 1830, a análise exata de Balzac e o brilho de estilo de Victor Hugo.
Passo às obras de Gustave Flaubert e agrupo-as naturalmente duas a duas: Madame Bovary e A Educação Sentimental, Salambô e A Tentação de Santo Antão, sem me preocupar com a ordem de publicação.
Já o disse, a publicação de Madame Bovary foi um acontecimento considerável. O tema do livro, a intriga portanto, era dos menos romanescos. Sustenta-se facilmente em trinta linhas. Charles Bovary, um médico de província medíocre, após um primeiro casamento , desposa uma filha de fazendeiro, Emma, que recebeu uma educação acima de sua classe; ela é uma dama, toca piano, lê romances. O casal vai viver em Yonville, burgo a alguns quilômetros de Rouen. Lá, Mme Bovary é assaltada pelo terrível tédio das mulheres deslocadas. Ela percebe que pobre homem é seu marido, sofre com a vida cinzenta de província, possui aspirações vagas, extraordinárias. Sem dúvida, o adultério encontra-se ao final. Entretanto, ela luta; ama inicialmente um jovem, Léon Dupuis, o escrevente do notário de Yonville; ama-o discretamente, sem sequer sonhar com a infidelidade. É somente mais tarde, quando Léon parte, que ela se entrega bruscamente a outro homem, Rodolphe Boulanger, um proprietário das cercanias. Torna-se insana; sente-se gloriosa e vingada; faz-se tão exigente, tão embaraçosa, imaginando uma fuga com o amante, sonhando com aventuras, com amores eternos, que Rodolphe, aterrorizado em seu egoísmo, abandona-a. Sua queda é iminente; arrasta-se, padece o martírio de suas ternuras, tenta inutilmente a religião até o dia em que reencontra Léon em Rouen. Este, fatalmente, assume o lugar de Rodolphe, e o adultério recomeça, mais ardente, abrasado por uma nova sensualidade. Tudo se passa dessa maneira até que Léon, por sua vez, fica apavorado e saciado. Todavia, Emma contraiu dívidas; quando é abandonada pelo amante, por todos, apanha um punhado de arsênico no bocal de um farmacêutico e ingere-o. Seu pobre marido chora por ela. Mais tarde, toma conhecimento de suas licenciosidades, mas não deixa de chorar. Certa manhã, encontra Rodolphe, vai beber uma garrafa de cerveja com ele e lhe diz: "Não desejo mal a você".
E é tudo. Isso, num jornal, daria dez linhas de noticia. Mas é preciso ler a obra, toda palpitante de vida. Há trechos celebres, trechos que se tornaram clássicos: o casamento de Emma com Charles, a cena dos comícios agrícolas, durante os quais Rodolphe corteja a jovem mulher, a morte e o enterro de Mme Bovary, de tão terrível verdade. Toda a obra, por sinal, até os mínimos incidentes, é de um interesse pungente, um interesse novo, desconhecido até então, o interesse pelo real, pelo drama de todos os dias. Isso atinge o âmago com uma força invencível, como um espetáculo visualizado, uma ação que se passa materialmente sob os olhos. Os fatos, vocês assistiram vinte vezes a eles; as personagens, elas são conhecidas de vocês. Vocês estão em casa, nessa obra, e tudo o que nela se passa é uma pendência do meio que os cerca. Daí, a profunda emoção. Deve-se acrescentar a arte prodigiosa do escritor. Em todos os lugares o tom é de uma exatidão absoluta. É uma mise en scène contínua da ação, tal como deve se passar, sem desvio de imaginação, sem invenção de nenhum tipo. O movimento, a cor, chegam a fazer ilusão. O escritor realiza este prodígio: desaparecer completamente e, contudo, fazer sentir em todos os lugares sua grande arte.
A personagem Mme Bovary, o tipo certamente visto e copiado por Gustave Flaubert, eternizou-se nesse mundo particular onde se agitam as grandes figuras da criação humana. Diz-se: "É uma Bovary" como se começou a dizer no século XVII: "É um Tartufo". Isso provém do fato de que Mme Bovary, tão individual, vivendo tão ardentemente sua própria vida, é um tipo geral. Encontramo-la em todos os lugares na França, em todas as classes, em todos os meios. Ela é a mulher deslocada, descontente com seu destino, mimada por um sentimentalismo vago, desviada de seu papel de mãe e esposa. É ainda a mulher forçosamente votada ao adultério. Enfim, ela é o próprio adultério, a infidelidade inicialmente tímida, poética, em seguida triunfante, crescente. Gustave Flaubert aplicou-se a não esquecer um traço dessa personagem; toma-a desde a infância, estuda suas primeiras sensualidades, mostra seus orgulhos a voltar-se contra ela; e quantas circunstâncias atenuantes, em suma, como se sente que o autor explica e perdoa! Todos, em torno de Emma, são tão culpados quanto ela. Ela morre pela estupidez circundante. Na realidade, entretanto, o drama nem sempre vem esclarecer esses tipos de histórias; o adultério, quase sempre, morre em sua cama, de morte tranqüila e natural.
A personagem Charles talvez seja de uma execução ainda mais surpreendente. É preciso ser do ofício para saber que dificuldade há em erigir, em plena claridade, um herói imbecil. A nulidade, por si mesma, permanece cinzenta, neutra, sem nenhuma expressão. Ora, esse pobre homem, Charles, tem uma proeminência incrível. Enche o livro com sua mediocridade; vemo-lo em cada página pobre médico, pobre marido, pobre e malfadado em todas as coisas. E isso, sem nenhum exagero grotesco. Permanece muito verdadeiro e em seu plano. É inclusive simpático esse infeliz. Chega-se a sentir por ele piedade e ternura. É apenas estúpido, enquanto os dois amantes de Emma, Rodolphe e Léon, são de uma verdade de egoísmo assustadora. Eis o amor tal como o autor o viu, eis a juventude, o desejo, a oportunidade, tudo o que leva ao adultério nove em dez vezes. Quantos homens, se fossem francos, confessariam que tiveram em sua vida uma ou duas Emmas? Tudo, nessas duas ligações que se seguem, é banal e extraordinário; é um documento humano de uma verdade universal, uma página arrancada da história de nossa sociedade. Esse Rodolphe, esse Léon, é o homem, a média do homem, se preferirem. Nossa nova escola literária, cansada dos heróis e de suas mentiras, percebeu que bastava ela se rebaixar, despir o primeiro passante para criar o terrível e o grande. Não conheço nada maior, declaro-o, do que Rodolphe deliberando se dormirá ou não com Emma, depois abandonando-a lá, num dia de saciedade; ou ainda Léon, o amante tímido dos primeiros capítulos, herdando do outro, fartando-se de volúpia, até o dia em que o medo de comprometer seu futuro e de um pedido de dinheiro fazem dele um homem sério. Da mesma forma, que frase assustadora e comovente essa de Bovary a Rodolphe, após a morte de sua mulher: "Não desejo mal a você". Eis aí o pobre homem por inteiro. Não existe, em nossa literatura, uma frase de semelhante profundidade, abrindo tal abismo sobre as covardias e as ternuras do coração humano. A aceitação franca dos fatos tais como se passam e o relevo exato dado a cada detalhe, eis o segredo do encanto vigoroso dessa obra, bem mais comovente do que todas as ficções imagináveis.
Infelizmente, tenho pouco espaço a dar para cada romance. Permaneço forçosamente incompleto. Tais livros são mundos. Há, em Madame Bovary, uma série de personagens secundárias inesquecíveis: um vigário de aldeia que resume as vulgaridades do padre que adormece no ofício do sacerdócio; maníacos de província levando existências de moluscos; uma sociedade extraordinária, curiosa para se estudar como uma família de bicho-de-conta e de baratas. Mas a figura que mais se destaca é a do farmacêutico. Homais, uma encarnação de nosso Joseph Prudhomme. Homais é a eminência provincial, a ciência de cantão, a estupidez satisfeita de todo um país. Com isso progressista, livre-pensador, inimigo dos jesuítas. Dá a seus filhos nomes célebres, Napoleão e Atália. Publicou uma brochura: Da Cidra, de Sua Fabricação e de Seus Efeitos, seguido de Algumas Novas Reflexões sobre Este Tema. Escreve em Le Fanal de Rouen. O tipo é completo, a tal ponto que o nome de Homais entrou para a língua; caracteriza uma certa classe de parvos. No que me concerne, não posso entrar numa farmácia de aldeia sem procurar atrás do balcão o majestoso Homais, em pantufas, de barrete grego, manipulando suas drogas com a gravidade complacente de um homem que conhece seus nomes em latim ou em grego.
No grande público, um incidente deu a Madame Bovary uma repercussão extraordinária. O Ministério Público ousou processar o autor sob a acusação de ultraje à moral pública e à religião. Encontrávamo-nos então no grande puritanismo dos primeiros anos do Império. Devo absolutamente dizer algumas palavras sobre esse processo, que pertence à nossa história literária. O burburinho dos debates encheu os jornais; e Gustave Flaubert saiu dessa provocação aclamado, popular, reconhecido como chefe de escola. Eis um dos belos atos da justiça. O requisitório do advogado imperial, Ernest Pinard, é um documento muito curioso. Gustave Flaubert publicou-o na última edição de seu romance, e é hoje difícil lê-lo sem uma profunda surpresa. Uma obra-prima de nossa língua é nele tratado como uma ação nociva; o advogado imperial faz dela uma crítica cômica e lamentável, atacando as páginas mais belas, chafurdando na arte como magistrado aturdido, emitindo em literatura idéias violentas que deveria ter conservado para os casos de roubo e assassinato. Nada é mais desastroso que um homem rígido, que acredita ter como missão ir em socorro dos bons costumes, que ninguém pensa ameaçar. Ernest Pinard, que mais tarde desempenhou um papel político bastante pobre, mostrou-se nesse caso para sempre ridículo. A posteridade só conhecerá dele uma coisa, que tentou suprimir de nossa literatura uma das obras mestras deste século. Gustave Flaubert, após uma extraordinária defesa de Senard, foi absolvido. A arte saía triunfante dessa agressão. Todavia, ainda que absolvendo, a sexta câmara do tribunal correcional de Paris achou-se no dever de dar sua opinião sobre o naturalismo e o romance moderno. Eis um dos considerandos do julgamento:
Visto que não é permitido, sob pretexto de pintura de caráter ou de cor local, reproduzir em suas digressões os fatos, ditos e gestos das personagens que um escritor se deu por missão pintar; que um semelhante sistema, aplicado às obras do espírito assim como às produções das belas-artes, conduziria a um realismo que seria a negação do belo e do bom, e que, criando obras igualmente ofensivas para as vistas e para o espírito, cometeria contínuos ultrajes à moral pública e aos bons costumes...
Eis, portanto, o realismo condenado por uma câmara correcional. Graças a Deus, toda a nossa geração de escritores passou longe! Avançou-se cada vez mais a fundo na busca do real, na análise do homem, na pintura das paixões. As sentenças de um tribunal não sustam o avanço do pensamento.
Retardei-me em Madame Bovary, darei menos espaço à Educação Sentimental. Nesse segundo romance, Gustave Flaubert ampliava seu quadro. A obra já não era somente a vida de uma mulher e não se passava mais num recanto da Normandia. O autor pintava toda uma geração e abarcava um período histórico de doze anos, de 1840 a 1852. Por quadro, tomava a agonia lenta e inquieta da Monarquia de Julho, a existência febril da República de 1848, que interrompiam os tiroteios de fevereiro, de junho e de dezembro. Nesse cenário, colocava as personagens que havia conhecido durante sua juventude, as próprias personagens da época, toda uma multidão indo, vindo, vivendo a vida da época. A obra é o único romance realmente histórico que conheço, o único verídico, exato, completo no qual a ressurreição dos momentos passados é absoluta, sem nenhum artifício.
Para quem conhece o cuidado que Gustave Flaubert dá ao estudo dos mínimos detalhes, semelhante tentativa era colossal. Mas o plano do livro tornava a tarefa ainda mais difícil. Gustave Flaubert recusava toda efabulação romanesca e central. Queria a vida no dia-a-dia, tal como se apresenta, com sua seqüência contínua de pequenos incidentes vulgares, que acabam por fazer deles um drama complicado e temível. Nada de episódios preparados longamente, mas a aparente desordem dos fatos, a rotina banal dos eventos, as personagens se encontrando, em seguida se perdendo de vista e se reencontrando novamente, até que tenham dito sua última palavra: nada além de imagens de passantes se esbarrando numa calçada. Essa é uma das concepções mais originais, mais audaciosas, mais difíceis de realizar já tentadas em nossa literatura, à qual não falta, entretanto, ousadia. E Gustave Flaubert conduziu seu projeto amplamente até o fim, com essa unidade magistral, essa vontade na execução que fazem sua força.
Não é tudo. A maior dificuldade que A Educação Sentimental oferecia provinha da escolha das personagens. Gustave Flaubert quis pintar aí o que ele teve sob os olhos nos anos dos quais fala, o contínuo aborto humano, o recomeço infindável da estupidez. O verdadeiro título do livro era: Os Frutos Secos. Todas as suas personagens se agitam no vazio, giram como cataventos, trocam a presa pela sombra, reduzem-se em cada nova aventura, marcham para o nada: sangrenta sátira, no fundo pintura terrível de uma sociedade apavorada, pervertida, vivendo o dia-a-dia; livro formidável no qual a mediocridade é épica, a humanidade assume uma importância de formigueiro, o feio, o cinzento, o pequeno dominam e se exibem. É um templo de mármore magnífico erigido à impotência. De todas as obras de Gustave Flaubert, essa é certamente a mais pessoal, a mais vastamente concebida, aquela que lhe deu mais trabalho e que permanecerá por muito tempo a menos compreendida.
A análise de A Educação Sentimental é impossível. Seria preciso seguir a ação página a página; nela só há fatos e imagens. Entretanto, posso explicar em algumas linhas o que deu ao autor a idéia do título, desagradável, por sinal. Seu herói—se é que há herói —, um jovem, Frédéric Moreau, é uma natureza indecisa e fraca, que descobre grandes apetites sem ter vontade bastante forte para satisfazê-los. Quatro mulheres trabalham para sua educação sentimental: uma mulher honesta e casada que ele vai justamente escolher para perder a seus pés as primeiras energias de sua vida; uma moça que não consegue contentá-lo, na alcova da qual deixa sua virilidade; uma grande dama, um sonho de vaidade, do qual desperta com desgosto e desprezo; uma provinciana, uma pequena selvagem precoce, a fantasia do livro, que um de seus amigos lhe tira quase dos braços. E quando os quatro amores, o verdadeiro, o sensual, o vaidoso, o instintivo, tentaram em vão fazer dele um homem, ele se encontra, numa noite, velho, sentado perto da lareira com seu camarada de infância Deslauriers. Este ambicionou o poder, sem conquistá-lo mais do que Frédéric conquistou uma ternura feliz. Então os dois, lamentando a juventude perdida, recordam-se, como o melhor de seus dias, de uma tarde de primavera em que, saindo juntos para ver as garotas, não ousaram absolutamente ultrapassar a soleira da porta. O lamento do desejo e dos pudores dos dezesseis anos, tal é a conclusão dessa educação do amor.
Mal me é permitido, na multidão das personagens, indicar algumas silhuetas: Arnoux, o fazedor da época, sucessivamente marchand de quadros, fabricante de faiança e vendedor de objetos religiosos, um provençal louro, mentiroso, encantador, enganando sua mulher com enternecimento, deslizando para a ruína no meio dos projetos de especulação mais engenhosos; Dambreuse, grande proprietário, banqueiro e político, que resume em si todas as habilidades e todas as covardias do dinheiro; Martinon, o triunfo da imbecilidade, a nulidade pretensiosa e pálida, o futuro senador pouco escrupuloso que dorme com as tias para desposar as sobrinhas; Regimbart, o político em casa, uma figura grotesca e inquietante do senhor em grande paletó, saído não se sabe de onde, circulando nos mesmos cafés às mesmas horas, arrastando um mau humor taciturno, que adquiriu uma reputação de homem profundo e muito poderoso pelas três ou quatro únicas frases que ele às vezes pronuncia sobre a situação do país. Sou obrigado a me limitar. E quantas cenas, quantos quadros acabados, pintando uma época, com sua arte, sua política, seus costumes, seus prazeres, suas vergonhas! Há soirées no grande mundo e no semimundo, almoços de amigos, um duelo, uma ida às compras, um clube de 1818, as barricadas, a luta nas ruas, a tomada das Tulherias, um adorável episódio de amor na Floresta de Fontainebleau, interiores burgueses de uma finura requintada, toda a vida de um povo.
É em A Educação Sentimental que Gustave Flaubert, até o momento, afirmou com maior parti pris a fórmula literária que ele introduz. A negação do romanesco na intriga, a redução dos heróis à estatura humana, as justas proporções observadas nos mínimos detalhes, toda a sua originalidade alcança aí um grau extremo de energia. Estou certo de que essa obra é aquela que lhe custou o maior esforço, pois nunca ele se aprofundou mais no estudo da feia humanidade, e nunca o lírico que existe nele teve que se lamentar e chorar mais amargamente. Nessa longa obra, a mais longa que escreveu, não há renúncia de uma página. Segue imperturbavelmente seu caminho, qualquer que seja o incômodo da tarefa, não procedendo como Balzac, por trechos de análise ponderada, nos quais o autor pode ainda se aliviar, mas por narrativas sempre dramatizadas, sempre encenadas. Ele foi com certeza tão impiedoso consigo mesmo quanto em relação ao mundo imbecil que pintou.
Abordo agora Salambô e A Tentação de Santo Antão, os dois vôos de Gustave Flaubert acima das feiúras do mundo burguês, a escapada esplêndida do lírico, do colorista ardente, feliz enfim de estar em seu verdadeiro país de luz, de perfume, de tecidos resplandecentes. Gustave Flaubert é um oriental deslocado. Sentimo-lo aliviado, respirando livremente, tão logo pode se mostrar vigoroso e livre sem mentir. As obras caras a seu coração, aquelas que ele deve ter escrito sem fadiga, apesar das imensas pesquisas que elas lhe custaram, são com toda certeza Salambô e A Tentação de Santo Antão.
Numa carta que escreveu a Sainte-Beuve, dá uma indicação preciosa em relação à primeira dessas obras. "Eu quis fixar uma miragem", diz ele, "ao aplicar à Antigüidade os procedimentos do romance moderno". O desenvolvimento da obra, com efeito, como em Madame Bovary, consiste numa série de quadros, episódios em que as personagens pintam a si mesmas por suas palavras e suas ações. Todavia, o estudo do meio avança ainda mais, o drama se reduz um pouco no meio da magnificência do quadro, as descrições se estendem e deixam menos lugar à análise. Trata-se sempre da humanidade estudada até o âmago, mas um canto de humanidade estranha, agitando-se numa civilização cuja pintura devia fatalmente tentar um pintor tal como Gustave Flaubert.
Não há, em nossa literatura, um começo comparável ao primeiro capítulo de Salambô. E um deslumbramento. Os mercenários celebram com um festim, nos jardins de Amílcar, o aniversário da Batalha de Erix. A rudeza e a glutonaria dos soldados, o esplendor da mesa, as iguarias estranhas, o cenário do jardim, com o palácio de mármore ao fundo ostentando seus quatro andares de terraços, adquirem um esplendor extraordinário nesse estilo vigoroso e expressivo, em que cada palavra possui a exatidão do tom desejado. É aí que Salambô aparece, descendo a escadaria do palácio, vindo chorar pelos peixes sagrados que os mercenários mataram nos viveiros. É também aí que começa a rivalidade ciumenta do líbio Mathô e do chefe númida Narr'Havas, ambos perdidamente apaixonados pela filha de Amílcar.
Cartago, enfraquecida, tem medo dos mercenários que a ajudaram nas últimas guerras; ela não pode pagá-los e não sabe como se livrar deles. Amílcar, seu chefe, desapareceu. Após o festim que abre o livro, Cartago envia-os a Sica, fechando suas portas sobre eles. E é nesse momento que Spendius, um escravo grego que Mathô libertou, lança os mercenários contra a cidade, por vingança. Serve ao mesmo tempo a paixão do líbio, que Salambô enlouqueceu; ele o faz entrar em Cartago, seguindo o canal de um aqueduto, em seguida incita a roubar o manto sagrado de Tanit, o zainfe que torna invencível. Mathô, envolto no zainfe, revê Salambô; ela o rejeita, o amaldiçoa, e ele atravessa a cidade coberto com o manto, protegido por ele, no meio dos habitantes que vêem partir sua fortuna. Os mercenários vencem o sufeta Hanon, a República vai perecer, quando reaparece Amílcar. Ele vence os soldados revoltados na Batalha do Macar, move campanha contra eles. Mas talvez seus esforços permanecessem vãos se Salambô, pressionada por Schahabarim, o grande sacerdote eunuco de Tanit, não fosse se entregar a Mathô em sua tenda; enquanto ele dorme, ela se levanta e foge com o zainfe. Entretanto, Spendius ainda coloca Cartago bem perto da ruína ao cortar o aqueduto, privando assim a cidade de água. Há aí um episódio extraordinário, o sacrifício humano a Moloque para acalmar o deus; vêm exigir a Amílcar seu filho Aníbal, que ele cria secretamente e que consegue salvar. Felizmente, cai a chuva, Narr'Havas trai Mathô com o qual havia feito aliança, Cartago é reabastecida e salva. No desfecho, Amílcar prende os mercenários no desfiladeiro da Hache e lá os deixa morrer de fome; agonia apavorante de um exército, um dos trechos mais maravilhosos do livro. Mathô, feito prisioneiro, é condenado a atravessar a cidade, nu, as mãos atadas atrás das costas, sob os golpes dos habitantes perfilados em sua passagem, e vem, horrível, sangrando, a carne dilacerada, expirar aos pés de Salambô, à qual Narr'Havas triunfante estende a taça dos esponsais. Salambô cai lívida, enrijecida, os lábios abertos. "Assim morre a filha de Amílcar por ter tocado no manto de Tanit."
Essa figura de Salambô é a estranheza do livro. Na carta da qual falei, Gustave Flaubert escreve a Sainte-Beuve, que o criticava por ter refeito uma Mme Bovary cartaginesa: "Claro que não! Mme Bovary é agitada por paixões múltiplas; Salambô, ao contrário, permanece imobilizada pela idéia fixa. É uma maníaca, uma espécie de Santa Teresa". E foi muito bem dito. Salambô, com efeito, só tem uma atitude; vemo-la no seu terraço, as mãos erguidas para a Lua, essa Tanit que ela adora. Se ela vai se entregar a Mathô, é pelos conselhos de Schahabarim, esse grande sacerdote eunuco que a empurra a isso, com o pesar vago de sua virilidade. Ela entende salvar seu país e seus deuses, nada mais. O desejo não faz absolutamente parte de seu ato; ela apenas compreende. Mais tarde, é fiel àquele que a possuiu. É atormentada por sua lembrança, sente-se pertencente a ele e morre sobre seu cadáver, de horror e desespero, escapando, assim, do abraço de Narr'Havas. Essa criação permanece, portanto, como o tipo do misticismo pagão, da fatalidade e da eternidade na idéia do amor. Ela pertence a quem a tomou. Só abandona a adoração de Tanit para permanecer marcada pelo primeiro beijo recebido; não desejou esse beijo, mas ele será o primeiro e o último, e morrerá por causa dele. Por sinal, Gustave Flaubert confessa que essa criação lhe pertence exclusivamente. "Não estou certo de sua realidade, pois nem você, nem eu, nem ninguém, nenhum antigo e nenhum moderno pode conhecer a mulher oriental, pela simples razão de que é impossível freqüentá-la."
As outras personagens, da mesma forma, têm apenas uma atitude. Mathô é um bruto, entregue ao seu amor; é todo agitado, todo cegado por seu desejo, e todos os seus atos dizem respeito a isso. Spendius tem a astúcia flexível do grego; permanece cheio de expedientes e de rancor secreto. Amílcar é uma nobre figura, um pouco sombria; Narr'Havas só passa; o sufeta Hanon é contaminado pela lepra, e oferece um dos retratos mais originais do livro, covarde, cruel, vil. Sainte-Beuve, que censurou em Gustave Flaubert o caráter complexo de seus bárbaros, leu realmente o livro com olhos estranhos. Acho, ao contrário, as personagens construídas de um só bloco, agindo por seus instintos, tendo um único objetivo. Não estamos mais nas mil insignificâncias da análise e do mundo moderno. Mathô, fulminado de amor à primeira página, permanece estúpido por todo o volume e morre disso ao final. Os outros têm motivos semelhantes que os lançam de uma só vez à satisfação de seus apetites. Por sinal, não temos mais aí estudo seguido sobre os diferentes estados da alma de uma personagem ou de várias. A obra é o vasto quadro de uma situação psicológica e fisiológica quase única. Não existe aí somente a análise das perturbações que a aproximação do homem produziu em Salambô. Gustave Flaubert, tendo que criar suas figuras segundo os documentos que pesquisou, esforçou-se por compô-las o mais simplesmente possível, apenas tratando de dar a cada uma delas uma individualidade que a impedisse de degenerar no tipo geral.
E quantas cenas magníficas, quantas descrições prodigiosas! Citei o festim; acrescentarei as invocações de Salambô, branca sob a lua; a visita ao templo de Tanit por Mathô e Spendius, quando vão roubar o zainfe; a descida de Amílcar aos subterrâneos onde esconde seus tesouros; a Batalha de Macar, na qual há uma carga de elefantes tornada célebre; a cena da tenda, Salambô caindo nos braços do líbio; o sacrifício a Moloque; a agonia dos mercenários no desfiladeiro de Hache; enfim, a corrida louca de Mathô perseguido pelos golpes de toda uma cidade, vendo apenas Salambô, vindo agonizar a seus pés.
Esses quadros não são tratados com a embriaguez lírica que Victor Hugo teria aí colocado. Já o disse, Gustave Flaubert permanece o homem exato, mestre de cada cor que emprega. Ele dá, assim, uma solidez de brilho sem igual a tudo aquilo que pinta. O ouro, as jóias, os mantos de púrpura, os mármores jorram, sem que haja acumulação; os fatos extraordinários, aléias de leões crucificados, o sufeta Hanon molhando as mãos no sangue dos prisioneiros degolados para curar sua lepra, a serpente se enrolando em torno dos membros nus e adoráveis de Salambô, todo um exército morrendo de fome, colocam-se em seus lugares por si mesmos e não destoam absolutamente. A obra é de um tecido compacto, de uma arte infinita, de uma correção admirável. E deduzimos esboços muito estudados, um terreno admiravelmente conhecido do autor. Quando de seu aparecimento, Salambô foi atacado por um Froehner, um alemão creio, que contestou a exatidão da maioria dos detalhes. Gustave Flaubert se irritou, dizendo com razão que entregava à crítica o lado literário, mas que entendia defender a parte histórica e de pura ciência. Então, citou todas as suas fontes. A lista era estarrecedora. Remexeu a Antigüidade inteira, os autores gregos, os autores latinos, tudo o que de perto ou de longe diz respeito a Cartago. Dedicou o mesmo cuidado, a mesma minúcia para reconstruir essa civilização morta quanto a descrever, em A Educação Sentimental, as jornadas de fevereiro, em 1848, das quais pôde acompanhar as peripécias com seus próprios olhos.
A Tentação de Santo Antão é o último livro publicado por Gustave Flaubert. E o mais estranho e o mais deslumbrante de seus trabalhos. Gastou vinte anos de pesquisas, de retoques, de consciência e de talento. Vou procurar, numa breve análise, dar uma idéia dessa obra.
Santo Antão se encontra na soleira da porta de sua cabana, no alto de uma montanha, na Tebaida. A tarde finda. O eremita está cansado de um dia de privações, de continência e de trabalho. Então, na escuridão que chega, sente-se alquebrado. O diabo, que o respeita, adormece-o, empurra-o aos sonhos vis. É toda uma noite de horrível pesadelo, de tentação abrasadora. Inicialmente Santo Antão lamenta sua infância, uma noiva, Amonária, que outrora amou; e, pouco a pouco, desliza para a queixa, gostaria de ser gramático ou filósofo, soldado, publicano no pedágio de uma ponte, negociante rico e casado. Vozes vindas das trevas oferecem-lhe mulheres, um monte de ouro, mesas repletas de iguarias. É o começo da tentação, os apetites vulgares, a satisfação animal. Sonha que é confidente do imperador, que possui a onipotência. Encontra-se, em seguida, num palácio resplandecente, no meio de um festim de Nabucodonosor; e, saciado de libertinagens e de extermínio, sente a necessidade de ser um bicho, põe-se de quatro patas e muge como um touro. Em seguida, depois que se chicoteou para se punir por essa visão, uma outra visão surge, a rainha de Sabá vindo se oferecer, com seus tesouros, estendendo-lhe sua garganta, fazendo-o morrer de desejo. Tudo se apaga, o diabo assume a figura de Hilarião, seu antigo discípulo, para atacá-lo em sua fé. Prova-lhe a obscuridade, as contradições do Antigo e do Novo Testamento. Ele o conduz a uma viagem inaudita através das religiões e dos deuses: as primeiras religiões, as cem heresias mais monstruosas, umas mais do que as outras, todas as formas da loucura e do furor do homem; depois disso, os deuses, um desfile de deuses abomináveis e grotescos fazendo todos, um a um, o salto ao nada, desde os deuses sanguinários das primeiras eras até os deuses poéticos e extraordinários da Grécia. A viagem acaba nos ares, entre a poeira dos mundos, no meio desse céu da ciência moderna, que Satã faz o eremita visitar montado sobre seu dorso e que aterroriza este último por sua infinitude. Satã cresceu desmedidamente, tornou-se a ciência. Santo Antão, retornando à terra, ouve as terrificantes querelas da Luxúria e da Morte, da Esfinge e da Quimera. Enfim, abisma-se no bando dos animais fabulosos, dos monstros da terra; desce ainda mais, encontra-se na própria terra, nos vegetais que são seres, nas pedras que são vegetais. E eis seu último grito:
Tenho vontade de voar, nadar, latir, mugir, uivar. Gostaria de ter asas, uma carapaça, uma casca, soprar fumaça, portar uma trompa, torcer meu corpo, dividir-me em todos os lugares, estar em tudo, emanar-me como os odores, desenvolver-me como as plantas, escoar como a água, vibrar como o som, brilhar como a luz, ocultar-me sob todas as formas, penetrar cada átomo, descer até o fundo da matéria, ser a matéria!
O poema terminou, a noite acabou. É apenas um pesadelo a mais esvanecido na escuridão. O sol aparece, e, em seu próprio disco, irradia a figura de Jesus Cristo. Antão faz o sinal da cruz e retoma as orações.
Nunca semelhante bofetada foi dada à humanidade. Estamos aqui longe da sátira discreta, do riso oculto de Madame Bovary e de A Educação Sentimental. Já não é mais a estupidez de uma sociedade que Gustave Flaubert pinta como para se vingar, é a estupidez do mundo. Tomar a humanidade em seu berço, mostrá-la em todas as horas no sangue e na imundície, anotar escrupulosamente cada um de seus passos em falso, concluir pela sua impotência, sua miséria e seu nada: tal foi o objetivo acalentado e longamente amadurecido do autor. O capítulo em que ele faz passar o cortejo dos heresiarcas é apavorante; não há sequer uma abominação, uma demência, uma crueldade que esses homens não tenham inventado e que não afirmem; a brevidade das transições, a rapidez da narrativa, tantos horrores e asneiras acumulados em algumas páginas chegam a dar náuseas e vertigens. E o capítulo dos deuses é ainda mais terrificante; a procissão não termina, o homem tudo deificou, os deuses se derrubam na lama, empurrando-se uns aos outros; milhares de anos de crenças absurdas e sangrentas passam, ídolos todos em ventre, ídolos em cabeças de bicho, de madeira, de mármore e de papelão, atribuindo-se seus dogmas e suas doutrinas, debatendo-se contra a morte, a morte fatal que arrasta as sociedades com suas religiões: vasto espetáculo, quadro sem precedente da queda contínua do homem e de suas concepções religiosas no desconhecido.
Em seguida, ainda há o último capítulo, essa saciedade de Antão na matéria, esse grito de desejo diante da terra negra e profunda, essa conclusão pela dor universal, pela eterna burla da vida. Mesmo quando o santo retoma a oração, é como uma ironia a mais , em conseqüência da visão do mundo vazio de deuses; curva os ombros por hábito, inspira apenas uma imensa piedade. Gustave Flaubert está aí por inteiro, com esse espírito revolucionário que tem em si, malgrado seu. Cede à necessidade de negação, de dúvida absoluta, condenando todas as religiões ao mesmo grau, mostrando, talvez, algumas ternuras somente pelos deuses de beleza da Grécia. Se escolheu a lenda de Santo Antão para se tranqüilizar e dizer aos homens o caso de loucura animalesca da qual eles agonizam, desde o primeiro dia da criação, é que encontrava aí essa Antigüidade, esse Oriente que ele ama e onde sente bastante espaço para fazer o colossal e o luminoso. Num quadro moderno teria sido preciso tudo rebaixar e escrever uma comédia em vez de um poema.
A Tentação de Santo Antão contém trechos de primeira ordem. Citei o episódio da rainha de Sabá, toda perfumada pelas volúpias orientais, e no qual as frases assumem uma música estranha, uma cadência de címbalos de ouro soando sob cortinas de púrpura. Comentei igualmente o festim de Nabucodonosor, uma orgia gigantesca, uma sala onde as comidas abundam, onde a besta, coberta de pedrarias, senta-se no trono. É preciso acrescentar uma descrição de Alexandria, de uma reconstrução surpreendentemente exata; uma página sobre o Egito, em que essa terra renasce com seus templos, seus perfumes, toda a sua civilização morta; enfim, a querela da Esfinge e da Quimera, das duas bestas que carregam o homem e o devoram a toda hora, o enigma sombrio fixado à terra, a fantasia alada se chocando com as estrelas.
Em relação a essa obra, falo apenas da concepção e da realidade artística, sem me ocupar com o lado filosófico, que me levaria muito longe; é obra de um grande escritor, do maior escritor com que nossa literatura conta neste momento. Gustave Flaubert, apesar das hesitações dos leitores e da estupefação da crítica, mostrou-se aí superior, maior e mais forte, no ápice.
Resta-me indicar qual é a atitude do público em relação a Gustave Flaubert.
Já o disse, o sucesso de Madame Bovary foi fulminante. De uma semana para outra, Gustave Flaubert foi conhecido, celebrado, aclamado. Não há outro exemplo, neste século, em nossa época, em que vinte volumes mal difundem o nome de um autor, de uma reputação adquirida assim de uma só vez. E não se tratava apenas de popularidade, mas de glória. Colocavam-no no primeiro nível, à frente dos romancistas contemporâneos. Desde há vinte anos conserva na fronte a auréola desse triunfo.
Mas o público fê-lo pagar, em seguida, essa glória. Parece que quiseram se vingar da admiração franca, irresistível, provocada por Madame Bovary. Ele não publicou mais nenhum livro sem ser criticado violentamente, e até mesmo negado; e esse rancor, essa hostilidade da crítica foi aumentando a cada nova obra. Salambô provocou ainda um enorme barulho, em que já apareciam muitas zombarias. A Educação Sentimental, essa obra tão complexa e tão profunda, tendo por quadro as últimas convulsões do Império, passou quase despercebida, no meio de uma indiferença aturdida. Enfim, A Tentação de Santo Antão, ultimamente, foi atacada com uma violência extrema sem encontrar um único crítico que ousasse analisar a obra seriamente e mostrar suas maravilhosas belezas. A triste verdade é a seguinte: os livros de Gustave Flaubert são muito eloqüentes e muito originais para o público parisiense. Os leitores frívolos dos jornais do Boulevard1 vêem neles apenas temas chistosos; a charge apodera-se das situações, a caricatura, das personagens; e em breve será um riso universal, a propósito das coisas menos risíveis do mundo. É preciso conhecer esse estranho público, alguns milhares de pessoas, no máximo, que fazem estardalhaço por cem mil, para se ter uma idéia dos julgamentos extraordinários que ele faz. Um escritor trabalhou vinte anos numa obra; um senhor qualquer a percorre em vinte minutos, atira-a para o lado dizendo: "Ela é enfadonha", e ponto final, o livro é condenado.
1 Em Paris, Boulevard designa a vida literária e espiritual que florescia no final do Segundo Império. (N.do T.) no final do Segundo Império (N do T )
Devo acrescentar que o livre desenvolvimento do talento de Flaubert não era feito para conciliá-lo com a multidão. Pedem-lhe para criar uma segunda Madame Bovary, sem desejar compreender que um escritor se enfraquece ao voltar sobre seus passos. Ele obedeceu ao impulso de seu temperamento, ampliou cada vez mais sua análise. Cada uma de suas obras oferece uma nova tentativa, ponderada, cumprida com uma firmeza admirável. Acrescento que cada uma delas foi um passo à frente, uma fase desse talento tão claro e tão consciencioso. Retornaremos às críticas endereçadas à Educação Sentimental e à Tentação de Santo Antão. É preciso que esses livros amadureçam.
Gustave Flaubert permanece uma das personalidades mais nobres de nossa literatura contemporânea. Inclinamo-nos respeitosamente diante dele. Toda a jovem geração o aceita como um mestre. E, coisa estranha, aqui tocamos a enfermidade francesa: Gustave Flaubert vive à margem, apenas cercado por alguns amigos, sem alvoroço, sem arrastar atrás de si o bando de seus admiradores. Entretanto, o gênio francês, na atualidade, a língua francesa em sua pureza e em seu esplendor encontram-se nesse escritor solitário, abandonado, cujo nome os jornais não imprimem sequer uma vez por mês. É diante desse homem que as trompas do entusiasmo público deveriam soar sem pausa, porque ele é realmente a honra e a glória da França.
O HOMEM
Se algum dia eu escrevesse minhas memórias, esta seria uma das páginas mais emocionantes. Quero reunir minhas recordações sobre Gustave Flaubert, o amigo ilustre e tão caro que acabo de perder. Talvez falte a ordem, não tenho outra ambição senão ser exato e completo. Parece-me que temos o direito de erigir em sua verdade a figura desse grande escritor, nós que vivemos sua vida, durante os últimos dez anos de sua existência. Ele será tanto mais amado quanto mais o conhecerem, e é sempre um bom trabalho destruir as lendas. Pensem que tesouros teríamos se, logo em seguida à morte de Corneille ou de Molière, algum amigo nos tivesse contado sobre o homem e explicado o escritor, numa análise escrupulosa, elaborada sobre as melhores fontes da observação!
A morte de Gustave Flaubert foi para nós aterradora. Seis semanas antes realizamos um velho projeto, Goncourt, Daudet, Charpentier e eu: fomos passar vinte e quatro horas com ele, em Croisset; e o deixamos, felizes por essa escapada, enternecidos por sua hospitalidade paternal, prometendo nos reencontrar em Paris, nos primeiros dias de maio, época em que ele deveria lá passar dois meses. No sábado, 8 de maio, encontrava-me em Médan, onde me instalara havia três dias, e punha-me à mesa, feliz por ter-me livrado da poeira da mudança, sonhando, para o dia seguinte, com uma manhã de trabalho sério, quando chegou a correspondência. No campo, cada vez que recebo a correspondência, experimento um aperto no coração, com medo de más notícias. Entretanto, fiz uma brincadeira; minha família estava lá, e disse rindo que a correspondência não iria de modo algum nos impedir de jantar. E, aberto o papel, li essas duas palavras: "Flaubert morto". Era Maupassant que me telegrafava essas duas palavras, sem explicações. Uma pancada em pleno crânio.
Nós o deixamos tão alegre, bem saudável, na alegria do livro que terminava! Nenhuma morte podia me atingir nem me transtornar mais do que a dele. Até terça-feira, dia do funeral, ele permaneceu diante de mim; obsedava-me, principalmente à noite; bruscamente, aparecia ao fim de todos os meus pensamentos, com o horror glacial do nunca mais. Era um estupor, cortado de revoltas. Na terça-feira pela manhã, parti para Rouen; tive que tomar um trem na estação vizinha e atravessar a campanha, aos primeiros raios de sol: uma manhã irradiante, de longas flechas de ouro que perfuravam as folhagens repletas de tagarelice de pássaros, eflúvios frescos que emanavam do Sena e passavam como calafrios no calor. Senti lágrimas subirem aos meus olhos quando me vi só, nessa campanha sorridente, com o pequeno ruído de meus passos sobre os seixos da estrada. Pensei nele, dizia-me que tinha acabado, que ele não veria mais o sol.
Em Mantes, tomei o expresso. Daudet se encontrava no trem com alguns escritores e jornalistas que se tinham dado o incômodo: raros fiéis cujo pequeno número nos comoveu o coração, repórteres exercendo seu ofício com uma aspereza que às vezes nos feriu. Goncourt e Charpentier, que partiram na véspera, já se encontravam em Rouen. Coches nos esperavam na estação, e recomeçamos, Daudet e eu, essa viagem que, seis semanas antes, tínhamos feito com tanta alegria. Todavia, não iríamos até Croisset. Mal abandonávamos a estrada de Canteleu e nosso cocheiro pára e se desloca para uma sebe, é o cortejo fúnebre que chega ao nosso encontro, ainda encoberto por um bosquete, na curva da estrada. Descemos, descobrimo-nos. Em minha dor, o golpe terrível foi-me assestado ali. Nosso bom e grande Flaubert parecia vir a nós, deitado em seu caixão. Ainda o via, em Croisset, saindo de sua casa e nos beijando nas duas faces, com grandes beijos sonoros. E, agora, era um outro encontro, o último. Ele avançava de novo, como para as boas-vindas. Quando vi o carro mortuário com seus cortinados, seus cavalos andando a passo, seu balanço suave e fúnebre, surgir por detrás das árvores na estrada nua e vir direto a mim, senti um frio intenso e pus-me a tremer. A direita, à esquerda, prados se estendem; sebes cortam as pastagens, álamos barram o céu; é um recanto frondoso da abundante da Normandia, que verdeja numa camada de sol. E o carro mortuário continuava a avançar, no meio do verdor, sob o vasto céu. Num prado à beira do caminho, uma vaca aturdida estendia seu focinho por cima de uma sebe; quando o corpo passou, pôs-se a mugir, e esses mugidos suaves e prolongados, no silêncio, no tropel dos cavalos e do cortejo, pareciam como a voz longínqua, como o suspiro dessa campanha que o grande morto tinha amado. Sempre ouvirei essa lamúria de animal.
Entretanto, Daudet e eu nos tínhamos postado à beira do caminho, sem uma palavra e muito pálidos. Não precisávamos falar, nosso pensamento foi o mesmo quando as rodas do carro mortuário roçaram por nós: era o "velho" que passava; e colocávamos nessa palavra toda a nossa ternura por ele, tudo o que devíamos ao amigo e ao mestre. Os dez últimos anos de nossa vida literária erguiam-se diante de nós. Todavia, o carro prosseguia caminho, com seu balanço, ao longo dos prados e das sebes; e, atrás, apertamos as mãos de Goncourt e de Charpentier, trocando palavras insignificantes, olhando-nos com o ar surpreso e desolado das grandes catástrofes. Lancei um olhar sobre o cortejo; éramos no máximo duzentos. A partir daí, caminhei perdido num tropel.
Entretanto, o cortejo fúnebre, tendo chegado à estrada de Canteleu, virou e subiu a colina. Croisset é simplesmente um grupo de casas, construídas à margem do Sena, e que dependem da paróquia de Canteleu, cuja velha igreja está localizada bem no alto, no meio das árvores. A estrada é extraordinária, uma ampla visão que serpenteia pelo flanco dos prados e dos campos de trigo; e, à medida que subimos, a planície se aprofunda, o imenso horizonte se amplia, a perder de vista, com a enorme corrente do Sena, no meio das aldeias e dos bosques. À esquerda, Rouen exibe o mar cinzento de seus telhados, enquanto fumaças azuladas, à direita, fundem os horizontes no céu. Ao longo dessa encosta tão rude, o cortejo se dispersou um pouco. A cada curva da estrada, o carro desaparecia nas folhagens; em seguida, o revíamos mais à frente, à beira de uma plantação de aveia, de onde seus cortinados esvoaçantes faziam voar um bando de pardais. Nuvens atravessavam o céu, tão puro de manhã. Por momentos, passavam rajadas de vento que varriam grandes nuvens de poeira branca voando ao sol. Já estávamos todos brancos, e a subida não terminava, cada vez mais o horizonte se ampliava. Esse cortejo, através dessa campanha, diante desse vale, assumia certa grandeza. Na fila, uns trinta carros, quase todos vazios, subiam penosamente. Foi aí que Maupassant me deu alguns detalhes sobre os últimos momentos de Flaubert. Ele acorrera na mesma noite da morte, para encontrá-lo ainda sobre o divã de seu gabinete, onde a apoplexia o fulminara. Flaubert vivia como celibatário, servido simplesmente por uma doméstica. Na véspera, por uma necessidade de expansão, havia dito a essa mulher que estava bem contente: seu livro, Bouvard e Pécuchet, estava concluído, e ele devia partir no domingo para Paris. No sábado pela manhã, tomou um banho, depois retornou ao gabinete, onde não tardou a sentir um mal-estar. Como era sujeito a crises nervosas, depois das quais caía em síncope e permanecia prostrado por um sono pesado, pensou tratar-se de um acesso e não se assustou em absoluto. Todavia, chamou a doméstica para que ela fosse chamar o doutor Fortin, que residia na vizinhança. Em seguida, mudou de idéia, reteve-a perto de si, pedindo-lhe para conversar; em suas crises, sentia a necessidade de ouvir alguém a seu lado. Continuava calmo, conversava, dizendo que teria sido muito mais preocupante se o acesso ocorresse no dia seguinte, no trem; queixava-se de ver tudo amarelo a seu redor; surpreendia-se por ainda ter força para abrir um frasco de éter, que foi buscar em seu quarto. Depois, de volta ao gabinete, lançou um suspiro e declarou que se sentia melhor. Todavia, sentindo suas pernas como quebradas, sentou-se no divã turco que ocupava um canto do cômodo. E, de repente, sem uma palavra, inclinou-se para trás: estava morto. Certamente, ele não se viu morrer. Durante várias horas, pensou tratar-se de um estado letárgico. Mas o sangue havia subido ao pescoço, a apoplexia estava lá, num colar negro, como se o tivesse estrangulado. Bela morte, golpe de maça invejável, e que me fez desejar para mim e para todos aqueles que amo esse aniquilamento de inseto esmagado sob um dedo gigante.
Chegávamos à igreja, uma torre românica, na qual um sino dobrava Sob o pórtico, barrando a grande porta, quatro camponeses penduravam-se à corda, levados pela oscilação do sino. Haviam descido o caixão, tão grande que os carregadores caminhavam com muita dificuldade. Recordar-me-ei sempre dos funerais de nosso bom e grande Flaubert, nessa igreja de aldeia. Encontrava-me no coro, em frente aos chantres. Havia cinco deles, dispostos em fila diante de uma estante danificada, montados sobre tamboretes, que os suspendiam do solo como bonecas japonesas enfiadas em varetas; cinco campônios vestidos de sobrepelizes sujas e dos quais percebiam-se os sapatos grosseiros; cinco cabeças de bilha, cor de tijolo, feições rudes, boca enviesada berrando o latim. E isso não terminava mais; eles se enganavam, erravam suas ladainhas como maus atores que não conhecem seu papel. Um jovem, certamente o filho mais velho, seu vizinho, tinha uma voz aguda, dilacerante, semelhante ao grito de um animal que se degola. Pouco a pouco a cólera arrebatou-me, eu estava furioso e aflito por essa igualdade na morte, por esse grande homem que aquelas pessoas enterravam em sua rotina, sem uma emoção, proferindo sobre seu caixão as mesmas notas desafinadas e as mesmas frases que teriam proferido sobre o caixão de um imbecil. Toda essa igreja fria onde tiritávamos ao sair do sol conservava uma nudez, uma indiferença que me feriam. Pois bem! É verdade, portanto, que diante de Deus sejamos todos da mesma argila e que nosso aniquilamento começa sob esse latim que a igreja vende a todo mundo? Em Paris, por trás do luxo das tapeçarias, na majestade dos órgãos, essa banalidade mercantil, essa indiferença nascida do hábito ainda se dissimulam. Mas aqui ouvia-se a pá de terra cair a cada versículo. Pobre e ilustre Flaubert, que toda a sua vida enrubescera diante da estupidez, da ignorância, das idéias preconcebidas, dos dogmas, das hipocrisias das religiões, e que se lançava, fechado em quatro pranchas, no meio do estupefaciente carnaval desses chantres a berrar um latim que eles sequer compreendiam!
A saída da igreja foi para todos nós um verdadeiro alívio. E o cortejo desceu a encosta de Canteleu. Devíamos chegar a Rouen, atravessar a cidade e subir rumo ao cemitério Monumental, ao todo sete quilômetros aproximadamente. O carro mortuário havia retomado sua marcha lenta, o cortejo se espaçava ainda mais na estrada, os carros acompanhavam. Entretanto, ao entrar na cidade, o cortejo se reagrupou, amigos de Flaubert sucediam-se e revezavam-se nos cordões do pálio. Podíamos ser nesse momento trezentos ou mais. Não quero citar ninguém, mas muitos que contávamos encontrar lá não estavam presentes. Dos contemporâneos de Flaubert só Edmond de Goncourt, comparecera ao triste encontro. Depois, havia somente a geração mais nova, os amigos dos últimos anos. Devo ainda dizer que muitos hesitaram vir de Paris; trinta e poucas léguas podem assustar saúdes débeis e antigas amizades. Mas o que é inexplicável, o que é imperdoável, é que Rouen inteira não tivesse acompanhado o corpo de um de seus filhos mais ilustres. Responderam-nos que os rouenenses, todos comerciantes, desprezavam a literatura. Todavia, deve haver nessa grande cidade professores, advogados, médicos, enfim, uma população liberal que lê livros, que pelo menos conhece Madame Bovary; deve haver colégios, jovens, apaixonados, mulheres inteligentes, enfim, espíritos cultos que souberam pelos jornais da perda que a literatura francesa acabava de sofrer. Pois bem! Ninguém se mexeu; não se poderia contar, talvez, duzentos rouenenses no magro cortejo, em vez da multidão enorme que esperávamos. Até às portas da cidade, pensávamos que Rouen esperava lá, para se posicionar atrás do corpo. Entretanto, encontramos às portas da cidade apenas um piquete de soldados, o piquete regulamentar concedido a todo cavaleiro da Legião de Honra falecido; homenagem banal, pompa medíocre e irrelevante, que nos pareceu ofensiva para tão grande defunto. Ao longo dos cais, em seguida ao longo da avenida que seguimos, alguns grupos de burgueses observavam curiosamente. Muitos nem mesmo sabiam quem era o morto que passava; e, quando citavam o nome de Flaubert, lembravam-se apenas do pai e do irmão do grande romancista, os dois médicos cujo nome permaneceu popular na cidade. Os mais bem informados, aqueles que haviam lido os jornais, tinham vindo ver passar jornalistas de Paris. Nem o menor traço de luto nas fisionomias desses basbaques. Uma cidade afundada no lucro, embrutecida, de uma ignorância pesada. Pensei em nossas cidades do Sul, em Marselha, por exemplo, que, ela também, está imersa no comércio até o pescoço; Marselha inteira teria se amontoado à passagem do cortejo, se ela tivesse perdido um cidadão da estatura de Flaubert. A verdade é que Flaubert, na véspera de sua morte, era desconhecido pelos quatro quintos de Rouen e detestado pelo outro quinto. Eis a glória.
Bulevares de subida rápida, ruas escarpadas conduzem ao cemitério Monumental, que domina a cidade. O carro mortuário avançava mais lentamente, com seu balanço que se acentuava ainda mais. Dispersos, suspirando de fadiga, cobertos de poeira e a garganta seca, chegávamos ao fim dessa viagem de luto. Embaixo, desde a porta, espessos tufos de lilás perfumam o cemitério; em seguida, aléias serpenteiam e se perdem em folhagens, enquanto os túmulos dispostos em patamares escaldam ao sol. Mas, lá do alto, um espetáculo nos fez parar: a cidade, a nossos pés, estendia-se sob uma grande nuvem cobreada, cujas bordas, franjadas de sol, deixavam cair uma chuva de faíscas vermelhas; e era, sob essa iluminação de drama, o brusco aparecimento de uma cidade da Idade Média, com suas flechas e suas empenas, seu gótico flamboyant, suas ruelas sufocantes cortando com estreitas fossas negras o cafarnaum dentado dos telhados. Um mesmo pensamento veio a nós todos: como Flaubert, enfebrecido pelo romantismo de 1830, não falou em nenhum lugar dessa cidade que aparecia diante de nós como o horizonte de uma balada de Victor Hugo? Existe uma descrição do panorama de Rouen em Madame Bovary; mas essa descrição é de uma sobriedade extraordinária, e a velha cidade gótica não se mostra lá de modo algum. Tocamos aí numa das contradições do temperamento literário de Flaubert, que eu cuidarei de explicar.
O túmulo de Louis Bouilhet encontra-se ao lado do jazigo da família de Gustave Flaubert, e o corpo do romancista teve de passar diante do poeta, seu amigo de infância, que lá dorme há dez anos. O caixão foi levado através de um gramado; curiosos, quase todos gente do povo, precipitaram-se, invadindo as estreitas sendas, em torno do jazigo, de tal forma que o cortejo não pôde se aproximar senão com dificuldade. Por sinal, de conformidade com as idéias freqüentemente expressas por Flaubert, não houve discurso. Um velho amigo, Charles Lapierre, diretor do Nouvelliste de Rouen, disse apenas algumas palavras. E, então, ocorreu um fato que transtornou a nós todos. Quando desciam o caixão ao jazigo, esse caixão muito grande, de gigante, não pôde entrar. Durante vários minutos, os coveiros, comandados por um homem magro, de grande chapéu negro, uma figura saída de Han d’lslândia, trabalharam arduamente; mas o caixão, de cabeça para baixo, não queria nem subir, nem descer mais, e ouvíamos as cordas rangerem e a madeira estalar. Era atroz; a sobrinha que Flaubert tanto amou soluçava à beira do jazigo. Enfim, vozes murmuraram: "Basta, basta, esperem, mais tarde". Partimos, abandonando lá nosso "velho", que entrou enviesado na terra. Meu coração explodia.
Embaixo, no porto, quando, estupeficados de fadiga e tristeza, Goncourt nos reconduziu, Daudet e eu, ao hotel onde ele havia se instalado, uma banda militar tocava duas vezes mais rápido, junto à estátua de Boieldieu. Os bares estavam lotados, burgueses passeavam, um ar de festa alegrava a cidade. O sol de quatro horas, que banhava o cais, iluminava o Sena, cujos reflexos dançavam sobre as fachadas brancas dos restaurantes, onde as cozinhas já flambavam, com odores de comidas. Numa taberna, toda uma mesa de repórteres e poetas famintos encomendava um linguado normando. Ah! as tristezas dos enterros de grandes homens!
Tenho poucos detalhes biográficos. Flaubert era discreto sobre esses assuntos; depois, eu o conheci muito tarde, em 1869. É a um amigo de infância, ou a um confidente muito íntimo, que cabe falar de sua vida. Por mim, contentar-me-ei em observar aqui o que conheço bem, e procurarei sobretudo explicar o escritor pelo homem, reportando-me ao que ele me disse e ao que eu pude observar.
Entretanto, devo lembrar as grandes linhas de sua existência. Nasceu em Rouen, em 1821. Seu pai, Achille Flaubert, era um médico talentoso, cujo grande coração e cuja estrita honestidade permaneceram lendários. Nessa escola, o jovem Gustave cresceu em bondade, lealdade, virilidade. Reencontrá-lo-emos mais tarde, como seu pai, com essa natureza adorável que o tornava tão caro a nós, uma natureza em que havia o colosso e a criança. Fez seus estudos em Rouen e lá encontrou, muito jovem, Louis Bouilhet e o conde d'Osmoy numa pensão da qual nos contava, às vezes, histórias bem divertidas. Sua infância e juventude parecem ter sido as de um garoto pertencente a uma família rica e liberal, que o educava solidamente sem contrariá-lo em seus gostos. Entregou-se muito cedo à paixão literária, e não creio que alguma vez tenha tido uma profissão qualquer; pelo menos nunca falava disso. Ao sair do colégio, havia perdido de vista Louis Bouilhet, que só o reencontrou no inverno de 1846; a partir daí, estabeleceu-se entre eles a sólida amizade que nunca mais cessou. Eu sempre pensei que A Educação Sentimental era em muitas páginas uma confissão, um tipo de autobiografia muito retocada, composta de recordações tomadas aqui e acolá; e poderia ser, levando em conta as necessidades da trama, que a grande amizade entre Frédéric e Deslauriers fosse o eco da amizade entre Flaubert e Bouilhet. Como Frédéric, por sinal, Flaubert foi fazer Direito em Paris, onde Bouilhet foi encontrá-lo. Mas antes desse ano de 1846, apenas com dezenove anos ele fez pela primeira vez uma viagem. Não posso dizer que chegou até a Itália, mas me recordo de que várias vezes me contou sua passagem por Marselha, onde teve uma aventura amorosa. Em Paris, levou uma vida de estudos, entrecortada de alguns prazeres violentos. Sem ser mundano, levava uma existência ampla. Desde essa época, teve, por sinal, um pé em Paris e o outro em Rouen; seu pai havia comprado a casa de campo em Croisset por volta de 1842, e retornava para passar períodos inteiros. Ao reler ultimamente a vida de Corneille, fui surpreendido com semelhanças que ela oferecia com a de Flaubert. Só dois grandes fatos marcam sua existência: sua viagem ao Oriente, que fez de 1849 a 1851, e a viagem realizada posteriormente às ruínas de Cartago, para seu livro Salambô. Fora dessas escapadas, sempre teve a vida que o vimos levar nesses últimos tempos, essa vida de estudos da qual falei, ora se fechando meses seguidos em Croisset, ora vindo se distrair em Paris, aceitando convites para jantar, recebendo amigos no domingo, mas passando as noites à mesa de trabalho. Sua biografia está aí por inteira. Poder-se-á precisar datas e dar detalhes mas não se sairá dessas grandes linhas.
A casa de Croisset é uma construção muito antiga, restaurada e aumentada por volta do final do século passado. A fachada branca encontra-se a vinte metros ou mais do Sena, do qual uma grade e a estrada a separam. À esquerda, há uma casa de jardineiro, uma pequena chácara; à direita, estende-se um parque estreito, sombreado por árvores magníficas; depois, atrás da casa, a encosta sobe bruscamente, vegetações fazem uma cortina para além da qual, bem no alto, estendem-se uma horta e prados plantados de árvores frutíferas. Flaubert jurava que não ia sequer uma vez por ano ao extremo da propriedade. Após a morte de sua mãe, havia inclusive abandonado a casa para se enclausurar nos dois únicos cômodos onde vivia, o gabinete de trabalho e o quarto. Saía deles apenas para comer na sala de baixo, pois acabou abominando a caminhada, a ponto de não poder sequer ver os outros caminharem sem experimentar uma irritação nervosa. Quando passamos uma noite em Croisset, encontramos a casa nua, só com a antiga mobília burguesa da família. Flaubert desprezava quadros e bibelôs, todas as suas concessões eram duas quimeras japonesas num vestíbulo e reproduções em gesso de baixos-relevos antigos, penduradas às paredes da escada. Em seu gabinete, um vasto cômodo que ocupava todo um ângulo da casa, só havia livros ordenados sobre as prateleiras de carvalho. E lá faltavam igualmente os objetos de arte; viam-se, como curiosidades trazidas do Oriente, apenas um pé de múmia, uma bandeja persa de cobre em relevo na qual jogava suas penas e alguns pequenos objetos sem valor. Entre as duas janelas, encontrava-se o busto em mármore de uma irmã que ele adorava e que falecera ainda jovem. É tudo, se acrescentarmos gravuras, retratos de colegas de infância e de antigas amigas. Mas o cômodo, em sua desordem, com seu tapete gasto, suas velhas poltronas, seu amplo divã, sua pele de urso branco tendendo ao amarelo, cheirava a trabalho, a luta enraivecida contra as frases rebeldes. Para nós, Flaubert inteiro estava lá. Evocávamos sua existência inteira vivida nesse cômodo, no meio dos livros tão amiúde consultados, caixas nas quais guardava suas anotações, objetos familiares que não gostava que fossem removidos de seu lugar habitual, por uma mania de homem sedentário.
Em Paris, não o conheci em seu apartamento do Bulevar do Templo. A casa era vizinha ao teatro do Petit-Lazare. Ela ainda existe, num recanto onde vieram se juntar as novas casas. Ele residiu nessa casa durante quinze anos. Foi lá que nasceu sua glória e que experimentou suas grandes alegrias. Lá também publicou suas três primeiras obras: Madame Bovary, Salambô e A Educação Sentimental. Acontecia todo um movimento em torno dele, admiradores vinham saudá-lo. Seus íntimos dessa época eram Edmond e Jules de Goncourt, Théophile Gautier, Taine, Feydeau e outros mais. Ele os reunia todos os domingos, à tarde; e eram profusões de conversações, de anedotas licenciosas e de discussões literárias. O Império, que queria ter seus escritores, tinha-lhe feito gentis adiantamentos; ia a Compiègne, tornara-se um dos hóspedes habituais do Palais-Royal onde a princesa Mathilde conseguira reunir grandes talentos.
Após a guerra, foi habitar à Rua Murillo; sua residência, composta de três pequenos cômodos, no quinto andar, dava para o Parque Monceau, uma vista extraordinária que o havia motivado. Fez forrar os cômodos de um cretone de grandes ramagens; mas foi seu único luxo, e como em Croisset faltavam os bibelôs, havia apenas uma sela árabe, trazida da África, e uma pintura dourada de Buda, comprada num revendedor de Rouen. Foi lá que entrei em sua intimidade. Ele estava nessa época só, muito desencorajado. O insucesso de A Educação Sentimental havia-lhe aplicado um terrível golpe. Por outro lado, ainda que não tivesse nenhuma convicção política, a queda do Império parecia-lhe o fim do mundo. Terminava, nesse momento, A Tentação de Santo Antão, penosamente e sem alegria. No domingo, só encontrava lá Edmond de Goncourt, ele também afetado pela morte de seu irmão, não ousando mais tocar uma pena e muito triste. Foi na Rua Murillo que Alphonse Daudet se tornou, como eu, um dos fiéis de Flaubert. Com Maupassant, éramos os únicos íntimos. Esqueço Turgueniev, que era o amigo mais sólido e mais caro. Um dia, Turgueniev nos traduziu a livro aberto páginas de Goethe, em frases vibráteis, de um charme penetrante. Eram tardes deliciosas, com um grande fundo de tristeza. Recordo-me sobretudo de um domingo de carnaval em que, enquanto as trompas soavam nas ruas, escutei até à noite Flaubert e Goncourt lamentarem o passado.
Depois, Flaubert se mudou uma vez mais e foi habitar o 210 da Rua do Faubourg Saint-Honoré. Queria se aproximar de sua sobrinha, tomado pelo tédio dos velhos celibatários; um dia, ele, o celibatário enrijecido, falou-me sobre seu arrependimento de não se ter casado; um outro dia, encontraram-no chorando diante de uma criança. O apartamento da Rua do Faubourg Saint-Honoré era mais vasto; mas as janelas davam para um mar de telhados eriçados de chaminés.
Flaubert não se deu nem mesmo o trabalho de mandar decorá-lo. Apenas instalou reposteiros de seu antigo cretone de ramagens. O Buda foi colocado sobre a chaminé, e as tardes recomeçaram no salão branco e dourado, onde se sentia o vazio, uma instalação provisória, um tipo de acampamento. E preciso dizer que, por essa época, a ruína financeira abateu Flaubert. Havia dado sua fortuna à sobrinha, cujo marido encontrava-se metido em negócios difíceis; todo o seu grande coração estava aí, mas o fato ultrapassava, talvez, suas forças, titubeava diante da miséria ameaçadora, ele que nunca tivera de ganhar seu pão. Por um instante, temeu nunca mais poder vir a Paris; e, durante os dois últimos invernos, não veio, com efeito. Entretanto, foi na Rua do Faubourg Saint-Honoré que o vi renascer com sua voz tonante e seus grandes gestos. Pouco a pouco, habituara-se ao novo estado de coisas, enfrentava todas as situações com o desdém de um poeta. Além disso, os Três Contos, nos quais trabalhava, o divertiam muito. Seu círculo ampliara-se, jovens vinham à sua casa, éramos às vezes uma vintena, no domingo. Quando Flaubert surge em nossa lembrança, nós, seus íntimos dos últimos anos, é nesse salão branco e dourado que o vemos, postando-se diante de nós com um movimento de calcanhares que lhe era familiar, enorme, mudo, com seus grandes olhos azuis, ou então explodindo em paradoxos terríveis, lançando os dois punhos ao teto.
Eu gostaria de apresentar aqui uma fisionomia dessas reuniões de domingo. Mas é bem difícil, pois se falava nelas, com freqüência, uma língua licenciosa, condenada na França desde o século XVI. Flaubert, que durante o inverno usava um solidéu e uma bata acolchoada de vigário, mandou fazer para o verão uma ampla calça listrada, branca e vermelha, e um tipo de túnica que lhe dava um falso ar de turco em negligé. Era para estar bem à vontade, dizia ele; estou propenso a acreditar que também havia nisso um resquício dos antigos costumes românticos, pois o conheci com calças quadriculadas, sobrecasacas plissadas na cintura e o chapéu de abas largas, resolutamente tombado sobre a orelha. Quando senhoras se apresentavam no domingo, o que era raro, e o encontravam vestido de turco, ficavam bastante assustadas. Em Croisset, quando passeava em semelhantes vestes, os passantes paravam na estrada para observá-lo através da grade; há mesmo uma lenda que diz que os burgueses de Rouen, indo a La Bouille de barco, levavam seus filhos, prometendo mostrar-lhes o Sr. Flaubert se permanecessem bem-comportados. Em Paris, ele próprio vinha abrir, freqüentemente, a porta ao toque da campainha; abraçava a pessoa se ela lhe fosse muito importante, e se não a tivesse visto há algum tempo; e entrava com ela na fumaça do salão. Lá se fumava terrivelmente. Mandava fabricar para seu uso pequenos cachimbos que queimava com um cuidado extremo; às vezes o encontrávamos limpando-os, ordenando-os num porta- cachimbos; e, quando estimava bastante uma pessoa, mantinha os cachimbos à sua disposição e chegava a presenteá-la com um deles. Era das três às seis horas, um galope através dos temas; a literatura sempre retornava, o livro ou a peça do momento, as questões gerais, as teorias mais arriscadas; mas faziam-se zombarias em todas as matérias, não se poupando nem os homens nem as coisas. Flaubert troava, Turgueniev tinha histórias de uma originalidade e de um sabor deliciosos, Goncourt julgava com elegância e estilo muito pessoal, Daudet contava suas anedotas com esse encanto que faz dele um dos companheiros mais adoráveis que conheço. Quanto a mim, eu não brilhava absolutamente, pois sou um bem medíocre conversador. Sou bom apenas quando tenho uma convicção e/ou me aborreço. Que felizes tardes passamos, e que tristeza quando se pensa que essas horas nunca mais voltarão, pois Flaubert era nosso elo, seus dois grandes braços paternais nos reuniam!
Foi ele quem teve a idéia de nosso jantar dos autores vaiados. Foi depois de O Candidato. Nossos títulos eram: de Goncourt, Henriette Maréchal; de Daudet, Lise Tavernier; no que me diz respeito, todas as minhas peças. Quanto a Turgueniev, ele nos jurou que o vaiaram na Rússia. Reuníamo-nos, os cinco, portanto, cada mês num restaurante; mas a escolha desse restaurante era um caso sério, e fomos um pouco em todos os lugares, passando do frango ao curry à caldeirada. Desde a sopa, as discussões e as anedotas começavam. Lembro-me de uma terrível discussão sobre Chateaubriand, que durou das sete horas da noite à uma da manhã; Flaubert e Daudet o defendiam, Turgueniev e eu o atacávamos, Goncourt permanecia neutro. Outras vezes, abordava-se o capítulo das paixões, falávamos do amor e das mulheres; e, nessas noites, os garçons olhavam-nos com um ar de espanto. Depois, como Flaubert detestava retornar sozinho, eu o acompanhava pelas ruas escuras e ia dormir às três horas da manhã, após ter filosofado nas esquinas de cada cruzamento.
As mulheres haviam ocupado pouco espaço na existência de Flaubert. Aos vinte anos, ele as tinha amado como trovador. Contava-me que outrora fazia duas léguas para dar um beijo na cabeça de um terra-nova, que uma senhora afagava. Sua idéia do amor se encontra em A Educação Sentimental: uma paixão que preenche a existência e que nunca se contenta. Sem dúvida, tinha seus arrebatamentos de desejo; era um folgazão sólido em sua juventude e visitava os bordéis como os marujos. Mas isso não ia mais longe, punha-se em seguida tranqüilamente ao trabalho. Tinha pelas garotas um verdadeiro sentimento paternal; uma vez, nos bulevares exteriores, ao retornarmos, viu uma garota muito feia que o fez apiedar-se e à qual quis dar cem vinténs: ela nos bombardeou de injúrias, dizendo que não pedia esmolas e que ganhava seu pão. D vício familiar e sem arrogância parecia-lhe cômico, provocava-lhe um riso à Rabelais; ele era cheio de solicitude pelos homens másculos, adorava suas histórias e declarava que elas o reanimavam. Repetia: "Eis a saúde, isso nos dá ânimo". Combinem esse gosto pelas damas alegres e fáceis com seu ideal de amor sem fim por uma mulher a quem se veria uma vez por ano, sem esperança. De resto, repito-o, as mulheres não o abalavam absolutamente. Acabava logo. Ele próprio o dizia, havia carregado como um fardo as poucas ligações de sua existência. Nós nos entendíamos nessas matérias, com freqüência me confessava que seus amigos foram-lhe sempre mais importantes, e que suas melhores lembranças eram noites passadas com Bouilhet, fumando cachimbos e conversando. As mulheres, por sinal, sentiam que ele não era um efeminado; brincavam com ele e o tratavam como camarada. Isso julga um homem. Estudem o feminino em Sainte-Beuve, e comparem.
Apresento aqui minhas observações sobre Flaubert um pouco ao acaso. São alguns traços que devem completar sua fisionomia. Ainda há pouco eu falava do estremecimento que ele sofreu quando da queda do Império. Tinha, entretanto, ódio pela política, professava em seus livros o vazio do homem, a imbecilidade universal. Todavia, na prática, acreditava na hierarquia, tinha respeito, o que nos surpreendia, nós que somos de uma geração cética; uma princesa, um ministro sobressaíam, a seus olhos, do comum, e inclinava-se, "deslumbrava-se", como nos permitíamos dizer entre nós. É portanto fácil compreender seu espanto pela desorganização brusca de um regime, cuja pompa tinha-o ofuscado. Numa carta escrita a Ernest Feydeau, após a morte de Théophile Gautier, ele fala da "infecção moderna", declara que, desde o 4 de Setembro, tudo acabara para ele. Quando de minhas primeiras visitas, ele me interrogava curiosamente sobre os demagogos, que acreditava serem meus amigos. O triunfo das idéias democráticas parecia-lhe ser a agonia das letras. Em suma, não amava sua época, e voltarei a falar desse ódio que muito influía sobre seu temperamento literário. Em pouco tempo, por sinal, o espetáculo de nossas lutas políticas o encheu de desgosto; seus antigos amigos, os bonapartistas, pareceram-lhe tão estúpidos e tão ineptos quanto os republicanos. Insisto porque é preciso estabelecer que nenhum partido poderia reivindicá-lo. Fora de seus instintos autoritários e de sua crença no poder, mesmo em seus representantes mais medíocres, tinha um vastíssimo desprezo pela humanidade. Encontro nele um exemplo bastante freqüente, entre os grandes escritores, de um revolucionário que tudo destrói sem ter a consciência de sua terrível ação, e apesar de uma bonomia que o faz crer nas convenções sociais e nas mentiras das quais está cercado.
É preciso observar aqui um outro traço característico Flaubert era um provinciano Um de seus velhos amigos dizia um pouco maldosamente: “Esse diabo de Flaubert, quanto mais vem a Paris, mais se torna provinciano". Compreendam quanto a isso que ele conservava ingenuidades, ignorâncias, preconceitos, indelicadezas de homem que, ainda que conhecendo muito sua Paris, nunca tinha sido penetrado por seu espírito de troça e de leveza espiritual. Eu o comparei a Corneille, e aqui a semelhança se afirma uma vez mais. Era o mesmo espírito épico, ao qual a tagarelice e as finas nuanças escapavam. Observaram com razão que Madame Bovary era sua obra mais vivida, e que, em A Educação Sentimental, o lado parisiense oferecia, às vezes, um toque pesado e confuso; o salão de Mme Dambreuse, por exemplo, parece-se mais com um harém do que com uma reunião de jovens mulheres levadas à rua de Paris. Ele via com olhos humanos, perturbava-se no espírito e na moda. Esse lado provinciano encontrava-se no homem disposto a crer em tudo, em quem faltava esse ceticismo que põe de sobreaviso; nunca alguém foi mais enganado do que ele pelas aparências, eram necessárias as catástrofes para abrir-lhe os olhos. Sem amar o mundo, sofrendo muito com o calor dos salões, via-se forçado a visitas, vestia sua casaca preta com uma certa solenidade, ainda que gracejando; e, quando estava vestido, engravatado e com luvas brancas, postava-se à nossa frente com o habitual estardalhaço: "Eis, meu amigo!", em que se manifestava um pouco da alegria infantil de um simples romancista que se dirige aos grandes. Tudo isso era repleto de bonomia e nos enternecia, mas o burguês de província aparecia no fundo.
Sim, a grande palavra foi pronunciada: Flaubert era um burguês, e o mais digno, o mais escrupuloso, o mais sério que se pudesse ver. Ele próprio o dizia com freqüência, orgulhoso pela consideração da qual gozava, por sua vida inteira dedicada ao trabalho; o que não o impedia de degolar os burgueses, fulminá-los em cada oportunidade com suas cóleras líricas. Essa contradição se explica facilmente. De início, Flaubert havia crescido em pleno romantismo, no meio dos terríveis paradoxos de Théophile Gautier, que teve sobre ele uma influência pela qual todos nós fomos atingidos; falo aqui de uma influência bem exterior, pois o único homem que o influenciou verdadeiramente em suas obras foi Louis Bouilhet. Assim, é preciso distinguir, a injúria aos burgueses era em sua boca um anátema generalizado e lançado à cabeça da humanidade estúpida; por burguês, entendia os imbecis, os estropiados, aqueles que negam o sol, e não as pessoas honradas que vivem sem alvoroço, no canto de sua lareira. Acrescentarei que suas grandes cóleras chegavam fácil e subitamente. Ele gritava muito forte, gesticulando, enrubescido; em seguida, acalmava-se bruscamente, era como ares de bravura que, em sua intimidade com os homens de 1830, tinha aprendido a representar para si mesmo. Em relação a isso, contaram-me que um escritor russo, com quem Turgueniev nos fez jantar, ficou de tal forma surpreendido com essa violência um pouco teatral de Flaubert que, num artigo no qual falou dele posteriormente, acusou-o de "fatuidade". Essa palavra me parece tão imprópria que protesto com toda a minha energia. Flaubert era de uma boa-fé absoluta em suas cóleras, a tal ponto que freqüentemente corria o risco da apoplexia e que tínhamos que abrir as janelas para que pudesse respirar; mas concordo que tinha havido sem dúvida um treinamento anterior, que , literatura, o amor pela força e pela explosão estavam em muito ligados à sua atitude. O que constato, por sinal, é que esse homem tão violento em palavras nunca teve uma violência de ação. Era de uma doçura paternal com seus amigos e só se aborrecia contra os imbecis. E ainda, com sua bonomia, com uma falta de senso crítico sobre a qual retornarei, não tratava todos os imbecis tão severamente. Um lugar-comum escapado por acaso lançava-o fora de si, quando tolerava mediocridades e chegava até a defendê-las. A estupidez habitual, a vulgaridade cotidiana e da qual ninguém está inteiramente liberto, o exasperavam ainda mais do que esse vazio doloroso do homem que ele tão amplamente pintou em suas obras. Esses dois traços o caracterizam muito fielmente: gritava tanto quanto podia, sua facilidade de se enganar sobre os homens e sobre as coisas igualava sua facilidade de se pôr em cólera. Era um coração muito bom, cheio de infantilidades e inocências, um coração muito caloroso, que explodia em indignações ao menor ferimento. Seu encanto poderoso encontrava-se aí, e eis por que nós o adorávamos como a um pai.
Minhas primeiras visitas a Flaubert foram uma grande desilusão, quase um sofrimento. Eu chegava com todo um Flaubert construído em minha cabeça, segundo suas obras, um Flaubert que era o pioneiro do século, o pintor e o filósofo de nosso mundo moderno. Eu o imaginei como que abrindo uma nova via, fundando um Estado regular na província conquistada pelo romantismo, caminhando para o futuro com força e confiança. Numa palavra, eu ia procurar o homem de seus livros e me deparei com um terrível folgazão, espírito paradoxal, romântico impenitente, que me aturdia durante horas sob um dilúvio de teorias estupefacientes. A noite, eu voltava doente para casa, moído, aturdido, dizendo-me que o homem era em Flaubert inferior ao escritor. Depois, voltei atrás sobre esse julgamento, experimentei o sabor de um temperamento tão cheio de contradições, habituei-me, e por nada no mundo eu teria desejado que mudassem meu Flaubert. Mas a primeira impressão não foi menos uma decepção, decepção que vi se reproduzir em todos os jovens que se aproximaram dele.
Por exemplo, como vocês queriam que se estudasse sem surpresa o que ele dizia de Madame Bovary? Jurava ter escrito esse livro apenas para "irritar" os realistas, Champfleury e seus amigos; queria mostrar-lhes que se poderia ser simultaneamente um pintor exato do mundo moderno e um grande estilista. E isso era dito tão categoricamente que chegávamos a nos perguntar se ele tivera consciência de sua obra, se havia previsto a evolução que ele iria produzir nas letras. Na verdade, duvido disso hoje; muitos gênios criadores encontram-se nessa posição, ignoram o novo século que produzem. Todas as suas teorias concluíam contra a fórmula que nós, seus seguidores, tomamos em Madame Bovary. Assim, ele declarava com sua voz tonante que o moderno não existe, que não há temas modernos; e quando, espantados por essa afirmação, nós o pressionávamos para explicar, acrescentava que Homero era tão moderno quanto Balzac. Se ele tivesse dito humano, teríamos concordado; mas moderno era inaceitável. De resto, parecia negar as evoluções em literatura. Discuti vinte vezes com ele sobre isso, sem conseguir fazê-lo confessar, com a história de nossa literatura à mão, que os escritores não surgiam como fenômenos isolados; apóiam-se uns aos outros, formam uma cadeia exibindo certas curvas, segundo os costumes e as épocas históricas. Ele, como individualista encarniçado, esbravejava palavrões: não dava a mínima (usem uma outra expressão), isso não existia, cada escritor era independente, a sociedade nada tinha a ver com a literatura, era preciso escrever um belo livro e nada além disso. É verdade, eu concordava que seria imbecil querer fundar uma escola; mas eu acrescentava que as escolas se fundam por si mesmas e que é preciso aceitá-las. O mal-entendido continuou entre nós até o final; sem dúvida ele acreditava que eu sonhava regular os temperamentos, quando eu fazia simplesmente um trabalho de crítico, constatando os períodos que se haviam desenvolvido no passado e que ainda se desenvolvem sob nossos olhos. Nos dias em que ele explodia contra as etiquetas, as palavras em ismo, eu lhe respondia que são necessárias, todavia, palavras para constatar fatos; com freqüência, inclusive, essas palavras são forjadas e impostas pelo público, que precisasse reconhecer, no meio do trabalho de seu tempo. Em suma, nós nos entendíamos quanto ao livre desenvolvimento da originalidade, tínhamos a mesma filosofia e a mesma estética, os mesmos ódios e as mesmas ternuras literárias; nossa discordância só começava se eu procurava levá-lo mais à frente, remontando do escritor ao grupo, procurando saber de onde vinha nossa literatura e para onde ela ia.
Se não sou aqui muito claro, é que na verdade nunca compreendi muito bem o conjunto de suas idéias sobre a literatura. Elas me pareciam muito incoerentes, partiam bruscamente na conversação com uma rigidez de paradoxo e um estrondo de trovão, na maioria das vezes cheias de contradições e imprevistos. Talvez fosse eu que quisesse colocar um pouco de lógica entre o pensador e o escritor em Flaubert. Eu teria desejado que o autor de Madame Bovary amasse o mundo moderno, que se desse conta da evolução da qual ele era um dos agentes mais fortes; e isso me entristecia por me deparar com um romântico que "esbravejava" contra as ferrovias, os jornais e a democracia, com um individualista para quem um escritor era um absoluto, um simples fenômeno de retórica. No dia de nossa terrível discussão sobre Chateaubriand, como sustentava que na literatura só a frase bem-feita importava, eu o exasperei ao dizer: "Há algo mais que frases bem-feitas em Madame Bovary, e é por esse algo mais que essa obra viverá. Diga o que quiser, você desferiu o primeiro golpe no Romantismo". Então, exclamou que Madame Bovary era m..., que não se cessava de importuná-lo com esse livro, que o daria de bom grado por uma frase de Chateaubriand ou de Hugo. Recusava-se absolutamente a ver outra coisa além da literatura nos romances dos outros e inclusive nos seus; negava neles, não direi o progresso, mas até o movimento das idéias; bela língua, nada mais. E seu individualismo, seu horror pelos grupos, provinha de um grande orgulho. Uma de suas palavras favoritas, quando se expunham seus princípios num prefácio e se ligava isso a um movimento qualquer, era: "Seja, portanto, mais orgulhoso!" Fazer frases corretas e extraordinárias, e fazê-las em seu canto, como beneditino que dá a vida inteira à sua tarefa, tal era o ideal literário de Flaubert.
Eu disse uma palavra sobre seu ódio ao mundo moderno. Esse ódio explodia em todas as suas palavras. Adquirira-o em sua intimidade com Théophile Gautier, pois, no ano passado, quando li o volume de memórias publicado por Bergerat sobre seu sogro, fiquei estupefato ao reencontrar todo o meu Flaubert nos paradoxos sem interrupção de cadência do autor de Mademoiselle de Maupin. Era o mesmo amor pelo Oriente, a paixão pelas viagens, longe dessa abominável Paris, burguesa e mesquinha. Flaubert se dizia nascido para viver no Oriente, sob uma tenda; o aroma do café causava-lhe alucinações de caravanas em marcha; comia os pratos mais abomináveis com veneração, desde que tivessem um nome exótico Eram as mesmas diatribes contra todas as nossas invenções, a simples visão de uma máquina lançava-o fora de si, numa crise de antipatia nervosa. Tomava a ferrovia para ir a Rouen simplesmente para economizar tempo, dizia; mas não cessava de resmungar durante toda a viagem. Eram ainda as mesmas zombarias diante dos costumes e das novas artes, uma contínua nostalgia da velha França, segundo sua expressão, um tipo de cegueira voluntária e de medo tenebroso diante do futuro; a ouvi-lo, o amanhã nos faltaria, caminharíamos para um abismo negro, e, quando eu afirmava minhas crenças no século XX, quando eu dizia que nosso vasto movimento científico e social devia resultar numa plenitude da humanidade, observava-me com seus grandes olhos azuis e sacudia os ombros. De resto, essas eram questões gerais que ele não abordava; preferia permanecer na técnica literária. Todavia, reservava suas cóleras principalmente para a imprensa; o alvoroço dos jornais, a importância que eles se dão, as asneiras que imprimem fatalmente na pressa com a qual são feitos, deixavam-no enfurecido Falava em suprimi-los a todos de um só golpe O que o feria particularmente eram os detalhes que às vezes se dava sobre sua pessoa. Achava isso inconveniente e dizia que o escritor só pertencia ao público. Fui muito mal-recebido um dia em que me arrisquei a dizer-lhe que, em suma, o crítico que se ocupava de sua roupa e de sua alimentação fazia sobre ele o mesmo trabalho de análise que ele próprio, romancista, fazia sobre as personagens das quais observava as figuras na vida. Essa lógica o transtornou, nunca quis concordar que tudo caminha simultaneamente e que a imprensa de informações é a irmã caçula, muito malcuidada, se preferirem, de Madame Bovary. Por sinal, esse homem tão feroz que falava em enforcar todos os jornalistas vertia lágrimas assim que o último dos plumitivos escrevia um pequeno artigo sobre ele. Via nele talento, carregava o jornal no bolso. Com dez anos de intervalo, repetia de memória frases escritas sobre seus livros, ainda tocado pelos elogios e vibrando com as críticas. Permaneceu sempre um principiante, por esse frescor de impressão. Rico e trabalhando em suas obras, não tendo percorrido a imprensa, ignorava-a, desprezando-a enormemente às vezes, e outras vezes acreditando muito nela. Ainda que se encolerizasse contra toda publicidade, freqüentemente um reclame, um simples anúncio o encantava. Tinha, como todos nós, infelizmente, essa necessidade doentia de ocupar o mundo com sua pessoa. Entretanto, fazia-o com uma ingenuidade de criança grande. Algumas semanas antes de sua morte, como La Vie Moderne publicava seu espetáculo Le Château des Coeurs, ficou encantado porque o jornal encontrava-se nas vitrines das livrarias de Rouen, onde sua velha empregada de Croisset tinha-o visto. "Estou me tornando um grande homem", escrevia. Não é essa uma observação preciosa?
Essa bonomia tão encantadora provinha de uma absoluta falta de crítica. É preciso que se entenda, ele era muito bom juiz para si mesmo e possuía uma vastíssima erudição; todavia em suas opiniões sobre os outros, faltavam as proporções, sua credulidade o levava a singulares indulgências, enquanto sua teimosia em nunca generalizar, em não levar em conta a história das idéias, afundava-o em severidades de puro retórico. Às vezes, testemunhava, assim, admirações que nos surpreendiam, ainda mais porque se mostrava de uma injustiça revoltante em relação aos talentos que lhe eram antipáticos. Para me fazer compreender claramente, devo retornar ainda a seu ideal literário. Com freqüência, repetia: "Tudo foi dito antes de nós, temos apenas de redizer as mesmas coisas, numa forma mais bela, se possível". Acrescentem que, quando se inflamava numa discussão, chegava a negar tudo o que não era o estilo; e eram, então, afirmações que nos consternavam, os homens simplórios não existiam num livro, a verdade era uma troça, as anotações não serviam para nada, uma única frase bem-feita bastava para a imortalidade de um homem; palavras tanto mais perturbadoras quanto ele próprio reconhecia cometer a asneira de perder seu tempo em reunir documentos e querer construir apenas figuras exatas e vivas. Que caso estranho e profundo, o autor de Madame Bovary e de A Educação Sentimental desprezando a vida, desprezando a verdade e acabando por se matar no tormento cada vez mais agudo unicamente pela perfeição do estilo! Compreender-se-á desde logo suas admirações e seus ódios literários. Conhecia de cor frases de Chateaubriand e de Victor Hugo, que declamava com uma ênfase extraordinária. Goncourt dizia rindo que anúncios cantados nesse tom teriam parecido sublimes. E Flaubert não saía dessas frases, a seus olhos todo o Chateaubriand e todo o Hugo pareciam estar nelas. Naturalmente, pelas mesmas razões, tinha por Mérimée pequenas estima e execrava Stendhal. Denominava este último: Sr. Beyle, assim como denominava Musset: Sr. de Musset. Para ele, o poeta era apenas um amador que tivera o mau gosto de zombar da língua e abandonar a prosódia. Quanto a Stendhal, não era um zombeteiro afetado que se gabava de ler todas as manhãs uma página do Código para pegar o tom? Conhecíamos esse grande psicólogo, segundo a expressão de Taine, tão antipático a Flaubert que inclusive evitávamos pronunciar seu nome. Acrescentarei aqui que era muito difícil discutir com Flaubert quando não se partilhava sua opinião; pois ele não discutia calmamente, como homem que tem argumentos a fazer valer e que consente em escutar os de seu adversário, com o desejo de se informar; procedia por afirmações violentas e perdia quase imediatamente a cabeça, se não nos dobrássemos diante dele. Então, para evitar-lhe uma contrariedade, para não fazê-lo correr o risco de uma congestão cerebral, concordávamos com ele ou então nos mantínhamos em silêncio. Era absolutamente inútil querer convencê-lo.
Felizmente, ao lado do estilista impecável, desse retórico enlouquecido de perfeição, há um filósofo em Flaubert. É o negador mais amplo que tivemos em nossa literatura. Professa o verdadeiro niilismo — uma palavra em ismo que o teria colocado fora de si —, não escreveu sequer uma página na qual não tivesse aprofundado nossa insignificância. O mais estranho é, repito-o, que esse pintor do aborto humano, esse cético amargo, fosse no fundo um homem tão terno e tão ingênuo. Enganar-nos-íamos enormemente se o imaginássemos como um Jeremias lamentando-se pela ruína continua do mundo; na intimidade, não lamentava estas questões, blasfemava algumas vezes contra as pequenas misérias da existência, mas sem lirismo. Um homem gentil, eis sua descrição. Seu incômodo tão particular demandaria também ser estudado. A estupidez o atraía por um tipo de fascinação. Quando descobria um documento de grande estupidez, era para ele um júbilo, falava dele durante semanas. Recordo-me que havia reunido uma coletânea de peças em versos unicamente escritas por médicos; forçava-nos a escutar trechos desses versos, que lia com sua voz mais retumbante, e surpreendia-se quando não explodíamos como ele num riso enorme. Um dia, fez esta triste reflexão: "É singular, rio agora de coisas de que ninguém mais ri". Em Croisset, possuía estranhas coleções em suas pastas: autos de guardas campestres, peças de processos curiosos, imagens infantis e estúpidas, todos os documentos da imbecilidade humana que pôde reunir. Observem que seus livros estão inteiros nisso, nunca fez outra coisa senão estudar essa imbecilidade, mesmo nas visões esplêndidas de A Tentação de Santo Antão. Ele simplesmente lançava seu admirável estilo sobre a estupidez humana, e refiro-me à mais vulgar, à mais terra-a-terra, com, às vezes, grandes escapadas de poeta ferido. Seu cômico não é o espírito desenvolto do século passado, o riso fino e malicioso, o ataque ferino; mas um cômico que remonta ao século XVI, de sangue mais espesso e de pata mais pesada, gentil e brutal ao mesmo tempo, que deixa marca. Isso explica ainda sua falta de sucesso nos salões e junto às mulheres. Viam nele uma alegria de caixeiro-viajan-te. Na intimidade, era terrível quando falava sem reservas.
Eis, portanto, traços de sua fisionomia, que poderão ajudar a reconstruí-la. Por mim, resumo dizendo que ele não quis a evolução trazida ao romance por Madame Bovary, e que sempre recusou ver e medir suas conseqüências. Esse livro foi simplesmente um produto de seu temperamento que se encontrou na confluência de Balzac e de Victor Hugo. Pôs sua glória em ser um retórico, quando foi ainda mais um observador e um experimentador. Estudando-se nele o escritor, vê-se facilmente como suas diversas faculdades, as contradições aparentes que trazia, fizeram dele o romancista que foi, sem que tenha resolvido sê-lo.
Passo agora aos livros de Gustave Flaubert.
Devemos nos lembrar de que ele estreou somente aos trinta e cinco anos, em 1856. Seus amigos pareciam inclusive ter uma confiança bastante medíocre em seu futuro. Isso indicaria que, até lá, havia hesitado, fracassado em tentativas, mostrando as indecisões e os abortos de seu Frédéric Moreau; afirmaram-me, com efeito, que antes de Madame Bovary escrevera três obras consideráveis, cujos manuscritos não existem mais. Entretanto, nunca falava de suas primeiras tentativas; citava apenas, zombando, um tipo de tragédia cômica sobre a vacina. Sem dúvida rimara muitos versos medíocres, que talvez se encontrem entre seus papéis. Louis Bouilhet era então o grande homem do grupo, e Maxime Du Camp já possuía um nome quase célebre, quando Flaubert ainda se debatia nas incertezas de um penoso começo. Estou certo de que, apesar de seu amplo coração, sofreu por essa situação, por essa primeira impotência em que seu gênio permanecia paralisado, enquanto talentos inferiores produziam-se tão facilmente e pareciam mantê-lo em desdém. Explico assim a admiração exagerada que sempre professou por Bouilhet, como homem que tinha visto outrora um mestre nesse poeta de segunda classe.
O aparecimento de Madame Bovary foi portanto uma surpresa. Esse livro, escrito após a viagem ao Oriente, teria sido inspirado, segundo dizem, pela leitura de uma simples notícia de jornal, o suicídio da mulher de um médico que Flaubert conhecia. Por outro lado, Maxime Du Camp me escreveu: "Madame Bovary é um livro que lhe foi imposto, que ele próprio se impôs e que saiu de circunstâncias totalmente especiais, muito dolorosas para ele"; e creio saber que Du Camp reserva a explicação dessa frase misteriosa para um estudo que pretende escrever sobre Flaubert. Pouco importa, por sinal; o autor desconhecido, trabalhando em seu canto, chegava com esses escritores enormemente originais que iriam transformar o romance: eis a grande questão. Não creio que os amigos de Flaubert tenham então sentido a importância de tal obra. Lia para eles trechos, e sustenta-se que eles o faziam efetuar numerosas correções, do que eu duvido muito, pois o Flaubert dos últimos anos não era homem para mudar uma vírgula. De resto, todos engajados no movimento romântico, deviam, assim como ele, encarar Madame Bovary como uma boa zombaria lírica feita aos realistas da época. Conhece-se o processo ridículo movido contra o autor e o sucesso retumbante do romance. Em relação a isso, observo que Flaubert, apesar de sua bonomia, não esquecia facilmente as injúrias; sempre guardou rancor de Pinard, que lançou contra ele seu famoso requisitório hoje tornado um monumento de bufonaria. O livro rendeu muito pouco ao romancista, oitocentos francos, creio; seria preciso contar essa história completamente, pois ela é uma página curiosa de nosso mercado de livros. E verdade que, mais tarde, vendeu bastante caro ao mesmo editor Salambô e A Educação Sentimental. Mas o que quero claramente estabelecer é o singular ódio que Flaubert concebeu pouco a pouco contra Madame Bovary. Depois de suas outras obras, como lhe lançavam sempre seu primeiro romance ao rosto, como se lhe repetia: "Dê-nos uma outra Madame Bovary", pôs-se a amaldiçoar essa filha primogênita que causava semelhante dano a suas irmãs mais novas. Isso foi tão longe que um dia declarou-nos seriamente que, se não precisasse de dinheiro, ele o teria retirado do comércio, impedindo que se fizessem novas edições. Talvez ele também experimentasse, em seu coração de romântico, uma secreta tristeza em ver o terrível crescimento naturalista que sua obra havia produzido em nossa literatura. Encontro aí a inconsciência da qual falei.
Tenho poucas observações sobre Salambô. O sucesso foi ainda retumbante; lembro-me dos gracejos da pequena imprensa, das caricaturas, das paródias. O alvoroço tornou-se enorme, principalmente depois que uma grande dama mostrou-se em traje de Salambô num baile das Tulherias. O livro havia sido publicado em 1862. Havia custado a Flaubert um trabalho considerável de pesquisas, sem falar da viagem que fizera a Túnis. Devemos também nos lembrar da violenta polêmica que sustentou com um douto, Sr. Froehner, que contestava a exatidão de seus documentos. Revoltou-se igualmente, mas com cordialidade, contra o artigo em que Sainte-Beuve falava de uma "ponta sádica". Foram as duas únicas ocasiões em que se deixou levar pela polêmica. Era naquele momento muito íntimo de Sainte-Beuve, a quem encontrava na casa da princesa Mathilde e em seu jantar de Magny, do qual tanto se falou. Foi também em Magny que se ligou a outros convidados. Taine, Renan, Paul de Saint-Victor, o príncipe Napoleão, sem falar de Théophile Gautier e dos Goncourt. Georges Sand, creio, apareceu lá várias vezes. Ela gostava muito de Flaubert, tuteava-o e escrevia-lhe longas cartas, ainda que eles não se entendessem absolutamente sobre a literatura; recordo-me de uma discussão entre eles, a propósito de Sedaine, a quem ela exaltava e ele declarava ser água clara; quando ela morreu, ele ficou muito triste. Para terminar com Salambô, encontrei-o triste um dia em que ele acabava de rever as provas da edição definitiva que foi publicada ultimamente; e disse-me que um bom terço da obra agora lhe parecia muito longo. Quanto mais avançava, mais necessitava de sobriedade. A sobriedade é a perfeição.
Em suma, o livro que mais o fez sofrer foi A Educação Sentimental. Havia colocado todo o seu esforço nessa obra, remexendo as bibliotecas, consultando os jornais e as gravuras, dando-se uma enorme dificuldade para reconstituir os lugares, que se transformaram singularmente após quarenta anos. Quando um escritor passa seis ou sete anos sobre uma obra, quando emprega nela semelhante soma de trabalho e de vontade, dá naturalmente a essa obra uma importância considerável. Flaubert estava, portanto, persuadido de que lançava uma obra bem superior a Madame Bovary, e cujo aparecimento devia causar um formidável impacto no público. De resto, nunca publicou um livro sem crer fortemente no sucesso, com uma confiança de criança e uma ignorância das condições da venda em livraria que lembravam os belos sonhos de Balzac. Zombou-se muito dele, na época, pela pretensa caixa de madeira das ilhas, na qual havia trazido A Educação Sentimental de Croisset para Paris; essa caixa era de madeira branca, Flaubert explicava que mandara fazê-la pelo marceneiro de sua vila, para transportar com maior facilidade e segurança seu manuscrito, que era enorme; acrescentem que ele devia ler trechos da obra na casa da princesa Mathilde, e que não teria sabido como se apresentar, com um tal pacote de papel nos braços. O romance saiu no final de 1869. 0 sucesso de venda foi medíocre, os jornais atacaram a obra com violência e Flaubert caiu bruscamente das alturas de seu sonho. A queda foi tão dolorosa que ele se ressentiu dela até o fim. O que lhe foi mais sensível foi o silêncio que em breve envolveu A Educação Sentimental; declararam-na entediante até à morte, e ninguém voltou a falar dela. Correu a encerrar-se em Croisset; era seu refúgio nas grandes tristezas. Quando fomos vê-lo ultimamente, dizia-nos mostrando seu gabinete: "Eis um cômodo onde trabalhei muito e onde sofri ainda mais". Isso me tinha vivamente emocionado, pois conheço esse sofrimento do cérebro que se devora na solidão. Lá, ocultava todas as suas aflições; soluçava sobre esse divã onde morreu, agonizava nessa mesa sobre a qual riscava tantas frases rebeldes. É preciso saber o que lhe custava uma boa página, ele que tinha se esterilizado voluntariamente em seu desejo sempre insaciado de perfeição. Era um dilaceramento contínuo, partos dolorosos a gritar, dúvidas sempre renascentes, até se tratar de grosseiro, crer-se idiota. Repetia-nos com freqüência: "Todas as noites tenho vontade de me matar". Imaginem então qual deve ter sido a tortura desse homem quando se encontrou só, com o desmoronamento de sua obra atrás dele! Via no chão sete anos de trabalho, estava abalado em todas as suas convicções Os grandes produtores se consolam rápido, mas ele devia esperar anos para voltar a crer. E além do mais, os tempos eram sombrios, a invasão chegou e acabou de transtorná-lo. Esse romancista de quem se censura o ceticismo e a indiferença, que nunca escreveu as palavras pátria e bandeira, sofreu abominavelmente com a ocupação estrangeira. Quando o revi, encontrava-se absorvido, todo pálido e trêmulo. Foram seus anos ruins, aqueles de que falei, e que passou na Rua Murillo. O desgosto de A Educação Sentimental estava sempre no fundo. Amiúde, parava bruscamente diante de um de nós, exclamando: "Mas me expliquem por que esse livro não teve sucesso!" No ano passado, em conseqüência de um artigo que escrevi sobre uma nova edição do romance, enviou-me uma carta na qual o definia com uma frase bem correta. "E um livro honesto", dizia. Em seguida, acrescentava que talvez tivesse errado em sair do quadro fatal de todo romance, escrevendo esse diário da vida tal como ela é. Assim, chegou a duvidar de si mesmo, o que anunciava um terrível trabalho nele, para quem o conhecia.
Quanto A Tentação de Santo Antão, ela o ocupou por mais de vinte anos. Antes de Madame Bovary já trabalhara nela; um fragmento, a visita da rainha de Sabá, foi inclusive publicado em L’Artiste. Entretanto, sempre retomava a obra para alterações, sem poder se contentar. O primeiro texto do trecho da rainha de Sabá seria, segundo dizem, melhor do que o refeito em seguida, o que prova o lado quase doentio de sua necessidade de perfeição. Em 1874, quando finalmente terminou a obra, foi para ele um grande alívio; não que estivesse absolutamente satisfeito, mas não via isso mais claro, segundo sua expressão, e tinha medo de tudo começar de novo, se não se decidisse a publicar. O sucesso foi ainda menor do que o de Educação Sentimental. Flaubert surpreendeu-se com isso, pois havia imaginado que tal obra de ciência e de arte podia facilmente se tornar popular; mas não sofreu tanto com isso quanto temíamos. A Tentação de Santo Antão permaneceu até o fim sua obra favorita.
Dos Três Contos, falarei pouco. Flaubert os via como uma distração. Ele havia começado Bouvard e Pécuchet, o livro póstumo que deixou, quando, terrificado com a tarefa, aterrado pela perda de sua fortuna, abandonou esse grande trabalho e divertiu-se a escrever as três novelas: A Lenda de São Juliano, o Hospitaleiro, Um Coração Simples e Herodíade. Cada uma lhe custou seis meses aproximadamente. Era isso a que chamava descansar. Agora, eu deveria dizer o que eu sei de Bouvard e Pécuchet; mas serei breve, o livro não foi publicado e prefiro não deflorá-lo. Bouvard e Pécuchet, na idéia do autor, deve ser para o mundo moderno o que A Tentação de Santo Antão é para o mundo antigo: uma negação de tudo, ou melhor, uma afirmação da estupidez universal. Assim, A Tentação de Santo Antão é uma epopéia inclinada ao lirismo, enquanto Bouvard e Pécuchet é uma comédia quase tendendo à caricatura. Flaubert tomou dois homens simples, dois ex-empregados de ministério, que fez retirarem-se para o campo onde tentam todos os conhecimentos humanos, por meio de distração e com o objetivo mais nobre de se tornarem úteis; naturalmente, suas tentativas fracassam, são um contínuo aborto, e ao passar esterilmente da agricultura à história e da literatura à religião, encontram uma única ocupação interessante, a de copiar todos os papéis impressos que caem em suas mãos. Essas cópias dos dois simplórios deviam formar um segundo volume, no qual Flaubert teria publicado as asneiras escapadas das penas mais medíocres e mais ilustres, começando por ele próprio; ignoro se esse segundo volume estava bastante completo antes de sua morte, para que ele possa ser publicado. O que eu sei é que Bouvard e Pécuchet deu um trabalho atroz a Flaubert; várias vezes esteve a ponto de abandonar tudo, tanto essa revisão monótona dos conhecimentos humanos apresentava dificuldades e a tal ponto ele se perdia em pesquisas complicadas. Apenas o capítulo da agricultura, somente trinta páginas, forçou-o a ler cento e sete obras sobre a matéria. Obstinava-se, portanto; a obra era uma velha idéia de juventude na qual acreditava. Eu me permitirei aqui uma anedota que mostra que importância dava aos mínimos detalhes. Ele fazia, inicialmente para nós mesmos, mistério quanto ao título de seu livro; dizia: "Meus simplórios"; mais tarde, quando no-lo confiou, só o designava ainda pelas iniciais B e P, em suas cartas. Um dia, contudo, enquanto almoçávamos na casa de Charpentier e falávamos sobre nomes, eu disse que havia encontrado um excelente, Bouvard, para uma personagem de Sua Excelência Eugène Rougon, o romance no qual trabalhava naquele momento. Vi Flaubert assumir uma expressão singular. Quando deixamos a mesa, conduziu-me ao fundo do jardim, e lá, com uma grande emoção, suplicou-me para lhe deixar esse nome, Bouvard. Eu lho abandonei rindo. Mas ele continuava sério, muito emocionado, e repetia que não teria continuado seu livro se eu conservasse o nome. Para ele, essa obra estava nesses dois nomes: Bouvard e Pécuchet. Não a via mais sem eles.
Não posso evitar dizer também uma palavra sobre O Candidato, essa peça infeliz que não teve nenhum sucesso no Vaudeville. A paixão pelo teatro sempre o atormentara, mas sem o incomodar muito em seus romances. Era principalmente o exemplo de Bouilhet que o inflamava. Havia feito com ele uma peça: O Sexo Fraco, que foi inicialmente recebida no Vaudeville. Em seguida, Carvalho, então diretor, preferiu ter uma peça dele sozinho, e foi assim que Flaubert escreveu O Candidato. De início, acreditou em sua peça, mas no ensaio geral, que nos consternou, sentiu o fracasso fatal. Sua atitude foi muito bela, muito corajosa, nessa ocasião. Assistiu à sua derrota sem emoção aparente; a sala foi friamente respeitosa, houve apenas dois ou três assobios. Do lado de fora, nevava. Eu o reencontrei à saída, fumando um charuto na calçada, e ele retornou para sua casa a pé, conversando com amigos. Na quarta representação, retirou a peça. Estava simplesmente surpreso de que o cômico que havia introduzido nela não tivesse empolgado mais. Sofreu por esse fracasso, mas nada soubemos. E, em relação a isso, quero mostrar aqui, por um exemplo, o grande coração que ele era, isento de toda inveja, até mesmo de toda reflexão pessoal diante do sucesso de um amigo. Pouco tempo depois de O Candidato, nessa mesma sala do Vaudeville que lhe trazia tão cruel recordação, veio aplaudir furiosamente Fromont Jovem e Risler Primogênito, de Alphonse Daudet. Às primeiras representações daqueles que amava, dominava seus vizinhos com sua alta estatura, violento e extraordinário, lançando olhares de desafio aos adversários, conservando sua bengala, afundando o assoalho a grandes golpes, para apoiar a claque. Nunca vi sobre seu rosto o menor fingimento, quando fazíamos um sucesso, nós, seus discípulos afortunados; abraçava-nos e chorava de ternura. Isso é bem raro e bem bonito em nosso mundo, onde os melhores são devastados pela humanidade sofredora que existe neles.
Mais tarde, leu-nos O Sexo Fraco, que ia ser encenada no Teatro Cluny. A idéia era engenhosa, havia excelentes cenas; mas o arranjo geral pareceu-nos muito fraco, e diante de nosso silêncio embaraçado, compreendeu e sustou a peça. Eu não asseguraria que ele não perdeu, nesse dia, uma ilusão ainda cara; pois, durante os ensaios de O Candidato, falava-nos de cinco ou seis temas de peças que lhe tinham vindo à mente e que queria encenar, se o público compreendesse. Nunca mais voltou a nos falar disso, renunciara ao teatro. O único carinho que conservou era em relação a seu espetáculo O Castelo dos Corações, feito em colaboração com Louis Bouilhet e d'Osmoy, e que La Vie Moderne publicou ultimamente. Ele dizia sempre que gostaria, antes de morrer, de ver encenados os quadros de Cabaré e de Le Royaume du Pot-au-feu. Não os viu, e seus amigos acreditam que foi melhor assim.
Gustave Flaubert deixa como obra póstuma apenas Bouvard e Pécuchet. Talvez se possa encontrar em seus papéis com o que fazer um volume de coletâneas. Quando de sua viagem ao Oriente, havia feito anotações no Egito, na Núbia, na Grécia, e algumas dessas anotações são muito curiosas; as outras anotações que se deve ter encontrado em seus papéis sobre a Palestina, a Síria, a Caramânia, a Líbia, a Turquia européia, teriam sido copiadas das de Maxime Du Camp, após seu retorno a Paris. Além disso, haveria trechos de A Tentação de Santo Antão, condenados por ele e que apresentariam um vivo interesse. Não falo de sua correspondência que um dia será reunida, sem dúvida, mas com alguma dificuldade, é verdade, pois para evitar justamente que suas cartas tossem publicadas, deslizava nelas um cortejo de palavrões, difíceis de serem impressos; falo evidentemente das cartas a seus íntimos, as mais interessantes.
Certamente, Flaubert acreditava que viveria por muito tempo ainda. Falava da morte, pensava nela e a temia; mas isso não o impedia de, com freqüência, fazer diante de nós projetos literários que, para serem realizados, ter-lhe-iam exigido uma nova existência, a ele, que gastava em média sete anos num volume. Nosso desejo era vê-lo refazer um romance de paixão; sentíamos que precisava de um grande sucesso, nós o estimulávamos a situar uma história de amor nos quadros do Segundo Império, que ele conhecera de bem perto e sobre o qual possuía anotações excelentes. Ele não dizia não, mas permanecia hesitante, o trabalho o assustava, pois com seu sistema ter-lhe-ia sido necessário vasculhar os documentos de toda a época; talvez também não se sentisse muito livre, depois de suas estadas em Compiègne; acrescentem ainda que a efabulação o preocupava em seus romances, cuja ação parece tão simples, e que ele sentia muita dificuldade em contentar-se com ela. Entretanto, acabou encontrando um tema, falou-nos de uma maneira muito confusa para que eu possa reproduzi-lo claramente aqui: era a história de uma paixão regulamentada, o vício aburguesado e se satisfazendo sob aparências muito honestas. Queria que fosse "simplório". Todavia, é preciso dizê-lo, esse romance do Segundo Império, como o chamávamos, não o empolgava absolutamente. Outras idéias sempre apareciam de través, e duvido que tenha escrito alguma delas. Uma dessas idéias, a que ocupou seus dois últimos anos, era uma novela sobre Leônidas nas Termópilas. Eu o encontrei um dia muito excitado, como tomado de febre. Não dormia mais à noite, transtornado por esse tema que uma leitura lha havia inspirado na véspera. "Enraiveço por isso!", dizia-me. Via Leônidas partir para as Termópilas, com seus trezentos companheiros; e falava deles como de guardas nacionais que conhecera: eram bons burgueses que tinham partido com as mãos nos bolsos. Em seguida, seguia-os ao longo do caminho que ele próprio havia feito quando de sua viagem ao Oriente; o que o detinha um pouco era seu desejo de rever a Grécia, mas, a rigor, teria se contentado com suas antigas anotações. Tenho certeza de que depois de Bouvard e Pécuchet, se tivesse sobrevivido, teria se debruçado sobre seu Leônidas; teria escrito duas outras novelas e teria, assim, dado um pendant aos Três Contos. Os temas dessas novelas eram imaginados, um entre outros, a partir de uma fisiologia amorosa bem ousada.
Resta-me dizer como Gustave Flaubert trabalhava e qual era para ele essa perfeição que fez a alegria e o tormento de sua existência.
Tomo um de seus livros no início, quando o tema estava aproximadamente definido em sua cabeça e já lançara um plano sumário sobre o papel. Desde logo, abria pastas e começava a caça aos documentos com a maior ordem possível. Lia sobretudo um número considerável de obras; entretanto, é preciso dizer que as folheava, principalmente, indo com um faro, do qual se gabava, à página, à frase que lhe era útil.
Freqüentemente, uma obra de quinhentas páginas dava-lhe apenas uma nota que escrevia cuidadosamente; às vezes, a obra não lhe dava absolutamente nada.Encontrávamos aqui uma explicação para os sete anos que levava em média para cada um de seus livros: perdia uns quatro anos em leituras preparatórias. Ele era arrastado, um volume o levava a outro, uma nota de rodapé enviava-o a tratados especiais, a fontes que ele queria desde logo conhecer, de forma que toda uma biblioteca acabava por ser consumida nesse trabalho; e tudo isso, às vezes, por causa de um fato duvidoso, de uma simples palavra da qual não estava seguro. Por sinal, creio também que lhe acontecia esquecer seu romance e ampliar assim suas leituras por um prazer de erudito. Sua erudição havia se formado, com efeito, dessa maneira, vasculhando continuamente em vista de suas obras; tinha sido obrigado a retornar ao latim, havia remexido toda a Antigüidade e todas as nossas ciências modernas para Salambô e A Tentação de Santo Antão, para A Educação Sentimental e Bouvard e Pécuchet. Portanto, pouco a pouco, as anotações feitas dos livros acumulavam-se e em breve formavam enormes cadernos. Consultava igualmente especialistas, ia analisar estampas na biblioteca, corria o campo e voltava com documentos sobre os locais onde situava suas personagens. Tudo isso aumentava o monte de anotações. Para dar uma idéia de sua consciência, basta contar que antes de escrever A Educação Sentimental folheou toda a coleção do Charivari a fim de se deixar penetrar pelo espírito do pequeno jornalismo, sob Luís Filipe; e foi com as palavras encontradas nessa coleção que ele criou sua personagem Hussonet. Citaria vinte exemplos dessa consciência levada até a mania. Enfim, o monte de anotações transbordava, ele tinha todos os seus documentos, ou pelo menos parava de cansaço e de impaciência com seus escrúpulos, as pesquisas poderiam durar sempre; chegava uma hora, dizia ele, em que sentia a necessidade de escrever. E se entregava à dura tarefa. Era aí que começava sua tortura.
Lembro aqui que, depois de fazer todas as suas anotações, demonstrava por elas um grande desprezo. As anotações de Bouvard e Pécuchet, por exemplo, formavam um pacote considerável, uma montanha de papéis que vimos sobre sua mesa durante os últimos anos. Haveria lá pelo menos dez volumes in-octavo. Cada página de anotação devia com freqüência se resumir numa frase. Era simplesmente matéria exata, da qual devia extrair a quintessência. Compreendemos, portanto, que terrível tarefa, que esforço tinha a fazer para chegar a esse resumo, tanto mais que o desejava numa língua perfeita. E a língua tornava-se tudo, as anotações não eram mais nada. Ele desprezava inclusive a humanidade das personagens, afundava-se na cruel retórica que se tinha feito. Conforme repetia, ser exato, não deixar escapar um erro, é simplesmente honestidade para com o público. Isso é óbvio. Somente os maus espíritos falam do que ignoram. Em seguida, se o pressionavam, ele exclamava que, no fundo, não ligava para a verdade, que era preciso ser um doente como ele para sentir a necessidade estúpida da exatidão, e que a única coisa importante e eterna sob o sol era uma frase bem-feita.
Quando se punha a redigir, começava escrevendo rapidamente um trecho, todo um episódio, cinco ou seis páginas no máximo. Às vezes, quando a palavra não surgia, deixava-a em branco. Depois, retomava o trecho, e eram, então, duas ou três semanas, algumas vezes mais, de um trabalho apaixonante sobre suas cinco ou seis páginas. Ele as queria perfeitas, e asseguro que sua perfeição não pra cômoda. Pesava cada palavra, não examinava apenas seu sentido, mas ainda a conformação. Evitar as repetições, as rimas, as asperezas, era apenas o grosso da tarefa. Ele chegava ao ponto de não desejar que as mesmas sílabas se reencontrassem numa frase; com freqüência, uma letra o irritava, procurava termos em que ela não aparecesse; ou então necessitava de um certo número de rr, para dar ritmo ao período. Não escrevia para os olhos, para o leitor que lê de uma olhada, no canto de sua lareira; escrevia para o leitor que declama, que lança as frases em voz alta; todo o seu sistema de trabalho, inclusive, se encontrava aí. Para experimentar suas frases, ele as "gritava", sozinho à mesa, e só ficava contente quando elas passavam por sua "goela" com a música que desejava ouvir. Em Croisset, esse método era bem conhecido, os empregados tinham ordem para não se incomodarem quando o ouvissem gritar; só os burgueses paravam na estrada por curiosidade, e muitos o chamavam de "advogado", pensando, sem dúvida, que se exercitava em eloqüência. Nada é, na minha opinião, mais característico do que essa necessidade de harmonia. Não se conhece o estilo de Flaubert se não se "gritar" com ele suas frases. É um estilo feito para ser declamado. A sonoridade das palavras, a amplidão do ritmo, dão, assim, força surpreendente à idéia, às vezes pela amplidão lírica, às vezes pela oposição cômica. Ele brilhou, assim, ao falar dos imbecis, com um movimento de órgãos que os esmaga.
Não posso querer dar aqui uma idéia de seus escrúpulos em matéria de estilo. Seria preciso descer ao infinitamente pequeno da língua. A pontuação assumia importância capital. Ele queria o movimento, a cor, a música, e tudo isso com essas palavras inertes do dicionário que deveria fazer viver. Não era, entretanto, um gramático, pois não recuava diante de uma incorreção quando ela tornava uma frase mais sóbria e mais sonora. Por outro lado, tendia cada vez mais à sobriedade, à palavra definitiva, pois a perfeição é a inimiga da abundância. Amiúde, pensei, sem lho dizer, que ele retomava a tarefa de Boileau sobre a língua do Romantismo, tão atravancada de expressões e de novos estilos. Castrava-se, esterilizava-se, acabava por ter medo das palavras, revirando-as de mil maneiras, rejeitando-as quando elas não entravam em sua idéia e em sua página. Um domingo, encontramo-lo sonolento, alquebrado. Na véspera, à tarde, terminara uma página de Bouvard e Pécuchet, pela qual se sentia muito contente, e foi jantar na cidade, após tê-la copiado sobre uma folha de grande papel-de-holanda do qual se servia. Quando retornou em torno de meia-noite, em vez de ir se deitar imediatamente, quis se dar o prazer de reler a página. Todavia, ficou muito emocionado, havia-lhe escapado uma repetição, a duas linhas de distância. Ainda que não houvesse calefação em seu gabinete, e fizesse muito frio, obstinou-se em retirar essa repetição. Em seguida, viu outras palavras que o desagradavam, não pôde mudá-las e foi se deitar, desesperado. Na cama, impossível dormir; virava de um lado para o outro, continuava a pensar naquelas palavras endiabradas. Bruscamente, encontrou uma feliz correção, saltou ao chão, reacendeu a vela e retornou em camisão para seu gabinete para escrever a nova frase. Depois, voltou para debaixo das cobertas tremendo de frio. Três vezes saltou e reacendeu a vela, para deslocar uma palavra ou acrescentar uma vírgula. Enfim, não agüentando mais isso, possuído pelo demônio da perfeição, trouxe a página, enrolou o cachecol sobre as orelhas cobriu-se completamente, e, até o alvorecer perscrutou sua pagina, crivando-a de golpes de lápis. Eis como trabalhava. Nós todos temos esses furores; mas ele tinha esses furores do começo ao fim de seus livros.
Quando se encontrava à mesa, diante de uma página de sua primeira redação, apoiava a cabeça nas mãos e durante longos minutos observava-a, como se a tivesse magnetizado. Largava a pena e não falava mais, permanecia absorvido, perdido, à procura de uma palavra que fugia ou de uma expressão cujo mecanismo lhe escapasse. Turgueniev, que o vira assim, declarava que era comovente. E não se devia perturbá-lo, tinha uma paciência de anjo, ele, de hábito tão pouco paciente. Era muito delicado em relação à língua, não vociferava, esperava que ela quisesse se mostrar cômoda. Dizia ter procurado palavras durante meses.
Acabo de citar Turgueniev. Um dia, assisti a uma cena bem típica. Turgueniev, que conservava amizade e admiração por Mérimée, quis nesse domingo que Flaubert lhe explicasse por que achava que o autor de Colomba escrevia mal. Flaubert leu então uma página do autor; e parava a cada linha, censurando os "quem" e os "que", exaltando-se contra as expressões banais como "pegar em armas" ou "distribuir beijos". A cacofonia de certos encontros de sílabas, a rudeza dos fins de frase, a pontuação ilógica, tudo foi repassado. Entretanto, Turgueniev arregalava os olhos. Ele não compreendia, evidentemente, declarava que nenhum escritor, em nenhuma língua, se havia refinado dessa maneira. Em sua terra, a Rússia, não existia nada de semelhante. Desde esse dia, quando nos ouvia amaldiçoar os "quem" e os "que", eu o via freqüentemente sorrir; e dizia que estávamos errados por não nos servirmos mais francamente de nossa língua que é uma das mais precisas e das mais simples. Sou de sua opinião, sempre fiquei impressionado pela exatidão de seu julgamento; talvez porque, como estrangeiro, ele nos veja com o distanciamento e o desinteresse necessários.
Citarei ainda uma frase que Flaubert escreveu ultimamente a um amigo: "Gostei muito de Balzac, mas o desejo de perfeição afastou-me pouco a pouco dele". Eis todo o Flaubert. Reuni aqui reflexões, não discuto uma teoria literária. Entretanto, quero acrescentar que esse desejo de perfeição foi, no romancista, uma verdadeira doença, que o esgotava e o imobilizava. Sigamo-lo atentamente, desse ponto de vista, desde Madame Bovary até Bouvard e Pécuchet: vê-lo-emos pouco a pouco absorver-se na forma, reduzir seu dicionário, entregar-se cada vez mais ao procedimento, reduzir mais e mais a humanidade de suas personagens. É verdade, isso dotou a literatura francesa de perfeitas obras-primas. Mas havia um sentimento de tristeza ao ver esse talento tão forte renovar a antiga fábula das ninfas transformadas em pedra. Lentamente, pernas esculpidas, depois a cabeça, Flaubert tornava-se um mármore.
Às vezes, eu abordava essa questão diante dele, com prudência, pois temia importuná-lo. Uma crítica o transtornava. Quando nos lia um trecho, procurávamos não discutir, sob pena de deixá-lo doente. Para mim, enquanto ele perseguia os "quem" e os "que", negligenciava por exemplo os "é", e é assim que se encontrarão páginas dele nas quais os "é" abundam e os "quem" e os "que" são completamente evitados. Quero dizer que o espírito, ocupado em proscrever um estilo que se encontra na natureza da língua, entrega-se a um outro estilo, do qual ele não desconfia e que, dessa maneira, prodigaliza. Nesse purismo, entra sempre muito capricho pessoal. Entretanto, digo-o ainda, era inútil tentar convencer Flaubert. Um homem que havia amiúde passado um dia sobre uma frase, que estava convencido de ter colocado nela tudo o que acreditava de bom, não podia abandonar sua frase por uma simples observação. Ele recusava, portanto, corrigir, ainda mais porque mudar uma palavra era arruinar toda a página. Cada sílaba tinha sua importância, sua cor e sua música. Apavorava-se à simples idéia de deslocar uma vírgula. Não era possível, sua frase não existia mais. Quando nos leu Um Coração Simples, pedimos-lhe para retirar a frase sobre o papagaio, que Félicité toma pelo Espírito Santo: "O Pai, para enunciá-lo, não tinha podido escolher uma pomba, pois esses animais não têm voz, mas sim um dos ancestrais de Loulou". Isso nos parecia, para a velha doméstica, de uma sutileza de observação que roçava a caricatura. Flaubert pareceu muito emocionado, prometeu-nos examinar o caso; tratava-se simplesmente de cortar a frase; mas não o fez, ele teria imaginado a obra desarranjada.
Naturalmente, após tal labor, o manuscrito concluído assumia a seus olhos uma importância considerável. Não era vaidade, era respeito e crença num trabalho que lhe havia proporcionado tanta dificuldade, e ao qual se entregava por inteiro. Mandava fazer uma cópia, que revia uma última vez com zelo; e era essa cópia que ia para a tipografia. Encontrar-se-ão certamente entre seus papéis todos os seus manuscritos originais, escritos de próprio punho; escolhia inclusive o papel, um papel sólido e durável, com a idéia de deixar um texto exato para a posteridade. Quanto à cópia, ela o separava de sua obra, dizia ele; lia-a como estranho, seu livro não lhe parecia mais seu, e apartava-se dele sem sofrimento; mas se desse seu manuscrito, esse manuscrito pelo qual se apaixonara desde tanto tempo, parecer-lhe-ia que teria arrancado um pedaço de sua carne. Antes de entregar o texto à tipografia, gostava de ler trechos dele em casas amigas. Eram solenidades. Lia muito bem, com uma voz sonora e ritmada, lançando as frases como num recitativo, fazendo valer admiravelmente a música das palavras, mas sem interpretá-las, sem dar-lhes nuanças nem intenções; chamarei isso uma declaração lírica, e ele tinha toda uma teoria sobre isso. Nas passagens de força, quando chegava a um efeito final, inflava a voz, subia até um estrondo de trovão, o teto tremia. Eu o vi acabar dessa maneira A Lenda de São Juliana, o Hospitaleiro, numa verdadeira trovoada do maior efeito. Depois, a impressão de seu livro era toda uma outra questão. Mostrava-se extremamente difícil na escolha de uma tipografia, declarando que nenhum tipógrafo de Paris tinha boa tinta. A questão do papel também o preocupava muito; queria que lhe trouxessem amostras, suscitava todos os tipos de dificuldades, muito inquieto igualmente com a cor da capa e inclusive imaginando, às vezes, formatos inusitados. Em seguida, ele próprio escolhia o tipo. Para A Tentação de Santo Antão, exigiu uma tipografia complicada, três espécies de tipos, e teve grande dificuldade para decidir. Todos esses cuidados meticulosos provinham, repito-o, do respeito que tinha pela literatura e por seu próprio trabalho. Durante a impressão, permanecia agitado, não que corrigisse muito as provas; contentava-se simplesmente em revê-las do ponto de vista tipográfico, pois não teria mudado nenhuma palavra, a obra era doravante para ele sólida como bronze, levada à maior perfeição possível. Continuava simplesmente a se inquietar pelo lado material, escrevia até duas cartas por dia ao tipógrafo e ao editor, tremia de medo que escapasse uma correção, tomado, às vezes, por uma dúvida que o fazia tomar um carro para assegurar-se se tal vírgula estava bem no seu lugar. Enfim o volume aparecia e ele o enviava a seus amigos, de acordo com listas elaboradas com muita exatidão, das quais riscava as pessoas que não lhe agradeciam. A literatura, a seus olhos, era uma função superior, a única função importante no mundo. Dessa forma, queria que se fosse respeitoso para com ela. Seu grande rancor contra os homens provinha em grande parte de sua indiferença pela arte, de sua secreta desconfiança, de seu medo vago diante do estilo elaborado e vivo. Havia uma expressão que amiúde repetia com sua voz terrível: "O ódio pela literatura! O ódio pela literatura!"; e esse ódio, ele o encontrava em todos os lugares, entre os políticos ainda mais do que entre os burgueses.
Tal é o Gustave Flaubert que encontro em minhas lembranças, o maravilhoso escritor, o lógico tão cheio de contradições. Entregara-se por inteiro às letras, a ponto de ser injusto para com as outras artes, a pintura e a música por exemplo, que chamava com desdém de "artes inferiores". Em pintura, não tinha certamente a mínima idéia crítica; nunca falava de quadros, confessava sua ignorância; eu o vi se apaixonar um pouco apenas pelas telas de Gustave Moreau, cujo talento tão elaborado tinha um grande parentesco com o seu. Quando se lhe falava de fazer ilustrar um de seus livros, entrava em violenta cólera, dizendo que é preciso não respeitar sua prosa para deixar colocar nela imagens que sujam e destroem o texto. Uma única vez, e em um caso particular, acabou cedendo: lembremo-nos de que La Vie Moderne publicou sua peça com desenhos; mas ele lamentou o que chamava de sua covardia, escreveu cartas furiosas, descontente com essa publicação, que foi um de seus últimos desgostos. Também não queria que lhe fizessem o retrato, e, enquanto viveu, obstinou-se; todavia, se não existe dele nenhum retrato a óleo, têm-se algumas fotografias, que mandou fazer por uma senhora, num momento de fraqueza. O desenho publicado por La Vie Moderne, um desenho de Lip-hart, a partir de uma dessas fotografias, é por sinal de uma semelhança perfeita. Os velhos amigos de Flaubert diziam, em tom de brincadeira, que por puro coquetismo ele se recusava a deixar-se pintar. Tivera, segundo parece, um rosto muito bonito; mas, ficando calvo muito cedo, lamentava a perda de seus cabelos e se tratava de velho, com essa paixão pela beleza que marcou a geração de 1830. Essa paixão nos toca tão pouco hoje que não compreendíamos nada. Gustave Flaubert, com sua grande estatura, sua fronte larga, seu longo bigode que barrava o forte maxilar, era para nós uma figura extraordinária de pensador e escritor. Antes de concluir, direi uma palavra sobre um fato delicado, que adversários poderiam explorar mais tarde. Quando Flaubert se viu despojado de sua fortuna para socorrer o marido de sua sobrinha, os amigos o viram tão inquieto e tão transtornado que procuraram um meio de tranqüilizá-lo, proporcionando-lhe recursos. Pensaram num cargo de conservador de biblioteca. Inicialmente, recusou com altivez. Durante longas semanas, instigaram-no, encontrava-se então acamado, de perna quebrada, e tiveram de ir vê-lo em Croisset para convencê-lo. Em Paris, o ministro mantinha a nomeação pronta. Foi assim que Gustave Flaubert, durante os últimos dezoito meses de sua existência, recebeu do Estado uma pensão disfarçada de três mil francos.
De resto, ele não deve mais nada ao país. Não pertencia à Academia e nunca teria pertencido, pela simples razão de que recusava categoricamente apresentar-se a ela. Toda idéia de arregimentação fazia-lhe horror. Em 1866, o Império o condecorou. Todavia, posteriormente, por volta de 1871, retirou sua fita e não a usou mais. Quando o interrogamos, respondeu-nos que acabavam de condecorar X, um patife, e que ele não queria mais a cruz, uma vez que um patife a portava2. Na minha opinião, Flaubert, em seu orgulho legitimo, sofria principalmente por ser apenas cavaleiro, quando tantos outros, que não eram de seu nível em literatura, ostentavam o grau de oficial e até mesmo de comendador; e preferia colocar-se à parte do que aceitar semelhante hierarquia. Entretanto, sentia o lado fraco de sua situação. Num jantar, na casa de um de nossos amigos comuns, a conversação tendo se desviado para sua teimosia de não mais portar a fita vermelha, um burguês lhe disse claramente que, visto que ele não a queria, não deveria tê-la aceitado; o que o lançou numa dessas cóleras que ele parecia não controlar e que incomodavam todo mundo quando explodiam assim, à mesa ou numa reunião. Contudo, não se trata de um fato estranho e repleto de ensinamentos? Eis um ilustre escritor que permanecerá a glória da literatura francesa; ele se deu por inteiro à grandeza de seu pais, e seu país só soube recompensá-lo com uma cruz, cuja banalidade e injustiça hierárquica deviam acabar por feri-lo na consciência de seu gênio. Dessa forma, preferiu voltar a ser um simples cidadão, e quando morreu não era nada, nem de nada: ele era Gustave Flaubert.
2.Em relação a isso, Maurice Sand me escreveu uma carta da qual extraio estas linhas interessantes: "O que o senhor conta da condecoração é tão verdadeiro que a supressão de sua fita vermelha aconteceu em Nohant, diante de nós, em 1874, durante um almoço, ao receber a notícia da nomeação de X à Legião de Honra. Jogou tudo em seu café, charuto, fita e botão, deixando-se levar por uma de suas cóleras que o senhor comenta. No dia seguinte, não pensava mais nisso. Mas a fita permaneceu no fundo da xícara e não a revi mais". Devo acrescentar que um velho amigo de Flaubert afirmou-me ter ouvido dele que havia retirado sua fita ao saber da morte de Napoleão III, por razões sentimentais e complicadas das quais era muito capaz. Para quem o conheceu, as duas anedotas são verossímeis, e por sinal, podem caminhar juntas. Disseram-me inclusive que ele só aceitou a cruz a pedido de sua mãe, que acabava de morrer quando cessou de portá-la. Tudo isso combina: sua cólera de Nohant, a morte do homem que o condecorara, e de sua mãe, que não estava mais lá para sofrer por sua teimosia. Mas, quaisquer que sejam as causas, continuo a crer que, se ele se obstinou, fê-lo por um sentimento de legítimo orgulho.
EDMOND E JULES DE GONCOURT
Antes de mais nada, é útil examinar o que era o romance na França há vinte anos. Essa forma literária essencialmente moderna, tão leve e tão ampla, dobrando-se a todos os gênios, acabara de receber um brilho incomparável, graças às obras de toda uma manifestação de escritores. Tínhamos Victor Hugo, um poeta épico que modelava a prosa com seu polegar poderoso de escultor; trazia preocupações de arqueólogo, de historiador, de político, e do cafarnaum de suas concepções fazia brotar, apesar de tudo, páginas extraordinárias; seu romance permanecia grandioso, dizia respeito, ao mesmo tempo, ao poema, ao tratado de economia política e social, à história e à fantasia. Tínhamos George Sand, espírito de uma lucidez perfeita, escrevendo sem fadiga numa linguagem feliz e correta, sustentando teses, vivendo no país da imaginação e do ideal; essa escritora apaixonou três gerações de mulheres, e só suas mentiras envelheceram. Tínhamos Alexandre Dumas, o contista inesgotável, cuja verve nunca se enfadou, ele era o gigante das narrativas vivamente realçadas, um gigante bom-menino que parecia ter-se dado a missão de simplesmente divertir seus milhões de leitores; fazia a vontade da massa, não dava muita importância às qualidades literárias, dizia o que tinha de dizer como o teria dito a um amigo, num canto da lareira, no decorrer da conversa; mas conservava tal amplitude, tal abundância de vida, que permanecia grande, apesar de sua imperfeição. Tínhamos Mérimée, cético até as medulas, contentando-se, de vez em quando, em escrever uma dúzia de páginas secas e finas, nas quais cada palavra era como uma ponta de aço longamente afiada. Tínhamos Stendhal, que exibia o desdém pelo estilo, que dizia: "Leio todas as manhãs uma página do Código para pegar o tom"; Stendhal, cujas obras davam um calafrio, por todas as coisas obscuras e apavorantes que se desejava ver nelas, era um observador, o psicólogo liberto da preocupação da composição, exibindo um ódio pela arte; hoje, já não se estremece diante dele, e ele é visto como o pai de Balzac. E tínhamos Balzac, o mestre do romance moderno; cito-o por último para fechar a lista depois dele; este se havia apoderado do espaço e do tempo, havia tomado todo o lugar ao sol, tão bem que seus sucessores, aqueles que lhe seguiram as pegadas, tiveram que procurar por muito tempo antes de encontrar algumas espigas para colher. Balzac obstruiu as vias com sua enorme personalidade; o romance foi como sua conquista; o que não pôde fazer, indicou-o, de modo que o imitassem apesar de tudo, mesmo quando crêem escapar de sua influência. Não há, no momento, sequer um romancista francês que não carregue nas veias algumas gotas do sangue de Balzac.
Tais eram os mestres. Eram tão numerosos, partilhavam a tal ponto o império das letras, o alento épico, o ideal, a imaginação, a observação, a realidade, que era impossível traçar uma nova vereda ao lado das suas. O romance parecia ter-se esgotado. Forçosamente, os romancistas iam-se repetir. E, com efeito, os imitadores pululavam, nenhum escritor possuía a força, mesmo no campo revolvido e fecundado por Balzac, de conquistar um pedaço de terra e nela ceifar segundo sua própria vontade. Foi então que, na hora em que desaparecia a esperança de um renascimento, surgiu um grupo de romancistas de originalidade imprevista e cujas obras foram como a florescência dos últimos vinte anos de nossa literatura. Sem dúvida, esses escritores são os filhos diretos dos autores que citei mais acima. Procedem diretamente de Balzac, do qual detêm o instrumento de análise; e, por outro lado, tomam emprestado de Victor Hugo o sentimento revolucionário da cor. Se seus predecessores não tivessem vivido, talvez eles não tivessem nascido; são necessariamente uma continuação. Mas não permanecem menos por isso como um desabrochar; a árvore que se acreditava esgotada conservava, bem no alto, brotos e flores. Houve assim a retomada de um raro sabor. Não são frutos híbridos, vindos fora de estação, empobrecidos de seiva; são, ao contrário, como um refinamento de cor, de odor e de gosto. Diante desse prodígio de produção, todas as esperanças, doravante, parecem permitidas.
Os romancistas de quem falo formam um pequeno grupo muito compacto. Não quero estabelecer entre eles nenhuma comparação. Basta-me constatar que conseguiram, em condições de inteligência excepcionais, conservar no romance uma vida intensa. Denominaram-nos realistas, naturalistas, analistas, fisiologistas, sem que qualquer uma dessas palavras indique claramente seu método literário; ainda mais que cada um deles tem uma fisionomia perfeitamente distinta. Por sinal, entendo unicamente destacar, hoje, os Goncourt do grupo, estudá-los à parte, tomar seu caso pessoal para pintar o momento literário por inteiro.
Os Goncourt, por seu lado, introduziram uma nova sensação da natureza. Esse é seu traço característico. Não sentem como sentiram antes deles. Possuem nervos de uma delicadeza excessiva, que decuplam as mínimas impressões. O que eles viram, exprimem em pintura, em música vibrante, resplandecente, repleto de uma vida pessoal. Uma paisagem já não é uma descrição; sob as palavras, nascem os objetos; tudo se reconstrói. Há, entre as linhas, uma contínua evocação, uma miragem que desvela diante do leitor a realidade das imagens. E mesmo a realidade é aqui ultrapassada; a paixão dos dois escritores deixa-a tremendo de febre de arte. Dão à verdade um pouco de sua emoção nervosa. Os mínimos detalhes animam-se como por um tremor interior. As páginas tornam-se verdadeiras criaturas, todas ofegantes de seu excesso em viver. Assim também a ciência de escrever acha-se transposta; os romancistas portam um pincel, um cinzel, ou então exercitam-se ainda com algum instrumento. O objetivo a alcançar já não é contar, colocar idéias ou fatos uns após os outros, mas tornar cada objeto apresentado ao leitor, em seu desenho, sua cor, seu odor, o conjunto completo de sua existência. Daí uma magia extraordinária, uma intensidade de rendu1 desconhecida até aqui, um método que se assemelha ao espetáculo e que vê claramente todas as materialidades da narrativa. Dir-se-ia que se trata da natureza descrita por dois clarividentes, animada, exaltada, os seixos tendo sentimentos de seres vivos, as personagens dando sua tristeza ou sua alegria aos horizontes. Toda obra tornava-se um tipo de vasta neurose. E a verdade exata sentida e retratada por artistas doentes por sua arte.
1Termo de Belas-Artes Diz-se dos objetos ou detalhes bem-estudados e rigorosamente exprimidos (N do T)
Para melhor me fazer compreender, acrescentarei que os Goncourt não contam de modo algum com a imaginação do leitor. Outrora, um escritor indicava, por exemplo, que seu herói passeava num fim de tarde, num jardim; e cabia ao leitor imaginar o jardim, o crepúsculo caindo sobre as folhagens. Os Goncourt mostram o jardim, usufruem dele, estão imersos no frescor da tarde. E não se trata, para eles, do prazer que deviam experimentar os antigos poetas descritivos ao analisar belas frases bem-feitas. A retórica não entra em nada na aventura. Os romancistas simplesmente obedecem a essa fatalidade que não lhes permite abstrair uma personagem dos objetos que a cercam; eles a vêem em seu meio, na atmosfera em que está imersa, com suas vestes, o sorriso de seu rosto, os raios de sol que a atingem, o fundo de verdor sobre o qual se destaca, tudo o que a circunstancia e lhe serve de quadro. Essa é a nova arte: os homens já não são estudados como simples curiosidades intelectuais, libertadas da natureza ambiente; acredita-se, ao contrário, que os homens não existem sozinhos, que estão em relação com as paisagens, que as paisagens nas quais caminham completam-nos e explicam-nos. Certamente, para retomar minha comparação de ainda há pouco, se os Goncourt constatassem que seu herói passeia num jardim, temeriam ser incompletos; suas sensações são demasiado múltiplas para que aceitem essa pobreza de rendu; e conservariam a contrariedade de não ter dito tudo, de ter permanecido aquém do que eles próprios experimentaram ao passear num jardim, numa tarde, num crepúsculo tépido. Ressentem-se, antes de mais nada, da necessidade de satisfazer o artista que existe neles. Assim, em algumas frases indicam a hora, as sombras alongadas das árvores, o perfume da relva; e sua personagem é realmente um homem que caminha e cujo passo ouvimos sobre a areia da alameda. Os leitores se lembram; toda a cena é evocada diante deles; já não precisam criar uma atmosfera atrás dos atos da personagem. Em relação a isso, fiz uma observação bastante curiosa. Os leitores que se queixam da extensão das descrições são justamente aqueles que possuem os sentidos pesados e a imaginação preguiçosa; esses jamais ressentiram algo, são incapazes de reconstruir pela lembrança os espetáculos diante dos quais passaram; do mesmo modo, acham os poetas mentirosos. A noite tem essa suavidade melancólica? As margens de um rio exibem recantos de sombra tão adoráveis? São cegos que negam as cores. Quanto maior for a sensibilidade nervosa de um escritor, uma maneira própria de sentir e exprimir, maior é o risco de ele não ser compreendido. Para sê-lo, é preciso que encontre temperamentos semelhantes ao seu. A grande multidão, habituada a sensações muito menos complexas, protesta contra a excentricidade, contra a investigação. Todavia o escritor, na maioria das vezes, obedeceu ingenuamente ao organismo nervoso que faz a sua originalidade. Os Goncourt são, assim, daqueles que o público julga mal, porque há poucas pessoas no publico que sentem como eles.
O que me surpreende em suas obras, antes de tudo, é esse modo particular de sentir. Abre um novo mundo. Entretanto, faltava uma expressão original a essa notação original da vida. Chego ao estilo que eles criaram. É sobretudo por seu estilo que adquiriram um grande lugar na literatura contemporânea. Seu ideal não é a perfeição da frase. Nesse momento, na França, vejo, entre os escritores de grande envergadura, uma tendência a um purismo extraordinário. Proscrevem-se os "que", os "quem"; escreve-se em prosa com mais dificuldade do que em verso; busca-se a música da frase, esculpe-se cada palavra; e isso, para certos jovens, imitadores dos mestres, chega a um tipo de loucura ponderada. Os Goncourt não se incomodam com as repetições de palavras; encontrei seis vezes a palavra "pequeno" numa de suas páginas. Preocupam-se pouco com a eufonia, amontoam os genitivos uns após os outros, procedem por longas enumerações, o que produz um balanceamento monótono. Mas possuem a vida do estilo. Todos os seus esforços tendem a fazer da frase a imagem exata e instantânea de sua sensação. Exprimir o que sentem, e exprimi-lo com frêmito, o primeiro impacto da visão, eis o seu objetivo. Alcançam-no de forma admirável.
Não conheço em nenhuma língua um estilo mais pessoal, uma evocação mais feliz das coisas e dos seres. Sem dúvida, pode-se-lhes censurar, às vezes, um pouco de maneirismo; em sua contínua busca da expressão nova e precisa, não é surpreendente que a frase, de vez em quando, se complique e perca sua saúde robusta. Não obstante, quanta felicidade de expressão! E como quase sempre a frase tem a cor do céu da qual fala, o perfume da flor que ela cita! Os Goncourt chegam a esse prodígio de exprimir por inversões de formas, por adjetivos no lugar de substantivos, por procedimentos deles, que são a marca inesquecível de seu estilo. Só eles, no momento, têm esses avessos de frase em que persiste a impressão dos objetos. Pintam até a mais fugaz tepidez que circula sobre a pele; descrevem de uma forma definitiva, em poucas palavras, as paisagens mais complicadas, um aguaceiro que cai, uma rua repleta de passantes, um ateliê de pintor cheio até o teto de bibelôs. Tudo o que seus olhos registram ganha vida e emoção. Daí esse estilo verdadeiro, divertido como um álbum que se folheia, bem ardente com a chama que se alastra por seus membros, e do qual se pode dizer que é a língua inventada para traduzir um mundo de sensações recém-descobertas.
Os Goncourt estão aí por inteiro. É verdade, eles têm qualidades dramáticas de romancista, suas obras estão repletas de documentos humanos tomados na realidade da vida moderna, várias de suas criações são perscrutadas por mãos de analistas poderosos. Todavia, possuem iguais nessas matérias. Onde ninguém os supera, onde são mestres indiscutíveis, é, digo-o uma vez mais, no nervosismo de sua sensação e na língua inventada por eles para traduzir as impressões mais suaves, que foram os primeiros a observar. Se estão ligados a seus antecessores, não se parecem com nenhum deles. Devem-lhes apenas a ampliação da arte, que tornou todas as tentativas possíveis. Eles são os romancistas artistas, os pintores do verdadeiro pitoresco, os estilistas elegantes que se envilecem por amor à arte, os instrumentistas mais extraordinários no grupo dos criadores do romance naturalista contemporâneo.
É necessário conhecer sua história literária para que se tenha uma idéia justa de suas obras e de seu papel.
Eram dois irmãos, Edmond, o mais velho, e Jules, o mais novo, com uns dez anos de diferença de um para o outro. Hoje, Jules está morto, Edmond ultrapassou os cinqüenta. Nunca se deixaram, senão no dia abominável em que o caçula partiu, levando consigo a metade do primogênito. Durante vinte anos trabalharam à mesma mesa. Era uma colaboração como natural, cujo esforço e marca era impossível encontrar em seus livros. O público os havia aceitado como um ser cômico. Não existia sequer uma linha assinada só por Edmond ou Jules; sempre apareciam lado a lado, necessários um ao outro, tendo feito de seus dois talentos um único. A crítica estancava com respeito diante do segredo dessa colaboração; ela não procurava levar em consideração cada um dos dois irmãos. Por sinal, a colaboração não acarretava para eles os esvanecimentos que ela amiúde produz. As qualidades do escritor em duas pessoas se desenvolviam naturalmente no mesmo sentido, sem nenhuma confusão, como se uma única vontade tivesse presidido o trabalho. Da primeira à última linha que eles escreveram, encontramos o mesmo temperamento, a mesma paixão; muitas obras que passaram por um único cérebro não têm essa admirável unidade, essa originalidade assinando cada página com um traço inesquecível. O dia em que a morte chegou, ela levou mais do que um homem, fulminou a metade de outro, em seu talento e em sua glória.
É uma história atroz. Os dois irmãos, tendo abandonado os bairros populosos de Paris, onde padeciam do barulho da rua, acabavam de se refugiar em Auteuil, num palacete encantador e silencioso, do qual conseguiram fazer um lugar de felicidade e trabalho. A fortuna lhes sorria, não que fossem muito ricos, mas tinham esse amplo conforto que permite ao artista seguir seu sonho, trabalhar na hora desejada, sem esperar o sucesso financeiro de um livro. Seu palacete era sua loucura. Haviam investido nele uma grande parte de seu capital. Embelezavam-no, fazendo dele um refúgio tão sonhado, com um jardim plantado como um buquê de grandes árvores, florido de rosas, rosas amarelas das quais um pé extraordinário se enrolava à porta do salão. Encontravam-se espaçosamente instalados, a dois passos do Bois de Boulogne, em cômodos claros, repletos de objetos de arte, vivendo às portas de Paris, como retirados das primeiras febres do ofício e prontos para a eclosão das obras-primas. E foi lá, tão logo terminada sua instalação, quando enfim haviam realizado esse desejo de impor silêncio em torno de sua mesa de trabalho, que a morte veio lançar sua mortalha entre eles. O desmoronamento foi terrível. Há oito anos Edmond carrega sua ferida consigo.
Entro agora nas particularidades que explicam, na minha opinião, certos aspectos do talento dos Goncourt. Eles começaram por ser de tal forma sensíveis ao mundo visível, às formas e às cores, que quase foram pintores. Jules gravava, fazia água-forte. Ambos desenhavam, coloriam seus desenhos em aquarela. Conservaram desses primeiros trabalhos o cuidado com a pincelada exata, a finura e o pitoresco do traço, o conjunto teórico dos tons e seu valor. Inclusive, mais tarde, quando tiveram de fazer uma descrição capital, foram tomar uma vista do horizonte, trouxeram para seu gabinete uma aquarela, assim como outros fazem anotações manuscritas numa agenda. Compreende-se toda a fidelidade que semelhante procedimento lhes dava. Em cada página reencontrar-se-á, assim, a pincelada viva e sentida, o croqui do artista. E não são pintores, no sentido um pouco pesado e completo do termo, mas gravadores cuja ponta permanece livre, aquarelistas que com razão se contentam com dois ou três tons combinados com inteligência para dar vida a uma paisagem ou a uma figura.
Outro traço característico: os Goncourt, antes de abordar o romance, vasculharam em todos os sentidos o século XVIII. Eram atraídos por essa época de elegância, de graça livre, de criação fascinante, por analogias de temperamento, vagos pesares de não terem nascido cem anos mais cedo. Publicaram estudos históricos, do estilo mais original e do interesse mais vivo; eis aqui alguns livros: A Mulher no Século XVIII, Retratos Íntimos do Século XVIII, As Amantes de Luís XV, História de Maria Antonieta, História da Sociedade Francesa durante a Revolução, História da Sociedade Francesa durante o Diretório. Só quero julgar neles o romancista, e constato simplesmente esses grandes trabalhos, os anos que viveram na preocupação com o século passado. Ao mesmo tempo, estudavam os artistas dessa época, os mestres, Watteau, Prud'hon, Greuze, Chardin, Fragonard. Longa coabitação com um mundo desaparecido, do qual sua arte de escritores conservou alguma coisa, um gosto delicioso, um modo de dizer ágil e um pouco confuso, uma distinção persistente, mesmo nos quadros ousados da rua parisiense. Deve-se procurar suas raízes nesse século XVIII que eles amaram: descendem dele; são seus filhos. Assim, nada de clássico neles: são de pura tradição francesa. Foi em Diderot que aprenderam a ler. Encontramos seu talento por inteiro nas saias entufadas da época, as saias de cetim de pregas reluzentes, perfumadas de íris, animadas pelo balanço adorável dos quadris. Acrescente-se que, como observadores, vêem o mundo moderno, sentem como curiosos que conhecem a rua, até a lama negra dos córregos, e terão a música de seus livros, essa música tão fina sobre temas tão brutais. Foi com os fragmentos do século XVIII que fabricaram um estilo; para reproduzir o cafarnaum das idéias contemporâneas, o desalinho de nossa sociedade, a vida parisiense turbulenta, inflamada, superficial e alvoroçada, nada encontraram de melhor do que beber na fonte francesa por excelência, num século em que o gênio da nação encontrava-se em gestação.
Enfim, e este é o último traço, os Goncourt são colecionadores. Enquanto estudavam o século XVIII, reuniram documentos de todos os tipos; não lhes bastava ver, queriam possuir, tomados por essa paixão pelo bricabraque que é como uma das formas de arte, e compravam tapeçarias, faianças, desenhos principalmente. Sua coleção de desenhos é uma das mais completas que existem. Entretanto, faziam as perambulações dos colecionadores. Perambulavam dias inteiros, reviravam as lojas dos revendedores, apaixonavam-se por alguma gravura que completasse seus portafólios. Não se exerce impunemente semelhante ofício. Permanece no cérebro uma curiosidade de antiquário, um amor pelo bibelô. Em seguida, isso passa na concepção de uma obra e no estilo. Os Goncourt confessam aqui e acolá sua paixão; têm descrições bem ardentes de ternura por um monte de velharias; e mesmo isso vai mais longe, o gosto pela antigüidade revela-se até na pintura das coisas e dos fatos modernos, por um certo pitoresco da frase, uma expressão particular que evoca a busca do detalhe minucioso. Não se trata aqui de críticas, mas de explicações. Creio ser útil penetrar em todas as fontes deste estilo que colocou os Goncourt no primeiro plano de nossos escritores.
Foi por volta de 1860 que os Goncourt publicaram seu primeiro romance. Em uma década escreveram seis. A atitude do público em relação a essas obras foi repleta de ensinamentos amargos. Não conheço um exemplo mais deplorável do que a perfeita indiferença da multidão pelas obras de arte. E observem que os Goncourt não eram desconhecidos. Demonstrava-se uma grande simpatia por suas pessoas. A crítica ocupava-se muito com eles, verdadeiros alvoroços se produziram, inclusive em torno de alguns de seus romances. Depois, esses romances caíam na indiferença dos leitores. Em dez anos só foram vendidas duas edições de seu Germinie Lacerteux, aquele de seus livros que fez mais sucesso. Os leitores não compreendiam; entediavam-se diante dessas páginas tão curiosamente perscrutadas e animadas com uma vida tão intensa. Isso os incomodava em seus hábitos. Além disso, havia a principal razão: eram livros imorais, cuja leitura deveria ser proibida às pessoas de bem. Na verdade, os dois irmãos nada faziam para atrair o público; não adulavam seus gostos, serviam-lhes bebidas amargas, muito desagradáveis após as amenidades dos livros de sucesso; da mesma forma, refletindo bem, não era de surpreender que o grande público se mantivesse afastado. Mas os artistas têm nervos de mulher; mesmo quando nada fazem para agradar, sonham em ser amados; e, se não são amados, sentem-se muito infelizes. Os Goncourt devem ter sofrido muito, assim como outros de seus contemporâneos que não quero citar. O mais jovem, Jules, morreu pela indiferença da multidão. O insucesso de seu último romance Madame Gervaisais, golpeou-o no coração com um ferimento incurável. Ah! Que miséria, ser superior e morrer pelo desprezo da massa! Recusar a estupidez e não poder viver sem o aplauso dos estúpidos!
Na carreira literária dos Goncourt, há um episódio muito instrutivo. Tinham escrito uma peça em três atos, Henriette Marechal, de uma aparência nova e pessoal. Tratava-se do amor da mulher de quarenta anos, a paixão advinda numa idade avançada de uma burguesa por um jovem, essa perturbação que às vezes acontece entre as mães de família, entre as mulheres virtuosas, cujo recôndito do coração nunca foi contentado. Mme Maréchal tem uma filha adulta, Henriette, que assiste, calada e rígida, à paixão de sua mãe. No desfecho, o marido toma conhecimento de tudo; todavia, quando ele entra num salão onde crê haver um homem escondido, é Henriette que se atira de joelhos, no meio da escuridão, e que recebe em pleno peito o tiro de revólver que ele dispara à queima-roupa. A grande originalidade dessa peça era sobretudo o primeiro ato, cujo cenário representava o corredor dos camarotes de foyer, no Opéra, numa noite de baile de máscaras. Os Goncourt tinham introduzido aí, no diálogo, nos episódios, seu senso tão fino do pitoresco moderno, a verve e o espírito de Paris aguçados por seu temperamento de artista. A peça foi encenada em dois ou três teatros; ela assustava os diretores. Enfim, os autores tiveram a boa sorte de ver sua obra aceita no Comédie Française. Correu o boato no público de que uma alta proteção, a da princesa Mathilde, havia aberto as portas do teatro. E eis que, no dia da estréia, a cabala mais tempestuosa, que há muito tempo não se vira, eclodiu desde as primeiras palavras pronunciadas pelos atores; tinham inclusive assobiado antes que o pano de boca fosse levantado. A juventude das escolas vaiava os protegidos da prima do imperador. Acrescento que o primeiro ato escandalizou primeiro ato escandalizou os velhos habitués do Comédie Française. Máscaras e gíria na casa de Racine e Corneille, isso provocou o brado de sacrilégio. Henriette Maréchal, suspensa por ordem, só teve algumas representações, batalhas que ocuparam toda Paris. E, vejam que aventura estranha, foi somente nesse momento que o nome Goncourt, conhecido até ali por um número restrito de admiradores, disseminou-se de repente entre o grande público. Um insucesso ruidoso tornou-os célebres. A peça impressa vendeu um número de exemplares mais considerável do que qualquer um de seus romances. Tornaram-se e permaneceram ainda para muitas pessoas os autores de Henriette Marechal. Não é uma ironia cruel e que faz ver de que miséria é feita a popularidade? É preciso que tentem arruinar sua carreira para que o povo se volte e se interesse.
Antes de abordar a análise dos romances dos Goncourt, gostaria de dizer uma palavra discreta sobre sua colaboração. Não se trata de assinalar a contribuição de um ou de outro, o que eu veria como uma ação ruim. Todavia, é interessante, do ponto de vista do ofício, indicar qual foi seu modo de trabalhar em comum. Eles se isolavam, viviam um tema durante muito tempo. Sobretudo reuniam um grande número de anotações, vendo tudo no real, impregnando-se do meio onde os episódios se iriam desenvolver. Em seguida discutiam o plano, decidiam juntos as grandes cenas, delineavam assim toda a obra. Enfim, tendo chegado à redação, a essa execução que não mais comporta o debate oral, sentavam-se ambos à mesma mesa, após ter preparado uma última vez o trecho que contavam escrever no dia; e ali redigiam esse trecho cada um do seu lado, faziam duas versões dele, segundo seu método pessoal de ver. Essas duas versões, que eles liam um para o outro, eram em seguida fundidas numa única; conservavam de uma e de outra parte as coisas felizes, as descobertas luminosas; eram as contribuições de dois espíritos livres, como o melhor deles mesmos que desnatavam e do qual faziam um todo sólido. Compreende-se, assim, a unidade constante das obras produzidas; tinham seu sangue, mas seu sangue mesclado à fonte da vida. Um não havia escrito essa página, o outro aquela. Cada página pertencia a ambos. Deve-se acrescentar este fenômeno fatal: com o tempo, nessa comunidade contínua de criação, os dois cérebros puseram-se a pensar e exprimir do mesmo modo; quase sempre a mesma idéia, a mesma imagem chegava aos dois irmãos ao mesmo tempo. Só restava escolher as nuanças. Essa fraternidade na produção ia tão longe que seus escritos se pareciam. Tocante absorção de dois seres, casamento íntimo de inteligências, caso extraordinário de talento duplo que permanecerá com toda certeza único na história literária. Eles são um só, deve-se falar deles como se falaria de um único grande escritor.
Os dois primeiros romances que os Goncourt publicaram foram Irmã Philomène e Charles Demailly. Passarei rapidamente sobre essas duas obras, nas quais todas as qualidades dos autores já se mostram, todavia, em estado de ensaio e com bem menor intensidade do que nas obras seguintes.
Irmã Philomène é um estudo de hospital e de anfiteatro. O drama se sustentaria em dez linhas. Um interno, Barnier, apaixona-se por uma religiosa, Irmã Philomène; num dia de brutalidade, ele a toma em seus braços e a beija; em seguida, diante do desprezo silencioso, da cólera desdenhosa da irmã, embriaga-se de absinto e acaba por se aplicar voluntariamente uma injeção, da qual morre. Na última página, vê-se irmã Philomène penetrar no quarto de Barnier e roubar uma mecha de cabelos que acabara de ser cortada da cabeça do morto para enviá-la à sua mãe. As grandes qualidades desse livro já são o cenário maravilhoso, essas salas de hospital pintadas com o frêmito de horror que as atravessa. Entretanto, as melhores páginas são o capítulo em que se encontra estudada a infância de irmã Philomène; há aí, sobretudo, uma amizade de pensão, a exaltação religiosa de duas jovens que é de uma delicadeza de observação e de uma energia de colorido extraordinárias. Todo esse capítulo está impregnado de infância; e se, mais tarde, irmã Philomène, que se tornou mulher e fez os seus votos, escapa fatalmente da análise dos autores, possuíram-na aí por inteiro, com sua sensibilidade que desperta e a religião que se abre para ela como um grande amor.
Charles Demaüly é uma sátira, o estudo vingativo da pequena imprensa na França, por volta de 1855. Os Goncourt desejaram mostrar os bastidores de um pequeno jornal, com suas vergonhas, seu cinismo, suas misérias e seu espírito. Pintaram seis ou sete retratos de redatores do Scandale, um título inventado, sob o qual se poderia adivinhar o título de um, jornal que teve desde esse tempo uma grande fortuna. Esses retratos tendem um pouco, talvez, para o negro. Quanto ao drama, é ainda dos mais simples. O melhor do grupo, Charles Demailly, um desses que tem um livro no ventre, comete a asneira de se apaixonar por uma atriz e desposá-la. Marthe, um tipo de maldade fria, estupidez e egoísmo, em que os dois irmãos puseram todos os seus agravos de celibatários contra a mulher, inflige a seu marido uma tortura abominável, engana-o, embrutece-o, acaba por vaiar uma de suas peças e troca-o, sob o golpe de uma doença cerebral, por um tipo de bronco que esqueceu até a própria língua. Sempre, por sinal, as mesmas qualidades de estilo. Aqui mesmo o diálogo adquire essa leveza, esse imprevisto, esse ar verdadeiro que fará mais tarde de um diálogo dos Goncourt como que um fragmento de uma verdadeira conversação. Ninguém ainda surpreendeu tanto quanto eles a cadência da frase falada. Faço algumas reservas quanto ao próprio fundamento do romance. Os jornalistas não têm tanto espírito quanto se lhes concedem. Além disso, parece que viram apenas de longe o meio do qual falam. Não há, na minha opinião, bastante solidez, bastante bonomia nesse estudo de um mundo que só as burguesas ainda imaginam satânico e desenfreado.
Chego ao terceiro romance dos Goncourt, Renée Mauperin. Esse é o seu romance mais romance; quero dizer que se trata de uma história bastante complicada e de caracteres estudados com grande ciência do meio e da época. Para muitas pessoas, para aquelas a quem a personalidade artística assusta um pouco e que preferem a nudez e a análise, Renée Mauperin é a obra-prima dos Goncourt. A intenção dos autores foi pintar um ângulo da burguesia contemporânea. Sua heroína, Renée, a figura mais em voga, é uma moça estranha, metade rapaz, educada na ignorância casta das virgens, mas que intuiu a vida; uma criança mimada pelo pai, alma de artista, temperamento nervoso e encantador, conduzida ao estrume de uma civilização avançada, a mais adorável garota que se possa imaginar, falando gíria, imitando e fingindo, desperta para todas as curiosidades e de um orgulho, de uma lealdade, de uma honestidade masculina. Ao lado dela há um irmão que é igualmente uma maravilha de verdade; o jovem sério, o tipo da ambição correta, tal como fazem os costumes do parlamentarismo; um rapaz muito forte que dorme com as mães para desposar as filhas. Em seguida vem toda a alegria dos burgueses e das burguesas, de uma delicadeza de esboço, sem caricatura, pintados de uma só vez: são os filhos de 1830, os revolucionários enriquecidos, satisfeitos, tornados conservadores e conservando de seus ódios apenas o ódio pelos jesuítas e pelos padres. Alguns capítulos são de um cômico perfeito, de uma sátira sem violência, muito verdadeira. Na segunda parte da obra vem o drama. O irmão de Renée adotou um título nobiliário para ajudá-lo em seu casamento. Entretanto, resta um nobre com esse nome. Avisado por Renée, este provoca o jovem e o mata. Dessa forma, Renée, apavorada por sua atitude, morre lentamente de uma doença do coração; é uma agonia aflitiva que dura quase um terço do volume; nunca a aproximação da morte foi estudada com uma paciência mais dolorosa, e toda a arte de estilo dos romancistas, toda a sua felicidade de expressão se encontra aí, para retratar até os mais fugazes frêmitos do mal. Não conheço nada de mais tocante nem de mais terrível.
Confesso preferir Germinie Lacerteux dentre os romances dos Goncourt. É nessa obra que eles deram a nota mais aguda e mais pessoal. Penso que sempre é preciso escolher, na bagagem de um escritor, para colocá-la acima das outras, a obra que é mais intensa, fora das questões de perfeição e equilíbrio. Somente essa contém todo o escritor e merece viver. Em Germinie Lacerteux, os Goncourt realizaram essa obra-prima. É a história de uma doméstica, da doméstica de uma velha senhorita. Não posso infelizmente entrar na análise desse drama de um corpo e uma alma. Os fatos são aqui puramente fisiológicos; o interesse não está nos incidentes, mas na análise do temperamento dessa moça, de sua ruína, de suas lutas, de sua agonia; e seria preciso anotar uma a uma as frases pelas quais passa seu ser. Germinie ama um jovem operário, Jupillon, quase uma criança, um desses operários de Paris nascidos no vício. Por ele, para conservá-lo e comprá-lo, ela chega até a roubar sua patroa. É uma lenta degradação moral que a empurra para a prostituição, quando seu amante a abandona. Ela necessita do amor como precisamos do pão que comemos. Encontramos aí páginas de uma audácia cruel. Em seguida, uma noite, Germinie permanece sob uma chuva de inverno para rever Jupillon sentado à mesa num cabaré; e morre dessa última estação de seu calvário.
O romance, quando de sua publicação, produziu um escândalo enorme. Declararam-no obsceno, a crítica segurou pinças para virar as páginas. Ninguém, por sinal, pronunciou a palavra justa. Germinie Lacerteux, em nossa literatura contemporânea, é um marco. O livro faz o povo entrar no romance; pela primeira vez, o herói de boné e a heroína de touca de tecido são aí estudados por escritores de observação e de estilo. Além disso, repito-o, não se trata de uma história mais ou menos interessante, mas de uma verdadeira lição de anatomia moral e física. O romancista joga uma mulher sobre a pedra do anfiteatro, a primeira mulher surgida, a doméstica que atravessa a rua de avental; disseca-a pacientemente, mostra cada músculo, expõe os nervos, busca as causas e narra os efeitos; e isso basta para exibir todo um lado sangrento da humanidade. O leitor sente os soluços lhe subir à garganta. Acontece que essa dissecação é um espetáculo lancinante, cheio de elevada moralidade. As pessoas honestas que jogaram tanta lama em Germinie nada compreenderam da lição. Que se dê a Germinie um homem gentil como marido que a ame, que tenha filhos, que se a retire desse meio de vício fácil onde suas delicadezas se revoltam, que suas necessidades legítimas sejam contentadas, e Germinie permanecerá moça honesta, não irá vagar como uma loba nos bulevares para saltar ao pescoço dos homens que passam.
Uma das tendências dos romancistas naturalistas é quebrar e ampliar o quadro do romance. Querem sair do conto, da eterna história, a eterna intriga, que conduzem as personagens através das mesmas peripécias, para matá-las ou casá-las no desfecho. Não é preciso originalidade, recusam essa banalidade da narrativa, que se arrastou por todos os lugares. Vêem essa fórmula como um entretenimento para as crianças e as mulheres. O que eles buscam são páginas de estudos, simplesmente, um auto humano, alguma coisa de mais elevado e de maior, cujo interesse esteja na exatidão das pinturas e na originalidade dos documentos.
Nenhum escritor mais do que os Goncourt trabalhou para liberar o romance de todos os entraves do lugar-comum e do interesse estúpido. Em seus dois últimos livros sobretudo, Manette Saiomon e Madame Gervaisais, não testemunharam mais nenhuma preocupação com idéias adquiridas sobre a forma e o procedimento das obras da imaginação. Obedeceram à sua poética pessoal, com um desdém crescente pela aprovação do leitor e sem demonstrar sequer virar a cabeça para ver se o público os seguia.
Manette Salomon é um estudo livre sobre a arte e sobre os artistas contemporâneos. Os autores simplesmente se preocuparam em agrupar os tipos de pintores com quem se relacionam: Coriolis, seu pintor preferido, um rapaz rico, distinto e apaixonado pelo Oriente, cuja pintura cristalina, colorida e figurada possui as qualidades de seu próprio estilo; Anatole, o boêmio, sua criança mimada, uma figura que não deve ir além do trocista e do perambulador, dormindo ao acaso de suas amizades, hospedando os desconhecidos que passam, experimentando todas as aventuras, viajando sem parar no meio de todos os sonhos e de todos os ceticismos e vindo naufragar num pequeno emprego no Jardin des Plantes, onde seu amor pelos animais proporciona-lhe uma velhice feliz; Garnotelle, o prêmio de Roma, o pintor correto e medíocre que teve êxito sem talento, com uma habilidade astuta de comerciante; e outros tipos ainda, Chassagnol, feroz quanto à estética, o tagarela inesgotável das leiterias e das brasseries, o homem que acompanha as pessoas que aborda para explicar-lhes Rafael ou Rembrandt e que encaminha as coisas até dormir com elas, falando inclusive quando a luz está apagada; o casal Crescent, a mulher toda dedicada a seus gansos e patos, o marido, grande pintor retirado no campo, um tipo de solitário e patriarca da arte; dez outros mais que seria muito longo enumerar e que fazem da obra uma galeria fervilhante de retratos feitos sobre o real. Depois, com todas essas personagens, os autores não procuraram urdir a mínima intriga; deram-se juntos a tarefa, nos curtos capítulos que são cada qual como um quadro destacado, de pintar a vida dos artistas, das cenas que se sucedem, apenas ligadas por um tênue fio: o ateliê, com suas farsas, seus balbucios do talento, sua população de alunos; o concurso do grande prêmio de Roma e a chegada de Garnotelle à villa de Médicis; uma viagem de Coriolis ao Oriente; as perambulações de Anatole, seus dias de privação, todos os ofícios que exerce, essa existência estupefaciente do pintor sem dinheiro errando pelas ruas de Paris; descrições de ateliê prodigiosas de exatidão e riqueza; o Salão anual, o sucesso de Coriolis, depois as desforras da crítica; uma temporada passada na Floresta de Fontainebleau, em Barbison, esse retiro da arte parisiense; e mais cenas, a sala das vendas, a plástica da mulher, os recantos pitorescos de Paris e do subúrbio, a batalha das teorias artísticas, a amizade fantasista de um macaco e um porco, bebedeiras de carnaval, bailes e jantares de fritura, a existência das personagens largadas através da vida real, conduzindo os fatos ao acaso. Tal é a obra, o cotidiano fiel de várias vidas de artistas. Todavia, esse cotidiano é redigido por mestres pintores que animam tudo o que tocam. Esse romance sem ação é o mais interessante dos romances.
Os Goncourt, entretanto, não ousaram libertar-se completamente da fórmula romanesca. Conservaram uma heroína, Manette Salomon, uma judia, uma modelo de ateliê por quem Coriolis se liga numa paixão nervosa e ciumenta. Pouco a pouco, Manette se apodera do jovem, tem filhos com ele, impõe-lhe seus pais, indispõe-no com seus amigos, conquista-o até desposá-lo e o arrasta então na vida, diminuído, dominado, sem talento. É a mesma tese que em Charles Demailly, a mulher matando o artista. Não a discutirei; ela me parece absolutamente falsa, tão logo parecem querer lhe dar um caráter geral. Os romancistas, por sinal, estudaram Manette com uma acuidade extraordinária. Ela permanecerá como uma de suas melhores figuras.
Com Madame Gervaisais o quadro do romance se simplifica mais. Não se trata sequer de uma galeria de retratos, de uma série de tipos numerosos e variados, completando-se uns aos outros, chocando-se e chegando a produzir o burburinho de uma multidão. Dessa vez é uma figura inteira, a página de uma vida humana e nada mais. Sem personagens, nem no mesmo plano, nem no segundo plano; apenas o perfil de uma criança, que é como a sombra de sua mãe, e além disso essa criança é quase um animal, uma pobre criatura de inteligência retardada, cuja língua permanece embaraçada nas ceceaduras do recém-nascido. Já não há romance propriamente dito. Há um estudo de mulher, de um certo temperamento, inserida num certo meio. Isso tem a liberdade e a simplicidade de uma pesquisa científica redigida por um artista. A última fórmula é quebrada, o romancista toma o primeiro episódio de uma vida que aparece, conta-o, extrai dele toda a realidade e toda a arte que nela encontra e crê não dever mais nada ao leitor. Não é mais necessário atar, desatar, complicar, aplicar o tema no antigo molde; basta um fato, uma personagem que se disseque, em quem se encarne um canto da humanidade sofredora e da qual a análise traga uma nova massa de verdade.
A heroína, ou melhor, o tema dos Goncourt é uma mulher de grande mistério Mme Gervaisais, mal casada, que se refugiou no trabalho. Tem uma cultura masculina, latinista, helenista, erudita em todas as coisas, de alma artística, por sinal, e feita para a paixão do belo. Foi tão longe que atravessou Locke e Condillac para repousar em seguida na filosofia viril de Reid e de Dugald Stewart. Desde há muito sacudiu a fé católica como um fruto muito maduro. Foi então que a preocupação com a saúde conduziu-a a Roma; leva consigo seu filho, Pierre-Charles, essa querida criatura de uma beleza angelical e de uma existência instintiva de animal. Lá, seus primeiros meses são dedicados à Antigüidade, a Roma, à sua história, a tudo que o horizonte coloca de emoção em seu espírito de erudita e em seu coração de poeta. Repousa e ama seu filho, não vê ninguém, apenas algumas figuras que passam. Depois começa o drama, Mme Gervaisais mergulha nesse perfume católico, nesse odor de Roma que sopra um tipo de epidemia religiosa. Pouco a pouco é penetrada. Há nela uma mulher que ela não conhecia, a mulher nervosa, que o casamento não satisfez. E desliza para o êxtase e para o misticismo. Inicialmente, é apenas uma afloração carnal, a pompa das cerimônias. Em seguida, a inteligência é atacada, a razão soçobra sob as práticas, sob a regra imposta. Mme Gervaisais ingressa na fé; vai de um diretor tolerante a um diretor severo, esquece o mundo, desce cada dia mais, até não ser mais nem mulher nem mãe. Entrega-se por inteiro, vive na sujeira, rejeita seu filho, outrora tão elegante e tão apaixonada por Pierre-Charles. Aniquilamento feroz, medo da luz, crise da carne e do espírito que não deixa em Mme Gervaisais nada da mulher que ela foi.
Todo o livro é isso. Os Goncourt estudaram com uma arte infinita as lentas gradações do contágio religioso. Roma lhes fornecia um cenário esplêndido. Sua heroína letrada permitiu-lhes pintar a Roma da Antiguidade, e sua heroína devota deu-lhes a Roma dos papas. No desfecho, tiveram o que chamarei de uma fraqueza. Quiseram concluir. Dessa forma, prepararam uma cena dramática, que retira um pouco de seu romance o caráter de um estudo liberto de toda fórmula. Mme Gervaisais está muito doente do peito. Está morrendo no egoísmo feroz de sua fé. Seu irmão, um tenente, vem às pressas da Argélia, convence-a a deixar Roma; mas ele deve permitir-lhe ir, antes de sua partida, receber a bênção do papa; e é lá, no Vaticano, assim que o Santo Padre aparece aos seus olhos, que Madame Gervaisais morre como que fulminada, enquanto Pierre-Charles consegue, enfim, falar, lançando este grito doloroso: "Minha mãe!" É muito bonito, mas essa morte violenta, lógica como a obra, destoa um pouco como verdade. Mme Gervaisais, morrendo sua bela morte, devota, estreita, apergaminhada, acabava de dar à obra um caráter particularmente original. O efeito perderia, mas a realidade ganharia com isso.
Madame Gervaisais não teve sucesso. Essa nudez do livro, esses quadros contínuos, essa análise sábia de uma alma desconcertaram o público, habituado a outras histórias. Já não havia a menor palavra para rir na obra, nem peripécias vulgares, nem bruscas mudanças; e, com isso, a linguagem era estranha, repleta de neologismos, formas inventadas, frases complicadas traduzindo sensações que só os artistas podem experimentar, os Goncourt encontravam-se isolados, bem no alto, compreendidos somente por um pequeno número, no completo desenvolvimento de sua personalidade e de seu talento.
Devo concluir. O juízo pode ser completo e definitivo, pois se apóia como um romancista morto. O dia em que Edmond de Goncourt publicou uma obra assinada só por seu nome deve ter sido estudado e julgado à parte. Os seis romances dos quais acabo de falar compõem, assim, um conjunto sobre o qual a crítica é convocada a se pronunciar com a competência e a justiça da posteridade.
Em nossa literatura, os Goncourt permanecem, para mim, como um caso artístico extraordinário, um desses fenômenos cerebrais que, na ordem patológica, maravilham os grandes médicos. No meio do sufocamento geral à caça da originalidade, depois dos romancistas ilustres de 1830, que pareciam ter deixado o campo livre a seus sucessores, eles souberam, por sua própria natureza, entregando-se unicamente a seu temperamento, ver de forma diferente dos outros e inventar sua linguagem. Ao lado de Balzac, ao lado de Stendhal, ao lado de Hugo, eles brotaram como as flores estranhas e raras de uma civilização avançada. São personalidades excepcionais, escritores que devem ser colocados à parte, que permanecem numa história literária no estado de observação aguda, resumindo os aspectos excessivos da arte de uma época. Se a multidão nunca se ajoelha diante deles, terão uma capela de luxo precioso, uma capela bizantina com ouro fino e pinturas curiosas, na qual os refinados irão fazer suas devoções.
Gostaria de ter citado trechos de suas obras para mostrar a que frêmito de nervosismo eles conduziram a língua. Fizeram dela um instrumento de música, uma pessoa viva da qual se vê o gesto e se sente a respiração. A língua se tornou, como eles, de uma sensibilidade extrema às mínimas expressões, rindo com vivacidade, paralisando-se em certos sons, sem-pie vibrante às mais suaves brisas. E também introduziram na circulação todos os tipos de novas formas, expressões desconhecidas antes deles, frases verdadeiras e sentidas que devem amadurecer para serem aceitas. Dirijo-lhes aqui o maior cumprimento que se possa conceder a escritores; só os grandes que enriquecem o dicionário.
Vários romancistas, falo dos mais jovens, daqueles que têm hoje trinta e poucos anos, encantados com esse estilo pessoal, comovidos como por uma sinfonia, tiraram deles palavras, maneiras de sentir. Formou-se um grupo. Todavia, a imitação deve parar no que eu chamarei de nova retórica. Os Goncourt seriam diminuídos por seus alunos se eles conservassem isso. Prefiro-os em sua capela dourada e pintada, sem descendência, semelhantes a ídolos da arte caídos do céu azul numa bela manhã. Levado muito longe, e por recém-chegados forçados a ir ainda mais longe, seu estilo degeneraria para o preciosismo, para a efusão de cinzelamentos artísticos afogando as idéias e os fatos. Eles próprios, em Madame Gervaisais, chegaram algumas vezes a esterilizar os documentos humanos que sua observação tão clara e fina lhes havia fornecido.
Quero concluir por uma idéia consoladora. Esse público, tão pouco sensível às delicadezas da forma, tem mudanças repentinas que se assemelham a atos de justiça. Durante dez anos as obras dos dois irmãos repousaram, conhecidas por um número restrito de admiradores. A imprensa sempre se mostrou de uma dureza revoltante. E, de repente, sem que se saiba o porquê, nestes últimos tempos os jornais falaram dessas mesmas obras com elogio, quando do aparecimento das novas edições. Vieram os compradores, apaixonaram-se, cada vez mais numerosos. É, enfim, a glória que cresce, tem sua vez no túmulo do irmão , quando há agora apenas o irmão que permaneceu só e mutilado.
Émile Zola
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