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DOIDINHO / José Lins do Rego
DOIDINHO / José Lins do Rego

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DOIDINHO

 

O mundo interior dos homens é o cam­po de batalha preferido dos grandes - e dos autênticos - romancistas. Como rea­ge o indivíduo ao embate com as coisas da vida? Como cresce e se desenvolve a alma de cada pessoa? O amor, o ódio, o ciúme, a amizade - que cor têm, dentro dela? O grande, o autêntico romancista é um fabuloso arquitecto de almas: levanta um universo multifacetado. No entanto, sempre na sua experiência própria colhe o romancista a lição que lhe permite en­tender a complexidade da personalidade humana. A riqueza de uma novela está em relação directa com a riqueza íntima do novelista que a escreveu. Assim, no caso de «Doidinho»: toda a maravilha deste extraordinário romance decorre da invulgar sensibilidade e inteligência do autor, José Lins do Rego, por muitos con­siderado um dos maiores romancistas da língua portuguesa. Ele soube ver - e expressar - uma realidade fascinante: o Nordeste brasileiro, em época decisiva de dolorosas convulsões socio-políticas. Um menino bem nascido - que não é se­não Lins do Rego - assiste, comovido e espantado, ao despertar de um mundo, ao amor, ao ódio, à luta, à injustiça e ao heroísmo cotidiano e, deste modo, faz a sua educação sentimental. Retrato de um homem, retrato de um país.

 

- Pode deixar o menino, sem cuidados. Aqui eles endireitam-se, saem feitos gente - dizia um velho alto e magro para o meu tio Juca, que me levara para o colégio de Itabaiana.

Estávamos na sala de visitas. Eu, encolhido numa cadeira, todo enfiado para um canto, o meu tio Juca e o mestre. Queria este saber da minha idade, do meu adiantamento. O meu tio informava-o de tudo: doze anos, segundo livro de Felisberto de Carvalho, tabuada de multiplicar.

- Então não esteve na escola desde pequeno, pois aqui tenho alunos, de sete anos, mais adiantados.

Já me olhava como se estivesse a repreender-me.

Mas o senhor vai ver: com um mês mais, estará adiantado. Eu responsabilizo-me pelo aluno. O menino de Vergara chegou aqui a fazer pena: não sabia nem as letras. E está aí.

E gritou para dentro de casa:

- Emília, mande aqui o senhor Francisco Vergara. - Depois, para o tio Juca:

- Esse que o senhor vai ver é o pior aluno do meu colégio. Chegou-me que nem sabia soletrar. Um vadião de marca.

E daí a pouco entrava um menino da minha idade, moreno, gordo. Vinha com medo, os olhos assustados.

- É este. Hoje já pode escrever uma carta. Deu-me que fazer. Quisera que o senhor o visse no primeiro dia de aula, a gaguejar. O pai perdeu um dinheirão no colégio dos padres; pô-lo aqui desenganado. Quando voltou para as férias de São João, recebi uma carta do velho, espantado. Dizia-me que o menino já sabia mais do que ele. Deus sabe o trabalho que me deu.

O menino já se sentia outro com as palavras pacíficas do velho.

Passara-lhe o susto, olhava-me como a um companheiro.

- Mas olhe - dizia-me o director - não tome o exemplo dele. É um peralta. Quero que o senhor estude e se aplique. Menino bom é meu amigo, sou um amigo do aluno estudioso. Pode ir lá para dentro com o senhor Vergara.

E o meu tio chamou-me para me abraçar. Parecia que me deixava de vez, porque foi com o coração partido que me cheguei para junto dele.

- Estude. Em Junho venho buscá-lo.

Saí a chorar. Era a primeira vez que me separava da minha gente, e uma coisa me dizia que a minha vida tomava outra direcção.

O colégio de Itabaiana criara fama pelo seu rigorismo. Era uma espécie de último recurso para meninos travessos. O Diocesano não me aceitara porque estavam as matrículas encerradas. Lembraram-se do colégio do seu Maciel, como era conhecido nos arredores o Instituto Nossa Senhora do Carmo. Lá estiveram os meus primos uns dois anos. Voltaram contando as mais terríveis histórias do director. Um judeu. Dava, sem pena, palmatoadas, por qualquer coisa. Era ali que eu estava agora.

O menino gordo levou-me para o quarto de dormir. Era preciso mudar de roupa. O colégio estava vazio. A garotada saíra para a feira com os pais. A casa grande, com um salão cheio de tamboretes, e uma cadeira de braços em frente de uma mesa enorme e um estrado. Fiquei por ali, com essa dor pungente de quem se sente isolado no mundo. Não tinha de quem me aproximar. Foi quando uma mulher meio velha me chamou:

- Você é primo do Silvino? Era um menino danado, inteligente a valer. Está a fazer figura no Diocesano. O Maciel batia-lhe muito. Tudo por comportamento. Por causa da lição nunca apanhou neste colégio. Foi o melhor aluno de Aritmética que tivemos até hoje. O outro irmão não dava para nada. O Maciel cansava-se, inchava-lhe as mãos com palmatoadas, mas era o mesmo que nada. Você parece que é bonzinho. Está é muito atrasado.

Era D. Emília, a mulher do director.

Depois começaram a chegar os meninos, uns dez internos. Passaram por mim dizendo: " É um novato. " E iam lá para dentro com as mãos cheias de embrulhos. Traziam os bonezinhos pretos com as iniciais do colégio. I. N. S. C. - Instituto Nossa Senhora do Car mo, Eu tinha também que comprar o meu bonezinho preto, com a pala, caída sobre os olhos e as letras douradas. A farda do Colégio. Diocesano, sim, que era bonita. Farda mesmo de soldado, com quêpi e dragonas de oficial.

Foram-se chegando os colegas:

É do Pilar? Primo do Silvino? - perguntava-me um mais velho. - O meu pai conhece bem o seu avô; compra-lhe gado. Eu sou do Sapé. Estive com o Silvino aqui no Colégio um ano. Zé Baú, o irmão dele, apanhava como um cachorro. Seu Maciel não tinha pena. O velho é uma peste: por qualquer coisa bate na gente. O Chico Vergara da Paraíba chega a ter as mãos azuis de palmatoadas: é de manhã e de noite.

Estavam a chamar para o jantar. Descemos uma escada para a sala de- refeições. Uma mesa grande para todos. O seu Maciel na cabeceira, D. Emília e o pai dela a um lado, e a negra Paula à servir. Quando me deram o prato de feijão, recusei: Não gosto de feijão.

- Pois é o que o senhor tem de comer aqui todos os dias.

Engoli, com um nó na garganta, o meu primeiro rancho de prisioneiro.

Se o senhor quiser escolher comidas, vá para o hotel.

Isto com uma voz seca, estridente, que atravessava o interlocutor de lado a lado.

O resto dos meninos, olhando para o prato, devoravam a ração num silêncio de igreja. Pareceu-me, então, o director uma figura de carrasco. Alto que chegava a curvar-se, de uma magreza de tísico, mostrava no rosto uma porção de anos pelas rugas e pelos bigodes brancos. Tinha uns olhos pequenos que não se fixavam em ninguém com segurança. Falava como se estivesse sempre com um culpádo à sua frente, dando a impressão de que estava pronto para castigar. A mulher, com uns olhos azuis e uns cabelos de inglesa, era bem mais simpática. Percebia-se também que a fúria de seu marido ia até às intimidades domésticas. O pai, o seu Coelho, era um boémio, uma dessas velhices que trazem sempre consigo o pouco juízo da mocidade. Mas tudo isto eu viria a perceber depois.

Quando saí da mesa os meninos cercaram-me. Ainda com os olhos vermelhos do choro, respondi às perguntas. Um deles queria saber dos meus estudos; um outro, se trazia colecção de selos, quanto trouxera em dinheiro.

Quando entrei no colégio, o meu pai deixou-me quatro escudos, e todas as terças-feiras eu recebia merendas.

- Ele vai dormir no nosso quarto; puseram a cama dele junto da do Aurélio.

Perguntaram também pelos meus pais, se eu era de engenho ou se voltaria para passar a Semana Santa em casa. E todo este inquérito ia desviando as minhas preocupações. O nosso eio era situado numa nesga de quintal, e o único jogo permitido - a conversa. O director, numa preguiçosa, lia jornais. Um dos meninos conhecia o meu avô, a minha família.

- O avô dele tem nove engenhos. Meu pai vota por ele nas eleições. É o velho Zé Paulino do Santa Rosa.

Um magro procurava saber se a minha roupa preta tinha sido feita por alfaiate. E começaram a contar histórias da feira. Um havia almoçado no hotel com o pai. E davam notícias: "Vão pôr luz eléctrica em Itabaiana"; "Chegou um circo para o pátio da cadeia". E tinham ido à estação, aos Altos Currais, ao bilhar do Comércio, andado de bicicleta. Tudo isto me fazia esquecer a dura realidade do colégio do seu Maciel.

Já ao escurecer chamaram-me:

- Seu Maciel quer falar com o Carlos de Melo.

Era a primeira vez que me chamavam assim, com o nome inteiro.

Em casa, era Carlinhos, ou então Carlos, para os mais estranhos. Agora, Carlos de Melo. Parecia-me ser outra pessoa que se criara de

repente. Ficara um homem. Assinava o meu nome, mas aquele Carlos Melo não tinha realidade. Era como se eu me sentisse um estranho para mim mesmo. Foi uma coisa que me chocou esse primeiro contacto com o mundo, esse dístico que o mundo me dava... A gente, quando se sente fora dos limites da casa paterna, que é toda a sociedade, parece que uma outra personalidade se incorpora à existência. O Carlos de Melo que me chamavam era bem coisa que o Carlinhos do engenho, o seu Carlos da boca dos moradores, o Carlos do meu avô.

O director mandou-me sentar junto dele. Ia submeter-me a um exame ligeiro. Fez-me umas perguntas de tabuada, a que eu mal respondia com o susto.

Vá buscar o seu livro de leitura.

Voltei com o meu segundo livro de Felisberto de Carvalho. Li para ele ouvir a lição do começo; li em sobressalto, trocando os nomes com o livro a tremer-me nas mãos.

- O senhor não sabe nada. A sua lição de amanhã é esta mesma. Pode ir lá para dentro, onde estão os outros.

D Emília foi quem me disse:

- Vou tomar conta de você.

E voltando-se para o velho:

- Ele passa para a minha classe, Maciel.

- Não, fica comigo mesmo. Está muito atrasado. Fica comigo.

Dizia isto com as mãos para trás, por cima do espaldar da cadeira, e com as pernas cruzadas. Ainda era mais magro assim, espichado na espreguiçadeira, com os olhos fechados sob um boné de pano mole.

Lá fora os meninos perguntavam para que me chamara ele.

- Chico Vergara no dia em que entrou para o colégio levou palmatoadas, diziam. Enraiveceu-se com seu Maciel.

A conversa toda agora era sobre um sargento que viria formar um curso militar no colégio. Falavam da farda que iríamos ter. Uns achavam bonita a branca do Diocesano; outros queriam a amarela do curso, com o chapéu acabanado de lado. A grande alegria de todos ali estava na esperança dos exercícios militares. Eu também já me sentia na intimidade dessas ambições. Chico Vergara, que fora do Diocesano, contava dos passeios que o colégio fazia, com tambor e corneta, pelos arredores da Paraíba. As carabinas eram mesmo de atirar. As nossas seriam de madeira. Tinha a impressão de que já vivia com aquela gente há um mês.

Podem ir para a rua - disse lá de dentro o director.

Saímos, cada um com o seu tamborete. Até às nove horas ficava todo o internato a tomar ar na rua. Podia-se passear de dois em dois. Comprava-se rolete de cana e pão sovado. O director dava o seu passeio pela cidade; e era como se o terror se tivesse ido embora. Mas qual!, ficava a sua sombra, um decurião, tomando conta da gente.

- Seu Filipe, olhe estes meninos. O senhor é o responsável: à menor coisa tome nota. Não permita gritarias nem palestras com gente de fora.

O decurião ficava, legítimo representante da tirania, excedendo-se em zelos, provocando mesmo incidentes para o relatório do outro dia.

Às nove horas recolhemo-nos para dormir. Dormir com a cama preparada por mim, com lençóis que eu mesmo tirara da mala, fora do meu quarto do Santa Rosa!

Na cama começavam a chegar os meus pensamentos. Éramos seis no quarto pequeno de telha vã. Ninguém podia trocar palavra. Falava-se aos cochichos, e para tudo lá vinha: é proibido. A liberdade licenciosa do engenho sofria ali amputações dolorosas. Preso como os canários nos meus alçapões. Acordar a hora certa, comer a hora certa, dormir a hora certa. E aquele homem impiedoso para dar lições, para ensinar à custa do ferrão o que eu não sabia, o que não quisera aprender com os meus professores, os que não me batiam porque eu era neto do coronel Zé Paulino. Agora não havia mais disso. Era somente um Carlos de Melo, como os outros, menino atrasado, no segundo livro de leitura, quando existiam menores no Coração. E, aos poucos, como uma dor que viesse, picando, devagarinho, a saudade do Santa Rosa invadiu-me a alma inteira. O meu avô, os moleques, os campos, as negras, o gado, tudo me parecia perdido, muito longe, num mundo a que não mais podia voltar. E, comecei a chorar mordendo o travesseiro. Mas o choro era daqueles que violam o silêncio, e cortei os soluços na garganta.

- Que barulho é esse aí? - perguntaram lá da sala.

- É o novato que está a chorar.

  1. Emília veio saber porquê.

- Você já tem tamanho para não estar a chorar assim. Durma, menino; amanhã já nem se lembra da sua casa.

E passou-me a mão pela cabeça, com uma carícia indiferente, sem calor, uma carícia profissional de mulher de director.

Dormi com um sono aperreado. Sonhei que estava no colégio, que ia ficar ali a vida inteira. Acordei no meio do- sonho, como para me assegurar de que aquilo era mentira. Mas não, não era. Fiquei acordado muito tempo, a pensar, e adormeci outra vez.

Despertei com os meninos a levantarem-se da cama, logo -de manhãzinha. Dobrámos os lençóis, e saímos com a bacia e o copo.

Na sala de jantar, sentado na espreguiçadeira, estava o seu Maciel.

Cada um passava por ele e apertava-lhe a mão, dando bom-dia.

Lavava-se o rosto, porque banho só tínhamos duas vezes por semana.

O decurião Filipe começou a relatar os acontecimentos irregulares da noite anterior: o Chico Vergara estava impossível; o seu Heitor dando cocorotes nos outros.

- Deixe estar - respondia o velho. - Na aula eu falo com eles.

Depois, o café com bolacha seca, um café que me fez saudades das tapiocas e dos cuscus do Santa Rosa. E todos seguimos para o salão de estudos.

Daí a pouco, chegava o director, olhava para todos os lados, a ver se descobria alguma coisa. Sentava-se na cadeira de braços.

Senhor Francisco Vergara.

O menino levantou-se, e ficou em pé diante dele. Com uma palmatória na mão, o director ia dizendo:

- O senhor sabe que eu não quero moleques aqui; o senhor não se emenda. Venha cá, seu atrevido.

E a palmatoada ecoou na sala. Porr dentro de mim corria uma onda de frio.

O menino voltou para o seu lugar, com os olhos nadando em lágrimas.

- Senhor Heitor!

E as mesmas palavras e as mesmas lágrimas derramadas.

Quando ouvi - Senhor Carlos de Melo! - foi como se me chamassem para uma surra.

Levantei-me tremendo.

- Sente-se aqui! Leia a sua lição.

Fui lendo sem saber o quê. "Júlia, a boa mãe". Mas truncava tudo, saltando as linhas.

- É o cúmulo - gritava o velho - deixar-se um menino deste tamanho sem saber nada. Só os bichos se criam assim. Porque está o senhor a chorar? Volte para o seu lugar. Mais tarde dou-lhe lição outra vez.

Voltei. Não via ninguém na minha frente. Sentei-me, e, em cima de "Júlia," a boa mãe", as minhas lágrimas, caíam.

Iniciava assim o meu curso doloroso contra a ignorância.

Com o livro entre as pernas, lia a minha lição palavra por palavra. Era a história de uma mãe que queria divertir o seu filho.

Havia um gato e um novelo de linha. A figura mostrava o menino gordinho numa cadeira alta e a mãe brincando com o gato. Tudo aquilo para que o filho sorrisse. Não sei porquê, achava aquela Júlia parecida com a minha mãe. Esta deveria fazer o mesmo comigo; tudo daria também para que o seu filho sorrisse.

Principiavam a chegar os externos. Entravam apertando a mão do director, colocando-se nos seus lugares.

Seu Maciel dirigiu-se a um que fora o último a entrar:

- Senhor Pedro Moniz, o senhor não sabe que eu não permito aos meus alunos que andem a fumar na rua?

Sei, sim senhor.

Chegue cá, seu sem-vergonha.

E a palmatória cantou outra vez. Este não chorou. Foi vermelho para o seu lugar, mordendo os beiços, olhando para os outros com cara de raiva.

A sala enchera-se. O professor dava lição nas classes. D. Emília tinha os menores com ela. Mas ensinava também gritando. Corrigia os erros da leitura num tom de voz de reprimenda.

Depois do almoço ficava-se uma meia hora a descansar. Comi com a comida a amargar-me na boca, e no recreio fiquei para um lado. Os meninos conversavam, discutiam. Qualquer coisa, porém, me afastava do meio deles: era o pavor da lição que iria dar. Uma impressão de terror oprimia-me todo. O velho Coelho conversava com os maiores:

Filho meu não apanhava assim. O Maciel bate neste Vergara todos os dias. O diabo do menino não se corrige; mas todos os dias assim é de mais.

Ninguém dava uma palavra à observação do velho. Não se estimavam, o sogro e o genro.

De tarde fui dar a minha lição. Levava o coração aos saltos, como nas noites em que acordava com o quarto às escuras. Muitas vezes a velha Sinhazinha me deixava esta impressão de pavor. Com a velha, porém, havia forma de fugir às suas iras. Aqui mudava muito para pior. Errei a lição toda. Sabia quase que decorada a história de "Júlia; a boa mãe". O medo, no entanto, fazia a minha memória correr de mais; e saltava as linhas.

- Leia devagar. Para quê essa pressa?

Foi pior. A língua não me ajudava. Quando olhei para ele vi-o com a palmatória na mão.

- Levante-se.

Não soube mais o que fiz. Senti as mãos como se estivesse com um formigueiro em cada uma. Como o Chico Vergara, apanhara no meu primeiro dia de aula.

Dos externos só restava um na sala, e eu também, até dar certa a minha lição. No salão deserto, a minha angústia crescia mais. Apanhara no primeiro dia, e fora tudo num instante, nem sei como. Quando a velha Sinhazinha me batera uma vez, todos os da casa estavam por mim. A minha vaidade de menino enchera-se com essa dedicação. Ali fora com indiferença geral que a palmatória soara nas minhas mãos. Talvez porque o castigo não fosse uma excepção naquela casa, apanhava-se todos os dias.

Na parede da sala havia um quadro grande, representando a subida de Cristo aos céus. Parecia que estava ali para uma profanação.

Jesus veria surrados todos os dias aqueles mesmos que queria que fossem a Ele, porque era deles o reino dos céus.

Mas eu não pensava nisto olhando a imagem, eu pedia, sim, que ela me fizesse voltar para casa, que os dias corressem, que as semanas voassem. Antes do jantar, D. Emília veio dar-me lição. Dei-a certinha, sem um erro, do começo ao fim.

- Porque não leu você assim para o Maciel?

E depois:

- Vá lavar o rosto para jantar. Fazem do Maciel um bicho.

E quando passei pela sala de jantar, lá estava ele espichado na cadeira preguiçosa, com os olhos fechados e os ouvidos abertos às conversas dos meninos no alpendre.

 

Havia um mês que eu chegara ao colégio. Um mês de uma aprendizagem dura que me custara suores frios. Tinha também ganho a minha alcunha: chamavam-me Doidinho. O meu nervoso, a minha impaciência mórbida de não parar no mesmo sítio, de fazer tudo às carreiras, os meus recolhimentos, os meus choros inexplicáveis, baptizaram-me assim pela segunda vez. Só me chamavam Doidinho. E a verdade é que eu não repelia a alcunha. Todos tinham a sua. Havia o Coruja, o Pão-Duro, o Papa-Figo. Este era o pobre do Aurélio, um amarelo inchado não sei de que doença, que dormia junto de mim. Vinha um parente buscá-lo e trazê-lo todos os anos. No S. João não ia para casa, e só voltava no fim do ano porque não havia outro remédio. A família tinha vergonha dele em casa. Nunca vi uma pessoa tão fria, com aquele corpanzil bambo de papangu. Apanhava dos outros e apenas gritava: - Vou dizer a seu Maciel! - Mas não ia, coitado. Nem essa coragem do enredo ele tinha. Dormia com um ronco de gente a morrer e a boca aberta, a babar-se. Às vezes, quando eu acordava de noite, ficava com medo do pobre do Aurélio. Ouvira dizer que era de amarelos assim que saíam os lobisomens. Certas ocasiões não podia levantar-se,e dias inteiros ficava na cama, com um lenço amarrado à cabeça. E o seu Maciel não respeitava nem esta enfermidade ambulante: batia no pobre também. Era mais por estudos. O Papa-Figo não aprendia nada. Estudava num livro em pedaços, de tão velho, e não passava para outro. A mala dele, no entanto, fazia gosto: arrumadinha e fechada. Tinha no fundo a estampa de um santo. Mas ninguém tocasse nela quando ele a abria. Era toda a sua razão de ser, aquela mala.

Um dia contou-me que o pai se casara segunda vez, que a madrasta não gostava dele- Foi o bastante para que eu lhe ficasse a querer bem. A história da menina enterrada, a opressão que nós todos sofríamos no colégio, fizeram-me camarada de Aurélio. Para ele também era o mesmo se eu lhe quisesse mal. Aos exercícios militares não o deixavam ir. Tinham nojo dele. Mal pegava numa coisa, ninguém a queria comer. Tinha uma caneca própria para beber água. E diziam que os panos da cama dele cheiravam mal.

O Pão-Duro era um menino da Guarita, Manuel Mendonça. Ganhara a alcunha pela sumitiquice. Recebia, de casa, latas de doces, que fechava na mala. Comia no recreio, e nunca ninguém provou um pedaço dado por ele. O director foi à sua mala, e encontrou uma quitanda lá dentro, e uns pães velhos, de dias, murchos, mais duros do que ferro. Lançaram tudo para o quintal. Eu ainda não estava no colégio nesse tempo. Foi assim que o sumítico ganhou a alcunha de Pão-Duro. O pai era marchante de gado. De vez em quando passava pelo colégio à frente de boiadas. Pão-Duro não gostava destas passagens humilhantes, porque os meninos vinham perguntar-lhe, troçando, de quem o pai dele era vaqueiro. Ninguém, mesmo, gostava dele. Queixava-se de todos:

Seu Maciel, seu Vergara está a chamar-me Pão-Duro.

- Seu Zé Augusto está a troçar de meu pai.

Era uma espécie de agente provocador de palmatoadas.

O Coruja, não: um bom em tudo. Ganhara a alcunha por causa da cara redonda e dos olhos miúdos. Há três anos que estava no colégio, e apanhara somente umas três vezes. Era um record.

O Zé Augusto dava-se mais comigo nos meus primeiros dias de internato. Conhecia o meu avô: o pai morava perto do Santa-Rosa. E a fama do velho Zé Paulino corria mundo. Gostávamos de ficar a conversar sobre coisas vagas, neste ingénuo falar: de menino. Contava-me que ia passar a Semana Santa a casa. A melhor notícia que se podia ter por ali era esta: ir para casa. As férias seriam em Abril, e falava-se delas em Janeiro, como se fossem na outra semana. Eu só voltaria no S. João. Seis meses, cento e oitenta dias. Ele recebia cartas de casa, de sua mãe. Ela estava muito doente dos olhos, mandava-lhe um caixote com frutas e latas de doce.

Somente Aurélio e eu não recebíamos nada de casa. Há um mês ali, e nem um recado. Isto diminuía-me, dava-me a impressão deser um abandonado, um esquecido, sem ninguém que guardasse de mim uma recordação qualquer. Até o Vergara, o pior aluno, recebia coisas de casa, e vinha um correspondente visitá-lo, e passava os domingos fora. Eu e Aurélio, a sofrermos uma excepção que me magoava. Papa-Figo nem se importava. As injustiças do mundo não lhe mereciam uma reclamação. Ele não sentia, não se julgava intimamente; a crueldade do Destino parecia-lhe indiferente. A sua alma não era capaz nem de alegrias nem de pesares. Que lhe importava uma visita, uma carta, um carinho dos outros? Mas eu gostava, dessas coisas. Sonhava com uma mãe que me escrevesse, com a visita que me viesse buscar para as feiras, que me mandasse latas de doce.

Uma vez, numa terça-feira, encontrei-me sozinho com Aurélio no colégio. Todos haviam saído.

Trepámos às cadeiras para ver a rua por cima das rótulas. Passava gente com cestas voltando da feira. E um moleque gritou para Aurélio:

Olha o Papa-Figo!

E o pobre bateu a janela à vaia miserável. Até de fora a impiedade humana castigava a sua desventura. Agarrei numa tampa de vidro de tinteiro e atirei-a ao atrevido. Acertei-lhe na cabeça, e o sangue correu. Veio gente para a porta do colégio.

- Um menino do colégio quebrou a cabeça do criado do dou- tor Bidu.

Quando vi o sangue, corri aterrorizado para o quarto de dormir, com o pavor de quem fugisse de uma multidão perseguidora. Ouvia o barulho à porta da rua. - Mandem chamar o professor Maciel. E D. Emília gritando para não sei quem:

- O menino não fez isso de propósito. Maciel vem já.

Era como se me dissessem:

- O seu carrasco já vem.

Deitei-me na cama porque as pernas já não me aguentavam.

O meu sangue corria frio pelo corpo. O coração aos pulos como se eu tivesse feito uma carreira de léguas.

Onde está esse doido?

Foi o que eu ouvi, vindo lá de fora. Vinha a chegar o meu suplício. Os minutos angustiados dos que esperam a hora de morte na forca deviam ser assim, com este tremor do corpo todo e esse amolecimento de todas as fibras.

- Seu Carlos de Melo, seu Aurélio, venham cá.

Caminhei para o patíbulo, com pernas que pareciam não ser as minhas, e não sei se os olhos cheios de lágrimas viam alguma coisa. Ouvi foi o director:

- Que é que o senhor pensa que é isto aqui? Conte-me como foi isto.

Estava a contar tudo como um sonâmbulo, quando bateram à porta. Era o doutor Bidu.

- Não castigue os meninos, professor. Contou-me agora mesmo uma pessoa que vinha com o moleque, que o safado insultou as crianças. É um favor que o senhor me faz: não os castigue.

- Está bem: atendo ao seu pedido. Mas esses atrevidos procederam pior que o seu criado. Não tinham que atirar pedradas, isto aqui não é aula de capoeiras.

- Deixe os meninos - disse o Dr. Bidu, rindo-se.

- Podem sair, fica para a outra vez.

Queria com isto dizer somente: esta surra de palmatoadas está adiada.

Na cozinha a negra Paula também se queixava do moleque:

- Vive a chamar nomes a toda a gente. Foi bem feito.

Mas eu não me considerava absolvido. Tinha-me dado o velho um livramento condicional. Aquela tempestade, os ventos haviam-na levado para longe, porém, voltaria. Só dependia de um pequeni no incidente. A atmosfera não se descarregara. Mesmo, aquela atmosfera nunca a vimos leve, em dias claros. Havia sempre nuvens pesadas ameaçando-nos. Às vezes um céu limpo, mas um escuro no horizonte fazia estoirar trovoadas.

No outro dia, na aula, a tempestade caiu em cima de mim sem piedade.

Venha para a lição, seu Carlos de Melo.

Com um mês, adiantara-me de verdade: lia corrente. Agora, porém, a coisa era outra. Os meus nervos, como as dores dos reumáticos, pressentiam de longe o tempo ruim. Fui a tremer para a lição. Estava quase no fim do livro, na história de um diabo de esporas compridas e de barbichas longas, que fora tentar um rapaz. Ele queria que o jovem espancasse a irmã e matasse o pai. Mas, fugindo da tentação, o rapaz achava a coisa mais cruel do mundo isto que lhe pedia o capeta.

Então, entrega-te ao vício da embriaguez.

E o rapaz bêbado, fez tudo o que o demónio queria.

A lição saíra sem um erro. Tremida, mas certa. Fui sentar-me com a impressão de ter andado numa corda por cima de um abismo. Mas aquele diabo, do livro, estava ali, para me tentar. José Augusto, que se sentava perto de mim, fez um sinal que eu não compreendi. - Perguntei-lhe o que era.

- Chegue cá, seu Carlos de Melo.

O director surpreendera-me.

- Que conversas são estas? Não quero maroteiras aqui.

E seis palmatoadas cantaram nas minhas mãos. Fiquei de pé em frente da mesa, oprimindo os soluços que se elevavam como pro testo da minha sensibilidade machucada.

- Seu doudo (ele não dizia doido), quer fazer do meu colégio bagaceira de engenho. Está muito enganado.

E a palmatória exposta em cima da mesa, pronta para a acção, com o cabo torneado como objecto de arte.

Aquele outro palerma paga-mas!

Não se ouvia nem um sussurro no salão, quando essas fúrias, chegavam às suas explosões violentas. Cada um sentia-se um condenado ao castigo, embora a mais cândida inocência o envolvesse. E mesmo não havia inocentes entre todos aqueles que o Senhor chamava com tanto gosto ao seu regaço. Talvez que tivesse razão a pedagogia do velho em descobrir em cada um de nós um pequeno monstro em formação. O seu sistema de educar, a ferro e a fogo, sem dúvida que lho aconselhava a experiência de meio século de trato com anjos.

Dava a lição das classes: Geografia, História do Brasil, Aritmética.

Vá à pedra seu Olívio.

Ia o menino para os problemas e as figuras de geometria. - Leia.

Era um pedaço da Selecta Clássica, que até me divertia. Lá vinha o Paquequer rolando de cascata em cascata, do trecho de José de Alencar. Havia um pedaço sobre Napoleão. O Napoleão que eu conhecia era o de Pilar; mas aquele tinha todos os caracteres e todas as religiões: católico na França, protestante na Alemanha, muçulmano no Egipto. A "Queimada" de Castro Alves e o "há dois mil anos que mandei-te um grito" das "Vozes, da África". E a história do lavrador que antes de morrer chamara os filhos para um conselho. Mandou que um quebrasse um frágil pedaço de pau; e o filho quebrou-o. Dois pedaços, e ainda o segundo filho quebrou-os. Depois um feixe, que nem todos os três rapazes reunidos puderam partir. Esses trechos da Selecta Clássica, de tão repetidos, já eram íntimos da minha memória.

- Vá sentar-se.

Há duas horas que estava de pé. As mãos inchadas das seis palmatoadas, e uma consciência limpa de culpa recalcando uma raiva de morte contra um tirano. Apareceu um homem, começava assim aquela história sobre Napoleão, que encheu o universo de terror e completou o catálogo dos crimes. Ele não sabia o que era piedade: matava exércitos, ensanguentava o Mundo. O seu Maciel seria assim cruel, sem pena de ninguém, como aquele Napoleão.

Ao almoço não quis comer.

- Como? O senhor não quer comer? Era o que me faltava: um casmurro no meu colégio! Deite a comida para ele. Quero só ver isso!

Engoli, temperada com o sal das minhas lágrimas, a magra carne de sol com farofa de todos os dias.

No recreio ninguém se aproximou de mim. Era uma espécie de lázaro o aluno mais recente nas iras do director. Ninguém procurava ligações com o oprimido. Mas o Coruja era um bom. Chegou-se para mim:

- Carlos.

Era a primeira vez no colégio que me chamavam assim, o meu nome só, limpo, como se fosse na boca da gente do Santa Rosa. Vinha dar-me um pedaço de doce.

- Domingo meu pai vem ver-me. Vou pedir a seu Maciel para você sair comigo.

Conversou mais tempo, falou-me da irmã, que voltara do colégio, doente. Ela tinha um olho cego, furado numa brincadeira com ele, quando eram bem pequenos. Coitado do Coruja! Havia esta mágoa profunda dentro dele: a irmã cega de um olho por culpa sua. Só eu sei que consolação das minhas dores ele me trouxe, derramando o óleo das suas confidências sobre as minhas feridas abertas.

Os outros meninos passavam de longe. Faltava-lhes coragem para amparar um colega caído no ostracismo. Se não fosse o coração generoso do Coruja, essa história de solidariedade humana não seria mais do que uma conversa. D. Emília nem sequer me olhou. E a negra Paula, fora ela quem contara ao director que eu não queria comer. José Augusto passando de longe, como os outros. E no meu canto, sentado, via Coruja a crescer no meio daquela gente pequena, como um grande, um forte, com a sua superioridade de se encostar a um degradado, de trazer-lhe a sua simpatia de irmão mais feliz.

Havia no mundo gente assim e gente como os outros, os Pão-Duro, os José Augusto. Entrava-me pelos olhos adentro a evidência cruel dessas desigualdades. Nós éramos dez, e destes dez um, somente se desgarrava da covardia, procurando-me com o único interesse de me consolar, derramando pela minha alma arranhada as doçuras e as sinceridades da sua alma.

- Eu queria que você escrevesse uma carta lá para casa, Coruja. (Não sabia chamá-lo pelo seu nome; a alcunha identificara-se tão intimamente com ele, que já nem ligava importância ao José João da

sua assinatura). Quero que você escreva a contar tudo.

- Se seu Maciel souber, mata-o à tareia.

- Não, o meu avô manda-me tirar do colégio.

E ele escreveu-me a carta, que foi por um externo para o correio.

 

Passei dias à espera da resposta. Sonhava com o velho Zé Paulino na sala de visitas do colégio, a discutir com o director. E ouvia diálogos de um avô defendendo o neto contra o seu algoz:

- Não lhe mandei o menino para cavalo de matuto. Isto não é colégio: é pior que a Marinha. Quero levá-lo daqui. Arrume a mala, seu Carlos, vamo-nos embora.

Mas eram uns diálogos de sonho. Ninguém se importava comigo, pensava nos meus silêncios. Era como o Aurélio, atirado para ali para descanso dos que ficavam em casa. Sentia raiva à minha gente. E não era que estivesse no fim do mundo. Itabaiana estava a um salto do Santa Rosa. E dias e dias, e nem uma linha de resposta. Estava escrito, porém, que aquela carta me daria muito que fazer.

Numa terça-feira chamaram-me:

Tem um velho na sala de visitas à sua espera.

Corri ansioso para lá. Beijei a mão cheia de veias do velho Zé Paulino. Já estava de conversa com o director:

- Não me importo que dê no menino. Pu-lo aqui para aprender, e os meninos só aprendem com castigos. Agora o que não admito é judiarias. Isso não. Prefiro deixá-lo na bagaceira. Isso não.

- Não há judiarias, coronel. Só castigo quando há precisão. Pelo meu colégio tem passado muita gente e todos ficam meus amigos. O senhor está mal informado. Não vá atrás de cartas de aluno. O que eles querem é vadiar, e mentem, e inventam. Luto há cinquenta anos com essa gente.

Bem, bem - respondia-lhe o meu avô. - Acredito no que o senhor diz. Quero que o menino saia comigo hoje. Mandaram-me preparar. Abria-se para mim, de repente, um céu. A história da carta pouco me preocupava, só pensando na saída. A minha alma lavava-se de todas as injustiças e de todas as mágoas. O velho Zé Paulino já me esperava. Vinha com o seu chapéu do Chile de abas largas, o seu correntão de ouro, e o seu paletó preto, todo em grande gala. Os meninos veriam quando eu saísse com ele. Já não podiam dizer que eu era como o Aurélio: o meu avô estava ali para me elevar dessa classe infeliz dos esquecidos, dos sem amor dos parentes, dos que não recebiam visitas de casa. Vencera uma batalha naquele dia, desgarrando-me assim de todas as humilhações sofridas. Na rua a liberdade sorria-me como a um namorado. Pela primeira vez eu via a cidade, a Rua do Comércio cheia de gente na feira, o jardinzinho da Praça da Estação e o hotel que ficava junto do Mercado. Era uma coisa grandiosa a feira de Itabaiana. Nunca vira tanto povo junto, num reboliço de festa, nessa confusão, nesse falazar dos que vendem e trocam. Havia de tudo: o lado do queijo da carne de sol, do açúcar bruto, do açúcar purgado, do feijão, ruas inteiras de géneros, gente falando alto, cheiro de bacalhau, de peixe em salmoura, de frutas passadas. De vez em quando o meu avô parava para conversar. Fëlix Touca, comprador de açúcar.

- Tenho dinheiro para o senhor, coronel.

E puxou do bolso uma porção de notas em maço.

Queria que os meninos do colégio estivessem ali para ver a riqueza do coronel Zé Paulino.

Outro era um morador do Santa Rosa.

Que anda a fazer por aqui?

- Vendendo um gadinho, seu coronel - com a cabeça baixa. - Precisão de dinheiro; o algodão não deu nada este ano, e o povo de casa precisa de se vestir.

- Muito gado nos currais?

- Gadinho, seu coronel. O sertão está chovido. Não tem descido nada. Estão nas engordas.

Fomos almoçar ao hotel. No caminho o velho Zé Paulino falou-me na carta: que não queria saber de mentiras, que não lhe escrevesse mais a mandar contar daquelas histórias.

- A Maria está a passar uns dias no engenho, e ficou aperreada com aquilo. Cuide de estudar, que de melhor. Meti-o no colégio foi para aprender; não esteja a escorar-se.

Não tive coragem de falar ao meu avô. A alegria de estar com ele, de me ver solto, sem o olho diabólico do director, fizera-me esquecer de tudo. Agora era todo daquela alegria, daquelas horas livres.

À porta do hotel estava Pão-Duro com o pai. Cheguei com o velho Zé Paulino como se conduzisse um trofeu de batalha. O pai do colega foi logo, descobrindo-se, para meu avô:

- O que o trouxe por aqui, coronel Zé Paulino? Mandou gado para os currais?

Não. Vim somente visitar o meu neto ao colégio.

E Pão-Duro ouviu. O meu avô não estava em Itabaiana para negociar, para vender nem trocar. Viera para me ver. Tinha ele um neto no colégio para visitar. Isto valia para mim mais do que não sei

quê. Os pais dos outros traziam os filhos para a feira, mas não era por estes que estavam em Itabaiana. O velho Zé Paulino, não. Tivera saudades do neto. Recebera uma carta falando do colégio, e tomara o comboio para ver o que se passava. Eu era o menino mais felizn naquele momento.

O hotel repleto de gente a comer. O meu avô sentou-se numa mesa onde já havia muitos outros. Falava-se de negócios, do preço do gado e do algodão. Quase todos conheciam o velho Zé Paulino.

Muito açúcar, coronel?

- Pouco. O Inverno foi ruim.

Ou então referiam-se a outros senhores de engenho nossos parentes.

- O açúcar do coronel Cazuza Trombone é uma desgraça, Félix Touca comprou uma partida que se tornou em lama.

- Homem feliz este seu Cazuza - dizia um de bigode caído e fala arrastada. Faz o açúcar mais ruim da várzea, o algodão mais cruera, e arranja os melhores preços. Só filho de padre.

Depois entravam a conversar de política. O meu avô não concorria à palestra. Calado, ia comendo com o seu ar de sempre, como se estivesse na mesa grande do Santa Rosa. Que lhe importava a política? O que mais o interessava eram os bons invernos, o seu açúcar na casa de purgar, o seu gado gordo, os seus partidos verdes. Quando lhe vinham perguntar pela política, ele mudava de conversa. Estava com o seu partido, por hábito. Não tinha cabras para proteger, nem medo de ficar de baixo. O governo como terror, como encosto para tomar terras dos pequenos, governo que lhe desse soldados para guarda-costas, desse governo ele nunca precisou. A sua consciência limpa deixava-o dormir sossegado, sem receio de diligências nas suas terras. Uma vez que entrou um oficial na sua propriedade, provocando vexames, no outro dia apareceu na casa-grande do Santa Rosa o chefe político do partido de cima, para se pôr a seu lado. Um santo, este meu avô. E ali com ele, na mesa do hotel, eu media-lhe o tamanho, a superioridade sobre os outros. Que valia o pai de Pão-Duro junto dele? E o de Zé Calheiros, que passava notas falsas?

À tarde, quando o fui acompanhar ao comboio, na estação, era com orgulho que via os homens todos tirando-lhe o chapéu. O Dr. Odilon, o mais rico daquelas redondezas, o que tinha quarenta mulheres, filhos em todos os colégios, um anel de pedra enorme no dedo, chegando-se respeitoso para lhe saber da saúde, muito alegre. Lá estava também o director, risonho para o coronel Zé Paulino:

- Pode ir tranquilo, coronel. O menino fica em boas mãos.

O comboio partiu, e a mais dura realidade começou a existir para mim: o colégio de portas abertas para me receber. Voltava, porém, todo outro. Que me viessem agora falar de visitas de pais, de presentes de casa, de histórias de feira. O Doidinho tinha que contar de sobra. Pão-Duro ouvira o velho Zé Paulino responder ao pai dele.

Contei ao Coruja o caso da carta, e ele ficou apreensivo.

- Vai haver coisa grossa. O velho, quando chegar da rua, você vai ver: vem com o diabo.

Tinha razão. Instaurou-se o inquérito, com interrogatório de portas fechadas e palmatória ameaçadora na mão.

- O senhor tem que me dizer quem escreveu a carta, quem a deitou no correio.

A visita do velho Zé Paulino dera-me sangue de gente grande: Não sei, não digo.

E D. Emília:

- Diga, menino, para não apanhar.

Não digo, não.

Via o Coruja sofrer por minha causa. Preferia morrer.

O velho deu-me duas palmatoadas e as lágrimas afogaram a minha confissão.

- Chame-me aqui o senhor José João.

O Coruja chegou e viu-me a chorar, de braços cruzados.

Foi o senhor quem escreveu a carta para o avô do senhor Carlos de Melo?

- Fui, fui eu.

Sereno, como quem respondesse a uma pergunta inocente. Mas o senhor sabe que isto é proibido? Sei.

- Chegue-se cá, seu sonso de marca!

E o meu amigo apanhou pela quarta vez no colégio de Itabaiana. Os seus olhos miudinhos nadaram em lágrimas. Nunca me vi tão pequeno, e nunca uma pessoa para mim fora maior.

- O senhor fica proibido de conversar com o senhor Carlos de Melo.

Demorei-me sozinho pelo salão de estudo. Via o Cristo do quadro subindo para os céus. Na História Sagrada ele sofrera pelos homens, recebera uma coroa de espinhos, subira um monte para morrer pelos homens. Sofrer pelos outros! Como isto antes me parecia um conto! Agora, não: estava ali, pertinho de mim, o Coruja, a apanhar por minha causa. Ouvia sempre dizer que as mães sofriam pelos filhos a dor do parto. Mas era uma coisa natural, mandada por Deus. Coruja fizera uma coisa que eu lhe pedira. E por isso sofrera a maior humilhação, o castigo brutal que por todos os meios evitava. Ficava um réprobo para a legislação do professor Maciel. Fora açoitado como um criminoso de pena máxima, ele que era o melhor aluno da casa. Isto convencia-me de que ainda havia grandezas na humanidade. Uma das minhas desconfianças de menino dos milagres dos santos era porque eles não faziam hoje em dia o mesmo que antigamente. A velha Totonha contava dos feitos de Santo António, mas uma coisa ou outra levavam-me a duvidar de tudo aquilo. - Porque não se faz o mesmo nos tempos de agora? - E aquelas palmatoadas no Coruja, aquele "sim, senhor, fui eu" com a cara mais firme deste mundo, a sua coragem diante da maior afronta que para ele existia, despertaram-me, de repente, a fé.

Naquela sala, sozinho, como numa igreja deserta, Deus existia para mim. Era um facto humano que me arrastava a acreditar numa força que estava acima dos homens. Anoitecia. E pelas venezianas cerradas entrava um vento frio de fim de tarde. Jesus, com aquela bandeira na mão, subia no quadro para o seu lugar, ao lado do Criador. Na meia escuridão, uns últimos clarões de sol derramavam-se no vidro da estampa, brilhando. Na rua um silêncio de cidade pequena, o sino batendo as suas ave-marias de sempre. Os meninos lá para o fundo do quintal. E dentro do meu coração, uma ânsia de crer, de me sacrificar, de me redimir da minha miséria diante de Coruja. Não era Deus sem dúvida que me visitava, mas um sinal de sua misericórdia que me arrastava para Ele: o meu arrependimento, a dor de uma consciência de treze anos, tremendo de vergonha pela sua covardia. "O senhor fica proibido de conversar com o senhor Carlos de Melo." Ouvia isto como se fosse uma frase de condenação a repetir-se nos meus ouvidos. Sim, Coruja era o meu corruptor, o mau, o que me estava a levar para o caminho errado... Eu, não. Um justo, um sem-culpa, que devia temer a sua companhia. Vira apanhar os meninos pobres na aula pública, sem motivo, somente por que o professor queria agradar ao neto do coronel Zé Paulino. Olhava essas coisas como se estivesse apenas a tirar um brinquedo aos meus companheiros, com essa crueldade natural da infância. Naquele momento, porém, entrava-me pela alma esta advertência de olhos de abutre, que é o remorso. Conheci naquele fim de tarde a dor que Deus reserva aos que se enojam das suas faltas, a repugnância dos que são obrigados a sentir o mau cheiro dos seus próprios vómitos.

Quando vieram acender a luz da sala, eu dormia com a cabeça encostada a uma mesa.

 

Eu não podia conversar com o Coruja. Havia Licurgo, um mais moço do que eu, de cabeça enorme e de dentes para fora. Dormíamos no mesmo quarto e estávamos no mesmo livro de leitura. Mas Licurgo não prestava. Enredava toda a gente, roía as unhas, e era dissimulado como uma víbora. Fazia as coisas e assacava-as aos outros. Quando se estava no salão de estudo, ouvia-se um gemido qualquer. Ninguém sabia donde vinha. O director olhava para um canto, e para outro, e começava a castigar por adivinhação. Era Licurgo quem provocava estas misérias, murcho para um canto, com a mais doce inocência.

Um dia, porém, soube uns pedaços da sua história. História triste como aquela do pai do Zé Calheiros, o que estivera na cadeia por notas falsas. A mãe de Licurgo era rapariga.

- Filho da ... – gritou-lhe numa briga o Pão-Duro.

E ele partiu para o maior como uma fera. Foram ambos castigados. Zé Augusto contou-me:

- A mãe dele é mesmo rapariga .

Vinha, de facto, uma mulher muito bonita visitá-lo, com jóias nos dedos.

- É a mãe de Licurgo.

E os meninos corriam para vê-la passar no corredor. Deixava perfumado o internato, por onde passava. Lembrava-me das meninas do tio João, no tempo dos seus passeios ao engenho. E os meus sentidos assanhavam-se com essas recordações. Maria Clara, prima ingrata, fixava-se nos meus pensamentos. O cheiro da mãe de Licurgo recordava-me as visitas das primas do Recife, e as primas, Maria Clara, e Maria Clara, as minhas diabruras do Santa Rosa. O sexo visitava-me nas noites frias do colégio. A chuva batia forte no telhado. Corriam as biqueiras como nas noites invernosas do Santa Rosa. E os maus pensamentos rondavam-me, como pássaros que procurassem ninho quente para pousar. Zefa Cajá andava por perto. E esquecia-me do Coruja, do director, do livro de leitura, das palmatoadas.

- A cama do Doidinho está a tremer- diziam no quarto.

E as risadas abafadas nos travesseiros bastavam para correr o demónio do vício impertinente. A palmatória, porém, surrava essas antecipações de desregrado, porque já não era aquele mesmo das libertinagens de outrora.

Licurgo fazia-me pena. Os meninos metiam-se com ele:

- Quem é teu pai, Licurgo?

- Meu pai foi para o Pará.

- Quem paga o teu colégio, Licurgo?

- E a tua mãe trabalha? Em quê?

- Ela cose para fora.

Essas perguntas traziam sempre uma pontinha de perversidade.

Pão-Duro era ruim. Um carácter bem de nível baixo. Gostava de pisar os outros com picardias, de estar sempre a contrariar.

- A mãe de Licurgo ganha dinheiro dos homens -disse ele uma vez, no meio da gente.

O menino soube. Pôs-se a morder as unhas, como se estivesse com fome. Pão-Duro passou por perto dele, às risadas. E ouviu-se um grito medonho: Pão-Duro com a mão na cabeça, escorrendo sangue pela testa. Licurgo atirara uma pedra e correra, fugindo pelo portão dos fundos. O professor Maciel chamou um por um, para saber de tudo.

- Pão-Duro disse que a mãe de Licurgo ganhava dinheiro dos homens

O colégio todo fez carga no sumítico. Ele estava lá dentro com o velho Coelho, pondo arnica na cabeça.

No outro dia estávamos na aula.

- Pode entrar. Maciel está no salão de aulas. Era a mulher bonita, a mãe de Licurgo.

- Vim tirar o meu filho do colégio.

E o director:

- Sim, senhora. Pode mandar buscar a mala e o tamborete

dele. Não quero moleques no meu colégio.

- Moleque, não senhor. O senhor seja correcto.

- Moleque. E a senhora não passa de uma mulher ordinária.

Os meninos estavam como se fosse num circo de cavalinhos.

Então a mulher encrespou-se toda:

- Ordinária é a gázea de sua mulher, cachorro.

O velho levantou-se:

- Vá-se daqui! Vá-se daqui!

Só se ouvia D. Emília a gritar.

- Não discuta com ela, Maciel.

E a mulher bonita:

- C.... safado! O meu filho é igual aos outros; pago a mesma coisa - enquanto se dirigia para a porta da rua. - Pago como os outros - dizia lá de fora ainda.

A meninada toda estava de pé. O homem do trapézio tinha dado o salto da morte.

- Sentem-se, sentem-se!

Era o velho director, que voltava ao pleno exercício da tirania. - Sentem-se!

E ele mesmo sentava-se na cadeira, como se quisesse afundar a palhinha.

Setenta meninos de livros na mão olhavam para baixo. Mas se o velho pudesse ver dentro de nós, encontraria setenta corações pulando de contentamento. A mulher bonita atirara ali, aos pés do czar, a bomba de dinamite.

- Seu Filipe, tome conta da aula.

E pôs o chapéu na cabeça, e foi-se para a rua.

Filipe era a sua sombra ameaçadora. Apesar de tudo, respirava-se quando ele saía, mesmo com este preposto fiel em extremo às suas ordens. Estávamos sob os murmúrios do escândalo, sôfregos pelas conversas e os comentários. Quase que ninguém se importava com o olho vigilante do decurião. Falava-se alto.

Que é isso, seu Zé Ausgusto? Que conversa é essa, seu Carlos de Melo? Eu digo ao professor Maciel quando ele chegar. E até à hora do almoço ele ainda não havia chegado.

À mesa, D. Emília falava:

- Aquela sem-vergonha pensa que Maciel se amedronta. Está fiada na protecção do doutor Odilon. Bem que não quis aquele menino aqui. Estão enganados com o Maciel. Em Palmares um chefe de polícia ouviu gritos dele. A delegacia estava cheia de gente, ele queria um depoimento de Maciel. Ouviu um grito. Essa gente de Itabaiana não sabe com quem está metida.

Depois o velho chegou. Filipe trouxe-lhe a lista: um havia conversado no salão, outro estivera a rir-se alto, ou a mandar bilhetes para o Coruja. Apanhou-se muito por causa da coragem da mãe de Licurgo.

 

Era verdade do decurião. Eu escrevia bilhetes para o Coruja. Não podíamos falar. E as decisões do director eram gravadas em pedra. Persistiam, duravam como mandamentos irrevogáveis. Pensei que o Coruja ficasse a odiar-me desde aquele dia em que o vira tão acima de mim. Quando passava por ele desviava a vista com vergonha, fugindo de um encontro cara a cara com uma vítima que se imolara por minha causa. Mas os olhos miudinhos de Coruja procuravam-me. Então começámos a olhar-nos como em linguagem de namorados. E dos olhares amigos fomos aos bilhetes confidenciais: as nossas conversas enroladas em papeisinhos dobrados. Escrevia-se sobre tudo: "Tal dia vou sair... " ou falando dos outros, da política interna da casa: de Pão-Duro, dos filhos do Simplício Coelho, uns protegidos do colégio, parentes que eram de D. Emília: comiam melhor do que a gente. E aquelas tapiocas que a negra Paula lhes dava parecia-nos regalias de uma classe privilegiada. Eles não deviam ter este direito, porque pagavam igualzinho à gente.

Coruja mandava-me recados: "No banho de rio de domingo tenho uma coisa para lhe dizer"; " Tenho uma lata de doce para você: procure na prateleira da cozinha". E no fim o "leia e rasgue". Respondia com os meus gatafunhos de atrasado.

íamos aos domingos e às terças aos banhos de rio. Levava-nos o velho Coelho, de toalha ao ombro, à frente do internato. Parecia que fugíamos de um presídio, pela mão de um avô de conto de fadas. Os pássaros quando fugiam das gaiolas deviam ser assim, com aqueles nossos olhos e aqueles nossos ouvidos abertos aos rumores do mundo. O sol brilhava para a gente com uma vida que não tinha para os outros. Era como se se tratasse de um amigo de quem nos haviam separado à força. E por isso essa alegria em nos ver, em nos tostar as caras amarelecidas nas reclusões. Seu Coelho ainda era mais amigo:

- Do que vocês precisam é de correr. Não se criam meninos entre quatro paredes.

E sempre em conversas com os maiores. Com ele a liberdade fazia-nos visitas de horas. Recuperávamos a boa alegria da idade, nesses contactos com os nossos justos direitos de meninos. O velho mandava-nos como um companheiro de mais idade. O rio corria a um passo atrás do colégio. Fazíamos, porém, o passeio até o poço do Maracaipe. Pintava-se o diabo nessas viagens. De vez em quando, chegava um, reclamando a seu Coelho:

- Seu Fulano fez isto, seu João Câncio está a chamar nomes. Não quero saber de nada. Quem vier aqui com enredos mando-o para casa.

Os presidiários de seu Maciel muniam-se de habeas corpus para todas as travessuras. Um magistrado tolerante deixava que a lei não nos fosse um instrumento de vingança. E naquelas manhãs de domingo a palmatória de cabo torneado deixava de existir para a gente.

Comigo era como se fizesse um passeio ao engenho. As águas onde mergulhávamos iam ter ao Santa Rosa, passariam por lá, lavariam os cavalos no Poço das Pedras; dentro delas os moleques dariam os seus cangapés. Às vezes, brincando dizia:

- Vou mandar uma carta para casa.

E soltava um pedaço de papel à toa, na corrente. Dizia-o a brincar. Mas a minha vontade era que ele fosse mesmo até lá, que descesse como uma mensagem aos meus, aos marizeiros, aos banheiros de palha, às mulheres batendo roupa, aos meus lugares amigos.

- A cheia vem em Itabaiana - gritavam, na enchente.

Era por ali que, quando o Paraíba passava roncando, dava notícias. E nas águas barrentas do rio lavava as minhas mágoas de colegial. Dormíamos aos sábados sonhando com o banho, que era mesmo o nosso único recreio dos sete dias de trabalhos forçados. Contava a história aos colegas:

- O Paraíba, no engenho, é maior do que aqui. Já o atravessei uma vez, de barreira a barreira.

Não sei porquê deleitava-me exagerando as coisas. Pode ser que fosse um vício da idade, mas eu tinha esse gosto pelo exagero, pelos factos e as coisas maiores do que eram. Não resistia ao gosto de contar uma história, com vantagens. No fundo não seria uma mentira: uma deformação talvez. Uma força imaginativa pondo-se acima da realidade.

- Deixe-se de exageros, Doidinho. Não vê você que não atravessa o rio cheio?

- Pois eu mostro-lhe, quando ele encher.

O colega tinha razão. Nunca atravessara o Paraíba. Os moleques do engenho passavam de um lado para o outro com o lombo a aparecer. A minha natação, porém, dava para pouco. Essa história de que eu ia atravessar o rio quando ele enchesse ficou combinada. E o dia chegou.

- É hoje. Vamos ver Doidinho meter o braço.

Nesse dia o sol não brilhara para mim. Desci para o rio, sombrio, disfarçando o medo grande. A meninada corria gritando. Para que diabo tinha eu dito aquilo? Coruja pediu-me para não me meter na água.

- A corrente está a puxar muito.

Olhei para o rio barrento. As águas corriam para o Santa Rosa como um comboio; os redemoinhos dançavam, fazendo barulho. Tirei a roupa como quem se despisse para um sono muito grande.

- É agora que o Doidinho se vai mostrar.

Havia crueldade naquela insistência. Porque me teriam tanta raiva aqueles meninos? Coruja foi dizer a seu Coelho. O velho chegou furioso: - Seu Carlos, venha para aqui. O senhor está com o diabo no corpo?

O mundo nascia outra vez para mim. Via o sol brilhando, via tudo a rir-se de felicidade. E o rio descendo para o Santa Rosa. Os colegas ficaram murchos, e eu com a minha coragem de pé. Tomámos banho num remanso do rio, com a estrepitosa alegria de bichos felizes.

Na volta, o velho Coelho contava factos de afogamentos. Era um narrador admirável, uma Sinhá Totonha para os factos comuns da vida. Ele andara pelo Amazonas, subira rios em gaiolas, matara jacarés a rifle, trouxera um índio das suas viagens; este índio, dera-o de presente a um amigo de Timbauba. Estava velho, mas ainda hoje não temia os moços na pontaria.

E, de passo cansado, voltávamos para o presídio com aquela sereia a arrancar-nos à realidade.

Depois o Coruja falou comigo. A história que tinha para contar seria uma grande mágoa para mim: depois da Semana Santa não voltaria ao colégio. Ficaria a tomar conta da loja do pai, no Ingá. Falava-me com dor. Coruja amava os estudos, sonhava com uma carreira, com um futuro maior que o de sua família. Se me dissessem um dia: - Você não voltará mais para o colégio - dar-me-iam uma notícia de libertação. Com o meu amigo, não. Mais velho do que eu pouca coisa, já estava longe, nos livros, E quando fecharam atrás de mim o portão do internato, era como se eu já tivesse deixado o Coruja lá fora. Não sei porque havia para comigo esta má vontade do destino. Foi-se a tia Maria, o casamento a levou. Uma amizade grande não a conseguira ainda, depois daquela sua fugida no cabriolé de seu Lula. Tinha agora ao Coruja uma afeição exaltada. Se algum dia me pedissem no colégio para ir fazer qualquer coisa por ele, iria de olhos fechados. Aquelas palmatoadas apanhadas por minha causa, aquela dignidade do seu rosto, aqueles olhinhos apertados olhando-me, os seus bilhetes, os seus sorrisos de alma aberta, levavam-me a querer-lhe um bem que ainda não dera a outra pessoa. Era que nunca tivera um amigo, um, fora da minha família, a que fosse ligado como a um irmão. Sim, um irmão. Filho único, esta palavra só existia para mim na boca dos outros. Via com inveja a solidariedade que unia os irmãos entre si: quando se tocava num, lá corriam todos, os da mesma carne e os do mesmo sangue, enfrentando juntos o perigo. Esse meu primeiro amigo revelara-me o que Deus não me dera: um irmão. E era ele que deixaria o colégio. Pão-Duro ficava, ficavam Aurélio, João Câncio, e outros, inúteis para mim. O que me servia com ternura, o que apanhara por mim, que me contava histórias de sua família, a sua irmã cega e o seu pai em dificuldades, o bom Coruja, estava acabado de vez. Ficaria no balcão da loja de seu pai, medindo fazenda para o povo.

 

O velho Maciel tinha razão. Em pouco tempo adiantara-me bastante. O medo das palmatoadas vencera o rude da dona Sinhazinha. Estava nas fracções e quase no fim do terceiro livro de leitura. A letra, porém, é que não tinha jeito de melhorar. O meu nervoso talvez que fosse o responsável pelos meus gatafunhos. Cobria com cuidado os cadernos de caligrafia, e ficavam borrões em cada página.

- Se este caderno vier borrado amanhã, o senhor arrepende-se.

E ia borrado. Caprichava, esforçava-me, mobilizava toda a minha paciência, e no fim a pena obedecia aos meus pobres nervos, e a tinta marcava-me a condenação ao castigo. Fazia os exercícios na própria mesa do director, e ele dava-me com a régua nas mãos para consertar a posição deformada dos dedos na caneta:

- O senhor parece um paralítico, a escrever.

Às vezes distraía-me, e parava de escrever. Pensava longe, nas minhas cismas de veneta. A advertência não deixava que tomasse o gosto contemplativo:

Acabe com isso, para vir depois à lição de leitura.

Dava também Geografia. O Mundo crescia para mim. Tinha cinco partes. Era mais alguma coisa que o Santa Rosa e o colégio do professor Maciel. Havia um certo encanto na virgindade da minha ignorância, ao tempo em que ia aos poucos sabendo de coisas que me pareciam absurdas. O Sol era maior do que a Terra. É a Terra é que andava em torno dele. As estrelas brilhavam também de dia. Os livros afirmavam estas verdades, mas acreditar nelas custava muito à minha compreensão limitada das coisas. Via a Lua a correr no céu; o Sol nascia num sítio e punha-se noutro. E por mais que a Geografia contasse as suas histórias, e os globos terrestres girassem em cima da mesa, ficava a acreditar mesmo no que via com os meus próprios olhos.

- Quando o senhor melhorar a letra, passará a fazer descrições - disse-me um dia o director.

Seria para mim uma vitória abandonar aqueles cadernos amarelos. Mas o meu grande ideal de aluno estava no Coração. A luta de Stardi com Franc, o Tamborzinho sardo, o pequeno escrevente florentino, Henrique e o pai dele, que um dia ficou mal de finanças e falou em cortar as despesas de casa, o filho do pedreiro, de cara de lebre. Garroni, o gigante bom, um que era burro mas estudava muito, a brincadeira dos meninos com a neve - tudo me parecia passagens de um romance admirável. E como era diferente a escola de lá da do professor Maciel! Distribuíam prémios, os professores falavam manso, não existiam palmatórias. O nosso colégio não se parecia com as escolas da Itália. Ficava às vezes de castigo, acompanhando a leitura dos outros. Lá vinha a viagem de um menino que foi para a América atrás da mãe doente, e andou sozinho por florestas intermináveis. E o naufrágio, onde Marcos morreu para salvar uma mocinha. O navio afundava-se, e só se via o rapaz acenando com a mão. E depois: "Eu amo a Itália porque meu pai é italiano", que Olívio lia em tom de discurso.

- Deixe-se de exageros - gritava o seu Maciel.

Todo esse livro delicioso me chamava para as suas páginas. Um dia veio um italiano ao colégio para podar umas parreiras. Fiquei ao pé dele para saber se conhecia Coretti, da rua tal, que nem me lembro já do nome. Sim, ele conhecia um Coretti, mas de outra rua. Talvez que o do livro se tivesse mudado, pensava comigo. A Selecta Clássica era cheia de discursos, de versos. Mas o Coração estremecia a nossa sensibilidade de meninos, interessava-nos naqueles conflitos que eram os nossos. Este livro de tanto amor à Itália levou-me a ter amor aos que eu não conhecia, aos estranhos, aos meninos sujos porque não tinham roupas limpas, aos heróis dos contos.

A minha infância sem Júlio Verne e sem soldados de chumbo imaginou

os seus heróis como eram os do Coração, os seus grandes homens os que morriam pela pátria e os que davam a vida pelos pais.

Ainda não era Deus que entrava por dentro de mim. Os meus surtos de crença morriam logo: eram pequenos relâmpagos numa escuridão que, cada vez mais, se fechava. Era como se numa noite escura aparecesse uma luzinha muito distante para iluminar as estradas. A que caminho poderiam levar estes pobres fogos-fátuos? No colégio não havia religião. Aos domingos ouvia-se missa junto do padre, com o director à frente, de bengala. E era só o que se fazia ali para agradar a Deus. Seu Coelho falava dos padres, e a filha procurava a igreja. O colégio tinha o nome de Nossa Senhora não sei porquê. Era como os engenhos: Santa Rosa, Sant'Ana, Santo António.

Estava pregando na igreja um frade franciscano. O padre Fileto viera pedir ao director para levar o colégio às práticas. Eu ouvia falar nos frades que faziam missões. As negras dos engenhos caminhavam léguas atrás dos missionários, e vinham contar horrores dos capuchinhos de barbas grandes. Batiam nas mulheres com os cordões dos hábitos e as palavras desses homens soavam aos ouvidos delas como vozes de santos. Por isso, quando ouvia falar das missões vinham-me logo à cabeça as latadas de palha, os frades de pé descalço, os pecadores a apanharem com a corda, os amancebados que se casavam à última hora. E naquela noite ia eu ver pela primeira vez um frade em carne e osso, um daqueles bravos servidores de Deus. A igreja já estava cheia quando lá chegámos. Um púlpito armado no meio do templo esperava o pregador. E ele chegou, alto, louro, com um hábito escuro, de alpercatas nos pés. Ajoelhou-se, e a igreja ajoelhou-se com ele. Fez o pelo-sinal com os braços longos e a voz compassada. Começou a falar. Falava manso, uma palavra doce; sem gritos e sem gestos. Ouvi o Dr. Bidu dizer para o seu Maciel.

- É mais um conferencista do que um pregador.

Fosse o que fosse, o certo é que o que ele dizia eu tomava-o para mim. Há os que falam assim, que a gente tem fome e sede do que eles dizem. Ele voltava-se para os setenta meninos do colégio.

- Uma vez Jesus ia por um caminho, e um bando de meninos alegres procurou o Mestre para falar com Ele. Os apóstolos mandaram para trás as crianças, com palavras ásperas. E Jesus disse-lhes: "Deixai os meninos, deixai que eles venham a mim, porque deles é

a o reino dos céus. " E depois deitou a mão pelas cabeças dos inocentes, e foi-se dali. - O frade lançava os olhos azuis para nós todos, e só falava para o colégio. Jesus amava os meninos porque eles eram a virgindade da vida. Eram a inocência, a alegria feliz, a alma limpa de culpa e de pecados. Mas nem todos os meninos eram assim. Havia os de coração imundo, crescidos no vício como adultos, meninos que empestavam os outros, que fediam à distância. Era doloroso que se ofendesse a Deus justamente com as flores que devíamos deitar a seus pés em oferenda. Sim, havia rosas sujas de lama, rosas imundas, emporcalhadas pelo mundo. Mas quem deixara os porcos invadirem o jardim do Senhor? Os pais, as mães, os educadores. E repetia as palavras do Evangelho, aquelas que se referem aos que escandalizam os pequeninos. Melhor seria, dizia o Senhor, que lhes amarrassem uma pedra ao pescoço e os deitassem ao rio. "Procurem os colégios, entrem nos lares de hoje, e é Deus que falta em tudo, ou é Deus que é ali mesmo esbofeteado sacrilegamente. " E a prédica continuou a referir-se à educação dos nossos dias, à impiedade das escolas públicas e dos colégios particulares.

Dormi com aquelas palavras nos ouvidos. Meninos que fedem à distância, coração imundo... E sonhei. Andava por uma estrada, e ali fora encontrar o velho Zé Paulino. Queria falar com ele, e não consentiam. "Para onde o levam vocês?" "O coronel morreu", diziam. Mas não via o caixão. Corria para junto dele, e as minhas pernas estavam enterradas. Então o velho dizia: "Deixai o menino vir, é dele o reino dos céus." E por mais força que fizesse, não me largava do sítio onde estava. Então uma pessoa gritou: "Amarrem uma pedra ao pescoço do coronel e atirem-no ao açude." Acordei aos berros, com a satisfação de reconhecer a mentira do sonho.

Logo pela manhã, ao café, o director conversou com D. Emília:

- A prédica de ontem foi para mim. Eu conheço muito bem o Fileto. Pôs na cabeça de Frei Martinho aquelas indirectas para o meu colégio. Não me puseram meninos aqui para aprender a rezar. E a mulher confirmava:

- Eu é que não vivo na igreja, feita barata tonta de sacristia.

À hora da aula ele chamou logo o sobrinho do padre para a lição. Ia-lhe com sede.

- Vá à pedra.

E deu um problema danado, de juros.

O menino passou de um lado para outro da pedra, apagou contas, escreveu números, e nada.

- E eu não vivo ensinando rezas aos senhores. Avalie o contrário. Passo o dia a secar-me, e no final de contas o senhor não sabe nada. O seu tio fala do meu colégio porque não dou catecismo. O pouco que eu sei ensino-o aos senhores, e os senhores não aprendem. Já estou cansado de ensinar burros, burros - terminou, gritando as palavras como se quisesse cortá-las com os dentes.

O sobrinho do padre ficou a chorar.

- Era o que me faltava. Não sabe a lição e ainda me vem com choros. Chegue cá.

E a palmatoada aliviou a raiva da véspera, da prédica do frade.

- Não metam o bedelho no meu colégio. O padre que se fique

lá pela igreja. No meu colégio mando eu, eu e mais ninguém. E traçou as pernas por baixo da mesa.

- Cale-se! Não pense o senhor que isto é aula de catecismo. Seu Chico Vergara, mostre-me essa pedra.

O menino puxou a pedra para mais perto dele, como se alguém quisesse arrebatar-lha das mãos.

- Mostre-me essa pedra. É esta conta que o senhor está a fazer, seu idiota?

E a palmatória cantava na sala.

No recreio do almoço era no que se falava:

- O padre tira o Raul do Colégio. Vai haver briga.

Naquele dia eu acabara o terceiro livro de leitura. Entrava jubiloso para o Coração e para o primeiro grau dos primários. Voava com todos os ventos em três meses de estudo. O diabo era que Coruja não voltava mais depois da Semana Santa.

 

Uma coisa ainda não disse: havia meninas, também, no colégio. Eram externas. Sentavam-se junto do director. Quando sofriam as suas correcções, ficavam de pé, no meio da sala. Lisette, Maria de Lourdes, Guiomar, Elza, Tatá, e uma que me fazia as horas das aulas correrem depressa. Fora o irmão dela quem pusera a carta no correio para o velho Zé Paulino. Comecei a olhá-la às espreitadelas, desviando a vista quando ela me olhava também. Depois fui demorando mais as minhas miradas, reparando mais nos seus cabelos pretos. Um dia ela riu-se para mim: o namoro estava pegado. Chamava-se Maria Luísa. E quando o velho me dava palmatoadas, era com vergonha dela que voltava para o meu lugar. Ficava de manhã a espiar a porta para vê-la chegar.

- Para que é que o senhor olha tanto para esta porta?

Chegava sempre de branco, passava por perto de mim com um rabo-de-olho de bem-querer. E desde aquele instante eu só existia para ela. Às vezes faltava à aula. Não vinha pela manhã. Mas qualquer um que batesse à porta, eu pensava logo que fosse ela, que viesse atrasada.

Numa terça-feira em que, saí para cortar o cabelo, passei pela porta de sua casa com o chapéu quebrado de lado. Não estava à janela. Parei mais adiante, e vi-a, de longe, a chegar a casa com a mãe. Sempre fui um tímido junto dos meus entusiasmos, e sobretudo dos meus entusiasmos de amor. Sonhava com Maria Luísa todas as noites. Ora era seu Coelho que falava comigo. Despertava desse cocktail de imagens queridas que só os sonhos sabem fazer. Os meus sonhos eram mestres em tais complicações. O velho Zé Paulino estava a sonhar com ele: de repente era seu Coelho que falava comigo. Despertava desses sonhos e não podia dormir mais. Aurélio, perto de mim, roncava de boca aberta. Chegava-me para os lençóis com medo do pobre, cobria a cabeça, tapava os ouvidos para não ouvir aquele respirar feio de bicho.

Sim, Maria Luísa ajudava-me a suportar o cativeiro. Já nem pensava mais no querido Coruja. Tinha comigo esta fraqueza imperdoável: um entusiasmo novo absorvia-me inteiramente. Coruja passava por mim e deixava-me os bilhetes. Quase que nem os lia. Os olhinhos dele parece que viviam a desconfiar da minha indiferença.

Fiz segredo de sete chaves do meu amor. Vira Pedro Moniz, denunciado de amores com Guiomar, sofrer horrores:

- Hem, seu idiota! Deitando as manguinhas de fora..

A menina a chorar para um canto. E Pedro Moniz em cima de um tamborete, no meio da sala, de costas viradas para as meninas.

Apanharam uma estampa de Nossa Senhora com uma dedicatória comprometedora. A queixa viera da casa de Guiomar.

Esse mártir aconselhava toda a prudência aos meus derrames sentimentais. Olhava para Maria Luísa temendo a curiosidade ordinária do mundo. Ela também olhava para mim, como se estivesse a cometer um delito, num relance. Não podia haver mais puro amor entre os homens. Maria Clara, ainda a beijara debaixo dos cajueiros cheirosos do engenho. Um beijo só, que me deixou o coração a bater. Conversava com ela nos nossos passeios, sentia que havia carne morena na minha prima. Com Maria Luísa tudo era bem diferente. Nunca lhe dissera uma palavra, nunca a ouvira chamar pelo meu nome. Amor de anjo, se os anjos amassem.

Mas o coração de um apaixonado é quase sempre um insensato; não medita sobre os perigos, e quando mal cuida está com um abismo aos pés. Esquecera-me de Pedro Moniz. Fiz o meu bilhete de namorado, a minha primeira carta de amor. Não me lembro de tudo o que dizia. O meu coração devia ter, no entanto, a linguagem de todos os outros. O director saíra. O decurião tomava conta da aula. Pus o bilhete na palma da mão e saí com os passos incertos de quem fosse roubar alguma coisa. Passei junto de Maria Luísa, e atirei o bilhete ao chão. O olho de Filipe, porém, estava atrás de mim.

- O que foi que o senhor deixou aí, seu Carlos de Melo?

Não tive tempo de apanhar o papel. O diabo já estava com a minha mensagem nas mãos.

- Vou mostrar ao seu Maciel.

Segui para o meu lugar, à espera da hora de entrar na arena para os tigres.

"Maria, terça-feira passei por sua porta, vi você com sua mãe. " Era o director lendo alto para a aula toda o meu bilhete de namorado.

Uma gargalhada estoirou, abafada pelo psiu! autoritário do velho.

- Estamos com um apaixonado aqui.

Seria melhor que ele me quebrasse logo à palmatória. Aquela ambição dos meus arrebatamentos doía-me mais do que as palmadas.

- Um Don Juan no colégio. Emília, anda ver isto!

E foi ler o bilhete, rindo-se.

- Venha cá, seu cínico!

Baixei a vista para não ver Maria Luísa. Estendi a mão para a a dúzia de palmatoadas sem uma lágrima. Não chorava pela primeira vez. O amor dera-me esta coragem de leão.

- Passe para ali, de pé.

MariaLuísa estava em prantos. O director dissera-lhe:

- Vou escrever uma cartinha a seu pai, contando tudo.

Em pé, o dia todo. E quase à tardinha ia reparando na lição da mais adiantada. Liam francês e traduziam. "Les oranges de la province de Baía" - lá iam lendo, com o velho corrigindo a pronúncia. Lisette era desta classe. Não acertava as lições. O velho tinha bem vontade de a castigar, porque quando passava adiante, para o seu colega de carteira, e ele não respondia à pergunta, apanhava por si e por Lisette.

- A senhora não estuda. Se a senhora estudasse, saberia. Passa-me os dias aqui a mirar-se em espelhinhos.

Era o mesmo que castigar, porque a menina chorava da mesma forma.

No recreio, a canalha caiu em cima de mim:

- Doidinho está a namorar! Quando casa, Doidinho?

Parti a canela de Pão-Duro com um pontapé de indignação, e voltei outra vez a ser castigado. Senti a mão inchada, dormente. Que me importava apanhar mais uma vez? O director, porém, abriu a boca:

- O senhor está o pior aluno do meu colégio. Vou escrever a seu avô. Depois digam por aí que maltrato alunos. Mandam-me para aqui feras deste jeito, e querem que as trate com luvas de pelica. Porque não as amansam em casa?

E ia mais longe naquela sua fluência inesgotável para as descomposturas.

- Vá sentar-se no quarto do meio.

Era o pior castigo do colégio: ficar isolado num quarto, sentado num tamborete, sem fazer nada. Passar horas e horas sem uma palavra, com a boca seca, ouvindo lá por fora o rumor da conversa dos outros. Quando sozinho esperava os canários, no Santa Rosa, era com uma ânsia de caçador que me punha na expectativa. Bons silên cios que não me doíam! Agora, no quarto de castigo, tinha que procurar os recursos da imaginação para povoar o meu isolamento. Esgotava assuntos inteiros. Essas conversas comigo mesmo enfastiavam-me. A princípio o assunto absorvia-me. Mas logo depois não encontrava nada mais em que pensar. Recomeçava com os mesmos factos, voltava ao princípio. O meu interlocutor escondido cansava-me como os conversadores impertinentes. Queria fugir dele. Mas como? Como se poderia fugir desta conversa comprida e fastidiosa que domina os que não têm força interior para afugentar o tédio com o pensamento? E era assim: começava uma história com Maria Luísa, ela chamava-me para um passeio; íamos andando pelo jardim público, de braço dado; debaixo de uma palmeira que havia por lá, ficávamos a olhar um para o outro; poderíamos até daí a uns tempos fazer um casamento. E ficava nisto, neste passeio, neste casamento. E a imaginação já não encontrava outra variante para esses idílios de cabeça, nem situações mais agradáveis para esses namorados de mentira. Não saía disso, desse marcar-passo ronceiro, a minha pobre imaginação de penitenciário. Os pensamentos lúbricos, estes não me cansavam. Vinham sem eu querer. Uma referência qualquer, um simples golpe de memória, e lá chegava o diabo para me tentar. Diabo que não vinha fedendo a enxofre, mas acariciando-me os sentidos com afagos de rapariga. Da negra Luísa, da Zefa Cajá, do quarto dos carros, dos moleques de engenho, de todo este meu mundo de longe, o diabo dos meus silêncios de prisioneiro se aproveitava. E o sexo inchava como um papa-vento. Pedia para fazer as precisões no fundo do quintal. Porém, o que procurava não era mais do que libertar-me das insistências indecorosas dos meus innstintos em fúria. A palavra do frade batia-me no lombo como um jacto de água fria. Pensava nos condenados ao fundo do rio com uma pedra no pescoço, nos meninos que fediam à distância, nos podres de consciência. Eram leves de mais estes laços para o animal assanhado que os meus instintos criavam à solta. Entretanto, olhava para Maria Luísa sem estes ímpetos de animal.

 

O director entrara em acordo com o padre Fileto. O colégio, sextas-feiras, ia tomar aula de catecismo na sacristia da igreja. O mestre de religião ensinava no colégio das meninas. D. Mariet uma mulher magra com pince-nez de ouro. Falava com uma mannsidão de mãe boa, sem um grito, fazendo as perguntas e às vezes dando, ela mesma, a resposta.

- Sois cristão?

- Sim, pela graça de Deus.

- Quais são os principais mistérios da nossa Fé?

E a resposta ao pé da letra:

- Os principais mistérios da nossa Fé são: a unidade e a trindade de Deus, a encarnação, a paixão e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Respondíamos às perguntas com as palavras exactas do livrinho. Os principais mistérios da nossa Fé! Não entendia o que queria dizer o catecismo. Unidade e trindade de Deus!

- O que é unidade de Deus, professora?

- É que são três pessoas distintas e uma só verdadeira.

Era o mesmo. Encarnação! Ficava pensando no que fosse a encarnação. Deus desceu à terra feito homem para sofrer como há homem? E se havia nele, todo-poderoso, tanta vontade de nos salvar porque não fizera lá de cima esta sua obra de magnificência? Depois:

- Que nos ensina a doutrina cristã?

A doutrina cristã ensina-nos o que devemos crer, o que devemos pedir e receber, o que devemos fazer para conseguir o nosso fim. Nós devíamos crer em Deus; mas o que deveríamos pedir?

- O que devemos pedir, professora?

- Nós devemos pedir que a misericórdia de Deus caia sobre nós.

E o que era a misericórdia de Deus?

E neste jogo de palavras, de confusões, lá nos iam ensinando a doutrina cristã. Davam-se as lições de religião do mesmo jeito com que no engenho ensinavam aos papagaios:

- Papagaio real, veio de Portugal, dá-me um beijo, meu louro !

E o papagaio repetia tudo, sem saber o que era real, nem nada de Portugal, e estalava o beijo no fim.

A nossa religião vinha-nos desta maneira.

- E o Padre não existiu antes do Filho e do Espírito Santo? Respondia-se:

- Não; o Padre não existiu antes do Filho nem do Espírito Santo, porque todas estas três pessoas divinas são eternas. Para mim o catecismo estava errado. Jesus Cristo não nascera na Galileia, filho de Maria Santíssima? Disse a um menino que não acreditava naquilo. Foi encher logo os ouvidos da mestra.

- No que é que você não acredita, meu filho?

- Eu não disse nada, professora.

- Não, diga. Não tenha medo.

E aquela palavra mansa animou-me à controvérsia: - Eu disse que o Filho tinha nascido depois do Pai. E o argumento chegou-me veemente:

- Porque Cristo nasceu há dois mil anos na Galileia.

- Sim - disse-me ela. - Deus mandou à terra o seu filho para redimir o pecado dos homens; mas antes de ele nascer da Santa Virgem, já existia como Deus.

Era outra questão que me dominava, esta da virgindade de Nossa Senhora. Porque eu sabia dos segredos da criação: vira fazerem-se os bezerros nos cercados e os pais de égua relinchando atrás das bestas... Vira a tia Mercês e as negras do engenho de barriga grande.

- Jesus Cristo não teve um pai também na terra?

Não. Jesus Cristo nunca teve um pai na terra, mas somente mãe, que é a Virgem Maria.

Discutia-se no recreio. Seu Coelho dizia aos meninos que tudo aquilo eram conversas. Ouvira um "bode" em Palmares, entupir o vigário.

- Não vou atrás disso.

E soltava palavras feias sobre Nossa Senhora.

Ao mesmo tempo chegavam-me lampejos de fé. Deus pode fazer tudo. Ele não construíra o mundo? E os seus santos não faziam milagres? A voz do catecismo chegava-me aos ouvidos. "Deus é espírito infinitamente perfeito, criador de tudo o que existe." Dormia com essas questões na cabeça. Era preciso acreditar nas verdades da mulher de pince-nez de ouro, porque eram as verdades da Igreja. Mas parece que a serpente da dúvida procurava o meu leito para dormir. Religião era para ignorantes - afirmava seu Coelho. Em Recife, Tobias Barreto surrara os padres. Conhecera bem o mulato Tobias. Na casa duns Pontual, amigos dele, conversara com o génio.

- O diabo até sabia música.

E aquele Tobias, e o velho Coelho, abatiam aos meus olhos assim como tanta simplicidade, o Deus que fizera o mundo, que criara o homem, o senhor de tudo o que existe. A fé, porém, chegava quando fazia as minhas promessas, uma fé interesseira de fariseu:

- Se meu avô vier terça-feira, eu rezo todas as noites.

E rezava as ave-marias, acreditando mesmo que o velho Paulino tivesse vindo por isto. Já fazia o pelo-sinal antes de dormir. E começava a ter os meus medos dos pecados pelo castigo do alto. Quisesse ou não quisesse, a pedra amarrada ao pescoço, o fundo do rio, as penas do inferno, deixavam-me alguma dúvida. Deus estava em toda a parte. O homem não se podia esconder de seu olho vigilante. A minha cama não tremia tanto. Afugentava os fantasmas libertinos com estas preocupações que nunca tivera.

Na aula de sexta-feira a professora escolhera os que deviam fazer a primeira comunhão. Eu era o maior de todos. Uns de oito, outros de nove anos, e o graganzá de treze, com a alma seca das graças de Deus. Tínhamos de voltar mais vezes para as lições.

Íamos para os exercícios espirituais com a alegria do passeio até à igreja. Comungar é receber a Nosso Senhor no sacramento da Eucaristia. Eucaristia era uma palavra bonita para mim!

Sim - afirmava-nos a mestra -, Jesus Cristo está vivo na Eucaristia, todo inteiro debaixo das espécies de pão e todo inteiro debaixo das espécies de vinho.

E explicava-nos quais eram as espécies de vinho e de pão. As espécies de vinho e de pão são aquilo que aparece aos nossos sentidos, o que nós vemos, o que nós cheiramos, o gosto que sentimos do pão e do vinho. Estas eram as espécies, onde estava Jesus todo inteiro, vivo, porque o pão se mudava no seu corpo e o vinho no seu sangue. E se aquela hóstia se partisse e aquele vinho se derramasse, era o corpo de Deus que se partia também? Não, adiantava: as espécies é que se partiam. Jesus Cristo subsiste inteiro em cada parte da hóstia dividida. E vinha com a imagem de não sei quem:

- É como o espelho. Você olha a sua cara num espelho grande e é só um rosto que você vê. Quebre o espelho em mil pedacinhos, e em cada um você descobrirá a sua cara da mesma forma.

Pela primeira vez naquelas preparações para o conhecimento de Deus, uma coisa me ficara clara, numa evidência de dia sem nuvens. Valia, por esta forma, o poder intenso da imagem. Pensava porque razão um santo da igreja não inventara um catecismo assim, feito de imagens, mais um cosmorama do que aquela síntese de teologia que nos obrigavam a decorar.

Tinha-se que reter na memória as orações para os actos de antes e depois da Confissão, os chamados exercícios de preparação. "Meu Deus, eu vos suplico pela sagrada paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo." E para que existisse um bom arrependimento dos nossos pecados seria preciso rigoroso exame de consciência.

Fazer exame de consciência!

- Você fique pensando no que fez de mal, nas ofensas que cometeu contra Nosso Senhor.

Ficava a pensar nos meus pecados. Tinha muitos. Os meus feios pecados contra a castidade. Nunca furtara. Não, furtara: não tirara o dinheiro que meu avô deixava por cima da mesa, para a Zefa Cajá? "Não jurar o seu santo nome em vão. " Isto fazíamos nós a todas as horas. - Por Deus! - dizia-se brincando. Não, por Deus não serve. Então vinha um juramento mais forte: Pela hóstia consagrada, pela missa de hoje. Tudo isto era pecado mortal. Desejava as coisas alheias; não podia ver os primos com brinquedos que não os quisesse para mim. Pai e mãe não tinha para honrar, se bem que me lembrasse deles com angústia. Nunca levantara falsos testemunhos. Havia, porém, a mulher do próximo. Desejava a mulher do próximo.

Deus proibia-nos os maus desejos e todos os pecados internos contra a pureza. De facto merecia as iras de Deus por isto. Mas ninguém me explicava quais eram esses pecados internos, esses que não estavam aos nossos olhos. Os meus desejos não se criavam nas suas cobiças. E não ia, no engenho, às missas de domingo. Pecava por palavras, por obras e omissões. Quase todos os pecados do catecismo estavam comigo, para contar ao padre. Os da gula, da luxúria, da ira, da inveja, da preguiça. Um monstro para a codificação da Igreja.

- Se não se contar tudo ao padre, a confissão perde-se.

Uns tomavam notas, no papel, das suas porcarias. Acharam um< pedaço assim, de referências, no meio da sala; uma lista de pecados, ninguém sabia de quem; uma confissão completa: - Eu fiz isto, fiz aquilo, roubei uma castanha de fulano, faço porcarias sozinho. Não apareceu o dono de tal rol de pecados. Lembrei-me da história que meu avô contava. Um padre velho do Gurinhem dormia quando confessava as mulheres. Um dia uma devota chegou-se para o confessionário, e abriu-se com as suas culpas. Mas o padre pegou no sono no meio do acto. Quando acordou, a mulher tinha-se ido embora sem a absolvição. E ele saiu a gritar pelo meio da igreja: - Cadê a mulher que roubou o tacho? - Todas as mulheres ficaram surdas, como o dono do papelzinho do colégio.

Os meus pecados, eu tinha-os na memória, por muitos que fossem.

Oito dias antes da confissão, o frade fez-nos uma série de conferências. Lembro-me da primeira, que começou falando de Napoleão... Perguntaram ao grande imperador qual fora o dia mais feliz da sua vida. Esperavam que ele viesse falar das suas batalhas ganhas, dos seus tratados de conquistas, da sua coroação pelo Papa. O imperador não demorou a resposta: - O dia mais feliz da minha vida foi o da minha primeira comunhão. "Pois bem, meus filhos, daqui a uma semana ides ter esta grande ventura convosco, recebendo Deus na vossa companhia, na intimidade do vosso coração."

Falou, no outro dia, das penas do inferno, da desgraça daqueles que morriam em pecado mortal. Bastava um só destes pecados para a alma arder nas chamas eternas. As negras do engenho, em brigas, mandavam as outras para as profundas do inferno, para as caldeiras fervendo e os espetos quentes de Satanás. "Não podereis jamais avaliar o que sejam os sofrimentos do inferno. Lembrai-vos da maior dor que possa afligir um homem na Terra, e esta dor prolongando-se por séculos e séculos. Quando vos dói um dente, a vontade que vos chega é a da extracção imediata, de arrancá-lo para vosso alívio. Para a dor que vos atormenta tendes logo o recurso dos remédios. Quantos não chegam à alucinação com os seus padecimentos, quantos não se abeiram do suicídio! Avaliai agora uma dor sem remédio e sem jeito. Uma dor que é de todo o vosso corpo, da cabeça aos pés, de todas as vossas fibras e de todos os vossos nervos; a vossa carne ardendo, derretendo-se nas chamas de um fogo mais quente que o das caldeiras, o fogo soprado pelos demónios. E, mais que tudo isto, a alma que habita este corpo miserável, com a consciência nítida da eternidade de suas penas. " E o padre falou ainda muito do inferno.

Voltámos para o colégio como que sentindo o bafo quente da suas chamas. Bastava um único pecado mortal para nos lançar na quela desgraça sem fim. Todos nós tínhamos o nosso pecado mortal esperando a hora da morte para o castigo irremediável. À noite, antes de dormir, rezei as minhas ave-marias com medo. E o padre-nosso, onde se pedia perdão de todas as nossas dívidas: "Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores. não nos deixeis cair em tentação." Iríamos com a alma tremendo de horror de nós mesmos cair aos pés do padre. A confissão seria no outro dia.

Na igreja as beatas rezavam em voz alta um terço. A voz rouca de uma entoava a ave-maria, e o coro respondia com uma "Santa Maria" piedosa, em surdina, mal se percebendo as palavras. Era como se fosse uma mais forte, mais enérgica, chamando as outras, indecisas e fracas, para o arrependimento, para a paz da casa de Deus. E enquanto cada um esperava a sua vez para a confissão eu olhava e ouvia aquelas almas suplicando à mãe de Jesus Cristo a sua protecção. "Agora e na hora da nossa morte, ámen." Que pecados não teriam elas, coitadas, para tanta humildade, para a cara triste que tinham; debaixo das mantilhas pretas!

Assim demoraria muito a minha vez. Começavam pelos menores: eram talvez os mais fáceis. Os taludos como eu, deixavam-nos para o fim, porque os nossos pecados precisavam de mais trabalho. Junto a nós havia outras mulheres que vinham confessar-se ao frade. Chegavam de longe, e conversavam em cochicho, como se estivessem com medo de reprimenda.

- Cheguei trasantontem. Vim para as missões.

Andavam léguas para este banho de almas. Vinham lavar-se dos pecados.

- É um povão para se confessar.

O padre José João, do Pilar, estava ali a confessar. Mas não queriam. Só com o frade essas consciências se aliviariam. Aqueles pés descalços, aqueles cordões compridos e aquela cabeça como a de Santo António davam-lhes mais confiança. Deus dava mais poderes aos frades, pensavam elas.

A igreja cheia de lado a lado. Três confissionários atendiam a humanidade em chagas que procurava a misericórdia celeste. Poucos homens, mais mulheres do povo, pobres, cheirando a falta de banho, negras com pituim, a gente boa dos campos que deixava os filhos e as obrigações de casa para este ajuste de contas com o Senhor.

Mas que pecados prevaleceriam diante das suas misérias, de seus estômagos vazios, dos seus corações cândidos? Jesus Cristo amava os pobres, dizia a História Sagrada. Logo aquela gente toda seria a sua gente. Os que Ele queria para companheiros do seu Paraíso. Ali só havia pobreza. Os ricos eram bons de mais para a confissão. Não se pensa em pecados com a barriga cheia. A fome é que nos traz esta vontade de purificação. Parece que o corpo sem os fiambres e os filés se sente mais perto da fome da terra. Mas quanto mais gordos eles ficassem, mais difícil seria passarem por aquele fundo de agulha, de que falava a minha História Sagrada.

- Nas santas missões de Itambé o padre Júlio casou muito amancebado. Até um senhor de engenho com uma cabrocha, filha de uma escrava dele.

- Padre santo, o padre Júlio. Avalie se fosse frade.

Eu sabia quem era o tal senhor de engenho. Um parente meu. Ouvira falar sempre, no Santa Rosa, com repugnância, nesse parente que se casara com uma mulata com quem vivia. Ali dentro da igreja achava o meu primo um digno, um grande. Para quê viver em pecado? E depois, isto de descer da sua arrogância de senhor de engenho para essa renúncia, para esse contacto com os pobres da sua bagaceira, isto parecia-me grandioso. O bom rico que deitara na sua cama de casal a negrinha que lhe lavava os pés. Jesus Cristo só poderia gostar de semelhante gesto.

O velho Zé Paulino censurava o sobrinho porque tinha o pecad do orgulho. Naquela hora, no meio daquele mundo que procurava Deus, eu lembrava-me do meu avô. Sim, ele também poderia morrer em pecado mortal. Não rezava; nunca saíra das suas terras para cair aos pés de um padre, humilde, batendo nos peitos. Coitado do velho Zé Paulino! Não se salvaria se a morte o levasse de supetão. Uma vez eu estava com ele no alpendre da casa-grande, numa da quelas tardes em que ficava a ouvir os que lhe vinham pedir ou reclamar alguma coisa. O padre Severino passava na estrada.

- Para onde vai o vigário?

- Vai confessar a negra Justa, que está para morrer.

- De que serve isso? - disse o meu avô, simples, sincero, na sua absoluta indiferença às práticas da religião.

E naquela espera de confessionário, daria tudo para vê-lo ajoelhado, recebendo do padre o perdão de Deus para os seus pecados. Ele era bom de mais. No seu coração cabiam todas as criaturas de seu engenho. Mas a gente pecava por coisas que não nos parecia" pecado.

Uma negra junto de mim contava a história da filha:

- Perdeu-se, caiu no mundo.

Queria dizer muita coisa, aquele triste "caiu no mundo". O mundo era esta coisa abominável que nos desgraçava. O padre dizia que era preciso resistir às tentações do mundo.

E a negra continuava:

- O dono da terra fez mal à menina. Fez encher a barriga do pobre; nem deu um vintém para os panos do filho. E foi indo, e foi indo, até que o levou o diabo.

A negra contava isto com uma amargura cândida nos olhos que marejavam. E a outra dava muchochos, com nojo:

- Te esconjuro!

O dono da terra fizera mal. Os pobres pagavam-lhe este foro sinistro - a virgindade das filhas. O tio Juca era outro que me lembrava agora, naquele momento, outro que devia muitas contas a Deus pelos seus pecados. Já tinha passado nos peitos não sei quantas.

A minha hora estava quase a chegar. Só havia uns três para confessar. Fui-me apaixonando mais. Ouvia-se o murmúrio do padre a falar, e via-se o menino levantando-se de cabeça baixa, indo para o altar-mor, para o desencargo de suas penitências. Chegava a minha vez. Não sei porquê sentia-me sem vontade de ir, com medo, desejando que o outro se demorasse o resto da noite. Vi-o sair contrito, e lancei-me para o confessionário como se marchasse para as palmatoadas de seu Maciel.

- Reze o "eu pecador" - me disse o padre, de quem, só se viam os olhos azuis pela grade.

- Eu pecador me confesso a Deus Todo Poderoso... - E terminava: - a todos os santos, e a vós, padre, que rogueis a Deus Nosso Senhor por mim.

- Quer que lhe pergunte?

Respondi com a cabeça, num gesto. E começou o interrogatório, as minhas culpas puxadas de dentro da alma. Cada uma que saía, era como se um peso rolasse das minhas costas. Até que chegou a maior de todas.

- Sim, padre.

- Oh!, que desgraça, meu filho! Nesta idade.

A voz dele vinha-me como o desconsolo de um pai diante de um filho morto. Tive a maior vergonha da minha vida, quando os seus olhos claros, tão puros, me olharam, ali, coberto de chagas.

- Não precisa de chorar, meu filho. Reze cinco padre-nossos e cinco ave-marias de penitência. Renuncie a Satanás, às suas pompas e a todas as suas obras.

Seus olhos grandes e azuis já não pareciam espantados de tanta imundície num coração tão jovem, porque a sua voz foi de uma doçura paternal nos conselhos que me deu. Vi a sua mão levantar-se em cruz e ele perdoou os meus pecados. Saiu-me da boca o acto de contrição. Era todo o meu corpo que parecia tocado da bondade de Deus: "E espero alcançar o perdão das minhas culpas, por vossa in finita misericórdia. "

Uma lua muito branca derramava-se pelas ruas na nossa volta ao colégio. E por baixo dos castanheiros dormia gente esperand pela missa da madrugada. Povo bom, este, que deixava as suas camas de vara, a sua miserável comodidade, para ouvir os frades falarem de outro mundo, de uma outra vida, onde seriam recompensados das suas fomes e das suas doenças! Não é que viessem ali porque lhes prometessem barriga cheia. O que lhes prometiam era de muito longe: não era o gozo e a fartura que os outros desfrutavam na terra.

Pensei nos moradores do Santa Rosa, vendo aqueles pobres das missões de Itabaiana. Pareciam-se todos, esses miseráveis! Quantos do Santa Rosa não estariam ali! Ficaria contente se me encontrasse com o Chico Baixinho, com o velho João Rouco, com o Manuel Lucino; qualquer deles me daria a satisfação de quem num país estranho se lhe deparasse um conhecido da sua terra, um conhecido mesmo de cumprimentos. Passara uma vez pela porta do colégio u morador do Santa Rosa; parou o cavalo e desceu com o chapéu na mão para falar comigo:

- Como vai, seu Carlinhos? Não quer nada para o coronel ? Seu Carlinhos está magro!

Nem lhe sabia o nome. Mas apertei-lhe a mão calosa, como se fosse a de um parente próximo.

Voltava da confissão pensando nestas coisas. E dormi com a consciência limpa, com a ansiedade de receber no meu corpo lavado de novo o filho de Deus do meu catecismo.

A lua também nos espreitava pelas telhas de vidro do quarto, alvejando os nossos lençóis de madapolão. E a cara de Aurélio era mais branca e repelente ao seu clarão frio e tristonho. Pobre do Papa-Figo! A lua fazia até os cemitérios bonitos, enquanto ele mais feio ficava, com aquela boca aberta e aquele roncar de doente.

 

Amanhecera um dia que nem parecia de Abril, de um céu todo limpo, azul de horizonte. O colégio levantara-se mais cedo para os preparativos da primeira comunhão. Lavava-se a boca com precauções, porque uma gota de água podia prejudicar-nos o jejum. Íamos de roupa branca e fita no braço, com a vela na mão. E dois a dois, com o bonezinho preto, seguia o colégio de seu Maciel, com ele de fraque, à frente, para o sacramento da Eucaristia.

Na igreja não havia um lugar para ninguém; cheia, do altar-mor às portas de entrada. A Serafina gemia os seus cânticos sagrados, com mulheres fanhosas no coro. Uma coisa muito triste, aquelas vozes lúgubres como lamentações em casa de defunto. Setenta corações jubilosos pediam música de glória para a grande festa do seu banquete. Mas as mulheres fanhosas carpiam mais do que cantavam. Uma missa bonita esta primeira missa cantada que eu ouvia, com o colorido das estampas dos santos, aquele chapéu alto na cabeça do frade, e o turíbulo tinindo, e a fumaça do incenso a subir para o alto. As campainhas tocavam como vozes de crianças em festa. Os cantos dos padres retumbavam na igreja com um acento estranho para mim. Eles reverenciavam-se uns aos outros, esses actores tristonhos do drama eterno.

Não tinha pensamentos na cabeça, naquele dia: era só olhos para tudo aquilo, para todos aqueles movimentos que me enlevavam. Quando o sacrário se abriu, todos nós, enfileirados, seguimos para a mesa branca, de cabeça baixa e as mãos no peito. Voltávamos com a hóstia a derreter-se na boca. Era Deus em corpo que levávamos para as nossas vísceras miseráveis. Fiquei no meu lugar, concentrado, com este Deus nos lábios, os únicos minutos da minha vida em que me elevei da terra que pisava. Mas foram alguns minutos apenas. O mundo estava ali bem perto de mim para que esse recolhimento não durasse. Passei a reparar nas mulheres e nos homens mais próximos. Vi a mãe de Licurgo, muito bonita, de chapéu, com uns brincos brilhando nas orelhas. Na igreja de Deus havia lugar também para as prostitutas. Lia um livro de missa como o da Emília.

Depois, já a fome nos chamava com impertinência para a Terra. Aurélio caíra com uma vertigem no meio do povo. Levaram o pobre para fora, verde que fazia pena.

- Porque não mandam estes meninos para casa? É até malvadez! - dizia um velho que segurava o Papa-Figo.

De facto, deixámos a igreja sem a missa terminar. O director ficaria até ao fim. Filipe conduziu-nos de retorno ao colégio. Voltávamos murchos e calados, como os pássaros criados em casa, que perdem o jeito de voar. Murchos e calados para a gaiola que nos esperava. Os externos dispersaram-se, a caminho das suas casas. dez corações limpos, purificados pela graça de Deus, sem força para resistir a dez estômagos famintos do pão deste mundo. O almoço da negra Paula infelizmente era tudo para nós, naquele dia mais santo da nossa vida. Nem o corpo de Deus fora sacrifício bastante para estas frágeis criaturas humanas. Íamos andando a pensar na comida. Pão-Duro viu uma castanha madura no chão. Num instante todos nós partíamos para a fruta com uma ganância de cães esfomeados. Rolei pelo chão com a minha roupa branca, com lama até no laço alvo do braço. Filipe disse-me muito sério:

- Só não digo a seu Maciel, porque o senhor fez a primeira comunhão.

Mas Pão-Duro roía a castanha com a alegria de um cachorro feliz.

E o dia todo no colégio foi de uma paz de armistício. À tarde levaram-nos a passear aos arredores da cidade. Passámos pela Rua da Lama, a rua das mulheres fáceis, sem olhar para as janelas das casas. Fomos até o triângulo, lugar de entroncamento dos comboios, espécie de oficina para as máquinas que faziam os horários de Campina Grande. Encontrámos Licurgo de cigarro na boca, arroga­nte, em desafio ao director, que nos disse:

- Aquele termina na cadeia.

Conversava-se numa algazarra feliz. Vergara contava histórias de Paraíba, Heitor de Timbaúba, de Olinda, aonde fora com a madrinha tomar banho de mar para os nervos. Assistira lá à passagem do século:

- Os morteiros estoiravam doze horas, e o farol iluminava a cidade com luzes de todas as cores.

Mentia-se muito nessas conversas inocentes. Vinham as discussões:

- A Paraíba inaugurou o carro eléctrico primeiro que o Recife.

Era todo o orgulho dos paraibanos. Falaram também de outras vantagens:

- A música de Polícia da Paraíba é a melhor do Brasil.

Heitor, pernambucano, contava tantas grandezas do Recife, que a pobre Paraíba se escondia, de tão pequena. E com os nossos bonézitos pretos andávamos por toda a cidade. Um prémio que seu Maciel oferecia aos que tinham de manhã recebido a Nosso Senhor: a liberdade de sacudirmos as pernas à vontade.

 

O colégio estava vazio com as férias da Semana Santa. Que caras felizes de libertos apresentavam os meninos nos dias em que se preparavam para sair! No comboio da Paraíba foram-se Vergara, José Augusto, os filhos do Simplício Coelho. No de Recife, Heitor; Coruja, no de Campina Grande. Despediu-se de mim de olhos humedecidos. Só eu sabia que não voltava mais. Também era só para mim que o amigo tivera aquele abraço.

- Eu escrevo-lhe, Carlos.

E foi-se. Ninguém naquele colégio com a sua inteligência, o seu grande coração, a sua alma de menina. E não voltava mais. Os outros, o diabo que os levasse. Vergara, Pão-Duro, José Augusto, os Coelhos, Aurélio, todos poderiam despedaçar-se pelo mundo, que era o mesmo para mim. Coruja, não; apanhara por mim, olhava-me com atenção diferente, dividia comigo as suas merendas. Um dia o safado do Pão-Duro insinuou com aquela malícia ordinária:

- Vocês dois estão feitos?

Eles não podiam compreender que houvesse no mundo aquele interesse de irmãos entre estranhos, aquela ternura, aquele amor, mesmo, de um menino por outro menino. E o director não me proibia de falar com ele? É verdade que Coruja gostava mais de mim que eu dele. Maria Luísa viera desviar os meus entusiasmos. Mas sempre o meu amigo seria um privilegiado na minha afeição. E ele era um casto. Num banho de rio eu vira-o ruborizado com o que os outros meninos faziam. Esculpiam no massapê mole das margens as figuras mais porcas deste mundo.

- Seu Vergara, acabe com isso. Deixe-se de imoralidades, seu Heitor.

Era assim que repelia a sem-vergonhice dos colegas.

Uma ocasião, não avistando Coruja nas proximidades, comecei a armar em artista obsceno na beira do rio. De vista baixa, não vi que Coruja estava perto. Quando olhei, vi-o espreitando a obra tristemente:

- Carlos, não faça isso.

E a voz doeu-me como uma reprimenda da tia Maria. Não quis olhar para o amigo que me surpreendera igual aos outros na porcaria.

E no comboio de Campina Grande ia-se embora. Veio buscá-lo o pai, gordo, com aqueles mesmos olhos miúdos do filho. Falou também comigo:

- José João escreve-me muito a falar em você - naquela mesma voz doce do Coruja.

Sozinho no colégio com Aurélio, o tempo não tinha fim. Aurélio era uma pobre besta que só abria a boca para as necessidades de animmal. Foram dez dias de um isolamento difícil de vencer. A sala vazia, os quartos com as camas-de-vento fechadas, na mesa de jantar.

- D. Emília, o director e seu Coelho, como uma pequena família cujos membros não se dessem, pois havia um silêncio fechado do começo ao fim das refeições.

Uma surpresa espantosa deu-me, nestes dias, o seu Maciel. Nunca vi um homem mudar tanto. Humanizava-se com os seus alunos em casa. Deviam ser assim, na intimidade, os domadores de feras. Aquela cara e aquele chicote serviam somente para os seus encontros com os tigres e os leões. O velho era bem outro, como se se tivesse libertado de uma contrafacção da sua personalidade.

- Vá-se vestir, Carlos. Vamos para a igreja.

Chamava-me Carlos. Aquele duro grito de comando que eram as suas ordens ou os seus chamados, desapareceram. Levou-me para ver a feira, e comprou umas frutas para mim. Ia com ele para os passeios; a casa de amigos, onde conversava coisas da política de Pernambuco:

- O Dantas Barreto vai vencer o Rosa, não tenho dúvidas.

Nem parecia o seu Maciel, o homem terrível que me fazia tremer só de o ouvir chamar pelo meu nome. Em casa ficava a conversar com D. Emília sobre factos da sua terra. E pedia-me para levar recados:

- Carlos, vá a casa do Resende e peça a Província de ontem.

Eu punha o chapéu, satisfeito com este recado. A casa de Maria Luísa ficava pertinho dali. Via-a na janela. Um dia criei coragem para lhe dizer umas palavras.

- Olhe a mamã!

E foi como se me tivesse batido com a janela na cara. Depois da comunhão a minha namorada não voltou a olhar-me. Talvez fosse pecado o nosso amor de pássaros cativos.

Seu Maciel lia em voz alta os telegramas da Província. Eu ficava por ali a ouvir a conversa dele com a mulher:

- O Rosa desta vez não se aguenta. O exército está com o Dantas. O marechal Hermes não vai deixar à toa o seu ministro da guerra.

Rosa, Dantas, Hermes - figuras misteriosas para mim. Nunca ouvira falar nos seus nomes. Havia no Santa Rosa um cacho chamado Marechal. O nome, quem o pusera fora o tio Juca, que era a favor de Rui Barbosa. E também havia num engenho outro cachorro chamado Rui Barbosa. Perguntei um dia ao tio Juca quem era este Rui.

- É o maior dos homens do Brasil. Vai ser presidente da República.

Mas eu não sabia o que era presidente da República. E o meu tio ensinou-me:

- É o homem que manda em todo o Brasil.

Agora, aquela conversa do director fazia-me lembrar. Um dia o presidente do Brasil passara, num comboio enfeitado, pelo engenho. Corremos todos para a beira da linha, dando vivas ao Dr Afonso Pena. Naquele tempo o Brasil para mim não existia. O mundo, o meu país tinha os seus limites nos limites do Santa Rosa.

Que me importava o presidente da República? Quem mandava em todos nós era o velho Zé Paulino. O povo do Pilar não lhe vinha fazer festas? Meu avô levara-me, uma vez, para assistir à sua posse na Prefeitura. À porta da casa da Câmara umas moças atiravam-lhe flores, e o seu Lula fizera um discurso com um papel na mão, tremendo.Ouvia os homens chamando-lhe de chefe. E Chico Xavier levava livros para ele assinar, uns livros grandes com as contas da Prefeitura.

Agora, no colégio, eu já sabia de muita coisa. E quanto mais sabia, mais ia vendo que o velho Zé Paulino não era tão grande como eu pensava. Era bem pequeno o seu poder, comparado com o dos governadores e o dos presidentes. Uma ocasião chegou não sei quem com um jornal da Paraíba que atacava o meu avô. Ele protegera, no júri, um criminoso. E a folha falava disso com palavras ásperas: "protector de bandidos". Era mais um limite que eu descobria para o poder do senhor de engenho do Santa Rosa. Nunca ouvira a voz levantar-se contra ele. Tinha-o como intangível nas suas resoluções e nas suas ordens. E aquele jornal com descomposturas! Só podia ser mentira. Apesar desta convicção, a crítica dos outros reduzia um bocado o meu senhor. Não deixava de me doer esta decepção que a vida me dava. O seu Maciel disse uma vez na aula:

- Você pensa que isto aqui é o engenho do seu avô?

Um menino com quem discuti gritou-me aos ouvidos:

- Moleque de bagaceira!

A conversa do director com D. Emília referia-se a gente que eu

não conhecia: o Seabra, o Hermes,o Dantas. Gostava sempre de ouvir as conversas dos mais velhos. E sem ter que fazer, sentava-me escutando o director e a mulher. Os dias da Semana Santa corriam morosos. Na quinta-feira fomos aos actos da Igreja. O frade lavava os pés dos meninos e enxugava-os. Beijava-os depois. Parece que me rangia aos ouvidos a voz da velha Sinhazinha: - O padre Júlio em Itambé beijava os pés dos pobres. Não via pobres ali em Itabaiana. Reconhecia até dois meninos do colégio no meio dos outros. O padre Júlio devia ser mais santo do que o frade louro e alto das missões.

Ficava com Aurélio no dormitório, sozinho, com medo dele. o sono demorava a chegar. Chegavam-me, porém as minhas meditações desconcertadas. Tivera uma notícia de casa: a tia Maria estava no Santa Rosa para dar à luz. Tinha receio de que ela morresse de parto. Lembrava-me da tia Mercês que teve um menino no engenho. A velha Alexandrina, a parteira, fechada no quarto com ela. O tio a passear no corredor com as mãos para trás, sem falar com ninguém. A casa-grande no maior silêncio. O povo a andar nas pontinhas dos pés. E isto horas e horas, de curiosidade e de gemidos angustiados lá dentro. O velho Zé Paulino saía do engenho para não ouvir nada. Que o fossem chamar no fim de tudo. E este fim demorava. E a inquietação e o susto, da cozinha à sala de visitas. De repente ouviu-se um grito de alucinada: - Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! - E o menino chorava, e toda a gente como se lhe tivesse tirado dos pulsos ferros de torturas. - Graças a Deus - ouvi por toda a parte. E o cheiro de alfazema rescendia pela casa toda. Seria a tia Maria assim feliz? Podia ser diferente com ela. E enquanto o sono me abandonava, os meus pensamentos vagueavam longe.

Papa-Figo roncava. As corujas cortavam mortalhas pelo telhado. (Quando passavam assim pelo Santa Rosa, as negras diziam: Vá agourar o diabo!) Os cachorros latiam pelos quintais. E os morcegos dependurados na cumieira da casa desciam para os seus rápidos passeios de lado a lado; quando caíam no chão, não se levantavam mais, com aquelas asas de diabos rastejando. Temia que viessem chupar-me o sangue. E com medo de Aurélio, dos morcegos, das corujas e das dores do parto de minha tia, adormecia para sonos mais dolorosos que a vigília.

De manhã seu Maciel não vinha bater-me à porta, como nos dias de aula. Acordava-se mais tarde, sem as preocupações das lições erradas. Não estava ali Filipe, o que não pagava nada no colégio porque servia para nos espiar, espécie de polícia que o velho punha nos nossos calcanhares. Podíamos estar à janela o dia todo. Via o povo passando para a igreja, mulheres de preto que acompanhavam, de luto carregado, os actos da Semana Santa.

Bem defronte do colégio havia um castanheiro. De manhã cedo corríamos, para o chão, apanhando as castanhas maduras, roxas

como frutos litúrgicos. Às vezes encontráva-mo-las roídas pelos morcegos. Pouco nos importavam estes concorrentes madrugadores: Comíamos o resto que eles deixavam sem nojo de espécie alguma. E que nojo a fome poderia ter? Quebrávamos assim o jejum, com as castanhas que amargavam na boca, arroxeando-nos os lábios como os das mulheres pintadas. E o jejum do colégio não tinha pena da gente. Muito longe da igreja o seu Maciel, mas para o jejum não havia ninguém de dentro. Comia-se uma bolacha ao café, e o almoço da uma hora da tarde deixava-nos sair da mesa com fome. O velho Coelho protestava: quando morava em Recife, a Sexta-Feira de Paixão era o seu dia para comer carne. Passava a Semana Santa no bife.

- Aquilo é um hereje - dizia a negra Paula horrorizada. Não sei como não cai um raio em cima daquele homem.

Mas todo o sacrilégio era em Recife. Na casa do genro seu Coelho beliscava a pouca comida que nos davam.

Ficava com raiva à igreja, a Deus, a toda a gente, quando a fome me apertava. Nunca sentira fome. Ali no colégio fora experimentar pela primeira vez a agonia de um estômago vazio num corpo são.

Ouvia, dantes, os pobres pedindo esmola:

Uma esmolinha para matar a fome!

E pensava que aquilo fosse mais uma conversa dos mendigos, uma fórmula convencional para tocar o coração dos outros. Não podia avaliar o que queriam dizer aqueles olhos brilhantes, aquela língua seca dos pobres que batiam nas portas com as mãos estendidas. Ouvia o-meu avô falar da fome de 77. Mas no Santa Rosa a farinha e o mel-de-furo entretinham o povo nas secas prolongadas. Não sabia o que era os refugiados caindo mortos pela estrada. Esta dolorosa realidade para mim era o mesmo que os contos da Sinhá Totonha. Os sertanejos comiam gravatá cru, que chegava a cortar a boca. Escorria-lhes sangue da língua cortada. Não acreditava. Vi os mais pobres do engenho no bacalhau e na farinha seca, os moleques de barriga empinada sempre a mastigar qualquer coisa. E o sertão era o lugar mais longe do mundo para mim. Lá havia queijo por toda a parte. Manuel Salviano trazia, de umas fazendas do meu avô caçoás de couro carregados. Enchiam a despensa. Mandavam presentes para os engenhos vizinhos, os queijos escorrendo manteiga para os embrulhos. Um dia o vaqueiro chegou num burro magro cor de barro das caatingas:

- O gado morreu todo. Não ficou nem uma vaca para semente.

- Mentira deste ladrão - dizia o velho Zé Paulino, porque nos seus cercados o pasto nunca se extinguira de vez.

- Seca. O povo está a morrer pelas estradas. É verdade, senhor coronel. Só quem come naquelas bandas é o urubu.

Ficava pensando em como se poderia morrer de fome, se não era mentira do vaqueiro Salviano.

O jejum do colégio vinha instruir-me a respeito da fome, de pobres, de secas. Sabia agora por que os sertanejos cortavam a boca com gravatá, por que caíam pelos caminhos os refugiados, e de que morrera o gado do meu avô.

O velho Maciel estava outro para nós. A palmatória entrara em férias também. Mas parece que ele ficara com o jejum para nos cas tigar. O pior é que não era contra ele que me revoltava. Virava-me contra o pobre do Cristo que se enchera de pregos nas mãos, se dei xara lancear de lado a lado, para nos salvar. É monstruoso confessar: na Sexta-Feira Santa blasfemei como um bêbado contra Deus. Mas se estava pior do que bêbado, se estava com fome! Nós tinhamos voltado da igreja à noitinha. Assistira ao acto inteiro com suores frios, os joelhos a doerem-me, a cabeça tonta. O jejum não me servira para mortificações, para me elevar a Deus com o espírito.

Não: ele revoltava-me, aproximava-me mais ainda das minhas fraquezas. Era um impaciente, que não suportava a menor restrição às suas necessidades. E quando olhei para a sala de jantar, e não vi a mesa posta, veio-me certeza de que já não se comia naquela noite. Na cozinha o fogão apagado, a negra Paula na igreja.

Fui para a cama porque não me aguentava mais nas pernas. O medo de uma vertigem preocupava-me. Vira o Aurélio, verde, cair na igreja. Sempre tivera medo de perder os sentidos. E no meio sono, entre acordado e adormecido, fiquei esperando a hora da ceia. Na cama arrependi-me dos meus arrancos de raiva. Pecara grosseiramente. Num dia daqueles, tão grande, ofender a Nosso Senhor! O que seria a minha fome em relação ao sacrifício de Jesus, surrado, escorrendo sangue pelo caminho do Calvário, o coração atravessado de lado a lado e a cabeça para um lado, pendida ao peso das dores! Tive medo de um castigo, ali, no quarto, sozinho. A cumieira podia cair em cima de mim; podia morrer ali mesmo, como um bicho, em pecado mortal. Já não pensava em comer. Saltei da cama para fora mum ímpeto. E a mesa de jantar com os pratos e o feijão de coco e o bacalhau da Quaresma para satisfazer ao sibarita incontentado. Mas tinha aprendido muita coisa sobre fome.

 

Viera uma negra trabalhar na cozinha com a Paula. Dizia que era de Recife e sabia histórias para contar, histórias de feitiçaria de brancos castigados. As bexigas grassavam na Rua do Crespo. Uma família rica mudou-se logo para outra rua. E as bexigas chegaram lá. Correram para Beberibe, e quando mandaram a criada pedir uma coisa emprestada à vizinhança, ela encontrou um bexiguento seca. A família, como doida, foi para Olinda. No caminho vinha numa rede um outro caindo aos pedaços. - A dona da casa tinha dito, que as bexigas só atacavam a gente pobre. E para onde eles iam a peste perseguia-os. Na família não ficou um vivo. A taboca come tudo. "Os brancos têm muita soberba. "

As histórias de feitiçaria arrepiavam. Uma branca batia numa negra com malvadez. A pobre fazia tudo na casa: cozinhava, lavava, tomava conta dos meninos. E a dona com o couro sempre nas costas dela. Ensinaram à negra que fosse ao catimbó. O mestre fez umas rezas. O santo bateu-lhe, no meio da sala. Caiu estrebuchando no chão como um cachorro doente, babando-se de raiva. E a dona da casa começou a murchar. Murchou logo a mão da correia. Mur charam as pernas, depois. Andava pela mão dos outros. Foi a todos os médicos. A cara parecia um maracujá maduro. Morreu beijando os pés da negra, pedindo-lhe perdão.

Contava também a história do barão de Nazaré. O barão nasceu na pobreza. Enriqueceu a vender negros. Os negros da Costa chegavam encomendados por ele. Foi, no começo, capitão do mato. Caçava escravos fugidos com um cachorro. Eram como se fossem bichos, para ele. Foi indo, foi indo, até que enriqueceu. Tinha um palácio no Recife. Os filhos, quando nasciam, banhavam-se em bacia de ouro. Só saía para a rua de carruagem. Vi-o uma vez, no pátio do Terço, no carro. Parecia que tinha o rei na barriga. "Deus é grande." O desgraçado juntara dinheiro na compra de negros. Fizera muita desgraça no mundo. Nasceu-lhe uma ferida na boca, que lhe comeu o rosto todo. Bebia água num bule, e a única comida que aguentava era leite. A vida começou a correr-lhe mal, foi-se atrasando, e terminou a pedir esmola pelas portas. A família nem quis saber mais dele. Só um escravo ficou com o infeliz até à morte.

O diabo da negra arrastava-me para a cozinha, e enquanto lavava os pratos dando à língua, contava os seus casos. Em tudo mostrava o seu ódio aos brancos. Como era diferente das negras do Santa Rosa da avó Galdina, da tia Generosa, para quem os seus brancos eram as melhores coisas do mundo! No Recife era assim: os negros faziam feitiços aos senhores, as bexigas matavam as famílias ricas.

- Vá lá para fora, seu Carlinhos - dizia a negra Paula. Deixa a sinhá Francisca trabalhar.

- Ele não está a empatar-me.

E continuava as suas histórias de casas mal-assombradas, de senhores de engenho que pagavam os seus pecados neste mundo. A mãe dela fora escrava do velho Suassuna do Pombal. A casa dele ainda estava de pé para se ver. A senzala parecia solitária de soldado. Aquele também o diabo o levara. Eu perguntava-lhe se também tinha sido escrava:

- Deus me defenda! Eu nasci de ventre livre.

- Que diabo é ventre livre, sinhá Francisca?

- Não sabe, não? Branco deve saber tudo. Quer dizer que eu nasci livre, menino. A lei mandava que as negras não podiam parir cativos.

O velho Maciel passava e mandava-me sair da cozinha: - Não quero meninos na cozinha.

E saía apanhando os papéis que encontrava pelo chão. O director tinha a mania da limpeza da casa. Não podia ver um cisco qual quer que não se abaixasse para o apanhar. E era sempre uma briga com os criados e com a mulher quando punha as mãos em cima de um móvel com poeira. Tanto luxo com os móveis e a casa e no entanto deixava-nos na maior imundicie. Os lençóis da cama passavam meses sem se lavar. E os percevejos engordavam no nosso lombo. Banho duas vezes na semana. De cuia, quando não íamos ao rio. O sabão estava na água salobra da cacimba, e os piolhos multiplicavam-se nas nossas cabeças. Era só coçar os cabelos com força, e eles caíam em cima dos livros abertos, nas horas de aula. Apostava-se com o número de mortos:

- Matei vinte, hoje.

Estalavam-se na ponta das unhas os bichinhos gordinhos. Nos que dormiam em rede os precevejos faziam ginástica nos punhos, fedorentos, imundos, mas com os quais nos habituávamos a dormir. Os lençóis tingiam-se do sangue dos que morriam de acidentes com as reviravoltas que dávamos na cama. Às vezes escaldavam as ca mas de vento no quintal. Ficavam de pernas para o ar, para a matança dos bichos, que se escondiam até da água fervente. O pescoço da gente criava lodo. Mas sujássemos, a roupa antes do dia marcado, que a palmatória lembraria ao pobre que o sabão do director custava dinheiro. Os panos da cama de Aurélio cheiravam mal, dizia-se lá. Mas qual de nós estaria livre do mau cheiro dos cobertores de meses? E ninguém caía doente. O clima da terra talvez ajudasse a seu Maciel no seu desleixo... Aos domingos e às terças, depois do banho, engraxávamos as botinas. Ele queria ver os seus meninos de roupa escovada e sapatos limpos.

Sozinho no colégio, podia tomar banho durante muito tempo. A água trazia-me essa vontade de recolhimento. Era o medo da água fria que me deixava a pensar na vida, isolado da gente de fora, nessa atitude primária de animal. O diabo tomava-me desprevenido em tais momentos. As recordações da negra Luísa e da Zefa Cajá ficavam ali, diante do tanque. E nem o medo de Deus, que estava em toda a parte, me salvava das deleitações libidinosas. Limpava o corpo, tirava o lodo do meu pescoço embora ficasse de alma encardida.

 

A negra Paula tinha sempre um menino preferido para os seus carinhos. Deitava mais coisas no prato dele, à mesa. À merenda havia para o seu eleito sempre uma novidade: um pedaço de pão com queijo, uma banana a mais. Namorava assim a negra. Era uma forte: repelia as impertinências de seu Coelho, e quando o velho Maciel se saía com os seus gritos, só dizia:

- Quero ir-me embora. Só estou aqui por causa de Mila.

E o director, que mandava em nós todos como um déspota, cedia às ameaças de Paula.

Seu Coelho uma vez andou a atirar-se a ela. E foi quase um escândalo no colégio. A preta gritou, chamou-lhe "velho que não se dá ao respeito". Mas namorava os meninos. No começo era José Augusto, nuns mimos interessados de mais. Zé Augusto era um mole. Ela passou-se para outro mais decidido, um dos que moravam no quartinho dos grandes. Chico Vergara disse-me uma vez:

- A negra está a fazer imoralidades com o João Câncio.

De facto, João Câncio andava a ser tratado como um príncipe: tapioca, mangas, pedaços de carne maiores ao almoço, cocadas. A negra gostava de homens com força para o amor. Eu, porém, não acreditava no Chico Vergara.

Agora, sozinho no colégio, num dia em que estava fechado no banheiro, bateram devagar na porta:

- Abra, Carlos.

Perguntei quem era.

- Sou eu, abra.

E o diabo visitou-me ali em carne e osso. Todos tinham saído. Comecei então a comer melhor. A negra Paula elegera-me para seu coração. Era agora o favorito daquela Catarina Segunda de tachos e panelas. E quando o director saía de tarde e me chamava, eú não queria ir. D. Emília ia com ele. E o amor ficava,a ensinar-me a crescer, a ficar homem de verdade. A negra tinha o mal dentro desi. Uma, duas, três vezes, me levava para fora deste mundo, nos arrancos da sua vigorosa animalidade. Depois eu ficava a pensar no que diria Deus de tanto pecado.

Luísa, Zefa Cajá, negra Paula, o diabo deu-lhes, a vocês três, ris poderes a que eu não sabia resistir. O mundo onde vocês me levavam era um lugar bem diferente da terra das minhas mágoas e dos meus desconsolos. Mas é que essas viagens perigosas deixavam-me o corpo mole, como se tivesse andado caminhadas de léguas. Um corpo lasso de velho e as mãos a tremer. E ainda afundado na minha melancolia. Negras que me ensinaram a amar, bem cedo vocês me instruíram no que havia de precário e de amargo no amor.

Sinhá Francisca parece que desconfiava da história.

- Olha o teu menino, Paula -disse uma vez na cozinha.

- Meu não, teu - respondeu a negra, disfarçando a ruindade. Foram passados assim, entre Deus e o diabo, os dias da minha Quaresma. Mais com o demónio, que se mostrava para mim nos dentes brancos e nas boas carnes da negra Paula. Deus ficava ainda longe, bem longe, no medo de que a cumieira caísse sobre a minha cabeça, na longínqua desconfiança dos castigos.

No sábado de Aleluia, porém, o remorso invadiu-me. Falava-se de Jesus Cristo, que no domingo ressuscitaria. Era como se fosse uma tragédia daquele dia. Dizia-se:

- Ontem ele estava sofrendo, amanhã ressuscitará.

Isto com uma convicção de quem se referisse a um facto a desenrolar-se aos nossos olhos. O Calvário parecia ficar mais perto que os Altos Currais. E esta certeza da morte do Deus feito homem e da sua ressurreição dos mortos abalava-me na lama em que estava. Voltava-me o temor de morrer em pecado mortal. E depois da confissão

já pesavam nas minhas costas tantas misérias! Podia mesmo amanhecer estendido na cama, com a alma a arder nos infernos!

 

Fui a seu Maciel

- Professor, queria confessar-me.

- O quê? Confessar-se? Não quero carolas aqui! Esta é boa! Era só o que faltava no meu colégio: um jesuíta! Boa esta! Um beato querendo viver aos pés dos padres! É melhor que o senhor cuide das suas lições. Segunda-feira abro as aulas.

Sentia-se que ele falava das aulas com certa saudade. Aquelas palavras eram mesmo de quem ansiava pela meninada debaixo do seu terror. Quarenta anos de ensino diário faziam da sua escola o seu teatro. Não se lastimava, como os outros, desejando as férias como um repouso. A sua estação de cura ele fazia-a dando lições, pondo de castigo, dando palmatoadas.

- Só me sinto bem no trabalho- dizia nas suas conversas.

E por isso fechava o colégio em Dezembro e abria em Janeiro.

Mas o judeu tinha orgulho da sua obra. Falava com vaidade dos alunos que brilhavam lá fora; citava o nome deles nas aulas:

- Está aí o Octávio, o melhor aluno do Diocesano, o Oscar Lira, o Silvino, o Manuel Florentino. Chegaram aqui sem saber nada. Hoje honram-me em qualquer parte.

Gostava de impelir os outros para a frente. Os seus processos, porém, seriam cirúrgicos de mais. Amputava, tudo com dor, embora às vezes a amputação fosse um crime. Os anestésicos não existiam para esse flagelador de meninos. A palmatória era a sua vara de condão; com ela movia o seu mundo. Pensava corrigir e iluminar com um pedaço de pau os que lhe chegavam às mãos, para serem moldados a seu jeito.

 

Começavam a chegar os meninos das férias. Pareciam outros; com oito dias voltavam gordos e queimados. O primeiro que apareceu foi Vergara. Entrou triste, com um embrulho debaixo do braço. Viera sozinho no comboio com cara de quem tivesse sido apanhado outra vez para a gaiola. Ficou pelo quarto a arrecadar o que trouxera. Deu-me umas gulodices para comer, e contou muitas histórias. No armazém do pai vira um negro morrer com um saco de carne do Ceará à cabeça.

- Quando o vi, estava ele esticado no chão, a deitar sangue pela boca.

Estivera num engenho em Santa Rita. O engenho do pai dele só fazia aguardente.

- Aquilo não é engenho - dizia eu. - Engenho é o que faz açúcar.

- Eu vi a usina Cumbe. O açúcar lá sai branco. Usina, sim, que é bonito para se ver. Você nunca viu uma usina.

Ouvira falar das usinas pelos moradores que voltavam da Goiana. Quando ele me dizia que as moendas puxavam a cana numa esteira, eu espantava-me. Via no engenho os negros cortando cana, feixe por feixe. Na usina a esteira puxava para a moenda, sem ninguém empurrar. Era só atirar-lhe a cana para cima. Se caísse até gente, a moenda engolia-a. Encantavam-me notícias dessa engrenagem das usinas. Pensava nos comboios, nas maquinazinhas de brinquedo, puxando vagões de cana por dentro dos partidos.

- O açúcar de usina é limpo - contava Vergara. - Os trabalhadores não lhe põem os pés em cima, como nos engenhos.

A verdade é que as usinas já estavam ali para humilhar os banguês do meu avô.

Depois de Vergara, chegou Pão-Duro, da Guarita. Só falava na riqueza do pai:

- Meu pai está fazendo uma casa nova para morar. Mandou buscar um pintor da Paraíba.

Era a empáfia que entrava outra vez no colégio. Mas ninguém lhe dava importância. Os seus queijos, as suas frutas, o seu pai, nós eliminávamo-los dos nossos desejos e das nossas admirações.

Eu vi teu pai terça-feira com uma boiada. Ele passou aqui pelo colégio no meio dos tangerinos.

Pão-Duro encolheu-se todo, como se um choque qualquer lhe provocasse aquele retraimento. Lembrava os emboás de mil pernas: iam andando soberbos, porém, mal a gente os tocava, encolhiam-se uma roda feia. Tinha vergonha do pai, ele que falava tanto na sua riqueza. Um cachorro, esse Pão-Duro. No Coração havia um como ele, que não gostava de andar com o Focinho de Lebre para não sujar a roupa de barro.

No comboio da Paraíba vieram os filhos do Simplício Coelho, todos desconsolados, com a saudade dos dez dias de Sapé a exasperar-se. O mais moço chorava.

- O que é isso, Tonhinho? - dizia-lhe carinhosa, D. Emília.

Chegou Heitor de Timbaúba. Só se ocupava do tio, que era agora o prefeito de lá. Rosa caíra. Sabia de histórias de políticos, de versos. Meu tio Lourenço já não era nada em Timbaúba, dizia ele. Luís Dantas, Dr. Bráulio, negro Zé Vítor mudaram-se de lá.

Foi uma picada na minha memória. Heitor falara do velho Zé Vítor, o grande amigo dos meninos do Santa Rosa. Ele ia pelo S. Pedro aos aniversários do meu avô, levando para a gente caixas e caixas de fogos. Um mulato gordo e alto, de cabeça rapada, mas com as barbas todas brancas: um papá Noel crioulo que nós todos amávamos. Vinha para vender tecidos ao povo da festa e frascos de homeopatia. Voltava dos engenhos vizinhos quase sem poder endireitar-se no cavalo. Diziam que por lá lhe davam bebidas para lhe comprarem as coisas mais barato. Era um bêbado engraçado, gritando para toda a gente. Punha-se no quarto dele uma bacia para os vómitos. E dava berros de fazer pena.

- Eu conheço seu Zé Vítor, Heitor.

- Eu também.

E cantava comigo uns versos que terminavam assim:

Lá vem o negro Zé Vítor, com o sinfrônio nas cacundas.

Referia-se às corridas que os dantistas deram nos do outro lado. Heitor, coitado, tinha coisas mais tristes para contar: a madrinha dele endoidecera. Fora para o asilo num carro especial todo fechado.

- Ela batia nas grades do vagão, que fazia pena; o meu pai,irmão dela, está lá também.

Era o dono do engenho Serra Azul. E Heitor contava coisas mais tristes ainda:

- O meu pai foi para o Recife amarrado a cordas. Ficou doido. Um dia quis fazer parar a roda de água do engenho com as mãos.

O pai doido e a tia doida. O meu pai no asilo e o meu nome Doidinho. Era uma ferida velha que se rasgava ali sem eu esperar. Para que me fizera Heitor aquelas confidências? Uma temperatura de abaixo de zero caía por dentro de mim. Doido o pai, doida a madrinha. O meu pai doido, o meu nome Doidinho! O resto do recreio eu o passei longe dos meninos, calado, com a roda das minhas cogitações rodando à força daquelas sombrias histórias.

Sentia doenças imaginárias. Mal me contavam de uma moléstia, começava a sofrer sintomas, a pedir remédios para isto, para aquilo. Ali no colégio seu Coelho era o médico; dava doses até para gente de fora. Agora aquelas sombras sinistras dos meus dias cinzentos do Santa Rosa estavam outra vez na minha frente, somente porque Heitor dera de mais à língua. Fui para a cama a pensar no meu pai.

- Esta moléstia é de família - dizia seu Coelho não sei sobre quem.

Sim, existiam famílias com o destino marcado com doenças, com males particulares distinguindo-as das outras. Famílias de tísicos, de lázaros, as que sofriam do coração, as que davam doidos para os asilos. Porque me puseram os colegas aquele apelido? Era um agitado, falava sozinho à noite, não parava num lugar, tremiam-me as mãos quando pegava nas coisas.

- Doidinho hoje está na lua - diziam eles querendo-me aperrear, quando me viam mais nervoso do que nos outros dias.

Outras vezes machucavam-me assim:

- Hoje há lua nova. O Doidinho hoje corre.

Aquilo tudo eu o ouvia sem ligar. Heitor de repente rompera o equilíbrio da minha vida. Iriam ofender-me de aí por diante as brincadeiras dos meus colegas.

Havia no colégio outro menino com o pai doente da cabeça. Magrinho, ele era assim como eu, agitado, impaciente. O pai andava solto. Alto, muito alto mesmo, e de barbas pretas, compridas. Sempre à noitinha uns uivos de dor, umas lamentações de quem estivesse em suplício, deixavam a cidadezinha impressionada. Quem em Itabaiana não cruzava os talheres à hora da ceia para deixar passar aquele brado angustiado de sofrimento que furava a noite como um mau presságio? Era o pai de Fausto, que morava na casinha do jardim público, urinando. Tinha o pobre pedras na bexiga. Via-o a olhar para um canto ao passar sacudindo os braços nervosamente. Era um andar certo de quem vai para um lugar determinado; mas ele não ia para parte nenhuma. Chegava ao fim da rua, e voltava com pressa, parecendo que se esquecera de qualquer coisa. E era assim, para baixo e para cima, neste vaivém, horas seguidas. Tinha um chapéu alto e preto na cabeça, e não falava com ninguém. Porém, sempre ao anoitecer, como um relógio sinistro que desse as suas horas em lamentações desesperadas, gritava, infalivelmente, o pobre pai de Fausto. E a gente que tomava o seu café com pão, a gente de Itabaiana, os que eram felizes, haviam sem dúvida de reflectir, àquela hora alegre de família, na advertência cruel de Deus. Quando o ouvia, era como se alguém me chamasse a atenção para mim mesmo: - Olha, menino, o teu pai é um doido como aquele, um doido pior porque não pode andar solto. O teu pai está como de Heitor, batendo nas grades da Tamarineira. Podes ficar assim como ele.

Dormia com este martelar impertinente na cabeça. às vezes o homem gritava a noite toda. Ouvia reclamações: - Aquilo é um absurdo! O pai do Fausto não deixou ninguém dormir. A lua apertou ontem.

Parecia que se referiam a meu pai. Sentia eu próprio a reclamação, como um filho de doido que era. Bom para Heitor e para Fausto. Queria ser como eles, indiferentes à sorte dos pais. Heitor gostava de contar a sua história a todo o mundo.

- Heitor, como foi que teu pai endoideceu?

E lá vinha o homem a querer fazer parar a roda do engenho, moendo, a roda de água, com as mãos. Invejava esta insensibilidade, este não saber das coisas, do meu colega. Compreendi até que ele se sentia orgulhoso da doença do pai. E os meninos diziam: “O pai de Heitor é doido" no tom de quem anunciasse uma particularidade de engrandecer. Era o mesmo que dizerem: "O avô de Doidinho tem nove engenhos", ou "o pai do Vergara é o homem mais rico da Paraíba". E Heitor, com aqueles olhos enormes que tinha

saltitando, bem satisfeito com as referências. Melhor assim, pois pelo menos-assuas noites eram de sono profundo, sem a agitação das minhas noites de meditativo..

Não ficaram, porém, aí as minhas mágoas. José Augusto chegara de casa para me atormentar. Trazia na ponta da língua a história do meu pai e da minha mãe, e contou-a aos outros. Até àquele dia minha família, para o colégio, era o meu avô. Quando os meninos se referiam à história dos seus pais : - meu pai disse isto, meu pai fez aquilo, - eu punha logo o velho Zé Paulino à frente. Toda essa importância iria desaparecer com a chegada de Zé Augusto. Ouvira em casa

o que os seus sabiam da minha gente.

- O pai do Doidinho matou a mãe dele - afirmou no recreio, sem maldade alguma, somente para se mostrar aos outros

Foi um choque rude para mim. Criaram-me em casa escondendo-me a tragédia dos meus começos. Punham-me de longe, sem uma palavra sobre a minha desgraça. Não falavam da morte de minha mãe na minha frente, não se referiam a meu pai a propósito de coisa nenhuma. Lembrava-me dele. Sentia uma pungente saudade dela. A minha memória fugia até o dia em que a vi estendida no chão e o meu pai abraçando-me. Mas isto era comigo só, na intimidade das minhas recordações. Comigo ninguém nunca trocara palavras sobre estas coisas tristes. Nunca tiveram a coragem de mexer na ferida. Zé Augusto, sem querer, metera os dedos por dentro dessas chagas. Deixou-me sangrando.

- O pai do Doidinho matou a mãe dele.

Foi o mesmo que se tivesse descoberto ali, à vista de todos, a maior das vergonhas. E de repente, como a torrente de minhas lágrimas se desencadeasse, não pude conter um choro convulso. Nem no primeiro dia de aula, quando apanhei, nem naquela surra da velha Sinhazinha, o pranto me chegou com tal desespero, que me tapava a garganta.

- Quem se meteu com este menino? - perguntou seu Coelho, todo em compaixão.

- Ninguém. Foi seu Zé Augusto que disse que o pai dele matou a mãe.

- Seu cachorro, isto é coisa que se diga em recreio?

- Eu disse sem querer, seu Coelho.

- Suma-se lá para dentro. O Maciel precisa saber disto.

Não tinha raiva a Zé Augusto. Aquele impulso que me fizera dar pontapés em Pão-Duro não me arrastava a querer-lhe mal. O meu choro era de dor, de vergonha da descoberta humilhante em frente dos colegas. O velho Coelho chamou-me para junto dele.

- Venha cá, menino. Apanhe-me estes frascos que estão pelo chão.

Ele queria ver se me consolava com aquele trabalho que era uma espécie de honra entre nós: lavar os frascos em que metia suas doses. Fui para o tanque lavar as vasilhas de seu Coelho, e no silêncio do banheiro as minhas lágrimas brotavam sem parar. Depois o velho chegou-se para mim:

- Ainda está a chorar, menino?

Não podia falar.

- Deixe-se de tontices. Você não tem culpa de nada.

Não era porque tivesse culpa que eu chorava. E abri-me com o velho: agora os colegas tomariam conta de mim; falariam de meu pai em toda a parte.

- Não se importe. O primeiro que lhe tocar nisso, chame-me; puxo-lhe as orelhas. Essas coisas não são para brincadeiras. Você doravante, fica encarregado de me lavar estes frascos.

Quando voltei para o recreio, os meninos olharam-me com pena. Eles, que fugiam dos castigados, dos oprimidos do professor Maciel, comoviam-se daquela maneira com o triste destino da minha gente. Deviam-me considerar muito infeliz, para aquela comiseração tão profunda. Mangavam do pai de Pão-Duro, da mãe de Licurgo, que era rapariga, contavam a prisão do velho Calheiros; mas o pai de Carlos de Melo fora desgraçado de mais, e tinham pena do filho, do Doidinho, que não fazia, como Heitor, um romance da doença do pai. É que há dores que são mais fortes que a própria impiedade dos meninos.

Mas isto não me pensava as feridas abertas. Eu estava entre eles como um que não podia levantar a voz, que não tinha em casa um pai para competir com os deles. O velho Zé Paulino seria um substituto poderoso, cheio de dignidade, porém, não me salvaria do opróbrio de um pai assassino. Tanto que me enchera de orgulho ao mostrar aos camaradas o meu avô, de correntão de ouro e de chapéu do Chile, levando-me para a feira! Ou então a dizer-lhe: - O meu avô tem tantas cabeças de boi, o Santa Rosa faz tantos pães de açúcar! - se lhes falasse, agora, dessas grandezas, em confronto com a grandeza dos outros, poderiam replicar-me vitoriosamente: - Mas o teu pai matou a tua mãe; é um assassino. Porém, meu pai não era um criminoso: matou sem pecado, porque perdera o juízo. E os loucos não iam para o Céu? Nunca o compreenderiam assim os meus colegas. Toda aquela piedade seria somente para o primeiro dia, o da revelação. Mais tarde lançar-me-iam em cara a vergonha afrontosa.

 

O director começava a mudar. Aos poucos ia perdendo a cara mais humana dos dias da Semana Santa. Com o colégio cheio, parecia outro, o mesmo seu Maciel das aulas de outrora. Ainda no dia da chegada de Vergara fizera-lhe umas perguntas engraçadas. A cara, porém, ia-se-lhe fechando aos poucos.

Interessante, este homem, a quem a função exigia uma personalidade diferente da sua própria. Recuperava dessa maneira a sua odiosa fisionomia de tirano, de cruel extirpador de vontades, de amansador impiedoso de impulsos os mais naturais. Não era possível que não sofresse com o seu desejo de se mostrar outro. Mas não, ele gostava mesmo de castigar, porque os menores pretextos serviam-lhe para as corrigendas de palmatoadas. Talvez que fossem as exigências do seu método, as regras de ensinar da sua escola.

Na Paraíba era proibido dar de palmatória, e isso mesmo porque o governo não sabia. Não havia governo para o professor Maciel. Quando lhe punham os meninos no colégio, prevenia os pais:

- Castigo os alunos.

Só aceitava assim. De contrário, fosse para outro.

Os meninos chegavam de casa falando já nas férias de S. João. Faltavam sessenta dias, oito terças, oito domingos. A saudade de casa forçava-lhes os cálculos. Dos internos só faltava o Coruja, Tinham entrado dois novatos: Clóvis, um menino de dez anos, e Elias, de dezoito, meu primo, filho do coronel Manuel Gomes, do Riachão. Clóvis era da Paraíba, de um pai rico, e viera cheio de luxo, de recomendações a D. Emília. Vimo-lo quando chegou, todo de roupa fina de casimira, com uma mala de couro bonita e uma cama de ferro com cortinado. O pai, todo cheio de mesuras, falava com o director.

- É uma criança muito débil, professor. Recomendo ao senhor toda a cautela. É muito dócil.

E o menino piscando os olhos perto dele. O pai beijou-o, à saída. E houve choro, como sempre. D. Emília, porém, ficou com o pequeno, amimando-o. Com dez anos, e já na grade connosco! Só quem não tinha mãe. E não tinha mesmo, não. O pai casara-se havia dias em segundas núpcias. E nada para um casal assim em lua-de-mel como os meninos no internato. Ele beijou o menino não sei quantas vezes. Nunca qualquer pai ali beijava os filhos. Eram uma coisa nova para mim estas carícias tão ternas. Os matutos que deixavam os seus meninos no colégio podiam ir de coração partindo de saudade, mas mantinham-se à distância, davam a mão para o beijo filial, e saíam fazendo recomendações de severidade para com eles. O pai de Clóvis inaugurava ali as beijocas em público.

Lembrei-me do meu pai, quando o vi aos beijos ao filho. O meu gostava de acariciar com aquela violência. Uma porção de vezes me abraçava, como se fosse a última ocasião que tivesse para isso.

Clóvis seria o menor dos internos. Com dez anos eu corria o Santa Rosa, mais livre do que um bicho. A palmatória do seu Maciel iria amoldá-lo a seu jeito e semelhança. Vinha bem cedo para a disciplina malvada do colégio.

O menino estava ainda na muda. Os dentes da frente, maiores do que os outros, davam-lhe uma aparência de porquinho da índia. E chorava fino, num fio de voz, dando evasão às suas saudades de casa num pranto miúdo, bem diferente daquele meu choro convulso. Tive muita pena dele neste primeiro dia de internato. Lembro-me como se fosse hoje da recepção alegre que lhe fizemos, do bom tratamento que lhe demos todos nós. Trazia brinquedos para o colégio: entre eles um comboio de correr na linha com uma máquina que trabalhava a álcool. Fomos ver as suas coisas à mala.

- Que estão os senhores a fazer aí? - perguntou seu Maciel, aproximando-se do grupo. - Brinquedos, aqui? Dê-mos. O colégio é para estudos. As brincadeiras ficam em casa.

E tomou tudo o que Clóvis trazia: o comboio de ferro e um livro de estampas grandes.

- Nos dias em que não houver aula o senhor peça-me para brincar.

O menino olhou para ele:

- O papá disse que eu podia brincar no colégio.

- O seu pai manda na casa dele.

E saiu firme e calmo, como se não tivesse esmagado a seus pés as ilusões de um que chegava pensando que o colégio fosse outra coisa. Então o menino começou a fazer biquinho para chorar. Heitor deu-lhe uma castanha madura. E eu comecei a inventar histórias para ele. O choro passou. E ficou connosco, bem alegre, até à hora a que fomos jantar.

- Venha para perto de mim, Clóvis.

  1. Emília chamava-o para junto dela.

- Quero ver o que você come. Seu pai disse-me que você é muito biqueiro.

Clóvis sentou-se junto de D. Emília, toda em cuidados, passando a mão pelos cabelos bonitos dele.

- O senhor precisa de cortar esses cabelos de Chiquinho. Vou mandá-lo amanhã ao cabeleireiro.

O director pensava em estraçalhar aqueles dez anos que lhe caíam nas garras. Começava pelos cabelos com franjinha na testa, e terminaria inchando-lhe as mãos de palmatoadas, como a nós outros. Talvez os gaviões não depenassem assim os pobres passarinhos de suas rapinas.

O outro era Elias, isolado para um canto, sem querer conversas com ninguém. Olhava para o chão como um doido. O pai viera deixá-lo no colégio. Um velho barbado, de fala preguiçosa, falando errado:

- O menino é estouvado, seu mestre. Rebelde. Puxe por ele. Tinha vindo com um palito na boca, e cuspia no chão.

Lembrava-me dele quando passava pelo engenho com o pai e os irmãos maiores. Havia um de ombros erguidos, sempre com pieira, devida a uma bronquite crónica. E este Elias e mais outros. Chegavam ao Santa Rosa de botas e faca de ponta no colete, como gente grande.

O velho Mané Gomes sofria críticas medonhas dos outros senhores de engenho. As terras dele ficavam na caatinga. Vivia diferente da maior parte. Numa vida sem fartura, de tacanho, com os filhos criados como os seus animais nos cercados. Nunca pusera nenhum na escola. Os outros levavam muito em conta essa história de mandar os filhos para a escola, pensando somente que era o bê-a-bá que fazia os homens mais alguma coisa do que eles. E gastavam fortunas com os filhos em colégios e em Faculdades. Enchiam-se desse orgulho de fazer doutores. Manuel Gomes não ia com isto. Criava os meninos no bacalhau e farinha, no mesmo nível dos seus inquilinos. Chamavam-no de camumbembe, ao bom velho, humilde, que junto de meu avô parecia um servo, de falar com tanto respeito para um seu igual.

Agora, depois de tanto tempo, ele estava a mandar os seus filhos para o colégio. Chegava ali Elias para amansar. Tinha mãos de trabalhador. E quando foi para a mesa, comer, não sabia usar o talher. D. Emília ensinou-o a pegar-lhe, empurrando-lhe os dedos duros para o jeito de manobrar o garfo e a faca. Aquilo seria um escándalo no colégio. Um bicho daquele tamanho mais atrasado do que o Clóvis, com os dentes imundos, metendo, a faca na boca, que nunca tinha andado de comboio!

 

Reiniciavam-se as aulas com o mesmo ritmo de antes das férias. Nem todos tinham chegado. Havia externos que faltavam. O velho Maciel falava destes com ironia:

- Estão fraquinhos! Já sabem muito!

E invectivava:

- Vão voltar uns ignorantaços.

Queria o viveiro cheio, bem cheio, que nem se pudesse abrir as asas à vontade.

Maria Luísa não voltara, também. O irmão desde o primeiro dia estava connosco. Ela, não. Eu olhava para ele, vendo a irmã na sua cara, nos seus cabelos anelados. Chamava-se Miguel, e ficara-me querendo bem desde o dia em que mandei a carta por ele ao correio. Eu não disse a seu Maciel quem fora o portador. E sem Maria Luísa na aula, desviava-me do meu Coração para olhá-lo. Era a cara da irmã, com os mesmos olhos grandes e a cor morena do seu rosto.

Desde que começaram as aulas não apanhara ainda. Três dias sem um castigo fulminante. As férias trouxeram-me esse progresso. O director distraía as suas fúrias com os novatos. O pobre do Clóvis fazia o seu aprendizado. Coitado! À primeira palmatoada que lhe estoirou nas mãos, mijou-se todo. Caiu no chão esperneando, como menino com má-criação. D. Emília correu para ele, cheia de pena sincera:

- Não faça isso, Maciel. É de mais.

E levou-o lá para dentro, -com a mão por cima da cabeça dele. Aquilo revoltou-me.

Elias dava lição no primeiro livro, às apalpadelas: - A-P-A, apá, E-M-A, ema - arrastando-se como o choro dos carros de bois na estrada.

- O senhor precisa de ler mais depressa. Já tem idade de academia. Faz vergonha este atraso!

Ele voltava para o seu lugar, para olhar o tempo.

- Estude, seu Elias.

E ele olhando para cima, como numa afronta.

- Estude, seu atrevido!

E o mesmo gesto superior.

- Venha cá!

- Não vou! - em voz atrevida de briga.

O director pulou da cadeira para segurá-lo à unha. Não se tratava, porém, de Clóvis. Era Elias do Riachão, com dezoito anos acostumado, ao sol das caatingas, com mão dura de trabalhador. E ouviu-se o estoiro dos dois no chão. Os meninos abandonaram a sala, aterrorizados com a cena. Os tamboretes rodavam, e ressoavam as bofetadas de parte a parte. Chegou Filipe para auxiliar a autoridade desrespeitada. O polícia cumpria o seu destino. Chegou seu Coelho, e, com dois gritos chamou Elias à ordem.

- Deixem-no comigo. Vá para o meu quarto.

Mas o velho Maciel teria que se fazer respeitar. E sentado na sua cadeira, arquejava, deitando os bofes pela boca.

Não sei porquê, fiquei do lado dele. Vira-o momentos antes dando em Clóvis cruelmente. Mas, quando Elias se pegou com ele,rompendo a ordem da casa, foi ao lado do velho que eu fiquei. Tinha-lhe quase sempre raiva de morte. Seria capaz de atentar contra ele se me dessem força bastante. E no entanto fiquei a seu lado naquele momento. Era talvez que o director se identificara connosco, com desvelos de pai. De um pai de coração duro, desses que amam os filhos, porém, dizem amar muito mais o futuro deles; e daí os correctivos de chicote em punho, a cara feia de manhã à noite. Via-o sentado numa ânsia de doente do coração, e tive pena do seu Maciel. Tudo aquilo ele fazia-o para o nosso bem. Abusava, é verdade, da sua autoridade, como um déspota que era. Havia déspotas assim, que amavam os seus súbditos, e súbditos que rezavam por eles.

Elias era um bruto. A sua resistência ao castigo parecia-me uma injustificável insubordinação. Ali todos se submetiam à palmatória. E aquela rebeldia violenta, em vez de me arrastar à admiração, colocou-me aos pés do homem que nos tiranizava. A mãe de Licurgo tinha-me enchido de satisfação. Mas o seu desaforo contra o director era uma voz de fora, não provinha do meio de nós. Elias era um dos nossos que se insurgia. Um que saía do rebanho para atacar o pastor. O pastor queria-nos dentro do apertado círculo da sua vontade. Era malvado connosco. Surgissem, porém, os lobos por perto, que ele estaria pronto para empenhar a vida.

Por isto ou por aquilo, por amor filial ou por covardia, a verdade é que Elias não contou comigo naquele momento. O colégio quase todo ficou do seu lado. O velho Maciel fechara-o no quarto do meio. Nem quis continuar a aula naquele dia. Ficou doente. Elias, lá de dentro, descompunha, batia com os pés na porta. D. Emília falava em chamar a polícia:

- Com um bicho daqueles só cadeia.

No recreio sentia-se o facto como um atentado regicida. A maioria emparelhava com o criminoso. E eu, que era um dos mais seviciados pelo mestre - para que dizer o contrário? - odiava Elias. Não disse a ninguém. Mas no íntimo, julgava-o um selvagem, incapaz de submissão, de satisfazer-se nos limites marcados pela autoridade. Não justificava a minha repulsa assim. Apenas me sentia ao lado do director sinceramente. Pode ser que me julguem mal, mas a verdade merece este depoimento.

No outro dia expulsaram Elias do colégio. Seu Maciel disse na aula, com ar compungido:

- Foi o primeiro aluno que expulsei do meu colégio. Ensino há quarenta anos; sento-me nesta cadeira para corresponder à confiança que depositam em mim. Por aí fora, existem alunos meus que me respeitam, que me prezam. Até ontem, nunca me desrespeitaram.

Nunca perdi assim um aluno. Todos têm tirado lucro do meu ensino.

Melancolias de um domador de feras que visse um tigre real fugindo da sua jaula.

- Seu Pedro Moniz, tive notícias de que o senhor andava a jogar o bilhar. Não quero jogadores aqui. Ou o senhor entra nos eixos, ou eu parto-lhe as mãos à palmatoada.

A voz dele estava mais fraca. Elias envelhecera o director em alguns anos. Mas aquilo era somente a ressaca da luta, o enfado de um corpo velho pelo choque da véspera.

Maria Luísa apareceu naquele dia. Vinha, para mim, muito mais bonita, com um laço de fita azul no meio das tranças em novelos, mais gorda, mais queimada das férias. Sentara-se junto da mesa do director. E eu comecei a andar atrás dos seus olhos. Viu-me longe e sorriu. O triste das inconveniências de Zé Augusto e das revelações de Heitor iluminava-se com aquele sorriso. Que me valiam todos os derrames da negra Paula ao pé daquele longínquo sinal de bem-querer?

A sala toda se modificava. Já não me pareciam arrastadas aquelas horas. O tempo criava asas. E quando abri os olhos, já começavam os externos a apertar a mão do director para a saída. Mas Luísa ia-se embora também. Passava por mim com um olhar terno, cheio de uma luz amortecida. Olhar que seria a minha janela aberta de prisioneiro, por onde o mundo me mostrava as alegrias e as purezas que ainda se encontram pelos seus reinos.

Maria Luísa: quantas vezes eu não me esforçava nas aulas, enchendo a cabeça de regras e excepções, para não sofrer na sua presença a humilhação das palmatoadas! Aquele amor de anjo bom ensinava-me o que nem a palmatória conseguia.

Ela uma vez ficou de pé. E enterrava a cabeça no livro, para se encobrir dos meus olhos. Chorava, de castigo. Era por isso que os homens se matavam pelas suas amadas, que faziam guerras, que iam morrer longe por elas. Mataria o velho Maciel, se pudesse naquela ocasião. Entornei o meu tinteiro na mesa, onde fazia os meus exercícios.

- Seu porco. Venha cá.

Apanhei para que Maria Luísa visse que eu também sofria com ela. Foi o primeiro sinal de grandeza que dei no mundo, este de me querer confundir com as dores de um outro. Sentia Coruja muito grande por isto. Chegara a vez de me elevar um pouco para mim mesmo. Sentado no meu lugar, com as mãos a arder, media o meu tamanho. Aquele gesto ficaria obscuro. E ainda mais nobre, mais puro assim, sem dar nas vistas nem cair no comentário de todo o mundo. Parecia que tinha dado a Maria Luísa a minha vida, pelo orgulho com que estava. Há uma alegria bem de Narciso nestes sacrifícios, pois nunca me senti tão alegre, tão cheio de satisfação pelo que fizera.

Maria Luísa saiu mais tarde que nos outros dias. As lições não estavam muito certas. O director deixava para saírem por último os que não traziam na ponta da língua as perguntas de História do Brasil, as regras de Gramática, os problemas de Aritmética. Gostei que ela demorasse por mais tempo. Quisera que ficasse até à noitinha. O grande que apanhara para se confundir com a namorada, caía assim, dois passos mais adiante, nesse desleixo de egoísta. Satisfazia-se com a namorada presa, somente porque ficava mais alguns minutos a olhá-la de longe.

Depois seu Maciel chegou com a fala mais branda:

- Maria Luísa, pode ir.

Arrumando os livros na bolsa, ela ainda chorava. Nem para nim olhou, nem me viu doido por ela, ansioso para que soubesse que eu sofrera, e me humilhara, para não a ver sozinha no castigo. O meu amor era puro de outras coisas. Gostava, porém, de se mostrar, não sabia encolher-se, nem ver-se pequeno diante da sua eleita. Andava com vontade de criar asas para voar. Não media as consequências da sua vaidade. Seu Maciel via, via como o diabo. Filipe via. Viam todos os meninos. E eu, pobre ingénuo, sem ver que eles me viam. Seu Maciel mudou a minha cadeira. Do sítio em que estava agora, não distinguia Maria Luísa. O velho desconfiava, conhecia de longe os passos dos seus D. Juans.

 

Depois apareceu-me um concorrente. Era um externo o meu adversário. Na minha vida não havia sofrido ainda as deslealdades de uma concorrência. Pedro Moniz punha-se à minha frente, neste jogo perigoso. Maria Luísa talvez não se importasse com ele. Era minha somente. Mas qual! Punha-me a vigiá-la nos seus olhares, a observar para que lado virava o rosto. Mudando-me de lugar, o director afligia-me com a incerteza. Já não podia espioná-la. Tinha o recurso das perguntas de palavras de que fingia não saber o significado:

- Professor, o que quer dizer florentino?

O ciúme tomou conta de mim, começou a chupar o meu sangue como os lobisomens. Aquela alegria boa, aqueles estremecimentos de um coração feliz já não tinha notícias deles. O meu amor agora era uma mistura de raiva e de satisfações. Bastava ver Maria Luísa virar-se para os lados de Pedro Moniz, para me agitar todo, morder-me por dentro. Ficava nervoso, erguia-me, sem ordem, no meu lugar.

- Sente-se, seu Carlos de Melo. Que diabo tem o senhor hoje?

E tinha mesmo o diabo comigo, um tormento que era mais desesperado do que os castigos. A menina a quem eu tanto queria, a olhar para outro.

Uma vez surpreendi Maria Luísa rindo-se para Pedro Moniz. Aquele mesmo sorriso de barroquinhas na face, dividia-o ela com o externo. Chegou-me até vontade de chorar. Virava-lhe as costas quando passava por mim, a ver se com este gesto a repreendia pela sua leviandade.

Ela ia para casa no fim da aula. Pedro Moniz saía depois. Sem dúvida se juntariam lá fora para conversar. Aí sim, que me aperreava. Eu, que vivia há meses gostando dela, nem lhe dera uma palavra sequer. Conhecia-lhe a voz, quando dava lições. E Pedro Moniz conversava com ela. Iam pegadinhos até casa; ele deixaria Maria Luísa à porta e ficaria de longe a fazer sinais. À tarde voltava a passar pela rua. Mandava cartas e recebia respostas. E eu trancado, amando de longe, como nas histórias que me contavam, de caboclos. Amor de caboclo era assim, amor de besta, de mole, de sujeito sem sorte.

O colégio, para mim, tornava-se mais ainda uma prisão, uma cadeia, com Pedro Moniz e Maria Luísa lá fora. Lembrava-me de um preso do Pilar, morador do engenho, que matara o José Gonçalo. A mulher amigara-se com outro, e ele na grade a mandar recadinhos para ela. O velho Zé Paulino mandou chamar a mulher para saber. Os filhos, de camisola rasgada de cima a baixo, pedaços pobres de algodãozinho.

- Estava a morrer de fome, seu coronel. Os meninos com a goela no mundo, pedindo de comer.

Mas não era por isto, era mais por fogo. Porque ela dera os filhos aos outros: um ficou no engenho, o mais velho estava em Maravalha, o menor mandaram-no para o oiteiro. E o pobre na cadeia a sofrer. Não sei porque a minha memória ligava estes factos ao meu amor por Maria Luísa. É que eu estava preso como o negro, não podia fazer o que Pedro Moniz estava a fazer para agradar à namorada. Ficava na grade com a angústia do morador do Santa Rosa. Ele olhava pelos buracos da prisão, o povo debaixo do tamarindo, na feira de sábado. De lá veria os conhecidos. Era ali onde ia comprar feijão maduro e o pedaço de carne verde que levava para a mulher e os filhos. Veria mesmo a mulher com os outros a passear na feira.

Fui com o meu avô ao júri, numa sala por cima da prisão. O velho Zé Paulino chamou pelo negro, e ele veio, cinzento da reclusão de muitos meses:

- O seu júri será na outra sessão.

- E os meus meninos, coronel?

- Estão em melhor lugar do que com a negra da sua mulher.

Porque então me recordava de tais coisas, pensando em Maria Luísa? Ela não me tinha abandonado assim. E ficava logo a pensar que só a mim ela queria bem. Era feliz outra vez.

No outro dia mudava tudo. Outro olhar, outro sorriso, e a mágoa e a desconfiança arrasando-me. Tornava-me sem coragem para estudar, impaciente, errava as lições - e a palmatória não respeitava os maus humores de um namorado. Criei um ódio violento a Pedro Moniz. Gozava quando o director o chamava para a palmatória:

- Seu cínico, seu jesuíta!

Estas palavras, quando as ouvia atiradas à cara do colega, faziam-me bem.

Havia no colégio uma legislação curiosa para o uso da latrina. O aluno que encontrasse o aparelho sujo era obrigado a retornar para dar conta ao director. Aquele que se servia antes sofria a corrigenda de palmatoadas pela imperícia. Fazia-se ginástica nesses exercícios fisiológicos. E precisava-se mesmo de muita habilidade para se ficar livre da denúncia.

Um dia fui lá, depois de Pedro Moniz, e voltei radiante para dar parte ao director:

- O aparelho está sujo, seu Maciel.

- Quem lá esteve antes do senhor?

- Foi o senhor Pedro Moniz.

Nunca ouvi palmatoadas que soassem melhor aos meus ouvidos. Olhei para Maria Luísa, para ver a impressão que lhe causara a minha denúncia. Nem dera pela coisa. Guerreava às claras o meu adversário. Ele também me retrucaria sem piedade. O amor ensinava-nos a ser ruins.

Uma vez eu lera não sei onde que era o amor e a nutrição que faziam os homens grandes e pequenos. De facto, na Semana Santa, por causa de um prato de feijão, ultrajara miseravelmente a meu Deus. E agora Maria Luísa, com o seu olhar e o seu sorriso para outro, conduzia-me, aos treze anos, àquela infâmia com Pedro Moniz.

Dormi pensando naquilo. E o sono veio-me acordar o remorso com pesadelos medonhos. Ía por um caminho andando, ia andando por um caminho. - Pare aí, menino! - Era seu Maciel. - Pare menino! Está a ver este sobrado grande? Você vai cair de cima dele. - Segurava-me na varanda e a varanda caía. E eu rolava com a alma fria no precipício. Acordei aos gritos. Todos na casa despertaram.

- Que gritos são esses aí?

- É seu Carlos de Melo a sonhar.

Diriam melhor que era o seu Carlos de Melo a sofrer.

No outro dia comentavam:

- É porque ele dorme do lado esquerdo.

Era nada! E os meus sonhos com Maria Luísa já tomavam outra feição. Sonhava com ela dormindo comigo na mesma cama, aos beijos, e acordava triste vendo-me sozinho. Seria que estava a mudar o meu amor? Às vezes na aula enchia-me de raiva, queria-lhe mal. Via-a com olhos que não eram para mim, com desejos maus. Tomara que ela morra - diziam por dentro os meus ódios de ciumento. É verdade: pensava perversamente na morte da amada, nas ocasiões de desespero. Era melhor que não voltasse mais para o colégio.

Podia arranjar outra coisa para pensar. Mas só pensava nela. Àquilo deveriam chamar ideia fixa. Estava a brincar no recreio longe de Maria Luísa, sem sombra dela nos meus pensamentos. De repente caía em mim e fugia para o segredo do meu coração, roído de despeito e de vingança. Àquela hora, Pedro Moniz estaria a conversar com ela.

Refugiava-me nas quatro paredes da minha melancolia, com cismas de um celerado em ponto pequeno. Pensava em escrever um bilhete, e deixá-lo em cima da mesa do director, dizendo assim: "Pedro Moniz está a namorar com Maria Luísa. " Mas não. Pensava noutras coisas piores. Em deixar uma carta na casa dela para o seu pai, contando tudo. Passavam, porém, esses furores de intrigante. Bastava Maria Luísa passar por perto de mim no outro dia e dirigir-me os olhos grandes e o sorriso cândido, e tudo ficava outra vez no melhor dos mundos.

No recreio os meninos troçavam de mim:

- Cortaram o Doidinho! A namorada dele está com outro.

Não dera pontapés porque fora Heitor. Tinha um pai doido como eu, e as minhas mágoas por isto levaram-me a encontrar nele uma espécie de compatriota em terra estranha. O curioso, porém, é que esses pensamentos aperreados de amor passavam horas sem me tocar. Tinham um carácter de febre intermitente, chegavam-me em dias seguidos, de quarenta graus. Chupavam-me o sangue, matavam-me a alegria. Iam-se para longe. Havia horas em que Maria Luísa fugia não sei para onde. Parece, porém, que o diabo deixava que se fosse embora para voltar mais absorvente ainda. Queria fugir de pensar nela, de lembrar-me da sua cara, e era como se me dissesem: Olha Maria Luísa ali, olha o Pedro Moniz com ela. Doidinho, ela está a olhar para o outro.

O amor era assim, comigo.

A negra Paula regalava-se com os grandes e mesmo os meus amores envenenados não me davam tempo para pensamentos que não fossem escravos do meu ciúme. E quando não pensava em Maria Luísa, não pensava em nada. Vivia dias inteiros de memória afectiva apagada, preso às revelações que os livros me iam dando. E os livros compensavam-me dessas decepções, nas canseiras a que me forçavam. Histórias do Brasil, geografias, gramáticas, as suas perguntas, as suas regras e os seus exemplos tomavam conta da pobre cabeça que Maria Luísa punha às tontas, sem querer.

 

Numa manhã de Maio o comboio de Campina Grande far-me-ia uma surpresa. Estávamos na sala, quando a porta da rua se abriu; Coruja entrava com o pai. O meu coração, sacudido pelas infidelidades de Maria Luísa, rejubilou com o acontecimento. O meu amigo voltava ao colégio. A sua vocação não se partiria. Chegou, a falar com o seu Maciel, com uma alegria que nunca lhe tinha visto na cara. Como entrava diferente dos outros, que vinham murchos como pássaros molhados de chuva! Os outros todos chegavam de casa pensando nos dias que faltavam para as férias mais próximas. A prisão, para Coruja, parecia que era o balcão da loja do pai. No colégio é que ele estava em casa. E depois não era só por isto: ele queria estudar, ir para diante, fazer o seu curso, embora para isso a pobreza do pai tivesse que fazer milagres. Agora não seria nada. Quando fosse para o Diocesano, sim, que teria que se apertar.

Como o velho Zé Paulino gostaria de um menino assim, com amor aos estudos, com essa ânsia de aprender, de ser gente! Gastara uma fortuna com um sobrinho, que morreu no segundo ano de Academia. Formara o filho com trabalhos de quem estivesse a tirar grandes safras de engenho, com os mesmos cuidados, as mesmas despesas, as mesmas contrariedades.

- Faz gosto ver os meninos do Castro. O pai anda por aí a comprar bois para matar. Já formou dois filhos.

Sentia-se a mágoa dele diante da sorte do camumbembe feliz. Era o mesmo que se dissesse: - Eu gasto um dinheirão com os meus e não dão para nada. - Como ficaria satisfeito se tivesse um Coruja por neto! Um que enterrasse a cabeça nos livros e fizesse figura como os filhos do Castro. Assim daria gosto gastar o seu dinheiro. Formar-se para voltar para a enxada, como o Dr. Quincas, Engenho Novo, e o Dr. João do Itaipu, seus primos legítimos, não valia a pena. Percebia-se-lhe a contrariedade em não ver o filho Juca feito juiz de direito ou procurador para defender no júri. O velho Zé Paulino, tão sem vaidade para as outras coisas, amava o luxo da bacharelice.

Lourenço sim, que fez carreira.

Era o seu irmão mais moço, que chegara a desembargador. Fora formado por ele, mas dava-lhe este orgulho - desembargador! - embora o Dr. Lourenço gostasse mais de ter a sua casa de purgar cheia que a sua estante abarrotada de livros. Ficara também senhor de engenho como o irmão e engrandecera mais a família no seu Pau Amarelo que nas atribuições do Tribunal Superior. O velho Zé Paulino tinha um irmão que lhe enchera as medidas.

O filho falhara: vivia a cavalo pelos partidos de cana, com ele. Queria sem dúvida um neto, agora, para a sua fome de bacharel, fazendo figura, engrandecendo a família. Porque não seria eu esse seu neto procurado, esse enche-gosto dos seus sonhos? Coruja, quase da minha idade, estava na classe de Francês. Sabia Gramática, escrevia descrições sem um erro. Quando era que eu poderia assim corresponder ao ideal do meu avô? Só se me desse apenas para estudar. Fazia planos: de agora por diante estudaria como Stardi. Ele também era burro, mas esforçava-se em cima dos livros e vencia os mais inteligentes na classe. Tinha a convicção de que era burro. Intrigava-me com os problemas das fracções ordinárias. Decorava, porém, tudo que o velho quisesse. A Gramática com as suas regras, as suas definições: "sintaxe é o tratado em que se estudam as relações das palavras entre si no discurso". Discurso para mim era aquilo que se fazia na tribuna, um homem no meio do povo falando. Sintaxe para isto, para se aprender a falar bonito. Decorava as excepções, os exemplos: os estudantes de São Paulo fazem raramente exames em Recife, finca-pé; puxavante, piano de cauda, busca-pé, mata-moscas, bem-te-vi, na Quinta-Feira Santa fui ao lava-pés, o exército dos Persas invadiu a Grécia, Júlio César venceu os Bárbaros, ele estuda mas não aprende – e era mesmo: ele estuda mas não aprende. Estudava essas coisas todos os dias, sabia o livro de baixo para cima e não aprendia. Porque seria que Coruja agarrava tudo no ar ? «adiante, adiante, adiante!», e quando chegava a vez dele, a resposta surgia correcta, firme, sem medo.

Agora estava ali outra vez, no colégio. No recreio contou tudo. O pai já não podia gastar dinheiro com ele. Mas a mãe fez tudo, pediu tanto, que o velho só teve que vir trazê-lo.

Podia conversar com o meu amigo à vontade. Depois das férias tinham-nos dado amnistia geral. Começava-se vida nova. Por isto andava com o Coruja a conversar. Não tive coragem de lhe falar das minhas histórias com a negra Paula, mas falei-lhe de Maria Luísa.

- Namorar é asneira - dizia-me ele. - Você precisa de estudar, para ir para o Diocesano. Para o ano estou lá. O papá vai-me pôr externo, em casa de um tio dele, na Paraíba.

E contou-me do mês que passara ao balcão da loja, medindo algodãozinho e vendendo fitas e carretéis de linha... Quando não havia fregueses para despachar, estudava nos seus livros. O padre de lá pediu-lhe para dar umas aulas nocturnas aos meninos pobres. Ensinou umas noites a gente até de barba na cara. Toda a gente dizia: - É pena que José João não estude. O pai sofria com isto. Mais do que ninguém, ele desejava ver o seu filho no colégio. Mas seria um sacrifício. A mulher ajudou-o a fazer este sacrifício. E viera trazer o menino.

Ouvi a história do amigo pobre com um remorso de estar a gastar o dinheiro do velho Zé Paulino. Se lhe pedisse para educar Coruja? O Dr. Lourenço não formara um moleque da sua cozinha? Tanto dinheiro que deitavam fora, e uns poucos de mil réis fazendo falta àquela família pobre do Ingá! O pai de Coruja, a mãe e a irmã deviam passar necessidades para vê-lo nos estudos. Sem dúvida deixariam as missas de domingo, as festas da Padroeira, porque não podiam fazer vestidos. O pai despedira o caixeiro; a mulher ficaria na loja enquanto ele corresse para o almoço. Tudo para que Coruja

estudasse. Ele bem que correspondia a todo esse heroísmo. Seu

Maciel dera-lhe aquelas palmatuadas por minha causa, mas gostava dele. Elogiava-o na classe:

- Olhe, seu Olavo. O senhor é um vara-pau, mas vive a levar quinau do seu José João.

Chamáva-o para mostrá-lo às visitas:

- Deste tamanho, e já está a traduzir o Génio do Cristianismo.

Coruja ficava vermelho com estas exibições. Se fosse Pão-­Duro, com que ar chibante não voltaria para o meio de nós! Este agora andava todo pegado com o Clóvis, enganando o menino com doces e pedaços de queijos num chaleirismo que nos deixava preocupados. Pão-Duro também tinha um coração. Mas não era porque Clóvis fosse pequeno, não tivesse mãe: era porque Clóvis era bonitinho. Aos domingos passava o dia a ver as revistas do menino, len­do-lhe as histórias do Tico-Tico, que o pai lhe mandava pelo cor­reio. A gente queria ler, mas Clóvis não deixava:

- É para o Mendonça.

 

Pão-Duro tinha inimigos cruéis. Para que deixava ele apodrecer no fundo da mala as bananas que lhe mandavam de casa? Os seus amores encontrariam espias impiedosos. Ele dormia com Clóvis no mesmo quarto. A rede de um, junto da cama de cortinado do outro. Ninguém via coisa nenhuma, senão Pão-Duro estava desgraçado. Imaginava-se somente. As suposições, porém, criavam corpo de coisa vista. Contei ao Coruja.

- Não acredito nisso, Carlos. Será possível!

Acreditava eu porque era Pão-Duro. Não falava com ele, e mal nos via perto de Clóvis assanhava-se todo.

O menino contava coisas do caso do pai:

- Quando a mamã morreu tiraram-lhe os dentes de ouro. Vóvó pediu. Fazia mal enterrar gente com dentes de ouro, porque a terra não os comia.

Falava também do casamento do pai:

- Dormia com ele no mesmo quarto. No dia do casamento fui dormir a casa da vovó. O papá beijava a nova mulher quando a mamã ainda estava viva. Eu vi uma vez no banheiro.

Pão-Duro ficava perto, rondando a conversa.

- Clóvis, vem cá.

E o menino ia. Era mesmo o dono de Clóvis. Ia-lhe custar cara esta soberania absoluta.

A chegada de Coruja mudara um tanto a minha vida. Maria Luísa já não brincava comigo a todas as horas. Um amigo arranjava meios para me defender da perseguição absurda da minha mania.

Maio estava quase no fim. E os dias de S. João sorriam-nos de fora das grades, com todas as promessas. Olhava para a folhinha da sala de estudos: 29, 30, 31... O director de manhã mudava os números do calendário fixo que o pai de Vergara lhe dera.

1º de Junho, o desejado mês dos 21 dias em casa... Contavam-se as horas. 240 horas: ainda tantas de aula, tantas para dormir. Até lá eu não apanharia mais. A cada número novo da folhinha, calculava-se. Vencia-se um dia, anoitecia-se pensando no outro.

3 de Junho.

Eu vou terça-feira - dizia um.

Outros, mais felizes, sairiam antes. Havia os desconsolados porque os comboios da Paraíba passavam mais tarde. Os do Recife tinham vantagens de poucas horas sobre os outros, mas voltariam mais cedo. Quem pensava na volta?

Cinco dias antes das férias estoirou o escândalo de Pão-Duro com o Clóvis. Aquilo não podia mais continuar como estava. Seu Maciel era como certos pais irascíveis, que brigam com as filhas por coisas insignificantes e no entanto deixam-nas por lugares escuros a namorar. O namoro de Pão-Duro dava nas vistas. Deitava a cabeça do Clóvis nas pernas para catar piolhos.

- Clóvis está empestado - disfarçava. - Estou a limpar a cabeça do bichinho.

E aquele catar de piolhos levava o recreio todo. Era quem arrumava a mala do menino, engraxava-lhe os sapatos, pregava-lhe os botões na roupa. D. Emília não tinha cuidados com ele.

- Se fossem dois irmãos não seriam tão unidos - dizia ela, pensando que Pão-Duro fosse capaz de interesse de irmão por alguém.

O velho Coelho era um homem da vida. Ele sabia medir até onde ia a amizade e onde começava a malícia:

- Aquilo está a cheirar-me a frescura.

No banho do rio não deixava Clóvis sair de junto dele. Pão-Duro ficava rondando, todo de olhos atentos, dando mergulhos para emergir por baixo do menino. E este tinha umas risadinhas de quem estivesse com cócegas.

Mas o dia de Pão-Duro chegou, ou melhor, a noite de Pão-Duro. Ele pensava, como todos os apaixonados, que o mundo tinha os olhos e os ouvidos fechados: só eles existiam, só eles viam e ouviam; o resto era mudo e cego. Clóvis e ele dormiam no mesmo quarto, e os inimigos de Pão-Duro não dormiam. E deu-se o escândalo. Parece que foi João Câncio quem gritou de madrugada:

- Seu Maciel, Mendonça está na cama do Clóvis!

Melhor seria que não tivesse alarmado. Aqueles cinco dias de vésperas das férias custaram-nos a passar. O internato ficou todo de castigo, em interrogatórios. O velho queria saber de tudo:

- Os senhores são os culpados. Deviam-me ter prevenido desta pouca vergonha.

Ninguém via os dois. Ouvia-se, sim, o choro miúdo de Clóvis lá para a sala. Pão-Duro fechado no quarto onde estivera Elias. O director chamou-me para perguntas. Recebi a chamada com alarme.

- Então, seu Carlos de Melo, o senhor também andava em segredos com Clóvis?

Não, não andava em segredos.

- Falava com ele como falo com os outros.

- Que conversava o senhor com ele?

- Coisas à toa. Ele contava-me histórias de casa.

- E o senhor Mendonça, o que conversava?

- Não sei, não senhor. Nunca ouvi nada.

- Esta é boa! O senhor não ouvia nada, não é?

- Não senhor. Eles viviam aos cochichos.

- Vá-se embora. E mande aqui o senhor Heitor.

Depois chegou Heitor chamando Chico Vergara. E ouvia-se vindo lá de dentro, o som das palmatoadas. Até Filipe andava com medo. O director deitava as culpas para cima dele. Não tomava conta de nada, era um lazeira.

À mesa o velho não olhava para ninguém. Estava acabrunhado. De vez em quando, sem se esperar, largava uma frase:

- Desmoralizaram-me o colégio!

Notava-se a sua mágoa com a fraqueza dos meus colegas. Aquele mesmo ar de tristeza da expulsão de Elias, cara de pai com filha desonrada. Clóvis vinha para a mesa de cabeça baixa. Coitado! Tinha pena dele. Fora um fraco nas mãos grosseiras do outro. Os colegas mangavam:

- Cadê Maricota? Vão casar amarrados.

Mas que culpa podia haver naqueles dez anos da sua vida? Pão-Duro, sim, que era um perverso, um semítico. Diziam que ia ser expulso. Ouvi D. Emília dizer:

- Não precisa de o expulsar. Basta separá-los um do outro. O pequeno não tem culpa. É preciso somente vigiar o grande.

E os dias das férias a aproximarem-se. Dormia sonhando que já vinha de volta do Santa Rosa. O comboio corria para Itabaiana. O boeiro do engenho sumia-se de longe. Mas acordava: estava ainda no colégio.

Seu Maciel chamou o pai de Pão-Duro, e entregou-lhe o filho. O homem fez questão: daria uma surra no menino, mas ficasse com ele.

- Pois bem, leve-o. Basta trazê-lo depois do São João.

Vi com inveja Pão-Duro a arrumar a mala. Não olhava para ninguém. Deitava fora as cascas de queijo e as laranjas murchas, de olhos baixos. Devia sofrer muito. Dois dias fechado, e aquela ameaça do pai - "dou-lhe uma surra de matar" - sem dúvida andaria bulindo com a sua alegria de se ir embora.

 

8 de Junho. Já nem se conversava sobre o escândalo. Até Clóvis se ria para a gente. Para alguns seria a última noite do colégio.

- Amanhã vou dormir a casa - dizia João Câncio. - Vou dormir sossegado.

Coruja recebera carta de casa pedindo-lhe para ficar. O pai escrevera também ao director falando nisso. Para ele era melhor. Parecia um homem o meu amigo. Os filhos de Simplício Coelho iriam sozinhos. Vergara também. Bem bom para estes, que não precisavam de esperar ninguém. Para mim não havia ordem. Tinha que esperar o portador, tio Juca ou qualquer outro.

9 de Junho. Grande expectativa. Se não me viessem buscar?... Uma noite com a dúvida dormindo comigo. E que companheira mais incómoda para uma noite em que se ia dormir pensando na liberdade? Que sofreguidão não seria a dos presos que premeditavam fugas, os que passavam meses furando paredes grossas de cadeia para fugir! Que sonhos não teriam estes homens, sonhos compridos com o mundo, com as alegrias da liberdade! Eu não dormia: A menor preocupação cortava-me o sono. Passava horas inteiras de olhos arregalados. Seu Maciel escrevera para me virem buscar... Poderiam ter-se esquecido. Estavam tão sossegados sem menino por lá, que talvez se esquecessem de propósito de mim. E depois, tinham tanto em que cuidar! Ao mesmo tempo a certeza chegava; não me viriam buscar. Parece que eu ouvia o velho Zé Paulino na sala de jantar, à hora da ceia: - Seu Juca, amanhã o senhor vaia Itabaiana buscar o menino. - E daí a pouco, outra vez a desconfiança. Qual nada! esqueciam-se de verdade. A carta do director chegara, o meu avô lera-a. Pô-la em cima da mesa. E o vento levou-a.

Ninguém lhe falou mais em mim, e a coisa passou. Tia Maria estava no engenho. Logo viriam, na certa, buscar-me. Tia Maria, porém, andava com as suas preocupações, o seu nervoso, com a proximidade do parto. Lembrar-se-ia nada! Sim, lembrar-se-ia! Ela não ficava aperreada com a minha carta?

E isto ia longe. Ouvia o relógio da casa batendo uma hora. E o seu tiquetaque na sala de jantar parecia ali dentro do meu quarto. Aurélio roncava como um porco. Estávamos numa segunda-feira. E rebentava-se o coco lá fora, para as bandas da cadeia. O povo passava a noite com o zabumba a reboar. De muito longe, escutava-se o estribilho saudoso:

 

         Engenho Novo,

         Engenho Novo,

         Engenho Novo,

         Bota a roda pra rodar.

 

Era mais ainda para me magoar aquela história de Engenho Novo do Dr. Quincas. Mas lá não havia roda de água. Então seria outro Engenho Novo. Mas era um engenho como o Santa Rosa. A saudade que o coco me dava fazia crescer a minha sofreguidão. Ouvia passando pela rua as boiadas para a feira, sob o aboio triste dos tangerinos - êh-booi! E o rumor dos cascos do gado na calçada. Ouvia tudo o que a noite fazia. Naquelas horas caladas, todos os rumores falavam mais alto. No quarto de seu Maciel a cama ringia com os sonos mal dormidos. E passava gente, assobiando, pela rua. Mais tarde era o povo que chegava para a feira, gritos de cargueiros, conversas de que não se entendia nada, todo este barulho que o meu medo de ficar esquecido me obrigava a escutar. Depois, paravam à porta:

- Mande o gado para os Altos Currais. Procure-me no hotel.

Gente que, sem dúvida, chegava para os negócios.

Manhã alegre se estivesse contando, como certa, a liberdade.

Não contava, porém. E até à hora do comboio foi esse desassossego aborrecido. Ouvi o apito da máquina com um frio de medo. Podia não vir ninguém. Fui à janela ver o povo que se apeava. Não via pessoa alguma da casa. Já o horário partia para Recife, e ninguém no colégio para me ver. Fiquei à janela muito tempo, descobrindo nos que vinham ao longe o tio Juca. "É aquele", pensava. Não era. Agora era mesmo. Aproximava-se, subia para a calçada do padre. E nada. Coruja havia saído com o pai para a feira. E a expectativa de horas cansava-me. Não havia dúvida. Não se importavam comigo. Gente ruim aquela do Santa Rosa. Todos tinham em casa amizades que não os esqueciam. Menos eu. Sentei-me no fundo da sala de estudos, meditando nessa desventura de esquecido. O velho José Paulino, tio Juca, todos uns parentes sem coração para mim. Chorei ali, no meio dos tamboretes, a infelicidade de não ter uma mãe e um pai que se lembrassem de mim, que dormissem sonhando com a volta do filho para casa. D. Emília chegou-se para mim e perguntou-me:

- Não veio ninguém buscá-lo? Só Aurélio.

Só Aurélio! Emparelhavam-me com o pária, o sem amizade no mundo, o que era o nojo de todos, a vergonha da família! Se tivesse mãe, parece que estava vendo as cartas de dias antes das férias: "Carlinhos, prepara a tua roupa; vou mandar-te buscar no dia dez; estuda para teu pai ficar satisfeito." Atiravam-me para ali porque talvez fosse mais fácil assim suportarem-me. Gastavam dinheiro comigo, mas pouco se importavam que eu ficasse bem longe. O tio Lourenço não formara uma cria de casa? Se arranjassem um lugar para me soltar, seria melhor. Até a madrasta de Clóvis lhe escrevia. E vieram, ela e o marido, buscar o filho ao colégio. Até as madrastas davam mais importância aos enteados. E elas, que os contos pintavam tão cruéis, tão impiedosas para os meninos!

Seu Maciel quando chegou da rua ainda me encontrou sentado, olhando para o chão, triste como um pé de mato murcho.

- Não o vieram buscar? Escrevi a seu avô. Boa bisca deve ser o senhor, para a sua família o esquecer assim.

Não era assim tão ruim como ele pensava. Estavam ali no colégio piores do que eu, e os pais lembravam-se deles e as mães mandavam-lhes presentes. A minha gente, sim, que não prestava. Caía

os meus pés, aos pedaços, o orgulho que o grande velho me dava. Era o primeiro dissabor que o grande velho me dava. Em pequeno, se não era um terno para o seu neto, fazia no entanto sentir o seu amor com gravidade, com essa distância que certos temperamentos guardam para as afeições mais íntimas. Aquilo de abandonar-me como um desgraçado magoava-me até às profundezas.

Que dia miserável foi aquele para mim! Deitado na rede do seu quarto, seu Coelho fazia a sesta.

- Não se importe. Amanhã chega gente para o levar.

Consolo muito fácil aquele! Ninguém viria! Queriam mesmo que eu ficasse pelo colégio, como um enjeitado, um menino de asilo. E a minha mágoa foi crescendo, doendo-me cada vez mais, e quando Coruja chegou não me contive:

- Coruja, vou fugir.

- Para onde?

- Vou para casa a pé.

- Você está doido, Carlos? Amanhã vem gente para o levar.

Calei-me, para ficar mais senhor da resolução. Esperaria outro dia, e se não aparecesse portador do engenho, podiam contar com a minha fuga para o Santa Rosa. Interessante é que nunca uma resolução me chegou mais fácil e mais pronta. E chegou-me naquela troca de palavras com Coruja. Não pensava em fugir antes de falar com o meu amigo. Saíra-me aquilo da boca, num impulso, e ficara mesmo resolvido. Fugiria se não me viessem buscar. Iriam ver como eu repeliria o desprezo que me davam. Um indeciso de tudo, olhando as encruzilhadas sem a coragem de uma iniciativa. E no entanto, uma vontade me dominou inteiramente. Se até ao dia seguinte não chegassem, iria por aí fora. E imaginava-me aparecendo à porta do Santa Rosa, roto, de pés feridos. Que vissem eles o que fizeram de mim. Dormi quieto, com o plano estabelecido na cabeça. Já nem importava, que viessem: ia fugir. Era até melhor.

No outro dia, estava eu na janela olhando para o povo que descia do comboio. Os mesmos tios Jucas de longe, as mesmas decepções. Um era todo ele: ei-lo. Vinha com a bolsa e o guarda-pó na mão, num andar compassado, tão meu conhecido. Encaminhava-se de cabeça baixa, para as bandas do colégio. E passou pela porta. Um amigo do Dr. Bidu. Aquilo era um horror. Que parentes tina eu! Seu Coelho chegou a dizer:

- Se o Maciel tivesse um portador, era caso de o mandar levar. Não se faz isto a ninguém.

Condenava desta forma a minha gente. De tarde fugiria. Combinava a hora. O melhor momento era quando fossem jantar. Fingiria que não queria comer, e enquanto estivessem à mesa meteria pés a caminho. Estava assim no fundo do quintal tramando o meu plano de fugida. Havia três caminhos: a estrada do povo, o camin de ferro, e a beira do rio. Pelos dois primeiros podiam apanhar-me. Era só mandar gente a cavalo, e alcançariam o fugitivo num instante. Pela beira do rio seria mais longe, cheio de areia fofa para enterrar os pés, mas havia isto de bom: ninguém se lembraria de me procurar por lá. Estava certo. À hora marcada escapulia-me.

 

Vi Coruja que corria para mim:

- Carlos, chegou uma pessoa que o procura.

Nem lhe dei tempo para terminar, com a corrida com que me lancei para a sala de visitas. Era o negro José Ludovina.

- Seu Carlinhos, como vai? Vim buscar o senhor. Dr. Juca não pôde. Vinha na terça, mas Maria Menina deu à luz. Graças a Deus está em paz. O coronel ficou fulo porque ninguém o veio buscar.

Fui arrumar o meu embrulho com um travo na alma; o velho Zé Paulino injuriado por mim. Estava furioso porque não me vieram buscar, e eu a fazer as mais injustas recriminações ao meu grande amigo. A alegria, porém, curava-me de todos os remorsos. Com mais uma hora estaria na estação para tomar o comboio. Zé Ludovina, de casimira e colarinho alto, esperava por mim conversando com D. Emília:

- Seu Carlinhos adiantou-se?

Perguntava por mim, pelo companheiro de vadiagem de seus filhos, dos bons moleques do Santa Rosa. Daí a pouco eu iria vê-los, a todos.

- Vamos, seu Carlinhos. Preciso comprar umas encomendas para D. Sinhazinha.

Ao lado do negro do meu avô, sentia-me honrado, cheio de mim. Onde ele chegava era conhecido:

- Oh! Seu Zé Ludovina, como vai? O que nos compra hoje?

Era ele que fazia as compras do engenho, e por isso as lojas tratavam tão bem o freguês opulento. Seu Filemon, todo em mesuraspara o representante do Zé Paulino, com tudo que era "ss" na ponta da língua:

- Breve irei ver aquela boa gente de lá.

E o negro ria-se, naquela alegria orgânica, com todos os dentes de fora:

- Pois não, seu Filemon.

Parecia que eu já estava no Santa Rosa, com aquelas manifestações de respeito ao povo de lá e o riso hospitaleiro de José Ludovina.

O comboio passava à uma hora. Sentei-me num lugar da carruagem, bem seguro de que estava mesmo a caminho de casa. Vi o seu Maciel na plataforma:

- Adeus, seu Carlos. Vá com juízo.

Não tivesse cuidado, que o seu escravo não iria errar o caminho da terra da promissão. E nos quinze minutos da espera do comboio pensava nos planos da minha fuga. Parecia uma coisa absurda aquilo que planeara. Perto da felicidade, achava impossíveis os receios extremos com que me animara a conquistá-la.

E o comboio começou a andar. Passou pela porta da cadeia. presos olhavam das grades. Talvez fosse o grande espectáculo deles, aquele comboio indo e voltando todos os dias. Lá estava o cemitério pequeno, que nem tinha lugar para ninguém. O poço de Maracaípe, onde tomávamos banho com seu Coelho. As últimas casas de Itabaiana, e o rio correndo com o comboio para o Santa Rosa. Vinha depois, todo amarelo, o sobrado da Galhofa, do velho Germiniano. O meu avô dizia sempre:

- Homem danado o Germiniano. Cego, roubou a moça para casar. Formou dois filhos.

A coisa maior para ele era esta de formar os filhos. E o velho Germiniano, naquela Galhofa, quase um sítio do seu engenho, de dois bacharéis ao Pilar. E a minha alegria de liberto fazia cálculos para agradar ao meu avô. Também me formaria.

Mas nem o caminho de ferro, nem os passageiros, nem o mundo por onde corria o comboio existiam de verdade para mim. SóSanta Rosa estava na minha frente. Tudo o mais eram caminhos para ele. Há dez anos fizera com o tio Juca aquela viagem. Os meus olhos de quatro anos debruçavam-se pela portinhola dos vagões para ver os fios do telégrafo subindo e baixando. Agora, porém, os meus olhos já alcançavam mais longe. Havia além recantos muito amigos deles: os campos, as árvores, os moleques e os bichos do meu engenho. Carlinhos não descia para um reino desconhecido... Era para o seu mundo, para o maior brinquedo da sua infância, que o comboio, em correria, o levava daquela vez. Chegava-me para perto do Zé Ludovina, como se estivesse com medo de não chegar até lá. O comboio parou na estação. O caminho do Santa Rosa era o mesmo, coberto de lama, com os mesmos atalhos, com os matos verdes batendo no rosto da gente. O açúde verde de baronesas por cima. E verde, muito verde de felicidade, o menino que chegava do seu orfanato. Cantavam os canários pelas cajazeiras cheirando ao ácido dos frutos maduros. Talvez fossem os mesmos canários que cantavam na minha saída para o colégio. As cabreiras amarelas, e o bom silêncio da estrada, quebrado, de quando em vez, pela enxada do pobre, tinindo em alguma pedra escondida no roçado. Nunca uma meia hora me encheu tanto a vida como naquele dia. Tudo cheirava para mim: até a terra das covas de cana, abertas, naquele instante, para o plantio de Junho. Até a terra cheirava para os meus sentidos de sentenciado em liberdade - o bom cheiro das profundidades, do coito silencioso das sementes derramadas pelas suas entranhas. Os moradores paravam os cavalos para perguntar:

- É seu Carlinhos! Veio dos estudos? Está magrinho, seu Zé!!! Por pouquinho já ninguém o conhecia.

Lá estava a casa de Zefa Cajá, sem portas, com as palhas podres: a dona tinha-se ido embora para outras terras. E o boeiro branco do Santa Rosa surgindo no meio de umas árvores grandes. Como batia o meu coração ao chegar a casa!

 

A casa-grande festejou-me derramando-se em alegria. Já nas estacas, aonde eu fora uma vez assistir à partida de Maria Clara, os moleques gritavam, de longe: "Carlinhos, Carlinhos! " Em cada cabeça de estaca, uma cabeça de negro: Mané Severino, Ricardo, João de Joana, Mané Pirão. Era todo o meu povo a receber-me de braços abertos. Até a velha Sinhazinha me acarinhava. O velho José Paulino, sentado na banca como no primeiro dia da minha chegada ao engenho:

- Então, iam-se esquecendo de você - com aquele seu modo franco de mostrar a sua alegria. - Vá ver a Maria.

Ainda estava na cama a minha tia. Muito pálida, estendida no leito, como se tivesse saído de uma longa doença.

- Mostre a menina ao Carlinhos! - com o seu orgulho de mãe pela sua obra.

Estava bem diferente a minha amiga. Mais tarde é que eu ia sentir mais acerbamente esta mudança da minha grande afeição de criança.

O Santa Rosa todo me esperava para sua festa de regozijo. As negras da cozinha cumprimentavam-me à sua maneira:

- Está branco! Só de quem saiu da cadeia.

Pus-me logo de pé descalço, como quem quisesse sentir de mais perto a boa terra que pisava. Iria dormir no quarto do tio Juca.

- Você agora é estudante.

Mas os moleques rondavam-me para me dar contas das suas novidades. Coitados! Em seis meses tinha-me elevado acima deles não sei quanto. Era, no entanto, para eles, o mesmo Carlinhos, o camarada para tudo que eles quisessem.

Saímos para ver o Santa Rosa, naquela tarde de Junho cheia de tanajuras. Com os pés na lama, correndo por baixo das goiabeiras da horta, recuperava num instante a meninice, a que o velho Maciel tapara a boca no colégio. Abandonei a gente de casa pelo reconhecimento do meu reino abandonado. Fomos à beira do rio, com as águas vermelhas da última cheia. O choro dos sapos nas profundezas era o mesmo de outros tempos. Cantavam, no diapasão de sempre, as mesmas cantigas de enterro. Não era a música para um liberto aquele cantochão dos sapos do Santa Rosa! Meti-me na canoa em que passavam os trabalhadores vindos dos serviços. Vinham de marmitas vazias e calças arregaçadas, com lama até aos joelhos.

- É seu Carlinhos! Está amarelo como um preso. Vai soltar-se. Zefa Cajá foi-se embora.

Os canoeiros metiam o remo na água, furando a corrente lado a lado. Com a enxada entre as pernas e a marmita no braço, conversavam sobre parvoíces olhando a água barrenta. E quando saltavam, empurravam-se uns aos outros, como meninos no recreio.

- Seu Carlinhos desta vez limpa os chifres.

Fomos depois ao cercado. Os pastores estavam lá, calças em tiras, sujos de lama até à cabeça. Como eram diferentes daqueles pastores da História Sagrada, de cajado na mão atrás dos carneiros !! Limpavam as bicheiras do gado, separavam os bezerros pequenos das vacas de leite, botavam ração nos cochos - miseráveis, sem nome, conhecidos, como os bois, por alcunhas.

- Seu Carlinhos chegou hoje? E seu Silvino também veio?

Chegava outro com a lata de creolina para matar as varejeiras de um boi amarrado no mourão. O bicho sacudia as patas para trás. Um menino mais moço do que eu catucando os tapuros da bicheira. Havia disto no Santa Rosa: gente muito mais infeliz que o Focinho de Lebre do Coração, o mais pobre da aula, o que ia com o paletó do pai, sujo de caliça, para a escola. Os livros começavam a ensinar-me a ter pena dos pobres.

Voltei para a casa-grande com a satisfação de haver entrado na posse dos meus domínios. A mesa de jantar do Santa Rosa era dantes uma coisa grande para mim, estirada no meio da sala para que houvesse lugar para todos. Via-a nos dias de festa ainda maior. E, no entanto, agora não me parecia tão grande ali na sala de jantar iluminada com a lâmpada de luz branca de álcool. As coisas do mundo estavam reduzindo as minhas admirações de menino.

O povo da casa-grande mostrava-se de cerimónia para o chegado de novo. Contavam-me as novidades, dando-me considerações esquisitas. Mais tarde, à hora da ceia, o velho Zé Paulino falava na história da carta achando graça.

- Vida boa é a de colégio - dizia o tio Juca troçando. – A comida lá não tem medida. Os meninos não apanham, não ouvem ralhar.

A velha Sinhazinha, na cabeceira da mesa, contava a história do filho que fugira de todos os colégios de Recife:

- Quincas pô-lo, até, na marinha. Saiu ao pai.

A mãe também não seria este anjo que pensava.

Depois voltou-se para mim:

- Nem lavou os pés para vir para a mesa. Está solto de canga e corda! - mas rindo-se, como se fosse num mimo.

Comia as pamonhas do Santa Rosa com a ganância de pobre em mesa de rico. O estômago disciplinado pela negra Páula regalava-se como um lorde com a liberdade. Sentia-me em regozijo de festa no meio da minha gente, numa alegria absoluta de tudo o que era meu. A velha Sinhazinha, debaixo da luz branca, criava outra cara. O terror do velho Maciel ensinara-me que o governo da velha não seria o mais cruel deste mundo. O velho Zé Paulino contou uma história do seu colégio. O pai mandava-o e aos irmãos para aprenderem a ler com um marinheiro no Itaipu. O professor batia com uma corda. Tio Juca apanhava como o diabo. Quem os levava para a escola era a velha mãe dele. Um dia ele meteu na boca um caroço de arrebenta-bois.

- Tire isso da boca, menino. Isso mata.

E o marinheiro a chegar-lhes. Tio Juca, uma noite, foi ao mato, e trouxe um punhado de arrebenta-bois. De manhãzinha deitou-o na panela de feijão do mestre. À hora do jantar foram ver o homem comer. Comia em cima de uma esteira. Eles ficaram de fora para ver a queda do bicho quando engolisse o veneno. O professor tirou o feijão da panela, e meteu no bucho o cozido lambendo os beiços. E nada de cair... Arrebenta-bois não matava ninguém.

Outra era a história do velho professor, um negro. Uma noite ele estava a dar aula, e a candeia de azeite apagou-se. Um menino gritou:

- Estamos da cor do nosso mestre!

Apanhou tudo.

A mesa toda ria com a história. E tio Juca, brincando comigo:

- O velho Maciel não dá cordoadas em ninguém.

Fui dormir a minha primeira noite do Santa Rosa sem saber onde estava, de tão contente.

E no quarto do tio Juca, feito homem. Os lençóis cheiravam a pano lavado, o bom cheiro das coisas limpas. E enquanto o aguaceiro se derramava nos telhados, aconchegava-me aos cobertores sem nojo. Como foi profundo aquele sono de liberto!

De manhã o tio Juca não me deixou escutar os pássaros do gameleiro. Levou-me com ele para o leite saboroso das cinco horas. O mesmo ramerrão do curral. Mas tudo aquilo aparecia-me com ares de ressurreição. O gado urrando como sempre, os moleques metidos na lama, Cristóvão tirando leite que cantava no fundo da vasilha. Todo este quotidiano que há seis meses não via, deslumbrou-me outra vez. Os cegos que recuperam a vista devem ter aquela gula de olhos para as coisas. Fui ao banho com o tio Juca, que me interrogava sobre a vida do colégio.

- Disse ao papá para o tirar de lá. Hoje já não se castigam meninos com palmatoadas; está condenado pelos livros. Mas o velho quer é que você aprenda. Palmatoada para ele não quer dizer nada.

Contei-lhe a história do Elias. Riu-se muito:

- Mané Gomes quer botar passo em cavalo velho.

Voltámos do banho para o café com a mesa cheia. A menina da tia Maria chorava lá dentro. E o milho cozido no travessão já fumegáva. Requeijão, milho cozido, cuscus, pamonhas. Como tudo isto era bem melhor que a bolacha mirrada do colégio!

A tia Maria perguntou-me umas coisas, numa fala cansada. E pálida que estava a minha amiga, no seu quarto cheirando a mulher parida! Não havia dúvida que Maria Menina avançava léguas nos anos.

- Doninha disse que a menina é a sua cara.

Olhava para a menina, e não via nada parecido com ninguém.

Uma carinha sem fisionomia, espremendo-se em caretas.

- É muito bonitinha, é uma graça - diziam as pessoas que entravam no quarto.

Mas a tia Maria perguntava-me coisas por perguntar, sem interesse por mim. Sem dúvida que seria agora toda para a sua filha. Tinha sido somente a minha mãe postiça. Abandonara-me pelo marido. Que seria então com a filha saída das suas entranhas. Aquela ternura pelo Carlinhos, aqueles cuidados, aqueles mimos, teriam sido mais exercícios que ela fizesse para a verdadeira maternidade.

Saí do quarto para os moleques, que não mudavam nunca: a amizade ali era de sempre.

 

O grande sonho dos meus dias do Santa Rosa, depois dos carneiros e dos pássaros, era meter-me com os moleques na pastagem, passar o dia inteiro com eles, tomando conta dos bois e das vacas do meu avô. Achava bonito aqueles meninos do meu tamanho com responsabilidades sérias às costas:

- Cadê o boi tal, seu Andorinha?

E Andorinha dando notícias do boi:

- Ficou atrás. Fugiu do gado.

Levavam a sério a resposta de meninos do meu tamanho. Perguntavam-lhes as coisas e acreditavam nas suas informações, davam-lhes serviços para fazer. E Andorinha, rasgado, com as roupas velhas da gente, a mochila com o seu taco de carne do Ceará e o punhado de farinha para o dia todo de trabalho.

À tardinha voltavam. Em dias de chuva vinham mais molhados e sujos do que os bois, com os dedos das mãos engelhados de frio para os mesmos serviços e as mesmas perguntas.

De volta do colégio, ninguém se importava muito com as minhas travessuras. Tinha direito a muita coisa aquele que cumpre seis meses de prisão. Fui com o gado para a pastagem, levando também a minha ração para o almoço. Esperei o pessoal no caminho da ponte. Quando voltasse poderiam ralhar comigo, mas contaria onde estivera e talvez achassem até a graça. Daí a pouco, lá vinha a boiada, com o moleque à frente, de cacete na mão. Meti-me com eles, encantado com a aventura. Ficava atrás com Andorinha e Macacheira, gritando para os bois. Lembrava-me dos tangerinos da porta do colégio e das boiadas que iam para a Paraíba acabar a matança. Nós escondíamo-nos nas moitas de cabreira para espanto dos bois que vinham devagarinho. Os tangerinos já passavam no San Rosa prevenidos, de ouvidos atentos aos rumores.

Não era tão fácil como eu pensava conduzir uma boiada. Tinha isto a sua ciência, as suas manobras especiais. Havia um tangerino negro que passava no Santa Rosa tocando uma gaita; à frente da boiada. Era um gemido fininho que o negro tirava do seu instrumento saudoso. Corríamos para ouvir a música de cego a pedir esmola, mas que arrastava atrás dela todo aquele gado em tropel. Enquanto eu saía com os moleques, a minha memória movia estas coisas da Infância. Não ouvira mais a gaita do negro, à frente das boiadas. Morrera, sem dúvida.

- Atalha a vaca Malhada! - gritavam para um que se desgarrava atrás de uma novilha que queria voltar.

- Êh-booi! Êh-booi-lá - aboiava na frente o baliza, de cacete na mão.

O gado ia passar o dia no verde das caatingas. Não havia comboio por lá, e o pasto estava de primeira.

- Vá para outra ponta, seu Carlinhos!

Sentia-me orgulhoso com a tarefa, primeiro serviço, no mundo, que me davam. Os moleques também me ensinavam a trabalhar.

Subimos para o alto. Apertava-se o gado para não estragar as plantações dos moradores.

Olha o algodão novo! - gritavam eles para nós. - Não deixe o gado destruir a lavoura.

Tomava-se pelas extremas dos plantios defendendo-se o património dos pobres dos cascos da boiada. Ficava cada um no seu canto vendo o gado comer. De vez em quando escutava-se um grito: um boi rompia o cerco e voltava logo para o seu lugar com um moleque atrás dele.

- Cuidado com o Javanês!

Era o fujão da manada. Mal se viravam os olhos, estava o inquieto querendo dar de pernas para longe.

Sentados debaixo de qualquer pé-de-mato sombrio, isolavam-se os vigias nos seus lugares. Lá para as onze horas comia-se o banquete. Uns faziam o seu fogo para assar no espeto, a carne do Ceará, sem ao menos uma lavagem. Via os moleques satisfeitos com o que tinham para comer. E eu que me queixava das rações do colégio. Veio um aguaceiro que me ensopou a roupa no corpo. E veio o sol para me enxugar a roupa no corpo. Andorinha assobiava no seu posto, de papo para cima. Macacheira trepava num pé de ingá, atrás do seu lanche das três horas. Pouco depois, outra pancada de água. Senti um frio da cabeça aos pés. Fiquei a tremer.

- Seu Carlinhos não aguenta. Leva-o para casa de Massu.

Fizeram fogo na cozinha para enxugar a minha roupa ensopada. Vesti a roupa do dono da casa. Era o melhor fato do seu guarda-roupa. E fiquei à beira do fogo esperando a chícara de café que me deram.

- Seu Carlinhos fez disparate - dizia a mulher. - O senhor não aguenta a chuva. A gente da casa-grande vai ficar furiosa.

Era uma casa de telha com chão de barro duro. Tinha um quartto, uma sala, uma cozinha, para uma família numerosa.

Os meninos não me falavam. Falaram com Andorinha quando chegámos. E ali, sem ninguém com quem falar, falei muito comigo mesmo: era esta a vida que eu invejava, a pobre vida dos pastores. Passavam um dia assim, e quando chegavam ao engenho iam dormir nas tulhas de caroço de algodão, na companhia inquietante das pulgas. Amanheciam de corpo cheio de altos, mas nas noites de chuva era ali o melhor quente que encontravam. Andorinha, Ma cheira, Periquito - chamavam-se assim. Os seus nomes, eles mesmos até os esqueciam. Uns eram-lhe dados de presente no engenho pelos pais. Abandonavam-nos para os desvelos da mamã bagaceira. Em pequenos achavam graça ao que os molequinhos diziam. Amimavam-nos como aos cachorrinhos pequenos. Iam crescendo iam-nos afastando da sala de visitas. E quanto mais cresciam mais baixavam na casa-grande. Começavam a lavar cavalos, a levar recados. Os mais inteligentes ficavam, como o Zé Ludovina, no serviço

doméstico do suserano. Os outros perdiam o nome, bebiam cachaça, caíam no eito. E cair no eito, entre eles, era o mesmo que, entre as mulheres, se chama cair na vida.

E ali metido na roupa do pobre, melancolicamente verificava que era um rico.

A chuva continuava a cair em torrentes. E eles lá fora pouco se incomodando com os elementos. Isso da chuva fazer mal era somente para os ricos, os Carlinhos, os netos do coronel Zé Paulino.

A dona da casa cozinhava batata doce para o jantar. A panela de feijão tremia na trempe de pedra, com a isca de ceará por dentro para dar gosto. Vi-os comendo às duas horas, na janta, como eles diziam. Os molequinhos com os pratos de barro na mão, enchendo as barrigas prenhes de vermes. Comi também aqueles caroços duros de feijão com farinha, aqueles pedaços de batata doce com café.

À tardinha os moleques passaram para me levar. Saí com eles fazendo o regresso da aventura muito sonhada, com a certeza de que os moleques do Santa Rosa eram bem daqueles pobres da História Sagrada. O gado, de cabeça baixa, voltava para casa sem ninguém na frente. De barriga cheia, desciam para a várzea, para o conforto do curral, sem dar trabalho aos meninos.

Em casa foi um barulho danado quando cheguei. Todos ralharam comigo. O velho Zé Paulino:

- É para isto que anda a estudar? Se fosse para ser vaqueiro, não precisava de trazer livros nas mãos. Melhor que tivesse ficado no colégio.

As negras censuravam-me:

- Menino endiabrado! Se sucedesse alguma coisa, deitavam as culpas aos moleques.

A tia Maria mandou-me chamar. E da cama disse-me:

- Você quer cair doente? Andar metido com esses moleques por aí!

Ouvi também o meu avô a ralhar com os pastores:

- Doutra vez que levarem o menino daqui do engenho, castigo-os.

- Ninguém chamou. Ele foi porque quis.

Faltava o Javanês.

- É isto. Vão para o mato vadiar. Não cuidam dos serviços.

Mas o boi Javanês tinha instintos de arrombador de cofres para romper as cercas, desviar-se das vigilâncias.

Puseram na mesa o meu jantar. Pensei, engolindo a minha farta comida, na miséria da casa do Riachão, na farinha seca do Andorinha. Na cozinha a negra Generosa distribuia a ração aos pastores, descompondo-os. O mesmo para variar: carne do Ceará com farinha seca. E eles ficavam do lado de fora conversando:

- Vamos brincar ao jará.

E iam para o pátio da casa-grande correr, como meninos que tivessem passado o dia em casa na vadiagem.

Eu não tinha força para nada. Os pés doíam-me. As pernas pareciam-me,trapos. Caí na cama como uma pedra.

De manhã acordei com os pássaros do gameleiro a cantarem. Não quis levantar-me para o leite. E dentro do peito a bronquite piava. Rebentara outra vez com as chuvas da véspera. Estava provado que eu não podia ser como os moleques do Santa Rosa.

 

Três dias de recolhimento, com os meus passos tolhidos pela asma. Ficava no quarto do tio Juca a pensar disparates, a ler os livros dele, de cima da cómoda. Havia um que lia todas as noites, uma meia hora antes de adormecer, com um castiçal perto da rede: era um romance imoral, com umas figuras como aquelas dos cartões que ele tinha. E quando ele saía eu ficava a ler o livro com a excitação de quem estivesse com uma rapariga no quarto. O Santa Rosa lá por fora devia estar nos seus dias maravilhosos, pois levantara-se o sol para fazer mais verdes os campos e abrir as flores de todo o jardim que era o engenho. Mas nos meus dias de doença o livro do tio Juca fechava-me os ouvidos e os olhos a tudo que não fossem aqueles amores dos seus heróis. Fazia o meu ensaio na literatura frascária, e nunca um livro se ligou tão intimamente com as minhas tendências. Lendo-o, era como se estivesse animando os meus sentidos doidos para se soltarem. O homem da história só vivia de beijos e de coitos; as mulheres expunham-se nas figuras em trajos naturais.

Podia o Santa Rosa dar festas com todos os encantos da sua natureza, enfeitar-se nas estacas dos cercados com o florido das suas trepadeiras. Podia o mussambê cheirar como um frasco de essência derramado pelo caminho. Eu não sabia de nada, com a minha asma a piar, e naquele mundo diferente daquele em que eu vivia, o mundo alegre do romance do tio Juca.

A literatura começava a seduzir-me com ares assim de deboche. Era o primeiro livro que lia do começo ao fim por gosto, sem a obrigação da lição. E a leitura empolgou-me de tal forma, que me confundia com os desejos libertinos da história. O tio Juca passava o dia inteiro por fora. Vinha para o almoço, e voltava para o serviço até à noitinha.

- Você anda a ler os meus livros, hem?

E não ralhou comigo. Tirava a roupa e deitava-se na rede para seu sono profundo. Com as minhas vigílias de asmático, ouvia o ressonar ritmado, forte, bem diferente daquele estertor de Aurélio. Achava boa a vida do tio Juca. Queria ser como ele. Tinha dinheiro no bolso para gastar. Fazia tudo o que desejava. Ia ao Recife de vez em quando. Ninguém mandava nele. O velho Zé Paulino falava-lhe com cerimónia, dizendo as coisas, para ele ouvir, a outras pessoas. Podia não gostar de uma asneira do filho, mas desabafava com histórias alusivas e indirectas. O tio Juca não vivia em conversas com o pai. Amizade curiosa, aquela, que não se exteriorizava, que só trocava palavras nas necessidades inadiáveis. Lembrava-me de Maria Pia, do dia do juramento em cima do livro. O meu avô não deu nada ao filho. Fez má cara somente uns dias. Depois passou a raiva do velho Zé Paulino. Na mesa nunca ouvi os dois em diálogo de pai para filho. "Meu filho", "papai" - todas estas delicadezas familiares eram desconhecidas dos meus amigos. E no entanto, o velho morria por esse filho. Agora eu ia conhecendo melhor o tio Juca. Em pequeno vivíamos mais afastados embora ele tivesse idade para ficar ao nível da infância, com brincadeiras, como os que gostam de meninos. Tinha a mesma secura do pai, a mesma sobriedade de afeições. Parece que eu crescera não sei quantos anos para ele, falava-me desde a minha volta do colégio quase como a um companheiro, a um camarada. E os três dias de doença ainda mais me aproximaram do meu tio.

- Não leia estes livros, que fazem mal - disse-me sem ralhar, advertindo somente.

Doutra vez:

- Você está amarelo de mais! Que diabo é isso? Abra os olhos: isso faz-lhe mal.

Eu sabia o que o meu tio pretendia ferir, até onde ia a sua malícia:

- Você precisa de dar um passeio por fora.

Sabia também a extensão do seu conselho. Um passeio por fora, chegar terra para o pé da cana, era como eles se referiam à necessidade do coito para a saúde. Eles tinham este preconceito contra a castidade. Atribuíam à abstinência uma porção de males. Havia amarelos por isto, doidos por falta de mulher. Vinha ao engenho um parente nosso, chamado Fernando, que sofria de ataques.

Aquele bicho precisa é de vadiar um pouco - dizia o tio Juca.

No engenho existia um negro misterioso, filho do velho Amâncio. Os moradores contavam coisas esquisitas do moleque: nunca andara com uma mulher. Um escândalo para aqueles simples! Lembrava-me dele, ao ouvir o tio Juca insinuaras suas referências a meu respeito. Tocava viola. Gostava de ouvi-lo a bater com os dedos nas cordas, gemendo mais do que cantando. Os outros troçavam dele:

- Negro besta, aquilo é um pomba lesa!

Preto, bem preto, depois que ouvi os negros cantando blues nos cinemas lembrei-me dele, era aquela mesma dolência, a mesma nostalgia de olhar sem ruindade. Era, um casto. No meio daquela sodoma da bagaceira, esquivava-se de correr, como os companheiros, atrás das molecas. Contavam histórias: que fizera uma mulher de pau para ele; dormia com a estátua de cavassu e fazia os seus amores com a obra de arte.

Morava com o pai para as bandas da Areia, uma espécie de província da confederação Santa Rosa. O velho Amâncio era sertanejo. Descera para a várzea na seca de 77. E ficara para o resto da vida com o meu avô. Não ia para o eito. Vivia no seu sítio sem pagar foro, com a única obrigação de dar o ponto nos queijos, o que só ele sabia fazer no engenho. O filho era livre como ele. Quando aparecia com a viola, encontrava sempre o seu auditório.

Lembrava-me do moleque ali no resguardo da minha asma. O negro João do seu Amâncio, o casto do Santa Rosa, tinha uma mulher de pau para se servir.

Guardar castidade, pedia o catecismo. Isto para a minha gente era um sacrifício ridicularizado. Estava ali o tio Juca, um homem bom. Tratava bem os seus trabalhadores, trabalhava de manhã à noite, tinha um frasco de quinino no quarto para dar de remédio ao povo. E no entanto vivia com as mulheres, com as raparigas no Pilar, no Santa Rosa, e lendo livros frescos. E além de tudo o mais, mandando-me para o amor: "Você precisa de dar um passeio por fora." O velho Zé Paulino devia ter sido como ele, fazendo filhos por toda a parte. Seu Fausto maquinista não era seu filho? Ouvira contar a história da Teresa Beiçuda, uma Pompadour de São Miguel. Tio Juca, o irmão mais moço de meu avô, fazia-lhe filhos todos os anos. Uma vez, numa festa da padroeira, a mulata apareceu de chapéu na igreja. Foram dizer a tia Nenen. Era um atrevimento da cabra. E quando saiu da missa, dois escravos rasgaram-lhe chapéu de plumas à porta da igreja, arrancaram-lhe as anquinhas da moda. Todos aqueles senhores de engenho faziam o mesmo que tio Juca. E eram homens de têmpera, limpos de honra, de respeito. Parecia-me que o padre de Itabaiana aumentava as coisas. Não tinham eles oratórios em casa? Não faziam promessas, não davam tanto dinheiro para as igrejas? Logo Deus não os teria assim debaixo das suas iras. O velho Zé Paulino quando morresse só podia ir para o Céu.

- Seu Cazuza é um santo - dizia o negro Mané Pereira. - Fui escravo dele; era o melhor senhor das redondezas.

E no entanto as negras pariam do velho Zé Paulino. Que seria melhor - fazer essas coisas ou bater nos negros, roubar terras dos outros, mandar matar os inimigos? Cogitações profundas que me preocupavam ali no quarto do tio Juca, esperando que a asma me abandonasse. Quem seria melhor: ele ou o Ursulino de Itapuá, enterrando escravos na bagaceira? Para o padre de Itabaiana eram iguais. O inferno era para eles dois. Não. O meu avô ao pé de Ursulino passava por santo. Que falassem os seus moradores. Lembra-va-me de dois que o feitor encontrara dentro da roça roubando mandioca. Chegaram amarrados à porta do engenho.

- Que fez esta gente?

- Estavam a roubar mandioca, seu coronel...

A mulher caiu aos pés do meu avô, chorando.

- Acabe com isso.

E foi à gaveta, e deu-lhe dois mil rés de prata, daquelas com a cara do imperador.

- Podem ir-se embora. Em vez de olharem pelo serviço vêm-me para aqui com estas parvoíces.

Então toda essa grandeza moral não valia nada para Deus? Iria o velho Zé Paulino de braço dado com o Ursulino para o inferno, somente porque deixara em paz a sua vitalidade livre? Devia haver um meio de salvar o meu avô daquelas penas.

Perguntei um dia ao tio Juca porque não se confessava. Ele riu-se para mim:

- Não tenho pecados, não, menino. Lá em cima é que a gente dá contas a Deus.

- O senhor pode ir para o inferno.

- Que inferno! Inferno é isto aqui na terra. Não acredito nisso, não. Você está é um devoto. Só Mané Pereira.

Era o negro que pedia esmola para S. Benedito. Andava de opa pelas estradas, com um prato na mão cheio de rosas e uma coroa de prata dentro. Falava-se dele, punha-se em dúvida a sua honestidade:

- O negro cai com os quartos! Sustenta os homens com o dinheiro do santo.

Sei lá! Podia tudo ser mentira. O andar miudinho do negro velho é que trazia aquelas suspeitas vergonhosas.

Depois o tio Juca saía, e eu continuava a pensar na impiedade da minha gente. Pela legislação do catecismo não escaparia ali nenhum do inferno. Também o meu avô não acreditava nas coisas da Igreja. Só existia um Deus e os santos para ele. Tudo mais era conversa de padre. Mangavam de um parente nosso que passava a vida na igreja, rezando. Dizia o velho Zé Paulino que quando o seu primo batia nos peitos era dizendo:

- Fazei-me rico como o doutor Quincas! Fazei-me rico como o doutor Quincas!

Levavam-se ao ridículo os homens que se confessavam. E iam mais longe:

- Lula arruinou-se foi por estas coisas. Só quer viver na igreja.

Davam-se como azarentas as amizades com os padres.

Era um povo eleito para o inferno. E no entanto, uns homens cheios de grandezas morais, de dignidade de vida. Isto, porém, nada valia para um só pecado mortal. No meu íntimo achava Deus muito injusto, um juiz que não pesava atenuantes. Havia uma imagem do juízo final muito popular entre nós: era Deus com uma lança pesando as boas e as más obras dos homens. Numa concha punha as boas coisas praticadas, noutra as ruindades. Se subisse um lado, seria o inferno ou o céu que Deus indicava. Pelo catecismo aquilo não era verdade. Podia um lado da balança estar cheio de grandes coisas, mas do outro um dia de domingo sem missa, um olhar cobiçoso para a mulher do próximo, e estava tudo perdido. O tio Juca afirmava que o inferno era este mundo onde vivíamos. Seu Coelho achava que tudo não passava de conversa dos padres.O velho Zé Paulino dormia o seu sono de justo, sem se lembrar do Juízo Final. Todos assim me davam essas lições contra as afirmativas do meu catecismo.

Mas as cogitações de asmático sumiam-se. Os livros do tio Juca mostravam um mundo mais agradável para mim, uma gente mais fácil de se viver com ela, uns fantochos de luxúria, os homens e mulheres de Paulo de Kock.

 

Saí das leituras galantes para a alegre camaradagem da Natureza. Acesso fraco o da asma, sem a ânsia angustiada dos outros. A idade curava-me dos achaques da infância. Os três dias de prisão no quarto do tio Juca tornaram-me meditativo. Misturei a lubricidade dos livros com as cogitações das minhas dúvidas religiosas. A bondade do velho Zé Paulino tirava-me o medo do inferno do padre de Itabaiana. Um homem daqueles não podia sofrer pelas irregularidades dos seus desejos de rapaz. E sem o medo dos castigos, e com o exemplo do meu avô, tomei o conselho do tio Juca. Andei por fora com mulheres. Já parecia um homem para elas. Catorze anos bem que eram uma maturidade para aqueles desregramentos. Depois da ceia íamos para as aventuras, eu e os moleques maiores. Havia pastos novos que não conhecia, e um pastoril no Pilar. Dianas, mestras e contramestras mostravam as suas pernas. Os moleques punham-se debaixo do tablado para sondagens perigosas. E dávamos gritos, aos cordões, subindo e descendo as bandeiras conforme o entusiasmo do povo. Os filhos do José Medeiros provocaram-nos. E deu-se um barulho. Saiu um de roupa rasgada e o sobrinho do padre Severino de cabeça quebrada. Corremos para o engenho, como um exército que procurasse a sua base de fortificação. A queixa chegou ao meu avô: os netos dele andavam a fazer barulho na rua. Chamou-me para me repreender. Não queria arruaceiros na família; eu estava proibido de ir ao Pilar. E dias depois, surpreenderam o sobrinho do padre com uma espingarda de cano de chapéu-de-sol esperando um de nós numa moita da estrada. Tio Juca falou-me:

- Esse menino do padre não é coisa boa. Gente do sertão é um perigo. Por qualquer asneira fazem fogo sobre outro.

Ninguém tinha medo de espingarda de chapéu-de-sol. E o primo Silvino tinha chegado do Diocesano. Andava a limpar umas carabinas que o meu avô guardava por detrás do guarda-roupa. Aprendera a manobrar a arma no curso do colégio. Mas essas limpezas faziam-se às escondidas. O sobrinho do vigário que se acautelasse com o primo Silvino.

- Quando ele passar para a missa de S. Miguel ele vai ver.

Passava com o tio sempre, pela manhã do domingo, para a celebração. E domingo a desgraça estava feita. Dormi sexta-feira com a história na cabeça. Calei todo o sábado o meu susto. De noite, porém, abri-me com o tio Juca:

- O Silvino quer atirar ao sobrinho do padre, amanhã.

Delatei a conspiração tirando um peso da consciência. Ao sono de sexta-feira, povoado de sustos, sucedeu o daquele sábado, de coração desafogado. E quando acordei no domingo, tio Juca já tinha dado o alarme. Ouvia da rede os gritos do velho Zé Paulino:

- Ora já se viu! Um neto meu a armar emboscadas! Com quem aprendeu isto? Valentões na minha família não existem. E a gente, do pai é toda mofina. Avalie que desgraça se o Juca não descobrisse! Ia para a cadeia, fique sabendo. Mandava-o para a cadeia.

A velha Sinhazinha acolitava a raiva do meu avô, chegando lenha àquelas chamas que durariam um momento:

- Menino impossível! Você não sabe? Este menino não mandou uma carta ao João de Taipu?

Carta ao João de Taipu?

- Sim, escreveu ao João pedindo para dar uns lances na lagoa fazer uma pescaria lá, dizendo que você tinha parte no engenho, por isso tinha direito.

- Mas que atrevimento! Não sabia desta! O que não terá dito, João? Sem dúvida haveria de pensar que eu mandei este recado. não gosta de mim... Isto é o diabo! Juca, você sabia disto? E o tio Juca, chegando-se:

- Estive com o doutor João. Achou até graça à coisa.

- Achou graça? - falava a velha Sinhazinha. - Mas isto não se faz... É preciso acabar com estas ousadias. Estes meninos estão a criar-se como animais.

Eu ouvia tudo isto do meu quarto, entre os lençóis.

- O outro está a dormir. Preguiçoso que só João de Noca.

Ficavam com medo que o barulho viesse até mim. Aquilo, porém, era de pouco tempo. As raivas do velho eram trovoadas que não ofendiam ninguém. Não caíam coriscos daqueles relâmpagos em seco. E o ringido da voz da tia Sinhazinha:

- Zé Paulino não sabe educar. Não tem coragem de usar o pau. É um banana. Se fossem filhos meus não faziam estas coisas. O meu perdeu-se porque ficou com o pai.

Levantei-me da cama com o tempo limpo. Não havia mais receios de tempestades. Vimos o padre passar na estrada e de lá tirar o chapéu para o meu avô. O primo Silvino sentado na banca de cabeça baixa, amuado, com os cabelos louros de espetacaju. Ficou zangado comigo, sem me falar, jurando-me para a primeira vez que me apanhasse. Era um autoritário. Queria ser chefe de tudo, mandar nos outros como em propriedade sua. Não me daria bem com um temperamento assim tão absorvente. E por isso sofria o diabo nas suas mãos. Mais forte e mais velho do que eu, junto dele anulava-me, não tinha força para os moleques. Silvino fulminava-nos a todos com as suas ordens. Tudo ele sabia fazer, de tudo entendia. Na frente desse déspota o que poderia empreender o Carlinhos da tia Maria ou o atrasado Carlos de Melo de seu Maciel? Tinha ódio ao meu primo. Porque fosse ele mais forte ou porque me tratasse daquele jeito, o facto é que eu o achava odioso, mau, pondo-se acima de todos nós para mandar, para só ele ser ouvido. Falava muito num curso secundário ( Madureza) que andava a tirar. Era segundanista. A velha Sinhazinha troçava:

- Cadê o Madureza? Isto sabe lá coisa nenhuma! Madureza de m...

Nestas ocasiões eu queria bem à tirana. O pai de Silvino era sobrinho de um barão. O seu orgulho e a sua soberba estavam neste barão. A velha castigava esta empáfia:

- Vem cá, barãozinho. Barão coisa nenhuma! Que riqueza deixou o barão para o teu pai? Zé Paulino é que sustenta a tua laia toda.

Eram inimigos terríveis os dois. Aproveitava-me deste conflito. A velha dava-se então inteiramente a mim.

- Carlinhos, toma este sapoti.

Isto quando Silvino estava perto.

- Carlinhos, vá-se vestir para ir ao Pilar hoje comigo.

Tudo para fazer raiva ao inimigo. Silvino sabia vingar-se. Ela criava um saguim. Toda a ternura que recusava ao género humano, reservava-a para o seu bichinho. Uma mãe loba para esta cria. Um dia o animal amanheceu morto na gaiola, furado de faca não sei quantas vezes. Aqueles olhos secos, duros, molharam-se nesse dia. O verso dizia: "Só as pedras não choravam porque não sentiam dor." Mas era mentira. A velha Sinhazinha chorou com a morte do seu saguim. Vi o velho Zé Paulino contrariado, de rosto fechado, ao almoço, de rosto fechado ao jantar. Vivia com a cunhada sem **tr palavras, cada um mandando no seu lugar à vontade. Mas devia querer-lhe muito bem. Se tivesse a certeza da autoria do crime, o primo Silvino apanharia pela primeira vez de suas mãos. Agora, com a história da emboscada do sobrinho do vigário, a velha vingava-se. E ainda na rua gritava:

- Está aí o Madureza, o sobrinho de barão. O estudo não serve de nada! Está a estudar é para cangaceiro! Se eu fosse Zé Paulino, punha esse cachorro a cortar cana.

Para que negar? Gostava da velha naqueles momentos. Via o adversário impiedoso abatido a seus pés. Ela machucava-o, pisando por cima.

Mas o ódio de Silvino virou-se para o seu primo mais fraco. Olhava para mim do seu canto como se eu fosse um pedaço de carne para a sua fome de onça, comendo-me com os olhos. O tio Juca saíra.

Fiquei de roda do velho Zé Paulino, temendo a agressão, o desabafo da fera. Naquele dia não pegaria comigo. Defendi-me no meio dos maiores. Anoiteceu sem que eu desse um passo por fora. Podiam as goiabeiras oferecer o que quisessem. Seriam inúteis todas as iscas. O primo Silvino matara o saguim da tia Sinhazinha. Não precisava advertência mais clara.

Disse ao tio Juca:

- Silvino quer bater-me porque lhe contei a história. - E você tem medo dele?

- Ele é maior.

- Não se importe com isso. Chegue-lhe também. Mas foi ao meu primo:

- Se você tocarem Carlinhos, arrepende-se, estou a dizer-lho.

Só Silvino mesmo para ter medo de ameaças. Começou a perseguir-me. - Chegue-lhe - aconselhava o tio Juca. Era muito fácil dar conselhos daqueles. Para onde eu ia ele acompanhava-me, procurando a sua oportunidade. Vi que não tinha mais remédio senão enfrentar o inimigo com forças que não eram as minhas. Armei-me de uma lanceta do meu avô; o único instrumento de operações do engenho. Era só para fazer medo. Quando ele partisse para o meu lado, puxaria a arma e ele fugiria.

Estava na horta a descansar, quando de súbito vi Silvino atrás de mim:

- Você está aqui, seu cachorro? Vá agora chamar o tio Juca!

Nem deu tempo de me defender de armas na mão. Mas cone o primeiro murro nas ventas, a dor deu-me uma coragem que não sabia escondida em mim. Dei-lhe também um murro. Rolámos pelo chão, na lama. Não sabia lutar, mas sabia defender-me. E devia ter surpreendido o agressor com as minhas dentadas. Fiquei por debaixo dele. Batia-me sem piedade. Lembrei-me, então, de repente, da lanceta, e num segundo espetei-lha na perna, com força. Fugiu, gritando como um cachorro apanhado.

Imediatamente me dominou o pavor do crime. Fiquei no meio das árvores, aterrorizado, esperando a ordem de prisão, fora de tudo, como naquele dia do colégio em que quebrara a cabeça do moleque do Dr. Bidu.

O primeiro que chegou foi o velho Zé Paulino. Encontrou-me a chorar debaixo do sapotizeiro maior.

- Dê-me a lanceta. Que é isso no seu nariz?

Corria sangue, eu não tinha dado pela coisa.

- Vá para casa.

E fui para a casa-grande com ele a segurar-me pelo braço. Já estava, porém, de advogado. O tio Juca defendia-me:

- Anteontem chamei o Silvino porque ele queria bater no Carlinhos. É um malvado. O menino se fez isto foi forçado.

- Precisam de apanhar, os dois - gritava a velha Sinhazinha.

Limpavam-me o nariz ensanguentado e a cara suja de lama, o arranhão do Silvino não fora nada: um talhozinho somente. A casa-grande estivera nos seus dias de alvoroço. Mas não apanhei. O Juca levou-me para o quarto dele consolando-me:

- O bicho chegou vencido. Você fez mal em levar a lanceta do velho. Mas nunca mais o valentão o insulta. Chegou aqui amarelo, gritando, com a perna no ar. Fique aí deitado, para estancar o sangue do nariz.

E no isolamento do quarto, os factos começaram a repetir-se devagar, como numa representação de câmara lenta. Via Silvino aproximar-se para me dar, e eu a defender-me. Ele montado em cima de mim, e eu tirando a lanceta. Lembrava-me de tudo. Reproduzia o sucedido, surpreendido, eu próprio, de como fora arranjar tanta coragem para aquelas coisas.

 

Estávamos quase todos no alpendre da casa-grande, quando chegou o moleque do correio com os jornais. O meu avô passou a vista pelas cartas e leu alto: “Ilmo. e Exmo. Sr. Carlos de Melo."

Uma carta para mim. Achava impossível isto: o menino recebendo cartas. E ali estava uma. Abri, com a curiosidade de quem desembrulhasse um brinquedo, aquela primeira mensagem que o correio me trazia. Era de Coruja, o meu querido Coruja do colégio.

- De quem é essa carta? - perguntaram-me.

- É de José João, um menino de Itabaiana.

Interessante é que não o chamava pela alcunha. Assim de longe o José João ficava melhor para impressionar.

Fui ler o que me mandava dizer o amigo. Contava coisas de lá. Aurélio estava de cama, doente. Seu Maciel escreveu para a casa dele, e não veio ninguém buscá-lo. O velho via a hora do menino morrer no colégio. Falava da saudade dele por mim. Maria Luísa não voltaria mais, pois o pai mudara-se para a Paraíba. E notícia maior: ia ser decurião. Filipe empregara-se no comércio. Seu Maciel falara com ele para ficar. Era bom: não pagaria mais nada. O pai ficaria livre do peso.

Uma carta, esta, toda parecida com Coruja. Os moleques interessavam-se também. Achavam uma coisa do outro mundo o nome de uma pessoa em cima de um sobrescrito. Então, exagerava para que Silvino ouvisse:

- José João é um meu amigo do colégio. Estuda Francês. Vai para o ano para o Diocesano.

De noite, porém, o colégio chegou-me ao Santa Rosa. A carta do Coruja punha-me outra vez às ordens de seu Maciel. E enquanto esperava o sono, pensava nos factos que a carta me expusera com tanta simplicidade. Aurélio doente, Maria Luísa na Paraíba, Coruja decurião. Parecia que estava a ouvir o director falando do pai de Papa-Figo. E o seu Coelho preparando as doses. Tive pena do colégio. Por que haveria gente assim com aquele destino, mais feia, mais doente, mais infeliz do que os outros? Onde estava o grande coração de Deus? Aurélio tinha roubado, tinha matado ou desobedecido os seus pais? E ouvia as negras a levarem a banheira do banho de tronco de meu avô. Arrastavam as chinelas pelo chão, e a água dançava no vaso, fazendo barulho. A casa dormia o sono pesado de consciências em paz. Pensei em Maria Luísa. E - para que negar? - nem já pensava nela. Se Coruja não me falasse, não sentiria aquela saudade que a notícia me deu. Os cabelos pretos e anelados, os olhos grandes e o riso bom, todo o encanto dela me chegava entre os lençóis lavados do Santa Rosa. O tio Juca não chegara ainda. Sem dúvida que andava atrás das mulheres. E com a saudade de Maria Luísa, e com a ideia no tio Juca lá por fora, um desejo ruim se misturou às minhas recordações do colégio. A lembrança de Coruja chegou-me de repente, no meio da tentação, e venceu a libertinagem prestes a dominar-me. Ia ser decurião. Parece que estava ouvindo o director: - Seu José João, tome conta destes meninos. - Seria bom para mim, Coruja como decurião? Não daria parte das minhas faltas. Amigo era para isso. Em todo o caso a gente ganhava com a saída do outro. Filipe dava tudo para que um de nós fizesse qualquer coisa de mal feito, para denunciar. Quanto mais nomes para o relatório, melhor seria. Agora o colégio perdera esse lugar-tenente sem entranhas. Entrava em seu lugar um bom.

De manhã ainda li a carta do amigo, olhando para o sobrescrito, vaidoso como se me mirasse num espelho. Aquele Carlos de Melo com um Ilmo. e um Exmo. fazia-me grande e respeitável. Achava bonito o nome do tio Juca por extenso, em letras de tipografia, no endereço de La Hacienda. Havia gente fora do Santa Rosa que sabia o seu nome todo, e outros escrevendo-o na máquina de fazer jornais. Tinha uma admiração supersticiosa pela letra de forma. Silvino fazia uns carimbos com o nome dele, com iniciais de todos os jeitos. Marcava assim as camisas, com aquelas letras bonitas. Enchia-me de inveja a sua importância. Mas a carta de Coruja batia todas estas vantagens. Chegara pelo correio, com marca da agência, uma carta para mim. Guardei o sobrescrito. E gabava-me da amizade de José João, contando os seus adiantamentos: - Ele sabe Francês, ele estuda Álgebra. - Mas Silvino mangava:

- Seu Maciel sabe coisa nenhuma!

- Sabe mais do que você. Você aprendeu com ele.

Abandonava a polémica no meio, porque se não a coisa redundaria em conflito. Já não tinha medo do ferrabrás. A lição da lanceta em punho dera-me coragem para falar na frente dele sem sustos. Perdera toda a pimponice para o Carlinhos. Carlos de Melo sabia defender-se como homem. A carta de Coruja trouxera-me um bocado de vantagem. Ficara o primo sabendo que um amigo me dava notícias, e um amigo adiantado. Mesmo os moleques que Silvino dominava, os que me olhavam como para um sem-forças, já iam atrás das minhas ordens. - Faça isto. - E faziam. Nada como um acto de força para a conquista do poder. De que me tinham valido todas as minhas condescendências para com eles, aquilo de tratá-los como um irmão de sangue? Não me valeram de nada. No dia, porém, em que me firmei como um forte, capaz de furar o outro à lanceta, o prestígio cresceu: "Quem me disse isto foi Carlinhos"; logo devia ser verdade; "quem me mandou fazer isto foi Carlinhos"; e estava bem feito. Sinais evidentes de que eu mandava, de que podia afirmar. O chefe supremo não estava sozinho por ali. Comandava os meus moleques, os meus asseclas. Já não andava com subserviências para com o primo Silvino. Se ele quisesse experimentar, que viesse.

 

O dia de S. Pedro chegou para me encontrar bem triste.

A casa-grande cheia de parentes de outros engenhos. Tio Lourenço viera do Recife com uma porção de amigos. Seu Zé também, com umas bagagens de malas enormes carregadas de fazenda. O negro Amâncio escolhia no picadeiro de lenha os troncos para a fogueira.

  1. Pedro era o grande dia do Santa Rosa. O Natal, o S. João, passavam-se ali como dias comuns. S. Pedro, aniversário do Zé Paulino, festejava-se no engenho como a maior data.

Mas aquele ano, em que, de alma saturada do colégio, sonhava com a grande festa da família, uma notícia seca, rápida, mudaria os meus planos. O homem da estação trouxera um telegrama para o meu avô. Um telegrama no engenho seria sempre uma coisa rara, um acontecimento. Ou gente pedindo cavalos para a estação, ou notícia de morte. Daquela vez o velho leu o papel de rosto sério. Mostrou-o à tia Maria, que já andava de pé, e começou o murmúrio na gente grande da casa. Depois chamaram-me, e a minha tia disse-me:

- Carlinhos, vou dar-lhe uma notícia ruim.

Não lhe disse nada, espantado, à espera.

- O seu pai morreu.

Eu tinha meu pai como morto. Lembrava-me dele com a saudade por um defunto querido. Mas doeu-me a notícia, porque as lágrimas pularam-me dos olhos. A tia Maria beijou-me pela primeira vez desde a minha chegada.

- É isto mesmo. Coitado! Tinha sofrido tanto!

Fui para o quarto, pensativo. E a ideia da morte entrou em mim. Mentiria se confessasse uma mágoa profunda com o meu pai morto.

Guardava por ele mais saudade de amor. Separado há anos do seu convívio, sabendo-o perdido para sempre, sofria mais pela sua desgraça. Recebendo anotícia da sua morte,chorei como os que choram nos dias de finados pelos desaparecidos da família. Separado dos outros, na meia escuridão do quarto do tio Juca, um pensamento absurdo mas vivo começou a existir, a dominar-me, invadindo o meu raciocínio, tomando os passos da minha imaginação. Queria fugir dele mas ficava preso como nos sonhos, sem força para arredar o passo do lugar. O medo da morte envolvia-me nas suas sombras pesadas. Sempre tivera medo da morte. Este nada, esta destruição irremediável de tudo, o corpo podre, os olhos comidos pela terra

e tudo isto para um dia certo, para uma hora marcada - faziam-me triste no mais alegre dos meus momentos. Tinha medo dos enterros. A minha escola no Pilar ficava perto do muro que dava para o cemitério. Os sinos dobravam, e todos os enterros passavam por lá. Não podia ver o caixão. Fechava os olhos. Ouvia dizer que se uma pessoa ficasse a olhar até se sumir o defunto, ele viria na certa buscar a gente. E quando no engenho via os enterros de rede? Não compreendia nada mais doloroso do que aquilo: aquele corpo envolvido numa rede suja, coberto de pano branco, dependurado na vara, balançando aos ombros de dois homens. Fugia para dentro de casa quando o enterro surgia na estrada. E o dia ficava perdido. Uma tarde, no Pilar, na igreja, um menino da rua chamou-me para me mostrar uma coisa na sacristia. E abriu um caixão comprido com um Senhor Morto dentro. Estremeci, arrepiado de horror.

- Está com medo? - perguntou-me o menino com a maior simplicidade do mundo.

Até as imagens me atemorizavam daquela maneira. E o homem do engenho que morrera e que ficou por muito tempo gravado na minha memória, com a sua cara infernal a perseguir-me? Ouvia falar em velar os defuntos, -admirado da coragem do povo de passar uma noite com um morto na sala estendido. Às vezes ia a andar, distraído, sem pensar em coisa nenhuma. E de repente recebia uma visita inesperada, a ideia infeliz. Pensava: quando será o dia da minha morte? Via-me estendido num caixão, e os parentes em redor: Punham-me a vela na mão, amarravam-me um lenço no queixo. E aquele lenço e as mãos cruzadas tomavam conta de mim. Para onde ia olhava a reprodução destas coisas a procurar-me.

A notícia da morte de meu pai vinha fazer-me pensar nisso tudo. Há mais de uma hora que estava sozinho imaginando, vendo-me, mostrando-me a mim mesmo. O tio Juca chegou ao quarto para me falar.

- Deixe-se de choros. A vida é isto mesmo. Vamos lá fora, meu filho.

E levou-me para o meio dos outros. Ria-se de tudo, entre parentes reunidos. A morte de meu pai fora notícia de um facto velho, de que já pareciam ter conhecimento. Ninguém se preocupava com um doido de há dez anos. E, calado, eu via a fogueira a arder no pátio e o chiar do mijão dos meninos brincando. As pistoletas estoiravam as suas bolas de fogo. Na banca do alpendre com a conversa de todos e a brincadeira dos meninos, era o mesmo que se estivesse no quarto do meio, do colégio, de castigo. Sentia ainda na boca o gosto salgado das lágrimas engolidas, e para onde olhava descobria o morto escondido no caixão, de braços cruzados. Ouvia o tio Juca contando a história da briga com Silvino, para lisonjear a minha coragem:

- Muito menor do que o outro, e obrigou-o a fugir.

Ele queria sarar a minha mágoa. Ia criando interesse para **mi história. E de súbito, num segundo, voltava a visão do meu pai morto, de braços cruzados.

O tio Juca abraçou-me:

- Não chore, menino. O que é isso?

E os outros aproximaram-se:

- Coitado!

Não vi mais nada, não senti mais nada daquele sonhado S. Pedro do Santa Rosa.

 

Fui o último a voltar ao colégio. O luto do meu pai reteve-me uns dias no engenho. Fizeram-me roupa preta.

O velho Maciel recebeu-me de cara alegre, perguntando pelo meu avô. E no recreio vieram-me magoar:

- Está de luto do pai. Ele morreu no asilo?

Ouvia estes comentários quase que insensibilizado pela saudade de casa. Sentia uma saudade diferente daquela do primeiro dia de internato. Agora já sabia o que era a cadeia. E este conhecimento mais me atormentava. Não ignorava nada do que me reservavam os finco meses de sentença a cumprir.

Encolhi-me pelos recantos para mais me sentir só, sem ninguém ao pé. Coruja veio falar-me. Porque diabo achava o amigo diferente? Indagou a razão do meu luto.

- Não sabia que seu pai tinha morrido. Você também não me escreveu..

Conversou mais tempo. Mas faltava uma coisa, um sinal evidente da sua pessoa. Que teria sucedido ao amigo? Sucedera-lhe na verdade uma desgraça: Coruja era decurião. Entrara nele o poder. Sim ele era decurião. Isto, porém, não lhe viria mudar o carácter, deformar a sua personalidade.

Depois ele afastou-se e eu fiquei a pensar. Não podia ser verdadeira a minha impressão. O cargo teria força para mudar aquela candura, aquele grande coração do meu amigo?

Seu Coelho recebeu-me de braços abertos:

- Olá, comeu muita cangica? Conte-me lá as proezas! Aurélio continuava doente, melhorado da crise que quase o levara de vez. Clóvis cheio de admiradores. Trouxera uma lanterna mágica para o colégio. Pão-Duro, o mesmo. Todos os outos, os mesmos. A mudança de Coruja preocupava-me.

Heitor explicou-me:

Ninguém pode já chamar-lhe Coruja: é José João, como o rei da Inglaterra: quando sobe muda de nome.

Mas logo o Coruja! O melhor de nós todos, o único ali que apresentava sinais de grandeza! Não era possível.

Ele próprio mais tarde se encontrou comigo. Estava no quarto, pondo as minhas coisas na mala.

- Carlos, agora estou diferente. Seu Maciel pôs-me no lugar de Filipe e pediu-me umas coisas. Já não sou aluno. Por isso posso mais brincar com vocês.

Esta confissão do amigo tocou-me seriamente. Compreendi então o que lhe exigira o director em troca dos seus serviços: uma incompatibilidade com o internato: "Você fica no lugar de Filipe, com uma condição: deixa de ser menino; não poderá conversar com os alunos, ter amizade com eles. Dou-lhe ensino e comida de graça em troco deste seu rompimento com a vida. Você será de agora em diante o meu instrumento, o meu sistema, a minha vez."

Mais uma que o colégio me dava! O meu único amigo, que tinha coragem de se pôr ao meu lado, estava agora ao serviço da tirania, tornara-se cão-de-fila, um espia da ordem. Através dele iríamos sentir a opressão do velho director. Mas Coruja era um bom, não se entregaria com aquela subserviência de Filipe às suas funções. Podia ser decurião e continuar o mesmo. Apenas o director não o queria em camaradagem connosco. A autoridade exigia limites, essas distâncias.

Maria Luísa fora-se embora; Coruja, também, era o mesmo ter fugido.

Este primeiro dia de colégio, eu venci-o pensando nos outros. Agora tudo me parecia diferente. A experiência de seis meses dera-me a coragem de olhar o resto do ano com mais virilidade. Em Janeiro um pobre novato caíra nas garras de seu Maciel, à toa, sem saber de nada. Ele fizera de mim o que bem quisera. Agora voltava mais homem, olhando as coisas com superioridade. Ninguém se colocaria acima de mim. Via os colegas sem lhes ligar, num plano inferior, sabendo todos os segredos do colégio.

Sentia de facto uma imensa saudade do engenho. Soltara-me daquela vez. Os poucos dias de liberdade, soubera gozá-los sem pena, estragando-me. Que falassem todos os meus passos errados, os ansiosos passos errados que me levaram para o amor: Um menino de catorze anos no Santa Rosa podia ser muito bem um pai-de-chiqueiro. Comi de tudo, fartei-me de tudo. Fui para o comboio de Itabaiana com a agonia de quem se despedisse do mundo. Na estação, ouvia a conversa das pessoas:

- Este menino vai para o colégio, seu Zé?

Está lá desde o começo do ano - respondia o meu pajem, orgulhoso dos meus estudos.

- O professor Maciel é um danado.

Virei as costas ao Santa Rosa com aquela advertência ameaçadora. Vi o comboio chegar. Tomei o meu lugar sem procurar ver nada de fora. Vi somente os presos da cadeia, de muito perto. Olhavam das grades a liberdade indo e voltando todos os dias. Era um barulho bem incómodo para um preso, aquele da liberdade passando pelos seus olhos.

José Ludovina ainda me levou pela cidade antes de me deixar no colégio. Rodámos pelas lojas nas compras. Como desejava que aquele tempo não se acabasse mais! E com passos miúdos cheguei ao cárcere.

Agora estava ali, com aquela surpresa absurda de Coruja outro, mudado, virado do avesso. Não acreditava naquilo. Uma alma daquelas não ficaria outra, assim tão de repente. Talvez que não quisesse, com a sua posição, andar pelo recreio conversando, como dantes. Um decurião não devia fazer estas coisas. Não. Coruja nunca seria um Filipe, um adulador dos impulsos malvados do director. Ele teria, sem dúvida nenhuma, uma maneira mais humana de agir; de cumprir bem o seu dever. Custava a acreditar que o meu amigo, o terno Coruja dos bilhetes e dos conselhos, desse parte de mim a seu Maciel. Nunca de sua boca sairiam coisas assim: « O Seu Carlos de Melo fez isto, falou alto, comportou-se mal.» Não tinha jeito de chamá-lo José João. Seria outra pessoa.

E fui assim com tais suposições, até à noitinha, a hora da comversa à porta de casa, com o velho em passeio pela cidade. Coruja ficava na direcção do governo. Notava-se que era novo em aquela autoridade, para ser respeitada em toda a sua plenitude ligavam pouco ao decurião novato. Ninguém se queria conformar com que um menino da nossa idade pudesse mandar como um grande. Abusava-se do preposto de seu Maciel. E porque se percebera a fraqueza do Coruja, fazia-se o que não se tinha coragem de fazer no tempo de Filipe. Só ouvia Coruja dizendo:

- Não façam isto, que eu digo a seu Maciel.

Não diria nada. Do meu lugar avaliava o sofrimento que andaria por dentro do meu amigo. Ele mesmo compreenderia que não era para ele aquela profissão.

No outro dia verifiquei que as minhas dúvidas não eram verdadeiras. Coruja apresentou a seu Maciel as suas impressões da noite anterior, vacilante, não fixando bem os factos. Apresentava no entanto o seu relatório:

- O seu Heitor não obedeceu, discutiu alto com outros. Clóvis saiu da calçada sem ordem.

Vacilante, talvez porque lhe faltasse experiência. Mas a palmatória cantou da mesma forma pelas suas denúncias.

Quando chegaria o dia de apanhar por causa de acusações do meu amigo? Vendo os colegas no couro, já não via tão distante o dia. Precisava de compreender que ele ganhava a escola de graça fazer aquilo. O tio Juca dizia-me que o inferno estava neste mundo. Para Coruja não haveria inferno pior. Um coração como o seu, manso, um terno coração de moça, a sofrer daquela forma, machucando-se todos os dias no cumprimento das suas obrigações! Melhor seria que tivesse ficado no balcão da loja de seu pai. A ambição de fazer-se grande dera-lhe coragem para se mutilar.

Só queria ouvir o meu amigo a desabafar. Sem dúvida que me contaria tudo: os seus sofrimentos, a paixão e as dores de um decu­rião de meninos. Era capaz de Filipe ser um bom, que o abuso da autoridade tivesse corrompido e estragado. Quem sabe se Coruja não terminaria assim, desejoso das nossas traquinagens para um re­latório maior? O drama de um devia ser idêntico ao do outro.

Estava, porém, pensando mal do amigo, e voltava-me a convic­ção de que Coruja não duraria muito tempo naquela vida. Fazia as minhas suposições. À noite, quando ele fosse dormir, passando uma vista sobre os trabalhos do dia, muito haveria de se arrepender. Quantos apanharam pela sua denúncia? Um ruim até gostaria do número crescido das vítimas, compararia as quantidades sentindo prazer cone os apanhados. Aquela vigilância excessiva de Filipe podia ser o amor de um carrasco pela profissão. O outro, não. Teria remorsos dos seus libelos. Obrigava-se a tomar conta da gente. E para que os seus serviços aparecessem aos olhos do senhor, teria que apresentar vítimas para o patíbulo, senão não prestava, procura­ria outro.

Em todo o caso, para mim, a subida de Coruja ao poder poderia ser útil. Filipe embirrava comigo, com o meu nervoso, com os meus vexames. Tudo lhe era um pretexto para as partes impiedosas; tudo servia para satisfazer a sua curiosidade de polícia impertinente. Em lugar deste olho miserável, estava agora um amigo que me compreendia, que saberia descobrir onde estavam as boas intenções, sem ódios prevenidos contra mim. Pensei até em abusar de Coruja. E ao mesmo tempo reflectia: não. Não daria trabalho ao novo decu­rião. Ao contrário, procuraria fazer tudo para não lhe desagradar. Um amigo faria assim. Então porque era seu íntimo iria abusar desta amizade? Coruja havia de ver que eu o deixaria livre de dificulda­des. Mesmo entre os colegas podia prestar-lhe serviços, evitar que alguém se excedesse, pedindo com jeito: «Não obriguem José João a dar parte. Ele não gosta de aperrear a gente!"

Fui para a cama com estes pensamentos íntimos. Defendia o amigo obrigado a manter-se em serviços humilhantes. As precisões obrigavam a piores coisas. Coruja livrara-se de sacrificar o pai, de pesar na economia da casa com os seus estudos. Via-o um grande, maior do que todos nós juntos, que gastávamos os dinheiros paternos vadiando. Ele podia romper comigo, queixar-se do seu grande amigo, mas não deixaria de crescer para mim.

Muito bom pensar estas coisas na cama, fazer estes juízos para me consolar de uma amizade perdida. Que poderia dizer-me o primeiro dia de colégio? Sabia lá se Coruja se manteria no cargo com elevação, fazendo justiça, limitando os seus poderes! E se fosse ao contrário? Se o velho Maciel tivesse exigido um decurião como os outros, enredador, intrigante? Era o que os dias me mostrariam em breve. Não havia melhor oportunidade para se tirar a limpo essa história de grandeza ou miséria dos homens.

 

Corriam os dias no colégio como os de sempre, dias compridos de aula, horas lentas de estudo. A chuva proibia-nos a nesga de terra do nosso recreio, trancando-nos à força na sala de jantar. De noite não se deitava a cara de fora. E a enredada e o mexerico encontrava­m campo preparado nestes ajuntamentos. Eu estava mal com João Câncio, Pão-Duro e José Augusto. Falava com Heitor, que, sem Coruja, agora eu escolhera para amigo. Uma substituição medíocre, porque Heitor não valia grande coisa. Mentia muito, contava grandezas do padrinho. Só falava de Timbauba, de Olinda, de Recife. Tinha orgulho destas viagens.

Desde que chegara ao colégio ainda não tinha apanhado nem uma vez. Compreendia melhor as lições. Não me expunha de mais os elementos. Resguardava-me das iras do director, dissimulando-me melhor. O colégio vivia agora sob as impressões do cinema; tinham posto um cinema em Itabaiana. Às terças e aos domingos pagava cada um quinhentos réis para o espectáculo da noite. Invenção maravilhosa esta, que nos ajudava a levar o tempo, a furar os meses com o pensamento nas fitas. Vimos Os Miseráveis do come­ço ao fim. Jean Valjean era um grande, com aqueles dois revólveres nas barricadas, aqueles cabelos brancos, aquela força de gigante compondo para nós o maior homem do mundo. Levámos semanas seguidas com este romance agitando-nos, a arrastar-nos para um mundo de homens grandes de mais e de homens pequenos como víboras. O chapéu preto de Javet, a vigilância de cão do seu faro pers­eguindo o justo, o santo que era Jean Valjean, inimizavam-nos com tudo quanto era secretas, polícias, defensores da ordem. A his­tória toda arrebatava a nossa imaginação para os perseguidos, para os que roubavam porque tinham fome, para os que protegiam os pobres ou morriam nas ruas pela liberdade.

O cinema de Chico Sota tremia como um velho. A mulher dele tocava piano, umas valsas penosas para os dramas, umas marchas às carreiras para as traquinadas de Bigodinho. Totolino sofria nas fitas da Pathé. Lembro-me do Grande Industrial. O sujeito tinha com um chapéu de palha de abas grandes, a mulher andava a cavalo. Foram passear um dia e ficaram encerrados numa espécie de fortaleza. Um pastor que guardava os carneiros tinha visto os dois entrarem. Mas esqueceu-se deles depois, trancando uma porta muito pesada. Ficaram presos lá dentro. O sujeito saltou do muro alto para baixo.

Havia outra fita. A Vida de Uma Rainha. Ela foi degolada. O carrasco, baixinho e gordo, e a pobre com os olhos bonitos olhando para o povo. Quando o cutelo caiu no pescoço dela, o piano gemia uma valsa que eu nunca mais esqueci. Chorei naquela noite. D. Emília também chorou. De volta o director comentava:

- Sofreu muito, Maria Stuart.

E D. Emília queixando-se:

- Não gosto de fitas assim. A gente vem divertir-se e acontece uma coisa destas - com uma voz ainda húmida das lágrimas.

A chuva também nos estragava o cinema. Ficava aos domingos a espreitar o tempo, com medo das nuvens pesadas. Quando amanhecia chovendo, passava-se o dia inteiro com o receio do cinema perdido. E as chuvas de Julho não davam tréguas, não respeitavam ninguém. De castigo, no quarto do meio, consumia as minhas horas de encarcerado olhando as réstias, informando-me do que havia sobre o tempo pelos pedaços de sol que as telhas de vidro espalhavam no quarto. De repente clareava. Muito alegre para mim este sinal de estiada que chegava. Durava pouco o júbilo, porque uma nuvem pesada escurecia tudo de novo.

E ia assim até de tarde. O director chegava à porta da rua, olhava para cima, tomando atenção nas coisas, e mandava-nos vestir.

às vezes, porém, de roupa já mudada, vinha uma pancada de água para nos atrasar. O velho temia a chuva de longe. A sua asma ensinara-lhe cautelas rigorosas de Inverno. Uma vez quase que perdemos uma parte dos Miseráveis. Jean Valjean naquela noite tinha uma grande coisa a fazer. E a chuva cantando nas biqueiras. O director mandou um recado ao Chico Sota para que só principiasse o cinema depois da chuva cessar.

De outras vezes o velho aborrecia-se, de veneta, e o cinema ficava para a outra noite. Deixava-nos assim com fome de sensações. Dormíamos enervados para uma segunda-feira de aulas com lições erradas.

O cinema já nos era um incitante sem o qual não podíamos passar.

Levávamos semanas discutindo as fitas, comentando os enredos.

Corrigiam-se atitudes, emendavam-se situações, aprendiam-se mesuras da sociedade. Havia mulheres tentadoras vestidas à última moda, bem diferentes das mulheres que víamos na vida. Tudo era diferente naquelas existências. Os homens tinham outros modos. As mulheres saíam de casa sozinhas. Vira uma, brigando com o marido, dizer-lhe com a maior simplicidade deste mundo: "Vou para a América!", como a tia Maria diria: "Vou para a terra do seu Lucio." A gente daqueles lugares era mesmo de outro planeta.

As comédias obrigavam-nos, no entanto, a não acreditar em tudo o que víamos: caíam casas enormes em cima de Bigodinho, e ele, nem como coisa, saindo dos escombros sem uma costela partida. Davam-lhe tiros; parava comboios com as mãos; despenhava-se em alturas imensas e levantava-se faceiro. Estas aventuras cómicas estragavam a seriedade com que queríamos comentar os filmes. Tudo ali era mentira. Jean Valjean não levantara aquela carroça com um menino debaixo, não arrombara os ferros do esgoto. Ninguém podia firmar uma opinião e dar uma coisa de fita como prova.

- Você vai atrás do cinema? Aquilo é mesmo fita.

"A gente vem divertir-se.." dizia D. Emília. E o cinema só devia ser mesmo um divertimento.

Uma nota curiosa: não me faziam medo os defuntos da tela: podia vê-los à vontade, sem receio. E no entanto chorava nas fitas tristes: Vira rolar a cabeça bonita da rainha como se fosse boneca, com pena, é verdade, daquela desgraça, mas sem me aterrorizar com a cena. Eu, que não podia ver um caixão sem calafrios, olhava os cadáveres cinematográficos com indiferença. Não sonhava de noite com eles, quando passei não sei quantos dias com o pai morto nos meus sonhos.

Levaram também em Itabaiana a Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um Cristo muito barbado e um Judas feio de mais. Não me fez o efeito que eu esperava, o desenro1ar do maior drama de todos. Havia muita pedra de mentira no Horto da Oliveiras, muitos montes, que a gente via que não eram montes. Não me comovi com a malvadez dos judeus. Tudo mal feito, sem realidade. Muito mais humana era, a história contada de Sinhá Totonha.

A verdade, porém, era que o cinema nos educava, mostrava-me cidades da Europa, terras coloridas da Itália. Lá estava Florença, terra do pequeno escrevente florentino. O Arco do Triunfo de Napoleão, em Paris. Roma, com igrejas grandes. Génova, de onde Marcos saíra para a sua viagem.

Clóvis sabia histórias de fitas admiráveis vistas na Paraíba. Mistérios de Paris, A Lagartixa..**

- Quando passarem aqui, vocês vão ver. Tem mais metros cada série.

Ficávamos perto dele para ouvir o romance. Sabia todos os detalhes; os tipos eram descritos com todos os seus sinais. Rodolfo era bonito, de bigode preto, um príncipe. Havia uma mulher chamada Coruja, um homem Manquito e um cego miserável. Embriagávamo-nos com os lances das histórias de Clóvis. Contava parte por parte, com todos os dizeres. E andava, puxava revólveres, fazia caretas e os gestos dos seus personagens.

- Não é assim - ajuntava Vergara, que também vira a fita- Quem dava na menina não era a Coruja.

Sustentavam os dois polémicas compridas por causa de detalhes, de palavras que não lhes pareciam as mesmas dos diálogos.

- Quando passarem aqui vocês vão ver.

- Clóvis, você lembra-se da cara que o cego fazia ao morrer afogado?

E vinha a cara sinistra, a ânsia da morte exibida de graça para a gente.

As conversas do recreio mudaram de rumo depois do cinema de Chico Sota. Começava-se a imitar os gestos dos actores, as atitudes. As mulheres para mim eram revelações. As duas caras mais bonitas que eu tinha conhecido seriam as de Maria Luísa e Maria Clara. E D. Judite também. Mas que belezas quase ridículas em frente das mulheres do cinema! Lindas, andando diferente das outras, estirando os braços devagar quando falavam, olhando para os outros com quebrados de atenção. Aquilo, sim, que eram mulheres de verdade. Todas as que eu conheci eram feias junto delas. Então os meus sonhos enriqueciam-se com as suas caras brancas, os seus olhares famintos. E os homens beijavam-nas em frente da gente, beijos demorados. Não eram aqueles beijos de longe, tingidos, que deram artistas numa comédia que vimos ali, no palco do cinema.

Uma noite havia fita de Bigodinho. E o cómico tinha, desta vez, nome de Doidinho no enredo. O colégio todo virou-se para mim:

- Olha o Doidinho! Olha o Doidinho!

Riam-se mais de mim que do cómico. Aquilo magoava-me. Andava a exigir que acabassem com aquela história de Doidinho, comigo. E ali, todos a uma voz, identificando-me com a alcunha da tela.

Porque se mostravam tão ruins assim os meus colegas? Abusavam dos mais fracos, dos mais infelizes, dos mais atrasados. Só Coruja eu via grande naquele meio, e este mesmo deixara-nos.

Voltei para casa pensando nestas coisas. João Câncio andava de ponta comigo. A inimizade com Pão-Duro já não me incomodava. Habituara-me a ela como a uma doença. João Câncio era um Pão-Duro

também. Com uma falinha fina, cheio de, histórias e conversas em cochichos. Mais adiantado do que eu, em pouco tempo passei-lhe adiante nas lições. O velho Maciel não perdia oportunidade:

- Atrasadão! Está aí o seu Carlos de Melo. Chegou no segundo livro, e já lhe passa quinau. Você devia ter vergonha nessa cara de relógio.

E esta insistência do meu nome em confronto com o dele preparou o ódio de João Câncio contra mim.

Discutíamos não sei por quê, e ele agravou-me no que podia ofender:

- Não tenho parentes criminosos!

Nunca mais falei com João Câncio. Não quer dizer que nos perseguíssemos mutuamente. Quando o inimigo voltava da latrina, eu corria atrás dos seus passos. Se achasse qualquer coisa, chegaria aos ouvidos do director. E ele não fazia menos. Não contaria, é verdade, com Coruja, para as suas queixas. E fosse no de Filipe, seu primo, teria todas as vantagens. Vivia pegado a Clóvis, manobrando o menino à vontade. Mandava nos brinquedos dele; a lanterna mágica não saía das suas mãos.

Todos os meus inimigos pegavam amizade com o pobre do Clóvis. O velho Maciel, com a lição de Pão-Duro, abria os olhos e os ouvidos para o chamego deles. Pão-Duro, proibido de falar com seu amor de outrora, vingava-se de ambos com intrigas. Falou com D. Emília. E antes que houvesse um caso, separaram as camas dois.

João Câncio tinha ao lado dele a negra Paula, um elemento de primeira ordem para uma guerra. A negra perseguia-me deitando bananas podres no meu prato, carne com nervos. Aborrecera-me o meu anjo mau da Semana Santa. E a minha inimizade com João Câncio caminhando para um desfecho agudo. Uma fita de cinema provocara esta situação. O aparelho de Chico Sota tremia a história de um adultério. O marido entrava de portas adentro e matava a mulher a tiros de revólver. Eu via João Câncio dizendo alto para que eu ouvisse:

- O pai de Doidinho também fez assim.

Não disse nada, e também não soube o que se desenrolou mais na tela. A minha raiva escondida cegava-me para tudo.

Voltávamos dois a dois para o colégio. Pelo caminho imaginava minha vingança contra o miserável. Não posso negar que pensei em matá-lo. Tinha comigo um canivete, que trouxera de casa. Mas este pensamento mau, afastei-o logo. No outro dia, no recreio, o cara de relógio pagaria.

Dormi com a vingança premeditada, e acordei com ela animando-me, insuflando os meus ódios. E no recreio chegou o momento. Fui a ele:

- Queria falar com você atrás da latrina. E saímos.

- O que estava a dizer no cinema era comigo? Filho da... !

E meti-lhe um murro na cara, com a raiva maior da minha vida. Rolei pelo chão, e desabafei à vontade nas dentadas e nos bofetões. Ouvi o velho gritando:

- Levantem-se, seus cachorros!

E não ouvi mais nada. O mundo fechava-se para mim. Tapavam-se os meus ouvidos e os meus olhos. Comecei, sim, a ouvir de muito longe uma voz afastada de mim. Vinha-se aproximando, vinha devagar; era como se ouvisse uma coisa abafada. E foi-se chegando, chegando. A voz já era de mais perto. Ouvia o que diziam. Abri os olhos. Seu Coelho estava perto de mim, dando-me uma coisa fria para cheirar. Falava para os outros:

- Não foi nada. Um ataque de raiva somente. Está a passar. Carlos, Carlos, o que é isso? Força, rapaz.

Os meus sentidos voltavam de um desmaio. Chegavam trôpegos para a vida. D. Emília, o director, a negra Paula, todos à beira da minha cama.

- Acho bom um escalda-pés. Pode ter sido um insulto de congestão- dizia seu Coelho. -Assim, logo depois do almoço.

Meteram-me os pés numa bacia de água quentíssima. Já estava dono de tudo o que era meu. Percebia as conversas de fora. - Não é preciso nada. O menino teve uma coisa passageira.

Um ligeiro insulto. É bom dar-lhe um purgante.

- Não precisa. Isso passa. Coruja chegou para me falar:

- Que diabo foi isso, Carlos? Você estragou o pescoço de João Câncio.

- Ele falou no meu pai, Coruja. Nem soube o que fiz. Mas vi os olhos de Coruja cheios de lágrimas. Passou-me a mão pela testa:

- Você esteve quase meia hora com uma vertigem.

O resto do dia foi todo de uma modorra, como se tivesse andado léguas e léguas a pé, a cabeça doendo-me, o corpo a arder. Da cama escutava a aula, as lições em voz alta, as perguntas e as respostas,os gritos do director, o estalar das palmatoadas. D. Emília, de vez em quando, chegava para me interrogar:

- Está a sentir alguma coisa?

Seu Coelho voltou:

- Que diabo! Você está a tornar-se bicho?

- Seu Coelho, ele falou de meu pai!

- Porque não me disse?

Heitor também apareceu depois da aula para conversar: - João Câncio está mordido no pescoço que faz pena. Todos queriam agradar-me, encher-me de satisfação com o estrago que fizera. Pensavam que assim melhorasse a minha saúde.

Demorou-se muito, o Heitor. Puxou conversa para me distrair:

- Domingo vão começar Os Mistérios de Paris. Seu Maciel vai levar o colégio para o poço de Maracaípe. O río já secou. Uma noite de um sono pesado, sem sonhos.

Levantei-me para lavar o rosto. O velho Maciel sentenciou:

- Fique no quarto. O senhor não sairá hoje.

Vi João Câncio. O bicho olhou-me de cara baixa. Senti uma espécie de alegria vendo-o humilhado, com as marcas dos meus dentes no seu corpo.

Não queria mais que me chamassem de Doidinho. A alcunha começou a ofender-me como uma descompostura.

 

Não sei porquê, fiquei outro no colégio depois do ataque. Não fora aquilo uma tolice, como afirmara o seu Coelho? Porquê então aquelas cautelas da gente grande e os sustos dos meninos que estavam comigo? Começaram a dar-me uma vida de excepção. O velho Maciel chamava-me pouco às lições, nos primeiros dias. D. Emília não deixava que pusessem farinha no meu prato. Entre colegas era olhado como se fosse com respeito. Não discutiam comigo. Parece que tinham medo de tocar naquele frasco de vidro. Havia recomendações do director a meu respeito.

Com o tempo deveria passar tudo aquilo. Não sofria nada. Comia bem, embora às vezes sentisse, com as saudades de casa, vontade de correr, uma espécie de agonia, de desejo incontido dentro de mim. Era somente de minutos. Passava, porém, e eu voltava destes frenesis bambo, de corpo mole.

Ficara com um medo medonho de ter outra síncope. Este contacto com o desconhecido, aquela meia hora de morto, com os sentidos entorpecidos, aquele passeio por fora da vida... estremecia só de pensar numa repetição. Mas o ataque fora somente porque me metera a brigar depois do almoço. O facto é que esta extravagância trouxera-me um terror novo. Podia, a dormir, ser atacado, amanhecer morto, sem ninguém para me acordar com uma coisa fria no nariz. Lembrava-me do primo Fernando. Ia sozinho pela estrada e os moradores encontraram o pobre, estendido no chão, desfalecido. Uma vez, já na calçada da casa-grande, ele caiu no chão com a boca a espumar. Poderia ficar como ele. Seu Coelho achava que não não tivera nada. Fora somente um embaraço passageiro. Certa noite acordei com uma perna como morta. Assustei-me, e não era nada a dormência comum. O diabo das doenças começavam a ter vida para mim, uma existência com todos os detalhes. Havia no quarto

de seu Coelho um livro de medicina. Lia os diagnósticos com os sintomas a bulirem dentro de mim. Tomava o pulso, e sentia-o a falhar. Aquele meu ataque podia ser um princípio de epilepsia. Era este o nome que o livro dava aos ataques como os do Fernando. Isolava-me pensando nessas coisas terríveis, que passavam o tempo em minha perseguição.

Uma ocasião, brincando no quintal, corri um pouco. E o coração bateu-me à pressa. Estava doente do coração. Fui falar com o seu Coelho.

- Deixe-se de parvoíces, menino. Você já viu um menino sofrer do coração?

Esta resposta firme bastou para correr a doença inventada. Havia outras, porém. O primo Fernando era um exemplo vivo que me acudia à memória. O único remédio era morrer. E se aquela vertigem tivesse sido um começo, um ensaio do mal? Procurava o livro consultado. Seu Coelho surpreendeu-me com a sua obra nas mãos:

- Deixe isso aí. Isto não é livro para meninos. Não me pegue mais nele. Depois você fica a imaginar doenças. Vá brincar. Você deu agora para andar bisonho, pelos cantos. Deixe de ser parvo.

Lera sobre moléstias do mundo. A que eu tivera trazia umas consequências horríveis. Poucos se curavam daqueles males. Isso notava eu. Não era o mesmo de antes. Não aguentava ficar muito tempo de cócoras. As juntas doíam-me. Aos catorze anos, com dores de velho. Vinha-me a certeza de que morreria cedo.

Faltava-me uma amizade que me envolvesse, arredando-me daqueles pensamentos. O colégio, um vazio humano para mim. Onde está Coruja, que me queria bem? Maria Luísa, que eu amava? Só havia gente que não correspondia aos meus entusiasmos, mais bichos do que gente. Clóvis, um fraco, que só podia viver acompanhado; João Câncio, Pão-Duro, José Augusto, os filhos do Simplício, Heitor - todos eles mais ou menos iguais. Procurasse um que fosse capaz de um afecto, de uma amizade grande, que não encontrava. Pobres arbustos humanos, incapazes de uma sombra, de uma boa sombra acolhedora. De Aurélio, nem se falava. Cada dia que passava, mais retrocedia. Cada vez mais doente. Os olhos tinham ficado amarelos. Todo ele amarelo, com a icterícia que viera da moléstia. Dormia perto de mim, e quando não o ouvia roncar, batia na cama, com medo de que tivesse morrido. Um dia morreria sem ninguém esperar. E se o Papa-Figo esticasse a canela ali no colégio como seria? Como seria o enterro do Papa-Figo, e quem ficaria no quarto com ele? Quem vestiria o Papa-Figo? Corria no impulso destes pensamentos.

Mas um dia Aurélio amanheceu com uma dor. Puseram a cama dele no quarto do meio. Amanheceu no outro dia com a mesma. Deram-lhe purgantes, banhos quentes. Vi seu Coelho abanando a cabeça, D. Emília vexada, o director soturno, e Aurélio gemia. Veio-me logo, violenta, a ideia da morte. O colega morreria naquela noite. Do quarto ouvia o gemido profundo, linguagem sinistra de quem se negasse a uma chamada de longe. Ninguém dormiu. Os banhos quentes sucediam-se, os cochichos, as ordens em voz baixa. E gente no corredor para baixo e para cima. José Augusto levantou-se para ir ver.

- Vá deitar-se. Não quero meninos aqui.

O relógio batia duas horas. Pelos quintais cantavam os galos. Uma coruja passou, sombria, por cima da casa. O diabo chegava mesmo na hora para o agouro. Ouvia a voz de seu Coelho:

- Não precisa de mais banhos.

E o gemido de Aurélio mais baixo, cada vez mais baixo: todo ele agora um rumor abafado. Parecia que o pobre roncava.

- Traz a vela.

Aquele pedido deixou-me aterrado na cama. Coitado do Papa-Figo! Estava nas últimas. O tiquetaque do relógio ouvia-se nítido no quarto. E era um soluço enfraquecido o que se ouvia do outro lado. Notava que o soluço de Aurélio já não acompanhava a ida e a volta do pêndulo: andava mais devagar. Corri para a cama de José Augusto, chorando. A morte rondava o colégio. Já vinha a entrar portas adentro; estava a olhar à cabeceira da cama de Papa-Figo. E tudo ficou consumado.

Às seis horas da manhã levantámo-nos a correr. O quarto do meio com uma vela acesa. Vi a cama do colega com um pano branco, e uma imagem de Jesus Cristo na parede, um Jesus Cristo de braços abertos. Não quis espreitar à porta, como os outros.

A casa encheu-se de famílias de perto. Chegou o caixão. Vestiram o Aurélio. Tudo isto sabia-o através dos meninos. Fugira para o fundo do quintal, para não ver coisa nenhuma. De vez em quando aparecia um:

- Fui ver o Aurélio. Está branquinho...

Estas notícias faziam-me medo. Era como se me viessem contar histórias de outro mundo.

O enterro saiu às quatro horas. O colégio todo acompanhou-o. A negra Paula chorava alto, urrando. Seu Coelho explicava às visitas, defendendo-se do caso perdido:

- Desconfio de uremia. Passou três dias sem verter águas. Lancei mão de todos os recursos.

Pobres recursos os de seu Coelho! O que podia saber a ciência do velho amigo?

Quando voltámos do enterro D. Emília chorava, boa amiga de todos nós. E à noite chorei também. Não era com pena do Aurélio. Chorava com medo da morte. E ela estivera ali dentro do colégio, a dois passos da minha cama. Pensava: -a estas horas o Papa-Figo está debaixo da terra. Por onde começaria a desmanchar-se o seu corpo?

Concentrava-me para expulsar da minha ideia estes pensamentos desgraçados. Eles tinham mais força, no entanto, do que a minha vontade. Mandavam em mim. Os outros meninos foram dormir apavorados. Cada um levava para o sono o terror daquele desconhecido que nos esmagava.

A mala do Aurélio estava connosco no quarto - lembrança ostensiva do pobre. Era todo o orgulho do Papa-Figo aquela mala arrumadinha, com uma estampa de santo em cima. Parecia que o estava vendo a arrumar a sua mala. Aproximávamo-nos, para ver:

- Saia daqui seu Carlos de Melo. Vou dizer a seu Maciel.

Não deixava ninguém ver os seus segredos.

Fiquei a olhar para a mala sem pegar no sono. Lembrança viva do defunto, ali dentro do nosso quarto. Lá estavam também os sapatos dele, feios como o pobre, a toalha e a escova de dentes. Virava o rosto para a parede, para não ver aquelas coisas. Tinham uma vida esquisita aquelas coisas do Papa-Figo. Deviam ter deitado tudo aquilo fora.

O outro dia ainda foi todo de preocupações com a morte. Seu Maciel sentira de verdade o desaparecimento do aluno:

- A família não teve coração. Escrevi ao pai duas vezes, mandei um telegrama, e só ontem me escreveu marcando o dia para levar o menino. Agora que o venha buscar debaixo da terra. Que trabalhão me deu! É a primeira vez que enterro um aluno interno meu colégio!

E falava-se bem do Aurélio. Era doente, dizia D. Emília, mas tinha um coração de menina. Entre os meninos, ninguém o chamava pela alcunha. A morte exigia destas considerações.

À noite, porém, o ambiente já parecia outro. Os meninos viam quase perdido o medo do Aurélio. Heitor quis ver se abria a mala. Estava fechada à chave. Atirou o chinelo do pobre para a cama do Zé Augusto. Este jogou-o para a cama do Heitor. Parecia-me que jogavam peteca com um sapo. E quando o chinelo caiu em cima da minha cama, soltei um grito de asco.

- Que é isso?

- É seu Heitor a atirar o sapato do Aurélio para as nossas camas.

- Levantem-se, seus insubordinados!

O quarto todo apanhou mesmo em camisa de dormir. Dias depois chegou o pai do Aurélio. Agradeceu muito ao director os trabalhos que tivera com o filho. Pediu desculpa. Só recebera o telegrama com um atraso muito grande. O engenho dele ficava a a muita distância de Timbaúba.

Almoçou connosco. Eu olhava para o homem descobrindo alguns traços do filho. Sobretudo os olhos azuis.

- Coitado daquele menino! - dizia para o director. - Desde pequeno que era assim. Estive em Recife com todos os médicos, e todos me desenganaram.

  1. Emília aliviava esta mágoa:

- Bonzinho! Não dava trabalho com o comportamento. Ele levou a mala do filho.

- Para o ano tenho um aluno para o senhor. Mas este o senhor vai ver: é um meninão!

Até o pai vinha para ali diminuir o pobre do Aurélio, fazer comparações humilhantes. Notava-se mesmo o orgulho do velho -falando do outro: um meninão. O que mandei para aqui era uma besta, um troço humano. O que está em casa, sim, que é meu filho. Vocês vão ver, vocês que troçaram tanto do Aurélio...

Quando ele saiu seu Coelho disse-me:

- Só tem conversa! Matuto besta... E ruim! Deixou o filho morrer, e ainda vem cone gabarolices e desculpas de papa-ceia... Tive vontade de lhe dizer umas verdades. Bicho sem coração!

 

O quotidiano do colégio amansava os meus nervos. Estavam ali a Gramática para decorar, cidades principais da Geografia, as regras de três da Aritmética. Não me davam tempo para ficar sozinho com as minhas preocupações. E de noite chegava à cama de corpo mole. Os exercícios de tiro faziam-nos este bem: preparavam-nos para o sono de animais cansados. Não tinha jeito para os exercícios militares. Faltava-me qualquer coisa, pois eu via todos os meninos sabendo fazer as meias-voltas e os direita-volver. Fui o ridículo do colégio. Quando o sargento gritava uma ordem, aturdia-me. E enquanto os outros se viravam para um lado, eu fazia justamente o contrário. Estoiravam em risadas.

- O senhor não pode formar no domingo.

Não tinha segurança nas minhas direcções, confundindo os lados, o esquerdo com o direito.

- O senhor é um trapalhão - dizia o sargento. - É que não aprende.

O velho Maciel disse-me:

- Pelo que vejo, o senhor precisa de palmatoadas, também, para aprender estas coisas.

O director ficava de longe, vendo os exercícios, no meio da rua. Vinha gente para as janelas, ver as nossas evoluções. O chefe do meu pelotão era Pedro Moniz.

- Acertar passo!

E tremiam-me as pernas, não acertava em nada. Aí é que eu errava. E as reclamações do sargento:

- Vou dizer ao director. O senhor não quer levar a sério a instrução.

Comecei então a apanhar por causa de mais esta disciplina. Pedi para sair do Curso. O velho recebeu-me com quatro pedras na mão:

- Está muito enganado. Quer ficar em casa na maroteira. Vá para lá.

Eram mais fáceis as lições de Gramática. Decorava tudo com uma precisão de máquina. Começou assim o meu novo martírio. A minha incapacidade para certas compreensões resolvia-se com castigos violentos. Eu, que já me libertara das palmatoadas pelas lições erradas, começava, agora, esta tarefa bem difícil de vencer. João Câncio, Pão-Duro, enchiam-se com os meus fracassos. Eram dos bons do Curso. Marchavam bem, sabiam as esgrimas. Teriam na certa patentes elevadas. Vergara, que já tinha formado no Diocesano, exibia-se como um grande. O sargento gostava dele e por isso lhe dera um pelotão para comandar. Não tinha dúvidas da minha inferioridade no meio dos colegas.

A grande parada de 7 de Setembro estava à porta. Ensaiava-se também o hino nacional. Haveria passeata. O colégio acamparia lá para as bandas da fábrica de curtume, um dia inteiro, como os exércitos. O mês de Agosto decorreu com estes treinos. O sargento ameaçava-me:

- O senhor não pode formar no dia 7.

Já experimentara a minha farda no alfaiate Ferreirinha. Com um bocado de esforço talvez vencesse essa incapacidade. Os meus cálculos ensinavam-me regras de nova vida. Havia de modificár-me. E ia para a formatura com estes pensamentos. Tocava a corneta. O tambor rufava. Saía o batalhão andando pelas ruas de Itabaiana. Bem defronte da Igreja parava para os exercícios.

- Ordinário! Marche!

- Companhia! seeentido!

Estes gritos todos entravam-me pelos ouvidos dentro, perturbando-me. Não sabia obedecer.

Direita... voolver!

E virava para a esquerda. Ficava no meio dos outros como uma barata tonta, perdido, desorientado.

- Que diabo é isso? - gritava o sargento. - O senhor está a fazer pouco de mim? Não estou aqui para aguentar isto. Saia da forma.

Saí para um canto, de pé, olhando para os colegas. Todos acertavam. A um simples apito, mudavam de posição, todos iguais, dirigidos de fora pelo sargento, muito satisfeito da sua obra. Só eu era aquele trambolho no meio de tanta disciplina. O velho Maciel chegou para ver:

- Porque não está o senhor na forma?

- O sargento mandou-me sair.

- Porquê?

- Eu não acertava.

- Mandei sair este menino porque estava a fazer pouco da instrução.

O velho feriu-me mortalmente com o olhar:

- O senhor siga para o colégio. Espere lá que eu vou já.

O diabo metera-se comigo outra vez. Desde que chegara de férias não tinha ainda apanhado. Somente agora, por causa daqueles exercícios, era ameaçado de quando em vez. Lia bem, melhorara a letra, adiantava-me rapidamente. Vinha agora aquele sargento três vezes por semana para estragar esta conquista do meu esforço, da minha memória. Sentei-me à porta esperando o director. Era fim de tarde de cidadezinha do interior. Lá estavam as famílias nas ruas. O piano do Dr. Bidu repetindo as mesmas notas da lição. A Igreja do Carmo toda branca e pequena, muito humilde olhando para a torre grande da Matriz. Soprava um vento frio, desses que fazem a gente pensar em coisas tristes. Da janela do Dr. Bidu conversavam para a janela do juiz de direito. Não sei de que falavam. Daí a pouco, surgiu o director numa esquina. Vinha de passo largo, com vontade mesmo de chegar a casa. Fui esperá-lo na sala de aulas. Ouvia os passos dele na rua. Dava boa-tarde às vizinhas, abrindo o ferrolho da porta. Já estava a gritar:

- Onde está o senhor Carlos de Melo?

Viu-me junto da mesa.

- Então o senhor quer anarquizar os exercícios?

Não senhor, não tenho jeito.

- Não quero conversas, seu doudo. Não quero conversas.

E o furacão desencadeou-se, gritando tanto que D. Emília apareceu:

- Maciel, o que é isso? Olha a mulher do Bidu, que está à janela, e ouve. Parece que o mundo vai acabar.

- É este menino que me esgota a paciência, mata-me.

- Mas não precisa de dar esses gritos. Quem passa na rua fica a pensar que você está furioso.

- Qual furioso qual nada! Isto é um estabelecimento de ensino. Aqui castigam-se os insubordinados. Quem não estiver bem que se mude.

E bateu-me. Tocava a corneta do Curso na rua, o tambor rufava. As ordens imperiosas do sargento chegavam até dentro de casa. - Companhia... seeentido! Dispersar! Havia ordens mais severas ali dentro.

- Quinta-feira vou ver o senhor nos exercícios. Quero apreciar as suas graças.

Tinham desaparecido todas as considerações pelo doente.

- O senhor o que é, é um refilão de marca. Briga com um, briga com outro. Pois é do que eu gosto: de gente assim, ouviu? De gente assim.

  1. Emília interrompeu-o:

- Acabe com isso Maciel. A mulher do juiz está a ouvir tudo.

- Não tenho nada que ver com a mulher do juiz! Que se amolem! É boa esta, é boa! Então não posso repreender os meus alunos? A senhora dona Emília não quer incomodar os vizinhos... Ora vá plantar batatas!

- Grite à vontade, homem de Deus. Pode gritar! Não tenho nada com isso não...

- É o que eu lhe digo: vá mandar lá na sua cozinha. Deixe-me no meu lugar.

No meu canto, abatido ainda pela reprimenda cruel, escutava o casal arengando.

- Era somente isto o que me faltava. Já não posso levantar a voz. Não posso nem dar um espirro, que não venha a senhora D. Emília reclamar...

  1. Emília já tinha deixado o marido comigo. E a fera virou-se para mim:

Prepare-se para quinta-feira. Quero ver as suas gracinhas. No outro dia, na aula, ainda falava. Chamou-me nas lições, experimentando-me de todos os lados. Não encontrou nada para falar. E a propósito não sei de quê veio o meu nome:

- Aqui, agora, temos um palhaço, um engraçado. Está bem. Ele pode ficar certo de que lhe tiro as marmotas.

Olhei para ele sem querer.

- É com o senhor mesmo. Amanhã vamos ver isso. E depois:

- Seu Olavo Lira, o que é que o senhor está a fazer? - Nada, senhor.

- Mostre-me essa pedra. - Não tem nada, senhor.

- Mostre-me essa pedra, já lhe disse. E o menino deu-lhe a pedra.

- Que conta é esta? Que história de 96 palmatoadas é esta? - Estava a contar as palmatoadas que o senhor deu hoje. - Contando as palmatoadas? Pois bem, venha cá, venha completar as cem. Venha, seu Lira.

E começou:

- Noventa e sete, noventa e oito, noventa e nove - e arredondou a conta do menino - cem.

Na quinta-feira dei parte de doente. Fingi-me com dor de cabeça.

O velho olhou-me de lado:

Então não vá para os exercícios.

Fiquei à porta observando os colegas nas manobras, sentindo inveja daquela facilidade. Porque seria que eu não dava para aquilo? Todos os burros do colégio davam. João Câncio metia-se -em castigos por causa dos verbos, e no entanto brilhava entre os outros. Todos correspondiam ao esforço do instrutor. Somente eu com aquela aversão radical. Talvez fosse o meu nervoso. No sábado voltaria. Não seria possível que errasse tudo como da outra vez. Assegurava-me definitivamente na tentativa a fazer. Podia ir quem quisesse para lá. O velho Maciel não me meteria medo. Porque diabo não soubera dominar a minha indisposição, as minhas repugnâncias?

No sábado atrapalhei-me mais do que nos outros dias. O sargento levara uns rapazes para ver o adiantamento dos seus subordinados. O director, com o Dr. Bidu, comentava de longe os acontecimentos. E começou o meu fracasso. "Direita volver!" - e eu virava para a esquerda.

Qual é então o seu lado direito?

Fiquei indeciso. A canalha caiu na risada.

- Não posso mais com o senhor. Saia da forma.

Deixei o meu lugar com lágrimas nos olhos. Sabia porque chorava.

- O que foi, menino? - perguntou o Dr. Bidu.

- Não acertei, e o sargento mandou-me retirar.

- Já sei - acrescentou o director.,- Vá para o colégio. Não é a primeira vez.

E o resto foi como sempre. As mesmas palmatoadas, os mesmos gritos. Ouvi D. Emília dizer-lhe:

- Tire-o, Maciel. Parece que o menino não tem jeito. Aurélio não era assim?

-Não o compare com o outro. Era um doente. Este é um insubordinado.

Ficava a pensar no outro dia de exercício, amedrontado. Podia chover. Tomara que chovesse. E na terça-feira lá chegou o sargento. Chamou-me sozinho. Fiquei na frente dele para uma lição particular. "Direita... volver!", "Ordinário! Marche!" "Descanse. O diabo eram as minhas confusões. Não acertava depressa com as ordens dadas, atrapalhando-me com os lados.

- Só se amarrar uma fita no seu braço esquerdo para o senhor acertar.

Nesse dia triunfei. Fui até ao fim dos exercícios. Um triunfo aparente, porque depois deitei tudo a perder. Os meninos não queriam formar a meu lado:

- Ele atrapalha a gente.

Quando o velho não aparecia nos exercícios, chegavam as queixas:

- O sargento manda dizer que o senhor Carlos de Melo hoje não fez nada.

- Onde está ele? Venha cá, seu palerma.

Proibia-me o cinema até me desempenhar bem na instrução militar.

Seu Coelho sentia o tamanho da minha tragédia.

- Maciel tem a cabeça dura. Não vê que este menino não dá para isto?

Mas sempre devia haver uma coisa para me perseguir. Vencera a Gramática, a Leitura, os problemas, dando trabalho de gigante à minha memória. Tudo aquilo me parecia fácil em relação às ordens do sargento. Decorava as perguntas e as respostas sozinho. Aquela história da instrução no meio dos outros perturbava- me. O meu nervoso não sabia manter-se nas provas em público. E o resultado era nova escravidão a que me prendiam. Chegava lá decidido, e quando o homem gritava para os alunos, eu perdia completamente o domínio da minha vontade, ficava como doido, aturdido.

 

No colégio só se falava na parada do dia 7. Experimentavam-se uniformes. O meu chegara, com o quépi de abas grandes para a frente. Não caía nos olhos, como os bonés novos do exército. Deixei-o no fundo da mala sem entusiasmo. Via as divisas de Pão-Duro, roído por dentro. João Câncio e Vergara ganharam patentes de sargentos. Até Clóvis tinha uma fita no braço. Troçavam de mim:

- O Doidinho fica atrás para levar as panelas.

Que se danassem, todos eles, fossem para o inferno. Estava no colégio para aprender a ler, e não para me meter a soldado. De que me valeriam aqueles exercícios? Viessem para a Geografia, para a História, e eu daria conta do que estava a fazer ali. Mas aquilo tudo não passava de desculpas para me iludir. Procurava sarar as feridas, os golpes fundos que o progresso dos outros me abria na alma. Não podia enganar os meus desejos de menino. No entanto não dependia de mim o meu sucesso. A força de vontade não chegava. Conversa, nenhuma. Se valesse, o melhor aluno do Curso seria eu, porque quem havia, ali, com mais vontade de ir para diante, de ganhar uma fita? A verdade dura era que nunca me igualaria aos outros. E Pão-Duro, João Câncio, José Augusto, Clóvis compreendiam os sinais de ouvido. Contavam as conversas do sargento: "Em tempo de guerra faz-se assim." E discutiam o valor dos exércitos.

- O maior exército do Mundo é o alemão -afirmava um.

E o outro contava passagens da luta do Japão com a Rússia. Armavam guerras do colégio com o Diocesano.

- Vocês aqui apanhavam longe - adiantava Vergara.

Era dos nossos. Mas tinha a vaidade de ter pertencido a **o hostes. O Diocesano tinha carabinas de verdade.

- Vocês aqui não sabem manobrar o fuzil. Lá ensina-se

Isto que a gente faz aqui é uma ginástica.

O sargento disse que vai trazer um fuzil para o colégio.

- Quando? Só se for no dia de São Nunca...

Vergara andara por terras maiores, vira coisas grandes, queria mostrar-se à altura do que vira. Estava sempre a favor do Diocesano contra o I. N. S. C.

- Você no Diocesano era raso. Aqui quer mostrar-se.

Só se conversava sobre coisas do Curso, exercícios, toques de corneta, guerras, esgrima. Todo este cheiro de pólvora me enjoava. Era uma figura morta nestes assuntos, uma praça desclassificada. Fizera, porém, uma descoberta, que me pagava muito bem de todas estas decepções: descobrira Carlos Magno, a história do imperador Carlos Magno. Grande livro, que nada tinha que ver com a vida, mas que me veio mostrar que eu era ainda criança, porque acreditei nele, da primeira à última página. O céptico da vida dos santos, milagres da História Sagrada, apaixonava-se, entregava-se de corpo e alma ao romance dos Doze Pares de França. Que grande coisa ser cristão, filho, legítimo de Deus, e brigar com os mouros, os turcos, os infiéis! Oliveira, vinham contra ele dez mil homens armados até os dentes, e ele sozinho enfrentava o exército poderoso de espada na mão. Matava mil. Os outros fugiam com pavor daquele braço formidável. Oliveira caía desfalecido, com o corpo picado de feridas. Tinha marcas de espadas da cabeça aos pés. Aparecia Roldão E dava-lhe a beber o bálsamo sagrado. E as feridas secavam, e o herói reanimava-se para nova luta. Era um livro de capa encarnada, grosso, de páginas encardidas, amarrotadas. Com ele aprendi a temer mais a Deus do que com o catecismo. Repetia a história duas, três vezes. Odiava os turcos, amava a Deus que protegia as hostes de Oliveira. Carlos Magno, para mim, não seria um herói. Roldão o seu sobrinho, Oliveira, o jovem protegido das forças celestes estes, sim, arrebatavam-me. Discutia com os colegas: - Esta história é mentira. Roldão morreu.

- Morreu coisa nenhuma!

- Pois veja no dicionário de Clóvis.

Fui ao dicionário. "Roldão ou Orlando. Um dos pares de Carlos Magno. Morreu em Roncesvales, protegendo a retirada do exército." Era mentira. Não morrera, não. Que me importavam os dicionários? Roldão seria para mim eterno.

Quando os meninos chegavam contando os feitos de generais, de almirantes, eu lançava-lhes em rosto os meus guerreiros da antiguidade. Que era Napoleão, comparado com Oliveira? Napoleão nunca brigou com dez mil turcos sozinho. Brigava de longe, de canhão.

Refugiava-me com os meus Doze Pares de França, na companhia destes homens íntimos de Deus. E o colégio a preparar-se para a parada. Firmino Cotinha, o dono do curtume, oferecera ao director toda a comida para a meninada no dia 7. A parada terminaria, assim, com um piquenique. Tudo isto se anunciava com uma profunda tristeza para mim. Estava ainda a ouvir a voz nasal do sargento: "O senhor não pode formar no dia 7. Se no sábado não melhorar, digo ao director para o tirar da formatura. " O cúmulo, aquela minha inadaptação às manobras militares. Quando ficava só no recreio, começava -a exercitar-me fazendo meias-voltas, apresentando armas. Surpreenderam-me uma vez. Virando-me para trás, descobri os meninos a troçar:

- Para que é isso, Doidinho? Para carregar com as panelas não precisa isso tudo.

Irritei-me como se me tivessem apanhado a fazer uma coisa feia. E de pedra na mão espantei o grupo. A pedra, porém, bateu na janela da sala de jantar. Ouvi o grito ameaçador:

- Quem atirou esta pedra?

Vi pela primeira vez os meus colegas à altura de gente de verdade: Ninguém respondeu.

- Quem atirou esta pedra? - O mesmo silêncio.

Já estava no alpendre o director farejando o culpado.

- Fui eu.

- O senhor? Então endoideceu! Venha cá, que eu lhe dou o

remédio.

E deu-me com a palmatória. E gritou, e fez o diabo.

- O senhor não sabe é obedecer ao instrutor. Vá buscar o fardamento, que eu quero ver.

Trouxe a farda. Relaxadamente deixara o quépi por baixo das outras roupas, machucando-o todo. A palmatória acariciou-me outra vez.

- Relaxado! O senhor só presta para andar de chapéu de couro com os vaqueiros de seu avô. Mas eu ensino-o a ser gente, nem que seque o meu braço. Pare com esse choro, seu doudo!

Tudo aquilo por causa daquele Curso. Antes era a Maria Luísa a atormentar-me com a sua volubilidade. Não dormia pensando nela. Fora-se embora, aliviara-me daquela sujeição infernal. Mas Maria Luísa ainda me exaltava com os seus olhos, com os seus risos, com a alegria do seu amor. Sofrera muito com Maria Luísa. O Curso trouxera-me, no entanto, desgostos maiores. A morte de Aurélio perdia-a de memória, só a pensar no sargento, nos fiascos dos dias de exercícios, nos castigos para as minhas faltas. Aquilo era a maior miséria do mundo. Então aquele homem não compreendia que eu não dava para a coisa? Somente para sustentar os seus caprichos ! Fazia-me inferior na frente dos outros, submetido às grosserias dum sargento, às risotas do colégio inteiro.

Pensei em escrever uma carta para casa. Manuel Lucino, agora todas as terças-feiras, vinha ao colégio trazer-me merendas de casa e quatrocentos réis que me mandava o velho Zé Paulino. Trazia a lata de cocada e a moeda de cruzado. Carta, porém, não dava resultado. A outra perdera-se. Fora um sacrifício em vão. O velho chegara ao colégio, e o director com duas palavras cortara os meus planos.

Assim é que não podia continuar. E um ódio de morte me dominou contra o velho. Até àquela data apanhara por qualquer motivo. Não seria inocente que me entregava às penas. Lição errada, maus passos de comportamento. Havia sempre uma razão para castigo. Começava agora a sentir-me perseguido pela injustiça, a sofrer sem nenhum pretexto. Lembrei-me do tio Juca, de escrever-lhe uma car-ta. O meu avô queria-me muito bem, mas não acreditaria nas minhas queixas. Menino, para ele, devia mesmo apanhar, embora não adotasse esse regime nem para os moleques do pastoreio. Tio Juca falava-me em livros que condenavam o castigo corporal. Imaginei a carta e escrevi-a. Fiz-me vítima sofredora, exagerando de mais as mágoas, Mandei dizer até que tinha vontade de morrer. O exagero estragou-me o que havia de verdade na carta, e talvez por isso o meu tio não me deu atenção. Esperei-o no colégio, procurava ver o povo que descia do comboio, quando batiam à porta corria para ir ver. Não veio, nem me mandou resposta alguma.

 

No sábado saí-me pessimamente nos exercícios. Fui e de vez da formatura. O velho mandou-me para casa sem me olhar.

- Pode ir-se embora.

Sabia o que queria dizer aquela indiferença: uma raiva da meia dúzia de palmatoadas no mínimo para desbafar.

Contei a seu Coelho quando cheguei.

Não se importe. Vou falar ao Maciel.

Dava-se de poucas conversas com o genro, mas a mi valia uma troca de palavras. Ouviu-o a defender-me. E Maciel:

- Qual doenças, qual nada! O senhor vai atrás das man meninos!

- A criança é mesmo nervosa, O senhor não se lembrale ataque?

- A mim afirmou o senhor que aquilo não fora nada.

- Sim, mas pode voltar.

- Não volta, não volta... Tenho um remédio para ele.

- Bem, faça o que quiser. Depois não me chame para médios, apressado.

Não houve doença, nervoso, criança excitada, que se Entrei na sova. Naquele sábado seis palmatoadas. E gritou. O velho Coelho tossindo. Era o seu sinal de aborrecimento, o e garro de protesto. Velho ruim, o director. Fiquei na sala incha raiva, planeando coisas absurdas. Tomara que aquele diabo m se! Porque me machucava impiedosamente aquela história de nhar sem culpa. Desse-me com razão, mas somente porque conseguia aprender aquelas voltas e viravoltas, não me batesse era judiar de mais. Pensei até em matar o velho. Esta ideia homicida chegou-me na cama. Lembrava-me de uma notícia que Vergara lera num jornal: uma mulher matara-se com arsénico. Seu Coelho tinha um frasco de arsénico em cima da mesa, e chegou-me assim a sugestão criminosa. Deitaria o frasco de veneno no copo de doses do director. Ele guardava-o no aparador, e de hora a hora ia bebera sua tolher de homeopatia. Deitaria ali todo o frasco. Dormi com.esta premeditação e, acordei com vergonha de ter pensado naquilo. Apertei-lhe a mão de manhãzinha dando bom-dia, meio com remorsos. parecia que já tinha atentado contra a sua vida. E se eu tivesse posto o veneno? E se o velho morresse? Via-o morto, D. Emília chorando, o povo em casa: "O que foi?" "Ninguém sabe? "Morreu de repente." E eu sabendo de tudo, calado. Depois descobriam. Encontravam o frasco vazio. Agitava-se a cidade. O Dr. Bidu meteria gente na cadeia, a mãe de Licurgo, todos os inimigos de seu Maciel. E eu calado, sofrendo da pior dor, que era esta de um coração fechado, sem poder abrir-se.

Que estupidez pensar estas coisas, nas vésperas da grande festa do colégio! Dois dias sem aula, seguidos um ao outro. E a parada sonhada, discutida, contada nos seus detalhes para me fazer inveja. O sargento levaria também o Curso dos rapazes para combates simulados. Estava de fora, definitivamente, de qualquer hipótese, a minha ida com eles. Acompanharia seu Maciel e Coruja. Coruja tinha-me dado um desgosto sério: deu parte de mim. Foi por causa do Heitor, numa discussão de tolices. Falava-se que a música de Itabaiana não se comparava com a de Timbaúba. Eu mais os outros troçámos da glória de Heitor, naquela banda melhor do mundo. E tanto o arreliámos, que Heitor se enfureceu. Estoirou de raiva dando-nos pontapés. Demos-lhe uns empurrões. Coruja ralhou mas os brincalhões não lhe deram ouvidos.

- Vou dizer a seu Maciel.

Ninguém acreditava que ele nos denunciasse.

- Ele não faz queixa. Doidinho está no meio.

E por isso dormimos sossegados, sem medo do relatório. O velho sentado na cadeira de braços, Coruja chegou:

- Seu Maciel, os meninos estiveram impossíveis ontem. - Quem?

- Seu Heitor, seu António Coelho, seu Vergara - e com uma voz mais forte, como se tivesse sentido repugnância - e seu Carlos de Melo.

Não era pelo castigo que eu sentia aquela denúncia. Aquele caso era o menos. Era Coruja, o amigo que desaparecia, nivelando-me com os outros. Por mais que descobrisse recursos para defendê-lo, a mágoa estava ali, viva, dessas que doíam cada vez que pensava nela. Aquilo assemelhava-se a um sonho: Coruja a dar parte de mim. Há três meses tudo no mundo poderia ser possível se me viessem dizer: "Olhe, daqui a uns dias você vai apanhar por causa do Coruja", parecia-me um absurdo, uma invenção inacreditável. E, no entanto, o mundo dera esta volta. Via o Coruja tomando conta da gente. Não lia como sempre. Olhava para um lado só. Estava longe. Teria recebido carta do pai? A irmã teria piorado? Pedi para sair. Deu-me ordem sem me olhar. Não, Coruja sofria, por mim, injuriara o amigo. Cumprira o seu dever, magoara a sua afeição para não praticar uma injustiça, para ser justo. Coisa de um carrasco com consciência...

 

Ainda não falara no grémio literário do Colégio. Pagava cada aluno um tostão por semana. Faziam-se discursos, ou melhor, decoravam-se os discursos de seu Maciel. António Meneses, de cabeça loura e grande, recitava as orações cívicas. Armavam a tribuna no meio da sala, e as sessões do Grémio N. S. C. realizavam-se. O director ficava de longe. O presidente dava a palavra ao tribuno que se desobrigava. Em todos os discursos devia haver uma citação em francês. Os oradores passavam o dia antes da sessão magna recitando a peça para o mestre. Ouvia os exercícios maravilhado de tudo. Estes intérpretes dos talentos do director faziam uma espécie de corte no colégio. Eram os eleitos da vaidade de seu Maciel. António Meneses enchia-se com isto. Parecia um pavão; com a roupa preta, o cabelo penteado de lado, na hora da desova. Falou no dia 14 de Julho. Não entendia o que lhe saía da boca. E no meio a frase em francês. Também dava ao Grémio a minha contribuição: a minha colcha de rosas vermelhas servia de forro para a tribuna das solenidades. Não me cobria com ela. Ficara um objecto colectivo para as festas. No fim do ano havia sessão solene. O promotor da cidade fazia um discurso. O colégio enchia-se com as famílias dos alunos. Esperava-se este dia com ansiedade, pois seria o último do internato.

Agora, com o Curso, o entusiasmo passara para o garbo militar. António Meneses ganhara a maior patente. Ainda era uma homenagem ao intérprete. O grémio literário só servia para isto: uma espécie de desabafo literário de seu Maciel. D. Emília gabava muito o marido:

- É de família importante! E dizia o nome por extenso:

- Francisco Lauro Maciel Monteiro! Sobrinho do poeta Maciel Monteiro, barão de Itamaracá. Maciel tem poetas na família.

Nas sessões ele ficava de parte escutando-se a si mesmo nos gramofones com que ensaiara. Ele tinha uma cara diferente na hora dos discursos: o lábio subindo de lado, o sobrolho carregado que um deles truncava um pedaço ou falhava numa interjeição. O francês saía devagar e ele baixava a cabeça com um riso no fim da frase como, se o menino tivesse, saído de um perigo de vida.

O grémio não tinha nem um livro. Pagava-se o tostão não sei para quê. Não pagávamos a missa do padroeiro do colégio. Nesse dia o Dr. Bidu almoçava connosco. A culinária da negra Paula dava uma volta, a carne de sal desaparecia em troca de galinhas e frangos. Valia a pena o tostão do Grémio N. S. C. Havia um aluno célebre no colégio: um que fizera o discurso sem ser ensinado: o Octávio. Este nome glorioso deixara rastro na casa.

Achava um encanto naquele tom elevado de voz do discurso. Meneses sabia gorjear, uma voz clara elevando-se e baixando nos minutos precisos, todo ele acima de nós como um que tivesse missão maior a desempenhar. A tribuna parecia-me um altar. Se ali seria o mesmo que subir da terra, ser outro, uma pessoa diferente. Por isso as sessões do Grémio, com os discursos do director, dos quais nada entendia mas que ouvia como a uma música, satisfaziam-me bastante. Eu sabia que aquilo não tinha saído da cabeça do Meneses. E não compreendia nada. Mas só a voz naquela gradação

sonora me fazia estremecer. No engenho falava-se muito do Eduardo do Itambé:

- Fala bem. Falou quatro horas no júri.

Herdara este encanto dos meus pela oratória. Pelos engenhos corria de mão em mão o processo de Vieira de Castro, o grande tribuno português que matara a mulher. Ouvia uma prima do Maravalha, lendo alto, na cabeceira da mesa, a peça da defesa. O réu dissera poucas palavras para trespassarem a alma da gente. Chorando, levantou-se para pedir aos jurados que provassem a inocência da mulher que ele iria para a forca satisfeito. Aquilo arrepiava a assistência da sala de jantar:

- Só de romance - dizia a velha Sinhazinha. - Não acredito nisto.

O júri mandou o homem para o desterro de África.

Ali no colégio os discursos referiam-se às datas. Não alcançavam as palavras difíceis. Meneses, porém, compensava tudo isto com a sua eloquência, com a sonoridade dos seus gemidos de garganta.

Amava esta mudança da vida comum, esta saída do natural, do falar rasteiro de todos os dias. O colégio fora um dia a uma conferência de um doutor. Levou mais de uma hora a falar baixo, sem levantar os braços, sem mudar de voz. Não me agradou. Falava mal.

O poeta e o orador deviam ser seres opostos a nós outros. Lembrava-me das modinhas cantadas no engenho. João de Noca, ao violão, era um grande. Falavam dele porque nunca soubera o que fosse o cabo da enxada. Mas dessem-lhe um violão e compreendia-se que razões o levavam a não estragar os seus dedos.

- De quem é esta moda, João?

- Castro Alves.

Era o poeta. Pensava que um poeta não tivesse nada de humano, criatura aérea, julgava-o de muito distante. O Castro Alves das modas de João de Noca seria uma espécia estranha, um habitante de outro mundo, de cuja vida ninguém soubesse. Fazer versos para mim tinha qualquer coisa de sagrado, de impossível. Eu era de uma família sem letrados, de gente que fazia da terra a sua única obra de arte, a sua maior alegria. Plantavam e colhiam. O velho Zé Paulino não abrira um livro que não fosse a folhinha que marcava as luas. Fazer um livro, coisa misteriosa para mim! E os oradores, os escritores e os poetas pareciam-me sempre gente que andava acima de todos nós. O Grémio aproximava-me mais dessa realidade. Vira fazerem-se os ensaios, os trabalhos do velho Maciel. Não era tão difícil assim fazer um discurso. Mas aquilo, bem pensado, não era discurso. Queria ver o Meneses falar por si mesmo, falar horas seguidas, saindo tudo de dentro dele. Isto de decorar não representava grande coisa. Eu já estava a fazer descrições.

Lera um livro que tinha aparecido no colégio nas mãos de Clóvis. Um livro cheio de figuras e de retratos de homens de lei. Havia nele a história de uma pantera com um caçador. Um caçador no deserto encontrara uma pantera. Viviam numa intimidade de amantes. A fera criara ao homem uma paixão de mulher. Gostava de fazer-lhe carícias. Um dia, porém, num destes carinhos grunhia para ele num beijo mais afectivo. O caçador pensou que fosse outra coisa aquela impetuosidade amorosa, e matou o animal. História triste. Via que o sol que se punha no deserto dourava as palmeiras, fazia o céu bonito e pensei nas minhas descrições. Na primeira que fizesse diria tudo diferente, assim à maneira daquelas palavras do livro. E meti-me a grande. Nem me lembro sobre o que era a minha primeira descrição, depois disto. Só sei que descrevi o pôr-do-sol, iluminando com os seus raios as relvas floridas dos campos. Os passarinhos gorjeavam nas árvores os seus cantos harmoniosos.

- Donde tirou o senhor isto?

- De ninguém. Foi da minha cabeça.

- Melhor fora que em vez destas parvoíces o senhor soubesse escrever bem as palavras.

Qual! Ali não se podia escrever bonito. O meu primeiro ensaio literário tivera aquele destino. Meneses fazia descrições admiráveis. O velho lia alto:

- Isto podia ser publicado até em jornal! Muitos jornalistas por aí não chegam aos seus pés.

Mas ele decorava os discursos.

Havia palavras que me tentavam. Sublime, era uma delas, coruscante, era outra. Hora sublime do poente, sol coruscante - encontravam-se em todos os meus trabalhos. Seu Maciel já me chamava de "seu coruscante". Era um atraído pelos vocábulos. E o que poderia fazer ??

Uma tarde comecei a olhar o mundo. O sol estava no poente fazendo o céu não sei de quantas cores. O sino batia. E uma doce tristeza cobria as coisas da terra. Pensei numa descrição. Podia escrever assim as minhas impressões. Fui buscar um lápis. E só me saiu da cabeça a hora sublime do sol-posto. Não dava para aquilo. Seria como o meu povo. Não devia meter-me onde não podia estar.

A gente do Santa Rosa achava lindo um discurso. O velho Zé Paulino pagaria caro para ter tido um filho que brilhasse. Mas lá ninguém fazia cartas difíceis, nem se falava com "ss" demais. Tudo era chão e simples entre os meus. O sol não iluminava com os seus raios coisa nenhuma; o sol ali secava os partidos, criava as lagartas. E quando se olhava o céu era para ver se vinha chuva, se o tempo levantara ou se havia círculos de Inverno na lua. Aquele povo nunca dera um poeta. E por isto só João de Noca das modinhas do violão andava com esta palavra na boca. Ele sabia uns versos tristes que me tocavam: "Se eu morresse amanhã."

- Bicho preguiçoso - dizia o meu avô. - Quer viver a vida toda cantando loas.

E mesmo às pulgas não se chamava, no Santa Rosa, poetas?

- Está recitando os poetas, hem?

As primas do Maravalha, sim, estas gostavam dos " ss", de romances. Havia um "moço loiro" quase preto e esfarrapado. Tinha-se álbuns de poesia para os serões. João de Noca montara seu quartel-general. Era querido, namorava, casou-se até por lá.

No casarão do velho Zé Paulino não havia quarto de hóspedes para as musas.

 

A corneta fazia-se ouvir à porta do colégio. Os gritos de comando cresciam na pacatez das tardes de Itabaìana, Pareciam um brado de gigantes no meio daquele silêncio de ruas largas e desertas. Desde o primeiro de Setembro que se exercitavam todos os dias. Ficava na rua vendo as manobras, as piruetas, os lances de esgrima dos colegas. As janelas enchiam-se de moças para aquele espectáculo em que não podia entrar como figurante. A mulher do Dr. Bidu perguntou a D. Emilia:

- Este menino não entrou?

- Não tem jeito.

- E só ele é que não tem jeito?! -repreendeu-me com a sua admiração.

- É doente.

- Ah! É o do ataque. O que morreu, coitado, fazia pena. E que pai, dona Emilia! Nem veio ver o menino doente.

- Maciel matou-se com aquela doença.

- Não era para menos...

- A senhora não imagina o trabalho que deu. Alunos destes não pagam o trabalho. Este, não. Só tem esta pecha com os exercíci+os. Adiantou-se muito aqui. Avalie a senhora que quando chegou ia no segundo livro e já está no segundo grau.

Mas não me contentavam estes elogios. A verdade dura estava à vista de todo o mundo. Somente eu era o que não tinha jeito.

Começavam a chegar o meu nervoso, as impaciências, as saudades de casa. Licenciado dos exercícios, sem preocupações, os sustos, a melancolia e a insatisfação voltavam aos seus lugares. Sentia-me cada vez mais sozinho, espremido num meio de decisões e sem grande coisa em que pensar. Carlos Magno relaxara-se no meu interesse. Vivia agora de esperar o portador que vinha de casa para a feira. Trazia as minhas encomendas. Pobre Manuel Lucino! Os colegas troçavam dele, dos seus bigodes grandes, de sua fala arrastada. Eu esperava na porta escondido para que não o vissem. E indagava de tudo. Estavam a colocar chuveiro e telefone no engenho. Tia Maria fora para casa dela. A avó Galdina morrera. E estas notícias ficavam comigo, conversando, ajudando-me a passar o tempo como bons amigos em palestra. A avó Galdina, a boa negra da costa de África, enterrada no Cemitério de S. Miguel. Tinha mais de cem anos. Quando chegavam visitas ao engenho iam logo mostrar a antiguidade. E ela olhava para toda a gente com aquele riso bambo, sem dentes, com a memória viva para tudo o que lhe perguntavam. Cosia sem óculos. Arrastava-se em muletas e toda a ternura e a bondade de sua raça se podiam encontrar naquele centenário coração de escrava. Avó Galdina! Agora chegava-me esta notícia: tinha morrido. Reproduzia na minha memória a sua vida. Lá vinha de manhã para o banco da cozinha, devagarinho. Levava mais de uma hora para vencer os trinta metros da sua viagem. Davam-lhe a comida, tudo comia, tudo que lhe dessem era bom. Avó quer isto?

Queria tudo.

- Menina, dá-me uma caneca de água.

E os beiços longos e bambos parecia que iam cair quando ela falava. Passava o dia inteiro ali. Os moradores tomavam-lhe a bênção. A negra Generosa chamava-lhe tia Galdina. Era a única que lhe dava este tratamento. Chorava por tudo. A gente brincava com as suas lágrimas:

- Vamos fazer a avó chorar?

- Vamos.

E um chegava perto dela fingindo uma dor, espremendo-se de sofrimento.

- Que é, meu filho? - com os olhos marejando a água boa de suas fontes.

Às vezes ficava na camarinha com as suas dores, para as suas juntas enferrujadas. Há anos e anos que se arrastava assim. Vira o meu avô menino.

- loozinho, carreguei com ele nas ancas.

"Carreguei com ele nas ancas": que expressão de animal, como de besta de carga. O velho Zé Paulino trouxera-a de seu no inventário, já assim inútil, arrastando-se nas muletas. Quando voltei para casa no S. João quis ver-me no seu quarto e como naquele dia da minha primeira chegada ao Santa Rosa.

- Benza-o Deus! A cara da mãe! Como está grande o da D. Clarisse!

Eram assim os seus cumprimentos:

- Como está gordo! Como está bonito! Como está grande! - tudo que fosse um mimo.

E Manuel Lucino trouxera-me a notícia. Numa das noites sonhei com ela: estava na banca tirando as flores das açafroas.A sua única ocupação no engenho. A cozinha enchia-se do agradável das florzinhas depenicadas. No sonho apareceu-me e na vida, sem nada de mais. Agora devia estar no Céu, se o Céu fosse somente para os que cumprissem as ordens do catecismo que tivessem tempo para ficar em dia com os sacramentos.

Enquanto o colégio se preparava para o dia da parada, a avó Galdina vivia comigo na minha saudade. Como teria sido a morte, no engenho? O povo todo de sala do Santa Rosa tinha medo da morte. Ensinaram-me a fugir dos enterros, a sentir-me mal com defuntos. Quem teria tido a coragem de ver a avó Galdina estendida na sua cama, como teria sido o enterro dela? Era capaz de ter **ms, sem ninguém saber, como a negra Maria Gorda, sem um grito o povo dera graças a Deus, ao atirá-la para a cova. Enterro feidte. Ainda me lembro: trouxeram o caixão dos pobres de Pilar, homens de lá mesmo meteram a velha na mortalha demadapu levaram, com mais dois moradores, aquele resto de gente para longe. Com avó Galdina as negras teriam chorado.

Só se falava no dia 7. Preparavam-se as fardas. E que noite leve não passariam os meninos pensando no dia seguinte? Vi-os acordar às cinco horas com a corneta a tocar à porta. O sargento mandara despertar a canalha com o toque marcial de quartel. Senti, na cama, uma agonia com aquele chamado guerreiro. Vergara, Pão-Duro, João Câncio, Zé Augusto, Clóvis, todos os outros com a cara de quem fosse para casa, em férias. Os externos já estavam a chegar, conversando à porta. O sargento dava ordens. O velho Maciel com as últimas providências para o café. Chamou o comandante e ofereceu-lhe a sua bolacha seca:

- Comam, senhores - dizia o sargento, violando o silêncio das refeições. - A marcha vai ser puxada. Mais de seis quilómetros a pé. Quero ver quem afrouxa.

Aquilo de ir atrás com o director e o Coruja humilhava-me. Faria papel de menina. Toda a gente a perguntar o motivo da minha exclusão. Seria dado por incapaz a toda a hora. Fui ao Maciel queixar-me de dores de cabeça. Estava com o corpo mole, não podia andar.

- Então, fica em casa. Mas olhe: fique quieto.

Fui para a porta, ainda a sofrer mais com a saída do batalhão. A corneta estalava, o tambor a rufar, e os rapazes de espingarda de pau ao ombro - setenta meninos felizes, em marcha para o sítio de Firmino Cotinha. Vi-os sumindo-se no fim da rua. De longe ainda escutava a corneta. Agora já não retinia nos ouvidos. Quanto mais andava mais ficava saudoso. Recordava-me: uma vez, da cama, ouvi um toque daqueles. Passava no comboio, por Itabaiana, o batalhão da Paraíba que seguia para a revolução de Recife. O comboio demorou-se na estação e o corneteiro aproveitou o momento de entristecer a cidadezinha morta de sono. Era uma dor funda exprimia aquela corneta que ia para a guerra. Nada mais triste do que um apito de comboio assim, de noite longe. Lembrei-me de tudo o que era triste naquela noite.

Ouvia-se ainda o rufo abafado do tambor dos meninos que marchavam. Já devia ir muito longe. E uma saudade de casa começou a angustiar-me.

 

E uma saudade de casa começou a angustiar-me. O colégio inteiramente vazio. Só a negra Paula ficara. Fui para a janela, para ver se vencia aquela minha saudade com a gente que passava na rua. O comboio da Paraíba apitou. E de súbito assaltou-me uma vontade de fugir. Iria de comboio. Tinha dinheiro para a passagem de segunda classe. Saí da janela para iludir este desejo impertinente. Andei pela casa toda, com a companhia intrusa a aconselhar-me: "Foge, besta, ninguém sabe; o teu avô não se importa." Voltei para a janela. Vi um sujeito de guarda-pó que passava na rua. Viera do comboio. Ouvi o comboio da Paraíba saindo. A sineta da estação tocava. "Foge, besta." Estive no quintal. A cajazeira da vizinha cheirava como no engenho. Tinha dinheiro para a passagem. Entrei no quarto. A roupa estava dentro da mala. O comboio passaria à uma hora. Uma hora com a ideia na cabeça, andando da janela para o fundo do quintal, com a tentação no meu encalço.

Meio-dia. E o diabo comigo. Era mesmo: ia fugir. Vesti-me devagarinho, para que a negra Paula não ouvisse. Estava na cozinha lavando os pratos. Lembrei-me da Semana Santa, das horas de luxúria da negra Paula. Calcei as botinas, e comecei a andar nas pontinhas dos pés. Vesti a roupa preta, pus o boné do colégio. Tinha dois mil reis, uma moeda de prata das grandes. Apalpei-a bem no bolso. Se a perdesse, estava tudo acabado. Saí pelo corredor como um ladrão, imperceptível, rápido, alcançando a porta da rua. O sujeito de guarda-pó estava parado à porta do juiz, a conversar. E toda a rua sossegada. Vi uma castanha madura no chão. Olhavam para mim da casa do juiz. Fiz que não vi, e saí andando devagar. Mas com uma vontade irresistível de dar uma corrida. Se corresse, desconfiariam.

Era muito cedo para o comboio. Passaria à uma hora. Andei pelo jardim público. As pedrinhas rangiam a meus pés. Vi a casinha do pai de Fausto. Senti uma pessoa andando atrás de mim, com as passadas largas de seu Maciel. Mas era o estafeta do correio com a mala. Já ia para a estação. Saí atrás dele.

Ainda não tinha chegado ninguém. Somente os empregados empurravam mercadorias em carrinhos de ferro. Ouvi o bip seco do telégrafo funcionando. A portinhola de vender passagens estava fechada. Apalpei os dois mil reis: estavam ainda no bolso. Chegava gente de guarda-pó e mala na mão. Ouvi uma pessoa que dizia: "O comboio atrasou-se uma hora. Que diabo!" Um homem branco começou a olhar-me. Estaria desconfiado? - Fiquei impassível. Uma mosca começou a passear pelo meu nariz. E levantou-se outra vez para outro passeio. Olhei para o homem, ainda me fitava. Levantou-se e veio para mim. Um frio correu-me o corpo todo.

- O que querem dizer estas letrinhas aí?

Expliquei-lhe.

Ah! É desse colégio que passou formado?

- Vou ver meu avô, que está doente.

- Aonde?

- No engenho Santa Rosa.

- Ah! Do coronel José Paulino?

Nisto uma pessoa chamou-o. Era melhor sair dali. Podiam apanhar-me. Perguntas daquelas tiravam-me o sangue-frio. Fui até ao fim da plataforma. Do outro lado era a Rua da Lama, das mulheres perdidas. Havia uns pés de oitis. Andei por debaixo deles. Licurgo passou por mim, dizendo:

- Carlos, para onde vai você?

Ri-me com ele. Porque diabo não se ia embora? Ouvi bater a sineta da estação. O comboio partira de Rosa e Silva. Na portinhola estava uma porção de gente a comprar passagens, e um homem, que me disse aborrecido:

- Que pressa é essa?

Fiquei com medo. Era a primeira vez que uma pessoa estranha me repreendia.

- Segunda classe para o Pilar.

O chefe da estação olhou-me de má cara, e deu-me a passagem e o troco. Bateu com a prata na mesa. Se fosse falsa, estaria perdido. Guardei o cartão com ganância no bolso da calça. A estação enchera-se. Um vendedor de bilhetes ofereceu-me um. Não desconfiava de mim. O chefe foi quem me olhou com a cara fechada. Já se ouvia o apito do comboio. Cheguei-me para o sítio onde paravam os carros de passageiros. E o barulho da máquina que se aproximava. Estava com medo, com a impressão de que chegaria uma pessoa, para me prender. Ninguém saberia. E o comboio parado ao pé de mim. Tomei lugar num banco do fim, meio escondido. O padre Fileto viu-me. Pedia esmolas para a obra da igreja.

- Não foi para a parada?

- Não senhor, vou ver o meu avô, que está doente.

A mesma mentira saída da boca automaticamente. Os meninos passavam vendendo guloseimas. Quis comprar um pacote, mas estava com receio. Qualquer movimento de minha parte me parecia uma denúncia. O homem dos bilhetes voltou outra vez a oferecer-me. Num banco da minha frente estava um sujeito a olhar para mim. Sem dúvida, passageiro do comboio. E olhava-me com insistência. Levantou-se e veio falar comigo:

- Menino, que querem dizer estas letras? - Instituto Nossa Senhora do Carmo.

- Pensei que fosse "Isto não se conhece

Ri-me sem querer. E as outras pessoas acharam graça. Pedi a Deus que o comboio partisse. Porque não partia aquele comboio? O meu boné perder-me-ia. Podia ter vindo de chapeu. Nisto vi seu Coelho. Entrei disfarçadamente "para a latrina do comboio. E não vi mais nada. Só saí de lá quando vi pelo buraco do aparelho a andar. Sentei-me no mesmo lugar. Vi a cadeia, o cemitério. E o condutor pedindo os bilhetes.

- É de segunda classe, não é aqui.

Fiquei aterrorizado com o aborrecimento do homem, mas levou-me para a outra carruagem. Era um banco comprido para todos. Gente pobre conversava. A impressão da fuga não se aliviava com a velocidade do comboio. Agora pensava na chegada ao engenho, passava em Galhofa. Os meus companheiros discutiam:

- Não vê que eu não vou vender feijão por menos do que o comprei!

Outros falavam de cobradores de impostos:

- É uma miséria! Dentro em pouco a gente paga imposto para fazer as necessidades.

Todos riram. E chegámos ao Pilar. O Recreio do coro, com a sua casa na beira da linha. E a gente já via a igreja e o comboio apitava para o sinal. Passou o poste branco. O comboio saía deixando no ar um cheiro a carvão de pedra. Lá ia o Ricardo com os jornais para o meu avô. Faltava-me coragem para bater à porta do engenho como fugitivo, andando à toa pela linha do comboio. Que diria quando chegasse no engenho? Lembrei-me então de que seguindo pela linha teria que

atravessar a ponte. E desviei-me para a caatinga. Tomaria,mais adiante, o mesmo caminho. Estava pisando terras do meu avô. O engenho de seu Lula mostrava o seu boeiro pequeno com um caído. Que diabo diria no Santa Rosa, quando chegasse? Era inventar uma mentira. Fiquei parado, um instante, a pensar. A mentira com a alegria de quem tivesse encontrado um roteiro. Sonhara que meu avô estava doente e não pudera aguentar o receio do sonho. E fugira. Achariam graças e tudo acabaria calmamente. Mas onde estaria a coragem para chegar? Já estava perto da minha gente. O boeiro do Santa Rosa estava ali perto.

Subia a fumaça da destilação. Com mais cinco minutos estaria lá. Era só atravessar o rio. Fiquei parado, pensando. A água do rio dava-me pelos joelhos. O gado do pasto passava para o outro lado. E onde estava coragem para agir? E o tempo a sumir-se. E a tarde a cair. A casa-grande inteira ralharia comigo. No outro dia José Ludovina tomaria o comboio para me levar. E a palmatória e os gritos de seu Maciel. Vou, não vou, como as cantigas dos sapos na lagoa. Um comboio de carga apitou na linha. Tirei os sapatos, arregaçando as calças para a travessia. A porta do cercado batia forte no mourão. E no silêncio da tarde, tudo aumentava de voz. Um grito do velho Zé Paulino chegou até mim:

- Ó Ricardo!

Ali no escuro é que não podia ficar. E a solidão fez-me mais medo do que a gente do Santa Rosa.

 

                                                                                José Lins do Rego  

 

                      

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