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DOIS PARA CONQUISTAR
Segunda Parte
O verão tinha chegado nas colinas de Kilghard, trazendo junto a época dos incêndios, quando as árvores resinosas explodiam em chamas e cada homem disponível era convocado para prevenir possíveis incêndios. Num dia do final do verão, Bard di Asturien cavalgava lentamente rumo ao Sul, com um pequeno grupo de homens escolhidos e uma guarda pessoal, e cruzou, finalmente, a fronteira de Marenji com as Astúrias.
Não é mais, pensou ele, uma verdadeira fronteira. O condado de Marenji, apesar dos protestos do xerife, está armado, protegido por soldados aquartelados em cada casa e aldeia de Marenji. Um sistema de sinais com fogo e retransmissão telepática foi estabelecido para avisar o povo das Astúrias sobre qualquer ataque procedente do Norte ou do Leste, por parte dos bandidos de terras distantes de Kadarin, ou incursões por parte de Serrais.
O povo de Marenji havia protestado. Quando foi que o povo, pensou ele, soube o que era bom para ele? Desejava ficar desarmado entre Serrais e Astúrias, sendo atravessado por exércitos a cada espaço de alguns anos? Se não queria os soldados das Astúrias por lá, devia formar seu próprio exército para mantê-los longe.
Passou uma noite na sua antiga casa, porém ninguém estava lá, a não ser o velho coridom; Erlend tinha sido mandado para a corte, para o lado da mãe. Dentro em breve, pensava Bard, teria que se preocupar com a escolha da casa de algum nobre onde seu filho pudesse receber uma educação apropriada. Mesmo que Erlend fosse destinado a ser um laranzu, devia saber alguma coisa a respeito de guerra e armamentos. Bard lembrou-se que até Geremy, que sabia que jamais entraria armado numa batalha, nunca tinha ficado atrás de seus irmãos de criação no manuseio de uma espada... afastou este pensamento, de modo direto, contraindo as mandíbulas, recusando-se a refletir sobre ele.
Erlend deveria ser um laranzu, se seus dons continuassem como eram no momento; ele era apenas um filho nedestro. Quando conseguisse descobrir o modo correto de reclamar Carlina, ela lhe poderia dar muitos filhos legítimos. Contudo, Erlend devia ser educado de acordo com a sua posição, e supôs que Melisendra haveria de fazer alguma cena quanto a isto. Maldita mulher, todas as desvantagens de ter uma mulher, e nenhuma das suas vantagens! Se ela não fosse uma das melhores leroni de seu pai, ele a mandaria embora logo. Talvez um dos homens de Dom Rafael estivesse querendo desposá-la, seu pai certamente haveria de lhe conceder algum tipo de dote.
Chegou ao Castelo das Astúrias ao anoitecer, encontrando o pátio repleto de cavalos estranhos, estandartes dos Hasturs, embaixadas de todos os Cem Reinos. O que havia acontecido? Teria o Rei Carolin, finalmente, resolvido pagar o resgate por Geremy?
Isto, ficou sabendo, era apenas uma parte de tudo aquilo. Quarenta dias antes, Lady Ginevra Harryl concebera um filho a Geremy Hastur; este tinha resolvido, em primeiro lugar, legitimar o menino e, ao mesmo tempo, se casar com a mulher di catenas. Como um modo de provar que Geremy Hastur não era um prisioneiro mas sim um digno hóspede (a mentira convencional legal, pensou Bard, sobre todos os reféns), Dom Rafael resolvera realizar o casamento pessoalmente e fazê-lo com grande pompa, com Hasturs vindo de todas as partes para assistir ao casamento. E como Dom Carolin não se arriscaria, pessoalmente, a penetrar nas Astúrias, enviara um de seus ministros, o laranzu Varzil de Neskaya, para comemorar a cerimônia.
Bard não se importava muito com este tipo de coisas, e os preparativos fizeram-no recordar, dolorosamente, do fato de que ele tivera a esperança de ter um casamento deste tipo em algum momento daquele verão, antes da sua derrota no Lago do Silêncio. Todavia, o comandante dos exércitos do rei tem que estar presente; remoendo estes pensamentos, ele envergou a túnica bordada e o manto de cerimônia, em azul, ricamente enfeitado com fios de cobre e delicados bordados. Melisendra também apresentava um aspecto majestoso e altivo, os cabelos arrumados em altas tranças dispostas em arcos, num vestido verde e uma capa de pele. Antes deles saírem da suíte, o pequeno Erlend entrou, parando com os olhos arregalados para admirá-los.
— Oh, mãe, você está linda! Você também, pai, você também está lindo!
Bard riu e abaixou-se para levantar o filho. Erlend falou tristemente:
— Quem me dera poder ir lá para baixo e assistir ao casamento e ver todas as roupas lindas, os nobres e as ladies...
— Não é lugar para crianças... — começou a dizer Bard. Mas Melisendra interrompeu:
— A sua ama poderá levá-lo até a galeria para que dê uma espiadinha, Erlend, e se se comportar bem, se for um bom menino, ela irá apanhar alguns doces na cozinha para o seu jantar.
Bard colocou-o no chão e Melisendra ajoelhou-se para beijá-lo. Bard, ciumento, ao ver como o garoto era apegado à mãe, disse:
— E, amanhã, irá cavalgar comigo.
Erlend afastou-se aos pulos com sua ama, quase aturdido ao pensar nas coisas prometidas.
No entanto, Bard estava preocupado quando desceu, ao lado de Melisendra, a escadaria imponente.
— Por que, em nome de todos os deuses, meu pai resolveu celebrar o casamento de Geremy com toda esta pompa?
— Acredito que ele tem um plano, porém não sei qual seja; tenho certeza de que não se trata de algo de bom para com Geremy; nem, suponho, para com Ginevra; embora Dom Regis Harryl pertença a um dos ramos mais nobres das Astúrias e seja parente dos Hasturs há algumas gerações.
Bard refletiu a respeito. Naturalmente, Dom Rafael procurava deter o trono para Alaric, e deve fazê-lo em parte mantendo a boa vontade de todos os nobres que tinham jurado lealdade aos di Asturiens. Um casamento na corte, para a filha de um valoroso partidário, era apenas uma jogada diplomática, que valia o que custava. Se bem que, pessoalmente, Bard teria hesitado em conceder um privilégio como aquele a um de seus próprios aliados, que contratava casamento com a família Hastur, quando seus membros poderiam, dentro de bem pouco tempo, ser seus inimigos.
— Você acha, realmente, que teremos que entrar em guerra com os Hasturs, Bard?
Bard protestou, aborrecido com o hábito de Melisendra de ler a sua mente, porém respondeu:
— Não vejo como isto possa ser evitado.
Melisendra estremeceu ligeiramente.
— Mas, você se sente feliz...
— Sou um soldado, Melisendra. A guerra é o meu trabalho, o trabalho de todo aquele que é leal às Astúrias, de modo que devemos manter este reino pela força das armas.
— Achava que seria fácil celebrar a paz com os Hasturs. Não desejam a guerra mais do que nós a desejamos.
Bard deu de ombros:
— Pois muito bem, deixemos então que se rendam a nós. — Desejou que Melisendra parasse de conversar sobre aquelas coisas que, na verdade, não lhe diziam respeito.
— Mas elas me preocupam sim, Bard. Sou uma leronis, e sei combater. E mesmo que não o fosse, se fosse uma mulher que nada tivesse de melhor para fazer além de cuidar de sua casa, ainda assim seria obrigada a lidar com ferimentos, pilhagem, e dar à luz filhos para irem à guerra... a guerra é uma preocupação para as mulheres, e não apenas para os homens!
Apesar de ver o rosto dela vermelho de indignação, Bard limitou-se a dizer, rudemente:
— Tolice. E se tornar a ler meus pensamentos outra vez, Melisendra, sem permissão, vai se arrepender muito!
Ela encolheu os ombros e disse com educação:
— Sinto muito por qualquer coisa que eu tenha que ver com o senhor, meu Lorde. E se não deseja que eu leia seus pensamentos, devia parar de enviá-los de um modo que ninguém pudesse deixar de ouvi-los; às vezes não tenho certeza se falou em voz alta ou não.
Bard ficou pensando sobre aquilo. Jamais imaginara que contasse com um laran tão desenvolvido. Por que Melisendra achava tão fácil ler seu pensamento?
O Grande Salão estava repleto. Havia também o choro de dois ou três recém-nascidos; não fazia muito tempo, as nobres tinham adquirido o tolo costume de amamentar seus filhos ao invés de entregá-los, como convinha, às amas-de-leite; e Ginevra tinha dado à luz muito recentemente, de modo que outras jovens mães julgaram normal levar seus bebês para o salão. Bard esperava que fossem levados dali antes do início da cerimônia! Decidiu que quando Carlina viesse para a corte, insistiria para que ela se comportasse de uma maneira mais digna; com todo aquele berreiro em volta, o lugar se parecia com uma pastagem de éguas dando cria!
Contudo, Lady Jerana tinha, é claro, insistido para que todos os bebês fossem levados dali antes de se iniciar a cerimônia. As pulseiras do casamento foram trancadas, com grande pompa, nos pulsos de Geremy e de Ginevra, enquanto o regente das Astúrias dizia:
— Que sejam apenas um para sempre.
Muito bem, Geremy tinha uma mulher, e, pelo menos, ela já havia comprovado ser fértil. Encolheu os ombros e foi cumprimentar seu parente.
Ginevra e Melisendra estavam se abraçando e dizendo as bobagens que as jovens costumam falar nos casamentos. Bard inclinou-se numa reverência.
— Dou-lhe meus parabéns, primo — falou ele, gentilmente. Se Geremy fosse um pouco inteligente, pensou ele, acertaria as diferenças entre os dois para não haver uma guerra e tudo estaria acabado. Não desejava nenhum mal a Geremy; imaginou que se se encontrasse na mesma situação dele, agiria da mesma forma. — Vejo que seus parentes vieram de todas as partes para homenageá-lo, irmão de criação.
— Sobretudo, eu acho, a minha mulher — retrucou Geremy e apresentou Ginevra a Bard. Era uma mulher baixa, morena, que quase parecia ter nascido na casa de algum ferreiro das montanhas; embora Geremy não se mantivesse ereto, ela mal lhe chegava aos ombros. Também quase não tinha seios e adotara a moda idiota de usar um vestido fechado na frente, de modo que pudesse aleitar seu bebê em público; quanta falta de dignidade!
Contudo, dirigiu-se a ela com educação, inclinando-se:
— Desejo que seu filho seja forte e sadio como deve ser um filho homem.
Ela falou uma ou duas palavras delicadas; e Geremy, evidentemente, compartilhava da opinião de Bard de que era aconselhável que fossem vistos numa conversa civilizada por alguns momentos.
— Oh, sim, as mulheres dizem que é um ótimo menino. Não sei julgar estas coisas. Para mim é igual a qualquer recém-nascido; empapado em ambas as extremidades e berrando sem parar; contudo, Ginevra acha-o lindo, mesmo depois de todos os problemas que lhe causou.
— Tive sorte, pois só fui conhecer meu filho quando já sabia andar e falar como uma pessoa sensata, e não um filhote mal-educado — comentou Bard.
— Vi o pequeno Erlend — retrucou Geremy —, e achei-o bonito e inteligente. E a mãe dele, ouvi dizer, é uma leronis; o menino também é dotado de laran?
— A mãe dele diz que sim.
— Já esperava por isto, com aqueles cabelos ruivos da família Hastur — observou Geremy. — Já pensou em mandá-lo para uma das torres, Hali ou Neskaya para ser criado lá? Tenho certeza de que ficariam contentes em tê-lo por lá. Meu parente Varzil de Neskaya encontra-se aqui e poderia cuidar disto.
— Acredito que sim. Porém, quer me parecer que Erlend ainda é muito pequeno para ser enviado para fora de seu reino em época de guerra e não tenho a mínima vontade de vê-lo mantido como refém.
Geremy parecia chocado.
— Está me interpretando mal, parente. As torres juraram neutralidade, razão pela qual um Ridenow passou a ser o protetor de Hali. E após o incêndio de Neskaya, quando a torre foi reconstruída, Varzil foi até lá com o circulo e jurou que observariam o Pacto dos Hasturs e não combateriam mais nas guerras com armamentos com laran.
— A não ser pela causa dos Hasturs, está querendo dizer — falou Bard, sorrindo com cinismo. — Muito inteligente por parte de Carolin, assegurar a lealdade deles desta forma!
— Não, primo, nem mesmo assim. Juraram não lutar nem mesmo pelos Hasturs, mas para usar suas pedras da estrela apenas em favor da paz.
— E Carolin permite que suas torres permaneçam intactas no reino dele?
— Meu pai deseja que assim seja — afirmou Geremy. — Esta terra é devastada anualmente por guerras fratricidas e tolas, de modo que os camponeses não podem cuidar de suas lavouras. O clingfire é horrível, porém, atualmente, armas piores são fabricadas através da magia. A Lady de Valeron usou carros aéreos para espalhar bonewater em pó na região ao norte de Thendara, e acho que, talvez, nenhuma lavoura conseguirá se desenvolver naquela região outra vez, e qualquer pessoa que viajar por lá morre, mais tarde, com o sangue transformado em água, e os ossos ficam quebradiços... e coisas ainda piores, coisas que não teria coragem de falar numa festa. E, por isto, todos juramos que não usaremos mais o laran contra qualquer inimigo destas torres, e todas as terras próximas aos reinos dos Hasturs comprometeram-se a respeitar este pacto.
— Nada sei sobre este pacto. O que significa ele? — perguntou Bard.
— Bem, onde o pacto está em vigor, nenhum homem pode atacar um outro com nenhuma arma, a não ser uma que possa colocar quem a usa ao alcance da morte...
— Não tinha ouvido nenhuma referência a isto — disse Bard —, eu também preferiria combater com uma espada ou pique reais do que com bruxaria. Não gosto de adotar e lançar mão de leroni em batalha, e penso que todo soldado tem esta mesma opinião. No entanto, não teria leroni dentro de meu reino, a menos que jurassem combater comigo, e proteger meus exércitos contra o ataque da magia. Conte-me mais.
— Bem, não convivi no reino de meu pai desde criança, e não sei muito sobre o assunto, a não ser aquilo que meu parente Varzil me relatou.
— Você tem um Ridenow de Serrais como parente?
— Somos todos da família Hastur — explicou Geremy —, e todos temos o sangue de Hastur e Cassilda. Por que deveríamos estar em conflito?
Isto fez com que Bard ficasse sério e chocado. Se Hastur e Serrais tivessem uma causa em comum, o que aconteceria então ao reino das Astúrias? Teve vontade de ir logo procurar seu pai para lhe comunicar esta notícia, porém os menestréis já haviam começado a tocar, e os dançarinos enchiam o salão.
— Gostaria de dançar, Ginevra? Não precisa ficar do meu lado por eu estar aleijado; tenho certeza de que um de meus parentes gostaria de tirá-la para dançar.
Ela sorriu, comprimindo-lhe a mão:
— No meu casamento, não dançarei com nenhum homem, já que meu marido não pode se juntar a mim. Esperarei por uma dança feminina do anel e dançarei com as minhas damas.
— Tem uma mulher leal — observou Bard. Geremy encolheu os ombros:
— Oh, Ginevra sempre soube que eu jamais seria aclamado no campo de batalha, nem dançando num salão.
Um dos homens da família Hastur, com seu traje azul e prata, aproximou-se para convidar a noiva para dançar. Bard, observando o modo gracioso como Ginevra recusou-se a acompanhar o cavalheiro, começou a compreender por que o seu parente tinha escolhido aquela coisinha deselegante, morena e magricela. Ela possuía o encanto e a graciosidade de uma rainha; ela haveria, apesar de suas feições comuns, de abrilhantar qualquer corte.
— Mas não deve agir assim — protestou o homem. — Ora, dançar com uma noiva é um encanto poderoso para qualquer homem que deseje se casar dentro de um ano! Como pode ter a coragem de nos privar disto, domna?
Ginevra replicou com alegria:
— Pois bem, só dançarei com minhas damas solteiras; isto as ajudará a se casarem e como terão que encontrar alguns homens para participarem da cerimônia, isto também ajudará os solteiros a encontrarem noivas!
Fez um sinal para os músicos, que começaram a tocar uma música apropriada à dança do anel. Segurando a mão de Melisendra, Ginevra carregou-a para a pista de dança, e várias mulheres e moças, jovens demais para dançarem com estranhos, ou mulheres cujos maridos ou irmãos estavam ocupados em outro lugar, seguiram-nas. Bard observava Melisendra vestida de verde, entrando e saindo segundo o modo que se dançava a dança do anel. Onde, se perguntou ele, estava Melora agora? Por que aquela lembrança o assediava tanto? O pensamento cruzou-lhe a mente e ele sabia que se tratava de uma loucura, que se estivesse unido a Melora desta forma, conversariam, poderiam ser muito amigos, amigos íntimos, como o eram Geremy e Ginevra. Recordou-se de como Ginevra tinha pressionado a mão de Geremy de encontro a sua face. Jamais uma mulher demonstrara para com ele uma atitude como aquela, mas, ainda assim, podia imaginar Melora fazendo-o.
Tolice; não poderia se casar com Melora, não era bem-nascida, e, de qualquer forma, estava comprometida com uma torre. Este não era o modo como se celebravam os casamentos. Criticara Geremy intimamente por ter se casado com Ginevra, que se achava visivelmente abaixo dele quanto à classe, apesar dela pertencer a uma tradicional família e as suas maneiras serem graciosas. Só um tolo haveria de desposar uma mulher que não lhe trouxesse uma forte e poderosa aliança, ou um rico dote. Por exemplo, ele não podia se conformar em se casar com Melisendra; filha de um humilde laranzu... se bem que... o que Geremy tinha falado a respeito da família Hastur e cabelos ruivos? Afinal de contas, Melisendra não podia ser tão mal-nascida assim...
— Eu pensei — disse Geremy — que teríamos em breve a honra de dançarmos no seu casamento, Bard. Não conseguiu convencer Carlina a abandonar a hospitalidade da Irmandade de Avarra?
— Não tive a mínima oportunidade de conversar com ela. As praias da Ilha do Silêncio são protegidas com bruxaria. Será necessário todo um batalhão de leroni para anular aqueles encantamentos! No entanto, tome nota do que lhe digo, ele será celebrado!
Geremy fez um gesto que imitava um horror devoto.
— E você não teme a ira de Avarra?
— Não temo nenhum grupo de mulheres idiotas que fingem ser o seu desejo a vontade de uma deusa ou de outra! — retrucou Bard revoltado.
— Mas quem sabe? Talvez a sua noiva dê preferência à castidade e às boas obras aos prazeres que a aguardam quando estiver casada com você, não? Ora, como pode ela ser tão tola?
Os olhos cinzentos de Geremy faiscaram, e Bard, dando meia-volta, afastou-se. Não desejava criar problemas para o seu pai discutindo numa grande festa como esta. Nem mesmo para si mesmo admitia que não queria mais discutir com Geremy.
Mais tarde, enquanto os jovens estavam dançando, ele conversou um pouco com o pai a respeito do que tinha feito nas fronteiras setentrionais.
— É bem provável que não sejamos atacados pelos Serrais enquanto mantivemos Dom Eiric como refém, porém, se nos virem sitiados pelos Hasturs, talvez venham contra nós também. Ouvi alguns comentários a respeito de uma trégua estabelecida entre Aldaran e Scathfell; se nos atacarem em conjunto, encontraríamos dificuldades em mantê-los afastados, com tantas das nossas legiões ocupadas em revidar qualquer ameaça por parte de Serrais. E há alguns que ficariam muito satisfeitos em aliarem-se aos Hasturs. Se Varzil de Serrais fez uma aliança com Hastur, penso que devemos procurar convencer MacAran, em El Haleine, a proteger nossas fronteiras meridionais, da mesma forma como Marenji se encontra entre nós e o Norte.
— Não acredito que nem MacAran, nem o povo de Syrtis, quisessem aborrecer os Hasturs — observou Dom Rafael. — Dizem que o Lorde Colyrn de Syrtis pode ficar de pé na parte superior de seu castelo e observar todo o seu minúsculo país, e conquanto o camundongo nas muralhas pode ver de longe um gato, ele é bastante esperto para não o ir provocar; e Dom Colyrn não deseja bancar o camundongo para o Rei Carolin! O rei poderia engoli-lo de uma só vez sem nem ao menos sujar com sangue os seus bigodes! — enfureceu-se. — E se não mandarmos Dom Eiric de volta para Serrais, todos aqueles que celebraram aliança com Serrais cairão sobre nós antes que o inverno chegue. Talvez devamos fazer Dom Eiric declarar uma trégua e ganhar tempo. Precisamos é de tempo! — bateu com a palma da mão sobre o joelho. — Talvez sejamos forçados a declarar uma trégua com os Hasturs também!
— Iniciarei uma campanha contra os Hasturs. Não tenho medo deles! Defendi e mantive Scaravel com um punhado de homens e posso fazer o mesmo pelas Astúrias! — exclamou Bard cheio de desdém.
— Mas você é apenas um homem — retrucou Dom Rafael —, e só pode ir à frente de uma legião. Com Serrais a Leste e os Hasturs a Oeste, e talvez todos os outros que se encontram do outro lado de Kadarin prontos a nos atacarem pelo Norte, Astúrias não tem como resistir!
— Contamos com um pouco de proteção em Marenji — afirmou Bard — de forma que qualquer um que pretenda nos atacar vindo de lá terá que lutar ali; e creio que talvez pudéssemos contratar mercenários no Norte, e nas Drytown... eles conhecem a minha reputação e combaterão sob meu comando. E talvez consigamos manter Dom Eiric preso a uma trégua; os filhos dele ainda são muito jovens e devem ficar um pouco afastados da guerra por algum tempo. Se o mantivemos preso a uma trégua durante seis meses... e um refém liberado deve esperar por isto, no mínimo... — ele não pode colocar um exército contra nós em campo até o degelo da primavera. E, talvez, na primavera já possamos contar com mercenários, até mesmo com aliados, suficientes para que possamos atacar Serrais e torná-los nossos vassalos. Pense nisto, pai! Já imaginou podermos manter todas aquelas terras a Leste em paz, sem uma luta constante? Parece que temos estado em guerra com Serrais desde que eu era uma criancinha de colo!
— Estamos, e há muito mais tempo do que isto — disse Dom Rafael. — Contudo, mesmo se conquistarmos Serrais, ainda teremos que enfrentar os Hasturs, pois o Rei Carolin declara que todas estas terras já pertenceram aos Hasturs...
— Geremy disse algo assim. Mas não prestei muita atenção ao que falou. Mas se Carolin está declarando isto, teremos apenas de lhe dar uma boa lição.
— No entanto, serei forçado a prestar juramentos e celebrar tréguas — explicou Dom Rafael, aborrecido. — Trata-se de uma questão de tempo; pois já passou, já se esgotou o tempo para mantermos Geremy como refém. Carolin já se apercebeu de nosso blefe e mandou Varzil de Neskaya para escoltar Geremy até em casa. Ele trouxe seu irmão Alaric de volta para nós.
— Não ficarei triste em ver Geremy longe desta corte — disse Bard, porém tinha consciência de que isto representava uma perda diplomática para Dom Rafael. Com um Hastur como refém, ele contava com alguma influência para manter um compromisso diplomático com os Hasturs. Apesar disto, a volta de Alaric era uma conquista para compensar esta perda.
— Como está meu irmão? — indagou Bard, ansioso. — Está bem e feliz? Carolin educou-o bem? Pois quando a Rainha Ariel fugiu para lá, não tenho a mínima dúvida de que ele ficou nas mãos de Carolin e não nas dela.
— Ainda não o vi — falou Dom Rafael, tranqüilo. — Ainda continua sob os cuidados de Varzil. A troca formal acontecerá mais tarde, pois Varzil, me parece, está de posse de uma mensagem de Carolin e solicitou-me uma audiência formal durante a qual definirá a sua missão.
Bard ergueu as sobrancelhas. Então o protetor de Neskaya transformara-se num lacaio de um Hastur? Talvez as coisas estivessem pior do que imaginara, talvez todas as terras desde Kilghard até Thendara estivessem sob o domínio dos Hasturs! Será que nos anos vindouros Astúrias se encontraria entre elas? Só sobre meu cadáver!
E então sentiu um leve tremor premonitório. Se, de fato, as coisas devessem acontecer assim, ora, certamente seria sobre o seu cadáver. Porém, de qualquer forma, esta era a sina de um soldado! E acontecesse o que acontecesse, não era provável que ele escapasse.
Se Alaric havia sido devolvido, isto pelo menos proporcionaria a Dom Rafael uma desculpa para realizar uma coroação; pois ele continuava insistindo que não era rei, apenas o regente para Alaric. Bard ficou imaginando qual era a diferença entre um rei criança e outro. Mas, de qualquer forma, Alaric estava aqui, não tinha fugido, como Valentine, para pedir proteção em outro reino. Bard percebeu então que estivera pensando em Alaric como ele havia sido há sete anos; uma criança, satisfeita ao pensar nos brinquedos que seu irmão mais velho lhe passara. Agora, Alaric devia estar com uns 14 ou 15 anos, perto da maioridade legal. Seu próprio filho, Erlend, não era tão mais moço do que Alaric era quando se viram pela última vez!
O tempo. O tempo era o inimigo de todo homem. Ele mesmo tinha vivido mais tempo do que a maioria dos homens que ganhavam seu pão como soldados mercenários. Pelo menos, ele não perderia tempo algum casando-se e tendo alguns filhos legítimos. Precisava assegurar o reino para seu irmão, e, depois, tinha que descobrir algum meio de atacar a Ilha do Silêncio, mesmo se fosse necessário contar com toda uma legião de mágicos, e reconquistar Carlina.
Enquanto ela viver, não me casarei com nenhuma outra mulher! Ocorreu-lhe, pela primeira vez, que talvez houvesse cometido um grande erro. Se Carlina, realmente, não o desejava, talvez existissem outras mulheres que o quisessem. Novamente, pensou em Melora... mas não. Carlina era a filha do Rei Ardrin, era a sua prometida mulher e se não o queria, dentro em breve haveria de lhe ensinar qual era a sua obrigação. Nenhuma mulher, jamais, quis rejeitá-lo uma segunda vez!
Rafael das Astúrias liberou Dom Eiric de Serrais na manhã seguinte.
— Mas, pai, por que agora? — indagou Bard. — Poderia, sem dúvida, tê-lo mantido aqui por mais uns dez dias!
— Trata-se de uma questão de protocolo — explicou Dom Rafael, com pesar. — Varzil de Neskaya, que é um Ridenow, deseja manter uma entrevista com ele, porém não pode, por uma questão de cortesia, fazer isto enquanto não tiver levado a cabo seu principal negócio por aqui, a troca de reféns; e não pode conversar com meu prisioneiro sem a minha permissão. Portanto, exigirei que Dom Eiric preste um juramento e em seguida o liberarei para seguir seu caminho, antes que Varzil esteja livre para falar com ele. Não desejo ver mais senhores Ridenow celebrando aliança com os Hasturs!
Bard anuiu com um movimento de cabeça, compreendendo os motivos paternos. Pois uma vez que Dom Eiric jurara não trabalhar contra Dom Rafael das Astúrias durante seis meses, também não poderia, legalmente, aliar-se a nenhum inimigo das Astúrias. Bard tinha toda a sorte de conhecimento de tática militar e de estratégia, mas a diplomacia ainda era-lhe nova. Porém, com o conhecimento de seu pai a respeito de estadística, e sua habilidade pessoal na guerra, talvez, algum dia, conseguissem dominar toda aquela região.
Sentiu curiosidade para conhecer este tal de Varzil, que se aliara aos Harturs. Neskaya se encontrava em poder dos Ridenow — embora se situasse fora das terras de Serrais propriamente ditas — há mais de dois séculos. Naquela época, os Hasturs e os Ridenows tinham mantido uma guerra prolongada e a paz fora alcançada no reino de Allart de Thendara. Será que os Hasturs ainda nutriam sonhos de reclamar para si todas as terras de Serrais?
Bard foi convocado para o conselho, como alto comandante de seu pai; e Melisendra, também, para lançar o encantamento da verdade. Enquanto Bard a observava entrar na sala de audiências, no seu vestido simples, sem adornos, de tonalidade cinza, assim como a capa, a marca da presença de uma leronis para executar suas funções oficiais, ele se deu conta de que Melisendra, como a preferida de seu pai entre as feiticeiras da corte, tinha, agora, uma posição e um poder todos seus, poder que nada tinha a ver com o fato de ser ela a mãe do neto do regente. Aquele pensamento deixou-o um tanto aborrecido. Havia vários laranzu'in; por que seu pai, por uma questão de decência, não havia escolhido um deles? Não estaria o seu pai procurando colocar Melisendra numa posição em que poderia desrespeitar seu legítimo senhor e pai de seu filho?
Desejou que Alaric tivesse alguma habilidade com as armas. Como filho de criação de Ardrin, devia ter aprendido alguma coisa. Bard em si era apenas um só homem; porém, se contasse com um líder, com conhecimento militar, apoiando-o no trono — e certamente um rei deveria estar capacitado, como Ardrin, a liderar seus guerreiros rumo à batalha —, isto era uma boa previsão para as Astúrias para os anos vindouros.
Varzil de Neskaya era um homem pequeno e esbelto. No traje de cerimônia suntuoso que usara para a celebração do casamento, ele se apresentara imponente, mas agora, nas cores verde e ouro de sua casa, parecia menor e estreito de ombros; suas feições eram descarnadas, eruditas, e suas mãos, Bard notou com desdém, eram tão minúsculas e bem tratadas quanto as de uma mulher, sem as calosidades resultantes do manuseio da espada ou do punhal e seus cabelos não estavam ralos nas têmporas devido ao uso do capacete. Portanto, não era um homem afeito à guerra, mas um infeliz, um grã-fino. E era esta a embaixada selecionada de Hastur? Bard pensou, com desdém: seria capaz de parti-lo em dois com as minhas mãos!
Até Geremy, manco como era, arrastando a perna, era mais alto do que Varzil. Geremy envergava sua habitual roupa sóbria, estava desarmado, usava apenas o pequeno e ornamental punhal, cuja empunhadura era toda cravejada com piritas. Bard ficou observando, de pé atrás do trono do pai, no lugar do mediador, enquanto as formalidades e o estabelecimento do encantamento da verdade tinham lugar.
— Geremy Hastur — começou Dom Rafael —, uma vez que meu filho será trazido de volta para mim a salvo, declaro-o livre para retornar ao reino de seu pai, ou onde quer que prefira ir, com sua mulher, que é minha súdita, seu filho, seus vassalos e tudo que lhe pertence. Ademais, como um sinal da estima que minha mulher nutre pela sua, se as damas de companhia de sua mulher desejarem acompanhá-la até sua nova casa, têm liberdade para fazê-lo, caso tenham a autorização de seus respectivos pais.
Geremy inclinou-se, fez um pequeno e cortês discurso, agradecendo a Dom Rafael e reafirmando sua gratidão por sua gentil hospitalidade. A ironia era tão patente, que a luz do encantamento da verdade falhou sobre o rosto dele, porém não valia a pena ser levada em consideração. De qualquer forma, pensou Bard injustamente, a cortesia não passava mesmo, na maioria das vezes, de uma falsidade.
— Geremy, você está livre, se quiser pode deixar o seu filho para ser educado em minha casa. O pai da mãe dele é meu súdito leal e dou-lhe minha palavra pessoal de que será educado, sob todos os aspectos, como se meu filho fosse, e como um companheiro para meu neto.
Geremy agradeceu-lhe cortesmente e declinou do convite dizendo que seu filho era ainda muito pequeno para ser separado da mãe, pois ainda não fora desmamado, e que Ginevra queria cuidar dele pessoalmente.
Varzil deu um passo à frente.
— E eu vim até aqui, em nome de Carolin, rei em Thendara, tutor de Valentine di Asturien, Rei das Astúrias de direito e soberano de todas estas terras, para devolver Alaric di Asturien, filho do regente e guardião das Astúrias, para seu pai. Alaric...?
Bard prendeu o fôlego, sob o impacto sofrido. Um garoto franzino adiantou-se claudicante, surgindo por trás de Varzil; seu passo irregular e os ombros tortos pareciam uma paródia medonha do próprio Geremy; Bard não conseguiu se controlar.
— Pai! — gritou desesperado, dando um passo adiante. — Vai permitir que zombem de nós em nosso salão? Veja o que fizeram ao meu irmão, em represália aos ferimentos de Geremy! Jurarei sob o encantamento da verdade que Geremy foi ferido por um infeliz acaso, não foi nada intencional, e Alaric não merecia isto por parte de Carolin! — sacou o punhal. — Agora, por todos os deuses, filho de Hastur, defenda-se, pois, desta feita, sua vida está perdida e não será por nenhum acidente! Farei aquilo que deveria ter feito há sete anos... — Agarrou o ombro de Geremy e obrigou-o a girar. — Saque o punhal ou acabarei com você aí mesmo onde se encontra!
— Pare! Ordeno-o!
A voz de Varzil não era alta, porém fez Bard afrouxar a mão e afastar-se de Geremy, pálido e suando. Há muitos anos ele não ouvia a voz de comando dos lábios de um laranzu experiente. A esbelta figura de Varzil pareceu agigantar-se sobre ele, ameaçadora, enquanto o punhal que empunhava caiu de seus dedos impotentes.
— Bard di Asturien — disse Varzil —, não cometo atrocidades contra crianças, nem Carolin; sua acusação é monstruosa, e deixo-me ficar sob o encantamento da verdade para lhe revelar que a mentira está em seu rosto. Nada lhes contamos a respeito da enfermidade de Alaric por recearmos que chegassem exatamente a esta conclusão. Não nos cabe a culpa no defeito de Alaric. Há cinco anos ele adoeceu com a febre muscular que dizima tantas crianças no distrito do lago, e embora todos os curandeiros de Ardrin tivessem se desdobrado em cuidados para com ele e o tivessem enviado para Neskaya a fim de se tratar, tão logo ficou em condições de viajar... razão pela qual não ficou aqui quando a Rainha Ariel fugiu do país, de vez que se encontrava sob meus cuidados pessoais em Neskaya... — apesar de todos os nossos esforços, sua perna definhou, e suas costas estão enfraquecidas. Atualmente, só consegue caminhar com uma escora presa à perna, mas recuperou a fala; portanto, podem perguntar diretamente a Alaric se tem alguma coisa a se queixar a respeito do tratamento que lhe dispensamos.
Bard estava assombrado, assustado, consternado. Então aquele pobre aleijado era o irmão maravilhoso, forte e másculo que o iria ajudar a liderar suas legiões? Tinha a impressão de que os deuses divertiam-se às suas custas.
Dom Rafael estendeu os braços e Alaric adiantou-se claudicando, na direção do abraço paterno.
— Meu adorado filho! — exclamou ele aflito e consternado, e o menino afastou os olhos do pai e dirigiu-os para Varzil, sentindo-se angustiado.
— Querido pai. Na verdade, o que me aconteceu não foi por culpa de meu parente Ardrin, e muito menos ainda de Lorde Varzil. Quando adoeci, e durante vários anos depois, ele e suas leroni cuidaram de mim noite e dia. Foram todos muito dedicados e bons para mim, nem você nem minha mãe poderiam ter feito mais do que eles fizeram.
— Deuses do céu! — explodiu Dom Rafael. — E Ardrin não me mandou dizer nada? Nem Ariel, quando fugiu para o exílio?
— Eu havia sido mandado para Neskaya anos antes — replicou Alaric —, e uma vez que o senhor jamais veio à corte, não pensei que se importasse muito com o que me acontecesse! Evidentemente — acrescentou, num tom irônico, desapaixonado, que convenceu Bard de que, se o corpo de seu irmão estava aleijado, sem dúvida não havia nada de errado com a mente dele —, não estava muito ansioso para me ter de volta a ponto de discutir demoradamente com Carolin em meu favor. Sabia que defenderia o trono para mim, pelo menos até me ver. Depois disto, nem tinha certeza se se importaria em negociar o meu resgate.
Dom Rafael falou com toda a sinceridade:
— Você é meu filho querido, e dou-lhe as boas-vindas ao trono que reivindiquei para você — porém Bard ouviu as outras palavras que não foram pronunciadas, se tiver condições de mantê-lo, e teve a certeza de que Alaric também as ouviu.
O rosto de Varzil apresentava-se calmo e compassivo; seus olhos estavam fixos em Alaric e Dom Rafael, como se não pensasse noutra coisa além da criança e seu pai abatido. Contudo, Bard sabia que Varzil, apesar de sua genuína preocupação para com o jovem Alaric, tinha, ainda assim, mantido-o escondido para apresentá-lo no momento em que fosse possível despertar a maior confusão e consternação. Pretendera mostrar a todos eles, e do modo mais público possível, que o jovem candidato ao trono das Astúrias não passava de um pequeno aleijado digno de pena.
Bard sentiu desespero e revolta — era este o guerreiro forte e jovem que cavalgaria rumo ao combate ao seu lado? Mas, ainda assim, seu coração doía pelo irmãozinho que tinha amado. Fosse qual fosse a decepção de seu pai e a dele mesmo, Alaric devia senti-la bem mais do que eles! Era indesculpável usar o garoto assim, para demonstrar a fraqueza do trono das Astúrias! Neste momento, não fosse o conhecimento que tinha a respeito das imunidades diplomáticas, teria, de boa vontade, estrangulado Varzil onde se encontrava... sim, e Geremy também!
Contudo — pensou, cedendo lentamente a este seu novo conhecimento —, podia ter sido pior. Alaric estava aleijado, mas fora isto parecia saudável e forte, e certamente nada havia de errado com a mente dele! Geremy tinha um filho sadio; não havia razão para que Alaric não tivesse uma dúzia deles. Afinal de contas, ele não seria o primeiro rei aleijado a deter um trono; e, afinal de contas, contava com um irmão leal para comandar suas legiões.
Não ambiciono o trono dele, pensou Bard. Não tenho bom senso, nem mesmo habilidade, para governar; prefiro ser o comandante do rei a ser o rei! Os olhos dos dois se encontraram e Bard sorriu para o irmão.
Dom Rafael também já havia recuperado seu equilíbrio. Levantou-se do trono e falou:
— Como testemunho de que reinei aqui apenas como regente, meu filho, entrego-lhe este lugar como o legítimo Rei das Astúrias. Meu filho e meu senhor, suplico-lhe que se acomode no trono.
As faces do menino ficaram coradas, porém tinha recebido esplêndidas lições sobre protocolo. Quando o pai ajoelhou-se a seus pés, oferecendo-lhe sua espada, ele disse:
— Suplico-lhe que se levante, pai, e aceite sua espada de volta, como regente e guardião deste reino, até que eu tenha alcançado a maioridade.
Dom Rafael levantou-se, indo se colocar no seu lugar, três passos atrás do trono.
— Meu irmão — disse Alaric, olhando para Bard —, informaram-me que você é o comandante das legiões das Astúrias.
Bard dobrou o joelho diante do garoto e falou:
— Aqui estou para servi-lo, meu irmão e senhor.
Alaric sorriu pela primeira vez desde que havia surgido saindo detrás de Varzil, e o sorriso era como o sol nascente aquecendo o coração de Bard.
— Não lhe peço para me entregar a sua espada, querido irmão. Suplico-lhe para detê-la em defesa deste reino; que ela somente seja desembainhada contra meus inimigos. Nomeio-o primeiro homem neste reino depois de nosso pai, o lorde regente e, em breve, pensarei em alguma forma de premiá-lo.
Bard declarou em rápidas palavras que a estima de seu irmão já era um prêmio. Sempre detestara este tipo de cerimônia, desde que era um garoto no palácio real; deu um passo atrás, satisfeito por não ter bancado o tolo fazendo algo errado.
— E agora, parente Varzil, sei que lhe foi confiada uma missão diplomática que, acertadamente, não revelou a uma criança. Quer fazer o favor de revelá-la agora ao trono das Astúrias e ao meu pai e regente? — pediu Alaric.
Dom Rafael reforçou o pedido:
— Recebo com prazer a embaixada de Carolin; contudo, não seria possível mantermos as conversações num salão mais apropriado a esta conferência do que esta sala do trono onde todos devemos nos manter em posições cerimoniosas, segundo as formalidades?
— Sentir-me-ei muito honrado — retrucou Varzil —, e estou desejando dispensar o encantamento da verdade, se concordarem comigo; as questões a serem debatidas não são fatos, mas atitudes, reivindicações, opiniões e considerações éticas. O encantamento da verdade não tem validade sobre divergências de opiniões sinceras, onde cada uma das partes acredita que esteja certa.
Dom Rafael falou cerimoniosamente:
— Isto é verdade. Então, com a sua permissão, dispensaremos a leronis e seu trabalho e voltaremos a nos encontrar, dentro de uma hora, na minha sala de visitas particular, caso isto não lhe pareça, primo, por demais informal. Estou lhe oferecendo um maior conforto, não interprete isto como um menosprezo à importância de sua missão.
— Receberei de bom grado a informalidade e a privacidade — disse Varzil.
Quando a embaixada de Hastur havia se retirado temporariamente, Dom Rafael e os filhos deixaram-se ficar um pouco mais no salão de audiências antes de se afastarem.
— Alaric, meu filho, não é necessário que esteja presente à conferência caso isto o possa deixar cansado!
— Pai, com sua permissão, ficarei — avisou Alaric. — O senhor é meu regente e guardião e acatarei suas decisões até atingir a maioridade, e depois, também, sem dúvida, por muitos anos mais. Contudo, já tenho idade suficiente para entender destes assuntos e se tenho que governar algum dia, é melhor que tome conhecimento do tipo de estadística que o senhor adota.
Bard e Dom Rafael trocaram olhares de aprovação.
— Fique, por favor, Sua Alteza. — Dom Rafael usou a frase muito formal va'Altezu, usada apenas para um superior e alguém muito chegado ao trono. Bard sabia que seu pai estava reconhecendo o garoto como um adulto, embora não tivesse... ainda... atingido a idade legal para declará-lo maior. Talvez Alaric parecesse uma criança doente, porém nem o pai nem o irmão tinham qualquer dúvida de que ele apresentava a maturidade suficiente para ocupar seu lugar como um homem.
Voltaram a se reunir na sala particular de Dom Rafael, em volta de uma mesa, e ele ordenou que um criado servisse vinho para todos os presentes. Quando o criado já havia se retirado, Varzil disse:
— Com sua permissão, Dom Rafael, e a sua Alteza — acrescentou formalmente para Alaric, seu tom de voz contrastando inteiramente com a informalidade afetuosa que demonstrara antes com relação ao garoto —, Carolin de Thendara confiou-me uma missão. Pensara em trazer uma Voz, para que pudessem ouvir as próprias palavras de Carolin. Contudo, com sua permissão, não o farei. Sou aliado e amigo de Carolin; sou o protetor da torre de Neskaya. E assinei com ele, em nome de Neskaya, o pacto ao qual, agora, lhe pedimos para aderir. Como sabem, Neskaya foi destruída por bombas incendiárias, há uma geração; e quando Carolin Hastur a reconstruiu, celebramos o pacto. Ele não me pediu que o fizesse na qualidade de um senhor soberano, mas solicitou-o a mim como um homem de bom senso, e fiquei satisfeito em atendê-lo.
— Que pacto é este, ao qual se refere? — indagou Dom Rafael. Varzil não quis abordar o assunto de modo direto. Então disse:
— Os Cem Reinos são devastados, todos os anos, por guerras idiotas e fratricidas; sua disputa com a Rainha Ariel envolvendo o trono das Astúrias é apenas uma. Carolin de Thendara está querendo reconhecer a casa de Rafael di Asturien como guardiã legítima deste reino, e a Rainha Ariel está disposta a retirar, em seu nome e no nome de seu filho, qualquer reivindicação a este trono, caso o senhor assine este pacto.
— Reconheço a generosidade do privilégio — falou Dom Rafael —, no entanto, não me sinto inclinado a agir como Durraman ao barganhar quando comprou seu burro. Tenho que conhecer a natureza exata deste pacto, primo, antes de concordar com ele.
— O pacto estabelece que não usaremos nenhum tipo de armamento enfeitiçado na guerra — esclareceu Varzil. — Talvez a guerra seja inevitável entre os homens; confesso que não sei. Carolin e eu estamos trabalhando no sentido de que um dia todas estas terras possam se unir em paz. Entretanto, pedimos-lhe para se unir a nós num juramento sagrado de que as lutas serão feitas de modo conveniente, por soldados que vão para a batalha e arriscam as próprias vidas, e não através de armas covardes que lançam a feitiçaria e o caos sobre mulheres e crianças, que queimam as florestas e devastam cidades e fazendas. Solicitamos que decrete ilegais, dentro de seu reino, todas as armas que vão além do alcance do braço do homem que as manuseia, para que a luta possa ser honrada e equilibrada e não represente um perigo para os inocentes com armamentos diabólicos que atacam a distância.
Dom Rafael replicou:
— Não pode estar falando sério! — seus olhos estavam fixos, incrédulos, sobre Varzil. — Que insanidade é esta? Devemos marchar rumo à guerra apenas com espadachins, enquanto nossos inimigos caem sobre nós com flechas e clingfire, bombas e feitiçaria? Dom Varzil, não quero pensar que seja um louco, mas realmente acredita que a guerra é um jogo de castles, disputado com dados por mulheres e crianças, e cujo prêmio são bolos e centavos? Realmente pensa que qualquer homem lúcido acataria, por um momento que fosse, uma idéia desta?
O bonito e calmo semblante de Varzil estava inteiramente sério.
— Empenho minha palavra, com toda a sinceridade. Confirmo o que falei, e há vários pequenos reinos que já assinaram o pacto com o rei Carolin e os Hasturs. Armas de covardes e operações militares com laran deverão ser declaradas inteiramente ilegais. Não podemos impedir a guerra, não nas atuais condições em que se acha o nosso mundo. Porém, podemos mantê-la dentro de determinados limites, temos condições de evitar que destruam colheitas e florestas, de impedir o uso de armas como o mal que devastou Hali há nove anos, onde crianças ficaram inchadas e caíram doentes, vitimadas por uma moléstia que transformava seu sangue em água, apenas porque brincaram nas florestas onde as folhas tinham sido destruídas com bonewater em pó... Aquelas terras ainda continuam áridas, Dom Rafael, e talvez ainda o estejam na época dos netos do jovem Alaric. A guerra é uma competição, Dom Rafael. Na realidade, poderia ser solucionada com um lance de dados, ou um jogo de castles. As regras bélicas não foram instituídas pelos deuses, para que devamos descobrir e criar armas cada vez mais poderosas que, um dia, nos irão destruir a todos, vitoriosos ou derrotados, da mesma forma. Antes que chegue este dia, por que não nos limitarmos às armas que possam ser usadas por todos de uma forma honesta?
— Meu povo jamais concordaria com isto — retrucou Dom Rafael. — Não sou um tirano, para lhes tirar todas as armas e deixar minha gente indefesa contra aqueles povos inescrupulosos que haviam de se recusar a abrir mão de suas armas. Talvez, quando tomar conhecimento de que todos os nossos inimigos já o fizeram... mas não creio nisto.
— Bard di Asturien — disse Varzil, dirigindo-se a ele surpreendentemente —, você é um soldado; a maioria dos soldados é gente de bom senso. Você é o comandante dos exércitos de seu pai. Não gostaria de ver estas armas atrozes serem consideradas ilegais? Não viu uma aldeia incendiada com clingfire, ou criancinhas morrendo vitimadas pela moléstia gerada pelo bonewater?
Bard sentiu um aperto no coração, ao se recordar de uma aldeia daquelas perto de Scaravel; o grito e o choro interminável das crianças queimadas com clingfire. Aquilo parecia durar dias a fio, até que, uma a uma, todas haviam morrido e, então, o silêncio parecia mais terrível, como se ele ainda pudesse ouvir seus berros em algum lugar remoto de sua mente... Ele, pessoalmente, jamais usaria o clingfire; mas por que Varzil formulava a ele esta pergunta? Ele era apenas um soldado, o homem de confiança de seu pai que não podia deixar de obedecer às ordens recebidas.
— Dom Varzil, eu lutaria, de muito bom grado, com espadas e escudos apenas, caso os outros se convencessem a fazer o mesmo. Porém sou um soldado, e meu dever é vencer batalhas. Não me é possível vencer batalhas quando comando homens armados com espadas contra um exército que adota o clingfire, ou recorre a demônios e bruxarias para amedrontarem meus homens, para fazer surgir vento, água, tempestades e terremotos contra mim.
— Esta pergunta não lhe deveria ser formulada — continuou Varzil. — No entanto, você concordaria que, no caso de não ser usado laran contra você, não haveria de ser o primeiro a usá-lo e, sobretudo, seria incapaz de adotá-lo contra civis indefesos?
Bard começou a dizer que aquilo lhe parecia razoável, mas Dom Rafael interrompeu-o, revoltado:
— Não! A guerra não é uma brincadeira!
— Se não é uma brincadeira, o que é? Sem dúvida alguma, cabe àqueles que fazem a guerra estabelecer as regras que bem entendam! — exclamou Varzil com desprezo.
Dom Rafael falou com um sorriso de sarcasmo nos lábios:
— Então por que não leva a sua política até o fim? Por que não sugere que no futuro todas as nossas guerras sejam resolvidas com um jogo de futebol... ou quem sabe com um concurso de carniça? Mande seus velhos capatazes solucionarem a guerra com um jogo de xadrez num tabuleiro quadrado, ou quer que nossas menininhas as decidam pulando corda, para resolver nossas disputas?
Varzil retrucou:
— A causa da maioria das guerras é uma questão que seria melhor resolvida através de um debate racional entre homens sensatos. Quando o bom senso não consegue encontrar uma solução, isto poderia ser alcançado através de um jogo de bola entre crianças, do mesmo modo que uma destas intermináveis campanhas, que só servem para comprovar que os deuses parecem gostar daqueles que têm os soldados mais experientes! — Ele dava a impressão de se sentir profundamente amargurado.
— Você fala como um covarde — disse Dom Rafael. — A guerra talvez seja inquietante para os excessivamente escrupulosos, contudo não se pode discutir com os fatos, e uma vez que os homens não são sensatos... e por que deveriam se decidir pela razão ao invés daquilo que desejam?... toda a argumentação, a longo prazo, será resolvida em favor daquele que pode dar força à instituição com a mão mais forte. E impossível modificar a natureza da humanidade e isto é, simplesmente, o conhecimento de que dispomos em todos os anos da existência do homem. Se um homem não se satisfaz com a resposta obtida, não importa o quanto ela possa parecer sensata e justa para os outros, ele partirá e lutará por aquilo que deseja. Se assim não fosse, nasceríamos todos sem mãos, braços, ou cérebros para usar as armas. Ninguém, a não ser um covarde, pensaria de outra forma; se bem que eu já esperava uma coisa assim por parte de um infeliz, de um laranzu.
— Palavras duras não quebram ossos, senhor — redargüiu Varzil. — Não tenho tanto medo assim de ser qualificado como covarde, a ponto de provocar uma guerra para evitá-lo, como garotinhos de escola socando-se uns aos outros ao escutarem "filho da puta" ou "filho de seis pais"! Está me dizendo que se soldados o atacarem armados apenas com espadas, o senhor os queimará com o clingfire?
— Estou, é claro, se dispuser do clingfire. Não fabrico esta droga maligna, porém se for usado contra mim, tenho que me apossar dele e usá-lo antes que possa ser utilizado sobre mim. Acredita, realmente, que alguém cumprirá este pacto, a menos que esteja certo de sua vitória?
— E combaterá desta forma, mesmo sabendo que isto significa que suas terras ficarão envenenadas pelo pó de bonewater, ou o novo veneno que provoca o aparecimento de feridas negras em todo homem, mulher e criança que o respirar, a ponto de ser agora designado como a moléstia da máscara? Eu o julgava um homem tolerante e sensato!
— Ora, claro que sou — protestou Dom Rafael —, porém não tão sensato a ponto de ficar de braços cruzados, conformar-me em capitular, entregar meu país e meu povo, para viver sob escravidão para alguma outra nação! Na minha mente, qualquer coisa que ofereça uma vitória rápida e decisiva é uma arma generosa e razoável. Uma guerra onde se combate com espadas, como num torneio, pode se arrastar durante anos... temos combatido os Serrais a maior parte de minha vida... enquanto homens sensíveis pensarão duas vezes antes de entrarem numa guerra contra armas deste tipo, sabendo que as posso usar contra eles. Não, Dom Varzil, suas palavras parecem sensatas superficialmente, porém sob elas esconde-se a insanidade; os homens gostariam demais do seu tipo de guerra e a prolongariam como se fosse um jogo, sabendo que poderiam brincar de guerra sem serem feridos com seriedade. Pode voltar para junto de Carolin e dizer-lhe que desprezo este pacto e nunca farei parte dele. Se me atacar, haverá de me encontrar preparado com todas as armas que meus leroni sejam capazes de imaginar e que deixo entregue a ele a decisão de escolher se armará seus homens apenas com espadas e escudos. Quanto a mim, pode armar seus homens só com bolas de tênis e tornar meu trabalho mais fácil; ou ordenar-lhes que se rendam logo. Foi para me falar sobre toda esta baboseira do pacto que todos vocês foram mandados até aqui, Dom Varzil?
— Não — retrucou Dom Varzil.
— O que mais existe? Não desejo guerrear contra os Hasturs. Preferiria celebrar uma trégua.
— Também penso assim — disse Dom Varzil —, e o Rei Carolin pensa do mesmo modo. Fui enviado e recebi a delegação de aceitar o seu juramento no sentido de que não nos declarará guerra. O senhor é um homem sensato, assim o diz; então, por que deve esta terra ser dividida devido às lutas?
— Não tenho a mínima vontade de lutar — explicou Dom Rafael —, contudo não me renderei aos Hasturs onde os di Asturiens têm reinado desde tempos imemoriais.
— Isto não é verdade — discordou Dom Varzil. — Registros escritos em Nervasin e Hali... que são, talvez, mais dignos de crédito do que as lendas patrióticas e as histórias folclóricas usadas pelo senhor para arregimentar seus homens... convenceriam-no de que há menos de duzentos anos esta terra era governada pelos Hasturs; contudo, após uma invasão dos homens-gato, Lorde Hastur entregou aos di Asturiens a tarefa de defendê-la, nada mais além disto. E, agora, todas estas terras dividiram-se em pequenos reinos, cada qual reivindicando um direito antiqüíssimo de ser independente e soberano sobre sua própria gente. Isto representa o caos. Por que não podemos ter paz novamente?
— Paz? Está querendo dizer tirania — observou Dom Rafael. — Por que o povo livre das Astúrias deveria baixar sua cabeça para os Hasturs?
— E então por que deveria ele baixá-la para os di Asturiens? A paz é conseguida abrindo-se mão de alguma autonomia local. Suponha que cada um de seus fazendeiros insistisse que era um homem livre e com o direito a estabelecer suas próprias leis, proibindo qualquer outro homem de atravessar suas terras sem lhe pagar um imposto e sem dever lealdade a mais nada a não ser a seu próprio desejo.
— Isto seria tolice — disse Dom Rafael.
— Então por que não é uma tolice afirmar que El Haleine, Astúrias e Marenji são todos reinos, cada qual com um rei e um governo autônomo e cada um isolado do outro? Por que não celebrar a paz sob os filhos de Hastur e ter liberdade para se deslocarem e negociarem sem que se vejam homens armados por todos os lados? Vocês serão livres em seus próprios domínios, apenas e simplesmente jurarão não se imiscuir, nem se intrometer em nenhum outro domínio livre e independente, mas sim cooperar com seus companheiros lordes como amigos e iguais...
Rafael di Asturiens sacudiu a cabeça:
— Meus antepassados conquistaram esta terra. Valentine, filho de Ardrin, abriu mão de seu direito ao fugir para o lado do Rei Carolin com sua mãe traidora. Mas manterei este reino para meus filhos, e se os Hasturs o quiserem, terão que vir e tomá-lo à força se puderem. — Ele falava corajosamente, porém Bard sabia que o pai estava se recordando da conversa que haviam mantido na noite do casamento de Geremy.
Serrais a Leste. Aldaran e Scathfell ao Norte, Hasturs a Oeste e todos os seus aliados, e sem dúvida, algum dia, o povo das planícies de Valeron, ao Sul.
— Quer dizer então que não jurará aliança Hastur, muito embora só lhe peça uma promessa de que não pegará em armas contra Hali, ou Carcosa, ou Castelo dos Hasturs, ou Neskaya, que se encontram sob sua proteção? — perguntou Dom Varzil.
— O trono das Astúrias — disse Dom Rafael — não está sujeito a Hastur. E esta é minha última palavra sobre o assunto. Não tenho a mínima intenção de atacar os Hasturs, contudo não têm o direito de tentar mandar aqui.
— Alaric, você é o Lorde das Astúrias. Ainda não se encontra em idade de assinar pactos, porém, ainda assim, peço-lhe, sem pensar na afeição que o une ao seu parente, para pedir ao seu pai para entender esta questão — falou Dom Varzil.
— Dom Varzil, meu filho não é mais seu prisioneiro agora — avisou Dom Rafael, mostrando-se revoltado. — Ignoro quanto o ensinou no sentido de ser desleal para com o povo dele, mas agora...
— Pai, está sendo injusto — protestou Alaric. — Peço-lhe para não discutir com meu parente Dom Varzil!
— Pelo seu bem, meu filho, mantenho minha paz. Contudo, imploro-lhe, Dom Varzil, para que abandone esta conversa tola sobre entregar o trono das Astúrias para os Hasturs!
— Ainda agora você está pensando em guerrear seus vizinhos pacíficos... não invasores! Estou a par do que fez em Marenji. Informaram-me que pretende combater Serrais na primavera; e também tem intenções de fortificar as terras ao longo de Kadarin... — comentou Dom Varzil.
— E o que representa isto para o senhor? — perguntou Bard com uma fria hostilidade. — As terras ao longo de Kadarin não são terras dos Hasturs!
— Também não são terras das Astúrias — retrucou Dom Varzil —, e Carolin prestou um juramento de garantir-lhes segurança contra possíveis ataques dos pequenos reinos! Façam o que bem entenderem dentro dos limites de seu reino; contudo, advirto-os, a menos que estejam preparados para guerrear contra todos aqueles que se aliaram aos Hasturs e assinaram o pacto, não ultrapassem suas fronteiras!
— Está me ameaçando?
— Estou sim, muito embora preferisse não o fazer — replicou Dom Varzil. — Rogo-lhe, na qualidade de enviado de Hastur, que o senhor e seus filhos prometam não se moverem contra as terras integrantes do pacto, que celebraram o acordo e se consideram em pé de igualdade, ou colocaremos um exército em campo daqui a quarenta dias. Tomaremos o reino das Astúrias e o colocaremos sob a proteção de alguém que o manterá em paz entre aqueles que se encontram sob o domínio dos Hasturs.
Bard ouviu esta ameaça sob uma prostração terrível. Eles não estavam, de fato, preparados para guerrear os Hasturs; não com os homens surgindo além de Kadarin, não com Serrais a Leste! E se os Hasturs marchassem contra eles agora, Astúrias não teria condições de resistir.
Dom Rafael cerrou os punhos enraivecido:
— Qual a promessa que exigem de nós?
— Peço-lhe para jurar — disse Dom Varzil —, não para mim, mas para Geremy Hastur, representando seu parente Carolin, uma promessa de parente, que não deve ser rompida sem um aviso prévio de seis meses para ambas as partes; o que o impede de se deslocar contra qualquer terra que se encontra sob a proteção de Hastur; e em troca vocês participarão desta paz que reina sob a aliança. Jurará?
Fez-se um longo e prolongado silêncio; mas os di Asturiens encontravam-se numa posição desvantajosa e sabiam disso. Não lhes restou outra escolha senão jurar. Sentiram-se gratos quando Alaric tomou a palavra, pois assim nenhum dos dois teve que se dobrar ao enviado de Carolin.
— Dom Varzil, farei o juramento de parentes, embora não o faça com relação a sua aliança. Será isto o bastante? Prometo solenemente que não declararei guerra a Carolin de Thendara, a não ser mediante um aviso prévio, feito seis meses antes. Mas — acrescentou ele, e Bard notou que o rosto do garoto se contraía — este juramento só terá validade enquanto meu parente Carolin de Thendara me deixar na posse do trono das Astúrias; e no dia em que ele fizer um só movimento contra este trono, neste mesmo dia retiro meu juramento e o considerarei meu inimigo!
— Aceito seu juramento, primo — avisou Geremy. — Juro-lhe que cuidarei para que Carolin o honre. Porém, como conseguirá manter seu pai e seu irmão presos a este juramento? Você ainda não atingiu a idade legal para assumir o trono, e eles são o poder que o mantém neste trono.
— Pelos deuses e pela honra de minha família; Bard, meu irmão, você se submeterá ao meu juramento?
— Da maneira como o juramento foi feito, meu irmão, me submeterei — retrucou Bard. Agarrou sua espada. — Zandru que se apodere desta espada e deste coração se eu não cumprir esta declaração.
— E eu — disse Dom Rafael, os lábios cerrados, os dedos apertando seu punhal —, pela honra de di Asturien, que ninguém pode contradizer.
Enquanto Geremy e Dom Varzil com um sem-fim de formalidades pediam licença para se retirarem, Bard pensava, não tinha escolha, não com uma criança aleijada ocupando o trono, ao invés do guerreiro jovem e forte que haviam esperado. Precisavam de tempo, e este juramento era a única maneira para disporem de tempo. Seu pai manteve as aparências de uma calma total até que a embaixada de Hastur tinha ido embora e Alaric, terrivelmente pálido devido ao esforço que lhe fora exigido pelo interminável cerimonial, fora levado para seus aposentos. Então, Dom Rafael revelou-se arrasado.
— Meu filho! Ele é meu filho, amo-o, honro-o, mas em nome do inferno, Bard, está ele adequado a reinar em tempos iguais a estes? Quem me dera que sua mãe tivesse sido minha mulher legítima!
— Pai — intercedeu Bard —, são apenas as pernas dele que são aleijadas; a mente e a vontade estão perfeitas. Sou um soldado, não um estadista; Alaric será um rei muito melhor do que eu!
— Mas eles o veneram, chamam-no Lobo e Comandante, será que algum dia respeitarão desta forma o meu pobre aleijadinho?
— Se eu ficar por trás do trono, eles o respeitarão — falou Bard.
— Então Alaric está abençoado por seu irmão! Verdadeiro é o velho ditado que diz desprotegido está aquele que não tem um irmão... Mas você é um só e está jurado pelos Hasturs, que o querem ver incapacitado. Se tivéssemos tempo, ou se Alaric fosse forte e capaz...
— Se a Rainha Lorimel tivesse usado calças em vez de saias, teria sido o rei e Thendara jamais teria caído — comentou Bard, laconicamente. — Não há razão para se falar em se, e se todos os deuses quisessem, e tolices deste tipo. Precisamos viver como podemos! Os deuses sabem que amo meu irmão, teria sido capaz de chorar, como o bebê de Geremy, ao vê-lo de pé diante de nós, tão encurvado e contorcido, mas o que tinha que acontecer, aconteceu; o mundo não vai parar de girar por causa disto! Sou apenas um irmão.
— A sorte dos Hasturs é vocês não terem nascido gêmeos — disse Dom Rafael, soltando uma gargalhada desesperada —, pois com dois iguais a você, meu filho, poderia conquistar os Cem Reinos.
E, então, ele parou. A gargalhada transformou-se numa respiração convulsa. Ele fixou o olhar em Bard com tamanha intensidade, que ele ficou se perguntando se o choque sofrido devido à enfermidade de Alaric não teria deixado o velho maluco.
— Dois de você, com dois iguais a você, filho, eu poderia conquistar toda esta terra, desde Dalereuth até as Helleres. Bard, suponha que houvesse dois de você — disse num sussurro —, que eu tivesse outro filho, exatamente igual a você, com sua habilidade nos assuntos bélicos, sua genialidade com relação à estratégia e a sua lealdade ilimitada... dois de você! E sei como arranjar um outro. Não um outro igualzinho a você... um outro você!
Bard olhou fixamente para o pai consternado. Permitam os deuses, pensou ele, que Alaric esteja bastante amadurecido para governar, pois nosso pai perdeu a razão de uma hora para a outra!
No entanto, Dom Rafael não parecia louco, sua voz e atitude estavam tão normais, que uma outra explicação, mais racional, veio à mente de Bard.
— Não me confidenciou nada, senhor; mas está querendo me dizer que tem outro filho bastardo, bastante parecido comigo a ponto de se fazer passar por mim quando isto se fizer necessário?
Dom Rafael sacudiu a cabeça:
— Não. E tenho consciência de que o que acabo de dizer parece coisa de gente em delírio, querido filho, portanto, não necessita se dar o trabalho de concordar com tudo que eu disser; não começarei a tresvariar como uma mulher grávida no Ghost Wind, nem a caçar borboletas na neve. Contudo, o que devo lhe sugerir agora é muito estranho, e... — passeou os olhos pela sala do trono vazia — de qualquer forma não podemos conversar aqui.
Nos aposentos particulares do pai, Bard aguardou enquanto o pai dispensava a presença dos criados e serviu vinho para os dois.
— Só um pouquinho — falou secamente. — Não quero que pense que estou bêbado, como julgou que eu estivesse maluco. Falei, Bard, que com dois como você, com dois generais com seu sentido de guerra e estratégia... e isto deve ter nascido com você, de vez que aqueles que foram criados com você não revelam nenhuma inclinação deste tipo, e, certamente, não é um resultado de ensinamentos por mim ministrados... com dois de você, Bard, poderia conquistar todo este reino. Se os Cem Reinos devem ser unidos num único reino... e reconheço que isto me parece uma idéia, pois por que deveriam ser estas terras devastadas pela guerra na primavera e no outono... por que deveriam ser os Hasturs seus senhores supremos? Muito antes do Lorde de Carthon ter entregue a filha à família Hastur, já viviam, nestas colinas, homens que usavam o nome di Asturien. Há um laran na nossa linha, também, porém trata-se de um laran de tipo humano, de homens de verdade, não das pessoas chieri; os Hasturs são chieri, ou do tipo chieri, como pode constatar se se der o trabalho de contar os dedos deles, e muitos deles ainda nascem emmasca, não são nem homem nem mulher; Felix de Thendara nasceu assim, há algumas centenas de anos, e por isto aquela dinastia terminou.
— Pai, não existe ninguém nestas colinas em cujas veias não corra um pouco de sangue chieri.
— Contudo, apenas a família Hastur procurou preservar este sangue na sua linhagem com seus programas de procriação — observou Dom Rafael —, e muitas das antigas famílias: Hasturs, Aillard, Ardais, até mesmo os Aldarans e os Serrais, possuem em seu sangue e podem transmitir tantas coisas estranhas que os verdadeiros homens deles desconfiam! Pode nascer uma criança com a capacidade de matar com um pensamento, ou ver o futuro como se o tempo se escoasse em ambas as direções, ou fazer surgir o fogo, ou fazer os rios aumentarem de volume... Existem dois tipos de laran; o tipo que todos os homens têm e podem usar, ajudados por uma pedra da estrela, e o tipo calamitoso próprio da família Hastur. Nossa linhagem não está totalmente livre dele, e quando você teve aquele filho ruivo com a leronis de sua mãe, trouxe o laran da família Hastur de volta para a nossa gente. Mas o que está feito, está feito, e Erlend talvez possa nos ser útil algum dia. Já engravidou a moça outra vez? Por que não? — Contudo, não esperou pela resposta de Bard.
— Entretanto, tenho certeza de que entende por que não tenho a menor vontade de ser governado pelos Hasturs; eles vão ficando cada vez com mais sangue chieri e seus dons não são diluídos pelo tipo humano normal, mas acentuado na sua linhagem através do programa de procriação. Acho que quem deveria governar é o gênero humano, não pessoas mágicas!
— Mas por que deve me dizer tudo isto agora? — indagou Bard. — Ou está tentando me dizer que quando Erlend estiver crescido estará tão próximo da família deles que poderá reivindicar aquela linhagem? — Falou de modo tão sarcástico, que seu pai nem se deu o trabalho de replicar.
— O que você não sabe — comentou ele — é que estudei a arte do laran quando era um garotinho. Não fui, como sabe, educado para assumir uma posição real, pois Ardrin era o mais velho, mas também não tive o pulso forte dos di Asturiens, pois havia três irmãos entre nós e eu dispunha de tempo para estudar e aprender. Fui um laranzu e morei, durante algum tempo, na torre de Dalereuth, e aprendi alguma coisa de sua arte.
Bard sabia que o pai usava uma pedra da estrela, mas isto não era fora do comum de forma alguma, e nem todos que usavam uma pedra da estrela conheciam a doutrina do laran. Ele ignorava que o pai tivesse vivido numa torre.
— Muito bem, existe uma lei para o uso da pedra da estrela — prosseguiu Dom Rafael. — Não sei quem a redigiu, ou por que deveria ser desse modo, mas assim é; para tudo aquilo que existe, exceto quanto a uma pedra da estrela, existe uma, e apenas uma, cópia exata. Nada é ímpar, a não ser uma pedra da estrela, que não tem nenhuma cópia. No entanto, tudo mais... tudo, cada coelho nos bosques, cada árvore e flor, cada pedra nos campos... possui uma cópia perfeita, mais parecida com elas do que seu próprio gêmeo. E isto me diz que em algum lugar, Bard, existe um ser que é exatamente idêntico a você. Talvez viva nas Drytown, pode ser o filho de um camponês, ou more além do inavegável golfo do mar de Dalereuth, que leva ao mar Desconhecido. E ele seria mais parecido com você do que seu próprio gêmeo, muito embora viva muito além dos Cem Reinos. Espero que não seja assim, desejo que more nas colinas de Kilghard; pois se assim não for, será muito difícil ensinar-lhe nossa língua e os costumes de nossa gente. Contudo, seja lá quem for, tem laran, mesmo se jamais lhe tenham ensinado como usá-lo; e terá a sua genialidade militar, mais uma vez, embora ainda ignore como usá-la; e será tão idêntico a você, que nem a sua própria mãe, se ainda estivesse viva, seria capaz de identificar qual dos dois é você apenas olhando-os. Está entendendo agora, querido filho, por que seria bom contar com ele?
Bard estava pensativo:
— Estou começando a compreender...
— E outra coisa. Seu sósia não estaria na mira dos Hasturs, nem ligado a eles por nenhum compromisso. Está me entendendo?
Bard entendia. Compreendia mesmo.
— Porém, onde encontraremos este meu sósia?
— Disse-lhe que estudei a arte do laran — prosseguiu Dom Rafael —, e sei onde se encontra uma tela, um conjunto de pedras da estrela construída para reunir estas cópias. Quando eu era jovem, conseguíamos, embora fosse muito difícil, trazer homens e mulheres, outros leroni, de um conjunto de pedras da estrela para um outro. Se tivermos um conjunto de cópias na tela, podemos trazer seu sósia para aqui, não importa onde esteja vivendo.
— Mas, quando o conseguirmos trazer, como iremos saber se ele deseja nos ajudar? — indagou Bard.
— Ele não pode ajudar sendo o que é — explicou Dom Rafael. — Se já fosse um grande general, teríamos ouvido comentários sobre ele. Na verdade, talvez seja um de meus filhos bastardos, ou de Ardrin, vivendo na miséria sem nenhum conhecimento bélico. Todavia, tão logo lhe dermos a oportunidade de lidar com o poder e a força... isto sem mencionar a chance de exercitar sua genialidade bélica que por ser seu sósia, ele possuirá, embora apenas em potencial... então ele se revelará grato a nós e desejará nos servir como aliado. Porque, Bard, se ele é seu sósia... então ele também será ambicioso!
Três dias mais tarde, Alaric-Rafael, herdeiro das Astúrias, era solenemente coroado na regência de seu pai. Bard repetiu, em público, a promessa feita ao irmão, e Alaric presenteou-o com uma espada de herança, maravilhosamente trabalhada — Bard sabia se tratar de uma espada guardada por seu pai, durante muitos anos, esperando que o filho legítimo ainda haveria de usá-la em combate. No entanto, estava mais que patente que o Rei Alaric, não importava que tipo de governante viesse a ser, não seria um grande guerreiro; portanto, Bard aceitou a espada das mãos do irmão, e, com ela, o comando de todas as legiões das Astúrias e de todos os reinos a ela sujeitos.
Neste momento, sou general das Astúrias e Marenji, nada mais. Mas isto é apenas o começo.
Chegará o dia quando serei general de todos os Cem Reinos, e todos conhecerão e temerão o Lobo das Astúrias!
E na qualidade de general de Marenji, pensou ele, estava legalmente autorizado a ir àquele país e negociar com aquelas malditas mulheres da Ilha do Silêncio!
Poderia declará-las uma congregação traidora e intimá-las a deixar a ilha! Estava certo de que o povo de Marenji, no momento, consideraria isto uma blasfêmia. Porém ele pediu a Alaric para lançar uma proclamação que o povo de Marenji estaria escondendo a prometida mulher de Bard di Asturien; e que qualquer pessoa que escondesse, ou não revelasse o paradeiro de Carlina di Asturien, seria considerada traidora e estaria sujeita às penalidades máximas da lei.
Alaric atendeu o pedido do irmão, porém, em particular, expressou sua tristeza a Bard.
— Por que deseja uma mulher que não o quer? Acho que devia se casar com Melisendra. Ela é muito boa e mãe de seu filho. E Erlend devia ser legitimado, é um ótimo garoto e dotado de laran. Case-se com ela e faremos uma cerimônia maravilhosa.
Bard disse decidido que seu irmão e senhor não devia falar a respeito de assuntos que não poderia entender até estar mais crescido.
— Ora, se eu tivesse mais dez anos, me casaria com Melisendra, veja só, gosto dela. É boa para mim, nunca me fez sentir como um aleijado — confessou Alaric.
— É o melhor que ela tem a fazer — protestou Bard. — Se tivesse a ousadia de ser rude com você, eu lhe quebraria o pescoço, e ela sabe disto!
— Contudo, sou um aleijado e preciso aprender a conviver com isto, e Lady Hastur, a leronis que tratou de mim em Neskaya, que me ajudou a tornar a falar, ensinou-me que não tem importância eu ter o corpo defeituoso. E Geremy... apesar de aleijado, é um ótimo homem, forte e honrado... será muito difícil para mim pensar nos Hasturs como inimigos — acrescentou ele com um suspiro. — Bard, parece-me muito difícil entender a política. Gostaria que fosse possível haver paz entre todos os povos e, assim, poderíamos ser amigos de Dom Varzil, que foi como que um pai de criação para mim. Mas estou acostumado a ser tratado como um aleijado, porque o sou e preciso de ajuda para me vestir, andar... contudo, uma pessoa como Melisendra ajuda-me a não dar grande importância a este fato, porque me ajuda a sentir, mesmo ao me auxiliar a prender a tala à minha perna, que não sou pior do que qualquer outra pessoa.
— Você é o rei — avisou Bard.
Alaric suspirou resignado:
— Bard, você não sabe mesmo o que estou querendo dizer, de modo algum, não é verdade? É tão forte e jamais esteve realmente doente, ou amedrontado, logo, como poderia saber? Tem uma ligeira idéia do que seja se sentir de fato apavorado, Bard? Quando a febre apareceu, logo no início da doença e eu quase nem podia respirar... Geremy e três das curandeiras do Rei Ardrin ficaram sentados ao meu lado a noite inteira com suas pedras da estrela, isto durante sete noites, apenas me ajudando a respirar quando não o conseguia.
Bard pensou, contra a sua vontade, no terror que o dominara nas praias do Lago do Silêncio quando os semblantes fantasmagóricos na neblina tinham flutuado ao seu redor, fazendo seus intestinos virarem água... mas, nem mesmo ao seu irmão confessaria aquilo.
— Senti medo quando enfrentei uma batalha pela primeira vez — disse ele. Não se importou em revelar isto.
Alaric suspirou com inveja.
— Você tinha a minha atual idade então e foi nomeado porta-estandarte do Rei Ardrin! Mas é diferente, Bard; você contava com uma espada, podia fazer algo contra seu medo e eu... eu só podia ficar deitado, imaginando se morreria, consciente de que nada podia fazer àquele respeito, fosse lá como fosse, sentia-me totalmente inútil. E depois disto... a gente fica sabendo que pode tornar a acontecer, que se pode morrer, ou ser destruído. Não importa o quanto eu seja corajoso, sei, agora, que sempre haverá alguma coisa contra a qual não posso lutar. E com algumas pessoas, sinto-me assim o tempo todo, como este pobre, doente e paralisado covarde. E algumas, como Dom Varzil e Melisendra, fazem-me lembrar que não preciso ser assim, que a vida não é realmente tão terrível... entende o que estou querendo dizer, Bard? Nem que seja um pouquinho só?
Bard fitou o menino e suspirou, reconhecendo que o irmão solicitava compreensão, e sem saber de que forma poderia satisfazê-lo. Ele tinha visto soldados assim, gravemente feridos, correndo perigo de vida, e quando se recuperavam, afinal, algo se passara dentro deles que ele não conseguia entender. Isto havia ocorrido com Alaric, contudo acontecera antes que tivesse idade suficiente para enfrentá-lo.
— Acho que fica sozinho demais, Alaric, e isto o faz fantasiar. Mas estou contente em saber que Melisendra é gentil com você.
Alaric suspirou, estendeu a mão, pequena e pálida, para Bard, que a segurou com a sua mão imensa e morena. Bard, pensou ele, não o tinha entendido de jeito algum, mas amava-o e isto também era muito bom.
— Desejo que consiga sua mulher de volta, Bard. Mantê-la afastada de você é muita maldade que esta gente está lhe fazendo.
— Alaric, papai, eu e algumas de suas leroni devemos ficar longe da corte durante alguns dias. Dom Jerral ficará aqui para aconselhá-lo, caso necessite dele.
— Para onde vão?
— Papai sabe de alguém que nos ajudaria muito no comando das legiões e vamos procurá-lo.
— Por que não ordenar apenas que venha à corte? O regente pode exigir que qualquer um venha até aqui.
— Não sabemos onde mora, Alaric. Temos que localizá-lo com laran — isto, pensou ele, já era uma explicação suficiente.
— Muito bem, se precisam ir, eu compreendo. Mas, por favor, Melisendra pode ficar comigo?
Apesar de Bard saber que Melisendra era uma das mais experientes leroni, julgou melhor não deixar de atender o pedido do irmão.
— Se quer a companhia de Melisendra, é claro que ela ficará ao seu lado.
Ele se envolvera numa questão que poderia desencadear uma discussão com o pai, porém, para seu espanto, Dom Rafael concordou.
— De qualquer forma, não pretendia mesmo levar Melisendra; ela é a mãe de seu filho.
Bard ficou se perguntando que diferença aquilo fazia, mas nem se deu o trabalho de perguntar. Para ele era suficiente seu irmão desejar a companhia de Melisendra.
Partiram do castelo naquela mesma noite e rumaram para a antiga casa de Bard. Três leroni, duas mulheres e um homem, acompanhavam-nos e Dom Rafael conduziu-os até um cômodo que Bard nunca vira antes, para um cômodo numa torre antiga, no final de uma escada quebrada.
— Já faz muitas décadas que não uso nada disto — explicou Dom Rafael —, porém a arte do laran, uma vez aprendida, jamais é esquecida — virou-se para os mágicos e indagou: — Sabem o que é isto?
O homem olhou para o aparelho, em seguida para as duas companheiras, e para Dom Rafael, assustado:
— Eu sei, meu senhor. Mas pensei que o uso destas coisas fosse proibido longe da segurança de uma torre.
— Nas Astúrias não existem leis, a não ser as minhas! Sabe usar isto?
O laranzu tornou a fitar as mulheres apreensivo. Falou:
— Uma cópia sob a Lei de Cherillys? Creio que sim. Mas de que ou de quem?
— De meu filho aqui presente; o comandante das legiões do Rei Alaric.
Uma das mulheres olhou para Bard e ele captou o lampejo irônico de seu pensamento. Um outro Lobo de Kilghard? Na minha opinião apenas um já ê mais do que suficiente! Bard imaginou que ela fosse amiga de Melisendra. No entanto, encolheram os ombros rapidamente protegidos outra vez, e falaram:
— Sim, meu senhor, se este é o seu desejo.
Ele sentia a surpresa, o desagrado, o espanto deles; contudo, não formularam qualquer protesto audível, iniciando os preparativos, colocando símbolos no cômodo de modo a impedir a entrada de presenças alienígenas e para que nenhum outro leronis pudesse espioná-los de qualquer distância.
Quando tudo já estava preparado, Dom Rafael fez um sinal para que Bard se colocasse diante da tela, e mandou que ficasse calado e imóvel. Ele obedeceu, ajoelhando-se em silêncio. Encontrava-se numa posição tal que não podia ver o pai, nem qualquer um dos outros telepatas, porém sentia-os perto de si. Bard não julgava que tivesse muito laran, e aquele que possuía jamais tinha sido treinado com propriedade. Ele sempre nutrira um certo desprezo pela arte da feitiçaria, julgando-a uma habilidade ou arte para mulheres; sentiu-se um pouco assustado quando o emaranhado quase tangível dos pensamentos deles tornou-se tenso ao seu redor. Percebeu que estavam estendendo seus pensamentos até o seu íntimo, mergulhando nas profundezas de seu cérebro e corpo, buscando o próprio delineamento de seu ser; pensou, fantasiosamente, que estavam à procura de sua alma, dominando-a e prendendo-a naquela tela de vidro.
Não conseguia mover sequer um pé, ou um dedo. Experimentou um instante de pânico paralisador... não. Isto se tratava de um aspecto perfeitamente comum de feitiçaria de laran, nada havia a temer; seu pai seria incapaz de permitir que qualquer coisa lhe fizesse mal.
Continuou imóvel, olhando para seu reflexo na superfície de vidro. De qualquer modo, ele sabia que não se tratava apenas da sombra refletida num vidro, mas dele próprio ali, naquela tela de inúmeras camadas, reforçada em todos os níveis com cristais de pedra da estrela que ressoavam nas pedras da estrela dos leroni ao seu redor. Sentiu o emaranhado conjunto de seus pensamentos superpostos girando sobre imensos redemoinhos de espaço vazio, estendendo-se, procurando, buscando encontrar algo que se encaixasse naquele desenho, que se enquadrasse exatamente... algo aproximou-se, quase foi tocado... foi praticamente capturado... não. Não era uma cópia, era uma semelhança, quase total, mas não a cópia exata que a tela podia prender dentro dela mesma. Sentiu o outro escorregar, desaparecer, enquanto a busca recomeçava.
(Bem longe dali, nas colinas Kilghard, um homem chamado Gwynn, um proscrito sem pai — embora sua mãe lhe explicasse que fora concebido durante o saque de Scathfell por Ansel, filho de Ardrin I das Astúrias, há trinta anos —, despertou de um pesadelo no qual tinha visto rostos flutuando ao seu redor, fazendo círculos, precipitando-se sobre ele como falcões sobre suas presas, e um dos rostos era igual ao seu, parecia gêmeo...)
Mais uma vez o emaranhado oscilou, desta feita sobre vazios maiores, noite sem estrelas, um tremendo vácuo além do tempo e do espaço, em redemoinhos de um terrível nada, rodopiando, num vazio total e apavorante. Novamente surgiu uma sombra atrás de Bard na tela, estremeceu, flutuou, contorceu-se, debateu-se como alguém adormecido se debate ao tentar despertar de um pesadelo; em algum ponto do cérebro de Bard cintilou uma centelha; eu mesmo, ou o outro? Ele não sabia, não conseguia adivinhar. Ele lutava tentando libertar-se mas eles o mantinham ali, aprisionado na sua teia, deslocando-se de ponto para ponto do padrão encerrado na tela... procurando ver, tentando certificar-se de que cada átomo, cada detalhe ínfimo, era congruente, idêntico...
Agora!
Bard viu na sua mente, antes que seus olhos vissem, o clarão de raios no cômodo, um choque extenuante como se o outro tivesse sido solto, aos arrancos, da nebulosa em sua mente, o padrão copiado, partindo-se, separando-se... um pavor irrompeu dentro dele; seria aquilo seu próprio medo, ou o terror do outro, arremessado de modo inimaginável através do grande vazio do espaço... Viu de relance um imenso sol amarelo, mundos lançados com violência, estrelas cintilando através do vácuo negro, galáxias rodopiando e deixando-se entrechocarem-se... Um relâmpago explodiu em seu cérebro e ele perdeu a consciência.
Ele se remexeu, agora consciente, sofrendo indescritíveis dores de cabeça, muita dor e confusão. Dom Rafael o estava erguendo, tateando seu pulso. Depois largou-o e afastou-se, e Bard, enjoado e aturdido com o relâmpago, seguiu-o com os olhos; e o leroni, que se achaa atrás dele, observando-o, também parecia tonto. Ele captou um fragmento de pensamento de um deles, Não acredito. Consegui-o, tomei parte nisto, mas mesmo assim não acredito...
Deitado no chão, no extremo oposto da imensa tela, jazia, nu, o corpo de um homem. E Bard, embora tivesse sido preparado intelectualmente para isto, experimentou uma onda de terror remexendo suas entranhas.
Pois o homem deitado no chão era ele mesmo.
Não era alguém muito parecido com ele. Não se tratava de uma semelhança familiar ou acidental. Ele mesmo.
Espadaúdo, e bem entre os dois ombros a marca escura de nascença que ele só havia visto num espelho. Os músculos saltados no braço que manejava a espada, a mesma mancha de cabelos ruivos escuros nos rins, o mesmo dedão torto no pé esquerdo.
Então ele começou a perceber as diferenças. O cabelo estava cortado um pouco mais curto, se bem que no cucoruto da cabeça tives-se o mesmo redemoinho. Não tinha a cicatriz atravessada no joelho; o sósia não participara da batalha de Raven's Glen e não fora atingido pelo golpe de espada que tinha sofrido. O outro não tinha a calosidade espessa na parte interna do cotovelo, onde a tira do escudo roçava. E estas pequenas diferenças tornavam as coisas, de algum modo, piores. O homem não era apenas uma cópia mágica criada, de algum jeito, pelo laran da tela; era um ser humano de verdade, de algum outro lugar, que era, não obstante, precisa e exatamente idêntico a Bard di Asturien.
Ele não gostou daquilo. Gostava menos ainda da confusão e do medo que o outro estava sentindo. Bard, sem muito laran, ainda podia, de algum modo, sentir toda aquela emoção.
Não conseguiu se dominar. Levantou-se e atravessou o cômodo dirigindo-se para o homem nu que estava deitado ali. Ajoelhou-se ao lado dele e passou o braço sob a cabeça dele.
— Como está se sentindo?
Só após ter falado parou para se perguntar se o outro alienígena podia entender a sua língua. Isto seria sorte demais, embora imaginasse que talvez seu parente em algum ponto das colinas Kilghard tivesse concebido sua duplicata. Seria possível qualquer homem ser tão semelhante a outro sem qualquer laço de parentesco unindo um ao outro? A pele do estranho parecia mais morena, como se tivesse sido queimado por um sol mais violento... Não, isto é loucura, o sol era o sol... mas ainda assim, o quadro continuava na sua mente, as galáxias em redemoinhos, um mundo com uma única e gélida lua branca e a coisa assustadora era que, de qualquer modo, todas estas imagens pareciam partes integrantes da mente de Bard!
O estranho falou. Não estava falando a língua de Bard; contudo Bard sabia que ninguém mais naquele cômodo podia entendê-lo. Porém Bard sabia o que ele tinha dito, como se estivessem ligados pelos mais fortes laços de laran.
— Sinto-me como se estivesse no inferno. Como esperava que me sentisse? O que aconteceu... um tornado? Droga... você sou eu! E isto não é possível! Por acaso você não é o diabo?
Bard sacudiu a cabeça.
— Não sou nenhum dos demônios, nem estou perto de sê-lo — retrucou.
— Quem é você? O que é isto? O que aconteceu?
— Descobrirá isto mais tarde — avisou Bard, em seguida; sentindo-o remexer-se, manteve-o imóvel.
— Não, não tente se mexer por enquanto. Como se chama?
— Paul — respondeu o homem, baixinho. — Paul Harrell — e depois tornou a cair para trás, inconsciente. Bard movimentou-se, espontaneamente, para erguê-lo, ampará-lo. Gritou por ajuda. O laranzu aproximou-se e examinou o homem inconsciente.
— Ele está bem, no entanto a energia despendida nesta viagem foi terrível — explicou.
— Chame o velho Gwynn para que o ajude a carregá-lo — ordenou Dom Rafael —, seria capaz de confiar-lhe toda a minha vida e muito mais.
Bard ajudou o velho coridom a carregar o estranho para seus antigos aposentos, deitou-o na sua cama, trancou a porta da suíte... não que isto fosse necessário; o laranzu assegurou-lhes que ele não despertaria por um dia e uma noite, ou talvez mais.
Ele voltou, constatou que Dom Rafael tinha levado os leroni para uma câmara adjacente, onde o velho coridom já tinha servido uma ceia quente, com bastante vinho. Bard, profundamente curioso a respeito do estranho, procurou manter contato com seu pai; no entanto, por alguma razão estranha, seu pai se mostrava totalmente protegido contra ele.
Por que seu pai tinha isolado sua mente de modo tão violento?
— Comida e bebida estão preparadas para vocês, meus amigos. Já fui um laranzu, conheço a fome e a sede terríveis que este tipo de trabalho provoca. Venham, comam e bebam, restaurem suas forças. Mandei preparar cômodos para que depois possam descansar e dormir por tanto tempo quanto o desejarem.
Os três leroni dirigiram-se rápidos para a mesa e começaram a erguer seus copos de vinho. Bard também sentia-se sedento; ia pegar um copo, mas o pai segurou-lhe o braço com um forte aperto, não permitindo que o fizesse. Naquele momento, uma das mulheres gritou, era um grito apavorante e gutural, e despencou inerte no chão. O laranzu sentiu-se sufocar, balbuciou algo em choque, mas já era tarde demais.
Envenenado, pensou Bard com um calafrio de medo, ao pensar como estivera próximo a beber daquele mesmo vinho. A outra leronis ergueu o rosto num apelo mudo, e Bard percebeu o seu terror, o pavor da morte certa; ela não tinha praticamente engolido nem uma gota do vinho e viu-a olhar à sua volta, procurando, sem a mínima esperança, uma via de fuga.
Bard hesitou, pois a mulher era jovem e tinha seus atrativos.
Percebendo a sua confusão, ela se aproximou dele e se jogou aos seus pés:
— Oh, não! Oh, meu senhor, não me mate, juro que jamais direi uma única palavra...
— Beba — ordenou Dom Rafael, e sua fisionomia parecia ser de pedra. — Bard, obrigue-a a beber.
A perplexidade de Bard tinha passado. Seu pai estava certo; nenhum dos dois podia permitir que a leronis vivesse para contar o trabalho feito naquela noite. O velho Gwynn seria capaz de sacrificar a própria vida por eles; mas, uma leronis cuja mente podia ser lida com a pedra da estrela de uma outra... não, era impossível. A certeza de que ninguém viria a saber da existência de seu sósia era fundamental para seus planos. A mulher continuava ajoelhada, balbuciando, aterrorizada. Relutante, ele se inclinou para fazer seu trabalho, porém antes que pudesse tocar a mulher, esta se inclinou, pôs-se de pé num segundo e fugiu. Bard suspirou, prevendo uma caçada realmente sórdida e a necessidade de abatê-la no final das contas; mas ela correu ao redor da mesa, pegou o copo e sorveu seu conteúdo até a última gota. Antes mesmo de ingerir o terceiro gole tossiu, um espasmo ínfimo e estranho, e despencou sem vida sobre a mesa, virando uma bandeja de pão, que se espatifou no chão.
Então fora por isto que seu pai não tinha trazido Melisendra!
Dom Rafael virou o resto do vinho envenenado sobre o chão de pedra.
— Há uma garrafa intacta aqui — afirmou. — Sabia que você iria necessitar dela. Coma, Bard, a comida está perfeita e temos trabalho a nossa espera. Mesmo com a ajuda de Gwynn, levaremos a noite toda para sepultarmos os três.
O Sósia Secreto
Se ele sou eu, então, que inferno, quem sou eu?
Paul Harrel não tinha certeza se o pensamento tão forte na parte anterior de sua mente era seu próprio pensamento, ou o daquele homem que se achava diante dele. Aquilo era muito perturbador. Ao mesmo tempo, duas emoções antagônicas o dominavam: este homem devia me compreender, e eu o odeio; como ousa ele ser tanto aquilo que sou? Aquela não era a sua primeira experiência com a ambivalência, contudo tratava-se da percepção mais desnorteante que jamais sentira.
O homem que se apresentara a ele como Lobo tornou a repetir o nome dele:
— Paul Harrell. Não, este não é um de nossos nomes, se bem que os Harryls estão entre os homens mais leais a meu pai. Teria sido demais pedir que você fosse um deles.
Paul apalpou a própria cabeça outra vez, descobrindo, muito surpreso, que ela estava inteirinha. Então, imaginou um modo perfeito para testar se, afinal de contas, aquilo não seria uma estranho pesadelo da caixa de estase.
— Onde fica o sanitário?
Ele percebeu que o outro tinha compreendido até mesmo o seu palavreado — que inferno, como é que ele conseguia fazer este truque da leitura de pensamento? — quando ele apontou:
— Do outro lado do corredor — avisou Bard.
Paul levantou-se, nu, e atravessou a porta indicada pelo outro. Não havia trancas. Ele não era um prisioneiro, não importava o que desejassem dele, portanto não podia deixar de ser uma melhoria. O corredor era de pedra, atravessado por uma corrente de ar gélido, e seus pés pareciam enregelados. A peça era um banheiro razoavelmente montado. Os acessórios se mostravam estranhos na aparência, e ele sequer podia imaginar de que eram feitos, se bem que não eram de porcelana, disto não tinha dúvidas, mas era bastante fácil conceber o encanamento; ele imaginou que só existiam alguns projetos entre os humanos. Havia água quente — na verdade, havia uma descomunal banheira um pouco parecida com as usadas nas casas de banho japonesas, cheia com água quente, e pelo leve cheiro de remédio que exalava, supôs que devia vir diretamente de alguma fonte vulcânica. Enquanto urinava, Paul julgou que aquele era o último teste de realidade. Apanhou um tapete, ou uma manta forrada de pele, que se achava em cima de um banco e enrolou-se nela.
Voltando para o quarto, o outro olhou para Paul na sua coberta improvisada e falou:
— Devia ter pensado nisto. Há uma camisola sobre a cadeira.
A peça se parecia com um roupão de banho antiquado, porém mais amplo, forrado com algum tecido sedoso, que parecia pele ao toque da mão, e amarrado bem justo, junto ao pescoço, para evitar que se arrastasse. Era muito quente; no seu mundo seria bom para servir como sobretudo quando se pretendesse viajar pela Sibéria. Sentou-se na cama, enfiando os pés descalços sob o robe quente.
— Isto servirá para início de conversa. Agora, onde estou, que lugar é este, e o que estou fazendo aqui? E, por acaso, quem é você?
Bard repetiu seu nome, e Paul tentou repeti-lo na sua língua. "Bard di Asturien." Afinal de contas, não era tão extraterreno. Procurava gravar o que Bard lhe informara a respeito dos Cem Reinos. Ficou imaginando qual seria o nome do sol — se eles eram uma cultura pré-espacial, provavelmente deviam chamá-lo o Sol —, e ele não conhecia, nem tinha notícia, de qualquer mundo dentro da confederação que tivesse um sol tão grande como este, ou tão vermelho. Os sóis realmente imensos e vermelhos não contavam com planetas habitados.
— Existem de fato Cem Reinos?
Estava imaginando um tipo de confederação unida onde os reis se reunissem todos, como no Congresso dos Mundos Confederados que tinha lugar quatro vezes por ano. Apenas não existiam cem planetas habitados. Cem reis juntos formariam uma respeitável assembléia, sobretudo se se dessem da mesma maneira que ocorria com as embaixadas da confederação que, geralmente, não se entendiam! E só eram 42 ao todo!
Bard levou a pergunta muito a sério.
— Sou melhor em estratégia do que em geografia — explicou ele —, e, recentemente, não consultei um cartógrafo; talvez tenha havido algumas novas alianças, e os Hasturs, há pouco tempo, apoderaram-se de um ou dois tronos vazios. Acho que talvez sejam setenta e cinco ou oitenta, não mais do que isto. Contudo, Cem Reinos é um bom número redondo e soa bem melhor além de suas fronteiras.
— E como conseguiu me trazer até aqui? — perguntou Paul. — A última transferência de que soube, mesmo com a hiperdireção, e que foi além da colônia de Alpha, levou uma quantidade de tempo descomunal, e reparei que meus cabelos e unhas não cresceram tanto assim.
Bard fechou o rosto e disse:
— Não tenho a mínima idéia do que está falando.
Será que a magia dele é mais forte do que a nossa? Paul ouviu o pensamento, não formulado, perfeitamente bem.
— Então, suponho que nos encontremos fora da confederação dos mundos.
— Seja lá o que for, estamos — afirmou Bard.
— E a polícia de Terran não exerce autoridade aqui?
— Certamente que não. A única lei dentro deste reino é a de meu pai, na qualidade de regente de meu irmão Alaric. Por que pergunta? É um fugitivo da justiça, ou um criminoso condenado à morte?
— Passei bastante tempo como fugitivo — respondeu Paul. — Antes dos dezoito anos fui enviado duas vezes para a reabilitação. Desta feita devia me encontrar sob custódia, e sob sentença... — Não fazia qualquer sentido falar sobre a caixa de estase. Evidentemente eles não a tinham aqui e não valia a pena dar-lhes idéias.
— Na sua terra eles prendem mais do que expedem sentenças de morte ou exílio?
Paul anuiu com um movimento de cabeça.
— E você estava... preso? Logo, como o tirei da prisão, você me deve um favor.
— Isto é algo discutível — replicou Paul —, e debateremos o assunto mais tarde. Como me trouxe para cá?
Contudo a explicação... pedra da estrela, um grupo de feiticeiros... não fazia mais sentido para ele do que, imaginava, a caixa de estase teria feito para Lobo. Pensando melhor a respeito, era parecido com qualquer outra coisa que o pudesse tirar da caixa de estase. Fora tentado, claro, porém nunca fora conseguido antes; ou, se alcançara o resultado almejado, o governo não deixara vazar a notícia.
— O que me diz das pessoas que me trouxeram para cá?
O rosto de Bard estava sério:
— Não estão em condição de dar com a língua nos dentes a respeito do que aconteceu. — Paul entendeu perfeitamente o que ele quisera dizer. — No seu idioma, estão enterrados, exceto meu pai. Você se encontrará com ele mais tarde; ainda está dormindo. O trabalho que teve durante a noite foi... extenuante, para um homem tão idoso.
Paul teve uma visão fragmentada: três sepulturas, cavadas, às pressas, ao luar e, de repente, ficou frio. Este não era um lugar para conformistas assustados. Ora, este era o lugar que sempre tinha desejado conhecer durante toda a vida. As pessoas deste lugar seguiam regulamentos que podia compreender. Sabia que Bard estava ansioso para amedrontá-lo e resolveu que já era tempo de deixar que este pretenso Lobo soubesse que não se apavorava com facilidade. Quem tem medo do lobo mau? Eu não.
Devia ter sido ilegal o modo como o tinham trazido para ali; ou então não teriam matado todas as testemunhas; portanto, já contava com alguma coisa contra Bard e seu pai.
— Não creio que me tenham trazido para cá por simples dedicação ao conhecimento, pois, se assim fosse, estariam propalando o fato aos quatro ventos, ao invés de me esconderem aqui e assassinarem todo aquele que participou da experiência.
Bard parecia desconcertado:
— Pode ler a minha mente?
— Posso, em parte. — Não tanto quanto desejava fazer crer ao Lobo. Porém desejava mantê-lo um pouco enganado. Sabia que este era um homem que jogava duro, que jogava de verdade, e ele precisava de cada vantagem de que pudesse dispor!
Mas Bard não teria feito tudo aquilo em troca de nada. Provavelmente, ele ficaria a salvo até tomar conhecimento daquilo que Bard desejava dele, e a não ser que fosse para personificar o convidado de honra numa execução pública, não poderia ser pior do que a caixa de estase.
— O que quer comigo? Não recebi nenhuma medalha por bom comportamento... da mesma forma que você — disse ele, arriscando.
Bard riu:
— Certo. Fui proscrito aos dezessete anos e a partir daí fui um soldado mercenário. Este ano retornei e ajudei meu pai na sua reivindicação do trono das Astúrias para meu irmão.
— Não para você mesmo?
— Com mil demônios, não! Tenho coisas melhores para fazer do que me sentar em conselho com todos os anciãos do reino, fazendo leis sobre como manter o gado nos pastos, restaurando estradas, construindo abrigos para viajantes e discutindo se as Irmandades da Espada deveriam compartilhar da vigília com os homens!
Paul considerou que os negócios reais, colocados assim, pareciam um pouco tolos, afinal.
— Você é um irmão mais jovem e seu irmão mais velho é o rei?
— Não, é exatamente ao contrário. Meu irmão mais moço é o filho legítimo. Sou um nedestro... mais do que um bastardo, mas fora da linha de sucessão.
— Nasceu do lado do avesso do cobertor, não?
Bard parecia ligeiramente intrigado, depois riu ao compreender a imagem.
— Pode-se dizer que sim. Não tenho queixas do velho; ele me educou na sua casa e apoiou-me quando da minha desavença com o velho rei. E, agora, meu irmão nomeou-me comandante de seus exércitos.
— Então para que precisa de mim? E o que tem para me oferecer? — indagou Paul.
— No mínimo, liberdade — retrucou Bard. — Se é tão igual a mim intimamente como é exteriormente, isto significa muito para você. Além disto? Não sei. Mulheres, se as deseja, e mais uma vez se se parece um pouco comigo, você gosta delas e consegue-as, também. Fortuna, se não for ambicioso demais. Aventura. Talvez haja a oportunidade de uma regência num reino. De qualquer forma, uma vida melhor do que a que tinha na prisão. Não lhe parece um bom começo?
Realmente parecia que sim. Ele teria que ficar atento com relação a Bard, mas, pelo menos, não tinha sido trazido até aqui por nenhuma das complicações de algum prisioneiro de Zenda que ficou apodrecendo na prisão para que seu sósia pudesse sair e fazer coisas.
Tinha captado imagens na mente de Bard que já o haviam deixado excitado. Este talvez fosse um mundo no qual valesse a pena viver, não um mundo descorçoado que se contentava em manter todo mundo esmagado num nível de conformismo brando, e cortando a cabeça de quem a erguesse acima do todo!
Muitas eram as personalidades importantes, generais, legisladores que tinham sósias; mas achava que seria mais do que isto. Poderiam, provavelmente, ter encontrado alguém que se parecesse muito com Bard, um parente, sem terem que ir tão longe, e as diferenças insignificantes podiam ser esquecidas pela conveniência de contarem com alguém que conhecesse sua língua e costumes. Alguém como Paul, que nem ao menos podia se vestir nesta sociedade sem ser orientado em como o fazer, e que tinha de se comunicar, até então, através de leitura de pensamento — e apenas com uma pessoa —, isto seria uma grande inconveniência; portanto, não podia deixar de haver uma.boa razão, uma razão superpoderosa para que tivesse de ser ele. Eles necessitavam de alguém que fosse igual a Bard, porém não apenas em aparência, mas também em seu íntimo.
Logo, este mundo talvez fosse real. Não se tratava apenas de uma existência circunscrita dentro de limites, um mundo real onde podia ser um homem de verdade, entre homem reais, não entre andróides sem sangue e clérigos!
Bard levantou-se:
— Está com fome? Mandarei que lhe tragam algo para comer. Segundo meu pai, se serve para mim, tem que servir para você. E também lhe mandarei algumas roupas. Você tem quase o meu tamanho... — recordou-se e explodiu numa gargalhada: — Não, que diabos, você é do meu tamanho! Nada podemos fazer até que seus cabelos tenham crescido... não posso ser visto sem a trança de guerreiro. Isto nos dá algum tempo para lhe ensinarmos os rudimentos da vida civilizada daqui. Acredito que saiba algo sobre o manejo da espada... não? Seu mundo deve ser um lugar ainda mais estranho do que o imagino! Não sou um duelista, portanto não precisará conhecer os floreios, mas precisa conhecer alguma coisa sobre autodefesa. E tem que aprender o idioma. Não me encontrarei sempre por perto de você, e é uma tolice termos que ler a mente um do outro o tempo inteiro. Até mais tarde.
Bard tinha se erguido sem qualquer cerimônia e saiu deixando Paul esfregando a mão e, mais uma vez, se perguntando se isto não era apenas algum sonho estranho dentro da caixa de estase. Ora, se era, talvez devesse se divertir com ele.
Contudo, apenas dez dias mais tarde eles rumaram para o Castelo das Astúrias. Dom Rafael não se mostrava disposto a deixar, por mais tempo, o governo nas mãos inexperientes de Alaric. E, assim, o projeto inicial de aguardar até que Paul se achasse em condições de se fazer passar por Bard também fora abandonado. Pelo contrário, decidiram eles, seria bom que fossem vistos juntos, e que a ligeira semelhança entre os dois fosse notada; desta forma, quando mais tarde Paul estivesse realmente personificando-o, ninguém acreditaria que o parente que se parecia um pouco com ele, mas nem tanto assim, pudesse ser tão igual a ele a ponto de substituí-lo. Não queria que se pudesse cogitar que houvesse, de fato, alguém cuidadosamente escondido longe dali que fosse bem parecido com ele a ponto de tomar o seu lugar. As pessoas, Bard observou para o pai, em geral viam o que se esperava que vissem, e se fosse visto com freqüência com um suposto parente que se parecia um pouco com ele, aqueles que gostavam de fofocar a respeito de coisas com as quais nada tinham a ver estariam logo comentando que a semelhança, na verdade, não era tão grande assim.
Portanto, e por enquanto, os cabelos curtos de Paul, mais descorados do que os de Bard pela ação de um sol mais luminoso, foram escurecidos com camadas de uma tintura que os deixaram vermelho-amarelados, e ele deixou crescer um pequeno bigode ralo. As diferenças nos modos e porte, achavam eles, fariam o resto. Por enquanto, ficou combinado dizer-se que ele era um neto nedestro de um dos irmãos de Ardrin e de Dom Rafael, que tinha morrido antes da ascensão de Ardrin ao trono, e, portanto, primo de Bard, descoberto por ele durante seus anos de exílio. Diriam que ele morava ao norte de Kadarin, perto da região dos rastreadores. Esta região ficava tão distante, que não haveria a mínima possibilidade de que alguém que falasse o idioma de lá, ou observasse os hábitos deste alienígena, fosse até a corte; portanto, desta maneira, qualquer engano cometido por Paul seria atribuído a sua precária educação.
E era bom que Paul pudesse ficar na corte às claras por algum tempo e aprendesse por si mesmo os costumes e assimilasse a situação política. Bard ficou aliviado ao constatar que Paul cavalgava bem, embora não com tanto desembaraço quanto ele. A leitura de pensamentos tinha sido de grande valia. Paul já falava um pouco de casta e seu sotaque estranho podia ser atribuído a sua suposta criação rural nas Hellers. A primeira providência, pensou Bard, seria acabar com os últimos vestígios daquele sotaque.
Pois o plano audacioso era nada menos do que este: dividir as legiões que conseguissem organizar e mandá-las para duas campanhas isoladas; uma contra Serrais, a Oeste, a outra para enfrentar as legiões de Carolin, a Leste; deixando que cada legião pensasse estar sendo comandada por Bard em pessoa; e finalmente, unificar todo o reino, e no fim, todos os Cem Reinos, sob o domínio de Alaric das Astúrias. Então, com os Hasturs subjugados, os domínios poderiam ser unificados, e haveria paz, sem o regulamento tirânico do infame pacto de Dom Varzil! Paz sem a pressão das insignificantes guerras fratricidas alcançando seu ápice em todo o período, desde o degelo da primavera até a colheita, ou um novo reino surgindo cada vez que um pequeno grupo de homens não gostava de seu senhor e decidia estabelecer um novo reino, independente dele!
E então, pensava Bard, uma Idade do Ouro poderia reaparecer como não sucedia desde que Lorde de Carthon fez o pacto com os habitantes das florestas!
Contudo, o essencial para este plano era a genialidade militar de Bard di Asturien e o carisma especial do Lobo de Kilghard. Paul, cavalgando devagar logo atrás de Bard e de Dom Rafael — segundo exigia sua condição de parente pobre —, podia captar um pouquinho de seus pensamentos, mesmo agora. Quer dizer que serei o Cão para o seu Lobo? Deixe estar que cuidaremos disto!
Paul pensava sobre a teoria que o tinha trazido para esse lugar; que ele e Bard eram, em essência, o mesmo homem. Sentia-se inclinado a acreditar nisto. Sempre soubera que era maior do que seus companheiros, não em corpulência apenas — embora isto ajudasse —, mas projetado, mentalmente, para ser alguém num tempo mais importante e mais heróico do que aquele em que tinha nascido.
O modo como considerava aquilo era que a maioria dos homens tinha cérebro, mas não tinha coragem, ou talvez fosse ao contrário. E daqueles raríssimos que tinham cérebro e coragem, a maioria não contava com a mínima imaginação. Paul sabia que possuía todos três; porém eram desperdiçados no mundo em que vivia. Um de seus primeiros psiquiatras, quando ainda o tentavam salvar para a instituição, dissera-lhe com toda a franqueza que ele pertencia a uma fronteira, que numa sociedade primitiva teria sido proeminente. Fato que não o tinha auxiliado em nada. O psiquiatra havia confessado, com a mesma franqueza, que na própria sociedade de Paul, a menos que se resignasse a se conformar, suas qualidades sempre representariam um risco.
Agora ele estava colocando tanto o cérebro como a imaginação para trabalharem no mundo de Bard. As quatro luas coloridas já lhe haviam revelado que esta não era nenhuma das colônias dos Mundos Confederados. Contudo, os habitantes eram perfeitamente humanos, até ali, fato que teria oferecido dificuldades à credibilidade além do suportável, caso não fossem de origem de Terran; e embora não fosse um filólogo, sabia que a casta, com suas misturas de palavras espanholas, não poderia deixar de ser originária de alguma cultura de Terran. Só podia levantar a hipótese de que aquela gente descendia de uma das naves perdidas — enviadas nos tempos antigos que precederam à hiper-direção, para colonizar um universo que já sabiam ser povoado. Uma destas naves tinha fundado a colônia Alpha, outras as iniciais, mas a maioria delas havia desaparecido sem deixar vestígios e eram consideradas perdidas, com toda a sua tripulação. Paul sabia que os Mundos Confederados estavam preparados para descobrir uma ou duas destas colônias sobreviventes e isoladas, algum dia. Esperava que não encontrassem esta enquanto ele vivesse. Seria uma tragédia vê-la decair e alcançar a mesma mediocridade da Terra, ou de Alpha, ou qualquer um dos outros mundos conhecidos!
Enquanto cavalgavam rumo ao Castelo das Astúrias, Paul se deu conta, um pouco antes do meio-dia, que se tratava de uma espécie de construção fortificada que já não era mais erguida na Terra há alguns milhares de anos. Não se parecia com as fotografias dos castelos históricos que ele tinha visto. Os materiais de construção eram diferentes, assim como o estilo de vida que dominava a arquitetura. No entanto, nos últimos poucos dias, ele tinha sido esclarecido sobre a teoria das fortificações e estratégias, e focalizou sua mente para o problema de imaginar como iria tomar este castelo. Não seria fácil, pensou. Mas podia ser feito e estava absolutamente seguro de que quando chegasse o momento, ele seria capaz de resolver o problema.
Contudo, refletiu, seria bem mais fácil se contasse com um cúmplice lá dentro...
Dom Rafael dirigiu-se como o exigia o protocolo, com seus servidores para comunicar a Alaric e seus conselheiros a sua volta. Bard cedeu dois criados para Paul, um cômodo ou dois na sua suíte pessoal, e retirou-se para tratar de algum assunto que lhe dizia respeito. Paul, vendo-se a sós, começou a examinar as peças que lhe tinham sido cedidas.
Descobriu uma escadinha que levava para baixo, para um pequeno pátio interno, repleto de flores de final de verão — se bem que, para Paul, o clima parecesse excessivamente frio para qualquer tipo de flores. Havia paredes repletas de bandeiras por todos os lados, a fragrância das ervas e um velho poço. Sentou-se para aproveitar o raro sol do final da tarde e refletir sobre a situação curiosa na qual se encontrava.
Escutou um ruído às suas costas e virou-se — fora um fugitivo por tanto tempo, que era impossível não perceber a presença de alguém ou de alguma coisa atrás dele —, depois relaxou os nervos, sob uma sensação de alívio, ao ver que se tratava apenas de um garotinho, bem pequenininho, jogando uma bola de encontro às paredes.
— Pai! — exclamou o menino. — Ninguém me contou que tinha voltado... — então interrompeu sua corrida alucinada na direção de Paul, piscou e disse com uma encantadora dignidade: — Aceite minhas desculpas, senhor. Agora estou vendo que não é meu pai, se bem que seja muito parecido com ele. Peço-lhe perdão por tê-lo molestado, senhor... suponho que devesse dizer parente.
— Não faz mal — disse ele, decidido. Não foi preciso pensar muito para imaginar... este deve ser o filho de Bard. Que engraçado... não tinha pensado que Bard fosse do tipo de ter uma mulher e filhos, de se amarrar, da mesma forma que ocorria com ele. Refletindo melhor, Bard tinha dito alguma coisa a respeito de casamentos de conveniência, talvez o tivessem casado com alguém sem nem lhe perguntarem a sua opinião, embora não conseguisse imaginar Bard se sujeitando docilmente a isto. Bem, supôs que ficaria sabendo de tudo.
— Já me disseram que há uma semelhança entre mim e o seu pai.
O menino reprovou-o muito sério:
— O senhor devia dizer "o Lorde General" quando se referir ao meu pai, ainda que seja seu parente. Até mesmo eu devo dizer "o Lorde General", exceto no seio da família, pois a ama diz que, daqui a pouco tempo, serei mandado para algum reino como filho de criação, e que tenho de aprender a falar sobre ele com a cortesia adequada. Logo, diz ela, sempre deveria chamá-lo assim, exceto quando estivermos a sós. No entanto, o Rei Alaric fala "meu pai" ao falar sobre o meu avô Dom Rafael, e não chama meu pai "Lorde General", mesmo quando estão na sala do trono. Não acho isto certo, e o senhor?
Paul, dissimulando um sorriso, explicou que a realeza tinha seus privilégios. Ora muito bem, ele tinha desejado uma sociedade onde as pessoas não eram todas colocadas numa igualdade enfadonha e, agora, encontrara-a. Quanto a isto, ele conseguira uma posição mais destacada do que merecia de início!
— Suponho, parente, que você seja de além das Hellers. Percebo isto pelo seu modo de se expressar. Como se chama?
— Paolo.
— Ora, afinal de contas, seu nome não é tão esquisito assim! Os nomes usados nas terras além das Hellers são parecidos com o seu?
— Este é o meu nome em casta, ou pelo menos é o que me diz seu pai. Meu nome mesmo soaria estranho para você, com toda a certeza.
— A ama diz que é grosseiro perguntar o nome de um desconhecido sem lhe revelar o nosso. Meu nome é Erlend Bardson, parente.
Bem, Paul já havia adivinhado aquilo.
— Erlend, quantos anos você tem?
— Farei sete anos no solstício do inverno.
Paul ergueu as sobrancelhas. Ele pensara que o garoto tinha nove ou dez anos, no mínimo. Ora, talvez o ano deles tivesse uma contagem diferente.
— Erlend — chamou uma voz feminina. — Não deve incomodar os hóspedes de seu pai, nem seus seguidores!
— Estou importunando-o, senhor? — indagou Erlend.
Paul, divertido com os modos majestosos da criança, respondeu:
— Não, de forma alguma.
— Tudo bem, mylady — falou Erlend, enquanto uma mulher aproximava-se. — Ele disse que não o estou incomodando.
A mulher riu. Sua gargalhada era doce, muito baixa e jovial. Era jovem, o rosto redondo e sardento, os cabelos quase lhe chegavam à cintura em duas longas tranças tão vermelhas quanto os cabelos do menino. Não estava andrajosa, porém vestia-se com simplicidade, sem ostentação e sem qualquer jóia, apenas um pequeno e gasto medalhão com uma pedra azul preso em torno do pescoço. Provavelmente, pensou ele, era a ama do garoto. Alguma parenta pobre ou agregada à corte. Pelo que sabia de Bard, o Lobo vestiria sua amante ou concubina com algo mais trabalhado, e sua mulher deveria se vestir de acordo com a sua categoria.
No entanto, como é que Bard não a tinha notado? Pois para Paul aquele corpo feminino, roliço, o riso baixo e as mãos graciosas, o sorriso alegre, eram a personificação da mulher — sim, e do sexo. Inesperadamente, desejou-a, com tamanha intensidade, que tudo que conseguiu fazer foi manter suas mãos longe dela! Se a criança não estivesse ali...
Mas não. Não queria pôr em risco a sua posição, não de imediato, criando problemas por causa de uma mulher. Isto, ele o tinha aprendido de modo severo, fora o que arrasara com o plano secreto e a argumentação que havia elaborado na caixa de estase. Não tivera a presença de espírito e o critério para se manter distante da mulher errada. Ele tinha imaginado, através das conversas esporádicas entre os guardas e escudeiros, que o Lobo de Kilghard era muito macho com as mulheres — já esperava por isto, se Bard era sua própria cópia — e não ia discutir com ele por coisas triviais como esta. Havia muitas mulheres.
Mas esta... Observava-a fascinado, as mãos delicadas, o movimento do corpo rechonchudo e bem feminino sob seu vestido simples e modesto. As maçãs do rosto apresentavam covinhas que se transformavam num sorriso ao chamar a atenção do garoto.
— Porém, tenho que saber os nomes de todos, domna — disse Erlend. — Quando tiver idade para ser o escudeiro de meu pai, terei que conhecer todos os seus homens pelo nome!
Ela estava usando um vestido cor de ferrugem. Que coisa estranha, ele nunca tinha notado como esta tonalidade favorecia as ruivas. O traje tinha a mesma cor de sua sardas.
— Mas Erlend, você não será um soldado ou escudeiro, e sim um laranzu — explicou ela —, e, de qualquer modo, isto é desobediência, pois foi advertido para brincar no outro pátio. Terei que recomendar à ama que o vigie com mais cuidado.
— Estou crescido demais para ter uma ama — reclamou ele, contudo acompanhou a mulher obedientemente. Paul ficou observando até perdê-la de vista. Puxa, como desejava aquela mulher! Ficou imaginando se, por acaso, ela não lhe seria alguém acessível. Bem, a governanta de uma criança não devia ocupar uma posição de destaque, mesmo se fosse uma parenta — como ele suspeitara devido a semelhança que tinha com o garoto. Ficou pensando onde andaria a mulher de Bard. Morta, talvez. Nos mundos primitivos, o parto era um grande risco e, ele o sabia, as taxas de mortalidade eram elevadíssimas.
Pensou, com um sorriso cínico, que estava reagindo normalmente. Salvo da morte, retirado da caixa de estase, haveria melhor maneira de passar algumas horas do que na companhia de uma mulher? Mas, por segurança, isso era real, não iria cometer o mesmo erro que o tinha levado para a caixa. Se, por uma estranha coincidência, aquela fosse uma das mulheres de Bard, tinha adotado a política de se manter afastado! Havia mulheres de sobra...
Mas, que inferno!, desejava aquela mulher! Que lástima a criança ter estado presente; ele não era tão canalha a ponto de agarrar uma mulher diante de uma criança. Tinha a sensação de que ela não devia ser arisca. A rigidez daqueles bicos de seio e a boca vermelha que parecia perfeita para ser beijada revelavam-lhe que não se tratava de nenhuma virgem inocente! Por uma questão de justiça para com ela, não podia dizer que lhe tivesse dado nenhum sinal evidente; fora bastante modesta, mas apostava a própria vida como ela não criaria nenhum problema assim que pusesse as mãos em cima dela!
Bard mandou chamá-lo mais tarde naquela noite e sentaram-se diante da lareira com uma pilha de mapas de campanha que Bard insistiu que ele devia entender em profundidade. Não era cedo demais para começar. Conversaram durante muito tempo sobre táticas e campanhas, e embora se tratasse de um assunto estritamente profissional, Paul percebera que Bard gostava de sua companhia, divertia-se em ensinar-lhe; muito raramente tinha encontrado alguém com quem dividir seus interesses.
Ele é igual a mim, um homem que não encontra com facilidade alguém com quem possa conversar no mesmo nível. Chamam-no de Lobo, porém tenho a sensação de que Lobo Solitário soaria melhor. Aposto como sempre foi, a vida inteira, um solitário. Como eu.
Na realidade, o problema é que não havia muitas pessoas que conseguissem acompanhar seus pensamentos. Não deixava de ser uma bênção... ser muito mais inteligente do que as pessoas que se conhecia. Isto fazia os homens se sentirem uns tolos, as mulheres mais tolas ainda, e a maior parte das pessoas não tinha a menor idéia a respeito do que ele estava falando ou pensando.
Mesmo quando Paul tinha chefiado a rebelião que o conduzira à desgraça, ele já sabia que ela não daria em nada. Não porque a rebelião fosse impossível — poderia ter sido bem-sucedida, se tivesse contado com alguns aliados inteligentes que entendessem o que ele pretendia fazer na realidade —, mas sim e basicamente porque os homens que comandava não se dedicavam a ela com a mesma intensidade que ele. Fora o único que realmente se importara, profundamente, com aquilo pelo que lutavam. Os outros não nutriam, em seus íntimos, aquela revolta; mais cedo ou mais tarde, suspeitara ele, a maioria dos homens pularia fora — como, de fato, tinha feito — e rastejaria aos pés dos poderosos suplicando por uma nova oportunidade; ainda que esta oportunidade significasse terem seus egos anulados, até que nada mais restasse deles. Bem, não eram mesmo grande coisa, a perda era pequena! Mas isto significava que sempre estivera sozinho.
Posso me tornar necessário para o Lobo.
Isto por que sou seu sósia, sua cópia, o mais próximo a um sósia que ele jamais terá. Olhou para Bard por um minuto com algo muito próximo ao amor, pensando. Ele entenderia. Se eu tivesse contado com apenas um seguidor como ele, teríamos conseguido injetar alguma coragem nos homens que me acompanharam. Juntos, poderíamos ter feito isto. Nós dois poderíamos ter mudado o mundo!
As rebeliões, Paul sabia, em geral fracassavam porque cérebros, coragem e imaginação para liderá-las só surgiam aproximadamente uma vez em cada século. Mas, desta feita, havia dois deles.
Não poderia mudar meu mundo sozinho! Porém nós dois podemos mudar o dele, juntos!
Bard ergueu os olhos rapidamente, e Paul sentiu-se de repente intranqüilo. Será que ele estava, mais uma vez, lançando mão daquele truque da leitura de pensamento? Mas Lobo limitou-se a espreguiçar-se, bocejou e avisou que já era tarde.
— Vou me deitar. Por falar nisto, esqueci-me de lhe perguntar, quer que peça ao camareiro para lhe mandar uma mulher? Há muitas mulheres sozinhas e a maioria delas ansiosa para ter um homem em sua cama. Por acaso, viu alguma que tenha despertado seu interesse?
— Apenas uma — retrucou Paul. — A governanta de seu filho, creio eu; tranças compridas, cabelos ruivos, sardenta... corpo cheio de curvas, não muito alta. Gostaria de possuí-la... a menos que seja casada, ou algo assim. Não quero criar problemas.
Bard jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.
— Melisendra! Não aconselharia... tem uma língua que mais parece um chicote!
— Tudo que pude fazer foi manter minhas mãos longe dela.
— Devia ter esperado por isto — disse Bard, sem parar de rir. — Se somos o mesmo homem! Foi assim que reagi quando estava com dezessete anos e ela, acho, não tinha feito catorze ainda! Ela fez uma barulheira infernal, e minha mãe de criação jamais me perdoou por isto, mas, que se dane, valeu a pena! Erlend é filho dela. E meu.
— Ah, tudo bem, se é sua...
Bard tornou a rir:
— Não, que inferno! Estou enjoado dela, porém minha mãe de criação empurrou-a para cima de mim e ela está ficando convencida demais! Gostaria de lhe ensinar uma lição, provar-lhe que não é melhor do que nenhuma das outras mulheres que se encontram por aqui e que é apenas devido a minha boa índole, não por direito, que pode ser minha mulher e ficar aqui para educar meu filho! Deixe-me pensar... se eu a mandasse ir para o seu lado, sairia correndo para junto de Lady Jerana, chorando, lamuriando-se e não me sinto com a mínima disposição de discutir com a mulher de meu pai. Contudo, ainda assim... — ele sorriu com malícia. — Ora, ao que parece, você é o meu sósia! Será que ela notaria alguma diferença? O quarto dela fica ali. Ela pensará que sou eu e não criará nenhum caso!
Algo no modo de falar de Bard incomodou-o, quando ele acrescentou com um risinho sarcástico:
— Afinal, você sou eu; não pode se queixar de eu tê-la entregue a outra pessoa!
Mas que droga! Quem Bard pensava que ele era, para atirá-lo nos braços de Melisendra desta maneira? Porém, pensou no maravilhoso corpo daquela ruiva e esqueceu-se de tudo mais. Jamais uma mulher despertara sua sexualidade daquela maneira e à primeira vista!
Quando, mais tarde, dirigia-se no escuro para o quarto que Bard lhe indicara, seu coração batia forte. E por trás da excitação, pensar naquela mulher, havia um quê de precaução cínica.
Bard acharia muito divertido, imaginava ele, guiá-lo, não para o quarto de Melisendra, mas para o de alguma megera velha, alguma velha ainda virgem que despertaria a casa inteira com seus gritos.
Porém, ainda que Bard tentasse pregar-lhe esta peça, ele haveria de descobrir onde ela se encontrava; considerava Bard preso à promessa feita.
Ele é do meu tamanho e tem combatido a vida inteira. E exatamente agora, depois de tanto tempo, só Deus sabe quanto, na caixa de estase, provavelmente ele deve estar mais preparado para isto do que eu; contudo, não é mais forte de que eu, de modo algum. Aposto que poderia dominá-lo. Duvido, por exemplo, que saiba caratê.
Contudo, ao entrar no quarto, esqueceu-se da idéia de sua confrontação inevitável com Bard. O luar, penetrando no cômodo através de uma janela aberta, banhava a cama e ele pôde ver as ondas soltas e ruivas, aqueles cabelos fartos e espessos, o rosto sardento que tinha visto antes. Os olhos estavam fechados e ela dormia. Usava uma camisola comprida, bordada junto ao decote e nas mangas, porém não era o bastante para esconder as adoráveis curvas de seu corpo. Com cuidado, fechou a porta. Como poderia ela saber que ele não era Bard, na escuridão? Queria que ela soubesse daquilo de algum jeito, que também o desejasse! Porém, se aquela era a única maneira de possuí-la... por que estava se demorando tanto? Se ela era o tipo de mulher que podia passar das mãos de um homem para as de outro, o que importava? Mas, evidentemente, ela não era uma mulher deste tipo, ou Bard a teria simplesmente entregue a ele, sem fazer toda esta confusão...
Ou talvez não. Descobriu que pensando no corpo de Bard, seu próprio corpo, enlaçado com esta mulher, era estranhamente excitante. De algum modo aquilo o fez refletir a respeito. Será que Bard sentia a mesma coisa, será que sentia algum prazer imaginando que sua cópia estava fazendo amor com a mulher dele?
Sentou-se na beira da cama para se despir. Estava muito escuro, porém ele não se arriscaria a acender uma luz. Ela, talvez, notasse a diferença devido ao fato dele ainda não usar a trança de guerreiro... Descobriu, com uma careta divertida, que, na verdade, estava vibrando em antecipação, como um garoto prestes a possuir a primeira mulher da sua vida.
Mas que inferno!
E Bard tinha lhe dado Melisendra, não para agradar Paul, mas ele o sentia, para humilhar a jovem. De repente, já não tinha mais certeza de que desejava colaborar com Bard para humilhar esta mulher.
Contudo, era bastante provável que ela nem se desse conta da diferença; e se este era o único modo como ele a podia ter, não ia abrir mão da oportunidade! Enfiou-se na cama ao lado dela e colocou a mão sobre ela por baixo das cobertas.
Ela se virou para ele com um pequeno suspiro, não de aceitação ou bom grado, mas de resignação. Será que Bard era um amante tão inábil, ou será que ela simplesmente não gostava dele? Certamente não existia amor perdido entre eles agora! Bem, talvez ele pudesse modificá-la; não havia uma única mulher que não o recebesse de bom grado como amante.
Ela permaneceu passiva sob suas carícias, sem recusá-las nem aceitá-las, apenas agindo como se ele não se encontrasse ali de modo algum. Que mulher infernal! Não a queria desta maneira, teria preferido que ela gritasse e lutasse contra ele, a recebê-lo como se estivesse cumprindo um dever tedioso! Porém enquanto pensava assim, ela tornou a suspirar, passou os braços em torno do pescoço dele e, então, Paul puxou-a para junto de si. Percebeu que ela estava ficando cada vez mais excitada, sentiu-a tremer de encontro a ele enquanto sua própria excitação aumentava cada vez mais.
Deixou-se cair, cansado e ofegante, sobre ela. Paul ficou deitado ali, as mãos ainda a acariciando, cobrindo-a de beijos, sem querer que ela se afastasse dele, nem mesmo por um instante. Ela perguntou baixinho na escuridão:
— Quem é você?
Atônito, ele prendeu a respiração. E, então se deu conta de que devia ter esperado por isto. Ele e Bard eram sósias fisicamente, sim, sósias, talvez, até mesmo quanto à personalidade. Porém o sexo, dentre todas as atividades, era a que estava mais sujeita ao mais completo condicionamento cultural. Estava claro que não podia esperar fazer amor da mesma maneira que o fazia um Darkovan. Os mecanismos do ato eram os mesmos, porém todo o ambiente psicológico era completamente diverso; talvez ele a tivesse decepcionado com um rosto e um corpo familiar enquanto ficou parado; contudo, cada carícia, cada movimento, revelara todo um mundo de condicionamento profundo demais para ser modificado. Não teria sido capaz de fazer amor com ela ao modo de Bard — mesmo se seu sósia tivesse lhe revelado seu método habitual —, como também seria incapaz de realizar o ato sexual à maneira do homem de Cromagnon!
— Por favor, Melisendra, não chore. Ele me mandou vir até aqui; não pude resistir, desejava-a tanto! — falou Paul com doçura.
— Ele armou uma armadilha cruel contra nós dois; e esta não é a primeira vez que age assim. Não, não chorarei. Você se importa se eu acender uma luz? — perguntou ela com voz baixa e agitada.
Paul continuou deitado enquanto ela acendia uma lâmpada fraca e segurava-a num lugar de onde podia vê-lo.
— Sim — comentou ela —, a semelhança é... é demoníaca. Notei isto quando o vi com Erlend. Contudo, é mais do que uma semelhança, não? Posso perceber uma ligação entre vocês. Ainda assim vocês são... são muito diferentes — disse ela e sua respiração ficou entrecortada.
Paul tirou-lhe a lâmpada da mão e colocou-a sobre a mesa-de-cabeceira.
— Não me odeie, Melisendra — suplicou.
A boca da jovem tremia, e ele descobriu que desejava beijá-la até fazê-la se esquecer daquilo que a perturbava. Esta não era, de forma alguma, a sua reação habitual para com as mulheres! Que inferno! Geralmente quando já havia obtido o que desejava delas, não conseguia se afastar tão depressa quanto gostaria! Mas esta mulher fez algo muito estranho com ele.
Ela o fitou, perturbada:
— Pensei... por um momento, pensei que, talvez, algo tivesse se modificado nele. Eu... eu... eu sempre quis que ele fosse assim comigo. — Engoliu em seco, com dificuldade, sentindo-se sufocar, e Paul percebeu que ela se esforçava muito para conter as lágrimas. — Contudo, só deparei com decepções, pois ele é mau, é ruim até o fundo de sua alma, e o desprezo. No entanto, desprezo muito mais a mim mesma, por... por desejar que ele fosse um homem que eu pudesse... pudesse chegar a amar. Pois, uma vez que devo pertencer a ele, de vez que lhe fui dada, não consigo deixar de querer que ele fosse... fosse um homem que eu pudesse amar...
Paul puxou-a para junto de si, beijando aquela boca trêmula, as lágrimas que brilhavam sob os cílios claros.
— Não posso me lamentar de nada. Nem quando vim para seu lado, Melisendra. Sinto muito por sua tristeza, sinto saber que se sentia assustada; não seria capaz de magoá-la ou assustá-la por querer... mas estou contente por tê-la possuído, ao menos por uma vez, quando não podia protestar...
Ela o fitou séria, os olhos ainda molhados:
— Também não estou arrependida. Acredite em mim. Muito embora eu suponha que ele estivesse tentando me humilhar. Sempre recusei quando Lady Jerana procurou me dar a outro, mesmo quando disse que me casaria com um dos escudeiros de Dom Rafael. Receei que fosse pior ainda. Bard me tratou da pior maneira possível, nada mais tenho a temer da parte dele, e pensei, é melhor a crueldade que eu já conhecia do que suportar uma crueldade diferente partindo de um estranho... Mas você me fez ver que as coisas não são bem assim, muito pelo contrário.
Ela sorriu para ele inesperadamente à luz do abajur, um sorriso muito pequeno, mas sabia que nunca se sentiria totalmente satisfeito até que ela lhe sorrisse como o tinha feito, hoje, para a criança, um sorriso alegre e repleto de amor.
— Creio que lhe estou agradecida. E nem ao menos sei o seu nome.
Com uma das mãos ele apagou a lâmpada e com a outra puxou-a para junto de si.
— Então, está querendo me demonstrar a sua gratidão?
Paul escutou seu suspiro surpreso e grato no instante em que se virou e beijou-o, com um prazer surpreendente que o abalou até o mais fundo de sua alma.
— Nunca tinha odiado Bard antes — confessou, tremendo, agarrando-se a ele com toda força. — Agora, por sua causa, aprendi como odiá-lo e jamais deixarei de lhe ser grata por isto.
— Mas quero mais do que gratidão — escutou-se dizendo, para sua surpresa. — Quero o seu amor, Melisendra.
Ela falou na escuridão, com uma intensidade assustadora:
— Não estou certa de que eu saiba amar. Porém, penso que se pudesse aprender a amar alguém, Paul, seria a você que amaria.
Ele nada mais disse, puxando-a com violência para junto de sua boca. Porém, mesmo em meio a sua surpresa e gozo, um pensamento perturbador o dominou:
Agora não posso retornar, estou preso a este mundo, agora há alguém aqui que significa mais para mim do que qualquer pessoa e qualquer coisa que deixei no mundo de onde vim. O que acontecerá agora que já não posso mais considerar tudo isto como um sonho louco?
Dez dias mais tarde, Paul rumava para a guerra pela primeira vez, ao lado de Bard di Asturien.
— Os homens de Serrais quebraram sua promessa — esclareceu Bard enquanto os dois faziam os preparativos. — Talvez não tenhamos que lutar. Contudo, temos de lembrá-los do juramento que fizeram e a melhor forma de fazer isto é através de uma demonstração de força e uma visão de nossas legiões. Acho melhor estar pronto para partir dentro de uma hora.
O primeiro pensamento de Paul foi o triunfo, com que então, haveria uma chance de lutar pelo poder! O outro, que chegou a desbancar o primeiro, foi de consternação: Melisendra! Não queria ficar afastado dela tão depressa. Tinha começado a suspeitar, e pela primeira vez em sua vida, que não queria se separar dela de forma alguma. No entanto, um momento de reflexão sensata fê-lo ver que esta separação era a melhor coisa que poderia lhe acontecer.
Mais cedo ou mais tarde, sabia-o, haveria de discutir com Bard por causa de Melisendra. Continuava desejando-a, como jamais desejara nenhuma outra mulher. Normalmente, um contato de dez dias o teria saciado e estaria mais do que pronto a fazer qualquer coisa que o afastasse das garras de qualquer mulher. Contudo, ainda desejava Melisendra. Esta separação o deixava apreensivo, desejava-a — e não conseguia explicar isto — de uma maneira diferente. Queria-a para a vida toda e com o consentimento dela; estava pasmo ao ver que a felicidade dela tinha se tornado mais importante para ele do que a sua própria.
Sempre pensara que as mulheres estavam ali para serem possuídas, e mais nada. Por que, se perguntava, devia sentir-se diferente com relação a Melisendra?
Sempre jurei que nunca permitiria que uma mulher me dominasse como se fosse um cordeirinho... Sabia-o, no fundo do coração, que as mulheres queriam ser dominadas, contarem com um homem que não pudessem manobrar... Por que esta é tão diferente?
Tinha consciência de que continuava querendo Melisendra; e desejava-a para o resto de suas vidas. Porém, também sabia que Bard, criado numa sociedade menos sofisticada, considerava Melisendra como propriedade dele, seu prêmio, sua posse. Talvez a entregasse a Paul por algum tempo, para humilhá-la, porém era bastante improvável que abrisse mão dela inteiramente. Ela era, afinal de contas, a mãe de seu único filho.
E, por enquanto, não havia nada que ele pudesse fazer com relação a tudo isso. Chegaria um momento em que discutiriam sobre Melisendra, e quando isto acontecesse, Paul sabia que precisava estar preparado.
Pois quando este momento chegar, pensou implacavelmente, ou ele me matará ou terei que o matar. E não pretendo ser assassinado.
Portanto, reuniu as coisas que devia levar e disse para Bard:
— Gostaria de me despedir de Melisendra.
— Ora, quanto a isto não é necessário — comentou Bard —, pois ela viaja junto com o exército.
Paul concordou, de início sem pensar muito sobre aquilo; estava acostumado com as mulheres soldados, até mesmo mulheres generais. Em seguida foi dominado pelo choque. Sim, num conflito que envolvesse apenas revólveres e botões a serem comprimidos, as mulheres costumavam ser tão competentes quanto os homens — mas neste mundo, onde a guerra significava combate corpo a corpo, com espadas e facas?
— Ah, também contamos com algumas deste tipo — disse Bard, lendo a sua mente. — As mulheres da Ordem das Abnegadas, a Irmandade da Espada, dirigem-se a cavalo para a batalha junto com os homens e brigam como loucas. No entanto Melisendra é uma verdadeira mulher, não uma dessas aí; é uma leronis, uma lançadora de encanto que cavalga com as legiões para combater a bruxaria.
Paul pensou que isto pudesse ser até mais perigoso ainda, mas nada comentou. Quando partiram uma hora mais tarde, Bard explicou que aquilo nada tinha de mais.
— Há alguns que reconheceriam meu modo de combater — disse ele —, e enquanto estivermos nesta campanha... de vez que ao que se supõe você é um meu parente nedestro... ninguém vai ficar impressionado, ou julgará significativo, se eu mandar meu mestre-de-armas lhe ministrar aulas.
Paul, cavalgando sem chamar atenção com um pequeno grupo de ajudantes de Bard, observou como as legiões saudavam seu general: gritos de "O Lobo de Kilghard! O Lobo!", vivas e gritos de aclamação. Sua simples presença parecia incentivar e inspirar os soldados com coragem e entusiasmo nesta guerra contra os Serrais.
Entretanto, algum dia, Bard lhe confiaria este poder — e pensaria que ele o devolveria tranqüilamente quando o outro o desejasse? Não era provável. Só havia uma única explicação, e Paul sabia qual era, sentindo um calafrio perpassar por sua coluna. Bard haveria de usá-lo na sua ascensão para a conquista — e depois, ao invés de premiá-lo e mandá-lo embora como lhe havia pedido, seria devolvido para a caixa de estase, através da mesma magia que o trouxera para cá. Ou talvez, seria ainda mais simples, uma faca enfiada nas costelas numa noite escura, e um cadáver para os kyorebni que perambulavam ao redor dos penhascos. Paul não permitiu que a expressão de seu rosto o traísse, permaneceu impassível, unindo-se aos homens que aclamavam Bard aos gritos. Não ia ser nada fácil. Por enquanto, Bard tinha outras coisas em que pensar do que providenciar para que sua cópia fosse treinada para ser seu sósia e seu joguete; porém, em outros momentos, eles podiam ler os pensamentos um do outro, e Paul não aprenderia a bloquear os seus. Talvez Melisendra pudesse ajudá-lo, caso fosse de fato uma feiticeira; mas Melisendra também não estaria tão ansiosa assim para matar o pai de seu filho. Talvez afirmasse odiar Bard, porém Paul não se sentia inteiramente certo da extensão deste ódio.
Contudo, deparando-se com um fato consumado, talvez pudesse confiar nela para que se mantivesse calada sobre a substituição.
Por enquanto só havia uma coisa a fazer; e isto era exatamente aquilo que Bard desejava que ele fizesse — preparar-se, não apenas para personificar, mas para se tornar Bard di Asturien, o Lobo de Kilghard, general de todas as legiões das Astúrias. E talvez, um dia, mais do que isto.
Para sua surpresa — de vez que nada sabia a respeito do estilo do manuseio da espada e guerra em Darkover e jamais tinha empunhado uma espada —, ele a manejou como se tivesse nascido para aquilo. Um rápido pensamento fê-lo compreender o porquê. Tinha nascido com reflexos idênticos e a soberba organização física que tornavam Bard um espadachim incomparável; e ele tinha treinado este mecanismo físico ao máximo com as artes marciais e as habilidades de combate desarmado durante a rebelião. Agora era apenas o caso de adicionar outro conjunto de habilidades aos músculos treinados e ao cérebro, da mesma forma como um dançarino experiente é capaz de assimilar as variantes dos passos de dança.
Descobriu que gostava da campanha, cavalgando atento com os ajudantes, preparando o acampamento todas as noites e dormindo sob as quatro luas que cresciam e tornavam a minguar. Pensava, com freqüência, que se tivesse sido preparado para esta vida teria sido mais feliz. Aqui havia poucas expectativas de conformismo e as que existiam pareciam-lhe naturais; havia muita válvula de escape para agressão. Na sua primeira batalha corpo a corpo descobriu que não tinha medo e seria capaz de matar, se devesse, sem temor e sem premeditação, e, melhor ainda, sem muitos escrúpulos. Um cadáver retalhado por espadas e lanças não estava mais nem menos morto, do que um crivado de balas ou destruído pelo fogo.
Bard mantinha-o ao seu alcance e conversava muito com ele. Paul sabia que não agia assim de má vontade; o Lobo simplesmente tinha que saber se Paul era, ou não, tão dotado quanto ele para a estratégia também. Parecia que sim; revelava um talento para lidar com homens, um sentido para a estratégia de combate ou ataque, à medida que uma após a outra as cidades caíam, quase que indefensáveis, nas mãos das legiões das Astúrias e os homens de Serrais fugiam, ou buscavam antes deles as fronteiras das terras de Serrais. Em quarenta dias tinham conquistado a metade das cidades, e a estrada abria-se diante deles para irem até as velhas terras do povo de Serrais. E Paul descobriu que sabia, instintivamente, qual seria a melhor estratégia para dominar cada cidade, para arrasar cada força de combate que se opunha a eles.
— Certa vez, meu pai disse que com dois como eu poderíamos conquistar os Cem Reinos — revelou-lhe Bard. — E com a breca, tinha razão! Agora sei que não se trata apenas de uma semelhança física profunda; você e eu somos o mesmo homem, e quando pudermos liderar dois exércitos ao mesmo tempo, toda esta terra ficará aberta para nós como uma prostituta na muralha da cidade! — soltou uma gargalhada e bateu no ombro de Paul. — Teremos que fazer isto... não haveria lugar para nós dois num mesmo reino, mas com uma centena de reinos, deverá haver espaço suficiente para nós dois!
Paul ficou se perguntando se Bard, realmente, pensava que ele era tão ingênuo assim. Sem dúvida, Bard haveria de tentar matá-lo. Contudo, não por enquanto, por algum tempo, talvez durante alguns anos, pois precisaria dele até que todos os Cem Reinos, ou tantos quanto ele desejasse, estivessem subordinados a ele.
Entretanto, paradoxalmente, ele gostava da companhia de Bard. Tratava-se de uma nova experiência para Paul ter alguém com quem conversar, alguém que era capaz de acompanhar o que ele dizia e compreendê-lo de um modo inteligente. E notava que Bard também apreciava estar ao seu lado.
Tudo teria sido perfeito se pudesse ter Melisendra realmente consigo nesta campanha; porém ela cavalgava com os outros leroni, homens e mulheres envoltos em mantos cinzentos rigorosamente vigiados por um homem mais velho e de cabeça grisalha, com uma perna aleijada, tão defeituosa, que montava com um aparelho especial preso à sua sela, para ampará-lo, e um outro que era desmontável e ajudava-o quando precisava desmontar. No primeiro mês da campanha não teve oportunidade de trocar mais do que seis palavras com Melisendra e ainda assim eram coisas que podiam ser ditas diante da metade do exército.
As muralhas de Serrais já se encontravam à vista quando Paul, cavalgando com os ajudantes de Bard, notou que este tinha abandonado seu habitual posto de liderança para acompanhar os leroni. Após um momento, percebendo que Paul os observava, fez-lhe um sinal e Paul dirigiu-se para trás, rumo ao grupo de homens e mulheres com mantos cinzentos. Melisendra ergueu o olhar à guisa de cumprimento, com um sorriso secreto sob seu capuz cinza, que era de algum modo tão íntimo quanto um beijo.
— Quem é Mestre Gareth? — indagou Paul.
— Ele é o chefe dos laranzu'in das Astúrias; também é meu pai — disse Melisendra. — Gostaria de lhe poder contar... — interrompeu-se, mas Paul sabia o que ela insinuara.
— Sinto a sua falta — disse num sussurro, e pôde vê-la tornar a sorrir.
Bard fez um gesto imperativo para Paul e disse:
— Mestre Gareth MacAran, capitão Paolo Harrell.
O feiticeiro de cabeleira prateada inclinou-se formalmente para Paul.
— Mestre Gareth ficou aleijado na minha primeira campanha, contudo não parece me desejar nenhum mal, por tudo isto — explicou Bard.
O velho bruxo disse com inteligência:
— A culpa não lhe cabia, Mestre Bard... ou devo lhe tratar de Lorde General como o fazem, agora, seus jovens soldados? Ninguém poderia ter comandado melhor uma campanha daquelas. Se fui ferido na perna por um punhal envenenado, foi por má sorte, os destinos da guerra, nada mais do que isto. Aqueles de nós que vão para a guerra têm que aceitar coisas como esta.
— Parece que se passou muito tempo desde aquela campanha — disse Bard, e Paul, que sempre estava captando algum fragmento de sua mente e sentimentos, se deu conta de que seu tom era de profundo remorso.
E, na verdade, Bard estava sentindo a ferroada pungente do remorso, uma saudade dos dias há muito idos, dos quais a presença de Mestre Gareth era um lembrete nítido, e o brilho dos cabelos ruivos de Melisendra sob o manto cinzento de feiticeira era ainda mais intenso. Beltran estivera, então, ao seu lado e ainda era seu amigo. E Melora. Percebeu que não conseguiria resistir à tentação de perguntar:
— E a sua filha mais velha, senhor, como vai? Para onde foi?
— Está em Neskaya — respondeu Mestre Gareth. — No círculo de Dom Varzil, protetor lá.
Bard ficou carrancudo, aborrecido e comentou:
— Quer dizer que está servindo aos inimigos das Astúrias? — contudo julgou que seria melhor pensar em Melora como uma inimiga, de vez que estava além de seu alcance. Ela era a única mulher viva que quase o compreendera, ainda assim nunca a tinha tocado.
— Não, por quê? — exclamou Mestre Gareth. — Os leroni em Neskaya prometeram trabalhar apenas com pedras da estrela e viver apenas para o bem de toda a espécie humana, sem se aliar a nenhum rei ou legislador, mas apenas aos deuses, e a auxiliar ou curar. Logo, eles não são o inimigo, meu Lorde Lobo.
— Acredita nisto realmente? — a voz de Bard soava insolente.
— Senhor, eu sei disto; Melora não mente, nem teria motivo para mentir para mim, nem um laranzu pode mentir para outro. Dom Varzil é exatamente como declara ser, está comprometido com o pacto, no sentido de não usar nenhuma arma, não fabricar nenhuma arma, não permitir o uso de nenhuma arma através do laran. É um homem honrado e admiro a coragem dele. Não pode ser nada fácil renunciar às próprias armas sabendo que os outros continuam armados e que podem se recusar a crer que ele esteja realmente desarmado.
— Então, se o admira tanto assim — disse Bard com impertinência —, devo esperar que o senhor também abandone minhas legiões e vá se reunir ao padrão deste extraordinário e grande homem Varzil? Ele é um Ridenow de Serrais.
— De nascimento, na verdade — observou Gareth —, mas agora ele é Varzil de Neskaya, sem qualquer laço de lealdade, a não ser este. E a sua pergunta, Mestre Bard, é desnecessária. Prestei um juramento ao Rei Ardrin, e enquanto vida tiver não renunciarei em favor de Dom Varzil, nem por qualquer outro. Teria permanecido fiel ao filho de Ardrin, se Lady Ariel não houvesse abandonado o país com ele. Sigo o estandarte de seu pai porque acredito sinceramente que isto é o melhor para as Astúrias. Contudo, não sou o guardião da consciência de Melora. E, na realidade, ela abandonou a corte do Rei Ardrin naquela mesma noite em que foi decretado o seu exílio, senhor, muito antes de se ter que escolher entre a causa de Valentine e a de Alaric... na verdade, Valentine nem havia nascido ainda. E ela partiu com a permissão do rei.
— Contudo, se ela escolheu não lutar contra os inimigos das Astúrias, não posso colocá-la entre eles? — perguntou Bard.
— Isto é como o senhor interpreta. No entanto, também poderia dizer que ela preferiu não lutar ao lado dos inimigos das Astúrias. Ela poderia ter feito isto com toda a facilidade; nem todos os integrantes do círculo de Dom Varzil se comprometeram com o pacto, mas o deixaram e foram para o lado dos patrocinadores de Hastur. Ela permaneceu em Neskaya, ao lado de Dom Varzil e isto significa que ela quis ficar neutra, senhor. E minha neta, Mirella, foi para Hali Tower, e também jurou ficar neutra ao lado de Neskaya. Sou um homem velho e leal ao meu rei enquanto ele precisar de mim; contudo, rezo para que os jovens descubram algum meio de pôr um fim a estas guerras infernais, que se sucedem ano após ano, enquanto nossos campos são desperdiçados!
Bard não comentou nada a este respeito. Falou:
— Não gostaria de pensar em Melora como minha inimiga. Se não é minha amiga, acho bom que seja neutra.
Paul, cavalgando entre Bard e Melisendra, ficou imaginando por que Melora podia trazer ao rosto de Bard aquele toque de revolta, tristeza e infelicidade.
— Na verdade, ela jamais foi sua inimiga, senhor. Sempre falou bem a seu respeito — retrucou Mestre Gareth.
Bard, percebendo que tanto Melisendra como Paul podiam ler suas emoções, fez um esforço descomunal para controlá-las. De qualquer jeito, o que representava Melora para ele? Aquela parte de sua vida estava acabada. No final desta campanha, ele colocaria todos os seus leroni na busca de um meio de atacar a Ilha do Silêncio e trazer Carlina para casa junto dele e, então, nunca mais precisaria pensar outra vez em Melora. Ou... pensou ele, interceptando uma troca de olhares entre Paul e Melisendra... em Melisendra. Paul podia ficar com ela, pouco se lhe dava. Pelo menos, aquilo haveria de manter Paul ocupado por algum tempo.
Por algum tempo. Até que eu esteja estabelecido, a salvo, com Alaric como o Rei de todas estas terras. Então ele será perigoso demais para mim; um homem ambicioso, acostumado a deter todo este poder...
E, então, ele sentiu surgir uma inesperada angústia. Será que nunca poderia ter um amigo, um irmão, um igual, em quem pudesse confiar? Estaria ele fadado a perder cada amigo e parceiro como tinha perdido Beltran e Geremy? Quem sabe, no final, não pudesse imaginar uma outra maneira; talvez Paul não precisasse morrer.
Não o quero perder como perdi Melora... Furioso, controlou-se afastando o pensamento. Não tornaria a pensar em Melora!
Inesperadamente, Melisendra obrigou seu cavalo a parar com violência; seu rosto contorceu-se e, ao mesmo tempo, Mestre Gareth ergueu as mãos para cima como se para afastar algum mal invisível. Um dos outros leroni berrou; outro engasgou alto, apavorado, inclinando-se sobre a sela de sua montaria e agarrando-se a ela por instinto, quase que incapacitado para se sentar. Bard olhou para eles assombrado e perplexo. Paul apressou-se em ajudar Melisendra, que oscilava na sela, mais pálida que a neve nas beiras da trilha.
Ela não lhe prestou atenção:
— Ah... a morte, o incêndio! — gritou, e sua voz revelava um terror indescritível. — Ah, a agonia... morte, morte despencando do céu... o fogo... os gritos...
A voz morreu na sua garganta, e ela se sentou com os olhos virados para o alto, como se estivessem vendo algum horror em seu íntimo.
— Mirella! Caros deuses, Mirella... ela está lá... — exclamou Mestre Gareth controlando a emoção.
Isto trouxe Melisendra de volta, mas só por um instante.
— Não podemos ter certeza, querido pai, de que ela já esteja lá, ela... não a escutei gritar, tenho certeza de que saberia se se encontrasse entre os outros... mas oh, o incêndio, o incêndio... — tornou a berrar, e Paul tentou ajudá-la. Ela deixou a cabeça pender de encontro a ele, soluçando.
— O que foi, Melisendra, o que foi... — sussurrou Paul, porém ela não se achava em condições de lhe responder. Só conseguia agarrar-se a ele, chorando desesperada.
Mestre Gareth, também, parecia estar prestes a despencar de sua sela. Bard estendeu a mão para amparar o velho laranzu, e quando o tocou as imagens tomaram conta dele.
Claridade deslumbrante. Dor de queimadura, agonia insuportável, enquanto as chamas elevavam-se e atingiam a alma, consumindo, despedaçando... o incêndio aumentando, paredes ruindo e despencando... vozes altas, dando gritos estridentes de agonia, terror, lamentação ardente... carros aéreos retumbando e fogo, morte caindo do céu...
Paul ficara imune, porém à medida que a mente de Bard se abria às imagens, ele as viu e também sentiu, e percebeu que empalidecia horrorizado.
— Bombas incendiárias — murmurou. Tinha acreditado que este mundo fosse civilizado, civilizado demais para este tipo de operação militar e que a guerra era quase que um jogo, um importante teste de coragem, de dominação, de desafio. Mas isto...
Um corpo de mulher ardendo como uma tocha, o cheiro de cabelo queimado, carne queimando, agonia da carbonização...
Bard amparou o ancião, como teria feito com seu próprio pai. Sentia o estômago revoltado diante do horror das imagens que passavam na sua mente. Contudo, Mestre Gareth conseguiu de algum modo libertar-se dos horrores que desfilavam em seu íntimo.
— Basta! — disse sério, bem alto. — Não podemos ajudá-los compartilhando de suas agonias de morte! Protejam-se, todos vocês! Já!
Falou num tom de comando e, de repente, o ar à volta deles estava livre da fumaça, do cheiro da morte e do incêndio, os insuportáveis berros de agonia tinham sumido. Paul olhou ao seu redor, tonto, mirou a trilha tranqüila e as suaves silenciosas nuvens mais à frente, os pequenos ruídos de um exército em marcha. Um cavalo relinchou em algum lugar, carroças de provisões estalaram e rangeram, um condutor em algum ponto xingou de bom humor as suas mulas. Paul fechou os olhos diante do inesperado acordo de paz que os envolvia.
— O que foi? O que foi isto, Melisendra? — os braços dele ainda a envolviam; ela endireitou o corpo, um pouco embaraçada.
— Hali — murmurou ela —, a grande torre às margens do lago; Lorde Hastur tinha jurado que as torres deviam ser neutras, pelo menos Hali e Neskaya... não sei quem a atacou — seu semblante ainda continuava com a expressão de assombro diante do horror do qual compartilhara. — Todos os leroni nos Cem Reinos devem ter sentido esta morte... É por isto que Lorde Varzil jurou neutralidade. Se isto continuar, dentro em breve não existirá mais terras para serem conquistadas...
Todos pareciam sérios; muitos dos leroni estavam soluçando. Melisendra disse:
— Todos nós, que aqui estamos, temos uma irmã, um irmão, uma amiga ou alguém querido em Hali. Ela é a maior de todas as torres; há ao todo, por lá, trinta e seis homens e mulheres, três círculos completos, com leroni de cada um dos reinos e de famílias com laran... — a voz dela tornou a sumir.
— Tanto pelo pacto — disse Mestre Gareth ameaçadoramente. — Devem eles ficar sentados tranqüilamente em Elhalyn e limitar suas operações militares a espadas e bestas quando o fogo é lançado contra eles do alto do céu? Mas quem teria a audácia de atacá-los? Sem dúvida, não se trata das forças das Astúrias?
Bard sacudiu a cabeça, aterrorizado.
— Serrais não conta, atualmente, com uma força destas, e porque haveria o Lorde Hastur de bombardear sua própria torre que lhe era leal e tinha jurado se manter neutra? Será possível que Ailard ou Aldaran tenha entrado nesta guerra e que todos os Cem Reinos estejam em chamas?
Paul escutava, abalado. Este mundo, na sua superfície, era tão simples, tão lindo, e apesar disto, esta pavorosa guerra telepática jazia escondida...
— Ela pode ser pior do que bombas incendiárias — avisou Melisendra, captando os pensamentos dele como costumava fazer quase sempre. — Pelo menos elas eram lançadas por aeronaves e a torre, defendendo-se, poderia tê-las derrubado dos céus. Uma vez atingi um carro aéreo que realizava um desses ataques. Mas ouvi falar sobre um círculo de leroni que colocou um encanto no solo por debaixo de um castelo sitiado... — e apontou para uma ruína no topo de uma colina distante — e o solo abriu-se, tremeu... e o castelo caiu em ruínas, e todos morreram.
— E não existe nenhum tipo de defesa contra armas deste tipo?
— Oh, sim — retrucou Melisendra com indiferença —, caso o senhor do castelo contasse com seu próprio círculo de mágicos e eles fossem mais fortes do que os invasores. Durante gerações, todos os da nossa família, e de todas as grandes famílias de Darkover, tinham um laran cada vez mais forte desenvolvido em seu seio; isto aconteceu enquanto todas estas terras encontravam-se sob o domínio da família Hastur, os descendentes de Hastur e Cassilda. Contudo, há um limite com relação àquilo que pode ser feito com a procriação; mais cedo ou mais tarde ocorre o excesso de casamento entre parentes e os recessivos letais passam a predominar. Meu pai... — apontou para Mestre Gareth, que ainda parecia pálido e exausto — era casado com sua meia-irmã, e de catorze filhos, só três sobreviveram, só mulheres. Atualmente não há mais MacAran nestas colinas, apenas alguns poucos no Norte que jamais participaram do programa de procriação... e alguns Dellerays e a antiga linhagem de Serrais foi exterminada; os Ridenow assumiram o nome quando se casaram nesta família. E minha irmã Kyria morreu ao dar à luz uma filha, por isto eu e Melora criamos a filha dela... Mirella também é uma leronis, uma daquelas mantidas virgens para a Visão, e rezo para que ela fique assim, pois sei que tem medo de morrer como a mãe.
Paul não estava, na verdade, mantendo relações com Melisendra agora, mas podia sentir as ondas do antigo e contido medo; lembrou-se de que ela tivera um filho e, de repente, sentiu simpatia pelos pavores que ela devia ter suportado. Antes disto, ele nunca se preocupara com os problemas das mulheres; agora sentia-se tocado pelo remorso. No seu mundo, uma mulher saberia como se certificar de que não corria nenhum risco de engravidar, porém, não se dera ao trabalho, aqui, de perguntar sobre isto e ocorreu-lhe, sentindo-se confuso, que Melisendra não deixara de sentir o peso das relações sexuais deles dois.
— Começou a ser mortal na nossa família — continuou ela, quase que murmurando. Paul ficou se perguntando se ela estaria falando com ele ou procurando diminuir suas tensões e medos. — Erlend é sadio, que a deusa seja louvada, mas já tem laran e é pequeno para isto... Bard é parente nosso, porém muito distante, é claro, e Kyria casou com um primo, logo, pode ser que tenha sido por isto... Melora e eu precisamos ter cuidado com quem concebemos filhos; ainda que sobrevivamos, as crianças podem ser natimortas... Não acho que Mirella devesse ter filhos, de modo algum. E existem alguns dons de laran que poderiam combinar com o meu de modo que eu não sobreviveria aos quarenta dias de uma gravidez deste tipo. Felizmente, estes são raros agora, porém não acredito que a sua virulência esteja totalmente perdida na linha e de vez que, hoje em dia, não se guardam mais registros, e como a antiga arte de monitorar a célula em profundidade não é mais conhecida, a última daquelas que sabia tudo sobre o assunto morreu antes de poder transmitir seus conhecimentos... Nenhuma de nós sabe, quando concebemos um filho, o que poderá resultar daí. E algumas destas novas armas... — ela encolheu os ombros e, decidida, tornou a mudar de assunto, mas não muito. — Tive sorte de Bard não ter nada dessa hereditariedade. Talvez isto tenha sido a única coisa acertada em todo este caso.
Antes de encontrarem as legiões de Serrais, tiveram que caminhar mais um dia inteiro, e isto significou outra noite acampados na estrada. Sob condições normais, Paul nem avistava Melisendra quando estavam engajados no exército; porém, próximo ao acampamento havia um pequeno arvoredo com um poço, e quando ele perambulava por ali, enquanto a garoa noturna começava a cair (Bard explicara-lhe que aquilo era normal naquela estação, a não ser quando se achavam no auge do verão... mas que clima!), Melisendra, enrolada no seu manto cinzento de leronis, fez-lhe um sinal. Deixaram-se ficar abraçados por alguns minutos, porém quando murmurou algo para ela mexendo com a cabeça sugestivamente na direção das árvores protetoras, ela recusou com a cabeça.
— Não seria conveniente. Desta forma não, com o exército. Não acha que também quero, meu adorado? Mas nossa hora chegará.
Ele já estava prestes a protestar — como sabia ele se ainda teriam algum tempo, depois desta campanha? —, mas a expressão no olhar dela impediu-o de o fazer. Não podia tratar Melisendra como uma seguidora de acampamento. Logo depois, ela voltava para junto dos outros leroni. Ela explicou que o pai ficaria zangado até mesmo por este abraço às escondidas, teria pensado que ela estava agindo mal; não que se importasse com quem ela amasse, mas por fazê-lo furtivamente, assim, em campanha, quando todos os outros devem deixar as pessoas amadas para trás, isto era vergonhoso. Depois que ela se foi, Paul ficou observando-a pensativamente, refletindo que esta era a primeira vez que ele atendia a uma recusa por parte de uma mulher. Se outra mulher qualquer lhe tivesse feito isto, ele a teria considerado uma vagabunda barata e manipuladora, procurando dominá-lo... O que estava lhe acontecendo? Por que Melisendra era diferente?
Um pensamento indesejável passou por sua cabeça, seria possível que sua própria atitude, naqueles dias, tinha deixado algo a desejar? Paul não era uma pessoa inclinada a questionar a retidão de seus próprios motivos e ações, e esta era uma idéia nova para ele, algo para ser afastado de imediato. Melisendra era diferente, só isso, e o amor era a arte de se fazer exceções.
Contudo, aquela parecia ser a noite dos pensamentos indesejáveis. Ficou deitado, desperto, incapaz de conciliar o sono e pensando no que aconteceria quando Bard descobrisse que aquilo não se tratava de um caso acidental com Melisendra, mas que a desejava para toda a vida. E se ele e Bard eram o mesmo homem, com os mesmos gostos e desejos sexuais, por que não tinha se cansado de Melisendra logo, como acontecera com Bard?
Não tenho nenhum sentimento de culpa com relação a ela e portanto Melisendra não me deixa constrangido... e Paul quase riu; Bard sente-se culpado por alguma coisa? Bard estava tão livre do padrão de culpa neurótico quanto qualquer outro homem que Paul jamais conhecera, tão livre dele quanto o próprio Paul. A culpa era uma coisa engendrada pelas mulheres e padres para impedir que os homens fizessem o que desejavam e tinham força para fazer, um instrumento dos fracos para conseguirem seu próprio caminho... Ainda assim, passou-se muito tempo antes que Paul pudesse adormecer. Ficou imaginando com tristeza o que estava acontecendo com ele neste mundo.
Pelo menos ele era melhor do que a caixa de estase. E com este pensamento conseguiu, finalmente, conciliar o sono.
O dia seguinte amanheceu cinzento e triste, com a chuva caindo forte, e Paul ficou surpreso por tentarem avançar; embora um rápido pensamento o tenha feito ver que, num clima daqueles, se permitissem que a chuva os detivesse, nunca fariam nada. E, na verdade, viu pastores, montados em estranhos animais chifrudos, tomando conta de rebanhos nos campos, rebanhos que eram, explicou-lhe Bard, de coelhos com chifres; e fazendeiros, muitos deles mulheres, enrolados em pesados mantos de lã xadrez, arando seus campos. Pelo menos, pensou ele mal-humorado, não precisavam se dar o trabalho de regar suas colheitas. Estava contente por não ser um fazendeiro. Pelo pouco que sabia sobre eles, ou estavam encharcados ou secos demais. Cavalgaram pelas margens de um lago e viram barquinhos ao largo sob a chuva, arrastando redes. Ele imaginou que uma criação de peixes era um bom negócio para ser realizado sob esta chuva.
Por volta do meio-dia — os dias eram mais longos aqui e Paul nunca tinha certeza das horas, a menos que pudesse ver o sol — pararam para comer as rações frias servidas pelos intendentes: pão comum, com passas, ou algum tipo de fruta seca, e nozes assadas dentro dele, um tipo de queijo suave, um punhado de nozes com cascas e o vinho claro e amargo que, no entanto, era bastante encorpado, revigorante e esquentava. Era, ele sabia, a mais comum das refeições da região rural, e ele achava que poderia se acostumar a ela.
No meio da refeição, o ajudante de Bard apareceu para chamá-lo. Ao se erguer para obedecer à convocação, Paul percebeu os olhares e comentários; talvez fosse conveniente avisar Bard de que este seu suposto favoritismo por alguém que era, no final das contas, um recém-chegado nas suas legiões, poderia lhe criar problemas. Contudo, ao se referir a isso, Bard limitou-se a dar de ombros.
— Jamais faço o que se espera; eis uma das razões por que mereci o apelido de Lobo — explicou: — Minhas atitudes deixam as pessoas confusas.
Comunicou a Paul que um dos batedores acabara de chegar, trazendo notícias de que o exército de Serrais não se achava muito distante. Assim que o tempo clareasse, iria mandar pássaros-sentinela para localizarem sua posição exata assim como a sua formação.
— Porém, disponho de um jovem laranzu com a Visão — esclareceu —, e talvez possamos pegá-los de surpresa sob a chuva. Ruyven — ordenou a um de seus ajudantes —, vá rápido procurar Rory Lanart e diga-lhe para vir falar comigo logo que terminar sua refeição.
Quando Rory chegou, Paul notou com assombro que o jovem laranzu não devia ter mais do que 12 anos. Será que neste mundo as crianças combatiam em batalhas de feitiçaria e iniqüidade? Sentiu-se mais aflito ainda quando se lembrou do pequeno Erlend e na pedra da estrela que pendia de seu pescoço. Erlend ia crescer num mundo igual a este? Observou a criança olhando para dentro da pedra, transmitindo a informação desejada num tom de voz tranqüilo e indiferente, e ficou imaginando o que pensaria Melisendra em ter o filho criado assim.
Bard, afinal, não passa de um chefe bárbaro num mundo bárbaro. Ele e eu não somos o mesmo homem. Ele ê o homem que talvez eu tivesse sido nesta sociedade bárbara.
Levantou a cabeça e deparou com Bard a observá-lo; mas seu sósia não lhe deu nenhum sinal ou pista a respeito de se teria ou não lido seus pensamentos. Falou apenas:
— Já acabou de comer? Leve com você o que quiser... sempre coloco algumas nozes no meu bolso para ir mastigando enquanto cavalgo... e diga aos ajudantes para prepararem os homens, pois retomaremos nosso caminho. Rory, vá à frente do exército comigo, precisarei de você e alguém deveria conduzir seu cavalo se for necessário consultar a Visão.
Ainda não fazia uma hora que tinham reiniciado a marcha, segundo os cálculos de Paul, quando chegaram ao topo de uma colina. Bard estendeu o braço sem nada dizer. Espalhado pelo vale achava-se um exército, em forma e aguardando, e Paul identificou, mesmo àquela distância, o verde e ouro de Serrais no estandarte. Entre eles e o exército de Serrais, lá embaixo, havia um pequeno bosque, alguns grupos de árvores esparsas e vegetação rasteira. Uma inesperada revoada de pássaros rumou para o céu, perturbados enquanto se alimentavam nas moitas. Paul podia ouvir o pensamento de Bard: Está feito, isto é o fim de qualquer idéia de que nos seria possível atacá-los de surpresa. Mas seus leroni deviam ter um melhor sentido do que este. E, sem dúvida alguma, têm leroni com eles.
Os ajudantes estavam passando ao longo das filas de homens, colocando-os segundo o plano de combate que Bard tinha debatido, rapidamente, com Paul — uma das coisas que os outros ajudantes não gostavam, ele o sabia, era o fato de seu líder conversar com Paul, um forasteiro e recém-chegado, como se fosse seu semelhante. Eles ignoravam totalmente, é claro, o quanto Paul era idêntico a Bard. Contudo, pressentiam algo e isto os deixava aborrecidos. Algum dia, Paul o sabia, quando dispusessem de tempo, ele teria que enfrentar aquilo. E pensou, com um toque de divertimento, que quando ele e Bard estivessem liderando exércitos separados, cada qual acreditando estar sendo comandado pelo Lobo de Kilghard em pessoa, pelo menos o ponto de atrito teria desaparecido; não haveria nenhum forasteiro intruso para se intrometer entre Lobo e seus leais seguidores.
O sinal era, como sempre, o desembainhar da espada por parte de Bard. Paul observava, a mão colocada sobre a empunhadura da espada, aguardando que Bard desse o sinal para atacar. A chuva se transformara numa garoa e apenas alguns pingos esparsos caíam. Agora, de repente, através de uma brecha imensa entre as nuvens, o descomunal sol vermelho surgiu flamejante, espalhando sua luminosidade sobre o vale. Paul ergueu os olhos para cima, pensando que era melhor combater sem a chuva, mas consciente de que a terra sob eles ainda continuava encharcada e escorregadia para quando os cavalos disparassem para atacar. Mestre Gareth afastara seu pequeno exército de feiticeiros, envoltos em seus mantos cinzentos, um pouco mais para o lado, a fim de mantê-los fora do caminho de ataque. Quando Paul participara da primeira batalha, sentira-se preocupado com Melisendra. Agora, sabia que ela não corria nenhum risco físico num combate deste tipo. Mesmo sob o imenso manto cinza, ele podia localizá-la através de sua maneira de montar.
Viu Bard desembainhar a espada — em seguida ouviu-o gritar e notou que ele erguia a espada para cortar o espaço vazio. O que é que ele está vendo, em nome de Deus? E todos os homens que cavalgavam próximos a ele comportavam-se da mesma forma — vibravam as espadas no ar, berravam, levantando os braços para protegerem os olhos contra uma ameaça invisível; até os cavalos estavam recuando e relinchando desesperados. Paul nada via, não sentia cheiro algum, embora um dos homens tivesse gritado: "Fogo! Olhe lá", e despencou de sua montaria, rolando para longe, berrando. E, de repente, quando seus olhos encontraram-se com os de Bard, ao entrarem em contato com seu gêmeo, os dois viram a mesma coisa: sobre suas cabeças, descrevendo círculos, guinchando, voavam estranhos pássaros, mergulhando perversamente rumo aos olhos, fazendo os cavalos recuarem enquanto seus hálitos fétidos invadiam tudo; e o que era mais pavoroso ainda, os pássaros tinham semblantes de mulheres, contorcidos em esgares lascivos...
Paul viu tudo isto através dos olhos de Bard; e através de seus próprios olhos... o dia permanecia calmo, o sol refletindo-se sobre o vale, os exércitos de Serrais preparando-se, rápidos, para rechaçar o ataque. Paul ergueu-se na sela, os pés forçando os estribos, sua espada cortando o ar vazio. Ele berrou... ele o sabia, com a voz de Bard:
— Não há nada ali, homens! Tudo não passa de uma ilusão! Que diabos estão fazendo os leroni? Vamos... ataquem!
A rápida reação de Bard àquelas palavras o tranqüilizou. Ele gritou:
— Atacar! — e liderou o ataque, cavalgando através da ilusão... Paul viu através dos olhos dele a hárpia diabólica que mergulhava rumo a sua vista e percebeu que Bard se abaixava, mesmo sabendo que aquilo não passava de uma ilusão. Sentiu o fétido cheiro da mulher-besta, mas o terror paralisador havia sido quebrado; Paul tinha retornado a sua própria consciência e esbravejava, a espada em riste, avançando rumo à primeira fila do exército de Serrais, que se aproximava.
Um homem intrometeu-se diante de seu cavalo, ele brandiu a espada e viu o soldado despencar no chão. E, então, estava combatendo corpo a corpo, sem dispor de tempo para desperdiçar com horrores mágicos, ou para vê-los através dos olhos de Bard. Naquele momento, pouco se lhe dava o que Bard estivesse vendo, se estava ou não ali para ser visto ou se era o resultado de magia ou da ciência do laran.
Ainda tinham conseguido atacar o exército de Serrais, que confiara nas suas feiticeiras para retardar a carga, pelo menos um pouco de surpresa. A batalha não foi rápida; contudo, nem tão demorada quanto Paul, ajudando Bard a dominar as forças chefiadas contra eles, tinha imaginado que seria. Bard encontrava-se milagrosamente ileso no final do combate. Paul considerava aquele fato milagroso, pois durante todo o transcorrer da batalha, para qualquer lado que ele olhasse, deparava com Bard lutando com denodo. O próprio Paul levou um golpe de espada na perna, que causou mais estragos às suas calças do que à sua pele. Quando o exército de Serrais, dispersado, fugiu, e Dom Eiric rendeu-se pessoalmente — Bard enforcou-o logo sob a acusação de quebra de juramento —, o sol estava se pondo e Paul, sentindo a perna gélida sob os farrapos que tinham sobrado de suas calças de couro, foi auxiliar os ajudantes a organizarem o quartel general numa das casas de uma aldeia próxima, que para isto fora requisitada. Os homens já estavam dispostos a saquear e violentar as mulheres, para depois incendiarem a aldeia, porém Bard os conteve.
— Esta gente é vassala de meu irmão; revoltosos, é verdade, mas ainda assim nossos súditos, e como podem ter sido forçados a ceder à vontade do exército de Serrais através de ameaças pavorosas que talvez lhes tenham sido feitas, nós lhes daremos a oportunidade de provarem sua lealdade ou não, quando podem agir livremente sem ter um exército ameaçando-os. Serei enérgico com qualquer homem deste exército que tocar num só de nossos súditos, seja ele leal ou desleal. Paguem aquilo que pegarem e não ponham as mãos em nenhuma mulher que se recuse a acompanhá-los.
Paul, ouvindo Bard dar estas ordens, refletiu que desconhecia em Bard este tipo de sensibilidade, ou que conseguisse conter homens já prontos para dar início ao saque. Contudo, ao comentar o assunto com Bard, este sorriu. Falou:
— Não seja tolo. Não estou sendo generoso, embora aquilo que disse seja a verdade e ainda mais porque a casa real das Astúrias e eu ficaremos com todo o crédito de termos sido condescendentes com estas pessoas. Porém é mais do que isto, muito mais. Simplesmente, não há coisas suficientes para serem pilhadas ou mulheres para satisfazer este exército. E depois que tivessem roubado tudo que havia para pilhar, iam começar a discutir a respeito dos despojos e acabariam se retalhando em pedacinhos... e não posso admitir uma coisa destas no meu exército — deu um sorriso malicioso e continuou: — De qualquer modo, os oficiais contam com um pouco mais de tolerância... e a primeira que escolher será sua, pois foi você quem liderou o ataque. Afinal de contas, talvez não sejamos tão parecidos assim... você se revelou mais corajoso do que eu. Comandar o ataque diretamente contra aquele ninho de hárpias! Ou será que você apenas começou a suspeitar, antes que isto me passasse pela cabeça, que tudo era apenas uma ilusão?
Paul balançou a cabeça:
— Nem uma coisa nem outra. Simplesmente não vi coisa alguma.
Bard fitou-o, perplexo:
— Não viu... nadinha?
— Nada mesmo. Comecei a vê-las depois de um certo tempo, através de sua mente... mas então, só via aquilo que você via e tinha consciência disso.
Bard franziu os lábios e assobiou:
— Isto é muito interessante. Você captou o incêndio da torre de Hali... deuses de cima e de baixo, aquele era um assunto penoso! As guerras deviam ser conduzidas às custas de espadas e força, não com feitiçaria e bombas incendiárias! Esta droga infernal que eles usam é feita através da magia nas torres; não existe nenhum processo normal capaz de fabricá-la!
— Concordo plenamente com você — afirmou Paul —, porém captei aquelas imagens através da mente de Melisendra. Não as vi diretamente.
— É verdade. O sexo cria um laço. E já suspeitei várias vezes que Melisendra é uma telepata catalisadora. Numa torre ela seria usada para despertar o laran latente naquelas pessoas que, por algum motivo, não o podem usar. Desconfio que ela tenha despertado, sem que o sentisse, o pouco de laran existente em mim. Deus me livre que ela pense algum dia que lhe devo algum favor. E há momentos nos quais acho que não é nenhum privilégio se ter um pouco de laran, se bem que a maioria das pessoas pense o contrário. Há momentos em que sinto vontade de ser imune ao laran, ou, no mínimo, às ilusões. Se você não tivesse comandado o ataque, esta manhã, teríamos perdido o pouco que nos restava de vantagem. Quanto ao fato de ser imune ao laran... pois só é capaz de captá-lo diretamente de minha mente, ou da de Melisendra, ou de uma outra pessoa muito chegada a você... ora, talvez isto até seja uma vantagem. Talvez voltemos a conversar a respeito disto mais tarde. Tenho um trabalho que você poderá fazer para mim — seus olhos estreitaram-se e ele olhou para Paul com malícia. — Terei que pensar a respeito. Enquanto isto, estou com esta aldeia rebelde nas mãos e preciso lidar com ela. Fique de pé aí atrás e preste atenção ao que vai acontecer; talvez, algum dia, venha a ter que agir assim.
Paul, admoestado, ficou escutando Bard dar orientações sobre os homens que tinham auxiliado o exército de Serrais. Naquele ano teriam que pagar impostos dobrados; qualquer um sem condições de pagar os impostos teria que cumprir quarenta dias de trabalho forçado nas estradas — Paul já havia aprendido que o ciclo de quarenta dias, correspondente ao período da lua cheia, representava a finalidade social de um mês, totalizando quatro períodos de dez dias. As mulheres, também, acompanhavam o ciclo da lua cheia de quarenta dias na sua menstruação. E no final festejavam este privilégio.
Um dos oficiais de Bard falou:
— Com todo o respeito, Lorde General, o senhor deveria ter mandado logo incendiar a aldeia.
Bard balançou a cabeça:
— Precisaremos de bons súditos para pagar impostos. Homens mortos não mantêm nenhum exército, e precisamos do trabalho das mãos deles; e se os enforcarmos teremos que, de algum modo, sustentar suas mulheres e filhos... Ou está sugerindo que sigamos o exemplo dos mercenários das Drytown e vendamos mulheres e crianças para os bordéis para ganharem as próprias vidas? Como é que pessoas assim se sentiriam com relação ao Rei Alaric, a ponto de nada dizer sobre suas legiões?
Mestre Gareth disse baixinho às suas costas:
— Estou surpreso. Quando ele era um garoto, ninguém seria capaz de supor que Bard di Asturien, corajoso como ele só, iria se tornar um adulto com tal senso político.
Uma jovem bonitinha, de cabelos ruivos e corpo roliço, aproximou-se deles, fazendo uma reverência de cortesia:
— A casa de meu pai é seu quartel-general, Lorde General. Posso lhe servir vinho de nossas adegas?
— Vejam só — exclamou Bard —, aceitaremos com todo o prazer. Sirva-o também para meu pessoal, se estiver de acordo. E muitíssimo obrigado pelo seu trabalho, minha cara — sorriu para ela, que lhe retribuiu o sorriso.
Paul, lembrando-se de que as mulheres leroni tinham sido todas acomodadas na extremidade final da aldeia, numa casa isolada, e que quatro homens tinham sido escolhidos para montarem guarda e proteger sua privacidade, recordou-se das histórias que corriam de boca em boca entre os soldados de que Bard tinha uma reputação infernal junto às mulheres.
Contudo, antes que a garota tivesse tido tempo de retornar com o vinho, bateram à porta, e uma das integrantes da Irmandade da Espada, com a túnica escarlate em andrajos e ainda suja devido à batalha, embarafustou na sala.
— Meu lorde! — exclamou ela, e caiu de joelhos diante de Bard. — Venho apelar à justiça do Lobo de Kilghard!
— Se é uma das que lutou por nós na batalha, mestra — disse Bard —, atenderei ao seu pedido. O que a perturba? Se qualquer um dos homens de meu exército pôs a mão em você... pessoalmente, não acho que as mulheres devessem ser soldados, mas se luta no meu exército, está sob a minha proteção. E o homem que a tocou, contra a sua vontade, será castrado e depois enforcado.
— Não — retrucou a mulher de túnica vermelha, colocando a mão sobre o punhal preso ao seu pescoço. — Se isto tivesse acontecido, o homem já estaria morto pelas minhas mãos ou pelas de minha irmã de voto. Mas, no exército de Serrais havia algumas mercenárias da irmandade, meu senhor. A maioria fugiu junto com o exército; contudo, algumas estavam feridas e outras ficaram para auxiliar suas irmãs, e agora que a batalha terminou, seus soldados não a estão tratando com a cortesia que habitualmente é concedida aos prisioneiros de guerra. Uma delas já foi estuprada, e quando recorri aos sargentos pedindo-lhes para pôr um ponto final naquilo, disseram-me que se uma mulher foi para o campo de batalha, deveria se certificar de não perder a batalha, ou seria tratada não como um guerreiro, mas como uma mulher... — a boca da mulher-soldado estava tremendo de tanta revolta.
Bard ergueu-se depressa:
— Evidentemente porei um ponto final nisto tudo — avisou, e fez um sinal para que Paul e alguns de seus oficiais o seguissem. Saíram todos da tenda.
Seguiram a mulher de vermelho através da aldeia e da balbúrdia que imperava do lado de fora, pois o exército preparava-se para acampar, porém não tiveram que se afastar muito da aldeia e logo ficaram sabendo a que a mulher se referira. Escutaram uns gritos femininos, e um grupo de homens se juntara em torno de uma das tendas, fazendo ruídos libidinosos de encorajamento. Num dos lados estava havendo uma briga, onde um grupo de mulheres de vermelho brigava para atravessar o grupo dos homens. Em meio à confusão e ao tumulto sobrepujou a voz enfurecida de Bard.
— Mas que significa isto, com mil demônios! Afastem-se!
— Lorde General...
Murmúrios, exclamações de surpresa por causa da presença dele. Bard puxou a lona da tenda com um repelão e dois minutos depois dois homens saíram de lá tropeçando sob um violento chute. No interior uma mulher chorava convulsivamente. Bard se deteve para dizer algo ao guarda que Paul não conseguiu ouvir, depois tornou a levantar a voz:
— De uma vez por todas, dei minhas ordens: nenhum civil deve ser tocado e nenhum prisioneiro maltratado! — meneou a cabeça na direção dos dois homens que tinha chutado. Estavam sentados no chão, já inteiramente embriagados, as roupas desabotoadas, perplexos. — Caso estes homens tenham amigos por aqui, que tratem de levá-los para seus alojamentos e recuperá-los da bebedeira.
Um murmúrio percorreu as fileiras e um dos homens perguntou bem alto:
— Podemos tomar aquilo que o outro exército tem, isto é o costume na guerra! Por que nos recusa o que é habitual, General Lobo?
Bard voltou-se na direção de onde partia aquela voz e disse revoltado:
— Vocês têm permissão de se apoderar de suas armas, nada mais do que isto. Por acaso, forçaram qualquer homem do exército inimigo a lhes servir como passatempo?
Houve um murmúrio de ultraje diante daquela idéia.
— Portanto, mantenham as mãos longe destas mulheres, estão me ouvindo? E enquanto permanecerem aqui, vou repetir o que disse a este soldado aqui — fez um gesto na direção da mulher da irmandade. — Qualquer um que encostar a mão numa das integrantes da irmandade, que combateu lado a lado conosco pela honra e poder das Astúrias e do reino do Rei Alaric, será primeiro castrado e depois enforcado, nem que eu o deva fazer pessoalmente! De uma vez por todas, compreendam isto!
Mas, a mulher de vermelho atirou-se aos pés de Bard.
— Não vai punir os homens que ultrajaram minhas irmãs?
Bard balançou a cabeça.
— Pus um ponto final nisto; porém meus homens agiram por ignorância e não os punirei. Ninguém mais tocará num prisioneiro; mas o que foi feito, está feito, e não darei às mulheres que combateram contra mim o mesmo tipo de proteção que dou aos meus exércitos... ou de que adianta, afinal, fazer parte de meus exércitos? Caso as mercenárias da sua irmandade estejam dispostas a jurar aliança às Astúrias e combaterem junto aos meus exércitos, lhes darei tal proteção; caso contrário, não. Contudo — acrescentou bem alto, passando os olhos pelos homens agrupados ao seu redor —, se qualquer um de vocês tocar num prisioneiro, a não ser segundo permite o costume, mandarei chicoteá-lo e deixará de receber o soldo a que faz jus, está claro? — percebendo que a mulher estava prestes a dizer algo mais, ele a impediu: — Basta, já avisei. Nada mais de brigas. Vamos, homens, dispersar! Vão cuidar de seus afazeres! Se tornarem a brigar, haverá açoitamento e cabeças quebradas amanhã!
De volta ao quartel-general, os oficiais terminaram de beber o vinho e iam começar a desempenhar suas incumbências. A garota ruiva, que fazia Paul se lembrar de Melisendra, colocou uma taça em suas mãos e sorriu:
— Tome, meu lorde, termine seu vinho antes de se retirar.
Ele ergueu o rosto para ela e bebeu, passando o braço ao redor de sua cintura. O sorriso que ela lhe deu o fez entender; aquela sua atitude não havia sido mal recebida e ele a puxou mais para junto de si. Uma mão caiu sobre o ombro dele e a voz de Bard ressoou:
— Largue-a, Paul. Ela é minha.
Paul xingou mentalmente, sabendo que já devia ter esperado por isto. Durante a campanha, já havia percebido que ele e Bard tinham o mesmo gosto com relação às mulheres. Bem, naturalmente, se é que representavam o mesmo homem, queriam a mesma coisa com as mulheres, e não era aquela a primeira vez que seus olhos tinham caído sobre a mesma seguidora de acampamento ou mulher da vida numa cidade conquistada. Contudo, essa era a primeira vez que acontecia uma confrontação direta. Paul pensou, ele me deve algo por ter liderado o ataque, e deixou o braço, obstinadamente, em volta da cintura da garota. Desta feita, que inferno, ele não ia desistir!
— Ora esta! — exclamou Bard.
Paul notou que ele já estava embriagado; que o restante dos oficiais já se retirara, deixando-os a sós com a mulher. Colocou a mão sob o queixo da garota e perguntou:
— Qual de nós dois você quer, menina?
Ela, sorrindo, olhou para um e para outro. Também estivera bebendo. Ele sentia o cheiro adocicado do vinho no seu hálito, talvez ela ou sua percepção tinha um toque de laran, pois ela respondeu:
— Como posso escolher um de vocês dois se são tão idênticos? Ora, não são gêmeos? O que deve fazer uma pobre garota se ao escolher um terá que abrir mão do outro?
— Não há necessidade disto — disse Paul, enquanto bebia o vinho, percebendo que este era bem mais forte do que o que tomara antes e estava consolidando sua bebedeira. — Não há necessidade, não é mesmo, irmão, de provarmos qual de nós dois é o melhor homem, que tal? — ele nunca tinha expressado ter conhecimento de sua rivalidade inconsciente antes disto. E se Bard era, de algum modo, uma metade velada dele mesmo, não era esta a maneira de se chegar a um acordo?
A garota olhou para os dois, rindo, e virou-se para mostrar-lhes o caminho:
— Aqui.
Paul não estava tão bêbado assim, a ponto de perder inteiramente a lucidez. Bard fez um movimento para jogar uma moeda para o ar. Paul não ficou surpreso — este tipo de escolha por sorte era habitual em algumas culturas bem diferentes umas das outras —, mas ele deu um passo atrás, observando a nebulosa e elegante dança de corpos, Bard e a garota, seu corpo no dela, enquanto Bard atirava-se na cama, puxando-a para cima dele. Paul experimentou uma ligeira surpresa... se fosse ele, teria deixado a jovem por baixo de seu próprio corpo... porém o pensamento estava distante, parecia um sonho. Atirou-se na cama ao lado dos dois, as mãos deslizando pelas costas sinuosas da garota, através de seus cabelos sedosos. Ela se virou um pouquinho e seus lábios comprimiram-se contra os dele enquanto ela deixava escapar um soluço de excitação à medida que Bard a penetrava. Ela descobriu um momento e uma mão livre para provocá-lo, acariciando seu sexo com as pontas dos dedos. Paul, abraçando-a, descobriu que tinha todos os dois em seus braços, mas isto parecia não ter importância; parecia um sonho, nada era proibido agora, e ele sabia que os três corpos, enlaçados, transformaram-se numa dança astuciosa. A maciez da mulher parecia apenas uma desculpa para despertar e alimentar seu prazer, sabendo da excitação de Bard e compartilhando dela. Aquilo era oniricamente um despropósito; ele soube quando a possuiu que Bard, agora em total contato, compartilhava do prazer da mesma forma que ele. Nunca soube, nunca quis saber, quanto tempo aquilo durou, ou em que altura, a garota esquecida, viu-se sob o abraço violento de Bard, toda a maciez finda agora, uma luta quase até a morte, presos juntos em algo que não conseguia identificar nem como paixão nem como ódio; e num lampejo final e sardônico de isolamento ficou imaginando se isso poderia ser denominado, se realmente eram o mesmo homem, sexo ou a masturbação suprema e então não veio ao caso se a explosão violenta era orgasmo ou morte.
Despertou sozinho, a cabeça latejando. A garota tinha sumido, e ele nunca mais pôs os olhos nela novamente. Ela não representara nada, fora apenas a desculpa para a violenta confrontação com seu sósia secreto, sua outra metade, sua metade conhecida desconhecida do outro. Molhou o rosto com a água gélida do balde e ainda estava sem fôlego com o choque causado pelo frio, quando Bard entrou.
— Meu ordenança trouxe uma jarra de jaco quente. Se a sua cabeça estiver fazendo o que a minha faz, você poderia tomar a metade do conteúdo. — O líquido cheirava a chocolate amargo, mas o efeito era praticamente o mesmo de um café bem forte, e Paul sentiu-se satisfeito por poder tomá-lo. Bard serviu-se de mais uma caneca. — Quero conversar com você, Paolo. Sabe que salvou o dia de ontem? A infernal ilusão da hárpia era desconhecida e os leroni não se encontravam preparados para ela. Era tão real! E você não viu nada?
— Apenas através da sua mente, como já lhe expliquei.
— Isto significa que você está imune a este tipo de ilusão. Gostaria de ousar confiar em Mestre Gareth! Talvez ele possa explicar isto. E entre outras coisas, isto lhe dá uma vantagem caso venha a ter que comandar o exército um dia. E os homens o seguirão; mas terá que ser muito cauteloso com os leroni, eles pressentem algo estranho em você — soltou uma gargalhada baixa. — Uma coisa boa sobre o pacto de Dom Varzil esquecido por deus... podemos lutar sem termos aqueles corpos retorcidos de feiticeiras nos acompanhando, caso cheguem a decidir pôr o pacto em uso!
— Pensei que você e Mestre Gareth eram amigos... que dependesse dele!
— É verdade — retrucou Bard. — Ele me conhece desde que eu e meus irmãos de criação éramos crianças. Mas, ainda assim, gostaria de dispensar os serviços dele e mandá-lo para uma torre a fim de passar na tranqüilidade a sua velhice! Quando esta terra estiver finalmente em paz outra vez, talvez Alaric se decida a prestar juramento ao pacto. Não quero meus futuros súditos sendo expulsos para fora de seus lares e no lugar que espalharam pó de bonewater, no ano passado, ouvi as parteiras comentarem sobre o nascimento de crianças sem braços, pernas ou olhos, com fendas palatinas, a coluna saindo através da pele das nádegas, coisas que não se vêem duas num mesmo ano e agora há dúzias delas... tem que haver alguma ligação! E homens e mulheres morrendo devido ao sangue que vira água... e o pior de tudo, ainda é perigoso ir até lá. Suspeito que a terra ficará afetada durante anos, talvez uma geração ou duas! Há muita bruxaria em volta!
Como conseguiam eles, pensava Paul, produzir poeira radiativa através da força do pensamento? Pois, pela descrição de Bard, tratavase certamente de algum tipo de produto de radiação. Ora, se o laran conseguia fazer as outras coisas que ele sabia que podia, não deveria ser um truque muito grande separar moléculas em seus átomos componentes, ou combiná-las em elementos radiativos pesados.
Ele disse com um laivo de ironia:
— E, evidentemente, não deveria ser imune a este tipo de laran!
— Não, eu não diria isto. Talvez sua mente seja imune, porém o seu corpo não é diferente do de qualquer outra pessoa. No entanto, existem determinados tipos de laran aos quais você deve estar imune e eu não; e, por isto, tenho uma tarefa para você. A força principal de Serrais está acabada. Soube, ainda hoje, que os Aillards, depois do bombardeio de Hali, juraram aliança ao pacto, o que significa que todas aquelas terras ao Sul, nas planícies de Valeron, doze ou treze reinos ao todo, estarão prontas para serem conquistadas. E, portanto, tenho uma tarefa para você — fechou o rosto, os olhos pregados no chão. — Quero que vá ao Lago do Silêncio e traga Carlina de volta para mim. O lago é protegido com feitiçaria, mas não se importará com isto. Você pode atravessar as defesas, ignorar suas ilusões, raptá-la e trazê-la para cá.
— Quem é Carlina? — indagou Paul. Contudo, já conhecia a resposta antes mesmo de Bard formulá-la.
— Minha mulher.
Amanhecia no Lago do Silêncio e na Ilha Sagrada uma interminável procissão de mulheres, todas envergando roupas negras, cada qual com uma capa negra que as cobria desde a cabeça e a faca com o formato de foicinha das sacerdotisas pendendo de sua faixa, se arrastava pela praia, saída do templo em forma de colméia e rumando para as respectivas casas em que moravam.
A Sacerdotisa Liriel, que fora conhecida, no mundo secular, como Carlina, filha do Rei Ardrin, caminhava em silêncio entre elas, uma parte de sua mente ainda ouvindo a oração matinal.
— Tua noite, mãe Avarra, cede lugar ao amanhecer e à luminosidade do dia. Porém, ó mãe, para a tua escuridão todas as coisas deverão retornar um dia. Como realizamos teus trabalhos de misericórdia na claridade, jamais nos deixe esquecer que toda a luz deve desaparecer, e apenas a tua escuridão permanecerá finalmente...
Contudo, enquanto entravam no grande prédio feito de taipa que servia de refeitório para as sacerdotisas, a mente de Carlina dirigiu-se para outras coisas; era a sua vez de ajudar no salão. Dependurou sua pesada capa num gancho na entrada e entrou na imensa e sombria cozinha, onde se envolveu num imenso avental branco que cobria toda a sua saia e túnica negras, amarrou a cabeça com uma toalha branca e começou a servir o mingau que tinha fervido a noite toda numa chaleira imensa colocada sobre o fogo. Quando todo o mingau já havia sido servido nas tigelas de madeira, fatiou imensas bisnagas e colocou-as sobre uma bandeja de madeira, encheu os pequenos vasos de barro com manteiga e mel que eram dispostos intercalados sobre a comprida mesa do café da manhã, e à medida que os bancos foram se enchendo de figuras vestidas de negro, passou por entre elas, servindo leite frio ou chá de quina quente trazido em jarros. No café da manhã era permitido conversar, se bem que as outras refeições eram feitas em silêncio e meditação. Todas conversavam e davam alegres risadas, uma trégua diária na austeridade imposta às sacerdotisas na maior parte do tempo. Elas davam risadas e cochichavam como qualquer outro grupo de mulheres faria em qualquer reino. Finalmente, Carlina terminou de servir à mesa e acomodou-se no seu lugar.
— ...mas há, agora, um novo rei em Marenji — informou uma das irmãs à sua esquerda, dirigindo-se a uma outra — ... e já não é o bastante terem que pagar impostos ao rei, convocaram também todos os homens que possam usar armas para combaterem os Hasturs no exército do Lorde General. O Rei Alaric não passa de uma criança, dizem, mas o comandante de suas legiões foi, certa época, um famoso bandido chamado Lobo de Kilghard e que, atualmente, é o Lorde General. Dizem que ele é um horror; já conquistou Hammerfell e Sain Scarp. A mulher que veio trazer couro para fazermos solas dos sapatos disse-me que Serrais também já caiu nas mãos dele. E agora que ele está rumando para as planícies de Valeron, levantará todos os Cem Reinos contra os Hasturs...
— Isto me parece falta de caridade — observou Madre Luciella, que era, segundo comentários, bastante idosa para se recordar do reinado dos antigos reis Hasturs. — Quem é o Lorde General? Não tem nenhum laço de parentesco com a família Hastur?
— Não. O que se comenta por aí é que prometeu tirar o reino das mãos dos Hasturs, e todos os Cem Reinos. Ele é meio-irmão do rei e o verdadeiro legislador, não importa quem esteja ocupando o trono! Irmã Liriel — chamou a sacerdotisa —, a senhora não veio da Corte das Astúrias? Sabe quem poderia ser este homem, o que chamam de Lobo de Kilghard?
Carlina surpreendeu-se diante do "sim" que escapou de sua boca, antes que pudesse se dominar e disse tempestuosamente:
— Irmã Anya, a senhora está a par de tudo. Seja lá o que eu era antes disto, agora sou apenas a Irmã Liriel, sacerdotisa da Mãe Enigmática.
— Não se comporte assim — insistiu emburrada Anya. — Pensei que iria se interessar por novidades de sua terra, talvez até tenha conhecido este general!
Deve ser Bard, pensou Carlina. Não há mais ninguém a não ser ele para ocupar tal cargo. E falou em voz alta, obstinada:
— Não tenho nenhuma pátria agora, a não ser a Ilha Sagrada — e meteu a colher de modo decidido no seu prato de mingau.
... Não. Não tinha o mínimo interesse no que estava acontecendo no mundo além do Lago do Silêncio. Agora, nada mais era do que uma sacerdotisa de Avarra, e pretendia continuar assim por toda a vida.
— Pode falar assim — disse a irmã Anya —, porém quando aqueles homens armados tentaram chegar até a ilha, há seis meses, foi por você que procuraram, pelo seu antigo nome. Acha que a Madre Ellinen não sabia que se chamava Carlina?
O fato de ouvir aquele nome pronunciado em voz alta fez com que Carlina, já tensa, explodisse. A Irmã Liriel levantou-se enfurecida:
— Sabe perfeitamente bem que é proibido pronunciar o nome secular de qualquer pessoa que procurou refúgio aqui e foi aceita sob o manto da mãe! Você transgrediu uma regra do templo. Agora, como sua superior, ordeno-lhe a fazer a penitência adequada!
Anya fitou-a assombrada, os olhos arregalados. Diante da fúria de Carlina, ela baixou a cabeça, depois abandonou seu lugar à mesa, ajoelhando-se sobre o chão de pedra.
— Humildemente, peço-lhe perdão diante de todas nós, minha irmã. E sentencio-me a passar a metade do dia arrancando as ervas daninhas que crescem ao redor das lajes de pedra que calçam o caminho até o templo, sem comer a refeição do meio-dia, a não ser pão e água. Será o bastante?
Carlina ajoelhou-se ao lado dela. Falou:
— É rígido demais. Coma a refeição servida, irmãzinha, e eu mesma irei ajudá-la a limpar as pedras quando tiver terminado minhas tarefas na Casa do Doente, pois também fui culpada, por ter perdido o controle sobre mim mesma. Contudo, em nome da deusa, cara irmã, imploro-lhe, deixe o passado permanecer escondido sob seu manto e nunca mais torne a pronunciar aquele nome.
— Que assim seja — retrucou Anya, levantando-se e pegando a tigela de mingau e a xícara e levando-as para a cozinha.
Carlina, seguindo-a com as suas coisas, procurou conscientemente desfazer as marcas que sentia presentes entre as sobrancelhas. Ouvir aquele nome que tinha abandonado — para sempre, assim esperava — perturbara-a mais do que gostaria de reconhecer, provocara o aparecimento de emoções de há muito esquecidas. Ali havia encontrado paz, companheirismo e trabalho útil. Sentia-se feliz. Na verdade, não se sentira perturbada ou assustada quando Bard tinha vindo procurá-la com homens armados; havia confiado em Avarra para protegê-la e tinha certeza de que esta proteção não haveria de abandoná-la. Suas irmãs a protegeriam. E também os encantos que tinham lançado sobre as águas do lago.
Não, ela não sentira medo. Que Bard se apoderasse de todas as Astúrias, de todos os Cem Reinos, isto nada significava para ela, ele desaparecera de sua mente e perdera qualquer significado que jamais tivera para ela. Era uma adolescente, naquele tempo; agora, era uma mulher, uma sacerdotisa de Avarra e estava a salvo dentro das muralhas do seu lugar preferido.
A Irmã Anya tinha ido fazer o trabalho penoso em volta das lajes de pedra do caminho, que devia ser feito, mas que não podia ser exigido de ninguém e devia esperar até o momento em que alguém se resolvesse a fazer a tarefa como penitência por ter infringido uma regra ou por alguma conduta falha. Ou, ocasionalmente, como uma válvula de escape para energias supérfluas. Carlina sabia que aceitaria de bom grado o penoso trabalho físico de arrancar as ervas daninhas que estavam deslocando as lajes de pedra do caminho, vendo-se livre de suas ansiedades diante da tarefa extenuante e árdua de levantar e mudar as pedras, limpando o terreno das ervas e dos espinhos. Contudo, ainda não estava livre para procurar aquela monotonia que haveria de libertá-la das tensões; aquele era o dia em que devia cuidar dos doentes. Tirou o avental e a toalha, deixou a louça para que as noviças lavassem e foi executar a tarefa que lhe estava designada.
Naqueles anos, desde sua chegada à Ilha do Silêncio, aprendera muito a respeito de tratamento e agora era considerada como uma das mais capacitadas sacerdotisas curadoras do segundo escalão. Algum dia, ela o sabia, haveria de estar entre as melhores, aquelas a quem era entregue o treinamento das outras. Apenas a sua juventude ainda a mantinha longe deste cargo. Isto não era vaidade, tratava-se apenas de uma percepção realista da arte que aprendera desde que chegara ali, arte da qual não tinha a mínima idéia em sua casa nas Astúrias, pois ninguém na corte jamais se dera o trabalho de transmiti-la e ensinar o seu uso.
Antes de mais nada, havia a rotina secundária de cada dia. Uma noviça havia queimado a mão na chaleira do mingau. Carlina fez um curativo com linhaça e gaze e aplicou-lhe uma pequena lição sobre como ser cuidadosa com o que estava fazendo ao manusear coisas quentes.
— A meditação é excelente — falou ela muito séria —, mas quando se está lidando com vasilhames quentes no fogão, não é o momento adequado para a contemplação devota. Seu corpo pertence à deusa; é seu dever cuidar dele como propriedade dela. Está entendendo, Lori?
Preparou chá para uma das madres que sofria de dor de cabeça e para uma noviça jovem que estava sofrendo de cãibras, foi visitar uma das sacerdotisas mais idosas que estava deslizando inconsciente para uma morte tranqüila e suave — pouco podia fazer por ela, a não ser esfregar a mão da anciã, pois a madre já não mais podia vê-la ou reconhecê-la — e deu um pouco de linimento para uma sacerdotisa que trabalhava na vacaria e fora pisada pela pata desajeitada de uma vaca leiteira.
— Esfregue isto no pé, irmã, e no futuro lembre-se, o animal é tolo demais para se preocupar em não pisar no seu pé, portanto deve ser muito sensível e manter seu pé longe de seu caminho. E não volte à vacaria por mais uns dois dias. É bem provável que Madre Allida morra hoje; pode ficar sentada ao lado dela, segurar-lhe a mão e falar com ela se lhe parecer inquieta. Ela poderá ficar lúcida caso o fim esteja próximo. Caso isto aconteça, mande logo chamar a Madre Ellinen.
Depois, foi para a Casa do Estranho, onde, duas vezes em cada dez dias, tinha recebido o encargo de examinar os doentes que vinham pedir ajuda às sacerdotisas de Avarra, geralmente depois que a curandeira da aldeia não conseguira curá-los.
Três mulheres encontravam-se sentadas no banco, em silêncio. Fez um sinal para que a primeira entrasse num quartinho interno.
— Em nome da Mãe Avarra, como posso ajudá-la, minha irmã?
— Em nome de Avarra — respondeu a mulher... ela era uma mulher baixinha, bonitinha e parecia muito tímida —, estou casada há sete anos e jamais concebi um filho. Meu marido me ama e teria aceito isto como sendo a vontade dos deuses, porém seu pai e sua mãe... moramos na terra deles... ameaçaram fazê-lo se divorciar de mim e se casar com uma mulher fértil. Eu... eu... — parou de falar, gaguejando. — Ofereceu-me para educar e adotar qualquer criança que possa ter com outra mulher, mas a família dele o quer casado com uma mulher que lhe possa dar vários filhos. E eu... eu o amo — disse ela, e mergulhou novamente no silêncio.
— Você realmente quer filhos? Ou os considera como um dever seu para com seu marido, um meio de manter seu amor e atenção? — indagou Carlina muito calma.
— As duas coisas — afirmou a mulher, enxugando furtivamente as lágrimas com a ponta do véu.
Carlina, com sua percepção laran sintonizada para captar as modulações na resposta, percebeu a sinceridade da mulher quando ela disse:
— Avisei a ele que criaria os filhos dele com qualquer outra mulher que escolhesse. Temos o filho da irmã dele para criarmos e descobri que adoro criança... Vejo as outras mulheres com seus filhos nos seios e desejo o meu, oh, desejo um meu. A senhora, que fez promessa de castidade, não pode saber o que seja ver outras mulheres com seus bebês e saber que nunca terá um... tenho meu filho de criação a quem dar o meu amor, mas também quero conceber um e desejo ficar com Mikhail...
Carlina refletiu um instante e depois falou:
— Verei o que posso fazer para ajudá-la.
Mandou a mulher se deitar sobre uma mesa comprida. A mulher fitou-a com apreensão, e Carlina, ainda concentrada nela, ficou ciente de que ela tinha suportado as intervenções dolorosas das parteiras que a tinham tentado auxiliar.
— Não lhe farei mal — explicou Carlina —, nem ao menos a tocarei; contudo terá que ficar muito quieta, calma, ou nada poderei fazer.
Tirando sua pedra da estrela do pescoço, permitiu que sua premonição penetrasse profundamente naquele corpo, descobrindo, após algum tempo, o bloqueio que tinha impedido a concepção. E deixou-se levar, nessa percepção, até os nervos, tecidos, quase que de célula em célula, anulando o problema.
Em seguida, fez um sinal para que a mulher se levantasse:
— Nada lhe posso prometer, porém não existe mais nada que a impeça de gerar uma criança. Você me disse que seu marido teve filhos com outras mulheres? Então, dentro de um ano, você deverá ter concebido o seu.
A mulher começou a agradecer, mas Carlina a impediu de continuar:
— Não agradeça a mim, mas sim à Mãe Avarra, e quando for uma anciã, jamais pronuncie palavras cruéis para uma mulher estéril, ou a castigue por isto. Talvez a culpa não seja dela.
Carlina ficou contente, quando viu a mulher indo embora, por ter de fato descoberto um bloqueio físico. Quando nada havia para ser encontrado ela tinha que supor que ou aquela mulher não desejava realmente um filho e, que com o laran que ela não sabia ter, estava impedindo a concepção... ou então que o marido era estéril. Poucas mulheres, e menos homens ainda, podiam acreditar que um homem viril pudesse ser estéril. Há algumas gerações, quando o casamento tinha sido uma questão de grupo, e as mulheres, na verdade, concebiam filhos de homens diferentes, era simples; uma questão de encorajar, simplesmente, uma mulher acanhada ou tímida para se deitar com dois ou três homens além de seu marido, talvez durante o festival, de modo que a mulher podia acreditar, com sinceridade, que a criança havia sido gerada por aquele que tinha escolhido. Mas agora, quando a herança da propriedade calcavase indubitavelmente na paternidade literal, só lhe restava a escolha desagradável de aconselhar uma mulher a aceitar sua esterilidade, ou arranjar um amante e expor-se à fúria do marido. O velho costume, pensou ela, era mais lógico.
A segunda mulher também se mostrava preocupada com a fertilidade... fato que não surpreendeu Carlina, de vez que a deusa as conduzia até ali por isto mesmo.
— Temos três filhas, porém todos os nossos filhos homens morreram, exceto o último — explicou a mulher —, e meu marido está zangado comigo, pois há cinco anos que não tenho mais filhos, e ele me chama de inútil...
A velha história, pensou Carlina, e perguntou-lhe:
— Diga-me, você quer mesmo outro filho?
— Se meu marido se mostrasse contente, eu também me sentiria assim — disse a mulher, tremendo —, pois dei à luz oito crianças, quatro ainda vivem e nosso filho é sadio, está muito bem e tem seis anos. E nossa filha mais velha já tem idade para se casar. Contudo, não consigo suportar a zanga dele...
Carlina disse resoluta:
— Deve lhe dizer que isto é a vontade de Avarra; e que deve agradecer a ela a misericórdia de que este único filho lhes tenha sido poupado. Deve se alegrar com os filhos que tem, pois não é você que o impede de ter filhos, mas a própria mãe, que lhe disse que você já fez a sua parte ao ter tantos filhos.
A mulher não conseguia esconder o alívio que experimentava.
— Mas ele ficará muito zangado e talvez até me bata...
— Se fizer isto — falou Carlina, e não pôde dissimular um sorriso —, digo-lhe, em nome de Avarra, para pegar uma acha de lenha na lareira e bater na cabeça dele; e enquanto estiver fazendo isto, bata nele por mim também — acrescentou mais séria: — E faça-o recordar, também, que os deuses punem a falta de piedade. Ele tem que aceitar as bênçãos que lhes foram dadas e não ambicionar outras mais.
A mulher agradeceu-lhe, e Carlina pensou, aturdida: Misericordiosa mãe de todos! Oito filhos e estava disposta a considerar a possibilidade de ter mais alguns?
A última mulher estava na casa dos cinqüenta anos, e quando foi chamada para o quartinho explicou, muito timidamente, para Carlina que começara a perder sangue outra vez, quando a época para estas coisas já havia terminado há muitos anos. Ela era magra, a tez estava amarelada e, pela primeira vez, Carlina, depois de fazer várias perguntas, examinou-a fisicamente e também com a pedra da estrela. Em seguida disse:
— Não tenho competência para tratar disto pessoalmente; deverá voltar dentro de dez dias para consultar uma das madres. Enquanto isto, tome este chá... — e entregou-lhe um embrulho. — Ele atenuará as dores e diminuirá o volume do sangramento. Procure se alimentar bem e veja se engorda um pouco para que tenha forças a fim de suportar qualquer tratamento a que a madre julgue necessário submetê-la.
A mulher foi embora, agarrada ao embrulho de ervas para fazer chá, e Carlina sentou-se suspirando e pensando sobre aquilo que provavelmente aconteceria. A esterilização talvez salvasse a mulher; apenas as mais experientes poderiam decidir se aquilo valeria a pena ou não, ou se apenas prolongaria o sofrimento da pobre coitada. Se não adiantasse, a sacerdotisa principal lhe daria outro embrulho de chá, porém ele conteria um veneno lento que lhe provocaria a morte antes que as dores a deixassem sem dignidade e paciência. Ela detestava esta decisão. Porém Avarra, na sua clemência, incluía a indução à morte daqueles para quem a morte, em qualquer caso, já era um fato incontornável. Durante toda a tarde, enquanto trabalhava ao lado de Anya arrancando a erva forte e os espinhos retorcidos que deslocavam as lajes de pedras do caminho que conduzia ao templo, pensou nelas, as mulheres que tinha mandado embora, satisfeitas, e naquela que não pudera ajudar. Um pouquinho antes das orações vespertinas, foi outra vez chamada à presença da Madre Ellinen.
— A Madre Amalie teve uma visão — disse para Carlina —, advertindo-nos de que iremos necessitar de uma maior proteção. Seremos invadidas novamente. E prevejo que será por sua causa que virão contra nós — deu umas palmadinhas carinhosas na mão de Carlina. — Sei que a culpa não lhe cabe, Irmã Liriel. O mal habita o mundo, pela vontade dos deuses, porém a mãe nos protegerá.
Espero que sim, pensou Carlina, espero mesmo, de verdade.
Contudo, tinha a impressão de que podia escutar Bard pronunciando o seu nome de muito longe e ouvir a ameaça que ele tinha feito.
Onde quer que vá, onde quer que tente se esconder de mim, Carlina, eu a terei, quer você o queira ou não...
— Carlina, minha mulher — repetiu Bard. — Eu não posso chegar à Ilha do Silêncio, mas você sim, você pode, é imune às ilusões, a menos que as capte através de outra mente que possa ler e não há muitas que possa ler. Você pode ir até a Ilha do Silêncio e trazer Carlina de volta para mim. Contudo, não cometa nenhum erro — advertiu-o —, sei que desejamos as mesmas mulheres e já lhe dei Melisendra. No entanto eu juro, se encostar a ponta de seu dedo em Carlina, eu o matarei. Carlina é minha, e onde quer que possa estar escondida eu a terei!
E, agora, Paul estava imóvel, observando as águas tranqüilas do Lago do Silêncio. Escondido nos penhascos, ele tinha estudado a barca, presa numa corda, com a qual poderia ir e vir de um lado ao outro, embora fosse necessário remar muito para conseguir atravessar. Podia matar a velha barqueira; contudo, observara que duas mulheres vinham de manhã e de noite para lhe trazer comida e um jarro de vinho. E talvez sentissem a sua falta. Depois de muita reflexão, quando ela levou as sacerdotisas de volta para a ilha, Paul esgueirou-se para dentro da cabana que ela ocupava e misturou ao vinho um extrato poderoso, forte e incolor. Aquilo a deixaria inteiramente embriagada, incapaz de saber o que estava acontecendo, e se as sacerdotisas a encontrassem bêbada, tudo que poderia alegar é que havia tomado sua cota habitual de vinho e que, por alguma razão, a tinha afetado. Quando suspeitassem que fora drogada, já seria tarde demais para tomarem qualquer providência a respeito. Ao passo que se a encontrassem morta, ou mesmo inconsciente, amarrada e amordaçada, a primeira coisa que lhes passaria pela cabeça é que havia um intruso na ilha.
Portanto, ele esperou que a velha retornasse da ilha e se sentasse na sua modesta cabana para comer e beber. Ela saboreou com prazer o pão e a fruta que lhe tinham dado, engolindo-os com goles de vinho e, como ele já havia previsto, ela ficou logo tonta e arrastou-se até a cama, onde se deitou. Pouco depois roncava num estado total de embriaguez. Paul balançou a cabeça satisfeito. Agora, mesmo que percebessem, fisicamente, que ela estava tão bêbada quanto uma gambá, não ficariam alarmadas. Afinal, ela era uma mulher idosa que talvez não resistisse tanto quanto uma pessoa jovem aos efeitos do álcool.
Entrou na barca e remou tranqüilamente através do lago, surpreso com o silêncio sobrenatural da água e dos juncos escuros. Bard tinha-lhe relatado — em rápidas pinceladas — o encanto lançado sobre a barca. Achou o lago opressivo, e por uma ou duas vezes, sentiu uma ligeira tonteira, com a estranha sensação de que estava remando na direção errada, porém olhou para a praia e para a linha-d'água na ilha e continuou remando. Paul havia lido na mente de Bard o terror que tinha experimentado. Nem mesmo por Carlina, Bard estava disposto a enfrentar aquilo novamente, muito menos pôr os pés nas praias onde, comentava-se, qualquer homem que ali chegasse tinha que morrer. Sentiu a opressão aumentando, uma sensação cada vez mais forte de ruína, porém tinha sido avisado contra isto e não se amedrontou. Se fosse um homem deste mundo, vulnerável às suas magias e ilusões, imaginou que naquele momento estaria tremendo de pavor. Levando em consideração o que tinha lido na mente de Bard e na de Melisendra, Paul sentia-se grato pela sua imunidade.
O barco roçou a praia da ilha onde, pelo menos era isto que tinham dito a Paul, nenhum homem colocara os pés há mais tempo do que se podia contar. Não experimentou a mínima sensação de medo... afinal, o que significavam os tabus religiosos daquele mundo para ele? Pessoalmente, sempre havia considerado as religiões como algo inventado pelos padres para controlar os outros e manter a si mesmos na ociosidade. No entanto, hábitos acumulados podiam ter sua própria força, e Paul não se sentia tão ansioso assim para enfrentar isso.
Um caminho bem definido, ladeado por arbustos esparsos, subia o aclive da praia. Paul seguiu ao longo da trilha, mantendo-se à sombra das árvores e escondeu-se atrás de alguns prédios ao ver que duas mulheres desciam o caminho. Vestiam roupas escuras e de suas cinturas pendiam facas pequeninas e curvas. Paul achou que dificilmente pareciam mulheres, eram horrendas, com os rostos emaciados e queixos bem marcados, mãos imensas e abrutalhadas e os trajes sem forma nada revelavam das curvas femininas. Elas o deixaram assustado. Não tinha a mínima vontade de ser visto por elas, ou ver mais algumas delas do que o estritamente necessário. Algo lhe passou pela memória, sempre fora perigoso espionar os mistérios femininos e por esta razão todas as sociedades sensatas sempre tinham proibido os mistérios das mulheres.
— Pensei ter escutado o barco — comentou uma delas.
— Oh, não, Irmã Casilda. Olhe, o barco está na praia lá adiante — retrucou a segunda, e Paul ficou satisfeito por ter mandado o barco de volta pela corda. A segunda mulher era uma matrona robusta e com papada e ele ficou imaginando por que ela se achava ali... na sua opinião ela estaria melhor em qualquer outro lugar metendo medo nas filhas adultas e nas noras e ensinando o temor a Deus aos netos. Ele imaginava as sacerdotisas virgens como jovens solteiras, lindas e neuróticas, mas nunca mulheres com ares de avó, joviais, gorduchas. Aquilo fez a sua cabeça girar.
— Mas onde está Gwennifer? — perguntou a ossuda Irmã Casilda e chegou até o poste alto onde se amarrava a corda do barco. Bateu o sino, com força, com o cabo de sua faquinha. Contudo não houve nenhum movimento nem qualquer som na praia do lado oposto. — Não é de seu hábito adormecer no seu posto. Será que está doente?
— É provável — falou zombando uma terceira mulher que nada tinha dito até então. — Ela bebeu a sua porção de vinho para dois dias de uma só vez e está deitada lá inteiramente embriagada!
— E se está, isto não é um crime capital — falou a primeira mulher. — Ainda assim, acho que deveria puxar o barco de volta e ir até lá. Talvez esteja deitada lá, doente e sem atendimento, ou, quem sabe, talvez tenha caído e quebrado um osso como acontece com tanta facilidade às mulheres idosas. Pode ficar sem socorro ali durante dias, até que cheguem as próximas peregrinas!
— Se isto acontecesse, jamais me perdoaria, é verdade — concordou a outra, e elas puxaram a corda e começaram a trazer o barco para a praia, embarcaram nele e remaram de volta. Paul prosseguiu seu caminho pela praia acima, feliz por não ter feito nenhum mal à velha barqueira. Na verdade, ela ia ser encontrada lá deitada, num profundo estado de embriaguez, mas não havia nenhuma prova de que alguém lhe tivesse feito mal, ou tivesse chegado perto dela. Na verdade, não fizera mal algum à velha senhora... apenas lhe proporcionara uma bebedeira agradável, e pelo jeito das mulheres falarem, não seria a primeira vez que isto acontecia, não era novidade alguma a barqueira se embebedar e adormecer no seu posto.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha... se tivesse seguido seu primeiro impulso, ou seja, se a tivesse golpeado e amarrado antes dele entrar no barco, haveria de ser dado o alarme, naquele mesmo instante, de que um intruso se encontrava perdido na ilha.
Certificara-se de que nenhuma daquelas mulheres era a que procurava. Bard mostrara-lhe um retrato de Carlina, avisando-o antes que o tinham romantizado demais e que, de qualquer maneira, tinha sido tirado sete anos antes; contudo, ele teve certeza de que reconheceria Carlina assim que a visse. E ao mesmo tempo sentiu um certo medo. Ele e Bard tinham o mau hábito de desejarem as mesmas mulheres. Porém, Bard deixara tudo bem claro: esta ele não poderia ter. Já havia lido suficientes pensamentos de Bard para saber que Carlina podia, pelo menos por alguns momentos, afastar dele todos os pensamentos de quaisquer outras mulheres. Aquilo era algo que Paul jamais tinha sentido em Bard antes: ele estava obcecado por Carlina, não tanto a mulher física, mas a idéia dela.
Deus Todo-Poderoso, pensou Paul, suponha que quando eu puser os olhos em Carlina, ela provoque o mesmo efeito em mim e não consiga resistir a ela!
Ora, aquilo significaria que a inevitável confrontação com Bard aconteceria um pouco mais cedo, apenas isto.
Podia enganar a moça fazendo-a pensar que ele era Bard... será que assim as coisas ficariam mais fáceis? Ou será que ela odiava e temia Bard como Melisendra e tinha passado a detestá-lo e temê-lo? Pelo modo como Bard lhe falara, tinham sido namorados na infância, foram prometidos um ao outro e separados pela crueldade do velho rei. Porém, se ela estava tão ansiosa para se juntar a ele como isto insinuava, o que estava fazendo aqui escondida entre as sacerdotisas de Avarra?
Ele podia se fazer passar por Bard, a não ser para alguém como Melisendra, que conhecia cada nuance do comportamento do outro. Mas Carlina não tinha qualquer experiência íntima com relação a Bard. Paul sabia através da mente de seu sósia que o contato mais íntimo entre os dois se resumira a alguns beijos inocentes, dos quais, de qualquer forma, a jovem tinha escapado. Se pudesse fazer com que Carlina o aceitasse como sendo Bard, então o original deste nome podia ser tranqüilamente afastado do caminho e ele teria liberdade e um reino...
Contudo, não poderia conseguir a única coisa que tinha tornado este mundo válido para ele. Se aprontasse alguma com Melisendra, ela não teria nenhum motivo para não o expor. E, de qualquer modo, ele devia ser mais parecido com Bard do que imaginava. A tarefa de governar um reino parecia-lhe tola. Diferentemente de Bard, não apreciava a guerra, tendo em vista sua própria segurança, muito embora parecesse compartilhar do talento demonstrado por Bard para as guerras. A guerra para Paul nada mais era além de um necessário prelúdio rumo a um estado de negócios onde as coisas podiam ser postas em ordem, e ele haveria de sentir um tédio mortal ao governar um reino tão logo tudo estivesse nos eixos. Então, o que desejava ele? Que coisa estranha... nunca parara para pensar àquele respeito, nem Bard o fizera, certo de que Paul, sendo seu sósia, compartilhava de seus objetivos e nunca se dera o trabalho de lhe perguntar nada.
Bem, pensou ele, se eu fosse livre gostaria de pegar Melisendra e partir para qualquer lugar fazendo explorações. Há muita coisa para ser vista aqui. Algum dia, talvez, acomodar-me, ter filhos e criá-los. E cavalos; gosto dos cavalos. Um lugar onde as coisas fariam sentido para mim e eu não me meteria em encrencas como aquela que acabou me levando para a caixa de estase, de saída. Um mundo onde eu não teria que estar sempre me opondo a regras e regulamentos inadmissíveis.
Realmente, era uma lástima que aquilo não pudesse terminar assim. Bard era bem recebido no reino infernal. Aliás, em todos os Cem Reinos. Talvez ele conseguisse convencer Bard de que falava a sério — que inferno, porque não poderia, eles podiam ler a mente um do outro; Bard teria que acreditar nele! E se tivesse Carlina, não haveria de querer Melisendra. Erlend, talvez, mas não Melisendra.
O problema é que Bard jamais acreditaria que estivesse a salvo enquanto Paul vivesse. Talvez ele pudesse fazer de Carlina uma aliada e bem rápido; nunca havia imaginado sequer que pudesse fazer amizade com uma mulher! As mulheres serviam para uma coisa, e apenas uma coisa. Contudo, não era assim que se sentia com relação a Melisendra. Ela, também, acabara sendo sua amiga.
Um estalar do mato e passos no caminho recordaram-lhe que estava em perigo e ele se meteu à sombra das moitas outra vez. Três mulheres aproximavam-se pelo caminho, e Paul, espiando, viu que uma delas era Carlina.
Era pálida, magra e tão baixinha, que mal alcançava o seu peito. Seus cabelos estavam presos atrás numa comprida trança. Ela se deslocava com o mesmo caminhar calmo, simples das outras sacerdotisas e seu traje deselegante fazia-a parecer sem graça. Paul passou do assombro para o choque. Esta... esta era a Princesa Carlina, a mulher por quem Bard estava tão obcecado a ponto de não poder pensar em mais nada, nem em ninguém? E por ela abriria mão da maravilhosa perfeição de Melisendra, que era, além do mais, mãe de seu filho? Melisendra também era bonita, graciosa, inteligente, dotada de laran e possuía toda a graça para enfeitar uma corte e se tornar uma rainha, ou, pelo menos, ser a senhora de um general; e tinha combatido ao lado de Bard. Paul pensara que conhecia Bard muito bem, mas agora sentia-se perturbado ao constatar que as diferenças jaziam mais profundas do que poderia ter imaginado.
Mas Bard não a queria, pensava Paul enquanto observava Carlina se afastando. Não era possível. Ele sabia o que Bard desejava. Ele havia desejado Melisendra, até que ela tinha ferido seu orgulho de uma forma insuportável. Ele desejara a mocinha roliça que tinham dividido depois da batalha. Desejar Carlina? Nunca.
Ele estava obcecado por Carlina, e isto era bem diferente. Como se o próprio Bard lhe houvesse revelado, ele sabia que o que Bard queria de Carlina era o fato de ser ela a filha do Rei Ardrin, a confirmação de que ele era o genro do rei, não um banido exilado tentando desesperadamente reclamar alguma posição, alguma identidade.
Paul pensou, com muito mais razão ainda devo procurar fazer de Carlina uma aliada e logo... e mesmo assim, jamais desistiria de Melisendra em favor disto. Loucura! Melisendra até que seria uma rainha mais adequada.
Contudo, se Bard tem Carlina, não disputará comigo a posse de Melisendra...
Tenho que me certificar, então, de que Carlina seja entregue nas mãos de Bard, e o mais rápido possível. E não preciso me preocupar, pelo menos quanto a uma coisa. Será fácil para mim manter minhas mãos longe dela. Não a teria na minha cama, nem que fosse rainha de trinta reinos.
Um casamento dinástico com Carlina proporcionaria a Bard — ou a Paul em seu lugar — uma reivindicação legítima e toda sua com relação ao trono, caso o doentio Alaric morresse sem deixar prole — o que parecia bastante provável. Muito bem, o trono e Carlina para Bard. E para Paul... liberdade e Melisendra! Bard jamais haveria de se sentir seguro enquanto ele vivesse... mas se ele desse um jeito de ir embora, de preferência o mais rápido possível, então, quem sabe? Bard estaria muito ocupado mantendo o seu trono para mandar alguém em sua perseguição. Mas, primeiro, Bard tem que ter Carlina.
As sacerdotisas haviam subido o caminho, e Paul seguiu-as, mantendo-se nas sombras. Primeiro uma, depois outra, todas entraram em casinhas dispostas ao longo do caminho. Carlina entrou numa delas e após um instante, ele viu o brilho incerto de um lampião. Paul escondeu-se para refletir. Não que sentisse medo das mulheres. Contudo, elas eram muitas e portavam aquelas faquinhas semelhantes a minúsculas foices.
Não podia dar tempo a Carlina para gritar. Nem mesmo através da mente. Sem dúvida alguma, devia haver outras telepatas naquele lugar. O que significava — refletiu friamente — que deveria atirá-la ao chão e deixá-la completamente inconsciente com apenas um golpe antes que o visse ou ficasse alarmada diante da idéia da presença de um intruso. E tinha que estar com ela bem longe da ilha antes que visse o seu rosto.
Esgueirou-se sorrateiramente através da porta. Cantarolando uma canção, ela ficou arrumando o pequenino pavio do lampião. Em seguida tirou a capa escura, dependurou-a num cabide e começou a desmanchar a trança. Ele não queria esperar até que se despisse; com aquele frio não poderia levá-la muito longe sem roupas e sabia que seria impossível vestir as roupas num corpo desmaiado. Saiu de seu esconderijo e desfechou um golpe violento, observando-a despencar sem qualquer ruído no chão. Ele estava horrorizado, desacostumado até agora ao pouco laran que possuía, com o inesperado vazio onde, um instante atrás, existira uma presença. Inesperadamente assustado, inclinou-se para se certificar de que ela ainda respirava. Sim, respirava. Embrulhou o corpo na capa negra, ajeitando algumas dobras a mais sobre seu nariz e boca. Ela poderia respirar, porém a capa abafaria qualquer pedido de socorro, se bem que, se voltasse a si e sentisse medo, o alarme estaria dado e a perseguição seria iniciada em pouco tempo. Carregou-a para o lado de fora, fechou a porta atrás de si com os pés. Agora chegava o verdadeiro risco de toda a operação. Se alguém o visse agora, provavelmente jamais haveria de sair daquela ilha vivo. Levou-a rapidamente rumo à praia, colocou-a no barco e impeliu-o para fora. Meia hora mais tarde ele se afastava do Lago do Silêncio, o corpo inconsciente de Carlina atravessado sobre o lombo da besta de carga. Ajeitou-a muito bem para que ficasse o mais confortável possível, porém desejava distanciar-se ao máximo da ilha, o mais rápido que pudesse. Com um pouco de sorte, elas não sentiriam a falta de Carlina até o amanhecer; e ele não tinha visto nenhum cavalo na ilha. Porém, mais cedo ou mais tarde, ela recuperaria os sentidos e transmitiria algum pedido de socorro através da telepatia. E ele desejava estar bem longe, de modo que aquela atitude dela não fizesse qualquer diferença.
Quando Paul alcançou o local nas colinas onde deixara a escolta, Carlina continuava desmaiada. Seus homens já estavam montados e perto deles havia um cavalo com uma liteira esperando.
— Fiquem prontos para partirmos. Trouxeram um cavalo descansado para mim? Sim, e cavalos extras para a liteira, pois assim não teremos que nos deter em lugar algum para trocarmos as montarias — apeou-se, levantou a trouxa inconsciente que era Carlina, colocou-a dentro da liteira e fechou as cortinas. — Vamos embora!
O sol surgia quando eles fizeram uma parada para dar um pouco de descanso aos cavalos. Paul desmontou, engoliu um pouco de comida — não dispunham de tempo para parar e cozinhar uma refeição —, em seguida dirigiu-se para junto da liteira e abriu as cortinas.
Carlina estava consciente. Tinha conseguido tirar a mordaça da boca. Estava deitada de lado, em silêncio, e lutava desesperadamente para desfazer os nós da corda que imobilizava as suas mãos.
— Estão lhe incomodando, milady? Eu os afrouxarei, se assim o desejar — disse Paul.
Ao ouvir aquela voz ela se encolheu toda:
— Bard! Eu devia saber que era você. Quem mais seria bastante irreverente para desafiar a ira de Avarra!
— Não temo deusa alguma — redargüiu ele com sinceridade.
— Bard mac Fianna, acredito piamente nisto. Contudo, não a provocará sem que seja punido.
— Quanto a isto, não pretendo discutir a questão. Sua deusa, se é que existe, não interveio para protegê-la e impedir que fosse tirada da ilha. E não penso que a vá proteger agora. Se o pensamento de que ela me punirá é um consolo para você, não serei eu quem a privará disto. Só vim até aqui para lhe comunicar que se estiver cansada desses laços, eu os soltarei; tudo que terá de fazer é me dar sua palavra de que não tentará fugir.
Ela o fitou com um desafio petulante:
— Evidentemente fugirei se puder.
Que mulher infernal, pensou Paul exasperado, será que não sabe quando está vencida? Com uma sensação desconhecida que ele não reconheceu como culpa, percebeu que não a queria magoar, ou mesmo amarrá-la com mais força. Com uma praga, puxou as cortinas e afastou-se.
Enquanto rumava de volta ao Castelo das Astúrias, Bard recebeu algumas notícias desagradáveis: seu subcomandante procurara-o e dissera-lhe que, três dias após a batalha, todas as mercenárias da Irmandade da Espada tinham ido procurar o oficial, exigindo o pagamento que lhes era devido e tinham abandonado o acampamento.
— Paguei-as generosamente, e o que é mais, coloquei-as sob minha proteção pessoal — disse, sentindo-se ultrajado. — Elas deram alguma explicação para uma atitude deste tipo?
— Deram sim. Declararam que seus homens haviam violentado as mulheres prisioneiras de guerra e que o senhor nem sequer os punira — esclareceu o oficial. — Para lhe dizer a verdade, Lorde General, acho que estamos muito melhor livres delas. Elas estão... — ele hesitou um instante, refletiu por um momento e disse — obcecadas, é isto mesmo. Vou lhe dizer uma coisa, meu senhor, lembra-se quando cavalgamos contra a Ilha do Silêncio e daquela velha megera que havia lá e que nos amaldiçoou? Estas malditas irmãs da Irmandade da Espada fazem-me recordar dela, elas e sua deusa!
Bard fechou a cara. A menção à Ilha do Silêncio fê-lo se dar conta de que Paul já devia ter voltado àquela altura. A não ser que a maldição da ilha e de Avarra também tivesse caído sobre ele. Seu oficial interpretou mal o seu aborrecimento e pensou que ele tivesse se zangado por ter ouvido aquela menção à derrota; sem jeito, ficou com os olhos presos ao chão.
— Jamais me passou pela cabeça, Lorde General, que um punhado de mulheres seria capaz de nos pôr a correr daquela maneira. Elas são todas umas loucas, elas e a sua deusa também, não acha? É lamentável ter algo a ver com elas, e se quiser o meu conselho, senhor, também não deve se envolver com a irmandade. O senhor já soube? Elas exigiram resgate pelos prisioneiros de guerra, as mulheres da irmandade, estou querendo dizer, e os levaram com elas. Alegaram que eles deviam saber que ambos estavam lutando do mesmo lado, que nunca deveriam ter sacado armas contra suas irmãs... alguma tolice desse quilate. Senhor, elas são umas loucas. Estou contente porque se foram.
— Elas não mataram os prisioneiros pessoalmente? Ouvi dizer que se uma mulher da irmandade é violentada, as irmãs dela perseguem-na e a matam caso ela não se suicide.
— Matam-nas? Não, senhor, os guardas escutaram-nas chorando todas juntas nas tendas. E eles lhes devolveram as armas e puseram roupas decentes nelas... o senhor está lembrado de que os soldados rasgaram até mesmo suas próprias roupas?... e deram-lhes cavalos e todas foram embora juntas. Vou lhe dizer uma coisa, não se pode confiar em mulheres deste tipo, não possuem o menor senso de lealdade, entendeu?
Assim que chegou ao Castelo das Astúrias, mandou avisar ao pai e ao irmão, o Rei Alaric, que tinha chegado e, quando entregava seu animal aos cavalariços, notou que o cavalo que Paul tinha montado para ir até o Lago do Silêncio encontravase no pátio. Entrou e dirigiu-se apressado para a sala do trono. Seu pai foi ao seu encontro e abraçou-o, e Alaric deslocou-se com dificuldade até onde ele se achava e deu-lhe um abraço fraterno.
— Bard, sua mulher está aqui. A Princesa Carlina.
Ele sabia disto, porém estava surpreso ao constatar que Alaric e seu pai o sabiam.
— Está? — perguntou estupefato.
— Ela chegou, ainda há pouco, numa liteira. Seu mediador Paolo Harrell escoltou-a até aqui — disse Alaric. — Porém, continuo achando que deveria se casar com Melisendra, Bard. Erlend é um filho excelente para ser um nedestro. Quando eu for coroado rei, darei a ele uma carta de legitimidade. Então ele será seu filho, quer se case ou não com Melisendra!
— Onde se encontra ela? Nos seus antigos aposentos?
— Onde mais haveria de estar? — perguntou Alaric, fitando-o. — Ordenei que fosse levada para lá, que colocassem algumas mulheres à disposição dela para banhá-la e tudo mais. Viajou o dia inteiro numa liteira, deve estar exausta e suja.
Seria possível, perguntava Bard com seus botões, que Carlina tivesse vindo voluntariamente? Alaric continuou:
— Paolo disse que ela estava muito cansada e esgotada pela viagem para ver quem quer que fosse, mas que eu deveria mandar algumas damas de companhia para cuidarem dela. Ela é filha do Rei Ardrin é sua mulher. Quando você celebrar a cerimônia das catenas, eu a farei, se assim o desejar, pois trata-se de uma honra quando o rei realiza pessoalmente o casamento.
Bard agradeceu a seu irmão e pediu permissão para se retirar. O sorriso de Alaric era infantil.
— Não precisa me pedir nada, Bard. Estou sempre me esquecendo de que sou o rei e tenho que autorizar as pessoas a irem e virem, mesmo o pai, não é uma tolice?
Tinham lhe designado aposentos próximos aos de Carlina. Quando lá chegou, Paul encontrava-se à sua espera.
— Suponho que tenha se saído bem na missão que lhe designei. Ela veio voluntariamente? — perguntou Bard, com secura.
Paul sacudiu a cabeça com pesar, mostrando um arranhão enorme no rosto.
— Na primeira noite fui bastante tolo a ponto de permitir que ela se soltasse... soltei os nós que a prendiam para que descansasse um pouco. Esta foi a única vez que cometi este erro. Felizmente, não levei nenhum homem das Astúrias, que saberia quem era ela. Eram todos mercenários de Hammerfell e Aldaran, e a maior parte deles não sabia falar a língua dela. Contudo, quando viu para onde a tinha trazido... deu-me sua palavra de honra que não tentaria fugir esta noite. Julguei que seria por demais humilhante para a senhora chegar na sua própria casa com as mãos amarradas e os pés também, como se fora uma trouxa de roupas, por isto aceitei sua palavra. E o rei mandou algumas damas de companhia para lhe fazerem companhia. Creio que irá encontrá-la bastante dócil... não a toquei, exceto quando a tive que fazer perder os sentidos... não encostei um dedo nela até que me arranhou. Mesmo então, limitei-me a pegá-la como se fosse uma trouxa e meti-a de volta dentro da liteira. Não usei mais força do que aquela absolutamente necessária, pode estar tranqüilo quanto a isto.
— Ora, acredito em você — falou Bard. — Onde se encontra ela agora?
— Nos seus aposentos; e amanhã, suponho, você poderá convencê-la a não fugir, ou colocar um guarda para vigiá-la — disse Paul. Ficou pensando se aquela não seria a hora indicada para conversar com Bard a respeito de Melisendra e achou que provavelmente não seria.
Bard convocou a presença de seu camareiro pessoal, mandou-o barbeá-lo e vesti-lo. Daria algum tempo a Carlina para que descansasse da extenuante viagem e se arrumasse. Ele esperava sem esperanças que Carlina o recebesse de bom grado, conformada com seu casamento. Tinha lutado, é claro, ao ser raptada, contudo, quando se viu em seu próprio lar, sentiu vontade de empenhar sua palavra espontaneamente. Isto significava que sabia que nada tinha a temer ali. Carlie, é lógico, sabia que ele não seria capaz de lhe causar qualquer mal, por mais insignificante que pudesse ser. Afinal, ela era sua mulher, por todas as leis dos deuses e dos Cem Reinos!
Quando Bard se aproximou da porta, ficou surpreso ao deparar com um guarda ali e, ao retribuir a saudação do homem, ficou imaginando se Paul teria duvidado da validade da palavra de Carlina. Mas por quê? Muito provavelmente, Carlina, ao ser levada embora sem ouvir uma única explicação, pensara que estivesse sendo seqüestrada; mantida refém por um resgate, ou obrigada a fazer um casamento de estado com alguém. Será que dera a palavra de não fugir por sentir-se contente de se ver sã e salva em casa?
Encontrou Carlina num dos quartos mais afastados, deitada de lado na cama, dormindo. Estava pálida e parecia uma garota de colégio, enfiada numa espécie de robe simples e escuro; enrolara-se num manto pesado e deselegante, como se fora um cobertor. Seus olhos estavam vermelhos, contra a palidez ebúrnea do rosto. Jamais tinha conseguido suportar as lágrimas de Carlina. Após um momento seus olhos abriram-se e ela os ergueu para ele, o semblante contraído de medo. Sentou-se de repente e apertou o manto negro de encontro ao corpo.
— Bard! — exclamou ela, piscando. — Sim. Desta vez é você mesmo, não? Quem era o outro homem... um de seus parentes bastardos das Hellers? Não me magoará, não é mesmo, Bard? Afinal de contas, fomos crianças juntos, éramos companheiros de brincadeiras.
Ele ouviu seu suspiro profundo, como se fosse uma explosão de alívio. Perguntou, agarrando-se a uma insignificância:
— Como soube?
— Ah! vocês dois são parecidos demais, não há dúvida. Até as suas vozes; porém arranhei o rosto dele até o osso, pensando que fosse você. Se ele era apenas um instrumento seu, talvez eu lhe deva uma desculpa.
Bard voltou àquilo que ela tinha falado antes:
— É evidente que jamais a magoarei, Carlie. Afinal, você é minha mulher e mesmo agora, o Rei das Astúrias espera nos unir com as catenas. Esta noite lhe convém, ou preferiria esperar até que alguns de seus parentes possam ser convidados?
— Nem hoje, nem em qualquer outro momento — respondeu Carlina, e suas mãos estavam tão pálidas como as juntas de um esqueleto de encontro ao manto negro. — Fiz um voto, um juramento às sacerdotisas de Avarra e para a Mãe, que dedicaria minha vida à oração, mantendo minha castidade. Pertenço a Avarra, não a você.
O semblante de Bard obscureceu:
— Quem não cumpre, nem é fiel a um primeiro juramento, também será infiel ao segundo. Antes que tivesse prestado qualquer juramento para Avarra, nós dois ficamos comprometidos perante todos os homens.
— Porém não nos casamos — retorquiu Carlina —, e um noivado pode ser rompido, não tendo sido consumado! Não tem mais nenhum direito sobre mim do que... do que... do que aquele guarda postado aí fora!
— Isto é uma questão de opinião. Seu pai a entregou a mim...
— E tirou-me diante de seu exílio!
— Não reconheço este direito, não podia ter feito isto.
— E não aceitei o direito dele em me dar para você sem meu consentimento, em primeiro lugar, portanto, estamos empatados — replicou Carlina, os olhos faiscando.
Bard pensou que ela parecia ainda mais bonita do que jamais a vira, as maçãs do rosto coradas, os olhos cintilando de fúria. Mulheres tinham-no desafiado ou recusado antes, porém nunca precisara esperar tanto assim por nenhuma delas. Agora, o tempo de espera tinha terminado. Ela não haveria de sair daqueles aposentos até que tivesse se tornado sua mulher de fato, como o havia realmente sido todos estes anos. Sentia-se excitado com a proximidade dela e pelo toque de desafio contido no timbre da voz e nos olhos dela. Nem mesmo Melisendra opusera-lhe tamanha resistência. Não havia uma mulher que tivesse podido resistir a ele, a não ser Melora, e ela... aborrecido, afastou o pensamento da leronis. Ela não significava nada para ele. Tinha ido embora.
— Bard, não posso acreditar que pudesse me machucar. Fomos crianças juntos. Não lhe desejo nenhum mal; deixe-me voltar para a ilha e para a Mãe e intercederei junto a elas a fim de que não haja nenhum castigo nem maldição.
Ele estalou os dedos:
— Pouco me importam as maldições, sejam elas quais forem; de Avarra ou de qualquer outra assombração!
Carlina fez um gesto piedoso e ao mesmo tempo de horror:
— Suplico-lhe para não dizer blasfêmias deste tipo! Bard, mande-me de volta à ilha.
Ele balançou a cabeça:
— Não. Aconteça o que acontecer, isto já acabou. Seu lugar é aqui, ao meu lado. Exijo que cumpra suas obrigações para comigo e se torne minha mulher ainda esta noite.
— Não. Nunca. — Os olhos dela estavam marejados de lágrimas. — Oh, Bard, não o odeio. É meu irmão de criação, com Geremy e o pobre Beltran! Crescemos juntos, e você sempre foi delicado comigo. Seja bondoso para comigo agora e não insista neste assunto. Há tantas mulheres que poderiam lhe pertencer, damas da alta nobreza, leroni, mulheres maravilhosas... tem Melisendra, que é mãe de seu filho, aliás um garotinho maravilhoso... por que me quer, Bard?
Ele a fitou dentro dos olhos e revelou-lhe a verdade literal.
— Não sei. Contudo, jamais houve qualquer outra mulher que eu desejasse tão profundamente quanto desejo você. É minha mulher e a possuirei.
— Bard... — sua face estava lívida. — Não. Por favor.
— Você deu um jeito de romper seu compromisso através de um estratagema, porque não tinha sido consumado o casamento, e não pense que conseguirá me enganar outra vez desta maneira. Cumprirá sua obrigação para comigo, quer queira ou não, Carlina.
— Está dizendo que pretende me violentar?
Bard sentou-se na cama ao lado dela, procurando a sua mão.
— Preferiria possuí-la de boa vontade que à força. Mas, de um jeito ou de outro, eu a possuirei, Carlie, portanto, terá que se conformar com esta idéia.
Ela afastou a mão do alcance dele e atirou-se sobre a cama, o mais distante de Bard que lhe era possível, puxando mais o manto escuro para junto do corpo, e Bard ouviu-a soluçando sob aquela proteção. Ele arrancou o pesado manto de cima dela, embora ela o tivesse agarrado com toda sua força, e arremessou-o furioso sobre o chão. Não suportava vê-la chorando. Jamais tivera condições de agüentar as lágrimas dela, mesmo quando chorava porque um gatinho a arranhara. Parecia que a podia ver agora, com nove anos, magra como um caniço, o cabelo todo preso em tranças fininhas, como se fossem cordas negras, chupando o polegar arranhado e soluçando.
— Que droga! Pare de chorar, Carlie! Não suporto vê-la chorar! Acha que a poderia magoar alguma vez? Não quero machucá-la, contudo, tenho que me certificar de que não pode fugir de mim outra vez sob esta mesma desculpa. Quando tudo terminar não ficará zangada comigo, isto eu lhe prometo. Não existe uma única mulher que tenha se importado, depois de terminado.
— Acredita nisto, mesmo, Bard?
Ele não se deu o trabalho de lhe responder. Não acreditava naquilo, sabia-o. As mulheres arranjavam toda sorte de desculpas para manter os homens longe delas, para impedi-los de fazerem o que queriam fazer. Recordou-se de Lisarda, vigaristazinha infeliz, não tinha se importado depois, também, tinha adorado tudo! Mas as mulheres não eram educadas no sentido de serem sinceras com relação a estas coisas. Ao invés de responder, inclinou-se sobre ela e puxou-a para seus braços; porém ela se debateu até conseguir se soltar e suas unhas arranharam o rosto dele.
— Bard, vá para o inferno, agora tem uma marca para se igualar ao seu mediador, e não é nem um pouquinho melhor do que ele!
Sua frustração inútil transformou-se em revolta; agarrou as mãos dela com violência, mantendo-as presas.
— Pare com isto, Carlie! Não a quero machucar, mas está me forçando a isto!
— Você sempre se justifica, não é mesmo? Por que haveria de tornar as coisas fáceis para você? — falou enraivecida.
— Carlie, não existe nenhum modo para me convencer, me enganar ou me dissuadir daquilo que pretendo. Vou possuí-la e é apenas isto o que importa, e apesar de não querer machucar você, farei o que for necessário para mantê-la quieta. Permiti que fugisse de mim antes e todos os meus problemas advieram disto. Se Geremy não tivesse aparecido para se intrometer naquele festival, você teria se tornado minha mulher e teríamos vivido felizes todos estes anos; Beltran ainda estaria vivo...
— Você tem a ousadia de me culpar disto?
— Culpo-a por tudo que me aconteceu desde o momento em que permiti que me recusasse — disse ele, agora furioso —, contudo, ainda a quero ter como minha mulher e esta é a sua oportunidade para se corrigir!
— Corrigir-me? Você deve estar inteiramente louco, Bard!
— Você me deve, pelo menos, isto! Agora, se tiver alguma sensibilidade e não se debater de modo tão idiota, isto poderia ser tão agradável para você como para mim, e é assim que eu gostaria que fosse. Mas, quer queira ou não, sou mais forte do que você, e se tiver um pouco de juízo, deve saber que não adianta nada estar se opondo a mim. Vamos... — e arrancou-lhe o xale. — Vamos tirar estas roupas.
— Não!
A voz dela soava desvairada; recuou aterrorizada. Bard cerrou os dentes. Se a gatinha estava disposta a brigar, ele acabaria com aquilo de uma vez por todas e já. Arrancou o xale com um puxão e atirou-o longe, agarrou a parte de cima da túnica e rasgou-a de alto a baixo, pegando os pedaços de tecido e jogando-os no chão. Em seguida, foi a vez da combinação, a peça delicada foi estraçalhada rapidamente. As unhas de Carlina deixaram arranhões nas mãos dele, ela o esbofeteou e bateu em seu rosto, mas Bard a ignorava. Pegou-a no colo, ainda se debatendo, atirou-a no centro da cama, e acomodou-se ao lado dela. Ela o chutou e ele revidou, espancando-a brutalmente, com a mão aberta. Carlina encolheu-se na sua camisola fina e começou a chorar.
— Carlie, minha querida, meu amor, não a quero machucar, não tem sentido lutar contra mim.
Bard tentou apertá-la junto a si, mas ela virou a cabeça e chorou, afastando a boca da dele que a buscava. Enraivecido com o pranto de-la, quando esperava encontrar muita ternura, tornou a esbofeteá-la. Ela parou de se opor, ficou deitada imóvel, as lágrimas rolando por suas faces abaixo. Que mulher infernal! Poderia ter sido tão maravilhoso para ambos! Por que ela o estava forçando a agir desta maneira?
Revoltado — e ao mesmo tempo excitado — pelo modo como ela estava estragando aquele momento com o qual sonhara durante anos, jogou-se sobre ela, puxou a camisola, abrindo as pernas dela com as mãos rudemente. Carlina arqueou o corpo e tentou atirá-lo para o lado, porém ele a empurrou com força para baixo. Ela arquejou e ficou quieta, encolhendo-se, soluçando. Não tomou a lutar contra ele, embora Bard soubesse que a estava machucando; ele percebeu os dentes dela morderem com força o lábio inferior e notou as gotas de sangue ali. Procurou se inclinar e beijar aquele lábio que sangrava, porém ela atirou a cabeça para o lado, rígida como um cadáver nos braços dele, exceto pelas lágrimas que continuavam a rolar pelo rosto, como se apenas elas estivessem vivas.
— Lorde General... — uma voz interceptou Paul enquanto ele passava pelo hall. Por um instante ele pensou que Bard tivesse surgido inesperadamente na entrada que havia por perto, depois percebeu que era a ele que alguém se dirigia. Quer dizer então que estava tão parecido assim com Bard? Estava prestes a revelar sua identidade, porém se deu conta de que ninguém devia saber que Paolo Harryl e Bard eram tão idênticos. Remexeu rapidamente na sua mente para se recordar do nome do homem.
— Lerrys.
Os olhos do homem fixaram-se no arranhão no rosto de Paul.
— Até parece que andou brigando com uma daquelas cadelas de vermelho — comentou o homem, rindo. — Espero que tenha arrancado os brincos dela dos respectivos furos, senhor.
Em casta, a frase assumia um ligeiro duplo sentido, e Paul, se bem que o trocadilho fosse um pouquinho menos sofisticado do que o teria achado no seu mundo, riu amistosamente e não retrucou; limitou-se a dar um sorriso reconhecido.
— Ouvi dizer que todas elas desertaram, senhor. Pretende puni-las, bani-las, ou qualquer outra coisa? Talvez fosse divertido para as tropas e ensinaria as mulheres a permanecerem em seus lugares.
Paul sacudiu a cabeça:
— Os falcões não perseguem os passarinhos de gaiola. Elas que se vão, e boa viagem para elas — disse, e dirigiu-se para seus aposentos, pensativo. Como tinha previsto, Melisendra estava esperando por ele.
Ela o enlaçou em seus braços, beijou-o e Paul se deu conta de que durante todo o trajeto de volta da Ilha do Silêncio, estivera esperando, ansioso, por este momento. O que tinha acontecido com ele para que uma mulher conseguisse deixá-lo tão apaixonado assim?
— Como está o Erlend?
— Muito bem, embora eu preferisse poder mandá-lo para a segurança do campo, ou melhor, na torre. Muito embora... — ela empalideceu —, depois daquilo que aconteceu em Hali, não me sinto tão certa assim de que haja alguma segurança na torre, ou em qualquer outra parte desta terra.
— Mande-o para o campo, se quiser — disse Paul. — Não tenho certeza se Bard não se oporá; mas por que pensa que não estaria seguro aqui, Melisendra?
— Nas minhas veias corre sangue de Aldaran — falou ela hesitante —, e neste ramo há o laran da premonição. Não se trata de uma coisa totalmente confiável... nem sempre consigo controlá-lo. Mas, às vezes... talvez seja apenas medo de minha parte, mas tenho visto incêndio, incêndio neste lugar e, por uma vez, quando olhei para o Rei Alaric, vi o seu rosto todo rodeado por chamas...
— Oh, meu Deus! — exclamou Paul. E puxou-a para perto, percebendo que se alguma coisa acontecesse a ela, nada restaria neste mundo, ou em qualquer outro, que fosse capaz de lhe proporcionar felicidade. O que estava lhe acontecendo?
Ela levantou a mão para passá-la sobre o arranhão na face dele.
— Onde arrumou isto? Parece-me pequeno demais para um ferimento em batalha.
— E não foi mesmo. Foi uma mulher que fez isto.
Ela sorriu e falou:
— Nunca pergunte o que um homem escolhe para fazer quando se acha em campanha. Imagino que tenha tido mulheres em abundância, mas será que não pode arrumar algumas mais complacentes? Meu bonitão, jamais me passaria pela cabeça que pudesse haver alguém que o rejeitasse.
Paul sentiu-se enrubescer, recordando-se da maravilhosa ruiva que ele e Bard tinham dividido. Ela estava até com vontade demais. Contudo, ela tinha sido, antes de mais nada, apenas um consolo por saber que Melisendra não se achava lá, e depois, uma desculpa para manter uma confrontação com Bard.
— As mulheres que possuo estão sempre com boa disposição em relação a mim, meu amor — retrucou ele, perguntando-se por que se dava o trabalho de explicar aquilo... mas que diabo vinha lhe acontecendo nos últimos meses? — Isto foi uma prisioneira, uma mulher, que Bard me mandou trazer para ele.
Então era isto. Incomoda-me ir buscar uma mulher para ele. Não sou, afinal, seu moleque de recados! Irritado, identificou a causa de sua revolta.
Melisendra, entrando em comunicação com ele, disse:
— Estou surpresa com isto. São muito poucas as mulheres dispostas a rejeitarem Bard. Se bem que a Princesa Carlina, segundo fui informada, fugiu da corte e houve algumas tentativas para casá-la com ele quando eram apenas duas crianças — e mais uma vez acompanhou o pensamento dele, suas mãozinhas cobriram a boca e ela ficou olhando para ele estarrecida.
— Carlina, pelo amor da deusa! Ele o mandou... para que ficasse exposto à ira de Avarra, para desviar a maldição para cima de você.
— Não acredito que esta tenha sido a sua única motivação — retrucou Paul, e explicou-lhe que era imune aos encantos lançados sobre a Ilha do Silêncio.
Ela o escutou, perturbada, sacudindo a cabeça em desespero:
— Qualquer homem que ponha os pés na Ilha Sagrada tem que morrer...
— Antes de mais nada, não tenho o menor medo de sua deusa. Falei isto para Carlina. E ela é a mulher de....
Melisendra sacudiu a cabeça:
— Não, a deusa reivindicou-a. Talvez seja através dela que a vingança de Avarra será feita. Contudo, não conseguirá escapar deste fato — e encolheu os ombros, a face lívida de tanto pavor. — Eu pensava que até mesmo Bard houvesse tido o seu aviso, quando foi afastado, antes, da ilha. Não odeio o Bard; ele é o pai de meu filho e, contudo... contudo... — caminhou pelo cômodo, perplexa, angustiada. — E o castigo para ele que violentou uma sacerdotisa de Avarra... é terrível! Primeiro ele se expôs à inimizade da irmandade, que se encontra sob a proteção da deusa, e agora isto.
Paul observava-a, conturbado. Durante toda a sua vida acreditara que as mulheres, na realidade, queriam ser dominadas, que no mais profundo de sua condição de mulher, desejavam ser possuídas, e caso não tivessem consciência disso, então um homem não estava lhes causando nenhum mal ao mostrar-lhes o que realmente queriam. Observando Melisendra, ele não tinha a menor dúvida de que ela era capaz de saber o que queria, e esta era uma idéia nova e muito inquietante para ele. Contudo, Bard a tinha possuído contra a vontade... chegou à conclusão de que não queria seguir esta linha de pensamento, ou haveria de se ver preparado para matar Bard.
Não quero matá-lo, sei lá, porém, como ele passou a ser uma parte de mim mesmo...
— Mas, o que me diz da irmandade, Melisendra? Elas se metem no meio dos homens; possuem algum direito de exibir sua feminilidade e dizer, sim, estou aqui, mas vocês não me podem tocar? Concordo com a idéia de que as mulheres que ficam em casa, protegidas pelos homens, nunca devessem ser tocadas, mas estas mulheres abriram mão desta proteção...
— Você pensa que todas as mulheres são iguais? Não conheço as integrantes da Irmandade da Espada, embora tenha conversado com algumas delas eventualmente. Conheço muito pouco sobre seus hábitos, porém, se decidiram empunhar suas espadas, não vejo por que não o deveriam fazer em paz... — percebendo o que tinha dito, ela riu: — Não, é claro que não quis dizer isto. Mas deveriam poder fazê-lo sem serem incomodadas; por que um acidente de nascimento deveria impedi-las do direito de combater, se dão preferência a isto e não querem costurar capas, bordar almofadas e fazer queijo?
— Daqui a pouco — observou Paul, sorrindo diante da veemência demonstrada por Melisendra —, estará afirmando que os homens deviam ter o direito de passar suas vidas bordando toalhas e lavando fraldas de bebês!
— Tem alguma dúvida de que determinados homens se sentem mais inclinados a isto do que a guerrear? — indagou ela. — Mesmo se desejarem vestir saias à altura dos joelhos e permanecerem em casa preparando o mingau para o jantar! Uma mulher pode ao menos se casar, ou ser uma leronis, ou fazer votos para a irmandade, furar as orelhas e empunhar a espada, mas que Deus ajude o homem que quiser ser qualquer outra coisa que não um soldado, um lavrador ou um laranzu! Por que uma mulher que brande sua espada deveria ter medo de ser violentada caso seja derrotada? Sou uma mulher... gostaria de me ver usada desta forma?
— Não — retrucou Paul —, mataria qualquer homem que tentasse fazer isto e não permitiria que tivesse uma morte fácil. Mas você é uma mulher, e elas...
— Também são mulheres — interrompeu-o aborrecida. — Os homens não pensam que as mulheres não são femininas, nem as sujeitam ao estupro e aos infortúnios quando precisam arar a terra para garantir a sobrevivência dos filhos órfãos, ou pastorear animais no meio do mato. O homem que violenta uma pastora ou uma pescadora solitária é alvo do desdém de todos, até mesmo sofre zombarias, pois é considerado como alguém que não consegue ter uma mulher que o aceite de boa vontade! Por que apenas as mulheres espadachins deveriam ficar sujeitas a isto? Quando você captura um inimigo, tira as armas dele e as detém; nos tempos antigos tinha-se o direito de mantê-lo como criado durante um ano, porém ninguém o forçava a se deitar para ser violentado!
— Foi isto o que Bard determinou — observou Paul. — Declarou que seus homens podiam usá-los de forma honrada como prisioneiros de guerra, caso contrário, mandaria chicoteá-los.
— É verdade? Esta foi a melhor coisa que você jamais me relatou a respeito de Bard di Asturien. Talvez esteja se modificando, com a chegada da maturidade, talvez esteja se tornando mais humano e deixando de ser um lobo selvagem...
Paul fitou-a intensamente:
— Na realidade, você não o odeia, não é mesmo, Melisendra? Muito embora ele a tenha estuprado...
— Oh, meu querido, aquilo não foi um estupro. Eu bem que estava querendo, embora seja verdade que me lançou um encanto. Porém, fiquei sabendo mais tarde que algumas mulheres se deitam com um homem sob o efeito de um encanto, e às vezes nem sequer tomam conhecimento do fato. Espero que a deusa Avarra perdoe Bard tão depressa quanto o perdoei — envolveu-o com seus braços e disse: — Mas por que estamos falando sobre ele? Estamos juntos e não é provável que ele venha nos incomodar esta noite.
— Não — concordou Paul —, acho que Bard tem outras coisas em que pensar. Entre Lady Carlina e a ira de Avarra, não acredito que vá se dar o trabalho de pensar em nós dois.
Carlina chorou durante muito tempo; agora, seus soluços, finalmente, tinham cessado, estava deitada e apenas as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto, deslizando das pálpebras inchadas e encharcando o travesseiro.
— Carlina — disse Bard finalmente —, imploro-lhe, não chore mais. A coisa já está feita. Sinto muito por ter sido forçado a magoá-la, mas de agora em diante será melhor e dou-lhe minha palavra de que nunca mais serei violento com você. Podemos viver felizes por toda a vida, Carlie, agora que já não lhe é mais possível me rejeitar.
Ela se virou e encarou-o. Os olhos estavam tão inchados pelo choro que quase não o conseguia ver. Disse num tom de voz rouco:
— Ainda acredita nisso?
— Mas claro que sim, minha adorada, minha mulher —, respondeu ele e estendeu a mão para acariciar a dela, porém ela a puxou.
— Misericordiosa Avarra — explodiu ele —, por que as mulheres são tão insensatas?
Carlina ergueu os olhos e um estranho sorriso levantou-lhe os cantos da boca.
— Você, implorando a misericórdia de Avarra? Bard, ainda há de chegar o dia em que você não julgará este voto com tanta irresponsabilidade. Quer me parecer que você abriu mão de todo o direito de lhe implorar misericórdia, quando mandou me tirar da ilha; e, novamente, a noite passada.
— A noite passada... — Bard encolheu os ombros. — Avarra é Senhora do Nascimento e da Morte... e do coração em fogo; evidentemente, ela não poderia ficar enraivecida contra um homem apenas por ter ele possuído sua mulher, que lhe tinha sido prometida muito antes de prestar seu falso juramento à deusa. E se ela é uma deusa que se interporá entre marido e mulher, juro que acabarei com seu culto em todos os cantos e recantos deste reino.
— A deusa é a protetora de todas as mulheres, Bard, e haverá de puni-lo pelo estupro.
— Você ainda teima em declarar que foi violentada?
— Sim — retrucou ela implacável.
— Não acho que tenha se importado tanto assim. A sua deusa sabe, você não tentou lutar contra mim...
— Não — replicou ela, baixinho, mas ele ouviu o resto do pensamento que não tinha sido expresso, estava com medo... Ele a tinha possuído uma segunda vez e ela não tinha se debatido, nem tentado afastá-lo. Tinha ficado deitada, imóvel e passiva, permitindo que ele fizesse o que queria como se ela fosse uma boneca de trapo.
Ele a fitou com desdém:
— Nenhuma mulher jamais se queixou de mim... depois. Também chegará a sua vez, Carlina, é apenas uma questão de tempo. Por que não é sincera com relação aos seus sentimentos? Todas as mulheres são iguais. Em seu íntimo, vocês sonham com um homem que as possuirá, as dominará, e você, algum dia, parará de lutar e reconhecerá que também me desejava com ardor. Contudo, fui obrigado a fazê-la admitir isto para si mesma. Carlie, você era orgulhosa demais. Eu tinha que atravessar esta sua barreira de orgulho antes de você poder reconhecer que me desejava.
Ela se sentou na cama, procurando o manto negro de Avarra. Ele se afastou de seu alcance e atirou-o, zangado, ao chão.
— Nunca mais permita que eu a veja usando esta coisa infernal outra vez!
Ela deu de ombros, levantando-se com a sua camisola estraçalhada, tão empertigada e orgulhosa como se estivesse envergando um traje da corte. As lágrimas continuavam a rolar pelo seu rosto, contra a sua vontade, e ela as secou de um modo impaciente. Sua voz soava fraca e fria, apesar das muitas lágrimas derramadas.
— Acredita realmente nisto, Bard? Ou não será seu modo de se proteger para não reconhecer a atitude impiedosa que assumiu, que desculpa mais indigna e infeliz para o homem que realmente é?
— Não sou diferente de qualquer outro homem — retrucou Bard, procurando se defender —, e você, minha querida senhora, também não difere de qualquer outra mulher, a não ser com relação ao seu orgulho. Tive oportunidade de conhecer algumas mulheres que se mataram pelo simples fato de não quererem admitir para o homem que seus desejos não eram em nada diferentes dos desejos dos homens... contudo, pensava que você fosse mais sincera, que seria capaz de admitir para si mesma, agora que tornei as coisas incontornáveis, que tinha me desejado...
— Isto é uma mentira, Bard — retrucou ela bem baixinho. — Uma mentira. E se acredita nisto, é apenas porque não ousa saber o que é ou o que fez.
— Pelo menos, conheço as mulheres — replicou ele encolhendo os ombros. — Conheço muitas delas desde os meus catorze anos, por isto sei como são.
Ela sacudiu a cabeça:
— Jamais soube qualquer coisa a respeito de qualquer mulher, Bard. Você apenas ficou sabendo aquilo que desejava acreditar a respeito delas e isto está muito, muito, mas muito longe mesmo da verdade.
— E qual é a verdade? — a voz dele tinha um toque de desdém.
— Você me pergunta, porém não tem coragem de enfrentá-la, não é mesmo? Alguma vez chegou ao menos a pensar em descobrir a verdade... a verdade verdadeira, Bard, não as mentiras atenuantes que os homens imaginam para que possam conviver com o que são e com as coisas que fazem?
— Sugere que pergunte isto a uma mulher e ouça as mentiras que dizem? Vou lhe dizer uma coisa, todas elas... sim, e você também está incluída, senhora... o que desejam é serem dominadas, sentirem seu orgulho subjugado, para que assim possam admitir seus verdadeiros desejos...
Ela sorriu, ligeiramente apenas:
— Se de fato é nisto que acredita, Bard, então não hesitará em conhecer a verdadeira verdade, mente para mente, de modo que nenhum de nós dois possa mentir para o outro.
— Não sabia que era uma leronis, porém estou bastante seguro de mim mesmo, senhora, a tal ponto que se desejar ou tiver coragem suficiente para me revelar o mais profundo de sua mente, não temo o que verei.
Carlina pôs a mão na garganta, onde a pedra da estrela pendia enfiada dentro de um saquinho de couro pendurado numa tira também de couro. Disse:
— Que assim seja, Bard. E Avarra que tenha misericórdia de você; pois não terei mais piedade do que a que você me demonstrou na noite passada. Portanto, tome conhecimento do que sou... e daquilo que é.
Retirou a pedra de seu invólucro, e Bard experimentou um leve enjôo diante do azul, das estrias de luz que se espiralavam dentro dela.
— Veja — disse ela em voz baixa. — Veja em meu íntimo, se quiser.
Por um momento nada aconteceu, apenas a distância, o desconhecido, e então Bard se deu conta de que estava vendo a si mesmo, na memória, como Carlina o tinha visto quando ele chegou à corte para ser seu irmão de criação; um garoto desajeitado, grande, rude, que não sabia dançar, muito desenvolvido para a idade, tropeçando nos próprios pés... Naquele tempo, ela sentiu pena de mim? Nada além de pena? Não, ele viu a si mesmo através dos olhos dela, bonito, assustador, até um pouquinho encantador, o garotão que tinha ido apanhar seu gatinho no alto da árvore... e, de repente, quando ela se mostrava tão agradecida, ameaçou torcer o pescoço do bichinho, de modo que a gratidão dela foi avassalada por um terror súbito, se ele fosse capaz de fazer uma coisa destas com um gatinho, o que não faria comigo? Para Carlina, Bard sabia, ele tinha parecido imenso, apavorante, tão grande quanto o mundo, e quando ficaram noivos e ela tinha pensado em Bard, pela primeira vez, como um possível marido, ele sentiu, com ela, a pavorosa reação, braços descomunais que a esmagariam, mãos rudes tocando-a, o beijo que ele lhe tinha dado então na presença de todos, envergonhada e tremendo. E sua revolta contra ele quando tinha abraçado Lisarda, aos prantos, a moça sem nem mesmo saber o que Bard havia feito e por quê, apenas que tinha sido usada, desonrada, humilhada, que não tinha podido resistir a ele, mesmo através de seu ódio e revolta pelo que fora feito contra seu corpo e como ele a transformara numa cúmplice no seu próprio estupro...
E, depois, o festival, quando Bard a levara para a galeria, Carlina sabendo as intenções dele, querendo ela ou não, enfim, fazer com ela o mesmo que fizera com Lisarda; mas fora bem pior, porque sabia o que Bard desejava e por quê...
Bard não me deseja, tudo que almeja, no seu orgulho, é deitar com a filha do rei para que se torne o genro do rei; não tem qualquer identidade ou orgulho próprios, portanto, tem de ter a filha do rei como mulher; para lhe conferir legitimidade... E ele quer o meu corpo... da mesma forma como deseja o corpo de todas as mulheres que vê... Bard experimentou, junto com Carlina, seu mal-estar físico, a revolta contra a sua língua enfiando-se por sua boca adentro, as mãos dele afagando-a, o alívio estonteante quando Geremy o tinha interrompido. Através dos olhos dela viu-se a si mesmo enfiando aquele maldito punhal em Geremy e ouviu os gritos do amigo e a convulsão da agonia...
— Chega!... — implorou em voz alta, porém a fonte informadora deteve-o, sem piedade, arrastando-o até a vergonha experimentada por Carlina ao se lembrar de que houvera uma época em que sentira admiração por ele, até o momento em que experimentara os primeiros sinais de desejo com relação a ele... Era como se ele os tivesse extirpado com suas próprias mãos, a ponto dela nada sentir quando, de pé, observou-o ser exilado; e parecia que suas mãos sobre ela tinham arrasado com qualquer desejo para se casar com ele. Quando a mão de Geremy lhe tinha sido proposta, ela tinha escapado para a segurança da Ilha do Silêncio, e lá, a paz havia destruído todas aquelas recordações... ou quase isto. Bard pensou que fosse morrer de pavor quando experimentou com Carlina o terror de se ver sozinha, amarrada e amordaçada... desvalida, inteiramente desvalida... numa liteira, sendo levada pelas mãos não sabia de quem, rumo a um lugar que desconhecia qual fosse. Cada uma das emoções de Carlina embarafustava-se em seu íntimo de modo atroz, o medo de mãos estranhas, o pavor quando tinha visto o rosto de Bard, como ela pensara que fosse, espiando, cheio de ódio, para dentro da liteira — e sabendo que não devia esperar qualquer tipo de misericórdia por parte de seu orgulho e ambição. Viveu a luta convulsa quando, solta por um momento para fazer suas necessidades, tinha disparado numa carreira desenfreada como uma chervine, apenas para ser alcançada e presa, debatendo-se e arranhando (em meio a todo aquele terror a satisfação momentânea ao sentir que suas unhas tinham arranhado as faces de Paul a ponto de sair sangue), e sendo jogada de volta dentro da liteira. A humilhação de ficar deitada lá hora após hora, amarrada e amordaçada, a vergonha de estar deitada sobre um vestido empapado com sua própria urina. A compreensão, ao ser trazida e carregada para seus antigos aposentos, de que estava vencida, que não havia por onde escapar; ouvindo sua própria voz, envergonhada, porém por demais extenuada para agir de outra forma, dar a sua palavra apenas para que os laços que dilaceravam sua pele fossem afrouxados, para poder se alimentar, ser cuidada, banhar-se e receber roupas limpas. Depois disto, nunca mais poderei pensar em mim mesma como uma pessoa corajosa...
Quando Bard foi procurá-la, ela já se sentia meio derrotada. Bard sentiu com Carlina o terror desarticulado de suas orações desesperadas. Mãe Avarra, ajude-me, salve-me, proteja-me pois estou presa à senhora pelos votos que fiz, não deixe que isto aconteça... por que, por que deve isto acontecer, por que me abandona, fiz tudo aquilo que prometi, servi-a devotadamente como sua sacerdotisa... e a indescritível sensação de abandono quando se deu conta de que a deusa não iria ajudá-la, que ninguém a podia auxiliar, que estava a sós com Bard e ele era muito mais forte do que ela...
Terror mortal e humilhação tremenda, enquanto jazia deitada com as roupas destruídas, lívida, sofrimento atroz, porém pior que o sofrimento, a revolta de saber que nada mais era além de algo a ser usado. O desmantelamento de seu corpo nas suas partes mais profundas e secretas, e uma sensação de inutilidade, uma vergonhosa aversão por si mesma ao ver que se deixava usar daquela maneira, ódio e horror por não o ter forçado a matá-la primeiro, por não ter lutado até morrer... nada, nada do que ele poderia ter feito seria pior do que isto... e enquanto seu sêmen esguichava dentro dela, o medo e a certeza de sua própria vulnerabilidade, que nada mais seria além de um ventre para os filhos dele, dele... um parasita horrível, detestável, que podia se desenvolver dentro dela e apoderar-se de seu corpo imaculado... mas ela tinha permitido que ele fizesse isto, podia ter lutado mais, não merecia mesmo nada melhor...
Bard ignorava que se achava no chão, contorcendo-se, que gritava alto, na obscuridade desta violação, como Carlina não tinha berrado, sentindo seus dentes morderem seu lábio, uma coisa usual, contundente, abusiva. O mundo era escuridão e seus próprios soluços quando sentiu com Carlina o horror de ser novamente possuída, usada mais uma vez, que ele tinha ousado sentir prazer neste horror... tranqüilidade e autodesprezo, já que ela só merecia isto e nada mais...
Contudo, isso não foi tudo. Seja lá como for, o fluxo do laran tinha sido despertado, e ele sentiu outras lembranças, outras percepções avolumaram-se em seu íntimo. Viu a si mesmo através dos olhos de Lisarda, nua, monstruosa, atordoada, enfrentando o sofrimento e a violação... viu a si mesmo através dos olhos de Melisendra, compulsão abominável e um prazer que gerava um desprezo contra si mesmo, o terror de ser humilhada e perder o poder da Visão, o terror sentido por ela do castigo e da língua ferina de Lady Jerana, e o pior, a piedade de Melora...
Encontrava-se, outra vez, de pé na praia do Lago do Silêncio e uma sacerdotisa envergando um manto escuro amaldiçoava-o, e, em seguida, os semblantes de todos aqueles que tinha matado e despojado penetravam em seu íntimo e atormentavam sua alma, e ele se contorcia e uivava sob aquela capacidade de compreensão e conhecimento tão profunda que nada mais restava; viu a si mesmo como uma coisinha vergonhosa e doentia... que desculpa infeliz para um homem que você realmente é... e sabia que aquilo era a verdade. Ele olhara para o mais íntimo de sua alma e a tinha achado deficiente; e de todo o coração almejou a morte à medida que aquilo continuava... e não cessava... não cessava...
Finalmente, tudo terminou, e ele ficou deitado ensimesmado, sobre o chão do aposento. Em algum lugar, milhões de quilômetros dali, mais distante do que as luas, a vingativa Avarra criou uma matriz que não podia ser vista, e o mundo mergulhou numa escuridão compassiva.
Horas mais tarde, o mundo começou a clarear. Bard remexeu-se escutando uma única voz através do tormento do ódio, da acusação e do desprezo para consigo mesmo, que era tudo que conseguia ouvir.
Bard, acho que você é dois homens... e aquele outro jamais deixarei de amar...
Melora, que o tinha amado e soubera lhe dar o devido valor. Melora, a única mulher em cujos olhos ele nunca tinha se autodestruído.
Mesmo meu irmão, mesmo Alaric, se ele soubesse o que fiz, haveria de me odiar. Mas Melora sabe, conhece o que de pior existe em mim e não me odeia. Melora, Melora...
Como um homem atordoado, vestiu-se, olhando para o lugar onde Carlina se encontrava deitada, largada, sob uma profunda exaustão, sobre a cama. Ela tinha se esgotado a tal ponto, que nem mesmo puxara o manto negro sobre o corpo; ainda usava a camisola destruída, manchada de sangue e os olhos estavam vermelhos e fundos devido ao pranto.
Olhou para ela com um medo e um pavor terríveis, e pensou: Carlie, Carlie, jamais quis machucá-la, o que foi que eu fiz? Andando nas pontas dos pés por recear que ela pudesse despertar e fitá-lo com aqueles seus olhos terríveis, saiu para o corredor. Melora! Apenas um pensamento dominava a sua mente, ir procurar Melora, que era a única pessoa capaz de curar suas feridas... Contudo, antes de mais nada, Bard era um soldado, e apesar de só ter vontade de descer correndo as escadas e montar a cavalo, forçou-se a tomar o caminho alternativo, ao longo do corredor rumo aos seus próprios aposentos.
Quando Bard entrou ali, Paul ergueu os olhos consternado. Pensou em dizer: santo Deus, rapaz, pensei que tinha passado a noite com sua mulher e você parece ter andado perseguindo demônios num dos infernos... porém conteve-se ao constatar a expressão do olhar de Bard. O que tinha acontecido com ele? Notou o olhar de Bard sobre Melisendra, que vestia um robe verde, os cabelos presos no alto da cabeça, displicentemente, acabando de sair de um banho refrescante e, depois, afastou os olhos, atormentado.
— Bard — disse ela naquela sua voz doce e melodiosa —, o que lhe aconteceu, meu caro? Está doente?
Ele sacudiu a cabeça:
— Não tenho nenhum direito... nenhum direito de perguntar... — e Paul ficou assombrado e chocado com a rouquidão de sua voz. — Contudo... em nome de Avarra... você é uma mulher. Suplico-lhe para ir ao encontro de Carlina; não seria capaz... de deixar que fosse ainda mais humilhada pelas... quando as suas camareiras a vissem naquelas condições. Eu... — a voz dele partiu-se. — Eu a destruí. E ela me destruiu — levantou a mão impedindo-a de formular as perguntas que já estavam na ponta da língua, e Melisendra percebeu que o homem encontrava-se no fim de suas forças. Bard virou-se para Paul, concentrando o que ainda lhe restava de seus antigos modos:
— Até que volte... até que eu volte, você será o Lorde General do exército das Astúrias. Isto aconteceu mais cedo do que esperávamos.
Paul abriu a boca para protestar, porém antes que pudesse falar, Bard tinha abandonado o quarto.
A medida que o som de seus passos foi desaparecendo, Paul virou-se para Melisendra, atônito e consternado:
— Que diabos aconteceu com ele? Ele parece a ira de deus!
— Não — disse Melisendra gentilmente —, da deusa. Acho que ele se viu frente a frente com a ira de Avarra, e que ela não foi nada delicada para com ele — afastou a mão de Paul. — Tenho que ir para o lado de Lady Carlina; ele me pediu isto em nome da deusa, e um pedido destes nenhuma mulher e sacerdotisa pode se recusar a atender, nunca.
Durante todo o longo trajeto rumo a Neskaya, Bard, montado no seu cavalo que galopava, viajando sozinho, praticamente não conseguia se sentar na sela. Sentia-se doente e esgotado, o sofrimento e o desespero golpeando-o junto com os solavancos devido à irregularidade da estrada; ele não tinha certeza se era dele mesmo ou de Carlina a agonizante percepção da humilhação, o padecimento de um corpo violentado e uma vergonha que penetrava até o mais fundo de sua alma. Sentiu o sofrimento dela, seu autodesprezo e ficou assombrado com aquilo... Por que ela devia detestar a si mesma por uma coisa que lhe fiz? Contudo, sabia que ela se culpava por não o ter forçado a matá-la antes. Tocando-o ainda mais fundo estava a lembrança da voz delicada de Melisendra quando perguntara Bard, o que lhe aconteceu, meu caro? Está doente? Como era possível ela se revelar tão clemente quando ele lhe fizera a mesma coisa que tinha feito com Carlina? E, ainda assim, aquilo fora uma reação sincera, realmente tinha se preocupado e se importado com ele; seria apenas por ser ele o pai do filho dela? Ou será que ela possuía alguma fonte de consolação que lhe era desconhecida? Quando tive necessidade do consolo da deusa, eu era mais moça e mais ignorante do que poderia imaginar, dissera-lhe ela certa vez. Ela havia sobrevivido ao seu sofrimento, ou no mínimo saíra incólume dele, mas com Carlina tudo era ainda muito recente e violento, a lembrança do momento em que ela tinha gritado pela deusa e se dado conta de que a sua deusa não podia ou não haveria de intervir em seu favor para salvá-la. Contudo, a deusa atingira-o através de Carlina e a vingara... a ela e todas as outras mulheres que tinha tratado mal. Mas por que Carlina teve que sofrer para que a deusa o atingisse?
Será que estou ficando louco?
Cavalgou o dia inteiro, e quando anoiteceu, continuou a viagem ao luar, pois ainda não avistava a torre de Neskaya. Não fizera nenhuma parada para descansar ou comer, ou para qualquer outra coisa, a não ser alguns rápidos minutos para dar descanso à sua montaria. Então, recordando-se de nada ter comido ou bebido durante todo o dia, e que também tinha dormido pouquíssimo, desmontou por um momento e deu um pouco de trigo ao cavalo. Seu manto pesado protegia-o muito bem do sereno noturno, porém à medida que observava o céu, este começou a clarear e a face verde de Idriel despontou, timidamente, através de faixas irregulares de nuvens.
Ela está me espreitando. E o rosto da deusa observando-me.
Sim. Não há dúvida, não tenho dúvida alguma, ela está ficando louca. Não, quem está ficando maluco sou eu. Contudo, uma débil voz sob seu desespero dizia-lhe que não estava ficando louco, que não havia uma escapatória tão complacente assim para a dor do autoconhecimento.
Você que não tenha a ousadia de enlouquecer. Precisa se recompor, seja lá como for, para que assim tenha condições de reparar o mal que já causou a tanta gente... embora nada, nada possa recuperar o que fez...
Como tive tanto laran para ver tudo aquilo? Melisendra. Ela é uma telepata catalisadora. Por que Melisendra jamais me fez ver tudo aquilo que Carlina me mostrou? Ela tinha poder para fazê-lo. Terá sido por sentir pena de mim que não agiu? E por que haveria de sentir pena de mim depois daquilo que lhe fiz?
Melora. Melora. Se ele tivesse tido um pouquinho só de sensibilidade, haveria percebido... mil detalhes lhe teriam revelado... que Carlina não o tinha desejado para marido e que ele não a queria para mulher. Desejara se casar com a filha do rei para que pudesse assegurar sua posição na qualidade de genro do rei. Mas por que havia tido tão pouca autoconfiança e orgulho? Sempre pensei que, no mínimo, era orgulhoso demais; contudo, tudo que fiz foi por achar que nada que realizava era suficientemente bom.
Mas ele era o sobrinho nedestro do rei; o Rei Ardrin era irmão de seu pai, e a ilegitimidade jamais pesou tanto assim quando comparada à habilidade na guerra e na estratégia. Poderia ter feito uma boa carreira e conquistado honraria e posição como o paladino do rei e seu porta-estandarte... mas não tinha acreditado nele mesmo o suficiente para ter certeza disto, tivera que forçar a posse de Carlina.
E se o Rei Ardrin houvesse realmente se entregado àquilo, ele e Carlina teriam tido um casamento formal em nada pior do que o da maioria dos casais da corte. Contudo, após aquela bem-sucedida campanha com o clingfire, ele deveria demonstrar suficiente confiança para saber que o rei lhe daria o devido valor, mesmo sem aquele casamento. Deveria ter desistido de Carlina e pedido autorização a Mestre Gareth para cortejar Melora. Isto se ela tivesse me desejado; acho que eu sabia não ser suficientemente bom para ela.
Melora era a única pessoa que o havia amado alguma vez. Sua mãe entregara-o ao pai para ser educado por ele, pelo que lhe constava, sem a mínima hesitação. Seu pai o amara, ou tinha visto Bard apenas como um instrumento para satisfazer suas ambições pessoais? Seu irmãozinho Alaric tinha-o amado... porém ele jamais me conheceu realmente, e se tal tivesse acontecido, não me teria dedicado o seu amor... mas sim me odiado, considerado-me com desprezo. Nunca encontrara uma mulher que o amasse. Atiro a compulsão sobre elas para virem compartilhar da minha cama porque eu percebia que nenhuma delas haveria de me desejar, por sua livre vontade.
Seus irmãos de criação o tinham amado... e aleijara um deles por toda a vida, transformara o outro num inimigo e depois o matara...
E por que Beltran se tornou meu inimigo? Porque escarneci dele... e zombei dele porque expôs para mim os meus medos a respeito de minha virilidade. Porque ele não se envergonhava de admitir sua fraqueza, ou seu desejo, de se certificar do velho juramento que tínhamos feito quando éramos garotos... mas eu estava com medo que ele viesse a descobrir que eu era menos másculo do que ele mesmo!
E quando chegar em Neskaya, Melora, sem dúvida, irá me revelar o quanto fui tolo em pensar que ela poderia cuidar de mim... mas, talvez, ela sentirá pena de mim. Ela é uma leronis e talvez saiba o que devo fazer para conseguir reorganizar minha vida. Não acho que o que fiz possa ser apagado, porém devo tentar. Talvez possa acalmar a deusa...
É tarde demais?
Seu cavalo agora estava muito cansado e deslocava-se com lentidão, mas Bard também se mostrava extenuado, sentia um esgotamento ímpar, e puxou seu manto, envolvendo-se nele de um modo que o fez recordar insuportavelmente, através da sua crua percepção, a maneira como Carlina se encolhera sob seu manto negro. E ele havia arrancado de cima dela até mesmo esta ínfima proteção... Bard percebeu que não tinha condições de conviver com aquela compreensão... que morreria se aquilo se prolongasse durante muito tempo, e ainda assim sabia, num nível mais profundo, que na verdade jamais terminaria. Não importa que reparações ele fizesse, viveria assim até o fim de seus dias, consciente do mal que tinha feito aos outros. Viveria para sempre sabendo o que tinha feito contra aqueles que amava.
Amava. Pois, a seu modo selvagem, havia amado Carlina. Seu amor era egoísta e torpe, mas fora um verdadeiro amor, também, amor pela garotinha tímida que tinha sido sua companheira de folguedos. E amara Geremy e Beltran também, e eles haviam escapado inteiramente de seu alcance, e o pior castigo para a sua perda era saber que fora ele mesmo quem os distanciara de si. Geremy rumo à alienação, Beltran rumo à morte. Amava Erlend, e sabia que jamais mereceria o amor do filho ou a sua consideração. Mas, se apesar de tudo, ainda tivesse o amor dele, seja lá como for (pois as crianças amam sem qualquer justificativa), sempre haveria de saber que o tinha devido apenas à bondade de Erlend e não devido à sua, que se o garoto conhecesse seu íntimo, também passaria a odiá-lo, assim como Alaric o odiaria, como seu pai haveria de odiá-lo... como Melora, que era tão boa e sincera, haveria certamente de odiá-lo quando soubesse. E ele deveria lhe contar tudo.
E, então, ele tomou conhecimento do sofrimento que ela experimentaria ao ser notificada sobre aquilo, e ficou imaginando como seria possível jogar este peso sobre Melora, como poderia tentar aliviar possivelmente seu próprio coração às custas de colocar sobre o dela o seu padecimento. Ficou pensando se não seria melhor acabar logo com a própria vida, para que nunca mais tivesse condição de magoar qualquer outra pessoa. E então se deu conta de que aquilo, também, haveria de gerar sofrimento a outras pessoas. Aumentaria o sentimento de culpa de Carlina, já sobrecarregada pela vergonha e humilhação, sem qualquer possibilidade de recuperação. Magoaria Erlend, que o amava e que dele precisava, e também haveria de causar sofrimento a Alaric, em cujas frágeis mãos encontrava-se o reino... mas apenas com a ajuda forte e poderosa de Bard. E além de todos estes, faria Melora sofrer; assim, conscientizou-se de que não poderia fazê-lo. Penetrou no pátio de Neskaya e indagou do guarda sonolento que ali se achava se seria possível falar com a leronis Melora MacAran.
O homem ergueu um pouco os olhos, mas, aparentemente, na torre de Neskaya a chegada de um cavaleiro solitário à noite não representava um acontecimento tão estranho assim. O homem mandou alguém avisar a Melora que a estavam procurando, e nesse ínterim, percebendo a exaustão de Bard, conduziu-o até o interior do andar térreo e ofereceu-lhe alguns biscoitos e vinho. Bard comeu os biscoitos vorazmente, contudo não tocou no vinho, pois sabia que se bebesse apenas meio copo da bebida, no estado de exaustão e esfomeado como se achava, ficaria logo embriagado. Por mais que soubesse que o esquecimento provocado pela bebedeira seria quase uma bênção para ele, também sabia que agora não havia uma escapatória para ele tão fácil assim.
Escutou a voz de Melora antes de vê-la.
— Mas não faço a menor idéia de quem poderia vir até aqui para me ver nessa hora esquecida até pelos deuses, Lorill.
E então Melora apareceu à porta. Logo à primeira vista, pôde perceber que ela estava mais pesada de corpo e com o rosto mais redondo do que nunca, de pé, à luz de um candeeiro que carregava; contudo, percebeu o brilho de seus cabelos ruivos através do modesto véu que havia atirado sobre a cabeça. Estava mais do que claro que ela tinha sido chamada justamente quando se preparava para se deitar e estava usando um robe claro e largo, através do qual, ligeiramente marcados, ele podia ver os contornos de seu corpo.
— Bard?! — exclamou ela, fitando-o indagativa e surpresa, e então, com aquela nova e terrível percepção que o fazia captar as emoções dos outros, ele sentiu o choque que a dominou ao deparar, no seu rosto desfigurado, com as rugas da exaustão. — Bard, meu caro, o que foi? Não, Lorill, tudo bem, pode deixar que o levarei para a minha sala de estar. Não consegue andar, Bard? Venha, então... entre, saia do frio!
Ele a seguiu, a contragosto, incapaz de fazer qualquer coisa, a não ser obedecer como uma criança, lembrando-se de que Melisendra também tinha dito "meu caro" quando vira o rosto dele. Como elas conseguiam tratá-lo assim? Ela abriu a porta de um cômodo cuja lareira o mantinha aquecido, e diante daquela sensação percebeu que estava meio congelado.
— Sente-se aqui, Bard, junto à lareira. Lorill, coloque mais algumas achas de lenha na lareira e depois pode retornar ao seu posto... não seja tolo, rapaz, não sou nenhuma leronis solteira que precise ser protegida e vigiada e conheço Bard desde que participou de sua primeira campanha! Ele não me fará nenhum mal!
Portanto, ainda havia uma pessoa viva que confiava nele. Não era muito, mas já era um começo, uma semente de calor crescente que iluminava o gélido vazio que havia em seu íntimo, como o fogo tinha aquecido seu corpo enregelado e exausto. Lorill havia se retirado. Melora armou uma mesinha frágil e colocou-a entre eles.
— Ia começar a comer alguma coisa antes de subir para as transmissões. Junte-se a mim, Bard, há sempre mais do que o suficiente para dois.
Havia uma cesta de pão de nozes muito cheiroso e ainda quente, fatiado em pedaços ligeiramente crocantes, queijo pastoso condimentado com ervas, saboroso e picante, e um vaso de barro com sopa quente. Melora virou a metade do conteúdo numa caneca e empurrou para ele, pegando o vaso de barro e bebendo sua porção diretamente dali. Ele sorveu o líquido, sentindo a sopa quente, e a confiança demonstrada por Melora devolveu-lhe vida. Ela terminou de tomar a sopa, colocou o vaso de barro na mesa, espalhando o queijo no pão, que estalava de tão torrado, que só com a ajuda dos dedos ela o mantinha junto; ainda assim, as migalhas caíam sobre seu colo, e ela as juntou e atirou na lareira.
— Quer tomar mais sopa? Posso mandar buscar mais. Há sempre sopa na cozinha em cima da lareira... tem certeza? Coma esta última fatia de pão, se tiver vontade, sinto-me empanzinada, e você cavalgou por muito tempo sob o frio. Está começando a se parecer menos com uma isca de banshee! Muito bem, Bard, o que aconteceu? Converse comigo a respeito, por que não faz isto?
— Melora! — Bard atravessou o cômodo com pressa para se ajoelhar aos pés dela. Melora suspirou e baixou o olhar na direção dele. Ele sabia que ela esperava, e de repente toda a enormidade daquilo que estava fazendo atingiu-o. Como seria possível ele aliviar a imensa agonia de sua nova carga de conhecimento atirando-a sobre os ombros de Melora? Falou, e escutou sua voz, rouca e incerta como a de um adolescente ao começar a modificar a voz: — Nunca deveria ter vindo até aqui, Melora. Sinto muito... Eu... irei embora agora. Não posso...
— Não pode o quê? Não seja bobo, Bard — disse ela, e estendeu aquelas mãos gorduchas, mas curiosamente graciosas, para levantar o rosto dele. E ao tocar nas têmporas dele, inesperadamente Bard tomou conhecimento de que ela podia ler tudo, que sabia de tudo, numa descomunal avalancha de percepção. A violência de seu novo sofrimento comunicou-se por si mesma a Melora, sem palavras, e ela ficou a par do que ele tinha feito, como aquilo lhe parecia agora, e o que havia acontecido.
— Misericordiosa Avarra! — sussurrou horrorizada; em seguida, falou baixinho: — Não... ela não foi clemente para com você, foi, meu pobre companheiro? Mas você ainda não foi merecedor de sua clemência, não é? Oh, Bard! — e puxou-o para junto de seu peito.
Bard ajoelhou-se ali como se ela fosse, por aquele momento, a mãe que jamais conhecera e percebeu que se achava prestes a chorar. Não chorava desde a morte de Beltran, mas sabia que haveria de chorar num outro momento e, por isto, lutou para se erguer, controlando-se contra possíveis sinais de fraqueza.
— Oh, meu querido — murmurou Melora num sussurro —, como foi que as coisas chegaram a este ponto? Culpo a mim mesma, Bard... deveria ter percebido o quanto você necessitava de amor e confiança, deveria ter descoberto algum meio de me aproximar de você. No entanto, orgulhava-me tanto de mim mesma por saber obedecer aos regulamentos, como se eles não pudessem ser postos de lado segundo as necessidades humanas, e no meu orgulho coloquei tudo isto em andamento! Todos nós convivemos com o erro que cometemos... esta é a parte terrível. Podemos olhar para trás e ver o momento exato onde tudo saiu errado e isto é todo o castigo de que necessitamos, me parece; viver com aquilo que fazemos e sabermos como o fizemos. Eu devia ter encontrado uma maneira.
Inesperadamente recordou-se de Mirella, naquela noite no acampamento, quando Melora o tinha mandado embora, recordando-o orgulhosamente do que era conveniente, tudo lhe voltou à memória; Mirella, à porta da tenda, sussurrando: "Ela chorou até adormecer de cansaço..." Melora o tinha desejado com o mesmo ardor que ele. Se Bard ao menos tivesse tomado conhecimento disto! Se ao menos tivesse tido certeza disto, talvez pudesse ter sido mais delicado para com Beltran... porém, como era possível Melora culpar a si mesma pelos pecados e erros que eram dele? Ela o fez, e ele nunca haveria de poder aliviá-la disto, e, portanto, também a havia magoado de uma forma terrível.
— Não há remédio para isto? Não há jeito para nada disto? Não consigo viver assim, com esta... esta carga de conhecimentos, não posso...
Ainda tocando o rosto dele com muita delicadeza, ela disse com uma gentileza infinda:
— Mas tem que viver, meu querido, como eu devo, como Carlina tem que viver, como todos devemos. A única diferença é que alguns nunca sabem por que sofrem tanto assim. Diga-me, Bard, você preferiria que isto não tivesse acontecido? Deseja realmente isto?
— Querer não ter feito tudo quanto fiz? Está maluca? Claro... esta é a coisa infernal, jamais poder desfazer nada do que fiz...
— Não, Bard, estou querendo saber se você gostaria de fato que Carlina jamais lhe tivesse feito ver tudo isto, se ainda desejava continuar sendo o homem que era há alguns dias?
Ele começou a bradar:
— Sim, sim, não suporto saber, desta forma, quero retornar à ignorância. — Carlina tinha lançado esta carga em cima dele com laran, talvez com um laran fosse possível encontrar uma fórmula de livrá-lo deste conhecimento monstruoso. E então, ele se deu conta, a cabeça abaixada, sob o impacto de um novo tipo de sofrimento, de que não era verdade. Para ele, voltar à ignorância seria arriscado, pois poderia voltar a fazer tudo que já havia feito, tornando-se outra vez o tipo de homem capaz de cometer todas aquelas atrocidades; capaz de ferir um irmão, estuprar e atormentar as mulheres que se preocupavam por ele... falou com a cabeça ainda baixa:
— Não.
Isto porque, ainda que não soubesse de nada àquele respeito, todo o sofrimento de Carlina e todo o padecimento de Melisendra e a beleza de seu perdão continuariam existindo, mas ele não teria consciência de nenhum deles. Já não conseguia mais imaginar como poderia ser aquilo, ou seja, não saber; ele seria igual a um homem cego num jardim repleto de flores desabrochando, que passava por elas sem se importar.
— Prefiro saber. É doloroso, mas... oh, prefiro saber!
— Ótimo — disse Melora num sussurro — Este é o primeiro passo... para saber e não bloquear o conhecimento, afastá-lo.
— Desejo... desejo, alguma forma, para... para tentar algumas reparações... pois o que posso...
Melora anuiu com um movimento de cabeça:
— Você o fará. Não pode deixar de fazê-lo. Contudo, haverá muitas coisas que você não poderá compensar e mesmo quando isto o torturar, terá que aprender a... a continuar, seja lá como for, carregando e suportando o seu peso. Sabendo que não pode desfazer nada do que fez — olhou para ele intensamente. — Por exemplo, acha que devia ter deixado Carlina sozinha com isto?
Ele lhe respondeu sem ter ainda condições de fitá-la:
— Ao que me parece, eu devia ser a única pessoa que ela não haveria de querer ver.
— Não esteja tão certo disto; vocês compartilharam alguma coisa, afinal de contas, e algum dia você terá que a enfrentar novamente.
— Eu... eu sei. Mas depois... depois daquilo eu não podia ficar lá... fazendo-a relembrar... eu não suportaria. Eu... eu pedi a Melisendra que lhe fosse fazer companhia. Ela é... ela é boa. Não entendo como o possa ser, depois de tudo por que passou, tudo que fiz contra ela, mas ela é.
— Porque ela enxerga o íntimo das pessoas. Da mesma maneira que acontece agora com você. Ela sabe o que são e o que as atormenta.
— Você também faz o mesmo — afirmou ele, após um instante. — O que é isto? Isto é apenas... ter laran?
— Não exatamente. No entanto, é o primeiro estágio no nosso aprendizado. E foi por isto que Carlina, na realidade, o apresentou bom para o mal. Ela lhe deu o dom do laran, que foi a primeira coisa que ela própria recebeu.
— Que presente! — exclamou Bard com amargura.
— O dom de ver a nós mesmos, É um dom, e tomará consciência disto com o passar do tempo. Bard, já é tarde e tenho que ir para as retransmissões... não, não o deixarei assim. Deixe-me mandar um recado para Dom Varzil... ele é o nosso tenerézu, nosso protetor... e ele poderá mandar alguém para me substituir por lá; sua necessidade é maior, neste presente momento.
Bard recordou-se que tinha visto Varzil de Neskaya... teria sido no casamento de Geremy? Não conseguia se lembrar; o tempo estava se engavetando numa passagem enevoada e constante. Ele não sabia quando, ou como, ou por que tinha feito alguma coisa, havia apenas a imensa convicção de um passado cheio de culpas e sentia horror dele mesmo, um horror tão profundo, que achava que nunca mais poderia erguer a cabeça. Qualquer coisa que fizesse, qualquer coisa, ia gerar uma interminável catástrofe. Como poderia viver dessa maneira? Contudo, se morresse, a catástrofe também estaria criada, logo, ele não podia reparar coisa alguma caso se afastasse da oportunidade de causar mais danos...
Melora tocou na mão dele:
— Basta! — exclamou resoluta. — Agora está começando a se deixar levar pela autopiedade, e isto só tornará as coisas piores. O que está experimentando neste momento nada mais é do que o resultado da exaustão. Nada mais do que isto! Vou lhe revelar algo... — e a voz dela ficou mais suave... — quando estiver descansado, e se achar em condição de absorver o que lhe aconteceu, terá condições de prosseguir. Não poderá se esquecer de nada, mas saberá separar as coisas, deixá-las para trás, e viver com aquilo que pode reparar. Está precisando agora é de descansar e dormir. Ficarei ao seu lado.
Levantou-se, segurou a mesinha e substituiu-a por um banquinho largo, baixo e pesado, muito bem estofado, diante da cadeira.
— Devia ter feito isto para você...
— Por quê? Não estou extenuada ou aleijada. Vamos, coloque os pés para cima... é, assim mesmo. Deixe-me tirar as suas botas. E tire seu cinturão da espada, não precisará dela. Não aqui. — Abriu uma cortina que dava acesso a uma alcova na extremidade oposta do cômodo. Ele percebeu que era ali que ela dormia. Melora trouxe-lhe um travesseiro de sua cama. — A cadeira é muito confortável. Já dormi nela durante várias noites, quando alguém estava doente e sabia que seria chamada a qualquer momento. Se tiver necessidade de sair durante a noite — acrescentou em seguida —, o lugar que estará procurando encontra-se logo no final deste corredor, embaixo da escada, e sua porta está pintada de vermelho. É para os guardas; seria um escândalo caso o deixasse usar o banheiro da minha suíte, de vez que não é um dos nossos. — Cobriu-o com uma manta tricotada. — Durma bem, Bard.
Melora passou por ele e apagou o lampião. Ele escutou a cama dela ranger quando se deitou. Que coisa estranha, como ela era leve no caminhar para uma mulher grande; não conseguia ouvir de forma alguma os passos dela. Bard tocou na textura felpuda da manta sob seu queixo. Seja lá como for, aquilo o fez sentir-se como se fosse pequeno e jovem; teve uma estranha e rápida visão de sua mãe de criação envolvendo-o com uma manta assim depois de alguma moléstia infantil. Estranho. Sempre tinha pensado em Lady Jerana detestando-o e tratando-o com crueldade; por que havia se esquecido dos momentos em que ela tinha sido boa para ele? Será que desejara acreditar que ela o odiava e só lhe queria o mal? Não devia ser nada fácil para uma mulher sem filho criar aquele que seu marido amava, uma criança forte e sadia, gerada por outra mulher.
A medida que caía numa madorna, percebeu a respiração de Melora; aquele som era estranhamente tranqüilizador, pois ela havia permitido que ele... um homem que jamais tratara uma mulher a não ser com crueldade... dormisse em seu quarto, Ele não tinha nenhuma má intenção com relação a ela... de repente, ficou imaginando se algum dia ainda seria capaz de desejar uma mulher, sem esta terrível percepção de todo o mal que podia fazer. Carlina conseguira sua vingança, pensou, e então, através de um lampejo íntimo e perverso, ficou imaginando se, como sua mãe tinha aberto mão dele, ele não teria pensado jamais ter sido amado porque achava, sem o saber, que nem mesmo ela o tinha julgado digno de amor. Ele não sabia; estava começando a achar que nada conhecia a respeito do amor. Mas sabia que a confiança demonstrada por Melora representava, de alguma forma, o primeiro passo dado para a sua própria recuperação. Adormeceu, agarrado ao travesseiro que tinha um perfume suave de alguma essência fresca usada por Melora.
Quando Bard despertou, a neve caía suave, uma das primeiras nevadas do ano nas colinas de Kilghard, e os flocos silenciosos, que se desfaziam ao cair, deslizavam dos outros lados das janelas. Melora mandou-o ir pedir emprestado a um dos guardas uma navalha e uma camisa limpa e disse-lhe para ir tomar o café da manhã na sala do rancho.
— Desta forma — comentou ela, sorrindo alegremente para ele —, saberão que não estou recebendo um amante de fora da torre, atitude imprópria durante meu tempo de serviço aqui. Não estou preocupada em excesso com a minha reputação, mas não é bom... causar um escândalo na torre deste jeito. Dom Varzil já tem muitas coisas com que se preocupar, sem precisar de mais esta.
Bard sentiu seu orgulho ligeiramente ferido ao se dirigir para o salão do rancho a fim de comer pão de nozes fresco e quente e peixe salgado frito em bolinhos, junto com os guardas; o Lorde General das Astúrias, reunindo-se para comer no rancho dos guardas? Mas aquele não era seu país, provavelmente não seria reconhecido, e se fosse, ora, ninguém tinha nada a ver com isto; evidentemente, até mesmo um general podia vir até aqui para consultar uma leronis sobre algum assunto particular, não é verdade? Sentiu-se melhor assim, bem barbeado e com roupas limpas. Após o café da manhã, uma criança, de cabelos ruivos, vestida de azul e prateado, com o semblante característico dos membros da família Hastur, trouxe-lhe um recado informando-o que Lorde Varzil de Neskaya desejava vê-lo.
Varzil de Neskaya. Um inimigo, um Ridenow de Serrais; mas Alaric gostara dele, e ele, pessoalmente, tivera uma impressão favorável quando o homem fora trocar Alaric por Geremy. Mesmo quando julgava Dom Varzil um aliado do Rei Carolin de Thendara, ele se mostrara impressionado.
Não pode ser fácil jurar neutralidade num mundo devastado pela guerra! Quando todas as terras estão em chamas ao seu redor, sem dúvida alguma é bem mais fácil se juntar a um lado ou a outro!
Bard conseguira se lembrar de Dom Varzil como um jovem, no entanto, o homem que se encontrava diante dele, no diminuto estúdio revestido de pedra, envergando um simples robe e sandálias ao invés do manto de trabalho exigido pelo cerimonial, parecia um ancião; havia rugas profundas no rosto descarnado, jovem como era, e os luminosos cabelos ruivos já começavam a encanecer. Dom Varzil, afinal, não podia ser tão jovem assim; tinha reconstruído Neskaya do ataque com bombas incendiárias, e isto acontecera antes do nascimento de Bard, se bem que tivesse ouvido falar que naquela ocasião Dom Varzil era muito jovem.
— Bem-vindo, Bard mac Fianna. Falarei com você agora mesmo... porém, antes, devo determinar algumas coisas. Sente-se aqui — disse e continuou falando com o jovem vestido com as cores dos Hasturs, que se achava diante dele. De início isto provocou tensão em Bard... não tanto pela propalada neutralidade de Dom Varzil e da torre... porém, após ter ouvido algumas palavras, ficou menos tenso.
— Sim, avise ao pessoal de Hali que mandaremos curandeiros e leroni para tratarem dos casos mais sérios de queimaduras, porém precisam entender que os ferimentos físicos, que podem ser vistos, não são tudo o que aconteceu. As mulheres grávidas devem ser monitoradas; a maioria delas abortará e estas serão as mais afortunadas, de vez que aquelas que conceberam filhos à época da calamidade, no mínimo a metade deles nascerá desfigurada ou deformada; estas crianças também deverão ser monitoradas a partir do nascimento. As mulheres em idade de conceber devem ser retiradas daquela região o mais rápido possível, ou correrão os mesmos riscos, caso concebam filhos antes que a terra esteja recuperada, e isto deverá levar muitos anos.
— As pessoas não vão querer abandonar suas propriedades ou suas fazendas — avisou o homem Hastur —, e o que haveremos de lhes dizer?
— A verdade — disse Dom Varzil, suspirando —, que a terra está contaminada além de qualquer recuperação e assim continuará por vários anos; ninguém pode viver lá, nem vencidos nem vencedores. Apenas uma coisa boa resultou de tudo isto.
— Uma coisa boa? E o que é, vai laranzu?
— A torre Dalereuth decidiu aderir à nossa neutralidade — respondeu Dom Vazil. — Juraram não produzir mais nenhuma arma com laran, seja qual for o motivo; e seu senhor, Marzan de Valeron, prestou juramento ao pacto, e também a Rainha Dama de Isoldir. E Valeron e Isoldir prometeram solenemente fidelidade aos Hasturs.
Bard cerrou os dentes ao tomar conhecimento disto. Será que toda esta terra ficaria, algum dia, sob o domínio de Hastur? E, no entanto... se os Hasturs tinham jurado não mais guerrearem, a não ser sob o pacto, não haveria mais atrocidades como aquela cometida contra Hali. Ele tinha sido um soldado durante toda a sua vida e não experimentava nenhum sentimento de culpa com relação aos homens que tinha abatido, frente a frente, com a espada; eles haviam tido uma oportunidade igual para matá-lo. Contudo, com relação aos homens mortos por encantos e bruxarias, pelas mulheres e crianças mortas nos bombardeios incendiários, julgava que nada poderia justificar, nunca. Também achava que seus exércitos podiam enfrentar e conquistar as legiões de Hastur com quaisquer armas que elas escolhessem; por que teriam necessidade de feiticeiras também?
Quando Dom Varzil acabou de atender ao enviado de Hastur, falou:
— Vá avisar a Domna Mirella que gostaria de falar com ela.
Bard escutou aquele nome sem se surpreender, afinal, não se tratava de um nome tão fora do comum... porém, quando a jovem entrou na sala, ele a reconheceu de imediato. Ainda continuava esbelta e bonita, usando o robe branco de uma monitora.
— Filha, está trabalhando nos retransmissores? Pensei que estivesse apenas descansando, depois da sua provação em Hali — disse Dom Varzil.
Mirella já ia começar a responder, porém emudeceu ao ver Bard.
— Vai dom, soube através de Melora que agora era o Lorde General das Astúrias... perdoe-me, Lorde Varzil, permite que pergunte notícias de minha família? Como vai passando o meu avô, senhor, e Melisendra?
Bard encontrou, em algum lugar, a força necessária para encará-la. Era desejar demais esperar que Mirella não estivesse a par de sua depravação. Pelo que lhe constava, todos nos Cem Reinos sabiam e estavam prontos a cuspir no nome de Bard mac Fianna, chamado di Asturien.
— Mestre Gareth está muito bem, embora, é claro, esteja ficando velho. Ele nos acompanhou durante a campanha deflagrada contra Ridenow, antes da rendição. — Bard olhou hesitante para Dom Varzil. Não fazia dez dias ainda que ele tinha enforcado o senhor daquele homem, Dom Eiric de Serrais, depois da batalha sob a acusação de perjuro. Contudo, embora Dom Varzil parecesse triste, ele não demonstrava qualquer ódio contra Bard ou suas legiões.
— E Melisendra?
Melisendra é tia materna desta jovem. O que lhe terá ela dito a meu respeito?
— Melisendra está bem — respondeu ele, e em seguida, obedecendo a um impulso, acrescentou: — Acho que está feliz; creio... creio que deseja se casar com um de meus ajudantes-de-ordens, e se este for seu desejo, não a impedirei de fazê-lo. E o Rei Alaric já prometeu dar a Erlend uma declaração de legitimidade, portanto ela não precisará se preocupar com a situação dele.
Melora disse-me que eu encontraria uma maneira de solucionar tudo aquilo que fosse possível. Isto é apenas um começo, e tão insignificante, mas era uma forma de começar. Paul é quase tão mau quanto eu, porém, sei lá por quê, ela gosta dele.
Mirella sorriu para ele, com doçura, e falou:
— Agradeço-lhe as boas noticias que me deu, vai dom. E agora, Dom Varzil, estou às suas ordens.
— Sentimo-nos muito felizes por tê-la aqui enquanto se recupera do choque daquilo que aconteceu em Hali — disse Dom Varzil. — Por que não se encontrava dentro da torre?
— Tinha recebido autorização para ir a cavalo até as colinas para caçar, junto com duas de minhas bredin-y — esclareceu Mirella. — E já estávamos quase voltando para casa quando começou a chover e fomos procurar abrigo na cabana de um pastor... e então, ó misericordiosa deusa, nós... nós sentimos as queimaduras... ouvimos os berros... — seu rosto empalideceu, e Varzil estendendo a mão apertou a dela com toda a força.
— Deve procurar esquecer, querida criança. Na verdade... isto haverá de acompanhá-la sempre, nenhum de nós que vivemos nas torres poderemos jamais esquecer — disse Varzil. — Minha irmã caçula, Dyannis, era uma leronis em Hali, e senti a sua morte... — a voz dele ficou arrastada e por um momento ele olhou para dentro de si mesmo horrorizado. Em seguida, controlando-se, falou resoluto: — O que devemos nos recordar, Rella, é que o heroísmo deles resultou em mais um passo rumo ao tempo, quando toda esta terra estará ligada ao pacto. Como você não ignora, eles transmitiram deliberadamente o que aconteceu... enquanto estavam morrendo, mantiveram suas mentes abertas para que todos nós pudéssemos ver, ouvir e sentir o que sofriam, ao invés de pegarem seus caminhos para deixar a vida o mais rápido possível... coisa que poderiam ter feito com a maior facilidade...
Mirella encolheu os ombros e disse:
— Eu não teria sido capaz de agir como eles! Creio que tão logo o fogo me atingisse, eu teria parado meu coração e experimentado uma morte suave...
— Talvez — discordou Dom Varzil com brandura. — Não somos todos identicamente heróicos. Mas, no entanto, cercada pelos outros, talvez tivesse achado também a sua coragem.
Bard viu na mente dele a imagem de uma mulher, cujo corpo ardia como uma tocha... porém Dom Varzil afastou aquela lembrança e perguntou:
— Rella, você deve ir para outra torre; deseja ir para Arilinn ou Tramontana?
— Tramontana é o posto do perigo, pois Aldaran ainda não assinou o pacto e pode atacar Tramontana. Devo uma morte a todos vocês; irei para Tramontana.
— Isto não é necessário — disse Dom Varzil com doçura. — Haverá muito trabalho para leroni aqui, tratando de ferimentos em crianças queimadas ou atingidas em Hali, ou nas colinas de Venza onde lançaram pó de bonewater e as crianças estão morrendo.
— Deixarei esta tarefa entregue às curandeiras e às sacerdotisas de Avarra, se conseguirem se autoconvencerem a abandonar seu isolamento no Lago do Silêncio. Minha obrigação encontra-se em Tramontana; é o castigo que imponho a mim mesma, Dom Varzil.
Dom Varzil inclinou a cabeça:
— Que assim seja. Não sou o vigia de sua consciência. E não prevejo paz em Aldaran, nem qualquer segurança em Tramontana enquanto eu viver, ou por muitas gerações adiante de mim. Mas se deseja se impor a fazer isto, Mirella, se faz questão de ir para Tramontana, então que todos os deuses a acompanhem, filhinha — levantou-se, envolveu Mirella em seus braços e apertou-a contra si. — Aceite a minha bênção, irmã. E antes de partir, não deixe de falar com Melora.
Quando Dom Varzil a soltou, ela se virou para Bard:
— Transmita lembranças minhas para meu avô e Melisendra, vai dom. E diga-lhes que se não voltarmos a nos encontrar é devido ao destino da guerra. Você, que era o comandante quando participei pela primeira vez de uma guerra na condição de uma leronis, entenderá isto. — Fitou-o com mais intensidade, e algo que ela captou no rosto dele fez seu olhar ficar mais doce. Falou: — Agora que é um de nós, orarei por sua paz e para que o iluminem, senhor. Que os deuses o protejam.
Quando ela já havia se afastado, Bard virou-se para Dom Varzil intrigado:
— Que diabos quis ela dizer com... um de nós?
— Ora, ela viu que você recebeu o dom do laran há pouco tempo — esclareceu Dom Varzil. — Acha que uma leronis não distingue um outro com donas?
— Isto... pelo lobo de Alar... isto se revela? — Sua consternação era tão patente... será que exibia uma marca visível daquilo em que tinha se transformado?... que Dom Varzil quase explodiu numa gargalhada.
— Fisicamente, não. Porém ela o vê, como qualquer um de nós o veria... não olhamos uns para os outros com nossos olhos físicos, você entende; vemos isto na... na parte exterior de sua mente. Nenhum de nós poderia ler seus pensamentos sem sermos convidados a fazê-lo, nem mesmo eu. Contudo, de um modo geral, podemos identificar aqueles que possuem laran — sorriu. — Afinal de contas, você acha que o protetor de Neskaya concede audiência a qualquer um que apareça por aqui... mesmo em se tratando do Lorde General das Astúrias, Marenji e Hammerfell e sabe Deus quantos outros mais países pequenos em território rebelde? Não faço o mínimo caso do Lorde General — disse ele, com um sorriso que tomou suas palavras de algum modo inofensivas —, mas Bard mac Fianna, o amigo de Melora, que eu amo, e recém-tornado consciente de seu laran... Bard mac Fianna é outro assunto. Como laranzu, tenho um dever com relação a você, Bard. Você é... como explicarei isto... é um peão.
— Não entendo o que está querendo dizer.
— Nem eu — disse Dom Varzil —, nem como sei disto; tudo que sei é que quando pus meus olhos sobre você, fiquei sabendo que seria através de você que vários e grandes acontecimentos de nosso tempo haveriam de ter lugar. Também sou um destes peões, pessoas que podem modificar a história, e que têm o dever de o fazer caso tenham alguma oportunidade, não importa o que aconteça. É por isto, creio eu, que você se tornou o Lorde General das Astúrias.
— Vai dom, isto soa por demais místico para mim — falou Bard, aborrecido. Tinha retornado do exílio por esforço próprio e não gostara da explicação metafísica que talvez ele nada mais fosse além de um peão do destino.
Dom Varzil encolheu os ombros:
— Talvez seja mesmo. Fui um laranzu toda a minha vida, e um dos meus dons é ver as linhas do tempo... não muitas, não muito claramente, não de uma forma que me deixasse optar, com clareza, entre os diversos caminhos que posso tomar. Já ouvi dizer que, algum dia, houve um dom assim, mas ele terminou. Mas, às vezes, posso reconhecer um peão quando o vejo, e decidir o que deva ser feito para não haver uma perda de oportunidade.
A boca de Bard contorceu-se. Disse:
— E suponha que não consiga ninguém para acatar a sua idéia sobre aquilo que deveria acontecer, o que faria então? O senhor apenas lhes diz o que devem fazer, e como caso contrário o mundo poderá acabar?
— Ah, não, isto não seria fácil, e não suponho que os deuses queiram que alcancemos a perfeição — retrucou Dom Varzil. — Não, todos os demais fazem o melhor que lhes é possível, segundo a visão pessoal de cada um sobre o assunto, e isto nem sempre é aquilo que vejo. Se assim não fosse, eu seria um deus, não apenas o protetor de Neskaya. Faço o que posso, só isto, e estou sempre terrivelmente consciente dos erros que cometo, e que já cometi, e mesmo daqueles que ainda cometerei. Tenho apenas que fazer o melhor que me seja possível e... — inesperadamente a voz dele endureceu — ...tendo em vista a sua experiência, Bard mac Fianna, creio que há algo que terá que aprender, rápido... fazer o melhor que lhe seja possível, onde seja possível e conviver com os erros que não pode deixar de cometer. Caso contrário, você será igual ao burro que morreu de fome entre duas baias repletas de feno, procurando se decidir qual das duas comer primeiro.
Bard ficou imaginando se não fora por causa disto que Melora o tinha mandado a Dom Varzil.
— Em parte sim — respondeu Dom Varzil, captando o pensamento dele. — Acho que irão precisar dela na sua terra. É nas Astúrias que estão acontecendo as coisas importantes do nosso mundo. Mas antes que se vá, lhe pedirei mais uma vez aquilo que já lhe pedi quando nos encontramos antes, nas Astúrias: será que não deseja se aliar ao pacto?
O primeiro impulso de Bard foi responder que sim, me aliarei. Depois inclinou a cabeça:
— Eu o faria de bom grado, tenerézu. Mas sou um soldado e obedeço ordens. Não tenho o direito de fazer isto sem receber ordens de meu rei e seu regente. Para o bem ou para o mal, prestei-lhes juramento de obediência e não posso tomar esta atitude sem a autorização dos dois; e se o fizesse, seria desonesto. Aquele que não cumpre seu primeiro juramento não cumprirá o segundo também. — Experimentando uma vergonha indescritível, recordou-se de como tinha vituperado contra Carlina com aquele mesmo provérbio, porém isto não tinha diminuído seu dever neste momento. — Violei e ludibriei tudo o mais. Contudo, minha honra como um soldado e minha lealdade para com meu pai e meu irmão... estas coisas ainda continuam inalteradas, Tenho que procurar mantê-las assim.
Dom Varzil fitou-o longamente. Após um momento, estendeu a mão para Bard, tocou muito de leve o seu pulso. Falou:
— Se a sua honra assim o exige, que assim seja. Também não sou o guardião da sua consciência. Por isto deverei ir com você até as Astúrias, Bard. Espere até que eu tenha conversado com meus representantes e resolva quem deva ser deixado aqui como encarregado.
Carlina despertou de um sono inquieto, sentindo todos os nervos e músculos de seu corpo doloridos, e deparou com uma mulher de pé na soleira da porta de seu quarto. Ela se encolheu, puxando o manto escuro sobre si mesma; então, tremendo, lembrou-se de que não tinha direito a ele. Agora não. Ela o teria largado deixando que caísse, porém lembrou-se de que ainda estava meio despida, usando a camisola rasgada e suja de sangue, a única roupa que Bard havia deixado com ela. Sentia-se tonta e maltratada, e agora reconheceu a mulher, que era alta e roliça, usando um lindo vestido verde enfeitado com pele; tratava-se da concubina de Bard, a leronis da casa de Lady Jerana, que lhe dera um filho há alguns anos. Tudo que sabia sobre ela era que se chamava Melisendra, e ela tinha visto algo vago a respeito dela na mente de Bard, bem como na sua memória... Não conseguia se recordar dos detalhes, mas sabia que eram desagradáveis. Escondeu-se sob o manto negro, pensando que não poderia suportar a idéia de que aquela mulher, calma e auto-possessiva, visse a sua vergonha, a sua desonra.
— Vai domna — disse Melisendra, entrando no quarto —, a senhora não há de querer que suas criadas a vejam desta maneira; suplico-lhe que me permita ajudá-la. — Sentou-se na cama, ao lado de Carlina, tocando com delicadeza a equimose escura no rosto de Carlina. — Acredite-me, sei como está se sentindo. Era uma leronis, mantida virgem para a Visão, e nem sequer pude me defender contra um encanto... num certo sentido eu estava mais envergonhada do que você, pois não fui forçada a me submeter, mas entreguei a minha virgindade sem qualquer luta. E estou vendo que se defendeu com todas as suas forças, como eu não tive vontade de fazer; vi as marcas de suas unhas no rosto dele,
Carlina recomeçou a chorar, debilmente. Melisendra puxou-a para junto de seu peito e manteve-a ali,
— Vamos, vamos, chore se assim quiser... — murmurou ela, enquanto embalava Carlina. — Pobrezinha, coitada da minha senhora, eu sei, eu sei, acredite-me. Também estava assim quando acordei e não tinha ninguém para me consolar, minha irmã estava longe, na torre, e tive que enfrentar a fúria de minha lady. Vamos, vamos...
Depois que Carlina chorou tanto quanto podia e serenou, Melisendra dirigiu-se para o banheiro e colocou-a na banheira cheia de água quente, acabando de rasgar a camisola destruída.
— Mandarei incinerar isto. Tenho certeza de que não vai querer vesti-la nunca mais.
Deu-lhe um banho como se ela fosse uma criancinha e passou pomadas analgésicas sobre as contusões. Em seguida, vestiu-a como uma boneca e mandou uma das camareiras para a suíte.
— Traga alguma coisa para a minha senhora comer. — Quando a criada trouxe o pedido, ela se sentou e encorajou Carlina a comer, colherada após colherada, um pouco de sopa e um pouco de creme. Carlina achava difícil se alimentar com seu maxilar tão dolorido, porém Melisendra assegurou-lhe de que ele não estava fraturado.
Depois que a criada levou as bandejas, Carlina olhou para ela timidamente e comentou:
— Sinto que isto deve parecer esquisito para elas... todas sabem o quanto estou envergonhada... e você aqui...
Melisendra sorriu para ela e falou:
— Mas é claro que não! Nada tem de novidade que uma barragana cuide da mulher legítima. E, minha senhora, se a verdade for dita, estou certa de que nesta terra, onde tantos casamentos são celebrados com mulheres que não o desejavam, a senhora não é a única nobre que vai para a noite nupcial como se fosse ser estuprada.
Carlina concordou com um sorriso amargo:
— Claro, é assim mesmo. Já ia me esquecendo... suponho que isto me tenha tornado a mulher legítima de Bard, e só preciso esperar, agora, para que as catenas sejam fechadas nos meus pulsos, como se fosse uma prostituta de uma Drytown! Onde está o Bard?
— Ele partiu muito cedo hoje mesmo... Não sei para onde foi; contudo dava a impressão de ter se encontrado com a vingativa Avarra — respondeu Melisendra com toda a tranqüilidade. — Não sei o que resultará disto. Ignoro se a situação política o obrigará a mantê-la como esposa. Nada sei a respeito destas coisas. Mas estou certa, absolutamente segura, de que nunca mais ele abusará da senhora. Sou uma leronis e percebi que alguma coisa havia se passado dentro dele. Não creio que volte a abusar de qualquer mulher outra vez.
— Como pode ser tão prestativa comigo, levando-se em conta que se eu continuar aqui como sua mulher, você será apenas barragana?
— Nunca fui outra coisa além disto, minha senhora. O pai de Bard faria muito gosto em nos ver casados, porém ele não me dá a mínima atenção. Fui apenas uma distração quando ele se sentia revoltado e amargurado com todo o mundo. Se não tivesse dado à luz o filho dele, teria sido expulsa...
— Ora, então isto significa que você também é uma vítima... — murmurou Carlina. Erguendo-se, beijou a mulher mais velha, num impulso. Em seguida, disse muito tímida: — Sob o voto das sacerdotisas de Avarra, eu sou mãe, irmã e filha de qualquer outra mulher...
— ...e sob o manto dela você é minha irmã — retrucou Melisendra, baixinho.
Carlina ergueu os olhos para ela assombrada:
— É uma de nós?
— Gostaria imensamente de ser — respondeu Melisendra, e seus olhos encheram-se de lágrimas. — Mas a senhora conhece a lei da deusa. Nenhuma mulher pode renunciar o mundo em favor da Ilha Sagrada enquanto tiver um filho muito pequeno para criar, ou pais idosos que necessitem de seus cuidados. Elas não me aceitariam, de vez que tenho estas responsabilidades; minha outra irmã é uma leronis em Neskaya e eu sou o único apoio que resta para meu velho pai, e Erlend só tem seis anos. Portanto, elas não haveriam de aceitar o meu voto. E... além disto... um laranzu. revelou-me, certa vez, que eu tinha um trabalho a fazer no mundo, se bem que não me tenha dito nem como nem quando. Contudo, a Madre Ellinen permitiu-me empenhar-me particularmente a fazer todas as obrigações de uma sacerdotisa, embora não esteja presa à castidade. Ela disse que talvez, algum dia, eu deseje me casar.
— E você ainda... desejou o amor de um homem... — perguntou Carlina hesitante. — Sinto... morrerei... não suporto o pensamento de que qualquer homem ainda possa vir a me tocar por luxúria... ou até mesmo por amor...
Melisendra acariciou a mão dela suavemente:
— Isto há de passar, irmã. Isto há de passar, se a deusa o desejar. Ou talvez o desejo dela seja que de algum modo vá servi-la, novamente, em castidade, na ilha ou em um outro lugar qualquer. Estamos todas sob o manto dela — suspendeu o manto negro de Carlina e indagou: — Quer que eu mande lavar isto e o deixe pronto para usá-lo?
— Não sou mais digna de usá-lo — sussurrou Carlina.
— Psiu! — fez Melisendra resoluta. — Sabe que não é bem assim! Acha que ela não sabe como se defendeu?
Os olhos de Carlina ficaram novamente cheios de lágrimas.
— É disto exatamente que tenho medo. Podia ter resistido mais... podia ter deixado que ele me matasse... quem me dera que eu tivesse...
— Vai domna... irmã — falou Melisendra com doçura —, parece-me uma blasfêmia acreditar que a deusa possa ser menos compreensiva do que uma mulher fraca como eu. E se posso compreender e justificar a sua fraqueza, por que, então, a Mãe Enigmática não pode fazer muito mais ainda?
— Talvez eu tenha ficado na Ilha do Silêncio por demasiado tempo — disse Carlina, e sua voz estava trêmula. — Tinha me esquecido das verdadeiras coisas do mundo. Vocês estão em guerra, aqui.
— Vocês viram quando Hali foi atingida por bombas incendiárias e todos... morreram?
— Soubemos disto. Porém madre Ellinen mandou-nos impedir a visão, afirmando que nada podíamos fazer de bom ao compartilharmos de sua agonia de morte...
— Meu pai disse o mesmo. Mas nos encontrávamos em marcha junto com as legiões — explicou-lhe Melisendra.
— Mas as madres dizem que não devemos nos imiscuir nas coisas da guerra, que nosso assunto está ligado às coisas eternas, nascimento e morte, e que a guerra era trabalho do homem... que nada tem a ver conosco, patriotismo, orgulho masculino, realeza e sucessão, que as mulheres nada têm a ver com eles...
Melisendra soltou uma imprecação:
— Desculpe-me, minha senhora. Contudo, combati lado a lado com os homens nos campos de batalha, desarmada, a não ser por uma pedra da estrela e um punhal para ter certeza de que não cairia em mãos inimigas. E a Irmandade da Espada luta com este mesmo tipo de armas, muito embora saiba que, para suas irmãs, as penalidades da derrota são bem cruéis. Algumas das prisioneiras passaram por isto não faz muitos dias, depois da derrota de Serrais.
Carlina falou num tom de voz baixo:
— As sacerdotisas de Avarra estão sempre ouvindo pedidos no sentido de que abandonem a sua ilha e passem a fazer suas curas no mundo. Talvez fosse bom solicitarmos à irmandade para nos proteger. Pelo menos não poderíamos fazer nenhum mal a elas neste sentido... — sua voz quase sumiu. — Talvez Madre Ellinen esteja enganada ao declarar que não devemos participar das lutas à nossa volta...
— Não sou a guardiã da consciência de ninguém — arriscou-se a dizer Melisendra. — Talvez existam diferentes vocações para mulheres diferentes...
Carlina perguntou com amargura:
— Mas onde encontraremos um homem que nos garanta isto? — e as duas silenciaram.
Nenhuma das duas recebeu um aviso do que aconteceu em seguida. Houve um ruído pequeno, apagado, surdo... todos os sobreviventes foram unânimes quanto a isto. Um momento depois, houve um estrondo enorme, um barulho ensurdecedor, o chão balançou sob seus pés e elas, sem querer, agarraram-se. A primeira explosão foi seguida por uma outra e mais outra.
— Erlend! — gritou Melisendra, e correu em desespero pelo corredor abaixo, aos tropeções, enquanto as paredes ruíam com uma quarta explosão. — Erlend! Paolo!
Paul gritou o nome de Melisendra, deparou com ela à entrada do quarto, agarrou-a com força e arrastou-a até se encontrarem sob uma das vigas das portas, onde permaneceram, protegendo-se contra uma próxima explosão. Melisendra agarrou-se a ele e ficou, flutuando, procurando a mente de seu filho. Ele estava a salvo! Graças a todos os deuses, estava a salvo nos estábulos, onde tinha ido para visitar uma ninhada de filhotes de cachorros! Paul sentiu o alívio de Melisendra como se fosse o seu, a mente dela aberta para ele, enquanto se deixava ficar, vacilante, agarrada ao seu corpo. O chão tornou, por várias vezes, a balançar sob as repetidas explosões, o ribombo prolongado e surdo e o estrondo das pedras ruindo.
— Vamos — falou Paul com decisão. — Temos que sair daqui!
— Lady Carlina...
Paul acompanhou Melisendra enquanto ela voltou à procura de Carlina. Encontraram-na toda trêmula sob um móvel caído, e Paul levantou-a em seus braços e saíram correndo na direção das escadinhas privadas que conduziam ao pequeno jardim onde tinha visto Melisendra pela primeira vez, ao lado do filho. Melisendra corria atrás deles.
Quando já se encontravam em segurança do lado de fora, Paul pôs Carlina no chão. Na confusão do terror, ela não o tinha visto; agora, fitando-o, ela recuou sentindo-se novamente dominar pelo medo.
— Você... mas não, você não é o Bard, é?
— Não, minha senhora. Mas fui eu quem a tirou da Ilha do Silêncio.
— Você é muito parecido com Bard — observou ela. — Isto é muito estranho.
Mais estranho do que possa imaginar, pensou Paul, porém não lhe podia contar nada e sabia que ela, provavelmente, não acreditaria no que ouvisse. O que poderia ela saber a respeito do mundo dele e da caixa de estase? Isto tinha ficado para trás, de qualquer forma, representara uma outra vida, e o homem que havia sido naquele mundo estava desaparecido sem a mínima possibilidade de recuperação. De que iria adiantar contar-lhe tudo isto?
Paul precisa fazer Bard acreditar de algum jeito, de qualquer modo, que a presença dele ali não representa nenhuma ameaça. Talvez agora, quando Bard escapara para alguma missão misteriosa e o castelo se transformara naquela balbúrdia, sob um ataque assim — por bruxaria? — talvez fosse o momento de pegar Melisendra e fugir para as colinas de Kilghard ou mais além, depois das Hellers. Assim que lá chegassem, naquela terra bravia e desconhecida, talvez pudessem criar uma nova vida. Contudo, estaria Melisendra disposta a abandonar o filho?
— Olhem! Oh, misericordiosos deuses, olhem! — berrou Melisendra, olhando para trás para o prédio de onde tinham saído. Toda uma ala do castelo desmoronara-se e ela se agarrou a Paul apavorada. Através de sua mente ele viu...
Um rosto jovem, contorcido de pavor; um corpo aleijado subindo a escada devagarinho demais e de modo canhestro, um velho rumando às pressas para a segurança, voltando atrás para dar o braço à criança estropiada... Um lanço de escada ruindo, deslizando sob os pés dos dois, o teto se abrindo e deixando à mostra o céu... e o mundo varrido por uma avalancha de tijolos que os soterrou, instantaneamente, juntos...
— Dom Rafael, Alaric! — sussurrou Melisendra, aterrorizada. Começou a chorar. — O velho sempre foi tão bom para mim. E o garoto... sua vida foi tão árdua, pobrezinho do menino, e morrer assim deste jeito...
O semblante de Carlina estava imperturbável e implacável.
— Estou triste com seu sofrimento, Melisendra. Porém o usurpador do trono das Astúrias está morto. E não me sinto inclinada a prantear sua morte.
Agora, por todos os jardins e terrenos do Castelo das Astúrias, homens e mulheres, camareiros e criados, nobres e empregadas da cozinha começavam a surgir, gritando, berrando, tumultuados, amontoando-se para olharem, apavorados, para a ala que ruíra. Contudo, mesmo enquanto um dos mordomos gritava, advertindo todo mundo para que não se aproximasse do prédio que ainda se sacudia, houve uma terrível e derradeira explosão; o que ainda restara de pé daquela ala em pedras desmoronou e espatifou-se no chão, levantando muita poeira e gritos abafados... e o silêncio dominou tudo.
Naquela quietude, Paul escutou Mestre Gareth gritando:
— Ainda há algum dentre os leroni do rei que esteja vivo? Aproxime-se de mim! Rápido! Temos que descobrir quem nos está atacando!
— Preciso ir — avisou Melisendra, e apressou-se em se afastar antes que Paul pudesse segurar-lhe a mão e lhe pedisse para fugirem enquanto imperava aquela confusão. Ele permaneceu ao lado de Carlina, observando os feiticeiros, que não envergavam seus mantos cinzentos, mas vestiam vários tipos de trajes, desde toucas de dormir e robes, e até mesmo o garoto Rory, enrolado numa toalha e, sem dúvida alguma, acabando de sair de seu banho, reunindo-se sob as árvores em flor do pomar. Mestre Gareth, mancando, reuniu os leroni ao seu redor; faltavam dois ou três, pois alguns deles encontravam-se na outra ala servindo a Dom Rafael e ao rei, porém ali estavam quatro mulheres e dois homens, além do garoto, e Mestre Gareth dirigiu-se a todos de modo apressado. Paul, àquela distância, não podia escutar o que ele dizia. Os soldados desdobravam-se, na tentativa de manter as pessoas afastadas das paredes desmoronadas. Paul rumou para o lado deles... o que tinha dito Bard?
Você é o Lorde General até que eu volte. Isto aconteceu um pouco mais cedo do que pensávamos.
Um dos homens correu para seu lado e fez uma continência:
— Senhor, deve estar preocupado com seu filho. Ele se encontra a salvo, um dos sargentos está tomando conta dele, de vez que a mãe dele terá que ficar ao lado do velho mago e de todos os outros leroni. Venha comigo, senhor, deixe que ele o veja para que fique sabendo que ainda tem pai e mãe.
Sim, isto era justo. Paul viu Erlend, muito pálido e tremendo, agarrado a um cachorrinho com as duas mãos.
— Sua mãe está bem, Erlend, está lá com seu avô — avisou o soldado. — E veja, chiyu, aqui está o Lorde General que vai levá-lo para ver a mamãe.
Erlend levantou a cabeça. Falou:
— Este não é... — e por um instante Paul percebeu que a brincadeira já havia acabado, antes mesmo de ser iniciada, que Erlend estava prestes a dizer Este não é o meu pai, porém seus olhos encontraram-se com os de Paul por um lapso de segundo e falou: — Este não é o modo certo de falar comigo, Corus. Não sou nenhum bebê — entregou o cachorrinho ao soldado e disse: — Leve-o para junto da sua mamãe, é ele quem está choramingando para mamar! Eu deveria estar junto com os outros leroni, alguns de nós estamos mortos; eles precisarão de todas as pedras da estrela.
— Ele é um homem, ele é sim, Lorde General — disse o soldado. — Como um lobo, como um filhote! Bom menino!
— Não acho que eles precisarão de você, Erlend, contudo pode ir até lá e perguntar se querem a sua ajuda — falou Paul, com todo o cuidado e com dignidade.
— Muito obrigado, senhor.
Erlend caminhou ao lado dele, porém Paul percebeu que o garoto estava tremendo, e após um momento estendeu-lhe a mão. O garoto agarrou-a e a sua mão estava encharcada de suor. Quando já se achavam a uma distância em que ninguém poderia ouvi-los, perguntou resoluto a Paul:
— Onde está meu pai?
— Ele... ele viajou esta manhã. — Depois de um instante ele explicou: — Tive medo de que pudessem imaginar que seu pai os tivesse abandonado, por isto atendi-os quando me chamaram pelo nome dele — e ficou se perguntando por que se dera o trabalho de dar aquela explicação a um menino de seis anos.
— É. Ele devia estar aqui — observou Erlend, e havia um tom de reprimenda na sua voz. Isto fez Paul pensar, pela primeira vez, se ou quando Bard estaria de volta!
— Antes de partir ele me disse: "Você é o Lorde General até a minha volta." — E Erlend ergueu os olhos para ele, de modo estranho.
— Eu o vi partindo — falou o garoto. — Eu não sabia, então, o que ele pretendia — e emudeceu. Finalmente falou: — Deve fazer o que ele lhe ordenou.
— Também penso assim! Acredite-me, rapaz, também gostaria disto!
— Contudo, enquanto eles mandarem laran contra nós, reconheço que teremos que nos proteger. Não há nada de mal em colocar um escudo à prova de laran, senhor, que nenhuma bruxaria possa atravessar.
— Conversarei com eles sobre isto — avisou Paul, decidido.
— Faça isto mesmo, Lorde General. E se o novo rei, seja ele quem for, desejar assinar o pacto, senhor, informe-o que todo o exército está a favor disto!
Carlina, envolta em seu manto negro, deslocava-se por todos os lados entre aqueles poucos que tinham sido arrastados para fora dos escombros ainda com vida, tratando deles e supervisionando as curandeiras. Paul observou que bastava a presença dela junto aos feridos para que se sentissem confortados e se acalmassem.
— Vejam, uma sacerdotisa de Avarra, uma mulher da Ilha Sagrada veio para nos tratar!
As outras curandeiras desdobravam-se em cuidados, faziam o máximo que lhes era possível, contudo, silêncios respeitosos pareciam acompanhar Carlina enquanto se movia entre os enfermos. Ninguém sabia ou se importava com o fato de que era, ou fora, a filha de Ardrin, a Princesa Carlina; davam importância à sacerdotisa de Avarra, e aqueles que a reconheciam não se referiam àquilo... ou se o faziam, não havia ninguém por perto para escutá-lo.
Ao anoitecer, já haviam conseguido restabelecer algo parecido com ordem. Os feridos tinham sido levados para o Grande Salão, onde eram tratados. Carlina, passando os olhos pelo local, se deu conta de que há oito anos tinha ficado noiva de Bard naquele salão, e seis meses mais tarde tinha ouvido, também ali, sua sentença de proscrição. Parecia ser algo acontecido numa outra vida. Tinha sido algo de uma outra vida.
O corpo do Rei Alaric, esmigalhado, e num estado desolador, tinha sido retirado dentre os escombros da grande escadaria da ala mais afastada, assim como o de Dom Rafael, que tinha tentado, aparentemente, proteger o jovem com seu próprio corpo quando despencaram. Encontravam-se deitados em câmara ardente, velados por antigos criados, entre eles o velho Gwynn. Paul tomou o cuidado de não entrar naquele local. Sabia que sua ausência seria notada... ou melhor, a ausência de Bard seria notada... porém não confiava nos olhos argutos do velho Gwynn.
Mas, do lado de fora da capela, Paul foi abordado por dois dos principais conselheiros.
— Lorde General... precisamos lhe falar.
— Neste momento, com... — Paul inspirou fundo e falou deliberadamente — com meu pai e irmão ainda sem estarem sepultados?
Nunca tinha posto os olhos em Alaric; e de Dom Rafael tudo quanto sabia era que o homem o tinha trazido para ali através de bruxaria. Não sofria e não ousava fingir que sim.
— Não dispomos mais de tempo — informou Dom Kendral de High Ridge, que Paul sabia ser o conselheiro chefe do reino das Astúrias. — Alaric das Astúrias está morto, e também o seu regente. Esta é a situação focalizada de modo objetivo. Valentine, o filho de Ardrin, é uma criança, e não pretendemos ter nenhum joguete do Hastur por aqui. O exército está do seu lado, senhor, e isto é o mais importante. Estamos prontos para apoiar a sua reivindicação ao trono, Bard di Asturien.
— Santo Deus! — foi tudo quanto Paul conseguiu dizer.
Era estranho que o chefe dos conselheiros do reino se revelasse pronto a oferecer a coroa a Bard mac Fianna, nedestro proscrito, o Lobo de Kilghard.
Era inimaginável que o oferecessem a Paul Harrell, exilado, rebelde, criminoso e assassino condenado! Fugitivo da caixa de estase!
— O problema é o tempo, senhor. Estamos em guerra e o senhor sabe exatamente o que fazer com o exército; e jamais aceitaríamos uma criança como rei, não agora. E o senhor é o Lorde General.
Mas que inferno, pensou Paul enfurecido, onde teria se metido Bard, onde estaria agora? O que estava ele fazendo distante nesta conjuntura?
— Não podemos deixar de ter um rei, senhor. Caso os Hasturs marchem contra nós, nada podemos fazer quanto a isto! Reparamos como acalmou os soldados hoje pela manhã. Penso que o senhor seja o único rei que o povo aceitará.
Muito sério, Paul sabia que não tinha chance de recusar. Bard havia partido, ninguém sabia para onde, e todos acreditavam que ele fosse Bard. Este comentara, freqüentemente, não desejar ser rei; porém Paul achava que se Bard se encontrasse ali, num castelo em ruínas, com um exército acéfalo e um país sem rei, também ele haveria de ceder à lógica da situação.
— Pelo visto, não tenho escolha.
— Isto mesmo, senhor. Realmente não há mais ninguém, entenda. — Lorde Kendral hesitou. — Outra coisa, senhor. Houve uma época em que o senhor esteve comprometido com a filha caçula de Ardrin, mas neste presente momento a linha de Ardrin não goza de popularidade. Não, desde que a Rainha Ariel fugiu daquela maneira. Teremos que designar um herdeiro, e como o senhor não tem nenhum irmão, teremos que legitimar o seu filho. Todos sabem quem é a mãe dele; seria muito bom que o senhor desposasse Mestra MacAran... Lady Melisendra, é claro, vai dom. O exército apreciaria isto.
E assim, à luz de lampião, na presença da antiga câmara na ala sem avarias do castelo, Paul Harrel, rebelde e criminoso, condenado à caixa de estase, foi coroado rei e casado di catenas com Melisendra MacAran, leronis. Dois pensamentos dominavam-lhe a mente, enquanto Mestre Gareth prendia as mãos deles juntas sob as pulseiras rituais e dizia: "Que vocês sejam para a vida toda um só." Um era de gratidão, pois Erlend tinha sido mandado para a cama. O outro era uma curiosidade intensa; apenas isto, onde com mil demônios estava Bard di Asturien, e como haveria de se sentir quando descobrisse que seu sósia havia usurpado o trono... e presenteado-o com uma rainha!
Dom Varzil teve que se atrasar quase que o dia todo até encontrar alguém que pudesse ficar como seu substituto em Neskaya. E apenas na manhã seguinte eles partiram rumo às Astúrias. Melora, tendo mandado selar o seu burro, avisou a Bard, soltando uma gargalhada, que não progredira nem um pouco na equitação desde os tempos em que o acompanhara naquela campanha tão distante. Observando-a cavalgar, Bard achou que ainda se sentava sobre o burro como um saco de provisão atirado em cima de uma sela. Que coisa mais estranha, Melisendra cavalgava com graça e perfeição. Como era possível que nunca tivesse sentido qualquer interesse por Melisendra, a não ser por seu corpo maravilhoso, e esta aqui lhe significasse tanto?
Talvez tenha havido um tempo quando poderia ter me importado com Melisendra. Porém, sempre que olhava para ela, depois, ficava envergonhado, e não queria saber o que havia feito com ela; e assim não podia suportar olhar para ela. E fui mais cruel com ela do que nunca...
Destruí todos aqueles que amava. E destruí minha própria vida. E nem ao menos posso morrer porque tenho coisas que preciso fazer. Bard cavalgou através da maravilha que eram as colinas de Kilghard no começo do outono, porém seus olhos se achavam fixos em seu íntimo para um local desolador e vazio, e o gosto de cinzas na sua boca era desalentador.
A qualquer custo, teria que colocar as Astúrias em ordem. Havia uma guerra a ser vencida ou, pelo menos, uma paz para ser celebrada. Desde o incêndio de Hali, pensava Bard, não tinha havido muito gosto pela guerra ainda em curso entre os Hasturs, ou em qualquer outro lugar. Ele conseguira tocar, por um instante, a mente de Mirella, de Dom Varzil e de Melora, quando falaram sobre o incêndio em Hali e, agora, experimentava um mal-estar quando pensava naquele tipo de ataque, com clingfire, ou no pó de bonewater espalhado em volta das montanhas Venza, e nas crianças morrendo com seu sangue fraco e deficiente... isto não era guerra! Isto era um pesadelo. Bard decidiu que o mínimo que poderia fazer seria abrir mão de suas feiticeiras e leroni; e caso seu pai se recusasse a se aliar ao pacto, então poderia tratar de arranjar outra pessoa para comandar suas legiões. Ele, Bard, já havia sobrevivido como mercenário, no exílio, antes disso. Poderia voltar a fa-zê-lo.
Pensou, tristemente, que se seu pai estivesse resolvido a contar com um grande general, que conquistaria todas aquelas terras desoladas e as colocaria sob o domínio das Astúrias, poderia contar com Paul para fazer isto para ele.
Paul... Paul é tão implacável quanto eu era. Como eu era até... deuses do céu, até a noite de anteontem apenas? Perdi a noção da passagem do tempo. Parece que aquele homem viveu há séculos...
Paul nem ao menos pôde ver os horrores das ações bélicas com laran, é imune aos horrores que penetram na mente, no cérebro e na alma de um homem...
Inesperadamente, ele soube que estava preparado para matar Paul. Não, como estivera, enquanto cavalgavam juntos em campanha, porque, eventualmente, seu gêmeo secreto significava uma ameaça ao seu próprio poder e posição; mas sim porque Paul era o homem que o próprio Bard havia sido até um dia ou dois antes, e agora achava-se preparado para matá-lo, a fim de salvar seu povo do domínio daquele homem implacável e cruel que ele tinha sido até então. Sabia que aquilo magoaria Melisendra e estava disposto a tentar tudo, antes de recorrer à morte, para persuadir Paul a desistir de sua ambição. Contudo, Paul não passara por uma experiência idêntica à dele, nada havia em Paul para acabar com aquela ambição desumana. Paul ainda era capaz, como Bard fora certa vez, de tiranizar qualquer pessoa e qualquer coisa — até mesmo Melisendra — para conquistar poder e dignidade.
Não tenho certeza absoluta quanto a isto. Talvez tenha feito mau juízo de Paul, como me enganei a respeito de tudo e de todos os outros. Talvez consiga chamá-lo à razão. Mas se não aceitar isto... apesar de não querer infligir a Melisendra nenhum outro sofrimento... não permitirei que ele cause nenhum outro mal. Todos devem tomar conhecimento, no mínimo, de que ele é um impostor. Não lhe deveria ter entregue o comando do exército; ele poderia fazer um dano sem igual.
E, então, se deu conta de que tinha intervindo... ou melhor, seu pai havia se intrometido... na vida de Paul sem razão, e qualquer coisa que Paul lhe fizesse não passaria de retribuição. Tudo retornou ao seu antigo conhecimento que, sabia-o agora, havia permanecido latente em seu íntimo desde a primeira vez que tinha olhado para o rosto de seu gêmeo secreto:
...Chegará um dia quando o terei que matar, ou ele me matará antes.
Seguiram a estrada a oeste de Neskaya. Porém, quando a estrada virou para Norte, na direção das Astúrias, Dom Varzil disse com tristeza que deviam abandoná-la por algum tempo e continuar rumo a Oeste.
— Melora ainda está em idade de conceber um filho, Bard, assim como você também. Esta terra está contaminada; qualquer criança nascida de um de vocês nos anos vindouros poderia ser afetada, no mais profundo das células. Mesmo nos aproximando tanto assim... não tenho certeza se Neskaya está a salvo do problema. Não sabemos de tudo, ainda, sobre os efeitos que esta droga causa às células. Todos nós devemos correr os riscos de Neskaya, porém recusome a expor vocês dois a um perigo maior. Na minha idade isto já não tem grande importância. Contudo, vocês dois, provavelmente, terão filhos algum dia. Isto é, qualquer um de vocês poderia tê-los — acrescentou, soltando uma gargalhada em seguida, abrindo as mãos como se dissesse Não era isto que pretendia falar... porém Bard, olhando para Melora naquela manhã luminosa, viu um sorriso tão íntimo quanto um beijo de boas-vindas, um sorriso que aqueceu por inteiro até mesmo a morte que imperava dentro dele. Nunca lhe passara pela cabeça, durante toda a sua vida, que uma mulher pudesse olhá-lo e sorrir-lhe daquela maneira.
... e este homem, Bard, jamais deixarei de amar...
Portanto, ela ainda o amava. Não ia ser fácil. Ele tornara Carlina sua mulher à força; a lei rezava que um compromisso, uma vez consumado, transformava-se num casamento legal. Tinha certeza de que Carlina ficaria contente em se ver livre dele, porém não podia fazer de uma leronis de Neskaya sua barragana; portanto, muito pouco tinha para oferecer a Melora. Talvez, quem sabe, pudessem encontrar alguma solução honrada.
Estranho. Durante todos esses anos ele sonhara em possuir Carlina, e agora que a tinha, procurava descobrir um jeito de se livrar dela. Pelas colinas corria um ditado: Tenha cuidado com a sua maneira de suplicar aos deuses, eles poderão atendê-lo.
A maior ironia de todas, pensou ele, a pior catástrofe que podia antever, seria se Carlina tivesse, na verdade, começado a amá-lo, como ele sempre imaginou que aconteceria tão logo a possuísse. Não poderia lhe devolver o que dela tinha roubado, da mesma forma como não poderia reparar os males causados a Melisendra, devolver-lhe a sua virgindade e a Visão. Contudo, aquilo que pudesse fazer, deveria fazê-lo. Se Melisendra desejava Paul, devia tê-lo, muito embora, no final, ela acabasse descobrindo que Paul não era, em nada, melhor do que o próprio Bard.
Ou era? Na realidade... sobre Paul não sabia muita coisa a mais... do que sabia sobre si mesmo. No fundo, ele e Paul eram o mesmo homem. Paul era o homem que ele poderia ter sido, só isso. Talvez as diferenças fossem mais profundas do que podia imaginar.
O longo desvio em torno das terras contaminadas levou muito tempo, e o sol já começava a mudar de direção, depois do meio-dia, quando Melora soltou um grito de susto e consternação. Dom Varzil puxou as rédeas do cavalo, obrigando-o a parar, seu rosto revelava-se tenso e parecia ouvir algo que estava fora do alcance da audição normal. Estendeu a mão de sua sela e pegou a mão de Bard, num gesto instintivo, como se quisesse lhe dar algum conforto.
— Alaric! — murmurou Bard angustiado, e em alguma parte, distante, em sua mente, sentiu e viu a última visão de seu irmão ao deparar com o teto se abrindo para dar lugar ao céu, a última vez que se agarrou frenético, ao pai, buscando apoio, o instante e a escuridão clemente.
Oh, meu irmão! Misericordiosos deuses! Meu irmão, meu único irmão!
Não gritou estas palavras agoniantes como tinha imaginado em voz alta; apenas pensou que o fizera. Dom Varzil estendeu os braços, e Bard deixou sua cabeça cair sobre o ombro do velho, num pesar mudo, Temendo numa angústia muito profunda para verter lágrimas.
— Sinto muito — disse Dom Varzil na sua voz suave e baixa. — Ele era como que um filho de criação para mim, que não tive filhos, e cuidei dele durante muito tempo, quando ficou tão enfermo.
E Bard percebeu que a dor de Dom Varzil era tão grande quanto a sua. Disse tremendo:
— Ele o amava, vai dom, confessou-me isto... é por isto que pude... pude confiar em você.
Os olhos de Dom Varzil se achavam marejados de lágrimas; Melora estava soluçando. Dom Varzil falou:
— Bard, não me trate de vai dom, sou seu parente como o era dele...
E Bard, também com os olhos cheios de lágrimas, se deu conta de que jamais soubera o que significava ter um parente, um par, um igual, desde que Beltran morrera... sentiu um aperto na garganta. Não podia chorar, não agora, ou debulharia todas as lágrimas que não tinha vertido desde que havia visto Beltran caído, morto, sobre sua própria espada, e dito adeus a Geremy, a quem tinha deixado aleijado para o resto da vida, e ainda assim, o tinha abraçado e chorado...
Aldones! Senhor da Luz! Geremy também me amava e nunca pude acreditar nisto, aceitar este fato, também o afastei de mim...
Endireitou o corpo sobre a sela, olhando para o velho, o rosto retesado, controlado.
— Devo continuar a viagem e verificar o que está acontecendo em minha casa... primo — disse ele, um pouco hesitante. — Por favor... não devem se sentir obrigados a acompanhar o ritmo que imporei a meu cavalo. Devo chegar em casa o mais rápido que me seja possível, serei necessário por lá. Podem continuar numa velocidade que seja agradável a vocês. Melora não é uma boa amazona, e você... você não é jovem.
O rosto de Dom Varzil também estava sisudo:
— Acompanharemos o seu ritmo. Talvez também sejamos úteis por lá. Penso que seja seguro, agora, virarmos direto para as Astúrias e tomarmos a estrada alta. — Virou seu cavalo. — Se cortarmos caminho, atravessando os campos, estaremos de volta na estrada principal dentro de uma hora...
— Meu burro não conseguirá acompanhar seus cavalos — avisou Melora. — Pararemos na primeira taverna onde haja cavalos, deixarei meu burro por lá e arranjarei uma montaria que possa me agüentar. Posso acompanhá-los, já que o devo fazer.
Dom Varzil começou a protestar, olhou para a boca decidida e desistiu. Bard ficou se perguntando o que mais teriam visto Melora e Dom Varzil e de que ele fora excluído. Tudo que Dom Varzil disse foi:
— A escolha é sua, Melora. Faça o que julgar melhor. E então, começaram a atravessar o campo aos galopes.
Uma hora depois, haviam trocado o burro de Melora, deixando-o entregue aos cuidados do responsável pela taverna e encontraram para ela um cavalo muito manso e uma sela de mulher. Depois disto, venceram melhor a distância e, enquanto cavalgavam rumo às Astúrias, Bard viu quadros tristes na sua mente, ou captados por seu laran em desenvolvimento ou através da mente de Dom Varzil e Melora, ele não o sabia e não se importava em descobrir, quadros de ruína e caos no Castelo das Astúrias.
E por toda esta terra, por todos os Cem Reinos...
Estes armamentos com laran precisam acabar de alguma forma, ou então não haverá mais terras para se conquistar e nada restará para os conquistadores. Somente no pacto há esperança para todas estas terras. Bard sentiu que isso partia de Dom Varzil, não de sua própria mente, depois já não estava muito certo disso.
Ele está certo. Ele tem razão. Antes, eu não conseguia entender isto, mas ele está absolutamente certo.
Bard falou uma vez, em meio ao silêncio:
— Gostaria que fosses o rei, ao invés de Lorde Hastur, senhor.
Dom Varzil balançou a cabeça:
— Não quero nada com reinado. Trata-se de uma tentação muito grande para mim... saber que posso colocar tudo em ordem apenas com uma palavra. Carolin de Thendara não é um homem vaidoso, nem ambicioso, e não se importa de ser governado por seus conselheiros; foi educado para dominar a arte de reinar, que é exatamente isto... ter consciência de que você, pessoalmente, não é o rei, mas sim o administrador de seu povo. Um bom rei não pode ser um bom soldado, ou um estadista realmente bom... deve se contentar em saber que pode procurar os melhores soldados, os melhores estadistas e por eles ser aconselhado, e se satisfazer em não ser mais nada, além de um símbolo visível de seu reino. Eu me imiscuiria por demais no meu próprio reino, caso fosse rei — disse com um sorriso. — Como protetor de Neskaya, talvez tenha mais poder do que o necessário. Nestes tempos isto talvez seja útil, porém talvez seja assim apenas porque sou um velho; chegará um tempo quando um protetor não contará com tanto poder. Creio que seja por isto que queria mandar Mirella para Arilinn.
— Uma mulher? Uma mulher tem a força necessária para ser um protetor? — perguntou Melora, atônita.
— Certamente, tanto quanto qualquer emmasca, e afinal de contas, não precisamos de força física, ou de sermos hábeis com uma espada, mas sim de força mental e força de vontade... e as mulheres são menos inclinadas a se intrometerem na política; elas sabem o que é real, e o que uma torre talvez necessite seja de uma mãe para orientá-la e não de um homem forte para governá-la... — Dom Varzil calou-se, ficou com uma expressão muito séria no rosto e Melora e Bard procuraram não perturbar seus pensamentos.
Enquanto prosseguiam viagem e a noite aproximava-se, nuvens pesadas começaram a obscurecer o horizonte. Quando fizeram uma parada, próximo ao pôr-do-sol, que este estava escondido, para comerem um pouco de pão, estreitaram seus mantos de encontro ao corpo, antecipando chuva ou até mesmo neve, porém, pouco a pouco, o tempo clareou. Três luas, quase cheias, flutuaram no céu púrpura escuro; a face verde de Idriel, a face verde-azulada de Kyrrdis e o disco pérola de Mormallor; Liriel, um crescente fugidio, nascia no horizonte. Sob o luar luminoso podiam ver o caminho à frente, e, quando alcançaram o topo da colina que dominava o vale das Astúrias, viram, a seus pés, a massa escura que fora o castelo.
Ruínas. Caos. Mortes...
— A coisa não está tão ruim assim — comentou Melora baixinho.
— Estou vendo luzes, primo — disse Dom Varzil. — Luzes em movimento e silhuetas de setores sem avarias. Talvez não tenha sido tão ruim assim... desculpe-me, primo, sei que sofreu uma terrível perda, porém talvez não encontre seu lar tão destruído como imagina. E, certamente, nem tudo está perdido.
Mas meu pai. E Alaric. Não se trata apenas da perda de parentes. Mas, é evidente que o reino jaz em ruínas, com o rei e o regente mortos. E como estarão os meus homens, o exército, sem a minha presença para cuidar deles!?
Disse para Paul: até a minha volta você é o Lorde General. Mas o que sabe ele a respeito do comando de meus homens? Ensinei-lhe a controlar o poder. Porém o que sabe ele com relação a responsabilidade, a cuidados com homens que procuram seu líder para que os dirija, para lhes dar esperança, conforto e até mesmo as necessidades da vida? Será que saberá como se certificar de que se encontram bem aquartelados, em segurança e tratados? Bard se deu conta de que numa vida onde houve pouco a amar, poucos para o amarem, ele tinha amado os seus homens e sido amado por eles, e deixara-os entregues nas mãos de um outro homem, num momento que acabara sendo mais crucial do que imaginara!
Seu pai tinha levantado o exército para a conquista e para sua própria ambição, mas agora seu pai estava morto, o que aconteceria com o exército, como acomodaria seus homens? Enquanto desciam rumo ao castelo, ignorando o que encontrariam de ruim por lá, Bard imaginava o que fazer com o exército. Ele voltaria para a propriedade de seu pai... o pai não tinha deixado nenhum filho legítimo, afinal, e não havia nenhum outro para herdar... e Erlend devia, naturalmente, ser legitimado, de imediato, para o caso de ele morrer sem ter outros filhos. E quanto aos seus homens? Quem reinaria nas Astúrias, e o que iria fazer este senhor diante do caos que tinha herdado, dos destroços no despertar da ambição de um homem?
Nada podia fazer, até saber o que tinha sobrado.
Não era tão ruim quanto havia temido. Uma ala do castelo, perfeito ao luar, encontrava-se reduzida a entulhos; as luzes ainda se moviam em meio às ruínas, onde os operários tentavam desenterrar os outros corpos que podiam estar soterrados. O prédio principal, a fortaleza e a ala oeste achavam-se intactos, resistindo eretos de encontro ao luar. E quando rumavam para os portões, Bard viu, aliviado, que nem tudo era caos, pois a voz de um de seus soldados soou forte e clara.
— Quem vem lá? Pare, e se declare amigo ou inimigo!
Bard começou a dizer o nome do homem... evidentemente, o homem reconheceria a voz dele... porém o protetor de Neskaya não se sentia inclinado a ter consideração para com nenhum homem vivo. Sua voz soou forte e segura.
— Varzil de Neskaya e uma leronis de sua torre, Melora MacAran.
— E — Bard acrescentou com firmeza — Bard mac Fianna, Lorde General das Astúrias!
O homem falou com o maior respeito:
— Dom Varzil! Vamos, entre, senhor, será bem recebido e a leronis também, o pai dela se acha aqui. Porém, com sua permissão, senhor, este homem que o acompanha não é o Lorde General, o senhor foi enganado por um impostor.
— Não diga tolices — falou Dom Varzil com impaciência. — Acha que o protetor de Neskaya não saiba com quem está falando?
— Não sei quem seja ele, Lorde Varzil, mas não é o Lorde General, e isto é certo. O Lorde General encontra-se aqui.
Bard disse com rispidez:
— Segure esta lanterna aqui! Venha, Murakh, não me conhece? O homem que está aqui é o meu mediador Harryll!
O homem levantou a lanterna, começando a se mostrar em dúvida. Disse, pouco à vontade:
— Senhor, seja lá quem for, sem dúvida se parece com o Lorde General e também fala como ele... mas não pode ser o Lorde General. Eu... ele agora não é mais o Lorde General, ele é o rei. Estava de serviço esta noite e vi-o ser coroado. E casado!
Bard engoliu em seco, incapaz de fazer qualquer outra coisa além de fitar o homem, perplexo.
Dom Varzil disse baixinho:
— Asseguro-lhe, rapaz, este homem aqui ao meu lado é Bard mac Fianna das Astúrias, filho de Dom Rafael e irmão do falecido rei.
O soldado parecia confuso, fitando primeiro Dom Varzil, depois Bard, balançando a lanterna na mão trêmula:
— Devo cumprir meu dever, senhor. Minha tarefa é me certificar de que as pessoas são quem afirmam ser. Ainda que fosse o rei, pedindo-lhe desculpas, mylord.
Bard falou dirigindo-se a Dom Varzil:
— Nunca puni um soldado pelo cumprimento de seu dever. Podemos estabelecer quem sou eu amanhã. Não discuta. Há pessoas aqui que me conhecem além de qualquer dúvida. Se estou supostamente casado com Lady Carlina...
O guarda sacudiu a cabeça.
— Não sei de nada a respeito de nenhuma Lady Carlina, senhor, pensava que ela tivesse abandonado a corte há anos e encontrava-se numa torre ou numa casa de sacerdotisas ou algo parecido. Contudo, o pai da rainha, Mestre Gareth MacAran, encontra-se no Grande Salão cuidando dos feridos retirados das ruínas, e se é uma leronis, minha senhora, será acolhida de braços abertos...
Bard sorriu com humor negro. Então tinha chegado ao Castelo das Astúrias para descobrir que se tornara rei, estava casado, e agora se achava prestes a ter os portões trancafiados diante do seu rosto como um impostor. Ora, ele pedira a Paul para ocupar seu lugar até que retornasse e, ao que parecia, o outro homem assim o fizera.
Varzil falou na sua voz profunda:
— Responsabilizo-me por este homem; sua identidade é algo que poderemos definir amanhã. Talvez eu também seja necessário lá dentro.
— Ah, deixarei que ele entre como um membro de sua comitiva, Lorde Varzil — avisou Murakh cheio de cortesia, e eles cruzaram os portões, entregando seus cavalos nos estábulos, que nada haviam sofrido.
O Grande Salão se encontrava repleto de homens e mulheres feridos, separados por cobertas; montaram uma enfermaria com aqueles que tinham sido atingidos no desmoronamento da ala leste ou na busca pelos corpos. Mestre Gareth deu as boas-vindas a Dom Varzil, com uma deferência que não chegava a ter toques de humilhação, mas sim como a um companheiro de ofício.
— Senhor, é muita bondade oferecer-nos a sua ajuda. Contamos com pouca gente e há muitos homens aqui feridos e à morte...
— O que se passou por aqui? — indagou Dom Varzil.
— Pelo que podemos dizer, são os homens de Aldaran, aproveitando o momento para entrarem na guerra. Amanhã o Lorde General... o rei, senhor... deverá decidir o que será feito, talvez tenhamos condições de detê-los em Kadarin, mas por enquanto limitamo-nos a cercar o castelo com um escudo protetor de laran... não nos atacarão outra vez com isto, porém, é claro, não poderemos manter este escudo por muito tempo; estamos usando para isto quatro homens e um garoto. Eles devem ter tomado conhecimento de que o exército se achava aqui e quiseram nos neutralizar, para que não soubéssemos o que estavam fazendo... contudo, no presente momento, devo cuidar dos feridos. E você, Melora, precisamos muito de alguém para cuidar das mulheres. Como sempre acontece durante qualquer insurreição, duas ou três mulheres, uma das damas da corte e uma das criadas da cozinha, e também uma das lavadeiras do exército resolveram dar à luz exatamente agora, portanto, há muito mais trabalho do que uma parteira possa resolver sozinha. Avarra seja louvada, uma sacerdotisa de Avarra encontrava-se aqui, só a deusa sabe o motivo, e ela está cuidando dessas mulheres, porém há algumas que se feriram também no desmoronamento, e seria bom se você, Melora, pudesse ir dar uma mão à curandeira...
— Claro que irei — retrucou Melora, dirigindo-se para o outro lado do salão, e Bard após um instante de reflexão, seguiu-a. Carlina, aqui... e na qualidade de sacerdotisa de Avarra! Como? Se ele tivesse sido coroado rei desta terra seria a rainha...
Encontrou-a debruçada sobre uma mulher com um braço e uma perna cheios de ataduras, bem como um olho e a cabeça também enfaixados. Ela viu Melora e perguntou depressa:
— Você é uma curandeira? Sabe alguma coisa a respeito de parto? Uma das mulheres já deu à luz antes, posso deixá-la entregue às criadas sem que isto signifique qualquer risco para ela, porém esta mulher vai morrer, e há uma outra em trabalho de parto, e que já está com mais de trinta anos, e tendo o primeiro filho, e uma outra mocinha tendo o primeiro...
— Não sou uma parteira, mas sou mulher e me ensinaram alguma coisa sobre tratamentos — informou Melora.
Carlina olhou seu rosto redondo à luz da lâmpada mortiça.
— Melisendra... — disse ela, em seguida parou de falar e piscou. — Não, você nem se parece muito com ela, não é? Deve ser a irmã dela, a leronis... não temos tempo de lhe perguntar, sequer, como chegou até aqui, porém, em nome de Avarra, eu a abençôo! Pode vir, então, me ajudar a tratar dos doentes?
— Com todo o prazer — replicou Melora. — Onde estão as mulheres em trabalho de parto?
— Nós as levamos para aquele cômodo ali, que, antigamente, ser-via como estúdio do rei. Inclinou-se outra vez sobre a mulher moribunda, pôs a mão sobre a sua testa e sacudiu a cabeça.
— Ela não acordará mais — disse ela, e dirigiu-se para o cômodo para o qual tinha mandado Melora; porém Bard tocou de leve na manga de seu manto.
— Carlie — murmurou ele.
Ela recuou assustada. Depois, talvez sentindo que ele não lhe representava uma ameaça, relaxou e disse:
— Bard. Não esperava vê-lo por aqui...
Ele viu a mancha escura no rosto dela. Misericordiosa Avarra, fiz isto com ela... porém não teve tempo para sentir vergonha ou autopiedade. Até a sua humilhação junto a Carlina podia esperar. Sua terra encontrava-se sob ataque de Aldaran e nas mãos de um usurpador.
— Que absurdo é este sobre eu ter sido coroado hoje e casado com outra mulher?
— Casado? Coroado? Não sei de nada, Bard, fiquei aqui o dia todo, a partir do instante em que a outra ala ruiu, socorrendo os enfermos e feridos. Não tive tempo para mais nada... apenas para engolir um pouco de pão e queijo...
— Não há mais ninguém para fazer este trabalho, Carlie? Você me parece tão extenuada...
— Oh, estou acostumada com isto, este é o trabalho de uma sacerdotisa... — explicou com um sorriso débil nos lábios. — E se bem que você talvez não acredite, Bard, isto é o que sou. Talvez eu tenha ficado protegida durante tempo demais, talvez necessitemos mais das sacerdotisas no mundo do que na Ilha Sagrada.
— Melisendra... ela está...
— Ela se encontrava ao meu lado no momento do ataque; não se feriu. E seu filho está bem, disseram-me. Esteve o dia todo ao lado de Mestre Gareth. Bard, não disponho de tempo para lhe dedicar agora, estas mulheres estão morrendo. E os homens, também... sabe que mais de cem homens foram feridos, que doze deles já faleceram, portanto, amanhã teremos que contar com todo um regimento de soldados para cavar sepulturas em algum lugar, e alguém para comunicar o fato às suas famílias... Bard, será que poderia enviar alguém até a Ilha Sagrada, para pedir às sacerdotisas que venham e ajudem-me com os feridos e os agonizantes? Se mandar mensageiros rápidos, eles poderão chegar lá ao clarear do dia...
— Claro que posso fazer isto — respondeu muito sério —, mas será que atenderão a qualquer homem, será que virão?
— Pelo Rei das Astúrias, talvez não. Mas talvez por mim, se ficarem sabendo que fui eu quem as mandou chamar, Irmã Liriel...
— Mas não existe nenhum homem que possa chegar sequer às praias do Lago do Silêncio, Carlie, sem que se exponha às suas bruxarias malignas... — calou-se. Não, as bruxarias não eram malignas; elas apenas estavam se protegendo. Disse com humildade: — Nenhum homem é capaz de atravessar as proteções que elas puseram ao seu redor sem morrer de pavor.
— Mas uma mulher pode fazer isto — retrucou Carlina. — Bard, no seu exército, não tem nenhuma das integrantes da Irmandade da Espada? Elas também viajam sob a proteção de Avarra.
— Penso que todas elas me abandonaram, Carlina. Contudo, irei perguntar aos meus sargentos; haverá algum dentre eles que deverá estar a par disto.
— Pois então mande uma delas, Bard. Peça-lhe para ir até lá transmitir o meu recado, e elas virão...
Bard começou a dizer que não pedia a ninguém de seu exército para fazer o que ele — ou ela — estava obrigado a fazer por um comandante legítimo, mas calou-se. Se Carlina podia pedir, ele também podia fazer o mesmo. Disse:
— Mandarei amazonas rápidas imediatamente, senhora — e afastou-se, deixando-a perplexa, sabendo que algo de muito estranho tinha acontecido, não apenas no Reino das Astúrias, mas no íntimo do próprio Bard.
Bard afastou-se rumo aos estábulos, pensando com alívio que Carlina, pelo menos, não se aproveitara daquele momento para escarnecer dele e censurá-lo. Ela tinha direito de fazer uma cena se assim desejasse. Também lhe fizera mal. No entanto, a tragédia maior tinha anulado qualquer consideração pessoal, como acontecera com ele mesmo.
Um dos sargentos informou-o de que quando os prisioneiros e as mercenárias de seu exército tinham fugido juntos, uma das mulheres encontrava-se muito doente para viajar, e uma outra das irmãs ficara para tratar e cuidar dela. As duas estavam instaladas numa pequena tenda, no local onde se encontravam acampadas as seguidoras e as lavadeiras do exército, depois das casernas do exército regular. Bard começou a dizer, peça-a para viajar imediatamente com rapidez e mande alguém para cuidar da amiga dela, depois se deu conta de que estava pedindo, a alguém a quem tinha negado proteção adequada, um serviço extraordinário. Era melhor que fosse pessoalmente.
Perdeu-se duas ou três vezes no acampamento do exército, antes de, finalmente, encontrar o local onde estavam vivendo o que restara das seguidoras do exército.
Ali onde estava o exército, mesmo no rastro da catástrofe, as coisas se mostravam quase normais. Os homens que não tinham sofrido ferimentos graves estavam sendo tratados pelos companheiros, e algumas das mulheres tinham sido pressionadas para auxiliarem. Umas poucas dentre as mulheres que seguiam o exército olharam para Bard com um sorriso atravessado, e ele percebeu que não tinha sido reconhecido. Isto despertou as recordações dos tempos em que fora um soldado mercenário, então pensou em Lilla, e no filho dela, que, provavelmente, também era seu filho. Não causara nenhum mal a Lilla como tinha feito com relação a muitas outras mulheres, e era provavelmente por isto que ela nem esperara nem precisara de nada dele, a não ser um pouco de dinheiro que ele pôde separar de seu soldo de soldado para cuidar do filho. Ela não lhe dera nenhuma oportunidade para magoá-la, e assim não a pôde magoar de forma alguma.
Sim, fiz mal a muitas mulheres. Mas, talvez, as mulheres não fossem todas tão isentas de culpa também. Viviam de um modo tal que podiam ser destruídas pelos homens... até certo ponto, ele não podia receber uma carga maior de culpa do que qualquer outro homem de seu mundo. Todos os homens de seu mundo. Então todo mundo era digno de culpa?
— Ora, ora, capitão — disse uma das seguidoras de acampamento —, está procurando algum divertimento?
Ele sacudiu a cabeça. Evidentemente ela não o reconhecera, nem ao seu posto e pensar que fosse um soldado comum, capitão era uma palavra elogiosa, apenas isto.
— Esta noite não, minha pequena, tenho coisas mais importantes em minha mente. Pode me informar onde as irmãs, as abnegadas, estão alojadas?
— Não conseguirá nada, nenhum tipo de prazer com aquelas duas, senhor, elas usam punhais como beijos, e o general avisou que teria algo bem pior para qualquer um que se intrometesse com elas.
Bard sorriu com pena e retrucou:
— Acredite se quiser, bonitinha, um homem tem outras coisas na sua mente de vez em quando, por mais difícil que isto possa lhe parecer — ele percebeu que não havia maldade na pequena. — Tenho uma mensagem para transmitir a uma delas da parte de... — hesitou — da laronis que está trabalhando no hospital de campanha. E se é capaz de se concentrar neste tipo de coisa, há trabalho lá para qualquer pessoa.
— O que faria alguém da minha classe ajudando uma leronis, senhor? — perguntou ela com os olhos fixos no cascalho sob seus pés.
— Ora, poderia carregar água, enrolar ataduras e alimentar os doentes sem condições de se sentarem para comer — explicou Bard. — Por que não vai até lá e tenta?
— O senhor está certo, capitão, este não é o momento apropriado para estar se deitando por aí, com tanta gente ferida. Acho que muitas dentre nós poderiam ser aproveitadas na enfermagem. Vou até lá dar uma espiada. E se está tentando encontrar a irmandade, senhor, há duas integrantes dela naquela tenda lá adiante, porém... — olhou-o — não tenha idéias sujas. Uma delas está tão mal, que nem pode se sentar, e a amiga está apenas tratando dela. Os homens a pegaram antes do general ter dado suas ordens, e com elas não é a mesma coisa que é com mulheres iguais a mim, senhor, ela não estava acostumada... e eles a machucaram muito — sua revolta era sincera. — Homens deste tipo deveriam ser tratados com coisas bem piores do que chicotadas, senhor.
Avarra misericordiosa! Toda a antiga vergonha e culpa caíram novamente em cheio sobre Bard. Falou, deixando a mulher boquiaberta:
— Você está com toda a razão — e partiu rumo à tenda que lhe fora indicada. Não teve coragem de se aproximar. As mulheres que ali se encontravam haveriam de atacar, depois de tudo por que tinham passado, o primeiro homem que se aproximasse e, depois, é que fariam as perguntas desejadas. Ele falou, baixinho, de onde se achava:
— Mestra...
Uma mulher apareceu na porta da tenda, agachou-se para sair e pôs-se de pé. Envergava a túnica da irmandade, em couro vermelho, que ia até os joelhos e aberta na frente para que pudesse cavalgar, e os cabelos, cortados bem rentes, estavam em desalinho. Falou decidida:
— Continue a falar baixo! Minha irmã se encontra muito mal!
Ela era alta e magra, e trazia uma faca presa à cintura. Uma argola dourada cintilava na orelha.
— Sinto muito pelos ferimentos dela — disse Bard —, mas trago-lhe um recado da leronis que está trabalhando no hospital de campanha. Preciso que alguém vá o mais rápido possível até Marenji e o Lago do Silêncio — ele começou a explicar, e a mulher olhava-o, confusa. Bard deslocou-se para o círculo de luz deixado por uma lanterna presa a uma estaca sobre a rua do acampamento, e ela o reconheceu.
— Lorde General! Muito bem, senhor, irei e com todo o prazer, porém... porém minha irmã está precisando muito de minha assistência. O senhor está a par do que aconteceu...
— Sim, estou, mas não a poderia levar para o hospital de campanha? Se está tão ferida assim, precisa de maiores cuidados do que aqueles que lhe pode dar, e, tenho certeza, a sacerdotisa de Avarra tratará dela.
A abnegada olhou para ele muito séria, porém havia lágrimas nos olhos dela. Disse:
— As sacerdotisas... elas são virgens sagradas, senhor, e não haveriam de querer se envolver com a irmandade. Elas julgam, sem dúvida alguma, que não somos mulheres dignas. E o que poderiam saber sobre uma mulher que foi estuprada tantas vezes, e... e ela está infectada, senhor...
— Vá e verá que ela é mais simpática do que possa imaginar. As sacerdotisas de Avarra fazem o juramento de auxiliar todas as mulheres. — Isto ele tinha visto na mente de Carlina. — Mas deve partir já. Providenciarei uma maca para que sua irmã seja transportada para o hospital.
Ele voltou na direção da caserna, gritando para que lhe trouxessem uma maca. Em poucos minutos a mulher ferida estava sendo carregada para o lado de fora, com todo o cuidado, e sua irmã e amiga estava inclinada sobre ela:
— Tresa, breda, estas pessoas irão levá-la até uma leronis, que a poderá ajudar melhor do que eu...
Virou-se para Bard e falou, com a voz trêmula:
— Detesto deixá-la com estranhos...
— Mestra, eu mesmo a entregarei nas mãos da leronis, porém a sua tarefa só pode ser feita por uma mulher; nenhum homem conseguirá se aproximar do Lago do Silêncio.
Carlina trataria da moça; e se, por algum motivo, Carlina não o pudesse fazer, ele tinha certeza de que Melora saberia como cuidar daquele caso.
Carlina ainda andava de um lado para o outro, em meio às mulheres feridas num cômodo, e às que se achavam em trabalho de parto num outro, quando mandou que levasse a mulher para dentro. Melora estava enrolando um recém-nascido numa manta.
— Trouxe uma outra para você tratar — avisou Bard, e explicou o que tinha acontecido.
— Claro, não há nenhuma dúvida quanto a isto — prometeu Carlina, e ele teve a sensação de que o olhar que ela lhe dirigia era de perplexidade, desde quando você se envolve pessoalmente com coisas assim?
— Ela é um soldado e um prisioneiro — esclareceu, aborrecido e na defensiva. — E foram os meus homens que a machucaram, que inferno! Julga-se virtuosa demais para tratar dela?
— Bard, mas é claro que não. Disse-lhe que trataríamos dela. Vocês, mulheres... — falou, dirigindo-se às mulheres que tinham insistido em carregar a maca, tirando-a das mãos dos soldados. — Estou precisando de todos os braços disponíveis! Mesmo aquelas dentre vocês que nada sabem sobre enfermagem podem alimentar os feridos, carregar bandejas, ferver água e preparar mingau!
Bard lançou um olhar na direção do céu, lá fora relampejava. O dia quase despontava.
— Mandarei os cozinheiros do exército prepararem o mingau — prometeu ele.
Qualquer soldado de serviço podia ser enviado com aquela mensagem, e só precisou de um minuto para dar suas ordens. Colocou um sargento à disposição de Mestre Gareth e de Dom Varzil. O sargento era um veterano que tinha servido junto a ele em muitas campanhas e nunca pensou em questionar a identidade de Bard. Enquanto ele fazia uma continência e dizia:
— Como queira, Lorde General — Bard refletiu que seu pai tinha trazido Paul para este mundo a fim de que, na verdade, ele, Bard, pudesse estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. Muito bem, isto estava acontecendo; o Lorde General, recém-coroado rei, encontrava-se nos aposentos reais com sua recém-feita rainha, e o Lorde General se achava ao mesmo tempo dando ordens no hospital de campanha.
Meu pai só se importava comigo como um instrumento para a sua ambição pessoal!
Tinha acreditado naquilo durante toda a vida. Mas agora sabia que não era verdade. Isto por que, muito antes que Dom Rafael pudesse sequer imaginar se seu filho seria um soldado, um estadista, ou um laranzu, seu pai mandara buscá-lo do lado de sua mãe, educara-o na sua própria casa: recebera lições das principais artes, fora criado por sua mulher, dera-lhe cavalos, galgos e falcões, educara-o como um filho de nobre, privara-se até mesmo da companhia do filho para mandá-lo ser criado na corte do lado da princesa e nobres como irmãos de criação. É, seu pai o tinha amado de modo altruísta, não apenas para seu próprio bem. E mesmo a mãe, que abrira mão dele... — Bard sabia, olhando para o amanhecer e para o descomunal sol vermelho que despontava sobre as colinas de Kilghard, que sua mãe também devia tê-lo amado; o bastante para chegar ao ponto de abrir mão dele para que pudesse ser educado como o filho de um nobre e não ter que largar o couro numa fazenda deficitária na colina. Ficou pensando, pela primeira vez em toda a vida, se esta mãe desconhecida ainda estaria viva. Agora, nunca mais poderia formular esta pergunta ao pai. Mas, quem sabe, talvez Lady Jerana soubesse, e ela tinha sido boa para ele, lá ao seu modo; e teria sido melhor ainda, caso ele o tivesse permitido. Ele iria se humilhar junto a Lady Jerana, se fosse o caso, para obter o nome de sua mãe, saber em que ponto das colinas ela morava, para que ele pudesse ir se ajoelhar aos seus pés e honrá-la por tê-lo amado tanto, a ponto de abrir mão dele em favor do amor de seu pai.
Seus olhos encheram-se de lágrimas.
Fui amado a vida toda e jamais me dei conta.
O que está acontecendo comigo? Tenho vontade de chorar o tempo todo! Trata-se apenas de laran ou terei me transformado numa manteiga derretida, num maricas, no tipo de homem que sempre desprezei...
Ele acabaria se habituando com o que tinha acontecido; sabia disto. Mas também sabia, bem no fundo de sua alma, que se tornara um outro homem. Estava surpreso, mas não envergonhado, diante do homem em quem se transformara. Sua vergonha achava-se dirigida para o homem que tinha sido, e este homem encontrava-se morto. Não precisava desperdiçar nem sentimento de culpa nem de vergonha para como o antigo Bard.
Precisava encontrar tempo disponível para tornar a conversar com Carlina. Não tinham resolvido o que estava entre eles. No entanto, seu trabalho era para com os vivos, e o Bard morto não poderia ser mais interessante para ela do que o era para ele próprio. E assim, quando os primeiros raios do sol surgiram no céu, ele saiu à procura de Paul Harrell e de Melisendra.
Ao amanhecer, tendo Dom Varzil feito tudo que estava ao seu alcance no hospital de campanha, mandara Mestre Gareth, sob protesto, descansar.
— Algumas horas não farão diferença.
— O senhor trabalhou também a noite inteira e cavalgou durante todo o dia anterior. E também não é mais nenhum jovem, Dom Varzil! — falou Mestre Gareth.
— Sei disto, mas sou mais moço que você e tratarei daquilo que for preciso. Vá descansar! — disse ele, endireitando o corpo, que não era muito alto, e falando em tom de comando.
Mestre Gareth deixou escapar um suspiro:
— Já faz muito tempo desde que um homem me deu ordens, senhor, mas lhe obedecerei.
Dom Varzil, após a saída do laranzu idoso, organizou para que fossem alimentados os que podiam comer e para que fossem cuidados os sem condições, dirigindo-se depois para o setor das mulheres. Lá encontrou Melora, com o vestido preso e com um lençol amarrado em volta do corpo.
— Muito bem, criança, como vão as coisas por aqui?
— Astúrias conta com três novos habitantes — disse ela rindo —, não importa quem seja o rei. O filho de um soldado e de uma criada da cozinha, e a julgar pelos cabelos ruivos, um leronis para seu conselho. Ignorava que tivesse talento para realizar o trabalho de uma parteira, mas também não sabia, até ontem, que seria capaz de andar a cavalo.
— Certo, ficar circulando por aí sem parar é a melhor maneira de prevenir as dores provocadas por toda esta interminável viagem a cavalo, mas agora, breda, deve se retirar e ir descansar. E a senhora também, boa mãe — disse, olhando para Carlina em seu manto negro.
— É — concordou ela, passando as mãos sobre os olhos cansados —, acho que já fiz tudo quanto podia por aqui. Estas mulheres podem cuidar das doentes enquanto descanso um pouco.
— E quanto ao senhor, vai tenerêzu? — indagou Melora.
— O exército foi colocado à minha disposição — disse ele —, consultarei Bard, não importa se é Lorde General ou rei, mas antes disto... — olhou na direção do céu borrascoso — irei até lá fora e enviarei pássaros-sentinela, para verificarem se nos achamos ou não sob ataque de Aldaran. Caso estejam mandando um exército contra as Astúrias, Bard terá que arranjar um jeito de detê-lo em Kadarin. E em caso negativo... bem, pensaremos nisto mais tarde.
Ele se retirou, e Carlina ficou olhando, inesperadamente consciente de que não tinha bebido nem comido nada, desde que Melisendra lhe servira um prato de sopa e o creme, na véspera.
— Dom Varzil dirigiu-se a mim como se eu fosse uma sacerdotisa de Avarra — comentou ela.
Nenhuma das mulheres achou estranho o fato de Melora saber com precisão o que tinha acontecido a Carlina e por quê.
— Você pertence à deusa ainda, não é mesmo? — indagou Melora.
— Sempre. Contudo, ainda que pudesse retornar ao Lago do Silêncio, não tenho certeza de que o faria. Creio que temos ficado isoladas demais, na nossa ilhazinha tão segura, protegidas por encantos poderosos e sem nos importarmos com o que está acontecendo no mundo exterior. Contudo... como podem as mulheres viverem juntas, solteiras, em segurança?
— A Irmandade da Espada procede assim — observou Melora.
— Mas elas contam com meios de proteção que nós não temos — observou Carlina, e pensou: eu, pessoalmente, nunca seria capaz de brandir uma espada, sou uma curandeira, uma mulher... e não me parece que seja meu dever, que faça parte da vida feminina, guerrear, mas sim cuidar dos necessitados...
— Talvez — falou Melora, hesitante — a deusa precise das duas irmandades, uma para ser forte, e a outra para ajudar e tratar...
O sorriso de Carlina era incerto:
— Não creio que elas tenham grande respeito com relação ao nosso modo de viver, nós... — agora o sorriso era triste — também não respeitamos o delas.
— Então — disse Melora, e o tom de sua clara voz não era de comando, porém poderia ter sido — vocês devem aprender a respeitar, cada qual, o modo de viver das outras. Vocês também são abnegadas. E as pessoas são passíveis de mudanças, sabe disto muito bem.
É verdade, pensou Carlina, se Bard pode passar por uma mudança tão profunda, deveria haver esperanças para que qualquer pessoa na face deste mundo agitado possa se transformar! Preciso conversar com Dom Varzil a este respeito; como protetor de Neskaya, talvez tenha algumas respostas para nós.
— Desculpe-me, madre... — disse Melora, usando o tratamento de respeito devido a uma sacerdotisa — mas a senhora é a Princesa Carlina, não é?
— Eu era. Renunciei este nome já faz muito anos. — Angustiada, Carlina percebeu que, segundo a legislação vigente, era a mulher legítima de Bard. E se ele a tivesse deixado grávida? O que faria eu com uma criança? Filha dele!
— Foi o que pensei. A última vez que a vi foi no Festival do Solstício de Verão, porém não creio que me tenha notado, eu era apenas a filha de Mestre Gareth...
— Observei-a sim. Dançando com Bard — falou Carlina, e então, como ela também tinha laran, comentou: — Você o ama. Não é mesmo?
— É verdade. Não creio que ele saiba disto. — De repente, Melora deixou escapar uma risadinha nervosa. — Soube que o Lorde General foi coroado e casou-se ontem. E como exige a legislação, a senhora é a mulher dele, prometida a ele. Logo, por enquanto, tem pelo menos uma mulher legítima a mais. Estou certa de que ele vai querer se livrar de, no mínimo, uma delas... e, se realmente o conheço, de ambas. Talvez, Carlina... Madre Liriel... este mal-entendido acabará dando certo, de vez que toda a questão relacionada ao casamento dele terá que ser esclarecida através da legislação.
— Vamos esperar que sim — anuiu Carlina e, num impulso, pegou a mão de Melora.
— Venha descansar, vai leronis. Posso arranjar um lugar para você entre as damas da corte. Vou mandá-las descer para fazerem o que estiver ao seu alcance pelos feridos e doentes, e você deve dormir.
Enquanto isto, Bard di Asturien atravessava os corredores do castelo rumando para os aposentos que vinha ocupando desde que Alaric fora coroado e o tinha designado Lorde General. Do lado de fora havia um guarda, informando-o de que o Lorde General... ao que se supunha... achava-se lá dentro.
Bard refletiu por um instante. Ele poderia, é claro, avizinhar-se da porta e exigir, na qualidade de Lorde General, que o deixassem entrar. A maioria dos homens do exército conhecia o Lobo de Kilghard de vista. Contudo, ainda não se sentia inteiramente preparado para a confrontação. Portanto, após um momento ele deu a volta, atravessou um arco, para ir até uma entrada nos fundos, cuja existência só era conhecida pelos seus homens de extrema confiança.
Caminhou através dos aposentos como se nunca os houvesse visto antes. Não tinha mesmo. O homem que tinha dormido ali, há apenas algumas noites, era um homem diferente. No imenso quarto de dormir eles descansavam num sono profundo, Paul, deitado de costas, e Bard olhou para seu próprio rosto com um interesse estranho e moderado. Melisendra estava toda encolhida de encontro a ele, a cabeça apoiada em seu ombro e, mesmo dormindo, Bard pôde ver o modo protetor como o braço de Paul a envolvia. Seus cachos ruivos estavam soltos, cobrindo o rosto dele.
Bard refletiu, com indiferença, que se acaso os tivesse encontrado daquele jeito, nos seus aposentos, antes, não teria perdido tempo em sacar seu punhal e cortar-lhes as gargantas. Mesmo agora, tinha pensado naquilo por um instante. Paul procurara usurpar-lhe o trono; havia sido coroado em seu nome e, casando-se com Melisendra à vista de metade do reino, tinha dado ao trono das Astúrias uma rainha que teria que ser, de alguma forma, repudiada publicamente. Mesmo que Paul pretendesse abrir mão da identidade de Lorde General, isto ainda mantinha Bard casado com Melisendra! Que complicação! E pelo que ele fizera, tornara Carlina sua esposa legítima e também não poderia repudiá-la publicamente. Como, em nome de todos os deuses, iria ele solucionar isto? Por um momento, considerou a possibilidade de fugir daquele cômodo tão silenciosamente quanto ali tinha penetrado, pegar seu cavalo e voltar outra vez para as colinas. Não desejava o Reino das Astúrias. Tinha certeza de que encontrariam uma outra pessoa qualquer, mesmo quando tomou conhecimento da morte do pai e de Alaric. Além de Kadarin havia dúzias de pequenos reinos e antes já havia conquistado seu caminho, como mercenário...
Porém, o que sucederia aos seus homens, caso tomasse esta atitude? Paul não sabia de nada nem se importava com eles. O que aconteceria a Carlina, à promessa que fizera à Irmandade da Espada, a Melisendra, a Melora? Não, ainda tinha muitas responsabilidades ali. E afinal, ele tinha deixado Paul, reconhecidamente, para preencher o seu lugar de Lorde General. Talvez Paul tivesse, simplesmente, tentado proteger seu bom nome e reputação... o que pensariam a seu respeito, no final das contas, se viesse à tona que no momento do covarde ataque contra o Castelo das Astúrias o Lorde General tinha fugido às pressas para ir chorar no ombro de uma mulher pelos crimes cometidos? Paul deve ter uma oportunidade para se explicar; não o haveria de matar enquanto dormia.
Inclinou-se sobre Melisendra, fitando-a com uma ternura que o surpreendeu, olhando para seus cílios claros pousados sobre as maçãs do rosto, para a plenitude de seus seios, onde a fina camisola, tão diáfana, revelava-lhe o tom róseo da sua pele. Ela lhe dera Erlend, e por isto, pelo menos, ele sempre deveria lhe revelar seu amor e gratidão.
Então sacudiu levemente o ombro de Paul.
— Acorde, Paul.
Paul sentou-se na cama, sobressaltado. Imediatamente alerta, ele reparou na expressão tensa estampada no rosto de Bard, e soube, de imediato, que estava em eminente perigo de vida. Seu primeiro pensamento foi proteger Melisendra. Pôs-se de pé com um pulo, colocando-se entre Bard e a mulher.
— Nada disto aconteceu por culpa dela!
O sorriso de Bard surpreendeu-o. Ele parecia apenas divertido.
— Sei disto. Aconteça o que acontecer, não machucarei Melisendra.
Paul revelou-se menos tenso, mas ainda se mostrava preocupado.
— O que está fazendo aqui, deste jeito?
— Minha intenção era lhe perguntar exatamente a mesma coisa. Afinal, este quarto me pertence. Soube que o coroaram na noite passada. E... casaram-no com Melisendra. Será que pode me culpar por imaginar que meteu na sua cabeça a idéia de reivindicar o trono das Astúrias? Quase não me deixaram entrar no castelo na noite passada porque tinham a nítida impressão de que eu fosse uma espécie de impostor.
Por algum motivo, Bard notou que os dois estavam falando aos sussurros. Mas, apesar disto, suas vozes despertaram Melisendra; ela se sentou na cama, os cabelos caídos sobre o peito. Olhou com os olhos arregalados para Bard. Depois, muito depressa, implorou:
— Bard! Não! Não o machuque! Ele não pretendia...
— Deixe que ele mesmo responda e me revele quais eram as suas intenções — vociferou Bard, e sua voz soava como aço.
Paul trincou os dentes:
— O que esperava que eu fizesse? Eles me procuraram e declararam que eu era o rei, exigiram que me casasse com Melisendra! Esperava que lhes dissesse: Oh, não, não sou o Lorde General, da última vez em que foi visto ele rumava para Neskaya? Não me perguntaram o que deviam fazer; disseram-me o que fazer! Se tivesse voltado em tempo... mas não, você estava longe, tratando de assuntos pessoais e deixou-me aqui para cuidar de tudo... nem se deu ao trabalho de perguntar por seu filho! Você está tão preparado para governar este reino quanto... quanto ele, e isto não é um elogio, pois imagino que qualquer coisa que vestisse calças seria capaz de fazê-lo melhor do que você! Se conseguisse afastar sua mente das suas mulheres durante dez minutos e prestar atenção naquilo que se espera que faça...
Bard tirou o punhal da bainha. Melisendra gritou, e três guardas irromperam dentro do quarto. Ao depararem com Bard usando uma farda de soldado e Paul com sua roupa de dormir, agarraram-se de imediato à conclusão óbvia, e partiram na direção de Bard com suas espadas em riste.
— Sacar uma arma na presença do rei, o que significa isto? — gritou um deles, e instantes depois Bard viu-se desarmado, mantido entre dois dos guardas.
— O que faremos com ele, Lorde General... peço-lhe perdão... Sua Majestade?
Paul ficou olhando do guarda para Bard, percebendo que as coisas estavam indo de mal a pior. Não desejava ver o pai do filho de Melisendra morto diante de seus olhos. Paul se deu conta, angustiado e um pouco tarde demais, de que não estava zangado com Bard de forma alguma.
Que inferno! Afinal, fui para a caixa de estase por não conseguir me manter longe das mulheres erradas. Quem sou eu para atirar pedras nele? E, no entanto, caso eu admita que ele é o rei, e o Lorde General, então estou na cama com a rainha, e por tudo que já sei sobre este país, isto também será considerado um crime hediondo... isto para não mencionar o orgulho de Bard! Se os mandar matá-lo, Melisendra, provavelmente, lhes revelará quem sou eu. Se agir de outra forma, seria muito melhor para mim se ainda me encontrasse na caixa de estase! Isto por que, tenho certeza absoluta, eles têm aqui a pena de morte... e provavelmente algumas saídas inteligentes para adotá-la.
O guarda mais graduado olhou para Paul e indagou:
— Meu senhor...
— Está havendo algum engano por aqui, acho que... — observou Bard.
— Sem dúvida alguma, há alguém aqui cometendo um erro — disse um dos guardas, revoltado. — Este homem tentou entrar no palácio na noite passada declarando ser o Lorde General; ele até conseguiu enganar Lorde Varzil de Neskaya! Acho que é um espião de Hastur. Devemos levá-lo, senhor, e enforcá-lo?
Melisendra pulou para fora da cama, com sua camisola transparente, sem se importar com os olhares perplexos dos guardas. Abriu a boca para falar. E, neste exato momento, ouviu-se um grito no corredor e um mensageiro entrou.
— Meu rei! Um enviado dos Hasturs, trazendo uma bandeira de trégua! Dom Varzil de Neskaya manda lhe dizer que o senhor deveria ir vê-los, já, no salão do trono!
Os guardas giraram com rapidez. Bard disse:
— Impossível. O salão do trono está repleto de feridos e doentes; teremos que recebê-los no gramado. Ruyvil... — falou, dirigindo-se ao mais jovem dos guardas — você me conhece, não é mesmo? Lembra-se da campanha para Hammerfell, quando discuti com o Rei Ardrin e consegui que você nos acompanhasse, e como o estandarte de Beltran enrolou-se na sua lança?
— Lobo! — exclamaram os guardas, em seguida, viraram-se, ameaçadores, para Paul.
— Quem é este homem?
Bard respondeu rápido:
— Meu ajudante e meu representante. Tive que rumar para Neskaya a fim de tratar de assuntos urgentes e deixei-o aqui; e ele foi c-roado por procuração...
O mais velho dos guardas — que tinha perguntado se podia levar Bard e enforcá-lo — indagou de forma suspeita:
— E casou por procuração também?
O jovem Ruyvil retrucou:
— Não se dirija desta forma ao rei, cabeça de ovo, ou descobrirá que sua cabeça está caída sobre seu ombro! Acha que não conheço o Lobo de Kilghard? Eu poderia ser expulso do exército por isto! Pensa que um impostor saberia aquilo que me perguntou?
Paul disse suavemente, pegando a deixa que Bard lhe dera:
— Não sou tão ousado a ponto de me intrometer no casamento de meu rei. Ele me havia prometido Melisendra; e casei-me com ela. Sua Majestade... — olhou rapidamente para Bard, e a mensagem foi clara, saia dessa da maneira que quiser, agora — não poderia ter se casado com Melisendra, nem mesmo que o desejasse; está legalmente casado com outra pessoa.
Bard olhou para Paul com uma expressão de agradecimento nos olhos. Disse:
— Vá e comunique aos enviados que irei me encontrar com eles tão logo me seja possível, assim que tiver me barbeado e vestido. E mande avisar a Lorde Varzil de Neskaya, também. — Quando os guardas e o mensageiro já haviam se retirado, virou-se para Melisendra e falou: — Acredite se quiser, pretendia casá-la com Paul; porém vocês se anteciparam a mim. Terei que ficar com Erlend; ele é o meu único herdeiro.
O queixo dela tremeu, porém replicou:
— Não me porei no caminho dele.
E Bard pensou na mãe desconhecida que o tinha dado a Dom Rafael para que fosse educado como um nobre. Afinal, todas as mulheres seriam tão altruístas assim? Disse rispidamente:
— Cuidarei para que ele não se esqueça de que é seu filho também. Vamos, que inferno!, não quero alarido antes do café da manhã! Mandem chamar meu camareiro para que traga roupas adequadas para uma audiência! E Paolo, corte seu cabelo... queremos acabar com a semelhança... você ainda está em maus lençóis!
Enquanto Paul dirigia-se para outro cômodo, Melisendra colocou uma mão em seu braço.
— Estou contente... — avisou ela, e sorriu. Paul abraçou-a.
— O que mais poderia fazer? — indagou ele. — Se tivesse feito qualquer outra coisa, estaria me prendendo a este reino!
E percebeu, totalmente assombrado, que falara a verdade. Não invejava Bard. Nem um pouquinho. E talvez... talvez... as coisas tivessem sido arranjadas de forma que ele não precisasse matar Bard para que também não acabasse sendo morto por ele. Isto nunca teria sido possível... com o Bard que tinha conhecido antes. Porém alguma coisa acontecera com Bard no curto espaço de tempo desde que ele trouxera Carlina do Lago do Silêncio. Não sabia o que fora; realmente, este era um outro homem. Melisendra, pensou ele, sabia a que se devia aquela transformação e, talvez, algum dia, ainda lhe contasse tudo.
Ou talvez o próprio Bard o fizesse. Agora, não havia mais nada que o pudesse surpreender.
Barbeado, vestido, os cabelos presos com o cadarço vermelho de um guerreiro, Bard olhou-se no espelho. Parecia ser o mesmo homem, mas continuava se sentindo um estranho em sua própria pele, sem saber o que faria depois. Paul tinha feito a coisa certa, sem querer... embora não tivesse esperado que isto acontecesse; receara que Paul tentasse blefar até o fim e, nesse caso, a única alternativa seria matá-lo.
Não. Não o teria matado. Já destruí gente demais. Talvez eu mesmo o abatesse, num momento de fúria, mas não teria coragem de ficar lá com o sangue frio e dar ordens para que o matassem. Agora ele já está integrado demais à minha personalidade, faz parte de mim mesmo. E tudo acabou dando certo, pois estou livre de Melisendra.
Contudo, ainda continuava preso por lei a Carlina, e caso ela necessitasse do amparo legal deste casamento... se, por exemplo, que todos os deuses não o permitissem, ele a tivesse deixado grávida... ele não poderia, agora, negar-lhe que ocupasse sua posição como rainha. Todo o seu coração clamava por Melora; contudo, embora soubesse que haveria de amá-la por toda a vida, não podia se dedicar a ela, atirando Carlina na sarjeta ou ignorando o direito que tinha sobre ele.
Seja cuidadoso quando implorar aos deuses um dom; pois eles haverão de atendê-lo. E recordou-se de Melora, naquela noite fatídica do festival, dizendo-lhe que nem chegaria aos pés de Carlina.
Se eu tivesse tido, apenas, o bom senso de ir procurar Carlina, e então oferecer-lhe a liberdade de um casamento que nenhum de nós desejava... porém, nem mesmo um deus tem a capacidade de trazer de volta as folhas que já caíram. Tecera esta trama confusa junto com Carlina, e a menos que ela pudesse ser desenredada de modo honrado, ele viveria dentro da sua espiral.
Parecia-lhe, embora se mantivesse o mais ereto possível, que o homem no espelho estava encurvado sob um grande peso. Sim, esta terra das Astúrias, onde não tinha a mínima vontade de reinar, encontrava-se agora sobre seus ombros. Oh, meu irmão! Eu teria sido seu general com tanta boa vontade, e não ter que usar a sua coroa! Contudo, o vinho tinha sido servido e precisava ser bebido. Afastou-se do espelho, cerrando os dentes e endireitando os ombros. Suas legiões tinham escolhido o Lobo de Kilghard para governá-las, e assim será.
Um baldaquim e uma cadeira tinham sido colocados no gramado para que Bard os usasse em vez do trono. Ele olhou, com uma incredulidade triste, para as filas de cortesãos que se inclinavam, para os guardas e soldados que se postavam em posição de sentido à sua passagem. Jamais vira tanta formalidade quando se tratara de seu pai, ou do Rei Ardrin. Simplesmente tinha admitido aquilo como justo. Pensou rápido que estava muito bem que da primeira vez que ascendia ao seu trono, esse não passasse de um baldaquim e uma cadeira. Recordou-se de que tinha tropeçado aos pés do trono de Ardrin quando lhe fora concedido o cadarço vermelho.
— Senhor, a embaixada dos Hasturs — avisou Dom Varzil.
Bard lembrou-se, apesar das poucas coisas que sabia sobre protocolo, de que o protetor de uma torre importante comparava-se a qualquer rei. Fez sinal para que Dom Varzil se aproximasse da cadeira onde se achava acomodado.
— Primo, esta tem que ser uma assembléia formal?
— Só se assim o desejar.
— Então, mande embora toda esta gente e deixe-me parlamentar com os enviados em paz — pediu Bard; e enquanto Dom Varzil dispensava os cortesãos e outras pessoas, deixando apenas alguns guardas pessoais, Bard olhou para o enviado. Como já sabia, havia a bandeira de trégua do Rei Carolin e, usando as cores azul e prateada dos Hasturs, ali estava Geremy Hastur.
Ele deu um passo na direção de Geremy para lhe dar um abraço informal de parente, e com aquele toque, toda a antiga afeição tomou conta dele. Será que algum dia também poderia redescobrir Geremy?
Geremy também tem laran, pensou, ele sabe. E ao erguer o olhar para o semblante de Geremy, viu naquele olhar, embora Geremy parecesse afastado e ansioso, a mesma aceitação, a mesma compreensão que tinha visto no rosto de Melora.
Falou, e sabia que sua voz estava trêmula devido à emoção que já não podia mais disfarçar.
— Bem-vindo às Astúrias, primo. Na verdade, trata-se de uma triste acolhida e calcada numa aflição... meu pai e meu irmão ainda não estão descansando, mas jazem insepultos até que haja um pouco de ordem neste reino. Encontramo-nos sob ataque de Aldaran e vejo-me, sem o desejar, num trono que não sei como ocupar. Contudo, embora seja uma acolhida insatisfatória, estou contente por tê-lo aqui... — sua voz partiu-se. Parou, sabendo que se não o fizesse não se controlaria e choraria diante de todos. Sentiu a pressão da mão de Geremy sobre a sua.
— Quem me dera eu pudesse trazer-lhe algum conforto... irmão de criação — disse Geremy e Bard engoliu em seco. — Sinto enormemente a sua dor. Não conhecia Dom Rafael bem, porém conhecia Alaric, e amava-o. Ele era jovem demais para ser arrancado da vida tão rápido assim. Contudo, mesmo neste momento de tristeza, devemos cuidar dos vivos. Dom Varzil contou-me algumas novidades que acredito ainda não tenha sabido. Dom Varzil, meu parente, relate a Bard o que os seus pássaros-sentinela viram.
— Aldaran entrou nesta guerra — avisou Dom Varzil. — Ficamos sabendo, através de Mestre Gareth e de seus leroni, que eles tinham enviado a bruxaria que destruiu as paredes do castelo. Agora, há um exército em marcha, vindo da floresta de Darriel. Está aliado a Scathfell e outros pequenos reinos localizados no Norte. Ainda se encontram há muitos dias ao Norte de Kadarin, contudo acho que estão achando que o irão encontrar em meio ao caos e aflição. Porém, tenho notícias mais recentes ainda. Tramontana prometeu manter-se neutro; não farão mais nenhum armamento com laran. E esta é a última torre a jurar, pois Arilinn já o fez aos Hasturs.
— Logo — disse Geremy —, isto significa que os mártires de Hali não foram sacrificados em vão. Pois, agora, não existe mais uma só torre nesta terra que se proporá a fabricar clingfire, pó de bonewater, ou a peste que atacou as colinas Venza. Vim até aqui para pedir a Dom Rafael, ignorando a sua morte... vim para lhe pedir, pela segunda vez, para se unir ao pacto e a mim e aos meus leroni, para, juntos desarmarmos as reservas de armamentos com laran que ainda existem. Juramos não usá-los, porém temos o direito de nos defendermos contra eles.
Bard refletiu sobre isto, em silêncio, os olhos presos à ala desmoronada do castelo. Aldaran tinha vindo contra ele com laran, e como sabiam eles o que ainda havia no seu arsenal? Finalmente disse:
— Geremy, eu o faria com todo o prazer. Assim que houver novamente paz nesta terra, prestarei juramento ao pacto, e qualquer homem que o quebrar será meu inimigo, e os leroni poderão voltar a ler a sorte das moças solteiras apaixonadas, prever o sexo dos bebês das mulheres grávidas, ou tratar dos doentes e transmitir mensagens mais rápidas do que através de mensageiros expressos. Porém, enquanto a terra estiver em guerra, não ouso fazê-lo. Devo colocar meu exército na estrada dentro de três dias se quiser deter Aldaran e mantê-lo do seu lado de Kadarin!
— Para isto, ofereço-lhe a minha aliança — avisou Geremy. — Carolin deu-me poder para mandar os homens dele ao seu lado contra Aldaran. Concordamos que ele reine do outro lado de Kadarin, contudo, não o queremos nos Cem Reinos.
— Aceitarei, de bom grado, o auxílio de Carolin. Porém não me é possível jurar fidelidade ao pacto até que tenha colocado o meu reino nos eixos. E jurarei manter aliança com os Hasturs.
Ele tinha consciência, enquanto falava, de que estava destruindo, em poucas palavras, tudo aquilo por que seu pai tinha lutado. Mas aquilo fora a ambição de seu pai, não a dele. Ele governaria, mas sem a mínima vontade de conquistar. Aqueles que possuíam terras e as governavam, que o fizessem em paz. Ele já tinha bastante trabalho com um reino; não queria governar um império. Era apenas um homem, tinha deixado seu gêmeo secreto livre.
— Pensava que você já estivesse preparado para se aliar ao pacto, Bard, agora que constatou o que a falta dele fez a esta terra — falou Geremy. — E a coisa está ainda pior na terra de Hastur. Você teve oportunidade de ver as crianças que estão nascendo nas colinas Venza e perto de Carcosa?
Bard sacudiu a cabeça:
— Geremy, já lhe disse que voltaremos a conversar sobre isto tão logo Aldaran se mostre resignado a permanecer no lado de Kadarin que lhe pertence. E agora, se me faz o favor, tenho que aprontar meu exército para partir.
Quem iria governar enquanto ele se encontrasse ao lado do exército? Será que podia confiar em Carlina para reinar como sua regente? Conseguiria induzir Dom Varzil a ficar na sua corte e cuidar para que tudo fosse feito como devia? Como poderia decidir? Sorriu com tristeza, pensando que, mais uma vez, precisava estar em dois lugares ao mesmo tempo, no seu trono e com o exército em marcha? Será que seus homens estariam dispostos a seguir Paul? Não seria melhor colocá-los sob as ordens de um dos comandantes veteranos de seu pai?
Convocou então a presença de quatro ou cinco homens de seu pai, comandantes veteranos, e conversou com eles, durante muito tempo, sobre o deslocamento do exército. Entrou no Grande Salão para fazer uma visita rápida aos feridos que ali se achavam. O exército tinha organizado vários enfermeiros, e as mulheres estavam sendo atendidas por cada mulher do castelo que não se encontrava ocupada em outro local. Reconheceu a camareira particular de Lady Jerana e percebeu que até ela devia estar se arrumando sozinha naquela manhã.
Não conseguiu ver Melora. Para onde teria ido? Desejava muito vê-la, se bem que até que a confusão com Carlina estivesse desfeita, sabia que não lhe podia revelar nada do que se passava em seu coração. Mestre Gareth aproximou-se dele e Bard indagou:
— O que está fazendo, meu velho amigo? Dispõe de suficientes leroni para manter o escudo ao redor do castelo?
— Estamos tentando, senhor, embora não saiba por quanto tempo ainda poderemos mantê-lo atuante e aceitaria de bom grado se o senhor pedisse a Lorde Geremy Hastur para lhe ceder seus magos também.
— Farei isto, ou talvez possa pedir isto a ele você mesmo.
— Ah... mas o pedido significaria muito mais se partisse do senhor.
— E onde está Mestra Melora? Lorde Varzil emprestou-a ao senhor, na noite passada, para que cuidasse dos enfermos...
— Ela entregou esta tarefa nas mãos de Madre Liriel, a sacerdotisa, como sabe, esta manhã — esclareceu Mestre Gareth.
Bard, num lapso de segundo de visão íntima, se deu conta de que Carlina, Madre Liriel, como agora ela mesma se denominava, não tinha mais vontade do que ele de reconhecer aquele contrato de casamento e noivado. Estaria ele realmente livre? Ele e Carlina tinham que conversar, deixar as coisas claras e entendidas, porém sentiu-se aliviado e mais satisfeito, quando Mestre Gareth disse:
— Mandei Melora ir soltar seus pássaros-sentinela. Não há ninguém melhor do que ela nesse assunto, não que eu jamais tenha conhecido. Mandou-me avisar-lhe que viu uma grande fila de sacerdotisas na estrada que parte do Lago do Silêncio e que estão sendo escoltadas por amazonas vestidas de vermelho.
— Isto significa que a Irmandade da Espada fez o que me prometeu... — começou Bard a falar, contudo exatamente nesse instante Melora apareceu de volta do jardim, sacudindo os braços e gritando frenética e desconsoladamente.
Bard correu na sua direção, seguido por Mestre Gareth, ofegante nas suas velhas pernas.
— O que foi Melora?
— Mande chamar Dom Varzil! Oh, em nome de todos os deuses, mande chamar Dom Varzil — gritava ela. — Rory, que tem a Visão, viu para nós! O escudo de laran permanece no mesmo lugar, porém há carros aéreos rumando para cá, e não contamos agora com nenhuma defesa contra eles! Convoque o exército... temos que transferir os feridos para o lado de fora antes que o teto desmorone em cima deles!
O rosto de Mestre Gareth estava lívido, mas sua voz mostrava-se controlada:
— Melora, nada se consegue através do pânico... você pode se comunicar com Dom Varzil com mais facilidade do que eu!
O semblante de Melora ficou sereno e distante. Bard, entrando num rápido contato com ela, escutou-a chamando, sem que emitisse qualquer som, gritando por Dom Varzil, e em poucos segundos via não apenas Dom Varzil mas também Geremy, no seu andar claudicante, aproximarem-se apressados.
— Bard — disse Geremy —, você não tem laran suficiente para que possa ser eficiente neste caso, não ainda... trate da transferência dos feridos para o lado de fora, caso não os possamos deter!
Não ocorreu a Bard que Geremy, que nem mesmo se encontrava no seu próprio reino, estava dando ordens ao Rei das Astúrias. O que Geremy dissera parecia-lhe tão racional, que se apressou em obedecer. Enquanto corria, fez um sinal para um guarda:
— Vá procurar Paolo Harrell e Lady Melisendra!
E então, com seu novo laran, ficou pensando se poderia usar sua proximidade com um dos dois. Sempre se mantivera em contato com a mente de Paul. E este era um momento em que precisava estar em dois lugares ao mesmo tempo!
Paul! Arranje homens suficientes para carregarem os feridos e os colocarem em segurança!
Com o canto dos olhos ele viu Melora, Geremy, Mestre Gareth e Dom Varzil de Neskaya, de mãos dadas, incongruentemente, parecendo que se achavam prestes a fechar a roda e dançar uma cantiga de roda! Mas mesmo Bard, recém-aberto para o laran, pôde ver a força psíquica, uma barreira praticamente tangível que ia se erguendo à volta deles. Depois, ele voltou depressa para o salão e começou a dar ordens aos soldados.
— Todos aqueles em condições de caminhar, já para fora, e procurem ficar o mais distante possível dos prédios! Ordenanças, ajudem as pessoas que tenham dificuldade de caminhar! Recebemos um aviso de que talvez nos ataquem com bombas incendiárias! Levem todo mundo para fora! Teremos todas as macas que necessitarmos, logo, logo... que ninguém entre em pânico, nós os retiraremos daqui! — ele podia sentir o medo como um miasma visível e ergueu a voz. — Caminhem! Andem, eu disse, não corram! Mandarei à corte marcial todo aquele que cair sobre um homem ferido! Calma, temos tempo suficiente! — passou para o outro cômodo. — Carlie... madre Liriel, faça que aqueles que têm condições de andar ajudem os impossibilitados, daqui a pouco teremos muitas macas por aqui!
Carlina falou baixinho com as mulheres, e Bard viu, minutos depois, que o trabalho se processava ordenadamente. Paul tinha chegado, liderando um verdadeiro pelotão trazendo as macas. Parou ao lado da maca de uma mulher que se achava com um bebê recém-nascido nos braços.
— Ah, este é um de meus novos súditos? Muito bem, mãe, não se preocupe, é uma criança maravilhosa e estará a salvo, acredite em mim! — disse, e prosseguiu no seu caminho, escutando um murmúrio atrás de si.
— Este é o rei!
— Não seja tola — retrucou outra mulher na maca que estava sendo carregada. — O rei não viria até aqui embaixo, esse aí é o seu ajudante, aquele que se parece muito com ele.
— Ora, seja ou não — disse a primeira —, ele falou comigo com tanta delicadeza e vou pôr em minha filha o nome de Fianna, por causa dele. E o ajudante do rei é tão bom quanto ele!
Bard supervisionava as últimas macas, parando para falar com um veterano que tinha reconhecido, um cortesão amigo de seu pai, um criado que conhecia há muitos anos. Nem todos se lembraram de se dirigir a ele como Sire, ou Vossa Majestade, mas se sentia satisfeito assim mesmo. Haveria tempo bastante para as formalidades nos anos que viriam, e sentia-se orgulhoso em ser o Lobo de Kilghard. E se o pavor que dominava o velho criado ficara menor ao chamá-lo de Mestre Bard, isto, imaginava ele, não o rebaixava.
— Todos já estão do lado de fora?
— Todos, menos aquela anciã que se acha lá naquele canto. Receio que se a movermos, venha a morrer — avisou Carlina, hesitante —, e não quero mandar quatro homens com uma maca... — estava pálida de medo.
Bard recordou-se de que Carlina também tinha laran, e talvez um pouco de premonição.
Nesse momento ouviu-se um barulho estranho e um grito partiu do círculo formado pelos leroni no jardim, de pé e de mãos dadas. Bard correu para o canto do Grande Salão e inclinou-se sobre a anciã. Ela ergueu os olhos para ele, o rosto pálido de medo e dor.
— Trate de sair daqui, filho, estou acabada.
— Bobagem, vovó. — Disse Bard, inclinando-se sobre ela e levantando-a em seus braços. — Pode passar seu braço em volta de meu pescoço? Assim... vamos, vamos sair daqui!
Enquanto corria lembrou-se, de repente, de que Carlina tinha receado levar a anciã lá para fora até mesmo numa maca, com medo de que ela morresse se fosse tocada. Ora, ela morreria se a deixasse lá e o teto despencasse em cima dela! Correu, aos tropeções, para o ar livre, e quando alcançou o gramado houve um abalo tremendo, uma explosão no ar atingiu-o e ele tropeçou e caiu, pesadamente sobre a velha, achando que seus ouvidos iriam estourar com o barulho.
Quando voltou a si, Paul e um de seus guardas estavam erguendo-o, e a velha, por um milagre ainda respirando, foi tirada com extrema delicadeza de seus braços e deitada sobre uma maca.
Uma das remanescentes alas do castelo arremessou uma alta e airosa nuvem de poeira que desmoronou num estrondo. Bard, que tinha dado ordens, pessoalmente, para que todos os fogos fossem apagados, até mesmo os da cozinha, viu, aliviado, que não havia labaredas se erguendo. Houve outra explosão, e mais outra, e um dos estábulos ruiu, porém o exército, sob o comando de Paul, tinha trabalhado arduamente; todos os cavalos encontravam-se ao ar livre. Houve outra explosão que foi seguida por berros; caíra exatamente no meio de um pequeno aglomerado de soldados em torno dos feridos, e Bard, olhando, sentiu-se mal ao deparar com braços e pernas voando e corpos contorcendo-se e espatifando-se.
No céu a barulheira crescia. Então uma luz azul partiu do grupo de leroni sob as árvores e, de repente, com um estrondo igual ao de um trovão, um carro aéreo despencou do céu, caindo como uma pedra. Caiu no pomar, aterrissando sobre uma macieira, de onde as labaredas inopinadamente erguiam-se a uma altura descomunal.
— Baldes! — gritou um dos comandantes de Bard. — Apaguem aquele incêndio ali!
Uns doze homens saíram correndo na direção do incêndio.
Outra luz azul. E outro carro aéreo caiu em chamas, este batendo sem causar danos numa saliência rochosa e rolando, rolando, rolando, até parar todo espatifado. Um outro voou por cima do torreão principal do castelo, largando ovinhos de aparência inócua enquanto caíam, mas que se partiam ao tocarem o alvo.
— Infernos de Zandru! — gritou Bard. — Clingfire!
E, na realidade, tão logo atingiam o alvo, o fogo brotava da própria pedra, das paredes de pedra do castelo. Aquela droga infernal, lembrou-se Bard, queimaria qualquer coisa, até mesmo a pedra e não pararia de queimar e queimar...
Portanto, Alaric e seu pai teriam uma pira funerária.
O último dos carros aéreos explodiu com um estrondo e despencou do céu, porém Bard viu Melora afastar-se e correr na direção do castelo. Será que tinha enlouquecido? Ele tinha feito tudo ao seu alcance para retirar todo mundo do castelo... o que estava ela fazendo?
Paul, ajudando os guardas a retirarem os destroços em chamas dos estábulos, ouviu, de repente, como se fosse com seus ouvidos físicos, o grito de Melisendra. Deus do céu, será que o contato com Bard tinha-o deixado apto a escutar desta forma também? Podia vê-la claramente, subindo em disparada aquela escada dos fundos, naquele jardim onde a tinha visto pela primeira vez, e escutou os pensamentos dela, em pânico. Erlend! Erlend! Ficou acordado até muito tarde levando recados dos leroni, ainda está dormindo no quarto dele! Oh, misericordiosa Avarra, Erlend!
Ela estava longe, no alto das escadas, porém Paul achava-se bem atrás dela. No meio da escada deparou com uma pesada nuvem de fumaça. Porém Melisendra tinha desaparecido em meio à fumaça, e ele rasgou sua camisa, amarrou-a sobre o rosto e abaixando-se sob o nível da fumaça, começou a subir a escada.
E através de alguma estranha duplicação, como se ele e Bard estivessem realmente presos através da mente, viu Bard tentar entrar às pressas no prédio atrás de Melora e viu e sentiu os guardas o agarrarem, segurando-o com toda a força.
— Não! Não, meu senhor, é perigoso demais!
— Mas, Melora...
— Mandaremos alguém para trazer a leronis aqui para fora, meu senhor, contudo, não deve se arriscar. O senhor é o rei...
Bard lutou com eles, brigando, vendo Melora correndo escadas acima, abrindo caminho por entre os escombros e através e acima disto tudo, a visão de Erlend, deitado tranqüilamente na cama, a mão agarrando com força a pedra da estrela presa ao seu pescoço e os rolos de fumaça pairando sobre ele, transformando seu sono numa letargia enquanto as paredes acima dele começavam a se incendiar.
— Soltem-me! Vão para o inferno! Perderão suas cabeças por causa disto! É o meu filho... está lá dentro, queimando! — lutou contra todos, as lágrimas rolando pelo seu rosto. — Vão para o inferno! Que todos vão para o inferno, larguem-me!
Porém os guardas não o soltaram e, pela primeira vez na sua vida, a força gigantesca de Bard não serviu para nada.
— Eles o retirarão de lá, senhor, porém todo o reino depende do senhor. Ruyvil, Jeran... ajudem-nos a prender Sua Majestade!
E mesmo enquanto Bard debatia-se nas mãos deles, alguma parte dele estava com Paul, subindo aquela escada, ele era Paul, tanto assim, que mesmo nas mãos dos guardas ele se sentiu sufocar, seus olhos ficaram cheios de lágrimas enquanto Paul lutava para subir... Atrás dele, Bard soltou o corpo nas mãos de seus captores enquanto a parte essencial dele lutava com Paul para subir; tentando com cada átomo de sua força emprestar sua própria força para Paul, para respirar por ele, se precisasse. Parecia, para os dois, que tinham subido juntos aquela escada, e lá no topo, abriram caminho ao longo do corredor, milímetro por milímetro... encontraram a porta por tato, pois a fumaça era tão espessa, que Paul não podia enxergar. E do outro lado da porta, Melisendra, caída ao chão derrotada pela fumaça, o rosto negro e congestionado. Por um instante apavorante, Paul não conseguiu sentir a respiração de Melisendra. Todo o quarto estava repleto daquela droga cáustica, fazendo os pulmões de Paul doerem e, sem a força de Bard, ele sabia que não teria podido prosseguir e teria caído ao chão, ao lado dela, inteiramente desmaiado.
Contudo, em algum lugar uma criança chorava, como se o fizesse sonhando, e a percepção de Bard em Paul fê-lo lutar, praguejando, para se pôr de pé. As paredes começavam a arder, e a beira do colchão de Erlend já entrava em combustão, soltando novas espirais de fumaça para cima que se misturavam ao ar já pesado do quarto. Paul — ou Bard, ele nunca sabia qual deles — levantou a criança, ouvindo-a soltar gritos estridentes de dor e terror ao ver as labaredas crescendo. Quebrou uma garrafa com água que se achava ao lado da cama, pegou algumas peças de roupa que estavam no chão e encharcou-as, enrolou-as em volta de seu rosto; em seguida, com Erlend agarrado ao seu peito, ajoelhou-se ao lado de Melisendra, batendo em seu rosto com uma das peças de roupa que havia molhado. Tinha que conseguir fazê-la voltar a si! Talvez a força de Bard dominando-o tivesse deixado-a para salvar o filho dele... mas não, Melisendra era a mãe da criança, não podia deixá-la ali para morrer carbonizada!
Sentiu o cheiro de cabelos chamuscados, o odor acre de tecido queimando, e Melora, o rosto todo sujo de fuligem, estava de pé sobre ele.
— Aqui! Entregue-me Erlend... — pediu, em meio a ataques de tosse e sufocação, procurando fazer as palavras se tornarem claras. Você pode carregar Sendra, eu não a agüentaria...
Paul ficou imaginando, num fragmento de consciência isolada, se ela achava que ele era Bard, porém a parte dele que era Bard já tinha estendido os braços, entregando a criança desmaiada para Melora. Sabia que lágrimas de alívio e gratidão rolavam por seu rosto, mesmo enquanto sua atenção dobrada virava-se para Melisendra. Viu Melora tropeçar num pedaço de madeira meio queimada na soleira da porta, cair pesadamente com a criança nos braços, erguer-se sem jeito, agarrando uma trave ardente, e não sabia como, embarafustar-se milagrosamente pelo corredor em chamas, o rosto de Erlend enfiado nos seios fartos. Ela estava chorando, podia ouvir seus soluços de dor e pavor, mas continuou no seu caminho, tropeçando, sempre com o garotinho bem seguro em seu braços.
Paul levantou Melisendra e colocou-a sobre os ombros, e um fragmento de lembrança de um outro mundo e de uma outra vida veio, de modo irrelevante, à sua mente, que este modo de transportar alguém era chamado posição de bombeiro, e ele nunca tinha sabido por quê. Agora, as paredes ardiam, era um inferno, um inferno de calor e fumaça, porém ele fez rapidamente o mesmo caminho da vinda, deu um esbarrão em Melora, que se achava no topo a escada, olhando para baixo, aterrorizada, para os degraus ardentes. Como poderiam chegar lá embaixo?
A respiração de Melora estava alta e irregular, produzindo um ruído dissonante ao entrar e sair dos pulmões, a voz estava tão rouca, que saía apenas como um sussurro trêmulo. Ele a viu tirar alguma coisa que estava dependurada no seu pescoço.
— Vá! Desça!... Eu... leronis... as labaredas...
Ele hesitou, e a voz grave estava nervosa:
— Vá! Vá embora! Apenas... detenha o fogo... um instante... pedra da estrela...
Diante dele as labaredas oscilaram, recuaram, e Paul ficou transido de medo, ofegando de tanto assombro... porém Bard, dentro dele, aceitava a bruxaria daquele mundo, o modo como uma leronis experiente era capaz de lidar com as chamas, segurou Melisendra com mais força e desceu correndo a escada. Melisendra se encontrava largada em seus braços, inconsciente, mas Erlend berrava de terror nos braços de Melora. As labaredas recuaram, ondularam diante deles enquanto desciam a escada aos tropeções, o passo de Melora estava pesado e trôpego, pois toda a sua vontade consciente achava-se centralizada na pedra da estrela, nas labaredas que esmoreciam, aumentavam, recuavam e ali se achavam como uma terrível ameaça. Lançou-se através da porta em chamas e para o ar livre abençoado, e novamente com assustadores lapsos de consciência, viu Bard, num último e alucinado esforço, escapulir dos guardas e aproximar-se dele para segurar Melisendra enquanto ele caía ao chão, meio consciente, os pulmões sofridos inspirando e expirando o ar com um barulho sibilante. Várias mulheres apressaram-se para pegar Melisendra e deitá-la na grama, e Bard, frenético, se enfiava através das últimas chamas, levantando-se, enquanto Melora despencava, desacordada. Bard agarrou Erlend, passou-o rapidamente para os braços de Dom Varzil, que aguardava ali ao seu lado. Geremy, trôpego atrás dele, manteve Bard de pé, enquanto ele fitava Melora aliviado e apreensivo.
Ela se soltou de encontro a ele, tão pesadamente que mesmo a força descomunal de Bard não foi suficiente e, por um instante, ele pensou que rolariam pelo chão, todos três, mas os braços dos guardas os mantiveram de pé. O rosto de Melora estava coberto de fuligem e fumaça e ela gritava de dor enquanto os braços de Bard a envolviam, porém quando ele afrouxou seu aperto, amedrontado... será que ela tinha pago com a própria vida por ter salvo seu filho?... ela tornou a se agarrar a ele, em prantos.
— Ah, está doendo... estou queimada, Bard, porém sem muita gravidade... pelo amor da deusa, arranje-me algo para beber, qualquer coisa...
Ela sufocava, tossia, soluçava, lágrimas negras de fuligem rolavam por seu rosto. Alguém meteu-lhe um cantil de água nas mãos, e ela bebeu sofregamente, engasgou-se, cuspiu, tomou a tossir sem cessar. Bard segurava-a, gritando para que alguém se aproximasse e cuidasse dela, porém ela se empertigou toda diante da aproximação de Mestre Gareth.
— Não, pai, está tudo bem, verdade, só estou um pouquinho queimada.
A voz dela ainda continuava rouca e irregular. Geremy, ajoelhando-se ao lado de Erlend deitado na grama, levantou o rosto para Bard, num profundo agradecimento.
— Está respirando, graças aos deuses — disse ele, e como se fora para evidenciar esta constatação, Erlend começou a chorar alto. Porém controlou-se quando viu Bard.
— Você foi me pegar, pai, você foi e me pegou, não permitiu que eu ficasse carbonizado, sabia que meu pai não haveria de permitir que eu morresse queimado...
Bard começou a falar, para contar-lhe que tinha sido Paul que havia, fisicamente, subido aquela escada enquanto ele fora contido pelos seus próprios guardas, rei ou não.
Paul, porém, interrompeu-o, afirmando bem alto de onde se encontrava inclinado sobre Melisendra:
— Foi isto mesmo, meu príncipe, seu pai foi apanhá-lo, foi retirá-lo do incêndio! — e falou baixinho com toda a resolução: — Jamais lhe conte qualquer outra coisa! Você estava lá! Não poderia ter sido bem-sucedido se não fosse a sua força! E ele tem que viver com você! Seus olhos encontraram-se com os de Bard, que subitamente, se deu conta de que os dois estavam, para sempre, livres um do outro. Bard tinha dado vida a Paul, retirando-o da caixa de estase. E agora Paul devolvera-lhe uma vida mais preciosa do que a dele mesmo, a vida de seu único filho. Não estavam mais ligados por um laço mortal, gêmeos secretos, mas irmãos, senhor e honorável escudeiro, amigos.
Bard inclinou-se sobre Erlend e beijou-o... Este filho nedestro, seu herdeiro, jamais deveria pensar que não era amado, ou sofrer os tormentos que ele tinha conhecido. Melora talvez nunca engravidasse, jamais lhe daria um filho — era mais velha do que ele, havia trabalhado durante muito tempo como uma leronis e curandeira na área contaminada —, porém dera-lhe a vida de Erlend. E enquanto observava Carlina, no seu manto negro, inclinando-se sobre o corpo desmaiado de Melisendra — agora torturada por violentos acessos de tosse, enquanto tentavam retirar toda a fumaça que tomara conta de seus pulmões —, ele soube que estava livre de ambas. Melisendra encontraria a felicidade ao lado de Paul; e a vida de Carlina fora oferecida à deusa. Durante sua vida, ele haveria de ver as sacerdotisas de Avarra saírem de seu Lago do Silêncio e virem para o mundo como curandeiras sob a proteção de Dom Varzil. As sacerdotisas e os membros da Irmandade da Espada haveriam de constituir, juntos, uma Nova Ordem das Abnegadas, e Carlina seria uma de suas fundadoras e santas; porém isto tudo pertencia ao futuro.
Com um tremendo ribombo, o teto da ala principal do castelo desmoronou, e as labaredas apoderaram-se dele. Bard, sentado ao lado de Melora, enquanto as curandeiras lhe faziam curativos nas queimaduras de seus braços e peito, sacudiu a cabeça e deixou escapar um suspiro:
— Minha bem-amada, sou um rei sem castelo. E se os Hasturs conseguirem o que pretendem, um rei sem reino; senhor apenas da propriedade de meu pai... creio que eles me dariam isto. Melora, minha adorada, gostaria de ser rainha sem uma nação?
Melora sorriu para ele, e parecia que o sol da manhã não era mais esplendoroso do que os olhos dela.
Bard chamou Dom Varzil com um sinal, sorrindo para ele, e disse:
— Depois que os feridos estiverem sob tratamento, temos um pacto que deve ser assinado. E uma aliança a ser feita.
E virando-se novamente para Melora, beijou-a apaixonadamente, nos lábios.
— E uma rainha para ser coroada — completou ele.
Marion Zimmer Bradley
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