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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOM / Biazioli, Barbara
DOM / Biazioli, Barbara

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Não importa o quão alto ela suba, uma montanha ou um prédio praticando parkour, Tess Bianco levará consigo seus problemas. Ela é uma contradição personificada. Meiga e impetuosa, amistosa mas cheia de mistérios. Paris acaba por se tornar a cidade em que ela pode conseguir sua liberdade... ou, quem sabe, tornar-se cativa em uma nova situação...
Porque Dom Bastilli, o caçula do Império Bastilli Barche, aquele viciado em esportes radicais, velocidade e casos sem compromisso, sente-se atraído por essa mulher enigmática desde o primeiro instante em que a encontrou. Se ele fosse esperto, iria manter-se longe. Tess era o caso clássico de ter a placa PERIGO, em letras garrafais, na fronte dela.
Mas a atração falou mais alto, e ele não pôde se afastar.
Agora, quando os dois pareciam estar na mesma sintonia, um novo desafio se apresenta frente a eles. Dessa vez, o desafio fora arquietado para ter um desfecho diferente, mas o que acabou por vir foi o amargo sabor da vingança, com a certeza de que a morte aguardava sua vítima na próxima curva.

 

 

 

 

Meu voo sai em duas horas. Minhas malas devem estar ainda espalhadas pelo quarto do hotel. Ritz sempre será como uma segunda casa, Paris sempre será ou fará parte do meu destino.
E aqui, onde estou nesse momento, é um lugar que não me deixa ter pressa de sair.
? São quinhentos metros ? Caryn Marshall fala. Ele também está seguro apenas por sua mão direita. Nosso equipamento de segurança é um capacete que está servindo apenas de
apoio para nossas câmeras.
? Queridão, não estou pensando em pular, esqueci meu paraquedas ? respondi e subimos mais um patamar da superfície rochosa alta e que nos permite olhar Paris longe das luzes
artificiais.
Paramos em Équilibre de Chat¹ e olhamos por alguns minutos antes de começar a descida.
Sempre foi assim e nunca vai mudar, nos desafiamos, cumprimos e no instante seguinte estamos lá embaixo, onde todos se misturam e são quase iguais elaborando a próxima montanha
para fazer esse tipo de escalada ou algum prédio em que fomos bloqueados de passar na frente durante o dia exatamente por fazer isso, exatamente por subir de maneira perigosa
e independente.
? No começo você dizia: não olhe para baixo ? falo para ele e ele nega com a cabeça e sorri. Caryn me apresentou o Parkour e o montanhismo e outras coisas radicais de alto
perigo vital.
? Era uma época mais feliz. Você obedecia, não íamos presos e nossos riscos não eram nesta proporção ? ele aponta com o indicador para a montanha.
? Escalar a essa hora da noite é melhor, não tem ninguém ? sorrio e balanço as sobrancelhas.
Continuamos nossa escalada em silêncio. O silêncio que nos faz companhia, nos faz perder a noção do tempo, nos cerca em sua plenitude de paz. Nos apoiamos em cada ponto e
o chão já começa a ficar mais próximo, mais visível e é nesse momento que pensamos que uma queda já não seria fatal, mas quebraria alguns ossos. Olho para cima e penso que
poderia enviar uma foto para Sofia e avisar que tive um pequeno percalço e talvez o voo que está saindo agora não esteja me levando embora para Gênova.
Olho novamente para cima e vejo um movimento rápido. Imagino que seja alguém com equipamento muito bom e esteja seguro.
? Caryn, olhe ? aponto para a pessoa que desce rapidamente e eu tento alcançar meu celular para tirar uma foto para Sofia deste ponto.
? O que é isso? ? Caryn pergunta e a pessoa passa entre nós dois e desce, segurando e soltando rapidamente, como um gato, ágil e com uma destreza de poucos profissionais.
? Caralho ? falo e olho para ele e puxo meu celular do bolso e ele desce montanha abaixo com a mesma velocidade da pessoa que acabou de descer. A diferença é que meu celular
não vai segurar onde precisa e ele entrará para a lista de prejuízos deste mês.
? É uma mulher, cara ? Caryn diz.
? Não pode ser ? nego e sinto minha virilidade também descer a montanha ? Mulheres não fazem isso ? afirmo com toda a propriedade que cabe a mim defender o ponto masculino
do que praticamos.
? Mulheres têm a tendência de fazer tudo que fazemos um milhão de vezes mais rápido e quando perguntamos sobre a qualidade, a medida também é a mesma a favor delas.
? Impossível ? continuo a descer e nego com a cabeça. Até tento ir mais rápido, mas senti um pouco de medo de cair igual ao meu celular. ? Então, está admitindo algo sobre
a Jordan? ? o provoco.
? Eu nunca neguei que ela fosse boa, mas ela não é melhor do que eu e é prepotente, arrogante, metida ? ok, Caryn, eu sei da sua lista sobre Jordan, penso comigo.
Chego ao chão e Caryn olha por cima do meu ombro e joga o queixo me indicando uma direção.
? Espero que não tenha sido um presente de alguém importante ? uma mulher se aproxima e coloca em nossa direção o celular, ou o que sobrou dele. Ela não sabe que é meu, ela
é linda e foi ela que desceu rápido, me deixando internamente frustrado o suficiente para desafiá-la.
Estico a minha mão e não olho para o que sobrou do celular, olho nos olhos dela. Dois pontos azuis, tão sedutores quanto seu movimento na montanha. Seus cabelos dançam e pendem
sobre a testa. É uma franja e ela sorri, e eu, assim como meu celular, perdi um pouco a utilidade nesse momento.
? Ele está bem? ? ela pergunta para Caryn.
? Não se preocupe. Ele caiu do berço quando era bebê, é um milagre que esteja aqui ? Caryn zomba e eu olho para ele fuzilando-o.
? Obrigado ? digo.
? Só peguei-o do chão. Deveria me agradecer se eu tivesse consertado ou o impedido de se chocar com o chão ? ela é direta, quase grossa, e bonita o suficiente para eu não
me importar com isso.
Équilibre de Chat¹ -Equilíbrio do gato - equilibrar-se com os quatro membros, como um quadrúpede
1
Ela não é daqui, penso comigo e nego com a cabeça. Eu nunca a vi, e olha que eu fico muito tempo por aqui para saber quem pertence ou não a esse lugar. Pelo menos não pertence
onde estou acostumado a frequentar e ser destaque.
Como ela desceu tão rápido?, pergunto-me internamente e sinto um cutucão na altura da costela que me faz pular.
? Ficou louco? Se liga, Caryn, que susto ? o advirto e ele gira a chave de roda entre os dedos.
? Não sou eu que estou fazendo cara de maluco apoiado aí nesse balcão ? ele sai andando e nega com a cabeça ? Já avisou a seu irmão que você não foi embora no voo de ontem?
Não quero problemas ? ele diz e se deita no carrinho que o leva para baixo de um Mustang King Cobra, edição limitada 1978.
? Ainda não. Meu celular foi destruído e eu não havia sincronizado os dados com meu email, mas já mandei email para Sofia, só por precaução ? respondo e me aproximo dele,
das pernas dele que estão visíveis.
? Vai ficar mais quanto tempo? ? ele pergunta.
? Eu deveria ir embora hoje, tentar um voo, mas acho que vou amanhã ? respondo e escuto o ronco de um carro. Aposto meu nome, sobrenome e os trocos que tenho no banco como
é um Cadilac Coupe de Ville 1959, ele foi ganhado em uma aposta e quem está dirigindo é ninguém menos do que a criptonita de Caryn, Jordan Still.
Escuto o barulho da última acelerada e, enfim, ela desliga e possivelmente vai entrar triunfante com sua calça cargo cheia de bolsos e seu coturno marrom quase no mesmo tom
da calça. A regata é preta, sempre preta.
? Bom dia, rapazes ? Jordan é uma apresentação gratuita de máquina perfeita. Ela entende de carros, conhece o barulho dos motores, tem um corpo esculpido à base do Parkour
e seus olhos são negros como seus cabelos.
Jordan Still é uma afronta a qualquer moral masculina, não tem como manter sequer o caráter com ela por perto.
? Bom dia ? respondo e chuto a perna de Caryn.
? Dia ? ele responde e nem sai de onde está e se mantém com meio tronco embaixo do carro.
? De quem é esse carro que você está tentando arruinar? ? Jordan o provoca.
? Jody ? Caryn também sabe como irritá-la, ela odeia esse apelido ? Sua oficina está fechada por falta de serviço? Se está precisando de uma grana, tem aquele Corvette para
lavar, se quiser pode descolar alguns trocados ? Caryn sai de baixo do carro e se levanta alcançando um pouco de estopa e limpando as mãos.
? Conseguiria pagar o meu preço? ? Jordan pergunta.
? Sempre ando com algumas moedas ? ele sorri de lado e caminha em direção a ela, mas ele segue adiante e vai para perto do balcão onde estão as peças que ele vai usar no Mustang.
? Que bom, assim evita que passe fome e consiga ao menos comprar um pão ? ela sorri e ele nunca vai conseguir causar o efeito que ela causa nele ? "Meninas" ? ela realmente
provoca ao nos chamar de meninas. Eu não me importo, mas Caryn é louco para provar para ela algo mais terrível do que essas alfinetadas matinais. O grande problema de tudo
isso é que eles são os iguais que se completam, ou se completariam, e a Still Marrisé, oficina da família de Jordan, fica exatamente na frente da oficina do Marshall, e aqui
em Paris, ver de perto a briga das duas famílias é considerado visita obrigatória para os turistas ? Essa noite vamos fazer uma brincadeira, alguns prédios, tempo determinado
e algumas moedas que você deve ter em seu bolso ? Jordan fala olhando para Caryn que anda com uma peça na mão e tenta não se atentar às provocações de Jordan, mas ele não
consegue.
? Realmente sua oficina está sem serviço, para essa hora da manhã você estar preocupada com o Parkour à noite ? ele caminha em direção ao carro, sorrindo e eu vejo-a revirando
os olhos.
? Tudo isso é apenas para vermos o melhor lugar para assistirmos a queima do asfalto do alto. A ideia é que seja do Arco do Triunfo, mas tivemos problemas com polícia por
lá ? essa informação faz Caryn parar e olhar para mim um pouco antes de olhar para Jordan ? Agora ficou interessado? ? ela pergunta olhando para ele. Ela é tão segura de si
que assusta qualquer um. Ela está com uma mão na cintura e a outra ela desliza pelos seus cabelos lisos, negros e longos. Ela é algo tóxico para Caryn.
? Queima de asfalto? ? ele pergunta sério.
? Sim, ninguém sabe quando vai acontecer. Pelo visto o convite acontece com algumas horas de antecedência para evitar problemas com a justiça ? ela responde e me parece séria
também.
Caryn caminha em direção a ela, novamente a deixa para trás e vai direto para o seu laptop. Ele digita alguma coisa e faz um aceno nos chamando para perto dele.
? Olhem ? ele diz assim que eu e Jordan paramos um de cada lado dele e eu percebo que Jordan instintivamente coloca a mãos sobre o ombro esquerdo dele e possivelmente ele
olhou para isso apenas com o canto dos olhos.
? O que rolou aí? ? pergunto olhando para a chamada do jornal sobre o acidente perto do Arco do Triunfo há cinco anos, exatamente onde a corrida deve se repetir.
? Gustav morreu neste acidente ? ele diz triste e Jordan o olha diferente. Caryn volta para o Mustang.
? Quem é Gustav? ? Jordan pergunta e eu olho para ela.
? O cara que meu pai prometeu cuidar como se fosse seu filho, no leito de morte do seu melhor amigo, pai de Gustav ? Caryn se deita no carrinho e volta sob o carro.
? Não estou entendendo, acidentes acontecem ? ela diz e Caryn sai de baixo do carro e se levanta.
? Aquilo não foi acidente. Lars Graz criou a queima do asfalto, fez disso o grande desafio dos pilotos e esqueceu de algumas regras, ele não queria promover a corrida que
criou, ele queria promover o próprio nome ? ele explica e ela cruza os braços.
? Lars Graz, o proprietário da rede Machine?
? Sim ? Caryn responde.
? Eu não sabia que havia sido ele o criador dessa corrida ? ela diz e continua olhando para ele.
? Ele criou a necessidade por seus produtos, tudo que um carro precisa para ser veloz e mortal a Machine vende, mas isso custou uma vida já na primeira corrida. Ele foi esperto,
ficou longe das ruas e agora está voltando. Uma grande coincidência, a Machine ganhou duas novas lojas há menos de um ano aqui em Paris. Maldita a hora que a família dele
veio da Austrália ? Caryn volta a se deitar no carrinho e retoma o trabalho no Mustang.
Tudo ficou em silêncio e apenas o barulho da ferramenta contra o metal era audível.
Jordan dá dois toques na perna de Caryn que demora um pouco para sair.
? Fala ? ele diz e ela se inclina.
? Essa noite serão apenas uns saltos, vamos? É divertido deixar você para trás ? ela zomba e ele sorri.
? Ei, Dom, você vai embora hoje? ? ele me pergunta.
? Não posso, preciso ver Jordan deixando você para trás ? ele joga um chave em minha direção e eu vou até o laptop dele e envio uma mensagem para Sofia. Pobre Sofia, vai ter
que aguentar Paolo por minha causa.
Paolo deveria arrumar uma foda, assim ficaria menos estressado.
? Eu vou, mas se você cair eu vou rir, e se eu estiver por perto, não vou te segurar ? ele a ameaça e sorri para ela.
? Vejo vocês à noite. Agora vou buscar uma amiga no Palais Bourbon, se comportem ? ela balança os dedos em despedida e sai da oficina.
? Se essa amiga dela for igual a ela, eu não sei se Paris é um lugar interessante para continuar vivendo ? Caryn diz.
? Sei... ? falo zombando.
? Vai se foder, Dom ? ele diz e volta a arrastar o carrinho e eu me aproximo dele.
? Ei, Caryn ? o chamo e ele resmunga.
? Não me encha o saco por conta de Jordan, preciso terminar esse carro hoje ? ele diz.
? Não é isso, o que rolou com Gustav? ? pergunto e escuto-o soltar a respiração. Ele sai e se levanta do carrinho.
? Ele morreu, e não era para ter acontecido ? ele diz e limpa a mão suja de óleo ? Gustav era um cara do bem, assim como seu pai ? ele vai em direção à pia ao fundo da oficina
e lava as mãos.
? Foi um acidente, certo? ? pergunto.
? Não, não foi e quem estava lá viu o momento em que Lars tocou a lateral do carro de Gustav e o fez voar. O carro, assim que terminou de capotar, explodiu sem chance alguma
de deixar Gustav ser resgatado ? ele encosta na pia e enxuga a mão ? Gustav era filho de René, amigo de infância de meu pai.
Vejo que Caryn se perde na lembrança e endurece o rosto diante do que se obriga a rever.
? René estava em sua cama, os médicos disseram que era melhor ele ficar com a família e que não havia mais nada a ser feito, o câncer já havia dominado boa parte de seu corpo.
Fomos visitá-lo e em determinado momento ele pediu para ficar a sós com meu pai e foi aí que ele pediu para que meu pai cuidasse de Gustav, seu filho mais velho. Sua filha
mais nova já estava sob custódia da tia, irmã da mãe ? ele conta e puxa um banco e se senta, fechando os olhos e negando com a cabeça.
? Dom, Gustav era da família. Foda-se a porra do sangue, ele era um dos meus irmãos e ver o carro voar e explodir nos trouxe para uma realidade estranha. Hoje equipamos carros
para um melhor desempenho, mas todos saem aqui da Marshall com um dispositivo de segurança, desde então nenhum dos meus irmãos e eu participamos de corridas assim, o máximo
é subir pelo sul cortando as montanhas ? ele me olha e alcança sobre a bancada uma chave de fenda e a gira.
? Essa será a segunda corrida, pode ser que nada aconteça ? falo e Caryn joga a chave em cima da mesa novamente.
? Ou pode causar a segunda vítima, outro assassinato, e o pior, nunca conseguiram provar que foi Lars que causou o acidente ? ele anda em direção ao laptop e abre algumas
imagens do acidente e aponta o dedo na tela ? Está vendo as marcas? ? ele mostra as marcas no asfalto ? isso não são marcas de uma freada brusca, isso é a marca de que o carro
de Gustav foi empurrado lateralmente. A única coisa que me deixa mais tranquilo é que meu pai já não estava mais vivo quando esse acidente aconteceu. Ele teria morrido de
tristeza, ele sempre disse que não suportaria ver um dos seus filhos morto por conta da velocidade ? ele aproxima outra foto e mostra Gustav no meio dos cinco irmãos Marshall
? Essa foto foi minutos antes da corrida começar ? ao fundo é possível ver o cenário onde viria a morrer, o Arco do Triunfo.
? Lamento, cara ? falo e ele aproxima a foto.
? A oficina ficou fechada por três dias, e meus irmãos e eu ficamos aqui, olhando para o carro que era dele, não o que ele usou na corrida, o outro que ele mesmo gostava de
mexer, colocar peças e deixar com a cara dele ? ele diz e se levanta ? Vem comigo.
Caminho atrás dele e ele me leva para o fundo da oficina, uma garagem anexa com portões de ferro. Não é possível ver nada lá dentro até que Caryn abre a porta e mostra um
tecido preto gigante.
? Esse é o Cairo, nome que ele deu para o carro. Só Gustav para apelidar coisas, ele chamava Jordan de Single ? ele sorri e puxa o tecido e revela um Nissan GT-R, 2007, motor
3.8 V6 Biturbo com potência de 485Cv ? Antes de Gustav mexer nele, ele atingia no máximo 310 km e isso de fábrica. Ele não chegou a testar o limite desse carro, ele terminou
de montar na segunda-feira e naquela mesma noite ele morreu. Essa foi sua contribuição final para nossa família ? Caryn cobre o preto reluzente coberto parcialmente com a
poeira do tempo e nos retiramos da garagem.
Caryn volta para debaixo do Mustang e para um monte de lembranças tristes. Quando eu o conheci sabia que seu pai havia falecido e que eles tinham se mudado da Califórnia para
Paris por conta do emprego da mãe, uma jornalista que se tornou correspondente e acabou sendo transferida de continente. Mas eu nunca soube desse Gustav e pelo visto essa
corrida chegou agora para lembrá-lo de coisas que ele deseja não ter vivido.
Passo tanto tempo por aqui e ainda não sei de muita coisa. Me lembro de que Sofia não vai ler o meu email, ou pelo menos não era para ler, ela também está de férias, deve
estar velejando com aquele esnobe do Joel, cara idiota.
Vou ter que ligar para Paolo. Então, tenho dois problemas, o primeiro é que hoje é segunda-feira e o outro é que conversar com Paolo em uma segunda-feira de manhã seria menos
arriscado se eu não estivesse muito atrasado ou em outro país.
Aviso Caryn que vou usar o telefone e ele diz que sim e o som sai abafado por ele estar com uma máquina em cima dele.
Disco direto para a sala dele. São nove e quarenta da manhã e espero que ele tenha feito sexo durante o final de semana, isso possivelmente salvaria a minha vida.
Na segunda chamada ele atende e eu tento manter o que chamamos em um mundo distante de Paolo, a cara de pau.
? Alô?
? Bom dia, você está na sua sala? ? ele pergunta sabendo da resposta.
? Então, é sobre isso que quero falar com você ? limpo a garganta ? Ainda não cheguei ? falo e não escuto nada do outro lado da linha e essa é uma das habilidades de Paolo,
ser discreto e perigoso.
? Isso em tradução livre significa que ainda está em Paris e possivelmente está fazendo essa ligação da oficina dos irmãos Marshall ? ele diz de maneira lenta, calma e isso
é pavoroso.
? Como sabe disso? Bruxaria? ? brinco tentando algo positivo nesse diálogo do corredor da morte.
? Identificador de chamadas ? ele responde tão seco que nem saliva tenho para engolir.
? Não consigo ir embora esta semana. Estou analisando um possível negócio e ainda não obtive retorno ? digo e espero o bombardeio.
? Então, está dentro do previsto ? ele fala.
? Previsto?
? Sim, Domenico, eu me surpreenderia se você tivesse chegado às oito horas da manhã na sua sala ? Paolo deveria digerir dramas teatrais, ganharia mais do que com os barcos
? Quando você pretende voltar para a realidade? ? ele pergunta.
? Na próxima semana, estou aguardando um retorno ? a minha intenção agora é apenas desligar o telefone e tentar não imaginar como está a cara de Paolo nesse momento.
? Se eu disser que não aprovo isso, vai mudar alguma coisa? ? ele pergunta e mal sabe como as coisas tremem por dentro. Paolo é severo demais comigo... Não, severo não seria
a palavra, ele é controlador com a família, ele quer saber tudo e tentar proteger de tudo.
Me lembro a primeira vez que ele viu uma foto minha praticando Parkour. Estávamos na casa da minha mãe, ela precisou tomar um remédio e eu precisei me afastar dois passos
de Paolo. Eu estava na beirada de um prédio, apoiado nas mãos e com uma queda de oito andares diante de mim.
? Vou tentar agilizar minha volta ? tento ser profissional.
? Ou seja? ? ele pergunta e faz uma longa pausa ? Possivelmente não vai chegar a tempo para o almoço de domingo, você sabe o quanto isso é importante ? ele me adverte toda
vez sobre isso e todo almoço temos uma grande confusão e eu sempre sou o problema de tudo isso. Sou onze anos mais novo que Paolo, e isso para ele é o que conta quando ele
fala sobre respeito.
? Eu vou chegar para o almoço de domingo, eu prometo ? afirmo.
? Tenho sérios problemas de credibilidade em relação às suas promessas ? ele diz e eu sinto que ele arrancaria minha espinha com uma pinça se fosse possível.
? Nunca faltei em nenhum almoço ? protesto.
? Eu sei, prova disso é que ainda está vivo. Ouse deixar minha mãe decepcionada ? parece uma ameaça, soa como uma ameaça e a voz dele é ameaçadora. Ainda bem que estou longe
de Gênova. E ele fala "minha mãe" como se a mãe fosse só dele!
? Então é isso ? tento finalizar a conversa para desligar.
? E eu sei que é em vão pedir que não publique suas fotos pendurado em algum lugar cuja queda seja fatal. Alma Maria acredita que o filho não faz mais essas coisas, ou ela
finge acreditar ? ele ordena e eu consigo apenas dizer ok e um tchau mais rápido que a velocidade da luz.
Coloco o telefone de lado e a verdade é que eu nunca quero ir embora de Paris. Eu sempre me atraso, nunca cumpro o que falo e sempre é por conta desse lugar, das mulheres
daqui, o Parkour.
? Cara, meu irmão precisa trepar ? falo e vou em direção a Caryn.
? E você precisa ser mais responsável ? Caryn, que tem cinco ou seis anos a mais do que eu, defende Paolo, mesmo sabendo que Paolo não o visitaria no Natal.
? Eu sou responsável ? me defendo ? Caryn, e essa corrida? ? pergunto e admito que não paro de pensar na adrenalina de acelerar.
? Na mesma frase você usou a palavra responsável e perguntou sugestivamente sobre a corrida, não entendi ? ele usa ironia.
? Se liga, Caryn, é uma corrida, e pelo visto não acontece sempre, só pela diversão ? justifico e vejo que ele sai de baixo do carro e fica de frente para mim.
? Foi essa a frase que Gustav usou antes da corrida, foi a última coisa que ele me disse antes de entrar naquele carro e explodir minutos depois ? ele busca outra peça e volta
para o carro.
? Como sabemos desta corrida? ? pergunto.
? Não faço ideia ? ele responde ? Pega a chave seis para mim. Aproveita que você está só me enchendo o saco e me ajuda ? ele ordena e eu pego a caixa toda e entrego a seis
para ele.
? Qual é, Caryn? Me fale.
? Não ? ele responde e eu ando em direção à porta da oficina.
Vejo Tobe e Pete chegando com uma caixa nas mãos.
? Ei aí, Dom? ? Tobe me cumprimenta apertando a minha mão, Pete que está carregando a caixa faz um sinal com a cabeça.
Eles entram e deixam a caixa sobre uma das bancadas e se aproximam de Caryn.
Caryn assumiu os irmãos assim como Paolo assumiu nossa família.
? Caryn, eu trouxe a caixa de direção e algumas peças para o Renault ? Pete diz e Caryn sai de baixo do carro e se levanta.
? Ótimo, Alex estava com a lista das peças que eu precisava ? Caryn comenta sobre o dono de uma distribuidora que sempre fornece as peças e, então, eu percebo que Caryn nunca
mencionou que havia comprado algo da Machine.
Eles abrem a caixa e verificam as peças. Eu me aproximo deles e apenas escuto sobre o desempenho do motor do carro que entregaram semana passada e sobre a corrida que Caryn
está evitando falar.
? Não quero saber dessa porra de conversa sobre esta merda de corrida ? ele diz e Pete olha para mim. Caryn está nervoso com isso.
Percebo que duas pessoas entram na oficina, é Milan e Dino, também irmãos de Caryn, que é o mais velho e eu sei que Milan é o mais novo.
? Estão sabendo da queima de asfalto? ? Milan pergunta e Caryn olha para ele fuzilando um e se aproxima.
? Sim, estamos sabendo e que fique claro que esse assunto está proibido aqui dentro ? ele metralha os irmãos ordenando e um silêncio brutal se instala. Caryn volta para o
serviço.
? É só uma corrida ? Milan, o mais novo e rebelde de todos, defende o assunto proibido.
? Se é algo tão simples, ainda não entendo por que estão todos preocupados com ela. Temos quatro carros parados e quatro pessoas à toa aqui dentro. Se puderem agilizar, peço
que voltem ao trabalho.
Pode parecer loucura, mas é como escutar Paolo em uma versão francesa, ou quase isso, se Caryn não fosse na verdade californiano.
2
O almoço acontece em silêncio. Pedimos comida como sempre e estamos almoçando no quintal dos fundos da oficina. Esse quintal separa a casa dos Marshall da oficina.
Esse ritual de almoço a céu aberto é quase que diário, a não ser quando neva ou chove. Era assim desde sempre e foi o pai deles que implantou isso logo após a morte da esposa.
Uma vez conversando com Pete, ele contou que ficar na cozinha na hora do almoço sem a mãe servindo os pratos era uma tortura e todos acabavam se espalhando pela casa e as
refeições passaram a ser uma tarefa difícil e solitária.
Katlyn Marshall estava no voo Air France 4590 que explodiu logo após a decolagem. Pete falou que a grande maioria a bordo era de alemães que estava indo para o Equador e faria
escala em Nova York, destino final de Katlyn.
Jeff Marshall, ou como era conhecido e chamado por todos, Chefe, até conseguiu seguir um tempo e cuidar dos filhos, mas algum tempo depois ele morreu enquanto dormia.
São irmãos unidos e mantêm a oficina com muito trabalho, são competentes e hoje a marca Marshall significa status de motor e suspensão, assim como a Still Marrisé, significa
status do melhor acabamento interno.
Jordan e Caryn mantém uma guerra pessoal, mas geralmente o carro que passa pela Marshall, passará pela Still também.
? Posso fazer uma pergunta? ? falo ainda com a boca cheia.
Caryn me olha e já me detona, ele não quer falar sobre a corrida.
? Faça ? Dino diz.
? Se essa corrida é tão perigosa, por que não a impedimos de acontecer? Participar pelo visto está fora de questão ? Caryn nega com a cabeça.
? Lars já nos deu mais problemas do que o necessário, por isso é melhor tudo ficar como está. Não participamos, não mexemos nos carros que participam e de preferência não
ficamos aqui ? Dino fala e pelo visto ele e Caryn partilham da mesma opinião.
? O Gustav é a prova de que não devemos nos aproximar da queima de asfalto ? Tobe fala e pega mais um pouco de salada.
? O carro dele voou e quando girou duas ou três vezes ele foi direto para o chão e explodiu ? Milan não fala com tanto afeto, ele é o mais novo de todos e desconfio que seja
mais novo do que eu.
? Me passe o sal ? Caryn diz e isso me remete à Santa Ceia. Cesso o assunto e escuto o barulho do carro da Jordan.
É questão de minutos até que vozes femininas entrem como se fossem bem-vindas. Na realidade elas são mas ninguém sabe disso ainda.
? Eu te disse ? Jordan fala para uma outra mulher que está com ela.
? Isso é o máximo ? a outra mulher elogia e Jordan faz cara de merda, ela achou que teria alguma aliada nesse teatro que ela pensa que engana contra Caryn?
? Sentem-se ? Milan aponta para as cadeiras e antes que Jordan pudesse falar alguma coisa afiada, a amiga se sentou ao lado de Milan. Olho para Caryn que sorri discretamente
enquanto bebe um pouco de suco. Se fosse o jantar seria uma cerveja.
? Traidora ? Jordan diz e recusa com a cabeça.
? Anda logo, Jojo, senta, sinta o aroma dessa comida, que possivelmente foi comprada e eu não vejo problema algum nisso.
? Jordan, nos dê a honra de sua companhia ? Caryn não perderia essa chance por nada.
Ela ainda nega com a cabeça, mas seu corpo se aproxima e ela se senta ao meu lado. Essa mulher é gostosa e eu posso estar muito enganado, mas Caryn não gostou muito disso.
? Nos Estados Unidos é assim dia de domingo, as famílias se reúnem em churrascos e almoços ao ar livre ? a amiga de Jordan fala e é muito extrovertida, parece palestrante
de autoajuda ? Fiquei por dois meses na casa de uma amiga e adorava quando chegava os domingos ? ela coloca comida no prato e come sem nenhuma cerimônia.
? Meninos, essa é Viola Lamartine, colunista da revista Gala Croisette e também gosta de Parkour ? Jordan pega um prato e eu olho para Viola que se sente bem à vontade com
Milan ajudando com o copo e o suco que está demorando mais do que o normal para encher.
Cada um dos Marshall se apresenta e Viola mesmo de boca cheia diz um oi e mantém a refeição. Me apresento e deixo claro que não sou da família oficialmente e que não moro
em Paris.
? A família dele tem uma fábrica de barcos ? Milan fala cheio de expectativas em criar um assunto.
? Uau, de onde mesmo você disse que era? ? Viola pergunta cheia de entusiasmo.
? Gênova ? respondo.
? Só me falta dizer que a empresa de sua família é a Bastilli Barche ? ela fala e enfia um garfo com comida na boca.
? Muito prazer, sou Domenico Bastilli ? sorrio sem dentes e um pouco sem graça.
? Pelo amor de Deus, quero uma exclusiva! ? ela se refere a uma entrevista.
? Não entendo nada sobre barcos, isso fica sob a direção do meu irmão. Meu lance é Parkour, velocidade e esportes radicais ? explico tentando me livrar disso.
? Isso é perfeito! ? ela diz ? Jordan, se você tivesse me avisado eu teria trazido meu gravador ? ela termina a refeição e sorri para mim, sem medo que um pedaço de alguma
coisa mastigada estivesse entre seus dentes.
Viola é uma mulher com aparência de menina, cabelos longos e lisos claros, assim como seus olhos acastanhados. Ela tem um sorriso encantador, tão encantador que Milan está
quase deixando seu queixo cair sobre o prato de comida.
? Vi, você precisa se desligar do trabalho ? Jordan avisa.
? Vou me desligar por enquanto, mas semana que vem, quando Tess chegar de sua viagem, ela vai fazer as fotos, combinado, Dom? ? ela praticamente me intima.
? Por mim não vejo problemas, mas não sei se vou ficar aqui até a próxima semana ? a aviso.
? Espero que fique ? ela sorri e Caryn está contendo o sorriso.
? Milan e Tobe, arrumem tudo, hoje é o dia de vocês fazerem isso ? Caryn se levanta e vai para dentro da casa e eu percebo Jordan observando o caminhar de Caryn.
Eu não sei o que acontece entre eles, é uma troca de tiro e de olhares que muitas vezes fico mais confuso do que seguro.
Se eu ficar aqui mais uma semana, pode ser minha última semana com vida. Paolo não vai me perdoar se eu faltar ao almoço de domingo. Ele é meu irmão, mas me lembra a todo
instante que também é meu patrão.
Saio em direção à oficina e Jordan caminha ao meu lado.
? Vai com a gente essa noite? ? ela me pergunta e eu sinto que ela quer que eu responda que Caryn também vai.
? Claro ? respondo.
? Mesmo se o seu amigo não for? ? eu sabia.
? Não sou grudado nele ? respondo até um pouco rude.
? Não é o que parece.
? Ei, Jordan, e essa corrida ? respondo e olho para trás verificando se Caryn não está se aproximando.
? Espero essa corrida há cinco anos. Eu estava na primeira e vi quando o carro voou ? ela para de falar e sinto que algo a incomodou.
? E? ? pergunto.
? Depois que saí daqui tentei me lembrar dos detalhes sobre o que aconteceu. Vi o acidente mas não sabia que o motorista morto era ligado a Caryn. Lembro de tê-lo visto saltar
o mais rápido que pôde assim que o carro ainda estava girando no ar e no instante seguinte a explosão. Ele fechou a oficina por alguns dias e, pensando bem, acho que foi por
culpa ? ela coloca o cabelo atrás da orelha e nos sentamos no canto da oficina.
? Culpa? Por ter permitido que ele fosse? ? quero entender o motivo de Caryn ficar tão revoltado com esse assunto.
? Não. Lembro de ter ouvido algo de um amigo sobre Caryn ter trocado de lugar com Gustav. Era para ter sido Caryn o piloto daquele carro, mas Gustav insistiu, Caryn saiu do
carro e Gustav se sentou. Depois disso você já sabe. Naquela época, eu e Caryn não éramos amigos como agora, por isso não soube dos detalhes e nunca pensei em perguntar ?
ela diz e olha para ver se ele não estava vindo. Ela gosta mais dele do que imaginei.
? Nunca soube disso ? falo ? Eu sei que ele cuida dos irmãos com o mesmo empenho que o meu irmão cuida de minha família, mas sinto que Caryn tem medo que algo possa acontecer,
ele se sentir impotente.
? Exatamente isso ? ela responde e suspende a sobrancelha me avisando que alguém estava se aproximando. É ele.
? Jode! ? uma voz masculina chama por ela e ela revira os olhos e anda batendo o pé. Ela passa por Caryn e o olha rapidamente e ele a olha, lentamente até que ela saia da
oficina.
Vou em direção a Caryn que segura a caixa de direção que Pete trouxe e seus olhos não estão ali. Caryn é como Paolo, mas de camiseta e jeans escuros.
? Tudo bem? ? pergunto.
? Sim ? ele responde, coloca a caixa de direção em cima da bancada, pega uma chave e volta para debaixo do Mustang. Ele é como Paolo e também tem seus momentos de fuga.
***
Aperto o botão térreo e eu sei que vou gastar alguns minutos a mais essa noite para chegar na oficina Marshall. Do hotel que sempre me hospedo, o Ritz, até a Grenelle são
pelo menos quinze minutos de carro e sem trânsito.
A corrida não me sai da cabeça. Fazer algo tão clandestino e perigoso faz meu sangue aquecer e tudo parece fazer sentido, é como se o que estivesse vazio fosse preenchido.
Ajeito meu cabelo e ele está solto e ainda molhado. Uma senhora cheia de joias me olha estranhando pelo tamanho do cabelo assim que ela entra no elevador no andar abaixo de
onde estou hospedado.
Preciso de um celular novo e amanhã tenho que resolver isso.
Assim que saio do hotel, vejo dois taxis. Um deles, uma mulher invade xingando ao celular e isso me faz repensar sobre ter tanta urgência em comprar outro. Caminho em direção
ao outro taxi e aviso o destino.
Alguns carros nas ruas, pessoas andando com tanta pressa e eu pensando onde vou subir e descer esta noite. Assim que o carro atravessa a ponte sobre o rio Sena e para, onde
alguns pedestres passam, eu olho no meio do pequeno aglomerado de oito pessoas uma garota baixinha e que fez lembrar o quão um aparelho celular pode ser delicado e descartado
facilmente.
É ela, a menina que desceu rápido a montanha e agora fala apressadamente ao celular. Eu sei que é ela, eu a reconheceria. Estava nítido e claro na minha mente seu rosto toda
vez que bati a minha mão em meu bolso procurando meu celular.
Tento abrir a porta e o taxista começa a discutir comigo em francês e eu estou desconectado e tento me defender em italiano e a porta está travada. Ele deve estar pensando
que vou saltar do carro sem pagar e na realidade pago o dobro para ele seguir aquela mulher.
Quando volto a olhar para a rua, já a perdi de vista e nem sei para que lado ela possa ter ido.
Tento me explicar para o motorista e peço que ele siga a viagem. Como vou me encontrar com ela de novo? Quero saber seu nome, o que faz, de onde é e olhar de mais perto seus
olhos azuis e, de repente, sentir a textura de seus cabelos e do seu corpo nu.
Ela é muito boa em descidas, deve ser boa em outras coisas. Minha mente a imagina nua e com movimentos não tão rápidos. Mas, o que eu diria para ela?
? Oi, tudo bem? Lembra de mim? Ou do meu celular... ou do que restou dele por sua causa? Porque foi culpa dela, fiquei tenso com sua destreza. Geralmente é isso que eu causo
nas mulheres e não o que sinto ? falo no banco de trás e o motorista me olha e chega a conclusão de que está transportando um maluco.
Esquece, Dom, penso comigo. Vai ter que resolver sua situação com outra pessoa. Viola vai estar lá e se mostrou querendo saber mais sobre mim, posso mostrar algo na prática
para ela entre uma subida e outra.
O motorista ainda me encara pelo retrovisor em alguns momentos e eu me seguro para não rir. Ele acelera e para em frente a oficina dos Marshall. Lhe entrego uma nota superior
ao valor real da corrida e peço que ele fique com o troco. Vai querer transportar o maluco aqui sempre.
Escuto uma discussão vindo de dentro da oficina, é Caryn falando alto e Milan retrucando.
? Não estou aqui para ver outro irmão morrer, esquece esta merda de corrida! ? Caryn reprova em voz alta.
? Não é porque o Gustav voou pelos ares que isso vai acontecer comigo também ? Milan rebate de frente e vejo Caryn se aproximar dele e ele não parece calmo o suficiente para
agir.
? Ei ? falo e entro na oficina ? Vamos com calma ? falo e Caryn joga uma chave com força em cima da mesa que bate e vai parar longe caindo no chão.
? Caryn fica aí remoendo esta merda, não entende que já foi, Gustav não vai voltar e eu não vou morrer porque quero acelerar o Skyline ? Milan olha para mim e parece um adolescente
rebelde e não tem ideia do que é Caryn enfurecido. Já vi homens perderem a consciência com um único soco dele.
? Milan, eu preciso falar com Caryn ? falo e aceno para que ele nos deixe ali. Caryn precisa se acalmar e apesar de entender que ele sente culpa, ele não pode querer imunizar
os irmãos contra a vida.
Milan vai para os fundos da oficina sentido à casa dos Marshall e eu me sento em um banco alto perto do balcão logo na entrada.
? Essa porra de corrida, parece uma maldição e isso porque ela aconteceu uma única vez e já foi o suficiente para se tornar a pior coisa ? ele pega a chave que ele mesmo jogou
no chão, vem em minha direção e senta no banco de frente para mim.
É complicado esse lance de culpa, esse é o único lance que não tem cura.
? Caryn, já se passaram cinco anos, as coisas mudaram. Um dia seus irmãos vão realmente fazer o que querem e se você for tentar impedir isso vai acabar se frustrando.
? Cara, esse merda do Lars não tem nada a perder, ele quer mais é que essa molecada se enfie em dívida e compre tudo para deixar os carros mais velozes e na mesma proporção
menos seguros ? ele passa a mão pelo cabelo ? Lars gosta de deixar o velocímetro vermelho e esquece que para parar o freio tem que ser duas vezes melhor, a suspensão tem que
ser adequada, vender veneno é mais fácil que o antídoto ? Caryn nega com a cabeça ? Essa corrida... tenho a sensação de que algo não vai dar certo ? ele se levanta e pega
uma caixa de lâmpada de led e lê a lateral.
? Não está sendo pessimista? Não seria por conta de Gustav? ? questiono.
? O problema não é para quem morre, o problema é para quem tem que encarar uma vida toda com isso ? ele tira a lâmpada de dentro da embalagem e analisa como se fosse algo
precioso e raro. É assim que ele cuida dessa oficina, como algo precioso e raro.
? Tenta seguir a vida ? falo e ajeito meu cabelo num emaranhado no alto da cabeça.
? Estou seguindo a vida, esse não é o ponto ? ele diz e vai até o Mustang que ele finalizou essa tarde.
? Então qual é ponto?
? Dom, por mais que você queira começar algo do zero, em algum momento vai haver a repetição, ou do ato, ou do erro ou do arrependimento. Eu não posso simplesmente esquecer
o que eu vi e, pior ainda, eu não tenho como exterminar a minha culpa e muito menos exterminar o maldito Lars ? ele abre o capô do carro e olha alguma coisa.
Caryn não está prestando atenção no carro, ele está fugindo da nossa conversa.
? Você sabe que se Milan quiser correr ele vai fazer isso escondido, você já teve a idade dele ? o advirto.
? Sim, já tive. A diferença é que eu tinha junto com a idade quatro irmãos para cuidar, essa responsabilidade é que Milan não entende ? ele fecha o capô e anda em minha direção
e se senta ? E eu não posso exigir dele nada sobre isso, mas posso pedir que ele não se coloque em risco, não poderia suportar perder mais alguém para essa merda de queima
de asfalto ? ele passa a mão pela cabeça e um barulho de ronco de motor atrapalha nossa conversa. Isso é Jordan avisando Caryn que ela chegou, uma maneira singular e provocativa
e ela faz isso com muita frequência, todo o tempo, e eu ainda vou entender esses dois... ou não.
Escuto as vozes, agora parece que não é apenas Viola que acompanha Jordan, e o tumulto delas conversando é algo que precisa ser estudado. Enquanto uma está falando dos saltos,
a outra está falando do couro que encomendou.
Jordan bate na lateral da porta e entra sorrindo e desfilando seu corpo escondido em um conjunto de calça colocada a vácuo em seu corpo e uma regata tão preta quanto a calça.
Seu tênis é colorido e quebra o monocromático de sua roupa feita de algo autocolante.
? Ei, garotas ? Jordan chega zombando e escuto Caryn soltar a respiração e se levantar. Ele vai para o laptop e ela se senta onde ele estava. Viola está de calça larga e também
usa uma regata.
? Ei, cara dos barcos ? Viola brinca e eu a encaro sorrindo.
? Não sou de barcos, acredite ? falo e ela se aproxima e coloca a mão sobre meu ombro direito. Eu sei que geralmente minha falta de limites com as mulheres as deixam à vontade
para isso, mas quando elas se jogam, algo perde a graça e tão logo eu perco o interesse.
? E você é do quê? ? pergunto e vejo mais alguém entrando e meus olhos sobem dos pés até o rosto dela, a mulher que desce rápido a montanha e que caminha olhando ao redor
para entender onde está.
? Achei que vocês estivessem na Still ? ela diz e meus olhos param nela e instintivamente me ajeito no banco a fim de remover a mão de Viola de meu ombro, e funciona.
? Guardei o carro e atravessamos a rua. Você ficou conversando com meu pai e achei que a conversa iria durar a vida toda ? Jordan diz e eu não tiro os olhos dela e ela pouco
se importa se meu corpo é algo vivo ou inanimado, ela está mais encantada com a oficina.
Ela está de calça larga, assim como Viola, mas a de Viola é azul e a dela é verde escuro e sua regata é branca. Mulheres deveriam saber o quanto uma roupa branca é atraente,
ainda mais assim, dando vestígios de um belo par de seios que temo estar olhando há mais tempo do que indicado.
? Gosto de conversar com ele ? ela diz e meus olhos enfim encontram sua boca.
? Caryn e Dom, essa é Tess ? Jordan nos apresenta e ela faz um aceno de oi com a mão e nos olha.
? Dom, ela é a fotógrafa que achei que chegaria aqui só na próxima semana, ou seja, vamos ter aquela exclusiva sobre barcos e com fotos mais exclusivas ainda ? Viola fala
e ela passou a me irritar um pouco, talvez porque esteja tirando a minha concentração em Tess, a menina rápida de olhos claros e cabelos ondulados até a altura dos ombros
e que sorri para mim.
? Estou sendo convocada para um trabalho, é isso? ? ela pergunta e se aproxima de nós, se colocando à minha frente e eu me mantenho sentado, mas olho tão fixamente em seus
olhos azuis que ela desvia e olha para Viola. Deixei-a sem graça.
? Não sou de barcos ? repito e eu não posso negar essa entrevista, seria um motivo perfeito para ficar mais perto e, quem sabe, descobrir o que essa regata branca esconde.
? Eu topo se citarmos a fragilidade dos aparelhos de celular recém lançados e que eles deveriam ter pelo menos um pouco mais de resistência ao despencar de vinte metros de
altura ? ela se lembra de mim.
? Preciso começar a não levá-los mais comigo, isso pouparia quedas e micos em entrevistas sobre barcos ? falo olhando para ela e Viola cruza os braços e nos encara.
? Vocês se conhecem? ? Viola pergunta e pela primeira vez eu não quero entender como Jordan foi parar ao lado de Caryn e estão falando de algum motor olhando para a tela do
laptop.
? Sim ? eu respondo.
? Não ? ela responde junto comigo.
? Sim ou não? ? Viola pergunta mais séria do que deveria e nós dois rimos da situação.
? Ela desce rápido demais a montanha ? respondo olhando para Tess.
? Só perco para celulares ? ela está sorrindo para mim ? Ontem à noite desci uma montanha e eles ? ela aponta para mim e para Caryn ? estavam por lá ? ela responde e se senta
do meu lado, no banco que Caryn estava.
? Mas, como ela disse, não nos conhecemos, pelo menos não oficialmente ? meu olhar que brevemente estava em Viola, foi para Tess que está sorrindo e estende a mão para mim.
? Não seja por isso ? ela olha para a própria mão e me encara, sugerindo que eu a segure e eu o faço ? Muito prazer, sou Thereza, mas por favor, me chame de Tess para continuarmos
amigos ? ela tem um sorriso bonito demais, e a covinha em sua bochecha a deixa encantadora e eu não consigo não pensar nela nua. Como Domenico eu admito essa fraqueza, vejo
mulheres bonitas e as imagino nuas para mim. E depois eu realmente as vejo e, então, vou em busca de outras. Naturalmente.
? Domenico Bastilli ? dou um pequeno chacoalho em sua mão e sinto que ela solta em seguida. Sinto que ela acaba de impor um pequeno limite entre nós.
Merda.
3
Chegamos ao centro, onde os prédios já nos conhecem muito bem. O Parkour é uma espécie de vício e, sem dúvida, é o esporte que mais me identifico.
? Square Dunois ? eu falo assim que chegamos. Muito melhor do que Cimitière Pere- Luchaise, onde Caryn e eu fomos presos e a pior parte não foi ficar na delegacia. A pior
parte foi ligar para Paolo e saber que um grande abalo sísmico estava saindo de Gênova e vindo para Paris.
Eu estava com Caryn na sala de espera e tivemos um conjunto de má sorte. Primeiro, porque fomos pegos dentro do cemitério fora do horário, o que enquadra invasão; segundo,
porque tivemos a ideia imbecil de saltar de algumas sepulturas tão altas quanto algumas casas; terceiro, todo o Pere-Lachaise tem câmeras e isso fez com que provas contra
nós surgissem no video assim que chegamos à delegacia; quarto, o policial que nos surpreendeu realmente estava furioso com algum outro motivo, e mesmo sem apresentarmos nenhum
tipo de ameaça, ele nos algemou e foi assim que Paolo me encontrou na delegacia, algemado ao lado de Caryn.
? Espero realmente que tudo isso tenha uma explicação no mínimo coerente ? Paolo disparou e eu senti que uma pedra estava travada em minha garganta e o olhar dele em minha
direção era pior do que o que estava dizendo.
? Eu posso explicar ? disse e o olhei com um pedido de desculpas estampado na minha testa.
? Esse é o problema, Domenico, você sempre tem uma explicação e nunca uma solução ? ele coçou a testa e voltou a me encarar ? Quando me ligou eu pensei que fosse uma piada
? ele disse ? E agora eu vejo que realmente é ? seu olhar era tão sério e decepcionante. Naquele dia eu concluí que decepcionar Paolo era muito fácil, já o contrário é quase
impossível.
? Ei ? sinto um dedo em meu ombro me trazendo do olhar terrível de Paolo. Mas o olhar que está em mim é azul, dois pontos perfeitos de um azul celestial que não cansa, é convidativo
e ela está sorrindo.
? Ei ? a imito.
? Prefere saltos a barcos? ? ela pergunta e senta ao meu lado no parapeito de quase vinte metros de altura. Nada nos segura ali, nenhuma segurança, barra ou apoio, exatamente
como na vida real... Somos programados para cair.
? Não sou de barcos, meu irmão que é ? olho para ela e me interesso pelo seu cabelo que dança vagarosamente com a brisa leve.
? Uma vida interessante a sua ? ela diz.
? Não muito ? divido meu olhar entre seus olhos e seus cabelos; é como se tudo nela fosse feito para deixar homens abobalhados ? E você, me fale sobre você, eu sei que não
é daqui ? sorrio e ela expande seu sorriso ainda mais.
? Viola contou sobre mim?
? Não, passo tempo suficiente em Paris para saber quem é ou não deste lugar e eu soube que não era no momento em que desceu aquela montanha, eu nunca vi nada igual ? falo
olhando em seus olhos e percebo que ela respira fundo e diminui o sorriso ficando envergonhada pelo elogio. Sua face ficou um rosado bonito, tímido e eu sinto vontade de beijá-la,
nem que seja seu rosto.
? Moro na Austrália, mas Viola me convidou para fazer alguns trabalhos com fotografia. Na verdade eu nasci aqui, me mudei ainda criança para a Austrália ? ela responde e eu
sei que não deveria passar de um interesse carnal, sexo mesmo, daquele que a gente faz bem feito e sai antes do sol aparecer no horizonte.
? Pretende ficar por aqui por quanto tempo? ? não sei por que surgiu esse interesse em saber sobre prazos, mas é que eu gostaria de saber mais sobre ela.
? Tempo suficiente ? ela responde suspendendo os ombros e eu gostaria que ela fosse mais clara, porque vou ter que voltar para Gênova antes que Paolo apareça por aqui e me
leve pelos cabelos.
? Espero que isso signifique bastante tempo ? respondo e ela sorri lindamente.
? Além de fotos, tenho meus interesses por aqui ? ela ajeita o cabelo que está em seu rosto, atrás da orelha ? Na Austrália meu trabalho estacionou. Estava trabalhando para
uma revista local que fala sobre surf e eu senti interesse em querer mais, aprender mais ? sua boca é vermelha, assim como sua língua, e eu imaginei como seria tocar seus
lábios.
? Ei, vocês dois, vieram aqui para apreciar a vista ou para mostrar do que são capazes? ? Viola fala lá de baixo e sinto que ela está incomodada.
? A vista está ótima ? respondo alto, mas estou olhando para Tess.
? E a conversa também ? ela responde e me sinto mais atraído ainda por ela.
? Não prefere praticar um pouco daquilo que você possivelmente faz muito bem? ? pergunto.
? Por enquanto estou preferindo a conversa e a companhia, mas se você quiser, podemos descer ? ela fala.
Olho para Caryn e Jordan subindo o prédio vizinho e Viola está atrás deles. Estamos um pouco mais distantes, mas ainda é possível ver os saltos deles.
? Prefiro ficar aqui ? olho nos olhos dela.
? Significa que também está gostando da conversa ? ela faz um charme que realmente é desnecessário, eu já estou encantado por ela a ponto de beijá-la agora mesmo.
? Significa que posso querer algo mais do que conversar ? me aproximo do rosto dela e ela não recua.
? E se esse beijo que inevitavelmente vai acontecer, interromper a conversa que está agradando a ambos? ? ela pergunta.
Estou com meu rosto a menos de um palmo de distância de seu rosto, sorrio e ela se aproxima mais, deixando que poucos milímetros nos separem.
? Recomeçaria a conversa, e se isso for uma garantia de um outro beijo, poderia fazer isso a noite toda ? respondo e ela encosta suavemente sua boca na minha.
Sinto sua língua tocar a minha e algo serpenteia dentro de mim, como um impulso, e eu a puxo para o meu colo. Agora estou de frente para a queda e ela de costas para tudo
isso e de frente para mim. Ela confia em mim e o limite imposto um pouco antes que chegou a me frustrar se jogou daqui de cima.
Ela segura meu rosto com suas mãos e me beija, suavemente. Sinto minha calça se ajustar e ela também percebe isso.
Permito que minhas mãos deslizem pelas suas costas e posso ouvir seu gemido baixinho a meu favor.
Abro meus olhos e a vejo olhando para mim e, então, sorrio.
? Tudo bem? ? pergunto.
? Sim ? ela responde querendo dizer não.
? Tem certeza? ? pergunto novamente.
? Nunca tenho certeza de muita coisa ? ela volta a me beijar e eu a coloco bem junto ao meu corpo. Sinto seus seios pressionando meu tórax e desejo que isso aconteça quando
estivermos sem roupa alguma.
? Compartilho disso também ? ela se levanta e vai para mais perto do prédio e longe da queda.
Me levanto e vou até ela ? Tem certeza de que está tudo bem? ? volto a perguntar porque os olhos dela deixam claro que tem algo de errado.
? Escute, Dom, não sei quanto tempo vou ficar, meus interesses aqui são bem sigilosos e quando eu atingir a minha meta, não quero que nada me prenda aqui. Beijar você é fantástico,
mas não é isso que vamos fazer o tempo todo que estivermos juntos ? ela diz e vai para perto da queda e cruza os braços. Sinto em seu semblante que existe algo ali dentro
que ela não quer que o mundo saiba. Ela olha para baixo, se abaixa, segura na beirada e desce como um gato até o solo, longe de mim.
Se a intenção dela era me deixar querendo mais, precisa saber que conseguiu. Só quero um pouco de sexo, mais alguns beijos e saber como é surfar na Austrália. Uma coisa que
Paolo sempre diz e eu nunca escuto, eu preciso aprender a hora de recuar. Agora talvez seja um bom momento para isso.
Desço do parapeito pela lateral do prédio. Poderia ter feito isso pela escada, mas não seria eu, o Dom de cabelos longos que não se atreve a viver coisas simples e rotineiras.
Foi assim que comecei o Parkour, montanhismo e tudo de radical que faço em minha vida. Não é apenas uma escolha, em algumas vezes sinto que foi praticamente uma fuga. Tive
medo de que todos os dias fossem iguais, tenho medo de não ter uma boa história de adrenalina e riscos para contar.
Alcanço Tess e a seguro pelo braço ? Escute ? a viro de frente para mim ? Eu apenas te beijei, não a pedi em casamento. No máximo alguns saltos e uma noite sem roupa ? concluo
e a deixo para trás, subindo onde Caryn e Jordan estão. Viola está sentada na ponte que liga os prédios e Tess caminha em sua direção.
Caryn está apontando o dedo em alguma direção e explicando alguma coisa para Jordan, estamos no recuo entre dois prédios e é possível ver as luzes do centro mais movimentado.
? E aí, cara? ? Caryn percebe minha cara e pergunta.
? Tranquilo ? minto.
? Com essa cara você responde que está tranquilo? ? Jordan é chata quando quer, mas ela acertou na mosca. Não está tranquilo, acabei de levar um fora e isso não me acontece
desde a época da escola, quando eu tinha catorze anos e algumas espinhas me faziam mais companhia do que o necessário.
? Essa tal de Tess, ela é estranha ? respondo.
? E você a beijou mesmo assim? ? Jordan pergunta e cruza os braços.
? Descobri isso depois ? replico.
? Por que estranha? ? Caryn questiona e descemos segurando a barra de apoio da escada.
? Porque ela simplesmente disse que não quer que nada atrapalhe os planos dela, porque ela vai voltar para a Austrália e pronto ? respondo alto enquanto descemos para que
os dois que estão mais abaixo de onde estou possam escutar.
Caryn alcança o chão e, em seguida, Jordan. Olho ao redor antes de terminar a descida e vejo Tess, saltando entre a ponte e o jardim e se equilibrando sobre o pequeno muro.
Não é possível que não vou fazer sexo com ela, me recrimino internamente.
Termino de descer e prendo novamente meu cabelo que se soltou.
? Um fora, isso é normal, relaxa ? Jordan diz e anda em direção à Viola e Tess.
? Um fora é normal? Essa Jordan é irritante, só aguento porque ela é gostosa ? falo e Caryn me encara.
? Se liga ? Caryn diz.
? Vocês dois também são estranhos ? resmungo e ando na direção oposta de onde todos estão. Caryn me segue.
? Ei, Dom, logo ela vai embora. Pelo que Jordan falou, ela veio a convite de Viola para alguns trabalhos, não deve ficar muito tempo por aqui ? Caryn diz e eu continuo andando,
pego um pouco de impulso e subo para a sacada do prédio onde estava, mas agora estou no primeiro andar.
? Vou embora na sexta-feira ? falo.
? Eu vou com você, tenho alguns contatos em Gênova que preciso fazer, e uma reunião com um cara ? ele fala mas não entra em muitos detalhes e eu também não estou com cabeça
para pensar nisso. Levar um fora depois de tanto tempo é como arrancar um dente.
? Cara, eu vou nessa, hoje não foi um dia como deveria ser ? me despeço de Caryn e vou em direção à avenida. Vim com eles de carro, mas vou voltar de taxi.
Se ao menos ela não beijasse assim, tão gostoso. Garota mais estranha que já conheci.
***
Chego no meu quarto e vou direto para a janela. Abro-a e deixo que a brisa de Paris entre enquanto eu tomo um banho. Se ao menos estivesse com um celular colocaria uma música,
algo para distrair a minha cabeça e parar de pensar naquela esquisita que desce montanhas rapidamente e me dispensa no alto de um prédio.
Solto meu cabelo e o lavo novamente, deixo a água acalmar meus nervos, e Paolo me vem à cabeça, ele deve estar uma fera. Ele sempre vai ficar bravo e eu sempre vou sentir
culpa e voltar a fazer merda, porque fazer merda é minha especialidade.
Desligo o chuveiro e saio do banheiro com uma toalha na cintura e outra enxugando meu cabelo.
? Não chame a polícia ? Tess, sentada nos pés da cama, me pede e meus olhos vão direto para janela e voltam para ela.
? Que segurança ruim desse hotel ? reclamo e vou até o guarda-roupa, escolho uma camiseta branca e uma calça de malha azul escuro e arranco a toalha da minha cintura.
? O que você pensa que está fazendo? ? ela fica de costas para mim.
? Colocando uma roupa ? respondo e me troco como se estivesse sozinho ali.
? Mas eu estou aqui ? ela protesta.
? Mas não foi convidada, e até onde sei, foi você que desceu o prédio e me deixou lá ? volto para o banheiro e pego a escova de cabelo e penteio.
? Seu cabelo é maior que o meu ? ela fala para ela mesma, mas eu escuto.
? Quer falar comigo ou veio até aqui de maneira ilícita para falar do tamanho do meu cabelo? ? pergunto e jogo a escova em cima da cama e encosto na cômoda quase de frente
a ela.
? Olha, eu não costumo invadir hotéis, não invado nada, mas é que tudo é muito complicado e eu não quis ser grossa ou estranha. É que não posso envolver ninguém e muito menos
me envolver com ninguém ? ela se levanta e vem em minha direção ? Eu tenho alguns segredos, alguns são bobos e outros são mais complicados ? ela olha nos meus olhos ? Vim
para Paris motivada por algo que não pode machucar ninguém.
? Tudo bem, se veio até aqui para esclarecer, conseguiu, obrigado, e agora vou poder dormir tranquilo como dormiria sem essas informações ? desvio dela e me jogo na cama,
alcançando o telefone e pedindo algo para comer ? Está com fome? Quer alguma coisa? ? ela nega com a cabeça.
Desligo o telefone e me sento na cama esticando as pernas e cruzando os braços.
? Viola está furiosa comigo, não deveria ter beijado você... Bom, eu deveria porque eu queria e pronto, mas eu não sabia que ela queria isso e na hora em que eu desci e fui
até ela, ela me ignorou e assim que você foi embora, ela me disse que estava afim de você. Me sinto mal por ela, mas não consigo sentir culpa, não sabia e uma pessoa já está
machucada e é sempre assim quando eu participo de alguma coisa, eu sempre estrago tudo ou perco algo que amo. Me desculpa por ter te beijado, por ter invadido teu quarto,
mas eu precisava te dizer que beijar você foi melhor do que imaginei, mas não posso perder a minha amiga e muito menos machucar mais pessoas ? ela vai em direção à janela
e eu a vejo sexy no movimento clandestino e me levanto rapidamente e vou em sua direção.
? Escute ? seguro sua mão e a viro para mim ? Você é a mulher mais estranha que já conheci, mas não acho que devo deixá-la ir ? a puxo para perto de mim ? Está se sentindo
culpada porque me beijou? ? a beijo violentamente agora, quero que ela fique sem fôlego algum para descer daqui.
? Não faça isso ? ela diz com a boca na minha, mas suas mãos estão em minhas costas.
? Ela é sua amiga e não minha, ela queria me beijar, mas eu quis beijar você, e agora eu não sei se consigo apenas te beijar ? puxo a regata dela para cima e vejo seu sutien
branco, sem nenhum detalhe, simples, e percebo que ela tem um corpo lindo, provavelmente por conta do Parkour, mas ela é uma menina, é nítido que ela é uma menina.
? Vai começar e terminar tudo essa noite, não quero magoá-la ? ela diz.
? Não vou prometer nada, está no meu quarto e eu determino quanto tempo isso vai durar ? a trago para perto da cama e volto a beijá-la. Ninguém me dá um fora assim e depois
volta como se nada tivesse acontecido. Me afasto dois passos dela e olho para seu abdome definido e seus seios, pequenos, redondos... perfeitos.
Volto a beijá-la e minha mão desce por suas costas e antes que ela perceba seu sutien está solto e minha mão está abrindo o botão de sua calça e ela me interrompe.
Ela caminha para longe de mim e não se importa com seus seios de bicos rosados, lindos e tão suculentos a mostra. Ela passa as mãos pelos cabelos, prende o sutien, abotoa
a calça e vai de encontro à regata que arremessei longe.
? Olha, me desculpa, mas eu não posso, não assim, não desse jeito. Eu tenho muita coisa para fazer, preciso ter foco e você tem me tirado dele desde que deixou seu celular
cair montanha abaixo ? ela se senta na cama e apoia a testa nas mãos.
? Me desculpe, eu não deveria, mas você está brincando comigo, está brincando com fogo ? ela olha para mim e nega com a cabeça.
? Eu queria muito estar brincando, mas não estou ? ela diz.
? Você é virgem? ? pergunto.
? Por que está me perguntando isso? ? ela debocha da minha pergunta com outra.
? Porque eu posso ter desrespeitado você e eu não sou assim. Gosto de sexo, mas de comum acordo, não sou de forçar a barra ? me justifico e ela sorri.
? Acredite em mim, o grande problema aqui não é esse ? ela beija meu rosto e sai pela porta, naturalmente, e sem medo algum de ser surpreendida.
Ela saiu do patamar de estranha para misteriosa. O que será que ela está fazendo por aqui? Como ela soube onde eu estava? Deve ter sido Jordan, ela me deu carona outro dia.
Escuto o telefone do quarto e atendo.
? Alô?
? Dom, Tess foi até aí? ? Caryn pergunta e eu me sento na cama.
? Ela acabou de sair ? minha voz demonstra meu espanto.
? Ela e Viola tiveram uma discussão assim que você foi embora e Tess quis a todo custo saber onde você estava e eu disse ? Caryn fala mas escuto alguém conversando perto dele,
provavelmente é Jordan.
? Ela falou uma porção de coisas e sinceramente eu não entendi muito ? solto o ar.
? Se liga, Viola é estranha e tem algumas paranoias, ela falou muita coisa desnecessária para Tess ? escuto Jordan falando perto dele, ela está discutindo com alguém.
? Ela foi embora ? eu não deveria estar pensando onde ela possa estar, para onde ela foi.
? Pelo que Jordan me falou, Tess não vai mais fotografar nada. Viola voltou atrás e Jordan está no celular com Viola, e ela não está sendo amigável ? Caryn explica os gritos
que Jordan está dando. Pelo que posso ouvir Jordan está jogando contra ela o fato dela ter saído da Austrália por conta desse emprego que lhe renderia algum dinheiro.
? Caryn, pergunte para Jordan onde Tess está hospedada ? peço e escuto Caryn perguntando a Jordan e por um minuto me veio à cabeça onde os dois, Caryn e Jordan, estão.
? Caralho, Jordan me disse que ela está no albergue Tolbiac ? não que seja ruim, mas é um albergue.
? E pelo visto ela está a pé, isso daria mais de uma hora de caminhada ou vinte minutos de taxi ? estou preocupado, ela provavelmente está sem dinheiro e agora sem trabalho
também. Cretina essa tal Viola.
? Ela está sem celular, ficou no carro e acho que ela nem percebeu que o esqueceu e Jordan acha que ela pode voltar para Austrália, mesmo sendo contra a vontade dela ? Jordan
conversa com Caryn e xinga Viola pela atitude. É possível ouvi-la dizendo: Você tem ideia da vida que essa garota estava vivendo na casa da tia? Me atento e penso que posso
muito bem voltar para Gênova amanhã mesmo e esquecer essa garota, mas não é isso que eu quero fazer.
? Caryn, ela deve estar hospedada desde que chegou, a encontramos ontem na montanha, lembra? Ela pode estar precisando de alguma coisa. Ela veio para Paris uma semana antes
do combinado, e isso pode não ser um bom sinal ? não deveria ter me importado tanto assim. Mas ela disse que tem interesses aqui, será que ficar longe da tia é um deles?
Escuto Jordan pedir o telefone para falar comigo e Caryn entrega.
? Dom, Tess é uma garota doce apesar dos problemas. Veio para Paris a convite de Viola que sempre acha que pode ter o que quer. Escute, Tess não pode voltar para Austrália,
ela acabou de sair daí, provavelmente está indo para o albergue, podemos nos encontrar lá. Minha amiga não pode voltar para a casa da tia, Viola havia prometido a Tess ficar
na casa dela, Tess precisa saber que pode ficar na minha. Apenas me ajude a encontrá-la, estou indo para o albergue... ? ela está tensa e, pelo visto, Viola acaba de perder
duas amigas. Será que tudo isso foi por minha causa? Não pode ser, geralmente eu fodo só com a minha vida.
? Sabe chegar lá? ? ele pergunta se referindo ao albergue.
? Sim ? desligo, troco de roupa e desço à procura de um taxi.
4
Na frente do albergue, alguns caras se cumprimentam e falam sobre o período que vão ficar na Europa como mochileiros. São americanos e isso é notório pela maneira como se
vestem.
Entro e caminho até a recepção onde um senhor de boina lendo um jornal suspende seus olhos até mim.
? Boa noite, estou procurando por uma mulher, ela se chama Thereza ? pergunto e espero que ele olhe no computador.
? Não tem ninguém aqui com esse nome ? ele responde no segundo seguinte e eu escuto a voz de Jordan falando ao celular e entrando no Albergue. Caryn está com ela.
Jordan para do meu lado e me olha ? Não tem ninguém aqui com o nome de Thereza ? respondo e ela sorri.
? Com esse nome não, mas tem com outro ? ela diz e pisca para mim. Penso que se Caryn não está desfrutando dessa boca carnuda ele é um otário mesmo.
? Oi ? Jordan cumprimenta o senhor que acabara de me atender ? Por um acaso a Lilo já chegou? ? ela sorri ao perguntar e o senhor retribui o sorriso e olha para o computador.
? Saiu essa tarde e ainda não voltou, hoje é seu último dia aqui ? ele diz e Jordan deixa seu rosto triste. Tem alguma coisa aqui que não faz sentido. Por que Lilo?
? Assim que ela chegar, entregue isso a ela, por favor? ? ela escreve alguma coisa em um pedaço de papel e entrega para o senhor.
Caminhamos para fora do albergue e atravessamos a rua. Em todo momento olhávamos para os lados para ver se ela estava chegando.
? Bom, eu preciso saber se tudo isso está acontecendo por minha causa ? falo e fico de frente à Jordan.
? Não, não totalmente, essa briga das duas sempre aconteceu, desde que éramos crianças ? Jordan anda até o banco e se senta ? Morávamos na mesma rua, foi antes de nos mudarmos
para Grenelle. Tess era a mais nova de nós e sua mãe a chamava de pequena Lilo, seu pai se separou de sua mãe quando ela tinha três anos e levou o filho mais velho junto com
ele. Eu conheci apenas a Lilo e a mãe. E esse apelido pegou entre nós. Éramos inseparáveis, o trio mais temido de crianças atentadas. Viola, a mais velha, tinha ciúmes quando
eu dormia na casa de Lilo, e vice versa, mas isso eu achei que tivesse ficado lá atrás. A mãe de Tess faleceu e era apenas ela, o irmão e o pai apareceram no funeral e foram
embora. Lilo ficou sob custódia de uma avó que morava também na mesma rua que nós. Depois de poucos anos, o pai também faleceu, ela possivelmente tinha por volta de dez ou
onze anos anos e acabou se mudando para Austrália não me lembro com quem, mas eu sei que ela só foi embora porque a avó também havia falecido. Viola ficou feliz, era apenas
ela e eu, mas eu sentia falta de Lilo. Eu acabei indo para a Austrália passar férias, já que Lilo foi proibida de sair de lá todas as vezes que a convidei ? Jordan se levanta
rapidamente e olha para o começo da rua, achei até que fosse Tess, mas não era.
? Então? ? Caryn pergunta e está atento ao que Jordan está falando.
? Não me lembro direito, faz muitos anos, mas durante uma conversa, Tess estava se sentindo sozinha, triste e disse que só restava ela e que provavelmente não exista castigo
pior do que saber que está sozinha ? ela voltou a se sentar ? Nessa conversa, eu já morava de frente aos Marshall há pelo menos dois anos e nunca mais, desde que nos mudamos,
eu havia visto Lilo. São sete anos, contato apenas via celular nos últimos três anos depois de nos encontrarmos no Facebook ? ela ajeita o cabelo.
? Por que ela não pode voltar para a Austrália? ? pergunto.
? Porque a tia que era para cuidar de Tess, fez dela uma serviçal, uma empregada, e em determinada época, cheguei a pensar que Lilo havia sido vítima de abuso sexual, mas
nunca comprovei isso. Lilo não pode voltar porque ela fugiu de sua tia, não sei o que poderia acontecer com ela ? Jordan está preocupada e eu também.
? Por que Viola a convidou para trabalhar se sente tanto ciúmes? ? Caryn questiona.
? Porque Viola queria mostrar para Lilo que havia vencido na vida e ela não. Eu deveria ter imaginado que Viola voltaria atrás e a deixaria em maus lençóis por qualquer besteira
? ela olha para mim ? Desculpa, não foi isso que eu quis dizer ? ela diz.
? E agora? ? pergunto.
? Ela vai pra minha casa. Meu pai ama Lilo como se fosse filha e isso vai ser bom, ele vai ter outro pé para pegar além do meu ? Jordan sorri e sai em disparada para o outro
lado da rua. Vejo que ela agarra Tess e as duas se abraçam e tanto Caryn quanto eu ficamos no mesmo lugar.
? Cara, que história, hein? ? Caryn fala e não tira os olhos delas e eu lembro da preocupação dela em não ferir Viola e Viola pouco se importou com ela, que filha da puta.
? Ela não pode voltar para lá, não tem emprego aqui, deve ser bem complicado ? falo e fico em silêncio, olhando para as duas conversando do outro lado da rua.
Acho que quero beijá-la de novo. Será que ela foi abusada mesmo? E eu fiquei nu na frente dela... eu sou um imbecil.
Vejo Jordan vindo em nossa direção e Tess entrando no albergue.
? E aí? ? Caryn pergunta.
? Ela vai pegar suas coisas e vai vir comigo pra minha casa. De repente a oficina precisa de mais alguém para ficar sem fazer nada ? Jordan brinca e sorri para Caryn e a conexão
dos dois é assustadora.
Penso que Tess poderia realmente encontrar algo para fazer e não ficar de bobeira na oficina da Jordan, mas com o tempo tudo se resolve.
? Ei, Dom, valeu, cara, e acredite, você não tem culpa, Viola não sabe lidar com frustrações ? Jordan diz e coloca a mão em meu ombro.
? Eu vou nessa. Está tudo resolvido e se precisarem de alguma coisa me liguem no hotel. Amanhã eu vou subir algum pico e na sexta-feira volto pra Gênova ? Falo e ando em direção
ao ponto de taxi.
? Ei, vamos comer alguma coisa? ? Jordan diz e eu paro.
? Mas não é você que vai cozinhar, certo? ? brinco com ela.
? Eu cozinho muito bem ? ela diz e Caryn gargalha.
? Eu imagino ? falo e volto para perto deles e vejo Tess atravessando a rua com uma mochila, apenas uma mochila. Existem pessoas que conseguem carregar tudo que precisam dentro
de um único lugar.
Ela caminha para perto de nós e sorri, como ela ainda pode sorrir é que me deixa intrigado.
? Vamos para minha casa e pode deixar que eu cozinho ? Caryn ordena e andamos em direção ao seu carro. Um Dodge Challenger SRT Hellcat, preto e veloz. Segundo Caryn, a velocidade
final ainda não foi atingida.
***
Me jogo no sofá de Caryn e olho Milan e Dino jogando videogame e obviamente na discussão infame entre irmãos. Nunca joguei videogame com Paolo, nunca tivemos um na época em
que isso seria adequado.
? Bebe uma cerveja, Dom? ? Caryn pergunta e eu aceito.
? Eu também ? Tess também aceita e suspende os ombros para mim e acho que esse movimento suave com os ombros foi extremamente sexy, e eu sorrio. Ela já me viu nu e isso agora
martela a minha consciência, aquela consciência que grita a todo momento quando pratico algo idiota. Ela tem gritado com frequência, mas desta vez ela acende algumas luzes
sinalizando que isso vai ser minha marca da vergonha por toda a eternidade.
Não deveria me preocupar, logo estarei em Gênova, tendo minha alma sugada por Paolo e tudo vai voltar a ser como era. Sorrisos como o dela posso encontrar facilmente por aí.
Caryn chega com as cervejas e Dino empurra Milan com o ombro e o acusa de ser muito ruim na direção.
? Reduziu muito cedo ? Tess alerta Dino ? Deveria ter acelerado um pouco mais, otimizado mais a energia e aí sim, reduzido. É um jogo de videogame, seu motor não vai travar
por isso ? meu Deus, de onde essa mulher saiu? Parkour, cerveja, invasão e direção perigosa. Talvez eu precise ir embora daqui antes que seja tarde demais.
? Acha que sabe mais do que eu? ? Dino responde.
? Não acho, tenho certeza. Você entra antes nas curvas, isso te obriga a perder tempo demais, quase um segundo. Sim, eu sou melhor do que você ? Tess provoca e Jordan, que
estava na cozinha, volta para a sala mastigando alguma coisa e se senta no braço da poltrona na lateral da sala, sorri negando com a cabeça.
? Sai daí, Milan, deixa eu fazer essa convencida comer poeira ? Dino se garante na ameaça, mas com certeza está com medo.
Tess se posiciona no lugar em que Milan estava sentado e pega o controle. Isso vai ser muito divertido. Caryn vem da cozinha e encosta no pilar no canto da sala perto de Jordan
e sorri.
? Coloco cinquenta pratas que ela vence ? Caryn tem um modo peculiar de incentivar o irmão.
? Eu dobro ? Jordan diz.
? Eu coloco cinco para Dino, é o que tenho no bolso ? Milan fica do lado do irmão e a porta se abre, é Pete e Tobe com dois fardos de cerveja cada um; estão rindo e quando
olham para Tess com o controle na mão caem na gargalhada.
? Aposto vinte que Dino derrapa na terceira curva ? Tobe provoca.
? Aposto cem que ele derrapa na segunda ? Pete entra na dança e sabe que Dino está nervoso.
? Aposto mil pratas que Tess vence com sete segundos de diferença ? falo e escuto Jordan engasgar com o que estava comendo.
Tess olha para mim e nega, como se me chamasse de maluco, mas é que mil pratas vai ajudá-la nesse período sem emprego.
? Aperta start ? Dino fala quase que grosseiramente e escuto Tobe elogiar Tess, ele está falando do cabelo dela e das costas. Ele comenta com Pete o quanto ela é gostosa e
eu não devo me atentar a isso, isso não pode me irritar porque é uma constatação; Tess é além de linda, gostosa pra caralho.
Não sei mais o que está acontecendo no jogo, fiquei com toda a minha atenção no movimento suave do cabelo dela conforme ela se move ao fazer curvas e acelerar. Nada mais excitante
do que uma mulher que domina assuntos que um dia foram do universo masculino.
Ela gargalha e todos da sala também, eu não, estou sorrindo. Ela é diferente e tem algo que ainda não sei sobre ela. Já sei sobre as três pequenas pintas perto do umbigo,
duas sobre o seio esquerdo e uma pequena marca no ombro direito, mas ainda não sei o que esses olhos azuis oceânicos sentem do lado de dentro.
Ela me deixa confuso por querer saber mais sobre ela. Geralmente não é assim, geralmente elas estão nuas e meu grau de interesse nelas depois do sexo se resume em eu olhando
as mensagens do meu celular. Agora que me lembrei que não tenho mais um celular.
Acordo com Dino culpando o controle e todos entregando os valores para Tess. Ela ganhou e isso também é preocupante, uma mulher que sabe jogar videogame pode ser fatal.
Ela comemora e estica a mão para Dino que aperta e assume que ela é boa mesmo no videogame.
? Gastava sua mesada com fichas? ? Dino brinca.
? É, acertou ? ela diz e eu me levanto e tiro minha carteira do bolso.
Conto as notas e entrego na direção dela e ela aceita, eu também aceitaria.
? Agora tenho dinheiro para mais fichas ? ela brinca e coloca a grana no bolso.
? Como perdeu, arrume a mesa lá fora para jantarmos ? Caryn fala para Dino que levanta o dedo do meio para ele ? Para de ser mal educado, temos garotas aqui e você, Pete,
vai arrumar aquela bagunça que deixou no quarto. Amanhã a faxineira não terá obrigação de manusear uma retroescavadeira para remover aquele entulho todo ? Caryn manda, ponto,
todos obedecem, ponto.
? Eu nunca ganhei mil pratas de maneira tão fácil ? eu falo ao me aproximar dela assim que cada um foi cumprir o que lhe foi mandado.
? E eu nunca perdi ? ela sorri de maneira normal e eu não deveria me sentir tão atraído por isso.
? É, escute, me desculpa por hoje cedo. Eu não deveria ter tirado a toalha, foi grosseiro e eu não sou assim; você gosta de um pouco de confusão, então, achei que não seria
tão ruim, mas foi ? paro de falar antes que saia alguma besteira.
? Pode ficar em paz, já vi coisas piores ? ela faz piada e me salva de uma ruína interna causada pela minha consciência. Ela não imagina, mas é a primeira mulher a me desarmar
desta forma.
? Isso foi bastante consolador ? sussurro para ela.
? Eu costumo causar isso nas pessoas ? ela respira fundo e o aroma invade a sala ? E isso aumenta exponencialmente a minha fome ? ela se vira e vai para a cozinha, mas eu
a alcanço e devo estar com o modo instintivo ligado. Seguro o braço dela e a viro para mim.
? Não faça isso ? peço.
? Fazer o quê? ? ela pergunta e não faz ideia do que mais ela causa, pelo menos em mim, e espero que em mais ninguém até eu resolver isso.
? Não finja que não me atinge ? falo e olho dentro dos seus olhos.
? Dom, acredite em mim, não posso machucar mais ninguém ? ela fala e eu imagino que esteja falando de Viola.
? Está pensando ainda em Viola? Santo Deus, Tess, quero que ela se foda ? falo e me aproximo dela.
? Eu nem me lembrava mais dela. Acha mesmo que estou te evitando por causa dela?
? Sim.
? Estou te evitando por minha causa, tudo vai ficar perigoso e como eu disse, não posso machucar mais ninguém ? ela fala como se tivesse planos contra alguém.
? Pretende machucar alguma pessoa? ? pergunto e ela olha para baixo.
? Não, machucar não seria a palavra adequada ? ela responde e leva seus olhos até os meus.
? Viola?
? Não, ela não me deu motivos para isso. Para ser franca, ela até me ajudou me fazendo o convite de vir para Paris e pagando minha passagem ? solto do braço dela e espero
que ela fale sobre o que pretende fazer.
? Quero saber mais sobre você, me sinto curioso a seu respeito, e depois desse lance do videogame, você piorou ainda mais sobre isso ? confesso porque ela me deixa desarmado.
? Não há muito o que saber sobre mim ? ela diz e eu sei que ela está mentindo.
? Então, me deixa saber o pouco que tem, qual é o problema? ? questiono.
? Esse é o problema, não há nada para saber sobre mim ? ela responde e mantém seus olhos nos meus ? Eu sou só isso que você está vendo, uma garota da Austrália que vai ter
que se virar em Paris ? ela diz e me olha séria ? Não está acostumado com rejeição, é isso?
? Não estou me sentindo rejeitado, estou me sentindo comum e isso é pior ? me aproximo e beijo seu rosto ? Vamos comer ? caminho para a cozinha e sei que ela está vindo atrás
de mim.
Saio e vejo a mesa posta. Jordan está colocando música e todos já estão à mesa se servindo. Não gosto como Tobe olha para Tess, mas agora infelizmente eu não posso fazer nada.
Antes eu também não podia, mas agora eu sei que é ela que vai evitar tudo isso por conta de algum tipo de guerra que ela quer começar. Mas contra quem?
Me sento entre Jordan, que está perto de Caryn na ponta da mesa, e Milan. Tess se senta ao lado de Tobe e Dino e eu preciso não sentir incômodo com isso. Sem querer passo
a contar os dias para ir embora e cogito a possibilidade de ir embora amanhã mesmo. Preciso ficar longe daqui, focar no meu trabalho e tentar decepcionar menos o Paolo.
Caryn poderia se dedicar às artes culinárias, eu não sei fazer nem macarrão, e o cara faz macarrão, brinca com molhos, ervas e ainda faz filés ao molho branco, e tudo está
bom o suficiente para repetir.
Estico meus olhos discretamente para Tess e a flagro olhando para mim. Tobe está tentando uma conversa e ela disfarça e olha para o prato e coloca um pouco de comida na boca.
Tobe é parcialmente ignorado, não é totalmente porque vez ou outra ela ainda sacode a cabeça. Ela não quer conversar.
Me sinto atraído por ela e imensamente curioso sobre o tipo de ferimento que ela quer causar e em quem.
? Isso está divino ? Jordan elogia e come com vontade.
? Muito bom ? Caryn sorri e nega com a cabeça.
? Comida congelada ? Dino sacaneia.
? Achei que fosse entrega do Jefrey's ? Pete entra na brincadeira e Caryn não se importa. Ele está feliz.
? Dom, ela é uma boa pessoa, mas passou tempo demais sozinha. Interação social para ela é fácil, mas relacionamentos, isso vai ser complicado ? Jordan fala baixinho apenas
para os meus ouvidos.
? Não quero me casar com ela ? bebo um pouco da cerveja ? Queria apenas o que achei que ela também pudesse querer ? pensei em sexo mesmo, dos que pratico, assim como o Parkour,
apenas pela adrenalina do momento.
? Eu não sei o que houve, o que eu sei muito por alto e sem detalhes é que ela sofreu a pior das decepções ? Jordan diz.
? Traição? ? pergunto e estou mais curioso do que imaginei.
? Pior, pelo menos ela me disse que foi pior, mas eu nunca consegui tirar dela o que aconteceu de verdade. Tess deixou de ser a pequeno Lilo em algum momento, mas ali dentro
tem uma pessoa boa, eu sei que tem ? ela me cutuca levemente com o cotovelo e eu sorrio e olho para Caryn que está com o semblante menos feliz. Calma, cara, eu sei, seu segredo
está bem guardado comigo.
? Não consigo pensar em nada pior, mas também nunca tive nenhum relacionamento que durasse mais do que algumas horas, e nunca chegou perto de ser algo sério ? Jordan me olha
e nega com a cabeça.
? Deveria se envergonhar em dizer isso ? ela me diz e sorri.
? Quantos namorados mesmo você teve? ? pergunto e ela nega com a cabeça sorrindo e a boca cheia de comida ? Foi o que pensei ? bebo mais um pouco de cerveja e me levanto com
meus talheres. Eu sei que na hora do jantar cada um é responsável por lavar o que sujou.
Depois de mim, todos se levantaram e Tess andou apressadamente em direção à cozinha e se propôs a limpar tudo.
? Nem em sonho, aqui é cada um limpa o seu na hora do jantar ? Jordan tira-a da cozinha ? E pensando que hoje é seu primeiro jantar conosco, acho que outra pessoa deva fazer
isso ? Jordan olha para mim e eu cerro meus olhos em direção a ela.
Não falo nada, mas acabo fazendo, porque Jordan tem mais poder no olhar do que muita arma de fogo por aí.
Assim que termino, ando em direção à mesa onde estávamos e vejo Milan e Tobe ainda lá dentro terminando de fazer o serviço. Dino está com o violão e Jordan e Tess estão abraçadas
acompanhando o ritmo.
Gosto de ficar aqui, mas eu sei que preciso ir embora.
? Eu vou indo ? falo e Caryn se levanta.
? Fica aí, dorme aqui como um rei, deixe aquele Ritz sem requinte ? ele brinca e Tess está olhando para mim.
? Lá você não vai ter música ao vivo ? Jordan fala e Milan e Tobe voltam com algumas cervejas.
Por isso eu gosto daqui, hoje é segunda-feira e podemos fazer tudo isso.
Me aproximo deles e Caryn encosta do meu lado.
? Vou tentar uma fusão com um cara de Gênova, a marca dele é boa e ainda não tem tanto mercado assim aqui em Paris, quero exclusividade ? Caryn fala.
? Aproveite para descansar, vou te levar ao Zarun. Minha irmã vive naquele lugar, pelo menos vivia antes de começar a namorar aquele imbecil do Joel. Não gosto daquele cara
? falo e sorrio.
? Sofia é linda, acho que ela é uma das mulheres mais lindas que já conheci ? ele fala e bebe um gole de cerveja.
? Só não fale isso pra Paolo, ele mataria você sem usar as mãos ? brinco.
? Seu irmão é paranóico comigo. Ele acha que sou uma péssima influência para você, seria na verdade o contrário ? ele bebe mais um pouco de cerveja e esvazia a garrafa.
? Paolo é paranóico com todo mundo, mas acho que foi o lance da cadeia que o fez te colocar no topo da lista negra dele ? bebo o restante da minha garrafa e a coloco sobre
a mesa ? Vou precisar trabalhar dobrado, caso contrário, vou ficar um tempão sem vir pra cá e logo será o campeonato e não quero perder, estou pensando em ir embora amanhã,
não sei...
? Não, vai na sexta-feira, nem a pau; comprei a minha passagem para sexta, não pode mudar assim ? Caryn odeia voar, odeia aviões e pratica Parkour, juro que também não entendo.
? Ok, vou na sexta-feira, não precisa chorar ? falo.
? Vai se foder, Dom, vou pegar mais uma cerveja ? ele fala e eu peço para ele trazer uma para mim.
Tess se aproxima e encosta onde ele estava.
? Vai embora ? ela diz ? E ainda assim, queria ficar comigo. Parou para pensar como eu me sentiria caso ficássemos juntos e depois você partisse? ? ela está levando essa conversa
para um outro lado e está me assustando.
? Eu não sei o que dizer... eu... eu ? ela solta a maior de todas as gargalhadas e tira sarro da minha cara.
? Estou brincando com você ? ela gargalha ainda mais alto.
? Você é louca? ? ela para de rir e faz uma cara tão séria.
? Um pouco ? ela diz e se aproxima ? Fiz isso para quebrar o clima. Não quero que fique chateado ou pense que sou uma esnobe, só não quero ter nenhum tipo de relacionamento
e é uma longa e tenebrosa história. Desculpe, foi apenas uma brincadeira.
? Está perdoada com uma condição ? imponho.
? Qual?
? Janta comigo amanhã depois do café da manhã? ? pergunto e ela fica confusa.
?Você é louco?
? Sim, o suficiente ? respondo.
? Me explica como eu poderia jantar depois do café da manhã? ? ela cruza os braços e a sua regata afrouxa e me permite ver as duas pintas sobre o seio. Preciso dar um jeito
nisso. Isso é uma questão emergencial.
? Explico ? me ajeito melhor na mesa e cruzo meus braços encarando o rosto lindo de Tess ? Tome o café da manhã comigo, posso pensar em algo para fazermos até a hora do almoço.
Eu não sei cozinhar como Caryn, então, almoçaríamos perto do Sena. Depois, poderíamos tomar um café da tarde perto do Arco do Triunfo e, enfim, mais tarde, jantaríamos. Ainda
não sei o lugar, mas é certo que faríamos a última refeição juntos ? falo sério e ela abre um sorriso, o tipo de sorriso majestoso e triunfante.
? Você é bom de conversa ? ela observa.
? E você é boa em me deixar de lado ? replico.
? Não fica de lado? Nunca? ? ela se aproxima e isso me parece um convite para agarrá-la, mas vou ficar exatamente onde estou.
? Nunca ? respondo e não sorrio.
? Amanhã te dou a resposta ? ela se aproxima, beija meu rosto e volta para perto de Jordan.
Caryn chega com a cerveja e essa será a última antes de eu ir embora, com minha frustração e meu profundo sentimento que só quem está sendo rejeitado conhece. Traduzindo,
vou embora de pau duro. Filha da puta.
5
Escuto pessoas conversando no corredor. Ainda está escuro e da minha cama posso ver que o dia não raiou. A janela está aberta e o vento sopra fraco, mas o frio da madrugada
é mais intenso. Vou até o frigobar e pego uma garrafa d'água bebo e volto para a cama.
Me deito e imagino em que momento ela poderia me falar sua resposta e em qual momento eu me tornei absolutamente patético, porque isso é patético, estar fascinado por alguém
que já deixou claro que não tem nenhum interesse e que ferir alguém é seu único objetivo.
Penso no que ela poderia fazer aqui. A oficina de Jordan mantém o movimento padrão e isso com certeza não é a praia dela e eu também não deveria estar preocupado com isso.
Foda-se o que ela vai fazer, o que eu quero com ela não é remunerá-la, quero apenas sexo, o tipo de sexo que dura algumas horas e exige refeições para que a energia seja reposta.
Não sei em que momento o sono surgiu, mas ele foi embora quando escutei alguém batendo à porta avisando sobre o café da manhã. Me levantei e fui para a antessala coçando os
olhos e abrindo a porta.
? Bom dia, senhor ? o funcionário do hotel entra empurrando o carrinho com café da manhã completo e eu não lembro de ter pedido.
Enquanto ele deixa o carrinho, vou até minha calça, pego a minha carteira e tiro duas notas como gorjeta e entrego para ele, fechando a porta.
? Aceito ? escuto. A voz é dela e ela está encostada no batente da porta que liga a sala e o quarto.
? Esqueci de fechar a janela ? sorrio e vou para o banheiro me livrar de tudo que não devemos oferecer a ninguém assim que acordamos.
? Sim, e deveria ter fechado, essa madrugada fez frio ? ela fala do lado de fora e meu coração dispara e descubro que tenho um que funciona com sustos.
? Como sabe que fez frio essa madrugada?
? Cobri você duas vezes. Parecia estar em um sono bem tempestuoso. Pesadelo? ? ela fala alto para que eu escute e eu escuto além de sua voz, o abrir e fechar das tampas sobre
a comida.
? Você poderia ser presa ? a alerto e lavo minhas mãos assim que aperto a descarga.
? E esse hotel deveria ser mais seguro ? ela fala e eu caminho em sua direção. Ela passa geleia em um pedaço de pão e enquanto isso come um pedaço de croissant.
? Entrou aqui de madrugada, poderia me fazer algum mal ? zombo.
? Pensei nisso, mas eu gostei de você, vou deixar você por último ? ela zomba ainda mais e eu estou sorrindo.
? Onde você dormiu? ? pergunto.
? Aqui mesmo, na sala, aquele sofá é ótimo ? ela diz e bebe um pouco de café apontando para o sofá bege.
? Jordan deve estar preocupada com você ? falo e ela me serve em um prato os pães e me entrega um copo de suco.
? Quem você acha que me trouxe aqui às três da manhã? ? ela suspende os ombros ? Jordan gosta de você e Caryn também ? ela diz e eu pego o copo e o pão e me sento na poltrona
ao lado do carrinho.
? Então, vai jantar comigo? ? pergunto e como mais um pedaço de pão. Ela sorri sem dentes e suspende os ombros.
? Sim, mas você determinou as refeições e eu vou determinar nossas tarefas ? ela impõe e se senta de frente para mim, na mesa de centro.
? Por acaso nessas tarefas, sexo está sendo considerado algo importante e necessário? ? pergunto e enfio mais um pedaço de pão na boca.
? Sim, mas será apenas uma recompensa, terá que cumprir cem por cento de tudo e com êxito ? ela sorri e segura para que o croissant mastigado fique dentro de sua boca.
? Se sexo é a recompensa, pode me dar a missão ? brinco.
? Tudo isso por uma trepada? ? ela pergunta me fazendo o canalha na situação. Mas eu sou realmente um canalha e isso nem me ofende.
? Sim ? respondo.
? Ainda bem que respondeu isso ? ela diz e se levanta. Observo seu corpo e ela está usando uma calça preta, com dois bolsos laterais e grandes. A calça é justa em seu corpo,
seu tênis é bem conhecido pelos praticantes de Parkour e sua regata rosa tem um símbolo de Parkour.
? Por que veio até aqui e entrou desta forma?
? Dom, entenda que vou viver isso com você porque em dois dias você vai embora, então, de certa forma, tudo está previamente determinado a acabar. Não vai haver nada que me
faça repensar em nossa situação e o mesmo serve para você ? ela termina o café e coloca a xícara sobre o carrinho ? E outra coisa, se eu tivesse esperado o dia amanhecer e
te ligasse, tudo seria tão normal e isso é o que evito na minha vida, prometi a mim mesma que nunca mais teria uma rotina, regras e ordens ? ela volta a se sentar na minha
frente ? Vamos aproveitar esses dois dias, e no final deles, eu garanto que não haverá um adeus, não haverá uma despedida, será como se nunca tivesse existido ? ela se aproxima
de mim e me beija.
? Tem certeza que vai resistir e não vai me dizer adeus?
? Sim ? ela diz e mexe em meu cabelo que deve estar horrível.
? Já pensou onde vai gastar o dinheiro que ganhou? ? pergunto.
? Pensei em lâminas de barbear ? ela passa a mão pela minha barba um pouco maior do que deveria ? E uma tesoura ? ela mexe em meus cabelos e sorri.
? Não gosta? ? pergunto.
? É indiferente, prefiro não assinalar nada que eu gosto ou não em você. Já tem um item positivo nesta lista e se colocar mais algum pode ser perigoso ? ela se levanta e vai
até a janela.
A palavra indiferente é algo que me incomoda, mas eu não sabia disso, porque eu nunca havia escutado isso de alguém que não fosse de mim mesmo.
? Posso te fazer uma pergunta? ? falo.
? Pode, só não garanto que eu vá responder ? ela diz da janela.
? Em que momento deixou de confiar nas pessoas? ? escuto o silêncio trincando cada parede por pelo menos dois longos e exaustivos minutos. Me levanto e paro atrás dela e vejo
que ela puxa todo o oxigênio que pode para dentro de seus pulmões.
? Tiraram esse direito de mim ? ela responde sucinta, de maneira baixa e quase dolorida.
? Recupere ? respondo.
? É isso que estou fazendo em Paris, tentando recuperar alguma coisa ? ela se vira de frente para mim ? Não tente entender, apenas aproveite esse tempo porque é isso que vou
fazer ? ela se aproxima de mim e olha dentro dos meus olhos ? E também não tente se reconhecer aqui dentro, as pessoas são guardadas de maneira estranha por aqui ? ela faz
menção de como mantém as pessoas dentro dela, beija meu rosto, desvia de mim e vai até o guarda-roupa.
Vou atrás dela e a vejo colocando minha calça favorita sobre a cama, ela é azul escura e solta, perfeita para prédios com mais de sete andares. Minha camiseta branca e meu
tênis.
? Alguns saltos? ? pergunto.
? Sim e algumas escaladas ? ela responde.
***
Tess
Atravesso a avenida movimentada que liga o mundo real do mundo do Ritz, o hotel que poucos no mundo conseguem financiar longas estadas. São dez horas da noite e estou exausta.
Dom caminha ao meu lado e olha parte do que filmamos hoje durante todas as tarefas que fizeram nós dois esquecermos por completo as refeições que ele havia programado.
Fazia muito tempo que não me sentia tão bem e livre. Assim que saímos do hotel essa manhã, fomos direto para Parrot, uma loja de eletrônicos de última geração. Lá, eu comprei
um celular e uma pequena filmadora portátil. Usei o dinheiro dele mesmo, o que ganhei na aposta no jogo de videogame. Ele não queria e quis até pagar, mas não acho justo.
Pessoas sempre tiraram algum tipo de vantagem de mim, aprendi o quanto isso é cruel.
Passamos o período da manhã a duas horas daqui, perto das montanhas onde nos encontramos pela primeira vez, e foi lá que o beijei uma centena de vezes e em todas as vezes
mandei a mensagem para o meu cérebro que meu propósito aqui não pode ser alterado. Mas isso é difícil, Dom é encantador, é do tipo que me surpreendeu com uma flor assim que
subimos o primeiro pico que nem era tão alto.
Logo depois do almoço, voltamos e paramos perto do Gare de Leon. Saltamos algumas vezes, encontramos um grupo praticando a mesma coisa e esquecemos completamente que teríamos
mais uma refeição.
? Cansada? ? Ele se aproximou de mim assim que me sentei no parapeito de um prédio e deixei meus olhos repousarem sobre a cidade luz.
? Não ? eu respondi sorrindo. Na verdade eu estava cansada, ainda estou, mas não de saltar de parapeitos ou colocar a minha vida em risco, estou cansada de carregar algumas
coisas que deixaram em mim.
? As fotos ficaram perfeitas ? ele fala e me acorda das lembranças do dia.
? Deixa eu ver ? estico a mão e ele me entrega o celular.
Deslizo o dedo e vejo a primeira foto assim que chegamos na montanha, e depois algumas fotos minhas, na montanha, no Gare de Leon e outras nossas, juntos, e isso é o que não
poderia ter, o dia foi perfeito demais para termos registros sobre isso.
? Você tirou essa foto! Agiu nas minhas costas! ? brinco e mostro a foto em que estou me espreguiçando em cima da montanha, o sol ainda está forte e eu estou costas.
? Ficou perfeita, cenário perfeito ? ele diz e pega o celular da minha mão e em seguida me devolve.
Olho para a tela e sinto que tudo que planejei em relação a ele pode não dar certo se eu deixar minha emoção tomar conta. Ele colocou a minha foto de costas como papel de
parede do celular.
? Um dia vai ter que trocar essa foto ? o alerto e ele sorri.
? Sim, mas não será hoje ? ele me puxa para perto dele e me beija, deixando a sua língua massagear a minha e eu me rendo a ele mais uma vez.
Entramos no hotel e ele me leva até a recepção.
? Boa noite, a partir de hoje até sexta-feira, ela estará comigo em minha suíte, favor incluir na conta ? ele ordena e diz o número do quarto.
? Está maluco? ? pergunto.
? Eu sou maluco e não quero você escalando esse hotel. Se for presa, não vou poder beijar você por mais dois dias ? ele diz e assim que o recepcionista assente com a alteração,
subimos para o quarto.
Eu entro e já arranco minha regata e minha calça assim que tiro o tênis usando os próprios pés.
? Preciso tomar um banho ? falo e vou até o banheiro e sei que ele está me seguindo.
Tiro meu sutien e minha calcinha e fico de frente a ele e ele está com a boca levemente aberta.
? Por acaso você nunca viu uma mulher nua? ? pergunto e entro debaixo do chuveiro.
? Não, eu sou virgem ? ele responde e sorri. Vejo que ele sai do banheiro e escuto-o mexendo em alguma gaveta.
Termino de tomar banho e estranho o fato dele não ter voltado ao banheiro.
Ele está segurando o celular com uma mão e com a outra o chip.
? Não funciona, tenho um celular sem linha ? ele diz e vem em minha direção e me puxa tirando a minha toalha e me deitando na cama. ? Você sabe que é linda ? ele diz.
? Gostosa? ? pergunto e ele concorda.
? Muito gostosa ? ele diz e me beija a boca com vontade. Sinto sua mão descer da minha barriga até minha coxa e subir até meu seio. Ele o acomoda em sua mão e aperta suavemente.
A boca de Dom domina a minha e involuntariamente abro um pouco as minhas pernas e ele desce novamente sua mão e agora desliza para baixo do meu umbigo e continua descendo
e me encontra.
Abro os olhos e vejo-o me olhando enquanto me beija. Sinto seus dedos brincarem com meu sexo e me remexo sob ele. Sinto-o penetrar um dos dedos e eu gemo em sua boca.
Ele afasta um pouco sua boca de mim e desce até encontrar meu seio, ele brinca com a língua e circula excitantemente e de repente suga, vorazmente, e continua descendo até
encontrar o ponto em que seus dedos estavam.
Fecho meus olhos e agarro os lençóis. Ele desliza a sua língua em movimentos circulares e espera o momento exato para me sugar e meu gemido sai um pouco mais alto, mais prazeroso
e eu não me lembro de ter vivido isso recentemente.
Ele continua o movimento e agora ele abre um pouco as minhas pernas e antes de voltar a me sugar, ele olha e desliza sua língua de uma ponta à outra e volta para o ponto mais
frágil que está prestes a se render a ele, como eu fiz o dia todo em cada beijo.
Ele continua e meu corpo reage, explode e me sinto mais mole, mais relaxada e sinto o término do orgasmo como um grande e dolorido luto.
? Agora você tem um bom motivo para dormir ou para esperar que eu tome banho ? sinto minha respiração mais acelerada e meu coração está disparado. Dom se levanta da cama e
sai arrancando sua roupa em direção ao banheiro. Eu já vi seu corpo nu e é por isso que ele não teme ficar sem roupa.
Preciso ficar acordada, preciso senti-lo aqui dentro. São apenas dois dias e um pouco de bom sexo não faz mal a ninguém, ainda mais para mim que estou há meses planejando
outra coisa a ponto de me esquecer de satisfazer meu corpo.
Escuto o barulho do chuveiro e penso que Paris pode ser o começo de tudo e o término de muita coisa.
***
Dom
Não tenho pressa de tomar meu banho. Pela primeira vez estou mais feliz em satisfazer do que de sair satisfeito.
Me enrolo na toalha e saio. Essa visão ela já teve e possivelmente não vai ficar assustada. Chego no quarto e a vejo deitada de lado, completamente descoberta e em um sono
digno de silêncio.
Me sento na poltrona de frente à cama e a observo, nua, linda e totalmente entregue. Alcanço o celular e olho as fotos que ela tirou e vejo uma pequena filmagem. Tiro o volume
e aperto o play.
Primeiro, ela filmou as montanhas, depois, parte do sorriso dela, outra filmagem dos prédios e depois novamente o sorriso dela. O dia dela foi feliz. Coloco o celular de lado
e me apoio nos joelhos e a observo.
Dois dias, pouco tempo para ficar com ela, mas é o tempo que ela está disposta. Não estou encantado pelo Parkour, já trepei com tantas praticantes que já perdi as contas e
nem me lembro de seus nomes. Mas é que ela é intrigante, esconde o que eu preciso saber e invade meu quarto de hotel.
Ela tem alguma coisa ainda inocente que parece que luta a todo instante com o que deseja quebrar disso. Tess é o mistério que preciso não saber, não quero entender, e não
quero que esses dois dias acabem.
A luz que vem de fora do hotel ilumina seu corpo e eu vejo uma pequena marca em sua perna direita, perto do joelho na lateral de fora e deduzo que seja resultado de saltos
e coisas de Parkour.
O que será que ela tem aí dentro que a deixa assim, tão descrente e quase fria em relação à humanidade?
Me aproximo dela e me deito, jogo minha toalha em qualquer lugar e puxo a manta para nos cobrir. Ajeito-a em meu peito e sinto-a suspirar. Seu sono é profundo, tão profundo
quanto o que esconde e eu não deveria sentir o cheiro do seu cabelo e muito menos apertá-la assim contra meu corpo.
Ela disse: Somos feitos disso! E desceu apoiando apenas as mãos na beirada daquele prédio e naquele momento eu pensei que se a mão dela escapasse, não seria apenas uma perna
quebrada e talvez eu não fosse tão rápido a ponto de segurá-la.
Tess se alimenta de adrenalina assim como eu.
Deslizo minha mão em suas costas, ela se mexe, dobra sua perna e a coloca sobre a minha me abraçando, como se fizéssemos isso sempre, como se um corpo tivesse sido criado
para se encaixar no outro desta forma.
Subo um pouco a coberta e eu deveria estar trepando com ela, deveria tirá-la do sono que está e fazer o que estou com vontade de fazer. Mas também estou com vontade que ela
fique exatamente onde está.
Nesse momento, ela não me parece alguém que colocaria outra pessoa em risco ou machucaria alguém. Ela me parece inofensiva e eu sei que isso é perigoso.
Deixo que meus pensamentos façam uma análise geral do dia de hoje e eu já concluo rapidamente que não foi um dia tão diferente; escaladas, Parkour e boa companhia, mas eu
não consigo isolar o que de fato está me deixando eufórico e totalmente passivo diante de uma mulher nua em minha cama.
Ela pode ter conseguido algo por aqui quando ficou de cabeça para baixo e fotografou o horizonte. Ela é apaixonada por fotografias e eu não a vi com nenhuma câmera profissional.
Era para ela ter uma pelo menos. Se ela fotografava sobre surf na Austrália, no mínimo seria a prova d'água.
Ela é boa equilibrista, joga videogame, tem um sexo bonito, sem pelos em exagero, e pernas bem firmes. Ela invade hotéis, mais precisamente o meu quarto de hotel.
O que será que realmente aconteceu na Austrália para ela ter fugido? Eu também fujo de Paolo, mas isso dura poucos dias e depois eu volto e o obedeço pelo menos até ele largar
as armas.
Eu não sei nada sobre ela, mas me sinto à vontade demais com isso também.
6
Tess
Estou de frente ao espelho. Ele é imenso, fica no quarto e reflete agora, além de mim, a janela com cortinas dançantes e Dom dormindo profundamente. Vejo a garota que se perdeu
em algum momento entre as surras por conta de algum copo que havia deixado de lavar.
Meus cabelos nunca foram tão longos, mesmo estando apenas na altura dos ombros, eles sempre foram curtos, muito curtos, e minhas orelhas um dia tiveram furos para brincos
que nunca mais usei, nunca mais usei depois que fui embora para a Austrália.
Minha vida havia se tornado algo que não contaria para ninguém depois disso. Quase fui violentada e foi esse quase que me fez ter coragem para que nunca acontecesse. Fugi
naquela noite, carregando o que coubesse em minha mochila.
Fui escrava de pessoas que haviam feito promessas que nunca me deixariam sofrer. Elas mentiram, elas eram o sofrimento e eu me tornei uma pessoa amarga a cada dia, uma pessoa
quase sem identidade e que aprendeu tudo sobre os serviços que se deve fazer em uma casa, porque fui obrigada, e o mundo que me conhecia antes disso não sabia mais nada sobre
mim, não sabia mais se eu ainda existia.
A marca em meu ombro me lembra o quanto uma panela precisa estar brilhando e a cicatriz em minha perna me lembra o quanto um cinto pode ser terrivelmente ameaçador se sua
fivela for projétil contra seu corpo. Eu não sabia que as roupas precisavam ser separadas por cor, depois disso eu aprendi.
Aprendi também a economizar absorventes, eles eram raros e às vezes inexistentes. Quando tive a minha primeira menstruação achei que estava morrendo, e culpei as surras que
levei por isso. Depois, eu entendi que isso acontece com qualquer garota, não as surras, o ciclo.
Levei anos até conseguir ter a chance de entrar para a era digital, tudo com data e hora marcada, sempre supervisionada e acredito que o único momento em que fui feliz e livre
foi quando Jordan passou alguns dias de férias comigo, apenas uma única vez. Isso me aliviou de lavar, passar e cozinhar, me libertou por apenas quatro dias de afazeres domésticos
e sempre havia alguém daquela casa por perto, me vigiando, e eu me acovardei e nunca falei nada para minha melhor amiga, ela nunca soube o que realmente aconteceu. Acredito
que nunca ninguém vai saber toda a verdade sobre mim. Minhas verdades são integralmente incapazes de fazer alguém feliz.
Os meus olhos se fecham e por mais que tudo esteja em silêncio, aqui dentro, no lugar vazio e longe de qualquer tipo de humanidade, um barulho de ódio se move contra meu peito.
Tenho evitado visitar esse lugar, mas eu sei que por mais que eu fuja dele, é ele que habita com mais força e tem poder dentro de mim.
? Cale-se! ? foi o que eu ouvi antes de sentir com toda a força o poder das costas da mão dela. Ela sempre usava aquele anel quando queria me acertar e eu me lembraria daquele
golpe durante dias, até que a marca sumisse e desse a oportunidade de uma nova marca aparecer.
Aprendi como viver em silêncio e profundo arrependimento por ter vindo a esse mundo. Enquanto todos estavam rindo e brincando na rua, eu estava enjaulada dentro de um mundo
que não me pertencia.
Sou a estatística nula que sobrevive de maneira clandestina longe de qualquer chance de justiça. Mas também sou aquela que abriu os cadeados, largou em silêncio a corrente
de oito metros e correu sem parar naquela noite fria e sem nenhum destino. Foi a primeira vez que andei mais do que cem passos naquela rua, depois foram mais de quatrocentos
até um pequeno centro e depois minha mochila, previamente arrumada na noite anterior, pesou e eu dormi, dormi por duas horas e voltei a lavar pratos na área menos populosa
da Austrália. Apenas fazia naquela lanchonete pequena o que fiz a minha vida inteira na casa de Theodora, mas na lanchonete consegui alguns trocados, guardei o que pude.
? Sua vadia! ? foi a última ofensa que ouvi antes de sair daquela casa. Giulian também tinha golpes certeiros e sempre me prometia um nova surra assim que o dia surgisse.
Mas ele não teve uma nova oportunidade para isso.
Ninguém me procurou, Theodora e Giulian tinham outros problemas judiciais para serem resolvidos e eu nunca pensei em denunciá-los. A única coisa que desejava deles era distância.
Foram meses de trabalho, guardando dinheiro e trabalhando no mais profundo silêncio. Até que conheci aquele que me parecia ser a minha salvação. Então, depois de três anos
dividindo a cama luxuosa e coberta sempre com o melhor tecido, eis que meu mundo desaba novamente. Eu havia chegado ao ponto de pensar que eu estava nesse mundo apenas para
testar todas as formas que o azar e a infelicidade podem ser realizados com a espécie humana.
Desta vez eu não fugi, já era maior de idade e fui morar em uma vila antiga, onde me apresentei como Bia e foi assim, até que eu reencontrei Jordan nas redes sociais e agora
estou aqui, disposta a colocar em prática aquilo que planejei durante muito tempo. Estou disposta a pelo menos retribuir a dose exata de infelicidade que senti quando soube
que havia de fato ficado só neste mundo.
? Eu também ficaria por horas olhando para tudo isso ? a voz rouca de Dom que acabou de acordar quase me comove, mas me resgata do passado que tento a todo custo pensar que
foi uma grande brincadeira de mau gosto.
? Só olharia? ? o provoco e eu sei dos riscos que estamos correndo nessa brincadeira de gato e rato. Gostaria de olhar para ele e dizer que o que me trouxe até Paris não foram
as fotografias que faria e sim, uma dívida do passado que tende a perturbar a minha pouca sanidade mental.
Ele se levanta bruscamente e vem em minha direção. Ele evita me beijar, e eu sei que o hálito da manhã é algo que deve ser evitado. Escutava isso quase que sempre do maldito
que terminou de enfiar a merda da minha vida no lixo.
Ele se aproxima de mim e me abraça. Ele também está nu e apresenta os sinais claros de que vamos evoluir em um passo nessa breve relação com data e hora para terminar.
Dom me leva até a cama e me deita. Ele fica de joelhos entre as minhas pernas e sorri.
? Não vou poder fazer isso sem beijar a sua boca ? ele se aproxima, beija a minha testa e vai em direção ao banheiro. Escuto-o escovando os dentes e imagino que ele é rico,
mas não possui a soberba que poderia empobrecê-lo.
Ele volta para o quarto rapidamente, pega um preservativo dentro de sua mala e sem nenhum tipo de cerimônia, se mostrando hábil em tal tarefa, retoma a posição entre as minhas
pernas.
? Infelizmente não vou poder fazer tudo que eu gostaria. Nesse momento tenho pressa de me enfiar dentro de você, então, por favor, não deixe que essa nossa primeira vez se
torne uma referência ? ele brinca e se encaixa mais perto do meu corpo e sorri o sorriso lindo e branco. Sinto o hálito mentolado e aliviada por ter feito o mesmo assim que
acordei.
? Com certeza vou me lembrar de sua pressa ? zombo dele e ele expande ainda mais o sorriso que me deixa calma e completamente confortável com essa situação.
Ele para, se afasta em um palmo, olha meu corpo todo e para com os olhos de frente aos meus, me olhando como se descobrisse toda a verdade, como se soubesse que parte da minha
vida tem sido feita de muita coisa ruim.
? Tess, se você pudesse ver o que eu estou vendo nesse momento ? ele volta a olhar todo o meu corpo, que agora está arrepiado e espera com ansiedade por ele ? Você, com toda
a certeza deste mundo, estaria com tanta pressa quanto eu ? ele se posiciona e eu o sinto penetrando suavemente e fechando os olhos como se buscasse dentro de si algo que
pudesse acalmar seu tesão e não deixar que tudo termine de forma abreviada e rápida como começou.
Ele entra mais em mim, algo disposto a empurrar para longe momentos que não foram como esse, sem cobrança e sem compromisso.
Ele se aproxima de mim e para com seu rosto diante do meu.
? Melhor do que imaginei ? ele entra com força e se mantém enquanto deixa em minha boca seus lábios suaves e sua língua tão hábil quanto o resto do corpo.
Ele sai lentamente e volta, não deixando a minha boca e a fusão de nossos corpos e fluidos é mais do que intensa; ela desmorona algumas de minhas paredes; esse movimento destrói
por alguns instantes o que estava planejando, mas tudo volta a se refazer e eu tento não pensar no que vou fazer no futuro, me atenho ao plano do momento. Ele acelera um pouco
mais o movimento e eu o agarro com minhas pernas mantendo-o cativo enquanto seguro sua nuca e devoro ainda mais a sua boca.
Sinto-o bater aqui dentro, não apenas no meu sexo, ele faz o barulho que preciso nesse momento para não escutar o que tenho de ruim arquitetado em minha mente.
Somos só nós dois agora, somando um beijo e um sexo simples, daqueles que acontecem quando não temos tanta experiência, ou quando temos medo de errar.
Empurro-o e me coloco sentada sobre ele em um movimento rápido o suficiente para que mais nenhum pensamento ruim invada esse momento.
Deixo meu quadril livre, como eu gostaria de ser sempre e sinto as mãos dele segurar cada lado do meu traseiro e subir para os meus seios.
Seu gemido se torna combustível e estou tentando buscar o ápice nesse momento assim como ele, que agora olha para a união de nossos corpos e depois olha para o meu rosto,
e eu estou sentindo mais do que tesão nesse momento. Eu estou me sentindo livre de tudo que sentia antes de tê-lo aqui dentro.
Ele puxa meu rosto para perto dele e me beija, ferozmente, como há muito tempo não era beijada e sinto que meu corpo vai se render, e vamos nos render juntos ao que nasceu
para ter fim. Assim como eu, ele se esvai e eu me deito sobre seu peito e mais uma vez sinto algo que não sentia há muito tempo, assim que seus braços acolheram meu corpo.
Eu me sinto protegida.
***
Dom
O sexo é o tipo de adrenalina que meu corpo mais aprecia. É nele que esgoto minhas energias e sempre tive controle e consciência de que esse desgaste era apenas físico.
Sempre mantive meus relacionamentos sem muito intuito de serem sérios ou que elevassem para o nível totalmente inaceitável, o compromisso. Com isso também desafiei as leis
de Paolo e coloquei em risco algumas pessoas, mas eram riscos empregatícios e eu sei que de toda a Bastilli Barche, apenas três mulheres não me viram nu, pelo menos eu não
me lembro disso ter acontecido. Se Paolo descobre isso, com certeza terei pouco tempo de vida, não sei como ele reagiria.
Há alguns meses me envolvi com a Joice, da administração, um dos departamentos que minha irmã toma conta. Foi incrível, trepávamos até no almoxarifado da Bastilli e uma vez
desconfiamos que Paolo houvesse colocado uma câmera de segurança lá e que poderia estar olhando nossas trepadas. Mesmo assim insistimos nisso até que um dia ele quase nos
flagrou.
A minha sorte é que Joice gostava mais do emprego do que de mim. Foi fácil acabar aquele envolvimento e por mais que ela tivesse um par de seios preciosos, eu tinha uma vida
inteira pela frente e não poderia arriscar futuras transas apenas por causa disso.
Eu deveria ter aprendido a lição e nunca mais ter feito nada dentro da Bastilli, mas algumas semanas depois, quando me dei conta, estava na cama com Lisa, a faz-tudo de Sofia,
e naquela noite eu descobri que ela é realmente uma faz-tudo.
Nunca fugi de nenhum relacionamento, a verdade é que ninguém nunca me convenceu que era boa o suficiente para me prender nesse status, pelo menos até a manhã de hoje.
Olho para a cama e posso ver Tess, sentada de pernas cruzadas, usando uma camiseta minha. Aliás, a camiseta que ela sujou com geleia feita de alguma fruta cor de rosa era
a minha favorita, ainda é a minha favorita, e se tornou mais especial. Não sei, estou perdido e não gosto de me sentir assim, não gosto de não saber o que está acontecendo.
Não quero que o tempo volte e nada do que aconteceu deixe de existir, eu só não gostaria que tudo que fizemos aqui, presos dentro deste quarto por dois dias, estivesse em
minha mente como algo que precise primordialmente ser repetido. Eu preciso entender que é como trepar com a Joice no almoxarifado, não pode mais, é proibido e pode custar
caro. E não estou nem falando de empregos ou da fúria de Paolo, estou falando da minha vida.
Tudo deveria ser como sempre foi, sem nada para ser lembrado como algo desejável, mas o ponto não está sendo esse, o ponto é que escuto-a gargalhando nesse quarto. Consigo
ver seus movimentos embaixo do lençol ou andando sem nada lhe cobrindo.
Ela deixou algo por aqui e eu não sei se deveria ficar com isso, eu não sei o que fazer com isso. Isso faz barulho, faz o barulho dela, tem o cheiro dela e eu sinto o gosto
do meio de suas pernas em minha boca e eu desejo que ela ainda se lembre do meu sabor também.
Gostaria de ter deixado algo nela, assim como ela deixou em mim.
Mas agora, nesse exato momento, estou tentando entender o que me levou a querer tanto ir até o fim, e agora que cheguei nele quero voltar, quero que tudo volte a acontecer.
? Ei! ? ela me chamou de dentro do banheiro e eu fui, sorrindo porque estava feliz o suficiente para sorrir o tempo todo ? Entra aqui comigo ? ela estava coberta por espuma,
com cabelos molhados e com o rosto corado.
? Me dê um motivo para fazer isso ? pedi.
Ela se levantou e a espuma escorreu pelo seu corpo deixando tudo que já havia provado a mostra. Ela me completou por dois dias e agora sinto que ela partiu levando o que me
completava.
Acho que ela significou mais do que dois dias e duas noites de sexo intenso. Ela ainda está aqui, como se zombasse da minha resistência, como se soubesse que estou pensando
no quanto é linda enquanto dorme com sua boca parcialmente aberta.
Pego o telefone e ligo para Caryn.
? Alô ? ele atende.
? E aí, cara? Nosso voo sai em três horas, vou pegar um taxi e passo por aí ? minha voz não representa nada feliz.
? Está tudo bem? ? ele pergunta.
? Preciso voltar para Gênova e tentar não pensar em tudo ? desabafo e olho para a toalha jogada em cima da poltrona, ainda úmida do corpo dela.
? Ela está aí? ? Caryn pergunta e eu antes de responder de maneira sonora, nego com a minha cabeça e eu sei que existe a inconformidade sobre essa separação previamente estabelecida
há dois dias.
? Não ? respondo quase sem som e tudo está mais bagunçado do que poderia estar. Paris não poderia representar mais nada além de Parkour, mas agora, acredito que esteja fazendo
o que mais gosto, estou em queda livre.
? Cara, sentimento não é bom, tenta pensar que foi passageiro ? ele diz.
? Esse é o problema ? digo.
? Qual?
? Passageiro ou não, existiu e ainda está aqui, preciso ir embora ? falo.
? Jordan está aqui, acabou de chegar e está dizendo que Tess chegou agora e não parece estar feliz, pediu pra ficar sozinha ? ele diz e tento me confortar que ela possa estar
sentindo o mesmo que eu.
? É que foi diferente ? explico.
? Ela desce montanhas rápido demais ? Caryn tenta brincar.
E sabe jogar pessoas de lá de cima também, penso comigo.
? Chego aí daqui alguns minutos ? falo e desligo.
Pego minha bagagem, olho para o quarto e verifico se não estou esquecendo nada e sinto apenas que eu fui esquecido ali. Tudo é novo para mim. Tess chegou para me mostrar algo
que não sabia que poderia acontecer.
Preciso parar de pensar nela, nas coisas que ela fala e em como sabe fazer quase tudo que eu gosto.
Preciso acreditar que realmente eu posso encontrar mil sorrisos como o dela.
Chego à recepção e peço para fechar a conta e espero que vasculhem todos os detalhes, tudo que foi consumido, desde o café da manhã colonial até o sorvete de chocolate que
acabou se espalhando por quase todo o quarto. Vão colocar em minha conta o que quebramos em uma brincadeira de montar uma imensa cabana, deveríamos saber que a cortina não
suportaria tanto peso.
Pagaria outra vez se ela quisesse.
Entrego meu cartão e espero que me liberem e saio, sem ver nenhum taxi, e escuto do meu lado alguém perguntar alguma coisa.
? Precisa de um taxi? ? um funcionário do hotel pergunta e eu aceno que sim.
Ele pega minha bagagem e me conduz até o taxi e coloca a bagagem no porta malas. Dou uma gorjeta que nem sei de quanto foi e sigo para a casa dos Marshall.
Chego lá e desço, pedindo para que o motorista aguarde alguns minutos. Olho para a casa de Jordan e não a vejo e esse deve ser o ponto que realmente dizemos adeus, sem palavras
e sem último beijo. Últimos beijos levam aos primeiros e tudo se torna impossível de ser finalizado.
Caryn vem em minha direção e Jordan está com ele, falando alguma coisa que é interrompida assim que ela me vê.
? Dom, vê se aparece na competição ? Jordan menciona o Parkour que vai acontecer em algumas semanas. Não me lembro direito o dia e eu não sei se quero voltar aqui tão cedo,
pelo menos eu preciso ficar longe o suficiente para que tudo se torne menos aqui dentro.
? Vou tentar fugir do meu irmão ? sorrio e tento disfarçar.
? Exagerado ? ela diz e se aproxima de mim ? Escute, eu sei que vai parecer mais estranho do que deveria, mas é que seus olhos não são os olhos de Dom e isso está me assustando
? ela fala baixo em meu ouvido.
? Não sei o que você quer dizer ? me finjo de desentendido e não a encaro já que meus olhos estão me delatando.
? Seu segredo está guardado comigo ? ela diz e pisca para mim.
? Não tenho segredo ? falo quase sem som e ela está sorrindo.
? Tess me disse a mesma coisa ? ela beija meu rosto assim que dispara tudo que eu definitivamente não queria ouvir e vai em direção à sua casa.
? Você precisa controlar sua namorada ? falo para Caryn e ele nega com a cabeça.
? Não tenho namorada e se tivesse, Jordan não seria alguém para o cargo, ela me irrita em tempo integral ? ele coloca a mala dentro do carro e seguimos para o aeroporto.
Percebo que Caryn me olha de soslaio. Estamos no banco de trás, cada um virado para uma janela e eu desejo sentir alívio de ir embora, voltar para Gênova e ficar longe de
Paris e alguns moradores recentes.
Mas eu não sei, acho que vou sentir mais falta daqui desta vez. Tem algo meu ficando para trás.
7
Depois de ter chegado em casa e jantado, Caryn e eu fomos para a sala de jogos e ouço o telefone da casa tocar.
Em seguida escuto Mercedes me chamar e eu respondo da sala de jogos.
? Telefone para você ? ela se aproxima com o telefone sem fio e me entrega e eu pergunto sem som para ela quem é?, e ela responde do mesmo jeito para mim... Paolo.
? Alô ? atendo esperando um bombardeio.
? Presumo que suas férias foram de extrema valia. Está devidamente descansado e podemos voltar a trabalhar, afinal de contas, acabei de receber uma fatura e ainda estou pensando
qual o motivo que leva uma pessoa a ter tantos carros ? Paolo fala e não escuto nem a sua respiração, ele se mantém com voz baixa, firme e eu diria, mortal.
? Um presente de aniversário para mim mesmo? ? mais pergunto do que respondo e espero pelo bombardeio.
? Minha dúvida é quantos aniversários você faz por ano ? ele é sarcástico e eu quase engasgo ? Você está proibido de gastar mais um centavo com carro e suas parafernálias.
Mas, eu devo admitir, gostei muito do seu projeto e quero que explique melhor isso no domingo. Se for viável e Sofia analisar os custos, possivelmente vamos elevar a Xtreme
? Paolo bateu com a cabeça, mas seu elogio me fez voltar duas noites, quando enviei o email para ele com o projeto que ele menciona.
Não vou mentir, pensei nesse projeto por conta dela, por causa da Tess. Ela é boa com fotografias e quando me mostrou as filmagens sobre nossas aventuras, eu demorei até organizar
todo o projeto em minha cabeça. Mas, enquanto ela dormia, desci até a recepção e fui para o computador digitar tudo e disparar mesmo que sem grandes detalhes para Paolo.
? Obrigado, vou fazer tudo de maneira detalhada e envio por email antes do almoço, assim poderemos acertar alguns detalhes ? falo e escuto o soltar da respiração.
? Tudo bem, nos vemos no domingo ? a voz dele não parece estar feliz e eu sinto que o problema não é comigo. Paolo sempre tem algo para resolver dentro de sua cabeça indecifrável.
Desligo o telefone e olho para Caryn que mais uma vez está olhando para um pingente preso a uma correntinha. Ele carrega isso para cima e para baixo. É prateado e hoje é a
terceira vez que o flagro olhando para isso e seu rosto apresenta o que chamo de preocupação por antecedência, outras pessoas chamam de intuição.
? Cara ? o chamo e ele olha, guardando no bolso do jeans o pingente ? tudo bem? ? seu semblante está aflito agora.
? Não sei, alguma coisa não me parece bem ? ele anda em torno da mesa de sinuca e olha para as caçapas, depois para as bolas em cima da mesa e me encara ? Essa corrida ? ele
solta e começa as tacadas.
? Qual o problema? ? pergunto.
? Todos, essa corrida não pode acontecer. Ela não funciona como as nossas corridas da meia-noite. As nossas corridas são entre amigos, ninguém vai até lá para colocar outra
pessoa em risco. Lars não pensa como um corredor, ele pensa apenas nele, nos negócios dele e no dinheiro ? ele dá uma tacada e o barulho ecoa por toda a sala de jogos e Caryn
está menos paciente agora.
? Você nem sabe se vai acontecer, pode ser que ela fique apenas na promessa ou é apenas uma jogada de marketing para aumentar as vendas de suas lojas ? falo e jogo ? Quando
nos conhecemos, fazia pouco tempo que Gustav tinha falecido, você nunca comentou nada sobre isso ? faço silêncio e espero que ele se pronuncie.
? Fazia apenas seis meses e até hoje eu falo que faz apenas cinco anos e daqui mil anos ainda será pouco, é mais do que um acidente de carro ? ele para de falar e eu fico
quieto olhando para o rosto dele que não parece com o Caryn que conheço. Ele está assim desde que soube da queima de asfalto ? Lars matou meu amigo, meu irmão ? ele fala e
volta a jogar.
? Infelizmente Gustav não vai voltar ? falo e agora é a minha vez de jogar.
? Mas Lars vai e ele vai voltar exatamente no mesmo lugar, como se isso fosse a sua assinatura, como se o Arco fosse o cenário para o que ele quer fazer ? essa corrida incomoda
Caryn mais do que o normal.
? Seu medo é que Milan participe? ? pergunto e jogo.
? Milan não vai entrar em nenhum carro, ele não vai pagar a inscrição desta merda ? ele fala e mira na bola vermelha.
? Inscrição? ? pergunto.
? Duas horas antes da corrida, o batedor passa recolhendo a grana de quem vai participar, são mais de duas mil pratas por essa merda e eu mesmo mato Milan se ele mexer nas
economias dele ? ele ameaça e eu quero apenas que ele fique mais tranquilo.
? Você deixou claro que ele não pode, com certeza ele vai obedecer ? tento, mas sei que não consigo acalmá-lo.
? Milan é teimoso, acha que pode tudo, sua jovialidade não deixa ele entender que ele não é invencível ? Caryn joga e erra.
? Ele não seria louco, ele precisaria de um carro e isso ele não tem ? falo e acerto a caçapa.
? Ele conseguiria um facilmente e meu medo é que Dino o ajude com isso. Preciso voltar para Paris antes que tudo comece. Pedi para Jordan me avisar de qualquer coisa e a deixei
de babá dos meninos, para isso aquela chata funciona ? ele fala e encaçapa duas bolas de uma única vez e o telefone dele toca.
Ele atende e o semblante ruim vai embora e chego a vê-lo quase sorrindo e possivelmente eu sei quem é que está do outro lado. Caryn está falando com Jordan e isso explica
o rosto menos afetado pela preocupação.
? Ele está aqui ? ele diz e olha para mim ? Sim ? ele continua mas entrega o telefone para mim e eu imagino o que Jordan teria para falar comigo. Penso em um milhão de possibilidades
e fujo em seguida de cada uma delas. Preciso não pensar.
? Oi ? respondo e escuto a respiração do outro lado.
? Oi ? escuto e agora vejo o meu rosto assim como o de Caryn. Eu sei que estou sorrindo.
? Oi... ? solto e deixo que fique entre as nossas respirações.
? Eu disse que não haveria despedida ? ela diz.
? E não houve, você foi embora sem me dizer adeus ? falo e caminho para perto da janela e olho em direção ao portão. Vejo que Caryn me deixou sozinho e colocou o taco sobre
a mesa.
? É por isso que estou ligando ? ela diz.
? Para me dizer adeus? ? sorrio.
? Para não dizer... ? assim como eu, ela deixa a palavra flutuando entre os nossos silêncios ? Eu ... não consigo me despedir de você mentalmente; é como se fosse errado,
e por mais que eu esteja aqui em Paris com motivos diferentes, acho que agora também estou por você ? eu não sei se quero ouvir tudo isso, estou mais envolvido do que jamais
estive ? Eu saí do seu quarto essa noite achando que tudo voltaria ao normal, mas acho que me esqueci lá dentro e tudo voltou a ser a droga que era antes ? ela inspira buscando
por mais ar, mas acho que não encontra.
? Eu estou em Gênova, longe, e preciso ficar aqui. Eu já sabia que isso seria difícil, voltar e ter que trabalhar, porque Paris sempre vai ser o meu lugar no mundo, e eu sempre
me sinto terrivelmente triste quando volto ? paro um segundo e busco pelo menos coerência no que estou falando ? Mas desta vez foi diferente, foi como se não tivesse um lugar
para voltar, como se aí fosse meu único destino... Eu também não consigo parar de pensar em você e eu sei que vou ter que ficar com sua imagem dançando sobre a cama, fazendo
o vidro de shampoo de microfone, eu tenho que aguentar a sua voz aqui me falando do céu da Austrália ou do quanto está com fome ? desabafo.
? Dom, não deveríamos ter acontecido um para o outro, mas eu não quero que isso mude e ligar para falar com você, me fez sentir que estou fazendo a coisa certa ? ela respira
fundo, mais do que pode, e retoma ? Você também está aqui, sua imagem enquanto dormia e eu apenas observava, e antes que desistisse de partir, eu saí e não consegui beijar
o seu rosto e sentir mais uma vez o seu cheiro. Eu quero que você seja feliz, gostaria de ter você aqui, nesse momento, e se eu pudesse, teria voltado para a cama e não saído
do quarto sem me despedir.
? Você vai ficar aí por algum tempo, talvez para sempre e eu vou quando puder, nem que seja para roubar você e trazer você para Gênova ? não quero pensar que ela pode me esquecer.
Idiota, Dom...
? É por isso que estou ligando. Eu realmente não sei por quanto tempo eu vou ficar e ao que tudo indica, quando você voltar para Paris, vai ter que encontrar outra que tenha
fome e cante como eu ? ela brinca, mas sua voz não é apenas de alguém que estará de partida em breve.
? Não acho que teria tanta sorte ? caralho, como eu pude me apaixonar por ela? Não sei nem o sobrenome dela, não sei nada sobre ela a não ser que ela está aqui comigo.
? Obrigada pelos últimos dias, há muito tempo não era tão feliz ? ela diz e eu imagino que antes dela eu nunca tenha feito isso, ficar por dois dias trancado em um quarto
fazendo sexo e outras coisas que estão agora me atormentando para serem repetidas.
? Eu também devo lhe agradecer ? falo e espero que ela se pronuncie.
? Tenho que ir, até logo ? escuto-a se despedindo de mim e entregando o celular para Jordan.
Quando penso em tirar o celular do orelha, escuto Jordan e ela conversando e eu permaneço ali, na espreita ouvindo o que elas estão falando.
? Eu juro que não te entendo! ?Jordan exclama e escuto-a fechar uma porta que deduzo ser a do guarda-roupa.
? O que você queria que eu dissesse a ele além do que eu disse? ? Tess a reprime.
? Deveria ter dito que em poucas semanas vai estar longe e que não tem interesse em ficar aqui. Por que não disse a ele que se apaixonou? Assim como disse para mim? Por que
você não fica aqui até ele voltar? Ele está sempre por aqui! ? Jordan protesta e parece enfurecida.
? Ah sim, como se você também fosse verdadeira, Jordan. Meus planos em Paris são outros e não vou poder ficar aqui depois do que eu fizer. Eu não sou a pessoa boa que você
conheceu, alguém matou essa pessoa duas vezes ? Tess está nervosa e escuto outra porta se fechando.
? Tess, o assunto aqui não sou eu, me explica o que aconteceu com você, me fala o que fizeram contra você que agora você perdeu a fé em tudo ? Jordan exige.
? A fé é algo que não é mais meu por direito ? Tess diz em um tom mais triste.
? Me fala, sou sua amiga, pode confiar em mim! ? Jordan praticamente implora e eu estou torcendo para que ela fale tudo e eu possa entender o que está acontecendo.
? Não há nada sobre mim, não há mais nada sobre mim que alguém possa ou queira saber, virei um fantoche, pelo menos até resolver tudo que tenho para resolver ? Tess fala.
? Eu queria apenas entender, por que precisa ir embora? O que tem para resolver? Meu Deus, Tess, eu amo você e às vezes olho para você e procuro aquela menina de tranças e
com uma boneca de pano; eu olho para você e é como se eu estivesse vendo alguém completamente sozinha e isso não é verdade, você tem a mim ? Jordan fala com tristeza.
? Eu sou sozinha, Jordan. A menina de tranças e boneca de pano deixou de existir para dar lugar a essa Tess. Eu não tenho nada aqui dentro que possa fazer bem para alguém
? ela para de falar ? O celular está ligado? Você não desligou? ? escuto mexerem no aparelho e em seguida desligam.
8
Sento na poltrona perto da janela e giro o celular em minha mão. Tento entender o que pode ter acontecido e por mais que eu pense, eu não sei nada sobre ela e isso é como
montar um quebra-cabeças com uma única peça.
?Tudo bem? ? Caryn volta segurando uma cerveja e pergunta.
? Não ? entrego o celular dele e me mantenho sentado.
? O que aconteceu? ? ele pergunta e encosta na mesa de bilhar de frente a mim.
? Você já tinha visto a Tess antes? ? pergunto.
? Não, a conheci no mesmo dia que você ? ele responde e espera que eu explique a minha pergunta.
? Nem mesmo Jordan sabe tudo sobre ela e é isso que me intriga. Elas eram amigas de infância e de repente não sabem mais nada uma da outra e Tess significa uma desconhecida
para Jordan em alguns momentos ? falo e me levanto. Ando até a cozinha e pego uma cerveja. Bebo meia garrafa e nem percebo. Caryn vem atrás de mim e apoia os cotovelos no
balcão da cozinha.
? Por que você está falando isso? ? ele pergunta e eu quero apenas deixar que as coisas se encaixem aqui dentro e tudo pare de fazer barulho. Com esse barulho todo não consigo
pensar.
? Porque possivelmente eu esteja apaixonado por uma completa desconhecida e isso é mais do que um problema, ela pode simplesmente desaparecer e nunca mais eu a encontre ?
assumo e Caryn abre um par de olhos.
? Esse lance aí é que fode tudo ? Caryn fala e bebe o resto da cerveja e pega outra. O assunto ficou tenso.
? Eu sei, é por isso que estou assim, pensando que provavelmente eu não vá conseguir saber mais sobre ela, porque ela pode simplesmente desaparecer ? bebo mais um gole e Caryn
vira também meia garrafa de cerveja.
? Quer fazer o que sobre isso? ? Caryn pergunta e eu mesmo não sei a resposta.
Eu poderia ficar aqui em Gênova e deixar que a poeira toda baixe e, então, voltar a ter minha vida de antes, ir para cama com todas que eu quisesse e o mundo voltaria a ter
sua rotação natural.
Mas eu não quero.
? Vou resolver o que preciso aqui essa semana. Tem um evento da agência de turismo e isso é de meu interesse ? bebo o restante da cerveja e pego outra ? Mas, eu acho que sei
o que posso fazer enquanto estiver aqui.
Levo Caryn até o meu escritório e me sento diante do laptop e faço o que Paolo deseja, um projeto detalhado, com tudo que preciso e qual é o objetivo disso.
Caryn se deita no sofá e folheia uma revista de carros e eu digito cada palavra pensando no sorriso dela sujo de chocolate, penso no seu jeito de criança com uma guerra boba
de travesseiros contra mim. Não tem como não pensar em suas mãos deslizando em mim e depois as minhas estavam nela e é como se tivéssemos sido feitos em moldes pares e agora
nos encontramos e provamos que o encaixe é perfeito.
Tess tem o andar de mulher, mas enquanto dorme parece uma criança. Inúmeras vezes a senti me puxando para abraçá-la enquanto dormia e isso fez com que o sexo não fosse tão
primordial assim. Estar com ela é especial, mesmo que seja na marquise de um prédio ou sob os lençóis bagunçados de uma cama.
Na conclusão desse projeto, é o rosto dela que está diante de mim e vou usar as palavras dela como argumento final.
"Liberdade é poder sorrir"
Clico e envio para Paolo e Sofia e eu tenho certeza que vamos ter um projeto de qualidade. Viagens pela Xtreme onde profissionais qualificados registram seus momentos e editam
como um filme. E para crianças, o Xtreme Kids, pequenas aventuras enquanto seus pais estão em outras maiores.
Somos a soma de ideias e na verdade quero esse projeto com uma filial em Paris e já tenho uma fotógrafa competente para isso.
? Não vou deixar que ela desapareça ? falo e Caryn nega com a cabeça.
? Você está fodido ? ele sorri.
? Estamos, meu amigo ? rebato e ele fecha o sorriso.
? Cara, por que você cisma que eu gosto de Jordan?
? Não é cisma, mas não vou discutir com você sobre isso ? me levanto e me aproximo dele ? Vamos sair ? falo e vou para o meu quarto. Escuto quando ele se levanta e vem atrás
de mim.
? Onde pretende ir?
? Zarun ? respondo e troco apenas de camiseta.
? Você é sócio de lá? Está sempre por lá ? ele fala com um pouco de revolta.
? Você quer ir na Purose? Lembra? ? assim que falo o nome ele já nega com a cabeça.
Há alguns anos arrumamos uma briga por lá e não podemos mais frequentar o lugar.
? Vou trocar de roupa ? ele fala e vai para a sala, onde deixou sua bagagem. Caryn vai acabar ficando por aqui, ele tem até cópia da chave. Aqui a casa é tão dele quanto a
dele é minha quando estou por lá.
? Não precisa passar batom ? sacaneio.
? Eu ia passar um cor de rosa que achei nas suas coisas, seu filho da puta ? ele rebate e eu gargalho.
***
De longe já consigo ver Heiden e vou para o outro lado do deck, fujo dela como o diabo foge da cruz. Ela parece estar com alguém e isso me deixa um pouco mais tranquilo. Mas
atenção nunca é demais. Estou aqui hoje para tentar não pensar tanto sobre tudo que aconteceu em Paris e também não pensar muito nela. Talvez isso seja até bom para comprovar
que encontraria mil sorrisos como o dela. Ela sorri como criança quando faz piada e gargalha como uma também quando lhe faço cócegas.
Sim, eu encontraria mil sorrisos iguais ao dela, mas não seria ela e é essa a parte que não me deixa esquecê-la.
? Está pensando na Tess? ? Caryn pergunta.
? Não ? minto.
? Então, para de pensar no que está pensando porque vai pegar mal você sorrindo assim com a cabeça no mundo da lua, aqui sentado do meu lado ? ele fala e chama o garçom.
? Aquela filha da puta não sai da minha cabeça, parece um castigo ? olho ao redor e vejo a Monica e seu noivo. Pobre homem, eu mesmo sou responsável por pelo menos alguns
pares de chifre em sua testa oleosa.
? Tente não pensar ? ele fala.
? É assim que você faz? ? tento tirar algo dele.
? Não faço nada e se você for falar da Jordan, aquela chata, eu juro que vou embora ? eu queria apenas entender o que separa esses dois que têm tudo para ficarem juntos.
? Caryn, qual é? Só estamos eu e você aqui, por que você e Jordan... não rola nada mesmo? ? pergunto.
? Dom, ela já disparou para quem quisesse ouvir que o lance dela é com Rick ? será que esse tom que ele usou pode ser enquadrado no padrão de ciúme involuntário e fatal?
? Rick? Da Felarrat? ? pergunto sobre o bombado com cara de perdido que é dono de uma loja de ferramentas.
? Esse aí mesmo ? tom enquadrado com sucesso.
? E você? ? eu insinuo.
? Eu o quê, Dom? ? ele está furioso.
? Você não sente nada por ela? ? pergunto e espero que ele me responda pelo menos uma grosseria bem típica dele.
? Sinto, mas isso vai comigo para o caixão, não vou me entregar porque depois eu vou ficar com cara de bobo sentado no deck de um bar em Gênova ? essa é a primeira vez que
escuto-o falando que sente algo pela chata.
? Mas, não tem medo de perdê-la?
? Dom, a gente só perde o que nos pertence, então, eu não corro esse risco ? ele responde.
? Prefiro correr os riscos, Caryn. Minha vida é feita de riscos, os tenho em cima de prédios ou no alto de montanhas, sem contar na quantidade de vezes que já saltei de um
avião apenas para registrar um video sobre o que é se sentir vivo. Eu seria bem hipócrita se quisesse desistir de sentir isso. É a primeira vez que sinto, preciso saber onde
isso tudo vai chegar ? justifico e vejo que ele agora olha para os guardanapos.
? Dom, Jordan é a minha fraqueza, me sinto totalmente incompetente perto dela e isso é perigoso demais ? ele admite a sua criptonita.
? Isso é bom, Caryn ? falo.
? Não, não é, já partimos um para cima do outro. Obviamente que eu nunca faria nada, mas ela veio para cima de mim durante uma discussão depois de uma corrida e as coisas
saíram completamente do controle, ali eu percebi que estar com ela é desistir de mim ? o garçom chega, tira nossos pedidos e sai ? Eu não tenho controle nenhum quando estou
perto dela, por isso eu a evito ? ele enfim assume.
? Mas nunca quis saber como é? ? agora que ele respondeu a primeira, vou até o fim.
? Ela me tira do eixo, com certeza, mas quando a beijei, descobri que ela poderia me arrancar a alma ? ele nega com a cabeça ? Não quero falar sobre isso, acho que já falei
mais do que deveria.
? Cara, o que há de errado em assumir o que sente para ela? ? intimo-o .
? O que há de errado? Tudo, a começar que ela não sente nada por mim, a não ser um desejo incontrolável de me irritar. O lance dela é o Rick e se tem uma coisa que não sou,
é homem que interrompe foda alheia ? ele justifica.
? Nunca foi pra cama com ela?
? Não ? ele não deixa nem a chance de continuar o assunto.
? Que pena ? falo e o garçom nos serve.
A conversa animada que vem da mesa ao lado nos chama a atenção. São quatro mulheres e acredito que sejam turistas, aparentam ser mais velhas e uma delas ostenta um anel de
noivado em seu dedo.
? Pena seria perder uma despedida de solteira ? Caryn sorri e vira seu rosto para a mesa e encara as mulheres que obviamente o encaram também.
? Você não pode tentar afogar Jordan em outras mulheres ? falo e bebo um pouco do que está em meu copo.
? Faço isso porque ela me afoga cada vez que escuto o carro de Rick na frente da oficina ? ele bebe quase tudo que está em seu copo e o levanta pedindo outro.
? Não seria mais fácil você falar com ela? ? pergunto.
? Não.
Foram oito doses, algumas músicas e quando percebi, as mulheres estavam em nossa mesa e o papo era sobre a vida delas em Londres, e por mais que aqueles fossem sorrisos perfeitos
e brancos, era o sorriso de Tess que estava ali, martelando a minha mente e implorando para que eu voltasse para Paris para repetirmos tudo.
? Podíamos ir para um outro lugar ? a noiva fala para todos, mas o seu olhar está em Caryn.
? É um convite geral, ou eu posso tomar a liberdade de acatá-lo apenas para mim? ? ele é direto e a noiva, que acho que se chama Jeane, fica sem graça com a resposta e abaixa
a cabeça.
? O que você gostaria de fazer? ? ela pergunta.
? Não posso responder isso em público ? ele retruca e a encara de cima a baixo.
? Responderia isso apenas para mim? ? ela continua no jogo de Caryn e nem imagina que essa partida quem ganha é ele. Ele vai sair ileso, porque dentro do coração dele tem
uma mulher dominadora que detém todos os sentidos dele e é a única que está nesse momento ali, fazendo com que ele fuja da realidade.
Caryn se levanta, puxa a noiva para junto de seu corpo e fala algo em seu ouvido. Ela corre riscos e o noivo pode ter que enfrentar uma comparação desleal. Caryn é o tipo
que as mulheres gostam, compram calendários com esse perfil de homem e os perseguem como doidas em capas de livros e revistas.
Uma das amigas se senta mais perto de mim e fala coisas sobre a Londres noturna e turistas deveriam saber que elogiar nossa localidade não as tornam atraente. Ela fala sobre
a costa de Gênova e escuto apenas a voz de Tess falando sobre as praias na Austrália, que fotografar era algo que ela poderia fazer por horas e por mais que eu seja educado,
enquanto a mulher que está na minha frente fala, eu pego meu celular que não serve para fazer chamadas, mas serviu de câmera fotográfica e agora serve de álbum.
Olho para as fotos que tiramos juntos no dia em que praticamos os saltos em alguns pontos sob o olhar fotográfico dela. Deslizo o dedo e revejo tudo que vivemos naquele dia
e a saudade dela surge como algo que queima e minha vida está presa aqui; pelo menos nos próximos dias eu não posso viver além de Gênova.
Sinto o dedo da mulher me chamar e eu não estou interessado. Ali, estou falando com mulheres maquiadas que não me dão a chance de imaginar como seriam os seus corpos sem roupas,
elas estão praticamente nuas. Sem falar as cores em seus rostos tão artificiais e internamente eu comparo com as cores de Tess, seus olhos azuis tão profundos e as cores de
suas sardas discretas e tão apaixonantes sobre o seu nariz fino e delicado. Mas é o tom de rosa de sua boca que faz meu cérebro realmente me expulsar do Zarun sem ao menos
dizer adeus.
Volto a olhar para a tela do celular, olhando as fotos e vejo que tem uma pasta com fotos que não sabia que estava lá. Vejo Caryn do outro lado do deck beijando a noiva e
tudo vai resultar na mesma coisa de sempre e amanhã será um dia igual e sem nada de melhor.
Chamo um taxi, vou voltar da mesma forma que vim. Assim que ele para e eu me sento no banco de trás, digo apenas para o motorista seguir, não dou meu endereço, quero apenas
ver o que tem aqui, escondido, e que está fazendo meu coração sacudir de um jeito tão novo, tão diferente.
Abro a pasta e tem algumas fotos e dois videos. Abro a primeira foto, é nossa, mas estou de costas tomando banho e ela está fazendo careta e mordendo a língua. Gosto da língua
dela... macia. A segunda é uma dela, totalmente nua, mas eu não vejo nada, ela está sentada na poltrona perto da janela e provavelmente estou dormindo. Outras fotos surgem,
algumas eu até me lembro do momento em que foram tiradas. Nossas caretas, ela comendo, eu de pé fazendo xixi (não acredito nisso!).
Estou sorrindo para o celular. Uma das fotos abre uma sequência que ela criou como se tivesse indo pular em cima da cama e na última é ela olhando para a câmera do celular;
estou de costas dormindo e ela está sorrindo, sorrindo da mesma maneira quando a vi pela primeira vez e é assim que a vejo agora, em todo momento, em todos os sorrisos.
Olho pela janela e tento buscar uma resposta que já achei que tinha. Minha liberdade só é preciosa porque não tenho ninguém para dividir minha vida, pelo menos eu não tinha.
Ela deveria ter sido aquilo que resolvemos em alguns minutos e não essa coisa permanente que pulsa em tudo que olho. Vejo as pessoas caminhando e tudo fica sem cor, como se
apenas através dos olhos dela nessas fotografias tudo ganhasse cor, como se fosse o azul de seus olhos que deixasse tudo melhor.
Volto a olhar para a tela e abro o primeiro video.
Começa com ela colocando o dedo indicador na boca, pedindo silêncio, como se tivesse uma multidão no quarto. Ela caminha da sala até perto da cama onde estou deitado, o dia
já começou lá fora, mas a noite exigiu muito mais do que achei que aguentaria.
Ela aproxima a câmera do meu rosto, estou de boca aberta e nem imagino que ela esteja invadindo minha privacidade e isso deveria fazer com que eu a odiasse e não sentisse
mais falta dela.
Ela volta a filmagem para o rosto dela e ela vira o rosto, me olha por alguns segundos, olha novamente para câmera com o olhar menos feliz e olha para o chão. Encerra o primeiro
video com ela menos empolgada do que no começo.
Quanto mais depressa abro o segundo video e é ela, na sala, e ela está falando sozinha, olhando para a janela e com o celular posicionado de uma forma que ela não precise
olhar para a tela e nem ao menos segurar. Ela deve ter apoiado em cima da mesa.
? Não é o tipo de solidão que acontece quando as pessoas partem depois da festa e deixam a pia cheia de louça. É o tipo de solidão que só tem cura quando encontra alguém que
faz travesseiros serem mais divertidos em movimento do que repousando sob nossas cabeças. Mesmo assim, eu preciso ir, não posso querer que mais ninguém esteja presente nisso,
não posso envolver ninguém, não posso querer que alguém sofra por uma decisão que eu tomei. Sou sozinha nesse mundo e isso não faz de mim uma pobre coitada, isso faz de mim
apenas alguém com uma pia imensa de louças pra lavar e com um travesseiro sem fronha sobre a cama.
"Me apaixonei infinitas vezes em poucas horas, e agora, além de pensar em você ? ela olha para a câmera ? Levo você comigo ? ela caminha em direção ao celular, o alcança e
aproxima para desligar a gravação e eu posso ver que seus olhos agora estão molhados e essa foi a forma que ela encontrou de entrar totalmente em meu coração.
Também prefiro os travesseiros da sua forma, Tess, penso comigo.
9
Alma Maria Bastilli
Escuto a conversa de Sofia e Dom e os espio pela janela antes de abordá-los. Eles estão conversando no hall de entrada da minha sala em frente ao jardim frontal da residência.
Me lembro como se fosse hoje, Nico nasceu e em seguida mostrou ao mundo seus pulmões famintos pela vida. Chorou alto e isso fez com que a parteira observasse sobre seu fôlego.
Ele mantém o fôlego até hoje.
Dos três filhos, ele é o que se aventura nas coisas, ele testa seus limites e, com isso, testa os meus também. Ele é o Nico brincalhão, mas que sempre se deita com a cabeça
em meu colo e me lembra que sou a única que pode desembaraçar os seus cabelos.
Quando ele fez oito anos, decidiu que teria cabelos longos e esse foi o primeiro impasse entre ele e Paolo. Eles são extremamente diferentes em vários pontos, mas se assemelham
na forma como me olham.
O menino que escala montanhas e prédios é também o protegido por Sofia. Ele não gosta que falemos sobre isso, mas muitas vezes Sofia brincou de boneca com ele quando ele era
um bebê.
Meus filhos foram meu alicerce, minha fortaleza e hoje são minha única estrutura.
Escuto Sofia brigar com ele da maneira mais doce que alguém possa fazer. Ela fala sobre seu atraso e sobre as responsabilidades que ele deveria ter, mas se nega constantemente
em assumi-las.
Eu sei que Paolo fez do sobrenome uma marca forte, reconhecida mundialmente, e preza para que isso possa continuar de maneira positiva, e eu entendo a natureza de Nico. Ele
não nasceu com um propósito coerente de viver, desde sempre estava se colocando em riscos desnecessários e isso faz dele uma pessoa tão rara.
Conheço cada um dos meus filhos e os reconheceria em qualquer situação. E é por isso que sinto na explicação de Nico que existe algo diferente acontecendo com ele, existe
uma razão para ele estar aceitando o puxão de orelha de Sofia tão calmamente. Primeiro, porque se trata da irmã que o defende e depois, porque por alguma razão a vida dele
está mais feliz.
Aos dezesseis anos, Nico se apaixonou por uma garota mais velha e isso me deixava completamente irritada, porque como mãe eu sabia onde aquela garota de cabelos roxos queria
chegar. Ela tinha interesses nele, mas para ser franca, o interesse era em seu sobrenome e eu percebi diversas vezes Paolo evitando conversar com ela. Ela era do tipo fácil
demais para Paolo, e no ponto perfeito para Nico no auge de seus hormônios.
Meu filho mais novo, Domenico, nasceu para me mostrar algumas coisas, primeiro, que o amor pode ser multiplicado e não dividido entre os filhos; em segundo, ele provou que
a vida tem mais cores e muitos lados desconhecidos. Nico é a versão arriscada, incoerente e autêntica de como se viver uma vida.
Percebo que Sofia se aproxima dele e mexe em sua barba e em seguida ela puxa a orelha de Nico com tanto amor que ele possivelmente pediria outro puxão. Com a chegada de Paolo
ao almoço, por mais que essa não seja a intenção do irmão mais velho, ele impõe respeito.
Nico era a adorável criança de olhos azuis profundos, ele era uma fonte inesgotável de energia e conseguia em pouco tempo desarrumar toda a casa.
Ele desejava ficar sempre próximo de Paolo, e Paolo sempre se mostrou afetivo com Nico e protetor com Sofia. Eu estava cercada por anjos em todo momento e mesmo Nico sendo
o mais novo, com uma diferença de quase onze anos para Paolo, eu sabia que sempre teria homens de bom coração ao meu lado.
***
Dom
Sinto o puxão de orelha carinhoso de Sofia que está com olhos felizes. Eu não sei muito bem o que andou acontecendo por aqui, porque eu estava em Paris e agora apenas a minha
cabeça está lá.
Escuto o ronco do motor do carro de Paolo e eu sei que ele pode fazer desse almoço o mesmo que fez no anterior. Só não o enfrento porque sei que mamãe ficaria triste e tentamos
impedir que isso aconteça a todo custo. Ele trocou de carro, penso enquanto ele entra e estaciona o carro ao lado do meu. Isso parece uma provocação, mas eu preciso aceitar
que duas semanas de atraso em meu retorno não deixa nenhum argumento seguro para eu observar isso em voz alta.
? Ele trocou de carro ? falo baixinho para Sofia enquanto Paolo não se aproxima.
? Sim e me parece que comprou outro também, mas eu ainda não vi ? Sofia fala e escuto os passos firmes de Paolo e acho prudente não tocar nesse assunto. Tenho assuntos mais
importantes com ele.
Sou o irmão mais novo e, para ser franco, o que menos entende alguns dos sentimentos de Paolo e Sofia. Segundo eles, eu era jovem demais para saber o mal que estava ao meu
redor.
Paolo nos cumprimenta e em seguida nos dirigimos para junto de minha mãe, que está eufórica ao ver que estamos reunidos. Sempre será assim.
Me sento no sofá e a conversa acontece enquanto penso no que Tess está fazendo e se ao menos está pensando em mim como estou pensando nela. Não parei de pensar nela desde
que vi o video e sua despedida torturante.
Tento não pensar tanto nela e me atentar mais às pessoas que estão aqui fisicamente. Falo sobre as escaladas, os tempos mais otimizados e que tudo é importante para mim. Sou
feliz saltando de alturas vertiginosas.
Sofia interrompe meu assunto perguntando de Boccadasse, a pergunta chegou em boa hora, o rosto de mamãe já estava aflito e Paolo se remexeu algumas vezes enquanto eu falava.
Minutos depois estamos na mesa e a comida é servida. Sinto que Paolo está estranho, mas não o habitual dele, ele está estranho com Sofia, como se tivesse algo em sua garganta
além da comida.
Ele elogia meu projeto e me deixa à vontade para falar mais sobre ele. Sofia nos deixa depois de algumas respostas atravessadas e desaparece de nossas vistas como se quisesse
ficar sozinha ou em companhia de outra pessoa.
Mamãe chega a perguntar se Paolo está fazendo-a trabalhar demais, e Paolo sempre terá uma justificativa para qualquer questão.
Assim que Paolo responde, mamãe nos deixa e possivelmente vai atrás de Sofia e agora eu temo que Paolo possa arremessar tudo sobre meu atraso de duas semanas.
? Me fale o real motivo desse projeto e por que eu deveria contratar a tal fotógrafa ? ele é direto, cortante e quase criminoso na maneira como fala.
? É único, agências vendem destinos e lucram com apenas isso. Vamos vender adrenalina registrada em videos. Um dia esses clientes mostrarão para seus filhos e netos que ultrapassaram
um limite e terão como provar, vamos usar a tecnologia a nosso favor ? respondo empolgado e ele suspende apenas uma das suas sobrancelhas para mim.
? Ótimo, a ideia é excelente, mas ainda não respondeu a minha pergunta ? ele retruca.
? Acabei de responder ? justifico.
? Obviamente não respondeu, eu não remeteria novamente a questão se ao menos tivesse escutado alguma resposta sobre ela ? Paolo é quase mecânico quando quer ser chato.
? O que eu não respondi?
? Por que eu devo contratar essa fotógrafa e não alguém de nossa região? Valorizar a nossa matéria prima é o que mais me fascina ? ele rebate e eu poderia explicar que essa
fotógrafa tem sido importante para mim e que ela me apresentou travesseiros em outra versão. Mas acho que Paolo só entenderia isso se tivesse um coração. Ele não é mau, ele
só é frio demais.
? Paolo, ela fotografava sufistas na Austrália, ela pratica esportes radicais e com certeza captaria a necessidade de nossos clientes ? a apresento de maneira profissional.
? Entendo, e não teríamos ninguém aqui em Gênova que possa fazer isso da mesma forma? ? ele insiste e eu tenho que usar argumentos longe da ordem sexual da coisa, sem contar
que não posso dizer para ele que com isso Tess estaria sempre por perto.
? Não sei, o que posso dizer é que conheci o trabalho dela e não faria uma indicação que pudesse me comprometer com você. Acredite, Paolo, você é uma pessoa da qual evito
ter problemas ? disparo.
? Não é o que parece ? ele deixa a boca entortar discretamente com um sorriso discreto ? Por que comprou outro carro? Não responda, apenas use essa pergunta para contradizer
o que acabou de pronunciar em minha direção ? agora ele sorri de verdade.
? Eu gosto de velocidade ? rebato.
? Eu gosto de coerência ? ele retruca.
? Essa discussão não vai nos levar a lugar algum. Quero apenas concretizar esse projeto e ter um retorno feliz sobre tudo isso ? Paolo vira totalmente a cabeça em minha direção
e franze o cenho.
? Você deve realmente ter despencado de um dos prédios de Paris, eu nunca o vi falando com tanto empenho sobre algo ? ele se levanta e caminha até a piscina e eu o sigo. Ele
pode dar a confirmação desse projeto agora mesmo.
? Estou apenas tentando ? falo assim que paro ao lado dele de frente à piscina.
? Estou percebendo em alguns pontos ? ele olha para o coque feito no topo da minha cabeça ? Já em outros ? ele sorri discretamente ? Você está envolvido com ela? ? Paolo metralha
diretamente.
? Com quem? ? finjo que não entendi.
? Domenico, uma coisa que aprendi sobre as pessoas é que elas não são confiáveis ? ele coloca as mãos no bolso e fica de frente para mim.
? Ainda não entendi ? mantenho a minha postura.
? Não deixe que seu coração tome suas decisões, ele pode falhar ? ele fica por alguns segundos com o silêncio que já conheço. Ele sempre fez isso, fica quieto e eu com medo
abro a boca e conto tudo. Mas não desta vez ? Você pode dar início, mas quero uma chamada coerente. Fale com Marisa, a representante do canal de esportes. Veja com ela como
funcionaria para uma chamada de trinta segundos em horário nobre, se for o caso partimos para os canais fechados e algumas revistas de turismo na região ? esse Paolo é um
grande filha da puta de bom de serviço.
? Valeu ? o abraço e percebo que há muito tempo não fazia isso. Tess... acho que ela me deixou mais do que fotos, despedidas e travesseiros.
? Me traga resultados, me prove que esse investimento está além de uma profissional e que realmente tudo tem um propósito empresarial ? ele diz e retribui o abraço com apenas
dois singelos tapas em minhas costas.
Paolo é apenas a pessoa mais complexa que já encontrei em toda a minha vida.
? Vou provar pra você que as pessoas ainda buscam aventuras e uma maneira incoerente de registrar tudo isso ? volto para a mesa e me sento.
Vou editar esse video que ela fez no dia que passamos fora e ele vai ao ar. Tess vai ser o rosto dessa campanha, assim eu terei uma justificativa plausível para pensar nela
como estou pensando nesse momento.
Vejo que Paolo se aproxima e se senta exatamente onde estava e pede gentilmente que Cinthia traga um copo d'água para ele.
? Dom, um dia você vai acabar morando em Paris ? ele diz calmamente.
? Para ser franco esse é o meu projeto de vida. Já estive em tantos lugares no mundo e apenas lá consegue de mim a minha maior irresponsabilidade, francamente eu prefiro estar
lá ? ainda mais agora, de preferência nesse momento.
? Então, trabalhe para que isso seja feito da melhor maneira possível ? ele está me apoiando e isso não é raro, mas é que nunca foi tão explícito ? Próximo passo seria cortar
esse cabelo e fazer a barba ? ele sorri e Cinthia coloca sobre a mesa o copo e a jarra com água gelada, exatamente como ele gosta. Combina com ele.
? Lamento, mas só se eu estiver morto, e qual é o problema com meu cabelo? Ele é bem cuidado e minha barba, por mais que seja grande, está sempre bem aparada ? me defendo
e ele olha para o meu cabelo e eu o solto.
? Caso esse projeto não supere as minhas expectativas, eu sugiro que faça propaganda de shampoo ? ele é irônico.
? Deveria deixar o seu cabelo crescer ? provoco.
? Não nessa vida ? ele responde e nega com a cabeça. Acho que nunca vi o cabelo de Paolo sem um corte impecável ou com a barba por fazer.
? Já surfou? Já saltou de paraquedas? Já escalou uma montanha sem nenhum equipamento de segurança? ? o encho de perguntas em tom de brincadeira para não colocar nem o projeto
e nem minha vida em risco.
? Não tenho tendência suicida, meu irmão ? ele responde ? Cada um busca a sua forma de descarregar as emoções, você tem as suas e eu respeito, e eu tenho as minhas e possivelmente
você não as entenderia ? ele diz e eu imagino que esse cara possa fazer o que para sentir adrenalina? Ser sério e decorar respostas que nos deixam com cara de otário.
? Algumas pessoas morrem e ainda caminham por aí, acredite ? pego o copo e coloco um pouco de suco e Paolo coloca mais água em seu copo.
? Acredito ? ele responde ? Mas existem várias formas de se arriscar, possivelmente as minhas são piores que as suas. Uma queda sua danifica apenas uma pessoa, no pior apenas
uma morre, no meu caso é diferente. Se eu me arriscar demais, centenas de pessoas podem sofrer, famílias inteiras, e isso com certeza não seria perdoado. Entende agora? Onde
você busca adrenalina é diferente do lugar onde eu a encontro ? estou com cara de otário de novo.
? Você é muito preocupado, deveria se divertir mais ? falo e bebo um pouco do suco.
? Na sua concepção eu não me divirto, mas acredite ? ele se vira para mim ?, as pessoas só veem aquilo que eu quero que elas vejam ? ele conclui e eu penso quais são os segredos
que ele guarda, como e com o que ele se diverte.
? As pessoas veem pouco de você ? rebato.
? Essa é a minha intenção.
***
Abro a porta da sala e vejo Caryn discutindo com alguém no celular. Ele não parece feliz e acredito que do outro lado da linha, a pessoa esteja menos feliz ainda.
O restante de sol que ainda resta no horizonte não chega com tanta força e vejo Caryn entre as faixas alaranjadas andando como um leão furioso de um lado para o outro.
? Eu determinei que isso não vai acontecer e possivelmente não vai, nem que para isso eu perca a reunião desta semana e volte para Paris ? sua voz ecoa e rebate nas paredes
e eu o observo no momento em que ele apoia a mão na janela e abaixa a cabeça. Caryn busca oxigênio para acalmar seus pulmões, e é esse mesmo oxigênio que dispara o gatilho
de sua voz.
? EU DISSE NÃO! ? ele desliga e joga o celular sobre a poltrona ao lado dele. Caryn está na sala de jogos e agora suas duas mãos estão apoiadas na janela.
Me aproximo e coloco a chave do carro sobre o aparador de tacos, me sento na poltrona e coloco o celular dele em cima da pequena mesa redonda ao lado de onde estou.
? Algum problema? ? pergunto e ele está negando com a cabeça, mas não para mim, essa negativa é para ele mesmo, como se buscasse uma resposta para a pergunta que se repete
em sua mente: onde foi que eu errei?
? Milan ? ele responde e vejo que seu rosto está fechado e suas mãos estão fazendo com que os dedos apertem o batente da janela.
? O que aconteceu? ? começo a ficar preocupado. Caryn é o tipo que seguraria um trem para salvar os irmãos, mas pegaria o mesmo trem para bater em um deles.
? A maldita corrida, a queima de asfalto, essa porra toda e o imbecil do meu irmão ? ele olha para fora da janela, mas não é Gênova que ele vê, ele está cego neste momento.
? Alguma novidade sobre a corrida?
? Não, mas Jordan me ligou e disse que Milan estava mexendo no Ford e ele passou o sábado fora, ele deve estar sabendo de alguma coisa ? Caryn olha para mim ? Eu vou voltar
para Paris. Foda-se a reunião. Eu não posso deixar que meu irmão entre nessa, eu não posso perder mais ninguém ? Caryn dispara.
? Cara, você é quem sabe, mas eu não perderia essa reunião porque seu irmão passou o dia mexendo no motor de um carro, ele pode simplesmente ter buscado algo para fazer ?
tento amenizar.
? Não, Milan nunca busca nada para fazer a não ser me deixar preocupado e irritado com suas irresponsabilidades. Ele vai fazer alguma idiotice e eu sei que vai, algo está
me dizendo isso ? ele diz e se apoia na mesa de sinuca.
? Jordan está te mantendo informado. Calma, pode não ser isso ? é isso. Milan tem um histórico de idiotices maior do que o meu.
? Em algum momento ela não vai conseguir me avisar e eu não quero que essa corrida aconteça e eu não esteja lá para trancar Milan em uma jaula ? ele fala com preocupação e
isso me lembra a fúria de Paolo, me fazendo entender o tipo de proteção que irmãos mais velhos têm.
? Ela sabe de alguma coisa sobre a corrida? ? pergunto.
? Ainda não, mas Jordan é maluca e se inscreveu nesta merda e não me explicou como conseguiu isso. Ficou de me ligar mais tarde, ela estava de saída com Rick ? a frase ficou
menos forte, mais triste e agora na cabeça de Caryn existe a teimosia do irmão e Jordan nos braços de outro cara.
? Ok ? não sei como continuar essa conversa.
Talvez Caryn seja o tipo de cara que prefere engolir o que está sentindo a ter que dividir com alguém. O silêncio me obriga a pensar em Tess e no que ela poderia estar fazendo
já que Jordan estava de saída com o Rick.
Eu havia pensado nela o suficiente para enjoar, mas não foi isso que aconteceu e eu possivelmente voltaria para Paris com Caryn caso ele tomasse essa decisão. Pensar nela
está sendo mais forte do que pensar nas consequências com meu irmão.
? Dom, se Milan entrar nessa corrida eu não respondo por mim, acho que sou capaz de matar o Lars ? Caryn me tira dos pensamentos de Tess e eu me preocupo com isso. Eu já pude
presenciar Caryn fora de controle e isso não é bom.
? Ele não vai entrar nessa corrida ? falo e me levanto ? Vamos sair, vamos acelerar um pouco por aqui e esquecer as coisas que estão acontecendo em Paris ? pego a chave do
carro.
? Não esqueça que seu irmão mora aqui ? ele me sacaneia ? Não quero mais problemas, já tenho uma dúzia deles em Paris ? ele diz e me acompanha.
? Uma dúzia? Pelas minhas contas são apenas dois ? minha hora de sacanear.
? Dois? ? ele questiona e andamos em direção ao carro.
? Milan e Jordan ? sorrio e sinto o soco dele em meu ombro. Ele não coloca força, ele coloca técnica e isso faz todo meu lado direito sair do eixo e o esquerdo perder o equilíbrio.
? Reação esperada ao se dizer uma verdade ? falo e vou para o outro lado do carro e entro.
? Vou ter outra reação e vai ser inesperada ? ele me ameaça. Ligo o carro e saio em direção à rua. Sem nenhum destino na cabeça, apenas acelerar pela costa e chegar em algum
lugar longe o suficiente e depois voltar.
Não quero ter tempo para pensar muito sobre o quê e quem está na cidade luz.
Acelero até a via de acesso que liga Gênova pela costa, de um ponto ao outro. Espero que os carros que estão vindo passem e acelero duas vezes e Caryn já nega com a cabeça.
? Não precisa acelerar, está apenas queimando combustível e isso não otimiza o que está para fazer ? ele fala e eu paro.
? Cara, você é chato ? falo.
? Não, sou um bom mecânico, é diferente ? ele se defende e eu engato a primeira e faço com que os pneus cantem antes de conduzirem o carro.
Estou um pouco acima da velocidade permitida e ultrapasso dois carros, tiro uma pequena distância de um terceiro carro e reduzo a marcha e otimizo a velocidade.
Estou mais, muito mais do que a velocidade permitida e de um lado o mar nos cerca e do outro, carros vindo na direção contrária.
Engato uma marcha acima e mantenho a aceleração.
? Entra mais fechado na próxima curva ? Caryn diz e eu acato ? Viu? O carro não joga a traseira. E não freie desta forma, reduza a velocidade usando as marchas ? ele vai orientando
e sem que percebamos não estamos mais pensando em Paris e muito menos na velocidade.
? Na próxima curva, você reduz e entra fechado, mas certifique-se de que não está vindo nenhum carro, não posso morrer, tenho um irmão desmiolado como você para cuidar ? ele
faz piada e eu faço o que ele disse e tiro uma pequena distância do carro que estava vindo na direção contrária.
? Caralho, você viu? ? pergunto sorrindo e escuto um cantar de pneus do carro que quase acertei em cheio.
? Eu vi e você não fez o que eu falei; a essa hora era para estarmos no outro plano. Loucura divide espaço com irresponsabilidade, e você tem que escolher uma das duas, as
duas juntas se tornam fatal ? ele me adverte e eu olho pelo retrovisor e vejo um carro se aproximando, é o carro que quase acertei e parece que está me seguindo.
? Caryn, o cara da mão contrária está vindo atrás de nós e rápido ? falo e reduzo a marcha e acelero quando olho no retrovisor.
? Que ótimo, vou ter que acertar um nariz aqui em Gênova ? ele fala e eu volto a olhar pelo retrovisor e sinto que estou com problemas maiores do que pensei.
? Acho que você não vai dar soco nenhum ? falo e ele me olha. Acelero ainda mais, mas parece que o meu carro está fraco ou o dele é mais veloz do que o meu.
Estou fodido.
Vejo Caryn olhando pelo retrovisor externo e negando com a cabeça.
? Cara, você está fodido ? ele dá voz ao meu pensamento.
? Me fale algo que não sei ? digo e olho pelo retrovisor.
? Não sei se você sabe, mas ele pilota melhor do que você e está cada vez mais perto. Sem contar que por mais que ele não te alcance agora, o que definitivamente não vai acontecer,
ele sabe onde você mora ? Caryn sabe me deixar animado.
? O que eu faço? ? entrei em desespero porque eu sei o que está vindo.
? Sabe rezar? ? Caryn zomba.
? Não está ajudando.
? Cara, para te ajudar agora apenas um milagre e eu não sou bom com isso ? Caryn está sorrindo e eu não tenho um botão de eject no carro para desaparecer desse cenário que
parece perseguição de filme de terror.
Respiro fundo e acelero ainda mais e isso parece que o faz acelerar mais do que eu e se eu pudesse nesse momento aprenderia a voar.
Entro errado em uma curva e meu carro derrapa me dando segundos de desvantagem e aproximação do carro dele em minha traseira.
Meu Deus, meu projeto pode ser cancelado junto com a minha vida.
Desisto e vou reduzindo a velocidade e entro em um recuo do asfalto e fico dentro do carro. Eu posso esperá-lo sair do carro dele e, então, acelerar e isso me daria minutos
a mais de vida.
Paro o carro e o deixo ligado, ele para o carro na diagonal em frente ao meu e não desce, ele impede que eu saia com o veículo e o carro dele também está ligado.
? Cara, não quero te jogar do precipício, mas é melhor você desligar o carro e descer, tente não deixar essa merda ainda maior ? Caryn aconselha.
? Estou fodido como há muito tempo não estava ? desabafo e desligo o carro.
? Desde a prisão? ? Caryn joga a última pá de terra sobre meu corpo ainda vivo e eu desço do carro.
Vejo-o abrir a porta, ele não desliga o carro e ainda está com a mesma roupa do almoço. Ele caminha para perto de mim e para diante dos meus olhos.
? Paolo... ? engulo.
? Você querer acabar com sua merda de vida, não lhe dá direito algum de acabar com a vida de outras pessoas ? seu olhar é gelado ? Você dirige muito mal para ser habilitado
para tal função e pior ainda para fazer o tipo de coisa que você acha que domina ? ele realmente é bom na velocidade e eu não sabia disso, eu não sabia nem que ele andava
acima do mínimo permitido ? Ainda bem que não paguei pelo outro carro e acredite, não vou pagar ? ele fala e não me dá chance alguma de responder, apesar que não tenho o direito
de resposta nesse caso.
Ele anda em direção ao carro dele e não olha para trás.
? Espero que isso não implique na resposta sobre meu projeto ? falo alto e ele para. Olha para baixo e vem em minha direção novamente. Sinto uma pequena amostra do que é desencarnar.
? Domenico, duas coisas sobre mim que talvez você não saiba até esse momento ? ele tira o óculos de sol calmamente e só agora percebo que ele veste luvas de couro, isso sem
contar que ele anda treinando o suficiente para deixar alguém com medo, o alguém em questão sou eu ? Um, piloto melhor do que você porque sou bom em cálculos; dois, por ser
bom em cálculos é que minha decisão sobre o seu projeto se mantém positiva, consegue entender isso? ? ele pergunta e eu aceno com a cabeça que sim. Porra, ele é mais alto,
mais forte, é a merda do meu irmão mais velho que na grande maioria das vezes detém toda a razão do mundo.
? Ótimo, fico feliz que tenha entendido e não vou falar nada sobre o que pode acontecer em uma próxima vez, porque deduzo que você seja inteligente o suficiente para não deixar
que ela aconteça ? ele conclui, coloca o óculos de volta, anda em direção ao seu carro e vai embora.
Entro no carro e Caryn está mexendo no celular tranquilamente.
? Viu? Ainda está vivo ? ele me sacaneia e fica olhando para a tela do celular.
? Paolo pilota melhor do que parece, achei que o carro dele ainda tivesse os plásticos do banco de trás ? seguro a direção e Caryn me olha negando com a cabeça.
? Para de ser ridículo! O cara pilota lanchas, o que é mais difícil do que isso aqui, acha que ele não te venceria em uma disputa no asfalto? Acorda, Dom! Seu irmão é apenas
estranho, mas isso não quer dizer que ele não saiba o que faz ? Caryn volta a mexer no celular e eu ainda estou surpreso pelo fato dele pilotar tão bem... e rápido.
10
Escuto o som distante de um celular tocando. É o meu celular, não o que Tess me deu, esse está guardado e por algum motivo se tornou mais especial do que parece e eu não quero
que ele caia do alto de uma montanha.
Meu celular ainda insiste em tocar mas meu corpo está esgotado. Fugi por duas vezes essa semana para ficar com Tess e realmente não consigo saber que parte do meu corpo não
está devidamente dolorido pelo cansaço.
A verdade é que há pouco mais de três semanas, quando eu conheci Tess, eu não imaginei que pudesse fazer esse tipo de loucura. Nunca fui tanto a Paris em tão pouco tempo e
nunca me senti tão feliz por isso.
Meu celular para de tocar e eu consigo ver sua reação quando falei do projeto, quando falei que ela teria um emprego no qual fosse paga para se divertir e senti promessas
em seus olhos, uma delas é que ela não sumiria e a outra é que ela também pensou em mim com a mesma frequência que andei pensando nela.
Eu sentiria saudades dela mesmo que eu não a conhecesse.
? O que você está fazendo aqui? ? ela perguntou e eu só conseguia admirar seus cabelos suspensos e seus olhos estonteantes de tão azuis. Ela estava limpando a oficina da Jordan,
que junto com Caryn, sabiam da minha chegada mas me ajudaram com a surpresa.
? Não consigo parar de pensar em você e achei que vendo você suja durante uma faxina na oficina da Jordan, eu pudesse não te querer mais ? me aproximei rapidamente dela e
a beijei ? Mas não é isso que está acontecendo. Sinto mais vontade de ficar perto de você em cada momento e a sensação que tenho é que por mais que eu esteja em Gênova, meu
coração está aqui ? ela me beija e solta a vassoura que cai, fazendo o único barulho ao nosso redor.
? Também penso em você, desde que saí do quarto, desde que me beijou pela primeira vez e agora sinto que com você as coisas não são ruins ? ela falou e eu não queria entender
muito naquele momento, eu queria apenas beijá-la e dizer as novidades e fazer amor com ela.
Fiquei doze horas em Paris e voltei antes que Paolo sentisse a minha falta. O problema é que depois dessa primeira fuga, perdi o medo de fugir e, assim como ela, passei a
invadir seus territórios.
Beijamo-nos milhares de vezes, fizemos amor na mesma quantidade e depois brigamos, brigamos pela saudade, pela opinião, pelos segredos que ela esconde de mim como se isso
fosse arruinar a minha vida.
Foi durante algumas de nossas discussões na madrugada que descobri que prefiro brigar com ela do que fazer amor com outras mulheres.
Meu celular volta a tocar e eu deixo. Estou exausto e prefiro ficar assim, jogado em cima da minha cama e sem nenhum problema para resolver.
Escuto o telefone da minha casa tocando e Mercedes atendendo. Imagino que possa ser Sofia que acaba de levar uma rasteira que a detonou como dinamite. Senti vontade de matar
aquele filho da puta, mas eu não posso me envolver e se Paolo determinou que ninguém faria nada, o melhor a fazer é simplesmente obedecê-lo.
Mercedes está na porta do meu quarto e eu não respondo.
? Nico, acho melhor você atender, é Paolo ? pronto, esta é a senha para que meu estômago se revire. Será que ele descobriu que o que tenho de milhas por conta dessas fugas
a Paris poderia dar a volta na Terra?, penso comigo e dou risada da própria piada.
Me levanto enrolado no lençol. Estou sem roupa alguma e Mercedes, apesar de já ter me visto nu, nunca me viu nu assim que acordei. A situação masculina é delicada nesse período.
Abro a porta e ela me entrega o telefone ? O café está na mesa ? ela diz e me deixa com Paolo no telefone.
? Alô ? atendo com voz de hibernação recém interrompida.
? Café da manhã às duas da tarde? ? Paolo tem uma forma bem carinhosa e educada de responder o meu alô.
? Oi, está tudo bem comigo sim, e com você? ? sou irônico.
? Imagino que esteja tudo ótimo com você. Tomar café às duas horas da tarde significa sucesso absoluto e total desprendimento com responsabilidades. Comigo é que não está,
afinal, eu entendo que o expediente deve ser iniciado às oito horas da manhã e não em horários aleatórios ? ele sempre vai ser mais irônico do que eu ? Lembrando que as responsabilidades
supra mencionadas foram geradas por você ? ele fala e meu cérebro ainda está com interferência da fuga de Paris.
? Eu avisei que chegaria mais tarde ? tento me proteger.
? Mais tarde, e não no fim do dia ? ele rebate.
? Não vou seguir com essa discussão com você ? falo firme.
? Isso não é uma discussão, isso é uma conclusão, mas meu assunto com você é outro. O comercial está pronto e está no seu email. Analise tudo, verifique se não há nenhum erro
e confirme com cópia para mim. Ninguém o viu ainda, não envie para ninguém. Salve em seu pendrive e depois delete de sua caixa de entrada. Tenha responsabilidade com seus
projetos que contam como marketing fundamental o elemento surpresa, você consegue me entender? ? Paolo fala e meu cérebro ainda está com problema do horário.
? Sim, senhor! ? zombo ? Mais alguma coisa, senhor? ? mantenho o tom de brincadeira tentando fazer com que Paolo seja mais sorridente. Ainda são duas horas da tarde e ele
está uma pilha.
? Já que perguntou, sim, tem mais uma coisa ? eu poderia não ter perguntado e essa ligação teria sido finalizada há alguns segundos.
? O quê? ? pergunto.
? Doze vezes em Paris nas últimas três semanas? Espero que ela não esteja grávida ? ele fala e meu cérebro que pouco estava assimilando, para de vez ? Espero que você apareça
no escritório ainda hoje ? ele se despede e desliga.
Me sento na cama e olho para o telefone que ainda está disparando o sinal de que do outro lado da linha não tem mais ninguém.
? Como ele descobriu? ? pergunto em voz alta dentro do quarto.
Tento não entender os poderes especiais ou a bruxaria que ele faz e vou para o banho para tentar me desfazer da cara de sono.
Preciso ir para a Bastilli e mostrar que estou empenhado no novo projeto, mas é que eu gostaria que ele estivesse acontecendo em Paris e, assim, eu poderia estar lá... com
ela.
Vou para a cozinha olhando para a tela do meu celular e constatando que era Paolo que estava me ligando incansavelmente antes de ligar para a minha casa. Meu cabelo ainda
está molhado e a água escorre pelas minhas costas. Está um calor bom e isso é o que revigora meu corpo.
Me sento diante da mesa e vejo as mensagens de Tess.
"Não queria que tivesse ido embora" ? estou sorrindo e sinto que Mercedes chega e está olhando para mim. Junto a ela estão os cachorros deitados num canto. Os cachorros são
meus, mas como passo mais tempo fora, é certo eles terem se apegado a ela.
? Bom dia, Mercedinha ? abro meus braços para ela e ela nega sorrindo e vem em minha direção.
? Queria que tivesse mais juízo, Nico ? ela diz e beija a minha cabeça e sente meu cabelo pingando água.
Ela sai e me deixa ali, com um banquete gigante que, segundo ela, é o que devo comer porque ando gastando muita energia. Ela tem razão, acho até que emagreci.
Vejo-a voltando com uma toalha na mão e começa a enxugar meu cabelo.
? Não pode ficar com o cabelo assim ? ela está brigando comigo, mas o jeito que ela tem de brigar é revolucionário e não contém palavras feias, de ordem ou em tom alto. Queria
que Paolo brigasse assim comigo, mas segundo ele, Mercedes é responsável pelas minha falta de responsabilidade e ele a acusa de me deixar mal acostumado. Ele tem razão mas
não precisa saber disso.
? Mercedinha, você me acha irresponsável? ? pergunto e alcanço um copo e coloco vitamina.
? Eu não sei, é que você ainda é uma criança para mim ? ela fala com tanto carinho e isso me fere como não imaginei que fosse me ferir. Ela me vê como uma criança e possivelmente
Paolo também me vê assim.
? Acho que preciso tomar mais as rédeas da minha vida ? falo e pego um pedaço de broa.
? Geralmente as pessoas falam isso quando vão casar ? ela termina de secar meu cabelo e vai para a área externa pendurar a toalha ao sol.
? Eu não vou casar ? falo com a boca cheia ? Mas quero passar mais tempo com ela ? confesso para a mulher que ajudou a me criar.
? Então passe, faça o que o seu coração pede, mas não esqueça que sem o lado racional, nenhum tipo de sentimento é bom ? não sabia que Mercedes pudesse em único dia me deixar
tão contemplativo em minha vida e nas minhas ações.
Termino minha refeição. Vou para o quintal e dou um pouco de atenção a Archimedes e Eureka antes que eles pensem que sou um estranho em minha própria casa e passem a rosnar
para mim e vou para o meu quarto. Antes de ir para a Bastilli, quero passar no Nestor e ver se meu equipamento chegou.
***
Chego na Bastilli e ando pelo estacionamento em direção à porta de acesso ao escritório. Escuto alguém me chamar, é Sofia e ela caminha em minha direção. Seu rosto está abatido
e eu tento imaginar como ela está conseguindo lidar com tudo isso. Quando Paolo me ligou assim que descobriu tudo sobre Brad, ele também me colocou a par do término inesperado
com Joel. Francamente fiquei feliz com o fim do seu relacionamento com o idiota que tratava o barco como se fosse alguém da família. Mas Paolo teve a intenção de me deixar
em alerta sobre o Brad e na época não me senti à vontade em conversar com ela sobre isso. Talvez porque eu também estivesse com problemas em me adequar ao que estava sentindo
em relação a Tess. Eu nunca seria um bom conselheiro para absolutamente nada que girasse em torno dessas coisas que envolvem sentimento, mas algumas coisas mudaram.
Convido-a para ver o comercial e ela me acompanha, sei que ela está fazendo um esforço sobre humano e que sempre o fez, ela sempre tentou amenizar as coisas entre mim e Paolo.
Ela sempre me defendeu e hoje, nesse momento, que é o momento em que ela mais precisa de mim, eu não consigo retribuir em absolutamente nada.
A dor que ela está sentindo chega até mim e só consigo sentir junto com ela, não consigo fazer com que diminua ou desapareça.
Ela elogia, se mostra empolgada com tudo que eu falo, mas existe algo dentro dela que está consumindo suas forças. Isso é nítido e eu não sei como reagir a isso.
Sofia se despede e vai embora e eu sinto um aperto em meu peito, algo ruim e escuto meu celular avisar que a bateria acabou. A tele se apaga e eu me sento diante do computador
e faço exatamente o que precisa ser feito. Eu crio as chamadas que antecedem o comercial final.
Para inspiração, uso a ousadia de Tess e busco no YouTube as músicas que ela diz serem as favoritas para suas aventuras. Estou sentindo falta dela e deveria não sentir tanto
assim.
O escritório está vazio. Apenas eu e o vigia que fica do outro lado onde tem acesso à rua. Estou exatamente como preciso, sozinho o suficiente para adiantar todo meu trabalho
e tentar escapar amanhã à noite para Paris. Quero estar na próxima semana mais perto dela e acertar os pequenos detalhes de sua contratação. Vou exigir uma reunião de negócios,
ela sem roupa e eu também.
As horas passam e eu tenho pelo menos oito chamadas pré-comercial e quando olho para o relógio da tela do computador vejo que são duas horas da manhã.
Encaminho tudo para o email de Paolo e de Sofia, e olho minha caixa de entrada. Vejo dois emails de Paolo, um de Sofia e um de Tess, esse é o que abro primeiro.
"Oi"
Sinto mais a sua falta agora, sinto porque não tive coragem de te ligar para dizer isto. Espero te ver em breve
"Você está sendo a melhor de todas as aventuras, perca o fôlego comigo"
Beijos...
Sorrio e releio e deixo que isso que está aqui dentro, crescendo e se expandindo por todo meu peito, tome conta de mim. Eu nunca senti isso em toda a minha vida e se for para
sentir que seja com alguém que me completa.
Tess, ela me completa, ela se encaixa em minha forma inadequada de ser. Tudo bem que ela, assim como Paolo, não gosta do meu cabelo e da minha barba, mas ela me completa,
ela não é o meu oposto como dizem que apenas dentro desta fórmula é que as coisas acontecem. Ela é igual a mim e me compreende por ser tão semelhante.
Tess não é a parte que falta em mim, ela é o que multiplica quem eu sou.
Desligo meu computador e ando em direção ao estacionamento, mas antes passo em frente à sala de Andrezza. Essa mulher é maluca e quase abusou sexualmente de mim no evento
da agência há algumas semanas.
? Ei, Donzinho ? ela disse no meu ouvido na sala anexa da festa onde as fotos das viagens de nossos melhores e maiores clientes estão.
? Oi ? eu respondi e caminhei em direção à saída e isso foi difícil para mim, porque Andrezza é o tipo de refeição que você faz mesmo estando completamente satisfeito, mas
agora tinha Tess em tudo que olhava e isso fazia com que eu sentisse culpa e nenhuma necessidade de ter outras mulheres.
Apesar de Andrezza ser aquele tipo de mulher que faria qualquer homem lamber os dedos e algo mais, o ponto positivo dela acaba exatamente aí e é aí que entra o sorriso e a
conversa de Tess e tudo passou a ser diferente o suficiente para eu querer ficar com ela, apenas ela.
Escapei dela com a educação que me protege de qualquer ação trabalhista. Eu estava lá, brindando e comemorando, mas estava fazendo isso sozinho.
Vou para o meu carro e acelero, mas não muito porque Paolo me deixou com um pequeno trauma, e vou para minha casa.
Estaciono o carro, entro já colocando o celular para carregar e vejo alguns recados de Mercedes em um papel, são de Paolo e de mamãe. Leio-os e vou para meu quarto, enfim
consigo entrar no banho. É isso que eu preciso, um bom e longo banho.
Saio do banheiro com meu celular tocando e não consigo atender a tempo. Vejo mais de 5 ligações perdidas, são de Jordan e eu retorno.
Na terceira chamada ela atende e pessoas estão falando alto a seu redor. Tento entender mas não consigo.
? O que foi que aconteceu, Jordan? ? pergunto sem qualquer cerimônia ou educação
? A Tess... ela desapareceu.
11
Chego em frente à oficina dos Marshall e vejo uma movimentação de pessoas. São pessoas que eu conheço, são os irmãos Marshall, Jordan e até mesmo Viola que resolveu aparecer.
Pelo histórico dela em relação a Tess, posso dizer que ela está aqui para comemorar seu desaparecimento.
? Alguma novidade? ? pergunto apertando a mão de Caryn e dos irmãos e em seguida beijo o rosto de Jordan. Para Viola, apenas um oi distante e de preferência sem nenhum tipo
de sentimento e, para ser franco, um certo rancor por ter sido tão infantil com Tess.
? Nada ? Jordan olha para o celular e vasculha alguma coisa e tenta ligar para ela ? Cai direto na caixa postal ? ela fala e eu tento ligar e acontece o mesmo.
? Quando foi a última vez que você a viu? ? pergunto.
? Ontem à noite aqui na oficina, mas só hoje pela manhã percebi que ela não estava no quarto dela. Meu pai foi viajar e estamos só nós duas aqui. Ela estava colocando os papéis
de fornecedores em ordem e os papéis estão do jeito que ela deixou ontem ? ela olha para os lados com a esperança de que Tess chegue e eu começo a fugir da realidade, ela
pode ter ido dar alguns saltos ? Ela estava estranha esses dias, com conversas secretas pelo celular ? Jordan fala e vejo Viola olhando com um pouco de satisfação sobre isso.
? Normal ? Viola faz um comentário desnecessário.
? Não vejo utilidade em ter você por aqui ? falo olhando para ela.
? Eu sou amiga dela de infância ? ela se defende.
? Não acredito muito nisso, mas se você faz questão de se convencer sobre essa mentira fique à vontade, mas por favor, não tente forçar sua presença aqui. Se quiser ir embora,
avisaremos assim que ela voltar ? disparo e vou em direção à oficina dos Marshall. Percebo que Jordan e Caryn me seguem e não defendem Viola, ela conseguiu alguns odiadores
por conta de sua postura.
Ligo novamente para ela e tento encaixar as peças, mas nada faz muito sentido.
? Ela parecia bem há alguns dias quando estive aqui ? observo e Jordan se senta na banqueta ? Outra coisa é que não faço questão dessa daí por aqui, não acho ela confiável
e, para ser honesto, não gosto dela ? olho para a tela do meu celular.
? Ela estava super empolgada com a Xtreme, o projeto deu vida aos olhos dela. Ela realmente está apaixonada por você e antes que se pergunte se ela não foi saltar, eu já fui
em todos os pontos que ela pudesse estar, ninguém a viu e eu não sei se ela saiu hoje cedo ou ontem depois que fui dormir ? Jordan diz e tenta ligar de novo.
? Caryn, a câmera da frente da oficina está funcionando? ? pergunto e Caryn me olha espantado.
? Cara, como não pensei nisso antes? ? ele vai até o laptop e abre as imagens que a câmera capta.
Ele abre as imagens da noite anterior, vejo-o atravessando para a oficina da Jordan e depois Jordan junto com ele atravessando de volta com alguns pedaços de couro na mão.
Alguns carros passam e o relógio no canto superior marca dez horas da noite.
Jordan sai sozinha e Caryn vai atrás e entrega o que parece ser o celular dela. Mais alguns carros passam e o movimento vai ficando menor.
Dino e Pete chegam com cerveja; em seguida Milan está atracado com uma mulher e Tobe chega falando ao celular.
Muitos minutos passam, um homem atravessa a rua e outra mulher passa falando ao celular e alguns cachorros passam presos por uma coleira e um homem segurando.
Mais minutos passam e o relógio marca mais de onze horas da noite e o movimento da rua é inexistente.
Passa um carro e de novo mais nada. O tempo passa e de novo o mesmo carro volta a passar e desta vez uma hora se passa e novamente o carro aparece, só que ele passa mais devagar
e minutos depois ele para.
Não é possível ver quem está ali dentro. É um Cadilac, está modificado, suspensão diferente, é um carro de apostas.
Caryn me olha e chama por Tobe, o hacker e o cara que mais tem contatos dentro da polícia.
? Tobe, busque tudo sobre essa placa, mas use o computador da sala ? provavelmente um computador que não pode ser facilmente rastreado.
Meu coração avisa de novo sobre algo ruim. Estou preocupado e esqueço de olhar para a tela onde Caryn e Jordan analisam as filmagens.
? Olha ? Jordan diz e aponta para a tela.
? Tess? Mas não parece ela, o cabelo longo, franja ? falo quase sem som ? O que ela está fazendo? ? pergunto e vejo-a se aproximando do carro.
? É uma peruca, mas é a Tess. Ela está usando a blusa que a vi usando ontem à noite, ela não quer ser reconhecida ? Jordan está me deixando mais do que preocupado e estou
tentando captar todas as informações que ela me passou de quando nos conhecemos.
? Jordan, Tess sempre me disse que tinha planos que não deveria incluir ou afetar mais ninguém a não ser ela aqui em Paris, e sempre deixou claro que partiria. Achei que isso
tivesse mudado depois de tudo ? estou triste. A verdade é que ela é importante para mim, mesmo não sabendo muito sobre ela.
? Eu sei, ela sempre falou que tinha algo para resolver aqui. Quando Viola a convidou, parece que calhou com o que ela já estava planejando. Tess nunca se abriu realmente
comigo, estava com esperanças de que ela esquecesse o que aconteceu e voltasse a sorrir. Ela estava feliz. ? Jordan diz e eu estou olhando o que Tess está fazendo.
Ela entrega alguma coisa para o motorista que abre muito pouco o vidro e vai embora em seguida.
Tess fica parada olhando para o carro e ela não parece com a Tess que eu conheço.
Ela entra novamente na oficina da Jordan e sai de lá com a mochila, ainda de peruca e com a cabeça baixa. Levo minhas mãos até meus cabelos e os prendo no alto da minha cabeça.
? Que merda é essa? Quem é esse cara? ? pergunto e ando até a porta da oficina e a noite já está lá, para comprovar daqui algumas horas que há vinte e quatro horas Tess cumpriu
o que disse, pelo menos parte disso. A outra parte é que ela não queria afetar mais ninguém e isso ela mentiu, porque agora estou aqui tentando entender tudo e não consigo
chegar a nenhuma conclusão.
Jordan fica de frente ao laptop, esperando que ela volte, mas ela não vai voltar, ela levou tudo embora, sua mochila e a porra do meu coração. Merda.
? Cara ? Caryn se aproxima e coloca a mão em meu ombro ? Ela vai voltar, não tem vinte e quatro horas que ela saiu. De repente ela queria um tempo longe de tudo. Ao que tudo
indica ela passava boa parte do tempo sozinha na Austrália ? Caryn tenta, mas não consegue me acalmar.
? Ela foi embora como havia falado quando nos conhecemos. Eu não entendo, eu movi uma montanha inteira por ela para que ela ficasse aqui, para que ela fosse feliz fazendo
o que gosta e eu acreditei que ela estivesse realmente com vontade de fazer tudo isso ? desabafo com o cara que com toda a certeza é o que mais confio nesse mundo.
? Não sabemos se ela foi embora ou se ainda está aqui ? Caryn fala e uma ideia surge. Tobe poderia tentar ver algo; se ela comprou uma passagem ou se tem cartão de crédito,
sei lá, qualquer coisa, eu não vou ficar aqui parado esperando que ela apareça, ela pode estar com problemas.
Saio pela rua e Caryn vem atrás de mim
? Está maluco? Onde pensa que vai? ? Caryn segura meu ombro.
? Eu não vou ficar aqui esperando, não sou homem de esperar ? falo.
? Vai fazer o quê? Vai subir a Eiffel e gritar o nome dela? Talvez ela não queira ser encontrada ? ele joga contra mim uma verdade que pode ser real. Talvez Tess não quisesse
nada daquilo que eu estava feliz por estar construindo; pode ter sido meu cabelo, ou a minha barba, ou pode ter sido esta merda de sentimento que nos deixa patéticos, incontroláveis
e cegos.
Parece que estou vivendo a vida de Sofia por um instante, agora eu sei como ela estava por dentro. Ela estava tão vazia quanto estou nesse momento; é como se um buraco surgisse
no estômago e tudo revirasse como uma grande engrenagem enferrujada.
? Fui um idiota ? volto para a oficina e mesmo me achando um idiota, ainda quero entender o que foi tudo isso que aconteceu. Como ela pôde fazer isso? Quem é ela? Para onde
ela foi?
? Caryn! ? Tobe chama por ele e voltamos. Eu sinto minha cabeça girar como uma centrífuga.
? O que foi? ? Caryn pergunta.
? Vem comigo ? Tobe o chama para ir em direção à sala. Jordan sai do laptop e nos acompanha.
? Fala, o que você encontrou? ? Caryn pergunta e Tobe se senta diante do computador e digita sem ao menos olhar para o teclado.
? Veja ? ele aponta para o carro que vimos na filmagem.
? Esse é o carro que eu pedi para você verificar a placa ? Caryn fala.
? E foi isso que eu fiz, mas olha para o carro e me diga onde ele está ? Tobe pergunta e me parece uma garagem, tem vários carros ao fundo.
? Onde é isso? ? eu pergunto.
? É uma garagem de aluguel ? Tobe explica.
? E o que isso tem de importante? ? Jordan questiona.
? Caso você tenha um carro de valor sentimental é um bom lugar de se guardar. Eles fazem contratos de sete anos e nada acontece com o carro. Eles ligam de vez em quando, cuidam
e o valor é pago no ato do contrato e o sigilo é garantido ? ele sorri ? Mas Tobe conhece alguns atalhos. A questão não é essa, não vamos falar da minha astúcia com esse sistema
operacional fácil...
? Cala a boca, Tobe, fale apenas o que vai nos ser útil ? Jordan toma a frente e perde a paciência com a autopropaganda de Tobe.
? Tudo bem, calma, olhem isso ? ele digita mais algumas coisas e aparece uma tela com o nome do dono da garagem.
GUSTAV B. LAMARK
? Gustav ? Caryn fala quase sem som e leva as mãos até os cabelos.
? Gustav? ? Jordan pergunta e não entende.
? Mas... como? Qual é a ligação? Tess e Gustav? ? questiono e penso em mil coisas, inclusive de que fui enganado e que estou perdendo para um cara morto.
? Eu não sei, se pelo menos tivéssemos alguma coisa de Tess ? Tobe fala.
? O que você precisaria dela? ? Jordan quer saber.
? O nome completo ou o número de passaporte, qualquer coisa para eu poder ter como acessar o sistema e saber se ela tem cartão de crédito, se viajou, e qual a ligação entre
ela e Gustav ? Tobe diz o que precisa.
? Eu sei apenas o nome completo e que ela tem vinte e quatro anos, dois a menos do que eu ? Jordan explica.
? Qual o nome completo dela? ? Tobe pergunta e agora eu vou saber mais alguma coisa sobre ela e tentar encaixar alguma coisa aqui dentro. O quebra-cabeça ganha sua segunda
peça.
? Thereza Bianco ? assim que Jordan fala, Caryn vira seu rosto para ela e nega com a cabeça.
? O que foi? ? ela pergunta levantando as palmas para cima.
? O nome de Gustav é Gustav Bianco Lamark ? Caryn fala e as coisas só pioram aqui dentro e tudo fica ainda mais complicado de entender.
? Eu não entendo, eles eram parentes? Por que ela pegou esse carro? ? estou com mais dúvidas.
? Tobe, o que você consegue com o nome dela? ? Caryn pergunta.
? Vou tentar acessar os arquivos de registros, verificar data de nascimento e ver suas movimentações financeiras, mas como ela morava na Austrália tudo isso fica ainda mais
difícil ? assim que Tobe fala, Caryn vai em direção ao corredor com pressa e Tobe acessa alguns sistemas e algumas telas se sobrepõem diante de nós e ele lê em voz alta e
a maioria é a mesma coisa, sem registro, sem cartões.
? É como se ela não existisse ? Tobe diz.
? Sem cartões? ? Jordan pergunta e Caryn volta do quarto com uma caixa de madeira e se senta no sofá.
Caryn segura a caixa e parece que algo ruim vai sair dali se ele abri-la.
? Nenhum cartão, nem o número de passaporte, acredito que ela usou um falso para chegar aqui ? Tobe fala e algo está sendo destruído aqui dentro e talvez a fé que foi tirada
dela também esteja sendo arrancada de mim.
Caryn abre a caixa, vejo alguns papéis dobrados, uma pequena caixinha de veludo preta e algumas fotos.
Jordan se senta ao lado dele e ele entrega a caixa para ela e sai. Alguns sentimentos são inflexíveis e doloridos ao ponto de crescerem com o tempo e não serem curados como
deveriam.
Ela olha os papéis, são cartas e isso para mim é quase neandertal. Ela abre a caixinha, é um relicário. Ela o abre e seu rosto muda, ela está paralisada e se levanta com a
mão na boca.
? Eu... ? ela diz e pega as fotos ? Eu não acredito ? ela está sem reação ? CARYN! ? ela grita e ele volta para a sala ? Você sabia disso? ? ela pergunta.
? Sabia do quê? ? ele pergunta ? Eu nunca tive coragem de abrir isso. Depois que ele morreu, eu passei mais tempo tentando não pensar na culpa e nunca mais entrei no quarto
que ele dormia, as roupas dele ainda estão lá ? Caryn explode.
? Disso ? ela entrega o relicário aberto para ele.
? Eu não conheço essas pessoas ? ele fala.
? Mas eu conheço ? Jordan fala.
Caryn se aproxima e olha novamente ? Olhe com atenção ? ela diz.
? Eu não as conheço ? nessa confusão eu quero apenas entender se em algum momento isso tudo vai ficar claro.
? Caryn, as fotos dentro do relicário, é a Tess e a mãe dela ? Jordan dispara e estou sem reação.
? Como? Ele nunca falou nada sobre ela! ? Caryn se defende e Jordan pega as fotos, olha e vira para ver se tem algo escrito, seus olhos se enchem e ela entrega para Caryn.
? Leia o que está escrito atrás dessa foto ? ela pede.
Caryn lê e nega com a cabeça e me entrega.
Meus olhos percorrem a imagem e em seguida eu viro o retrato e leio atentamente.
"Mamãe, Tessy e papai, o cachorro eu não lembro o nome"
? Eles eram irmãos ? falo e tanto Caryn quanto Jordan concordam e não conseguem dizer nada.
? Gente, parte da confusão está esclarecida, vamos para a próxima parte ? Tobe fala e ele tem razão.
Jordan pega as cartas e começa a ler enquanto Tobe tenta descobrir mais alguma coisa. Eu me perco nas fotografias dela, na parte dela que não conheço, estou descobrindo com
retratos e invasão de sistema o que eu gostaria de ouvir dela.
Estivemos juntos tantas vezes, por que ela me esconderia seu passado? O que ela pode fazer que causaria tanto estrago?
Olho para Jordan e ela está chorando, ela está lendo uma carta e enquanto lê sua mão está sobre sua boca e ela nega, é como se ela não aceitasse o que está escrito ali.
Ela termina de ler e coloca de lado e vai para oficina, acredito que ela esteja indo para a casa dela. Eu alcanço o papel amarelado do tempo e começo a ler.
Dezembro
"Gu"
Aqui tudo está perfeito! Estou feliz que agora podemos nos falar, sou mais feliz depois que encontrei você!
Sou tratada como uma princesa, tenho um quarto só para mim, com um banheiro lindo e uma suíte imensa. Fique tranquilo, Titia me ama e me trata como uma filha. Minha festa
de aniversário foi gigantesca, ganhei tantos presentes e tinha tanta coisa, tanta comida.
Uma pena que você não esteve presente, mas na próxima você vai vir e eu vou te apresentar tudo que tem aqui.
Não me lembro muito de nós, eu era pequena quando papai e você foram embora, mas quando falo da minha família, eu sempre falo do meu irmão mais velho.
Se esta carta demorar para chegar, não se preocupe, eu sempre vou escrever para você!
Um beijo
Tessy.
? Ela mantinha contato com ele ? falo e Jordan volta com os olhos vermelhos e com um papel em mãos.
? Não era um contato, era um pedido de ajuda. Tess era supervisionada e não tinha nenhum quarto com suíte, nunca houve festa de aniversário, eu estive lá e eu também recebi
uma carta assim ? ela abre o papel e me entrega ? olhe e compare as duas, me fale o que tem em comum entre elas ? Jordan está tremendo.
Olho para o papel e me sento. Ainda escuto Tobe digitando sem parar.
Dezembro,
Jody,
Estou sem internet, e estou com saudade de você e não consigo dormir.
Mesmo que a minha internet volte, eu vou colocar esta carta no correio amanhã. Agora são duas horas da manhã e estou muito feliz, ganhei uma bicicleta e vou poder ir para
a escola com ela.
Amanhã vou ao shopping comprar roupas e lembrei quando usávamos roupas de nossas mães e nosso sonho era crescer e usar saltos do tamanho certo de nossos pés.
Estou pensando em te visitar, mas tenho muitas provas ainda e preciso passar nos testes finais. Quem sabe passamos o meu aniversário juntas?
Cortei o meu cabelo bem curto, é moda aqui na Austrália e eu sei que você vai odiar. Mas não fique preocupada, cabelo cresce, mesmo que demore.
Se esta carta demorar para chegar não se preocupe, eu sempre vou escrever para você!
Beijos
Tess
Tento pensar no que tem em comum além da frase igual no final da carta, mas não consigo detectar e estou nervoso demais para me atentar a qualquer coisa.
? A última frase? Por que você acha que é um pedido de socorro? E elas têm a mesma data ? pergunto.
? Olhe o pequeno tracinho embaixo de algumas letras, tente montar as palavras, eu já tinha visto, mas achei que era coisa da minha cabeça, mas depois de alguns dias eu me
atentei ao detalhe da data que ela me enviou a carta, em dezembro ninguém tem provas finais, ainda mais faltando vinte dias para o Natal ? ela explica e agora eu não sei se
odeio Tess por não ter confiado, ou se lamento não ter percebido que havia algo ruim demais para ser dividido.
Olho para o que Jordan disse e tento entender. Assim que digito no meu celular cada letra sublinhada das cartas, sinto que eu deveria ter percebido algo sobre a menina valente,
que não se faz de coitada.
"Socorro" ? na carta de Gustav
"Acho que eles vão me matar" ? na carta de Jordan.
? Ela era uma adolescente, o que será que aconteceu com ela? ? pergunto e Jordan nega com a cabeça.
? Eu gostaria de saber também ? Jordan responde ? Eu sinto muito por não ter percebido isso na época como estou percebendo agora. Tess sabia que eu morava de frente a Gustav,
e deve ter achado que nós dois sabíamos sobre ela. O que eu não entendo é por que as cartas nunca mais chegaram ? ela diz e olha os outros papéis dobrados e não são cartas,
são apenas bilhetes do pai de Gustav para ele, pedidos para que ele seja bom, estude e se torne um homem de bem. Apenas uma única carta da irmã para ele.
Quem queria matá-la e por quê?
O celular de Jordan anuncia uma mensagem e ela rapidamente o pega e lê, na sequência o celular de Milan também avisa um novo comunicado.
Jordan olha para Caryn e Milan se levanta e vai para a garagem. Nenhum dos dois fala nada, mas a expressão do rosto de ambos é o que posso chamar de pânico.
? O que está acontecendo? ? Caryn pergunta.
Jordan nega com a cabeça mas seu rosto denuncia que existe alguma coisa acontecendo e não parece ser bom.
? Me fale agora o que está acontecendo ? Caryn exige e eu me aproximo de Jordan.
? É a Tess? ? Pergunto e escuto o ronco de um motor na oficina dos Marshall. Alguém acelera e sai da oficina.
? Ai, meu Deus... Milan! ? Jordan fala e vai para a oficina e Milan já não está mais ali, e o Ford que ele andou trabalhando também não.
? O que está acontecendo? ? Caryn pergunta com seus punhos fechados e Jordan entrega o celular para ele.
Caryn lê e seu rosto se fecha em algo escuro, em ódio e vejo em seus olhos que naquele momento ele poderia matar uma pessoa.
? O que é? ? pergunto.
? PORRA, JORDAN! ? Caryn berra e o estrondo de sua voz atrai Tobe e Pete que ainda estavam na sala.
? Eu, eu... eu queria participar, eu quero ainda, mas depois do desaparecimento de Tess, eu havia até me esquecido disso e eu não sabia que Milan também havia enviado sua
participação ? Caryn olha para a tela e me entrega o celular.
Vejo a mensagem de sete participantes confirmados e o local da partida
JORDAN STILL
MILAN MARSHALL
DOREN PORTEN
SINAYAH RICHARD
HECTOR BRUNI
RAY FILLIAN
BIA THEODORA GIULIAN
? Lars vai repetir o percurso ? Caryn fala e vai em direção ao barracão anexo. Eu sei o que ele tem guardado ali. Ele tem algo que era de seu pai.
? Arco? De novo? O que ele quer com isso? ? Jordan pergunta e Caryn empurra a porta do barracão e vai para a direção do Plymouth Road Runner 1970.
? Caryn, não ? eu falo.
? Não faça isso, esqueça o passado ? Jordan fala.
? Saiam da minha frente, esse cara não vai matar mais ninguém da minha família ? Caryn acelera e vem para cima e Jordan corre, abre a porta e senta no banco do passageiro.
? Vou com você ? ela fala e ele desvia de mim e acelera.
Paro por dois minutos e penso sobre o que fazer, sobre como ajudar Caryn e como eu chegaria até o Arco tão rápido quanto ele.
Vou para a garagem anexa e tiro a manta que cobre o Nissan GT-R
? Você não vai fazer isso ? Tobe fala e Pete chega perto de nós.
? Milan está lá e Caryn vai fazer uma loucura ? Entro no carro e a chave não está no contato. Olho para Tobe que nega com a cabeça e em seguida olho para Pete.
? No quebrassol ? ele fala e eu a encontro.
? Você é maluco? Caryn não deixa nenhum de nós encostar nesse carro! ? Tobe fala.
Coloco a chave na ignição, dou partida e eu sei que vai funcionar. Caryn cuida desse carro como se o dono dele estivesse para chegar.
Acelero e paro o carro ao lado dos irmãos ? Não sou nenhum de vocês, e se ele falar alguma coisa, eu assumo, mas acho que essa noite ele tem problemas maiores a serem resolvidos
? Antes mesmo de eu terminar de falar, Tobe está no banco ao meu lado e Pete atrás dando as coordenadas do caminho mais rápido.
12
Tess
? Ei, sua vadiazinha, te encontrei lavando pratos e banheiros em um buraco qualquer da Austrália, assim como você passou por essa cama, outras irão passar ? ele disse e eu
estava apenas colocando minhas coisas dentro da minha mochila, mas estava colocando apenas o que eu levei quando fui morar com ele.
Eu mantive o silêncio, não queria falar, não estava habituada a exteriorizar a raiva, ou expressar qualquer coisa que me frustrasse. Passei alguns anos acorrentada, literalmente,
pisei na grama apenas doze vezes sem a corrente, limpei trezentas e vinte e duas vezes o lustre da sala, o lustre com vinte pedaços de espelho que mostravam vinte vezes a
minha expressão sombria e triste. Até hoje eu não consigo entender por que fui tão odiada por quem havia prometido cuidar de mim. É como se eu tivesse algo que eles quisessem
mas não pudessem ter. Eles me fizeram memorizar números, decorar tarefas e muito dias eu fiquei simplesmente muda para não correr o risco de levar mais uma surra.
Eu sempre saberei esse número, sempre saberei o quanto me custou estar sozinha. Eu lavava pratos na casa que era para me oferecer conforto e proteção. A seguir passei a lavá-los
em uma lanchonete que me remunerava por isso e, depois, eu cheguei até a cama dele e tudo era exatamente a mesma coisa, a única coisa que mudava era a geografia.
Coloquei a última peça de roupa na mochila, olhei pela janela e observei o sol que acabara de nascer, junto com as notícias, junto com a minha decisão. Passei mais de duas
horas escutando o quanto eu era apenas mais uma puta que estava em sua cama, que os anos ao meu lado foram frustrantes e monótonos, que nunca houve amor.
Eu fiquei ali, esperando que ele me dissesse algo que fosse verdadeiramente uma novidade. Eu nunca o amei, eu gostava de estar com ele e dos riscos, da câmera que ele me deu
e foi arremessada contra a parede no dia em que me despedi. Eu gostava da comida do café da manhã e do almoço, e adorava quando ele passava dias fora e depois meses e deixava
seu cão de guarda aqui para vigiar que nenhum homem entrasse ou eu saísse. Na época eu não sabia por onde ele andava. Ele era natural do país e imaginei que ficasse na casa
da família ou amigos. Só bem mais tarde fui descobrir que ele tinha negócios em Paris e por isso passava tanto tempo fora.
Nunca me importei se ele me traía, sempre usei camisinha e constantemente fazia exames. Ele era apenas uma maneira de eu deixar de lavar pratos, mas acabava de outra forma
prestando meus serviços.
Em algum momento tudo foi bom e acho até que foi verdadeiro, mas não foi feito para ser para sempre.
Lamento por tudo isso ter acontecido como aconteceu, porque hoje estou abrindo mão da única pessoa que pode sentir meu coração. Dom foi o único homem que fez de mim alguém
incrivelmente menos pior. Fui eu mesma com ele, comi o que tive vontade, dormi o quanto pude e pela primeira vez brinquei de guerra de travesseiro. Uma vez pedi ao Giulian,
que era alguns anos mais velho do que eu, para brincar comigo, mas eu pedi depois de ter lhe acertado o travesseiro. Demorei uma semana para voltar a enxergar com meu olho
direito, e tudo sempre foi assim.
? Vai ficar quieta? Parece uma cadela com medo ? ele falou e isso não me machucava mais. Fui ofendida durante boa parte da minha vida, quase toda ela foi feita de humilhações,
golpes e o meu silêncio.
Olhei para ele e via apenas o responsável por uma das desgraças de minha vida, mas foi a pior delas, foi a que me deixou assim, sem fé, e sem mais nada de bom para oferecer.
Dom chega em minha memória e isso me obriga nesse quarto iluminado por apenas uma lâmpada tão fraca quanto eu, a chorar. Ele é importante para mim e por ser tudo que sempre
precisei nessa vida e o único homem que me respeitou como nunca achei que fosse acontecer, é que estou deixando-o viver tudo que outra pessoa possa oferecer a ele.
Eu tenho apenas uma mochila, carregada de poucas coisas e tão fugitiva quanto eu. Meu passado é o tipo de coisa ruim que acontece com pessoas boas. Dom merece mais do que
uma história de violência sem sentido, mais do que uma mulher que lava pratos, ele merece alguém que, assim como ele, divida momentos diferentes do que eu vivi.
Coloco minha calça preta colada ao corpo que já foi refém de algo muito triste e hoje é apenas cenário do próximo episódio de tudo isso.
Abotoo minha jaqueta que também é preta e amarro meu coturno. Estou preparada depois de cinco anos para encará-lo, o homem que não imagina que essa madrugada teremos um reencontro
e eu espero ser a pessoa que vai ver o que vai acontecer com ele.
Meu coração está dolorido por Dom, mas isso é bom. Desta vida vou poder ter a doce recordação de seus beijos, seu abraço protetor e seu rosto olhando para mim e dizendo que
a paixão que eu sentia por ele era correspondida da mesma forma.
Em algum momento, acredito que foi no alto da Torre Eiffel, um entregou na mão do outro algo que não poderia ser devolvido; naquele momento um segurava o coração do outro
e é essa a parte que torna tudo isso algo terrivelmente dolorido de ser lembrado.
Deixo meus cabelos soltos, passo um lápis preto em torno dos meus olhos e um batom vermelho, cor sangue, cor da paixão, a cor que enxergo neste momento.
E como um soldado camuflado, vou em direção ao carro e acelero até o Arco, onde esta noite eu poderei ver o homem que fez desse mundo um lugar perverso demais para mim e um
lugar onde ele realmente não merecia mais ficar.
***
Dom
Chego no Arco e vejo Caryn estacionando e indo em direção a Milan que parece empolgado com a corrida, mas ele não vai participar, nem que para isso Caryn quebre as duas pernas
dele.
Paro o carro ao lado do carro dele e vou em sua direção, temo que ele possa descontar a fúria de cinco anos na pessoa errada e depois ir atrás da pessoa certa.
? CARYN! ? grito e além dele, Milan me olha e seu semblante feliz vai embora rapidamente ? Não faça nenhuma besteira ? peço.
? Não vê o que esse marginal programou para essa noite? ? Caryn vem em minha direção com os punhos fechados e eu sei que não é a mim que ele quer socar.
? É uma corrida, tire seu irmão daqui e vamos embora! Vamos procurar pela Tess ? falo e ele sorri sarcasticamente.
? Cara, esse filho da puta não se deu ao trabalho de isolar as ruas, tem pessoas caminhando com suas famílias, os carros estão transitando normalmente, ele vai fazer uma LIVE
? ele fala e eu sei bem o que é isso, correr nas ruas mais movimentadas sem poupar as outras pessoas, era isso que eu estava fazendo sozinho quando quase acertei o carro de
Paolo. A diferença é que sozinho você pode parar e ninguém vai te encher o saco com apelidos no dia seguinte. A LIVE é arriscada demais e isso com certeza não vai acabar bem.
? Caryn, não tem o que fazer para impedir isso. Olhe a quantidade de pessoas que estão chegando, olhe para os carros cercando tudo, tire o Milan daqui e não tente ser um herói,
não essa noite ? o advirto e minha voz sai mais alta e ele vem em minha direção.
? Foi exatamente por isso que há cinco anos meu irmão morreu, ele morreu porque EU não estava aqui ? ele vai em direção a Milan e eu o sigo. Jordan está do outro lado e vem
junto, como se quisesse cercar Milan.
Pete e Tobe estão do lado de fora da movimentação, sentados sobre o teto do carro e eu continuo seguindo Caryn.
? MILAN ? Caryn grita ? Eu vou entrar no seu carro e você vai vir comigo. Essa corrida não vai acontecer, pessoas vão morrer, a cidade está lotada e isso é idiotice ? Caryn
se aproxima violentamente do irmão e segura seu braço.
? Não! Eu vou correr! Estou de saco cheio de você querendo toda hora controlar o que devo fazer. É uma droga ser o irmão mais novo, todo mundo acha que tem poder sobre a minha
vida ? Milan enfrenta Caryn que fecha os olhos e vira a cabeça, buscando calma ou sabedoria suficiente para não matar o irmão na porrada.
? Você é imbecil? Olhe ao seu redor, olhe para as crianças do outro lado, quer fazer parte de que lado desta história? Você não vai correr, prefiro que me odeie do que eu
ter que lamentar a sua falta o resto da minha vida ? Caryn está tentando manter a calma.
? Você acha que não sei pilotar? Você acha que sou um idiota? ? Milan responde enfiando o dedo no rosto do irmão em desafio.
? Você pode até ser um bom piloto para sua idade, mas não é um bom piloto para estar aqui essa noite. Aqui, essa noite, não tem bons pilotos, aqui tem um bando de marionetes
do Lars, um bando que acha que trocar de marcha prova que pode ser melhor e esquece que inocentes podem morrer. Gustav era um bom piloto e morreu ? Caryn segura com força
o braço de Milan ? Bons pilotos não precisam de um circo armado para provar qualquer coisa ? ele solta do braço de Milan e se distancia dois passos.
? Eu quero correr, Caryn, quero sentir essa sensação, a competição, ser o melhor ? Milan fala e Jordan se aproxima.
? Milan, escute o Caryn, eu me inscrevi nisso e não vou correr ? Jordan fala.
? Você já pagou o batedor, vai perder sua grana, vai perder uma oportunidade de cinco anos ? Milan está seriamente envolvido pelo marketing que Lars faz sobre essa corrida.
? É apenas dinheiro, isso eu consigo mais e para ser bem honesta quem pagou foi o imbecil do Rick ? assim que Jordan pronuncia com um adjetivo o nome de Rick, Caryn a olha
rapidamente. Ela não percebe, mas eu vi que pelo menos por um nano segundo Caryn ficou feliz essa noite ? Quanto a oportunidade de cinco anos, haverá outras formas de corrermos,
sempre fazemos isso, você sabe ? Jordan está com a voz calma e minha cabeça agora fervilha. Assim que resolvermos este problema, preciso encontrar Tess.
? Nossas corridas não têm apostas milionárias ? Milan é imaturo e parece uma criança birrenta.
? Mas nossas corridas não causam danos, mortes. Seu irmão já sofreu muito por conta dela, acha justo fazê-lo passar por tudo isso de novo? ? Jordan pergunta e uma música baixinho
começa a tocar.
Olho para os lados e vejo que a equipe de Lars não está para brincadeira, ele posicionou caixas de som e eu olho para os meninos do meu lado e eles estão vendo o circuito
que será percorrido essa noite.
? Ei, isso é aplicativo? ? pergunto para os meninos.
? É, busque por Dilars, é o ícone vermelho, baixe e já faça a atualização, a corrida será transmitida em tempo real ? eles parecem animados e os olho como se fossem macacos
de circo.
? Caryn precisa me deixar viver, Jordan ? Milan está enfurecido e não parece que vai ceder.
? É exatamente por isso que ele está aqui agora. Vamos, nos ajude a encontrar Tess ? Jordan pede e coloca a mão sobre o ombro dele e ela parece ter o efeito de uma feiticeira
e ele abaixa a cabeça.
? Vou perder duas mil pratas ? ele resmunga.
? Te pago o dobro para você vir com a gente ? faço a oferta e ele olha para mim espantado.
? Sério? ? ele sorri.
? Se der um centavo para ele eu te arrebento ? Caryn ordena ? Ele vai sair desta corrida, antes de começar e se não fosse por Tess, eu...
? Ei, olhe ? Milan aponta o dedo para alguns carros que estão chegando, mas dois deles entram na área demarcada para a largada da corrida ? Não é o carro que estávamos investigando,
o tal que está no nome de Gustav? ? o carro passa do nosso lado e para dois carros à frente.
Os vidros são escuros, lacrados e não é possível ver quem está dentro. O ronco do carro é alto e eu observo os demais que estão em seus veículos.
Um homem passa e entrega um fone sem fio para os motoristas alinhados para a largada. A pessoa que está no carro preto abre muito pouco o vidro e já fecha. O cara dos fones
se aproxima e entrega um para Milan e Jordan mostra a tela de seu celular provando que também vai correr e Caryn quase tem uma reação estúpida, mas Jordan, através de seu
olhar deu um sinal para ele.
O cara dos fones anda e Caryn encara Jordan e espera uma resposta plausível para ela ter pego o fone.
? Você não vai correr ? ele ordena olhando para ela e agora sinto que ele ficou desesperado.
? Não, nem eu e nem Milan, mas você quer interromper tudo isso, para isso precisamos saber o que está rolando ? ela coloca o fone e aciona o pequeno botão ao lado. Milan faz
a mesma coisa e os dois ficam em silêncio, ouvindo o que está sendo transmitido apenas para os pilotos.
? Uma mulher está falando, a voz dela é sexy. Ela está falando sobre as câmeras posicionadas para transmitirem tudo em tempo real ? Jordan diz e pega o celular ? Ela está
falando que o aplicativo já foi baixado em mais de doze mil aparelhos móveis ? Jordan baixa o aplicativo e eu e Caryn fazemos o mesmo.
? Eles vão fazer a rota mais movimentada ? Caryn gira em seu eixo e nega com a cabeça.
? Ela está avisando que Lars acaba de chegar e vai participar da corrida como um convidado e não como competidor ? Milan diz.
? O mesmo discurso ? Caryn fecha o semblante.
? Agora tem um homem falando ? Jordan diz ? A voz dele também é bonita, ele está se apresentando. Ele é o Lars e está falando do intuito da corrida, de que hoje será divertido
e não assustador ? Jordan presta atenção no que ele está falando ? Ele está pedindo para cada competidor se apresentar. Ele está selecionando o carro e pede para que o motorista
diga o nome, assim que o fizer, pode acelerar até o ponto onde o mapa do aplicativo mostra com uma bandeira vermelha ? Jordan diz.
? HECTOR BRUNI ? Milan diz e no instante seguinte escutamos o ronco do carro.
? DOREN PORTEN ? Jordan fala ? SINAYAH RICHARD ? eles repetem o que o Hector fez.
? RAY FILLIAN ? ele acelera e acompanha os primeiros.
? Está tudo quieto, será que devemos falar os nossos nomes? Ele vai sacar que está faltando meu carro ? Jordan questiona e de repente ela fica estática, paralisada... em choque.
? BIA THEODORA GIULIAN ? ela fala pausadamente e seu rosto empalidece ? Caralho, é a Tess! Eu conheço a voz dela, eu sei que é ela ? assim que ela fala eu não penso duas vezes
e tento correr até o carro que possivelmente seja o que ela está, caso ela realmente esteja aqui. Mas eu não consigo, ela acelera e vai de encontro aos outros participantes.
Antes que eu pudesse ter qualquer reação, Milan se apresenta e entrega o fone para mim e Jordan faz exatamente a mesma coisa e entrega o fone para Caryn.
Corro em direção ao Nissan e Caryn entra no carro de Milan.
Coloco o fone e escuto Lars questionando onde está o carro e eu respondo que está na lateral da pista e vai ser posicionado como os outros.
Entro no carro e acelero até chegar na traseira do carro de Milan, Caryn me olha pelo retrovisor.
? Esse Nissan não estava na lista de inscrição ? Lars fala.
? Problema com o motor do Subaru ? falo do carro de Jordan, não era esse o carro que ela colocou na inscrição ? E a piloto não está sentindo bem ? explico
? Isso vai contra as regras ? ele rebate e escuto os motores acelerando ? Pelo visto vamos fazer disso o maior marketing em torno da queima de asfalto. Melissa, quantos celulares
já baixaram nosso aplicativo? ? ele pergunta para uma suposta secretária e ela responde que alcançou mais de cinquenta mil ? Então, vamos correr, vamos fazer dessa segunda
queima de asfalto algo histórico ? Lars fala e eu imagino que Caryn esteja se controlando dentro do carro para não sair e acabar com a cara dele.
? Melissa, use a desistência de um inscrito para atrair mais seguidores ? Lars ordena e tudo não passa de um jogo arriscado e eu não quero que seja Tess naquele carro. Mas
agora não há o que ser feito.
Uma sirene ensurdecedora é acionada, os pedestres olham e apontam para os carros, eles não fazem ideia do risco que estão correndo.
Pego meu celular e ligo para Caryn, mas antes desligo o fone que está em meu ouvido.
? Fala ? ele atende.
? Desligue o fone ? peço.
? Está desligado desde a hora que esse monte de merda começou a falar ? ele responde.
? Preciso saber se é ela que está no carro ? falo.
? Já vamos descobrir ? antes mesmo que Caryn termine a frase, os carros saem em disparada e o primeiro obstáculo é o sinal vermelho do primeiro cruzamento. Crianças estão
brincando próximas da guia e isso faz meu coração disparar.
? Esse cara é um irresponsável, mas ligue o fone assim que desligarmos. Ouça o que eu vou te dizer, eu vou atrás do Lars, vou parar a corrida e você bloqueie o carro que supostamente
Tess está pilotando. Jordan acionou a polícia e enviou a rota, em alguns minutos tudo isso vai acabar, ou com a chegada da lei ou com a morte de alguém ? ele reduz e eu também
? Terceira curva, entra fechado, eu vou abrir e você passa, alcance o carro e depois segure para que eu chegue em Lars ? ele passa os comandos.
? E se não for ela? ? pergunto.
? A procuraremos em outros lugares depois de acabar com esse bosta ? viramos à esquerda e o carro está saindo além do normal com a traseira. Gustav não teve tempo de testar
o carro ? Dom, depois do parque, tem um sinal e uma curva fechada, é la que tudo isso precisa terminar ? ele diz e desliga.
Ligo o fone e escuto a mensagem de uma mulher dizendo ser expressamente proibido desligar o meio de comunicação.
Reduzo e me mantenho atrás de Caryn que é visivelmente um excelente piloto. Vejo o carro que Tess está pilotando e um impulso sobe meu esôfago e explode as palavras.
? Tess, pare ? falo e a conversa e desafio que estava rolando para, escuto apenas as aceleradas, os pneus cantando e eu insisto ? Tess, pare, saia dessa corrida ? peço.
? Entrei nessa corrida há cinco anos ? ela responde e de novo meu coração dispara.
? Do que você está falando? ? pergunto.
? Dom, fique fora disso, eu preciso resolver isso ? ela diz.
? Temos mais um pico para nossa audiência que agora passa dos duzentos mil telespectadores e em dois minutos esse aplicativo será cobrado ? ele jogou sujo e pelo menos metade
de quem está assistindo isso não vai se importar em pagar, eles querem ver o final disso tudo e eu acredito que não vai ser bom.
? Sempre foi dinheiro ? Tess fala como se conhecesse Lars.
? Ora, ora, ora, temos uma velha amiga fujona entre os competidores ? Lars fala e vejo Tess acelerar ainda mais e seu carro faz a curva muito bem e isso me lembra do seu desafio
no videogame. Ela faturou minhas mil pratas, mas depois devolveu e entrou na minha vida, mas agora eu não sei quem é ela realmente.
? Não fugi, eu te deixei e hoje você vai entender o motivo ? ela diz.
? Isso vai me render mais dinheiro ainda ? Lars provoca e ela acelera e empurra um dos carros para fora do percurso, ele perde o controle e se choca contra o pilar.
? Tess, não, pessoas vão morrer ? Caryn a adverte.
? Sinto muito, mas alguém morreu nessa corrida há cinco anos e ninguém se preocupou ? ela dispara.
? Do que você está falando? ? Pergunto.
? Então é por isso? ? Lars fala e estamos seguindo pela avenida Champs Élysées e ela está relativamente mais movimentada do que o normal.
? O motorista desclassificado está bem ? a voz de Melissa tranquiliza e pelo menos essa culpa Tess não vai carregar.
? Então, é por isso? Essa queima vai ser melhor do que imaginava. Vou expor para o mundo quem é Thereza Bianco e acredito que algumas pessoas queiram saber onde você está
? ele ameaça ? Melissa, abra a conversa dos motoristas para o modo público ? ele ordena.
? Senhor, se eu fizer isso não tem como voltar atrás, a não ser que interrompamos a transmissão ao vivo da corrida e isso pode gerar um grande problema financeiro ? Melissa
avisa.
? Abra agora! Essa vadiazinha vai entender o que é provocar um membro da família Gras ? ele tenta colocar força na ameaça usando seu nome e Tess está quieta o suficiente para
levantar suspeitas de que ela possa ter algo a esconder.
? Estamos ao vivo ? Melissa declara.
? Então, vamos começar o show bônus desta noite ? Lars fala com satisfação e Tess ainda está em silêncio. Acelero, mas apenas me mantenho próximo dos carros, ainda não vejo
Lars ? Uma de nossas participantes, uma empregada de lanchonete qualquer, está revoltada por que conhecia um piloto que se acidentou em nossa primeira corrida e infelizmente
veio a falecer ? Lars é cruel e Tess ainda não se manifestou e imagino que Caryn esteja socando o volante e eu o vejo bem próximo do carro à frente dele. Tess está no próximo
carro, e está tentando ultrapassar o segundo colocado, mas não está conseguindo.
Quero apenas entender tudo que está acontecendo porque tudo isso é loucura. Não que eu não seja adepto de praticá-las, mas não assim, colocando outras pessoas em risco.
? Tess, minha doce Tess, seu cabelo ainda está curto? Seus olhos ainda são azuis? Espero que não tenha removido aquela pinta linda que tem em seu traseiro esquerdo.
? Filho da puta! ? falo alto dentro do carro e eu mesmo quero matar esse filho da puta e acelero e ultrapasso Caryn, desobedecendo as coordenadas e colocando tudo a perder,
mas eu vou matar esse filho da puta. Ele está expondo-a.
? Temos um novo namorado? Atenção, meus queridos apaixonados pelas corridas, temos um casal disputando a queima de asfalto. Avisem suas namoradas que tudo isso passou a ser
romântico também ? Lars usa tudo como uma espécie de epidemia a seu favor.
? Um milhão de telespectadores ? Melissa avisa e um trecho de uma música bem conhecida começa e para.
? Um milhão de pessoas saberão que te resgatei do lixo ? Lars fala e Tess se mantém em silêncio ? Não consegue responder e pilotar ao mesmo tempo? O seu lance ainda é apenas
computadores e saltos esquisitos de um lugar para o outro? Ainda sabe limpar uma casa? ? Lars começa a descer o nível e o assunto principal que é a corrida se perde no meio
de seus desaforos.
? Escuta, seu cretino, é tão bom em falar, mas onde está você? Assistindo da televisão de sua casa? É um dos usuários do aplicativo? ? estamos chegando a uma rotatória perto
do final da Champs Élysées e isso não é bom, é uma rotatória que liga várias ruas e não tem espaço suficiente.
? O namoradinho não se preocupe comigo, vou chegar na hora certa ? ele me provoca ? Então, Tess, está quietinha, mas sempre foi assim, sempre pareceu um gato escondido da
chuva, acho que você sempre se escondeu e está mais para uma ratazana ? ele está tentando enfurecê-la, mas se eu pego este filho de uma puta eu arranco a cabeça dele.
? Senhor, estamos com um problema de transmissão ? Melissa avisa.
? Ela foi interrompida? ? Lars pergunta.
? Não, exatamente o contrário, ela está contínua e nossos servidores não estão mais no controle da transmissão, nosso sistema está sendo controlado ? Melissa avisa e me parece
que temos mais alguém do nosso lado. Penso em Tobe, o hacker Marshall.
? Melissa, resolva esta merda ? ele fala.
? Estamos tentando ? ela avisa.
? Lars, continua falando, me conte mais sobre seu caráter desprezível que expõe ex-namoradas ? Peço gargalhando.
Estamos a poucos metros da rotatória e de longe vejo um carro acelerar, ele está na via paralela.
? Então, minha gatinha ou minha ratinha, o que andou fazendo durante esses cinco anos? Em que bueiro andou vivendo? ? Lars não se importa com o que está falando e Tess acelera
um pouco mais e Caryn está colado em minha traseira.
? Quer mesmo saber onde estive depois que saí da sua casa quando me contou tudo sobre a primeira queima de asfalto? ? Tess se manifesta e os outros competidores que estavam
se desafiando e em conversas paralelas ficam em silêncio. É como se nem o ronco dos motores existisse mais.
? Anda, me conte tudo que eu quero saber ? ele provoca e eu vejo o carro que estava na via paralela se aproximar e agora ele está atrás de nós, mas agora é uma questão de
tempo para que ele saia da última posição e chegue até a primeira.
? Será um prazer ? ela diz sorrindo ? Colin, apenas me avise quando estiver pronto ? ela está falando com alguém de fora da corrida e pode ser essa pessoa que tenha invadido
a transmissão.
? Tess, estamos prontos há dois minutos ? o cara responde a ela com voz de satisfação e eu acho que gosto disso. Sinto que existe algo maior vindo por aí.
? Perfeito ? ela gargalha e eu não conhecia essa risada. Eu conhecia apenas aquela das cócegas, a outra das piadas e a outra quando simplesmente acontecia apenas por ver algo
na televisão do hotel. Não sei tudo sobre ela, mas sei o suficiente para querer saber mais.
? Vejo que você tem um amiguinho. O que é isso? Uma reunião de escoteiros? ? Lars pergunta e chegamos à rotatória, os carros que estavam vindo de outras ruas freiam bruscamente
e escuto algumas colisões.
? Ah, sim, é uma reunião que você nunca mais vai esquecer ? ela está sorrindo e escuto o barulho de um helicóptero.
? Senhor, são mais de dez milhões de assinantes do aplicativo ? Melissa avisa com voz de desespero e não de alegria.
? Isso é ótimo, Melissa, sinal de que o cretino que invadiu nosso sistema está nos ajudando a ganhar muito dinheiro ? Lars não se importa se estão ouvindo sobre sua postura
de espírito de porco e eu o vejo ultrapassar o último carro.
? Senhor, esse é o problema, as assinaturas estão se multiplicando e o valor cobrado foi retirado, o Dilars está gratuito para todo o continente ? ela explica.
? Eu vou matar esse filho da puta ? ele explode e ultrapassa o outro carro e agora está na sexta posição.
? Mas isso não é o problema ? Melissa continua.
? O que mais está acontecendo aqui? ? Lars está totalmente fora de controle e ultrapassa mais um carro e está na traseira de Caryn que o segura e ele não tem muitas chances
de ultrapassar.
? Senhor, estamos sendo transmitidos ao vivo pela TF1 ? Melissa avisa Lars que a maior emissora de televisão da França está transmitindo a corrida que foi mantida em sigilo
até a data de hoje.
? Tess, acho que você não teria inteligência suficiente para isso ? Lars desdenha e tenta ultrapassar Caryn, mas não consegue.
? Claro que não, mas eu conheço alguém que tem e agora estamos aqui ? ela fala com segurança e isso me deixa preocupado. Eu não sei qual é o limite dela, eu não sei quem é
ela. Mas eu ainda a quero para mim.
? Eu vou acabar com você ? ele a ameaça.
? Assim como fez há cinco anos? Assim como fez exatamente numa corrida como essa? Vamos, Lars, estou te dando a chance de repetir o feito, não consegue ultrapassar o carro
que está à sua frente? Gostaria de avisar ao motorista que está segurando a sua passagem para que ele tome cuidado, pois você gosta de fazer carros voarem e depois explodirem
? ela carrega ódio no que fala.
? Aquilo foi um acidente ? ele diz e escuto o helicóptero mais perto.
? Acidente? Mas não foi isso que você me disse no dia seguinte depois da corrida assim que chegou em casa ? meu peito parece que vai explodir e eu não quero que ela faça besteira.
? Eu nunca falei nada para você ? Lars se defende.
? Não? Então eu devo estar maluca e o que toda França vai ver e ouvir a partir de agora provavelmente não é real ? ela gargalha novamente e eu não sei se devo acelerar e tirá-la
desta corrida, ou se mantenho minha posição, apenas preservando que ninguém encoste em seu carro. Acelero e agora estou exatamente atrás dela, Caryn está atrás de mim e atrás
dele Lars com toda a fúria deste mundo.
? Eu vou matar você!
? Lars, essa ameaça de novo? Você fez isso durante quatro anos. Mas vamos ao que interessa, Colin, quem me ouve? ? ela pergunta.
? Toda a França e alguns amigos da Austrália que pagariam milhões pelo que está para acontecer ? o tal Colin fala e mesmo sendo muito loucura para uma única noite, eu estou
começando a gostar desse jogo.
? Pode colocar nossa matéria exclusiva com Lars Gras, o homem que carrega a marca de um vencedor, mas será que é isso mesmo? ? Tess pergunta com sarcasmo e tudo fica em silêncio.
Não estamos sabendo do que está acontecendo e estamos acelerando voltando pela Champs Élysées. Escuto a sirene das viaturas e isso não vai acabar bem.
Meu celular toca, é Jordan.
? Dom, estão televisionando uma cena de um quarto. É Tess conversando com um homem e estão falando da corrida, isso tem muito tempo, o cabelo dela ainda está curto. Dino ficou
em casa e está gravando a transmissão, Tess vai ter problemas com esse homem ? ela fala e eu desligo.
? Tess, me escuta ? peço e tudo agora ainda está em silêncio. Meu celular toca, é um número privado. Atendo e escuto a respiração, é ela, eu sei que é ela e desligo meu fone,
assim como ela também desligou o dela, eu tenho certeza de que foi isso que ela fez.
? Oi ? respondo.
? Eu amo você e é por isso que não posso mais ficar perto de você. Entende agora quando eu falo que não tenho nada? Eu sou isso que você está vendo, não era para você estar
aqui ? ela fala e eu queria apenas que ela parasse o carro e esquecesse tudo, mas agora é tarde demais.
? Eu quero apenas entender o motivo de tudo isso. A Tess que eu conheço é a mulher que eu escolhi para mim, essa desta noite vai acabar assim que tudo isso for interrompido
? falo.
? Dom, o que um cara como você que deixa tudo completamente feliz e colorido vai querer comigo? O que eu poderia lhe oferecer? Um papel em branco sem nada para contar? ? ela
fala.
? Isso, exatamente isso! Uma folha em branco para eu poder depositar as minhas loucuras, porque você foi a única pessoa que eu senti vontade de fazer isso, então, pare o carro,
saia desta corrida e esqueça o que aconteceu ? peço.
? Agora é tarde ? ela desliga e acelera, ultrapassando o segundo lugar e agora eu vejo as viaturas pelo meu retrovisor. Meu celular recebe uma mensagem, é de Jordan.
Ela enviou um video, possivelmente é o link da transmissão. Aperto play e tento acelerar e assistir parte do que todos na França acabaram de ver.
"A corrida não foi como eu esperava" ? é a voz de Lars e eles estão em um quarto. Tess está com o cabelo muito curto e muito magra.
"O que aconteceu?" ? ela pergunta e caminha para perto da janela, ela está com um vestido longo e descalça. Ela olha pela janela com tristeza.
"Um cara, estava difícil ultrapassá-lo. Ele era bom, mas se ele ganhasse ele levaria tudo que tenho. Eu fiz esse desafio achando que era o melhor, e esse cara surge do nada
e ele mereceu" ? Tess olha para ele sem dar muito importância.
"O que ele mereceu?" ? ela perguntou ? "Você faz o desafio e depois se arrepende? Eu não entendo por que precisa de tanto dinheiro, eu não vejo necessidade desse poder todo.
Tem pessoas com quase nada que passam mais tempo sorrindo do que você" ? escuto-a falar e não posso prestar atenção na filmagem, preciso me manter exatamente atrás dela.
"Você é uma idiota que vivia com uma miséria de salário lavando pratos" ? ele fala e tudo fica quieto ? "Eu não podia deixá-lo ganhar, na hora não pensei muito bem, mas tinha
que ser assim"
"Assim como?" ? ela pergunta e sua voz está triste, assim como seus olhos. Acelero e agora ultrapasso o carro à minha frente e estou exatamente atrás dela.
"Fiz o cara voar e depois ele explodiu junto com o carro" ? ele diz ? "Toquei em sua lateral traseira e foi o suficiente para ele sair do meu caminho" ? ele explica ? "Vão
ter que recolher o corpo do tal Gustav Lamark, o cara que substituiu Caryn Marshall de última hora, com uma pá" ? não escuto mais nada ? "Caryn tentou impedir que ele corresse,
ele deveria ter escutado o amigo" ? pego o celular e divido meus olhos entre a direção e a transmissão.
Tudo ficou em silêncio, mais nada foi dito, mas Tess ficou por alguns minutos olhando para ele, como se ele fosse um monte de coisa alguma. A transmissão chega ao fim e eu
ligo o fone em meu ouvido.
? VOCÊ É UMA PUTA! ? Lars está descontrolado e Tess não responde, ela não ligou o fone e eu olho pelo retrovisor e temo que ele faça algo contra Caryn. Lars não sabe que é
ele que está lá dentro.
Acelero e buzino.
? SUA VADIA! ? ele está gritando e quando vejo, ele ultrapassa Caryn e está vindo mais rápido do que nunca.
? Lars, eu não me importo com o nome que você coloca em mim. Pior do que você fez é impossível, não são seus adjetivos limitados que vão me fazer sofrer, mas eu vou te ajudar.
Numa próxima vez, quando mantiver uma mulher dentro de sua casa, sob forte vigilância de seguranças e um sistema de gravação ultra moderno, que capta imagem e som, certifique-se
que a garota em questão que lavava pratos não entenda nada sobre gravações e sistemas de informação e que a garota não tenha um irmão ? Tess responde calmamente, como se toda
sua fúria tivesse acabado junto com a transmissão ? Eu nunca vou poder me perdoar por ter aceitado ir morar com o futuro assassino da única pessoa que eu realmente tinha nesta
vida. Você não tirou apenas os últimos anos onde planejei tudo isso, você tirou meus anos futuros ao lado dele, e tudo por conta de dinheiro. Pegue o seu dinheiro e tente
limpar tudo isso ? ela fala e eu vejo que ela abre a janela e joga o fone na avenida. Ela levanta o dedo do meio para ele, como um gesto obsceno e o chama para vir atrás dela.
Caryn está acelerando. Lars reduz a velocidade e ele vai me ultrapassar, mas se isso acontecer, ele pode fazer com ela o mesmo que fez com Gustav.
Abro espaço e deixo-o quase emparelhar ao meu lado, e desta vez vou testar outro limite, mas ele não vai chegar perto dela.
13
Eu vejo as viaturas se aproximando, vejo as coisas girando ao meu redor, escuto o silêncio de uma mente que está em um tornado e fecho meus olhos. Tento buscar a calma que
preciso quando estou apoiado em uma montanha sem nenhum tipo de segurança.
Vejo o rosto de minha mãe, vejo Sofia me protegendo como sempre fez e escuto a voz de Paolo dizendo que ele sempre teve razão. Quero apenas que isso realmente aconteça, quero
poder sentir cada um deles perto de mim, e quero que tudo isso que está acontecendo agora acabe logo.
Não sinto nada, não escuto nada, não sei onde estou, não sei, apenas não sei.
A primeira vez que consegui me apoiar em um muro estreito nas aulas de Parkour, eu descobri que era aquilo que eu queria como combustível para minha vida, depois eu descobri
que precisava dos aditivos. Escalei montanhas, saltei de todos os pontos possíveis de Bunge Jump, de paraquedas, de cachoeiras e, então, decidi fazer algo mais arriscado...
eu me apaixonei.
Entrei no percurso onde gradativamente nossa velocidade reduz, onde tudo fica mais intenso de acordo com a demora que acontece, um beijo demorado, um sono acompanhado, uma
despedida que nunca termina.
Troquei a velocidade pela lentidão, e então, tudo fez um bom sentido. Ainda precisaria correr, saltar e escalar algumas montanhas, mas eu não estaria mais à procura do que
verdadeiramente me causa a melhor adrenalina.
Sinto a textura da montanha rochosa na ponta dos meus dedos, mas ao mesmo tempo sinto a maciez de sua pele nua, arrepiada, depois de fazermos amor. Meu coração passou a pertencer
a ela e não há mais nada que me importa. Na minha mente, seu nome aparece diversas vezes, em cores e com neon. É ela que está aqui dentro, e mesmo que eu não saiba muito sobre
ela, ou se já sei o suficiente, o que sei é que é com ela que preciso começar a escrever a minha história...
? Tess ? sinto as letras que compõem seu nome saírem de minha boca, saem sem força, mas elas são perfeitamente entendidas.
? Passo dois dias inteiros aqui, atraso todo meu trabalho na oficina, encaro um depoimento de três horas na polícia e sem contar que vou ter que pagar algumas multas e o primeiro
nome que você fala não é o meu ? Caryn responde meu chamado com uma piada.
Abro meus olhos vagarosamente, a luz chega a doer e eu demoro a me acostumar com ela. Quando finalmente consigo ver a imagem do meu amigo, com cara de cansado e sorrindo,
percebo nitidamente o que minha mãe sempre falou sobre oportunidades, sobre Deus.
? Ei ? falo ? Parece que não vencemos a queima de asfalto ? entro na brincadeira e ainda não sei qual é a situação do meu corpo. Mexo meus dedos dos pés, minhas mãos e internamente
uma oração de gratidão acontece, eu ainda vou praticar meus saltos.
? Você pilota muito mal para poder ganhar uma corrida, prefiro você a pé ? ele diz.
? Chegamos pelo menos entre os três primeiros? ? zombo ? Tess? ? pergunto.
? Ela está bem, está na delegacia e vai responder por alguns crimes, mas nada que em cem anos não seja resolvido ? ele está calmo.
? Ela está presa? ? pergunto.
? Não, está apenas prestando depoimento. E para ser franco, acho até que ela sabe mais sobre o Lars e vai poder colocá-lo mais alguns anos atrás das grades ? ele se aproxima
de mim ? Eu tenho que respeitar seu repouso, mas estou com muita vontade de arrebentar seus dentes, você se lembra do que fez? ? ele pergunta e eu tento me lembrar, mas parece
que os últimos dez segundos foram totalmente apagados de minha mente.
? Eu lembro que você dirige muito mal também ? brinco.
? Cara, Lars estava quase te ultrapassando, você encostou no carro dele e os dois giraram algumas vezes antes de se chocarem. O seu carro ficou prensado entre o dele e um
monumento no canteiro, parecia um casal de bailarinas ? ele tira uma onda da minha cara.
? E ele? ? pergunto do filho da puta.
? Está preso e as acusações são tantas que ele vai precisar de algumas vidas para pagar tudo que deve, desde sonegação fiscal até contrabando e sequestro. Outras meninas apareceram
depois de Tess e o acusaram de cárcere privado ? Caryn me anima com as notícias.
? Você conversou com ela? ? pergunto.
? Quer saber se ela falou de você? ? ele entende melhor a pergunta.
? Isso...
? Dom, ela só saiu daqui quando realmente precisou ir prestar depoimento; é ela quem tem dormido aqui nas últimas noites. Ela ficou aqui o tempo todo e eu obviamente passei
aqui de vez em quando para trazer comida para ela. Jordan queria fazer isso, mas quebrou o pé na noite da corrida ? ele sorri ao falar de Jordan ? Ela errou o cálculo ao pular
sobre um carro para chegar perto de Tess, que subiu em cima da guia depois que viu seu acidente ? ele me alfineta.
? Ela esteve aqui ? falo sorrindo.
? É, seu idiota, ela gosta de você. Ela fez um monte de porcarias mas também teve uma vida de cão e querendo ou não, arriscado ou não, ela cumpriu o que queria. Ela está se
sentindo bem, mesmo com tudo que vai enfrentar pela frente e mesmo sabendo que o advogado dela foi cedido pelo estado. Com certeza ela vai ter que pagar uma fiança ou alguma
coisa assim, então, espero que a Xtreme comece com seus novos projetos aqui em Paris e a remunere muito bem ? ele brinca.
? Eu vou adiantar alguns salários para ela ? sorrio.
? Eu já ia me esquecendo ? ele diz e fecha o rosto ? Tenho uma boa e uma má notícia ? ele diz ? Qual você quer primeiro?
? Me dá a ruim primeiro. Porra, que cara é essa? estou em um leito de hospital ? o advirto e ele ainda está sério.
? Bom, a ruim é que arrancaram teu pau fora, confundiram você com algum paciente que faria troca de sexo ? ele gargalha.
? Seu filho da puta, que susto ? se eu pudesse levantaria e daria um soco nele.
? Mas eu tenho uma boa notícia ? ele fala e sorri.
? Fala logo, seu cretino ? estou rindo também.
? Paolo está chegando ? ele suspende as sobrancelhas ? Acho melhor pentear o cabelo e fazer a barba ? ele novamente faz piada e eu coloco a minha mão na cabeça.
? PORRA! QUE MERDA É ESSA? ? pergunto e coloco a mão em meu rosto ? PORRA! TIRARAM TUDO! ? falo alto e Caryn está gargalhando.
? Cara, ainda bem que você já tem namorada, dificilmente com essa cabeça de ovo você encontraria uma. Sabe que agora entendo por que você deixava o cabelo e a barba cumpridos
? ele está gargalhando ? Tiveram que cortar, você levou alguns pontos na cabeça e eu acho que eles queriam evitar uma infestação de piolhos.
? Vai se foder, Caryn ? eu não acredito que rasparam minha cabeça e minha barba.
? Dom ? ele diz e se aproxima ? Foda-se o cabelo, a barba e seu pau que já eram, o importante é que você está bem e desencalhou pelo visto.
? Se eu não morri no acidente, acho que minha hora vai chegar quando Paolo souber de tudo. Não sei como ele não apareceu aqui antes ? falo e deixo a preocupação sobre meu
cabelo e barba de lado. Levo minha mão até meu pau e sinto um alívio por essa brincadeira não ser totalmente real.
? Ele já sabe de tudo. Eu não ia ligar para ele. Na realidade, só liguei ontem porque soubemos de uma notícia e ele seria o único que poderia resolver. Você acha que na hora
que eu liguei para ele não passei por uma inquisição? E eu respondi tudo que ele me perguntou, e disfarcei o que pude ? Caryn diz.
? Que notícia? ? me preocupo.
? Este hospital é particular, o único que sei que tem grana para pagar por tudo isso é Paolo. Infelizmente ele é seu irmão, ele é estranho e eu lamento pelo furacão que está
chegando ? Caryn sorri.
? Espero que ele não tenha falado nada com minha mãe. No futuro eu conto de maneira mais cômica ? desabafo e vejo a maçaneta girar e espero até que a porta se abra para pensar
em como saltar pela janela.
Olho para o semblante de Paolo, tento adivinhar com qual requinte de crueldade ele vai me matar, mas não consigo. Ele se aproxima e olha para Caryn.
Paolo sempre se manteve em uma postura difícil de ser decifrada. Ele mantém sua vida com rigor e eu nunca o vi com uma mulher ou soube de algum caso. Ele é discreto e é exatamente
o meu oposto.
? Marshall ? ele se refere ao Caryn como cumprimento e usa o sobrenome para manter distância. Para Paolo, Marshall é sinônimo de confusão e falta de responsabilidade. Mas
Paolo não imagina o quanto Caryn é responsável, posso dizer que ele é uma versão suja de graxa de Paolo. Eles são diferentes e distantes por um abismo, e são tão iguais em
alguns pontos. Muito do que Paolo fala e eu não escuto, acabo acatando quando é Caryn quem fala.
? Bastilli ? Caryn faz o mesmo e isso me irrita mais do que a minha cabeça raspada. Eles poderiam ter pelo menos o conhecimento sobre o primeiro nome deles.
? Até que enfim se livrou daquele cabelo, agora estou analisando para ver qual das duas versões é pior ? ele diz e deixa que um sorriso de alívio se manifeste, mas de forma
muito discreta.
? O que você não me pede chorando que eu não possa fazer sorrindo ? respondo e sorrio para ele.
? Eu tenho que ir, preciso ver se Jordan precisa de alguma coisa. Vou estar na oficina e se precisar de alguma coisa é só me ligar ? Caryn se despede e vai em direção à porta.
? Caryn ? Paolo o chama e eu não sei se posso defender Caryn. Paolo o chamou pelo primeiro nome, o que eu posso esperar agora é uma invasão de gafanhotos ou um ataque alienígena.
O que Paolo teria para falar para Caryn? Eu não sei se quero realmente saber isso.
? Sim? ? ele retorna para o meu irmão.
? Obrigado ? ele estende a mão para Caryn.
? Por nada ? ele aperta a mão de Paolo e vai embora.
Paolo coloco em mim o olhar de quem parece saber tudo que aconteceu e provavelmente ele saiba. E talvez a visão de Paolo sobre os Marshall tenha mudado. Paolo é intransigente,
mas não é um boçal afogado dentro de suas próprias ideias e eu sei que ele é perfeitamente capaz de mudar de ideia, mesmo que isso seja a coisa mais rara que já vi.
? Eu não quero nenhuma explicação, contra os fatos não existe nenhum tipo de argumento, mas eu quero saber a razão que leva você a correr tantos riscos. Poderia ter morrido
? ele diz.
? Eu me apaixonei ? respondo.
? Essa é uma boa resposta, explica muita coisa, desde suas fugas até as manchetes nos jornais franceses, mas poderia agir como as outras pessoas e enviar flores e não parar
um carro com outro? ? ele diz.
? Mamãe não está sabendo, certo?
? Não, nem ela nem Sofia. Acho que elas não precisam saber de absolutamente nada por enquanto ? Paolo é alguém formidável, mas eu não sei se ele sabe disso ? E ainda bem que
não paguei pelo carro que havia comprado, vou usar o dinheiro para pagar as despesas do hospital ? ele observa.
? Obrigado ? sorrio.
? Fico feliz em ver sua cara de pau e sorrindo. Espero que isso lhe sirva para não repetir essa ideia imbecil, e eu pensei que não haveria uma próxima vez depois do flagrante
que lhe dei ? ele me adverte ? Não o julgo pelo que escolheu para sua vida, fico até bem satisfeito em saber que mantém a sua opinião mesmo sob fortes ameaças vindas de mim,
isso mostra que você é persistente, o que na minha opinião, é uma palavra técnica para uma pessoa chata. Mas, eu posso te alertar sobre algumas coisas, a primeira é que envolvimentos
exigem responsabilidades, assim como qualquer outra coisa, mas antes de tudo, se certifique de que não vai deixar nesse mundo pessoas que te amam porque resolveu fazer besteira
? ele cruza os braços e mantém os olhos em mim ? Dom, não é porque somos diferentes que não admiro suas atitudes. Eu não querer acatá-las para minha vida é outra coisa. E
sobre responsabilidades, você é o único responsável pela Xtreme em seu novo ramo, folha de pagamento, contratação de pessoal, seguro, marketing, trabalho, é tudo seu; se o
seu intuito quando me apresentou o projeto era ser uma pessoa de responsabilidade, vai ter que provar isso. Estamos falando de pessoas e vidas são preciosas ? ele se aproxima
e coloca a mão sobre a minha.
? Não vou te decepcionar ? digo olhando para os seus olhos.
? Eu também acredito que isso não vai acontecer, mas eu sei que todo o começo é difícil. Eu sei, falo com toda a propriedade deste mundo que começar, seja lá o que for, é
realmente muito difícil, mas aproveite o fato de ter um sobrenome que tem respeito e credibilidade, convide pessoas que agregarão em sua vida pessoal e profissional e, antes
de tudo, seja humano ? ouvir Paolo pedindo para ser humano é quase assustador ? Eu tenho por obrigação seguir um plano racional, mas acredite, existe emoção em tudo que eu
faço, mesmo que em raras e poucas doses, mas ela está lá, balanceando e me avisando que posso correr riscos. Pense nisso ? ele fala.
Escuto a porta se abrir e vejo Tess se aproximando. Paolo a encara e ela faz o mesmo com ele. Tess não tem medo de olhar para as pessoas, apesar de alguns traumas. Ela perdeu
alguns medos em algum momento daquela corrida, ou depois de sua saída da Austrália. Eu tenho tanto para saber sobre ela e isso me deixa mais feliz.
? Oi ? ela diz olhando para mim ? Economizei o dinheiro do corte de cabelo e das lâminas de barbear ? ela brinca e vejo que Paolo quase sorri.
? Vejo que não sou o único que almejava pelo fim do homem das cavernas ? ele brinca e isso é raro quando acontece sem ironia ? Mas não precisava ser nessas circunstâncias
? ele conclui.
? Olá, eu sou Thereza Bianco ? ele leva a mão até Paolo que por um único segundo fica sem reação pela desenvoltura dela.
? Sou Paolo Bastilli ? ele segura a mão dela ? Vou resolver o que precisa com a administração do hospital ? ele diz e nos olha antes de sair do quarto. Acredito que ele tenha
entendido o porquê algumas loucuras são extremamente compreensíveis.
Tess se aproxima de mim e me olha dentro dos olhos. Quero-a para mim, o sorriso maldito e toda essa coisa que me fez vir para Paris mais vezes do que em toda a minha vida.
? Oi, eu sou Thereza Bianco Lamark, nome de batismo, e tenho muita coisa para falar pra você sobre mim assim que você sair daqui ? ela fala diretamente, mandando a mensagem
para dentro dos meus olhos.
? Oi, eu sou Domenico Bastilli, nome de batismo, e estou morrendo de saudade de fazer amor com você ? ela abre um sorriso incrível e acho que de todos os saltos que já fiz
nesta vida, esse foi o mais arriscado.
? Eu também, mas preciso te dizer duas coisas com urgência ? ela está séria e eu não sei se gosto desse tipo de suspense.
? Então fale antes que meu estado de saúde piore ? brinco.
? Não vai piorar, os médicos já avisaram que você está ótimo ? ela rebate e sorri suspendendo a sobrancelha.
? Então, fale antes do meu coração apresentar sinais de falência ? peço.
? A primeira é que você dirige muito mal, poderia ter ganhado aquela corrida, mas resolveu vestir uma capa e se passar por um super herói ? ela nega com a cabeça ? A segunda
é que quando te vi ali, desmaiado e as pessoas correndo querendo buscar ajuda, eu pensei em como seria estar viva sabendo que isso só estaria acontecendo porque meu amor morreu.
Eu amo você, Dom, não na forma convencional de sábados com filme e passeios no shopping, eu amo você na forma imprudente que buscamos nossas adrenalinas, amo mais porque você
me fez viver o que eu nunca tinha vivido.
Olho dentro dos olhos dela e vejo mais do que a menina de história triste, eu vejo a menina que merece uma história nova.
? Em minha defesa, eu piloto muito bem ? ela torce a boca ? em segundo lugar, eu não me perdoaria se algo acontecesse com você. Você mudou os meus planos, tirou de mim a vantagem
de estar solteiro e acredite, estou feliz por isso e eu com certeza não poderia viver sabendo que você não estaria mais aqui. Eu te amo, Tess, na adrenalina que nós temos,
mas se for o caso, assisto quantos filmes for preciso em um sábado à noite. Eu não mudaria minha personalidade, mas por você eu posso me reinventar.
? Que bom que ainda tem espaço para mim aí, mesmo depois de tudo ? ela diz e beija a minha boca.
? O espaço aqui é todo seu, mas me avise se for querer fazer algo parecido novamente ? brinco.
? Com certeza eu vou avisar, assim, você faz algumas aulas de direção antes ? ela ainda está me sacaneando ? Aquele é o seu irmão que você tanto falou? ? ela pergunta.
? Sim.
? Ele está com dor? ? ela se refere a maneira séria dele, a expressão de Paolo é sempre ilegível.
? Ele é uma boa pessoa, mas eu tenho quase certeza que ele carrega algumas dores ? respondo ? Ele só não é adepto de socializar em vão ? sorrio e suspendo as minhas sobrancelhas.
? Ninguém nunca vai saber o que a outra pessoa carrega dentro de si. Nenhuma pessoa é totalmente descoberta. Você pode viver cem anos com alguém que detém todos os seus sentimentos,
e mesmo assim, sempre vai haver algo que ela vai preservar, tem coisas que o mundo não precisa saber ? ela fala e novamente me beija.
? Tem algo sobre você que eu não saiba? ? pergunto.
? Quase tudo, mas vamos ter pelo menos cem anos para descobrir algumas coisas.
Epílogo
Ela falou sobre a dor que sentiu quando levou seu primeiro soco, seu olho esquerdo ficou roxo, inchado, e ela parcialmente cega. Contou sobre o tamanho da corrente que a segurava
dentro de casa, sobre o número de espelhos do lustre e de como um copo nunca poderia ser esquecido. Descobri que o absorvente é o primeiro item na lista de coisas que ela
sempre compra, mesmo quando não precisa; ela calça trinta e sete, e seu primeiro par de sapatos na Austrália foi tamanho trinta e oito, mas na época ela ainda calçava trinta
e quatro.
Sanduiches são melhores se não tiverem sido retirados do lixo, refrigerantes e doces apenas uma vez ao mês, em um único dia e em uma única refeição.
Tess explicou que aprendeu a ter boa memória e, assim, evitaria surras e dias sem comer. Ela falou sobre a saudade da mãe, sobre a vontade de usar brincos e de como seria
bom ter uma festa de aniversário aos doze anos. Ela me contou como morou de maneira discreta quando fugiu de Lars.
Ela me mostrou um papel, era sua matrícula para a faculdade e me contou como foi difícil voltar para a escola e terminar tudo muito tempo depois, que as escolas ofereciam
programas de estudo para conclusão de ensino. Foi lá que ela conheceu Colin, que a ajudou com a transmissão.
A garota que acelerou e colocou em rede nacional o ódio que de fato não nasceu com ela e nem está mais ali, agora conversa animadamente com Sofia, elas são diferentes, mas
são da mesma espécie.
? Olha para ela como se fosse a primeira vez ? mamãe para do meu lado e comenta. Cynthia está servindo o almoço, é domingo e cheguei aqui na quinta-feira. Meu cabelo começou
a crescer e a barba também.
? É a primeira vez, todas as vezes serão assim ? confesso e ela me abraça.
? O segredo é esse, o segredo da vida é esse, admirar as coisas diversas vezes e de diversas maneiras diferentes ? mamãe fala em meu ouvido ? Você deve ter aprontado alguma
coisa para estar com esse cabelo curto e com esses pontos na cabeça ? ela diz e Paolo se aproxima.
? Possivelmente recolheram material para estudo, querem saber como pode um ser tão apto a realizar coisas imbecis ter durado tanto tempo ? ele sorri de lado e se posiciona
ao meu lado. Mamãe vai até a cozinha e nos deixa ali, perto da porta entre a mesa e a área externa.
? Ela ainda não sabe? ? pergunto.
? Ela sabe, mas sabe da maneira dela ? ele responde ? Ela poderia ter saído de Paris? ? Paolo pergunta levando o rosto na direção de Tess e eu faço uma cara de que não quero
responder.
? Eu tenho que responder isso? ? pergunto.
? Sim, e de preferência não com outra pergunta e com uma resposta verdadeira ? ele exige.
? Paolo, não quero sermão, não hoje. Estamos aqui, família toda reunida, até Brad que está ajudando Phill com um vaso que mamãe quer que saia de onde está, está animado ?
declaro e sorrio.
? Não me obrigue ? ele protesta.
? É claro que ela pode sair de Paris. Ela resolveu seus assuntos, está respondendo o que lhe cabe e não existe nenhum cerco policial em torno dela ? sorrio e espero que ele
faça o mesmo.
? Temos um progresso ? Paolo não elogia e eu devo assimilar que isso é parte da minha evolução.
? Viu? A humanidade ainda tem esperança ? zombo.
? Não se empolgue ? ele fecha a cara.
? Qual é, Paolo? Estou tentando! ? me defendo.
? Sabe o carro? ? ele pergunta e eu penso no carro que ele não pagou e de repente voltou atrás, pode chegar aqui a qualquer momento.
? O que você não pagou? ? pergunto.
? Não, esse assunto já foi resolvido. Não paguei o carro, paguei pelas despesas do hospital. Se lembra do motivo, certo? ? ele me encara ? Estou falando do carro que você
está usando, o carro que está parado ao lado do meu nesse momento na garagem de mamãe ? ele dispara.
? Esse já está pago ? defendo e mantenho o olhar firme sobre ele que é dez centímetros mais alto do que eu.
? O carro sim, o documento não, está atrasado, eu não acredito que sua correspondência ainda chega aqui ? ele entrega o comunicado e vai em direção a Phill e Brad.
Vou em sua direção e ele está sorrindo, olhando para a piscina e Brad está lavando a mão.
? Eu resolvo isso ? falo e coloco o papel no bolso.
? Eu sei que resolve. Ultimamente tenho acreditado que você pode resolver muitas coisas.
Brad se aproxima e por mais que esse cara tenha errado, ele acertou de alguma forma, mas Paolo ainda tem suas observações internas sobre ele.
? Vai me dizer onde aprendeu a pilotar daquele jeito? ? pergunto para Paolo me referindo ao dia que quase bati em seu carro.
? Por que eu falaria para você? ? ele responde com outra pergunta e Tess e Sofia se aproximam.
Tess me abraça por trás e Brad abraça Sofia por inteira. Brad está trabalhando para Martinelli e resolveu o que precisava ser resolvido.
? Porque sou o seu irmão mais novo e esse tipo de conselho é útil ? explico.
? E todos os outros conselhos que já forneci? Não são úteis? ? ele pergunta.
? Você sabe, vou colocá-los em prática ? tento, mas ele não vai falar.
? Que conselho você está pedindo para Paolo? Isso é um aviso sobre o Armagedon? ? Sofia me sabota.
? Sofia, Paolo pilota muito rápido. Estávamos na costa e ele conseguiu me alcançar e até hoje eu não entendo, ele fez como se fizesse sempre ? Sofia está me olhando com uma
cara de quem não está acreditando e mamãe se aproxima.
? Do que vocês estão falando? ? mamãe pergunta.
? Dom está dizendo que Paolo acelera o carro como um grande corredor ? Sofia deixa o que eu disse de um jeito um pouco cômico.
? Paolo? Correr com o carro? Dom, você deve ter batido com a cabeça com muita força. Agora vamos almoçar, essas alucinações com certeza são por falta de uma boa alimentação
? mamãe não oferece nenhum crédito no que eu disse e muda totalmente o assunto, como se fosse melhor não acreditar, ou como se já soubesse mas fosse um segredo entre eles.
Todos vão em direção à mesa e Paolo fica do meu lado.
? Eles não acreditaram em mim ? falo para ele ? Mas... mas eu vi, você correu, e correu muito e sabia o que estava fazendo ? olho para ele e ele suspende apenas uma sobrancelha.
? Esse é o segredo, sua reputação te defende ou te arruína ? ele bate com a mão em meu ombro ? Qualquer dia eu te ensino alguma coisa ? mas que filho da... Ele é visto...
mas... ele só mostra o que as pessoas podem ver.
Vou em direção à mesa e me sento ao lado da Tess que ganhou a afeição das primeiras mulheres da minha vida.
? Dom, se Paolo pilota como disse, peça para ele te dar algumas aulas! ? Tess arruína com a minha imagem na mesa e sou obrigado a ouvir as gargalhadas. Paolo sorri sem dentes
e se coloca ao lado de mamãe.
Sinto um celular vibrar sobre a mesa. É de Paolo, que olha rapidamente para a tela e desliza o dedo. Um sorriso nunca visto se abre e penso que pode enfim ser uma mulher para
deixá-lo menos tenso.
Mamãe o encara e ele olha para ela.
? Negócios ? ele responde baixo.
? Não hoje ? mamãe ordena baixinho e discretamente.
? Tudo bem ? ele responde, segura a mão dela e beija sobre seus dedos. Ela é a única mulher que consegue uma demonstração de carinho em público de Paolo, mas eu não consigo
não imaginar como é o bastidor da vida desse cara.
Quem é Paolo depois que as cortinas se fecham?
Leia um trecho do próximo livro da série:
PAOLO
Nove e vinte e um da manhã, apenas a nove minutos de fechar o que chamaria de meu projeto de vida. Trabalho nessa aquisição há pelo menos um ano, mas desde sempre a Martinelli
foi meu alvo, era como se a Bastilli precisasse dela para chegar em terra firme.
Quando houve o primeiro rumor sobre a possível queda da Martinelli, eu pensei que essa seria a chance de escrever a história da Bastilli de vez sobre Gênova, e foi exatamente
isso que eu fiz. Analisei o mercado e esperei, e como sou propenso ao exagero em alguns pontos, precisei controlar algumas informações para que outros não entrassem na fila
de interesse pela Martinelli.
Franchesco se mostrou inclinado apenas depois de muita conversa e, mesmo assim, não fechamos absolutamente nada de imediato, a não ser uma possível futura conversa. Espero
que hoje seja a última e com o desfecho que preciso.
Olho para o papel em minhas mãos e o deixo sobre a mesa, caminho até a janela com vista para o mar e penso por alguns instantes sobre o momento exato que fez com que tudo
à minha volta começasse a acontecer. Olho para os barcos com a assinatura Bastilli em seu casco, olho para os funcionários e para o resultado de tudo isso.
Talvez isso não tenha fim e fique para futuras gerações. Quanto a isso, Sofia já se encarregou e Dom pelo visto seguirá pelo mesmo caminho.
Aos sete anos eu desejei mais do que tudo um chocolate que na época era a maior sensação. Todos tinham ao menos experimentado uma única vez, menos eu. Me lembro como se fosse
hoje, naquela noite em que apanhei por pedir o chocolate, eu determinei que não teria apenas o que todos têm, não faria o mesmo percurso que os outros e seria diferente em
tudo. Naquela noite, eu tomei a decisão e nunca mais parei.
Olho para o meu reflexo no vidro e vejo que posso ir mais além, buscar outras águas e conquistar um pouco mais. Olho para baixo e novamente percebo que isso nunca vai ter .

 

 

                                                   Barbara Biazioli         

 

 

 

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