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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOM QUIXOTE – V.I P.2 / Miguel de Cervantes
DOM QUIXOTE – V.I P.2 / Miguel de Cervantes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DOM QUIXOTE DE LA MANCHA

 

VOLUME I

Segunda Parte

QUE TRATA DA NOVA E AGRADÁVEL AVENTURA SUCEDIDA NA MESMA SERRA AO CURA E AO BARBEIRO

Ditosos e felicíssimos tempos, em que ao mundo veio o tão audaz cavaleiro D. Quixote de La Mancha pela sua muito honrada determinação de restituir ao mundo a já quase esquecida ordem de cavalaria andante! Saboreamos nós agora, nesta idade tão falta de passatempos alegres, a doçura de estarmos lendo a sua verdadeira história, e os contos que nela se travam como episódios; estes em boa parte não são menos agradáveis, artificiosos, e verdadeiros, que a mesma história.

Conta ela, prosseguindo o seu tortuoso fio, que tanto como o cura começava de preparar-se para consolar a Cardénio, o atalhou uma voz, que lhe chegou aos ouvidos, e que em tons magoados se lastimava assim:

- Ai, Deus! Será possível ter eu já achado lugar, em que sepulte a ocultas este corpo, que tão sobreposse vou arrastando? Espero que sim, se me não mente a soledade que estas serras me afiançam. Ai desditosa! Quão mais agradável companhia não farão estas penhas e moitas ao meu sentimento, pois me proporcionarão comunicar estas queixas com o Céu, e não a criaturas humanas! Na Terra já não há com quem se possa tomar conselho nas incertezas, alívio nos queixumes, nem remédio na desgraça.

Tudo isto ouviram distintamente o cura e os mais que ali eram; e por lhes parecer, que perto dali estava a pessoa que tais

queixas proferia, se levantaram para ir ter com ela. Não tinham andado vinte passos, quando de trás de um penhasco viram sentado ao pé de um freixo um mancebo entrajado à lavradora, ao qual, por estar com a cabeça baixa, a lavar os pés num regatinho, não puderam imediatamente divisar o rosto. Aproximaram-se-lhe to calados, que não foram dele pressentidos, de atento que estava na sua lavagem dos pés; e tais eram eles, que não pareciam senão dois pedaços de puro cristal entre as outras pedras da corrente. Maravilhou-os a alvura e lindeza daquelas plantas, que não pareciam feitas a pisar torrões, nem a seguir arados e bois, como inculcava o vestuário do dono. Assim, vendo que não tinham sido por ora sentidos, o cura, que ia adiante, fez sinal aos outros dois para que se agachassem e escondessem por trás de uns pedaços de penha que ali havia. Assim o executaram todos, reparando com atenção para o que o moço fazia.

Trazia este um roupãozinho pardo de duas abas, muito bem cingido ao corpo com uma toalha branca. Trazia uns calções e polainas de pano pardo, e na cabeça uma gorra também parda. As polainas tinha-as levantadas até meia perna, que na alvura lembrava alabastro.

Acabados de lavar os formosos pés, enxugou-os com um lenço da cabeça, o qual tirou da gorra; e, quando já ia para retirar-se, ergueu o rosto; com o que tiveram lugar os que o estavam olhando de descobrir uma formosura incomparável, e tal, que Cardénio disse baixinho para o cura:

- Esta, como não é Lucinda, não é criatura humana; deve ser por força divindade.

O moço tirou a gorra, e, sacudindo a cabeça para uma e outra parte, começou a espalhar os cabelos, que bem puderam aos do Sol fazer inveja. Conheceram então, que o suposto rústico não era senão mulher, e mimosíssima; pelo menos, a mais formosa que ambos eles com seus olhos jamais tinham visto. Outro tanto encareceria Cardénio, se não conhecera Lucinda, cuja lindeza, como ele depois declarou, era a única para se comparar àquela. Os cabelos compridos e louros não só lhe cobriam as costas, mas toda em derredor a velavam; tanto que, afora os pés, nada de todo o corpo lhe aparecia. Para os alisar serviram de pente mãos, que em brancura ainda aos pés se avantajavam.

Todo aquele conjunto acrescentava ainda nos três espectadores a admiração e o desejo de saberem quem fosse. Por isso se deliberaram a aparecer.

Ao movimento que fizeram para se erguer, alçou a gentil moça a cabeça, e, arredando dos olhos os cabelos com as mãos ambas, procurou ver de onde o ruído provinha. Tanto que os descobriu pôs-se em pé; e, sem se deter a calçar-se, ou recolher os cabelos, apanhou muito à pressa um volume como de roupa, que junto lhe estava, e quis pôr-se em fugida, cheia de perturbação e sobressalto. Mas seis passos não teria ainda dado, quando, não lhe podendo mais os delicados pés com a aspereza das pedras, se deixou cair. Correram para ela os três, sendo o cura o primeiro que lhe falou, dizendo:

- Detende-vos, Senhora, quem quer que sejais. Os que vedes aqui só ambicionam servir-vos. Não há porque vos fujais; nem vós podeis correr assim descalça, nem nós outros consentir-vo-lo.

A nada disto ela respondia palavra, a poder de atónita e confusa.

Chegados pois, a ela, o cura, travando-lhe da mão, prosseguiu:

- Os vossos cabelos Senhora, bem estão desmentindo o vosso traje. Do pouco tomo não devem ser as causas de se ter a vossa lindeza disfarçado em vestuário tão indigno, e em tão funda soledade como esta. Dita foi que vos achássemos; senão para darmos remédio aos vossos males, ao menos para vos ajudar com algum bom conselho. Não há desventura tão cansada, nem tão posta no cabo, enquanto não degenera em morte, que deva esquivar-se a um alvitre oferecido com bom ânimo. Portanto, Senhora, ou Senhor, ou o que mais quiserdes ser, tornai a vós do sobressalto que a nossa presença vos causou, e contai-me o vosso caso, seja qual for. Todos e cada um de nós vos acompanharemos, ao menos no sentimento dos vossos trabalhos.

Enquanto o cura assim discorria, estava ela como fora de si, olhando para todos sem boquejar. Dava por longe a lembrar um sáfaro aldeão, a quem de repente se mostram coisas raras, que ele nunca viu; mas, recomeçando o cura mais razões ao mesmo propósito encaminhadas, ela, dando um profundo suspiro, quebrou o silêncio, e disse:

- Uma vez que o solitário destas serras não bastou para me esconder, e estes meus cabelos desmentem enganos, por de mais fora fingir eu por mais tempo o que vós só por cortesia mostraríeis acreditar. Isto suposto, agradeço-vos Senhores, os vossos oferecimentos; tanto, que por eles me julgo obrigada a satisfazer-vos em tudo que me pedis, se bem que temo, que a narração das minhas desditas vos cause, além da compaixão, desconsolo não pequeno, porque afinal nem atinareis remédio para o que padeço, nem consolações que mo suavizem. Apesar de tudo isto, e para que lá por dentro dos vossos juízos não ande estremecida a ideia da minha honra, por saberdes já que sou mulher, moça, sozinha, e neste traje, coisas todas (e bastava qualquer delas) para arrastar uma reputação, devo enfim dizer-vos o que bem quisera calar-vos, se me fora possível.

Tudo isto disse sem se interromper, com fala tão pronta e voz tão suave, que não menos maravilhou por discreta, do que já maravilhara por formosa. Iam reiterar prometimentos e rogativas para que satisfizesse o prometido, quando ela, sem se fazer mais rogar, calçando-se com toda a honestidade, e apanhando as madeixas, se assentou numa pedra, ficando os três em derredor; e, forcejando para reprimir lágrimas, que aos olhos lhe acudiam, com voz serena e sonora começou desta maneira a sua história:

- Há nesta Andaluzia um lugar, de onde toma nome um duque, dos que chamam Grandes de Espanha. Tem ele dois filhos; o mais velho, herdeiro do seu estado, e dos seus bons costumes também (segundo parece), e o mais novo, herdeiro não sei de quê, se não for das traições de Belido, e dos embustes de Galalão. Deste duque são vassalos meus pais, humildes de geração, porém tão ricos dos bens da fortuna, que, se o nascimento lhos igualasse, nem eles teriam mais que desejar, nem eu temeria nunca ver-me na desgraça em que me vejo. Talvez que a minha pouca ventura só nascesse da que também lhes faltou

a eles por não nascerem ilustres. Verdade é que não são tão humildes, que se devam envergonhar do seu estado, nem também tão altos, que me tirem a cisma em que estou de ser a minha desgraça efeito da sua humildade. Em suma: são lavradores, gente chã sem nódoas na geração, e (como se costuma dizer) cristãos-velhos e rançosos, mas não tão rançosos, que a sua riqueza e magnífico trato lhes não vá a pouco e pouco adquirindo nome de fidalgos e cavalheiros, ainda que a maior riqueza e E nobreza de que eles se prezavam era terem-me por filha. Por não terem outro nem outra que deles herdasse, como porque eram pais, e pais extremosíssimos, era eu uma das mais regaladas filhas que jamais houve. Eu o espelho em que se reviam, o bordão da sua velhice, e o alvo de todas as suas ambições, que se levantavam até ao Céu. Dessas ambições, por tão santas que eram, não discrepavam as minhas nem um til; tão senhora era eu dos seus corações, como dos seus haveres; por mim se recebiam e despediam os criados; a conta das sementeiras e colheitas corria toda por minha mão; das moendas de azeite, das lagaradas de vinho, do gado maior e menor, dos colmeais, finalmente, de tudo aquilo que um lavrador opulento, como meu pai, deve ter, e tem, a administração fazia-a eu. Era a mordoma e senhora, com tanto desvelo meu, e tão a seu contento, como não posso encarecer. Os pedaços que no dia me sobravam destes lavores, depois de ter dado a devida atenção aos maiorais ou capatazes, e a outros jornaleiros, entretinha-os em exercícios, que às donzelas são tão lícitos como necessários, tais como os de agulha e de almofada, e a roca muitas vezes; e quando, para espairecer, interrompia estes exercícios, recorria ao entretenimento de ler algum livro devoto, ou a tocar uma harpa, porque a experiência me tinha ensinado ser a música uma suavizadora dos ânimos alterados, e um alívio para os trabalhos do espírito. Tal era a vida que eu levava em casa de meus pais. Se tão por miúdo a contei, não foi por ostentação, nem por alardo de riquezas, mas só para que se reconheça quanto sem culpa caí daquele bom estado neste em que hoje me vejo. É o caso que, passando eu a vida em tantas ocupações, e num tal recato, que se podia comparar ao de um mosteiro, sem ser vista

(supunha eu) de pessoa alguma, afora os criados de casa (porque os dias em que ia à missa era tão de manhãzinha, tão acompanhada de minha mãe e de criadas, e toda eu tão coberta e recatada, que apenas via por onde punha os pés); apesar de tudo aquilo, os olhos do amor, ou da ociosidade, por melhor dizer, que são mais que olhos de lince, descobriram-me entre as outras cortejadas de D. Fernando que assim se chama o filho mais novo do duque de quem já vos falei.

Ao nome, apenas proferido, de D. Fernando, mudou-se a Cardénio a cor do rosto, e começou a suar, com tão grande alteração, que, reparando nele o cura e o barbeiro, temeram ser-lhe chegado algum daqueles ataques de loucura, de que já tinham notícia. Mas Cardénio o que só fez foi continuar a tressuar, porém quieto, com os olhos fitos na lavradora, imaginando quem ela era.

Esta, sem reparar, prosseguiu a sua história, dizendo:

- Apenas me tinha avistado, quando (segundo ele depois contou) ficou tão possuído de amores meus, quanto as suas obras o deram a entender. Mas, para abreviar o sem-fim das minhas desditas, quero passar em silêncio as diligências que D. Fernando fez para me declarar a sua vontade. Subornou toda a gente da minha casa; deu e ofereceu dádivas e mercês a meus parentes; todos os dias eram de festa e regozijo na minha rua;

de noite, ninguém podia pegar no sono, com as músicas; os bilhetes que me vinham à mão, sem eu saber como, eram infinitos, cheios de namoradas frases e oferecimentos, com menos letras que promessas e juras. Tudo aquilo não só me não abrandava, mas até me endurecia de maneira, como se proviera de inimigo mortal. Tudo que ele fazia para me reduzir à sua vontade redundava-lhe sempre no efeito contrário; não era por me desagradar a gentileza de D. Fernando, nem por achar demasiadas as suas finezas, porque em verdade me dava não sei que contentamento ver-me tão querida e estimada de cavaleiro tão principal; e não me descontentava do que ele escrevia em meu louvor (que neste particular, por feias que sejamos, tenho para mim que todas as mulheres nos lisonjeamos quando nos ouvimos celebrar de bonitas). A tudo, porém, resistia a minha honestidade, e os conselhos incessantes de meus pais, já então conhecedores e certos das pretensões de D. Fernando; que admira se ele próprio já se não importava de que todo o mundo lhas soubesse! Repetiam-me meus pais, que a honra deles permanecia confiada toda na minha virtude, e que me lembrasse da distância que ia de mim a D. Fernando, prova clara de que os seus desejos, por mais que os ele disfarçasse, mais se encaminhavam ao seu gosto, que a meu proveito, e que, se eu quisesse pôr de algum modo estorvo, que o descorçoasse daquela imperdoável teima, eles me casariam sem dilação com quem eu mais levasse em gosto, ou fosse do nosso lugar, ou dos circunvizinhos, que para tudo lhes davam confiança o seu cabedal e a minha fama. Com estas promessas e com a verdade que as acompanhava, me ia eu fortalecendo para resistir; nunca jamais respondi a D. Fernando palavra, que lhe mostrasse, nem por sombras, esperança de me alcançar. Todos estes recatos meus, que a ele se deviam figurar desdéns, creio que ainda avivaram mais o seu apetite desonesto, que outra coisa no era o afecto que me ele encarecia. A ter sido verdadeiro, não vos estaria eu agora contando isto, nem haveria de que me queixar. Soube afinal D. Fernando, que meus pais andavam em diligências de me casar, para lhe tirarem a ele toda a esperança de me possuir, ou, pelo menos, para eu ter mais quem me guardasse. Que faria com tal novidade D. Fernando? Ides sabê-lo. Uma noite, estando eu no meu aposento com a companhia única de uma donzela do meu serviço, com as portas bem fechadas para acautelar qualquer perigo, não sei nem imagino como, no meio destes resguardos, e na solidão de tamanho encerro, vejo-o diante de mim. Tal foi a minha perturbação, que me fugiu a vista e a fala; não podia gritar por socorro, nem ele, creio eu, mo consentiria. Chegou-se logo a mim, e, tomando-me entre os braços (como havia eu de me defender na turbação daquele repente?) começou a dizer-me tais coisas, que não sei como é possível, que se inventem; com as lágrimas e suspiros do traidor se acreditavam os seus dizeres. Eu pobrezinha! Eu entre os meus desamparada, inexperiente de semelhantes apuros, comecei, não sei como, a ter por sinceras todas aquelas falsidades, mas não

tanto, ainda assim, que me abalassem a compadecer-me repreensivelmente de tantos extremos de lágrimas e gemidos. Passado o primeiro sobressalto, recobrei algum tanto o espírito amortecido, e, com mais ânimo do que eu própria pensei que tivesse, lhe disse: “Se eu estivera, como estou, senhor, nos vossos braços, nos de um leão feroz, e me certificassem de que lhes escaparia em dizer ou fazer fosse o que fosse em prejuízo da minha honestidade, to impossível me fora isso, como me foi impossível deixar de me portar como me portei. Tendes o meu corpo cativo entre os vossos braços, e eu tenho a minha alma segura com os meus bons propósitos; são eles tão outros dos vossos, como vereis, se, teimando, quiserdes violentar-me. Sou vossa vassala, mas não vossa escrava; a nobreza do vosso sangue não tem nem deve ter licença para desonrar a humildade do meu. Sou vilã e lavradora, mas nem por isso me aprecio em menos do que vós vos estimais por senhor e cavalheiro. Comigo não hão-de aproveitar as vossas forças, nem valer as vossas opulências, nem as vossas palavras hão-de lograr seduzir-me, nem suspiros e lágrimas entemecer-me. Se alguma destas coisas que digo a visse num esposo escolhido por meus pais, à sua vontade seria dócil a minha, como ficava com honra, ainda que sem gosto, de grado entregaria o que vós, senhor, agora com tanto esforço ambicionais. Digo tudo isto, porque não há cuidar, que de mim alcance coisa alguma quem não for meu legítimo esposo.” - “Se nisso está a tua dificuldade, belíssima Doroteia - (assim se chama esta desditada) - disse o desleal cavaleiro - desde aqui te dou com esta mão a certeza de o ser teu; tomo por testemunhas os Céus, a que nada se esconde, e esta imagem de Nossa Senhora que tens aqui.”

Quando Cardénio lhe ouviu, que se chamava Doroteia, tornou de novo aos seus sobressaltos, e acabou de se confirmar no que já supusera; mas não quis interromper a narrativa, desejoso de saber em que parava o que ele já quase sabia; só disse:

- Quê, Senhora! Doroteia é o vosso nome? De uma Doroteia já eu ouvi falar, que talvez em pontos de desgraça vos não fique atrás. Prosseguiu; tempo virá, em que vos diga coisas, que hão-de assombrar tanto como lastimar-vos.

Fez Doroteia reparo nas palavras de Cardénio, e em seu trajar extravagante e miserável, e lhe rogou, que, se por acaso sabia alguma coisa tocante a ela, lha dissesse logo, porque, se alguma coisa boa lhe tinha ficado na desgraça, era o ânimo para sofrer qualquer novo infortúnio, pela persuasão de que nenhum podia já chegar aos actuais, quanto mais acrescentá-los.

- No perderei eu tempo Senhora - respondeu Cardénio -, em dizer-vos o que penso, se o que penso não é errado; mas não nos faltará oportunidade, nem isto vos releva muito.

- Seja o que for - respondeu Doroteia - prossigo a minha história. Tomando uma devota imagem, que no aposento se achava, invocou-a como testemunha do nosso desposório, e com frases eficacíssimas, e extraordinários juramentos, me deu palavra de ser meu marido, apesar de que, antes de finalizada a sua jura, eu lhe pedi que reparasse bem no que fazia, e ponderasse no desgosto que o Senhor Duque seu pai sentiria de o ver casado com uma vilã sua vassala; que se não cegasse com a minha formosura, tal qual era, pois não era suficiente para desculpa do seu desatino; e que, se algum bem me queria fazer, pelo amor que me tinha, fosse deixar correr a minha sorte por onde convinha à minha qualidade, pois casamentos desiguais nem se gozam, nem aturam muito no gosto com que principiam. Todas estas razões lhe ponderei, com outras muitas, que nem já me lembram; mas todas foram para ele escusadas. Quem não tendona satisfazer não regateia condições no contratar. Aqui fiz dentro em mim este rápido discurso: “Não serei eu a primeira, que por via de matrimónio haja subido a grandezas; nem D. Fernando também será o primeiro, a quem formosura ou cegueira de afeição, que é o mais natural, tenha feito procurar companheira inferior. Se eu não posso mudar o mundo, nem introduzir nele costumes novos, convém-me aproveitar esta honra que a sorte me depara, ainda que neste o fervor presente só dure enquanto o desejo se lhe não sacia. Ao menos perante Deus serei sua esposa. Se com desprezs o despedisse no aperto em que me vejo, em lugar de cumprir o que deve abusará da força, e ficarei irremediavelmente desonrada, e sem desculpa aos olhos de quem não souber quão inocentemente sucumbi.

Como poderão convencer-se meus pais, e as outras pessoas, de que este fidalgo entrou no meu aposento sem anuência minha?”

- Todas estas dúvidas e certezas me tumultuaram instantaneamente no espírito, e começaram a inclinar-me ao que se tornou, sem o eu cuidar, a minha perdiço. Eram os juramentos de D. Fernando; eram os testemunhos que invocava, as lágrimas que o imundavam, e, por último, o seu garbo e a sua gentileza, que, reforçando-se com tantas e tamanhas mostras de verdadeiro amor, sobrariam a render a qualquer outro coração tão livre e recatado como era o meu. Chamei pela minha criada, para ter também na Terra uma testemunha, além das do outro mundo, que depusesse em meu favor. Reiterou e confirmou de novo D. Fernando os seus juramentos, juntou novos Santos por testemunhas, imprecou sobre si mil castigos para o caso de não cumprir o que me prometa, tornou a chorar, suspirar e gemer, apertou-me mais entre os braços, de onde ainda me não tinha soltado; e com isto, e em sair do aposento a minha donzela, deixei eu de o ser, e ele consumou o seu feito de traidor. O dia seguinte à noite da minha desgraça não alvoreceu tão depressa como D. Fernando desejaria, segundo penso, porque, saciado um apetite brutal, ouço que o maior gosto para um desalmado é fugir de onde o extorquiu. D. Fernando apressou-se, com efeito, em se apartar de mim; e, auxiliado pela minha serva, que era a própria que para ali mo introduzira, antes de amanhecer estava já na rua. Na despedida, ainda me disse que tivesse fé nas suas promessas, mas já então com menos intimativa. Para mais confirmação da sua palavra, passou do seu para o meu dedo um rico anel. Com efeito partiu, deixando-me não sei se triste, se contente; confusa e pensativa, sei eu que sim, e quase fora de mim com a minha transformação. Não tive ânimo nem lembrança de ralhar à minha aia pela traição que me fizera, encerrando a D. Fernando no meu próprio aposento, porque nem ainda atinava se realmente era bem, ou mal, o que me havia acontecido. No momento de se partir D. Fernando, disse-

-lhe eu, que, pelo mesmo modo como entrara naquela noite, podia vir todas as mais que desejasse, visto ser eu já sua, faltando só publicar-se o sucesso, o que seria quando ele quisesse.

Voltou ainda na seguinte noite, mas foi ento pela última vez; nem eu o tornei a avistar nem na rua nem na igreja, no decurso de um mês, por mais que me cansasse em solicitá-lo (ainda que soube, que estava na cidade, e que ia quase diariamente à caça, seu exercício de predilecção). Todo este comprido prazo foi para mim de horas minguadas e amargas, bem o posso dizer. Entraram-me a crescer dúvidas; principiei a descrer da verdade de D. Fernando, e a minha aia começou a ouvir-me as justas repreensões, que eu dantes lhe poupava. Foi-me necessário resguardar as minhas lágrimas, e disfarçar as mostras do semblante, para não dar azo a que meus pais me perguntassem de que andava eu pesarosa, obrigando-me com isso a idear mentiras para os satisfazer. Mas tudo isto se acabou de repente; chegou um lance em que se atropelaram respeitos, e os discursos honrados deram fim; perdeu-se-me a paciência, e saíram a público os meus segredos. Toda esta resolução rebentou por se ter espalhado a cabo de alguns dias no povo do lugar, que numa cidade perto se havia casado D. Fernando com uma donzela em todo o extremo formosíssima, e de muito esclarecida ascendência, posto que não tão rica, que em razão do dote pudesse aspirar a to nobre casamento. Disse-se que se chamava Lucinda com outras coisas, que naquele desposório ocorreram, dignas de admiração.

Cardénio, ao nome de Lucinda, o que só fez foi encolher os ombros, morder os lábios, franzir as sobrancelhas, e, passado pouco deixar correr dos olhos duas fontes de lágrimas.

Doroteia nem por isso deixou de seguir a sua fala, dizendo:

- Chegou-me aos ouvidos esta nova tervel; e, em lugar de se me gelar o coração, tamanha foi a raiva que nele se me acendeu, que pouco faltou para eu não sair pelas ruas dando vozes, e publicando a aleivosia que se me tinha feito; mas aquietei por então o excesso da fúria, com a ideia de pôr essa mesma noite porobra o que realmente pus, que foi entrajar-me neste hábito que me deu um dos chamados pegureiros nas casas de lavoura, que era servo de meu pai, ao qual descobri toda a minha desventura, rogando-lhe me acompanhasse até à cidade em que assentei encontrar o meu inimigo. O pastor, depois de ter repreendido a minha ousadia, e encarecido a fealdade da minha determinação, vendo-me inabalável no meu propósito, prontificou-se a acompanhar-me até ao cabo do mundo que fosse. No mesmo instante, atei numa trouxinha de pano de linho um vestido de mulher, e algumas jóias e dinheiros, para o que pudesse suceder; e, pela calada da noite, sem nada dizer à minha traidora donzela, saí de casa acompanhada do meu criado, e entregue a muitas diversas fantasias, e me pus a caminho para a cidade a pé, voando, não tanto pelo desejo de chegar, pois não podia estorvar o que tinha por consumado, como para perguntar a D. Fernando como tivera valor para acumular tantas perfídias. Em dois dias e meio cheguei à cidade, e perguntei pela rua dos pais de D. Lucinda. O primeiro a quem me dirigi respondeu-me mais do que eu desejara ouvir; mostrou-me a casa, e me referiu quanto no desposório sucedera, coisa tão falada, que por toda a parte se faziam conventículos, em que se não tratava de outra coisa. Disse-me que na noite do casamento de D. Fernando com D. Lucinda, depois de ela ter proferido o sim, lhe tinha dado um rijo desmaio, e que, chegando o marido a desatacar-lhe o peito para lhe dar o ar, lhe achou um papel escrito do próprio punho dela, em que declarava que não podia ser esposa de D. Fernando, porque já o era de Cardénio, que, segundo o homem me disse, era um cavaleiro muito principal da mesma cidade, e que se havia dado o sim a D. Fernando, fora por sujeição a seus pais. Em suma, tais razões disse conterem-se no papel, que bem se entendia que a intenção dela tinha sido de matar-se logo após o acto do desposório, e ali mesmo dava os porquês do seu suicídio. Dizem que a verdade de tudo aquilo se confirmou por lhe terem achado uma adaga oculta no vestido, não sei onde. Presenciado tudo aquilo por D. Fernando, este, por entender que Lucinda o havia burlado e escarnecido, arremeteu a ela ainda desmaiada, e com a mesma adaga que lhe acharam a quis atravessar; e fá-lo-ia, se os pais e mais pessoas presentes o não estorvassem. Mais disseram, que D. Fernando desaparecera logo dali, e que D. Lucinda não tornara em si até ao outro dia, e que então contara a seus pais, que era verdadeira esposa do sobredito Cardénio. Soube, além disto, que

ele, o Cardénio, assistira, segundo se dizia, àquele tremendo desposório, e, vendo-a casada (o que ele nunca imaginara), saiu da cidade desesperado deixando-lhe uma carta em que explicava a Lucinda o agravo que lhe havia feito, e que ele se ia para onde nunca mais alguém o visse. Tudo isto era público e notório. Ninguém falava de outra coisa, e mais vieram a falar ainda, quando se espalhou que Lucinda tinha desaparecido da casa paterna e da povoação, pois em parte nenhuma deram com ela, coisa de que seus pais andavam loucos, sem saberem que fizessem para a recobrarem. Estas novas que recebi afugentaram de todo as minhas esperanças, e tive por melhor o não haver achado a D. Fernando, que se o achasse casado, por me parecer, que assim não era de todo impossível a minha reparação. Chegou-se-me a figurar que talvez o Céu tivesse posto aquele impedimento ao segundo matrimónio, para lhe dar ocasião de conhecer o que ao primeiro devia, e a cair na conta de que era cristão, e que mais devia à sua alma, que aos respeitos humanos. Tudo isto revolvia eu na fantasia, supondo em vão consolar-me com umas esperanças remotas e desmaiadas para alimento da vida que já aborreço. Ora, conservando-me eu ainda na cidade sem saber que fizesse, pois não achava a D. Fernando, chegou aos meus ouvidos um pregão público, prometendo um grande prémio a quem me achasse, dando os sinais da minha idade e do meu trajar; e ouvi que se dizia ter-me tirado de casa de meus pais o moço que me acompanhara, coisa que me feriu no íntimo, por ver quão decaído me andava já o crédito. Não bastava a minha fuga, faltava-me para raptor um homem tão baixo, e tão pouco merecedor das minhas atenções. Logo que tal pregão ouvi, pus-me fora da cidade com o meu servo, que já principiava a dar mostras de titubear na lealdade prometida, e nessa mesma noite entrámos pela espessura deste monte para não sermos achados. Mas bem dizem, que um mal nunca vem só, e que o fim de uma desgraça é princípio de outra maior. Assim me sucedeu a mim, porque o bom do meu criado, homem até então fiel e seguro, assim que me viu naquela solidão, mais incitado da sua velhacaria que da minha formosura, quis aproveitar a oportunidade que ao seu parecer lhe deparavam estes ermos; e, sem resguardo de vergonha, nem temor de Deus, nem respeito à minha pessoa, me requestou. Desenganado com as minhas respostas injuriosas e justas aos seus desavergonhados projectos, deixou-se das rogativas por onde havia começado, e passou a empregar a força. O Céu, porém, que poucas vezes deixa de ajudar o que é justo, olhou por mim, de modo que eu, débil e sem grande trabalho, dei com ele de um precipício abaixo, onde o deixei não sei se morto se vivo; e logo, com mais presteza do que se pudera esperar da minha canseira e de tamanho sobressalto, me entranhei por estes sítios montesinos, sem outro intuito senão homiziar-me às pesquisas de meus pais, e da gente que por ordem sua me andava rastreando. Aqui me embosquei há não sei já quantos meses; achei um maioral, que me levou por seu criado a um lugar no coração destes montes. De pastor lhe tenho servido todo este tempo, procurando sempre os descampados para encobrir estes cabelos que tão inesperadamente agora me revelaram. Nada me valeram porém tantas cautelas; veio meu amo a saber, que eu não era varão, e entrou na mesma danada tentação do servo; e, como nem sempre a fortuna põe a par dos males os remédios, não achei precipício nem barranco onde despenhar e despenar ao amo, como ao outro havia feito, e assim tive por melhor fugir-lhe, e esconder-me de novo entre estas asperezas, que experimentar com ele as minhas forças, desculpas, ou rogativas. Tornei, pois, a embrenhar-me onde sem impedimento pudesse com suspiros e lágrimas suplicar ao Céu se condoesse das minhas desventuras, e me concedesse modo como sair delas, ou deixar a vida entre estas soledades, sem que fique lembrança desta triste, que tão sem culpa sua deu causa a que se fale dela, e a desabonem na terra do seu nascimento e nas alheias.

 

QUE TRATA DO GRACIOSO ARTIFíCIO E ORDEM QUE SE TEVE EM TIRAR O NOSSO NAMORADO CAVALEIRO DA MUITO ÁSPERA PENITêNCIA EM QUE SE HAVIA POSTO

Esta é Senhores, a verdadeira história da minha tragédia. Julgai agora se os suspiros e palavras que ouviste e as minhas lágrimas não eram ainda menos do que deveram. Pesando bem a minha desgraça, reconhecereis que por de mais vos fora o tentar-lhe consolações; é mal já agora sem remédio. O que só vos peço, e com facilidade me podereis fazer, é aconselhardes-me onde poderei passar a vida, antes que de mim dê cabo o temor de ser achada pêlos que me andam procurando. Eu sei, verdade seja, que o muito amor que meus pais me têm me afiançava da sua parte muito bom acolhimento; mas tamanha é a vergonha que de mim se apossa, ao pensar que lhes hei-de aparecer tão diferente do que eles esperavam, que por melhor tenho desterrar-me para sempre da sua vista, que torná-los a ver, lembrando-me que eles ao encarar-me estão sofrendo no interior pensamentos tão alheios da honestidade que de minha parte deviam esperar.

Calou-se aqui, e se lhe cobriu o rosto de uma cor, que bem claramente mostrava o sentimento e quebranto do seu ânimo. Tanta lástima excitou nos ouvintes, como admiração por tão porfiosa desgraça.

O cura quis logo tentar-lhe consolações e conselhos, mas antecipou-se-lhe Cardénio, dizendo:

- Com que Senhora, sois então vós a formosa Doroteia, a filha única do rico Clenardo?

Admirada ficou Doroteia quando ouviu o nome de seu pai, e reparou no somenos que era quem lho proferia (já está sabido o maltrapilho que ele andava) e disse-lhe:

- E vós quem sois, irmão, que assim sabeis o nome de meu pai? Porque eu até agora, se bem me lembro, nunca na minha narrativa o nomeei.

- Sou - respondeu Cardénio - aquele sem-ventura, que, segundo vós Senhora, aí dissestes, Lucinda declarou ser seu esposo; sou o desditado Cardénio, a quem a perfídia do mesmo de quem também sois vítima reduziu a este estado que vedes roto, nu, falto de todo o conforto humano, e, o que é ainda pior, falto de juízo, pois só o tenho quando nalguns breves intervalos o Céu se lembra de mo emprestar. Sou, sou eu, Doroteia, aquele que se achou presente às infâmias de D. Fernando, e se deteve aguardando o sim de Lucinda; sou o que não teve ânimo para esperar o desfecho do desmaio dela, e aguardar o que resultaria do papel que lhe acharam no seio. Faltou-me valor para tanto padecimento junto; fugi da casa descorçoado, deixei a um hospedeiro meu uma carta a Lucinda para lhe ser entregue, e corri para estas soledades determinado em acabar nelas a existência; que desde aquele instante fiquei aborrecendo como inimiga mortal. No aprouve, porém, à sorte livrar-me dela; contentou-se em tirar-me o juízo; foi talvez a sua ideia que eu sobrevivesse para a boa ventura que hoje tive em dar convosco, pois, sendo verdade, como acredito, o que nos haveis contado, ainda não era impossível, que a ambos nós nos reservasse Deus melhor êxito nos nossos desastres, do que nós supomos; porquanto, não podendo Lucinda casar com D. Fernando por ser minha, nem D. Fernando com ela por ser vosso, tendo ela manifestado tão solenemente a verdade, bem podemos esperar, que a Providência nos restitua ainda o que nos pertence por direito incontroverso. Uma vez que temos esta luz no futuro, e esta esperança não remota, nem fundada em quimeras, suplico-vos, Senhora, que mais acertadamente se encaminhem os vossos honrados pensamentos; outro tanto farei eu da minha parte;

sujeito-me a esperar por melhor fortuna. À fé de cavaleiro e cristão, vos juro não vos desamparar enquanto vos não veja em poder de D. Fernando; juro mais que, se com razões o não puder trazer ao conhecimento do que vos deve, usarei então da licença que me dá o ser cavalheiro, e poder com justo motivo desafiá-lo pela sem-razão que vos faz, sem me lembrar então dos meus agravos particulares, cuja vingança deixarei por conta do Céu; na Terra só os vossos me importam.

Com o que a Cardénio ouviu, acabou Doroteia de se maravilhar, e por não atinar em agradecer tamanhos oferecimentos, quis beijar-lhe os pés, no que ele não consentiu.

Respondeu entre ambos o licenciado, e aprovou a boa resolução de Cardénio; sobretudo lhes rogou, aconselhou, e persuadiu que se fossem com ele à sua aldeia, onde se poderiam refazer de todo o necessário, e depois se entenderia no procurar a D. Fernando, ou no levar-se Doroteia a seus pais, ou no que mais conveniente parecesse. Agradeceram-lhe Cardénio e Doroteia, e lhe aceitaram o prometido favor.

O barbeiro, que a tudo tinha estado suspenso e silencioso, fez também a sua boa prática, e se ofereceu, com tão boa vontade como o cura, para tudo em que os pudesse servir. Contou em breves termos a causa que os ali trouxera, e bem assim a estranha loucura de D. Quixote, acrescentando que estavam esperando pelo escudeiro, que tinha ido à sua procura.

Deslizou na memória a Cardénio, como por sonhos, a pendência que entre ele e D. Quixote houvera, e contou-a aos circunstantes; mas o que não atinou a explicar foi o peguilho da desavença.

Nisto ouviram vozes, e conheceram serem de Sancho Pança, o qual, por não ter achado o cura e o barbeiro onde os deixara, vinha dando aqueles apupos de chamamento. Saíram-lhe ao encontro; e, perguntando-lhe por D. Quixote, Sancho lhes disse como o encontrara em fralda de camisa, fraco, amarelo, morto de fome, e suspirando pela sua sra. Dulcineia; e, apesar de ele Sancho ter dito, que lhe mandava ela, que saísse de onde estava, e se fosse a Toboso, onde ela o ficava esperando, a sua resposta fora, que estava firme em não aparecer perante a sua formosura, sem primeiro ter feito façanhas que o tornassem merecedor da sua graça; que, se tal cisma fosse por diante, corria perigo de não chegar a imperador, como estava obrigado, nem sequer a arcebispo, que era o menos que poderia ser; e, portanto, vissem o que se podia fazer para o desencovarem dali.

Respondeu-lhe o licenciado que se não afligisse, que eles, bom ou mau grado, o fariam sair. Contou logo a Cardénio e a Doroteia o que haviam ideado para remédio de D. Quixote, pelo menos para o restituírem a sua casa.

Doroteia acudiu logo, dizendo que ela representaria a donzela necessitada melhor que o barbeiro, até porque tinha ali vestidos para fazer esse papel muito ao natural, e deixassem por sua conta o representar a contento tudo que fosse predso para se levar avante o empenho, pois ela era muito lida em livros de cavalarias, e sabia perfeitamente o falar das donzelas penadas, quando suplicavam dons aos andantes cavaleiros.

- Belo! Nada mais é predso - disse o cura -; é pormos já isso em obra. No há dúvida, tenho por mim a sorte, pois, quando menos o pensávamos, se vos começa a abrir caminho para vosso remédio, meus Senhores, e a nós também para se efectuar o nosso empenho.

Doroteia tirou logo da troixa uma saia inteira de telilha rica, e uma mantilha de outra vistosa fazenda verde; e de um cofrezinho um colar e outras jóias; com o que repentinamente se adornou, por modo que não pareria senão uma grande e opulenta dama. Disse que tudo aquilo tinha ela trazido de sua casa para o que desse e viesse, e que nunca até ali se lhe tinha oferecido necessidade de o empregar.

A todos encantou a sua muita graça, donaire, e gentileza, inteirados unanimemente da falta de gosto de D. Fernando, que tantos primores desprezava; mas quem mais se admirou foi Sancho Pança, por lhe parecer (o que era verdade), que nunca em dias de vida tinha visto perfeição igual, e perguntou ao cura quem vinha a ser aquela tão garbosa senhora, e que andaria ela buscando por aqueles andurriais.

- Esta formosa senhora - respondeu o cura - é, Sancho irmão, sem tirar nem pôr, a herdeira por linha recta de varão do grande reino de Micomicão, a qual vem à procura de vosso amo para lhe pedir um dom, que vem a ser: desfazer-lhe um torto e agravo que um malvado gigante lhe fez; e, em consequênda da fama de bom cavaleiro que vosso amo já ganhou por todo o mundo, veio de Guiné com o empenho de o achar.

- Ditosa busca, e ditoso achado! - exclamou Sancho Pança. - Principalmente se meu amo houver a boa sorte de desfazer esse tal agravo, e endireitar esse torto matando o excomungado gigante que Vossa Mercê diz, que à fé que o há-de matar, se o encontra, salvo se for fantasma, que lá contra fantasmas no tem meu amo poder algum. Mas uma coisa, além de outras, quero eu agora suplicar a Vossa Mercê, Senhor Licenciado; e vem a ser, que empregue quantos meios puder para que a meu amo se não encaixe na cabeça o ser arcebispo, que é de que eu tenho medo, e por isso lhe aconselhe casar-se logo com esta princesa; assim fica impossibilitado de receber ordens arcebispais, e com facilidade chegará a imperador e eu ao cabo do meu empenho. Já tenho meditado isto com a devida atenção, e cá pelas minhas contas não me convém, que meu amo seja arcebispo, porque eu para a igreja não sirvo; sou casado; e andar agora a diligenciar dispensas para poder receber rendas eclesiásticas, tendo, como tenho, mulher e filhos, seria um nunca acabar; e, portanto Senhor, o fino é que meu amo se receba o mais depressa que se possa com esta Senhora, da qual por ora não sei a sua graça, pelo que a não chamo pelo seu nome.

- Chama-se - respondeu o cura - a princesa Micomicadela, porque, chamando-se o seu reino Micomicão, claro está que ela se deve chamar assim.

- Está visto - respondeu Sancho. - De muitos sei eu, que têm tomado o apelido e alcunha do lugar onde nasceram; por exemplo: Pedro de Alcalá, João de Ubeda, e Diogo de Valhadolid; também se deve usar lá em Guiné as rainhas tomarem o nome dos seus reinos.

- Por força - disse o cura - e, em quanto ao casar-se o vosso amo, eu farei tudo que puder.

Do que Sancho ficou tão contente, como o cura pasmado da simpleza dele, e de ver como tinha embutidos nos cascos não menores despautérios que o patrão, pois nenhuma dúvida punha em que viria a ser imperador.

Já Doroteia estava sentada na mula do cura, o barbeiro com a barba de rabo de boi; e disseram a Sancho que os encaminhasse para onde seu amo se achava, recomendando-lhe que não deixasse conhecer a D. Quixote nem o licenciado nem o barbeiro, porque em os não conhecer ele é que estava o busüis de vir o fidalgo a ser imperador.

Nem o cura nem Cardénio quiseram acompanhar o rancho, para que D. Quixote se não recordasse das testilhas que tivera com o desvairado moço; a presença do cura também não era necessária. Deixaram, pois, ir adiante as principais figuras, e os dois foram seguindo a pé e com o seu vagar.

Ao apartarem-se ali, recordando o cura a Doroteia o que havia de fazer, respondeu-lhe ela, que disso perdesse todo o cuidado, que tudo faria, ponto por ponto, como o pediam e pintavam os livros de cavalaria.

Três quartos de légua teriam andado, quando descobriram a D. Quixote entre umas intrincadas penhas, já vestido, mas ainda não armado. Assim que Doroteia o avistou, e soube de Sancho serão próprio, fustigou com o chicote o seu palafrém, seguindo-a o bem barbado barbeiro. Ao chegarem ao pé, atirou-se o improvisado escudeiro abaixo da mula, e foi para tomar nos braços a Doroteia, a qual, apeando-se com grande desembaraço, se foi lançar de joelhos às plantas de D. Quixote. Forcejava ele para erguê-la; ela porém, sem consentir em levantar-se lhe falou desta maneira:

- não me levantarei daqui, ó valoroso cavaleiro, até que a vossa cortesia me não tenha outorgado um dom, que redundará em crédito de vossa pessoa, e em proveito da mais desconsolada donzela que o Sol nunca viu. Se o valor do vosso forte braço se iguala à vossa imortal fama, obrigação vos corre de favorecer à sem-ventura, que de tão longes terras vem, ao cheiro do vosso famoso nome, buscar-vos para reparo das suas desditas.

- Não vos responderei palavra, formosa Senhora - replicou D. Quixote -, nem ouvirei mais nada da vossa pretensão, sem que primeiro vos levanteis.

- Não me levantarei Senhor - respondeu a afligida donzela -, antes que a vossa cortesia me outorgue o favor pedido.

- Eu vo-lo outorgo e concedo - respondeu D. Quixote - contanto que se não haja de cumprir em detrimento e ofensa do meu rei, da minha pátria, e daquela que do meu coração e erdade tem as chaves.

- Não será em prejuízo dos que dizeis, meu bom Senhor - ' replicou a dolorida donzela.

Quando nisto iam, chegou-se Sancho ao ouvido de seu amo, e lhe disse em voz sumida:

- Bem pode Vossa Mercê, Senhor meu, conceder-lhe o favor que ela pede, que é uma coisita de nonada; é só matar a um mandrião de um gigante; e a que lhe pede é a alta princesa Micomicadela, rainha do grande reino Micomicão da Etiópia.

- Seja quem for - respondeu D. Quixote - cumprirei o que sou obrigado, e o que me dita a consciência, segundo o que professado tenho.

E, tornando-se à donzela, continuou:

- Levante-se a vossa grande formosura, que eu já daqui lhe concedo o que lhe aprouver pedir-me.

- O que peço é - disse a donzela - que a vossa magnânima pessoa venha logo comigo onde eu o levar, e me prometa não se intrometer noutra aventura nem requesta alguma antes de me dar vingança de um traidor que, contra todo o direito divino e humano, me tem usurpado o reino que era meu.

- Outorgado - respondeu D. Quixote - e assim podeis, Senhora, perder de hoje para sempre a melancolia que vos fatiga, e fazer que a vossa esmorecida esperança recobre novos brios e força, que, com a ajuda de Deus, e a do meu braço, cedo vos vereis restituída ao vosso reino, e sentada no trono do vosso vasto e antigo estado, apesar e despeito de quantos velhacos , vos pretenderem empecer; e mãos à obra, que bem se diz que no tardar costuma estar o perigo.

A necessitada donzela forcejou quanto pôde por lhe beijar as mãos; mas D. Quixote que em tudo era comedido e cortês cavaleiro, de sorte nenhuma o consentiu, antes a fez levantar, e abraçou com muita cortesia e acatamento, e ordenou a Sancho que aparelhasse Rocinante, e o armasse logo num repente.

Sancho despendurou as armas, que se achavam como trofeu, pendentes de uma árvore, e, encilhando o cavalo, num volver de olhos pôs o amo prestes. Este, vendo-se pronto, disse:

- Vamo-nos daqui em nome de Deus a favorecer esta grande Senhora.

De jelhos estava ainda o barbeiro, tendo grande conta em disfarçar o riso e em que lhe não caísse a barba, que se lhe cai talvez se lhe malograsse tudo; mas, vendo já conseguido e seguro o bom despacho, e a diligência de D. Quixote para o ir pôr em obra, levantou-se, tomou a mão da sua Senhora, e, ajudado do cavaleiro, a subiu para a mula. D. Quixote montou logo no Rocinante, o barbeiro na sua cavalgadura, ficando Sancho a pé, renovando-se-lhe as saudades do seu ruço, pela falta que lhe fazia. Entretanto, levava tudo com gosto, por lhe parecer que o amo estava em caminho, e muito em vésperas de ser imperador, porque já dava por infalível, que breve o veria matrimoniado com aquela princesa, e, pelo menos, rei de Micomicão. O que só lhe pesava era pensar que o reino de Micomicão era em terra de negros, e que os seus vassalos haviam de ser todos pretaria. Para isso imaginou logo um bom remédio, e disse com os seus botões:

- Que se me dá a mim, que os meus vassalos sejam pretos? Não há mais que embarcá-los, trazê-los a Espanha, e vendê-los com paga à vista; com esse dinheiro posso comprar algum título ou algum ofício para passar descansado o resto da vida. A gente não há-de ser tola; e para conveniência própria no pode ser proibido vender trinta ou dez mil vassalos sem mais nem menos e enquanto o diabo esfrega um olho. Voto a Deus, que os hei-de encampar todos à rasa, pequenos e grandes, ou o melhor que eu puder, e, por mais pretos que sejam, os saberei transformar em brancos ou amarelos. Venham eles e verão como os avio.

Com isto andava tão activo e contente, que nem já lhe lembrava, que ia a pé.

Tudo aquilo observavam entre as sombras de umas moitas Cardénio e o cura, e não sabiam que fazer para se agregarem ao rancho. Porém o cura, que as armava no ar, ideou logo expediente. Com uma tesoura, que trazia num estojo, cortou logo as barbas a Cardénio, emprestou-lhe o seu capotinho pardo e um ferragoulo preto, ficando ele em calças e gibão; com o que tão

transfigurado saiu o nosso Cardénio, que nem vendo-se a um espelho se reconheceria.

Concluído este preparo, tendo os outros passado já para diante enquanto eles se disfarçavam, com facilidade saíram primeiro que eles à estrada real, porque o mau piso e as agruras daqueles lugares não deixavam apressar-se tanto os cavaleiros como os peões.

De feito, estes últimos chegaram à planície no sopé da serra, por modo que, ao sair dela D. Quixote e os seus companheiros, o cura se pôs a encarar nele muito atento, dando sinais de que o estava reconhecendo, e, depois de estar assim irresoluto por um bom espaço, correu para ele de braços abertos, dizendo a brados:

- Bem aparecido seja o espelho da cavalaria, o meu bom compatriota D. Quixote de La Mancha, a flor e a nata da gentileza, o amparo e remédio dos necessitados, a quinta-essência dos cavaleiros andantes!

E, dizendo isto, o abraçava pelo joelho esquerdo. D. Quixote, espantado do que via e ouvia àquele homem, encarou nele com atenção, conheceu-o enfim, e ficou a modo maravilhado do encontro, fazendo grande diligência por se apear. Não lho consentiu o cura. D. Quixote teimava, dizendo:

- Deixe-me Vossa Mercê, Senhor Licenciado, que não é justo estar eu a cavalo, e uma tão reverenda pessoa como Vossa Mercê a pé.

- Não consinto de modo algum - disse o cura -; esteja Vossa Grandeza a cavalo, pois a cavalo é que ultima as maiores façanhas e aventuras que nesta idade se têm visto, que a mim, posto que indigno sacerdote, bastar-me-á montar na anca de uma destas mulas destes Senhores, que vêm na companhia de Vossa Mercê, se mo não levam a mal; até farei de conta que vou encavalgando no Pégaso, ou sobre a zebra ou alfana em que montava aquele famoso mouro Musaraque, que ainda até hoje jaz encantado na grande costa Zulema, pouco distante da grande Compluto.

- Lembra bem Senhor Licenciado, e nem tal coisa me ocorria - respondeu D. Quixote -; mas eu sei que a minha Senhora Princesa será servida, por amor de mim mandar ao seu escudeiro que ceda a Vossa Mercê a sela da sua mula; e ele lá se arranjará nas ancas, se ela as dá.

- Dá, dá, penso que sim - disse a princesa - e penso também que não é preciso mandar eu tal ao Senhor meu escudeiro, que ele é tão polido e cortesão, que não há-de consentir que uma pessoa eclesiástica vá a pé podendo ir a cavalo.

- Assim é - respondeu o barbeiro.

E, apeando-se logo, ofereceu ao cura a sela, que ele aceitou sem se fazer muito rogado. O mau foi que, ao subir o barbeiro para as ancas, a mula, que era de alquiler (para encarecer que era má não é preciso mais), alçou um pouco os quartos traseiros, e deu dois couces no ar, que a dá-los no peito do mestre Nicolau, ou na cabeça, ao Diabo dera ele o ter saído de sua casa por via de D. Quixote. Tão forte lhe foi contudo o sobressalto, que se estatelou no chão com tão pouco cuidado nas barbas, que lhe caíram. Vendo-se sem elas, não teve outro remédio senão acudir a tapar o rosto com as mãos ambas, e a vozear, que lhe tinham deitado fora os queixais.

  1. Quixote, reparando naquele molho de barbas sem a respectiva queixada e sem sangue, desquitadas do rosto do dono caído, disse:

- A fé que temos milagre de marca maior! Barbas tiradas como por mão!

O cura, que viu a sua invenção em perigo de ser descoberta, agarrou nas barbas, e as trouxe ao mestre, que estava ainda aos gritos; e, toando-lhe de repente a cabeça, e encostando-a ao peito, lhas repôs, urmurando-lhe em cima umas palavras, que disse serem de virtude para pegar barbas, como se ia ver. Logo que teve a operação finda, apartou-se, deixando o escudeiro tão bem barbado e tão são como dantes; do que D. Quixote sobremaneira se admirou, e pediu ao cura, que, em tendo lugar, lhe ensinasse aquele curativo, porque provavelmente não havia de servir só para pegar barbas. A razão era clara:

de onde as barbas se arrancavam havia de ficar a carne numa lástima, e que, tendo ficado ali tudo são, é porque o remédio sarava tudo.

- E sara - disse o cura - e prometo ensinar-lho na primeira ocasião.

Combinaram em que por então montasse o padre, e que dali até à venda se fossem os três revezando; era caminho de duas léguas.

Postos os três a cavalo, a saber D. Quixote, a princesa e o cura, seguindo os três a pé, Cardénio, o barbeiro, e Sancho Pança, disse D. Quixote para a donzela:

- Vossa Grandeza, Senhora minha, que nos encaminhe por onde mais lhe apetecer.

Adiantou-se com a resposta o licenciado, dizendo:

- Para que reino quer Vossa Senhoria que tomemos? Será para o de Micomicão? É natural, que sim, ou pouco sei de reinos.

Ela, que estava por tudo, respondeu:

- Sim, senhor; para esse reino é que é o meu caminho.

- Portanto - disse o cura - temos de passar por dentro do meu povo, e dali tomará Vossa Mercê a derrota de Cartagena, onde com favor de Deus se poderá embarcar. Se o vento for de feição, o mar sossegado e sem temporais, em pouco menos de nove anos se poderá estar à vista da grande lagoa Meona, digo Meótis, que fica um pouco mais de cem jornadas para cá do reino de Vossa Grandeza.

- Vossa Mercê está enganado Senhor meu - disse ela -, porque não há dois anos que eu de lá parti; e em verdade que nunca tive bom tempo, e contudo isso já cheguei a ver quem tanto desejava, que é o Sr. D. Quixote de La Mancha, cujas novas me encheram os ouvidos logo que pus pés em Espanha; e foram elas as que me decidiram a procurá-lo para me encomendar à sua cortesia, e fiar a minha justiça do valor do seu invencível braço.

- Basta de louvores - disse D. Quixote -; sou inimigo de todo o género de adulações; e ainda que esta agora o não seja, sempre ofendem os meus ouvidos semelhantes práticas. O que eu sei dizer-vos Senhora minha, é que, tenha eu valor ou não, o que tiver, ou não tiver, todo o hei-de empregar em vosso serviço até perder a vida; e assim, deixando isso para seu tempo,

rogo ao Senhor Licenciado me diga: que o obrigou a vir a estas terras, tão só, sem criados, e tanto à ligeira, que me causa admiração?

- Em poucas palavras o satisfarei a Vossa Mercê - respondeu o cura. - Eu e o mestre Nicolau, nosso amigo e nosso barbeiro, íamos a Sevilha, a cobrarmos certo dinheiro remetido por um parente meu, que se passou às índias há já anos (e não tão pouco que não excedesse de mil pesos e tocadinhos, que vale o dobro). Passando ontem por estes lugares, saíram-nos ao encontro quatro salteadores, e nos tiraram até as barbas. Foi tanto, que até o barbeiro não teve remédio senão pôr umas postiças; e até a este mancebo que vem connosco (apontando Cardénio) o puseram como se nunca as tivesse tido. O bonito é que por todos estes contornos é fama pública serem os tais ladrões uns forçados das galés, que, segundo se diz, foram libertados quase neste mesmo sítio por um homem tão valente, que a despeito do comissário e dos guardas os soltou a todos. Não há dúvida, que era doido, ou então tão patife como eles, homem sem alma nem consciência. Pois aquilo no foi soltar o lobo entre as ovelhas? A raposa entre as galinhas? A mosca no mel? Quis defraudar a justiça, ir contra o seu rei e senhor natural, pois foi contra os seus justos preceitos. Quis tirar às galés os pés com que elas andam, pôr em rebuliço a Santa Irmandade, que havia muitos anos estava em descanso; quis, finalmente, consumar um feito, por onde a sua alma se perde, e o corpo se lhe não ganha.

Sancho é que tinha contado ao cura e ao barbeiro a aventura dos galeotes, que o amo levara a cabo com tanta glória; e por isso o cura ao recontá-la lhe carregava tanto a mão, para ver o que faria ou diria D. Quixote, a quem, a cada palavra, se mudavam as cores, sem se atrever a dizer que fora ele próprio o libertador daquela boa gente.

- Ora aqui tem Vossa Mercê quem nos roubou - disse o cura. - Deus por sua misericórdia não tome contas a quem os não deixou levar o devido castigo!

 

QUE TRATA DA discrição DA fORMOSA DOROTEIA, COM OUTRAS COISAS DE MUITO SABOR E PASSATEMPO

Mal tinha acabado o cura, quando Sancho disse:

- Pois afirmo-lhe eu Senhor Licenciado, que o fazedor dessa façanha foi meu amo; e olhe que no foi por lhe eu não dizer a tempo, que reparasse no que fazia, e que era pecado soltá-los, porque todos iam ali por grandíssimos tratantes.

- Ó idiota! - exclamou aqui D. Quixote. - Aos cavaleiros andantes não pertence averiguar se os afligidos, acorrentados, e opressos, que se encontram pelas estradas, vão daquela maneira por suas culpas, ou por serem desgraçados; só lhes toca ajudá-los como necessitados que são, considerando-lhes as penas, e não as tratantadas. Encontro uma enfiada, um rosário de gente mofina; fiz nela o que a minha religião pedia, e saísse o que saísse; e a quem o desaprova (sem faltar ao respeito que devo ao Senhor Licenciado e à sua honrada pessoa) digo que sabe pouco dos contratempos da cavalaria, e que mente como um biltre e malcriado, e eu lho farei conhecer com a minha espada, mais comprida e inteiramente.

Estas palavras já as proferiu firmando-se nos estribos, e ajustando o morrião, porque a bacia de barbeiro, que pelas suas contas era o elmo de Mambrino, levava-a pendurada do arção dianteiro, para a mandar correger do mau tratamento que lhe deram os galeotes.

Doroteia, que era discreta e lépida, sabedora já da aduela de menos de D. Quixote, e de que todos, afora Sancho Pança, judiavam com ele, não quis ficar atrás, e, vendo-o tão enojado, lhe disse:

- Senhor Cavaleiro, recorde-se do que me prometeu; olhe que não pode intrometer-se em aventura nenhuma, por urgente que seja; serene-se, que, se ao Senhor Licenciado soubera, que o libertador dos galeotes fora esse braço invencível, daria três pontos na boca, e até mordera três vezes a língua, antes de ter dito palavra que redundasse em desdoiro de Vossa Mercê.

- Posso-lho jurar - disse o cura - era mais fácil deixar cortar o bigode.

- Já me calo Senhora minha - disse D. Quixote -, e reprimo a justa cólera que me ia abrasando e irei no meu sossego, até ter cumprido o que vos prometi. Agora em paga suplico-vos eu me digais, se vos não dá incómodo, qual é a vossa mágoa, e quantas, quem, e quais são as pessoas de quem vos hei-de dar devida e inteira vingança.

- De muita boa vontade - respondeu Doroteia - se porventura vos não enfada ouvir lamentos e desgraças.

- Não enfada - respondeu D. Quixote -, não enfada Senhora minha.

- Sendo assim - disse Doroteia - estejam Vossas Mercês atentos.

A estas palavras, logo Cardénio e o barbeiro se lhe puseram ao lado, cobiçosos de ver como da sua história se saía a espertíssima donzela; e o mesmo fez Sancho, que não ia ali menos enganado que o amo. E ela, depois de se ter muito bem ajeitado na sela, preparando-se com tossir, e outras semelhantes cerimónias, com muito chiste encetou assim a sua narrativa:

- Primeiramente quero que Vossas Mercês saibam Senhores meus, que a mim me chamam...

Aqui deteve-se um pouco, por se lhe ter varrido o nome que lhe pusera o cura. Este porém lhe acudiu no encalhe, dizendo:

- Não é maravilha Senhora minha, que Vossa Grandeza se perturbe no referir as suas desventuras; é próprio delas o tirarem muitas vezes a memória a quem as padece, a ponto de nem dos seus próprios nomes se lembrarem; é o que neste instante sucedeu a Vossa Grã-Senhoria, pois não lhe lembra, que se chama a Senhora Princesa Micomicadela, herdeira legítima do grande reino Micomicão. Agora que já lhe fica apontado o caminho, pode Vossa Grandeza seguir sem empacho o que lhe aprouver dizer-nos.

- Sim, senhor - disse a donzela -, creio que daqui em diante já não será necessário recordar-me nada; espero chegar a porto de salvamento com a minha verdadeira história. Ora pois:

El-rei, meu pai, que se chamava Tinácrio, o Sábio, foi muito douto nisto que chamam arte mágica, e alcançou pela sua ciência, que minha mãe, que se chamava a rainha Charamela, havia de morrer primeiro que ele, mas que ele também dali a pouco tempo havia de passar desta a melhor vida, ficando eu órfã de pai e mãe. Dizia ele, porém, que menos o consumia isso, do que o atormentava saber por coisa muito certa, que um descomunal gigante, senhor de uma grande ilha, que quase confronta com o nosso reino, chamado Pandafilando da Vista Fusca (porque há toda a certeza de que, apesar de ter os olhos no seu lugar, e direitos, sempre olha de revés como se fora vesgo, o que ele faz por mau, e para meter medo e espanto à gente)... Sim; repito, que meu pai soube, que o tal gigante, logo que lhe constasse a minha orfandade, havia de passar com grande quantia de gente sobre o meu reino, e tirar-mo todo, sem me deixar nem uma aldeia para me eu recolher, porém que todas estas inclemências se poderiam evitar, prontificando-me eu a casar com ele; mas que, segundo ele meu pai entendia, nunca eu estaria por tão desigual casamento. Neste particular foi bem profeta, porque nunca jamais pela ideia me passou casar-me com o tal gigante, nem com outro qualquer, fosse quem fosse. Mais disse meu pai e senhor, que, se depois da sua morte eu visse que Pandafilando começava a entrar pelo meu reino, não perdesse tempo em preparos para me defender, que seria arruinar-me de todo, mas que espontaneamente lhe despejasse a terra, se queria escapar à morte, e à destruição total dos meus bens e fiéis vassalos, porque não havia de ser possível defender-me da endiabrada força do gigante, mas que tomasse logo com alguns dos meus caminhos de Espanha, onde acharia remédio a meus males na pessoa de um cavaleiro andante, cuja fama a esse tempo encheria já todo o reino, e o qual se havia de chamar (se bem me lembra) D. Azote, ou D. Gigote...

- Talvez dissesse D. Quixote - interrompeu Sancho Pança - ou por outro nome, o Cavaleiro da Triste Figura.

- É verdade - disse Doroteia - e ajuntou que esse tal cavaleiro seria alto de corpo, seco de rosto, e que, no lado direito, debaixo do ombro esquerdo, ou por ali perto, havia de ter um sinal pardo com certos cabelos à maneira de sedas de porco.

Ouvindo aquilo, disse D. Quixote ao escudeiro:

- Sancho, fílho, acode cá; ajuda-me a despir, que preciso ver se não sou o cavaleiro que aquele tão sábio monarca deixou profetizado.

- Para que se quer Vossa Mercê despir? - disse Doroteia.

- Para ver se tenho o sinal indicado por vosso pai - respondeu D. Quixote.

- Não é preciso que se dispa - acudiu Sancho -, que eu sei, que Vossa Mercê tem um sinal assim tal qual no meio do espinhaço, prova de ser homem esforçado.

- Então basta isso - disse Doroteia -; com os amigos não se cortam as unhas rentes; que seja no ombro, ou que seja no espinhaço, vem a dar na mesma. O caso é que haja o sinal, esteja onde estiver, pois é tudo a mesma carne. Meu pai acertou em tudo, e eu também acertei em me encomendar ao Sr. D. Quixote, que este é o que meu pai disse. Os sinais do rosto concordam com os da boa fama que este cavaleiro tem, não só em Espanha, mas até em toda a Mancha; tanto assim, que apenas eu desembarquei em Ossuna, logo ouvi contar dele tantas façanhas, que me deu o coração uma pancada de que era o mesmo que eu vinha a buscar.

- Como desembarcou Vossa Mercê em Ossuna, Senhora minha - perguntou D. Quixote -, se não é porto de mar? Apressou-se o cura antes que Doroteia respondesse, e disse:

- Naturalmente quererá dizer a Senhora Princesa, que, depois que desembarcou em Malaga, a primeira parte em que achou novas de Vossa Mercê foi em Ossuna.

- É isso mesmo - disse Doroteia.

- E diz muito bem - acrescentou logo o cura - mas queira Vossa Majestade prosseguir.

- Prosseguir o quê? - replicou ela. - Não há mais nada para diante. Tão boa foi a minha sorte em achar ao Sr. D. Quixote, que já me conto por soberana senhora de todo o meu reino depois que ele, por sua cortesia e magnificência, me prometeu a mercê de vir comigo aonde quer que eu o leve, que não será a outra parte senão a pô-lo diante de Pandafilando da Vista Fusca, para dar cabo dele, e restituir-me o que tão contra-

-razão me tem usurpado. Tudo isto se há-de realizar tal qual que assim o deixou prognosticado Tinácrio, o Sábio, meu bom pai, o qual também deixou dito em letras caldaicas ou gregas (que eu por mim não as sei ler) que se este cavaleiro da profecia, depois de ter degolado o gigante, quisesse casar comigo, eu me entregasse logo sem réplica alguma por sua legítima esposa, e lhe desse no mesmo acto a posse do meu reino e da minha pessoa.

- Que te parece, Sancho amigo? - disse a este ponto D. Quixote. - Não ouves isto? Não to dizia eu? Vê se temos ou não temos já, reino que governar, e rainha com quem casar?

- Isso juro eu - respondeu Sancho -; só algum tolo é que não iria logo cortar o gasganete ao Sr. Pandafilado para casar muito depressa com a Senhora Princesa. Olha que peste! Assim fossem as pulgas da minha cama.

Com estas palavras deu dois pinchos no ar em demonstração de gáudio, passou logo a tomar as rédeas à mula de Doroteia, fazendo-lha parar, lançou-se de joelhos perante ela, suplicando-lhe que lhe desse as mãos para lhas beijar, em sinal de que a recebia por soberana e senhora sua. Quem haveria ali que pudesse ficar sério diante da loucura do amo, e da simpleza do servo?

Deu-lhe com efeito as mãos Doroteia, e lhe prometeu fazê-

-lo grande do seu reino, logo que o Céu lhe fosse tão propício, que lho deixasse recobrar e gozar.

Agradeceu-lhe Sancho tudo aquilo em termos tais, que em todos renovou a gargalhada.

- Aqui está, meus Senhores - prosseguiu Doroteia -, a minha história; só me falta dizer-vos que de toda quanta gente do meu reino trouxe não me ficou vivo senão unicamente este barbadão escudeiro; tudo o mais se afogou num grande temporal que tivemos à vista do porto; ele e eu viemos em duas tábuas a terra como por milagre, que milagre de grande mistério tem sido o decurso de minha vida, como já tereis notado; e se nalgum ponto andei sobeja ou curta de mais na minha narrativa, queixai-vos do que logo ao princípio da minha fala ponderou o Senhor Licenciado: que os trabalhos contínuos e extraordinários desarranjam as ideias a quem os padece.

- Tal me não há-de suceder a mim, alta e valorosa senhora - disse D. Quixote -, por maiores trabalhos que eu passe em vos servir. Confirmo, pois, o que já vos prometi, e juro acompanhar-vos ao cabo do mundo, até me ver com o vosso cruel inimigo, a quem tenciono, com ajuda de Deus e do meu braço, decepar a cabeça soberba com os fios desta... não, quero dizer boa espada, graças a Ginez de Passa-Monte que me levou a minha (isto remordeu-o entre os dentes) - e prosseguiu -: depois de lha ter decepado, e ter-vos sentado a vs na pacífica posse dos vossos estados, ficará a vosso arbítrio fazer da vossa pessoa o que mais vos apeteça, pois, enquanto eu tiver ocupado a memória, cativa a vontade, e perdido o entendimento por aquela... e não digo mais, não é possível que eu nem por pensamentos me arroste com a ideia de matrimoniar-me, nem que fosse com a ave Fénix.

Este encarecimento de não querer casar se destoou tanto a Sancho, como despropósito, que levantou de agastado a voz dizendo:

- Juro e rejuro, por vida minha, que não tem Vossa Mercê Sr. D. Quixote, o juízo inteiro. Pois como é possível pôr Vossa Mercê em dúvida casar-se com tão alta princesa como esta? Pensa que a fortuna lhe há-de oferecer a cada canto uns acertos como este? É porventura mais formosa a minha Sra. Dulcineia? Está na tinta; nem para lá caminha; estou até em dizer que nem chega aos calcanhares da que presente se acha. Assim lá se me vai pêlos ares o meu condado, se Vossa Mercê ateima a esperar hortaliça de sequeiro, ou apojadura de cabra velha. Case, case logo, ou que o leve o Diabo, e aceite esse reino que por si se lhe está metendo nas mãos; e, em sendo rei, faça-me a mim marquês ou adiantado; tudo mais que o leve o Diabo, se quiser.

  1. Quixote, que tais blasfémias ouviu proferir contra a sua sra. Dulcineia, não o pôde levar à paciência; e, levantando a chuça, sem proferir chuz nem luz, nem “guarda de baixo”, apresentou duas bordoadas em Sancho que pregou com ele em terra; e, se não fora o começar Doroteia a gritar que lhe não desse mas, sem dúvida lhe acabaria ali a vida.

- Pensais, vilão ruim - lhe disse passado pouco -, que hei-de estar sempre para vos aturar, e que tudo há-de ser tu a despropositares, e eu a perdoar-te? Pois não o cuides, maroto excomungado, que o és sem dúvida nenhuma, pois te atreveste a pôr língua na sem par Dulcineia. Não sabeis vós, mariola, biltre, que, se não fosse pelo valor que ela infunde no meu braço, eu por mim nem matava uma pulga? Dizei-me, socarrão de língua viperina, quem julgais que foi o conquistador deste reino, e o que decepou a cabeça deste gigante, e vos fe a vs marquês (que tudo sto o dou eu já como feito e processo findo), se não é o valor de Dulcineia, fazendo de meu braço instrumento de suas façanhas? Ela peleja em mim, e vence em mim; eu vivo e respiro nela; nela tenho vida e ser. Filho da mãe, grande velhaco, como sois desagradecido que vos vedes levantado do pó da terra, até senhor de um título, e a tão boa obra correspondeis em dizer mal de quem vo-la fez!

Não estava Sancho tão mortal que não ouvisse o que o amo lhe dizia; levantando-se com certa presteza, foi pôr-se por trás do palafrém de Doroteia, e dali respondeu:

- Diga-me, Senhor; se Vossa Mercê está de pedra e cal em não casar com esta grande princesa, claro está que o reino dela não há-de ser seu; não o sendo, que mercês me pode então fazer? Aqui está de que eu me queixo. Case-se Vossa Mercê aos olhos fechados com esta rainha que para aí nos choveu do Céu, depois, se quiser, pode-se amantilhar com a minha Sra. Dulcineia; reis amancebados não devem ter faltado neste mundo. Lá nisso da formosura não me intrometo, que, a dizer a verdade, ambas me parecem bem, ainda que eu a Sra. Dulcineia nunca a vi.

- Como nunca a viste, traidor blasfemo? - vociferou D. Quixote. - Pois não acabas agora mesmo de me trazer um recado da sua parte?

- O que eu digo é - respondeu Sancho - que a não vi tanto à minha vontade, que pudesse afirmar-me bem na sua formosura, ponto por ponto; mas assim no todo e em bruto, como diz o outro, pareceu-me bem.

- Agora te desculpo; perdoa-me o enfado que te dei, que os primeiros movimentos não estão na mão da gente.

- Bem sei - respondeu Sancho - e em mim a vontade de falar é sempre o primeiro movimento; o que me vem à boca não posso deixar de o dizer, ao menos uma vez.

- Com tudo isso, Sancho - disse D. Quixote -, repara bem como falas, porque tantas vezes vai o cântaro à fonte... e no te digo mais nada.

- Pois bem - respondeu Sancho. - Deus lá está em cima, e vê as coisas; Ele é que sabe quem faz mal, se eu em não falar bem, ou Vossa Mercê em o obrar ao revés.

- Basta já - disse Doroteia -; correi Sancho, e beijai a mão a vosso amo, pedi-lhe perdão, e daqui para diante tende mais tento em vossos louvores e vitupérios e não digais mal dessa sra. Tobosa, a quem eu não conheço senão para a servir, e tende esperança em Deus que não nos há-de faltar um estado em que vivais como um pncipe.

Sancho lá foi cabisbaixo pedir a mão ao amo, que lha deu com serena gravidade, deitando-lhe, aps o beija-mão, a sua bênção. Depois disse-lhe que se desviasse com ele um pouco, porque tinham de tratar coisas de muita importância. Adiantaram-se ambos, e disse o fidalgo:

- Desde que vieste, não tive ainda azo de te perguntar muitas particularidades acerca da embaixada que levaste, e das respostas que trouxeste; agora que a fortuna nos depara folga não me negues o gosto que me podes causar com tão boas novas.

- Pergunte Vossa Mercê o que lhe parecer - respondeu Sancho -; darei a tudo tão boa saída, como foi boa a entrada que tive. O que lhe peço Senhor meu, é que daqui em diante não seja tão vingativo.

- Porque dizes isso, Sancho? - perguntou D. Quixote.

- Digo isto - respondeu ele - porque estas bordoadas agora foram mais pela pendência que entre os dois travou o Diabo na outra noite, do que pelo que eu disse contra a minha sra. Ducineia, a quem venero e amo como se fora relíquia, só em razão de ela ser coisa de Vossa Mercê.

- Não tornes a essas coisas, por vida tua - disse D. Quixote -, qe me afligem; da outra vez perdoei-to, e bem sabes o que se costuma dizer: “pecado novo, penitência nova.”

Nisto iam, quando viram pelo seu caminho vir para eles um homem num jumento; aproximando-se mais, deu-lhes ares de cigano. Porém Sancho Pança que onde quer que via asno se lhe iam atrás dele os olhos e a alma, tanto como avistou o homem, conheceu logo ser Ginez de Passa-Monte; e de ele o ser inferiu logo que a cavalgadura era o seu ruço. Era com efeito o ruço com o Passa-Monte às costas, o qual, para não ser conhecido e vender o asno, vinha entrajado à cigana; o falar a essa moda sabia ele, e muitas outras línguas, tão bem como a sua própria. Mal que Sancho o reconheceu, começou a grandes vozes:

- Ah! ladrão Ginezilho, larga a minha jóia, restitui-me a minha vida, não te deites a perder com o meu alívio, larga o meu burro, larga o meu consolo, põe-te a pé, sevandija, retira-te, ladrão, e deixa o que te não pertence!

Nem tantas palavras e injúrias eram necessárias; logo à primeira saltou Ginez, e, tomando um trote que mais parecia carreira, num momento desapareceu. Saltou Sancho aos abraços ao animal, dizendo:

- Como tens passado, meu bem, menina dos meus olhos, meu ruço, meu companheiro fiel?

Beijava-o e acariciava-o como se fora gente. O asno deixava-

-se beijar e acarinhar, sem responder meia palavra. Aproximaram-se todos, dando ao pobre homem os parabéns de ter achado o seu ruço, especialmente D. Quixote. Este disse-lhe, que nem por isso anulava a ordem dos três burricos, o que Sancho muito agradeceu.

Enquanto os dois iam adiante nestas conversas, disse o cura a Doroteia que tinha andado com grande tino, tanto na invenção do conto, como na brevidade dele, e na semelhança que teve com os dos livros de cavalaria. Ao que ela respondeu, que muitas horas se havia entretido a lê-los; o que não sabia bem era onde ficavam as províncias e portos de mar; por isso tinha dito à toa que havia desembarcado em Ossuna.

- Bem percebi - volveu o cura - e por isso acudi logo a deitar aquele remendo; com o que tudo ficou uma maravilha. Mas não acha extraordinária a facilidade com que este desventurado fidalgo acredita em toda aquela mentirada, só

por se conformar no estilo e jeito com as tolices dos seus alfarrábios?

- É verdade - disse Cardénio - e tão rara, senão única, que eu por mim não sei se, querendo inventá-la, teria talento para tanto.

- Ora coisa tem ele - disse o cura - que não admira menos: para fora das nescidades, que nunca se lhe acabam no tocante à sua mania, se lhe falam noutras matérias discorre perfeitamente, e mostra uma razão clara, que dá gosto. Não lhe falem em cavalarias, que ninguém o terá senão por homem de boa cabeça.

Enquanto iam nestas práticas, continuava também D. Quixote na sua com Sancho, dizendo:

- Palavras e penas, Sancho amigo, o vento as leva. Conta-me agora tu, sem medo a enfadamentos meus nem a rigor algum, onde, como, e quando, achaste Dulcineia, que estava ela fazendo, que lhe disseste, que te respondeu, com que cara leu a minha carta, quem ta copiou, e tudo o mais que vires neste caso ser digno de saber-se, sem acrescentares nem mentires nada para me dares gosto, nem encurtares para comprazer-me.

- Pois, Senhor - respondeu Sancho -, verdade, verdade, a carta ninguém ma copiou, porque eu tal carta não levei.

- E certo - acudiu D. Quixote - porque o livro de lembranças, em que eu a escrevi, cá o achei em meu poder dois dias depois da tua partida, o que me fez grandíssima pena, lembrando-me como não ficarias às aranhas quando te visses sem ela; sempre esperei que tomasses atrás logo que desses pela falta.

- Fazia-o decerto - respondeu Sancho - se não tivesse a carta de memória, de quando Vossa Mercê ma leu; de maneira que a disse a um sacristão, que ma trasladou do entendimento tão pontualmente, que disse que em todos os dias da sua vida (ainda que tinha lido muitas cartas de descomunhão) nunca tinha lido uma lindeza como aquela.

- E ainda a tens de cor, Sancho? - perguntou D. Quixote.

- Não, senhor - respondeu Sancho -, porque, depois que a entreguei, como vi que já não prestava para mais nada, dei em me esquecer dela; e, se alguma coisa ainda me lembra, é só aquele começo da Soterram, digo da Soberana Senhora, e o final:

Vosso até à morte, o Cavaleiro da Triste Figura, e, entre estas duas coisas do princípio e do fim, embuti-lhe mais de trezentas vezes: minha alma, minha vida, e olhos meus.

 

DAS SABOROSAS CONVERSAÇÕES QUE HOUVE ENTRE D. QUIXOTE E O SEU ESCUDEIRO COM OUTROS SUCESSOS

- Nada disso me descontenta; podes continuar - disse D. Quixote. - Chegaste, e que estava fazendo aquela rainha da formosura? Aposto que a achaste a enfiar pérolas, ou bordando alguma empresa com canotilho de ouro, para este seu cativo cavaleiro.

- Qual! - respondeu Sancho. - Achei-a a joeirar duas fangas de trigo num pátio da casa.

- Pois faz de conta - disse D. Quixote - que os gros desse trigo eram aljôfares logo que ela lhes tocava. Reparaste, amigo, se o trigo era candial ou tremês?

- Nada; era de umas alimpas - respondeu Sancho.

- Pois assevero-te - disse D. Quixote - que depois de joeirado por ela havia de deitar farinha candial infalivelmente. Mas passa adiante. Quando lhe deste a minha carta beijou-a? Pô-la sobre a cabeça? Fez alguma cerimónia digna de tal carta? Ou que fez?

- Quando eu lha ia entregar - respondeu Sancho - estava ela na azáfama de aviar uma joeirada quase cheia; por isso, disse-me: “Ponde meu amigo, a carta para riba daquele saco, que não a posso ler enquanto não acabar de joeirar tudo o que para aí está.”

- Que discreta senhora! - disse D. Quixote. - Havia de ser para a ler com mais sossego e regalar-se. Adiante, Sancho. E, enquanto estava nesse serviço, quais foram os seus colóquios contigo? Que te perguntou de mim? E tu que lhe respondeste?

Acaba, conta-me tudo, não te fique no tinteiro nem um pontinho.

- Não me perguntou nada - disse Sancho -, eu é que lhe disse como Vossa Mercê ficava para a servir, fazendo penitência, e nu da cinta para cima, metido entre estas serras como um selvagem, dormindo no chão, sem comer pão em toalhas, sem pentear as barbas, chorando e maldizendo a sua fortuna.

- Lá nisso de eu maldizer a minha fortuna, enganaste-te - disse D. Quixote -; antes a bendigo, e bendirei todos os dias da minha vida, por me ter feito digno de merecer amar tão alta senhora como é Dulcineia del Toboso.

- Tão alta é - respondeu Sancho - que é verdade que tem de altura um punho mais do que eu.

- Como é isso, Sancho? - disse D. Quixote. - Pois tu mediste-te com ela?

- Medi, sim, senhor - respondeu Sancho -, quer saber como? Acheguei-me para ajudá-la a pôr um saco de trigo sobre um jumento; estávamos tão juntos, que reparei que me levava um bom palmo.

- É bem verdade - replicou D. Quixote - e toda essa grandeza é acompanhada com mil milhões de graças da alma. Uma coisa me não podes tu negar, Sancho: quando chegaste ao pé dela, não sentiste um cheiro sabeu, uma fragrância aromática, e um não sei quê de bom, que não acerto em lhe dar nome, digo uma baforada como se entraras na loja de um luveiro dos mais esmerados?

- O que sei dizer - respondeu Sancho - é que senti um cheirito assim... tirante a homem, provavelmente por estar suando e esquentada da lida.

- Não havia de ser isso - respondeu D. Quixote -, é que estarias endefluxado, ou então tomaste por cheiro dela o teu próprio, que o cheiro que tem aquela rosa entre espinhos sei-o eu muito bem, aquele lírio do campo, aquele âmbar derretido.

- Pode muito bem ser - respondeu Sancho -, que muitas vezes sai de mim aquele mesmo cheiro, que então me pareceu que saía de Sua Mercê a Sra. Dulcineia. Não admira, que um diabo se pareça com outro.

- Bem está - prosseguiu D. Quixote. - E, depois de joeirado todo o trigo, e mandado para o moinho, que fez quando leu a carta?

- A carta não a leu - respondeu Sancho - porque disse que não sabia ler nem escrever; rasgou-a em migalhinhas, dizendo que não a queria dar a ler a ninguém, para não se saberem no lugar os seus segredos, e que bastava o que eu lhe tinha dito de palavra acerca do amor que Vossa Mercê lhe tinha, e da penitência extraordinária que ficava fazendo por seu respeito;

finalmente, disse-me que lhe dissesse eu a Vossa Mercê que ela lhe beijava as mãos, e que lá ficava com mais desejos de vê-lo, que de escrever-lhe; e que assim lhe suplicava, e mandava que, vista a presente, saísse daqueles matagais, e se deixasse de fazer descocos e se pusesse logo logo a caminho para Toboso, se não tivesse outra coisa de mais importância que fazer, porque tinha grande desejo de o ver a Vossa Mercê. Riu como uma perdida quando eu lhe disse o nome que Vossa Mercê tinha de Cavaleiro da Triste igura. Perguntei-lhe se tinha lá ido o biscainho do outro dia; disse-me que sim, e que era um homem muito de bem. Também lhe perguntei pêlos forçados, mas desses respondeu-me que ainda não tinha visto nenhum.

- Tudo vai muito bem até agora - disse D. Quixote - mas diz-me cá: à despedida que prenda te deu pelas novas que de mim lhe levaste, pois é costume velho entre cavaleiros e damas andantes darem aos escudeiros, donzelas ou anões, que lhes levam recados de suas damas a eles, e a elas dos seus cavaleiros, alguma rica jóia de alvíssaras em agradecimento da mensagem?

- Assim seria - respondeu Sancho - bem bom costume que ele me parece, mas isso havia de ser lá nos tempos passados; hoje naturalmente não se costuma dar senão um pedaço de pão e queijo; foi o que me deu a minha Sra. Dulcineia por cima do espigão do muro do pátio, quando me despedi dela; e para mais sinal, o queijo era de ovelha.

- É liberal em extremo - disse D. Quixote - e se te não deu jóia de ouro, havia de ser sem dúvida pela não ter ali à mão; mas o que se não faz em dia de Santa Maria far-se-á noutro dia; quando eu a vir, se arranjarão as contas. Sabes tu de que eu estou maravilhado, Sancho? É de me parecer que foste e vieste pêlos ares, porque pouco mais de três dias gastaste em ir a Toboso e voltar, havendo de permeio o melhor de trinta léguas; pelo que entendo que o sábio nigromante que tem conta nas minhas coisas e é meu amigo (porque por força o há, e deve haver, sob pena de não ser eu bom cavaleiro andante), deve ter-te ajudado a caminhar sem tu o saberes, pois há sábios destes que tomam a um cavaleiro andante na sua cama, e, sem se saber como, o amanhecem ao outro dia a mais de mil léguas de onde anoiteceu. Se assim não fosse, não poderiam os cavaleiros andantes nos seus perigos acudir uns pêlos outros, como a cada passo acodem. Sucede, por exemplo, estar um pelejando nas serras de Arménia com algum gigante anguípede, ou com outro cavaleiro; leva o pior da batalha, e está já para morrer; e, quando mal se precata, assoma-lhe de além, sobre uma nuvem ou um carro de fogo, outro cavaleiro amigo seu, que pouco antes se achava em Inglaterra, que o ajuda e o livra da morte, e à noite se acha em sua casa ceando muito regaladamente, em haver entre aquelas partes duas ou três mil léguas; e tudo isto se faz por indústria e sabedoria destes sábios encantadores, que protegem estes valorosos cavaleiros. Portanto, amigo Sancho, não me custa a crer que em tão breve tempo fosses daqui a Toboso, e de Toboso tornasses cá: algum sábio amigo te levou em bolandas sem tu o sentires.

- Assim havia de ser - disse Sancho - porque à fé de quem sou que andava Rocinante como se fora asno de cigano com azougue nos ouvidos.

- Azougue, e uma legião de demónios, que isso é gente que para andar e fazer andar quanto lhes parece não admite companhia. Mas, deixando isto, que te parece a ti que eu devo fazer agora, determinando-me a minha senhora que a vá ver? Bem vejo que estou obrigado a cumprir o seu preceito; mas não menos me corre obrigação de satisfazer ao que prometi à princesa que aí vem connosco. A lei da cavalaria me obriga a satisfazer à minha palavra, antes que ao meu gosto. Por uma parte, estou morrendo por ver a minha senhora; pela outra, está por

mim bradando a glória que hei-de alcançar nesta nova empresa e a solene promessa que já fiz. O que tenciono fazer é caminhar depressa, e chegar cedo onde está este gigante, usurpador do reino de Micomicão, cortar-lhe logo a cabeça, e pôr a princesa pacificamente no seu trono; e sem perda de tempo eu retrocederei para ir ver a luz que os meus sentidos alumia. Tais desculpas lhe darei, que me há-de aprovar a tardança, pois verá que tudo redunda em aumento da sua fama, porque toda a que eu tenho alcançado, alcanço, e alcançarei pelas armas em toda a vida, só me provém do favor que ela me dá, e de eu lhe pertencer.

- Valha-me Deus! - disse Sancho. - Como Vossa Mercê está aleijado desses cascos! Pois diga-me Senhor: pensa realmente em fazer este caminho escusado, e deixar-se de aproveitar um tão rico e esclarecido casamento como este, que lhe traz por dote um reino, que em minha boa verdade já ouvi dizer que tem mais de vinte mil léguas em redondo, que é abundantíssimo de todas as coisas que são necessárias para a vida humana, e que é maior que Portugal e Castela juntos? Cale-se, pelo amor de Deus, e tenha vergonha do que aí disse; tome o meu conselho, e perdoe-me, e case-se logo no primeiro lugar onde houver pároco; e, quando não, aí está o nosso licenciado, que o fará como umas pratas. Repare Sua Mercê que eu já tenho idade para dar conselhos, e que este que lhe estou dando lhe vem ao pintar, e ao pedir por boca: mais vale um pássaro na mão, que dois a voar; quem bem está e mal escolhe, por mal que lhe venha não se anoje.

- Sancho, o conselho que me dás - respondeu D. Quixote

de que me case, bem percebo por que é: é para que eu seja rei apenas matar o gigante, e possa fazer-te mercês, e dar-te o prometido. Pois saberás que sem casar poderei cumprir-te os desejos sem nenhuma dificuldade; antes de entrar à batalha, hei-

-de pôr por cláusula que, saindo dela vencedor, ainda que me eu não case, me hão-de dar uma parte do reino, podendo eu cedê-la a quem muito bem quiser. Ora a quem queres tu que eu a ceda, senão a ti?

- Isso está claro - respondeu Sancho -, mas olhe Vossa Mercê se ma escolhe virada para o mar, porque assim... (suponhamos que a vivenda me não agrada) posso embarcar os meus vassalos negros, para fazer deles o que já disse; e Vossa Mercê não se lembre por agora de ir ver a minha Sra. Dulcineia; vá primeiro matar o gigante, e tiremos daí o sentido; este é que é negócio de muita honra, e proveito que farte, segundo me bacoreja cá por dentro.

- Dizes muito bem, Sancho - obtemperou D. Quixote -, e sigo o teu parecer: ir-me-ei com a princesa, primeiro que me veja com Dulcineia. Cautela de não dizeres nada a ninguém, nem às pessoas que vêm connosco; isto fica entre nós; Dulcineia é tão recatada, que nem quer que lhe adivinhem os pensamentos. Deus me livre de lhos eu descobrir, por mim ou por outrem.

- Se isso é verdade - retorquiu Sancho -, para que determinou Vossa Mercê a todos os seus vencidos, que se vão apre sentar a ela? Tanto vale isso como assinar o seu nome com a declaração de lhe querer bem, e de ser seu namorado; e, sendo eles obrigados a fincar-se de joelhos na sua presença, e dizer-

-lhe que vão da parte de Vossa Mercê a render-lhe obediência, como se podem então encobrir os pensamentos de ambos?

- Que néscio e que simplório que és! - disse D. Quixote.

- Pois tu não vês que tudo isso redunda em sua maior exaltação? Porque deves saber que, nestas nossas usanças de cavalaria, é honra grande ter uma dama bastantes cavaleiros andantes que a sirvam, sem que os pensamentos deles se abalancem a mais do que unicamente servi-la só por ser ela quem é, sem aguardarem outro prémo de seus muitos e bons desejos senão o ela contentar-se de os aceitar por cavaleiros seus.

- Essa coisa - disse Sancho - já eu ouvi em sermões: que se há-de amar a Deus por si só, sem que nos mova a isso esperança de glória, nem medo de castigo (ainda que eu O quereria amar e servir por algum interesse, podendo ser).

- Valha-te o Diabo, meu rústico! - disse D. Quixote. - Fortes discrições dizes tu às vezes! Pareces homem de estudos.

- Pois posso-lhe jurar que nem ler sei - respondeu Sancho. Nisto, ouviram apupos de mestre Nicolau que os esperassem porque desejavam deter-se um pouco a beber numa

fontainha que ali estava. Deteve-se D. Quixote com grande satisfação de Sancho, que já estava cansado de enfiar mentiras, e tinha medo de que o amo o apanhasse em algum lapso, porque tudo o que ele sabia de Dulcineia era ser ela uma lavradora de Toboso, mas nunca em dias de vida lhe pusera os olhos.

Já então Cardénio tinha envergado o fato com que Doroteia estava quando a princípio a encontraram; não era do melhor, mas sempre era preferível aos andrajos. Apearam-se ao pé da fonte, e, com o que o padre-cura trouxera da venda por cautela, satisfizeram, ainda que não em cheio, a gana que todos traziam. Enquanto manducavam acertou de passar por ali um rapaz que ia de caminho, o qual, pondo-se a olhar com muita atenção para todos os que estavam à beira da fonte, assim como reconheceu D. Quixote, foi para ele, e, abraçando-o pelas pernas, começou a fingir que chorava, dizendo:

- Ah, meu Senhor! Já Vossa Mercê me não conhece? Repare bem: sou aquele rapaz André, que Vossa Mercê soltou da azinheira a que estava preso.

Reconheceu-o D. Quixote, e, tomando-o pela mão, disse para quantos ali eram:

- Para que Vossas Mercês vejam que importante coisa é haver cavaleiros andantes no mundo, que desfaçam as injustiças e agravos que nele fazem os insolentes e maus homens que por ele se encontram, saibam que uns dias atrás, passando eu por um bosque, ouvi uns gritos sentidíssimos, como de pessoa afligida e necessitada. Acudi logo, levado da minha obrigação, para a parte de onde se me figurou que vinham os lamentos, e achei atado a uma azinheira este muchacho que aí está; com o que muito folgo, pois me não deixará mentir. Repito que estava atado ao tronco despido da cinta para cima, e um vilão (que depois soube ser seu amo) a escalá-lo de açoites com as rédeas de uma égua. Mal que o vi, perguntei-lhe a causa de tão cruel suplício. Respondeu-me o palerma que o açoitava porque era seu criado, e que certos prejuízos que lhe ocasionava mais provinham de ser rapinante do que tolo; ao que este mesmo acudiu: “Não é verdade, açoita-me só por lhe eu pedir a minha soldada.” O amo refilou não sei que arengas e desculpas, que

eu bem ouvi, mas que não admiti. Em suma: fiz que o soltasse, e tomei juramento ao campónio de que o levaria consigo, e lhe pagaria muito bem contado e recontado. Não é verdade tudo isto, pequenito? Não notaste a autoridade com que lhe falei, e com quanta humildade ele prometeu cumprir todas as minhas ordens? Responde; não te atrapalhes nem tenhas medo; conta a estes senhores tudo como foi para que se reconheça ser como digo, proveitoso andarem pêlos caminhos cavaleiros andantes.

- Tudo que Vossa Mercê aí disse é muita verdade - respondeu o muchacho -, mas o fim do negócio é que saiu às avessas do que Vossa Mercê cuida.

- Como às avessas? - exclamou D. Quixote. - Então o vilanaz não te pagou?

- No só me não pagou - respondeu o coitado - mas assim que Vossa Mercê saiu do bosque e ficámos sós tornou a amarrar-me na azinheira, e surrou-me outra vez com tantas correadas, que fiquei um S. Bartolomeu esfolado, e a cada açoite que me dava me dizia uma chufa para Vossa Mercê, com tanta graça, que, se não fossem as dores, até eu me rira de o ouvir. A verdade é que me pôs de modo que até agora tenho estado no hospital curando-me do que então me fez o excomungado vilão. Toda a culpa foi de Vossa Mercê, porque, se fosse seguindo o seu caminho, e não se metesse onde não era chamado, e não se importasse com coisas alheias, meu amo contentava-se com uma ou duas dúzias de açoites, soltava-me logo, e pagava-me o que me devia; mas, como Vossa Mercê o descompôs tão desencabrestadamente, e lhe disse tantas brutalidades, ferveu-lhe o sangue, e, como não pôde vingar-se em Vossa Mercê, logo que nos viu sós descarregou em mim a trovoada de modo que desconfio que já não tomo a ser gente em dias de vida.

- O mau foi - disse D. Quixote - o cair eu em me ausentar dali. Não me devia ir, enquanto te não visse pago; bem devia eu saber, por longa experiência, que não há vilão que desempenhe a palavra dada em não lhe fazendo conta. Mas não te lembras, André, que eu lhe jurei (se te não pagasse) tornar lá, e dar com ele, ainda que se escondesse na barriga da baleia?

- É verdade - disse André -, mas não serviu de nada.

- Se não serviu, servirá! - disse D. Quixote. - E eu to vou mostrar.

Levantou-se à pressa, e mandou a Sancho que enfreasse o Rocinante, que estava pastando enquanto eles comiam. Perguntou-lhe Doroteia que ia fazer. Respondeu ele que ir buscar o vilão, castigá-lo, e fazê-lo pagar a André até ao último maravedi, pesasse o que pesasse a quantos campnios houvesse no universo. Ao que ela respondeu que tal não podia fazer, conforme para com ela se obrigara; só depois de acabada a sua empresa é que recobraria liberdade para qualquer outra; que bem o sabia ele melhor que ninguém; que, portanto, acalmasse o ímpeto até voltar do seu reino.

- Tem razão - respondeu D. Quixote. - André que tenha paciência, e espere pela minha tornada, como vós Senhora, dizeis, que outra vez lhe prometo e juro não descansar enquanto o não vir vingado e pago.

- Bem caso faço eu dessas juras - disse André -; mais quisera eu ter agora com que chegar a Sevilha, que todas as vinganças do mundo. Dê-me, se aí tem, alguma coisita para comer e levar, e fique-se com Deus Sua Mercê, e todos os cavaleiros andantes; tão boas andanças tenham eles para si como a mim mas deram.

Tirou Sancho de seu fardel um toco de pão e um pedaço de queijo, e, dando-o ao rapaz, lhe disse:

- Toma, irmão André, a tua desgraça toca-nos a todos.

- A vós outros, como? - perguntou André.

- Este pão e queijo que vos dou Deus sabe se nos não há-de fazer falta - respondeu Sancho. - Sabereis, amigo, que nós outros, os escudeiros dos cavaleiros andantes, andamos expostos a muitas omes, além de outras desgraças e coisas que melhor se sentem do que se explicam.

O André agarrou no seu pão e queijo e, vendo que ninguém lhe dava mais nada, abaixou a cabeça, e meteu pernas ao potro, como se costuma dizer. Verdade é que ao partir sempre disse a D. Quixote:

- Se me tornar a encontrar Senhor Cavaleiro Andante, ainda que veja que me estão fazendo pedaços, por amor de Deus

não me acuda, deixe-me com a minha desgraça, que nunca ela será tanta, como a que poderia acarretar o socorro de Vossa Mercê, a quem Nosso Senhor maldiga e a todos quantos cavaleiros andantes tiverem nascido neste mundo.

Ia-se levantar D. Quixote para lhe dar ensino; mas ele desatou a correr, de modo que ninguém se animou a segui-lo. Com os ditos de André ficou D. Quixote corridíssimo; e, para o não ficar de todo, necessário foi que os mais tivessem sumo tento em se não rir.

 

QUE TRATA DO QUE NA VENDA SUCEDEU A TODO O RANCHO DE D. QUIXOTE

Concluída a bela refeição, encilharam logo, e, no dia seguinte, sem lhes ter pelo caminho sucedido coisa digna de contar-

-se, chegaram à venda, espanto e enguiço de Sancho Pança. Este não queria nem à mão de Deus Padre pôr lá os pés, mas não teve outro remédio.

A vendeira, o vendeiro, a filha, e Maritornes, que viram chegar D. Quixote e Sancho, saíram a recebê-los com mostras de muita alegria, mostras essas que o fidalgo recebeu com o seu ar grave e majestoso, recomendando-lhes logo que lhe arranjassem melhor cama que da vez passada; ao que a hospedeira respondeu que, se lhe pagasse melhor que da outra vez, ela lhe daria uma jazida, que nem de pncipe.

  1. Quixote disse que assim o faria; pelo que lhe armaram um sofrível leito no mesmo quarto que já conhecemos. Deitou-

-se logo o fidalgo, porque vinha muito moído, e morto de sono. Mal se tinha encerrado, quando a vendeira arremeteu ao barbeiro, e, agarrando-o pela barba, disse:

- Juro-lhe pela minha cruz benta que nunca mais se há-de servir do meu rabo para lhe fazer de barba. Ponha-me para aí já a rabada, que anda aí pelo chão o pente do meu homem, que é uma vergonha, sem eu ter onde o costumava espetar.

Não lha queria dar o barbeiro, por mais que ela lha puxasse, mas pôs termo à porfia o licenciado, dizendo ao mestre que entregasse a cauda, que já não era precisa, e se mostrasse no seu verdadeiro ser; que dissesse a D. Quixote, que, quando os ladrões das galés o tinham despojado, viera ele fugido para aquela venda; e se ele perguntasse pelo escudeiro da princesa, lhe responderiam tê-lo ela enviado adiante a dar aviso à gente do seu reino, de que ela ia já a caminho, levando consigo quem a todos os libertava.

Com estas explicações entregou o barbeiro de boa vontade à vendeira o rabo de boi, e ao mesmo tempo lhe foram também restituídos todos os mais adminículos que ela lhe havia emprestado para o auto da libertação de D. Quixote. Todos os da venda se maravilharam da formosura de Dona Doroteia, e não menos da boa presença do pastor Cardénio. Mandou o cura que lhes arranjassem para comer o que na venda houvesse; o vendeiro, com a esperança de melhor paga, lhes aparelhou aguçoso um repasto não de todo displicente. D. Quixote continuava ainda a ressonar; entendeu-se geralmente que era melhor não o acordarem, por lhe ser de mais proveito por então descanso que alimento.

Levantada a mesa, falou-se entre o vendeiro, a vendeira, a filha, Maritornes, e todos os caminheiros, da esquisita loucura de D. Quixote, e de como da outra vez lhe tinha ali aparecido. Referiu a hospedeira o que passara com ele e com o arrieiro, reparando se não andaria por ali perto Sancho; não o vendo, contou por miúdo o caso do manteamento, o que para todos foi sobremesa do maior apetite; e dizendo o cura que os livros de cavalaria é que haviam transtornado o juízo a D. Quixote, respondeu o vendeiro:

- Não sei como tal pudesse acontecer; em verdade que, segundo eu entendo, leitura melhor não a pode haver no mundo. Para aí tenho eu dois ou três livros desses com outros papéis, que me têm regalado a vida; não só a mim como a outros muitos. Quando é pelas aceifas, recolhem-se aqui nas sestas muitos segadores, e sempre entre eles há algum que saiba ler; agarra-se num destes livros, pomo-nos à roda dele

mais de trinta, e ouvimo-lo com tamanho gosto, que é como lançarmos um milheiro de cãs fora. De mim ao menos sei eu dizer que, em ouvindo contar aqueles furibundos e tremendos golpes, descarregados pêlos cavaleiros, dão-me zinas de fazer como eles. Não queria senão estar a ouvir aquilo a fio noites e dias.

- Tal qual como eu - disse a vendeira -, porque são os únicos bocadinhos bons que tenho nesta casa os em que estás a ouvir ler estas coisas: ficas tão embasbacado, que nem de ralhar te lembras.

- É a pura verdade - acudiu Maritornes -; assim Deus me ajude, como eu gosto também de ouvir aquelas coisas; são muito lindas, e mais quando contam que esta a outra senhora à sombra de umas laranjeiras abraçada com o seu cavaleiro, e uma velha a guardá-los, morta de inveja e toda sobressaltada; digo que tudo aquilo para mim são favos de mel.

- E a vós que vos parece Senhora Donzela? - disse o cura dirigindo-se à filha dos vendeiros.

- Não sei, meu senhor - respondeu ela-; eu também escuto com atenção, e ainda que realmente não entendo bem, gosto de ouvir, não os golpes com que meu pai se regala, mas aquelas lamentações que fazem os cavaleiros quando estão apartados de suas damas. A mim chegam-me às vezes a fazer chorar de pena delas.

- Aposto que, se elas chorassem por vós Senhora Donzela - disse Doroteia -, estimaríeis bem remediá-las.

- O que faria não sei - respondeu a moça -; o que sei é que tão cruéis são algumas daquelas senhoras, que os seus cavaleiros lhes chamam tigres, leões, e outras mil imundícies. Valha-me Deus! Não sei que gente é aquela to desalmada e falta de consciência, que, por não atenderem a um homem honrado, o deixam morrer ou dar em doido; não sei para que são tantos melindres; se o fazem por honradas, casem-se com eles, que eles não desejam outra coisa.

- Cala a boca, menina - disse a vendeira -; quem te ouvir, há-de-lhe parecer que sabes muito dessas coisas; a donzelas não fica bem serem tão sabidas e falarem assim.

- Como este senhor me perguntou - respondeu ela -, não pude deixar de lhe dizer o que entendia.

- Bem está - disse o cura -; agora Senhor Dono da Casa, trazei-me esses livros que os desejo ver.

- Prontíssimo - respondeu ele.

E, entrando no seu quarto tirou dele uma bolsinha velha fechada com uma cadeiazita; e, abrindo-a, sacou três livros grandes, e uns papéis de muito boa letra de mão. O primeiro livro que abriu viu que era D. Girongílio de Trácia; o outro Felix Marte de Hircânia, e o outro a História do Grão-Capitão Gonçalo Fernandes de Crdva, com a Vida de Diogo Garcia de Paredes.

Apenas o cura leu os dois primeiros títulos, olhou para o barbeiro, e disse:

- Fazem-nos agora aqui falta a ama e a sobrinha do meu amigo.

- Não fazem - respondeu o barbeiro -; cá estou eu para os levar ao pátio ou à chaminé que está bem acesa.

- Então Vossa Mercê quer-me queimar os meus livros? - disse o vendeiro.

- Só estes dois - disse o cura -, o de D. Girongílio, e o de Felix Marte.

- Ora essa! - disse o vendeiro. - Pois os meus livros são hereges, ou fleumáticos para os querer queimar?

- Cismáticos, meu amigo, é que vós quereis dizer - disse o barbeiro - e não fleumáticos.

- É verdade - replicou o vendeiro -; mas, se quer queimar algum, seja esse do Grão-Capitão, e desse Diogo Garcia;

antes eu deixara arder um filho meu, que nenhum desses outros.

- Irmão - disse o cura -, estes dois livros são mentirosos, e estão cheios de disparates e delírios; agora este do Grão-Capitão é história verdadeira, e contém os feitos de Gonçalo Fernandes de Córdova, o qual, por suas muitas e grandes façanhas, mereceu ser chamado de todo o mundo o Grão-Capitão, renome famoso que só ele mereceu; e este Diogo Garcia de Paredes foi um principal cavaleiro natural da cidade de Truxilo, na Extremadura, valentíssimo soldado, e de tantas forças naturais, que detinha só com um dedo uma roda de moinho, no meio da sua fúria; e, posto com um montante na entrada de uma ponte, impediu a passagem a todo um exército inumerável, e fez outras coisas tais, que, se, assim como ele as conta de si mesmo com a modéstia de cavaleiro e cronista próprio, as escrevera outro, livre e desapaixonado, poriam no escuro as dos Heitores, Aquiles e Roldões.

- Meu pai que vos responda - replicou o vendeiro - que grandes espantos esses de deter uma roda de moinho! Havia Vossa Mercê de ler o que eu li de Felix Marte de Hircânia, que (de uma vez só) partiu a cinco gigantes pela cintura, como se foram bonecos de favas como os fradinhos das crianças, e outra vez arremeteu com um grandíssimo e poderosíssimo exército, rechaçando diante de si mais de um milhão e seiscentos mil soldados, todos armados desde os pés até à cabeça, e os desbaratou a todos como se foram manadas de ovelhas. E que me dizem do bom de D. Girongflio de Trácia, que foi to valente e animoso como se pode ver do livro, onde se conta que, navegando por um rio, lhe saiu do meio da água uma serpente de fogo? E ele, tanto como a viu, se arrojou sobre ela, e se lhe encavalgou nas escamas do lombo, e lhe apertou com ambas as mãos a garganta tão rijamente que, vendo a serpe que a ia afogando, não teve outro remédio senão deixar-se ir para o fundo do rio, levando consigo ao cavaleiro, que nunca a soltou; e, quando chegaram lá abaixo, se achou ele nuns palácios e jardins tão lindos, que era maravilha; e logo a serpe se transformou num ancião, que lhe disse tantíssimas coisas, que mais não podiam ser. Não tem que teimar Senhor, que, se tal ouvisse, endoidecia de gosto. Duas figas para o Grão-Capitão, e para esse Diogo Garcia, com que nos veio.

Ouvindo isto Doroteia, disse em voz baixa para Cardénio:

- Pouco falta ao nosso hospedeiro para fazer a segunda parte de D. Quixote.

- Também acho - respondeu Cardénio - porque, segundo mostra, o homem tem por certo que tudo o que estes livros contam sucedeu sem tirar nem pôr como lá se escreve, e nem todos os frades descalços o convenceriam do contrário.

- Olhai, irmão caríssimo - tornou a dizer o cura -, que nunca houve no mundo Felix Marte de Hircânia, nem D. Girongílio de Trácia, nem outros que tais, de que rezam os livros de cavalarias. Toda essa coisa são invenções e brincos de engenhos ociosos, que os compuseram com o intuito, que vós mesmos já dissestes, de matar tempo, pouco mais ou menos, como fazem os vossos ceifeiros quando os ouvem ler, porque realmente vos juro que nunca tais cavaleiros houve no mundo, nem jamais nele se viram tais proezas e disparates.

- A outro cão com esse osso - respondeu o vendeiro -, como se eu não soubera quantos fazem cinco, e onde me aperta o sapato! Não cuide Vossa Mercê que me dá papinha a mim, porque lhe juro que não estou tão em branco de miolos como isso. Tem graça querer Vossa Mercê dar-me a entender que tudo que dizem estes bons livros são disparates e mentiras, sendo impressos com as licenças dos Senhores do Conselho Real; como se eles fossem pessoas que deixassem imprimir tanta patranhada junta, e tantas batalhas e encantamentos, que fazem perder o juízo à gente.

- Já vos tenho dito, amigo - respondeu o cura -, que o fim para que se isto faz é entreter os nossos pensamentos ociosos; e assim como se permite nas repúblicas bem concertadas que haja jogos de enxadrez, de péla, e de bilhar, para entreter alguns que não querem, nem devem, nem podem trabalhar, assim se permite, que se imprimam e se tenham esses tais livros, por se crer, como é verdade, que não pode haver indivíduo tão leigo e sáfaro que tenha por história certa nenhuma dessas. Se me fosse lícito agora, e o auditório o quisesse, coisas diria eu acerca do que devem conter os livros de cavalarias para serem bons, que talvez fossem de proveito, e até de agrado para alguém; mas espero, que lá virá tempo em que eu me abra com quem possa prover a isto de remédio. Daqui até lá, crede Senhor Vendeiro, no que vos tenho dito: tomai os vossos livros, e lá vos avenhais com os seus acertos ou desacertos; bom proveito vos faça, e permita Deus que não venhais a coxear do mesmo pé de que o vosso hóspede D. Quixote claudica.

- Lá disso não tenho medo - respondeu o vendeiro -; não hei-de ser tão doido que me faça cavaleiro andante; sei muito bem, que já hoje em dia se não usa o que se faia naquele tempo, em que se diz que andavam pelo mundo estes famosos cavaleiros.

A metade desta prática se achou presente Sancho, e ficou muito confuso e pensativo de ouvir dizer, que já se não usavam cavaleiros andantes, e que todos os livros de cavalarias eram tolices e falsidades; e assenta de si para consigo esperar em que pararia aquela jornada de seu amo, que, a não sair com a felicidade que ele pensava, determinava deixá-lo, e tomar-se com sua mulher e seus filhos às lidas da sua criação. Ia o vendeiro levando já a bolsa com os livros, mas o cura lhe disse:

- Esperai, que desejo ver que papéis são esses, escritos com tão boa letra.

Tirou-os o hospedeiro, e, dando-lhos a ler, viu coisa de uns oito cadernos manuscritos, tendo no princípio um título grande, que dizia: NOVELA DO CURIOSO IMPERTINENTE. Leu o cura para si três ou quatro linhas, e disse:

- Decerto que me não parece mal o título desta novela; estou com minha vontade de a ler toda. Ao que respondeu o vendeiro:

- Pode Sua Reverência lê-la à sua vontade, porque saberá que outros hóspedes, que já aqui a leram, gostaram muito, e ma pediram com muito empenho; eu é que não lha quis dar, lembrando-me que poderia ter de a restituir a quem deixou esta maleta, por esquecimento, com estes livros e papéis. Não sei se o dono não tornará a passar por cá. Eu bem sei que os livros me hão-de fazer falta; mas sempre pertencem a seu dono; taberneiro sou, mas ainda assim sou também cristão.

- Tendes muita razão, amigo - disse o cura -, mas com tudo isso, se a novela me satisfazer, heis-de-me dar licença para a copiar.

- Da melhor vontade - disse o vendeiro.

Enquanto entre os dois se trocavam estas falas, havia Cardénio pegado na novela, e começado a lê-la; e, parecendo-lhe que não desmentiria o conceito do cura, rogou-lhe que a lesse de modo que todos ouvissem.

- Fá-lo-ia - respondeu o padre - se não fora melhor gastar este tempo em dormir do que em leituras.

- Bom repouso será para mim - disse Doroteia - entreter o tempo em ler algum conto; por ora, ainda no tenho tão sossegado o espírito que me consinta dormir como se quisera.

- Pois então - disse o cura - quero lê-la sequer por curiosidade; talvez nos saia alguma coisa aprazível.

Acudiu mestre Nicolau a pedir o mesmo, e Sancho também. À vista daquilo tudo, o cura, entendendo que a todos recrearia, e a si também, disse:

- Sendo assim, peço atenção; a novela começa desta maneira:

 

ONDE SE CONTA A NOVELA DO CURIOSO IMPERTINENTE

Em Florença, rica e famosa cidade de Itália, na província que chamam Toscana, viviam Anselmo e Lotário, cavalheiros ricos e principais, e tão amigos, que, por excelência e antonomásia, “os dois amigos” lhes chamavam todos.

Eram solteiros, moços, de igual idade e dos mesmos costumes, o que tudo concorria para a recíproca amizade de entre ambos. Verdade é que Anselmo era algum tanto mais inclinado aos passatempos amorosos que Lotário; e este se deixava ir de melhor ânimo atrás dos recreios da caça. Quando, porém, acontecia, deixava Anselmo de seguir os seus gostos próprios para não faltar aos de Lotário; e Lotário deixava também os seus para acudir aos de Anselmo. Desta maneira, tão conformes andavam entre ambos as vontades, que não havia relógio mais infalível.

Andava Anselmo perdido de amores por uma donzela ilustre e formosa da mesma cidade, filha de tão bons pais, e tão boa ela mesma de sua pessoa, que assentou, com aprovação do seu amigo Lotário (sem a qual nunca fazia coisa alguma), em pedi-la por esposa aos pais; e assim fez. O mensageiro da embaixada foi Lotário; e tão a gosto do amigo concluiu o negócio, que em breve tempo se viu o nosso namorado em posse do seu enlevo e Camila tão contente de haver alcançado a Anselmo por esposo, que não cessava de dar graças ao Céu, e a Lotário, por cuja intervenção tamanho bem chegara a pertencer-lhe.

Os primeiros dias, que foram todos de folgança, segundo o estilo das bodas, frequentou Lotário, conforme ao seu costume, a casa do seu amigo Anselmo, procurando honrálo, festejá-lo, e regozijá-lo em tudo que podia. Acabadas, porém, as bodas, e acalmada já a frequência das visitas e parabéns, começou Lotário a escassear já de indústria as idas a casa de Anselmo, por lhe parecer, como é bem que pareça a todos os discretos, que aos amigos casados já se não hão-de as casas frequentar tanto, nem com tamanha intimidade, como enquanto viviam solteiros, porque, se bem que a verdadeira amizade não pode nem deve ser em coisa alguma suspeitosa, contudo tão delicada é a honra de um casal, que parece se pode ofender até dos próprios irmãos, quanto mais dos amigos.

Reparou Anselmo na menos frequência de Lotário, e queixou-se grandemente, dizendo que, se adivinhara que do casamento lhe havia de provir tal resfriamento, nunca ele o teria feito; e que, se pela boa harmonia que entre os dois reinava enquanto ele era solteiro, havia alcançado tão doce título como era o serem chamados os dois amigos, não quisesse agora ele Lotário, só para fazer de circunspecto, e sem outro nenhum motivo, que tão famosa e agradável antonomásia se perdesse; e, portanto, lhe suplicava, se o termo de suplicar podia entre eles caber, que tornasse a ser senhor daquela casa, entrando e saindo como dantes, assegurando-lhe ele que a sua Camila se conformava em tudo, e sempre, com os desejos dele, e que, por lhe constar com quantas veras os dois se amavam entre si, andava até vexada de o ver agora tão erradio.

A todas estas e outras muitas razões de Anselmo respondeu Lotário com tanta prudência e juízo, que lhe tapou a boca, e concordaram que, dois dias por semana, e nos dias santos, Lotário iria lá jantar; e, ainda que isto ficou estabelecido entre os dois, propôs Lotário como regra geral não fazer nunca senão que visse ser conveniente à honra do amigo, cujo crédito ele antepunha até ao seu próprio. Dizia ele e com razão que um marido, a quem o Céu concedeu mulher formosa, tanto devia reparar nos amigos que metia em casa, como ter tento nas amigas com quem sua mulher se dava, porque muita coisa que se não faz nem se ajusta nas praças, nem nas igrejas, nem nas festas públicas, e ajuntamentos semelhantes, muitas vezes concedíveis pêlos maridos a suas mulheres, muita coisa de contrabando se conchava ou facilita em casa da amiga ou parenta em que há mais confiança.

Mais dizia Lotário ser necessário aos casados ter cada um deles algum amigo que lhe notasse os descuidos que no seu proceder se pudessem dar, porque às vezes acontece, em razão do muito amor do marido para com a mulher, ou não dar por certas coisas, ou não lhas dizer (para não magoá-la) que as faça ou as deixe de fazer, podendo umas e outras ser todavia importantes para o crédito ou descrédito de ambos eles; advertido assim pelo amigo, já o consorte poderia pôr cobro a tempo a não poucos males.

Mas onde se achará amigo tão discreto e leal como Lotário aqui o pinta? Eu por mim não sei; desse feitio não vejo outro senão o próprio Lotário, quando tão cauteloso está atentando pela honra do seu amigo, e procurando ainda dizimar, aguarentar, e diminuir os dias aprazados para as visitas, para não darem que falar aos ociosos e aos mirões vadios e praguentos, tantas entradas de um moço rico, gentil-homem, de claro nascimento, e de tantas prendas como ele entendia possuir, na casa de uma dama tão formosa como Camila. Suposto com a bondade e força própria pudesse Camila pôr freio a todas as murmurações contudo não queria ele nem por sombras pôr em dúvidas nem o seu crédito, nem o dela, nem o do amigo. Por isso os mais dos dias da combinação os ocupava e entretinha noutras coisas que dava a entender serem-lhe impreteríveis, por modo que em suma, em queixas de um e desculpas do outro se passavam por vezes horas de cada dia.

Uma vez, andando ambos a passear por um prado fora da cidade, Anselmo disse a Lotário pouco mais ou menos o seguinte:

- Bem deves entender amigo Lotário que às mercês que Deus me há feito em dar-me tais pais como eu tive, e bens com mão larga, tanto dos que chamam da Natureza, como dos da fortuna, não possa eu corresponder com gratidão que baste;

ainda por cima de tudo, mais me favoreceu Deus em deparar-me um amigo como tu, e uma esposa como Camila, duas jóias que eu aprecio se não quanto devo ao menos quanto posso. Apesar de tantas e tamanhas ditas, que seriam para o geral dos homens o cúmulo da felicidade, vivo eu no maior desconsolo e desesperação do mundo todo, porque de dias a esta parte entrou comigo, e me atormenta, um desejo tão estranho e tão raro, que ando até pasmado de mim mesmo; ralho comigo a sós, e rigorosamente me invectivo, mas em vão; é tal que à minha própria consciência o procuro encobrir. Agora, porém, já não posso ter mão neste segredo; parece que desejo até fazê-lo de todos conhecido; de ti, de ti, primeiro que ninguém. Confio em que pelo esforço que hás-de fazer, como verdadeiro amigo, para me acudir, depressa me poderás livrar da angústia de tão longo silêncio; o meu contentamento atingirá, pela tua solicitude, ao auge a que pela minha loucura tem já chegado a minha impaciência.

Estava Lotário suspenso com todo este enigmático prólogo de Anselmo, sem poder adivinhar onde iria aquilo dar consigo, e, por mais que revolvesse na imaginação que desejo poderia ser aquele tão tormentoso, feria sempre com as suas conjecturas longe do alvo. Para sair sem mais demora da agonia de tamanha incerteza, respondeu-lhe que era agravar manifestamente a sua muita amizade o andar excogitando rodeios antes de lhe declarar os seus ocultos pensamentos, tendo aliás certeza de que nele havia de achar em todo o caso ou bons conselhos ou remédios para cura, segundo o negócio fosse.

- Dizes muitíssimo bem - respondeu Anselmo -; confiado nisso te declaro, amigo Lotário, que a incerteza que me rala é a de andar cismando se porventura a minha Camila será em realidade tão boa e completa como eu imagino. Desta incerteza me não posso eu livrar se não for experimentando-a de maneira que a prova manifeste os quilates da sua bondade, como no fogo do crisol se apura a fineza do ouro, porque tenho para mim, meu amigo, que uma mulher não é melhor nem pior que outra, senão conforme a solicitam ou deixam de solicitar, e que só é deveras forte a que não fraqueia às promessas, às dádivas, às lágrimas, e às contínuas importunações dos amantes obstinados. Pois que há que se agradeça - continuava ele - em ser uma mulher boa, onde nada a induz a ser má? Que admira, que viva recolhida e toda sobre si aquela que não tem azo para soltar-se e que sabe que tem marido que em a apanhando no primeiro desvio é homem para lhe tirar a vida? Portanto a que é boa por medo, ou por falta de ocasião, não a acho merecedora da estima em que terei a solicitada e perseguida, que saiu da provação com a palma de vencedora. Por todas estas razões, e por outras muitas que te pudera referir em abono do meu pensar, desejo que a minha esposa passe por estas dificuldades, e se acrisole resistindo a atrevimentos. Se ela sai, como espero, triunfante de tal conflito, ficarei tendo a minha ventura por incomparável; direi ter achado a mulher forte, de quem o sábio perguntou: “Quem a achará?” No caso contrário, o gosto de ver que não era errado o meu juízo compensará a pena de uma experiência tão custosa. Já sabes que por de mais seria contrariares-me neste propósito; quero, pois, amigo Lotário, que sejas tu próprio o que me ajudes na provação em que me empenho; eu me encarrego de te proporcionar as facilidades; por mim, nada , te há-de faltar de quanto seja necessário para solicitar a uma mulher honesta, honrada, recolhida, e desinteressada. Além de outros motivos, que me obrigam a fiar de ti este cometimento, i. tenho o de saber que, se Camila for por ti vencida, nunca a sua rendição há-de chegar às últimas; pararás onde o dever to determine, e assim não haverei sido ofendido senão em desejos, e a minha desonra ficará sepultada no teu virtuoso silêncio, que tenho toda a certeza, que, no tocante a mim, há-de ser eterno como o da morte. Se quiseres, pois, que eu tenha vida, que tal nome mereça, hás-de entrar já nesta campanha de amores, não friamente nem por de mais, mas com afinco, mas com verdadeira diligência, como eu desejo, e com a confiança a que senão pode faltar entre dois amigos como nós.

Tais foram as ponderações que Anselmo explanou, e que Lotário (a não serão que acima se referiu ter ele dito) esteve escutando com a maior atenção, sem descerrar os lábios até ao fim. Como as viu concluídas, depois de estar encarando nele por um bom espaço, como se jamais tivera visto objecto para igual espanto, respondeu:

- Não me pode entrar na ideia, amigo Anselmo, que tudo isso que para aí disseste não passe de gracejo; aliás, não te houvera deixado prosseguir; se eu te não escutasse, poupava-te todo esse desperdício de palavras. Está-me parecendo que, ou tu me não conheces, ou te não conheço a ti; engano-me; sei que és Anselmo, e tu não ignoras que eu sou Lotário; o mau é que já me não pareces o Anselmo de antes, assim como, segundo vejo, já também te não pareço o mesmo Lotário que devia ser. As coisas que me tens dito não são do Anselmo meu amgo, nem as que tu me pedes se deviam pedir a Lotário teu conhecido, porque os amigos verdadeiros hão-de provar os seus amigos e valer-se deles, como disse um poeta, usque ad aras; isto é, que não se devem valer da sua amizade em coisas que sejam ofensa de Deus. Se um gento a respeito da amizade entendeu isto, quanto mais o não deve sentir um cristão, sabendo que a amizade de Deus por nenhuma da Terra se há-de perder! E quando o amigo fosse tão imprudente que pospusesse os interesses do outro mundo ao serviço do amigo, nunca por coisas ligeiras o faria, senão só por aquelas em que a honra e vida do amigo se empenhassem. Ora diz-me tu, Anselmo: qual destas duas coisas, vida ou honra, se te acham em perigo, para que eu me aventure a comprazer-te, praticando uma coisa tão detestável como essa que me pedes? Decerto que nenhuma; pelo contrário, pedes-me, segundo eu entendo, que forceje para arrancar-te a honra e mais a vida ao mesmo tempo que a num prprio, porque se hei-de procurar roubar-te a honra, claro está, que te roubo também a vida, porque o homem sem honra é por que um morto; e, sendo eu o instrumento, como tu queres que o seja, de tamanho mal teu, venho eu a ficar desonrado, e por isso mesmo também sem vida. Escuta, amigo Anselmo, e tem paciência de não me responderes enquanto não acabo de dizer o que me ocorre acerca do que desejavas; não faltará tempo para que tu depois me expliques e eu te ouça.

- Seja assim - disse Anselmo -, podes falar à tua vontade.

Lotário prosseguiu:

- Estás-me parecendo agora, meu Anselmo, uma espécie de arremedo dos Mouros: aos Mouros não se pode mostrar o erro da sua seita com as citações da Escritura, nem com razões que assentem em especulação do entendimento, ou se fundem em artigos de fé; não admitem senão exemplos palpáveis, fáceis inteligíveis, demonstrativos, indubitáveis, com demonstrações matemáticas das que se não podem negar, como quando se diz: “Se de duas partes iguais tiramos partes iguais, as restantes serão também iguais.” E quando nem isto mesmo entendam de palavra, como de feito o não entendem, há-de-se-lhes mostrar com as mãos, e meter-se-lhes pêlos olhos; e assim mesmo ninguém consegue convencê-los das verdades da nossa Santa Religião. No mesmo aperto me vejo eu contigo, porque esse teu desejo é tão sem caminho, e tão fora de toda a racionalidade, que me parece será tempo perdido o que se gastar para te convencer da tua simpleza (que por enquanto lhe não quero dar outro nome); e quase que estou em deixar-te lá com o teu desatino, para castigo do teu mau desejo; mas vale-te a amizade que te professo; ela é que me não consente que te desampare em tão manifesto perigo de perdição. Para bem compreenderes isto, di-me, Anselmo: não me confessaste que eu tinha de solicitar a uma recatada? Persuadir a uma honesta? Oferecer a uma desinteressada? Cortejar a uma prudente? Disseste-mo, não há dúvida. ois, se tu sabes que tens mulher recatada, honesta e prudente, que mais queres? E se entendes que de todos os meus assaltos há-de sair vencedora, como sem dúvida há-de sair, que melhores títulos esperas dar-lhe, que os que já tem? Ou que ficará ela sendo mais do que já é? Ou tu a não tens realmente pela que dizes, ou não sabes o que pedes. Se a não tens pela que dizes, para que é experimentá-la? Supõe que é má, e faz dela o que mais te agradar. Mas se é tão boa como crês, impertinente coisa será fazer experiência da verdade reconhecida, porque depois da experiência há-de ficar tão estimada como dantes era. Regra certíssima: tentativas em coisas de que antes nos pode vir prejuízo que proveito so de entendimento boto e ânimo temerário, mormente quando para tais tentativas não há necessidade nem obrigação, e logo desde todo o princípio se conhece que se vai tentar uma loucura manifesta. As coisas difíceis empreendem-se por Deus ou pelo mundo, ou por ambos juntos. Por Deus as empreenderam os Santos, propondo-se viver como Anjos em corpo de homens. As que têm por alvo respeitos do mundo são as daqueles que passam tanta infinidade de águas, tanta diversidade de climas, tanta estranheza de gentes, para adquirir os chamados bens de fortuna. E as que se cometem ao mesmo tempo por Deus e pelo mundo são as dos soldados valorosos que, apenas divisam no muro inimigo aberta uma pequena ruptura, como a pode faer uma bala de artilharia, postergam temores, cerram olhos a toda a consideração dos perigos iminentes, voam com o desejo de acudir à sua fé, à sua nação, e ao seu rei, e se arrojam intrépidos por meio de mil contrapostas mortes que os aguardam. Estas coisas, sim, se costumam afrontar, porque é honra, glória, e proveito, que se afrontem, ainda que cheias de inconvenientes e perigos; mas isso com que tu queres arrostar-te, nem te há-de alcançar glória de Deus, nem bens de fortuna, nem fama entre os homens, porque, ainda que saias afinal como desejas, nem por isso hás-de ficar nem mais ufano, nem mais rico, nem mais acrescentado; e, se não sais como estás almejando, cais na maior miséria que imaginar-se pode, porque então nada te aproveitará o pensar, que ninguém sabe a desgraça que te sucedeu, porque bastará para te afligir e desfazer-te o sabê-la tu mesmo. Para confirmação desta verdade, quero repetir-te uma estância que fez o famoso poeta Luís Tansilo no fim da primeira parte das Lágrimas de S. Pedro; diz assim:

Cresce em Pedro o pesar, cresce a vergonha, quando vê que no Oriente o dia é nado; ninguém o vê, mas tem de si vergonha, pois em si sabe e sente que há pecado.

Não é mister que o mundo se interponha testemunha de um crime a peito honrado; ele próprio se acusa, aflige, e aterra, bem que o vejam somente o Céu e a Terra.

Portanto, de não ser notória a tua dor não te provirá isen- ' cão dela; terás, pelo contrário, de chorar continuadamente, se-não lágrimas dos olhos, lágrimas de sangue do coração, como as derramava aquele simples doutor, de quem o nosso poeta nos conta que fizera a prova do vaso, à qual se recusou com melhor juízo o prudente Reinaldo; embora seja esta uma fábula poética, encerra todavia, segredos morais merecedores de reflexão e imitação. Repara bem no que te vou agora dizer, e acabarás de convencer-te de quão errado é o teu intento. Diz cá, Anselmo, se o Céu, ou um favor da fortuna, te houvera feito possessor legítimo de um finíssimo diamante, aprovado por quantos lapidários l o vissem, confessando todos à uma que, em fineza, perfeição, equilates, era o mais que a Natureza pudera ter feito naquele género, e tu mesmo assim o acreditasses por não teres prova alguma do contrário, seria justo que cedesses ao desejo de pegar naquele diamante, metê-lo entre uma bigorna e um malho, e ali, a poder de valentes marteladas, provar se era tão rijo e perfeito como se dizia? Suponhamos agora que, cedendo a esse desejo, opunhas em execução; se por acaso a pedra resistisse a tão néscia experiência, acrescentar-se-lhe-ia por isso a valia ou a fama? E, . se se quebrasse, como poderia acontecer, não se perdia tudo? Perdia-se por certo, ficando o dono com a fama de orate no conceito de toda a gente. Amigo Anselmo, supe que a tua Camila é aquele diamante, assim no teu conceito como no dos outros; será de bom juízo pô-la em contingência de se quebrar, visto que a permanecer na sua inteireza não pode subir a maior apreço do que já tem? E, se não resistisse, e, finalmente, falhasse, considera, enquanto é tempo, o que ela ficaria sendo, e com quanta rãzão te poderias queixar de ti mesmo, por teres sido o causador voluntário da sua perdição e mais da tua. Olha que não há jóia no mundo, que em valia se compare com a mulher casta e honrada, e que toda a honra das mulheres consiste na boa opinião em que são tidas. Já que a tua esposa é tal, que chega ao extremo de bondade que sabes, para que hás-de tu pôr esta verdade em dúvida? Olha, amigo, que a mulher é animal imperfeito, e não se lhe devem pôr diante obstáculos em que tropece e caia; pelo contrário, devem-se-lhe tirar todos, e desempachar-lhe o caminho inteiramente, para que, isenta de pesares, corra até ao fim o seu caminho da perfeição. Contam os naturalistas que o arminho é um animalzinho de pêlo alvíssimo, e que os caçadores, em querendo toma-lo, usam do seguinte artifício: inteirados dos sítios por onde os arminhos costumam passar e aparecer, atascam-nos de lodo, depois acossam-nos naquela mesma direcção; o animalzinho, tanto que percebe o lodo, estaca, e se deixa apanhar só pelo medo e horror de se enxovalhar, porque a liberdade e a vida valem para ele menos que a sua nativa candidez. A mulher honesta e casta é arminho, e é mais pura que a branca neve. Quem deseja que ela não perca a limpeza da castidade, mas a guarde e conserve até ao fim, há-de usar de outro estilo diverso do que se pratica na caçada dos arminhos; não se lhe hão-de pôr diante os Iodos dos presentes, e serviços dos namorados importunos, porque talvez (ou mesmo sem talvez) não terá tanta virtude e força natural, que possa desajudada atropelar e transpor a salvo semelhantes tentações; o que é necessário é limpar-lhe o caminho, e pôr-lhe diante dos olhos o imaculado da virtude e o resplendor da boa fama. A mulher boa é na verdade como espelho de resplandecente cristal, que, ainda que puro, está sujeito a empanar-se e ficar turvo com o mais leve bafo. Com a mulher honesta há-de-se ter o melindre que se tem com as relíquias, adorá-las sem lhes tocar; há-de-se guardar e estimar a mulher boa, como se guarda e estima um formoso jardim, que está cheio de rosas e outras flores; o dono não consente que ninguém por ali passeie nem colha; basta que de longe, e por entre as gradarias, lhe gozem da fragrância e lindeza. Finalmente, quero repetir-te uns versos, que me estão lembrando, de uma comédia moderna que ouvi, e que me parecem frisar com estas verdades que te encareço. Estava um prudente ancião recomendando a outro, pai de uma donzela, que a recolhesse, que a guardasse, e que a encerrasse, e entre outras coisas disse-lhe isto:

É como o vidro a mulher; mas não é mister provar se se pode ou no quebrar, porque tudo pode ser.

E é mais fácil o quebrar-se; loucura é logo arriscar a que se possa quebrar o que não pode soldar-se.

Fiquem nisto, e ficam bem, Pois nisto o conselho fundo:

que se há Danaides no mundo, há chuvas de ouro também.

O que até aqui te levo dito, Anselmo, é só em referência a ti; agora justo é que me ouças também um pouco do que me interessa a mim. Se me achares prolixo, desculpa-me; tudo é preciso no labirinto em que te meteste, e de onde eu te devo arrancar. Tens-me tu em conta de amigo, e queres tirar-me a honra, coisa essa tão avessa da amizade! E não só pretendes isto, mas até queres que também eu ta roube a ti. Que me queres dela despojar, está claro, pois, em Camila vendo que eu a requesto como pedes, certo está que me há-de ter por homem sem honra nem consideração, pois intento e faço uma coisa tão fora daquilo a que me obriga o ser eu quem sou, e a amizade que te voto. De que tu queres constranger-me a tirar-ta eu a ti, também não há dúvida, porque, vendo Camila que eu a solicito, há-de, de si para consigo, entender que alguma leviandade descobri eu nela, que me afoitou a apresentar-lhe os meus ruins desejos; e, tendo-se ela por desonrada, e pertencendo-te ela a ti, contigo fica também a sua desonra. Daqui nasce o que tão geralmente se costuma, isto é que ao marido da mulher adúltera, posto que ele não saiba que ela o é, nem para tal haja dado ocasião, nem estivesse em seu poder impedir a sua desgraça, contudo o tratam com título ignominioso; e os que sabem ter a mulher caído já o ficam olhando de certa maneira, com os olhos de desprezo, em vez de compaixão, apesar de verem que chegou àquela desventura, não por culpa sua, mas só por gosto da sua depravada companheira. Quero agora dizer-te em que se funda a justa razão de ser desonrado o marido da mulher pecadora, ainda que ele não saiba que ela o é, nem de tal tenha culpa, nem haja sido participante, nem dado ocasião para ela o ser; e não te importunes de me ouvir, que tudo é para teu proveito. Quando Deus criou o nosso primeiro pai no paraíso terreal, diz a Divina Escritura que infundiu um sono em Adão, e que, estando este a dormir, lhe tirou uma costela do lado esquerdo, de que formou a nossa mãe Eva; e, assim que Adão acordou e a viu, disse: “Esta é a carne da minha carne; e o osso dos meus ossos”; e Deus disse: “Por esta deixará o homem pai e mãe, e serão dois numa só carne”; e então foi instituído o Divino Sacramento do Matrimónio, com laços tais que só a morte os pode desatar; e tamanha força e virtude tem este milagroso sacramento, que faz de duas pessoas diferentes uma mesma carne; e ainda faz mais nos bons casados, que, ainda que têm duas almas, não têm mais de uma só vontade. Daqui vem que, sendo a carne da esposa a mesma do esposo, as nódoas que nela caem, ou os defeitos que se procuram, redundam na carne do marido, ainda que ele não haja, como dito fica, dado ocasião para aquele dano; porque, assim como a dor de um pé ou de qualquer membro do corpo humano se sente no corpo todo, por todo ele ser da mesma carne, e a cabeça padece o incómodo do ínfimo dedo do pé, se bem que não foi ela que o causou, assim o marido é participante da desonra da mulher, por ser uma mesma coisa com ela, e como as honras e desonras do mundo sejam todas, e procedam de carne e sangue, e as da má mulher sejam deste género, forçoso é que ao marido caiba parte delas, e seja tido por desonrado sem o saber. Repara, portanto, Anselmo, no perigo em que te pes, querendo perturbar o sossego em que a tua boa esposa vive; repara por quão vã e impertinente curiosidade queres revolver os humores que tão sossegados estão no peito da tua casta esposa; adverte que o que te aventuras a ganhar é pouco, e o que perderás será tanto, que nem o pondero, por não ter palavras com que o encareça. Se, porém, tudo que tenho dito ainda não basta para te demover do teu mau projecto, procura outro instrumento para a tua desonra e desgraça; eu não o posso ser, embora perdesse por isso a tua amizade, que é o maior prejuízo que posso imaginar. "

Dito isto, calou-se o virtuoso e prudente Lotário, deixando . Anselmo to confuso e pensativo, que por um bom espaço não L atinou palavra de resposta; ao cabo sempre lhe disse:

- Bem viste, amigo Lotário, com que atenção te escutei até ao fim; nos teus ditos, exemplos e comparações, reconheci a tua 1 muita discrição, e o extremo a que chega em amizade; e confesso que, se não sigo o teu parecer, e vou atrás do meu, vou fugindo do bem, e correndo em pós o mal. Nisto, devo-te parecer como certas achacadas, que apetecem comer terra, caliça, carvão, e coisas ainda piores, repugnando à vista, quanto mais ao paladar; é logo necessário usar de algum artifício para que eu sare. Ora isto era fácil, começando tu, embora tibiamente e por fingimento, a cortejar a Camila, porque não há-de ser ela tão tentadiça, que logo aos primeiros abalos dê com a honra do avesso. Para me contentar bastará isto; haverás cumprido o que deves à nossa amizade; dás-me a vida, e convences-me de que tenho salva a honra. Para te obrigar basta uma razão; e vem a ser que, estando eu, como estou, determinado a realizar esta experiência, não deves consentir em que eu vá dar conhecimento a outrem do meu desatino; com o que se poria em risco uma - honra que tu não queres se aventure. Suponhamos que no juízo de Camila o teu conceito decai enquanto a solicitares; que importa isso!? Logo que nela se reconhecer a pureza que esperamós, confessar-lhe-ás toda a verdade da nossa maquinação, e o teu crédito ficará inteiramente saneado. Já vês que, arriscando tão pouco e podendo com isso dar-me tão grande contentamento, deves fazê-lo sem reparar em mais objecções, porque, segundo já te disse, basta que principies, para eu te desobrigar logo de continuar.

Vendo Lotário a inabalável resolução de Anselmo, e não sabendo já novos exemplos, nem mais razões, com que lhe argumentar, e considerando ainda por cima na ameaça de ir expor a outrem o seu danado desejo, determinou preferir o menor ir

mal, e satisfazer-lhe a vontade, esperando encaminhar as coisas de modo que Anselmo, sem prejuízo dos sentimentos de Camila, ficasse ao cabo satifeito. Respondeu-lhe, portanto, não se abrisse com mais ninguém, e deixasse por sua conta o negócio todo, e que dariam princípio logo que lhe agradasse.

Abraçou-o Anselmo carinhosamente, agradecendo-lhe a condescendência que ele reputava mercê e das grandes. Assentou-se entre os dois que logo no dia seguinte se instauraria a campanha, dando o marido facilidades e abertas para o amigo poder conversar a sós com a sua Camila, entregando-lhe, além disso, dinheiros, e jóias para dar-lhe e oferecer-lhe. Aconselhou-lhe que lhe levasse músicas, fizesse versos, elogiando-a, e que, se o fazê-los lhe aborrecia, ele próprio estava pronto para lhos armar.

Lotário esteve por tudo na aparência, mas lá por dentro inabalável.

Com este acordo regressaram a casa de Anselmo, onde acharam Camila a esperar ansiosa e já desassossegada pela tardança do esposo, que nesse dia se demorara mais que de costume.

Foi-se Lotário para sua casa tão pensativo, por não saber como se haveria em tão impertinente negócio, como Anselmo ficava na sua satisfeitíssimo por ver já o seu barquinho na água. Levou o amigo a noite de vela, cismando no modo de enganar a Anselmo sem ofender a Camila.

Ao outro dia, apareceu ao jantar, e foi bem recebido da consorte, que sempre o acolhia e regalava com a melhor vontade, por saber que outra tanta era a do seu esposo.

Findo o jantar e levantada a mesa, disse Anselmo a Lotário que ficasse ali com a sua dona da casa, enquanto ele ia tratar de um negócio de muita pressa, de que não poderia voltar em menos de hora e meia. Camila rogou-lhe que se não fosse, e Lotário ofereceu-se para o acompanhar; Anselmo, porém, persistiu em que se deixasse estar, e o esperasse, porque tinham de tratar juntos objecto de importância; e a Camila recomendou que fizesse companhia ao amigo, até ele regressar. Em suma, tão perfeitamente soube representar a necessidade, ou nescidade de sair, que ninguém adivinharia ser fingida.

Ficaram sós à mesa, a inocente mulher e o enleado amigo, porque a mais gente da casa se havia retirado para ir também jantar. Estava Lotário chegado à estacada em que o desejava o amigo, e tendo em frente o inimigo, formosura que só por si pudera vencer a um esquadro de cavaleiros armados. Vede se Lotário não devia temer. O que ele fez foi pousar o cotovelo no braço da cadeira, com a mão aberta sobre a face; desculpando-se da descortesia, pediu à dama licença para repousar um pouco até que Anselmo voltasse. Respondeu-lhe ela que para descansar melhor ficaria nos coxins do salão que na cadeira, e lhe rogou que os preferisse. Recusou Lotário o oferecimento, ficou onde estava, e adormeceu.

Anselmo, quando voltou, achando Camila no seu aposento e o comensal pegado no sono, entendeu que, por haver sido a sua demora excessiva, já os dois teriam tido tempo, não só de conversar, mas até de dormir. Já lhe tardava a hora em que o sonolento abrisse os olhos para saírem ambos de casa, e receber dele notícias da sua sorte. Correu-lhe tudo como ele queria. Lotário acordou, e logo saíram ambos juntos de casa.

Chegados à rua, perguntou alvoroçadamente o curioso o que desejava. Respondeu o outro que não lhe tinha parecido acertado descobrir tudo logo da primeira vez, e que por isso o que só tinha feito fora louvar a Camila de formosa e discreta, por lhe parecer este um bom exórdio para lhe ir ganhando pouco a pouco a vontade, dispondo-a a escutá-lo gostosa para a outra vez; que assim é que usava o Demónio, quando queria tentar alguém muito acautelado: representa-se anjo de luz, sendo-o ele de trevas, põe-lhe diante aparências inocentes, e só por fim é que descobre quem é, e não logra os seus intentos, senão se antes de tempo os não deixou descobrir.

Com tudo aquilo ficou Anselmo contentíssimo, e disse que todos os dias lhe proporcionaria iguais azos, mesmo sem sair de casa, porque de portas adentro se podia entreter em coisas insuspeitas.

Sucedeu, portanto, correrem muitos dias que Lotário, sem dizer palavra a Camila, respondia a Anselmo, que lhe falava, sem jamais poder alcançar dela uma pequena mostra sequer de que estaria por coisa que fosse má, nem sombra de esperança disso; pelo contrário, ameaçava-o de que, se não se deixasse daqueles ruins pensamentos faria queixa a seu marido.

- Muito bem; até aqui - disse Anselmo - tem resistido às palavras; agora falta ver se também resiste a obras. Hei-de-te entregar amanhã dois mil escudos para lhos ofereceres, e até dares; e outros tantos para comprares jóias, que em anzol para as mulheres são ainda melhor isca; todas costumam ser perdidas por louçainhas, principalmente as bonitas, embora castas; regalam-se de se apresentar bem e estadear-se de galãs. Se também a isto resistir, dou-me por satisfeito, e não te importuno mais.

Respondeu Lotário que, uma vez que tinha começado a empresa, desejava levá-la até ao fim, posto já ia vendo que o m seria ficar exausto de forças e vencido.

No dia seguinte, recebeu os quatro mil escudos, e outras tantas confusões, por já não poder inventar novas mentiras. Mas com efeito sempre lhe disse que a mulher tão-pouco se rendia às dádivas e promessas como às palavras; que não havia mais que ver nem que lidar; era tudo tempo perdido.

Aconteceu, porém, que, tendo Anselmo deixado sós, como de outras vezes costumava, Camila e Lotário, se encerrou num aposento, e pelo buraco da fechadura esteve espreitando e ouvindo o que entre eles se falava. Notou que por mais de uma hora Lotário nem palavra deu, nem a daria em todo um século que ali estivessem; de onde inferiu que tudo quanto o amigo lhe relatara das esquivanças de Camila não passava de mera falsidade. Para maior certeza saiu do quarto, e, chamando Lotário à parte, lhe perguntou que novas havia, e de que humor se ia achando a mulher.

- Nessa matéria - respondeu Lotário - já não torno a perder tempo; dá-me sempre umas respostas tão ásperas e sacudidas que já me não atrevo a dizer-lhe mais nada.

- Lotário, Lotário - disse Anselmo -, que mal correspondes ao que me deves, e à confiança que em ti punha! Saberás que te estive excogitando por onde se introduz esta chave; nem meia palavra disseste a Camila; do que eu infiro que nem sequer principiaste ainda. Sendo assim, como sem dúvida o é,

para que me enganas, e me privas dos meios que eu podia ter para realizar os meus desejos?

Mais não disse; mas bastou isso para deixar a Lotário vexado e confuso por ter sido apanhado em flagrante mentira; pelo que jurou a Anselmo que, daquela hora em diante, ia tomar tanto a peito o satisfazer-lhe o empenho, como ele próprio o reconheceria já que se divertia a espreitá-los; seria necessário empregar grandes diligências para lhe desvanecer de uma vez todas as suspeitas.

Ficou-se naquelas palavras Anselmo; e, para o deixar mais à sua vontade resolveu-se a ausentar-se de casa por oito dias, que iria passar em companhia de outro amigo seu, morador numa aldeia não longe da cidade. Este (por combinação entre os dois) , lhe mandou pedir, com grande empenho, que o fosse visitar; :

com o que justificada ficava a sua partida aos olhos de Camila

- Desgraçado e imprudente Anselmo, que é o que fazes? - disse Lotário. - Que é o que projectas? Riscas a tua desonra, - traças e ocasionas a tua perdição. Tua esposa é boa; possui-la quieta e sossegadamente; ninguém te dá sobressaltos; os pensamentos dela não saem do secreto de sua casa; és tu o seu céu na terra, o alvo dos seus desejos, a satisfação de todos os seus gostos, e a regra de todas as suas ambições; a ti e ao Céu é que ela unicamente almeja com prazer. Se nesta mina de honra, formosura, honestidade, e recolhimento, achas sem nenhum trabalho toda a riqueza que mais se pode desejar porque te desassossegas a cavar a terra mais fundo em busca de novas betas de tesouro novo e nunca visto, pondo-te em perigo de te desabar tudo (porque enfim o tudo, afinal, só assenta nos esteios da natureza frágil)? A quem busca o impossível justo é que até o possível se lhe negue. Melhor do que eu o disse um poeta nos seguintes versos:

Procuro na morte a vida; saúde na enfermidade; no cárcere, liberdade; " no encerramento, saída; vê no traidor fidelidade.

Mas minha sorte, de quem já não posso esperar bem ajustou com Céu terrível, que, pois lhe peço o impossível, nem o possível me dêem.

No dia seguinte, lá se foi Anselmo para a aldeia, deixando dito a Camila que, durante a sua ausência, viria Lotário olhar por sua casa, e jantar com ela; que tivesse cuidado de o tratar como a ele próprio. Com esta ordem do marido afligiu-se a esposa, como honrada e prudente que era, e lhe pediu que reflectsse em que durante a sua ausência não parecia bem que pessoa alguma ocupasse o seu lugar; e que, se o fazia por não ter certeza de ela saber governar-lhe a casa, experimentasse por aquela vez, e reconheceria que até para mais era a sua capacidade.

Anselmo replicou ser aquele o seu gosto, e que a ela só competia abaixar a cabeça e obedecer-lhe. Camila prometeu, que assim o faria, mas não por vontade sua.

Partiu Anselmo.

No outro dia, veo a casa Lotário; foi recebido pela dama com amabilidade e todo o comedimento; nunca ela se pôs em parte em que se pudesse ver com o hóspede; andava sempre rodeada de seus criados e criadas, especialmente de uma aia sua chamada Leonela, a quem muito queria, por se terem criado ambas juntas desde meninas na casa paterna, de onde a trouxe consigo quando se casou.

Nos três primeiros dias, nunca Lotário disse nada, ainda que bem o podia quando se levantava a mesa, e os servos se iam todos à pressa para jantar, porque assim lho tinha a ama determinado; à sua Leonela recomendava que jantasse primeiro que os senhores, e nunca lhe saísse de ao pé dela. Leonela, porém, que trazia o pensamento em coisas mais do seu gosto, e necessitava daquelas horas para os seus recreios, nem sempre executava à letra a recomendação, antes muitas vezes deixava sós os dois, como se as suas instruções fossem essas precisamente.

Não obstante estes azos todos, o portamento honesto de Camila, a compostura do seu semblante eram tais que Lotário

emudecia. Mas se as virtudes de Camila tolhiam a voz do comensal, por outra parte mais perigosas por isso mesmo se tornavam para eles ambos; calavam, sim, a língua; mas o pensamento lá ia por dentro discorrendo, e contemplando um por um todos os extremos de bondade e formosura da vigiada. Sentir-se-ia ali enamorado um colosso de mármore, quanto mais um coração de carne!

O tempo em que lhe podia falar, emprègava-o em olhar para ela, e reconhecia quanto era credora de mil amores.

A continuação destas mudas contemplações começou pouco a pouco a enfraquecer os respeitos do amigo para com o ausente; esteve muitas vezes para sair da cidade e ir-se para onde nunca mais Anselmo o visse a ele, nem ele a Camila; já, porém, o prendia o próprio deleite que sentia só em vê-la. Forcejava e teimava consigo mesmo para atenuar e extinguir de todo o encanto de olhar para Camila; culpava-se em consciência de tamanho desatino, chamando-se mau amigo, e até mau cristão. Se com Anselmo se comparava, o final era sempre dizer que maior fora a loucura e confiança de Anselmo, do que era a deslealdade dele próprio; e tão boa desculpa tivesse ele para com Deus como a havia de ter para com os homens.

De feito, a lindeza e bondade de Camila, ajudadas das facilidades que o ignorante marido lhe facultava, deram com a lealdade de Lotário em terra e, sem já se lembrar de mais coisa alguma senão do seu gosto, depois de três dias de ausência de Anselmo, nos quais esteve em guerra aberta contra os próprios desejos, começou de requebrar a dama, mas tão perturbado, e com uns dizeres tão apaixonados, que a deixou suspensa, e tão sobressaltada, que não fez outra coisa senão levantar-se e recolher-se ao quarto sem uma única palavra de resposta.

Com este desabrimento não esmoreceu em Lotário a esperança, irmã gémea e sempre companheira do amor; a fugitiva tomou-se ainda mais adorada. Ela, porém, por ter descoberto o que nunca esperava, não sabia que fizesse; entendendo não ser prudente nem bem feito dar ocasião a renovar-se o atrevimento, determinou enviar naquela mesma noite um criado seu com um bilhete a Anselmo, e assim o fez. O bilhete dizia o seguinte:

 

EM QUE SE PROSSEGUE A NOVELA DO CURIOSO IMPERTINENTE

“Tem-se por dizer, que nem exército sem general, nem castelo sem castelão; e eu digo, que ainda há coisa pior que essas duas; e é: mulher casada e moça sem o seu marido ao pé, salvo havendo para isso justíssimas razões. Acho-me tão mal sem vós, e tão fraca para resistir a esta ausência, que, se não vindes depressa, ir-vos-ei esperar em casa de meus pais, ainda que deixe esta vossa sem guarda. A que vós me deixastes, se é que ficou com tal título, creio que olha mais pêlos seus gostos, que pêlos vossos interesses. Como sois discreto, não tenho mais que vos dizer, nem devo.”

Por esta carta entendeu Anselmo que Lotário tinha já começado as operações, e Camila se houvera à medida dos seus desejos. Sobremodo alegre de tal mensagem, mandou a Camila resposta de palavra que de modo nenhum saísse de casa, porque ele com muita brevidade tornaria.

Admirou-se Camila com tal resposta, e ficou à vista dela ainda mais confusa do que já estava. Não se atrevia a permanecer em sua casa, nem a ir-se para a de seus pais. Ficando, arriscava a sua honestidade; indo-se, desobedecia ao consorte. Afinal, resolveu o pior, que foi ficar, sem evitar a presença de Lotário, para não dar suspeitas à criadagem; arrependia-se de ter escrito daquele modo ao esposo, receando dar-lhe ideias de que Lotário teria visto nela alguma desenvoltura, que o animasse a faltar-lhe ao respeito.

Enfim, fiada na bondade própria, entregou-se nas mãos de Deus, firme em resistir com o silêncio a quantas declarações e instâncias lhe pudessem sobrevir; e, calando tudo ao marido, para o forrar a alguns trabalhos, já andava até procurando maneira com que desculpar Lotário perante Anselmo, quando este lhe pedisse a explicação do bilhete.

Com estas ideias mais honradas que acertadas ou proveitosas, esteve no outro dia escutando a Lotário, o qual tanto carregou a mão nas instâncias, que a firmeza de Camila principiou a

titubear, e bastante teve a sua honestidade que fazer para proibir aos olhos alguns sinais de amorosa compaixão que no peito lhe haviam despertado as lágrimas e súplicas do seu idólatra. Tudo aquilo ia ele notando, e abrasando-se cada vez mais.

Afinal, pareceu-lhe que era mister apertar o combate à fortaleza, aproveitando o tempo que o marido para isso lhe deixava. Acometeu-a pela presunção, exaltando-lhe a formosura (não há coisa que mais depressa arrase as torres da vaidade das formosas, que a adulação); e para abreviarmos: com tanta habilidade soube minar aquela virtude, que, de bronze que a dama fora, não tivera remédio senão cair. Chorou, rogou, ofereceu, adulou, porfiou, e fingiu, com tantos afectos, e tantas mostras de paixão, que lá se foi o recato de Camila; logrou-se o mais suspirado e mais inesperado triunfo.

Rendeu-se Camila; sim, Camila rendeu-se. Mas que admira, se a amizade de Lotáriojá também se tinha rendido? Claro exemplo de que para se vencer a paixão amorosa não há outro remédio senão fugir-lhe, e que ninguém se deve tomar a braços com tão possante inimigo, porque só com forças divinas se venceriam as suas, em serem humanas.

Só Leonela soube a fraqueza de Camila; e como lha haviam de encobrir os dois namorados e desleais na amizade?

Não quis Lotário confessar a Camila qual fora o projecto de Anselmo, nem que fora ele mesmo quem lhe abrira passo para chegar àquele ponto, porque não queria que ela tivesse em menos apreço o seu amor, e imaginasse que sem premeditação, e só por uma fatalidade do acaso a havia perseguido.

Regressou Anselmo passados poucos dias, e não pôde perceber o que naquela casa faltava, que era de tudo o que ele mais estimava. Foi-se logo a visitar Lotário, encontrou-o, abraçaram-se, e pediu-lhe novas da sua vida ou morte.

- As novas que te posso dar, amigo Anselmo - disse Lotário -, são que tens uma mulher exemplar, o non plus ultra das honradas. As palavras que lhe disse levou-as o vento; os oferecimentos desprezaram-se; os presentes enjeitaram-se; e de algumas lágrimas que fingi, fez-se zombaria despropositada. Em suma: assim como é o símbolo de todas as graças, é o santuário da honestidade, do comedimento, do recato, e de todas as virtudes feminis. Retoma os teus dinheiros, amigo, eles aqui estão; não me foi necessário tocar-lhes; Camila não se rende a coisas tão baixas. Alegra-te, Anselmo, e deixa-te de mais experiências; uma vez que passaste a pé enxuto o mar das suspeitas que se podem e devem ter a respeito das mulheres, não tornes lá, nem tomes outro piloto para confirmar a bondade e fortaleza do navio que o Céu te deu para atravessares as ondas deste mundo; faz de conta que já estás em porto seguro, deita a âncora, e deixa-te ficar até que te venham obrigar pela dúvida que a ninguém se perdoa.

Certíssimo ficou Anselmo com estas ponderações de Lotário; creu delas como se de um oráculo lhe viessem; contudo, sempre o exortou a prosseguir na empresa, ainda que não fosse senão por curiosidade e passatempo, embora as diligências daí avante fossem menos afincadas; o que só lhe exigia é que fizesse alguns versos em louvor dela com o nome de Clóris, que ele tomava a si o persuadir a Camila andar ele enamorado de certa dama, a quem disfarçara assim o verdadeiro nome, para não faltar ao respeito que à sua honestidade se devia, e que, se não queria tomar a si esse trabalho de fazer os versos, ele Anselmo os escreveria por ele.

- Não é preciso - disse Lotário -, não me são as musas tão inimigas, que algumas vezes por ano me não visitem. Diz tu a Camila o mesmo que lhe disseste dos meus amores fingidos; que os versos eu os farei; não serão dignos do objecto, mas hão-de ser os melhores que eu puder.

Assim caram conchavados o impertinente e o traidor. Entrando em casa, perguntou Anselmo à sua mulher (o que ela se admirava de ele lhe não ter ainda perguntado) o motivo por que lhe tinha mandado o escrito.

Respondeu-lhe ela que se lhe havia figurado que Lotário encarava nela um tanto mais descomedidamente que dantes, enquanto ele estava em casa, mas que, ao presente, já estava certa de que não fora senão cisma sua porque Lotário fugia de vê-la e achar-se com ela a sós.

Respondeu-lhe Anselmo que lá por essa parte podia estar descansada, porque ele sabia que Lotário andava doido por uma donzela das principais da cidade, a quem celebrava debaixo do nome de Clóris, e, ainda que o não soubera nada havia que recear da verdade de Lotário, e da muita amizade que os unia. Se Camila não soubera de Lotário mesmo serem imaginários aqueles amores de Clóris e de propósito inventados por ele para poder a seu salvo empregar alguns momentos vagos nos louvores de Camila, sem dúvida estaria caída na desesperada rede dos ciúmes; mas, por andar já advertida, livrou-se da estranheza do sobressalto.

Outro dia, achando-se os três à sobremesa, rogou Anselmo a Lotário que recitasse alguma coisa das que tinha composto à sua dilecta Clóris, que, sendo, como era, desconhecida de Camila, podia afoitamente falar dela quanto quisesse.

- Embora a conhecesse - respondeu Lotário - porque havia eu de encobrir nada? Quando um amante louva a sua dama de formosa, e ao mesmo tempo a censura de cruel, nem por sombras a desdoira. Como quer que seja, o que sei dizer é que ainda ontem fiz um soneto à ingratidão desta Clóris, o qual diz assim:

SONETO

Da umbrosa noite no silêncio, quando meigo sono refaz os mais viventes, só eu vou meus martírios inclementes aos Céus e à minha Clóris numerando.

Quando o dia os seus raios vem mostrando de entre as rosas d'aurora aurisplendentes com suspiros e lástimas ferventes vou as teimosas queixas renovando.

Se doura o So a prumo o térreo assento, não me dissipa as trevas da agonia;

dobra-me o pranto, aumenta-me os gemidos.

Volve a noite, e eu com ela ao meu lamento.

Ai! que sorte! implorar de noite e dia,

ao Céu piedade, e à minha ingrata ouvidos.

Pareceu bem a Camila o soneto, e a Anselmo ainda melhor. Este louvou-o, e disse que passava de cruel a dama que a tão claras verdades não correspondia.

- Então - disse Camila - tudo que sai da boca a poetas namorados se há-de logo ter por verdade?

- Como poetas não a dizem - respondeu Lotário - mas como namorados, nunca a chegam a dizer inteira.

- Nisso não há dúvida - replicou Anselmo. Tudo para mais acreditar os pensamentos de Lotário no conceito de Camila, to desprecatada do artifício de Anselmo, como já apaixonada por Lotário, e assim com o gosto do próspero andamento que as suas coisas lhe estavam dando, e por saber que os desejos e escritos do poeta a ela unicamente se referiam, por ser ela a verdadeira Clóris, lhe pediu que, se tinha mais algum soneto ou outros versos, os dissesse

- Tenho outro soneto, mas parece-me inferior ao primeiro; estais a tempo de os comparar; é o seguinte:

Bem sei que morro, pois não sendo crido forçoso é que me acabe o desconforto; podes ver-me a teus pés, ingrata, morto, mas nunca de adorar-te arrependido.

Poderei ver nos paramos do olvido que a vida, a glória, o bem, foi tudo aborto; só teu semblante conquistando um porto no ardente coração resta esculpido.

Vem comigo, relíquia, ao transe duro a que me há-de levar esta porfia, que em seu próprio rigor se fortalece.

Ai de quem voga à toa em pego escuro sem roteiro, sem bússola, sem via! astro não vê, nem porto se lhe ofrece.

Louvou Anselmo também este segundo soneto; ia acrescentando a elo e elo a cadeia da sua desonra pois quanto mais lhe crescia a afronta, mais ele se tinha por glorificado. Quantos degraus Camila descia para o ínfimo desprezo, tantos subia na opinião do néscio marido para as eminências da virtude e da boa fama.

Sucedeu que, achando-se uma vez, como outras muitas, Camila com a sua aia lhe disse:

- Estou envergonhadíssima, minha amiga Leonela, de ver quão pouco me tenho sabido respeitar, nem sequer fiz com que Lotário só a poder de tempo alcançasse este completo predomínio sobre a minha vontade. Estou receando que ele chegue algum dia a desestimar a minha facilidade, a minha leveza, esquecido já da violência com que me tornou impossível o resistir-lhe.

- Ai minha Senhora - respondeu Leonela -, por coisas tão poucas não se esteja agora penando; darmos depressa o que temos de dar não tira nem pe nada ao valor da coisa, quando ela de si o tem; até se costuma dizer que o dar depressa é dar duas vezes.

- E também se costuma dizer - disse Camila - que o que pouco custa pouco se estima.

- Isso não é regra - respondeu Leonela -; o amor, segundo já ouvi dizer, umas vezes voa e outras anda; com este corre; com aquele vai devagarinho; a uns entibia; a outros abrasa; a uns fere, e a outros mata; no mesmo instante começa e acaba o seu desejar. Pela manhã pôr cerco a uma fortaleza; e à noite vê-la já vencida, porque não há força que lhe resista. Sendo assim, porque se admira ou se intimida, se outro tanto deve ter acontecido a Lotário? Se a ausência de meu amo foi afinal de contas quem os rendeu a ambos? Nesses poucos dias, era forçoso, que se concluísse tudo, em vez de se porem a dar tempo ao tempo à espera de que o Sr. Anselmo voltasse, deixando a obra imperfeita. Nisto de amores, quem perde a ocasião, perde a ventura. São coisas que eu sei mais de experiência que de ouvido; e algum dia lho contarei Senhora, porque eu também sou de carne, e ainda também me ferve o sangue; e mais a minha Senhora não se entregou tão de repente como isso; viu primeiro nos olhos, nos suspiros, nas falas, nas promessas e nos mimos de Lotário toda a sua alma, e quanto era merecedor de se lhe querer bem. Sendo assim, desterre essas fantasias de escrúpulos; tenha a certeza de que Lotário a estima tanto, como a Senhora a ele, e anda todo ancho e satisfeito de a ver caída no laço porque isso mesmo o exalta ainda mais no seu próprio conceito; e não só tem os quatro S S S S, que dizem ser precisos a todos os namorados, mas até o a b c inteiro. Ora repare, e eu lho digo de cor; e ele é, segundo eu vejo e me parece:

AGRADECIDO BOM - CAVALHEIRO DADIVOSO - ENAMORADO - IRME GALANTE HONRADO - ILUSTRE LEAL

MOÇO - NOBRE - ÓPTIMO

PRINCIPAL - QUANTIOSO Rico

e os SSSS que dizem; e depois TÁCITO - VERDADEIRO o X é que não lhe quadra por ser letra áspera;

o Y já lá fica no I; o Z

ZELADOR DA HONRA DA SUA DAMA.

Riu-se Camila do abecedário da sua aia, e teve-a por mais prática em pontos de amor do que ela se inculcava. Ela, porém, sem hesitações lho confessou, declarando-lhe que entretinha amores com um mancebo grave da mesma cidade. Com aquilo se turvou Camila, por temer que por al é que a sua honra poderia vir a perigar. Apertou-a para saber se as suas conversações não passavam adiante; ela com todo o desembaraço lhe

respondeu que sim, passavam muito adiante. Isso é já coisa velha e sabida que os descuidos das senhoras tiram a vergonha às criadas, e que estas, vendo as suas amas escorregar, pouca dúvida põem em coxear, e puco se lhes dá que o saibam.

Camila o mais que pôde foi pedir a Leonela, que não dissesse nada a respeito dela ao que dizia ser seu rapaz, e tratasse as coisas com segredo para não chegarem ao conhecimento de Anselmo e de Lotário. A aia, porém, respondeu que assim o faria; fê-lo porém de modo, que os receios da senhora se realizaram; a desonesta e atrevida Leonela, vendo que o procedimento da ama não era já o mesmo que dantes, atreveu-se a receber dentro em casa o seu amante, porque, ainda que a senhora o visse já se não atrevia a descobri-lo. Consequências tristes dos desmanchos das senhoras, que se fazem escravas das suas próprias servas e se obrigam a encobrir-lhes as suas desonestidades e vilezas; e assim aconteceu a Camila que, ainda que viu muitas vezes estar Leonela num aposento de sua casa com o galã, não só se não atrevia a ralhar-lhe, mas lhe dava lugar para que o recatasse e a livrava por todos os modos de ser percebida do marido. Apesar de todas as suas cautelas não pôde, contudo, evitar que Lotário um dia, ao romper de alva, percebesse a saída do contrabando. Não conhecendo quem era, pensou primeiro que seria avejão; mas, notando-lhe o caminhar, o embuçar-se, e o encobrir-se, trocou logo a sua ideia supersticiosa por outra, que para todos se tornaria perdição, se Camila a não remediara.

Entendeu Lotário que o homem, que tão antemanhã saía daquela casa, não havia nela entrado para Leonela; nem pela ideia lhe passou que tal Leonela existisse. Acreditou sim que, tendo Camila sido fácil e leviana em proveito dele, também o podia ser para algum outro. São estas umas crescenças que traz consigo o mau comportamento de uma mulher que perde a boa fama: aquele mesmo a quem se entregou, depois de muito rogada e persuadida, crê que mais facilmente ainda se entregará a outro; e qualquer suspeita se lhe afigura logo certeza. Nisto parece haver falhado em Lotário de todo em todo o bom juízo. Varreram-se-lhe da memória todos quantos resguardos até ali

lhe aconselhava a prudência. Sem atinar em expediente algum, que fosse, senão bom, pelo menos razoável, sem mais nem mais, antes que Anselmo se levantasse, impaciente e cego da súbita raiva que o tomara, morrendo por vingar-se de Camila naquele caso inocente, foi-se ter com o marido e lhe disse:

- Saberás, meu Anselmo, que ando há muitos dias em guerra comigo, para te não revelar o que já te não posso esconder por mais tempo: sabe que a fortaleza de Camila está já rendida e sujeita a quanto eu dela pretender. Se tardei em te descobrir esta verdade, foi só para me certificar primeiro se não seria aquilo nela mera leviandade passageira, ou talvez propósito de reconhecer bem ao certo se eram ou não sinceros os galanteios que lhe eu fazia, já se sabe por tua autorizaço. Mas sempre me parecia, que o dever dela, se ela fosse a que pensávamos, seria ter-te já dado conta das minhas perseguições. Como tarda em fazê-lo, deixa-me crer que são verdadeiras as promessas que me fez, de que, para a primeira vez que te ausentes da tua casa, está pronta a ir falar comigo na recâmara dos teus móveis fora de uso (e era lá realmente que ela lhe costumava falar). Não quero que te precipites a vingar-te; por ora o pecado só existe no pensamento; e poderia acontecer que, no que vai daí até à realização, Camila caísse ainda em si e se arrependesse. Como tu sempre, ou em todo ou em parte, tens aceitado os meus pareceres, segue também este que te vou dizer, para que sem engano nem temeridade só faças o que vires ser mais acertado. Finge que te ausentas por dois ou três dias, como de outras vezes, e esconde-te na tua recâmara; é fácil com os panos da colgadura e as mais coisas que por ali há; então verás pêlos teus próprios olhos, e eu pêlos meus, quais são as verdadeiras tenções dela. Se forem de mulher perdida, como é de temer, tu em segredo, e com discrição, poderás vingar-te e puni-la.

Ficou Anselmo absorto com a revelação de Lotário, quando mais livre se cuidava já de semelhantes malefícios, porque tinha já a mulher por desenganadamente vencedora das diligências do amigo; fazia-se já nos alvoroços do triunfo. Esteve por largo espaço taciturno olhando para o chão sem pestanejar; e por fim disse:

- Fizeste, meu Lotário, o que eu esperava da tua lealdade;

em tudo seguirei o teu conselho; faz o que te aprouver, e guarda o segredo que deves em caso tão imprevisto.

Prometeu-lho Lotário; e, apenas dele se apartou, arrependeu-se inteiramente de quanto lhe havia dito. Que néscio não tinha sido expondo Camila a uma vingança, que ele por si mesmo bem podia tomar com menor crueldade, e menos ignominiosamente! Maldizia a sua doidice, culpava a sua precipitação, e não sabia modo para desfazer o que havia feito, ou sair de tamanho aperto por qualquer via razoável. Por fim, resolveu informar de tudo a Camila; e como lhe não faltava aberta para o efectuar, naquele mesmo dia a achou só. Ela, vendo que lhepodia falar, lhe disse:

- Sabereis, amigo Lotário, que tenho cá dentro uma paixão que dá cabo de mim, e milagre será se o não consegue. A tal auge é chegado o desavergonhamento de Leonela, que recebe nesta casa todas as noites um namorado seu, passa com ele até ao dia; isto tanto à custa do meu crédito, quanto assim se dão azos para juízos temerários contra mim a quem vir tais saídas desta casa a horas tão desusadas. O que me rala é não a poder castigar nem ralhar-lhe, porque o ser ela confidente das nossas intimidades me amordaça para eu calar as dela. Estou já temendo que daqui se nos haja de originar alguma desgraça grande.

Quando Camila começou a falar, Lotário imaginou seria aquilo artifício para lhe persuadir a ele que o vulto que vira sair pertencia à aia e não à ama; mas, vendo-a chorosa, afligida, e a suplicar-lhe remédio, veio a crer na verdade e, interrogando-a mais por miúdo, acabou de ficar enleado e arrependido de tudo.

Contudo respondeu que não tivesse ela pena, que ele acharia modo para atalhar a insolência da serva. Disse-lhe também o mesmo que já a Anselmo havia dito, quando instigado de seus enraivecidos ciúmes; e que estava concertado que se escondesse na recâmara para dali presenciar a pouca lealdade que ela lhe guardava. Pediu-lhe perdão de tão louca lembrança, e algum alvitre sobre o modo de a remediar e sair a salvo de tão revolto labirinto, como o em que por sua má cabeça se tinha envolvido.

Com o que a Lotário ouviu ficou pasmada Camila, e cheia de enfado, e com conceitos judiciosíssimos lhe estranhou passos tão condenáveis, e tão repreensível comportamento. Mas, como naturalmente as mulheres têm mais engenho que os homens, tanto para o bem como para o mal (ainda que em se pondo de propósito a discorrer já se lhes entra a secar a veia), logo ali de repente inventou Camila modo de se remediar uma desordem que tão sem conserto se mostrava. Disse, pois, a Lotário, que diligenciasse para que Anselmo se escondesse outro dia onde ele se tinha lembrado, e que ela saberia tirar desse escondimento comodidade para ficarem daí avante os seus tratos sem nenhum perigo; e sem lhe declarar a sua ideia toda lhe advertiu que tivesse cuidado, em sabendo que Anselmo estava escondido, de vir ele apenas Leonela o chamasse, e a quanto ela lhe dissesse lhe respondesse como responderia ainda que não soubesse que Anselmo era à escuta.

Teimou Lotário em desejar saber o resto da armadilha, porque assim com mais segurança e acerto cumpriria ele da sua parte tudo que fosse necessário.

- Nada mais é preciso - disse Camila - do que responder-me pontualmente às minhas perguntas.

Não estava resolvida a dar-lhe conta antecipada do seu projecto, por temer que ele reprovasse o que tão conveniente lhe parecia a ela, e antepusesse outros de menos probabilidades.

Não replicou e partiu Lotário; e, no dia seguinte, Anselmo, com o pretexto de ir à aldeia do seu amigo abalou; mas, tornando atrás sem demora, se foi homiziar no seu valhacouto, o que lhe foi sobremodo fácil em razão do azo que para isso mesmo lhe proporcionaram a ama e a criada.

Lá está, pois, alapado Anselmo com aquele sobressalto que bem se pode imaginar em quem está para ver por seus olhos as próprias entranhas da sua honra postas em escalpelos de anatomia. Em poucos instantes se lhe podia ir a pique o sumo bem que ele pensava ter na sua Camila.

Seguras e certas já de terem o caçador à espreita do coelho, entraram' na recâmara; mal pôs nela o primeiro pé, exclamou com um grandíssimo suspiro Camila:

- Ai, Leonela amiga! Não seria melhor que antes de eu pôr em execução o que não quero que saibas para mo não estorvares, pegasses na adaga de Anselmo que te pedi, e me atravessasses com ela este peito infame? Mas não, não o faças; fora injusto ser eu punida de um crime alheio. Antes de tudo, tomara saber o que descobriram em mim os atrevidos e desonestos olhos de Lotário, para se arrojar a patentear-me desejos tão perversos em menoscabo do seu amigo, e em meu vilipêndio. Chega a essa janela, rapariga, que ele deve por força estar já na rua à espera; mas primeiro que ele cumpra o seu ímpio desejo, cumprirei eu o meu, que é, sim, cruel, mas que para a honra já se não pode dispensar.

- Ai, Senhora minha! - respondeu a esperta Leonela senhora do seu papel. - Que deseja fazer com esta adaga? Quer-

-se matar? Ou quer matar a Lotário? Uma ou outra coisa só servirá de a desacreditar. Acho melhor que dissimule a injúria, e não consinta que o mau homem entre agora nesta casa e nos ache sós; lembre-se Senhora, de que somos duas fracas mulheres, e ele é homem, e atrevido. Como vem com aquela má tenção, apaixonado e cego, talvez que a Senhora execute o que medita, ultimará ele o que é mais de temer que a própria morte. Mal haja meu amo, o Sr. Anselmo, que tantas largas deu em casa àquele sem medo nem vergonha. Dou que o mate, como desconfio será a sua resolução, que havemos de fazer dele depois de morto?

- Que havemos de fazer? - respondeu Camila. - Deixá-

-lo-emos, e o meu marido que o enterre; deve-lhe ser delicioso o trabalho de sepultar a sua própria infâmia. Chama-o, chama-

-o, avia; quanta demora ponho em vingar-me, já me parece uma quebra na minha lealdade de esposa.

Tudo isto escutava Anselmo; e a cada palavra de Camila sentia irem-se-lhe os pensamentos transformando. Quando, porém, ouviu que estava resolvida a matar o seu amigo, deu-

-lhe um ímpeto de sair e descobrir-se para evitar a catástrofe;

mas teve-lhe mão o desejo de ver em que pararia tão galharda e honesta resolução, com propósito de sair a tempo de lhe pôr cobro.

Nisto, caiu Camila com um terrível desmaio para cima de uma cama que ali estava. Leonela começou a carpir-se, e a dizer:

- Ai desditada de mim! Se agora me expira nos braços a flor da honestidade do mundo! A coroa das mulheres honradas! O exemplo da castidade!

E como estas, outras exclamações, que todos os que lhas ouvissem a teriam pela mais lastimada e mais leal de todas as aias, e à ama por outra e perseguida Penelope.

Pouco tardou que esta volvesse em si do seu delíquio, e entrasse logo a exclamar:

- Que te demoras, Leonela, em ir chamar ao mais desleal amigo de quantos viu a Rosa divina, de quantos a noite nunca favoreceu. Acaba, corre, avia, caminha, não deixes que se esfrie com a tardança a raiva com que estou, e se esvaia em ameaças e maldições a justa vingança que aguardo.

- Já o vou chamar Senhora minha - disse Leonela -, mas dê-me primeiro essa adaga, tenho medo dessa cabeça quando se vir só, que não faça algum desatino que se haja de chorar toda a vida entre os que lhe queremos bem.

- Vai, não tenhas medo, minha Leonela, não hei-de fazer nada - respondeu Camila - porque, ainda que sou temerária e párvoa em teu conceito, em acudir por minha honra não o hei-de ser tanto como aquela Lucrécia que se matou, segundo dizem, sem ter cometido delito algum, e sem ter primeiro traspassado o peito ao causador da sua desgraça. Se eu morrer, morro vingada de quem me obrigou a vir a este sítio chorar os seus atrevimentos nascidos tão sem culpa da minha parte.

Fez-se Leonela muito de rogar antes que saísse a chamar Lotário; mas enfim sempre saiu. Enquanto se demorava, ficou dizendo Camila, como quem falava entre si e sem testemunhas:

- Valha-me Deus! Não fora mais acertado ter despedido Lotário, como tantas outras vezes o fiz, do que autorizá-lo com este chamamento a ter-me por desonesta e má, pelo menos enquanto não chego a desenganá-lo? Decerto que era melhor; mas eu é que ficava sem me vingar, e a honra de meu marido sem satisfação; não quero que saia tão às mãos lavadas e seguro de si, como há-de para aqui entrar com as suas danadas tenções;

os desejos do traidor só com a vida se podem pagar. Saiba o mundo (se isto chega a transpirar) que a pobre Camila não só zelou a fidelidade que ao seu esposo devia/ senão que até o desagravou de quem se abalançava a querer ofendê-lo. Não sei, não sei, se não seria melhor dar conta de tudo a Anselmo. Eu já tinha começado a preveni-lo na carta que lhe escrevi para a aldeia e imagino que o não ter ele acudido ao mal que eu lhe apontava, ainda que por alto, só foi efeito do seu génio leal e confiado; devia-lhe parecer impossível que um amigo fosse jamais capaz de tamanha aleivosia; nem eu mesma também o acreditei por muitos dias, nem o acreditaria nunca, se não fora ter a sua insolência ultrapassado os limites. As dádivas, as promessas, e as lágrimas contínuas ainda me não pareciam provas bastantes. Mas que valem agora todas estas reflexões? Uma resolução magnânima não carece de estímulos. Fora, traidor! A mim, vingança! Entre o falso, venha, chegue, morra, acabe, suceda o que suceder. Pura entrei para o poder do que o Céu me destinou; pura hei-de sair dele; quando muito, banhada no meu casto sangue, e no sangue peçonhento do mais refalsado amigo de quantos nunca houve em todo o mundo.

Dizia isto passeando, girando pela sala com a adaga nua, e com uns passos tão descompostos, e fazendo uns meneios e gestos, que não parecia senão alienada. Ninguém dissera ser dama fina; lembrava um rufião fora de si.

Tudo aquilo notava Anselmo detrás das armações, e de tudo se admirava. Já lhe parecia que no que vira e ouvira havia satisfação de sobra até para maiores suspeitas; já quisera até que Lotário não viesse, para se evitar ali alguma tragédia. Estava já para manifestar-se e abraçar a enganada esposa, quando se deteve ao aparecer Leonela com Lotário pela mão.

Mal pôs nele os olhos, Camila fez com a adaga um risco pelo sobrado em frente de si, e exclamou:

- Lotário, repara bem no que te digo: se te atreveres a passar esta raia, ou mesmo a chegar a ela, no mesmo instante me atravesso com este ferro. Antes que abras os lábios, escuta-me poucas palavras mais. Em primeiro lugar, quero que me digas se conheces a Anselmo meu marido, e em que opinião o tens; e,

em segundo lugar, pergunto-te se me conheces a mim. Responde-me a isto e não te perturbes, nem te demores a pensar: ambas estas perguntas são fáceis.

No era Lotário tão lerdo que, desde que ela lhe dissera que fizesse esconder Anselmo, não adivinhasse em cheio quais eram as suas intenções; por isso representou logo a sua parte com a maior naturalidade, e a mentirosa cena dos dois deixou a perder de vista a mesma verdade.

- Não pensei eu, formosa Camila, que me chamáveis para me fazer perguntas tão avessas aos intentos com que eu vinha. Se o fazeis para me demorardes a prometida recompensa, podíeis ter-me para isso preparado com mais antecipação. O bem que se deseja degenera em tormento, quando inopinadamente se nos afasta; mas para não parecer que tardo em responder-

-vos, digo que sim, conheço ao vosso esposo Anselmo;

conhecemo-nos os dois desde os nossos mais tenros anos; não quero acrescentar a isto o que vós mesma sabeis deste mútuo afecto; fora tornar-me testemunha eu mesmo do agravo que o amor me está obrigando a fazer-lhe, o amor que até maiores erros desculparia. A vós, Camila, também vos conheço, e aprecio-vos como ele vos aprecia; a não ser assim, nunca eu por méritos inferiores aos vossos iria contra o que devo a mim mesmo e aos santos ditames da amizade, ditames ou leis que neste momento estou violando forçado desta paixão despótica.

- Se tudo isso confessas - respondeu Camila -, ó inimigo mortal de quanto merece ser amado, como te atreves a aparecer diante de quem sabes serão espelho em que se mira aquele em quem tu mesmo te deveras mirar, para reconheceres que és um monstro quando pretendes agravá-lo? Agora me lembro triste de mim! O que te faria faltar ao respeito de ti mesmo havia de ser algum descuidado desalinho meu (que não quero chamar-

-lhe desonestidade); sim, alguma irreflectida falta de compostura, que por acaso me enxergarias; daquelas que nós outras as mulheres podemos inocentemente cometer quando cuidamos não ser vistas. Senão, diz-me: quando jamais correspondi eu, alma traidora, aos teus rogos com palavra ou sinal que animasse os teus infames desejos? Quando é que eu deixei de repelir

desabrida as tuas finezas? Quando cri nas tuas promessas ou aceitei as tuas dádivas? Mas como entendo que ninguém pode teimar em pretensões amorosas, sem que alguma esperança lhe negaceie, quero imputar-me a mim mesma a origem da tua impertinência. Por força algum descuido meu deve ter alimentado por tanto tempo as tuas loucas esperanças; sendo assim, quero-me castigar da tua culpa. Para veres que, sendo eu tão rigorosa contra mim, não podia deixar de o ser contigo, quis trazer-te a ser testemunha do sacrifício que vou fazer para aplacar a honra do meu virtuosíssimo esposo ultrajado por ti no mais alto ponto, e a minha também, por te haver dado alguma ocasião (se é que ta dei) para alimentares tal delírio. Torno-te a dizer que o que mais me aflige é lembrar-me que todos esses desvairados pensamentos te poderiam nascer de algum involuntário descuido meu; é esse o que eu mais desejo castigar por minha própria mão. Se o meu verdugo fosse outro, ficaria talvez mais patente a minha culpa. Antes, porém, de cometido o acto irrevogável, quero matar a quem me causou a morte, quero levar comigo quem me sacie esta ânsia de vingança que já tenho segura, vendo lá, nessas regies quaisquer, aonde eu for, a pena que dá a justiça desinteressada e inflexível ao que me arrastou a esta desesperação.

Proferidas estas palavras com uma volubilidade e força extraordinária, arremeteu a Lotário com a adaga desembainhada, com tais mostras de lha querer cravar no peito que ele mesmo esteve quase em dúvida se aquilo seria fingido ou verdadeiro, porque lhe foi forçoso valer-se de toda a sua destreza e força para se livrar do golpe. Camila tão ao natural representava todo aquele fingimento que, para lhe dar mais cor de verdade, o quis rubricar com o seu próprio sangue, porque, vendo que não podia alcançar a Lotário, ou fingindo que o não podia, disse:

- Já que a sorte no deixa que o meu justo desejo se satisfaça em cheio, pelo menos nunca há-de poder tanto, que me vede em cheio satisfazê-lo.

E, forcejando para soltar a adaga, que Lotário lhe tinha presa, arrancou-lha com efeito, e, dirigindo-lhe a ponta para parte onde a ferida não viesse a ser muito perigosa, cravou-a entre o

peito e o sovaco esquerdo, deixando-se logo cair no pavimento como desmaiada.

Estavam Leonela e Lotário pasmados do que viam, e todavia duvidosos ainda entre crer e descrer, apesar de verem Camila estendida em terra, e banhada no seu sangue. Acode Lotário açodado e espavorido, e quase sem alento, a arrancar a adaga;

mas, reconhecendo a pequenez de ferida, respirou, ficando a admirar cada vez mais a sagacidade, a prudência, e a extraordinária discrição da sua Camila; e, para representar também o seu papel, começou a fazer uma estirada lamentação sobre o corpo da formosa, como se estivera defunta, soltando muitas maldições não só contra si, mas também sobre quem a havia obrigado àqueles extremos. Como sabia que o escutava o amigo Anselmo, coisas dizia, que mais dó faziam dele próprio, do que dela, ainda que a julgassem morta.

Leonela tomou-a nos braços, e a pôs no leito, rogando a Lotário fosse buscar facultativo que viesse curar secretamente a doente. Consultava-o também sobre o que haviam de dizer a Anselmo daquele golpe de sua ama, se ele viesse antes dela curada. Lotário respondia que fizessem o que lhes parecesse, que ele por si não estava com cabeça para acertar conselhos;

que só lhe dizia que se desse pressa em vedar-lhe o sangue, porque ele ia fugir para onde ninguém o visse; e, com mostras da maior consternação, saiu.

Logo que se achou só, e onde ninguém o podia ver, não fazia senão benzer-se, maravilhado da esperteza de Camila, e dos modos tão apropriados de Leonela. Regalava-se, considerando quão inteirado não ficaria Anselmo de que tinha por mulher uma segunda Pórcia; já lhe tardava o tornarem a ver-se juntos, festejarem entre si a mentira e a verdade, mais bem caldeadas uma com a outra, do que jamais se pudera imaginar.

Leonela, que tinha já vedado o sangue da ama, sangue que não passava do indispensável para crédito do embuste, lavou a ferida com um pouco de vinho, e a ligou o melhor que soube, dizendo, enquanto a estava curando, coisas que, só por si, ainda que mais precedentes não houvera, bastariam para capacitar Anselmo de que possuía em casa uma verdadeira estátua da

honestidade. Com as palavras de Leonela travavam outras de Camila, chamando-se cobarde e pusilânime, pois lhe faltara o valor quando mais precisava dele, para destruir uma existência que tanto lhe pesava. Pedia à serva o seu parecer sobre dizer ou calar todo aquele sucesso ao marido. A serva respondia-lhe que lhe não dissesse nada, porque dzer-lho era pô-lo em obrigação de vingar-se de Lotário, o que lhe seria muito arriscado, e que toda a mulher capaz estava obrigada a não dar ao seu homem ocasiões para desavenças, antes lhas devia esconder todas.

Respondeu a senhora que lhe parecia muito bem esse voto, e o seguiria; mas que, em todo o caso, era necessário ver o que se diria a Anselmo sobre a causa daquela ferida, que ele forçosamente havia de ver. A isso respondia Leonela que lá para mentiras fossem bater a outra porta, que ela por si nem por brinco a tal se ajeitava.

- E eu então? - respondeu Camila. - Eu que nem para salvar a vida me parece que saberia desfigurar a verdade? O melhor será, segundo entendo, confessarmos-lhe tudo tal qual, do que sujeitarmo-nos a poder ficar por embusteiras.

- Sossegue, minha Senhora; de hoje até amanhã - respondeu Leonela - eu excogitarei o que lhe havemos de dizer, e talvez que a ferida, por ser onde é, se lhe possa recatar; o Céu há-de-nos ajudar, em atenção a serem os nossos motivos tão justos e honrados. Descanse, descanse, e faça por aquietar esses temores, que poderiam sobressaltar a meu amo; e o mais, tomo a dizer, deixe-o à minha conta e à de Deus, que nunca falta a quem deseja o bem.

Atentíssimo se tinha conservado Anselmo a escutar a representação tragicómica da morte da sua honra, representação tão bem improvisada, que todas as personagens pareciam mais que verdadeiras. Estava suspirando pela noite para sair de sua casa, e ir ter com o seu bom amigo Lotário, congratulando-se com ele de ter achado na mulher a margarida preciosa.

Tiveram as duas cuidado em lhe dar vaga para a saída.

Mal que chegou ao amigo, não há contar os abraços com que o apertou, os escarcéus que fez da sua felicidade e das virtudes de Camila, o que tudo Lotário lhe esteve ouvindo sem o mínimo sinal de alegria, por se lhe estar dentro revolvendo o remorso de tão cego andar o pobre homem. Ainda que Anselmo bem via aquela frieza no amigo, supunha ser efeito de ter deixado a Camila ferida, e por causa dele; pelo que entre outras coisas lhe disse que no tivesse cuidado pelo acontecido, porque o golpe era por certo muito leve; e tanto, que as duas tinham combinado em encobri-lo do próprio marido; logo, não havia de que temer. Dali em diante, era alegrarem-se e divertirem-se ambos a bom levar, pois por sua industriosa cooperação tinha, enfim, atingido nas suas relações conjugais o ápice da ventura; que já agora o único emprego do tempo seria para ele fazer versos em honra e louvor de Camila, para ficar lembrando em todos os séculos.

Aprovou Lotário com elogios tão boa determinação, e disse que por sua parte estava pronto para ajudá-lo a erigir-lhe tão merecido monumento. Em suma: ficou sendo desde aquela hora Anselmo o homem mais deliciosamente logrado de todo o mundo. Levava ele próprio por sua mão para sua casa, cuidando levar o artífice da sua glória, o destruidor de toda a sua fama. Recebia-o Camila com semblante ao parecer torcido, mas com alma risonha.

Algum tempo durou este engano, até que, passados poucos meses, a fortuna desandou a roda, e saiu à praça a maldade com tamanho artifício encoberta até então e a Anselmo veio a custar a vida a sua impertinente curiosidade.

 

EM QUE SE TRATA DA GRANDE E DESCOMUNAL BATALHA QUE TEVE D. QUIXOTE COM UNS ODRES DE VNHO TINTO, E SE DÁ FIM À NOVELA DO CURIOSO IMPERTINENTE

Pouco faltava por ler da novela, quando do quarto onde jazia D. Quixote adormecido saiu Sancho Pança todo alvoroçado a gritar:

- Acudam, Senhores! Depressa! Valham a meu amo, que anda metido na mais renhida batalha que estes olhos nunca

viram! Deus louvado! Pregou já uma cutilada no gigante inimigo da Senhora Princesa Micomicadela, que lhe cortou a cabeça pelo meio como se fora um nabo.

- Que dizes, criatura? - perguntou o padre interrompendo a leitura. - O Sancho está em si? Como diabo pode ser isso que dizeis, se o gigante está a duas mil léguas daqui?

Neste comenos, ouviu-se do aposento um grande ruído, e a voz de D. Quixote que dizia em altos gritos:

- Espera, ladrão, malandrino, velhacão; estás seguro; não te há-de valer a tua cimitarra.

E nisto soavam pelas paredes grandes cutiladas.

- Não têm que pôr-se a escutar - disse Sancho -; entrem a apartar a peleja ou a ajudar meu amo, que talvez já não seja preciso; sem dúvida, o gigante a estas horas está morto, e dando contas a Deus da sua má vida. Vi-lhe o sangue em enxurrada pelo chão, e a cabeça cortada e caída para a banda; é tamanha como um grande odre de vinho.

- Dêem cabo de mim - exclamou o vendeiro - se D. Quixote ou D. Diabo não deu alguma cutilada em alguns dos odres do tinto que lhe estavam cheios à cabeceira. Aposto que não é senão o meu vinho o que se figurou sangue a este palerma.

Assim dizendo, entrou no aposento com todos atrás de si, e acharam a D. Quixote no mais extravagante vestuário do mundo: estava em camisa, que não era tão comprida, que por diante lhe cobrisse inteiramente as coxas e por detrás faltavam seis dedos. As pernas eram esguias e fracas, cheias de felpa, e nada limpas. Tinha na cabeça um barretinho vermelho e surrado pertencente ao vendeiro; no braço esquerdo enrodilhada a manta da cama, senreira de Sancho, por motivos que ele muito bem sabia; e na direita floreava a espada nua, atirando cutiladas para todas as bandas, dando vozes como se realmente estivera pelejando com algum gigante. E o bonito era que estava com os olhos fechados, porque realmente dormia sonhando andar em batalha com o gigante.

Tão intensa havia sido a apreensão da aventura que ia acabar, que o fez sonhar achar-se já no reino de Micomicão, e a braços com o seu adversário; e tantas cutiladas tinha assentado

nos odres, supondo descarregá-las no gigante, que todo o quarto era um lagar de vinho.

Logo que o vendeiro tal presenciou, encheu-se de tamanha cólera que arremeteu com D. Quixote, e com os punhos fechados lhe começou a chover tantos murros, que, se Cardénio e o cura lho não tiram das mãos, a guerra do gigante se acabava ali para todo sempre. Pois nem com tudo aquilo acordava o pobre cavaleiro.

O que valeu foi acudir o barbeiro com uma caldeira de água fria do poço, atirando-lha para cima de chapuz. Com isso é que o fidalgo despertou; mas, ainda assim to pouco em si, que não reparou na lástima em que se achava.

Doroteia, que tinha logo enxergado o como ele estava vestido à curta, não quis entrar a ver a batalha do seu defensor com o seu inimigo.

Andava Sancho buscando a cabeça do gigante por toda a casa; como não a achava, disse:

- Está visto, que tudo aqui é encantamento: da outra vez, neste mesmo lugar em que me acho, apanhei um chuveiro de pancadaria e socos por estas ventas, sem saber quem fosse o das mãos rotas, nem ver vivalma; e agora vejo com estes cortar a cabeça e correr sangue do corpo como de um chafariz, e tal cabeça no aparece.

- Que sangue e que chafariz estás tu para aí alanzoando, inimigo de Deus e dos seus santos? - disse o vendeiro. - Não vês, ladrão, que o sangue e o chafariz não são senão esses odres, que para aí estão arrombados, e o meu rico vinho tinto que nada no quarto? Nadar veja eu nos Infernos a alma de quem mos arrombou.

- Não sei nada disso - respondeu Sancho -; o que sei é que hei-de ser tão mofino que, por não achar a cabeçorra do bruto, se me há-de desfazer o condado como sal na água.

O pobre Sancho acordado estava pior que o amo dormindo;

efeito das promessas do patrão.

Desesperava-se o vendeiro de ver a fleuma do escudeiro e o malefício do fidalgo, e jurava que desta vez não havia de ser como da passada, irem-se embora sem lhe pagarem; que lhe não

haviam de valer os privilégios da sua cavalaria para lhe não satisfazer tudo por junto, e até o que poderia custar a remendagem dos odres.

Segurava o cura as mãos a D. Quixote, o qual, supondo ter já finalizado a pendência, e estar perante a princesa Micomicadela, se lançou em joelhos aos pés do eclesiástico, exclamando:

- Já pode a Vossa Grandeza, alta e poderosa Senhora, viver desde hoje mais segura, porque já lhe não pode causar prejuízo esta mainascida criatura; e eu também de hoje em diante me dou por quite da palavra que vos obriguei, pois, com a ajuda do alto Deus, e com o favor daquela por quem vivo, tão inteiramente para convosco me desempenhei.

- Não era o que eu dizia? - disse ouvindo aquelas palavras Sancho. - Vejam lá se eu estava borracho; vejam lá se meu amo não tem já o gigante na salmoira. Certos são os touros: o meu condado está na unha.

Quem não se havia de rir com os disparates daquele par? Tal amo, tal moço! Riam-se todos, afora o taberneiro que se dava ao Diabo.

Enfim, tanto fizeram, o barbeiro, Cardérnio e o cura, que, a poder de trabalho, deram com D. Quixote na cama, ficando a dormir com mostras de grandíssimo cansaço.

Deixando-o, pois, a dormir, saíram para o portal da taberna com o fim de consolar a Sancho Pança de não haver encontrado a cabeça do gigante, mas ainda tiveram mais que trabalhar em abater a ira do vendeiro, o qual estava desesperado por causa de assim morrerem os seus odres, vítimas de uma morte repentina; e a vendeira, gritando a bom gritar, dizia:

- Em mau ponto, em minguada hora, entrou em minha casa este cavaleiro andante, a quem meus olhos tão bom fora que nunca houveram visto, pois que tão caro ele me fica: da vez passada foi-se embora com o custo da ceia de uma noite, e da cama, palha e cevada, para ele, e para o seu escudeiro, e para o rocim e o jumento, dizendo que era cavaleiro aventureiro (que má ventura lhe dê Deus a ele e a quantos aventureiros haja neste mundo) e que por isso não estava obrigado a pagar coisa alguma, porque assim o achava escrito nos aranzéis da cavalaria andantesca: agora por seu respeito veio um outro senhor e me levou a minha cauda, e, quando ma restituiu, entregou-ma com mais de dois quartos de real de prejuízo, toda pelada, de modo que não pode servir para o que meu marido a queria; e por fim e remate de tudo isto, rompe-me os meus odres, e entorna-lhes o vinho todo pelo chão, que assim lhe veja eu derramado quanto sangue tem nas veias; e não se pense que, pêlos ossos de meu pai e honra de minha mãe, não me hão-de pagar um quarto sobre outro, ou eu me não chamaria pelo nome que sou chamada, nem seria filha de quem sou.

Estas e outras razões dizia a taberneira com grande cólera e era ajudada pela sua boa criada... A filha calava-se, e somente de quando em quando se sorria.

O cura sossegou todo o barulho, prometendo-lhes satisfazer as suas perdas do melhor modo possível, assim a dos odres, como a do vinho, e principalmente o dano da cauda pelada, da qual tanta conta faziam. Doroteia consolou a Sancho Pança, dizendo-lhe que, sempre que se viesse a verificar que seu amo havia cortado a cabeça ao gigante, lhe prometia, logo que se visse senhora pacífica do seu reino, a dar-lhe o melhor condado que lá houvesse. Consolou-se Sancho com esta promessa, e assegurou à princesa que tivesse por certo, que ele Sancho vira perfeitamente a cabeça do gigante, que, por sinal mais certo, traia uma barba que lhe chegava até à cinta, e que, se agora não aparecia, era porque tudo quanto acontecia naquela casa vinha por via de encantamento, o que ele já havia experimentado noutra vez que ali estivera.

Doroteia disse que assim o acreditava, e que se não afligisse, porque as coisas correriam bem e à medida do seu desejo.

Sossegados todos, quis o cura acabar de ler a novela, porque viu que pouco faltava para concluir a sua leitura. Cardénio, Doroteia, e todos os mais lhe rogavam que assim o fizesse, e ele, para a todos dar gosto, e mesmo também pelo que lhe dava o lê-la, prosseguiu o conto que era como se segue:

“Sucedeu, pois, que, pela satisfação que a Anselmo dava a bondade de Camila, vivia numa vida contente e sem cuidados, e

Camila de propósito tratava secamente a Lotário, para que Anselmo entendesse às avessas o amor que a este ela tinha; e para maior confirmação do engano de Anselmo lhe pediu Lotário licença de não vir a sua casa, porque Camila claramente mostrava o desgosto com que o via sempre que era forçada a recebê-lo;

porém, o iludido Anselmo disse-lhe que por modo nenhum tal fizesse; e assim por mil maneiras se tomava Anselmo o fabricador da sua desonra, quando cuidava que o era do seu gosto.

Destarte corriam as coisas, quando Leonela, vendo-se de alguma sorte autorizada e apoiada nos seus amores, chegou neles a tal ponto que, sem olhar a outra coisa mais que a satisfazê-los, os deixou ir à rédea solta, fiada em que sua ama a encobria, e mesmo a advertia do modo mais fácil que teria para pô-los sempre em execução. Finalmente, numa noite, sentiu Anselmo passos no aposento de Leonela, e, querendo entrar a ver quem os dava, sentiu que lhe detinham a porta, o que lhe aumentou a vontade de abri-la, e tanto esforço fez que a abriu, e entrou dentro a tempo ainda de ver que um homem saltava pela janela para a rua; e, acudindo com ligeireza a ver se o alcançava, ou pelo menos o conhecia, nem uma nem outra coisa conseguiu, porque Leonela se abraçou com ele, dizendo-lhe:

- Sossegue, meu Senhor, e não se alvoroce, nem siga a quem daqui saltou, que é coisa minha, e tanto, que é meu esposo.

Não quis Anselmo acreditá-la, antes, cego pela ira, tirou uma adaga e quis ferir a Leonela, mandando-lhe que lhe confessasse a verdade, senão que a mataria: ela com o medo, sem saber o que dizia, lhe respondeu:

- Não me mate, meu Senhor, que eu lhe contarei coisas da maior importância que pode imaginar.

- Dize-as já - lhe disse Anselmo - se não queres morrer.

- Por agora me será impossível dizê-las - respondeu Leonela - porque estou muito perturbada; deixe-me até pela manhã, que então saberá de mim o que o há-de admirar, e esteja seguro, que o que saltou pela janela é um mancebo desta cidade, que me deu a mão de esposo.

Sossegou-se com isto Anselmo, e quis guardar o termo que a criada lhe pedia, porque nem pelo pensamento lhe passava o

poder ouvir coisa que fosse contra Camila, de cuja bondade estava to seguro e satisfeito; e assim saiu do aposento, deixando encerrada nele a Leonela, e dizendo-lhe que dali não sairia até que lhe contasse tudo quanto para contar lhe tinha.

Dali foi logo ter-se com Camila e contar-lhe, como lhe contou, tudo o que com a criada havia passado, e como esta lhe prometera de lhe dizer grandes coisas e da maior importância. O estado em que ficou Camila, ouvindo o que o marido lhe disse, fácil será a qualquer pessoa imaginá-lo; foi tamanho o temor que se apoderou dela, crendo (e quem em tal caso o não creria) que Leonela descobriria a Anselmo a sua deslealdade dela, que não teve coragem nem ânimo de esperar para ver se o seu receio se desvaneceria; e por isso, assim que lhe pareceu estar Anselmo já adormecido, muito de manso e sem ser sentida, juntou as melhores jóias que tinha e algum dinheiro e se saiu de casa indo ter direita à de Lotário, ao qual contou o que se tinha passado, e lhe pediu que a pusesse em seguro ou que se ausentassem ambos para lugar onde estivessem livres da vingança de Anselmo. Foi tal a confusão em que semelhante nova pôs a Lotário, que não sabia responder a Camila coisa que jeito tivesse, e ainda menos sabia a resolução que devia tomar. Afinal, resolveu levar Camila para um mosteiro, em que era prelada uma irmã sua: Camila consentiu nisto, e, com a prontidão e brevidade que pedia o caso, a guiou Lotário ao mosteiro, e, deixando-a lá, se ausentou imediatamente da cidade, sem dar parte da sua ausência a pessoa alguma.

Logo que amanheceu, Anselmo, sem reparar na falta de Camila, e só possuído do desejo que tinha de saber o que Leonela queria dizer-lhe, se levantou da cama e foi ao aposento onde a havia deixado encerrada: abriu a porta, e, entrando para dentro, não encontrou a Leonela, e somente viu os lençóis atados à janela por meio dos quais pudera descer-se para a rua; voltou muito triste para contar este acontecimento a Camila; porém, não a achando na cama, nem em toda a casa, ficou cheio de assombro: perguntou por ela aos criados da casa, mas nenhum lhe soube responder; como andasse de novo buscando a Camila pela casa, acertou de olhar para os seus cofres, e viu que estavam abertos e que neles faltavam as suas melhores jóias, e então foi que caiu na conta, compreendendo que a sua desventura lhe no vinha de Leonela. Sem acabar-se de vestir e mesmo assim como estava, partiu triste e pensativo para casa do seu amigo Lotário a dar-lhe parte do sucedido; porém, quando chegou à casa do seu amigo, e os criados deste lhe disseram que naquela noite desaparecera, levando consigo todo o dinheiro que possuía, sem se saber para onde fora, ficou Anselmo espantado e em termos de perder o juízo; e, para que a sua desgraça fosse ainda mais completa, quando voltou a sua casa, achou-a deserta e desamparada dos criados e das criadas, que todos se haviam dela ausentado. Não sabia o que pensasse nem o que havia de dizer ou fazer, e pouco a pouco se lhe ia esvaindo o juízo:

contemplava-se num instante privado da mulher, do amigo e dos criados; parecia-lhe achar-se desamparado do céu que o cobria, e sobretudo com a sua honra perdida, porque na fugida de Camila via qual devia ser a opinião pública que a seu respeito se preparava. Resolveu, por fim, depois de longamente meditar, ir para a aldeia de seu amigo, onde estivera quando ele próprio foi o maquinador de toda esta desventura. Fechou as portas da sua casa, montou a cavalo, e com desmaiado alento se pôs a caminho. Apenas haveria feito meio caminho, quando, acossado dos seus pensamentos, forçoso foi apear-se, e, depois de prender o cavalo a uma árvore, se deixou cair junto do tronco dela soltando ternos e dolorosos suspiros, e ali esteve quase até ao anoitecer, e a essa hora viu que vinha da cidade um homem a cavalo ao qual, saudando-o, lhe perguntou que novas havia em Florença. O homem lhe respondeu:

- As mais estranhas que desde muito tempo se lá têm ouvido, porque se conta, publicamente, que Lotário, aquele grande amigo do rico Anselmo, que morava em S. João, fugiu esta noite com Camila, mulher do referido Anselmo, do qual também se não sabe por haver desaparecido: tudo isto foi dito por uma criada de Camila, que a passada noite foi achada pelo governador a escapar-se de casa de Anselmo, descendo de uma janela para a rua por meio de uns lençóis, presos à mesma janela; na verdade, não sei pontualmente como o negócio se passou, somente sei que toda a cidade está admirada com este sucesso, porque não se podia esperar semelhante desfecho da amizade dos dois, a qual era tanta que ordinariamente eram chamados os dois amigos.

Aqui perguntou Anselmo:

- E sabe-se o caminho que levaram Lotário e Camila?

- Nem por pensamento - respondeu o cavaleiro -, apesar de haver o governador empregado a maior diligência em procurá-los.

- Adeus, e com Ele ide - disse Anselmo.

- E com Ele fiqueis - respondeu o caminhante, continuando o seu caminho.

Com tão desastradas notícias, Anselmo chegou aos termos não só quase de perder o juízo, mas até quase de perder a vida. Levantou-se, conforme pôde, e chegou a casa do seu amigo, que nada sabia do seu infortúnio; porém como este o visse chegar amarelo, seco e consumido, entendeu que de algum grande mal vinha possuído. Pediu logo Anselmo que lhe dessem um aposento onde descansasse, e juntamente tudo o necessário para poder escrever. Assim se fez, e o deixaram no aposento só e à sua vontade, porque assim o desejou ele e também que lhe cerrassem a porta. Quando se viu só, começou a sua imaginação a carregá-lo tanto com a lembrança da sua desgraça, que claramente se conheceu pelas aflições mortais que em si sentia, que a vida se lhe ia acabando; e por isso determinou deixar notícia da causa tão extraordinária da sua morte; e, começando a escrever, antes de acabar tudo o que queria deixar escrito, lhe faltou o alento e deixou a vida nas mãos da dor que lhe causou a sua curiosidade impertinente.

Vendo o dono da casa que se fizera tarde, e que Anselmo não chamava, resolveu-se a entrar no aposento dele a saber se a sua indisposição aumentava, e o achou com metade do corpo sobre a cama, e o rosto e peito debruçados sobre o bufete, em cima do qual estava um papel escrito, e Anselmo conservava ainda na mão a pena. Chegou-se o hóspede a ele, depois de primeiramente o chamar, e vendo que, chamando-o, lhe não respondia, pegou-lhe na mão e o encontrou frio, por onde conheceu que estava morto. Admirou-se e ficou grandemente magoado e aflito e chamou pela gente da casa para que presenciassem a desgraça a Anselmo acontecida; e por último leu o papel, que conheceu estar escrito por letra do mesmo Anselmo, e nele se liam as razões seguintes:

“Um néscio e imprudente desejo é quem me tira a vida: se a notícia da minha morte chegar aos ouvidos de Camila, saiba que eu lhe perdoo, porque ela não estava obrigada a fazer milagres, nem eu tinha necessidade alguma de querer que ela os fizesse; e pois que fui eu o maquinador da minha desonra, não há para que...”

Até este ponto escreveu Anselmo, por onde se conheceu que naquele momento sem poder acabar o que escrevia se lhe acabou a vida.

No dia seguinte, avisou o amigo de Anselmo aos parentes deste do que sucedera, e já então eles sabiam desta grande desgraça e também sabiam qual era o mosteiro onde se recolhera Camila, a qual estava em termos quase de acompanhar o marido na temerosa viagem que fizera, não pelas notícias que recebeu da morte deste, mas sim pelas que teve do ausente amante.

Disse-se que, ainda que se viu viúva, nem quis sair do mosteiro, nem tão-pouco professar, como religiosa, até que (não dali a muitos dias) soube que Lotário havia sido morto numa batalha que naquele tempo deu Mr. De Lautrec ao grande capitão Gonçalves Fernandes de Córdova no reino de Nápoles, onde o amigo tão tardiamente arrependido fora ter afinal: sabido isto por Camila, imediatamente professou no mosteiro, e em breves dias acabou a vida, vítima do rigor insuportável da sua melancólica tristeza.

Este foi o fim desditoso para todos que lhes veio de um tão desatinado princípio.”

- Muito bem - disse o cura - me parece esta novela; mas não posso persuadir-me que seja isto verdade, e, sendo fingido, o autor fingiu mal, porque na verdade não se pode imaginar que tenha havido no mundo um marido tão parvo, que quisesse fazer uma experiência como a que fez Anselmo: se este caso se desse

entre um namorado e a sua amante, ainda poderia admitir-se;

mas entre marido e mulher coisa é impossível de acreditar: pelo que toca ao estilo, em que se acha escrita, não me descontenta.

 

QUE TRATA DE OUTROS SUCESSOS RAROS QUE NA TABERNA SUCEDERAM

A este tempo o vendeiro, chegando à porta da venda, disse:

- Aí vem um formoso rancho de hóspedes, e, se aqui pousarem, teremos hoje um dia cheio.

- Que gente é? - perguntou Cardénio.

- São quatro homens a cavalo, com lanças e adargas, e todos eles mascarados de negro, e com eles vem também uma mulher vestida de branco, a cavalo, sobre umas andilhas, igualmente mascarada, e dois criados a pé.

O cura perguntou:

- E vêm aí já perto?

- Tão perto, que já aqui estão à porta - respondeu o vendeiro.

Ouvindo isto, Doroteia lançou um véu sobre o rosto e Cardénio se recolheu ao aposento de D. Quixote; e mal tinham feito isto, quando entraram na venda todos os que o vendeiro havia indicado; e, apeando-se os quatro cavaleiros, que eram pessoas de bela disposição e gentil aparência, foram logo ajudar a apear-se a mulher que vinha nas andilhas, e, tomando-a em seus braços, um dos quatro a levou para uma cadeira que estava junto da entrada do aposento em que Cardénio se escondera, na qual ela se sentou.

Em todo este tempo, nenhum dos novamente chegados havia tirado a máscara, nem pronunciado uma única palavra: somente a mulher, ao sentar-se na cadeira deu um profundo suspiro, e deixou cair os braços, como pessoa enferma e desmaiada. Os criados, que vinham a pé, levaram os cavalos à cavalariça.

O cura, que reparou atentamente em tudo isto, desejando saber quem era aquela gente tão silenciosa e que de um semelhante traje usava, foi onde estavam os criados e perguntou a um deles pelo que desejava saber; o criado lhe respondeu:

- Perdoai, Senhor meu, não saberei eu dizer-vos que gente é esta, e só sei que mostra ser gente principal, especialmente aquele que nos braços tomou a senhora que aí tendes visto, quando ela se apeou da cavalgadura: digo isto porque os outros todos o respeitam, e nada mais se faz senão o que ele determina e manda.

- E quem é a senhora? - perguntou o cura

- Também - respondeu o criado - não poderei dizer-vos coisa alguma a tal respeito, porque em todo o caminho ainda lhe não vi a cara; muitas vezes, isso é verdade, a tenho ouvido suspirar e dar uns gemidos tão profundos, que parece arrancar-se-lhe com eles a alma: e não é de admirar que eu e o meu companheiro ignoremos estes particulares, porque apenas há dois dias os acompanhamos, pois os encontrámos no caminho por acaso e eles nos pediram e capacitaram de vir com eles até a Andaluzia, oferecendo-nos uma boa e abundante recompensa.

O cura perguntou ainda:

- E já ouviste nomear algum deles? O criado lhe respondeu:

- Nem sombra de nome lhes ouvimos ainda, pois caminham com tão grande silêncio, que causa admiração, e não se ouve entre eles outra coisa senão somente os suspiros e soluços da pobre senhora, a qual nos move muita pena; e o que nos parece é, que ela, para onde quer que vai, vai contra sua vontade, e, segundo o seu vestido o dá a entender, ela ou é freira, ou vai para o ser, que é o mais certo; e talvez por não ser do seu gosto a vida claustral, vai triste como parece.

- Tudo pode ser - disse então o cura.

E, deixando-os, voltou outra vez para onde estava Doroteia. Esta, por ter ouvido os suspiros da mulher mascarada, movida da compaixão natural, se chegou a ela e lhe disse:

- Que incómodo tendes, minha Senhora? Se por acaso é algum daqueles que as mulheres costumam e podem curar, por terem disso uso e experiência, crede que com a melhor vontade me ofereço para o vosso serviço.

A quanto Doroteia disse não respondeu palavra a aflita senhora, e bem que por mais de uma vez repetisse aquela os seus oferecimentos, esta contudo se conservava sempre silenciosa, até que, chegando um dos cavaleiros mascarados (que era o mesmo a quem disse o criado que os outros obedeciam), disse a Doroteia:

- Não vos canseis Senhora, em oferecer coisa alguma a essa mulher, porque o seu costume é não agradecer jamais qualquer obséquio que se lhe faça; nem queirais que vos responda, se não quereis que vos diga alguma mentira.

- Nunca a disse - exclamou neste momento a que até ali se conservara calada - antes, por ser tão verdadeira e nunca usar de enredos mentirosos, me vejo agora em tamanha desventura, e disto quero eu que vós próprio deis o testemunho, pois é a minha verdade pura quem vos torna falso e mentiroso.

Estas palavras da senhora, Cardénio as ouviu clara e distintamente, porque estava tão junto de quem as proferia, que somente os separava a porta do aposento de D. Quixote, e apenas as ouviu, soltando uma grande voz, disse:

- Deus me valha, que é isto que eu escuto? Que voz é esta que me acaba de soar aos ouvidos?

A estes brados a senhora, que estava sentada na cadeira, muito sobressaltada, e não vendo quem os dava, se levantou em pé e procurou entrar no aposento: o que, visto pelo cavaleiro, a deteve, sem deixá-lo mover um passo.

Com a repentina perturbação que lhe sobreveio neste momento, quando se levantou da cadeira, à senhora lhe caiu do rosto o véu com que o encobria, aparecendo este aos olhos dos circunstantes um verdadeiro milagre de rara formosura, ainda que sem cor alguma e como assombrado, e andava com os olhos num continuado movimento perscrutando com grande afinco todos os lugares, que com a vista alcançava, e isto de tal modo, que parecia estar fora do seu bom senso, sinais estes que causaram muita pena em Doroteia e em todos quantos presenciavam este acontecimento. Tinha-a o cavaleiro segura pêlos ombros e, por estar todo ocupado em segurá-la, não pôde acudir à máscara que lhe caía como efectivamente lhe caiu; e olhando Doroteia para ele, a qual tinha abraçado a senhora, conheceu que era o seu esposo D. Fernando. Apenas o conheceu, quando, depois de dar um longo e tristíssimo gemido, ia a cair desmaiada, e decerto jazeria no chão naquele instante se junto a ela se no achasse o barbeiro, que a sustentou nos braços salvando-a por este modo de uma perigosa queda. A este tempo acudiu o cura, tirando-lhe o véu do rosto, com que se ocultava, e deitando-lhe água para reanimá-la; e, logo que a desmascarou, conheceu-a D. Fernando, e ficou como morto, mas nem por isso deixou de continuar a ter segura a Lucinda, que era quem forcejava por soltar-se das mãos dele, para ir em busca de Cardénio a quem conhecera poucos momentos antes, e do qual igualmente havia sido reconhecida.

Ouviu Cardénio o gemido de Doroteia quando ia a cair desmaiada, e cuidando que quem gemera fora a sua Lucinda, saiu do aposento todo aterrado, e a primeira pessoa em que fitou os olhos foi D. Fernando, que tinha Lucinda presa em seus braços. D. Fernando também conheceu logo a Cardénio, mas este e também Lucinda e Doroteia ficaram mudos e suspensos como quem não sabia o que lhes tinha acontecido. Todos quatro se calavam e olhavam uns para os outros: Doroteia para D. Fernando, D. Fernando para Cardénio, Cardénio para Lucinda, e Lucinda para Cardénio; porém, a primeira que rompeu o silêncio foi Lucinda, falando deste modo a D. Fernando:

- Deixai-me, Sr. D. Fernando, pelo que deveis a ser quem sois, e quando por outro respeito não queirais deixar-me, deveis fazê-lo assim para que eu possa chegar à parede de que sou pedra, e encostar-me ao apoio, de que não puderam ainda apartar-me as vossas importunações, as vossas promessas, as vossas dádivas, nem as vossas ameaças: considerai como, por desusados, e para nós desconhecidos caminhos, o Céu me trouxe para junto do esposo, e bem sabeis por mil custosas experiências, que para arrancá-lo da minha lembrança apenas a morte seria bastante; sirvam tantos e tão claros desenganos para que mudeis (se outra coisa não puderdes fazer) o amor em raiva, a vontade em despeito, e com isso acabai-me a vida, pois por bem acabada a darei eu uma vez que ela se me acabe diante do meu querido esposo: porventura ficareis com a minha morte satisfeito da constante fé, que sempre a ele guardei até ao meu derradeiro suspiro.

Neste tempo havia Doroteia voltado a si, e havia escutado tudo quanto Lucinda dissera, por onde veio a conhecer a pessoa que falava, e vendo que D. Fernando continuava em não a deixar sair de seus braços, nem respondia às suas razões, esforçando-se, quanto pôde, se levantou, e, lançando-se de joelhos aos pés dele, banhada em lágrimas, tão lastimadas como formosas, lhe disse:

- Se não é Senhor meu, porque os raios deste sol, que em teus braços eclipsado tens, te ofuscam e tiram toda a luz dos olhos, já terás visto que esta que se acha ajoelhada a teus pés é a mísera Doroteia, sempre desditosa enquanto for da tua vontade que ela o seja: eu sou aquela humilde lavradora a quem tu por tua bondade, ou por teu gosto, quiseste elevar à altura de poder chamar-se tua; sou a que, encerrada nos limites da honestidade, viveu vida contente até que às vozes de tuas importunações e dos teus sentimentos, que amorosos e justos pareciam, abriu as portas do seu recato e te entregou as chaves da sua liberdade: condescendência por ti tão mal agradecida, como bem claro o patenteia encontrares-me no lugar onde me encontras, e eu ver-te da maneira que te vejo; contudo, não quero que te venha à imaginação haverem sido desonrosos os passos que me trouxeram a este sítio, pois os que dei até aqui foram unicamente movidos pelo sentimento doloroso de me ver de ti esquecida. Quiseste que fosse tua, e de tal modo o quiseste, que, ainda que o não queiras agora, já não será possível que deixes de ser meu. Repara, Senhor meu, que o amor que te dedico pode ser recompensa da nobreza e formosura pelas quais queres deixar-me: não podes tu ser da bela Lucinda, porque és meu, nem ela pode ser tua, porque é de Cardénio; mais fácil será, se acaso bem o considerares, que possas trazer a tua vontade de novo ao amor daquela que te adora do que encaminhar a vontade da que te aborrece, e obrigá-la a que bem te queira. Tu não ignoraste a minha qualidade, tu solicitaste a minha inteireza, aproveitaste-te do meu descuido, e

muito bem sabes tudo quanto se passou para eu ceder à tua vontade; e por isso não te resta modo algum para agora te arrependeres ou pretenderes que te enganaste: e, sendo isto verdade, como é, e sendo tu tão bom cristão como és cavaleiro, qual pode serão motivo por que demoras com tão longos rodeios tornar-me venturosa no fim como no princípio me tornaste? E se acaso me não queres por tua legítima e verdadeira esposa, que é o que eu na realidade sou, deves ao menos querer-me e admitir-me por tua escrava, que na conta de venturosa e bem-andante me hei-de ter uma vez que eu chegue a ser tua. Não consintas em que publicamente seja infamada a minha honra, deixando-me e abandonando-me. Não prepares uma tão má velhice a meus pais, pois a não merecem ter aqueles que sempre fizeram, como bons vassalos, tão leais serviços aos teus antepassados; considera que pouca ou nenhuma fidalguia existe no mundo que não tenha andado por este caminho, e que a nobreza que vem pelas mulheres nada faz contra a ilustração das mais distintas famílias, por onde deves convencer-te de que a nobreza do teu sangue não há-de aniquilar-se pela mistura do meu: quanto mais que a verdadeira nobreza consiste principalmente na virtude, e se esta a ti te falta, negando-me aquilo a que tão justamente estás obrigado, as vantagens de nobre que tu possuis hás-de perdê-las, e hão-de passar todas para mim; finalmente Senhor meu, dir-te-ei, por último, que, ou tu queiras ou não queiras, a tua esposa sou eu, e disto dão testemunho as tuas palavras, que não foram mentirosas, nem agora o devem ser, se porventura não acontece que tu prezas na tua pessoa aquilo mesmo que desprezas na minha: o teu escrito, que em meu poder existe, é a prova mais clara daquilo que me prometeste na mesma ocasião em que chamavas o Céu por testemunha da promessa que me fazias; mas quando nada de tudo quanto tenho dito possa valer, apelo para a tua consciência íntima, a qual, pintando-te vivamente a verdade das minhas palavras, não deixará de por muitas vezes te afligir, roubando-te metade das tuas alegrias, e perturbando-te a miúdo os gozos e contentamento da tua vida.

Assim falou a lastimada Doroteia, e foram tantas as suas lágrimas e tão doloroso o sentimento que manifestou, que os próprios companheiros de D. Fernando e todos os que estavam ali presentes choraram com ela.

  1. Fernando a escutou sem lhe responder uma só palavra até que ela acabou de falar dando começo a tantos soluços e suspiros que somente um coração de bronze se não enterneceria em presenciar dor tão grande e tão profunda.

Lucinda olhava para ela não menos magoada do seu muito sentimento; que admirada de sua rara discrição e formosura; mas, ainda que muito desejava chegar-se a ela e dizer-lhe palavras de alívio e consolação, não lho permitiam os braços de D. Fernando que a seguravam.

Este, cheio de espanto e confusão, depois de passado um bom espaço de tempo, no qual esteve olhando para Doroteia alargou os braços, e, deixando-a livre, disse:

- Venceste, formosa Doroteia, venceste, porque não é possível haver ânimo para negar tantas verdades juntas.

Lucinda por causa do desmaio que havia sofrido, assim que D. Fernando deixou de sustê-la, ia a cair no chão, porém Cardénio, que ao pé dela estava, colocado atrás de D. Fernando para que este o não conhecesse, perdido todo o receio, e, aventurando-se a correr todo o risco e perigo, a sustentou em seus braços e ao mesmo tempo lhe disse:

- Se aos Céus piedosos apraz, que chegues a gozar algum descanso, em nenhum lugar, leal, firme e formosa Senhora minha, o encontrarás ao meu parecer mais seguro que nestes braços que te agora recebem, e que já noutro tempo te receberam quando a fortuna permitiu que eu pudesse chamar-te minha.

A estas palavras, Lucinda, firmando a vista em Cardénio, a quem começara a conhecer primeiro pela voz, agora se certificou de que era ele próprio, e, sem atender a algum honesto respeito, quase como fora de si, lhe lançou os braços ao pescoço, e, juntando o seu rosto com o dele, lhe disse:

- Vós sim Senhor meu, vós é quem sois o verdadeiro dono desta vossa cativa, por mais que a isso se oponha o poder de uma inimiga sorte, e por maiores ameaças que feitas sejam à minha vida, que só na vossa se sustenta.

Estranho espectáculo foi este para D. Fernando e para quantos ali se achavam, que a todos encheu de admiração um sucesso tão extraordinário.

A este tempo, Doroteia, que estava olhando para D. jl Fernando, como que entreviu mudar ele de cor, e que dava ares de querer vingar-se de Cardénio, porque lhe viu levar a mão ao punho da espada; e, havendo observado isto, com infinita presteza se lhe abraçou aos joelhos beijando-lhos, e tão fortemente que não o deixava movê-los, e com muitas lágrimas lhe dizia:

- Que pensas tu fazer, tu, que és o meu único refúgio, neste tão inesperado transe? Tens a teus pés a tua esposa, e aquela que querias que o fosse está nos braços de seu marido: medita se porventura te ficará bem quereres desfazer, ou se isso te será possível, aquilo que o próprio Céu tem feito, ou se te será conveniente o igualares a ti mesmo aquela que, saltando por cima de todas as dificuldades, confirmada na sua própria firmeza e lealdade, apresenta diante dos teus olhos os seus banhados em amorosas lágrimas, capazes de inundar o rosto e o peito do seu verdadeiro esposo. Por Deus, Senhor meu, te rogo e mesmo até por quem tu és te suplico, que este tão notório desengano não só não acrescente a tua ira, mas antes de tal maneira a diminua e adoce, que permitas a estes dois amantes poderem durante todo o tempo, que o Céu para isso lhes conceder, gozar descanso e tranquilidade, mostrando assim a generosidade do teu nobre e ilustre peito, e então verá o mundo que a razão tem contigo um poder muito superior ao do apetite. '

Enquanto Doroteia esteve falando, Cardénio, sem deixar de sustentar em seus braços a Lucinda, não perdia a D. Fernando de vista com determinação de, no caso de lhe ver executar algum movimento em seu prejuízo, se defender e ainda mesmo ofender, como melhor pudesse, não só a ele, mas a quantos se lhe mostrassem contrários, ainda que a vida lhe custasse.

Neste momento, porém, acudiram os companheiros de D. Fernando e o cura e o barbeiro, que tudo haviam presenciado, sem que também faltasse o bom de Sancho Pança; e rodearam todos a D. Fernando, pedindo-lhe que se dignasse de atender às lágrimas de Doroteia, e que, sendo verdade quanto ela havia

exposto, não consentisse em deixá-la iludida e enganada nas suas tão justas esperanças; que considerasse em que, não por simples efeito do acaso, mas sim por providência particular do Céu, se haviam todos ajuntado num lugar onde nenhum deles contava que lhe aparecesse um semelhante encontro; e que advertisse (acrescentava o cura) em ser a morte a única que podia separar Lucinda de Cardénio, pois, ainda quando fossem separados agora pêlos fios de uma espada, seria essa para eles a morte mais ditosa, e em que nos lances irremediáveis mostraria ele D. Fernando consumada cordura, sempre que por um digno esforço a si próprio se vencesse, o que se realizaria agora mostrando a generosidade do seu peito em permitir que os dois recebessem como benefício especial da vontade dele aquele mesmo bem que já do Céu lhes fora primeiramente concedido; e que observasse bem quanto era singular a formosura de Doroteia, à qual poucas ou nenhuma se podiam igualar, e muito menos excedê-la: que reunisse à beleza dela a humildade de que era dotada, e o amor extremo que a ele lhe tinha, e sobretudo se não esquecesse de que, prezando-se de cavaleiro e de cristão, nenhuma outra coisa podia fazer com acerto senão cumprir a palavra dada, pois, cumprindo-a, a cumpriria ao mesmo tempo para com Deus e para com toda a gente discreta, a qual sabe e conhece, que é prerrogativa da formosura levantar-se à maior alteza, ainda que esteja colocada em pessoa humilde quando se acha acompanhada da honestidade, sem que possa notar-se menoscabo de baixeza em quem, embora nascido em muito superior jerarquia, a elevar até a igualar consigo próprio; finalmente que, quando as leis do gosto se executassem, todas as vezes que não entrasse pecado nessa execução, nunca com justiça poderia ser culpado aquele que as seguisse.

A estas razões ajuntaram os demais várias outras, tais e tantas, que o valoroso peito de D. Fernando, como quem era alimentado por sangue tão ilustre, se abrandou e se deixou vencer pela verdade, a qual lhe era impossível negar, ainda que o quisesse fazer; e o sinal que deu de haver se rendido e sujeitado ao bom parecer, que lhe fora proposto, descobriu-o ele, abaixando-se e abraçando Doroteia, dizendo ao mesmo tempo estas palavras:

- Levantai-vos Senhora minha pois não é justo estar a meus pés ajoelhada aquela que eu tenho posta dentro da minha alma; se até aqui não tenho dado indícios de ser verdade o que digo agora, talvez assim o Céu o dispusesse para que, havendo eu visto a fé constante com que sou por vós amado, soubesse melhor e mais completamente apreciar-vos e estimar-vos no alto valor que mereceis: suplico-vos que não me repreendais pelo mal que tenho procedido para convosco, pois a mesma força de paixão que me moveu querer-vos por minha, foi essa a própria que me impelia a procurar o não ser vosso; e porventura para prova desta verdade, e para desculpa dos meus desvarios atentai nos olhos encantadores da, ao presente, tão alegre Lucinda, e neles encontrareis a única explicação possível de meus erros; e pois que ela achou e alcançou o que desejava, e eu achei em vós aquilo que me convém, viva Lucinda segura e satisfeita por anos dilatados e venturosos com o seu Cardénio e eu ajoelhando perante o Céu lhe rogarei que me conceda vivê-

-los com a minha Doroteia. E, havendo acabado de dizer isto, tornou de novo a abraçála, ajuntando seu rosto com o dela, com um sentimento de tão viva ternura, que necessário lhe foi ter grande cuidado em que as lágrimas não viessem dar provas indubitáveis do seu amor e do seu arrependimento.

Nisto, não o imitaram Lucinda nem Cardénio, nem mesmo quase todos os que se achavam ali presentes, porque começaram a " derramar tantas lágrimas, uns por causa da própria satisfação, e os outros por causa da alheia que não parecia senão que de acontecer acabava naquele sítio e momento algum caso desastrado: até ' Sancho Pança chorava, ainda que teve depois a sinceridade de dizer que não chorava por ternura, mas sim por então saber que Doroteia não era a rainha de Micomicão como ele pensava, e sobretudo por conhecer que as grandes mercês que esperava receber dela não passavam de um verdadeiro sonho. Juntamente com o pranto enternecido de todos, durou também por algum espaço de tempo a admiração de que todos estavam cheios.

Cardénio e Lucinda, depois de passada esta primeira impressão, se foram ajoelhar diante de D. Fernando, e lhe deram

os agradecimentos pela graça que lhes havia concedido com tão corteses razões, que D. Fernando não sabia o que havia de responder-lhes, e por isso contentou-se em os levantar do solo e abraçá-los com mostras de grande delicadeza e de muito amor. Depois, perguntou a Doroteia como fora a sua vinda a uma terra e lugar tão distante da sua naturalidade e habitação.

Doroteia em breves e discretas palavras lhe referiu tudo quanto havia dantes já contado a Cardénio, e desta sua história gostaram por tal modo D. Fernando e os seus companheiros, que lhes deu ocasião para sentirem grande pena em não durar mais tempo aquela narração: tanta foi a habilidade e graça com que ela soube contar a série das suas desventuras.

Assim que Doroteia acabou de falar, contou também D. Fernando o que lhe acontecera na cidade depois que encontrou o papel que Lucinda guardava em seu seio, no qual declarava não poder ser sua esposa por isso que já o era de Cardénio: disse que a quis matar e o houvera assim feito se os pais o não impedissem, e que saíra da casa despeitado e corrido com a determinação de vingar-se com mais comodidade, quando se oferecesse ocasião oportuna para isso, e que depois soube como Lucinda faltara da casa paterna sem que alguém soubesse dizer para onde ela fora, e somente, passados alguns meses, lhe viera notícia certa de que se achava num convento com a firme resolução de ali passar toda a sua vida, uma ve que lhe fosse vedado ser esposa de Cardénio; e que logo que disto se certificou, escolhendo para seus companheiros aqueles três cavaleiros que ali estavam, se partira para o lugar onde o convento se achava situado; mas que fizera isto com grande cautela para evitar que, sabendo-se estar ele ali, houvesse no mesmo convento mais cuidadosa guarda: que um dia em que a portaria estava aberta foi lá com os seus três companheiros, e, deixando dois para tomarem conta da porta, ele, com o terceiro, entrara pelo interior do convento em busca de Lucinda, a qual encontraram no claustro falando com uma freira; e, arrebatando-a inesperadamente, a levaram do convento a um lugar, onde se proveram de tudo que lhes era necessário para a conduzirem na jornada que vinham fazendo, e que tudo isto puderam fazer muito à vontade

por estar o convento um pouco solitário e retirado da povoação. Disse mais que, logo que Lucinda se viu no poder dele perdeu os sentidos, e que, quando voltou a si, outra coisa não fizera mais que chorar e suspirar, guardando sempre o mais profundo silêncio; e que, assim calados todos, escutando-se apenas os soluços lacrimosos da raptada, haviam caminhado até aquela venda, que para ele fora como o haver chegado ao Céu, onde unicamente se rematam e finalizam todas as desgraças da Terra.

 

NO QUAL SE PROSSEGUE COM A HISTÓRIA DA FAMOSA INFANTA DE MICOMICÃO, E DE OUTRAS GRACIOSAS AVENTURAS

Tudo quanto se havia ultimamente passado fora visto por Sancho, o qual ouvira quanto se dissera, com grande dor da sua alma, pois que repentinamente se lhe desfaziam e tornavam em fumo as esperanças bem fundadas que tinha de seus futuros aumentos, pois não era a linda princesa de Micomicão senão simplesmente a lavradora Doroteia, o gigante não passava de D. Fernando, e tudo isto sucedia enquanto seu amo dormia a sono solto, sem saber as grandes novidades ocorridas.

Doroteia não podia ainda acabar de persuadir-se de que tudo aquilo era um sonho, que a alucinava; Cardénio estava possuído de igual pensamento; e Lucinda tinha as mesmas ideias destes dois a respeito do acontecido.

  1. Fernando dava agradecimentos ao Céu por havê-lo livrado de um labirinto, onde se achava metido e tão arriscado a perder o seu crédito e a sua alma: finalmente, todos os que se achavam na venda estavam satisfeitos e contentíssimos pelo bom desfecho que haviam tido negócios tão perigosos e desesperados.

Tudo o cura, como discreto que era, punha no seu lugar, e dava a cada um os parabéns pelo descanso e boa ventura que alcançara; porém, quem sentia mais gosto e mais verdadeiro júbilo era a vendeira por haver apanhado a Cardénio e ao cura a promessa de lhe pagarem todos os interesses e danos que por causa de D. Quixote lhe houvessem sobrevindo.

Entre tanta gente contente só o pobre Sancho, como já se disse, era o triste, o aflito, e o desventurado, e com aspecto cheio de melancolia entrou no aposento de seu amo, o qual naquele momento acordara e lhe disse:

- Bem pode Vossa Mercê, Senhor Triste Figura, dormir largamente e à sua vontade, sem se dar ao trabalho de excogitar o meio que há-de ter para dar cabo do gigante, e restituir a princesa ao seu reino, porque já tudo isto se acha feito e concluído.

- Isso o creio eu muito bem - respondeu D. Quixote - porque travei com o gigante a mais descomunal e desaforada batalha que penso terei em todos os dias da vida que me restam; e de um revés, zás, lhe cortei a cabeça, e foi tanto o sangue que ele deitou, que corria pelo solo formando um regato que parecia ser de água!

- Que parecia de vinho tinto, muito melhor pudera Vossa Mercê dizer - replicou Sancho - porque quero que Vossa Mercê saiba, se é que ainda o não sabe, que o gigante morto não era mais nem menos que um odre partido e o sangue seis cântaros de vinho tinto que ele tinha na barriga, e a cabeça cortada é a pata que me pôs, e leva o Diabo tudo.

- Que é isso que dizes, louco? - disse D. Quixote. - Acaso te deu volta ao miolo?

- Levante-se Vossa Mercê - respondeu Sancho - e verá as boas obras que tem feito e quanto elas lhe hão-de sair caras; e verá mais a rainha convertida numa dama particular chamada Doroteia, com outros sucessos, que, se bem os ficar sabendo e conhecendo, terá ocasião de muito se admirar.

- Nada disso - disse D. Quixote - me maravilha, porque, se bem te lembras já da outra vez que nesta venda pousámos, te fiz observar que tudo quanto aqui se passava era por arte de encantamento, e não seria coisa digna de grande reparo que acontecesse agora o mesmo.

- Assim o acreditaria eu - replicou Sancho - se a minha manteação houvera sido também dessa natureza; porém não o foi, senão coisa muito real e verdadeira: e eu bem vi este mesmo vendeiro, que ainda hoje aqui está, sustentar uma das pontas da manta, e me fazia andar numa roda-viva, da manta lá para as alturas do céu, com grande donaire e brio e com tantas risadas, como força e valentia; e quando as pessoas, que figuram, são conhecidas, tenho para mim, ainda que seja um homem simples e pecador, que não pode haver encantamento algum, e que há somente um real movimento de costelas e uma fortuna na verdade desgraçadíssima.

- Muito bem, tudo Deus há-de remediar - disse D. Quixote -; dá-me os meus vestidos, e deixa-me sair lá para fora, porque me quero informar e ver os sucessos e transformações que me contas.

Deu-lhe Sancho os vestidos, e, enquanto ele se esteve vestindo, narrou o cura a D. Fernando e aos mais que ali se achavam as loucuras de D. Quixote e o artifício de que se haviam servido para tirá-lo da Penha Pobre, onde ele estava imaginado fazê-lo assim pêlos desdéns de sua senhora: mais lhes referiu todas as aventuras, contadas por Sancho, das quais se não admiraram pouco e se riram muito por lhes parecer, o mesmo que parecia a toda a gente, ser este um género de loucura o mais extraordinário, que podia caber em pensamento disparatado.

O cura ainda acrescentou que, pois a boa ventura da sra. Doroteia lhe impedia passar adiante com a empresa começada, mister era inventar e achar outro meio de levar D. Quixote para a sua terra natal.

Ofereceu-se Cardénio de continuar o começado, dizendo que sua Lucinda representaria suficientemente a pessoa de Doroteia.

- Não - disse D. Fernando -, não há de ser assim, porque eu quero que Doroteia prossiga o que começou, e, uma vez que a morada deste bom cavaleiro não seja muito distante deste sítio, muito folgarei com que se procure o remédio do seu mal.

- A morada de D. Quixote - disse alguém - está daqui a dois dias de jornada.

- Pois bem - continuou D. Fernando -, ainda que a distância fosse maior que essa grande gosto me dará o caminhá-la à conta de praticar obra tão meritória.

A este tempo se apresentou D. Quixote a quantos ali estavam, armado de todos os seus petrechos, trazendo na cabeça o elmo de Mambrino, bem que muito amassado, no braço esquerdo o seu escudo ou rodela, e na mão direita o lanção, em que se apoiava.

Pasmou D. Fernando e todos quantos conheciam ento pela primeira vez a D. Quixote, quando viram seu rosto amarelo e seco, e de meia légua de comprido, a desigual estranheza da sua armadura, e os seus pausados ademanes, e guardaram silêncio, esperando ouvir o que ele dizia.

  1. Quixote, com muita gravidade e muito sossego, pondo os olhos na formosa Doroteia, falou assim:

- Acabo de ser informado, bela senhora, por este meu escudeiro, de que a Vossa Grandeza se acha aniquilada, e destruído o vosso próprio ser, porque de rainha e grã-senhora, que éreis, vos haveis tomado numa donzela particular. Se isto aconteceu por ordem do nigromante rei vosso pai, receoso de que eu vos não prestasse o necessário e devido auxílio, declaro que ele não sabe, nem nunca soube, por onde estas coisas correm, e que completamente ignora as histórias cavaleirescas; porque, se as houvera lido e compreendido por tão longo espaço de tempo, e com tamanha atenção, como eu as li e compreendi, teria visto a cada passo o modo fácil com que outros cavaleiros, de menor fama que a minha, deram remate a empresas muito mais dificultosas, pois me parece não ser negócio de grande polpa matar um giganteto, embora ele seja muito arrogante, e ainda não há muitas horas que eu me vi com ele, e... mas quero calar-me aqui, para que não me digam que minto; é certo, porém, que o tempo, descobridor de todas as verdades, quando menos o pensarmos, falará por mim.

- Viste-vos, mas foi com dois odres de vinho, e não com gigante algum - disse nesta ocasião o vendeiro.

  1. Fernando mandou-lhe que se calasse, e que por modo nenhum interrompesse a prática de Quixote, o qual, continuando, disse:

- Finalmente, alta e deserdada senhora, se, pela causa que indiquei, vosso pai fez na vossa pessoa estas metamorfoses, não

lhe deis crédito, porque não pode haver na terra algum perigo, por maior que seja, através do qual no abra caminho a minha espada, que, cortando a cabeça ao vosso inimigo, me habilitará a colocar sobre a vossa, dentro em breves dias, a coroa real, que vos foi roubada.

Aqui deixou D. Quixote de falar, e esperou que a princesa lhe respondesse, a qual, como já sabia ser a vontade de D. Fernando que se passasse adiante com o começado engano até deixar a D. Quixote na sua terra, com muita gravidade e donaire respondeu:

- Quem quer que vos disse, valoroso Cavaleiro da Triste Figura, que eu troquei ou mudei o meu antigo ser, faltou à verdade, porque ainda hoje sou a mesma que fui ontem: é certo que alguma mudança fizeram no meu estado alguns acontecimentos felizes, que o tornaram o melhor que eu poderia desejar; porém, não foi isso bastante para eu deixar de serão que era, nem para perder o pensamento que ainda conservo de amparar-me do valor do vosso braço invencível, pensamento este em que sempre estarei firme; portanto Senhor meu, digne-se a vossa bondade de restituir seu crédito honroso ao pai que me gerou, e tenha-o sempre na conta de homem prudente e entendido, porque foi ele que com a sua ciência descobriu um meio tão verdadeiro, quanto fácil, para remediar a minha desgraça, pois estou convencida de que sem o vosso auxílio jamais chegaria a ter a ventura que actualmente tenho; e em tudo isto vos digo a verdade pura, da qual são testemunhas a maior parte destes senhores aqui presentes. Agora só nos resta continuar amanhã o nosso caminho, porque hoje já só poderíamos fazer uma jornada muito pequena, e pelo que pertence ao bom sucesso da nossa empresa, tudo entrego nas mãos de Deus, e tudo confio no esforço do vosso peito.

  1. Quixote, ouvindo o que disse Doroteia, voltou-se para Sancho, e, com mostras de uma grande cólera, lhe disse:

- Agora te digo eu, meu Sanchinho, que és o velhaquinho mais descarado de toda a Espanha: diz-me, ladrão vagabundo, não me asseguraste, ainda há pouco que esta princesa se havia mudado numa donzela chamada Doroteia, e que a cabeça, que cortei ao gigante, era a pata que te pôs, isto junto com outros disparates tais, que me puseram na maior confusão pela qual hei passado em todos os dias da minha vida? Juro (e ao dizer isto levantou os olhos para o céu e apertou os dentes), que estou para fazer em ti um estrago tamanho, que ponha o sal na moleira a todos quantos escudeiros mentirosos hajam de servir daqui em diante aos cavaleiros andantes do mundo inteiro.

- Acalme-se Vossa Mercê, meu Senhor bom - disse Sancho -, pois bem pode haver acontecido que eu me enganasse no que respeita à mudança da Senhora Princesa de Micomicão; porém, naquilo que respeita à cabeça do gigante, ou pelo menos aos furos dos odres, e ao ser vinho tinto o sangue derramado, por Deus que me não enganei, pois os odres ali estão todos esburacados perto da cama de Vossa Mercê, e o vinho tem feito do seu aposento um verdadeiro lago; e senão, ao fritar dos ovos o verá, quero dizer, que o verá quando aqui o Senhor Vendeiro lhe der em rol a conta do que Vossa Mercê lhe deve: enquanto a que a Senhora Rainha seja ainda a mesma que dantes era, no íntimo da alma me alegro eu com isso, porque hei-de ter rasca na assadura, como membro que sou da família.

- Agora te digo eu, Sancho - respondeu D. Quixote -, que és completamente um parvo, e perdoa-me e basta.

- Basta - disse então D. Fernando - e não se fale mais nisto; e pois que a Senhora Princesa já determinou que amanhã se contnuaria a jornada, que não se pode continuar hoje por ser muito tarde, cumpra-se o que ela manda, e esta noite poderemos nós passá-la em agradável conversação; e, chegando o dia de amanhã, todos queremos acompanhar ao Sr. D. Quixote, e ter a honra de presenciar as grandes e assombrosas façanhas que há-de fazer no decurso desta dfícil empresa, de que se encarregou.

- Sou eu quem tem de servir-vos e acompanhar-vos - respondeu D. Quixote - e muito agradeço o favor com que sou tratado, e a boa opinião em que sou tido, a qual procurarei, quanto caiba em minhas forças, tornar verdadeira, ainda que perca a vida neste empenho, e mesmo mais que a vida, se mais que ela me é possível perder.

Outras semelhantes expressões de cortesia e oferecimentos continuaram a trocar-se entre D. Quixote e D. Fernando; mas a tudo impôs silêncio um passageiro que naquele momento entrou na venda, o qual pelo seu vestuário mostrava ser cristão chegado de terra de Mouros, pois usava de uma casaca de pano azul com meias mangas, de abas curtas, e sem gola, e os calções e o barrete eram também de cor azul; trazia uns borzeguins feitos segundo a moda dos Mouros, e um alfange suspenso de um talabarte lançado a tiracolo. Logo atrás deste passageiro, entrou uma mulher vestida à mourisca, com uma touca na cabeça, e o rosto encoberto, a qual viera a cavalo num jumento, e trazia um barretinho de brocado, e uma almalafa que a cobria desde a cabeça até aos pés.

O homem era de forma robusta, de agradável presença, contando pouco mais de quarenta anos de idade, algum tanto moreno, barba bem posta e grandes bigodes, e, se estivera mais bem vestido, pelo seu ar e pelas suas maneiras, todos o julgariam como pessoa bem-nascida e com boa educação.

Apenas entrou, pediu um aposento, e porque lhe disseram que não o havia mostrou-se magoado, e, chegando-se para o pé do jumento, em que vinha a que parecia moura, apeou-a tomando-a nos braços.

Lucinda, Doroteia, a vendeira, sua filha e Maritornes, atraídas pelo traje novo e por elas nunca visto, rodearam a moura, e Doroteia, sempre comedida, graciosa e discreta, parecendo-lhe que os dois adventícios se afligiam pela falta de aposento, disse à mulher:

- Não vos cause pena Senhora minha, a falta de comodidades que encontrais aqui, porque comodidades são coisas que nunca se encontram em casas tais, como esta; porém, contudo, se gostardes de vos aposentar connosco (ao dizer isto sinalou a Lucinda), porventura vos convencereis pelo decurso de todo este caminho de que não foi hoje o dia em que pior albergue encontrastes.

Não respondeu nada a estrangeira a isto, nem fez outra coisa mais que levantar-se do lugar onde se havia sentado, e, cruzando as mãos ambas sobre o peito, inclinou a cabeça e curvou o corpo, como quem assim queria mostrar o seu agradecimento.

Pelo silêncio em que se conservou, e pelas demonstrações que a estrangeira fez, ficaram persuadidas as que a rodeavam de ser sem dúvida ela alguma moura, que não sabia falar a linguagem dos cristãos.

Acudiu nesta ocasião ali o cativo, que até aquele tempo estivera ocupado com outras coisas, e, vendo que a sua companheira nada responda a quanto as outras mulheres lhe perguntavam, disse:

- Senhoras minhas, esta donzela apenas entende a minha língua, porém não sabe falar outra senão a da sua terra e por isso cuido que não tem respondido, e nem por certo responderá ao que lhe seja perguntado.

- Não mais se lhe pergunta - disse Lucinda - senão se ela quer por esta noite aceitar a nossa companhia, que com a melhor vontade lhe oferecemos, assim como também lugar no aposento, em que havemos de repousar, e onde lhe procuraremos todas as comodidades possíveis, pois é dever nosso obsequiar os estrangeiros, sobretudo sendo eles do nosso sexo.

- Por ela e por mim vos beijo Senhora, as mãos, e em muito aprecio a mercê que tendes a bondade de fazer, a qual não pode deixar de ser muito grande sendo feita em tal ocasião e por pessoas tais como tudo me está indicando que vós sois.

- Dizei-me, Senhor - perguntou Doroteia -, esta senhora é cristã ou é moura? O seu traje e o seu silêncio nos levam a pensar que ea não é o que nós desejáramos que fosse.

- Moura é no traje e no corpo - respondeu o cativo -, porém na alma é já uma verdadeira cristã, porque tem ardentíssimos desejos de o ser.

- Logo ainda não é baptizada? - replicou Lucinda.

- Não teve ainda ocasião oportuna de baptizar-se - disse o cativo -; desde que saiu de Argel, sua terra, e, como até agora não correu algum risco a sua vida, entendi poder dilatar-lhe o baptismo até que estivesse bem instruída do que ele é, e das cerimónias que manda praticar a nossa Santa Madre Igreja; espero, porém, que Deus será servido de que ela dentro de breve tempo se baptize com a decência devida à qualidade da sua pessoa, a qual é superior ao que mostra o seu vestuário e o meu.

Com estas razões acendeu o cativo em todos quantos o escutavam uma grande curiosidade e veementíssimo desejo de saberem quem ele era, e quem era a moura, mas nenhum lho quis perguntar por então, atendendo a que era mais própria aquela hora para o descanso que para ouvir a história da vida dos dois.

Doroteia tomou pela mão a desconhecida e a fez sentar junto de si, pedindo-lhe que se desembuçasse; ela olhou para o cativo, como quem o consultava sobre o que lhe diziam, e o que ela devia fazer; e ele, falando-lhe em língua arábica, lhe disse que lhe pediam para descobrir seu rosto, e que assim o fizesse;

ao que, obedecendo descobriu um rosto tão perfeito que Doroteia a teve por mais formosa que Lucinda, e Lucinda por mais formosa que Doroteia e todos os circunstantes foram de opinião que, se alguma mulher havia que pudesse igualar as duas, era sem dúvida a moura, e alguns chegaram mesmo a achar que ela as excedia em certos pontos de perfeição; e, como a formosura tenha por especial prerrogativa, e por graça singular o poder de ganhar as vontades e atrair os ânimos, logo todos se renderam ao desejo de servir e amimar a bela moura; e D. Fernando perguntou ao cativo como ela se chamava, ao que este respondeu que se chamava Leia Zoraida; e porque ela ouviu e entendeu a pergunta e a resposta, acudiu com muita pressa, e disse com uma espécie de pesar muito engraçado:

- Não, não Zoraida, Maria, Maria - dando assim a entender que se chamava Maria, e não Zoraida.

Estas palavras e o grande afecto, com que a moura as pronunciou, fizeram borbulhar as lágrimas nos olhos de alguns dos ' que ali estavam, particularmente das mulheres, que por sua natureza são ternas e compassivas.

Abraçou-a Lucinda com muito amor, dizendo-lhe:

- Sim, sim, Maria, Maria. Ao que a moura respondeu:

- Sim, sim, Maria, Zoraida, macange - que quer dizer, não. A este tempo já era chegada a noite, e por ordem dos quevinham com D. Fernando havia o vendeiro com grande cuidado e diligência preparado a ceia o melhor que lhe foi pôssível.

Logo que foram horas competentes, sentaram-se todos a uma mesa muito comprida e estreita, porque na venda uma mesa regular, redonda, ou quadrada, era coisa que não existia, e deram a cabeceira ou lugar principal, apesar das suas recusas, a D. Quixote, o qual quis que ao seu lado se sentasse a sra. de Micomicão, porque ele era o seu cavaleiro e defensor.

Em seguida, sentaram-se Lucinda e Zoraida, e fronteiros a estas D. Fernando e Cardénio, e logo os outros cavaleiros, e do lado das senhoras e ao pé delas o cura e o barbeiro: e deste modo cearam com grande satisfação, a qual subiu de ponto quando viram a D. Quixote deixar de comer, e, movido por outro espírito, semelhante àquele que o fez falar, quando ceou com os cabreiros, principiar o discurso seguinte:

- Verdadeiramente, Senhores meus, se bem se reconsideram as coisas, so muitas vezes extraordinários e inauditos os acontecimentos presenciados por todos os que professam a ordem da cavalaria andante; senão, dizei-me: quem seria o habitador deste mundo que, entrando pela porta deste castelo, e vendo-nos estar do modo que estamos, pudesse ajuizar e crer que nós somos quem somos? Quem pensaria que esta senhora, aqui ao meu lado sentada, é a grande rainha que todos nós sabemos, e que eu sou aquele Cavaleiro da Triste Figura, cujo nome a boca da fama por aí tem espalhado? Já se não pode duvidar que este ofício e ocupação excede a todos aqueles e aquelas que os homens inventaram, e tanto mais deve ser estimado, quanto a maiores perigos está sujeito; e não ousem contradizer-me os que pretendem sustentar que as letras levam vantagem às armas, pois eu lhes afirmarei, sejam eles quem quer que forem, que não sabem o que dizem: porque a principal razão em que os tais se fundam é em que os trabalhos do espírito excedem muito os do corpo, e que as armas somente ao corpo pertencem e por ele só são exercitadas; como se uma tão nobre ocupação fosse ofício próprio daqueles que levam a sua vida conduzindo cargas, os quais não precisam senão de possuir forças materiais; ou como se isto, a que chamamos armas nós os que fazemos profissão delas, não precisasse de muitos actos de fortaleza, os quais carecem na sua execução, para que esta seja

perfeita, de muita inteligência em quem os executa: ou como se o guerreiro, que tem a seu cargo o comando de um exército, ou a defesa de uma povoação sitiada, no tivesse necessidade de trabalhar igualmente com o espírito e com o corpo; senão vejase se é possível conseguir por meio das forças corporais e materiais o penetrar as intenções do inimigo, seus projectos, e seus estratagemas, e prevenir as dificuldades e os danos que ele pode suscitar e opor, tudo isto coisas tocantes privativamente ao entendimento, e nas quais o corpo nenhuma parte pode ter. Sendo, pois, ponto verificado que as armas requerem tanta força de espírito como as letras, examinemos agora qual dos dois espíritos é o que trabalha mais, se o do letrado, se o do guerreiro. Para isto se conhecer bem, deve examinar-se com atenção o destino a que cada um dos dois se encaminha, porque em mais alto valor se há-de apreciar a intenção daquele que tem por objecto alcançar um fim mais glorioso e nobre. O fim a que as letras se dirigem (e não falo agora das divinas, que aspiram somente a encaminhar as almas para o Céu, fim este tão sem fim, que nenhum outro se lhe pode igualar), quero dizer, as letras humanas, é estabelecer com clareza a justiça distributiva, e dar a cada um o que é seu, e o procurar e fazer que as boas leis se guardem e se cumpram: fim por certo este generoso, e digno de grande louvor; porém, não de tanto como merece aquele a que as armas atende, o qual consiste em segurar a paz, que é o maior bem que os homens podem nesta vida desejar; e observe-se que as primeiras boas novas, que teve o mundo e tiveram os homens, foram as anunciadas pêlos anjos na noite que para nós todos foi luminosíssimo dia quando nos ares cantaram: Glória seja dada a Deus nas alturas, e na Terra paz aos homens de boa vontade; e a saudação que o melhor Mestre da Terra e do Céu ensinou aos Seus companheiros e favorecidos foi dizer-lhes que, quando entrassem nalguma casa, falassem assim: Paz seja nesta casa; e muitas outras vezes lhes disse: Dou-vos a minha paz, a minha paz vos deixo, a paz seja convosco; bem como jóia e prenda dada e deixada por tal mão, jóia sem a qual não pode haver algum bem nem na Terra nem no Céu; esta paz é o verdadeiro fim da guerra, pois o mesmo é dizer armas do que dizer guerra. Assentada, pois, esta verdade, que o fim da guerra é a paz, e que nisto levam as armas vantagem às letras, tratemos agora dos trabalhos do letrado com o seu corpo e dos do professor das armas, e veremos quais são maiores.

Por esta maneira e com estes bons termos prosseguia D. Quixote na sua prática, de modo que nenhum dos que o escutavam podia persuadir-se de que na realidade ele estava louco;

antes, pelo contrário, como a maior parte dos que o ouviam eram cavaleiros, a quem as armas são sempre anexas, o ouviam com grande prazer, e ele continuou dizendo:

- Digo, pois, que os trabalhos de um estudante de letras humanas são estes: o principal é a pobreza, não porque todos seam pobres, mas para pôr o caso em todo o extremo a que ele pode chegar; e o haver eu dito que o estudante padece pobreza, penso que não podia dizer mais a respeito da sua má sorte, porque quem é pobre, coisa nenhuma tem boa. Esta pobreza tem suas divisões, por que umas vezes vem ela acompanhada pela fome, outras pelo frio, outras pela falta de vestuário, e, finalmente, outras por tudo isto junto; contudo, não digo que seja tanta esta pobreza que o estudante não coma, embora o faça mais tarde do que se usa, ainda que a comida lhe venha do que sobeja aos ricos; grande miséria por certo é esta, a que vulgarmente se chama viver da sopa alheia, e também encontra nalgumas ocasiões alheio braseiro ou chaminé, onde, se não pode aquentar-se tanto quanto deseja, ao menos poderá minorar o frio que o persegue, e, por último, igualmente não digo que lhe falte absolutamente uma cama com roupa suficente onde durma coberto. Não quero entrar aqui noutras miudezas, tais como falta de camisas e de sapatos, vestuário velho e usado, e aquele prazer esfomeado que mostra quando a sua boa ventura o leva a ser comparsa nalgum jantar abundante e bem cozinhado. Por este caminho que tenho descrito, dicultoso e áspero, tropeçando aqui, caindo ali, levantando-se acolá, e tornando outra vez a cair cá, chegam os letrados ao grau que desejam: este grau tem levantado a muitos, os quais, havendo passado através de Sirtes, Cilas e Caríbdis, como que voando bafejados pelo hálito favorável da sua boa fortuna, chegaram a mandar e governar o

mundo sentados na sua cadeira curui, trocada já sua antiga fome em grande fartura, seu frio em óptimo calor, seus vestidos velhos e rapados em vistosas galas, o seu dormir sobre uma esteira em se deitarem agora e descansarem em leitos adornados com olandas e damascos; prémio é sem dúvida este justamente merecido pela sua virtude; porém, comparando-se os trabalhos com os do militar guerreiro, ficam longe destes a perder de vista como agora vou mostrar.

 

EM QUE SE CONTINUA O DISCURSO QUE FEZ D. QUIXOTE SOBRE AS ARMAS E LETRAS

continuou D. Quixote, dizendo:

- Visto começarmos, tratando do letrado, pela pobreza e pelas divisões várias com que esta o ataca, examinemos se o soldado é mais rico; e este exame nos fará conhecer que ninguém entre a própria pobreza é mais pobre que ele, porque vive atido a um miserável pagamento que vem ou tarde ou nunca, ou àquilo que por suas mãos pode pilhar, muitas vezes com grande perigo da sua vida e mesmo da sua consciência. Muitas vezes é tamanha a sua nudez que um esfarrapado colete lhe serve de gala e de camisa, e, no rigor do Inverno, quando se acha exposto na campina rasa às inclemências do tempo, costuma afugentar o frio com a própria respiração, a qual por isso que sai de uma boca onde falta o calor, tenho para mim que há-de sair igualmente fria, e que nada aquecerá apesar das leis estabelecidas pela Natureza. Em vão espera restaurar-se de todos estes incómodos na cama, que o aguarda, quando chegar a ' noite, cama que só tem de bom não ser estreita senão se ele assim o quiser, pois lhe pode dar a largura que lhe aprouver, medindo muitas braças de terra, se isso for de seu gosto, e depois virar-se e revirar-se à sua vontade, com a certeza de que nunca os lençóis se lhe enrodilharão ao pescoço. Chega depois de tudo isto o dia e a hora de receber o grau de seu exercício: chega um dia em que lhe colocam na cabeça uma compressa quase em forma de barrete feita de fios para curar-lhe algum balázio que haja atravessado a cabeça ou o tenha estropiado nos braços ou nas pernas; e, quando isto assim não aconteça, porque o Céu piedoso o conservou vivo e são, pode muito bem ser ficar sempre na pobreza em que dantes estava, e somente sairá deste seu estado desgraçado, e porventura medrará alguma coisa, se houver muitos encontros e batalhas com os inimigos, e se em todos estes arriscados lances sair vencedor; mas esta qualidade de milagres raras vezes aparece. Mas dizei-me, meus Senhores, se bem o tendes considerado, não so os premiados e gananciosos na guerra muito menos que os que morreram nela? Sem dúvida me respondereis que não há aqui comparação possível de fazer-se, pois se não pode formar jamais essa conta exacta dos mortos na guerra, enquanto que dos que escaparam vivos e alcançaram prémios e distinções a lista se poderá compor com três algarismos apenas. Tudo isto sucede de uma maneira contrária entre os letrados, os quais com mais ou menos abundância sempre têm de que sustentar-se e não padecem as inclemências que perseguem os militares, e por isso claramente se vê que o trabalho do soldado é muito maior e o prémio muito mais pequeno. Bem sei que a isto se pode responder que é mais fácil premiar a dois mil letrados do que a trinta mil soldados, porque aqueles premeiam-se dando-lhes empregos, que são exclusivamente próprios da sua prossão, e estes somente podem premiar-se com as fazendas e bens do senhor a quem servem, prémio, cuja impossibilidade fortifica mais a razão do meu dito; porém deixemos este ponto, que é labirinto de dificultosíssima saída, e voltemos à preeminência das armas sobre as letras, matéria ainda hoje em dia mal averiguada por causa das raões que se apresentam pró e contra, de uma e de outra parte. Ouçamos o que dizem as letras quando afirmam que sem elas não podem as armas sustentar-se, porque também a guerra tem as suas leis, às quais está sujeita, e que estas leis devem pertencer à inspecção das letras e dos letrados, que são em tal caso os juizes competentes; ouçamos agora o que respondem as armas, as quais dizem que sem elas não podem manter-se as leis, porque são as armas as defensoras naturais da república as conservadoras dos reinos, as defensoras das cidades, e as que asseguram o trânsito das estradas contra os perigos a que pode achar-se exposto, e varrem os mares da peste dos corsários, que muitas vezes o infesta; e nisto parece-me estar pelas armas a razão, pois sem o auxílio delas as monarquias, as repúblicas, os caminhos de mar e terra, tudo estaria sempre exposto ao rigor e confusão de uma desordenada guerra, a qual, enquanto durasse, traria consigo a licença que é o seu natural privilégio e usaria livremente das suas forças, uso sempre nocivo aos que a sofrem; e é coisa bem averiguada e certa que aquilo que mais custoso é em maior estima deve ser tido: alcançar alguém a eminência das letras, coisa é que custa tempo, vigílias, fome, nudez, vagados de cabeça, padecimento de estômago, e outras semelhantes a estas, que já em parte deixo apontadas; mas chegar a ser um bom soldado custa tudo isto por que passa o estudante, e em grau tanto mais subido, porque a cada passo se acha no risco de perder a vida, o que torna impossível a comparação entre o militar e o letrado; e que receio de precisões ou de pobreza pode afligir o estudante, que chegue ao que tem o soldado, quando num cerco é mandado fazer a guarda num parapeito ou revelim e pressente que o inimigo está fazendo uma mina direita ao lugar por ele ocupado, e que a sua honra e o seu dever militar lhe vedam arredar-se um passo da posição onde se acha, nem lhe permitem esquivar-se ao perigo que tão próximo se lhe apresenta? O que somente pode fazer é dar parte ao seu capitão do que sucede para que o remedeie com alguma contramina, e ele conservar-se quieto e firme no seu posto, esperando a cada instante voar até às nuvens sem ter asas e cair depois sobre a terra muito contra sua vontade. E se este perigo ainda parece pequeno a alguns, vejamos se porventura é menor o de duas galeras que mutuamente se investem no largo e espaçoso mar, aferradas as quais uma à outra pelas proas, não fica ao soldado mais espaço que o de uma tábua de três palmos junto do esporão; e, apesar de tudo isto e de conhecer diante de si tantos sinistros de morte, que o ameaçam, quantos são os canhões assestados da parte contrária à curta distância de um tiro

de lança, e de ver que o primeiro descuido dos pés o levaria a visitar os abismos profundos de Neptuno, guiado pela briosa inspiração do dever e da honra militar, se expõe a serão alvo da mosquetaria e se esforça por passar o passo estreito e tão perigoso, que o separa da embarcação inimiga; e o mais admirável é que, apenas um tem caído em sítio de onde até ao fim do mundo se não levantará mais, outro vai imediatamente substituir-lhe o lugar, e, se este é da mesma maneira engolido pelas goelas insaciáveis do mar, outro e outro lhe sucedem sem dar tempo ao tempo de suas mortes; atrevimento e valentia a maior que pode encontrar-se em todos os lances da guerra. Venturosos foram aqueles séculos que careceram da espantosa fúria destes endemoninhados instrumentos da artilharia, cujo inventor tenho cá de mim para mim que está recebendo no Inferno o prémio devido à sua diabólica invenção, com a qual proporcionou meios a um braço infame e cobarde para tirar a vida a um valoroso cavaleiro, pois se vê, amiudadas vezes, que, sem saber-se como nem por onde, chega uma bala disparada por um indivíduo que talvez fugisse espantado com o brilho do fogo que produziu a máquina quando deu o tiro, e corta e acaba a vida a um militar brioso quando este estava combatendo corajosa e valentemente, animado pêlos sentimentos que acendem e entusiasmam os peitos generosos, vida preciosa que deveria conservar-se por longos anos. E, considerando eu isto bem, estou capaz de afirmar que me pesa no íntimo da alma de haver abraçado este exercício de cavaleiro andante em tempos tão detestáveis como estes em que vivemos agora; porque, ainda que eu sou daqueles a quem não há perigo que meta medo, contudo, muitas vezes me sinto receoso de que a pólvora e o chumbo me roubem a ocasião de tornar-me famoso e conhecido pelo valor do meu braço e pêlos fios da minha boa espada em todos os ângulos da terra; porém, disponha o Céu, como lhe aprouver, que tanto mais estimado serei se levo a cabo o que pretendo, quanto me tenho exposto a perigos bem maiores que aqueles a que se expuseram os cavaleiros andantes dos anteriores séculos.

Toda esta larga arenga disse D. Quixote, enquanto todos os outros que com ele estavam iam comendo a ceia de que ele se esqueceu a tal ponto que não meteu coisa alguma na boca, ainda que algumas vezes Sancho Pança lhe lembrasse que não era mau o cear e que tempo lhe restaria depois para dizer quanto quisesse.

Em todos os que o escutavam sobreveio grande pena, vendo que um homem, ao parecer, dotado de muita inteligência e que sabia discorrer com tanto acerto nas coisas de que tratava, perdia completamente a tramontana logo que falava sobre a negregada e desgraçadíssima tolice da cavalaria andante.

O cura disse-lhe que tinha muita razão em tudo quanto havia afirmado em favor das armas, e que ele cura, apesar de letrado e graduado se achava conforme com a sua opinião.

Acabada a ceia, tirados os pratos, e levantada a mesa, a toalha e mais coisas pertencentes, e enquanto a vendeira, com sua filha e Maritornes, arranjavam e preparavam a espécie de caramanchel, onde dormira D. Quixote, para que somente as . mulheres ocupassem naquela noite a referida estância, pediu D. Fernando ao cativo para que lhe narrasse o decurso da sua l vida, porque decerto havia de ser peregrino e gostoso, conforme as mostras que já começara a dar vindo em companhia de Zoraida; ao que respondeu o cativo que de boa vontade obedeceria ao que era mandado, receando apenas que não fosse tal o conto como ele desejava para dar-lhe prazer e contentamento; porém, que, apesar disso, cumpriria com as ordens recebidas e a vontade de D. Fernando.

O cura e todos os mais lhe agradeceram a sua docilidade em prestar-se a dar-lhes este gosto, que de novo lhe pediam lhes desse, ao que ele, prestando-se prontamente, respondeu:

- Estejam Vossas Mercês atentos, e ouvirão uma história verdadeira, a qual porventura não poderia ser igualada pelas que costumam inventar-se com curioso e pensado artifício.

Com isto que disse fez com que todos se acomodassem e lhe prestassem muita atenção; e, vendo ele que se calavam e esperavam o que dizer quisesse, com voz agradável e compassada começou assim:

 

ONDE O CATIVO CONTA A SUA VIDA E SUCESSOS DELA

Num lugar das montanhas de Leão teve sua origem a minha família, com quem foi mais liberal a Natureza do que a fortuna, e posto que aqueles povos ali situados fossem em geral pouco abastados de riqueza, contudo meu pai bem podia ser considerado como rico, e verdadeiramente o houvera sido, se, assim como tinha habilidade para gastar a sua fazenda, a tivesse tido para conservá-la e aumentá-la. E a inclinação que o levava a ser liberal e gastador lhe vinha de haver sido soldado no tempo da sua mocidade, porque a soldadesca é uma escola, na qual o mesquinho se torna liberal, e o liberal passa a ser pródigo, e, se alguns soldados aparecem às vezes miseráveis, são como monstros que de longe em longe se vêem. Meu pai passava muito além dos limites da liberalidade e entrava a grandes passos pêlos da prodigalidade, coisa esta sempre nociva ao homem casado, e que tem filhos, sucessores futuros da sua fortuna e do seu nome. Os filhos que meu pai tinha eram três, todos varões e já em idade de poderem escolher estado. Vendo meu pai que, conforme ele dizia, não tinha na sua mão força para mudar o seu génio gastador, resolveu-se a sofrer voluntariamente a privação da causa que o fazia ser assim como era, e o modo que para isso teve por melhor foi desfazer-se dos bens que possuía, porque na verdade o prprio Alexandre, se nada tivesse de seu, não poderia haver feito os donativos que fez;

tomada esta resolução, chamou-nos um dia, a todos três, a um aposento, e ali sós por sós nos disse pouco mais ou menos as palavras seguintes:

“Meus filhos, para convencer-vos de que eu vos quero bem, basta dizer-vos e vós saberdes que sou vosso pai; e para poder entender-se talvez que vos quero mal, bastará observar-se que não tenho mão em mim quando se trata de conservar a fazenda da nossa casa, e por isso, para que daqui em diante não duvideis de que o amor que vos tenho é amor de pai, e que desejo não vos arruinar como se fora padrasto, quero fazer convosco um

tratado o qual tenho pensado há muitos dias, e disposto com madura consideração. Todos vós estais em idade de escolher modo de vida, e de eleger um exercício tal que depois de empregados nele vos honre e aproveite, e, para que isto possa verificar-se, assentei em que o melhor meio era dividir a minha fazenda em quatro partes, das quais vos entregarei três, repartindo-as entre vós com perfeita igualdade, e com a quarta ficarei eu para me sustentar e viver o resto dos dias que o Céu houver por bem ainda me conceder de vida; porém queria que depois que cada um tiver em seu poder esta parte da herança paterna seguisse um dos caminhos que lhe vou dizer. Há um rifão na nossa Espanha, segundo o meu parecer, assaz verdadeiro, como eles sempre são, por derivarem a sua existência de uma longa série de experiências discretas, o qual diz: Igreja, ou mar, ou casa real, como se mais claramente dissera: quem quiser ter valia e ser rico, ou siga a Igreja, ou navegue exercendo oofício de comerciante, ou entre a servir os reis nos empregos públicos, porque dizem: mais valem migalhas de rei que mercês de senhor. Digo-vos isto, porque a minha vontade é que um de vós siga as letras, o outro o comércio, e o terceiro o rei na vida militar, porque servi-lo na sua própria casa é dificultoso, e a vida ' militar, ainda que nem sempre dê riqueza, dá contudo grande nomeada exaltando o nome dos que com valor e distinço a exercitam: dentro em oito dias, vos darei a cada um a vossa parte em dinheiro sem vos defraudar em um ceitil, como o vereis quando eu puser o meu projecto em execução. Dizei-me agora se quereis seguir o meu parecer e os meus conselhos em tudo quanto acabo de propor-vos.

E mandando-me então a mim, como o mais velho dos três, que respondesse, eu, depois de lhe haver dito que não se desfizesse de seus bens, e que continuasse gastando à sua vontade ' porque nós estávamos em idade de poder procurar meios honrados de levar a vida, concluí, todavia, diendo-lhe por fim que zesse ele em tudo o seu gosto e que o meu seria seguir o exercicio das armas, servindo nelas a Deus e ao meu rei. O meu segundo irmão, depois de falar pouco mais ou menos como eu havia falado, escolheu partir para as Índias, levando empregada a quantia que lhe tocasse. O mais novo dos três, e, segundo o meu pensar, o mais discreto, disse que queria seguir a Igreja ou ir para Salamanca acabar lá os seus estudos. Logo que terminámos esta prática e escolhemos os estados que queríamos seguir, o nosso pai abraçou a todos, e, com a brevidade prometida, pôs por obra quanto dissera, dando a cada um de nós a parte que lhe pertenceu, a qual, se bem me recordo, constou de três mil ducados em dinheiro, pois que um tio nosso comprou todos os bens e os pagou prontamente para que não saíssem do tronco de família. Todos três nos despedimos de nosso bom pai num mesmo dia, e eu, parecendo-me falta de humanidade que um velho e sobretudo pai meu ficasse com tão poucos meios de subsistência, consegui dele que dos meus três mil ducados guardasse dois mil, porque a mim me bastaria o resto para acomodar-me e arranjar-me de tudo quanto convinha a um soldado. Meus dois irmãos, movidos pelo meu exemplo, lhe deram cada um deles mil ducados, de modo que nosso pai ficou com quatro mil ducados em dinheiro, além de mais três mil ducados que valia a fazenda que no seu quinhão se reservara, a qual ele não quisera vender preferindo conservar a rai. Finalmente, chegado o tempo de nos ausentarmos, despedimo-nos de nosso pai e de nosso tio do qual falei há pouco, não sem muito sentimento e lágrimas de todos, e eles nos recomendaram muito que todas as vezes que tivéssemos ocasião oportuna, lhes comunicássemos os sucessos prósperos ou adversos que sobreviessem. Assim o prometemos, e, depois de novamente abraçados por nosso pai e por nosso tio, e recebida a bênção paternal, nos ausentámos, indo um para Salamanca, outro para Sevilha, e eu para Alicante, onde tive notícia que estava um navio genovês tomando carga de lã para Génova. Haverá hoje tempo de vinte e dois anos que saí de casa de meu pai, e, em todos eles, apesar de algumas cartas que tenho escrito, não hei recebido notícia alguma nem de meu pai, nem de meus irmãos, agora quanto neste longo período tem por mim passado.

Embarquei em Alicante e cheguei a Génova com próspera viagem, partindo em seguida para Milão onde me preveni de armas e de algumas galas de soldados, e, querendo ir assentar praça ao Piemonte e estando já de caminho para a Alexandria da Palha, constou-me que o grão-duque de Alva passava para Flandres: mudei então de propósito e fui com ele, servi-o nas jornadas que fez, achei-me presente na ocasião da morte dos condes de Eguemond e de Hom, e obtive ser alferes de um famoso capitão de Gualalaxara chamado Diogo de Urbina, e, passado algum tempo depois da nossa chegada a Flandres, vieram novas de se haver formado uma Liga entre a Santidade do papa Pio V, de feliz recordação, a república de Veneza, e a nossa Espanha contra o inimigo comum que é o Turco, o qual naquele mesmo tempo havia conquistado com uma poderosíssima armada a famosa ilha de Chipre, que pertencia ao domínio veneziano, perda desgraçada e lamentável. Supôs-se ser coisa certa que seria general-chefe dos coligados o Sereníssimo Sr. D. João de Áustria, irmão natural do nosso grande rei D. Filipe; tomou-se público e notório o tremendo preparativo de guerra que se estava fazendo, o que me incitou e moveu fortemente o ânimo para desejar ver-me na jornada que se esperava; e posto que tinha probabilidades e quase promessas certas de ser promovido a capitão no primeiro ensejo que se oferecesse para isso, tudo resolvi postergar e parti para a Itália; permitiu a minha boa sorte que nessa ocasião havia chegado a Génova o Sr. D. João de Áustria, o qual passava a Nápoles para ajuntar-se com a armada de Veneza, o que efectivamente se verificou em Messina. Achei-me, portanto, naquela felicíssima jornada, ocupando já o posto de capitão de infantaria, cargo a que mais me elevou a minha boa sorte do que os meus merecimentos; naquele dia tão venturoso para a cristandade, porque nele se desenganaram as nações de que os Turcos não eram invencíveis no mar, como até então geralmente se pensava; naquele dia, repito, em que o orgulho e soberba Otomanos foram humilhados e esmagados, entre tantos felizes como ali houve (porque até os cristãos que ali morreram tiveram maior dita que os que ficaram vivos, embora vencedores), somente eu fui desgraçado, pois, em troca da coroa naval que bem podia esperar cingir se vivera nos séculos romanos, me vi na noite, que se seguia àquele memorando dia, com cadeias aos pés e as mãos vergando sob o peso das algemas.

Isto me aconteceu pelo modo que vos agora vou contar:

Tendo Uchali, rei de Argel, atrevido e venturoso corsário, investido e rendido a nau capitânia de Malta (na qual só ficaram vivos três cavaleiros, e estes mesmos cheios de feridas), acudiu a capitânia de João André a socorrê-la, na qual eu me achava com a minha companhia, e, fazendo o que numa tal ocasião me cumpria fazer, saltei dentro da galera contrária, que, desviando-se da em que eu ia, estorvou assim que os meus soldados me seguissem, achando-me eu só entre os inimigos a quem não pude resistir por serem eles tantos; afinal, fiquei prisioneiro e cheio de feridas, e, como já tereis ouvido dizer que o Uchali se salvou com toda a sua esquadra, já havereis entendido que fiquei sujeito ao seu poder, sendo por este modo eu o único triste entre tantos alegres, e o único cativo entre tantos vencedores e livres. Foram quinze mil os cristãos que naquele dia alcançaram a desejada lberdade, os quais todos vinham ao remo na armada turca. Levaram-me a Constantinopla, onde o grão-turco Selim nomeou a meu amo general do mar, porque desempenhara muito bem o seu dever na batalha, havendo levado em prol do seu valor o estandarte da religião maltesa; no ano seguinte, que foi o de 72, achei-me em Navarino vogando na capitânia dos três faróis: vi e observei a ocasião, ali infelizmente perdida, de não aprisionar ou destruir no porto a armada turca, porque todos os do Levante e janízaros que nela vinham tiveram por certo que seriam atacados dentro do referido porto, e por isso haviam de antemão preparado os vestidos e os passamaques, que assim chamam ao calçado de que usam, para fugirem por terra sem esperarem o combate; tão grande era o medo que a armada cristã lhes havia incutir. De diversa maneira, porém, quis o Céu que corressem as coisas, não por culpa nem descuido do general que comandava os nossos, mas sim pêlos pecados da cristandade, e porque Deus permite muitas vezes que tenhamos verdugos para nos castigarem. Efectivamente, o Uchali se acolheu a Módon, que é uma ilha próxima de Navarino, e, lançando os soldados em terra, fortificou a entrada do porto e se deixou estar ali sem fazer outro algum movimento, até que o Sr. D. João de Áustria se ausentou. Nesta viagem, foi tomada a galera chamada a “Presa” da qual era capitão um filho do famoso corsário Barba Ruiva: tomou-a a capitânia de Nápoles chamada a “Loba” governada por aquele raio da guerra pai dos soldados sempre venturoso e nunca vencido D. Álvaro Bazan, marquês de Santa Cruz. E não deixarei agora de contar-vos o que aconteceu nesta presa da “Presa”. Era tão cruel o filho do Barba Ruiva e tratava tão mal os seus cativos, que apenas estes conheceram que a “Loba” os ia abordar, largaram todos a um tempo os remos e agarraram o seu capitão que estava sobre a estanteirola, gritando que vogassem ligeiros, e, passando-o de banco em banco, da popa à proa, tantas dentadas lhe deram e o trataram por tal modo, que em muito breve espaço sua alma desceu ao Inferno; tal era a crueldade com que ele se portava para com os seus cativos, e o ódio entranhado que estes lhe votavam. Voltámos a Constantinopla, e soubemos depois lá, no ano seguinte, que foi o de setenta e três, que o Sr. D. João de Áustria havia tomado Tunes, privando os Turcos daquele dito reino e pondo em possessão dele a Mulei Hamet, cortando assim as esperanças de tomar ali a reinar, conservando-o, Mulei Hamida, que era o mouro mais cruel e ao mesmo tempo o mais valente que no mundo houve. Esta perda foi muito sentida pelo Grão-Turco, o qual, usando da sagacidade própria de todos os da sua família, ajustou a paz com os Venezianos que a desejavam muito mais ainda que ele, e no ano seguinte, que era o de setenta e quatro, mandou atacar a Goleta e o Forte que junto de Tunes havia levantado o Sr. D. João. Em todos estes lances andava eu no remo, sem alguma esperança de liberdade; pelo menos não esperava alcançá-la por meio de resgate, porque havia determinado comigo de não escrever a meu pai a dar-lhe notícia da minha desgraça. Perdeu-se finalmente a Goleta, perdeu-se o Forte, praças sobre as quais estiveram setenta e cinco mil soldados turcos pagos, e mais de quatrocentos mil mouros e árabes de toda a África, acompanhado este inumerável poder de gente com tantas munições e petrechos de guerra, e com tantos gastadores que estes puderam afinal cobrir a Goleta e o Forte com milhares de manadas de terra, que sobre eles lançavam. Primeiro se perdeu a Goleta, havida até aquele tempo por inexpugnável mas esta perda não deve recair sobre os seus defensores os quais em sua defesa fizeram tudo quanto podiam e deviam fazer, e procedeu da facilidade com que se podiam levantar trincheiras sobre aquele areal deserto, pois que, achando-se ali água a dois palmos os Turcos nem a duas varas a encontraram; e por isso com muitos sacos de areia levantaram trincheiras tão altas que excediam a altura do Forte, e, cobrindo este de tiros incessantes, não era possível estar dentro dele para defendê-lo. A opinião comum foi que os nossos andaram mal em se encerrarem na Goleta, e que teriam andado melhor indo esperar o inimigo no campo, ao tempo em que ele desembarcava: mas os que isto disseram falam de leve e com pouca experiência de casos semelhantes, porque, se na Goleta e no Forte o exército cristão não passava de sete mil homens, como é sabido, mal podia um número tão pequeno de guerreiros, por mais esforçados que fossem, sair ao campo e oferecer aí uma batalha ao inimigo que o atacava com forças incomparavelmente superiores. Como é possível deixar de perder-se uma força que não é socorrida, sobretudo quando é cercada por muitos e tenazes inimigos, e estes demais a mais estão na sua própria terra? Porém, pareceu a muitas pessoas, e dessas fui eu uma, que tal perda foi uma graça especial concedida pelo Céu à Espanha, permitindo que afinal de tudo ficasse para sempre destruída e arrasada aquela guarida de malfeitores, a qual sem proveito algum custava à mesma Espanha grande quantidade de dinheiro para conservar aquela posição de que não recebia proveito e apenas podia servir para conservar a memória do invictíssimo Carlos V, que fora quem noutro tempo a ganhara; como se fora mister, para tornar esta memória eterna, que aquelas pedras a sustentassem, a ela que jamais se varrerá da recordação dos Espanhóis. Perdeu-se também o Forte; mas os Turcos somente conseguiram ganhá-lo palmo a palmo, porque os soldados, que o defendiam, pelejaram tão forte e valorosamente, que os Turcos perderam ali mais de vinte e cinco mil homens em vinte e dois assaltos que se viram obrigados a fazer. De trezentos defensores, que escaparam com vida, nem um só deixou de ficar ferido: sinal claro e evidente do seu esforço e do bem que souberam defender-se e cumprir o dever de valentes soldados. Rendeu-se por capitulação um pequeno forte que estava no meio do lago, e de que era capitão D. João Zanoguera, cavaleiro valenciano e famoso guerreiro. Ficou cativo D. Pedro Puerto-Carrero, general da Golea, o qual fez todo o possível para defender a praça, e de tal modo sentiu o havê-la perdido, que no caminho de Constantinopla faleceu de puro pesar, não chegando vivo àquela capital. Também ficou prisioneiro o general do Forte que se chamava Gálvio Cerbelhon, cavaleiro milanês, grande engenheiro e valentíssimo soldado. Morreram nestas duas praças muitas pessoas de conta, e foi uma delas Pagão Dória, cavaleiro do hábito de S. João, homem por extremo generoso, como o mostrou pela suma liberalidade de que usou com seu irmão, o famoso João André Dória; e, o que mais lastimou por ocasião da sua morte, foi que esta se executasse pelas mãos de uns árabes (nos quais se fiou quando viu já o Forte perdido) que se ofereceram para guiá-lo, disfarçado com vestidos de mouro até Tabarca (que é um pequeno porto possuído pêlos Genoveses naquela ribeira para o fim de exercitarem a pesca do coral); os tais árabes lhe cortaram a cabeça e a trouxeram ao general da armada turca, o qual cumpriu para com eles o antigo rifão castelhano, que diz: Ainda que a traição agrada, o traidor sempre se aborrece; e, segundo se conta, mandou o general enforcar os que lhe trouxeram a cabeça por não haverem trazido vivo o dono dela. Entre os cristãos, que no Forte se perderam, foi um deles D. Pedro de Aguilar, natural não sei de que terra da Andaluzia, o qual servira no Forte o posto de alferes e era soldado de muita valia e de raro entendimento, tendo especial graça nas coisas de poesia: digo isto porque a sua sorte o trouxe à minha galera, ao meu banco e a ser escravo, assim como eu, do mesmo senhor; e, antes que nós saíssemos daquele porto, compôs este cavaleiro dois sonetos, um à Goleta, e outro ao Forte:

estes sonetos os conservo de memria e hei-de repeti-los por me parecer que serão eles ocasião de prazer e não de enjoo. Quando o cativo nomeou a D. Pedro de Aguiar, D. Fernando olhou para os seus três companheiros, que todos se sorriram; um deles disse então ao cativo: “Antes que Vossa Mercê passe adiante, pedia-lhe eu a graça de dizer me se porventura sabe alguma coisa a respeto do destino que teve ou do que foi feito desse D. Pedro de Aguilar.” Respondeu o cativo: “O que sei é que no fim de dois anos que ele esteve em Constantinopla fugiu de lá em traje de Amaute acompanhado de um espia grego; não sei se se pôs em liberdade, mas acredito que sim, porque daí a um ano tornei a ver em Constantinopla o tal grego, mas não me foi possível perguntar-lhe o sucesso daquela viagem.”

- Pois saiba Vossa Mercê - disse o cavaleiro -, que esse D. Pedro é um meu irmão, e que voltou a Espanha, estando agora morador no nosso lugar, bem, casado, rico, e com três filhos.

- Graça seja dada a Deus - exclamou o cativo - por tantos benefícios que lhe fez, porque, segundo o meu parecer, não há sobre a Terra contentamento igual ao que se sente quando se alcança a liberdade perdida.

- Direi mais - replicou o cavaleiro - que sei muito bem os sonetos feitos por meu irmão.

- Repita-os, pois Vossa Mercê - disse o cativo -, porque melhor os saberá dizer que eu.

- De boa vontade o farei já, e o da Goleta era assim:

 

NO QUAL SE CONTA A HISTÓRIA DO CATIVO

SONETO

Almas ditosas, que a mortal cadeia Rompestes, e que pelo bem que obrastes De um solo obscuro e baixo remontastes A sublime região de luzes cheia;

Que, ardendo na ira duma honrosa ideia Vossas forças na terra exercitastes;

Que o sangue alheio e o próprio derramastes No mar vizinho, e na longínqua areia;

Primeiro que o valor faltou a vida Aos braços fatigados que a vitória Vos deram ao cair já de vencida!

Queda triste, mas bela, aonde a história Mostra quanto é justa e a vós devida No mundo a fama, e lá nos Céus a glória.

- Dessa mesma forma o sei eu - disse o cativo.

- Pois o do Forte - continuou o cavaleiro -, se bem me recordo, era o seguinte:

SONETO

Da aridez desta terra desgraçada, E dos castelos pelo chão lançados, As santas almas de três mil soldados Subiram vivas a melhor morada!

Mui grande valentia exercitada Foi aqui por seus braços esforçados, Mas afinal já poucos e cansados, Todos morreram vítimas da espada!

É este o solo, aonde padeceram Tristes sucessos as hispanas gentes No actual século, e nos que já correram.

Mas jamais foram dele aos Céus luzentes Almas tão santas, nem jamais desceram Ao seio seu uns corpos tão valentes!

Não desagradaram os sonetos, e o cativo, alegrando-se muito com as novas de seu camarada, continuou assim a história da sua vida:

- Rendidos que foram a Goleta e o Forte, os Turcos mandaram desmantelar a Goleta, porque o Forte ficou em tal estado que não houve que lançar por terra, e, para a desmantelar mais depressa e com menos trabalho, minaram-na por três partes; por nenhuma delas porém se pôde fazer voar mesmo aquilo que parecia menos sólido, que eram as muralhas velhas; o que com muita facilidade veio a terra foi quanto havia ficado em pé da fortificação nova que tinha feito o Fratin. Por último, a armada voltou vencedora e triunfante para Constantinopla, e poucos meses depois morreu meu senhor o Uchali, ao qual chamavam Uchali Fartax, que em língua turca quer dizer o Renegado Tinhoso, porque ele o era, e é costume entre os turcos porem uns aos outros os nomes tirados de algum defeito que tenham ou de alguma virtude que possuam; e sucede isto porque não há entre eles senão quatro apelidos de linhagem que descendem da casa otomana, e as outras, como disse, tomam nome e apelido umas vezes da imperfeição do corpo, e outras das virtudes do espírito. Ora este tinhoso vogou ao remo catorze anos na qualidade de escravo do Grão-Senhor, e tendo mais de trinta e quatro de idade renegou e renunciou à sua fé, para vingar-se de um turco, por lhe dar uma bofetada na ocasião em que se achava trabalhando com o remo; e foi tanto o seu valor, que sem se servir dos caminhos e dos meios torpes por que costumam subir os mais favoritos do Grão-Turco, chegou a ser rei de Argel, e por último a general do mar, que é o terceiro cargo que há naquele senhorio. Era calabrês de nação, e, moralmente considerado, era homem de bem, e tratava com muita caridade os seus cativos, que chegou a ter no número de três mil, os quais depois da sua morte foram repartidos, conforme a sua disposição testamentária, entre o Grão-Senhor (que também é filho herdeiro de quantos súbditos morrem, e entra em partilhas com os mais que deixa o defunto) e entre os seus renegados. Quis a minha má sorte que eu tocasse e pertencesse a um renegado veneziano, que foi o mais cruel de quantos renegados existiram, o qual, sendo grumete de uma nau, tinha ficado cativo do Uchali, mas que teve a fortuna de lhe agradar tanto que foi dos seus predilectos aquele que ele mais encheu de benefícios. Chamava-se Azan Agá, e chegou a ser muito rico e rei de Argel, e com ele vim de Constantinopla um tanto mais contente por ficar mais perto de Espanha; não porque pensasse em escrever a alguém contando-lhe os meus infortúnios, mas por esperar que a sorte me não fosse tão adversa em Argel como havia sido em Constantinopla, tinha formado mil planos para fugir sem que nenhum pudesse levar a cabo. Em Argel, tratei de usar dos meios que me pareciam mais próprios para alcançar o que tanto desejava, porque nunca perdi as esperanças de obter a minha Uberdade, a ponto tal que, quando me falhava um plano que eu maquinara, pensara e pusera em execução, sem perder o ânimo logo descobria e me agarrava a outra esperança, que, embora débil e fraca, me mantivesse o alento. Assim ia eu entretendo a vida metido numa priso ou casa a que os Turcos chamam Banho, e na qual metem os cativos cristãos, tanto os que são do rei, como os que são de particulares, e os que chamam do Aljube, o que equivale a dizer que são cativos do município, porque servem a cidade nas obras públicas que a municipalidade faz e nos demais trabalhos, e a estes tais cativos é-lhes muito difícil alcançar a liberdade, porque, por serem de todos e por não terem senhor particular, não aparece com quem tratar o seu resgate mesmo quando este não lhes seja proibido. A estes Banhos, como dito fica, costumam alguns particulares do povo levar os seus cativos, mormente quando estes são de resgate porque até que este chegue os têm ali folgados e seguros. Também os cativos do rei, sendo igualmente dos de resgate, não saem a trabalho com a chusma dos outros a não ser quando o dito resgate se demora, porque em tal caso, para que dele tratem com mais afinco, os fazem trabalhar e ir à lenha com aqueles, coisa que não é pequeno trabalho. Eu era, pois, um dos de resgate; como souberam que eu tinha sido capitão, no número deles e no dos cavaleiros me puseram, posto que eu tivesse dito que era de poucas posses e sem fazenda. Lançaram-me uma cadeia, mais por sinal de resgate do que por me segurarem com ela, e assim passava eu a vida naquele Banho com outros muitos cavaleiros e pessoas gradas, com o destino e o sinal característico dos de resgate, e posto que as vezes, ou quase sempre, nos apertasse a fome, e nos afligisse a nudez, o que mais nos atormentava era ouvir e ver a cada passo as inauditas e nunca vistas crueldades com que o meu senhor já nomeado tratava os cristãos. Cada dia enforcava um, empalava este, cortava as orelhas àquele, e isto por tão pouca coisa e tanto sem-razão, que os turcos conheciam que o fazia por hábito e por natural condição de ser assassino de todo o género humano. Só lhe caiu em graça um soldado espanhol chamado Fulano de tal Saavedra, porquanto, apesar de haver feito coisas que ficarão por muitos anos na memória daquela gente, e todas para alcançar a sua liberdade, nem por isso lhe deu nem mandou dar bastonadas e nem sequer o maltratou de palavras, e sucedeu isto com espanto nosso, pois que pela mais pequena das muitas coisas que fez temíamos que fosse empaado, e ele também mais de uma vez o temeu. Se o tempo mo permitisse, eu contaria algumas das aventuras deste soldado, com as quais vos entreteria e vos faria admirar muito mais do que com a narração da minha história. Voltando, pois, a esta direi que para o pátio da nossa prisão estavam voltadas as janelas da casa de um mouro rico e principal, as quais como são de ordinário as dos mouros, mais eram frestas que janelas, e demais a mais eram cobertas de espessas e estreitas gelosias. E um dia sucedeu que, estando num terrado com três companheiros a ver por passatempo se podíamos saltar com as cadeias, e estando sós (porque todos os outros cristãos tinham ido trabalhar), levantei por acaso os olhos, e vi aparecer por aquelas estreitas janelinhas de que falei uma cana com um lenço atado na ponta, balanceando-se e movendo-se quase como a dar-nos sinal para chegarmo-nos a ela e toma-la. Reparámos nisto, e um dos que estavam comigo foi colocar-se debaixo da cana para ver se a largavam ou o que faziam. Mal ele chegou, levantaram a cana e moveram-na para os dois lados, como se dissessem não com a cabeça. Retirou-se o cristão, e tornaram a baixar a cana e a fazer iguais movimentos, mas, indo outro, sucedeu a este o mesmo que ao primeiro. Foi em seguida o terceiro, e sucedeu-lhe o mesmo que aos dois. E, vendo eu isto, não quis deixar de experimentar a sorte, e, apenas cheguei a colocar-me debaixo da cana, deixaram-na cair e ela veio dar-me aos pés dentro do Banho. Tratando logo de desatar o lenço, vi nele um nó, e encontrei dentro dez cianiis, que são umas moedas de ouro de que usam os Mouros e cada uma das quais tem o valor de dez dos nossos réis. Se saltei de contente com o achado, é escusado dizê-lo, pois foi tanto o contentamento como a admiração ao pensar de onde nos poderia vir aquele bem, especialmente a mim, pois é fora de toda a dúvida que não se querendo entregar a cana senão a mim, a mercê só a mim era feita. Tratei em todo o caso de arrecadar o dinheiro em seguida quebrei a cana, voltei para o terraço, olhei para a janela e vi então que por ela saía uma mão branca como a neve, abrindo-a e fechando-a precipitadamente. Esta descoberta levou-nos a nos capacitar ou a imaginar que alguma mulher que vivia naquela casa fora quem nos fez aquele benefício, e nós, em sinal de que lhe agradecíamos, lhe fizemos salemas conforme o uso dos Mouros, inclinando a cabeça, dobrando o corpo, e pondo os braços sobre o peito. Pouco depois, mostraram pela mesma janela uma cruz feita de canas e imediatamente a retiraram. Com este sinal mais nos capacitámos de que naquela casa estivesse cativa alguma cristã, e que essa era quem nos tinha feito a mercê, mas a brancura da mão e os braceletes que nela vimos nos fizeram mudar de pensamento, posto que imaginássemos que ela fosse uma das cristãs renegadas, que de ordinário costumam tomar por legítimas mulheres os seus próprios amos, e com isso se dão por muito felizes, porque as estimam mais que as da sua nação. Em todas as nossas conjecturas, estivemos, porém, muito longe da verdade, e por esta razão de aí em diante todo o nosso entretenimento era olhar fixamente para a janela através da qual nos tinha aparecido a boa estrela da cana; mas passaram-se uns bons quinze dias sem que a víssemos, nem sequer a mão, ou qualquer sinal, e, apesar de em todo este tempo havermos procurado com grande solicitude saber quem vivia naquela casa, e se nela havia alguma cristã renegada, nunca encontrámos quem nos dissesse outra coisa senão que ali vivia um mouro rico e principal chamado Agi Morato, alcaide que tinha sido da Bata, que entre eles é ofício de muita honra; mas quando já não esperávamos que por ali nos choveriam mais cianiis, vimos com surpresa reaparecer a cana tendo outro lenço com outro nó mais crescido, e isto sucedeu quando, como da outra vez, o Banho estava só e sem gente. Fizemos a mesma experiência, indo primeiro do que eu cada um dos três que comigo estavam; mas a nenhum deles se baixou a cana, só eu tive essa dita, porque à minha vez deixaram-na cair. Desatei então o nó, e encontrei quarenta escudos de ouro espanhóis, e um papel escrito em árabe, e feita no fim do escrito uma grande cruz. Beijando-a, tomei os escudos, voltei ao terrado, todos zemos as nossas salemas, tornou a aparecer a mão, fiz-lhe sinal de que ia ler o papel e por então fechou-se a janela.

Ficámos todos alegres e ao mesmo tempo confusos com o sucedido; e, não sabendo nenhum de nós a língua árabe, era grande o nosso desejo de entender o que o papel continha, e era mais ainda a dificuldade de procurar quem o lesse. Por último, tomei a resolução de fiar-me de um renegado natural de Múrda, que se tinha declarado meu grande amigo, e entre o qual e eu se tinham dado tais ligações que o obrigavam a guardar o segredo que lhe confiasse, porque costumam alguns renegados, quando formam tenção de voltar à terra de cristãos, trazer consigo atestados de cativos distintos em que dão fé, pela forma que podem, de que esse tal renegado é homem honrado, que sempre fez bem aos cristãos, e que tem firmado o plano de evadir-se na primeira ocasião que lhe apareça: destes alguns há que com a melhor intenção procuram estes atestados, outros servem-se deles em certos casos e por manhã, pois vindo roubar a terra de cristãos, e perdendo-se ou ficando cativos, mostram os atestados, e dizem que por esses papéis se verá o propósito com que vinham, e que este era ficar em terra de cristãos, e com esse fim é que vinham em corso com os demais turcos. Deste modo se livram do primeiro ímpeto e se reconciliam com a Igreja sem lhe ter feito mal algum; mas, no primeiro ensejo que se lhes oferece, voltam à Barbaria e são de novo o que dantes eram. Outros há que pelo contrário procuram de boa fé estes papéis e se deixam car em terra de cristãos. Ora um dos ditos renegados era este meu amigo, o qual tinha de todos os nossos camaradas atestados que quanto era possível o acreditavam como homem de bem, e os mouros o queimariam vivo se lhe encon- trassem tais papéis. Constou-me que ele sabia bem o árabe, e que não só o falava como também que o escrevia; contudo, antes de me abrir com ele, lhe disse que me lesse aquele papel que por acaso tinha encontrado num buraco que havia no sítio onde habitávamos. Abriu-o, e esteve bastante tempo a olhar para ele e a traduzi-lo em voz baixa. Perguntei-lhe se o entendia; respondeu-me que perfeitamente e que, se eu queria que me comunicasse palavra por palavra o seu conteúdo, lhe desse tinta e pena para que melhor o fizesse. Logo lhe dei o que pedia, e pouco a pouco o foi traduzindo, dizendo-me no fim:

- Tudo o que aqui vai em romance é, letra por letra, o que contém este papel mourisco, mas há-de advertir-se que, onde se diz Leila Maryem, se deve entender Noss Senhora a Virgem Maria. Lemos então o papel que dizia assim:

“Quando eu era menina, tinha meu pai uma escrava, a qual na minha língua me deu conhecimento da doutrina cristã, e me disse muitas coisas de Lea Maryem. A tal cristã morreu, e eu ''.. sei que não foi ao fogo, mas sim que foi para Alá, porque a vi depois duas vezes e me disse que fosse à terra dos cristãos ver a Leila Maryem, que me queria muito. Não sei como hei-de ir:

tenho visto desta janela muito cristão, mas só tu me hás parecido cavalheiro. Sou muito nova e formosa e tenho muito dinheiro para levar comigo: olha tu se podes conseguir que vamos ambos, e lá serás meu marido, se quiseres, e, se não quiseres, não se me dará nada disso, pois que Leila Maryem me dará marido :

com quem eu case. Eu escrevi isto, repara bem naquele a quem o deres a ler, não te fies de nenhum mouro, porque todos são pérfidos. Disto tenho eu muita pena, pois quisera que em ninguém te confiasses, porque, se meu pai o souber, me lançarei logo a um poço e me cobrirá de pedras. Porei um fio na cana, ata nele a resposta e se não tens quem te escreva em árabe, exprime-te por sinais, que Leila Maryem fará com que eu te entenda. Ela e Alá te guardem e bem assim também essa cruz que eu beijo muitas vezes, como me ordenou a cativa.”

Notai, Senhores, se tínhamos ou não justos motivos para que as razões deste papel nos causassem admiração e alegria, e tanto mais que o renegado bem entendeu não ter sido casualmente achado este papel, antes se capacitou de que realmente a algum de ns fora dirigido; e nesta persuasão nos pediu que, se era verdade o que suspeitava, nos fiássemos nele, pois, sendo assim, arriscaria a sua vida pela nossa liberdade; e, dizendo isto, tirou do peito um crucifixo de metal, e derramando muitas lágrimas, jurou por Deus, representado por aquela imagem, em que ele, ainda que muito pecador e frágil, muito e muito fielmente cria, que guardaria lealdade e segredo em tudo quanto quiséssemos descobrir-lhe, porque lhe parecia e quase adivinhava, que por meio daquela que o papel havia escrito, ele e todos nós conseguiríamos a nossa liberdade, e deste modo alcançaria ele o que mais desejava, que era voltar ao grémio da Santa Igreja sua Mãe, da qual como membro podre estava separado por sua ignorância e por seus pecados. Com tantas lágrimas e com mostras de tanto arrependimento falou o renegado, que todos nós afoitamente resolvemos declarar-lhe a verdade do sucesso, e tudo lhe contámos sem encobrir nada. Mostrámos-lhe a janela por onde aparecia a cana, e ele marcou dali a casa, e ficou de pôr grande e especial cuidado em indagar quem habitava nela. Acordámos também que seria bom responder ao bilhete da moura, e, como tínhamos quem o soubesse escrever, imediatamente escreveu o renegado as razões que lhe fui ditando, que foram as que textualmente direi, porquanto não se me varreu da memória nem varrerá enquanto vida tiver, nenhum dos pontos substanciais deste sucesso. Eis o que se respondeu à moura:

“O verdadeiro Alá te guarde, minha Senhora, e Aquela bendita Maryem, que é a verdadeira Mãe de Deus, e Aquela que por te querer bem, te há gravado no coração a vontade de ires à terra dos cristãos. Implora-Lhe tu que Se sirva dar-te a entender como poderá pôr por obra o que te ordena, pois é tão boa que decerto assim o fará. Da minha parte e da de todos estes cristãos que comigo se acham, te ofereço fazer por teu respeito quanto até morrer pudermos. Não deixes de me escrever e de me avisares do que pensares em fazer, que eu nunca deixarei de responder-te: o grande Alá nos deu um cristão cativo que sabe falar e escrever tua língua tão bem como verás deste papel, e por isso sem medo algum nos podes avisar de quanto quiseres. Quanto ao dizeres que, se fores à terra dos cristãos, serás minha esposa, eu te prometo que por esposa te aceitarei e to prometo como bom e fiel cristão, e bem deves saber que os cristãos cumprem melhor que os mouros aquilo que prometem. Alá e Maryem sua Mãe sejam em tua guarda, minha Senhora.”

Escrito e fechado este papel, esperei dois dias que o Banho estivesse só, e logo fui ao costumado sítio do terrado para ver se descobria a cana, que efectivamente não tardou muito em aparecer. Assim que a vi, posto que não pudesse ver quem a punha, mostrei o papel para dar a entender que pusessem o fio;

mas já a cana o trazia, e a ele atei o papel, e daí a pouco tornou a aparecer a mesma estrela que já anteriormente anunciara a nossa boa ventura, e vinha ali atado o lenço, que das outras vezes se mostrara como sendo a bandeira branca da paz.

Deixaram-na cair, e, levantando-a, encontrei no lenço em toda a espécie de moeda de ouro e prata mais de cinquenta escudos, os quais cinquenta vezes mais dobraram o nosso contentamento e firmaram a nossa esperança de alcançarmos a liberdade. Naquela mesma noite, voltou o nosso renegado e nos disse ter sabido que naquela casa vivia o mesmo mouro que nos haviam dito chamar-se Agi Morato, riquíssimo em toda a extensão da palavra, o qual tinha só uma filha, herdeira de toda a sua fortuna, e que era geral opinião em toda a cidade ser a mais formosa mulher da Barbaria e que muitos dos vice-reis que ali vinham a tinham pedido em casamento, mas que ela nunca quisera casar-se, e que igualmente soube que Agi Morato tivera uma cativa cristã já falecida. Tudo isto concordava com o que vinha no papel. Logo conferenciámos com o renegado sobre o meio de raptar a moura, e voltarmos todos à terra de cristãos, e acordou-se afinal que por então esperássemos o segundo aviso de Zoraida, que era o nome daquela que quer agora chamar-se Maria: porquanto bem víamos nós que ela e não outra pessoa era quem devia resolver todas as dificuldades. Assentando nós nisto, disse o renegado que ficássemos descansados, pois que ele nos poria em liberdade ou perderia a vida. Quatro dias esteve o Banho com gente, que foram outros tantos em que deixou de aparecer a cana, e, ao cabo deles, no costumado silêncio do Banho, apareceu a cana com o lenço tão prenhe que prometia um felicíssimo parto. A cana e o lenço inclinaram-se para mim, e encontrei nele outro papel e cem escudos de ouro sem outra qualquer moeda. Achando-se ali o renegado, demos-lhe a ler o papel dentro do nosso rancho, e ele nos disse que era este o seu teor:

“Eu não sei, meu Senhor, como pôr em ordem a nossa partida para Espanha, nem Leila Maryem mo há revelado posto que lho tenha eu perguntado: o que se poderá fazer é que eu vos darei por esta janela muito dinheiro em ouro: resgatai-vos com ele, e igualmente dos vossos amigos vá um a terra de cristãos, compre lá uma barca, e venha buscar os outros, e quanto a mim encontrar-me-á no jardim que nos pertence, o qual está à porta do Bab-Azoun junto à marinha, onde tenho de passar todo este Verão com meu pai e com os criados; daí me podereis tirar de noite sem medo nenhum e levar-me à barca.

E olha que hás-de ser meu marido, quando não eu pedirei a Maryem que te castigue.

Se não tens em quem confies para ir buscar a barca, resgata-te tu e parte que eu sei que voltarás mais depressa que qualquer outro, porque és cavalheiro e cristão.

Procura saber onde é o jardim, e, quando passeares por aí, ficarei sabendo que o Banho está só, e então te darei muito dinheiro.

Alá te guarde, meu Senhor.”

Era sto o que dizia e continha o segundo papel, e sabido por todos, cada um se ofereceu para ser resgatado, e prometeu ir, e voltar sem demora, e também eu me ofereci para a mesma empresa: a tudo, porém, se opôs o renegado, dizendo que de nenhum modo consentiria que um se pusesse em liberdade sem que fossem todos juntos, porque lhe tinha mostrado a experiência quanto mal cumpriam os livres a palavra que davam no cativeiro, porquanto muitas vezes se tinham servido do mesmo meio alguns cativos principais, resgatando um que fosse a Valência ou a Maiorca com o dinheiro necessário para armar um navio e vir buscar os que o haviam resgatado e, contudo, nunca mais voltava, porque a liberdade alcançada e o medo de tomar a perdê-la lhe apagavam da memória todas as abnegações do mundo.

E, em testemunho da verdade que nos dizia, nos contou em breves palavras um caso que quase na mesma ocasião se tinha dado com uns cavaleiros cristãos, o mais estranho que jamais sucedeu naquelas partes nas quais a cada passo ocorrem coisas de admiração e grande espanto.

Afinal, disse que o que se podia e devia fazer era que o dinheiro destinado ao resgate de um cristão, se desse a ele para comprar aí para Argel um navio, com o pretexto de se fazer mercador e traficar em Tetuão e naquela costa e que, sendo ele o senhor do navio, facilmente poderia tirá-los do Banho e embarcá-los a todos. Que por isso que a moura, como o tinha prometido, dava dinheiro para resgatá-los a todos, estando livres era fácil embarcarem ainda de dia, e a maior dificuldade que se opunha era a de não consentirem os Mouros que algum renegado tenha barca, e só baixel grande para ir em corso, porque receiam que o que compra barca, mormente sendo espanhol, se destine a ir nela a terra de cristãos; mas que ele removeria esta dificuldade, conseguindo que um mouro tagarino tomasse sociedade na compra da barca e no ganho das mercadorias, e deste modo se tomava senhor da mesma barca e dava todo o negócio por concluído.

E posto que parecesse melhor, tanto a mim como aos meus camaradas que ele fosse pela barca a Maiorca, como dizia a moura, julgámos prudente contrariá-lo, não receosos de que, se não fizéssemos o que ele aconselhara, nos havia de denunciar e pôr-nos em risco de perder as vidas se descobrisse o que estava combinado com Zoraida, pela vida da qual nós todos daríamos as nossas; e nestas circunstâncias resolvemos entregar tudo às mãos de Deus e às do renegado; e neste estado de coisas respondemos a Zoraida que faríamos tudo quanto nos aconselhava, pois que o delineara com tanto tino, como se lhe tivesse sido revelado por Leila Maryem, e que em seu poder estava a presteza ou a demora do negócio.

Outra vez lhe ofereci a mão de esposo; e, acontecendo estar no dia seguinte o Banho sem gente, por diversas vezes nos deu, por via da cana e do lenço, dois mil escudos de ouro, e um papel onde dizia que no primeiro jumá que corresponde à nossa sexta-feira, iria para o jardim de seu pai, e que antes de isso acontecer nos daria mais dinheiro; e, se este não bastasse, disso a avisássemos, pois que nos daria quanto lhe pedíssemos, porquanto seu pai tanto possuía que não daria pela falta, e mesmo até porque ela tinha as chaves de tudo.

Demos logo quinhentos escudos ao renegado para comprar a barca. Com oitocentos me resgatei eu, dando o dinheiro a um mercador valenciano que na ocasião estava em Argel, o qual me resgatou de el-rei, empenhando a sua palavra em que apenas chegasse de Valência o primeiro baixel pagaria o meu resgate, porque, se desse logo o dinheiro, faria suspeitar o rei de que há muitos dias o meu resgate estava em Argel e que o mercador se servira dele para o seu negócio.

Em suma: meu amo era tão caviloso que de modo nenhum consegui que desembolsasse logo o dinheiro.

Na quinta-feira antes da sexta, em que devia ir para o jardim de seu pai, a formosa Zoraida nos deu outros mil escudos e nos avisou da sua partida, pedindo-me que, se me resgatasse, logo subisse ao jardim de seu pai, e, em todo o caso, tentasse ir ter lá com ela.

Respondi-lhe em poucas palavras que assim o faria, e que não se esquecesse de nos encomendar a Leila Maryem, rezando todas aquelas orações que lhe havia ensinado a cativa.

Feito isto, tratámos de dispor as coisas para que os nossos três companheiros se resgatassem para nos facilitarem a saída do Banho e para que também, por eu estar resgatado e eles não, havendo dinheiro para o resgate de todos, não se alvoroçassem e o Diabo os aconselhasse a alguma coisa em prejuízo de Zoraida; porquanto, ainda o serem eles quem eram me poderia tirar de semelhante receio, ainda assim não quis pôr o negócio em risco, e por esta razão os fiz resgatar da mesma maneira por que eu me resgatei, entregando todo o dinheiro ao mercador, para o termos bem em seguro, sem que, contudo, lhe descobríssemos a nossa empresa e o segredo por causa do perigo que corríamos.

 

NO QUAL O CATIVO CONTINUA A SUA HISTÓRIA

Ainda não eram passados quinze dias e já o nosso renegado tinha comprado uma magnífica barca, com capacidade para nela se acomodarem mais de trinta pessoas; e, a fim de desviar suspeitas e tornar segura a empresa, empreendeu viagem a um lugar chamado Sargel, que está a vinte léguas de Argel para os lados de Orão, onde se negoceia muito em figos passos. Duas ou três vezes fez essa viagem em companhia do tagarino de que falei. Tagarinos chamam na Barbaria aos mouros de Aragão, e Mudéjares aos de Granada, e no reino de Fez chamam a estes últimos Elches os quais são a gente de que o rei dali mais se serve na guerra.

Ora, cada vez que o renegado passava com a sua barca, dava fundo numa pequena enseada que distava menos de dois tiros de frecha do jardim onde Zoraida estava à nossa espera, e muito de propósito se colocara ali, com os mourozinhos ao remo, ora a fazer a azla, ora a fingir que ensaiava o que pensava fazer deveras, e deste modo ia ao jardim de Zoraida, e pedia-lhe fruta, que seu pai lhe dava sem o conhecer; e por mais diligências que fez, como depois me disse, para falar com Zoraida, e dizer-lhe que era ele que iria de meu mando levá-la a terra de cristãos, e que por isso estivesse segura e contente, nunca o pôde conseguir, porque as mouras não se deixam ver de nenhum mouro ou turco sem que tal mandem seus maridos ou pais; com cristãos cativos é que elas vinham à fala ainda mais do que seria razoável; mas melhor foi que acontecesse assim, porque me pesaria que lhe houvesse falado, pois talvez ela se inquietasse, vendo que o seu negócio andava na boca de renegados; Deus, que ordenara as coisas de outro modo, não deu lugar ao bom desejo que tinha o renegado, e este, vendo com quanta segurança ia e voltava a Sargel, e que dava fundo quando, como e aonde queria, e que o tagarino seu companheiro não tinha outra vontade que não fosse a sua, e que eu já estava resgatado, faltando apenas buscar alguns cristãos que vogassem ao remo, disse-me que visse eu quais queria trazer comigo afora os resgatados, e que os tivesse prevenidos para a primeira sexta-feira, dia que tinha escolhido para serão da nossa partida. Em vista disto, falei a doze espanhóis, todos eles homens muito possantes no remo, e daqueles que mais livremente podiam sair da cidade, e não foi pouco encontrar tantos numa ocasião em que estavam em corso vinte baixéis, tendo levado toda a gente de remo, e nem estes doze teria arranjado, se não sucedesse ter deixado seu amo de ir em corso naquele Verão, ficando em terra para acabar uma galeota que tinha no estaleiro: a estes homens disse somente que na primeira sexta-feira de tarde saíssem um a um com dissimulação, e que me esperassem ao pé do jardim de Agi Morato. A cada um em particular dei estas instruções, recomendando-lhes que encontrando ali outros cristãos não lhes dissessem senão que os tinha mandado esperar naquele sítio. Feita esta diligência, faltava-me a principal, e era esta dar conta a Zoraida do estado em que estavam os nossos negócios para estar prevenida e não se sobressaltasse, se fôssemos raptá-la mais depressa do que porventura ela esperasse que poderia chegar a barca dos cristãos: resolvi, portanto, ir ao jardim e ver se acharia meio de falar-lhe, e, com o pretexto de apanhar algumas ervas, fui lá um dia antes da minha partida, e a primeira pessoa com quem me encontrei foi com seu pai e este me disse, na língua que em toda a Barbaria e mesmo em Constantinopla se fala entre cativos e mouros, a qual nem é mourisca nem castelhana, nem de nação alguma, senão uma mistura de todas as línguas, mas pela qual todos nos entendemos; digo, que nesta forma de linguagem me perguntou o que eu procurava no seu jardim, e quem eu era. Respondi-lhe que era escravo de Arnaute Mami, e isto por saber eu com toda a certeza que este era seu íntimo amigo; e também lhe disse que procurava ervas para fazer salada. Perguntou-me ainda se era ou não homem de resgate e quanto meu amo pedia por mim. Neste tempo saiu da casa do jardim a bela Zoraida, que já muito antes me tinha visto; e, como as mouras não fazem reparo em aparecer aos cristãos, nem tão-pouco se esquivam, como já disse, facilmente veio ter aonde o pai estava comigo, e o próprio pai vendo-a vir devagar a chamou e lhe disse que se chegasse.

Fora demasia dizer eu agora a muita formosura, a gentileza, os galhardos e ricos adornos com que a minha querida Zoraida se mostrou a meus olhos: tão-somente direi que do seu formosíssimo colo, orelhas e cabelos pendiam mais pérolas do que quantos destes tinha na cabeça. Nos pés, que, conforme o uso oriental, trazia nus, tinha dois carcasses (que assim se chamam em mourisco uma espécie de cadeias de que nos pés usam as mulheres) de puríssimo ouro, com tantos diamantes engastados, que, segundo ela me disse depois, seu pai estimava em dez mil dobras e noutro tanto os braceletes. Eram ricas e inumeráveis as pérolas, porque o maior luxo dos Mouros consiste em adorno de pérolas e aljôfares, sendo por isso que entre os Mouros há mais destas pedras preciosas do que em todas as outras nações, e o pai de Zoraida tinha fama de possuir muitas e das mais ricas de Argel, além de mais de duzentos mil escudos espanhóis, que tudo isto pertencia a esta que agora é minha senhora. Se com estes adornos devia vir ou não formosa e quanto o foi nos seus dias de prosperidade, que o diga a formosura que ainda hoje tem, apesar dos trabalhos por que tem passado, pois bem sabido é que nalgumas mulheres a formosura tem dias e estações, e diminui ou cresce conforme as circunstâncias; além de que muito naturalmente as paixões a realçam ou estragam, quando muitas vezes a não destroem. Finalmente, apresentou-se ricamente adornada e extremamente formosa, ao menos pareceu-me a mim que era a mais bela que eu até aí tinha visto, e, juntando à sua formosura os benefícios por mim recebidos, tudo isto me fazia ver ali uma deidade do Céu que desceu à Terra para me salvar e encher de gozos. Apenas ela tinha chegado, disse-lhe o pai, na sua língua, que eu era cativo de seu amigo Arnaute Mami, e que fora buscar salada. Tomando a mão ao pai, e naquela mistura de linguagem, de que já tenho falado, perguntou-me se eu era cavaleiro, e por que razão me não resgatava. Respondi-lhe que já estava resgatado, e que do preço do resgate podia ver a valia em que me tinha meu amo, pois eu havia dado mil e quinhentos zoltanis. A isto me respondeu:

- Na verdade, se tivesses sido de meu pai, eu faria com que nem pelo dobro te resgatasses, porque vós os cristãos mentis em tudo quanto dizeis, e vos fingis pobres para enganar os Mouros.

- Assim podia ser Senhora - lhe respondi -, mas crede que tratei com toda a verdade com meu amo, e que com ela trato e tratarei sempre com todas as pessoas do mundo.

- E quando partes? - perguntou-me Zoraida.

- Amanha, segundo creio - respondi-lhe -, pois está aqui um baixel de França, que amanhã dará à vela, e espero ir nele.

- Não será melhor - replicou Zoraida - esperar que cheguem baixéis de Espanha, e que vás num deles, e não num dos de França, por não serem os Franceses vossos amigos?

- Não - respondi eu-; contudo, talvez espere um baixel de Espanha que dizem estar a chegar; mas o mais certo é que eu parta amanhã, porque me apertam as saudades de ver a minha terra e as pessoas da minha estima, que não quero esperar nenhuma comodidade por maior que ela seja.

- Provavelmente és casado na tua terra - disse-me Zoraida - e por isso desejas ir quanto antes ver tua mulher?

- Não sou casado - respondi eu -, mas dei a minha palavra de casar logo que ali chegue.

- E é formosa a dama com quem prometeste casar? - disse Zoraida.

- Tão formosa é - lhe respondi - que em seu justo ouvor me basta dizer que ela se parece muito contigo.

Disto se riu com grande vontade o pai, e disse-me:

- Por Alá, cristo, que deve ter muita formosura essa dama, se é verdade parecer-se com minha filha, que é a mais formosa de todo este reino. Olha bem para ela e verás como é verdade o que te digo.

Nesta conversação serviu-nos de intérprete, como mais habituado a outras semelhantes, o pai de Zoraida, pois que ainda que ela falava a língua bastarda, que ali se usa, exprimia-se mais por sinais do que por palavras. De repente, chegou um mouro a correr, gritando que quatro turcos, saltando os muros, tinham entrado no jardim e andavam a tirar a fruta ainda verde. O velho e Zoraida ficaram sobressaltados, porque é geral e quase natural o medo que os Mouros têm aos Turcos, mormente sendo soldados, pois são estes tão insolentes e têm tanto poderio sobre os Mouros, os quais lhes estão sujeitos, que os tratam pior do que aos seus escravos.

Por este motivo disse o pai de Zoraida:

- Minha filha, vai para casa, e fecha-te nela, enquanto vou falar àqueles cães; e tu, cristão, procura as ervas que pretendes;

vai-te em paz, e Alá te acompanhe à tua terra.

Cortejei-o, e ele foi procurar os turcos deixando-me só com Zoraida, que fingia começar a cumprir as ordens do pai, caminhando para casa; mas, logo que este se encobriu com as árvores do jardim, ela voltou-se para mim e disse-me, banhada em lágrimas:

- Amexi, cristão, amexi - o que quer dzer: Vais-te, cristão, vais-te?

E eu respondi-lhe:

- Irei, Senhora, mas aconteça o que acontecer, não irei sem ti: está próxima a primeira sexta-feira, e não te sobressaltes quando aqui nos vires, que em seguida iremos depois com certeza à terra de cristãos.

De tal maneira me exprimi que ela me compreendeu perfeitamente, e, lançando-me um braço ao pescoço, com passos lentos começou a caminhar para casa; quis, porém, a sorte, que poderia ser tervel, se o Céu o não determinasse de outro modo, que o pai, voltando já de estar com os turcos, nos visse nesta posição; e, posto que nós também o víssemos a ele, Zoraida, mulher fina, não retirou o braço, antes mais se chegou a mim e pousou a cabeça sobre o meu peito, dobrando um pouco os joelhos, fingindo perfeitamente que desmaiava, e diligenciando eu ao mesmo tempo mostrar que a sustinha contra minha vontade.

Correu o pai para onde estávamos, e, vendo a filha neste estado, perguntou o que tinha; e, como ela lhe não respondesse, disse:

- Sem dúvida desmaiou sobressaltada com a entrada des-

tes cães.

E, tirando-a do meu, conchegou-a ao seu peito, e ela então, dando um suspiro e ainda banhada em pranto, tornou a dizer:

- Amexi, cristão, amexi: vai-te, cristão, vai-te.

- Não importa, minha filha - respondeu o pai -, que o cristão se vá, pois nenhum mal te fez, e os turcos já se foram embora: nenhuma coisa te sobressalte, pois nenhuma há que deva afligir-te; como já te disse, os turcos, a instâncias minhas, saíram por onde tinham entrado.

- Foram eles Senhor, que a assustaram - disse eu ao pai -; mas como ela diz que me retire, não quero tornar-me incómodo. Fica-te em paz, e com licença tua se me for preciso, voltarei a procurar ervas neste jardim, porque, segundo diz meu amo, em nenhum outro as há melhores para salada do que no teu.

- Podes vir colher quantas quiseres - respondeu Agi Morato - pois minha filha não se queixa de ti nem de nenhum cristão; querendo referir-se aos Turcos, é que disse que te retirasses, ou então que eram horas de ires procurar as tuas ervas.

Logo me despedi de ambos, e ela, arrancando-se-lhe a alma como parecia, retirou-se com o pai, e eu, sob o pretexto de procurar as ervas, rodeei o jardim com todo o vagar e à minha vontade, notei bem as entradas e saídas e a fortaleza da casa, e a facilidade com que poderia executar o meu plano. Concluído este serviço, retirei-me, e contei ao renegado e aos meus companheiros quanto se tinha passado, e já me tardava a hora de gozar sem sobressalto o bem que na bela e formosa Zoraida me dava a sorte. Finalmente, passou-se o tempo, e chegou o dia e a ocasião por nós tão desejada; e, seguindo todos a ordem do plano que com discrição e com muitas combinações havíamos formado, tivemos a fortuna que tanto desejávamos, porquanto, ao anoitecer da sexta-feira que se seguiu ao dia em que falei com Zoraida no jardim, o renegado deu fundo com a barca quase defronte do sítio onde estava a formosíssima Zoraida.

Já os cristãos que tinham de ir trabalhar ao remo estavam preparados e escondidos em diversos sítios daqueles arredores.

Todos me esperavam, suspensos e alvoroçados, e impacientemente desejosos de atacarem o baixel que tinham à vista, porque ignoravam as combinações com o renegado e pensavam que à força de braço é que tinham de ganhar e possuir a liberdade, matando os mouros que estavam dentro da barca. Logo que nos avistaram chegaram-se para nós todos aqueles cristãos que por ali se achavam escondidos, e já então a cidade estava deserta e não se via alma viva em toda aquela campina. Uma vez reunidos, hesitámos em se seria melhor ir primeiro de tudo raptar Zoraida ou render a barca, e, nesta perplexidade, chegou o nosso renegado e perguntou-nos o que esperávamos, acrescentando que já eram horas e que todos os seus mouros estavam descuidados e a maior parte deles a dormir. Contámos-lhe o que nos detinha e então ele nos disse que antes de tudo convinha tomar o baixel o que poderia fazer-se com facilidade e que feito isto iamos buscar Zoraida. A todos nos pareceu sensato este parecer, e, sem mais demora, e indo ele na frente, nos precipitámos sobre o baixel, e saltando ele dentro primeiro que todos empunhou um alfange, e disse em mourisco:

- Ninguém aqui se mova se não quer perder a vida. E já então todos os cristãos tinham saltado para dentro da barca. Os mouros, que eram pouco animosos ouvindo falar desta maneira o seu arrais, ficaram espantados, e sem que nenhum deles tivesse coragem para pegar nas armas, que poucas ou quase nenhumas tinham, deixaram-se manietar pêlos cristãos, o que estes lhes fizeram com toda a presteza, ficando os mouros compreendendo que seriam passados à espada no mesmo instante em que gritassem. Depois disto feito, deixando-os guardados por metade dos nossos, fomos os que restávamos buscar Zoraida ao jardim de Agi Morato, indo à nossa frente o renegado, e quis a nossa boa sorte que, quando íamos para forçar a porta, ela se abrisse com tanta facilidade como se não estivesse fechada, e deste modo muito tranquilamente e em silêncio chegámos à casa sem que ninguém nos pressentisse. Estava a lindíssima Zoraida esperando por nós a uma janela, e, logo que sentiu gente, perguntou em voz baixa se éramos nizarani, como se dissesse ou perguntasse, se éramos cristãos. Eu lhe respondi que sim, e que baixasse. Logo que me conheceu, sem demorar-se nem mais um instante e sem responder-me uma só palavra, desceu rapidamente, abriu a porta e apareceu-nos tão formosa e tão ricamente vestida que não sei como

descrevê-lo. Apenas a vi perto de mim, tomei-lhe a mão, e comecei a beijar-lha, e o mesmo fizeram o renegado e os meus dois companheiros, e os outros, que não sabiam de que se tratava, fizeram o que nos viram a nós fazer, parecendo-lhes decerto que com isto lhe dávamos graças e a reconhecíamos como senhora da nossa liberdade. Perguntou-lhe o renegado, em língua mourisca, se o pai estava no jardim, e ela respondeu que sim e que dormia.

- Pois é necessário acordá-lo - replicou o renegado - e levá-lo connosco e tudo quanto tem de valor neste formoso jardim.

- Não - disse ela -, não consinto que em meu pai alguém ouse tocar, e nesta casa não há mais nada que o que vai comigo, que é tanto que chegará para que todos fiquem ricos e contentes; esperai, e vê-lo-eis.

Neste momento, voltou a casa, dizendo que não se demoraria, e que estivéssemos nós quietos e não fizéssemos ruído algum. Perguntei então ao renegado o que tinha passado com ela, e, contando-me ele tudo, disse-lhe eu que só se havia de fazer o que Zoraida quisesse, e quando isto dizia já ela voltava com um cofrezinho cheio de escudos de ouro, em tamanha porção que o conduzia com muito custo. Quis, porém, a má sorte que neste meio tempo acordase o pai e sentisse o ruído que ia no jardim, e, chegando à janela, conheceu logo que éramos cristãos, e em altas e desesperadas vozes começou a gritar em árabe:

- Cristãos, cristãos, ladrões, ladrões!

Estes gritos puseram-nos em grande e arriscada confusão; mas o renegado, conhecendo o perigo em que estávamos e quanto era preciso levar a cabo a empresa sem ser sentido, correu aonde estava Agi Morato, e foram atrás dele alguns dos nossos;

quanto a mim, entendi que não devia desamparar Zoraida, que caíra desmaiada sobre os meus braços. Finalmente, os que subiram de tal modo se houveram que num momento desceram, trazendo Agi Morato com as mãos atadas e com um lenço na boca, de maneira que não podia proferir palavra, ameaçando-o ainda assim que lhe tirariam a vida se falasse. Quando a filha o avistou, cobriu os olhos para não o ver, e o pai ficou espantado, ignorando quanto ela de sua vontade se havia colocado nas nossas mãos; mas, sendo o mais necessário então a ligeireza dos pés, a toda a pressa nos fomos meter na barca, na qual os que nela estavam principiaram a recear que tivéssemos sido mal sucedidos. Apenas se teriam passado duas horas pela noite dentro, já todos nós estávamos na barca, e logo tirámos ao pai de Zoraida a atadura que lhe puséramos nas mãos e o lenço com que lhe tapáramos a boca; mas disse-lhe outra vez o renegado que lhe tiraríamos a vida, se proferisse uma só palavra. Como ele ali viu a filha, começou a suspirar com muita ternura e com muita mais ainda quando viu que eu estreitamente a apertava nos braços, sem que ela se defendesse, nem se esquivasse ou soltasse um queixume, antes ficando serena; mas tudo ele sofria calado para que o renegado não pusesse em execução as muitas ameaças que lhe havia feito. Vendo-se já na barca e observando que íamos começar a remar, e olhando para o pai e para os outros mouros que estavam amarrados, Zoraida disse ao renegado, para mo dizer a num, que lhe fizesse eu a mercê de soltar aqueles mouros e pôr-lhe o pai em liberdade, pois que mais fácil lhe seria atirar-se ao mar do que ver diante dos olhos e por sua causa ser levado cativo um pai que tanto a tinha amado sempre. Disse-mo o renegado, e eu respondi que isso era da minha melhor vontade; mas objectou o renegado que isto não convinha, porque se ali os deixássemos, chamariam em socorro toda a terra e alvoroçariam a cidade, podendo suceder que fossem sobre nós com algumas fragatas ligeiras e nos tomassem a terra e o mar, de modo que não pudéssemos escapar-lhes; e que o mais que poderia fazerse-lhe era pô-los em liberdade na terra dos cristãos a que primeiramente chegássemos. Assentámos todos neste parecer, e Zoraida, à qual expusemos as razões que tínhamos para não lhe fazermos logo a vontade, deu-se por satisfeita.

Em seguida, com um silêncio que nos enchia de profunda satisfação e com alegre diligência cada um dos nossos valentes rmeiros tomou os remos e começámos, encomendando-nos de todo o coração a Deus, a navegar em roda das ilhas de Maiorca, que era a mais próxima terra de cristãos; mas, por soprar vento um tanto norte e estar o mar algum tanto agitado, não pudemos seguir a derrota de Maiorca, e vimo-nos forçados a navegar em torno de Orão, não sem grande pesar nosso, pois receávamos ser descobertos do lugar de Sargel que naquela costa não dista de Argel mais de sessenta milhas; e demais a mais temíamos encontrar por aquelas paragens alguma galeota das que ordinariamente conduzem mercadorias de Tetuão, posto que cada um por si e todos juntos presumíamos que, encontrando galeota de mercadorias, não sendo das que andam em corso, não só não nos perderíamos, mas até que conseguiríamos baixel em que com mais segurança pudéssemos concluir a nossa viagem.

Enquanto se navegava, ia Zoraida com a cabeça entre as minhas mãos para não ver o pai, e notei que ela rezava a Leila Maryem, pedindo-lhe que nos protegesse. Teamos navegado trinta milhas, quando nos amanheceu estando desviados de terra coisa de três tiros de arcabuz, e observámos que estava toda deserta e que por isso ninguém nos vira; contudo, fomos à força de braços entrando um pouco no mar, que já estava mais sossegado, e, achando-nos quase duas léguas desviados de terra, deu-se ordem para que se vogasse por quartos, enquanto comíamos alguma coisa, pois ia bem provida a barca; posto que os remadores dissessem que não era ocasião oportuna para repousar, e que somente dessem de comer aos que não vogavam, porque quanto a eles não queriam de modo algum largar os remos das mãos. Assim se fez, e neste meio tempo começou a soprar um vento rijo que logo nos obrigou a navegar à vela e a deixar o remo, e a tomarmos o rumo de Orão por não nos ser possível fazer outra viagem. Tudo isto se fez com muita presteza, e deste modo navegámos à vela mais de oito milhas por hora sem outro receio que não fosse o de nos encontrarmos com algum baixel dos que andam em corso.

Demos de comer aos mouros tagarinos, e o renegado os consolou, dizendo-lhes que não iam cativos, e que tanto assim era que na primeira ocasião se lhes restituiria a liberdade. O mesmo disse ao pai de Zoraida que lhe respondeu:

- Outra qualquer coisa poderei eu crer e esperar da vossa liberalidade e cortesia; mas, quanto à promessa de me pordes em liberdade, não me julgueis tão simples, cristão, que disso me persuada; pois decerto que não vos teríeis exposto ao perigo de tirar-ma para tão facilmente ma restituirdes, mormente sabendo vós muito bem quem eu sou, e quanto podeis receber como preço dela. Mas, se a quereis pôr já em preço, eu vos ofereço quanto pedirdes por mim e por essa minha desgraçada filha, ou ao menos só por ela, por ela que é a maior e a melhor parte da minha alma. E desatou logo a chorar tão amargamente, que nos comoveu a todos, e obrigou Zoraida a volver os olhos para ele, e, vendo-o assim a chorar, de tal modo se enterneceu, que se levantou de meus pés, onde estava e foi abraçar-se no pai, e, juntando a sua face à dele, ambos romperam em tão terno pranto que muitos dos que ali íamos os acompanhámos no choro. Quando, porém, o pai a viu vestida de gala e adornada com tantas jóias, disse-lhe na sua língua:

- Que é isto, filha? Pois ainda ao anoitecer de ontem, antes que nos sucedesse esta terrível desgraça em que agora nos vemos, te vi com os teus vestidos ordinários e caseiros, e agora, sem que tivesses tempo para te vestires, e sem receberes novidade alguma alegre que devesses solenizar cobrindo-te de enfeites, vejo-te com os melhores vestidos que pude dar-te, quando nos foi mais favorável a fortuna?! Responde-me a isto, porque isto me suspende e admira muito mais do que a própria desgraça em que me encontro.

Tudo o que o mouro dizia à filha nos explicava o renegado, e ela não lhe respondia palavra. Mas, quando ele viu a um lado da barca o cofrezinho onde a filha costumava guardar as jóias, o qual ele bem sabia que deixara em Argel, e que o não tinha trazido para o jardim, mais confuso ficou, e perguntou-lhe como aquele cofre tinha vindo dar às nossas mãos e o que continha. Sem esperar que Zoraida respondesse, disse-lhe o renegado:

- Não te canses Senhor, com tantas perguntas a tua filha, porque, respondendo-te eu a uma, responderei de uma só vez a todas; e assim convém que saibas que ela é cristã, e que foi a lima das nossas cadeias e a liberdade do nosso cativeiro: ela vai aqui muito de sua vontade e tão contente, ao que eu penso, de se ver neste estado, como aquele que sai das trevas para a luz, da morte para a vida, e do Inferno para o Céu.

- É verdade, minha filha, o que este homem diz? - perguntou-lhe o pai.

- Assim é - respondeu Zoraida.

- Pois tu és cristã, e puseste teu pai em poder de seus inimigos?

- Cristã eu o sou; mas não sou quem te pôs nesse estado, porque nunca o meu desejo se estendeu a deixar-te nem a fazer-te mal, e somente a fazer-te bem.

- Mas qual é o bem que me fizeste, minha filha?

- Qual ele seja, pergunta-o a Leila Maryem, que Ela melhor do que eu saberá responder-te.

Apenas ouviu isto, o mouro com admirável presteza atirou consigo ao mar de cabeça para baixo, e sem dúvida se afogara, se a roupa, por ser larga, o não embaraçasse e retivesse sobre a água.

Em altas vozes gritou Zoraida, que o salvassem, e indo logo nós todos em seu socorro, agarrámo-lo pela almalafa e tirámo-lo do mar quase afogado e sem sentidos, e isto tanto afligiu Zoraida, que derramou sobre o pai tão temas e dolorosas lágrimas, como se ele já estivesse morto.

Pusemo-lo de pernas para o ar, e, lançando muita água pela boca, tornou a si ao cabo de duas horas, e, mudando no entretanto o vento, foi-nos conveniente aproximarmo-nos de terra, fazendo toda a força de remos para não sermos arrojados contra a costa; mas quis a nossa boa sorte que chegássemos a uma enseada que fica ao lado de um pequeno promontório ou cabo, a que os mouros apelidam de cava mna, o que na nossa língua quer dizer ma mulher crista; e é tradição entre os Mouros que naquele lugar está enterrada a cava por quem se perdeu a Espanha, porque cava na língua deles quer dizer mulher má, e rumia quer dizer cristão; e têm por mau agouro chegar ali a dar fundo quando a necessidade os obriga a isso, e sem esta nunca ali o vão dar; contudo, para nós não foi abrigo de má mulher, antes porto seguro da nossa salvação, porque o mar andava muito alterado. Pusemos sentinelas em terra, e nunca largamos os remos da mão: comemos do que o renegado tinha provido a barca e de todo o nosso coração rogámos a Deus e a Nossa Senhora, que nos ajudasse e protegesse para que facilmente déssemos fim àquilo que tinha tido tão ditoso princípio. Nesta ocasião tratámos de ver o modo por que havíamos de satisfazer às súplicas de Zoraida, para pormos em terra seu pai e todos os outros que ali iam atados, pois que não tinha ânimo, nem cabia em seu terno coração ter diante de seus olhos manietado seu próprio pai e os outros da sua terra. Prometemos soltá-los no acto da partida, porque não havia perigo em deixá-los naquele lugar por ser despovoado. Não foram tão vãs as nossas orações que não fossem ouvidas do Céu porquanto em nosso benefício logo mudou o vento e ficou tranquilo o mar, convidando-nos a continuar alegres a nossa começada viagem. Vendo isto, desatámos os mouros, e pusemo-los em terra um a um, do que eles ficaram admirados; mas o pai de Zoraida, que já estava bom, disse quando ia a desembarcar:

- Porque julgais, cristãos, que esta má criatura dá mostras de se alegrar com a minha liberdade? Julgais que é por piedade que tem de mim? Decerto que não, mas antes que o faz para que a minha presença lhe não sirva de estorvo, quando queira pôr em execução os seus maus desejos; nem penseis que a levou a mudar de religião o entender ela que a vossa se avantaja à nossa, mas sim o saber ela que na vossa terra com mais facilidade do que na nossa se pratica a desonestidade; e, virando-se para Zoraida, que eu e outro cristão detínhamos por ambos os braços para que não rompesse nalgum desatino, disse-lhe:

- Ó mulher infame, e mal aconselhada rapariga, para onde vais cega e desatinada, em poder destes cães nossos naturais inimigos? Maldita seja a hora em que te gerei, e malditos os regalos e deleites com que foste criada por mim.

Mas, vendo-o eu em termos de não acabar tão cedo, apressei-me a pô-lo em terra, e ali continuou em voz alta as suas maldições e lamentos, pedindo a Alá por intervenção de Mafoma, que nos confundisse e destruísse, dando cabo de nós;

e quando, por nos havermos feito à vela, não pudemos ouvir as suas palavras, vimos-lhe as acções, que eram arrancar as barbas e os cabelos, e arrastar-se pelo chão; mas uma vez de tal modo esforçou a voz, que pudemos entender que dizia isto:

- Volta, minha amada filha, volta à terra, que tudo te perdoo; entrega a esses homens esse dinheiro, que já é deles, e vem consolar este teu triste pai, que nesta triste areia deixará a vida, se o deixas.

Zoraida escutava tudo isto, tudo sentia, e por tudo chorava, e não soube dizer-lhe ou responder-lhe senão isto:

- Praza a Alá, meu pai, que Leila Maryem, que há sido a causa de eu ser cristã, te console em tua tristeza. Alá sabe muito bem que eu não podia fazer senão o que fiz, e que estes cristãos nada devem à minha vontade, pois que ainda que eu não quisesse vir, antes desejasse ficar em casa, isso me teria sido impossível, porquanto a alma me impelia a pôr em execução esta obra que me parece tão boa quanto tu, ó meu amado pai, a julgas má.

Quando disse isto, já o pai a não ouvia, nem nós o ouvíamos a ele; e, consolando Zoraida, cuidámos todos da nossa viagem, a qual o vento nos facilitou por tal modo que contámos amanhecer no dia seguinte nas praias de Espanha; mas, como nunca ou raras vezes o bem puro e simples deixa de vir acompanhado ou seguido de algum mal que o perturbe ou sobressalte, quis a nossa desgraça, ou talvez as maldições do mouro contra sua filha, que sempre se devem temer as maldições dos pais, sejam eles quem quer que forem; repito, quis a nossa desgraça, que, estando nós já dentro do golfo, e sendo passadas quase três horas depois de haver anoitecido, correndo a todo o pano, com os remos em descanso, porque o vento prspero tornava desnecessário vogar a eles, com a luz da Lua que resplandecia em todo o seu brilho, vimos ao pé de nós um baixel redondo, que a todo o pano e levando o leme um pouco à orça, atravessava adiante de nós, e isto já tão perto que nos foi preciso amainar para não irmos de encontro a ele, fazendo os do baixel também força de vela para que pudéssemos passar. De bordo do baixel perguntaram-nos quem éramos, para onde navegávamos e de onde vínhamos; mas, porque nos fizeram em francês estas perguntas, disse-nos o renegado:

- Ninguém responda, porque estes sem dúvida são corsários franceses que nada poupam.

Em vista desta advertência, ninguém respondeu palavra, e, tendo nós passado um tanto adiante, que já o baixel ficara a sotavento, de repente despejaram duas peças de artilharia, e, ao que parecia, ambas vinham com planquetas, porque com uma nos cortaram o mastro ao meio, atirando-nos com ele e com a vela ao mar, e disparando no mesmo instante outra peça, a bala deu no meio da nossa barca de tal modo que a abriu toda sem causar outro mal; mas, como víssemos que íamos ao fundo, todos em altas vozes começámos a pedir socorro e a rogar aos do baixel que nos recolhessem, porque nos alagávamos. Amainaram ento as velas, e, deitando a falua ao mar, entraram dentro dela uns doze franceses armados com os seus arcabuzes e mechas acesas e assim se chegaram ao nosso; e, vendo que éramos muito poucos, e que o baixel se afundia, recolheram-nos, dizendo-nos que por sermos descorteses em não lhes respondermos é que nos sucedera aquilo.

O nosso renegado tomou o cofre das riquezas de Zoraida e atirou com ele ao mar, sem que algum de nós visse o que ele fazia. Por último, entrando no baixel dos franceses, estes, depois de se informarem de tudo quanto quiseram saber de nós, como se fôssemos seus figadais inimigos, despojaram-nos de tudo quanto tínhamos, e a Zoraida até tiraram os carcasses que trazia nos pés; mas a mim não me afligia tanto o pesar que a ela lhe causavam como o temor que eu tinha de que depois de lhe tirarem estas riquíssimas e preciosíssimas jóias, passassem a tirar-lhe aquela que mais valia e ela sobre todas ainda mais estimava; felizmente os desejos daquela gente não se estendiam senão ao dinheiro e disto nunca se farta a sua cobiça, que então chegou a tal ponto que até os vestidos de cativos nos tirariam, se de algum proveito lhe servissem; e houve entre eles quem fosse de parecer que nos lançassem todos ao mar embrulhados numa vela, porque tinham tenção de fazer negócio nalguns portos de Espanha com o nome de bretões, e que, levando-nos vivos, correriam o risco de serem castigados, descoberto que fosse o roubo que nos tinham feito; porém o capitão, que fora

quem despojara a minha querida Zoraida, disse que ele se contentava com a presa e que não queria tocar em nenhum porto de Espanha, mas seguir logo a sua viagem e passar o estreito de Gibraltar de noite, ou como pudesse, até Arrochela, de onde tinha saído, e então resolveram dar-nos a falua do seu navio e o mais que era necessário para a curta navegação que nos restava; e com efeito assim o fizeram no dia seguinte, já à vista de terra de Espanha, e neste momento foi tamanha a nossa alegria que nos esquecemos de todas as mágoas e desgraças, como se nenhuma tivéssemos suportado; tal é a ânsia com que se deseja alcançar a liberdade perdida! Seria, pouco mais ou menos, meio-dia, quando nos meteram na barca, dando-nos dois barris de água e algum biscoito; e o capitão, movido por estranha compaixão, deu a Zoraida, no acto do desembarque, uns quarenta escudos de ouro, e não consentiu que os soldados lhe tirassem estes vestidos que ela agora traz. Entrámos no baixel, demos-lhe graças pela bondade com que afinal nos trataram, mostrando-nos mais agradecidos do que queixosos; fizeram-se eles ao largo, seguindo a derrota do estreito, e nós, não tendo por norte senão a terra que tínhamos adiante dos olhos, com tanta pressa vogámos, que ao pôr do Sol estávamos tão perto que, segundo nos pareceu, podíamos chegar a ele antes de ser muito de noite;

mas, como não houvesse luar e o céu estivesse escuro, e ignorando nós em que paragem nos achávamos, não nos pareceu coisa segura meter a proa à terra, como queriam muitos dos nossos, os quais disseram em abono do seu parecer que atracássemos, mesmo que fosse a umas rochas e longe do povoado, assim nos livraríamos do temor que com bons fundamentos devíamos ter de que por ali andassem baixéis de corsários de Tetuão, que costumavam anoitecer em Barbaria e amanhecer nas costas de Espanha, onde de ordinário fazem presa e vão dormir a suas casas; mas dos muitos pareceres que houve, aquele que se aproveitou foi o de que nos fôssemos pouco a pouco aproximando e que desembarcássemos aonde pudéssemos melhor fazê-lo e o sossego do mar o permitisse. Assim se fez, e ainda não seria meia-noite quando chegámos ao pé de uma muito disforme e alta montanha; mas não tão encravada no mar que nos negasse um pouco de espaço para comodamente fazermos " o desembarque. Encalhámos na areia, saímos todos para terra e beijámo-la, e, derramando lágrimas de contentamento, todos demos graças a Deus Nosso Senhor pêlos benefícios incomparáveis que nos dispensou durante a viagem; tirámos da barca os abastecimentos que nela vinham, puxámo-la para terra, subimos um grande estirão da montanha, pois que, nem mesmo chegando ali, tínhamos o coração tranquilo ou podíamos crer que estávamos em terra de cristãos.

Amanheceu mais tarde do que queríamos, e subimos toda a montanha, a fim de vermos se dali descobríamos algum povoado ou cabanas de pastores; mas, por mais que alongássemos a vista, nem povoado, nem pessoa, nem caminho ou atalho descobrimos. Não obstante isto, resolvemos entrar pela terra dentro, pois pelo menos podíamos encontrar quem dela nos desse notícia; mas, no meio de tudo, o que mais me afligia era ver ir Zoraida a pé por aquelas asperezas, porquanto, ainda que algumas vezes a levei aos ombros, mais a cansava a ela o meu cansaço do que a descansava o descanso que eu lhe queria dar, e por este motivo nunca mais ela quis que eu tivesse esse trabalho; e com muita paciência e mostras de alegria, levando-a eu sempre pela mão, ainda não teríamos andado um quarto de légua, e eis que ouvimos o som de uma pequena campainha, que foi para nós sinal claro de que por ali perto andava gado, e, olhando todos com atenção se aparecia alguém, ao pé de um sobreiro vimos um pastor, amda rapaz, que com muito descanso e descuido estava fazendo gravuras num pau com uma navalha.

Gritámos-lhe, e ele, levantando a cabeça, pôs-se ligeiramente de pé, e, pelo que depois soubemos, os primeiros que lhe apareceram foram o renegado e Zoraida, e, como os visse vestidos de mouros, pensou que todos os da Barbaria iam sobre ele, e, correndo velozmente pelo bosque dentro, começou a dar os maiores gritos do mundo, dizendo:

- Mouros, mouros em terra; mouros, às armas, às armas!

Ficámos todos em confusão com estes gritos, e não atinávamos com o que devíamos fazer; mas, considerando que os gritos do pastor com certeza alvoroçariam a terra e que viria logo a cavalaria da costa para ver o que era, resolvemos que o renegado despisse as roupas de turco e vestisse um jaleco ou casaco de cativo que um de nós lhe deu logo, ficando em camisa; e, em seguida, encomendando-nos a Deus, fomos pelo mesmo caminho por onde vimos ir o pastor, esperando a cada momento que viesse sobre nós a cavalaria da costa; e com efeito não nos enganou o pensamento, porque, ainda não seriam passadas duas horas, quando, tendo nós já saído daquelas matas para um plaino, descobrimos uns cinquenta cavaleiros, que, correndo a toda a brida, vinham direitos a nós; e logo que os avistámos, parámos à espera deles; mas, quando chegaram e viram em lugar dos mouros tão pobres cristãos, ficaram confusos, e um deles perguntou-nos se tínhamos sido nós a causa de ter um pastor gritado às armas. Respondi-lhe que sim; e indo a contar-lhe o que nos tinha sucedido, de onde vínhamos, e quem nós éramos, um dos cristãos que vinham connosco conheceu o cavaleiro que nos tinha feito a pergunta, e disse, sem me deixar proferir mais uma palavra:

- Graças sejam dadas a Deus, Senhores, por nos haver conduzido para tão boa terra, porque, se me não engano, aquela que pisamos é a de Velez-Málaga: se os anos do cativeiro não me tiraram a memória, vós Senhor, que nos perguntais quem somos, sois Pedro de Bustamante, meu tio.

Apenas o cristão cativo tinha dito isto, o cavaleiro apeou-se logo, e correu a abraçá-lo, dizendo-lhe:

- Sobrinho da minha alma, e da minha vida, já te conheço, e já te chorámos por morto, eu e minha irmã, tua mãe, e todos os teus que ainda vivem, porque Deus lhes conservou a vida para que tivessem a consolação de tornarem a ver-te; já sabíamos que estavas em Argel; e pelo estado e qualidade dos vestidos que tu e os teus companheiros trazeis, compreendo que foi milagrosa a vossa redenção.

- É verdade - respondeu o moço - e tempo teremos de vos contar tudo.

E, logo que os cavaleiros viram que éramos cristãos que vínhamos do cativeiro, apearam-se dos seus cavalos e cada um

nos ofereceu o seu para nos levarem à cidade de Velez-Málaga, que estava dali a légua e meia.

Foram alguns deles levar-nos o barco à cidade para o que E lhes dissemos aonde o tínhamos deixado; outros puseram-nos nas ancas dos seus cavalos, indo Zoraida nas do cavalo do tio do cristão. Acudiu a receber-nos todo o povo, que por via de alguém que se tinha adiantado, já sabia da nossa chegada. Aquela gente não se admirava de ver cativos em liberdade, nem mouros cativos, porque todos os daquela costa estão costumados a ver tanto uns como outros; do que se admirava era da , formosura de Zoraida, a qual naquela ocasião estava tanto mais encantadora, quanto o cansaço da jornada e a alegria de se ver já em terra de cristãos, sem receio de perder-se, lhe tinha feito subir ao rosto tais cores que, se não me enganava a afeição, poderia dizer que não havia mulher mais formosa em todo o mundo, pelo menos que por mim tivesse sido vista. Fomos direitos à igreja dar graças a Deus pela mercê recebida, e logo Zoraida, que entrou dentro dela, disse que havia ali stos que se pareciam com os de Leila Maryem. Dissemos-lhe que eram efectivamente imagens suas, e, como melhor pôde, explicou o renegado o que significavam, para que as adorasse como se verdadeiramente cada uma delas fosse a própria Leila Maryem que lhe havia falado. Ela, que tem entendimento esclarecido, e que é de um natural fácil e penetrante compreendeu logo quanto se lhe disse acerca das imagens. Levaram-nos dali e alojaram-nos a todos em diferentes casas do povo; mas ao renegado, a Zoraida e a mim levou-nos o cristão, que tinha vindo connosco, para casa de seus pais, que possuíam medianos bens de fortuna, e trataram-nos com tanto amor como ao seu próprio filho.

Estivemos seis dias em Veiez, ao cabo dos quais o renegado, informando-se do que lhe convinha, foi à cidade de Granada para por via da Santa Inquisição voltar ao grémio da Santíssima Igreja; os outros cristãos libertados foram cada um para onde melhor lhe pareceu: unicamente ficámos eu e Zoraida com os escudos que por cortesia lhe tinha dado o francês, com parte dos quais comprei este animal em que ela vem; e servindo-lhe eu até agora de pai e de escudeiro, e não de esposo, vamos com intenção de ver se meu pai é vivo, ou se algum de meus irmãos teve sorte melhor do que a minha, posto que, por o Céu me ter dado Zoraida por companhia, me parece que nenhuma outra sorte pudera caber-me que eu estimasse mais, por muito boa que ela fosse. A paciência com que Zoraida sofre os incómodos que consigo traz a pobreza e o desejo que mostra de ser cristã são tais e de tal ordem que me causam admiração e me movem a servi-la por toda a vida, pois me perturba o gosto, que tenho de ver-me seu e de que ela seja minha, o não saber eu se encontrarei na minha terra algum cantinho onde a recolha, e se o tempo e a morte terão feito tal mudança nos teres e vida de meu pai e de meus irmãos, que apenas encontre quem me conheça, se eles já no existem. Não tenho mais que contar-vos, meus Senhores, da minha história, e se ela é agradável e peregrina, julguem-no os vossos bons entendimentos, que por mim só sei dizer que quisera ter-vo-la contado com mais brevidade, posto que o receio de enfadar-vos me fez omitir várias circunstâncias.

 

EM QUE SE TRATA DO MAIS QUE SUCEDEU NA ESTALAGEM E DE OUTRAS COISAS DIGNAS DE SEREM CONHECIDAS

Deste modo acabou o cativo a sua história, e disse-lhe então D. Fernando:

- Na verdade Senhor Capitão, que a forma por que contaste este estranho sucesso igualou a novidade e estranheza do mesmo caso: tudo é peregrino e raro, e cheio de acidentes que maravilham e surpreendem a quem os ouve; e tão grande foi o gosto que tivemos em escutá-lo, que, ainda que o dia de amanhã nos achasse entretidos com o mesmo conto, folgáramos de o ouvir de novo.

E, dizendo isto, D. António e todos quantos ali se achavam se ofereceram para serv-lo em tudo que lhes fosse possível, com palavras e razões tão amorosas e tão verdadeiras, que o capitão ficou muito satisfeito com tais provas de bondade: fez-lhe D. Fernando especial oferecimento, dizendo-lhe que, se o capito quisesse ir com ele, conseguiria que o marquês seu irmão fosse padrinho de baptismo de Zoraida, e que pela sua parte disporia as coisas de modo que o capitão pudesse entrar na sua terra com os cómodos devidos à sua autoridade e pessoa. Tudo o capitão agradeceu muito cortesmente, mas não quis aceitar nenhum destes liberais oferecimentos. Já se aproximava a noite, e, ao fechar-se de todo, chegou à venda um coche acompanhado de alguns homens a cavalo. Pedindo pousada, respondeu-lhes a locandeira que não havia na taberna um só palmo que estivesse desocupado.

- Ainda que assim seja - disse um dos que vinham a cavalo e que tinha entrado na venda - não há-de faltar para o Senhor Ouvidor, que aqui vem.

Ouvindo este nome, a vendeira ficou perturbada e disse:

- Senhor, o pior é que não tenho camas; se o Senhor Ouvidor as traz, como é natural que traga, entre em boa hora, que eu e meu homem cederemos o nosso aposento para acomodar Sua Mercê.

- Em boa hora seja - disse o escudeiro.

A este tempo, porém, já havia saído do coche um homem que pelo traje mostrou logo o ofício e cargo que exercia, porque o seu vestido talar com mangas de pregas indicava ser efectivamente ouvidor, como tinha dito o criado. Trazia pela mão uma donzela, ao parecer de dezasseis anos, com vestido de jornada, e tão bizarra, galharda e formosa que, ao verem-na, todos ficaram admirados, de sorte que, a não terem visto a Doroteia, Lucinda e Zoraida, que estavam na venda, ficariam a crer que difícil seria encontrar outra formosura como a desta donzela.

  1. Quixote achava-se presente quando entraram o ouvidor e a jovem, e disse-lhe apenas o viu:

- Pode Vossa Mercê entrar com segurança e passear por este castelo, pois que ainda que seja estreito e de poucos cómodos, nunca há estreiteza e falta deles no mundo que não dê lugar às armas e às letras, mormente se as armas e as letras trazem por guia e escudo a formosura, como a trazem as letras de Vossa Mercê na pessoa desta formosa donzela, diante da qual, para

que passe, não só devem abrir-se e patentear-se todos os castelos mas também devem desviar-se as rochas, e as montanhas dividir-se e abaixar-se. Entre Vossa Mercê neste paraíso, que achará aqui estrelas e sóis para acompanharem o céu que Vossa Mercê traz consigo: aqui achará igualmente bem representadas as armas e a peregrina formosura.

O ouvidor ficou admirado da alocução de D. Quixote e pôs-se a olhar para ele com toda a atenção, não lhe causando menor admiração a sua figura do que as suas palavras, e sem lhe dar nenhumas em resposta, ficou novamente surpreso quando viu diante de si Lucinda, Doroteia e oraida, as quais, tendo notícia dos novos hóspedes, e encarecendo-lhes a vendeira a formosura da donzela, tinham saído ao seu encontro para a verem e receberem; mas D. Fernando, Cardénio e o cura já lhe estavam fazendo os mais sinceros e corteses oferecimentos. Com efeito, o Senhor Ouvidor entrou confuso, tanto do que via como do que ouvia, e as formosas damas, que estavam na venda, deram as boas-vindas à donzela. Finalmente, viu bem o ouvidor que toda a gente que ali estava era distinta; mas dava-lhe que entender a figura, parecer e postura de D. Quixote e, tendo feito uns aos outros corteses oferecimentos e examinado as comodidades da casa, determinou-se o que já estava resolvido, que todas as mulheres se acomodassem no caramanchão já referido, e que os homens ficassem de fora como em sua guarda; e foi muito do contento do ouvidor que sua filha (pois era filha dele, a donzela) fosse com aquelas senhoras, o que ela fez de muito boa vontade; e com parte da estreita cama do vendeiro e com metade da que o ouvidor trazia se acomodaram naquela noite melhor do que esperavam. O cativo, que, desde que deu com os olhos no ouvidor, sentiu dizer-lhe o coração que aquele era seu irmão, perguntou a um dos criados que tinham vindo com ele, como era que se chamava, e se sabia de que terra ele era. O criado respondeu-lhe que se chamava João Perez de Viedma e que tinha ouvido dizer que era de um lugar das montanhas de Leão. Com esta relação e com o que ele tinha visto mais se inteirou de que era aquele o seu irmão, que por conselho do pai havia seguido as letras; e alvoroçado e contente, chamando à parte

  1. Fernando, Cardénio e o cura, contou-lhes o que se passava, certificando-os de que aquele ouvidor era seu irmão.

Também lhe tinha dito o criado que ele ia para as Índias como ouvidor nas audiências do México: igualmente soube que aquela donzela era sua filha, cuja mãe tinha morrido de parto, e que tinha enriquecido muito com o dote que com a filha lhe ficou em casa.

Em vista de todas estas coisas, consultou-os sobre a maneira de se descobrir ao irmão ou de saber primeiro se, dando-se-lhe a conhecer, o irmão se agastaria por vê-lo pobre, ou se, pelo contrário, o receberia com agrado.

- Deixe-me a mim fazer essa experiência - disse o cura - posto que Senhor Capitão, não pode haver dúvida de que sereis bem recebido, porque o valor e prudência, que vosso irmão mostra no seu bom parecer, não dão indícios de ser arrogante e indiferente às desgraças da fortuna, as quais decerto há-de saber avaliar.

- Apesar de tudo isso - disse o capitão - eu não queria dar-me a conhecer de improviso, mas por meio de alguns rodeios.

- Já vos disse - respondeu o cura - que eu me haverei de modo que fiquemos todos satisfeitos.

Estando já preparada a ceia, todos se sentaram à mesa, excepto o cativo e as senhoras, as quais tinham ido cear no seu aposento; quando a ceia ia em meio, disse o cura:

- Do mesmo nome de Vossa Mercê, Senhor Ouvidor, tive um camarada em Constantinopla, onde alguns anos estive cativo, o qual era um dos mais valentes soldados e capitães que havia em toda a infantaria espanhola; mas tinha tanto de esfrçado e valoroso como de desgraçado.

- E como se chamava esse capitão, meu Senhor? - perguntou o ouvidor.

- Chamava-se - respondeu o cura - Rui Perez de Viedma, era natural de um lugar das montanhas de Leão, e contou-me um caso que se deu entre o pai e os irmãos dele, caso esse que, se não me fosse narrado por um homem verdadeiro como ele era, eu o tomaria por uma daquelas histórias que no Inverno os

velhos costumam contar estando à lareira, pois me disse que o pai havia repartido os seus bens entre os três filhos que tinha, e lhes dera certos conselhos melhores que os de Catão, e o certo é que o meu camarada foi tão bem sucedido no serviço das armas, por ele escolhido que em poucos anos, pelo seu valor e esforço, chegou ao posto de capitão de infantaria, e esteve no caminho e predicamento de ser mestre-de-campo; foi-lhe, porém, anal, adversa a fortuna, porque, aonde a esperava e a podia encontrar boa, ele a perdeu, perdendo a liberdade, na felicíssima jornada em que tantos a alcançaram, que foi na batalha de Lepanto; eu perdi-a na Goleta, e depois, por diversos sucessos, nos achámos camaradas em Constantinopla. Daí veio para Argel, onde sei que lhe sucedeu um dos mais estranhos casos que têm sucedido no mundo.

E daqui foi o cura continuando até sucintamente contar o que sucedera entre Zoraida e o cativo.

A tudo isto prestava tanta atenção o ouvidor que nunca na sua vida havia sido tão ouvidor como então. Só chegou o cura até ao lance em que os franceses despojaram os cristãos que vinham na barca, e à necessidade e pobreza a que o seu camarada e a formosa moura ficaram reduzidos, acrescentando que não sabia o que fora feito deles, se haviam chegado a Espanha ou se os franceses os tinham levado para França.

O capitão, um pouco desviado, estava escutando quanto dizia o cura e observava os movimentos do irmão, e este, vendo que o cura havia chegado ao fim do conto, disse, dando um grande suspiro e enchendo-se-lhe os olhos de lágrimas:

- Ah, Senhor, as novidades que me dais tocam-me tanto que não posso deixar de mostrá-lo com estas lágrimas que contra toda a minha discrição e esforço me rebentam dos olhos! Esse tão valoroso capitão, em que me falais, é o meu irmão mais velho, o qual, como mais forte, e de mais altos pensamentos do que eu e o outro meu irmão mais novo, escolheu o honroso e digno exercício das armas, que foi este um dos três caminhos que nosso pai nos propôs, como vos disse o vosso camarada, na história que a nosso respeito lhe ouviste. Eu segui o das letras, pelas quais subi, com a ajuda de Deus, e dos meus esforços, à

alta posição em que me vedes. Meu irmão mais novo está no Peru, tão rico que, com o que tem mandado a meu pai e a mim, tem satisfeito a parte que levou consigo e ainda tem posto nas mãos de meu pai meios com que possa fartar a sua natural liberalidade, e eu pude, com a ajuda dele, tratar dos meus estudos com mais decência e autoridade e chegar à posiço em que me vejo. Meu pai ainda vive, porém matam-no os desejos de saber notícias de seu filho primogénito e pede a Deus, em contínuas orações, que a morte não lhe feche os olhos antes que veja com vida os de seu filho, da discrição do qual me parece estranho que entre tantos trabalhos e aflições ou prósperos sucessos se tenha descuidado de dar notícias de si a seu pai, pois que, se ele ou algum de nós as tivéssemos, não teria meu irmão necessidade de esperar o milagre da cana para obter o seu resgate; mas o que me faz tremer agora é o pensar eu se aqueles franceses lhe terão dado a liberdade ou se o matariam, para encobrir o roubo que lhe fizeram. Tudo isto fará com que eu siga a minha viagem, não com o contentamento com que a comecei, mas com a maior melancolia e tristeza! Ó meu irmão quem me dera saber onde agora estás, que eu te iria buscar e livrar de teus trabalhos, ainda que fosse à custa dos meus! Oh! quem levara a nosso velho pai a notícia de que ainda vives, mesmo quando estivesses nas mais recônditas masmorras da Barbaria, pois dali te arrancariam as suas riquezas, as do outro meu irmão, e as minhas! Ó Zoraida formosa e liberal, quem pudera pagar-te o bem que a meu irmão fizeste! Quem pudera assistir ao renascimento de tua alma e às tuas núpcias! Que gosto elas nos fariam!

Estas e outras semelhantes palavras dizia o ouvidor, cheio de tanta compaixão com as notícias que lhe tinham dado de seu irmão, que quantos o escutavam davam sinais de o acompanharem na sua dor.

E, vendo o cura que tinha sido tão bem sucedido em seu intento, o que tanto desejava o capitão, não quis tê-los tristes por mais tempo, e, levantando-se da mesa, e entrando aonde estava Zoraida, tomou-a pela mão, e vieram após ela Lucinda, Doroteia, e a filha do ouvidor. Estava o capitão observando o

que o cura queria fazer, mas este, tomando-o também pela mão, levou-os ambos para onde estava o ouvidor e os demais cavaleiros, e disse então:

- Cessem, Senhor Ouvidor, as vossas lágrimas, e satisfaça-se quanto possa desejar o vosso coração, pois tendes aqui vosso bom irmão e vossa boa cunhada: este que aqui vedes é o capitão Viedma, e esta é a formosa moura que tanto bem lhe fez; os franceses, em que vos falei, puseram-nos no triste estado em que os vedes para mostrardes a vossa generosa liberalidade.

Correu o capitão a abraçar seu irmão, e este pôs-lhe as mãos no peito para a mais distância o reconhecer melhor, e, quando se convenceu de que era ele, tão estreitamente o abraçou, derramando copiosas lágrimas, que nelas o acompanharam todos os que ali se achavam. As palavras que se trocaram entre os dois irmãos, os sentimentos que eles mostravam, creio que mal se podem conceber, quanto mais descrevê-los. Ali contaram uns aos outros os seus sucessos, ali mostraram a verdadeira amizade de irmãos, ali o ouvidor abraçou Zoraida, ali lhe ofereceu os seus bens, ai a fez abraçar por sua filha, ali a formosa cristã e a moura formosíssima renovaram as lágrimas de todos. Ali D. Quixote, sem proferir palavra, prestara a maior atenção a estes estranhos sucessos, os quais todos atribuía às quimeras da cavalaria andante. Ali combinaram que o capitão e Zoraida voltassem com seu irmão para Sevilha, e dessem parte ao pai da sua liberdade e chegada, para que, do modo que lhe fosse possível, viesse assistir ao baptismo e às bodas de Zoraida, por não poder o ouvidor interromper a sua jornada, por isso que tinha notícias que dali a um mês partia a frota de Sevilha para a Nova Espanha, e por lhe causar grande transtorno perder a viagem. Finalmente, todos ficaram contentes e alegres pelo bom sucesso do cativo; e, como já fosse muito mais de meia-noite, resolveram recolher-se e descansar durante o tempo que restava até amanhecer. D. Quixote ofereceu-se para fazer a guarda do castelo, a fim de que não fossem acometidos por algum gigante ou por outro qualquer cavaleiro andante, malvado e traidor, cobiçosos do grande tesouro de formosura que aquele castelo encerrava. Os que o conheciam agradeceram-lhe o oferecimento, e contaram ao ouvidor o génio singular de D. Quixote, ao que o mesmo ouvidor achou muita pilhéria. Só Sancho Pança desesperava com a demora que havia em descansar e dormir, e ele melhor que todos se acomodou, deitando-se sobre os aparelhos do seu burro, que lhe custaram tão caros como adiante se dirá.

Recolhidas as damas no lugar que lhes estava destinado, e acomodando-se os outros como puderam, D. Quixote saiu fora da venda para fazer a sentinela do castelo, conforme o tinha prometido.

Estava quase a romper a aurora, quando chegou aos ouvidos das damas uma voz tão entoada e tão suave, que as obrigou a todas a aplicar o ouvido, especialmente a Doroteia, que estava desperta, e ao lado da qual dormia D. Clara de Viedma, que assim se chamava a filha do ouvidor. Ninguém podia imaginar quem era a pessoa que tão bem cantava, e era uma voz só, sem que a acompanhasse instrumento algum. Umas vezes parecia-lhes que cantava no pátio, outras que era na cavalariça, e, estando todas atentas mas nesta confusão, Cardénio chegou à porta do aposento, e disse:

- Quem não dorme, escute, e ouvirá a voz de um moço das mulas, que de tal modo canta que encanta.

- Já o ouvimos Senhor - respondeu Doroteia. E com isto se foi Cardénio; e Doroteia, prestando toda a sua atenção, entendeu que o que se cantava era isto:

 

ONDE SE CONTA A AGRADÁVEL HISTÓRIA DO MOÇO DAS MULAS COM OUTROS ESTRANHOS SUCESSOS ACONTECIDOS NA VENDA

Sou marinheiro de amor, e em seu pélago profundo navego, sem ter esperança de encontrar porto no mundo.

E vou seguindo uma estrela, que brilha no céu escuro, mais bela e resplandecente que quantas viu Palinuro.

Eu não sei aonde me guia, e a navegar me costumo, mirando-a com alma atenta, cuidoso, mas não do rumo.

Recatos impertinentes, honestidade no apuro, so as nuvens que ma encobrem, quando mais vê-la procuro.

Límpida e lúcida estrela, só teu clarão me conduz! Extingue-se a minha vida, em se extinguindo a tua luz.

Chegando o cantador a este ponto, pareceu a Doroteia que não seria bem que deixasse Clara de ouvir tão doce voz e, assim, abanando-a, a despertou, dizendo-lhe:

- Perdoa, Menina, se te desperto, porque o faço para que tenhas o gosto de ouvir a melhor voz que talvez hajas ouvido em todos os dias da tua vida.

Acordou Clara toda sonolenta, e da primeira vez não entendeu o que Doroteia lhe dizia, e, tornando-lho a perguntar, tornou-lho ela a dizer, estando Clara muito atenta; porém, apenas ouviu dois versos com que o cantador ia prosseguindo, assenhoreou-se dela tão estranho temor, como se estivesse enferma de algum acesso grave de quartas; e, abraçando-se estreitamente com Doroteia:

- Ai! Senhora da minha alma e da minha vida! Para que me despertastes? Que o maior bem que a fortuna me podia fazer por agora era cerrar-me os olhos e os ouvidos para não ver nem ouvir esse desditoso músico.

- Que dizes Menina? Olha que asseveram que o cantador é um dos moços das mulas.

- É donatário e Senhor de muitos lugares - respondeu Clara - e do lugar que na minha alma ocupa com tanta segurança, que, se ele o não quiser largar, nunca lhe será tirado.

Ficou Doroteia admirada das sentidas razões da donzela, parecendo-lhe que em muito se avantajavam à discrição que os seus poucos anos prometiam, e assim lhe disse:

- Falais de modo, minha sra. Clara, que não posso entender-vos; declarai-vos melhor e explicai-me: que é isso que dizeis de almas e de lugares, e deste cantador, cuja voz em tal inquietação vos pôs? Mas por agora nada me digais, que não quero perder, por acudir ao vosso sobressalto, o gosto que sinto de ouvir o músico, que, ao que me parece, volta ao seu cantar, com versos novos e nova toada.

- Seja embora - respondeu Clara. E, para não o ouvir, tapou com as mãos ambas os ouvidos,

o que também causou pasmo a Doroteia, a qual, estando atenta ao que se cantava, viu que prosseguia desta maneira:

Ó minha doce espranca, que, afrontando impossíveis na verdade, prossegues sem mudança na senda que traçou tua vontade, conserva ânimo forte, inda que surja a cada passo a morte.

Não ganham preguiçosos triunfo honrado, ou singular vitória, nem podem ser ditosos os que, mostrando uma fraqueza inglória, entregam desvalidos ao ócio vil os lânguidos sentidos.

Que amor suas glórias venda caro, é razão, e é justo o que contrata; nem há tão rica prenda como a que pelo gosto se aquilata.

E é caso natural custar só pouco o que só pouco vai'.

Coisas quase impossíveis sempre alcança quem emprega porfias amorosas.

Com rme confiança sigo eu do amor as mais dificultosas.

E nem sequer me aterra ter de ganhar o Céu, estando na Terra.

Aqui deu fím a voz, e Clara principiou a novos soluços. Tudo isto acendia o desejo de Doroteia, que anelava por saber a causa de tão suave canto e de tão triste choro, e assim lhe tornou a perguntar, que é que lhe tinha querido dizer.

Então Clara, temerosa de que Lucinda ouvisse, estreitou nos braços Doroteia, e pôs-lhe a boca tão próxima do ouvido, que seguramente podia falar sem ser por outrem ouvida, e assim lhe disse:

- Este cantador Senhora minha, é filho de um fidalgo natural do reino de Aragão, senhor de dois lugares, que vivia na corte defronte da casa de meu pai. E, ainda que meu pai tinha, de Inverno, vidraças nas janelas de sua casa, e gelosias de Verão, não sei o que foi nem o que não foi mas o que é certo é que este fidalgo, que andava nos estudos, me viu, nem eu sei se na igreja se noutra parte; finalmente, enamorou-se de mim, e deu-mo a entender das janelas de sua casa, com tantos gestos e tantas lágrimas, que tive de o acreditar e de lhe bem querer, sem saber quanto ele me queria a mim. Entre os sinais que me fazia, havia um de sobrepor as mãos, dando-me a entender que casaria comigo, e, posto que eu muito folgasse com isso, sendo soinha e sem mãe, não sabia a quem havia de o comunicar, e assim o deixei estar sem lhe conceder outro favor que não fosse, quando meu pai estava fora e o pai dele também, erguer um pouco o vidro ou a gelosia, e deixar que me visse mais a seu gosto, o que ele tanto festejava que dava mostras de verdadeira loucura. Nisto chegou o tempo da partida de meu pai, que ele soube, mas não de mim, pois nunca lho pude dizer. Caiu doente de pura mágoa, ao que eu entendo de modo que no dia em que nós partimos, nunca logrei vê-lo para despedir-me dele, ao menos com os olhos; mas, ao cabo de dois dias de caminho, ao entrarmos na pousada de um lugar que fica a uma jornada daqui, vi-o à porta com trajes de arrieiro tão próprios que se eu o não trouxesse tão retratado na minha alma, ser-me-ia impossível conhecê-lo. Conheci-o, admirei-me, e alegrei-me; ele mirou-me a furto, resguardando-se de meu pai, de quem sempre se esconde, quando atravessa por diante de mim, nos caminhos e nas pousadas aonde chegamos; e, como sei a sua jerarquia e fino trato, e considero que por meu amor vem a pé e com tantos trabalhos, morro de angústia, e onde ele põe os pés ponho eu os olhos. Não sei quais são suas tenções, nem como pôde escapar a seu pai, que lhe quer extraordinariamente, porque não tem outro herdeiro, e porque ele o merece, como Vossa Mercê reconhecerá quando o vir. E ainda mais lhe posso dizer que tudo quanto canta tira-o da sua cabeça, pois tenho ouvido que é grande estudante e poeta; e que, de cada vez que o vejo, toda tremo e me sobressalto receosa de que meu pai dê com ele, e venha no conhecimento dos nossos desejos. Nunca lhe dei palavra em toda a minha vida, e contudo lhe quero de tal maneira, que não poderei viver sem ele. Eis aqui Senhora minha, tudo quanto vos posso dizer deste músico, cuja voz tanto vos encanta, que só por ela se deixa ver que não é moço das mulas, como dizeis, mas senhor e possuidor de almas e de lugares, como vos disse.

- Não digais mais nada, Sra. D. Clara - acudiu Doroteia, beijando-a mil vezes -, não digais mais, repito, e aguardai que rompa o dia, que espero em Deus encaminhar os vossos negócios de maneira tal que tenham o feliz termo que merecem tão honestos princípios.

- Ai! Senhora - disse D. Clara -, que feliz termo posso eu esperar, se seu pai é tão rico e tão principal que lhe parecerá que nem sequer posso ser criada de seu filho, quanto mais esposa? Pois casar-me eu contra vontade de meu pai não o farei nem por tudo quanto houver neste mundo; eu só quereria

que esse moço partisse e me deixasse; talvez com cessar de o ver, e com a grande distância do caminho que levamos se me aliviasse a pena que tenho, agora ainda que posso dizer que este remédio, que imagino, bem pouco me há-de aproveitar. Não sei como isto foi, nem por onde entrou este amor que lhe eu tenho, sendo eu tão menina, e ele tão moço, que em verdade creio que somos da mesma idade, não tendo eu ainda dezasseis anos completos, que só os faço para o S. Miguel, segundo assevera meu pai.

Não pôde deixar de rir Doroteia, vendo este dizer de criança, e disse para D. Clara:

- Descansemos, Senhora, o pouco tempo da noite que suponho que ainda resta, e Deus madrugará connosco, e tudo lograremos, ou muito trôpegas hei-de eu ter as mãos.

Com isto sossegaram, e toda a venda caiu em profundo silêncio: só não dormiam a filha do vendeiro, e Maritornes, sua criada, as quais, como já sabiam por onde pecava D. Quixote, e que estava fora armado e a cavalo fazendo sentinela, determinaram ambas burlá-lo, ou pelo menos passar um pouco de tempo, ouvindo os seus disparates.

Sucedeu, pois, que em toda a venda não havia janela que deitasse para o campo, a não ser a fresta de um palheiro por onde de fora atiravam os panos de palha. A esta fresta se chegaram as duas semidonzelas, e viram que D. Quixote estava a cavalo, encostado à sua lança, soltando de quando em quando tão doloridos e profundos suspiros, que parecia que de cada um se lhe arrancava a alma. E também ouviram que dizia, com voz branda e amorosa:

- Ó Senhora minha Dulcineia del Toboso, extremo de toda a formosura, fim e remate da discrição, arquivo do melhor donaire, depósito da honestidade, e ultimamente ideia de tudo quanto há de proveitoso, honesto e deleitável no mundo; o que estará agora fazendo Tua Mercê? Terás porventura na mente o teu cativo cavaleiro, que a tantos perigos, só para servir-te, quis por sua vontade expor-se? Dá-me tu novas suas, ó trifronte Lua, que talvez a estejas agora mirando com inveja... a ela, que, passeando por algumas galerias dos seus sumptuosos paços, ou debruçada do peitoril de alguma varanda talvez esteja considerando como há-de, ressalvada a sua honestidade e grandeza, acalmar a tormenta que por ela este meu atribulado coração padece, que glória há-de dar às minhas penas, que sossego ao meu cuidado, e finalmente que vida à minha morte e que prémio aos meus serviços. E tu Sol, que já deves estar à pressa enfreando os teus cavalos para madrugar e sair a ver a minha deidade, logo que a vejas, suplico-te que da minha parte a saúdes; mas livra-te de que, ao vê-la e saudá-la, lhe dês ósculo no rosto, que terei mais zelos de ti do que tu mesmo os tiveste daquela ágil ingrata que te fez suar e correr pêlos plainos da Tessália, ou pelas margens do Peneu que me não recordo bem por onde é que então correste, zeloso e enamorado.

A este ponto chegava então D. Quixote com o seu tão lastimoso arrazoamento, quando a filha do vendeiro o começou a chamar de manso e a dizer-lhe:

- Senhor meu, chegue-se cá Vossa Mercê, se for servido. A estes sinais e a esta voz volveu D. Quixote a cabeça, e viu, à luz da Lua, que estava então em plena claridade, que o chamavam da fresta que lhe pareceu janela, e ainda demais a mais com rexas de ouro, segundo as devem de ter tão ricos castelos, como o que ele imaginava que era a venda em que se achavam.

E logo no mesmo instante se lhe representou, na louca fantasia, que desta vez, como da outra, a formosa donzela, filha do senhor daquele castelo, tornava a solicitá-lo, e, com este pensamento, para se não mostrar descortês e desagradecido, voltou a rédea a Rocinante e chegou-se à fresta e, apenas viu as duas raparigas, disse:

- Lastimo, formosa Senhora, que logo fôsseis pôr a vossa mente amorosa em quem não pode corresponder-vos, conforme merecem o vosso grande valor e gentileza, de que não deveis culpar este mísero cavaleiro andante, a quem amor impossibilitou de poder entregar a sua vontade a outra que não seja aquela que, no momento em que os seus olhos a viram, logo ficou senhora absoluta da sua alma. Perdoai-me, boa Senhora, e recolhei-vos ao vosso aposento, e não queirais, com o significar-me tanto os vossos anelos, que eu me mostre mais desagradecido: e se, pelo amor que me tendes, achais em mim coisa que não seja amor, com que possa satisfazer-vos, pedi-

-ma, que vos juro, por aquela doce e ausente inimiga minha, que em continente vo-la darei, ainda que seja uma guedelha dos cabelos de Medusa, que eram todos cobras, ou os prprios raios do Sol encerrados numa redoma.

- De nada disso há mister a minha senhora Senhor Cavaleiro - disse neste momento Maritornes.

- Pois de que há mister a vossa senhora, discreta dona? - tornou D. Quixote.

- Só de uma das vossas lindas mãos - disse Maritornes - para poder desafogar com ela o grande desejo que a trouxe a esta fresta, com tanto perigo da sua honra, que, se seu pai a pressentir, em tantos pedaços a há-de cortar, que o maior de todos será a orelha.

- Quisera eu ver isso - respondeu D. Quixote -; ele que se livre de tal praticar ou terá o mais desastrado fim que nunca teve no mundo um pai, por haver posto as mãos nos delicados membros de sua enamorada filha.

Pareceu a Maritornes que D. Quixote daria a mão que lhe pedira, e, tendo no pensamento o que havia de fazer, desceu da fresta, e foi à cavalariça, onde tomou o cabresto do jumento de Sancho Pança e com muita presteza volveu a tempo que D. Quixote se pusera em pé sobre a sela de Rocinante para chegar à janela gradeada, onde imaginava estar a perdida donzela; e, ao dar-lhe a mão, dizia:

- Tomai, Senhora, essa mão, ou, para melhor dizer, esse verdugo dos malfeitores do mundo; tomai Senhora, essa mão, em que não tocou mão de mulher alguma, nem a daquela que tem inteira posse de todo o meu corpo. Não vo-la dou para que a beijeis, mas para que lhe mireis a contextura dos nervos, a travação dos músculos, a grossura e espaçado das suas veias, por onde vereis que tal será a força do braço, que uma tal mão possui.

- Agora o veremos - disse Maritornes.

E dando uma laçada numa das pontas do cabresto, deitou-lho ao pulso, e, descendo da fresta, amarrou fortissimamente a

outra ao ferrolho da porta do palheiro. D. Quixote, que sentiu no pulso a aspereza da corda, disse:

- Mais parece que Vossa Mercê me está arranhando do que afagando a mão; não a trateis tão mal, porque ela não tem culpa do desgosto que a minha vontade vos causa, nem bem parece que em tão pequena parte vos vingueis do todo do vosso dissabor... vede que quem bem quer não se vinga tão mal.

Porém, todas estas razões de D. Quixote já não as ouvia ninguém, porque, logo que Maritornes o amarrou, tanto ela como a outra se foram embora, a morrer de riso, e deixaram-no de tal modo preso que lhe foi impossível soltar-se.

Estava, pois, como se disse, de pé em cima de Rocinante, com o braço todo metido pela fresta, e amarrado pelo pulso ao ferrolho da porta, com grandíssimo temor e cuidado não se mexesse o cavalo, porque ficaria então pendurado pelo braço, e assim não ousava fazer movimento algum, ainda que do raciocínio e mansidão de Rocinante bem se poderia esperar que estaria sem se mover um século todo.

Afinal, vendo-se D. Quixote amarrado e vendo também que as damas se tinham ido embora, começou a imaginar que tudo aquilo se fazia por encantamento, como da outra vez, quando naquele mesmo castelo o moeu de pancadas aquele mouro encantado do arrieiro, e maldizia entre si a sua pouca discrição e pouco discorrer, pois, tendo-se saído tão mal da primeira vez, se aventurara a entrar ali de novo, sendo regra de cavaleiros andantes que, em tentando uma aventura e não se saindo bem dela, sinal é de que não está para eles guardada, mas sim para outro, e não precisam de tentá-la segunda vez.

Com tudo isto, puxava pelo braço a ver se podia soltar-se, mas estava tão bem atado, que todas as suas tentativas foram baldadas. Certo é que puxava com tento, para que Rocinante se não movesse, e, ainda que quisesse sentar-se ou cavalgar nele, não podia senão ou estar de pé, ou arrancar a mão.

Ali foi o desejar a espada de Amadis, contra a qual não tinha força encantamento algum; ali foi o maldizer a sua fortuna, exagerar a falta que faria no mundo a sua presença, durante o tempo em que ali estivesse encantado, que assim sem a mínima dúvida se julgava; ali o recordar-se da sua querida Dulcineia del Toboso, ali o chamar pelo seu bom escudeiro Sancho Pança, que sepultado no sono e estendido sobre a albarda do seu jumento, não se recordava naquele instante nem da mãe que o deu à luz; ali chamou pêlos sábios Lirgando e Alquife, para que o ajudassem; ali invocou a sua boa amiga Urganda, para que o socorresse, e finalmente ali o encontrou a manhã, tão desesperado e confuso, que bramia como um touro, porque já não esperava que com o dia se remediasse a sua aflição, considerando-a eterna, e julgando-se encantado; e fazia-lho acreditar ver que Rocinante nem pouco nem muito se movia, e julgava que daquela forma, sem comer nem beber nem dormir, haviam de estar ele e o cavalo, até que passasse aquele mau influxo das estrelas, ou até que outro mais sábio nigromante o desencantasse.

Porém, enganou-se muito na sua suposição, porque apenas principiou a amanhecer chegaram à venda quatro homens a cavalo, muito bem postos e trajados, com a sua escopeta nos arções.

Bateram à porta da venda, que ainda estava fechada, com grandes aldrabadas, e, vendo isto D. Quixote do sítio onde continuava a fazer sentinela, com voz arrogante e alta lhes disse:

- Cavaleiros ou escudeiros, ou quem quer que sejais, não tendes para que chamar às portas deste castelo, que bem claro é que a tais horas, ou os que estão lá dentro dormem, ou não é costume abrir as fortalezas antes do Sol ir já alto; desviai-vos para fora, e esperai que o dia aclare, e então veremos se será justo ou não que vos abram a porta.

- Que diabo de fortaleza ou de castelo é este, para nos obrigar a ter essas cerimónias todas? Se sois o estalajadeiro, mandai que nos deixem entrar, porque somos caminhantes que só queremos dar cevada às nossas cavalgaduras, e passar adiante, que vamos com pressa.

- Parece-vos, cavaleiros, que tenho figura de estalajadeiro? - respondeu D. Quixote.

- Não sei que figura tendes, mas o que sei é que dizeis um disparate chamando castelo a esta venda.

- É castelo - respondeu D. Quixote - e até dos melhores desta província toda, e tem gente lá dentro que já empunhou ceptro e cingiu diadema.

- Melhor fora às avessas - disse o viandante -, que cingisse o ceptro e empunhasse a coroa; e decerto estará aí alguma companhia de representantes, que a miúdo usam ter essas coisas que dizeis, porque numa venda tão pequena, e tão silenciosa como esta, não creio eu que se alojem pessoas dignas de coroas e ceptros.

- Sabeis pouco do mundo - replicou D. Quixote - visto que ignorais os casos que costumam acontecer na cavalaria andante.

Cansaram-se os companheiros do perguntador do colóquio, e tomaram por isso a bater com grande fúria à porta, e de modo que o vendeiro despertou, e acordaram também todos os que na venda estavam.

Sucedeu a este tempo que uma das cavalgaduras em que vinham os quatro se chegou a cheirar a Rocinante, que, melancólico e triste, de orelhas derrubadas, sustentava, sem se mover, o seu esguio senhor, e, como afinal era de carne, apesar de parecer de pau, não pôde deixar de cheirar também a quem se lhe chegava a afagá-lo, e, apenas se moveu um pouco, logo se afastaram os pés de D. Quixote, e escorregando dariam com ele no chão, a não ficar suspenso do braço, o que lhe causou tanta dor, que julgou ou que lhe cortavam o pulso, ou que a mão se lhe arrancava, porque ficou tão próximo do chão que, com os bicos dos pés pisava a terra, o que mais o molestava, porque como sentia que lhe faltava pouco para pôr as plantas dos pés no solo, estirava-se quanto podia, como os que sofrem o tormento da polé, que eles próprios acrescentam a sua dor com o afinco que põem em estirar-se, enganados com a esperança que se lhes representa de que, logo que se estirem um pouco mais, chegarão a terra firme.

 

ONDE SE PROSSEGUEM OS INAUDITOS SUCESSOS DA VENDA

Efectivamente tantos e tais foram os brados de D. Quixote, que, abrindo logo as portas da venda, saiu o estalajadeiro espavo rido a ver quem dava esses gritos, e os que estavam fora fizeram o mesmo. Maritornes, que já despertara com os brados imaginando o que podia ser, foi ao palheiro, e desatou, sem que ninguém a visse, o cabresto que sustinha D. Quixote, que deu logo consigo no chão, à vista do estalajadeiro e dos viandantes, que, chegando-se a ele, lhe perguntaram o que tinha, que tais vozes dava. Ele, sem responder palavra, tirou a corda do pulso, e, pondo-se de pé, montou em Rocinante, embraçou o escudo, enristou a lança, e, tomando campo, volveu a meio galope, dizendo:

- A quem disser que eu estive, com justo motivo, encantado, se a princesa Micomicoa, muito Senhora minha, me der licença para isso, desde já o desminto, e repto e desafio para batalha singuar.

Admirados ficaram os nossos viandantes das palavras de D. Quixote, mas o vendeiro tirou-os daquela admiração, dizendo-lhes quem ele era, e que não havia que fazer caso dele, porque não tinha juízo.

Perguntaram ao vendeiro se por acaso chegara àquela venda um rapazito dos seus quinze anos de idade, vestido de arrieiro, com tais e tais sinais, dando os mesmos que tinha o amador de D. Clara.

O vendeiro respondeu que havia tanta gente na venda que não reparara nessa pessoa por quem perguntavam; mas, tendo visto um deles o coche em que viera o ouvidor, disse:

- Aqui deve estar sem dúvida, porque é este o coche que dizem que ele segue; fique um de nós à porta, e entrem os demais a procurá-lo; e seria bom também que outro desse volta à venda para que ele se não safe pelas traseiras das cavalariças.

- Assim se fará - respondeu um deles. E, entrando dois, o terceiro ficou à porta e o quarto foi rodear a venda.

Tudo isso via o estalajadeiro, e não podia atinar com o motivo por que se faziam essas diligências, ainda que supôs que procuravam o moço cujos sinais lhe tinham dado. Já a esse tempo aclarara o dia; e tanto por isso, como pelo barulho que D. Quixote fizera, estavam todos despertos e levantados, e com especialidade D. Clara e Doroteia, que, uma com o sobressalto de ter tão próximo o seu namorado, e a outra com o desejo de o ver, mal tinham podido dormir aquela noite. D. Quixote, que viu que nenhum dos quatro viandantes fazia caso dele, nem lhe respondia à sua pergunta, rabeava de despeito e de fúria; e se achasse nas ordenações da sua cavalaria que licitamente podia o cavaleiro andante tomar e encetar outra empresa, depois de ter dado a sua fé e a sua palavra de não começar outra sem acabar a que prometera, investiria com todos e os obrigaria a , responder, mau grado seu; mas por lhe parecer que lhe não convinha nem lhe estava bem tentar empresa nova antes de restabelecer no seu reino Micomicoa, teve de se calar e permanecer quedo, esperando para ver em que paravam as diligências daqueles viandantes: um dos quais achou o mancebo, que procurava, a dormir ao lado de um arrieiro, muito descuidoso de que ninguém o buscasse, e ainda menos de que o encontrasse. O homem travou-lhe do braço e disse-lhe:

- Por certo, Sr. D. Luís, que diz bem com quem sois o fato que vestis, e a cama em que vos acho com o regalo com que vossa mãe vos criou.

Esfregou o moço os olhos sonolentos, e encarou fito o que o segurava, e logo conheceu que era criado de seu pai, o que lhe deu tamanho sobressalto que não acertou ou não pôde dizer -lhe palavra por grande espaço de tempo. E o criado prosseguiu dizendo:

- Aqui não há outra coisa que fazer, Sr. D. Luís, senão ter paciência e voltar para casa, se Vossa Mercê não deseja que seu pai e meu Senhor faça a viagem do outro mundo, porque se não pode esperar outra coisa do pesar que lhe causa a vossa ausência.

- Pois como soube meu pai - disse D. Luís - que eu vinha por este caminho e com este traje?

- Um estudante - respondeu o criado -, a quem destes conta dos vossos pensamentos, foi quem o descobriu, compadecido das lástimas que vosso pai fazia quando deu pela vossa falta; e logo enviou quatro dos seus criados em vossa busca, e todos aqui estamos ao vosso serviço, mais contentes do que se pode imaginar, pelo bom despacho com que tomaremos, levando-vos à presença de quem tanto vos quer.

- Isso será se for da minha vontade, ou se o Céu o ordenar - respondeu D. Luís.

- O Céu ordena que regresseis a casa, nem outra coisa é possível.

Todas estas razões as ouviu o arrieiro, junto de quem estava D. Luís; e levantando-se dali fo contar o que se passava a D. Fernando e a Cardénio e aos outros que já se tinham vestido, e a quem disse que o homem que viera dava dom ao rapaz, e queria que ele voltasse a casa de seu pai, e que o moço não queria. Com isto e com o que sabiam já, da boa voz que o Céu lhe tinha dado, vieram todos com grande desejo de saber mais particularmente quem era, e também de o ajudar, se alguma violência lhe quisessem fazer, e assim foram ter ao sítio onde ele ainda estava falando e porfiando com o seu criado.

Nisto, saiu Doroteia do seu aposento e atrás dela D. Clara, toda turbada, e, chamando Doroteia de parte a Cardénio, lhe contou em breves razões a história do músico e de D. Clara, e Cardénio referiu-lhe que tinham vindo a buscar D. Luís uns criados de seu pai; e não o disse tão de manso que D. Clara o não ouvisse, com que ficou tão fora de si que, se Doroteia não corresse a ampará-la, daria consigo no chão.

Cardénio disse a Doroteia que volvessem ao aposento, que ele procuraria remediar tudo, e elas obedeceram.

Já estavam todos os quatro, que vinham procurar D. Luís, dentro da venda, e rodeavam-no, persuadindo-lhe que logo, sem mais detença, voltasse a consolar seu pai. Respondeu ele que de nenhum modo o podia fazer sem dar fim a um negócio em que lhe iam a existenciar a honra e a alma. Apertaram-no então os criados, dizendo-lhe que não voltariam sem ele, e que o levariam por vontade ou por força.

- Isso o não fareis vós - redarguiu D. Luís - senão matando-me primeiro, ainda que, de qualquer modo que me leveis, sem vida sempre eu irei.

Já a este tempo tinham acudido à porfia todos os outros que na venda estavam, especialmente Cardénio, D. Fernando, os seus amigos, o ouvidor, o cura, o barbeiro e D. Quixote, que entendeu enfim não haver necessidade de continuar com a guarda do castelo. Cardénio, como já sabia a histria de D. Luís, perguntou aos criados o que os movia a querer levar aquele moço contra sua vontade.

- Move-nos a isso - respondeu um dos quatro - dar a vida a seu pai, que, pela ausência deste cavalheiro, fica em perigo de a perder.

A isto disse D. Luís:

- Não há motivo para que se dê conta aqui das minhas coisas; eu sou livre, e voltarei se quiser, se não quiser nenhum de vós me obrigará.

- Será a razão quem o obrigue - respondeu o homem - e quando ela nada possa com Vossa Mercê, poderá connosco bastante para que não deixemos de fazer aquilo a que viemos e a que somos obrigados.

- Saibamos ao certo o que isto vem a ser - acudiu o ouvidor.

Mas o homem, que o conhecera por vizinho de sua casa, respondeu:

- Não conhece Vossa Mercê, Senhor Ouvidor, este cavalheiro, que é filho do seu vizinho, que se ausentou de casa de seu pai em trajes tão pouco decorosos, como Vossa Mercê pode ver?

Encarou-o então o ouvidor mais atentamente, e conheceu-o, e disse-lhe abraçando-o:

- Que criancices são estas, Sr. D. Luís, ou que motivos tão poderosos, que vos obrigam a vir desta maneira, com traje que diz tão mal com a vossa qualidade?

Vieram as lágrimas aos olhos a D. Luís, e não pôde dar palavra ao ouvidor, que disse aos quatro que sossegassem, que tudo se faria por bem; e, pegando a D. Luís pela mão, afastou-

-o para um lado e perguntou-lhe que desatino fora aquele. E, enquanto lhe fazia estas e outras perguntas, ouviram à porta da venda grande alarido, motivado por dois hóspedes que naquela noite ali tinham pousado, e que, vendo toda a gente ocupada em saber o que os quatro homens procuravam, tinham intentado ir-se sem pagar o que deviam, mas o vendeiro, que atendia mais ao seu negócio que aos alheios, agarrou-os ao sair da porta, e lhes pediu a sua paga, afeando-lhes a má tenção com palavras tais, que os levou a responderem-lhe a murros: e assim começaram a dar-lhe tamanha sova, que o pobre do vendeiro teve de gritar e de pedir socorro. A estalajadeira e sua filha não viram pessoa desocupada que o pudesse socorrer, a não ser D. Quixote, a quem a rapariga disse:

- Socorra Vossa Mercê, Senhor Cavaleiro, pela virtude que Deus lhe deu, a meu pobre pai, que o estão moendo dois maus homens como se fosse pimenta.

A que D. Quixote respondeu, muito descansado e com muita fleuma:

- Formosa donzela, não tem lugar por agora a vossa petição, porque não posso meter-me noutra aventura, enquanto não der fim a uma em que está empenhada a minha palavra. Mas o que eu poderei fazer para vos servir é o seguinte: Correi a dizer a vosso pai que sustente a sua batalha o melhor que puder, e que de nenhum modo se deixe derrotar, enquanto eu vou pedir licença à princesa Micomicoa para o poder socorrer em sua aflição, que, se ela ma der, tende a certeza que o salvarei desde logo.

- Mal-pecado - disse nisto Maritornes, que estava presente -, antes de Vossa Mercê alcançar essa licença que diz, estará meu amo no outro mundo.

- Consenti, Senhoras, que eu a alcance - respondeu D. Quixote - que, logo que a tenha, pouco importa que ele esteja no outro mundo, que eu de lá o irei tirar, ou pelo menos tal vingança vos darei dos que para lá o tiverem mandado, que ficareis amplamente satisfeitas.

E, sem dizer mais, foi-se pôr de joelhos diante de Doroteia, pedindo-lhe com palavras cavalheirescas que fosse servida sua grandeza dar-lhe licença de acudir ao castelão daquele solar, que estava em grande míngua. Deu-lha a princesa de bom grado, e logo ele, embraçando o escudo e empunhando a espada, correu à porta da venda, onde ainda os dois hóspedes continuavam a maltratar o vendeiro; mas, assim que ali chegou, ficou de todo quedo, apesar de Maritornes e a vendeira lhe dizerem porque é que se detinha, que socorresse seu amo e marido.

- Detenho-me - disse D. Quixote - porque não me é lícito desembainhar a espada contra quem não for cavaleiro; mas ide chamar o meu escudeiro Sancho, que a ele toca e pertence esta defesa e vingança.

Passava-se isto à porta da venda, onde ferviam os murros, tudo com grande prejuízo do vendeiro, e raiva de Maritornes, da vendeira e de sua filha, que se desesperavam ao ver a cobardia de D. Quixote, e os maus-tratos que sofria seu marido, amo e pai. Mas deixemo-lo, que não faltará quem o socorra, ou senão que sofra calado quem a mais se atreve do que ao que as suas forças lhe permitem, e volvamos cinquenta passos atrás a ver o que foi que D. Luís respondeu ao ouvidor, que lhe perguntara o motivo da sua vinda a pé, e vestido com trajes tão vis. O mancebo, agarrando-lhe fortemente as mãos, como em sinal de que alguma grande dor lhe pungia o coração, derramando lágrimas em grande abundância, disse-lhe:

- Senhor meu, não sei outra coisa dizer-vos, senão que, desde o momento em que o Céu quis e a nossa vizinhança facilitou que eu visse a minha sra. D. Clara, vossa filha, desde esse instante lhe submeti a minha vontade; e, se a vossa, meu verdadeiro pai e senhor, a não impedir, hoje mesmo há-de ser minha esposa. Por ela deixei a casa de meus pais, e revesti este traje, para a seguir fosse aonde fosse, como a seta ao alvo e o marinheiro ao norte. Ela dos meus desejos não sabe mais do que o que pôde entender algumas vezes, que de longe via chorar meus olhos. Já sabeis Senhor, a riqueza e a nobreza de meus pais, e de como sou o seu único herdeiro; se vos parecer que são partes estas para que vos arrisqueis a fazer-me em tudo venturoso, recebei-me logo por vosso filho; que se a meu pai, levado por outros desígnios, não agradar este bem que eu procurei para

mim, mais força terá o tempo para desfazer e mudar as coisas do que a vontade humana.

Calou-se ao dizer isto o enamorado mancebo, e o magistrado ficou de o ouvir suspenso, confuso e admirado, tanto pelo modo e discrição como D. Luís lhe descobriu o seu pensamento, como por não saber a resolução que havia de tomar em tão repentino e inesperado negócio, e assim é que respondeu que por então sossegasse, e entretivesse os seus criados para que não o levassem nesse dia, e ele houvesse tempo para considerar o que a todos ficaria melhor. Beijou-lhe D. Luís à viva força as mãos, e banhou-lhas de lágrimas que enterneceriam um coração de mármore, quanto mais o do ouvidor, que, como discreto, logo conhecera quanto a sua filha convinha aquele matrimónio; posto que, se possível fosse, o quisera antes efectuar com o consentimento do pai de D. Luís, de quem sabia que pretendia obter uma titular para seu filho.

Já a esse tempo estavam os hóspedes em boa paz com o vendeiro, pois que D. Quixote, com boas razões, mais do que com ameaças, os persuadira a pagarem-lhe tudo quanto ele pedia, e os criados de D. Luís aguardavam o fim da prática do ouvidor e a resolução de seu amo; quando o Demónio, que não dorme, ordenou que naquele mesmo instante entrasse na venda o barbeiro, a quem D. Quixote tirara o elmo de Mambrino, e Sancho Pança o aparelho do burro, que trocou pelo do seu; o barbeiro, ao levar o jumento para a cavalariça, viu Sancho Pança a arranjar não sei o quê na albarda, e logo que a viu conheceu-a, e atreveu-se a arremeter com Sancho, dizendo:

- Ah! D. Ladrão, que aqui vos apanho; venha a minha bacia e a albarda, e o aparelho que me roubastes.

Sancho, que se viu acometido tão de improviso, e ouviu os vitupérios que lhe diziam, com uma das mãos agarrou a albarda, e com a outra ferrou no barbeiro tamanho murro, que lhe banhou os dentes em sangue; mas nem por isso o barbeiro largou a albarda, antes levantou a voz de modo tal, que todos os da venda acudiram ao ruído e pendência, e dizia ele:

- Aqui-d'el-rei e da justiça, que este ladrão e salteador de estrada, sobre o roubar-me a fazenda, ainda me quer matar.

- Mentis! - exclamou Sancho. - Que eu não sou salteador de estrada, e estes despojos ganhou-os em guerra leal o meu senhor D. Quixote.

Já D. Quixote estava presente, e muito folgava de ver o modo como o seu escudeiro se defendia e ofendia, e teve-o daí por diante como homem de prol, e ficou-lhe na mente o armá-lo cavaleiro na primeira ocasião que se lhe deparasse, por lhe parecer que ficaria bem empregada em Sancho a ordem de cavalaria. Entre outras coisas que o barbeiro ia dizendo no decurso da pendência, veio a exclamar:

- Senhores, esta albarda é tão minha como a morte que devo a Deus, e conheço-a como se a tivesse parido, e aí está na manjedoura o burro, que não me deixará mentir; ponham-lha, e se lhe não ficar ao pintar, que me tenham por infame. E mais ainda, no mesmo dia em que ma tirou, tiraram-me também uma bacia de arame, nova, que ainda não fora estreada, e que custara um bom escudo.

Aqui não se pôde conter D. Quixote, e, metendo-se entre os dois e apartando-os, pondo a albarda no chão para a ter manifesta até se aclarar a verdade disse:

- Para que Vossas Mercês vejam, clara e manifestamente, o erro em que está este bom escudeiro, basta dizer que chama bacia ao que foi, é, e será o elmo de Mambrino que eu lhe conquistei em guerra leal, e de que fiquei lícito e legítimo possuidor. No caso da albarda não me intrometo, porque o que sei dier é que o meu escudeiro Sancho me pediu licença para tirar os jaezes do cavalo deste vencido cobarde, e com eles adornar o seu; dei-lha, ele tomou-a, e do jaez se ter convertido em albarda não saberei dar outra razão a não ser a do costume, a saber: que essas transformações se vêem nos casos da cavalaria; para confirmação disso, vai, meu filho Sancho, buscar o elmo, que este bom homem chama bacia.

- Com a breca! - disse Sancho. - Se só temos essa prova da nossa intenção, tão bacia é o elmo de Mambrino como é albarda o jaez.

- Faz o que te mando - disse D. Quixote - que nem todas as coisas deste castelo hão-de ser guiadas por encantamento.

Sancho foi buscar a bacia, e, assim que D. Quixote a viu, tomou-a nas mãos e disse:

- Vejam Vossas Mercês com que cara pode dizer este escudeiro que isto é bacia e não o elmo que eu disse, e juro, pela ordem de cavalaria que professo, que foi este elmo que eu lhe conquistei, sem lhe ter tirado ou acrescentado coisa alguma.

- Nisso é que não há dúvida - acudiu Sancho -; que desde que meu amo o ganhou até hoje, só entrou numa batalha, quando livrou os desventurados galeotes; e se não fosse este baci-elmo não passaria então muito bem, porque apanhou naquele transe pedradas com fartura.

 

ONDE SE ACABA DE AVERIGUAR A DÚVDA DO ELMO DE MAMBRINO E DA ALBARDA, E DE OUTRAS AVENTURAS SUCEDIDAS COM TODA A VERDADE

- Que lhes parece a Vossas Mercês, Senhores - disse o barbeiro -, o que afirmam estes homens de prol, que ainda porfiam que esta bacia é elmo?

- E a quem o contrário disser - acudiu D. Quixote - lhe farei eu conhecer que mente se for cavaleiro, e, se for escudeiro, que mente e remnte mil vezes.

O nosso barbeiro, que tudo presenciava, e que conhecia perfeitamente o génio de D. Quixote, quis espertar o seu desatino, e levar por diante a burla, para que todos rissem, e exclamou, falando com o seu colega:

- Senhor Barbeiro, sabei que também sou do vosso ofício, e tenho há mais de vinte anos carta de exame, e conheço muito bem todos os instrumentos barbeiris, sem faltar um só e, além disso, fui também soldado, na minha mocidade, e também sei o que é morrião e celada de encaixar, e outras coisas que tocam à milícia, digo, aos géneros de armas dos soldados, e afirmo, salvo melhor parecer, que este objecto que aqui está diante de nós, nas mãos daquele bom senhor, não é bacia de barbeiro, mas está tão longe de sê-lo, como está longe o branco do negro, e a verdade da mentira; e também digo que este elmo, apesar de o ser, não é elmo inteiro.

- Não, decerto - disse D. Quixote -, falta-lhe metade, que é a babeira.

- Assim é - afirmou o cura, que já entendera a intenção do seu amigo barbeiro.

E o mesmo asseveraram Cardénio, D. Fernando e os seus companheiros, e até o ouvidor, se não estivesse tão pensativo com o negócio de D. Luís, ajudaria pela sua parte a mentira.

- Valha-me Deus! - disse então o barbeiro burlado. - Pois é possível que tanta gente honrada diga que isto não é bacia e que é elmo? É caso para fazer pasmar uma universidade, por mais discreta que seja. Basta; mas, se esta bacia é elmo, também deve ser esta albarda jaez de cavalo, como aqui disse este senhor.

- A num parece-me albarda - observou D. Quixote - mas já disse que em tal coisa me não intrometo.

- Que seja albarda ou jaez - acudiu o cura - só o Sr. D. Quixote o pode dizer, que, nestas coisas de cavalarias, todos estes senhores e eu lhe damos a primazia.

- Por Deus, meus Senhores - disse D. Quixote -, são tantas e tão estranhas as coisas que neste castelo, das duas vezes que aqui tenho estado, me hão sucedido, que me não atrevo a dizer afirmativamente coisa alguma do que se perguntar acerca do que nele se contém, porque imagino que tudo o que aqui se trata é por via de encantamento. Da primeira vez muito me derreou um mouro encantado, e Sancho não se deu muito bem com outros, seus sequazes, e esta noite estive pendurado por um braço cerca de duas horas, sem saber como vim a cair em semelhante desgraça. De forma que pôr-me eu agora em coisa tão confusa a dar o meu parecer seria cair em juízo temerário. Pelo que toca ao dizerem que isto é bacia e não elmo, já respondi; mas, quanto a declarar se isso é albarda ou jaez, não me atrevo a dar sentença definitiva, e exclusivamente o deixo ao bom parecer de Vossas Mercês; talvez, por não terem sido armados cavaleiros como eu, não hajam que ver com Vossas Mercês os encantamentos deste lugar, e tenham livres os entendimentos, e possam julgar as coisas deste castelo como elas são, real e verdadeiramente, e não como a mim me pareçam.

- Não há dúvida - respondeu D. Fernando - que o Sr. D. Quixote disse muito bem, que hoje a nós outros toca a definição deste caso; e para que vá com mais fundamento, eu tomarei em segredo os votos destes senhores, e do que resultar darei inteira e clara notícia.

Para os que sabiam a mania de D. Quixote, era isto matéria de muito riso; mas para os que a ignoravam parecia-lhes o maior disparate do mundo, especialmente aos quatro criados de D. Luís e a D. Luís também, e a outros três viandantes, que por acaso tinham chegado à venda, e que pareciam ser quadrilheiros, como efectivamente eram. Mas quem mais se desesperava era o barbeiro, cuja bacia ali diante dos seus olhos se transformara em elmo de Mambrino, e cuja albarda já não tinha dúvida que se lhe havia de tornar em rico jaez de cavalo; e uns e outros riam de ver como D. Fernando andava tomando os votos, falando ao ouvido dos circunstantes para que em segredo declarassem se era jaez ou albarda aquela jóia, sobre a qual tanto se pelejara; e, depois de tomar os votos de todos os que a D. Quixote conheciam, disse em voz alta:

- O caso é, bom homem, que já estou cansado de tantos pormenores, porque vejo que a ninguém pergunto o que desejo saber, que me não diga que é disparate dizer-se que isto seja albarda de jumento, quando bem se vê que é jaez de cavalo, e até de cavalo fino, e assim haveis de ter paciência, porque, em que vos pese e ao vosso jumento, isto é jaez e não albarda, e foram péssimas pela vossa parte as alegações e provas.

- Não tenha eu lugar no Céu - exclamou o pobre barbeiro - se Vossas Mercês todos se não enganam, e tão bem pareça a minha alma aos olhos de Nosso Senhor, como esta albarda me parece albarda; mas lá vão leis... e mais não digo; o que posso afirmar é que não estou bêbedo, que ainda não quebrei o jejum, a não ser de pecar.

Não causavam menos riso as necedades do barbeiro do que os disparates de D. Quixote, que nisto acudiu:

- Aqui não há mais que fazer do que tomar cada qual o que lhe pertence, e a quem Deus a deu, S. Pedro que a benza. Um dos criados de D. Luís exclamou:

- Se isto não é de caso pensado, não me posso persuadir que homens de tão bom entendimento, como são ou parecem ser todos os que aqui estão, se atrevam a dizer e afirmar que isto não é bacia e aquilo albarda; mas, como vejo que o afirmam e dizem, dá-me isto a entender que não deixa de ter mistério o porfiar numa coisa tão contrária à verdade; porque voto a tal que ninguém que hoje vive no mundo me pode fazer acreditar que isto não é bacia de barbeiro, e aquilo albarda de burro.

- Pode muito bem ser de burra - disse o cura.

- Tanto monta - tomou o criado -, que o caso não está nisso, mas em ser ou não ser albarda, como Vossas Mercês dizem.

Ouvindo isto um dos quadrilheiros que tinham entrado, que ouvira a pendência, cheio de enfado e cólera, bradou:

- E tão albarda como meu pai é meu pai, e quem outra coisa disse ou disser, é porque está bêbedo como um cacho.

- Mentis como um velhaco e vilão - respondeu D. Quixote. E, levantando a lança, que nunca largara das mãos, descarregou-lhe tal golpe na cabeça, que, se o quadrilheiro se não desviasse, deixara-o ali estendido; a lança fez-se pedaços no chão, e os outros quadrilheiros, que viram maltratar o seu camarada, ergueram a voz pedindo auxílio à Santa Irmandade. O vendeiro, que pertencia à corporação, correu a ir buscar a vara e a espada, e veio colocar-se ao lado dos seus companheiros; os criados de D. Luís rodearam-no para que não aproveitasse o alvoroço para se safar; o barbeiro, vendo o rebuliço, tornou a deitar mão à albarda, e o mesmo fez Sancho; D. Quixote desembainhou a espada e arremeteu com os quadrilheiros; D. Luís bradava aos seus criados que o largassem a ele e socorressem D. Quixote, e Cardénio e D. Fernando, que se tinham colocado todos ao lado do ilustre manchego; o cura bradava, gritava a vendeira, a filha afligia-se, Maritornes chorava, Doroteia estava confusa, Lucinda suspensa, e Clara desmaiada. O barbeiro desancava Sancho, Sancho moía o barbeiro; D. Luís, a quem um criado se atreveu a agarrar no braço para que se não fosse embora, deu-lhe um murro que lhe pôs os dentes em sangue; o ouvidor defendia D. Luís; D. Fernando metera debaixo de si um quadrilheiro e cosia-o a pontapés; o vendeiro tomava a levantar a voz pedindo auxílio à Santa Irmandade; de modo que, em toda a venda no havia senão prantos, brados, gritos, confusões, temores, sobressaltos, desgraças, cutiladas, sopapos, pauladas, couces, e efusão de sangue. E, no meio deste caos, o que havia de imaginar D. Quixote? Imagina-se engolfado na discórdia do campo de Agramante, e diz com voz que atroava toda a venda:

- Tenham mo todos, embainhem as espadas, sosseguem e ouçam-me, se no querem perder a vida.

A este brado, todos pararam, e ele prosseguiu dizendo:

- Não vos disse já Senhores, que este castelo era encantado, e que alguma legião de Demónios deve habitar nele? Em confirmação do meu dito, quero que vejais com os vossos olhos como para entre nós passou e se trasladou a discórdia do campo de Agramante. Vede como além se pugna pela espada, aqui pelo cavalo, acolá pela águia, e ali pelo elmo, e todos pelejamos, e ninguém se entende; venha, pois Vossa Mercê, Senhor Ouvidor, e Vossa Mercê, Senhor Cura, e sirva um de rei Agramante, e outro de el-rei Sobrinho, e ponham-nos em paz; porque, por Deus Todo-Poderoso, é grande loucura matar-se, por coisas tão fúteis, gente tão principal como todos os que aqui estamos.

Os quadrilheiros, que não entendiam o fraseado de D. Quixote, e se viam maltratados por D. Fernando, Cardénio e os seus companheiros, não queriam aquietar-se; o barbeiro, sim, porque na pendência lhe tinham arrepelado as barbas e a albarda; Sancho, à primeira voz de seu amo, obedeceu como bom criado; os quatro servos de D. Luís também ficaram quedos, vendo que de pouco lhes servia o barulho; só o vendeiro porfiava que se haviam de castigar as insolências daquele louco, que a cada momento lhe alvoroçava a estalagem. Finalmente, o barulho se apaziguou por então, a albarda ficou passando por jaez até ao dia de Juízo, e a bacia por elmo, e a venda por castelo, na imaginação de D. Quixote. Postos, pois, já em sossego, e feitos amigos todos por persuasão do ouvidor e do cura, voltaram os criados de D. Luís a insistir para que os acompanhasse, e, enquanto estava com eles em avenças, o ouvidor aconselhava-se com D. Fernando, Cardénio e o cura, sobre o que havia de fazer naquele caso, contando-lhes tudo o que D. Luís lhe pedira. Enfim, acordou-se que D. Fernando dissesse aos criados de D. Luís quem era, e como desejava que D. Luís o acompanhasse à Andaluzia, onde pelo marquês seu irmão seria estimadíssimo, e assim se faria a vontade a D. Luís, que naquela ocasião não tomava para casa de seu pai, nem que o despedaçassem.

Assim se apaziguou toda aquela pendência, graças à autoridade de Agramante e cordura de el-rei Sobrinho; mas, vendo-se o inimigo da concórdia e o emulo da paz menosprezado e burlado, e o pouco fruto que tirara de os haver posto a todos em tão confuso labirinto, quis provar outra vez a mão, ressuscitando novas pendências e desassossegos. E, pois, o caso, que os quadrilheiros sossegaram, por ter entreouvido a qualidade dos que com eles se tinham batido, e retiraram-se da pendência, por lhes parecer que sempre haviam de levar o pior na batalha; mas um deles, que fora desancado e pisado aos pés por D. Fernando, lembrou-se de súbito de que entre alguns mandados que trazia para prender delinquentes, vinha um contra D. Quixote, que a Santa Irmandade mandara prender pela liberdade que deu aos galeotes, e como Sancho, com muita razão, temera. Lembrando-se, pois, disto, quis certificar-se se diziam bem com as feições de D. Quixote os sinais que lhe tinham dado, e, tirando do seio um pergaminho, sucedeu ser esse logo o que procurava, e pondo-se a lê-lo com todo o vagar, porque não era grande ledor, a cada palavra que lia punha os olhos em D. Quixote, e ia cotejando os sinais com as feições do seu rosto, e viu que sem dúvida alguma era a ele que o mandado se referia. E, apenas se certificou, dobrou logo o pergaminho, e, pondo o mandado na mão esquerda, com a mão direita agarrou a D. Quixote pelo pescoço, que nem o deixava respirar, e com grandes brados dizia:

- Auxílio à Santa Irmandade, e, para que se veja que deveras e com razão o peço, leia-se este pergaminho, onde se ordena que se prenda este salteador de estradas.

Pegou o cura no mandado, e viu que era verdade tudo o que o quadrilheiro dizia, e que os sinais eram realmente os de D. Quixote, o qual, vendo-se maltratado por aquele vilão malandrino, no auge da cólera, e com os ossos a rangerem-lhe, agarrou-se com ambas as mãos à garganta do quadrilheiro, com tal ânsia, que, se o infeliz não fosse socorrido pêlos seus camaradas, mais depressa ali deixaria a vida do que D, Quixote a presa. O vendeiro, que por força havia de favorecer os da sua corporação, veio logo acudir-lhe. A vendeira, que viu de novo seu marido em pendências, de novo começou a gritar, procedendo logo pelo mesmo teor Maritornes e a filha, que imploravam a misericórdia do Céu e dos que ali estavam.

Sancho exclamou, ao ver o que se passava:

- Por vida de Nosso Senhor, que é bem verdade tudo quanto meu amo diz dos encantamentos deste castelo, que se não pode aqui estar uma hora em sossego.

  1. Fernando apartou o quadrilheiro e D. Quixote, com grande alívio de ambos, desenclavinhando-lhes as mãos com que mutuamente se afogavam; mas nem por isso deixavam os quadrilheiros de reclamar o seu preso, e de pedir que os ajudassem a amarrá-lo, porque assim convinha ao serviço de el-rei e da Santa Irmandade, de cuja parte de novo lhes pediam socorro e auxílio para prenderem aquele roubador e salteador de estrada. Ria-se D. Quixote de ouvir estas razões, e com muito sossego disse:

- Vinde cá, gente soez e malcriada, chamais assaltar nas estradas dar liberdade aos algemados, soltar os presos, socorrer os míseros, levantar os caídos, remediar os necessitados? Ah! gente infame, dignos, por vosso baixo e vil entendimento de que o Céu vos não comunique o valor que se encerra na cavalaria andante, nem vos dê a entender o pecado e ignorância em que estais, não reverenciando a sombra, quanto mais a presença de qualquer cavaleiro andante! Vinde cá, ladrões de quadrilha, e não quadrilheiros, salteadores com licença da Santa Irmandade, dizei-me, quem foi o ignorante que assinou mandado de priso contra um cavalero tal como eu sou? Quem era esse que não sabia que são isentos de todo o foro judicial os cavaleiros andantes, e que a sua lei é a sua espada, foros os seus brios, pragmática a sua vontade? Quem foi o mentecapto, torno a dizer, que não sabe que não há foro de fidalgo com tantas preeminências e isenção como o que adquire um paladino andante no dia em que calça as esporas de ouro e se entrega ao duro exercício da cavalaria? Que cavaleiro andante pagou nunca peitas, nem alcavalas, chapim de rainha, moeda foreira, portagem, nem barca? Que castelão o acolheu no seu castelo, fazendo-lhe pagar o escote? Que rei o no assentou à sua mesa? Que donzela se lhe não afeiçoou e se lhe não entregou rendida, com todas as veras da sua alma? E, finalmente, que cavaleiro andante houve, há, ou há-de haver no mundo que não tenha brio, para dar ele só quatrocentas pauladas a quatrocentos quadrilheiros que se lhe ponham adiante?

 

DA NOTÁVEL AVENTURA DOS QUADRILHEIROS, E DA GRANDE FEROCIDADE DO NOSSO BOM CAVALEIRO D. QUIXOTE

Enquanto D. Quixote dizia isto, estava o cura convencendo os quadrilheiros de que ele era falto de juízo, como viam pelas suas obras e palavras, e não tinham motivo para ir com esse negócio por diante, porque, ainda que o prendessem e levassem, logo teriam de o deixar como louco; ao que respondeu o do mandado, que lhe não competia julgar da loucura de D. Quixote, mas fazer o que lhe ordenavam, e que, preso uma vez, podiam-no soltar trezentas.

- Com tudo isso - acudiu o cura -, desta vez não o levareis, nem ele se deixará levar, pelo que eu vejo.

Efectivamente, o cura tanto lhes disse, e D. Quixote tantas loucuras fez, que mais doidos seriam do que ele os quadrilheiros, se lhe não conhecessem a falta de siso, e assim houveram por bem apaziguar-se, e até servir de medianeiros para se fazerem as pazes entre Sancho Pança e o barbeiro, que ainda insistiam, com grande rancor, na sua pendência. Finalmente, eles, como membros da justiça, se fizeram árbitros da causa e partiram a

contenda ao meio, mandando que se trocassem as albardas, mas não o resto do aparelho, ficando assim as duas partes não de todo contentes, mas alguma coisa satisfeitas; e, quanto ao elmo de Mambrino, o cura socapa, e sem que D. Quixote o percebesse, deu ao barbeiro oito réis, e em troca lhe passou ele recibo e

promessa de o não demandar em tempo algum.

Sossegadas, pois, estas duas pendências, que eram as principais e de mais tomo, restava que os criados de D. Luís se resignassem a separar-se, indo-se três embora e ficando um para o acompanhar ao sítio aonde D. Fernando o levava; e como a boa sorte e a melhor fortuna começaram a aplanar dificuldades, e a favorecer os enamorados e os valentes da estalagem, quis levar ao termo essa boa obra, e dar a tudo feliz xito, porque os criados fizeram quanto quis seu jovem amo, e com isso tão contente ficou D. Clara, que bastava olhar para o seu rosto para se conhecer o regozijo daquela alma.

Zoraida, ainda que não entendia bem todos os sucessos que tinha visto, alegrava-se e entristecia-se conforme a express o que lia no semblante de cada um, principalmente no do seu espanhol, em quem tinha sempre pregados os olhos e a alma. O dono da venda, a quem não passou despercebida a recompensa que o cura dera ao barbeiro, pediu que lhe pagassem o estrago que D. Quixote fizera nos odres e no vinho, jurando que não deixaria sair nem Rocinante, nem o jumento, se não se lhe satisfizesse até ao último maravedi.

Tudo o cura apaziguou, e tudo D. Fernando pagou, ainda que o ouvidor de muito boa vontade se oferecera também para pagar, e assim ficaram todos em paz e sossego, de forma que a venda já não parecia o campo de Agramante, como D. Quixote dissera, mas antes ali reinava a paz octaviana; e foi opinião comum que se deviam dar graças à boa intenção e muita eloquência do Senhor Cura, e incomparável liberalidade de D. Fernando.

Vendo-se, pois, D. Quixote livre e desembaraçado de tantas pendências, suas e do seu escudeiro, pareceu-lhe que seria bom prosseguir na começada viagem, e dar fim àquela grande aventura, para que fora chamado e escolhido, e, assim, com resoluta determinação, foi-se pôr de joelhos diante de Doroteia, a qual ; lhe não consentiu que dissesse uma só palavra sem que se levantasse, e por lhe obedecer D. Quixote se pôs em pé e lhe disse: - provérbio vulgar, formosa Senhora, ser a diligência mãe e do bom êxito, e em muitas e graves coisas tem mostrado a experiência que a solicitude do demandista leva a bom fim o pleito duvidoso; mas em nenhuma se mostra tanto esta verdade como nas coisas da guerra, onde a celeridade e presteza previnem as deliberações do inimigo e alcançam a vitória antes que o contr rio se ponha em defesa. Tudo isto digo, alta e preciosa Senhora, porque me parece que a nossa estada neste castelo sem proveito, e poderia ser de tanto dano que algum dia o sentiamos, porque, quem sabe se por ocultos espias o ter sabido já o gigante vosso adversário que vou destruí-lo, e, dando-lhe lugar o tempo, se tenha fortificado nalgum inexpugn vel castelo e fortaleza, contra o qual pouco valessem as minhas diligências e a força do meu incans vel braço? Assim, pois Senhora minha, previnamos, como disse, com a nossa diligência os seus desígnios, e partamos desde ja procurar a fortuna, que logo Vossa Mercê a terá como deseja, apenas eu chegue a ver o vosso opositor.

Calou-se D. Quixote, e esperou com muito sossego a resposta da formosa infanta, a qual, com adea senhoril e acomodado ao estilo de D. Quixote, lhe respondeu desta maneira:

- Agrade o-vos, Senhor, o desejo que mostrais de favorecer-me na minha grande angústia, como cavaleiro que tem por alta missão proteger os órfãos e necessitados; e queira o céu que se cumpra o vosso desejo e o meu, para que vejais que há no mundo mulheres agradecidas. E, quanto minha partida, seja presto, que eu não tenho mais vontade que a vossa; disponde de mim a vosso bom talante, que aquela que uma vez vos entregou a defesa da sua pessoa e pôs nas vossas mãos a defesa dos seus senhorios, não há-de querer ir contra o que ordenar a vossa prudência.

- Nas mãos de Deus e não nas minhas - acudiu D. Quixote - mas, quando uma senhora se me humilha, não quero perder o ensejo de a levantar e pô-la no seu herdado trono. Partamos, pois, porque o desejo e o caminho me esporeiam, que costuma dizer-se que o perigo está na tardança; e que o Céu não o criou, nem viu o Inferno nenhum que me espante ou acobarde. Vai selar o Rocinante, Sancho, e aparelha o teu jumento e o palafrém da rainha, e, depois de nos despedirmos do castel o e destes senhores, partamos sem demora.

Sancho, que a tudo estava presente, disse abanando a cabeça:

- Ai, Senhor, Senhor! Nem tudo o que luz ouro; com perd o seja dito do ouro verdadeiro.

- Que tem isso com o que se passa aqui, vil o?

- Se Vossa mercê se enfada - respondeu Sancho - eu calo-me e deixo de dizer aquilo a que sou obrigado como leal escudeiro, e como deve um bom criado dizer a seu amo.

- Diz o que quiseres - redarguiu D. Quixote - conquanto que as tuas palavras se não dirijam a assustar-me, que se tu tiveres medo procedes como quem s, e se eu o não tenho procedo como quem sou.

- não isso, mal-pecado - respondeu Sancho -, mas o que eu digo que tenho por averiguado e certo que esta senhora, que se diz ser rainha do grande reino de Micomicão, -o tanto como minha mãe, porque, se o fosse, não andaria decerto a cada canto e a cada instante aos beijinhos com um sujeito da roda.

Fez-se Doroteia muito corada, porque era verdade que seu esposo D. Fernando algumas vezes colhera furtivamente nos seus lábios parte do prémio que os seus desejos mereciam, o que fora visto por Sancho, parecendo-lhe a ele que semelhante desenvoltura era mais de loureira que de rainha de tão grande reino.

não quis ou não pôde Doroteia responder palavra a Sancho, mas deixou-o prosseguir na sua prática, e ele foi dizendo:

- Isto digo eu Senhor; porque, se depois de termos corrido por montes e vales, e passado más noites e piores dias, há-de vir a colher o fruto dos nossos trabalhos quem está folgando na venda, não há motivo para que me apresse a selar o Rocinante, albardar o jumento e aparelhar o palafr m, e ser melhor que fiquemos quedos, e as maraonas que fiem, e nós que vamos comendo.

Ah! Deus Santíssimo, que fúria que teve D. Quixote, ao ouvir as descompostas palavras do seu escudeiro! Digo só que bradou com voz atrapalhada e língua tartamuda, lan ando vivo fogo pelos olhos:

- velhaco, e vil o, descomposto e ignorante, estúpido, desbocado, murmurador, e maldizente, que semelhantes palavras ousaste dizer na minha presença e na presença destas ínclitas senhoras, como que ousaste pôr na tua confusa imaginação semelhantes desonestidades e atrevimentos? Vai-te da minha presença, monstro da Natureza, repositório de mentiras, arm rio de embustes, inventor de maldades, publicador de sandices, inimigo do decoro que se deve às pessoas reais;

vai-te, e não apare as diante de mim, sob pena da minha ira.

E, dizendo isto, franziu as sobrancelhas, entumeceu as faces, e deu com o pé direito uma grande patada no ch o, tudo sinais da cólera que lhe refervia nas entranhas. A estas palavras e furibundo adea ficou Sancho tão encolhido e medroso, que folgaria que naquele instante se abrisse debaixo de seus pés a terra e o tragasse; não fez mais do que voltar as costas e tirar-se da presença de seu enfadado amo. Mas a discreta Doroteia, que já conhecia perfeitamente o génio de D. Quixote, disse, para lhe moderar a ira: - não vos despeiteis Senhor Cavaleiro da Triste Figura, com as sandices que o vosso bom escudeiro proferiu, porque talvez não as diga sem motivo, nem do seu bom entendimento e consciência cristã se deve esperar que levante testemunhos a ninguém: e assim se há-de acreditar, sem lhe pôr dúvida, que, como neste castelo, segundo dizeis Senhor Cavaleiro, tudo sucede por obra de encantamento, poderia suceder, repito, que Sancho visse por parte diabólica o que ele diz que viu, tanto em ofensa da minha honestidade.

-Juro pelo Deus Omnipotente - acudiu D. Quixote - que bateu no ponto a vossa grandeza, e que alguma visão se pôs diante deste pecador de Sancho, que lhe fez ver o que seria impossível ver-se de outro modo que não fosse por encantamento, que eu bem sei, pela bondade e inocência deste desgraçado, que não sabe levantar testemunhos a ninguém.

- Assim e assim ser - disse D. Fernando - pelo que deve Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, perdoar-lhe e reduzi-lo ao grémio da sua graça, sicut erat in principio, antes que as tais visões lhe dourassem o juízo.

  1. Quixote respondeu que lhe perdoava, e o cura foi buscar Sancho, que veio muito humilde, e, pondo-se de joelhos, pediu a mão a seu amo, e este deu-lha, e, depois de lha ter deixado beijar, deitou-lhe a bênção, dizendo:

- Agora acabarás de conhecer, Sancho filho, que todas as coisas deste castelo são feitas por via de encantamento.

- Assim creio - disse Sancho -, excepto o caso do mantear, que esse, realmente, sucedeu por via ordin ria.

- Não creias - respondeu D. Quixote - que, se assim fosse, eu te vingaria então e ainda agora; mas nem então pude, nem agora vi pessoa de quem tirasse vingança do teu agravo.

Desejaram saber todos o que era isso de mantear, e o vendeiro lhes contou por miúdo os voos de Sancho, com o que todos riram, e Sancho bastante se correria, se de novo lhe não assegurasse seu amo que era encantamento, ainda que nunca chegou a tanto a sandice de Sancho, que acreditasse não ser verdade pura e averiguada, sem mescla de engano algum, o de ter sido manteado por pessoas de came e osso, e não por fantasmas sonhados e imaginados, como seu amo acreditava e afirmava.

Havia já dois dias que toda aquela ilustre companhia estava na venda; e, parecendo-lhes que já era tempo de partir, imaginaram o modo como o cura e o barbeiro poderiam levar D. Quixote para a sua terra, e ali guarecê-lo das suas loucuras, sem ser necessário que Doroteia e D. Fernando o acompanhassem aldeia, com as tais invenções da liberdade da rainha Micomicoa.

E o que imaginaram foi o combinarem-se com um carreiro, que por ali acertou de passar com o seu carro de bois, para o levarem da seguinte forma: fizeram uma jaula de paus encruzados em feitio de grade, capaz de nela caber folgadamente D. Quixote, e logo D. Fernando e os seus amigos, juntamente com o vendeiro, com os criados de D. Luís e com os quadrilheiros, por ordem e parecer do cura, taparam o rosto e se disfarçaram, uns de um modo, outros de outro, de feitio que a D. Quixote parecesse que era outra gente, e não a que vira naquele castelo.

Feito isto, com grandíssimo silêncio entraram no aposento onde ele estava dormindo e descansando das passadas refregas.

Chegaram-se a ele, que dormia bem livre e bem seguro de tal acontecimento, e, agarrando-o com força, amarraram-lhe muito bem os pés e as mãos, de forma que, quando ele despertou em sobressalto, não pôde mexer-se, nem fazer outra coisa, senão ficar admirado e suspenso de ver diante de si tão estranhos rostos, e logo foi para o que lhe representava continuamente a sua tresvariada imaginação, e supôs que todas aquelas figuras eram fantasmas desse castelo encantado, e que, sem dúvida alguma, estava ele encantado também, pois que não podia nem mexer-se nem defender-se, tudo exactamente como pensara que sucederia o cura, inventor da tramóia.

De todos os presentes, só Sancho estava em seu juízo e na sua figura; e, ainda que pouco lhe faltava para ter as mesmas enfermidades que seu amo, não deixou de conhecer quem eram todos aqueles vultos disfarçados; mas não ousava abrir boca sem ver em que parava aquele assalto e prisão de seu amo, que também não dizia palavra, esperando para ver em que viria a dar a sua desgraça; e em que veio a dar tudo aquilo foi em trazerem ali a jaula, meterem-no a ele para dentro, e pregarem os paus com tanta força, que se não arrancariam nem com fortes empuxões. Levaram-no depois em charola, e, ao sair do aposento, ouviu-se uma voz temerosa, tanto quanto o barbeiro, não o da albarda, mas o outro, a pôde fazer, e que dizia:

- Cavaleiro da Triste Figura, não te aflija a prisão em que vais, porque assim convém para que mais depressa acabe a aventura em que o teu grande esforço te meteu; a qual há-de terminar quando o furibundo le o manchego com a branca pomba tobosina se unir em doces laços, depois de humilhada a nobre cerviz ao jugo matrimonial. Desse inaudito consórcio sairão à luz do orbe os bravos cachorros, que hão-de imitar as mortíferas garras do valoroso pai; e isto acontecerá antes que o seguidor da fugitiva ninfa por duas vezes visite as lúcidas

imagens, com o seu curso rápido e natural. E tu, o escudeiro mais nobre e mais obediente que jamais teve espada cinta, barbas no rosto e olfacto nas ventas, não te aflija nem te descontente o ver que levam assim, diante dos teus olhos, a flor da cavalaria andante, que bem presto, se aprouver a quem moldou o mundo, te verás tão alto e tão sublimado, que te não conhecerás a ti próprio, e não sairão defraudadas as promessas que te fez o teu bom amo; e asseguro-te, da parte da sábia Mentironiana, que o teu salário te será pago, como poderás ver por obras; e segue as pisadas do valoroso e encantado cavaleiro, porque necessário que vás ao sítio onde ambos haveis de parar; e porque me não lícito dizer outra coisa, ficai com Deus, que eu me vou para onde sei.

E, ao acabar a profecia, levantou a voz a tal ponto, e abaixou-a depois com tão terno som, que até os sabedores da burla estiveram quase a acreditar que era verdade o que ouviam.

Ficou D. Quixote consolado com a profecia, porque logo coligiu a significa o de toda ela, e viu que lhe prometiam ver-se unido, em santo e justo matrimónio, com a sua querida Dulcineia del Toboso, de cujas felizes entranhas sairiam outros leões, que eram seus filhos, para glória perpétua da Mancha; e, acreditando isto e bem firmemente, levantou a voz, e, dando um grande suspiro, disse: - tu, quem quer que sejas, que tanto bem me prognosticaste, rogo-te que peças da minha parte ao sábio nigromante que tem as minhas coisas a seu cargo, que me não deixe perecer nesta prisão, onde agora me levam, enquanto não vir cumpridas tão alegres e incomparáveis promessas, como são as que aqui se me fizeram; que, sendo assim, terei por glória as penas do meu cárcere, e por alívio estas algemas que me cingem, e não por duro campo de batalha este leito em que me recostam, mas por macia cama e tálamo ditoso. E, no que diz respeito a Sancho Pança, meu escudeiro, confio da sua bondade e bom proceder, que não me deixar nem na próspera, nem na adversa fortuna, porque, ainda que não suceda, por sua ou minha ventura, poder-lhe dar a ilha ou outra coisa equivalente que tem prometida, pelo menos o seu salário não poder perder-se, porque no meu testamento, que já está feito, deixo declarado o que se lhe há-de dar, não conforme os seus muitos e bons serviços, mas conforme as minhas limitadas posses.

Inclinou-se-lhe Sancho Pança com muito comedimento e beijou-lhe ambas as mãos, não podendo beijar uma só, por estarem as duas amarradas.

Logo aquelas visões tomaram a jaula aos ombros, e meteram-na no carro de bois.

 

DO MODO ESTRANHO COMO FOI ENCANTADO D. QUIXOTE DE LA MANCHA, COM OUTROS SUCESSOS

Quando D. Quixote se viu daquela maneira engaiolado, e em cima do carro, disse:

- Muitas e muitas graves histórias tenho eu lido de cavaleiros andantes; mas nunca li, nem vi, nem ouvi, que aos cavaleiros encantados os levem desta maneira, e com a demora que prometem estes preguiçosos e tardios animais; porque sempre os costumam levar p los ares com estranha ligeireza, encerrados nalguma parda e densa nuvem, ou nalgum carro de fogo, ou sobre algum hipogrifo ou outro animal semelhante; mas que me levem a mim num carro de bois, viva Deus, que me põe em confusão Talvez a cavalaria e os encantamentos dos nossos tempos devam de seguir outro caminho do que seguiram antigamente; e também pode ser que, como eu sou cavaleiro único no mundo, e o primeiro que ressuscitei o já olvidado exercício da cavalaria aventurosa, também novamente se hajam inventado outros géneros de encantamento, e outros modos de levar os encantados. Que te parece, Sancho filho?

- não sei o que me parece - respondeu Sancho - por não ser tão lido como Vossa mercê nas escrituras andantes; mas, com tudo isso, ousaria afirmar e jurar que estas visões, que por aqui andam, não são católicas.

- Católicas! Pai do Céu! - tornou D. Quixote. - Como hão-de ser católicas se são todos Demónios, que tomaram corpos fantásticos para virem fazer isto, e pôr-me neste estado? E, se quiseres ver esta verdade, toca-lhes e apalpa-os, e verás que os seus corpos são ar, e que não têm mais que as aparências.

- Por Deus, Senhor - redarguiu Sancho -, já lhes toquei; e este diabo, que aqui anda tão solícito, roli o de carnes, e tem outra propriedade muito diferente da que eu ouvi dizer que t mãos Demónios, porque, segundo se conta, todos tresandam a enxofre e outros maus cheiros, mas este a meia légua se conhece que rescende a mbar.

Dizia isto Sancho por D. Fernando, que, como tão fidalgo que era, devia de estar enfrascado em aromas.

- No te maravilhes disso, Sancho amigo - respondeu D. Quixote -, porque te devo dizer que os Diabos sabem muito, e, ainda que tragam aromas consigo, eles a nada cheiram, ou em todo o caso, coisas boas no podem rescender; e o motivo que, estando o Inferno onde quer que estejam, e não podendo eles receber alívio algum em seus tormentos, e a fragrência deleite e consola o, não podem ter fragrências; e, se a ti te parece que esse Demónio que dizes cheira a mbar, ou te enganas, ou ele te quer enganar, para fazer que o não tenhas por Demónio.

Todos estes colóquios se passaram entre o amo e o criado, e, temendo D. Fernando e Card nio que Sancho viesse a descobrir a sua inven o, resolveram abreviar a partida, e, chamando de parte o vendeiro, ordenaram-lhe que selasse Rocinante e albardasse o jumento de Sancho, o que ele fez com muita presteza.

Já nisto o cura ajustara com os quadrilheiros para que o acompanhassem até sua aldeia, dando-lhes um tanto por dia. Pendurou Card nio do ar o da sela de Rocinante o escudo e a bacia, e, por gestos, mandou a Sancho que montasse no burro e levasse de rédea Rocinante, e colocou de cada lado do carro um quadrilheiro com a sua escopeta; mas, antes que se pusesse o carro em movimento, saiu a vendeira com sua filha e Maritornes, fingindo que choravam com pena da desgraça de D. Quixote, e este disse-lhes então:

- Não choreis, minhas boas senhoras, que todas estas desventuras andam inerentes minha profisso; e, se tais calamidades me não acontecessem, nunca eu me considerara famoso cavaleiro andante, porque aos cavaleiros de pouco nome e fama, nunca esses infortúnios sucedem, porque não há no mundo quem se lembre deles; aos valorosos sim, que têm, por inveja de sua virtude e valentia, muitos príncipes e outros cavaleiros, que procuram por más vias destruir os bons. Mas, com tudo isso, a virtude tão poderosa, que por si só, apesar de toda a nigromancia que soube o seu primeiro inventor Zoroastro, sair vencedora de todos os transes, e irradiar luz na Terra, como o Sol no firmamento. Perdoai-me, formosas senhoras, se, por descuido, algum desaguisado convosco pratiquei, que, por vontade e de ciência certa, nunca a ninguémãos fiz; e rogai a Deus que me tire destas prises, que, se delas me vejo livre, não me sair o da memória as mercês que neste castelo me fizestes, para vos agradecer, recompensar e servir como bem mereceis.

Enquanto isto se passava entre as três damas do castelo e D. Quixote, o cura e o barbeiro despediram-se de D. Fernando e dos seus companheiros, e do capitão e de seu irmão, e de todas aquelas contentíssimas senhoras, especialmente de Doroteia e Lucinda.

Todos se abraçaram, e ficaram de dar notícia, uns aos outros, do que lhes sucedesse, dizendo D. Fernando ao cura para onde lhe havia de escrever a contar-lhe o que acontecesse a D. Quixote, assegurando-lhe que não haveria coisa que mais gosto lhe desse do que sabê-lo; e que ele também lhe contaria tudo que visse que lhe poderia interessar, tanto o seu casamento, como o baptismo de Zoraida, e os sucessos de D. Luís, e a volta de Lucinda para sua casa.

O cura prometeu fazer pontualmente tudo o que lhe mandava.

O vendeiro chegou-se ao cura, e deu-lhe uns pap is, dizendo-lhe que os achara num forro da maleta onde se encontrou a novela do Curioso impertinente, e que os levasse todos, visto que o dono nunca mais ali tomara, e ele não sabia ler. O cura agradeceu, e, abrindo-os, viu que no princípio do escrito diziam:

Novela de Rinconete e Cortadilo, e, vendo que era novela, coligiu logo que, sendo boa a do Curioso impertinente, esta o seria também, pois talvez até fossem ambas do mesmo autor; e guardou-a, fazendo ten o de a ler, assim que tivesse ensejo.

Montou a cavalo, e o mesmo fez o barbeiro seu amigo, com as suas máscaras, para que não fossem logo conhecidos por D. Quixote, e partiramatrás do carro. E a ordem que levavam era a seguinte: primeiro, ia o carro com o dono a guiá-lo, ao lado, os quadrilheiros com as suas escopetas, como já se disse; seguia-se Sancho Pança no seu jumento, levando de rédea a Rocinante; atrás de tudo, cavalgavam o cura e o barbeiro nas suas possantes mulas, com os rostos cobertos, com grave e descansado porte, não andando mais do que permitia o passo vagaroso dos bois.

  1. Quixote ia sentado na jaula, de mãos atadas, pés estendidos, e encostado às grades, com tanta mudez e paciência como se não fosse homem de carne, mas est tua de pedra.

E, assim, naquele vagar e silêncio, andaram duas léguas, até que chegaram a um vale, que o carreiro entendeu que era lugar acomodado para dar aos bois descanso e pastagem; e, depois de conferenciar com o cura, foi o barbeiro de parecer que andassem um pouco mais, porque sabia que por três de uma encosta que dali se divisava, havia outro vale mais arrelvado, e muito melhor do que esse em que queriam parar.

Aceitou-se o parecer do barbeiro, e prosseguiram no seu caminho.

Nisto, o cura voltou o rosto e viu queatrás dele vinham seis ou sete homens a cavalo, bem postos e ajaezados, que depressa os alcan aram, porque caminhavam, não com a pachorra e descanso dos bois, mas como quem montava em boas mulas de cónegas e desejava chegar depressa venda, que ficava dali a menos de uma légua, para dormir a sesta.

Chegaram os diligentes a par dos preguiçosos, e cumprimentaram-se cortesmente; e um deles, que era cónego de Toledo e amo dos outros que o acompanhavam, ao ver a concertada prociss o do carro, quadrilheiros, Sancho, Rocinante, o cura e o barbeiro, D. Quixote engaiolado e preso, não pôde deixar de

perguntar o que queria dizer levarem aquele homem daquele modo, ainda que já percebera, ao ver as insígnias dos quadrilheiros, que devia de ser algum salteador facínora, ou outro delinquente, cujo castigo tocasse Santa Irmandade.

Um dos quadrilheiros, a quem foi feita a pergunta, respondeu:

- Senhor, o que significa ir este cavaleiro deste modo, ele que o diga, porque nós não sabemos.

- Por fortuna serão Vossas mercê s, Senhores Cavaleiros - exclamou logo D. Quixote -, versados e peritos nisto de cavalaria andante? Porque, se o são, eu lhes comunicarei as minhas desgraças, e, se o não são, não há motivo para que me canse a dizê-las.

A este tempo, já tinham chegado o cura e o barbeiro, vendo que os viandantes estavam em prática com D. Quixote de La Mancha, para responderem de modo que o seu artifício se não descobrisse.

O cónego, ao que D. Quixote perguntou, respondeu:

- Em boa verdade posso dizer-vos, que sei mais de livros de cavalaria do que das Súmulas de Vilialpando, de forma que se não est em mais do que isso, podeis seguramente comunicar-me o que quiserdes.

- Louvado seja Deus - redarguiu D. Quixote - pois, sendo assim, quero que saibais Senhor Cavaleiro, que vou encantado nesta jaula, por inveja e fraude de maus encantadores, porque a virtude mais perseguida p los maus do que amada p los bons. Cavaleiro andante sou e não daqueles, de cujo nome nunca a fama se recordou para os eternizar, mas dos que, a despeito e pesar da própria inveja, e de quantos magos criou a Pérsia, e brâmanes a Índia, e gimnosofistas a Etiópia, hão-de pôr o seu nome no templo da imortalidade, para que sirva de exemplo e ditado nos séculos futuros, onde os cavaleiros andantes vejam os passos que hão-de seguir, se quiserem chegar mais elevada glória que as armas podem dar.

- Diz bem verdade o Sr. D. Quixote de La Mancha - acudiu o cura - porque ele vai encantado nesta carreta, não por suas culpas e pecados, mas pela inveja daqueles a quem a virtude enfada e a valentia incomoda. Este Senhores, o Cavaleiro da Triste Figura, que talvez tenhais ouvido nomear, e cujas valorosas façanhas e grandiosos feitos serão escritos em duros bronzes e em eternos mármores, por mais que se canse a inveja em escurecê-los, e a malída em ocultá-los.

Quando o cónego ouviu falar em semelhante estilo, esteve para se benzer de admirado, e nem podia imaginar o que lhe acontecera, e na mesma admiração caíram todos os que com ele vinham. Nisto, Sancho Pança, que se aproximara para ouvir a prática, exclamou:

- Agora, Senhores, quer me queiram bem, quer me queiram mal pelo que eu disser, a verdade que o Sr. D. Quixote vai aí tão encantado como minha mãe e que Deus haja; ele está em todo o seu juízo, come e bebe, e faz todas as suas necessidades, como os outros homens, e como as fazia ontem antes que o engaiolassem. Sendo isto assim, como querem meter-me na cabeça que ele vai encantado? Pois não tenho ouvido dizer a muitas pessoas que os encantados não comem, nem dormem, nem falam, e meu amo, se lhe não forem m o, capaz de falar mais do que trinta advogados?

E, voltando-se para o cura, prosseguiu:

- Ah! Senhor Cura, Senhor Cura! Pensar Vossa mercê que não sei quem é E pensar que não me calo e não adivinho aonde vão ter estes novos encantamentos? Pois saiba que o conheço, por mais que tape a cara, e que o percebo, por mais que dissimule os embustes. Enfim, onde reina a inveja, não pode viver a virtude, nem onde há escassez, a liberalidade. Diabos levem o diabo que, se não fosse Sua Reverência, já a estas horas meu amo e Senhor estaria casado com a princesa Micomicoa, e eu seria conde, pelo menos, pois outra coisa se não podia esperar, tanto da bondade do meu Senhor da Triste Figura, como da grandeza dos meus serviços; mas já vejo que é verdade o que por aí se diz, que a roda da fortuna anda mais depressa que a roda de um moinho, e que os que ontem estavam nas grimpas, hoje se acham estirados por terra. Pesa-me por meus filhos e por minha mulher, pois quando podiam e deviam esperar ver entrar seu pai pelas portas dentro, feito governador ou vice-rei de alguma ilha ou reino, o hão-de ver entrar sota-cavalari o. Tudo o que eu digo não senão para encarecer a vossa paternidade, que veja que uma consciência maltratar meu amo, e repare bem, não lhe vá Deus pedir contas, na outra vida, desta prisão, e do bem que meu Sr. D. Quixote deixar de fazer, durante o tempo que estiver preso.

- O que aqui vai, não vai na ndia - acudiu o barbeiro. - Também vós, Sancho, sois da confraria do vosso amo? O Senhor nos valha! Vou vendo que lhe haveis de ir fazer companhia na jaula, e de ficar tão encantado como ele, por assim participardes do seu génio e das suas cavalarias. Em hora má vos embutiu ele tantas promessas, e em má hora se vos meteu nos cascos a ilha que tanto desejais.

- Eu não tenho embutidos, nem sou homem que viva de lerias - respondeu Sancho - e, ainda que pobre, sou cristão velho, e não devo nada a ninguém; e se desejo ilhas, outros desejam coisas piores; e cada qual filho das suas obras; e, sendo homem, posso vir a ser papa, quanto mais governador de uma ilha, podendo meu amo ganhar tantas, que lhe falte a quem as dê. Vossa mercê veja como fala Senhor Barbeiro, que nem tudo fazer barbas, e não há só basbaques no mundo, digo isto, porque todos nos conhecemos, e a num não me impinge gato por lebre; e, a respeito do encantamento de meu amo Deus sabe onde estar a verdade, e fiquemos por aqui, que o melhor não lhe mexer.

não quis o barbeiro responder a Sancho, para que este não descobrisse com as suas simplicidades o que ele e o cura tanto procuravam encobrir; e, com este mesmo receio, dissera o cura ao cónego que se adiantasse um pouco, para ele lhe contar o mist rio do engaiolado, com outras coisas que o divertiriam.

Acedeu o cónego e adiantou-se com ele e com os seus criados; ouviu atentamente tudo quanto o cura lhe disse da condição, vida, loucura e costumes de D. Quixote, contando-lhe brevemente o princípio e a causa dos seus desvarios, e o que lhe sucedera até ser metido naquela jaula, e a ten o que tinham feito de o levar para a sua terra, a fim de ver se, por algum meio, achavam rem dio sua loucura. Admiraram-se de novo o cónego e os criados, ao ouvir a peregrina história de D. Quixote, e, quando acabaram de a ouvir, disse o cónego:

- Eu por mim Senhor Cura, acho, na verdade, que são prejudiciais na república estes livros a que chamam de cavalaria; e ainda que li, arrastado por um gosto errado e vão, o princípio de quase todos os que estão impressos, nunca pude conseguir ler nenhum até ao fim, porque me parece que pouco mais ou menos são todos a mesma coisa. E, no meu entender, este género de composição assemelha-se ao que chamam fábulas milésias, que são esses contos disparatados que só tratam de deleitar e não de instruir, ao contr rio do que sucede com as fábulas apologais, que juntamente deleitam e instruem; e, ainda que o principal intento de semelhantes livros seja deleitar, não sei como possam consegui-lo, estando cheios de tantos e de tão desaforados disparates; que o deleite, que na alma se gera, deve resultar da formosura e harmonia que ou fantasia nas coisas que os olhos ou a imaginação lhe apresentam, e tudo quanto é feio ou desconcertado não nos pode causar satisfação alguma. Pois que formosura ou que proporção pode haver num livro ou numa fábula, em que um moço de dezasseis anos vibra uma cutilada a um gigante como uma torre, e o racha de meio a meio? Como havemos de acreditar que numa batalha, em que está de um lado um milh o de combatentes, e do outro o herói do livro, este alcance a vitória só pelo valor do seu braço forte? E que diremos da facilidade com que uma rainha ou imperatriz presuntiva se deixa cair nos braços de um cavaleiro andante e desconhecido? Que espírito, a não ser de todo bárbaro ou inculto, poder ficar deliciado ao ler que uma grande torre cheia de cavaleiros vai por esses mares adiante, como navio com vento de fei o, e anoitece na Lombardia, e amanhece nas terras do Preste Jo o das ndias, ou em outras que nem foram descritas por Ptolemeu, nem vistas por Marco Polo? E, se a isto se me responder, que os autores desses livros os escrevem como obras de imaginação, e não ficam por isso obrigados a atender a delicadezas e verdades, direi que a mentira tanto mais saborosa quanto mais verdadeira se afigura, e agrada tanto mais quanto mais se aproxima do possível. hão-de-se casar as fábulas mentidas com o entendimento dos que as lerem, escrevendo-se de forma que, facilitando os impossíveis, nivelando as grandezas, suspendendo os nimos, espantem, suspendam, alvorocem, e entretenham de modo que andem juntas a admiração e a alegria, e estas coisas todas não as poder fazer quem fugir da verosimilhança e da imitação, em que consiste a perfeição do que se escreve. Nunca vi um livro de cavalarias com unidade de ac o, mas compem-se de tantos membros, que mais parece que o autor quis formar uma quimera ou um monstro, do que fazer uma figura proporcionada. além disso, são duros no estilo, incríveis nas façanhas, lascivos nos amores, desjeitosos nas cortesias, prolixos nas batalhas, n scios nas razões, disparatados nas imagens, e, finalmente, alheios a todo o artifício discreto, e, por isso, dignos de serem desterrados da república crist como coisa inútil.

O cura estava-o escutando com grande aten o, e pareceu-lhe homem de bom entendimento, e que tinha razão em tudo quanto dizia; e redarguiu-lhe que, por ser do mesmo pensar e ter ódio aos livros de cavalaria, queimara todos os de D. Quixote, que eram muitos.

Contou-lhe a revista que lhes passara, e os que deitara ao lume, e os que deixara com vida, com o que muito se riu o cónego, e alegou que, apesar de ter dito mal desses livros, achava neles uma coisa boa, que era darem assunto para se poder manifestar um vivo engenho, porque tinham vasto e espaçoso campo, por onde podia correr a pena sem o mínimo obstáculo, descrevendo naufrágios, tormentas, recontros e batalhas, pintando um capítulo valoroso, com todas as partes que para isso se requerem, já estratégico prudente, prevenindo as astúcias dos seus inimigos, já eloquente orador, persuadindo ou dissuadindo os seus soldados, avisado no conselho, pronto na determinação, tão valente em esperar como em acometer; narrando, ora um sucesso trágico e lamentável, ora um acontecimento alegre e impensado; ali uma dama formosíssima, honesta, discreta e recatada; aqui um cavaleiro cristão , valente e comedido; além um bárbaro, fanfarrão e desaforado; acolá um príncipe cortês, valoroso e gentil, representando a bondade e a lealdade dos vassalos, a grandeza e a liberalidade dos senhores; ora se pode ostentar astrólogo, ora cosmógrafo excelente, ora músico, ora perito em assuntos de governo, e talvez lhe apare a ensejo de se manifestar nigromante, se quiser. Pode apresentar as astúcias de Ulisses, a piedade de Eneias, a valentia de Aquiles, as desgraças de Heitor, as traições de Sínon, a amizade de Euríalo, a liberalidade de Alexandre, o valor de César, a clemência e verdade de Trajano, a fidelidade de ópiro, a prudência de Cat o; e, finalmente, todas aquelas acções que fazem perfeito um var o ilustre, ou pondo-as num só, ou dividindo-as por muitos.

E, sendo isto feito com aprazível estilo e engenhosa inven o, que se aproxime da verdade tanto quanto for possível, há de compor sem dúvida uma fina tela, entretecida de fios formosíssimos, que, depois de acabada, se revele tão perfeita e linda, que consiga o fim melhor a que se aspira nesses escritos, que ensinar e deleitar juntamente, como já disse; porque a solta contextura destes livros dê lugar a que o autor possa mostrar-se pico, lírico, tr gico, cómico, com todas as partes que encerram em si as dulcíssimas e agrad veis ciências da poesia e da oratória - que a epopeia tanto pode escrever-se em prosa como em verso.

 

ONDE PROSSEGUE O CóNEGO NO ASSUNTO DOS LIVROS DE CAVALARIA, COM OUTRAS COISAS DIGNAS DO SEU ENGENHO

- Assim como Vossa mercê diz Senhor Cónego - acudiu o cura -, e por esse motivo são mais dignos de repreensão os que até hoje têm composto semelhantes livros, sem discrição nem respeito por arte e regras, que os podiam guiar e fazer famosos em prosa, como o são em verso os dois príncipes da poesia grega e latina.

- Eu pelo menos - redarguiu o cónego - tive certas tentações de escrever um livro de cavalaria, guardando todos os preceitos que apontei; a, , para confessar a verdade, tenho já escritas mais de cem folhas, e, para ver se correspondiam minha estima o, confiei-as a homens apaixonados por esta leitura, doutos e discretos, e a outros ignorantes, que só atendem ao gosto de ouvir disparates, e de todos obtive agradável aplauso; mas, com tudo isso, não prossegui, não só por me parecer que me ia metendo em coisas alheias minha profiss o, como por ver que maior o número dos simples de espírito, do que dos cordatos, e que, ainda que melhor ser louvado p los poucos sábios que fustigado pelos muitos néscios, não quero sujeitar-me ao confuso juízo do vulgo, que semelhantes livros. Mas o que mais me impediu de o acabar foi um argumento que tirei das comédias que hoje se representam, dizendo comigo: se as comédias da voga, tanto as de pura imaginação, como as que se fundam na história, são todas, ou a maior parte, verdadeiros disparates, e coisas que não têm pés nem cabeça, e, com tudo isso, o vulgo as ouve com gosto; e as considera e aprova como boas, estando tão longe de o ser; e os autores que as compõem e os actores que as representam, dizem que estão muito bem assim, porque assim as quer o vulgo, e não de outra maneira; e que as que seguem os preceitos da arte servem só para quatro discretos que as entendem, e todos os outros ficam em jejum, sem compreender o seu artifício; e que a eles lhes fica melhor ganhar o p o com muitos, do que fama com poucos; acontecer o mesmo ao meu livro, depois de eu ter queimado as pestanas a guardar os referidos preceitos, e virei a ser como o alfaiate do Cantillo; e, ainda que algumas vezes procurei persuadir aos actores que se enganam em seguir a opinião que seguem, e que mais gente hão-de atrair, e hão-de ganhar mais fama, representando comédias em que se não viole a arte, em vez de peças disparatadas, já tão aferrados estão ao seu parecer, que não há razão nem evidência que os demova. Lembro-me que um dia observei a um desses pertinazes: Dizei-me, não vos recordais que há poucos anos se representaram na Espanha três tragédias que compôs um famoso poeta destes reinos, que foram tais, que alegraram e suspenderam todos os que as ouviram, tanto os simples, como os entendidos, tanto os do vulgo como os da flor do público, e deram só essas três mais dinheiro aos comediantes, do que trinta das melhores que de então para cá se têm feito? - Decerto Vossa mercê se refere, tornou o actor, Isabel, Fílis e Alexandra7 - A essas mesmas, repliquei eu e vede se não guardavam perfeitamente os preceitos da arte, e se por guardá-los deixaram de parecer o que eram, e de agradar a todos; de forma que a culpa não do vulgo, que no reclama disparates, dos que não sabem representar outra coisa. não tinham disparates nem a Ingratid o Vingada, nem a Numência, nem o Mercador Amante, nem a Inimiga Favorável, nem outras que foram compostas por alguns poetas entendidos, para seu renome e fama, e para lucro dos que as representaram. E outras coisas juntei a estas, deixando-o confuso, mas não convencido nem disposto a arredar-se do seu errado pensamento.

- Tocou Vossa mercê num assunto Senhor Cónego - acudiu o cura -, que despertou em mim um antigo rancor, que tenho, contra as comédias que se usam agora, e que iguala o que voto aos livros de cavalaria, porque, devendo ser a comédia, segundo a opinião de Cícero, espelho da vida humana, exemplo dos costumes, e imagem de verdade, as que hoje se representam são espelhos de disparates, exemplos de necedades e imagens de lascívia. Pois que maior disparate pode haver no assunto de que tratamos, do que aparecer uma criança no primeiro acto envolta nas faixas infantis, e aparecer no segundo feito já homem barbado? E que maior desatino, do que pintar-nos um velho valente e um moço cobarde, um lacaio retórico, um pajem conselheiro, um rei jornaleiro e uma princesa criada de servir? E que direi do modo como observam o tempo em que podem ou podiam suceder as acções que representam, sen o que já vi comédias, em que a primeira jornada principiou na Europa, a segunda na Ásia, e a terceira acabou na África, de modo que, se houvesse quatro jornadas, a quarta findaria na América, e assim se teria passado em todas as quatro partes do mundo? E se a imita o deve serão fim principal da comédia, como possível que se satisfa a qualquer mediano entendimento com o assistir a uma ac o, que, fingindo que se passa na poca de el-rei Pepino e de Carlos Magno, apresenta ao mesmo tempo, como personagem principal, o imperador Heraclio, entrando com a cruz em Jerusalém, e, ganhando a Casa Santa como Godofredo de Bulh o, havendo infinitos anos que separam um do outro; e, fundando-se a comédia em coisas fingidas, atribuir-lhe verdades históricas, e misturar-lhe peda os de outras, acontecidas a diferentes pessoas e em diferentes eras, e isto, não com tra os verosímeis, mas com erros patentes e de todo o ponto indesculpáveis? E o pior que há ignorantes, que dizem que isto que a perfeição, e tudo o mais desacerto. E se falarmos agra das comédias divinas? Que milagres se fingem nelas! Que coisas apócrifas e mal entendidas, atribuindo-se a um santo os milagres de outro! E até nas humanas se atrevem a fazer milagres, sem mais respeito e considera o que parecer-lhes que ali ficar bem o tal milagre e tramóia, como eles chamam, para que gente ignorante pasme e concorra comédia; tudo isto em prejuízo da verdade e em menoscabo da história, e até em opróbrio dos engenhos espanhóis; porque os estrangeiros, que observam com muita pontualidade as leis da comédia, t m-nos na conta de bárbaros e ignorantes, vendo os absurdos e disparates das que fazemos. E não ser bastante desculpa para isto dizer que o principal intento que têm as repúblicas bem ordenadas, permitindo que se representem comédias, o entreter o povo com algum honesto recreio, e distraí-lo às vezes dos maus humores que soe gerar a ociosidade; e que, visto que isto se consegue com qualquer comédia, boa ou má, não há motivos para pôr leis, nem obrigar os que as compõem e representam a que as façam como deviam fazer-se, pois, como disse, com qualquer se consegue o que com elas se pretende. Ao que responderei eu, que este fim se conseguiria muito melhor, sem compara o alguma, com as comédias boas, do que com as que o não são, porque de ter ouvido a comédia engenhosa e bem ordenada, sairia o ouvinte alegre com as mentiras, ensinado com as verdades, admirado dos sucessos, discreto com as razões, avisado com os embustes, sagaz com os exemplos, irado contra o vício, e namorado da virtude; que todos estes afectos há-de despertar a boa comédia no nimo do que a escutar, por muito rústico e torpe que seja, e completamente impossível deixar de alegrar e entreter, satisfazer e contentar, a comédia que tiver todos estes predicados, muito mais do que outra que deles carecer, como pela maior parte carecem estas que ordinariamente agora se representam. E não têm culpa disto os poetas que as compõem, porque, alguns há que conhecem perfeitamente aquilo em que erram, e sabem extremadamente o que devem fazer; mas, como as comédias se transformaram em mercadoria vendidas, dizem, e dizem com razão, que os comediantes não lhas comprariam se não fossem daquele jaez; e assim o poeta procura acomodar-se ao que lhe pede o comediante que lhe há-de pagar a obra. E que isto é verdade, vê-se nas muitas e infinitas comédias que compôs um felicíssimo engenho destes reinos, com tanta gala, tanto donaire, tão elegante verso, tão boas razões, tão graves sentenças, e, finalmente, tão resplandecentes de elocução e alteza de estilo, que está o mundo cheio da sua fama; e, por querer acomodar-se ao gosto dos comediantes, não chegaram todas, como chegaram algumas, ao auge da perfeição que requerem. Outros as compõem, tanto sem olhar ao que fazem, que, depois de representadas, vêem-se os actores obrigados a fugir e ausentar-se, receosos de serem castigados, como o têm sido muitas vezes, por terem representado coisas em desabono de reis e desonra de linhagens; e todos estes inconvenientes cessariam, e muitos mais ainda que não digo, se houvesse na corte uma pessoa inteligente e discreta, que examinasse todas as comédias antes que se representassem; não só as que se fizessem na corte, mas todas as que se quisessem representar em Espanha, sem cuja aprova o, selo e firma, nenhum alcaide, nos diversos lugares, deixassem representar comédia alguma; e, desta forma, os actores teriam cuidado de enviar as comédias à corte, e com segurança poderiam representá-las, e, aqueles que as compõem, olhariam com mais cuidado e estudo para o que faziam, receosos de terem deixado passar as suas obras pelo rigoroso exame dos entendedores. E, desta forma, se fariam boas comédias, e se conseguiria felicissimamente o que nelas se pretende, tanto o entretenimento do povo, como a boa opinião dos talentos espanhóis, o interesse e a segurança dos actores, e a poupança do cuidado de os castigar. E se se encarregasse outro, ou este mesmo, de examinar os livros de cavalaria que de novo se compõem, sem dúvida poderiam aparecer alguns com a perfeição que Vossa mercê disse, enriquecendo a nossa língua com o precioso e agradável tesouro da eloquência, dando ocasião a que os livros velhos se escurecessem à luz dos novos, que se publicassem para honesto passatempo, não só dos ociosos, mas dos mais ocupados, pois não é possível que esteja continuamente o arco retesado, nem que a condição e fraqueza humana se possa sustentar sem algum lícito recreio.

Chegavam a este ponto do seu colóquio o cónego e o cura, quando, adiantandose o barbeiro, dirigiu-se a eles e disse ao cura:

- Aqui, Senhor Licenciado, estão lugar que eu disse que era bom, para que, dormindo nós a sesta, pudessem ter os bois fresco e abundante pasto.

- Parece-me bem - respondeu o cura.

E, dizendo ao cónego o que tencionava fazer, também este quis ali ficar, enlevado na vista do formosíssimo vale. E tanto para gozar essa amenidade, como para saborear a conversa o do cura, e para saber mais por miúdo as façanhas de D. Quixote, ordenou a alguns dos seus criados que fossem venda, que estava dali perto, e trouxessem para todos o que houvesse de comer, porque resolvera passar naquele lugar a sesta: ao que respondeu um dos criados, que a azêmola do repasto, que já havia de estar na estalagem, trazia provisões bastantes para não ser necessário comprar outra coisa que não fosse cevada.

- Pois, se assim - disse o cónego - levem daqui todas as cavalgaduras, e tragam a azêmola.

Enquanto isto se passava, vendo Sancho que podia falar a D. Quixote, sem ser em presença do cura e do barbeiro, que tinha por suspeitos, chegou-se à jaula onde ia seu amo, e disse-lhe:

- Senhor, para descargo da minha consciência, quero-lhe dizer o que se passa acerca do seu encantamento; e , que estes dois que aqui vêm com os rostos encobertos são o cura e o barbeiro do nosso lugar, e, supondo que tramaram levá-lo deste modo, de pura inveja que têm, por ver que Vossa mercê pratica tão famosas façanhas. Sendo assim, claro se vê que não vai encantado, mas sim embaído e logrado. E, para prova disso, lhe quero perguntar uma coisa e, se me responder como espero,

tocará com a mão neste engano, e verá que não vai encantado, mas dourado do juízo.

- Pergunta o que quiseres, Sancho meu filho - tornou D. Quixote -, que eu te satisfarei e responderei, como tu desejas; e, quanto ao que dizes desses que aí vão serem o cura e o barbeiro, nossos compatriotas e conhecidos, poderá muito bem ser que pareça que são eles mesmos; mas não creias que realmente o sejam; o que hás-de crer e entender é que, se o parecem, como dizes, será porque os que me encantaram tomaram esse aspecto, porque é fácil aos nigromantes tomarem a figura que querem, e talvez tomassem as desses nossos amigos, para te darem ensejo de pensares o que pensas, e meterem-te num labirinto de imaginações, que não conseguirias sair dele, nem que tivesses o novelo de Teseu; e também o fariam, talvez, para eu vadiar no meu entendimento, e não poder atinar de onde é que me vem este dano; porque, se por uma parte me dizes que me acompanham o cura e o barbeiro da nossa povoação, e por outra me vejo engaiolado, e de mim sei que forças humanas, não sendo sobrenaturais, não seriam bastantes para cativar-me, que queres que diga ou que pense, senão que o modo do meu encantamento excede quantos tenho lido em todas as histórias que tratam de cavaleiros andantes que foram encantados? Assim, bem podes ficar em paz e sossego, quanto a serem os que tu dizes, porque tanto são eles como eu sou turco; e pelo que toca a quereres-me perguntar alguma coisa, fala, que eu te responderei, ainda que estejas a fazer perguntas até amanhã.

- Valha-me Nosso Senhor - respondeu Sancho, dando um grande brado -, pois é possível que seja Vossa Mercê tão duro de cabeça e tão falto de miolo, que não veja que é a pura verdade o que eu digo, e que nesta sua prisão e desgraça entra mais a malícia do que o encantamento? Mas, se assim é, quero-lhe provar evidentemente que não vai encantado; senão diga-me, assim Deus o livre deste tormento, e assim se veja nos braços da minha Sra. Dulcineia, quando menos pensar...

- Acaba de esconjurar-me - tomou D. Quixote - e pergunta o que quiseres, que já te disse que te responderei com toda a pontualidade.

- Isso peço - redarguiu Sancho - e o que desejo é que me responda, sem aumentar nem tirar coisa alguma, mas com toda a verdade, como se espera que digam e hão-de dizer todos os que professam as armas, como Vossa Mercê professa, debaixo do título de cavaleiros andantes.

- Estou farto de te dizer que não mentirei em coisa alguma - respondeu D. Quixote -; vê se perguntas, que, na verdade, me fatigas com tantos rogos e precauções, Sancho.

- Digo eu que estou certo da bondade e verdade de meu amo, e assim pergunto, falando com o devido respeito, porque faz muito ao caso do nosso conto, se depois que Vossa Mercê está engaiolado e encantado, como diz, já lhe deu vontade de fazer o que ninguém pode fazer por nós, como se costuma dizer?

- Muitas vezes, Sancho, e agora mesmo a tenho; tira-me deste perigo, que já não saio limpo de todo.

 

ONDE SE TRATA DO DISCRETO COLQUIO QUE SANCHO PANÇA TEVE COM SEU AMO D. QUIXOTE

- Ah! - disse Sancho - apanhei-o; era isso o que eu desejava saber, como desejo a salvação eterna Ora venha cá, meu Senhor; pode negar o que por aí se costuma dizer vulgarmente quando uma pessoa está mal disposta: “Não sei o que tem Fulano que não come, nem bebe, nem dorme, nem responde com acerto ao que lhe perguntam, que não parece senão que está encantado?” De onde se conclui que os que não comem, nem bebem, nem dormem, nem fazem as obras naturais que eu digo, estão encantados, mas que o não está quem tem a vontade que Vossa Mercê tem agora, quem bebe quando lhe dão de beber, e come quando tem de comer, e responde a tudo o que lhe perguntam.

- Dizes a verdade, Sancho - respondeu D. Quixote -, mas eu já te disse que há muitos géneros de encantamentos, e que

pode ser que se mudasse com o tempo de uns para outros, e que se use agora fazerem os encantados tudo o que eu faço, apesar de não o fazerem dantes, de forma que, contra o uso dos tempos, no há que arguir, nem que tirar consequências. Sei e tenho para mün que estou encantado, e isto me basta para segurança da minha consciência, que ficaria sobressaltada, se eu pensasse que o não estava, e me deixasse ir nesta jaula, preguiçosa e cobarde, defraudando o amparo que poderia dar a muitos necessitados, que devem ter a estas horas extrema urgência do meu auxílio e valimento.

- Pois com tudo isso - redarguiu Sancho - entendo que, para maior sossego e satisfação, bom seria que Vossa Mercê experimentasse sair deste cárcere, que eu me obrigo a facilitar-lhe a saída até aonde eu puder, e que experimentasse montar no bom Rocinante, que também parece encantado, de melancólico e triste que vai; e, feito isto, que tentássemos de novo a sorte, a procurar mais aventuras, e, se nos não saíssemos bem, sempre seria tempo de voltar à jaula, em que prometo, à fé de bom escudeiro, encerrar-me juntamente com Vossa Mercê, se Vossa Mercê for tão desditoso, e eu tão pateta, que não consigamos o que acabo de dizer.

- Estou pronto, Sancho - redarguiu D. Quixote -, e, quando vires conjuntura de pores por obra a minha liberdade, obedecer-te-ei em tudo e por tudo; mas verás, Sancho, como te enganas, no que respeita à minha desgraça.

Nestas práticas se entretiveram o cavaleiro andante e o mal-andante escudeiro, até que chegaram aonde já os esperavam apeados o cura, o barbeiro e o cónego. Logo o carreiro tirou os bois do carro, e deixou-os andar à vontade, por aquele verde e aprazível sítio, cuja frescura era convidativa, não para as pessoas tão encantadas como D. Quixote, mas para sujeitos to avisados e discretos como o seu escudeiro, que pediu ao cura que consentisse na saída de seu amo por um instante, porque, se o não deixassem sair, não iria tão asseada a sua prisão, como requeria o decoro de tão famoso cavaleiro. Entendeu-o o cura, e disse que de muito boa vontade consentiria, se não receasse que, logo que D. Quixote se visse em liberdade, desatasse a fazer das suas, e fosse para onde nunca mais se lhe pusesse a vista em cima.

- Fico por ele - respondeu Sancho.

- E eu também - disse o cónego - e basta que ele me dê a sua palavra de cavaleiro, de se não apartar de nós, senão por nossa vontade.

- Dou - respondeu D. Quixote, que tudo estava escutando -, tanto mais, que quem está encantado, como eu estou, não tem liberdade para fazer o que quiser, porque a pessoa que o encantou, pode fazer que ele se não mova de onde está nem em três séculos, e o fará andar em polvorosa, se ele fugir.

E acrescentou que, sendo isto assim, podiam perfeitamente soltá-lo, demais a mais, sendo tanto em proveito de todos, e que, não o soltando, lhes protestava que não poderia deixar de lhes melindrar o olfacto, se eles se não desviassem.

O cónego toou-lhe as mãos, apesar de amarradas, e soltaram-no debaixo de palavra, alegrando-se ele imenso por se ver fora da jaula; e, a primeira coisa que fez foi estirar todo o corpo, e correu logo ao sítio onde estava Rocinante, e, dando-lhe duas palmadas nas ancas, disse:

- Ainda espero em Deus e na sua benta mãe, flor e espelho dos cavalos, que depressa nos havemos de ver ambos como desejamos; tu com teu amo às costas, e eu em cima de ti exercitando o ofício para que Deus me deitou ao mundo.

E, dizendo isto, apartou-se D. Quixote com Sancho para um sítio desviado, de onde voltou com mais alívio e mais desejos de pôr por obra o que o seu escudeiro ordenasse. Olhava para ele o cónego, e admirava-se de ver a estranheza de sua grande loucura e de que em tudo o que dizia mostrava ter boníssimo entendimento; perdendo as estribeiras, como já se notou, quando se falava de cavalarias. E assim, movido de compaixão, depois de se terem sentado todos na verde relva, à espera da refeição do cónego, disse-lhe este:

- E possível Senhor Fidalgo, que tanto pudesse com Vossa Mercê a insípida e ociosa leitura dos livros de cavalaria, que lhe desse volta ao miolo, chegando a imaginar que vai encantado, com outras coisas desse jaez, tão longe de serem verdadeiras, como está longe a mentira da verdade? E é possível que haja entendimento humano que suponha que houve no mundo aquela infinidade de Amadises, e tantos famosíssimos cavaleiros, tanto imperador de Trapizonda, tanto Felix de Hircânia, tanto palafrém, tanta donzela vagabunda, tantas serpes, tantos endriagos, tantos gigantes, tantas inauditas aventuras, tanto género de encantamentos, tantas batalhas, tantos recontros despropositados, tanta extravagância de trajes, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros condes, tantos anões graciosos, tanto bihete, tanto requebro, tantas mulheres valentes, e, finalmente, tantas e tão disparatadas coisas como encerram os livros de cavalaria? Eu de mim sei dizer que, quando os leio, enquanto não ponho na mente que são tudo fábulas e leviandades, algum prazer me dão; mas, quando entro na conta do que valem, bato com o melhor de todos eles na parede, e ainda os atirara ao lume se o tivesse próximo ou presente, como merecedores de tal pena, por serem falsos e embusteiros, como inventores de novas seitas e de novo modo de vida, e como quem dá ocasião a que o vulgo ignorante venha a crer e a ter por verdadeiras tantas necedades como as que eles encerram. E também tanto atrevimento têm que ousam turbar os engenhos dos fidalgos discretos e bem-nascidos, como se mostra pelo que lhe fizeram a Vossa Mercê, que o levaram a termos de ser forçoso metê-lo numa jaula, e transportá-lo sobre um carro de bois, como quem transporta de lugar para lugar algum leão ou tigre, para o mostrar por dinheiro. Eia! Sr. D. Quixote, doa-se de si próprio, e volte ao grémio da discrição, e saiba usar da muita que o Céu foi servido dar-lhe, empregando o seu felicíssimo talento noutra leitura que redunde em proveito da sua consciência e acrescentamento da sua honra. E, se ainda levado da sua natural inclinação, quiser ler livros de façanhas e de cavalarias, leia na Sagrada Escritura o dos Juizes, que ali achará verdades grandiosas e feitos tão reais como denodados. Teve Lusitânia um Viriato, Roma um César, Cartago um Aníbal, Grécia um Alexandre, Castela um conde Fernão Gonçalves, Valência um Cid, Andaluzia um Gonçalo Fernandes, Extremadura um Diogo Garcia de Paredes, Xerez um Garcia eres de Vargas, Toledo um Garcilasso, Sevilha um D. Manuel de Leão, e a lição dos seus valorosos feitos pode entreter, ensinar, deleitar e assombrar os mais altos engenhos que os lerem. Esta sim, esta é que será leitura digna do bom entendimento de Vossa Mercê, D. Quixote, Senhor meu, de que sairá erudito na história, enamorado da virtude, ensinado na bondade, melhorado nos costumes, ousado sem temeridade, prudente sem cobardia, e tudo isto para honra de Deus, proveito seu e fama da Mancha, de onde, segundo soube, tira Vossa Mercê o seu princípio e origem.

Atentissimamente esteve D. Quixote escutando as razões do cónego, e, quando viu que terminara, e depois de o ter estado contemplando por largo espaço, disse:

- Parece-me, Senhor Fidalgo, que a prática de Vossa Mercê encaminhou-se a querer-me dar a entender que não houve cavaleiros andantes no mundo, e que todos os livros de cavalaria são falsos, mentirosos, danosos e inúteis para a república, e que fiz mal em lê-los, pior em acreditá-los, e pessimamente em imitá-los, dando-me a seguir a dussima profissão de cavaleiro andante que eles ensinam, e negou, além disso, que tivesse havido no mundo Amadises de Gaula ou da Greda, e todos os outros aventurosos cavaleiros de que andam cheios os livros.

- Tal qual como Vossa Mercê vai relatando - interrompeu o cónego.

- Acrescentou também Vossa Mercê - continuou D. Quixote - que me tinham feito grande dano tais livros, porque me tinham dado volta ao juízo e metido numa jaula, e que melhor seria que eu me emendasse, mudando de leitura, e lendo outros mais verdadeiros, e que melhor deleitem e ensinem.

- Exacto - tomou o cónego.

- Pois eu - replicou D. Quixote - sustento que quem não tem juízo e quem vai encantado é Vossa Mercê, pois desatou a dizer tantas blasfémias contra uma coisa tão bem acolhida no mundo, e tida por tão verdadeira, que aquele que a negasse, como Vossa Mercê a nega, merecia a mesma pena que Vossa Mercê diz que dá aos livros, quando os lê e o enfadam; porque querer dizer que Amadis não existiu neste mundo, nem existiram todos os outros aventurosos cavaleiros de que estão cheias as histórias, será querer persuadir que o Sol não alumia, nem o gelo arrefece, nem a Terra pode connosco; pois diga-me, que engenho pode haver no mundo que persuada a outrem que não foi verdade o caso de Floripes com Guy de Borgonha, e o de Ferrabrás com a ponte de Mantible, que sucedeu no tempo de Carlos Magno? E voto a tal que é tão verdade como ser agora dia; e, se é mentira, também mentira será a existência de Heitor e de Aquiles, e dos Doze Pares de França, e do rei Artur de Inglaterra, que tem andado transformado em corvo, e a cada instante o esperam no seu reino; e também se atreverão a dizer que é mentirosa a história de Guarino Mesquinho, a da demanda do Santo Graal, e que são apócrifos os amores de Tristão e da rainha Iseu, como os de Genebra e Lançarote, apesar de existirem pessoas que quase se recordam de ter visto a Dona Quintanhona, que foi a melhor copeira de vinhos que teve a Grã-Bretanha. E é isto tão certo, que me recordo de me dizer a minha avó paterna, quando via alguma dona com reverendas toucas: “Aquela, meu neto, parece a Dona Quintanhona”; de onde concluo que ou a conheceu, ou viu algum retrato dela. Pois quem poderá negar que seja verdadeira a história de Pedro e da formosa Magalona, quando ainda hoje se vê na armaria dos reis a manivela com que se voltava o cavalo de madeira em que ia montado por esses ares o valente Pedro, e que é um pouco maior que uma lança de carreta? E junto da manivela está o selim de Babieca, e em Roncesvales está a trompa de Roldão, que é do tamanho de uma grande viga; de onde se infere que houve doze Pares, que existiu Pedro, que houve Cides, e outros cavaleiros semelhantes, destes que diz o vulgo que andam à cata de aventuras. Senão diga-me também que não é verdade ter sido cavaleiro andante o valente lusitano João de Melo, que foi a Borgonha, e combateu na cidade de Arras com o famoso Sr. de Charny, chamado Mossém Pedro; e depois na cidade de Basileia com Mossém Henrique de Ramestan, saindo de ambas as empresas vencedor e senhor de honrosa fama; e as aventuras e desafios que também tiveram em Borgonha os valentes espanhóis Pedro Barba e Gutierres Quijada (de cuja estirpe descendo por linha directa de varonia), vencendo os filhos do conde de Saint-Pol. Neguem-me também que D. Fernando Guevara fosse buscar aventuras à Alemanha onde combateu com Misser Jorge, cavaleiro da casa do duque de åustria. Digam que foram mentira as justas de Sueiro de Quinones, o do Passo; as empresas de Mossém Luís de Falces contra D. Gonçalo de Gusmão, cavaleiro castelhano, e outras muitas façanhas praticadas por cavaleiros cristãos, destes reinos e dos estrangeiros, tão autênticas e verdadeiras que, quem as negasse, careceria de razão e de bom discorrer.

Ficou admirado o cónego de ver a misturada que D. Quixote fazia de mentiras e de verdades, e por ver o conhecimento que ele tinha de todas as coisas tocantes e concernentes aos feitos dos seus cavaleiros andantes, e respondeu-lhe da seguinte maneira:

- Não posso negar, Sr. D. Quixote, que alguma coisa do que Vossa Mercê disse é verdade, especialmente no que toca aos cavaleiros andantes espanhóis; e também quero conceder que houve Doze Pares de França; mas não quero acreditar que fizessem tudo o que deles diz o arcebispo Turpin; porque a verdade é que foram cavaleiros escolhidos pêlos reis de França, a quem chamaram Pares, por serem todos iguais em valor, em fidalguia; pelo menos, a não o serem, era de razão que o fossem; e constituíam como que uma dessas Ordens religiosas que hoje se usam de Santiago ou de Calatrava, que se pressupõe que os que a professam hão-de ser ou devem ser cavaleiros valentes e bem-nascidos; e assim, como dizem agora cavaleiro de S. João ou de Alcântara, diziam naquele tempo cavaleiro da Ordem dos Doze Pares, porque foram doze iguais os que para esta religião militar se escolheram. Que existiu Cid não há dúvida, Bernardo dei Cárpio também; mas não acontece o mesmo com todas as grandes façanhas que se diz que fizeram. Quanto à manivela do conde Pedro, a que Vossa Mercê alude, e que está junto do selim de Dabieca na armaria dos reis, confesso o meu pecado, e que sou tão ignorante ou tão curto de vista que, tendo reparado no selim não dei pela manivela, apesar de ser tamanha como Vossa Mercê disse.

- Pois lá está sem dúvida alguma - redarguiu D. Quixote - e por sinal que dizem que está acautelada, para se não estragar.

- Tudo pode ser - tomou o cónego - mas, pelas ordens que recebi, não me recordo de a ter visto; porém, ainda que conceda que lá está, nem por isso me obrigo a acreditar nas histórias de tantos Amadises, nem nas de semelhante turbamulta de cavaleiros, como por aí nos contam que tem havido, nem é razão que um homem como Vossa Mercê, tão honrado e de tão boas partes, e dotado de tanto entendimento, queira dizer que são verdadeiras tais e tão estranhas loucuras, como as que estão escritas nos disparatados livros de cavalaria.

 

DAS DISCRETAS ALTERCAÇÕES QUE D. QUIXOTE E O CóNEGO TIVERAM, COM OUTROS SUCESSOS

- Boa vai ela - respondeu D. Quixote -, os livros que estão impressos com licença dos reis, e com aprovação daqueles a quem se enviam, e que com gosto geral são lidos e celebrados por grandes e pequenos, pobres e ricos, letrados e ignorantes, plebeus e cavaleiros, e, finalmente, por todo o género de pessoas de qualquer estado e condição que sejam, haviam de ser mentirosos, tendo demais a mais tanta aparência de verdade, pois nos dizem quem foram os pais e as mães, os parentes, e a pátria e a idade dos cavaleiros, e dia a dia minuciosamente as façanhas que praticaram, e o sítio onde as praticaram? Cale-se Vossa Mercê, não diga semelhante blasfémia, e creia-me, que nisto lhe aconselho o que deve fazer como discreto; senão, leia-os, e veja o prazer que a sua leitura lhe dá. Pois diga-me, há maior contentamento do que dizermos: aqui se nos mostra agora, como se o estivéssemos vendo, um grande lago a ferver em borbotões, e a nadarem nesse lago serpentes, cobras e lagartos e outros muitos animais ferozes e espantosos, e sair do meio do lago uma voz tristíssima, que diz: “Quem quer que sejas, cavaleiro, que o temeroso lago estás mirando, se queres alcançar o bem que debaixo destas negras águas se encobre, mostra o valor do teu forte peito, e arroja-te ao meio do negro e inflamado líquido; porque, se assim o não fizeres, não serás digno de ver as altas maravilhas que em si encerram e contêm os sete castelos das sete fadas, que debaixo desta negrura jazem”; e que, apenas o cavaleiro acaba de ouvir a voz, sem mais reflexões, e sem considerar o perigo a que se arrisca, e até sem despir as fortes e pesadas armas, encomendando-se a Deus e à sua dama, se arroja ao meio do refervente lago, e quando mal se precata e mal sabe aonde irá parar, se encontra no meio de uns floridos campos, que deixam os Elísios a perder de vista? Ali lhe parece que é mais transparente o céu e que o Sol brilha com mais vívida luz; oferece-se-lhe aos olhos uma aprazível floresta, composta de viçosas e frondosas árvores, que lhe alegra a vista com o seu verdor, e lhe afaga os ouvidos com o doce e não ensinado canto dos infinitos, pequenos, e matizados passarinhos, que volteiam na intrincada ramaria. Aqui descobre um arroio, cujas frescas águas, que parecem líquidos cristais, correm sobre ténues areias e brancas pedrinhas, que se assemelham a ouro em pó e a puríssimas pérolas. Acolá vê uma fonte artisticamente construída com mármore liso e pintalgado jaspe; outra mais adiante ordenada a brutesco, onde as conchinhas dos mariscos, e as retorcidas casas brancas e amarelas dos caracóis, engastadas em aparente mas bem disposta desordem, e mescladas com luzentes cristais e finíssimas esmeraldas, formam um variado lavor; de maneira que a Arte, imitando a Natureza, parece aqui vencê-la. Eis de súbito se lhe descobre um forte castelo ou um vistoso alcácer, cujas muralhas são de ouro maciço, de diamantes as ameias, e as portas de jacintos, e, finalmente, de tão admirável arquitectura, que, apesar de serem diamantes, escarbúnculos, ouro, pérolas, rubins e esmeraldas, os materiais que o formam, ainda o feito é de mais estimação; e, depois de ter visto tamanhas maravilhas, não é dobrado encanto ver sair pela porta do castelo um grande número de donzelas, cujos trajos vistosos e gentis, se eu me pusesse agora a descrevê-los como as histórias os contam, me dariam largo assunto; e vir logo a principal de entre elas tomar pela mão o ousado cavaleiro que se arrojou ao lago fervente, e levá-lo, sem dizer palavra, para dentro do rico alcácer ou castelo, e despi-lo, e banhá-lo de tépidas águas, e depois ungi-lo com as mais preciosas essências, e vestir-lhe uma camisa de finíssimo cendal, toda rescendente e perfumada, e virem outras donzelas e deitarem-lhe um manto aos ombros, manto que, pelo menos, costuma valer uma cidade? E quando em seguida nos contam, que, depois disto, o levam para outra sala, onde acha as mesas postas com tanto gosto, que ele fica suspenso e admirado? E deitarem-lhe às mãos água destilada de âmbar e de fragrantes flores? E fazerem-no sentar numa cadeira de marfim? E todas as donzelas a servirem-no, guardando maravilhoso silêncio? E trazerem-lhe tanta variedade de manjares, tão saborosamente guisados, que não sabe o apetite qual há-de escolher? E ouvir a música que soa enquanto ele come, sem imaginar de onde vem a voz e o mavioso acompanhamento? E, depois de acabada a comida e levantada a mesa, ficar o cavaleiro recostado na cadeira e talvez espalitando os dentes, como é costume, e entrar a desoras pela porta da sala outra donzela muito mais formosa do que nenhuma das primeiras, e sentar-se ao lado do cavaleiro, e começar a dar-lhe conta que castelo é aquele, e de como ela se acha ali encantada, com outras coisas que o suspendem, e enchem de admiração os que lêem a sua história? Não quero alargar-me mais nisto, pois daqui se pode coligir que qualquer parte que se leia de qualquer história de cavaleiro andante há-de causar gosto e maravilha a quem a ler; creia-me Vossa Mercê, e, como já lhe disse, leia estes livros, e verá como lhe desterram a melancolia, e lhe melhoram a condição, se acaso a tiver má. Eu de mim sei que, depois de me ter metido a cavaleiro andante, sou bravo, comedido, liberal, bem-criado, generoso, cortês, audaz, brando, paciente, sofredor de trabalhos, de prisões, de encantamentos, e ainda que há tão pouco tempo me vi metido dentro de uma jaula, como se fosse doido, espero, pelo valor do meu braço, ser dentro de poucos dias rei de algum reino, onde possa mostrar o liberal agradecimento que o meu peito encerra; que, por minha fé Senhor, está inabilitado o pobre de poder mostrar com pessoa alguma a virtude da generosidade, ainda que em sumo grau a possua, e a gratidão, que só consiste no desejo, é coisa morta, como é morta a fé sem obras. Por isso quereria que a fortuna me oferecesse depressa alguma ocasião de ser imperador, para mostrar o meu ânimo, fazendo bem aos meus amigos, especialmente a este pobre Sancho Pança, meu escudeiro, que é o melhor homem do mundo, e quereria dar-lhe um condado que há muitos dias lhe trago prometido, mas receio que não tenha habilidade para governar o seu estado.

Sancho, ouvindo estas últimas palavras, disse para seu amo:

- Trabalhe Vossa Mercê por me dar esse condado, que há tanto tempo me promete, e eu espero, e lhe juro, que me não faltará habilidade para governá-lo; e, se faltar, tenho ouvido dizer que há homens no mundo que tomam de arrendamento os estados dos senhores, e lhes dão um tanto por ano, e tratam do governo, e os senhores verdadeiros estão de perna estendida, gozando a renda que lhes dão, sem se importarem com mais nada; e é o que eu hei-de fazer, e não hei-de reparar muito na quantia, mas desisto logo de tudo, e passo a gozar da minha renda como um duque, e os outros que lá se avenham.

- Isso - disse o cónego - é bom quanto ao gozar a renda;

mas no administrar da justiça há-de intervir o senhor do estado, e aqui é que são necessários o bom juízo e a habilidade, e principalmente a boa intenção de acertar, que, se esta for errada nos princípios, irão sempre errados os meios e os fins; e assim costuma Deus ajudar o bom desejo do simples e desfavorecer o mau do discreto.

- Não sei lá dessas filosofias - respondeu Sancho Pança - mas o que sei é que, assim que apanhasse o condado, logo o saberia reger, que eu tenho tanta alma como outro qualquer, e tanto corpo como quem o tiver maior, e tão rei seria eu do meu estado como cada qual do seu, e sendo-o faria o que quisesse, e fazendo o que quisesse faria a minha vontade, e fazendo a minha vontade estaria contente, e uma pessoa, em estando contente, não tem mais que desejar, e não tendo mais que desejar, acabou-se, e venha o estado, e adeus, e vejamo-nos, como dizia um cego a outro.

- Não são más filosoas essas como tu dizes, Sancho - observou o cónego -, mas, apesar de tudo, há muito que dizer nesse assunto de condados.

- Não sei que mais haja que dizer - replicou D. Quixote -; só me guio por muitos e diversos exemplos que poderia trazer, a propósito disto, de cavaleiros da minha profissão, que, correspondendo aos leais e assinalados serviços que dos seus escudeiros tinham recebido, lhes outorgaram notáveis mercês, fazendo-os senhores absolutos de cidades e ilhas; e houve tal que chegaram a tanto os seus merecimentos, que teve ideias de se fazer rei. Mas para que estou eu a gastar tempo com isto, oferecendo-me tão insigne exemplo o grande e nunca bem louvado Amadis de Gaula, que fez o seu escudeiro conde da ilha Firme, e assim posso eu, sem escrúpulo de consciência, fazer conde a Sancho Pança, que é um dos melhores escudeiros que nunca teve um cavaleiro andante?

Ficou admirado o cónego dos acertados disparates (se em disparates pode haver acerto) que D. Quixote dissera, do modo como pintara a aventura do cavaleiro do lago, da impressão que lhe tinham feito as desvariadas fábulas dos livros que lera, e, finalmente, pasmava da necedade de Sancho que, com tanto afinco desejava alcançar o condado que seu amo lhe prometera. Já nisto voltavam os criados do cónego, que tinham ido à venda buscar a azêmola do repasto, e, fazendo mesa de um tabuleiro da verde relva do prado, sentaram-se à sombra de umas árvores, e jantaram ali, para que o carreiro não desaproveitasse a amenidade daquele sítio, como já fica dito. E, mal começaram a jantar, ouviram barulho, e o som de uma campainha, que vibrava de dentro de umas sarças e densas matas que cavam perto, e no mesmo instante viram sair da espessura uma cabra, malhada de negro, branco e pardo; e atrás dela vinha um cabreiro, dando-lhe brados, e dizendo-lhe palavras meigas, para que se detivesse ou voltasse para o rebanho. A cabra fugitiva, temerosa e espavorida, veio para a gente que ali estava, como a pedir-lhe favor, e parou. Chegou o cabreiro, e, agarrando-lhe nas pontas, como se ela fosse capaz de entendimento e de discorrer, disse-lhe:

-Ah! serrana, serrana; malhada, malhada; porque foges tu? Que lobos te espantam, filha? Não me dirás que e isto, linda? Mas que pode ser, senão que és fêmea, e não podes estar sossegada? Mal haja a tua condição e a de todas aquelas a quem imitas. Volta, volta, amiga, que, se não estiveres tão satisfeita, pelo menos estarás segura no teu aprisco ou com as tuas companheiras, que, se tu, que as hás-de guiar e encaminhar, andas tão desencaminhada e tão sem juízo, onde pararão elas?

Deram contentamento as palavras do cabreiro aos que as ouviram, especialmente ao cónego, que lhe disse:

- Sossegai um pouco, irmão, por vida vossa, e não vos azafameis a fazer voltar tão depressa a cabra para o rebanho, que, se ela é fêmea, como dizeis, há-de seguir o seu natural instinto, por muito que vos ponhais a estorvá-la. Tomai este bocado, e bebei uma vez de vinho, com que abrandareis a cólera, e, entretanto, a cabra descansará.

E, ao dizer isto, estendeu-lhe na faca uma perna de coelho. O homem recebeu-a, agradeceu, bebeu, sossegou e disse:

- Não queria que, por eu ter falado tanto a sério com este animal, me tivessem Vossas Mercês por homem parvo, que em verdade não deixam de ter o seu mistério as palavras que lhe eu disse. Sou rústico, mas não tanto que não entenda como se há-de tratar com os homens e com os brutos.

- Isso acredito eu - disse o cura - que já sei, por experiência, que os montes criam letrados, e que as cabanas dos pastores encerram filósofos.

- Pelo menos Senhor - acudiu o cabreiro -, acolhem homens escarmentados; e, para que acrediteis esta verdade, e lhe toqueis com a mão, ainda que pareça que, sem ser rogado, me convido, se vos não enfadais, e quereis Senhores, atender-me um breve espaço, contar-vos-ei uma verdade que prove a minha, e o que aquele senhor disse (apontando para o cura).

E a isto respondeu D. Quixote:

- Como vejo que este caso tem umas sombras de aventura de cavalaria, eu, pela minha parte, vos ouvirei, irmão, com muito boa vontade, e da mesma forma todos estes Senhores, pelo muito

que têm de discretos, e de serem amigos de curiosas novidades, que suspendam, alegrem, e entretenham os sentidos, como penso, sem dúvida, que há-de fazer o vosso conto.

- Eu ponho-me de fora - disse Sancho - que vou com esta empada para a beira daquele regato, onde tenciono fartar-me por três dias, porque tenho ouvido dizer ao meu Sr. D. Quixote que um escudeiro de cavaleiro andante deve comer quando se lhe oferecer ocasião, até não poder mais, porque, às vezes, tem de se meter por uma selva tão intrincada, que não podem sair dela nem em seis dias, e se um homem não vai farto, ou de alforges bem fornecidos, ali poderá ficar, como muitas vezes fica, mudado em esqueleto.

- Tens razão, Sancho - disse D. Quixote -, vai aonde quiseres, e come o que puderes, que eu já estou satisfeito, e só me falta dar à alma a sua refeição, como lha darei, escutando o conto deste bom homem.

- E o mesmo faremos nós - disse o cónego. E logo pediu ao cabreiro que principiasse. O cabreiro deu duas palmadas no lombo da cabra, que segurava pêlos chifres, dizendo-lhe:

- Recosta-te junto de mim, malhada, que temos tempo de sobra.

Parece que a cabra o entendeu, porque apenas ele se sentou, estirou-se-lhe ao lado, com muito sossego, e, olhando-lhe para a cara, parecia estar atenta ao que ia dizendo o cabreiro, que principiou a sua história desta maneira:

 

QUE TRATA DO QUE CONTOU O CABREIRO A TODOS OS QUE LEVAVAM D. QUIXOTE

- A três léguas deste vale fica uma aldeia, que, apesar de pequena, é uma das mais ricas que há por todos estes contornos, e onde havia um lavrador muito estimado, e tanto que, apesar de andar a estimação quase sempre anexa à riqueza, mais

o era ele pela virtude que tinha, que pela opulência que alcançara. Mas o que o fazia mais ditoso, segundo dizia, era ter uma filha de tão estremada formosura, rara discrição, donaire e virtude, que aquele que a conhecia e contemplava se admirava de ver os dons opimos com que o Céu e a Natureza a tinham enriquecido. Sendo menina, já era formosa, e sempre fo crescendo em beleza, até que, na idade de dezasseis anos, chegou a ser formosíssima, A fama do seu gentil aspecto principiou-se a estender por todas as aldeias circunvizinhas: que digo? Mais ainda, chegou às remotas cidades, e entrou até pelas salas dos reis, e pêlos ouvidos de toda a casta de gente, que de todas as partes a vinham ver como coisa rara ou como imagem maravilhosa. Guardava-a seu pai, e guardava-se ela a si, que não há cadeados, guardas, nem fechaduras, que defendam melhor uma donzea, que as do próprio recato. A riqueza do pai e a formosura da filha moveram muitos, tanto da povoaço como forasteiros, a que a pedissem em casamento; mas o pai, como pessoa a quem tocava dispor de tão rica jóia, andava confuso, sem saber resolver-se a qual a entregaria dos infinitos que o importunavam; e, entre os muitos que tão bom desejo tinham, um fui eu, a quem deram muitas e grandes esperanças de bom êxito, o ver que o pai sabia quem eu era, o ser natural da mesma aldeia, de sangue limpo e de idade florescente, de cabedais avultados, e dotado de certo engenho. Com estas mesmas partes a pediu também outro do mesmo lugar, que foi causa de se suspender e hesitar a vontade do pai, a quem parecia que em qualquer de nós estava sua filha bem empregada; e, para sair desta confusão, resolveu dizê-lo a Leandra (assim se chama a opulenta, que em tanta miséria me tem posto), advertindo que, visto sermos ambos guais, era bom deixar à vontade de sua querida filha o escolher a seu gosto; coisa digna de ser imitada por todos os pais que querem casar suas filhas. Não digo que lhes deixem escolher pessoas más e ruins, mas que lhas proponham boas, e entre essas que escolham a seu gosto. Não sei qual foi o de Leandra; só sei que o pai nos foi entretendo a ambos, falando-nos na pouca idade de sua filha e com generalidades, que nem o obrigavam, nem nos desobrigavam a nós. Chama-se o meu competidor Anselmo, e eu chamo-me Eugênio, e digo-vos isto para que tenhais conhecimento dos nomes das personagens que entram nesta tragédia, cujo fim ainda está pendente, mas que bem se deixa ver que há-de ser desastroso. Por este tempo, veio ao nosso pvoado um tal Vicente de Ia Rosa, filho de um pobre lavrador do mesmo lugar, e que estivera servindo como soldado por essas Itálias e outras várias partes. Levou-o da nossa terra, sendo criança de menos de doze anos um capitão que, com a sua companhia, por ali passou, e voltou o moço dali a outros doze anos, vestido à militar, matizado de mil cores, cheio de mil dixes de cristal e subtis cadeias de aço. Hoje punha uma gala e amanhã outra; mas todas falsas e leves, de pouco peso e menor valor. A gente lavradora, que é de si maliciosa, e, dando-lhe o ócio lugar, é a própria malícia, reparou nisso, contou minuciosamente as suas galas e donaires, e notou que os fatos eram só três, de cores diferentes, com as suas ligas e meias, mas ele por tal forma os combinava, que, se os não contassem, havia de haver quem jurasse que eram mais de dez trajes diversos, e mais de vinte plumas, e não pareça impertinência e prolixidade isto que dos vestuários narrei, porque representam grande papel nesta história. Sentava-se num banco de pedra, que ca debaixo de um grande álamo, na nossa praça, e ali nos tinha todos de boca aberta, suspensos das façanhas que ia contando. Não havia terra em todo o orbe que não tivesse visto, nem batalha em que se não houvesse achado; matara mais mouros do que há em Marrocos e em Tunes, e entrara em mais duelos do que Luna e Gand, Diogo Garcia de Paredes, e outros mil que nomeava, e de todos saíra vencedor, sem que lhe houvessem tirado nem uma gota de sangue. Por outro lado, mostrava cicatrizes, que, apesar de se não descobrirem, dizia ele que eram de arcabuzadas recebidas em vários recontros e acções. Finalmente, com arrogância nunca vista, tratava por vós os seus iguais e os próprios que o conheciam, e dizia que o seu pai era o seu braço, a sua linhagem as suas obras, e que, sendo soldado, não ficava a dever nada ao próprio rei. Além destas fumaças, era um pouco músico, tocava guitarra com desembaraço, de modo que diziam alguns que a fazia falar; mas não paravam aqui as suas prendas, que também era poeta, e de qualquer puerilidade fazia um romance de légua e mea. Este soldado, pois, que eu aqui pintei este Vicente de Ia Rosa este bravo, este galã, este músico, este poeta, foi visto e contemplado muitas vezes por Leandra, de uma janela que deitava para a praça. Enlevou-se no donzel, nos seus vistosos trajes; encantaram-na os seus romances, que de cada um que compunha, dava ele mil cópias; chegaram aos seus ouvidos as façanhas que de si próprio referira; e, finalmente, que assim o Diabo o determinara veio a namorar-se dele e ainda antes de ele pensar em solicitá-la. E como nos casos de amor no há nenhum que com mais facilidade se cumpra, do que aquele que tem pela sua parte o desejo da dama, com facilidade se combinaram Leandra e Vicente; e, antes que nenhum dos seus muitos pretendentes desse notícia do seu desejo, já ela o cumprira, tendo deixado a casa de seu extremoso pai, porque era órfã de mãe, e, ausentando-se da aldeia com o soldado que mais triunfara nesta empresa do que em todas as outras muitas de que se vangloriava. Admirou-se toda a aldeia de tão estranho caso, e não só a aldeia, mas todos os que dele tiveram conhecimento; eu quei suspenso, Anselmo atónito, o pai triste, os parentes afrontados, a justiça solícita, os quadrilheiros alerta; tomaram-se os caminhos esquadrinharamse os bosques e tudo quanto havia, e, ao cabo de três dias, foram encontrar Leandra numa caverna de um monte, em camisa, sem os muitos dinheiros e as preciosíssimas jóias que de sua casa levara. Trouxeram-na à presença do aflito pai perguntaram-lhe pela sua desgraça, confessou, sem pressão, que Vicente de Ia Rosa a enganara, e debaixo da palavra de ser seu esposo, lhe persuadiu que deixasse a casa de seu pai, que ele a levaria à mais rica e esplêndida cidade que havia no mundo, que era Nápoles; que ela, mal-avisada e ainda pior enganada, o acreditara e, roubando seu pai, fugiu com o fanfarrão; e que ele a levou a um áspero monte, e a encerrou na caverna em que a tinham achado. Também disse que Vicente, sem lhe tirar a sua honra, lhe roubou tudo quanto tinha, e a deixou naquela caverna e se foi embora: sucesso que de novo causou espanto a todos. Difícil foi de acreditar a continência do moço; mas ela tão deveras o afirmou, que, afinal, o aflito pai se foi consolando, não fazendo caso das riquezas que lhe levaram, desde o momento que tinham deixado a sua filha, a jóia, que, em se perdendo, não há esperança de que nunca mais se recupere. No mesmo dia em que apareceu Leandra, sumiu-a seu pai, e foi encerrá-la num mosteiro de uma vila aqui perto, esperando que o tempo em parte desfaça a má fama com que sua filha ficou. Os poucos anos de Leandra serviram de desculpa ao seu erro, pelo menos para aqueles que nenhum interesse tinham em que ela fosse má ou boa, mas os que conheciam a sua discrição e muito entendimento não atribuíram a ignorância ao seu pecado, mas à sua desenvoltura e natural inclinação das mulheres, que costuma ser em geral desatinada e descomposta. Enclausurada Leandra, ficaram cegos os olhos de Anselmo, ou pelo menos sem terem objecto que mirar que lhes desse contentamento; os meus em trevas, sem luz que para coisa de gosto os encaminhasse. Com a ausência de Leandra, crescia a nossa tristeza, apoucava-se a nossa paciência, maldizíamos das galas do soldado, e abominávamos o pouco recato do pai da donzela. Finalmente, Anselmo e eu combinámos deixar a aldeia, e vir para este vale, onde ele, apascentando uma grande quantidade de ovelhas que lhe pertencem, e eu um numeroso rebanho de cabras também minhas, passamos a vida entre as árvores, desabafando as nossas mágoas, ou cantando juntos, ora os louvores, ora os vitupérios da formosa Leandra, ou suspirando a sós, comunicando ao Céu sentidas queixas. A nosso exemplo, vieram para estes ásperos montes muitos outros dos pretendentes de Leandra, fazendo o mesmo que nós fazemos, e são tantos, que parece que este sítio se converteu na pastoril Arcádia, por tal forma está cheio de pastores e de apriscos, e não há aqui um recanto em que se não ouça o nome da formosa Leandra. Este a maldiz, chamando-lhe caprichosa, vária e desonesta; aquele a condena como leviana e fácil; há tal que a absolve e lhe perdoa, ou que a justica e vitupera; um celebra a sua formosura, outro renega da sua condição, e, enfim, todos a infamam e todos a adoram, e essa loucura a tanto se estende, que há quem se queixe dos seus desdéns, sem nunca lhe ter falado, e até quem se lamente e sinta a furiosa enfermidade dos zelos, que ela nunca a ninguém causou porque, segundo eu já disse, soube-se do ;

seu pecado, antes de se saber do seu desejo. Não há concavidades de rochedos, margens de arroio, ou sombras de árvores que não esteam ocupadas por pastores que refiram aos ventos as suas desventuras; o eco, em todos os pontos em que pode formar-se, repete o nome de Leandra; Leandra, ressoam os montes; Leandra, mumuram os regatos, e Leandra a todos nos tem suspensos e encantados, esperando sem esperança, e temendo sem saber o que tememos. Entre todos estes insensatos, o que se mostra a um tempo mais avisado e mais louco é o meu rival Anselmo, que, tendo tantas outras coisas de que se queixar, só se queixa de ausência, e, ao som de um arrabil, que toca admiravelmente, com versos que mostram o seu engenho, a cantar se vai lamentando. Eu sigo outro caminho mais fácil e no meu parecer mais acertado, que é dizer mal da leviandade das mulheres, da sua inconstância, da sua dobiez, das suas promessas descumpridas, de sua fé quebrantada, e, finalmente do pouco discorrer com que empregam os seus pensamentos e inclinações; e foi este o motivo Senhores, das palavras e raões que disse a esta cabra, quando aqui cheguei, que, por ser fêmea, pouco a prezo, apesar de ser a melhor do meu rebanho. É esta a histria que prometi contar-vos. Se fui prolixo em narrá-la, não o serei menos em servir-vos; perto daqui tenho a minha choça, e nela fresco leite e saborosssimo queijo, variadas e maduras frutas que não são menos agradáveis à vista que ao paladar.

 

DA ENDÊNCIA QUE TEVE D. QUIXOTE COM O CABREIRO, COM A RARA AVENTURA DOS PENITENTES, A QUE FELIZMENTE DEU FIM À CUSTA DO SEU SUOR

Causou prazer geral o conto do cabreiro a todos os que o tinham escutado. Com prazer mais especial o acolheu o cónego, que notou com estranheza e curiosidade o modo como ele o contara, menos de cabreiro rústico, do que de discreto cortesão; e observou que acertara o cura dizendo que os montes criavam letrados. Todos ofereceram os seus serviços a Eugênio, mas quem se mostrou mais liberal foi D. Quixote, que lhe disse:

- Decerto, cabrero mano, que, se eu me não achasse impossibilitado de poder encetar qualquer aventura, logo me poria a caminho para vos fazer feliz, indo arrancar Leandra do mosteiro (onde, sem dúvida, deve estar contra sua vontade), apesar da abadessa e de quantos quisessem estorvá-lo, e pô-laia nas vossas mãos, para que dela fizésseis o que vos aprouvesse, guardando, porém, as leis da cavalaria, que ordenam que a nenhuma donzela se faça desaguisado algum, ainda que espero em Deus Nosso Senhor que não há-de poder tanto a força de um malicioso nigromante, que a não vença a de outro muito melhor intencionado, e, para então, vos prometo favor e ajuda, que a isso me obriga a minha profissão, que não é outra senão socorrer os desvalidos e necessitados.

Olhou para ele o cabreiro, e vendo a triste figura de D. Quixote, admirou-se, e perguntou ao barbeiro que estava ao pé dele:

- Senhor, quem é este homem, que tem semelhante catadura e de tal modo fala?

- Quem há-de ser - respondeu o barbeiro - senão o famoso D. Quixote de La Mancha, que desfaz agravos, e é o amparo das donzelas, o assombro dos gigantes, e o vencedor das batalhas?

- Isso assemelha-se - respondeu o cabreiro - ao que se lê nos livros dos cavaleiros andantes, que faziam tudo o que deste homem Vossa Mercê me diz, ainda que tenho para mim, ou que Vossa Mercê zomba, ou que este fidalgo tem aduela de menos.

- Sois um grandíssmo velhaco - bradou D. Quixote - e vós é que tendes míngua de miolos, que eu tenho mais do que nunca teve nem há-de ter a vossa patifa geração.

E, faendo seguir às paavras as obras, ferrou com um pão na cara do cabreiro, com tamanha fúria, que lhe esmurrou o nariz; mas o homem, que não era para graças, vendo que assim o maltratavam sem respeitar nem os que jantavam nem a improvisada mesa, saltou em cima de D. Quixote, e, agarrando-se-lhe ao pescoço com ambas as mãos, sem dúvida alguma o afogava, se Sancho Pança, acudindo, o não segurasse pêlos ombros e o não fizesse cair de costas em cima da mesa, quebrando pratos e copos, e espalhando e entornando vinhos e manjares. D. Quixote apenas se viu livre, saltou no cabreiro que, com o rosto cheio de sangue, moído com socos e pontapés de Sancho, procurava, de gatinhas, alguma faca para tirar sanguinolenta vingança; mas estorvaram-lho o cónego e o cura, e o barbeiro arranjou as coisas de modo que pôde Eugênio meter D. Quixote debaixo de si, fazendo chover sobre ele tantos murros, que, do rosto do pobre cavaleiro pingava tanto sangue como do seu. Rebentavam de riso o cónego e o cura, davam pulos de contentamento os quadrilheiros, e uns e outros açulavam os combatentes, como se faz aos cães; só Sancho Pança se desesperava, porque se não podia descartar de um criado do cónego que o impedia de ajudar seu amo.

Enfim, estando todos em regozijo e festa, menos os dois que se desancavam e se carpiam, ouviram o som de uma trombeta tão triste, que lhes fez voltar as vistas para o sítio de onde lhes pareceu que soava; mas, quem se alvoroçou ao ouvi-lo foi D. Quixote que apesar de estar debaixo do cabreiro muito constrangido e derreado lhe disse:

- Demónio mano, que outra coisa não podes ser, pois que tiveste valor e forças para subjugar as minhas, rogo-te que façamos tréguas só por uma hora, porque o plangente som daquela trombeta, que aos nossos ouvidos chega, parece-me que me chama a alguma nova aventura.

O cabreiro, que já estava cansado de moer e de ser moído largou-o logo, e D. Quixote pôs-se de pé voltando o rosto para o sítio de onde vinha o som, e viu que por uma encosta desciam muitos homens, vestidos de branco e negro, à moda dos penitentes. E era o caso que, naquele ano, tinham as nuvens negado à terra o seu benfazejo orvalho, e por todos os lugares daquela comarca se faziam procissões, preces e penitências, pedindo a Deus que abrisse as mãos da Sua misericórdia e lhes desse chuvá; e, para isso, a gente da próxima aldeia vinha em procissão a uma devota ermida, que havia na encosta do vale.

  1. Quixote, que viu os estranhos trajes dos penitentes, sem lhe passarem pela memória as muitas vezes que os havia de ter visto, maginou que era coisa de aventura, e que a ele só tocava, como a cavaleiro andante, o tentá-la; e mais o confirmou nesta fantasia pensar que uma imagem que traziam, coberta de luto, seria alguma dama principal, que levavam à viva força aqueles refeces e desleais malandrins. E, apenas isto lhe entrou no pensamento, arremeteu com grande ligeireza a Rocinante, que andava pastando, enfreou-o num momento, montou a cavalo, embraçou o escudo, pediu a Sancho a espada, e disse em voz alta a todos os que estavam presentes:

- Agora, valorosa companhia, vereis quanto importa que haja no mundo quem professe a ordem da cavalaria andante; agora digo que vereis na liberdade daquela boa senhora que ali vai cativa, se se hão-de ou não estimar os andantes cavaleiros.

E, dizendo isto, aperta os ilhais a Rocinante, que esporas não as tinha, e vai a todo o trote (porque lá galopada não se lê em toda esta verdadeira história que Rocinante a desse uma vez só) encontrar-se com os penitentes; e ainda que o cura, o barbeiro e o cónego correram a detê-lo, já lhes não foi possível, e menos ainda o detiveram os brados que Sancho dava, dizendo:

- Aonde vai, Sr. D. Quixote? Que demónios leva no peito, que o incitam a ir contra a nossa fé católca? Repare, mal haja eu, que essa procissão é de penitentes, e que aquela senhora que levam na peanha é a imagem bendita de Virgem Imaculada; veja o que faz Senhor, que desta vez se pode dizer que não é o que sabe.

Debalde se fatigou Sancho, porque D. Quixote ia tão ansioso de chegar aos embiocados, e de livrar a senhora enlutada, que não ouviu uma palavra só, e ainda que a ouvisse, de nada serviria, porque não tornava atrás nem que lho mandasse elrei. Chegou, pois, à procissão, e sofreou Rocinante, que já ia com vontade de descansar o seu pedaço, e com voz turbada e rouca disse:

- Vós outros, que talvez por não serdes bons, encobris os rostos, atendei e escutai o que dizer-vos quero.

Os primeiros que se detiveram foram os que levavam a imagem, e um dos quatro clérigos que cantavam as ladainhas, vendo a estranha catadura de D. Quixote, a magreza de Rocinante, e outras circunstâncias que descobriu no cavaleiro, e que moviam a riso, respondeu dizendo:

- Irmão e Senhor, se nos quer dizer alguma coisa diga-a depressa, porque vão estes nossos irmãos penitentes flagelando as carnes, e não podemos, nem é de razão, que nos detenhamos a ouvir coisa alguma, a não ser tão breve que em duas palavras se diga.

- Di-la-ei numa só - replicou D. Quixote - e é a seguinte: que deixeis livre imediatamente essa formosa senhora, cujas lágrimas e triste semblante dão claras mostras de que a levais contra sua vontade, e que algum notório desaguisado lhe tereis feito; e eu, que vim ao mundo para desfazer semelhantes agravos, não consentirei que avanceis nem mais um passo, sem lhe dardes a desejada liberdade que merece.

Por estas razões, entenderam todos os que as ouviram que D. Quixote havia de ser louco, e desataram a rir com vontade. Esse riso foi o mesmo que deitar pólvora na cólera de D. Quixote, porque, sem dizer mais palavra, arrancando da espada, arremeteu ao andor.

Um dos que o levavam, deixando a carga aos seus companheiros, saiu ao encontro de D. Quixote, arvorando uma forquilha ou bordão, em que assentava o andor nos descansos, e, aparando com ele uma grande cutilada que lhe atirou D. Quixote, e que lho fez em dois pedaços, com o troço que lhe ficou desfechou tamanha bordoada no ombro de D. Quixote do lado oposto ao do escudo, que, não podendo apará-la, o pobre cavaleiro caiu no chão em muito maus lençóis.

Sancho Pança, que todo esbofado viera correndo atrás de seu amo, bradou ao desancador que lhe não desse mais bordoada, porque era um pobre cavaleiro encantado, que nunca na sua vida fizera mal a ninguém. Mas o que deteve o vilão não foram os brados de Sancho, foi ver que D. Quixote não bulia nem mão nem pé; e, assim, julgando que o matara, a toda a pressa arregaçou a túnica até à cintura, e largou a correr pela campina, que nem um gamo. Nisto, chegaram todos os da companhia de D. Quixote; mas os da procissão, que os viram vir correndo, e, com eles, os quadrilheiros armados, recearam algum desatino, agruparam-se em torno da imagem, e, levantando os capuzes, empunhando os penitentes as disciplinas, e os clérigos os tocheiros, esperaram o assalto, resolvidos a defender-se, e até, se pudessem, a ofender os seus agressores; mas a fortuna tudo fez pelo melhor, porque Sancho não pensou em outra coisa senão em atirar-se para cima do corpo de seu amo, supondo que estava morto, e fazendo sobre ele o mais doloroso e divertido pranto deste mundo.

O cura foi conhecido pelo seu colega, que ia na procissão, e este conhecimento bastou para dissipar todos os sustos. O primeiro cura deu conta ao segundo, em breves palavras, de quem era D. Quixote; e tanto ele, como toda a turba de penitentes, foram ver se o pobre cavaleiro estava morto, e ouviram que Sancho Pança dizia com as lágrimas nos olhos:

- Ó flor da cavalaria! Que só com uma paulada acabaste a carreira dos teus anos, tão bem empregados! Ó honra da tua linhagem, glória e maravilha da Mancha, e até de todo o mundo, que, faltando-lhe tu, ficará cheio de malfeitores, sem receio de serem castigados pelas suas malfeitorias! Ó tu, mais liberal que todos os Alexandres, pois só por oito meses de serviço me tinhas dado a melhor ilha que o mar cinge e rodeia! Ó humilde com os soberbos, e arrogante com os humildes, afrontador de perigos, sofredor de injúrias, namorado sem causa, incitador dos bons, açoite dos maus, inimigo dos ruins, enfim, cavaleiro andante, que é o mais que se pode dizer!

Com os brados e gemidos de Sancho, reanimou-se D. Quixote, e as primeiras palavras que disse, foram:

- Quem de vós está ausente, dulcíssima Dulcineia, a maiores misérias do que estas anda sujeito. Ajuda-me, Sancho amigo, a meter-me no carro do encantamento/ que não estou para oprimir a sela de Rocinante, porque tenho este ombro todo alanhado.

- Isso farei com muito boa vontade, meu Senhor - respondeu Sancho -, e voltemos à minha aldeia, em companhia destes Senhores, que só desejam o seu bem, e ali daremos ordem a nova saída, que nos dê mais proveito e fama.

- Falas com acerto, Sancho - respondeu D. Quixote -, e será grande prudência deixar passar o mau influxo das estrelas, que vai correndo agora.

O cónego, o cura e o barbeiro afirmaram-lhe que procederia muito bem fazendo o que dizia; e assim, tendo-se divertido muito com as simplicidades de Sancho Pança, meteram D. Quixote no carro, como antes vinha; a procissão voltou a ordenar-se e a prosseguir no seu caminho; o cabreiro despediu-se de todos; os quadrilheiros não quiseram ir mais adiante; o cónego pediu ao cura que lhe desse parte do que sucedia a D. Quixote, se sarava da sua doidice, ou se prosseguia com ela, e com isso pediu licença de seguir a sua viagem.

Enfim, todos se dividiram e apartaram, ficando só o cura e o barbeiro, e D. Quixote e Sancho Pança e o bom do Rocinante, que, em tudo isto, não mostrara menos paciência do que o seu dono. O carreiro jungiu os bois, e acomodou D. Quixote em cima de um molho de feno, e, com a sua costumada fleuma, seguiu o caminho que o cura quis, e ao cabo de seis jornadas chegaram à sua aldeia, onde entraram no pino do dia, que aconteceu ser domingo, e estava toda a gente na praça, por meio da qual atravessou o carro de D. Quixote. Acudiram todos a ver o que ali vinha, e, quando conheceram o seu compatriota, ficaram maravilhados, e um rapaz foi logo correndo dar à ama e à sobrinha a notícia de que o seu tio e patrão vinha magro e amarelo, em cima de um molho de feno, dentro de um carro de bois. Foi grande lástima ouvir os gritos que as duas pobres senhoras soltaram, as bofetadas que deram nas faces, e as maldições com que de novo fulminaram os endiabrados livros de cavalaria, o que tudo se renovou quando viram entrar D. Quixote pela porta dentro. Às novas da vinda do fidalgo, acudiu a mulher de Sancho Pança que já sabia que seu marido fora com ele servindo-lhe de escudeiro, e, assim que viu Sancho, a primeira coisa que lhe perguntou foi se o burro vinha bom. Sancho respondeu que vinha melhor que o dono.

- Louvado seja Deus - redarguiu ela - que tanto bem me tem feito; mas conta-me agora, que lucraste com as tuas escudeirices? Que saiote me trazes? Que sapatos para teus filhos?

- Não trago nada disso, mulher - disse Sancho -, mas trago coisas de mais considerações e valor.

- Muito me apraz o que dizes - tomou a mulher -; mostra-me essas coisas de mais consideração e valor, para que se me alegre este coração, que tão triste e desconsolado esteve sempre durante os séculos da tua ausência.

- Em casa tas mostro, mulher - disse Pança -, e por agora sossega, que, sendo Deus servido que outra vez saiamos de viagem, à cata de aventuras, ver-me-ás bem depressa conde, ou governador de uma ilha, e não das que por aí há, mas das melhores que se possam encontrar.

- Deus o queira marido, que bem o precisamos. Mas diz-me o que vem a ser isso de ilhas, que eu não entendo.

- Não é o mel para a boca do asno - respondeu Sancho - a seu tempo o verás, mulher, e então pasmarás de ouvir todos os teus vassalos a darem-te senhoria.

- Que é o que dizes, Sancho, de senhorias, ilhas e vassalos? - respondeu Joana Pança, que assim se chamava a mulher de Sancho, apesar de não serem parentes, mas porque é costume na Mancha tomarem as mulheres o apelido dos maridos.

- Não queiras saber tudo tão depressa, Joana; basta conheceres que eu digo a verdade, e dá um ponto na boca: só te direi, assim de passagem, que não há coisa mais saborosa neste mundo do que ser um homem honrado, escudeiro de um cavaleiro andante, que sai à cata de aventuras. E bem verdade que a maior parte das que se acham não vêm tanto ao nosso gosto, como uma pessoa quereria, porque, de cem que se encontram, noventa e nove costumam ser avessas e torcidas. Sei-o eu por experiência, porque de algumas saí manteado, e de outras moído; mas, com tudo isso, é linda coisa esperar os acontecimentos, atravessando montes, esquadrinhando selvas, calcando penhas, visitando castelos, pousando em estalagens, à discrição, sem pagar um maravedi só que seja.

Todas estas práticas se passaram entre Sancho Pança e Joana Pança, sua mulher, enquanto a ama e a sobrinha de D. Quixote o receberam, e o despiram, e o meteram na sua antiga cama. Olhava-as ele de revés, e não podia perceber onde é que estava. O cura disse à sobrinha que tivesse todo o desvelo com seu tio, e o amimasse bem e que estivessem alerta para que outra vez se lhes não escapasse contando o que fora mister para o trazer para casa. Aqui levantaram ambas de novo brados ao Céu ali se renovaram as maldições aos livros de cavalaria, ali pediram a Deus que confundisse, no centro do abismo, os autores de tantas mentiras e disparates. Finalmente, ficaram confusas e receosas de se verem outra vez sem seu amo e tio, assim que ele se sentisse melhor, e assim aconteceu como elas imaginavam.

Mas o autor desta história, apesar de ter procurado com diligência e curiosidade os feitos que praticou D. Quixote na sua terceira saída, não pôde achar notícia deles, pelo menos por escritores autênticos; só a fama guardou, nas memórias da Mancha, que D. Quixote, a terceira vez que saiu de sua casa, foi a Saragoça, onde se achou numas famosas justas que naquela cidade se fizeram e ali lhe aconteceram coisas dignas do seu valor e bom engenho. Nem do seu fim e acabamento alcançaria ou saberia coisa alguma, se a sua boa sorte lhe não houvesse deparado um médico antigo, que tinha em seu poder uma caixa de chumbo, que, segundo ele disse, se achara no derrocado cimento de uma velha ermida que se renovara: nessa caixa se tinham encontrado uns pergaminhos, escritos em letras góticas, mas com versos castelhanos, que continham muitas das suas façanhas, e davam notícia da formosa Dulcineia del Toboso, da figura de Rocinante, da fidelidade de Sancho Pança e da sepultura do próprio D. Quixote, com diferentes epitáfios e elogios da sua vida e costumes, e os que se puderam ler e tirar a limpo foram os que aqui põe o fidedigno autor desta nova e nunca vista história. O qual autor não pede aos que a lerem, em prémio do imenso trabalho que lhe custou investigar e revolver todos

os arquivos manchegos, para a dar à luz, senão que lhe dêem o mesmo crédito que costumam dar aos livros de cavalaria, que tão benquistos são por esse mundo; que com isso se dará por bem pago e satisfeito, e se animará a procurar e a dar à luz outras, senão tão verdadeiras, pelo menos de igual invenção e recreio.

As primeiras palavras que estavam escritas no pergaminho, que se encontrou dentro da caixa de chumbo, eram estas:

Os ACADÉMICOS DE ARGAMASILLA, LUGAR DA MANCHA, SOBRE A VIDA E MORTE DO VALOROSO D. QUIXOTE DE LA MANCHA HOC SCRIPSERUNT

O Monicongo, académico de Argamasilia, à sepultura de D. Quixote

 

O tresloucado que adornou a Mancha de mais despojos que Jasão de Creta; o juízo, que teve a grimpa inquieta bicuda, quando fora melhor ancha; o abraço que a sua força tanto ensancha, que chegou do Catai até Gaeta a Musa mais horrenda e mais discreta que versos foi gravar em brônzea prancha; quem bem longe deixou os Amadises, e em pouco os Galaores avaliou, estribado no amor, na bizarria: quem soube impor silêncio aos Belianises, quem, montado em Rocinante, vagueou, jaz morto, enfim, sob esta lousa fria.

Do Apaniguado, académico de Argamasilla, in laude Dulcineae del Toboso

Esta que vês de rosto amondongado, alta de peitos, e adea brioso, é Dulcineia, rainha del Toboso, de quem esteve o grão Quixote enamorado.

Pisou por ela um e o outro lado da grande serra Negra, e o bem famoso campo de Montiel, e o chão relvoso de Aranjuez, a pé e fatigado.

Culpa de Rocinante! Ó dura estrela! Que esta manchega dama, e este invicto andante cavaleiro, em tenros anos ela deixou, morrendo, de ser bela, ele, ainda que em mármores inscrito, no evitou o amor iras e enganos.

Do Caprichoso, discretíssimo académico de Argamasilia, em louvor de Rocinante, cavalo de D. Quixote de La Mancha

SONETO

No alto e soberbo trono diamantino, que com sangrentas plantas pisa Marte, o manchego frenético o estandarte tremula, com esforço peregrino.

Pendura as armas e o aço fino com que assola, destroça, racha e parte! Novas proezas! mas inventa a arte um novo estilo ao novo paladino.

Se do seu Amadis se orgulha a Gaula, por cuja prol a Grécia gloriosa mil vezes triunfou, e a fama ensancha; cinge a Quixote um diadema a aula a que preside a deusa belicosa, e orgulha-se dele a altiva Mancha.

Nunca as suas glórias o olvido mancha, pois que até Rocinante em ser galhardo excede a Briliador, vence a Bayard.

Do Burlador, académico argamasillesco, a Sancho Pança

SONETO

Pobre de corpo, de bravura rico, Sancho Pança aqui jaz: é coisa estranha! Escudeiro mais simples, mais sem mancha, não teve o mundo, juro e certifico!

Pra ser conde faltou-lhe só um nico, se não conspira contra ele a sanha desta idade mesquinha, vil, tacanha, que nem sequer perdoa a um burrico.

No burro andou (e com perdão se diga!) este manso escudeiro, atrás do manso Rocinante e do seu dono bisonho.

Ó vãs esp'rancas! e mais vã fadiga! nunca deixais de prometer descanso, e tudo acaba em sombra, em fumo, em sonho.

Do Cachidiabo, académico de Argamasilia, na sepultura de D. Quixote

EPITÁFIO

Aqui jaz o cavaleiro bem moído e mal-andante, que, montado em Rocinante, percorreu senda e carreiro.

Sancho Pança o malhadeiro, jaz também neste local, escudeiro o mais leal, que houve em trato de escudeiro.

Do Tiquitoc, académico de Argamasilia, na sepultura de Dulcineia del Toboso EPITÁFIO

Repousa aqui Dulcineia, que, sendo gorda e corada, em cinza e pó foi mudada pela morte horrenda e feia.

Foi de castiça raleia, e teve assomos de dama, deu-lhe o grão Quixote a fama, e deu glória à sua aldeia.

Foram estes os versos que se puderam ler; os outros, por estar mais carcomida a letra, entregaram-se a um académico, para que por conjecturas os decifrasse. Consta que o fez, à custa de muitas vigílias e de muito trabalho, e que tenciona dá-los à luz, com esperança na terceira saída de D. Quixote.

Forse altrí cater con miglior plettro.

 

                                                                                            Miguel de Cervantes  

 

                      

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