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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DOM QUIXOTE – V.II P.2 / Miguel de Cervantes
DOM QUIXOTE – V.II P.2 / Miguel de Cervantes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DOM QUIXOTE DE LA MANCHA

 

VOLUME II

Segunda Parte

QUE TRATA DE MUITAS E GRANDES COISAS

Uma alegria tinha Sancho, vendo-se, no seu entender, na privança da duquesa, porque já imaginava que havia de encontrar no seu castelo o mesmo que em casa de D. Diogo e em casa de Basílio, e, sempre afeiçoado à boa vida, agarrava na ocasião pêlos cabelos, nisto de se regalar sempre que se lhe oferecia ensejo. Conta, pois, o historiador, que, antes de chegarem à casa de recreio ou castelo, adiantou-se o duque e deu ordens aos seus criados acerca do modo como haviam de tratar D. Quixote, de forma que, assim que este chegou com a duquesa à porta do castelo, saíram dois lacaios ou palafreneiros, vestidos até aos pés com umas roupas de arrastar, de finíssimo cetim-carmesim, e, tomando D. Quixote nos braços, sem ele ser ouvido nem achado, lhe disseram:

- Vá Vossa Grandeza apear a duquesa, nossa ama. D. Quixote assim o fez, e houve entre ambos grandes cumprimentos sobre o caso; mas, efectivamente, venceu a porfia da duquesa, que não quis apear-se do palafrém, senão nos braços do duque, dizendo que se não achava digna de dar a tão grande cavaleiro tão inútil carga. Enfim, saiu o duque a apeá-la, e, à entrada de um grande pátio, vieram duas formosas donzelas, e deitaram aos ombros de D. Quixote um grande manto de finíssima escarlata, e num instante se coroaram todos os corredores do pátio de criados e criadas daqueles senhores, dizendo com grandes brados:

- Seja bem-vinda a flor e a nata dos cavaleiros andantes. E todos, ou a maior parte, derramavam águas odoríferas sobre D. Quixote, e foi aquele o primeiro dia em que de todo conheceu e acreditou que era verdadeiro cavaleiro andante, e não fantástico, vendo que o tratavam do mesmo modo por que ele vira que se tratavam os tais cavaleiros nos séculos passados. Sancho, desamparando o ruço, coseu-se com a duquesa, e entrou no castelo, e, remordendo-lhe a consciência deixar o jumento só, chegou-se a uma reverenda dona, que saíra com outras a receber a duquesa, e disse-lhe em voz baixa:

- Sr. Gonzaiez, ou como é a graça de Vossa Mercê.

- Chamo-me Dona Rodriguez de Grijalva - respondeu ela.

- O que mandais, irmão?

- Quereria que Vossa Mercê - redarguiu Sancho - me fizesse o favor de ir à porta do castelo, onde achará um asno ruço, que é o meu: Seja Vossa Mercê servida de o mandar meter, ou de o meter na cavalariça, porque o pobrezito é um pouco medroso, e não há-de gostar nada de se ver sozinho.

- Se o amo for tão discreto como o criado - tornou a dona

-, estamos servidas. Andai, irmão, em má hora viestes ou vos trouxeram cá; tende conta no vosso jumento, que nós, as damas desta casa, não estamos costumadas a semelhantes incumbências.

- Pois na verdade - respondeu Sancho -, eu ouvi dizer a meu amo, que sabe de cor quantas histórias há no mundo, ao contar a história de Lançarote, quando veio da Bretanha, que damas cuidavam dele, e donas do seu roam; e cá o meu jumento não o trocava eu pelo rocim do Sr. Lançarote.

- Irmão - redarguiu a dona -, se sois jogral, guardai as vossas graças para quem vo-las pague, que eu só se vos der uma figa.

- Figa! Figo maduro é que há-de ser, se tiver a idade de Vossa Mercê.

- Patife! - tomou a dona, já toda acesa em cólera. - Se sou velha ou não, a Deus darei contas, e não a vós, velhaco, que tresandais a alho.

E disse isto em voz tão alta, que a duquesa ouviu-a, e, voltando-se e vendo a sua dona tão alvoroçada e encarniçada, perguntou-lhe o que tinha.

- Foi este homem - respondeu a dona - que me pediu encarecidamente que lhe metesse na cavalariça um jumento que está à porta do castelo, e trazendo-me para exemplo que assim o fizeram não sei onde, que umas damas cuidaram de um tal Lançarote e umas donas do seu rocim, para mais ajuda acaba chamando-me velha.

- Isso é que eu teria por afronta, mais do que todas as que me pudessem dizer - respondeu a duquesa. E, voltando-se para Sancho, disse-lhe:

- Reparai, Sancho, que Dona Rodriguez é muito moça, e que essas toucas mais as traz por autoridade e usança, do que por velhice.

- Morto eu caia neste instante - tornou Sancho - se disse uma só palavra por ofensa; mas tão grande é o amor que tenho ao meu jumento, que me pareceu que o não podia recomendar a pessoa mais caritativa que a Sra. Rodriguez.

- Práticas são essas para este lugar, Sancho? - acudiu D. Quixote, que tudo ouvia.

- Senhor, meu amo - tornou Sancho -, a gente onde está fala dos seus negócios e lembrei-me aqui do ruço, aqui falei nele;

se me lembrasse na cavalariça, na cavalariça falaria.

- Sancho fala com muito acerto - disse o duque - e não há motivo algum para se culpar; o ruço está a bom recado, e não se apoquente Sancho, que lhe tratarão o jumento como se fosse ele próprio.

Com estes arrazoados, agradáveis a todos, menos a D. Quixote, chegaram acima e introduziram D. Quixote numa sala, adornada de telas riquíssimas de ouro e de brocado; seis donzelas o desarmaram e lhe serviram de pajens, todas

industriadas e avisadas pelo duque e pela duquesa do que haviam de fazer, e de como haviam de tratar D. Quixote, para que ele imaginasse e visse que o tratavam como cavaleiro andante. D. Quixote, depois de desarmado, com as suas bragas estreitas e o seu gibão de camurça, seco, magro, esticado, com as faces tão chupadas que se beijavam por dentro, era uma tal figura, que, se as donzelas que o serviam não tivessem todo o cuidado em dissimular o riso (que foi uma das ordens rigorosas que seus amos lhes tinham dado), rebentariam decerto. Pediram-lhe que se deixasse despir para enfiar uma camisa; mas ele é que não foi capaz de consentir em semelhante coisa, alegando que a honestidade parecia tão bem nos cavaleiros andantes, como a valentia. Pediu, contudo, que dessem a camisa a Sancho, e, encerrando-se com ele numa quadra em que estava um rico leito, despiu-se e vestiu a camisa; e, vendo-se soinho com Sancho, observou-lhe:

- Diz-me, truão moderno e malhadeiro antigo: Parece-te bem desconsiderar e afrontar uma dona tão veneranda e digna de respeito como aquela? Era ocasião de te recordares do ruço, ou são senhores estes que deixem passar mal as bestas, quando tratam tão bem os donos? Por Deus, Sancho, reporta-te e não descubras o fio, de forma que venha a perceber-se que és feito de pano grosseiro e vilão. Vê, pecador, que o amo é tido em conta tão maior, quanto melhores e mais bem-nascidos são os criados que tem; que uma das maiores vantagens que levam os príncipes aos outros homens é servirem-se de criados que são tão bons como eles. Não reparas, desgraçado, que se virem que és um vilão grosseiro, ou um mentecapto divertido, pensarão que eu sou algum echacorvos ou algum cavaleiro de empréstimo? Não, não, Sancho amigo, foge, foge destes inconvenientes, que quem tropeça em falador e gracioso, ao primeiro pontapé cai e dá em truão desengraçado; refreia a língua, considera e rumina as palavras, antes de te saírem da boca, e vê que chegamos a sítio, de onde com o favor de Deus e o valor do meu braço havemos de sair melhorados em fama e em fazenda.

Sancho prometeu-lhe com muitas veras coser a boca ou morder a língua, antes de dizer uma palavra que não fosse muito a propósito e bem considerada, como lhe mandava, e que não tivesse cuidado, que por ele nunca se descobriria quem eram. Vestiu-se D. Quixote, cingiu o talim e a espada, deitou às costas o manto roçagante de escarlata, pôs na cabeça um gorro de cetim verde, que lhe haviam dado, e com estes adornos saiu para a sala grande, onde achou as donzelas formadas em ala, tantas de uma parte como de outra, e todas com jarros para lhe deitar água às mos, o que fizeram com muitas reverências e cerimónias. Vieram logo em seguida doze pajens com o mestre-sala, para o levar a jantar, que já os senhores o aguardavam. Puseram-no no meio, e levaram-no, cheio de pompa e de majestade, a outra sala, onde estava posta uma rica mesa só com quatro talheres. A duquesa e o duque saíram à porta da sala a recebê-lo, e com eles um grave eclesiástico, destes que governam as casas dos príncipes; destes que querem que a grandeza dos nobres se meça pela estreiteza dos seus ânimos; destes que, querendo ensinar aos que eles governam a ser limitados, os fazem ser miseráveis. Um desses tais devia ser o grave religioso, que saiu com os duques a receber D. Quixote. Trocaram-se mil corteses cumprimentos, e, finalmente, pondo D. Quixote no meio, foram para a mesa. Convidou o duque a D. Quixote para que se sentasse à cabeceira; e, ainda que ele o recusou, foram tais as instâncias do duque, que não teve remédio senão aceitar, enfim.

A tudo assistia Sancho, aparvalhado e atónito, por ver as honras que aqueles príncipes faziam a seu amo; e observando as cerimónias e rogos que houve entre o duque e D. Quixote, disse:

- Se Suas Mercês me dão licença, contar-lhes-ei um Conto que se passou no meu povo, acerca disto de lugares.

Apenas Sancho proferiu estas palavras, D. Quixote tremeu, receando tolice. Olhou para ele Sancho, entendeu-o, e observou:

- Não receie Vossa Mercê, meu amo, que eu me desmande, nem que diga coisa que não venha muito a pêlo, que ainda não me esqueci dos conselhos que há pouco Vossa Mercê me deu, sobre o falar muito ou pouco, bem ou mal.

- Eu é que me não lembro de coisa alguma, Sancho - respondeu D. Quixote -, diz o que quiseres, contanto que o digas depressa.

- Pois o que eu quero dizer - tornou Sancho - é tão verdadeiro, que meu amo D. Quixote, que está presente, não me deixará mentir.

- Isso deixo - replicou D. Quixote -, mente quanto quiseres, que não te irei à mão; mas vê o que dizes.

- Vejo e revejo, e as obras o mostrarão - disse Sancho.

- Bom será - acudiu D. Quixote - que Vossas Mercês mandem pôr fora este tolo, que vai dizer aí mil pachouchadas.

- Por vida do duque - bradou a duquesa -, Sancho não se tira de ao pé de mim; quero-lhe muito, porque sei que é muito discreto.

- Discretos dias viva Vossa Santidade - exclamou Sancho - pelo bom conceito que de mim faz, ainda que o não mereço;

e o conto que eu quero dizer é o seguinte: - Convidou um fidalgo da minha terra, muito rico e principal, porque vinha dos Álamos de Medina del Campo, que casou com Dona Mécia de Quinones, que foi filha de D. Alonso de Maranhão, cavaleiro do hábito de Saniago, que se afogou na Ferradura, por causa de quem houve há anos no nosso lugar aquela pendência, em que se achou metido, se bem me lembro, meu amo o Sr. D. Quixote, e em que ficou ferido Basílio, o Travesso, filho de Balbastro, o Ferreiro. Não é verdade tudo isto Senhor, meu amo? Diga-o, por vida sua, para que estes Senhores me não tenham por falador e mentiroso.

- Até agora - disse o eclesiástico - mais vos tenho por falador, do que por mentiroso; mas daqui para diante não sei o que pensarei.

- Tu dás tantas testemunhas e tantos sinais, Sancho, que não posso deixar de dizer que tudo isso deve de ser verdade - acudiu D. Quixote -; passa adiante e encurta o conto, porque levas caminho de não acabar nem em dois dias.

- Não há-de encurtar tal - tornou a duquesa -; para me dar gosto a mim, há-de-o contar do modo que ele souber, ainda que o não acabe nem em seis dias que, se fossem tantos, seriam para mim os melhores da minha vida.

- Digo, pois, meus Senhores - prosseguiu Sancho -, que este tal fidalgo, que eu conheço como os meus dedos, porque

de minha casa à sua não vai um tiro de besta, convidou um lavrador pobre, mas honrado...

- Adiante, irmão - acudiu o eclesiástico -, levais caminho de não acabar o conto nem no outro mundo.

- Hei-de acabá-lo muito antes, se Deus for servido - respondeu Sancho -, e assim digo que, chegando o tal lavrador à casa do dito fidalgo que o convidara... Deus lhe fale na alma, porque já morreu; e por sinal dizem que teve a morte de um anjo; isso não posso eu afirmar, porque não estava presente, que tinha ido nesse tempo para a ceifa em Tembleque.

- Por vida vossa, filho, voltai depressa de Tembleque, e, sem enterrardes o fidalgo, se lhe não quereis fazer ainda mais exéquias, acabai o vosso conto - interrompeu o eclesiástico.

- Foi, pois, o caso, que, estando os dois para se sentar à mesa... parece mesmo que os estou a ver agora.

Muito divertia ao duque e à duquesa o desespero que ao bom religioso causavam a dilação e pausas com que Sancho contava o seu conto, e D. Quixote estava-se consumindo de cólera e de raiva.

- Estando, como eu disse - continuou Sancho -, o fidalgo e o lavrador para se sentar à mesa, teimava o lavrador com o fidalgo para que se sentasse à cabeceira, e o fidalgo teimava para que ali se sentasse o lavrador, porque em sua casa se havia de fazer o que ele mandasse; mas o lavrador, que tinha fumaças de cortês, não foi capaz de ceder; até que o fidalgo, enfastiado, pondo-lhe as mãos nos ombros, o fez sentar à força, dizendo-lhe:

- Sentai-vos, palúrdio, que o sítio em que eu me sentar, seja onde for, fica sendo a cabeceira.

- Ora aqui está o conto - concluiu Sancho - e na verdade parece-me que não foi trazido fora de propósito.

Fez-se D. Quixote de mil cores, que lhe jaspeavam o moreno do rosto.

Os duques disfarçaram o riso, para que D. Quixote não se corresse de todo, tendo entendido a malícia de Sancho; e para mudar de prática e impedir que Sancho prosseguisse com outros disparates, perguntou a duquesa a D. Quixote que notícias tinha da Sra. Dulcineia, e se nesses últimos dias lhe enviara alguns presentes de gigantes ou de malandrinos, pois não podia deixar de ter vencido muitos.

- Senhora minha - respondeu D. Quixote -, as minhas desgraças tiveram princípio, mas nunca hão-de ter fim. Tenho vencido gigantes, e malandrinos lhe tenho enviado, mas onde a haviam de encontrar, se está encantada e escondida na mais feia lavradeira que se pode imaginar?

- Não sei - acudiu Sancho Pança -, a mim parece-me a criatura mais formosa deste mundo; pelo menos na ligeireza e no brincar bem sei que lhe não levará vantagem nem um só saltimbanco: na verdade Senhora Duquesa, salta do chão para cima de uma jumenta, como se fosse um gato.

- Viste-la encantada? - perguntou o duque.

- Se a vi! Pois quem diabo foi o primeiro que caiu no achaque do encantório, senão eu? Está tão encantada como meu pai.

O eclesiástico, que ouviu falar em gigantes, em malandrinos, e em encantamentos, percebeu que aquele devia de ser D. Quixote de La Mancha, cuja história o duque tinha costume de ler, coisa que ele por muitas vezes lhe censurara, dizendo-lhe que era disparate ler tais dispautérios; e, sabendo ser verdade o que suspeitava, disse com muita cólera para o duque:

- Vossa Excelência, Senhor Duque, tem que dar contas a Nosso Senhor do que este bom homem faz. Este D. Quixote ou D. Tonto, ou como é que se lhe chama, imagino eu que não deve de ser tão mentecapto como Vossa Excelência quer que ele seja, dando-lhe ocasião para levar por diante as suas sandices e asneiras.

E, voltando-se para D. Quixote, disse-lhe:

- E a vós, alma de cântaro, quem vos encasquetou na cabeça que sois cavaleiro andante, e que venceis gigantes e prendeis malandrinos? Voltai para vossa casa, e educai vossos filhos, se os tendes, tratai da vossa fazenda, e deixai-vos de andar vagando pelo mundo, a papar moscas, e fazendo rir todos os que vos conhecem e vos não conhecem. Onde é que vistes que houvesse ou haja cavaleiros andantes? Onde é que há gigantes na Espanha ou malandrinos na Mancha? E Dulcineias encantadas, e toda a caterva de necedades que de vós se conta?

Ouviu D. Quixote, muito atento, as razões daquele venerável varão; e, vendo que terminara, sem guardar respeito aos duques, com semblante irado e alvoroçado rosto, pôs-se em pé, e disse...

Mas esta resposta merece capítulo especial.

 

DA RESPOSTA QUE DEU D. QUIXOTE AO SEU REPREENSOR, COM OUTROS GRAVES E GRACIOSOS SUCESSOS

Erguido, pois, D. Quixote, tremendo desde os pés até à cabeça, com azougada, pressurosa e turva língua, disse:

- O lugar onde estou, a presença de tão excelsas pessoas, e o respeito que sempre tive e tenho ao estado que Vossa Mercê professa, atam-me as mãos ao ustíssimo enfado; e assim, tanto pelo que disse, como por saberem todos que as armas dos que vestem sotainas são, como as das mulheres, a língua, entrarei, servindo-me da minha, em igual batalha com Vossa Mercê, de quem se deviam esperar antes bons conselhos do que infames vitupérios. As repreensões santas e bem-intencionadas requerem outras circunstâncias, e pedem outros assuntos; pelo menos, o repreender-me em público e tão asperamente excedeu todos os limites da censura cordata; porque às primeiras cabe melhor a brandura do que a aspereza; não me parece bem que, sem ter conhecimento do pecado que se repreende, se chame ao pecador, sem mais nem mais, mentecapto e tonto. Senão, diga-me Vossa Mercê: que tonteria viu em mim, para me condenar e vituperar, e mandar-me que vá para minha casa tomar conta do seu governo, e de minha mulher e de meus filhos sem saber se tenho filhos e mulher? Então não é mais senão entrar a trouxe-mouxe pelas casas alheias a governar os donos delas, e, tendo-se criado alguns dos que isso fazem na estreiteza de um seminário, sem terem visto mais mundo do que o que pode encerrar-se em vinte ou trinta léguas de comarca, meterem-se de rondão a dar leis à cavalaria, e a julgar os cavaleiros andantes? Porventura, é assunto vão, ou é tempo desperdiçado, o que se gasta em vaguear pelo mundo, não procurando os seus regalos, mas sim as asperezas por onde ascendem os bons à sede da imortalidade? Se me tivessem por tonto os cavaleiros, os magníficos, os generosos, os de alto nascimento, considerá-lo-ia eu afronta irreparável; mas que me tenham por sandeu os estudantes, que nunca pisaram a senda da cavalaria, pouco me importa; cavaleiro sou e cavaleiro hei-de morrer, se aprouver ao Altíssimo: Uns seguem o largo campo da ambição soberba, outros o da adulação servil e baixa, outros o da hipocrisia enganosa, e alguns o da verdadeira religião; mas eu, guiado pela minha estrela, sigo a apertada vereda da cavalaria andante, por cujo exercício desprezo a fazenda, mas não a honra. Tenho satisfeito agravos, castigado insolências, vencido gigantes e atropelado vampiros; sou enamorado, só porque é forçoso que o sejam os cavaleiros andantes, e, sendo-o, não pertenço ao número dos viciosos, mas sim ao dos platónicos e continentes. As minhas intenções sempre as dirijo para bons fins, que são fazer bem a todos e mal a ninguém. Se quem isto entende, se quem isto pratica, se quem disto trata, merece ser chamado bobo, digam-no Vossas Grandezas, duque e duquesa excelentes.

- Bem; pelo Deus vivo - acudiu Sancho - não diga mais vossa Mercê, Senhor, meu amo, em seu abono, porque não há mais que dizer, nem mais que pensar, nem mais que insistir; e, visto que este senhor nega que tenha havido ou haja no mundo cavaleiros andantes, não admira que não saiba nenhuma das coisas que Vossa Mercê disse.

- Porventura - acudiu o eclesiástico - sois vós, irmão, aquele Sancho Pança, a quem vosso amo prometeu uma ilha?

- Sou eu mesmo - respondeu Sancho - e sou também quem a merece tanto como outro qualquer; sou aquele de quem se pode dizer: chega-te para os bons, serás um deles; e chega-te para boa árvore, boa sombra terás; arrimei-me a bom senhor, e há muitos meses que ando em boa companhia, e hei-de ser outro como ele, querendo Deus; e viva ele, e viva eu, ue nem a ele lhe faltarão impérios que mandar, nem a mim ilhas que governar.

- Não, decerto, Sancho amigo - acudiu o duque -, que eu, em nome do Sr. D. Quixote, vos confiro o governo de uma que tenho agora vaga.

- Ajoelha, Sancho - bradou D. Quixote -, e beija os pés de Sua Excelência, pela mercê que te fez.

Obedeceu Sancho, e, vendo isto o eclesiástico, levantou-se da mesa, muito enfadado, dizendo:

- Pelo hábito que visto, estou em dizer que Vossa Excelência ensandeceu como estes pecadores; vede se eles não hão-de ser doidos, quando os ajuizados lhes aprovam as loucuras: Fique-se Vossa Excelência com eles, que, enquanto estiverem cá por casa, ficarei eu na minha, e dispensar-me-ei de repreender o que não me é possível remediar.

E, sem dizer mais palavra, nem comer mais bocado, foi-se embora, sem que pudessem detê-lo os rogos dos duques; é verdade também que o duque não pôde insistir muito; estava sufocado de riso, por causa da sua impertinente cólera. Acabou de rir, e disse para D. Quixote.

- Vossa Mercê, Senhor Cavaleiro dos Leões, respondeu por si tão nobremente, que tirou plena satisfação deste agravo, se agravo se lhe pode chamar, porque os eclesiásticos, da mesma forma que as mulheres, não podem ofender ninguém, como Vossa Mercê muito bem sabe.

- Assim é - respondeu D. Quixote -; quem não pode ser ofendido, a ninguém pode ofender. As mulheres, as crianças e os eclesiásticos não podem defender-se. Não podem ser afrontados, porque entre o agravo e a afronta há a seguinte diferença: a afronta só vem da parte de quem a pode fazer e a faz e a sustenta; o agravo, esse pode vir de qualquer parte, sem que afronte. Exemplo: está uma pessoa na rua muito descuidada;

chegam dez bem armados, e dão-lhe uma sova de pau; ele desembainha a espada e faz o seu dever; mas opõe-se-lhe a multidão dos seus adversários, e não o deixa executar a sua intenção, que é de se vingar; fica esse homem, portanto, agravado, mas não afrontado. Outro exemplo: está um homem de costas voltadas; chega outro, dá-lhe duas pauladas e foge; o primeiro segue-o mas não o alcança; o que foi espancado recebeu agravo, mas não afronta, porque a afronta precisa de ser sustentada. Se o que deu as pauladas, ainda que as desse por traição, metesse depois mo à espada, e parasse para fazer frente ao seu inimigo, ficaria o outro juntamente agravado e afrontado; e assim, segundo as leis do maldito duelo, o agravo não é necessariamente a afronta, porque nem as crianças, nem as mulheres, nem os sacerdotes, podem sustentar qualquer agravo que fizerem; carecem de armas ofensivas e defensivas; por todas essas razões não posso sentir nem sinto as injúrias que aquele bom homem me disse; só quereria que ele tivesse esperado um pouco, para eu lhe fazer perceber o erro em que está, pensando e dizendo que não houve nem há no mundo cavaleiros andantes;

que, se tal ouvisse Amadis, ou qualquer dos infinitos da sua linhagem, não iria o caso bem para Sua Mercê.

- Essa lhe juro eu - acudiu Sancho -; tinham-lhe dado tanta cutilada, que o abriam de meio a meio como um melão bem maduro; eles eram lá gente que sofresse essas coisas! Eu cá por mim tenho por certo que, se Reinaldos de Montalvão tivesse ouvido semelhantes razões a este homenzinho, arrumava-lhe tamanho lembrete, que ele não tornava a falar estes três anos mais chegados; e senão, metesse-se com eles, e veria como lhe saía das mãos.

Morria de riso a duquesa, ouvindo as falas de Sancho, e tinha-o na sua opinião por mais divertido e mais insensato que seu amo: e houve muitos nesse tempo que foram do mesmo parecer. Finalmente, D. Quixote sossegou, acabou-se o jantar, e, ao levantar-se a mesa, chegaram quatro donzelas: uma com uma bacia de prata, outra com um gomil de prata também, a terceira com riquíssimas e alvíssimas toalhas ao ombro, e a quarta com os braços nus até ao meio e um sabonete napolitano nas suas brancas mãos. Aproximou-se a primeira, e pôs a bacia debaixo do queixo de D. Quixote, o qual, sem dizer palavra, admirado de semelhante cerimónia, imaginou que devia de ser uso daquela terra, em vez de lavar as mãos, lavar os queixos; e por isso, estendeu o seu, tanto quanto pôde, e no mesmo instante começou o gomil a chover água, e a última das donzelas ensaboava a cara de D. Quixote, muito depressa, levantando flocos de neve, porque não era menos branca do que a neve a espuma que enchia o queixo o rosto e os olhos do obediente cavaleiro, tanto que teve de os fechar à força. O duque e a duquesa, que de nada disto eram sabedores, estavam esperando, para ver em que iria parar tão extraordinário lavatório. A donzela barbeira, quando o apanhou com um palmo de sabão, fingiu que se lhe acabara a água, e mandou à do gomil que fosse por ela, que o Sr. D. Quixote esperaria. Assim o fez, e ficou D. Quixote na mais estranha e ridícula figura que se pode imaginar. Miravam-no todos os que estavam presentes, que eram muitos; e, como o viam com meia vara de pescoço, mais do que medianamente trigueiro, os olhos fechados, e a cara cheia de sabonete, só por grande milagre e discrição puderam disfarçar o riso; as donzelas da burla estavam de olhos baixos, sem se atrever a encarar seus amos; a estes retouçava-lhes no corpo a cólera e o riso, e não sabiam se haviam de castigar as donzelas pela sua ousadia, se premiá-las pelo divertimento que lhes tinham dado. Finalmente, veio a donzela do gomil, e acabaram de lavar D. Quixote, e em seguida a das toalhas limpou-o e enxugou-o muito pausadamente; e, fazendo-lhe todas quatro uma grande e profunda mesura e cortesia, queriam-se ir embora; mas o duque, para que D. Quixote não percebesse a burla, chamou a que levava a bacia de mãos, dizendo-lhe:

- Vinde-me lavar também, e vede lá não se vos acabe a água.

A rapariga, ladina e azougada, aproximou-se, e ela e as outras lavaram-no e ensaboaram-no muito depressa, e, deixando-o enxuto e limpo, foram-se embora, depois de feitas as suas mesuras. E o duque disse depois que jurara de si para si que, se elas hesitassem em o ensaboar como tinham ensaboado D. Quixote, havia de as castigar pela sua desenvoltura.

Estava Sancho atento às cerimónias daquele lavatório, e dizia consigo:

- Valha-me Deus! Será também uso nesta terra lavar as barbas aos escudeiros como aos cavaleiros? Pois eu em consciência bem precisava dessa lavagem, e até, se mas rapassem à navalha, maior benefício me fariam.

- Que estais vós a resmungar, Sancho? - perguntou a duquesa.

- Digo, Senhora - respondeu Sancho -, que nas cortes dos outros príncipes sempre ouvi dizer que, em se levantando a mesa, dão água às mãos, e não ensaboadela às barbas; e por isso, bom é viver muito para ver muito, ainda que dizem também que aquele que muito viver muitos trabalhos há-de passar;

mas lá este lavatório é mais gosto do que desgosto.

- Não vos aflijais, amigo Sancho - disse a duquesa -, que eu farei com que as minhas donzelas vos lavem, e até vos metam na barreia, se for necessário.

- Contento-me com a lavagem das barbas - respondeu Sancho -, pelo menos por agora.

- Mestre-sala - disse a duquesa -, fazei tudo o que Sancho vos pedir e cumpri-lhe a vontade ao pé da letra.

O mestre-sala respondeu que em tudo seria servido o Sr. Sancho, e levou-o consigo para jantar, ficando à mesa os duques e D. Quixote, falando em muitas e diversas coisas, mas todas tocantes ao exercício das armas e da cavalaria andante. A duquesa pediu a D. Quixote que lhe delineasse e descrevesse, pois que parecia ter feliz memória, a formosura e as feições da Sra. Dulcineia del Toboso, que, pelo que a fama apregoava da sua beleza, devia de ser a mais linda criatura do mundo, e de toda a Mancha.

Suspirou D. Quixote, ouvindo as ordens da duquesa, e disse:

- Se eu pudesse arrancar o meu coração, e pô-lo diante dos olhos de Vossa Excelência, aqui, em cima desta mesa, e num prato, tiraria à minha língua o trabalho de dizer o que apenas se pode pensar, porque Vossa Excelência a veria nele toda retratada; mas, para que me hei-de pôr eu agora a delinear e a descobrir, ponto por ponto, a formosura da incomparável Dulcineia, sendo isso carga digna de outros ombros e não dos meus, empresa em que se deviam ocupar os pincéis de Parrásio, de Timantes e de Apeles, e os buris de Lisipo, para a pintar e esculpir em madeira, mármore ou bronze, e a retórica cicerónica e demosténica para a louvar?

- Pois sim, mas apesar de tudo isso, grande gosto nos daria o Sr. D. Quixote - acudiu o duque - se no-la pintasse, que decerto que, ainda que seja em rascunho e em bosquejo, há-de sair tal, que fará inveja às mais formosas.

- Decerto vos obedeceria - respondeu D. Quixote - se ma não tivesse apagado da ideia a desgraça que há pouco lhe sucedeu, que estou mais para chorá-la, do que para descrevê-la; porque hão-de saber Vossas Grandezas que, indo eu, há dias, beijar-lhe as mãos e receber a sua bênção, beneplácito e licença para esta saída, achei-a outra, muito diferente da que procurava; achei-a encantada e convertida de princesa em lavradeira, de formosa em feia, de anjo em diabo, de aromática em pestífera, de bem-falante em rústica, de comedida em travessa, de luz em trevas, e, finalmente, de Dulcineia del Toboso numa vilã de Sayago.

- Valha-me Deus! - bradou o duque. - Quem foi que fez tamanho mal ao mundo? Quem lhe tirou a beleza que o alegrava, o donaire que o enlevava, e a honestidade que o honrava?

- Quem? - tornou D. Quixote. - Pois quem pode ser senão algum maligno nigromante, dos muitos invejosos que me perseguem? Raça maldita, nascida no mundo para escurecer e aniquilar as façanhas dos bons, e para dar luz e grandeza aos feitos dos maus! Têm-me perseguido nigromantes, nigromantes me perseguem, nigromantes me perseguirão, até darem comigo e com as minhas altas cavalarias no profundo abismo do olvido; e molestam-me e ferem-me naquilo em que vêem que mais o sinto; porque, tirar a um cavaleiro andante a sua dama, é tirar-lhe os olhos com que vê, e o Sol com que se alumia, e o alimento com que se sustenta. Muitas vezes o tenho dito, e agora torno-o a dizer, que um cavaleiro andante sem dama é como a árvore sem folhas, o edifício sem cimento e a sombra sem corpo que a produza.

- Não há mais que dizer - tornou a duquesa - mas, com tudo isso, havemos de dar crédito à história do Sr. D. Quixote, que há dias saiu à luz do mundo, com geral aplauso das gentes;

e dela se colige, se bem me lembro, que nunca Vossa Mercê viu a Sra. Dulcineia; e que esta senhora não existe no mundo, mas é

dama fantástica, que Vossa Mercê gerou no seu entendimento, pintando-a com todas as graças e perfeiçôes que muito bem quis.

- A isso há muito que dizer - respondeu D. Quixote -; Deus sabe se há ou se não há Dulcineia no mundo ou se é fantástica ou não; nem são coisas estas, cuja averiguação se leve até ao fim. Nem eu gerei a minha dama, ainda que a considero como dama que em si contém todos os predicados, que a podem distinguir entre as outras, a saber: formosa sem senão, grave sem soberba, amorosa com honestidade, agradecida, cortês e bem-criada, e, finalmente, de alta linhagem; porque resplandece e campeia a formosura com maior perfeição no sangue nobre, do que nas beldades de humilde nascimento.

- Assim é - tornou o duque -, mas há-de-me dar licença o Sr. D. Quixote para que eu diga o que se lê na história das suas façanhas, a qual, ainda que concede que haja Dulcineia del Toboso, e que seja formosa, na suma perfeição que Vossa Mercê nos diz, em nobreza de linhagem não a pode comparar com as Orianas, com as Alastrajareas, com as Madasinas, nem com outras deste jaez, de que andam cheias as histórias que Vossa Mercê bem sabe.

- A isso posso responder - redarguiu D. Quixote - que Dulcineia é filha das suas obras, e que as virtudes adubam o sangue, e que mais se deve estimar um virtuoso humilde, do que um fidalgo vicioso, tanto mais que Dulcineia tem prendas que a podem levar a ser rainha de coroa e ceptro, porque o merecimento de uma mulher bela e virtuosa ainda pode fazer maiores milagres, e posto que não formalmente, virtualmente encerra em si maiores venturas.

- O que vejo, Sr. D. Quixote - acudiu a duquesa -, é que em tudo quanto Vossa Mercê tem dito caminha de sonda em punho, e que eu, daqui por diante, acreditarei e farei crer a todos os da minha casa, e até ao duque meu marido, se necessário for, que existe Dulcineia del Toboso, que vive hoje em dia, e que é formosa, e de alto nascimento, e merecedora de que tal cavaleiro, como é o Sr. D. Quixote, a sirva, que é o mais que eu posso encarecer; mas não deixo de ter um certo escrúpulo, e de me zangar com Sancho Pança. O escrúpulo está em dizer a referida história que Sancho encontrou a Si. Dulcineia, quando lhe levou uma epístola da parte de Vossa Mercê, a peneirar trigo; coisa que me faz duvidar da nobreza da sua linhagem.

- Senhora minha - respondeu D. Quixote -, saberá Vossa Grandeza que todas, ou a maior parte das coisas que me sucedem, vão fora dos termos ordinários das que acontecem aos outros cavaleiros andantes, quer sejam dirigidas pela vontade imutável dos fados, ou venham encaminhadas pela malícia de algum invejoso nigromante; ora é coisa averiguada que todos, ou a maior parte dos cavaleiros andantes e famosos, têm diversos privilégios: um, o de não poder ser encantado; outro, o de ter tão impenetráveis carnes, que não pode ser ferido, como o famoso Roldão, um dos Doze Pares de França, de quem se diz que só na planta do pé esquerdo o podiam ferir, e ainda assim só com o bico de um alfinete grande, tanto que, quando Bernardo dei Cárpio o matou em Roncesvales, vendo que o não podia molestar com ferro, levantou-o do chão nos braços e afogou-o, lembrando-se da morte que deu Hércules a Anteu, o famoso gigante que dizem que era filho da Terra. Disso quero inferir que poderia ser que eu tivesse algum destes privilégios, não o de não poder ser ferido, porque muitas vezes me tem mostrado a experiência que sou de carnes brandas e nada impenetráveis, nem o de não poder ser encantado, porque já me vi metido numa jaula, onde o mundo inteiro me não poderia encerrar, a não ser à força de encantamentos. Mas, se desse me livrei, quero crer que não haverá nenhum no mundo que me empeça; e assim, vendo os nigromantes que não podem empregar na minha pessoa as suas danadas manhas, vingam-se nos entes a que mais quero, e pretendem tirar-me a vida, maltratando Dulcineia, por quem vivo; e assim, creio que, quando o meu escudeiro lhe levou a minha mensagem, converteram-na em vilã, e em vilã ocupada em tão baixo exercício, como o de joeirar trigo; mas também eu já disse que aquilo não eram grãos de trigo, mas sim pérolas orientais; e, para prova desta verdade, quero dizer a Vossas Magnitudes que, passando eu agora pelo Toboso, nunca fui capaz de encontrar os palácios de Dulcineia, e que outro dia, tendo-a visto Sancho, meu escudeiro, em sublime figura, que é a mais bela

do mundo todo, a mim pareceu-me uma lavradeira tosca e feia, e muito rústica no falar, sendo ela a discrição do mundo; e, visto que eu não estou encantado, nem o posso estar, como o bom senso o mostra, é ela a encantada, a ofendida e a transformada, e nela se vingaram de mim os meus inimigos, e por ela viverei em perpétuas lágrimas, até a ver em seu antigo estado; tudo isto eu disse para que ninguém faça caso do que refere Sancho a respeito de a ter encontrado a joeirar trigo, que, se a mudaram para mim, a ele lha trocariam também. Dulcineia é de alto nascimento, e das fidalgas linhagens que há no Toboso, que são muitas, antigas, e óptimas. E este lugar ficará famoso por ter dado o berço à incomparável Dulcineia, como foi Tróia por Helena, e a Espanha pela Cava, mas ainda com melhor título e fama. Demais, desejo que Vossas Senhorias entendam que Sancho Pança é um dos mais divertidos escudeiros que nunca serviram a cavaleiro andante; tem às vezes umas simplicidades tão agudas, que a gente pergunta a si própria se tudo aquilo é necedade ou malícia; umas vezes parece velhaco, e outras vezes tolo: de tudo duvida e tudo acredita; quando penso que se vai despenhar por tonto, sai-me com umas discriçôes que o levantam ao céu. Finalmente, eu não o trocaria por outro escudeiro, ainda que me dessem por demasia uma cidade; e assim, duvido se será bom mandá-lo para o governo de que Vossa Grandeza lhe fez mercê, ainda que nele vejo uma certa aptidão para isto de governar, e pode ser que, aguçando-lhe um poucochito o entendimento, se saia bem do encargo; tanto, que já sabemos por experiência que não são mister nem muitas letras, nem muita habilidade, para qualquer ser governador, pois há por aí centos que mal sabem ler, e governam como águias. O caso está em que tenham boas intenções e desejem acertar em tudo, que nunca lhes faltará quem os aconselhe e encaminhe no que hão-de fazer, como os governadores cavaleiros e não letrados, que sentenceiam com acessores. A seu tempo eu lhe darei alguns conselhos, para sua utilidade e proveito da ilha que governar.

Estavam neste ponto do seu colóquio o duque, a duquesa e D. Quixote, quando ouviram muitos brados e grande rumor de gente, e entrou Sancho de corrida na sala, com uma rodilha atada ao pescoço, e atrás dele muitos bichos de cozinha, e outra criadagem miúda, um dos quais trazia um caldeirão de água, que, pela cor e pouca limpeza, mostrava ser de lavar a louça. Perseguia-o este, procurando pôr-lhe o caldeirão debaixo das barbas, ao passo que outro mostrava querer-lhas lavar.

- Que é isso, irmãos? - perguntou a duquesa. - Que quereis a esse bom homem? Pois não considerais que está nomeado governador?

- Este senhor não se quer deixar lavar - respondeu o improvisado barbeiro - como é costume, e como se lavou o Senhor Duque, e o amo do Sr. Sancho.

- Quero, sim - respondeu Sancho com muita cólera -, mas desejaria que fosse com toalhas mais limpas e água mais clara, e com mãos menos sujas, que não há tanta diferença entre mim e meu amo, que a ele o lavem com água de Anjos e a mim com a barreia do Diabo. As usanças das terras e dos palácios dos príncipes são muito boas, se não incomodam ninguém;

mas o costume das lavagens que aqui se usam é pior que o das disciplinas e cilícios. Eu tenho as minhas barbas limpas, não preciso de semelhantes refrescos, e aquele que se chegar a lavar-me ou a tocar num cabelo da minha barba, com perdão de quem me ouve, apanha tamanho murro, que lhe fica o meu punho encaixado nos cascos; que tais cerimónias e ensaboadelas parecem burla, e não agasalho de hóspedes.

Estava perdida de riso a duquesa, vendo a cólera e ouvindo as razões de Sancho; mas D. Quixote não ficou muito contente, vendo-o com uma rodilha ao pescoço e cercado de tantos bichos de cozinha; e, assim, fazendo uma profunda cortesia aos duques, como que pedindo-lhes licença para falar, com voz pausada, disse à canalha:

- Olá! Senhores Cavaleiros, deixem Vossas Mercês o meu criado, e voltem para de onde vieram, ou para outra parte, se o preferirem, que o meu escudeiro é tão limpo como outro qualquer, e esses caldeirões não lhe servem; tomem o meu conselho e deixem-no, porque nem ele nem eu estamos dispostos a aturar caçoadas.

- Nada! Nada! - bradou Sancho. - Andem, cheguem-se e verão! Tragam um pente, ou o que quiserem, e se me não encontrarem as barbas asseadíssimas, consinto que mas arranquem.

- Sancho Pança tem razão em tudo o que disse - acudiu a duquesa, sem deixar de se rir - e tê-la-á em tudo quanto disser e não precisa de se lavar; e se a nossa usança lhe não agrada, sua alma sua palma, tanto mais que vós outros, ministros da limpeza, andastes muito remissos e descuidados, e não sei se diga atrevidos, em trazer a tal personagem e a tais barbas, em vez de bacias e gomis de água pura, e de toalhas de holanda, escudelas de pau e rodilhas de cozinha. Mas, enfim, sempre haveis de mostrar que sois maus, e malcriados, e não podeis deixar de revelar, como malandrinos que sois, a raiva que tendes aos escudeiros dos cavaleiros andantes.

Julgaram os criados e até o mestre-sala, que vinha com eles, que a duquesa falava sério, e assim tiraram a rodilha a Sancho, e todos, confusos e quase corridos, foram-se e deixaram-no. Sancho, vendo-se livre daquele, no seu entender, grande perigo, foi ajoelhar diante da duquesa, dizendo:

- De grandes senhoras, grandes mercês se esperam; esta que Vossa Senhoria hoje me fez não pode pagar-se com menos do que com o desejar ver-me armado cavaleiro andante, para me ocupar, todos os dias da minha vida, em servir tão nobre dama: lavrador sou, Sancho Pança me chamo, sou casado, tenho filhos, e de escudeiro sirvo; se com alguma destas coisas posso servir a Vossa Senhoria, mais depressa obedecerei eu do que Vossa Senhoria mandará.

- Bem se vê, Sancho - respondeu a duquesa -, que aprendestes a ser cortês na escola da própria cortesia; bem se vê, quero dizer, que vos criastes ao peito do Sr. D. Quixote, que deve de ser a nata dos comedimentos, e a flor das cerimónias ou cirimónias, como dizeis. Bem hajam tal amo e tal criado, um como norte da cavalaria andante, e o outro como estrela da fidelidade escudeiril. Levantai-vos, Sancho amigo, que eu pagarei as vossas cortesias, fazendo com que o duque, meu esposo, o mais depressa que puder, cumpra a promessa que vos fez de um governo.

Com isto acabou a prática, e D. Quixote foi dormir a sesta; e a duquesa pediu a Sancho que, se não tivesse muita vontade de dormir, viesse passar a tarde com ela e com as suas donzelas numa fresquíssima sala. Sancho respondeu que, ainda que era verdade o ter por costume dormir quatro ou cinco horas nas sestas do Verão, por agradecer a sua bondade procuraria, com todas as suas forças, nesse dia não dormir, e viria obedecer ao seu mandado. O duque deu novas ordens para que D. Quixote fosse tratado como cavaleiro andante, sem pessoa alguma se arredar um ápice do estilo com que se conta que eram tratados os antigos cavaleiros.

 

DA SABOROSA PRÁTICA QUE A DUQUESA E AS SUAS DONZELAS TIVERAM COM SANCHO PANÇA, DIGNA DE QUE SE LEIA E QUE SE NOTE

Conta, pois, a história que Sancho não dormiu aquela sesta, mas que, para cumprir a sua palavra, veio, logo depois de jantar, ter com a duquesa, a qual, pelo muito que gostava de o ouvir, o fez sentar ao pé de si numa cadeira baixa, ainda que Sancho, por delicadeza, não queria sentar-se; mas a duquesa disse-lhe que se sentasse como governador e falasse como escudeiro, pois que por ambas as coisas merecia até o escanho do Cid Rui Díaz Campeador.

Sancho encolheu os ombros, obedeceu e sentou-se, e todas as donzelas e donas da duquesa rodearam-no atentas, em grandíssimo silêncio, para o escutarem; mas a duquesa foi a que falou primeiro, dizendo:

- Agora que estamos sós, e que aqui ninguém nos pode ouvir, quereria eu que o Senhor Governador me resolvesse certas dúvidas que tenho, e que nasceram da leitura da história do grande D. Quixote, que anda impressa; e uma dessas dúvidas é a seguinte: Se o bom Sancho nunca viu Dulcineia, quero dizer, a Sra. Dulcineia del Toboso, nem lhe levou a carta do Sr. D. Quixote, porque o livro de lembranças ficou-lhe na serra Morena como se atreveu a fingir a resposta, e a inventar que a encontrara joeirando trigo, sendo tudo burla e mentira, e tanto em prejuízo da boa fama da incomparável Dulcineia, o que decerto não diz bem com a qualidade e a fidelidade dos bons escudeiros?

Ouvindo estas palavras, Sancho, sem responder coisa alguma, levantou-se, e, nos bicos dos pés, corpo curvado, e dedo nos lábios, percorreu a sala toda, erguendo os reposteiros.

Feito isto, voltou a sentar-se, e disse:

- Agora, Senhora minha, que já vi que não está ninguém a escutar-nos, sem temor nem sobressalto responderei ao que se me perguntou: e a primeira coisa que eu digo é que tenho o meu Sr. D. Quixote por um rematado louco, ainda que algumas vezes diz coisas, que, no meu entender, e de todos os que o escutam, são tão discretas e tão bem encaminhadas, que o próprio Satanás não as poderia dizer melhores; mas, com tudo isso, verdadeiramente e sem escrúpulo, cá para mim é caso assentado ser ele um mentecapto; e, como tenho isto encasquetado na cachimónia, atrevo-me a fazer-lhe acreditar coisas sem pés nem cabeça, como foi isso da resposta da carta, e outra patranha, há seis ou oito dias, que ainda não está na história, e que vem a ser o caso do encantamento da minha Sra. d. Dulcineia, uma peta refinada que eu lhe impingi.

Pediu-lhe a duquesa que lhe contasse esse encantamento, e Sancho referiu-o tal qual, com o que muito se divertiram os ouvintes.

E, prosseguindo na sua prática, disse a duquesa:

- Do que o bom Sancho me contou, nasceu-me na alma um escrúpulo, e chega aos meus ouvidos um certo sussurro que me diz: pois se D. Quixote de La Mancha é louco e mentecapto, e Sancho Pança, seu escudeiro, o conhece, e apesar disso o serve e o segue e anda atido às suas promessas, é sem dúvida ainda mais louco e mais tonto do que o seu amo; e, se isto assim é, como não há dúvida, não se te levaria a bem Senhora Duquesa, que a esse Sancho Pança dês o governo de uma ilha, porque, quem se não sabe governar a si, como há-de saber governar os outros?

- Por vida minha Senhora - disse Sancho -, esse escrúpulo é bem cheio de razão; mas diga-lhe Vossa Mercê que fale alto e claro, que bem conheço que diz a verdade, e que, se eu fosse discreto, há já dias que teria deixado meu amo; mas foi esta a minha má sorte; não posso, tenho de o seguir; somos do mesmo lugar, comi-lhe o pão, quero-lhe bem; é agradecido, deu-me uns burricos, e, sobretudo, sou fiel, e já agora é impossível que nos separe outro sucesso que não seja o que deitar umas pás de terra para cima de qualquer de nós; e, se Vossa Altanaria não quiser que se me dê o prometido governo, paciência! Também Deus Nosso Senhor mo não deu quando nasci, e pode ser até que o não o ter redunde em proveito da minha consciência, que eu, apesar de ser tolo, percebo perfeitamente o sentido daquele rifão que diz, que por seu mal nasceram asas à formiga, e pode ser até que mais asinha vá para o Céu Sancho escudeiro, do que Sancho governador; em toda a parte se come pão, e de noite todos os gatos são pardos; desgraçado é quem às duas horas da tarde ainda não quebrou o jejum; e mau é ter os olhos maiores que a barriga; e a barriga, como diz o outro, de palha e de feno se enche; e as avezinhas do campo têm a Deus por seu provedor e dispenseiro; e mais aquecem quatro varas de pano de Conca, do que outras quatro de lemiste de Segovia; e, ao deixarmos este mundo, e metermo-nos pela terra dentro, por tão estreita senda vai o príncipe como o jornaleiro; e não ocupa mais pés de terra o papa que o sacristão, ainda que um seja mais alto que o outro, que ao entrar no fojo todos nos apertamos e encolhemos, ou nos obrigam a apertar e a encolher, em que nos pese; e muito boas noites; e torno a dizer que se Vossa Senhoria me não quer dar a ilha por eu ser tolo, eu saberei passar sem ela por discreto; e tenho ouvido dizer que detrás da cruz está o Diabo, e que nem tudo o que luz é ouro; e que de entre bois e arados tiraram o lavrador Vamba, para ser rei de Espanha, e de entre os brocados, passatempos e riquezas tiraram a Rodrigo, para ser comido pelas cobras (se não mentem as trovas dos romances antigos).

- E decerto que não mentem - acudiu Dona Rodriguez, que era uma das ouvintes -; até há um romance que diz que meteram o rei Rodrigo vivo, vivo numa tumba cheia de cobras, de sapos e de lagartos, e que dali a dois dias disse o rei de dentro da tumba, com voz dolorida e baixa:

Já me comem, já me comem por onde mais eu pecara.

E visto isso, muita razão tem este senhor para dizer que antes quer ser lavrador que rei, se o hão-de comer os bichos.

Não pôde a duquesa suster o riso, com a simplicidade da sua dona, nem deixou de se admirar de ouvir as razões e os rifões de Sancho, a quem disse:

- Já sabe o meu bom Sancho que o que uma vez promete um cavaleiro, procura cumpri-lo, ainda que lhe custe a vida. O duque, meu Senhor e marido, apesar de não ser dos andantes, nem por isso deixa de ser cavaleiro, e assim cumprirá a palavra de vos dar a prometida ilha, apesar da inveja e da malícia do mundo. Esteja Sancho sossegado, que, quando menos o pensar, há-de-se ver sentado na sua cadeira de governador, coberto de brocado, e empunhando o bastão do comando; o que lhe recomendo é que veja como governa os seus vassalos, que todos são leais e bem-nascidos.

- Lá isso de os governar bem - respondeu Sancho - não precisa de mo recomendar, porque eu sou naturalmente caritativo, e tenho compaixão dos pobres, e a quem sega e amassa não lhe furtem a fogaça; e a mim juro por esta, que me não hão-de deitar dados falsos; sou rata pelada e entendo tudo tintim, e não consinto que me andem lá com teias de aranha, e sei perfeitamente onde me aperta o sapato; e digo isto, porque os bons hão-de ter de mim o que quiserem, e os maus nem uma figa. E parece-me que nisto de governos tudo está no começar, e pode muito bem ser que, em eu sendo quinze dias governador, entenda mais desse ofício do que da lavoura com que me criei.

- Tendes razão, Sancho - disse a duquesa -, ninguém nasce ensinado, e dos homens é que se fazem os bispos, não é das pedras. Mas, tornando ao que há pouco íamos dizendo do encantamento de Dulcineia, tenho por coisa certa e averiguada que essa ideia que Sancho teve de zombar de seu amo, e de lhe dar a entender que a lavradeira era Dulcineia, e que, se ele a não conhecia, era por estar encantada, foi tudo invenção de algum do nigromantes que perseguem o Sr. D. Quixote; porque eu sei de boa fonte, real e verdadeiramente, que a vilã que deu o salto para cima da burrica era e é Dulcineia del Toboso, que está encantada como a mãe que a deu à luz; e, quando menos o pensarmos, havemos de a ver na sua própria figura, e então sairá Sancho do engano em que vive.

- Tudo isso pode muito bem ser - disse Sancho - e agora quero eu crer o que meu amo conta do que viu na cova de Montesinos, onde estava a Sra. Dulcineia del Toboso com o mesmo trajo com que eu disse que a vira, quando a encantei por minha alta recreação; e tudo foi às avessas, como Vossa Mercê diz Senhora minha, porque efectivamente do meu ruim engenho não se pode nem se deve esperar que fabricasse de um momento para o outro tão agudo embuste, nem creio que meu amo fosse tão doido que só por uma triste persuasão como esta minha, acreditasse uma coisa tão fora de vila e termo; mas por isso, não me tenha a vossa bondade por malévolo; um pobre diabo como eu sou não pode descobrir as malícias dos péssimos nigromantes; se fingi aquilo, foi para evitar os ralhos do Sr. D. Quixote e não para o ofender, e se saiu ao invés, lá está Deus no Céu que julga os corações.

- Assim é na verdade - tornou a duquesa -; mas diga-me, Sancho, agora, o que é isso que refere da cova de Montesinos, que eu gostaria de o saber.

Então Sancho Pança contou-lhe, ponto por ponto, o que se narrou já da aventura, e, ouvindo-o, disse a duquesa:

- Pode-se inferir deste sucesso que, visto que o grande D. Quixote diz que viu ali a mesma lavradeira que Sancho viu à saída de Toboso, sem dúvida é Dulcineia, e que andam por aqui nigromantes espertíssimos e extremamente curiosos.

- Isso digo eu também - acudiu Sancho Pança -, que se a minha Sra. Dulcineia del Toboso está encantada, pior para ela, que eu não hei-de ir jogar as cristas com os inimigos de meu amo, que devem de ser muitos e maus; verdade seja que aquela

que eu vi era lavradeira e por lavradeira a tive e julguei; e se era Dulcineia, nada tenho com isso. Senão venham agora aí a cada esquina andar comigo em dize-tu-direi-eu: Sancho fez isto, Sancho fez aquilo, e Sancho torna e Sancho deixa, como se Sancho fosse aí um qualquer e não o mesmo Sancho Pança que anda já em livros por esse mundo de Cristo, segundo me disse Sansão Carrasco, que, ao menos, sempre é pessoa bacharelada por Salamanca, e isto de bacharéis são sujeitos que não mentem, senão quando podem, ou lhes faz conta. Assim não há motivo para se meterem comigo; e já que tenho boa fama e, segundo ouvi dizer a meu Senhor, vale mais bom nome que grande riqueza, encaixem-me esse governo, e verão maravilhas, que quem tem sido bom escudeiro será bom governador.

- Tudo o que o bom Sancho aqui tem dito - acudiu a duquesa - são sentenças catonianas, ou pelo menos arrancadas das próprias entranhas do próprio Miguel Verino, florentibus occidit annis. Enfim, enfim, para falarmos a seu modo, debaixo de ruim capa se esconde bom bebedor.

- Em verdade Senhora - respondeu Sancho -, eu tenho bebido sempre por vício, e por sede também, não digo que não, que não sou nada hipócrita: bebo quando tenho vontade, quando não a tenho, e quando me dão vinho, por não parecer melindroso ou malcriado; que a um brinde de amigo, que coração de mármore haverá que não faça logo a razão? Mas, ainda que as calço, não as borro, tanto mais que os escudeiros dos cavaleiros andantes quase sempre bebem água, porque não fazem senão andar por florestas, selvas e prados, montes e vales, sem encontrarem uma pinga de vinho, ainda que dêem um olho para isso.

- Assim creio - respondeu a duquesa - e por agora vá Sancho descansar, que depois falaremos com mais pausa, e trataremos de se lhe encaixar depressa, como ele diz, o tal governo.

De novo Sancho beijou as mãos à duquesa e lhe pediu que lhe fizesse mercê de cuidar do seu ruço, porque era o lume dos seus olhos.

- Que ruço vem a ser? - perguntou a duquesa.

- O meu burro - tornou Sancho -, que por não o chamar por este nome, lhe costumo chamar o ruço; e a esta Senhora

Dona pedi, quando entrei neste castelo, que tomasse conta dele, e vai ela toda se arrenegou, como se eu lhe tivesse chamado feia ou velha, devendo ser, contudo, parece-me, mais próprio das donas pensar os jumentos do que honrar as salas. Valha-me Deus! Que mal se dava com estas senhoras um fidalgo da minha terra!

- Seria algum vilão - acudiu a Dona Rodriguez -, que se ele fosse fidalgo e bem-nascido, havia de as pôr nos cornos da Lua.

- Ora bem - disse a duquesa - acabou-se! Cale-se, Dona Rodrigue; sossegue, Sr. Pança, e fique a meu cargo o tratamento do ruço, que, por ser alfaia de Sancho, eu o porei nas meninas dos meus olhos.

- Basta que esteja na cavalariça - respondeu Sancho -, que nas meninas dos olhos de Vossa Grandeza nem ele nem eu somos dignos de estar nem um instante só, e eu tão capaz era de consentir em semelhante coisa, como em que me dessem punhaladas: que, ainda que meu amo diz que em cortesia melhor é perder-se por carta de mais, que por carta de menos, nestas histórias azininas é bom que se vá de sonda na mão.

- Leve-o Sancho para o seu governo - tornou a duquesa - e lá o poderá regalar como muito bem quiser, e até jubilá-lo para lhe dar descanso.

- Não pense Vossa Mercê - acudiu Sancho - que não disse bem, que eu tenho já visto entrar para os governos mais de dois asnos, e levar eu o meu não seria coisa nova.

As razões de Sancho renovaram na duquesa o riso e a alegria, e, mandando-o descansar, foi dar conta ao duque da sua palestra, e ambos combinaram fazer uma brincadeira a D. Quixote, que fosse famosa, e dissesse bem com o estilo cavaleiresco, e neste género lhe fizeram muitas, tão discretas, e tão próprias, que são as melhores aventuras que nesta grande história se encerram.

 

QUE DÁ CONTA DA NOTÍCIA QUE SE TEVE DE COMO SE HAVIA DE DESENCANTAR A INCOMPARÁVEL DULCINEIA delTOBOSO, QUE É UMA DAS AVENTURAS MAIS FAMOSAS DESTE LIVRO

Divertiam-se muito o duque e a duquesa com a conversação de D. Quixote e de Sancho Pança, e, confirmando-se na intenção que tinham de lhes fazer algumas burlas, que tivessem vislumbres e aparência de aventura, aproveitaram a que D. Quixote já lhes contara da cova de Montesinos, para inventar uma que fosse famosa; mas, o que mais pasmava a duquesa, era a simplicidade de Sancho, que chegara a acreditar que Dulcineia del Toboso estava encantada, tendo sido ele mesmo o nigromante e o inventor daquele negócio; e, assim, ordenando aos seus criados tudo o que haviam de fazer, dali a seis dias levaram-nos a uma caça de montaria, com tanto séquito de monteiros e caçadores, como poderia ter um rei coroado. Deram a D. Quixote um fato de monte, e a Sancho outro de finíssimo pano verde; mas D. Quixote não quis vestir o seu, dizendo que dentro em pouco teria de voltar ao duro exercício das armas, e que não podia levar consigo guarda-roupas; Sancho recebeu o que lhe deram, com tenção de o vender na primeira ocasião que pudesse. Chegado, pois, o dia aprazado, armou-se D. Quixote, vestiu-se Sancho, e, montando no seu ruço, que não quis deixar, apesar de lhe oferecerem um cavalo, meteu-se no meio do bando dos monteiros. A duquesa saiu esplendidamente vestida, e, D. Quixote, por pura cortesia, toou-lhe a rédea do palafrém, apesar do duque não o querer consentir, e, finalmente, chegaram a um bosque, onde, ocupados todos os pousos e veredas, e repartida a gente pêlos diferentes postos, se começou a caçada com grande estrondo, grita e vozearia, de forma que se não podiam ouvir uns aos outros, tanto pelo ladrido dos cães, como pelo som das buzinas. Apeou-se a duquesa, e, com um agudo venábulo nas mãos, pôs-se no sítio por onde sabia que costumavam romper alguns javalis; apearam-se também o duque e D. Quixote, e colocaram-se ao lado dela; Sancho deixou-se ficar atrás de todos, sem se apear do ruço, que não ousava desamparar, para que não tivesse algum desmando, e, apenas tinham posto o pé no chão, e formado alas com muitos criados, viram que vinha para eles, acossado pêlos cães e seguido pêlos caçadores, um desmedido javali, rangendo dentes e colmilhos, e deitando espuma pela boca; e, apenas o viu, embraçando o escudo, e levando a mão à espada, adiantou-se D. Quixote a recebê-lo; o mesmo fez o duque com o seu venábulo, mas a todos se adiantaria a duquesa, se seu marido lho não impedisse. Só o nosso Sancho é que, apenas viu o valente animal, desamparou o ruço e largou a correr o mais que pôde, e, procurando subir a um alto carvalho, não o conseguiu; antes, quando chegou ao meio, agarrado a um ramo, tentando trepar ao cimo da árvore, tão desgraçado foi, que se partiu o ramo e Sancho caiu; mas, antes de desabar no chão, ficou pendurado de um esgalho: e, vendo-se assim, sentindo que se lhe rasgava o saio verde, e parecendo-lhe que, se a fera se chegasse para ali, o poderia apanhar, começou a dar tamanhos gritos e a pedir socorro com voz tão aflita, que todos que o ouviam e não o viam supunham que estava nos dentes de algum bicho. Finalmente, o cerdoso javali ficou atravessado pêlos ferros de muitos venábulos, e, D. Quixote, voltando a cabeça aos gritos de Sancho, deu com ele pendurado do carvalho de cabeça para baixo, e ao pé o ruço, que o não desamparou na sua calamidade; e diz Cide Hamet, que poucas vezes se viu Sancho Pança sem se ver o ruço, nem o ruço sem se ver Sancho Pança, tal era a leal amizade que havia entre ambos. Chegou-se D. Quixote, e despendurou Sancho, o qual, vendo-se livre e no chão, olhou para o seu esfarrapado saio e sentiu grande pesar, porque imaginara que aquele fato seria para ele um morgado. Nisto, atravessaram o poderoso javali em cima de uma azémola, e, cobrindo-o com ramos de rosmaninho e murta, levaram-no, como em sinal de vitoriosos despojos, para umas grandes tendas de campanha, que estavam armadas no meio do bosque, onde encontraram as mesas em ordem, e o jantar servido com tanta sumptuosidade e grandeza, que bem mostrava a magnificência de quem o dava.

Sancho, mostrando à duquesa os rasgões do seu roto saio, disse:

- Se esta caça fosse às lebres ou aos pássaros, estaria livre o meu saio de se ver neste extremo; não sei que gosto pode haver em esperar um animal, que, se nos deita um colmilho, nos pode tirar a vida; lembro-me de ter ouvido cantar um romance antigo, que diz:

Que te comam feros ursos, como ao célebre Favila.

- Esse foi um rei godo - disse D. Quixote - que, indo à caça da montaria, foi comido por um urso.

- É o que eu digo - respondeu Sancho -; não me parece bem que os príncipes e os reis se metam em semelhantes perigos, por um prazer que, afinal de contas, o não é, porque consiste em matar um animal que nenhum delito cometeu.

- Pois muito vos enganais, Sancho - respondeu o duque -; o exercício da caça do monte é mais conveniente e necessário para reis e príncipes do que nenhum outro. A caça é uma imagem da guerra: tem estratagemas, astúcias, insídias, para se vencer a são e salvo o inimigo. Padecem-se nela grandíssimos frios, e intoleráveis calores, menoscaba-se o ócio e o sono, corroboram-se as forças tornam-se ágeis os membros de quem a usa, e enfim é um exercício que se pode fazer sem prejuízo de ninguém, e com agrado de muitos, e seu melhor predicado é o não ser para todos, como é o dos outros géneros de caça, excepto o da volataria, que também só para reis e grandes senhores se reserva. Portanto, Sancho, mudai de opinião, e, quando fordes governador ocupai-vos na caça, e vereis que haveis de lucrar muito.

- Isso não - respondeu Sancho -, um bom governador deve estar em casa, de perna partida; seria muito bonito virem os negociantes procurá-lo, afadigados, e ele no monte a divertir-se; assim, em má hora andaria o governo. Por minha fé, Senhor, a caça e os passatempos mais devem ser para os folgazãos do que para os governadores: o meu entretenimento consistirá

em jogar pelas Páscoas, nos domingos e dias santos algum jogo caseiro, que lá isso de caças não dizem bem com a minha condição, nem se acomodam com a minha consciência.

- Praza a Deus que assim seja, Sancho, porque do dizer ao fazer vai grande distância.

- Haja lá a distância que houver; o bom pagador não teme dar penhor; e mais faz quem Deus ajuda, que quem muito madruga; e as tripas é que levam os pés, não são os pés as tripas;

quero dizer, que, se Deus me ajudar, e eu fizer o que devo com boa intenção, hei-de governar melhor que um gerifalte, e senão metam-me o dedo na boca, e verão se eu mordo.

- Maldito sejas, por Deus e por todos os santos, Sancho amaldiçoado - acudiu D. Quixote -, quando virá o dia, como já por muitas vezes tenho dito, em que eu te ouça expender, sem provérbios, razões correntes e concertadas? Deixem Vossas Grandezas este tonto Senhores meus, se não querem que ele lhes moa as almas com dois mil rifões despropositados.

- Os rifões de Sancho - disse a duquesa -, não sendo mais do que os do comentador grego, nem por isso são menos estimados, pela verdade das sentenças; eu, por mim, digo que os prefiro a outros quaisquer, ainda que esses outros venham mais a propósito.

Com estas e outras práticas, saíram da tenda para o bosque, e passaram o dia em preparar novos postos de caça, até que chegou a noite, não tão clara como pediam o tempo e a estação, que era pleno estio; mas um certo claro-escuro, que trouxe consigo, favoreceu a tenção dos duques; e, assim que principiou a anoitecer, um pouco depois do crepúsculo, pareceu de repente que o bosque todo ardia, e ouviram-se logo por diferentes pontos infinitas cornetas e outros instrumentos de guerra, como se passassem pelo bosque muitos esquadrões de cavalaria. A luz do fogo e o som dos bélicos instrumentos, quase que cegaram e ensurdeceram os circunstantes, e até quantos pelo bosque estavam. Depois, ouviram-se infinitos clamores, semelhantes aos dos mouros, quando entram nas batalhas; soaram trombetas e clarins, rufaram tambores, vibraram pífaros, quase todos a um tempo, tão contínua e apressadamente, que entontecia o som confuso

de tantos instrumentos. Pasmou o duque ficou suspensa a duquesa, admirou-se D. Quixote, tremeu Sancho Pança, e, finalmente, os mesmos que sabiam a causa desse barulho se espantaram. Com o temor veio naturalmente o silêncio, e silenciosos os encontrou um postilhão, que, em trajo de Demónio, passou por diante deles, tocando, em vez de corneta, um chifre oco e desmedido, que despedia um som rouco e horroroso.

- Olá, correio mano, quem sois vós? - perguntou o duque. - Aonde ides? Que gente de guerra é essa, que parece atravessar este bosque?

- Sou o Diabo - respondeu o correio, com voz horrísona

-; vou buscar D. Quixote de La Mancha; a gente que aí vem são seis esquadres de nigromantes, que trazem num carro ovante a ncomparável Dulcineia del Toboso: vem encantada, com o galhardo francês Montesinos, dizer a D. Quixote como é que a pode desencantar.

- Se fôsseis Diabo, como dizeis, e como a vossa figura mostra, já teríeis conhecido o cavaleiro que procurais, D. Quixote de La Mancha, pois que o tendes diante de vós - tomou o duque.

- Por Deus e pela minha consciência - redarguiu o Diabo

- não dava por ele; trago os pensamentos distraídos com tantas coisas, que já me ia esquecendo do principal a que vinha.

- Sem dúvida - disse Sancho - este Demónio deve ser pessoa de bem, e bom cristão, porque, se o não fosse, não juraria por Deus e pela sua consciência.

Logo o Demónio, sem se apear, e dirigindo a vista para D. Quixote, disse:

- A ti Cavaleiro dos Leões (e entre as garras deles eu te veja), me envia o desgraçado, mas valente cavaleiro Montesinos, mandando-me que te diga da sua parte que o esperes no sítio em que eu te topar, porque traz consigo aquela a quem chamam Dulcineia del Toboso, com ordem de te dar o que é mister para que ela seja desencantada; e por não ter outro fim a minha vinda, não terei aqui mais demora; fiquem contigo os demónios como eu, e com estes Senhores os anjos bons.

E, dizendo isto, assoprou no extravagante chifre, voltou as costas, e foi-se, sem esperar resposta alguma. Renovou-se o espanto de todos, especialmente de Sancho e de D. Quixote; de Sancho, por ver que, a despeito da verdade, queriam à viva força que Dulcineia estivesse encantada; de D. Quixote, por se não poder certificar se era verdade ou não o que passara na cova de Montesinos; e, estando enlevado nestes pensamentos, disse-lhe o duque:

- Vossa Mercê tenciona esperar, Sr. D. Quixote?

- Pois não! - respondeu ele. - Aqui esperarei, intrépido e forte, ainda que venha investir-me o Inferno todo.

- Pois eu, se vejo outro Diabo e ouço outro chifre, espero tanto como se estivesse em Flandres - acudiu Sancho.

Nisto cerrou-se mais a noite, e principiaram a correr pelo bosque muitas luzes, como correm pelo céu as exalações da Terra, que parecem à nossa vista estrelas cadentes. Ouviu-se logo também um espantoso ruído, como aquele que produzem as rodas maciças dos carros de bois, de cujo chiar áspero e continuado se diz que fogem os lobos e os ursos, se os há nos sítios por onde passam. Acrescentou-se a toda esta tempestade outra muito maior, e foi parecer verdadeiramente que nos quatro cantos do bosque se estavam dando ao mesmo tempo quatro recontros ou batalhas, porque ali soava o duro estrondo de espantosa artilharia; acolá, disparavam-se infinitas escopetas; mais perto, soavam as vozes dos combatentes; ao longe, reiteravam-se os clamores agarenos; finalmente, as cornetas, as trompas, as buzinas, os clarins, as trombetas, os tambores, a artilharia, os arcabuzes, e, sobretudo, o temeroso ruído dos carros, formavam, no seu conjunto, um som tão confuso e tão horrendo, que foi mister que D. Quixote se valesse de todo o seu ânimo; mas o de Sancho é que se desfez, e deu com ele desmaiado nas saias da duquesa, a qual o recebeu, e com grande pressa mandou que lhe deitassem água no rosto. Assim se fez, e tornou Sancho a si, exactamente quando chegava àquele sítio um dos carros das chiadoras rodas. Puxavam-no quatro preguiçosos bois, todos cobertos de paramentos negros: em cada chifre traziam amarrado e aceso um grande círio, e em cima do carro, num alto assento, vinha um venerável velho, com a barba mais branca do que a branca neve, e tão comprida, que lhe passava para

baixo da cintura; a sua vestimenta era uma roupa larga de negro bocaxim, e via-se perfeitamente tudo o que vinha no carro, por causa das infinitas luzes que o alumiavam. Guiavam-no dois feios demónios, vestidos da mesma fazenda, e com rostos tão horrendos que Sancho, apenas os viu, fechou os olhos para os não continuar a ver. Chegando, pois, o carro ao sítio onde eles estavam, levantou-se do seu alto assento o venerável velho, e, posto em pé, disse com um grande brado:

- Eu sou o sábio Lirgandos.

E o carro passou adiante, sem ele dar nem mais palavra. Atrás deste veio outro carro do mesmo feitio, com outro velho entronizado, o qual, fazendo parar o carro, com voz não menos grave do que a do outro, disse:

- Eu sou o sábio Alquife, o grande amigo de Urganda, a desconhecida.

E passou adiante. Veio logo atrás terceiro carro, mas o que vinha sentado no trono não era velho: era um homenzarrão robusto e de má catadura, que, ao chegar, pondo-se de pé como os outros, disse com voz mais rouca e mais endiabrada:

- Sou Arquelaus, o nigromante, inimigo mortal de Amadis de Gaula e de toda a sua parentela.

E passou.

A pouca distância, fizeram alto os três carros, e cessou a enfadosa chiadeira das suas rodas; e não se ouviu outro ruído, a não ser um som de suave e concertada música, com que Sancho se alegrou, tendo-o por bom sinal, e assim o disse à duquesa, de quem não se arredava um passo:

- Senhora, onde há música não pode haver coisa má.

- Nem onde há luzes e claridade - respondeu a duquesa.

- Luz dá o fogo, e claridade as fogueiras, como vemos nas que nos cercam, e podiam, contudo, perfeitamente abrasar-nos - tornou Sancho - mas a música sempre é indício de rgozijo e de festas.

- Ele o dirá - acudiu D. Quixote, que tudo escutava. E disse bem, como se verá no capítulo seguinte.

 

ONDE PROSSEGUE A NOTÍCIA QUE TEVE D. QUIXOTE, DO DESENCANTAMENTO DE DULCINEIA, COM OUTROS ADMIRÁVEIS SUCESSOS

Ao compasso da agradável música, viram que para eles se encaminhava um carro, destes a que chamam triunfais, puxado por seis mulas pardas, cobertas de um pano branco, e montado em cada uma delas vinha um penitente, vestido também de branco, e com um grande círio na mão. Era um carro duas vezes e ainda três vezes maior do que os anteriores, e aos lados e em cima dele vinham mais doze penitentes, alvos de neve, todos com os seus círios acesos, vista que inspirava a um tempo admiração e espanto; e num erguido trono sentava-se uma ninfa, vestida de mil véus de gaze prateado, brilhando em todos eles infinitas palhetas de ouro, que a faziam o mais vistosamente trajada que se pode imaginar; trazia o rosto coberto com um transparente e delicado cendal, de modo que, sem que as suas pregas o impedissem, por entre elas se descobria um formosíssimo rosto de donzela, e as muitas luzes deixavam distinguir a beleza e a idade, que seria entre dezassete e vinte anos;

junto dela vinha uma figura, vestida de roupas roçagantes até aos pés, com a cabeça coberta de um véu negro; mas, quando o carro chegou defronte dos duques e de D. Quixote, parou a música das charamelas, e em seguida a das harpas e dos alaúdes;

e pondo-se de pé esta última figura, abriu as roupas, e, tirando o véu do rosto, mostrou que era a própria Morte, descarnada e horrenda, o que afligiu D. Quixote e assustou Sancho, e aos duques inspirou um certo sentimento temeroso. Posta em pé esta morte viva, com voz um pouco sonolenta e língua não muito desperta, começou a dizer desta maneira:

Eu sou Merlim, aquele que as histórias dizem que tem por pai o próprio Diabo (mentira autorizada pêlos tempos), príncipe da arte mágica, monarca

e arquivo da ciência zoroástrica, emulo das idades, e dos séculos, que solapar pretendem as façanhas dos andantes valentes cavaleiros, a quem eu tive e tenho grande afecto.

Mas, apesar de ser dos nigromantes, dos magos e dos mágicos, por uso, severa a condição, áspera e forte, a minha é terna, e amorosa e branda:

gosto de fazer bem a toda a gente. Nessas cavernas lôbregas de Dite, onde em formar os magos caracteres minha alma se entretinha, ouvi, de súbito, a voz plangente e meiga da formosa e sem par Dulcineia del Toboso.

Narrou-me então seu infeliz destino, sua transformação de gentil dama em rústica aldeã; compadeci-me;

dentro desta figura horripilante encerrei meu espírito; mil livros revolvi, manuseei, desta ciência endiabrada e torpe que professo, e enfim, trago remédio competente para tamanha dor, desgraça tanta.

Ó tu que és honra e glória dos que vestem túnicas de aço e rútilo diamante, luz e fanal e mestre e norte e guia daqueles que, deixando o torpe sono e os ociosos leitos, só se empregam no rude, intolerável exercício das sangrentas, fatais, pesadas armas!

A ti, ó varão nunca louvado como o mereces ser; a ti, valente cavaleiro e discreto D. Quixote, da Mancha resplendor, da Espanha estrela:

Para que Dulcineia del Toboso possa recuperar o antigo estado, deve o teu escudeiro Sancho Pança assentar nas suas largas pousadeiras, descobertas e ao ar, três mil açoites com suas próprias mãos, e mais trezentos... açoites que lhe doam bem deveras.

Mandam isto os que foram da desgraça da bela Dulcineia causadores, e aqui vim a dizê-lo, meus Senhores.

- Voto a tal - acudiu logo Sancho -; eu não dou em mim próprio, já não digo três mil açoites, mas nem três que são três. Diabos levem semelhante modo de desencantar: não sei que têm que ver as minhas pousadeiras com estes encantamentos. Pois se o Sr. Merlim não achou outro modo de desencantar a Sra. Dulcineia del Toboso, encantada pode ir para a sepultura.

- Agarro-te eu, dom vilão - disse D. Quixote -, amarro-te a uma árvore, nu como saíste do ventre da tua mãe, e dou-te não três mil e trezentos açoites, mas seis mil e seiscentos, e hão-de ser dados a valer; e não me repliques nem palavra, que te arranco a alma.

- Não pode ser desse modo - acudiu Merlim - porque os açoites que Sancho tem de receber, há-de ser por sua vontade e não à força, e quando lhe aprouver, que se lhe não dá prazo fixo; e até se lhe permite que, se quiser apanhar só metade da conta, consinta que mão alheia lhos aplique, por mais pesada que seja.

- Nem a minha mão, nem mão alheia, nem pesada, nem por pesar - redarguiu Sancho -, em mim é que ninguém toca. Dei eu por acaso à luz a Sra. Dulcineia, para que paguem as minhas pousadeiras o pecado dos seus olhos? O Senhor, meu amo, sim, que lhe chama a cada instante a sua vida, a sua alma, sustento e arrimo seu; esse sim, esse é que se pode e deve açoitar por ela, e fazer todas as diligências necessárias para o seu desencantamento; mas açoitar-me eu, abernúncio

Apenas Sancho acabou de dizer isto, levantou-se a prateada ninfa, que vinha ao pé do fantasma de Merlim, e, tirando o véu subtil, descobriu um rosto que a todos pareceu extremamente formoso, e com desenvoltura varonil, e voz não muito adamada, voltando-se para Sancho Pança, disse-lhe:

- Ó desventurado escudeiro, alma de cântaro, coração de rija madeira, entranhas empedernidas, se te mandassem, ladrão, patife, que te atirasses de uma torre abaixo; se te pedissem, inimigo do género humano, que comesses uma dúzia de sapos, duas de lagartos, e três de cobras; se te incitassem a matar tua mulher e teus filhos com um agudo e truculento alfange, não seria maravilha que te mostrasses melindroso e esquivo; mas fazer caso de três mil e trezentos açoites, que não há ruim estudante de doutrina que os não leve todos os meses, é para indignar os corações piedosos de todos os que isto escutam, e até de todos os que o vierem a saber no decorrer do tempo. Põe, miserável e endurecido animal, esses teus olhos de mocho espantadiço nas pupilas destes meus, rutilantes como estrelas, e vê-los-ás chorar em fio lágrimas que fazem sulcos e abrem caminhos nos formosos campos das minhas faces. Mova-te o saberes, monstro, socarrão e mal-intencionado, que estes meus anos floridos, que estão na casa dos dez, pois tenho dezanove e ainda não cheguei aos vinte, se consomem e murcham debaixo da casca de uma rústica lavradeira; e, se o não pareço agora, devo-o à mercê particular que me fez o Sr. Merlim, que presente se acha, só para que te enternecesse a minha formosura; que as lágrimas de uma aflita beldade mudam tigres em ovelhas. Açoita-me, pois, esses toucinhos, bruto indómito; não penses só em comer; mostra brio, e põe em liberdade a lisura das minhas carnes, a meiguice da minha condição, a beleza do meu rosto; e se por minha causa não te abrandas, nem entras em termos razoáveis, fá-lo por esse pobre cavaleiro que está ao teu lado, por teu amo, cuja alma estou vendo, que a tem atravessada na garganta, esperando só a tua rígida ou branda resposta, ou para sair pela boca ou para voltar ao estômago.

Ouvindo isto, D. Quixote apalpou a garganta, e disse, voltando-se para o duque:

- Por Deus, Senhor, Dulcineia disse a verdade, que tenho aqui a alma atravessada na garganta.

- Que dizeis a isto, Sancho? - perguntou a duquesa.

- Digo, Senhora - respondeu Sancho -, o que já disse: que lá a respeito de açoites, abernúncio.

- Abrenúncio é que se diz, Sancho - acudiu o duque.

- Deixe-me Vossa Grandeza; não estou agora disposto a reparar em subtilezas, nem em letras de mais ou de menos, porque me vejo tão perturbado com estes açoites que hei-de apanhar, dados por mim ou por outrem, que não sei o que digo nem o que faço; mas sempre quereria perguntar à minha Sra. d. Dulcineia del Toboso, onde é que aprendeu semelhante modo de pedir. Vem suplicar-me que rasgue a carne com açoites, e chama-me alma de cântaro, e bruto indómito, e mais uma ladainha de nomes feios, que só o Diabo é capaz de suportar. Porventura as minhas carnes são de bronze, ou importa-me alguma coisa que ela se desencante ou não? Que trouxa de roupa branca, de camisas, de penteadores, e de sapatinhos me traz para me abrandar, a não ser uma chuva de vitupérios, sem se lembrar daquele rifão, que diz: que um burro carregado de ouro sobe ligeiro um monte; que dádivas quebrantam penhas; e que mais vale um toma, que dois te darei? Pois o Senhor, meu amo, que devia passar a mão pelo meu lombo, e afagar-me para me fazer macio, não diz que, se me apanha, amarra-me nu a uma árvore, e me dobra a parada dos açoites? E não reparam estes senhores, que não só pedem que se açoite um escudeiro, mas um governador! Aprendam, eramá, a saber rogar e a saber pedir, e a ver que os tempos mudam, e que os homens nem sempre estão de boa venta. Agora estou eu rebentando de pena, por ver o meu saio verde roto, e vêm-me pedir que me açoite por minha vontade, estando eu tão disposto a isso como a fazer-me cacique

- Pois na verdade, amigo Sancho - disse o duque -, se não amansais, juro-vos que não apanhais o governo. Havia de ser bonito mandar eu aos meus insulanos um governador cruel, de entranhas empedernidas, que se não dobra às lágrimas das aflitas donzelas nem aos rogos de discretos, imperiosos e antigos nigromantes e sábios. E, para encurtar razões, Sancho, ou sereis açoitado, ou não sereis governador.

- Senhor Duque - respondeu Sancho -, não me podem dar dois dias para reflectir?

- Não, isso de nenhum modo - acudiu Merlim -, aqui já há-de ficar assentado e resolvido este negócio. Ou Dulcineia volta para a cova de Montesinos e para o seu primitivo estado de lavradeira, ou tal como se acha será levada aos Campos Elísios, onde ficará esperando que se complete a conta dos açoites.

- Eia! bom Sancho - acudiu a duquesa -, ânimo, e correspondei como deveis a terdes comido o pão do Sr. D. Quixote, a quem todos devemos servir e agradar por sua boa condição e suas altas cavalarias. Dai o sim, filho, e vá-se o Diabo para o diabo, e o temor para os mesquinhos, que um bom coração quebranta a má ventura, como vós bem sabeis.

A estas razões respondeu Sancho, perguntando a Merlim:

- Diga-me Vossa Mercê, Sr. Merlim, quando o diabo-correio aqui chegou, deu a meu amo um recado do Sr. Montesinos, mandando-lhe da sua parte que o esperasse aqui, porque vinha dar ordem para que a Sra. d. Dulcineia del Toboso se desencantasse, e até agora ainda não vimos Montesinos, nem pessoa que o pareça.

- O Diabo, amigo Sancho - respondeu Merlim -, é um ignorante e um grandíssimo velhaco. Mandei-o eu em busca de vosso amo, mas com recado meu e não de Montesinos, porque Montesinos está na sua cova, esperando o seu desencantamento, que ainda lhe falta um pedaço. Se vos deve alguma coisa, ou tendes algum negócio que tratar com ele, eu vo-lo trarei e porei no sítio que quiserdes; e por agora vede se dais o sim que se vos pede. E acreditai que vos será de muito proveito, tanto à alma como ao corpo: à alma, pela caridade com que procedereis; ao corpo, porque sei que sois de compleição sanguínea, e não vos poderá fazer mal tirar um pouco de sangue.

- Muitos médicos há no mundo! - redarguiu Sancho. - Até o são os nigromantes! Mas já que todos insistem comigo,

ainda que entendo que é grande tolice, não tenho remédio senão consentir em apanhar os três mil e trezentos açoites, com a condição de os poder dar eu em num próprio, quando muito bem quiser, sem que me marquem a ocasião; procurarei pagar a dívida o mais depressa possível, para que o mundo goze a formosura da Sra. d. Dulcineia del Toboso. Quero também a condição de não ser obrigado a tirar sangue com a disciplina, e que se alguns açoites forem de enxotar moscas, também hão-de entrar na conta. Item, que se eu me enganar no número, o Sr. Merlim, como sabe tudo, terá cuidado de os contar, e de me dizer quantos me faltam ou quantos me sobram.

- Não preciso de avisar com relação às sobras - respondeu Merlim - porque, em chegando ao número completo, logo ficará de súbito desencantada a Sra. Dulcineia, e virá, agradecida, procurar o bom Sancho, e premiá-lo pela sua boa obra. Assim, não há que ter escrúpulo com os sobejos, nem permita o Céu que eu engane a ninguém, num cabelo que seja.

- Eia, pois! Na mão de Deus me entrego - disse Sancho -, consinto na minha má ventura, quer dizer, aceito a penitência com as condições apontadas.

Apenas Sancho disse estas últimas palavras, voltou a tocar a música das charamelas, tornaram-se a disparar infinitos arcabuzes, e D. Quixote pendurou-se do pescoço de Sancho, dando-lhe mil beijos na testa e nas faces. A duquesa e o duque e os circunstantes deram sinal de grandíssimo contentamento, e o carro começou a caminhar e a formosa Dulcineia, ao passar por diante dos duques, inclinou-lhes a cabeça, e fez uma profunda mesura a Sancho.

Vinha a romper a aurora alegre e ridente: as florinhas dos campos descerravam e erguiam a corola, e os líquidos cristais dos arroios, murmurando por entre brancos e pardos seixos, iam dar tributo aos rios que os esperavam; a terra alegre, lúcido o céu, o ar límpido, a luz transparente, cada um de per si e todos juntos davam manifestos sinais de que o dia, que vinha seguindo a aurora, havia de ser sereno e claro. E, satisfeitos os duques com a caça, e com o terem conseguido o seu intento tão discreta e felizmente, voltaram para o castelo com intenção de prosseguir nas suas patranhas, que não havia verdades que mais os divertissem.

 

ONDE SE CONTA A ESTRANHA E NUNCA IMAGINADA AVENTURA DE DONA DOLORIDA, ALIÁS DA CONDESSA TRIFALDI, COM UMA CARTA QUE SANCHO PANÇA ESCREVEU A SUA MULHER TERESA PANÇA

Tinha o duque um mordomo, de engenho alegre e desenfadado, que representou o papel de Merlim, arranjou todo o aparato da aventura passada, compôs os versos, e incumbiu um pajem de fazer o papel de Dulcineia. Finalmente, por ordem de seus amos, arranjou outra burla do mais estranho e gracioso artifício que se pode imaginar.

Perguntou a duquesa a Sancho, no outro dia, se já dera começo à penitência que havia de fazer para se desencantar Dulcineia. Disse que sim, e que naquela noite dera em si mesmo cinco açoites. Perguntou-lhe a duquesa com que os dera;

respondeu que tinha sido com a mão.

- Isso - redarguiu a duquesa - são mais palmadas que açoites; parece-me que o sábio Merlim não ficará contente com tamanha brandura; será mister que o bom Sancho arranje algumas disciplinas de cordas ou destas de couro, que se façam sentir, porque o haver sangue é condição expressa, e não se pode comprar tão barato a liberdade de tão excelsa senhora, como é Dulcineia.

- Dê-me Vossa Senhoria alguma disciplina ou corda conveniente - respondeu Sancho - que eu me açoitarei com ela, contanto que me não doa muito; porque faço saber a Vossa Mercê que, apesar de ser rústico, as minhas carnes têm mais de algodão que de esparto, e não estou para me esfarrapar em proveito alheio.

- Pois seja assim - tornou a duquesa -; eu vos darei amanhã umas disciplinas que vos sirvam perfeitamente, e se acomodem com o tenro das vossas carnes, como se fossem suas próprias irmãs.

- Saiba Vossa Alteza Senhora minha da minha alma - disse Sancho -, que escrevi uma carta a minha mulher Teresa Pança, dando-lhe conta de tudo o que me sucedeu, depois que dela me apartei; aqui a tenho no seio, que só lhe falta pôr o sobrescrito; quereria que a vossa discrição a lesse, porque me parece que vai conforme com o modo como devem escrever os governadores.

- E quem foi que a notou? - perguntou a duquesa.

- Quem a havia de notar senão eu, pecador de mim?

- E escreveste-la vós? - disse a duquesa.

- Nem por pensamento - respondeu Sancho -, que eu não sei ler nem escrever, sei apenas assinar.

- Vejamo-la, que decerto haveis de mostrar nela a qualidade e a suficiência do vosso engenho.

Tirou Sancho do seio uma carta aberta, e a duquesa, pegando-lhe, viu que dizia desta maneira:

CARTA DE SANCHO PANÇA A TERESA PANÇA, SUA MULHER

«Se bons açoites me davam, muito bem montado eu ia; se bom governo eu apanho, mui bons açoites me custa. Isto não o entendes tu por ora, Teresa minha, mas outra vez to explicarei. Hás-de saber que determinei que andes de coche, que é o que serve, porque tudo o mais é andar de gatas. És mulher de um governador: vê lá se há alguém que te chegue aos calcanhares. Aí te mando um fato verde de monteiro, que me deu a Senhora Duquesa; arranja dele uma saia e um corpo de vestido para a nossa filha. D. Quixote, meu amo, segundo ouvi dizer nesta terra, é um louco assisado e um mentecapto gracioso, e eu não lhe fico atrás. Estivemos na cova de Montesinos, e o sábio Merlim apanhou-me para se desencantar Dulcineia del Toboso, que por aí se chama Aldonsa Lorenzo. Com três mil e trezentos açoites, menos cinco, que hei-de dar em mim próprio, ficará tão desencantada como a minha mãe. Não digas isto a ninguém, porque logo principiam em conselhos, e um diz que é branco e outro que é preto. Daqui a poucos dias partirei para o governo, para onde vou com grandíssimo desejo de juntar dinheiro, porque me disseram que todos os governadores novos levam essa mesma vontade: eu lhe tomarei o pulso, e te avisarei se hás-de vir

estar comigo ou não. O ruço vai de saúde, e recomenda-se muito, e não tenciono deixá-lo, nem que me façam grão-turco. A duquesa, minha Senhora, beija-te mil vezes as mãos; tu retroca-lhe com duas mil, que não há coisa que saia mais barata, segundo diz meu amo, do que os bons comedimentos. Não foi Deus servido deparar-me outra maleta com outros cem escudos: mas não te dê cuidado, Teresa, quem repica os sinos está de saúde, e tudo há-de sair na barreia do governo, ainda que me afligiu o dizerem-me que, se uma vez o provo, fico a amber os dedos, e sou capaz de comer as mãos; e, se assim fosse, não me custaria barato, ainda que os estropiados e os mancos têm uma conezia nas esmolas que pedem; de forma que, de um modo ou de outro, tu hás-de ser rica e feliz. Deus te dê mil venturas, como pode, e me guarde a mim para te servir.

Deste castelo a 20 de Julho de 1614.

Teu marido, o governador

SANCHO PANÇA.”

Quando a duquesa acabou de ler esta carta, disse para Sancho:

- Em duas coisas erra o bom governador: uma, em dar a entender que lhe deram este governo pêlos açoites com que se há-de fustgar, sabendo ele perfeitamente que, quando o duque, meu Senhor lho prometeu nem em semelhantes açoites se sonhava; a outra, em se mostrar nesta carta muito cobiçoso, e isso é mau, porque se diz que a cobiça rompe o saco, e o governador cobiçoso faz desgovernada a justiça.

- Eu não quis dizer isso Senhora - respondeu Sancho -, e se Vossa Mercê entende que a carta não deve ir como vai, o que há a fazer é rasgá-la, e escrever outra nova; é verdade que pode ser que saia pior, se ma deixarem ao meu bestunto.

- Não, não - redarguiu a duquesa -, está boa esta, e quero até que o duque a veja.

E nisto foram para um jardim, onde naquele dia tencionavam jantar. Mostrou a duquesa a carta de Sancho a seu marido, que muito se divertiu com ela. Jantaram, e depois de se levantar a mesa, e de se terem entretido um bom pedaço com a saborosa conversação de Sancho, ouviu-se de repente o som tristíssimo de um pífaro e de um rouco e destemperado tambor. Todos mostraram alvoroçar-se com a marcial, confusa e triste harmonia, especialmente D. Quixote, que nem podia estar sentado; de Sancho só há que dizer que o medo o levou para o seu costumado refúgio, que era ao lado ou atrás da duquesa, porque realmente o som que se escutava era melancólico e tristíssimo. E, estando todos assim suspensos, viram entrar pelo jardim adiante dois homens vestidos de roupas lutuosas, que arrastavam pelo chão, e vinham tocando dois tambores também cobertos de negro. Ao seu lado vinha o pífaro, de negro também. Seguia-se a estes três uma personagem de corpo agigantado, vestida com uma loba negríssima, e de imensa cauda. Por cima da loba cingia-lhe o corpo um largo talim também negro, de onde pendia um desmedido alfange, de bainha e guarnições negras. Trazia o rosto coberto com um véu negro transparente, por onde se entrevia uma compridíssima barba, alva de neve. Movia o passo ao som dos tambores, com muita gravidade e descanso. Veio, pois, com a pausa e prosopopeia referida ajoelhar diante do duque, que o esperava em pé como todos os outros que junto dele estavam. Mas o duque de nenhum modo consentiu que ele falasse, enquanto se não levantou. Obedeceu o prodigioso espantalho, e, depois de se levantar, ergueu o véu do rosto, e patenteou a mais horrenda, a mais larga, a mais branca, e a mais farta barba que nunca até então olhos humanos tinham visto, e disse, pondo os olhos no duque, com voz sonora e grave, que parecia arrancada do amplo e dilatado peito:

- Altíssimo e poderoso Senhor, chamam-me Trifaldino da Barba Branca; sou escudeiro da condessa Trifaidi, por outro nome chamada a Dona Dolorida, da parte da qual trago a Vossa Grandeza uma embaixada, que consiste em pedir a vossa magnificência que seja servida permitir-lhe que entre e lhe refira a sua aflição, que é uma das mais novas e mais espantosas que nunca se imaginaram; e quer primeiro saber se está neste castelo o valoroso e nunca vencido cavaleiro D. Quixote de La Mancha, em procura de quem tem vindo a pé e sem quebrar o

jejum, desde o reino de andaia até este vosso estado, coisa que se pode e deve atribuir só a milagre ou a força de encantamento; está à porta desta fortaleza ou casa de campo, e só espera para entrar o vosso beneplácito. Disse.

E logo tossiu, e começou a afagar a barba de cima para baixo com ambas as mãos, e com muito sossego esteve esperando a resposta do duque, que foi a seguinte:

- Há muitos dias já, bom escudeiro Trifaldino da Barba Branca, que temos notícia da desgraça da condessa Trifaidi, minha Senhora, a quem os nigromantes fazem chamar a Dona Dolorida; bem podeis, estupendo escudeiro, dizer-lhe que entre, e que está aqui o valente cavaleiro D. Quixote de La Mancha, de cujo ânimo generoso pode esperar com segurança todo o amparo e todo o auxílio; e também lhe podereis dizer da minha parte que, se o meu favor lhe for necessário, lhe não há-de faltar, pois a isso me obriga o ser cavaleiro, profissão a que anda anexo o dever de favorecer toda a casta de mulheres, especialmente as donas viúvas, menoscabadas e doloridas, como deve de estar Sua Senhoria.

Ouvindo isto, Trifaldino dobrou o joelho até ao chão, e, fazendo ao pífaro e aos tambores sinal para que tocassem, com o mesmo som e o mesmo passo com que entrara tornou a sair do jardim, deixando todos admirados da sua presença e compostura. E, tornando o duque para D. Quixote, disse-lhe:

- Enfim famoso cavaleiro, não podem as trevas da malícia nem da ignorância encobrir nem escurecer a luz do valor e da virtude. Digo isto, porque há seis dias apenas que Vossa Bondade está neste castelo, e já vos vêm procurar de longas e apartadas terras, não em carros, nem em dromedários, mas a pé e em jejum, os tristes e os aflitos, confiados em que hão-de encontrar nesse fortíssimo braço o remédio das suas aflições e dos seus trabalhos, graças às vossas grandes façanhas, cuja notícia corre por toda a Terra.

- O que eu quereria Senhor Duque - respondeu D. Quixote -, é que estivesse aqui presente aquele bendito religioso, que no outro dia à mesa mostrou ter tão má vontade e tanto ódio aos cavaleiros andantes, para que visse com os seus olhos

se os tais cavaleiros são ou não necessários no mundo; veria que os extraordinariamente aflitos e desconsolados, em casos grandes e em desditas enormes, não vão buscar o seu remédio a casa dos letrados nem a casa dos sacristães das aldeias, nem ao cavaleiro que nunca saiu da terra onde nasceu, nem ao preguiçoso cortesão, que antes busca notícias para as referir e contar do que procura praticar façanhas, para que outros as contem e as escrevam. O remédio das aflições, o socorro das necessidades, o amparo das donzelas, a consolação das viúvas, em nenhuma espécie de pessoas se encontra melhor do que nos cavaleiros andantes, e, por eu ser um deles, dou por muito bem empregado qualquer desmando e qualquer trabalho que neste exercício tão honroso me possa acontecer. Venha essa dona e peça o que quiser, que encontrará remédio na força do meu braço e na intrépida resolução do meu animoso espírito.

 

ONDE PROSSEGUE A FAMOSA AVENTURA DA DONA DOLORIDA

Folgaram muito o duque e a duquesa por verem como D. Quixote correspondia bem aos seus intentos; e nisto disse Sancho:

- A mim é que me não agradaria que esta Senhora Dona viesse pôr tropeços à promessa do meu governo, porque ouvi dizer a um boticário toledano, que chalrava como um pintassilgo, que onde interviessem donas não podia haver coisa boa. Ai! Senhor! E que mal que dizia delas o tal boticário! De onde eu infiro que, se todas as donas são enfadosas e impertinentes, de qualquer qualidade, e condição que sejam, o que farão as que forem doloridas, como disseram que é essa condessa de três faldas ou de três fraldas!

- Cala-te, Sancho amigo - disse D. Quixote -, que, vindo esta Senhora Dona de tão longes terras procurar-me, não pode ser daquelas a que o boticário se referia, tanto mais que esta é condessa, e quando as condessas servem de donas, não pode ser senão a rainhas e imperatrizes, e em suas casas são senhorissimas, e com outras donas se servem.

A isto respondeu Dona Rodriguez, que se achava presente:

- Donas tem ao seu serviço a Senhora Duquesa, que poderiam ser condessas, se a fortuna o quisesse; mas lá se vão leis onde querem reis; e ninguém diga mal das donas, e ainda menos das que são antigas e donzelas, que, ainda que eu não seja dessas, percebo perfeitamente a vantagem que leva uma dona donzela a uma dona viúva, e a quem pretende tosquiar-nos ficam-lhe as tesouras nas mãos.

- Com tudo isso, diz o meu barbeiro que não há pouco que tosquiar nas donas, e, portanto, será melhor não mexer o arroz, ainda que cheire a esturro.

- Sempre os escudeiros - respondeu Dona Rodriguez - são nossos inimigos, porque, sendo duendes das antessalas, e vendo-nos a cada instante, o tempo em que não rezam (que não é pouco) gastam-no em murmurar de nós outras, desenterrando-nos os antepassados, e enterrando-nos a fama. Pois eu mando-os para os cavalos de pau, que, em que lhes pese, havemos de viver no mundo e nas casas principais, ainda que morramos de fome e cubramos com um vestido negro as nossas carnes delicadas ou não. Ah! se fosse ocasião agora, eu mostraria a todos os presentes, e até ao mundo em peso, que não há virtude que se não encerre numa dona.

- Creio - disse a duquesa - que a minha boa Dona Rodriguez tem muitíssima razão; mas bom será que aguarde o ensejo próprio para punir por si e pelas outras donas, para confundir a má opinião daquele mau boticário, e desarraigar a que abriga no peito o grande Sancho Pança.

E Sancho respondeu:

- Depois que tenho fumaças de governador, já nada tenho de escudeiro, e não me importam donas nem meias donas.

O colóquio foi interrompido pêlos tambores e o pífaro, que tornavam a tocar, o que lhes deu a entender que Dona Dolorida entrava. Perguntou a duquesa ao duque se seria bem o ir recebê-la, visto que era condessa e pessoa principal.

- Lá por ser condessa - respondeu Sancho, adiantando-se ao duque - acho bem que Vossas Grandezas saiam a recebê-la, mas visto ser dona, parece-me que nem um passo devem dar.

- Para que te metes tu nestas coisas, Sancho? - perguntou D. Quixote.

- Para quê? Meto-me, porque me posso meter, porque sou um escudeiro que aprendeu as praxes da cortesia na escola de Vossa Mercê, que é o mais cortês e bem-criado cavaleiro do mundo; e nestas coisas ouvi dizer a Vossa Mercê, que tanto se perde por carta de mais como por carta de menos, e a bom entendedor meia palavra basta.

- Sancho diz muito bem - acudiu o duque -; veremos as maneiras da condessa, e a cortesia que se lhe deve.

Nisto entraram os tambores e o pífaro, como da primeira vez. E aqui, neste breve capítulo, pôs ponto o autor, e principiou o outro, continuando com a mesma aventura, que é uma das mais notáveis desta história.

 

ONDH SE CONTA O QUE DISSE DAS SUAS DESVENTURAS A DONA DOLORIDA

Atrás dos tristes músicos principiaram a entrar pelo jardim não menos de doze donas repartidas em duas fileiras, todas com largos vestidos negros, e uns véus brancos tão compridos, que só deixavam ver a fímbria do vestido. Seguia-se-lhes a condessa Trifaidi, que vinha pela mão do seu escudeiro Trifaldino da Barba Branca, vestida de finíssima e negra baeta; a cauda era de três pontas, em que pegavam três pajens também vestidos de preto, fazendo uma figura vistosa e matemática com aqueles três ângulos agudos que formavam as três caudas, de onde provinha decerto o apelido de condessa Trifaidi; e diz Benengeli que assim era, efectivamente, e que o verdadeiro nome da condessa era Lobuna, por se criarem no seu condado muitos lobos, e ser costume naquelas partes tomarem os senhores os seus nomes das coisas em que os seus estados mais abundam. Vinham as doze donas e a senhora em passo de procissão, com os rostos cobertos com uns véus negros, e não transparentes como o de Trifaldino, mas tão apertados, que não deixavam ver coisa alguma. Assim que acabou de passar o esquadrão das donas, o duque, a duquesa, D. Quixote, e todos os mais que contemplavam a procissão, puseram-se de pé. Pararam as doze donas e fizeram alas, por entre as quais passou a Dolorida, sem Trifaldino lhe largar a mão. Vendo isto, o duque, a duquesa, e D. Quixote adiantaram-se obra de doze passos a recebê-la. Ela, ajoelhada, com voz antes grossa e rouca do que subtil e delicada, disse:

- Sejam servidos Vossas Senhorias de não fazer tantas cortesias a este seu criado, digo, a esta sua criada, porque tão dolorida sou, que não atinarei com o que devo responder, pois que esta minha estranha e nunca vista desdita levou-me o entendimento não sei para onde, mas decerto para muito longe, porque quanto mais o procuro, menos o encontro.

- Sem ele estaria - respondeu o duque - quem não descobrisse pela vossa pessoa Senhora Condessa, o vosso valor, e não é necessário pôr mais, para se saber que sois merecedora de toda a nata da cortesia, de toda a flor das bem-criadas cerimónias.

E levantando-a pela sua mão, levou-a a sentar-se numa cadeira ao pé da duquesa, que também a recebeu com muito cumprimento.

  1. Quixote calava-se e Sancho andava morto por ver o rosto da Trifaidi e de alguma das suas muitas donas; mas não pôde, enquanto elas se não descobriram por sua vontade. Sossegados todos e em silêncio, estavam esperando quem o havia de romper, e foi a Dona Dolorida, com estas palavras:

- Confiada estou Senhor Poderosíssimo, formosíssima Senhora, e discretíssimos circunstantes, em que há-de encontrar a minha angustiíssima em vossos valorosíssimos peitos acolhimento não menos plácido do que generoso e doloroso, porque é tal, que basta para enternecer os mármores, abrandar os diamantes, e amolecer os aços dos mais endurecidos corações deste

mundo; mas, antes de sair para a praça dos vossos ouvidos, para não dizer orelhas, quisera que me fizessem saber se estão no grémio desta companhia o acendradíssimo cavaleiro D. Quixote de La Mancha e seu escudeiríssimo Pança.

- O Pança aqui está - acudiu logo Sancho - e D. Quixotíssimo também, e podereis, portanto, dolorosíssima doníssima, dizer o que quiserdíssimos, porque todos estamos prontos e preparadíssimos para ser vossos servidoríssimos.

Nisto, levantou-se D. Quixote e disse, dirigindo-se à Dona Dolorida:

- Se as vossas aflições, angustiada Senhora, podem esperar algum remédio do valor ou das forças de um cavaleiro andante, aqui estou eu, que todo me empregarei no vosso serviço. Sou D. Quixote de La Mancha, cujo ofício é acudir a toda a casta de necessitados; e, sendo assim como é Senhora, não haveis mister de captar benevolências, nem de procurar preâmbulos, e podeis dizer chãmente e sem rodeios os vossos males, que vos escutam ouvidos que saberão, senão remediá-los, pelo menos compadecer-se deles.

Ouvindo isto, a Dona Dolorida deu mostras de se querer arrojar aos pés de D. Quixote, e ainda se arrojou, e, querendo por força abraçar-lhe as pernas, dizia:

- Diante destes pés e destas pernas me arrojo, ó cavaleiro invicto, por serem bases e colunas da cavalaria andante; quero beijar estes pés, de cujo passo está pendente todo o remédio da minha desgraça, ó valoroso cavaleiro, cujas verdadeiras façanhas deixam bem longe e escurecem as fabulosas dos Amadises, Esplandianes e Belianises!

E, largando D. Quxote, volveu a Sancho Pança, e, agarrando-lhe nas mãos, disse:

- O tu, o mais leal escudeiro que nunca serviu a um cavaleiro andante, nem nos presentes, nem nos passados séculos, mais longo em bondade do que a barba de Trifaldino, meu companheiro, que presente se acha! Bem podes gabar-te de que, servindo o Sr. D. Quixote, serves em resumo toda a caterva de cavaleiros que trataram as armas neste mundo. Suplico-te, pelo que deves à tua bondade fidelíssima, que sejas meu bom protector junto de teu amo, para que favoreça esta humildíssima e desgraçadíssima condessa.

- O ser a minha bondade tão comprida como a barba do vosso escudeiro - respondeu Sancho - pouco se me dá; barbada e com bigodes tenha eu a minha alma quando me for embora desta vida, que é o que eu quero; com as barbas de cá pouco ou nada me importo; mas sem todas essas moquenquices e súplicas, eu pedirei a meu amo (que sei que me quer bem, e agora ainda mais, que precisa de mim para certo negócio) que favoreça e ajude a Vossa Mercê em tudo o que puder; Vossa Mercê desembuche a sua aflição, conte-a, e deixe, que nos entenderemos.

Rebentavam de riso com estas coisas os duques, e os outros que tinham penetrado o segredo da aventura.

Todos louvavam de si para si a agudeza e a dissimulação da Trifaidi, que disse, tornando-se a sentar:

- Do famoso reino de Candaia, que fica entre a grande Taprobana e o mar do Sul, a duas léguas para além do cabo Comorim, foi Senhora a rainha D. Magúncia, viúva do rei Arquipélago; e desse matrimónio nascera a infanta Antonomásia, herdeira do reino, a qual se criou e cresceu debaixo da minha tutela e doutrina, por ser eu a mais antiga e a mais principal dona de sua mãe. Sucedeu, pois, que, com o decorrer dos tempos, a Menina Antonomásia chegou à idade de catorze anos, com tamanha perfeição, que a não podia fazer maior a Natureza. A sua discrição era de uma extraordinária precocidade, igualava a sua formosura, e era a mais formosa dama deste mundo, e ainda o será, se os fados invejosos e as Parcas endurecidas lhe não cortaram o fio da vida; mas não fizeram tal, decerto, porque não hão-de permitir os Céus que se faça tanto mal à Terra, como seria cortar os racimos verdes da mais formosa vide dos vinhedos. Desta formosura, que a minha língua não pode assaz encarecer, se enamorou um infinito número de príncipes, tanto naturais como estrangeiros, entre os quais ousou levantar os seus pensamentos ao Céu de tanta beleza um cavalheiro particular que na corte vivia, confiado na sua mocidade, na sua bizarria, e nas suas muitas prendas e encantos, facilidade e felicidade de engenho; porque, devo dizer a Vossas Grandezas, se os não

enfado, que tocava guitarra de modo tal, que não parecia senão que a fazia falar, e além disso era poeta e grande bailarino, e sabia fazer uma gaiola de pássaros, que só com essa prenda podia ganhar a vida, quando se visse em extrema necessidade;

todos estes predicados e prendas bastam para derrubar uma montanha, quanto mais uma delicada donzela. Mas toda a sua gentileza, todo o seu donaire, todas as suas graças e prendas, de nada lhe serviriam para render a fortaleza da minha menina, se o grande patife e roubador não usasse do remédio de me render primeiro a mim. Primeiro quis o malandrino e desalmado vagabundo ganhar-me a vontade e enfeitiçar-me, para que eu, mau alcaide, lhe entregasse as chaves da fortaleza que guardava. Em conclusão, adulou-me, e rendeu-me com não sei que dixes e jóias que me deu; mas o que mais me prostrou, o que sobretudo me seduziu, foram umas coplas que lhe ouvia cantar uma noite das reixas de uma janela, que deitava para um beco onde ele estava, e que, se bem me recordo ainda, diziam assim:

Da minha doce inimiga nasce a dor que a alma aflige, e por mais tormento exige que se sinta e não se diga.

Pareceu-me a trova de pérolas, e a voz de mel, e, desde então, vendo o mal em que caí por estes e por outros versos, tenho considerado que das repúblicas bem governadas se devem desterrar os poetas, como Platão aconselhava, pelo menos os lascivos, porque escrevem umas coplas, não como as do marquês de Mântua, que entretém e fazem chorar as crianças e as mulheres, mas umas agudezas, que, como brandos espinhos, nos atravessam a alma, e como raios a ferem, deixando incólume o vestido E outra vez cantou:

Morte, vem to escondida que eu não sinta apar'cer, pra que o gosto de morrer me não torne a dar a vida.

E deste jaez outras coplas, que, cantadas, encantam, em escritas, suspendem. E então, quando descia a compor um género de versos que em andaia se usava, e a que chamavam seguidilhas, ali era o pular dos corações, o retouçar do riso, o desassossego dos corpos, e finalmente o azougue de todos os sentidos! E assim digo Senhores meus, que os tais trovadores com justo motivo se devem desterrar para as ilhas dos Lagartos; mas não têm eles culpa: quem a tem são as simples que os louvam, e as tolas que os acreditam, e, se eu fosse a boa dona que devia ser, não me moveriam os seus tresnoutados conceitos, nem acreditaria que fosse verdadeiro aquele dizer: vivo morrendo, ardo no gelo, tenho calafrios no lume, espero sem esperança, parto e fico, e outros impossíveis desta laia, de que os seus escritos estão cheios! Pois, em prometendo o fénix da Arábia, o fio de Ariadne, os cavalos do Sol, as pérolas do Sul, o ouro de Tibar, e o bálsamo de Pancaia?! Aqui é que eles alargam mais a pena, porque lhes custa pouco prometer o que nunca pensaram, nem poderiam cumprir. Mas que digressões são estas? Ai de mim! Desditosa! Que loucura, ou que desatino me leva a contar as culpas alheias, tendo tanto que dizer das minhas? Ai de mim! Desventurada! Não me renderam os versos, rendeu-me a simplicidade minha; não me abrandou a música, mas sim a minha leviandade; a minha muita ignorância e pouca advertência abriram e franquearam o caminho a D. Clavijo, que assim se chama o referido cavaleiro; e, assim, sendo eu medianeira, muitas vezes entrou ele no quarto de Antonomásia, enganada por mim e não por ele, com o título de verdadeiro esposo, que, apesar de pecadora, não consentirira nunca que ele, sem ser seu marido lhe tocasse nem na ponta do sapato. Não, não! Isso não. O matrimónio há-de ir sempre adiante em quaisquer negócios destes que por mim se tratarem; houve só um mal neste negócio, que foi o da desigualdade de nascimento, por ser D. Clavijo um cavalheiro particular, e a infanta Antonomásia herdeira do reino, como já disse. Alguns dias esteve encoberto e solapado na sagacidade do meu recato esta trama, até que me pareceu que ia descobrindo a pouco e pouco um certo arredondamento das formas de Antonomásia, e esse temor a todos três nos sobressaltou, e resolveu-se que, antes que o caso viesse de todo à luz, D. Clavijo pedisse perante o vigário a Antonomásia para sua mulher, apresentando uma promessa de casamento que a infanta lhe fizera por escrito, redigida por meu talento com tanta energia, que nem as forças de Sansão a poderiam romper. Fizeram-se as diligências todas, viu o vigário a promessa, ouviu de confissão a infanta, que tudo lhe disse, mandou-a depositar em casa de um honradíssimo aguazil da corte...

- Também em Candaia há aguazis da corte, poetas, e seguidilhas? - interrompeu Sancho. - Parece-me que posso jurar que em todo o mundo é tudo a mesma coisa; mas apresse-se, Sr. Trifaidi, que já é tarde, e eu morro por saber o fim desta larguíssima história.

- Isso farei - respondeu a senhora.

 

ONDE A TRIFALDI PROSSEGUE NA SUA ESTUPENDA E MEMORÁVEL HISTÓRIA

Com qualquer palavra que Sancho dizia, tanto se regozijava a duquesa como se desesperava D. Quixote, e mandando-lhe este que se calasse, prosseguiu a Dolorida, dizendo:

- Enfim, ao cabo de muitas perguntas e respostas, como a infanta estava sempre firme, sem sair nem variar da primeira declaração, o vigário sentenciou em favor de D. Clavijo, e entregou-lha por sua legítima esposa, o que tanto enfadou a rainha Dona Magúncia, gue a enterrámos dentro de três dias.

- Sem dúvida, porque morreu - disse Sancho.

- E claro - respondeu Trifaldino -, que em Candaia não se enterram as pessoas vivas.

- Já se tem visto Senhor Escudeiro - redarguiu Sancho -, enterrar-se um desmaiado, julgando-se que está morto, e parecia-me que a rainha Magúncia tinha mais obrigação de desmaiar, que de morrer, porque com a vida muitas coisas se

remedeiam, e não foi também tamanho o disparate da infanta, que a obrigasse a sentir-se tanto. Se essa senhora tivesse casado com um pajem, ou outro criado seu, como muitas têm feito, segundo ouvi dizer, seria o dano sem remédio; mas o ter casado com um cavaleiro tão fidalgo e tão sabedor como aqui no-lo pintaram, verdade, verdade, ainda que foi asneira, não foi tão grave como se imagina, porque, segundo as regras de meu amo, que está presente, e me não deixará mentir, assim como se fazem dos homens letrados ou bispos, se podem fazer dos cavaleiros, principalmente se forem andantes, reis e imperadores.

- Tens razão, Sancho - acudiu D. Quixote -, porque um cavaleiro andante, se tiver dois dedos de ventura, está próximo sempre a ser o maior senhor do mundo. Mas passe adiante a Sra. Dolorida, porque imagino que lhe falta ainda contar o amargo desta até aqui doce história.

- Efectivamente, ainda resta o amargo, e tão amargo - respondeu a condessa -, que em sua comparação se pode dizer que é doce o absinto. Morta, pois, e não desmaiada, a rainha, sepultámo-la, e apenas a cobrimos, e lhe demos o último adeus, quando quis taliafando tempere a lachrymis Apareceu por cima da sepultura da rainha, montado num cavalo de madeira, o gigante Malambruno, primo coirmão de Magúncia, que, além de ser cruel, era nigromante, o qual, com as suas malas-artes, em vingança da morte de sua prima e em castigo do atrevimento de D. Clavijo e da desenvoltura de Antonomásia, os deixou encantados junto da mesma sepultura: ela convertida numa macaca de bronze, e ele num espantoso crocodilo de um metal desconhecido, e entre ambos levantou um padrão também de metal, e nesse padrão inscreveu umas letras siríacas, que, tendo-se traduzido na língua candaiesca e depois na castelhana, encerram esta sentença: «Não recobrarão a sua primeira forma estes dois atrevidos amantes, enquanto o valoroso manchego não vier comigo às mãos em singular batalha, que só para o seu grande valor guardam os fados esta nunca vista aventura.” Feito isto, desembainhou um largo e desmedido alfange, e, agarrando-me pêlos cabelos, fez menção de me cercear a cabeça. Pegou-se-me a voz à garganta, fiquei o mais amofinada possível, mas, apesar disso, fiz um esforço, e com voz trémula e plangente lhe disse tantas e tais coisas, que suspenderam a execução de tão rigoroso castigo. Finalmente, mandou chamar à sua presença todas as donas do palácio, que foram estas que se acham presentes, e, depois de ter exagerado as nossas culpas e vituperado as condições das donas, as suas más manhas, e piores traças, e carregando a todas a culpa que eu só tinha, disse que nos não queria castigar com pena capital, mas com outras penas dilatadas, que nos dessem uma morte civil e contínua;

e, logo que acabou de dizer isso, sentimos todas que se nos abriam os poros da cara, e que por toda ela nos saíam como que pontas de agulhas. Fomos com as mãos ao rosto, e achámo-lo do modo que ides ver.

E logo a Dolorida e as outras donas, levantando os véus que as tapavam, descobriram os rostos, cheios de barba, numas loura, noutras preta, noutras branca, e noutras de sal e pimenta; e, vendo isto, mostraram ficar admirados o duque e a duquesa, pasmados D. Quixote e Sancho, atónitos todos os circunstantes;

e a Trifaidi prosseguiu:

- Assim nos castigou aquele vilão e patife Malambruno, cobrindo os nossos macios e pálidos rostos com a aspereza destes cardos, e prouvera ao Céu que antes nos tivesse cortado a cabeça com o seu alfange, porque, se pensarmos Senhores meus (e o que vou agora dizer querê-lo-ia dizer banhada em lágrimas; mas a consideração da nossa desgraça, e os mares que os nossos olhos têm chovido, já as enxugaram de todo, e assim di-lo-ei sem pranto); digo, pois, aonde pode ir uma dona com barbas? Que pai ou que mãe se compadecerá dela? Quem a ajudará? Pois, se ainda quando tem a tez lisa, e o rosto martirizado com mil pinturas, mal encontra quem lhe queira bem, o que fará quando descobrir um rosto transformado em floresta? O donas e companheiras minhas, em desgraçada ocasião nascemos, em hora minguada nos geraram nossos pais!

E, dizendo isto, fez menção de desmaiar.

 

DAS COISAS QUE DIZEM RESPEITO A ESTA VENTURA E A ESTA MEMORÁVEL HISTÓRIA

Realmente, todos os que gostam de histórias como esta devem mostrar-se agradecidos a Cide Hamet, seu primeiro autor, pela curiosidade que teve em nos contar as suas mínimas particularidades, sem deixar coisa alguma, por miúda que fosse, que não tirasse claramente à luz. Pinta os pensamentos, descobre as imaginações, responde às tácitas perguntas, aclara as dúvidas, resolve os argumentos, finalmente, manifesta os átomos do mais curioso desejo. Ó autor celebérrimo! Ó ditoso D. Quixote! Famosa Dulcineia! Gracioso Sancho Pança! Vivais todos juntos, e cada um de per si, séculos infinitos, para gosto e universal passatempo dos viventes!

Diz, pois, a história que, logo que Sancho viu desmaiada a Dolorida, exclamou:

- Palavra de homem de bem, juro por todos os meus antepassados, os Panças, que nunca ouvi, nem vi, nem meu amo me contou, nem imaginou, uma aventura semelhante a esta! Valham-te mil Satanases, para não te amaldiçoar como nigromante e gigante, Malambruno! Pois não achaste outro género de castigo, senão o de as barbar? Pois não seria melhor, e a elas não lhes faria mais conta, tirar-lhes metade dos narizes, do meio para cima, ainda que falassem fanhoso? Aposto que não têm dinheiro para pagar a quem as rape!

- É essa a verdade Senhor - respondeu uma das doze -, não temos dinheiro para nos mondar, e assim algumas resolvemos usar de uns emplastros de pez, e pondo-os no rosto, e tirando-os de golpe, ficamos rapadas e lisas como a palma da mão, que, apesar de haver em andaia mulheres que andam de casa em casa a arrancar os cabelos, e alisar a pele, e fazer outros remédios, nós outras, as donas da Senhora Condessa, nunca as quisemos admitir, porque a maior parte delas fazem o ofício de terceiras, já que não podem ser primeiras; e se, graças

ao Sr. D. Quixote, não ficarmos remediadas, com barbas nos levarão para a sepultura.

- Arrancava eu as minhas em terra de mouros, se não pudesse livrar-vos das vossas - disse D. Quixote.

Neste momento recobrou-se do seu desmaio a Trifaidi, e exclamou:

- O retintim dessa promessa, valoroso cavaleiro, chegou aos meus ouvidos, no meio do meu desmaio; e, assim, de novo vos suplico, ínclito andante e Senhor indomável: converta-se em obras a vossa graciosa promessa.

- Em mim não esteja a dúvida - respondeu D. Quixote -;

dizei Senhora, o que tenho a fazer, que o ânimo está prontíssimo a servir-vos.

- É o caso - respondeu a Dolorida - que daqui ao reino de andaia, se se for por terra, a distância é de cinco mil léguas, pouco mais ou menos; mas, se se for pelo ar, e em linha recta, é de três mil duzentas e vinte e sete. Deveis também saber que Malambruno disse-me que, quando a sorte me deparasse o cavaleiro nosso libertador, ele lhe enviaria uma cavalgadura muito melhor, e com menos manhas do que as de retorno, porque há-de ser o próprio cavalo de madeira, em que o valoroso Pedro levou roubada a formosa Magalona, cavalo que se governa por uma escaravelha, que tem na testa, e que lhe serve de freio, e voa pêlos ares com tanta ligeireza, que parece que o levam os próprios Diabos. Este cavalo, segundo a tradição antiga, foi feito pelo sábio Merlim; emprestou-o a Pedro, que era seu amigo, e que fez com ele grandes viagens, e roubou, como já disse, a linda Magalona, levando-a nas ancas por esses ares fora, deixando aparvalhados todos os que da Terra os contemplavam; e só o emprestava a quem ele queria ou lho pagava melhor, e, desde o tempo do grande Pedro até agora, não sabemos que ninguém o tenha montado. Do poder de Merlim o tirou Malambruno com as suas artes, e serve-se dele nas suas viagens, viagens que faz de vez em quando por diversas partes do mundo; e está hoje aqui, amanhã em França, e noutro dia no Potosi; e o bom é que o tal cavalo nem come, nem dorme, nem gasta ferraduras, e voa tão sereno pêlos ares, apesar de não ter asas, que o seu cavaleiro pode levar na mão um copo cheio de água, sem se lhe entornar uma gota, e por isso a linda Magalona folgava muito de montar neste cavalo.

- Lá para andar sereno e manso, o meu ruço! - disse Sancho. - Apesar de não andar pêlos ares, mas na terra desafia todos os ginetes do mundo.

Riram-se os circunstantes, e a Dolorida prosseguiu:

- E este cavalo, se Malambruno efectivamente quer dar fim à nossa desgraça, antes que passe meia hora depois de cair a noite, estará na vossa presença, porque ele me disse que o sinal que me daria para eu perceber que encontrara o cavaleiro que procurava, seria mandar-me o cavalo que transportasse o meu defensor com presteza e comodidade.

- E quantos cabem nas costas desse cavalo? - perguntou Sancho.

- Duas pessoas - respondeu a Dolorida -: uma na sela, outra nas ancas. E a maior parte das vezes, estas duas pessoas são um cavaleiro e um escudeiro, a não haver alguma donzela raptada.

- Como se chama o cavalo, Sra. Dolorida?

- Não é como o cavalo de Belerofonte, que se chamava Pégaso; nem como o de Alexandre Magno, chamado Bucéfalo;

nem como o do Orlando Furioso, que tinha por nome Briladoro; nem Baiardo, que foi o de Reinaldos de Montalvão;

nem Frontino, como o de Rogero; nem Bootes, nem Pirítoo, como dizem que se chamam os do Sol; nem tão-pouco se chama Orélia, como o cavalo com que o desditoso Rodrigo, último rei dos Godos, entrou na batalha em que perdeu a vida e o reino.

- Aposto - disse Sancho - que, visto não ter nenhum desses famosos nomes de cavalos tão conhecidos, também não tem o do cavalo de meu amo, Rocinante, que em ser muito apropriado excede a todos os que se citaram.

- Assim é - respondeu a condessa barbada -, mas também lhe quadra muito bem, porque se chama Clavilenho, o Alígero, nome que indica o ser ele um pedaço de lenho, e ter uma clave ou escaravelha na testa, e caminhar ligeiramente, e

lá por esse lado parece-me que pode perfeitamente competir com o famoso Rocinante.

- Não me desagrada o nome - redarguiu Sancho -, mas com que freio ou com que reata se governa?

- Já disse - respondeu a Trifaidi - que se governa com a escaravelha, e basta dar-lhe uma volta para um ou para outro lado, para que o cavaleiro que vai em cima o faça caminhar para onde quiser, ou por esses ares fora, ou rastejando, ou quase varrendo a terra, ou nem muito alto nem muito baixo: meio termo, que é preferível em tudo.

- Tomara eu vê-lo - respondeu Sancho -; mas lá se alguém imagina que eu que o monto, ou na sela ou nas ancas, perde o seu tempo. Eu que mal me seguro no meu ruço, e com uma albarda mais macia do que a própria seda, queriam que me segurasse numas ancas de pau, sem coxins nem almofadas;

por Deus! Não vou apanhar uma moedeira para tirar as barbas a ninguém; cada qual se rape como entender, que eu não tenciono acompanhar meu amo em tão larga viagem, tanto mais que não devo fazer falta ao barbeamento destas damas, como faria para o desencantamento de Dulcineia, muito Senhora minha.

- Fazeis falta, sim, amigo - respondeu a Trifaidi -, e tanta, que, sem a vossa presença, imagino que nada faremos.

- Aqui-del-rei! - acudiu Sancho. - Que têm que ver os escudeiros com as aventuras de seus amos? Hão-de ter eles a fama das aventuras a que dão fim, e nós havemos de ter só o trabalho? Corpo de tal! Ainda se os historiadores dissessem: o cavaleiro Fulano acabou esta ou aquela aventura, mas com ajuda de Sicrano, seu escudeiro, sem o qual seria impossível o acabá-la - vá; mas que escrevam a seco: D. Paralipómenon das Três Estrelas acabou a aventura dos seis vampiros - sem nomear a pessoa do seu escudeiro, que a tudo esteve presente, como se não existisse no mundo! Agora, Senhores, torno a dizer que meu amo pode ir sozinho, e que lhe faça muito bom proveito, que eu ficarei aqui em companhia da duquesa, minha ama, e pode ser que, quando voltar, já ache melhorada a causa da Sra. Dulcineia, porque tenciono, quando tiver vagar, ir arrumando em mim próprio uma tunda de açoites.

- Pois, apesar de tudo isso, haveis de o acompanhar, bom Sancho, se for necessário, porque vo-lo pediremos todos nós, que pêlos vossos vãos temores não hão-de ficar assim barbados os rostos destas senhoras, o que decerto seria uma desventura.

- Aqui-d'el-rei, outra vez! - replicou Sancho. - Se esta caridade se fizesse por algumas donzelas recolhidas, ou por algumas meninas que ainda andem a aprender doutrina, poderia um homem aventurar-se a qualquer trabalho, mas que o sofra para tirar as barbas a umas donas! Eramá! Nem que a todas eu as visse com barbas desde a primeira até à última, desde a mais melindrosa até a mais pimpona!

- Estais muito de mal com as donas, Sancho amigo - disse a duquesa. - Muito ides atrás da opinião do boticário toledano; pois realmente não tendes razão, porque há donas na minha casa que podem ser exemplo às outras, e aqui está a minha Dona Rodriguez, que não me deixará dizer outra coisa.

- Ainda que Vossa Excelência outra coisa dissesse - acudiu Rodriguez -, Deus sabe a verdade de tudo, e boas ou más, com barbas ou sem elas, somos mulheres como as outras; e, se Deus nos deitou ao mundo Ele lá sabe para quê, e na Sua misericórdia me fio.

- Ora muito bem, Sr. Trifaidi e companhia - acudiu D. Quixote -, espero que o Céu olhará com bons olhos para as vossas aflições, que Sancho fará o que eu lhe mandar, e tomara que viesse Clavilenho, e ver-me em luta com Malambruno, que sei que não haveria navalha que rapasse com mais facilidade a Vossas Mercês, do que a minha rapariga a cabeça dos ombros de Malambruno; que Deus suporta os maus, mas não para sempre.

- Ai! - bradou a Dolorida. - Com benignos olhos contemplem Vossa Grandeza, valoroso cavaleiro, todas as estrelas das celestes regiões, e infundam no vosso ânimo toda a prosperidade e valentia, para serdes escudo e amparo das vituperadas e abatidas donas, a quem os boticários abominam, de quem os escudeiros murmuram, e que os pagens atormentam, e mal haja a tola que na flor da idade não preferir ser monja a ser dona;

desditosas nós outras, que, ainda que venhamos em linha recta

por varonia do próprio Heitor, o troiano, as nossas senhoras não deixam de nos tratar por üós, nem que as façam rainhas. O gigante Malambruno, que, apesar de seres nigromante, és certíssimo nas tuas promessas, envia-nos já o incomparável Clavilenho, para que se acabe esta desdita, que, se entra o calor e as nossas barbas ainda duram, ai da nossa ventura!

A Trifaidi disse isto com tanto sentimento, que a todos os circunstantes arrancou lágrimas, e até arrasou de água os olhos de Sancho; e resolveu no seu coração acompanhar seu amo até às últimas partes do mundo, se daí resultasse o tirar a lã àqueles veneráveis rostos.

 

DA VINDA DE CLAVILENHO, COM O FIM DESTA DILATADA AVENTURA

Nisto, chegou a noite, e com ela o prazo fixado para a vinda de Clavilenho, cuja tardança já fatigava D. Quixote, parecendo-lhe que, visto que Malambruno se demorava em enviá-lo, ou não era ele o cavaleiro para quem estava guardada aquela aventura, ou Malambruno não ousava vir com ele a singular batalha. Eis que de repente entraram pelo jardim quatro selvagens, vestidos todos de verde hera, que traziam aos ombros um grande cavalo de madeira. Puseram-no no chão, e um dos selvagens disse:

- Monte nesta máquina o cavaleiro que para isso tiver ânimo.

- Então não monto eu - disse Sancho - que nem tenho ânimo, nem sou cavaleiro.

E o selvagem prosseguiu, dizendo:

- E se o cavaleiro tiver escudeiro, este que monte na garupa, e fie-se no valoroso Malambruno, que, a não ser pela sua espada, por nenhuma outra, nem por malícia alguma será ofendido; e basta só dar volta a esta escaravelha que traz no pescoço, e logo o cavalo os levará pêlos ares ao sítio onde Malambruno

os espera; mas para que a altura e sublimidade do caminho lhes não cause vagados, devem ir com os olhos tapados, até o cavalo rinchar, que é sinal de ter chegado ao termo da viagem.

Dito isto, deixaram Clavilenho, e saíram, com gentil porte, pelo sítio por onde tinham vindo. A Dolorida, assim que viu o cavalo, disse, quase com lágrimas, a D. Quixote:

- Valoroso cavaleiro, as promessas de Malambruno foram certas: o cavalo aí está; as nossas barbas crescem, e todas nós, com todos os cabelos dessas mesmas barbas, te suplicamos que nos rapes e tosquies, pois que tudo está em montares a cavalo com o teu escudeiro, e dares feliz princípio a esta nova viagem.

- Isso farei eu Senhora Condessa Trifaidi, e de muito bom grado, sem ir buscar almofada nem calçar esporas, para não me demorar: tal é a vontade que tenho de vos ver Senhora, e a todas estas damas, rapadas e tosquiadas.

- Pois isso não faço eu - acudiu Sancho -, não o faço por caso algum; e, se essa tosquiadela se não pode fazer sem eu montar na garupa, procure meu amo outro escudeiro que o acompanhe, e estas senhoras outro modo de alisar os rostos, que eu não sou bruxo para gostar desses passeios; e que dirão os meus insulanos, quando souberem que o seu governador anda por ares e ventos? E outra coisa mais: havendo três mil e tantas léguas daqui a andaia, se o cavalo se cansa ou se o gigante se enoja, não voltamos antes de meia dúzia de anos, e já não haverá nem ilha, nem ilhéus no mundo que me conheçam;

e como se diz vulgarmente, que na tardança é que está o perigo, e que em te dando uma vitela vai logo por ela, perdoem-me as barbas destas damas, que bem está S. Pedro em Roma, quero dizer, que estou perfeitamente nesta casa, onde me fazem tanta mercê, e de cujo dono tamanho bem espero, como é o de me ver governador.

- Sancho amigo - disse o duque -, a ilha que eu te prometi não é móvel, nem fugitiva: tem raízes tão fundas, lançadas nos abismos da Terra, que não a arrancam dali nem à mão de Deus Padre; e como sabes que não há género algum de ofício, destes de maiores proventos, que se alcance de graça, o que eu quero em troca deste governo é que vás com teu amo D. Quixote

pôr fecho e remate a esta memorável aventura; e quer voltes montado em Clavilenho, com a brevidade que a sua ligeireza promete, quer volvas a pé, feito romeiro, sempre que voltares encontrarás a tua ilha onde a deixas, e os teus insulanos com o mesmo desejo que sempre têm tido de te receber por seu governador, e a minha vontade será a mesma, e não duvide do que lhe afirmo, Sr. Sancho, que seria fazer notável agravo ao desejo que tenho de o servir.

- Basta, Senhor - disse Sancho -, um pobre escudeiro, como eu sou, já não pode com o peso de tantas cortesias: monte meu amo a cavalo, tapem-me estes olhos, e encomendem-me a Deus, e digam-me se quando formos por esses ares posso encomendar-me ao Senhor e aos Anjos que me favoreçam.

- Sancho - respondeu Trifaldi -, podeis perfeitamente encomendar-vos a Deus ou a quem quiserdes, que Malambruno, apesar de nigromante, é cristão, e faz as suas nigromancias com muita arte e muito tento, sem se meter com ninguém.

- Eia, pois - disse Sancho -, Deus me ajude e a Santíssima Trindade de Gaeta.

- Desde a memorável aventura das azenhas - tomou D. Quixote -, nunca vi Sancho com tanto medo como agora; e se eu fosse tão agoureiro como muitos outros, a sua pusilanimidade havia de me fazer algumas cócegas na alma. Mas chega-te aqui, Sancho, que, com licença destes senhores, quero-te dizer aparte duas palavras.

E, levando Sancho para um arvoredo do jardim, e agarrando-lhe em ambas as mãos, disse-lhe:

- Já vês, Sancho, a longa viagem que nos espera, e sabe Deus quando voltaremos dela, e o tempo e a comodidade que nos darão os negócios; e, assim, desejaria que te retirasses para o teu aposento, como se fosses procurar alguma coisa necessária para o caminho, e, num abrir e fechar de olhos, arrumasses em ti uma boa parte dos três mil e trezentos açoites, a que estás obrigado, pelo menos quinhentos, que sempre são uns tantos que ficam dados, que o principiar as coisas é tê-las meio acabadas.

- Por Deus - disse Sancho -, Vossa Mercê não está em si;

pois agora, que tenho de ir sentado numa tábua rasa, é que Vossa

Mercê quer que eu esfole as pousadeiras? Verdade verdade, isso não é razoável; vamos nós tosquiar estas damas, que à volta prometo a Vossa Mercê, como quem sou, que me hei-de apressar tanto a cumprir a minha obrigação, que Vossa Mercê ficará contente; e não lhe digo mais nada. E D. Quixote respondeu:

- Pois com essa promessa, bom Sancho, vou consolado, e creio que a cumprirás, porque, efectivamente, apesar de seres tonto, és homem verídico.

- Não sou verdito, nem verde, sou moreno - respondeu Sancho -, mas ainda que fosse de furta-cores, havia de cumprir a minha palavra.

E nisto, voltaram para montar em Clavilenho; e, quando ia a montar, disse D. Quixote:

- Tapa os olhos e sobe, Sancho, que quem de tão longes terras nos manda buscar, decerto não pretende enganar-nos, pela pouca glória que lhe resultaria de enganar quem se fia nele; e ainda que tudo sucedesse às avessas do que imagino, a honra de ter empreendido esta façanha não a poderá escurecer malícia alguma.

- Vamos, Senhor - disse Sancho -, que as barbas e as lágrimas destas senhoras tenho-as cravadas no coração e não comerei bocado que bem me saiba, enquanto não as vir na sua primitiva lisura. Monte Vossa Mercê e tape os olhos, que, se tenho de ir à garupa, é claro que primeiro deve montar quem vai na sela.

- É verdade - redarguiu D. Quixote.

E, tirando um lenço da algibeira, pediu à Dolorida que lhe tapasse muito bem os olhos, e, depois de lhos terem tapado, exclamou:

- Se bem me lembro, li em Virgílio o caso do Paládio de Tróia, que foi um cavalo de madeira, que os Gregos consagraram a Palas, e que ia cheio de cavaleiros armados, que depois foram a ruína da cidade de Príamo; e, assim, será bom ver primeiro o que tem Clavilenho no estômago.

- Não é necessário - disse a Dolorida -, que eu fico por ele, e sei que Malambruno nada tem de malicioso nem de traidor, e Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, monte sem receio, e em meu prejuízo redunde qualquer dano que tiver.

Pareceu a D. Quixote que tudo que dissesse a respeito da sua segurança seria em detrimento da sua valentia, e, assim sem mais altercar, montou em Clavilenho, e tenteou-lhe a escaravelha, que se movia facilmente; e, como não tinha estribos, e era obrigado por isso a apertar bem o cavalo com as pernas, não parecia senão uma figura de tapeçaria flamenga, pintada ou tecida nalgum triunfo romano. Com má vontade e a pouco e pouco se foi chegando Sancho para montar a cavalo, e, acomodando-se o melhor que pôde na garupa, achou-a dura, e pediu ao duque se lhe podia arranjar um coxim ou almofada, ainda que fosse do estrado da Senhora Duquesa, ou do leito de algum pajem, porque as ancas daquele cavalo mais pareciam de mármore que de madeira. A isto disse a Trifaidi que Clavilenho não consentia em cima de si nenhum jaez, nem adorno; que o que podia fazer era sentar-se como as mulheres, e que assim não sentiria tanto a dureza. Seguiu Sancho o conselho, e, dizendo adeus a todos, deixou-se vendar os olhos, e já depois de vendados tornou-os a destapar, e, olhando para os circunstantes, ternamente e com lágrimas, disse que o ajudassem naquele transe com muitos padre-nossos e muitas ave-marias, para que Deus lhes deparasse quem por eles os dissesse quando se vissem em agonias semelhantes.

- Ladrão! - bradou D. Quixote. - Estás por acaso pendurado na forca, ou no último termo da vida, para usar de tais rogos? Não estás, desalmada e cobarde criatura, no mesmo sítio que a linda Magalona ocupou, e de que se apeou, não para descer à sepultura, mas para ser rainha de França, se as histórias não mentem? E eu, que vou aqui ao teu lado, não posso comparar-me com o valoroso Pedro, que oprimiu este mesmo lugar que eu agora oprimo? Tapa os olhos, tapa, animal descoroçoado, e não te venha à boca o medo que tens, pelo menos na minha presença.

- Tapem-me os olhos - respondeu Sancho - e, já que não querem que me encomende a Deus, nem que seja encomendado, que admira que eu receie que ande por aqui alguma região de diabos, que ferre connosco em Peralvillo?

Taparam-lhe os olhos, e, sentindo D. Quixote que estava como havia de estar, agarrou a escaravelha, e, apenas lhe pôs a mão, logo todas as donas, e quantos estavam presentes, levantaram a voz, dizendo:

- Deus te guie, valoroso cavaleiro! Deus seja contigo, escudeiro intrépido! Já ides, já ides por esses ares, rompendo-os com mais velocidade que uma seta; já começais a suspender e admirar todos os que da Terra vos estão mirando. Segura-te, valoroso Sancho, que te bamboleias; vê não caias, que a tua queda seria pior que a do atrevido moço que quis governar o carro do Sol seu pai.

Ouviu Sancho as vozes, e, agarrando-se a seu amo, cingiu-o com os braços, e disse-lhe:

- Senhor, como é que estes dizem que vamos tão alto, se alcançam cá as suas vozes, e não parece senão que estão aqui falando ao pé de nós?

- Não repares, Sancho, que, como estas coisas e estas volatarias vão fora dos cursos ordinários, de mil léguas verás e ouvirás o que quiseres, e não me apertes tanto, que me fazes cair; e em verdade, não sei por que te turbas, nem por que te espantas, que ousarei jurar que nunca em todos os dias da minha vida montei em cavalgadura de passo mais sereno; não parece senão que não saímos do mesmo lugar. Desterra o medo, amigo, que efectivamente a coisa vai como há-de ir, e nós de vento em popa.

- Isso é verdade - respondeu Sancho - que sinto aqui para este lado um vento tão forte, que parece que me estão assoprando com foles.

E era verdade, que os estavam arejando com um grande fole. Tão bem traçada estava a tal aventura pelo duque, pela duquesa e pelo seu mordomo, que lhe não faltou requisito que deixasse de a fazer perfeita.

Sentindo o assopro, disse D. Quixote:

- Sem dúvida alguma, Sancho, estamos chegados à segunda região do ar, onde se geram o granizo e as neves; os trovões, os relâmpagos e os raios produzem-se na terceira região; e, se desta maneira vamos subindo, depressa entraremos na região

do fogo, e não sei como hei-de moderar esta escravelha, para que não subamos a sítio onde nos abrasemos.

Nisto, aquentaram-lhes os rostos com umas estopas ligeiras, destas que se acendem e se apagam logo penduradas de uma cana. Sancho, que sentiu o calor, bradou:

- Que me matem, se não estamos no lugar do fogo, ou muito perto, porque já se me chamuscou uma grande parte da barba, e tenho vontade Senhor, de destapar os olhos e de ver em que sítio nos achamos.

- Não faças tal - respondeu D. Quixote - e lembra-te da verdadeira história do licenciado Torralva, que os diabos levaram em bolandas por esses ares, montado numa cana, com os olhos tapados, e em doze horas chegou a Roma, e apeou-se na Torre de Nona, que é uma rua da cidade, e viu todo o fracasso e assalto e morte de Borbom, e pela manhã já estava de volta em Madrid, onde deu conta de tudo o que vira; este Torralva disse também que, quando ia por esses ares, mandou-lhe o Diabo que abrisse os olhos, e viu-se tão perto, ao seu parecer, do corpo da Lua, que lhe poderia deitar a mão, e que se não atreveu a olhar para a Terra, com medo de desmaiar. Portanto, Sancho, não será bom destaparmos os olhos, que quem nos leva a seu cargo, de nós dará contas, e talvez estejamos tomando campo e subindo muito alto, para nos deixarmos cair de chofre sobre o reino de andaia, como faz o nebri sobre a garça; e, ainda que nos parece que não há meia hora que saímos do jardim, acredita que havemos de ter andado grande caminho.

- Não sei lá disso - respondeu Saricho -; o que sei apenas é que, se a sra. Magalhães ou Magalona, se contentou com esta garupa, é porque não tinha as carnes muito tenras.

Todas estas práticas dos dois valentes eram ouvidas pelo duque e pela duquesa, e por todos os do jardim, que se divertiam com isso extraordinariamente; e querendo dar remate à estranha e bem fabricada aventura, pelo rabo de Clavilenho deitaram fogo com umas estopas a bombas e foguetes, de que o cavalo estava cheio, e o cavalo voou pêlos ares com estranho ruído, e deu com D. Quixote e Sancho Pança no chão, meio chamuscados. A este tempo já desaparecera do jardim todo o

barbado esquadrão das donas, e a Trifaidi e tudo, e os de casa estavam como que desmaiados e estendidos no chão. D. Quixote e Sancho levantaram-se bastante magoados, e, olhando para todas as bandas, ficaram atónitos de se ver no mesmo jardim de onde tinham partido, e de ver estendida no chão tanta gente; mas ainda aumentou mais o seu pasmo, quando viram a um lado do jardim uma lança pregada no chão, e suspenso dela, por dois cordões de seda verde, um pergaminho liso e branco, onde, com grandes letras de ouro, estava escrito o seguinte:

«O ínclito cavaleiro D. Quixote pôs termo e remate à aventura da condessa Trifaidi, por outro nome chamada a Dona Dolorida, só com o intentá-la.

Malambruno dá-se por contente e satisfeito, e as caras das donas ficam lisas e tosquiadas, e os reis D. Clavijo e Antonomásia no seu prisco estado; e quando se cumprir o compromisso escudeiril, a branca pomba ver-se-á livre dos pestíferos gerifaltes que a perseguem, e nos braços do seu querido arrulhador, que assim está determinado pelo sábio Merlim, o protonigromante dos nigromantes.”

Tendo D. Quixote lido todas as letras do pergaminho, percebeu claramente que falavam do desencantamento de Dulcineia, e dando muitas graças ao Céu por ter acabado tão grande feito com tão pouco perigo, restituindo à sua passada tez os rostos das veneráveis donas, que já não apareciam, foi aonde estavam o duque e a duquesa ainda desmaiados, e, travando da mão ao duque, disse-lhe:

- Eia, bom Senhor, ânimo, ânimo, que tudo é nada, acabou-se já a aventura sem dano de ninguém, como claramente mostra o escrito posto naquele padrão.

O duque, a pouco e pouco, e como quem acorda de um pesado sono, foi tornando a si, e do mesmo teor a duquesa e todos os que estavam caídos no jardim, com tais mostras de maravilha e espanto, que podiam quase imaginar-se que lhes acontecera deveras o que tão bem sabiam fingir.

O duque leu o cartel com os olhos meio cerrados, e logo foi, com os braços abertos, abraçar D. Quixote, dizendo-lhe que era

o melhor cavaleiro que em todos os séculos se tinha visto. Sancho andava à cata da Dolorida, para ver se era tão formosa sem as barbas como prometia a sua galharda disposição; mas disseram-lhe que, logo que Clavilenho desceu, ardendo, pêlos ares, todo o esquadrão das donas desaparecera com a Trifaidi, e que já iam perfeitamente rapadas. Perguntou a duquesa a Sancho que tal se dera naquela larga viagem.

- Eu, Senhora, senti que íamos, segundo meu amo me disse, voando pela região do fogo, e quis destapar um pouco os olhos; mas meu amo, a quem pedi licença, não consentiu; eu, que tenho sempre umas comichões de curiosidade, e de desejar saber o que me querem ocultar, fui à sorrelfa desviando um bocadinho do lenço que me tapava os olhos, e por ali olhei para a Terra, e pareceu-me que ela toda seria do tamanho de um grão de mostarda, e os homens que andavam sobre ela pouco maiores que umas avelãs, para que se veja como estávamos altos nessa ocasião.

- Sancho amigo - interrompeu a duquesa -, vede o que dizeis, porque me parece que não vistes a Terra, mas sim os homens que andavam sobre ela; e é claro que, se a Terra vos pareceu um grão de mostarda, e cada homem uma avelã, um homem só cobria a Terra inteira.

- Isso é verdade - respondeu Sancho -, mas eu sempre a descobri por um lado e vi-a toda.

- Mas - tornou a duquesa - quem vê as coisas por um lado, não as vê todas.

- Não sei lá disso de vistas - redarguiu Sancho -, o que sei é que será bom que Vossa Senhoria entenda que, como voávamos por encantamento, por encantamento podia eu ver a Terra toda, e todos os homens, olhasse lá como olhasse; e se isto não se me acredita, decerto Vossa Mercê não acreditará também que, destapando um pouquito os olhos por cima, vi-me tão perto do Céu, que não estava a distância de mais de palmo e meio, e o que posso jurar Senhora minha, é que é imenso; e sucedeu caminharmos pelo sítio onde estão as sete cabras, e eu, como em terra quando era pequeno fui cabreiro, assim que as vi deu-me logo vontade de brincar com elas um pedaço, e se

não satisfizesse essa vontade, parece-me que rebentava. E vai eu que faço, sem dizer nada a ninguém, nem mesmo a meu amo? Apeio-me de manso de Clavilenho, e estive-me entretendo com as cabras, que são mesmo umas flores, quase três quartos de hora, e Clavilenho não se arredou nem um passo.

- E, enquanto o bom do Sancho brincava com as cabras - perguntou o duque -, em que se entretinha D. Quixote?

- Como todas estas coisas e estes sucessos estão fora da ordem natural - observou D. Quixote -, não admira que Sancho diga o que diz; agora eu de mim só o que sei dizer é que não destapei os olhos nem por cima nem por baixo; nem vi o Céu, nem a Terra, nem o mar, nem as areias. É verdade que senti que passava pela região do ar, e até que tocava na do fogo;

mas que passássemos dali para diante, não o posso crer, pois, estando a região do fogo entre o céu da Lua, e a última região do ar, não podíamos chegar ao céu onde estão as sete cabras que Sancho diz sem nos abrasarmos, e, como nos não abrasámos, ou Sancho mente, ou Sancho sonha.

- Nem minto, nem sonho - tornou Sancho -, senão perguntem-me os sinais das tais cabras, e verão se digo ou não digo verdade.

- Diga lá, Sancho - acudiu a duquesa.

- São - respondeu Sancho - duas verdes, duas encarnadas, duas azuis, e outra malhada.

- Nunca vi cabras assim - observou o duque -, pelo menos na Terra não se usam cabras dessas cores.

- Pois é claro - tornou Sancho - que há-de haver diferença entre as cabras do céu e as da Terra.

Não lhe quiseram perguntar mais nada a respeito da sua viagem, porque lhes pareceu que levava caminho de passear por todos os Céus e de dar notícias de tudo o que por lá havia, sem se mexer do jardim.

Foi este, em conclusão, o fim da aventura da Dona Dolorida, que deu que rir aos duques, não só naquela ocasião, mas em todos os dias da sua vida, e a Sancho que contar durante séculos, se séculos vivesse; e, chegando-se D. Quixote a Sancho, disse-lhe ao ouvido:

- Se quereis, Sancho, que acredite no que vistes no céu, haveis de acreditar também no que vi na cova de Montesinos; e não vos digo mais nada.

 

DOS CONSELHOS QUE DEU D. QUIXOTE A SANCHO PANÇA, ANTES DE ELE IR GOVERNAR A ILHA, COM OUTRAS COISAS BEM CONSIDERADAS

Com o feliz e gracioso sucesso da aventura da Dolorida, ficaram tão satisfeitos os duques, que determinaram continuar com as burlas; e, assim, tendo dado a traça e as ordens que os seus criados haviam de observar com Sancho no governo da ilha prometida, no dia imediato ao do voo de Clavilenho, disse o duque a Sancho que se arranjasse e compusesse para ir ser governador, que já os seus insulanos o estavam esperando como às águas de Maio. Sancho humilhou-se-lhe e disse:

- Desde que desci do céu, e desde que vi a Terra lá dessas alturas, e me pareceu tão pequena, esfriou em parte o desejo grande que eu tinha de ser governador; porque, digam-me: que grandeza é mandar num grão de mostarda, ou que dignidade ou que império é governar em meia dúzia de homens do tamanho de avelãs, que me pareceu que em toda ela não havia mais? Se Vossa Senhoria fosse servido de me dar uma pequena parte do céu, ainda que não fosse de mais de meia légua, tomá-la-ia de melhor vontade que a maior ilha do mundo.

- Amigo Sancho - respondeu o duque -, eu não posso dar a ninguém uma parte do céu, nem ainda que seja do tamanho de uma unha, que só para Deus está reservado o conceder essas graças e mercês: dou-vos o que vos posso dar, que é uma ilha bem feita e bem direita, redonda e bem proporcionada, e muito fértil e abundante, onde, se souberdes ter manha, podeis com as riquezas da Terra granjear as do céu.

- Ora bem - respondeu Sancho - venha de lá essa ilha, que eu procurarei ser um governador de tal ordem, que vá direitinho para o Céu, apesar de todos os velhacos deste mundo;

e isto não é por cobiça que eu tenha, mas porque desejo provar o que será isto de governador.

- Em provando uma vez, Sancho - disse o duque -, não haveis de querer outra coisa, porque é realmente agradável mandar e ser obedecido. Com certeza, quando vosso amo chegar a ser imperador, o que não tardará sem dúvida pelo modo como vejo que as suas coisas se encaminham, não lhe arrancarão facilmente o império, e há-de sempre lamentar o tempo em que o não teve.

- Senhor - redarguiu Sancho -, imagino que é bom mandar, ainda que seja um rebanho de gado.

- Por minha fé, Sancho - respondeu o duque -, vejo que de tudo sabeis, e espero que sejais um governador de mão-cheia, e fiquemos por aqui; e lembrai-vos que amanhã haveis de ir para o governo da ilha, e esta tarde vos arranjarão o trajo conveniente que haveis de levar, e todas as coisas necessárias para a vossa partida.

- Vistam-me como quiserem - redarguiu Sancho - que, de qualquer modo que eu for vestido, sempre serei Sancho Pança.

- É verdade - tornou o duque -, mas os trajos devem acomodar-se ao ofício e dignidade que se professa, que não seria bonito que um jurisconsulto se vestisse como um soldado, nem um soldado como um sacerdote. Vós, Sancho, ireis vestido, em parte como letrado, e em parte como capitão, porque na ilha que vos dou, tão necessárias são as armas como as letras.

- Letras! - respondeu Sancho. - Poucas tenho, porque até nem sei o c; mas basta-me ter sempre Cristo na memória, para ser bom governador. Quanto a armas, hei-de manejar as que me derem, até cair ao chão, e Deus me proteja.

- Com tão boa memória - tornou o duque - não poderá Sancho errar em coisa alguma.

Nisto, chegou D. Quixote, e, sabendo o que se passava, e a rapidez com que Sancho tinha de partir para o seu governo, com licença do duque tomou-o pela mão e levou-o para o seu quarto, com tenção de lhe aconselhar o modo como havia de

proceder nesse ofício. Entrando, pois, no seu aposento, fechou a porta, e obrigou Sancho a sentar-se ao pé dele, e disse-lhe com voz pausada:

- Infinitas graças dou ao Céu, Sancho amigo, de que antes de eu ter topado alguma boa fortuna, te viesse a receber e encontrar a prosperidade; eu, que confiava na minha boa sorte para te pagar os teus serviços, vejo-me ainda muito atrasado, e tu, antes de tempo, e contra a lei das suposições razoáveis, vês os teus desejos premiados. Outros importunam, apoquentam, suplicam, madrugam, rogam, porfiam, e não alcançam o que pretendem, e chega outro, e, sem saber como, nem como não, acha-se com o cargo e o ofício que muitos pretenderam: e aqui vem a propósito o dizer-se que há boa e má fortuna nas pretensões. Tu, que sem dúvida és um rústico, sem madrugares nem te tresnoitares, e sem fazeres diligência alguma, só com o alento que te bafejou da cavalaria andante, sem mais nem mais te vês governador de uma ilha. Tudo isto digo, Sancho, para que não atribuas aos teus merecimentos a mercê recebida, e para que dês graças ao Céu, que suavemente dispõe as coisas, e em seguida darás graças também à grandeza que em si encerra a profissão da cavalaria andante. Disposto, pois, o coração a acreditar o que te disse, atende, filho, aos conselhos que te vou dar, para teres um norte e um guia que te encaminhe, e te leve a salvamento neste mar proceloso, em que te vais engolfar, que os ofícios e grandes cargos não são outra coisa senão um golfão profundo de confusões. Primeiramente, filho, hás-de temer a Deus, porque no temor de Deus está a sabedoria, e, sendo sábio, em nada poderás errar. Em segundo lugar, pe os olhos em quem és, procurando conhecer-te a ti mesmo, que é o conhecimento mais difícil que se pode imaginar. De conhecer-te resultará o não inchares como a rã, que se quis igualar ao boi: que, se isto fizeres, virá a ser feia base da roda da tua loucura a consideração de teres guardado porcos na tua terra.

- Isso é verdade - respondeu Sancho -, mas foi quando era pequeno; depois de homenzito, o que eu guardei foram gansos; mas isto parece-me que não faz nada ao caso, que nem todos os que governam vêm de famílias reais.

- É verdade - replicou D. Quixote -, e por isso, os que não são de origem nobre devem acompanhar a gravidade do cargo que exercitam com uma branda suavidade, que, ligada com a prudência, os livre da murmuração maliciosa, a que nenhum estado escapa. Faz gala da humildade da tua linhagem, Sancho, e não tenhas desprezo em dizer que és filho de lavradores, porque, vendo que te não corres por isso, ninguém to poderá lançar em rosto; ufana-te mais em seres humilde virtuoso, que pecador soberbo. Inumeráveis são os que, nascidos de baixa estirpe, subiram à suma dignidade pontifícia e imperatória, e podia dar-te tantos exemplos que te fatigaria. Repara, Sancho, que, se te ufanares de praticar actos virtuosos, não há motivo para ter inveja aos príncipes e senhores, porque o sangue herda-se e a virtude adquire-se, e a virtude por si só vale o que não vale o sangue. Sendo isto assim, se acaso te for ver, quando estiveres na tua ilha, algum dos teus parentes, não o afrontes nem o desdenhes, mas, pelo contrário, acolhe-o e agasalha-o, e festeja-o, que satisfarás com isso o Céu, que gosta que ninguém se despreze pelo que ele fez, e corresponderás ao que deves à bem concertada Natureza. Se levares tua mulher contigo (porque não é bem que os que governam por muito tempo estejam sem as suas mulheres), ensina-a, doutrina-a, e desbasta-lhe a natural rudeza, porque tudo o que ganha um governador discreto, perde-o muitas vezes uma mulher rústica e tola. Se, por acaso, enviuvares, e com o cargo melhorares de consorte, não a tomes tal que te sirva de anzol e de isca, porque em verdade te digo que, de tudo o que a mulher do juiz receber há-de dar conta o marido na residência universal, com que pagará pelo quádruplo na morte o que ilegitimamente recebeu em vida. Nunca interpretes arbitrariamente a lei, como costumam fazer os ignorantes que têm presunção de agudos. Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, mas não mais justiça do que as queixas dos ricos. Quando se puder atender à equidade não carregues com todo o rigor da lei no delinquente, que não é melhor a fama do juiz rigoroso que do compassivo. Se dobrares a vara da justiça, que não seja ao menos com o peso das dádivas, mas sim com o da misericórdia. Quando te suceder julgar

algum pleito de inimigo teu, esquece-te da injúria, e lembra-te da verdade do caso. Não te cegue paixo própria em causa alheia, que os erros que cometeres, a maior parte das vezes serão sem remédio, e, se o tiverem, será à custa do teu crédito, e até da tua fazenda. Se alguma mulher formosa te vier pedir justiça, desvia os olhos das suas lágrimas e os ouvidos dos seus soluços, e considera com pausa a substância do que pede, se não queres que se afogue a tua razão no seu pranto e a tua bondade nos seus suspiros. A quem hás-de castigar com obras, não trates mal com palavras, pois bem basta ao desditoso a pena do suplício, sem o acrescentamento das injúrias. Ao culpado que cair debaixo da tua jurisdição, consdera-o como um mísero, sujeito às condições da nossa depravada Natureza, e em tudo quanto estiver da tua parte, sem agravar a justiça, mostra-te piedoso e clemente, porque ainda que são iguais todos os atributos de Deus, mais resplandece e triunfa aos nossos olhos o da misericórdia que o da justiça. Se estes preceitos e estas regras seguires, Sancho, serão longos os teus dias, eterna a tua fama, grandes os teus prémios, indizível a tua felicidade; casarás teus filhos como quiseres, terão títulos eles e os teus netos, viverás em paz e no beneplácito das gentes, e aos últimos passos da vida te alcançará a morte em velhice madura e suave, e fechar-te-ão os olhos as meigas e delicadas mãos de teus trinetos. O que até aqui te disse são documentos que devem adornar tua alma: escuta agora os que hão-de servir para adorno do corpo.

 

DOS SEGUNDOS CONSELHOS QUE DEU D. QUIXOTE A SANCHO PANÇA

Quem ouvisse o passado discurso de D. Quixote, decerto o consideraria pessoa mui assisada e cordata. Mas, como muitas vezes se tem observado no decurso desta grande história, só disparatava no que dizia respeito à cavalaria, e em tudo o mais mostrava ter claro e desenfadado entendimento, de maneira que

a cada passo as suas obras lhe desacreditavam o juízo, e o juízo lhe condenava as obras; mas nestes segundos conselhos que deu a Sancho, manifestou grande donaire, e ostentou a sua discrição e a sua loucura em todo o seu brilho. Sancho escutava-o atentissimamente, e procurava conservar na memória os seus conselhos, como quem tencionava segui-los, e aproveitá-los no seu governo. Prosseguiu, pois, D. Quixote, e disse:

- Pelo que toca ao modo como hás-de governar a tua pessoa e a tua casa, Sancho, primeiro te recomendo que sejas asseado, e que cortes as unhas, sem as deixar crescer como fazem alguns, a quem a sua ignorância persuadiu que as unhas grandes lhes alinham as mãos, como se essas excrescências que eles deixavam de cortar, fossem unhas, sendo apenas garras de milhafre: abuso porco e extraordinário. Não andes, Sancho, desapertado, que o fato descomposto, de desmazelado ânimo dá indícios, a não ser que essa negligência seja prova de grande dissimulação, como se julgou de Júlio César. Toma discretamente o pulso ao que pode render o teu ofício, e, se chegar para dares libré aos teus criados, dá-lha honesta e proveitosa, antes do que vistosa e bizarra, e reparte-a pêlos criados e pêlos pobres, quero dizer que, se hás-de vestir seis pajens, veste só três, e veste também três pobres, e, assim, terás pajens para o Céu e para a Terra; e este novo modo de dar libré não o entendem os vaidosos. Não comas alhos nem cebolas, para que o hálito não denuncie a vilania dos teus hábitos; anda devagar, fala com pausa, mas não de forma que pareça que te escutas a ti mesmo, porque toda a afectação é má. Janta pouco e ceia menos, que a saúde de todo o corpo se forja na oficina do estômago. Sê moderado no beber, considerando que o vinho em excesso, nem guarda segredos, nem cumpre promessas. Toma cuidado em não comer a dois carrilhos, e a não eructar diante de ninguém.

- Isso de eructar, é que eu não entendo - interrompeu Sancho.

- Eructar, Sancho, quer dizer arrotar, e este é um dos vocábulos mais torpes que tem a nossa língua, apesar de ser muito significativo, e então a gente delicada apelou para o latim, e ao arrotar chama eructar; e ainda que alguns não entendam estes termos, pouco importa, que o uso os irá introduzindo com o tempo, de forma que facilmente se compreendam; e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso.

- Em verdade Senhor - disse Sancho -, um dos conselhos que hei-de levar bem de memória é o de não arrotar, por ser uma coisa que faço muito a miúdo.

- Eructar, Sancho, e não arrotar - observou D. Quixote.

- Pos seja eructar, e assim direi daqui por diante.

- Também, Sancho, não metas a cada instante nas tuas falas uma caterva de rifões, como costumas, que ainda que os rifões são sentenças breves, muitas vezes os trazes tanto pêlos cabelos, que mais parecem disparates do que sentenças.

- A isso é que só Deus pode dar remédio - respondeu Sancho - porque sei mais rifões que um livro, e açodem-me à boca juntos tantos quando falo, que bulham uns com os outros para sair, e a língua vai deitando para fora os primeiros que encontra, ainda que não venham muito a pêlo; mas terei conta daqui por diante em dizer só os que convierem à gravidade do meu cargo, que em casa cheia depressa se guisa a ceia, e quem parte não baralha, e a salvo está quem repica os sinos, e para dar e para ter muito siso é mister...

- Assim, Sancho - disse D. Quixote -, insere, enfia, encaixa rifões, que ninguém te vai à mão; minha mãe a castigar-me e eu a desmandar-me. Eu a dizer-te que não digas muitos rifes e tu a golfar uma ladainha deles, que entram no que estamos falando como Pilatos no credo. Olha, Sancho, eu não te digo que seja mau um rifão trazido a propósito; mas enfiar uma súcia de rifões a trouxe-mouxe torna a conversação descorada e baixa. Quando montares a cavalo, não deites o corpo para trás, nem leves as pernas tesas, estiradas, e desviadas da barriga do cavalo, nem te desmanches tanto que pareça que vais no ruço, que o montar a cavalo, a uns faz cavaleiros e a outros cavalariços. Seja moderado o teu dormir: quem não madruga com o Sol, não goza o dia; e repara, Sancho, que a diligência é mãe da boa ventura, e a preguiça, sua contrária, nunca chegou ao termo que pede um bom desejo. Este último conselho que te vou dar agora, ainda que não sirva para adorno do corpo, quero que o tenhas

muito na memória; não te será de menos proveito, suponho, que os que até aqui te hei dado, e é: que nunca disputes em linhagens, pelo menos comparando-as entre si, pois por força, nas que se comparam, uma há-de ser a melhor, e serás aborrecido por aquele a quem abateres, e não serás premiado pelo que exaltares. O teu fato deve ser calça inteira, gibão largo, capa, e nunca bragas, que não ficam bem, nem aos cavaleiros, nem aos governadores. Por agora isto se me ofereceu aconselhar-te, Sancho; correrão os tempos, e, conforme o ensejo, assim te irei dando instruções, contanto que tenhas cuidado de me avisar do estado em que te achares.

- Senhor - respondeu Sancho -, bem vejo que tudo quanto Vossa Mercê me disse são coisas boas e proveitosas, mas de que me servem elas, se de nenhuma me lembro? E verdade que me não esqueço de não deixar crescer as unhas, e de casar logo que se ofereça ocasião, mas lá de todos esses badulaques e enredos e trapalhadas lembro-me tanto como das nuvens do ano passado; e, então, será mister que Vossa Mercê me dê tudo isso por escrito, que, apesar de não saber ler nem escrever, dou o papel ao meu confessor, para que mós meta na cabeça e mós recorde sempre que for necessário ao meu bom governo.

- Ai! - respondeu D. Quixote. - Que mal que fica aos governadores não saberem ler nem escrever, porque o não saber um homem ler indica uma de duas coisas: ou que teve nascimento humilde e baixo, ou que foi tão travesso e tão mau que lhe não pôde entrar na cabeça o bom costume nem a boa doutrina. Essa é uma grande falta, e, assim, desejaria que ao menos aprendesses a assinar.

- Assinar o meu nome sei eu - respondeu Sancho -; quando fui bedel na minha terra, aprendi a fazer umas letras semelhantes às das marcas dos fardos, e diziam que era o meu nome;

tanto mais que fingirei que tenho tolhida a mão direita, e farei com que outro assine por mim, que para tudo há remédio, menos para a morte, e, tendo eu a faca e o queijo na mão, é o que basta; além disso, quem tem o pai alcaide... e eu ainda sou mais que alcaide, porque sou governador, e metam-se comigo e verão: podem vir buscar lã e voltar tosquiados; e mais vale quem

Deus ajuda, que quem muito madruga; e as tolices dos ricos passam por sentenças no mundo; e, sendo eu rico e governador e liberal, como tenciono ser, não haverá falta que o pareça;

nada, quem se faz de mel as moscas o comem; tanto tens, tanto vales; e com teu amo não jogues as pêras.

- Maldito sejas, Sancho! - acudiu D. Quixote. - Sessenta mil Satanases te levem a ti e aos teus rifões; há uma hora que os estás enfiando uns nos outros, e cada um que proferes é uma punhalada que me dás. Eu te asseguro que esses rifões ainda te hão-de levar à forca; por eles te hão-de tirar o governo os teus vassalos. Diz-me aonde os vais tu buscar, ignorante? E como é que os aplicas, mentecapto? Que eu, para achar um só e aplicá-lo a propósito, suo e trabalho como se cavasse.

- Por Deus, Senhor, meu amo - tornou Sancho Pança -, Vossa Mercê, também, zanga-se com bem pouca coisa. Quem diabo se aflige por eu me servir dos meus cabedais, que não tenho outros senão rifões e mais rifões? E agora vinham-me à ideia quatro, que caíam mesmo como a sopa no mel, mas que não digo, porque o silêncio acertado Sancho é que se chama.

- Pois lá esse Sancho não és tu - tornou D. Quixote -;

não só não és o silêncio acertado, mas és a palração e a teima disparatadas; e, com tudo isso, sempre queria saber que rifões eram esses que te acudiam à ideia, e que vinham tanto a propósito, porque eu de nenhum me lembro.

- São excelentes - disse Sancho. - «Não te metas entre a bigorna e o martelo”; «há duas coisas que não têm resposta: ide-

-vos de minha casa, e o que quereis de minha mulher?”; «se o cântaro bate na pedra, quem fica de mal é o cântaro”; e tudo vem a propósito. Não se metam com o governo, que é o mesmo que meter-se uma pessoa entre a bigorna e o martelo, ao que o governador diz não se deve replicar, como se não replica ao:

ide-vos de minha casa, o que quereis de minha mulher? - e o do cântaro é fácil de perceber. Assim, é necessário que quem vê um argueiro nos olhos dos outros, veja a trave nos seus, para que se não diga dele: disse a caldeira à sertã, tira-te lá não me enfarrusques; e Vossa Mercê sempre ouviu dizer que mais sabe o tolo no seu, que o avisado no alheio.

- Isso não, Sancho - respondeu D. Quixote -, o tolo nada sabe, nem no seu, nem no alheio, porque no cimento da tolice não assenta nenhum edifício discreto; e deixemos isto, Sancho, que, se mal governares, será tua a culpa, e minha a vergonha;

mas consolo-me, que fiz o que devia, aconselhando-te com a verdade e a discrição que pude: com isto cumpro a minha obrigação e a minha promessa; Deus te guie, Sancho, e te governe no teu governo, e me tire a mim do escrúpulo que me fica, de que hás-de ferrar com a ilha em pantana, o que eu evitaria, dizendo ao duque quem tu és, e dizendo-lhe que toda essa gordura que tens não é senão um costal de malícias e de provérbios.

- Senhor - redarguiu Sancho -, se Vossa Mercê entende que não sou capaz para este governo, já o largo, que eu quero mais a uma unha da minha alma do que a todo o meu corpo; e tão bem me sustentarei Sancho a seco com pão e cebolas, como governador com perdizes e capes; e, além disso, enquanto se dorme, todos são iguais; e repare Senhor, meu amo, que quem me meteu nisto de governar foi Vossa Mercê, que eu lá de governos de ilhas nunca entendi nada; e, se acaso se persuade que por ser governador me há-de levar o Diabo, antes quero ir Sancho para o Céu, do que governar para o Inferno.

- Por Deus, Sancho - acudiu D. Quixote -, só por essas últimas palavras que disseste, entendo que mereces ser governador de mil ilhas; boa índole tens, sem a qual não há ciência que valha; encomenda-te a Deus, e procura não errar na primeira intenção; quero dizer, que tenhas sempre firme propósito de acertar em todos os negócios que te aparecerem, porque o Céu favorece os bons desejos; e vamos jantar, que creio que esses Senhores nos esperam.

 

DE COMO SANCHO PANÇA FOI LEVADO PARA O GOVERNO, E DA ESTRANHA AVENTURA QUE SUCEDEU NO CASTELO A D. QUIXOTE

Dizem que se lêem, no original desta história (que o intérprete de Cide Hamet não traduziu este capítulo como o autor o escrevera), queixas do mouro contra si mesmo, por ter tomado a tarefa de narrar uma história tão seca como esta de D. Quixote, sendo como que obrigado a estar sempre a falar nele e em Sancho, sem ousar estender-se a outras digressões, e episódios mais graves e mais entretidos; e dizia que escrever sempre num só assunto, e falar pela boca de poucas pessoas, era um trabalho insuportável, que não redundava em proveito do seu autor;

e que por fugir deste inconveniente usara na primeira parte do artifício de algumas novelas, como foram o Curioso Impertinente e o Capitão Cativo, que estão separadas da história, ainda que as outras que ali se contam são casos sucedidos ao próprio D. Quixote, e que não podiam deixar de se escrever. Também pensou que muitos, levados pela atenção que pedem as façanhas de D. Quixote, não a dariam às novelas, e as leriam, ou com pressa, ou com enfado, sem reparar na gala e no engenho que revelam, e que bem se mostrarão quando, por si sós, e sem se encostarem às loucuras de D. Quixote, nem às sandices de Sancho, vierem à luz; e, assim, nesta segunda parte não quis inserir novelas, nem soltas nem pegadas, mas apenas alguns episódios que lhe parecessem nascidos dos próprios sucessos que a verdade oferece, e estes ainda limitadamente, e só com as palavras que bastam para os referir; e visto que se contém e encerra nos estreitos limites da narração, tendo habilidade, suficiência e entendimento para tratar do universo todo, pede que se não despreze o seu trabalho, e se lhe dêem louvores, não pelo que escreve, mas pelo que deixa de escrever.

E prossegue a história, dizendo que logo que D. Quixote acabou de jantar, no dia em que deu os conselhos a Sancho, tratou de lhos ir pôr em escritura, para que ele procurasse quem lhos lesse; mas, apenas lhos deu, caíram no chão e vieram parar às mãos do duque, que os mostrou à duquesa, e ambos de novo se admiraram da loucura e do engenho de D. Quixote; e, assim, levando por diante as suas burlas, naquela tarde mandaram Sancho com muito acompanhamento para a povoação, que havia de representar para ele o papel de ilha. Aquele que o levava a seu cargo era um mordomo do duque, homem mui discreto e gracioso - que não pode haver graça onde não há discrição; e era o mesmo que representara o papel de condessa Trifaidi, com o donaire que se referiu.

Com isto, e com o ter sido industriado por seus amos, a respeito do modo como havia de proceder com Sancho, realizou o seu intento maravilhosamente; mas, assim que Sancho viu o tal mordomo, pareceu-lhe que o seu rosto era o mesmo que o da Trifaidi, e, voltando-se para seu amo, disse-lhe:

- Senhor, ou a mim me há-de levar o Diabo daqui de onde estou, ou Vossa Mercê me há-de confessar que este mordomo é tal qual a Dolorida.

Mirou D. Quixote atentamente o mordomo, e, depois de o mirar, disse para Sancho Pança:

- Escusa o Diabo de te levar, que efectivamente o rosto da Dolorida parece-se imenso com o do mordomo; mas nem por isso o mordomo é a Dolorida, o que seria uma contradição enorme; e agora não temos tempo de fazer essas averiguações, para não entrarmos em intrincados labirintos. Acredita, amigo, que é necessário rogar com todas as veras da nossa alma a Nosso Senhor, que nos livre a ambos de maus feiticeiros, e de maus nigromantes.

- Isto não é brincadeira Senhor, meu amo - redarguiu Sancho Pança -, que o ouvi falar há pedaço, e a voz dele pareceu mesmo a da condessa Trifaidi. Ora bem, eu calo-me, mas não deixarei de andar daqui por diante muito alerta, a ver se descubro outro sinal, que confirme ou desfaça as minhas suspeitas, que me parece não são infundadas.

- Assim deves fazer, Sancho - disse D. Quixote -, e avisar-me-ás de tudo o que neste caso se descobrir, e de tudo o que te suceder no governo.

Saiu, enfim Sancho, acompanhado de muita gente, vestido à moda dos letrados, e por cima da roupa um gabão muito largo de camelote cor de pele de leão, com um gorro da mesma fazenda, montado num macho à gineta, e, atrás dele, por ordem do duque, ia o ruço, com jaezes e ornatos burricais flamantes e de seda. Voltava Sancho a cabeça de quando em quando para ver o seu jumento, cuja companhia o contentava tanto, que se não trocaria pelo imperador da Alemanha.

Ao despedir-se dos duques, beijou-lhes as mãos, e tomou a bênção de seu amo, que lha deu com lágrimas, e Sancho recebeu-a com umas caretas de enternecimento.

Deixa, leitor amável, ir em paz e em boa hora o bom Sancho, e espera duas fanegas de riso, que te há-de render o saberes como ele se portou no governo da sua ilha; e, entretanto, vamos ver o que passou seu amo naquela noite, que também te fará rir um pedaço.

Conta-se, pois, que, apenas Sancho partiu, sentiu D. Quixote a sua soledade, e, se lhe fosse possível revogar a nomeação de Sancho, e tirar-lhe o governo, fá-lo-ia sem a menor hesitação.

Percebeu a duquesa a sua melancolia, e perguntou-lhe por que motivo estava triste: que se era pela ausência de Sancho, havia em sua casa escudeiros, donas e donzelas com fartura, que o serviriam muito a seu sabor.

- É certo Senhora minha - respondeu D. Quixote -, que sinto a ausência de Sancho, mas não é essa a causa principal que por agora me entristece; e dos muitos oferecimentos que Vossa Excelência me fez, só aceito e agradeço o da boa vontade, e no mais peço a Vossa Excelência que dentro do meu aposento consinta e permita que eu só me sirva a num próprio.

- Isso não pode ser assim, Sr. D. Quixote - respondeu a duquesa -; é forçoso que o sirvam quatro das minhas donzelas, lindas como umas flores.

- Para mim - respondeu D. Quixote - não seriam flores, mas espinhos que me pungiriam a alma. Não entram no meu aposento nem mulheres nem coisa que o pareça, se Vossa Excelência não mandar o contrário. Deixe-me levantar uma muralha entre a minha honestidade e os meus desejos, e não quero

perder este costume, pela liberalidade com que Vossa Alteza pretende honrar-me e favorecer-me. Enfim, prefiro dormir vestido, a consentir que alguém me dispa.

- Basta! Basta! Sr. D. Quixote - acudiu a duquesa. - Por minha vida que darei as mais apertadas ordens para que não entre no seu quarto nem uma mosca sequer. Por minha culpa não há-de ter nem o mais leve detrimento a decência do Sr. D. Quixote, que, segundo me dizem, a virtude que mais campeia entre as muitas que o ornam é a da castidade. Dispa-se Vossa Mercê, e vista-se sozinho e à sua vontade, como e quando quiser, que não haverá quem lho impeça, porque dentro do seu aposento achará tudo o que lhe pode ser preciso, e que o dispense de abrir a porta, quando lá estiver. Viva mil séculos a grande Dulcineia del Toboso, e espalhe-se o seu nome por toda a redondeza do globo, pois mereceu ser amada por tão valente e casto cavaleiro! E os benignos Céus infundam no coração de Sancho Pança, do nosso governador, um desejo de acabar depressa com os seus açoites, para que o mundo torne a desfrutar a formosura de tão excelsa senhora.

- Vossa Alteza - disse D. Quixote - falou como quem é, que em boca das boas senhoras não há senhora má, e mais venturosa e mais conhecida será Dulcineia no mundo por Vossa Grandeza a ter louvado, do que por todos os louvores que lhe possam dar os mais eloquentes escritores do mundo.

- Ora bem, Sr. D. Quixote - redarguiu a duquesa -, aproxima-se a hora de cear, e o duque deve estar à espera; venha Vossa Mercê e ceemos, e deite-se cedo, que a viagem de Candaia que ontem fez não foi tão curta que o não moesse.

- Não sinto cansaço Senhora - respondeu D. Quixote -, porque ousarei jurar a Vossa Excelência que nunca montei num cavalo mais suave e de melhor andadura que Clavilenho, e não sei o que foi que levou Malambruno a desfazer-se de tão ligeira e tão gentil cavalgadura, abrasando-a assim sem mais nem mais.

- O que se pode imaginar é que, arrependido do mal que fizera à Trifaidi e companhia, e das maldades que, como feiticeiro e nigromante, devia de ter cometido, quis dar cabo de todos os instrumentos do seu ofício; e como o principal e o que mais desassossegado o trazia, vagando de terra em terra, era Clavilenho, incendiou-o, e com as suas abrasadas cinzas e com o trofeu do cartel fica eternizado o valor do grande D. Quixote de La Mancha.

De novo D. Quixote agradeceu à duquesa, e, depois de cear, sozinho se retirou para o seu aposento, sem consentir que ninguém entrasse com ele para o servir, tanto receava encontrar ocasiões que o impelissem ou obrigassem a perder o honesto decoro que guardava a Dulcineia em sonhos, sempre com a imaginação posta na bondade de Amadis, flor e espelho dos cavaleiros andantes.

Fechou a porta para si, e, à luz de duas velas de cera, despiu-se, e, ao descalçar-se, ó desgraça indigna de uma pessoa como esta, soltaram-se-lhe duas dúzias de pontos duma meia, que ficou transformada em gelosia.

Afligiu-se muito o bom do fidalgo, e daria de bom grado uma onça de prata para ter ali um novelo de seda verde, e digo de seda verde, porque as meias de D. Quixote eram dessa cor.

Aqui exclamou Benengeli:

O pobreza! Pobreza! Não sei com que razão o grande poeta cordovês se lembrou de te chamar dádiva santa que não é aradecida; eu, apesar de ser mouro, sei perfeitamente, pela comunicação que tenho tido com cristãos, que a santidade consiste em caridade e humildade, fé, obediência e pobreza; mas, com tudo isso, digo que se há-de parecer muito com Deus quem se rejubilar em ser pobre, a não ser aquele género de pobreza a que se refere um dos maiores santos do cristianismo: tende todas as coisas como se as não tivésseis. E a isto se chama pobreza de espírito. Mas tu, segunda pobreza (que é a de que eu falo), porque queres atacar os fidalgos e os de nobre nascimento, mais do que a outra gente? Porque os obrigas a arremendar os sapatos, e a trazer nos gibões uns botões de seda, e outros de chifre, e outros de vidro? Porque hão-de andar sempre os seus cabeções corridos a ferro e não engomados?

Mísero do bem-nascido que sacrifica tudo à sua honra: janta mal e à porta fechada e sai para a rua com um palito hipócrita, depois de não ter comido coisa que se lhe metesse nos dentes!

Mísero! - continua Benengeli. - Mísero do que tem a honra espantadiça, e imagina que a uma légua de distância se lhe descobre a tomba do sapato, o roçado do chapéu, o fio da capa e a fome do seu estômago.

Tudo isto acudiu ao pensamento de D. Quixote ao ver as meias rotas, mas consolou-se notando que Sancho lhe deixara umas botas de viagem, que tencionou calçar no outro dia.

Finalmente, recostou-se pensativo e pesaroso, tanto pela falta que Sancho lhe fazia, como pela irreparável desgraça das suas meias, às quais tomaria os pontos, ainda que fosse com seda de outra cor, o que é um dos maiores sinais de miséria, que um fidalgo pode dar na sua prolixa estreiteza.

Apagou a luz; o tempo estava quente, e D. Quixote não podia dormir; levantou-se do leito, abriu um pouco a janela que deitava para um formoso jardim, e, ao abri-la, sentiu que nesse jardim andava gente a falar.

Pôs-se a escutar atentamente; levantaram a voz os passeantes, tanto que pôde ouvir este diálogo:

- Não teimes comigo, Emerência, para eu cantar, porque sabes perfeitamente que, desde o momento em que este forasteiro entrou no castelo, eu já não sei cantar, e não sei senão chorar, tanto mais que o sono da minha senhora é levíssimo, e não quereria ser encontrada aqui nem que me dessem todos os tesouros do mundo; e ainda que ela não despertasse, baldado seria o meu canto, visto que dorme e não acorda para o ouvir este novo Eneias, que chegou à minha pátria para me deixar escarnecida.

- Não digas isso, Altisidora amiga - respondeu outra voz -; decerto a duquesa e todas as pessoas de casa dormem, menos o senhor do teu coração e o despertador de tua alma, porque senti agora mesmo que abriu a janela do seu quarto, e está sem dúvida acordado. Canta, minha pobre amiga, em tom brando e suave, e ao som da tua harpa, e, se a duquesa nos sentir, deitaremos a culpa ao calor que faz.

- Não é aí que bate o ponto, Emerência - respondeu Altisidora -, o que eu não queria era que o meu canto descobrisse o meu nome, e fosse considerada, pêlos que não avaliam

o que é o amor, donzela leviana; mas, venha o que vier, melhor é a vergonha na cara, que a nódoa no coração.

E começou a tocar uma harpa suavissimamente.

Ouvindo isto, ficou D. Quixote pasmado, porque logo naquele instante lhe acudiram à memória as infinitas aventuras, semelhantes àquela, de reixas e de jardins, músicas, requebros, e desvanecimentos, que lera nos seus livros de cavalaria. Logo imaginou que alguma donzela da duquesa estava dele enamorada, e que a honestidade a forçava a ter oculto o seu desejo.

Tremeu de ser rendido, mas tomou a firme resolução de se não deixar vencer, e, encomendando-se com o maior fervor à sua dama Dulcineia del Toboso, decidiu-se a escutar a música;

e para fazer perceber que estava ali, deu um fingido espirro, com que muito se divertiram as donzelas, que não desejavam outra coisa senão que D. Quixote as ouvisse.

Afinada a harpa, Altisidora deu princípio ao seguinte romance:

O tu, que estás no teu leito com lençóis de holanda fina, dormindo bem regalado, sem sentires a espertina, cavaleiro o mais valente

que na Mancha se há gerado, mais honesto e abençoado que o ouro da Arábia ardente:

ouve uma triste donzela, bem-nascida e mal lograda, que na luz desses teus olhos a alma sente abrasada.

Achas desditas alheias, quando buscas aventuras;

e de amor cruéis feridas tu as dás, mas não as curas.

Diz-me, bravo mancebo

(que Deus cumpra os teus desejos),

se te criaste na Líbia

ou em montes sertanejos.

Deram-te leite as serpentes? Foram tuas amas bravias as aspérrimas florestas e o horror das serranias?

Mui bem pode Dulcineia, donzela sã e gorducha, gabar-se de ter rendido um tigre, fera machucha.

Por isso, será famosa de Jarama até Henares, de Pisuerga até Arlanza e do Tejo ao Manzanares.

Eu trocava-me por ela, e ainda em cima dava a saia mais vistosa que eu possuo de áureas franjas na cambraia.

Quisera estar nos teus braços, ou prestar-te o bom serviço de te sacudir a caspa, de te coçar o toutiço.

Muito peço, não sou digna de mercê tão levantada;

dá-me os teus pés, isso basta, nem eu desejo mais nada.

Que prendas eu te daria! escarpins de prata fina,

umas calças de damasco, uns calções de bombazina;

muitas pedras preciosas, finas perlas orientais, que, a não terem companheiras, não contariam iguais!

Não mires dessa Tarpeia este incêndio que me queima, Nero manchego, que o fogo avivas côa tua teima.

Menina sou, virgem tenra, quinze anos não completei;

tenho catorze e três meses, juro pela santa lei.

Não sou manca, não sou coxa, não tenho um só aleijão, meus cabelos cor de lírios, stando em pé, chegam-me ao chão.

A boca tenho aquilina, tenho a penca abatatada;

os dentes são uns topázios! vê que beleza afamada!

Sou pequenina, o que importa? A minha voz, fresca e pura, confessa que (se me escutas) tem suavíssima doçura.

Conquistou minha alma ingénua teu rosto que me enamora; sou donzela desta casa, e chamam-me Altisidora.

 

Aqui deu fim o canto da malferida Altisidora, e começou o assombro do requestado D. Quixote, que, dando um grande suspiro, disse entre si:

- Tenho de ser tão desditoso cavaleiro andante, que não há de haver donzela que olhe para mim e que de mim se não namore; e tão desventurada há-de ser a simpática Dulcineia del Toboso, que a não deixem gozar tranquilamente a minha incomparável firmeza!

Que lhe quereis, rainhas? Porque a perseguis, imperatrizes? Porque a acossais, donzelas de menos de quinze anos? Deixai! Deixai à mísera que triunfe, e desfrute a fortuna que Deus lhe quis dar, em render-lhe o meu coração, e em entregar-lhe a minha alma. Vede, caterva enamorada, que só para Dulcineia sou de manteiga, e para todas as outras sou pedra: para ela sou mel, e fel para vós outras; para mim só Dulcineia é formosa, discreta, honesta, galharda e bem-nascida, e as outras são feias, tolas, levianas, e de pior linguagem; para eu ser dela e de mais ninguém me arrojou a Natureza ao mundo. Chora, canta, Altisidora! Desespere-se a madama, por causa de quem me desancaram no castelo do mouro encantado, que eu tenho de ser de Dulcineia, cozido ou assado, limpo, bem-criado e honesto, apesar de todas as potestades feiticeiras da Terra.

E com isto fechou de golpe a janela, e, despeitado e pressuroso, como se lhe houvesse acontecido alguma grande desgraça, deitou-se no seu leito, onde agora o deixaremos, porque nos está chamando o grande Sancho Pança ao seu famoso governo.

 

DE COMO SANCHO PANÇA TOMOU POSSE DA SUA ILHA, E DO MODO COMO PRINCIPIOU A GOVERNÁ-LA

O perpétuo descobridor dos antípodas, facho do mundo, olho do Céu, causador do balanço das bilhas de água, Tímbrio aqui, Febo ali, atirador além, médico acolá, pai da poesia, inventor da música; tu, que sempre nasces e nunca morres, ainda que o pareces, digo-te, ó Sol, cujo auxílio é indispensável para a perpetuidade da espécie humana, digo-te e peço-te que me favoreças e alumies a escuridão do meu engenho, para que possa discorrer com acerto e minúcia na narração do governo de Sancho Pança, que sem ti sinto-me tíbio, descoroçoado e confuso!

Digo, pois, que, com todo o seu acompanhamento, chegou Sancho a um lugar quase de mil vizinhos, que era dos melhores que o duque possuía. Disseram-lhe que se chamava a ilha Barataria, ou porque o lugar tinha o nome de Barataria, ou pela barateza com que se lhe dera o governo. Ao chegar às portas da vila, que era cercada de muros, saíram os alcaides do povo a recebê-lo, tocaram os sinos, e todos os vizinhos deram mostras de geral alegria, e com muita pompa o levaram à igreja matriz a dar graças a Deus, e, em seguida, com algumas ridículas cerimónias, lhe entregaram as chaves da vila, e o admitiram como governador perpétuo da ilha Barataria. O trajo, as barbas, a gordura e a pequenez do novo governador traziam pasmados todos os que não sabiam o segredo do negócio, e até os que o sabiam, que eram muitos. Finalmente, fazendo-o sair da igreja, levaram-no à cadeira do tribunal, e ali o sentaram; e o mordomo do duque disse-lhe:

- E costume antigo aqui Senhor Governador, que o que vem tomar posse desta ilha famosa seja obrigado a responder a uma pergunta que se lhe faça, intrincada e dificultosa, e pela resposta que dá, toma o povo o pulso ao engenho do seu novo governador; e assim se alegra, ou se entristece com a sua vinda.

Enquanto o mordomo dizia isto a Sancho, estava ele olhando para umas grandes e numerosas letras, que ornavam a parede defronte da sua cadeira. Como não sabia ler, perguntou o que eram as pinturas que havia naquela parede. Responderam-lhe o seguinte:

- Senhor, está ali escrito e notado o dia em que Vossa Senhoria tomou posse desta ilha, e diz assim o epitáfio: «Hoje, dia tantos de tal mês e de tal ano, tomou posse desta ilha o Sr. D. Sancho Pança, que por muitos anos a goze.”

- E a quem é que chamam D. Sancho Pança? - perguntou Sancho.

- A Vossa Senhoria - respondeu o mordomo -, que nesta ilha nunca entrou outro Sancho Pança, a não ser o que está sentado nessa cadeira.

- Pois ficai sabendo, irmão - redarguiu Sancho -, que eu não tenho Dom, nem nunca o houve em toda a minha linhagem. Chamo-me Sancho Pança, sem nada mais, e Sancho se chamou meu pai, e Sancho meu avô; todos foram Panças, sem dons nem donas, e parece-me que nesta ilha deve haver mais dons do que pedras; mas basta, que Deus bem me entende, e pode ser que, se o meu governo durar quatro dias, eu carde esses dons, que pela multidão devem enfadar tanto como os mosquitos. Venha de lá agora com a sua pergunta o Senhor Mordomo, que eu responderei o melhor que puder, quer se entristeça o povo, quer se não entristeça.

Neste momento entraram no tribunal dois homens: um vestido de lavrador e o outro de alfaiate, porque trazia uma tesoura na mão; e o alfaiate disse:

- Senhor Governador, eu e este lavrador que aqui estamos, vimos à presença de Vossa Mercê, porque este bom homem entrou ontem na minha loja - que eu, com perdão de quem está presente, sou alfaiate examinado, graças a Deus - e pondo-me nas mãos um pedaço de pano, perguntou-me: Senhor, este pano chega para me fazerem uma carapuça? Eu medi o pano, e respondi que sim. Ele imaginou, penso, que eu lhe queria furtar algum pedaço de pano, fundando-se talvez no seu mau costume e na má opinião que têm os alfaiates, e replicou-me que visse se chegaria para duas. Adivinhei-lhe o pensamento e tomei-lhe a dizer que sim; e, teimoso na sua demanda e primeira tenção, foi aumentando o número das carapuças, e eu respondendo sempre que sim, até que chegámos à conta de cinco, e agora acaba de as ir buscar; eu dou-lhas, não me quer pagar o feitio, e pelo contrário me pede que lhe pague ou lhe dê o pano.

- E tudo isto assim, irmão? - perguntou Sancho.

- É, sim, senhor - respondeu o outro -, mas diga-lhe Vossa Mercê que mostre as cinco carapuças que me fez.

- Da melhor vontade - tornou o alfaiate, tirando imediatamente a mo debaixo do capote.

Mostrou cinco carapuças, postas nas cinco cabeças dos dedos da mão, e disse:

- Aqui estão as cinco carapuças, que este homem me pede, e juro por Deus e pela minha consciência que não me ficou nem um só pedaço de pano, como podem julgar os peritos do ofício.

Todos os presentes se riram da multidão das carapuças e do novo pleito. Sancho pôs-se a considerar um pouco, e disse:

- Parece-me que neste pleito não deve haver largas dilações, mas julgar-se logo por juízo do homem bom; e, assim, dou por sentença, que o alfaiate perca o feitio, o lavrador o pano, e se dêem as carapuças aos presos da cadeia, e acabou-se.

Esta sentença excitou o riso dos circunstantes; mas fez-se enfim o que o governador mandou; e vieram logo em seguida dois homens anciãos, um encostado a uma cana, e o outro sem bordão de espécie alguma, que disse assim:

- Senhor, há dias que emprestei a este homem dez escudos de ouro em ouro para lhe ser agradável, e para o obsequiar, com a condição de que mós restituiria quando eu lhos reclamasse; passaram-se muitos dias sem lhos pedir, para não atrapalhar a sua vida; mas, como me pareceu que se ia descuidando na paga, falei-lhe neles uma e muitas vezes, e não só mós não restitui, mas nega-mos, e diz que nunca lhe emprestei tais dez escudos, ou que, se lhos emprestei, já mós restituiu; eu não tenho testemunhas, e muito menos de que mós deu, porque foi coisa que ele nunca fez; quereria que Vossa Mercê lhe tomasse juramento, e, se jurar que mós pagou, perdoo-lhos aqui e diante de Deus.

- Que dizeis a isto, bom velho do bordão? - perguntou Sancho.

- Eu, Senhor - respondeu o velho -, confesso que mós emprestou; abaixe Vossa Mercê essa vara, e já que ele confia no meu juramento, eu jurarei que lhos restituí real e verdadeiramente.

Abaixou o governador a vara, e entretanto o velho deu a cana ao outro, pedindo-lhe que lha segurasse, enquanto ele jurava, como se o embaraçasse muito, e logo em seguida pôs a mão na cruz da vara, e disse que era verdade que lhe tinham emprestado aqueles dez escudos que lhe pediam, mas que os restituíra de mão em mão, e que decerto o credor não reparara nesse pagamento, pois que lhos tornava a reclamar de quando em quando.

Vendo isto, o grande Sancho perguntou ao credor o que respondia ele ao que dizia o seu contrário, e alegou este que sem dúvida alguma o seu devedor falaria verdade, porque o tinha por homem de bem, e bom cristão, e que decerto fora ele quem se esquecera de como e de quando lhos restituíra; que dali por diante nunca mais lhe pediria coisa alguma. Tornou a pegar na cana o devedor, e, abaixando a cabeça, saiu do tribunal. E Sancho, vendo isto, notando que se ia embora, sem mais nem mais, e observando também a paciência do queixoso, inclinou a cabeça sobre a mão, e, pondo o dedo indicador no nariz e nos olhos, esteve como que pensativo um pequeno espaço, e logo se endireitou, e mandou que lhe chamassem o velho do bordão, que já se fora embora. Trouxeram-lho, e, ao vê-lo, disse-lhe Sancho:

- Dai-me esse bordão, que preciso dele.

- Com a melhor vontade - respondeu o velho -, aqui está, Senhor.

E pôs-lho na mão. Pegou-lhe Sancho, e, dando-o ao outro velho, continuou:

- Ide com Deus, que já estais pago.

- Eu, Senhor! - respondeu o velho. - Pois esta cana vale dez escudos de ouro?

- Vale, sim, ou sou eu o maior asno do mundo; e agora se verá se tenho ou não cachimónia para governar um reino inteiro.

Mandou que ali diante de todos se quebrasse e abrisse a cana. Fez-se assim, e dentro dela acharam dez escudos em ouro. Ficaram todos admirados, e tiveram o seu governador por um novo Salomão. Perguntaram-lhe como é que coligiu que estavam na cana aqueles dez escudos; e ele respondeu que, tendo visto o velho dar o bordão ao seu contrário, enquanto fazia o juramento de que lhos dera real e verdadeiramente, e tornar-lho a pedir logo que acabou de jurar, acudiu-lhe à imaginação que estava dentro dele a paga do que se pedia. De onde se pode concluir que os que governam, ainda que sejam uns tolos, às vezes encaminha-os Deus em seus juízos; tanto mais que ele ouvira contar um caso assim ao cura da sua terra, e tinha tanta memória que, se não se esquecesse de tudo de quanto se queria lembrar, não haveria memória assim em toda a ilha. Finalmente, um dos velhos corrido e o outro pago, foram-se ambos, e os presentes ficaram admirados, e o que escrevia as palavras, feitos e gestos de Sancho, não sabia se o havia de classificar como tolo se como discreto.

Acabado este pleito, entrou no tribunal uma mulher, agarrada fortemente ao braço de um homem vestido de rico pastor, a qual vinha dando grandes brados, e dizendo:

- Justiça, Senhor Governador, justiça! E, se a não acho na Terra, irei buscá-la ao Céu. Senhor Governador, Senhor Governador da minha alma, este mau homem agarrou-me no meio desse campo, e serviu-se do meu corpo, como se fosse um trapo mal lavado, e, desgraçada de mim, levou-me o que eu guardava há mais de vinte e três anos, defendendo-o de mouros e cristãos, naturais e estrangeiros, e eu sempre resistindo, conservando-me intacta como a salamandra no lume, ou como a lã nas sarças, para que este homem viesse agora manchar-me com as suas mãos limpinhas!

- Isso é o que está ainda por averiguar, se esse galã tem ou não tem as mãos limpinhas - disse Sancho.

E, voltando-se para o homem, perguntou-lhe o que tinha que dizer ou responder à querela dessa mulher. O homem, todo turbado, redarguiu:

- Senhores, eu sou um pobre porqueiro (com perdão seja dito). Esta manhã saía eu deste lugar, de vender quatro dos meus cevados, que me levaram de alcavalas quase o que eles valiam. Voltava eu para a minha aldeia, quando encontrei no caminho esta boa mulher; e o Diabo, que sempre as arma, fez com que folgássemos juntos; paguei-lhe bastante, e ela, não satisfeita com a paga, agarrou-se a mim, e não me deixou enquanto me não

trouxe aqui. Diz que a forcei, e mente, pelo juramento que faço ou tenciono fazer; e é esta a verdade toda, sem lhe faltar uma só migalha.

Então o governador perguntou-lhe se trazia consigo algum dinheiro em prata; disse ele que tinha uns vinte ducados no seio, numa bolsa de couro; mandou-lhe que a tirasse, e a entregasse tal qual à queixosa, o que ele fez tremendo. A mulher tomou-a, e fazendo mil mesuras a todos, e rogando a Deus pela vida e saúde do Senhor Governador, que assim olhava pelas órfãs necessitadas e donzelas, com isto saiu do tribunal, levando a bolsa agarrada em ambas as mãos, ainda que primeiro viu se era de prata a moeda que tinha dentro. Apenas saiu, disse Sancho ao pastor, a quem já saltavam as lágrimas dos olhos, e cujo coração ia atrás da bolsa:

- Bom homem, correi após aquela mulher, e tirai-lhe a bolsa, ainda que seja à força, e voltai com ela aqui.

E não o disse a um tolo, nem a um surdo, porque ele logo partiu como um raio, e foi aonde o mandavam. Todos os presentes estavam suspensos, esperando o fim daquele pleito, e daí a pouco voltavam o homem e a mulher, mais agarrados que da primeira vez: ela de saia levantada, e com a bolsa no colo, e o homem trabalhando por lha tirar, mas sem poder, de tal forma ela a defendia, bradando:

- Justiça de Deus e do mundo! Veja Vossa Mercê, Senhor Governador, a pouca-vergonha e o pouco receio deste desalmado, que no meio da povoação, e no meio da rua, me quis tirar a bolsa que Vossa Mercê me mandou dar.

- E tirou-lha? - perguntou o governador.

- Tirar-ma! Mais depressa me tirariam a vida do que a bolsa! Está na tinta! Outros gatos me hão-de deitar às barbas, e não este desventurado e asqueroso; nem tenazes, nem martelos, nem maças, nem escopros seriam capazes de ma tirar, nem garras de leões; antes me arrancariam a alma do meio das carnes.

- Tem razão - disse o homem -, dou-me por vencido e confesso que não tenho força bastante para lha tirar. E deixou-a. Então o governador disse à mulher:

- Deixai cá ver, honrada e valente mulher, essa bolsa. Logo ela lha deu, e o governador restituiu-a ao homem, e disse à esforçada:

- Mana minha, se mostrásseis o mesmo alento e valor, que mostrastes na defesa desta bolsa, ou só metade para defender vosso corpo, nem as forças de Hércules vos violentariam. Ide com Deus, e em má hora, e não pareis nem nesta ilha, nem em seis léguas de contorno, sob pena de duzentos açoites; ide-vos já, repito, desavergonhada e embaiadora.

Espantou-se a mulher, e foi-se embora, cabisbaixa e descontente; e o governador disse para o homem:

- Ide-vos com Deus para o vosso lugar e com o vosso dinheiro, e daqui por diante, se o não quereis perder, vede se não vos dá na vontade o retouçar com ninguém.

O homem agradeceu-lhe, como pôde e soube, e foi-se embora, e os circunstantes ficaram admirados outra vez do juízo e das sentenças do seu novo governador. Tudo isto, notado pelo seu cronista, foi logo escrito ao duque, que com grande desejo o estava esperando; e fique-se por aqui o bom Sancho, que temos pressa de voltar a seu amo, alvoroçado com a música de Altisidora.

 

DA TEMEROSA CHUVA DE GATOS BARULHENTOS QUE RECEBEU D. QUIXOTE, NO DECURSO DOS AMORES DA ENAMORADA ALTISIDORA

Deixámos o grande D. Quixote envolto nos pensamentos que lhe causara a música da enamorada donzela Altisidora. Com eles se deitou, e, como se fossem pulgas, não o deixaram dormir nem sossegar um momento, juntando-se a isso o cuidado que lhe dava faltarem-lhe os pontos das meias; mas, como o tempo é ligeiro e não há barranco que o detenha, correram as horas depressa, e não tardou a manhã. Vendo isto, D. Quixote largou a branda pluma, e nada preguiçoso vestiu o seu fato de camurça, e calçou as botas da estrada para encobrir o deplorável infortúnio das meias. Deitou por cima a sua capa de escarlata, e pôs na cabeça um barrete de veludo verde, guarnecido de prata; pendurou dos ombros, com um talim, a sua boa e cortadora espada; agarrou num grande rosário que trazia sempre consigo, e com grande pausa e cadência saiu para a antessala, onde o duque e a duquesa estavam já vestidos e como que esperando-o, e, ao passar por uma galeria, encontrou a postos, e à sua espera, Altisidora e outra donzela sua amiga; e, assim que Altisidora viu D. Quixote, fingiu que desmaiava, e a amiga recebeu-a no colo, e com grande presteza começou a desapertar -lhe o peito.

  1. Quixote, vendo isto, disse, chegando-se a ela:

- Já sei de que procedem estes acidentes.

- Pois não sei eu - respondeu a amiga -, porque Altisidora é a donzela mais sadia desta casa, e nunca lhe ouvi dar um ai, desde que a conheço; mal hajam quantos cavaleiros andantes há no mundo, se todos são desagradecidos; vá-se embora Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, que esta pobre menina não tornará a si, enquanto Vossa Mercê aqui estiver.

- Mande pôr um alaúde, esta noite, no meu aposento - respondeu D. Quixote -, que eu consolarei, o melhor que puder, esta triste donzela; que nos princípios amorosos os desenganos prontos costumam ser remédios excelentes.

E com isto se foi embora, para não ser notado pêlos que ali o vissem. Apenas ele se apartou, logo, tornando a si a desmaiada Altisidora, disse:

- É necessário pôr-lhe lá o alaúde, que sem dúvida D. Quixote nos quer regalar com música, que não há-de ser má, se for dele.

Logo participaram à duquesa o que se passava e o pedido do alaúde que D. Quixote fizera, e ela, extremamente alegre, combinou com o duque e com Altisidora o fazerem-lhe uma burla que fosse mais alegre do que danosa, e com muito contentamento esperavam a noite, que não veio tão depressa como viera o dia, que os duques passaram em saborosas práticas com D. Quixote; e a duquesa nesse dia despachou real e verdadeiramente um pajem seu, que fizera na selva o papel de Dulcineia,

a Teresa Pança, com a carta de seu marido Sancho Pança e com a trouxa de roupa que ele deixara para lhe ser mandada, ordenando-lhe que lhe desse boa relação de tudo o que se passasse.

Feito isto, e chegadas as onze horas da noite, encontrou D. Quixote uma viola no seu aposento; experimentou-a, abriu a reixa, sentiu que andava gente no jardim, e tendo apertado as escaravelhas da viola, e afinando-a o melhor que pôde, escarrou e aclarou o peito, e logo em seguida, com voz rouca, ainda que entoada, cantou o seguinte romance, que naquele mesmo dia compusera:

Tiram as almas dos eixos as grandes forças do amor, são os cuidados do ócio

seu instrumento melhor.

As donzelas na costura, e em 'star sempre atarefadas, têm antídoto ao veneno das ânsias enamoradas.

As donzelas recolhidas, e que desejam casar, têm na honestidade o dote e a voz que as há-de louvar.

Os cavaleiros andantes, e os que vão da corte às festas, têm com as soltas requebros, mas só casam côas honestas.

Fútil amor de levante podem-no hóspedes sentir, chega rápido ao poente, porque acaba com partir.

Amor que nasce depressa, hoje vem, vai-se amanhã, nas almas no deixa impressa a sua imagem louçã.

Pintura sobre pintura não é como em tábua rasa; onde há primeira beleza a segunda não faz vasa.

Dulcineia del Toboso eu tenho n'alma pintada com tal viveza, que nunca poderá ser apagada.

A firmeza nos amantes é dote mui de louvar, amor opera milagres por quem assim sabe amar.

Aqui chegou D. Quixote com o seu canto, que estavam escutando o duque e a duquesa, Altisidora e quase toda a gente do castelo, quando, de repente, de uma varanda, que corria por cima da janela de D. Quixote, deixaram cair um cordel, a que vinham presas mais de cem campainhas, e logo em seguida despejaram um grande saco de gatos, que traziam também campainhas mais pequenas, presas aos rabos. Foi tal o barulho das campainhas e o miar dos gatos, que, ainda que os duques tinham sido os inventores da caçoada, sobressaltaram-se, e D. Quixote ficou temeroso e pasmado; e quis a sorte que dois ou três gatos entrassem no seu quarto, e, correndo de um lado para o outro, pareciam uma legião de diabos que por ali andava.

Apagaram as velas que ardiam no aposento, e saltavam procurando sítio por onde se escapassem.

O descer e subir do cordel com as campainhas grandes não cessava; a maior parte da gente do castelo, que não sabia da verdade do caso, estava verdadeiramente suspensa e admirada.

Pôs-se D. Quixote em pé, e, levando a mão à espada, começou a atirar estocadas pelas reixas, e a dizer com grandes brados:

- Fora, malignos nigromantes, fora, canalha feiticeiresca;

eu sou D. Quixote de La Mancha, contra quem não valem nem têm força as vossas más intenções.

E, voltando-se para os gatos que andavam pelo aposento, atirou-lhes muitas cutiladas; acudiram à reixa, e por ali saíram;

mas um, vendo-se tão acossado pelas cutiladas de D. Quixote, saltou-lhe à cara, agarrou-se-lhe ao nariz com unhas e dentes, e a dor obrigou D. Quixote a soltar grandes gritos.

Ouvindo isto o duque e a duquesa, e considerando o que podia ser, acudiram muito depressa ao seu quarto, e, abrindo a porta, deram com o pobre cavaleiro procurando com todas as suas forças arrancar o gato da cara. Entraram com luzes, e viram a desigual peleja; acudiu o duque a separar os contendores, e D. Quixote bradou:

- Ninguém mo tire, deixem-me com este demónio, com este nigromante, com este feiticeiro, que eu lhe mostrarei quem é D. Quixote de La Mancha.

Mas o gato, não se importando com essas ameaças, cada vez mais berrava e o arranhava; afinal, o duque arrancou-o e atirou-o pela janela. Ficou D. Quixote de cara escalavrada e com o nariz pouco são, mas muito despeitado por lhe não terem deixado pôr termo à batalha que travara com aquele malandrino nigromante.

Mandaram buscar óleo de amêndoas doces, e a própria Altisidora lhe pôs com as suas branquíssimas mãos uns panos em todos os sítios feridos, e, ao pôr-lhos, disse-lhe em voz baixa:

- Todas estas desgraças te sucedem, empedernido cavaleiro, pelo pecado da tua dureza e pertinácia; e pede a Deus que Sancho, teu escudeiro, se esqueça de se açoitar, para que nunca saia do seu encantamento essa Dulcineia tão tua amada, nem a gozes, nem vás para o tálamo com ela, pelo menos vivendo eu, que te adoro.

A tudo isto só respondeu D. Quixote com um profundo suspiro e logo se estendeu no leito, agradecendo aos duques a mercê, não porque tivesse medo daquela canalha gatesca, nigromântica e campainhadora, mas porque conhecera as boas intenções com que tinham vindo socorrê-lo.

Os duques deixaram-no sossegar, e foram-se ambos pesarosos do mau resultado da burla, porque não tinham suposto que saísse tão pesada e tão custosa a D. Quixote aquela aventura, que lhe rendeu cinco dias de cama e de encerramento, sucedendo-lhe então outra mais agradável que a anterior, que não se conta agora para se acudir a Sancho Pança, que andava muito solícito e muito gracioso no seu governo.

 

ONDE PROSSEGUE A narração DO MODO COMO SE PORTAVA SANCHO PANÇA NO SEU GOVERNO

Conta a história, que do tribunal levaram Sancho Pança para um sumptuoso palácio, onde estava posta, numa grande sala, uma mesa régia e asseadíssima; e, assim que Sancho entrou, tocaram as charamelas, e vieram quatro pajens deitar-lhe água às mãos o que Sancho recebeu com muita gravidade. Cessou a música, e sentou-se Sancho à cabeceira da mesa. Pôs-se-lhe ao lado uma personagem, que depois mostrou ser médico, de pé, e com uma chibatinha de baleia na mão. Levantaram uma riquíssima e branca toalha, com que estavam cobertas as frutas e muita diversidade de pratos de vários manjares. Um sujeito, que parecia clérigo, deitou-lhe a bênção, e um pajem atou ao pescoço de Sancho um guardanapo com rendas; o mestre-sala chegou-lhe um prato de fruta; mas, apenas Sancho comeu um bocado, o médico tocou com a chibatinha no prato, e logo lho tiraram com grandíssima celeridade; mas o mestre-sala chegou-lhe outro manjar. Ia Sancho prová-lo, mas, antes de lhe tocar, tocou-lhe a chibatinha, e um pajem levou-o com tanta rapidez como o da fruta. Vendo isto, Sancho ficou suspenso, e, olhando para todos, perguntou se naquela ilha tinha de ver com os olhos e comer com a testa.

- Não há-de comer Senhor Governador - respondeu logo o da chibata -, senão como é uso e costume nas outras ilhas onde há governadores. Eu, Senhor, sou médico, e estou nesta ilha recebendo um salário para tratar dos governadores, e olho muito mais pela sua saúde do que pela minha, estudando de noite e de dia, tenteando a compleição do governador, para acertar em curá-lo quando ele cair enfermo, e o que faço, principalmente, é assistir aos seus jantares e às suas ceias, deixá-lo comer só o que me parece que lhe convém, e tirar-lhe o que suponho que o pode prejudicar e ser-lhe nocivo ao estômago; e, assim, mandei tirar o prato da fruta, por ser demasiadamente húmida, e mandei tirar o outro manjar, por ser muito quente e ter bastantes especiarias, que aumentam a sede; e quem muito bebe mata e consome o radical húmido, em que consiste a vida.

- Nesse caso, aquele prato de perdizes, que ali estão assadas, e parece-me que bem temperadas, não me fará mal.

- Essas não as comerá o Senhor Governador - respondeu o médico - enquanto eu vida tiver.

- Porquê? - disse Sancho.

- Porque o nosso mestre Hipócrates, norte e luz da medicina, diz num seu aforismo: Omnis satumtio mala, perdeis autem péssima; quer dizer: Todas as indigestões são más, mas a da perdiz é péssima.

- Se assim é - tornou Sancho - veja o Senhor Doutor, de todos os manjares que há nesta mesa, qual me fará mais proveito e menos dano, deixe-me comer dele, sem vir com a chibata, porque, por vida do governador, e assim Deus ma deixe gozar, morro de fome, e negar-me o comer, em que pese ao Senhor Doutor, e diga ele o que disser, será antes tirar-me a vida do que aumentar-ma.

- Vossa Mercê tem razão Senhor Governador - respondeu o médico -, e, assim, entendo que não deve comer daqueles coelhos que ali estão, que não é comida saudável; aquela peça de vitela não seria má se não fosse o ser assada e adubada, mas assim não.

- E a travessa que está acolá - acudiu Sancho - parece-me que é de olha-podrida, e, pela diversidade de coisas que nela entram, é impossível que não encontre alguma que me dê gosto e proveito.

-Absit - disse o médico. - Longe de nós tão mau pensamento: não há no mundo pior alimento do que uma olha-podrida; que vão as olhas-podridas para os reitores de colégios, para os cónegos, ou para as bodas dos campónios, e Deus livre delas as mesas dos governadores, onde deve ser tudo primoroso e atilado; ora sempre e em toda a parte se preferem os remédios simples aos compostos, porque nos simples não se pode errar, e nos compostos sim, alterando a quantidade das coisas que os compõem; mas o que eu entendo que o Senhor Governador deve comer, para conservar a sua saúde e corroborá-la, é um cento de fatias com umas talhadas de marmelo que lhe assentem o estômago e lhe ajudem a digestão.

Ouvindo isto, Sancho encostou-se ao espaldar da cadeira, encarou o tal médico, e perguntou-lhe, com voz grave, como se chamava, e onde é que estudara; ao que ele respondeu:

- Chamo-me, Senhor Governador, Pedro Recio de Agouro; sou natural de um lugar chamado Tirteafuera, que fica entre Caracuel e Almodôvar dei Campo, à mão direita, e doutorei-

-me na Universidade de Osuna.

- Pois, Sr. Dr. Pedro Recio de Mau Agouro - respondeu Sancho, aceso em cólera -, natural de Tirteafuera, lugar que fica à mão direita, quando se vai de Caracuel para Almodôvar dei Campo, doutor em Osuna, tire-se já de diante de mim, senão voto ao Sol que pego num pau, e, à bordoada, começando por Vossa Mercê, não deixo ficar um médico vivo em toda a ilha, pelo menos os que eu entendo que são ignorantes, que aos médicos sábios, prudentes, discretos, esses meto-os no coração, e honro-os como pessoas divinas; e torno a dizer, que se vá embora daqui, Pedro Redo, senão, pego nesta cadeira em que estou sentado, e parto-lha na cabeça; e pecam-me contas dela, que eu responderei, dizendo que fiz um serviço a Deus matando um mau médico, verdugo da república; e dêem-me de comer, ou então tomem lá o governo, que, ofício que não dá de comer a quem o tem, não vale dois caracóis.

Alvoroçou-se o médico, vendo o governador tão colérico; queria safar-se da sala, quando nesse momento ouviu uma corneta de um correio na rua, e, chegando o mestre-sala à janela, voltou dizendo:

- Correio que vem do duque, meu Senhor; deve trazer algum despacho de importância.

Entrou o correio, suado e açodado, e, tirando uma carta do seio, pô-la nas mãos do governador, e Sancho passou-a logo para a do mordomo, a quem mandou que lesse o sobrescrito. Dizia assim: «A D. Sancho Pança, governador da ilha da Barataria, em mão própria, ou nas mãos do seu secretário.” Ouvindo isto, disse Sancho:

- Quem é aqui o meu secretário?

E um dos que estavam presentes respondeu:

- Sou eu Senhor, porque sei ler e escrever, e sou biscainho.

- Com essa última qualidade, até podeis ser secretário do imperador - tornou Sancho. - Abri essa carta, e vede o que diz.

Assim o fez o secretário, e, tendo lido o que dizia, observou que era negócio para se tratar a sós. Mandou Sancho que se despejasse a sala, e que nela ficassem o mestre-sala e o mordomo; e os outros, juntamente com o médico, foram-se embora, e o secretário leu a carta, que dizia assim:

«Chegou-me notícia, Sr. D. Sancho Pança, de que uns inimigos meus, e inimigos dessa ilha, tencionavam dar-lhe um assalto furioso, uma noite destas, não sei qual; convém velar e estar alerta, para que o não apanhem desapercebido. Sei também, por espias verdadeiras, que entraram nesse lugar quatro pessoas disfarçadas, para vos tirar a vida, porque se temem do vosso engenho. Abri os olhos, e observai quem chega a falar-vos, e não comais coisa alguma que vos apresentem. Eu terei cuidado de vos socorrer, se vos virdes em trabalhos, e em tudo fareis o que de vosso entendimento se espera.

Deste lugar, a 16 de Agosto, às 4 da manhã.

Vosso amigo,

O DUQUE.”

Ficou atónito Sancho, e os circunstantes também, e, voltando-se para o mordomo, disse o governador:

- O que desde já se há-de fazer é meter num calabouço o Dr. Recio, porque se alguém me matar há-de ser ele, e de morte lenta e péssima, como é a da fome.

- Também - disse o mestre-sala - me parece que Vossa Mercê não deve comer nada do que está nesta mesa, porque é presente das freiras, e, como se costuma dizer, detrás da cruz está o Diabo.

- Não o nego - respondeu Sancho -, e, por agora, dêem-me um pedaço de pão, e aí obra de quatro arráteis de uvas, que não poderão ter veneno, porque, enfim, não posso passar sem comer; e, se nos havemos de preparar para essas batalhas que nos ameaçam, mister será estarmos bem fartos, porque tripas levam o coração e não o coração as tripas. E vós, secretário, respondei ao duque, meu Senhor, que se fará o que ele ordena, e da forma que ordena, e beijareis da minha parte as mãos à Senhora Duquesa, e pedir-lhe-eis que se não esqueça de mandar por um próprio a minha carta e a minha trouxa a minha mulher Teresa Pança, que receberei com isso muita mercê, e cuidarei em servi-la até onde chegarem as minhas forças, e, de caminho, podeis beijar também as mãos a meu Sr. D. Quixote de La Mancha, para que veja que sou pão agradecido; e, como bom secretário e bom biscainho, podeis acrescentar tudo o que quiserdes; e levante-se essa toalha, e dêem-me de comer, que eu cá me saberei haver com quantos espias e matadores e nigromantes vierem sobre mim e sobre a minha ilha.

Nisto, entrou um pajem e disse:

- Está ali um lavrador negociante, que quer falar a Vossa Senhoria num caso que, segundo ele diz, é de muita importância.

- Estranho - acudiu Sancho - esses negociantes; é possível que sejam tão néscios, que não vejam que isto não são horas de vir negociar? Porventura, os que governamos e julgamos não somos homens também de carne e osso, e não vêem que é mister que nos deixem descansar o tempo que a necessidade pede, ou querem que sejamos feitos de pedra mármore? Por Deus e

em minha consciência digo que, se me dura o governo (vai-me transluzindo que me não dura), parece-me que dou cabo de um negociante. Agora, dizei-lhe que entre, mas é bom que primeiro se repare não seja algum dos meus espias ou matadores.

- Não, meu Senhor - respondeu o pajem -, ou pouco sei, ou ele é bom como o bom pão.

- Não há que recear - acudiu o mordomo - que aqui estamos todos.

- Ó mestre-sala - observou Sancho -, não seria possível agora, que não está por cá o Dr. Pedro Recio, comer eu alguma coisa de peso e de substância, ainda que fosse um pedaço de pão e uma cebola?

- Esta noite à ceia se emendarão as faltas do jantar, e ficará Vossa Senhoria satisfeito e pago - respondeu o mestre-sala.

- Deus queira! - tornou Sancho.

E nisto, entrou o lavrador, homem de óptima presença, e a mil léguas se pressentia que era bom e de boa alma. A primeira coisa que disse foi:

- Quem é aqui o Senhor Governador?

- Quem há-de ser - respondeu o secretário - senão quem está sentado na cadeira?

- Em sua presença, pois, me humilho - disse o lavrador. E, pondo-se de joelhos, pediu-lhe a mão para lha beijar. Negou-lha Sancho, e mandou-lhe que se levantasse e expusesse o que queria. Obedeceu o lavrador, e disse logo:

- Eu, Senhor, sou lavrador, natural de Miguel Turra, lugar que fica a duas léguas de Cidade Real.

- Temos novo Tirteafuera? - tornou Sancho. - Continuai, irmão; o que vos posso dizer é que sei muito bem onde é Miguel Turra, que não fica muito longe do meu povo.

- É pois o caso Senhor - prosseguiu o homem -, que eu, pela misericórdia de Deus, sou casado em boa paz, e à face da Santa Igreja Católica Romana; tenho dois filhos estudantes: o mais novo estuda para bacharel e o mais velho para licenciado;

sou viúvo, porque morreu minha mulher, ou, para melhor dizer, mitou-ma um mau médico, que a purgou, estando ela grávida; e, se Deus fosse servido que ela tivesse o seu bom sucesso,

e me nascesse outro filho, havia de o fazer estudar para doutor, para que não tivesse inveja a seus irmãos, o bacharel e o licenciado.

- De modo - observou Sancho - que, se vossa mulher não tivesse morrido, ou não vo-la tivessem morto, não estaríeis agora viúvo?

- Não, decerto - respondeu o lavrador.

- Estamos adiantados - redarguiu Sancho -; continuai, irmão, que são horas mais de dormir que de negociar.

- Digo, pois - tornou o lavrador -, que este meu filho, que há-de ser bacharel, enamorou-se, no mesmo povo, de uma donzela chamada Clara Perlerina, filha de André Perlerino, lavrador riquíssimo, e a donzela, para dizer a verdade, é uma verdadeira pérola oriental: vista pela direita parece uma flor dos campos, vista pela esquerda não tanto, porque lhe falta o olho desse lado, que lhe saltou fora com bexigas; e, ainda que as covas do rosto são muitas e grandes, dizem os que lhe querem bem, que nessas covas se sepultam as almas dos seus namorados. E tão asseada que, para não sujar a cara, traz o nariz, como diz o outro, arregaçado, que não parece senão que vai fugindo da boca, e, com tudo isso, a todos encanta, porque tem a boca muito grande, boca que, se lhe não faltassem dezoito dentes, podia passar por muito bem formada. Dos lábios não tenho que dizer, porque são tão subtis e delicados que, se fosse costume desfiar lábios, podia-se fazer deles uma madeixa; mas como têm cor diversa da que nos lábios se usa habitualmente, parecem milagrosos, porque são jaspeados de azul, verde e cor de beringela;

e perdoe-me o Senhor Governador, se vou assim descrevendo tão por miúdo aquela que, afinal de contas, há-de ser minha filha, que lhe quero bem e não me parece mal.

- Pintai o que quiserdes - disse Sancho -, que eu vou-me recreando a pintura, e se tivesse comido, não haveria melhor sobremesa para mim do que esse retrato.

- Ah! Senhor - tornou o lavrador -, se eu pudesse pintar a sua gentileza e a altura do seu corpo, seria coisa de admiração; não pode ser, porque está toda encolhida, com os joelhos à boca; mas bem se vê que, se se pudesse levantar, batia com a

cabeça no tecto, e já teria dado a mão de esposa ao meu bacharel, se a pudesse estender, mas não pode, porque tem as unhas encravadas, e, ainda assim, nessas unhas largas se mostra a sua bondade e bom feitio.

- Muito bem - disse Sancho -, fazei de conta, irmão, que já a pintastes de corpo inteiro; dizei-me agora o que quereis, e vamos ao caso, sem mais rodeios, torcicolos, diminuições nem aumentos.

- Eu queria Senhor - respondeu o lavrador -, que Vossa Mercê me fizesse a graça de escrever uma carta de empenho ao futuro sogro de meu filho, pedindo-lhe para que esse casamento se faça, porque não somos desiguais, nem nos bens da fortuna, nem nos da Natureza, que, a dizer a verdade Senhor Governador, meu filho está possesso, e não há dia em que, por três ou quatro vezes, o não atormentem os espíritos malignos;

e, de ter caído uma vez no lume, tem o rosto enrugado como um pergaminho, e os olhos um tanto chorosos; mas é de uma índole angélica, e, se não fosse o costume de dar pauladas e murros em si próprio, seria um abençoado.

- Quereis mais alguma coisa, bom homem? - redarguiu Sancho.

- Eu queria outra coisa, queria - tomou o lavrador -, mas não me atrevo a dizê-la; enfim, vá lá, pegue ou não pegue, não me há-de apodrecer no peito. Queria que Vossa Mercê me desse trezentos ou seiscentos ducados, para ajuda do dote do meu bacharel; quero dizer, para o ajudar a pôr a casa, porque, enfim, eles hão-de viver sem estar sujeitos às impertinências dos sogros.

- Vede se quereis mais alguma coisa - tornou Sancho - e não a deixeis de dizer por vergonha ou acanhamento.

- Não, decerto - respondeu o lavrador. E, apenas ele disse isto, o governador, levantando-se, agarrou na cadeira em que estava sentado, e exclamou:

- Voto a tal, dom rústico e malcriado, que, se não saís imediatamente da minha presença, com esta cadeira vos abro a cabeça de meio a meio! Ó grande patife e pintor do demónio em pessoa: pois vindes pedir-me a estas horas seiscentos ducados? E onde é que os tenho, hediondo? E porque é que eu tos havia

de dar, ainda que os tivesse, socarrão e mentecapto? Que me importa a mim Miguel Turra, mais toda a linhagem dos Perlerinos? Vai-te daqui para fora, repito, senão, por vida do duque meu Senhor, faço-te o que te disse. Tu não és de Miguel Turra: tu és algum maroto, que o Inferno me enviou para me tentar. Diz-me, desalmado: pois há dia e meio apenas que estou com o governo, e queres que eu tenha seiscentos ducados?

O mestre-sala fez sinal ao lavrador para que se fosse embora, e ele assim o fez, calado, cabisbaixo, e como que temeroso de que o governador desse largas à sua cólera, porque o velhaco representou bem o seu papel. Mas deixemos Sancho com a sua ira, e tornemos a D. Quixote, a quem deixámos de rosto vendado, e a curar-se das feridas gatescas, de que não sarou em menos de oito dias; e num desses lhe sucedeu o que Cide Hamet promete dizer, com a verdade e pontualidade com que usa narrar as coisas desta história, por mínimas que sejam.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE COM DONA RODRIGUEZ, A DONA DA DUQUESA, COM OUTROS ACONTECIMENTOS DIGNOS DE ESCRITURA E MEMÓRIA ETERNA

Muito melancólico e mofino estava o malferido D. Quixote, de rosto vendado e assinalado, não pelas mãos de Deus, mas pelas unhas de um gato, desditas inerentes à cavalaria andante. Seis dias e seis noites esteve sem sair a público, e, numa dessas noites, estando desperto e velando, pensando nas suas desgraças e na perseguição de Altisidora, sentiu que abriam a porta do seu aposento com uma chave, e logo imaginou que a enamorada donzela vinha para sobressaltar a sua honestidade, e pô-lo em situação de trair a fé que devia guardar à sua dama Dulcineia del Toboso.

- Não - disse ele à sua imaginação, e em voz que podia ser ouvida -, nem a maior formosura da Terra conseguirá que eu deixe de adorar a que tenho gravada e estampada no meu coração e no mais recôndito das minhas entranhas, embora estejas, Senhora minha, transformada em repolhuda lavradeira, ou em ninfa do áureo Tejo, tecendo telas de ouro e seda, ou Merlim ou Montesinos te guardem onde muito bem quiserem, que, onde quer que estiveres, és minha, e onde quer que eu esteja, sou e hei-de ser teu.

Apenas ele acabava de formular estas razões, abriu-se a porta. Pôs-se em pé na cama, envolto desde cima até abaixo numa colcha de cetim amarelo, com um barrete na cabeça, parches no rosto e papelotes nos bigodes; parches por causa das arranhaduras, e papelotes para os bigodes lhe não caírem; e, com este trajo, parecia o mais extraordinário fantasma que se pode imaginar. Cravou os olhos na porta, e, quando esperava ver entrar a rendida e lastimosa Altisidora, o que viu foi uma reverendíssima dona, com uma touca branca, engomada e tão longa, que a cobria desde os pés até à cabeça. Nos dedos da mão esquerda, trazia um coto de vela aceso, que resguardava com a mão, para que lhe não desse a luz nos olhos, tapados por uns óculos; vinha com um pisar manso, e movendo-se brandamente. Contemplou-a D. Quixote do sítio onde estava de atalaia, e o andar dela e o silêncio fizeram-lhe supor que era alguma bruxa ou maga, que vinha praticar os seus malefícios, e começou-se a benzer muito depressa. Foi-se chegando a visão, e, quando estava a meio do aposento, viu a pressa com que D. Quixote se persignava; e, se ele ficou medroso ao ver a figura dela, ficou ela muito assustada ao ver a dele, porque, ao dar com esse vulto tão alto e tão amarelo, com a colcha e os parches, que o desfiguravam, soltou um grande brado, dizendo:

- Jesus! Que vejo eu?

E, com o sobressalto, caiu-lhe a vela das mãos, e, achando-se às escuras, voltou as costas para se ir embora, mas, com o medo, tropeçou nas saias, e deu uma grande queda. D. Quixote, receoso, começou a dizer:

- Esconjuro-te, fantasma, ou quem quer que sejas, para que me digas quem és e o que de mim requeres. Se és alma penada, diz-mo, que eu farei por ti tudo quanto as minhas forças alcançarem, porque sou católico cristão, e amigo de fazer bem a toda a gente, e para isso tomei a profissão da cavalaria andante que até se estende a fazer bem às almas do Purgatório.

A aflita dona, que ouviu os esconjurs, pelo seu temor coligiu o de D. Quixote, e, com voz aflita e baixa, lhe respondeu:

- Sr. D. Quixote (se por acaso Vossa Mercê é D. Quixote), não sou fantasma, nem visão, nem alma do Purgatório, como Vossa Mercê parece que pensou, mas sim Dona Rodriguez, a dona de honor da Senhora Duquesa, que venho ter com Vossa Mercê, por causa de uma aflição, daquelas que Vossa Mercê costuma remediar.

- Olhe lá, Sr. Dona Rodriguez - tornou D. Quixote -, porventura vem Vossa Mercê como terceira? Porque, nesse caso, faço-lhe saber que perde o seu tempo, graças à incomparável beleza da minha Sra. Dulcineia del Toboso. Digo, enfim, Sr. Dona Rodriguez, que em Vossa Mercê salvando e pondo de parte qualquer recado amoroso, pode tornar a acender a sua vela, e conversaremos em tudo o que lhe aprouver e tiver em gosto, não tocando, já se vê, no mais leve melindre provocador.

- Eu trazer recados Senhor meu? - tomou a dona. - Mal me conhece Vossa Mercê; ainda não estou em idade de pensar em semelhantes ninharias, porque, graças a Deus, tenho a alma nas carnes, e todos os dentes na boca, menos uns poucos, que me caíram com os catarros desta terra de Aragão. Mas espere-me Vossa Mercê um instante, que eu vou acender a vela e já volto a contar-lhe as minhas angústias, como a quem pode remediar todas as minhas aflições do mundo,

E, sem esperar resposta, saiu do aposento, onde ficou D. Quixote sossegado e pensativo a esperá-la, mas logo lhe sobrevieram mil pensamentos acerca daquela nova aventura, e parecia-lhe ser mal feito e mal pensado pôr-se em perigo de quebrar à sua dama a fé prometida, e dizia consigo:

- Quem sabe se o Diabo, que é subtil e manhoso, quererá agora com uma dona enganar-me, o que não pôde fazer com imperatrizes, rainhas, duquesas, marquesas e condessas? Tenho ouvido dizer muitas vezes, e a muitos homens discretos, que ele, se pode, antes nos tenta com feias do que com bonitas; e quem sabe se com esta soledade, esta ocasião e este silêncio não despertarão os meus desejos, que dormem, fazendo com que no fim da vida venha a cair onde nunca tropecei? E, em casos semelhantes, é melhor fugir do que esperar a batalha. Mas eu, por força que não estou no meu juízo, visto dizer e pensar semelhantes disparates, e não é possível que uma dona gordanchuda, de toucas brancas e de óculos, possa mover nem levantar pensamentos lascivos, nem no mais desalmado peito deste mundo; porventura, há em todo o orbe dona que não seja impertinente, fúfia e melindrosa? Fora, pois, caterva de donas, que não servis para regalos humanos. Oh! que bem que fazia aquela senhora, de quem se conta que tinha duas donas de cera, com os seus óculos e almofadinhas, sentadas no seu estrado, como se estivessem a costurar; e tanto lhe serviam para o respeito da sala as de cera, como as verdadeiras.

E, dizendo isto, saltou da cama abaixo, com tenção de fechar a porta e de não deixar entrar a Sra. Rodriguez; mas, quando ia a chegar, já a Sra. Rodriguez voltava com uma vela de cera branca acesa, e, quando viu D. Quixote de mais perto, envolto na colcha, com os parches e o barrete, arreceou-se de novo, e, dando dois passos atrás, disse:

- Estamos seguros Senhor Cavaleiro? Não tenho por muito honesto sinal, ter-se Vossa Mercê levantado do seu leito.

- Isso mesmo é que eu pergunto Senhora - respondeu D. Quixote -, e desejo saber se posso ter a certeza de não ser acometido nem violentado.

- A quem pedis essa garantia, cavalheiro? - tomou a dona.

- A vós mesma - redarguiu D. Quixote - porque nem eu sou de mármore, nem vós sois de bronze, e não são dez horas do dia, é meia-noite, e talvez mais alguma coisa ainda, ao que imagino, e achamo-nos numa estância mais cerrada e secreta do que devia ser a cova em que o traidor e atrevido Eneias gozou a formosa e piedosa Dido. Mas dai-me essa mão Senhora, que eu não quero outra garantia maior que a da minha continência e recato, e a que oferecem essas reverendíssimas toucas.

Meteu-se D. Quixote na cama, e sentou-se Dona Rodriguez numa cadeira, um pouco desviada do leito, não largando nem os óculos, nem a vela. D. Quixote encolheu-se e cobriu-se todo, deixando só o rosto destapado; e, depois de sossegarem ambos, foi D. Quixote o primeiro a romper o silêncio, dizendo:

- Pode Vossa Mercê agora Dona Rodriguez, minha boa Senhora, descoser-se e desembuchar livremente tudo o que tem dentro do seu aflito coração e doridas entranhas, que lhe afianço será por mim escutada com ouvidos castos, e socorrida com piedosas obras.

- Assim creio, que da gentil e agradável presença de Vossa Mercê não se podia esperar senão resposta cristã. É pois o caso que, ainda que Vossa Mercê me vê sentada nesta cadeira, e aqui no meio do reino de Aragão, e com trajos de dona aniquilada e escarnecida, sou natural das Astúrias de Oviedo, e pela minha linhagem passam muitas das melhores daquela província; mas a minha triste sorte, e o descuido de meus pais, que empobreceram antes de tempo, sem saber como nem como não, trouxeram-me à corte de Madrid, onde, por bem da paz e por escusar maiores desventuras, me arranjaram o ser donzela de lavor de uma senhora principal; e quero que Vossa Mercê saiba que em costura de roupa branca ninguém me leva a melhor. Meus pais deixaram-me a servir, e voltaram para a sua terra, e dali a poucos anos foram decerto para o Céu, porque eram bons cristãos católicos. Fiquei órfã e atida ao mísero salário e às angustiadas mercês, que a tais criadas se costuma dar em palácio; e, a este tempo, sem que eu desse ocasião a isso, enamorou-se de mim um escudeiro da casa, homem já de idade, barbudo, apessoado, e, sobretudo, tão fidalgo como el-rei, porque era montanhês. Não tratámos tão secretamente os nossos amores, que não chegassem ao conhecimento de minha ama, que, por escusar dizes tu, direi eu, nos casou em paz e à face da Santa Madre Igreja Católica Romana, e desse matrimónio nasceu uma filha, para acabar com a minha ventura, se alguma tinha, não porque eu morresse de parto, que o tive direito, mas porque, dali a pouco, morreu meu esposo de uma aflição, que, se eu tivesse agora ensejo para lha contar, sei que Vossa Mercê se admiraria.

E nisto, principiou a chorar ternamente, e disse:

- Perdoe-me Vossa Mercê, Sr. D. Quixote, que não está mais na minha mão. Sempre que me recordo do meu malogrado marido, arrasam-se-me os olhos de água. Valha-me Deus! Com que autoridade não levava ele a minha ama na garupa de uma poderosa mula, negra como o azeviche! Que, então, não se usavam nem coches, nem cadeirinhas, como diz que se usam agora, e as senhoras iam à garupa dos seus escudeiros; isto, pelo menos, não posso eu deixar de o contar, para que se note a boa educação e o escrúpulo de meu excelente marido. Ao entrar na Rua de Saniago, em Madrid, que é um pouco estreita, vinha por ela a sair um alcaide da corte com dois aguazis adiante, e, assim que o meu bom escudeiro voltou as rédeas à mula, dando mostras de o querer acompanhar, minha ama, que ia à garupa, dizia-lhe em voz baixa:

- Que fazeis, desventurado, não vedes que vou aqui? O alcaide, por muito cortês, sofreou as rédeas do cavalo e disse-lhe:

- Segui, Senhor, o vosso caminho, que eu é que devo acompanhar a minha sra. Dona Cassilda - que assim se chamava a minha ama. Ainda teimava meu marido, com a gorra na mão, em querer acompanhar o alcaide. Vendo isto Dona Cassilda, cheia de cólera e de raiva, tirou um grande alfinete, ou creio que uma agulheta do colete, e enterrou-lho no lombo, com tanta força, que meu marido soltou um grande grito, e torceu o corpo de modo que deu com sua ama em terra. Acudiram dois lacaios a levantá-la, e o mesmo fizeram o alcaide e os aguazis. Alvoroçou-se a Porta de Guadalaxara, quero dizer, a gente ociosa que estava ali. Veio minha ama a pé, e meu marido correu a casa de um barbeiro, dizendo que levava atravessadas as entranhas de lado a lado. Tanto se divulgou a cortesia de meu esposo, que os garotos apupavam-no pelas ruas; e por isto, e por ser um tanto curto de vista, o despediu a minha Senhora, e esse pesar tenho para mim que foi sem dúvida alguma o que lhe causou a morte. Fiquei eu viúva e desamparada, e com uma filha às costas, que ia crescendo em formosura como a espuma do mar. Finalmente, como eu tinha fama de grande costureira, a duquesa minha Senhora, que estava recém-casada com o duque meu Senhor, quis-me trazer consigo para este reino de Aragão, e a minha filha também, a qual, com o andar dos tempos, foi crescendo, e com ela cresceu todo o donaire do mundo: canta como uma calhandra, dança como o pensamento, baila como uma perdida, lê e escreve como um mestre-escola, e conta como um sovina; do seu asseio nada digo, que a água que corre não é mais limpa, e deve ter agora, se bem me recordo, dezasseis anos, cinco meses e três dias, mais um, menos um. Enfim, desta minha rapariga se enamorou o filho de um lavrador riquíssimo, que vive numa aldeia do duque meu Senhor, não muito longe daqui. Efectivamente, não sei como nem como não, juntaram-se, e ele seduziu a minha filha com promessa de ser seu marido, promessa que não quer cumprir, e ainda que o duque meu Senhor já o sabe, porque já me queixei a ele muitas vezes, pedindo-lhe que mande que o tal lavrador case com minha filha, faz ouvidos de mercador, e quase que nem me quer ouvir; e o motivo disso é ser o pai do sedutor muito rico, e emprestar-lhe dinheiro, e de vez em quando ficar por seu fiador, e por isso o não quer descontentar nem afligir de modo algum. Quereria, pois Senhor meu, que Vossa Mercê se encarregasse de desfazer este agravo, ou com rogos, ou com armas;

pois, segundo todos dizem Vossa Mercê nasceu para desfazer agravos e amparar os míseros; e represente-lhe Vossa Mercê a orfandade da minha filha, a sua mocidade e gentileza, com as prendas que eu já disse que tem, que entendo em minha consciência que de todas as donzelas da Senhora Duquesa, não há nenhuma que lhe chegue às solas dos sapatos, e uma a quem chamam Altisidora, que é a que passa por mais desenvolta e galharda, não é nada em comparação da minha; porque há-de saber Vossa Mercê, que nem tudo o que luz é ouro; essa Altisidorita tem mais de presumida que de formosa, e tem então um mau hálito que se não pode parar ao pé dela; e até a duquesa, minha Senhora... cala-te, boca, que se costuma dizer que as paredes têm ouvidos.

- Por vida minha, o que é que tem a duquesa minha Senhora? - perguntou D. Quixote.

- Pedindo-me pela sua vida que lho diga, Sr. D. Quixote, não posso deixar de responder com toda a verdade. Vê Vossa Mercê a formosura da Senhora Duquesa, aquela tez do rosto, que lembra uma espada açacalada e tersa; aquelas duas faces de leite e de carmim, que parece que numa tem o Sol e noutra a Lua; aquela galhardia com que pisa e como que despreza o chão, que se diria que vai derramando saúde por onde passa? Pois saiba Vossa Mercê, que o pode ela agradecer primeiro a Deus, e, depois, a duas fontes que tem nas pernas, por onde se despeja todo o mau humor, de que dizem os médicos que está cheia.

- Santa Maria! - acudiu D. Quixote. - É possível que a Senhora Duquesa tenha tais desaguadouros? Não o acreditava, nem que mo dissessem frades descalços; porém, de tais fontes, e em tais sítios, não deve manar humor, mas sim âmbar líquido. Agora é que eu acabo verdadeiramente de crer que isto de abrir fontes deve fazer muito bem à saúde.

Apenas D. Quixote acabou de expender estas razões, abriu-se de golpe a porta do aposento, e com o sobressalto inesperado caiu a vela da mão de Dona Rodriguez, e o quarto ficou mais escuro que boca de lobo, como se costuma dizer. Logo sentiu a pobre dona que lhe agarravam na garganta com ambas as mãos, e com tanta força que a não deixavam ganir, e que outra pessoa, com muita presteza, e sem dizer palavra, lhe levantava as saias, e com uma coisa que parecia ser um chinelo lhe começou a dar tantos açoites que metia compaixão; e, apesar de D. Quixote se compadecer, efectivamente, da pobre dona, não se mexia do leito, e não sabia o que seria aquilo, e estava quedo e calado, e temendo até apanhar também uma tareia de açoites; e não foi vão o seu receio, porque, depois de deixarem moída a dona, os silenciosos verdugos foram-se a D. Quixote, desenroscaram-no do roupão e da colcha, e tantos beliscões lhe deram, que ele não pôde deixar de se defender a murro, e tudo isto num admirável silêncio. Durou a batalha quase meia hora; foram-se os fantasmas, apertou Dona Rodriguez as saias, e, chorando a sua desgraça, saiu sem dizer palavra a D. Quixote, que, dorido e beliscado, confuso e pensativo, ficou sozinho; e aqui o deixaremos, desejoso de saber quem teria sido o perverso nigromante que em tal estado o pusera; mas isso a seu tempo se dirá, que Sancho Pança nos está chamando, e pede que vamos ter com ele ao bom concerto da história.

 

DO QUE SUCEDEU A SANCHO PANÇA QUANDO RONDAVA A iLHA

Deixámos o ilustre Sancho enfadado e furioso com o lavrador, pintor e socarrão, que, industriado pelo mordomo, e o mordomo pelo duque, zombavam de Sancho; mas este a tudo fazia frente, apesar de ser tolo, bronco e roliço, e disse aos que estavam com ele, e ao Dr. Pedro Recio, que, logo que acabou o segredo da carta do duque, tornara a entrar na sala:

- Agora é que verdadeiramente percebo que os juizes e os governadores devem ser de bronze, para aturar as importunidades dos negociantes, que a todas as horas, e a todo o tempo querem que os escutem e os despachem atendendo só ao seu negócio, venha lá o que vier; e, se o pobre do juiz os não despacha e escuta, ou porque não pode, ou porque não é ocasião de lhes dar audiência, logo o amaldiçoam, e murmuram, e roem-lhe na pele, e até lhe deslindam as linhagens. Negociante néscio, negociante mentecapto, não te apresses: espera ocasião e conjuntura para negociar; não venhas, nem a horas de jantar, nem a horas de dormir, que os juizes são de carne e osso, e hão-de dar à Natureza o que ela lhes pede, a não ser eu, que não dou de comer à minha, graças ao Sr. Dr. Pedro Recio Triteafuera, que presente se acha, e pretende matar-me à fome; e afirma que esta morte é vida; assim lha dê Deus, a ele, e a todos os da sua raleia, quero dizer, os maus médicos, que os bons esses merecem palmas e louros.

Todos os que conheciam Sancho Pança se admiravam de o ouvir falar tão elegantemente, e não sabiam a que haviam de atribuí-lo, senão a que os ofícios graves e cargos, ou melhoram, ou entorpecem os entendimentos. Finalmente, o Dr. Pedro Recio Aguero de Tirteafuera prometeu dar-lhe de cear naquela noite, ainda que exorbitasse de todos os preceitos de Hipócrates.

Com isto ficou satisfeito o governador, que esperava com grande ânsia a noite e a hora de cear; e ainda que o tempo lhe parecia parado, afinal chegou a ocasião tão desejada, em que lhe deram de cear um salpicão com cebola, e umas mãozinhas de vitela, que já não era criança.

Saltou nessas iguarias com mais gosto do que se lhe tivessem dado faisões de Roma, vitela de Sorrento, perdizes de Moron, ou patos de Lavajos; e, quando estava a cear, disse, voltando-se para o doutor:

- Ouvi, Senhor Doutor: daqui por diante escusais de me mandar dar comidas de regalo ou manjares, pois será tirar-me dos eixos o estômago, que está costumado a cabrito, a vaca, a toucinho, a nabos e cebolas; e, se acaso lhe dão manjares palacianos, recebe-os com melindre e algumas vezes com asco. O que o mestre-sala pode fazer é trazer-me o que chamam olhas-podridas, que quanto mais podres so, melhor cheiro têm, e nelas se pode ensacar e encerrar tudo o que se quiser, contanto que seja coisa de comer, que eu lho agradecerei e algum dia lho pagarei; e ninguém zombe de mim, porque, ou bem que somos, ou bem que não somos. Vivamos e comamos em paz e companhia, porque o Sol brilha para todos. Eu governarei esta ilha sem fazer alicantinas, nem consenti-las; e andem todos de olho aberto, e vejam aonde mandam o virote, porque lhes faço saber que temos o Diabo atrás da porta, e que, se me derem ensejo para isso, hão-de ver maravilhas. Nada, que quem se faz de mel, as moscas o comem.

- Decerto, Senhor Governador - disse o mestre-sala -; Vossa Mercê tem muita razão em tudo o que disse, e afianço, em nome de todos os insulanos desta ilha, que hão-de servir a Vossa Mercê com toda a pontualidade, amor e benevolência;

porque o suave modo de governar, que Vossa Mercê nestes princípios tem revelado, não lhes dá lugar para fazerem nem pensarem coisa que redunde em desserviço de Vossa Mercê.

- Assim creio - respondeu Sancho -, e seriam uns néscios se outra coisa fizessem ou pensassem; e torno a dizer, que tenham conta no meu sustento e no do meu ruço, que é o que mais importa; e, em sendo horas, vamos lá rondar, que é minha intenção limpar esta ilha de todo o género de imundícies e de gente vagabunda e ociosa; porque deveis saber, meus amigos, que isto de vadios e de mandriões são na república o mesmo que os zangãos nas colmeias, que comem o mel que as abelhas trabalhadoras fabricam. Tenciono favorecer os lavradores, guardar as suas proeminências aos fidalgos, premiar os virtuosos, e, sobretudo, honrar os religiosos e respeitar a religião. Que lhes parece, amigos? Digo bem, ou peço para as almas?

- Diz tão bem Senhor Governador - acudiu o mestre-sala , que pasmado estou eu de que um homem tão sem letras, como é Vossa Mercê, diga tais e tantas coisas, tão cheias de sentenças avisadas, tão fora de tudo que do engenho de Vossa Mercê esperavam os que nos enviaram e os que vimos aqui; cada dia se vêem coisas novas no mundo: as mentiras se trocam em verdades, e os buriadores são burlados.

Depois de ter ceado à farta com licença do Sr. Dr. Recio, o governador saiu com o mordomo, o secretário, o mestre-sala e o cronista incumbido de registar os seus feitos, e tantos aguazis e escrivães, que podia formar com eles um verdadeiro esquadrão. Ia Sancho no meio, com a sua vara, que era o mais que se podia ver; e, depois de andarem umas poucas de ruas, sentiram ruído de cutiladas. Acudiram e encontraram dois homens que pelejavam, os quais, vendo a justiça, pararam, e um deles disse:

- Aqui de Deus, e d'el-rei! Pois há-de-se consentir que se roube em pleno povoado, e que se seja assaltado no meio da rua?

- Sossegai, homem de bem - acudiu Sancho -, e contai-me qual é a causa desta pendência, que eu sou o governador.

- Senhor Governador - disse o outro duelista -, eu a direi com toda a brevidade. Saberá Vossa Mercê que este gentil-homem acaba de ganhar agora nesta casa de jogo, que aqui fica defronte, mais de mil réis, e sabe Deus como; e, achando-me eu presente, sentenciei muitos lances duvidosos em seu favor, contra o que me ditava a consciência; levantou-se com o ganho, e, quando eu esperava que me desse algum escudo, pelo menos, como é uso e costume dar a homens principais como eu, que assistimos ao jogo para apoiar sem-razões e evitar pendências, embolsou o dinheiro e saiu da casa de jogo; eu, despeitado, vim atrás dele, e com boas e corteses palavras lhe disse que me desse ao menos oito réis, pois sabe que sou homem honrado, e que não tenho ofício nem benefício, porque meus pais não mo ensinaram, nem mo deixaram; e o socarrão, que é mais salteador do que o próprio Caco, e mais somítigo que Andradilia, queria dar-

-me apenas quatro réis; ora veja Vossa Mercê, Senhor Governador, que falta de vergonha e que falta de consciência. Mas, à fé de quem sou, se Vossa Mercê não chegasse, fazia-lhe vomitar o ganho, e obrigava-o a dar boa medida.

- Que dizeis vós a isto? - perguntou Sancho. O outro respondeu que era verdade tudo o que o seu contrário dizia, e que lhe não quisera dar mais de quatro réis, porque lhos dava muitas vezes, e os que mendigam devem ser comedidos e receber com rosto alegre o que lhes derem, sem estar a fazer contas com os que ganham, a não saberem com certeza que estes são trapaceiros, e que o seu lucro é mal adquirido, e, para mostrar que era homem de bem e não ladrão, como o outro dizia, a maior prova estava em não lhe ter querido dar mais alguma coisa, porque sempre os trapaceiros são tributários dos «mirones” que os conhecem.

- Isso é verdade - disse o mordomo -; veja Vossa Mercê, Senhor Governador, o que se há-de fazer a estes homens.

- Há-de-se fazer o seguinte: Vós, que ganhastes, ou bem ou mal, ou nem bem nem mal, dai imediatamente a este vosso acutilador cem réis, e, além disso, haveis de desembolsar mais trinta para os pobres da cadeia; e vós, que não tendes ofício nem benefício, e vadiais por aí, embolsai imediatamente os cem réis, e amanhã, sem falta, saí desta ilha, desterrado por dez anos, sob pena, se os quebrantardes, de os irdes cumprir à outra vida, pendurando-vos eu de uma picota, ou pendurando-vos antes o algoz mandado por mim. E que nenhum replique, se me não quer provar as mãos.

Um desembolsou o dinheiro, recebeu-o o outro e saiu da ilha: o primeiro foi para sua casa, e o governador ficou dizendo:

- Ou eu pouco hei-de poder, eu hei-de acabar com estas casas de jogo, que me parece que são muito prejudiciais.

- Com esta, pelo menos, não poderá Vossa Mercê acabar - observou um escrivão - porque pertence a uma alta personagem, e não tem comparação o que ela perde por ano com o que tira dos naipes; contra outras espeluncas de menor tomo poderá Vossa Mercê mostrar o seu poder, que são as que mais

dano fazem, e as que mais insolências encobrem, que em casa de senhores e de cavalheiros principais não se atrevem os trapaceiros a usar das suas tretas; e, como o vício do jogo se transformou em passatempo vulgar, melhor é que se jogue em casas nobres do que em casa de algum pobre oficial de ofício, onde apanham um desgraçado da meia-noite em diante e o esfolam vivo.

- Bem sei, escrivão - acudiu Sancho -, que a isso há muito que dizer.

Nisto apareceu um aguazil, que trazia um moço agarrado e bem seguro à presença de Sancho Pança.

- Senhor Governador - disse ele -, este rapazola vinha direito a nós, e, assim que pescou que era a justiça, voltou as costas, e deitou a correr como um gamo, sinal de que é algum delinquente; corri atrás dele, mas, se ele não tropeçasse e caísse, não era eu que o apanhava.

- Porque fugias, homem? - perguntou Sancho.

- Senhor, foi para me livrar de responder às muitas perguntas que as justiças fazem - respondeu o moço.

- Que ofício tens?

- Tecelo.

- E o que teces?

- Perros de lanças, com licença de Vossa Mercê.

- Saís-me gracioso, e presumis de chocarreiro? Está bom: e aonde íeis agora?

- Ia tomar ar.

- E nesta ilha, onde é que se toma ar?

- Onde ele sopra.

- Bom! Respondeis muito a propósito, e sois discreto; mas fazei de conta que eu sou o ar, que vos sopro pela popa, e vos encaminho à cadeia. Olá! Agarrai-o, e levai-o, que eu o farei dormir sem ar esta noite.

- Por Deus - tornou o moço -, tão capaz é Vossa Mercê de me fazer dormir esta noite na cadeia, como de me fazer rei.

- E porque é que te não hei-de fazer dormir na cadeia? Não tenho poder para te prender e soltar, como e quando quiser?

- Por mais poder que Vossa Mercê tenha, não é capaz de me fazer dormir na cadeia - tornou o moço.

- Como não! - replicou Sancho Pança. - Levai-o já aonde veja por seus olhos o desengano; e, se o alcaide o deixar evadir, condeno-o desde já a pagar a multa de dois mil ducados.

- Tudo isso é escusado - redarguiu o moço -; nem todos os que hoje estão vivos na terra são capazes de me fazer dormir na cadeia.

- Diz-me, demónio - tornou Sancho -, tens algum anjo que te livre e te tire os grilhões que tenciono mandar-te deitar aos pés?

- Alto, Senhor Governador - acudiu o moço com bom donaire -, nada de loucuras, e vamos ao caso. Suponha Vossa Mercê que me manda para a cadeia, e que lá me põem a ferros, e que me metem num calabouço, e se impõem ao alcaide graves penas se me deixar sair, e que ele cumpre o que se lhe manda; com tudo isso, se eu não quiser dormir, e estiver acordado toda a noite sem pregar olho, será Vossa Mercê capaz, com todo o seu poder, de me fazer dormir contra vontade?

- Isso decerto que não - observou o secretário.

- De modo - disse Sancho - que não dormes porque não queres dormir, e não para me fazer pirraça?

- Pirraça! Nem por pensamentos.

- Pois ide com Deus - disse Sancho -, ide dormir para vossa casa, e Deus vos dê bom sono, que eu não vo-lo quero tirar; mas aconselho-vos, que daqui por diante não brinqueis com a justiça, porque topareis algum que vos faça pagar cara a brincadeira.

Foi-se embora o moço, e o governador continuou com a sua ronda, e daí a pouco apareceram dois aguazis, que traziam um homem agarrado e disseram:

- Senhor Governador, este que parece homem não o é: é mulher, e nada feia, que anda vestida de homem.

Chegaram-lhe aos olhos duas ou três lanternas, e, à sua luz, viram o rosto de uma mulher de dezasseis anos, ou pouco mais: escondidos os cabelos numa coifa de seda verde e ouro, formosa como mil pérolas. Contemplaram-na de cima até baixo, e viram que trazia umas meias de seda encarnada, com ligas de tafetá branco, e franjas de ouro e aljôfar; os calções eram verdes, de tela de ouro, e uma capa da mesma fazenda, por baixo da qual vestia um gibão finíssimo de branco e ouro, e os sapatos eram brancos e de homem. Não cingia espada, mas sim uma riquíssima adaga; nos dedos muitos e magníficos anéis.

Finalmente, a moça a todos parecia bem, e nenhum dos que a viram a conheceu; os naturais da terra disseram que não podiam imaginar quem fosse, e os que mais se admiraram foram os que sabiam das burlas que se haviam de fazer a Sancho, porque aquele sucesso não tinha sido ordenado por eles; e assim, estavam duvidosos, esperando em que viria o caso afinal a parar.

Sancho ficou pasmado da formosura da moça, e perguntou-lhe quem era, aonde ia, e por que motivo se vestia de homem. Ela, com os olhos no chão, com honestíssima vergonha, respondeu:

- Não posso Senhor, dizer em público o que tanto me importava que fosse secreto; uma coisa, porém, quero que se entenda: é que não sou ladra, nem facínora, mas uma donzela infeli, a quem a força de uns zelos obrigou a romper o decoro que à honestidade se deve.

Ouvindo isto, disse o mordomo para Sancho:

- Mande afastar todos Senhor Governador, para que esta Senhora, com menos empacho, possa dizer o que quiser.

Assim o ordenou o governador. Apartaram-se todos, menos o mordomo, o secretário e o mestre-sala.

Vendo que estavam sós, enfim, a donzela prosseguiu dizendo:

- Senhores, sou filha de Pedro Perez de Mazorca, arrematante das lenhas deste lugar, que muitas vezes costuma ir a casa de meu pai.

- Isso não pode ser Senhora! - acudiu o mordomo. - Pedro Perez conheço eu perfeitamente, e sei que não tem filho algum: nem rapaz, nem rapariga; além disso, dizeis que é vosso pai, e logo acrescentais que costuma ir muitas vezes a casa de vosso pai!

- Com essa já eu tinha dado - disse Sancho.

- Agora, Senhores, estou muito perturbada - respondeu a donzela - e não sei o que digo; mas o que é verdade, é que sou filha de D. Diogo de Ia Liana, que Vossas Mercês todos devem conhecer.

- Isso é possível - observou o mordomo -, que eu conheço muito bem D. Diogo de Ia Liana, e sei que é um homem rico e principal, que tem um filho e uma filha, e que depois que enviuvou ninguém neste lugar pode dizer que viu a cara da menina, porque a tem tão encerrada que nem o Sol a pode ver; e, com tudo isso, diz a fama que é extremamente formosa.

- É verdade - respondeu a donzela - e essa filha sou eu; se a fama mente ou não mente a respeito da minha formosura, podereis julgá-lo agora.

E principiou a chorar. Vendo isto, o secretário chegou-se ao ouvido do mestre-sala e disse-lhe muito baixo:

- Sem dúvida, a esta pobre donzela sucedeu-lhe alguma coisa grave, pois que anda nestes trajos por fora de casa, e a estas horas, sendo pessoa tão principal.

- Disso é que se não pode duvidar, tanto mais que essa suspeita confirmam-na as suas lágrimas.

Sancho consolou-a com as melhores razões que lhe lembraram, e pediu-lhe que sem temor algum lhes dissesse o que lhe sucedera, que a procurariam remediar com todas as veras, e de todos os modos possíveis.

- Meu pai - respondeu ela - tem-me conservado encerrada há dez anos, porque há dez anos também minha mãe faleceu; diz-se missa em casa num rico oratório, e eu, em todo este tempo, nunca vi nem Sol nem Lua, nem sei o que são ruas, praças e templos, nem vi nunca outros homens, sem serem meu pai e um irmão meu, e Pedro Perez, o arrematante, que, por visitar frequentemente a minha casa, me lembrou dizer que era meu pai, para não declarar o verdadeiro. Este encerramento, e o negar-me o sair de casa, mesmo para ir à igreja, há muitos dias e meses que me trazem muito desconsolada; queria ver o mundo, ou, pelo menos, o povo onde nasci, parecendo-me que este desejo não era contrário ao bom decoro que as donzelas principais devem guardar a si mesmas. Quando ouvia dizer que se corriam touros e se jogavam canas, e se representavam comédias, pedia a meu irmão, que é um ano mais novo do que eu,

que me dissesse que coisas eram aquelas, e outras muitas que eu nunca vi. Ele dizia-o do melhor modo que sabia, mas tudo isso contribuía ainda para me incender o desejo de o ver. Finalmente, para abreviar o conto da minha perdição, digo que roguei e pedi a meu mano - nunca eu me lembrasse de pedir nem de rogar semelhante coisa!...

E nisto, renovou-se-lhe o pranto.

Disse-lhe o mordomo:

- Prossiga Vossa Mercê, Senhora, e acabe de nos dizer o que foi que lhe sucedeu, que estamos todos suspensos das suas palavras e das suas lágrimas.

- Pouco me resta a dizer - acudiu a donzela -, mas restam-me muitas lágrimas a chorar, porque os mal colocados desejos não podem trazer consigo outros resultados.

Impressionara profundamente a alma do mestre-sala a beleza da donzela, e chegou outra vez a sua lanterna, para a ver de novo, e pareceu-lhe que não eram lágrimas que chorava, mas sim aljôfares ou rocio dos prados, e ainda mais as encarecia, e lhes chamava pérolas orientais, e estava desejando que a sua desgraça não fosse tanta como davam a entender os indícios do seu pranto e dos seus suspiros.

Desesperava-se o bom do governador com a tardança da rapariga em contar a sua história, e disse-lhe que os não tivesse por mais tempo suspensos, que era tarde, e faltava muito que percorrer da povoação. Ela, entre interrompidos soluços e mal formados suspiros, disse:

- Não é outra a minha desgraça, nem é outro o meu infortúnio, senão o ter pedido a meu irmão que me emprestasse um dos seus fatos, para eu me vestir de homem; e que me levasse uma noite a ver o povo todo, enquanto nosso pai dormia; ele, importunado pêlos meus rogos, condescendeu com o meu desejo, e, vestindo-me este fato, e vestindo-se ele com outro meu, que lhe fica a matar, porque não tem barba nenhuma, e parece uma donzela formosíssima, esta noite, há-de haver uma hora, pouco mais ou menos, saímos, e, guiados pelo nosso juvenil e disparatado discorrer, rodeámos o povo todo; e, quando queríamos voltar para casa, vimos vir um grande tropel de gente; e

disse-me logo meu irmão: Mana, isto há-de ser a ronda; põe asas nos pés, e vem correndo atrás de mim, para que nos não conheçam. E, dizendo isto, voltou as costas e começou, não digo a correr, mas a voar; eu, a menos de seis passos, caí com o sobressalto, e então chegou o beleguim que me trouxe à presença de Vossas Mercês, onde me vejo envergonhada diante de tanta gente.

- Efectivamente, Senhora - tornou Sancho - não vos sucedeu mais nada? Nem os zelos, como no princípio do vosso conto dissestes, vos tiraram de vossa casa para fora?

- Não me sucedeu mais nada, nem me tiraram zelos para fora de casa, mas tão-somente o desejo de ver mundo, desejo que não ia mais longe do que a ver as ruas deste lugar.

E acabou de confirmar ser verdade o que a donzela dizia, o chegarem os aguazis com seu irmão preso, que um deles apanhou quando fugia de ao pé de sua irmã. Não trazia senão uma rica saia e um mantelete de damasco azul, com alamares de ouro fino; a cabeça sem touca e sem outro adorno que não fossem os seus cabelos, que pareciam anéis de ouro, tão louros e ondeados eram. Apartaram-se com ele o governador, o mordomo e o mestre-sala, e, sem que a sua irmã os ouvisse, perguntaram-lhe como é que vinha naquele traje; e ele, com igual vergonha e embaraço, contou o mesmo que sua irmã contara, com o que teve gosto o enamorado mestre-sala; mas o governador disse-lhes:

- Não há dúvida Senhores, que isto foi grande rapaziada;

mas, para contar uma tolice e uma ousadia destas, não eram necessárias tantas delongas, nem tantas lágrimas e suspiros; que com o dizer: somos Fulano e Fulana, que saímos a passear de casa de nossos pais e fizemos só isto por curiosidade e sem outro desígnio, tinha-se acabado o caso, sem mais gemidos nem lágrimas.

- É verdade - respondeu a donzela -, mas saibam Vossas Mercês que a turbação que eu tive foi tal, que me não deixou guardar os termos que devia.

- Não se perdeu nada - respondeu Sancho -; vamos deixar Vossas Mercês em casa de seu pai, que talvez ainda nem desse pela sua falta; e daqui por diante não se mostrem tão crianças, nem tão desejosos de ver mundo, que donzela honrada em casa de perna quebrada; e a mulher e a galinha, por andar se perdem asinha; e quem deseja ver também deseja ser visto: não digo mais.

O mancebo agradeceu ao governador a mercê que lhes queria fazer de os acompanhar a casa, que não era dali muito longe; e, quando lá chegaram, o moço bateu nas grades de uma janela, e desceu logo uma criada, que os estava esperando, e lhes abriu a porta, e eles entraram, deixando todos admirados, tanto da sua gentileza e formosura, como do desejo que tinham de ver mundo de noite, e sem sair do lugar; mas tudo atribuíram à sua pouca idade. Ficou o mestre-sala com o coração traspassado, e tencionou ir logo no outro dia pedi-la em casamento a seu pai, tendo por certo que lha não negaria por ser criado do duque; e até Sancho teve desejos e barruntos de casar o moço com Sancha, sua filha, e determinou pô-lo em prática a seu tempo, entendendo que à filha de um governador nenhum marido se podia negar. Com isto acabou a ronda daquela noite, e dali a dois dias o governo, inutilizando-se assim e apagando-se todos os seus desígnios, como adiante se verá.

 

ONDE SE DECLARA QUEM FORAM OS NIGROMANTES E VERDUGOS QUE AÇOITARAM A DONA, BELISCARAM E ARRANHARAM D. QUIXOTE, COM O SUCESSO QUE TEVE O PAJEM QUE LEVOU A CArTA A TERESA PANÇA, MULHER DE SANCHO PANÇA

Quiz Cide Hamet, pontualíssimo esquadrinhador dos átomos desta verdadeira história, que, assim que Dona Rodriguez saiu do seu aposento para ir ao quarto de D. Quixote, outra dona que ali dormia acordou, e, como todas as donas são amigas de saber, de entender e de meter o nariz onde não são chamadas, foi atrás dela com tanto silêncio, que a boa da Rodriguez não a sentiu; assim que a dona a viu entrar no quarto de D. Quixote, para que não se perdesse nela o costume geral que têm as donas de ser chocalheiras, foi logo meter no bico de sua ama, a duquesa, que Dona Rodriguez fora para o aposento de D. Quixote. A duquesa disse-o ao duque, e pediu-lhe licença para ir com Altisidora ver o que a dona Rodriguez queria de D. Quixote. Consentiu o duque, e ambas, com grande cautela, chegaram até à porta do aposento, de forma que puderam ouvir tudo o que lá dentro se dizia; e, quando a duquesa ouviu a Dona Rodriguez falar nas suas fontes, não o pôde suportar, e Altisidora ainda menos; e, cheias de cólera e desejosas de vingança, entraram de golpe no aposento, e beliscaram D. Quixote e açoitaram a dona, do modo que fica narrado; porque as afrontas que ferem directamente a formosura e presunção das mulheres despertam nelas grande cólera, e acendem o desejo da vingança. Contou a duquesa ao duque o que se tinha passado, o que muito o divertiu; e a duquesa, prosseguindo no intento de se entreter com D. Quixote, despachou o pajem que fizera o papel de Dulcineia na história do seu desencantamento, já esquecida por Sancho Pança com as ocupações do seu governo, a Teresa Pança, com a carta de seu marido, e com outra sua, e um colar de riquíssimos corais, de presente. Diz, pois, a história, que o pajem era muito agudo e discreto, e com desejo de servir a seus amos partiu de boa vontade para a terra de Sancho; e, antes de entrar na povoação, viu num regato estarem a lavar uma grande quantidade de mulheres, a quem perguntou se lhe saberiam dizer se naquela terra vivia uma mulher chamada Teresa Pança, casada com um certo Sancho Pança, escudeiro de um cavaleiro chamado D. Quixote de La Mancha; e, ouvindo a pergunta, pôs-se em pé uma rapariguita que estava lavando, e disse:

- Essa Teresa Pança é minha mãe, e esse tal Sancho é meu pai, e o cavaleiro de quem falais é nosso amo.

- Pois vinde, donzela - disse o pajem -, e levai-me a casa de vossa mãe, porque lhe trago uma carta e um presente de vosso pai.

- Isso farei eu de muito boa vontade, meu Senhor - respondeu a moça, que mostrava ter catorze anos de idade, pouco mais ou menos.

E, deixando a roupa que lavava a outra companheira, sem se pentear nem se calçar, que estava de pé descalço, e desgrenhada, saltou adiante da cavalgadura do pajem, e disse:

- Venha Vossa Mercê, que à entrada do povo fica a nossa casa, e ali está minha mãe, com muita pena de não saber há imenso tempo de meu pai.

- Pois eu trago-lhe notícias tão boas - disse o pajem - que tem que dar por elas muitas graças a Deus.

Finalmente, correndo, saltando e brincando, chegou a rapariga à povoação, e, antes de entrar em casa, disse da porta a grandes brados:

- Saia, mãe Teresa, saia, saia, que vem aqui um senhor, que traz carta e outras coisas de meu pai.

A estes brados saiu Teresa, sua mãe, fiando uma maçaroca de estopa, com uma saia parda muito curta, e um corpete pardo também. Não era velha ainda: mostrava passar dos quarenta; mas forte, tesa e membruda; e, vendo sua filha e o pajem a cavalo, disse:

- Que é isto, rapariga? Que senhor é este?

- É um servo de Dona Teresa Pança, muito senhora minha - respondeu o pajem.

E, dizendo e fazendo, arrojou-se do cavalo abaixo, e foi com muita humildade pôr-se de joelhos diante da sra. Teresa, dizendo:

- Dê-me Vossa Mercê as suas mãos, Sr. D. Teresa, como mulher legítima e particular do Sr. D. Sancho Pança, o próprio governador da ilha denominada Barataria.

- Ai! Senhor meu! Tire-se daí! Não faça isso - respondeu Teresa -, que eu não sou nada palaciana, mas sim uma pobre lavradeira, filha de um cavador de enxada, e mulher de um escudeiro andante, e não de governador algum.

- Vossa Mercê - respondeu o pajem - é mulher digníssima de um governador arquidigníssimo; e, para prova da verdade, receba Vossa Mercê esta carta e este presente.

E tirou da algibeira o colar de corais, com fechos de ouro, e deitou-lho ao pescoço, e disse:

- Esta carta é do Senhor Governador, e outra que trago e estes corais são da minha Senhora Duquesa, que a Vossa Mercê me envia.

Picou pasmada Teresa, e sua filha igualmente; e a rapariga disse:

- Que me matem se não anda por aqui nosso amo o Sr. D. Quixote, que foi naturalmente quem deu ao pai o governo e condado, que tantas vezes lhe tinha prometido.

- Assim é - disse o pajem -, que em respeito ao Sr. D. Quixote é que é agora o Sr. Sancho governador da ilha Barataria, como se verá por esta carta.

- Leia-ma Vossa Mercê, Senhor Gentil-Homem - disse Teresa -, porque eu sei fiar, mas não sei ler.

- Nem eu tão-pouco - acrescentou Sanchita -, mas esperem-me aqui, que vou chamar quem a leia, ou o próprio Senhor Cura, ou o bacharel Sansão Carrasco, que vêm decerto de muito boa vontade, para saber notícias de meu pai.

- Não é preciso chamar ninguém - tornou o pajem - que eu não sei fiar, mas sei ler.

E leu-a toda, não se trasladando a carta para aqui, porque já é cnhecida do leitor; e em seguida tirou outra da duquesa, que dizia desta maneira:

«AMIGA TERESA:

As prendas de bondade e de engenho de vosso marido Sancho moveram-me e obrigaram-me a pedir ao duque meu marido que lhe desse o governo de uma ilha, das muitas que possui. Tenho notícia de que governa como uma águia, e com isso estou muito satisfeita, e o Senhor Duque também; e dou graças ao Céu por no me ter enganado, escolhendo-o para esse governo; porque há-de saber a sra.' Teresa, que dificilmente se acha um bom governador no mundo. Aí lhe envio, minha querida, um colar de corais, com fechos de ouro; folgaria que fosse de pérolas orientais; mas quem te dá um osso, não te quer ver morta; tempo virá em que nos conheçamos e comuniquemos; e Deus sabe o que está para vir. Recomende-me a Sanchita sua filha, e diga-lhe da minha parte que se prepare, que tenho de a casar altamente, quando ela menos o pensar. Dizem-me que nesse sítio há bolotas graúdas:

mande-me uma dúzia, que muito estimarei, por virem da sua mão; e escreva-me com largueza, dando-me novas da sua saúde e do seu bem-estar; e, se precisar de alguma coisa, não tem mais que pedir, que será servida logo. E Deus ma guarde.

Deste lugar.

Sua amiga, que bem lhe quer,

A DUQUESA.”

- Ai! - disse Teresa, ouvindo a carta -, que senhora tão chã, tão boa e tão dada! Com estas senhoras me matem, e não com estas fidalgas que se usam cá na terra, que pensam que, por ser fidalgas, nem o vento lhes há-de tocar, e vão à igreja de modo que parece que são umas rainhas, e que têm por desonra olhar para uma lavradeira; e vede esta boa senhora, que me trata como sua igual, e igual a veja eu do mais alto campanário que há na Mancha; e, pelo que toca às bolotas, Senhor meu, eu mandarei a Sua Senhoria um salamim das mais graúdas que por cá se encontrarem; e agora, Sanchita, trata deste senhor, cuida do seu cavalo, e vai buscar verde, e corta um naco de toucinho, e tratemo-lo como a um príncipe, porque as boas novas que nos trouxe, e a boa cara que tem, tudo merecem; e, entretanto, vou eu dar às vizinhas notícia da nossa satisfação, e ao padre-cura, e a mestre Nicolau, o barbeiro, que tão amigos são e têm sido de teu pai.

- Vou tratar disso, mãe - respondeu Sanchita -, mas olhe que me há-de dar metade desse colar, que a Senhora Duquesa não é tola que lho mandasse todo a vossemecê.

- Pois todo é para ti, filha, mas deixa-mo trazer alguns dias, que me alegra a alma.

- Ainda mais se hão-de alegrar - disse o pajem - em vendo a trouxa que eu aqui trago, e em que vem um fato de pano verde, finíssimo, que o Senhor Governador s vestiu uma vez para ir à caça, e que manda para a Menina Sanchita.

- Viva ele mil anos, e o enviado outro tanto - bradou Sanchita -, e até dois mil, se necessário for!

Nisto, saiu Teresa de casa, com as cartas, e o colar ao pescoço, e ia tangendo as cartas, como se fossem um pandeiro; e, encontrando o cura e Sansão Carrasco, principiou a bailar e a dizer:

- Por minha fé, que não há aqui parente pobre: temos um governicho, e que se meta comigo a mais pintada fidalga, que a faço em frangalhos.

- Que é isso, Teresa Pança? Que loucuras são essas, e que papéis são esses?

- Não é loucura nenhuma, e isto são cartas de duquesas e de governadores, e o que trago ao pescoço são corais finos, e eu sou governadora.

- Por Deus, não vos entendemos, Teresa, nem sabemos o que dizeis.

- Aí podem ver - respondeu Teresa.

E deu-lhes as cartas.

Leu-as o cura em voz alta, e ele e Sansão olharam um para o outro, admirados do que se tinha lido; e perguntou o bacharel quem é que trouxera as cartas.

Respondeu Teresa que a acompanhassem a casa, e veriam o mensageiro, que era um mancebo lindo como um alfinete de toucar, e que lhe trazia outro presente que valia mais de outro tanto.

Tirou-lhe o cura os corais do pescoço: mirou-os e remirou-os; e, certificando-se de que eram finos, de novo pasmou, e disse:

- Pelo hábito que visto, não sei que diga nem que pense destas cartas e destes presentes: por uma parte vejo e apalpo a finura destes corais, e por outra leio que uma duquesa manda pedir duas dúzias de bolotas.

- Vamos ver o portador da carta - disse Carrasco - e ele nos explicará as dificuldades que se nos oferecem.

Acharam o pajem peneirando uma pouca de cevada para a sua cavalgadura, e Sanchita cortando um torresmo, para o fazer com ovos e dar de comer ao pajem, cuja presença e donaire satisfez muito os dois curiosos; e, depois de se terem cumprimentado cortesmente, pediu-lhe Sansão que lhe desse notícias tanto de D. Quixote como de Sancho Pança, que, ainda que tinham lido as cartas de Sancho e da Senhora Duquesa, estavam confusos, e não podiam atinar o que viria a ser isso do governo de Sancho, e ainda menos de uma ilha, sendo todas, ou a maior parte das ilhas espanholas do Mediterrâneo, pertencentes a Sua Majestade.

O pajem respondeu:

- De que o Sr. Sancho Pança é governador, ninguém pode duvidar; que seja ilha ou não o que ele governa, lá nisso não me intrometo, mas basta que seja um lugar de mais de mil vizinhos; e quanto à dúvida das bolotas, digo que a duquesa minha Senhora é ch e tão humilde, que não se envergonha de mandar pedir bolotas a uma lavradeira, mas às vezes mandava pedir pentes às vizinhas, porque hão-de saber Vossas Mercês que as Senhoras de Aragão, apesar de serem tão principais, não são de tantas etiquetas e de tantos orgulhos como as Senhoras Castelhanas: tratam toda a gente com muito mais lhaneza.

Quando estavam com estas práticas, veio Sanchita com uma arregaçada de ovos, e perguntou ao pajem:

- Diga-me, Senhor: meu Senhor pai usa calças atacadas, desde que é governador?

- Nunca reparei - respondeu o pajem - mas é provável que sim.

- Ai, Deus meu! - replicou Sanchita. - Muito gostava eu de ver meu pai de calções! Desde que nasci que tenho esse desejo.

- Com essas coisas e com muitas outras o verá Vossa Mercê, se Deus lhe der vida - tornou o pajem.

Bem perceberam o cura e o bacharel que o pajem falava ironicamente; mas a finura dos corais e o fato de caça que Sancho enviava desfaziam todas as suposições; riram do desejo de Sanchita, e ainda mais quando Teresa disse:

- Senhor Cura, deite pregão, a ver se há por aí alguém que vá a Madrid ou a Toledo, para que me compre uma saia redonda e bem feita, e à moda das melhores saias que houver; porque, na verdade, tenho de honrar o governo de meu marido, tanto quanto possa; e, se me zango, vou a essa corte deitar coche como todas; quem tem marido governador, pode muito bem ter coche e sustentá-lo.

- Ó mãe - disse Sanchita -, prouvera a Deus que antes fosse hoje do que amanhã pela manhã, ainda que os que me vissem sentada num coche, ao lado de minha Senhora mãe, dissessem: «Olhem para aquela tola, filha de um comilão de alhos, como vai sentada e estendida naquele coche, como se fosse uma papisa!” Mas elas que se danem, e ande eu no meu coche, com os pés levantados do chão. Mau ano e mau mês para quantos murmuradores há no mundo; ande eu quente e ria-se a gente. Não é verdade, minha mãe?

- Se é verdade, filha! - respondeu Teresa. - E todas estas venturas, e maiores ainda, mas profetizara o meu bom Sancho; verás tu, filha, como não paras sem ser condessa, que tudo está no principiar em ser venturoso; e, como tenho ouvido dizer muitas vezes a teu bom pai (que, assim como é teu pai, é pai e mãe dos rifões), quando te derem a vaca, vem logo com a corda; quando te derem um governo, apanha-o; quando te derem um condado, agarra-o; e quando te baterem à porta com alguma boa dádiva, recebe-a, ou então deita-te a dormir, e não fales à ventura, que está fazendo truz-truz à porta da tua casa.

- E que me importa a mim - acrescentou Sanchita - que digam: viu-se o Diabo com botas, correu a cidade toda? Ouvindo isto, disse o cura:

- Na verdade, creio que esta linhagem dos Panças nasceu toda com um costal de rifões metidos no corpo, e que os entorna a todas as horas e em todos os lugares.

- É verdade - tornou o pajem -, e, ainda que muitos não vêm a propósito, todavia divertem; e a duquesa, minha Senhora, e o duque, apreciam-nos muito.

- Pois ainda afirma Senhor meu - disse o bacharel -, ser verdade isto do governo de Sancho, e haver uma duquesa no mundo que mande presentes e escreva a sua mulher? Porque nós outros, apesar de termos lido as cartas, não o acreditamos ainda, e supomos que isto é mais uma das patranhas de D. Quixote, nosso patrício, que pensa que tudo sucede por encantamento; e, assim, parece-me que ainda apalpo Vossa Mercê, para ver se é fantástico embaixador, ou homem de carne e osso.

- Senhores - respondeu o pajem -, só sei que sou embaixador verdadeiro, e que o Sr. Sancho Pança é governador efectivo, e que o duque e duquesa, muito Senhores meus, lhe puderam dar, e lhe deram, o tal governo, e que ouvi dizer que nesse governo se porta bizarramente o tal Sancho Pança; se nisto há encantamento ou não Vossas Mercês o discutam lá entre si, que eu nada mais sei, pelo juramento que faço, que é pela vida de meus pais, que tenho vivos, e a quem muito quero.

- Pode muito bem ser assim - replicou o bacharel - mas dubitat Augustinus.

- Duvide quem quiser - respondeu o pajem -, a verdade é o que eu disse, que há-de sobrenadar sempre na mentira, como o azeite na água; e, senão operibus credite et non verbis: venha algum de Vossas Mercês comigo, e verá com os olhos o que não acredita com os ouvidos.

- A mim é que me compete ir - observou Sanchita -; leve-me Vossa Mercê na garupa do seu cavalo, que irei de muito boa vontade ver meu Senhor pai.

- As filhas dos governadores não podem andar sozinhas por essas estradas, mas sim com liteiras e carruagens, e grande númro de servos.

- Por Deus! - respondeu Sanchita. - Ia tão bem a cavalo numa eguazita como metida num coche; eu cá não sou melindrosa.

- Cala-te, rapariga - acudiu Teresa -, que não sabes o que dizes; e este Senhor tem razão, que a todo o tempo é tempo, e quando Sancho era só Sancho, eras tu Sancha, mas quando Sancho é governador, és tu senhora.

- Diz muito bem a Senhora Teresa - acudiu o pajem - e dêem-me de comer, e despachem-me já, porque tenciono partir esta mesma tarde.

- Quer Vossa Mercê fazer penitência comigo? - disse o cura. - A sra. Teresa tem mais boa vontade do que alfaias, para servir a tão honrado hóspede.

Recusou o pajem ao princípio; mas, afinal, teve de aceder, e o cura levou-o consigo com muito gosto, para poder interrogá-

-lo, de seu vagar, a respeito de D. Quixote e das suas façanhas. O bacharel ofereceu-se para escrever a Teresa as respostas às cartas, mas Teresa no quis que o bacharel se metesse nos seus negócios, porque o tinha por zombador; e deu um bolo e dois ovos a um menino de coro, que sabia escrever, e que lhe fez duas cartas, uma para seu marido, e outra para a duquesa, notadas pelo próprio bestunto dela, que não são das piores que nesta história figuram, como adiante se verá.

 

DO PROGRESSO DO GOVERNO DE SANCHO PANÇA, COM OUTROS SUCESSOS CURIOSOS

O resto da noite da ronda do governador passou-a o mestre-sala sem dormir, com o pensamento embebido no rosto, donaire e beleza da disfarçada donzela, enquanto o mordomo a empregava em escrever a seu amo o que Sancho Pança fazia e dizia, tão admirável nos seus feitos como nos seus ditos, porque andavam mescladas as suas palavras e as suas acções com acertos e tolices. Amanheceu, enfim; levantou-se o Senhor Governador, e, por ordem do Dr. Pedro Recio, lhe deram para almoçar uma pouca de conserva e quatro goles de água fria, almoço que Sancho trocaria por um pedaço de pão e um cacho de uvas. Enfim, vendo que não tinha remédio senão sujeitar-se, resignou-se, com amarga dor da sua alma e fadiga do seu estômago, fazendo-lhe acreditar Pedro Recio que os manjares, poucos e delicados, avivavam o engenho, e eram os que mais convinham às pessoas constituídas em comandos e ofícios graves, em que se hão-de aproveitar, não tanto das forças corporais como das do entendimento. Com estes sofismas, Sancho passava fome, e tal, que, em segredo, amaldiçoava o governo, e até quem lho dera. Mas, com a fome e com a conserva no estômago, se pôs a julgar naquele dia; e a primeira coisa que se apresentou foi uma pergunta que um forasteiro lhe fez, estando a tudo presente o mordomo e outros acólitos, pergunta que foi a seguinte:

- Senhor: um rio caudaloso dividia dois campos de um mesmo senhorio (atenda-me Vossa Mercê, porque o caso é de importância e bastante dificultoso). Nesse rio havia uma ponte ao cabo da qual ficava uma porta e uma espécie de tribunal em que estavam habitualmente quatro juizes que julgavam segundo a lei imposta pelo dono do rio, da ponte e das terras, que era da seguinte forma: se alguém passar por esta ponte, de uma parte para a outra, há-de dizer primeiro, debaixo de juramento, onde é que vai; e, se jurar a verdade, deixem-no passar, e, se disser mentira, morra por elo de morte natural, na forca que ali se ostenta, sem remissão alguma. Sabida esta lei, e a sua rigorosa condição, passaram muitos, e logo, no que juravam, se mostrava que diziam a verdade, e os juizes, então, deixavam-nos passar livremente. Sucedeu, pois, que, tomando juramento a um homem, este jurou, e disse que fazia este juramento só para morrer na forca que ali estava, e não para outra coisa. Repontaram os juizes com o caso, e disseram: Se deixamos passar este homem livremente, ele mentiu no seu juramento, e, portanto, deve morrer; e, se o enforcamos, ele jurou que ia morrer naquela forca, e, tendo jurado a verdade, pela mesma lei deve ficar livre. Pergunta-se a Vossa Mercê, Senhor Governador: Que hão-de fazer os juizes a este homem, acerca do qual estão ainda até agora duvidosos e suspensos? Tendo tido notícia do agudo e elevado entendimento de Vossa Mercê, mandaram-me a suplicar-lhe que desse o seu parecer, em caso tão duvidoso e intrincado.

- Decerto - respondeu Sancho - esses Senhores Juizes, que a mim vos enviam, podiam tê-lo escusado, porque sou um homem que nada tenho de agudo; mas, com tudo isso, repeti-me outra vez o negócio, de modo que o entenda; pode ser que eu desse no vinte.

Outra e outra vez repetiu o perguntante o que primeiro dissera, e Sancho respondeu:

- Este negócio, no meu entender, em duas palavras se declara, e vem a ser o seguinte: O homem jura que vai morrer na forca, e, se morre, jurou a verdade, e pela tal lei deve ser livre, e pode passar a ponte; e, se não o enforcarem, mentiu, e pela mesma lei deve ser enforcado; é isto?

- E isso mesmo - disse o mensageiro - e não pode estar mais inteirado do caso, nem conhecê-lo melhor.

- Digo eu agora, pois - tornou Sancho -, que deixem passar a metade desse homem que jurou a verdade, e que enforquem a outra que jurou mentira; e, deste modo, se cumprirá ao pé da letra a condição da passagem.

- Mas, então Senhor Governador - tornou o interrogante -, há-de ser necessário que o transgressor se parta ao meio, e, se se parte ao meio, por força morre; e, assim, não se consegue coisa alguma do que a lei pede, e é de absoluta necessidade que a lei se cumpra.

- Vinde cá, bom homem - tornou Sancho -, ou eu sou um tolo, ou esse passageiro que dizeis tanta razão tem para morrer como para viver e passar a ponte; porque, se a verdade o salva, a mentira igualmente o condena; e, sendo assim, dou de parecer que digais a esses senhores, que a num vos enviaram, que, visto que se contrabalançam as razões de o condenar e as de o absolver, deixem-no passar livremente, pois é sempre mais louvado fazer o bem que fazer o mal; e isto dá-lo-ia eu assinado com o meu nome, porque me acudiu à memória um preceito, entre outros muitos que o Sr. D. Quixote me deu, na noite antecedente ao dia em que entrei neste governo, que foi que, quando estivesse em dúvida, me acolhesse à misericórdia; e quis Deus que me lembrasse agora, por vir como de molde para este caso.

- Assim é - respondeu o mordomo -, e tenho para mim, que o próprio Licurgo, que deu leis aos Lacedemónios, não podia proferir-melhor sentença do que a que pronunciou o grande Pança; e acabe-se com isto a audiência desta manhã, e darei ordem para que o Senhor Governador coma muito a seu gosto.

- Isso é que é, e não quero mais nada - tornou Sancho -; dêem-me de comer, e chovam casos e dúvidas sobre mim, que tudo mato no ar.

Cumpriu a sua palavra o mordomo, parecendo-lhe que era encargo de consciência matar de fome tão discreto governador, tanto mais que tencionava acabar-lhe com o governo aquela noite, fazendo-lhe a última caçoada que se lhe recomendara que fizesse.

Sucedeu, pois, que, tendo jantado naquele dia contra as regras do Dr. Tïrteafuera, ao levantar da toalha entrou um correio, com uma carta de D. Quixote para o governador.

Mandou Sancho ao secretário que a lesse para si, e que, se ela não trouxesse nada de segredo, a lesse em voz alta.

Assim fez o secretário; e, passando-a pêlos olhos, disse:

- Pode-se ler perfeitamente em voz alta; o que o Sr. D. Quixote escreve a Vossa Mercê merece ser estampado e escrito em letras de ouro; e diz assim:

CARTA DE D. QUIXOTE DE LA MANCHA A SANCHO PANÇA, GOVERNADOR DA ILHA BARATARIA

«Quando esperava ouvir novas de teus descuidos e impertinências, Sancho amigo, ouvi-as das tuas discrições, e por isso dei graças particulares ao Céu, que sabe levantar os pobres do monturo, e fazer discretos dos tolos. Diem-me que governas como se fosses homem, e que és homem como se fosses bruto, pela humildade com que te tratas; adverte, Sancho, que muitas vezes convém, por autoridade do ofício, ir contra o que pede a singeleza do coração, porque o bom adorno da pessoa, que está em altos cargos, deve ser conforme ao que eles pedem, e não à medida daquilo a que a sua humilde condição o inclina. Veste-te bem, que um pau enfeitado já não parece um pau; não digo que tragas diches nem galas, nem que, sendo juiz, te vistas como soldado, mas que te adornes com o fato que o teu ofício requer, contanto que seja limpo e bem composto. Para ganhar as vontades do povo que governas, entre outras coisas, duas hás-de fazer: a primeira ser bem-criado com todos, e isso já eu to recomendei; a outra, procurar que haja abundância de mantimentos, porque não há coisa que mais fatigue o coração dos pobres do que a fome e a carestia.

Não faças muitas pragmáticas, e, se as fizeres, procura que sejam boas, e sobretudo que se guardem e se cumpram; que as pragmáticas que se não guardam é o mesmo que se não existissem; antes mostram que o príncipe, que teve discriço e autoridade para as promulgar, não teve valor para fazer com que se cumprissem, e as leis que atemorizam e não se escutam, vêm a ser como o cepo, esse rei das rãs, que ao princípio as espantou, e depois o menosprezaram e treparam para cima dele. Sê pai das virtudes, e padrasto dos vícios. Não te mostres sempre rigoroso, nem sempre brando, e escolhe o meio termo entre esses dois extremos, que aí é que bate o ponto da discrição. Visita os cárceres, os açugues e as praças, que a presença do governador em tais lugares é de muita importância; consola os presos que esperam brevidade no seu despacho; assusta os carniceiros, que por essa ocasião não roubam no peso, e da mesma forma serve de espantalho às regateiras das praças. Não te mostres cobiçoso (ainda que porventura o sejas, o que não creio), nem mulherengo, nem glutão, porque em o povo sabendo o teu fraco, por aí te hão-de bombardear, até te derribarem nas profundas da perdição. Mira e remira, vê e revê os conselhos que te dei por escrito antes que daqui partisses para o teu governo, e verás que achas neles, se os guardares, uma ajuda de custo que te alivie os trabalhos e dificuldades, que a cada passo sobrevêm aos governadores. Escreve a teus senhores e mostra-te agradecido, que a ingratidão é filha da soberba e um dos maiores pecados que se conhecem; e a pessoa, que é agradecida aos que lhe fizeram bem, dá indícios de que também o será a Deus, que tantos bens lhe fez e de contínuo lhe está fazendo.

A Senhora Duquesa despachou um próprio, com o teu fato e outro presente, a tua mulher Teresa Pança; esperamos a cada instante a resposta. Tenho passado mal, por causa de certas arranhaduras, que me não deixaram em bom estado o nariz; mas não foi nada, que, se há nigromantes que me perseguem e me maltratam, também os há que me defendem.

Diz-me se o mordomo que te acompanha teve alguma coisa que ver nas acções da Trifaidi, como tu suspeitaste; e de tudo o que te suceder me irás dando notícia, já que é tão perto; tanto mais que tenciono deixar em breve esta vida ociosa, pois não nasci para ela. Apresentou-se-me um negócio, que pode fazer-me perder as boas graças destes senhores; mas, ainda que isso me aflija, não hesito em tratá-lo, porque, enfim, tenho de satisfazer antes a minha profissão do que o gosto deles, conforme o que se costuma dizer: AWÍCMS Plato, sea mgis arnica ventas. Digo-te este latim, porque suponho que, desde que és governador, talvez o aprendesses.

Deus te guarde de quem te queira magoar.

Teu amigo,

  1. QUIXOTE DE LA MANCHA.”

Escutou Sancho a carta com profunda atenço, sendo celebrada e considerada muito discreta pêlos que a ouviram; logo Sancho se levantou da mesa, e, sem mais dilações, quis responder a seu amo D. Quixote, e disse ao secretário que, sem tirar nem acrescentar coisa alguma, fosse escrevendo o que ele lhe dissesse; e assim se fez.

E a resposta foi do teor seguinte:

CARTA DE SANCHO PANÇA A D. QUIXOTE DE LA MANCHA

«A ocupação dos meus negócios é tão grande, que não tenho lugar nem para coçar a cabeça, nem para cortar as unhas, de forma que as trago tão crescidas, que só Deus lhes pode dar remédio.

Digo isto Senhor meu da minha alma, para que Vossa Mercê se não espante de eu até agora não ter dado aviso se estou bem ou mal

neste governo, em que tenho mais fome do que quando andávamos pelas selvas e despovoados.

Escreveu-me o duque meu Senhor, no outro dia, dando-me aviso de que tinham entrado nesta ilha certos espias para me matar; e, até agora, ainda não descobri outro senão um certo doutor, que está neste sítio, assalariado para dar cabo de quantos governadores aqui vierem:

chama-se o Dr. Pedro Recio, e é natural de Tirteafuera, e veja Vossa Mercê se, com este nome, não hei-de recear morrer às suas mãos. Este tal doutor diz de si próprio, que não cura as enfermidades quando as há, mas que as previne para que não venham; e os remédios que usa são dieta e mais dieta, até pôr uma pessoa em pele e osso, como se não fosse maior mal a fraqueza do que a febre. Finalmente, ele vai-me matando à fome. e eu vou morrendo de despeito, pois, quando imaginei vir para este governo comer quente, e beber frio, e regalar o corpo em lençóis de holanda, sobre colchões de plumas, vim fazer penitência, como se fosse ermitão; e, não a fazendo por vontade, parece-me que, afinal de contas, sempre me há-de levar o Diabo.

Até agora ainda não vi a cor ao dinheiro cá da terra, e não posso saber o motivo por que aqui me disseram que os governadores, que a esta ilha costumam vir antes de fazer a sua entrada já a gente da povoação lhes dá ou lhes empresta muito dinheiro, e que isto é usança ordinária dos que vão também para outros governos.

Esta noite, andando de ronda, topei uma formosíssima donzela vestida de homem, e um irmão seu vestido de mulher; da moça se enamorou o meu mestre-sala e escolheu-a na sua imaginação para sua consorte, e eu escolhi o moço para meu genro: hoje poremos ambos em prática os nossos pensamentos, falando com o pai, que é um tal Diogo de Ia Liana, fidalgo e cristão-velho.

Visito as praças como Vossa Mercê me aconselha, e ontem achei uma regateira que misturara com meia fanega de avelãs novas outra de avelãs velhas, chochas e podres: apliquei-as todas para os meninos da doutrina, que as saberiam bem distinguir, e sentenciei-a a que não entrasse na praça durante quinze dias; disseram-me que o fiz valorosamente; o que sei dizer a Vossa Mercê é que é fama neste povo que não há gente pior que as regateiras, porque todas são desavergonhadas, desalmadas e atrevidas, e eu assim o creio, pelo que vi noutros povos.

Estou muito satisfeito por saber que a duquesa minha Senhora escreveu a minha mulher Teresa Pança, e lhe enviou o presente que Vossa Mercê diz, e procurarei mostrar-me agradecido a seu tempo; beije-lhe Vossa Mercê as mãos pela minha parte, dizendo que digo eu; que o não deitou em saco roto, como verá.

Não quereria que Vossa Mercê, Senhor meu, tivesse dares e tomares com esses senhores; porque, se Vossa Mercê se zanga com eles, claro está que há-de redundar tudo em meu prejuízo, e não será bem que, dando-me de conselho o ser agradecido, o não seja Vossa Mercê com quem tantas mercês lhe tem feito, e com tantos regalos o tratou no seu castelo.

Isso de arranhaduras não entendo; mas imagino que deve de ser alguma das malfeitorias que, com Vossa Mercê, costumam praticar os nigromantes; eu o saberei quando nos virmos. Quereria mandar a Vossa Mercê alguma coisa, mas não sei o que lhe mande, a não ser uns canudos com bexigas, que aqui se fazem muito bem; ainda que, se me durar o ofício, verei se posso mandar coisa de mais valia. Se minha mulher Teresa Pança me escrever, pague Vossa Mercê o porte, e mande-me a carta, que tenho grandíssimo desejo de saber o estado de minha casa, de minha mulher e de meus filhos. E com isto Deus livre a Vossa Mercê de mal-intencionados nigromantes, e a mim me tire com bem e em paz deste governo, do que duvido, porque me parece que tenho de o deixar com a vida, pelo modo como me trata o tal Dr. Pedro Recio.

Criado de Vossa Mercê,

SANCHO PANÇA, O GOVERNADOR.”

Fechou a carta o secretário, e despachou logo o correio; e, juntando-se os burladores de Sancho, combinaram entre si o modo como haviam de o pôr fora do governo; e essa tarde passou-a Sancho a fazer algumas ordenações, tocantes à boa administração da terra que ele tomava por ilha; e ordenou que não houvesse vendedores de comestíveis a retalho, e que se pudesse mandar vir vinho de onde se quisesse, e com obrigação de se declarar o lugar, para se lhe pôr o preço, segundo a sua avaliação, a sua bondade e a sua fama; e quem lhe deitasse água ou lhe mudasse o nome, morreria por elo; moderou o preço de todo o calçado, principalmente dos sapatos, por lhe parecer que corria com exorbitância; pôs taxa nos salários dos criados, que seguiam à rédea solta pelo caminho do interesse; pôs gravíssimas penas aos que cantassem cantigas lascivas ou descompostas, quer de noite quer de dia; ordenou que nenhum cego cantasse milagres em coplas, a não trazer testemunhos autênticos de serem verdadeiros, por lhe parecer que a maior parte dos que os cegos cantam são fingidos, e prejudicam os outros.

Criou um aguazil de pobres, não para os perseguir, mas para examinar se o eram, porque à sombra de aleijão fingido, ou de chaga falsa, andam ladrões os braços e bêbeda a saúde. Enfim, ordenou coisas tão boas, que ainda hoje se guardam naquele lugar, e se chamam - s constituições do grande governador Sancho Pança.

 

ONDE SE CONTA A AVENTURA DA SEGUNDA DONA DOLORIDA OU ANGUSTIADA, CHAMADA POR OUTRO NOME DONA RODRIGUEZ

Conta Cide Hamet que, estando já D. Quixote curado das suas arranhaduras, lhe pareceu que a vida que passava naquele castelo era absolutamente contrária à ordem da cavalaria que professava; e, assim, resolveu pedir licença aos duques para partir para Saragoça, porque vinham próximas as festas daquela cidade, onde ele tencionava ganhar o ames, que ali se conquista. E, estando um dia à mesa com os duques, e começando a pôr em obra a sua intenção, e a pedir a licença, eis que entram pelas portas da sala duas mulheres, todas cobertas de luto; e uma delas, chegando-se a D. Quixote, deitou-se-lhe aos pés, estirada no chão, e, cosendo-lhe a boca aos sapatos, dava uns gemidos tão tristes, tão profundos e tão dolorosos, que pôs em confusão todos os que a ouviam e contemplavam; e, ainda que os duques pensaram que seria alguma caçoada, que os seus criados quisessem fazer a D. Quixote, todavia, vendo o afinco com que a mulher gemia, chorava e suspirava, ficaram duvidosos, até que D. Quixote, compassivo, a levantou do chão, e fez com que se descobrisse e tirasse o manto de cima da face chorosa. Ela obedeceu, e mostrou ser o que nunca se poderia imaginar: a própria Dona Rodriguez; e a outra enlutada era sua filha, a vítima das seduções do filho do rico lavrador. Admiraram-se todos que a conheciam, e mais do que todos eles os duques, que, ainda que a tinham por tola, nunca imaginaram que chegaria a fazer semelhantes loucuras. Finalmente, Dona Rodriguez, voltando-se para seus amos lhes disse:

- Dêem-me Vossas Excelências licença para que eu incomode um pouco este cavalheiro, porque assim é necessário, para ver se me posso sair bem do negócio em que me meteu um vilão mal-intencionado.

Deu-lhe o duque a licença pedida, para dizer a D. Quixote tudo o que quisesse. Ela, erguendo a voz e o rosto para D. Quixote, disse:

- Há dias, valoroso cavaleiro que vos dei conta da sem-razão e aleivosia com que um rico lavrador tratou a minha muito querida e amada filha, que é esta desditosa que aqui está presente, e prometestes-me velar por ela, desfazendo o agravo que ele lhe fez; tive agora notícia de que vos quereis partir deste castelo, em busca das boas venturas que Deus vos depare; e, assim, queria que, antes que saísseis por esses caminhos, desafiásseis esse rústico indómito e o obrigásseis a casar com minha filha, em cumprimento da palavra que lhe deu, de ser seu esposo, antes de folgar com ela; porque, lá pensar que o duque meu Senhor me há-de fazer justiça, é escusado, pêlos motivos que já a Vossa Mercê muito à puridade declarei; e, com isto Nosso Senhor dê a Vossa Mercê muita saúde, e a nós nos não desampare.

A estas razões respondeu D. Quixote, com muita gravidade:

- Boa dona: temperai as vossas lágrimas, ou, para melhor dizer, enxugai-as, e forrai os vossos suspiros, que eu me encarrego do remédio de vossa filha, a quem fora melhor não ter sido tão fácil em acreditar promessas de namorados, que, pela maior parte, são ligeiras de prometer e muito pesadas de cumprir;

e, assim, com licença do duque meu Senhor, partirei imediatamente em busca desse desalmado mancebo, e encontrá-lo-ei, e desafiá-lo-ei, e matá-lo-ei se ele se escusar de cumprir a sua palavra; que o principal assunto da minha profissão é perdoar aos humildes e castigar os soberbos; quero dizer, socorrer os tímidos e destruir os rigorosos.

- Não é mister - respondeu o duque - dar-se Vossa Mercê ao trabalho de procurar o rústico de quem esta boa dona se queixa, nem é necessário que Vossa Mercê me peça licença para o provocar, que eu já o dou por desafiado, e tomo a meu cargo comunicar-lhe este repto e fazer-lho aceitar, e obrigá-lo a vir responder por si a este castelo, onde a ambos darei campo seguro, estabelecendo todas as condições que em tais actos se costumam e se devem estabelecer, guardando igualmente a sua justiça a cada um, como são obrigados a guardá-la todos os príncipes que dão campo franco aos que se batem nos termos dos seus senhorios.

- Pois com esse reparo, e com a benévola licença de Vossa Grandeza - replicou D. Quixote -, desde já declaro que por esta vez renuncio à minha fidalguia e me nivelo com a baixeza de quem praticou o dano, fazendo-me igual a ele, para que possa vir combater comigo; e, assim, ainda que ausente, o desafio e repto, por ter procedido mal, defraudando esta que foi donzela, e que já o não é por culpa dele, e para cumprir a palavra que lhe deu de ser seu legítimo esposo, ou de morrer na demanda.

E, descalçando uma luva, arrojou-a ao meio da sala, e o duque levantou-a, dizendo que aceitava o tal desafio em nome do seu vassalo, e marcou o prazo daí a seis dias, e o campo o terreiro daquele castelo, e as armas as costumadas, lança e escudo, e arnês, com todas as outras peças, sem engano, burla, ou superstição alguma, examinadas e vistas pêlos juizes do campo; mas que, antes de tudo, era necessário que essa boa dona e essa má donzela pusessem o direito de sua justiça nas mãos do Sr. D. Quixote, sem o que se não faria nada, nem chegaria a devida execução o tal desafio.

- Eu ponho - respondeu a dona.

- E eu também - acrescentou a filha, toda chorosa e toda vergonhosa, e de má vontade.

Tendo, pois, o duque imaginado maduramente o que havia de fazer em tal caso, foram-se as lutuosas, e ordenou a duquesa que, dali por diante, não as tratassem como a suas criadas, mas como a senhoras aventureiras, que vinham pedir justiça a sua casa; e, assim, deram-lhes quarto à parte, e serviram-nas como a forasteiras, não sem espanto das outras criadas, que não sabiam aonde iria parar a sandice e desenvoltura de Dona Rodriguez e de sua andante filha. Estando nisto, para acabar de alegrar a festa e dar bom fim ao jantar, eis que entra na sala o pajem que levara as cartas e presentes a Teresa Pança, mulher do governador Sancho Pança, e com essa chegada tiveram grande contentamento os duques, desejosos de saber o que lhe sucedera na sua viagem; e, perguntando-lho, respondeu o pajem que o não podia dizer tanto em público, nem resumi-lo em breves palavras: que fossem Suas Excelências servidos reservar isso para quando estivessem a sós, e que, no entanto, se entretivessem com as suas cartas; e, tirando duas cartas, pô-las nas mãos da duquesa; uma dizia no sobrescrito: Carta para a minha Senhora a Duquesa de tal, não sei onde, e a outra: Carta para meu marido Sancho Pança, governador da ilha Barataria, que Deus prospere mais anos que a mim. Não descansou a duquesa enquanto não percorreu a carta; e, abrindo-a, leu-a para si, e, vendo que a podia repetir em voz alta, para que o duque e os outros circunstantes a ouvissem, leu desta maneira:

CARTA DE TERESA PANÇA À DUQUESA

«Muita satisfação me deu Senhora minha, a carta que Vossa Craca me escreveu, que, na verdade, bastante a desejava. O colar de corais é muito bom, e o fato de caça de meu marido não lhe fica atrás. Muito gostou este povo todo de saber que Vossa Senhoria tinha feito governador a Sancho meu consorte, ainda que não há quem o creia, e menos ainda o cura, e mestre Nicolau, o barbeiro, e Sansão Carrasco, o bacharel; mas a mim é que me não importa, que, sendo isto assim como é, diga lá cada um o que quiser; ainda que, a dizer a verdade, se não viessem os corais e o fato, eu também não acreditava, porque, nesta terra, todos têm meu marido por um tolo, que, em o tirando de governar um rebanho de cabras, não se imagina para que governo ele possa ser bom; enfim, Deus o encaminhe, como vê que seus filhos precisam. Eu, Senhora da minha alma, estou resolvida, com licença de Vossa Mercê, a ir até à corte, para andar de coche e quebrar os olhos aos mil invejosos que já tenho; e, assim, peço a Vossa Excelência que mande dizer a meu marido que me envie algum dinheirinho, e que não seja pouco, porque, na corte, as despesas são grandes, que o pão está a real e a carne a trinta maravedis o arrátel, tudo pela hora da morte; e, se ele não quiser que eu vá, que me avise a tempo, porque já me está pulando o pé para me pôr a caminho; e dizem-me as minhas amigas e as minhas vizinhas que, se eu e a minha filha andarmos pomposas na corte, mais conhecido virá a ser meu marido por mim do que eu por ele, perguntando muitos, por força: 'Quem são as senhoras que vão naquele coche? E um criado meu responderá: 'São a mulher e a filha de Sancho Pança, governador da ilha Barataria'. E, deste modo, será conhecido meu marido, e eu serei estimada. Pesa-me, o mais que pesar-me pode, não ter havido, este ano, bolotas neste povo; contudo isso, mando a Vossa Alteza meio salamim, que fui colher a uma e uma e escolher ao monte, e não as achei mais maiores; quereria que fossem como ovos de avestruz.

Não se esqueça Vossa Pomposidade de me escrever, que eu cuidarei de mandar logo a resposta, dando novas da minha saúde e de tudo o de que neste lugar houver que dar notícia, e aqui fico rogando a Nosso Senhor que guarde Vossa Grandeza e que a num não me esqueça. Sancha minha filha, e meu filho, beijam as mãos a Vossa Mercê.

A que tem mais desejo de ver a Vossa Senhoria do que de lhe escrever,

Sua criada,

TERHSA PANÇA.”

Todos se divertiram muito ouvindo a carta de Teresa Pança, principalmente os duques; e a duquesa perguntou a D. Quixote se se poderia abrir a carta que vinha para o governador que devia ser excelente e D. Quixote disse que a abriria ele para lhes dar gosto; e assim o fez, e viu que dizia desta maneira:

CARTA DE TERESA PANÇA A SANCHO PANÇA SEU MARIDO

«Recebi a tua carta, meu Sancho da minha alma, e juro-te, como católica, que não faltaram dois dedos para eu ficar louca de contentamento. Olha, mano, quando ouvi dizer que estás sendo governador, por pouco não caí morta de puro gozo; que tu bem sabes que dizem que, tanto mata a súbita alegria, como a grande aflição. A Sanchita, de puro contentamento, pôs-se num charco sem se sentir. Eu tinha diante de mim o fato que me mandaste, e os corais que a Senhora Duquesa me enviou ao pescoço, e as cartas nas mãos, e o portador ali presente, e ainda me parecia, contudo isso, que era sonho o que eu via e tocava; porque, também, quem é que podia pensar, que um pastor de cabras ainda havia de ser governador de ilhas? Bem sabes, amigo, que dizia minha mãe, que para ver muito era necessário viver muito; digo isto, porque espero ainda ver mais se mais viver, e cuido que ainda hás-de vir a ser recebedor de sisas, ou cobrador de alcavalas, que, ainda que são ofícios que em se usando mal deles leva o Diabo quem os usa, enfim, enfim, sempre mexem em dinheiros. A duquesa minha Senhora te dirá o desejo que tenho de ir à corte; pensa nisso, e diz-me o que queres que eu faça; que procurarei honrar-te na cidade, andando sempre de coche.

O cura, o barbeiro, o bacharel, e até o sacristão, não querem acreditar que sejas governador, e dizem que tudo são embelecos ou coisas de encantamento, como todas as de D. Quixote teu amo; e afirma Sansão que te há-de ir buscar, e tirar-te o governo da cabeça, e a D. Quixote a loucura dos cascos: eu então, não faço senão rir-me a olhar para o rosário e a pensar no vestido que tenho a fazer do teu fato, para a nossa Sanchita. Enviei umas bolotas à Senhora Duquesa, e bem quisera que fossem de ouro. Manda-me alguns fios de pérolas, se nessa ilha se usam. Cá as notícias do lugar são, que a Barrueca casou a filha com um pintor de má morte, que chegou a este povo para pintar o que aparecesse. Mandou-lhe a Câmara pintar as armas de Sua Majestade, nas portas dos Paços do Concelho: pediu dois ducados, deram-lhos adiantados; esteve oito dias a trabalhar, e no fim dos oito dias não tinha pintado coisa nenhuma; e disse que não acertava com tantas bugigangas; teve de restituir o dinheiro e, contudo isso, casou a título de bom oficial de pintor; é verdade que já deixou o pincel, e pegou na rábica do arado, e vai ao campo como um gentil-homem. O filho de Pedro Lobo ordenou-se com graus e coroa, com tenção de se fazer clérigo; soube-o a Minguilla, a neta de Mingo Salvato, e armou-lhe demanda, dizendo que ele lhe deu palavra de casamento; e as más línguas querem dizer que ela anda grávida dele, o que ele nega a pés juntos. Este ano nem há azeitonas, nem se encontra uma gota de vinagre em todo este povo. Por aqui passou uma companhia de soldados; levaram de caminho três raparigas do sítio: não te quero dizer quem são; talvez voltem, e não faltará quem case com elas, sem fazer reparo nas nódoas. A Sanchita faz renda, e ganha todos os dias oito maravedis, livres de despesas, que vai deitando num mealheiro, para ajuda do enxoval; mas agora que tu estás governador, tu lhe darás dote sem ela se matar. O chafariz da praça secou; caiu um raio na picota, e ali caiam todos. Espero resposta desta, e a resolução da minha ida à corte; e com isto Deus te guarde mais anos do que a mim, ou tantos, que eu não quero deixar-te sozinho neste mundo.

TERESA Pança.

As cartas foram motivo de muito aplauso e de muito riso, muito estimadas e muito admiradas; e, para pôr o remate ao dia, chegou o correio, que trazia a que Sancho envava a D. Quixote, que também a leu publicamente, ficando com essa carta muito duvidosa a sandice do governador. Retirou-se a duquesa, para saber do pajem o que lhe sucedera na terra de Sancho, o que ele lhe referiu muito por extenso, sem esquecer uma circunstância só; deu-lhe as bolotas, e mais um queijo, que Teresa mandava por ser tão bom, que ainda se avantajava aos de Troncho; recebeu-o a duquesa com grandíssimo gosto e com ele a deixaremos, para contar o fim que teve o governo do grande Sancho Pança, flor e espelho de todos os governadores insulanos.

 

DO CANSADO TERMO E REMATE QUE TEVE O GOVERNO DE SANCHO

Pensar que as coisas desta vida hão-de sempre durar, é escusado; antes parece que anda tudo à roda. À Primavera segue-se o Verão, ao Verão o Outono, ao Outono o Inverno, e ao Inverno a Primavera, e assim gira e regira o tempo nesta volta contínua. Só a vida humana corre para o seu fim, ligeira, mais do que o tempo, sem esperar o renovar-se, a não ser na outra, que não tem termos que a limitem. Di-lo Cide Hamet, filósofo maometano;

uorque, isto da ligeireza e instabilidade da vida presente, e duração da eterna, que se espera, muitos o entenderam sem luz de fé, só com a luz natural; mas aqui, o nosso autor refere-se à presteza com que se acabou, se consumiu, se desfez e se dissipou, como em sombra e em fumo, o governo de Sancho, o qual, estando na cama, na sétima noite da sua grandeza, mais farto de julgar e de dar sentenças de fazer estatutos e pragmáticas do que de pão e de vinho, quando, apesar da fome lhe começava o sono a cerrar as pálpebras, ouviu tamanho ruído de sinos e de vozes que não parecia senão que a ilha toda ia ao fundo. Sentou-se na cama e esteve escutando atento, para ver se percebia a causa de tamanho alvoroço; porém, não só o não soube, mas, acrescentando-se ao ruído de vozes e de sinos o barulho de infinitas trombetas e tambores, ficou mais confuso e cheio de medo e de espanto, e, saltando ao chão, calçou umas chinelas, por causa da humidade, e, sem vestir nada por cima da camisa, correu à porta do seu aposento, a tempo que vinham por uns corredores mais de vinte pessoas, com archotes acesos nas mãos, e com espadas desembainhadas, gritando todas em grandes brados:

- Às armas, às armas Senhor Governador; às armas, que entraram infinitos inimigos na ilha, e estamos perdidos, se a vossa indústria e o vosso valor nos não socorrem.

Com este ruído, e fúria, e alvoroço, chegaram aonde estava Sancho, atónito e pasmado do que via e ouvia; e disse-lhe uma delas:

- Arme-se depressa Vossa Senhoria, se não se quer perder, e se não quer que esta ilha toda se perca.

- Para que me hei-de armar? - tornou Sancho. - E que sei eu lá de armas nem de socorros? Essas coisas, melhor será deixá-las para meu amo D. Quixote, que, em duas palhetadas, as despacha e as arranja; que eu, pecador de mim, não entendo nada de semelhantes pressas.

- Ah! Senhor Governador - disse outro -, que frouxidão é esta? Arme-se Vossa Mercê, que ali lhe trazemos armas ofensivas e defensivas, e saia a essa praça, e seja nosso guia e nosso capitão, cargo que de direito lhe compete, como nosso governador.

- Armem-me, embora - replicou Sancho.

E logo lhe trouxeram dois escudos, de que vinham providos, e puseram-lhe em cima da camisa, sem lhe deixar vestir coisa alguma, um escudo adiante e outro atrás, e, por uns buracos que traziam feitos, lhe tiraram os braços e o amarraram muito bem com uns cordéis, de modo que ficou emparedado e entalado, direito como um fuso, sem poder dobrar os joelhos nem dar uma passada. Meteram-lhe nas mãos uma lança, a que se arrimou, para se poder suster em pé, e, quando assim o apanharam, disseram-lhe que os guiasse e os animasse a todos; que, sendo ele a sua lanterna, o seu norte e o seu luzeiro, teriam bom fim os seus negócios.

- Como é que eu hei-de caminhar, desventurado de mim, se não posso jogar os engonços dos joelhos, porque mo impedem estas talas que tão cosidas tenho com as minhas carnes? O que hão-de fazer é levar-me em braços, e pôr-me atravessado ou em pé nalgum postigo, que o guardarei com esta lança ou com o meu corpo.

- Ande, Senhor Governador - acudiu outro -, que o medo, e não as talas, o atrapalha; acabe com isso e mexa-se, que é tarde, e os inimigos recrescem, e os brados aumentam, e o perigo carrega.

Com estas persuações e vitupérios quis ver o pobre governador se se movia, e baqueou no chão, dando tamanha pancada, que imaginou que se fizera em pedaços. Ficou parecendo mesmo uma tartaruga metida na concha, ou um barco virado na areia;

e nem o vê-lo caído inspirou a mínima compaixão àquelas gentes zombeteiras; antes, apagando os archotes, tornaram a reforçar os gritos e a reiterar o alarme, com tanta pressa, passando por dma do pobre Sancho, dando-lhe infinitas cutiladas, que, se ele não se recolhe e encolhe, sumindo a cabeça entre os escudos, passava grandes trabalhos o pobre do governador, que, metido naquela estreiteza, suava e tressuava, e de todo o coração se encomendava a Deus, para que o livrasse daquele perigo. Uns tropeçavam nele, outros caíam, e houve tal que esteve em dma das suas costas um bom pedaço; e dali, como de atalaia, governava os exércitos, e, com grandes brados, dizia:

- Aqui, gente nossa! Que, por este lado, carregam mais os inimigos; guarde-se bem aquela poterna, feche-se aquela porta, tranquem-se aquelas escadas, venham alcanzias, pez e resina em caldeiras de azeite a ferver, entrincheirem-se as ruas com colchões!

Enfim, nomeava, com o maior afinco, todos os petrechos e instrumentos de guerra com que se costuma defender uma cidade de um assalto; e o moído Sancho, que o escutava e sofria tudo, dizia entre si:

- Ah! se Deus Nosso Senhor fosse servido que se acabasse já de perder esta ilha, e eu me visse ou morto ou livre de tamanha angústia!

Ouviu o Céu a sua petição, e, quando menos o esperava, sentiu vozes que diziam:

- Vitória! Vitória! Os inimigos vão de vencida. Eia! Senhor Governador, levante-se Vossa Mercê e venha gozar do vencimento, e repartir os despojos que se tomaram aos inimigos, graças ao valor desse invencível braço.

- Levantem-me - disse com voz plangente o dorido Sancho.

Ajudaram-no a levantar-se, e, posto em pé, murmurou:

- O inimigo, que eu venci, podem pregar-mo na testa; não quero repartir despojos de inimigos, mas pedir e suplicar a algum amigo, se é que o tenho, que me dê um gole de vinho, que estou mesmo seco das goelas, e me enxugue este suor, que me desfaço em água.

Limparam-no, trouxeram-lhe o vinho, desataram-lhe os escudos, sentou-se no leito, e desmaiou de temor, de sobressalto e de fadiga. Já os da burla estavam pesarosos de lha terem feito tão pesada; mas, quando Sancho tornou a si, atenuou-se-lhes a pena que lhes causara o seu desmaio. Perguntou ele que horas eram; responderam-lhe que já ia a amanhecer. Calou-se, e, sem dizer mais nada, começou a vestir-se, sepultado em silêncio, e todos olhavam para ele, e esperavam em que viria a parar tanta pressa. Acabou, enfim, de se vestir, e, pouco a pouco, porque estava moído e não podia andar muito rapidamente, foi à cavalariça, seguindo-o todos os que ali se achavam, e, chegando-se ao ruço, abraçou-o, e deu-lhe na testa um ósculo de paz, e, com as lágrimas nos olhos, disse-lhe:

- Vinde cá, meu companheiro e meu amigo, que tendes suportado uma parte dos meus trabalhos e misérias; quando eu andava convosco, e não pensava senão em arremendar os vossos aparelhos, e em sustentar o vosso corpinho, ditosas horas, ditosos dias e ditosos anos eram os meus; mas, desde que vos deixei, e trepei às torres da ambição e da soberba, entraram-me, pela alma dentro, mil misérias, mil trabalhos, e quatro mil desassossegos.

E, enquanto estas razões ia dizendo, ia também albardando o burro, sem que ninguém lhe dissesse coisa alguma. Albardado, pois, o ruço, com grande pena e pesar montou em cima dele, e,

dirigindo-se ao mordomo, ao secretário, ao mestre-sala, e ao Dr. Pedro Recio, e a muitos outros que ali estavam presentes, disse:

- Abri caminho Senhores meus, e deixai-me voltar à minha antiga liberdade; deixai-me ir buscar a vida passada, para que me ressuscite desta morte presente. Eu não nasci para ser governador, nem para defender ilhas nem cidades dos inimigos que as quiserem acometer. Entendo mais de lavrar, de cavar, de podar, e de pôr bacelos nas vinhas, do que de dar leis ou defender províncias nem reinos. Bem está S. Pedro em Roma; quero dizer: bem está cada um, usando do ofício para que foi nascido. Melhor me fica a mim uma fouce na mão, do que um ceptro de governador; antes quero comer à farta feijões, do que estar sujeito à miséria de um médico impertinente, que me mate à fome; e antes quero recostar-me de Verão à sombra de um carvalho, e enroupar-me de Inverno com um capotão, na minha liberdade, do que deitar-me, com a sujeição do governo, entre lençóis de holanda, e vestir-me de mrtas cevolinas. Fiquem Vossas Mercês com Deus, e digam ao duque meu Senhor que nasci nu, nu agora estou, e não perco nem ganho; quero dizer: que sem mealha entrei neste governo, e sem mealha saio, muito ao invés do modo como costumam sair os governadores de outras ilhas; e apartem-se, deixem-me, que me vou curar, pois suponho que tenho arrombadas as costelas todas, graças aos inimigos que esta noite passearam por cima do meu corpo.

- Não há-de ser assim Senhor Governador - disse o Dr. Recio -, que eu darei a Vossa Mercê uma bebida contra quedas e moedeiras, que logo lhe restituirá a sua antiga inteireza e o seu prístino valor; e, quanto a comida, prometo a Vossa Mercê emendar-me, deixando-o comer abundantemente tudo o que quiser.

- Tarde piaste - respondeu Sancho -; era mais fácil fazer-me turco, do que deixar de me ir embora. Isto não são brincadeiras para duas vezes; com este governo me fico, e não torno a aceitar mais nenhum, nem que mo ofereçam numa bandeja, que eu não sou dos que querem voar ao Céu sem asas. Sou da linhagem dos Panças, que sempre foram cabeçudos, e que, em dizendo uma vez nunes, nunes hão-de ser, ainda que sejam pares, apesar de todo o mundo. Fiquem, nesta cavalariça, as asas de formiga, que me levantaram aos ares, para me comerem os pássaros, e tornemos a andar pelo chão com pé rasteiro, que, se o não adornarem sapatos golpeados de cordovão, não lhe hão-

-de faltar alpargatas toscas de corda; lê com lê e cré com cré;

ninguém estenda as pernas para fora do lençol, e deixem-me passar, que se faz tarde.

- Senhor Governador - disse o mordomo -, de muito boa vontade deixaríamos Vossa Mercê ir-se embora, ainda que muito nos pese perdê-lo, que o seu engenho e o seu proceder cristão obrigam a desejá-lo; mas, é sabido que todo o governador deve, antes de se ausentar, dar primeiro residência; dê-a Vossa Mercê dos dias em que governou, e vá na paz de Deus.

- Ninguém ma pode pedir - respondeu Sancho - senão quem tiver essa incumbência da parte do duque meu Senhor;

vou vê-lo agora, e lá lha darei; tanto mais que, saindo eu como saio, não é necessário mais sinal para se saber que governei como um anjinho.

- Por Deus, tem o grande Sancho razão - disse o Dr. Recio - e sou de parecer que não teimemos, porque o duque há-de gostar imenso de o ver.

Todos acordaram nisso, e deixaram-no ir, oferecendo-lhe primeiro companhia, e tudo o que quisesse para regalo da sua pessoa, e comodidade da sua viagem. Sancho disse que no queria senão uma pouca de cevada para o ruço, e meio queijo e meio pão para si; que, visto ser tão curto o caminho, não era mister maior nem menor viático. Abraçaram-no todos, e ele, chorando, a todos abraçou, e deixou-os admirados das suas razões e da sua determinação, tão resoluta e discreta.

 

QUE TRATA DE COISAS TOCANTES A ESTA HISTÓRIA, E A NENHUMA OUTRA

Resolveram o duque e a duquesa que fosse por diante o desafio que D. Quixote fez ao seu vassalo, pela causa já referida; e ainda que o moço estava em Flandres, para onde fugira em seu lugar um lacaio gascão, que se chamava Tosilos, ensinando-lhe primeiro muito bem o que havia de fazer. Daí a dois dias, disse o duque a D. Quixote que dali a quatro viria o seu contrário, e se apresentaria no campo, armado como cavaleiro, e sustentaria que a donzela mentia pela gorja, se afirmava que ele lhe dera palavra de casamento. D. Quixote recebeu muito gosto com tais notícias; prometeu a si mesmo fazer maravilhas no caso, e teve por grande ventura haver-se-lhe oferecido ensejo daqueles senhores poderem ver até aonde se estendia o valor do seu poderoso braço; e, assim, com alvoroço e contentamento, esperava que passassem os quatro dias, que lhe pareciam já quatrocentos séculos. Deixemo-los nós passar, como deixámos passar outras coisas, e vamos acompanhar Sancho, que, entre alegre e triste, vinha caminhando montado no ruço, a procurar seu amo, cuja companhia lhe agradava mais do que ser governador de todas as ilhas do mundo.

Sucedeu, pois, que, não se tendo afastado da ilha do seu governo (que ele nunca averiguou se fora ilha, cidade, vila ou lugar que governara), encontrou seis peregrinos com os seus bordões, destes estrangeiros que pedem esmola cantando, os quais, quando chegaram a ele, formaram-se em alas, e, levantando as vozes todos juntos, principiaram a cantar na sua língua, e Sancho só pôde entender uma palavra, que dizia claramente: «esmola”; por onde percebeu que mendigavam; e, como ele, segundo diz Cide Hamet, era muito caritativo, tirou do seus alforges o meio pão e o meio queijo que trouxera, e deu-lho, dizendo-lhe, por sinais, que não tinha mais nada que lhes dar. Receberam-no com muito boa vontade, e disseram:

«Guelte, guelte.”

- Não entendo o que me pedis boa gente - respondeu Sancho.

Então um deles tirou uma bolsa do seio, e mostrou-a a Sancho, por onde este percebeu que lhe pediam dinheiro; e ele, pondo o polegar na garganta, e estendendo a mão para cima, fez-lhes perceber que não tinha nem mealha e, picando o ruço, seguiu para diante; e, quando passava, um deles mirou-o com muita atenção, e depois deitou-lhe os braços à cintura, dizendo-lhe em voz alta, e muito castelhana:

- Valha-me Deus! Que estou vendo? É possível que eu tenha nos braços o meu caro amigo, o meu bom vizinho Sancho Pança? Isso tenho, sem dúvida, porque, nem durmo, nem estou bêbedo agora.

Admirou-se Sancho de se ouvir chamar pelo seu nome, e, depois de ter estado a olhar para o peregrino muito atento, sem dizer palavra, nunca o pôde conhecer, mas o outro, vendo a sua suspensão, disse-lhe:

- Pois é possível, Sancho Pança, mano, que não conheças o teu vizinho Ricote, o mourisco, tendeiro do teu lugar?

Então Sancho mirou-o com mais atenção, tornou a encará-lo, e afinal conheceu-o perfeitamente; e, sem se apear do jumento, deitou-lhe os braços ao pescoço, e disse-lhe:

- Quem diabo te havia de conhecer, Ricote, com esse fato de mamarracho, que trazes? Como tens tu atrevimento de voltar a Espanha, onde, se te apanham e te conhecem, terás decerto má ventura?

- Se me não descobrires, Sancho - respondeu o peregrino, estou seguro que, com este trajo, não haverá ninguém que me conheça; e apartemo-nos do caminho para aquela alameda que ali aparece, onde querem jantar e descansar os meus companheiros, e jantarás com eles, que são gente muito aprazível; ali terei lugar de te contar o que me sucedeu depois de sair da nossa terra, para obedecer ao bando de Sua Majestade, que com tanto rigor ameaçava os desgraçados da minha nação, como tu soubeste.

Fez Sancho o que lhe disse Ricote, e, falando este com os outros peregrinos, apartaram-se para a alameda, muito desviada da estrada real. Deitaram para o lado os bordões, despiram as esclavinas, e Sancho viu que todos eram moços e mui gentis-homens, excepto Ricote, já entrado em anos. Todos traziam alforges bem fornecidos, pelo menos de coisas que chamam a sede a duas léguas de distância. Estenderam-se no chão, e, fazendo toalha da relva, puseram-lhe em cima pão, sal, facas, nozes, fatias de queijo, e ossos de presunto, que, se não se deixavam trincar, não se eximiam a ser chupados. Puseram também um manjar negro, que dizem que se chama caviar, e é feito de ovas de peixe, grande despertador da sede; não faltaram azeitonas, ainda que secas e sem tempero algum, mas saborosas e bem conservadas; porém, o que mais campeou naquele banquete foram seis garrafas de vinho, que tirou cada um a sua do seu alforge; até o bom Ricote, que se transformara de mourisco em alemão ou tudesco, tirou também a sua, que, em grandeza, podia competir com as outras cinco. Principiaram a comer com muito gosto, e muito devagar, saboreando cada bocado que tiravam com a ponta da faca, e logo, todos à uma, levantaram os braços e as garrafas, e, pondo à boca os gargalos, com os olhos cravados no céu, não parecia senão que era para lá que apontavam; e, deste modo, meneando as cabeças para um lado e para o outro, sinais que mostravam bem o gosto que lhes dava o beber, estiveram um bom pedaço, transvazando para os seus estômagos as entranhas das vasilhas. Para tudo olhava Sancho, e nenhuma coisa o molestava; antes, para cumprir o rifão que ele muito bem sabia, de que, quando fores a Roma, faz o que vires fazer, pediu a Ricote a sua garrafa, e fez pontaria como os outros, e não com menos gosto. Quatro vezes empinaram as garrafas, mas, à quinta vez, não puderam, porque estavam mais secas e mais enxutas que um esparto, o que atenuou a alegria que até ali tinham mostrado. De quando em quando, punha algum deles a sua mão direita na mão de Sancho, e dizia: Espanhol e Tudesqui tuto uno, bom compano; e Sancho respondia: Bom compano, jura Di; e dava uma risada que durava uma hora, sem se lembrar de nada do que lhe sucedera no seu governo, porque, sobre o tempo em que se come e em que se bebe, pouca jurisdição têm os cuidados. Finalmente, o acabar-se-lhes o vinho foi princípio de um sono, que a todos acometeu, ficando adormecidos em cima da mesa e da toalha: só Ricote e Sancho permaneceram alerta, porque tinham comido mais e bebido menos; e, chamando Ricote a Sancho de parte, sentaram-se ao pé de uma faia, deixando os peregrinos sepultados em doce sono; e Ricote, sem tropeçar nada na sua língua mourisca, em puro castelhano lhe contou o seguinte:

- Bem sabes, ó Sancho Pança vizinho e amigo meu, como o pregão e bando que Sua Majestade mandou publicar contra os da minha nação pôs terror e espanto em todos nós; pelo menos a mim, tal susto me infundiu, que me parece que, ainda antes do prazo que se nos concedia para nos ausentarmos de Espanha, já eu tinha executado o rigor da minha pena na minha pessoa e na dos meus filhos. Tratei, pois, e, no meu entender, como prudente (da mesma forma que uma pessoa que sabe que daí a tempos lhe hão-de tirar a casa em que vive, e arranja outra para onde se mude), tratei, digo, de sair eu sozinho sem a minha família, do meu povo, e de ir procurar sítio para onde a levasse comodamente, e sem a pressa com que os outros saíram, porque bem vi, e viram todos os nossos anciãos, que aqueles preges não eram só ameaças, como alguns diziam, mas leis verdadeiras, que tinham de se pôr em execução a seu tempo; e forçaram-me a acreditar nesta verdade os ruins e disparatados intentos dos nossos, tais que me parece que foi inspiração divina que moveu Sua Majestade a pôr em prática tão galharda resolução, não porque todos fôssemos culpados, que alguns havia cristãos firmes e verdadeiros; mas eram tão poucos, que se não podiam opor aos que o não eram, e seria imprudente aquecer a serpe no seio, tendo os inimigos dentro de casa. Finalmente, com justa razão fomos castigados com a pena de desterro, branda e suave, no entender de alguns, mas, no nosso, a mais terrível que se nos podia dar. Onde quer que estamos, choramos pela Espanha, porque, enfim, aqui nascemos, e é a nossa pátria natural; em parte nenhuma achamos o acolhimento que a nossa desventura deseja; e na Barbaria, e em todas as partes da África, onde esperávamos ser recebidos, acolhidos e regalados, é onde mais nos ofendem e maltratam. Não conhecemos o bem, enquanto o não perdemos; e é tamanho o desejo que alimentam, quase todos, de voltar a Espanha, que a maor parte daqueles, e são muitos, que sabem a língua como eu a sei, voltam, e deixam suas mulheres e seus filhos desamparados, tanto é o amor que lhe têm; e agora conheço e experimento o que costuma dizer-se: que é doce o amor da Pátria. Saí, como digo, da nossa terra, entrei em França, onde nos faziam bom acolhimento, e quis ver tudo. Passei a Itália, cheguei à Alemanha, e ali me pareceu que se podia viver com mais liberdade, porque os seus habitantes não olham a muitas delicadezas; cada um vive como quer, porque a maior parte deles tem liberdade de consciência. Arranjei casa num lugar junto de Ausburgo, liguei-me a estes peregrinos, que têm por costume vir todos os anos visitar os santuários de Espanha, que consideram as suas Índias, de granjeio certíssimo e conhecido lucro. Percorrem-na quase toda, e não há povo de onde não saiam comidos e bebidos, como se costuma dizer, e com um real, pelo menos, em dinheiro; e, ao cabo da sua viagem, vão-se embora, com mais de cem escudos de sobras, que, trocados em ouro, ou metidos nos bordões, ou nos remendos das esclavinas, ou com a indústria que podem, tiram do reino e passam para as suas terras, apesar das guardas dos portos, e postos em que se registam. Agora é meu intento, Sancho, levar o tesouro que enterrei, o que poderei fazer sem perigo, por estar fora do povoado, e escrever de Valencia a minha filha e a minha mulher, que sei que estão em Argel, e ver como as hei-de levar a algum porto de França, e dali à Alemanha, onde esperaremos o que Deus de nós outros quiser fazer; que enfim, Sancho, eu sei com certeza que Ana Ricote minha filha, e Francisca Ricote minha mulher, são católicas cristãs; e, ainda que eu não o serei tanto, sempre sou mais cristão que mouro, e rogo todos os dias a Deus que me abra os olhos do entendimento, e me faça conhecer como O devo servir; e o que me admira é não saber por que foram minha mulher e minha filha para a Barbaria, antes do que para França, onde podiam viver como catlicas.

E Sancho respondeu:

- Olha, Ricote: isso não esteve, decerto, na sua mão; porque as levou João Tiopeio, irmão de tua mulher; e, como ele há-de ser fino mouro, foi logo ao mais bem-parado; e outra coisa te sei dizer: é que me parece que vais debalde procurar o que enterraste, porque tivemos notícias de que tiraram a teu cunhado e a tua mulher muitas pérolas e muito dinheiro em ouro, que levavam sem o ter registado.

- Pode isso muito bem ser - replicou Ricote - mas sei, Sancho, que não tocaram no que eu tinha escondido, porque não lhes disse onde estava, receoso de algum desmando; e, assim, Sancho, se queres vir comigo, e ajudar-me a desenterrá-lo e a encobri-lo, dou-te duzentos escudos, com que poderás remediar as tuas necessidades, que bem sei que não tens poucas.

- Não sou nada cobiçoso - respondeu Sancho -; se o fosse, não largaria esta manhã das mãos um ofício, com o qual podia ter feito de ouro as paredes da minha casa, e comer antes de seis meses, em pratos de prata; e por isso, e por me parecer que faria traição ao meu rei, favorecendo os seus inimigos, não iria contigo nem que me desses aqui de contado, quatrocentos escudos, em vez de me prometeres duzentos.

- E que ofício foi esse que deixaste, Sancho? - perguntou Rícote.

- Deixei de ser governador de uma ilha - tornou Sancho

-, mas de uma ilha, entendes? - como não há outra.

- E onde fica essa ilha?

- Onde? A duas léguas daqui, e chama-se a ilha Barataria.

- Não digas tolices, Sancho - tornou Ricote -; as ilhas estão dentro do mar, e não há ilhas na terra firme.

- Como não há? - replicou Sancho. - Digo-te, Ricote amigo, que esta manhã de lá parti, e ontem estive eu nela governando à minha vontade, como um frecheiro; mas, contudo isso, deixei-a, por me parecer que era ofício perigoso este dos governadores.

- E que ganhaste tu no governo? - perguntou Ricote.

- Ganhei - respondeu Sancho - conhecer que não srvo para governar, a não ser um rebanho de gado, e que as riquezas que se ganham nos tais governos alcançam-se à custa de perder o descanso e o sono, e até o sustento, porque, nas ilhas, os governadores devem comer pouco, principalmente se têm médico que vigie pela sua saúde.

- Não te entendo, Sancho - observou Ricote -; e parece-me que tudo quanto dizes é um disparate; quem te havia de dar a t ilha para governares? Pois faltavam homens mais hábeis do que tu, para governadores? Cala-te, Sancho, e volta a ti, e vê se queres vir comigo ajudar-me a desenterrar o tesouro escondido, que o dinheiro é tanto, que bem se pode chamar tesouro, e eu te darei meios para viver.

- Já te disse que não quero Ricote - respondeu Sancho -; contenta-te em saberes que não sou capaz de te descobrir; segue o teu caminho em boa hora, e deixa-me seguir o meu, que bem sei que o que bem se ganhou, perde-se facilmente; mas, o que mal se ganhou, perde-se ele e perde-se a gente.

- Não quero teimar, Sancho - tornou Ricote -; mas diz-me: estavas na nossa terra, quando de lá partiram minha mulher, minha filha e meu cunhado?

- Estava, sim - respondeu Sancho -, e o que te sei dizer é que a tua filha ia tão formosa, que saíram a vê-la quantas pessoas estavam na povoação; e todos diziam que era a mais bela criatura do mundo. Ia chorando, e abraçava todas as suas amigas e conhecidas, e todos quantos se chegavam para a ver, e a todos pedia que a encomendassem a Deus, e a Nossa Senhora Sua mãe; e isto com tanto sentimento, que me fez chorar a mim, que não costumo ser muito chorão; e à fé que muitos tiveram desejo de a esconder, e de sair a raptá-la no caminho; quem principalmente se mostrou mais apaixonado foi D. Pedro Gregório, aquele moço e rico morgado que tu conheces, que dizem que lhe queria muito; e, depois que ela partiu, nunca mais apareceu no nosso lugar, e todos pensamos que foi atrás dela para a roubar; mas até agora nada se soube.

- Sempre tive desconfianças - disse Ricote - de que esse sujeito namorava a minha filha; mas, fiado no valor da Ricota, nem me afligiu o saber que ele lhe queria bem; pois terás ouvido dizer, Sancho, que as mouriscas poucas vezes ou nenhumas se mesclaram por amores com cristãos-velhos; e minha filha, que mais pensava em ser cristã que em ser enamorada, pouco se importaria com as solicitudes do Senhor Morgado.

- Deus queira! - replicou Sancho. - Que a ambos lhes ficaria mal; e deixa-me ir embora daqui, Ricote amigo, que ainda quero chegar esta noite ao sítio onde está meu amo D. Quixote.

- Vai com Deus, Sancho mano, que também os meus companheiros já se mexem, e são horas de prosseguirmos o nosso caminho.

Abraçaram-se ambos, Sancho montou no ruço, Ricote arrimou-se ao bordão, e apartaram-se.

 

DE COISAS SUCEDIDAS A SANCHO, E OUTRAS QUE NÃO HÁ MAIS QUE VER

A demora, que Sancho teve no caminho, não lhe deu lugar a que nesse dia chegasse ao castelo do duque; e, quando estava a meia légua de distância, apanhou-o a noite, um pouco cerrada e escura; mas, como era de Verão, não se afligiu, e desviou-

-se, com tenção de esperar que rompesse a manhã; e quis a sua pouca ventura que, andando à busca de sítio onde melhor se acomodasse, caíram, ele e o ruço, numa funda e escuríssima cova, que estava entre uns edifícios muito antigos, e, quando caiu, encomendou-se a Deus de todo o coração, pensando que iria parar às profundas dos abismos; não foi assim, porque, a pouco mais de quatro toesas, deu fundo o ruço, e Sancho ficou montado nele, sem lesão nem dano algum. Apalpou o corpo todo, e respirou com força, para ver se estava são ou escalavrado nalgum sítio; e, sentindo-se bom, inteiro e católico de saúde, não se fartava de dar graças a Deus Nosso Senhor pela mercê que lhe fizera, porque, primeiro, supôs que ficara em mil pedaços. Apalpou também, com as mãos, as paredes da cova para ver se seria possível sair dela sem ajuda de ninguém, mas achou-as todas lisas e sem relevo algum, e com isso muito se afligiu, principalmente ouvindo o ruço queixar-se tema e dolorosamente; e não se queixava o burro por vício, que, na verdade, não estava muito bem-parado.

- Ai! - disse então Sancho Pança. - Que sucessos não pensados costumam acontecer, a cada passo, aos que vivem neste miserável mundo! Quem diria que aquele que ontem se viu entronizado governador de uma ilha, mandando os seus servos e os seus vassalos, hoje se havia de ver sepultado numa cova, sem haver quem o remedeie, nem criado, nem vassalo, que acuda em seu socorro! Aqui teremos de morrer à fome eu e o meu jumento, se não morrermos antes, ele de moído e quebrantado, e eu de pesaroso; pelo menos, não serei tão feliz como foi o meu amo D. Quixote de La Mancha, quando desceu à caverna daquele encantado Montesinos, onde achou quem o regalasse melhor do que em sua casa, que não parece senão que esteve lá de cama e mesa. Ali viu ele visões formosas e aprazíveis, e aqui verei creio eu sapos e cobras. Desditoso de mim: em que vieram a parar as minhas loucuras e fantasias! Daqui tirarão os meus ossos, quando o Céu for servido que me descubram, descarnados brancos e empedernidos, e com eles os do meu bom ruço, por onde talvez conhecerão quem nós somos, pelo menos os que tiverem notícia de que nunca Sancho Pança se apartou do seu jumento, nem o ruço de Sancho Pança. Outra vez digo: míseros de nós outros! que não quis a nossa triste sorte que morrêssemos na nossa pátria e entre os nossos onde ainda que não encontrasse remédio a nossa desgraça, não faltaria quem dela se doesse, e, na hora última do nosso pensamento, nos cerrasse os olhos! O companheiro e amigo meu, que mau pago te dei dos teus bons serviços! Perdoa-me, e pede à fortuna, do melhor modo que souberes, que nos tire deste mísero trabalho, em que ambos estamos metidos, que eu prometo pôr-te um laurel na cabeça, que não pareças senão um poeta laureado, e dar-te as rações dobradas.

Deste modo se lamentava Sancho Pança, e o seu jumento ouvia-o, sem lhe responder palavra - tais eram o seu aperto e a sua angústia. Finalmente, tendo passado aquela noite toda em míseras queixas e lamentações, rompeu o dia, e, com a sua claridade e resplendor, viu Sancho que era completamente impossível sair daquele pouso sem o ajudarem, e principiou a lamentar-se e a dar brados, para ver se alguém o ouvia; mas, tudo era clamar no deserto, porque, em todos aqueles contornos, não havia pessoa que o pudesse ouvir; e então acabou de se dar por morto. Estava o ruço de focinho levantado e Sancho Pança conseguiu pô-lo em pé; mas ele mal se podia suster; e Sancho tirando dos alforges, que também tinham caído um pedaço de pão, deu-o ao seu jumento e parece que lhe não soube mal; e disse-lhe Sancho, como se ele o entendesse:

- Lágrimas com pão, passageiras são.

Nisto, descobriu a um lado da cova uma abertura, por onde cabia uma pessoa, se se encolhesse muito. Correu para lá Sancho Pança, e, agachando-se, entrou, e viu que por dentro era espaçosa e larga, e pôde-a ver bem, porque, pelo sítio que se podia chamar tecto, entrava um raio de sol, que a descobria toda. Viu também que se dilatava e alargava por outra concavidade espaçosa, e então voltou ao sítio de onde estava o jumento, e, com uma pedra, principiou a desmoronar a terra da abertura, de modo que, em pouco tempo, abriu espaço por onde o jumento pôde entrar com toda a facilidade, e, agarrando-lhe pelo cabresto, principiou a caminhar por aquela gruta adiante, para ver se achava, por outro lado, alguma saída; e umas vezes ia às escuras, outras vezes com luz, mas nunca sem medo.

- Valha-me Deus Todo-Poderoso! - dizia entre si. - Isto que para mim é desventura, melhor fora aventura para meu amo D. Quixote. Ele sim, que tomaria estas profundidades e masmorras por jardins vistosos e palácios de Galateia, e esperaria sair desta escuridão e estreiteza para algum florido prado; mas eu, sem ventura, falto de conselho e menoscavado de ânimo, a cada passo imagino que, debaixo dos pés, se me há-de abrir de improviso outra cova mais profunda que a primeira, que acabe de me tragar, porque um mal nunca vem só.

Deste modo, e com estes pensamentos, lhe pareceu que teria caminhado pouco mais de meia légua, ao cabo da qual descobriu uma confusa claridade, que supôs ser já a do dia, e que entrava por algum lado, o que dava indício de ter saída e fim aquele caminho, que se diria ser o da outra vida.

Aqui o deixa Cide Hamet Benengeli, e volta a tratar de D. Quixote, que, alvoroçado e contente, esperava que chegasse o dia da batalha que havia de travar com o sedutor da filha da Dona Rodriguez, a quem tencionava desfazer o agravo que maldosamente lhe tinham feito. Sucedeu, pois, que, saindo uma manhã a ensaiar-se no que havia de fazer nesse lance, dando um repelão ou arremetida a Rocinante, chegou este a pôr os pés tanto à beira de uma cova, que, se D. Quixote não puxasse fortemente as rédeas, ser-lhe-ia impossível não cair para dentro. Enfim, susteve-se, e não caiu; e, chegando-se um pouco mais ao pé, sem se apear, mirou aquela profundeza, e, quando a estava mirando, ouviu grandes brados lá dentro, e, escutando atentamente, pôde perceber as seguintes palavras:

- Olá de riba, há aí algum cristão que me escuta? Ou algum cavaleiro caritativo que se compadeça de um pecador enterrado em vida? De um desditoso governador desgovernado?

Pareceu a D. Quixote que aquela voz era a de Sancho Pança, e ficou assombrado e suspenso; e, levantando a voz o mais que pôde, disse:

- Quem está lá em baixo? Quem se queixa?

- Quem há-de estar aqui, e quem se há-de queixar - responderam - senão o asno de Sancho Pança, governador, por seus pecados e por sua má fortuna, da ilha Barataria; escudeiro, que foi, do famoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha?

Ouvindo isto, duplicou a admiração de D. Quixote, e acrescentou-se-lhe o pasmo, acudindo-lhe ao pensamento que Sancho Pança devia de ter morrido, e que era a sua alma que estava ali penando; e, levado por esta imaginação, disse:

- Esconjuro-te por tudo por quanto posso esconjurar-te como cristão católico, para que me digas quem és; e, se fores alma penada, diz-me o que queres que por ti faça, que a minha profissão é favorecer e socorrer os necessitados deste mundo, e também os do outro que não podem ajudar-se a si próprios.

- De maneira - responderam - que Vossa Mercê, que me fala, deve de ser meu amo D. Quixote de La Mancha, e a mesma voz o está dizendo.

- D. Quixote sou, que tenho por profissão socorrer e ajudar os necessitados vivos e mortos: por isso, diz-me quem és, que me tens atónito; porque, se és o meu escudeiro Sancho Pança, e morreste, logo que te não levassem os Diabos, e estejas, por misericórdia de Deus, no Purgatório, sufrágios bastantes tem a nossa Madre Igreja Católica Romana, para te tirar das penas que padeces, e eu, pela minha parte, com ela o solicitarei, até onde chegar a minha fazenda; por isso, acaba de te declarar, e diz quem és.

- Voto a tal - responderam - e juro, pelo nascimento de quem Vossa Mercê quiser, Sr. D. Quixote de La Mancha, que sou o seu escudeiro Sancho Pança, e que nunca morri nos dias da minha vida; mas, tendo deixado o meu governo, por coisas e losas, que só com mais vagar se podem dizer, caí esta noite

na cova onde estou jazendo, e o ruço comigo, que me não deixará mentir, porque, por mais sinal, está aqui ao pé de mim.

E, o que é melhor, é que parece que o jumento entendeu o que Sancho disse, porque logo principiou a zurrar com tanta força, que toda a cova retumbava.

- Famosa testemunha - disse D. Quixote -; conheço o zurrar, como se eu o tivesse parido, e ouço a tua voz, meu Sancho; espera-me, que eu vou ao castelo do duque, que é daqui muito perto, e trago quem te tire dessa cova, onde, sem dúvida, os teus pecados te meteram.

- Vá Vossa Mercê - disse Sancho - e volte depressa, por amor de Deus, que já não posso suportar o ver-me aqui enterrado em vida, e estou morrendo de medo.

Deixou-o D. Quixote, e foi ao castelo contar aos duques o que sucedera a Sancho Pança, de que não pouco se maravilharam, ainda que bem perceberam que devia ter caído pela outra abertura da gruta, que ali estava feita desde tempos imemoriais; mas, não podiam imaginar como ele deixara o governo, sem serem avisados da sua vinda. inalmente, levaram cordas e maromas, e, com muita gente e muito trabalho, tiraram o ruço e Sancho Pança daquelas trevas, para a luz do Sol.

Viu-o um estudante, e disse:

- Deste modo haviam de sair, dos seus governos, todos os governadores, como sai este pecador das profundas dos abismos, morto de fome, descorado, e sem mealha, segundo me parece.

Ouviu-o Sancho, e disse:

- Há oito dias ou dez, irmão murmurador, que entrei a governar a ilha que me deram, onde não tive uma só hora em que estivesse farto de pão; durante esse tempo, médicos me perseguiram, e inimigos me amolgaram os ossos; não cobrei nem mealha; e, sendo isto assim, parece-me que não merecia sair deste modo; mas o homem põe e Deus dispõe, e o que Deus faz é sempre pelo melhor; e quando venta molha a vela; e ninguém diga: desta água não beberei; e muitos vão buscar lã e vêm tosquiados; e eu cá me entendo, e basta; e não digo mais, ainda que o poderia.

- Não te zangues, Sancho, nem te aflijas com o que ouvires, que seria um não acabar nunca; vem tu com a consciência segura, e deixa falar o mundo; querer amarrar as línguas aos maldizentes, é o mesmo que querer pôr portas ao campo. Se o governador sai rico do seu governo, dizem que foi ladrão, e, se sai pobre, dizem que foi tolo.

- Com certeza - respondeu Sancho - que, desta vez hão-de-me ter antes por tolo, que por ladrão.

Nestas práticas chegaram, rodeados de rapazes e de muita outra gente, ao castelo, onde já estavam nuns corredores o duque e a duquesa, esperando D. Quixote e Sancho, e este não quis subir a ir ver o duque, sem meter primeiro o ruço na cavalariça, alegando que ele passara muito má noite na sua pousada; e depois subiu, e, ajoelhando diante dos seus senhores, disse:

- Senhores: porque assim o quis a Vossa Grandeza, sem nenhum merecimento fui governar a vossa ilha Barataria, onde entrei nu, e nu de lá saio, e não perco nem ganho. Se governei bem ou mal, testemunhas tive de tudo que dirão o que quiserem. Aclarei dúvidas, sentenciei pleitos, e morri sempre de fome por assim o ter querido o Dr. Pedro Recio, natural de Tirteafuera, médico insulano e governadoresco. Acometeram-nos inimigos de noite, e, tendo-nos posto em grande aperto, afirmam os da ilha que ficaram livres e vitoriosos, graças ao valor do meu braço: que tanta saúde lhes dê Deus, como a verdade que eles dizem. Enfim, neste tempo todo, pude tentear os encargos e as obrigações que o governar traz consigo, e entendi que os meus ombros não podiam com a carga, nem eram peso para as minhas costelas, nem frechas para a minha aljava; e, assim, antes que o governo desse em terra comigo, dei eu com o governo em terra, e ontem pela manhã deixei a ilha como a encontrei, com as mesmas ruas, casas e telhados que tinha à minha chegada. Não pedi dinheiro emprestado a ninguém, nem me meti em negócios rendosos; e, ainda que tencionava fazer algumas ordenações proveitosas não fiz nenhuma receoso de que se não guardassem, que, para isso, tanto monta fazê-las, como não as fazer. Saí, como digo, da ilha, sem mais acompanhamento que o do meu ruço: caí numa cova; vim por ela adiante, até que esta manhã, com a luz do Sol, vi a saída, mas tão difícil que, a não me deparar o céu o Sr. D. Quixote, ali ficaria até ao fim do mundo. Assim, portanto, duque e duquesa, meus Senhores, aqui está o vosso governador Sancho Pança, que, nestes dez dias de governo, só lucrou o ficar sabendo que não serve de nada ser governador de uma ilha, nem governador do mundo inteiro; e com isto os não enfado mais, e, beijando os pés a Vossas Mercês, dou um pulo do governo abaixo, e passo para o serviço de meu amo D. Quixote, que, enfim, com ele, ainda que coma o pão com sobressalto, ao menos sempre me farto; e eu cá, em me fartando, pouco me importo que seja com feijes ou que seja com perdizes.

Com isto deu fim Sancho Pança à sua larga prática, temendo sempre D. Quixote que ele dissesse milhares de disparates; e, quando o viu acabar com tão poucos, deu do fundo do coração graças aos Céus; e o duque abraçou Sancho, e dsse-lhe que lhe pesava no íntimo da alma ter ele deixado o governo tão depressa; mas que veria se lhe podia dar, no seu estado, outro ofício de menos encargo e de mais proveito. Abraçou-o a duquesa também, e deu ordem que o regalassem, porque dava sinais de vir muito moído e em muito maus lençóis.

 

DA DESCOMUNAL E NUNCA VISTA BATALHA QUE HOUVE ENTRE D. QUIXOTE DE LA MANCHA E O LACAIO TOSILOS, EM DEFESA DA FILHA DA DONA DA DUQUESA DONA RODRIGUEZ

Não ficaram arrependidos os duques da burla feita a Sancho Pança, com o governo que lhe deram; tanto mais que, naquele mesmo dia, chegou o mordomo e lhes contou, ponto por ponto, quase todas as palavras e acções que Sancho dissera e zera, e nalmente encareceu-lhes o assalto da ilha, e o medo de Sancho, e a sua saída, com o que muito se divertiram. Depois disto, conta a história que chegou o dia da batalha aprazada; e, tendo o duque uma e muitas vezes ensinado ao seu lacaio

Tosilos como se havia de haver com D. Quixote para o vencer sem o ferir nem o matar, ordenou que se tirassem os ferros das lanças, dizendo a D. Quixote que não permitiam os sentimentos cristãos, de que se prezava, que aquela batalha fosse com tanto risco e perigo das vidas, e que se contentasse com o dar-lhe ele campo franco em suas terras, apesar de ir contra o decreto do Santo Concílio, que proíbe tais desafios, e que não quisesse levar com todo o rigor aquele transe tão forte. D. Quixote disse que dispusesse Sua Excelência esse negócio como mais fosse servido, que ele lhe obedeceria em tudo. Chegado, pois, o temeroso dia, e tendo o duque ordenado que diante do terreiro do castelo se armasse um espaçoso palanque, onde estivessem os juizes do campo e as donas mãe e filha, queixosas, acudiu de todos os lugares e aldeias circunvizinhas infinita gente a ver a novidade daquela batalha, que nunca tinham visto nem ouvido falar de outra assim naquela terra, nem os que viviam, nem os que já tinham morrido. O primeiro que entrou na estacada foi o mestre-de-cerimónias, que examinou o campo e passeou por ele todo, para que não houvesse engano algum, nem coisa encoberta em que se tropeçasse e caísse; logo entraram as donas, e sentaram-se nos seus lugares, cobertas com os mantos até aos olhos, ou antes até aos peitos, com mostras de não pequeno sentimento, estando já D. Quixote presente na estacada. Daí a pouco, acompanhado por muitas trombetas, apareceu por um lado da praça, montado num poderoso cavalo, o lacaio Tosilos, alto e forte, de viseira calada, e todo revestido de uma rija e luzente armadura. O cavalo mostrava ser frisão, era grande e baio, que, a cada patada, fazia tremer a terra. O duque, seu amo, ordenara ao valoroso cavaleiro que, para não matar D. Quixote, evitasse o primeiro encontro, porque era certa a morte do pobre fidalgo, se ele o topasse em cheio. Percorreu a arena, e, ao chegar ao sítio onde estavam as donas, pôs-se a mirar um pedaço a que o pedia por esposo; o mestre do campo chamou D. Quixote, e, junto com Tosilos, falou às donas, perguntando-lhes se consentiarrJque pugnasse pelo seu direito D. Quixote de La Mancha. Disseram-lhe que sim, e que tudo quanto fizesse, naquele caso, o davam por bem feito e por firme e valioso. Já a este tempo estavam o duque e a duquesa sentados numa galeria que deitava para a estacada, e onde se apinhava imensa gente, que vinha ver o rigoroso transe nunca visto. Foi condição do combate que, se D. Quixote vencesse, o seu contrário havia de casar com a filha de Dona Rodriguez, e, se fosse vencido, ficava livre o seu contendor da palavra que se lhe pedia, sem dar mais satisfação alguma. Repartiu-lhes o sol o mestre-de-cerimónias, e pôs cada um dos dois no posto em que havia de estar. Soaram os tambores, encheu os ares o clangor das trombetas, tremia a terra debaixo dos pés; estavam suspensos os corações da turba espectadora, receando uns e esperando outros o bom ou mau sucesso daquele caso. Finalmente, D. Quixote, encomendando-se de todo o coração a Deus Nosso Senhor, e à sua dama Dulcineia del Toboso, estava aguardando que se lhe desse o sinal de arremetida, enquanto o nosso lacaio pensava no seguinte: Parece que, quando esteve contemplando a sua inimiga, achou que era ela a mais formosa mulher que vira em toda a sua vida; e o cego deus travesso, que por essas ruas chamam habitualmente amor, não quis perder a ocasião que se lhe ofereceu de triunfar de uma alma lacaiesca, e de a pôr na lista dos seus trofeus; e, assim, chegando-se a ele sem que ninguém o visse, despejou no pobre lacaio, pelo lado esquerdo, uma seta de duas varas, e traspassou-lhe o coração de parte a parte; e pôde-o fazer a são e salvo, porque o amor é invisível; entra e sai por onde quer, sem que ninguém lhe peça conta das suas acções. Digo, pois, que, quando deram o sinal da arremetida, estava o nosso lacaio transportado, pensando na formosura daquela que já fizera senhora da sua liberdade; e, assim, não atendeu ao som da trombeta, como fez D. Quixote, que, apenas o ouviu, arremeteu logo, correndo com toda a velocidade que Rocinante podia dar; e, vendo-o partir o seu escudeiro Sancho, disse com grandes brados:

- Deus te guie, flor e nata dos cavaleiros andantes! Deus te dê a vitória, pois levas a razão pela tua parte!

Mas Tosilos, apesar de ver vir contra si D. Quixote não se arredou um passo do seu posto; antes, com grandes brados, chamou o mestre do campo; e, vindo este ver o que ele queria, disse-lhe:

- Senhor, esta batalha não é para eu casar ou não casar com aquela senhora?

- E, sim - responderam-lhe.

- Pois eu - tornou o lacaio - tenho medo da minha consciência, e pesava-me muito se fosse por diante; e, assim, digo que me dou por vencido, e que quero casar, já, já, com a queixosa.

Pasmou o mestre do campo com o arrazoado de Tosilos, e, como era um dos que estavam no segredo daquela máquina, não soube o que havia de responder. Parou D. Quixote, vendo que o seu inimigo o não acometia. O duque não percebia por que é que se interrompera a batalha; mas o mestre do campo foi-lhe declarar o que Tosilos queria, com o que ficou suspenso e extremamente colérico. Enquanto isto se passava, Tosilos chegou ao sítio onde estava Dona Rodriguez, e disse em grandes brados:

- Eu, Senhora, desejo casar com vossa filha, e não quero alcançar, por pleitos e contendas, o que posso alcançar em boa paz e sem perigo de vida.

Ouviu isto o valoroso D. Quixote, e disse:

- Pois, se assim é, fico livre e solto da minha promessa;

casem-se em boa hora, e, visto que Deus lha deu, S. Pedro a abençoe.

O duque descera ao terreiro do castelo, e, chegando-se a Tosilos, disse-lhe:

- É verdade, cavaleiro, que vos dais por vencido, e que, instigado pela vossa medrosa consciência, quereis casar com esta menina?

- É sim, senhor - respondeu Tosilos.

- E faz muito bem - acudiu Sancho -, o que hás-de dar ao rato, dá-o ao gato.

Ia, entretanto, Tosilos deslaçando a celada, e pedia que o ajudassem depressa, porque já lhe faltava a respiração, e não se podia ver encerrado tanto tempo na estreiteza daquele aposento.

Tiraram-lha logo, e ficou descoberto e patente o seu rosto de lacaio. Vendo isto Dona Rodriguez e sua filha deram grandes brados dizendo:

- É engano, é engano: puseram Tosilos, lacaio do duque, meu Senhor, no lugar do meu verdadeiro esposo; justiça de Deus e de el-rei contra tal malícia, para não dizer velhacaria!

- Não vos aflijais Senhoras - acudiu D. Quixote -, que nem é malícia, nem velhacaria; e, se o é, não foi culpa do duque, mas sim dos maus nigromantes que me perseguem, os quais, invejosos de eu alcançar a glória deste vencimento, converteram o rosto de vosso esposo no do homem que dizeis ser lacaio do duque; tomai o meu conselho, e, apesar da malícia dos meus inimigos, casai-vos, pois podeis ter a certeza que é o mesmo que desejais por esposo.

O duque, ao ouvir isto, esteve quase a desfazer toda a sua cólera em riso, e disse:

- São tão extraordinárias as coisas que sucedem ao Sr. D. Quixote, que estou em acreditar que este meu lacaio não o é; mas usemos do seguinte ardil e manha: dilatemos o casamento quinze dias, se quiserem, e encerremos esta personagem que nos tem duvidosos, e pode ser que durante esses quinze dias recupere a sua antiga cara, que não há-de durar tanto tempo o rancor que os nigromantes têm ao Sr. D. Quixote, principalmente lucrando tão pouco em todos estes embelecos e transformações.

- Ó Senhor - observou Sancho -, já é uso e costume destes malandrins mudar as coisas que tocam a meu amo. Um cavaleiro, a quem venceu nestes dias passados, chamado o Cavaleiro dos Espelhos, transformaram-no eles no bacharel Sansão Carrasco, natural do nosso lugar, e grande amigo nosso, e à minha Sra. Dulcineia del Toboso mudaram-na numa rústica lavradeira; e por isso, imagino que este lacaio há-de morrer e viver lacaio todos os dias da sua vida.

- Seja quem for o homem que me pede para esposa - disse a filha de Dona Rodriguez -, agradeço-lho, que antes quero ser mulher legítima de um lacaio, do que amiga escarnecida de um cavaleiro, ainda que o não é o que me ludibriou.

Em conclusão, todos estes contos e sucessos terminaram em se decidir que Tosilos se recolhesse, até ver em que parava a sua transformação. Aclamaram os circunstantes a vitória de D. Quixote, e a maior parte dos espectadores ficaram tristes e melancólicos por não terem visto despedaçar-se os tão esperados combatentes, como ficam tristes as crianças quando não vai a enforcar o condenado que esperam, porque lhe perdoou ou a parte ou a justiça. Foi-se embora a gente; voltaram o duque e D. Quixote ao castelo; fecharam Tosilos, e ficaram Dona Rodriguez e sua filha contentíssimas, por ver que, de um modo ou de outro aquele caso havia de vir a parar em matrimónio; e Tosilos também o não esperava menos.

 

QUE TRATA DE COMO D. QUIXOTE SE DESPEDIU DO DUQUE, E DO QUE SUCEDEU COM A DISCRETA E DESENVOLTA ALTIsiDORA, DONZELA DA DUQUESA

Pareceu, enfim, a D. Quixote necessário sair da ociosidade em que estava naquele castelo, porque imaginava que era grande a falta que fazia enquanto estava encerrado e preguiçoso entre os infinitos regalos e deleites que, como a cavaleiro andante, aqueles senhores lhe prodigalizavam, e parecia-lhe que havia de dar estreitas contas ao Céu daquele encerramento; e, assim, pediu um dia licença aos duques para se ir embora. Deram-lha, com mostras de que lhes pesava muito que ele os deixasse. Deu a duquesa as cartas de sua mulher a Sancho Pança, que chorou com elas e disse:

- Quem havia de pensar que tamanhas esperanças, como as que geraram no peito de minha mulher Teresa Pança as notícias do meu governo, haviam de parar em voltar eu agora a seguir as arrastadas aventuras de meu amo D. Quixote de La Mancha? Com tudo isso, estou satisfeito por ver que a minha Teresa correspondeu ao que eu dela esperava, mandando as bolotas à duquesa; que, se lhas não tivesse mandado, ficando eu pesaroso, se mostraria ela desagradecida. O que me consola é que a esta dádiva não se pode dar o nome de luvas, porque já eu era governador quando ela as mandou, e é costume admitido que, quando se recebe um benefício, sempre se deve mostrar o agradecimento, ainda que seja por meio de ninharias. Efectivamente, nu entrei no governo, e nu dele saí; e, assim, posso dizer com segura consciência, o que já é bastante: nu nasci e nu me encontro; nem ganho nem perco.

Isto dizia consigo Sancho no dia da partida; e, saindo D. Quixote, havendo-se despedido, na noite anterior, dos duques, apresentou-se armado no terreiro do castelo. Contemplavam-no das varandas os familiares, e os duques também saíram para o ver. Estava Sancho montado no ruço, com os seus alforges e uma maleta, e rosto contentíssimo, porque o mordomo do duque, o mesmo que desempenhara o papel da Trifaidi, lhe dera uma bolsa com duzentos escudos de ouro, para as necessidades do caminho, o que D. Quixote ainda não sabia.

Estando todos a contemplá-lo, como dissemos, de repente, entre as outras donas e donzelas da duquesa, levantou a voz a desenvolta e discreta Altisidora, e, fitando bem o cavaleiro, disse em tom plangente:

Sopeia um pouco essas rédeas, e escuta, mau cavaleiro; não fatigues as ilhargas desse teu nobre sendeiro.

Refalsado, tu não foges de alguma fera serpente, foges de uma cordeirinha tenra, cândida, inocente.

Tu escarneceste, ó monstro, a donzela menos feia, que viu Diana em seus montes, e em seus bosques Citereia.

Ingrato Eneias e feroz Teseu, Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Tu levas, que roubo ímpio! nas tuas garras grifanhas, de uma terna namorada as humílimas entranhas.

Levas três lenços, e as ligas de umas pernas torneadas, que são como o puro mármore, lisas, duras, jaspeadas.

Levas também mil suspiros, cujo ardor talvez pudesse abrasar outras mil Tróias, se outras mil Tróias houvesse.

Ingrato Eneias e feroz Teseu, Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Que do teu Sancho as entranhas sejam, para teu tormento, tão duras, que Dulcineia não saia do encantamento.

Que a triste leve o castigo da tua culpa tamanha, que justos por pecadores pagam sempre cá na Espanha.

Que as mais finas aventuras para ti sejam tristezas, sonhos os teus passatempos, olvidos tuas firmezas!

Ingrato Eneias e feroz Teseu, Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Que sejas tido por falso de Sevilha a Finisterra, desde Loja até Granada, e de Londres a Inglaterra.

Se tu jogares a bisca, os centos, ou outro jogo, que os reis, os ases e os setes fujam de ti logo e logo.

Quando cortares os calos, que haja sangue e cicatrizes, quando arrancares os dentes, que te fiquem as raízes.

Ingrato Eneias e feroz Teseu, Barrabás te acompanhe, meu sandeu!

Enquanto desta forma se queixava a triste Altisidora, esteve-a mirando D. Quixote, e, sem responder palavra, virou-se para Sancho e bradou:

- Pelo ciclo dos teus passados, Sancho, peço-te que me digas a verdade: tu levas, porventura, os três lenços e as ligas, em que fala esta enamorada donzela?

- Os lenços levo, sim, senhor - respondeu Sancho -, mas as ligas, nem por sombras.

Ficou a duquesa admirada da desenvoltura de Altisidora, que, ainda que a tinha por desembaraçada e graciosa, nunca imaginou que se atrevesse a semelhantes arrojos; e, como a não tinham avisado desta burla, ainda mais cresceu a sua admiração. Quis o duque reforçar o donaire, e disse:

- Não me parece bem Senhor Cavaleiro, que, tendo recebido neste meu castelo o bom acolhimento que se vos fez, tenhais tido o atrevimento de levar três lenços da minha donzela, se é que lhe não levais também as ligas; são indícios de más entranhas, e sinais que não correspondem à vossa fama; restituí as ligas, senão desafio-vos a duelo de morte, sem recear que malandrins nigromantes me troquem ou mudem o rosto, como fizeram a Tosilos meu lacaio que entrou convosco em batalha.

- Não praza a Deus - respondeu D. Quixote -, que eu desembainhe a minha espada contra a Vossa Ilustríssima pessoa, de quem tantas mercês hei recebido: restituirei os lenços, porque Sancho diz que os tem; as ligas é impossível, porque, nem eu as recebi, nem ele tão-pouco; e, se a vossa donzela quiser remirar as suas gavetas, com certeza que as encontra. Eu, Senhor Duque, nunca fui ladrão, nem espero sê-lo em toda a minha vida, com o amparo de Deus. Esta donzela fala, segundo ela mesma diz, como enamorada, e disso não sou eu culpado, nem tenho de pedir perdão, nem a ela, nem a Vossa Excelência, a quem peço que faça melhor conceito de mim, e me dê de novo licença para seguir o meu caminho.

- Deus vo-lo dê tão bom - disse a duquesa - que sempre ouçamos boas notícias dos vossos feitos, e andai com Deus, que, quanto mais vos detendes, mais aumentais o fogo nos peitos das donzelas que vos miram, e, à minha, eu a castigarei de forma que daqui por diante se não desmande, nem com a vista, nem com as palavras.

- Um só quero que me ouças, ó valoroso D. Quixote - disse então Altisidora - e é que te peço perdão do latrocínio das ligas, porque vejo agora que as tenho postas, e estava como o outro que, montado no burro, andava à procura dele.

- Eu não dizia? - acudiu Sancho. - Mesmo eu sou bom para encobrir furtos; se os quisesse fazer de mão-cheia, tinha muita ocasião para isso no meu governo.

  1. Quixote abaixou a cabeça, e fez uma reverência aos duques e a todos os circunstantes; e, voltando as rédeas a Rocinante, e seguindo-o Sancho montado no burro, saiu do castelo, dirigindo o seu caminho para Saragoça.

 

QUE TRATA DE COMO CHOVERAM EM CIMA DE D. QUIXOTE TANTAS AVENTURAS, QUE NãO TINHA VAGAR PARA ANDAR

Quando D. Quixote se viu em campina rasa, livre e desembaraçado dos requebros de Altisidora, pareceu-lhe que estava bem equilibrado, e que se lhe renovavam os espíritos, para seguir de novo com o assunto das suas cavalarias; e, voltando-se para Sancho, disse-lhe:

- A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que aos homens deram os Céus: não se lhe podem igualar os tesouros que há na Terra, nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode acudir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste os regalos e a abundância que tivemos neste castelo, que deixámos; pois no meio daqueles banquetes saborosos, e daquelas bebidas nevadas, parecia-me que estava metido entre as estreitezas da fome; porque os não gozava com a liberdade com que os gozaria, se fossem meus: que as obrigações das recompensas, dos benefícios e mercês recebidas, são ligaduras que não deixam campear o ânimo livre. Venturoso aquele a quem o Céu deu um pedaço de pão, sem o obrigar a agradecê-lo a outrem que não seja o mesmo Céu!

- Com tudo isso que Vossa Mercê me diz - acudiu Sancho - não devem ficar sem agradecimento da nossa parte duzentos escudos de ouro que me deu numa bolsa o mordomo do duque; bolsa que levo aqui sobre o coração, como uma relíquia e um confortativo contra o que der e vier, que nem sempre havemos de encontrar castelos onde nos regalem, e muitas vezes toparemos vendas onde nos desanquem.

Nestes e noutros arrazoados iam o cavaleiro e o escudeiro, quando viram-, tendo andado pouco mais de uma légua, uma dúzia de homens vestidos de lavradores, sentados na relva e comendo em cima das suas capas. Junto de si tinham como que umas toalhas brancas, com que cobriam algumas coisas distanciadas umas das outras. Chegou-se D. Quixote aos homens, e, depois de os cumprimentar cortesmente, perguntou-lhes o que é que aquelas toalhas cobriam. Um deles respondeu-lhe:

- Senhor: debaixo destes panos estão umas imagens de relevo e obra de talha, que hão-de servir num retábulo que estamos a fazer para a nossa aldeia; levamo-las cobertas, para que se não desflorem, e às costas, para que se não quebrem.

- Se sois servidos - respondeu D. Quixote -, folgaria de as ver; porque, imagens, que com tanto recato se levam, devem ser boas, sem dúvida alguma.

- Ora se são boas! - acudiu outro. - Que o diga o preço, que não há ali nenhuma que esteja em menos de cinquenta ducados; e, para que Vossa Mercê conheça a verdade, espere, que a verá com os seus olhos.

E, levantando-se, deixou de comer, e tirou a cobertura da primeira imagem, que era a de S. Jorge a cavalo, com uma serpente enroscada aos pés, e atravessada pela boca com a lança do santo. A imagem toda parecia um relicário de ouro, como se costuma dizer. Vendo-a, disse D. Quixote:

- Este cavaleiro foi um dos melhores andantes que teve a milícia divina: chamou-se D. S. Jorge, e foi, além disso, defensor de donzelas. Vejamos estoutra.

Descobriu-a o homem, e apareceu S. Martinho a cavalo, repartindo a sua capa com o pobre. Apenas D. Quixote o viu, disse logo:

- Este cavaleiro também foi dos aventureiros cristãos, mas parece-me que mais liberal do que valente, como podes ver, Sancho, em estar repartindo a capa com o pobre, dando-lhe metade; e por força que então seria Inverno, senão ele dava-lha toda - tão caritativo era.

- Não havia de ser isso - acudiu Sancho -, mas é que ele ateve-se ao rifão que diz: para dar, e para ter, muito rico é mister ser.

Riu-se D. Quixote, e pediu que se tirasse outro pano, debaixo do qual saiu a imagem do padroeiro das Espanhas, a cavalo, com a espada ensanguentada, atropelando mouros e pisando cabeças; e, ao vê-la, disse D. Quixote:

- Este sim, que é cavaleiro dos esquadrões de Cristo; chama-se D. Saniago Mata-Mouros, um dos mais valentes santos e cavaleiros que o mundo teve e tem agora o Céu.

Descobriram logo outro pano, e viu-se S. Paulo a cair do cavalo abaixo, com todas as circunstâncias que costumam pintar-se no retábulo da sua conversão. Quando viu isso tanto ao vivo, que parecia que Cristo lhe falava e que Paulo lhe respondia:

- Este - disse D. Quixote - foi o maior inimigo que teve a Igreja de Deus Nosso Senhor no seu tempo, e o maior defensor que ela nunca há-de ter: cavaleiro andante pela sua vida, e santo a pé quedo pela sua morte, trabalhador infatigável na vinha do Senhor, doutor das gentes, a quem serviram de escola os Céus, e de catedrático e mestre que o ensinasse o mesmo Jesus Cristo.

Não havia mais imagens, e mandou D. Quixote que as tornassem a cobrir, e disse aos que as levavam:

- Tive por bom agouro, irmãos, ter visto o que vi, porque estes santos e cavaleiros professaram o que eu professo, que é o exercício das armas; e a diferença que há entre mim e eles é que eles foram santos e pelejaram ao divino, e eu sou pecador e pelejo ao humano. Eles conquistaram o Céu à força de braços, porque o Céu também cede à força, e eu, até agora, não sei o que conquisto com a força dos meus trabalhos; mas, se a minha Dulcineia del Toboso saísse dos que padece, melhorando a minha ventura, e fecundando-me o juízo, podia ser que dirigisse os meus passos por melhor caminho do que o que levo.

- Deus o ouça, e o pecado seja surdo! - acudiu Sancho. Admiraram-se os homens, tanto da figura como do arrazoado de D. Quixote, sem entender metade do que ele dizia. Acabaram de comer, carregaram com as imagens, e, despedindo-se de D. Quixote, seguiram a sua viagem. Ficou Sancho de novo como se não conhecesse seu amo, admirado do que ele sabia, parecendo-lhe que não havia história no mundo, nem sucesso algum, que ele não tivesse cifrado na unha ou cravado na memória; e disse-lhe:

- Na verdade Senhor, nosso amo, que, se isto que hoje nos sucedeu se pode chamar aventura, foi das mais suaves e doces que nos têm acontecido em todo o decurso da nossa peregrinação: dela saímos sem pauladas nem sobressalto algum, nem levámos a mão às espadas, nem batemos com os nossos corpos no chão, nem ficámos esfomeados; bendito seja Deus, que semelhante coisa me deixou ver com os meus próprios olhos.

- Dizes bem, Sancho - acudiu D. Quixote -; mas hás-de advertir que nem todos os tempos são os mesmos, nem correm de igual forma; e isto a que o vulgo costuma chamar agouros, que não se fundam em razão natural alguma, hão-de ser considerados e julgados bons sucessos por quem é discreto. Levanta-se um destes agoureiros pela manhã, encontra-se com um frade da Ordem do Bem-Aventurado S. Francisco, e, como se tivesse encontrado um grifo, vira as costas e volta para sua casa. Derrama-se ao outro Mendoza o sal em cima da mesa, e derrama-se-lhe a ele a melancolia no coração, como se fosse obrigada a Natureza a dar sinal das porvindouras desgraças, com coisas de tão pouco momento como as referidas. O discreto e cristão não deve andar em pontinhos com o que o Céu quer fazer. Chega Cipião à África, tropeça ao saltar em terra, e têm-no por mau agouro os seus soldados; mas ele, abraçando-se com o chão:

«Não me poderás fugir, África, porque te agarrei com os meus braços.” De forma que, Sancho, o ter encontrado estas imagens foi para mim felicíssimo acontecimento.

- Assim creio - respondeu Sancho - e quereria que Vossa Mercê me explicasse por que é que dizem os espanhóis, quando vão dar alguma batalha, invocando aquele Sant'lago Mata-Mouros: «Sant'lago e cerra Espanha?” Está por acaso a Espanha aberta, e de modo tal, que seja mister cerrá-la? Ou que cerimónia é esta?

- És simplório, Sancho - respondeu D. Quixote -, e olha que este grande cavaleiro de cruz vermelha deu-o Deus à Espanha por padroeiro e amparo seu, especialmente nos rigorosos transes que os Espanhóis têm tido com os Mouros, e assim o invocam e chamam, como a seu defensor, em todas as batalhas que acometem, e muitas vezes o viram nelas claramente derribando, atropelando, destruindo e matando os esquadrões Agarenos; e desta verdade te poderia dar muitos exemplos, que se contam nas verdadeiras histórias espanholas.

Mudou Sancho de prática, e disse a seu amo:

- Estou maravilhado, Senhor, da desenvoltura de Altisidora, a donzela da duquesa: muito ferida e muito traspassada deve ela estar pelo Amor, que dizem que é um rapaz ceguinho, que, apesar de remeloso, ou por melhor dizer sem vista, toma por alvo um coração, por pequeno que seja, acerta-lhe e traspassa-o de parte a parte, com os seus tiros. Ouvi dizer também que na vergonha e recato das donzelas se embotam as amorosas setas; mas nesta Altisidora mais parece que se agçam.

- Adverte, Sancho - acudiu D. Quixote -, que o Amor nem atende a respeitos, nem guarda limites de razão nos seus discursos, e tem a mesma condição que a morte, a qual tanto acomete os alcáceres dos reis, como as humildes choças dos pastores; e, quando toma inteira posse de uma alma, a primeira coisa que faz é tirar-lhe o temor e a vergonha; e, assim, sem ela, declarou Altisidora os seus desejos, que geraram no meu peito mais confusão que lástima!

- Notória crueldade! - exclamou Sancho. - Desagradecimento inaudito! Eu de mim sei dizer que, a mais insignificante das suas razões me renderia! Oh! Senhores! Que coração de mármore, que alma de bronze, que entranhas de argamassa! Mas não posso imaginar que foi o que essa donzela viu em Vossa Mercê, que assim a rendeu e avassalou! Que brio, que gala que donaire, que rosto, que coisa destas, ou que conjunto delas a seduzu? Que eu, verdade, verdade, muitas vezes paro a mirar Vossa Mercê desde a ponta dos pés até ao último cabelo da cabeça, e vejo mais coisas para espantar do que para enamorar; e, tendo eu ouvido dizer também que a formosura é a primeira e principal prenda que enamora, não tendo Vossa Mercê nenhuma, não sei de que foi que se enamorou a coitada.

- Adverte, Sancho - respondeu D. Quixote -, que há duas formosuras: uma da alma, outra do corpo; a da alma campeia, e mostra-se no entendimento, na honestidade, no bom proceder, na liberalidade e na boa criação, e todas estas partes cabem e podem estar num homem feio; e, quando se põe a mira nesta formosura e não na do corpo, o amor irrompe então com ímpeto e vantagem. Bem vejo, Sancho, que não sou formoso, mas também conheço que não sou disforme; e basta a um homem de bem não ser monstro, para ser querido, contanto que tenha os dotes da alma que te disse já.

Nestas práticas, iam entrando por uma selva que estava fora do caminho, e, de súbito, sem dar por tal, achou-se D. Quixiote enleado numas redes de fios verdes, que estavam estendidas de umas árvores para outras; e, sem poder imaginar o que aquilo pudesse ser, disse para Sancho:

- Parece-me, Sancho, que isto das redes deve ser uma das aventuras mais novas que se podem imaginar. Que me matem, se os nigromantes que me perseguem me não querem enredar nelas e deter o meu caminho, como em vingança do rigor que tive com Altisidora; pois digo-lhes eu que, ainda que estas redes, assim como são feitas de fio verde, o fossem de duríssimos diamantes, ou mais fortes do que aquela com que o zeloso deus dos ferreiros enliçou a Vénus e a Marte, tão facilmente as rompera, como se fossem de juncos marinhos ou de fios de algodão.

E, querendo passar e romper tudo de improviso se apresentaram diante dele, saindo do meio de umas árvores, duas formosíssimas pastoras, pelo menos raparigas vestidas de pastoras, ainda que os corpos dos vestidos eram de fino brocado, e as saias de tafetá de ouro; traziam soltos, nos ombros, os cabelos, que de louros podiam competir com o próprio Sol, e que vinham coroados de grinaldas, entretecidas de verde laurel e de vermelho amaranto; pareciam ter entre quinze e dezoito anos. Vista foi esta que deixou Sancho admirado e D. Quixote suspenso; fez parar o Sol na sua carreira para as ver, e a todos quatro os mergulhou num maravilhoso silêncio. Afinal, quem primeiro falou foi uma das duas zagaias, que disse a D. Quixote:

- Parai, Senhor Cavaleiro, e não queirais romper as redes que estão aí estendidas, não para vosso dano, mas para nosso passatempo; e porque sei que nos haveis de perguntar para que se puseram, e quem somos, vou já dizer-vo-lo em breves palavras. Numa aldeia que fica daqui a duas léguas, onde há muita gente principal, e muitos fidalgos e ricos, entre vários se combinou o virem com os seus filhos e filhas, e mulheres, parentes, vizinhos e amigos, folgar para este sítio, que é um dos mais agradáveis destes contornos, formando nós todos uma nova e pastoril Arcádia, vestindo-se as donzelas de pastoras e os mancebos de zagais; trazemos estudadas duas éclogas, uma do famoso poeta Garcilaso e outra do sublime Camões, na sua própria língua portuguesa; éclogas que até agora ainda não representámos, porque só chegámos aqui ontem; temos, entre estes ramos armadas algumas tendas de campanha, na margem de um arroio abundante em águas, que a todos estes prados fertiliza; estendemos, a noite passada, as redes destas árvores, para enganar os simples passarinhos, que, afugentados pelo barulho que fazemos verem aqui parar. Se vos aprouver ser nosso hóspede Senhor, sereis agasalhado cortês e liberalmente, porque, por agora não há-de entrar neste sítio o negrume da melancolia. Calou-se, e D. Quixote respondeu:

- Decerto, formosíssima Senhora, que não ficou mais suspenso nem mais admirado Actéon, quando viu, de improviso, banhar-se nas águas Diana, do que eu fiquei atónito ao ver a vossa beleza. Louvo os vossos entretenimentos, e agradeço as vossas ofertas; e, se vos posso servir, podeis mandar-me, com a certeza de que sereis obedecidas, porque a minha profissão consiste em mostrar-me grato e benfazejo com toda a gente, especialmente com a principal, de que vós sois representantes; e se estas redes, assim como ocupam um pequeno espaço, ocupassem toda a redondeza da Terra, procuraria eu novos mundos, para passar sem as romper; e, para que deis algum crédito a esta minha exageração, vede que vo-lo promete D. Quixote de La Mancha, se aos vossos ouvidos já chegou este nome.

- Ai! amiga da minha alma! - disse então a outra pastora. - Que ventura tamanha nos sucedeu! Vês este Senhor que aqui temos diante de nós? Pois faço-te saber que é o mais valente o mais enamorado e o mais comedido de todo o mundo, se não mente e nos engana uma história que das suas façanhas anda impressa, e que eu li. Aposto que este bom homem, que vem com ele, é Sancho Pança, seu escudeiro, cujas graças não têm outras que se lhe igualem.

- É verdade - disse Sancho - que sou esse gracioso e esse escudeiro que Vossa Mercê diz, e este Senhor é meu amo, o próprio D. Quixote de La Mancha, historiado e referido.

- Ai! - tornou a outra. - Supliquemos-lhe que fique, porque nossos pais e nossos irmãos gostarão imenso de o receber; eu também já ouvi falar no seu valor e na graça do seu escudeiro, e, sobretudo, dizem dele que é o mais firme e o mais leal enamorado que se conhece, e que a sua dama é uma tal Dulcineia del Toboso, a quem dão, em toda a Espanha, a palma da formosura.

- E com justiça lha dão - disse D. Quixote - se agora lha não disputa a vossa singular beleza. Não vos canseis Senhoras, em demorar-me, porque as indeclináveis obrigações da minha profissão não me deixam descansar em parte alguma.

Chegou nisto, ao sítio onde estavam todos quatro conversando, um irmão de uma das duas pastoras vestido também de zagal, com riqueza e galas correspondentes às delas; contaram-lhe que a pessoa com quem falavam era o valoroso D. Quixote de La Mancha, e o outro o seu escudeiro Sancho, de quem ele já tinha notícia, por lhes ter lido a história. Apresentou-lhe os seus cumprimentos o galhardo pastor, e pediu-lhe que o acompanhasse às suas tendas; teve de ceder D. Quixote, e assim se fez. Nisto, encheram-se as redes de diversos passarinhos, que, enganados pela cor dos fios, caíam no perigo de que iam fugindo. Juntaram-se naquele sítio mais de trinta pessoas, todas bizarramente vestidas de pastores e de pastoras, e, num instante, ficaram sabendo quem eram D. Quixote e o seu escudeiro, ficando com isso muito satisfeitos, porque já lhes conheciam a história. Entraram nas tendas, acharam as mesas postas, ricas, abundantes e asseadas; honraram a D. Quixote, dando-lhe o primeiro lugar; miravam-no todos, e admiravam-se de o ver. Finalmente, levantadas as mesas, ergueu D. Quixote a vo, e disse com grande pausa:

- Entre os pecados que os homens cometem, ainda que afirmam alguns que o maior de todos é a soberba, sustento eu que é a ingratidão, baseando-me no que se costuma dizer, que de mal agradecidos está o Inferno cheio. Sempre procurei evitar este pecado, tanto quanto me tem sido possível, desde que tive uso de razão, e se não posso pagar as boas obras que me fazem, com outras, ponho em seu lugar o desejo de as fazer; e quando isso não basta, publico-as, porque aquele que publica os favores que recebe, também os recompensaria com outros, se pudesse; que, pela maior parte, os que recebem são inferiores aos que dão, e assim está Deus sobre todos, porque é sobre todos dador, e não podem corresponder as dádivas do homem às de Deus com igualdade, pela infinita distância, e esta estreiteza de meios, até certo ponto, supre o agradecimento. Eu, pois, agradecido à mercê que aqui se me tem feito, não podendo corresponder igualmente, contendo-me nos estreitos limites do meu poderio, ofereço o que posso e o que tenho; e, assim, digo, que sustentarei dois dias, de sol a sol, no meio desta estrada real que vai para Saragoça, que estas senhoras zagaias fingidas são as donzelas mais formosas e mais corteses que há no mundo, exceptuando só a sem par Dulcineia del Toboso, única senhora dos meus pensamentos; com paz seja dito de quantos e quantas me escutam.

Ouvindo isto Sancho, que com grande atenção o estivera escutando, disse, dando um grande brado:

- E possível que haja pessoas neste mundo, que se atrevam a dizer e a jurar que meu amo é louco? Digam Vossas Mercês, Senhores Pastores: há cura de aldeia, por muito discreto e estudioso que seja, que possa dizer o que meu amo disse? Há cavaleiro andante, por maior que seja a sua fama de valente, que possa oferecer o que meu amo ofereceu?

Voltou-se D. Quixote para Sancho, e disse-lhe, com o rosto aceso em cólera:

- E possível, ó Sancho, que haja em todo o orbe alguma pessoa que diga que não és um tolo chapado, com mescla de malícia e de velhacaria? Quem te manda meter onde não és chamado e decidir se sou discreto ou doido? Cala-te e não me repliques, e aparelha Rocinante, se não está aparelhado; vamos a pôr por obra o meu oferecimento, que, com a razão que vai pela minha parte, podes dar já por vencidos todos quantos vierem contradizê-la.

E com grande fúria e sinais de cólera se levantou da cadeira, deixando pasmados todos os circunstantes, fazendo-os duvidar se o deviam ter por louco, se por ajuizado.

Finalmente, tendo-lhe persuadido que se não metesse em tal demanda, que davam por bem provada a sua gratidão, e que não eram necessárias novas demonstrações para se conhecer o seu ânimo valoroso, pois bastavam as que na história dos seus feitos se referiam, contudo isso foi por diante D. Quixote com a sua tenção, e, montado em Rocinante, embraçando o escudo, e pegando na lança, pôs-se no meio de uma estrada real, que não ficava longe do verde prado. Seguiu-o Sancho, montado no ruço, com toda a gente do rebanho pastoril desejosos de ver em que viria a parar o seu arrogante e nunca visto oferecimento.

Posto, pois, D. Quixote no meio do caminho, como se disse, feriu os ares com as seguintes palavras:

- Ó vós outros, passageiros e viandantes, cavaleiros, escudeiros, gente de pé e de cavalo, que por este caminho passais ou haveis de passar nestes dois dias seguintes, sabei que D. Quixote de La Mancha, cavaleiro andante, está aqui para sustentar que a todas as formosuras e cortesias do mundo excedem as que se encerram nas ninfas habitadoras destes prados e destes bosques, pondo de parte a senhora da minha alma Dulcineia del Toboso; por isso, acuda quem for de parecer contrário, que aqui o espero.

Duas vezes repetiu estas mesmas palavras, e duas vezes deixaram de ser ouvidas por qualquer aventureiro; mas a sorte, que ia encaminhando as suas coisas cada vez a melhor, ordenou que dali a pouco se descobrisse no caminho uma grande multidão de homens a cavalo, e muitos deles com lanças nas mãos, caminhando todos apinhados, de tropel e com grande pressa.

Apenas os viram os que estavam com D. Quixote, logo, voltando as costas, se afastaram para longe do caminho, porque bem conheceram que, se esperassem, lhes podia suceder algum mal; só D. Quixote, com intrépido coração, permaneceu quedo, e Sancho se encobriu com a garupa de Rocinante.

Chegou o tropel dos lanceiros, e um deles, que vinha mais adiante, começou a dizer com grandes brados para D. Quixote:

- Afasta-te do caminho, homem do diabo, que estes touros despedaçam-te.

- Eia, canalha! - respondeu D. Quixote. - Para mim não há touros que valham, ainda que sejam dos mais bravos que Jarama cria nas suas ribeiras. Confessai, malandrinos, assim à carga cerrada, que é verdade o que eu aqui publiquei, senão comigo travareis batalha.

Não teve tempo de responder o vaqueiro, nem D. Quixote de se desviar, ainda que o quisesse; e, assim, o tropel dos touros bravos, e o dos mansos cabrestos, com a multidão dos vaqueiros e das outras gentes que os levavam, para os meter no curro, num lugar onde no outro dia haviam de ser corridos, passaram por cima de D. Quixote, de Sancho, de Rocinante e do ruço, e deram com todos eles em terra, deixando-os a rebolar pelo meio do chão. Ficou moído Sancho, espantado D. Quixote, desancado o ruço, e Rocinante não muito cristalino;

mas, enfim, levantaram-se todos, e D. Quixote com muita pressa, caindo aqui, tropeçando acolá, principiou a correr atrás da manada, bradando:

- Detende-vos e esperai, canalha malandrina, desafia-vos um só cavaleiro, que não tem a condição, nem é do parecer dos que dizem que ao inimigo que foge se deve fazer uma ponte de prata.

Mas nem com isso se detiveram os apressados corredores, e fizeram tanto caso das suas ameaças, como das nuvens do ano anterior. Cansou D. Quixote, e, mais enojado que vingado, sentou-se à beira da estrada, esperando que chegassem Sancho, Rocinante e o ruço. Chegaram; tornaram a montar a cavalo o amo e o criado; e, sem voltarem a despedir-se da Arcádia fingida, com mais vergonha que gosto seguiram o seu caminho.

 

ONDE SE CONTA O EXTRAORDINÁRIO CASO, QUE SE PODE CHAMAR AVENTURA, QUE ACONTECEU A D. QUIXOTE

A poeira e ao cansaço, que D. Quixote e Sancho tiraram do descomedimento dos touros, deu remédio uma fonte clara e límpida, que encontraram entre um fresco arvoredo, e à beira da fonte se sentaram amo e criado, deixando Rocinante e o ruço livres, sem aparelho nem freio. Acudiu Sancho à despensa dos seus alforges, e deles tirou o que costumava chamar as vitualhas;

enxaguou D. Quixote a boca, lavou a cara, e com esse refrigério recobrou alento o seu desanimado espírito; não comia, contudo, de pesaroso que estava, e Sancho não ousava, por cortesia, tocar nos manjares que tinha diante de si e esperava que seu amo dissesse o Benedicite; mas, vendo que, levado pelas suas imaginações, não se lembrava de levar o pão à boca, não abriu bico, e, atropelando todo o género de boa criação, começou a armazenar no estômago o pão e o queijo.

- Come, Sancho amigo - disse D. Quixote -, sustenta a vida, que te importa mais do que a mim, e deixa-me morrer às mãos dos meus pensamentos, e à força das minhas desgraças; eu, Sancho, nasci para viver morrendo, tu para morrer comendo; e para que vejas que te digo a verdade, considera-me impresso em histórias, famoso nas armas, comedido nas minhas acções, respeitado por príncipes, solicitado de donzelas; e, afinal, quando esperava palmas, triunfos e coroas, granjeadas e merecidas pelas minhas valorosas façanhas, vi-me esta manhã pisado aos pés e moído por animais imundos e soezes. Esta consideração embota-me os queixais, entorpece-me os molares, e entumece-me as mãos, e de todo em todo me tira a vontade de comer: de modo que estou com ideias de me matar à fome - a morte mais cruel de todas.

- Então - disse Sancho, sem deixar de mastigar apressadamente - não aprova Vossa Mercê aquele rifão que diz: Morra Marta, morra farta. Eu, pelo menos, não tenho ideias de me matar; pelo contrário, tenciono fazer como o sapateiro, que puxa o couro com os dentes, até o fazer chegar aonde quer; e eu, comendo, puxarei pela minha vida, até chegar ao fim que o Céu determinou; e saiba Senhor, que não há maior loucura do que a de querer uma pessoa desesperar-se, como Vossa Mercê; e acredite-me:

coma, deite-se a dormir sobre os verdes colchões destas ervas, e verá como se acha um pouco mais aliviado, quando despertar.

Assim fez D. Quixote, parecendo-lhe que as razões de Sancho eram mais de filósofo que de mentecapto, e disse-lhe:

- Se tu, ó Sancho, quisesses fazer por mim o que eu te vou dizer, seriam os meus alívios mais certos, e não seriam tamanhas as minhas aflições; e vem a ser que, enquanto durmo, obedecendo aos teus conselhos, tu te desvies um pouco daqui, e com as rédeas de Rocinante, e pondo ao ar as tuas carnes, arrumes em ti mesmo trezentos ou quatrocentos açoites, por conta dos três mil e tantos que tens de apanhar para o desencantamento de Dulcineia, que não é pequena lástima que aquela pobre senhora esteja encantada, por teu descuido e negligência.

- Há muito que dizer a isso - respondeu Sancho -; durmamos agora nós ambos, e depois eu direi o que há-de ser. Saiba Vossa Mercê que isto de se açoitar um homem a sangue-frio não é muito agradável, e ainda mais se caem os açoites num corpo mal sustentado; tenha paciência a minha Sra. d. Dulcineia, que, quando mal se precate, me verá transformado num crivo de açoites, e até ao lavar dos cestos é vindima: quero dizer, que ainda estou vivo, e conservo o desejo de cumprir o que prometi.

Agradecendo-lhe D. Quixote, comeu alguma coisa, e Sancho comeu muito; deitaram-se ambos a dormir, deixando entregues ao seu alvedrio, pastando a abundante erva de que estava cheio aquele prado, os seus dois companheiros e amigos, Rocinante e o ruço. Despertaram um pouco tarde; tornaram a montar a cavalo e a seguir o seu caminho, apressando o passo para chegarem a uma venda, que se descobria a coisa de uma légua de distância; digo que era venda, porque D. Quixote assim lhe chamou, fora do uso que tinha de chamar a todas as vendas castelos. Chegaram, pois, a essa venda, e perguntaram ao estalajadeiro se havia pousada; respondeu-lhes que sim, e com toda a comodidade e regalo que em Saragoça podiam encontrar. Apearam-se, e recolheu Sancho a sua despensa num aposento, de que o estalajadeiro lhe deu a chave. Levou os animais para a cavalariça, deitou-lhes as rações, saiu para receber as ordens de D. Quixote, que estava sentado num poial, e deu graças especiais ao Céu por seu amo não ter tomado aquela venda por castelo. Chegou a hora da ceia; foram para os seus quartos, e perguntou Sancho ao seu hospedeiro o que tinha para lhes dar de cear, e o estalajadeiro respondeu que podiam pedir por boca; que, de pássaros dos ares, aves do céu, e peixes do mar, estava fornecida a sua venda.

- Não é preciso tanto - respondeu Sancho -; com dois frangos que nos assem, ficaremos satisfeitos, porque meu amo é delicado e come pouco, e eu não sou nenhum glutão por aí além.

Replicou o estalajadeiro que não havia frangos, porque lhos tinham roubado os milhafres.

- Pois mande o Senhor Estalajadeiro assar uma franga que seja tenra.

- Franga! Pai do Céu! - respondeu o estalajadeiro. - Olhe que mandei ontem à cidade vender mais de cinquenta; mas, a não serem frangas, peça Vossa Mercê o que quiser.

- Então - disse Sancho - já vejo que há-de ter vitela ou cabrito.

- Em casa agora não há, nem cabrito, nem vitela - respondeu o estalajadeiro - porque se acabaram; mas, para a semana, há-de-os haver a rodo.

- Lucramos muito com isso! - observou Sancho. - Espero ao menos que todas estas faltas se remedeiem com fartura de toucinho e de ovos.

- Por Deus! Que fraca memória tem o meu hóspede! - tornou o estalajadeiro. - Pois se eu já lhe disse que não tenho, nem frangas, nem galinhas, como quer que tenha ovos! Discorra por outros manjares delicados, mas não peça criação.

- Acabemos com isto - tornou Sancho -; diga-me, finalmente, o que tem, e deixe-se de histórias.

- Senhor Hóspede - redarguiu o vendeiro -, o que tenho, real e verdadeiramente, são duas unhas de vaca, que parecem mãos de vitela, ou duas mãos de vitela, que parecem unhas de vaca. Cozeram-se com grão-de-bico, cebolas e toucinho, e agora estão mesmo a dizer: Comei-me! Comei-me!

- Já não vão para mais ninguém, senão para nós - disse Sancho -, que as havemos de pagar melhor do que quaisquer outros; porque, eu por mim, não podia esperar coisa de que mais gostasse, e não se me daria que fossem mãos de vaca, em vez de serem só unhas.

- Ninguém lhes tocará - afirmou o vendeiro -, porque outros hóspedes que tenho são tão principais, que trazem consigo cozinheiro, despenseiro, e mantearia.

- Se falamos em principais - disse Sancho -, ninguém excede meu amo; mas o ofício que ele tem não permite despensas; assim, estendemo-nos no meio de um prado, e ali enchemos a barriga com bolotas ou nêsperas.

Esta foi a prática que Sancho teve com o vendeiro, sem querer ir mais adiante em responder às perguntas que ele lhe fazia sobre a profissão de seu amo. Chegou, pois, a hora da ceia; recolheu-se ao seu aposento D. Quixote, e, quando veio a olha, sentou-se a cear tranquilamente. Parece que no outro aposento, que estava ao pé do de D. Quixote, dividido só por um delgado tabique, ouviu o nosso herói dizer-se de repente:

- Por vida de Vossa Mercê, Sr. D. Jerónimo, vamos ler, enquanto não vem a ceia, outro capítulo da segunda parte de D. Quixote de La Mancha.

Apenas D. Quixote ouviu o seu nome, pôs-se de pé, e, com o ouvido alerta, escutou o que diziam dele; e ouviu o tal D. Jerónimo responder:

- Para que quer Vossa Mercê ler esses disparates, Sr. D. João, se quem üver lido a primeira parte da história de D. Quixote de La Mancha não pode encontrar gosto em ler a segunda?

- Apesar disso - tornou D. João - sempre se deve ler, porque não há livro tão ruim que não tenha alguma coisa boa.

- Neste, o que mais me desagrada é pintar D. Quixote já desenamorado de Dulcineia del Toboso.

Ouvindo isto, D. Quixote, cheio de ira e de despeito, levantou a voz, e disse:

- A quem disser que D. Quixote de La Mancha esqueceu ou pode esquecer Dulcineia del Toboso, eu lhe farei perceber, com armas iguais, que está muito longe da verdade, e que, nem a incomparável Dulcineia del Toboso pode ser olvidada, nem pode caber o olvido no peito de D. Quixote: o seu brasão é a firmeza, e a sua profissão guardá-la com suavidade, e sem esforço algum.

- Quem é que nos responde? - tornaram do outro aposento.

- Quem há-de ser - respondeu Sancho - senão o próprio D. Quixote de La Mancha, que sustentará tudo o que disse, e ainda o que tiver de dizer, que ao bom pagador não lhe custa dar penhor?

Apenas Sancho disse isto, entraram pela porta do seu aposento dois cavaleiros, e um deles, deitando os braços ao pescoço de D. Quixote, disse-lhe:

- Nem a vossa presença pode desmentir o vosso nome, nem o vosso nome pode desacreditar a vossa presença. Sem dúvida, Senhor, sois o verdadeiro D. Quixote de La Mancha, norte e luz da cavalaria andante, a despeito e a pesar de quem quis usurpar o vosso nome e aniquilar as vossas façanhas, como fez o autor deste livro, que aqui vos entrego.

E pôs-lhe um livro nas mãos, livro que o seu companheiro trazia; pegou-lhe D. Quixote, e, sem responder palavra, principiou a folheá-lo; e dali a pedaço devolveu-lho, dizendo:

- No pouco que vi, achei três coisas neste autor dignas de repreensão. A primeira, são algumas palavras que li no prólogo; a segunda, ser a linguagem aragonesa, porque muitas vezes escreve sem artigos; e a terceira, que mais o confirma por ignorante, é o errar e desviar-se da verdade no mais principal da história, porque diz aqui que a mulher do meu Sancho Pança se chama Maria Gutierrez, e não se chama tal: chama-se Teresa Pança; e, quem erra nesta parte tão importante, bem se poderá recear que erre em todas as outras da história.

- Donoso historiador! - acudiu Sancho. - Muito deve saber dos nossos sucessos, pois chama a Teresa Pança, minha mulher, Maria Gutierrez! Torne a pegar no livro Senhor, meu amo, e veja se eu também por cá ando, e se também me mudou

o nome.

- Pelo que vos tenho ouvido dizer - acudiu D. Jerónimo - sois, sem dúvida, Sancho Pança, o escudeiro do Sr. D. Quixote.

- Sou Sancho, sim, senhor, e disso me ufano.

- Pois à fé - tornou o cavalheiro - que vos não trata este autor moderno com o asseio que na vossa pessoa se mostra;

pinta-vos comilão e simples, e nada gracioso, e mui diferente do Sancho que se descreve na primeira parte da história de vosso amo.

- Deus lho perdoe - disse Sancho -; melhor fora que ele me deixasse no meu canto, sem se lembrar de mim, porque, quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão? E bem está S. Pedro em Roma.

Os dois cavalheiros pediram a D. Quixote que fosse cear com eles, que bem sabiam que naquela venda não havia manjares próprios da sua pessoa. D. Quixote, que sempre foi delicado, condescendeu, e acompanhou-os; ficou Sancho senhor da olha, com mero e misto império; sentou-se à cabeceira da mesa, e sentou-se com ele o vendeiro, que não tinha menos afeição às suas mãos e às suas unhas.

No decurso da ceia, perguntou D. João a D. Quixote que notícias tinha da Sra. Dulcineia del Toboso: se casara se estava grávida, ou se, estando ainda donzela, se lembrava, sem deixar de guardar a sua honestidade e decoro, dos amorosos pensamentos do Sr. D. Quixote.

Ao que ele respondeu:

- Dulcineia está donzela, e os meus pensamentos são mais firmes do que nunca: as correspondências continuam na sua antiga escassez, a sua formosura está transformada na fealdade de uma soez lavradeira.

E logo lhes foi contando, ponto por ponto, o encantamento da Sra. Dulcineia, e o que lhe sucedera na cova de Montesinos, com a ordem que o sábio Merlim lhe dera para a desencantar, que foi a dos açoites de Sancho. Foi sumo o contentamento que os dois cavalheiros tiveram, ouvindo contar a D. Quixote os estranhos sucessos da sua história; e ficaram tão admirados dos

seus disparates, como do modo elegante por que os expunha. Umas vezes consideravam-no discreto, e outras vezes supunham-no mentecapto, sem saber determinar que grau lhe dariam entre a discrição e a loucura.

Acabou Sancho de cear, e, deixando também ceado o vendeiro, passou para o quarto onde estava seu amo, e disse ao entrar:

- Que me matem Senhores, se o autor desse livro, que Vossas Mercês aí têm, quer que comamos umas migas juntos:

ao menos, já que me chama comilão, desejaria que me não chamasse borracho.

- Chama, sim - disse D. Jerónimo -, não me lembro de que maneira, mas lembro-me que são malsoantes as suas razões, e, demais a mais, mentirosas, como se deixa ver na fisionomia do bom Sancho, que está presente.

- Creiam-me Vossas Mercês - disse Sancho - que o Sancho e o D. Quixote dessa história hão-de ser outros diversos dos que andam na que compôs Cide Hamet Benengeli, e que estes últimos somos nós: meu amo, valente, discreto e enamorado; e eu, simples, gracioso e, nem comilão, nem borracho.

- Assim o creio - disse D. João - e, se fosse possível, havia de se mandar que ninguém tivesse o atrevimento de tratar das coisas do grande D. Quixote, a não ser Cide Hamet, seu primeiro historiador, como Alexandre mandou que ninguém tivesse a ousadia de o retratar senão Apeles.

- Retrate-me quem quiser - disse D. Quixote -, mas não me maltrate, que, muitas vezes, vai abaixo a paciência, quando a carregam de insultos.

- Nenhum se pode fazer ao Sr. D. Quixote, de que ele se não vingue - tornou D. João -, se o não aparar no escudo da sua paciência, que me parece que é forte e grande.

Nestas e noutras práticas se passou grande parte da noite;

e, ainda que D. João desejava que D. Quixote lesse mais do livro, para ver o que bramava, não puderam conseguir que ele o fizesse, dizendo que o dava por lido, e o confirmava por néscio, e que não queria, se por acaso chegasse ao conhecimento do seu autor que o tivera nas mãos, que se alegrasse pensando que o lera, pois das coisas obscenas e torpes devem afastar-se os pensamentos, quanto mais os olhos.

Perguntaram-lhe qual era o seu destino. Respondeu que ia a Saragoça, para figurar nas justas do arnês, que naquela cidade se fazem todos os anos. Disse-lhe D. João que aquela nova história contava que D. Quixote, ou quem quer que fosse, estivera em Saragoça, num torneio falto de invenção, pobre de letras, pobríssimo de galas, e só rico de disparates.

- Pois por isso mesmo - respondeu D. Quixote - não porei os pés em Saragoça; e, assim, mostrarei a mentira desse historiador moderno; e verão as gentes que não sou o D. Quixote que ele diz.

- Faz muito bem - disse D. Jerónimo -; há outras justas em Barcelona, onde o Sr. D. Quixote pode mostrar o seu valor.

- Isso tenciono fazer - tornou D. Quixote - e dêem-me Vossas Mercês licença, que já são horas de ir para a cama, e tenham-me na conta de um dos seus amigos e servidores.

- E a mim também - disse Sancho - pode ser que sirva para alguma coisa.

Com isto se despediram, e D. Quixote e Sancho retiraram-se para o seu aposento, deixando D. João e D. Jerónimo admirados de ver a mescla que ele tinha feito da sua discreção e da sua loucura; e acreditaram que eram estes os verdadeiros D. Quixote e Sancho, não os que descrevia o seu autor aragonês.

Madrugou D. Quixote, e, batendo com os nós dos dedos nos tabiques do outro aposento, se despediu dos seus novos amigos. Pagou Sancho ao vendeiro magnificamente, e aconselhou-lhe que gabasse menos o fornecimento da sua venda, e a tivesse melhor fornecida.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE NO CAMINHO DE BARCELONA

Era fresca a manhã, e dava mostras de o ser também o dia em que D. Quixote saiu da venda, informando-se primeiro de qual era o caminho mais direito, para ir para Barcelona sem tocar em Saragoça: tal era o desejo que tinha de pôr por mentiroso aquele novo autor, que tanto diziam que o vituperava. Não lhe aconteceu coisa digna de se escrever em mais de seis dias, ao cabo dos quais, indo fora do caminho ou carreira, apanhou-o a noite num espesso carvalhal ou sobreiral. Apearam-se das suas cavalgaduras o amo e o criado, e, encostando-se aos troncos das árvores, Sancho, que naquele dia merendara, entrou logo a dormir; mas D. Quixote a quem conservavam desperto ainda muito mais as suas imaginações do que a fome, não podia pregar olho, antes ia e vinha com o pensamento por mil géneros de lugares. Ora lhe parecia achar-se na cova de Montesinos; ora ver brincar e montar na sua burrica a Dulcineia, convertida em lavradeira; ora que lhe soavam aos ouvidos as palavras do sábio Merlim, referindo-lhe as condições e diligências com que se conseguiria o desencantamento de Dulcineia. Desesperava-se ao ver a frouxidão e a falta de caridade de Sancho; porque lhe parecia que apenas dera cinco açoites em si próprio, número desproporcionado e pequeno para os infinitos que lhe faltavam; e com isto se afligiu tanto, que fez consigo o seguinte discurso:

«Se Alexandre Magno cortou o nó górdio dizendo: Tanto monta cortar como desatar, e por isso não deixou de ser o senhor universal de toda a Ásia, nem mais nem menos podia suceder agora com o desencantamento de Dulcineia, se eu açoitasse Sancho contra vontade dele; porque, se a condição deste remédio está em receber Sancho os três mil e tantos açoites, que se me dá a mim que os dê ele, ou que lhos dê outro? O essencial é que ele os receba, venham de onde vierem!”

Pensando nisto, aproximou-se de Sancho, tendo primeiro agarrado nas rédeas de Rocinante; e, juntando-as de modo que pudesse açoitá-lo com elas, principiou a tirar-lhe a cinta; mas, apenas o começou a desapertar, acordou Sancho e disse:

- Que é isto? Quem me toca e me desaperta?

- Sou eu - respondeu D. Quixote - que venho suprir as tuas faltas, e remediar meus trabalhos; venho-te açoitar, Sancho, e descarregar em parte a dívida a que te obrigaste. Dulcineia perece, tu vives descuidado, eu morro de desejos; e, assim, desataca-te por vontade, que a minha é dar-te nesta solidão pelo menos dois mil açoites.

- Isso não - tornou Sancho -; Vossa Mercê faça favor de estar quieto, senão os surdos nos hão-de ouvir; os açoites a que me obriguei hão-de ser dados voluntariamente, e não à força; agora não tenho vontade de me açoitar; basta que eu dê a minha palavra a Vossa Mercê, que me fustigo e sacudo as moscas do meu corpo, assim que me apetecer.

- Não quero deixá-lo à tua cortesia, Sancho - disse D. Quixote -, porque és duro de coração, e tenro de carnes.

E procurava à viva força desapertá-lo. Vendo isto, Sancho levantou-se, e, arremetendo a seu amo, abraçou-o, e, passando-lhe o pé, deu com ele no chão, de cara virada para cima; pôs-lhe um joelho no peito, e, segurando-lhe nas mãos, não o deixava mexer nem respirar.

- Como, traidor, pois desmandas-te contra teu amo e senhor natural? Atreves-te contra quem te dá o pão?

- Não tiro rei, nem ponho rei - respondeu Sancho -, mas ajudo-me a mim, que sou meu senhor; prometa-me Vossa Mercê que estará quieto, e não tratará agora de me açoitar, que eu o deixarei livre e desembaraçado, senão

Aqui morrerás, traidor, imigo de Dona Sancha.

Prometeu D. Quixote, e jurou por vida dos seus pensamentos não lhe tocar na roupa, e deixá-lo açoitar-se quando quisesse, por sua livre vontade e alvedrio. Ergueu-se Sancho, e desviou-se daquele sítio um bom pedaço, e, indo arrimar-se a um tronco de árvore, sentiu que lhe tocavam na cabeça, e, levantando as mãos, topou dois pés de gente, com sapatos e calças. Tremeu de medo, procurou outra árvore, e aconteceu-lhe o mesmo; deu brados, chamando D. Quixote que lhe acudisse. Correu seu amo, e, perguntando-lhe o que é que sucedera, e de que é que tinha medo, respondeu-lhe Sancho que todas aquelas árvores estavam cheias de pernas e de pés humanos Apalpou-os D. Quixote, e logo percebeu o que seria, e disse a Sancho:

- Não tenhas medo, porque estes pés e pernas, que apalpas e não vês, decerto são de alguns foragidos e bandoleiros, enforcados nestas árvores, que por estes sítios os costuma enforcar a justiça quando os apanha de vinte a vinte, e de trinta a trinta árvores, e por isso percebo que devo estar ao pé de Barcelona.

E era, efectivamente, assim.

Ao amanhecer, levantaram os olhos e viram os cachos daquelas árvores, que eram corpos de bandoleiros. Já nisto vinha amanhecendo e se os mortos os tinham espantado também os atribularam mais de quarenta bandoleiros vivos, que de improviso os rodearam, dizendo-lhes, em língua catalã, que estivessem quedos e esperassem pelo capitão. Achava-se D. Quixote a pé, com o cavalo sem freio, com a lança arrimada a uma árvore, e, finalmente, sem defesa alguma; e, assim, não teve remédio senão cruzar as mãos e inclinar a cabeça, guardando-se para melhor ocasião e conjuntura. Correram os bandoleiros a espoliar o ruço, não deixando coisa alguma do que vinha nos alforges e na maleta, e por felicidade Sancho trazia os escudos do duque, e os que trouxera da terra, metidos numa algibeira do alçapão; mas, ainda assim, aquela boa gente o revistaria, e lhe tiraria até o que tivesse escondido por baixo da pele, se não chegasse nesse momento o seu capitão, que mostrava ser homem de trinta e quatro anos, robusto, bem proporcionado, mais alto que baixo, de olhar grave, e de cor morena. Vinha montado num poderoso cavalo, com uma cota de malha de aço e quatro pistolas, a que se chamam na Catalunha pedernales, metidas no cinto. Viu que os seus escudeiros (que assim chamam aos que andam naquele exercício) iam despojar Sancho Pança; ordenou-lhes que o não fizessem e foi logo obedecido; e, assim, escapou o cinto. Admirou-se de ver uma lança arrimada a uma árvore, um escudo no chão, e D. Quixote armado e pensativo, com a mais triste e melancólica fisionomia que a própria tristeza podia ter. Chegou-se a ele dizendo:

- Não estejais tão triste, bom homem, porque não caístes nas mãos de algum cruel Osíris, mas sim nas de Roque Guinart, que têm mais de compassivas que de rigorosas.

- Não estou triste - respondeu D. Quixote - por ter caído em teu poder Roque valoroso, para cuja fama não se encontram limites na Terra, mas sim por ter sido tal o meu descuido, que me apanharam os teus soldados sem freio no cavalo, sendo eu obrigado, pela regra da cavalaria andante que professo, a viver sempre alerta, sentinela a toda a hora de mim mesmo; e quero que saibas, grande Roque, que se me achasse montado no cavalo, com a minha lança e com o meu escudo, não lhes seria fácil renderem-me, porque sou D. Quixote de La Mancha, aquele que enche todo o orbe com as suas façanhas.

Logo Roque Guinart conheceu que a enfermidade de D. Quixote estava mais próxima da loucura que da valentia; e, ainda que algumas vezes o ouvira nomear, nunca julgou verdadeiros os seus feitos, nem se pôde persuadir de que tivesse semelhantes disposições o coração de um homem; alegrou-se em extremo por tê-lo encontrado, para tocar de perto o que de longe ouvira a respeito dele; e, assim, disse-lhe:

- Valoroso cavaleiro, não vos despeiteis, nem considereis como fortuna esquerda esta em que vos encontrais, porque pode ser que nestes tropeços se endireitasse a vossa torcida sorte; que o Céu, por estranhos e nunca vistos rodeios, nunca imaginados pêlos homens, costuma levantar os caídos, e enriquecer os pobres.

Já D. Quixote lhe ia agradecer, quando sentiu pela retaguarda um ruído, semelhante a tropel de cavalos; mas era um só, em que vinha montado, correndo a galope, um moço que parecia ter os seus vinte anos, vestido de damasco verde, com alamares de ouro, bragas, chapéu revirado à valona, botas envernizadas e justas, esporas, adaga e espada dourada, uma pequena escopeta nas mãos e duas pistolas na cinta. Ouvindo o ruído, voltou a cabeça Roque, e viu esta gentil figura, que, ao aproximar-se dele, disse-lhe:

- Vinha à tua procura, valoroso Roque, para encontrar em ti, senão remédio, pelo menos alívio na minha desdita; e para que não estejas suspenso, porque vejo que me não conheceste, quero dizer-te quem sou: Sou Cláudia Jerónima, filha de Simão Forte, teu amigo particular e inimigo de Clauquel Torrellas, que também é inimigo teu, por ser do bando contrário; e sabes que este Torrellas tem um filho, que se chama D. Vicente Torrellas, ou que pelo menos assim se chamava ainda há menos de duas horas. Este, pois, para encurtar razões, viu-me, enamorou-se de mim, escutei-o, e enamorei-me também, às escondidas de meu pai; que não há mulher, por mais retirada que esteja, e por mais recatada que seja, a quem não sobre tempo para pôr em execução e efeito os seus atropelados desejos. Finalmente, prometeu ele ser meu esposo, e eu dei-lhe palavra de ser sua, sem que em obras fôssemos adiante. Soube ontem que ele, esquecido do que me devia, ia casar com outra, e que esta manhã a desposava, notícia que me turbou os sentidos e me deu cabo da paciência; e por meu pai não estar no lugar, tive eu de me vestir com este fato, e, metendo o cavalo a galope, alcancei D. Vicente daqui a coisa de uma légua, e, sem começar a fazer queixas nem a ouvir desculpas, disparei sobre ele esta escopeta e mais estas duas pistolas, e parece-me que lhe meti mais de duas balas no corpo, abrindo-lhe portas por onde saísse a minha honra, envolta no seu sangue. Ali o deixei nas mãos de seus criados, que não ousaram nem puderam defendê-lo, e venho rogar-te que me passes para França, onde tenho parentes com quem viva, e também pedir-te que defendas meu pai, para que os muitos parentes de D. Vicente se não atrevam a tirar dele vingança.

Roque, admirado da galhardia, boa figura, e aventurosa índole da formosíssima Cláudia, disse-lhe:

- Vinde, Senhora; vamos ver se morreu o teu inimigo, e depois veremos o que mais vos convirá.

  1. Quixote, que escutara o que Cláudia dissera e o que Roque respondera, observou:

- Não precisa de se incomodar em defender esta Senhora, que tomo eu isso a meu cargo: dê-me o meu cavalo e as minhas armas, que eu irei em busca desse cavalheiro, e, morto

ou vivo, o obrigarei a cumprir a promessa que fez a tanta formosura.

- Ninguém duvide disto - disse Sancho -, porque meu amo tem muito boa mão para casamenteiro; ainda não há muitos dias que obrigou a casar um, que também faltou à palavra que a outra donzela dera; e, se não fossem os nigromantes terem mudado a verdadeira figura do moço na de um lacaio, já a estas horas a tal donzela o não seria.

Roque Guinart, que mais cuidava no sucesso da formosa Cláudia do que nos discursos do amo e do criado, não os entendeu, e, ordenando aos seus escudeiros que restituíssem a Sancho tudo o que tinham tirado do ruço, ordenou-lhes também que se retirassem para o sítio onde tinham estado nessa noite alojados, e logo partiu com Cláudia a toda a brida, à procura do ferido ou morto D. Vicente. Chegaram ao sítio onde Cláudia o encontrou, e não viram ali senão sangue derramado de fresco; mas, percorrendo com a vista aqueles contornos, descobriram por um monte acima alguma gente, e perceberam que seria D. Vicente, que os seus criados levavam, ou morto ou vivo, ou para o curar, ou para o enterrar. Correram a apanhá-los, o que facilmente conseguiram, porque o cortejo ia vagarosamente. Encontraram D. Vicente nos braços dos seus servos, a quem pedia, com a voz cansada e débil, que o deixassem ali morrer, porque a dor das feridas não consentia que fosse mais adiante. Saltaram dos cavalos abaixo, chegaram-se a eles; tremeram os criados com a presença de Roque, e turbou-se Cláudia com a de D. Vicente; e meia enternecida e meia rigorosa, chegou-se a ele, travando-lhe das mãos, e disse-lhe:

- Se tu me desses estas mãos, conforme o que combinámos, não te verias nunca neste transe.

Abriu o ferido cavaleiro os olhos semicerrados, e, conhecendo Cláudia, disse-lhe:

- Bem vejo, formosa e iludida Senhora, que foste tu que me mataste, castigo não merecido nem devido a meus desejos, porque nunca, nem com desejos nem com obras, te quis ofender.

- Então, não é verdade - disse Cláudia -, que ias esta manhã desposar Leonora, a filha do rico Balvastro?

- Não, decerto - respondeu D. Vicente. - Foi a minha má fortuna que te levou essa notícia, para que por zelos me tirasses '; a vida; mas, deixando-a nas tuas mãos e nos teus braços, ainda me considero venturoso; e, para te assegurares desta verdade, aperta-me a mão e recebe-me por esposo, se quiseres, que não tenho maior satisfação a dar-te do agravo que de mim recebeste.

Apertou-lhe a mão Cláudia, e apertou-se-lhe o coração de maneira que desmaiou em cima do peito ensanguentado de D. Vicente, e este foi acometido por um paroxismo mortal. Estava confuso Roque, e não sabia o que havia de fazer. Correram os criados a buscar água para a deitarem no rosto de seu amo, e trouxeram bastante para banhar os rostos de Vicente e de Cláudia. Acordou esta do seu desmaio, mas não do seu paroxismo D. Vicente, porque lhe acabou a vida; e, vendo isto Cláudia, e reconhecendo que já o seu doce esposo não vivia, feriu os ares com suspiros, e o Céu com as suas queixas; maltratou os cabelos, soltando-os ao vento, rasgou a cara com as suas próprias mãos, com todos os sinais de dor e de sentimento, que podem indicar a angústia que punge um coração. «Ó cruel e inconsiderada mulher! - dizia ela - com que facilidade puseste em execução tão mau pensamento! Ó raivosa força dos zelos, a que desesperado fim conduziste a quem vos deu acolhimento no peito! Ó meu esposo, cuja desditosa sorte, por ser prenda minha, te levou do tálamo à sepultura!”

Tais eram os tristes queixumes de Cláudia, que arrancaram lágrimas dos olhos de Roque, não costumados a derramá-las.

Choravam os criados, a cada passo desmaiava Cláudia, e todo aquele circuito parecia campo de tristeza e lugar de desgraças. Finalmente, Roque Guinart ordenou aos criados de D. Vicente que levassem o corpo dele para a aldeia de seu pai, que ficava ali perto, para lhe darem sepultura. Cláudia disse a Roque que queria ir para um mosteiro, de que era abadessa uma tia sua, e onde tencionava acabar a vida, acompanhada por outro melhor e mais eterno esposo. Louvou-lhe Roque o seu bom propósito, e ofereceu-se para a acompanhar até onde ela quisesse, e para defender seu pai contra os parentes de D. Vicente e contra todos os que quisessem molestá-lo. Não aceitou Cláudia a sua companhia, e, agradecendo os seus oferecimentos com as melhoras palavras, despediu-se dele chorando. Os criados de D. Vicente levaram-lhe o corpo, e Roque voltou para os seus: e este fim tiveram os amores de Cláudia Jerónima. Mas que admira, se teceram o trama da sua lamentável história as forças invencíveis e rigorosas dos zelos?

Achou Roque Guinart os seus escudeiros no sítio para onde os mandara, e D. Quixote com eles, montado em Rocinante, fazendo-lhes uma prática, em que lhes persuadia que deixassem aquele modo de vida, tão perigoso, tanto para a alma, como para o corpo; mas, como a maior parte deles eram gascões, gente rústica e fera, não lhes entrava bem na cabeça a prática de D. Quixote. Apenas Roque chegou, perguntou a Sancho se lhe haviam restituído o que lhe tinham tirado do ruço. Respondeu Sancho que sim, mas que só lhe faltavam três lenços, que valiam três cidades.

- Que dizes tu, homem? - acudiu um dos que estavam presentes. - Sou eu que os tenho, e não valem três réis.

- É verdade - disse D. Quixote -, mas avalia-os o meu escudeiro no que diz, por mós ter dado quem mós deu.

Mandou-os Roque Guinart restituir imediatamente, e, mandando pôr os seus em fileira, ordenou que trouxessem para ali fatos, jóias, dinheiro, tudo, enfim, quanto fora roubado desde a última repartição; e, fazendo rapidamente a conta, trocando a dinheiro o que não era divisível, repartiu tudo pela companhia, com tanta igualdade e prudência, que a ninguém favoreceu nem defraudou. Feito isto, e ficando todos satisfeitos, contentes e pagos, disse Roque para D. Quixote:

- Se não se guardasse esta pontualidade, não se podia viver com eles.

- Pelo que vejo - disse Sancho -, é tão boa coisa a justiça, que é necessária até entre os ladrões.

Ouviu-o um escudeiro, e, levantando o arcabuz pelo cano, ia decerto abrir a cabeça a Sancho, se Roque Guinart lhe não bradasse que se detivesse. Ficou Sancho pasmado, e resolveu não tornar a abrir a boca, enquanto estivesse com aquela gente.

Nisto, chegaram uns escudeiros, que estavam de sentinela lá fora e disseram:

- Senhor, não longe daqui pela estrada de Barcelona, vem um tropel de gente.

- Viste se são dos que nos buscam, ou se são dos que buscamos? - perguntou Roque.

- São dos que buscamos - respondeu o escudeiro.

- Pois saí todos - tornou Roque - e trazei-mos, sem que escape um só.

Obedeceram-lhe; e, ficando sozinhos D. Quixote, Sancho e o capitão, estiveram à espera de ver o que os escudeiros traziam; e, entretanto, disse Roque para D. Quixote:

- Há-de parecer o nosso modo de vida novo para o Sr. D. Quixote, assim como lhe hão-de parecer novas as nossas aventuras, novos os nossos sucessos, e todos perigosos; e não me espanto que assim pareça, porque, realmente, confesso que não há modo de vida mais inquieto e mais sobressaltado do que este. A mim trouxeram-me para ele não sei que desejos de vingança, que têm força de turbar os mais sossegados corações; eu sou de índole compassiva e bem-intencionada; mas, como disse, o querer-me vingar de um agravo que se me fez, deu em terra com todas as minhas boas inclinações, de forma que persevero neste estado, apesar do que entendo; e, como um abismo chama outro abismo, e um pecado outro pecado, encadearam-se as vinganças, de modo que me encarrego não só das minhas, mas também das alheias; mas, graças a Deus, ainda que me vejo no meio do labirinto das minhas confusões, não perco a esperança de sair dele a salvamento.

Ficou D. Quixote admirado de ouvir a Roque tão boas e concertadas razões, porque pensava que entre os que tinham estes ofícios de roubar, matar e assaltar, não podia haver quem tivesse bom discorrer; e respondeu-lhe:

- Senhor Roque, o conhecimento da enfermidade, e o querer tomar o enfermo os remédios que o médico receita, são o princípio da saúde: Vossa Mercê está enfermo, conhece a sua doença, e o Céu, ou Deus, para melhor dizer, que é o nosso médico, lhe aplicará remédios que o sarem, remédios que costumam curar a pouco e pouco, e não de repente e por milagre; e, além disso, os pecadores discretos estão mais próximos de emendar-se do que os simples; e, como Vossa Mercê mostrou no seu arrazoado e sua prudência, tenha ânimo e espere, que há-de melhorar da enfermidade da sua alma; e se quiser poupar caminho, e entrar com facilidade no da sua salvação, venha comigo, que eu o ensinarei a ser cavaleiro andante, profissão em que se passam tantos trabalhos e desventuras, que, tomando-as por penitência, põem-no em duas palhetadas no caminho do Céu.

Riu-se Roque do conselho de D. Quixote, a quem, mudando de conversação, contou o trágico sucesso de Cláudia Jerónima, ficando muito pesaroso Sancho, a quem não tinha parecido mal a beleza, desenvoltura e brio da moça. Nisto, chegaram os escudeiros do roubo, trazendo consigo dois cavaleiros e dois peregrinos a pé, e um coche de mulheres, com seis criados a pé e a cavalo, que as acompanhavam, e mais dois moços de mulas, que os cavaleiros traziam. Meteram-nos no meio os escudeiros, guardando vencidos e vencedores um grande silêncio, à espera que falasse o grande Roque Guinart, o qual perguntou aos cavaleiros quem eram, para onde iam e que dinheiro levavam.

Um deles respondeu:

- Senhor, somos dois capitães de infantaria espanhola, temos as nossas companhias em Nápoles, e vamos embarcar numas galés, que se diz que estão em Barcelona, com ordem de passar a Sicília; levamos cerca de duzentos ou trezentos escudos, com que, no nosso entender, vamos ricos e satisfeitos, porque as habituais estreitezas dos soldados não permitem maiores tesouros.

Perguntou Roque aos peregrinos o mesmo que aos capitães; responderam-lhe que iam embarcar para passar a Roma, e que ambos levariam sessenta réis. Quis saber quem ia também no coche, e o dinheiro que levava; e um dos de cavalo disse:

- Vão no coche minha ama Dona Guiomar de Quinones, mulher do regedor do vigariado de Nápoles, com uma filha pequena, uma donzela e uma dona; acompanhamo-las seis criados, e o dinheiro eleva-se a seiscentos escudos.

- De modo - disse Roque Guinart - que temos aqui já novecentos escudos e sessenta réis: os meus soldados serão sessenta, pouco mais ou menos; vejam quanto cabe a cada um, que eu sou mau contador.

Ouvindo isto, os salteadores levantaram a voz, bradando:

- Viva Roque Guinart muitos anos, mau grado aos patifes que juraram perdê-lo.

Turbaram-se os capitães, afligiu-se a Senhora Regedora, e não ficaram nada satisfeitos os peregrinos, vendo a confiscação dos seus bens. Teve-os assim Roque um pedaço suspensos, mas não quis que fosse mais adiante a sua tristeza, que já claramente se revelava, e disse, voltando-se para os capitães:

- Emprestem-me Vossas Mercês, por favor Senhores Capitães, sessenta escudos, e a Senhora Regedora oitenta, para contentar esta minha esquadra, porque o abade janta do que canta; e podem seguir depois o seu caminho, livre e desembaraçadamente, com um salvo-conduto, que eu lhes darei, para que, se toparem alguma outra das minhas esquadras, que tenho divididas por estes contornos, elas lhes não façam dano, que não é minha intenção agravar soldados, nem mulher alguma, especialmente as que são principais.

Foram infinitas e bem expressas as razões com que os capitães agradeceram a Roque a sua cortesia e liberalidade, que assim consideraram o deixar-lhes o dinheiro que era deles. A sra. Dona Guiomar de Quinones quis-se apear do coche para beijar os pés e as mãos do grande Roque, mas ele no o consentiu de modo algum, antes lhe pediu perdão do agravo que lhe fizera, por se ver forçado a cumprir as obrigações do seu ofício. Mandou a Senhora Regedora a um dos seus criados que desse imediatamente os oitenta escudos que lhe tinham distribuído, e já os capitães haviam desembolsado os sessenta. Iam os peregrinos entregar toda a sua mesquinha fazenda, mas Roque disse-lhes que estivessem quedos; e, voltando-se para os seus, disse-lhes:

- Destes escudos cabem dois a cada um de vocês, e sobejam vinte; dêem dez a estes peregrinos, e outros dez a este honrado escudeiro, para que possa dizer bem desta aventura.

E, tirando arranjos para escrever, de que sempre andava munido, deu-lhes por escrito um salvo-conduto para os maiorais das suas esquadras, e, despedindo-se deles, deixou-os ir livres e admirados da sua nobreza, do seu galhardo porte, do seu estranho proceder, tendo-o por mais Alexandre Magno, do que por um ladrão conhecido.

Um dos escudeiros disse na sua língua, meia gascã, meia catalã:

- Este nosso capitão serve mais para frade que para bandoleiro: se daqui por diante quiser mostrar-se liberal, que seja com a sua fazenda, e não com a nossa,

Não o disse tão devagar o desventurado que Roque deixasse de o ouvir, e este logo, lançando mão à espada, lhe abriu a cabeça quase de meio a meio, dizendo-lhe:

- Assim castigo os desbocados e atrevidos.

Pasmaram todos, e nenhum se atreveu a dizer uma palavra:

tanta era a obediência que lhe tinham. Afastou-se Roque para o lado, e escreveu uma carta a um seu amigo de Barcelona avisando-o de que estava com ele o famoso D. Quixote de La Mancha, aquele cavaleiro andante de quem tantas coisas se diziam;

e que lhe fazia saber que era o mais engraçado e mais entendido homem do mundo; que daí a quatro dias, dia de S. João Baptista, iria pôr-se no meio da praça da cidade, armado com todas as armas, montado no seu cavalo Rocinante, acompanhado pelo seu escudeiro Sancho, montado num burro, e que desse notícia disto aos Niarros seus amigos, para que com ele se divertissem; que ele desejaria que não se regalassem também com isto os Cadeils seus contrários, mas que era impossível evitá-lo porque as loucuras e discrições de D. Quixote, e os donaires do seu escudeiro Sancho Pança, não podiam deixar de servir de passatempo geral a toda a gente.

Despachou esta carta por um dos seus escudeiros, que, mudando o trajo de bandoleiro no de lavrador, partiu para Barcelona.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE NA ENTRADA DE BARCELONA, COM OUTRAS COISAS QUE TÊM MAIS DE VERDADEIRAS QUE DE DISCRETAS

Três dias e três noites esteve D. Quixote com Roque, e, se estivesse trezentos anos, não lhe faltaria que ver e admirar no seu modo de vida. Amanheciam aqui e jantavam acolá; umas vezes fugiam sem saber de quê e outras vezes esperavam, sem saber a quem. Dormiam em pé, interrompendo o sono com o mudar-se de um sítio para outro. Tudo era pôr espias, escutar sentinelas, assoprar os morrões dos arcabuzes, ainda que no tinham muitos, porque todos se serviam de pistolas. Roque passava as noites apartado dos seus, e de forma que eles não pudessem saber onde ele estava, porque os muitos bandos que o vice-rei de Barcelona deitara para alcançar a sua cabeça, traziam-no inquieto e receoso, e não se atrevia a fiar-se em ninguém, temendo que até os seus o entregassem à justiça - vida decerto, miserável e enfadosa. Enfim, por caminhos desusados, por atalhos e sendas encobertas, partiram Roque, D. Quixote e Sancho, com mais seis escudeiros, para Barcelona. Chegaram ali na véspera de S. João à noite, e abraçando Roque a D. Quixote e a Sancho, a quem deu os dez escudos prometidos, que até então lhe não dera deixou-os com mil oferecimentos que de um e de outro lado se fizeram. Voltou Roque para trás, ficou D. Quixote esperando o dia, a cavalo como estava, e não tardou muito que não principiasse a descobrir-se, pêlos balcões do Oriente, o rosto da branca aurora, alegrando as ervas e as flores. Ao mesmo tempo alegraram também os ouvidos as muitas charamelas e timbales, tambores e pífaros, e tropear de cavalos, cujo som parecia vir da cidade. Deu lugar a aurora ao Sol que com o rosto maior que uma rodela, surgia a pouco e pouco do fundo do horizonte. Estenderam, D. Quixote e Sancho, a vista por todos os lados, viram o mar, que até então nunca tinham visto, e pareceu-lhes imenso e espaçosíssimo, muito maior que as lagoas de Ruidera, que tinham na Mancha. Viram as galés varadas na praia, que estavam cheias de flâmulas e galhardetes, que tremulavam ao vento e varriam as águas. Dentro delas soavam clarins, trombetas e charamelas, que, ao perto e ao longe, enchiam os ares de suaves e belicosos lamentos. Principiaram a mover-se, e a fazer como que umas escaramuças navais nas sossegadas águas, correspondendo-lhes quase do mesmo modo, infinitos cavaleiros, que saíam da cidade montados em formosos cavalos, e com vistosas galas. Os soldados das galés disparavam muitos canhões, a que respondiam os que estavam nas muralhas e fortes da cidade; e a grossa artilharia, com temeroso estrondo, rompia os ares respondendo-lhe os canhões de maior calibre das galeras.

O mar alegre, a terra jucunda, e o ar límpido ou apenas turvo com o fumo da pólvora, parece que iam infundindo e gerando súbita alegria em toda a gente. Não podia imaginar Sancho como podiam ter tantos pés aqueles vultos que se moviam no mar. Nisto, vieram correndo com gritos: «é ele, é ele”, em grande algazarra, os cavaleiros das vistosas galas, e, dirigindo-se para o sítio onde estava, atónito e suspenso, D. Quixote, um deles, que era o que Roque avisara, disse em alta voz a D. Quixote:

- Seja bem-vindo à nossa cidade o espelho, o farol, a estrela e o norte de toda a cavalaria andante o homem em cujo peito mais largamente ela se encerra; bem-vindo seja, repito, o valoroso D. Quixote de La Mancha, não o falso, não o fictício, não o apócrifo, que em falsas histórias ultimamente nos mostraram, mas sim o verdadeiro, o legal, o fiel, que nos descreveu Cide Hamet Benengeli, flor dos historiadores.

Não respondeu palavra D. Quixote, nem os cavaleiros esperaram resposta; mas, girando e regirando com os outros que os seguiram, começaram a galopar, em espiral, em torno de D. Quixote, que, voltando-se para Sancho disse:

- Eles logo nos conheceram: aposto que leram a nossa história, e também a do aragonês, que foi há pouco impressa.

Voltou outra vez o cavaleiro que falara a D. Quixote, e disse:

- Venha Vossa Mercê connosco, Sr. D. Quixote, que somos todos seus servos, e grandes amigos de Roque Guinart.

- Se cortesias geram cortesias - respondeu D. Quixote -, a vossa Senhor Cavaleiro, é filha ou parenta muito próxima da do grande Roque. Levem-me para onde quiserem, que eu não terei outra vontade senão a vossa, e ainda mais se a quiserdes empregar em servir-vos.

Com palavras não menos comedidas do que estas lhe respondeu o cavaleiro, e, metendo-o todos no meio, ao som das charamelas e dos timbales, encaminharam-se com ele para a cidade, a cuja entrada o mafarrico, que todo o mal ordena, e os gaiatos, que ainda são piores do que ele, tramaram uma partida: dois garotos, travessos e atrevidos, meteram-se por meio de toda a gente, e, levantando um deles o rabo do ruço e outro o de Rocinante, ataram-lhes um molho de cardos. Sentiram os pobres animais essas esporas de novo género, e, apertando as caudas, ainda aumentavam a dor; de modo que, aos corcovos e aos coices, deram com seus donos em terra. D. Quixote, corrido e afrontado, apressou-se a tirar os cardos do rabo do seu companheiro, e Sancho os do jumento. Quiseram os que guiavam D. Quixote castigar o atrevimento dos gaiatos, mas não foi possível, porque se meteram no meio de mais de mil que os seguiam. Tornaram a montar D. Quixote e Sancho, e, com o mesmo aplauso e música, chegaram a casa do seu guia, que era grande e principal, enfim como de cavaleiro rico; e aí os deixaremos por agora, porque assim o quer Cide Hamet.

 

QUE TRATA DA AVENTURA DA CABEÇA ENCANTADA, COM OUTRAS NINHARIAS QUE NãO PODEM DEIXAR DE SE CONTAR

Chamava-se D. António Moreno o hospedeiro de D. Quixote, cavaleiro rico e discreto, e amigo de se divertir honesta e afavelmente; e, vendo em sua casa D. Quixote, andava procurando modo de trazer a campo as suas loucuras, sem lhe fazer dano, porque são más brincadeiras as que doem, nem há passatempos que valham, sendo em prejuízo alheio. A primeira coisa que fez foi mandar desarmar D. Quixote, e pôr à vista aquele seu apertado gibão que já por muitas vezes descrevemos e pintámos, e levá-lo para uma sacada, que deitava para uma das ruas mais principais da cidade, e tendo-o em exposição diante de todos, que o miravam, como se ele fosse um animal curioso. Correram de novo por diante os cavaleiros, como se só para ele, e não para alegrar aquele festivo dia, tivessem vestido as suas galas; e Sancho Pança estava contentíssimo, por lhe parecer que se achara, sem saber como nem como não, noutras bodas de Camacho, noutra casa como a de D. Diogo de Miranda, e noutro castelo como o do duque.

Jantaram naquele dia, com D. António alguns dos seus amigos, honrando e tratando todos D. Quixote como cavaleiro andante; e ele, por isso, inchado e pomposo, não cabia em si de contente. As graças de Sancho foram tantas, que andavam, como que suspensos da sua boca, os criados da casa e todos os que o ouviam.

Estando à mesa, disse D. António a Sancho:

- Já por cá temos notícias, bom Sancho, de que gostais tanto de manjar branco e de almôndegas, que, se vos sobejam, guardais tudo no seio para outro dia.

- Não, senhor, não é assim - respondeu Sancho -, porque sou mais asseado que guloso; e meu amo D. Quixote, que presente se acha, bem sabe que, com um punhado de bolotas ou de nozes, costumamos passar ambos oito dias; é verdade que, se às vezes sucede darem-me a vaca, vou logo com a corda: quero dizer, como o que me dão; e quando venta molha a vela; e quem tiver dito que sou comilão avantajado e sujo, fique sabendo que não acertou; e de outro modo eu diria isto, se não atendesse às barbas honradas dos que estão à mesa.

- É certo - disse D. Quixote - que a parcimónia e asseio com que Sancho come se podem escrever e gravar em lâminas de bronze, para que fique em memória eterna nos séculos futuros. É verdade que, quando tem fome, parece sôfrego, porque come depressa e a dois carrilhos, mas sempre com grande asseio; e, no tempo em que foi governador, aprendeu a comer com melindre; tanto, que até comia com garfo as uvas e os bagos de rom.

- O quê! - disse D. António. - Sancho foi governador?

- Fui - respondeu Sancho - de uma ilha chamada Barataria. Dez dias a governei; nesses dias perdi o sossego e aprendi a desprezar todos os governos do mundo; saí, rugindo; caí numa cova, onde me tive por morto, e de onde me safei vivo, por milagre.

Contou D. Quixote, por miúdo, todos os sucessos do governo de Sancho, com o que divertiu muito os ouvintes. Levantada a mesa, e tomando D. António a D. Quixote pela mão, entrou com ele num apartado aposento, onde não havia outro adorno senão uma mesa de um pé só, que parecia toda de jaspe, em cima da qual estava posta uma cabeça, que parecia de bronze, em busto, como as dos imperadores romanos. Passeou D. António com D. Quixote por todo o aposento, rodeando muitas vezes a mesa; e depois disse:

- Agora, Sr. D. Quixote, que sei que ninguém nos escuta, e que está fechada a porta, quero contar a Vossa Mercê uma das mais raras aventuras, ou, para melhor dizer, das mais raras novidades que imaginar-se podem, com a condição de que Vossa Mercê há-de encerrar o que eu lhe disser nos mais recônditos recessos do segredo.

- Assim o juro - respondeu D. Quixote -, e ponho-lhe uma pedra em cima, para mais segurança; porque quero que Vossa Mercê saiba, Sr. D. António, que está falando com quem, apesar de ter ouvidos para ouvir, não tem língua para falar; portanto, pode, com segurança, trasladar o que tem no seu peito para o meu, e fazer de conta que o arrojou aos abismos do silêncio.

- Fiado nessa promessa - respondeu D. António -, quero que Vossa Mercê se admire do que vai ver e ouvir e que me dê a mim algum alívio da pena que me causa não ter a quem comunicar os meus segredos, que não se podem dizer a todos.

Estava suspenso D. Quixote, esperando em que iriam parar tantas prevenções. Nisto, D. António, pegando-lhe na mão, passeou-a pela cabeça de bronze, e por toda a mesa, e pelo pé de jaspe que a sustinha, e disse:

- Esta cabeça, Sr. D. Quixote, foi feita e fabricada por um dos maiores nigromantes e feiticeiros que teve o mundo, polaco de nação, parece-me, e discípulo do famoso Escotillo, de quem tantas aventuras se contam; esteve aqui em minha casa, e, por mil escudos que lhe dei, lavrou esta cabeça, que tem a propriedade e a virtude de responder a quantas coisas se lhe perguntarem ao ouvido. Traçou rumos, pintou caracteres, observou astros, mirou pontos, e, finalmente, completou-a com a perfeição que amanhã veremos, porque nas sextas-feiras está muda; e por isso, como hoje é sexta-feira, teremos de esperar até amanhã. Poderá Vossa Mercê prevenir-se com as perguntas que lhe quiser fazer, porque, por experiência, sei que responde a verdade.

Ficou admirado D. Quixote da virtude e da propriedade da cabeça, e esteve quase não acreditando em D. António; mas, vendo o pouco tempo que faltava para se fazer a experiência, não lhe quis dizer senão que lhe agradecia o ter-lhe descoberto tamanho segredo. Saíram do aposento, fechou D. António a porta à chave, e foram para a sala onde estavam os outros cavalheiros, a quem Sancho contara, entretanto, muitos dos sucessos e aventuras que a seu amo tinham acontecido. Nessa tarde levaram a passear D. Quixote, não armado, mas vestido com um balandrau cor de pele de leão, que faria suar naquele tempo o próprio gelo. Ordenaram aos seus criados que entretivessem Sancho, de modo que o não deixassem sair de casa.

Ia D. Quixote montado, não em Rocinante, mas num grande macho de andar sereno, e muito bem aparelhado. Vestiram-lhe o balandrau, e nas costas, sem que ele visse, coseram-lhe um pergaminho, em que escreveram com letras grandes: “Esse é D. Quixote de La Mancha. No princípio do passeio, atraía o rótulo a vista de quantos passavam, que se aproximavam logo, e, como liam em voz alta: Este é D. Quixote de La Mancha, admirava-se D. Quixote de ver que todos os que olhavam para ele o nomeavam e conheciam; e, voltando-se para D. António, que ia ao seu lado, disse-lhe:

- Grandes prerrogativas tem a cavalaria andante, porque torna quem a professa conhecido e famoso em todos os cantos da Terra; senão, veja Vossa Mercê, Sr. D. António, que até os garotos desta cidade, sem nunca me terem visto, me conhecem.

- É verdade, Sr. D. Quixote - respondeu D. António -, que, assim como o fogo não pode estar escondido e encerrado, não pode a virtude deixar de ser conhecida; e a que se alcança pela profissão das armas resplandece e campeia sobre todas as outras.

Aconteceu, pois, que, caminhando D. Quixote com o aplauso que se disse, um castelhano, que leu o rótulo das costas, levantou a voz, dizendo:

- Valha-te o Diabo, D. Quixote de La Mancha; como vieste aqui parar, escapando com vida às infinitas pauladas que apanhaste? Tu és doido, e, se o fosses sozinho e dentro das portas da tua loucura, não seria mau; mas tens a propriedade de tornar doidos e mentecaptos todos os que tratam e comunicam contigo; senão, vejam estes senhores que te acompanham. Vai para tua casa, mentecapto, e olha pela tua fazenda, por tua mulher e teus filhos, e deixa-te dessas tolices, que te comem o siso, e te descoalham o entendimento.

- Irmão - disse D. António -, segui o vosso caminho, e não deis conselhos a quem vo-los não pede. O Sr. D. Quixote de La Mancha é mui sensato, e nós outros, que o acompanhamos, não somos néscios: a virtude há-de-se honrar onde se encontrar; e ide-vos em má hora, e não vos metais onde não sois chamado.

- Por Deus! Tem Vossa Mercê razão - tornou o castelhano -; dar conselhos a este bom homem, é dar coices no aguilhão; mas, contudo, tenho muita pena de que o bom senso, que dizem que esse mentecapto em tudo mostra, o venha a desaguar pelo canal da sua cavalaria andante; e caia sobre mim e sobre os meus descendentes a hora má que Vossa Mercê diz, se daqui por diante, ainda que eu viva mais anos que Matusalém, der conselhos a quem mós não pedir.

Afastou-se o conselheiro, e seguiram os outros no seu passeio; mas os garotos e toda a mais gente atropelavam-se de tal modo a ler o rótulo, que D. António teve de o tirar, fingindo que lhe tirava outra coisa.

Chegou a noite, voltaram para casa, e houve sarau de damas; porque a mulher de D. António, que era uma senhora principal e alegre, formosa e discreta, convidou outras suas amigas para vir honrar o seu hóspede, e saborear as suas nunca vistas loucuras. Apareceram algumas, ceou-se esplendidamente, e principiou o sarau quase às dez da noite. Entre as damas, havia duas de génio alegre e zombeteiro; e, sendo muito honestas eram, contudo, desenvoltas bastante, para que as suas burlas agradassem sem enfadar. Estas tanto teimaram em tirar D. Quixote para dançar, que lhe moeram não só o corpo, mas a alma também. Era coisa de ver a figura de D. Quixote, comprido e estirado, magro e amarelo, de fato muito justo, desengonçado, e, sobretudo, pouquíssimo ligeiro. Requebravam-no como que a furto, as donzelas, e ele também, como que a furto, as desdenhava; mas, vendo-se apertado com requebros, levantou a voz e disse:

- Fuite, partes adversã; deixai-me no meu sossego, pensamentos importunos; levai para outro lado, Senhoras, os vossos desejos, que aquela que dos meus é rainha, a incomparável Dulcineia del Toboso, não consente que nenhuns outros, sem serem os seus, me rendam e avassalem.

E, dizendo isto, sentou-se no chão, no meio da casa, moído e quebrantado com tão bailador exercício. Mandou D. António que o levassem em peso para o leito, e o primeiro que lhe deitou a mão foi Sancho, que lhe disse:

- Safa, Senhor, meu amo, muito bailastes! Então pensais que todos os valentes são dançadores, e todos os cavaleiros andantes bailarinos? Digo que, se tal pensais, estais enganado. Há homem que mais depressa se atreverá a matar um gigante que a dar uma cabriola; quando houverdes de sapatear, eu suprirei a vossa falta, que sapateio como um gerifalte; mas, lá no dançar não dou rego.

Com estas e outras palavras divertiu Sancho os do sarau, e meteu seu amo na cama, cobrindo-o de roupa, para que se curasse, suando, do esfriar do baile.

Ao outro dia, entendeu D. António que era tempo de fazer a experiência da cabeça encantada, e com D. Quixote, Sancho, e mais dois amigos, e as duas senhoras que tinham moído D. Quixote no baile, e passado a noite com a mulher de D. António, fechou-se no quarto onde estava a cabeça. Contou-lhes a propriedade que tinha pediu-lhes segredo e disse-lhes que era esse o primeiro dia em que se havia de experimentar a virtude da tal cabeça encantada; e, a não serem os dois amigos de D. António, mais nenhuma pessoa sabia o busílis do encantamento; e, ainda assim, se D. António lho não tivesse descoberto primeiro, também eles cairiam no pasmo em que os outros caíram: nem outra coisa era possível - com tal arte e tão boa traça estava fabricada. O primeiro, que se chegou ao ouvido da cabeça, foi o mesmo D. António, e disse-lhe em voz submissa, mas não tanto que o não entendessem todos:

- Diz-me, cabeça, pela virtude que em ti se encerra: em que penso agora?

E a cabeça respondeu-lhe, sem mover os lábios, com voz clara e distinta, de modo que foi por todos entendida, o seguinte:

- Não julgo de pensamentos.

Ouvindo isto, ficaram todos atónitos, vendo que não havia em todo o aposento pessoa humana que pudesse responder.

- Quantos estamos aqui? - tornou a perguntar D. António.

Respondeu-lhe a cabeça, do mesmo teor, e baixinho:

- Estás tu e tua mulher, com dois amigos teus, e duas amigas dela, e um famoso cavaleiro chamado D. Quixote de La Mancha, e um seu escudeiro que tem o nome de Sancho Pança.

Aqui foi o admirarem-se todos de novo; aqui o erriçarem-se os cabelos a todos os presentes, de puro espanto; e, afastando-se D. António da cabeça, disse:

- Isto me basta para saber que não fui enganado pela pessoa que ma vendeu: cabeça sábia, cabeça faladora, cabeça respondona, e admirável cabeça! Chegue-se outro, e pergunte-lhe o que quiser.

E, como as mulheres, de ordinário, são curiosas e amigas de saber, a primeira que se chegou foi uma das duas amigas da esposa de D. António, e perguntou-lhe:

- Diz-me, cabeça: que hei-de fazer para ser formosa? E respondeu-lhe a cabeça:

- Ser honesta.

- Não te pergunto mais nada - disse a perguntadora. Chegou-se logo a companheira e prosseguiu:

- Diz-me, cabeça, se meu marido me quer bem ou não.

- Vê o que ele te faz - respondeu a cabeça - e logo o saberás.

Afastou-se a casada, dizendo:

- Para receber esta resposta, não valia a pena perguntar nada, porque, efectivamente, pelas obras se revela a vontade de quem as pratica.

Chegou em seguida um dos dois amigos de D. António e perguntou-lhe:

- Quem sou eu?

- Tu bem o sabes.

- Não te pergunto isso - respondeu o cavaleiro -, mas quero que me digas se me conheces.

- Conheço, sim, és D. Pedro Noriz.

- Não quero saber mais nada; já vejo, cabeça, que tudo sabes.

E, afastando-se, deu lugar ao outro amigo, que lhe perguntou:

- Diz-me, cabeça: que desejos tem o meu filho morgado? Tornou ela:

- Não julgo de desejos; mas, contudo isso, posso dizer que o que teu filho quer é enterrar-te.

- Isso - acudiu o cavaleiro - vejo com os meus olhos; e nada mais pergunto.

Chegou-se a mulher de D. António, e disse:

- Não sei, cabeça, o que te hei-de perguntar; mas só queria que me dissesses se gozarei muitos anos o meu bom marido.

- Gozarás, sim, porque a sua saúde e a sua temperança prometem largos anos de vida, que muitos costumam encurtar com os seus excessos.

Chegou-se em seguida D. Quixote, e perguntou:

- Diz-me tu, ó ente que respondes: foi verdade, ou foi sonho, o que eu conto que passei na cova de Montesinos? Serão certos os açoites de Sancho, meu escudeiro? Terá efeito o desencantamento de Dulcineia?

- Quanto ao que se passou na cova - respondeu a cabeça -, há muito que se lhe dizer: tem de tudo; os açoites de Sancho hão-de ir devagar, e o desencantamento de Dulcineia chegará a devida execução.

- Não quero saber mais nada - tornou D. Quixote - e, em eu vendo Dulcineia desencantada, farei de conta que vêm de golpe todas as fortunas que posso desejar.

O último perguntador foi Sancho, que perguntou:

- Porventura, cabeça, apanharei outro governo? Sairei da estreiteza de escudeiro? Tornarei a ver minha mulher e meus filhos?

- Governarás na tua casa - disse a cabeça -; se lá tornares, verás tua mulher e teus filhos, e, deixando de servir, deixarás de ser escudeiro.

- Boa resposta! - disse Sancho. - Até aí chegava eu e não diria mais o profeta Perogrullo.

- Que queres que te respondam? - disse D. Quixote. - Não basta que as respostas que esta cabeça dá acertem com o que se lhe pergunta?

- Basta, sim - tornou Sancho -, mas eu sempre queria que ela dissesse mais.

Com isto acabaram as perguntas e as respostas mas não acabou a admiração em que todos ficaram, excepto os dois amigos de D. António, que sabiam do caso. Quis logo Cide Hamet Benengeli declará-lo, para não ficar suspenso o mundo, imaginando que se encerrava na tal cabeça algum mágico e extraordinário mistério; e, assim, diz que D. António Moreno, à imitação de outra cabeça que viu em Madrid, fabricada por um estampador, fez esta em sua casa, para se entreter e encher de pasmo os ignorantes; e a fábrica era assim: A mesa era de pau, pintada e envernizada, imitandojaspe, e o pé que a sustinha era de pau também, com quatro garras de águia, que dele saíam para maior firmeza do peso. A cabeça, que parecia medalhão de imperador romano e de bronze, estava toda oca, e oca era também a mesa, em que a cabeça se encaixava tão perfeitamente que não aparecia nenhum sinal de pintura. O pé da mesa era oco igualmente, e correspondia à garganta e peto do busto, e tudo a outro aposento que estava por baixo desse quarto. Por toda esta cavidade do pé, mesa, garganta e peito do referido busto, corria um canudo de lata muito apertado, que por ninguém podia ser visto. No quarto inferior punha-se a pessoa que havia de responder, com a boca pegada ao canudo, de modo que a voz ia de cima para baixo, e vice-versa, como se fosse por uma sarabatana, em palavras articuladas e claras, e deste modo não era possível conhecer o embuste. Um sobrinho de D. António, estudante agudo e discreto, foi quem respondeu; e, tendo-lhe dito seu tio quem eram as pessoas que haviam de entrar no aposento da cabeça, foi-lhe fácil responder com rapidez e pontualidade à primeira pergunta; às outras respondeu por conjecturas, como discreto e discretamente. E diz mais Cide Hamet, que dez ou doze dias durou esta maravilhosa máquina; mas que, divulgando-se na cidade que D. António tinha em casa uma cabeça encantada, que respondia a tudo o que lhe perguntavam, D. António, receando que chegasse isto aos ouvdos das vigilantes sentinelas da nossa fé, foi declarar o caso aos Senhores Inquisidores; mandaram-lhe eles que a desfizesse, e que não fosse mais adiante, para que o vulgo ignorante se não escandalizasse. Mas, na opinião de D. Quixote e de Sancho Pança, a cabeça continuou a ser tida por encantada e respondona, mais com satisfação de D. Quixote que de Sancho.

Os cavaleiros da cidade, para comprazer a D. António, e para fazer bom acolhimento a D. Quixote, e dar lugar a que descobrisse as suas sandices, deliberaram jogar o jogo da argolinha dali a seis dias, coisa que se não realizou, pelo motivo que se dirá depois. Teve D. Quixote desejo de passear pela cidade a pé e incógnito, e viu escrito numa porta, em letras muito grandes, aqui se imprimem livros; e ficou muito satisfeito, porque nunca vira imprensa alguma, e desejava saber como era. Entrou na imprensa com todo o seu acompanhamento, e viu num sítio uns homens a fazerem a tiragem, noutro as emendas, noutro a comporem, e noutro a paginarem, e, finalmente, aquele maquinismo todo que nas imprensas grandes se mostra. Chegava D. Quixote a uma caixa, e perguntava o que se fazia ali; explicavam-lho os tipógrafos, admirava, e passava adiante. Uma vez respondeu-lhe um dos tipógrafos:

- Senhor, este cavalheiro que aqui está (e mostrou-lhe um homem grave, de boa aparência e de bom porte) traduziu um livro toscano na nossa língua castelhana, e eu estou-o compondo, para o dar à estampa.

- Qual é o título do livro? - perguntou D. Quixote.

- O livro chama-se Lê Bagatelle - respondeu o tradutor.

- E que quer dizer Bagatelle? - perguntou D. Quixote.

- Bagatelle - tornou o tradutor - quer dizer «bagatelas”; e ainda que o livro é humilde de nome contém e encerra em si coisas óptimas e substanciais.

- Eu - disse D. Quixote - sei alguma coisa de toscano, e gabo-me de cantar algumas estâncias de Ariosto. Mas diga-me Vossa Mercê, Senhor meu (e não digo isto porque queira examinar o merecimento de Vossa Mercê, mas por curiosidade e nada mais): Encontrou alguma vez a palavra pignata?

- Decerto, muitas vezes - respondeu o tradutor.

- E como é que Vossa Mercê a traduz?

- Como a havia de traduzir senão por panela?

- Corpo de tal - tornou D. Quixote -, como Vossa Mercê conhece a fundo o idioma toscano! Sou capaz de apostar em como quando em toscano se diz piace, diz Vossa Mercê praz ou arada, e onde dizem piü diz mais, e ao sú chama acima, e ao giú chama abaixo.

- Isso sem dúvida alguma - tornou o tradutor - porque são esses os seus verdadeiros significados.

- Atrevo-me a urar - tomou D. Quixote - que não é Vossa Mercê conhecido nesse mundo, inimigo sempre de premiar os floridos engenhos e os louváveis trabalhos. Que talentos aí há perdidos! Que engenhos metidos ao canto! Quantas virtudes menosprezadas! Mas, contudo isso parece-me que traduzir de uma língua para outra, não sendo das rainhas das línguas grega e latina, é ver panos de rãs pelo avesso, que, ainda que se vêem as figuras vêem-se cheias de fios que as escurecem, e não se vê a lisura e cor do direito; e o traduzir de línguas fáceis não prova engenho nem elocução, como o não prova quem traslada, nem quem copia um papel de outro papel; e daqui não quero inferir que no seja louvável este exercício das traduções, porque em outras coisas piores, e que menos proveito lhe trouxessem, se podia ocupar o homem. Estão fora desta conta os nossos dois famosos tradutores, Cristóvão de Figueiroa, no seu Pastor Fido, e D. Juan de Jaurégui, no seu Aminta, em que facilmente se fica em dúvida sobre qual é a tradução e qual o original. Mas diga-me Vossa Mercê: este livro imprime-se por sua conta, ou já vendeu o privilégio a algum livreiro?

- Imprimo-o por minha conta - respondeu o tradutor - e conto ganhar mil ducados, pelo menos, com esta primeira edição, que há-de ser de dois mil exemplares, e se hão-de vender a seis réis cada um, por dá cá aquela palha.

- Muito enganado está Vossa Mercê - respondeu D. Quixote - e bem se vê que não conhece as entradas e saídas dos impressores, e as correspondências que há de uns com outros. Eu lhe juro que, quando se vir com dois mil exemplares às costas, há-de-se sentir deveras moído, principalmente se o livro não for picante.

- Pois quê! - disse o tradutor. - Quer Vossa Mercê que eu o vá dar a um livreiro por três maravedis, e que ainda ele pense que me faz favor em mós dar? Eu não imprimo os meus livros para alcançar famas no mundo, que já sou bastante conhecido pelas minhas obras; quero proveito, que, sem ele, nada vale a boa fama.

- Deus lhe dê ventura - respondeu D. Quixote. E passou adiante a outras caixas, onde viu que estavam emendando uma folha de um livro, que se intitulava Luz da Alma.

Disse, ao vê-lo:

- Estes livros, por muitos que sejam, sempre se devem imprimir, porque há muitos pecadores, e são necessárias infinitas luzes para tantos desalumiados.

Seguiu avante, e viu que estavam também corrigindo outro livro, e perguntou o título; responderam-lhe que se chamava A Seguna Parte do Engenhoso idalgo D. Quixote de La Mancha, composta por um cidadão de Tordesilhas.

- Já tenho notícia deste livro, e em boa consciência pensei que estava queimado e reduzido a pó, por impertinente; mas há-de-lhe chegar o seu S. Martinho, como aos porcos: as histórias fingidas são boas e deleitosas, quando são verosímeis, e as verdadeiras, quando são exactas.

E, dizendo isto, com sinais de certo despeito, saiu da imprensa, e naquele mesmo dia resolveu D. António levá-lo a ver as galés que estavam fundeadas no porto, e com essa notícia se alegrou Sancho, porque nunca em sua vida vira semelhantes coisas. Avisou D. António o capitão-mor das galés, de que naquela tarde levaria a vê-las o seu hóspede, o famoso D. Quixote de La Mancha, de quem já o capitão-mor e todos os habitantes da cidade tinham conhecimento; e o que nelas sucedeu se contará no seguinte capítulo.

 

DE COMO SANCHO PANÇA SE DEU MAL COM A VISITA ÀS GALÉS E DA NOVA AVENTURA DA FORMOSA MOURISCA

MuitO discorria D. Quixote acerca da resposta da cabeça encantada, sem que desse com o embuste; e em que mais pensava era na promessa, que teve por certa, do desencantamento de Dulcineia. Passeava de um lado para o outro, e folgava consigo mesmo, julgando que havia de ver brevemente essa promessa cumprida; e Sancho, ainda que detestava o ser governador, como já se disse, todavia desejava outra vez mandar e ser obedecido; que esta má ventura tem consigo o mando, ainda que seja fingido. Em conclusão naquela tarde, D. António Moreno e os seus dois amigos, com D. Quixote e Sancho, foram às galés. O capitão-mor, que estava prevenido da sua vinda, apenas eles chegaram ao cais, mandou que todas as galés os saudassem com os pavilhões, e que tocassem as charamelas; deitaram logo ao mar os escaleres, cobertos com ricas alcatifas e almofadas de veludo carmesim; e, apenas D. Quixote pôs pé no escaler, salvou a artilharia das galés, e, ao subir o cavaleiro pelo portaló de estibordo, fez-lhe continência a companha, como é uso quando entra na galé uma pessoa principal, bradando-lhe: hul hu! hu! três vezes. Deu-lhe a mão o capitão-mor, que era um fidalgo valenciano, e abraçou-o, dizendo:

- Este dia há-de ser marcado por mim com pedra branca, por ser um dos melhores da minha vida, tendo visto nele o Sr. D. Quixote de La Mancha, em quem se cifra e encerra todo o valor da cavalaria andante.

Com outras expressões não menos corteses lhe respondeu D. Quixote, sobremaneira alegre, por se ver tão senhorilmente tratado. Dirigiram-se todos para a ré, que estava muito vistosa, e sentaram-se nos bancos da amurada; passou o mestre à coberta, e deu sinal com o apito, para que a chusma despisse as camisolas, o que se fez num instante. Sancho, que viu tanta gente em pelota, ficou pasmado, e ainda mais quando viu içar o pavilhão tão depressa, que parecia que todos os diabos andavam ali trabalhando; mas tudo isto foi pão com mel, em comparação com o que vou dizer. Estava Sancho sentado ao pé do primeiro galeote da direita, que, informado do que havia de fazer, se lhe agarrou, e, levantando-o nos braços, o passou para o seu vizinho, e este para o imediato, e assim correu toda a roda, com tanta pressa, que o pobre Sancho perdeu a luz dos olhos, e, sem dúvida, imaginou que os próprios demónios o levavam; e não pararam enquanto o não puseram outra vez na ré, pelo lado oposto àquele por onde dera começo ao passeio. Ficou o pobre Sancho moído, ofegante e suado, sem poder perceber o que lhe sucedera.

  1. Quixote, que viu o voo sem asas de Sancho, perguntou ao capitão-mor se aquilo eram cerimónias que se usavam com os que entravam de novo nas galés; porque, se assim fosse, ele, que no tinha tenção de seguir essa carreira, não queria fazer semelhantes exercícios, e que votava a Deus que, se alguém o agarrasse, arrancava-lhe a alma às estocadas; e, dizendo isto, pôs-se em pé, de espada em punho. Neste momento, amainaram o pavilhão, e, com grandíssimo ruído, deixaram cair as vergas. Pensou Sancho que o céu se desencaixava dos quícios, e lhe vinha desabar em cima da cabeça, e, tapando-a, cheio de medo, escondeu-a entre as pernas. Também se assustou D. Quixote, que estremeceu, encolheu os ombros e perdeu a cor do rosto. A chusma içou as vergas, com a mesma pressa e ruído com que as tinham amainado, e tudo em silêncio, como se não tivessem nem alento, nem voz. Fez sinal o mestre que sarpassem o ferro, e, saltando para o meio da coberta, com o chicote principiou a fustigar as costas dos rmeiros, e, a pouco e pouco, a galé se foi fazendo ao largo. Quando Sancho viu moverem-se tantos pés pintados (porque supôs que os remos eram pés), disse consigo:

- Isto sim, é que são coisas encantadas, e não as que meu amo imagina. Que fizeram estes desgraçados, para que assim os açoitem? E como é que este homem só, que anda por aqui apitando, se atreve a açoitar tanta gente? Agora digo eu, que isto é Inferno, ou, pelo menos Purgatório.

  1. Quixote, que viu a atenção com que Sancho Pança olhava para o que se passava, disse:

- Ah! Sancho amigo, com muita brevidade e a pouco custo podíeis, se quisésseis, despir meio corpo, meter-vos entre estes senhores, e levar a cabo o desencantamento de Dulcineia! Pois com a miséria e a pena de tantos, não sentiríeis muito a vossa; e até podia ser que o sábio Merlim tomasse cada um destes açoites, por serem dados com boa mão, pelo valor de dez dos vossos.

Queria perguntar o capitão-mor que açoites eram aqueles, ou que era isso de desencantamento de Dulcineia, quando um marinheiro disse:

- Monjuich faz sinal de que há baixel de remos na costa, para a banda do poente.

Ouvindo isto, saltou o capitão-mor para o banco do quarto, e disse:

- Eia, filhos, não nos fuja: este navio, de que a atalaia nos dá sinal, deve ser algum de corsários de Argel.

Chegaram-se logo as outras três galés à capitânia, a saber o que se lhes ordenava. Mandou o capitão-mor que saíssem duas ao mar, que ele, com a outra, iria terra a terra, porque assim o baixel não lhes escaparia.

Apertou a chusma os remos, impelindo a galé com tanta fúria, que parecia que voava. As que saíram ao mar, a obra de duas milhas descobriram um baixel, que lhes pareceu de catorze ou quinze bancos, e assim era; quando ele descobriu as galés, pôs-se em fuga, com tenção e na esperança de se escapar, pela sua ligeireza; mas deu-se mal com isso, porque a galé capitânia era dos baixéis mais ligeiros que no mar navegavam; e, assim, foi entrando com ele, de modo que os do bergantim claramente perceberam que se não podiam escapar, e o arrais queria que deixassem os remos e se entregassem, para não irritar o capitão-mor das galés; mas a sorte, que outra coisa determinara, fez com que, no momento em que chegava a capitânia, tão perto, que podiam os do baixel ouvir as vozes que lhes diziam que se rendessem, dois toraquis, ou dois turcos bêbedos, que vinham no bergantim com mais doze, disparassem as escopetas e matassem dois soldados, que estavam nas gáveas. Vendo isto, o capitão-mor urou não deixar com vida nem um só de todos os que apanhasse no baixel, e, investindo-o com fúria, escapou-se-lhe ele por debaixo dos remos. Passou a galé adiante um bom pedaço: os do baixel viram-se perdidos; fizeram-se à vela, enquanto a galé voltava, e de novo, à vela e a remo, se puseram em fuga; mas não lhes aproveitou a sua diligência, tanto como os prejudicou o seu atrevimento, porque, alcançando-os a galé a pouco mais de meia milha, deitou-lhe os arpéus, e apanhou-os vivos a todos. Nisto, chegaram as outras duas galés, e todas quatro, com a presa, voltaram à praia, onde infinita gente as estava esperando, desejosa de ver o que traziam.

Deu fundo o capitão-mor perto da terra, e percebeu que estava no cais o vice-rei da cidade. Mandou deitar o escaler ao mar, para o ir receber, e mandou amainar a verga grande, para enforcar imediatamente o arrais e os outros turcos, que apanhara no baixel, e que seriam uns trinta e seis, pouco mais ou menos, todos galhardos, e a maior parte deles arcabuzeiros. Perguntou o capitão-mor quem era o arrais do bergantim, e respondeu-lhe, em língua castelhana, um dos cativos, que depois se soube que era renegado espanhol:

- Este mancebo que aqui vês Senhor, é o nosso arrais. E mostrou-lhe um dos mais belos e galhardos moços, que pode pintar a imaginação humana. A idade não parecia chegar

aos vinte anos. Perguntou-lhe o capitão-mor:

- Diz-me, perro mal aconselhado: quem te levou a matar os meus soldados, se vias que era impossível escapares-te? É assim que se respeitam as capitânias? Não sabes, que não é valentia a temeridade? As esperanças duvidosas devem fazer os homens atrevidos, mas não temerários.

Queria o arrais responder, mas não pôde o capitão-mor ouvir então a sua resposta, porque teve de acudir a receber o vice-rei, que já entrava na galé, e, com ele, entraram alguns dos seus criados e algumas pessoas do povo.

- Boa caça Senhor Capitão-Mor - disse o vice-rei.

- E tão boa - respondeu o capitão-mor - como Vossa Excelência vai ver, que não tardo a pendurar-lhe na verga.

- Como assim? - perguntou o vice-rei.

- E porque me mataram - tornou o capitão-mor -, contra toda a razão, contra toda a lei, uso e costume da guerra, dois soldados dos melhores que vinham nestas galés, e jurei enforcar todos os que aprisionasse - principalmente este moço, que é o arrais do bergantim.

E mostrou-lhe o rapaz, que estava já de mãos atadas, e corda na garganta, esperando a morte. Olhou o vice-rei para ele, e, vendo-o tão formoso, tão galhardo, e tão humilde, e compadecendo-se da sua formosura, desejou evitar-lhe a morte, e perguntou-lhe:

- Diz-me, arrais: és turco de nação, mouro ou renegado?

- Nem sou turco de nação, nem mouro, nem renegado - respondeu o arrais.

- Então o que és? - redarguiu o vice-rei.

- Mulher cristã - tornou o mancebo.

- Mulher! E cristã! Com tal trajo e em tal situação! E coisa, mais para se admirar, do que para se acreditar.

- Suspendei, Senhores - disse o moço -, a execução da minha morte, que não se perderá muito em se dilatar a vossa vingança, enquanto eu vos conto a minha vida.

Quem haveria de coração tão duro, que se não abrandasse com estas palavras, ou, pelo menos, que não desejasse ouvir o que o triste mancebo queria dizer?

Concedeu-lhe o general que dissesse o que quisesse, mas que não esperasse alcançar perdão da sua conhecida culpa. Com esta licença, principiou o moço a contar desta maneira:

- Pertenço àquela nação, mais desditosa que prudente, sobre a qual choveu, nestes últimos dias, um mar de desgraças; nasci de pais mouriscos. Na corrente da sua desventura, fui levada, por dois tios meus, à Barbaria, sem que me valesse o dizer que era cristã, como sou, efectivamente, e não das fingidas, mas das verdadeiras e católicas. Não me valeu o dizer esta verdade aos que estavam encarregados do nosso mísero destino, nem meus tios a quiseram acreditar - antes a tiveram por mentira inventada por mim, para ficar na terra onde nascera; e assim, por força, mais que por vontade, me levaram consigo. Tive mãe cristã, e pai discreto e cristão também; bebi, com o leite, a fé católica; criei-me com bons costumes e nem neles, nem na língua, parece-me, dei sinal de ser mourisca. A par e passo destas virtudes, que eu creio que o são, cresceu a minha formosura, e alguma tenho; e o meu grande recato e o meu encerramento não impediram, contudo, que me visse um mancebo chamado D. Gaspar Gregório, filho morgado de um cavaleiro, que tem unto do nosso lugar outro que lhe pertence. Como me viu, como nos falámos, como se achou perdido por mim, e eu por ele, seria largo de contar, principalmente em ocasião como esta; e assim, só direi como foi que, no nosso desterro, me quis acompanhar D. Gregório. Meteu-se de envolta com os mouriscos, que de outros lugares saíram, porque sabia muito bem a nossa língua, e, na viagem, fez-se grande amigo de dois tios meus, que me levavam consigo; porque meu pai, prudente e avisado, assim que saiu o primeiro bando do nosso desterro, saiu da povoação, e foi procurar alguma terra nos reinos estrangeiros, aonde nos acolhêssemos. Deixou encerradas e enterradas, num sítio de que só eu tenho notícia, muitas pérolas e pedras de grande valor, com alguns dinheiros, em cruzados e dobrões de ouro. Mandou-me que não tocasse no tesouro, que deixara se por acaso antes de ele voltar nos desterrassem. Assim fiz, e, com os meus tios, e outros parentes e aliados, passámos à Barbaria, e o lugar onde fizemos assento foi Argel, que é o mesmo que dizermos: no próprio Inferno. Teve notícia o dei, da minha formosura e a fama levou-lhe notícia também das minhas riquezas - o que, em parte foi ventura para mim. Chamou-me, perguntou-me de que parte da Espanha era, e que dinheiros e que jóias trazia. Disse-lhe o lugar, e que as jóias e dinheiros tinham ficado nele enterrados, mas que, com facilidade, se poderiam cobrar, se eu mesma voltasse a procurá-los. Tudo isto eu lhe disse receosa de que o cegasse a minha formosura e preferindo que o cegasse a cobiça. Estando nestas práticas, foram-lhe dizer que vinha comigo um dos mais galhardos e gentis mancebos, que se podiam imaginar. Logo percebi que falavam de D. Gaspar Gregório, cuja beleza deixa a perder de vista as maiores que se podem encarecer. Turbei-me, considerando o perigo que D. Gregório corria, porque, entre aqueles bárbaros turcos, em mais se estima um rapaz formoso do que uma mulher, ainda que seja lindíssima. Mandou logo o dei que o levassem à sua presença, para o ver, e perguntou-me se era verdade o que daquele moço lhe diziam. Eu então, como avisada pelo Céu disse-lhe que sim; mas que não era homem, era mulher como eu, e que lhe suplicava que ma deixasse ir vestir com os seus trajos naturais, para que mostrasse completamente a sua beleza, e com menos embaraço aparecesse na sua presença. Respondeu-me que fosse, e que outro dia falaamos no modo de eu poder voltar a Espanha desenterrar o tesouro escondido. Falei com D. Gaspar contei-lhe o perigo que corria, vesti-o de moura, e naquela mesma tarde o levei à presença do rei o qual, apenas a viu, ficou admirado, e projectou guardá-la, para fazer presente dela ao grão-senhor; e, para fugir do perigo, que no serralho das suas mulheres podia correr, mandou-a pôr em casa de umas mouras principais, para que a guardassem e servissem; para ali o levaram logo. O que ambos sentimos (pois não posso negar quanto lhe quero) deixo-o à consideração dos que se apartam, querendo-se bem. Tratou logo o dei de me fazer voltar a Espanha neste bergantim, ordenando que me acompanhassem dois turcos de nação, que foram os que mataram os vossos soldados. Veio também comigo este renegado espanhol - e apontou para o que primeiro falara - que sei perfeitamente que é cristão encoberto, e que vem com mais desejo de ficar na Espanha, do que de voltar à Barbaria; o resto da chusma da galé são mouros, que não servem senão para remar. Os dois turcos insolentes e cobiçosos, sem respeitar a ordem que traziam, de nos porem em terra, a mim e a este renegado, no primeiro sítio de Espanha que topássemos, depois de nos vestirmos à moda cristã, com fato de que vínhamos providos, quiseram primeiro varrer esta costa, e fazer alguma presa, se pudessem, receando que, se primeiro nos deitassem em terra, em qualquer desastre que nos sucedesse pudéssemos descobrir que ficava o bergantim no mar, e que o aprisionassem, se por acaso houvesse galés por aqui. Este é Senhores, o fim da minha lamentável história, tão verdadeira como desgraçada; o que vos peço, é que me deixeis morrer como cristã, porque, como já disse, em nada fui participante da culpa em que os da minha nação caíram.

E logo se calou, com os olhos cheios de ternas lágrimas, chorando também muitos dos que estavam presentes. Vice-rei, terno e compassivo, sem lhe dizer palavra, chegou-se a ela, e tirou-lhe, com as suas mãos, a corda que atava as formosas mãos da moura. Enquanto, pois, a cristã mourisca narrava a sua história, esteve com os olhos cravados nela um velho peregrino, que entrara na galé quando o vice-rei entrou; e, apenas a mourisca terminou, arrojou-se-lhe ele aos pés, e, abraçado a eles, com palavras interrompidas por mil soluços e suspiros, disse-lhe:

- Ó Ana Felix, desditosa filha minha: sou teu pai Ricote, que voltava a procurar-te, por não poder viver sem ti, que és a minha alma.

A estas palavras abriu os olhos Sancho, e levantou a cabeça, que tinha inclinada, pensando na desgraça do seu passeio; e, olhando para o peregrino, viu que era o mesmo Ricote que topou no dia em que saiu do seu governo, e reconheceu que era realmente sua filha aquela moça, que, já desamarrada, abraçava seu pai, misturando as suas lágrimas com as dele; e Ricote disse para o vice-rei e para o capitão-mor:

- Esta, Senhores, é minha filha, mais desgraçada pêlos seus sucessos do que pelo seu nome: chama-se Ana Felix Ricote, tão famosa pela sua formosura como pela minha riqueza; eu saí da minha pátria, a procurar, em reinos estrangeiros, quem nos albergasse e recolhesse, e, tendo encontrado o que buscava, na Alemanha, voltei, com este hábito de peregrino, em companhia de outros alemães, a procurar a minha filha, e a desenterrar muitas riquezas que deixei escondidas. Não encontrei a filha, encontrei o tesouro, que trago comigo; e agora, pelo estranho rodeio que vistes, achei o tesouro que mais me enriquece - que é a minha filha querida: se a nossa pouca culpa, e as suas lágrimas e as minhas, pela integridade da vossa justiça podem abrir porta à misericórdia, usai-a connosco, que nunca tivemos pensamento de ofender-vos, nem concordamos, de modo algum, com a intenção dos nossos, que foram com justiça desterrados.

- Bem conheço Ricote - disse então Sancho - e sei que é verdade o que ele diz quanto a chamar-se Ana Felix a sua filha; que nas outras baralhadas de ir e vir, ter boa ou má intenção, não me intrometo.

Admirados do estranho caso todos os presentes, disse o capitão-mor:

- As vossas lágrimas não me deixarão cumprir o meu juramento: vivei, Ana Felix, os anos de vida que o Céu determinou conceder-vos, e carreguem com a pena da sua culpa os insolentes e atrevidos que a cometeram.

E mandou logo enforcar na verga os dois turcos, que tinham morto os seus dois soldados; mas o vice-rei pediu-lhe encarecidamente que os não enforcasse, porque o seu acto ainda fora mais de loucura, que de valentia. Fez o capitão-mor o que o vice-rei lhe pedia, porque se não executam bem as vinganças a sangue-frio; procuraram logo ver como tirariam D. Gaspar Gregório do perigo em que se achava: ofereceu Ricote, para isso, mais de dois mil ducados, que tinha em pérolas e em jóias; apresentaram-se muitos alvitres, mas o melhor de todos foi o do renegado espanhol, que se ofereceu para voltar a Argel, num barco pequeno de uns seis bancos, tripulado com remeiros cristãos, porque sabia onde, como e quando podia e devia desembarcar, e também sabia a casa onde morava D. Gaspar Gregório. Hesitaram o capitão-mor e o vice-rei em se fiar no renegado, e em lhe entregar cristãos remeiros; Ana Felix afíançou-o, e Ricote seu pai declarou que pagaria ele o resgate dos cristãos, se acaso se perdessem.

Resolvidas as coisas nesse sentido, desembarcou o vice-rei, e D. António Moreno levou consigo a mourisca e seu pai, encarregando-o o vice-rei de os tratar o melhor que lhe fosse possível, que, pela sua parte, lhe oferecia tudo o que em sua casa houvesse - tal foi a benevolência e a caridade, que a formosura de Ana Felix lhe acendeu no peito.

 

QUE TRATA DA AVENTURA QUE MAIS AFLIGIU D. QUIXOTE DE TODAS QUANTAS ATÉ ENTÃO LHE TINHAM ACONTECIDO

(onta a história que ficou muitíssimo satisfeita a mulher de D. António, por ter Ana Felix em sua casa. Recebeu-a com muito agrado, tão namorada da sua beleza, como da sua discrição, porque numa e noutra prenda era extremada a mourisca, e toda a gente da cidade a vinha ver, como se tangesse o sino para chamar o povo. Disse D. Quixote a D. António, que a resolução que tinha tomado com relação à liberdade de D. Gregório não era boa, e que seria melhor que o pusessem a ele na Barbaria, com as suas armas e cavalo, que ele o livraria, apesar de toda a mourisca, como fizera D. Gaieiros a sua esposa Melisendra.

- Repare Vossa Mercê - disse Sancho, ouvindo isto - que o Sr. D. Gaifeiros tirou sua esposa de terra firme, e que por terra firme chegou a França; mas aqui, se livrarmos D. Gregório, não temos por onde trazê-lo a Espanha, porque fica o mar no meio.

- Para tudo há remédio, menos para a morte - respondeu D. Quixote -, porque, chegando o barco ao cais, podíamos embarcar, ainda que todo o mundo o impedisse.

- Muito bem o pinta e facilita Vossa Mercê - disse Sancho - mas do dizer ao fazer vai grande distância e eu prefiro o sistema do renegado, que me parece homem de boas entranhas.

D, António disse que, se o renegado se não saísse bem do caso, se tomaria o expediente de se passar o grande D. Quixote para a Barbaria. Dali a dois dias, partiu o renegado num ligeiro barco de seis remos por banda, tripulado por valentíssima chusma, e dali a outros dois partiram as galés para o Levante, pedindo o capitão-mor ao vice-rei que tivesse a bondade de lhe participar o que houvesse com relação à liberdade de D. Gaspar Gregório, e ao caso de Ana Felix.

Ficou o vice-rei de fazer o que ele lhe pedia; e uma manhã, andando D. Quixote a passear na praia, armado com todas as armas, porque, como dizia muitas vezes, eram as suas galas, e o seu descanso o pelejar, e nunca o encontravam sem elas, viu vir para ele um cavaleiro, armado também de ponto em branco, que trazia pintada no escudo uma Lua resplandecente; e, chegando a distância de onde podia ser ouvido, disse em voz alta, dirigindo-se a D. Quixote:

- Insigne cavaleiro e nunca assaz louvado D. Quixote de La Mancha, sou o Cavaleiro da Branca Lua, cujas inauditas façanhas talvez já chegassem ao teu conhecimento; venho contender contigo, e experimentar a força dos teus braços, para te fazer conhecer e confessar que a minha dama, seja quem for, é sem comparação mais formosa do que a tua Dulcineia del Toboso; e, se confessares imediatamente esta verdade evitarás a morte e o trabalho que eu hei-de ter em ta dar, e, se pelejarmos e eu te vencer, não quero outra satisfação senão que, deixando as armas, e abstendo-te de procurar aventuras, te recolhas e te retires por espaço de um ano, para a tua povoação onde viverás, sem pôr mão na espada, em paz tranquila e em proveitoso sossego, porque assim convém ao aumento da tua fazenda e à salvação da tua alma; e, se me venceres, ficará à tua disposição a minha cabeça, e serão teus os despojos das minhas armas e do meu cavalo, e passará para a tua a fama das minhas façanhas. Vê o que preferes, e responde-me já, porque tenho só o dia de hoje para despachar este negócio.

Ficou D. Quixote suspenso e atónito, tanto pela arrogância do Cavaleiro da Branca Lua, como pelo motivo por que o desafiava; e respondeu-lhe com pausa e adea severo:

- Cavaleiro da Branca Lua, cujas façanhas até agora ainda não chegara aos meus ouvidos, eu vos farei jurar que nunca viste a ilustre Dulcineia; se a houvésseis visto, sei que procuraeis não entrar nesta demanda, porque vos desenganaríeis de que nunca houve nem pode haver beleza, que se possa comparar com a dela; e, assim, não vos dizendo que mentis, mas sim que não acertais na proposta das vossas condições, aceito o vosso desao, e já, para que se não passe o dia que trazeis determinado: e só exceptuo das condições a de passar para mim a fama de vossas façanhas, porque não sei quais foram; com as minhas me contento, tais quais são. Tomai, pois, a parte do campo que quiserdes, que eu farei o mesmo, e entreguemo-nos nas mãos de Deus.

Haviam descoberto da cidade o Cavaleiro da Branca Lua, e tinham ido dizer ao vice-rei que ele estava falando com D. Quixote de La Mancha. O vice-rei, supondo que seria alguma nova aventura engenhada por D. António Moreno, ou por outro cavaleiro da cidade, saiu logo à praia com D. António e muitos outros, exactamente quando D. Quixote voltava as rédeas a Rocinante, para tomar o campo necessário. Vendo, pois, o vice-rei que davam os dois sinal de voltar a encontrar-se, meteu-se no meio, perguntando-lhes qual era a causa que os levava a travar batalha tão de improviso. O Cavaleiro da Branca Lua respondeu que era por uma competência de formosura, e rapidamente lhe repetiu o que dissera a D. Quixote, acrescentando que tinham sido aceites por ambas as partes as condições do desafio. Chegou-se o vice-rei a D. António e perguntou-lhe baixinho se conhecia o tal Cavaleiro da Branca Lua, ou se era alguma burla que queriam fazer a D. Quixote. Respondeu D. António que nem o conhecia nem sabia se era a valer ou a fingir o tal desafio. Esta resposta deixou perplexo o vice-rei, hesitando se consentiria ou não na batalha; mas, não se podendo persuadir que fosse a sério, afastou-se, dizendo:

- Senhores Cavaleiros, se não há aqui outro remédio senão confessar ou morrer, e se o Sr. D. Quixote embirra nos treze, e o Senhor Cavaleiro da Branca Lua nos catorze, nas mãos de Deus se entreguem.

Agradeceu o da Branca Lua ao vice-rei, com palavras corteses e discretas, a licença que lhes dava, e o mesmo fez D. Quixote, que, encomendando-se ao Céu de todo o coração e à sua Dulcineia, como tinha por costume ao começar as batalhas que se lhe ofereciam, tornou a tomar mais campo, porque viu que o seu contrário fazia o mesmo, e, sem toques de trombeta, nem de outro bélico instrumento que lhes desse sinal de arremeter, voltaram ambos ao mesmo tempo as rédeas dos cavalos, e, como era mais ligeiro o da Branca Lua, esbarrou com D. Quixote a dois terços da carreira, com tanta força, sem lhe tocar com a lança, e levantando-a até de propósito, que deu em terra com Rocinante e com D. Quixote. Foi logo sobre este, e, pondo-lhe a lança em cima da viseira, disse-lhe:

- Vencido estais, cavaleiro, e podeis dar-vos por morto, se não confessais as condições do nosso desafio.

  1. Quixote, moído e atordoado, sem levantar a viseira, e como se falasse de dentro de um túmulo, com voz debilitada e enferma, disse:

- Dulcineia del Toboso é a mais formosa mulher do mundo, e eu o mais desditoso cavaleiro da Terra, e a minha fraqueza não pode nem deve defraudar esta verdade: carrega, cavaleiro, a lança, e tira-me a vida, já que me tiraste a honra.

- Isso não faço eu - disse o da Branca Lua -; viva na sua inteireza a fama da formosura da Sra. Dulcineia del Toboso, e satisfaço-me retirando-se o grande D. Quixote para a sua terra, por espaço de um ano, ou até ao tempo que por mim lhe for ordenado, como combinámos antes de entrar em batalha.

Isto ouviram o vice-rei e D. António, com outros muitos que ali estavam, e ouviram também D. Quixote responder que, logo que lhe não pedisse coisa que fosse em prejuízo de Dulcineia, tudo o mais cumpriria, como cavaleiro verdadeiro e pontual. Feita esta confissão, voltou as rédeas o da Branca Lua, e, cortejando o vice-rei, a meio galope voltou para a cidade. Mandou o vice-rei a D. António que fosse atrás dele, e que por todos os modos procurasse saber quem era. Levantaram D. Quixote, descobriram-lhe o rosto, e acharam-no pálido e suado. Rocinante não se pôde mover, de derreado que estava. Sancho, todo triste e pesaroso, não sabia o que havia de dizer, nem o que havia de fazer. Parecia-lhe tudo aquilo um sonho, e coisa de encantamento. Via seu amo rendido e obrigado a não pegar em armas durante um ano; imaginava escurecida a luz da glória das suas façanhas, desfeitas as suas esperanças, como se desfaz o fumo com o vento. Receava que estivesse aleijado ou Rocinante ou seu amo. Finalmente, numa cadeirinha, que o vice-rei mandou buscar, levaram D. Quixote para a cidade, e o vice-rei voltou também, com desejo de saber quem seria o Cavaleiro da Branca Lua, que em tão mau estado deixara D. Quixote.

 

EM QUE SE DÁ NOTÍCIA DE QUEM ERA O CAVALEIRO DA BRANCA LUA, COM A LIBERDADE DE D. GREGÓRIO E OUTROS SUCESSOS

eguiu D. António Moreno o Cavaleiro da Branca Lua, e seguiram-no também, ou antes, perseguiram-no muitos garotos, até que entrou numa estalagem da cidade. Entrou atrás dele D. António, com desejo de o conhecer; saiu a recebê-lo e a desarmá-lo um escudeiro; passaram para uma sala baixa, e fez o mesmo D. António, que não descansava enquanto não soubesse quem ele era. Vendo, pois, o da Branca Lua, que aquele cavalheiro não o largava, disse-lhe:

- Bem sei Senhor, o que aqui vos traz: quereis saber quem sou; e, como não tenho motivos para o esconder, enquanto este meu criado me desarma eu vo-lo direi, sem faltar em nada à verdade. Sabei, Senhor, que me chamo o bacharel Sansão Carrasco; sou da mesma terra de D. Quixote de La Mancha, cuja loucura e sandice faz com que tenhamos pena dele todos os que o conhecemos, e um dos que mais se compadeceram fui eu; e, convencido de que a sua salvação há-de ser o descanso, e o estar na sua terra e na sua casa procurei modo de conseguir que para lá voltasse; e, assim, haverá três meses, saí-lhe ao caminho como cavaleiro andante, chamando-me o Cavaleiro dos Espelhos, com tenção de pelejar com ele e vencê-lo, sem lhe fazer mal pondo, como condição da nossa peleja, que o vencido ficasse à discrição do vencedor; e o que tencionava pedir-lhe, porque já o tinha por vencido, era que tomasse para a sua terra, e que não saísse de lá um ano a fio; e, durante esse tempo esperava que se curasse; mas a sorte decidiu outra coisa, porque foi ele que me venceu e me derribou do cavalo; e, assim, não se pôde realizar o que eu queria: seguiu o seu caminho, e eu voltei para trás, vencido, corrido e moído da queda, que foi bastante perigosa; mas, nem assim perdi a vontade de procurá-lo de novo, e vencê-lo, o que hoje fiz. E, como ele é pontual em guardar as ordens da cavalaria andante, sem dúvida alguma guardará a que lhe dei, em cumprimento da sua palavra. Eis Senhor o que se passa, e nada tenho a acrescentar. Suplico-vos que me não descubrais, nem digais a D. Quixote que sou, para que tenham efeito os meus bons pensamentos, e volte a cobrar a razão um homem que a tem excelente, contanto que o larguem as sandices da cavalaria.

- Ó Senhor - disse D. António -, Deus vos perdoe o agravo que fizestes a todo o mundo, querendo pôr em seu juízo o doido mais engraçado que existe. Não vedes Senhor, que não pode chegar o proveito do siso de D. Quixote ao gosto que dão os seus desvarios? Mas imagino que toda a indústria do Senhor Bacharel não será capaz de tornar ajuizado um homem tão rematadamente louco; e, se não fosse contra a caridade, desejaria que nunca sarasse D. Quixote, porque, com a sua saúde, não só lhe perdemos as graças, mas também as de Sancho Pança, seu escudeiro, que, umas ou outras, são capazes de alegrar a própria melancolia. Contudo isso, sempre me calarei, para ver se com razão desconfio que não terá efeito a diligência feita pelo Senhor Carrasco.

E o bacharel respondeu que era negócio que estava muito bem parado, e de que esperava o mais feliz sucesso; e, depois de se pôr à disposição de D. António, para tudo o que ele desejasse, e de ter mandado amarrar as suas armas em cima de um machp, montou no seu cavalo, saiu da cidade naquele mesmo dia, e voltou para a sua pátria, sem lhe suceder coisa que mereça ser contada nesta verdadeira história. Contou D. António ao vice-rei tudo o que Carrasco lhe dissera, não ficando o vice-rei muito contente, porque no recolhimento de D. Quixote se perdia o divertimento de todos os que das suas loucuras tivessem notícia.

Seis dias esteve D. Quixote de cama, triste, pensativo, aflito e incomodado, não cessando de matutar no desgraçado sucesso do seu vencimento. Consolava-o Sancho, e disse-lhe, entre outras coisas:

- Meu Senhor, levante Vossa Mercê a cabeça, alegre-se e dê graças ao Céu, que, apesar de o derribar, não lhe quebrou nenhuma costela; e como sabe que onde se fazem aí se pagam, e que nem sempre se vende o vinho onde se põe o ramo, faça uma figa ao médico, porque não precisa dele para se curar desta enfermidade. Voltemos para a nossa casa, e deixemo-nos de andar procurando aventuras por terras e lugares que não conhecemos; e, se bem se considera, sou eu quem mais perde nisto, apesar de ser Vossa Mercê o mais maltratado. Eu, que deixei com o governo os desejos de ser governador, não larguei a vontade de ser conde - que nunca terá efeito se Vossa Mercê não chegar a rei, largando o exercício da sua cavalaria; e, assim, lá se vão em fumo as minhas esperanças.

- Cala-te, Sancho: bem sabes que a minha reclusão e retiro não hão-de exceder um ano, e que voltarei logo depois aos meus honrados exercícios; e não me faltarão reinos para ganhar e condados para te dar.

- Deus o ouça, e o Diabo seja surdo! Que sempre ouvi dizer, que mais vale boa esperança, que ruim posse.

Estavam nisto, quando entrou D. António, dizendo, com sinais de grandíssimo contentamento:

- Alvíssaras, Sr. D. Quixote, que D. Gregório e o renegado que foi por ele, estão na praia! Na praia, digo eu? Estão já em casa do vice-rei, e não tardam por aí.

Alegrou-se um pouco D. Quixote, e exclamou:

- Em verdade, estou quase em dizer que gostaria que tudo corresse às avessas, porque isso me obrigaria a passar a Argel, onde, com a força do meu braço, daria liberdade, não só a D. Gregório, mas a quantos cativos há na Barbaria. Porém, ai, mísero! Que digo? Não sou eu o vencido? Não sou eu o derribado? Não sou eu que não posso pegar em armas durante um ano? Então que prometo? De que me gabo, se devo antes usar de cruz, que de espada?

- Deixe-se disso Senhor - respondeu Sancho -; viva a galinha com a sua pevide, e hoje por mim, amanhã por ti; e, nestas coisas de recontros e bordoadas, não vale a pena fazer caso, porque, quem hoje cai, amanhã se levanta, a não querer ficar na cama, quero dizer, a não desmaiar sem cobrar novos brios para pendências novas; e levante-se Vossa Mercê agora para receber D. Gregório, que me parece que anda a gente alvoroçada, e aquilo é coisa que ele já está em casa.

E era verdade, porque, logo que D. Gregório e o renegado deram conta ao vice-rei da sua ida e da sua volta, D. Gregório, desejoso de ver Ana Felix, foi com o renegado a casa de D. António; e, ainda que D. Gregório, quando o tiraram de Argel, vinha vestido de mulher, trocou esse fato, no banco da galé, pelo de um cativo que saiu com ele; mas, de qualquer modo que viesse trajado, sempre todos cobiçariam servi-lo e estimá-lo, porque era extremamente formoso, e de idade de dezassete ou dezoito anos, pouco mais ou menos.

Ricote e sua filha saíram a recebê-lo, o pai com lágrimas, e a filha com honestidade. Não se abraçaram, porque, onde há muito amor, não costuma haver demasiada desenvoltura. As duas belezas juntas, de D. Gregório e de Ana Felix, causaram especial admiração a todos os que se achavam presentes. Falou ali o silêncio pêlos dois amantes, e foram os olhos as línguas que descobriram os seus alegres e honestos pensamentos.

Contou o renegado a indústria e meio de que se serviu para arrancar D. Gregório do cativeiro. Contou D. Gregório, em breves palavras, os perigos e apertos em que se vira, com as mulheres com quem ficara, mostrando ser mais discreto do que os seus anos o permitiam.

Finalmente, Ricote pagou e satisfez liberalmente, tanto ao renegado, como aos remeiros, reincorporou-se o renegado na Igreja cristã, e de membro podre se tornou limpo e são, com a penitência e o arrependimento.

Dali a dois dias, tratou o vice-rei com D. António de ver o modo de levantar o desterro a Ana Felix e a seu pai, entendendo que não tinha inconveniente algum que em Espanha ficassem filha tão cristã e pai tão bem-intencionado. Ofereceu-se D. António para tratar disso na corte, aonde tinha de ir forçosamente para outros negócios, dando a entender que ali, com empenhs e dádivas, muitas coisas difíceis se conseguem.

- Não - disse Ricote, que estava presente a esta prática -, não se deve esperar nada de empenhs nem de dádivas; com o grande D. Bernardino de Velasco, conde de Salazar, que Sua Majestade encarregou da nossa expulsão, de nada valem rogos, nem promessas, nem dádivas, nem lástimas; porque, ainda que combina a misericórdia com a justiça, como supõe que todo o corpo da nossa nação está contaminado e perdido, usa com ele, antes de cautérios abrasadores, que de unguentos emolientes; e, assim, com prudência, com sagacidade, com diligência e com o medo que infunde, levou energicamente, a devida execução, essa grande empresa, sem que as nossas indústrias, solicitações, fraudes e estratagemas pudessem ofuscar seus olhos de Argos, que tem de contínuo alerta, para que não fique nem se encubra nenhum dos nossos, que venha depois com o tempo, como raiz maléfica, a brotar e a produzir frutos venenosos na Espanha, já limpa e desembaraçada dos temores que a nossa multidão lhe inspirava. Heróica resolução do grande Filipe III, e inaudita prudência em ter confiado a sua execução a D. Bernardino de Velasco!

- Eu farei todas as diligências - replicou D. António - e o Céu que ordene o que mais for servido; D. Gregório irá comigo, para mitigar a pena que seus pais devem ter com a sua ausência; Ana Felix ficará, ou em minha casa com minha mulher, ou num mosteiro, e sei que o Senhor Vice-Rei gostará de que fique em sua casa Ricote, até ver o resultado das minhas diligências.

O vice-rei consentiu em tudo o que se propôs; mas D. Gregório, sabendo do que se tratava, declarou que de nenhum modo podia nem devia deixar D. Ana Felix; mas formando tenção de ver seus pais e de voltar logo a ter com ela, concordou com o que se resolvera. Ficou Ana Felix com a mulher de D. António, e Ricote em casa do vice-rei.

Chegou o dia da partida de D. António, e, dois dias depois, o da partida de D. Quixote e de Sancho, porque a queda não lhes permitiu partirem mais cedo. Houve lágrimas, suspiros, desmaios e soluços, quando Ana Felix e D. Gregório se despediram. Ofereceu Ricote a D. Gregório mil escudos, mas ele só quis aceitar cinco, que D. António lhe emprestou, ficando de lhos pagar na corte.

Com isto partiram ambos, e, como se disse, D. Quixote e Sancho dois dias depois: D. Quixote, desarmado e a cavalo, e Sancho a pé, porque o ruço ia carregado com as armas.

 

QUE TRATA DO QUE VERÁ QUEM O LER, OU DO QUE OUVIRÁ QUEM O OUVIR LER

Ao sair de Barcelona, voltou D. Quixote os olhos para o sítio onde caíra, e disse:

- Aqui foi Tróia; aqui a minha desgraça, e não a minha cobardia, me tirou as glórias que eu alcançara; aqui usou a fortuna comigo das suas voltas; aqui se escureceram as minhas façanhas; aqui, enfim, caiu a minha ventura, para nunca mais se levantar.

Ouvindo isto, disse Sancho:

- É tanto de valentes corações o serem sofridos nas desgraças, como alegres nas prosperidades, meu Senhor; e isto julgo eu por mim, porque, se estava alegre no tempo em que era governador, agora, que sou escudeiro a pé, não estou triste, que tenho ouvido dizer que essa a que por aí chamam fortuna, é uma mulher bêbeda e caprichosa, e, sobretudo, cega, e por isso não vê o que faz, nem sabe quem derriba, nem quem se levanta.

- Estás um filósofo, Sancho - respondeu D. Quixote -; falas mui discretamente; não sei quem to ensina. O que te posso dizer é que não fortuna no mundo, nem as coisas que sucedem, boas ou más, sucedem por acaso, mas sim por especial providência dos Céus; e por isso, costuma-se dizer que cada qual é artífice da sua ventura, e eu o fui da minha, mas não com a prudência necessária, que assim subiram ao galarim as minhas presunções, pois devia ter pensado que à grandeza e à força do cavalo do da Branca Lua não podia resistir a fraqueza de Rocinante. Atrevi-me, enfim, fiz o que pude, derribaram-me, e, ainda que perdi a honra, não perdi nem posso perder a virtude de cumprir a minha palavra. Quando era cavaleiro andante, atrevido e valente, com as minhas obras e as minhas mãos honrava os meus feitos; e agora, que sou escudeiro pedestre, honrarei a minha palavra, cumprirei a minha promessa. Caminha, pois, amigo Sancho, e vamos ter na nossa aldeia o ano de noviciado, e, terminado ee, voltaremos com virtude nova ao nunca olvidado exercício das armas.

- Senhor - respondeu Sancho -, não é tão agradável caminhar a pé, que me incite e mova a fazer grandes jornadas. Deixemos estas armas penduradas nalguma árvore, e, saltando eu para as costas do ruço, levantando os pés do chão, faremos as jornadas como Vossa Mercê as pedir e medir; que, pensar que hei-de ir a pé, a fazer jornadas grandes, é escusado.

- Disseste bem, Sancho - disse D. Quixote -; penduram-se as minhas armas em trofeu, e em torno delas gravaremos em duas árvores o que estava escrito no trofeu das armas de Roldão:

Ninguém lhes ponha mão, se não puder medir-se com Roldão.

- Excelente ideia! - respondeu Sancho. - E, se não fosse a falta que nos faria Rocinante, também me parecia bom pendurá-lo.

- Pois não quero nem pendurá-lo a ele nem pendurar as armas - replicou D. Quixote - para que se não possa dizer que teve mau pago o bom serviço.

- Diz muito bem Vossa Mercê - respondeu Sancho -;

segundo a opinião de alguns discretos, não há-de pagar a albarda as culpas do burro; e pois deste sucesso é Vossa Mercê que tem a culpa castigue-se a si mesmo e não rebentem as suas iras pelas suas rotas e sanguinolentas armas, nem pelas mansidões de Rocinante, nem pelo tenro dos meus pés, querendo que eles andem mais do que é justo.

Nestas práticas e arrazoados passaram todo aquele dia, e ainda mais quatro, sem lhes suceder coisa que lhes estorvasse o caminho; e, ao quinto dia, à entrada de uma aldeia, encontraram à porta de uma estalagem muita gente que, por ser dia de festa se estava ali divertindo.

Quando o nosso D. Quixote de La Mancha se aproximava, ergueu a voz um lavrador, dizendo:

- Algum destes dois Senhores, que aqui vêm, e que não conhecem as partes, dirão como se há-de resolver a nossa aposta.

- Digo decerto - respondeu D. Quixote -, com toda a rectidão, se conseguir entender o caso.

- O caso é o seguinte - disse o lavrador -: um vizinho deste lugar, tão gordo que pesa onze arrobas, desafiou a correr outro seu vizinho, que só pesa cinco. A condição ajustada foi que haviam de correr cem passos com pesos iguais; e, tendo perguntado ao desafiante como se havia de igualar o peso, disse ele que se pusessem às costas do desafiado seis arrobas de ferro, igualando-se assim as cinco arrobas do magro com as onze do gordo.

- Isso não - interrompeu Sancho, antes de D. Quixote responder. - A mim, que há poucos dias saí de ser governador e juiz, como toda a gente sabe, é que toca averiguar estas dúvidas e dar parecer em qualquer pleito.

- Responde, responde Sancho amigo - disse D. Quixote -, que eu não estou nem para dar migas a um gato - tão transtornado e alvoroçado trago o juízo.

Com esta licença disse Sancho aos lavradores que se apinhavam em torno dele de boca aberta esperando a sua sentença:

- Irmãos, o que o gordo pede no tem caminho nem sombra de justiça; pois, se é verdade o que se diz, que o desafiado pode escolher as armas, não deve escolhê-las tais que o impeçam e o estorvem de sar vencedor; e entendo que ao gordo desafiador se cortem, se arranquem, se tirem seis arrobas de qualquer lado do corpo, do sítio que ele preferir, e, deste modo, ficando em cinco arrobas de peso, se igualará com o seu contrário, e poderão correr sem diferença.

- Voto a tal - disse um lavrador que escutara a sentença de Sancho. - Este Senhor falou como um abençoado, e sentenciou como um cónego; mas, com certeza, o gordo não quer tirar nem uma onça da carne, quanto mais seis arrobas.

- O melhor é que no corram, para que o magro se não moa com o peso, nem o gordo perca as suas carnes. Troque-se metade da aposta em vinho, e levemos estes Senhores à taberna, e eu fico por tudo.

- Agradeço-vos muito, meus Senhores - disse D. Quixote -, mas não posso demorar-me, porque pensamentos e sucessos tristes me fazem parecer descortês e caminhar depressa.

E, picando as esporas a Rocinante, seguiu, deixando-os verdadeiramente admirados da sua estranha figura, e também da discrição de Sancho Pança; e outro lavrador disse:

- Se o criado é tão esperto, que tal será o amo! Aposto que, se fossem estudar a Salamanca, num abrir e fechar de olhos estavam com toda a certeza alcaides da corte; que o que vale neste mundo é estudar e mais estudar, e ter protecção e ventura, e, quando mal se precata, acha-se um homem com uma vara de juiz na mo, ou de mitra na cabeça.

Passaram aquela noite amo e criado no meio do campo ao sereno, e, ao outro dia, seguindo o seu caminho, viram que vinha para eles um homem a pé, com uns alforges no cachaço, e uma ascuma ou um chuço na mão, figura de correio a pé, e, quando se aproximou de D. Quixote de La Mancha, apressou o passo, e, meio correndo, chegou-se a ele, e abraçando-o pela coxa

direita, porque não chegava mais acima, exclamou, com mostras de muita alegria:

- Oh! Sr. D. Quixote de La Mancha, que grande contentamento que há-de ter meu amo o Senhor Duque, em sabendo que Vossa Mercê volta ao castelo, onde ele ainda está com a Senhora Duquesa!

- Não vos conheço, amigo, nem sei quem sois, se mo não dizeis.

- Eu, Sr. D. Quixote - respondeu o correio -, sou Tosilos, o lacaio do duque meu amo, aquele que não quis pelejar com Vossa Mercê na pendência do casamento com a filha de Dona Rodriguez.

- Valha-me Deus! - disse D. Quixote. - E possível que sejais vós aquele que os nigromantes meus inimigos transformaram nesse lacaio que dizeis, para me defraudar da honra daquela batalha?

- Não diga isso, meu bom Senhor - tornou o correio -, não houve encantamento, nem mudança de rosto; lacaio Tosilos entrei na estacada, e lacaio Tosilos saí dela. Quis casar sem pelejar, porque me pareceu bonita a moça, mas saiu-me tudo às avessas do que eu pensava, porque, apenas Vossa Mercê se ausentou do castelo, o duque meu amo mandou-me dar cem bastonadas, por não ter cumprido as suas ordens, e a rapariga meteu-se freira, e Dona Rodriguez voltou para Castela, e eu vou agora a Barcelona levar um maço de cartas ao vice-rei, que lhe envia meu amo. Se Vossa Mercê quer uma pinga, quente, é verdade, mas pura, levo aqui uma cabaça cheia de vinho do melhor, com umas fatias de queijo de Tronchon, que servirão de chamariz e de despertador à sede.

- Aceito eu o convite - acudiu Sancho - e venha de lá o vinho do bom Tosilos, apesar de quantos nigromantes houver nas Índias.

- Enfim - disse D. Quixote -, tu sempre hás-de ser, Sancho, o maior glutão e o maior ignorante da Terra, pois não te persuades que este correio é encantado e este Tosilos fingido; fica-te com ele e farta-te, que eu vou andando devagar, à espera que venhas.

Riu-se o lacaio, tirou a cabaça, sacou dos alforges as fatias de queijo, e um pão pequeno, e ele e Sancho sentaram-se na verde relva, e em boa paz e companhia deram cabo de tudo o que vinha nos alforges, com tanta gana, que até lamberam o maço das cartas, só porque cheirava a queijo.

- Sem dúvida alguma, este teu bom amo, Sancho amigo - disse Tosilos -, deve ser doido.

- Deve? - respondeu Sancho. - Não deve nada a ninguém, principalmente se a moeda for loucura; isso vejo eu e digo-lho; mas de que serve, principalmente agora, que vai louco rematado, porque o venceu o Cavaleiro da Branca Lua?

Rogou-lhe Tosilos que lhe contasse o que sucedera; mas Sancho respondeu-lhe que era descortesia deixar seu amo a esperar, e que noutro dia lhe contaria tudo, se se encontrassem e tvessem ocasião; e, levantando-se, depois de ter sacudido o saio e as migalhas das barbas, enxotou o ruço adiante de si, e, dizendo adeus a Tosilos, deixou-o, e foi apanhar seu amo, que o estava esperando à sombra de uma árvore.

 

DA RESOLUÇÃO QUE TOMOU D. QUXOTE DE SE FAzER pASTOR

E SEGUIR A VIDA DO CAMPO, DURANTE O ano

DA SUA PROMESSA, COM OUTROS SUCESSOS, NA VERDADE GOSTOSOS E BONS

muitos pensamentos fatigavam D. Quixote antes de ser derribado, muitos mais o pungiam depois de caído. Estava à sombra de uma árvore, como se disse, e ali lhe acudiam, a picá-lo, os pensamentos, como as moscas ao mel. Uns eram tocantes ao desencantamento de Dulcineia, e outros à vida que havia de passar no seu forçado retiro. Chegou Sancho, e louvou-lhe a liberalidade do lacaio Tosilos.

- E possível - disse D. Quixote - que ainda penses que aquele homem seja um verdadeiro lacaio? Parece que se te varreu da memória o teres visto Dulcineia convertida e transformada em lavradeira, e o Cavaleiro dos Espelhos no bacharel

Carrasco - tudo obra dos nigromantes que me perseguem! Mas, diz-me agora: perguntaste a esse Tosilos, como lhe chamas, o que fez Deus a Altisidora? Se ela chorou a minha ausência ou se deixou nas mãos do olvido os enamorados pensamentos que na minha presença a perseguiam?

- Os que eu tinha não me deixavam perguntar por ninharias - tornou Sancho -, corpo de tal! Senhor: está Vossa Mercê agora em termos de inquirir pensamentos alheios especialmente amorosos?

- Vê, Sancho - disse D. Quixote -, muita diferença há entre as obras que se fazem por amor, e as que se fazem por agradecimento. Pode ser um cavaleiro desamorável, mas, realmente, nunca pode ser desagradecido. Quis-me bem, ao que parecia, Altisidora; deu-me os três lenços que sabes; chorou na minha partida, e amaldiçoou-me, vituperou-me, queixou-se publicamente, a despeito da vergonha - tudo sinais de que me adorava; que as iras dos amantes costumam desabafar em maldições. Eu não lhe esperanças, nem lhe ofereci tesouros, porque as minhas esperanças entreguei-as a Dulcineia, e os tesouros dos cavaleiros andantes são como os dos duendes, aparentes e falsos, e só lhe posso dar estas recordações, que dela tenho, sem prejuízo, contudo, das que conservo de Dulcineia, que tu agravas com a remissão que mostras em te açoitar, e em castigar essas carnes, que eu veja comidas de lobos, porque antes se querem guardar para os bichos da terra, que para remédio daquela pobre senhora.

- Senhor - respondeu Sancho -, se quer que lhe diga a verdade, não me posso persuadir que os açoites dados nas minhas pousadeiras tenham nada que ver com os desencantamentos dos encantados; e é como se disséssemos: quando vos doer a cabeça, fomentai os joelhos; pelo menos, vou jurar que em nenhuma das histórias que Vossa Mercê tem lido, e que tratam de cavalaria andante, aparece ninguém desencantado por açoites; mas, pelo sim, pelo não, eu cá me irei açoitando quando me apetecer e tiver comodidade para me fustigar.

- Deus queira! - respondeu D. Quixote. - E o Céu te inspire o desejo de cumprires a obrigação que tens de auxiliar a minha senhora, que é senhora tua também, logo que tu és meu servo.

Nestas práticas iam seguindo o seu caminho, quando chegaram ao mesmo síto em que foram atropelados pêlos touros. Reconheceu-o D. Quixote, e disse a Sancho:

- É este o prado em que topámos as bizarras pastoras e galhardos pastores, que aqui queriam imitar e renovar a pastoril Arcádia - pensamento novo e discreto, a cuja imitação, se isso te agrada, quereria eu, Sancho, que nos convertêssemos em pastores, pelo menos durante o tempo em que eu tiver de estar recolhido. Comprarei algumas ovelhas, e tudo o mais que é necessário para o exercício pastoril; e, chamando-me eu o pastor Quixotiz, e tu o pastor Pancino andaremos por montes, selvas e prados, cantando ali, recitando endechas acolá, bebendo os límpidos cristais, ou das fontes, ou dos regatos, ou dos rios caudalosos. Dar-nos-ão, com mão abundantíssima, o seu dulcíssimo ruto as altas carvalheiras, assento os troncos dos duríssimos sobreiros, os salgueiros sombra, aroma as rosas, alfombra matizada de mil cores os extensos prados, o ar o seu puro e claro bafejo, luz as estrelas e a Lua, rompendo a escuridade da noite, suave prazer o canto, alegria o choro, versos Apoio, e o Amor conceitos, com que poderemos eternizar a nossa fama, não só nos presentes, mas também nos porvindouros séculos.

- Por Deus! - disse Sancho. - Quadra-me esse género de vida, tanto mais que nunca se lembraram disso, nem o bacharel Sansão Carrasco, nem o barbeiro mestre Nicolau, e talvez a queiram seguir, e fazer-se pastores connosco; e praza a Deus que o cura não tenha vontade também de entrar no aprisco, já que tanto gosta de se divertir.

- Disseste muito bem - respondeu D. Quixote -, e o bacharel Sansão Carrasco, se entrar no grémio pastoril, poderá chamar-se o pastor Sansonino, ou o pastor Carrascão; o barbeiro Nicolau chamar-se-á Nicoloso, como o antigo Boscão se chamou Nemoroso; ao cura é que não sei que nome lhe havemos de pôr, a não ser algum que derive de cura: por exemplo - o pastor Curiambro. As pastoras, nossas enamoradas, é fácil escolher os nomes; e, como o da minha dama tanto quadra a uma princesa como a uma zagaia, não preciso de me cansar a procurar outro que melhor lhe caiba; tu, Sancho, porás à tua o que quiseres.

- Não tenciono - respondeu Sancho - pôr-lhe nome diferente do de Teresona, que fica bem à sua gordura, e ao nome próprio que tem pois se chama Teresa; tanto mais que, celebrando-a eu nos meus versos revelo os meus castos desejos, porque não ando a meter a foice em seara alheia. O cura é que não deve ter pastora, para dar bom exemplo; e, se o bacharel a quiser ter, sua alma, sua palma.

- Valha-me Deus! - disse D. Quixote. - Que vida que nós vamos passar, Sancho amigo! Que de charamelas ressoarão aos nossos ouvidos! Que gaitas de Samora, que tamboris, que rabecas e que violas! E, se entre estes diversos instrumentos se ouvirem também as albogas, juntar-se-ão quase todos os instrumentos bucólicos!

- Que são albogas? - perguntou Sancho. - Nunca as vi, nem nunca ouvi falar nelas.

- Albogas são - respondeu D. Quixote - umas placas, que, batendo uma na outra, dão um som, não muito harmonioso talvez, mas que não desagrada, e se casa bem com a rusticidade da gaita e do tamboril; e este nome alboga é mourisco, como todos aqueles que nas nossas línguas peninsulares começam por ai, a saber: almofada, almoçar, alcamia, e outros semelhantes - que poucos mais devem de ser; e alguns são mouriscos também, mas acabam em í. Isto disse-to por mo ter trazido à memória o nome de albogas, e há-de-nos ajudar muito a usar com perfeição deste exercício pastoril o ser eu algum tanto poeta como sabes, e sê-lo também em extremo o bacharel Sansão Carrasco. Do cura nada digo; mas vou apostar que também faz versos; e não duvido que os componha o mestre Nicolau, porque os barbeiros são todos mais ou menos guitarristas e fazedores de coplas. Eu lamentarei a ausência da minha dama;

tu gabar-te-ás de fino enamorado; o pastor Carrascão se queixará dos desdéns da sua bela e o cura Curiambro do que quiser; e, assim, andará tudo admiravelmente.

- Sou tão desgraçado Senhor - respondeu Sancho -, que receio que não chegue o dia em que me veja em tal exercício. Oh! que polidas colheres eu hei-de fazer quando for pastor! Que migas, que natas, que grinaldas e que pastoris cajados, que, ainda que me não granjeiem fama de discreto, não deixarão de ma granjear de engenhoso! A minha filha Sanchita nos levará comida ao aprisco. Mas, esperem lá; a pequena não é nenhuma peste, e há pastores que são mais manhosos do que parecem; e não queria que ela fosse buscar lã e viesse tosquiada, porque, tanto nos campos como nas cidades, andam amores de companhia com os maus desejos; e nas choças dos pegureiros acontece o mesmo que nos palácios dos reis; e, tirada a causa, tira-se o efeito; e olhos que não vêem, coração que não suspira; e mais vale salteador que sai à estrada, que namorado que ajoelha.

- Basta de rifões, Sancho - acudiu D. Quixote -; um só dos que disseste é suficiente para nos fazer entender o teu pensamento; e muitas vezes te tenho aconselhado que não sejas tão pródigo de provérbios; mas parece-me que é pregar no deserto. Minha mãe a castigar-me, e eu com o pião às voltas.

- Parece-me - respondeu Sancho - que Vossa Mercê é como o outro que diz: disse a sertã à caldeira, tira-te para lá, não me enfarrusques. Está-me a repreender e a aconselhar que não diga rifões, e enfia-os Vossa Mercê aos pares.

- Nota, Sancho - disse D. Quixote -, que eu trago os rifões a propósito, e ajeitam-se ao que digo, como os anéis aos dedos; mas tu, tanto os puxas pêlos cabelos que os arrastas, em vez de os guiar; e, se bem me lembro, já de outra vez te disse que os rifões são sentenças breves, tiradas da experiência e das especulações dos nossos antigos sábios; e o rifão que não vem de molde é mais disparate que sentença. Mas deixemo-nos disto, e, como a noite já vem próxima, retiremo-nos da estrada real um pedaço, e procuremos sítio onde passar a noite; Deus sabe o que amanhã sucederá.

Retiraram-se, cearam tarde e mal, bem contra vontade de Sancho, a quem desagradavam os jejuns da cavalaria andante, principalmente comparados com as abundâncias da casa de D. Diogo de Miranda, das bodas do opulento Camacho, e da habitação de D. António Moreno. Mas considerava que não era possível ser sempre dia; e, assim, passou esta noite, dormindo, e seu amo velando.

 

DA AVENTURA SUÍNA QUE ACONTECEU A D. QUIXOTE

Era a noite um pouco escura, apesar de estar a Lua no céu, mas não em sítio em que pudesse ser vista, que às vezes a sra. Diana vai passear para os antípodas, e deixa os montes negros e os vales escuros. Satisfez D. Quixote as reclamações da Natureza, dormindo o primeiro sono sem dar lugar ao segundo, bem às avessas de Sancho, que nunca teve segundo sono, porque dormia desde o cair da noite até ao romper da manhã facto em que se mostravam a sua boa compleição e poucos cuidados. Os de D. Quixote desvelaram-no tanto, que acordou Sancho e disse-lhe:

- Estou maravilhado, Sancho, da liberdade da tua condição. Imagino que és feito de mármore ou de duro bronze, coisas que não têm movimento nem sentimento algum. Velo quando tu dormes, choro quando cantas, desmaio de fraqueza quando estás farto. E próprio de bons criados ajudar seus amos a sofrer as suas mágoas, e sentir o que eles sentirem, ao menos para não parecer mal. Vê a serenidade desta noite, a solidão em que estamos, que nos convidam a intercalar no nosso sono alguma vigília. Levanta-te, por vida tua, afasta-te daqui um pedaço, e, com ânimo e denodo, dá em ti mesmo duzentos ou trezentos açoites, por conta dos do desencantamento de Dulcineia, e isto peço-te, rogando, que não quero travar luta contigo, como da outra vez, porque sei que tens a mão pesada. Depois de te haveres açoitado, passaremos o resto da noite, cantando eu a minha ausência e tu a tua firmeza, dando desde já princípio ao exercício pastoril que seguiremos na nossa aldeia.

- Senhor: eu não sou religioso, para me levantar, no meio do meu sono, e açoitar-me, nem também me parece que do extremo do rigor dos açoites se possa passar para o outro extremo da música. Deixe-me Vossa Mercê dormir e não me apoquente com a história dos açoites, que me obriga a fazer o juramento de nunca tocar nem no pêlo do meu saio, quanto mais nas minhas carnes.

- Ó alma endurecida! Ó despiedoso escudeiro! Ó pão mal empregado! Ó mercês mal consideradas essas que te fiz e as que tenciono fazer-te! Por mim te viste governador, e por mim te vês com esperanças propínquas de ser conde, ou de ter outro título equivalente, e não tardará o cumprimento dessas esperanças mais de um ano; post tenebras spero lucem.

- Não entendo lá isso - replicou Sancho -, o que entendo é que, quando estou a dormir, nem tenho temor nem esperança, nem pena nem glória; e bem haja quem inventou o sono, capa que encobre todos os pensamentos humanos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo que alenta o frio, frio que mitiga o ardor, e, finalmente, moeda geral com que tudo se compra, balança e peso que iguala o pastor ao rei, e o simples ao discreto. Só uma coisa má tem o sono, segundo tenho ouvido dizer: é parecer-se com a morte, porque, de um adormecido a um morto, pouca diferença vai.

- Nunca te ouvi falar tão elegantemente como agora, Sancho - disse D. Quixote -, por onde venho a conhecer a verdade do rifão que tu algumas vezes costumas citar: diz-me com quem andas, dir-te-ei as manhas que tens.

- Então, Senhor, meu amo - redarguiu Sancho -, quem é que enfia rifões agora? Sou eu ou Vossa Mercê, a quem eles caem da boca aos pares, ainda melhor do que a mim? Entre os seus e os meus há só uma diferença: os de Vossa Mercê virão a tempo, e os meus a desoras; mas, afinal de contas, sempre são rifões.

Estavam nisto, quando sentiram um surdo estrondo e um áspero ruído, que por todos aqueles vales se estendia. Pôs-se de pé D. Quixote, e levou a mão à espada, e Sancho acachapou-se debaixo do muro, pondo de cada lado o feixe das armas e a albarda do seu jumento, com medo igual ao alvoroço de D. Quixote.

Cada vez ia crescendo mais o ruído, e, aproximando-se dos dois medrosos, pelo menos de um, porque do outro já conhecemos a valentia. A bulha provinha de mais de seiscentos porcos, que uns homens levavam a vender a uma feira; e era tal o barulho dos seus passos, o grunhir e o bufar, que ensurdeceram D. Quixote e Sancho, os quais nem imaginaram o que podia ser.

Chegou de tropel o extenso e grunhidor batalhão e, sem respeitar a autorizada presença de D. Quixote e de Sancho, desfez as trincheiras que este último erguera, e derribou não só D. Quixote mas atirou também de pernas ao ar Rocinante. O tropear, o grunhir, a rapidez com que chegaram os animais imundos, puseram em confusão, no meio da relva, a albarda, as armas, o ruço, Rocinante, Sancho e D. Quixote.

Levantou-se Sancho o melhor que pôde, e pediu a seu amo a espada, dizendo que queria matar meia dúzia daqueles senhores e descomedidos porcos, que já conhecera que o eram.

  1. Quixote disse-lhe:

- Deixa-os ir, amigo; esta afronta é pena do meu pecado e justo castigo do Céu, que a um cavaleiro vencido o comam as raposas, o piquem as vespas, e o pisem aos pés os porcos.

- Também será castigo do Céu - respondeu Sancho - picarem as moscas, devorarem os piolhos, e a fome saltear os escudeiros dos cavaleiros andantes? Se os escudeiros fossem filhos dos cavaleiros que servem, ou seus próximos parentes, não seria muito que também me chegasse, até à quarta geração, o castigo das suas culpas; mas que têm que ver os Panças com os Quixotes? Agora bem, tornemos a acomodar-nos e durmamos o pouco que ainda resta da noite.

- Dorme tu, Sancho - respondeu D. Quixote -, dorme tu, que nasceste para dormir, que eu nasci para velar; darei largas aos meus pensamentos, e desafogá-los-ei num madrigalzito, que, sem tu o saberes, compus de memória.

- Parece-me que os cuidados que permitem que se façam coplas não devem ser muitos; verseje Vossa Mercê o que quiser, que eu dormirei o que puder.

E, virando-se para o outro lado, adormeceu a sono solto. D. Quixote, encostado ao tronco de uma faia ou de um sobreiro (que Cide Hamet Benengeli não diz que árvore era), ao som dos seus suspiros cantou da seguinte maneira:

Amor, eu quando penso no mal que tu me dás, terrível, forte, alegre corro à morte, para assim acabar meu mal imenso.

Mas quando chego ao passo, que é meu porto no mar desta agonia, sinto tal alegria que a vida se revolta e não o passo.

Assi o viver me mata, pois que a morte me torna a dar a vida!

Condição nunca ouvida, a que comigo vida e morte trata!

Cada verso era acompanhado com muitos suspiros e muitas lágrmas, como quem tinha o coração traspassado pela dor da derrota e pela ausência de Dulcineia.

Rompeu, enm, o dia, bateu o Sol com os seus raios nos olhos de Sancho, que despertou e espreguiçou-se, sacudindo-se e estirando os membros. Olhou para o destroço que os porcos tinham feito na sua despensa, e maldiçoou-os com todas as veras da sua alma.

Tornaram ambos à interrompida viagem, e, ao declinar da tarde, viram que para eles vinham uns dez homens de cavalo e quatro ou cinco a pé. Sobressaltou-se o coração de D. Quixote, e desfaleceu o de Sancho, porque a gente, que se dirigia para eles, trazia lanças e adagas, e vinha como que em som de guerra.

Voltou-se D. Quixote para Sancho e disse-lhe:

- Se eu pudesse, Sancho, exercitar as armas, e não estivesse com as mãos atadas pela minha promessa, esta máquina que vem sobre nós seria para mim pão com mel; mas, pode ser que saia coisa diferente do que receamos.

Chegaram nisto os cavaleiros, e, enristando as lanças, sem dizer palavra, rodearam D. Quixote, e apontaram-lhas às costas e ao peito, ameaçando-o de morte. Um dos homens a pé, com um dedo na boca, em sinal de que se calasse, agarrou no freio de Rocinante, e tirou-o para fora da estrada, e os outros peões, levando adiante de si Sancho e o ruço, e guardando todos maravilhoso silêncio, seguiram os passos do que conduzia D. Quixote, que por duas ou três vezes quis perguntar pra onde é que o levavam, ou o que lhe queriam; mas, apenas principiava a mexer os lábios, quando lhos fechavam logo com os ferros das lanças; e a Sancho acontecia o mesmo, porque, apenas dava sinais de falar, logo um dos peões com um aguilhão o picava, e ao ruço também, como se o ruço também quisesse falar.

Cerrou-se a noite, apressaram o passo, cresceu o medo nos dois presos, e ainda mais quando ouviram que, de quando em quando lhes diziam:

- Caminhai, trogloditas; calai-vos, bárbaros; sofrei, antropófagos; não vos queixeis, citas; não abrais os olhos, poliremos matadores, leões carniceiros.

E com estes e outros nomes semelhantes, atormentavam os ouvidos dos míseros amo e criado.

- Nós chitas! - dizia Sancho entre si. - Nós barbeiros e trôpegos! Não gosto nada destes nomes; não é bom o vento que sopra. Todos os males vêm juntos sobre nós, como as chibatas sobre os cães, e oxalá que não se realize o que ameaça esta tão desventurada aventura.

Ia D. Quixote pasmado, sem poder atinar, por mais que discorresse, por que lhe punham aqueles nomes cheios de vitupérios, dos quais só deduzia que não podia esperar bem nenhum, e tinha que temer muito mal. Chegaram nisto, quase à uma hora da noite, a um castelo, que D. Quixote bem conheceu que era o do duque, onde havia pouco tempo tinham estado.

- Valha-me Deus! - disse ele, apenas conheceu a casa. - Que será isto? Pois nesta casa não é tudo cortesia e comedimento? Mas para os vencidos muda-se o bem em mal e o mal em pior.

Entraram no pátio principal do castelo e viram-no arranjado e adornado de modo que ainda mais pasmados ficaram, como se poderá ver no seguinte capítulo.

 

DO MAIS RARO E MAIS NOVO SUCESSO, QUE EM TODO O DECURSO DESTA GRANDE HISTÓRIA ACONTECEU A D. QUIXOTE

Apearam-se os cavaleiros, e, juntamente com os peões, tomando em peso e arrebatadamente Sancho e D. Quixote, meteram-nos no pátio, em torno do qual ardiam quase uns cem brandões, e mais de quinhentas luminárias, de forma que, apesar da noite, que se mostrava um pouco escura, não se sentia a falta da claridade do Sol. No meio do pátio, a duas varas do chão, levantava-se um túmulo, todo coberto com um grandíssimo dossel de veludo negro, cercado de velas de cera branca acesas em mais de cem candelabros de prata, e em cima do túmulo via-se o cadáver de uma tão linda donzela, que parecia, com a sua formosura, fazer formosa a própria morte. Recostava a cabeça numa almofada de brocado, coroava-a uma grinalda tecida de diversas e odoríferas flores, tinha as mãos cruzadas no peito, e nelas um ramo de amarelo e triunfal laurel.

A um dos lados do pátio estava um tablado, e em duas cadeiras sentadas duas personagens, que, por terem coroas na cabeça e ceptros nas mãos, pareciam ser reis, ou verdadeiros ou fingidos. Ao pé deste tablado, para onde se subia por aguns degraus, viam-se outras duas cadeiras, nas quais, os que trouxeram os presos, sentaram D. Quixote e Sancho - tudo isto em silêncio, e indcando-lhes, com sinais, que se calassem também; mas não era necessário sinal, porque o pasmo do que viam lhes atara as línguas. Subiram nisto ao tablado, com muito acompanhamento, duas principais personagens; logo D. Quixote conheceu que eram o duque e a duquesa, seus hospedeiros que se sentaram em duas riquíssimas cadeiras, junto aos dois que pareciam reis. Quem não se havia de admirar com isto, juntando-se-ihe o ter conhecido D. Quixote, que o cadáver que estava no túmulo era o da formosa Altisidora?

Ao subirem ao tablado o duque e a duquesa, levantaram-se D. Quxote e Sancho, fizeram-lhes um profundo cumprimento, a que os duques corresponderam com uma ligeira inclinação de cabeça. Saiu nisto um beleguim, e, chegando-se a Sancho, deitou-lhe aos sombros uma roupa de bocaxim negro, toda pintada de labaredas; e, tirando-lhe a carapuça, pôs-lhe na cabeça uma mitra, à moda das que levam os penitenciados dos autos-de-fé, e disse-lhe ao ouvido que não abrisse o bico, porque lhe poriam uma mordaça, ou lhe tirariam a vida. Olhava Sancho para si dos pés até à cabeça; via-se ardendo em chamas mas, como o não queimavam, não fazia caso delas. Tirou a mitra, e viu-a pintada de diabos, e tornou-a a pôr, dizendo entre si:

- Ainda bem que nem elas me abrasam, nem eles me levam. Mirava-o também D. Quixote, e, ainda que o temor lhe suspendia os sentidos, não deixou de se rir ao ver a figura de Sancho. Começou nisto a sair, parecia que de debaixo do túmulo, um som brando e suave de flautas, que, por não ser interrompido por voz humana, porque naquele sítio o silêncio parecia ainda mais silêncio, mais brando e amoroso se mostrava. Logo apareceu, de improviso, junto à almofada do que parecia cadáver, um gentil mancebo vestido à romana, que, ao som de uma harpa, que ele mesmo tocava, cantou, com voz dulcíssima e clara estas duas estâncias:

Enquanto não ressurge Altisidora,

de D. Quixote a vítima discreta,

e as damas na corte encantadora

enverguem cada qual sua roupeta,

a duquesa gentil, minha senhora

manda as donas vestir-se de baeta,

cantarei a beldade que morreu

com melhor plectro do que o próprio Orfeu.

E parece-me até que me não toca um tal dever unicamente em vida, mas com a língua morta em fria boca hei-de soltar a voz que te é devida. Livre a minha alma da apertada toca, e pelo Estígio lago conduzida, celebrando-te irá, e ao seu lamento hão-de as águas parar de esquecimento.

- Basta - disse um dos dois, que pareciam reis -, não acabarias nunca se quisesses representar-nos agora a morte e as graças da incomparável Altisidora, não falecida, como pensa o mundo ignorante, mas viva, nas línguas da fama e no castigo que, para a restituir à luz perdida, há-de sofrer Sancho Pança, que presente se acha; e assim, tu, Radamanto, que és julgador comigo nas lôbregas cavernas de Dite, já que sabes tudo o que está resolvido, nos imperscrutáveis fados, a respeito da ressurreição desta donzela, di-lo e declara-o imediatamente, para que não se dilate a posse do bem que esperamos do seu regresso à vida.

Apenas disse isto Minos, juiz e companheiro de Radamanto, logo este, pondo-se em pé, exclamou:

- Eia, ministros desta casa, altos e baixos, grandes e pequenos: acudi uns atrás dos outros, e arrumai no rosto de Sancho vinte e quatro tabefes, e nos seus braços e lombos doze beliscões e seis picadas de alfinetes, que nesta cerimónia consiste a salvação de Altisidora.

Ouvindo isto, Sancho Pança rompeu o silêncio, bradando:

- Voto a tal: eu hei-de consentir tanto que me esbofeteiem a cara e me belisquem os braços, como tenciono fazer-me mouro. Com a breca! Que tem a minha cara e o meu lombo com a ressurreição desta donzela? O comer e o coçar está no principiar: encantam Dulcineia, e para ela se desencantar querem-me dar açoites; morre Altisidora da doença que Deus lhe deu, e, para a ressuscitar, querem dar-me vinte e quatro bofetadas, e crivar-me o corpo de picadas de alfinetes, e arroxear-me os braços com beliscões. Vão fazer essas burlas a um tolo, que eu sou rata pelada, e comigo não se brinca.

- Morrerás - disse em voz alta Radamanto -; abranda-te, tigre; humilha-te, Nemrod soberbo, e sofre e cala-te, que ninguém te pede impossíveis; e não te metas a averiguar as dificuldades deste negócio: hás-de ser esbofeteado, hás-de-te ver espicaçado, e beliscado hás-de gemer. Eia, ministros, repito: cumpri as minhas ordens, senão, palavra de homem de bem, que haveis de saber para que nascestes.

Nisto, apareceram no pátio seis donas, em procissão, uma atrás da outra: quatro com óculos, e todas de mãos erguidas,

com quatro dedos de bonecas para fora, para fazer as mãos maiores, como se usa agora. Apenas Sancho as viu, logo, berrando como um touro, disse:

- Eu deixo-me beliscar, seja por quem for, mas não consinto que donas me toquem. Arranhem-me na cara, como fizeram a meu amo neste mesmo castelo; traspassem-me o corpo com pontas de adagas buídas; atormentem-me os braços com tenazes de fogo, que eu tudo suportarei com paciência; mas que me toquem donas, não consinto, nem que me leve o Diabo.

Rompeu também o silêncio D. Quixote, dizendo a Sancho:

- Tem paciência, filho, e dá gosto a estes Senhores, e muitas graças ao Céu por ter posto na tua pessoa tal virtude, que, com o teu martírio, desencantes encantados e ressuscites mortos.

Já as donas estavam perto de Sancho, quando ele, mais abrandado e mais persuadido, sentando-se bem na sua cadeira, entregou o rosto e a barba à primeira, que lhe assentou uma boa bofetada, e lhe fez uma grande mesura.

- Menos cortesia e menos lavagens Senhora Dona - disse Sancho -, que as suas mãos cheiram a vinagrete.

Finalmente, as donas todas o esbofetearam, e muitas outras pessoas da casa lhe deram beliscões; mas o que ele não pôde suportar foram as picadas dos alfinetes, e, por isso, levantou-se da cadeira, furioso, e, agarrando num facho aceso, que estava ao pé dele, correu atrás das donas e dos seus outros verdugos, dizendo:

- Fora daqui, ministros infernais, que não sou de bronze, para não sentir tão extraordinários martírios.

Nisto, Altisidora, que naturalmente estava cansada, por ter estado tanto tempo de costas, virou-se para um lado; e, vendo isto os circunstantes, disseram todos a uma voz:

- É viva Altisidora, Altisidora vive.

Disse Radamanto a Sancho que depusesse a ira, porque já se tinha alcançado o que se procurava.

Assim que D. Quixote viu bulir Altisidora, foi-se pôr de joelhos diante de Sancho, dizendo-lhe:

- Agora é que é ocasião, filho das minhas entranhas, mais do que escudeiro meu, de que arrumes em ti alguns dos açoites a que estás obrigado, para o desencantamento de Dulcineia. Agora é que é ocasião, porque estás com a virtude sazonada, e com a eficácia necessária para obrar o que de ti se espera.

- Isso parece-me agraço sobre agraço, e não mel sobre mel: tinha que ver, se, depois das bofetadas, das alfinetadas e dos beliscões, viessem os açoites; era melhor pegar numa pedra, atar-ma ao pescoço, e atirar comigo a uma cisterna - o que me não pesaria muito, se estou destinado a vaca da boda, para curar os males de toda a gente. E deixem-me, senão vai aqui pancada de três em pipa.

Já a este tempo Altisidora se sentara no seu túmulo, e no mesmo instante soaram as charamelas, acompanhadas pelas flautas, e pelas vozes de todos, que bradavam:

- Viva Altisidora, viva Altisidora!

Levantaram-se os duques, e os reis Minos e Radamento; e todos juntos, com D. Quixote e Sancho, foram receber Altisidora, e ajudá-la a descer do túmulo; e ela inclinou-se para os duques e para os reis, e, olhando de revés para D. Quixote, disse-lhe:

- Deus te perdoe, desamorável cavaleiro, que, pela tua crueldade, estive no outro mundo mais de mil anos, segundo me pareceu; e a ti, ó escudeiro, o mais compassivo de todos os que o mundo encerra, agradeço-te a vida que possuo. Dispõe, desde já, de seis camisas minhas, que te vou mandar, as quais, se estão rotas algumas, ao menos sujas não são.

Beijou-lhe as mãos Sancho, de mitra em punho e joelhos no chão. Mandou o duque que lha tirassem, e lhe restituíssem a carapuça, assim como que lhe tirassem a roupa das chamas e lhe dessem o saio outra vez. Suplicou Sancho ao duque que lhe deixasse levar para a terra a mitra e a roupeta, como sinal e memória daquele nunca visto sucesso. A duquesa respondeu que sim, e que bem sabia que ela era muito sua amiga.

Mandou o duque despejar o pátio, que todos se recolhessem aos seus aposentos, e que levassem D; Quixote e Sancho para os que eles já sabiam.

 

QUE SE SEGUE aos SESSENTA E NOVE, E TRATA DE COISAS QUE não são ESCUSADAS PARA A CLAREZA DESTA HISTÓRIA

Dormiu Sancho aquela noite num catre, no mesmo quarto que D. Quixote, coisa que ele desejaria evitar, se pudesse, porque seu amo não o havia de deixar dormir com perguntas e respostas, e ele não se achava em disposição de falar muito, que ainda sentia as dores dos passados martírios, e não lhe deixavam a língua livre, de forma que lhe fazia mais conta dormir sozinho numa choça, do que acompanhado num palácio. Saiu to verdadeiro o seu temor e tão certa a sua suspeita, que, apenas seu amo se meteu na cama, logo lhe disse:

- Que te pareceram, Sancho, os sucessos desta noite? Muito grande e muito poderosa é a força do amoroso desdém, pois com os teus próprios olhos viste morta Altisidora, não de seta, nem de espada, nem de outro bélico instrumento, nem de venenos mortais, mas só pela consideração do rigor e do desdém com que a tratei sempre.

- Morresse ela em muito boa hora, quando quisesse e como quisesse - respondeu Sancho -, e deixasse-me na minha casa, porque eu é que nunca a namorei, nem desdenhei na minha vida. Não sei, nem posso imaginar que a saúde de Altisidora, donzela mais caprichosa que discreta, tenha que ver, como já disse, com os martírios de Sancho Pança. Agora é que chego a conhecer, clara e distintamente, que há nigromantes e encantamentos no mundo, nigromantes de que peço a Deus que me livre, porque eu não me sei livrar; contudo isso, peço a Vossa Mercê que me deixe dormir, e que não me pergunte mais nada, se não quer que me deite daquela janela abaixo.

- Dorme, Sancho amigo - respondeu D. Quixote -, se to permitem as bofetadas, os beliscões e as picadas de alfinetes.

- Nenhuma dor chegou à afronta das bofetadas, e não foi por outra coisa, senão por me serem dadas por mãos de donas, que sumidas sejam elas nas profundas dos Infernos; e tomo a suplicar a Vossa Mercê que me deixe dormir, porque o sono é alívio das misérias daqueles que as têm quando estão acordados.

- Seja assim - disse D. Quixote - e Deus te acompanhe! Adormeceram ambos, e Cide Hamet aproveita a ocasião, para contar o que foi que levou os duques a levantar o edifício da referida máquina, e diz que, não se tendo esquecido o bacharel Sansão Carrasco da derrota do Cavaleiro dos Espelhos, derribado por D. Quixote, derrota e queda que apagou e desfez todos os seus desígnios, quis outra vez provar a mão, esperando êxito melhor; e, assim, sabendo do pajem, que levou a carta e o presente a Teresa Pança, mulher de Sancho, onde D. Quixote ficava, procurou novas armas e novo cavalo, e pôs no escudo a Branca Lua, levando tudo em cima de um macho, guiado por um lavrador, e não por Tomé Cecial, para que nem Sancho, nem D. Quixote o conhecesse. Chegou, pois, ao castelo do duque, que o informou do caminho e da derrota que D. Quixote levava, com intento de se achar nas justas de Saragoça. Disse-lhe também as burlas que lhe fizera, com a traça do desencantamento de Dulcineia, que havia de ser à custa das pousadeiras de Sancho. Enfim, contou-lhe a peta que Sancho pregara a seu amo, fazendo-lhe acreditar que Dulcineia estava encantada e transformada em lavradeira, e como a duquesa sua mulher fizera crer a Sancho que era ele quem se enganava, porque Dulcineia estava encantada verdadeiramente; e não pouco se riu e admirou o bacharel da agudeza e simplicidade de Sancho, e da extrema loucura de D. Quixote. Pediu-lhe o duque que, se o encontrasse, quer o vencesse quer não, voltasse por ali a dar-lhe conta do sucedido. Assim fez o bacharel; partiu em sua procura, não o encontrou em Saragoça, passou diante e sucedeulhe o que fica referido. Tornou pelo castelo do duque, e tudo contou, sem esquecer as condições da batalha, e que D. Quixote voltava a cumprir, como bom cavaleiro andante, a palavra de se retirar por um ano para a sua aldeia; e nesse tempo podia ser, disse o bacharel, que sarasse da sua loucura, que era esta a intenção que o movera a fazer aquelas transformações, por ser coisa de lástima, que um fidalgo de tão bom entendimento como D. Quixote estivesse doido. Com isto se despediu do duque, e

tornou para a sua terra, para ir esperar D. Quixote, que vinha atrás dele. Aproveitou a ocasião o duque para lhe fazer aquela nova caçoada - tanto o divertiam D. Quixote e Sancho; e mandou tomar os caminhos, por todos os lados por onde imaginou que poderia voltar D. Quixote, com muitos criados seus, de pé e de cavalo, para que, por força ou por vontade, o levassem ao castelo, se o encontrassem; encontraram-no, avisaram o duque, que, já prevenido de tudo o que havia de fazer, assim que teve notícia da chegada do cavaleiro, mandou acender os fachos e as luminárias do pátio, e pôr Altisidora sobre o túmulo, com todos os aparatos que se contaram, tanto ao vivo e tão bem feitos, que, entre eles e a verdade, havia bem pouca diferença; e diz mais Cide Hamet, que tão doidos lhe parecem os burladores, como os burlados, e que não estavam os duques muito longe de parecer patetas, pois tanto afinco mostravam em zombar de dois lunáticos, a um dos quais, dormindo a sono solto, e ao outro, velando com desconexos pensamentos, os surpreendeu o dia e a vontade de se levantar; que, vencido ou vencedor, nunca a ociosa pluma deu gosto a D. Quixote.

Altisidora, que, na opinião de D, Quixote, ressuscitara, conformando-se com os caprichos dos seus amos, coroada com a mesma grinalda que tinha no túmulo, e vestindo uma túnica de tafetá branco, semeada de flores de ouro e com os cabelos soltos pelas espáduas, arrimada a um báculo de negro e finíssimo ébano, entrou pelo quarto de D. Quixote; e este, vendo-a, turbado e confuso, se encolheu e tapou todo com os lençóis e colchas da cama, e ficou de língua muda, sem que acertasse a fazer-lhe cortesia nenhuma. Sentou-se Altisidora à sua cabeceira, e, com voz terna e débil lhe disse:

- Quando as mulheres principais, e donzelas recatadas, atropelam a honra, e dão licença à língua que rompa por todos os inconvenientes, dando notícia, em público, dos segredos que o seu coração encerra, em grande aperto se acham. Eu Sr. D. Quixote de La Mancha, sou uma destas, vencida e enamorada; mas, contudo isso, sofrida e honesta; tanto assim, que, por sê-lo tanto, me rebentou a alma com o silêncio, e perdi a vida. Há dois dias que, em consideração do rigor com que me trataste, ó cavaleiro empedernido, mais duro do que o mármore! Estive morta, ou, pelo menos, por morta me tiveram os que me viram; e, se o amor, condoendo-se de mim, não pusesse o meu remédio nos martírios deste bom escudeiro, lá ficaria eu no outro mundo.

- O amor podia perfeitamente - disse Sancho - depositá-lo nos do meu burro, que eu lho agradeceria muito. Mas diga-me Senhora, e queira o Céu conceder-lhe mais brando enamorado que meu amo: que é que viu no outro mundo? Que há no Inferno? Porque, a esse paradeiro, há-de ir ter, por força, quem morre desesperado.

- Quer que lhe diga a verdade? - respondeu Altisidora.

Parece-me que não morri de todo, porque não cheguei a entrar no Inferno; e, se lá entrasse, decerto que não poderia sair. A verdade é que cheguei à porta, onde estavam jogando a péla cerca de uma dúzia de diabos, todos de calças e gibão, e capas à valona, guarnecidas de rendas flamengas, e com voltas de rendas também, que lhes serviam de punhos, com quatro dedos do braço de fora, para parecerem maiores as mãos, em que tinham umas pás de fogo; e, o que mais me admirou, foi estarem jogando a péla com livros, que pareciam cheios de vento e de borra, coisa maravilhosa e nova; mas ainda me admirou mais ver que, sendo próprio dos jogadores alegrar-se os que ganham e entristecer-se os que perdem, naquele jogo todos grunhiam, todos arreganhavam o dente, e todos se maldiziam.

- Isso não admira - respondeu Sancho -, quer joguem, quer não joguem, quer ganhem, quer não ganhem, nunca podem estar contentes.

- Assim deve ser - respondeu Altisidora -, mas há outra coisa, que também me admira, quero dizer, que também me admirou então, e foi que ao primeiro boléu não ficava nem uma péla capaz, nem se podia mais aproveitar; e assim gastavam livros novos e velhos, que era mesmo uma maravilha. A um deles, novo, flamante, e bem encadernado, deram uns piparotes, que lhe arrancaram as tripas e lhe espalharam as folhas. Disse um diabo para outro: «Vede que livro é esse”; e o diabo respondeu-lhe: «Este é a Segunda Parte da História de D. Quixote de La

Mancha, não composta por Cide Hamet, seu primeiro autor, mas por um aragonês, que diz ser natural de Tordesilhas.” «Tirai-mo daí, respondeu o outro diabo, e metei-o nos mais profundos abismos do Inferno, para que o não vejam mais os meus olhos.” «Tão mau é ele!”, redarguiu o outro. «Tão mau, replicou o primeiro, que, se eu de propósito me metesse a fazê-lo pior, não o conseguiria.” Continuaram a jogar a péla com outro livro; e, por ter ouvido pronunciar o nome de D. Quixote, a quem tanto amo e quero, é que procurei que me ficasse de memória esta visão.

- Visão havia de ser, sem dúvida - observou D. Quixote -, porque não há outro eu no mundo, e por cá já esse livro anda de mão em mão; mas em nenhuma pára, porque todos lhe dão com o pé. Não me alterei, ouvindo dizer que ando como corpo fantástico pelas trevas do abismo, e pela claridade da Terra, porque não sou esse de quem o livro trata. Se for bom, fiel e verdadeiro, terá séculos de vida; mas, se for mau do seu nascimento à sepultura irá breve espaço.

Ia Altisidora prosseguir nas suas queixas de D. Quixote, quando este lhe disse:

- Muitas vezes vos tenho dito Senhora, que me pesa de terdes colocado em mim os vossos pensamentos, porque, pêlos meus, só podem ser agradecidos e não remediados. Nasci para ser de Dulcineia del Toboso, e os fados, se os houvera, a ela me teriam dedicado; e, pensar que outra formosura possa ocupar na minha alma o lugar que ela ocupa é impossível.

Ouvindo isto Altisidora, fingindo alterar-se e enfadar-se, disse-lhe:

- Viva o Senhor Dom Bacalhau, alma de almofariz, casca de tâmara, mais teimoso e duro que um vilão, quando leva a sua ferrada; tomai tento, que, se vos arremeto deveras, sou capaz de vos tirar os olhos. Pensais, porventura, dom vencido e dom desancado, que morri por vossa causa? Tudo o que esta noite vistes foi fingido; nem eu sou mulher que, por semelhantes camelos, queira ter uma dor numa unha, quanto mais morrer.

- Lá essa creio eu - disse Sancho - que, isto de morrerem os enamorados, é coisa de riso: podem-no eles dizer, mas fazer, Judas que o acredite.

Quando estavam nestas práticas, entrou o músico poeta, que cantara as duas estâncias já referidas, e, fazendo um grande cumprimento a D. Quixote disse:

- Conte-me Vossa Mercê, Senhor Cavaleiro, no número dos seus maiores servidores, porque há muitos dias que lhe sou afeiçoado, tanto pela sua fama, como pelas suas façanhas.

- Diga-me Vossa Mercê quem é - respondeu D. Quixote - para que a minha cortesia corresponda aos seus merecimentos.

Tornou o moço que era o músico e o panegirista da noite anterior.

- É certo - respondeu D. Quixote - que Vossa Mercê tem uma voz excelente; mas o que cantou é que me parece que não foi muito a propósito; porque, nada têm que ver as estâncias de Garcilasso com a morte desta senhora,

- Não se maravilhe disso Vossa Mercê - respondeu o músico -, que já se usa, entre os intonsos poetas do nosso tempo, escrever cada qual como quer, e furtar a quem lhe parece, venha ou não venha a pêlo; e não há necedade que escrevam ou cantem, que se não atribua a licença poética.

Queria responder D. Quixote, mas estorvaram-no o duque e a duquesa que vieram vê-lo; e houve entre eles larga e agradável prática, em que Sancho disse tais graças e malícias, que ficaram de novo admirados os duques, tanto da sua simplicidade como da sua agudeza. D. Quixote pediu-lhes que lhe dessem licença para partir nesse mesmo dia, porque, aos vencidos cavaleiros como ele, mais convinha habitar numa toca, do que em palácios reais. Deram-lha com muito boa vontade, e a duquesa perguntou-lhe se Altisidora lhe caíra em graça.

- Senhora - respondeu ele -, saiba Vossa Senhoria, que todo o mal desta donzela nasce da sua ociosidade, cujo remédio é a ocupação contínua e honesta. Disse-me agora, que se usam rendas no Inferno; e, como ela as deve saber fazer, não as largue da mão, que, ocupada em voltear os bilros, não voltearão na sua fantasia as imagens daquilo que muito bem quer; esta é a verdade, este o meu parecer, este o meu conselho.

- E o meu também - respondeu Sancho -, porque nunca vi, na minha vida, rendeira que se matasse por amor; que, as

donzelas que trabalham, não pensam nos seus amores, pensam nas suas tarefas. Por mim o digo; pois, enquanto estou cavando, até me esqueço da minha patroa, quero dizer, da minha Teresa Pança, a quem quero mais que às pestanas dos meus olhos.

- Dizeis muito bem, Sancho - tornou a duquesa -, e eu farei com que a minha Altisidora se entretenha daqui por diante a trabalhar em roupa branca, trabalho que ela faz muitíssimo bem.

- Não é necessário usar desse remédio Senhora Duquesa - acudiu Altisidora -, porque a consideraço da crueldade, com que me tratou este malandrim mostrengo, há-de-mo apagar da memória, sem mais artifício algum, e, com licença de Vossa Grandeza, vou-me embora daqui, para não ver mais, diante dos meus olhos, já não digo a sua triste figura, mas a sua catadura, feia e abominável.

- Costuma-se dizer a isso - observou o duque - que quem injuria está próximo a perdoar.

Fingiu Altisidora limpar as lágrimas com um lenço, e, fazendo uma msura a seus amos, saiu do aposento.

- Má ventura tiveste, pobre donzela - disse Sancho -, porque deste com uma alma de esparto e um coração de carvalho, que se desses comigo, outro galo te cantara.

Acabou-se a prática, vestiu-se D. Quixote, jantou com os duques, e partiu nessa tarde.

 

DO QUE SUCEDEU A D. QUIXOTE COM O SEU ESCUDEIRO SANCHO, QUANDO IA PARA A SUA ALDEIA

Ia o vencido D. Quixote muito pensativo por um lado, e muito alegre por outro. Causava a sua tristeza a derrota, e a alegria o considerar a virtude de Sancho, virtude que se manifestara na ressurreição de Altisidora, ainda que desconfiava um pouco de que a enamorada donzela estivesse morta deveras. Não ia nada alegre Sancho, por ver que Altisidora não cumprira a promessa de lhe dar as camisas; e, cismando nisto, disse a seu amo:

- Na verdade Senhor, eu sou o médico mais desgraçado deste mundo, onde há físicos que, apesar de matar o doente de que tratam, querem ser pagos do seu trabalho, o qual não vai senão a assinar uma receita de alguns remédios, que não são feitos por eles, mas sim pelo boticário, e depois assobiem-lhes às botas; e a mim, a quem a saúde alheia custa gotas de sangue, beliscões, bofetadas e picadas de alfinetes, não me dão nem um chavo; pois juro que, se me cai nas mãos outro enfermo, hão-de-mas untar antes que eu o cure, que o abade janta do que canta, e não quero crer que me desse o Céu a virtude que tenho, para a comunicar aos outros de graça.

- Tens razão, Sancho amigo - observou D. Quixote -, e procedeu muito mal Altisidora, não te dando as prometidas camisas; e, ainda que a tua virtude é rátis data, porque te não custou estudo algum, é mais que estudo receber uma pessoa martírios no seu corpo; eu de mim sei dizer que, se quisesses paga pelo desencantamento de Dulcineia, já ta haveria dado;

mas não sei se a paga fará mal à cura, e impedirá o efeito do remédio. Parece-me, enfim, que não custa nada experimentar; vê quanto queres, Sancho, e começa imediatamente a açoitar-te, e paga-te de contado e por tua própria mão, pois tens dinheiros meus.

Ouvindo estes oferecimentos, abriu Sancho muito os olhos e os ouvidos; consentiu w mente e de boa vontade em se açoitar, e disse para seu amo:

- Bem, Senhor; quero-me dispor a ser-lhe agradável no que deseja, com proveito meu: que o amor de meus filhos e de minha mulher é que me faz interesseiro. Diga-me Vossa Mercê quanto me dá por cada açoite.

- Se eu te fosse pagar conforme a grandeza e a qualidade do remédio - respondeu D. Quixote - não chegariam, nem o tesouro de Veneza, nem as minas de Potosi; calcula o que tenho de meu, e vê por aí o que hás-de pedir.

- Os açoites - respondeu Sancho - serão três mil trezentos e tantos; cinco já eu apanhei, e restam os que ficam; façamos de conta que os tais tantos são cinco, e vamos lá aos três mil e trezentos; a quarto cada um, que não vai por menos, nem que o mundo todo mo ordene, fazem três mil e trezentos quartos; vêm a ser os três mil quartos setecentos e cinquenta réis, e os outros trezentos cento e cinquenta meios réis, ou setenta e cinco réis, que juntos com os setecentos e cinquenta, fazem oitocentos e vinte e cinco réis. Tiro estes dos que tenho de Vossa Mercê em meu poder, e entro em minha casa rico e contente, apesar de açoitado, porque não se apanham trutas...

- Ó Sancho abençoado! Ó Sancho amável! - respondeu D. Quixote. - E como havemos de ficar obrigados, eu e Dulcineia, a servir-te todos os dias de vida que o Céu te outorgar! Se ela torna ao perdido ser, a sua desdita terá sido dita, e o meu vencimento felicíssimo triunfo; e vê, Sancho, quando queres principiar a disciplinar-te, que, para que o abrevies, te acrescento já cem réis.

- Quando? - replicou Sancho. - Esta noite sem falta; faça Vossa Mercê com que a passemos no campo ao sereno, que eu cortarei as carnes.

Chegou a noite, esperada por D. Quixote com a maior ânsia deste mundo, parecendo-lhe que se tinham quebrado as rodas do carro de Apoio, e que o dia se alargava mais do que o costumado, como acontece aos enamorados, que nunca chegam a ajustar a conta dos seus desejos.

Entraram, finalmente, num ameno arvoredo, que estava pouco desviado do caminho e onde se apearam e se estenderam na verde relva, e cearam da despensa de Sancho; este, fazendo do cabresto e da reata do ruço um forte e flexível chicote, retirou-se para entre umas faias, a uns vinte passos de seu amo.

  1. Quixote, que o viu com denodo e brio, disse-lhe:

- Olha lá, amigo, não te despedaces; deixa que uns açoites esperem pêlos outros; não queiras apressar-te tanto na carreira, que ao meio dela te falte o alento; não te fustigues com tanta força, que te fuja a vida antes de chegares ao número desejado; e, para que não percas por carta de mais, nem por carta de menos, eu estarei de parte, contando, por este meu rosário, os açoites que em ti deres. Favoreça-te o Céu, como merece a tua boa intenção.

- Ao bom pagador não custa dar penhor - respondeu Sancho -; tenciono açoitar-me, de modo que me doa e me não mate - que é nisso que deve consistir a substância deste milagre.

Despiu-se logo de meio corpo para cima, e, sacudindo o cordel, começou a açoitar-se, e D. Quixote a contar os açoites. Talvez Sancho já tivesse dado em si próprio seis ou oito, quando lhe pareceu que era pesada a brincadeira e baratíssimo o preço; e, demorando-se um pouco, disse a seu amo que se tinha enganado, e que cada açoite daqueles merecia um real, e não um quarto.

- Prossegue, Sancho amigo, e não desmaies - disse D. Quixote -, que eu dobro a parada do preço.

Mas o socarrão deixou de os arrumar nos seus ombros, e dava-os nas árvores, com uns suspiros de quando em quando, que parecia que cada um deles lhe arrancava a alma.

  1. Quixote, movido pelo seu bom coração, e receoso de que a imprudência de Sancho lhe pusesse termo à vida e lhe não fizesse conseguir o seu desejo, disse-lhe:

- Por tua vida, Sancho, fique o negócio por aqui; o remédio parece-me aspérrimo, e será bom dar tempo, que, Roma nem Pavia, não se fez num dia. Já deste, se contei bem, mais de mil açoites; bastam por agora, que, como dizem os rústicos, o asno atura a carga, mas não a sobrecarga.

- Não, senhor, não - tornou Sancho -, não se há-de dizer de mim: merenda feita, companhia desfeita; aparte-se Vossa Mercê mais um pedaço, e deixe-me dar mais uns mil açoites, pelo menos, que assim, com mais duas vasas destas, se acaba a partida, e ainda ficamos com pano para mangas.

- Pois se te achas em tão boa disposição, o Céu te ajude, e continua, que eu cá me aparto.

Voltou Sancho à sua tarefa com tanto denodo, que, pelo rigor com que se açoitava, já tirara a cortiça a umas poucas de árvores; e, levantando de uma das vezes a voz, e dando um desaforado açoite numa faia bradou:

- Morra Sansão, e todos quantos aqui estão. Acudiu logo D. Quixote ao som da voz plangente e do rigoroso golpe, e, agarrando no retorcido cabresto, que servia a Sancho de chicote, disse-lhe:

- Não permita a sorte, Sancho amigo, que, para me dares gosto, percas a vida, que há-de servir para sustentar tua mulher e teus filhos; espere Dulcineia melhor conjuntura, e eu me conterei dentro dos limites da propínqua esperança, e esperarei que cobres forças novas, para este negócio se concluir a aprazimento de todos.

- Já que Vossa Mercê assim o quer, meu Senhor - respondeu Sancho -, seja em boa hora; e deite-me a sua capa aos ombros, estou suando, e não me queria constipar, porque os penitentes novatos correm esse perigo.

Assim fez D. Quixote, e Sancho adormeceu, até que o Sol o despertou, e tornaram logo a seguir o seu caminho, indo parar a um sítio que ficava dali a três léguas. Apearam-se numa estalagem, que D. Quixote reconheceu como tal, não a tomando por castelo de fosso profundo, torres, e ponte levadiça, porque, depois de ter sido vencido, discorria com mais juízo em todas as coisas, como agora se dirá. Alojaram-no numa sala baixa, a que serviam de guadamecins uma sarjas velhas, pintadas, como se usam nas aldeias. Numa delas estava pessimamente representado o rapto de Helena, quando o atrevido hóspede a roubou a Menelau, e noutra a história de Dido e de Eneias: ela, numa alta torre, acenando para Eneias, que fugia pelo mar fora numa fragata ou bergantim. Notou nas duas histórias, que Helena não ia de muito má vontade, porque se ria à socapa; mas Dido, essa parecia que vertia dos olhos lágrimas como punhos.

Vendo isto, dsse D. Quixote:

- Foram desgraçadíssimas estas duas senhoras, por não terem nascido neste século, e eu, sobre todos, desventuroso, por não ter nascido no seu; porque, se eu encontrasse aquelas senhoras, nem Tróia seria abrasada nem Cartago destruída, pois, logo que eu matasse Paris, se evitavam todas as desgraças.

- Aposto - disse Sancho - que dentro em pouco tempo não haverá taberna, estalagem, nem loja de barbeiro, em que não esteja pintada a história das nossas façanhas; mas desejaria que a pintassem mãos de melhor pintor do que era quem pintou estas.

- Tens razão, Sancho - disse D. Quixote -, porque este é como Orbaneja, um pintor que estava em Úbeda, que, quando lhe perguntavam o que pintava, respondia: «o que sair”; e, se porventura pintava um galo, escrevia por baixo: Isto é um galo, para não pensarem que era uma zorra. Assim me parece, Sancho, que o pintor, ou escritor que deu à luz a história desse novo D. Quixote aparecido agora, foi pintar ou escrever o que saísse; ou seria como um poeta, que andava estes anos passados na corte, chamado Mauleon, que respondia de repente a tudo o que lhe perguntavam, e, perguntando-lhe um sujeito o que queria dizer Deum de Deo, respondeu: Dê onde der7 Mas, deixando isso, diz-me, Sancho, se tencionas pregar em ti mesmo outra tunda esta noite, e se queres que seja debaixo de telha, ou ao ar livre.

- Eu lhe digo Senhor - respondeu Sancho -, a sova que tenciono pregar em mim próprio, tanto me importa que seja em casa, como no campo; mas, contudo isso, desejaria antes entre arvoredos; parece que me acompanham e me ajudam a levar o meu trabaho maravilhosamente.

- Pois não há-de ser assim, Sancho amigo - respondeu D. Quixote -; como é necessário que tomes forças, guardemos isso para a nossa aldeia, aonde chegaremos, o mais tardar, depois de amanhã.

Sancho respondeu que fzesse o que quisesse, mas que ele, por si, preferia concluir aquele negócio com a maior brevidade possível, porque tudo está no principiar; e não guardes para amanhã o que podes fazer hoje; e Deus ajuda a quem madruga;

e mais vale um toma, que dos te darei, e um pássaro na mão, que dois a voar.

- Basta de rifões, Sancho, em nome de Deus verdadeiro - disse D. Quixote -, que parece que voltas ao sicut ert; fala claro e liso, e chão, como fazes muitas vezes, e verás que assim hás-de medrar.

- Isto em mim é uma desgraça - tornou Sancho -; parece que não sei alinhavar um arrazoado sem lhe meter um rifão. E, com isto, cessou a sua prática.

 

DE COMO D. QUIXOTE E SANCHO CHEGARAM À SUA ALDEIA

Estiveram ali todo o dia, esperando que caísse a noite, D. Quixote e Sancho: um para concluir, em campina rasa, a tunda principiada, e o outro para ver o fim dela, em que estava também o fim do seu desejo. Chegou nisto à estalagem um caminhante a cavalo, com três ou quatro criados, um dos quais disse para seu amo:

- Aqui pode Vossa Mercê, Sr. D. Álvaro Tarfé, passar hoje a sesta; a pousada parece limpa e fresca.

Ouvindo isto, disse D. Quixote para Sancho:

- Olha lá, Sancho, quando folheei aquele livro da segunda parte da minha história, parece-me que topei ali de passagem este nome de D. Álvaro Tarfé. - ode muito bem ser - respondeu Sancho -; deixemo-lo apear, e depois lho perguntaremos.

O cavalheiro apeou-se, e a estalajadeira deu-lhe uma sala baixa, que ficava defronte do quarto de D. Quixote, e adornada também com sarjas pintadas. Pôs-se à fresca o recém-vindo cavaleiro, e descendo ao pátio da estalagem, que era espaçoso e fresco, e vendo D. Quixote a passear, perguntou-lhe:

- Para onde vai Vossa Mercê, Senhor Gentil-Homem?

- Para uma aldeia próxima daqui - respondeu D. Quixote - de onde sou natural; e Vossa Mercê para onde va?

- Vou para Granada, que é a minha terra Senhor Cavaleiro.

- E boa terra - replicou D. Quixote -; mas queira Vossa Mercê ter a bondade de me dizer o seu nome, porque me parece que me há-de importar muito sabê-lo.

- O meu nome é D. Álvaro Tarfé - respondeu o hóspede.

- Sem dúvida é Vossa Mercê aquele D. Álvaro Tarfé, que figura na segunda parte da história de D. Quixote, recentemente impressa e dada à luz do mundo por um autor moderno.

- Sou esse mesmo - respondeu o cavaleiro - e o D. Quixote, assunto principal de tal história, foi meu grande amigo; fui eu que o tirei da sua terra, ou pelo menos que o movi a que fosse a umas justas que se faziam em Saragoça, para onde eu ia; e é bem verdade que lhe fiz muitos obséquios, e o livrei de lhe fustigar as costas o verdugo, por ser muito atrevido.

- E diga-me, Sr. D. Álvaro: pareço-me em alguma coisa com esse D. Quixote que Vossa Mercê diz?

- Não, decerto - redarguiu o hóspede.

- E esse D. Quixote - tornou o nosso herói - trazia consigo um escudeiro chamado Sancho Pança?

- Trazia, sim - respondeu D. Álvaro -, e, apesar de ter fama de gracioso nunca lhe ouvi dizer coisa que tivesse graça.

- Isso creio eu - acudiu Sancho - porque isto de dizer graças não é para todos; e esse Sancho que Vossa Mercê diz, Senhor Gentil-Homem, deve de ser algum grandíssimo velhaco e ladrão, porque o verdadeiro Sancho Pança sou eu, que tenho graça por aí além; e senão, faça Vossa Mercê a experiência: ande um ano atrás de mim, e verá que os chistes caem-me a cada passo, tais e tantos, que, sem saber a maior parte das vezes o que digo, faço rir todos os que me escutam; e o verdadeiro D. Quixote de La Mancha, o famoso, o valente e o discreto, o enamorado o desfazedor de agravos, o tutor de pupilos e órfãos, o amparo das viúvas, o que tem por única dama a Dulcineia del Toboso, é este Senhor que está presente, e que é meu amo; e todo e qualquer outro D. Quixote, e todo e qualquer outro Sancho Pança, são burla e sonho.

- Assim o creio, por Deus - respondeu D. Álvaro -, porque mais graças dissestes, amigo, em quatro palavras que aí proferistes, no que em quantas ouvi ao outro Sancho Pança, que foram muitas. Tinha mais de falador que de bem-falante, e mais de tolo que de gracioso; e, sem dúvida, os nigromantes que perseguem D. Quixote, o bom, me quiseram perseguir a mim com D. Quixote, o mau. Mas estou perplexo, porque ouso jurar que o deixei metido, para que o curem na casa do Núncio em Toledo, e, no fim de contas, aqui me aparece agora outro D. Quixote, ainda que, realmente, muito diferente do meu.

- Não sei dizer se eu é que sou o bom; mas posso afirmar que não sou o mau; para prova disso, quero que Vossa Mercê saiba, Sr. D. Álvaro Tarfé, que nunca estive, em dias de minha vida, em Saragoça; antes, por me terem dito e asseverado que esse D. Quixote fantástico se achara nas justas dessa cidade não quis eu lá pôr pé, para mostrar bem claramente a sua mentira; e por isso fui direito a Barcelona, arquivo da cortesia, albergue dos estrangeiros, hospital dos pobres, pátria dos valentes, vingança dos ofendidos, e grata correspondência de firmes amizades, única em situação e formosura. E ainda que as coisas que lá me sucederam não foram de muito gosto, mas sim de muita aflição, suporto-as sem mágoa, só pela ter visto. Finalmente Sr. D. Álvaro Tarfé, sou D. Quixote de La Mancha, de quem a fama se ocupa, e não esse desventurado, que quis ocupar o meu nome e honrar-se com os meus pensamentos. Suplico a Vossa Mercê, pêlos seus deveres de cavalheiro, que seja servido fazer uma declaração perante o alcaide deste lugar, de como Vossa Mercê nunca me viu em todos os dias da sua vida, senão agora, e de como não sou eu o D. Quixote impresso na segunda parte, nem este Sancho Pança, meu escudeiro, é aquele que Vossa Mercê conheceu.

- Isso prometo fazer de muito boa vontade - respondeu D. Álvaro Tarfé -, ainda que me cause grande admiração ver ao mesmo tempo dois D. Quixotes e dois Sanchos, tão conformes nos nomes como diferentes nas acções; e torno a dizer e afirmo a Vossa Mercê, Senhor Cavaleiro, que nem vi o que vi, nem se passou comigo o que se passou.

- Sem dúvida alguma - disse Sancho Pança - Vossa Mercê, Sr. D. lvaro deve de estar encantado como a minha Sra. Dulcineia del Toboso, e prouvera a Deus que o desencantamento de Vossa Mercê dependesse de eu dar em mim três mil e tantos açoites, ou mais que fossem, como os que por ela apanho, que não tinha dúvida em os arrumar na minha carne, com todo o entusiasmo, e sem interesse de espécie alguma.

- Não entendo, bom Sancho, o que vem a ser isso de açoites - acudiu D. Álvaro Tarfé.

E Sancho respondeu-lhe que eram contos largos; mas que lhe referiria tudo, se por acaso seguissem o mesmo caminho.

Nisto, chegou a hora de jantar, e jantaram juntos D. Quixote e D. Álvaro.

Entrou, por acaso, o alcaide do povo na estalagem com um escrivão, e perante esse alcaide fez o nosso D. Quixote um requerimento, dizendo que ao seu direito convinha que D. Álvaro Tarfé, esse cavaleiro que estava presente, declarasse diante de Sua Mercê que não conhecia o famoso D. Quixote de La Mancha, que também presente se achava, e que não era ele quem figurava numa história, impressa com o título de Segunda Parte de D. Quixote de La Mancha, Composta por Um tal Avelaneda, atural de Tordesilhas.

Enfim, o alcaide proveu juridicamente, e fez-se a declaração com todas as formas que em tais casos se deviam fazer; com isso ficaram D. Quixote e Sancho muito alegres, como se fosse de grande importância para eles tal declaração e não mostrassem claramente a diferença dos dois Quixotes e dos dois Sanchos as suas obras e as suas palavras.

Muitas cortesias e oferecimentos se trocaram entre D. Quixote e D. Álvaro, mostrando sempre o manchego a sua discrição, de modo que desenganou D. Álvaro Tarfé do erro em que laborava fazendo-lhe supor que estava encantado, por isso que tocava com a mão em dois tão contrários D. Quixotes.

Chegou a tarde, partiram-se daquele lugar e, a obra de meia légua, tomaram dois caminhos diferentes: um que ia ter à aldeia de D. Quixote, e o outro por onde havia de seguir D. Álvaro.

Neste pouco espaço lhe contou D, Quixote a desgraça da sua derrota, e o encantamento e remédio de Dulcineia, causando tudo nova admiração a D. Álvaro, o qual, abraçando D. Quixote e Sancho, seguiu o seu caminho, e D. Quixote continuou no seu, indo passar essa noite a outro arvoredo, para dar lugar a Sancho que cumprisse a sua penitência, o que ele fez do mesmo modo que na noite anterior, à custa da cortiça das faias, muito mais que das suas costas, que a essas guardou-as tanto, que os açoites nem uma mosca lhe poderiam sacudir.

Não errou a conta nem num só golpe o enganado D. Quixote e viu que com os da noite passada já subiam a três mil e vinte e nove.

Parece que o Sol madrugara, para ver o sacrifício de Sancho Pança, e, à luz, continuaram a caminhar, falando largamente entre si no engano de D. Álvaro, e na boa lembrança que tinham tido de lhe tomar a declaração perante a justiça e tão autenticamente.

Naquele dia e naquela noite, caminharam, sem lhes suceder coisa digna de se contar, a não ser o ter acabado Sancho a sua tarefa com o que ficou D. Quixote contentíssmo, e esperava que rompesse o dia, para ver se topava pelo caminho, já desencantada, Dulcineia, sua dama; e não encontrava mulher nenhuma, que não fosse reconhecer se era Dulcineia del Toboso, tendo por infalível não poderem mentir as promessas de Merlim.

Com estes pensamentos e desejos, subiram por uma encosta arriba, de onde descobriram a sua aldeia, e, vendo-a Sancho, pôs o joelho em terra e disse:

- Abre os olhos, desejada pátria, e vê que a ti volve Sancho Pança, teu filho, não muito rico, mas muito bem açoitado. Abre os braços e recebe também teu filho D. Quixote, que, se vem vencido pêlos braços alheios, vem vencedor de si mesmo, o que segundo ele me tem dito, é o melhor vencimento que se pode desejar. Trago dinheiro porque, se bons açoites me davam, muito bem mós pagavam.

- Deixa-te dessas sandices - acudiu D. Quixote -; vamos entrar no nosso lugar com pé direito, e lá daremos largas à nossa imaginação e pensaremos no modo como havemos de exercitar a nossa vida pastorl.

Com isto, desceram a encosta, e foram para a sua povoação.

 

DOS AGOUrOS QUE TEVE D. QUIXOTE AO ENTRAR NA SUA ALDEIA, COM OUTROS SUCESSOS QUE SÃO ADORNO E CRÉDITO DESTA GRANDE HISTÓRIA

A entrada do povo, contou Cide Hamet que viu D. Quixote dois pequenos, renhindo um com o outro; e disse um deles:

- Não te canses, Periquito, que nunca a hás-de ver nos dias da tua vida.

Ouviu-o D. Quixote, e disse para Sancho:

- Não reparas, amigo, que disse aquele pequeno: nunca a hás-de ver em dias da tua vida?

- Mas que importa - respondeu Sancho - que o rapaz dissesse isso?

- Que importa? - tomou D. Quixote. - Pois não vês que, aplicando aquela palavra à minha intenção, quer significar que não tenho de ver nunca mais a minha Dulcineia?

Ia Sancho para lhe responder quando viu que vinha fugindo, pela campina fora, uma lebre, seguida por muitos galgos e caçadores, que veio acolher-se receosa e acachapar-se debaixo dos pés do ruço.

Apanhou-a Sancho sem dficuldade, e apresentou-a a D. Quixote, que estava dizendo:

-Malum signum, malum signum: lebre foge, galgos a seguem, Dulcineia não aparece.

- Vossa Mercê é esquisito - disse Sancho -; suponhamos que essa lebre é Dulcineia del Toboso, e estes galgos, que a perseguem, são os malandrinos nigromantes que a transformaram na lavradeira; ela foge, eu apanho-a e entrego-a a Vossa Mercê, que a tem nos seus braços e a regala e anima: que mau sinal é este, ou que mau agouro se pode tirar daqui?

Chegaram-se os dois rapazes da pendência para ver a lebre, e perguntou Sancho a um dees por que é que renhiam.

Respondeu-lhe o que dissera as palavras que tinham sobressaltado D. Quixote, que tirara ao outro rapaz uma gaiola de grilos, e que não tencionava devolver-lha nos dias da sua vida.

Tirou Sancho quatro quartos da algibeira, e comprou a gaiola ao rapaz, para a dar a D. Quixote, dizendo:

- Aqui estão Senhor, rotos e desbaratados esses agouros, que têm tanto que ver com os nossos sucessos - pelo menos assim mo diz o meu bestunto de tolo - como com as nuvens do ano passado; e, se bem me recordo, ouvi dizer ao cura da nossa terra que não é de pessoas cristãs e discretas atender a estas criancices; e até Vossa Mercê mo disse também há tempos dando-me a entender que eram tolos todos os cristãos que faziam caso de agouros; mas não vale a pena fazer finca-pé nestas coisas, e entremos na nossa aldeia.

Chegaram os caçadores, pediram a sua lebre, deu-lha D. Quixote; e, seguindo para diante este e Sancho Pança, toparam à entrada do povo, a passear num campo, o cura e o bacharel Sansão Carrasco.

E é de saber que Sancho Pança deitara para cima do burro e do feixe das armas, para servir de reposteiro, a túnica de bocaxim pintada com chamas de fogo, que lhe vestiram no castelo do duque, na noite em que Altisidora tornou a si. Pôs-lhe também a mitra na cabeça, que foi a mais nova transformação e adorno com que nunca se viu um jumento neste mundo.

Foram logo conhecidos ambos pelo cura e pelo bacharel que vieram para eles de braços abertos.

Apeou-se D. Quixote e abraçou-os estreitamente; e os rapazes, que são uns linces nestas coisas, deram logo com a mitra do jumento, e acudiram a vê-lo; e diziam uns para os outros:

- Vinde ver, rapazes, o burro de Sancho Pança, mais galã do que Mingo, e a cavalgadura de D. Quixote, mais magra hoje que no primeiro dia.

Finalmente, rodeados de rapazes e acompanhados pelo cura e pelo bacharel, entraram no povo, e dirigiram-se a casa de D. Quixote a cuja porta encontraram a ama e a sobrinha, que já sabiam da sua vinda. Tinham dado também essa notícia a Teresa Pança mulher de Sancho, que desgrenhada e seminua, levando pela mão Sanchita sua filha, veio ver seu marido; e, não o encontrando tão ataviado como ela imaginava que devia vir um governador, disse-lhe:

- Como é que vindes assim, marido meu, que parece que foste apeado, e traeis cara mais de desgovernado, que de governador?

- Cala-te Teresa - respondeu Sancho - que, muitas vezes, numa banda se põe o ramo, e noutra se vende o vinho; e vamos para nossa casa, que lá ouvirás maravilhas. Trago dinheiros que é o que mais importa, ganhos por minha indústria e sem prejuízo de ninguém.

- Trazes tu dinheiro, marido meu - disse Teresa -, e fosse ele ganho lá como fosse, que, de qualquer forma que o ganhasses, não inventavas coisa nenhuma.

Abraçou Sanchita seu pai, e perguntou-lhe se lhe trazia alguma coisa, que o estava esperando como a água de Maio; e, agarrando-lhe por um lado do cinto, e sua mulher pela mão, puxando Sanchita o ruço, foram para sua casa, deixando D. Quixote na sua, em poder da ama e da sobrinha, e em companhia dos seus amigos o cura e o bacharel Sansão Carrasco.

  1. Quixote, sem aguardar hora nem tempo, imediatamente chamou de parte o bacharel e o cura, e em breves razões lhes contou a sua derrota e a obrigação que contraíra de não sair da sua aldeia durante um ano - obrigação que tencionava guardar ao pé da letra, sem a transgredir nem num átomo só que fosse, como cavaleiro andante, obrigado pelo rigor da sua Ordem; e que pensara em fazer-se pastor durante esse ano, e entreter-se na soledade dos campos, onde, à rédea solta, podia dar largas aos seus amorosos pensamentos, exercitando-se no pastoral e virtuoso exercício; e que lhes suplicava, se não tinham muito que fazer e não estavam impedidos por negócios mais importantes, que fossem seus companheiros, que ele compraria ovelhas e mais gado suficiente para poderem tomar o nome de pastores; e que lhes fazia saber, que o mais principal daquele negócio estava feito, porque já lhes arranjara nomes, que lhes haviam de cair mesmo de molde.

Pediu-lhe o cura que os dissesse. Respondeu-lhe D. Quixote que ele havia de chamar-se o pastor Quixotiz; o bacharel, o pastor Carrascão; o cura o pastor Curiambro, e Sancho, o pastor Pancino.

Pasmaram todos de ver a nova loucura de D. Quixote; mas, para que se lhes não fosse outra vez do povo para as suas cavalarias, e esperando que naquele ano se pudesse curar, concordaram com a sua boa intenção, e aprovaram como discreta a sua loucura, oferecendo-se-lhe para companheiros no seu exercício.

- Demais a mais - disse Sansão Carrasco -, eu, como todos sabem, sou celebérrimo poeta, e farei a cada instante versos pastoris ou cortesãos, ou como melhor me quadrar, para nos entretermos nas nossas passeatas; e, o que mais necessário é, meus Senhores, é que escolha cada um a pastora que tenciona celebrar nos seus versos, e que não deixemos árvore, por mais dura que seja, em que não gravemos o seu nome, como é uso e costume de pastores enamorados.

- Isso vem mesmo de molde para mim - respondeu D. Quixote -, porque eu não preciso de procurar nome de pastora fingida, pois aí está a incomparável Dulcineia del Toboso, glória destas ribeiras, adorno destes prados, sustento da formosura, nata dos donaires, e, finalmente, pessoa em quem assenta bem todo o louvor, por hiperbólico que seja.

- Assim é - disse o cura -, mas nós outros, procuraremos por aí umas pastoritas que nos convenham.

- E se faltarem - acudiu Sansão Carrasco -, dar-lhes-emos os nomes das impressas, de que está cheio o mundo: Fflis, Amarflis, Dianas, elidas, Galateias e Belisardas, que, visto que se vendem nas praças, podemos perfeitamente comprá-las nós, e considerá-las nossas. Se a minha dama, ou, para melhor dizer, a minha pastora, porventura se chamar Ana, celebrá-la-ei debaixo do nome de Anarda, e, se for Francisca, chamo-lhe Francénia, e, se for Luzia, Lucinda; e Sancho Pança, se tem de entrar nesta confraria, poderá celebrar sua mulher Teresa Pança com o nome de Teresaina. Riu-se D. Quixote da aplicação do nome, e o cura louvou-lhe imenso a sua honesta e honrada resolução, e ofereceu-se de novo para o acompanhar todo o tempo que lhe deixasse vago o atender às suas forçosas obrigações.

Com isto se despediram dele, e lhe rogaram e aconselharam que tomasse conta com a sua saúde, e com o regalar-se do que fosse bom.

Quis a sorte que a sobrinha e a ama ouvissem a prática dos três; e, apenas os dois se foram embora, entraram ambas com D. Quixote às voltas.

E disse-lhe a sobrinha:

- Que é isso Senhor Tio? Agora que nós outras pensávamos que Vossa Mercê se vinha meter em sua casa, e passar nela vida quieta e honrada, quer-se meter em novos labirintos, fazendo-se pastorinho daqui, pastorinho dalém? Pois olhe que Vossa Mercê já não está para essas folias.

E a ama acrescentou:

- E Vossa Mercê pode, por acaso, passar no campo as sestas do Verão, as noitadas do Inverno, e arriscar-se aos lobos? Não, decerto, que tudo isso é ofício de homens robustos, curtidos e criados para tal mister, desde as faixas e mantilhas, a bem-dizer;

mal por mal, era melhor ser cavaleiro andante que pastor. E olhe, Senhor, tome o meu conselho, que é conselho de mulher de cinquenta anos, que está em jejum natural, no seu perfeito juízo:

fique na sua casa, trate da sua fazenda, confesse-se a miúdo favoreça os pobres, e caia sobre mim o mal que daí lhe vier.

- Calai-vos, filhas - respondeu D. Quixote -, eu bem sei o que me cumpre fazer: levai-me para a cama, que parece que me não sinto lá muito bem; e tende por certo que, embora eu seja cavaleiro andante ou pastor, nunca deixarei de acudir àquilo de que precisardes, como podereis ver daqui por diante.

E as duas boas filhas (que assim realmente se lhes podia chamar) levaram-no para a cama, onde lhe deram de comer e o animaram o mais possível.

 

DE COMO D. QUIXOTE ADOECEU, E DO TESTAMENTO QUE FEZ, E DA SUA MORTE

Como as coisas humanas não são eternas, e vão sempre em declinação desde o princípio até ao seu último fim, especialmente as vidas dos homens; e, como a de D. Quixote não tivesse privilégio do Céu para deixar de seguir o seu termo e acabamento, quando ele menos o esperava; porque, ou fosse pela melancolia que lhe causara o ver-se vencido, ou pela disposição do Céu, que assim o ordenava, veio-lhe uma febre, que o teve seis dias de cama, sendo visitado muitas vezes pelo cura, pelo bacharel e pelo barbeiro, seus amigos, sem se lhe tirar da cabeceira o seu bom escudeiro Sancho Pança. Estes, julgando que o desgosto de se ver vencido e descumprido o seu desejo de liberdade e desencantamento de Dulcineia é que o tinham adoentado, de todos os modos possíveis procuraram alegrá-lo, dizendo-lhe o bacharel que se animasse e se levantasse, a fim de darem princípio ao seu exercício pastoril, para o qual já compusera uma écloga, que havia de desbancar todas as que Sanazaro compusera; que já comprara, com os seus próprios dinheíros, dois famosos cães para guardar o gado: um chamado Barcino e outro Butron, que lhe vendera um pastor de Quintanar. Mas D. Quixote continuava a estar triste.

Chamaram os seus amigos o médico, toou-lhe este o pulso e disse-lhe que, pelo sim pelo não, cuidasse da salvação da sua alma, porque a do corpo corria perigo. Ouviu-o D. Quixote com ânimo sossegado, mas não o ouviram da mesma forma a ama, a sobrinha e o escudeiro, que principiaram a chorar ternamente, como se já o tivessem morto diante de si.

O médico foi de parecer que o que dava cabo dele eram melancolias e desabrimentos.

Pediu D. Quixote que o deixassem só, porque queria dormir um pedaço. Obedeceram-lhe, e dormiu de uma assentada mais de seis horas, tanto que a ama e a sobrinha pensaram que não tornaria a acordar. Despertou ao cabo do tempo já referido, e, dando um grande brado, exclamou:

- Bendito seja o poderoso Deus, que tanto bem me fez. Enfim, as Suas misericórdias não têm limite, e não as abreviam nem as impedem os pecados dos homens.

Esteve a sobrinha a ouvir atenta as razões do tio, e pareceram-lhe mais concertadas do que as que costumava expender, pelo menos nessa enfermidade, e perguntou-lhe:

- Que diz Vossa Mercê, Senhor? Temos alguma coisa de novo? Que misericórdias são essas, e que pecados dos homens?

- As misericórdias, sobrinha - respondeu D. Quixote -, são as que neste momento Deus teve comigo, sem as impedirem, como disse, os meus pecados. Tenho o juízo já livre e claro, sem as sombras caliginosas da ignorância com que o ofuscou a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros das cavalarias. Já conheço os seus disparates e os seus embelecos, e só me pesa ter chegado tão tarde este desengano, que não me desse tempo para me emendar, lendo outros que fossem luz da alma. Sinto-me, sobrinha, à hora da morte; quereria passá-la de modo que mostrasse não ter sido tão má a minha vida, que deixasse renome de louco, pois, apesar de o ter sido, não quereria confirmar essa verdade expirando. Chama-me os meus bons amigos, o cura, o bacharel Sansão Carrascão, e mestre Nicolau, o barbeiro, que me quero confessar, e faer o meu testamento.

Mas a entrada dos três dispensou a sobrinha de ter esse trabalho. Apenas D. Quixote os viu, disse logo:

- Dai-me alvíssaras, bons Senhores, que já não sou D. Quixote de La Mancha, mas sim Alonso Quijano, que adquiri pêlos meus costumes o apelido de Bom. Já sou inimigo de Amadis de Gaula, e da infinita caterva da sua linhagem; já me são odiosas todas as histórias profanas de cavalaria andante; já conheço a minha necedade e o perigo em que me pôs o tê-las lido; já por misericórdia de Deus, e bem escarmentado, as abomino.

Quando os três lhe ouviram dizer isto, julgaram que alguma loucura nova o salteara. E Sansão disse-lhe:

- Agora, Sr. D. Quixote, que temos notícia de que está desencantada a Sra. Dulcineia, sai-se Vossa Mercê com essa! E agora, que estamos tão a pique de ser pastores, para passar a vida cantando como uns príncipes, quer Vossa Mercê fazer-se ermitão? Cale-se, por vida sua, torne a si, e deixe-se de contos.

- Os contos, que até agora têm sido verdadeiros só em meu prejuízo - respondeu D. Quixote -, espero que a minha morte os mude, com o auxílio do Céu, em meu proveito. Sinto, Senhores que a morte vem correndo; deixem-se de burlas, e tragam-me um padre a quem eu me confesse, e um tabelião que faça o meu testamento, que em transes como este não há-de um homem brincar com a sua alma; e assim, peço que, enquanto o Senhor Cura me atende, vão depressa buscar-me um notário.

Olhavam uns para os outros, admirados das razões de D. Quixote, e sempre o quiseram acreditar, apesar de ainda estarem em dúvida; e, um dos sinais por onde conjecturaram que ele morria, foi por ele se ter mudado com tanta facilidade de doido em assisado, porque às razões já mencionadas acrescentou outras, tão bem ditas, tão cristãs, e de tanto acerto, que de todo lhes tirou as dúvidas, e lhes fez crer que estava bom.

Mandou o cura sair toda a gente, ficou sozinho com ele, e confessou-o. O bacharel foi procurar o tabelião e dali a pouco voltou trazendo-o, e a Sancho Pança também; e este, que já sabia pelo bacharel o estado em que seu amo se achava, topando a ama e a sobrinha chorosas, começou igualmente a soluçar e a derramar lágrimas.

Acabou-se a confissão, e saiu o cura dizendo:

- Deveras morre, e está deveras com siso Alonso Quijano, o Bom; e podemos entrar, para ele ditar o seu testamento.

Estas novas fizeram rebentar de novo as lágrimas dos olhos, e mil profundos suspiros dos peitos da ama, da sobrinha e de Sancho Pança, seu bom escudeiro; porque, realmente, como já se disse, D. Quixote, ou enquanto se chamou a seco Alonso Quijano, ou enquanto usou o nome de D. Quixote de La Mancha, sempre se mostrou homem de aprazível condição e de agradável trato; e por isso não só era muito querido dos da sua casa, mas de todos quantos o conheciam.

Veio o tabelião com os outros, e, depois de ter feto o cabeçalho do testamento, e depois de D. Quixote haver tratado da sua alma, com todas as circunstâncias cristãs que se requerem, quando chegou às deixas disse:

- Item, é minha vontade, que de certos dinheiros que tem em seu poder Sancho Pança, a quem na minha loucura fiz meu escudeiro, se lhe não faça cargo nem se lhe peçam contas; mas que, se sobrar algum, depois de ele se ter pago do que lhe devo, com ele fique; bem pouco será, mas que lhe faça bom proveito;

e se, assim como, estando eu louco, fui parte que se lhe desse o

governo de uma ilha, pudesse agora, que estou em meu juízo, dar-lhe o de um reino, dar-lho-ia, porque a singeleza da sua condição e a fidelidade do seu trato assim o merecem. E, voltando-se para Sancho, disse-lhe:

- Perdoa-me amigo, o haver dado ocasião de pareceres doido como eu, fazendo-te cair no erro, em que eu caí, de pensar que houve e há cavaleiros andantes no mundo.

- Ai! - respondeu Sancho Pança, chorando. - Não morra Vossa Mercê, Senhor, meu amo, mas tome o meu conselho, e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia. Olhe, não me seja Vossa Mercê preguiçoso, levante-se dessa cama, e vamos para o campo vestidos de pastores, como combinámos. Talvez em alguma mata encontremos a Sra. Dulcineia desencantada, que não haja aí mais que ver. Se morre de pesar de se ver vencido, deite-me as culpas a mim, dizendo que por eu ter apertado mal as cühas de Rocinante é que o derrubaram; tanto mais que Vossa Mercê há-de ter visto nos seus livros de cavalarias ser coisa ordinária derribarem-se os cavaleiros uns aos outros, e o que é hoje vencido ser vencedor amanhã.

- Assim é - disse Sansão - e o bom Sancho Pança está muito ao facto destes casos.

- Senhores - acudu D. Quixote -, deixemo-nos desas coisas; o que foi já não é: fui louco e estou hoje em meu juizo;

fui D. Quixote de La Mancha, e sou agora, como disse, Alonso Quijano, o Bom; possam o meu arrependimento e a minha verdade restituir-me a estima em que Vossas Mercês me tinham, e prossiga para diante o Senhor Tabelião.

Item, deixo toda a minha fazenda, de portas a dentro, a Antónia Quijana, minha sobrinha, que está presente, tirando-se primeiro, do mais bem parado dessa fazenda, o que for mister para cumprir os legados que deixo; e o primeiro pagamento que quero que se faça será satisfazer o salário que devo à minha ama do tempo que me tem servido, e mais vinte ducados para um vestido.

Instituo meus testamenteiros o Senhor Cura e o Senhor Bacharel Sansão Carrasco, que estão presentes.

Item, é minha vontade que se Antónia Quijana, minha sobrinha, quiser casar, case com um homem de quem primeiro se tirarem informações, e se verificar que não sabe o que vêm a ser livros de cavalaria; e, no caso de se averiguar que o sabe, e minha sobrinha, apesar dsso, persistir em casar com ele, perca tudo que lhe deixo, que os meus testamenteiros poderão distribuir em obras pias à sua vontade.

Item, suplico aos ditos Senhores meus testamenteiros que, se a boa sorte lhes fizer conhecer o autor que dzem que compôs uma história, que por aí corre, com o título de Segunda Parte das façanhas de D. Quixote de La Mancha, lhe peçam da minha parte, o mais encarecidamente que puderem, que me perdoe a ocasião que sem querer lhe dei para escrever tantos e tamanhos disparates, porque saio desta vida com o escrúpulo de lhe ter dado motivo para que os escrevesse.

Cerrou com isto o testamento, e, dando-lhe um desmaio, estendeu-se na cama. Alvoroçaram-se todos, e acudiram a socorrê-lo; e em três dias que viveu depois deste em que fez o testamento desmaiava muito a miúdo.

Andava a casa alvoroçada; mas, contudo isso a sobrinha ia comendo, a ama bebendo e Sancho Pança folgando que isto de herdar sempre apaga ou consola no herdeiro a memória ou a pena, que é de razão que o morto deixe.

Chegou afinal, a última hora de D. Quixote, depois de ecebidos todos os sacramentos e de ter arrenegado, com muitas e eficazes razões, dos livros de cavalaria. Estava presente o tabelião, que disse que nunca lera em nenhum livro de cavalaria que algum cavaleiro andante houvesse morrido no seu leito, tão sossegada e cristãmente como D. Quixote, que, entre os suspiros e lágrimas dos que ali estavam, deu a alma a Deus; quero dizer, morreu. Vendo isto o cura, pediu ao tabelião que lhe passasse um atestado de como Alonso Quijano, o Bom, chamado vulgarmente D. Quixote de La Mancha, fora levado desta vida presente e morrera de morte natural; e que pedia esse atestado, para evitar que qualquer outro autor, que não fosse Cide Hamet

Benengeli, o ressuscitasse falsamente, e fizesse intermináveis histórias das suas façanhas.

Assim acabou o ENGENHOSO FIDALGO DE LA MANCHA, cuja terra Cide Hamet não quis dizer claramente, para deixar que todas as vilas e lugares da Mancha contendessem entre si, disputando a glória de o ter por seu lho, como contenderam por Homero as sete cidades da Grécia.

Não trasladamos para aqui nem os prantos de Sancho, da sobrinha e da ama de D. Quixote, nem os novos epitáfios da sua sepultura, ainda que Sansão Carrasco lhe fez o seguinte:

Aqui jaz quem teve a sorte de ser tão valente e forte, que o seu cantor alegou que a Morte não triunfou da sua vida côa sua morte.

Foi grande a sua bravura, teve todo o mundo em pouco, e na nal conjuntura morreu: vejam que ventura, com siso vivendo louco!

E diz o prudentíssimo Cide Hamet: - Aqui ficarás pendurada deste fio, ó pena minha, que não sei se foste bem ou mal aparada, e aqui longos séculos viverás, se historiadores presunçosos e malandrins te não despendurarem para te profanar. Mas, antes que a ti cheguem, adverte-os, e diz-lhes do melhor modo que puderes:

Alto, alto, vis traidores, por ninguém seja eu tocada, porque, bom rei, esta empresa para mim 'stava guardada.

Só para mim nasceu D. Quixote, e eu para ele; ele para praticar as acções, e eu para as escrever. Somos um só, a despeito e apesar do escritor fingido e tordesilhesco, que se atreveu ou se há-de atrever, a contar com pena de avestruz, grosseira e mal aparada, as façanhas do meu valoroso cavaleiro, porque não é carga para os seus ombros, nem assunto para o seu frio engenho; e a esse advertirás, se acaso chegares a conhecê-lo, que deixe descansar na sepultura os cansados e já apodrecidos ossos de D, Quixote e não o queira levar, contra os foros da morte, para Castela, a Velha; obrigando-o a sair da cova, onde real e verdadeiramente jaz muto bem estendido, mpossibilitado de empreender terceira jornada e nova saída, que para zombar de todas as que fizeram tantos cavaleiros andantes, bastam as duas que ele levou a cabo, com tanto agrado e beneplácito das gentes a cuja notícia chegaram, tanto nestes reinos como nos estranhos;

e com isto cumprirás a tua profissão cristã, aconselhando bem a quem te quer mal, e eu ficarei satisfeito e ufano de ter sido o primeiro que gozou inteiramente o fruto dos seus escritos, como desejava, pois não foi outro meu intento senão o de tornar aborrecidas dos homens as fingidas e dsparatadas histórias dos livros de cavalaria, que vão já tropeçando com as do meu verdadeiro D. Quixote, e ainda hão-de cair de todo, sem dúvida alguma. Vale.

 

                                                                                            Miguel de Cervantes

 

                      

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