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O fascinante labirinto de uma história de amor, percorrido através de um denso entrecruzar de mistérios.
Porque fugiram os dois protagonistas da região do Marne para a cidade de Nice? Quem é Villecourt? Que papel desempenha o estranho casal de americanos, cujo carro ostenta uma matrícula diplomática? E qual a origem do precioso diamante que Sylvia arrasta consigo, como uma promessa e uma maldição?
Um romance enigmático de um dos grandes escritores da moderna literatura francesa.
Após séculos de humilhação e silêncio, os seres da noite, da terra e do sangue vislumbraram nos céus o sinal da sua iminente desforra. Cansado da humanidade, Deus havia premiado a paciente expectativa dos vampiros, desde quando estes se haviam remetido a uma vida clandestina de predadores de carne morta...
Furio Jesi (1941-1980), sobretudo conhecido como especialista do mito e da literatura, deixa-nos em A Última Noite, romance publicado já postumamente, o testemunho do seu génio dramático e da sua imaginação esfuziante. Um autor italiano a ser descoberto com urgência pelo público português.
O seu olhar acabou por se cruzar com o meu. Foi em Nice, no princípio da Alameda Gambetta. Ele estava sobre uma espécie de pódio diante de um estendal de casacos
e sobretudos de cabedal, e eu tinha avançado para a primeira fila dos basbaques que o ouviam apregoar a sua mercadoria.
Ao ver-me, perdeu a sua lábia de vendedor ambulante. Falava de um modo mais seco, como se quisesse distanciar-se do seu auditório e dar-me a entender que a profissão
que ali exercia, ao ar livre, estava abaixo da sua condição.
Em sete anos, não tinha mudado muito; só a sua tez me parecia mais avermelhada. Estava a anoitecer e uma rajada de vento penetrou na Avenida Gambetta com os primeiros
pingos de chuva. A meu lado, uma mulher de cabelo loiro encaracolado experimentava um sobretudo de cabedal. Do seu pódio, ele inclinava-se para ela e observava-a
com um ar encorajador:
- Fica-lhe às mil maravilhas, minha senhora.
A voz continuava a ter o seu timbre metálico, um metal que, com o tempo, se tinha enferrujado.
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Os mirones começaram a dispersar por causa da chuva e a mulher loira tirou o sobretudo que colocou, timidamente, na borda do estendal.
- É uma ocasião única, minha senhora... ao preço da chuva... Devia...
Mas sem lhe dar tempo de prosseguir, ela virou-se depressa e esquivou-se com os outros, como se tivesse vergonha de dar ouvidos às propostas obscenas de um viandante.
Ele desceu do pódio e encaminhou-se para mim.
- Que bela surpresa... Eu sou de olhão... Reconheci-o imediatamente...
Ele parecia incomodado, quase receoso. Eu, pelo contrário, estava calmo e descontraído.
- Tem piada encontrarmo-nos aqui, não é verdade? - disse-lhe eu.
- É verdade.
Ele sorria. Tinha recobrado a sua segurança. Uma camioneta parou junto do passeio, ao pé de nós, e saiu um homem com um blusão de cabedal.
- Podes desmontar tudo isso...
Depois olhou-me de frente.
- Vamos beber um copo?
- Se quiser.
- Eu vou ao Forum beber um copo com este senhor. Vai ter comigo dentro de meia hora.
O outro começou a carregar os sobretudos e os casacos de cabedal do estendal para a camioneta, enquanto, à nossa volta, a vaga de clientes saía pelas portas do grande
armazém que fica na esquina da Rua Buffa. Um toque agudo anunciava o fecho.
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- Já está... Já quase não chove...
Ele trazia a tiracolo um saco de cabedal muito achatado.
Atravessámos a alameda e seguimos pelo Passeio dos Ingleses. O café ficava muito peito, ao lado do cinema Le Forum. Ele escolheu uma mesa por detrás da vidraça e
deixou-se cair sobre o banco.
- O que há de novo? - perguntou-me. - Está na Côte d'Azur?
Quis pô-lo à vontade:
- Tem piada... Vi-o, há dias, no Passeio dos Ingleses...
- Devia ter-me cumprimentado.
A sua silhueta pesada, ao longo do Passeio, e esse saco de cabedal a tiracolo que certos homens usam, por volta dos cinquenta anos, com casacos muito cintados, para
manterem uma silhueta juvenil...
- Eu trabalho há algum tempo na região... Tento vender stocks de roupa de cabedal...
- Como vai a coisa?
- Assim-assim. E você?
- Eu também estou a trabalhar na região - respondi-lhe. - Nada de interessante...
Lá fora, os grandes candeeiros do Passeio acendiam-se a pouco e pouco. Primeiro, uma claridade cor de malva e vacilante que uma simples rajada de vento ameaçava
apagar como a chama de uma vela. Mas não. Passados uns instantes, essa luz incerta tornava-se branca e forte.
- Então, estamos a trabalhar na mesma zona - disse-me ele. - Eu vivo em Antibes, mas viajo muito...
O seu saco de cabedal abria-se da mesma maneira que as pastas dos estudantes.
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Ele tirou lá de dentro um maço de cigarros.
- Já não vive no Val-de-Marne? - perguntei.
- Não, já não.
Houve, entre nós, um instante de embaraço.
- E você? - perguntou-me ele. - Voltou lá?
- Nunca mais.
Só de pensar em me encontrar junto do Marne causou-me calafrios. Olhei para o Passeio dos Ingleses, para o céu alaranjado que escurecia, e para o mar. Sim, eu estava
de facto em Nice. Tinha vontade de suspirar de alívio.
- Por nada da vida gostaria de voltar a tal sítio - disse-lhe.
- Eu também não.
O empregado colocava sobre a mesa o sumo de laranja, o traçado e os copos. Tanto eu como o outro agarrávamo-nos com o olhar ao mínimo dos seus gestos, como se quiséssemos
adiar o mais possível o momento de retomar a conversa. Foi ele que acabou por quebrar o silêncio.
- Gostaria de tirar a limpo consigo umas coisas...
Ele observava-me com um olhar mortiço.
- Pois é... Apesar das aparências, eu não era casado com Sylvia... A minha mãe não queria esse casamento...
Durante uma fracção de segundo, a silhueta da Sra. Villecourt apareceu-me, sentada no pontão, junto do Marne.
- Lembra-se da minha mãe... Não era uma mulher fácil... Havia entre nós problemas de dinheiro...
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Ela ter-me-ia retirado a mesada se eu tivesse casado com Sylvia...
- Que grande surpresa.
- Pois bem, por isso...
Parecia-me um sonho. Porque é que Sylvia nunca me disse a verdade? Eu lembrava-me de que ela usava uma aliança.
- Ela queria fazer crer que éramos casados... Para ela, era uma questão de amor-próprio... E eu, eu comportei-me como um cobarde... Devia ter casado com ela...
Devia render-me à evidência: este homem não se parecia com o de há sete anos. Ele já não manifestava aquela confiança em si mesmo e aquela grosseria que me levavam
a odiá-lo. Pelo contrário, agora ele estava impregnado de uma doçura resignada. Até as suas mãos tinham mudado. Já não usava pulseira.
- Se eu tivesse casado com ela, tudo teria sido bem diferente...
- Acha?
Decididamente, ele falava de uma outra pessoa que nada tinha a ver com Sylvia, e as coisas, com o correr dos anos, tinham para ele um sentido que não tinham para
mim.
- Ela não me perdoou essa cobardia... Ela gostava de mim... Eu era o único homem que ela amava...
O seu sorriso triste era tão surpreendente como o saco que trazia a tiracolo. Não, não se tratava do mesmo homem das margens do Marne. Talvez ele tivesse esquecido
fragmentos inteiros do passado ou tivesse acabado por se persuadir de que certos acontecimentos, de consequências tão graves para todos nós, nunca tinham ocorrido.
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Eu tinha uma vontade irresistível de o abanar.
- E o projecto de restaurante e de piscina numa pequena ilha, para os lados de Chennevières?
Eu tinha levantado a voz e aproximado o meu rosto do dele. Mas em vez de ficar embaraçado com a minha pergunta, ele conservava o seu sorriso triste.
- Não estou a ver o que quer dizer... Como sabe, eu ocupava-me sobretudo dos cavalos de minha mãe... Ela tinha dois cavalos de corrida que competiam em Vincennes...
Ele parecia de tão boa-fé que não ousei contradizê-lo.
- Viu, há pouco, o tipo que carregava os meus sobretudos de cabedal na camioneta? Pois bem, ele aposta nas corridas... A meu ver, só pode haver um mal-entendido
entre os homens e os cavalos...
Estava a troçar de mim? Não. Ele nunca tinha tido o menor sentido de humor. E a luz do néon acentuava a expressão enfadada e grave do seu rosto.
- Entre os cavalos e os homens, a coisa só raramente funciona... Por mais que lhe diga que faz mal em apostar nas corridas, ele continua mas nunca ganha... E você?
Continua a ser fotógrafo?
Ele tinha pronunciado as últimas palavras com o timbre metálico que, há sete anos, era o seu.
- Na altura, não entendi lá muito bem o seu projecto de álbum fotográfico...
- Eu pretendia fazer fotografias sobre as praias fluviais dos arredores de Paris - disse-lhe eu.
- Praias fluviais? E foi por isso que se instalou em La Varenne?
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- É verdade.
- No entanto, não se trata realmente de uma praia fluvial.
- Acha? Há apesar de tudo o Beach...
- É. Suponho que não teve tempo de tirar as suas fotografias, não é verdade?
- Se, se... se quiser, posso mostrar-lhe algumas...
A nossa conversa tornava-se inútil. Era estranho exprimir-se assim, por meias-palavras, ou por subentendidos.
- Em todo o caso, posso dizer que aprendi coisas bem edificantes... E isso serviu-me de lição...
A minha observação deixou-o petrificado. E, além disso, eu fizera-a num tom agressivo. Insisti:
- Suponho que também você guarda uma má recordação de tudo isso?
Mas arrependi-me imediatamente da minha provocação. Ela deslizara sobre ele, e ele envolvia-me com o seu sorriso triste.
- Já não tenho qualquer recordação - disse-me ele. Olhou para o relógio de pulso.
- Daqui a pouco vêm à minha procura... É pena... Gostaria de ficar mais tempo consigo... Mas espero que voltemos a ver-nos...
- Quer realmente voltar a encontrar-se comigo? Eu sentia um certo mal-estar. Ter-me-ia sentido menos desamparado em presença do mesmo homem de há sete anos atrás.
- Sim. Gostaria de voltar a vê-lo de tempos a tempos para falarmos de Sylvia.
- Acha que vale realmente a pena?
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Como podia eu falar-lhe de Sylvia? Era de perguntar se, passados sete anos, ele não estava a confundi-la com outra. Ele lembrava-se de que eu tinha sido fotógrafo
mas, nos velhos que perderam a memória, subsistem ainda alguns fragmentos do passado: um lanche de aniversário da sua infância, a letra de uma canção de embalar
que lhes cantavam...
- Já não quer falar mais de Sylvia? Meta bem isso na cabeça...
Ele batia com o punho na mesa e eu esperava as ameaças e as chantagens de outrora, diluídas pelo tempo, evidentemente, como as declarações daqueles criminosos de
guerra caquéticos que são levados, quarenta anos depois das suas perversidades, a tribunal.
- Convença-se de que nada teria acontecido se eu tivesse casado com ela... Nada... Ela gostava de mim... A única coisa que ela queria era que também eu lhe desse
uma prova de amor... E eu fui incapaz de lha dar...
Ao observá-lo, ali, na minha frente, ao ouvir aquelas palavras de um pecador arrependido, perguntei-me se eu não era injusto para com ele. Ele divagava mas tinha
melhorado com o tempo. Nunca, nessa altura, ele podia ter tido este tipo de raciocínio.
- Eu creio que se engana - disse-lhe eu. - Mas isso não tem qualquer importância. Em todo o caso, a intenção é boa.
- Não me engano absolutamente nada.
E ele batia novamente com o punho na mesa com um ar de bêbedo. Receei que recuperasse a sua brutalidade e o seu mau génio. Felizmente, naquele instante, o homem
da camioneta entrou no café e pôs-lhe uma mão no ombro.
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Ele virou-se e olhou-o fixamente, como se o não reconhecesse.
- Já vou... Dentro de momentos estou ao teu dispor.
Levantámo-nos e acompanhei-os até à camioneta que estava estacionada em frente do cinema Le Forum. Ele correu a porta, mostrando uma fila de sobretudos de cabedal,
pendurados em cabides.
- Escolha um...
Eu fiquei imóvel. Então, ele examinou os sobretudos de cabedal um a um. Retirava os cabides e voltava a pô-los um de cada vez.
- Este deve ser a sua medida...
Passou-me o sobretudo de cabedal, ainda com o cabide.
- Não preciso de sobretudo - disse-lhe.
- Se... se... Faça-me a vontade...
O outro esperava, sentado no guarda-lamas da camioneta.
- Experimente-o.
Peguei no sobretudo e vesti-o na sua frente. Observava-me com o olhar penetrante de um alfaiate, durante uma prova.
- Não o incomoda nos ombros?
- Não, mas digo-lhe que não preciso do sobretudo.
- Fique com ele, faça-me a vontade. Faço questão.
Ele próprio o abotoava. Eu estava muito hirto, qual manequim de madeira.
- Fica-lhe muito bem... E a vantagem, para mim, é que tenho muitos números grandes...
Eu consentia para me ver livre dele o mais rápido possível.
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Não queria discutir. Queria era vê-lo partir.
- Se houver algum problema, venha trocá-lo por outro... Estarei na minha banca, na Alameda Gambetta, amanhã à tarde... E, em todo o caso, dou-lhe a minha direcção...
Remexeu no bolso interior do seu casaco e deu-me um cartão-de-visita.
- Tome... a minha direcção e o meu número de telefone em Antibes... Fico à sua espera...
Abriu a porta da frente, subiu e sentou-se no banco. O outro instalou-se ao volante. Ele baixou o vidro e inclinou-se para fora.
- Sei que não simpatiza comigo - disse-me ele - mas estou disposto a retratar-me... Eu mudei... Compreendi quais eram os meus erros... Sobretudo em relação a Sylvia...
Só a mim ela amou verdadeiramente... Voltaremos a falar os dois de Sylvia, está bem?...
Ele media-me dos pés à cabeça.
- O sobretudo fica-lhe às mil maravilhas...
Fechou o vidro sem me largar com os olhos. Mas bruscamente, no momento em que a camioneta arrancava, o seu rosto ficou com uma expressão de espanto: não consegui
evitar fazer-lhe - gesto incompreensível por parte de um homem reservado como eu - um manguito.
Algumas pessoas entravam no Forum para a sessão das nove da noite. Também eu senti a tentação de me ir sentar na velha sala de cinema de veludo vermelho. Mas eu
queria desfazer-me daquele sobretudo de cabedal que me apertava nos ombros e me impedia de respirar. Com a pressa, arranquei um botão.
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Dobrei o sobretudo, coloquei-o num banco do Passeio e afastei-me com a sensação de deixar para trás de mim algo de comprometedor.
Seria a fachada deteriorada do cinema Le Fórum? Ou o reaparecimento de Villecourt? Mas pensei nas confidências que a mãe dele me fizera a respeito do assassinato
misterioso do comediante Aimos numa barricada do bairro da Gare du Nord, durante a libertação de Paris. Aimos sabia muita coisa, tinha ouvido muitas conversas, tinha
convivido com muita gente duvidosa nas hospedarias de Chennevières, Champigny e La Varenne. E o nome de toda essa gente, que a Sra. Villecourt me indicara, evocavam-me
as águas lodosas do Marne.
Consultei o seu cartão-de-visita:
Frédéric Villecourt, comissionista.
Noutro tempo, os caracteres do seu nome teriam sido pretos e gravados. Hoje, porém, eram cor de laranja, como os de um simples prospecto, e o termo bem modesto de
"comissionista", se nos lembrássemos do Frédéric Villecourt das margens do Marne, indicava que, muitas vezes, bastam alguns anos para conseguir o que se pretende.
Ele próprio escrevera a tinta azul a sua direcção: Avenida Bosquet, nº 5, Antibes. Telefone: 50.22.83.
Eu caminhava ao longo da Avenida Victor-Hugo, porque decidira voltar para casa a pé. Não, nunca deveria ter entabulado conversa com ele.
Da primeira vez, quando o vi passar no Passeio dos Ingleses com o seu passo pesado, com esse ridículo saquinho de cabedal a tiracolo, não senti nenhuma vontade de
lhe falar. Nesse domingo, estava um lindo sol de Outono e eu estava sentado na esplanada do Queeni.
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E, no Passeio, ele parou e acendeu um cigarro. Depois permaneceu ainda uns instantes imóvel, por detrás da chusma de automóveis. Ia atravessar no semáforo encarnado
e ficar no passeio, precisamente à minha frente. E, nesse momento, podia ver-me. Ou então, não se mexeria, a noite cairia e a sua silhueta, qual sombra chinesa,
recortar-se-ia para sempre sobre o mar, diante de mim.
Ele prosseguiu o seu caminho em direcção ao casino Ruhl e ao Jardim Alberto I, com o saco de cabedal a tiracolo. A minha volta, homens e mulheres, rígidos como múmias,
tomavam chá, silenciosos, de olhar fixo no Passeio dos Ingleses. Talvez também eles espiassem, por entre essa multidão em procissão, silhuetas do seu passado.
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Volto sempre para casa atravessando o que foi a sala de jantar do antigo Hotel Majestic, precisamente na esquina da Alameda de Cimiez. Agora, já não passa de um
hall, que serve de sala de reuniões ou exposições. Ao fundo, na semipenumbra, um grupo coral cantava canções em inglês. Junto da escadaria, havia um cartaz com esta
inscrição: "Today: The Holy Nest." As suas vozes agudas ainda me chegavam ao segundo andar, quando fechei a porta do meu quarto. Deviam ser canções de Natal.
Aliás, o Natal estava próximo. Estava frio neste quarto mobilado, um antigo quarto de hotel com casa de banho, de que ainda subsistia o número, numa placa de cobre,
dentro do armário: 252.
Liguei o pequeno radiador eléctrico mas o calor que deitava era tão pouco que acabei por desligá-lo. Estendi-me na cama, sem tirar os sapatos.
Há, no edifício Majestic, apartamentos de três ou quatro divisões, as antigas suites do hotel, ou quartos simples que se ligaram entre si no decurso de obras de
reparação. Eu prefiro viver numa só divisão. É menos triste. Tem-se ainda a ilusão de viver no hotel. A cama continua a ser a do quarto 252.
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Também a mesa de cabeceira. E pergunto-me se a secretária de madeira escura, pretensamente Luís XVI, pertenceria ao mobiliário do Majestic. A alcatifa, essa, não
existia no quarto 252: uma alcatifa cinzento-beje, gasta em alguns sítios. A banheira e o lavatório também mudaram.
Eu não tinha vontade de jantar. Apaguei a luz. Fechei os olhos e deixei-me embalar pelas vozes longínquas do grupo coral inglês. Ainda estava estendido na cama,
no escuro, quando o telefone tocou.
- Alô... É Villecourt...
A sua voz era muito baixa, quase um cochicho.
- Incomodo-o? Descobri o seu número na lista telefónica...
Fiquei em silêncio. Ele voltou a perguntar-me:
- Incomodo-o?...
- De modo nenhum.
- Gostaria simplesmente que as coisas ficassem claras entre nós. Quando nos despedimos, tive a impressão de que você me odiava...
- Não o odeio...
- No entanto, o gesto que me fez...
- Foi uma brincadeira.
- Uma brincadeira? Você tem um sentido de humor realmente singular.
- É assim - disse-lhe eu. - Têm de me aceitar como sou.
- Achei esse gesto de tal modo agressivo... Tem algo a censurar-me?...
- Não.
- Nunca lhe perguntei nada... Foi você, Henri, que me procurou.
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Você estava à espera diante da banca, na Alameda Gambetta.
- Não me chamo Henri...
- Desculpe... Estava a confundir com outro... Esse tipo moreno que estava sempre a dar palpites sobre as corridas... Não sei que piada é que Sylvia lhe encontrava...
- Não tenho vontade de falar de Sylvia consigo.
Era realmente penoso prosseguir aquela conversa telefónica no escuto. Do hall, as vozes do grupo coral inglês continuavam a chegar-me e acalmavam-me; nessa noite,
não estava completamente só.
- Porque é que não quer falar de Sylvia comigo?
- Porque não estamos a falar da mesma pessoa.
Desliguei. Passados breves instantes, o telefone voltou a tocar.
- Foi uma falta de delicadeza ter desligado... Mas não vou largá-lo...
Ele pretendia pôr um pouco de ironia na sua voz.
- Estou fatigado - disse-lhe.
- Também eu. Mas não é razão para não voltarmos a falar. Doravante, só nós dois sabemos certas coisas...
- Pensava que você tinha esquecido tudo...
Fez-se silêncio.
- Realmente não... Isso incomoda-o, não é verdade?
- Não.
- Convença-se de que era eu quem melhor conhecia Sylvia... Era eu quem ela mais amava... Como está a ver, não me furto às minhas responsabilidades.
Desliguei. Passaram alguns minutos e o telefone voltou a tocar.
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- Havia entre mim e Sylvia uma ligação muito forte... Tudo o mais não tinha qualquer importância para ela...
Ele falava como se tivesse achado natural que eu tivesse desligado pela segunda vez.
- Gostava de falar de tudo isso consigo, quer queira quer não... Telefonar-lhe-ei até que aceite...
- E eu corto o telefone.
- Nesse caso, esperá-lo-ei diante da sua casa. Não poderá livrar-se de mim lá muito facilmente... Em suma, foi você que veio procurar-me...
Desliguei mais uma vez. Novamente, a campainha do telefone.
- Eu não esqueci certas coisas... Ainda lhe posso causar muitas chatices... Quero ter consigo uma conversa séria sobre Sylvia...
- Você esquece que também eu lhe posso causar muitas chatices - respondi-lhe.
Desta vez, depois de ter desligado, marquei o meu próprio número de telefone e meti o auscultador debaixo da almofada para não ouvir o ruído do telefone.
Levantei-me e, sem acender a luz, fui para a janela. Em baixo, a Alameda de Cimiez estava deserta. De tempos a tempos, um automóvel passava e, sempre que isso acontecia,
eu perguntava-me se iria parar. Um bater de porta. Ele sairia e levantaria a cabeça em direcção à fachada do Majestic para ver em que andar ainda havia luz. Ele
entraria na cabina telefónica, no começo da curva da alameda. Deveria deixar o auscultador desligado ou responder-lhe? O melhor seria aguardar o toque e pôr o auscultador
ao ouvido, sem dizer nada. Ele repetiria:
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"Alô... Está a ouvir-me?... Alô, está a ouvir-me?... Estou muito perto da sua casa... Responda-me... Responda-me..." A essa voz, cada vez mais inquieta e mais plangente,
eu responderia apenas com o silêncio. Sim, gostaria de lhe transmitir a sensação de vazio que eu próprio sinto.
O grupo coral calou-se há muito, e eu continuo postado diante da janela. Espero que a silhueta se recorte, lá em baixo, na iluminação branca da alameda, tal como
se recortava, no outro domingo, no Passeio dos Ingleses.
Ao fim da manhã, desci à garagem. Pode-se lá chegar a partir do rés-do-chão do prédio por uma escada de cimento. Basta seguir um corredor, ao fundo do hall, abrir
uma porta, e acender a luz da escada.
É um local muito amplo, na parte de baixo do Majestic, que já devia servir, no tempo do hotel, de recolha para os automóveis.
Ninguém. Os três empregados tinham saído para almoçar. A bem dizer, tinham cada vez menos trabalho. Alguém apitava do lado da estação de serviço. Um Mercedes aguardava
e o condutor pediu-me para atestar o depósito. Deu-me uma boa gorjeta.
Depois dirigi-me para o meu gabinete, no interior da garagem. Uma divisão com o chão de mosaico, paredes verde-pálido e envidraçada. Tinham deixado um envelope em
meu nome sobre a mesa de madeira branca. Abri-o e li:
"Fique tranquilo. Nunca mais voltará a ouvir falar de mim. Nem de Sylvia. Villecourt."
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Por descargo de consciência, tirei do bolso o seu cartão de visita e marquei o número de telefone da sua casa de Antibes: ninguém respondeu. Arrumei o meu gabinete,
onde velhos dossiers e facturas estavam empilhados desde há meses. Guardei-os no armário metálico. Dentro em breve, já nada disso restaria: o administrador do prédio,
que me tinha arranjado este lugar de direcção nesta garagem, tinha-me avisado de que a iam transformar num simples parque de estacionamento.
Olhei pela vidraça: a uma certa distância, estava um automóvel americano, de capot aberto, com o pneu de uma das rodas de trás completamente em baixo. Quando os
outros voltassem, tinha de lhes perguntar se se tinham esquecido dele. Mas voltariam? Também eles tinham sido avisados do encerramento próximo da garagem, e tinham
sem dúvida encontrado algures outro emprego. Eu fui o único que não tomou precauções.
Mais tarde, depois do almoço, marquei novamente o número de Villecourt, em Antibes. Não houve resposta. Dos três empregados, só um tinha voltado e acabava a reparação
do automóvel americano. Disse-lhe que me ausentava durante uma ou duas horas e pedi-lhe que tomasse conta da estação de serviço.
Havia sol e um tapete de folhas mortas no passeio da Avenida Dubouchage. Enquanto caminhava, pensava no meu futuro. Dar-me-iam uma indemnização pelo encerramento
da garagem, com o que subsistiria algum tempo. Conservaria o meu quarto no Majestic, cujo aluguer era irrisório. Talvez conseguisse que Boistel, o gerente, não me
obrigasse a pagar mais o aluguer como sinal de agradecimento pelos meus serviços.
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Sim, ficaria na Cote d'Azur para sempre. Para quê mudar de horizontes? Poderia mesmo retomar a minha antiga profissão de fotógrafo e aguardar, no Passeio dos Ingleses,
com uma polaróide, a passagem dos turistas. O que pensara ao dar uma vista de olhos pelo cartão de visita de Villecourt, também se me aplicava. Muitas vezes bastam
alguns anos para conseguir o que se pretende.
Sem me dar conta, tinha chegado ao Jardim da Alsácia-Lorena. Virei à esquerda, para a Alameda Gambetta, e senti um ligeiro aperto no coração perguntando-me se encontraria
Villecourt detrás da sua banca. Desta vez, observá-lo-ia de longe para que ele não pudesse notar a minha presença e ir-me-ia imediatamente embora. Seria um alívio
contemplar aquele vendedor ambulante, que já não era o antigo vendedor ambulante, e que nunca tinha estado ligado à minha vida. Nunca. Um vendedor ambulante inofensivo
como os que há nos passeios de Nice por altura das festas de Natal. E nada mais.
Vi uma silhueta que se agitava por detrás da banca. No momento de atravessar a Rua Buffa, apercebi-me de que não era Villecourt mas um loiro enorme com cara de cavalo
e casaco de cabedal. Como da primeira vez, dirigi-me para a primeira fila. Não utilizava o pódio nem o microfone, e debitava a sua arenga com uma voz muito forte,
enumerando as mercadorias que tinha na frente: ragondin, carneiro tratado, coelho, skunks, botins todos em couro simples ou forrados... A banca estava muito mais
abastecida do que na véspera e o loiro atraía mais gente do que Villecourt. Muito pouco cabedal. Peles em abundância. Talvez não achassem Villecourt digno de vender
peles.
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Ele fazia descontos de vinte por cento nos casacos de ragondin e nos fatos de carneiro tratado com spencer. Carneiro? Havia-o de todas as cores: preto, chocolate,
azul-escuro, verde-bronze, fucsia, violeta claro... Como bónus, para os compradores, um pacote de marrons glacés. Ele falava cada vez mais depressa e provocava-me
tonturas. Acabei por me sentar na esplanada do café que ficava próximo e esperei cerca de uma hora, antes de os mirones dispersarem. O dia tinha caído há muito.
Ele estava sozinho detrás da sua banca, e eu aproximei-me dele:
- Está encerrado - disse-me ele. - Mas se quiser alguma coisa... Tenho casacos de cabedal... muito baratos... trinta por cento de desconto... ou casacões de carneiro
macio... forro de tafetá, números 38 a 46... Deixo-lhos por metade do preço...
Se não lhe cortasse a palavra, nunca mais se calava. Estava embalado.
- Conhece Frédéric Villecourt? - perguntei-lhe.
- Não.
Ele começava a empilhar peles e casacos de cabedal uns sobre os outros.
- Mas ontem à tarde ele estava aí, no seu lugar.
- Como sabe, somos muitos a trabalhar na Côte d'Azur para France-Cuir...
A camioneta parou junto da banca. O mesmo condutor desceu e correu a porta.
- Boa-tarde - disse-lhe eu. - Vimo-nos ontem à tarde com um amigo meu...
Ele observava-me franzindo as sobrancelhas e parecia não se lembrar de nada.
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- Você foi ter com ele ao café do Forum...
- Ah sim... Ah sim. Realmente...
- Carrega-me tudo isso depressa - disse o loiro enorme com cabeça de cavalo.
O outro pegava nos sobretudos e nos casacos de cabedal uns a seguir aos outros e enfiava-os nos cabides antes de os pendurar na camioneta.
- Não sabe onde é que ele está?
- Talvez já não trabalhe para France-Cuir...
Ele respondera-me com uma voz seca, como se Villecourt tivesse cometido uma falta muito grave, e como se fosse realmente um privilégio trabalhar para France-Cuir.
- Eu pensava que ele tinha um emprego fixo...
O loiro enorme com cabeça de cavalo, com as nádegas apoiadas na borda da banca, anotava qualquer coisa num bloco. As contas do dia?
Tirei do bolso o cartão de visita de Villecourt.
- Ontem à noite deve tê-lo levado a casa... à Avenida Bosquet, nº 5, em Antibes...
O condutor continuava a arrumar os sobretudos e os casacos na camioneta e nem sequer se dignava olhar para mim.
- É um hotel - disse-me ele. - É lá que ficam os vendedores de France-Cuir... Lá avisam-nos se têm de trabalhar em Cannes ou em Nice...
Eu passei-lhe um casacão de carneiro, depois um casaco de cabedal, e a seguir botas forradas. Se o ajudasse a carregar a camioneta, talvez acedesse a dar-me algumas
informações suplementares sobre Villecourt.
- Como quer que eu tenha tempo de os conhecer a todos...?
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Revezam-se... Dez novos por semana... Vêmo-los dois ou três dias... Voltam a partir... Vêm substituí-los outros... Com France-Cuir, a coisa não pára... Temos stocks
em toda a região... Não apenas em Cannes e em Nice... Em Grasse... Em Draguignan...
- Sendo assim, não tenho qualquer hipótese de o apanhar em Antibes?
- Ah não... o seu quarto já deve estar ocupado por outra pessoa... Talvez pelo senhor...
Indicou-me o loiro enorme com cara de cavalo que continuava a tomar notas num bloco.
- E não há nenhum meio de saber onde é que ele está?
- Das duas, uma... Ou já não trabalha para France-Cuir, foi posto no olho da rua porque não era um "vendedor" à altura...
Ele tinha acabado de pendurar os sobretudos e os casacos na camioneta e limpava a testa com a ponta de um lenço.
- Ou então mandaram-no para outro sítio... Mas se perguntar à Direcção, não lhe dirão nada... Segredo profissional... Suponho que o senhor nem sequer é da família
dele.
- Não.
O seu tom tinha serenado. O loiro enorme com cara de cavalo tinha vindo juntar-se a nós.
- Já arrumaste tudo?
- Já.
- Nesse caso, vamos embora...
Subiu para a cabina da camioneta. O outro fechou a porta e verificou se estava travada. Depois subiu ele e inclinou-se para mim pela janela entreaberta.
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- Às vezes France-Cuir manda-os para o estrangeiro... Eles têm armazéns na Bélgica... Se calhar, mandaram-no para a Bélgica...
Encolheu os ombros e arrancou. Eu segui com os olhos a camioneta que desapareceu na esquina do Passeio dos Ingleses.
Estava agradável. Caminhei até ao Jardim da Alsácia-Lorena e sentei-me num banco, por detrás dos baloiços e do parque de areia. Gosto deste sítio, por causa dos
pinheiros guarda-sóis e dos prédios que se recortam tão nitidamente no céu. Pela tarde, vinha algumas vezes sentar-me aqui com Sylvia. Encontrávamo-nos seguros no
meio de todas aquelas mães que vigiam os filhos. Ninguém iria procurar-nos neste jardim. E as pessoas, à nossa volta, não nos prestavam atenção. Em suma, também
nós podíamos ter filhos a deslizar pelo escorrega ou a construir castelos de areia.
Para a Bélgica... Se calhar, mandaram-no para a Bélgica... Eu imaginava Villecourt, pela tarde, debaixo de chuva, a vender à socapa porta-chaves e velhas fotografias
pornográficas no bairro da Gare du Midi, em Bruxelas. Ele não passava da sombra de si mesmo. O recado que, nessa manhã, me tinha deixado na garagem não me tinha
surpreendido: "Nunca mais voltará a ouvir falar de mim." Eu tinha esse pressentimento. O mais espantoso é que ele me tinha escrito esse recado, que constituía, pois,
uma prova material de que estava vivo. Quando, ontem à tarde, estava por detrás da sua banca, levei tempo a reconhecê-lo, a persuadir-me de que era realmente ele.
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Eu tinha-me prantado na primeira fila dos mirones e olhava-o insistentemente como se quisesse despertar a sua atenção. E, sob esse olhar fixo, ele esforçara-se por
se tornar o antigo Villecourt. Durante algumas horas, tinha continuado a representar esse papel, tinha-me telefonado, mas sem grande convicção. Agora, em Bruxelas,
encaminhava-se pela Alameda Anspach para a Gare du Nord e apanhava um comboio ao acaso. Encontrava-se num compartimento cheio de fumo com caixeiros viajantes que
jogavam às cartas. E o comboio largava para um destino desconhecido...
Também eu tinha pensado em Bruxelas para aí me refugiar com Sylvia, mas tínhamos preferido não sair de França. Havia que escolher uma cidade importante onde passássemos
despercebidos. Nice tinha mais de quinhentos mil habitantes, entre os quais podíamos desaparecer. Não era uma cidade como as outras. E depois, havia o Mediterrâneo...
Iluminou-se uma janela no terceiro andar do prédio que fica na esquina da praceta com a Alameda Victor-Hugo, onde vivia a Sra. Efflatoun Bey. Será que ainda é viva?
Devia tocar à sua porta ou perguntar à porteira. Contemplo a janela iluminada com uma luz amarelada. Já na altura em que chegámos a esta cidade, a Sra. Efflatoun
Bey tinha vivido a sua vida desde há muito e eu perguntava-me se ela conservava dela vagas recordações. Era um fantasma simpático, entre os milhares de outros fantasmas
que povoam Nice. Por vezes, pela tarde, vinha sentar-se num banco do Jardim da Alsácia-Lorena, ao nosso lado. Os fantasmas não morrem. Há sempre luz nas suas janelas,
bem como nas de todos os prédios
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ocres e brancos que me rodeiam e cujas fachadas estão semi-ocultas pelos pinheiros guarda-sóis da praceta. Levanto-me. Sigo pela Alameda Victor-Hugo e conto maquinalmente
os plátanos.
A princípio, quando Sylvia aqui veio ter comigo, eu via as coisas de uma maneira diferente da que as vejo nesta noite. Nice não era esta cidade familiar por onde
caminho para encontrar o hall do Majestic e o meu quarto com um radiador avariado. Felizmente, os Invernos são amenos na Côte d'Azur e isso livra-me de dormir de
sobretudo. É da Primavera que eu tenho medo. Chega sempre como uma vaga de fundo, e eu pergunto-me sempre se não vou desequilibrar-me e sair borda fora.
Eu pensava que a minha vida tomaria um novo rumo e bastaria ficar algum tempo em Nice para apagar todo o passado. Acabaríamos por já não sentir o peso que nos importunava.
Nessa noite, eu caminhava com um passo muito mais rápido do que o de hoje. Na Rua Gounod, passara diante do salão de cabeleireiro. O seu néon cor-de-rosa continua
a brilhar - tive de o examinar antes de prosseguir o meu caminho.
Eu ainda não era um fantasma, como nessa noite. Dizia para comigo que íamos esquecer tudo e recomeçar do zero nesta cidade desconhecida. Recomeçar do zero - era
a frase que eu repetia para mim próprio enquanto caminhava pela Rua Gounod com um passo cada vez mais apressado.
"Em frente", disse-me um transeunte a quem perguntei o caminho para a estação. Em frente. Eu tinha confiança no futuro. Essas ruas eram novas para mim. Não tinha
qualquer importância o eu guiar-me um pouco ao acaso.
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O comboio de Sylvia só chegava à estação de Nice às dez e meia da noite.
Ela tinha como bagagem um grande saco de cabedal carmesim e, ao pescoço, a Cruz do Sul. Eu estava intimidado por a ver avançar para mim. Tinha-a deixado uma semana
antes num hotel de Annecy porque tinha querido partir sozinho para Nice e assegurar-me de que podíamos fixar-nos nesta cidade.
A Cruz do Sul brilhava sobre a camisola preta na abertura da gola do sobretudo. Cruzámos os olhares, ela sorriu e baixou a gola. Não era prudente trazer essa jóia
de uma maneira ostentatória. E se, no comboio, tivesse vindo sentada diante de um diamantista e tivesse despertado a sua atenção? Mas, a este pensamento despropositado,
também eu acabei por sorrir. Peguei-lhe no saco de viagem.
- Não havia nenhum diamantista no teu compartimento?
Eu olhava de alto a baixo os poucos passageiros que acabavam de descer do comboio em Nice e que, no cais, caminhavam a nosso lado.
No táxi, tive um momento de apreensão. A casa mobilada que eu tinha escolhido e o aspecto do quarto poderiam não lhe agradar. Mas era preferível vivermos neste tipo
de sítio a vivermos num hotel onde os empregados da recepção nos teriam identificado.
O táxi seguiu o trajecto que, em sentido inverso, eu fizera: Alameda Victor-Hugo, Jardim da Alsácia-Lorena. Foi na mesma altura do ano, em finais de Novembro, e
os plátanos tinham perdido as folhas, como nesta noite.
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Ela tirou do pescoço a Cruz do Sul e eu senti na palma da minha mão o contacto do fio e do diamante.
- Toma-o... Senão vou perdê-lo...
Meti cautelosamente a Cruz do Sul no bolso de dentro do meu casaco.
- Já viste se houvesse um diamantista no teu compartimento, na tua frente?
Ela apoiou a cabeça no meu ombro. O táxi parara na esquina da Rua Gounod para dar passagem a outros automóveis que vinham da esquerda. No princípio da rua, a fachada
do salão de cabeleireiro brilhava com o seu néon cor-de-rosa.
- De qualquer maneira, se tivesse vindo sentada em frente de um diamantista, ele teria pensado que era pechisbeque...
Ela segredara-me a frase ao ouvido para que o condutor não ouvisse, e com a entoação que Villecourt qualificava de "suburbana" quando ele, Villecourt, pretendia
parecer distinto, com essa entoação que eu adorava, eu, porque era a da infância.
- Sim, mas imagina que ele te pedia para a examinar mais de perto... com uma lupa...
- Ter-lhe-ia dito que era uma jóia de família.
O táxi parou na Rua Caffarelli, em frente da vivenda Sainte-Anne, de quartos mobilados. Ficámos ambos imóveis um instante, no passeio. Eu segurava o seu saco de
viagem.
- O hotel é ao fundo do jardim - disse-lhe eu.
Receava que ela ficasse decepcionada. Mas não. Deu-me o braço.
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Empurrei o portão que se abriu num ruído de folhagem e seguimos pela álea escura até ao edifício iluminado por uma lâmpada que ficava sobre o átrio da entrada.
Passámos diante da marquise. O lustre estava aceso no salão onde a proprietária me recebeu quando aluguei o quarto por um mês.
Sem chamar a atenção de ninguém, demos a volta ao edifício. Abri a porta das traseiras e subimos as escadas de serviço. O quarto era no primeiro andar, ao fundo
de um corredor.
Ela sentou-se no velho sofá de couro. Não tinha tirado o casaco. Olhou à sua volta, como se quisesse habituar-se à decoração. As duas janelas que davam para o jardim
do edifício estavam protegidas por cortinas pretas. Um papel pintado com motivos cor-de-rosa cobria as paredes, excepto a do fundo, cuja madeira clara evocava um
chalé de montanha. Não havia mais móveis além do sofá de couro e da cama bastante larga com varões de cobre.
Eu estava sentado na borda da cama. Esperava que ela dissesse qualquer coisa.
- Em todo o caso, não virão procurar-nos aqui.
- Claro que não - disse-lhe eu.
Queria detalhar-lhe as vantagens do lugar para melhor me convencer a mim próprio: paguei um mês adiantado... É um quarto independente... Guardaremos sempre a chave
connosco... A proprietária vive no rés-do-chão... Ela deixar-nos-á em paz...
Mas ela parecia não me ouvir. Observava o candeeiro que lançava sobre nós uma luz fraca, depois o soalho, e em seguida as cortinas pretas.
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Com o seu casaco, ter-se-ia pensado que ia sair do quarto de um momento para o outro e tive medo que ela me deixasse sozinho em cima da cama. Ela continuava imóvel,
com as mãos apoiadas nos braços do sofá. Uma expressão de desalento, do desalento que também eu sentia, perpassou pelo seu olhar.
Foi preciso que poisasse os olhos em mim para que tudo mudasse. Talvez ela sentisse que experimentávamos as mesmas coisas nos mesmos momentos. Sorriu-me e, em voz
baixa, como se receasse que alguém ouvisse atrás da porta, disse-me:
- Não devemos preocuparmo-nos.
A música e a voz grave de um orador, no rés-do-chão do edifício, cessaram. Tinham desligado a televisão ou o rádio. Estávamos os dois estendidos na cama. Eu abrira
as cortinas e, pelas duas janelas, uma luz fraca atravessa-a escuridão do quarto. Via o seu perfil. Ela tinha os dois braços atirados para trás, com as mãos a rodear
os varões da cama, e a Cruz do Sul ao pescoço. Preferia usá-la enquanto dormia: assim, não corria o risco de lha roubarem.
- Não achas que há um cheiro estranho? - perguntou-me.
- Acho.
A primeira vez que visitara este quarto, um cheiro a mofo tinha-me invadido a garganta. Abrira as duas janelas para deixar entrar um pouco de ar fresco, mas isso
não servira de nada. O cheiro impregnava as paredes, o couro do sofá e o cobertor de lã.
Aproximei-me dela e, pouco depois, o seu perfume era
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mais intenso do que o cheiro do quarto, um perfume pesado de que já não podia prescindir, algo de doce e de tenebroso, como os laços que nos ligavam um ao outro.
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Nessa noite, no antigo hall do Majestic, realizava-se a reunião semanal da Associação Terras Longínquas. Em vez de subir para o meu quarto, poderia ter-me sentado
dos bancos de madeira - iguais aos das pracetas - ouvir o conferencista entre as pessoas que se reuniram e que trazem todas elas, na lapela, um círculo branco onde
inscrito T.L. em caracteres azuis. Mas não há nenhum lugar livre e eu esgueiro-me, roçando a parede, até à escada.
O meu quarto actual parece-se com o da Pensão Sainte-Anne, na Rua Caffarelli. No Inverno, devido à humidade e aos móveis de madeira velha e de couro velho, paira
o mesmo cheiro. Com o correr do tempo, os lugares impregnam as pessoas, mas, na Rua Caffarelli, com Sylvia, o meu estado de espírito era diferente. Hoje, tenho muitas
vezes a impressão de ali apodrecer. Reflicto. Ao cabo de um instante, esta impressão dissipa-se e só resta um desapego, uma sensação de calma e leveza. Nada mais
tem importância. No tempo da Rua Caffarelli, por vezes sentia-me desanimado, mas o futuro apresentava-se-me com cores favoráveis. Acabaríamos
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por sair dessa situação delicada em que nos encontrávamos. Para nós, Nice não passava de uma etapa. Muito rapidamente, partiríamos para longe daqui, para o estrangeiro.
Estava a iludir-me. Eu não sabia que esta cidade era um lodaçal e que eu me afundaria nele a pouco e pouco. E que o único itinerário que seguiria, durante todos
estes anos, seria o que vai da Rua Caffarelli à Alameda de Cimiez, onde agora vivo.
O dia a seguir à chegada de Sylvia era domingo. Fomos sentar-nos na esplanada de um café do Passeio dos Ingleses, ao fim da tarde, na mesma esplanada de onde, na
outra noite, via Villecourt passar, de saco a tiracolo. Ele tinha acabado por se juntar às sombras que desfilavam diante de nós a contraluz, a esses homens e mulheres
que, a mim e a Sylvia, nos pareciam muito velhos... Ao voltar a fechar a porta do meu quarto, tenho medo. Pergunto-me se, doravante, não sou um deles. Nessa noite,
eles bebiam lentamente o seu chá nas mesas ao lado da nossa. Eu e Sylvia observávamo-los, a eles e aos outros que continuavam a desfilar pelo Passeio dos Ingleses.
Fim de um domingo de Inverno. E eu sei que pensávamos os dois na mesma coisa: tínhamos de encontrar, entre toda aquela gente que deambulava à mesma hora pela Côte
d'Azur, alguém a quem vender a Cruz do Sul.
Choveu durante vários dias seguidos. Eu ia comprar os jornais ao quiosque que fica à beira do Jardim da Alsácia--Lorena e voltava para a Pensão Sainte-Anne, debaixo
de chuva. A proprietária dava de comer aos seus pássaros. Estava vestida com um velho impermeável e tinha atado ao queixo um lenço para se proteger da chuva.
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Era uma mulher de uns sessenta anos, de porte elegante. Falava um o sotaque de Paris. Fazia-me um sinal com o braço e dizia-me "Bom-dia" e, depois, continuava a
abrir as gaiolas uma a uma, a pôr de comer, a fechar de novo as gaiolas. Por que acaso teria também ela ido parar a Nice?
De manhã, ao despertarmos, quando ouvíamos os pingos de chuva tamborilar sobre o zinco do pequeno alpendre, no jardim, sabíamos que estaria assim durante todo o
dia e, muitas vezes, ficávamos na cama até ao fim da tarde. Preferíamos esperar que a noite chegasse para sairmos. Durante o dia, a chuva no Passeio dos Ingleses,
sobre as palmeiras e os prédios claros, deixava no coração um sentimento de tristeza. Ela impregnava as paredes pouco depois, a decoração de opereta e as cores pastel
estariam completamente diluídas. A noite abafava essa desolação, graças às luzes e aos néons.
A primeira vez que tive a sensação de que estávamos tidos numa cilada, nesta cidade, foi debaixo de chuva, Rua Caffarelli, quando ia comprar os jornais. Mas, quando
regressei, estava de novo confiante. Sylvia estava a ler um romance policial, com o busto apoiado nos varões da cama e a cabeça inclinada. Enquanto ela estivesse
comigo, eu não tinha nada a recear. Ela envergava uma camisola de gola alta cinzento-claro muito justa que a tornava ainda mais delgada e que contrastava com os
cabelos pretos e o brilho azul do olhar.
Os jornais trazem alguma coisa? - perguntava-me.
Eu folheava-os, sentado junto à cama.
- Não, nada.
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Tudo acabou por se confundir. As imagens do passado confundem-se numa massa leve e transparente que se distende, incha e toma a forma de um balão de várias cores,
prestes a rebentar. Desperto sobressaltado, com o coração a bater. O silêncio aumenta a minha angústia. Já não ouço o conferencista da Terras Longínquas, cuja voz
monótona era trazida até ao meu quarto por um microfone. Essa voz e a música do documentário que se lhe seguira - sem dúvida um filme sobre o Pacífico, por causa
do queixume de guitarras havaianas - embalavam-me e eu adormecera.
Já não sei se encontrámos os Neal antes ou depois da chegada de Villecourt a Nice. Tenho de rebuscar na minha memória, tentar encontrar pontos de referência, não
consigo deslindar os dois acontecimentos. Aliás, não houve acontecimentos. Nunca. Tudo se desenrolou docemente, imperceptivelmente, tal como se tecem lentamente
na talagarça os motivos de uma tapeçaria, tal como desfilavam os transeuntes pelo Passeio dos Ingleses, diante de nós. Pelas seis da tarde, estávamos sentados numa
mesa da esplanada envidraçada do Queenie.
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A luz cor de malva dos candeeiros vacilava. Era noite. Esperávamos, não sabíamos muito bem o quê. Éramos semelhantes a centenas e centenas de pessoas que, ao longo
dos anos, também tinham esperado sentadas na mesma esplanada do Passeio: refugiados em zona livre, exilados, ingleses, russos, gigolôs, croupiers corsos do Palácio
do Mediterrâneo. Alguns não tinham mudado de lugar em quarenta anos e bebiam o seu chá nas mesas ao lado das nossas com pequenos gestos sofreados. E o pianista?
Desde quando arrancava as suas notas entre as cinco e as oito da tarde, no fundo da sala? Tinha tido curiosidade de lhe perguntar. Desde sempre, dissera-me. Resposta
evasiva, de alguém que sabe de mais e que quer esconder um segredo comprometedor. Em suma, era um tipo do nosso género, de Sylvia e de mim. E, sempre que nos via
entrar, fazia-nos um sinal de conivência: um aceno amistoso com a cabeça ou então alguns acordes que executava vigorosamente no teclado.
Nessa tarde, ficámos mais tempo do que o habitual na esplanada. Os clientes tinham abandonado, a pouco e pouco, a sala e só restávamos nós e o pianista. Era um momento
de vazio, antes da chegada dos primeiros clientes para o jantar. Os empregados acabavam de pôr as mesas na zona de "restaurante" do estabelecimento. E nós, nós não
sabíamos muito bem em que ocupar essa noite. Voltar para o nosso quarto da Pensão Sainte-Anne? Ir à sessão da noite do cinema Le Fórum? Ou, pura e simplesmente,
esperar?
Eles sentaram-se numa mesa junto da nossa. Estavam colocados um ao lado do outro, de frente para nós. Ele tinha um ar bastante descuidado, de
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blusão de camurça, o rosto pálido, como se regressasse de uma longa viagem ou não dormisse há quarenta e oito horas. Ela, pelo contrário, estava bem arranjada: o
cabelo e a maquilhagem deixavam supor que ia a uma festa. Trazia um casaco de peles que devia ser de zibelina.
A coisa aconteceu da maneira mais banal e mais natural. Creio que, passados uns instantes, Neal veio pedir-me lume. Além deles e de nós, não havia ninguém na esplanada
e eles compreenderam que era hora de fechar.
Então, não podemos ao menos beber um copo? - disse Neal, sorrindo. - Estamos completamente sós?
Um empregado encaminhou-se para a mesa deles com um passo dolente. Lembro-me de que Neal pediu um café duplo, o que me corroborou a ideia de que ele não dormia há
muito. Ao fundo, o pianista martelava as mesmas teclas, sem dúvida para verificar se o seu instrumento estava bem afinado. Não aparecia nenhum cliente para jantar.
Na sala, os empregados aguardavam, rígidos. E as notas do piano eram sempre as mesmas... Chovia no Passeio dos Ingleses.
Não se pode dizer que haja muito ambiente - observou Neal.
Ela fumava, em silêncio, ao lado dele. Sorria-nos. Houve entre Neal e nós o esboço de uma conversa:
- Vivem em Nice?
- E vocês?
- Vivemos. Estão cá de férias?
- Em Nice, a chuva não tem grande piada. Talvez ele pudesse tocar outra coisa - disse Neal - Provoca-me enxaquecas...
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Ele levantou-se, entrou na sala e encaminhou-se para junto do pianista. A mulher continuava a sorrir-nos. Quando Neal regressou, ouvíamos os primeiros acordes de
Stranger in the Night.
- Gostam desta música? - perguntou-nos.
O empregado trouxe as bebidas e Neal convidou-nos para tomar um copo com eles. Sylvia e eu sentámo-nos à sua mesa. Nem o termo "acontecimento" nem o termo "encontro"
são aqui os adequados. Não encontrámos os Neal. Foram eles que caíram nas nossas malhas. Se não tivessem sido os Neal, nessa noite, teriam sido, no dia seguinte
ou dois dias depois, outras pessoas. Há dias e dias que eu e Sylvia permanecíamos imóveis em lugares de passagem: salas e bares de hotel, esplanadas de cafés do
Passeio dos Ingleses... Parece-me, hoje, que tecíamos uma gigantesca e invisível teia de aranha e que esperávamos que alguém lá caísse.
Eles tinham os dois um imperceptível sotaque estrangeiro. Acabei por perguntar:
- São ingleses?
- Americanos - respondeu-me Neal. - A minha mulher é inglesa.
- Fui educada na Côte d'Azur - corrigiu ela. - Não sou inteiramente inglesa.
- E eu não sou inteiramente americano - disse Neal. - Vivo há muito tempo em Nice.
Eles esqueciam a nossa presença e depois, no instante seguinte, falavam-nos com uma simpatia calorosa. Este misto de distracção e euforia explicava-se nele pelo
estado secundário provocado por uma fadiga extrema
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e pela diferença horária: na véspera, ainda estava na América, dizia-nos ele, e a mulher tinha-o ido buscar nessa mesma noite ao aeroporto de Nice. Ela não esperava
um regresso tão rápido. Preparava-se para sair com uns amigos no momento em que ele telefonou do aeroporto. Era por isso que trazia aquele fato de noite e aquele
casaco de peles. - De vez em quando, tenho de fazer uma viagem aos Estados Unidos - explicava ele.
Também ela dava a impressão de pairar. Por causa do Martini que tinha bebido de um só gole? Ou por causa do lado sonhador e excêntrico dos Ingleses? De novo a imagem
da teia de aranha invisível, que eu e Sylvia tínhamos montado, me veio à cabeça. Eles tinham vindo cair nela num estado de menor resistência. Eu tentava lembrar-me
de como eles tinham aparecido naquela esplanada de café. Não tinham eles o rosto um pouco alucinado, e o andar titubeante?
- Creio que não tenho forças para ir a casa dos teus amigos - disse Neal à mulher.
- Não tem importância. Cancelo a visita.
Ele tinha bebido um terceiro café.
- Sinto-me melhor... É realmente agradável chegar a terra firme... Não suporto o avião...
Eu e Sylvia trocámos um olhar. Não sabíamos se despedir-nos se ficar com eles. Teriam eles vontade de travar um conhecimento mais profundo connosco?
As luzes da esplanada envidraçada apagaram-se com o estalido de um interruptor, ficando apenas acesas as da sala do restaurante que nos envolviam numa semipenumbra.
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- Se bem entendo, querem pôr-nos na rua - disse Neal.
Remexeu nos bolsos do seu blusão.
- Que estupidez... Não tenho dinheiro francês.
Eu preparava-me para pagar a nossa conta mas a mulher de Neal já tinha tirado da mala um maço de notas, e punha uma, negligentemente, sobre a mesa.
Neal levantou-se. Nessa penumbra, a fadiga cavava-lhe o rosto.
- São horas de irmos para casa. Já não consigo ter-me em pé.
A mulher deu-lhe o braço e nós seguimo-los.
O seu automóvel estava estacionado um pouco mais à frente, no Passeio dos Ingleses, precisamente junto de um Banco iraniano cuja vitrina poeirenta indicava que estava
fechado há muito tempo.
- Tive o maior prazer em vos conhecer - disse-nos Neal. - Mas tem piada... Tinha a impressão de que já nos tínhamos encontrado...
E olhava insistentemente para Sylvia. Lembro-me bem disso.
- Querem que os deixemos em algum sítio? - perguntou a mulher dele.
Disse-lhes que não valia a pena. Receei que Sylvia e eu não conseguíssemos mais ver-nos livres deles. Pensei nos bêbedos que se penduram numa pessoa e que querem
arrastar-nos para cada bar para um último copo. Muitas vezes, tornam-se agressivos. No entanto, o que é que havia de comum entre bêbedos vulgares e os Neal? Eles
eram tão distintos, tão plácidos...
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- Em que bairro vivem? - perguntou Neal.
- Para os lados da Alameda Gambetta.
- Fica-nos no caminho - disse a mulher dele. Se quiserem, deixamo-los lá...
- Está bem - disse Sylvia.
E eu fiquei surpreendido com o seu tom categórico.
Ela puxava-me pelo braço, como se quisesse arrastar-me, contra minha vontade, para o automóvel dos Neal. Encontrámo-nos os dois no banco de trás. A mulher de Neal
estava ao volante.
- Prefiro que sejas tu a conduzir - disse Neal. - Sinto-me tão fatigado que me arrisco a espetar-me.
Passámos diante do Queenie, cujas luzes estavam completamente apagadas, e, depois, diante do Palácio do Mediterrâneo. As suas arcadas estavam fechadas com redes
de arame e o edifício, de janelas entaipadas e atores corridos, parecia votado à demolição.
- Vivem num apartamento? - perguntou-nos a mulher de Neal.
- Não. Neste momento, vivemos num hotel.
Ela tinha aproveitado o semáforo encarnado, na Rua de Cronstadt, para se virar para nós. Ela cheirava a pinheiro e eu perguntava-me se aquele odor seria o da sua
pele ou do seu casaco de peles.
- Nós vivemos numa vivenda - disse Neal - e tínhamos o maior prazer em os convidar.
A fadiga tornava a sua voz sumida e acentuava o seu ligeiro sotaque estrangeiro.
- Ficam muito tempo em Nice? - perguntou a Sra. Neal.
- Sim, estamos de férias - respondi eu.
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- Vivem em Paris? - perguntou Neal.
Porque é que nos faziam este tipo de perguntas? Há pouco, no café, não tinham mostrado nenhuma curiosidade especial em relação a nós. A pouco e pouco, eu começava
a inquietar-me. Queria fazer um sinal a Sylvia. Desceríamos do automóvel no próximo semáforo encarnado. E se as portas estivessem travadas?
- Vivemos na região de Paris - disse Sylvia.
O seu tom calmo desfez os meus receios. A mulher de Neal pôs os limpa pára-brisas a funcionar, por causa da chuva, e o seu movimento regular acabou por me acalmar.
- Para os lados de Marnes-la-Coquette? - perguntou Neal. - A minha mulher e eu já vivemos em Marnes-la-Coquette.
- Não. Nada disso - disse Sylvia. No leste de Paris. À beira do Marne.
Ela tinha lançado esta frase como um desafio e sorria-me. A sua mão tinha deslizado para a minha.
- Não conheço nada dessa zona - disse Neal.
- É uma zona que tem um encanto muito especial - disse eu.
- Exactamente onde? - perguntou Neal.
- Em la Varenne-Saint-Hilaire - disse Sylvia com uma voz muito nítida.
E porque não teríamos respondido às perguntas da maneira mais natural? Porque teria sido preciso mentir?
- Mas não contamos voltar para lá - acrescentei - Gostaríamos de ficar na Côte d'Azur.
- Têm razão - disse Neal.
Eu estava aliviado. Não tínhamos falado com ninguém
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há tanto tempo que acabávamos, Sylvia e eu, por andar à roda nesta cidade como numa gaiola. Mas não, tínhamos peste. Podíamos manter uma conversa com alguém, e até
entabular novas relações.
O automóvel meteu pela Rua Caffarelli e eu indiquei Sra. Neal o portal da vivenda Sainte-Anne.
- Não é um hotel - disse Neal.
- Não. É uma pensão mobilada.
Arrependi-me imediatamente dessa palavra que poderia despertar uma desconfiança em relação a nós. Eles tinham talvez preconceitos em relação às pessoas que viviam
numa pensão mobilada.
- Apesar disso é suficientemente confortável? - perguntou Neal.
Não, aparentemente, ele não tinha qualquer preconceito desse tipo mas tinha até uma certa simpatia por nós.
- É provisório - disse Sylvia. - Esperamos encontrar outra coisa.
O automóvel tinha parado diante da Pensão Sainte--Anne. A Sra.Neal tinha desligado o motor.
- Poderíamos ajudá-los a encontrar um outro alojamento - disse Neal com uma voz distraída. - Não é, Bárbara?
- Com certeza - disse a Sra. Neal. - Temos de voltar a ver-nos.
- Dou-lhes a nossa direcção - disse Neal. - Podem telefonar quando quiserem.
Tirou uma carteira do bolso e, da carteira, um cartão-de-visita que me estendeu.
- Até breve... Espero voltar a vê-los rapidamente...
A Sra. Neal tinha-se virado para nós.
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- Tive um enorme prazer em os conhecer...
Era ela realmente sincera ou não passava de uma fórmula de delicadeza?
Observavam-nos os dois, em silêncio, na mesma posição, com os rostos perto.
Eu não sabia que dizer. Sylvia também não. Creio que teriam achado natural que ficássemos no automóvel e que tudo lhes era indiferente. Eles teriam aceitado qualquer
proposta nossa. Cabia-nos a nós tomar uma iniciativa. Abri a porta.
- Até breve - disse eu. - E obrigado por nos terem trazido.
Antes de abrir o portão, voltei-me para eles e olhei para a matrícula do automóvel. As duas letras CD deram-me um baque no coração. Aquilo queria dizer CORPO DIPLOMÁTICO
mas, durante um instante muito breve, confundi essa matrícula com a de uma viatura da Polícia, e pensei que Sylvia e eu tínhamos caído na armadilha.
- É um automóvel que uns amigos nos emprestaram - disse Neal num tom divertido.
Ele inclinava a cabeça pelo vidro aberto da porta e sorria-me. Deve ter notado a minha expressão de espanto guando vi a placa mineralógica. Por mais que eu empurrasse
o portão, não mexia. Girei e voltei a girar a maçaneta. Por fim, a porta cedeu bruscamente, com um encontrão de ombro.
Voltámos a fechar o portão atrás de nós e tanto eu como Sylvia não conseguimos evitar olhar para eles uma vez mais. Continuaram no automóvel, um ao lado do outro,
imóveis, como que petrificados.
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Reencontrámos o odor de humidade e de mofo no quarto. Muitas vezes, quando regressávamos, no final desses dias vazios, sentíamos uma tal sensação de solidão que
essa humidade e esse mofo nos invadiam. Estávamos bem encostados um ao outro nessa cama cujas molas e cobres rangiam e tínhamos acabado por nos persuadir de que
as nossas próprias peles estavam impregnadas desse odor. Tínhamos comprado lençóis que perfumámos com alfazema.
Nessa noite, tudo era diferente. Pela primeira vez, desde a nossa chegada a Nice, tínhamos rompido o círculo mágico que nos isolava e nos asfixiava a pouco e pouco.
Este quarto parecia bruscamente provisório. Já nem sequer tínhamos necessidade de abrir as janelas para o arejar, nem de nos embrulhar nos lençóis perfumados com
alfazema. Mantínhamos o odor à distância.
Encostei a testa ao vidro da janela e fiz sinal a Sylvia para que viesse para junto de mim. Por detrás da vedação gradeada do jardim, o automóvel dos Neal continuava
ainda parado, com o motor desligado. Que estariam a dizer um ao outro? De que estariam à espera? Constituiria aquele automóvel cinzento e imóvel uma ameaça? Veríamos
qual o rumo que as coisas iam tomar. Tudo era preferível à prostração em que nos tínhamos deixado cair.
O motor começou a trabalhar. Mais um longo momento, e o automóvel arrancou e, depois, desapareceu na esquina da Rua Caffarelli com a Avenida Shakespeare.
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Agora, tenho a certeza: Villecourt aparecera depois do nosso primeiro encontro com os Neal. O acontecimento teve lugar na semana seguinte. Ainda não tínhamos voltado
a ver os Neal, porque decorreram dez dias até conseguirmos apanhá-los pelo telefone e eles nos marcarem um encontro.
Acontecimento: também o termo não é adequado. Tínhamos de esperar cruzarmo-nos com Villecourt no nosso caminho.
Nas manhãs de sol, íamos ler os jornais para um banco do Jardim da Alsácia-Lorena, junto do escorrega e dos baloiços. Aí, pelo menos, não chamávamos a atenção de
ninguém. À laia de almoço, comíamos sanduíches num café da Rua de França. Depois, tomávamos um autocarro até Cimiez ou até ao porto e passeávamos na relva do Jardim
des Arènes ou pelas ruas da Nice antiga. Por volta das cinco da tarde, na Rua de França, comprávamos romances policiais em segunda mão. E como a perspectiva de regressar
à Pensão Sainte-Anne nos acabrunhava, os nossos passos arrastavam-nos sempre para o Passeio dos Ingleses.
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No enquadramento da vidraça, as grades e as palmeiras do jardim do Museu Massena recortam-se no céu, num céu de um azul límpido ou de um cor-de-rosa de crepúsculo.
A pouco e pouco, as palmeiras tornam-se sombras antes de o candeeiro da esquina do Passeio e da Rua Rivoli lançarem sobre elas uma claridade fria. Ainda me acontece
entrar nesse bar pela porta de madeira maciça da Rua de Rivoli, para evitar atravessar o hall do hotel. E sento-me sempre diante da vidraça, como nessa noite, com
Sylvia. Não tirávamos os olhos da vidraça. O céu claro e as palmeiras contrastavam com a semipenumbra do bar. Mas, ao cabo de um momento, tinha-se apossado de mim
uma inquietação, uma impressão de sufocamento. Estávamos prisioneiros de um aquário, e olhávamos através do seu vidro o céu e a vegetação do exterior. Nunca poderíamos
respirar ao ar livre. Eu sentia-me aliviado por a noite ter caído e ter escurecido a vidraça. Então todas as luzes do bar se tinham acendido e, sob essas luzes vivas,
dissipava-se a inquietação.
Atrás de nós, ao fundo, a porta metálica de um elevador deslizava lentamente e dava passagem a clientes do hotel que desciam dos seus quartos. Eles sentavam-se nas
mesas do bar. Eu espreitava sempre a abertura lenta e silenciosa e o aparecimento dos clientes, como se vigiasse uma engrenagem de relojoaria cuja regularidade me
acalmava.
A porta metálica abriu-se e apareceu uma silhueta de fato cinzento escuro que reconheci imediatamente. Eu nem sequer ousava fazer um sinal de cabeça a Sylvia para
que também ela visse o homem que saía do elevador: Villecourt.
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Estava de costas para nós e dirigia-se para o hall do hotel. Transpôs a saída do bar e já não havia qualquer perigo de dar pela nossa presença. Segredei a Sylvia:
- Ele está além.
Ela mantinha o seu sangue frio. Dir-se-ia que se tinha preparado para esta eventualidade. Também eu, aliás.
Vou verificar se de facto é ele...
Ela encolheu os ombros como se isso não servisse para nada.
Atravessei o hall do hotel e postei-me detrás da entrada envidraçada. Ele continuava no passeio, na esquina do Passeio dos Ingleses com a Rua de Rivoli, no sítio
onde estão os enormes automóveis de aluguer. Estava a falar com um dos motoristas. Tirava qualquer coisa do bolso mas eu não distinguia o quê: Um cartão? Uma fotografia?
Estaria a pedir-lhe que o levasse a uma determinada direcção? Ou estaria a mostrar-lhe fotografias nossas, esperando que o condutor com cabeça de fuinha nos tivesse
visto?
Em todo o caso, o condutor abanava a cabeça e Villecourt dava-lhe uma gorjeta. Depois, no semáforo vermelho, atravessou a rua. Afastava-se com um passo indolente,
pelo Passeio, do lado esquerdo, em direcção ao Jardim Alberto I.
Da cabina da Alameda Gambetta, telefonei para o Hotel Negresco.
- Posso falar com o Sr. Villecourt?
Passado um instante, o recepcionista respondeu:
- Não há nenhum Sr. Villecourt no hotel.
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- Mas se... Acabei de o ver no bar... Traz um fato cinzento escuro...
- Toda a gente usa fato cinzento escuro.
Desliguei.
- Não está no Negresco - disse eu a Sylvia.
- Esteja ou não esteja, não tem importância.
Será que tinha dado instruções ao recepcionista? Ou um nome falso? Era terrível não poder localizá-lo e senti-lo presente em cada esquina de rua.
Fomos jantar ao café que fica junto do cinema Le Forum. Tínhamos decidido comportar-nos como se Villecourt não constituísse qualquer ameaça para nós. Se, por acaso,
voltássemos a encontrá-lo e ele quisesse falar-nos, fingiríamos não o reconhecer. Fingiríamos? Bastava persuadirmo-nos de que éramos pessoas diferentes do Jean e
da Sylvia que, dantes, tinham frequentado as margens do Marne. Nós já não tínhamos nada em comum com esses dois. E Villecourt não poderia provar o contrário. Para
começar, Villecourt isso não era nada.
Depois do jantar, procurávamos um pretexto para não regressarmos imediatamente para o nosso quarto. Comprámos dois bilhetes de primeiro balcão para o cinema Le Forum.
E antes de as luzes se apagarem na sala forrada com velho veludo vermelho e de o painel da publicidade local dar lugar ao ecrã, fizemos sinal à arrumadora para que
nos trouxesse dois gelados.
Mas, à saída do cinema, eu sentia a presença difusa de Villecourt. Era como o cheiro a mofo do quarto, algo de que nunca mais voltaríamos a livrar-nos. Isso colava-se-nos
à pele. Aliás, Sylvia chamava por vezes a
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Villecourt "o russo carraça", porque ele afirmava que o pai era russo. Mais uma mentira.
Subíamos lentamente a Alameda Gambetta, pelo passeio da esquerda. Ao passar diante da cabina telefónica, tive vontade de telefonar aos Neal. Em casa deles, até agora,
ninguém respondia. Talvez lhes telefonássemos sempre à hora errada ou então tinham saído de Nice. Eu quase me admiraria se eles respondessem, de tal modo continuavam
enigmáticos e flutuantes na minha recordação... Existiam eles verdadeiramente? Ou não passavam então de uma miragem causada pelo nosso estado de extrema solidão?
No entanto ter-me-ia reconfortado ouvir vozes amigas. Eles teriam tornado a presença de Villecourt em Nice menos sufocante.
- Em que estás a pensar? - perguntou-me Sylvia.
- No "russo peganhoso".
- A gente está-se nas tintas para o russo...
A ligeira inclinação da Rua Caffarelli. Nem um automóvel. Nem um ruído. Mais algumas vivendas, entre os prédios, sendo uma delas, de aspecto florentino, rodeada
por um grande jardim. Mas sobre o portão, um cartaz de uma sociedade imobiliária anunciava a sua próxima demolição, para dar lugar a um prédio de luxo cujo "andar
modelo" já se podia visitar, ao fundo do jardim. Numa placa de mármore esboroada, li: "Vivenda Bezobrazoff". Tinham lá vivido russos. Indiquei a placa a Sylvia:
- Achas que eram parentes de Villecourt?
- Havia de perguntar-lhe.
- O Sr. Villecourt-pai vinha talvez tomar chá a casa dos Bezobrazoff quando era novo...
Eu tinha pronunciado esta frase com o tom solene de um camareiro.
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Sylvia desatou a rir.
No rés-do-chão da pensão, ainda havia luz no salão. Caminhámos o mais suavemente possível para não fazermos ranger o cascalho. Eu tinha deixado as janelas do quarto
abertas e o perfume da folhagem molhada e da madressilva misturava-se ao odor de mofo. Mas, a pouco e pouco, o odor tornava-se mais intenso.
O diamante brilhava com um reflexo de Lua sobre a sua pele. Como era duro e frio comparado com aquela pele doce, parecia indestrutível sobre aquele corpo delicado
e enternecedor... Mais do que o odor do quarto, mais do que Villecourt rondando à nossa volta, esse diamante que cintilava na semipenumbra era bruscamente, a meus
olhos, a marca evidente de uma má sorte que pesava sobre nós. Eu quis tirar-lho, mas não conseguia encontrar o fecho do fio atrás do seu pescoço.
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O incidente deu-se dois dias depois, debaixo das arcadas da Praça Massena.
Voltávamos a pé do Jardim Alberto I quando demos de caras com Villecourt. Ele saía do quiosque dos jornais. Trazia o fato cinzento escuro que eu lhe tinha visto
no bar do hotel. Desviei imediatamente a cabeça e puxei Sylvia, apertando-lhe o braço.
Mas ele tinha-nos visto no meio dos transeuntes bastante numerosos daquela tarde de sábado. Dirigia-se para nós dando encontrões às pessoas que nos separavam dele,
de olhos esbugalhados e olhar fixo. Na precipitação, tinha deixado cair os jornais que trazia debaixo do braço.
Sylvia forçou-me a afrouxar o passo. Ela parecia muito calma.
- Tens medo do russo?
Ela esforçava-se por sorrir. Metemos pela Rua de França. Ele caminhava a uns dez passos de nós, porque tinha sido retardado por um grupo de turistas que saíam de
uma pizzeria. Apanhou-nos.
- Jean... Sylvia...
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Ele interpelava-nos num tom falsamente amistoso, mas nós prosseguíamos o nosso caminho, sem lhe dar atenção. Ele seguia as nossas pisadas.
- Não querem falar comigo? É estúpido...
Ele pôs-me uma das mãos sobre o ombro e a pressão dessa mão tornou-se firme. Então, virei-me para ele. Sylvia também. Estávamos os dois imóveis, diante dele. Ele
deve ter lido algo no meu olhar que o inquietou porque me observava com uma espécie de receio.
De bom grado o teria esmagado como uma barata, se tivesse sido possível, e teria tido em seguida a sensação de um nadador que regressa ao ar livre.
- Então... nem sequer me cumprimentam?
Sim, se tivéssemos estado sozinhos, tê-lo-ia certamente matado de uma ou de outra forma, mas neste troço da Rua de França reservado a peões, num sábado, em plena
tarde, os transeuntes que eram cada vez mais numerosos formariam, ao menor incidente, um ajuntamento à nossa volta.
- Já não se reconhecem os velhos amigos?
Eu e Sylvia caminhávamos com um passo mais rápido, mas ele continuava a seguir-nos, colava-se a nós.
- Só cinco minutos para tomarmos um copo... e falarmos um pouco...
Apressávamos o passo. Ele alcançava-nos, ultrapassava-nos, tentava bloquear-nos a passagem. Saltitava diante de nós como um jogador de futebol que procura interceptar
uma bola. O seu sorriso exasperava-me.
Quis afastá-lo com um gesto do braço um pouco mais largo e o meu cotovelo atingiu-o nos lábios. Sangrava. Eu tinha a impressão de que tinha acontecido algo de irremediável.
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Os transeuntes já se voltavam para Villecourt, cujo queixo deitava sangue. Mas ele continuava a sorrir.
- Não me escapam...
O seu tom era mais agressivo. Ele continuava a saltar diante de nós ora num pé ora no outro.
- Seja como for, temos uns problemas a resolver, não é verdade? Ou então, serão os outros a resolvê-los por nós...
Desta vez, ele estava disposto a chegar a vias de facto. Eu imaginava os transeuntes, em círculo à nossa volta, num círculo de onde já não podíamos escapar-nos,
àlguém a avisar a Polícia e a ramona a aparecer de uma rua transversal... Era isto sem dúvida o que Villecourt pretendia provocar.
Voltei a empurrá-lo. Agora, ele caminhava ao nosso lado, com um passo tão rápido como o nosso. O sangue escorria-lhe por debaixo do queixo.
- Temos de falar os três... Tenho muitas coisas interessantes a dizer-vos...
Sylvia agarrara-me no braço e nós afastávamo-nos dele, mas logo de seguida, como um polvo, vinha atrelar-se a mim.
- Vocês não podem pôr-se de parte... Eu existo, eu... Temos de resolver tudo entre nós... Senão os outros vão meter-se...
Ele apertava-me o pulso com uma força que pretendia tornar amistosa. Para me libertar, dei-lhe um golpe violento com o antebraço nas costelas. Ele deu um gemido.
- Querem que arme escândalo na rua? Querem que grite "agarra que é ladrão"?
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Ele tinha um ricto estranho que lhe torcia o nariz.
- Encontrar-me-ão sempre no vosso caminho... A não ser que consigamos entender-nos... E a única maneira de impedir os outros de intervir...
Começámos a correr. Graças ao efeito de surpresa, distanciámo-nos dele um bom bocado. Empurrou alguém quando nos perseguia e dois homens interpuseram-se imediatamente
e começaram a acusá-lo. Nós sumimo-nos num portal. Por uma ruela e pelo pátio interior de um prédio, chegámos ao Passeio dos Ingleses.
Na Alameda Gambetta, na cabina telefónica, marquei de novo o número dos Neal. Os toques sucediam-se mas ninguém respondia. Sylvia e eu, não queríamos voltar para
a pensão, e esperávamos que os Neal nos convidassem a ir a casa deles. Aí, estaríamos a salvo de Villecourt.
Mas passado um instante, no passeio cheio de sol, entre os grupos de passeantes que se dirigiam para o mar, este incidente pareceu-nos irrisório. Não havia qualquer
razão para tomar precauções. Também nós, tal como os outros, poderíamos aproveitar este ameno dia de Inverno. Villecourt, apesar de todos os esforços, não conseguiria
imiscuir-se na nossa nova vida. Ele estava caduco.
- Mas porque é que ele saltava diante de nós? - perguntou-me Sylvia. - Ele não parecia estar no seu estado normal...
- Não. Não parecia estar no seu estado normal.
A maneira de nos seguir, as ameaças feitas sem grande convicção, revelavam um certo desgaste da sua parte. Ele estava longe da realidade.
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Até o sangue que lhe salpicara dos lábios e lhe inundara o queixo não parecia ser sangue verdadeiro mas um artifício de cinema. E nós tínhamo-nos visto livres dele
com uma facilidade desconcertante.
Escolhemos um banco do Jardim da Alsácia-Lorena, ao sol. Umas crianças deslizavam pelo escorrega verde, outras brincavam no parque de areia, e outras ainda brincavam
a cavalo nas tábuas dos baloiços, subiam, desciam, subiam, com um movimento regular de metrónomo, que acabava por nos entorpecer. Se Villecourt por ali passasse,
não nos identificaria no meio de toda aquela gente que vigiava os filhos. E mesmo que nos visse entre aquela gente, que importância tinha isso? Já não estávamos
no ambiente perturbador das margens do Marne, onde sobem, da água estagnada, maus cheiros de lodo. Nessa tarde, o céu estava muito azul, as palmeiras eram muito
altas, as fachadas dos prédios muito brancas e muito cor-de-rosa, para que um fantasma como Villecourt resistisse a essas cores estivais. Ele não resistiria. Dissipar-se-ia
no ar onde pairava um perfume de mimosa.
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Passo por vezes diante da vivenda onde viviam os Neal. Fica na Alameda de Cimiez, à direita, uns cinquenta metros antes do cruzamento dominado pela fachada do antigo
Hotel Régina. É uma das raras residências particulares que se mantêm no bairro. Mas não há dúvida que também estes vestígios desaparecerão. Nada detém o progresso.
Eu pensava nisso, na outra manhã, quando regressava de um passeio que tinha dado, por Cimiez, até ao Jardim des Arènes. Tinha parado diante da vivenda. Desde há
algum tempo, está a ser construído um edifício na parte do jardim que estava ao abandono. Pergunto-me se eles vão acabar por destruir a própria vivenda, ou se acabarão
por conservá-la, como uma dependência do edifício novo. Talvez tenha algumas hipóteses de subsistir não é de modo nenhum vetusta e tem o aspecto de um Petit Trianon,
ao gosto dos anos 30, com as suas portas de varanda em arcos abobadados.
Mal se vê, porque domina a alameda. Para a ver bem, é preciso colocar-se no passeio de frente, na esquina da Avenida Eduardo VII, em cima do grande muro em balaustrada.
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A parte de baixo do muro foi, ao meio, aberta por um portão em ferro forjado por detrás do qual uma escadaria em pedra, no flanco do talude, leva ao patamar da vivenda.
O portão está permanentemente aberto, para dar acesso ao estaleiro de construção. No muro, está afixada uma placa branca onde se podem ler os nomes da sociedade
imobiliária, do arquitecto e dos empresários, e a data da licença de construção. O edifício ficará com o nome da vivenda: "Château Azur". O proprietário é a sociedade
S.E.F.I.C., que tem a sede na Rua Tonduti-de-l'Escarène, em Nice.
Um dia, dirigi-me a esse endereço para saber o nome da pessoa a quem a sociedade S.E.F.I.C. tinha comprado o Château Azur, e deram-me alguns pormenores que eu já
conhecia. A vivenda tinha pertencido, entre outros, à Embaixada Americana que a alugava a particulares. Dei-me conta de que as minhas diligências pareciam inteiramente
indiscretas - e até suspeitas - ao agente imobiliário afável e loiro que me tinha recebido, e não insisti.
Para quê? Muito antes de a sociedade S.E.F.I.C. ter comprado o Château Azur e de ter realizado a sua operação imobiliária, eu tinha tentado saber mais coisas. Tal
como no escritório da Rua Tonduti-de-l'Escarène, as minhas perguntas tinham ficado sem respostas satisfatórias.
Há uns sete anos, a vivenda tinha ainda o seu aspecto habitual. Não havia estaleiro de construção, nem placa no grande muro em balaustrada. O portão de entrada estava
fechado. Junto do passeio, estava estacionado o automóvel cinzento cuja placa de matrícula tinha as letras CD.
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Era aquele mesmo automóvel no qual os Neal nos tinham levado, a Sylvia e a mim, à Pensão Sainte-Anne, na noite em que os conhecemos. Toquei ao portão da vivenda.
Apareceu um homem moreno, de uns quarenta anos, de fato azul marinho:
- Que pretende?
Ele fizera-me esta pergunta abruptamente, com sotaque parisiense.
- Reconheci o carro de um amigo meu - disse-lhe, apontando para o automóvel cinzento. - Queria saber notícias dele.
- Como se chama ele?
- Neal.
- O senhor está enganado. É o automóvel do Sr. Conde-Jones.
Ele mantinha-se por detrás do portão e observava-me com a maior atenção possível, para avaliar devidamente o eventual perigo que eu representava.
- Tem a certeza - disse-lhe eu -, de que este automóvel pertence a esse senhor?
- É evidente. Sou o seu motorista.
- Mas o meu amigo vivia aqui...
- O senhor está enganado... Esta casa pertence à Embaixada Americana...
- Mas o meu amigo era americano...
- A casa é habitada pelo cônsul americano, o Sr. Condé-Jones...
- Há quanto tempo?
- Há seis meses, senhor.
Por detrás do portão, ele observava-me como se eu não estivesse bom da cabeça.
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- Posso falar com esse senhor?
- Tem entrevista marcada?
- Não. Mas sou cidadão americano e preciso de me aconselhar com ele.
A cidadania americana que eu tinha invocado inspirava-lhe bruscamente confiança.
- Nesse caso, pode ver o Sr. Condé-Jones agora mesmo, se quiser. É a hora a que ele recebe.
Abriu-me o portão e desviou-se à minha passagem, com todo o respeito devido à minha cidadania americana. Depois, precedeu-me na escadaria.
À beira da piscina vazia, diante da casa, um homem estava sentado num cadeirão de madeira branca e fumava, com o rosto ligeiramente atirado para trás, como se quisesse
expô-lo aos fracos raios do Sol.
Não nos ouvia chegar.
- Senhor Condé-Jones...
O homem olhou-nos e sorriu atentamente.
- Senhor Condé-Jones, este senhor quer falar-lhe... É cidadão americano.
Nessa altura, levantou-se. Era um homem de pequena estatura, corpulento, de cabelos pretos penteados para trás, bigode, e grandes olhos azuis.
- Em que posso ser-lhe útil?
Ele fizera esta pergunta em francês, sem o mínimo sotaque, com uma voz tão doce que me lançou bálsamo no coração. A fórmula que ele tinha usado não revelava apenas
amabilidade mas uma atenção delicada para com os outros. Foi pelo menos o que me pareceu pela entoação da sua voz. E, de resto, há muito que ninguém me perguntava:
"Em que posso ser-lhe útil?"
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- Pretendia precisamente uma informação - balbuciei.
O motorista tinha-se retirado e eu experimentava uma sensação estranha por me encontrar à beira daquela piscina.
- Que tipo de informação?
Ele olhava-me com um ar benévolo.
- Menti para falar consigo... Eu disse que era de nacionalidade americana...
- Americano ou não, meu caro amigo, não tem importância...
- Pois bem - disse-lhe eu. - Queria saber informações sobre as pessoas que viveram nesta vivenda antes de si.
- Antes de mim?
Ele virou-se e chamou em voz alta:
- Paul...
E apareceu imediatamente o motorista, como se se tivesse dissimulado pertinho de nós, detrás de uma árvore ou de um muro.
- Pode trazer-nos qualquer coisa para beber?
- Imediatamente, senhor Cônsul.
Condé-Jones fez-me sinal para me sentar num dos cadeirões de madeira branca. Ele instalou-se a meu lado. O motorista colocou-nos junto dos pés uma bandeja com dois
copos cheios de um líquido leitoso. Pastis? Condé-Jones bebeu uma golada.
- Sou todo ouvidos... Diga-me tudo.
Ele parecia estar contente por estar em companhia de alguém. Certamente, o posto de cônsul em Nice deixava-lhe muito tempo livre e ele tinha de o ocupar.
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- Em tempos vim aqui muitas vezes... Era recebido por um casal que afirmava ser proprietário desta casa...
Eu não podia, evidentemente, dizer-lhe tudo. Decidira ocultar-lhe a existência de Sylvia.
- E como se chamava o casal?
Eram os Neal. Ele era americano e ela era inglesa... Eles utilizavam o seu automóvel, o que está estacionado lá fora.
- O automóvel não é meu - disse-me Condé-Jones, depois de ter esvaziado o copo de pastis de um só gole. - Já cá estava quando cheguei...
Mas, passado pouco tempo, o automóvel deixou de estar estacionado diante da vivenda. Sempre que me dirigia à Alameda de Cimiez, eu esperava que ele lá estivesse,
estacionado ao lado do passeio. Não. Certa tarde, toquei, para tirar a coisa a limpo, Ninguém respondeu. Concluí daí que Condé-Jones partira com o automóvel cinzento
do Corpo Diplomático e que nenhum outro cônsul viera substituí-lo no Château Azur. Mais tarde, a placa da sociedade imobiliária S.E.F.I.C., que estava no muro em
balaustrada, indicava que a vivenda já não pertencia à Embaixada Americana e que, sem dúvida, dentro em pouco, ja nem sequer haveria vivenda.
A última vez que me encontrei com Condé-Jones foi num fim de tarde de Abril. Eu tinha-lhe deixado a minha direcção e ele tivera a amabilidade de me escrever algumas
palavras a convidar-me e a anunciar-me que tinha à minha disposição todas as informações sobre a vivenda Château Azur, susceptíveis, escrevia ele, de me interessarem.
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Ele permanecia no mesmo sítio em que se encontrava no dia da nossa primeira entrevista: à beira dessa piscina vazia, cujo fundo estava coberto de folhas mortas e
pinhas. Aliás, eu suspeitava que ele estava aí, imóvel, desde a sua "entrada em funções", como ele dizia, troçando um pouco de si mesmo. Apesar de ele poder invocar
o título de "cônsul", as suas "funções", em Nice, eram muito vagas. Ele sabia que este posto era uma prateleira para onde o tinham relegado até atingir o dia da
reforma definitiva.
Pois bem, esse dia chegara. Ele ia regressar à América depois de mais de vinte anos de leais serviços na Embaixada dos Estados Unidos em França. Ele quisera que
eu viesse hoje para me transmitir as informações que me interessavam, mas também - ele usava muitas vezes expressões de calão que deformava ligeiramente - para beber
"um copo de despedida".
- Parto amanhã - disse-me Condé-Jones. - Vou dar-lhe a minha direcção na Florida e, se se lhe proporcionar viajar até lá, teria o maior prazer em o receber.
Tinha simpatia por mim apesar de só nos termos visto três ou quatro vezes desde o dia em que toquei ao portão da vivenda. Mas eu fui talvez a única pessoa que quebrou
a sua solidão diplomática.
- Tenho pena de deixar a Côte d'Azur...
Ele lançava um olhar pensativo à piscina vazia e ao jardim ao abandono que cheirava a eucalipto.
O motorista tinha-nos servido o aperitivo. Estávamos sentados, lado a lado.
- Tenho todas as informações para si...
Estendeu-me um grande envelope azul.
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- Tive de me dirigir à Embaixada em Paris...
- Agradeço-lhe infinitamente todo o seu trabalho.
- Não tem de quê... Achei isso muito instrutivo... Leia esse documento com muita atenção... Vale a pena...
Eu tinha colocado o envelope sobre os joelhos. Ele olhava para mim com um ar irónico.
- Tinha-me dito que o seu amigo se chamava Neal?
- Sim.
- Qual é a idade dele?
- Uns quarenta anos.
- Então é aquilo que eu penso... Trata-se de uma história de...
Ele procurava a palavra. Falava impecavelmente francês, mas, de vez em quando - sem dúvida um hábito de diplomata -, hesitava quanto ao termo mais preciso.
- Uma história de almas do outro mundo...
- De almas do outro mundo?
- Sim, sim. Você mesmo verá.
Por uma questão de delicadeza, eu não queria abrir o envelope na presença dele. Ele bebia, aos golinhos, o seu pastis, contemplando o jardim à nossa frente, banhado
pelos últimos raios de Sol.
- Vou aborrecer-me na América... Estava afeiçoado a esta casa... Uma casa absolutamente estranha, a acreditarmos neste documento... No entanto, durante a minha permanência
nunca ouvi qualquer barulho suspeito... Não vi fantasmas, de noite... Tenho de lhe dizer que tenho um sono pesadíssimo...
Ele deu-me amigavelmente pancadinhas no antebraço.
- Meu caro amigo, faz bem explorar os mistérios destas velhas casas da Côte d'Azur...
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Dentro do envelope azul, duas folhas da mesma cor, tinham o timbre da Embaixada Americana. As informações recolhidas e escritas à máquina em caracteres cor de laranja
eram os seguintes: o Château Azur, na Alameda de Cimiez, pertencera nos anos trinta a um tal E. Virgil Neal, cidadão americano, proprietário dos produtos de beleza
e perfumes Tokalon cujos escritórios estavam sediados em Paris, na Rua Auber, nº 7, e na Rua de la Pompe nº 183, e, em Nova Iorque, no nº 27 da West 20th Street.
Em 1940, no início da Ocupação, Neal regressara à América, mas a esposa continuara em França. "A Sra. Virgil Neal, de solteira Bodier, conseguira justificar a sua
nacionalidade francesa para assumir a direcção do negócio do marido e evitar que a sociedade dos produtos de beleza e perfumes Tokalon passasse a ser administrada
provisoriamente pelas autoridades alemãs", depois de os Estados Unidos entrarem na Guerra.
A situação complicara-se em Setembro de 1944 porque "a Sra. Virgil Neal tinha tido durante a Ocupação alemã, em Paris e na Côte d'Azur, relações muito íntimas com
um tal Paul Etienne Léandri, nascido a 16 de Maio de 1916, com o último domicílio conhecido na Avenida Foch, nº 53, Paris XVI, condenado à revelia a 21 de Junho
de 1948, por conluio com o inimigo, a uma pena de vinte anos de trabalhos forçados e de vinte anos de proibição de residência, à confiscação total de todos os seus
bens e à perda de nacionalidade".
No relatório da Embaixada, dizia-se que a vivenda Château Azur tinha sido interditada em Setembro de 1944, "depois do inquérito feito pelas autoridades judiciais
francesas sobre o dito Paul Etienne Léandri, íntimo
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da Sra. Virgil Neal...". A vivenda tinha sido requisitada pelo exército americano. Depois, em Julho de 1948, fez-se um acordo, segundo o qual "o Sr. Virgil Neal,
director da Tokalon, Manufacturing Chemists and Perfumers, cedia à Embaixada dos Estados Unidos em França a propriedade da sua vivenda Château Azur".
Dizia-se ainda que "o Sr. e a Sra. Virgil Neal não tinham tido filhos". Condé-Jones sublinhara esta frase a tinta verde e escrevera à margem: "De duas, uma: ou os
seus amigos são almas do outro mundo, ou o Sr. e a Sra. Virgil Neal possuem um elixir da eterna juventude fabricado nos seus laboratórios da Tokalon, Manufacturing
Chemists and Perfumers. Conto consigo para me desfazer o enigma. Com toda a amizade."
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No entanto, não sonhei. Ele chamava-se realmente Virgil Neal. Guardei o cartão-de-visita que ele me tinha dado, aquando do nosso primeiro encontro, e no qual tinha
escrito o número do telefone da vivenda. Na cabina da Avenida Gambetta, tirei o cartão-de-visita do bolso antes de marcar o número. Estava lá bem gravado - também
esta tarde o verifiquei - mas não estava escrita qualquer direcção: Sr. e Sra. Virgil Neal.
As únicas provas do nosso encontro com os Neal- chamar-se-iam eles Neal e poder-se-á acreditar, como sugere Condé-Jones, nas almas do outro mundo ou num elixir da
eterna juventude? -, os únicos vestígios que me persuadem de que não sonhei são o cartão-de-visita e uma fotografia de nós os quatro - Sylvia, eu e os Neal - tirada
no Passeio dos Ingleses por um desses fotógrafos ambulantes que andam à caça dos turistas.
Ainda me cruzo com esse fotógrafo, sempre que passo diante do antigo Palácio do Mediterrâneo, lá onde ele está de sentinela. Ele saúda-me mas não levanta para mim
a sua máquina. Deve pensar que eu já não sou um
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turista mas que, doravante, faço parte da paisagem a ponto de me confundir com esta cidade.
No dia em que nos fotografou, nem Sylvia nem os Neal se aperceberam disso e ele passou-me para a mão o seu prospecto. Fui levantar a fotografia três dias depois
a um pequeno armazém da Rua de França sem sequer falar disso a Sylvia. Eu vou sempre levantar este tipo de fotografias, os traços que permanecem, mais tarde, de
um momento efémero em que se foi feliz, de um passeio numa tarde cheia de sol... Não, nunca se devem negligenciar essas sentinelas, de máquina a tiracolo, dispostas
a fixar-vos num instantâneo, todos esses guardas da memória que patrulham nas ruas. Sei do que estou a falar. Também eu fui fotógrafo.
Gostaria de anotar os pormenores das nossas relações com os Neal, como se redigisse um relatório policial ou se respondesse ao interrogatório de um inspector que
tivesse sido bem intencionado em relação a mim e no qual tivesse encontrado uma solicitude paternal para me ajudar a ver um pouco mais claramente.
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Consegui apanhar Virgil Neal pelo telefone na semana que se seguiu ao reaparecimento de Villecourt. Ele estava "encantado" - disse-me - por ter notícias nossas.
Ele e a mulher tinham-se ausentado dez dias "em viagem imprevista de negócios". Mas teriam "o maior prazer" em almoçar connosco, já no dia seguinte, se isso fosse
possível. Ele deu-me a direcção do restaurante onde iríamos encontrar-nos por volta do meio-dia e meia.
Um restaurante italiano, com a fachada de reboco carmesim, na Rua das Ponchettes, no sopé da colina do Château. Sylvia e eu fomos os primeiros a chegar. Indicaram-nos
que nos sentássemos na mesa de quatro pessoas que o Sr. Neal reservara. Não havia outros clientes para além de nós. Cristais. Toalhas brancas e frias. Quadros estilo
Guardi nas paredes. Janelas com grades em ferro forjado. Lareira monumental, em cujo fundo estava esculpido um escudo com flores-de-lis. Altifalantes invisíveis
difundiam os refrãos de canções célebres, executadas por uma orquestra sinfónica.
Creio que Sylvia sentia a mesma apreensão que eu. Não sabíamos nada dessa gente que nos convidava para almoçar.
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Porque é que Neal demonstrara uma tão grande pressa em voltar a ver-nos? Dever-se-ia considerar como mais um gesto de familiaridade calorosa com que certos americanos,
desde o primeiro encontro, nos tratam pelo nome próprio e nos mostram as fotografias dos filhos?
Eles chegaram e pediram desculpa pelo atraso. Neal era um homem diferente do da outra noite. Já não dava a impressão de pairar. Estava recém-barbeado e trazia um
fato de tweed de corte bastante largo. Falava sem a menor hesitação nem o menor sotaque anglo-saxónico e a sua volubilidade - se bem me lembro - foi a primeira coisa
que despertou as minhas suspeitas. Para um americano, parecia-me estranha essa volubilidade. Em algumas palavras de calão, na maneira de construir certas frases,
eu reconhecia uma mistura de entoações parisienses e de sotaque meridional - mas um sotaque controlado, refreado, como se Neal procurasse dissimulá-lo há muito.
A mulher falava muito menos do que ele e com um ar sonhador e um pouco ausente, que da última vez me surpreendera. As entoações dela também já não eram as de uma
inglesa. Não consegui deixar de lhe dizer
- Fala fluentemente francês. Dir-se-ia mesmo que é francês...
- Fui educado em escolas de língua francesa -disse-me ele. - Passei toda a minha infância no Mónaco... A minha mulher também... Foi lá que nos conhecemos...
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
- E o senhor - perguntou-me ele bruscamente - que profissão exercia em Paris?
- Era fotógrafo de arte.
- De arte?
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- Sim. E conto instalar-me em Nice para prosseguir a minha profissão.
Ele parecia pensar em que consistia a profissão de fotógrafo de arte. Depois acabou por me perguntar
- São casados?
- Sim... Somos casados - disse eu, olhando fixamente Sylvia. Mas esta mentira não a fez vacilar.
Não gosto muito que me façam perguntas. E, além disso, gostava de saber mais coisas a respeito deles. E para desfazer a desconfiança de Neal, virei-me para a mulher
dele:
- Então, fizeram boa viagem?
Ela estava embaraçada e hesitava em me responder. Mas Neal, muito à vontade, disse:
- Sim... Uma viagem de negócios...
- Que tipo de negócios?
Ele não ligou à maneira abrupta como eu fiz esta pergunta.
- Oh... um negócio de perfumes que tento montar entre a França e os Estados Unidos... Fiz um acordo com um pequeno industrial de Grasse...
- E dedica-se a ele há muito tempo?
- Não... Não... Só nos meus tempos de lazer.
Ele proferira esta frase num tom um pouco altivo, como que para me dar a entender que não tinha necessidade de ganhar a vida.
- Vamos mesmo criar alguns produtos de beleza... Bárbara diverte-se muito com isso...
A mulher de Neal recuperara o seu sorriso.
- Sim... Interesso-me por tudo o que diz respeito aos produtos de beleza - disse ela com o seu ar sonhador.
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- Deixarei que Virgil se ocupe dos perfumes... Eu gostaria de montar um instituto de beleza, aqui na Côte d'Azur...
- Estamos hesitantes quanto ao local - disse Neal. - Eu preferia de longe o Mónaco... Creio que este tipo de instituto não funcionaria em Nice...
Quando me lembro destas conversas, fico perturbado e lamento não ter tido à minha disposição a ficha de informações que Condé-Jones me forneceria mais tarde. Que
cara teria feito Neal se eu lhe tivesse dito em voz muito suave:
- Em suma, pretendem relançar a firma Tokalon?
E aproximando o meu rosto do seu:
- O senhor é o mesmo Virgil Neal de antes da Guerra?
Sylvia tinha a mania de meter o diamante na boca e o conservar entre os lábios, como se chupasse um caramelo. Neal estava sentado na frente dela, e este gesto não
lhe escapara.
- Preste atenção... Vai derreter-se...
Mas ele não estava apenas a brincar. No momento em que Sylvia abrandou a pressão dos lábios e o diamante voltou a cair sobre a sua camisola preta, vi o olhar atento
com que Neal fixou a pedra.
- Tem uma jóia maravilhosa - disse ele a sorrir. - Não é verdade, Bárbara?
Ela tinha virado a cabeça e também observava o diamante.
- É verdadeiro? - perguntou ela com voz infantil.
O olhar de Sylvia cruzou-se com o meu.
- Sim, infelizmente é verdadeiro - disse eu.
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Neal pareceu ficar surpreendido com esta resposta.
- Tem a certeza? Tem um tamanho impressionante.
- É uma jóia de família que a minha sogra deu à minha mulher - disse eu. - E isso, mais do que tudo, embaraça-nos.
- Já a mandaram avaliar? - perguntou Neal num tom de curiosidade educada.
Aparentemente, ele não acreditava em mim. Quem, aliás, teria acreditado em mim? Não se usa um diamante daquele tamanho e daquela categoria de um modo assim tão desenvolto.
Não se segura entre os lábios, antes de o deixar cair sobre a camisola preta. Não se chupa.
- A minha mulher usa este diamante porque não há outra solução.
Neal franzia as sobrancelhas.
- O que é que se deveria fazer? Alugar um cofre num banco? - perguntei eu.
- Quando as pessoas me vêem este diamante - disse Sylvia - todas pensam que é pechisbeque...
- Pechisbeque?
Neal não compreendia esta expressão de calão.
- Gostaríamos muito de o vender - disse eu. - Só que é muito difícil encontrar um comprador para uma pedra como esta...
Ele estava pensativo e não tirava os olhos do diamante.
- Posso arranjar-lhe um comprador. Mas, antes de mais, havia que mandá-lo avaliar.
Eu encolhi os ombros.
- Ficaria feliz se me encontrasse um comprador, mas receio que isso seja difícil para si...
- Posso arranjar-lhe um comprador... Mas terá de me mostrar o historial - disse Neal.
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- Tenho a impressão de que o senhor continua a pensar que é pechisbeque - disse Sylvia.
Saímos do restaurante. O automóvel estava estacionado no cais dos Estados Unidos, ao longo do qual uns velhos, abrigados nos bancos, apanhavam friorentamente sol.
Reconheci a placa do Corpo Diplomático. Neal abriu a porta.
- Venham tomar o café a nossa casa - disse ele.
Eu tinha vontade de os deixar. Imediatamente. Eu pensava na ajuda que eles poderiam dar-nos. Mas havia que ser consciencioso e não romper com eles só por uma questão
de humor. Eram as duas únicas pessoas que conhecíamos em Nice.
Tal como da primeira vez, estávamos sentados, Sylvia e eu, no banco de trás. Na Alameda de Cimiez, Neal conduzia lentamente e os automobilistas apitavam para que
ele lhes desse passagem.
Estão doidos - disse Neal. - Querem sempre ir mais depressa.
Um dos condutores que o ultrapassara lançou-lhe um rosário de injúrias.
- É a minha placa do Corpo Diplomático que os enerva. E, além disso, suponho que eles têm de se despachar para chegarem a horas ao escritório...
Ele voltara-se para mim:
- E você? Já trabalhou num escritório?
O automóvel parou junto do muro em balaustrada. Neal levantou o braço.
- A casa é lá em cima. Por isso, dominamos a situação... Verão... É uma casa maravilhosa...
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Vi, por cima do portão, a placa de mármore onde estava inscrito: "Château Azur".
- Foi o meu pai que descobriu este nome - disse Neal. - Mandou construir a casa antes da Guerra...
O pai dele? Isso sossegava-me mais.
Subimos a escadaria depois de Neal ter fechado o portão, dando uma volta à chave, e desembocámos no jardim que encimava a Alameda de Cimiez. Essa vivenda, com o
aspecto de Trianon, pareceu-me luxuosa.
- Bárbara, traz um cafezinho, se faz favor...
Eu estava espantado com a ausência de um mordomo neste cenário, mas isso talvez não correspondesse à simplicidade dos hábitos americanos. Os Neal, apesar de muito
ricos, eram sem dúvida um pouco boémios e a Sra. Neal preparava ela mesma o café. Sim, boémios, mas ricos. Pelo menos eu queria persuadir-me disso.
Sentámo-nos nos cadeirões de madeira branca que encontraria no mesmo local, um ano mais tarde, quando Condé-Jones me recebeu. Mas a piscina, à nossa frente, não
estava vazia.
À superfície da água esverdeada, flutuavam ramos e folhas mortas. Neal agarrara numa pedra e atirava-a de modo a fazer ricochete na água.
- Tenho de esvaziar a piscina e arranjar o jardim - disse ele.
Estava ao abandono. Silvas obstruíam as áleas de cascalho, invadidas pela erva daninha. À beira da relva, que não passava de uma savana, havia uma bacia rachada
ao meio.
- Se o meu pai visse isto, não entenderia. Mas não tenho tempo para tratar do jardim...
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Havia um ar de sinceridade e de tristeza na sua voz.
- É completamente diferente do tempo do meu pai. Também Nice era uma cidade diferente... Sabia que os polícias, nas ruas, usavam chapéus coloniais?
A mulher dele depositou a bandeja sobre o chão pavimentado. Tinha trocado o vestido por uns blue-jeans. Deitou o café nas chávenas, que passou a cada um com um movimento
gracioso do braço.
- O seu pai ainda cá vive? - perguntei a Neal.
- O meu pai morreu.
- Lamento...
Para desfazer o meu embaraço, sorria-me.
- Eu deveria vender esta casa... Mas não me decido... Está repleta de recordações de infância... Sobretudo o jardim...
Sylvia dirigiu-se para casa com um passo indolente e encostava a testa a uma das grandes portas de sacada. Neal observava-a, com os traços do rosto um pouco crispados,
como se receasse que ela descobrisse algo de suspeito.
- Convidá-los-ei a visitar a casa quando estiver arranjada...
Ele falava com uma voz forte e imperiosa. Talvez quisesse impedi-la de empurrar a porta de sacada entreaberta e de entrar.
Ele caminhava em direcção a ela. Arrastou-a puxando-a pelo ombro, e vieram juntar-se a nós à beira da piscina.
Dir-se-ia que trazia de volta uma criança que se perdera longe do monte de areia aproveitando a distracção dos pais.
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Esta casa devia ser toda arranjada... Eu não ouso convidá-los a visitá-la imediatamente...
Parecia aliviado por ver Sylvia a uma certa distância das portas de sacada.
- A minha mulher e eu passamos aqui pouco tempo... Quando muito, um ou dois meses por ano...
Eu tinha vontade de me encaminhar para a casa para ver qual seria a atitude de Neal. Impedir-me-ia a passagem? Então, debruçar-me-ia sobre ele e segredar-lhe-ia
ao ouvido:
- Está com ar de quem oculta algo nesta casa... Um cadáver?
- O meu pai morreu há vinte anos - disse Neal. - Quando ele cá vivia, tudo corria às mil maravilhas... A casa e o jardim estavam impecavelmente conservados... O
jardineiro era um homem extraordinário...
Ele encolhia os ombros apontando para as silvas e para as áleas invadidas pela erva daninha.
- A partir de agora, Bárbara e eu vamos ficar durante mais tempo em Nice... Sobretudo se montarmos o instituto de beleza... E voltarei a pôr tudo em ordem...
- Mas onde é que vocês vivem a maior parte do tempo? - perguntou Sylvia.
- Em Londres e Nova Iorque - respondeu Neal. - A minha mulher tem uma casinha muito bonita em Londres, no Bairro de Kensington.
Ela fumava e parecia não prestar atenção ao que o marido dizia.
Estávamos sentados, os quatro, nos cadeirões de madeira branca que formavam um semicírculo à beira da piscina, com as chávenas de café no braço esquerdo de cada
um dos cadeirões.
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Esta simetria causou-me um vago mal-estar quando notei que não era apenas por causa das nossas chávenas de café. Os blue-jeans desbotados de Bárbara Neal eram idênticos
na forma e na cor aos de Sylvia. E como elas estavam as duas na mesma atitude indolente, verifiquei que tinham a mesma estatura fina que fazia ressaltar a curva
das ancas, embora eu tivesse sido incapaz, vendo as suas ancas e as suas estaturas, de as diferenciar uma da outra. Bebi um gole de café. Neal tinha levado a sua
chávena aos lábios, no mesmo instante em que eu, e tínhamos tido um gesto sincronizado para voltar a pôr as chávenas no braço dos cadeirões.
Nessa tarde voltou a falar-se mais uma vez da Cruz do Sul. Neal perguntou a Sylvia:
- Quer realmente vender o seu diamante?
Ele inclinou-se para ela e tomou a pedra entre o polegar e o indicador para a examinar. Depois voltou a pô-la com delicadeza sobre a camisola preta de Sylvia. Vi
isso como uma maneira de ser desenvolta de certos americanos. Sylvia não se mexera um milímetro e o seu olhar vagueava, como se pretendesse ignorar o gesto de Neal.
- Sim, gostaríamos de o vender - disse eu.
- Se for uma pedra autêntica, não há problema.
Ele levava visivelmente a coisa a sério.
- Não se preocupe - disse-lhe eu num tom condescendente. - É um diamante autêntico. É, aliás, o que nos preocupa... Não queremos conservar uma pedra desta importância...
- A minha mãe deu-ma por ocasião do meu casamento aconselhando-me a vendê-la - disse Sylvia.
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- Ela pensava que os diamantes dão azar... Ela própria tinha tentado vendê-lo mas não encontrou clientes adequados...
- Quanto quer por ele? - perguntou Neal.
Ele pareceu arrepender-se desta pergunta abrupta. Esforçou-se por sorrir:
- Desculpem... Sou indiscreto... Por causa do meu pai... Muito jovem, foi sócio de um grande diamantista americano. Ele passou-me o seu gosto pelas pedras preciosas...
- Queremos aí um milhão e quinhentos mil francos - disse eu secamente. - É um preço realmente módico o deste diamante. Vale o dobro.
- Contávamos depositá-lo na casa Van Cleef em Monte Carlo para que nos arranje um cliente - disse Sylvia.
- Na casa Van Cleef? - repetiu Neal.
Este nome sonante e distinto deixava-o pensativo.
- Não posso trazê-lo sempre ao pescoço como uma trela - disse Sylvia.
Bárbara Neal riu mordazmente.
- É verdade... tem razão - disse ela. - Corre o risco de lho arrancarem na rua.
E eu perguntava-me se ela falava a sério ou se troçava de nós.
- Podia arranjar-lhes clientes - disse Neal. - Bárbara e eu conhecemos americanos que poderiam comprar-lhes este diamante. Não é verdade, querida? Citou alguns nomes.
Ela aprovou com um aceno de cabeça.
- E acha que eles vão pagar o preço que lhe indiquei - disse eu com uma voz muito doce.
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- Com certeza,
- Querem beber alguma coisa? - perguntou Bárbara Neal.
Eu olhei para Sylvia. Tinha vontade de ir embora, mas ela parecia estar bem nesse jardim cheio de sol, com a nuca apoiada nas costas do cadeirão, e de olhos fechados.
Bárbara Neal encaminhava-se em direcção à casa. Neal apontou para Sylvia e disse-me em voz baixa:
Acha que ela está a dormir?
- Sim.
Ele inclinou-se para mim. E em voz ainda mais baixa:
- Quanto ao diamante... Acho que eu próprio vo-lo compro, se me provarem que é de facto autêntico...
- É autêntico.
Gostaria de o oferecer à Bárbara por ocasião dos nossos dez anos de casados.
Ele via uma certa desconfiança no meu olhar.
- Acalme-se... Não tenho problemas de dinheiro... Apertou-me o braço com muita força para me fazer compreender que eu tinha de o escutar com a maior das atenções:
- Não tenho por isso qualquer mérito: só tive o trabalho de nascer e herdar muito, muito dinheiro do meu pai... É injusto, mas é assim... Agora já confia? Considera-me
um cliente sério?
Desatou a rir. Talvez quisesse que eu esquecesse o tom agressivo com que me fizera estas propostas.
- Não deve haver entre nós qualquer aborrecimento... Posso fazer-lhe um adiantamento...
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Neal propôs-se acompanhar-nos de automóvel mas eu disse-lhe que preferíamos regressar a pé. No passeio da Alameda de Cimiez, levantei a cabeça: lá em cima, estavam
os dois apoiados à balaustrada do jardim a olhar-nos. Neal fez-me um sinal com o braço. Tínhamos combinado telefonar no dia seguinte e marcar um encontro. Alguns
metros mais à frente, voltei-me outra vez. Eles continuavam imóveis, apoiados à balaustrada.
- Ele quer comprar o diamante para o oferecer à mulher - disse eu a Sylvia.
Ela não parecia surpreendida com isso.
- Por quanto?
- Pelo preço que indiquei. Achas que eles têm realmente dinheiro?
Descíamos lentamente a Alameda de Cimiez sob um sol radioso. Eu tinha despido o meu sobretudo. Sabia que estávamos no Inverno e que a noite ia cair dentro em pouco
mas, nesse instante, era como se estivesse em Julho. Essa confusão das estações, os poucos veículos que passavam, esse sol, as sombras tão nítidas no passeio e nas
paredes...
Apertei o pulso de Sylvia:
- Não tens a impressão de estarmos a sonhar?
Ela sorria-me mas o seu olhar era inquieto.
- E achas que acabaremos por despertar? - perguntou-me.
Caminhámos em silêncio até à esquina da alameda encimada pela fachada arredondada do antigo Hotel Majestic, e, pela Avenida Dubouchage, chegámos ao centro da cidade.
Eu estava aliviado por me encontrar sob as arcadas da Praça Massena, no meio do alarido da circulação
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E da multidão de mirones e daqueles que voltavam do trabalho e aguardavam o autocarro. Toda essa agitação me dava a sensação ilusória de sair do sonho de que estávamos
prisioneiros.
Um sonho? Talvez fosse a sensação de que os dias fugiam sem darmos conta, sem a menor aspereza que nos tivesse permitido dominá-los. Avançávamos, levados por um
tapete rolante, e as ruas desfilavam e nós já não sabíamos se o tapete rolante nos arrastava ou se estávamos imóveis enquanto a paisagem, à nossa volta, deslizava
devido a um artifício cinematográfico a que se chama transparência.
Por vezes o véu rasgava-se, nunca de dia mas de noite, por causa do ar mais vivo e das luzes cintilantes. Caminhávamos ao longo do Passeio dos Ingleses, reencontrávamos
o contacto com a terra firme. O enfado que se apossara de nós, desde a nossa chegada a esta cidade, dissipava-se. Continuávamos a sentir-nos senhores da nossa sorte.
Podíamos fazer projectos. Tentaríamos atravessar a fronteira italiana. Os Neal ajudar-nos-iam a isso. Seria no seu automóvel com a matrícula CD que passaríamos da
França para a Itália, sem nos sujeitarmos a controlos e sem chamarmos a atenção. E desceríamos para o sul até Roma, nosso objectivo, a única cidade em que eu imaginava
que poderíamos fixar-nos para o resto da nossa vida, essa Roma que se adequava maravilhosamente a naturezas tão indolentes como as nossas.
De dia, tudo se ocultava. Nice, o seu céu azul, os seus edifícios claros com aspecto de pastelarias gigantescas ou de paquetes, as suas ruas desertas e batidas pelo
sol, as nossas sombras no passeio, as palmeiras
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e o Passeio dos Ingleses, todo este cenário deslizava, em transparência, as tardes intermináveis em que a chuva tamborilava no tecto de zinco, permanecíamos no odor
de humidade e de mofo do quarto, com a impressão de estarmos abandonados. Mais tarde, acostumei-me a essa ideia e hoje sinto-me à vontade nesta cidade de fantasmas
onde o tempo parou. Admito que, tal como os que desfilam em procissão pelo Passeio, uma mola se tenha quebrado em mim. Não estou sujeito às leis da gravidade. Sim,
flutuo com os outros habitantes de Nice. Mas no tempo da Pensão Sainte-Anne, esse estado era novo para nós e ainda nos revoltávamos, em sobressaltos, contra o torpor
que nos invadia. A única coisa dura e consistente da nossa vida, o único ponto de referência inalterável, era o diamante. Ter-nos-á ele dado azar?
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Em branco
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Voltamos a ver os Neal. Lembro-me de um encontro com eles no bar do Hotel Negresco, por volta das três da tarde. Esperávamo-los, sentados diante da vidraça que recortava
um pedaço de céu cujo azul era ainda mais límpido e mais inacessível nessa semipenumbra que nos envolvia.
- E se Villecourt aparecer?
Eu sempre o tinha tratado pelo nome de família.
- Fingimos que o não conhecemos - disse Sylvia.
- Ou então, deixamo-lo com os Neal e desaparecemos definitivamente.
A palavra desaparecer, na boca de Sylvia, gela-me hoje o coração. Mas eu tinha rido, nessa tarde, ao imaginar os Neal e Villecourt, sentados à mesma mesa, sem saberem
muito bem o que dizer uns aos outros e inquietando-se, a pouco e pouco, com a nossa ausência prolongada.
Mas não, Villecourt não tinha aparecido.
E tínhamos caminhado um pouco com os Neal ao longo do Passeio dos Ingleses. Foi nesse dia que o fotógrafo, de sentinela diante do Palácio do Mediterrâneo,
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levantou para nós a sua máquina e me passou para a mão o cartão do armazém onde eu podia ir levantar as fotografias dentro de três dias.
O automóvel do Corpo Diplomático estava estacionado diante do carrocel do Jardim Alberto I. Neal disse-nos que ia "dar um salto" ao Mónaco com a mulher, para "resolver
uns negócios". Ele trazia uma camisola de gola alta e o seu velho casaco de camurça da primeira noite; Bárbara Neal trazia blue-jeans e um casaco de zibelina.
Neal chamou-me à parte. Estávamos diante do carrocel que girava lentamente. Havia aí apenas uma criança sentada num dos trenós vermelhos puxados eternamente por
cavalos de madeira brancos.
- Isto faz-me lembrar uma recordação de infância - disse-me Neal. - Eu devia ter dez anos... sim... em 1950... 1951... Passeava com o meu pai e com um amigo do meu
pai... E quis montar nesse carrocel. O amigo do meu pai montou comigo... Sabe quem era esse amigo do meu pai? Errol Flynn... Flynn diz-lhe alguma coisa?
Pousou-me a mão no ombro, num gesto protector.
- Queria falar-lhe do diamante... Dentro em breve é o aniversário de Bárbara... Vou fazer-lhe um adiantamento o mais rápido possível... Um cheque do meu Banco no
Mónaco... Um banco inglês... Está de acordo?
- Como queira.
- Mandarei pôr esse diamante num anel... Bárbara ficará encantada.
Voltámos novamente para junto de Sylvia e Bárbara. Os Neal abraçaram-nos antes de entrarem no automóvel. Faziam um casal encantador - pareceu-me, nesse dia. E, além
disso, o ar é por vezes tão aprazível na Côte d'Azur
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no Inverno, o céu e o mar tão azuis, tão agradável a vida numa tarde cheia de sol ao longo da estrada com precipícios de Villefranche, que tudo parece possível:
os cheques dos bancos ingleses do Mónaco que lhes metem no bolso e Errol Flynn a girar no carrocel do Jardim Alberto I.
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- Convidamo-los para jantar, esta noite, em Coco-Beach!
A voz de Neal, ao telefone, era estridente. Já não tinha qualquer sotaque americano, mesmo quando pronunciou Coco-Beach.
- Iremos buscá-los ao vosso hotel a partir das oito horas.
- E se nos encontrássemos algures no exterior? - propus eu.
- Não, não... É muito mais simples passar pelo vosso hotel... Podemos atrasar-nos um pouco... A partir das oito, no vosso hotel... Apitaremos...
Era inútil contrariá-lo. Tanto pior. Respondi-lhe que estava de acordo. Desliguei e saí da cabina telefónica da Alameda Gambetta.
Tínhamos deixado a janela do nosso quarto aberta para ouvirmos a buzina. Estávamos os dois estendidos porque o único móvel onde se podia estar nesse quarto era a
cama.
Tinha começado a chover alguns instantes antes de anoitecer, uma chuva miudinha que nem tamborilava no telhado de zinco,
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uma espécie de morrinha que nos dava a ilusão de estarmos num quarto do Touquet ou de Cabourg.
- Onde fica Coco-Beach? - perguntou Sylvia.
Para os lados de Antibes? Para os lados do cabo Ferrat?
Ou ainda mais longe? Coco-Beach... Aquilo tinha ressonâncias e odores da Polinésia que no meu espírito mais se associavam às praias de Saint-Tropez: Taiti, Morea...
- Achas que é longe de Nice?
Eu tinha medo de um longo trajecto de automóvel. Sempre desconfiara desses passeios tardios pelos restaurantes e discotecas no fim dos quais temos de ficar à espera
da boa vontade de um dos convivas para que nos leve de automóvel a casa. E se está embriagado ficamos à sua mercê durante todo o trajecto.
- E se os deixássemos pendurados? - disse eu a Sylvia.
Apagaríamos a luz do quarto. Eles empurrariam o portão da Pensão Sainte-Anne e atravessariam o jardim. O proprietário abriria a porta de sacada do salão. As vozes
deles na marquise. Alguém bateria à nossa porta insistentemente. Chamar-nos-iam. "Estão aí?" Silêncio. E depois seria o alívio de ouvir os passos decrescerem e o
portão do jardim fechar-se. Finalmente sós. Nada é igual a esta volúpia.
Três buzinadelas tão surdas como um toque de nevoeiro. Debrucei-me pela janela e vi a silhueta de Neal que aguardava por detrás do portão.
Nas escadas, disse a Sylvia:
- Se Coco-Beach for muito longe, pedimos-lhes para ficarmos no bairro. Dizemos-lhes que temos de voltar cedo porque esperamos um telefonema.
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- Ou então, desaparecemos - disse Sylvia.
Já não chovia. Neal fez-nos um grande aceno com o braço.
- Receava que não ouvissem a buzina.
Trazia uma camisola de gola alta e o seu velho casaco de camurça.
O carro estava estacionado na esquina da Avenida Shakespeare. Um automóvel preto, espaçoso, cuja marca não saberia dizer. Talvez alemã. Nada de placa do Corpo Diplomático
mas um número de matrícula de Paris.
- Tive de mudar de automóvel - disse Neal. - O outro está avariado.
Abriu-nos uma das portas. Bárbara Neal esperava no banco da frente enfiada no seu casaco de zibelina. Neal sentou-se ao volante.
- A caminho de Coco-Beach! - disse ele, dando uma violenta meia volta.
Quanto a mim, ele descia a Rua Caffarelli a demasiada velocidade.
- Coco-Beach fica longe? - perguntei eu.
- Nada disso - disse Neal. - Logo a seguir ao porto. É o restaurante preferido de Bárbara.
Ela tinha-se voltado para nós. Sorria-nos. Tinha um odor a pinho.
- Tenho a certeza de que o local lhes vai agradar - disse ela.
Contornámos o porto. A seguir passámos diante do parque Vigier e do Clube náutico. Neal meteu o carro por uma avenida sinuosa que ladeava o mar.
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Parou junto de um pontão iluminado por um letreiro luminoso.
- Coco-Beach! Fim de linha!
Havia uma alegria forçada na sua voz. Porque é que, nessa noite, ele queria animar a festa?
Atravessámos o pontão. Neal segurava familiarmente a mulher e Sylvia pelos ombros. Soprava um vento bastante forte e ele disse:
- Atenção, não caiam borda fora!
Descemos uma escada estreita cujo corrimão era uma grossa corda branca entrançada e, por uma coxia de navio, desembocámos na sala do restaurante. Um chefe de mesa
de fato branco e boné de marinheiro de recreio apresentou-se:
- Em que nome fez o senhor a reserva?
- Capitão Neal!
Uma grande vidraça rodeava a sala que dominava o mar uns dez metros abaixo. O marinheiro conduziu-nos até a uma das mesas próximas da vidraça. Neal quis que Sylvia
e eu nos sentássemos do lado da mesa donde pudéssemos ter uma vista panorâmica de Nice. Alguns clientes, poucos, falavam em voz baixa.
- O restaurante funciona sobretudo no Verão - disse Neal. - Retiram o tecto e fica uma esplanada ao ar livre. Imaginem que foi o antigo jardineiro de meu pai que
abriu este restaurante, há uns vinte anos...
- E ele continua a ser o dono? - perguntei-lhe.
- Infelizmente, não. Morreu.
Esta resposta decepcionou-me. Nessa noite, o meu moral estava em baixo, e gostaria de ter encontrado o antigo jardineiro do pai de Neal. Assim teria tido a certeza
de que Neal pertencia realmente a uma família
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americana muito rica e distinta.
Os empregados do restaurante estavam vestidos, tal como o chefe de mesa, com um blazer branco com botões dourados e com umas calças brancas, mas tinham a cabeça
descoberta. Sobre a porta de entrada, uma bóia branca tinha a seguinte inscrição em caracteres azuis: Coco-Beach.
- Uma vista magnífica, não é verdade? - disse Neal, voltando-se com um movimento impulsivo do torso.
Toda a baía dos Anjos se estendia diante de Sylvia e de mim com as suas manchas de sombra e as suas luzes mais vivas em determinados sítios. Projectores iluminavam
os rochedos e o monumento aos mortos no sopé da colina do Château, uma peça montada. Lá longe, o Jardim Alberto I, a fachada branca e a cúpula cor-de-rosa do Negresco
estavam iluminados.
- Parece que estamos num barco - disse Bárbara.
Sim. Os homens da tripulação, vestidos de branco, caminhavam silenciosamente entre as mesas e dei-me conta de que usavam sapatilhas.
- Pelo menos, não enjoam? - perguntou Neal.
Esta pergunta provocou-me uma leve angústia. Ou eram as gotas de chuva nas vidraças e o vento que fazia bater a bandeira branca com a insígnia de Coco-Beach, fixada
num pontão, na parte da frente do restaurante, como na proa de um iate?
Um dos empregados de uniforme branco passou a ementa a cada um de nós.
- Aconselho-lhes a caldeirada com molho de alho - disse Neal. - Ou então, se gostarem, eles preparam o aioli como nunca comi em nenhum outro sítio.
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Os americanos são por vezes gastrónomos e, com toda a sua seriedade e boa-vontade, tornam-se conhecedores atentos da cozinha e dos vinhos franceses. Mas o tom de
Neal, a mímica do seu rosto, o gesto brutal do polegar, e a maneira que ele tivera de elogiar a caldeirada com molho de alho e o aioli, evocavam-me lugares precisos.
Bruscamente, eu sentira flutuar em Neal, maus odores da Canebière e do Pigalle.
Durante toda a refeição, Sylvia e eu trocámos olhares. Creio que estávamos a pensar na mesma coisa: teria sido tão fácil dar o cava... No entanto, a perspectiva
de alcançar o porto reteve-me. A partir do porto, podíamos perder-nos nas ruas de Nice, mas, até lá, era preciso caminhar ao longo de uma avenida deserta e eles
apanhar-nos-iam facilmente com o automóvel. Parariam e pedir-nos-iam explicações. Responder-lhes, pedir desculpa, ou então mandá-los à fava... Tudo isso de nada
servia, dado que sabiam a nossa direcção. No meu espírito, eles eram tão peganhosos como Villecourt. Não, mais valia levar as coisas calmamente...
O meu mal-estar agravou-se à sobremesa, quando Neal se inclinou para Sylvia, tocou ao de leve no diamante com o indicador, e lhe disse:
- E traz sempre consigo o seu calhau?
- Aprendeu a falar calão nos colégios do Mónaco? - perguntei-lhe.
Os seus olhos franziram-se. Havia dureza no seu olhar.
- Eu perguntei à sua mulher se trazia sempre o calhau...
Ele, tão amável, era repentinamente agressivo.
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Talvez tivesse bebido demasiado, durante o jantar. Bárbara parecia enfadada e acendeu um cigarro.
- A minha mulher traz uma pedra - disse-lhe eu - mas essa pedra está acima das vossas possibilidades.
- Acha?
- Tenho a certeza.
- E o que é que o leva a pensar isso?
- Uma intuição.
Ele desatou a rir. O seu olhar tinha-se suavizado. Observava-me agora com um ar divertido.
- Está aborrecido comigo? Mas eu estava só a brincar... Uma brincadeira de mau gosto... Desculpem...
- Também eu estava a brincar - disse-lhe eu. Houve uns momentos de silêncio.
- Nesse caso, se estava a brincar - disse Bárbara - tanto melhor.
Ele insistiu que bebêssemos já não sei que aguardente de ameixa ou pêra. Eu levava o copo aos lábios e fingia beber um gole. Sylvia bebeu de uma assentada. Ela já
não dizia nada. Esfregava o seu "calhau" entre os dedos...
- Também está aborrecida comigo? - perguntou-lhe Neal em tom humilde. - Por causa da história do calhau?...
Ele recobrava o seu ligeiro sotaque americano e já não era o mesmo homem. Havia nele algo de encantador e de tímido.
- Peço-lhes desculpa. Gostaria que esquecessem a minha brincadeira idiota.
Ele juntava as mãos num gesto de imploração infantil.
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- Desculpam-me?
- Eu desculpo-o - disse Sylvia.
- Lamento imenso a história do calhau...
- Calhau ou não - disse Sylvia - estou-me nas tintas.
Agora, era ela que tinha o sotaque arrastado do leste de Paris.
- Ele fica assim muitas vezes? - perguntou ela a Bárbara, apontando para Neal com o dedo.
A outra estava embaraçada. Acabou por balbuciar
- Às vezes.
- E o que é que faz para o acalmar?
A pergunta tinha caído, cortante como um cutelo. Neal desatou a rir.
- Que mulher adorável! - disse-me ele.
Eu estava maldisposto. Bebi um grande gole de aguardente.
- E como vamos acabar a noite? - disse Neal.
Era isso o que eu estava a prever. Ainda não tínhamos
chegado ao fim dos nossos infortúnios.
- Eu conheço em Cannes um sítio muito agradável- disse Neal. - Poderíamos lá ir beber um copo.
- Em Cannes?
Neal bateu-me gentilmente no ombro.
- Amigo, não faça essa cara... Cannes não é um lugar de perdição...
- Temos de voltar para o hotel - disse eu. - Espero um telefonema por volta da meia-noite...
- Vá lá... Vá lá... Vocês mesmos telefonarão de Cannes... Não vão abandonar-nos...
Em desespero de causa, voltei-me para Sylvia.
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Ela estava impassível, mas acabou por vir em meu auxílio:
- Estou cansada... Não tenho vontade de fazer grandes trajectos de automóvel, de noite...
- Grandes trajectos de automóvel? Até Cannes? Está a brincar comigo... Ouviste, Bárbara? Um grande trajecto de automóvel até Cannes... até Cannes, eles acham que
é um grande trajecto...
Mais uma palavra e estaríamos em presença de um martelo-pilão que não deixaria de repetir "Até Cannes, até Cannes". E, se o contrariássemos, colar-se-ia a nós ainda
mais do que agora. Porque é que certas pessoas são como as pastilhas elásticas que em vão tentamos desprender dos saltos dos sapatos, esfregando-os na borda de um
passeio?
- Prometo-lhes que estaremos em Cannes dentro de dez minutos... A esta hora, anda-se muito bem...
Não, ele nem sequer tinha um ar embriagado. Falava muito suavemente. Sylvia encolheu os ombros.
- Se fazem questão, vamos a Cannes...
Ela mantinha o seu sangue frio. Piscou-me imperceptivelmente o olho.
- Falaremos do diamante - disse Neal. - Creio que lhes vou arranjar um cliente. Não é verdade, Bárbara? |
Ela sorria-nos sem responder.
Os empregados de casaco branco evoluíam entre as mesas e eu perguntava-me como podiam eles caminhar com um passo tão firme. Por detrás das vidraças, as luzes de
Nice pareciam-me cada vez mais longínquas e misturavam-se. Saímos. Tudo baloiçava à minha volta.
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No momento de subir para o automóvel, eu disse a Neal:
- Gostava realmente que nos deixassem no hotel... Tenho de atender esse tal telefonema.
Ele olhou para o relógio. O seu rosto iluminou-se com um enorme sorriso.
- Esperava esse telefonema à meia-noite? É meia-noite e meia... Já não tem qualquer desculpa para não nos fazer companhia, amigo...
Sylvia e eu instalámo-nos no banco de trás. Bárbara fez estalar a sua cigarreira em ouro. Voltou-se para nós.
- Não têm um cigarro? - perguntou ela. - Eu cá já não tenho nenhum.
- Não - respondeu Sylvia asperamente. - Não temos cigarros.
Ela tinha-me agarrado na mão e apertava-a contra o seu joelho. Neal arrancou.
- Fazem realmente questão em nos levar a Cannes? - perguntou Sylvia. - Cannes é enfadonho...
- Fala daquilo que não conhece - disse Neal em tom protector.
- Não gostamos de discotecas - insistiu Sylvia.
- Mas não vou levá-los a uma discoteca...
- Então onde é que nos vai levar?
- É uma surpresa.
Ele conduzia a menos velocidade do que eu receara. Ligou o rádio em surdina. Passámos novamente diante do edifício branco do Clube Náutico e do parque Vigier. Chegámos
ao porto.
Sylvia apertava-me a mão. Voltei-me para ela. Através de um movimento do braço na direcção da porta, pretendi dar-lhe a entender que,
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junto do semáforo encarnado, podíamos sair do carro. Creio que ela entendeu porque fez um aceno com a cabeça.
- Adoro este ar - disse Neal.
Ele aumentou o volume do rádio. Voltou-se para nós.
- Também gostam?
Nem um nem outro respondeu. Eu pensava no itinerário que íamos seguir em direcção a Cannes. Haveria certamente um semáforo encarnado junto do Jardim Alberto I. Ou
mais acima, no Passeio dos Ingleses. Para nós, o melhor seria descer do carro no Passeio dos Ingleses. Desaparecer numa das ruas que lhe são perpendiculares, onde
Neal não poderia meter-se, por causa dos sentidos únicos.
- Já não tenho cigarros - disse Bárbara. Tínhamos chegado ao cais Cassini. Parou o carro.
- Queres que vamos comprar cigarros? - perguntou Neal.
Ele voltou-se para mim.
- Não o incomoda ir comprar cigarros a Bárbara? Ele deu meia volta, depois parou de novo, no começo do cais Deux-Emmanuel.
- Está a ver o primeiro restaurante no cais? O restaurante Garac... Ainda está aberto... Peça dois maços de Craven... Se lhe puserem dificuldades, diga-lhes que
são para mim... A Sra. Garac conheceu-me quando eu ainda andava em calções...
Olhei para Sylvia. Ela parecia esperar uma decisão da minha parte. Fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça. Ainda não era o momento de lhes escapar. Para isso, havia
que estar no centro de Nice.
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Eu quis abrir a porta, mas estava bloqueada.
- Desculpe - disse Neal.
Ele carregou num botão, junto da caixa de velocidades. Desta vez, a porta abriu-se.
Entrei no Garac. Subi as escadas que davam para o restaurante. Uma mulher loira estava por detrás do postigo do vestiário. Da sala do restaurante chegava-me um murmúrio
de conversas.
- Tem cigarros? - perguntei.
- Que marca?
- Craven.
- Ah, não... Não tenho cigarros ingleses.
Apresentou-me a bandeja dos cigarros.
- Tanto pior... Vou levar cigarros americanos.
Escolhi ao acaso dois maços. Dei-lhe uma nota de cem francos. Ela abriu uma gaveta, e depois outra. Não encontrava troco.
- Tanto pior - disse-lhe eu. - Fique com o troco.
Desci as escadas. Quando saí do Garac, o carro tinha desaparecido.
Esperei no passeio do cais Cassini. Neal tinha ido sem dúvida meter gasolina naquela zona e não tinha encontrado uma estação de serviço. O carro desembocaria de
um instante para o outro diante de mim. À medida que o tempo passava, sentia o pânico invadir-me. Eu não podia ficar imóvel à espera, e andava de um lado para o
outro ao longo do passeio. Acabei por consultar o relógio. Eram quase duas da manhã.
Um grupo ruidoso saiu do restaurante Garac. Portas dos carros bateram, motores arrancaram.
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Algumas pessoas prosseguiam as suas conversas no cais. Eu ouvia o barulho das suas vozes e as suas risadas. Lá longe, à beira da doca, sombras descarregavam caixas
e empilhavam-nas a pouco e pouco junto de um camião coberto com um toldo, de luzes apagadas.
Caminhei em direcção a eles, que estavam a fazer uma pausa. Estavam encostados às caixas e fumavam.
- Há bocado não viram um automóvel? - perguntei.
Um deles levantou a cabeça para mim.
- Que automóvel?
- Um automóvel grande, preto.
Eu tinha necessidade de falar com alguém, de não guardar isso só para mim.
- Uns amigos que me esperavam num automóvel preto, além, diante do edifício... Foram-se embora sem me prevenirem.
Não, de nada servia explicar-lhes. Eu não acertava com as palavras. Aliás, eles não me ouviam. No entanto, um deles deve ter visto o meu rosto alterado.
- Um automóvel preto de que marca? - perguntou.
- Não sei.
- Não sabe a marca do automóvel?
Ele fez-me sem dúvida esta pergunta para verificar se eu estava bêbado ou se estava no meu perfeito juízo. Observava-me desconfiado.
- Não, não sei. Não sei a marca do automóvel.
Era terrível nem sequer a saber.
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Subia a Alameda de Cimiez. Tive um rebate de coração. De longe, distinguia a massa sombria de um automóvel estacionado diante do muro em balaustrada da vivenda dos
Neal. Quando me aproximei, vi que não era o automóvel de há bocado, mas o que tinha a placa do Corpo Diplomático.
Toquei várias vezes. Ninguém respondeu. Tentei empurrar o portão, mas estava fechado. Atravessei a avenida. Na parte da casa que eu podia divisar, detrás da balaustrada,
não havia nem sequer uma luz. Voltei a descer a Alameda de Cimiez e entrei na cabina telefónica que fica lá em baixo na esquina, junto do Majestic. Marquei o número
dos Neal e deixei tocar durante muito tempo. Mas, tal como no portão, ninguém respondia. Então, segui de novo ao longo da alameda até à vivenda dos Neal. O automóvel
continuava lá. Não sei porquê, tentei abrir, uma a uma, as portas, mas estavam fechadas à chave. O porta-bagagens também. Depois abanei o portão na esperança de
que cedesse. Em vão. Dei pontapés no automóvel e no portão, mas nada conseguia. Tudo se fechava diante de mim, eu não encontrava a menor fissura por onde penetrar,
o menor contacto, tudo estava, irremediavelmente, fechado a sete chaves.
Como esta cidade onde eu caminhava em direcção à Pensão Sainte-Anne. Ruas mortas. Poucos automóveis passavam e eu revistava-os com o olhar uns após outros, mas não
era nunca o automóvel dos Neal. Pensar-se-ia que estavam vazios. Eu caminhava ao lado do Jardim da Alsácia-Lorena, e vi um, preto e igual aos do Neal, parado na
esquina da Alameda Gambetta. O seu motor estava ligado. Depois parou. Aproximei-me mas não via nada através dos vidros opacos. Baixei-me e quase colei a testa ao
pára-brisas.
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No banco da frente, uma mulher loira que estava de lado, com o busto encostado ao volante, virava as costas a um homem que tentava colar-se a ela. Ela tinha ar de
estar a discutir. Já me afastava, quando uma cabeça apareceu através do vidro descido, um homem de cabelos escuros puxados para trás:
- Isto interessa-te, mirone?
Seguiu-se um riso estridente de mulher, cujo eco me parecia ouvir ao longo da Rua Caffarelli.
O portão da Pensão Sainte-Anne estava aferrolhado e pensei que também nunca o conseguiria abrir, mas empurrei-o com todas as minhas forças, especando-me, e ele acabou
por ceder. Na álea e no jardim escuros, tive de me guiar às apalpadelas até à escada de serviço.
Quando entrei no quarto e acendi a luz, comecei por ter uma sensação de reconforto, de tal modo ainda ali estava viva a presença de Sylvia. Um dos seus vestidos
estava nas costas do cadeirão de couro, e o resto da sua roupa estava arrumada no armário, e, no fundo deste, vi o seu saco de viagem. Os seus objectos de toilette
continuavam sobre a pequena mesa de madeira clara, junto do lavatório. Não consegui evitar cheirar o seu frasco de perfume.
Estirei-me na cama completamente vestido, e apaguei a luz com a ideia de que poderia pensar melhor no escuro. Mas a escuridão e o silêncio envolviam-me como uma
mortalha, e tinha a impressão de sufocar. A pouco e pouco, isso deu lugar a uma sensação de vazio e de desolação. Era insuportável encontrar-me só sobre a cama.
Acendi o candeeiro da mesinha de cabeceira e disse para comigo, em voz baixa, que Sylvia não tardaria
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em vir juntar-se a mim naquele quarto. Ela sabia que eu a esperava ali. Então, apaguei de novo o candeeiro para melhor vigiar o rangido do portão que se abriria,
e o ruído dos seus passos ao longo da álea e nos degraus da escada.
Eu não passava de um sonâmbulo que ia da Pensão Sainte-Anne para a vivenda dos Neal. Eu tocava durante muito tempo sem que ninguém respondesse. O automóvel do Corpo
Diplomático continuava estacionado no mesmo sítio, diante do portão.
O número de telefone dos Neal vinha na lista telefónica dos Alpes-Marítimos com a seguinte menção: Serviço Embaixada Americana 50 b, Alameda de Cimiez. Telefonei
para a Embaixada Americana, em Paris, e perguntei se conheciam um tal Virgil Neal que ocupava um dos seus edifícios, em Nice, na Alameda de Cimiez, 50 b. Disse-lhes
que ele tinha desaparecido repentinamente e que eu estava inquieto por causa dele. Não, eles nunca tinham ouvido falar de Virgil Neal. A vivenda Château Azur, na
Alameda de Cimiez, servia de residência a funcionários da Embaixada, mas estava há meses desocupada. Um cônsul americano instalar-se-ia nela proximamente. Eu deveria
dirigir-me a ele.
Eu lia todos os jornais, em particular os da região e mesmo os jornais italianos. Esquadrinhava as pequenas notícias do dia. Uma delas chamara a minha atenção. Na
noite em que Sylvia desaparecera, um automóvel alemão, de marca Opel, preto, com matrícula de Paris, despistara-se no lugar que tem o nome de caminho do Mont Gros,
entre Menton e Castellar, e esmagara-se no fundo de uma ravina. Tinha-se incendiado e tinham sido descobertos
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dentro dele dois corpos completamente carbonizados que não fora possível identificar.
Fiz um desvio pelo Passeio dos Ingleses e penetrei na grande garagem, precisamente antes da Rua de Cronstadt.
Perguntei a um dos mecânicos se, por acaso, havia um Opel naquela garagem.
- Porquê?
- Por nada...
Ele encolheu os ombros:
- Além... no canto... ao fundo...
Sim, era um automóvel parecido com o dos Neal.
Eu quis revisitar todos os locais onde tínhamos ido em companhia dos Neal, na esperança de aí encontrar uma pista, um fio condutor ou, talvez, de os ver entrar com
Sylvia: tal como aqueles filmes que se fazem voltar atrás na mesa de montagem para aí examinar incansavelmente os pormenores da mesma sequência. Mas no instante
em que eu saía do Garac, com os dois maços de cigarros americanos na mão, o filme partia-se ou então eu tinha chegado ao fim da bobina.
Exceptuando uma noite, no restaurante italiano da Rua des Ponchettes onde os Neal nos tinham marcado encontro, da primeira vez.
Eu tinha escolhido a mesa que nesse dia tínhamos ocupado, junto da lareira monumental, e tinha-me sentado na mesma cadeira. Sim, tinha esperança de que, voltando
aos mesmos lugares e repetindo os mesmos gestos, acabaria por reatar fios invisíveis.
Perguntei à gente do restaurante e a cada um dos criados se conheciam os Neal.
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Esse nome não lhes dizia nada, e, no entanto, Neal afirmara-nos que era um cliente habitual do local. Os clientes do jantar falavam alto e esse ruído atormentava-me
a ponto de já não saber por que me encontrava ali, e onde estava.
Os acontecimentos da minha vida enevoavam-se a pouco e pouco até se dissiparem. Restava apenas este instante, os clientes que jantavam, a lareira monumental, as
imitações de Guardi penduradas nas paredes e o murmúrio das vozes... Só este instante. Eu não ousava levantar-me nem sair da sala. Mal transpusesse a porta, resvalaria
no vazio...
Entrou um homem barbudo, com uma máquina fotográfica a tiracolo e, com ele, uma lufada do ar fresco do exterior. Fui bruscamente arrancado ao meu torpor e reconheci
o fotógrafo com casaco de veludo e cara de excêntrico que rondava diante do Palácio do Mediterrâneo e que tinha tirado uma fotografia aos Neal, a Sylvia e a mim.
Essa fotografia, continuava eu a guardá-la na minha pasta.
Ele deu uma volta pelas mesas perguntando aos clientes se queriam uma "fotografia-recordação", mas nenhum deles quis. Depois o seu olhar caiu sobre mim. Pareceu
hesitar, sem dúvida porque eu estava sozinho.
- Uma fotografia?
- Sim, se faz favor.
Levantou a máquina para mim e o flash ofuscou-me.
Ele esperava que a fotografia secasse entre os seus dedos e observava-me com curiosidade.
- Sozinho em Nice?
- Sim.
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- Faz turismo?
- Não propriamente.
Ele metia a fotografia numa pequena moldura de cartão e estendia-ma.
- São cinquenta francos.
- Quer tomar um copo? - perguntei-lhe.
- Com muito gosto.
- Em tempos, também fui fotógrafo - disse-lhe eu.
- Ah sim?...
Ele sentou-se na minha frente e colocou a sua máquina fotográfica em cima da mesa.
- Já me tirou uma fotografia no Passeio dos Ingleses - disse-lhe eu.
- Não me lembro de toda a gente. Há tanta gente que passa, como sabe...
- Sim, há tanta gente que passa...
- Então também era fotógrafo?
- Sim.
- De quê?
- Oh... um pouco de tudo.
Era a primeira vez que eu podia falar com alguém. Tirei a fotografia da minha pasta. Ele começou por lhe deitar um olhar distraído. Depois franziu as sobrancelhas.
- É seu amigo? - perguntou-me ele, apontando para Neal.
- Não propriamente.
- Imagine que conheci esse tipo em tempos... Mas há anos que o não vejo... Nem sequer me dei conta que nesse dia o fotografava... As pessoas passam de tal modo depressa...
O criado trouxe-nos duas taças de champanhe. Fingi beber um trago.
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Ele emborcou o conteúdo da sua taça de uma só vez.
- Então conhece-o? - perguntei eu sem grande esperança de que respondesse, de tal modo estava habituado a que as coisas se me escapassem.
- Sim... Vivíamos no mesmo bairro quando éramos garotos... Riquier...
- Tem a certeza?
- Absoluta.
- E como é que ele se chamava?
Ele pensou que eu estava a dizer-lhe uma adivinha
- Alessandri... Paul Alessandri... - Respondi correctamente?
Ele não tirava os olhos da fotografia.
- E o que é que Alessandri agora faz?
- Não sei exactamente - disse eu. - Mal o conheço.
- A última vez que o vi, era guardador de cavalos na Camargue...
Ele ergueu a cabeça e, num tom ao mesmo tempo irónico e solene, disse-me:
O senhor anda com más companhias.
- Porquê?
- Paul começou por ser paquete no Ruhl... Foi maleiro no casino municipal... E, depois, barman... Em seguida, foi para Paris e perdi-o de vista... Esteve preso...
Se eu fosse a si, desconfiava...
Ele fixava-me com os seus pequenos olhos penetrantes.
- Eu gosto de advertir os turistas...
- Eu não sou turista - disse eu.
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- Ah sim? Vive em Nice? Não.
- Nice é uma cidade perigosa - disse ele. - Por vezes têm-se aqui maus encontros...
- Eu não sabia que ele se chamava Alessandri - disse-lhe eu. - Ele apresentava-se como Neal.
- Ah... O senhor disse que ele se apresentava como?
- Neal.
Soletrei-lhe o nome.
- Essa agora... Paul apresentava-se como Neal?... Neal... Era um americano que vivia na Alameda de Cimiez quando nós éramos putos... Uma enorme vivenda... O Château
Azur... Paul levava-me a brincar com ele para o parque dessa vivenda... precisamente depois da Guerra... Ele era filho do jardineiro...
Atravessei a praça Massena. A esquadra da Polícia era um pouco mais à frente, depois dos tapumes que marcavam o local do antigo casino municipal onde Paul Alessandri
fora "maleiro". O que é que queria dizer maleiro? Andei de um lado para o outro vendo os autocarros entrar e sair do terminal rodoviário. Impulsivamente, como se
receasse voltar atrás, transpus o átrio.
Perguntei ao homem que estava por detrás de uma secretária no hall de entrada onde devia dirigir-me para saber de "desaparecimentos".
- Que desaparecimentos?
Arrependi-me imediatamente da minha iniciativa. Agora iam fazer-me perguntas e tinha de responder pormenorizadamente. Não se contentariam com respostas evasivas.
Eu ouvia já o ruído monótono da máquina de escrever.
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- O desaparecimento de uma pessoa - disse eu.
- Primeiro andar, gabinete 23.
Preferi subir pela escada a tomar o elevador. Segui por um corredor verde pálido ao longo do qual as portas se sucediam com os seus números ímpares: 3, 5, 9, 11,
13... Depois o corredor bifurcou à esquerda, em ângulo recto: 13, 17, 23. O globo de luz, no tecto, iluminava violentamente a porta e fazia-me piscar os olhos. Bati
várias vezes. Uma voz aguda disse-me para entrar.
Um loiro de óculos, bastante jovem, apoiava-se, de braços cruzados, numa secretária metálica. A seu lado, uma pequena mesa de madeira clara tinha em cima uma máquina
de escrever coberta com o seu estojo de plástico preto.
Ele indicou-me a cadeira, em frente dele. Sentei-me.
- É sobre uma amiga que desapareceu há alguns dias - disse eu - e a minha voz parecia a de outra pessoa.
- Uma amiga?
- Sim. Conhecemos duas pessoas que nos convidaram a ir a um restaurante e, depois do jantar, a minha amiga desapareceu com eles num automóvel Opel e...
- A sua amiga?
Eu tinha falado muito depressa como se previsse que ele ia interromper-me e que eu só dispunha de alguns segundos para lhe explicar tudo.
- Desde então, deixei de ter notícias dela. Essas pessoas que encontrámos apresentaram-se como o Sr. e a Sra. Neal e viviam numa vivenda na Alameda de Cimiez que
pertence à Embaixada Americana. Aliás, eles serviam-se de um automóvel que tinha uma placa do Corpo Diplomático
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e que continua estacionado em frente da vivenda...
Ele escutava-me, com o queixo na palma da mão, e eu não conseguia deixar de falar. Desde há bastante tempo, eu guardava todas estas coisas só para mim, sem ter ocasião
de fazer confidências a alguém...
- O homem não se chamava Neal e não era americano, como pretendia... Chama-se Paul Alessandri e é natural de Nice... Soube-o por um dos seus amigos de infância que
é fotógrafo no Passeio dos Ingleses e que nos tinha tirado uma fotografia.
Tirei a fotografia da minha pasta e passei-lha. Ele, pegou nela delicadamente entre o polegar e o indicador, qual asa de uma borboleta, e colocou-a sobre a secretária,
sem a olhar.
- Paul Alessandri é o terceiro a contar da esquerda. Foi paquete no hotel Ruhl... Esteve preso...
Com a ponta dos dedos, empurrou a fotografia para mim. Ele desdenhava esse documento. E Paul Alessandri, apesar de ter estado na prisão, não lhe interessava para
nada.
- A minha amiga usava uma jóia muito valiosa...
Tudo ia vacilar para mim. Bastava dar mais alguns pormenores e um período da minha vida acabaria, aí, nessa secretária da esquadra da Polícia. Chegara o momento
- eu tinha a certeza disso - em que ele retiraria a cobertura preta da máquina de escrever e colocaria essa máquina, na sua frente, sobre a secretária. Meteria uma
folha e fá-la-ia girar num rangido de dentes. Depois, levantaria a cabeça para mim e dir-me-ia, em voz doce:
- Sou todo ouvidos.
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Mas ele permanecia imóvel e silencioso, com o queixo na palma da mão.
- A minha amiga trazia consigo um diamante muito valioso - repeti-lhe eu com uma voz mais firme.
Ele mantinha-se silencioso.
- Paul Alessandri, que se fazia passar por americano, tinha visto essa jóia que a minha amiga trazia e propusera-me mesmo comprá-la...
Ele tinha endireitado o busto, com as duas mãos bem apoiadas na mesa, na atitude de alguém que quer pôr fim a uma conversa.
- Tratava-se de uma amiga sua? - perguntou-me.
- Sim.
- Não tem, pois, qualquer laço de parentesco com ela?
- Não.
- O nosso serviço chama-se Pesquisa de Familiares Desaparecidos, e essa pessoa não é da sua família, se bem entendo...
- Não.
- Por conseguinte...
Ele abria os braços, com um gesto de impotência, com doçura eclesiástica.
- E além disso, como sabe, estou acostumado a este tipo de desaparecimentos... Em geral, fugas... Quem lhe diz, por exemplo, que a sua amiga não quis partir de viagem
com esse casal e que não lhe irá dar notícias dentro de algum tempo?
Tive, apesar disso, forças para balbuciar:
- Li no jornal que um automóvel de marca Opel se tinha esmagado numa ravina entre Menton e Castellar...
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Ele esfregava as mãos, com essa mesma doçura eclesiástica.
- Há muitos automóveis Opel na Côte d'Azur que se esmagam em ravinas... Não vai, pois, tentar enumerar todos os Opel de Nice e dos arredores que se esmagam em ravinas?
Levantou-se, tomou-me pelo braço e, com uma pressão firme mas cortês, levou-me até à porta do seu gabinete, que abriu:
- Tenho muita pena... Não podemos fazer realmente nada por si...
E apontou-me o cartaz da porta. Depois de ele a fechar, fiquei um instante imóvel e aparvalhado, sob o globo de luz do corredor, a fixar as letras azuis: "Pesquisa
de Familiares Desaparecidos".
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Em branco
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Dei comigo no Jardim Alberto I com a sensação de que, doravante, já não tinha qualquer recurso. Tinha aversão a esse funcionário da Polícia pela sua falta de solicitude.
Não me ajudara nem um instante, não dera provas da mais elementar curiosidade profissional, desencorajara-me quando eu estava prestes a dizer-lhe tudo. Tanto pior
para ele. Não era um assunto de rotina, como ele pensava. Não. Por culpa sua perdera uma bela ocasião de ser promovido.
Talvez eu tivesse exposto mal as coisas: eu não deveria ter-lhe falado de Sylvia, mas da Cruz do Sul. Em comparação com a longa e sangrenta história dessa pedra,
que importância tinham as nossas vidas, o nosso insignificante caso pessoal? Um episódio que veio juntar-se aos outros e que não seria o último.
Eu descobrira, no início da nossa estadia em Nice, na livraria da Rua de França onde comprávamos romances policiais em segunda mão, uma obra em três volumes escrita
por um tal B. Balmaine: Dictionnaire biographique des pierres précieuses. Esse tal Balmaine, perito em diamantes junto do
pag. 125
Supremo Tribunal de Paris, recenseara alguns milhares de pedras preciosas. Sylvia e eu tínhamos procurado em Cruz do Sul.
Balmaine consagrava cerca de dez linhas ao nosso diamante. Ele fizera parte das jóias roubadas à condessa du Barry, na noite de 10 para 11 de Janeiro de 1791, e
depois vendidas em leilão em Londres por Christies, a 19 de Fevereiro de 1795. Não se ouvira falar mais dessa pedra até Outubro de 1917, data em que fora novamente
roubada em casa de uma tal Fanny Robert de Tessancourt, na Rua de Saigon, nº 8, em Paris XVI. O incriminado, um tal Serge de Lenz, fora preso mas Fanny Robert de
Tessancourt retirara imediatamente a queixa afirmando que Lenz era seu amigo.
A pedra só viera "à baila" - segundo a expressão de Balmaine - em Fevereiro de 1943, data em que um tal Jean Terrail a vendera a um tal Louis Pagnon. Segundo uma
ficha da Polícia, posterior, a venda efectuara-se em marcos alemães. Depois, em Maio de 1944, Louis Pagnon vendera o diamante a um tal Philippe de Bellune, chamado
Pacheco, nascido em Paris a 22 de Janeiro de 1918, filho de Mário e Eliane Werry de Hulst, sem domicílio conhecido.
A condessa du Barry fora guilhotinada em Dezembro de 1793; Serge de Lenz fora assassinado em Setembro de 1945; Louis Pagnon fora fuzilado em Dezembro de 1944. Philippe
de Bellune desaparecera, tal como a Cruz do Sul, antes de esse diamante voltar a aparecer sobre a camisola preta de Sylvia, e depois novamente desaparecer. Com ela...
Mas à medida que a noite caiu sobre Nice, acabei por dar razão a esse funcionário que pretendia fazer investigações,
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na condição de serem no interesse das famílias.
Se ele tivesse tirado o estojo da sua máquina de escrever e o interrogatório tivesse começado, que lhe teria eu confiado de muito preciso a respeito de Sylvia e
de todos os acontecimentos recentes da minha vida que me pareciam a mim mesmo demasiado fragmentários, demasiado descontínuos para serem compreensíveis? E, além
disso, não posso dizer tudo. Guardo certas coisas para mim. Muitas vezes, penso nesse velho cartaz de cinema, de que alguns pedaços continuavam num tapume. Nele
estava escrito: AS RECORDAÇÕES NÃO ESTÃO À VENDA.
Regressei à Pensão Sainte-Anne. Aí, no silêncio do quarto, eu ouvia um barulho que se repete muitas vezes durante as minhas insónias: o de uma máquina de escrever.
O tiquetaque das teclas era muito rápido, e a pouco e pouco, tornava-se sincopado, como quando se escreve à máquina com os dois indicadores hesitantes no teclado.
E eu tinha novamente na minha frente esse funcionário da Polícia, loiro, que, com voz camuflada, me interrogava. Era tão difícil responder-lhe...
Seria preciso explicar-lhe tudo, desde o princípio. Mas eis a maior das dificuldades: não há nada a explicar. Desde o princípio, era apenas uma questão de ambiente
e cenário.
Mostrar-lhe-ia as fotografias que tinha tirado, nesse tempo, nas margens do Marne. Grandes fotografias a preto e branco. Conservei-as, e com elas tudo o que continha
o saco de viagem de Sylvia. Nessa noite, no quarto da Pensão Sainte-Anne, fui procurar, no fundo do armário, a pasta de cartão
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na qual está escrito: "Praias fluviais".
Desde há muito que não olhava para essas fotografias. Eu contemplava-as nos seus mínimos pormenores e deixava-me penetrar novamente pelo cenário onde tudo começara.
Uma delas, de que já me não lembrava, provocou em mim um misto de terror e fascínio, que o silêncio desse quarto e a minha solidão tornavam ainda mais vivos.
A fotografia fora tirada poucos dias antes de eu ter conhecido Sylvia. A esplanada de um desses restaurantes das margens do Marne. Mesas com guarda-sol. Pontões.
Chorões. Tentei lembrar-me: o Vieux Clodoche em Chennevières? O Pavillon Bleu ou o Château des íles Jochem em La Varenne? Eu dissimulara-me com a minha Leica para
que esse cenário e essa gente mantivessem a sua naturalidade.
Uma das mesas do fundo, junto do pontão, não tinha guarda-sol e estava ocupada por dois homens sentados lado a lado. Um deles era Villecourt. Reconheci imediatamente
o outro: aquele que se nos apresentara pelo nome de Neal e que, na realidade, se chamava Paul Alessandri. Que estranho vê-lo ali, sentado junto do Marne, como se,
desde o princípio, o bicho estivesse no fruto.
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Sim, conheci Sylvia Heuraeux, esposa de Villecourt, numa manhã de Verão, no Beach de La Varenne. Eu tinha chegado há alguns dias às margens do Marne para tirar fotografias.
Um pequeno editor aceitara o meu projecto de um livro que se intitularia Praias Fluviais.
Eu mostrara-lhe o meu modelo: um álbum muito bonito sobre Monte Carlo feito em finais dos anos trinta por um fotógrafo chamado W. Vennemann. O meu livro teria o
mesmo formato. A mesma paginação. As mesmas fotografias a preto e branco, a maior parte delas em contra-luz. Em vez da sombra das palmeiras recortando-se sobre a
baía de Monte Carlo ou das carroçarias escuras e luzidias de automóveis contrastando, de noite, com o esplendor do Sporting d'Hiver, ver-se-iam as pranchas de saltos
e os pontões dessas praias da periferia. Mas a luz seria a mesma. O editor não entendera muito bem a minha proposta.
- Acha que La Varenne e Monte Carlo são a mesma coisa? - dissera-me ele.
Mas acabara por assinar um contrato. Confia-se sempre na juventude.
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Nessa manhã, não havia muita gente no Beach de La Varenne. Creio mesmo que ela era a única pessoa que tomava banhos de sol. Crianças deslizavam pelo escorrega à
beira da piscina, e, sempre que caíam na água azulada, ouviam-se os seus gritos e os seus risos.
Fiquei impressionado com a sua beleza e os seus gestos negligentes ao acender um cigarro ou ao pôr a seu lado o copo de laranjada cujo conteúdo aspirava servindo-se
de uma palhinha. E estirava-se de uma maneira tão graciosa no colchão de praia às riscas azuis e brancas, com os olhos ocultados por óculos de sol, que me lembrei
do comentário do meu editor. Na verdade, Monte Carlo e La Varenne não têm muitos pontos em comum, mas eu via um nessa manhã: essa rapariga, que poderíamos imaginar
na mesma posição no Monte Carlo Beach, cujo ambiente W. Vennemann tão bem soubera sugerir através das suas fotografias a preto e branco. Não, ela não teria desfeado
o cenário mas, pelo contrário, ter-lhe-ia juntado um certo encanto.
Eu andava de um lado para o outro, procurando o melhor ângulo de visão, com a minha máquina fotográfica ao pescoço.
Ela deu conta da minha artimanha.
- É fotógrafo?
- Sou.
Tirara os óculos e observava-me com os seus olhos claros. Os miúdos tinham saído da piscina. Só restávamos nós os dois.
- Não está cheio de calor?
- Não. Porquê?
Eu não tinha tirado os sapatos - o que era proibido
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Nesse estabelecimento de banhos - e trazia uma camisola de gola alta.
- Tenho o sol suficiente - disse ela.
Segui-a do outro lado da piscina, lá onde um grande de hera projectava a sua sombra e a sua frescura. Sentámo-nos em cadeirões de madeira branca, lado a lado. Ela
tinha enfiado um roupão turco branco. Voltou-para mim.
- Mas o que é que quer fotografar aqui?
- O cenário.
E, com um amplo movimento do braço, apontei-lhe a piscina, a prancha de mergulhos, o escorrega, os vestiários, e, ao fundo, o restaurante ao ar livre, a sua pérgola
branca com pilares cor de laranja, o céu azul, o muro de hera verde escuro atrás de nós...
- Pergunto-me se não deveria tirar fotografias a cores... Sentir-se-ia melhor o ambiente do Beach de la Varenne...
Ela desatou a rir.
- Acha que aqui há ambiente?
- Acho.
Ela olhava para mim com um sorriso irónico.
- Habitualmente, tira que tipo de fotografias?
- Estou a trabalhar para um álbum que irá chamar-se Praias Fluviais.
- Praias fluviais?
Ela franzia as sobrancelhas. Eu já me aprestava para lhe dar as explicações que tinham deixado perplexo o meu editor: o paralelismo com Monte Carlo... Mas não valia
a pena complicar as coisas.
- Tento encontrar os estabelecimentos de banho que restam
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na região parisiense.
- Encontrou muitos?
Ela estendia-me uma cigarreira de ouro que contrastava com a naturalidade e a simplicidade do seu comportamento. E, para grande surpresa minha, ela própria me acendeu
o cigarro.
- Fotografei todas as praias do Oise... A Isle-Adam, Beaumont, Butry-Plage... E, depois, as praias e os estabelecimentos de banho das margens do Sena: Villenes,
Elisabethville...
Aparentemente, ela estava intrigada com esses estabelecimentos de banho tão próximos, de cuja existência nem suspeitava. Trespassava-me com o seu olhar claro.
- Mas, no fim de contas, o lugar que prefiro é este... disse-lhe eu. - É exactamente o ambiente que procurava... Creio que vou tirar muitas fotografias em La Varenne
e nos arredores...
Ela não me largava com os olhos, como se quisesse verificar se eu não estava a brincar.
Acha de facto que La Varenne é um estabelecimento de banho?
- Um pouco... E você?
Ela desatou de novo a rir. Um riso mais suave.
- E o que é que vai conseguir fotografar em La Varenne?
- O Beach... As margens do Marne... Os pontões...
- Vive em Paris?
- Sim, mas aluguei aqui um quarto de hotel. Tenho que ficar pelo menos quinze dias para tirar boas fotografias...
Ela viu as horas no relógio de pulso, um relógio de homem com uma grossa
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bracelete de metal que lhe fazia ressaltar a delicadeza do pulso.
- Tenho de regressar para o almoço - disse-me. - Estou atrasada.
Ela esquecera, no chão, a cigarreira de ouro. Inclinei-me para a apanhar e estendi-lha.
- Ah sim... Não a posso esquecer... É um presente do meu marido...
Ela dissera isso sem qualquer convicção. Foi mudar-se a um dos vestiários, do outro lado da piscina, e, quando saiu, trazia atado um pano às flores, e um grande
saco de praia a tiracolo.
- O seu pano é bonito - disse-lhe eu. - Gostaria de tirar uma fotografia vestida com o pano, aqui, no Beach, ou num dos pontões do Marne. Fica bem com o cenário...
- Acha? Mais parece taitiano, um pano...
Sim, taitiano. Vennemann, no seu álbum sobre Monte Carlo, incluirá várias fotografias de praias desertas de Saint-Tropez dos anos trinta. Algumas mulheres, vestidas
com um pano, estavam estendidas na areia, entre os bambus.
- Mais parece taitiano - disse-lhe eu - mas dá um certo charme, aqui, à beira do Marne...
- Então, gostava que eu fosse seu modelo?
- Adorava.
Ela sorriu-me. Saímos do Beach de La Varenne e, na estrada que ladeia o Marne, caminhávamos pelo meio da rua. Nem um automóvel. Ninguém. Tudo estava silencioso e
tranquilo sob o sol, e eram ternas todas as cores: o azul do céu, o verde-pálido dos choupos e dos chorões;
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e a àgua do Marne, habitualmente pesada e estagnada, estava tão leve nesse dia que reflectia as nuvens, o céu e as árvores.
Deixámos para trás a ponte de Chennevières e continuávamos a caminhar pelo meio da estrada ladeada de plátanos chamada Passeio dos Ingleses.
Ao longe, uma canoa deslizava no Marne, uma canoa de um cor de laranja quase rosa. Ela tomou-me pelo braço e levou-me para o passeio, do lado da água, para a vermos
passar.
Indicou-me o portão de uma vivenda.
- Vivo aqui... com o meu marido...
Tive, apesar disso, a coragem de lhe perguntar se podíamos voltar a ver-nos.
- Estou todos os dias na piscina entre as onze e a uma da tarde - disse-me ela.
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O Beach de La Varenne estava tão deserto como na véspera. Ela tomava um banho de sol diante dos vestiários brancos e eu continuava a procurar de que ângulo fotografar
aquele estabelecimento. Gostaria de reunir na fotografia a prancha de mergulhos, os vestiários, a esplanada com pérgola do restaurante e as margens do Marne. Mas
estas estavam separadas do Beach pela estrada.
- É realmente pena que não se tenha construído o Beach mesmo à beira do Marne - disse eu.
Mas ela não me tinha ouvido. Talvez tivesse adormecido debaixo do seu chapéu de palha e dos óculos de sol. Sentei-me a seu lado e pus a mão no seu ombro:
- Está a dormir?
- Não.
Tirou os óculos de sol. Fixava-me com os seus olhos claros e sorria-me.
- Então, tirou fotografias ao Beach?
- Ainda não.
- Trabalha com lentidão...
Ela segurava o copo de laranjada com as duas mãos, com uma palhinha entre os lábios. Depois estendeu-me o copo.
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Foi a minha vez de beber.
- Convido-o para almoçar em minha casa - disse-me ela. - Se o não incomoda conhecer o meu marido e a minha sogra...
- É muito simpático da sua parte.
- Talvez isso o inspire para as suas fotografias...
- Mas vive todo o ano em La Varenne?
- Sim. Todo o ano. Com o meu marido e a minha sogra.
Parecia bruscamente pensativa e resignada.
- O seu marido trabalha na região?
- Não. O meu marido não faz nada.
- E a sua sogra?
- A minha sogra? Faz competir cavalos de corrida em Vincennes e em Enghien... Interessa-se por cavalos?
- Não percebo grande coisa do assunto.
- Eu também não. Mas se isso lhe interessar para as suas fotografias, a minha sogra terá certamente muito prazer em o levar aos hipódromos.
Cavalos de corrida. Pensei em W. Vennemann que fotografara, para o seu álbum, a partida do Grande Prémio do Mónaco, e os bólides em plongée, correndo ao longo do
porto. Pois bem, eu tinha encontrado o equivalente dessa manifestação desportiva, aqui, à beira do Marne. A atmosfera que eu procurava nestas praias fluviais, quem
pois podia sugeri-la melhor do que os ágeis cavalos de corrida e os seus atrelados?
Ela tinha-me tomado pelo braço na estrada deserta à beira da água, mas, quando chegámos às proximidades do portão de casa, afastou-se de mim.
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- Não o incomoda realmente vir almoçar? - perguntou-me.
- Pelo contrário.
- Se acha que se vai incomodar, pode sempre dizer que tem trabalho.
Envolvia-me com um olhar doce e estranho que me comoveu. Eu tinha a impressão de que, doravante, não mais nos abandonaríamos.
- Expliquei-lhes que você era fotógrafo e que queria fazer um álbum sobre La Varenne.
Ela empurrou o portão. Atravessámos um relvado à beira do qual se erguia uma enorme vivenda, em estilo anglo-normando, com pombais. E chegámos à sala de estar, cujas
paredes eram cobertas a madeira escura e os cadeirões e o sofá a um tecido escocês.
Por uma das portas de sacada, entrou uma mulher de calças de praia, que se nos dirigiu com passo elástico. A sessentona era alta e tinha os cabelos cinzentos penteados
à leoa.
- A minha sogra - disse Sylvia... - A Sra. Villecourt.
- Não me chames tua sogra. Isso mete-me medo...
Ela tinha uma voz rouca e um leve sotaque suburbano.
- Então é fotógrafo?
- Sou.
Ela sentou-se no sofá, e eu e Sylvia nos cadeirões. Uma bandeja com aperitivos aguardava, no centro da mesa baixa, diante de nós.
Um homem com passo arrastado e de pequena estatura de jockey chegou junto de nós. Com o seu casaco branco e as suas calças azul-marinho, poderia ser membro da tripulação
de um iate ou empregado de um clube náutico.
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- Pode servir o aperitivo - disse a Sra. Villecourt. Eu escolhi uma lágrima de porto. Sylvia e a Sra. Villecourt, whisky. O homem retirou-se, arrastando os pés.
- Parece que quer fazer um álbum de fotografias sobre La Varenne? - perguntou-me a Sra. Villecourt.
- É verdade. Sobre La Varenne e sobre todas as outras praias fluviais dos arredores de Paris.
- La Varenne mudou muito... Morreu completamente... Sylvia disse-me que precisava de informações sobre La Varenne para o seu álbum...
Voltei-me para Sylvia. Ela olhava-me pelo canto do olho. Era, pois, o pretexto que ela escolhera para me introduzir ali.
- Conheci La Varenne pouco tempo depois de casar... Já vivíamos nesta casa com o meu marido...
Ela serviu-se de um segundo copo de whisky. Trazia um anel de esmeraldas no dedo médio.
- Nessa altura, havia muitos artistas de cinema que frequentavam La Varenne... René Dary, Jimmy Gaillard, Préjean... Os Fratellini viviam no Perreux... O meu marido
conhecia-os a todos. Ia apostar nas corridas, no Tremblay, com Jules Berry...
Ela parecia contente por citar esses nomes e evocar essas recordações diante de mim. O que é que Sylvia lhe terá dito? Que eu queria escrever a história de La Varenne?
Para eles, era prático instalar-se aqui... Por causa da proximidade dos estúdios de Joinville...
Senti que ela seria inesgotável sobre o assunto.
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Ela corava e os seus olhos brilhavam. O efeito do segundo copo de whisky, que bebera muito rapidamente? Ou o afluxo das recordações?
Conheço uma história muito bizarra que talvez lhe interesse...
Ela sorria-me e o seu rosto alisava-se. Um rasgo de juventude perpassava-lhe nos olhos e no sorriso. Deve ter sido, noutros tempos, uma mulher muito bela.
- É a propósito de um outro artista de cinema que o meu marido conhecia bem... Aimos... Raymond Aimos... Ele vivia muito perto daqui, em Chennevières... Foi provavelmente
morto, na libertação de Paris, numa barricada, por uma bala perdida...
Sylvia ouvia, com ar surpreendido. Aparentemente, nunca tinha ouvido a sogra falar assim, nem talvez mostrar-se tão descontraída e tão à vontade com um estranho.
- Na verdade, isso não se passou exactamente assim... É uma história triste... Já lhe explico...
Encolheu os ombros.
- O senhor acredita em balas perdidas?
Um morenaço de uns trinta e cinco anos, de calças azul-celeste e camisa branca, viera sentar-se no sofá ao lado da Sra. Villecourt, no momento em que ela se dispunha,
sem dúvida, a revelar-me o segredo da morte de Aimos.
- Vejo que estão numa grande conversa... Incomodo...
Inclinou-se para mim e estendeu-me a mão.
- Frédéric Villecourt... Muito prazer... Sou o marido de Sylvia.
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Sylvia abriu a boca para me apresentar. Não lhe dei tempo a dizer o meu nome e disse simplesmente:
- Muito prazer...
Ele olhava para mim. Tudo no seu aspecto - um certo à-vontade, um sorriso um pouco enfatuado, uma voz metálica e autoritária - indicava que ele estava consciente
do seu encanto de morenaço de traços perfeitos. Mas esse encanto dissipava-se muito rapidamente por causa de gestos sem graça, perfeitamente a condizer com a pulseira
no pulso.
- A mãe está a contar-lhe todas as suas velhas histórias... Quando está embalada, não pára...
- Isso interessa a este jovem - disse a Sra. Villecourt. - Ele está a escrever um livro sobre La Varenne...
- Então pode confiar na minha mãe... É um poço de ciência em tudo o que se refere a La Varenne.
Sylvia baixou a cabeça, com um ar incomodado. Pusera uma mão sobre o joelho e esfregava-o pensativamente com o dedo indicador.
- Espero que não tardemos a ir para a mesa - disse Frédéric. - Tenho uma fome de cão...
Ela deitou-me um olhar inquieto, como se lamentasse ter-me arrastado para esta casa e ter-me infligido a companhia desta mulher e do respectivo filho.
- Almoçamos lá fora - disse a Sra. Villecourt.
- Que excelente ideia a sua, mãezinha...
O tratamento por você e o tom afectados surpreenderam-me. Também eles
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condiziam com a grossa pulseira que usava.
O homem de casaco branco aguardava no vão da porta do salão.
- Minha senhora, está servido.
- Vamos já, Julien - disse Villecourt com uma voz estridente.
- Pôs o toldo? - perguntou a Sra. Villecourt.
- Sim, minha senhora.
Atravessámos o grande relvado. Sylvia e eu caminhávamos ligeiramente atrás. Ela lançava-me um olhar interrogativo, com o ar de quem receava que eu a abandonasse.
- Estou muito contente por me ter convidado - disse-lhe eu. - Muito contente.
Mas ela não parecia completamente calma. Talvez tivesse medo das reacções do marido, a quem observava com um ar vagamente desdenhoso.
- Sylvia explicou-me que é fotógrafo - disse Villecourt, abrindo a grade do portão e dando passagem à mãe. - Se quiser, dou-lhe trabalho...
Ele mimoseava-me com um enorme sorriso:
- Estou a montar um negócio importante com um amigo... E temos necessidade de prospectos e de fotografias publicitárias...
Por mais que ele falasse com o tom de alguém que quer fazer um favor a um subalterno, eu não tirava os olhos da pulseira que lhe pendia do pulso. Se "o negócio importante"
a que aludia era à imagem daquela pulseira de largos e grossos elos, de que podia tratar-se senão de tráfico de automóveis americanos?
- Ele não precisa que lhe arranjes trabalho - disse secamente Sylvia.
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Precisamente em frente da casa, do outro lado da estrada, à beira da água, Villecourt empurrou uma cancela branca na qual estava escrito: "Vivenda Frédéric, Pontão
privado 14, Passeio dos Ingleses."
A mãe dele voltou-se para mim:
- Terá uma bela vista do Marne... Tenho a certeza de que irá tirar fotografias...
Descemos alguns degraus escavados numa rocha que me parecia artificial por causa da sua cor vermelha. Depois desembocámos num pontão muito largo recoberto por um
toldo de lona às riscas verdes e brancas. Aí se erguia uma mesa para quatro pessoas.
- Sente-se aqui - disse-me a Sra. Villecourt.
E indicou-me o lugar de onde podia ver o Marne e a outra margem. Ela sentou-se à minha esquerda, Sylvia e o marido em cada uma das extremidades da mesa, Sylvia do
meu lado e Frédéric Villecourt do lado da mãe.
O homem de casaco branco fez duas viagens, da vivenda ao pontão, para nos trazer saladas e um grande peixe frio. Ele transpirava, devido ao calor. Villecourt recomendara-lhe
entre cada uma das viagens:
- Julien não se deixe esmagar quando atravessar o Passeio dos Ingleses.
Mas o outro não prestava a menor atenção a este conselho e afastava-se arrastando os pés.
Eu olhava à minha volta. O toldo protegia-nos do sol cuja luz se reflectia na água verde e estagnada do Marne e lhe dava transparências, como no outro dia, à saída
do Beach. Em frente, a encosta de Chennevières, no sopé da qual grandes casas em pedra calcária rompiam a verdura.
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Mesmo à beira da água, vivendas modernas e elegantes. Eu imaginava-as habitadas por procuradores nos Halles reformados.
O pontão da vivenda Frédéric, no qual almoçávamos, protegidos do sol, era, incontestavelmente, o maior e o mais luxuoso das redondezas. Mesmo o do restaurante Le
Pavillon Bleu, a uns vinte metros para a direita, parecia muito modesto ao lado dele. Sim, o pontão da vivenda Frédéric oferecia um curioso contraste com esta paisagem
do Marne, os salgueiros, a água estagnada, as ribas para pescadores à linha.
- Gosta da vista? - perguntou-me a Sra.Villecourt.
- Muito.
Contraste curioso: parecia que almoçávamos num enclave da Côte d'Azur transportado para os arredores, como esses castelos medievais que milionários da Califórnia
mandaram levar, pedra por pedra, para o seu país. A rocha que precedia o pontão evocava-me uma enseada próxima de Cassis. O toldo, que nos tapava, tinha uma majestade
monegasca e poderia ter figurado numa das fotografias de W. Vennemann. Fazia também lembrar o Lido de Veneza. A minha impressão acentuou-se mais quando vi, amarrado
ao pontão, um Chris-Craft.
- É seu? - perguntei à Sra. Villecourt.
- Não... não... é do meu filho. Esse imbecil diverte-se a andar com ele no Marne apesar de ser proibido.
- Não seja má, mãezinha...
- De qualquer maneira - disse Sylvia - o Chris-Craft não consegue andar por causa da água cheia de lodo...
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- Estás enganada, Sylvia - disse Villecourt.
- É um autêntico pântano... Se quiseres fazer esqui aquático, os esquis pegam-se no lodo como em mercúrio e ficas bloqueado no meio do Marne...
Ela pronunciara esta frase com uma voz cortante, olhando fixamente Villecourt.
- Estás a dizer asneiras, Sylvia... Pode muito bem andar-se de Chris-Craft e fazer esqui aquático no Marne...
Ele estava mesmo muito picado. Aparentemente, dava muita importância ao Chris-Craft. Voltou-se para mim.
- Ela prefere frequentar o seu Beach miserável que está a cair de podre...
- De modo nenhum - disse-lhe eu. - O Beach de La Varenne não está a cair de podre e acho que tem muito encanto.
- É verdade?
Ele olhava para nós alternadamente, para Sylvia e para mim, como se quisesse surpreender entre nós uma conivência.
- Sim, esse Chris-Craft é uma idiotice pegada - disse a Sra. Villecourt. - Deverias desfazer-te dele...
Villecourt não respondia. Tinha acendido um cigarro. Amuava.
- Então, o que é que encontrou de praias fluviais nesta zona? - perguntou-me a Sra. Villecourt.
Os reflexos do sol na água faziam-lhe piscar os olhos e ela pusera uns grandes óculos escuros.
- É isso que procura para as suas fotografias? Praias fluviais?
O seu rosto de leoa, os seus óculos escuros, e o whisky que bebia durante
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o almoço poderiam dar-lhe o aspecto de uma americana veraneando em Eden Roc. Mas havia uma diferença entre ela e todos esses acessórios da Côte d'Azur que nos rodeavam:
a rocha, o Chris-Craft e o pontão recoberto por um toldo. A Sra. Villecourt estava de acordo com a paisagem das margens do Marne, e parecia-se com ela. Talvez por
causa da sua voz rouca?
- Sim, procuro as praias fluviais - disse eu.
- Quando eu era pequena, ia para uma praia, lá em baixo, para os lados de Chelles... A praia de Gournay-sur-Marne... Chamavam-lhe o "Petit Deauville"... Havia areia
e toldos de lona...
Seria então uma filha da região?
- Mas isso já não existe, mãezinha - disse Villecourt encolhendo os ombros.
- Foi ver? - perguntou-me a Sra. Villecourt sem prestar atenção ao filho.
Ainda não.
- Tenho a certeza de que continua a existir - disse a Sra. Villecourt.
- Eu também - disse arrogantemente Sylvia, sustendo o olhar do marido.
- Havia também a praia Berretrot, em Joinville... - disse a Sra. Villecourt.
Ela reflectia e aprestava-se a contar pelos dedos.
- E Duchet, o restaurante de Saint-Maurice-Plage... Continuando em Saint-Maurice, a faixa de areia da íle Rouge... E a íle aux Corbeaux...
Com o indicador da mão esquerda, ela premia sucessivamente cada um dos dedos da mão direita.
- O hotel-restaurante da praia em Maisons-Alfort...
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A praia de Champigny, cais Gallieni... O Palm-Beach e o Lido de Chennevières... Sei tudo isso de cor... Nasci na região...
Ela tirou um instante os óculos escuros e olhou-me amavelmente.
- Como vê, vai ter muito que fazer... Isto é uma autêntica Riviera...
- Mas todos esses lugares já não existem, mãezinha - repetiu Villecourt, com a rabugice de quem já não é ouvido.
- E então? Temos o direito de sonhar, não é verdade?
Surpreendeu-me aquela maneira brutal de responder ao filho.
- Sim, temos o direito de sonhar - repetiu Sylvia em voz clara, mas cuja inflexão um pouco arrastada estava de acordo com as margens do Marne e com todas as praias
que a Sra. Villecourt evocara.
- Pode ver esse diamante a partir de amanhã, mãezinha... - disse Villecourt. - É realmente excepcional... Seria uma tontice deixar escapar o negócio... Chama-se
Cruz do Sul.
De cotovelos apoiados na mesa, pretendia-se cada vez mais persuasivo. Mas a mãe, com o olhar escondido sob os óculos escuros, permanecia impassível e dava a impressão
de fixar um ponto, ao longe, na encosta verde escura de Chennevières.
Sylvia vigiava-me pelo canto do olho.
- Mostrar-lha-ei - disse Villecourt. - Tem todo um pedigree... É uma peça única...
Esse rapaz, com a sua pulseira e o seu Chris-Craft sujo no Marne,
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seria diamantista ou corretor de pedras piedosas? Apesar de o observar, não conseguia acreditar nas suas qualidades profissionais.
- O vendedor veio aqui visitar-me, há mais ou menos uma semana - disse Villecourt. - Se não nos decidirmos muito, rapidamente, o negócio vai escapar-nos das mãos...
- O que é que tu queres que eu faça com um diamante? - disse a Sra. Villecourt. - Já não tenho idade para usar diamantes...
Villecourt desatou a rir. Ele olhava para Sylvia e para mim, com o ar de nos tomar como testemunhas.
- Mas em suma, mãezinha, não se trata de usar um diamante... Basta simplesmente comprá-lo a bom preço e revendê-lo pelo dobro...
Desta vez, a Sra. Villecourt voltou-se para o filho e tirou vagarosamente os óculos escuros.
- Estás a dizer asneiras... Revendem-se sempre os móveis e as jóias com prejuízo... Pobre rapaz, receio que não tenhas o estofo de homem de negócios...
Ela assumira um tom simultaneamente desdenhoso e afectuoso.
- Não é verdade, Sylvia, que Frédéric faria melhor não se ocupar com pedras preciosas? É um ofício difícil, como sabes, meu querido...
Villecourt retesou-se. Era-lhe difícil manter-se calmo. Até virou a cabeça. E eu já não olhava para a pulseira que ele tinha, mas para o Chris-Craft cintilante,
que viera extraviar-se nas águas mortas e pesadas do Marne por culpa do seu condutor.
Disse para comigo que todas as iniciativas em que ele
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se queria meter, cada um dos seus gestos, a mínima iniciativa da sua parte, deviam ir dar, fatalmente, a um lamaçal como este. E era o marido de Sylvia.
Ouvi um barulho de passos atrás de mim, e um homem da idade de Villecourt apareceu no pontão. De estatura média, trazia um fato de tecido bege, sapatos de camurça,
olhinhos muito encovados e uma testa teimosa, de carneiro.
- Mãezinha, é Réné Jourdan...
Villecourt anunciara à mãe o recém-chegado com um respeito misturado de ênfase, como se o dito René Jourdan, com sapatos de camurça, com cabeça de carneiro e olhos
vazios, fosse uma personalidade.
- Quem? - perguntou a Sra. Villecourt, sem mexer a cabeça um milímetro.
- René Jourdan, mãezinha...
Este estendia a mão à Sra. Villecourt.
- Bom-dia, minha senhora...
Mas ela não lhe estendeu a mão. Com os seus óculos escuros, tratava-o com uma indiferença de cego.
Ele estendeu então o braço para Sylvia que lhe apertou a mão sem muita convicção, com cara de poucos amigos. Depois saudou-me com um movimento de cabeça.
- René Jourdan... - disse-me Villecourt. - Um amigo...
Ele indicava-lhe a cadeira vazia que estava diante de mim. O outro sentou-se.
- Imagina, René, que estava a falar do diamante. Não é verdade que é uma peça espantosa?
- Espantosa - disse o outro, esboçando um sorriso tão vazio como o seu olhar.
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Villecourt inclinou-se para a mãe.
- O homem que quer vender o diamante é um amigo de René Jourdan.
E dissera isso como se fosse uma referência, uma menção no Gotha.
- Eu expliquei ao meu filho que já não tenho idade para usar diamantes.
- É pena, minha senhora. Tenho a certeza de que este diamante a seduziria... É uma peça histórica... Temos todo um pedigree sobre ele... Chama-se Cruz do Sul...
- Confie em mim, mãezinha. Se me der dinheiro, prometo-lhe que, na revenda, poderia dobrar a parada.
- Meu pobre Frédéric... E donde vem esse diamante? De um roubo?
O homem com cabeça de carneiro deixou escapar um riso estridente.
- Nada disso, minha senhora... De uma herança... O meu amigo tenta desfazer-se dele porque tem necessidade de dinheiro... Dirige uma sociedade imobiliária em Nice...
Dar-lhe-ei todas as referências...
- Podemos mostrar-lhe a pedra, mãezinha... Tem de a ver com os seus próprios olhos antes de tomar uma decisão...
- De acordo - disse a Sra. Villecourt com uma voz cansada. - Mostrem-me essa Cruz do Sul...
- Amanhã, mãezinha?
- Amanhã.
Ela abanava pensativamente a cabeça.
- Vens, René? - disse Villecourt. - Temos de ir ver como estão a avançar
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os trabalhos...
Ele levantou-se e especou-se na minha frente.
- Talvez isso lhe interesse... Estou a arranjar completamente uma pequena ilha do Marne, a seguir a Chennevières... O terreno pertencia à minha mãe... Queremos lá
fazer uma piscina e uma discoteca... Mas Sylvia falar--lhe-á disso, porque não tem nada a esconder-lhe...
Bruscamente, ele ficara agressivo. Eu não repliquei. O pensar nos seus dedos apertados sobre o corpo de Sylvia desgostava-me o suficiente para me não expor ao seu
contacto, em caso de chegarmos a vias de facto.
Ele desceu a escada do pontão, seguido do homem com sapatos de camurça e cabeça de carneiro. Depois instalaram-se, um ao lado do outro, no Chris-Craft e Villecourt,
com gestos nervosos, pô-lo em andamento. O Chris-Craft desapareceu muito depressa, depois da curva de Chennevières, mas a água estava demasiado pesada para que deixasse
jactos de espuma atrás dele.
A Sra. Villecourt continuou durante um longo momento silenciosa e, depois, voltou-se para Sylvia:
- Querida, vai dizer-lhe que nos sirva café...
- Vou já...
Sylvia levantou-se e, quando passou por detrás de mim, apoiou furtivamente as suas duas mãos nos meus ombros. Eu perguntei-me se ela ia voltar ou deixar-me sozinho
com a sogra durante o resto do dia.
- Podíamos talvez sentar-nos ao sol - disse-me a Sra. Villecourt.
Tínhamo-nos instalado, na borda do pontão, em dois grandes cadeirões de lona azul. Ela não dizia nada. Olhava fixamente, por detrás dos óculos
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escuros, para a água do Marne. Em que estaria ela a pensar? Nos filhos que nem sempre dão as satisfações que deles se esperavam?
- E as suas fotografias sobre La Varenne? - perguntou-me ela como se, por delicadeza, quisesse romper o silêncio.
- Serão fotografias a preto e branco - disse-lhe eu.
- Tem razão em as fazer a preto e branco.
Fiquei surpreendido com o seu tom categórico.
- E se pudesse fazê-las completamente a preto, ainda seria melhor. Vou explicar-lhe uma coisa...
Ela hesitou um momento.
- Todas estas margens do Marne são lugares tristes... É evidente que, com o sol, iludem... Excepto quando se conhecem bem... Dão azar... O meu marido morreu num
acidente de automóvel incompreensível nas margens do Marne... O meu filho nasceu e foi educado aqui e tornou-se um vadio... E eu vou envelhecer sozinha nesta paisagem
triste...
Ela mantinha-se calma ao confiar-me tudo isso.
Tinha mesmo um tom decidido.
- Não está a ver as coisas demasiado negras? - disse-lhe eu.
- De modo nenhum... Tenho a certeza de que você é um jovem sensível às atmosferas e me compreende... Tire as suas fotografias o mais pretas possível...
- Vou tentar - disse-lhe eu.
- Sempre houve algo de negro e crapuloso nestas margens do Marne... Sabe com que dinheiro foram construídas todas estas vivendas de La Varenne? Com o dinheiro que
as meninas ganharam a trabalhar nas casas...
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Era o sítio onde os chulos e os donos dessas casas vinham passar a reforma... Sei do que estou a falar...
Calou-se bruscamente. Parecia pensar em qualquer coisa.
- Estas margens do Marne sempre foram mal frequentadas... Sobretudo durante a Guerra... Falei-lhe do pobre do Aimos... O meu marido gostava muito dele... Aimos vivia
em Chennevières... e morreu nas barricadas, durante a libertação de Paris...
Ela continuava a olhar em frente, talvez para a encosta de Chennevières onde esse tal Aimos vivera.
- Disse-se que ele tinha levado com uma bala perdida... Não é verdade... Foi um ajuste de contas... Por causa de certas pessoas que frequentavam Champigny e La Varenne
durante a Guerra... Ele tinha-as conhecido... Ele sabia coisas sobre elas... Ele ouvia as suas conversas nas hospedarias da região...
Sylvia serviu-nos o café. Depois a Sra. Villecourt, como que contra vontade, levantou-se e estendeu-me a mão.
- Tive muito prazer em o conhecer...
Beijou Sylvia na testa.
- Vou dormir a sesta, querida...
Acompanhei-a até à rocha vermelha, onde começavam os degraus da escada.
- Agradeço-lhe todas as informações que me deu sobre as margens do Marne - disse-lhe eu.
- Se quiser saber mais pormenores, venha visitar-me novamente. Mas eu tenho a certeza de que, agora, está metido no meio... Tire fotografias bem pretas...
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Tenebrosas...
E ela insistira nas sílabas de "tenebrosas", com o sotaque de Paris e arredores.
- Que mulher estranha - disse eu a Sylvia.
Tínhamo-nos sentado nas tábuas, na borda do pontão, e ela encostara a cabeça no meu ombro.
- E também achas que eu sou uma mulher estranha?
Pela primeira vez, tratava-me por tu.
Continuávamos ali, os dois nesse pontão, a seguir com o olhar uma canoa que deslizava no meio do Marne, a mesma do outro dia. A água já não estava estagnada mas
era percorrida por pequenas ondulações.
Era a corrente que levava a canoa e a tornava tão ligeira e dava o seu impulso ao movimento longo e cadenciado dos remos, a corrente cujo sussurro ouvíamos sob o
sol.
* * *
A pouco e pouco, a penumbra invadiu o meu quarto sem nos darmos conta. Ela olhou para o relógio de pulso:
- Estou atrasada para o jantar. A minha sogra e o meu marido já devem estar à minha espera.
Levantou-se. Virou a almofada e afastou o lençol.
- Perdi um brinco.
Depois vestiu-se diante do espelho do armário. Enfiou o body verde, e a saia de tecido vermelho que a apertava na cintura. Sentou-se na borda da cama e calçou as
sapatilhas.
- Talvez volte daqui a bocado, se eles jogarem uma partida de cartas... ou amanhã de manhã...
Fechou a porta suavemente atrás de si. Eu fui para a varanda e segui
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com os olhos a sua silhueta esbelta, a sua saia vermelha no crepúsculo, ao longo do cais de La Varenne.
Durante todo o dia esperei-a estendido na cama do meu quarto. Através das persianas, o sol desenhava manchas loiras nas paredes e na sua pele. Em baixo, em frente
do hotel, debaixo dos três plátanos, os mesmos jogadores de petanca prosseguiam as suas partidas pela noite dentro. Ouvíamos a sua gritaria. Eles tinham pendurado
nas árvores lâmpadas eléctricas cuja luz se infiltrava também pelas persianas e projectava nas paredes, no escuro, raios ainda mais claros do que os raios do Sol.
Os seus olhos azuis. O seu vestido encarnado. Os seus cabelos castanho-escuros. Mais tarde, muito mais tarde, as cores vivas desapareceram, e já não vi tudo isso
senão a preto e branco - como dizia a Sra. Villecourt.
Algumas vezes, ela podia ficar até à manhã do dia seguinte. O marido partira em viagem de negócios com o homem de sapatos de camurça, com cara de carneiro e olhos
vazios, e com o outro, aquele que queria vender o diamante. Ela não o conhecia, a esse, mas, nas conversas de Jourdan com o marido, o seu nome vinha muitas vezes
à baila: um tal Paul.
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Certa noite, levantei-me sobressaltado. Alguém rodava o manípulo da porta do meu quarto. Eu nunca a fechava à chave para o caso de Sylvia ter um momento para vir
ter comigo. Ela entrou. Eu tacteei à procura do interruptor.
- Não... Não acendas...
Primeiro, pensei que ela estendia a mão para se proteger da luz do candeeiro da mesinha de cabeceira. Mas ela queria ocultar-me o rosto. Os seus cabelos estavam
desalinhados e a sua face tinha um lanho que sangrava.
- Foi o meu marido...
Deixou-se cair na borda da cama. Eu não tinha um lenço para limpar as gotas de sangue que tinha na face.
- Discuti com o meu marido...
Ela tinha-se estendido a meu lado. Os dedos sapudos de Villecourt, a mão curta e grossa a bater no seu rosto... Só de pensar nisso, tinha vontade de vomitar.
- É a última vez que discuto com ele... Agora, vamos partir.
- Partir?
- Sim. Eu e tu. Tenho lá em baixo um automóvel.
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- Mas partir para onde?
- Olha... Trouxe o diamante...
Ela meteu a mão por debaixo do seu corpete e mostrou-me o diamante preso por um fio muito fino, à volta do pescoço.
- Com ele, não teremos problemas de dinheiro...
Tirou o fio do pescoço e passou-mo para a mão.
- Guarda-o.
Eu coloquei-o sobre a mesinha de cabeceira. Esse diamante metia-me medo, tal como o lanho que sangrava na sua face.
- Agora pertence-nos - disse Sylvia.
- Achas mesmo que temos de o levar?
Ela parecia não me ouvir.
- Jourdan e o outro vão pedir contas ao meu marido... Não vão largá-lo enquanto ele não devolver o diamante...
Ela falava em voz baixa como se alguém nos ouvisse por detrás da porta.
- E ele não poderá nunca devolvê-lo... Eles far-lhe-ão pagar caro... Isso há-de ensinar-lhe o que é ter más companhias...
Ela aproximara o seu rosto do meu e dissera-me esta última frase ao ouvido. Olhou-me de frente nos olhos.
- E ficarei viúva...
Nesse instante fomos sacudidos por um riso tonto nervoso. Depois aproximou-se ainda mais de mim e apagou o candeeiro da mesinha de cabeceira.
O automóvel estava estacionado em frente do hotel debaixo dos plátanos, no local onde os jogadores prosseguiam as suas intermináveis partidas de
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petanca. Mas eles já lá não estavam e tinham apagado as lâmpadas eléctricas das árvores. Ela queria conduzir. Sentou-se ao volante e eu sentei-me ao lado dela. Uma
mala estava colocada, atravessada, no banco de trás.
Uma última vez, seguimos o cais de La Varenne e, na minha memória, o automóvel roda lentamente. Entrevi os choupos da pequena ilha, no meio do Marne, com as suas
ervas altas, o seu pórtico e o seu baloiço, que alcançávamos a nado, há muito, antes de a água estar infectada. Ao longe, na outra margem, a massa escura da encosta
de Chennevières. Desfilaram, uma última vez, os pavilhões em pedra calcária, as vivendas normandas, os chalés, os bungalows construídos no princípio do século com
o dinheiro das meninas... E os seus jardins onde se plantou uma tília. O grande pavilhão do Círculo dos Desportos do Marne. A grade e o parque do Château des íles
Jochem...
Antes de virar à direita, uma última vez o Beach de La Varenne, lá onde tudo começou, a sua prancha de mergulhos, os seus vestiários, a sua pérgola sob a lua, esse
cenário que, no Verão, parecia tão feérico na nossa infância e que, esta noite, está silencioso e abandonado para sempre.
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Foi a partir desse momento da nossa vida que sentimos angústia, um sentimento difuso de culpabilidade e a certeza de que tínhamos de fugir de alguma coisa, sem muito
bem sabermos de quê. Essa fuga ter-nos-á levado para lugares muito diferentes antes de acabar aqui, em Nice.
Quando Sylvia estava estendida a meu lado, eu não conseguia evitar tomar o diamante entre os dedos ou contemplá-lo brilhando sobre a sua pele e dizer para comigo
mesmo que nos dava azar. Mas não. Outros, antes de nós, se tinham batido por ele, outros, depois de nós, o guardariam um momento no pescoço e no dedo e ele atravessaria
os séculos, duro e indiferente ao tempo que passa e aos mortos que deixava atrás de si. Não. A nossa angústia não vinha do contacto com essa pedra fria com reflexos
azuis mas, sem dúvida, da própria vida.
No entanto, no princípio, precisamente depois de termos abandonado La Varenne, conhecemos um breve período de repouso e bem-estar. Em La Baule, no mês de Agosto.
Tínhamos alugado, através de uma agência da Rua des Lilas, um quarto próximo do mini-golfe.
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Até cerca da meia-noite, a gritaria e as risadas dos jogadores embalavam-nos. Sem chamar a atenção de ninguém, íamos beber um copo numa das mesas, debaixo dos pinheiros,
diante do balcão com telhado de ardósias verdes onde se distribuíam os tacos e as bolas brancas de golfe.
Nesse Verão estava muito calor e nós tínhamos a certeza de que nunca nos encontrariam aqui. De tarde, seguíamos o aterro e avistávamos o ponto da praia onde a multidão
era mais densa. Então, descíamos até essa praia, à procura de um pequenino espaço livre para nos estendermos nas nossas toalhas de banho. Nunca fomos tão felizes
como nesses momentos, perdidos no meio da multidão com perfume de ambre solaire. À nossa volta, as crianças construíam os seus castelos de areia e os vendedores
ambulantes passavam por cima dos corpos e apregoavam os seus gelados. Éramos como toda a gente, nada nos distinguia dos outros, nesses domingos de Agosto.
Patrick Modiano
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