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Quarta-feira, 4 de julho de 2007; East Wemyss
Uma americana qualquer berrava no rádio uma canção desafinada de country alternativo sobre o Dia da Independência. Só que a canção não era sobre a bandeira americana
de estrelas e listras, mas uma abordagem radical da violência doméstica. Como policial, Karen não podia aprovar; mas,
como mulher, tinha de admitir que a solução dada pela música tinha seu apelo. Se Phil estivesse ali, ela teria apostado qualquer coisa com ele que o homem que estava
a ponto de conhecer não teria a canção "Dia da Independência" tocando no rádio do seu carro.
Ela dirigiu lentamente pela rua estreita que levava ao que haviam sido o poço e os escritórios da mina de carvão Michael. Não havia nada lá além de uma área escarpada
onde a cantina e o escritório de pagamentos ficavam. Todo o resto fora coberto por jardins e reformado. Sem a torre vermelho-ferrugem do elevador da mina era difícil
se orientar. Mas na extremidade mais distante do asfalto, um único carro estava estacionado de frente para o mar. Era seu ponto de encontro.
O carro ao lado do qual ela parou era um velho Rover, polido até os limites do possível. Ela se sentiu levemente envergonhada pela coleção de insetos mortos que
decorava a placa do seu. A porta do Rover se abriu em sincronia com a do carro dela, e os dois motoristas saíram ao mesmo tempo, como em uma cena coreografada de
um filme. Karen caminhou até a frente de seu carro e esperou que ele se aproximasse dela.
Era mais baixo do que ela esperava. Devia ter se esforçado para alcançar o mínimo de 1,73m, necessário para ser um policial. Talvez o cabelo tivesse ajudado um pouco.
Agora era cinza chumbo, mas o topete teria deixado Elvis com inveja. Não lhe permitiriam usar o rabo de pato e as costeletas quando era oficial da ativa, mas, no
que se referia a estilo de cabelo, Brian Beveridge tinha se aproveitado bem da aposentadoria.
Assim como Elvis, ele acumulara gordura desde os dias em que se pavoneava pelas ruas dos vilarejos de Wemyss. Os botões da imaculada camisa branca se estiravam sobre
uma barriga substancial, mas as pernas eram desarmoniosamente finas, e os pés, surpreendentemente delicados. Seu rosto apresentava os tons avermelhados e o excesso
de gordura de um homem fadado a um acidente cardiovascular. Quando ele sorria, as bochechas se transformavam em bolas rosadas, como se alguém as houvesse enchido
com algodão.
- Investigadora Pirie? - ele perguntou, animado.
- Karen - ela disse. - E você deve ser Brian. Obrigada por vir me encontrar. - Era como cumprimentar um boneco de marshmallow, todo macio e
aconchegante.
- É melhor do que ficar caducando no jardim - ele disse com um forte sotaque de Fife. - Sempre fico contente em ajudar. Fiz a ronda nestes vilarejos durante
trinta anos e, para ser sincero, sinto saudade da sensação de conhecer cada calçada e cada casa. Naquela época, você podia seguir carreira sendo policial de rondas.
Não havia pressão para conseguir promoções ou para trabalhar no DIC. - Ele revirou os olhos. - Lá vou eu. Prometi à minha esposa que não iria dar uma de Dixon of
Dock Green,* mas não consigo evitar.
Karen riu. Ela já gostava daquele homenzinho animado, mesmo estando completamente ciente de que, se trabalhasse ao lado dele, no passado, teria provavelmente tido
outra opinião.
- Aposto que você se lembra do caso Catriona Maclennan Grant - ela disse.
Subitamente melancólico, ele assentiu.
- Jamais me esquecerei. Eu estava lá naquela noite... é claro que você sabe disso, é por isso que estou aqui. Às vezes, ainda sonho com aquela noite. Os tiros,
o cheiro da cordite no ar marinho, os gritos e o choro. Todos esses anos se passaram e quais são os resultados que temos para mostrar? Lady Grant está no túmulo,
ao lado da filha. Jimmy Lawson, na prisão pelo resto da vida. E Brodie Grant, feito o senhor do maldito universo. Nova esposa, novo filho. Engraçado como são as
coisas, não?
- Nunca se sabe - Karen disse, feliz em usar um clichê, no momento.
- Então, você pode me contar tudo que aconteceu enquanto caminhamos até a Lady's Rock?
Eles passaram por uma fileira de casas parecidas com as da rua de Jenny Prentice em Newton of Wemyss, abandonadas, agora que a razão de sua existência não estava
mais ali. Em seguida, adentraram o bosque, e a trilha começou a descer, uma muralha de pedra na altura da cintura, de um lado, com densos arbustos nas margens. A
distância, ela podia ver o cintilar do mar, o sol brilhando pela primeira vez, enquanto desciam até o nível da praia.
* Série de televisão muito popular na Inglaterra de 1955 a 1976. As histórias se passavam numa delegada de polícia de Londres, e o personagem principal, George Dion, era o típico policial britânico, justo e de bom coração. (N.T.)
- Tínhamos equipes posicionadas aqui no alto e também em West Wemyss - disse Beveridge. - Naquela época, não era possível caminhar pela orla até East Wemyss
por causa dos dejetos da mina. Quando fizeram a estrada costeira, receberam dinheiro da União Europeia e removeram todos os vestígios de hematita do litoral. Olhando
agora você jamais saberia.
Ele tinha razão. Ao chegarem ao nível da orla, Karen pôde ver até Buckhaven, mais além de East Wemyss, no alto do promontório. Em 1985, a vista não teria existido.
Ela se virou na direção de West Wemyss, surpresa por não conseguir ver a Lady's Rock de onde estava.
Karen seguiu Beveridge pelo caminho, tentando imaginar como devia ter sido aquela noite. O arquivo dizia que tinha sido noite de lua nova. Imaginou o astro em forma
de foice no céu e as estrelas salpicadas na noite extremamente fria. A Ursa Maior como uma grande panela. O cinto e a adaga de Órion, e todas as outras constelações
cujos nomes ela não sabia. Os policiais escondidos na mata, respirando com a boca aberta para que seu hálito esfriasse antes de sair em forma de vapor. Ela observou
os sicômoros altos, pcrguntando-se se estariam muito menores naquela época. Havia cordas penduradas nos galhos grossos, onde as crianças se balançariam como quando
ela era pequena. Para Karen, em seu fértil estado de imaginação, as cordas lembravam forcas, imóveis no ar suave da manhã, esperando por seus ocupantes. Ela estremeceu
levemente e se apressou para alcançar Beveridge. Ele apontou para os penhascos altos, onde terminava o topo das árvores.
- Lá em cima fica Newton. Você pode ver como os penhascos são íngremes. Ninguém poderia ter vindo de lá sem que a gente percebesse. Os caras que estavam no
comando deduziram que os seqüestradores teriam de vir pela trilha da costa, de um lado ou de outro, então colocaram a maior parte de seus homens aqui, em meio às
árvores. - Ele se virou e apontou para o que parecia um enorme rochedo, ao lado da trilha. - E um cara com um rifle lá em cima da Lady's Rock. - Ele deu uma risada
irônica. - Olhando para o lado errado, claro.
- É muito menor do que me lembrava, de quando era criança.
Olhando agora, Karen achava difícil acreditar que alguém pudesse ter se importado em dar nome a um pedaço tão insignificante de arenito.
A lateral da pedra, do lado da trilha, era um paredão reto de aproximadamente oito metros de altura, cheio de buracos e estriado por rachaduras. O paraíso, para
um moleque. No outro lado, transformava-se numa rampa de quarenta e cinco graus de inclinação, salpicada de tufos de grama rasteira e pequenos arbustos. Havia parecido
muito maior na imaginação dela.
- Não é só sua mente tentando pregar uma peça. Sei que agora não parece grande coisa, mas há vinte anos o nível do mar era muito mais baixo, e a rocha era
muito maior. Vamos, vou lhe mostrar o que quero dizer com isso.
Beveridge foi na frente até a lateral da rocha. A trilha era pouco mais do que grama amassada pela passagem de pés; bem inferior à trilha ben-feita pela União Europeia.
Eles caminharam por alguns metros além do rochedo até chegar ao que parecia uma estrada estreita feita de concreto rústico. Mais alguns passos à frente, havia uma
argola de metal chumbada no concreto. Karen franziu a testa, tentando entender aquilo. Deixou que seu olhar seguisse pela estrada, que fazia uma curva em ângulo
fechado antes mesmo de se encontrar com o mar.
- Não entendo - ela disse.
- Era um cais - disse Beveridge. - Aquele aro é um arganéu. Vinte anos atrás, você poderia trazer um barco de um bom tamanho até aqui. A costa estava entre
2,5m e 4,5m mais abaixo do que agora, dependendo de onde você estivesse. Foi assim que eles fizeram.
- Jesus - disse Karen, absorvendo tudo aquilo; o mar, o rochedo, o cais, a extensão de bosque atrás deles. - Com certeza devem ter ouvido quando eles se aproximaram,
não?
Beveridge sorriu para ela, como um professor com a aluna favorita.
- Isso é o que se pensaria, não? Mas, se eles estavam usando um barco aberto pequeno, poderiam trazê-lo até a margem, durante a maré alta, apenas com os remos.
Com um bom barqueiro, ninguém escutaria nada. Além disso, quando você está lá em cima, na trilha, o próprio rochedo atua como abafador de ruídos. Mal se pode ouvir
o mar. Na hora de fugir, se poderia acelerar a toda potência, é claro. Daria para chegar a Dysart ou Buckhaven no tempo que a polícia levaria para sair com o helicóptero.
Karen analisou a disposição do terreno novamente.
- Difícil acreditar que ninguém tenha pensado no mar.
- Pensaram - Beveridge falou abruptamente.
- Quer dizer, você pensou?
- Eu pensei. Meu sargento também. - Ele se virou e olhou para o mar.
- Por que ninguém ouviu vocês?
Ele deu de ombros.
- Até ouviram, isso não posso negar. Tivemos uma reunião com o investigador Lawson e Brodie Grant. Eles dois simplesmente não acreditaram que fosse possível.
Um barco grande seria óbvio demais, fácil demais de identificar e perseguir. Um barquinho seria impossível, porque não se conseguiria controlar um refém adulto num
barco aberto. Eles disseram que os seqüestradores haviam demonstrado planejamento e inteligência e que não iriam correr riscos estúpidos como esse. - Ele voltou
a encará-la e suspirou. - Talvez devêssemos ter insistido mais. Talvez, se fizéssemos isso, o resultado tivesse sido diferente.
- Pode ser - Karen disse, pensativa. Até agora, todos haviam analisado aquela operação fracassada de resgate do ponto de vista da polícia e de Brodie Grant.
Mas havia outro ângulo que merecia consideração. - Mas eles não deixavam de ter razão, não é mesmo? Como foi que os seqüestradores conseguiram fazer tudo aquilo
com um barco pequeno? Eles tinham um refém adulto. Tinham um refém bebê. Tinham de manejar o barco e manter os reféns sob controle e não pode ter havido muitos deles,
num barco suficientemente pequeno para evitar ser percebido ao chegar. Eu não gostaria de ter dirigido essa operação.
- Nem eu - disse Beveridge. - Já teria sido suficientemente difícil chegar à margem se todos estivessem do mesmo lado; imagine estando uns contra os outros.
- A não ser que eles estivessem ali bem antes do momento da entrega do resgate. Devia estar escuro por volta das quatro da tarde, e o próprio cais ocultaria
um barquinho da visão da maioria dos pontos... - Ela ponderou. - A que horas os seus homens se posicionaram?
- Supostamente, tínhamos a área toda sob vigilância a partir das duas. As equipes avançadas estavam em posição às seis.
- Então, teoricamente, eles poderiam ter chegado sorrateiramente depois que escureceu e antes que seus rapazes estivessem a postos - ela disse, reflexivamente.
- É possível - disse Beveridge, parecendo pouco convencido. - Mas como eles poderiam ter certeza de que nós não tínhamos o cais sob guarda? E como conseguiriam
manter um bebê de seis meses quieto, no frio congelante, durante três ou quatro horas?
Karen caminhou ao longo do velho cais, maravilhando-se com o movimento da margem. Quanto mais ela descobria sobre a mecânica daquele caso, menos sentido fazia. Ela
não se achava estúpida. Mas não estava conseguindo juntar os dados. Nunca houve sequer um testemunho ocular idôneo de Cat ou Adam depois de sua captura. Ninguém
vira uma pessoa de tocaia na casa de Cat, nem a sua captura. Ninguém os vira chegar ao local da entrega do resgate. Ninguém os vira escapar. Se não fosse pelo cadáver
muito real de Cat Grant, ela quase poderia acreditar que aquilo nunca havia acontecido.
Mas acontecera.
Castelo de Rotheswell
Brodie Grant entregou o relatório de Bel para a esposa e começou a remexer na máquina de café expresso em seu escritório.
- Ela está indo surpreendentemente bem - ele disse. - Eu não estava muito seguro sobre esse plano da Susan, mas está valendo cada centavo. Achei que deveríamos
usar um investigador particular, mas os jornalistas parecem ser igualmente bons.
- Ela tem mais coisas em jogo do que um detetive particular teria, Brodie. Acho que ela está quase tão desesperada por um resultado quanto nós - disse Susan
Charleson, servindo-se um copo de água e sentando-se no banco da janela. - Com o acesso sem precedentes a você, desconfio que ela esteja vendo um best-seller no
futuro.
- Se ela nos ajudar a conseguir algumas respostas, depois de todo esse tempo, ela bem que merece - disse Judith. - Você tem razão, é um começo impressionante.
O que a investigadora Pirie acha?
Grant e Susan trocaram um rápido olhar de cumplicidade.
- Nós ainda não passamos essa informação para ela - disse Grant.
- E por que não? Imagino que ela acharia útil saber. -Judith olhou de um para o outro, perplexa.
- Acho que vamos manter isso entre nós por enquanto - disse Grant, apertando o botão que lançava água quente pressurizada através do café para produzir um
expresso tão perfeito quanto o de qualquer barista italiano.
- Minha experiência com a polícia, na última vez, não foi exatamente feliz. Eles estragaram tudo, e minha filha acabou morta. Desta vez, prefiro deixar o
mínimo possível a cargo deles.
- Mas esse caso é policial - protestou Judith. - Foi você que os incluiu. Agora não pode ignorá-los.
- Não posso? - Sua cabeça se ergueu. - Talvez se eu os tivesse ignorado na última vez e feito as coisas do meu jeito, Cat ainda estivesse viva. E seria Adam...
- Ele parou, de repente, percebendo que nada do que dissesse poderia tirá-lo do buraco que acabara de cavar.
- Realmente - disse Judith, com a voz tão afiada quanto uma farpa. Ela jogou os papéis em cima da mesa dele e saiu.
Grant fez uma careta.
- "Gelo oco" - ele disse, quando a porta se fechou atrás da esposa.
- Não tratei o assunto tão bem quanto poderia ter feito. Coisas traiçoeiras, as palavras.
- Isso passa - Susan disse, com indiferença. - Concordo com sua opinião. Nós devemos manter segredo, por enquanto. A polícia é notoriamente incapaz de manter
informações em sigilo.
- Não é isso que me incomoda. O que me preocupa mais é que eles estraguem tudo novamente. Esta pode ser a última chance que temos de descobrir o que aconteceu
com a minha filha e meu neto, e não quero arriscar que tudo desande. É importante demais. Eu deveria ter assumido mais o controle na última vez. Não cometerei esse
erro novamente.
- Nós vamos ter de contar à polícia, em algum momento, se Bel Richmond aparecer com um suspeito de verdade - ela ressaltou.
Grant ergueu as sobrancelhas.
- Não necessariamente. Não se ele estiver morto.
- Eles vão querer esclarecer o caso.
- Isso não é problema meu. Quem quer que tenha destruído minha família merece morrer. Trazer a polícia para dentro do caso não fará com que isso aconteça.
Se eles já estiverem mortos, tudo bem. Se não estiverem... bem, vamos atravessar essa ponte quando chegarmos a ela.
Pouca coisa chocava Susan Charleson depois de três décadas trabalhando para Brodie Grant. Mas, pela primeira vez, ela sentiu um tremor abalar suas certezas pacíficas.
- Vou fingir que nunca ouvi isso - ela disse.
- Talvez seja uma boa ideia - ele disse, terminando seu expresso. - Uma ótima ideia.
Glenrothes
Phil falava ao telefone quando Karen voltou para o escritório; ele tinha o fone acomodado no pescoço e rabiscava em seu caderno.
- E você tem certeza disso? - ela o ouviu dizer enquanto jogava a bolsa sobre a mesa e dirigia-se à geladeira. Quando voltou com uma Coca-Cola Diet, ele estava
olhando com tristeza para suas anotações. - Era a Dra. Wilde - ele disse. - Ela conseguiu que alguém desse um jeitinho, com o DNA. Não há conexão entre Misha Gibson
e o corpo na caverna.
- Merda - disse Karen. - Então significa que o corpo não é de Mick Prentice.
- Ou que Mick Prentice não era o pai de Misha.
Karen se reclinou em sua cadeira.
- É uma boa hipótese, mas, se é para ser sincera, não acho que Jenny Prentice estivesse saracoteando por aí enquanto Mick ainda estava em cena. Nós já teríamos
ouvido alguma coisa a respeito. Um lugar como Newton é uma verdadeira fábrica de fofoca. Sempre tem alguém pronto para dedurar o vizinho. Acho mais provável que
o corpo não seja de Mick.
- Além disso, você disse que a vizinha foi categórica sobre Jenny ser apaixonada por Mick. Que Tom Campbell não passou de um pobre tapa-buraco.
- Então, se estivermos certos sobre ele ser o pai de Misha, talvez tenha sido Mick quem colocou o corpo lá. Ele conhecia as cavernas, provavelmente poderia
ter arrumado uns explosivos. Precisamos descobrir se ele teve alguma experiência com detonações. Mas enterrar um corpo na caverna Thane's teria sido uma razão suficientemente
boa para desaparecer. E sabemos que mais alguém entrou na lista dos desaparecidos na mesma época...
- Karen estendeu a mão para pegar seu caderno e folheou as páginas até encontrar o que estava procurando. Olhou de relance para o relógio de pulso. - Você
acha que onze e meia é tarde demais para telefonar para alguém?
Phil pareceu confuso.
- Como assim, tarde demais? Não é nem hora do almoço ainda.
- Quero dizer da noite. Na Nova Zelândia. - Ela apanhou o telefone e digitou o número de Angie Mackenzie. - Veja bem, isso agora é uma investigação de assassinato.
Isso sempre tem prioridade sobre o sono de alguém.
Uma voz masculina irritada atendeu.
- Quem é?
- Desculpe-me por importuná-lo, aqui é da Polícia de Fife. Preciso falar com Angie - disse Karen, tentando parecer agradável.
- Deus do céu. Você sabe que horas são?
- Sim, me desculpe. Mas preciso muito falar com ela.
- Espere aí, vou chamá-la. - Longe do telefone, ela pôde ouvi-lo chamar o nome da esposa.
Um minuto inteiro se passou, então Angie entrou na linha.
- Eu estava no banho - ela disse. - É a investigadora Pirie?
- Isso mesmo. - Karen suavizou a voz. - Realmente sinto muito por incomodá-la, mas queria informar que encontramos restos humanos por trás de um desmoronamento
dentro de uma das cavernas de Wemyss.
- E você acha que pode ser Andy?
- É possível. A escala cronológica parece encaixar.
- Mas o que ele estaria fazendo nas cavernas? Ele era um cara que gostava de atividades ao ar livre. Uma das coisas que ele apreciava em ser funcionário do
sindicato era não precisar nunca mais ir ao subterrâneo.
- Não sabemos ainda se é ele - disse Karen. - Essas são perguntas para mais tarde, Angie. Ainda temos que identificar os restos. Você por acaso sabe quem
era o dentista do seu irmão?
- Como foi que ele morreu?
- Ainda não sabemos ao certo - disse Karen. - Como você pode imaginar, já faz muito tempo. É um desafio para as análises criminalísticas. Vou manter você
informada, é claro. Mas, nesse meio-tempo, temos que tratar o caso como uma morte inexplicável. Então, e o dentista de Andy?
- Ele ia ao Dr. Torrance, em Buckhaven. Mas ele morreu alguns anos antes de eu me mudar da Escócia. Nem sei se ainda existe o consultório. - Ela parecia um
pouco assustada. Era o choque fazendo efeito, pensou Karen.
- Não se preocupe, nós verificaremos - ela disse.
- DNA - explodiu Angie. - Vocês podem colher DNA do... do que vocês encontraram?
- Sim, podemos. Podemos pedir que a polícia local daí colha uma amostra sua?
- Não é necessário. Antes de partir para a Nova Zelândia, fiz com que meu advogado guardasse uma cópia autenticada da minha análise de DNA.
- Ela continuou num tom mais baixo. - Achei que Andy tivesse se atirado de alguma montanha. Ou, talvez, entrado num lago com os bolsos cheios de pedras. Não
queria que ele fosse enterrado como indigente. Meu advogado tem ordens de entregar uma análise do meu DNA à polícia sempre que surgir um corpo não identificado de
idade compatível. - Karen escutou um soluço do outro lado do mundo. - Sempre tive esperanças de que...
- Sinto muito - disse Karen. - Entrarei em contato com seu advogado.
- Alexander Gibb - disse Angie. - Em Kirkcaldy. Me desculpe, preciso desligar agora. - A linha ficou muda de repente.
- Não é tarde demais, então - disse Phil.
Karen suspirou. Balançou a cabeça.
- Depende do que você quer dizer com "tarde demais".
Hoxton, Londres
Jonathan acionou a memória do telefone que correspondia ao número do celular de Bel. Quando ela atendeu, ele disse rapidamente:
- Não posso falar agora, tenho uma reunião com meu orientador. Vou mandar algumas coisas para você por e-mail, daqui a aproximadamente uma hora. Mas aí vai
a novidade: Daniel Porteous está morto.
- Isso eu sei - Bel disse com impaciência.
- O que você não sabe é que ele morreu em 1959, aos quatro anos de idade.
- Oh, merda - disse Bel.
- Eu mesmo não teria expressado melhor. Mas há um porém: em novembro de 1984, Daniel Porteous registrou o nascimento de seu filho.
Bel se sentiu zonza, percebeu que prendera a respiração e a soltou, num suspiro.
- Fala sério.
- Juro, é isso mesmo. Nosso Daniel Porteous de alguma forma conseguiu ter um filho vinte e cinco anos depois de morrer.
- Surreal. E quem era a mãe?
Jonathan riu.
- É aí que fica ainda melhor. Eu vou soletrar o nome para você. F-R-E-D-A C-A-L-L-O-W é o nome que consta na certidão de nascimento. Fale o nome em voz alta,
Bel.
- Freda Callow. - Pronunciava-se como Frida Kahlo. O filho da puta era atrevido.
- Ele tem senso de humor, nosso Daniel Porteous.
Dundee
Karen encontrou River na universidade, sentada com seu laptop em uma salinha forrada por prateleiras com caixas plásticas repletas de ossi-nhos minúsculos.
- Pelo amor de Deus, que raio de lugar é este? - ela perguntou, afundando na única outra cadeira que havia.
- A professora aqui é a maior especialista do mundo em ossos de bebês e crianças pequenas. Você já viu o crânio de um feto?
Karen negou com a cabeça.
- E nem quero, obrigada.
River sorriu.
- O.k., não vou forçá-la a isso. Digamos apenas que, depois de ver um, você entenderá de onde veio o ET. Bem, imagino que esta não seja uma visita social.
Karen fungou.
- Ah, claro. O departamento de anatomia da Universidade de Dundee é minha primeira opção de passeio para um dia de folga. Não, River, não é uma visita social.
Estou aqui porque preciso da cadeia de custódia de uma evidência, referente a um inquérito de homicídio. - Ela colocou uma folha de papel sobre a mesa. O advogado
de Angela Kerr tinha sido rápido no gatilho. - Este é o DNA da irmã de Andy Kerr, Angie. Estou requerendo formalmente que você o compare com o DNA extraído dos restos
humanos que foram encontrados na área conhecida como caverna Thane's, entre East Wemyss e Buckhaven. Você receberá tudo por escrito assim que eu voltar para a minha
mesa.
River olhou com curiosidade.
- Trabalho rápido, Karen. De onde veio isto? - perguntou.
- Angie Mackcnzie é uma mulher de visão - disse Karen. - Ela deixou sob a guarda de seu advogado. Para o caso de aparecer um corpo. - Enquanto ela falava,
River digitava alguma coisa em seu computador.
- Farei um relatório detalhado por escrito para você - ela disse vagarosamente, distraída pelo que estava vendo. - E precisarei escanear isto aqui para ter
certeza... Mas uma checada rápida me diz que essas duas pessoas estão intimamente relacionadas. - Ela ergueu os olhos. - Parece que você encontrou uma identidade
para seu homem misterioso.
Siena
Bel se perguntava como os jornalistas investigativos italianos conseguiam lidar com aquilo. Ela achava que a burocracia britânica era exaustiva e cheia de empecilhos,
mas, comparada à italiana, era como ter acesso direto a todas as áreas. Primeiro, teve de se deslocar de um escritório a outro. Depois, a infinidade de formulários
a preencher. Então, os olhares impassíveis de indiferença dos funcionários que, obviamente, se ressentiam da interrupção de seu descanso por alguém que queria que
fizessem seu trabalho. Era um milagre que qualquer coisa pudesse ser descoberta naquele país.
Já pelo final da manhã, ela começou a temer que o tempo se acabasse antes que conseguisse descobrir o que precisava saber. Então, minutos antes de o cartório de
registros fechar para o almoço, uma loura oxigenada de olhar entediado chamou seu nome. Bel correu até o balcão, esperando ser enrolada até o dia seguinte. Em vez
disso, em troca de um maço de euros sem recibo, ela recebeu duas folhas de papel que pareciam ter sido fotocopiadas huma máquina quase sem toner. Uma estava intitulada
Certificato di Morte, a outra, Certiflcato di Residenza. No final, ela havia conseguido mais do que esperava.
O atestado de óbito de Daniel Simeon Porteous afirmava simplesmente que ele havia morrido em 7 de abril de 2007, aos 52 anos, no hospital Policlínico Le Scotte,
em Siena. Seus pais eram Nigel e Rosemary Porteous. E isso era tudo. Sem causa da morte, sem endereço. Tão útil quanto uma geladeira para um esquimó, pensou Bel
com amargura. Ela cogitou ir ao hospital para ver se conseguia descobrir alguma coisa, mas logo descartou a ideia. Romper as barreiras da oficialidade seria impossível
para alguém que não conhecesse o sistema. E a chance de encontrar alguém subornável
que se lembrasse de Daniel Porteous depois de tanto tempo era remota e, provavelmente, estaria além de seu domínio do idioma.
Com um suspiro, ela se voltou para a outra certidão. Parecia ser uma lista curta de endereços e datas. Não demorou muito para que ela percebesse que se tratava de
um registro de onde Daniel havia morado desde que viera para a Commune di Siena, em 1986. E que o último endereço da lista era onde ele estivera morando ao falecer.
Ainda mais surpreendente era que ela sabia mais ou menos onde ficava. Costalpino era a última vila pela qual havia passado de carro, vindo de Campora. A estrada
serpenteava pelas ruas principais da vila em uma série de curvas, margeada por casas, e um ou outro bar ou loja.
Bel voltou correndo para o carro, apesar do calor úmido do meio do dia. Ofegou com gratidão ao ligar o ar-condicionado e não perdeu tempo em sair do estacionamento
e tomar a estrada rumo a Costalpino. O homem atrás do balcão do primeiro bar onde entrou lhe deu excelentes instruções e, apenas quinze minutos após sair de Siena,
ela estacionava o carro a algumas casas daquela em que esperava encontrar Gabriel Porteous. Era uma rua agradável, mais larga do que na maior parte da Toscana. Árvores
altas davam sombra às calçadas estreitas, e os muros na altura da cintura, com grades de ferro em cima, separavam villas pequenas, mas bem cuidadas. Bel sentiu o
pulsar da excitação em sua garganta. Se estivesse certa, poderia estar prestes a ficar cara a cara com o filho perdido de Catriona Maclennan Grant. A polícia falhara
duas vezes, mas Bel Richmond estava a ponto de mostrar a eles como se fazia.
Estava tão confiante que mal pôde acreditar na placa à frente da villa de estuque amarelo. Verificou novamente os números para ter certeza de que estava diante da
casa certa, mas não havia nenhum erro. As venezianas verde-escuras estavam bem fechadas. As plantas nos vasos altos de terracota que margeavam a rampa de acesso
pareciam mirradas e empoeiradas. Algumas ervas daninhas apontavam no meio do cascalho e havia correspondências de mala-direta enchendo a caixa de correio. Tudo reforçava
o aviso de Vende-se, com o nome e o número de uma imobiliária em Sovicille, perto dali. Onde quer que estivesse Gabriel Porteous, parecia não ser ali.
Era um retrocesso. Mas não era o fim do mundo. Ela havia superado obstáculos maiores do que esse, a caminho de histórias que tinham construído sua reputação como
alguém capaz de cumprir com o prometido.
Tudo o que tinha de fazer era formular uma estratégia e segui-la. E, dessa vez, se esbarrasse em algo que não pudesse fazer, poderia apelar para os recursos de Brodie
Grant para que tudo se realizasse. Não era exatamente uma sensação reconfortante, mas era melhor do que nada.
Antes de se dirigir a Sovicille, decidiu investigar os vizinhos. Não seria a primeira vez que alguém que sabia estar sendo procurado fizesse todo o possível para
que sua casa parecesse estar desabitada. Bel já havia notado um homem na varanda de uma villa diagonalmente em frente à casa Porteous. Não houvera nada de dissimulado
na forma com que ele a observara subir a rua e ler a placa. Hora de enfeitar a verdade um pouquinho.
Atravessou a estrada e o cumprimentou com um aceno.
- Olá - disse.
O homem, que poderia estar em qualquer ponto entre cinquenta e setenta anos, lançou-lhe um olhar avaliador, fazendo-a desejar ter vestido uma camiseta larga, em
vez do top justo de alcinhas que escolhera naquela manhã. Ela adorava a Itália, mas, Deus do céu, odiava a forma como tantos homens olhavam para as mulheres, como
se fossem pedaços de carne. Esse não era nem sequer bonito: um olho maior do que o outro, nariz de batata e pelos saltando pela gola da camiseta. Ele alisou uma
sobrancelha
com o dedo mindinho e deu um sorriso falso.
- Olá - respondeu, conseguindo carregar a palavra de significado.
- Estou procurando o Gabriel - ela disse. Acenou por sobre o ombro indicando a casa. - Gabriel Porteous. Sou amiga da família, da Inglaterra. Não vi mais
o Gabriel desde que Daniel faleceu, e este é o único endereço que tenho. Mas a casa está à venda, e não parece que Gabe ainda esteja morando ali.
O homem enfiou as mãos nos bolsos e deu de ombros.
- O Gabriel não mora aí há mais de um ano. Parece que está estudando em algum lugar, não sei onde. Ele voltou por um tempo antes de o pai morrer, mas não
o vejo há alguns meses. - Seu sorriso ressurgiu, um pouco mais largo do que antes. - Se você quiser me dar seu telefone, eu posso ligar, caso ele apareça.
Bel sorriu.
- É muito gentil da sua parte, mas só vou ficar aqui alguns dias. Você disse que "parece que" Gabe está estudando. - Ela lhe dirigiu um olhar de cumplicidade.
- Como se no fundo achasse que ele anda aprontando alguma.
O truque deu certo.
- O Daniel, ele sim, dava duro. Não brincava em serviço. Mas Gabe? Esse vivia embromando, papeando com os amigos. Nunca o vi com um livro nas mãos. Que tipo
de estudos ele estaria fazendo? Se fosse a sério, ele teria se matriculado na universidade em Siena, e então poderia morar em casa e só pensar nos estudos. Mas não,
ele se muda para algum lugar longe, onde possa se divertir. - Ele desaprovou. - Daniel já estava doente havia semanas quando Gabriel apareceu.
- Talvez Daniel não tenha contado a ele que estava doente. Ele sempre foi uma pessoa bastante reservada - Bel disse, inventando conforme falava.
- Um bom filho teria visitado o pai regularmente e saberia - o homem insistiu.
- E você não faz ideia de onde ele esteja estudando?
O homem balançou a cabeça.
- Não. Eu o vi no trem, uma vez. Eu estava voltando de Florença. Portanto, deve ser em algum lugar no norte. Florença, Bolonha, Pádua, Perúgia. Poderia ser
qualquer lugar.
- Ah, tudo bem... Acho que vou ter que tentar a imobiliária. Queria muito vê-lo. Me sinto mal por ter perdido o enterro. Havia muitas pessoas da velha turma
presentes?
Ele pareceu surpreso.
- Foi um funeral reservado. Nós, os vizinhos, só ficamos sabendo depois de tudo terminado. Eu falei com Gabriel, posteriormente. Queria dar minhas condolências,
sabe? Ele disse que o pai tinha desejado que fosse feito daquela forma. Mas agora você está falando como se tivesse acontecido alguma coisa. - Ele pegou um maço
de cigarros e acendeu um. - Não se pode mais confiar nos jovens.
Não havia motivos reais para ela despistar alguém que nunca mais iria ver, mas sempre achava melhor manter a prática.
- Eu estava falando de uma reunião dos velhos amigos de Daniel. Não do funeral.
Ele assentiu.
- O pessoal das artes. Ele os mantinha à parte de seus amigos locais. Eu conheci um casal uma vez. Eles apareceram na villa quando estávamos lá, jogando cartas.
Era outro cara inglês e uma mulher alemã. - Ele pigarreou e cuspiu por cima da balaustrada de pedra. - Não perco meu tempo
com alemães. Agora, aquele inglês... dava para pensar que ele era alemão também, pelo jeito como agia.
- Matthias? - arriscou Bel.
- Esse mesmo. Um arrogante. Tratava Daniel feito lixo. Como se só ele tivesse inteligência e talento. E veio cheio de piadas ao encontrar Daniel jogando cartas
com os moradores locais. O engraçado era que Daniel o deixava fazer isso. Nós não ficamos por perto, apenas terminamos a jogada e os deixamos lá. Se são esses seus
amigos artistas, pode ficar com eles.
- Eu também nunca tive muita paciência com Matthias - disse Bel. - De qualquer jeito, obrigada por sua ajuda. Vou dar um pulo até Sovicille e ver se os corretores
de imóveis podem me colocar em contato com Gabe.
Era incrível como até mesmo o encontro menos promissor podia trazer novas informações, pensou Bel ao partir. Agora tinha uma segunda fonte que achava que Matthias
era inglês, apesar do nome teutônico e da parceira germânica. Um britânico que não reconhecia suas raízes, que tinha inclinações artísticas, uma conexão com bilhetes
de resgate e uma amizade com o homem cujo filho se parecia assustadoramente com Cat Grant e seu pai. Aquilo estava começando a tomar uma forma tentadora em sua mente.
Dois jovens, artistas iniciantes, que sabem a respeito de Cat Grant porque ela frequenta os mesmos círculos. Também sabem sobre a fortuna de seu pai. Concebem um
plano para fazer seu pé-de-meia. Sequestrar Cat e o filho, fazendo com que pareça uma ação política. Fogem com o resgate e nunca mais terão de pintar para outra
pessoa além de si mesmos. Em linhas gerais, parece uma excelente ideia. Só que tudo dá terrivelmente errado e Cat morre. Eles ficam com a criança e o dinheiro do
resgate, mas agora são objeto de uma perseguição criminal.
Criminosos profissionais saberiam o que fazer e seriam frios o suficiente para fazê-lo. Mas esses indivíduos são garotos gentis, civilizados, que pensam estar envolvidos
em algo não muito mais sério que um trote universitário. Eles têm um barco, então simplesmente continuam atravessando o Mar do Norte em direção à Europa. Daniel
termina na Itália, e Matthias, na Alemanha. E, em algum momento, eles decidem não matar nem abandonar o bebê. Por qualquer razão que seja, decidem ficar com ele.
Daniel o cria como se fosse seu filho. Garantidos pelo dinheiro do resgate, ele se estabelece confortavelmente com o menino e, então, ironicamente, se torna um
artista razoavelmente bem-sucedido. Mas não pode lucrar com seu sucesso utilizando-se de entrevistas na mídia ou da exploração de marketing pessoal porque sabe que
é um criminoso foragido. E sabe que seu filho não é Gabriel Porteous. Ele é Adam Maclennan Grant, um jovem amaldiçoado com um rosto peculiar.
Era um roteiro bem atraente, quanto a isso não havia dúvidas. Mas ainda restavam perguntas que exigiam respostas, é claro. Como eles conseguiram colocar as mãos
no resgate, tendo em vista que estavam tropeçando no escuro tentando encontrar a mulher morta que o apanhara? Como puderam desativar os rastreadores que os policiais
colocaram no dinheiro? Como conseguiram fugir de barco sem serem vistos pelo helicóptero? Como dois estudantes de arte teriam conseguido uma arma, naquela época?
Eram ótimas perguntas, mas ela tinha certeza de que conseguiria lidar com elas, de uma forma ou outra. Teria de fazê-lo; aquela história era boa demais para ser
dispensada só por causa de alguns detalhes estranhos.
Sabia que conseguiria algo realmente bom quando obteve acesso exclusivo e sem precedente a Brodie Grant, mas aquilo era infinitamente melhor do que poderia ter esperado.
Era o tipo de história que tornaria seu nome famoso. Colocaria Bel entre os poucos jornalistas cujo nome era sinônimo de uma boa história. Como Stanley, com a descoberta
do Dr. Livingstone. Woodward e Bernstein, com o caso Watergate. Max Hastings, com a libertação de Port Stanley. Agora eles poderiam incluir Annabel Richmond, com
a revelação de Adam Maclennan Grant.
Havia uma porção de lacunas na história, até aquele ponto, mas elas poderiam ser preenchidas mais tarde. No momento, Bel precisava do jovem conhecido como Gabriel
Porteous. Com ou sem sua cooperação, ela precisava de uma amostra de seu DNA para que Brodie Grant pudesse confirmar se aquele era, realmente, seu neto desaparecido.
E, então, sua fama estaria garantida. Reportagens em jornais, um livro, talvez até mesmo um filme. Era realmente o máximo.
O escritório da imobiliária ficava numa rua secundária próxima à Via Nuova. A vitrine estava repleta de folhas de papel tamanho A4 mostrando fotografias e alguns
detalhes de cada propriedade. A villa Porteous estava lá, seus cômodos e instalações enumerados sem maiores comentários. Bel abriu a porta e encontrou-se num escritório
pequeno e cinzento. Arquivos
cinza, carpete cinza, paredes claras, mesas cinza. O único habitante, uma mulher de seus trinta anos, parecia uma ave-do-paraíso em comparação com o ambiente. A
blusa escarlate e o colar turquesa resplandeciam, atraindo o olhar para a cabeleira negra e o rosto perfeitamente maquiado. Ela estava definitivamente tirando o
máximo do que tinha, pensou Bel, enquanto cumpriam as formalidades.
- Infelizmente, não estou aqui atrás de uma propriedade - desculpou-se Bel, com um gesto. - Estou tentando contatar o dono da villa que você tem à venda em
Costalpino. Sou uma velha amiga do pai de Gabriel Porteous, Daniel. Por desgraça, eu estava na Austrália quando Daniel faleceu. Voltei à Itália por algum tempo e
queria ver Gabriel, apresentar minhas condolências. Você poderia me colocar em contato com ele?
A mulher revirou os olhos.
- Realmente, sinto muito. Não posso fazer isso.
Bel pegou sua carteira.
- Eu poderia pagar pelo seu tempo - ela disse, usando uma das fórmulas tradicionais da corrupção.
- Não, não, não é isso - a mulher disse, nem um pouco ofendida. - Quando digo que não posso, é isso mesmo que quero dizer. Não que eu não queira. Não posso.
- Ela parecia aturdida. - É muito estranho. Não tenho um endereço nem um número de telefone ou mesmo um e-mail do Signor Porteous. Nem mesmo um número de celular.
Tentei explicar que isso era muito pouco convencional, e ele disse que ele também era. Ele disse que, agora que o pai havia morrido, pretendia viajar e que não queria
ficar preso ao passado. - Ela deu um sorrisinho. - O tipo de coisa que os jovens acham muito romântico.
- E que o resto de nós acha terrivelmente egocêntrico - Bel disse. - Gabriel sempre foi muito decidido. Mas como você vai vender a casa se não pode entrar
em contato com ele? Como ele aprovará a venda?
A mulher abriu as mãos.
- Ele nos telefona toda segunda-feira. Eu disse a ele: "E se aparece alguém numa terça de manhã com uma oferta?" Ele disse: "Antigamente, as pessoas tinham
de esperar pela correspondência. Ninguém vai morrer se tiver de esperar até a segunda-feira seguinte, se estiver seriamente interessado em comprar a casa."
- E houve muitas ofertas?
A mulher pareceu aborrecida.
- Não a esse preço. Acho que ele precisa abaixar pelo menos uns cinco mil, antes que alguém leve a sério. Mas vamos ver. É uma casa bonita, deve aparecer
um comprador. Ele também a deixou vazia, o que faz com que os cômodos pareçam muito maiores.
Como a sugestão seguinte de Bel seria a de dar uma olhada na casa para ver se encontrava alguma pista de onde Gabriel poderia estar, a última revelação foi bem decepcionante.
Então, ela tirou um cartão da agenda. Um daqueles que tinha seu nome, celular e e-mail.
- Não tem problema - ela disse. - Quando ele telefonar, na segunda, talvez você pudesse lhe pedir para entrar em contato comigo. Conheci o pai dele
há uns vinte anos, e gostaria muito de vê-lo. - Ela estendeu-lhe o cartão.
Unhas escarlates o retiraram de sua mão.
- Claro, darei o recado a ele. E se você algum dia quiser uma propriedade por aqui... - Ela indicou a variedade de dados na vitrine. - Temos uma excelente
seleção. Sempre digo que estamos no lado da estrada que não está na moda e, portanto, os preços são mais baixos; mas as propriedades são igualmente bonitas.
Bel voltou para o carro, sabendo que não havia mais nada que pudesse fazer ali. Cinco dias até que Gabriel Porteous recebesse seu recado e, então, quem sabe ele
iria entrar em contato? Se não o fizesse, rastreá-lo seria uma tarefa para um detetive particular na Itália, alguém que conhecesse os macetes e as mãos certas em
que colocar envelopes de dinheiro. Ainda seria sua história, mas outra pessoa poderia fazer a parte chata. Enquanto isso, ela precisava voltar a Rotheswell para
ver se conseguia de uma vez por todas ter uma conversa com Fergus Sinclair.
Hora de explorar os recursos que Brodie Grant colocara à sua disposição. Ela telefonou para Susan Charleson.
- Olá, Susan - disse. - Preciso de um voo de volta ao Reino Unido o mais rápido possível.
Glenmthes
O problema dos casos arquivados, pensou Karen, era haver tantos becos sem saída. Situações em que, realmente, não havia nada que se pudesse fazer. Nenhuma testemunha
óbvia a interrogar. Nenhuma amostra criminalística a organizar. Em momentos como esse, ela ficava à mercê de sua inteligência, virando e revirando o cubo mágico
do que sabia, na esperança de que surgisse um novo padrão.
Já havia interrogado todo mundo que pudesse lhe dar uma indicação do que teria acontecido com Mick Prentice. De certa forma, isso devia ter funcionado a seu favor,
na investigação da morte de Andy Kerr, já que vinha conversando com as pessoas no contexto de uma investigação de alguém desaparecido. A não ser que tivessem algo
a esconder, as pessoas eram geralmente bastante abertas com a polícia quando se tratava de ajudar a rastrear desaparecidos. Quando o caso era de assassinato, todos
relutavam mais em falar. E o que porventura falavam sempre estava limitado por qualificações e ansiedade. Teoricamente, ela sabia que deveria voltar a suas testemunhas
e colher novos depoimentos, que poderiam conduzir a outras testemunhas que se lembrassem do que Andy Kerr estava dizendo e fazendo antes de morrer. Mas a experiência
lhe dizia que seria perda de tempo, agora que havia uma morte suspeita na jogada. Mesmo assim, ela enviara o Novo em Folha e um novo assistente do DIC para fazer
outra rodada de entrevistas. Talvez eles tivessem sorte e descobrissem algo que ela não houvesse percebido. A esperança é a última que morre.
Ela se voltou para o arquivo de Cat Grant. Estava empacada ali também. Até que recebesse um relatório adequado da polícia italiana, era difícil ver como poderia
progredir. No entanto, tinha havido um lance de sorte naquele caso. Havia contatado os pais de Fergus Sinclair na esperança de descobrir onde ele estava trabalhando
para que pudesse marcar uma entrevista com ele. Para sua surpresa, Willie Sinclair lhe dissera que o filho iria chegar com a esposa e os filhos naquela noite, para
suas férias anuais na Escócia. Na manhã seguinte, ela teria a chance de conversar com Fergus Sinclair. Parecia que ele era a única pessoa que restava capaz de revelar
algo sobre a personalidade de Cat Grant. A mãe dela estava morta, o pai não queria falar, e os arquivos não ofereciam indicações de amigos próximos.
Karen se perguntou se a falta de amigos era uma questão de escolha ou de personalidade. Ela conhecia pessoas que eram tão centradas no trabalho
que mal notavam a falta de relacionamentos próximos. Também conhecia outras que eram desesperadas por intimidade, mas cujo único talento era o de afastar os demais.
Ela se alegrou por sua sorte; tinha amigos cujo apoio e riso preenchiam uma parte importante de seus dias. Podia ser que lhe faltasse um relacionamento central,
mas achava sua vida sólida e confortável.
Como teria sido a vida de Cat Grant? Karen conhecera mulheres consumidas pelos filhos. Testemunhando seu olhar de adoração, sempre se sentira pouco à vontade. Filhos
eram seres humanos, não deuses a quem idolatrar. Teria o filho de Cat sido o centro de seu universo? Adam teria ocupado totalmente seu coração? De fora, parecia
que sim. Todo mundo supunha que Fergus era o pai do bebê, mas, mesmo que não fosse, uma coisa parecia clara: o pai de Adam fora banido de sua vida; parecia que a
mãe o havia desejado somente para si.
Ou talvez não. Karen se perguntou se estaria olhando pelo lado errado do telescópio. E se não havia sido Cat quem descartara o pai de Adam? E se ele tivesse tido
suas próprias razões para se recusar a aceitar um papel na vida do filho? Talvez ele não quisesse a responsabilidade. Talvez tivesse outras responsabilidades, outra
família cujo apelo foi ressaltado pela perspectiva de outro filho. Talvez ele estivesse apenas de passagem e tivesse partido antes mesmo que ela soubesse que estava
grávida. Não havia como negar que existiam outras possibilidades que valia a pena considerar.
Karen suspirou. Ela saberia mais depois de falar com Fergus. Com sorte, ele a ajudaria a descartar algumas de suas ideias mais loucas. "Casos arquivados", ela disse,
em voz alta. Podiam acabar com você. Assim como um amante, eles tentavam com promessas de que, desta vez, seria diferente. Tudo começaria cheio de frescor e excitação,
você tentaria ignorar aquelas ninharias que certamente iriam desaparecer, à medida que você conseguisse compreender melhor as coisas. Então, de repente, não progredia
mais. Rodas girando em falso na areia. E, antes que você se desse conta, tudo estava terminado. De volta à estaca zero.
Ela olhou de relance para Phil, que analisava bases de dados no computador, tentando rastrear uma testemunha de outro caso. Provavelmente era melhor assim, que nunca
houvesse existido nada entre eles. Melhor tê-lo como amigo do que acabar tendo a distância entre eles medida em amargura e frustração.
E, então, o telefone tocou.
- Revisão de Casos Arquivados, inspetora Pirie falando - ela disse, tentando não parecer tão irritada quanto se sentia.
- Aqui fala o capitano di Stefano, dos carabinieri de Siena - disse uma voz com sotaque pesado. - Você é a oficial com quem falei sobre a Villa Totti, perto
da Boscolata?
- Isso mesmo.
Karen se endireitou na cadeira, pegando uma caneta e papel. Ela se lembrava do estilo de di Stefano, de sua conversa anterior. Seu inglês era surpreendentemente
bom com relação a vocabulário e gramática, mas o sotaque era atroz. Ele pronunciava as palavras como se as estivesse lendo de um libreto de ópera, colocando ênfase
nas partes mais peculiares e com uma pronúncia que beirava o bizarro. Nada daquilo importava. O que importava era o conteúdo, e Karen estava preparada para fazer
o que fosse necessário para obtê-lo com toda precisão.
- Obrigada por telefonar.
- O prazer é meu - ele disse, pronunciando cada vogal. - Então, nós visitamos a villa e conversamos com os "vitchinhos".
Karen precisou de alguns segundos para entender que ele tinha dito "vizinhos".
- Obrigada. E o que vocês descobriram?
- Encontramos mais cópias do pôster que você nos enviou por e-mail. Também encontramos a tela de serigrafia na qual foram feitos. Agora estamos processando
as impressões digitais da moldura e de outras áreas dentro da villa. Você entende, muitas pessoas passaram por ali, e existem muitos vestígios por toda parte. Logo
que terminarmos de processar as impressões e os outros materiais, enviaremos nossos resultados, assim como as cópias das impressões e das sequências de DNA. Sinto
muito, mas esse aspecto não é prioridade para nós, entende?
- Claro, eu entendo. Há alguma possibilidade de você nos enviar algumas amostras para que possamos fazer nossos próprios testes? Apenas por uma questão de
tempo, não por qualquer outra razão. - Tipo todo mundo no meu departamento acha que vocês são uns inúteis.
- Si. Já fizemos isso. Enviei amostras do sangue no chão e de outras manchas de sangue encontradas na cozinha e na área social. Também
outras evidências das quais tínhamos amostras múltiplas. Então, espero que cheguem aí para você amanhã.
- O que os vizinhos disseram?
Di Stefano resmungou com desagrado.
- Acho que vocês chamam essas pessoas de esquerdistas. Elas não gostam dos carabinieri. São do tipo de gente que vai a Gênova para o G8. Ficam do lado das
pessoas que moram ilegalmente na Villa Totti. Portanto, meus homens não descobriram muita coisa. O que sabemos é que as pessoas que moravam lá tinham um show de
marionetes itinerante chamado BurEst. Temos algumas fotografias de um jornal local, e meu colega as está enviando para você por e-mail. Sabemos alguns nomes, mas
essa gente é do tipo que pode desaparecer com muita facilidade. Vivem no mundo da economia informal. Não pagam impostos. Alguns, provavelmente, são imigrantes ilegais.
Karen quase podia vê-lo erguendo as mãos num gesto frustrado.
- Eu entendo como isso é difícil. Você pode me enviar uma lista dos nomes que vocês têm?
- Posso lhe dizer agora mesmo. Só temos o primeiro nome dessas pessoas. Por enquanto, nenhum sobrenome. Dieter, Luka, Maria, Max, Peter, Rado, Sylvia, Matthias,
Ursula. Matthias era o chefe. Estou lhe enviando essa lista. Acreditamos conhecer a nacionalidade de alguns deles, mas é pura suposição.
- Algum britânico?
- Parece que não, embora um dos vizinhos ache que esse Matthias pudesse ser inglês por causa do sotaque.
- Esse nome não é muito inglês.
- Talvez não tenha sido sempre o nome dele - ressaltou di Stefano. - A outra característica dessas pessoas é que estão sempre tentando nascer de novo. Novo
nome, nova história. Então, sinto muito. Parece que não há muitas informações úteis para você aqui.
- Agradeço muito por tudo que vocês puderam fazer. Sei que é duro justificar a força de trabalho empenhada numa tarefa como essa.
- Inspetora, para mim, parece que houve um assassinato nessa villa. Estamos tratando o caso como uma possível investigação de homicídio. Tentamos ajudá-la
no curso dessa investigação, mas estamos mais interessados no que achamos que aconteceu há três meses do que no que aconteceu
vinte e dois anos atrás, no seu país. Estamos procurando intensamente por essas pessoas. E, amanhã, traremos os cães farejadores de cadáveres e o radar de penetração
no solo, para ver se conseguimos encontrar alguma cova. Será difícil, porque o local está cercado de bosques. Mas precisamos tentar. Então, como você vê, a questão
aqui não é a força de trabalho.
- É claro. Não tive a intenção de sugerir que vocês não estivessem levando o assunto a sério. Sei como são essas coisas, acredite.
- Tem mais uma coisa que nós descobrimos. Não sei se isto é relevante para você, mas há uma jornalista inglesa por aqui, fazendo perguntas.
Karen ficou momentaneamente confusa. Nada havia sido liberado para a mídia. O que estaria uma repórter fazendo ali, bisbilhotando seu caso? Então, de repente, caiu
a ficha.
- Bel Richmond - ela disse.
- Annabel - disse di Stefano. - Ela estava hospedada numa fazenda na colina. Partiu esta tarde. Está voltando para a Inglaterra hoje à noite. Os vitchinhos
disseram que ela queria saber sobre o pessoal do BurEst. Um adolescente disse para um dos meus homens que ela também estava interessada em uns amigos de Matthias.
Um pintor inglês e seu filho. Mas não tenho nenhum nome, nem fotos, nem nada. Talvez você possa falar com ela. Talvez os vitchinhos da Boscolata prefiram conversar
com uma jornalista do que com um policial, o que você acha?
- Infelizmente, acho que você deve estar certo - Karen disse com amargura. Eles trocaram amabilidades e promessas vazias de se visitarem, e então o telefonema
terminou. Karen amassou um pedaço de papel e o atirou em Phil. - Dá pra acreditar?
- O quê? - Ele ergueu os olhos, espantado. - Acreditar no quê?
- Na porra da Bel Richmond - ela disse. - Quem ela pensa que é? A força policial particular de Brodie Grant?
- O que foi que ela fez?
Ele se espreguiçou, erguendo os braços acima da cabeça e grunhindo ao esticar a coluna.
- Ela acaba de ir para a Itália - Karen chutou a lata do lixo. - Filha da puta atrevida! Foi até lá e passou a lábia nos moradores. Moradores que, aliás,
não contam muita coisa para a polícia porque são um bando de esquerdistas ultrapassados. Jesus Cristo!
- Espere um minuto - disse Phil. - Não deveríamos ficar felizes com isso? Quer dizer, por termos alguém remexendo a sujeira, ainda que não sejam nossos colegas
italianos?
- Você poderia vir até aqui, olhar na minha caixa de entrada de e-mail e me mostrar a mensagem de Bel Richmond nos contando o que ela descobriu na porra da
Toscana? Será que você poderia ir com seus dedinhos até a bandeja de entrada do fax e me mostrar o relatório que ela enviou com todas as informações que colheu lá?
Ou será que eu é que não sei mais acessar minha caixa de mensagens do celular? Phil, ela pode ter descoberto todo tipo de coisa. Mas não é para a gente que ela está
contando.
Do Aeroporto de Edimburgo ao Castelo de Rotheswell
Bel observou a esteira de bagagens rodando vazia, a exaustão tornando-a incapaz de raciocinar. Um trajeto de carro até o aeroporto de Florença, escondido misteriosamente
em algum lugar do subúrbio, seguido por uma viagem funesta via Charles de Gaulle - um aeroporto certamente projetado por um Marquês de Sade moderno - e ela ainda
tinha quilômetros a percorrer, antes de poder dormir. E nem mesmo seria em sua própria cama. Afinal, as malas e bolsas começaram a aparecer. De forma preocupante,
a sua não veio na primeira rodada. Ela estava a ponto de ter um ataque de raiva no balcão de serviços de solo quando sua mala finalmente surgiu, sacolejando, com
um fecho pendendo solto das tiras. No fundo do coração, ela sabia que Susan Charleson não tinha nada a ver com seus sofrimentos, mas era bom ter alguém a quem culpar
irracionalmente. Pediu a Deus que ela tivesse mandado alguém para buscá-la.
Seu ânimo deveria ter melhorado quando saiu na área de desembarque e viu que havia mesmo um chofer esperando por ela. Mas o fato de o chofer ser o próprio Brodie
Grant apenas aumentou seu cansaço. Ela queria se encolher e dormir ou se encolher e beber. Não queria passar os próximos quarenta minutos sob interrogatório. Pensando
bem, ele nem sequer a estava pagando por isso, apenas arcava com suas despesas extras e abria portas para ela. O que não era exatamente ruim. Porém, a seu ver, não
lhe dava direito a serviço vinte e quatro horas. Até parece que você vai dizer isso a ele.
Grant a cumprimentou com um aceno de cabeça, e eles disputaram momentaneamente a mala antes que Bel, constrangida, o deixasse carregá-la.
Enquanto se deslocavam atabalhoadamente pelo terminal, Bel se dava conta dos olhares sobre eles. Brodie Grant claramente contava com o reconhecimento do público.
Não havia muitos empresários que conseguiam isso. Talvez Richard Branson, Alan Sugar. Mas eles eram rostos conhecidos da televisão, exibidos na telinha por motivos
que nada tinham a ver com os negócios. Ela não achava que Grant seria reconhecido em Londres, mas ali na Escócia, as pessoas conheciam seu rosto a despeito de sua
timidez midiática. Seria carisma, ou apenas um peixe grande num lago pequeno? Bel não gostaria de ter de arriscar uma resposta.
E não eram apenas as pessoas comuns. Fora do terminal, onde placas e avisos no alto-falante proibiam estritamente que se estacionassem carros, um policial armado
estava parado ao lado do Land Rover de Grant. Não estava ali para advertir Grant ou lhe dar uma multa; estava ali para assegurar que ninguém chegasse perto do Defender.
Grant dirigiu a ele um gesto de cabeça patriarcal enquanto guardava a mala no carro e, então, acenou-lhe graciosamente com a mão ao partir.
- Estou impressionada - disse Bel. - Achei que apenas a realeza recebesse esse tipo de tratamento.
O rosto dele se contorceu como se não soubesse ao certo se aquilo era uma crítica.
- No meu país, respeitamos o sucesso.
- O quê? Trezentos anos de opressão inglesa não curaram isso de vocês?
Grant se empertigou, então percebeu que ela o estava provocando. Para o alívio de Bél, ele riu.
- Não. Vocês são muito mais ávidos por criticar o sucesso do que nós. Acho que você também aprecia o sucesso, Annabel. Não é por isso que está aqui trabalhando
comigo, em vez de estar em busca de alguma história terrível de estupro e tráfico sexual em Londres?
- Em parte. E em parte é porque estou interessada em descobrir o que aconteceu. - Assim que as palavras saíram de sua boca, ela teve vontade de se dar um
chute por ter lhe dado a deixa perfeita.
- E o que você descobriu na Toscana? - ele perguntou.
Enquanto atravessavam a noite, por estradas vazias, ela contou-lhe o que havia descoberto e o que deduzira.
- Voltei para cá porque não tenho os recursos necessários para rastrear Gabriel Porteous - ela concluiu. - A investigadora Pirie pode conseguir colocar os
policiais italianos em ação...
- Nós não vamos falar com a investigadora Pirie sobre isso - Grant disse com firmeza. - Vamos contratar um investigador particular. Ele poderá comprar as
informações que precisamos.
- O senhor não vai contar à polícia o que descobri? Não vai compartilhar as informações com eles? Nem as fotos? - Ela sabia que não deveria ficar chocada
com as peculiaridades dos muito ricos, mas foi pega de surpresa por sua resposta tão inflexível.
- A polícia é inútil. Nós mesmos podemos encerrar o caso. Se esse garoto for Adam, passa a ser um assunto de família. Não é responsabilidade da polícia encontrá-lo.
- Não entendo - disse Bel. - Quando começamos isto, o senhor procurou a polícia. Agora quer deixá-los de fora?
Houve um longo silêncio. O painel iluminava o perfil dele em contraste com a noite, e os músculos de sua mandíbula estavam tensos. Por fim, ele disse:
- Perdoe-me, mas acho que você não pensou bem a respeito disso, Bel.
- O que foi que eu perdi? - Ela sentiu o velho aperto do medo que os editores de notícias sempre lhe haviam provocado quando questionavam seus textos.
- Você falou sobre uma quantidade significativa de sangue no chão da cozinha. Você achou que alguém que houvesse perdido tanto sangue assim provavelmente
estaria morto. Isso significa que há um corpo em algum lugar e, agora que a polícia está procurando, provavelmente irá encontrá-lo. E quando o encontrarem, irão
começar a procurar por um assassino...
- E Gabriel estava lá naquela noite, antes de todos desaparecerem. Você acha que ele ficará sob suspeita - disse Bel, subitamente compreendendo. - E se ele
for seu neto, você quer que ele fique fora de cena.
- Você captou a mensagem, Bel - ele disse. - Mais do que isso, não quero a polícia italiana enquadrando-o só porque eles não são capazes de encontrar o verdadeiro
assassino. Se ele não estiver por perto, a tentação será menor, principalmente porque haverá outros suspeitos mais atraentes no local. Os investigadores particulares
italianos não estarão apenas procurando por Gabriel Porteous.
Ai, meu Deus, ele vai fazer com que culpem outra pessoa. Só para servir como uma apólice de seguro. Bel sentiu náuseas.
- Você quer dizer que vai encontrar um bode expiatório?
Grant lhe dirigiu um olhar estranho.
- Que sugestão insólita. Eu vou apenas garantir que a polícia italiana receba toda a ajuda que merece. - Seu sorriso foi amargo. - Somos todos cidadãos europeus
agora, Bél.
Quinta-feira, 5 de julho de 2007; Kirkcaldy
Karen já havia realizado entrevistas em lugares estranhos antes, mas o Castelo de Ravenscraig provavelmente ficaria entre os cinco primeiros colocados. Quando pedira
a Fergus Sinclair para encontrar-se com ela, ele havia sugerido aquele local.
- Assim, minha esposa pode levar as crianças para passear pelo castelo e descer até o litoral - ele disse. - Estas são nossas férias de verão. Não vejo por
que temos que ficar presos só porque você quer conversar comigo.
"Por causa do clima" teria sido uma excelente resposta. Karen estava sentada nas ruínas de uma muralha com a gola do anoraque levantada para protegê-la da brisa
penetrante que vinha do mar. Phil estava sentado a seu lado, encolhido dentro da jaqueta de couro.
- É melhor que isso valha a pena - ele disse. - Não sei bem se é reumatismo ou hemorroidas o que estou pegando aqui, mas sei que não me fará nenhum bem.
- Ele provavelmente está acostumado. Trabalhando numa propriedade rural como trabalha. - Karen apertou os olhos e olhou para o céu. As nuvens estavam altas
e espalhadas, mas ela ainda seria capaz de apostar em chuva até a hora do almoço. - Você sabia que, na Idade Média, aqui era moradia da família St. Glair?
- É por isso que esta parte de Kirkcaldy se chama Sinclairtown, Karen. - Phil revirou os olhos. - Você acha que ele está tentando nos intimidar?
Ela riu.
- Se eu posso sobreviver a Brodie Grant, posso sobreviver a um descendente dos St Clair de Ravenscraig. Você acha que aquele cara ali é ele?
Um homem alto e magro atravessou o portão do castelo seguido por uma mulher quase tão alta quanto ele e um par de garotos robustos, cada
um com uma cabeleira louro-clara como a da mãe. Os meninos olharam ao redor e partiram, correndo e pulando, explorando o lugar. A mulher virou o rosto para cima
e o homem plantou um beijo em sua testa, então lhe deu uns tapinhas nas costas quando ela se virou para perseguir os garotos. Ele olhou em volta e viu os dois policiais.
Ergueu a mão num cumprimento e veio na direção deles com passos largos e rápidos.
Ao se aproximar, Karen estudou o rosto que só tinha visto em fotografias de vinte e dois anos atrás. Ele havia envelhecido bastante, embora o rosto estivesse curtido
e a teia de linhas finas ao redor dos olhos azuis fosse um testamento do tempo passado sob o sol e o vento. O rosto era delgado, as bochechas eram fundas, e o contorno
dos ossos, claro por baixo da pele. O cabelo louro-claro caía numa franja fina, fazendo-o parecer quase medieval. Vestia uma camisa xadrez, enfiada por dentro da
calça de moleskin e botas leves de caminhada. Ela se levantou e o cumprimentou com um aceno de cabeça.
- Você deve ser Fergus Sinclair - ela disse, estendendo a mão. - Sou a investigadora Karen Pirie e este é o sargento Phil Parhatka.
Ele tomou sua mão num daqueles apertos fortes que sempre a faziam querer estapear o interlocutor com a mão que estava livre.
- Agradeço por terem vindo se encontrar comigo aqui - ele disse. - Eu não queria que meus pais fossem submetidos novamente às lembranças ruins.
Seu sotaque de Fife havia desaparecido quase completamente. Sob pressão, Karen poderia tê-lo descrito como um alemão com inglês excepcionalmente bom.
- Sem problema - ela mentiu. - Você sabe por que reabrimos o caso?
Ele se sentou num fragmento de construção, virado para Karen e Phil.
- Meu pai disse que tem alguma coisa a ver com o pôster de resgate. Apareceu outra cópia?
- Isso mesmo. Em uma villa em ruínas na Toscana. - Karen esperou. Ele não disse nada.
- Não muito longe de onde você vive - disse Phil.
Sinclair ergueu as sobrancelhas.
- Também não é exatamente perto.
- Cerca de sete horas de carro, segundo a Internet.
- É o que você diz. Para mim está mais para oito ou nove. Mas, seja como for, não sei ao certo o que você está sugerindo.
- Não estou sugerindo nada, senhor. Apenas contextualizando a localização - disse Phil. - As pessoas que estavam morando ilegalmente na villa faziam parte
de um grupo de titereiros. Eles se chamavam BurEst. Os líderes eram um casal de alemães chamados Matthias e Ursula. Você alguma vez cruzou com eles?
- Cristo - Sinclair disse, exasperado. - É como perguntar a um escocês se ele alguma vez cruzou com a sua tia de Londres. Acho que nunca estive num show de
marionetes. Nem mesmo com as crianças. E não conheço ninguém chamado Matthias. A única Ursula que conheço trabalha no meu banco, e duvido muito que ela curta marionetes
em seu tempo livre. - Ele se voltou para Karen. - Achei que você queria conversar sobre Cat.
- Queremos. Me desculpe, pensei que você gostaria de saber por que estamos reabrindo o caso - ela disse sinceramente, assumindo com facilidade o papel de
policial bonzinho. - Imagino que você já tenha deixado tudo isso para trás. Agora que tem mulher e filhos.
Ele deixou as mãos caírem entre os joelhos, entrelaçando os dedos.
- Nunca deixarei isso para trás. Ainda a amava quando ela morreu. Apesar de ela ter me mandado embora, não havia um dia em que eu não pensasse nela. Escrevi
tantas cartas. Nunca enviei nenhuma. - Ele fechou os olhos. - Mas ainda que eu pudesse deixar Cat para trás, nunca conseguiria fazer a mesma coisa com relação a
Adam. - Ele piscou duramente e captou o olhar de Karen. - Ele é meu filho. Cat me manteve afastado dele quando era bebê, mas os seqüestradores o mantêm longe de
mim há vinte e dois anos e meio.
- Você acha que ele ainda está vivo? - Karen perguntou delicadamente.
- Sei que há grandes chances de que ele tenha sido morto horas depois da mãe. Mas sou pai. Não posso evitar ter a esperança de que, em algum lugar, ele esteja
andando por aí. Levando uma vida decente. É como gosto de pensar nele.
- Você sempre teve certeza de que ele era seu filho - disse Karen. - Mesmo que Cat não o reconhecesse como pai, você nunca duvidou.
Ele retorceu as mãos.
- Por que duvidaria? Olha, sei que meu relacionamento com Cat já estava desmoronando, quando ela ficou grávida. Havíamos terminado e reatado meia dúzia de
vezes. Mal nos víamos. Mas passamos a noite juntos quase que exatamente nove meses antes de Adam nascer. Quando estávamos enfrentando nossas... dificuldades, perguntei
a ela se havia outra pessoa, mas ela jurou que não. E Deus sabe que ela não tinha nenhum motivo para mentir. A bem da verdade, teria sido melhor para ela dizer que
estava se encontrando com outra pessoa. Eu teria sido obrigado a aceitar que tudo terminara. Portanto, é provável que não houvesse mais ninguém mesmo. - Ele afrouxou
as mãos e estendeu os dedos. - Ele era parecido comigo. Eu soube que ele era meu logo na primeira vez que pus os olhos nele.
- Você deve ter ficado irritado quando Cat se recusou a admitir que Adam cra seu - disse Karen.
- Fiquei furioso - ele disse. - Queria apelar para a Justiça, fazer todos os exames.
- E por que não fez? - perguntou Phil.
Sinclair olhou fixamente para o chão.
- Minha mãe me convenceu a não fazer isso. Brodie Grant detestava a ideia de que Cat e eu ficássemos juntos. Considerando que veio da pobreza e da sujeira
de Kelty, ele tinha algumas ideias bastante arrogantes sobre quem seria um parceiro adequado para sua filha. E certamente não era o filho de um serviçal. Ele não
se aguentou de felicidade quando nos separamos. - Ele suspirou. - Minha mãe disse que, se eu lutasse com Cat por Adam, Grant descontaria nela e no meu pai. Eles
moram numa casa da propriedade e não conseguiram guardar nada para a velhice porque sempre receberam salários muito baixos. Mas Grant havia prometido ao meu pai
que eles poderiam ficar morando lá, mesmo depois de aposentados. Então eu aguentei o tranco por eles. E fui embora, para um lugar onde não teria de encarar Cat ou
seu pai todos os dias.
- Eu sei que lhe fizeram esta pergunta na época, mas você nunca pensou em se vingar dessas pessoas que destruíram sua vida? - Karen perguntou.
O rosto de Sinclair se contorceu como se ele estivesse com dor.
- Se eu tivesse a mais ínfima noção de como me vingar, certamente o teria feito. Mas eu não sabia de nada e não tinha recursos. Tinha vinte e cinco anos,
trabalhava como caseiro em uma propriedade de caça na
Áustria. Trabalhava muitas horas por dia, passava meu tempo livre aprendendo o idioma e bebendo. Tentando esquecer o que havia deixado para trás. Acredite, inspetora,
a ideia de sequestrar Cat e Adam nunca passou pela minha cabeça. Eu simplesmente não tenho esse tipo de mente. Teria passado pela sua?
Karen deu de ombros.
- Não sei. Felizmente, nunca me vi nessa posição. O que sei é que, se tivesse sido tratada como você foi, teria vontade de me vingar.
Sinclair balançou a cabeça, concordando com ela.
- É isso aí. Minha mãe sempre diz que viver bem é a melhor vingança. E foi isso que tentei fazer. Tenho sorte de ter um emprego que adoro numa parte maravilhosa
do mundo. Posso caçar, pescar, escalar e esquiar. Tenho um bom casamento e dois garotos saudáveis e inteligentes. Não tenho inveja de ninguém, muito menos de Brodie
Grant. Aquele homem me tirou tudo que eu valorizava. Ele e a filha, eles me magoaram muito. Disso não tenho como escapar. Mas reconstruí minha vida e é uma vida
boa. Tenho uma história que me deixou com cicatrizes, mas aqueles três... - Ele apontou para a esposa e os filhos que subiam por um morro gramado. - Aqueles três
compensam um monte de coisas.
Era um discurso bonito, mas Karen não estava inteiramente convencida.
- Acho que eu ficaria mais ressentida com ele, se estivesse no seu lugar.
- Então é muito bom que você não esteja. Ressentimento não é uma emoção saudável, inspetora. É algo que devora a pessoa, como um câncer.
- Ele olhou diretamente nos olhos dela. - Há quem acredite que há uma ligação direta entre as duas coisas. Eu é que não quero morrer de câncer.
- Meus colegas interrogaram você depois que Cat morreu. Imagino que você se lembre bem disso.
O rosto dele se retorceu e, de repente, Karen viu um lampejo dos fogos que Fergus Sinclair mantinha bem guardados.
- Ser tratado como suspeito da morte da mulher que você ama? Isso não é algo que se esqueça facilmente - ele disse, a voz rígida com a ira contida.
- Pedir que alguém dê um álibi não é necessariamente tratá-lo como suspeito - disse Phil. Karen percebia que ele não tinha gostado de Sinclair
e esperava que isso não prejudicasse a entrevista. - Temos que excluir pessoas de nossos inquéritos para não perdermos tempo investigando os inocentes. Às vezes,
uma prova de álibi é a maneira mais rápida de tirar alguém da lista.
- Talvez seja - disse Sinclair, seu queixo se projetava para a frente de forma defensiva. - Não pareceu assim, na época. Parecia que vocês estavam fazendo
um esforço dos diabos para provar que eu não estava onde disse que estava.
Hora de acalmar os ânimos, pensou Karen.
- Há alguma coisa que tenha lhe ocorrido, desde então, que possa ser útil?
Ele balançou a cabeça.
- O que eu poderia saber que seria útil? Nunca estive sequer remotamente interessado em política, muito menos em grupos de facções anarquistas. As pessoas
com quem convivo não querem uma revolução. - Ele sorriu para si mesmo. - A não ser que seja uma revolução no design dos esquis.
- Para dizer a verdade, não achamos que tenha sido um grupo anarquista - disse Karen. - Temos boas informações sobre o tipo de gente que acredita em ação
direta para a promoção de suas ambições políticas. E nunca se ouviu falar do Pacto Anarquista da Escócia, nem antes nem depois do ocorrido.
- Bem, eles não iriam atrair atenção sobre si mesmos depois, não é? Não com acusações de assassinato e sequestro nas costas.
- Não com esse nome. Mas eles se safaram com um milhão de libras em dinheiro e diamantes. Seriam três milhões, em valores atuais. Se eles fossem animais políticos
dedicados, seria de esperar ver partes desse dinheiro aparecendo nos cofres de grupos radicais com objetivos semelhantes. Meus antecessores neste caso pediram ao
MI5 que ficasse atento a isso. Durante os cinco anos seguintes ao assassinato de Cat, nunca aconteceu nada. Nenhum dos grupos de malucos radicais apareceu, repentinamente,
cheio de dinheiro. Portanto, não achamos que os seqüestradores fossem realmente ativistas políticos. Acreditamos ser mais provável que fossem pessoas próximas.
A expressão de Sinclair dizia tudo.
- E é por isso que eu estou aqui. - Ele não pôde evitar o olhar de desprezo.
- Não pela razão que você pensa - disse Karen. - Você não está aqui porque eu suspeite de você. - Ela ergueu as mãos num gesto de rendição.
- Nunca conseguimos colocar você nem perto do sequestro nem da entrega do resgate. Suas contas bancárias nunca mostraram quaisquer fundos inexplicáveis. Sim,
eu sei, você está puto da vida por saber que checamos suas contas bancárias. Não fique assim. Não se você realmente se importa com Cat ou Adam. Você deveria ficar
satisfeito por termos feito nosso trabalho da melhor forma possível todos esses anos. E isso, basicamente, livra a sua cara.
- Apesar de todo o veneno que Brodie Grant tentou espalhar sobre mim.
Karen balançou a cabeça.
- Você ficaria positivamente surpreso quanto a isso. Mas, de qualquer maneira, a questão é a seguinte: você está aqui porque é a única pessoa que realmente
conhecia Cat. Ela era parecida demais com o pai; desconfio que eles poderiam ter acabado como grandes amigos, mas ainda estavam na fase das brigas. A mãe dela está
morta. Ela não parecia ter amigas próximas. Então isso deixa você como minha única via de acesso à vida de Cat. E eu acho que é aí que está o segredo da morte dela.
- Ela imobilizou Sinclair com a sinceridade de seu olhar. - Portanto, o que você me diz, Fergus? Você vai me ajudar?
Domingo, 14 de agosto de 1983; Newton ofWemyss
Catriona Maclennan Grant girou na ponta de um pé, com os braços para cima.
- Meu, tudo meu - ela disse num tom brincalhão de bruxa má. De repente, ela parou, cambaleando levemente de tontura. - O que você acha, Fergus? Não é simplesmente
perfeito?
Fergus Sinclair analisou o cômodo sujo. A casa na entrada da propriedade Wemyss não se parecia em nada ao sítio simples, porém impecável, em que ele havia crescido.
E estava ainda mais distante do Castelo de Rotheswell. Não era nem mesmo tão atraente quanto as moradias estudantis em que ele havia vivido. Depois de ter ficado
fechada por alguns anos,
não havia qualquer indício de seus ocupantes anteriores. Mas, ainda assim, ele achava difícil sentir-se entusiasmado com a casa. Não era como havia imaginado que
eles dois fossem estabelecer um lar, juntos.
- Ficará legal, depois que dermos uma mão de tinta - ele disse.
- É claro que ficará - disse Cat. - Quero que seja simples. Clara, mas simples. Damasco aqui, eu acho. - Ela se dirigiu para a porta. - Limão para o hall,
para as escadas e para a plataforma entre os lances. Amarelo-sol na cozinha. Vou usar a outra sala do andar de baixo como escritório, então é melhor uma cor neutra.
- Ela subiu correndo as escadas e se inclinou sobre o corrimão, sorrindo para ele lá embaixo. - Azul para o meu quarto. Um belo tom de azul sueco.
Sinclair riu do entusiasmo dela.
- E eu, posso decidir alguma coisa?
O sorriso de Cat desapareceu.
- Por que você decidiria alguma coisa, Fergus? Não é a sua casa.
As palavras o atingiram como um golpe.
- O que você quer dizer? Pensei que iríamos viver juntos.
Cat foi até o último degrau no alto da escada e sentou-se nele, os joelhos bem unidos, os braços apertados ao redor do próprio corpo.
- Por que você pensou isso? Eu nunca disse nada a esse respeito.
O chão sob seus pés pareceu desaparecer. Sinclair se agarrou ao pilar da escada em busca de apoio.
- É o que sempre dissemos. Que terminaríamos nosso estágio profissional e moraríamos juntos. Eu, trabalhando como caseiro, e você fazendo o trabalho com vidro.
Foi o que planejamos, Cat.
Ele olhou fixamente para ela, lá em cima, querendo que admitisse que ele tinha razão. E ela o fez, mas não de uma forma que o fizesse se sentir melhor.
- Fergus, nós éramos pouco mais do que crianças, na época. É como quando a gente é pequena e seu primo mais velho diz que vai se casar com você, quando você
crescer. Vocês falam a sério, na hora, mas depois crescem e se esquecem da promessa.
- Não - ele protestou, subindo as escadas. - Não, nós não éramos crianças. Sabíamos o que estávamos dizendo. Eu ainda te amo tanto quanto sempre amei. Cada
uma das promessas que te fiz... ainda quero mantê-las.
- Ele se abaixou ao lado dela, forçando-a a se deslocar para junto da parede. Ele colocou o braço em volta de seus ombros. Mas ela continuava abraçada a si
mesma.
- Fergus, quero viver sozinha - disse Cat, olhando para baixo, para onde ele havia estado um momento antes, como se ainda estivesse falando diretamente com
ele. - Esta é a primeira vez que tenho meu espaço de trabalho e meu próprio lugar para morar. Minha cabeça está explodindo de ideias de coisas que quero fazer. E
de como quero viver.
- Não vou interferir nas suas ideias - Sinclair insistiu. - Você pode fazer tudo exatamente como quiser.
- Mas você estará aqui, Fergus. Quando eu for para a cama, à noite, quando acordar de manhã. Terei de pensar em coisas do tipo o que vamos comer e quando
vamos comer.
- Eu farei a comida - ele disse. Ele preparava sua comida, qual a dificuldade em preparar agora para os dois? - Podemos fazer isso do seu jeito.
- Ainda assim terei de pensar em horários de refeições e coisas acontecendo em horários determinados, não quando parecer natural, ou certo, de acordo aos
meus ritmos criativos. Terei de pensar nas suas roupas em quando você precisa usar o banheiro. No que você vai assistir na TV. - O corpo de Cat oscilava para a frente
e para trás agora, a ansiedade natural que sempre havia se esforçado em esconder vindo à tona. - Não quero ter de lidar com tudo isso.
- Mas, Cat...
- Sou uma artista, Fergus. Não digo isso como se fosse algo precioso que me coloque acima do resto do mundo. O que quero dizer é que sou complicada. Não sou
boa em ficar muito tempo com gente.
- Parecemos nos dar bem juntos. - Ele podia perceber o apelo em sua voz e não sentia nenhuma vergonha. Passar vergonha por ela valia a pena.
- Mas não passamos realmente longos períodos de tempo juntos, Fergus. Olhe os últimos anos. Eu fui para a Suécia, você para Londres. Passamos um ou outro
fim de semana juntos, mas, na maioria das vezes, nos vimos em Rotheswell. Mal passamos mais do que algumas noites juntos. E isso para mim está ótimo.
- Para mim, não - ele disse asperamente. - Quero estar com você o tempo todo. Como eu disse, podemos fazer tudo do seu jeito.
Ela deslizou de sob seu braço e desceu alguns degraus, virando-se para olhá-lo.
- Você não percebe como isso é assustador para mim? Só de ouvi-lo, já me sinto claustrofóbica. Você fala de fazer as coisas do meu jeito, mas isso não inclui
ter alguém sob o mesmo teto que eu. Fergus, você significa muito para mim. Não existe ninguém que faça eu me sentir como me sinto quando estou com você. Por favor,
por favor, não estrague isso me forçando a fazer, por culpa, algo que mal suporto cogitar.
Ele sentia o rosto congelado, como se estivesse no alto da montanha Falkland durante uma tempestade, a pele sendo fustigada contra os ossos, os olhos flagelados
até as lágrimas.
- É o que as pessoas fazem quando se amam - ele disse.
Então ela estendeu a mão e a colocou no joelho dele.
- Esse é um modelo de amor - ela disse. - É o mais comum. Mas parte da motivação é econômica, Fergus. As pessoas vivem juntas porque é mais barato do que
viver separadamente. Dois podem viver pelo mesmo preço que um. Não significa que seja a melhor maneira para todo mundo. Um monte de gente tem relacionamentos que
não se adaptam a esse padrão. E há outras formas que funcionam igualmente bem. Você acha que o fato de eu não querer morar com você significa que não o ame. Mas,
Fergus, é exatamente o contrário. Morar com você destruiria nosso relacionamento. Eu ficaria maluca. Iria querer matá-lo. É porque eu amo que não quero morar com
você.
Ele afastou a mão dela e se levantou.
- Você passou tempo demais naquela porra da Suécia - ele gritou, sentindo a garganta se fechar. - Escute o que está dizendo. Modelos para o amor. Adaptar-se
aos padrões. Isso não é amor. O amor é... O amor é... Cat, onde é que a afeição, a ternura e o apoio um ao outro se encaixam no seu mundo?
Ela se levantou e encostou-se na parede.
- No mesmo lugar de sempre. Fergus, nós sempre fomos gentis um com o outro. Sempre nos importamos um com o outro. Por que precisamos mudar a forma do nosso
relacionamento? Por que arriscar todas essas coisas belas que funcionam tão bem entre nós? Inclusive sexo. Todo mundo que eu conheço, depois que começa a viver junto
com alguém, acha que o sexo deixa de ser excitante. Dois, três anos depois, e eles mal transam. Mas
olhe só para nós dois. - Ela subiu um degrau para ficar ao mesmo nível dele. - Nós não temos a garantia do outro. Portanto, quando nos vemos, ainda há eletricidade.
- Ela deu um passo à frente, espalmando uma das mãos sobre o peito dele, enquanto a outra acariciava seus testículos. A despeito de sua vontade, ele sentiu o afluxo
de sangue endurecendo-o. - Vamos, Fergus... me fode - ela sussurrou. -Aqui. Agora.
E, assim, ela conseguiu o que queria. Como sempre.
Quinta-feira, 5 de julho de 2007
- Assim como o pai, ela era muito boa em conseguir o que queria. Ela era mais sutil que ele, mas o resultado era o mesmo - concluiu Sinclair.
Pela primeira vez desde que Biscoito lhe havia informado sobre o caso, Karen sentiu que tinha uma noção de quem havia sido Catriona Maclennan Grant. Uma mulher que
conhecia a si mesma. Uma artista com uma fantasia que estava decidida a realizar. Uma pessoa solitária que gostava de companhia apenas quando estava com humor para
tanto. Uma amante que só aprendeu a deixar-se prender depois que se tornou mãe. Uma mulher difícil, mas corajosa, Karen desconfiava.
- Você consegue pensar em alguém cuja vida tenha cruzado com a dela e que possa ter desejado castigá-la? - ela perguntou.
- Castigá-la por quê?
- Várias coisas. Seu talento. Seus privilégios. Seu pai.
Ele pensou no assunto.
- É difícil imaginar. O negócio é que ela acabara de passar quatro anos na Suécia. Ela só usava o nome de Cat Grant. Não acho que ninguém lá tivesse a menor
ideia de quem era Brodie Maclennan Grant. - Ele estendeu as pernas e as cruzou na altura dos tornozelos. - Ela frequentou o curso de verão aqui nos primeiros anos
que estava na Suécia. Ela se encontrava com algumas pessoas que conhecera quando estava na Faculdade de Arte de Edimburgo.
Karen sentou-se muito ereta.
- Eu não sabia que ela esteve na Faculdade de Arte de Edimburgo - ela disse. - Não havia nada no arquivo sobre isso. Só dizia que ela estudou na Suécia.
Sinclair assentiu.
- Tecnicamente, isso está correto. Mas, em vez de cursar o sexto ano em sua chique escola particular em Edimburgo, ela fez um curso básico na Faculdade de
Arte. Provavelmente não está no arquivo porque seu pai não sabia. Ele não queria de jeito nenhum que ela fosse artista. Então, era um segredo sério entre Cat e sua
mãe. Ela partia todas as manhãs de trem e voltava para casa mais ou menos no horário normal. Mas, em vez de ir à escola, ela ia à faculdade. Vocês não sabiam disso?
- Não sabíamos mesmo. - Karen olhou para Phil. - Precisamos começar a investigar as pessoas que estavam nesse curso básico.
- A boa notícia é que não havia muitas - disse Sinclair. - Só umas dez ou doze. É claro, ela conhecia outros estudantes, mas era com os de seu próprio curso
que ela saía mais.
- Você lembra quem eram os amigos dela?
Sinclair fez que sim com a cabeça.
- Havia cinco. Eles gostavam das mesmas bandas, dos mesmos artistas. Estavam sempre falando sobre o Modernismo e seu legado. - Ele girou os olhos. - Eu costumava
me sentir um completo roceiro.
- Nomes? Detalhes? - Era Phil, colocando pressão novamente. Ele pegou seu caderno e o abriu.
- Havia uma garota de Montrose: Diana Macrae. Outra de Peebles, como era o nome dela...? Algum nome italiano... Demelza Gardner.
- Demelza não é italiano, é da Comualha - disse Phil. Karen o silenciou com um olhar.
- Que seja. Para mim, parecia italiano - disse Sinclair. - Havia também dois rapazes. Um cara de Crieff, ou outro lugar chulé qualquer de Perthshire: Toby
Inglis. E, finalmente, Jack Docherty. Ele era um vagabundo de classe baixa de Glasgow. Todos eles eram garotos de classe média e Jack era seu mico de circo. Ele
não parecia se importar. Era uma dessas pessoas que não ligam para o tipo de atenção que recebe, desde que receba alguma.
- Ela manteve contato com algum deles quando foi para a Suécia?
Sinclair se levantou, ignorando-a, quando os meninos correram pelo
gramado na sua direção. Eles se atiraram sobre ele numa torrente animada de uma língua que Karen deduziu ser alemão. Sinclair os agarrou, caminhando
com esforço por alguns passos com os dois pendurados como se fossem bebês chimpanzés. Então os soltou, disse alguma coisa para eles, despenteou-lhes os cabelos
e os mandou atrás da mãe, que havia desaparecido na direção dos degraus que levavam à praia.
- Desculpem - ele disse, voltando e se sentando novamente. - Eles sempre querem garantir que você saiba o que está perdendo. Para responder a sua pergunta:
realmente não sei. Me lembro vagamente de Cat ter mencionado um ou outro, algumas vezes, mas não prestei muita atenção. Eu não tinha nada em comum com eles. Nunca
vi nenhum deles novamente, depois que Cat saiu da faculdade. - Ele passou a mão pelo queixo. - Pensando nisso agora, acho que, quanto mais velhos ficávamos, menos
tínhamos em comum, Cat e eu. Se ela tivesse vivido, nunca teríamos voltado a ficar juntos.
- Vocês poderiam encontrar um ponto comum em Adam, no final - disse Karen.
- Gosto de pensar que sim. - Ele olhou nostalgicamente para o portão pelo qual os filhos haviam desaparecido. - Há mais alguma coisa? É só que eu gostaria
de voltar à minha vida.
- Você acha que havia alguém, dos tempos de faculdade, que pudesse ter alimentado sentimentos negativos em relação a ela? - perguntou Karen.
Sinclair balançou a cabeça.
- Nada que ela tenha me dito me faria pensar isso - ele disse. - Cat tinha uma personalidade forte, mas era uma pessoa difícil de odiar. Não me lembro de
tê-la visto alguma vez reclamar de ter sido maltratada por alguém. - Ele se levantou novamente, alisando a calça. - Para falar a verdade, não consigo acreditar que
alguém que a conhecesse pensaria que poderia se dar bem sequestrando-a. Ela era boa demais em conseguir tudo do seu jeito.
Glenrothes
O Novo em Folha martelava o teclado com os dedos indicadores. Ele não sabia por que chamavam "touch typing" quando uma pessoa digitava
bem rápido que, em inglês, significava, literalmente, digitação pelo toque. Porque não dava para digitar sem tocar o teclado. Ou seja, no fim das contas, tudo era
digitação pelo toque. Ele também não sabia por que a chefe vivia atolando-o com pesquisas pelo computador, só poderia ser por puro sadismo. Todo mundo pensava que
os caras jovens como ele ficassem completamente à vontade na frente de um computador, mas, para Novo em Folha, era como estar num país estrangeiro no qual ele nem
sequer soubesse a palavra para "cerveja".
Ele teria ficado muito mais feliz se ela o tivesse mandado com Phil, a quem carinhosamente chamava de "the Hat", à Faculdade de Arte para falar com pessoas de verdade
e examinar anuários de alunos e arquivos em papel. Ele era melhor fazendo aquilo. E, além disso, o sargento Parhatka era um cara engraçado. Não havia nada de divertido
em ficar varrendo os fóruns de mensagens e listas de membros do www.omelhordiadesuavi-da.com à procura dos nomes que a chefe havia atirado sobre sua mesa numa página
amarfanhada, arrancada de um caderno.
Não era para isso, definitivamente, que ele tinha entrado para a polícia. Onde estava a ação? Onde estavam as perseguições de carro e as capturas dramáticas? Em
vez de excitação, ele tinha a chefe e o Hat agindo como se fossem uma antiquíssima dupla de comediantes, como French e Saunders. Ou seria Flanders e Swann? Ele nunca
conseguia se lembrar direito.
Ele não havia precisado sequer assustar ninguém para conseguir acesso irrestrito ao website. A mulher com quem conversara tinha se desdobrado para ajudá-lo.
- Nunca colaboramos com a polícia antes, ficamos sempre muito felizes em fazer todo o possível - ela tagarelara, assim que ele fizera o pedido. Quem quer
que tivesse lidado antes com ela havia, claramente, a deixado num estado de submissão trêmula. Ele gostava disso numa fonte.
Verificou novamente a lista de nomes. Diana Macrae. Demelza Gardner. Toby Inglis. Jack Docherty. Ele estava procurando pelo período de 1977 a 1978. Depois de alguns
cliques falsos, ele finalmente chegou à lista de membros. Apenas um deles estava lá. Diana Macrae era agora Diana Waddell, mas não era difícil deduzir isso. Ele
clicou no perfil de Diana.
Depois do meu curso básico na Faculdade de Artes, obtive um diploma da Escola de Arte de Glasgow, especializando-me em escultura. Depois de formada, comecei a trabalhar
no campo da arteterapia com pessoas com doenças mentais. Conheci Desmond, meu marido, quando estávamos trabalhando em Dundee. Nós nos casamos em 1990 e temos dois
filhos. Moramos em Glenisla, que todos adoramos. Comecei a esculpir em madeira novamente e tenho um contrato com uma loja de jardinagem local, assim como com uma
galeria de arte, em Dundee.
Uma galeria em Dundee, pensou o Novo em Folha com desdém. Arte? Em Dundee? Tão provável quanto a paz no Oriente Médio. Ele passou por cima de mais algumas bobagens
sobre marido e filhos e, então, clicou para ver suas mensagens e e-mails de ex-colegas de escola. Por que essa gente se dava a esse trabalho? A vida deles era tão
chata quanto um jogo do time do East Fife em casa. Depois de passar rapidamente por uma dúzia de trocas de mensagens inócuas, encontrou uma de alguém chamada Shannon.
Você tem notícias do Jack Docherty?, ela perguntava.
O Jack querido! Nós trocamos cartões de Natal. Sua presunção penetrava o e-mail, notoriamente isento de nuanças. Ele agora está no oeste da Austrália. Tem sua própria
galeria de arte em Perth. Ele faz uma porção de trabalhos com artistas aborígines. Nós temos algumas peças dele, são incríveis. Ele está muito feliz. Tem um namorado
aborígine. Alguns anos mais jovem do que ele e bastante bonitão, mas que parece ser um amor. Quando nossos filhos forem para a universidade, estamos planejando fazer
uma viagem até lá para visitá-lo.
Dois coelhos com uma cajadada só, pensou Novo em Folha, anotando os detalhes. Ele prosseguiu até o fim da correspondência cheia de conversa fiada de Diana e, então,
decidiu que precisava de uma pausa enquanto planejava seu próximo passo.
Depois de uma xícara de café, ele voltou à pesquisa. Nem Toby Inglis nem Demelza Gardner apareciam em qualquer lugar da área do site referente à Fàculdade de Arte.
Mas graças à subserviência demonstrada por seu contato, ele pôde ter acesso ao site inteiro. Digitou o nome da mulher e, para seu completo espanto, conseguiu uma
ocorrência. Clicou no resultado e descobriu
Gardner descrita como "totalmente minha professora favorita". A mensagem estava no site de uma escola secundária em Norwich.
Pelo menos ele teve o bom-senso de procurar a escola pelo Google. E lá estava Demelza Gardner. Chefe do Departamento de Arte. Deus, essa coisa do computador era
uma maravilha, depois que se pegava o jeito. Ele tentou o nome de Toby Inglis no sistema de busca e novamente encontrou uma ocorrência. O Novo em Folha seguiu o
link para um fórum onde ex-alunos de uma escola particular de Crieff podiam matraquear à vontade sobre suas malditas vidas fabulosas. Levou algum tempo para desatar
as meadas das correspondências, mas, no fim, encontrou o que vinha procurando.
Sentindo-se bastante satisfeito consigo mesmo, Novo em Folha arrancou a primeira página de seu bloco de notas e saiu à procura da investigadora Pirie.
Tudo acontecera mais ou menos assim, pensou Karen. Ela telefonara para Bel Richmond e a convidara para vir até a Revisão de Casos Arquivados para uma entrevista,
o mais rápido possível. De preferência nas próximas horas. Bel se recusara. Karen mencionara o pequeno detalhe da obstrução da Justiça.
Bel foi então até Brodie Grant e reclamou que não queria sair correndo até Glenrothes toda vez que Karen bem entendesse. Daí, Grant telefonou para o Biscoito e explicou
que Bel não queria ser interrogada e que era melhor que a investigadora Pirie parasse de ameaçá-la. Então, o Biscoito a chamou em seu escritório e lhe deu uma bronca
por ter irritado Brodie Grant, e disse a ela para deixar Bel em paz.
Daí, Karen havia telefonado novamente para Bel Richmond. Em seu tom de voz mais doce, dissera a Bel para se apresentar na Revisão de Casos Arquivados às duas horas.
- Se você não estiver aqui - ela disse -, haverá uma viatura em Rotheswell dez minutos depois para prendê-la por obstrução da Justiça. - Então, desligara
o telefone.
Agora faltava um minuto para as duas e Dave Cruickshank acabara de chamá-la para avisar que Bel Richmond havia chegado.
- Peça a um oficial que a leve até a Sala de Entrevistas Um e espere lá com ela até eu chegar. - Karen pegou uma Coca Diet da geladeira e sentou à sua mesa
durante cinco minutos. Tomou o último gole da lata e, então, dirigiu-se pelo corredor até a aala de entrevistas.
Bel estava sentada à mesa na sala cinza e sem janelas, parecendo furiosa. Havia um maço de Marlboro vermelho à sua frente, com um único cigarro à mostra, ao lado.
Ela havia se esquecido de que os escoceses tinham proibido fumar em lugares fechados antes mesmo dos ingleses, até que o oficial uniformizado a relembrara.
Karen puxou uma cadeira e deixou-se cair sobre ela. O assento de espuma havia chegado ao formato atual por outras bundas que não a dela, e ela se remexeu para ficar
confortável. Com os cotovelos sobre a mesa, inclinou-se para a frente.
- Nunca mais tente se meter comigo - ela disse, num tom informal, os olhos como granito reluzente.
- Ah, por favor - disse Bel. - Não vamos transformar isso num concurso de provocação. Estou aqui agora, então deixe pra lá.
Karen não tirou os olhos de Bel.
- Precisamos conversar sobre a Itália.
- Por que não? Lindo país. Comida maravilhosa, o vinho melhorando a cada dia. E também tem a arte...
- Pare com isso. Estou falando sério. Vou acusar você de obstrução da Justiça e deixá-la numa cela até que possa apresentá-la diante de um delegado. Não vou
ser feita de idiota por Sir Broderick Maclennan Grant nem por seus ajudantes.
- Não soü uma ajudante de Brodie Grant - disse Bel. - Sou uma jornalista investigativa independente.
- Independente? Você está vivendo sob o teto dele. Comendo a comida dele, bebendo o vinho dele. Que, a propósito, aposto que não é italiano. E quem pagou
pelo passeiozinho na Itália? Você não é independente, você foi comprada e paga.
- Você está enganada.
- Não estou, não. No momento, tenho mais liberdade de ação do que você, Bel. Eu posso mandar meu chefe se danar. Pensando bem, acabei de fazer isso. Você
pode dizer o mesmo? Se não fosse pela polícia italiana, eu nem sequer saberia que você havia conversado com as pessoas na Toscana
a respeito da Villa Totti. O simples fato de que você vem passando relatórios para Grant em vez de falar conosco me diz que ele é seu dono.
- Isso é bobagem. Repórteres não falam com policiais sobre suas investigações até o trabalho estar terminado. É isso que está acontecendo aqui.
Karen balançou a cabeça lentamente.
- Acho que não. E, para dizer a verdade, estou surpresa. Não achei que você fosse esse tipo de mulher.
- Você não sabe nada a meu respeito, inspetora. - Bel se acomodou mais confortavelmente na cadeira, como se estivesse se preparando para algo prazeroso.
- Eu sei que você não conquistou sua reputação recitando esse tipo de clichê. - Karen puxou sua cadeira para mais perto da mesa, diminuindo a distância entre
elas para menos de um metro. - E sei que você tem sido uma jornalista militante ao longo de sua carreira. Sabe o que as pessoas dizem sobre você, Bel? Dizem que
você é uma lutadora. Dizem que é alguém que faz a coisa certa mesmo que não seja a mais fácil. Como a forma com que acolheu sua irmã e o filho dela sob o seu teto,
quando eles precisaram de cuidados. Dizem que você não liga para a popularidade de sua posição, que arrasta a verdade pelos cabelos e obriga as pessoas a confrontá-la.
Dizem que é uma inconformista. Alguém que vive segundo suas próprias regras. Alguém que não recebe ordens do sistema. - Ela esperou, encarando Bel sem dar-lhe trégua.
A jornalista piscou primeiro, mas não desviou o olhar. - Você acha que a reconheceriam agora? Recebendo ordens de um homem como Sir Broderick Maclennan Grant? Um
homem que sintetiza o sistema capitalista? Um homem que resistiu a todas as escolhas de sua filha a ponto de ela acabar se colocando em risco? Foi a isso que você
chegou?
Bel pegou seu cigarro e o tamborilou de uma ponta a outra, em cima da mesa.
- Às vezes é preciso encontrar um lugar dentro do acampamento do inimigo para poder realmente descobrir como ele é. Você, mais do que ninguém, deveria entender
isso. A polícia usa oficiais infiltrados o tempo todo, quando não há outra forma de descobrir a história. Você tem ideia de quantas entrevistas Brodie Grant concedeu
à imprensa nos últimos vinte anos?
- Dando um chute, eu diria que... nenhuma?
- Exatamente. Quando encontrei uma evidência que pudesse reabrir esse caso arquivado, deduzi que haveria um grande interesse por Grant. Interesse do tipo
editorial. Mas só se alguém pudesse se aproximar dele e ver como ele era de verdade. - Ela ergueu um canto da boca num meio-sorriso cínico. - Achei que bem poderia
ser eu.
- É bastante justo. Não vou ficar aqui sentada apontando furos na sua autojustificação. Mas como é que sua missão de dar ao mundo o livro definitivo sobre
aquela família miserável lhe dá o direito de se colocar acima da lei?
- Não é assim que eu vejo a coisa.
- Claro que não. Você precisa ver a si mesma como a pessoa que está agindo em nome de Cat Grant. A pessoa que irá trazer o filho dela para casa, morto ou
vivo. A heroína. Não pode se dar ao luxo de ver a si mesma sob a luz da verdade. Porque essa luz da verdade a mostra como a pessoa que está impedindo todas essas
coisas de acontecerem. Bem, este é o xis da questão, Bel. Você não tem os recursos para levar esse caso a uma conclusão. Não sei o que Brodie Grant lhe prometeu,
mas não será algo limpo. Em nenhum sentido.
Karen podia sentir sua raiva acumulando energia como uma mola, pronta para disparar. Afastou a cadeira, colocando um pouco de espaço entre elas.
- A polícia italiana não se importa com o que aconteceu com Cat Grant - disse Bel.
- Você tem razão. E por que deveriam se importar? - Karen sentiu seu rosto ruborizar. - Mas eles se importam com a pessoa cujo sangue está espalhado no chão
da cozinha da Villa Totti. Tanto sangue que é quase certo que essa pessoa esteja morta. Eles se importam com isso e estão fazendo todo o possível para descobrir
o que aconteceu lá. E, enquanto fazem isso, surgirão informações que irão nos ajudar. É assim que fazemos as coisas. Não contratamos detetives particulares que adaptam
seus relatórios àquilo que o cliente quer ouvir. Não construímos nosso próprio sistema legal particular para servir a nossos próprios interesses. Deixe-me fazer
uma pergunta, Bel. Só entre nós duas. - Karen se virou para o policial que ainda estava parado junto à porta. - Você poderia nos dar um minuto?
Ela esperou até que ele tivesse fechado a porta atrás de si.
- De acordo com a lei escocesa, não posso usar contra você nada do que você me disser agora. Não há corroboração, entende? Portanto, eis a minha pergunta.
E quero que você pense nela com muito cuidado. Você não precisa me responder. Só quero ter certeza de que você pensou no assunto com honestidade e sinceridade. Se
você encontrasse os seqüestradores, o que você acha que Brodie Grant faria com a informação?
Os músculos ao redor da boca de Bel se enrijeceram.
- Acho que essa é uma insinuação ofensiva.
- Não insinuei nada. Você é que deduziu. - Karen se levantou. - Não sou uma idiota, Bel. Não me trate como se fosse. - Ela abriu a porta. - Você pode entrar
agora.
O policial retomou seu posto à porta, e Karen voltou para sua cadeira.
- Você deveria sentir vergonha - ela disse. - Quem vocês pensam que são, com suas leis particulares? É para isso que você passou toda a sua carreira trabalhando?
Uma lei para os ricos e poderosos, que pode mandar o resto do mundo se danar? - Essa foi direto na ferida. E já não era sem tempo.
Bel sacudiu a cabeça.
- Você está me julgando mal.
- Prove. Me diga o que descobriu na Toscana.
- E por que eu deveria? Se vocês fossem bons no seu trabalho, teriam descoberto sozinhos.
- Você acha que preciso defender minha competência? A única coisa que tenho de defender é que nossas investigações são arduamente conduzidas sob o peso das
leis, dos regulamentos e dos recursos. Isso às vezes significa que eu e minha equipe levamos algum tempo para cobrir todo o terreno. Mas você pode ter certeza de
que, quando o fazemos, não há uma folha de grama que não seja examinada. Se você dá algum valor à justiça, deveria me dizer. - Ela dirigiu a Bel um sorriso frio.
- Caso contrário, pode se ver no outro lado da reportagem.
- Isso é uma ameaça?
Aos ouvidos de Karen, aquilo soou como uma bravata. Bel estava bem perto de abrir o bico, ela podia sentir.
- Não preciso ameaçar - ela disse. - Até mesmo Brodie Grant sabe como a polícia é indiscreta. Parece que as coisas simplesmente vazam para
o domínio público. E você sabe como a mídia adora quando alguém que se aboleta no pináculo da moral e dos bons costumes é pego numa avalanche de lama. - Ah, sim,
ela estava certa. Bel estava, definitivamente, ficando cada vez mais constrangida.
- Olhe, Karen... posso chamá-la de Karen? - A voz de Bel se reduziu à calidez do chocolate quente.
- Pode me chamar do que quiser, para mim não faz diferença. Não sou sua amiga, Bel. Tenho seis horas para interrogá-la sem a presença de um advogado e pretendo
aproveitar cada minuto. Conte-me o que você descobriu na Itália.
- Não vou lhe contar nada - disse Bel. - Quero sair para fumar um cigarro. Vou deixar minha bolsa aqui em cima da mesa. Cuidado para não derrubá-la, pois
as coisas podem se espalhar. - Ela se levantou. - Está bem para você, inspetora?
Karen lutou para não sorrir.
- O policial terá que acompanhá-la. Mas pode ficar à vontade para fumar seu cigarrinho. Fume dois. Tenho trabalho de sobra com que me ocupar.
Observando enquanto Bel saía da sala, ela não pôde evitar um lampejo de admiração pelo estilo da outra. Conceder sem ceder. Muito bem, Bel.
Seu braço raspou na sacola de palha, que tombou de lado, espalhando um leque de papéis sobre a mesa. Sem ler, Karen apanhou tudo e percorreu afobadamente o corredor
até sua sala. Na fotocopiadora, tudo foi duplicado em dez minutos, um maço de cópias foi trancado em sua gaveta, e os originais ficaram em sua mão. De volta à sala
de entrevistas, ela se acomodou para ler.
Enquanto digeria o relatório de Bel para Brodie Grant, sua mente organizava os pontos de interesse. Um grupo misto de titereiros morando ilegalmente na Villa Totti.
Daniel Porteous, pintor britânico, não tanto um amigo da casa quanto amigo de Matthias, o chefe, e de sua namorada. Matthias, o cenógrafo e produtor dos pôsteres.
Gabriel Porteous, filho de Daniel. Visto com Matthias no dia antes de o BurEst espalhar-se aos quatro ventos. Sangue no chão da cozinha, fresco naquela manhã. Daniel
Porteous é falso. Já era falso em novembro de 1984, quando registrou o falso nascimento de seu filho.
Titubeou por um momento no nome da mãe, sabendo que já o havia visto, mas esforçando-se para contextualizá-lo. Então ela o disse em voz alta
e a ficha caiu. Frida Kahlo. Aquela artista mexicana sobre a qual Michael Marra escrevera uma canção. "Frida Kahlo's Visit to the Taybridge Bar". Ela teve alguns
problemas com seu homem. Portanto, nada de novo ali. Mas alguém estava bancando o espertinho com o cartório, rindo baixinho de algum funcionário público subalterno
que não iria distinguir Frida Kahlo de Michelangelo. Alguém estava se mostrando, se achando muito esperto, mas não percebendo que estava revelando algo sobre si
mesmo no processo. Ele devia ter sido um falsificador habilidoso, esse Daniel Porteous, para comparecer com toda a documentação necessária para convencer o funcionário
do cartório. E corajoso, para ir até o fim.
Era tudo muito interessante, mas o que havia convencido Bel de que Gabriel Porteous era Adam Maclennan Grant? E, por extensão lógica, que Daniel Porteous era seu
pai biológico? E, estendendo a lógica ainda mais, que Daniel Porteous e Matthias eram os seqüestradores? Ainda em contato após todos esses anos, ainda de posse da
tela de silkscreen original. Baseando-se no pôster, era possível delinear toda a trama, mas era apenas circunstancial.
Ciente de que Bel voltaria a qualquer momento, Karen folheou as páginas, procurando algum sentido, buscando alguma coisa que pudesse ancorar a teoria a fatos sólidos.
As últimas páginas eram fotografias - originais tiradas em alguma festa, e trechos ampliados com legendas.
Seu estômago deu voltas e sua mente, a princípio, recusou-se a aceitar o que estava vendo. Sim, era verdade que o garoto Gabriel tinha uma semelhança impressionante
tanto com Brodie quanto com Cat Grant. Mas não era isso que havia provocado a agitação dentro dela. Karen olhou fixamente para a imagem de Daniel Porteous, a náusea
revirando suas entranhas. Deus do céu, o que ela deveria concluir daquilo? E, então, com a rapidez de uma luz que se acende, ela percebeu algo que virou tudo de
cabeça para baixo. Daniel Porteous tinha registrado o nascimento de seu filho três meses antes do sequestro. Ele havia assumido uma identidade falsa com pelo menos
três meses de antecedência da época em que a usaria para fugir. Muito justo. Demonstrava previsão. Mas ele também tinha estabelecido o direito de levar seu filho
consigo.
- Você não faz isso se estiver planejando pedir resgate por ele - ela disse num sussurro.
Karen enfiou os papéis de Bel de volta na sacola de palha e se dirigiu para a porta. Aquilo era loucura. Ela precisava falar com alguém que pudesse ajudá-la a ver
sentido naquilo tudo. Onde diabos estava Phil quando precisava dele?
Ao sair feito um tufão da sala de entrevistas, praticamente colidiu com Novo em Folha. Ele se desviou, parecendo assustado.
- Eu estava te procurando - ele disse.
Definitivamente, a recíproca não é verdadeira.
- Não posso parar agora - ela disse, passando por ele.
- Tenho isto aqui para você - ele disse num tom queixoso.
Karen girou nos calcanhares, agarrou a folha de papel e saiu correndo. Ela sentia como se um exército de mensageiros corresse dentro de sua cabeça, cada um carregando
um pedaço do quebra-cabeça. Neste momento, nenhuma das peças estava se encaixando. Mas tinha uma suspeita maliciosa de que, quando se encaixassem, a imagem deixaria
a todos de queixo caído.
Castelo de Rotheswell
Tinha havido uma mudança de turno da equipe de segurança desde que Bel saíra para sua entrevista com Karen Pirie, então o guarda de serviço no portão de entrada
teve de autorizar sua volta de táxi, consultando o castelo. Aquilo acabou definitivamente com qualquer possibilidade de um retorno discreto. Enquanto pagava o taxista,
a porta da frente se abriu, revelando Grant e seu rosto sombrio. Bel assumiu um ar de prazer e caminhou na direção dele.
No entanto, aquele não era um dia para amenidades.
- O que você disse a ela? - ele inquiriu.
- Nada - disse Bel. - Um bom jornalista protege suas fontes e suas informações. Não lhe contei nada.
Era, tecnicamente, a verdade. Ela não havia contado nada a Karen Pirie. Não precisara. A inspetora saíra correndo do prédio, apenas parando para dizer a Bel que
ela estava livre para ir embora.
- Algo acaba de acontecer em outro caso no qual estou trabalhando, tenho que ir a Edimburgo. Entrarei em contato com você. Você pode voltar para Rotheswell
quando quiser - Karen dissera. Então, tinha dado uma
piscadela para Bel. - E pode jurar para Brodie, com a mão no peito, que não me contou nada.
Sentindo-se segura com a ideia de que não estava realmente mentindo, Bel entrou na casa, não deixando a ele mais opções que agarrá-la ou segui-la.
- Você está me dizendo que não contou nada a ela e que ela simplesmente a deixou ir embora? - Ele teve de alargar ao máximo suas passadas para acompanhá-la,
enquanto ela seguia apressadamente pelo saguão em direção à escada.
- Deixei claro para a investigadora Pirie que eu não iria dizer nada. Ela reconheceu que não havia motivos para prolongar o impasse. - Bel olhou de relance
por cima do ombro. - Não é a primeira vez na minha carreira que precisei ocultar informações da polícia. Eu lhe disse que não havia necessidade de tentar intimidá-la.
Grant cedeu, com um gesto de cabeça.
- Sinto muito por não ter acreditado em você.
- Deveria sentir mesmo - disse Bel. - Eu... - ela se interrompeu para pegar o celular, que estava tocando. - Bel Richmond - disse, levantando um dedo para
deter Grant.
Uma torrente de italiano se despejou em seu ouvido. Ela entendeu "Boscolata" e, então, reconheceu a voz do jovem que tinha visto Gabriel com Matthias na noite em
que o BurEst havia fugido.
- Devagar, fale com mais calma - ela protestou gentilmente, mudando para a língua dele.
- Eu o vi - disse o garoto. - Ontem. Vi Gabe em Siena de novo. E eu sabia que você queria encontrá-lo, então o segui.
- Você o seguiu?
- Sim, como nos filmes. Ele pegou um ônibus, e consegui subir também sem que ele me visse. Terminamos em Greve. Você conhece Greve, em Chianti?
Ela conhecia Greve. Uma perfeita cidadezinha comercial repleta de lojas da moda para os ingleses ricos, redimida por alguns bares e trattorias onde os moradores
locais ainda comiam e bebiam. Um ponto de encontro para os jovens nas sextas e sábados.
- Conheço Greve - ela disse.
- Então, acabamos indo parar na piazza principal e ele entrou num bar e se sentou com uma turma de outros caras, mais ou menos da mesma
idade. Eu fiquei lá fora, mas podia vê-lo pela janela. Ele tomou algumas cervejas e comeu um prato de massa, depois saiu.
- Você pôde segui-lo?
- Mais ou menos. Achei que poderia, mas ele tinha uma Vespa estacionada a algumas ruas dali. Ele pegou a estrada que vai na direção leste, saindo da cidade.
Perto, mas não o suficiente.
- Você fez bem - ela disse.
- Fiz melhor que isso. Esperei uns vinte minutos e, então, entrei no bar em que ele havia estado. Disse que estava procurando o Gabe, que deveria me encontrar
com ele lá. Seus amigos disseram que eu o tinha perdido por pouco. Então me fiz de inocente e perguntei se eles poderiam me explicar como chegar à casa dele, que
eu não sabia ir até lá.
- Incrível - disse Bel, genuinamente surpresa pela iniciativa dele. Grant começou a se afastar, mas ela acenou para que ele voltasse.
- Então, eles fizeram um mapa para mim - ele disse. - Legal, né? Aparentemente, a casa dele é tipo assim, quase uma cabana de pastor.
- O que você fez?
- Peguei o último ônibus de volta para minha casa - ele disse, como se fosse absolutamente óbvio. O que ela imaginava que era mesmo, sendo ele um adolescente.
- E você tem esse mapa?
- Eu o trouxe comigo - ele disse. - Achei que poderia valer alguma coisa para você. Pensei que, talvez, cem euros?
- Falaremos sobre isso depois. Escute, voltarei para aí assim que puder. Não fale com ninguém além de Grazia sobre isso, o.k.?
- O.k.
Bel encerrou o telefonema e levantou o polegar para Grant.
- Tenho um resultado - ela disse. - Esqueça o detetive particular. Meu contato descobriu onde Gabriel está morando. E agora preciso voltar à Itália para falar
com ele.
O rosto de Grant se iluminou.
- São excelentes notícias. Vou com você. Se esse garoto for meu neto, quero vê-lo cara a cara. Quanto antes, melhor.
- Acho que não. Isso precisa ser feito com muito cuidado - disse Bel.
De trás dela, uma voz interveio:
- Ela tem razão, Brodie. Precisamos saber muito mais a respeito desse garoto antes de você colocar sua cabeça acima do parapeito. - Judith deu um passo à
frente e pousou a mão no braço do marido. - Tudo isso poderia ser uma armação elaborada. Se essas pessoas são as mesmas que sequestraram Adam e o roubaram há vinte
e dois anos, sabemos que são capazes das atitudes mais cruéis. Não sabemos de nada com certeza. Deixe que Bel lide com isso. - Grant esboçou um protesto, mas ela
o silenciou. - Bel, você acha que consegue alguma coisa para que a gente tenha uma amostra de DNA sem que esse jovem perceba?
- Não é tão difícil - disse Bel. - De um jeito ou outro, tenho certeza de que consigo.
- Ainda acho que devo ir - disse Grant.
- É claro que acha, querido. Mas as mulheres estão certas desta vez. E você simplesmente terá de controlar seu espírito com paciência. Agora, onde está o
avião?
Grant suspirou.
- No aeroporto de Edimburgo.
- Perfeito. Quando Bel tiver terminado de arrumar a mala, Susan estará com tudo acertado. - Ela olhou rapidamente para o relógio. - Você disse que levaria
Alec para pescar depois da escola, então eu posso levar Bel até o aeroporto. - Ela sorriu para Bel. - É melhor nos apressarmos. Vejo você lá embaixo em quinze minutos?
Bel assentiu, espantada demais para discutir. Se ela alguma vez houvesse se perguntado como Judith Grant conseguia sobreviver no casamento, naquele momento tinha
acabado de testemunhar uma demonstração espetacular. Grant tinha sido totalmente coagido e, a não ser que tivesse um ataque de fúria, não havia como voltar atrás.
Ela se virou e subiu correndo as escadas. Avance mais algumas casas. Aquilo estava se transformando na história da sua carreira. Todos aqueles que a haviam desprezado
iriam ter de engolir suas palavras. Seria sublime. O.k., havia umas diligências tediosas a serem completadas primeiro, mas sempre havia diligências tediosas. Só
que nem sempre havia glória no final delas.
Kirkcaldy
Karen andava de um lado a outro, dez passos inabaláveis através da sala de estar, então meia-volta, e dez passos no sentido contrário. Geralmente, o movimento a
ajudava a organizar os pensamentos. Mas, esta noite, não estava funcionando. A desordem em sua cabeça estava incontrolável; era como pastorear gatos ou lutar contra
a água. Ela desconfiava que fosse porque, em um nível profundo, ela estava resistindo a aceitar a conclusão inevitável. Ela precisava de Phil para segurar sua mão
enquanto pensava o impensável.
Onde diabos ele estava? Deixara uma mensagem em sua caixa postal quase duas horas atrás, mas ele ainda não tinha retornado o telefonema. Não era típico dele, sumir
daquele jeito. Enquanto esse pensamento circulava pela centésima vez, a campainha ressoou.
Ela nunca percorreu a distância até a porta com tanta rapidez. Phil estava na soleira, parecendo encabulado.
- Me desculpe - ele disse. - Fui à Biblioteca Nacional em Edimburgo e tive que desligar o celular. Esqueci de ligá-lo novamente até alguns minutos atrás.
Achei que seria mais rápido simplesmente vir direto para cá.
Karen conduziu-o para a sala enquanto ele falava. Ele olhou em volta com curiosidade.
- É bonito aqui - disse.
- Não é não. É só um espaço para se morar - ela retrucou.
- Mas é um bom espaço. É relaxante. As cores são harmoniosas. Você tem bom gosto.
Ela não teve coragem de dizer a ele que o bom gosto era de outra pessoa.
- Não o chamei para apreciar a decoração - disse. - Quer uma cerveja? Ou uma taça de vinho?
- Estou dirigindo - ele disse.
- Não importa. Você pode pegar um táxi para casa. Acredite em mim, você vai precisar de uma bebida. - Ela empurrou a cópia das anotações de Bel na direção
dele. - Cerveja ou vinho?
- Você tem vinho tinto?
- Leia isto. Volto já.
Karen foi para a cozinha, escolheu o melhor dentre a meia dúzia de tintos que guardava na prateleira, abriu-o e serviu duas taças grandes.
O aroma de geleia do sirah australiano pinicou seu nariz quando ela apanhou as bebidas. Era o primeiro fator externo que notava desde que deixara o escritório.
Phil tinha vindo até a sala de jantar e estava sentado à mesa, atento ao relatório. Ela pousou a taça perto da mão dele. Distraidamente, ele tomou um gole. Karen
não conseguia ficar quieta. Sentou-se, depois levantou. Foi até a cozinha e voltou com um prato de biscoitos de queijo. Então, se lembrou da folha de papel que Novo
em Folha tinha dado a ela. Havia enfiado o papel na bolsa sem nem olhar.
Procurou a bolsa na cozinha. As notas de Novo em Folha não eram exatamente as mais claras ou sucintas que já lera, mas captou a essência do que ele havia descoberto.
Três dos amigos de Cat claramente não ofereciam qualquer interesse. Mas a mensagem do fórum que ele havia copiado, a respeito de Toby Inglis, saltou aos olhos dela
com a força de uma mola pressionada... igualzinho no livro da Kate Mosse. Mas você nunca adivinharia com quem nos encontramos num bistrô em Perpignan. Simplesmente
o Toby Inglis. Você se lembra de como ele dizia que ia virar o mundo no avesso, ser o próximo Olivier? Bem, obviamente não deu tão certo quanto ele havia planejado.
Ele foi bastante evasivo, no que diz respeito aos detalhes, mas disse que é diretor de teatro e designer. Na minha modesta opinião, ele estava sendo um pouco econômico
com relação à verdade. Brian disse que ele se parecia mais a um hippie aposentado por velhice. O cheiro, pelo menos, era de hippie; ele fedia a patchuli e maconha.
Perguntamos onde poderíamos assistir a alguma de suas produções, mas ele disse que estava em férias de verão. Eu estava morrendo de vontade de perguntar mais, mas,
daí, chegou uma mulher alemã. Acho que ela pensava que eles iriam comer lá, mas ele a empurrou porta afora o mais rápido que pôde. Acho que não queria que a gente
conversasse com ela e descobrisse a verdade. Seja ela quem for. Então, depois de Perpignan...
Karen releu os rabiscos de Novo em Folha. Será que aquele era Matthias? Certamente se parecia ao misterioso Matthias, que não tinha mais sido visto desde que fora
identificado em Siena, junto com Gabriel Porteous. Outra peça que parecia fazer parte do quebra-cabeça, mas que não se encaixava.
Karen se obrigou a respirar fundo e, então, juntou-se a Phil na mesa de jantar. Ele tinha espalhado as páginas impressas à sua frente. Tocou uma com o dedo para
alinhá-la com as demais.
- É ele, não é? - perguntou.
- Adam?
Ele agitou a mão impacientemente para ela.
- Bem, sim, claro que é Adam. Tem que ser Adam. Não só porque ele se parece exatamente com a mãe e o avô. Mas porque o homem que o criou é Mick Prentice.
Karen experimentou um instante de ausência de gravidade. A agitação se acalmou, e ela pôde pensar direito novamente. Ela não estava perdendo o juízo nem deixando
que sua imaginação a dominasse.
- Você tem certeza?
- Na verdade, ele não mudou tanto assim - disse Phil. - E, olhe, aqui está a cicatriz... - Ele a traçou com a ponta do dedo. - A tatuagem de carvão atravessando
a sobrancelha direita. A fina linha azulada. É Mick Prentice. Eu apostaria uma grana nisso.
- Mick Prentice era um dos seqüestradores? - Mesmo a seus próprios ouvidos, Karen soava um pouco hesitante.
- Acho que nós dois sabemos que ele era mais do que isso - disse Phil.
- O registro - disse Karen.
- Exatamente. Tudo isso foi planejado antes mesmo de Mick abandonar Jenny. Ele havia estabelecido uma identidade falsa para poder começar uma vida nova. Mas
só pode haver uma razão para que ele precisasse estabelecer uma nova identidade para Adam.
- Ele não estava em absoluto planejando pedir resgate por ele - disse Karen. - Porque ele era o pai de Adam. Não o Fergus Sinclair. Mick Prentice. - Ela tomou
um gole do vinho. - Foi uma armação, não foi? Não havia anarquistas coisa nenhuma, havia?
- Não. - Phil suspirou. - Parece que havia dois mineiros: Mick e seu amigo Andy.
- Você acha que Andy fazia parte do plano?
- É o que parece. De que outra forma se pode explicar o fato de ele terminar enterrado na caverna, justo na mesma época?
- Mas por quê? Por que matá-lo? Ele era o melhor amigo de Mick - protestou Karen. - Se existia alguém em quem ele podia confiar, era Andy. Do jeito que vocês
homens são, ele provavelmente confiaria muito mais em Andy do que em Cat.
- Pode ter sido um acidente. Talvez ele tenha batido a cabeça entrando ou saindo do barco.
- Ri ver disse que a parte de trás da cabeça estava afundada. Isso não parece um acidente ao entrar num barco.
Phil jogou as mãos para o alto, num gesto de "que seja!".
- Ele pode ter tropeçado, batido a cabeça no cais. Estava um caos, naquela noite. Pode ter acontecido qualquer coisa. Aposto que Andy foi um conspirador.
- E Cat? Ela fazia parte do plano ou foi uma vítima? Ela e Mick ainda estavam juntos ou ele estava tentando ficar com o filho e com bastante dinheiro de Brodie
Grant para que os dois pudessem viver bem?
Phil coçou a cabeça.
- Acho que ela fazia parte do plano - ele disse. - Se eles houvessem se separado e ele tivesse sequestrado os dois, ela jamais teria deixado que tirassem
Adam de seus braços. Ela teria sentido medo demais se ele tirasse a criança dela.
- Não posso acreditar que eles tenham conseguido se safar - ela disse.
Phil arrumou os papéis.
- Lawson estava olhando na direção errada. E com bons motivos.
- Não, não. Não me refiro ao sequestro. Digo o caso amoroso. Todo mundo sabe da vida de todo mundo em um lugar como Newton. Eu diria até que é mais fácil
se livrar impunemente de um assassinato do que de um caso extraconjugal.
- Bem, parece que fizemos o que Lawson não conseguiu. Solucionamos o sequestro e encontramos Adam Maclennan Grant.
- Não é bem assim - disse Karen. - Na verdade, não sabemos onde ele está. E tem o pequeno detalhe de um monte de sangue derramado na Toscana. Que poderia
ser dele.
- Ou poderia ter sido derramado por ele. Nesse caso, ele não estaria muito ansioso em ser encontrado.
- Tem uma coisa que ainda não analisamos - Karen disse, passando a Phil o resultado da pesquisa de Novo em Folha. - Parece que Matthias, o titereiro, pode
ser de fato um amigo de Cat, da faculdade de arte. A descrição de Toby Inglis parece adequar-se a Matthias, o líder da turma estranha. Onde ele se encaixa na história?
Phil olhou para o papel.
- Interessante. Se ele estava envolvido no sequestro, poderia ser mais do que apenas vergonha por sua carreira nada brilhante o que o estava fazendo ser discreto.
- Ele terminou sua taça de vinho e a inclinou na direção de Karen. - Tem mais de onde veio este?
Ela apanhou a garrafa e encheu novamente a taça dele.
- Alguma ideia brilhante?
Phil tomou um gole vagaroso.
- Bem, se esse Toby é Matthias, ele era um velho amigo de Cat. Pode ter sido assim que ele conheceu Mick. Não precisava ser nada planejado, ele poderia simplesmente
ter aparecido do nada quando Mick estava lá. Você sabe como são os artistas.
- Na verdade, não sei. Acho que nunca conheci alguém que estudasse na faculdade de artes.
- A namorada do meu irmão estudava. Aquela que está redecorando minha casa.
- E ela tende a ser pouco confiável? - perguntou Karen.
- Não - admitiu Phil. - Imprevisível, sim. Nunca sei o que ela vai me impor a seguir. Talvez eu devesse ter pedido a você que fizesse o trabalho. Esta decoração
é definitivamente muito mais agradável aos olhos.
- É minha razão de viver - disse Karen. - Agradar aos olhos. - Houve um momento de profundo silêncio entre eles e, então, ela pigarreou rapidamente e disse:
- Mas aí é que está, Phil. Se eles se conheceram quando Mick estava com Cat e, depois, se reencontraram por acaso na Itália, como foi que Mick explicou o que aconteceu
com Cat e o fato de ele ter ficado com o menino?
- Então, você quer dizer que ele devia estar envolvido no sequestro também?
Ela deu de ombros.
- Não sei. Não sei mesmo. Só sei que precisamos fazer a polícia italiana encontrar a pessoa cujo sangue não está no chão daquela villa para que possamos lhe
fazer algumas perguntas relevantes.
- Outro desafio para a mulher que colocou Jimmy Lawson atrás das grades. - Ele ergueu a taça para ela.
- Nunca vão se esquecer disso, né?
- E por que você iria querer que se esquecessem?
Karen desviou o olhar.
- Às vezes, é como se fosse um peso nas minhas costas, tal como O Homem que Matou o Facínora.
- Não tem nada a ver - disse Phil. - Você pegou o Lawson de forma totalmente justa.
- Depois que outra pessoa fez todo o trabalho. Assim como desta vez, com Bel fazendo todo o serviço braçal.
- Você fez o trabalho que importava, as duas vezes. Ainda estaríamos na estaca zero, se você não tivesse feito com que escavassem a caverna e interrogassem
adequadamente os caras de Nottingham. Se você vai começar a citar filmes, lembre-se de como era: "Quando a lenda se transforma em fato, publique a lenda." Você é
uma lenda, Karen. E merece ser.
- Gale a boca, você está me deixando encabulada.
Phil se recostou na cadeira e abriu um sorriso.
- Entregam pizza por aqui?
- Por quê? Você está se oferecendo para pagar?
- Estou. Nós merecemos uma comemoraçãozinha, você não acha? Percorremos um bom caminho para resolver dois casos arquivados. Ainda que tenhamos terminado com
o assassinato de Andy Kerr como uma espécie mórbida de bônus. Você pede a pizza, enquanto eu vou dar uma olhada nos seus DVDs.
- Eu deveria falar com os italianos - Karen disse, sem muita vontade.
- Gom a diferença de fuso horário, são quase oito horas lá. Você acha mesmo que vai haver alguém de alto escalão por lá? É melhor você esperar até amanhã
cedo e conversar com o cara com quem já vem lidando. Relaxe, pelo menos uma vez na vida. Desligue. Vamos terminar o vinho, mandar ver uma pizza e assistir a um filme.
O que você me diz?
Sim, sim, sim!
- Parece uma boa ideia - Karen disse. - Vou pegar os cardápios.
Celadoria, perto de Greve, em Chianti
O sol estava se encaminhando para as montanhas, uma esfera escarlate no espelho retrovisor, conforme Bel dirigia para o leste, saindo de Greve. Grazia havia se encontrado
com ela num bar na piazza principal e lhe entregado o papel com as instruções de como chegar à casinha simples onde Gabriel Porteous estava morando. A pouco mais
de três quilômetros da cidade, ela encontrou a curva correta indicada no mapa rabiscado. Dirigiu devagar, atenta para um par de postes de pedra à esquerda. Imediatamente
após passar por eles, deveria haver uma estrada de terra à esquerda.
E lá estava. Um caminho estreito que serpenteava entre fileiras de vinhas e o contorno da colina; seria fácil passar sem uma segunda olhada se você não a estivesse
procurando. Mas Bel estava procurando, e não hesitou. O mapa tinha uma cruz no lado esquerdo do caminho, mas, obviamente, o desenho não estava em escala. A ansiedade
começou a tomar conta dela conforme a distância da estrada principal aumentava. Então, de repente, matizada de cor-de-rosa ao sol poente, uma construção baixa de
pedra surgiu diante de seus olhos. Parecia a um passo da completa destruição. Mas isso não era incomum, mesmo numa área da moda como a região de Chianti.
Bel estacionou o carro na beira da estrada e saiu, esticando as costas depois de ter passado horas sentada. Antes de dar alguns passos, a porta de madeira se abriu
com um rangido, e o jovem das fotografias apareceu na soleira, vestido com uma calça jeans cortada e uma camiseta regata cavada que destacava a pele de bronzeado
uniforme. Sua postura era casual; uma das mãos na porta, outra no batente, um ar de indagação educada no rosto. Ao vivo, a semelhança com Brodie Grant era suficientemente
notável para parecer sobrenatural. Só as cores eram diferentes. Enquanto o jovem Brodie tivera cabelo tão negro quanto o de Cat, o de Gabriel era de tom caramelo,
iluminado por mechas douradas pelo sol. Com exceção disso, ambos poderiam ter sido irmãos.
- Você deve ser Gabriel - Bel disse em inglês.
Ele inclinou a cabeça, as sobrancelhas abaixaram-se e lançaram mais sombra ainda nos olhos fundos.
- Acho que não nos conhecemos - ele disse. Falava inglês com a musicalidade subjacente do italiano.
Ela se aproximou e estendeu a mão.
- Sou Bel Richmond. Andrea, da galeria de arte de San Gimi, não mencionou que eu viria?
- Não - ele disse, cruzando os braços sobre o peito. - Não tenho nenhum trabalho do meu pai para vender. Você perdeu seu tempo vindo até aqui.
Bel riu. Era uma risada leve e charmosa, na qual ela vinha trabalhando havia três anos para momentos como aquele, diante de uma porta.
- Você me entendeu mal. Não estou tentando roubar você ou Andrea. Sou jornalista. Ouvi falar sobre o trabalho do seu pai e queria escrever uma reportagem
sobre ele. E, então, descobri que era tarde demais. - O rosto dela se suavizou e ela lhe dirigiu um sorrisinho solidário. - Eu sinto muito. Para ter pintado aqueles
quadros, ele deve ter sido um homem notável.
- E foi - disse Gabriel. Ele pareceu ter dito aquelas duas palavras com extrema relutância. Seu rosto continuou impenetrável.
- Achei que talvez pudesse ainda ser possível escrever algo.
- Não existe razão, não é mesmo? Ele morreu.
Bel lhe dirigiu um olhar astuto. Reputação ou dinheiro: essa era a questão agora. Ela não conhecia aquele rapaz o suficiente para saber o que lhe permitiria cruzar
a soleira. E ela queria muito cruzar a soleira da porta antes de jogar a bomba do que realmente sabia a respeito dele e do pai.
- Aumentaria a reputação dele - ela disse. - Garantiria que seu nome se estabelecesse. E isso, obviamente, também valorizaria seu trabalho.
- Não estou interessado em publicidade. - Ele deu um passo para trás, a porta começando a se fechar.
Hora de jogar os dados.
- Posso entender o porquê disso, Adam. - Ela atingiu o alvo, a julgar pelo rápido espasmo de choque que passou por seu semblante. - Veja bem, eu sei muito
mais do que contei a Andrea. O suficiente para escrever uma história, com certeza. Você quer conversar sobre isso? Ou devo simplesmente
ir embora e escrever o que sei sem ouvir o que você tem a dizer sobre a forma como o mundo vê você e seu pai?
- Não sei do que você está falando - ele disse.
Bel já tinha visto suficiente bravata em sua vida para reconhecê-la.
- Ah, faça-me o favor - ela disse. - Não me faça perder tempo. - Ela se virou e começou a caminhar de volta para o carro.
- Espere - ele gritou atrás dela. - Olhe, acho que você está vendo as coisas pelo lado errado. Mas vamos entrar e tomar uma taça de vinho. - Bel girou nos
calcanhares sem um segundo de hesitação e se dirigiu até ele. O rapaz deu de ombros e lhe deu um sorriso de cão sem dono. - É o mínimo que posso fazer, já que você
veio até aqui.
Ela o seguiu para dentro de uma clássica sala obscura da Toscana, que servia como sala de estar, sala de jantar e cozinha. Havia até mesmo um nicho para cama além
da lareira, mas, em vez de um colchão estreito, continha uma televisão de plasma e um aparelho de som que Bel ficaria feliz em instalar em sua própria casa.
Havia uma mesa de pinho riscada e esfregada ao lado do fogão. Um maço de Marlboro Light e um isqueiro descartável estavam ao lado de um cinzeiro transbordante. Gabriel
puxou uma cadeira para Bel na extremidade mais distante e, então, trouxe duas taças e uma garrafa de vinho sem rótulo. Enquanto ele estava de costas para ela, Bel
apanhou uma guimba de cigarro do cinzeiro e a deslizou para dentro de seu bolso. Agora, poderia ir embora a qualquer instante e já teria o que precisava para provar
se este jovem era realmente Adam Maclennan Grant. Gabriel se acomodou na ponta da mesa, serviu o vinho e levantou sua taça para ela.
- Saúde!
Bel brindou com ele.
- Que bom finalmente conhecê-lo, Adam - disse.
- Por que você continua me chamando de Adam? - ele perguntou, aparentemente perplexo. Ele era bom, tinha de admitir. Um dissimulador melhor do que Ilarry,
que nunca conseguia impedir suas bochechas de se ruborizarem quando mentia. - Meu nome é Gabriel. - Ele tirou um cigarro do maço e o acendeu.
- É agora - Bel admitiu. - Mas não é seu nome verdadeiro, assim como Daniel Porteous não era o nome verdadeiro do seu pai.
Ele deu uma risadinha, sacudindo a mão no ar num gesto de incompreensão.
- Está vendo só, isso é bizarro demais para mim. Você aparece na minha casa, nunca te vi antes, e começa a falar tudo isso... Não quero parecer grosseiro,
mas, falando sério, não existe outro nome para isso além de falar merda. Como se eu não soubesse meu próprio nome.
- Acho que você sabe seu próprio nome. Acho que sabe exatamente do que estou falando. Quem quer que fosse seu pai, o nome dele não era Daniel Porteous. E
você não é Gabriel Porteous. Você é Adam Maclennan Grant. - Bel pegou a bolsa e retirou dela uma pasta. - Esta é a sua mãe.
- Ela pegou uma foto de Cat Grant no iate do pai, rindo, com a cabeça jogada para trás. - E este é o seu avô. - Ela mostrou um retrato publicitário de Brodie
Grant com quarenta e poucos anos. Ergueu os olhos e viu o peito de Gabriel se elevando e abaixando em compasso com sua respiração rápida e superficial. - A semelhança
é impressionante, você não acha?
- Então, você encontrou algumas pessoas que se parecem um pouco comigo. O que é que isso prova? - Ele tragou o cigarro com força, os olhos semifechados por
causa da fumaça.
- Nada, por si só. Mas você apareceu na Itália com um homem usando a identidade de um menino que morreu muitos anos antes. Vocês dois apareceram não muito
depois de Adam Maclennan Grant e sua mãe terem sido sequestrados. A mãe de Adam morreu quando a entrega do resgate se complicou, mas Adam desapareceu sem deixar
vestígios.
- Isso é muito pouco - disse Gabriel. Ele já não estava mais olhando nos olhos dela. Esvaziou sua taça e a encheu novamente. - Não vejo nenhuma ligação real
comigo e com meu pai.
- O resgate era exigido através de um formato muito específico. Um pôster de um titereiro. O mesmo pôster apareceu numa villa perto de Siena que estava sendo
habitada ilegalmente por uma trupe de titereiros, liderada por um cara chamado Matthias.
- Estou totalmente por fora. - Os olhos dele podiam estar focalizados acima do ombro dela, mas seu sorriso era puro charme. Igual ao do avô.
Bel colocou uma foto de Gabriel tirada na festa na Boscolata sobre a mesa.
- Resposta errada, Adam. Este aqui é você numa festa em que você e seu pai eram convidados de Matthias. Liga vocês dois a um pedido de resgate
que foi feito, por você e por sua mãe, há vinte e dois anos. O que é mais do que sugestivo, você não acha?
- Não sei do que você está falando - ele disse.
Ela reconhecia a linha de teimosia no queixo, de seus encontros com
Brodie Grant. De verdade, ela poderia ir embora naquele momento e contar com o DNA para fazer o que fosse necessário. Mas não conseguia se controlar. O instinto
de jornalista, de entrar no jogo e conseguir o furo de reportagem, era forte demais.
- É claro que sabe. É uma ótima história, Adam. E eu vou escrevê-la com ou sem a sua ajuda. Mas tem mais, não tem?
Não havia nada de amistoso no olhar que Gabriel lhe dirigiu.
- Isso tudo é uma grande bobagem. Você pegou algumas coincidências e construiu essa fantasia. O que está esperando conseguir com isso? Dinheiro desse tal
de Grant? Uma historiazinha chulé pra revista? Se você tiver uma gota de reputação, vai destruí-la, se escrever isso.
Bel sorriu. Suas ameaças frágeis lhe disseram que ela o pegara. Hora do golpe fatal.
- Como eu disse, tem mais. Você pode achar que está seguro, Adam, mas não está. Ilá uma testemunha, entende... - Ela deixou a frase pairando no ar.
Ele amassou o cigarro e imediatamente pegou outro.
- Uma testemunha do quê? - Havia um tom cortante em sua voz que fez Bel sentir que estava no caminho certo.
- Você e Matthias foram vistos juntos um dia antes de a trupe do BurEst ter desaparecido da Villa Totti. Você esteve na villa com ele, naquela noite. No dia
seguinte, todos haviam ido embora. Assim como você.
- E daí? - Agora ele pareceu irritado. - Mesmo que isso seja verdade, e daí? Me encontrei com um amigo do meu pai. Meu pai, que havia acabado de morrer. No
dia seguinte, ele vai embora da cidade com sua equipe. E daí, porra?
Bel deixou que as palavras dele pairassem no ar. Ela estendeu a mão para os cigarros dele e pegou um.
- E daí é que há uma mancha de sangue equivalente a alguns litros no chão da cozinha. O.k, você já sabe essa parte. - Ela acionou o isqueiro, o brilho da
chama revelava quanto havia escurecido durante o curto espaço
de tempo desde a hora em que ela havia chegado. O cigarro foi aceso, ela tragou a fumaça para dentro da boca e a deixou esvair-se lentamente por um canto. - O que
você provavelmente não sabe é que a polícia italiana deu início a uma investigação por assassinato. - Ela bateu com o cigarro, sem razão, na borda do cinzeiro. -
Acho que está na hora de você abrir o jogo sobre o que aconteceu em abril passado.
Quinta-feira, 26 de abril de 2007; Villa Totti, Toscana
Até os últimos dias da vida de seu pai, Gabriel Porteous não tinha compreendido sua proximidade com o homem que o havia criado sozinho. A ligação entre pai e filho
nunca tinha sido algo em que ele pensasse muito. Se tivesse sido pressionado a tanto, teria caracterizado o relacionamento entre eles mais como cortês do que como
intenso, principalmente quando o comparava com a ligação dinâmica que a maioria de seus amigos tinha com o pai. Ele atribuía isso ao fato de Daniel ser britânico.
Afinal, os britânicos eram supostamente rígidos e reservados, não eram? Além disso, todos os seus amigos tinham famílias grandes, estendendo-se tanto vertical quanto
horizontalmente através do tempo e do espaço. Em um ambiente assim, era preciso reclamar seus direitos ou deixar-se afundar sem vestígios. Mas Gabriel e Daniel só
tinham um ao outro. Não precisavam competir por atenção. Portanto, não havia problema em ser pouco efusivo. Ou, ao menos, era isso o que ele dizia a si mesmo. Não
havia sentido em admitir a ânsia pelo tipo de família que jamais poderia ter. Avós falecidos, filho único de um filho único, ele nunca seria parte de um clã, como
seus amigos. Ele deveria ser estoico, como o pai, aceitando aquilo que não podia ser mudado. Ao longo dos anos, tinha fechado a porta a seu desejo por algo diferente,
aprendendo a curvar-se diante do inevitável e lembrando a si mesmo de olhar o lado positivo de seu status solitário.
Portanto, quando Daniel contou a ele sobre seu diagnóstico de câncer, Gabriel entrou num processo de negação. Ele não podia conceber a vida sem Daniel. Aquela informação
horrível não fazia sentido em sua visão de mundo, então ele simplesmente levou a vida adiante, como se a notícia jamais lhe houvesse sido dada. Não havia necessidade
de ir à sua casa com mais frequência. Não havia necessidade de aproveitar cada oportunidade
possível de passar algum tempo com Daniel. Não havia necessidade de conversar sobre um futuro que não incluía seu pai. Porque isso não iria acontecer. Gabriel não
seria abandonado pela única família que tinha.
Mas, finalmente, foi impossível ignorar a realidade, que era maior do que sua capacidade de resistência. Quando Daniel lhe telefonou do hospital Policlínico Le Scotte
e disse, numa voz mais frágil que um sussurro, que precisava que Gabriel fosse até lá, a verdade o atingiu com a força de um saco de areia golpeado contra a nuca.
Aqueles dias finais, ao lado da cama de seu pai, tinham sido torturantes para Gabriel, ainda mais porque ele não havia se permitido preparar-se para eles.
Era tarde demais para a conversa que Gabriel finalmente desejava ter, mas, em um de seus momentos de lucidez, Daniel havia lhe contado que Matthias tinha uma carta
guardada para ele. Não poderia dar a Gabriel uma noção do que ela continha, apenas podia dizer que era importante. Aquilo era, pensou Gabriel, típico de seu pai,
o artista, comunicar-se por papel em vez de cara a cara. Ele havia transmitido as instruções para seu enterro por e-mail. Um funeral reservado fora pago antecipadamente,
em uma igreja renascentista pequena, mas perfeita, em Florença, com apenas Gabriel presente para enterrá-lo em um cemitério comum na periferia, a oeste da cidade.
Daniel havia anexado um arquivo de MP3 com a música Tenebrae Responsories, de Gesualdo, para que o filho carregasse em seu iPod e escutasse no dia do enterro. A
escolha da música surpreendeu Gabriel; seu pai sempre ouvia música enquanto pintava, mas nunca algo daquele estilo. Não havia qualquer explicação para a música.
Apenas outro mistério, como a carta deixada com Matthias.
Gabriel tinha planejado visitar Matthias, na villa caindo aos pedaços perto de Siena, depois que houvesse passado o primeiro impacto de sua dor. Mas, quando saiu
do cemitério, o titereiro estava esperando por ele. Matthias e sua parceira, Ursula, tinham sido o mais próximo de um tio e uma tia que Gabriel conhecera. Sempre
haviam sido parte de sua vida, ainda que nunca permanecessem num lugar tempo suficiente para que ele se familiarizasse com eles. Tampouco tinham sido acessíveis
emocionalmente; Matthias era centrado demais em si mesmo, e Ursula, centrada demais em Matthias. Mas ele havia passado férias com eles, quando era criança, enquanto
o pai viajava sozinho por algumas semanas. Gabriel chegava ao
fim das férias com a pele bronzeada de sol, cabelos revoltos e joelhos esfolados; Daniel retornava com uma sacola repleta de novos trabalhos feitos em locais mais
distantes: Grécia, Iugoslávia, Espanha, Norte da África. Gabriel sempre ficava feliz ao ver o pai, mas sua alegria era temperada por ter de se despedir do toque
de luminosidade dos cuidados de Ursula e Matthias.
Agora Gabriel e Matthias se entregaram a um abraço sem palavras nos portões do cemitério, aferrando-se um ao outro como um náufrago a um pedaço de madeira, sem se
importar com a pouca estabilidade. No fim, separaram-se, Matthias afagando-o gentilmente no ombro.
- Venha para casa comigo - ele disse.
- Você tem uma carta para mim - Gabriel falava, caminhando ao lado dele.
- Está na villa.
Um ônibus até a estação, um trem até Siena e, então, seguiram na van de Matthias de volta à Villa Totti, tudo quase sem trocarem uma palavra. A tristeza os cobria,
deixando-os de cabeça baixa e ombros curvados. Quando chegaram, a bebida parecia a única solução que ambos podiam enfrentar. Felizmente, o restante da trupe BurEst
havia saído cedo para um trabalho em Grossetto, deixando Gabriel e Matthias sozinhos para enterrar os mortos.
Matthias serviu o vinho e colocou um envelope estufado na frente de Gabriel.
- Aqui está a carta - ele disse, sentando-se para apertar um baseado.
Gabriel o apanhou e voltou a deixá-lo sobre a mesa. Tomou quase todo
o vinho da taça e, então, correu um dedo pela borda do envelope. Bebeu um pouco mais, compartilhou o baseado e continuou bebendo. Não conseguia imaginar nada que
Daniel pudesse lhe contar que precisasse de tanto papel. Indicava uma revelação, e Gabriel não tinha certeza se queria uma revelação naquele momento. Já era doloroso
demais apegar-se à memória do que havia perdido.
Em algum momento, Matthias se levantou e colocou um CD num reprodutor portátil. Gabriel foi surpreendido pela mesma música que escutara antes, reconhecendo as estranhas
dissonâncias.
- Meu pai me mandou esta música - disse. - Ele me disse para ouvi-la hoje.
Matthias assentiu.
- Gesualdo. Ele assassinou a própria esposa e o amante dela, sabe? Alguns dizem que ele matou seu segundo filho porque não tinha certeza se era realmente
o pai. E seu sogro também, supostamente, porque o velho queria se vingar. Gesualdo conseguiu sua retaliação primeiro. Então, ele se arrependeu e passou o resto
da vida compondo música sacra. Serve para mostrar algo. Você pode fazer coisas terríveis e ainda encontrar a redenção.
- Não entendo. - Gabriel disse, pouco à vontade. - Por que ele iria querer que eu ouvisse isso? - Eles já estavam na segunda garrafa de vinho e no terceiro
baseado. Ele se sentia um pouco zonzo, mas nada muito sério.
- Você realmente deveria ler a carta - disse Matthias.
- Você sabe o que tem nela - disse Gabriel.
- Mais ou menos. - Matthias se levantou e foi em direção à porta. - Vou até a varanda para tomar um pouco de ar. Leia a carta, Gabe.
Era difícil não sentir que havia algo de nefasto numa carta entregue em tais circunstâncias. Difícil evitar o medo de que o mundo mudasse para sempre. Gabriel desejou
fugir daquilo; quis deixá-la fechada e que sua vida seguisse adiante, inalterada. Mas não podia ignorar a mensagem final de seu pai. Apressadamente, ele a agarrou
e rasgou o envelope. Seus olhos se encheram de lágrimas ao ver a caligrafia familiar, mas ele se obrigou a ler.
Caro Gabriel.
Sempre quis te contar a verdade a seu respeito, mas nunca parecia o momento certo. Agora estou morrendo, e você merece a verdade, mas tenho medo demais de que
você se afaste e me deixe enfrentar o fim sozinho. Então, estou escrevendo esta carta que você receberá de Mathias depois que eu tiver partido. Tente não ser muito
duro comigo. Fiz algumas coisas estúpidas, mas as fiz por amor.
A primeira coisa que vou dizer é que, embora eu tenha dito a você um monte de mentiras, se existe uma coisa que é verdade, somente a verdade e nada mais que
a verdade é que sou seu pai e te amo mais do que qualquer outro ser humano. Apegue-se a essa ideia quando desejar que eu estivesse vivo para que você pudesse me
matar.
É difícil saber por onde começar esta história. Mas aí vai. Meu nome não é Daniel Porteou, e não sou de Glasglow. Meu primeiro nome é Michael, mas todos me
chamavam de Mick. Mick Prentice era quem eu costumava ser. Eu era um mineiro de carvão, nascido e criado em Newton of Wemyss, em Fife. Eu tinha esposa e uma filha,
Misha. Ela tinha quatro anos de idade quando você nasceu. Mas estou me adiantando, porque vocês dois tiveram mães diferentes e eu preciso explicar isso.
A única coisa na qual eu era bom, além de extrair carvão, era a pintura. Eu era bom em artes na escola, mas de jeito nenhum alguém como eu poderia fazer alguma
coisa com isso. Fui encaminhado para trabalhar na mina e isso seria tudo. Então, o Serviço Social dos Mineradores ofereceu um curso de pintura e eu tive a chance
de aprender alguma coisa com uma artista de verdade. Acabou que eu tinha um dom para aquarelas. As pessoas gostavam do que eu pintava e eu podia vender as pinturas
por algumas libras, de vez em quando. Pelo menos antes da greve dos mineiros, em 1984, quando as pessoas ainda tinham dinheiro para luxos.
Uma tarde, em setembro de 1983, eu saí do turno do dia, e a luz estava incrível, então peguei minhas tintas e subi os rochedos no extremo mais distante do vilarejo.
Estava pintando a vista do mar através dos troncos de árvore. A água estava luminosa, ainda posso me lembrar de como parecia bonito demais para ser verdade. Enfim,
eu estava totalmente concentrado no que fazia, sem prestar atenção em mais nada. E de repente, uma voz disse: "Você é bem mesmo."
E o que notei logo de cara foi que ela não parecia surpresa. Eu estava acostumado a que as pessoas ficassem estupefatas que um mineiro pudesse pintar uma bela
paisagem. Como se fosse um macaco fazendo aquilo ou coisa parecida. Mas ela não. Não Catriona. Desde aquele primeiro instante, ela falou comigo como se eu estivesse
em pé de igualdade com ela.
Eu quase caguei nas calças, veja você. Pensei que estivesse totalmente sozinho e, de repente, alguém bem do meu lado estava falando comigo. Ela viu como eu
fiquei apavorado e riu e pediu desculpas por ter me perturbado. Mas então eu percebi como ela era linda. Cabelo negro como a asa de um corvo, estrutura óssea que
parecia ter sido esculpida por um cinzel impecável. Olhos tão fundos que era preciso se aproximar muito para ter certeza da cor (azul como o índigo, a propósito)
e um sorriso enorme capaz de ofuscar o sol. Você se parece tanto com ela que, às vezes, fico com o coração apertado e sinto vontade de chorar feito um bebê.
Então, lá estava eu, no bosque, cara a cara com essa criatura incrível e não conseguia encontrar uma palavra para dizer. Ela estendeu a mão para mim e disse:
"Sou Catriona Grant." Praticamente engasguei tentando pigarrear para que pudesse lhe dizer meu nome. Ela disse que também era artista plástica, escultora de vidro.
Fiquei mais
surpreso ainda, então. A única outra artista que eu havia conhecido era a mulher que dava as aulas de pintura, e ela não era grande coisa. Mas eu simplesmente sabia
que Catriona estava à altura da profissão. Ela se deslocava com uma aura de autoconfiança, o tipo de cena que você só tem quando é artista de verdade. Mas estou
me adiantando novamente.
De qualquer modo, conversamos um pouco sobre o tipo de trabalho que estávamos interessados em fazer e nos entendemos bastante bem. Eu estava simplesmente agradecido
por ter alguém com quem conversar sobre arte. Eu não tinha visto muito de arte ao vivo, por assim dizer, só o que tinham na Galeria de Arte de Kirkcaldy. Mas acontece
que eles tinham muita coisa boa lá, o que me ajudou um pouco no início.
Catriona me disse que tinha um ateliê e um sítio na entrada principal e me convidou para ir até lá conhecer suas instalações. Então, ela seguiu seu caminho
e eu senti como se a luz houvesse sido retirada do dia.
Levei algumas semanas para criar coragem e ir ver seu ateliê. Não era difícil chegar lá - apenas alguns quilômetros atravessando o bosque - , mas eu não tinha
certeza se ela realmente queria que eu fosse ou só estava sendo educada. O que demonstra como eu a conhecia pouco na época! Catriona nunca disse nada que não quisesse
dizer. E, da mesma maneira, nunca se reprimiu quando tinha algo a dizer.
Fui até lá para vê-la num dia em que estava chovendo e eu não podia pintar. Seu sítio era uma antiga casa de caseiro na propriedade de Wemyss. Não era maior
do que a casa em que eu morava com minha esposa e filha, mas ela a havia pintado com cores vibrantes que faziam os cômodos parecerem amplos e ensolarados, até mesmo
no dia mais feio e cinza. Mas o melhor de tudo era o ateliê e a galeria que ela tinha nos fundos. Uma grande fornalha para vidro e muito espaço de trabalho. E, ne
outro extremo, prateleiras para que as pessoas pudessem ver e comprar seus produtos. Seu trabalho era lindíssimo. Linhas suaves e arredondadas. Formas muito sensuais.
E cores incríveis. Eu nunca tinha visto peças de vidro como aquelas e, mesmo aqui, na Itália, você teria de procurar muito para achar cores tão ricas e intensas.
O vidro parecia estar pegando fogo com as diferentes cores. Você sentia vontade de pegá-lo e segurá-lo junto a si. Eu gostaria de ter uma peça dela, mas nunca pensei
que precisaria de uma parte dela até que fosse tarde demais. Talvez um dia você possa procurar alguma coisa que ela tenha feito e, então, entenderá o poder do seu
trabalho.
Foi uma bela tarde. Ela fez café, café de verdade, como não se encontrava muito na Escócia, naquela época. Tive que colocar açúcar extra, e o sabor foi estranho
para mim, a princípio. E nós conversamos. Eu não podia acreditar em como nós conversamos.
Sobre tudo que existia sob o sol, ou assim pareceu. Era óbvio, desde a primeira vez em que ela abriu a boca, naquele dia no bosque, que ela pertencia a uma classe
diferente da minha, mas naquela tarde isso não pareceu fazer muita diferença.
Combinamos de nos encontrar novamente no ateliê, alguns dias mais tarde. Acho que nenhum de nós tinha qualquer noção de que pudesse haver riscos no que estávamos
fazendo. Mas estávamos brincando com fogo. Nenhum dos dois tinha outra pessoa na vida com quem pudesse conversar da forma como fazíamos um com o outro. Éramos jovens
- eu tinha vinte e oito e ela, vinte e quatro, mas naquele tempo éramos muito mais inocentes de que você e seus amigos, na mesma idade. E desde o primeiro momento
que nos vimos, houve eletricidade entre nós.
Sei que você não quer pensar em sua mãe e seu pai apaixonados e tudo o que acompanha isso, então não vou te incomodar com os detalhes. Só o que vou dizer é
que nos tornamos amantes logo e acho que para nós dois foi como sair para a intensa luz do sol após ter se acostumado às lâmpadas elétricas. Estávamos doidos um
pelo outro.
E, é claro, era impossível. Logo fiquei sabendo a verdade sobre sua mãe. Ela não era simplesmente uma garota de classe média. Não era simplesmente Catriona
Grant. Era a filha de Sir Broderick Maclennan Grant. É um nome que todo mundo na Escócia conhece, assim como todos na Itália conhecem Silvio Berlusconi. Grant é
construtor e desenvolve empreendimentos imobiliários. Em qualquer parte da Escócia que você vá, vê o nome da empresa dele em gruas e tapumes. Além disso, ele possui
participações em outros negócios, como estações de rádio, um time de futebol, uma destilaria de uísque, uma empresa de transportes e uma rede de centros de lazer.
Ele também é um tirano. Tentou impedir Catriona de se tornar escultora. Tudo que ela fazia era a despeito dele. Ele jamais teria permitido que ela tivesse um relacionamento
com alguém tão comum quanto um mineiro. Muito menos um mineiro que estava casado com outra pessoa.
E, sim, eu estava casado com outra pessoa. Não estou tentando desculpar a mim mesmo. Não quis ser um filho da puta traidor, mas Catriona me deixou enlouquecido.
Nunca me senti daquele jeito com relação a alguém, nem antes nem depois dela. Você deve ter percebido que eu nunca fui de ter namoradas. O problema é que ninguém
nunca conseguia chegar aos pés de Catriona. A forma como ela fazia que eu me sentisse, acho que ninguém mais poderia conseguir.
E, então, ela ficou grávida de você. Você entende, filho, você não é Gabriel Porteous. Na verdade, é Adam Maclennan Grant. Ou Adam Prentice, se você preferir.
Quando isso aconteceu, eu teria deixado minha esposa por Catriona, sem dúvida nenhuma. Era o que eu queria fazer e disse a ela. Mas ela havia saído de um relacionamento
que ia e vinha durante anos, não fazia muito tempo. Não estava preparada para morar comigo e não estava preparada para outra briga com o pai. Acho que ninguém nunca
desconfiou que nos conhecêssemos. Éramos cuidadosos. Eu sempre ia e vinha pelo bosque, e todos sabiam que eu era pintor, então ninguém dava muita atenção para as
minhas andanças.
Portanto, concordamos em manter as coisas como estavam. Nós nos víamos quase todos os dias, ainda que fosse apenas por vinte minutos. E quando você nasceu,
passei tanto tempo quanto era possível com vocês dois. Naquele tempo, eu estava em greve, então não tinha um trabalho que me mantivesse longe de vocês.
Não vou encher a sua cabeça contando sobre a greve de um ano dos mineiros, que destruiu o sindicato e o espírito dos homens. Existem muitos livros sobre o assunto.
Leia o livro "GB84" de David Peace, se você quiser ter uma ideia de como foi. Ou pegue o DVD de "Billy Elliot". Tudo que você precisa saber é que, a cada semana
que passava, eu ansiava por algo diferente, uma vida na qual nós três pudéssemos ficar juntos.
Quando você tinha alguns meses de vida, Catriona também havia mudado de ideia. Ela queria que ficássemos juntos. Um novo começo em algum lugar onde ninguém
nos conhecesse. O grande problema é que não tínhamos dinheiro. Catriona mal estava ganhando para sobreviver com seus trabalhos em vidro, e eu não estava trabalhando
nada por causa da greve. Ela só conseguia manter sua casa e o ateliê porque a mãe dela pagava o aluguel. Era uma espécie de suborno, para que Catriona ficasse por
perto. Então nós sabíamos que a mãe dela não iria pagar para que fôssemos morar juntos em outro lugar. Tampouco podíamos continuar ali. Abandonar minha esposa e
filha no auge da greve, para ir viver com alguém da classe patronal, teria sido considerado pior de que furar a greve. Teriam atirado tijolos nas nossas janelas.
Então, sem um tostão com que começar, estávamos perdidos.
Então Catriona teve esta ideia. A primeira vez que ela a mencionou, achei que tivesse ficado louca. Mas, quanto mais ela falava sobre isso, mais me convencia
de que iria funcionar. A ideia era que fingíssemos um sequestro. Eu abandonaria minha família , faria parecer que tinha furado a greve e me esconderia na casa de
Catriona. Algumas semanas depois, você e Catriona desapareceriam, e o pai dela receberia um pedido de resgate. Todos pensariam que vocês tivessem sido sequestrados.
Nós sabíamos que o pai dela pagaria o resgate, se não por ela, então por você. Eu pegaria o dinheiro, você e Catriona voltariam e, algumas semanas depois, Catriona
levaria você embora,
dizendo que estava abalada demais pelo sequestro para continuar vivendo ali. E nos encontraríamos e começaríamos nossa vida juntos.
Parece simples, dito assim. Mas ficou realmente complicado e tudo foi para o buraco. Na verdade, sua mãe não teria conseguido pensar numa ideia pior nem se
tivesse passado o resto da vida tentando.
A primeira coisa que percebemos quando começamos a planejar os detalhes era que não poderíamos fazer tudo só os dois. Precisávamos de mais um par de mãos. Você
consegue imaginar tentar encontrar alguém em quem pudéssemos confiar para fazer parte de um plano desses? Eu não conhecia ninguém maluco o suficiente para se unir
a nós, mas Catriona conhecia. Um de seus velhos amigos da Faculdade de Arte de Edimburgo, um cara chamado Toby Inglis. Um desses malucos de classe alta que topam
qualquer coisa. Você sempre o conheceu como Matthias, o titereiro. O homem que terá dado esta carta a você. E ele ainda é um maluco, a propósito.
Ele teve a brilhante ideia de fazer o sequestro parecer um ato político. Ele criou esses pôsteres de um titereiro sinistro com suas marionetes e os usou para
transmitir os pedidos de resgate, como se fossem de um grupo anarquista. Foi uma boa ideia. Teria sido uma ideia melhor ainda se ele houvesse destruído a tela que
usou para imprimi-los, mas Toby sempre achava que fosse mais esperto que os outros. Então, ele guardou a tela e ainda usa o mesmo pôster, às vezes, para apresentações
especiais. Toda vez que o vejo, sinto minhas entranhas se revirarem. Só seria necessário que uma pessoa reconhecesse de onde vem esse pôster, estaríamos metidos
até o pescoço em problemas.
Mas estou novamente me adiantando. Eu não tinha muita certeza se deveria te contar tudo isso, e Toby achou que talvez fosse melhor deixar quieto, principalmente
porque você já teria que lidar com o fato de eu não estar mais aqui. Mas, quanto mais eu pensava a respeito, mais me parecia que você tinha o direito de saber toda
a verdade, mesmo que fosse difícil para você lidar com ela. Apenas se lembre dos anos que tivemos juntos. Lembre-se das coisas boas, é o que redime toda a bobagem
que eu fiz. Pelo menos, espero que seja assim.
Uma coisa muito ruim aconteceu na noite em que deixei minha mulher e minha filha. Eu saí de casa de manhã sem dizer nada sobre ir embora. Eu tinha ouvido falar
sobre um grupo de fura-greves que iria para Nottingham naquela noite e pensei que todos pensariam que eu tinha ido com eles. Fui direto para a casa de Catriona e
passei o dia cuidando de você enquanto ela trabalhava. Estava um frio desgraçado aquele dia e estávamos consumindo um monte de lenha. Depois que escureceu, saí para
cortar mais um pouco.
Isso é muito difícil para mim. Não falo sobre esse assunto há vinte e dois anos e ele ainda me assombra. Quando eu era criança, tinha dois amigos. Como você,
o Enzo e o Sandro. Um deles, Andy Kerr, havia se tornado funcionário do sindicato. A greve foi muito dura para ele, e ele estava de licença do trabalho por depressão.
Ele vivia em um sítio no bosque, cerca de cinco quilômetros a oeste da casa de Catriona. Ele adorava História Natural e costumava caminhar pelo bosque à noite para
observar os texugos, as corujas, esse tipo de coisa. Eu o amava como a um irmão.
Eu estava cortando lenha no bosque quando ele veio ali perto do ateliê. Não sei quem levou o maior susto. Ele me perguntou que diabos eu estava fazendo, cortando
lenha para Catriona Maclennan Grant. Então, ele entendeu. E perdeu a cabeça. Veio para cima de mim feito um doido. Larguei o machado e brigamos como dois meninos
idiotas.
A briga toda é praticamente um borrão para mim. O que me lembro a seguir é de Andy parar. Ele tombou em cima de mim, então tive que colocar meus braços em volta
dele para impedi-lo de cair. Eu fiquei olhando para ele. Não conseguia entender o que estava acontecendo. Então, vi Catriona parada atrás dele segurando o machado.
Ela o havia atingido com o lado sem corte, mas era forte, para uma mulher, e havia golpeado com tanta força que afundara seu crânio.
Eu não podia acreditar. Algumas horas antes, havíamos estado felizes da vida. E agora eu estava devastado, segurando o corpo sem vida do meu melhor amigo.
Não sei como consegui sobreviver às horas seguintes. Meu cérebro parecia funcionar independentemente do resto do meu corpo. Eu sabia que tinha que resolver
as coisas, proteger Catriona. Andy tinha uma moto com sidecar. Fui andando pelo bosque até a casa dele e voltei com a moto para a casa de Catriona. Nós o colocamos
no sidecar e eu dirigi até a caverna Thane's, em East Wemyss. Existe uma série de cavernas lá que vêm sendo usadas pelos humanos há cinco mil anos e eu estava envolvido
na sociedade de preservação, então sabia o que estava fazendo. Pude chegar com a moto até a entrada da caverna Thane's. Carreguei Andy pelo resto do caminho e o
enterrei numa cova rasa, na parte de trás da caverna.
Voltei alguns dias depois e fiz o teto desmoronar para que ninguém pudesse encontrar o Andy. Eu sabia onde conseguir explosivos de mina - a amiga da minha esposa
havia se casado com um auxiliar de mina e me lembrei dele se gabando de ter algumas cargas de dinamite no seu barracão do jardim.
Mas voltemos àquela noite. Eu não havia terminado. Atravessei East Wemyss de volta com a moto e segui até a pilha de dejetos da mina. Prendi o acelerador da
moto
a toda potência e a deixei penetrar na lateral da pilha de dejetos. A escória a cobriu completamente enquanto eu fiquei ali, olhando.
Caminhei para casa em completo estupor. Ironicamente, me encontrei com os fura-greves quando eles estavam partindo. Não tenho ideia do que disse a eles, eu
estava desnorteado.
Quando cheguei à casa de Catriona, ela estava num estado desesperador. Acho que nenhum de nós dormiu aquela noite. Mas, quando a manhã chegou, sabíamos que
tínhamos de prosseguir com sua ideia, Além do desejo de começar uma nova vida, precisávamos colocar distância entre Andy e nós. Então, começamos a fazer nossos planos.
Ironicamente, o fato de Andy estar morto solucionou um problema que tínhamos para fingir o sequestro: onde poderíamos esconder você e Catriona sem que ninguém
soubesse. Tive a ideia de falsificar um bilhete com a letra de Andy, caso alguém de sua família viesse vê-lo por estar sem notícias dele. Não era um bilhete claro
de suicídio. Eu não queria assustá-los, então o deixei um pouco ambíguo. Eu sei que isso parece estranho, mas estou contando como foi, não tentando me fazer parecer
bonzinho. Como eu disse, fiz muitas coisas de que me envergonho, mas fiz tudo por amor.
Deixamos passar algum tempo antes de armar o sequestro porque não queríamos que ninguém estabelecesse uma conexão entre a minha partida e o sequestro. Além
disso,
queríamos ter certeza de que a família de Andy tivesse aceitado que ele havia ido embora e que não fosse aparecer por ali, ao acaso. Sinto vergonha de dizer que
falsifiquei
alguns cartões-postais com a letra dele e que fui até o norte para enviá-los, depois do Ano-Novo, para que eles ficassem longe do sítio dele e não viessem verificar
se ele havia voltado. Precisávamos garantir que estaríamos seguros lá.
No dia combinado, nós três fomos até o sítio de Andy com seus brinquedos e suas roupas e ficamos lá até a noite da entrega do resgate. Toby não ficava muito
por lá - ele estava resolvendo a questão dos barcos. Tínhamos decidido marcar a entrega do resgate num lugar de onde pudéssemos escapar de barco. Dissemos a Grant
para não contar nada à polícia, mas não tínhamos certeza se ele havia obedecido, portanto, achamos melhor suspender a polícia escapando pela água.
Na época, Toby estava morando no barco do pai, uma lancha oceânica cabinada. Ele entendia de barcos, e tinha decidido que precisávamos realizar nossa fuga num
bote inflável com motor externo. Ele conhecia alguém que tinha um, em um abrigo de barcos em Johnstown. Ele achava que ninguém sequer perceberia que o bote não estava
lá até maio, então pareceu uma boa ideia.
Enfim, chegou a noite da entrega e nós partimos. Havíamos concordado que Catriona iria apanhar o dinheiro, então nós entregaríamos você para a mãe dela. Iríamos
embora com Catriona, então, no dia seguinte, ela apareceria em alguma estrada, supostamente abandonada pelos sequestradores depois que eles tivessem verificado que
o resgate era de verdade. Enquanto isso, eu teria dado a Toby sua parte correspondente a um terço, ele teria seguido seu caminho, e eu seguiria o meu, encontrando
algum lugar onde pudéssemos morar e trabalhar nas Highlands.
Nada aconteceu como imaginávamos. O lugar estava cheio de policiais armados, embora não percebêssemos. Toby também tinha uma arma, embora eu tampouco percebesse
até chegarmos com o barco no ponto de encontro. E Grant tinha uma arma. Era uma receita para o desastre. E foi exatamente um desastre o que conseguimos.
Mesmo depois de todo esse tempo, pensar sobre isso me deixa perturbado. Tudo estava correndo conforme o planejado, mas, por alguma razão, a mãe de Catriona
fez um escarcéu na hora de entregar o resgate. Grant ficou perdido e começou a sacudir sua arma para todo lado. Então, Toby apagou o holofote, e o tiroteio começou.
Catriona foi apanhada no fogo cruzado. Eu tinha óculos de visão noturna, dos excedentes do exército, e a vi cair a somente alguns metros de mim. Corri até ela. Ela
morreu nos meus braços. Tudo terminou em segundos. Ela havia deixado cair a bolsa com o resgate quando fora atingida, e Toby a agarrou. Eu não sabia o que fazer.
Você estava no barco, no seu moisés. Nós tínhamos planejado deixa-lo lá. Mas sabia que não poderia abandoná-lo, não com a sua mãe morta. Não poderia deixa-lo para
trás para que Grant criasse à imagem dele. Então, corremos para o barco. Apanhei seu moisés e o joguei novamente para dentro do barco e saímos de lá o mais rápido
que conseguimos.
A única coisa que aconteceu de acordo com o plano foi o que havíamos decidido fazer para evitar que usassem dispositivos rastreadores para nos seguir. O
resgate foi pago numa combinação de células e diamantes não lapidados. Colocamos o dinheiro em outra bolsa, que havíamos levado, e jogamos a original para fora do
barco.
Daí, eu arrastei a bolsa com os diamantes pela água. Achamos que a água iria destruir qualquer transmissor que eles pudessem ter colocado no meio. Pareceu funcionar,
porque não havia ninguém atrás de nós quando zarpamos pela costa até Dysart, onde o barco de Toby já estava ancorado havia alguns dias. Ficava a apenas alguns metros,
então chegamos lá antes que o helicóptero estivesse no ar. Pudemos ouvi-lo e vê-lo do barco. Depois que ele foi embora, Toby tirou o bote inflável do abrigo e o
afundou próximo à praia. Então, ficamos ali escondidos até o amanhecer e partimos na maré
da manhã. Eu estava em estado de choque, para dizer a verdade. Algumas vezes, cheguei perto de entrar na delegacia de polícia mais próxima e me entregar. Mas Toby
manteve a cabeça no lugar e salvou a todos nós.
Demoramos algumas semanas para chegar à Itália. Lavamos a maior parte do dinheiro em caixas automáticos e cassinos pela costa francesa. O grosso do dinheiro
estava em diamantes não lapidados, e nós os guardamos.
Quando chegamos aqui, nos separamos. Deixei Toby com o barco e aluguei uma casa na colina próxima à Lucca por alguns meses até decidir onde queria morar.
Não me lembro muito daquele período. Estava entorpecido pelo pesar, pela culpa e pela dor terrível de ter perdido Catriona. Se não fosse por você, talvez eu não
tivesse sobrevivido. Ainda não consigo acreditar em como tudo deu errado.
Sei que provavelmente olha para a minha vida e acha que me dei bastante bem. O dinheiro do resgate comprou nossa casa em Costalpino e sobrou um pouco, que
investi. A renda do investimento colocou a geleia no pão com manteiga que eu ganhava pintando. Pude passar o resto da minha vida num lugar lindo, criando meu filho
e pintando as coisas que queria pintar sem nunca ter de me preocupar muito com dinheiro.
A única razão pela qual você pode pensar que me dei bem foi porque nunca conheceu sua mãe. Quando ela morreu, levou a luz consigo. Você tem sido a única
luz de verdade na minha vida desde então, e não subestime a alegria que tem sido para mim passar esses anos com você. Fico devastado em saber que não vou viver para
ver tudo que você conquistará no resto da sua vida. Você é uma pessoa muito especial. Adam. Te chamo assim porque é o nome que escolhemos juntos para você.
Há uma última coisa que quero que você faça. Quero que entre em contato com seu avô. Pesquisei sobre ele no Google na semana passada pela primeira vez: Sir
Broderik Maclennan Grant. Seus amigos o chamam de Brodie. Ele vive no castelo de Rotheswell, em Fife. Sua primeira esposa, sua avó, cometeu suicídio dois anos após
a morte de Catriona. Ele tem uma nova esposa agora, e um filho chamado Alec. Portanto, percebe, você tem família. Tem um avô e um tio que é alguns anos mais jovem
do que você! Aproveite-os o máximo que puder, filho. Você tem muito tempo que compensar e agora é suficientemente homem para enfrentar um tirano como Brodie Grant.
Portanto, agora você sabe de tudo. Me culpar ou me perdoar é uma decisão sua. Mas nunca duvide de que você foi concebido e que nasceu com todo amor, e que
tem sido amado todos os dias da sua vida. Cuide-se Adam.
Com todo o meu amor.
Seu pai, Mick, o mineiro.
Gabriel deixou cair a última folha de papel em cima das outras. Ele voltou à primeira página e leu tudo novamente, ciente de que Matthias havia voltado em determinado
momento. Era como ler a sinopse de um filme. Impossível conectar à sua vida. Absurdo demais para ser verdade. Ele sentiu que as bases de sua vida tinham sido removidas,
deixando-o a pairar no ar como um personagem de desenho animado, prendendo a respiração para a queda inevitável e catastrófica.
- Ursula sabe sobre tudo isso? - ele perguntou, sabendo que não era uma pergunta tão importante assim, mas querendo saber a resposta de qualquer jeito.
- Uma parte. - Matthias sentou-se pesadamente de frente para Gabriel, outra garrafa de vinho na mão. - Ela não sabe quem era a sua mãe, nem tudo sobre a história
de Daniel. Ela sabe que ele armou um sequestro falso porque queria ficar com você e com a sua mãe. Mas não sabe a respeito do tiroteio de Velho Oeste que aconteceu.
A irreverência da descrição de Matthias da morte de sua mãe abalou Gabriel. Toby também tinha uma arma. Ele deu uma bufada indiferente de desprezo.
- Todos esses anos, achei que estivesse vivendo entre um bando de velhos hippies cheios de ideais antiquados de esquerda. E, na verdade, vocês são um bando
de criminosos, fugindo depois do pior tipo de crime capitalista.
Ele sabia que havia coisas mais importantes para discutir, mas tinha que ir com muita calma até chegar a elas, como um cão frente a uma refeição quente demais que
começa mordiscando as beiradas porque é só o que consegue suportar. Toby também tinha uma arma.
- Você está vendo as coisas de maneira errada, Gabe, meu chapa - disse Matthias, os dedos ocupados com outro baseado. - Pense na gente como Robin Hoods modernos.
Roubando dos super-ricos para distribuir o dinheiro com mais justiça.
- Você e meu pai levando uma vida boa, fazendo exatamente o que querem... como é que isso promove a luta contra o capitalismo internacional? - Gabriel nem
sequer tentou manter o desdém fora de seu rosto ou de sua voz. - Se meu avô tivesse apoiado a arte da minha mãe, nada
disso teria acontecido. Não venha me dizer que vocês fizeram isso por algum propósito elevado. Vocês fizeram porque queriam seguir sua própria vida e viram uma maneira
de fazer com que outra pessoa pagasse por ela.
Ele afastou o baseado de si com um gesto impaciente. Não queria perder nenhum resquício de clareza que ainda restasse nele.
- Calma aí, Gabe, não tenha tanta pressa em julgar a gente.
- Por que não? Não é isso que significa o Gesualdo? É como se a última coisa que ele fizesse fosse me convidar a julgá-lo. Devo vê-lo como um assassino ou
como um homem redimido por sua pintura? Ou redimido por me amar e por me criar da melhor forma que pôde? - Gabriel revirou a carta, procurando a última página. -
Aqui está, em suas próprias palavras: "Me culpar ou me perdoar é uma decisão sua." Ele queria que eu tirasse minha própria conclusão sobre o que vocês fizeram.
O calor da raiva espalhava-se por ele, dominando-o e tornando mais difícil ser racional. Toby também tinha uma arma.
- E você deveria perdoá-lo - disse Matthias. - Você duvida de nossos motivos, mas lhe digo uma coisa: tudo que ele queria era construir uma vida com você
e Cat. As circunstâncias estavam contra eles. Nós só tentamos arrumar as coisas, só isso, Gabe.
Sua complacência acomodada foi como uma ferroada para Gabriel.
- E quando foi que isso deu a vocês o direito de fazer escolhas por mim?
- Do que você está falando?
- Você e Daniel, vocês escolheram o que eu iria saber sobre mim, e quando. Me mantiveram afastado da minha família. Mentiram sobre a minha história, me fizeram
pensar que tudo que eu tinha era Daniel, você e Ursula. Me privaram da chance de crescer conhecendo meu avô. Minha avó ainda poderia estar viva, se me tivesse junto
dela.
Matthias exalou um fio de fumaça.
- Gabe, para nós não tem volta. Você acha que crescer sob o jugo de Brodie Grant teria sido melhor do que a vida que você teve? - Ele fungou com zombaria.
- Você não diria isso se soubesse como ele tornou a vida de Cat difícil.
Ele se levantou e apanhou um bloco de maconha e uma faca afiada para cortar uma fatia fresca.
- Mas eu não sei, não é mesmo? Porque nunca tive a chance de descobrir, graças a vocês dois e às escolhas que fizeram por mim. - Gabriel bateu com a palma
da mão sobre a mesa. - Bem, vou compensar o tempo perdido. Vou voltar para a Escócia. Vou encontrar meu avô e conhecê-lo por mim mesmo. Talvez ele seja o monstro
que você e Daniel o fizeram parecer. Ou talvez ele seja apenas alguém que queria o melhor para a filha. E, a julgar por isto aqui... - ele golpeou a carta com a
mão, fazendo os papéis se agitarem na luz escassa -, ele não estava tão enganado, estava? Quer dizer, meu pai não era exatamente um cidadão modelo, era?
Matthias deixou cair a faca e olhou fixamente para Gabriel.
- Não acho que voltar para lá seja uma grande ideia.
- Por que não? Já é hora de eu conhecer a minha família, você não acha?
- Essa não é a questão.
- Então, qual é?
Matthias fez um leve gesto de impotência com as mãos.
- Eles vão querer saber onde você esteve durante os últimos vinte e poucos anos. E isso meio que é um problema para mim.
- O que tem a ver com você?
- Pense um pouco, Gabe. Não existe prescrição para assassinato nem sequestro. Eles virão atrás de mim e me colocarão na cadeia pelo resto da vida.
Tobby também tinha uma arma.
- Não vou dizer nada a eles que o comprometa - Gabriel disse, com desprezo no canto dos lábios. - Você não precisa se preocupar com sua própria pele. Eu cuidarei
disso.
Matthiasriu.
- Você realmente não tem a mínima ideia de quem é seu avô. Você acha que pode Simplesmente recusar algo a Brodie Grant? Ele vasculhará seu histórico, vai
investigar o passado e descobrir cada um dos passos que você deu em todos esses anos. Ele não irá se deter até me pregar numa porra de uma cruz. Isso não se refere
somente a você.
- É a minha vida. - Ambos estavam gritando, ultraje e temor atiçavam a paranóia da maconha e a impulsividade do álcool. - Se ele recuperar a mim, por que
diabos vai se importar com você?
- Porque ele jamais desistirá da chance de se vingar e, assim, não ter de assumir nenhuma responsabilidade.
- Responsabilidade? Responsabilidade pelo quê?
- Por matar Cat.
Mesmo enquanto falava, o rosto de Matthias se expandiu em horror. Ele soube da enormidade do que havia falado assim que as palavras saíram de sua boca.
Gabriel o encarava com descrença.
- Você está louco. Está dizendo que meu avô atirou na própria filha?
- Isso é exatamente o que estou dizendo. Não acho que ele quisesse...
Gabriel se levantou de um salto, fazendo a cadeira cair estrondosamente no chão.
- Não acredito... Seu mentiroso duma... Você seria capaz de dizer qualquer coisa! - Ele gritava incoerentemente. - Você levou uma arma. Foi você quem atirou
nela, não foi? Foi isso que realmente aconteceu. Não meu avô. Você. É por isso que não quer que eu volte, porque você finalmente terá que enfrentar o que fez.
Matthias se levantou, rodeando a mesa na direção de Gabriel, as mãos estendidas.
- Você entendeu tudo errado - ele disse. - Por favor, Gabe.
O rosto de Gabriel era uma máscara de ira e choque. Ele baixou a mão para pegar a faca que estava sobre a mesa e atacou Matthias. Nada em sua mente além de ódio
e dor, nada tão coerente como intenção. Mas o resultado foi tão incontestável quanto se tivesse sido fruto de um planejamento minucioso. Matthias caiu para trás,
um ponto vermelho espalhando-se rapidamente até virar uma mancha na frente de sua camiseta. Gabriel se deteve acima dele, ofegando e soluçando, sem se importar em
fazer qualquer esforço para deter o sangue. Toby também tinha uma arma.
Matthias apertou a mão sobre o coração que falhava à medida que, lentamente, ficava sem sangue para bombear para o resto do corpo. Seu peito arfante gradualmente
se acalmou até ficar imóvel. Gabriel não tinha ideia de quanto tempo demorou para Matthias morrer, só que, no fim, suas pernas estavam tão cansadas que mal podiam
sustentá-lo. Ele desmoronou no chão onde permaneceu, logo além da margem da poça de sangue que vagarosamente coagulava e que havia se espalhado além do corpo de
Matthias.
O tempo foi passando. Finalmente, o que o despertou foi o som de passos e de conversa animada se aproximando pela varanda. Max e Luka vibravam, inebriados pelo sucesso
da apresentação daquela noite. Quando
viram o cenário macabro à sua frente, pararam de repente. Max xingou, Luka se benzeu. Então, Rado entrou com Ursula. Ela viu Matthias e abriu a boca num grito mudo,
caindo de joelhos e arrastando-se na direção dele.
- Ele matou a minha mãe - Gabriel disse, sua voz fria e sem entonação.
Ursula virou a cabeça para ele, os lábios curvados em um grunhido.
- Você o matou?
- Sinto muito - ele sussurrou. - Ele matou a minha mãe.
Ursula se lamentou.
- Não. Não, isso não é verdade. Ele seria incapaz de matar uma mosca. - Ela estendeu a mão trêmula, roçando a mão morta de Matthias com a ponta dos
dedos.
- Ele tinha uma arma. Está na carta. Daniel me deixou uma carta.
- Que caralho você vai fazer? - Max gritou, rompendo a intimidade macabra entre eles. - Não podemos chamar a polícia.
- Ele tem razão - disse Rado. - Eles vão culpar a um de nós. Um dos ilegais, não o filho do pintor.
Ursula pressionou as mãos no rosto, os dedos abertos, como se fosse arrancar a própria face. Seu corpo se contorceu num espasmo de vômito seco. Então, ela, de alguma
forma, conseguiu reunir suas forças. Com o rosto untado com o sangue de Matthias, numa terrível paródia de camuflagem noturna, ela se atirou sobre Gabriel com um
grito atormentado.
Max e Luka instintivamente se jogaram entre ela e Gabriel, afastando-a dele à força, impedindo que seus dedos em garra alcançassem os olhos do rapaz. Ofegando, ela
cuspiu no chão.
- Nós te amávamos como a um filho - ela gemeu. Então, disse alguma coisa em alemão que pareceu uma praga.
- Ele matou a minha mãe - Gabriel insistiu. - Você sabia disso?
- Queria que ele tivesse matado você! - ela gritou.
- Dê o fora daqui! - gritou Rado.
Max e Luka a ergueram e praticamente a carregaram até a porta.
- Rezo para nunca mais ver você - Ursula gritou ao desaparecer.
Rado se agachou ao lado de Gabriel.
- O que aconteceu, cara?
- Meu pai me deixou uma carta. - Ele balançou a cabeça, confuso pelo choque e pela bebida. - Agora tudo terminou, não é? Ele matou a minha mãe, mas sou eu
quem vai para a cadeia.
- Não, porra - disse Rado. - De jeito nenhum Ursula vai falar com a polícia. Vai contra tudo aquilo em que ela acredita. - Ele passou o braço ao redor de
Gabriel. - Além disso, não podemos deixar que ela nos arraste a todos nessa merda. De jeito nenhum eu volto para o lugar de onde vim. Matthias está morto, não há
nada que possamos fazer para ajudá-lo. Não há necessidade de piorar as coisas.
- Ela não vai me deixar sair impune dessa - disse Gabriel, apoiando-se em Rado. - Você a ouviu. Ela vai querer me machucar.
- Nós a ajudaremos - disse Rado. - Nós te amamos, cara. E, no fim, ela vai se lembrar de que ela também te ama.
Gabriel deixou cair a cabeça nas mãos e permitiu que as lágrimas jorrassem.
- O que é que eu vou fazer? - gemeu.
Depois que os soluços diminuíram, Rado o ajudou a se levantar.
- Detesto parecer um filho da puta sem coração, mas a primeira coisa que você precisa fazer é me ajudar a sumir com o corpo de Matthias.
- O quê?
Rado abriu as mãos.
- Sem corpo, não há assassinato. Mesmo que não possamos evitar que Ursula vá à polícia, eles não vão fazer caso se não houver um corpo.
- Você quer que eu te ajude a enterrá-lo? - A voz de Gabriel era débil, como se aquele fosse um passo além do que ele poderia suportar.
- Enterrá-lo? Não. Corpos enterrados sempre reaparecem. Nós vamos carregá-lo até o campo. Os porcos do Maurizio são capazes de comer qualquer coisa.
Na manhã seguinte, Gabriel soube que Rado estava certo.
Quinta-feira, 5 de julho de 2007; Celadoria, perto de Greve, em Chianti
Lembrando-se agora daquela noite, Gabriel sentiu como se Bel Richmond estivesse cavando um buraco em seu estômago com uma colher. Perder o pai já havia sido ruim
o bastante. Mas a carta de Daniel e o que ela havia provocado tinham sido devastadores. Era como se sua vida fosse um pedaço de tecido que fora rasgado de cima a
baixo e jogado numa pilha de lixo. Se a carta o havia mergulhado num estado de confusão, matar Matthias tinha feito com que tudo ficasse infinitamente pior. Seu
pai não tinha sido o homem que ele
pensava que era. Suas mentiras haviam afetado coisas demais. Mas o próprio Gabriel era pior do que um mentiroso. Era um assassino. Havia cometido um ato do qual
nunca teria se imaginado capaz. Com tantos elementos fundamentais de sua vida expostos como sendo fantasias, como ele poderia se apegar a qualquer um deles com alguma
confiança?
Tinha crescido pensando que sua mãe fosse uma professora de arte chamada Catherine. Que ela havia morrido dando à luz. Gabriel tinha lutado contra aquela culpa por
tanto tempo quanto podia se lembrar. Tinha visto o isolamento e a tristeza do pai e também carregara a culpa por eles. Crescera carregando um peso que era completamente
falso.
Ele não sabia mais quem era. Sua história fora apenas uma ficção, inventada para proteger Daniel e Matthias das consequências do ato terrível de que haviam feito
parte. Pelo bem deles, ele fora arrancado do país ao qual pertencia e criado em território estrangeiro. Como teria sido sua vida se houvesse crescido na Escócia
em vez de na Itália? Ele se sentia à deriva, sem raízes e deliberadamente privado de seus direitos de nascimento.
Seu tormento foi agravado ainda mais pelo medo constante, que tremulava atrás dele como o pano de fundo de um palco de marionetes. Toda vez que ouvia o barulho de
um carro, ficava em pé, as costas contra a parede, convencido de que, desta vez, eram os carabinieri que vinham buscá-lo por insistência de Ursula. Ele havia tentado
encobrir seus rastros, mas não tinha a experiência de seu pai e temia não ter sido bem-sucedido.
Mas o tempo passou, lentamente, e depois de algumas semanas escondido como um animal doente, ele começou a retomar o controle de si mesmo. Gradualmente tinha conseguido
encontrar uma forma de distanciar-se da culpa, dizendo a si mesmo que Matthias vivera livremente e sem nenhum problema por mais de vinte anos, nunca pagando um só
centavo da dívida que tinha pela morte de Catriona. O que fizera fora forçá-lo a compensar pela vida que havia roubado de todos eles - de Catriona, de Daniel e do
próprio Gabriel. Não era totalmente satisfatório do ponto de vista da moralidade que Daniel lhe havia incutido, mas apegar-se ferrenhamente a essa convicção permitia
que Gabriel tentasse seguir adiante, acomodando seu remorso e assimilando sua dor.
Uma necessidade avassaladora o movia para a frente. Ele queria encontrar a família que era sua por direito, o clã que sempre desejava, a tribo à qual pertencia.
Ele queria o lar que lhe havia sido negado, queria uma terra onde
as pessoas se parecessem com ele, em vez de com fugitivos de uma pintura medieval. Mas ele sabia que ainda não estava preparado. Tinha de colocar a cabeça no lugar
antes de tentar enfrentar Sir Broderick Maclennan Grant. O pouco que havia sido capaz de absorver através da carta do seu pai, de Matthias e da Internet o havia
deixado seguro de que Grant não facilitaria as coisas para nenhum requerente. Gabriel sabia que precisava ser capaz de manter sua posição e de conservar sua história
em ordem, caso aquela terrível noite de abril voltasse alguma vez para assombrá-lo.
E agora parecia que era exatamente isso que havia acontecido. Aquela porra da Bel Richmond, com sua inquirição e sua determinação, iria destruir a única esperança
à qual ele havia se apegado durante as últimas semanas. Ela sabia que descobrira alguma coisa. Gabriel não tivera muito contato com a mídia, mas sabia o suficiente
para perceber que, agora que ela tinha os fios para sua história, não desistiria até pegá-lo. E quando ela publicasse seu furo de reportagem, qualquer esperança
que ele tivesse de construir uma nova vida com a família da sua mãe teria morrido. Brodie Grant não ficaria feliz em acolher um assassino. Gabriel não podia deixar
que isso acontecesse. Não poderia perder tudo uma segunda vez. Não era justo. Não era nem um pouco justo.
De alguma forma, continuou controlado, sustentando o demorado olhar que ela lhe dirigia. Ele precisava descobrir o que ela sabia exatamente.
- O que você acha que aconteceu? - ele perguntou, com escárnio no rosto. - Ou será que eu deveria dizer: o que você está planejando dizer ao mundo que aconteceu?
- Eu acho que você matou Matthias. Não sei se planejou ou se foi uma coisa que aconteceu no calor do momento. Mas, como eu disse, há uma testemunha que viu
vocês dois juntos naquele dia, mais cedo. A única razão pela qual ele não contou à polícia é que não entende o significado do que viu. Claro, se eu explicasse para
ele... Bem, não precisa ser um gênio, não é, Adam? Levei três dias para encontrar você. Sei que os carabinieri têm a reputação de serem um pouco lerdos em serviço,
então pode ser que, para eles, demore um pouco mais. Tempo suficiente para você se colocar sob a asa protetora do seu avô, eu pensaria. Ah, mas ele não é seu avô,
é? Isso é só uma fantasia minha.
- Você não pode provar nada disso - ele disse. Colocou o restante do vinho na taça dela e foi até a prateleira para pegar outra garrafa. Sentia-se
encurralado. Havia passado por uma terrível experiência. E agora aquela maldita mulher iria roubar a única esperança que o havia mantido são. Seu desafio tinha sido
uma forma de dar a ela a oportunidade de impedi-lo de ter de fazer o que fosse necessário para detê-la.
Ele olhou por cima do ombro. Bel não estava prestando muita atenção a ele agora; estava absorta na caçada, concentrada em guiar a entrevista para a direção que ela
desejava. Distraidamente, ela disse:
- Existem meios. E eu conheço todos eles.
Ele lhe deu a chance, e ela a descartou. Seu passado estava corrompido além de qualquer redenção possível. Só o que ele tinha era o futuro. Não podia deixar que
ela o tirasse dele.
- Acho que não - ele disse, aproximando-se por trás dela.
No último minuto, algum sinal instintivo atingiu o cérebro de Bel e ela se virou, precisamente a tempo de vislumbrar o brilho da lâmina que avançava firmemente na
sua direção.
Kirkcaldy
Depois que Phil dera o primeiro passo, as coisas haviam progredido à velocidade da luz. Roupas arrancadas. Pele contra pele febril. Ele em cima. Ela em cima. Então,
no quarto. Rosto para baixo, as mãos dele em seus seios, as mãos dela agarrando a cabeceira da cama. Quando finalmente precisaram fazer uma pausa antes de uma segunda
vez, deitaram-se de lado, sorrindo estupidamente um para o outro.
- Que fim deram às preliminares? - Karen disse, com riso na voz.
- Foram todos esses anos trabalhando juntos - disse Phil. - Preliminares. Você me esquentando o sangue. Sua mente é tão sexy quanto seu corpo, sabia?
Ela deslizou a mão entre eles e deixou que a ponta de seus dedos acariciasse a pele macia abaixo do umbigo dele.
- Faz tanto tempo que quero fazer isso.
- Eu também. Mas realmente não queria estragar as coisas entre nós no trabalho. Somos uma boa equipe. Não queria arriscar estragar isso. Nós dois amamos demais
nosso trabalho para colocá-lo em risco. Além do mais, é contra as regras.
- Então, o que foi que mudou? - perguntou Karen, uma sensação de vazio no estômago.
- Tem um cargo de inspetor em Dunfermline e me contaram, oficiosamente, que será meu se eu o pedir.
Karen se afastou, apoiando-se em um cotovelo.
- Você vai sair da Revisão de Casos Arquivados?
Ele suspirou.
- Tenho que sair. Preciso ser promovido e não há espaço para outro inspetor lá. Além disso, assim eu posso ter você também. - O rosto dele se contraiu de
ansiedade. - Se for isso o que você quer. Obviamente.
Ela sabia o quanto ele adorava trabalhar com casos arquivados. Também sabia que ele era ambicioso. Depois de ter bloqueado o desenvolvimento da carreira dele com
sua promoção, ela havia esperado que ele saísse, mais cedo ou mais tarde. Só não contara que pudesse figurar pessoalmente como um elemento em seus cálculos.
- É o passo certo para você - ela disse. - É melhor você sair logo, antes que Biscoito perceba que deve odiá-lo tanto quanto odeia a mim. Mas vou sentir falta
de trabalhar com você.
Ele se arrastou para perto dela, gentilmente roçando a palma das mãos em seus mamilos.
- Haverá compensações - ele disse.
Ela deixou sua mão correr para baixo.
- Parece que sim - ela disse. - Mas vai precisar de muita coisa para me compensar.
Boscolata, Toscana
O carabiniere Nico Gallo amassou o cigarro com o salto da bota ultra-polida e se afastou da oliveira onde estivera encostado. Limpou com a mão a parte de trás da
camisa e da calça justa e partiu novamente pela trilha que margeava o jardim de oliveiras da Boscolata.
Ele estava de saco cheio. A centenas de quilômetros de distância da sua casa na Calábria, morando em alojamentos apenas ligeiramente melhores que um rancho de pescador
e ainda tendo de fazer a pior parte de todas as tarefas, ele mal passava um dia sem se arrepender de ter escolhido a carreira de carabiniere. Seu avô, que o havia
encorajado na escolha, tinha dito a ele que as mulheres adoravam homens de uniforme. Aquilo podia ter sido verdade nos tempos do velho, mas, agora, era bem diferente.
Todas as
mulheres que conhecia, da sua idade, pareciam ser feministas, ambientalistas ou anarquistas. Para elas, aquele uniforme era um tipo muito diferente de provocação.
E para ele, a Boscolata era apenas mais uma comunidade hippie habitada por pessoas sem nenhum respeito pela sociedade. Ele apostava que eles não pagavam seus impostos.
E apostava que o assassino que havia sido responsável pela vítima na Villa Totti não estava longe de onde ele caminhava naquele momento. Era um desperdício de tempo,
fazer uma patrulha noturna ali. Se o assassino quisesse ocultar seus rastros, tivera meses para fazê-lo. E mesmo agora, Nico concluiu que todos na Boscolata sabiam
como entrar na villa em ruínas sem que ele sequer desconfiasse que estavam lá. Se aquele fosse o seu vilarejo natal, lá no sul, isso seria exatamente o que teria
acontecido.
Outra ronda pelo bosque das oliveiras e ele voltaria a seu carro para se servir mais uma xícara da garrafa de expresso que havia, de modo bem pensado, trazido consigo.
Aqueles eram os elementos importantes que tornavam possível permanecer acordado e alerta: café, cigarros e goma de mascar. Quando chegasse à esquina mais próxima
da Villa Totti, poderia fumar outro cigarro.
Conforme o som de seu fósforo se esvaiu, Gallo percebeu que havia outro ruído no ar da noite. Ali, tão no alto da colina, a noite era bastante silenciosa, com exceção
dos grilos, um ou outro pássaro noturno e, ocasionalmente, um cão latindo. Mas agora o silêncio tinha sido invadido pelo som persistente de um motor subindo a íngreme
estrada de terra que conduzia até a Boscolata e mais além. Mas, curiosamente, o som não estava acompanhado pela luminosidade de faróis completamente acesos. Ele
pôde divisar reflexos pálidos através das árvores e cercas vivas, como se o veículo estivesse usando apenas as lanternas laterais. Só havia uma razão para aquilo,
segundo as suas regras. O motorista estava aprontando alguma coisa para a qual não queria chamar a atenção.
Gallo olhou tristemente para o cigarro. Ele tinha se assegurado de trazer o suficiente para o turno da noite, mas isso não significava que queria desperdiçar um.
Então, ele o escondeu na concha da mão e se aproximou da villa para colocar-se no caminho de qualquer pessoa que tentasse entrar na cena do crime.
Logo ficou claro que ele tinha feito a escolha errada. Em vez de se dirigirem para a Boscolata, as luzes se desviaram para a direita, no extremo
mais distante das oliveiras. Praguejando, Gallo deu uma última tragada no cigarro e, então, correu pela lateral do jardim o mais rápido e o mais silenciosamente
que podia.
Ele mal conseguia ver a sombra de um carro pequeno, modelo hatch-back. O veículo parou no final das árvores, onde a propriedade Totti fazia divisa com a considerável
fazenda administrada pelo cara dos porcos. Maurizio, não era esse o nome do velho? Alguma coisa parecida. Gallo, a cerca de vinte metros de distância, avançou lentamente,
aproximando-se e tentando não fazer qualquer ruído.
A luz do interior do carro se acendeu quando a porta do motorista foi aberta. Gallo viu um rapaz alto, vestindo um blusão de moletom escuro e um boné de beisebol,
sair do carro e abrir o porta-malas. Ele pareceu arrastar para fora dali um tapete enrolado, ou coisa parecida, inclinando-se para colocar seu corpo por baixo para
amparar o peso. Quando se endireitou, vacilando um pouco sob o peso de seu fardo, ao aproximar-se da cerca robusta de arame que cercava os porcos, Gallo percebeu,
com uma reviravolta terrível em seu estômago, que não se tratava de simplesmente alguém tentando jogar lixo ilegalmente na calada da noite, mas de algo muito mais
sério. O escroto desgraçado estava prestes a desovar um corpo para que os porcos o devorassem. Todo mundo sabe que os porcos são capazes de comer tudo e qualquer
coisa. E aquilo era, indiscutivelmente, um corpo.
Ele agarrou sua lanterna e a acendeu.
- Polícia! Parado aí! - ele gritou, no estilo mais melodramático que conseguiu. O homem vacilou, tropeçou e caiu para a frente, com o fardo caindo atravessado
sobre a cerca. Ele se recuperou e correu de volta para o carro, alcançando-o segundos antes de Gallo. Saltou para dentro e ligou o motor, engatando marcha a ré no
instante em que Gallo se atirava sobre o capô. O carabiniere tentou se agarrar, mas o carro ia rapidamente em marcha a ré na direção da estrada, saltando e sacolejando
a cada metro do caminho, e ele, finalmente, acabou escorregando de cima do capô, estatelando-se vergonhosamente, enquanto o carro desaparecia na noite.
- Ai, meu Deus - ele gemeu, rolando no chão para poder apanhar seu rádio. - Controle? Aqui é o Gallo, de guarda na Villa Totti.
- Entendido, Gallo. Qual é seu código Q* para a situação?
- Controle, não sei se existe um código Q para isso. Mas um cara acabou de tentar desovar um corpo numa fazenda de criação de porcos.
Sexta-feira, 6 de julho de 2007; Kirkcaldy
O telefone penetrou o sono leve de Karen logo no primeiro toque. Confusa e desorientada, ela foi apalpando até encontrá-lo, recobrando a consciência com a excitação
causada pelo murmúrio de "Telefone", ao lado de seu ouvido. Ele ainda estava ali. Não saíra correndo depois. Ele ainda estava ali. Ela agarrou o telefone, forçando
suas pálpebras a se abrirem. O relógio marcava 05:47. Ela era da Revisão de Casos Arquivados. Não recebia telefonemas àquela hora da manhã.
- Investigadora Pirie - resmungou.
- Bom dia, investigadora Pirie - disse uma voz asquerosamente animada. - Aqui fala Linda, da Central de Operações da Polícia. Acabei de receber a ligação
de um capitano di Stefano, dos carabinieri de Siena. Normalmente, eu não a teria acordado, mas ele disse que era urgente.
- Tudo bem, Linda - disse Karen, rolando para longe de Phil e tentando fazer a cabeça funcionar. Que diabos poderia ter nível "quinze-para-as-seis-da-manhã"
de urgência num suposto assassinato de três meses atrás? - Pode mandar bala!
- Não tem muita bala, inspetora. Ele pediu para dizer que lhe enviou uma foto por e-mail, para ver se você consegue identificar. E é urgente. Ele disse isso
três vezes, então acho que deve ser mesmo.
- Vou fazer isso agora mesmo. Obrigada, Linda. - Ela recolocou o fone no gancho e Phil imediatamente a puxou para si, com uma espécie diferente de urgência.
Ela se contorceu, tentando se libertar dos braços dele.
- Preciso levantar - protestou.
- Eu também. - Ele cobriu sua boca com a dele e começou a beijá-la.
* O Código Q é adotado internacionalmente pelas Forças Armadas e se resume a uma coleção padronizada de três letras, todas começando com a letra "Q", inicialmente desenvolvida para comunicação radiotelegráfica comercial e, posteriormente, adotada por outros serviços de rádio, especialmente o radíoamadorismo e a policia. (N.T.)
Karen se afastou, ofegante.
- Você consegue dar uma rapidinha?
Ele riu.
- Pensei que as mulheres não gostassem de rapidinhas.
- É melhor aprender, se você vai voltar para o policiamento na linha de frente - ela disse, puxando-o para si.
Sentindo-se apenas levemente culpada, Karen acessou seu e-mail. A mensagem prometida por di Stefano era a última adição à sua caixa de entrada. Ela clicou para abri-la
e para carregar o anexo, enquanto lia a breve mensagem: Alguém tentou desovar um corpo para que os porcos Cinta di Siena de Maurizio Rossi devorassem. Talvez tenha
sido isso o que aconteceu com a outra vítima. Aqui está a foto do rosto. Talvez você saiba quem é. Meu Deus, que ideia asquerosa. Ela ouvira falar que porcos eram
famosos por devorarem tudo, menos a fivela do cinto, quando fazendeiros azarados sofriam acidentes dentro dos chiqueiros, mas nunca lhe teria ocorrido considerar
isso como uma forma de se desfazer de um corpo.
Então, um pensamento ainda mais asqueroso passou pela cabeça dela. O porco come a vítima. O porco incorpora o ser humano à sua própria carne. O porco se transforma
em salame. E as pessoas acabam comendo pessoas. Por algum motivo, ela achou que Maurizio Rossi não iria fazer bons negócios, depois que aquilo se tornasse público.
Karen hesitou, perguntando-se por que di Stefano tinha achado que ela poderia reconhecer a vítima. Seria Adam Maclennan Grant e seu futuro com o avô teria sido roubado
dele no último instante? Ou o misteriosamente desaparecido Matthias, também conhecido como Toby Inglis? A ansiedade deixava sua boca seca, mas ela clicou no anexo
mesmo assim.
O rosto que preencheu a tela estava definitivamente morto. A centelha que animava até mesmo os pacientes em coma estava absolutamente ausente. Mas, ainda assim,
era chocantemente inconfundível. No dia anterior, Karen havia entrevistado Bel Richmond. E, agora, ela estava morta.
Rodovia Al, Florença--Milão
Não havia nenhum motivo para se descartar o carro alugado de Bel, Gabriel decidira. Não neste ponto. O desgraçado daquele policial louco o havia assustado pra cacete,
mas não poderia ter visto a placa do carro. Ninguém relacionaria um carro alugado por uma jornalista inglesa com o que acontecera na colina da Boscolata. Colocar
distância entre ele e a Toscana era a coisa mais importante a fazer, no momento. Deixar o passado e suas terríveis necessidades para trás. Começar uma vida nova
do zero e dirigir-se diretamente para o futuro.
Tinha sido horrível, mas ele havia despido o corpo, em parte para facilitar que os porcos fizessem o trabalho sujo por ele, e, em parte, para dificultar a identificação
dela, no caso improvável de que ela fosse encontrada rápido o bastante para que aquilo fosse uma possibilidade. Revelou-se uma excelente decisão. Já tinha sido suficientemente
ruim quando o policial maluco aparecera do nada. Teria sido um milhão de vezes pior se ele houvesse deixado qualquer coisa no corpo que facilitasse sua identificação.
E, portanto, o carro seria seguro, por enquanto. Ele o havia deixado no estacionamento de longa permanência do aeroporto de Zurique e tomado um voo. Graças à insistência
de Daniel de que lá não havia nada para ele além de dor e fantasmas, ele nunca havia ido ao Reino Unido e não fazia ideia de como seria a segurança. Mas não havia
motivos para que olhassem duas vezes para ele e seu passaporte britânico.
Gostaria de não ter precisado matar Bel. Ele não era uma máquina desalmada de matar. Mas já havia perdido tudo uma vez. Sabia como era e não podia suportar a ideia
de que acontecesse novamente. Até os ratos lutam quando se veem encurralados, e ele, definitivamente, tinha mais brio que um rato. Ela não lhe deixara escolha. Assim
como Matthias, ela o havia provocado além do limite. O.k. tinha sido diferente com Matthias. Naquele caso, ele tinha perdido o controle. Perceber que alguém a quem
tinha amado desde criança tinha sido o assassino de sua mãe abrira um poço de dor em sua cabeça, e ele o havia apunhalado antes de sequer saber que tinha uma faca
na mão.
Com Bel, ele sabia o que estava fazendo. Mas tinha agido para se preservar. Estava a ponto de entrar em contato com seu avô quando Bel irrompera em sua vida, ameaçando
tudo. A última coisa de que ele precisava
era que ela botasse a boca no trombone, relacionando-o ao assassinato de Matthias. Queria chegar à casa de seu avô com uma ficha limpa, e não queria que a vida
que lhe havia sido negada fosse destruída por uma repórter sensacionalista qualquer.
Ele não parava de dizer a si mesmo que havia feito o que era necessário. E que era bom que se sentisse mal a respeito. Demonstrava que ele era, basicamente, uma
pessoa decente. Tinha sido encurralado pelos acontecimentos. Não significava que era uma má pessoa. Precisava desesperadamente acreditar naquilo. Estava a caminho
de iniciar uma nova vida. Dentro de alguns dias, Gabriel Porteous estaria morto, e Adam Maclennan Grant poderia retornar em segurança para a asa de seu rico e poderoso
avô.
Haveria tempo para sentir remorso mais tarde.
Castelo de Rotheswell
Susan Charleson não gostava que a polícia aparecesse sem convite prévio. O aviso de minutos entre a chegada de Karen ao portão e sua presença na soleira da porta
não tinha sido suficientemente longo para que a dama braço direito de Grant disfarçasse sua afronta.
- Nós não a estávamos esperando - foi a frase que tomou o lugar das boas-vindas, utilizadas previamente.
- Onde ele está? - Karen entrou rapidamente, obrigando Susan a dar alguns passos para o lado.
- Se você se refere a Sir Broderick, ele ainda não está disponível.
Karen olhou ostensivamente para seu relógio de pulso.
- Sete e vinte e sete. Aposto que ele ainda está tomando o café da manhã. Você vai me levar até ele ou terei que encontrá-lo sozinha?
- Isso é um absurdo! - exclamou Susan. - O subchefe de polícia Lees sabe que você está aqui, comportando-se dessa forma arrogante?
- Tenho certeza de que logo saberá - Karen disse por cima do ombro ao encaminhar-se pelo corredor. Ela abriu a primeira porta com que se deparou: um closet
para casacos. A porta seguinte: um escritório.
- Pare com isso - Susan disse, irritada. - Você está excedendo sua autoridade, inspetora. - A porta seguinte: uma saleta. Karen podia ouvir os pés de Susan
correndo atrás dela. - Está bem - Susan retrucou ao alcançar Karen. Ela parou na frente dela, abrindo bem os braços, aparentemente sob a ilusão de que isso deteria
Karen, se ela estivesse seriamente decidida a continuar. - Vou levá-la até ele.
Karen a seguiu até a parte dos fundos do castelo. Susan abriu a porta para uma sala de café da manhã iluminada, com vista para o lago e para o bosque, mais além.
Karen não tinha olhos para a vista nem para o bufê disposto sobre o comprido aparador. Só estava interessada no casal sentado à mesa, com o filho empoleirado entre
os dois. Grant imediatamente se levantou e a olhou com raiva:
- O que está acontecendo? - ele inquiriu.
- Está na hora de Lady Grant aprontar Alec para a escola - disse Karen, notando que falava como num roteiro de filme ruim, mas sem se importar com a tolice
daquilo.
- Como você se atreve a irromper na minha casa gritando ordens? - A voz dele foi a primeira a se elevar, mas ele parecia não perceber.
- Não estou gritando, senhor. O que tenho a dizer não é apropriado para ser dito na frente de uma criança.
Karen enfrentou seu olhar duro, sem ceder. De alguma forma, naquela manhã, ela havia perdido qualquer temor que pudesse ter das consequências.
Grant lançou um olhar rápido e embaraçado ao filho e à esposa.
- Então, vamos a outro lugar, inspetora. - Ele a guiou porta afora. - Susan, café. No meu escritório.
Karen se esforçou para acompanhar seus passos largos, mal o alcançando quando ele se precipitou num cômodo espartano com uma mesa de vidro sobre a qual havia um
caderno grande de espiral e um laptop fino. Atrás da mesa havia uma cadeira de escritório funcional e ergonomicamente projetada. Arquivos de gaveta cobriam uma das
paredes. Na outra, duas cadeiras que Karen reconheceu de uma viagem a Barcelona, em que ela havia erroneamente descido do ônibus turístico no pavilhão Mies van der
Rohe e sido surpreendentemente cativada por sua calma e simplicidade. Vê-las ali de alguma forma a ajudou a centrar-se. Ela podia se defender de qualquer mandachuva,
disse a si mesma.
Grant se jogou em sua cadeira como uma criança petulante.
- Que diabos significa tudo isso?
Karen deixou cair sua pesada mochila no chão e se inclinou contra um armário de arquivos, os braços cruzados frente ao peito. Estava vestida em seu terninho mais
chique, que havia comprado na Hobbs, em Edimburgo, numa liquidação. Sentia-se absolutamente no controle, e Brodie Grant que fosse para o inferno.
- Ela está morta - ela disse, sucintamente.
Grant jogou a cabeça para trás.
- Quem está morta? - Ele parecia indignado.
- Bel Richmond. Você vai me contar o que é que ela estava perseguindo?
Ele tentou dar de ombros com descaso.
- Não faço ideia. Ela era uma jornalista freelance, não um membro da minha equipe de trabalho.
- Ela estava trabalhando para você.
Ele fez um gesto com a mão. Uma dispensa.
- Eu a contratei para servir como elemento de ligação com a imprensa, caso surgisse alguma coisa com essa investigação. - Ele, de fato, chegou a curvar os
lábios. - O que não parece muito provável, a esta altura.
- Ela estava trabalhando para você - Karen repetiu. - Estava fazendo muito mais do que atuar como ligação com a imprensa. Ela não era relações-públicas.
Era uma repórter investigativa e isso é precisamente o que ela estava fazendo por você. Investigando.
- Não sei de onde você tira essas ideias, mas posso lhe garantir que não terá muitas mais com relação a esse caso, depois que eu falar com Simon Lees.
- Fique à vontade. Vou gostar muito de dizer a ele como Bel Richmond voou para a Itália no seu jatinho particular ontem. Como ela alugou um carro na conta
da sua empresa no aeroporto de Florença. E como o assassino dela foi incomodado pela polícia tentando dar seu corpo nu como comida para os porcos, a alguns metros
de distância da casa em que a própria Bel encontrou o pôster que deu início a essa investigação toda. - Karen se endireitou e cruzou a sala até a mesa, apoiando-se
nela com seus punhos.
- Não sou a porra da idiota que você pensa. - Ela rebateu seu olhar furioso com um de igual intensidade.
Antes que ele pudesse pensar em como responder, uma jovem de vestido preto chegou com uma bandeja de café. Ela olhou em volta, insegura.
- Em cima da mesa, menina - disse Grant. Por alguma razão, Karen achou que não lhe ofereceriam uma xícara.
Ela esperou até ouvir a porta se fechar atrás dela e, então, disse:
- Acho que é melhor você me contar por que Bel foi para a Itália. É provável que seja também a razão pela qual foi morta.
Grant inclinou a cabeça para trás, empinando o queixo forte na direção dela.
- Pelo que eu saiba, inspetora, a jurisdição da polícia de Fife não se estende até a Itália. Isso não tem nada a ver com você. Portanto, por que você não
vai se foder?
Karen riu alto.
- Homens muito melhores do que você já mandaram eu me foder, Brodie - ela disse. - Mas você deveria saber de um detalhe: estou aqui a pedido da polícia italiana.
- Se a polícia italiana quiser falar comigo, eles podem vir até aqui e falar comigo. Falar com o regente, não com a banda. Essa é a minha política. Além disso,
se isso fosse oficial, você teria aquele seu garoto a acompanhando, tomando notas. Eu conheço a lei escocesa, inspetora. E agora, conforme previamente requisitado,
vá se foder.
- Não se preocupe, eu vou. Mas só para constar: não preciso de corroboração para um depoimento de testemunha para a polícia italiana. E vou lhe dizer outra
coisa de graça: se eu fosse sua esposa, ficaria seriamente preocupada com todos esses corpos de mulheres no seu rastro. Sua filha. Sua esposa. E, agora, sua pistoleira
de aluguel.
Os lábios dele se esticaram num sorriso de réptil.
- Como você se atreve?
Apesar de sua determinação, Grant a havia irritado. Karen pegou a bolsa e tirou o mapa em escala da cena de entrega do resgate.
- É assim que eu me atrevo - ela disse, abrindo-o sobre a mesa de Grant.
- Você acha que seu dinheiro e sua influência podem comprar tudo. Você acha que pode enterrar a verdade da mesma forma como enterrou sua esposa e sua filha.
Bem, senhor, estou aqui para provar que está muito enganado.
- Não sei de que diabo você pensa que está falando. - Grant teve de forçar suas palavras a saírem pelos lábios estirados.
- A explicação dada - ela disse, golpeando o mapa com o dedo. - Cat pega a bolsa com a sua esposa, os seqüestradores disparam um tiro que a atinge pelas costas
e a mata. A polícia dispara um tiro para o alto. - Ela ergueu os olhos para ele. Seu rosto estava imóvel, congelado numa máscara de fúria. Ela esperava que sua expressão
estivesse à altura da dele. - E, então, existe a verdade: Cat pega a bolsa com a sua esposa, ela se vira para levá-la até os seqüestradores. Você começa a sacudir
sua arma no ar, os seqüestradores deixam a praia na escuridão, você atira. - Ela olhou diretamente nos olhos dele. - E mata sua filha.
- Isso é uma fantasia mórbida - Grant sibilou.
- Sei que você tem negado isso todos esses anos, mas essa é a verdade. E Jimmy Lawson está preparado para confirmá-la.
Grant bateu com a mão na mesa.
- Um assassino condenado? Quem irá acreditar nele? - Seu lábio estremeceu com escárnio.
- Há outros que sabem que você tinha uma arma naquela noite. Agora estão aposentados. Não há mais nada com que você possa ameaçá-los. Talvez você possa fazer
Simon Lees me calar, mas agora o gênio já saiu da garrafa. Não o prejudicaria em nada começar a colaborar comigo a respeito do assassinato de Bel Richmond.
- Saia da minha casa - disse Grant. - Na próxima vez que voltar aqui, é melhor que tenha uma ordem judicial.
Karen lançou-lhe um sorrisinho rígido.
- Pode contar com isso. - Ela ainda tinha uma porção de tiros reservados, mas agora não era o momento de dispará-los. Mick Prentice e Gabriel Porteous podiam
esperar mais um dia. - Não terminou, Brodie. Não termina até que eu diga que terminou.
O futuro-ex-Gabriel Porteous não teve nenhum problema para entrar no Reino Unido. O agente da imigração no aeroporto de Edimburgo passou seu passaporte pelo leitor
magnético, comparou sua imagem com a fotografia e acenou para que passasse. Ele teve de seguir usando sua identidade antiga também para alugar o carro. Essa colisão
entre passado e futuro era difícil de equilibrar. Ele queria se libertar de Gabriel e de tudo que ele havia feito. Queria entrar em sua nova vida, limpo e desimpedido.
Emocionalmente, psicologicamente e praticamente, ele não queria conexões com sua vida passada. Não queria a possibilidade de perguntas constrangedoras por parte
das autoridades italianas. Por favor, Deus, que seu avô aceitasse que ele queria uma ruptura limpa com o passado. Uma coisa era certa: ele não teria de exagerar
o choque e a dor que a carta de seu pai lhe havia infligido.
Ele precisou parar num posto de gasolina e pedir informações sobre como chegar ao Castelo de Rotheswell, mas a manhã ainda estava no meio quando ele se aproximou
do impressionante portão de entrada. Estacionou e desceu do carro, sorrindo abertamente para a câmera de circuito interno.
Quando o interfone lhe perguntou quem era e qual era seu assunto a tratar ali, disse:
- Sou Adam Maclennan Grant. Esse é o meu assunto.
Eles o deixaram esperando quase cinco minutos antes de abrir o portão externo. A princípio, aquilo o irritou. Sua ansiedade havia atingido um nível insuportável.
Então, ele se deu conta de que só se tomava aquele tipo de precaução quando havia algo sério a proteger. Portanto, ele esperou, depois dirigiu o carro até a área
confinada entre os dois portões. Suportou a vistoria pessoal. Não reclamou quando vasculharam o veículo e lhe pediram para abrir a sacola e a mochila para que pudessem
inspecioná-las. Quando finalmente o deixaram atravessar o portão interno e ele teve o primeiro vislumbre do que havia perdido, a respiração ficou entalada em sua
garganta.
Dirigiu lentamente, assegurando-se de manter as emoções sob controle. Ele queria tanto esse novo começo. Chega de fracassos vergonhosos. Estacionou no cascalho próximo
à porta da frente e saiu do carro, espreguiçando-se voluptuosamente. Estivera espremido em assentos por tempo demais. Endireitou os ombros, estirou a coluna e caminhou
até a porta. Ao aproximar-se, ela se abriu. Uma mulher de saia de tweed e sué-ter de lã parou na soleira. Sua mão precipitou-se involuntariamente até a boca, e ela
ofegou:
- Oh, meu Deus.
Ele lhe deu seu melhor sorriso.
- Olá. Sou Adam. - Ele estendeu a mão. Um olhar para aquela mulher e ele soube que tipo de modos rígidos eram esperados naquela casa.
- Sim - disse a mulher. O treinamento superou a emoção, e ela tomou a mão dele num aperto firme, segurando-a fortemente. - Sou Susan Charleson. Sou a assistente
pessoal do seu... quer dizer, de Sir Broderick. Isto é um tremendo choque. Uma surpresa. Algo totalmente inesperado. - Ela explodiu numa risada. - Ouça o que estou
dizendo. Não sou assim, normalmente. É só que... bem, nunca imaginei que veria este dia.
- Fico feliz por isso. Tem sido um choque pra mim também. - Ele largou sua mão, gentilmente. - Meu avô está em casa?
- Venha por aqui. - Ela fechou a porta e o conduziu por um corredor.
Ele já havia estado em algumas casas elegantes na Itália, graças ao trabalho de seu pai, mas aquele lugar era profundamente estranho. Com suas paredes de pedra e
a decoração escassa, parecia frio e desnudo. Mas não custava ser gentil.
- É uma linda casa - ele disse. - Nunca vi nada parecido.
- Onde você mora? - Susan perguntou enquanto viravam para um corredor comprido.
- Cresci na Itália. Mas estou pensando em retornar às minhas raízes.
Susan se deteve frente a uma porta pesada de carvalho com tachas de
metal. Bateu e entrou, acenando para que Adam a seguisse. A sala, uma guarida forrada de livros, não passava de um borrão para ele. Seu foco estava concentrado no
homem grisalho parado junto à janela, com olhos fundos ilegíveis e o rosto imóvel.
- Olá, senhor - disse Adam. Para sua surpresa, sentiu dificuldade para falar. Uma emoção que não havia esperado brotou nele e precisou engolir em seco para
evitar as lágrimas.
O rosto do velho pareceu se desintegrar diante de seus olhos. Uma expressão entre sorriso e tristeza o tomou. Deu um passo em direção a Adam e, então, parou.
- Olá - disse, a voz também engasgada. Olhou para além de Adam e acenou para que Susan saísse da sala.
Os dois homens olharam avidamente um para o outro. Adam conseguiu se controlar, pigarreando.
- Senhor, tenho certeza de que já recebeu pessoas antes, alegando serem o filho de Catriona. Só quero dizer que não quero nada do senhor e que ficarei feliz
em me submeter a quaisquer testes... DNA, o que o senhor quiser. Até a morte do meu pai, há três meses, eu não fazia ideia de quem eu realmente era. Passei estes
três meses me perguntando se deveria contatá-lo ou não... E, bem, aqui estou. - Ele tirou a carta de Daniel do bolso interno de seu único terno decente. - Esta é
a
carta que ele me deixou. - Estendeu o braço para Grant, que tomou as folhas amarrotadas de papel.
- Esperarei lá fora enquanto o senhor a lê.
- Não há necessidade - Grant disse bruscamente. - Sente-se aí, onde eu possa vê-lo. - Ele ocupou uma poltrona do lado oposto à que havia indicado e começou
a ler. Várias vezes fez uma pausa e estudou Adam, que se obrigou a permanecer imóvel e calmo. Num determinado ponto, ele cobriu a boca com a mão, os dedos tremendo
visivelmente. Chegou ao final e encarou Adam ansiosamente. - Se você é um impostor, é muito bom mesmo.
- Também tem isto... - Adam tirou uma fotografia de seu bolso. Catriona sentada numa cadeira da cozinha, as mãos cruzadas sobre a curva
alta da barriga em avançado estado de gravidez. Atrás dela, Mick se inclinava sobre seu ombro, com uma das mãos em cima da protuberância. Eles sorriam. Tinha a aparência
levemente estranha de uma pose feita para o timer da câmera. - Minha mãe e meu pai.
Dessa vez, Grant não pôde segurar as lágrimas. Sem uma palavra, ele abriu os braços para seu neto. Adam, com os olhos úmidos, levantou-se e aceitou o abraço.
A sensação foi de que aquilo durou para sempre e quase nada. Finalmente, separaram-se, cada qual enxugando os olhos com as mãos.
- Você se parece comigo há cinquenta anos - Grant disse pesadamente.
- O senhor ainda deveria pedir o teste de DNA - disse Adam. - Tem muita gente ruim aí fora.
Grant lhe dirigiu um olhar longo e calculado.
- Não acho que estejam todas lá fora - ele disse com um ar de melancolia. - Bel Richmond estava trabalhando para mim.
Adam se esforçou para não demonstrar que reconhecia o nome, mas podia ver, pelo rosto do avô, que havia falhado.
- Ela veio me ver - ele disse. - Nunca mencionou que o senhor fosse o chefe dela.
Grant sorriu.
- Eu não diria que era seu chefe. Mas a contratei para fazer um trabalho para mim. Ela o fez tão bem que acabou morrendo.
Adam balançou a cabeça.
- Isso não pode ser verdade. Eu falei com ela ontem à noite.
- É verdade, sim. A polícia veio aqui hoje cedo. Aparentemente, o assassino delá tentou dar seu corpo como comida para os porcos da fazenda ao lado da villa
onde seu amigo Matthias estava morando ilegalmente, até mais ou menos a época em que seu pai morreu - Grant continuou, sombrio. - E a polícia também está investigando
um suposto assassinato ocorrido lá. Por volta da época em que Matthias e sua trupezinha de titereiros desapareceram.
Adam levantou as sobrancelhas.
- Que bizarro - disse. - Quem mais se supõe que esteja morto?
- Eles não têm certeza. Os titereiros se espalharam pelos quatro cantos do mundo. Bel estava planejando rastreá-los em seguida. Mas não teve a oportunidade.
Ela era uma boa jornalista. Boa para farejar as coisas.
- É o que parece.
- Então, onde está o Matthias? - Grant perguntou.
- Não sei. A última vez que o vi foi no dia que enterrei meu pai. Voltei à villa para que ele pudesse me dar a carta. Fiquei muito abalado quando percebi
que ele conhecera minha identidade verdadeira o tempo todo. Fiquei furioso e abalado por ele e meu pai terem conspirado para me manter afastado do senhor durante
todos esses anos. Quando fui embora, disse que não queria mais ouvir falar dele. Nem sequer soube que eles haviam deixado a Boscolata. - Ele deu de ombros. - Eles
devem ter se desentendido. Sei que os outros às vezes se aborreciam porque Matthias ficava com uma parte maior dos rendimentos. A situação deve ter fugido ao controle.
Alguém acabou morto. - Ele balançou a cabeça. - Que terrível.
- E Bel? Qual é sua teoria, nesse caso?
Adam tivera a noite inteira dirigindo e o tempo de um voo para pensar na resposta para aquela questão. Ele hesitou por um momento, como se estivesse considerando
as possibilidades.
- Se Bel estava fazendo perguntas pela Boscolata, o assassino pode ter ficado sabendo. Sei que pelo menos um dos elementos do grupo estava transando com alguém
que morava lá. Talvez a namorada dele tenha lhe contado sobre Bel e eles estivessem de olho nela. Se eles descobriram que ela estava indo lá para me ver, podem ter
pensado que ela estava cavando fundo demais e que precisavam se livrar dela. Eu não sei. Não faço a menor ideia do que essas pessoas pensam.
A expressão de Grant estava tão ilegível como na primeira vez que Adam o vira.
- Você é bastante plausível - ele disse. - Alguns poderiam até dizer que teve a quem puxar. - Seu rosto se contorceu de dor momentaneamente. - Você tem razão
sobre o DNA. Devemos fazê-lo assim que possível. Enquanto isso, acho que você deveria ficar conosco. Vamos começar a conhecê-lo. - Seu sorriso era perturbadoramente
ambíguo. - O mundo ficará bastante interessado em você, Adam. Precisamos nos preparar para isso. Não temos de ser totalmente francos. Sempre fui um fiel defensor
da privacidade.
Houve certa insegurança quando o velho revelara que Bel estava na sua folha de pagamento. Suas perguntas tinham sido mais duras do que Adam esperara. Mas agora ele
entendia que uma decisão havia sido tomada: a
decisão de optar pela cumplicidade. Pela primeira vez desde que Bel havia passado pela porta de sua casa, a tensão insuportável começara a se dissipar.
Sexta-feira, 13 de julho de 2007; Glenrothes
Sua recente convocação para a sala do Biscoito não foi inteiramente inesperada. Karen vinha se recusando a aceitar uma resposta negativa dele desde que recebera
um e-mail sucinto de Susan Charleson, revelando o retorno do filho pródigo. Ela queria muito conversar com Brodie Grant e com seu neto assassino, mas é claro que
havia sido advertida a não fazê-lo, antes mesmo de ter discutido a possibilidade com Lees. Ela sabia que confrontar Grant a respeito de suas ações na praia, todos
aqueles anos atrás, teria repercussões. Não era nenhuma surpresa que Grant houvesse obtido sua retaliação primeiro, culpando-a de estar procurando desesperadamente
por alguém a quem acusar de algo num caso em que todos os criminosos estavam mortos. Karen tivera de ouvir o sermão do Biscoito sobre a importância do bom relacionamento
com o público. Ele a lembrou de que ela havia resolvido três casos arquivados, ainda que ninguém fosse a julgamento por nenhum deles. Dera boa fama à Revisão de
Casos Arquivados e seria extremamente prejudicial que ela obrigasse Broderick Maclennan Grant a fazê-los parecerem vilões.
Quando ela levantara a possibilidade do envolvimento de Adam Maclennan Grant em dois assassinatos na Itália, Biscoito ficara verde e mandara que ela se afastasse
daquele caso que, afinal, não era da conta dela.
Di Stefano havia mantido contatos regulares com Karen pelo telefone e por e-mail, durante as últimas semanas. Ele dissera a ela que havia uma grande quantidade de
amostras de DNA no corpo de Bel. Um dos adolescentes que vivia na Boscolata tinha identificado Gabriel, também conhecido como Adam, como o homem que ele vira junto
com Matthias no dia em que, presumivelmente, ocorrera o assassinato na Villa Totti. Eles haviam encontrado a casa perto de Greve onde um homem correspondendo àquela
descrição estivera morando. Encontraram DNA que correspondia com o existente no corpo de Bel. Só o que precisavam para levar o caso para um juiz investigador era
de uma amostra de DNA de Gabriel Porteous. Será que Karen poderia consegui-la?
Só no dia de São Nunca.
Agora, finalmente, Biscoito a havia chamado. Organizando seus pensamentos, ela entrou no escritório dele sem bater. Desta vez, foi ela quem levou o susto. Sentado
ao lado da mesa, em ângulo com Biscoito, mas de frente para a cadeira do visitante, estava Brodie Grant. Ele sorriu diante do embaraço dela. Sexta-feira 13, sem
dúvida.
Sem esperar que a convidassem, Karen se sentou.
- O senhor queria me ver? - perguntou, ignorando Grant.
- Karen, Sir Broderick muito gentilmente nos trouxe a declaração jurada de seu neto sobre os recentes acontecimentos na Itália. Ele achou, e eu concordo com
ele, que essa seria a forma mais satisfatória de se proceder.
- Ele sacudiu algumas folhas de papel para ela.
Karen o encarou com descrença.
- Senhor, um simples teste de DNA é a forma de se proceder.
Grant se inclinou para a frente.
- Acho que você irá concluir, depois de ler a declaração, que está claro que um teste de DNA seria um desperdício de tempo e de recursos. Não há motivos para
testar alguém que é, evidentemente, uma testemunha, e não um suspeito. Quem quer que a polícia italiana esteja procurando, não é o meu neto.
- Mas...
- E outra coisa, inspetora: meu neto e eu não discutiremos com a mídia onde ele esteve durante os últimos vinte e dois anos. Obviamente, anunciaremos para
o público o fato de que tivemos esse extraordinário reencontro após tanto tempo. Mas sem detalhes. Espero que você e sua equipe respeitem isso. Se vazar alguma informação
para o domínio público, você pode ter certeza de que irei atrás do responsável e me certificarei de que ele responda por isso.
- Não haverá vazamentos deste escritório, posso lhe garantir - disse Biscoito. - Não é mesmo, Karen?
- Não, senhor - ela disse. Nada de vazamentos. Nada que ameace a promoção iminente de Phil ou à sua própria equipe.
Lees sacudiu os papéis para Karen.
- Aí está, inspetora. Você pode enviar isto para seu equivalente na Itália e, então, poderemos passar um traço sob nossos próprios casos resolvidos. - Ele
sorriu vitoriosamente para Grant. - Fico feliz por termos conseguido resolver isso de forma satisfatória.
- Eu também - disse Grant. - É uma pena que não iremos mais nos ver, inspetora.
- Sem dúvida. Cuide-se, senhor - ela disse, levantando-se. - O senhor deve cuidar bastante bem de si mesmo. E do seu filho também. Seria trágico se Adam tivesse
de sofrer mais perdas. - Fervendo por dentro, Karen deixou a sala com passos arrogantes. Voltou fumegando para sua própria sala, pronta para desabafar. Mas Phil
não estava em sua mesa e ninguém mais serviria. - Caralho, caralho, caralho - ela resmungou, batendo com força a porta de seu escritório justamente quando o telefone
tocou. Pelo menos dessa vez, ela o ignorou. Mas Novo em Folha enfiou a cabeça pela porta.
- É uma mulher chamada Gibson, procurando por você.
- Pode passar a ligação - ela suspirou. - Alô, Misha. O que posso fazer por você?
- Só estava pensando se haveria alguma novidade. Quando seu sargento veio aqui, há algumas semanas, para me dizer que vocês estavam bastante certos de que
meu pai havia morrido no começo deste ano, ele disse que havia uma possibilidade de que ele pudesse ter tido filhos que pudéssemos testar para ser doador. Mas depois
eu não tive mais notícias de vocês...
Caralho, caralho, caralho e caralho de novo.
- Não parece muito promissor - disse Karen. - A pessoa em questão se recusa a dar amostras para o teste.
- O que você quer dizer com se recusa? Ele não entende que a vida de uma criança está em jogo?
Karen podia sentir toda a tensão emocional através da linha do telefone.
- Acho que ele está mais preocupado em proteger o próprio rabo.
- Você quer dizer que ele é um criminoso? Eu não me importo com isso. Ele não entende? Não vou dar o DNA dele para mais ninguém. Podemos fazer tudo de forma
confidencial.
- Vou transmitir seu pedido - Karen disse, cansada.
- Você não pode me colocar em contato direto com ele? Estou implorando. É a vida do meu menininho que está em risco. A cada semana que passa, as chances dele
diminuem mais.
- Eu entendo isso. Mas minhas mãos estão atadas. Sinto muito. Vou transmitir seu pedido, prometo.
Como se ela sentisse a frustração de Karen, Misha mudou a abordagem.
- Me desculpe. Eu reconheço como você vem se esforçando em ajudar. É que estou desesperada.
Depois do telefonema, Karen continuou sentada, olhando para o nada. Não podia suportar a ideia de que Grant estivesse protegendo um assassino para seus próprios
fins emocionais egoístas. Não era exatamente uma surpresa, dada a forma como ele havia encoberto sua própria culpabilidade na morte da filha. Mas tinha de haver
uma maneira de contornar aquela barreira. Ela e Phil tinham examinado as opções tantas vezes durante as últimas semanas que era como se houvessem escavado um buraco
em seu cérebro. Haviam cogitado seguir Adam, apanhando uma eventual lata de Coca-Cola ou garrafa d'água descartada em público. Haviam discutido a possibilidade de
roubar o lixo de Rotheswell e pedir a River que o examinasse até encontrar uma amostra equivalente à do DNA da Itália. Mas tiveram de admitir que não só estavam
perseguindo sombras, mas os fantasmas das sombras.
Karen se reclinou na cadeira e pensou como tudo isso havia começado. Misha Gibson agoniada por uma esperança, disposta a fazer qualquer coisa por seu filho. Assim
como Brodie Grant pelo neto. As ligações entre pais e filhos... E, então, de repente, aquilo estava lá, bem na frente dela. Lindo e astuto e deliciosamente irônico.
Quase caindo no chão, Karen saltou na cadeira e agarrou o telefone. Digitou o número de River Wilde e tamborilou os dedos na mesa. Quando River atendeu, Karen mal
podia falar em sentenças completas.
- Olhe, acabei de pensar numa coisa. Se você tem meios-irmãos, pode ver a conexão no DNA, certo?
- Sim. Não seria tão forte como com irmãos, mas se veria uma correlação.
- Se você tivesse uma amostra de DNA, e conseguisse uma amostra que mostrasse esse grau de correlação, e soubesse que a pessoa tinha um meio-irmão, você acha
que seria suficiente para conseguir um mandado para colher amostras do meio-irmão?
River murmurou por algum tempo.
- Eu poderia conseguir isso - ela disse. - Acho que seria suficiente, sim.
Karen respirou fundo.
- Sabe quando colhemos o DNA de Misha Gibson para comparar com o do esqueleto na caverna?
- Sim - respondeu River, cautelosamente.
- Você ainda o tem?
- Seu caso ainda está aberto?
- Se eu dissesse que sim, qual seria a sua resposta?
- Se seu caso ainda está aberto, legalmente ainda posso estar de posse do DNA. Se estiver fechado, o DNA deveria ser destruído.
- Ainda está aberto - disse Karen. O que, tecnicamente, era verdade, já que a única prova contra Mick Prentice na morte de Andy Kerr era circunstancial. Suficiente
para encerrar o caso, certamente. Mas Karen ainda não o havia de fato devolvido ao cartório, portanto, ainda não estava exatamente encerrado.
- Então, ainda tenho o DNA.
- Preciso que você me envie uma cópia o mais rápido possível - Karen disse, levantando o punho no ar. Ela se levantou e atravessou o escritório em passinhos
de dança.
Quinze minutos depois, estava enviando uma cópia do DNA de Misha Gibson para di Stefano, em Siena, com uma nota introdutória:
Por favor, peça a seu especialista em DNA para comparar essa amostra. Acredito que seja de uma meia-irmã do homem conhecido como Gabriel Porteous. Avise-me como
foi.
As horas seguintes foram uma espécie de tortura. No final do expediente, ainda não havia chegado nenhuma resposta da Itália. Quando chegou em casa, Karen não conseguia
deixar o computador em paz. A cada dez minutos ia checar seu e-mail.
- Como o amor acaba rápido... - Phil a provocou, do sofá.
- Sei. Se eu não estivesse fazendo isso, seria você. Você está tão ansioso quanto eu para apanhar o neto de Brodie.
- Me pegou no pulo, patroa.
Passava das nove quando a esperada resposta de di Stefano entrou na caixa de mensagens. Prendendo a respiração, Karen abriu o e-mail. A princípio, não pôde acreditar.
- Nenhuma correlação? - ela disse. - Nenhuma porra de correlação? Como pode ser? Eu tinha tanta certeza...
Ela se jogou no sofá, permitindo que Phil a aconchegasse perto dele.
- Também não consigo acreditar - ele disse. - Nós tínhamos tanta certeza de que Adam fosse o assassino. - Ele deu um piparote com o dedo na declaração anódina
que Karen havia trazido para mostrar a ele. - Talvez ele esteja dizendo a verdade, por mais estranho que pareça.
- De jeito nenhum - ela disse. - Titereiros assassinos seguindo Bel pela Itália? Já vi episódios de Scooby Doo mais verossímeis do que isso. - Ela se encolheu,
desconsolada, a cabeça enfiada sob o queixo de Phil. Quando a nova ideia lhe ocorreu, sua cabeça pulou tão repentinamente que ele quase arrancou a própria língua.
Enquanto ele gemia, Karen não parava de repetir: - Sábio é o filho que conhece o próprio pai.
- O quê? - Phil perguntou, por fim.
- E se Fergus estivesse certo?
- Karen, do que você está falando?
- Todo mundo achava que Adam fosse filho de Fergus. Até Fergus acha isso. Ele transou com Cat mais ou menos na época certa, de forma eventual. Talvez ela
tivesse tido uma briga com Mick. Ou talvez ela apenas estivesse irritada porque era sábado à noite e ele estava com a esposa e a filha e não com ela. Seja qual for
o motivo, o fato é que aconteceu. - Karen saltava de joelhos no sofá, a excitação novamente tornando-a uma criança. - E se Mick estivesse errado todos esses anos?
E se Fergus fosse realmente o pai de Adam?
Phil a agarrou e lhe deu um sonoro beijo na testa.
- Eu lhe disse, logo no início, que amava sua mente.
- Não, você disse que ela era sexy. Não é exatamente a mesma coisa. - Karen esfregou o nariz na bochecha dele.
- Que seja. Você é tão inteligente que me excita.
- Você acha que é tarde demais para telefonar para ele?
Phil gemeu.
- Sim, Karen. É uma hora mais tarde, onde ele mora. Deixe para amanhã cedo.
- Só se você prometer que vai me distrair.
Ele a girou de costas no sofá.
- Vou fazer o melhor que puder, chefe.
Quarta-feira, 18 de julho de 2007
Karen se espreguiçou na banheira, aproveitando as sensações duplas da espuma e da água contra sua pele. Phil estava jogando críquete, que agora ela sabia se tratar
de um jogo rápido seguido por um demorado drinque com os amigos. Ele ficaria na casa dele esta noite, arrastando-se para lá cheio de cerveja depois de o bar ter
fechado. Ela não se importava. Geralmente, ela se encontrava com as garotas para comer comida indiana e fofocar. Mas hoje à noite ela queria sua própria companhia.
Estava esperando um telefonema e não queria atendê-lo num pub lotado ou num restaurante barulhento. Queria ter certeza do que estivesse ouvindo.
Fergus Sinclair havia ficado desconfiado quando ela lhe telefonara, do nada, para lhe pedir uma amostra de DNA. Seu argumento fora simples: um homem havia aparecido
alegando ser Adam, e Karen estava decidida a verificar, de todas as formas possíveis, sua veracidade. Sinclair ficara primeiro cínico, depois excitado. Nos dois
casos, estava convencido de que ele era a melhor prova determinante disponível.
- Eu saberei - ele continuava insistindo. - É um instinto. Você conhece seus próprios filhos.
Aquele não era o momento certo para compartilhar a estatística de River de que entre dez e vinte por cento dos filhos não eram de fato descendentes de seus pais
imputados e que, na maior parte desses casos, os pais não tinham a menor ideia de que não o eram, na verdade. Karen continuou utilizando o argumento da conveniência.
Finalmente, ele concordara em ir à delegacia de polícia local e dar uma amostra de DNA.
Karen tinha conseguido convencer o oficial de serviço da polícia alemã a enviar, por serviço de entrega, a amostra colhida diretamente para River. Biscoito ficaria
louco da vida quando visse a conta, mas ela não ligava mais. Para apressar as coisas, havia convencido di Stefano a enviar por e-mail uma cópia do DNA do assassino
da Itália para River.
E hoje à noite, ela saberia. Se o DNA dissesse que Fergus era o pai do assassino italiano, ela poderia conseguir um mandado para colher uma amostra de Adam. Sob
a lei escocesa, ela poderia tê-lo detido e colhido uma amostra de DNA sem prendê-lo nem acusá-lo. Mas ela sabia que sua carreira estaria acabada se tentasse tratar
Adam Maclennan Grant como qualquer outro suspeito. Ela não se aproximaria dele sem uma ordem judicial.
Mas, uma vez que seu DNA estivesse no sistema, nem mesmo o poder de Brodie Grant poderia mantê-lo longe das garras da lei. Ele teria de pagar pelas vidas que havia
roubado.
Seus pensamentos cessaram repentinamente quando o telefone tocou. River tinha dito nove horas, mas ainda não eram sete e meia. Provavelmente era sua mãe ou uma das
garotas tentando convencê-la a mudar de ideia e se juntar a elas. Com um suspiro, Karen se esticou para apanhar o telefone de cima da banqueta ao lado da banheira.
- Tenho a análise do DNA de Fergus Sinclair na minha frente - disse River. - E também tenho aquele que di Stefano enviou.
- E? - Karen mal podia respirar.
- Uma correlação próxima. Provavelmente pai e filho.
Quinta-feira, 19 de julho de 2007; Newton ofWemyss
A voz é suave, como a luz do sol que escoa pela janela.
- Poderia repetir?
- A ex-mulher do primo de John. Ela se mudou para a Austrália. Perto de Perth. O segundo marido dela é engenheiro de mineração, ou algo parecido. - As palavras
agora rolam, tropeçando umas nas outras num único emaranhado de sons.
- E ela voltou para cá?
- É isso que estou lhe dizendo. - Palavras exaltadas, num tom exaltado. - Para uma reunião de vinte e cinco anos da turma do colégio. A filha dela, Laurel,
tem dezesseis anos, e veio com ela para passar as férias. John se encontrou com elas na casa da mãe dele há algumas semanas. Ele não me disse nada porque não queria
que eu ficasse cheia de expectativas. - Uma explosão de riso. - Isso vindo do Sr. Otimismo!
- E é verdade? Vai dar certo?
- Eles são compatíveis, mãe. Luke e Laurel. É a melhor chance possível.
Assim é como tudo termina.
Val McDermid
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