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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DORA BRUDER / Patrick Modiano
DORA BRUDER / Patrick Modiano

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Anos atrás, o narrador ( o autor ), deparou-se com um anúncio publicado no Paris-Soir de 31 de Dezembro de 1941 : “ Procura-se uma rapariga de 15 anos, Dora Bruder ... “ . Quem era Dora Bruder ?
Desde esse dia, o destino da jovem judia enredada nas malhas da ocupação alemã nunca mais o largou, obcecado como estava em reconstruir a sua história até aos momentos finais no campo de Auschwitz.
Este livro ( como, aliás, toda a obra de Modiano ), é assim um combate contra o esquecimento, uma afirmação portentosa dos caminhos redentores da memória - contra tudo aquilo que nos macula e nos destrói.
Com ele, Modiano escreveu uma das obras mais notáveis da moderna literatura francesa e confirmou-se como um dos grandes escritores contemporâneos .

 

 

 


 

 

 


Há oito anos, num velho jornal, o Paris-Soir, datado de 31 de Dezembro de 1941, dei na página três com uma rubrica: «De ontem para hoje». Já quase no fim, li:

PARIS
Procura-se uma rapariga, Dora Bruder, 15 anos, lm 55, rosto oval, olhos cinzento-acastanhados, casaco desportivo cinzento, camisola em tom bordeaux, saia e chapéu azul-marinho, sapatos leves castanhos. Endereçar todas as indicações ao Sr. e à Sra Bruder, Alameda Ornano, nº 41, Paris.

Conheço, desde há muito, o bairro da Alameda Ornano, pois em criança acompanhava a minha mãe à feira da ladra de Saint-Ouen. Apeávamo-nos do autocarro na Porta de Clignancourt e às vezes em frente do edifício da 18a circunscrição. Era sempre ao sábado ou ao domingo à tarde.
No Inverno, lá estava o homem em pleno passeio da avenida ao longo do quartel de Clignancourt: víamo-lo especado entre o caudal dos transeuntes com o seu aparelho de tripé; era gordo, de nariz grumoso e óculos redondos e propunha
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uma «fotografia de recordação». No Verão, postava-se no estrado de Deauville, diante do Bar do Sol, para encontrar clientes. Mas aqui, na Porta de Clignancourt, os passantes não pareciam querer tirar o retrato. Vestia um sobretudo velho e um dos sapatos estava esburacado.
Lembro-me de as alamedas Barbes e Ornano estarem desertas numa soalheira tarde de domingo, em Maio de 1958. Grupos de guardas vigiavam em todos os cruzamentos por causa dos acontecimentos da Argélia.
Estive novamente neste bairro no Inverno de 1965. Tinha uma amiga que morava na Rua Championnet, Ornano 49-20.
Nessa época, o caudal dos transeuntes dominicais ao longo do quartel já devia ter arrastado o fotógrafo gordo, mas nunca fui verificar. Que serventia tivera o quartel? Haviam-me dito que abrigava tropas coloniais.
janeiro de 1965. A noite descia por volta das seis horas sobre o cruzamento da Alameda Ornano e da Rua Championnet. Eu não era nada, confundia-me com este crepúsculo, estas ruas.
O último café no fim da Alameda Ornano, do lado dos números pares, chamava-se Deita Mais. À esquerda, na esquina da Alameda Ney, havia uma farmácia e dois cafés, um dos quais mais antigo, na esquina da Rua Duhesme.
Fartei-me de esperar nestes cafés... de manhãzinha cedo, quando ainda estava escuro. Ou ao fim da tarde, já ao anoitecer. E a desoras, até eles fecharem...
Ao domingo à noite havia sempre um velho automóvel de desporto, preto - um Jaguar, segundo creio -, estacionado na Rua Championnet, ao pé da escola infantil. Tinha uma chapa na retaguarda: G.I.G. «Grande Inválido de Guerra».
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A presença deste carro no bairro despertara-me a atenção. Perguntava a mim mesmo que género de cara teria o seu dono.
A partir das nove horas da noite a alameda ficava deserta. Ainda hoje vejo a luz da boca do metropolitano em Simplon e, quase em frente, a da entrada do cinema, Ornano, nCJ 43. Nunca reparara no prédio do 41, antes do cinema, e no entanto passei diante dele durante meses, anos a fio. De 1965 a 1968. «Endereçar todas as indicações ao Sr. e à Sra Brucler, Alameda Ornano, nº 41, Paris».
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De ontem para hoje. Com o recuo dos anos, as perspectivas baralharam-se no meu espírito, os Invernos misturaram-se uns com os outros. O de 1965 com o de 1942.
Em 1965 eu não sabia nada de Dora Bruder. Mas hoje, trinta anos depois, parece-me que nada disso se devia simplesmente ao acaso: essas longas esperas nos cafés do cruzamento Ornano, esses itinerários sempre iguais - seguia pela Rua do Mont-Cenis para me dirigir aos hotéis da Ikitte Montmartre: o Hotel Roma, o Alsina ou o Terrass, na Rua Caulaincourt -, essas impressões fugidias que guardei: uma noite de Primavera em que se ouviam clamores sob as árvores da Praça Clignancourt, e o Inverno, de novo, à medida que se descia para Simplon e para a Alameda Ornano. Se bem que ainda agora não tenha uma clara consciência disso, andaria porventura no rastro de Dora Bruder e dos seus pais. já ali estavam, em filigrana.
Tento encontrar indícios o mais longínquos no tempo. Por volta dos doze anos, quando acompanhava a minha mãe à feira da ladra de Clignancourt, havia um judeu polaco que vendia malas no começo de uma dessas áleas orladas de barracas, BazarMalik, Bazar Vernaison... Malas luxuosas, de
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cabedal, de pele de crocodilo, outras de cartão, sacos de viagem, malas com etiquetas de companhias transatlânticas - todas empilhadas umas sobre as outras. O pavilhão dele era a céu aberto. Tinha sempre um cigarro ao canto dos lábios, e certa tarde oferecera-me um.

Fui algumas vezes ao cinema na Alameda Ornano: o Clignancourt Palace, no fim da alameda, ao lado do Deita Mais. R ao Ornano 43-
Soube mais tarde que o Ornano 43 era um cinema muito antigo. Tinham-no reconstruído no decurso dos anos trinta, dando-lhe um aspecto de paquete. Voltei a estas paragens no mês de Maio de 1996: uma loja havia substituído o cinema. Atravessa-se a Rua Hermel e chega-se diante do prédio nB 41 da Alameda Ornano, a morada indicada no pedido de procura de Dora Bruder.
Um prédio de cinco andares do final do século xix. Forma com o n" 39 um bloco rodeado pela alameda, o término da Rua Hermel e a Rua do Simplon, que passa por detrás destes dois prédios semelhantes: o nQ 39 apresenta uma inscrição que menciona o nome do seu arquitecto, um certo Richefeu, e a data da construção: 1881. É natural que se possa dizer o mesmo do n- 41.
Antes da guerra e até ao começo dos anos cinquenta, o nu 41 da Alameda Ornano era um hotel, assim como o ns 39, que se chamava Hotel du Lion d'Or. Também no na 39, antes da guerra, havia um café-restaurante mantido por um certo Gazal. Não encontrei o nome do hotel do 41. No começo dos anos cinquenta, nesta morada figura uma Société Hotel &
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Studios Ornano, Montmartre 12-54. E, de igual modo, como antes da guerra, um café cujo proprietário se chamava Marchai. Este café já não existe. Ocuparia o lado direito ou o lado esquerdo da porta principal?
Esta abre-se para um corredor bastante comprido. Lá ao fundo, a escada arranca para a direita.
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E preciso muito tempo para que ressurja à luz aquilo que foi apagado. Subsistem vestígios em registos mas ignora-se onde estão escondidos, se há guardas que os vigiam e se consentirão em no-los mostrar. Ou talvez tenham muito simplesmente esquecido que tais registos existem.
Basta um pouco de paciência.
Assim, acabei por saber que Dora Bruder e os pais já habitavam o hotel da Alameda Ornano em 1937 e 1939. Ocupavam um quarto com cozinha no quinto andar, onde uma escada de ferro corre a toda a volta dos dois prédios. Vêem-se umas dez janelas neste quinto andar. Duas ou três dão para a alameda e as outras para o fim da Rua Hermel e, atrás, para a Rua do Simplon.
Nesse dia de Maio de 1996 em que voltei ao bairro, as portadas ferrugentas das duas primeiras janelas do quinto andar que davam para a Rua do Simplon estavam fechadas, e em frente destas janelas, na sacada, reparei num amontoado de objectos heteróclitos que pareciam ali abandonados há muito tempo.
Durante os dois ou três anos que precederam a guerra, Dora Bruder esteve certamente inscrita numa das escolas
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oficiais do bairro. Escrevi uma carta ao director de cada uma delas perguntando se era possível encontrar o seu nome nos registos:
Rua Ferdinand-Flocon, 8; ,
Rua Hermel, 20;
Rua Championnet, 7;
Rua de Clignancourt, 61.
Responderam-me com amabilidade. Nenhum encontrara esse nome na lista dos alunos das classes de antes da guerra. Por fim, o director da antiga escola de raparigas da Rua Championnet, nº 69, convidou-me a ir consultar pessoalmente os registos. Hei-de ir, um dia. Mas hesito. Quero acalentar um pouco mais a esperança de que o seu nome figura lá. Era a escola mais próxima do seu domicílio.

Levei quatro anos a descobrir a data exacta do seu nascimento: 25 de Fevereiro de 1926. E foram necessários mais dois anos para conhecer o local do seu nascimento: Paris, 12a circunscrição. Mas sou paciente. Posso esperar horas seguidas sob a chuva.

Uma sexta-feira à tarde, em Fevereiro de 1996, fui à sede da 12ª circunscrição, ao serviço do Registo Civil. O encarregado, um jovem, estendeu-me uma ficha para preencher:

O requerente deve escrever o seu

Apelido
Nome próprio
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Morada
- Solicito a cópia integral da certidão de nascimento de : Apelido - BRUDER Nome próprio - DORA
Data de nascimento: 25 de Fevereiro de 1926
Assinale se é: :
O interessado requerente
O pai ou a mãe
O avô ou a avó
O filho ou afilha
O/A cônjuge
O representante legal
Tem procuração mais bilhete de identidade do(a) interessado(a)

Para além destas pessoas, não será passada cópia de certidão de nascimento.
Assinei a ficha e entreguei-lha. Depois de a ter consultado, ele disse-me que não podia dar-me a cópia integral da certidão de nascimento por não ter qualquer laço de parentesco com a pessoa em causa.
Por momentos pensei que se tratava de uma dessas sentinelas do esquecimento incumbidas de guardar um segredo vergonhoso, proibindo a descoberta do mínimo vestígio da existência de alguém. Mas tinha cara de boa pessoa. Aconselhou-me a pedir uma derrogação ao Palácio da Justiça, na Alameda do Palais, n!! 2, 3a secção do Registo Civil, 5" andar, escada 5, gabinete 501. De segunda a sexta-feira, das 14 às 16 horas.
Apressava-me a transpor o alto gradeamento e o pátio principal no n" 2 da Alameda do Palais quando um contínuo
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me indicou uma outra entrada, um pouco mais abaixo: a que dava acesso à Sainte-Chapelle. Uma bicha de turistas aguardava entre as barreiras, e eu quis passar directamente sob o pórtico, mas um outro contínuo, com um gesto brutal, mandou-me ir para a bicha atrás dos outros.
Ao fundo de um átrio, o regulamento exigia que tirássemos todos os objectos de metal que trouxéssemos nas algibeiras. Só tinha comigo um molho de chaves. Devia pousá-lo numa espécie de tapete rolante e recuperá-lo do outro lado de um vidro, mas naquele momento não entendi bem a manobra. A minha hesitação valeu-me uma pequena reprimenda de um outro contínuo. Seria um guarda? Um polícia? Devia dar-lhe igualmente, como à entrada de uma prisão, os meus atacadores, o meu cinto, a minha carteira?
Atravessei um pátio, meti por um corredor e desemboquei num vestíbulo muito amplo por onde caminhavam homens e mulheres empunhando pastas pretas e, nalguns casos, togas de advogados. Não ousava perguntar-lhes por onde se tinha acesso à escada 5.
Um guarda sentado atrás de uma mesa indicou-me a extremidade do vestíbulo. Chegado lá, penetrei numa sala deserta cujas janelas em desvão deixavam passar uma luz pardacenta. Por mais que palmilhasse esta sala, não encontrava a escada 5. Sentia-me invadido pelo pânico e pela vertigem que sentimos nos pesadelos quando não conseguimos alcançar uma estação e o tempo passa e não conseguimos apanhar o comboio.
Aconteceu-me uma aventura semelhante vinte anos antes. Soubera que o meu pai estava hospitalizado na Pitié-Salpêtrière.
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Nunca mais o vira desde o fim da adolescência. Decidi então visitá-lo de improviso.
Recordo-me de ter errado durante três horas através da imensidade do hospital à procura dele. Entrava em edifícios muito antigos, em salas comuns com camas alinhadas e interrogava enfermeiras que me davam informações contraditórias. Acabava por duvidar da existência do meu pai enquanto passava e tornava a passar diante daquela igreja majestosa e daquele edifício irreal, intacto desde o século XVIII e que me evocava Manon Lescaut ( * - nota ) e a época em que esse lugar servia de prisão das raparigas, sob o nome sinistro de Hospital Geral, antes de as deportarem para a Luisiana. Calcorreei os pátios empedrados até ao anoitecer. Era impossível encontrar o meu pai. Não voltei a vê-lo.

Finalmente descobri a escada 5. Subi os andares. Uma correnteza de gabinetes. Apontaram-me o que tinha o número 501. Uma mulher de cabelo louro e ar indiferente perguntou-me o que pretendia.
Numa voz seca, explicou-me que para obter o extracto de certidão de nascimento devia escrever ao Sr. Procurador da República, repartição de segunda instância de Paris, Cais dos Orfèvres, n" 14, 3a secção 15.
Ao cabo de três semanas recebi uma resposta:

No dia vinte e cinco de Fevereiro de mil novecentos e vinte

( * - nota ) - Manon Lescaut: personagem do romance homónimo da autoria do abade Prévost, escrito em 1731. (N. do T.)
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e seis, às vinte e uma horas e dez minutos, nasceu, na rua Santerre, nB 15, Dora, de sexo feminino, de Ernest Bruder, nascido em Viena (Áustria) no dia vinte e um de Maio de mil oitocentos e noventa e nove, servente, e de Cécile Burdej, nascida em Budapeste (Hungria) no dia dezassete de Abril de mil novecentos e sete, sem profissão, sua esposa, domiciliados em Sevran (Seine-et-Oíse), Avenida Liégeard, ns 2. Lavrado a vinte e sete de Fevereiro de mil novecentos e vinte e seis, às quinze horas e trinta minutos, de acordo com a declaração de Gaspard Meyer, de setenta e três anos, empregado e domiciliado na Rua de Picpus, n' 76, o qual assistiu ao parto e, depois de feita a leitura, assinou connosco Augusle Guillaume Rosi, adjunto do administrador da décima segunda circunscrição de Paris.
O nQ 15 da Rua Santerre é o endereço do Hospício Rothschild. No seu serviço de maternidade nasceram, na mesma época que Dora, numerosos filhos de famílias judaicas pobres acabadas de emigrar para França. Parece que Ernest Bruder não pôde ausentar-se do trabalho para declarar ele próprio a sua filha nessa quinta-feira, 25 de Fevereiro de 1926, na sede da 12a circunscrição. Talvez fosse possível encontrar num registo algumas indicações relativas a Gaspard Meyer, que subscreveu a certidão de nascimento. O nQ 76 da Rua de Picpus, onde ele estava «empregado e domiciliado», era a morada do Hospício de Rothschild, criado para os idosos e os indigentes.
O rastro de Dora Bruder e dos pais, nesse Inverno de 1926, perde-se nos subúrbios do nordeste, à beira do canal de Ourcq. Um dia hei-de ir a Sevran, mas receio que as casas e as
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ruas tenham mudado de aspecto, como sucede em todos os subúrbios. Eis os nomes de alguns estabelecimentos e habitantes da Rua Liégeard desse tempo: o Trianon de Freinville ocupava o nQ 24. Um café? Um cinema? No n" 31 havia as Caves de Víle-de-France. Um doutor Jorand morava no 9; um farmacêutico, Platel, no 30.
lista Rua Liégeard onde os pais de Dora habitavam fazia parte de um aglomerado que se estendia pelos municípios de Sevran, Livry-Gargan e Aulnay-sous-Bois, ao qual se dera o nome de Freinville. O bairro nascera em volta da fábrica de freios Westinghouse, instalada ali no começo do século, Um bairro de operários. Tentara conquistar a autonomia municipal nos anos trinta, sem o conseguir. Apesar de tudo, tinha a sua estação de caminho de ferro: Freinville.
Ernest Bruder, o pai de Dora, era seguramente, nesse Inverno de 1926, servente na fábrica de freios Westinghouse.
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Ernest Bruder. Nascido em Viena, Áustria, a 21 de Maio de 1899. Deve ter passado a infância em Leopoldstadt, o bairro judaico desta cidade. Os pais dele eram sem dúvida oriundos da Galícia, da Boémia ou da Morávia, como a maior parte dos judeus de Viena, que vinham das províncias do Leste do Império.
Em 1965 fiz vinte anos em Viena - no mesmo ano em que frequentava o bairro de Clignancourt. Residia em Taub-stummengasse, por detrás da Igreja de São Carlos. Passara alguma noites num hotel manhoso, perto da Gare do Oeste. Recordo-me das noites de Verão em Sievering e em Grinzing, e nos parques onde tocavam orquestras. E de uma pequena cabana no meio de uma espécie de horta operária, para os lados de Heilingenstadt. Em Julho estava tudo fechado aos sábados e aos domingos, até mesmo o Café Hawelka. A cidade ficava deserta. Debaixo do sol, o eléctrico deslizava através dos bairros do noroeste a caminho do parque de Põtzleins-dorf.
Hei-de voltar um dia a Viena, não vou lá há mais de trinta anos. Talvez encontre a certidão de nascimento de Ernest Bruder na Conservatória do Registo Civil da comunidade israelita de
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Viena. Saberei então o nome próprio, o apelido, a profissão e o local de nascimento do seu pai, o nome próprio e o apelido de solteira da sua mãe. E o seu domicílio, algures nessa zona da segunda área administrativa delimitada pela Gare do Norte, o Prater e o Danúbio.
Conheceu, em criança e na adolescência, a Rua do Prater com os seus cafés e o seu teatro onde tocavam os Budapesler. E a ponte da Suécia. E o pátio da Bolsa do Comércio, ao pé da Taborstrasse. E o mercado das Carmelitas.
Em Viena, em 1919, os seus vinte anos foram mais duros que os meus. Desde as primeiras derrotas dos exércitos austríacos, dezenas de milhares de refugiados saídos da Galícia, da Bucóvina ou da Ucrânia tinham chegado em vagas sucessivas e apinhavam-se nos casebres em redor da Gare do Norte. Uma cidade à deriva, separada do seu império, que já não existia. Ernest Bruder não devia distinguir-se destes grupos de desempregados vagueando através das ruas de lojas encerradas.
'Talvez fosse de origem menos miserável que os refugiados do Leste... Filho de um comerciante da Taborstrasse? Como sabê-lo?

Numa pequena ficha entre milhares de outras estabelecidas uns vinte anos mais tarde para organizar as rusgas da Ocupação e conservadas até hoje no Ministério dos Antigos Combatentes, vem mencionado que Ernest Bruder foi «2- classe, legionário francês». Quer dizer que se alistou na Legião Estrangeira, embora eu não possa precisar em que data. 1919? 1920?
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O alistamento era por cinco anos. Nem sequer havia necessidade de se ir a França, bastava a apresentação num consulado francês. Ernest Bruder tê-la-á feito na Áustria? Ou estaria já em França nessa altura? Em todo o caso, é provável que o hajam encaminhado, com outros alemães e austríacos como ele, para as casernas de Belfort e de Nancy, onde não os tratavam com muita delicadeza. Depois seguiam-se Marselha e o Forte Saint-Jean, e aqui o acolhimento também não era nada caloroso. Mais tarde, a travessia: parece que Lyautey precisava de trinta mil soldados em Marrocos.
Procuro reconstituir o périplo de Ernest Bruder. O soldo que se recebe em Sidi Bei Abbes. A maioria dos alistados - alemães, austríacos, russos, romenos, búlgaros - acham-se em tal estado de miséria que ficam pasmados por alguém poder dar-lhes este soldo. Custa-lhes a acreditar. Enfiam rapidamente o dinheiro no bolso, com medo de que lho tornem a tirar. Em seguida o adestramento, as corridas nas dunas, as marchas intermináveis sob o sol de chumbo da Argélia. Os alistados procedentes da Europa Central, como Ernest Bruder, têm dificuldade em suportar este treino: haviam sido subali-mentados durante a adolescência, por causa do racionamento dos quatro anos de guerra.
Depois, os quartéis de Mequinez, de Fez ou de Marra-quexe. Enviam-nos em operação a fim de pacificarem os territórios ainda insubmissos de Marrocos.
Abril de 1920, combate em Bekrit e no Ras-Tarcha. Junho de 1921, combate do batalhão de legião do comandante Lambert no Djebel Hayane. Março de 1922, combate do Chuf--ech-Cherg, capitão Roth. Maio de 1922, combate do Tizi Adni, batalhão de Nicolas. Abril de 1923, combate de Arbala,
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combates da marcha de Taza. Maio de 1923, recontros muito violentos em Bab-Brida do Talrant, que os legionários do comandante Naegelin arrebatam sob fogo intenso. Na noite de 26, o batalhão de legião Naegelin ocupa de surpresa o maciço de Ichendirt. Junho de 1923, combate de Tadut: o batalhão de legião Naegelin toma de assalto a crista e hasteiam a bandeira tricolor numa grande casbá, ao som dos clarins. Combate do Ued Athia, onde o batalhão de legião Barriòreíem de carregar duas vezes à baioneta. O batalhão de legião Buchsenschutz apodera-se dos redutos do pico meridional do Bu-Khamuj. Combate da bacia de El-Mers. Julho de 1923, combate do planalto de Immuzer com os batalhões Cattin, Buchsenschutz, Stisini e Jcnoudet. Agosto de 1923, combate de Ued Tamghilt. À noite, nesta paisagem de areia e cascalho, sonharia ele com Viena, a sua cidade natal, com os castanheiros da Hauptallee? A pequena ficha de Ernest Bruder - «2*1 classe, legionário francês» - indica igualmente: «mutilado de guerra 100%». Em qual destes combates terá sido ferido?

Aos vinte e cinco anos, viu-se sem eira nem beira em Paris. Certamente haviam-no dispensado do alistamento na Legião por causa do ferimento. Suponho que não falou no assunto a ninguém. E isto não interessava a ninguém. Tenho mesmo a certeza de que não auferiu pensão de invalidez. Não lhe deram a nacionalidade francesa. Afinal, a única vez que vi mencionar o seu ferimento foi numa das fichas da polícia que fazia as rusgas durante a Ocupação.
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Em .1924, Ernest Bruder casa-se com uma rapariga de dezassete anos, Cécile Burdej, nascida a 17 de Abril de 1907 em Budapeste. Não sei onde se realizou o casamento e ignoro o nome dos padrinhos. Que acaso presidiu ao seu encontro? Cécile Burdej vinha de Budapeste e chegara a Paris um ano antes, com os pais, as quatro irmãs e o irmão. Uma família judia originária da Rússia, mas que se fixara sem dúvida em Budapeste no princípio do século.
Depois da primeira guerra, a vida era tão dura em Budapeste como em Viena, e foi preciso voltar a fugir para o Ocidente. Tinham ido dar a Paris, ao asilo israelita da Rua Lamarck. No mês da sua chegada à Rua Lamarck, três raparigas, com catorze, doze e dez anos de idade, haviam morrido de febre tifóide.
Será que na altura do casamento Cécile e Ernest Bruder já habitariam na Rua Liégeard, em Sevran? Ou viveriam num quarto de hotel em Paris? Nos anos que se seguiram ao casamento, e após o nascimento de Dora, moraram sempre em quartos de hotel.
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Deixaram poucas marcas atrás de si. Quase anónimas. Não se destacam de certas ruas de Paris, de certas paisagens de arrabalde onde descobri, por acaso, que haviam morado. O que se sabe deles resume-se amiúde a um simples endereço. E esta precisão topográfica contrasta com o que ignoraremos da sua vida para todo o sempre - esse hiato, esse bloco de desconhecido e de silêncio.

Encontrei uma sobrinha de Ernest e de Cécile Bruder. Falei-lhe ao telefone. As suas lembranças são recordações de infância, vagas e exactas ao mesmo tempo. Lembra-se da gentileza e da doçura do tio. Foi ela que me deu os poucos pormenores que anotei sobre a família. Ouviu dizer que antes de morar no hotel da Alameda Ornano, Ernest, Cécile Bruder e a sua filha Dora tinham vivido num outro hotel, numa rua que dava para a Rua dos Poissonniers. Esquadrinho a planta, vou-lhe citando ruas e mais ruas. Sim, era na Rua Polonceau. Mas nunca ouviu falar de Sevran, nem de Freinville, nem da fábrica Westinghouse.

Pensamos que os lugares conservam pelo menos um leve sinal das pessoas que os habitaram. Sinal: um traço côncavo ou em relevo. Para Ernest e Cécile Bruder, para Dora, direi: côncavo. Senti uma impressão de ausência e de vazio todas as vezes que me achei num sítio onde tinham vivido.
Nessa época havia dois hotéis na Rua Polonceau: um no 49, pertencente a um certo Rouquette, que na lista telefónica figurava sob a denominação Hotel Vin; o dono do segundo, no 32, chamava-se Charles Campazzi. Estes hotéis não ostentavam nome. Nenhum deles existe hoje.
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Por volta de 1968, eu costumava seguir pelas alamedas até aos arcos do metro aéreo. Partia da Praça Blanche. Em Dezembro, as barracas da feira ocupavam o terrapleno. As luzes decresciam à medida que nos aproximávamos da Alameda de la Chapelle. Ainda não sabia nada acerca de Dora Bruder e dos pais. Recordo-me de que experimentava uma sensação esquisita ao caminhar ao longo do Hospital Lariboisière e ao passar sob as vias-férreas, como se tivesse penetrado na zona mais escura de Paris. Mas era simplesmente o contraste entre as luzes demasiado intensas da Alameda de Clichy e a parede negra, interminável, a penumbra sob os arcos do metropolitano ...
Na minha lembrança, este bairro de la Chapelle aparece-me hoje todo em linhas de fuga por causa das vias-férreas, da proximidade da Gare do Norte, do fragor das carruagens de metropolitano que passavam muito depressa acima da minha cabeça... Ninguém devia fixar-se durante muito tempo por aqui perto. Uma encruzilhada onde cada qual partia para o seu lado, em direcção aos quatro pontos cardeais.
E, no entanto, apontei os endereços das escolas do bairro em cujos registos talvez encontrasse o nome de Dora Bruder, se estas escolas ainda existissem: Escola infantil: Rua Saint-Luc, 3-
Escolas primárias oficiais de raparigas: Rua Cave, 11, Rua dos Poissonniers, 43; Beco de Oran.
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Eos anos passaram, na Porta de Clignancourt, até à guerra. Não sei nada sobre eles no decurso destes anos. Cécile Bruder trabalharia já como «operária peleira» ou «operária de confecção assalariada», conforme surge escrito nas fichas? No dizer da sobrinha, estava empregada numa oficina para os lados da Rua do Ruisseau, mas não tem a certeza. Ernest Bruder seria ainda servente, já não na fábrica Westinghouse de Freinville mas algures num outro subúrbio? Ou também teria ; arranjado colocação numa oficina de confecção em Paris? Na ficha que fizeram a seu respeito durante a Ocupação, li: «Mutilado de guerra 100%. 2a classe, legionário francês»; e a seguir à palavra profissão está escrito: «Sem».
: Algumas fotografias desta época. A mais antiga é do dia
do casamento: vemo-los sentados, de cotovelos apoiados numa espécie de mesinha de centro; ela está envolvida num grande véu branco que parece atado junto ao lado esquerdo do seu rosto e chega até ao chão; ele veste fato completo e tem um laço branco. Uma fotografia de ambos com a sua filha Dora: estão sentados e Dora posa de pé no meio dos pais - não deve ter mais de dois anos. Uma fotografia de Dora, tirada certamente por ocasião de uma distribuição de prémios: tem
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cerca de doze anos, traz um vestido e soquetes brancos; segura um livro na mão direita e o cabelo está cingido por uma pequena coroa que se diria feita de flores brancas; assentou a mão esquerda no rebordo de um grande cubo branco ornado de barras pretas com motivos geométricos, certamente para servir de decoração. Uma outra fotografia, tirada no mesmo lugar, na mesma época e talvez no mesmo dia: reconhecemos os ladrilhos do chão e o grande cubo branco com motivos geométricos no qual se sentou Cécile Bruder; Dora está de pé à sua esquerda e enverga um vestido de gola, com o braço esquerdo dobrado diante de si a fim de pousar a mão no ombro da mãe. Um outro retrato de Dora e da mãe: Dora tem uns doze anos e o cabelo mais curto que na fotografia anterior; estão de pé em frente do que parece um muro velho, mas deve ser o painel do fotógrafo; envergam ambas um vestido preto de gola branca e Dora posta-se ligeiramente adiante da mãe e à sua direita. Uma fotografia de forma oval onde Dora é um pouco mais velha - treze, catorze anos, o cabelo mais comprido - e onde vemos os três como que em fila indiana, mas de rosto voltado para a objectiva: primeiro Dora e a mãe, ambas de camisa branca, e Ernest Bruder, de casaco e gravata. Um retrato de Cécile Bruder defronte do que parece uma vivenda de arrabalde: no primeiro plano, à esquerda, uma massa de hera recobre a parede; está sentada na borda de três degraus em cimento e traz um vestido claro de Verão; ao fundo, a silhueta de uma criança de costas, as pernas e os braços nus, num conjunto de malha preto ou em fato de banho - Dora? -, e a fachada de uma outra vivenda atrás de uma cerca de madeira, com um alpendre e uma única janela no andar de cima. Onde se situará isto?
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Uma fotografia mais antiga de Dora sozinha, aos nove ou dez anos. Dir-se-ia que está num telhado, apanhada por um simples raio de sol, com sombra a toda a volta. Usa uma blusa e soquetes brancos, mantém o braço esquerdo dobrado sobre a anca e colocou o pé direito no rebordo de betão do que poderia ser uma grande gaiola ou um grande viveiro, mas a sombra não nos permite distinguir que animais ou pássaros encerra. Estas sombras e estas manchas de sol são as de um dia de Verão.
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Houve outros dias de Verão no bairro de Clignancourt. Os pais levaram Dora ao Cinema Ornano 43- Bastava atravessar a rua. Ou terá ela ido sozinha? Segundo me disse a prima, Dora era já rebelde ainda muito jovem, bastante independente e amiga de sair. O quarto de hotel era demasiado exíguo para três pessoas.
Em pequena, deve ter brincado na Praça de Clignancourt. O bairro assemelhava-se por momentos a uma aldeia: à noite os vizinhos dispunham cadeiras nos passeios e tagarelavam uns com os outros ou ia-se beber Lima limonada à esplanada de um café. Às vezes, uns homens que não se sabia bem se eram verdadeiros pastores ou feirantes, passavam com algumas cabras e vendiam um grande copo de leite por dez vinténs. A espuma fazia bigodes brancos.
Na Porta de Clignancourt, o edifício e a barreira de peagem. À esquerda, entre os blocos de prédios da Alameda Ney e a feira da ladra, estendia-se um autêntico bairro de pavilhões, de hangares, de acácias e de casas térreas que foram destruídas. Quando eu tinha cerca de catorze anos, este baldio impressionava-me. Julguei reconhecê-lo em duas ou três fotografias tiradas no Inverno: uma espécie de terreiro onde
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vemos passar um autocarro; um camião está parado, dir-se-ia que para sempre; depois um campo de neve à beira do qual aguardam uma caravana e um cavalo preto. E, lá muito ao fundo, a massa nebulosa dos prédios.
Lembro-me de que senti pela primeira vez o vazio que se experimenta diante do que foi destruído e arrasado cerce. Ainda não conhecia a existência de Dora Bruder. Talvez - na verdade, estou mesmo certo disso - ela tenha passado por aqui, por esta zona que me evoca encontros de amor secretos, as pobres alegrias perdidas. Ainda flutuavam aí as recordações campestres, as ruas chamavam-se Alameda do Poço, Alameda do Metro, Alameda dos Choupos, Beco dos Cães.
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Em 9 de Maio de 1940, Dora Bruder, aos catorze anos, está inscrita num internato religioso, a Obra do Sagrado Coração de Maria, dirigido pelas Irmãs das Escolas Cristãs da Misericórdia, nos nss 60 e 62 da Rua de Picpus, na 12a circunscrição.
O registo do internato apresenta as seguintes menções:

Apelido e nome: Bruder, Dora.
Data e local de nascimento: 25 de Fevereiro de 1926, Paris 12a, de Ernest Bruder e Cécile Burdej, pai e mãe. Situação familiar: filha legítima. Data e condições de admissão: 9 de Maio de 1940.
Pensão completa Data e motivo de saída:
14 de Dezembro de 1941 Em consequência de fuga.

Por que razão os pais a teriam inscrito neste internato? Sem dúvida porque era difícil continuarem a morar os três no quarto de hotel da Alameda Ornano. Perguntei a mim mesmo se Ernest e Cécile Bruder não estariam sob a ameaça de uma
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medida de internamento, na qualidade de «cidadãos do Reich» e «ex-austríacos», pois a Áustria já não existia desde 1938 e fazia agora parte do Reich.
No Outono de 1939 tinham internado os cidadãos do Reich e os ex-austríacos de sexo masculino em campos de «agrupamento». Haviam-nos dividido em duas categorias: suspeitos e não-suspeitos. Os não-suspeitos foram reunidos no Estádio Yves-du-Manoir, em Colombes, juntando-se em Dezembro a grupos ditos «de prestadores estrangeiros». Ernest Bruder teria feito parte destes prestadores?
Em 13 de Maio de 1940, quatro dias após a chegada de Dora ao pensionato do Sagrado Coração de Maria, chegou a vez de as mulheres nacionais do Reich e ex-austríacas serem convocadas para o Velódromo de Inverno, e aí ficarem internadas durante treze dias. Em seguida, com a aproximação das tropas alemãs, haviam-nas transportado para os Baixos Pire-néus, mais exactamente para o Campo de Gurs. Cécile Bruder teria recebido igualmente uma convocação?
Classificam-nas em categorias bizarras de que elas nunca ouviram falar e que não correspondem ao que realmente são. Convocam-nas. Internam-nas. Bem gostariam elas de saber porquê.

Também pergunto a mim mesmo por que acaso Cécile e Ernest Bruder conheceram a existência desse pensionato do Sagrado Coração de Maria. Quem os aconselhara a inscrever Dora aí?
Suponho que aos catorze anos ela já dera provas de independência, e o carácter rebelde de que a prima me falou
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certamente que se manifestou. Os pais acharam que ela precisava de disciplina e escolheram para tanto uma instituição cristã. Mas seriam eles próprios praticantes? E restar-lhes-ia outra escolha? No pensionato do Sagrado Coração de Maria, as alunas eram raparigas de origem modesta; na notícia biográfica da superiora deste estabelecimento, na altura em que Dora estava lá como interna, podemos ler: Crianças frequentemente privadas de família ou vítimas de casos sociais, por quem Cristo sempre manifestou a sua preferência. E, numa brochura dedicada às Irmãs das Escolas Cristãs da Misericórdia: A fundação do Sagrado Coração de Maria destinava-se a prestar eminentes serviços às crianças e raparigas de famílias deserdadas da capital.
O ensino ia sem dúvida além das artes domésticas e dos trabalhos de costura. Estas Irmãs das Escolas Cristãs da Misericórdia, cuja casa-mãe era a antiga abadia de Saint-Sauveur--le-Vicomte, na Normandia, tinham aberto a Obra do Sagrado Coração de Maria em 1852, na Rua de Picpus. Tratava-se, já nessa época, de um internato profissional para quinhentas raparigas filhas de operários, com setenta e cinco freiras.
No momento da derrocada de Junho de 1940, as alunas e as freiras deixam Paris e refugiam-se no Maine-et-Loire. Dora deve ter partido com elas nos últimos comboios à cunha que ainda era possível apanhar nas gares de Orsay ou de Austerlitz. Seguiram o longo cortejo dos refugiados pelos caminhos que conduziam ao Loire.
O regresso a Paris, em Julho. A vida de internato. Ignoro que uniforme usavam as pensionistas: muito simplesmente,
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seria a indumentária assinalada no pedido de procura de Dora, em Dezembro de 1941: camisola em tom bordeaux, saia azul-marinho, sapatos leves castanhos? E uma blusa por cima? Adivinho mais ou menos os horários quotidianos. Levantar por volta das seis horas. Capela. Sala de aulas. Refeitório. Sala de aulas. Pátio de recreio. Refeitório. Sala de aulas. Capela. Dormitório. Saídas aos domingos. Suponho que, entre tais muros, a vida era árdua para essas raparigas por quem Cristo sempre manifestara a sua preferência.
Segundo me disseram, as Irmãs das Escolas Cristãs da Rua de Picpus tinham criado uma colónia de férias em Béthisy. Seria em Béthisy-Saint-Martin ou em Béthisy-Saint-Pierre? As duas aldeias situam-se na circunscrição de Senlis, no Valois. Dora Bruder talvez passasse lá alguns dias com as colegas no Verão de 1941.

O edifício do Sagrado Coração de Maria já não existe. Sucederam-lhe alguns prédios recentes que deixam supor que o pensionato ocupava um vasto terreno. Não possuo qualquer fotografia deste pensionato já desaparecido. Numa velha planta de Paris aparece escrito o seguinte: Casa de educação religiosa. Vêem-se aí quatro pequenos quadrados e uma cruz figurando as quatro partes do edifício e a capela do pensionato. E o recorte do terreno, uma faixa estreita e profunda, indo da Rua de Picpus à Rua de Reuilly.
De acordo com a planta, em frente do pensionato, do outro lado da Rua de Picpus, sucedem-se a Congregação da Mãe de Deus, depois as Senhoras da Adoração e o Oratório de
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Picpus, com o cemitério onde estão enterrados numa vala comum mais de mil mártires guilhotinados durante os últimos meses do Terror. No mesmo passeio do pensionato, e quase paredes meias com este, o grande terreno das Senhoras de Santa Clotilde. Em seguida, as Senhoras Diaconisas, onde um dia recebi tratamento aos dezoito anos de idade. Lembro-me do jardim das Diaconisas. Na época, ignorava que este estabelecimento servira para a reeducação das raparigas: um pouco como o Sagrado Coração de Maria e um pouco como o Bom Pastor. Sítios assim, onde as pupilas ficavam reclusas sem saberem muito bem se alguma vez .sairiam de lá, tinham nomes deveras curiosos: Bom Pastor de Angers. Refúgio de Darnetal. Asilo Santa Madalena de Limoges. Solidão da Nazaré.
Solidão.

O Sagrado Coração de Maria, números 60 e 62 da Rua de Picpus, estava situado na esquina desta rua e da Rua da Gare de Reuilly, que quando Dora era pensionista ainda apresentava um ar rústico. Do lado ímpar corria um alto muro a que as árvores do colégio davam sombra.
Os raros pormenores que consegui reunir sobre estes lugares, tal como Dora Bruder os viu diariamente ao longo de cerca de um ano e meio, são os seguintes: o grande jardim ladeava a Rua da Gare de Reuilly e o edifício do colégio devia separá-lo de um pátio sob cujas rochas havia uma gruta com o jazigo funerário dos membros de uma família de apelido «Madre», benfeitora do pensionato.
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Ignoro se Dora Bruder fizera amigas no Sagrado Coração de Maria ou se, pelo contrário, permanecera arredada das outras. Enquanto não recolher o testemunho de uma das antigas colegas, ficarei reduzido a suposições. É natural que em Paris, ou algures nos arredores, exista uma mulher de aproximadamente setenta anos que se recorde da sua companheira de aula ou de dormitório de outro tempo - essa rapariga que se chamava Dora, 15 anos, 1m 55, rosto oval, olhos cinzento-acastanhados, casaco desportivo cinzento, camisola em tom bordeaux, saia e chapéu azul-marinhos, sapatos leves castanhos.
Ao escrever este livro, lanço apelos, como sinais de farol, mas infelizmente custa-me a acreditar que possam vir iluminar a noite. Mas ainda guardo uma réstia de esperança.
Nessa época, a superiora do Sagrado Coração de Maria chamava-se Madre Marie Jean-Baptiste. A sua notícia biográfica diz-nos que nasceu em 1903- Depois do noviciado, havia sido colocada em Paris na casa do Sagrado Coração de Maria, onde se mantivera dezassete anos, de 1929 a 1946. Ainda não fizera quarenta anos quando Dora Bruder esteve lá como pensionista.
Era - segundo a notícia - «independente e generosa», e dotada de «uma forte personalidade». Morreu em 1955, três anos antes de eu saber da existência de Dora Bruder. Certamente que se recordava dela, quanto mais não seja por causa da fuga. Mas, bem vistas as coisas, que informações poderia dar-me? Alguns pormenores, alguns pequenos factos quotidianos... Por muito generosa que fosse, não adivinhou com certeza o que se passava na cabeça de Dora Bruder, nem como esta vivia a sua vida de interna, nem de que maneira via
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todas as manhãs e todas as noites a capela, os falsos rochedos do pátio, o muro do jardim, a fila das camas no dormitório.

Encontrei uma mulher que conheceu este pensionato em 1942, poucos meses depois de Dora ter fugido. Era mais nova que Dora, tinha uns dez anos. E a recordação que guardou do Sagrado Coração de Maria é apenas uma recordação de infância. Vivia sozinha com a mãe, uma judia de origem polaca, na Rua de Chartres, no bairro da Goutte-d'Or, a poucos passos da Rua Polonceau onde tinham residido Cécíle, , Ernest Bruder e Dora. Para não morrer redondamente de fome, a mãe trabalhava no turno nocturno de uma oficina onde se fabricavam luvas destinadas à Wehrmacht. A filha ia à escola da Rua Jean-François Lépine. No final de 1942, a professora aconselhara a mãe a escondê-la por causa das rusgas, e fora sem dúvida ela que lhe indicara o endereço do Sagrado Coração de Maria.
Tinham-na inscrito no internato sob o nome de «Suzanne Albert» para dissimular as suas origens. Adoecera ao fim de pouco tempo, sendo enviada para a enfermaria, onde havia um médico. Ao cabo de alguns dias, como ela se recusava a comer, decidiram mandá-la embora.
Lembra-se de que era tudo negro no interior do pensionato: as paredes, as aulas, a enfermaria - excepto as toucas brancas das freiras. Parecia-se mais com um orfanato. Uma disciplina de ferro. Não existia aquecimento. Só se comia ruta-bagas. As alunas rezavam as orações «às seis horas», e esqueci-me de lhe perguntar se era às seis horas da manhã ou às seis horas da tarde.
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Dora passou o Verão de 1940 no pensionato da Rua de Picpus. Aos domingos ia certamente visitar os pais, que ainda ocupavam o quarto de hotel no na 41 da Alameda Ornano. Estudo o plano do metropolitano e tento imaginar o trajecto que ela seguia. Para evitar muitas mudanças de linha, o mais simples era apanhar o metro em Nation, que ficava bastante perto do internato. Direcção Pont de Sèvres. Mudança em Strasbourg-Saint-Denis. Direcção Porta de Clignan-court. Desceria em Simplon, mesmo em frente do cinema e do hotel.
'. Vinte anos mais tarde, eu tomava frequentemente o metropolitano em Simplon, sempre por volta das dez horas da noite. A estação estava deserta a essa hora e os comboios só vinham a longos intervalos.
Ela devia seguir o mesmo caminho no regresso, ao fim da tarde de domingo. Os pais acompanhá-la-iam? Em Nation, era preciso andar ainda um bocado a pé, e o trajecto mais curto conduzia à Rua de Picpus pela Rua Fabre-d'Églantine.
Era como voltar para a prisão. Os dias minguavam. Já seria noite quando ela atravessava o pátio passando diante dos falsos rochedos do monumento funerário. Havia uma
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lâmpada acesa na escadaria, por cima da estrada. Ela seguia através dos corredores. A capela, para o ofício de domingo à tarde. Depois, em fila e em silêncio até ao dormitório.
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O Outono chegou. Em Paris, os jornais de 2 de Outubro publicaram o decreto segundo o qual os judeus deviam recensear-se nas esquadras. A declaração do chefe de família era válida para toda a família. A fim de evitar uma espera muito prolongada, pedia-se aos interessados que comparecessem, consoante a primeira letra do seu nome, nas datas indicadas no quadro mais abaixo...
A letra B calhava em 4 de Outubro. Nesse dia, Ernest Bruder foi preencher o formulário na esquadra do bairro de Clignancourt. Mas não declarou a filha. Todos os que se recenseavam recebiam um número de matrícula que mais tarde figuraria no seu «dossier familiar». Chamava-se a isto o número de «processo judaico».
Ernest e Cécile Bruder tinham o número de processo judaico 49091. Mas Dora não tinha nenhum.
Talvez Ernest Bruder julgasse que no internato do Sagrado Coração de Maria ela estava fora de alcance, numa zona franca, e que não convinha chamar a atenção para ela. Além de que, no caso de Dora, aos catorze anos, a categoria «judaico» não queria dizer coisa alguma. No fundo, o que entendiam eles exactamente pela palavra «judaico»? Quanto a
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si, Ernest nem sequer levantara a questão. Estava habituado a que a administração o classificasse em diferentes categorias, e aceitava-o sem discutir: «Servente». «Ex-austríaco». «Legionário francês». «Não-suspeito». «Mutilado 100%». «Prestador estrangeiro». «Judeu». E a sua mulher Cécile também: «Ex-austríaca». «Não-suspeita». «Operária peleira». «Judia». Só Dora escapava ainda a todas as classificações e ao número de processo 49091.
Quem sabe se não poderia escapar-lhe até ao fim... Bastava permanecer entre as paredes negras do pensionato e confundir-se com elas; e respeitar escrupulosamente o ritmo dos dias e das noites sem se fazer notar. Dormitório. Capela. Refeitório. Pátio. Sala de aula. Capela. Dormitório.

Quisera o acaso - mas seria verdadeiramente o acaso? -- que durante a sua estadia neste pensionato do Sagrado Coração de Maria ela voltasse a poucas dezenas de metros do sítio onde nascera: em frente, do outro lado da rua. Rua Santerre, n º. 15. Maternidade do Hospital Rothschikl. A Rua Santerre ficava no prolongamento da que levava à Gare de Reuilly e do muro do pensionato.
Um bairro calmo, à sombra de árvores. Não havia mudado quando estive lá um dia inteiro há vinte e cinco anos, no mês de Junho de 1971. De vez em quando os aguaceiros estivais compeliam-me a abrigar-me debaixo de um alpendre. Nessa tarde, sem saber porquê, tinha a impressão de caminhar no rastro de alguém.
A partir do Verão de 42, a zona que rodeava o Sagrado Coração de Maria tornou-se particularmente perigosa. As rusgas
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sucederam-se durante dois anos no Hospital Rothschikl, no orfanato com (3 mesmo nome, situado na Rua Lamblardie, no hospício da Rua de Picpus, nº 76, onde estava empregado e domiciliado esse Gaspard Meyer que assinara a certidão de nascimento de Dora. O Hospital Rothschikl era uma ratoeira para onde se enviavam os doentes do Campei de Drancy a fim de os reconduzirem ao campo algum tempo depois, segundo o bel-prazer dos alemães que vigiavam o nº 15 da Rua Santerre, ajudados pelos membros de uma agência de polícia privada, a Agência Faralicq. Crianças e adolescentes da idade de Dora foram presos em grande número no orfanato Rothschikl onde se escondiam, ali na Rua Lamblardie, a primeira à direita a seguir à Rua da Gare de Reuilly. E nesta rua, mesmo em frente do muro do colégio, no nº 48 bis, foram presos nove rapazes e raparigas da idade de Dora e alguns mais novos, bem como as suas famílias. Sim, o único enclave que continuava preservado era o jardim e o pátio do pensionato do Sagrado Coração de Maria. Mas contanto que não se saísse de lá e se permanecesse à sombra daquelas paredes negras, tornadas ainda mais soturnas pelo recolher obrigatório.

Escrevi estas páginas em Novembro de 1996. Chove muito, quase todos os dias. Amanhã entraremos no mês de Dezembro e terão decorrido cinquenta e cinco anos desde a fuga de Dora. Anoitece cedo e é melhor que assim suceda: a noite apaga o pesadume e a monotonia destes dias de chuva em que nos interrogamos se é realmente dia ou se atravessamos um estado intermédio, uma espécie de eclipse sensabor que se prolonga até ao fim da tarde. Acendem-se então as
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luzes dos candeeiros, das montras, dos cafés, o ar da noitinha torna-se mais vivo, o contorno das coisas mais nítido, há engarrafamentos nas encruzilhadas, as pessoas aglomeram-se nas ruas. E, no meio de todo este brilho e desta agitação, custa-me a acreditar que estou na mesma cidade em que se encontravam Dora Bruder e os pais, e também o meu pai quando tinha menos vinte anos que eu. Invade-me a sensação de ser o único a estabelecer a ligação entre a Paris daquele tempo e a de hoje, o único a recordar-me de todos estes pormenores. O laço adelgaça-se por momentos e parece em vias de romper-se; noutras noites, a cidade de ontem surge-me em reflexos furtivos por detrás da actual.
Reli os livros quinto e sexto de Os Miseráveis, onde Victor Hugo descreve a travessia nocturna de Paris efectuada por Cosette e Jean Valjean, em cujo encalço vai Javert, desde o bairro da barreira Saint-Jacques até ao Petit Picpus. Podemos acompanhar numa planta uma parte do seu itinerário. Quando se aproximam do Sena, Cosette começa a sentir-se cansada e Jean Valjean toma-a nos braços. Ladeiam o Jardim das Plantas pelas ruas baixas e chegam ao cais, onde atravessam a ponte de Austerlitz. Mal Jean Valjean põe o pé na margem direita, julga ver sombras a avançar pela ponte. A única maneira de lhes escapar - pensa ele - é seguir a ruela do Chemin-Vert--Saint-Antoine.
E, de súbito, apodera-se de nós uma impressão de vertigem, como se Cosette e Jean Valjean, para escaparem a Javert e aos polícias, se despenhassem no vazio: até ali haviam atravessado as verdadeiras ruas da Paris real, mas são bruscamente projectados para o bairro de uma Paris imaginária a que Victor Hugo dá o nome de Petit Picpus. Experimentamos esse mesmo
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sentimento de estranheza quando andamos em sonhos num bairro desconhecido e nos apercebemos a pouco e pouco, ao despertarmos, que as ruas deste bairro foram decalcadas das que nos são familiares durante o dia.
E eis o que perturba: no termo da sua fuga através deste bairro cuja topografia e nomes de ruas Hugo inventou, Cosette e Jean Valjean escapam por uma unha negra a uma patrulha de polícia saltando um muro. Dão consigo num «jardim bastante vasto e de um aspecto singular: um desses jardins tristes que se diria feitos para serem olhados no Inverno e à noite». É o jardim de um convento onde se esconderão os dois e que Victor Hugo situa exactamente no nº 62 da Rua do Petit Picpus, o mesmo endereço do Internato do Sagrado Coração de Maria onde estava Dora Bruder.
«Na época em que decorre esta história», escreve Hugo, «havia um internato junto ao convento [....]. As raparigas [...] andavam vestidas de azul com uma boina branca [...]. Neste recinto do Petit Picpus havia três corpos de edifício perfeitamente distintos: o grande convento que abrigava as religiosas, o internato onde se alojavam as alunas e, por fim, o que se denominava o conventinb<>>.
E depois de uma descrição minuciosa do local, escreve ainda: «Não conseguimos passar por esta casa extraordinária, desconhecida, obscura, sem entrar lá e fazer entrar lá os espíritos que nos acompanham e nos ouvem contar, talvez para proveito de alguns, a história melancólica de Jean Valjean».

Como muitos outros antes de mim, creio nas coincidências e, por vezes, no dom de vidência dos romancistas - se
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bem que a palavra «dom» não seja o termo exacto pois sugere uma espécie de superioridade. Não, isto faz simplesmente parte do ofício: os esforços de imaginação, indispensáveis a tal ofício, a necessidade de fixar o espírito em pontos de pormenor de um modo obsessivo para não perder o fio à meada e ceder à preguiça; com o tempo, toda esta tensão e ginástica mental pode provocar breves intuições «relativas a acontecimentos passados ou futuros», conforme escreve o Dicionário Larousse na rubrica «vidência».
Em Dezembro de 1988, depois de ter lido o pedido de procura de Dora Bruder no Paris-Soir de 31 de Dezembro de 1941, não cessei de pensar nele durante meses a fio. A extrema precisão de alguns pormenores obcecava-me: Alameda Ornano, nº 41, 1m 55, rosto oval, olhos cinzento-acastanha-dos, casaco desportivo cinzento, camisola em tom bordeaux, saia e chapéu azul-marinhos, sapatos leves castanhos, E a noite, o desconhecido, o esquecimento, o nada a toda a volta. Estava convencido de que nunca chegaria a encontrar o mínimo vestígio de Dora Bruder. Então, a carência que senlia impeliu-me a escrever um romance, Viagem de Núpcias, um meio como qualquer outro de continuar a concentrar a minha atenção em Dora Bruder, e talvez, dizia para comigo, de elucidar ou adivinhar algo acerca dela, um lugar onde tivesse passado, um pormenor da sua vida. Ignorava tudo sobre os seus pais e as circunstâncias da fuga. A única coisa que sabia era isto: lera o nome dela, BRUDER DORA - sem outra menção, nem data, nem local de nascimento - por cima do nome do pai, BRUDER ERNEST, 21.5.1899 Viena. Apátrida, na lista dos que faziam parte da leva de 18 de Setembro de 1942 para Auschwitz.
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Ao escrever esse romance, pensava em certas mulheres que conhecera nos anos sessenta: Anne B., Bella D. - da mesma idade que Dora, uma delas nascida com um mês de intervalo -, e que durante a Ocupação haviam ficado na mesma situação que ela, provavelmente partilhando da mesma sorte e sem dúvida parecendo-se com ela. Noto agora que precisei de escrever duzentas páginas para captar, inconscientemente, um vago reflexo da realidade.
A coisa resume-se a poucas palavras: «O comboio parou em Nation. Rigaud e Ingrid tinham deixado passar a estação da Bastilha onde deviam ter apanhado a correspondência para a Porta Dorée. À saída do metropolitano, desembocaram num grande campo de neve [...1. O trenó corta por ruelas a fim de alcançar a Alameda Soult».
Estas ruelas são vizinhas da Rua de Picpus e do pensionato do Sagrado Coração de Maria, donde Dora Bruder fugiria numa noite de Dezembro durante a qual caíra porventura neve em Paris.
Eis o único momento do livro em que, sem o saber, me abeirei dela no espaço e no tempo.
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No registo do internato, sob o nome de Dora Bruder e na rubrica «data e motivo de saída», está escrito: 14 de Dezembro de 1941. Em consequência de fuga.
Era um domingo. Suponho que ela aproveitara este dia de saída para ir ver os pais na Alameda Ornano. À noite ainda não havia regressado ao pensionato.
Esse último mês do ano foi o período mais negro e mais sufocante que Paris conheceu desde o início da Ocupação. Os alemães decretaram o recolher obrigatório de 8 a 14 de Dezembro, a partir das seis horas da tarde, em represália contra dois atentados. Em seguida houve a prisão em massa de setecentos judeus franceses no dia 12 de Dezembro, e a 15 de Dezembro a multa de mil milhões de francos imposta aos judeus. Na manhã do mesmo dia, os setenta reféns são fuzilados no monte Valérien. A 10 de Dezembro, um decreto do prefeito de polícia convidava os judeus franceses e estrangeiros do Sena a submeterem-se a um «controlo periódico» apresentando o bilhete de identidade com o carimbo «judeu» ou «judia». A mudança de residência devia ser declarada na esquadra dentro de vinte e quatro horas e era-lhes proibido, a partir de então, deslocar-se para fora do departamento do Sena.
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No dia 1 de Dezembro, os alemães já haviam ordenado o recolher obrigatório na 18a circunscrição: ninguém podia entrar depois das seis horas da tarde. As estações de metropolitano do bairro estavam fechadas, entre elas a estação Simplon, junto da qual moravam Ernest e Cécile Bruder. Ocorrera um atentado à bomba na Rua Championnet, mesmo ao pé do hotel deles.

O recolher obrigatório na 18a circunscrição durou três dias. Assim que o levantaram, os alemães deliberaram outro em toda a 10a circunscrição depois de uns desconhecidos terem disparado tiros de revólver contra um oficial das autoridades de Ocupação, na Alameda Magenta. Em seguida veio o recolher obrigatório geral, de 8 a 14 de Dezembro - o domingo da fuga de Dora.
Em redor do pensionato do Sagrado Coração de Maria, a cidade tornava-se uma prisão escura cujos bairros se apagavam uns atrás dos outros. Enquanto Dora permanecia no interior dos altos muros dos n-s 60 e 62 da Rua de Picpus, os pais ficavam confinados ao seu quarto de hotel.
O pai não a declarara como «judia» em Outubro de 1940 e ela não tinha «número de processo». Mas o decreto respeitante ao controlo dos judeus afixado pela Prefeitura de Polícia em 10 de Dezembro indicava que «as mudanças sobrevindas na situação familiar deverão ser assinaladas». Duvido que o pai tivesse tempo ou desejasse inscrevê-la antes de ela empreender a fuga. Devia pensar que a Prefeitura de Polícia jamais suspeitaria da sua existência no Sagrado Coração de Maria.
O que é que nos incita à fuga? Recordo-me da minha fuga
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em 18 de Janeiro de 1960, numa época destituída desse negrume de Dezembro de 1941. Na estrada por onde abalei, ao longo dos hangares do aeródromo de Villacoublay, o único ponto comum com a fuga de Dora era a estação do ano: o Inverno. Um Inverno ameno, um Inverno de rotina, sem a mínima semelhança com o de dezoito anos atrás. Mas parece que aquilo que nos incita repentinamente à fuga é um dia de frio e de escuridão que nos torna a solidão ainda mais aguda e nos faz sentir ainda com mais força que uma garra nos aperta.
Esse domingo de 14 de Dezembro era o primeiro dia em que deixara de vigorar o recolher obrigatório imposto há cerca de uma semana. Agora era possível circular nas ruas depois das seis horas da tarde. Mas, por causa da hora alemã, anoitecia ainda de tarde.
Em que momento do dia é que as Irmãs da Misericórdia se aperceberam do desaparecimento de Dora? Certamente à noite, talvez a seguir ao ofício na capela, quando as internas subiram para o dormitório. Suponho que a superiora tentou falar sem demora com os pais de Dora para saber se ela ficara junto deles. Saberia ela que Dora e os pais eram judeus? Na sua notícia biográfica está escrito que Muitas crianças de famílias judaicas perseguidas encontraram refúgio no Sagrado Coração de Maria graças à acção caritativa e audaciosa da Irmã Marie Jean-Baptiste. Ajudada nesta tarefa pela atitude discreta e não menos corajosa das outras irmãs, ela não recuava diante de qualquer risco.
Mas o caso de Dora era especial. Ingressara no Sagrado Coração de Maria em Maio de 1940, quando ainda não havia
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perseguições. Não havia sido recenseada em Outubro de 1940. E só a partir de Julho de 1942, após a grande rusga, é que as instituições religiosas passaram a esconder crianças judias. Dora havia passado um ano e meio no Sagrado Coração de Maria. Era sem dúvida a única aluna de origem judaica no pensionato. Sabê-lo-iam as suas colegas e as freiras?
Por baixo do hotel situado no nº 41 da Alameda Ornano, o Café Marchai tinha um telefone: Montmartre 44-74, mas ignoro se este café comunicava com o prédio e se Marchal era também o dono do hotel. O internato do Sagrado Coração de Maria não figurava na lista da época. Encontrei um outro endereço das Irmãs das Escolas Cristãs da Misericórdia, que em 1942 devia ser um anexo do internato: Rua Saint-Maur, 64. Será que Dora o frequentou? Também aqui não havia número de telefone.
Quem sabe? Talvez a superiora tenha esperado até segunda-feira de manhã para telefonar a Marchal ou, melhor ainda, para enviar uma freira ao nº 41 da Alameda Ornano. A menos que Cécile e Ernest Bruder se tenham dirigido pessoalmente ao pensionato.
Conviria saber se estava bom tempo nesse 14 de Dezembro, dia da fuga de Dora. Talvez fosse um domingo aprazível e ensolarado de Inverno como muitos outros em que um sentimento de desafogo e eternidade nos invade - o sentimento ilusório de que o curso do tempo está suspenso e que basta deixarmo-nos escorregar por esta brecha para escapar ao tornilho que voltará a fechar-se sobre nós.
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Durante muito tempo não soube nada sobre Dora Bruder depois da sua fuga de 14 de Dezembro nem sobre o pedido de procura que fora publicado no Paris-Soir. Em seguida tive conhecimento de que ela havia sido internada no Campo de Drancy, oito meses mais tarde, a 13 de Agosto de 1942. A ficha mencionava que vinha do Campo das Tourelles. Na verdade, nesse 13 de Agosto de 1942 trezentas judias tinham sido transferidas do Campo das Tourelles para o de Drancy.
A prisão, o «campo» - ou melhor, o centro de internamento das Tourelles -, ocupava as instalações de um antigo quartel colonial de infantaria, o quartel das Tourelles, no nº 141 da Alameda Mortier, junto à Porta dos Lilases. Tinham-no aberto em Outubro de 1940 para internar judeus estrangeiros em situação «irregular». No entanto, a partir de 1941, quando os homens passaram a ser enviados directamente para Drancy ou para os campos do Loiret, só as mulheres judias que tivessem transgredido os ditames alemães é que eram internadas nas Tourelles, bem como os comunistas e os criminosos de delito comum.
Em que momento, e por que razões bem definidas, fora
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Dora Bruder enviada para as Tourelles? Perguntava a mim mesmo se existiria um documento, um indício que me fornecesse uma resposta. Estava reduzido às suposições. Certamente havia sido apreendida na rua. Em Fevereiro de 1942 - dois meses após a sua fuga -, os alemães tinham promulgado um decreto que proibia os judeus de Paris de sair dos seus domicílios depois das vinte horas e de mudar de residência. Por conseguinte, a vigilância nas ruas tornara-se mais severa do que nos meses anteriores. Eu acabara por me convencer de que fora nesse glacial e lúgubre mês de Fevereiro que Dora havia sido apanhada, quando a Polícia dos Assuntos Judaicos armava ciladas nos corredores do metropolitano, à entrada dos cinemas e à saída dos teatros. Parecia-me mesmo espantoso que uma rapariga de dezasseis anos, cujo desaparecimento em Dezembro e sinais de identificação eram do conhecimento da polícia, pudesse ter escapado durante tanto tempo às buscas. A menos que houvesse encontrado um esconderijo. Mas onde? Esse Inverno de 1941-1942 havia sido o mais tenebroso e inclemente Inverno da Ocupação, com quedas de neve desde o mês de Novembro, temperaturas de cerca de quinze graus negativos em Janeiro, a água gelada por toda a parte, geada e de novo a neve em grande abundância no mês de Fevereiro. Aonde se teria refugiado? E como fazia para sobreviver?
Fora certamente em Fevereiro, pensava eu, que «eles» deviam tê-la catrafilado nas suas redes. «Eles»: tanto podiam ter sido uns simples guardas como os inspectores da Brigada dos Menores ou a Polícia dos Assuntos Judaicos aquando de um controlo de identidade num lugar público... Eu lera num livro de memórias que muitas raparigas de dezoito ou dezanove
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anos haviam sido mandadas para as Tourelles por causa de ligeiras infracções aos «decretos alemães», algumas com pouco mais de dezasseis anos, a idade de Dora... Nesse mês de Fevereiro, na noite da entrada em vigor do decreto alemão, o meu pai tinha sido apanhado numa rusga em plenos Campos Elísios. Os inspectores da Polícia dos Assuntos Judaicos haviam bloqueado os acessos a um restaurante da Rua de Marignan onde ele jantava com uma amiga. Pediram os documentos a todos os /// clientes. O meu pai não os levava consigo e por isso deram-lhe ordem de prisão. No carro celular que o conduzia dos Campos Elísios para a Rua Greffulhe, sede da Polícia dos Assuntos Judaicos, ele reparara, entre outros vullos, numa rapariga de uns dezoito anos, perdendo-a de vista quando os fizeram subir a um andar do prédio ocupado pelos escritórios da polícia e pelo gabinete do chefe, um certo comissário Schweblin. Mas conseguiu fugir, aproveitando-se de um alarme desligado, no momento em que voltava a descer a escada para ser transferido para o depósito de presos.
O meu pai aludira por alto a essa rapariga quando me contou o seu dissabor pela primeira e última vez na vida, numa noite de Junho de 1963 quando estávamos num restaurante dos Campos Elísios, quase defronte daquele em que o haviam detido vinte anos antes. Não me forneceu qualquer pormenor sobre o aspecto físico dela ou sobre o seu vestuário. E eu já havia quase esquecido isso, até ao dia em que soube da existência de Dora Bruder. Então acudiu-me à memória a presença de tal rapariga na ramona juntamente com o meu pai e outros desconhecidos, nessa noite de Fevereiro, e não tardou que perguntasse a mim mesmo se não seria mesmo
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Dora Bruder, também recém-apreendida, antes de ser enviada para as Tourelles.
Talvez me agradasse o facto de o meu pai e ela se terem cruzado nesse Inverno de 1942. Por muito diferentes que fossem um do outro, tinham-nos classificado na mesma categoria de réprobos. O meu pai também não se recenseara em Outubro de 1940 e, tal como Dora Bruder, não possuía número de «processo judaico», não possuindo pois a mínima existência legal; cortara todas as amarras com um mundo onde toda a gente devia apresentar a justificação de um ofício, de uma família, de uma nacionalidade, de uma data de nascimento, de um domicílio. Doravante estava algures, mais ou menos como Dora depois da sua fuga.
Mas reflecti na diferença dos destinos de ambos. Não havia muitos recursos para uma rapariga de dezasseis anos entregue a si mesma em Paris no Inverno de 42 depois de se escapulir de um pensionato. Aos olhos da polícia e das autoridades desse tempo, achava-se numa situação duplamente irregular: além de judia, era uma menor em fuga.
Para o meu pai, que tinha mais catorze anos do que Dora Bruder, o caminho só podia ser um: visto que haviam feito dele um fora-da-lei, seguiria esse pendor impelido pela força das coisas, vivendo de expedientes em Paris e perdendo-se nos pântanos do mercado negro.
Vim a saber não há muito que essa rapariga do carro celular não podia ser Dora Bruder. Procurei encontrar o seu nome consultando uma lista das mulheres que tinham sido internadas no Campo das Tourelles. Duas delas, com as idades
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de vinte e vinte e um anos, ambas judias polacas, haviam entrado nas Tourelles a 18 e 19 de Fevereiro de 1942. Chamavam-se Syma Berger e Fredel Traister. As datas correspondem, mas alguma delas seria Dora? Após uma passagem pelo depósito de presos, os homens eram enviados para o Campo de Drancy e as mulheres para as Tourelles. Talvez essa desconhecida tenha escapado, como o meu pai, à sorte comum que lhes estava reservada. Julgo que permanecerá anónima para todo o sempre, ela e as outras sombras detidas nessa noite. Os polícias dos Assuntos Judaicos destruíram os registos e todos os relatórios de interpelação durante as rusgas ou aquando das detenções individuais nas ruas. Se eu não estivesse aqui para o escrever, já não haveria qualquer vestígio da presença desta desconhecida e do meu pai num carro celular em Fevereiro de 1942, ao longo dos Campos Elísios. Nada a não ser pessoas - mortas ou vivas - que acabam arrumadas na categoria dos «indivíduos não-identificados».

Vinte anos mais tarde, a minha mãe actuava numa peça no Teatro Michel. Era frequente esperar por ela no café da esquina da Rua des Mathrins e da Rua Greffulhe. Ainda não sabia que o meu pai arriscara a vida por estas paragens e que eu regressava a uma zona que havia sido um buraco negro, íamos jantar a um restaurante da Rua Greffulhe - talvez no rés-do-chão do prédio da Polícia dos Assuntos Judaicos onde o meu pai fora conduzido ao gabinete do comissário Schweblin. Jacques Schweblin. Nascido em 1901, em Mulhouse. Nos campos de Drancy e de Pithiviers, os seus homens dedicavam-se a revistar os internados antes de partirem para Auschwitz:
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O Sr. Schweblin, chefe da Polícia dos Assuntos Judaicos, apresentava-se no campo acompanhado de cinco ou seis ajudantes a quem chamava polícias auxiliares, não revelando senão a sua própria identidade pessoal. Estes polícias à paisana usavam um cinturão do qual pendiam um revólver e uma matraca.
Depois de ter instalado os seus ajudantes, o Sr. Schweblin deixava o campo e só reaparecia à noite para recolher o produto da pilhagem. Os seus ajudantes postavam-se numa barraca com uma mesa e um recipiente de ambos os lados da mesa, recebendo um deles o numerário e o outro as jóias. Os internados desfilavam então diante do grupo, que procedia a uma revista minuciosa e injuriosa. Os internados eram frequentemente espancados e deviam tirar as calças, apanhando dolorosos pontapés a que se juntavam admoestações: «Hein?! queres provar mais comida de urso?». Os bolsos interiores e exteriores eram muitas vezes rasgados brutalmente a pretexto de apressar a revista. Não falarei da revista das mulheres efectuada em sítios íntimos.
No fim da revista, numerário e jóias eram amontoados a esmo em malas apertadas com corda e chumbadas, seguindo depois para o automóvel do Sr. Schweblin.
Este processo de chumbagem não tinha nada de sério, visto que a pinça de chumbar ficava em poder dos polícias, sendo por isso fácil açambarcar as notas de banco e as jóias. Aliás, não se coibiam de sacar anéis de valor dos seus bolsos, dizendo: «Olha! Isto não é pechisbeque!»; ou um punhado de notas de 1000 ou 500 francos, dizendo: «Olha! Esqueci-me disto».. Efectuava-se igualmente uma busca nas barracas para vistoriar os artigos de cama, esventrando colchões, edredões e
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travesseiros. Não subsiste qualquer traço ( * Nota ) dessas investigações levadas a cabo pela Polícia dos Assuntos Judaicos.
A equipa da vistoria era composta por sete homens - sempre os mesmos - e uma mulher. Não se conhecem os seus nomes. Eram jovens, na época, e alguns ainda são vivos. Mas ninguém conseguiria reconhecer os seus rostos.
Schweblin desapareceu em 1943- Os alemães devem ter-se desembaraçado dele. No entanto, no dia em que o meu pai me contou a sua passagem pelo gabinete deste homem, disse-me que julgara reconhecê-lo na Porta Maillot certo domingo pouco depois da guerra.

( * Nota ) - De acordo com um relatório administrativo redigido em Novembro de 1943 por um responsável do: Serviço de Contribuições de PíthiViers.
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Os carros celulares não mudaram muito desde o início dos anos sessenta. A única vez na minha vida em que me achei dentro de um foi em companhia do meu pai, e não o referiria agora se esta peripécia não houvesse adquirido para mim um carácter simbólico.
Passou-se em circunstâncias de uma grande banalidade. Eu tinha dezoito anos e ainda era menor. Os meus pais estavam separados mas residiam no mesmo prédio: o meu pai com uma mulher de cabelo amarelo-palha, muito nervosa, uma espécie de falsa Myléne Demongeot; e eu com a minha mãe. Nesse dia desencadeara-se uma bulha nas escadas entre os meus pais a propósito da modestíssima pensão que o meu pai fora obrigado a pagar para o meu sustento por decisão da justiça, no termo de um processo com vários episódios: Tribunal da Relação do Sena, Primeira Câmara Suplementar do Supremo Tribunal, notificação de sentença impugnada. A minha mãe quis que eu batesse à porta dele e lhe pedisse o dinheiro que não pagara pois infelizmente não tínhamos outro para viver. Obedeci de má vontade. Toquei à campainha com a intenção de lhe falar delicadamente e até de apresentar desculpas pela minha atitude. Fechou-me a porta na cara; ouvi
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mesmo a falsa Mylène Demongeot a berrar e a telefonar à polícia, dizendo que «um vadio estava a armar escândalo».
Vieram buscar-me umas dezenas de minutos mais tarde a casa da minha mãe e subi com o meu pai para a ramona que esperava em frente do prédio. Estávamos sentados um diante do outro, cada um de nós ladeado por dois guardas. Na altura ocorreu-me que era a primeira vez na vida que fazia semelhante experiência, ao passo que o meu pai já a conhecera vinte anos antes, nessa noite de Fevereiro de 1942 em que os inspectores da Polícia dos Assuntos Judaicos o meteram num carro celular muito parecido com aquele em que nos encontrávamos. E perguntava a mim mesmo se também ele pensaria então nesse episódio. Mas fingia não me ver e evitava o meu olhar.
Lembro-me perfeitamente do trajecto. Os cais. Depois a Rua dos Saints-Pères. A Alameda Saint-Germain. A paragem no sinal vermelho, perto da esplanada dos Deux-MagoCs. Por detrás do vidro gradeado via os fregueses sentados na esplanada, ao sol, e invejava-os. Mas não corria grande risco: estávamos, afortunadamente, numa época anódina, inofensiva, uma época a que mais tarde viriam a chamar «Os Trinta Anos Gloriosos» ( * - nota ) .
Contudo, admirava-me que o meu pai, com toda a sua vivência da Ocupação, não manifestasse a mínima reticência sobre o facto de me levarem num carro celular. Estava ali, sentado à minha frente, impassível, com um ar vagamente

* - ( Nota ) - «Les Trente Glorieuses», nome dado por Jean Fourastié nos trinta anos de crescimento económico entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o primeiro «choque petrolífero». (N. do T.)
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enfastiado, ignorando-me como se eu fosse um pestífero, e tudo isto fazia-me recear a chegada à esquadra, pois não esperava qualquer compaixão da sua parte. E afigurava-se-me injusto pois eu havia começado um livro - o meu primeiro livro -, no qual chamava a mim o mal-estar que ele sentira durante a Ocupação. Alguns anos antes, descobri na sua estante certas obras de autores anti-semitas publicadas nos anos quarenta e que ele comprara na época, sem dúvida para tentar compreender o que esta gente lhe censurava. E imagino quanto o deve ter surpreendido a descrição desse monstro imaginário e fantasmagórico cuja sombra ameaçadora corria pelas paredes, com o seu nariz adunco e as suas mãos grifenhas, essa criatura apodrecida por todos os vícios, responsável por todos os males e culpada de todos os crimes. Por mim, no meu primeiro livro, queria responder a todas as pessoas cujos insultos me haviam ferido por causa do meu pai. E, no terreno da prosa francesa, fazê-las calar de uma vez para sempre. Hoje vejo claramente a ingenuidade infantil do meu projecto: a maior parte destes autores haviam desaparecido, tendo sido fuzilados ou exilados, ou estavam caquécticos ou mortos de velhice. Sim, infelizmente eu chegava demasiado tarde.
O carro celular estacionou na Rua de 1'Abbaye, defronte da esquadra do bairro de Saint-Germain-des-Prés. Os guardas encaminharam-nos para o gabinete do comissário. O meu pai explicou-lhe, numa voz seca, que eu era «um vadio», que armava «escândalo em casa dele» desde os dezassete anos de idade. O comissário declarou que «da próxima vez me engaiolaria ali» - no tom com que se fala a um delinquente. Tive a certeza de que o meu pai não levantaria um dedo se o
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Comissário pusesse em prática a ameaça e me enviasse para o depósito de presos.
Saímos da esquadra e perguntei ao meu pai se fora realmente necessário chamar a polícia e acusar-me diante do comissário. Não me respondeu. Não lhe guardei rancor. Como morávamos no mesmo prédio, seguimos lado a lado, em silêncio. Estive quase a evocar aquela noite de Fevereiro de 1942 em que também o tinham enfiado num carro celular, e quase lhe perguntei se pensara nisso momentos antes. Mas talvez a coisa tivesse menos importância para ele do que para mim.
Não trocámos uma única palavra durante todo o trajecto, nem nas escadas antes de nos separarmos. Voltaria a vê-lo duas ou três vezes no ano seguinte, num mês de Agosto em que me furtou os papéis militares para tentar incorporar-me à força no quartel de Reuilly. Nunca mais o vi.
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Gostaria de saber o que Dora Bruder terá feito a 14 de Dezembro de 1941 nos primeiros instantes da sua fuga. Talvez tenha decidido não regressar ao pensionato precisamente na altura em que chegava diante do pórtico, vagueando então durante toda a tarde pelo bairro até à hora do recolher obrigatório.
No bairro, as ruas ainda têm nomes campestres: os Moleiros, a Brecha dos Lobos, a Vereda das Cerejeiras. Ao fundo da viela coberta pela sombra de árvores ao longo do recinto do Sagrado Coração de Maria fica a estação de comboios de mercadorias e, mais longe, indo pela Avenida Daumesnil, a Gare de Lyon, cujas vias-férreas passam a poucas centenas de metros do pensionato onde Dora Bruder estava internada. Este bairro sossegado, que parece distante de Paris, com os seus conventos, os seus cemitérios secretos e as suas avenidas silenciosas, é também o bairro das despedidas.
Ignoro se a proximidade da Gare de Lyon havia incitado Dora a empreender uma fuga. Ignoro se, do seu dormitório, durante o silêncio das noites de black-out, ela ouvia o estrépito das composições de mercadorias ou das carruagens que
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partiam da Gare de Lyon para a zona livre... Certamente que ela conhecia estas duas palavras enganadoras: zona livre.
No romance que escrevi, ainda sem saber quase nada acerca de Dora Bruder - o seu pensamento continuava a ocupar-me o espírito -, a rapariga da sua idade a que eu chamara Ingrid refugia-se com um amigo na zona livre. Lembrara-me de Bella D., que aos quinze anos saíra de Paris e transpusera, igualmente de modo fraudulento, a linha de demarcação, inclo parar a uma prisão de Toulouse; pensara também em Anne B., detida aos dezoito anos sem salvo-conduto na estação de Chalon-sur-Saône, e condenada a doze semanas de prisão... Eis o que elas me haviam contado nos anos sessenta.
Será que Dora Bruder preparou muito antecipadamente esta fuga com a cumplicidade de um amigo ou de uma amiga? Terá permanecido em Paris ou tentaria passar para a zona livre?
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Os registos da esquadra de polícia do bairro de Clignancourt incluem estas indicações com data de 27 de Dezembro de 1941, sob as colunas Datas e Direcção, Estados Civis, Resumo do Caso:
27 de Dezembro de 1941. Bruder, Dora, nascida em 25/2/26, em Paris 12-, residente na Alameda Omano, n° 41. Audição: Bruder, Emest, 42 anos, pai.
Na margem estão escritos alguns algarismos, sem que eu saiba a que correspondem: 7029 21/12.
A esquadra do bairro de Clignancourt ocupava o nº 12 da Rua Lambert, por detrás da Butte Montmartre, e o seu comissário chamava-se Siri. Mas é provável que Emest Bruder tenha ido à esquadra da circunscrição na Rua do Mont-Cenis, nº 74, do lado esquerdo do edifício da administração, que servia igualmente de posto à esquadra de Clignancourt: era mais perto do seu domicílio. Aqui, o comissário chamava-se Cornec.
Dora fugira treze dias antes e Ernest Bruder esperara até então para se dirigir à esquadra e comunicar o desaparecimento
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da filha. Podemos imaginar a sua angústia e as suas hesitações durante estes treze longos dias. Não declarara Dora no recenseamento de Outubro de 1940, naquela mesma esquadra, e corria o risco de que os polícias se apercebessem de tal facto. Ao tentar encontrá-la, poderia atrair as atenções sobre ela.
A acta da audição de Ernest Bruder não figura nos arquivos da Prefeitura de Polícia. Por certo este género de documentos eram destruídos nas esquadras à medida que caducavam. Alguns anos depois da guerra destruíram-se outros arquivos das esquadras, como os registos especiais abertos em Junho de 1942, na semana em que os judeus receberam as suas três estrelas amarelas por pessoa a partir dos seis anos de idade. Nestes registos estavam mencionados a identidade do judeu, o número de bilhete de identidade, o domicílio e uma coluna reservada a notas marginais que devia ser assinada por ele depois de lhe entregarem as estrelas. Mais de uns cinquenta registos haviam sido abertos deste modo nas esquadras de Paris e dos arredores.
Nunca se virá a saber a que perguntas respondeu Ernest Bruder a respeito da filha e de si mesmo. Talvez lhe tenha calhado um funcionário da polícia para o qual o interrogatório era um mero trabalho de rotina, como antes da guerra, não fazendo a mínima diferença entre Ernest Bruder, a sua filha, e uns simples franceses. É claro que este homem era «ex-austríaco», morava num hotel e não tinha profissão. Mas a filha nascera em Paris e possuía nacionalidade francesa. Uma fuga de adolescente, coisa que acontecia cada vez com mais frequência naquela época conturbada. Terá sido o polícia que aconselhou Ernest Bruder a pôr um anúncio no Paris-Soir,
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visto que já haviam decorrido duas semanas desde que Dora desaparecera? Será que um empregado do jornal, encarregado dos «cães atropelados» e do giro pelas esquadras, respigou ao acaso este pedido de procura entre outros acidentes do dia, destinado à rubrica «De ontem para hoje»?

Recordo-me da forte impressão que senti por ocasião da minha fuga em Janeiro de 1960 - tão forte como raramente viria a sentir. Era o inebriamento de cortar de uma só 'vez com todos os laços: ruptura brutal e voluntária com a disciplina que o colégio interno, os professores e os colegas de turma nos impõem. Doravante não teremos mais nada a ver com esta gente. Ruptura com os pais que não souberam amar-nos e que já não achamos capazes de emenda. Sentimento de revolta e de solidão levado à sua incandescência e que nos corta a respiração e nos põe em estado de levitação. Foi sem dúvida uma das raras circunstâncias da minha vida em que fui verdadeiramente eu próprio e caminhei pelo meu passo.
Mas este êxtase não pode durar muito tempo. Não tem o mínimo futuro. O nosso ímpeto abate-se radicalmente logo a seguir.
A fuga - segundo parece - é um pedido de socorro e, por vezes, uma forma de suicídio. Mas apesar de tudo experimentamos um breve sentimento de eternidade. Cortámos os laços com o mundo mas também com o tempo. E, no fim de uma manhã, descobrimos um céu de um azul leve e que já nada pesa sobre nós, que os ponteiros do relógio do jardim
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das Tulherias ficam imóveis para todo o sempre, que uma formiga nunca mais acaba de atravessar a mancha de sol.

Penso em Dora Bruder. Digo para comigo mesmo que a sua fuga não era tão simples como a minha uns vinte anos mais tarde num mundo que voltara a ser inofensivo. Essa cidade de Dezembro de 1941, o seu recolher obrigatório, os seus soldados, a sua polícia, tudo lhe era hostil e queria a perda dela. Aos dezassete anos, Dora tinha o mundo inteiro contra si, sem sequer saber porquê.
Outros rebeldes, na Paris desses anos, e na mesma solidão que Dora Bruder, lançavam granadas sobre os alemães, sobre as suas colunas de viaturas e os seus lugares de reunião. Tinham a mesma idade que ela. Os rostos de alguns figuram no Edital Vermelho ( * - nota ) e não consigo deixar de os associar a Dora nos meus pensamentos.

No Verão de 1941 foi estreado no Cinema Normandie, e depois exibido nas salas de bairro, um dos filmes rodados desde o início da Ocupação. Tratava-se de uma comédia agradável: Premier Rendez-Vons. Da última vez que o vi, causou-me uma impressão esquisita, que não era justificada pela ligeireza da intriga nem pelo tom jovial dos protagonistas.

* - ( Nota ) - Edital afixado pelas autoridades durante a Ocupação, onde se anunciava a captura de alguns resistentes de nome estrangeiro. Deu origem a um célebre poema de Aragon, .l'Affiche Rouge», cantado mais tarde por Léo Ferre. (N. do T.)
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Imaginei que Dora Bruder talvez tivesse assistido, num domingo, a uma sessão deste filme cujo enredo é a fuga de uma rapariga da sua idade: escapa-se de um pensionato como o Sagrado Coração de Maria e no decurso da fuga encontra aquilo a que, nos contos de fadas e nos romances, se chama o príncipe encantado.
Este filme apresentava a versão cor-de-rosa e anódina do que acontecera a Dora na vida real. Será que o filme lhe incutira a ideia da fuga? Eu concentrava a minha atenção nos pormenores: o dormitório, os corredores do internato, o uniforme das pensionistas, o café onde a heroína esperava quando já anoitecera... Não descobri nada que correspondesse à realidade; aliás, a maior parte das cenas eram rodadas em estúdio. No entanto, apoderava-se de mim um mal-estar que vinha da luminosidade particular do filme, da própria textura da película: um véu parecia recobrir todas as imagens, acentuando os contrastes e por vezes apagando-os numa brancura boreal. A luz era simultaneamente demasiado clara e demasiado escura, abafando as vozes ou tornando o seu timbre mais forte e mais inquietante.
Compreendi subitamente que este filme estava impregnado pelos olhares dos espectadores do tempo da Ocupação - espectadores de todos os géneros, um grande número dos quais não haviam sobrevivido à guerra. Tinham sido levados para o desconhecido depois de terem visto este filme, num sábado à noite que constituíra uma trégua para eles. Enquanto a sessão durava, esquecia-se a guerra e as ameaças do exterior. Na obscuridade de uma sala de cinema, estavam todos apertados uns contra os outros, seguindo o fluxo das imagens no ecrã, e já nada podia acontecer. E, por uma espécie de
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processo químico, todos estes olhares haviam modificado a própria substância da película, a luz, a voz dos actores. Eis o que eu sentira enquanto pensava em Dora Bruder diante das imagens aparentemente fúteis de Premier Rendez-Vous.
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Ernest Bruder foi preso a 19 de Março de 1942, ou, mais exactamente, internado no Campo de Drancy nesse dia. Não encontrei qualquer vestígio dos motivos e circunstâncias da detenção. No registo dito «familiar» de que a Prefeitura de Polícia se servia e onde estavam reunidas algumas informações acerca de cada judeu, vi anotado o seguinte:

Bruder, Ernest
21.5.1899- Viena
Nº processo judaico: 49091
Profissão: Sem
Mutilado de guerra 100%. 2a classe, legionário francês gaseado; tuberculose pulmonar.
Cadastro central E56404

Mais abaixo, a ficha tem uma inscrição a carimbo: PROCURADO, seguida desta nota a lápis: Encontra-se no Campo de Drancy.
Ernest Bruder, na sua qualidade de judeu «ex-austríaco», podia ter sido preso aquando da rusga de Agosto de 1941,
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durante a qual os polícias franceses, enquadrados por militares alemães, bloquearam a 11a circunscrição em 20 de Agosto, interpelando nos dias seguintes os judeus estrangeiros nas ruas das outras circunscrições, entre as quais a 18a. Como terá ele escapado a esta rusga? Graças ao título de antigo legionário francês de 2a classe? Custa-me a acreditar.
A sua ficha indica que era «procurado». Mas a partir de quando? E por que razões exactas? Se já fosse «procurado» em 27 de Dezembro de 1941, no dia em que assinalara o desaparecimento de Dora na esquadra do bairro de Clignancourt, os polícias não o deixariam ir-se embora. Terá sido nesse dia que atraiu as atenções sobre si?
Um pai tenta reencontrar a filha, participa o seu desaparecimento numa esquadra e surge publicado um pedido de procura num vespertino. Mas este pai é igualmente «procurado». Uns progenitores perdem o rastro da filha e o pai desaparece por sua vez num dia 19 de Março, como se o Inverno desse ano separasse as pessoas umas das outras, baralhando e apagando os seus itinerários a ponto de lançar uma dúvida sobre a sua existência. E não há qualquer recurso. As mesmas pessoas que estão encarregadas de nos procurar e encontrar estabelecem fichas a fim de melhor nos fazerem desaparecer de seguida - definitivamente.
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Ignoro se Dora Bruder soube logo da detenção do pai. Mas suponho que não. Em Março, ainda não regressara ao nº 41 da Alameda Ornano desde a sua fuga em Dezembro. É, pelo menos, o que sugerem os escassos traços dela que subsistem nos arquivos da Prefeitura de Polícia.
Agora que decorreram perto de sessenta anos, estes arquivos irão confiar os seus segredos pouco a pouco. A Prefeitura de Polícia da Ocupação já não é mais do que uma grande caserna espectral à beira do Sena. No momento em que evocamos o passado, surge aos nossos olhos mais ou menos como a casa Usher. E, nos dias de hoje, temos dificuldade em imaginar que este edifício ao longo de cujas fachadas seguimos não mudou desde os anos quarenta. Persuadimo-nos de que não são as mesmas pedras, os mesmos corredores. Há muito tempo que faleceram os comissários e os inspectores que participavam na caça aos judeus e cujos nomes ressoam com um eco lúgubre, exalando um odor a couro apodrecido e tabaco frio: Permilleux, François, Schweblin, Koerperich, Cougoule... Os guardas a quem se chamava os «agentes captores» faleceram ou estão tolhidos de velhice; escreviam o seu nome no auto de cada pessoa que prendiam
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aquando das rusgas. Todas estas dezenas de milhares de autos foram destruídas e jamais se conhecerão os nomes dos «agentes captores». Mas restam, nos arquivos, centenas e centenas de cartas endereçadas ao prefeito de polícia da época e às quais ele nunca respondeu. Estiveram ali durante mais de meio século, como sacos de correio esquecidos no fundo de um hangar de uma longa etapa do Correio Aéreo. Agora podemos lê-las. Aqueles a quem eram dirigidas não lhes ligaram, e hoje somos nós, que ainda não tínhamos nascido nessa época, os seus destinatários e os seus guardiães:

Senhor Prefeito,
Tenho a honra de chamar a sua atenção para o meu pedido. Trata-se do meu sobrinho Albert Graudens, de nacionalidade francesa, com 16 anos de idade, que foi internado...

Senhor Director do Serviço dos Judeus,
Solicito a sua alta benevolência para a libertação da minha filha Nelly Trautmann, do Campo de Drancy...

Senhor Prefeito de Polícia,
Tenho a honra de solicitar da sua alta benevolência e da sua generosidade as informações respeitantes à minha filha, a Sra Jacques Lévy, em solteira Violette Joêl, detida por volta do dia 10 de Setembro passado quando tentava transpor a linha de demarcação sem usar a estrela regulamentar. Ia acompanhada pelo seu filho, Jean Lévy, com 8 anos e meio de idade...

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Transmitido ao prefeito de polícia:

Solicito da sua benevolência a libertação do meu neto Michaêl Rubin, de 3 anos, francês, de mãe francesa, internado em Drancy com a mãe...

Senhor Prefeito,
Picar-lhe-ia infinitamente grata se anuísse em examinar o caso que venho apresentar-lhe: os meus pais, bastante idosos e doentes, acabam de ser presos na qualidade de judeus, e nós ficámos sozinhas. A minha irmã mais nova chama-se Marie Grosman, de 15 anos 1/2, judia francesa, detentora do bilhete de identidade francês n- 1594936 série B, e eu chamo-me Jeannette Grosman, também judia francesa, de 19 anos, detentora do bilhete de identidade francês nº 924247 série B...

Senhor Director,
Peço desculpa por me permitir dirigir-me a si, mas eis o meu caso: no dia 16 de Julho de 1942, às 4 da madrugada, vieram buscar o meu marido, e como a minha filha estava a chorar, também a levaram.
Ela chama-se Paulette Gothelf de 14 anos 1/2 de idade, nascida a 19 de Novembro de 1927, em Paris, na 12B circunscrição, e é francesa...
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Com data de 17 de Abril de 1942, os registos da esquadra de Clignancourt apresentam esta inscrição sob as colunas habituais de Datas e Direcção, Estados Civis, Resumo do Caso:

17 de Abril de 1942. 2098 15/24. P. Menores. Caso Bruder Dora, dezasseis anos de idade, desaparecida, seguimento da acta 1917, reintegrou o domicílio materno.

Não sei ao que correspondem os algarismos 2098 e 15/24. «P. Menores» deve ser «Protecção dos menores». A acta 1917 continha certamente o depoimento de Ernest Bruder e as perguntas a respeito de Dora e dele próprio que lhe haviam sido feitas em 27 de Dezembro de 1941. Não existem mais vestígios desta acta 1917 nos arquivos.
Apenas três linhas acerca do «caso Bruder Dora». As notas que se seguem, no registo de 17 de Abril, referem-se a outros «casos»:

Gaul Georgette Paulette, 30.7.23, nascida em Pantin,
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Seine, de Georges e de Pelz Rose, solteira, vive num hotel, Rua Pigalle, nº 41. Prostituição.
Germaine Mauraire. 9-10.21, nascida em Entre-Deux--Eaux (Vosges). Vive num hotel. 1 relatório P. M.
J.-R. Cretet. 9a circunscrição.

Assim se sucedem, nos registos das esquadras da Ocupação, prostitutas, cães perdidos, crianças abandonadas. E - como acontecia com Dora - adolescentes desaparecidas e culpadas de delito de vagabundagem.
Aparentemente, nunca se trata aqui de «judeus». E todavia eles passaram por estas esquadras antes de serem conduzidos ao depósito de presos e depois para Drancy. E a pequena frase «reintegrou o domicílio materno» deixa-nos presumir que no posto de polícia do bairro de Clignancourt sabiam que o pai de Dora fora detido no mês anterior.
Não há qualquer vestígio dela entre 14 de Dezembro de 1941, dia da sua fuga, e 17 de Abril de 1942, data em que, segundo o registo, ela reintegra o domicílio materno, ou seja, o quarto de hotel do nº 41 da Alameda Ornano. Durante estes quatro meses, ignora-se onde Dora Bruder estava, o que fez, com quem se encontrava. E também se ignora em que circunstâncias regressou ao «domicílio materno»: por sua própria iniciativa, depois de ter sabido da prisão do pai? Ou depois de haver sido interceptada na rua, dado que fora transmitido à Brigada dos Menores um mandato de procura contra ela? Não encontrei qualquer indício até ao momento, nenhum testemunho que me elucidasse sobre os seus quatro meses de ausência, que para nós continuam a ser uma lacuna na sua vida.
O único meio de não perder completamente Dora Bruder
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no decurso deste período consistiria em relembrar as mudanças do tempo. A neve caíra pela primeira vez em 4 de Novembro de 1941. O Inverno começara por um frio intenso a 22 de Dezembro. No dia 29 de Dezembro, a temperatura voltara a descer e as vidraças das janelas estavam cobertas de uma leve camada de gelo. A partir de 13 de Janeiro, o frio tornara-se siberiano. A água solidificava. Isto durara cerca de quatro semanas. A 12 de Fevereiro havia um pouco de sol, como um tímido anúncio da Primavera. Uma camada de neve recobria os passeios, enegrecida sob o espezinhar dos transeuntes e transformando-se em lama. Foi na noite desse 12 de Fevereiro que os polícias dos Assuntos Judaicos levaram o meu pai na ramona. Em 22 de Fevereiro a neve caíra novamente e a 25 continuava a cair, mais abundante. No dia 3 de Março, depois das nove horas da noite, ocorreu o primeiro bombardeamento dos subúrbios. Em Paris, as vidraças tremiam. A 13 de Março, as sirenas tinham soado em pleno dia para dar o alerta. Os passageiros do metropolitano ficaram imobilizados durante duas horas, vendo-se obrigados a apearem-se no túnel. Houve outro alerta às dez horas da noite. 15 de Março foi um lindo dia de sol. A 28 de Março, por volta das dez horas da noite, um bombardeamento longínquo durou até à meia-noite. A 2 de Abril, mais um alerta, cerca das quatro horas da madrugada, e um bombardeamento violento até às seis horas. De novo um bombardeamento a partir das onze horas da noite. A 4 de Abril, os rebentos cias folhagens dos castanheiros haviam brotado. A 5 de Abril, ao anoitecer, eclodiu uma trovoada de Primavera; caiu granizo e depois formou-se um arco-íris. Não te esqueças: amanhã à tarde, encontro na esplanada dos Gobelins. '
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Há poucos meses consegui arranjar uma fotografia de Dora Bruder, que contrasta com as que já reunira. É sem dúvida a última que lhe tiraram. O rosto e o aspecto já não têm nada da infância que em todos os retratos anteriores se reflectia através do olhar, da redondez das faces, do vestido branco de um dia de distribuição de prémios... Não sei em que data foi tirada esta fotografia. Talvez em 1941, no ano em que Dora era pensionista no Sagrado Coração de Maria, ou então no início da Primavera de 1942, quando voltou à Alameda Ornano após a fuga de Dezembro.
Está em companhia da mãe e da avó materna. As três mulheres surgem-nos lado a lado, com a avó entre Cécile Bruder e Dora. Cécile Bruder enverga um vestido preto e tem o cabelo curto; a avó traz um vestido com flores estampadas. As duas mulheres não sorriem. Dora traja um vestido preto - ou azul-marinho - e uma blusa de colarinho branco, mas também pode tratar-se de um casaco de malha e de uma saia - a fotografia não é suficientemente nítida para se perceber; calça meias de seda e sapatos com presilhas. O cabelo meio-comprido cai-lhe quase até aos ombros e é repuxado para trás por uma fita; o braço esquerdo pende ao longo do corpo, com os dedos da mão esquerda dobrados e o braço direito encoberto pela avó. Mantém a cabeça direita e um olhar grave, mas baila-lhe nos lábios o esboço de um sorriso, o que confere ao seu rosto uma expressão de doçura triste e de desafio. As três mulheres estão de pé em frente da parede. O chão é lajeado, como o corredor de lugar público. Quem terá tirado este retrato? Ernest Bruder? E se ele não figura na
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fotografia, quererá dizer que já foi preso? Em todo o caso, parece que as três mulheres vestiram as roupas domingueiras para posarem diante desta objectiva anónima.
Dora envergará a saia azul-marinha indicada no pedido de procura?

Todas as famílias têm fotografias assim. Enquanto posavam, estavam todos protegidos pelo espaço de alguns segundos e estes segundos tornaram-se uma eternidade.
Perguntamo-nos por que motivo o raio os atingiu a eles em vez de outros. Enquanto escrevo estas linhas, penso repentinamente noutros com o mesmo ofício que eu. Hoje, a recordação de um escritor alemão veio visitar-me. Chamava-se Friedo Lampe.
Fora o seu nome que atraíra antes de mais a minha atenção, e o título de um dos seus livros: À Beira da Noite, traduzido para o francês há mais de vinte e cinco anos, tendo eu descoberto nessa época um exemplar numa livraria dos Campos Elísios. Não sabia nada sobre este escritor. Mas, mesmo antes de abrir o livro, adivinhava o seu tom e a sua atmosfera, como se o tivesse lido numa outra vida.
Friedo Lampe. À Beira da Noite. Este nome e este título evocavam-me as janelas iluminadas que enfeitiçam o nosso olhar. Dizemos para connosco que por detrás dessas janelas alguém que olvidámos espera o nosso regresso desde há anos, ou então que já não há lá ninguém, excepto uma lâmpada que permaneceu acesa no apartamento vazio.
Friedo Lampe nascera em Brema, em 1899, no mesmo ano que Ernest Bruder. Frequentara a universidade de Heidelberga
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e trabalhara em Hamburgo na qualidade de bibliotecário e aí começara o seu primeiro romance, À Beira da Noite. Mais tarde estivera empregado num editor em Berlim. Era indiferente à política. O que lhe interessava era descrever o crepúsculo que desce sobre o porto de Brema, a luz branca e lilás das lâmpadas de arco voltaico, os marujos, os lutadores, as orquestras, a campainha dos eléctricos, a ponte do caminho de ferro, a sirena do vapor, e todas essas pessoas que se procuram na noite... O seu romance saíra em Outubro de 1933, quando Hitler já estava no poder. À Beira da Noite fora retirado das livrarias e das bibliotecas e toda a edição foi destruída, ao mesmo tempo que o seu autor era declarado «suspeito». Nem sequer era judeu. O que podiam censurar-lhe afinal? Muito simplesmente, a graça e a melancolia do seu livro. A sua única ambição, confiava ele numa carta, havia sido a de «tornar sensíveis algumas horas da noite, entre as vinte e as vinte e quatro horas, nas cercanias de um porto - evoco aqui o bairro de Brema onde passei a minha juventude: um conjunto leve e fluido, ligado de maneira muito solta, pictórica, lírica, com muita atmosfera».
No fim da guerra, no momento do avanço das tropas soviéticas, ele morava nos arrabaldes de Berlim. A 2 de Maio de 1945 é abordado na rua por dois soldados russos que lhe pedem os documentos, arrastando-o de seguida para um jardim onde o abatem sem se terem dado ao trabalho de distinguir entre os bons e os maus. Uns vizinhos inumaram-no um pouco mais adiante, à sombra de uma bétula, e entregaram à polícia o que restava dele: os documentos e o chapéu.
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Um outro escritor alemão, Felix Hartlaub, era originário do porto de Brema, tal como Friedo Lampe. Nascera em 1913. Estava em Paris durante a Ocupação e aquela guerra e a farda cor de azebre causavam-lhe horror. Não sei muita coisa sobre ele. Li, em francês, numa revista dos anos cinquenta, um excerto de um pequeno volume que escrevera, Von Unten Gesehen, e cujo manuscrito confiara à irmã em Janeiro de 1945. Este excerto tinha o título de «Notas e impressões», onde observa o restaurante de uma gare parisiense e a sua fauna, o Ministério dos Negócios Estrangeiros abandonado, com as centenas de gabinetes desertos e poeirentos, na altura em que os serviços alemães se instalam lá, os lustres que ficaram acesos e todos os relógios de parede que dão horas sem descanso no meio do silêncio. À noite vestia um traje civil para esquecer a guerra e misturar-se nas ruas de Paris. Conta-nos um dos seus trajectos nocturnos: apanha o metropolitano na estação de Solférino e apeia-se na Trinité. Está escuro e é Verão, o ar está quente. Sobe a Rua de Clichy em pleno black-out. Em cima do sofá do bordel, nota, irrisório e solitário, um chapéu tirolês. As raparigas desfilam. «Estão longe daqui, como sonâmbulas, sob o efeito do clorofórmio. Tudo se encontra banhado por uma estranha Iuz de aquário tropical, de vidro sobreaquecido». Também ele está longe dali, observando tudo à distância, como se aquele mundo em guerra não lhe dissesse respeito e estivesse apenas atento aos minúsculos pormenores quotidianos, às atmosferas, e ao mesmo tempo desapegado, alheio ao que se passa em seu redor. À semelhança de Friedo Lampe, morreu em Berlim aos trinta e dois anos de idade, na Primavera de 1945, durante os últimos combates e num universo de carnificina e apocalipse onde ele
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se encontrava por engano dentro de uma farda que lhe ti* nham imposto mas que não era a sua.

E agora, por que motivo é que o meu pensamento, entre tantos outros escritores, vai para o poeta Roger Gilbert--Lecomte? Foi atingido pela desgraça no mesmo período que os dois anteriores, como se certas pessoas devessem servir de pára-raios para outros serem poupados.
O meu caminho cruzou-se algumas vezes com o de Roger Gilbert-Lecomte. Na mesma idade, frequentei como ele os bairros do sul: a Alameda Brune, a Rua d'Alésia, o Hotel Primavera, a Rua da Voie-Verte... Em 1938 ele ainda morava neste bairro da Porta de Orléans, com uma judia alemã chamada Ru th Kronenberg. Depois, em 1939, e sempre com ela, vai para um pouco mais longe, para o bairro de Plaisance, num atelier da Rua Bardinet, nu 16 bis. Quantas vezes segui por estas ruas sem sequer suspeitar que Gilbert-Lecomte me precedera ali... E na margem direita, em Montmartre, na Rua Caulaincourt, em 1965, passava tardes inteiras num café na esquina da praça Caulaincourt, e num quarto de hotel, ao fundo da betesga, Montmartre 42-99, ignorando que Gilbert--Lecomte habitara ali trinta anos antes.
Nessa mesma época conheci um médico chamado Jean Puyaubert. Parecia-me que eu tinha um véu nos pulmões. Pedi-lhe que me assinasse um certificado para evitar o serviço militar. Marcou-me consulta numa clínica onde trabalhava, na Praça d'Alleray, e radiografou-me: não tinha nada nos pulmões, só queria ficar livre e, no entanto, não havia guerra. Simplesmente, a perspectiva de viver uma vida de caserna,
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como já vivera em colégios internos dos onze aos dezassete anos, afigurava-se-me insuportável.
Não sei o que foi feito do doutor Jean Puyaubert. Dezenas de anos depois de o ter conhecido, disseram-me que ele fora um dos melhores amigos de Roger Gilbert-Lecomte e que este lhe pedira, na mesma idade que eu, o mesmo favor: um certificado médico onde constasse que padecia de uma pleu-risia - para ficar livre.
Roger Gilbert-Lecomte... Vegetou os seus últimos anos em Paris, sob a Ocupação... Em Julho de 1942, a sua amiga Ruth Kronenberg foi detida na zona livre quando voltava da praia de Collioure. Deportaram-na no comboio de 11 de Setembro, uma semana antes de Dora Bruder. Era uma rapariga de Colónia que chegara a Paris por volta de 1935, aos vinte anos, por causa das leis raciais. Gostava de teatro e de poesia. Aprendera costura para fazer trajes de cena. Conhecera imediatamente Roger Gilbert-Lecomte, entre outros artistas, em Montparnasse...
Continuou a morar sozinho no atelier da Rua Bardinet. Depois, uma Sra Firmat, dona de um café situado defronte, recolheu-o e cuidou dele. Já não era mais do que uma sombra de si mesmo. No Outono de 1942 costumava empreender expedições esgotantes através dos subúrbios até Bois-Colom-bes, Rua dos Aubépines, para obter de um certo doutor Bréavoine as receitas que lhe permitiriam adquirir um pouco de heroína. Tinham reparado nele por causa das suas idas e vindas e um dia mandaram-no parar: encarceraram-no na prisão de Santé a 21 de Outubro de 1942, onde permaneceu até 19 de Novembro na enfermaria. Soltaram-no com uma ordem para comparecer no tribunal correccional no mês
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seguinte porque «em Paris, Colombes, Bois-Colombes, Asniè-res, em 1942, comprou e possuiu ilicitamente, e sem motivo legítimo, estupefacientes, heroína, morfina, cocaína...».
No começo de 1943 ficou algum tempo numa clínica de Épinay, depois a Sra Firmat albergou-o num quarto por cima do café. Uma estudante a quem ele emprestara o atelier da Rua Bardinet durante a sua estada na clínica, deixara lã uma caixa de ampolas de morfina, que ele utilizou gota a gota. Não encontrei o nome desta estudante. Morreu de tétano a 31 de Dezembro de 1943, no Hospital
Broussais, aos trinta e seis anos de idade. Das duas colectâneas de poemas que publicara poucos anos antes da guerra, uma chamava-se A Vida, o Amor, a Morte, o Vazio e o Vento.

Muitos amigos que não conheci desapareceram em 1945, o ano do meu nascimento.
No apartamento do Cais de Conti, nº- 15, onde o meu pai residia desde 1942 - o mesmo apartamento que Maurice Sachs arrendara no ano anterior -, o meu quarto de criança era um dos dois compartimentos que davam para o pátio. Maurice Sachs conta que emprestara os dois compartimentos a um certo Albert, alcunhado o Zebu, o qual recebia ali «um grande grupo de jovens actores que sonhavam formar uma companhia, e de adolescentes que começavam a escrever». Este Zebu, Albert Sciaky, tinha o mesmo nome próprio que o meu pai e pertencia igualmente a uma família judaico-italiana de Salonica. E, tal como eu, exactamente trinta anos mais tarde, com a mesma idade, publicou um primeiro romance aos vinte e um anos, em 1938, na Gallimard, sob o pseudónimo
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de François Vernet. Posteriormente aderiu à Resistência e os alemães prenderam-no. Na parede da cela 218, segunda divisão de Fresnes, escreveu o seguinte: Zebu detido em 10.2.44. Estou sujeito a medidas de rigor desde há 3 meses, interrogado de 9 a 28 de Maio, fui à visita de saúde em 8 de Junho, 2 dias depois do desembarque aliado.
Partiu do Campo de Compiègne no comboio de 2 de Julho de 1944 e morreu em Dachau, em Março de 1945.
Assim, no apartamento onde Sachs se dedicava aos seus tráficos de ouro e onde, mais tarde, o meu pai se escondia sob uma falsa identidade, o Zebu ocupara o meu quarto de criança. Pouco antes do meu nascimento, outros como ele tinham absorvido todas as dores para nos pouparem sofrimentos e não permitirem senão pequenos desgostos. Já me apercebera disto por volta dos dezoito anos, durante o trajecto no carro celular com o meu pai - um trajecto que era apenas a repetição inofensiva e a paródia de outros trajectos, nos mesmos veículos e em direcção ás mesmas esquadras de polícia, mas donde nunca se regressava a pé, para casa, como eu fizera nesse dia.

Num fim de tarde de 31 de Dezembro em que anoitecera muito cedo, como hoje, tinha eu vinte e três anos e recordo-me de ter ido visitar o doutor Ferdière. Este homem dava-me provas da maior gentileza num período que era para mim cheio de angústia e incerteza. Sabia vagamente que ele acolhera Antonin Artaud no hospital psiquiátrico de Rodez e que tentara curá-lo. Mas, nessa tarde, sentira-me impressionado por uma coincidência: trouxera ao doutor Ferdière um exemplar
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do meu primeiro livro, La Place de VÉtoile, e ele ficou surpreendido com o título. Foi buscar à sua estante um delgado volume de cor cinzenta, que me mostrou em seguida: La Place de VÉtoile de Robert Desnos, de quem havia sido amigo. O doutor Ferdière editara ele próprio esta obra em Rodez, em 1945, poucos meses após a morte de Desnos no campo de concentração de Terezin - precisamente no ano do meu nascimento. Eu ignorava que Desnos escrevera La Place de VÉtoile. Sem querer, roubara-lhe o título.
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Há dois meses, um amigo encontrou nos arquivos do Yivo Institute, em Nova Iorque, este documento no meio de todos os da antiga União Geral dos Israelitas de França, organismo criado durante a Ocupação:

3L / SBL /
17dejunhodel942
0032

Nota para Mademoiselle Salomon,
Dora Bruderfoi entregue à mãe em 15 do corrente, por diligência da esquadra de polícia do bairro de Clignancourt.
Em virtude das suas fugas sucessivas, parece aconselhável metê-la numa casa de correcção de menores.
Devido ao internamento do pai e ao estado de indigência da mãe, as assistentes sociais da polícia (Cais de Gesvres) fariam o necessário se lho pedissem.

Assim, depois do seu regresso ao domicílio materno a 17 de Abril de 1942, Dora Bruder pôs-se de novo em fuga - quanto tempo durou, nunca saberemos. Um mês e meio roubado à Primavera de 1942? Uma semana? Onde e em que
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circunstâncias foi ela detida e conduzida à esquadra do bairro de Clignancourt?
Os judeus estavam obrigados ao uso da estrela desde o dia 7 de Junho. Aqueles cujos nomes começavam pelas letras A e B, tinham ido buscar estas estrelas às esquadras na terça-feira, 2 de Junho, e haviam assinado os registos abertos para tal efeito. Dora Bruder ostentaria a estrela no momento em que a acompanhavam à esquadra? Duvido, quando penso no que a sua prima dizia dela: um carácter rebelde e independente. E, além do mais, eram fortes as hipóteses de andar fugida muito antes do início de Junho.
Terá sido presa na rua por não trazer a estrela? Encontrei a circular de 6 de Junho de 1942 que esclarece a sorte dos que eram apanhados em infracção ao oitavo decreto relativo ao porte da insígnia:
O Director da Polícia Judiciária e o Director da Polícia Municipal:
Aos Srs. comissários divisionários, comissários da via pública das circunscrições, comissários dos bairros de Paris e todos os outros serviços de polícia municipal e polícia judiciária (em comunicação: Direcção das Informações Gerais, Direcção dos Serviços Técnicos, Direcção dos Estrangeiros e dos Assuntos judaicos I...] , Procedimento:
1-judeus-homens com 18 anos de idade e mais:
Qualquer judeu em infracção será enviado ao depósito de presos por iniciativa do comissário de via pública com uma ordem de envio especial e individual, estabelecida em dois exemplares (sendo a cópia destinada ao Sr. Roux, comissário
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divisionário, chefe das companhias de circulação- secção do depósito). Esta peça enunciará, além do lugar, do dia, da hora e das circunstâncias da detenção, o apelido, nome, data e local de nascimento, situação familiar, profissão, domicílio e nacionalidade do detido administrativo.
2 - Menores de ambos os sexos dos 16 aos 18 anos e mulheres judias:
Serão igualmente enviados ao depósito de presos por iniciativa dos comissários de via pública segundo as modalidades enunciadas acima.
A secretaria do depósito transmitirá as ordens de envio originais à Direcção dos Estrangeiros e dos Assuntos Judaicos, que, após parecer da autoridade alemã, estatuirá sobre o caso deles. Todos ficarão detidos até ordem escrita em contrário desta direcção.

A Direcção da Polícia Judiciária
Tanguy

A Direcção da Polícia Municipal
Hennequin

Centenas de adolescentes como Dora foram detidos na rua nesse mês de Junho segundo as instruções precisas e pormenorizadas dos Srs. Tanguy e Hennequin. Passaram pelo depósito de presos e por Drancy antes de serem conduzidos a Auschwitz. Naturalmente, as «ordens de envios especiais e individuais» (uma cópia das quais era destinada ao Sr. Roux), foram destruídas depois da guerra ou talvez mesmo à medida que iam efectuando as detenções. Mas apesar de tudo restam algumas, esquecidas por descuido:
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Relatório de 25 de Agosto de 1942
Envio de presos por falta deporte da insígnia judaica:
Sterman, Esther, nascida a 13 de Junho de 1926, em Paris 123, Rua dos Francs-Bourgeois, nB 42-4B.
Rotsztein, Benjamin, nascido a 19 de Dezembro de 1922, em Varsóvia, Rua dos Francs-Bourgeois, n- 5, presos na Gare de Austerlitz pelos inspectores da 3a secção das Informações Gerais.

Relatório de polícia com data de 1 de Setembro de 1942:

Os inspectores Curinier e Lasalle ao Senhor Comissário Principal, chefe da Brigada Especial,
Pomos à sua disposição a denominada Jacobson Louise, nascida a vinte e quatro de Dezembro de mil novecentos e vinte e quatro, em Paris, décima segunda circunscrição [...] desde mil novecentos e vinte e cinco de nacionalidade francesa por naturalização, judia, solteira.
Residente em casa de sua mãe, Rua dos Boulets, n- 8, 11-circunscrição, estudante.
Detida neste dia por volta das catorze horas no domicílio da mãe, nas seguintes circunstâncias:
Quando procedíamos a uma visita domiciliária ao local acima mencionado, a jovem Jacobson entrou em casa e reparámos que ela não trazia a insígnia inerente aos judeus, conforme é prescrito por um decreto alemão.
Declarou-nos que saíra de casa às oito horas e trinta
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minutos e fora a uma aula de preparação do exame final no Liceu Henri IV, Rua Clovis.
Por outro lado, uns vizinhos desta jovem declararam-nos que ela saía frequentemente de casa sem a dita insígnia.
A menina Jacobson é desconhecida nos arquivos da nossa direcção bem como nos livros judiciários de registo de entradas.

17 de Maio de 1944. Ontem, às 22.45, no decurso de uma ronda, dois guardas da 183 circunscrição detiveram, o judeu francês Barmann, Jules, nascido a 25 de Março de 1925, em Paris, 10" domiciliado na Rua do Ruisseau, nB 40 bis (18a) que, interpelado pelos dois guardas, se pusera em fuga, estando desprovido da estrela amarela. Os guardas dispararam três tiros na sua direcção sem o atingir e prenderam-no no 8º andar do prédio nº 12 da Rua Charles-Nodier (18a) onde se refugiara.

Mas, segundo a «Nota para Mademoiselle Salomon», Dora Bruder foi entregue à mãe. Quer usasse a estrela ou não - a mãe, quanto a si, devia trazê-la desde há uma semana -, podemos então deduzir que nesse dia na esquadra de Clignancourt não fizeram distinção entre Dora e qualquer outra rapariga em fuga. A menos que os próprios polícias estivessem na origem da «Nota para Mademoiselle Salomon».
Não encontrei o rastro desta Mademoiselle Salomon. Ainda estará viva? Parece que trabalhava para a UGIF, um organismo dirigido por personalidades israelo-francesas e que durante
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a Ocupação agrupava as obras de assistência destinadas à comunidade judaica. A União Geral dos Israelitas de França desempenhou, de facto, um papel de assistência a um grande número de judeus; mas, desgraçadamente, tinha uma génese ambígua, pois foi criada com o patrocínio dos alemães e de Vichy, dado os alemães pensarem que o controlo de um tal organismo facilitaria os seus desígnios, como os Judenrate que haviam estabelecido nas cidades da Polónia.
Essas personalidades e o pessoal da UGIF traziam consigo uma carta chamada «de legitimação», que os punha ao abrigo das rusgas e dos internamentos. Mas esta garantia não tardou a revelar-se ilusória. A partir de 1943, centenas de dirigentes e de empregados da UGIF foram presos e deportados, em cuja lista encontrei Alice Salomon, que trabalhava na zona livre. Duvido que seja essa Mademoiselle Salomon a quem era endereçada a nota sobre Dora.
Quem escreveu esta nota? Um empregado da UGIF. E isto pressupõe que na UGIF conheciam desde há algum tempo a existência de Dora Bruder e dos pais. É provável que, em desespero de causa, Cécile Bruder, a mãe de Dora, haja apelado para este organismo, como a maioria dos judeus que viviam numa extrema precariedade e já não dispunham de qualquer outro recurso. Era também o único meio de ter notícias do marido, internado no Campo de Drancy desde Março, e de lhe fazer chegar encomendas. E talvez pensasse que acabaria por encontrar a filha com a ajuda da UGIF.
As assistentes sociais da polícia (Cais de Gesvres) fariam o necessário se lho pedissem. Eram em número de vinte e, nesse ano de 1942, pertenciam à Brigada de Protecção dos Menores
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da Polícia Judiciária. Formavam aí uma secção autónoma dirigida por uma assistente do chefe.
Descobri uma fotografia de duas delas tirada nessa época: mulheres de cerca de vinte e cinco anos, com um casaco preto - ou azul-marinho - e na cabeça uma espécie de biva-que ornado de um escudo com dois «P»: Prefeitura de Polícia. A da esquerda, uma morena cujo cabelo desce quase até aos ombros, empunha uma sacola. A da direita parece ter os lábios pintados com bâton. Atrás da morena, na parede, duas placas onde está escrito ASSISTENTES DA POLÍCIA. Por baixo, uma flecha. Mais abaixo ainda: Serviço das 9.30 às 12h. A cabeça e o bivaque da morena escondem parcialmente as inscrições da placa inferior. Mesmo assim, podemos ler aí:

Secção de E...
INSPECTORES
Por baixo, uma flecha: Corredorà Direita, Porta...
Nunca se saberá o número desta porta.
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Pergunto a mim mesmo o que terá acontecido a Dora entre 15 de Junho, quando entrou na esquadra do bairro de Clignancourt, e 17 de Junho, o dia da «Nota para Mademoiselle Salomon». Tê-la-ão deixado sair da esquadra com a
Mãe ?
Se pôde abandonar o posto da polícia e regressar ao hotel da Alameda Ornano em companhia da mãe - era ali mesmo ao pé, bastava seguir a Rua Hermel -, quer dizer que vieram* buscá-la três dias mais tarde, depois de Mademoiselle Salomon se ter posto em contacto com as assistentes sociais da polícia, no Cais de Gesvres.
Mas quer-me parecer que as coisas não se desenrolaram assim tão simplesmente. Segui muitas vezes pela Rua Hermel nos dois sentidos, a caminho da Butte Montmartre ou da Alameda Ornano; e por mais que feche os olhos, custa-me imaginar Dora e a mãe indo ao longo desta rua até ao seu quarto de hotel numa tarde ensolarada de Junho, como se fosse um dia vulgar.
Julgo que em 15 de Junho, nessa esquadra de polícia do bairro de Clignancourt, se desencadeou uma engrenagem perante a qual Dora e a mãe já nada podiam. Acontece que
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por vezes as crianças sentem exigências maiores do que as dos pais, adoptando face à adversidade uma atitude mais violenta que a deles, deixando os pais longe, muito longe atrás de si. E estes, a partir daí, já não podem protegê-los.
Frente aos polícias, a Mademoiselle Salomon, às assistentes sociais da Prefeitura, aos decretos alemães e às leis francesas, Cécile Bruder devia achar-se bastante vulnerável com a estrela amarela que trazia, com o marido internado no Campo de Drancy e com o seu «estado de indigência». E muito desamparada diante de Dora, que era uma rebelde e que repetidas vezes quisera rasgar a rede estendida sobre si e os pais.
Em virtude das suas fugas sucessivas, parece aconselhável metê-la numa casa de correcção de menores.

Talvez Dora tenha sido levada da esquadra de Clignan-court para o depósito de presos da Prefeitura de Polícia, como era costume. Conheceu então a grande sala com respiradouro, as celas, os catres nos quais se amontoavam a trouxe-mouxe as judias, as prostitutas, as de «delito comum», as «políticas». Conheceu os percevejos, o cheiro infecto e as guardas, essas assustadoras religiosas vestidas de negro com um veuzinho azul e das quais não se podia esperar a mínima misericórdia.
Ou, caso contrário, conduziram-na directamente ao Cais de Gesvres, serviço das 9.30 às 12h. Seguiu o corredor à direita, até a essa porta cujo número ignorarei para todo o sempre.
É quase certo que a 19 de Junho de 1942 entrou num carro celular onde já se encontravam cinco outras raparigas da sua idade, a não ser que estas cinco hajam sido recolhidas
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aquando da ronda pelas esquadras. O carro levou-as até ao centro de internamento das Tourelles, Alameda Mortier, na Porta dos Lilases.
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Para o ano de 1942 existe um registo das Tourelles, em cuja capa está escrito: MULHERES. Apontavam-se aí os nomes das internadas à medida que iam chegando. Tratava-se de mulheres presas por pertencerem à Resistência ou por serem comunistas e, até Agosto de 1942, de judias que haviam cometido uma infracção aos decretos alemães: proibição de sair depois das oito horas da noite, uso da estrela amarela, impedimento de transpor a linha de demarcação para alcançar a zona livre, interdição de utilizar um telefone, de possuir uma bicicleta, um aparelho de telefonia...
Com data de 19 de Junho de 1942, lê-se neste registo:

Entradas a 19 de Junho de 1942
439. 19.6.42. 5a - Bruder Dora, 25.2.26. Paris 12". Francesa. Al. Ornano, 41.
J. xx Drancy em 13/8/42.

Os nomes que se seguem, nesse dia, são os das cinco outras raparigas, todas da idade de Dora:

440. 19.6.42. 5ª - Winerbett Claudine. 26.11.24. Paris 9a. Francesa. Rua dos Moines, 82. J. xx Drancy em 13/8/42.
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1. 19.6.42. 5a Strohlitz Zélie. 4.2.26. Paris 11a. Francesa. Rua Molière, 48. Montreuil.J. Drancy 13/8/42.

2. 19.6.42.5ª - Israehwicz Raça. 19.7.1924. Lodz. ind.J. Rua (ilegível), 26. Entregue autoridades alemãs comboio 19/7/42.
3- Nachmanowicz Marthe. 233.25. Paris. Francesa. Rua Marcadet, 258. J. xx Drancy 13/8/42.
4. 19.6.42. 5- Pitoun Yvonne. 27.1.25. Argel. Francesa. Rua Marcel-Sembat, 3-J- xx Drancy em 13/8/42.

Os gendarmes davam a cada uma delas um número de matrícula. Dora era o número 439- Ignoro o sentido do algarismo 5~. A letra «]» queria dizer -Judia». «Drancy 13/8/42» foi acrescentado em todos os casos: no dia 13 de Agosto de 1942, as trezentas mulheres judias que ainda estavam internadas em Tourelles foram transferidas para o Campo de Drancy.
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Nessa quinta-feira 19 de Junho, o dia em que Dora chegou às Tourelles, haviam mandado reunir no pátio do quartel todas as mulheres depois do almoço. Estavam presentes três oficiais alemães. Foi ordenado às judias dos dezoito aos quarenta e dois anos que se pusessem em fila, de costas voltadas. Um dos alemães já tinha a lista completa e chamava-as uma após a outra. As restantes subiram de novo para as camaratas. As sessenta e seis mulheres, assim separadas das suas companheiras, foram fechadas num grande compartimento vazio sem uma cama e sem uma cadeira, onde ficaram isoladas durante três dias, com os gendarmes de sentinela em frente da porta.
No domingo de 22 de Junho, uns autocarros vieram buscá-las às cinco horas da madrugada para as conduzir ao Campo de Drancy. Foram deportadas no mesmo dia num comboio com mais de novecentos homens. Era o primeiro comboio que partia de França com mulheres. Uma ameaça pairava no ar sem se poder ao certo dar-lhe um nome; e se bem que momentaneamente pudesse ser esquecida, tornou-se mais clara para as judias das Tourelles. Dora viveu neste clima opressivo durante os três primeiros dias do seu internamento.
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Na manhã de domingo, quando ainda estava escuro, assistiu pelas janelas fechadas, como todas as suas colegas de internamento, à partida das sessenta e seis mulheres.
Em 18 de Junho, ou no próprio dia 19 de Junho, um funcionário da polícia lavrara a ordem de envio de Dora Bruder para o Campo das Tourelles: isto passar-se-ia na esquadra do bairro de Clignancourt ou no Cais de Gesvres? A ordem de envio devia ser exarada em dois exemplares que era necessário entregar aos condutores dos carros celulares, apondo-lhes um carimbo e uma assinatura. No momento de assinar, será que este funcionário mediria porventura o alcance do seu gesto? No fundo, para ele tratava-se de uma assinatura de rotina; aliás, o sítio onde esta rapariga devia ir parar ainda era designado pela Prefeitura de Polícia sob a capa de um vocábulo tranquilizador: «Hospedagem. Centro de permanência vigiada».

Pude identificar algumas mulheres entre as que partiram nesse domingo de 22 de Junho às cinco horas da manhã e com as quais Dora se cruzou ao chegar na quinta-feira às Tourelles.
Claudette Bloch tinha trinta e dois anos. Havia sido detida ao dirigir-se à sede da Gestapo, na Avenida Foch, para pedir notícias do marido, preso em Dezembro de 1941. Foi uma das raras sobreviventes do comboio.
Josette Delimal tinha vinte e um anos. Claudette Bloch conhecera-a no depósito de presos da Prefeitura de Polícia antes de ambas serem internadas nas Tourelles no mesmo dia. Segundo o seu testemunho, Josette Delimal tivera uma vida dura antes da guerra e não acumulara a energia que se colhe
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nas recordações felizes. Estava completamente abatida. Eu reconfortava-a o melhor que podia [...]. Quando nos conduziram ao dormitório onde nos atribuíram uma cama, pedi com, insistência para não nos separarem. Andámos juntas até Auschwitz, onde em breve o tifo a ceifou. Eis as poucas coisas que sei acerca de Josette Delimal. Gostaria de saber mais.
Tâmara Isserlis. Tinha vinte e quatro anos e era estudante de Medicina. Fora detida no metropolitano de Cluny por usar a bandeira francesa sob a estrela de David. O seu bilhete de identidade, que foi encontrado, indica que morava na Rua de Buzenval, nº 10, em Saint-Cloud. Tinha um rosto oval, cabelo castanho-claro e olhos negros.
Ida Levine. Vinte e nove anos. Restam algumas cartas dela à família, escritas do depósito de presos e, depois, do Campo das Tourelles. Atirou a sua última carta do comboio, na estação de Bar-le-Duc, e uns ferroviários deitaram-na no correio. Nela dizia: Vou a caminho de um destino desconhecido, mas o comboio donde vos escrevo dirige-se para o Leste: talvez a viagem seja longa...
Hena: chamá-la-ei pelo nome próprio. Tinha dezanove anos. Fora presa porque assaltara um apartamento com o namorado e furtara cento e cinquenta mil francos da época e jóias. Talvez sonhasse deixar a França graças a este dinheiro e escapar às ameaças que impendiam sobre a sua vida. Comparecera perante um tribunal correccional e haviam-na condenado por esse roubo. Como era judia, não a tinham metido numa prisão comum mas nas Tourelles. Sinto-me solidário com o seu assalto. Também o meu pai pilhara em 1942, com alguns cúmplices, o entreposto de rolamentos de esferas da sociedade SKF, na Avenida da Grande-Armée, e carregara a mercadoria em
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camiões a fim de a levar até à sua oficina de mercado negro, na Avenida Hoche. Os decretos alemães, as leis de Vichy e os artigos de jornais só lhes outorgavam um estatuto de pestíferos e de criminosos de delito comum, quando afinal era legítimo que se portassem como foras-da-lei para poderem sobreviver. Era o modo de se tornarem honrados. E aprecio-os por isso.
O que sei sobre Hena resume-se a quase nada: nascera em 11 de Dezembro de 1922 em Pruszkow, na Polónia, e morava na Rua Oberkampf, 142, uma rua cujo declive segui muitas vezes, tal como ela.
Annette Zelman. Tinha vinte e um anos e era loira. Morava na Alameda de Strasbourg, n" 58, onde vivia com um jovem, Jean Jausion, filho de um professor de Medicina. Ele publicara os seus primeiros poemas numa revista surrealista, Les Reverberes, a qual criara com alguns amigos pouco tempo antes da guerra.
Annette Zelman. Jean Jausion. Em 1942 eram vistos frequentemente juntos no Café de Flore. Tinham-se refugiado durante algum tempo na zona livre. E depois a desgraça caíra sobre eles. Conta-se em poucas palavras, reproduzindo uma carta de um oficial da Gestapo:
21 de Maio de 1942. Assunto: Casamento entre não-judeus e judeus.
Soube que o cidadão francês (ariano) Jean fausion, estudante de Filosofia, 24 anos, residente em Paris, tenciona desposar durante os dias de Pentecostes a judia Anna, Malka Zelman, nascida em 6de Outubro de 1921 em Nancy.
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Os próprios pais de Jausion desejariam impedir de todas as maneiras esta união, mas não dispõem de meios para tanto.
Ordenei por conseguinte, como medida preventiva, a detenção da judia Zelman e o seu internamento no campo do quartel das Tourelles...

E uma ficha da polícia francesa:

Annette Zelman, judia, nascida em Nancy a 6 de Outubro de 1921. Francesa: detida a 23 de Maio de 1942. Encarcerada no depósito de presos da Prefeitura de Polícia de 23 de Maio a 10 de Junho, enviada para o Campo das Tourelles de 10 de Junho a 21 de Junho, transferida para a Alemanha a 22 de Junho. Motivo da prisão: intenção de casamento com um ariano, Jean Jausion. Os dois noivos declararam por escrito renunciar a qualquer projecto de união, em conformidade com o desejo instante do Dr. H. Jausion, o qual desejara que eles se dissuadissem e que a jovem Zelman fosse simplesmente entregue à sua família, sem ser de forma alguma apoquentada.

Mas este doutor, que usava de estranhos meios de dissuasão, era bastante ingénuo: a polícia não entregou Annette Zelman à família.
Jean Jausion partiu como correspondente de guerra no Outono de 1944. Encontrei este aviso num jornal de 11 de Novembro de 1944:
Procura-se. A direcção do nosso confrade Franc-Tireur ficará grata a todas as pessoas que possam dar notícias sobre o
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desaparecimento de um dos seus colaboradores, Jausion, nascido a 20 de Agosto de 1917, em Toulouse, residente na Rua Théodore-de-Banville, nº 21, Paris. Foi em serviço no dia 6 de Setembro, como repórter do Franc-Tireur, acompanhado de um jovem casal de antigos membros da Resistência, os Leconte, num Citroen 11 preto, de tracção à frente, com matrícula RN 6283, levando na retaguarda a inscrição branca Franc-Tireur.

Ouvi dizer que Jean Jausion lançara o seu carro contra uma coluna alemã e metralhara-os antes de eles ripostarem e de encontrar a morte que viera procurar.
No ano seguinte, em 1945, era dado à estampa um livro de Jean Jausion. Tinha por título: Um Homem Caminha na Cidade.
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Há dois anos, descobri por acaso numa livraria junto aos cais do Sena a última carta de um homem que partiu no comboio de 22 de Junho com Claudette Bloch, Josette Delimal, Tâmara Isserlis, Hena, Annette, a amiga de Jean Jausion...
A carta estava à venda, como qualquer autógrafo, o que significava que o destinatário dela e os seus parentes tinham desaparecido igualmente. Um fino quadrado de papel recoberto por uma escrita minúscula de ambos os lados. Fora remetida do Campo de Drancy por um certo Robert Tartakovsky. Inteirei-me de que ele nascera em Odessa a 24 de Novembro de 1902, e que antes da guerra mantivera uma crónica de Arte no jornal Llllustration. Copio a sua carta, nesta quarta-feira 29 de Janeiro de 1997, cinquenta e cinco anos mais tarde.

19 de Junho de 1942. Sexta-feira.
Madame TARTAKOVSKY.
Rua Godefroy-Cavaignac, 50. Paris 11a

Foi anteontem que me designaram para a partida. Estava
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moralmente pronto desde hã bastante tempo. As pessoas aqui do campo andam assustadas, muitas choram, têm medo. A única coisa que me aborrece é que várias das roupas que pedi jã hã algum tempo nunca chegaram às minhas mãos. Enviei uma senha de encomenda de vestuário: ainda receberei a tempo aquilo por que espero? Gostaria que a minha mãe não se afligisse, nem ela nem ninguém. Farei o possível por regressar são e salvo. Se não tiverem notícias, não se inquietem, e se for preciso dírijam-se à Cruz Vermelha. Peçam na esquadra de Saint-Lambert (edifício da 15a circunscrição), metropolitano Vaugirard, os papéis apreendidos em 3/5. Procurem a minha caderneta de alistado voluntário, matrícula 10107, não sei se está no campo e se ma restituirão. Levem, por favor, uma prova de Alhertine a casa da Sr" BIANOVJCI, Rua Deguerry, nB 14, Paris 11-; é para um colega de quarto. Essa pessoa entregar-vos-á mil e duzentos francos. Previnam-na por carta, afim de terem a certeza de a encontrar. O escultor será convocado pelos Trois Quartiers para sua galeria de arte, no seguimento das minhas diligências junto do Sr. Gampel, internado em Drancy: se esta galeria quiser a totalidade de uma edição, guardarem todo o caso três provas, quer elas jã estejam vendidas, digam assim, quer reservadas para o editor. Se o molde aguentar segundo a dita procura, podem tirar mais duas provas do que previam. Gostava que não se atormentassem muito. Quero que a Marthe vã de férias. O meu silêncio nunca significará que isto corre mal. Se a minha carta vos chegar a tempo, mandem o máximo de encomendas alimentares, pois assim o peso será menos vigiado. Todos os objectos de vidro ser-vos-ão recambiados; proíbem-nos faca, garfo, navalha de barba, caneta, etc. Até mesmo agulhas. Enfim,
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tentarei desenvencilhar-me. São bem-vindos biscoitos de soldado ou pão ázimo. Na minha missiva de correspondência habitual falava de um colega PERSIMAGI; contactar por causa dele (Irene) a Embaixada da Suécia: é muito mais alto do que eu e anda andrajoso (ver Gattégno, Rua Grande-Chaumière, 13). Um ou dois bons sabonetes, sabão para a barba, pincel, uma escova de dentes e uma escovinha para as unhas davam-me muito jeito. Tudo se mistura no meu espírito, acabo por juntar o útil a tudo o mais que me apetece dizer-vos. Somos perto de um milhar os que vamos partir. Há também arianos no campo. Obrigam-nos a usar a insígnia judaica. Ontem o capitão alemão Doncker veio ao campo e houve uma debandada geral. Recomendar a todos os amigos que, se puderem, vão apanhar ar noutro lado, pois aqui temos de abandonar toda a esperança. Não sei se nos encaminharão para Compiègne antes da grande abalada. Não envio roupa, lavá-la-ei aqui. A cobardia da maior parte arrepia-me. Pergunto a mim mesmo o que acontecerá quando estivermos lá longe. Um dia destes, falem com a Sra Salzman, não para lhe pedir seja o que for, mas a título de informação. Talvez eu tenha ensejo de encontrar aquele que Jacqueline queria pôr em liberdade. Recomendem muita prudência à minha mãe, prendem gente todos os dias, há aqui uns muito jovens, 17, 18 anos, e velhos de 72. Até segunda-feira de manhã podem enviar para aqui encomendas repetidas vezes. Telefonem à UGIF, na Rua da Bienfaisance. Já não é verdade, não deixem que vos mandem passear, as encomendas que levarem às moradas habituais serão aceites. Não quis alarmar-vos nas minhas cartas anteriores, mas espanta-me não ter recebido ainda o que devia constituir a minha trouxa de viagem. Tenciono enviar o meu relógio à
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Marthe, talvez a minha caneta, confiá-los-ei a B. para os fazer chegar. Nas encomendas de víveres ou de roupa. Devolverei provavelmente os livros de Arte que muito vos agradeço. Deverei sem dúvida resistir ao Inverno, estou pronto, não se inquietem. Releiam as minhas cartas. Verão o que pedi desde o primeiro dia e de que não me lembro agora. Lã para passajar. Manta. Esterogil 15. O açúcar esboroa-se, caixa de metal em casa da minha mãe. O pior é que rapam o cabelo muito rente a todos os deportados e isto ainda os identifica mais do que a insígnia. Em caso de dispersão, o Exército de Salvação continua a ser o centro onde darei notícias, previnam a Irene.
Sábado, 20 de Junho de 1942- Minhas queridas, recebi ontem a mala, obrigado por tudo. Não sei, mas receio uma partida precipitada. Hoje devem cortar-me o cabelo rente. Logo à noite, os que vão partir serão sem dúvida fechados num corpo do edifício especial e vigiados de perto, até mesmo acompanhados aos WC por um gendarme. Uma atmosfera sinistra paira sobre todo o campo. Não creio que passemos por Compiègne. Sei que vamos receber três dias de víveres para o caminho. Receio já ter partido quando vierem as outras encomendas, mas não se preocupem, a última é muito copiosa e desde a minha chegada aqui pus de lado todo o chocolate, as conservas e o grande salpicão. Sosseguem, ter-vos-ei sempre no meu pensamento. Queria mandar entregar à Marthe os discos de Petruchka a 28/7, a gravação está completa em 4 d. Conversei com B. ontem à noite para lhe agradecer as suas atenções, ele sabe que defendi aqui as obras do escultor junto de personalidades. Estou feliz com as fotografias recentes que não mostrei a B., desculpei-me por não lhe oferecer uma fotografia
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da obra, mas não lhe é difícil pedi-las, disse-lhe eu. Lamento interromper as edições, se voltar depressa ainda haverá tempo. Gosto da escultura de Leroy, teria editado com alegria uma redução ao alcance dos meus meios, mesmo a poucas horas da partida esta ideia não me larga.
Peço-vos que consolem a minha mãe, sem descurar por isso tudo o que vos é pessoal, bem entendido. Comuniquem à Irene, que é vizinha dela, este meu desejo. Tentem telefonar ao Dr. André ABADI (se ainda estiver em Paris). Digam ao André que encontrei a pessoa cuja morada ele já tem em 1 de Maio e que no dia 3 fui preso (será apenas coincidência?). Talvez estas frases desordenadas vos espantem., mas o ambiente é penoso, são 6.30 da manhã. Devo despachar daqui a pouco o que não levo, receio ir muito carregado. Se os revistadores assim o entenderem, podem no último momento rejeitar uma mala se faltar lugar ou consoante o humor deles (são membros da Polícia dos Assuntos Judaicos, doriotistas ou piloristas ( * - nota ) ). No entanto, é tudo útil. Vou fazer uma selecção. Assim que deixarem de ter notícias minhas, não se assustem, não se apressem, esperem pacientemente e com confiança, tenham confiança em mim, não se esqueçam de dizer à minha mãe que prefiro fazer esta viagem, vi partir muitos (já vos disse) para o outro mundo. O que me desola é ser obrigado a separar-me da caneta e não ter o direito de possuir papel (um pensamento ridículo atravessa-me o espírito: as facas estão proibidas e não disponho de um simples abre-latas). Não me armo em valentão, não

* - ( Nota ) - Doriotistas: membros do Partido Popular Francês, chefiado por Jacques Doriot, antigo comunista que aderiu ao hitlerismo. Piloristas: apoiantes do jornal colaboracionista Au Pilori. (N. do T.)
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tenho feitio para isso; eis a atmosfera-, doentes e enfermos em grande número também foram designados para a partida. Penso igualmente em Rd, espero que de uma vez para sempre ao abrigo. Tinha uma data de coisas em casa de Jacques Daumal. Julgo que talvez seja inútil tirar agora livros de minha casa, façam o que acharem melhor. Contanto que tenhamos bom tempo para a viagem! Tratem dos subsídios da minha mãe, peçam à UGIF que a ajude. Espero que estejam agora reconciliadas com Jacqueline, ela é imprevisível, mas, no fundo, uma óptima rapariga (já alvorece, vai estar um lindo dia). Ignoro se receberam a minha carta habitual, se terei resposta antes da partida. Penso na minha mãe, em vós. Em todos os meus camaradas que me ajudaram tão afectuosamente a conservar a minha liberdade. Obrigado de todo o coração aos que me permitiram «passar o Inverno-. Vou deixar esta carta em suspenso. Preciso de preparar o saco. Até logo! Caneta e relógio em casa da Marthe, diga a minha mãe o que disser, esta nota épara o caso de eu não poder continuar. Mãe adorada, e vós, minhas queridas, beijo-vos com emoção. Sejam corajosas. Até logo, são 7 horas.
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Fui aos bairros do leste em dois domingos do mês de Abril de 1996, os bairros do Sagrado Coração de Maria e das Tourelles, para tentar encontrar lá o rastro de Dora Bruder. Parecia que devia fazê-lo ao domingo, dia em que a cidade está deserta, em maré baixa.
Já não resta nada do Sagrado Coração de Maria. Um bloco de prédios modernos ergue-se à esquina da Rua de Picpus e da Rua da Gare de Reuilly. Uma parte destes prédios têm os últimos números ímpares da Rua da Gare de Reuilly, onde estava o muro a que as árvores do pensionato davam sombra. Um pouco mais adiante no mesmo passeio, e defronte, do lado dos números pares, a rua não mudou.
Custa a acreditar que no nº 48 bis, cujas janelas abriam para o jardim do Sagrado Coração de Maria, os polícias vieram prender nove crianças e adolescentes numa manhã de Julho de 1942, enquanto Dora Bruder estava internada nas Tourelles. É um prédio de cinco andares, com fachada de tijolos claros. Em cada um dos andares há duas janelas enquadrando duas outras mais pequenas. A seguir, o nº 40 é um edifício acinzentado, em recuo, e em frente um murozinho de tijolo e um gradeamento. Defronte, no mesmo passeio que marginava o
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muro do pensionato, outros pequenos prédios permaneceram tal como estavam. No nº 54, mesmo antes de chegar à Rua de Picpus, havia um café pertencente a uma certa Mademoiselle Lenzi.
Bruscamente tive a certeza de que na noite da sua fuga Dora afastara-se do pensionato seguindo pela Rua da Gare de Reuilly: via-a caminhar ao longo do muro do pensionato, talvez porque a palavra «gare» me fazia evocar a ideia de fuga.
Andei pelo bairro e ao cabo de uns momentos senti pesar a tristeza desses domingos quando tinha de regressar ao pensionato. Não duvidava de que ela se apeava do metropolitano em Nation, retardando o instante em que transpunha o pórtico e atravessava o pátio, passeando depois um pouco ao acaso pelo bairro. Entardecia. A Avenida de Saint-Mandé é calma, orlada de árvores. Já não me lembro se há um terrapleno. Passa-se diante da antiga entrada de metropolitano da estação de Picpus. Talvez ela saísse por vezes aqui... À direita, a Avenida de Picpus é mais fria e mais desolada do que a Avenida de Saint-Mandé. Não tem árvores, segundo creio. Mas a solidão destes regressos de domingo à noite...

A Alameda Mortier é em ladeira e desce em direcção ao sul. Para chegar lá, no domingo de 28 de Abril de 1996, segui este caminho: Rua dos Archives. Rua da Bretagne. Rua das Filles-du--Calvaire. Depois subi a Rua Oberkampf, onde morara Hena.
À direita, a enfiada de árvores ao longo da Rua dos Pyrénées. Rua de Ménilmontant. Os blocos de prédios do 140 estavam desertos sob o sol. Na última parte da Rua Saint-Fargeau, tive a impressão de atravessar uma aldeia abandonada.
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A Alameda Mortier aparece debruada de plátanos, e no seu término, mesmo antes da Porta dos Lilases, ainda existem os edifícios do quartel das Tourelles.
Nesse domingo a alameda estava deserta, perdida num silêncio tão profundo que eu conseguia ouvir o rumorejo dos plátanos. Um muro alto rodeia o antigo quartel das Tourelles e esconde as suas dependências. Ladeei-o e deparei com uma placa:

ZONA MILITAR É PROIBIDO FILMAR OU FOTOGRAFAR

Pensei comigo que mais ninguém se recordava de coisa alguma. Atrás do muro estendia-se um eremitério, uma zona de vazio e de esquecimento. As velhas construções das Tourelles não haviam sido arrasadas como o pensionato da Rua de Picpus, mas tanto fazia...
Todavia, sob esta espessa camada de amnésia, sentia-se perfeitamente algo de tempos a tempos, um eco longínquo e abafado, embora não soubéssemos dizer o quê ao certo. Era como se nos encontrássemos à beira de um campo magnético, sem pêndulo para captar as suas ondas. Na dúvida, e de má consciência, afixara-se o letreiro Zona militar. É proibido filmar ou fotografar.
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Aos vinte anos, num outro bairro de Paris, lembro-me de haver experimentado esta mesma sensação de vazio que senti diante do muro das Tourelles, sem saber qual era a verdadeira razão.
Tinha uma amiga que arranjava hospedagem em diversos apartamentos ou casas de campo. Invariavelmente, eu aproveitava para alijar as estantes de obras de arte e de edições numeradas, que depois vendia. Um dia, num apartamento da Rua do Regard onde estávamos sozinhos, roubei uma caixa de música antiga e, depois de ter vasculhado os armários, vários fatos muito elegantes, camisas e uns dez pares de sapatos de luxo. Procurei na lista telefónica um «receptador» a quem pudesse vender todos estes objectos - encontrei um na Rua dos Jardins Saint-Paul.
Esta rua parte do Sena, no Cais dos Célestins, e vai ter à Rua Charlemagne, perto do liceu onde eu fizera o exame final no ano anterior. Ao pé de um dos últimos prédios, do lado dos números pares, mesmo antes da Rua Charlemagne, deparou-se-me uma porta de chapa enferrujada e semierguida. Penetrei num armazém onde estavam amontoados móveis, roupas, ferragens e acessórios de automóveis. Um homem de uns
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quarenta anos recebeu-me e, cheio de amabilidade, propôs-se ir buscar a «mercadoria» onde eu quisesse, daí a alguns dias.
Despedi-me dele e segui pela Rua dos Jardins Saint-Paul, a caminho do Sena. Todos os prédios da rua, do lado dos números ímpares, haviam sido demolidos pouco tempo antes, além de outros edifícios por detrás deles. Em seu lugar restava um terreno vago, rodeado por lanços de prédios semidestruí-dos. Nas paredes a céu aberto ainda se distinguia a cor do papel de parede de antigos quartos, os restos das condutas de chaminé. Dir-se-ia que o bairro sofrera um bombardeamento, e a impressão de vazio era ainda mais forte por causa da perspectiva desta rua aberta sobre o Sena.

No domingo seguinte o «receptador» foi à Alameda Kellermann, próxima da Porta de Gentilly, a casa do pai da minha amiga, onde eu marcara encontro para lhe entregar a «mercadoria». Carregou no seu carro a caixa de música, os fatos, as camisas, os sapatos. Deu-me setecentos francos da época.
Convidou-me para ir beber um copo e parámos então diante de um dos dois cafés defronte do Estádio Charlety.
Perguntou-me o que fazia. Fiquei sem saber o que havia de responder. Acabei por lhe dizer que abandonara os estudos. Interroguei-o por minha vez. O primo e sócio dele era dono do armazém na Rua dos Jardins Saint-Paul. Quanto a si, ocupava-se de um outro estabelecimento lá para as bandas da feira da ladra, junto à Porta de Clignancourt. Aliás, nascera no bairro da Porta de Clignancourt, de uma família de judeus polacos.
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Fui eu que principiei a falar da guerra e da Ocupação. Ele tinha dezoito anos nessa época. Recordava-se de a polícia ter . feito uma surtida num sábado para prender judeus na feira da ladra de Saint-Ouen e de haver escapado à rusga por milagre. Ficara surpreendido com a presença de uma mulher entre os inspectores. Falei-lhe do baldio no qual reparara aos sábados quando a minha mãe me levava à feira da ladra, e que se estendia ao pé dos blocos de prédios da Alameda Ney. Ele residira neste local com a família, na Rua Élisabeth-Rolland. Admirara-se de eu anotar o nome da rua. Um bairro a que chamavam a Planície. Haviam destruído tudo depois da guerra, e agora era um terreno de desporto.
Ao falar-lhe, pensava no meu pai, que já não via há muito tempo. Aos dezanove anos, com a mesma idade que eu e antes de se perder em sonhos de alta finança, vivia de pequenos tráficos nas portas de Paris: transpunha fraudulentamente as peagens com bidões de gasolina que revendia a garagistas, com bebidas e outras mercadorias. Tudo isto sem pagar o imposto de barreira.
Quando nos despedimos, disse-me num tom amistoso que podia contactá-lo na Rua dos Jardins Saint-Paul se tivesse outros objectos para lhe propor. E deu-me cem francos a mais, tocado sem dúvida pelo meu ar de rapaz cândido. Esqueci-me do seu rosto. A única coisa de que me lembro é do seu nome. Podia muito bem ter conhecido Dora Bruder, já que vivera nas imediações da Porta de Clignancourt e da Planície: residiam no mesmo bairro e eram da mesma
idade. Talvez soubesse bastante sobre as fugas de Dora... Há acasos assim, encontros, coincidências que ignoraremos para
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sempre... Pensava nisto, nesse Outono, ao caminhar de novo pelo bairro da Rua dos Jardins Saint-Paul. O armazém e a sua porta de chapa ferrugenta já não existem e os prédios vizinhos foram restaurados. Uma vez mais, sentia um vazio. E compreendia porquê: depois da guerra, a maior parte dos prédios haviam sido destruídos de uma maneira metódica, de acordo com uma decisão administrativa; aliás, tinham dado um nome e um número a esta zona que era preciso arrasar: o ilhéu 16. Encontrei fotografias: uma da Rua dos Jardins Saint-Paul, quando as casas dos números ímpares ainda existiam; uma outra de prédios meio-destruídos, ao lado da igreja de Saint--Gervais e em redor do Hotel de Sens; uma outra de um terreno vago à beira do Sena e que as pessoas atravessavam entre dois passeios, doravante inúteis: tudo o que restava da Rua dos Nonnains-d'Hyères. E ali, por cima, tinham construído filas de prédios que nalguns casos modificavam o antigo traçado das ruas.
As fachadas eram rectilíneas, as janelas quadradas, o betão da cor da amnésia. Os candeeiros projectavam uma luz fria. Aqui e ali, um banco, uma praceta, árvores, adereços de um cenário, folhas artificiais. Não se haviam contentado com afixar uma tabuleta, como no muro do quartel das Tourelles: Zona militar. É proibido filmar e fotografar. Aniquilara-se tudo para edificar uma espécie de aldeia suíça cuja neutralidade já não era possível pôr em dúvida.
Os farrapos de papel de parede que vira na Rua dos Jardins Saint-Paul eram os vestígios de quartos outrora habitados - os quartos onde, há trinta anos, viviam aqueles e aquelas da idade de Dora que os polícias tinham vindo buscar num dia de Julho de 1942. A lista dos seus nomes faz-se
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sempre acompanhar dos mesmos nomes e ruas. E os números dos prédios e os nomes das ruas já não correspondem a nada.
Aos dezassete anos, as Tourelles eram para mim um mero nome que descobrira no final de um livro de Jean Genet, O Milagre da Rosa, onde indicava os locais onde escrevera este livro: LA SANTÉ. PRISÃO DAS TOURELLES 1943. Também ele estivera encarcerado aqui, na qualidade de criminoso de delito comum, pouco tempo após a saída de Dora Bruder, e podiam muito bem ter-se cruzado. O Milagre da Rosa não se encontrava apenas impregnado das recordações da colónia penitenciária de Mettray - uma das casas de correcção de menores para onde queriam enviar Dora -, mas também, julgo agora, da Santé e das Tourelles. Eu conhecia de cor várias frases deste livro. Uma delas acode-me à memória: «Esta criança ensinava-me que o verdadeiro fundo do calão parisiense é a ternura entristecida». A frase evoca-me tão bem Dora Bruder que me invade o sentimento de a ter conhecido. Haviam imposto estrelas amarelas a crianças de nomes polacos, russos, romenos, e que eram tão parisienses que se confundiam com as fachadas dos prédios, os passeios, os infinitos cambiantes de cinzento que só existem em Paris. Como Dora Bruder, elas falavam todas com o
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sotaque de Paris, empregando palavras de calão cuja ternura entristecida Jean Genet sentira.
Nas Tourelles, quando Dora era aí prisioneira, podia-se receber encomendas, e também visitas às quintas-feiras e aos domingos. E assistir à missa à terça-feira. Os gendarmes faziam a chamada às oito horas da manhã e as detidas postavam-se em sentido aos pés da cama. Ao almoço, no refeitório, só se comia couves. O passeio no pátio do quartel. O jantar às seis horas da tarde. De novo a chamada. De quinze em quinze dias, os duches aos pares, acompanhados pelos gendarmes. Apitos. Espera. Para as visitas, era necessário escrever uma carta ao director da prisão e não se sabia se ele autorizaria.
As visitas desenrolavam-se ao começo da tarde, no refeitório. Os gendarmes revistavam os sacos dos que vinham. Abriam os embrulhos. Muitas vezes as visitas eram suprimidas sem razão, e as detidas só eram informadas uma hora antes.
Entre as mulheres que Dora pôde conhecer nas Tourelles, contavam-se as que os alemães denominavam as «amigas dos judeus»: uma dezena de francesas «arianas» que em Junho, no primeiro dia em que os judeus deviam usar a estrela amarela, tiveram a coragem de a usarem também em sinal de solidariedade, mas de maneira fantasista e insolente segundo as autoridades de ocupação. Uma delas atara uma estrela ao pescoço do seu cão. Uma outra bordara no pano: PAPUA. Uma outra: JENNY. Outra ainda pregara oito estrelas à cintura e em cada uma figurava uma letra de VICTOIRE. Foram todas detidas
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na rua e conduzidas à esquadra mais próxima, e em seguida para o depósito de presos da Prefeitura de Polícia. Depois para as Tourelles. Depois, em 13 de Agosto, para o Campo de Drancy. Estas «amigas dos judeus» exerciam as seguintes profissões: dactilógrafas; operária papeleira; vendedora de jornais; doméstica; empregada dos correios; estudantes.
No mês de Agosto, as detenções tornaram-se cada vez mais numerosas. As mulheres já nem sequer passavam pelo depósito de presos e eram levadas directamente para as Tourelles. Os dormitórios de vinte pessoas continham agora o dobro. Nesta promiscuidade, o calor era sufocante e a angústia intensificava-se. Todas compreendiam que as Tourelles eram apenas um centro de triagem onde cada qual se arriscava diariamente a ser conduzida para um destino desconhecido.
Dois grupos de judias, em número de uma centena, já haviam partido para o Campo de Drancy em 19 e 27 de Julho. Entre elas achava-se Raça Lsraelowicz, de nacionalidade polaca, que tinha dezoito anos e chegara às Tourelles no mesmo dia que Dora, e talvez no mesmo carro celular. E que foi sem dúvida uma das suas vizinhas de dormitório.
Na noite de 12 de Agosto propagou-se nas Tourelles o rumor de que todas as judias e aquelas a quem se chamava as «amigas dos judeus» deviam partir no dia seguinte para o Campo de Drancy.
Na manhã de 13, às dez horas, começou a interminável
chamada no pátio do quartel, debaixo dos castanheiros. Almoçou-se uma última vez à sombra dos castanheiros: uma ração miserável que deixaria qualquer um esfomeado.
Os autocarros chegaram. Eram - ao que parece - em quantidade suficiente para cada uma das prisioneiras dispor de um lugar sentado. Dora partiu também, como todas as outras - isto passou-se numa quinta-feira, o dia das visitas.
O cortejo pôs-se em marcha, rodeado de polícias em motociclo e de capacete. Seguiu o caminho que hoje se toma para chegar ao aeroporto de Roissy. Decorreram mais de cinquenta anos: construíram uma auto-estrada, demoliram vivendas, alteraram a paisagem deste arrabalde nordeste para, à semelhança do antigo ilhéu 16, o tornarem tão neutro e cinzento quanto possível. Contudo, no trajecto para o aeroporto, uns marcos de sinalização azuis ainda exibem os nomes antigos: DRANCY ou ROMA1NVILLE. E mesmo à beira da auto--estrada, do lado da Porta de Bagnolet, jaz solitário um destroço que data desse tempo, um hangar de madeira de que toda a gente se esqueceu e no qual vemos inscrito este nome bem legível: DUREMORD.
Em Drancy, no meio da balbúrdia, Dora encontrou o pai, ali internado desde Março. Nesse mês de Agosto, como nas Tourelles, como no depósito de presos da Prefeitura de Polícia, o campo enchia-se todos os dias de uma torrente cada vez mais numerosa de homens e mulheres. Chegavam da zona livre aos milhares, nos comboios de mercadoria. Centenas e centenas de mulheres, a quem haviam separado dos filhos, vinham dos campos de Pithiviers e de Beaune-la-Rolande. E
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quatro mil crianças chegaram por sua vez a 15 de Agosto e nos dias seguintes, depois de as suas mães terem sido deportadas. Os nomes de muitas delas, escritos à pressa nas roupas à partida de Pithiviers e de Beaune-la-Rolancle, já não eram legíveis. Criança sem identidade nº 122. Criança sem identidade nº 146. Menina de três anos. Nome próprio: Monique. Sem identidade.
Por causa da aglomeração no campo e prevendo os comboios que viriam da zona livre, em 2 e 5 de Setembro as autoridades decidiram enviar os judeus de nacionalidade francesa de Drancy para o Campo de Pithiviers. As quatro raparigas que haviam chegado no mesmo dia que Dora às Tourelles - todas com dezasseis ou dezassete anos: Claudine Winerbett, Zélie Stohlitz, Marthe Nachmanowicz e Yvonne Pitoun - também integraram este comboio de cerca de mil e quinhentos judeus franceses. Acalentavam certamente a ilusão de que seriam protegidos pela sua nacionalidade. Dora, que era francesa, poderia igualmente deixar Drancy com eles. Não o fez por uma razão que é fácil de adivinhar: preferiu ficar junto do pai.
Pai e filha deixaram Drancy a 18 de Setembro, com outros mil homens e mulheres, num comboio para Auschvvitz.
A mãe de Dora, Cécile Bruder, foi presa em 16 de Julho de 1942, o dia da grande rusga, sendo internada em Drancy. Reencontrou aqui o marido durante alguns dias, quando a filha estava nas Tourelles. Cécile Bruder foi libertada de Drancy a 23 de Julho, sem dúvida porque nascera em Budapeste e as
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autoridades ainda não tinham dado ordem para deportar os judeus oriundos da Hungria.
Ter-lhe-á sido possível visitar Dora nas Tourelles numa quinta-feira ou num domingo desse Verão de 1942? Foi novamente internada no Campo de Drancy a 9 de Janeiro de 1943, e partiu no comboio de 11 de Fevereiro de 1943 para Auschwitz, cinco meses depois do marido e da filha.
No sábado de 19 de Setembro, o dia seguinte à partida de Dora e do pai, as autoridades de Ocupação impuseram um recolher obrigatório em represália contra um atentado que havia sido cometido no Cinema Rex. Ninguém tinha o direito de sair desde as três horas da tarde até ao outro dia de manhã. A cidade estava deserta, como que para assinalar a ausência
de Dora.
Desde então, a Paris onde procurei reencontrar o seu rastro permaneceu tão deserta e silenciosa como nesse dia. Caminho através das ruas vazias. Para mim elas continuam assim, mesmo ao entardecer, à hora dos engarrafamentos, quando as pessoas estugam o passo em direcção às entradas do metropolitano. Não consigo deixar de pensar nela e de sentir um eco da sua presença em certos bairros. Uma noite destas foi perto da Gare do Norte.
Ignorarei para todo o sempre de que modo ela passava os dias, onde se escondia, qual era a sua companhia durante os meses de Inverno aquando da sua primeira fuga e no decurso das poucas semanas de Primavera em que se escapulira de novo. Eis o seu segredo. Um pobre e precioso segredo que os carrascos, os decretos, as autoridades ditas de Ocupação, o depósito de presos, as casernas, os campos, a História, o tempo - tudo o que nos macula e nos destrói - não puderam roubar-lhe.

 

 

                                                                  Patrick Modiano

 

 

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