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Dois irlandeses chegam a uma pequena cidade da Albânia munidos da aparelhagem mais moderna que existia no momento - um gravador. O propósito é estudar as narrativas épicas da região, uma tradição oral cuja estrutura eles crêem ser semelhante à que existia na Grécia de Homero.
A visita causa frisson na minúscula cidade. Os políticos acreditam que se trata de espiões. As mulheres, de uma oportunidade de desafogo para o marasmo que vivem.
E os eslavos, que se julgam guardiães da epopéia, suspeitam que os dois são traidores - e não poupam esforços para dificultar a pesquisa dos forasteiros.
Escritor mais importante de seu país, Ismail Kadaré cria uma alegoria para os conflitos étnicos que castigam a região há séculos, e traz a discórdia para o campo literário: " [O albanês e o sérvio] são duas línguas que pertencem a duas nações que se combatem. E ambos os lados [...] esgrimem a epopéia da mesma maneira como se empregam as mesmas armas em um duelo de ciclopes".
A metáfora que o autor elege para expor esse conflito é a cegueira. Homero, dizem, era cego. Os cantadores de poesia não enxergam bem. Os espiões podem prescindir da visão. Um dos irlandeses tem problema ocular. E outro personagem afirma que até o planeta está com a vista enfraquecida. Nessa terra de cego, um olho não ajuda ninguém a enxergar mais longe.
Capítulo 1.
Foi num dia aborrecido, daqueles que o inverno parece inventar expressamente para capitais de Estados pequenos, atrasados, que chegou a mala diplomática. O pedido
de visto para dois irlandeses que residiam temporariamente em Nova York vinha acompanhado de uma carta da embaixada do Reino da Albânia em Washington em que os solicitantes
eram tratados ora como "folcloristas" ora como "supostos folcloristas". Outros dados sobre a dupla escasseavam. Dizia-se que sabiam um pouco de albanês, que percorreriam
o país pesquisando velhas epopéias da tradição oral albanesa e levavam consigo muitas fichas e mapas, sobretudo da zona setentrional, onde pretendiam se estabelecer.
Como se não bastasse - e esta era a parte mais assombrosa -, possuíam aparelhos nunca vistos, feitos para registrar sons e vozes, chamados magnetofones, os quais,
segundo conseguiram apurar os funcionários da embaixada, acabavam de ser inventados e mal começavam a entrar em uso. À guisa de conclusão, o texto dizia: "Não se
exclui a possibilidade de os dois visitantes serem espiões".
Duas semanas depois de a correspondência chegar, e poucos dias antes do desembarque dos irlandeses, o ministro do Interior enviou um ofício ao subprefeito de
N. que dizia mais ou menos o mesmo que a missiva de Washington, com uma única diferença: as palavras "Não se exclui a possibilidade de os dois visitantes serem espiões"
mudavam para "Ao que parece, os visitantes são espiões". Contudo, prosseguia o texto ministerial, a vigilância sobre os estrangeiros deveria ser cautelosa, para
que eles jamais a percebessem e, de modo geral, se sentissem em N. como em sua própria casa.
O ministro sorriu ao imaginar o espanto do subprefeito com a instrução final. "O idiota", disse consigo, "perdido naquele fim de mundo, jamais entenderá das razões
de Estado." Através dos vidros da janela se divisava o telhado do Ministério do Exterior, cujos funcionários, o ministro do Interior sabia, andavam fazia meses pela
Europa, de capital em capital, espalhando-se por toda parte, à caça de um semi-historiador ou escritor estrangeiro que redigisse a biografia do rei. "Sim, naturalmente",
costumava comentar com seus botões. "Quando se trata de arrumar nos cabarés de Paris uma garota para algum ministro, ou um rapazote para o presidente do Parlamento,
ou de toda sorte de trabalho sujo, vão atrás de mim, do ministro do Interior, enquanto, na hora dos assuntos elevados, biografias, academias e sei lá mais o quê,
procuram outros!" Mas um dia iriam ver, deixaria a todos chupando o dedo, se fosse ele, por exemplo, e não o cabeça-de-vento do ministro do Exterior, que encontrasse
quem escrevesse a biografia do rei. Toda vez que um estrangeiro chegava à Albânia ele o examinava com esses olhos. A ocasião propícia
até agora não se apresentara, mas esses pesquisadores irlandeses pareciam bem adequados, mais ainda por serem suspeitos de espionagem. Deixaria que passeassem e
depois, com um pouco de sorte, haveria de apanhá-los com a boca na botija (botija que a ele se afigurou sob a forma de um leito matrimonial com um dos dois, pelado,
ao lado de uma mulher casada). Aí chegaria a hora de lidar com eles. "Venham aqui só um minuto, meus patinhos, deixem um pouco de lado essas epopéias, esses magnetofones,
fiquem sentadinhos e façam este trabalho para o seu amigão aqui. Se se negarem, eu me zango, não tenham dúvida. Amansaram? Muito bem! Então ouçam, é um servicinho
simples para vocês. São estudiosos, não é? Está nos passaportes que se formaram pela Universidade de Har... Har... Harvard, não é isso? Muito bem, então, sentadinhos.
Seu amigão vai trazer papel, lápis, e mel, e dinheiro, e mulheres, à vontade, para vocês, contanto que terminem esta encomenda: escrevam a vida do rei, a biografia,
como chamam agora, é tudo o que seu amigão aqui quer de vocês."
Contente, o ministro dobrou o ofício para o subprefeito de N., e usou de tanta energia ao aplicar o carimbo que este saiu meio tremido. Dois dias depois, às dez
horas da rnanhã, quando o subprefeito recebeu a missiva, antes de mais nada deu uma olhada no carimbo. A experiência lhe ensinara que uma carimbadela assim em geral
saíra de mão perturbada, ou pela raiva ou pelo medo. "Graças a Deus", murmurou, ao ler o ofício. Não era nem uma coisa nem outra. Aliviado, empunhou o telefone para
contar as novidades à mulher.
Ela pegou o fone com ar um tanto melancólico, fruto de dúzias de desilusões que sofrerá ao atender àquele toque, sempre correndo, sempre na esperança de enfim ouvir
qualquer coisa realmente boa, extraordinária, para no final ouvir, através dos buraquinhos do aparelho, as mesmas palavras tediosas do marido, indagando o que ela estava fazendo, se já aprontara o almoço, ou como era mesmo aquela receita de sobremesa da mulher do diretor do correio, com a qual havia
muito ela já não tinha nada para mexericar.
Ocorre que dessa vez foi diferente. O que ela ouviu do marido era quase inacreditável, a ponto de forçá-la a gritar duas, três vezes, por medo de ter escutado mal:
"Como é mesmo? Dois irlandeses? E vêm para cá?". E ele respondia: "É, é. E vão ficar bastante tempo".
"Que maravilha!" Ela não conseguia se conter. "E que bom que você me deu a notícia, acordei tão chateada..."
De fato, andara triste a manhã inteira. A chuva embaçara as vidraças, tal e qual na véspera, e como que deformava as chaminés nos telhados do outro lado da rua.
"Ai, meu Deus, lá vem um dia igualzinho a ontem", suspirava ela, recostada na cama. Nem um só pensamento luzia em sua mente. A semelhança entre o novo dia e seu
antecessor lhe parecia a cabal confirmação de que era um dia desnecessário; ela o dispensaria com satisfação. Por um instante julgou que talvez ninguém desejasse
um dia daqueles, mas depois pensou que uma porção de mulheres o ambicionaria, nem que fosse para descansar da semana carregada de trabalheira, brigas de família
e frio.
Ia ruminando mais ou menos aquilo, ou seja, que talvez pouca gente soubesse que ela, a atraente mulher do subprefeito, cheia de privilégios, apesar de tudo se chateava
mortalmente naquela cidade, quando o telefone tocara. E de repente o dia estremecera, retesara-se e se metamorfoseara, de reles unidade de tempo no seu contrário,
um dia para valer, repleto de surpresa e mistério.
"Dois irlandeses, e por bastante tempo", ela repetiu as palavras do subprefeito. "Que maravilha", pensou. O inverno seria outra coisa. E as instruções eram para
que eles se sentissem
como em sua própria casa, dissera o marido ao telefone. "Naturalmente", respondera ela, silenciosa, enquanto as cartas do jogo de bridge se espalhavam alegremente
em sua imaginação, e junto com elas o fogo na lareira e as taças de cristal cheias de bebida, refletindo as chamas. "Vão trazer aparelhos assombrosos, tipo gramofone,
porém muito mais modernos", continuara ele em sua explicação, e ela se sentiu nos braços de um deles, e a seguir do outro, dançando o tango "Ciúmes"." Deviam ser
jovens, já que traziam consigo aquilo tudo.
Ela correu para o telefone, mas estacou diante dele. Antes de contar a fantástica novidade à mulher do diretor do correio, achou que seria melhor saboreá-la a sós
por algum tempo.
"Então são dois", pensou. O marido dissera os seus nomes, Max Roth e Willy Norton; portanto, devia saber também a idade deles. No jantar, como quem não quisesse
nada, ela ficaria sabendo.
Sem se dar conta do porquê, dirigiu-se ao banheiro. Fitou por um bom tempo o brilho frio da louça, depois suas mãos escorregaram lentamente para a torneira de água
quente da banheira. Sempre com movimentos vagarosos, começou a se despir. Verificou a temperatura da água com a mão e se enfiou na banheira sem esperar que ela enchesse
ao menos pela metade. Acontecia-lhe com freqüência, quando era tomada por pensamentos de determinado tipo, sentir o desejo de ruminá-los também mergulhada na banheira.
Reclinada desse modo, com o olhar perdido, ela observava a superfície da água a se erguer pouco a pouco, cobrindo seu corpo. "Assim se sepultam os mortos", começou
a pensar, mas logo se empenhou em demolir a idéia, como fazia sempre que algo sinistro ou excessivamente triste lhe ocorria. "Não, não", repetiu consigo. Era cedo
demais para pensar em coisas assim. Ela
ainda era moça, trinta e dois anos, e, além disso, tinha pela frente um prodígio como aquele da visita dos dois irlandeses. "Max Roth e Willy Norton", repetiu seus
nomes. Fizera bem quando, havia muito, mudara seu nome, de Mukadez, tão oriental, para Daisy. A maior parte das pessoas já esquecera seu nome de outrora, alguns
nem mesmo sabiam que um dia ela o tivera; quando alguém a chamava Mukadez, por distração ou maldade, ela o incluía de imediato entre os seus inimigos. Daisy: realmente
soava bonito. Seria interessante saber como os dois se sentiriam se descobrissem que, naquele instante, uma jovem mulher chamada Daisy, em sua banheira, pensava
neles. Ela freqüentemente se esforçava para imaginar, com base no nome das pessoas, como elas seriam. Eis que sua mente já se pusera a fazê-lo.
Assim, o primeiro deles, Max Roth, sabe-se lá por quê, talvez em razão das letras r, x e em especial do th de ouriço," apareceu-lhe como ruivo e um pouco peludo.
Já o outro, Willy, teria cabelos negros e escorridos, seria menos varonil e apesar disso mais perigoso. Havia muito tempo ela sonhava em conhecer um homem com um
nome assim, perigoso, um tanto traiçoeiro, mas sedutor precisamente por não merecer confiança.
A água quente agora cobria por completo seu corpo, e ela notou que esquecera de pegar o sabonete. Mas que importância tinha? Ficaria assim, simplesmente deitada
na banheira, talvez fosse até melhor. "Claro, sem dúvida melhor", pensou, de súbito. Já reparara que a espuma do sabão, nesses casos, aliava-se à transparência da
água para atrapalhar os vôos da fantasia.
Com um olhar oblíquo ela observava como o seu corpo alvo, com a mancha do púbis no centro, bailava ambiguamente sob a superfície da água. Havia naqueles meneios
um insidioso langor que fazia tudo parecer impalpável e dúbio.
Por mais que tratasse de não o reconhecer assim abertamente, ela sentia que, naquela província aborrecida, estava plenamente madura para uma história de amor. Não
fora por acaso que, pouco antes, enquanto as águas a cobriam devagar, pensamentos mórbidos a assaltaram. Uma melancolia que poderia ter sido contraída na sala de
cinema, durante a exibição de um filme de amor, tornara-a mais leve, como se abrisse caminho para a imaginação. As imagens se precipitavam, e ela encontrava crescentes
dificuldades para refreá-las. Caoticamente, sem que a mais simples lógica interviesse, viu-se entrelaçada primeiro com o ruivo peludo, Max Roth, mas isso não porque
ela de fato assim o quisera, e sim por ter sido conduzida, por circunstâncias, ou melhor, por querer tornar mais plenas e ardentes todas as preliminares (a rivalidade,
a exacerbação dos sentimentos pelo ciúme) que em seguida a levariam a saborear por completo a ligação com Willy. "Ai, meu Deus", disse ela de repente, em voz baixa,
sem tirar os olhos da alvura dançante do seu corpo, como se a idéia lhe acorresse a partir dele. Se arrumasse um amante com um nome daqueles, poderia até engravidar.
Moveu-se penosamente na água, como quem se agita durante o sono. O murmúrio da água, junto com as distorções na imagem do seu corpo, criava um vazio em suas divagações.
Pálida, um tanto esgotada, ela se viu subindo as escadas de um sobrado vizinho, coberto de hera^té a porta, em que se lia, inscrito em uma placa de bronze, o nome do único médico de N., e, na linha inferior, "cirurgião-ginecologista".
Depois que, ao cabo de longas hesitações, seu marido finalmente consentira em ser examinado pelo médico de N., e se constatara ser ele o responsável pela ausência
de filhos, Daisy não imaginava caso amoroso que não tivesse seu epílogo no consultório do médico, a quem caberia apagar os vestígios.
Assim, pois, ela se veria frente a frente com o personagem
que completava o cenário do tédio de N., o médico desgostoso da vida, que talvez apenas fingisse sê-lo, unicamente porque assim eram os médicos provincianos dos
filmes, e os das novelas de um escritor russo chamado Tchekhov. "Um acidente?", perguntaria ele, olhando cupidamente aquela parte do corpo dela, já então frio como
as placas de mármore de um cenário de teatro pouco após a encenação de um drama de amor. E ela diria consigo: "Seu aborrecido doutorzinho de província, você nunca
poderá entender coisa alguma desse triste milagre".
Ela se moveu de novo, e quando a água voltou à calma, os contornos de seu corpo recobraram sua alva nitidez, como se houvessem se libertado de uma angústia. "Por
que eu deveria me deixar levar por pensamentos assim?", pensou. Tinha pela frente uma satisfação de verdade, um contentamento mesclado de curiosidade e mistério.
Que necessidade tinha ela daquelas escavações doentias? Por fim, as cartas de bridge, os cristais e as chamas da lareira a arrancaram daquela mórbida aquarela. Tudo
estaria ali, ao alcance da mão, nos próximos dias. Num inesperado assomo de energia ela se ergueu e, depois de se enrolar num roupão, correu para o seu quarto.
Lá fora, como se não houvesse acontecido nada, o mesmo inverno persistia em sua onipresente chuva cinzenta cuja queda compassada parecia ditar o ritmo de toda vida
na Terra. Pouco depois, telefonemas da esposa do subprefeito transmitiam a extraordinária novidade às madames de N., a começar pela mulher do diretor do correio.
Passou-se mais meia hora e, tendo feito todos os telefonemas, Daisy se aproximou de novo da janela, de onde se via um pedaço da pequena cidade com sua paisagem onde
nada havia mudado. Apesar disso, a despeito da inconsciência dos telhados e chaminés, ela sabia que a corrosiva notícia ali estava.
Capítulo 2.
Dull Baxhaj," o melhor informante de N., designado para seguir e espionar os estrangeiros, em seu relatório por escrito entregue ao sub-prefeito na tarde de sábado,
dia da chegada dos dois, narrava que, depois de plantar-se por quatro horas na agência de viagens onde o ônibus interurbano deveria estacionar, para verificar algum
eventual movimento suspeito de alguém à espera dos forasteiros, não vira ocorrer nada de estranho. Na realidade, afora os habituais carregadores de bagagem, apenas
nove indivíduos haviam comparecido para aguardar o ônibus vindo da capital, que servia N. uma vez por semana, mais precisamente aos sábados, porém todos eles, conforme
as meticulosas anotações do delator, tinham de fato recepcionado parentes que chegavam da capital, com os arroubos de saudade que tais ocasiões exigem (lágrimas,
gritinhos de alegria etc.), justificando irrefutavelmente sua espera.
Abria-se exceção para o cigano Haxh Gab, do qual o senhor subprefeito eventualmente já ouviu falar, uma vez que é fato sabido que todo sábado o referido indivíduo
impreterivelmente põe-se à espera do ônibus da capital, na esperança de encontrar entre os passageiros alguém disposto a lhe pagar alguns tostões para que ele -
com o perdão do senhor sub-prefeito - descarregue uma saraivada de peidos. Como possivelmente já é do conhecimento do senhor sub-prefeito, o problema suscitado pelo
supracitado indivíduo, que diz respeito à imagem da cidade etc. etc., embora reiteradamente aventado, ainda não teve, pelo que sabe o redator destas linhas, solução.
De modo que, com exceção do já mencionado cigano, não foi observado nada de suspeito pelo que subscreve o presente relatório.
"Embora adrede qualificado para a vigilância auricular", prosseguia o relatório, o informante tivera dificuldades no esforço para cumprir o quanto melhor sua incumbência,
a saber, a de ouvir, de certa distância, o desembarque dos estrangeiros, e, no caso em pauta, conforme assinalava o relatório ("se o senhor subprefeito me permite
tal excesso de ousadia"), quiçá teria sido mais apropriada uma vigilância ocular.
"Portanto, outrossim, sem se aventurar a dar conselhos a quem quer que seja, e menos ainda ao senhor subprefeito, o autor destas linhas cogitou se, nessa fase preliminar
do processo de vigilância, não seria mais adequado requisitar os serviços de seu colega Pjetér Prenush, um especialista do olhar, cuja maestria no dito mister, além
de irrefutável, vem se aprimorando sempre mais, desde o dia memorável em que, como provavelmente o senhor subprefeito haverá de recordar, ele, Prenush, foi capaz
de discernir, de uma distância de mais de cem passos, que um dos olhos da esposa do cônsul francês, na ocasião em visita à nossa venerável cidade, não obstante toda
a pesada e enganosa maquiagem ali aplicada, olhava de esguelha.
"A despeito disso, afeito a nunca questionar as ordens de um superior, e sem o menor traço de insatisfação com o importante mister a ele confiado, muito ao contrário,
tocado pela satisfação de contar com a confiança do senhor sub-prefeito", ele, Baxhaj, fizera o possível e o impossível para corresponder a tamanho crédito, e os
eventos supracitados eqüivaliam estritamente à verdade.
"No que diz respeito aos dois estrangeiros", continuava o informante, "não se poderia dizer que seu comportamento fosse suspeito. Infería-se de imediato que não
se sentiam à vontade, fato atestado por movimentos de cabeça à direita e à esquerda, por semblantes espantados e gestos sumamente inseguros, evidenciando claramente
que estavam possuídos por grande agitação, para não dizer medo."
Num albanês estropiado, mais pelas emoções que pelo desconhecimento da língua, a julgar pela opinião do informante, os dois se dirigiram em primeiro lugar a Haxh
Gab, aparentemente tomando-o por um carregador, ao passo que este último, acreditando que eles solicitavam uma exibição de suas vergonhosas habilidades, preparou-se
para entrar em atividade, ou seja, assumiu a postura corporal tensa que lhe permite expelir com som e fúria a quantidade de gases necessária à produção - "desculpe-me
novamente o senhor subprefeito" - da peidorrada que, no seu entendimento, os forasteiros teriam encomendado. "Por conseguinte, o supracitado aprontou-se para reincidir
em sua performance, dessa feita em uma escala que poderia, sem o menor exagero, ser qualificada de internacional, não fosse a interferência do autor do relatório,
que, conhecedor de Haxh Gab, e a despeito de não ter tal atribuição, mas movido por puro sentimenío patriótico, interveio para afastar o cigano do local."
No que dizia respeito às malas e sobretudo às caixas metálicas que os estrangeiros traziam consigo, o informante sentia-se
em dificuldades para adiantar um julgamento, baseado numa simples vista-d'olhos, de longe, especialmente porque, como se sabia e já fora lembrado pouco acima, sua
esfera de atividade restringia-se essencialmente à vigilância auricular... E por aí prosseguia o relatório.
Nas circunstâncias assim descritas, e a despeito de não ter o costume de se intrometer nos negócios dos outros, mas levado simplesmente pelo desejo de ajudar os
assuntos de Estado a transcorrerem da melhor maneira possível, ele, o informante, ainda que em nenhum momento pusesse em dúvida as aptidões visuais de seu colega
Pjetèr Prenush, apesar de tudo acreditava que em um caso desses elas não seriam suficientes para calcular com precisão o peso das valises e principalmente das caixas
metálicas, nem, com mais fortes razões, para estabelecer nenhuma ligação entre o seu peso e o seu conteúdo. Dadas essas considerações, o informante tomava a liberdade
de opinar que seria de melhor alvitre buscar o testemunho do homem que agüentou tudo nas costas, ou seja, o carregador, Csut Arap.
O carregador Csut Arap "A bagagem? Nem me falem, pelo amor de Deus, quase me rebentou o lombo Faz quarenta anos que sou bagageiro, mas nunca lidei com malas daquele
jeito. Aquilo era chumbo, pior que chumbo. O que podia ter lá dentro? Juro que não sei o que dizer. Pedras, ferros, podia ser o próprio capeta, só roupa não podia.
Isso Csut põe a mão no fogo: roupa não era. Só se fossem paletós de ferro como aqueles que os antigos usavam e a gente vê no cinema, e eles nem eram antigos, pelo
menos não tinham jeito, nem pareciam estar de miolo mole. Mas roupa não era, não e não. Eu conheço as roupas só de pegar numa mala. Basta levantar uma para jogar
no lombo, e eu já digo: 'Csut, isto aqui é bagagem de gente cheia
do dinheiro, cheia de roupa de primeira, bordada a prata, ou a canastra de um padre, ou mufti," cheia de livros sagrados, o Evangelho ou o Corão'. Tudo o que tem
a ver com o ofício de carregador eu sei. Só de pegar eu conheço as roupas de linho das moças saltando de contentes, ou os panos pretos das velhas viúvas, pesados
de tanta tristeza. Csut já agüentou todo tipo de carga na vida: bagagem de gente feliz, de gente avoada, de exilados que fogem da raiva do rei, desesperados, dispostos
a se enforcar antes do raiar do próximo dia, malas de bandidos, de artistas, de mulheres que gostam de fazer amor (ah, essas dão um arrepio na espinha na hora de
carregar), malas de funcionários públicos, de eremitas, malas de doidos, meio cheias de pedras, tudo isso Csut já carregou, mas nada como a bagagem daqueles dois
desgraçados, não, não e não, pela alma da minha mãe, isso Csut nunca viu. Aquilo me tirou o fôlego, quase me partiu em dois, e eu disse comigo: Olha, Csut, chega
de agüentar esse trabalho. Melhor morrer que passar a vergonha de dizer: com esse peso eu não posso. E que Csut outro dia teve um sonho pior que a peste: tinha
uma rua coberta de papelão, meio preto, meio marrom, e um viajante que gritava: 'Ei, carregador!', mas Csut ia carregar a mala dele e cadê que conseguia? Pois foi
igual à noite do sonho, fiquei encharcado de suor frio debaixo daquela carga maldita. Não eram malas, era o diabo em pessoa.
O gerente do Hotel Glob: "A bagagem era realmente pesada, sobretudo as caixas. A bem da verdade, deve-se dizer que, para levá-las até o quarto, no segundo andar,
foi preciso recorrer não só à ajuda do menino que fica aqui para esses trabalhos,
mas também à ajuda de duas arrumadeiras e ainda à do cozinheiro.
"Os estrangeiros me falaram em albanês, entretanto é preciso dizer, a bem da verdade, que empregavam uma linguagem absolutamente inusitada, uma língua, como direi,
semipetrificada, como gelo, não sei se me faço entender, talvez eu não esteja me explicando claramente. Meu trabalho de hoteleiro me faz ter contato freqüente com
estrangeiros, de modo que estou familiarizado com o jeito como eles deformam nossa língua. Não por orgulho, mas por apreço à verdade, devo informar que justamente
por meio dessas mutilações estou em condições de distinguir, sem nem abrir um passaporte, se meu hóspede é italiano, grego ou eslavo. Contudo, no caso daqueles dois,
não se tratava desse tipo de deformação. Não, era outra coisa, completamente distinta. Talvez eu não consiga me explicar: era uma língua, como direi, dura... Anos
atrás, minha finada mãe, que Deus a tenha, apareceu-me uma vez em sonhos usando uma linguagem assim. Fiquei tão impressionado na época que me lembro, no sonho eu
dizia: 'Que foi que eu lhe fiz para você falar assim, mamãe?'. Desculpem, por favor.
"Depois? Ah, sim, desviei-me do assunto. Depois eles foram para o quarto que lhes fora destinado, conforme combinamos com os senhores. Sempre conforme o combinado,
por três vezes havíamos espalhado inseticida no quarto, mas a bem da verdade devo dizer que não estou seguro de não ter sobrado nenhum percevejo. Eles podem vir
dos outros quartos, através das fendas das portas, ou, especialmente, podem cair do teto... Mas isso já é outro assunto. Eu dizia que eles se fecharam no quarto
até a chegada do emissário do senhor subprefeito com o convite para uma partida de bridge."
O bilhete de boas-vindas do subprefeito, com o convite para um bridge, foi levado aos recém-chegados pelo funcionário do cadastro por volta das sete horas da noite.
Conforme depoimento do funcionário, reforçado pelo do gerente do hotel, que presenciou o encontro (inclusive fora quem batera à porta do quarto dos estrangeiros
para informar que um senhor da subprefeitura estava à procura deles), os recém-chegados ficaram um tanto surpresos com o convite, não só inesperado mas até inusitado,
para não dizer assustador, e foi necessário algum tempo para entenderem do que se tratava. Nem o funcionário do cadastro nem sequer o hoteleiro, ao transmitir a
resposta ao subprefeito, tinham lhe revelado de que maneira seu elegante convite fora recebido. Entretanto, isso não os eximiu de contar aos seus amigos que os estrangeiros
haviam reagido sem nenhuma alegria, manifestando uma espécie de reserva que poderia com maior exatidão ser qualificada de frieza. Sempre segundo a opinião do funcionário
do cadastro e do hoteleiro - opinião que mais do que depressa dois informantes levaram aos ouvidos do subprefeito -, os recém-chegados concordaram mais por obrigação
que por gosto em visitar a residência do titular da subprefeitura. Surpreendentemente, este, longe de demonstrar algum ressentimento perante os dois mexeriqueiros,
descreveu todos esses detalhes em seu relatório semanal dirigido ao ministro do Interior, não deixando de assinalar que as duas testemunhas eram gente digna de crédito.
Contudo, o subprefeito não sabia de nada disso quando, ao cair da noite, teve início a recepção aos dois misteriosos forasteiros, com a chegada dos habituais parceiros
de bridge: o diretor do correio, o juiz de paz e o sr. Rrok, proprietário da fábrica de sabão Vênus, única indústria de N. E mesmo que soubesse, não teria dito nada
a seus amigos, menos ainda às esposas deles,
e em hipótese alguma à sua própria esposa, Daisy, para quem a noitada seria o mais maravilhoso evento da temporada.
Ela trajava um vestido de seda azul-celeste que ondulava em torno do corpo. Talvez em virtude de leve camada de ruge que lhe avivava as maçãs do rosto, ou do rimei
também azul-celeste, dava a impressão de estar em outro mundo, e perambulava, como que embriagada, entre o grande salão e a saleta onde ficava a mesa de jogo. Seus
ouvidos captavam, ao acaso, fragmentos de conversas que se lhe afiguravam cada vez mais banais. Falava-se dos estrangeiros que estavam para chegar, indagava-se sobre
as razões de terem escolhido como centro de operações precisamente a cidade de N. Daisy considerou isso insuportável. A suposição de que eles pudessem preferir outra
cidade e abandonar N., de que de repente se dessem conta de onde estavam e dissessem: "Puxa, é mesmo, por que viemos parar nesta N.? Não poderíamos ir para outra
cidade?", justamente agora que o milagre se operara, parecia-lhe medonha a ponto de ameaçá-lo.
"É realmente espantoso", comentava o sr. Rrok, "assombroso mesmo, conceber a vinda desses senhores. Isto aqui é um fim de mundo, nem faz fronteira com outro país,
nem é um lugar histórico, nem um ponto estratégico, como se diz. Nunca ninguém fala em N. E ainda por cima no pé das montanhas!"
"Eles disseram que escolheram a região ainda na América", explicou o diretor do correio. "E nem bem desembarcaram em Durrés, tiraram o mapa da valise e decidiram:
'É para aqui que vamos, assunto encerrado'."
Enquanto falavam, os convidados se voltavam para o subprefeito, mas este, com um sorriso meio cansado no rosto, o mesmíssimo sorriso desde o começo ("Meu Deus! Como
é possível ostentar horas a fio, perante dezenas de pessoas, sempre o mesmo sorriso?", costumava dizer sua esposa), fingia não escutar.
Na realidade, também ele muitas vezes quebrara a cabeça indagando-se por que os estrangeiros haviam escolhido exatamente N. para seu misterioso trabalho. Algumas
vezes lhe parecia que aquilo só traria dores de cabeça; outras, pelo contrário, que poderia ser um golpe de sorte. Ocorria-lhe, quando estava aborrecido, que alguém
lhe enviara expressamente os visitantes indesejados, e com as piores intenções. De todo modo, a partir dali, daquela primeira noite da estadia deles, por mais espertos
que fossem, alguma parte do enigma o subprefeito haveria de descobrir. Na carta pessoal e confidencial que lhe enviara logo após a primeira correspondência, o ministro
dava a entender que tinha o maior interesse em desvendar o enigma. "E, o Estado tem poços recônditos e profundos!", suspirou secretamente. Estava a matutar justo
sobre o momento em que o assunto se esclareceria quando de repente bateram à porta de entrada. A maioria dos convidados se virou para ele, à espera de uma indicação
sobre o que fazer, alguns depuseram seus copos de vermute sobre o mármore da lareira, outros, por sua vez, tomaram os seus entre os dedos. Todos se agitavam, apenas
Daisy permaneceu imóvel, os olhos fixos na escada.
A criada abriu a porta, e todos ouviram os passos deles na escada, passos que chegaram aos ouvidos do subprefeito como os de uma perna de pau, talvez por causa dos
relatórios que acabara de ler e que se referiam, entre outras coisas, a mutilações e à dureza do seu modo de falar, ou quem sabe porque de fato assim soavam. Num
relance, os olhos do anfitrião captaram o perfil da esposa, que traía sua confusão, o pescoço macio, salpicado por cachos de cabelo claro, cachos que o contraste
com o penteado alto realçava, e ele se perguntou, com mais espanto que contentamento, por que não sentia ciúme.
Daisy, sem procurar esconder a emoção, acompanhou com o olhar como os convidados chegavam ao topo da escada de madeira, atrás da criada, que andava um pouco torta, com o corpo meio voltado para os dois Eram completamente diferentes do que ela imaginara. Nem um nem outro tinha
cabelos negros ou escorridos. Um era aloirrado, mas nada ruivo ou peluclo como devia ser Max Roth, pelo contrário: os cabelos eram macios, de um castanho-claro,
um tanto ralos. Já o outro tinha um rosto enérgico, e seus cabelos de fato eram escuros, mas sem brilho, e como se isso não bastasse, à escovmha, tal qual os de
um pugilista. Não podia ser Willy, tampouco Max, seu ouriço fiel e bonachão. Ela quase soltou um suspiro. Não tinham nada do que imaginara, embora velhos não fossem,
graças a Deus.
Chegou o momento dos apertos de mão, e, para espanto da esposa do subprefeito, o louro de olhos claros que a cumprimentava disse em albanês: "Muito prazer em conhecê-la,
senhora. Willy Norton".
"Daisy", disse ela, e corou ao lembrar o que pensara deles poucos dias antes, na banheira, a fantasia sobre o médico e tantas outras minúcias malucas.
"Então este é o Willy", disse consigo, logo depois, enquanto eles concluíam as apresentações. Imaginara algo muito distinto, e apesar de tudo não se poderia dizer
que estivesse desapontada. Não, isso seria uma injustiça, ainda mais caso se considerasse a possibilidade de serem eruditos entrados em anos, de chinelas e que usassem
uma ridícula touca na hora de dormir. De tudo isso, restava apenas uma sensação de vertigem... Devia ser gentil para com o outro, Max Roth, pois embora fosse o moreno,
não o louro, sentia que se inclinava a ele. Com certeza não era pelo nome, mas por alguma outra coisa. Daisy suportava mal decepções. "Mesmo assim os dois são interessantes",
consolou-se, "até mais do que havia imaginado. E no que toca à língua, é verdade que falam um albanês estropiado, mas têm o inglês: my darling, my lord..."
Daisy de repente se deu conta de que, caso viesse a ter uma noite em claro, a insônia não proviria da atração por um deles, como esperava, nem de uma amarga desilusão,
e sim, sem dúvida, do contraste entre sua expectativa e a aparência dos visitantes. Durante toda a noite, e talvez nas seguintes, ela teria de operar dentro de si
as transformações necessárias para que seu ser voltasse a senti-los como os sentira antes.
Enquanto isso, os estrangeiros haviam se apresentado a todos e passavam por aquele embaraço que acomete os recémchegados a um grupo já existente. Sorriam para as
pessoas em torno, pela segunda vez e mesmo pela terceira, até que o dono da casa se dispôs a enfrentar o mal-estar bilateral perguntando: "O que desejam beber, senhores?".
A conversa sobre bebidas e sua escolha trouxe certo alívio a todos. Mas estes esperavam que os estrangeiros entendessem um pouco mais do assunto, o que, surpreendentemente,
não se verificou. Talvez por esse motivo tenham começado a reparar que seus trajes também não correspondiam à expectativa. Notava-se neles algum desalinho, para
não usar um termo mais forte. Tudo isso deixou mais solta a língua do dono da casa: "Fiquei sabendo da chegada dos senhores à nossa cidade e disse comigo: 'Estão
longe dos seus, numa terra estranha, uma província perdida, completamente sozinhos...', não é? Aí, ocorreu-me convidá-los para um bridge, para não se sentirem tão
isolados".
O subprefeito falava lentamente, pronunciando cada palavra com capricho, para ser bem entendido. Enquanto isso, os dois balançavam a cabeça em assentimento.
"Senhor, obrigado", disse um deles, o dos cabelos curtos. "Em toda parte muito é famosa a hospitalidade dos albaneses."
"Vão ficar muito tempo por aqui?", indagou o sr. Rrok.
Os forasteiros fizeram um movimento com os braços.
"Palavra de honra, sim. Nós bastante aqui ficaremos."
"É uma satisfação para nós", disse o subprefeito.
"Obrigado, senhor."
Daisy teve a impressão de reconhecer uma entonação familiar no modo de falar deles. No colégio feminino da cidade, as aulas de albanês arcaico, a pronúncia... Mas
tinha dificuldade em se concentrar.
"Pelo que soube, os senhores vão se ocupar de coisas do folclore", disse o subprefeito.
Um deles arqueou as sobrancelhas, como para ganhar tempo, enquanto o subprefeito trocava um rápido olhar com o juiz de paz, o único a quem confiara as suspeitas
sobre os estrangeiros.
"Como dizer? Exatamente... Talvez mais ainda", respondeu o que se chamava Willy Norton.
"Com velhas baladas épicas muito trabalharemos", disse o outro. "E talvez..."
"Muito reluz um sol assim e pouco aquece...", recitou Daisy consigo. Era o verso que dava início a uma das antigas baladas, presente em todas as antologias. Tinha
exatamente o mesmo ritmo que marcava o falar dos convidados.
"E talvez algo mais que com isso por completo está ligado", prosseguiu o louro. "De Homero falo."
"À saúde dos senhores", disse a esposa do diretor do correio, erguendo um pouco seu copo de vermute. Sentia-se nela, sob a fina camada de pó-de-arroz, o ardor da
impaciência: que acabasse logo aquela troca de frases enfadonhas, para os estrangeiros falarem de alguma coisa interessante. Daisy mencionara um tipo de gramofone
moderno que eles teriam trazido consigo. Como se dançaria agora em Nova York? E na Califórnia?
"Falou em Homero?", perguntou o subprefeito. "Pelo que sei, é aquele antigo poeta grego, o cego, não?"
"Oh yes", apressou-se o outro a responder, para súbita alegria de Daisy, que se voltou triunfante para as outras mulheres,
como se dissesse: "São ou não são estrangeiros? Vejam só o inglês deles...".
"Oh, sim, Homero. Trezentos anos faz que uma controvérsia continua para saber: foi um Homero? foram muitos Homeros?"
O sr. Rrok arrumou a gravata-borboleta e, cobrindo com um sorriso cada recanto da face, interveio cautelosamente: "Perdoem-nos, senhores, somos gente ignorante,
provinciana, nestes confins... Vejam, eu, como disse há pouco, estou no ramo dos sabonetes: sabão Vênus, para senhoras, he-he, disso eu entendo bastante, mas desses
assuntos profundos da filosofia, quer dizer, Homero, Giuseppe Verdi, não sei mais o quê, desses nunca ouvi falar. Portanto, perdoem minha ignorância, mas eu gostaria
de saber que ligação pode existir entre esse Homero e a honrosa visita dos senhores a N. Pelo que dizem, ele viveu quatro ou cinco mil anos atrás, e bem longe daqui,
não é?".
"Uff", fez a mulher do diretor do correio. Ela sempre dizia que o cérebro do sr. Rrok era tão liso quanto os sabonetes que ele fabricava.
Os forasteiros trocaram um sorrisinho que o subprefeito considerou repleto de subentendidos.
"Três mil anos atrás, senhor, com certeza", disse um deles. "E longe bastante, oh, longe bastante daqui. Mas uma ligação existe apesar de tudo."
O mesmo sorrisinho repleto de subentendidos voltou a faiscar, diante dos olhares de todos. "Hum, estão mofando de nós", disse consigo o subprefeito. "Não há dúvida,
estão debochando", pensou de novo, pouco depois. Quem poderia acreditar que eles realmente pretendiam descobrir aquele trabalho de Homero num lugarejo que nunca
tivera nenhuma ligação com tais coisas? Pelo menos deviam ter inventado um motivo mais convincente para aparecer. Mas parecia que nem tinham esquentado a cabeça;
deviam ter dito: "São matutos, perdidos naquele
fim de mundo". "Mas, veremos, hum, quem há de rir por último", continuou o dono da casa, resmungando com seus botões, debaixo de seu sorriso imutável. "Eles podem
ter visto muita coisa, arranha-céus e coisas do tipo, mas jamais conheceram um Dull Baxhaj, que quando agarra alguém, não larga mais, seja no alto de um arranha-céu
seja nas profundezas do Inferno."
A lembrança de Dull Baxhaj acalmou o subprefeito por um instante. Em seguida, seu pensamento retornou à carta do ministro do Interior, mais precisamente à passagem
que se referia ao momento de apanhá-los "com a boca na botija", palavras do próprio ministro, que acrescentara: "Com isso sua tarefa se encerra, e eu passarei a
cuidar deles". Para dizer a verdade, o subprefeito não tinha a menor idéia do que no caso pudesse significar "apanhá-los com a boca na botija". O ministro parecia
ter escrito aquilo às pressas, com certa impaciência, e logo após passava à inacreditável diretriz: "Mesmo depois disso, trate-os bem, tal qual antes, mas, caramba,
você deve deixar claro que eles foram apanhados, para que não venham com histórias".
Agora que a recordava, a carta lhe parecia ainda mais extravagante que durante a leitura. Teria tomado tudo como brincadeira, se o ministro não enfatizasse, no final
da missiva, que o
assunto era bem mais importante do que ele poderia pensar.
Dissimuladamente, para não dar na vista, o subprefeito espiou o relógio. Àquela altura Pjetér Prenush com certeza já teria conseguido abrir as malas, e encontrara
e fotografara todas as anotações e rabiscos que, segundo os homens da alfândega, eles tinham em quantidade. Eram essas as instruções que ele havia recebido. Em seguida,
naquela mesma noite, tudo seria examinado, o que fosse necessário traduzir seria rapidamente traduzido e posto, antes do amanhecer, na escrivaninha do subprefeito.
Satisfeito consigo mesmo, o subprefeito não tinha dificuldades em sorrir para todos, inclusive para aqueles que julgava não merecerem sua atenção. Naquele momento, Pjetér Prenush seguramente corria para a ridícula e acanhada
construção que trazia na fachada a inscrição FOTO LUX, em letras azuis. E, lá dentro, o dono do laboratório esperava, torturado pela dor das hemorróidas (a crise
o assaltava sempre que trabalhava para o subprefeito) e pelo pavor. Haveria de se tranqüilizar ao ver as anotações em inglês; aterrorizava-se mesmo era com fotos
de cadáveres, braceletes roubados e, especialmente, mulheres peladas.
O subprefeito estava de fato contente. Divertia-o pensar que seus dois melhores informantes se achavam em plena atividade lá fora, na noite fria e úmida. Sabia que
muitos invejavam aquela dupla excepcional - seu "olho" e seu "ouvido" -, mas a despeito disso seu coração pendia visivelmente para Dull Baxhaj. Nos casos de desentendimento
entre os dois, embora procurasse parecer imparcial, tomava o partido de Dull.
"Isto aqui é um lugar subdesenvolvido", aprazia-lhe às vezes filosofar, "e em lugares assim, quando se trata de espionagem, os olhos não têm grande importância.
A maior parte das pessoas não tem escola. E mesmo quem sabe ler e escrever não sente muita vontade de pegar na caneta. Aqui é raro alguém pôr no papel suas lembranças
ou manter um diário, uma correspondência regular. Até os testamentos, que ninguém pode imaginar sem texto, assinatura e carimbo, em geral são orais aqui. E sabe
o que substitui a firma e o sinete? Maldições. 'Que não tenhas um dia de alegria neste mundo nem no outro se não cumprires minha vontade', 'Que fiques entrevado
como este pé de pau', ou 'Que a terra não te acolha'."
Deleitava-o falar assim dos olhos. Mas se o assunto era o ouvido, até seu tom de voz logo mudava. "Já com o ouvido é bem diferente, meus senhores. Este nunca fica
sem trabalho, pois as pessoas têm compulsão de falar, de cochichar, e sabe-se
que as coisas ditas, e sobretudo as cochichadas, sempre foram mais nocivas ao Estado que as coisas vistas. Pelo menos por aqui", insistia o subprefeito. E se estava
num círculo de pessoas muito íntimas ou excepcionalmente confiáveis, gostava de contar seu único fracasso retumbante no campo da inteligência, fracasso provocado
exatamente pelos olhos: uma vez, ao examinar as cartas que um conquistador de província enviara a Lulu, certa cortesã da capital - cartas que, como se sabia, eram Lparvioladas em razão de um caso entre esta e um membro da família real -, julgou ter encontrado a expressão "organismos secretos" ("Juro, ali estava, escondida como
um coelho na moita, em meio a referências à barriga, ao púbis e até aos sovacos dela"), quando na verdade o que estava escrito era "orgasmo" e "secreção". Deus Todo-Poderoso,
até agora ele ficava vermelho como um pimentão só de recordar aquela história.
Em volta dele, os estrangeiros continuavam a conversa iniciada pelo sr. Rrok. O subprefeito precisou fazer esforço para retomar o seu fio.
"Há uma ligação, meu senhor", dizia o louro. "Apenas, tarda hoje a hora para uma explicação."
"Em outro dia, sem falta", interveio o outro. "Fatigados estamos, o caminho foi longo e duro."
"Por certo", disse consigo o subprefeito, "precisam ajustar a história entre eles; parece que nem esse cuidado tiveram. Ai, provinciazinha infeliz! Nem os espiões
a levam a sério!"
Alguém fez menção ao bridge, mas os estrangeiros balançaram a cabeça numa negativa e voltaram a insistir no cansaço e na longa viagem. Além disso, e o que era mais
inesperado, não sabiam jogar. Realmente, era o fim.
Uma vez que se renunciou ao bridge, as senhoras assumiram a iniciativa da conversa. Quem mais falava era a mulher do diretor do correio, observada com um olhar entre
o desdém e a
ironia pela esposa do industrial. "Não suporto quando as mulheres daqui se derretem diante de um estrangeiro só para chamar atenção", cochichou esta para Daisy.
A mulher do subprefeito se voltou subitamente para a lareira, a fim de que a outra não visse o seu rubor. Ocupou-se um pouco com o fogo e ao erguer a cabeça estava
toda corada, mas tinha uma boa desculpa. "Dá até nojo essa fome de aventuras."
Daisy sorriu vagamente. Sabia que a outra estava frustrada por não poder exibir seu italiano, o que sem dúvida devia estar fazendo a felicidade da sonolenta esposa
do juiz de paz. "Vão ficar no Hotel Globo?", perguntou aos visitantes.
"Oh, não", responderam os dois, quase a uma só voz.
O juiz de paz mostrou um sorriso sem vida.
"E onde mais pensam ficar? O Glob é o único hotel passável da cidade."
"Na cidade nós não", disse Willy Norton. "Longe iremos "
"Como?", espantou-se Daisy, abafando um grito no peito. Até então ela vinha evitando que seu olhar cruzasse com o dos visitantes, como fazem as pessoas que adiam
sempre mais algo muito desejável, mas naquele instante fitou impulsivamente o homem que lhe enregelara. a alma com aquela frase. Havia nos seus olhos tanto ardor como
censura, de mistura com uma promessa feminina, e dir-se-ia que eles fariam o interlocutor voltar atrás, mas este repetiu sua resposta sem a menor piedade.
O dono da casa, que se distanciara pouco antes, reaproximou-se dos estrangeiros para saber dos planos deles, e o que ouviu foi verdadeiramente assombroso. Eles disseram
sem meias palavras que não tinham a menor intenção de permanecer na cidade, apesar do seu apreço pelas pessoas tão simpáticas que acabaram de conhecer. Não, não
pensavam em outra cidade, muito menos em outra região; permaneceriam, sim, exatamente naquela subprefeitura, apenas não na cidade de N.; além do
mais, queriam manter distância de cidades em geral, hospedando-se em alguma estalagem isolada, afastada de povoados, como as que existem habitualmente nos cruzamentos
das estradas. Se o inverno não tivesse começado, subiriam às montanhas para lá fazer o seu trabalho, que era o que de fato desejavam, mas como a neve os impedia,
ficariam no sopé, ali por onde os rapsodos passavam em suas andanças. Na realidade, até haviam escolhido a hospedaria, que não devia ser longe dali.
"A Estalagem da Cruz", interrompeu o fabricante de sabão. "Mas ela fica entre Shkodra e a capital."
"Não", respondeu o que se chamava Max Roth, "o nome é Estalagem do Osso do Búfalo, ou simplesmente do Ossobúfalo."
"Ah", fez o diretor do correio, "mas essa é muito velha, e além disso meio isolada; os telegramas chegam lá com quatro dias de atraso."
Os estrangeiros sorriram.
"No mapa vimos", disse Willy Norton. "É exatamente então o lugar que precisamos."
"Tem lógica", disse consigo o subprefeito. "Ninguém poderia pensar num lugar melhor para esse trabalho secreto de vocês."
"Vocês trouxeram também mapas?", indagou.
"Sim, meu senhor, muitos mapas. E com todas as zonas épicas."
"Muito bem", ruminou o subprefeito. "Nem se dão ao trabalho de disfarçar." Quis perguntar o que seriam as tais zonas épicas, mas achou melhor se fazer de desentendido.
"Onde fica essa Estalagem do Ossobúfalo?", perguntou Daisy, baixinho, à esposa do diretor do correio.
"Como vou explicar? Não lembro bem; estive lá uma vez, com Petro, mas é um albergue tão velho que dá até medo. Uma verdadeira tapera."
"Pelo que ouvi dizer", comentou o subprefeito, "é a estala-
gem mais velha depois da dos Dois Robertos, na Albânia central, coisas que sobraram da Idade Média."
"Fica muito longe?"
"Nem tanto. Acredito que a uma hora daqui, de carruagem."
O coração de Daisy retornou ao seu lugar. Uma hora de carruagem não era nenhuma tragédia.
A conversa em torno dos estrangeiros recobrou vida.
"Os senhores são espantosos, palavra", disse o sr. Rrok, sorrindo bem no nariz dos visitantes. "Eu, que mexo com sabão, penso entender alguma coisa do mundo, já
que o sabão, ah, o sabão tem a ver com todos nós, não é?, e cotidianamente, da manhã à noite. Então, quando penso nele, vejo uma coisa muito forte, presente em toda
parte, e quase chego a pensar que o mundo inteiro se ocupa de sabões. Porque, insisto, não é um produto qualquer, é uma coisa que mexe com o seu corpo - sabão para
lavar a cabeça, o rosto, sabão que lava bem, que não lava bem, afora a questão do perfume, para não mencionar outras qualidades, como, por exemplo, a capacidade
corrosiva, que não pode ser excessiva, como os senhores podem deduzir, para poupar a fina pele das damas, especialmente quando se trata das partes mais recendentes
do corpo, he-he-he. Assim, quando eu reflito, parece-me que o mundo inteiro pensa em sabão, mas eis que de repente encontramos pessoas como os senhores, que nem
querem saber disso e vieram até aqui, neste fim de mundo, para se hospedar numa estalagem caindo aos pedaços, para depois tentar estudar os assuntos de um cego que
viveu um milhão de anos atrás. Este mundo tem cada coisa... Francamente!"
"Que idiota", disse com seus botões o subprefeito. Tinha razão o inspetor das Finanças, que havia cerca de dois anos, durante alguma discussão no carteado, dissera:
"Pois não será má idéia você se atirar um dia no tacho da fábrica e virar sabão". Daisy serviu o café com a ajuda da criada. Enquanto o bebericava, o subprefeito pensou que àquela altura o hoteleiro ]á tivera tempo mais que suficiente para virar pelo avesso os pertences dos estrangeiros.
Agora os sinais de fadiga ]á se patenteavam nos rostos. Até a desaparição do pó-de-arroz nas faces da esposa do diretor do correio, um sinal inequívoco, bem conhecido
do restrito círculo mundano de N., indicava a aproximação da meia-noite. Embora as pessoas tratassem de sufocar os bocejos, estes as assediavam.
Bastou um pequeno hiato na conversa, e já os estrangeiros pediam licença para se retirar. De pé, na sala e a seguir diante da porta de entrada, o grupo trocou algumas
palavras com eles sobre se lembravam o caminho para o hotel e se queriam que alguém os acompanhasse. Então o sr. Rrok se ofereceu para escoltá-los, o que suscitou,
ao lado da aprovação geral, sinais de desagrado nas feições dos dois, desagrado que ninguém saberia dizer precisamente de onde provinha, àquela hora da noite, mas
que por certo se relacionava a chatices ensaboadas.
Logo depois dos estrangeiros, os outros também foram embora, e na residência do subprefeito só se ouviam os passos dos donos da casa, que, em meio a um silêncio
intenso, davam a impressão de se distanciarem um do outro por mais que buscassem aproximações e ainda que o quarto de dormir os esperasse.
Ao se despir, com o marido já estirado na cama, Daisy fez o que pôde para afastar o pensamento dos visitantes, ou, mais exatamente, de um deles, mas quando o cômodo
foi tomado pela treva e pelo silêncio, e as vidraças da janela desenhavam seus pálidos contornos sobre o leito conjugal, ela, como quem encontra o modo
de pôr em ordem as idéias, dirigiu-se por fim ao recém-conhecido, com simplicidade e naturalidade infantis: "O que estará fazendo?".
Os estrangeiros haviam retornado ao hotel pouco antes da meia-noite, precisava o relatório de Dull Baxhaj. Obediente às instruções do senhor subprefeito, o informante
subira antecipadamente no desvão do telhado e se instalara sobre o quarto deles às dez e meia em ponto. Depois de avaliar o estado do forro, as frestas entre as
tábuas - por onde poderia não só ouvir mas também espiar alguma coisa -, os pontos que rangeriam caso fosse obrigado a se movimentar, assim como os riscos de uma
tábua podre desabar (ainda hoje, passado tanto tempo, ele recordava com pavor a noite em que sua perna direita aparecera, como uma monstruosa luminária, no teto
do quarto de dormir dos Shkjez, provocando na velha esposa um infarto que a levou para a cova antes da hora); pois bem, depois de todas essas preliminares, e embora
no lugar houvesse muitos percevejos e outros bichinhos repulsivos, ele, em conformidade com as normas recentemente aprovadas (que, como se sabia, objetivavam expressamente
impedir que o informante dormisse em serviço), tirara de uma caixinha o seu próprio suprimento de percevejos e os espalhara pelo corpo.
Como já fora assinalado no início do relatório, os estrangeiros voltaram ao seu quarto perto da meia-noite; por algum tempo circularam sem motivo aparente, do quarto
para o banheiro e vice-versa. Durante esse intervalo, trocavam eventualmente palavras na língua deles, as quais o informante não entendera, não tanto por boa parte
delas ter sido pronunciada enquanto os investigados escovavam os dentes (como o senhor subprefeito havia de saber, o autor daquelas linhas já dera provas cabais
de poder decifrar palavras pronunciadas com o orador tendo à boca não só escovas de dentes, cachimbos, cigarriIhas etc., mas até, como no caso de Maria K., coisas
cujo nome ele, informante, com o perdão do senhor subprefeito, não ousava explicitar num relatório). Portanto, o relator não só estava apto a compreender tudo, como seria perfeitamente capaz de entender alguém que falasse com a boca cheia, que estivesse com as amígdalas inflamadas, a garganta podre,
sem quatro quintos dos dentes e em outras condições semelhantes. Inclusive, o que por certo já chegara ao conhecimento do senhor subprefeito, Dull Baxhaj era o único
informante auricular, em toda a porção setentrional do reino, apto a decifrar a fala de um indivíduo acometido de apoplexia. Por conseguinte, as razões do não-entendimento
da conversa não derivavam absolutamente de ela ter sido pronunciada, em sua maior parte, com escovas de dentes na boca (devendo-se ali assinalar que a escovação
prolongara-se extraordinariamente), mas do simples fato de toda a conversa ter transcorrido em inglês, língua que, como provavelmente o senhor subprefeito não ignorava,
o autor daquelas linhas não sabia.
Depois de escovarem os dentes, os estrangeiros abriram suas malas, tiraram delas seus pijamas, deitaram-se cada um em sua cama, pronunciaram algumas palavras derradeiras,
na escuridão, e silenciaram. Na parte restante da noite não acontecera nada digno de registro, nenhuma batida na porta, menos ainda a abertura desta, nenhuma ida
à janela para transmitir ou receber sinais com ajuda de lanterna, fósforo ou outro meio. A única coisa que poderia ser assinalada era que, enquanto um já adormecera,
o que fora incontinenti detectado pelo informante, o outro não pregava os olhos, rolando penosamente na cama, suspirando, coçando-se. A não ser para esta última
atividade, cujos motivos eram compreensíveis (ainda que o gerente do hotel tivesse alardeado a inexistência de percevejos), seria difícil adiantar uma explicação
para tudo isso, a saber, o fato de que um dos suspeitos dormisse como uma pedra, como se costuma dizer, e o outro permanecesse em vigília, ou, menos ainda, sobre
o significado dos seus suspiros e movimentos na cama. O autor do
relatório podia apenas supor, baseado em sua longa experiência, que em casos assim, ou seja, em que os malfeitores são dois, habitualmente um deles não pega no sono,
em virtude do medo, de suspeitas, da ansiedade ou de planos de traição. Era possível que também naquele caso aí residissem as causas do sono de um e da insônia do
outro. Todavia, os motivos poderiam ser outros, inclusive, entre eles, a consciência pesada de um dos investigados, que, como é do conhecimento geral, afasta o sono,
e a alma limpa do outro, que o deixava dormir como um cordeirinho; ou ainda, inversamente, a alma suja de um, sabedor de que sua consciência já chafurdava na lama
mesmo, que o levava a dormir tranqüilo, e a alma limpa do outro, recém-ingressado na senda do crime e portanto inexperiente, que o atormentava por isso. Talvez semelhantes
esmiuçamentos não se incluíssem nas atribuições de um informante e o senhor subprefeito pudesse achar que o autor do relatório se intrometia em esferas alheias
à sua competência, motivado até por razões mesquinhas como carreirismo, busca de fama ou de aumentos no ordenado, entretanto ele desejava afirmar que nenhuma daquelas
acusações se sustentava, e se ele podia ser redundante ou tedioso ali onde não deveria, não o fazia em hipótese alguma movido pelas causas supracitadas, e sim por
julgar que assim cumpria com seu dever, pois, afinal de contas, não fora o próprio senhor subprefeito quem afirmara, em recente reunião, que um informante não era
um simples instrumento auditivo, mas um ser vivo, um funcionário do Estado, que possuía não só o direito como até o dever de trabalhar o material ouvido usando de
criatividade?
Retornando aos motivos do sono e da insônia dos investigados, o informante acrescentava, entretanto, que eles poderiam ser muito distintos dos antes cogitados ali, sendo possível mesmo conjeturar que assim os investigados tivessem combinado um dormiria enquanto o outro montaria guarda
Contudo, o informante conseguira deteimmai em qual das duas camas ficava cada um, conforme estava assinalado no croqm^nexado ao relatório, de modo que, com a ajuda
do hoteleiro, podia-se desde já saber quem e que perdera o sono.
Capítulo 3
O que não dormira era Willy Norton Embora em geral tivesse dificuldades com o sono, daquela vez acreditara que a fadiga da viagem, a visita até tarde e sobretudo
os copos que entornara na casa do subprefeito o ajudariam a adormecer Mas não Após uma hora na cama, deu-se conta de que passaria a noite em claro Bastava-lhe a
picada de uma pulga ou percevejo para demolir como um terremoto toda a frágil e nevoenta matéria que separa o sono da vigília "Que diabo", exclamou com seus botões
"Aqui tem percevejo'" As palavras do gerente do hotel - "Percevejos eu garanto que não há, ontem mesmo desinfetei o quarto" -, de mistura com a lembrança da penosa
marcha do ônibus, o odor pesado do inseticida, o desembarque na Albânia, as dependências imundas da alfândega, depois o doce olhar da dona da casa naquela noite,
e tudo mesclado com uma inexplicável confusão, uma daquelas angústias em que se tem a sensação de que alguém nas trevas força a porta da sua casa, faziam-no se revirar
lastimosamente sob as cobertas
A duzentos metros dali, o único fotógrafo de N., que algumas horas antes, assistido por Pjetèr Prenush, fotografara cada página dos cadernos de anotações dos recém-chegados,
agora lavava as ampliações, sempre sob o olhar penetrante e ameaçador do informante. Este ainda não se recompusera da ofensa que lhe tinha imposto o subprefeito
ao confiar a Dull Baxhaj os primeiros passos da investigação sobre os estrangeiros. "Convenceuse agora, seu cabeça-de-bagre?", resmungava, baixinho. "Pensava que
não iria precisar de mim, é? Agora, convença-se: esses dois são gente de cultura, e gente de cultura não sai por aí dizendo o que tem na cachola, mas escreve, percebeu?"
As ampliações ainda úmidas se estendiam em fila sobre a mesa, e o fotógrafo retirava mais uma da emulsão. "Podem deixar Dull Baxhaj exercitar seus ouvidos o quanto
quiser. O que anda na cabeça dos estrangeiros está aqui, escrito, preto no branco, he-he-he."
Pjetèr Prenush acendia um cigarro atrás do outro enquanto o fotógrafo, com os olhos amortecidos pelo cansaço e a doença, tirava da bandeja as últimas fotos.
"Depressa, depressa!", dizia de quando em quando o informante, olhando as horas.
As duas da madrugada, a carruagem que conduziria Pjetèr Prenush à casa do frade franciscano Zef Angjelin, único morador de N. capaz de fazer uma tradução do inglês,
passou ruidosamente diante do hotel. Willy Norton ainda se agitava no leito.
As duas e meia, frei Zef, depois de fazer o sinal-da-cruz e uma súplica - "Perdoai, Jesus Cristo, mais este pecado" -, iniciou a tradução.
"Ai, meu Deus!", gemeu Willy Norton. Já passara outras noites em claro, porém nenhuma como aquela. Sua angústia
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não parava de crescer, e o brilho dos ponteiros fosforescentes do relógio que conferia a cada minuto lhe parecia o dos fogos-fátuos num cemitério.
Às seis e meia da manhã a carruagem voltou a passar com estardalhaço diante do hotel, mas Willy Norton se sentia exausto como se o houvessem espremido.
"Chegaram. Deus seja louvado!", exclamou consigo o subprefeito, ao ouvir, em meio ao sono, a barulheira das rodas.
Levantou-se cheio de cautelas para não acordar a esposa e desceu as escadas.
Pjetèr Prenush lhe estendeu o pacote, sem ocultar os sinais de mau humor.
"Bom trabalho, rapaz", disse o subprefeito, sem ao menos olhar para ele. "Agora, vai dormir."
Subiu até o escritório e olhou as folhas com a tradução. Vinham acompanhadas por um breve bilhete: "Envio-lhe o material que o senhor solicitou com urgência. P.
P.".
O subprefeito soltou um profundo suspiro. Ah, onde estariam os relatórios de Dull Baxhaj?... Embora se envergonhasse de o admitir, não conhecia nada que os igualasse,
nem mesmo os romances de amor.
"Não há de ser nada", murmurou, segurando a encomenda. A caligrafia elegante do frade enchia as folhas de alto a baixo. "Vejamos agora um pouco do que anda na cabeça
dos patinhos", pensou, e sentiu uma pontada no coração, um aperto mesclado com a sensação de culpa por receber as informações de outra pessoa, e não de Dull Baxhaj.
"Não há de ser nada", repetiu, pela décima vez, e começou a ler.
Passado algum tempo, ergueu a cabeça e esfregou os olhos. Nunca tivera maiores amores pelos livros, embora, diferentemente de outros funcionários de N., ainda lesse
alguma coisa.
"E por ordem da mulher", diziam línguas maldosas, mas ele não se importava. Nas noites mais longas e tediosas, quando se criava entre ele e Daisy aquele mal-estai
furtivo, sem nome nem causa, que tudo corrompia, mais que as brigas às claras, ele, para dissipá-lo, não precisava nem lhe dizer lisonjas, nem prometer um passeio
até Tirana, nem mesmo lhe dar uns lapas, como a maior parte dos maridos costumava fazer; bastava que apanhasse o livro havia tanto tempo esquecido na cabeceira do
leito e o abrisse. Em pouco tempo, o clima doméstico mudava. Inicialmente, sentia o olhar da esposa a fitá-lo de esguelha: primeiro, atento, depois, compassivo,
como se ela lamentasse vê-lo a se mortificar por sua causa. Em seguida, o vaivém de Daisy do quarto para o banheiro ganhava vida nova, assim como o farfalhar da
seda, até que chegava o esperado instante em que ela, reconhecida, aproximava-se suavemente e o beijava nas têmporas. Eram os momentos mais doces da vida do casal,
em especial quando Daisy, com um delicado movimento dos dedos, fechava o livro e tirava seus óculos de leitura...
Fazia muito tempo que ele associava os livros apenas ao aroma de pó-de-arroz do rosto dela, e quando faltava esse estímulo, a leitura lhe parecia duplamente maçante.
Dessa vez, havia outro motivo para achar tudo insuportável. Esperara aquelas folhas com impaciência, quase com sofreguidão, e agora se decepcionava. Elas lhe pareciam
pesadas, incompreensíveis e, particularmente - sim, isso era o principal -, indignas de confiança.
Na maior parte, tratava-se de anotações em forma de diário. Entremeadas a estas, cartas curtas. Falavam de lições de albanês e estenografia. Com freqüência se mencionava
a preservação do segredo. Ocasionalmente, transparecia certa ansiedade. "É preciso se apressar", escreviam um ao outro, "do contrário será tarde demais."
Por que tanta pressa? Que atraso era esse que eles tanto temiam?
O subprefeito percorreu até o fim as folhas manuscritas, na esperança de deparar de novo com trechos da mesma natureza, porém não era fácil achá-los: vinham sempre
envoltos em algum falatório tão enfadonho que parecia redigido expressamente para entediar.
"Ai!", suspirou, ao se dar conta de que seria obrigado, por bem ou por mal, a ler aquilo tudo se quisesse esclarecer alguma coisa daquela velhacaria.
Longínqua, como se viesse de outros tempos, se me afigura hoje aquela tarde índolente, quando, meio recostado na poltrona, sem ter mais o que fazer, ouvia rádio.
Quem escrevia era um deles, o chamado Willy Norton.
E mais prosaica que a própria tarde me pareceu a entrevista ali transmitida, com o professor Stewart, sobre um tema bem batido, a questão homérica. A polêmica se
arrastava fazia trezentos anos, com dois pontos de vista principais, e o terceiro... U h! Alguém podia morrer de tédio só de ouvir aquilo: seria Homero efetivamente
o criador da Ilíada e da Odisséia? Ou ele não passaria de uma espécie de redator, ou, falando de outra maneira, de um chefe de redação? "Naturalmente, se usamos
a terminologia dos nossos dias..." E aí, no momento previsível, o riso do repórter se misturava ao do entrevistado. Ufa! Estava a ponto de me levantar e desligar
o rádio, até chegara a comentar com meus botões que o programa era bom para maravilhar os imbecis, quando, naquele preciso momento, o professor, respondendo ao jornalista,
abriu um parêntese: foi um parêntese abençoado, que paralisou meu braço. "Haverá no mundo algum lugar onde ainda se cria
uma poesia épica desse gênero?" E a resposta do professor. "A pergunta não é nada tola, pelo contrário, é até muito arguta". E o homerista, para meu espanto (mas
não dos cretinos), explicou que de fato existia um lugar assim, uma estreita faixa que era a única parte do mundo onde sobrevivia aquele tipo de poesia. Ele inclusive
especificava a região: ficava na península balcânica, abrangendo, mais precisamente, toda a Albânia setentrional, estendendo-se por uma parte de Montenegro e chegando,
aqui e ali, até a Bósnia, na Iugoslávia. "Essa faixa, exclusivamente", explicava o professor, "é o único recanto do globo terrestre que até o presente produz um
material poético desse gênero, similar ao de Homero, ou, em outras palavras, fica ali a derradeira oficina, o último laboratório, para usar um termo contemporâneo,
que ainda exibe..."
O subprefeito balançou a cabeça repetidas vezes. "Vejamos o que vem mais adiante", disse consigo.
Mais adiante vinha o assombro do patinho com o que acabara de ouvir. E aparecia, pela primeira vez, o medo de se atrasar.
É compreensível que eu, Willy Norton, simples estagiário, vindo da Irlanda com meu amigo Max Roth, para fazer um doutorado sobre a questão homérica, num desesperançado
esforço por acrescentar alguma faceta nova a um debate tão antigo, tenha parado no meio do quarto, embasbacado.
"O último laboratório", disse comigo. "A derradeira oficina." Repetia aquelas palavras confusamente, quase como se minha consciência se recusasse a aceitá-las. O
rádio continuava a falar, mas eu já não escutava. "A última oficina do mundo", gritei, bem alto, como se quisesse despertar o raciocínio entorpecido. Dentro em pouco
ela pode desaparecer. É preciso aproveitar enquanto não é tarde demais, enquanto ela não desaparece, sepultada na areia, coberta pelo véu do esquecimento.
Vi-me percorrendo o quarto em todos os sentidos. Devia analisar o assunto com sangue-frio, mas era impossível. "Meu Deus, é preciso ter pressa!", disse comigo. É
preciso ir até lá o quanto antes. Um laboratório antigo. Multimilenar. Examinar de perto, com um microscópio, ouvir com um estetoscópio, como se fabrica a cera,
como se produz a essência homérica... Então, bastaria um passo para chegar ao enigma do próprio Homero.
"Silêncio!", disse, pouco depois. "Nenhuma palavra, para ninguém. Exceto Max Roth."
"O único lugar", repetia. O único que ainda tinha a capacidade de engendrar o épicos. O restante do globo havia muito entrara na menopausa. Sobrara uma única faixa.
Que ainda era fértil. Que ainda era capaz de engravidar e de parir as últimas epopéias. E se nos demorássemos, seria tarde demais. As areias do abandono cobririam
tudo, inclusive o enigma de Homero.
"Essa parte eu entendi", murmurou o subprefeito, procurando o maço de cigarros. Suas mãos tremiam de nervosismo. "Essa parte eu entendi, garanhão!", repetiu, agora
em voz alta.
Precisou de algum tempo para se concentrar e retomar a leitura. Como se esperava, um dos patinhes transmitira a novidade ao outro, e os dois ficaram fascinados com
a descoberta.
Ficamos como dois bêbados. Especulávamos sobre o que aconteceria. O mundo inteiro seria sacudido. A cátedra de Antigüidades de Massachusetts. O Congresso de Estudos
Austro-Europeus. Nossa cidadezinha na Irlanda, onde as pessoas talvez dessem de ombros, incrédulas: "Willy Norton e Max Roth? Talvez tenhamos escutado mal. Ou então
são outros".
Dávamos risadas disso tudo. E voltávamos a fantasiar a confusão por vir. "Canta, ó musa, a cólera de Harvard, do International Centre of Homeric Researches..." "E daquela idiota da minha tia Diane Stratford", acrescentava Max.
Meu Deus, não teremos rido demais? Era indispensável seguirmos imediatamente para lá, o lugar, o laboratório agonizante. Fazermos amanhã mesmo o anúncio pela imprensa.
Anúncio? Não, pelo contrário, devíamos manter o máximo segredo. Absolutamente nada devia transpirar para quem quer que fosse. Então, só nos restava partir, o quanto
antes. Sem avisar ninguém.
Repetimos várias vezes esses arrazoados, até que Max, fitando-me nos olhos, disse baixinho: "Sim, boa idéia, não há dúvida, mas... de qualquer forma... são necessários...
preparativos".
Era a primeira vez que a chama do nosso ardor sentia as gotas anunciadoras de uma ducha fria.
"Também isso eu já peguei", disse o subprefeito, esmagando no cinzeiro a guimba do cigarro. "Vejamos agora onde se esconde a safadeza."
Estava convencido de que ela se achava oculta em algum lugar por ali, mas não seria fácil flagrá-la.
Quem foi Homero? O poeta cego, imaginado por milhões de pessoas nos bancos das escolas, ou o redator, o chefe de redação, como dissera o professor Stewart? "Poemas
antigos, Ilíada e Odisséia, coletados e editados sob a orientação de sir J. F. Homero, da Academia Grega", quá-quá-quá.
Nosso pensamento a todo instante escapava para a península balcânica. Ali, segundo Stewart, os rapsodos ainda viviam. Os derradeiros rapsodos, com certeza, ou, em
outras palavras, os últimos Homeros. Que nós não só ouviríamos e registraríamos, como, além disso, compararíamos entre si. Também isso havia que levar em conta:
a comparação ínter-rapsodos. O cotejo das versões. Mas seria o bastante? A cada momento essas palavras voltavam às nossas anotações, e imediatamente percebíamos que aquela aventura prometida seria mais complicada do que pensávamos a princípio.
O subprefeito retornou ao trecho que acabara de ler: cotejo das versões, aventura prometida, preparativos... "Vejamos agora aonde vocês irão para receber instruções",
pensou. "Será num centro de pesquisas, ou numa repartição do serviço de segurança da Grécia?"
O desencanto voltou a atacá-lo. Em vez de uma réstia de luz que esclarecesse suas suspeitas, lá vinham novas e irritantes indagações.
Localizamos por fim uma publicação recente, quase completa, dos poemas épicos albaneses, que trazia inclusive o nome dos rapsodos junto aos quais as baladas foram
recolhidas. Se os rapsodos fossem outros, outra seria a publicação. Assim, as epopéias ali assumem mil e uma faces. Tal qual a reencarnação dos espíritos na metempsicose...
O que nos interessa não e a poesia épica albanesa em si, mas, para usar uma expressão da moda, a tecnologia de sua produção. Com base nela procuraremos chegar a
uma verdade universal: como surge esse tipo de arte. E, conseqüentemente, chegaremos ao enigma homérico.
A comparação consistirá numa das chaves do nosso trabalho. Porém, não só a comparação entre as rapsódias. Bem mais interessante será o cotejo no interior de uma
mesma rapsódia, ou seja, observar como o mesmo poema é cantado por várias pessoas após um período determinado. Um mês depois. Três meses depois.
Ao que parece, não se trata de uma simples questão de memória. Há aí um vínculo com uma das bases da poesia oral, o mecanismo do esquecimento. E este, por sua vez,
tampouco é um esquecimento qualquer, mas algo bem mais complexo. Pode ser um olvido involuntário, mas também pode ser consciente. Um esquecimento fictício, a legitimar uma interpretação
nova.
O rapsodo é parte integrante do mecanismo épico. Ele funciona a um só tempo como editor, livreiro, bibliotecário e, muito mais que isso, como co-autor posterior,
desfrutando da prerrogativa de modificar o texto. Isso é legítimo. Ninguém o contesta. A não ser, talvez, sua própria consciência rapsódica.
Uma coisa ficou clara para nós. A pergunta que antes nos parecia fundamental no deciframento do enigma homérico: quantos versos um rapsodo consegue saber de cor
(alguns falam em seis mil, outros em oito mil e até doze mil versos)?, precisa ser complementada por outra: quantos ele deseja esquecer? Ou melhor: pode-se conceber
um rapsodo sem esquecimento?
Vale assinalar aqui que pouco sabemos ainda sobre o mundo rapsódico. Como são essas pessoas? Como se manifestam os seus dotes? Como o público as consagra? Que fatores
interferem na sua ascensão ou queda? Como serão as competições entre eles, os estilos, as escolas, as rivalidades, os embates, os triunfos a afirmar seus expoentes?
Vamos investigar isso tudo lá onde ainda acontece. Com alguma sorte, vamos penetrar no universo deles. Compreender como a velha argila adquire vida naquelas paragens.
Como sempre esteve viva. Desde o tempo dele, H.
Quase deixando escapar um bocejo de tédio, o subprefeito se deparou subitamente com uma passagem que lhe pareceu meio romanesca.
Senti, pela segunda vez em duas semanas, um incômodo nos olhos. Na primeira, a vista se turvou. Disse comigo que devia ser por causa das leituras excessivas; não
dei importância. Hoje aconteceu de novo, mas distintamente: o espaço diante de mim surgia como um vidro rachado, que vibrava sem entrar no foco. Tive a sensação de que aquela vibração feria
minha retina. Depois, a vista voltou a se turvar, por um longo período.
Preciso sem falta consultar um oftalmologista.
O subprefeito sentiu o aroma do pó-de-arroz da esposa, como sempre acontecia em tais ocasiões. Pôs-se a imaginar tênues marcas de pó sobre o liso ventre dela, ali
onde a sombra do púbis se insinuava, mas a tentação da carne, longe de lhe acalmar a respiração, como ocorria habitualmente, reintroduziu um lampejo feroz em seu
olhar.
Como se quisesse afastar da mente as más intenções, ele retomou a leitura, mais por teimosia, pois o texto voltara a lhe parecer uma grande chatice.
Três teses de estudiosos alemães, os primeiros a examinar os temas comuns a gregos e albaneses na poesia épica albanesa, as migrações de uma mitologia para outra,
as transferências e fecundações recíprocas. Primeira tese: o processo de criação épica está encerrado na Albânia. Tese oposta: ele prossegue. Tese intermediária:
o período épico com efeito já passou, mesmo em solo albanês, porém, como uma fogueira não de todo extinta, ainda produz suas últimas centelhas. Portanto, apesar
de que a produção de epopéias tenha decaído, a oficina, embora antiqüíssima, permanece de pé.
Então é preciso ter pressa. Antes que o fogo apague. Antes que a oficina desmorone.
"Antes que o fogo apague", repetiu o subprefeito. Em sua mente escolada em investigações policiais, o fogo assumiu os contornos de velhos espiões, postos há muitos
anos em compasso de espera, em seguida os de um monastério, um convento de freiras, uma remota conjuração, para depois se afastar de tudo isso e tomar a forma dó sexo de sua mulher.
"Chega!", exclamou, baixando os olhos para as folhas. Haveria de concluí-las, nem que fossem hieróglifos!
Como será que a matéria viva ativa o mecanismo épico, para sair dele convertida em arte?
Qual o papel do esquecimento em tudo isso?
Alguns dos alemães insistem que ainda existem rapsodos albaneses que convertem acontecimentos contemporâneos em epopéias, que os homerizam. Seria realmente uma grande
sorte, ver um milagre desses se operar sob os nossos olhos.
Toda vez que o tema me ocorre, involuntariamente recordo um velho curtume há muito abandonado, que havia no meu bairro,
um subúrbio de Dublin. Assim imagino a vetusta oficina homérica.
Como será o acontecimento processado, ao passar pelas polias, as rodas dentadas, as caldeiras repletas de misteriosos caldos sombrios? Como partilham desse processo
os pulmões dos rapsodos, seu cérebro, fantasmas, paixões, sua herança genética?
Tudo isso lembra um processo de embalsamamento, exceto por seu objeto ser não um cadáver mas um pedaço da vida, um acontecimento, em geral uma tragédia.
Em última instância, a própria epopéia, tomada no seu conjunto, não passa de uma espécie de necrotério. Uma câmara frigorífica, como se denominam esses grandes e
gélidos aposentos recentemente inventados. Não por acaso, o clima que percorre as epopéias é invariavelmente frio, frigidíssimo, com temperaturas sempre abaixo de
zero. Além disso, elas trazem a título de introdução, como uma fórmula imutável, o verso: "Muito reluz um sol assim e pouco aquece".
O subprefeito voltou às palavras do alto da página, depois sublinhou, ali pelo meio, a frase "caldeiras repletas de misteriosos caldos sombrios", sempre tratando
de tirar da cabeça o corpo de Daisy. Mas não havia jeito, já que o texto retornava continuamente ao seu estilo romanesco.
Perdi o sono. Lá fora, as luzes dos edifícios empalidecem e rareiam, como se tivessem tomado de empréstimo o brilho da solidão do universo.
Entre elas, destacam-se os luminosos anunciando líquidos e vitaminas para a vista. Parece-me que uma dessas é precisamente a que o meu médico prescreveu.
Imaginei o nome de Homero aparecendo ao lado dos nossos, Willy Norton e Max Roth (meu Deus, ficamos com o jeito de dois guias de cego), nos títulos dos jornais e
nos anúncios luminosos.
"Oxalá os dois fiquem mais cegos que o ídolo deles!", resmungou o subprefeito, saboreando o alívio que habitualmente lhe advinha de uma praga bem rogada.
"Veja só, veja só!", sussurrou a seguir, ao dar com a expressão "dia maravilhoso". "Vejamos então o que maravilharia assim os patinhos."
Dia maravilhoso. Surpreendente. A nossa chance.
Na verdade, dá até para pensar numa intervenção dos deuses. Não há de ser por acaso que as palavras magneto e fone, sobretudo esta última, vêm de longe, do mundo
da Antigüidade.
Pois foram essas duas palavras, ou mais precisamente uma palavra composta das duas, e desconhecida até ontem, mas hoje investida de poderes mágicos para nós, a palavra
magnetofone, que converteu tudo em maravilha, o dia de hoje e a nossa futura viagem. Trata-se de um aparelho que registra vozes humanas. Que
pode ser levado a qualquer lugar. E que não só registra, mas iam- / bem reproduz as vozes, tantas vezes quantas se queira. É o que necessitávamos, sem tirar
nem pôr. Como se tivesse sido enviado expressamente do alto. Pela Providência. Do Olimpo.
"Hum", fez o subprefeito, "então a tal máquina deles é apenas isso." E ele, que tinha imaginado tanta coisa, uma engenhoca para tirar fotografias, ou detectar petróleo,
ou lançar o Parlamento pelos ares.
"Atenção..." Pareceu-lhe ter deparado com o nome do rei.
Entre outros preparativos, tratamos de conhecer algo sobre a Albânia. País pequeno. Povo antigo. História trágica. Inicialmente, parte da Europa. Depois, domínio
asiático. No século XX, o retorno à Europa. Metade da nação se encontra fora dos limites estatais.
Afora a poesia épica, que para nós é seu grande tesouro, o país possui cromo e petróleo. E também um rei com nome de ave: Zog I, Bird the First.
Ontem fiz outra visita ao oftalmologista. Deu-me a mesma receita.
Max tem tido problemas com a mulher.
Procuramos conseguir o quanto antes a soma necessária à compra do aparelho.
Estamos redefinindo todos os nossos planos por ele. Surpreendentemente, seu emprego não cria nenhum problema. Está em tamanha harmonia com o projeto... Parece até
que concebemos todo o empreendimento sabendo que estava para ser inventado. Achava-se, diríamos, dentro de nós.
O subprefeito releu a página: outra chatice. Já sentia os olhos prestes a se fechar quando as palavras embaixador e espião lhe provocaram um sobressalto.
"Lá vêm eles, lá vêm os meus patinhes", murmurou, procurando os cigarros, "estão vindo, direto para a arapuca." Enquanto lia, ia repetindo a frase, mas nem ele próprio
saberia dizer se a arapuca seria a embaixada albanesa em Washington ou a Albânia.
Acabamos de voltar de Washington, onde pedimos o visto para a estadia na Albânia.
O embaixador, que nos atendeu pessoalmente, deixou-nos boquiabertos. E esperto, finório e mordaz. Apesar de representar essa pequena monarquia semi-arcaicà é semígrotesca,
conhece a fundo a literatura mundial, fala todas as principais línguas européias e, além delas, sueco, foi amigo e até mecenas de Apollinaire, faz chacota de tudo,
não poupando sequer seu próprio país e seu povo. Quando nós, embora procurássemos na medida do possível manter na sombra os motivos da nossa viagem, ainda assim
mencionamos Homero, ele retrucou: "Os senhores sabem que, pelo que dizem alguns, no primeiro verso da Ilíada, Mênin aeidé, thea, Pêlêiadéô Achilêos (Canta, ó deusa,
a cólera de Aquiles, filho de Peleu), mênin corresponde à palavra albanesa mêni, que quer dizer cólera? Portanto, da primeira meia dúzia de palavras da literatura
mundial, a primeiríssima e, desgraçadamente, a mais áspera, é uma palavra albanesa, ha-ha-hal". E se pôs a troçar da Albânia, de maneira tão impiedosa que Max o
interrompeu: "Não compreendo quando Vossa Excelência fala a sério e quando graceja. Aquela questão da palavra mênin na Ilíada, por exemplo, seria para Vossa Excelência
um exagero ou um...". Os olhos do embaixador faiscaram assustadoramente, numa mescla de manha, cinismo, melancolia e amargura. "Penso que essa questão
da palavra mênin é mesmo como o senhor disse, e no entanto..." A frase ficou pelo meio, o olhar se ensombreceu, com as centelhas de ironia restritas apenas às bordas,
enquanto o núcleo central estava carregado, terrível. Após aquele "no entanto", seguiu-se um silêncio longo, longo, aumentando ainda mais o fardo do "no entanto",
tornando-o mais pesado, até que Max não agüentou e quebrou o silêncio: "No entanto, Excelência?".
"No entanto, os albaneses de hoje não são como os senhores podem estar imaginando", disse por fim o embaixador. "Nós ainda não estamos imaginando nada", intervim.
"Vossa Excelência é o primeiro albanês que conhecemos, e não ocultarei que estamos... fascinados."
O embaixador voltou a rir, ao passo que o cônsul, que o acompanhava mas não abrira a boca durante toda a conversa, agora nos olhava com ares de vaga desconfiança.
Evidentemente suspeitava que fôssemos espiões, suspeita que se acentuou quando Max tirou alguns mapas da pasta para mostrar ao embaixador.
"O cônsul nos toma por espiões", disse a Max, quando retornávamos. "Também notei", respondeu ele. "Que tal lhe pareceu o embaixador?", indagou. "Espantoso!", disse
eu. "Espantoso? Espantoso é pouco."
Aqui terminavam as anotações. O subprefeito esfregou os olhos. "Diabo de trabalho", murmurou. Sentia a cabeça completamente vazia.
Algo o fez se voltar para a janela. Era a chuva, que o vento jogava de encontro à vidraça. Acabava de amanhecer uma dessas manhãs sujas, que, desde a alvorada, só
trazem à mente coisas ruins, dívidas que vencerão na semana que vem ou o medo secreto de um câncer.
"'O cônsul nos toma por espiões', disse a Max..." O subprefeito leu e releu o trecho, balançando a cabeça. "Velhacos", disse baixinho. Pensavam que podiam prevenir suspeitas trazendo à baila eles próprios a palavra espião.
Punham as barbas de molho: "Vejam, não temos nada a esconder, não receamos usar essa palavra...". Mas a ele não enganavam. Deviam ser espiões, se não fossem coisa
pior. Toda aquela tagarelice sobre Homero e os rapsodos não devia passar de uma cobertura para o verdadeiro trabalho sujo. Por certo tinham escrito aquelas notas
todas de caso pensado, e de caso pensado as deixaram na mala para o idiota do Pjetêr Prenush achá-las mais fácil.
"Jumento!", exclamou o subprefeito. "Cabeça-de-bagre!" Havia entregado os papéis, cheio de si, como quem diz: "Viu como sou competente?".
"Pobre cretino. A você engabelaram, cretino, mas a mim não hão de lograr. Comigo nada disso adianta. Veremos o que dirá Dull Baxhaj."
Como sempre, a evocação de Dull Baxhaj aplacou sua irritação. Não por acaso costumava dizer que ele era um bálsamo, uma garantia de sono tranqüilo. Sempre que alguma
aflição inesperada o atormentava, uma dessas angústias sem causa, que são as mais corrosivas, imaginava o informante trepado num telhado, entrando por chaminés,
equilibrando-se numa fuliginosa viga de forro, e logo se acalmava. "Dull Baxhaj ouve tudo", disse consigo, "ele fareja o mal... Quanto a você, corujão, eles o enrolaram.
Puseram uns papéis diante do seu nariz, e você caiu como um pato. Espiões miseráveis... Crápulas..."
O subprefeito voltou a se inflamar. Uma cólera cega, dessas que brotam das entranhas mais cavernosas, percorria-o em espasmos.
Pareceu-lhe ouvir algo batendo nos vidros da janela, mas dessa vez era a porta. Espantou-se ao ver Daisy.
Ainda envolta no calor da cama, vestindo uma camisola
transparente, ela se aproximou em silêncio. Meu Deus, como era doce! Ele tinha razão ao dizer que um ar sonolento lhe caía melhor que o mais caro vestido...
"O que está fazendo?", perguntou ela, baixinho. Num gesto reflexo ele cobriu as folhas com as mãos, mas os olhos da esposa ainda não estavam em condições de discernir
o que havia nelas.
"Como pode ver, trabalhando..." "Assustei-me. Aconteceu alguma coisa?" Ele acariciou seus cabelos. "Durma, durma mais um pouco. Ainda é cedo." Detrás da janela o
vento assobiava surdamente. Ele a viu sair e acompanhou o belo contorno de suas ancas, mas uma luz fria se apossara do seu olhar.
Os papéis diziam alguma coisa sobre "fertilidade" e "engravidar enquanto é tempo". Mencionavam até o "esperma homérico"...
Ele retornou freneticamente aos papéis. Achou a passagem. E estava tudo ali, exceto a palavra esperma, pois o que estava escrito era "essência". Mas era quase a
mesma coisa.
Agora entendia de onde vinha aquela fúria surda. Toda vez que alguém aludia a esterilidade ou fecundidade, parecia-lhe que se referia a Daisy. Pior: ele tinha a
impressão de que o interlocutor a cobiçava e que mal podia esperar a hora de depositar seu sêmen dentro dela. Fecundá-la... antes que fosse tarde... enquanto não
vinha a menopausa... e o ocaso...
Bem que durante o jantar um dos dois lançava sobre ela olhares melosos. "Naturalmente", repetia em voz baixa o subprefeito. Já estava a pique de concluir que eles
tinham vindo do outro lado do mundo só para dormir com Daisy.
O ciúme, entremeado a um tipo específico de desejo, queimava-lhe as entranhas a ponto de enlouquecê-lo.
De longe vinham as badaladas do feino da igreja franciscana, tristes, como se implorassem algum perdão em meio à chuva. Ele imaginou frei Zef celebrando a missa,
com os olhos ainda empapuçados pela noite passada em claro, e lhe ocorreu de relance que talvez o frade dormisse com uma monja, do contrário não teria sido tão zeloso
ao traduzir as libertinagens do irlandês.
As reflexões o levaram de volta ao alvo corpo de Daisy. Claro que a cobiçavam. Sonhavam com a hora de possuí-la, fecundá-la...
Outro confuso sentimento de desejo, distinto dos anteriores, percorreu-o novamente. Levantou-se, deixou o escritório e entrou silencioso no quarto conjugai.
Viu-a dormindo, tranqüila, e não ousou despertá-la, embora ela lhe parecesse desejável como nunca.
Daisy não dormia. Quando ouvira a poita do quarto ranger, fechara os olhos e respirara pausadamente. Devia ter tido um sonho erótico ao alvorecer, pois se sentia
toda úrnida.
Lá fora a manhã permanecia sombria. Assim como o sino dos frades franciscanos, que soava como se estivesse exausto.
Ela quis fazer o sinal-da-cruz, mas a mornidão da cama não permitiu. Em vez disso, acariciou languidamente os seios, depois o ventre, à beira das lágrimas.
Trezentos passos adiante, Willy Norton fez o sinal-da-cruz. Ainda estava meio adormecido, mas quando ele ouviu as badaladas, sua mão se moveu maquinalmente sobre
o peito.
A noite fora de fato um inferno. Só ao amanhecer a ânsia que não lhe poupara um único canto do cérebro afinal arrefecera. A acinzentada cobertura metálica do magnetofone
refletia
discretamente a luz da alvorada. "Aí está você, amigão", pensou Willy Norton com uma alegria tranqüila. Sentia-se apaziguado com a aproximação da manhã. Nem as picadas
dos percevejos tinham a mesma força: dir-se-ia que eles também estavam com sono.
"Até o soar dos sinos é diferente por aqui", chegou a pensar, antes de adormecer de vez. Mas continuou a ouvir em sonhos aquelas badaladas espaçadas, de um timbre
raro, soturno.
Capítulo 4
Um pequeno grupo de curiosos postado diante do Hotel Glob esperava para ver os dois irlandeses, ou melhor, sua bagagem, que, conforme a ruidosa profecia do carregador
Csut Arap, deveria causar imprevistos na hora de ser levada para a carruagem, imprevistos que poderiam até derrubar ou machucar os empregados do hotel incumbidos
da tarefa (Csut Arap tivera a esperança de ser contratado ele próprio para a empreitada), quem sabe quebrar a carruagem e, por que não?, esparramar tudo pela sarjeta.
Porque Csut Arap agora falava não apenas do terrível peso das caixas malditas, mas também de uma espécie de tontura que elas lhe provocaram. E se um cérebro de gente
ficara assim abalado, era possível imaginar o que poderia acontecer com o dos cavalos, acrescentara mais tarde, deixando subentendido que o mínimo que se podia esperar
era que os animais tomassem o freio nos dentes e a carruagem viesse abaixo levando junto os viajantes.
O cocheiro Lym ouvira tudo isso, mas mesmo assim se apresentou diante do hotel na hora combinada, mostrando que não se deixava impressionar por vaticínios sinistros. "Meus cavalos são mais inteligentes que Csut Arap",
fora a sua resposta, segundo alguns testemunhos, quando alguém mencionara a comparação de Csut entre os cérebros humanos e os eqüinos. Não obstante, o pequeno ajuntamento,
que esperava fazia mais de uma hora para ver no que aquilo iria dar, notou um leve desassossego no rosto do cocheiro e no modo como agitou o relho quando os estrangeiros
apareceram à porta do hotel.
Caíam pingos esparsos de chuva, mas os dois não subiram na carruagem até ver sua bagagem acomodada. Ao transportála, vários empregados do hotel efetivamente escorregaram,
assim como o porteiro e em particular o próprio gerente, que, cheio de nervosismo, supervisionava tudo, mas os escorregões, a despeito do alto risco, não chegaram
a derrubar ninguém, muito menos o grupo inteiro ("Vão se amontoar uns por cima dos outros, juro por Deus", afirmara Csut Arap. "Vão se misturar como a carne de um
kebab* e depois rolar na sarjeta."). O único incidente que marcou o embarque não fora previsto nem sequer por Csut Arap: um dos forasteiros ergueu os olhos inquietos
para o céu e disse algo ao outro, em seguida ambos tentaram dizer alguma coisa ao criado que carregava uma das caixas, entietanto, o primeiro, livrando-se mais que
depressa do sobretudo, jogou-o sobre a caixa, enquanto o outro balançava a cabeça como quem diz: "Fez muito bem".
"Ah-ah, parece que querem proteger aquela caixa da chuva", disse um dos curiosos. "Ela deve estar cheia de... de..."
"De quê?", quis saber alguém.
Não obteve resposta.
"O que você acha que tem na caixa?", insistiu a voz.
O outro olhou em volta com os olhos arregalados.
"Quem quiser saber pergunte a eles", resmungou.
O que perguntara deu de ombros.
Nesse ínterim, a carruagem se pôs a caminho, provocando
um movimento sincronizado dos pescoços presentes, como se estes estivessem atados por um fio invisível.
Pouco depois ela deixava a cidade e seguia solitária pela estrada. Os viajantes, cada um de seu postigo, olhavam para o descampado, tão triste que parecia de luto, sobretudo nas suas extremidades.
Willy Norton esfregou os olhos com o dorso das mãos.
"O campo está coberto de neblina, ou é impressão minha?"
"Tem neblina, sim", respondeu Max.
Willy suspirou, aliviado. "Preciso parar de pensar nisso", disse consigo. Desde que haviam deixado N., ele tinha a sensação de que um fino véu recobria seus olhos.
Mas parece que o véu estava no descampado e não na sua retina. Bem-disposto, ele se pôs a assobiar baixinho.
"Bonito, não é?", disse, logo depois. "Acho que hoje nossa aventura começa para valer."
Max aquiesceu, satisfeito.
Pássaros negros, cujas asas pareciam pesadas de chuva, saltitavam sobre medas de feno encharcadas.
"Quanto mais distante for a hospedaria, melhor", disse Willy. "Trabalharemos mais tranqüilos. Senão, teremos de desperdiçar parte do tempo com a chamada elite de
N."
"Temo que eles nos sigam até lá."
"Será? Então teremos de ser um tanto mal-educados."
"Falar é fácil", disse Max. "Além do mais, acho que, pelo contrário, devemos ser cuidadosos com eles."
"Talvez seja preciso explicar com mais detalhes o trabalho
que nos espera, para que nos deixem em paz. Afinal de contas, trata-se de um benefício para o país deles."
"E você acredita que eles dão alguma importância para isso?"
"É, talvez você tenha razão... Quando observamos de longe um país, temos a impressão de que todos os seus habitantes farão qualquer coisa por ele, mas quando nos
aproximamos... Acho que isso ocorre também na Irlanda. Veja, mais medas de feno."
"Eu nunca tinha visto medas de feno tão parecidas com mendigos", disse Max.
"Talvez seja porque já estão pela metade, agora que o inverno chega ao fim. Do que estávamos falando?"
"Da elite de N."
"Ah, sim. Se nos envolvermos com eles, adeus, trabalho. Parece que ouvi cochicharem a palavra baile."
"É mesmo?"
Max se pôs a rir. Por algum tempo trocaram gracejos, imaginando-se no baile provinciano. Depois, Max espicaçou o amigo, por causa da esposa do subprefeito.
"Achei que ela lançava olhares langorosos para você."
"É?" Willy não parava de rir.
"Estalagem do Osso do Búfalo, Estalagem do Osso do Búfalo", repetia consigo, no ritmo das rodas da carruagem. Um autêntico nome de hospedaria medieval. Quanto mais
se estendia o caminho, mais ele tinha a sensação de estar a salvo dos bridges e bailes. Os buracos da estrada, que faziam a carruagem inteira estremecer, talvez
fossem uma defesa suplementar contra os carteados da província.
A estalagem ficava bem na beira da estrada. Antes mesmo que a carruagem parasse, eles repararam no telhado coberto por
pedras chatas, na varanda com seu parapeito de madeira enegrecida pelo tempo, na porta cujas folhas o vento sacudia.
O dono do estabelecimento saiu para recebê-los.
"Meu nome é Shtiefen. Este aqui é meu ajudante, Martin", e apontou um rapazote. "É uma alegria receber no meu albergue hóspedes tão excepcionais." Parecia realmente
satisfeito, porém as pontas do seu bigode pendiam para baixo, como se algo as tivesse ofendido.
"Estalagem do Osso do Búfalo", leu Willy Norton, em voz alta, na placa pendurada, meio torta, acima da porta de entrada. "Um nome muito antigo, meu senhor, não é?"
"Pode acreditar", disse o estalajadeiro. "Assim a chamam há gerações e gerações. Dizem que está aqui há quase mil anos."
Max soltou um assobio de admiração ao olhar para as vigas do teto, negras de fuligem.
Em fila indiana, subiram uma escada de madeira que rangia ameaçadoramente. O estalajadeiro abriu a porta de um dos dois únicos quartos do andar.
"Vejam, aqui é o quarto, senhores. A roupa de cama está limpa. Se desejarem, podem acender a lareira. À noite venta muito, mas se fecharem as janelas nem vão sentir.
Aqui os senhores têm as lamparinas para a noite." Os olhos do homem brilharam ainda mais forte, em seguida arrefeceram, pensativos. "É espantoso, mas não faz duas
semanas sonhei que chegavam aqui duas pessoas diferentes da nossa clientela habitual. Vinham a cavalo, e as suas montarias traziam no pescoço, em vez de crinas,
lamparinas apagadas... 'Deus queira que seja um bom augúrio', disse cá comigo. E logo depois me informaram que os senhores estavam para chegar."
"Os rapsodos freqüentam a sua estalagem?", perguntou Willy.
"Rapsodos? Hum... Primeiro vinham mais. Agora, só de raro em raro."
"É mesmo?", admirou-se Max. "Pois nos informaram o contrário. Disseram que todas as rotas dos rapsodos se cruzam na sua estalagem."
"Isso é verdade, senhores", disse o estalajadeiro. "É assim mesmo. E fico contente de ver que os senhores sabem disso. Talvez tenha me apressado ao falar ainda agora;
queria dizer apenas que antes havia mais tocadores de lahutè. Mas de uma coisa os senhores podem ter certeza", prosseguiu, abrindo um sorriso. "Se desejam encontrar
rapsodos, não existe estalagem melhor em toda a Albânia, exceto, talvez, a dos Dois Robertos, mas essa fica bem longe daqui."
"Voltaremos a conversar sobre isso", disse Max. "É com eles que queremos trabalhar."
"Ah, sim? Belo trabalho", disse o dono da hospedaria.
No fim daquele dia o subprefeito, ao redigir em seu escritório um relatório ao ministro do Interior, a todo momento corria os olhos pelas informações de Dull Baxhaj
sobre o primeiro dia dos dois estrangeiros na Estalagem do Osso do Búfalo.
"Esse escreve como se deve, o finório", murmurou. "Um simples informante, mas escreve melhor que muito repórter da revista Perpjekja Shiqptare."** Havia muito o
subprefeito cultuava em segredo o estilo dos textos de Dull Baxhaj, sobretudo passagens do tipo "a despeito de que isso não se inclua entre as atribuições do informante",
ou o emprego do elegante "entretanto". Ele próprio, reconhecia-o, enfiava "entretantos" onde não devia, e invariavelmente era obrigado a suprimi-los ao passar o texto a limpo.
"Ao chegarem à Estalagem do Ossobúfalo, e depois de trocarem algumas frases com o estalajadeiro (aqui, ainda que isso extrapole as atribuições do informante, este
se sente no dever de assinalar que uma parte da conversa do dito-cujo, mais precisamente o relato aos recém-chegados do que vira em sonhos, pareceu, ao autor destas
linhas, não só incompreensível mas também completamente fora de propósito, na boca de um súdito do nosso reino que se dirige a estrangeiros); pois então, depois
de trocarem as frases supramencionadas, os estrangeiros ficaram em seu quarto."
O subprefeito saltou para um trecho mais abaixo, onde Dull Baxhaj descrevia a abertura da bagagem, em especial da misteriosa caixa metálica que encerrava o aparelho,
e contava que eles retiraram cuidadosamente de suas pastas centenas, para não dizer milhares, de fichas. "Há que ser dito", escrevia a seguir o informante, "que
não evidenciaram nenhuma cautela ou preocupação em ocultar os papéis. Longe disso, muitos destes, principalmente os mapas, foram pregados nas paredes com alfinetes,
cie modo que, após algum tempo, cobriam não só todas elas, como também a parte interna da porta."
Então, o subprefeito procurou a parte em que Dull Baxhaj descrevia o teste com o aparelho, cuja voz o informante ouvira pela primeira vez. Segundo constava, a engenhoca
de fato registrara as vozes de ambos, não obstante estas soassem muito distintamente de uma voz humana comum. A despeito dessa diferença, prosseguia Dull Baxhaj,
uma longa experiência levava o autor daquele informe a asseverar sem a menor dúvida que se tratava das vozes deles e de ninguém mais, pois, se comparadas às suas
vozes naturais, mostravam precisamente as mesmas distorções que apresenta a voz de alguém quando ouvida atrás de uma porta, no oco de uma chaminé ou em cima de um velho muro em ruínas.
"É um capeta", não se conteve o subprefeito. "O cão em pessoa, caramba!"
A passagem em que o informante voltava a falar dos mapas pendurados nas paredes lhe pareceu ainda mais preciosa, digna de ser reproduzida no relatório ao ministro.
"O autor destas linhas, depois de proceder aos devidos deslocamentos pela águafurtada, conseguiu enxergar mais claramente, e de diversos ângulos, os mapas e as anotações
que os cobriam."
"Agua-furtada... Hum, que nome!", murmurou o subprefeito, antes de retornar ao trecho onde Dull Baxhaj descrevia os mapas. Segundo ele, estes se assemelhavam aos
dos boletins meteorológicos, os quais vira muito tempo antes, na única vez em que estivera no aeroporto de Tirana, "com o encargo de, como há de recordar o senhor
subprefeito, vigiar o embarque da srta. Maria M., que viajava para Malta sob a suspeita de levar consigo duas antigas imagens sacras furtadas da catedral de Shkodra
e uma carta secreta do monsenhor S.".
"Ele sabe de tudo", admirou-se o subprefeito. "Não há nada que lhe escape; basta olhar, apenas uma vez, isso sem falar das coisas que ouve, e pronto. Podem passar
cem, duzentos anos: enquanto existir a espécie humana, Dull Baxhaj há de trazer tudo na cachola. E o arquivo dos arquivos. Vale mais que o British Museum, palavra,
mais que as pirâmides do Egito."
Assim, conforme a minuciosa descrição de Dull, nos mapas estavam assinaladas várias setas, algumas circulares, outras elípticas, outras ainda retas, tal qual as
que indicam chuvas e ventos. Por entre as setas, em cima ou embaixo, havia letras, cifras ou combinações de ambas: A. CRB, A4. Em alguns dos mapas se viam outras linhas, que apontavam caminhos e povo.idus. Dois deles traziam marcada inclusive a fronteira com a Iugoslávia.
"Hum, o negócio está ficando feio", pensou o subpiclcito. "Os patinhos, ao que tudo indica, não tomaram as precauções mais elementares. Ou insistem em nos considerar
completamente imbecis, ou... ou... ou então há aqui algo muito mais sério do que se pensava."
Adiante, Dull Baxhaj fornecia informações ainda mais espantosas. Segundo ele, algumas das cartas assinalavam grandes áreas que continham inscrições como "Zona Épica
A", ou simplesmente '"Zona Épica", ou ainda "Zona Épica na Acepção da Palavra", havendo até uma "Subzona Épica" e uma "Zona Semi-Épica".
Aquilo era mesmo o fim. O subprefeito cogitou de copiar toda essa parte do relatório, mas algo o conteve. Não era apenas uma questão de amor-próprio, pois, afinal
de contas, ninguém iria mesmo ficar sabendo que ele, o poderoso subprefeito de N., surrupiara o relatório de um simples informante. O motivo era outro: temia cometer
uma gafe. A coisa parecia aberta demais, como se alguém tivesse planejado tudo de maneira a dar na vista. A não ser que o próprio descaramento fosse, como ele imaginara,
uma manobra para evitar suspeitas...
"Hum", fez, pela milésima vez, o subprefeito. Ficou um bom tempo na dúvida, com o lápis entre os dedos. Não seria mau adotar, na correspondência para o ministro,
uma atitude que, acontecesse o que acontecesse, não deixasse brechas para acusações, nem de ingenuidade perante os estrangeiros, nem de excesso de zelo e suspicácia.
Recomeçou a escrever, e enquanto enchia de acréscimos frases deixadas pela metade, voltou a sentir a pontada da inveja, inveja de Dull Baxhaj. Quanto mais pensava,
mais se encolerizava consigo mesmo. Várias vezes tentou, em vão, introduzir
um "entretanto" no texto: a palavrinha se recusava a encaixar, destacava-se das outras como um corpo estranho, completamente artificial, quase grotesco, e por três
vezes ele a riscou com um traço furioso como um golpe de açoite. "Isso é para eu criar vergonha", resmungou. "Um mísero informante escreve melhor que eu." Tentou
se consolar lembrando o ditado sobre as flores que às vezes nascem no estéreo.
Depois de muitos tormentos conseguiu por fim concluir um parágrafo, expondo ao ministro a opinião de que, com base nos mapas, nas setas que os cobriam, na curiosidade
pelos movimentos dos rapsodos em toda a Albânia setentrional, não havia a menor dúvida de que os dois estrangeiros atuavam num serviço de informações. Ainda estava
por se descobrir a maneira como pensavam utilizar os rapsodos, quem sabe para transmitir e receber mensagens codificadas. Por enquanto, seguindo as instruções de
Sua Excelência, o subprefeito mantinha-os sob espreita ininterrupta, porém (e aqui ele pedia desculpas ao ministro por levantar o problema) sentia-se na obrigação
de acentuar que essa vigilância na realidade não passava de um controle surdo.
Ao terminar a última frase, o subprefeito a comparou com o texto do informante, e no mesmo instante sua precária satisfação com o que escrevera desabou. A frase
era uma cópia perfeita, com exceção da palavra ministro, subprefeito no texto do informante. Teve de admitir que, de uma vez por todas, tornara-se escravo do estilo
de Dull Baxhaj. "Ora, que tudo isso vá para o diabo!", pensou. Estava cansado. Agora tinha que refletir sobre outro ponto: deveria solicitar mais uma vez ao ministro
um informante que soubesse inglês, ou seria melhor não voltar a importuná-lo? Duas semanas antes, em uma de suas cartas, ele apresentara a questão, entre outras,
e recebera uma resposta taxativa do secretário do ministro: havia na capital apenas dois informantes que sabiam inglês, dos quais um mal estava dando conta da
vigilância da embaixada britânica, já que o outro se achava provisoriamente fora de combate, com uma inflamação no ouvido. Em tais circunstâncias, o senhor subprefeito
haveria de compreender que, por mais essencial que fosse a espreita de seus dois estrangeiros, não havia como designar para ela o único informante anglófono de Tirana.
O secretário tentaria encontrar um agente com a mesma qualificação em algum outro lugar,do reino, mas julgava-se na obrigação de prevenir o senhor subprefeito de
que isso não era coisa fácil, pois o trabalho dos informantes fora sumamente dificultado nos últimos tempos, precisamente após um controle médico que evidenciara
que boa parte deles, ainda que os agentes o dissimulassem, já não escutava direito.
O subprefeito se arrependia de não haver se adiantado, estimulando Dull Baxha) a aprender um pouco de inglês. Não tinha dúvidas de que Dull se sairia bem, despachado
como era. Pois não tinha ele, em pouquíssimo tempo, chegado a se iniciar no latim, para não perder o fio das entrevistas do bispo de Shkodra com os párocos da subprefeitura?
E, pouco depois, não aprendera quase fluentemente a fala dos ciganos, ao procurar um cavalo roubado da coudelaria real?
Enfim, consolou-se, ninguém poderia imaginar a chegada dos estrangeiros. "Se você se prepara para o inglês, eis que um belo dia esbarra num turco, ou num japonês,
ou em Deus sabe quem. Eh, um trabalho sem fim, palavra."
Seus olhos retornaram ao relatório de Dull Baxhaj. A conclusão era verdadeiramente uma obra-prima, e ele já se amargurava por não poder usá-la em sua própria prestação
de contas ao ministro. "Outra referência ao inglês! Que o diabo o leve!" Ainda assim... e se ele tentasse... E se, mesmo não apresentando expressamente a questão
do informante anglófono, ele concluísse sua carta com as dificuldades advindas de uma vigilância surda-muda, restrita apenas aos olhos? E esse seria o lugar
ideal onde copiar de cabo a rabo as^lucubrações filosóficas de Dull Baxhaj sobre a relação entre os métodos oculares e os auriculares no ofício de informante.
Antes de retomar o lápis, o subprefeito se pôs a ler mais uma vez o texto. "Um mestre, palavra de honra", pensava a cada frase. "Shakespeare, Dante Alighieri." "Pois,
como possivelmente é do conhecimento do senhor subprefeito, a vigilância é primordialmente uma arte dos ouvidos. A ajuda prestada pela espreita é de importância
menor, para não dizer que é supérflua. Os grandes informantes inclusive têm a vista fraca, para não lembrar certos casos em que não enxergam nada."
"O diabo", ia dizendo sempre, "o cão-tinhoso, o capiroto." E se pôs a copiar.
capítulo 5
"Onde estou? Por que estou aqui?" Tufos de pêlos fizeram cócegas, primeiro em seu queixo, a seguir no nariz, e ele abriu os olhos, tremendo. Quase gritou ao dar
de cara com as longas mechas avermelhadas do lobo ou urso dos seus temores infantis. Então caiu em si e apenas ajeitou a coberta felpuda que durante a noite envolvera
sua cabeça.
Amanhecia. A luz do dia entrava por uma das janelas estreitas, que ficara entreaberta. O vidro estava embaçado, e por isso a luminosidade matinal parecia mais suave.
Ele voltou a cabeça para a cama de Max, e constatou que este dormia profundamente.
"O Osso do Búfalo", pensou. Estavam realmente ali, na estalagem legendária, envoltos em felpudas cobertas balcânicas, numa escura manhã de inverno. A aventura começara.
Agora, mesmo se quisessem, não poderiam detê-la. Brr, que frio fazia! Uma sensação de alegria o preencheu, dessas alegrias que o frio estimula ainda mais. Lentamente,
esforçando-se para não fazer
barulho, levantou-se e foi até a janela, pisando passo a passo nas rangentes tábuas do soalho. Um céu cinzento, que parecia circundar uma catástrofe recente, atraiu
por um bom tempo seu olhar.
Do térreo vinha um cheiro de café torrado na hora. "A manhã", pensou ele, e desceu.
"Bom dia", saudou o estalajadeiro, surgindo repentinamente diante de Willy. "Dormiu bem, senhor?"
"Bom dia", respondeu ele. "Dormi muito bem, obrigado."
Ao sair, Willy percebeu à sua direita um aposento grande, com muitos leitos de madeira quase colados uns nos outros. Na maioria deles não havia ninguém; somente
dois ou três estavam ocupados por viajantes envoltos em cobertores.
"É o quarto dos hóspedes, senhor", explicou o dono do albergue. "Fazemos assim nas estalagens. O dormitório é coletivo, e há apenas um ou dois quartos separados,
para casos especiais como o dos senhores. As pessoas por aqui não têm dinheiro..."
"Ah, sim, entendo."
Alguns minutos depois, viu-se, inteiramente só, no caminho em meio ao descampado coberto de névoa. Uma cerca, que talvez delimitasse o terreno da estalagem, ficara
para trás, o que tornou mais completos o isolamento e a calma. "Que tranqüilidade!", murmurou. Mas as palavras não diziam tudo. Não se tratava de uma tranqüilidade
qualquer. Da cerração vinha um leve rangido que acentuava ainda mais o silêncio. Não era simplesmente o ruído dos passos dele. Seria mais fácil acreditar em uma
movimentação pouco perceptível, quem sabe a das criaturas dos sonhos - sonhados por pessoas distintas - que, por algum motivo, teriam elegido aquele lugar para exibir
suas proezas desarticuladas.
De repente Willy Norton sentiu em todo o corpo um frescor e uma leveza incríveis. Tudo lhe parecia possível naquele
fragmento de manhã, até participar dos grandes fcilos do do; alterar a duração dos dias, redefinir as estações do ;mo, cmesmo mudar ligeiramente a rotação do globo
terrestre. Nilo linha dúvida de que descobriria a chave dos poemas homérico.s.
Não se deu conta do quanto caminhara. Ao olhar para trás, mal distinguiu os contornos da estalagem. "Max já deve ter acordado", pensou. De fato, quando voltou, encontrou Lparo colega tomando café com o estalajadeiro.
Após o desjejum, os dois saíram juntos, na mesma direção que Willy seguira em seu passeio solitário. A calma era igual à de uma hora antes, porém Willy sentiu que
aquele êxtase interior amainara. O nevoeiro cobria os limites do descampado, de onde se destacavam, como se viessem de outro mundo, alguns pássaros negros que davam
vôos rasantes sobre a relva e depois se desvaneciam, tal qual fantasmas. Por mais de uma vez tiveram a vaga sensação de divisar, detrás do nevoeiro, o contorno dos
montes Malditos."
Tinham conversado tanto sobre esses montes, em Nova York e durante a viagem, que mal podiam esperar o momento de avistá-los. Em seus primeiros projetos, haviam pensado
em iniciar o trabalho escalando-os; só mudaram de planos mais tarde, quando se informaram sobre os rigores do inverno e a precariedade das estradas. Todos os que
tinham algum conhecimento da Albânia setentrional lhes asseveravam que eles encontrariam mais rapsodos se se fixassem em uma encruzilhada, como a Estalagem do Ossobúfalo,
em vez de perambular por aldeolas perdidas na montanha, numa peregrinagem penosa e infrutífera.
Na véspera, Shtiefen lhes garantira que pelo menos duas vezes por mês algum tocador de lahutè se hospedava na estalagem. Em outros tempos era diferente, suspirara; quase toda noite havia um deles. No entanto, parecia que aquela época se fora para sempre. Mas que eles não se apoquentassem:
haveriam de encontrá-los mesmo assim.
Tinham decidido manter até o fim o seu segredo, mas logo compreenderam que seria impossível não se abrir com o estalajadeiro.
Sem delongas, tentaram lhe explicar tudo com a máxima clareza.
"Ah, entendi, meus senhores", dissera Shtiefen, balançando a cabeça como fazia quando um freguês lhe pedia um café. "Compreendi perfeitamente. E é como se a minha
hospedaria tivesse sido feita de encomenda para um trabalho desses. Principalmente no que diz respeito àquela história de ouvir duas vezes a cantoria de um mesmo
tocador de lahutè. Se ele se hospeda aqui hoje, com toda a certeza há de voltar depois de uma semana, no máximo duas, quando retornar do casamento, ou do velório,
ou depois de matar seu oponente numa vencleta. Não há outro caminho para regressar às Terras Altas Só se ele soubesse voar. Mas quando é inverno, nem os passarinhos
voam sobre os montes Malditos."
O estalajadeiro só não podia garantir que os rapsodos aceitariam cantar para o magnetofone. Ele explicara que nenhum tocador de lahutè entoava sua cantoria sem um
certo cerimonial e uma certa audiência. Mas eles não deviam se impacientar. Não raro, sobretudo nas noites de inverno, criava-se no Ossobúfalo um clima de festa.
E ele, estalajadeiro, faria o que estivesse ao seu alcance: acenderia a grande lareira do aposento coletivo, ofereceria uma rodada de raki. Quanto à realização da
gravação, veriam como proceder. Talvez pudessem explicar
a questão aos rapsodos. Ou escolher o caminho mais curto, ocultando a engenhoca debaixo de uma pele de cordeiro. Mas se Deus quisesse, claro, tudo haveria de dar
certo.
Iam repassando tudo isso enquanto caminhavam. Era verdade que nem em sonhos poderiam tei concebido um estalajadeiro mais adequado aos seus planos. Ele era um especialista
em tocadores de lahutè e um profundo conhecedor de todas as suas manias e andanças. Ademais, falava dos rapsodos com uma espécie de reverência mesclada de melancolia.
Quando relatava o inusitado sumiço destes em determinada estação do ano e a freqüência temporária de suas aparições na estação seguinte, dava a impressão de se referir
às migrações dos pássaros. Até as palavras que escolhia reforçavam o paralelo: delicadas, repletas de diminutivos carinhosos que deixavam como resíduo uma vontade
de suspirar. Fora realmente uma grande sorte topar com um hospedeiro como aquele.
Enquanto conversavam, erguiam insistentemente a cabeça, na esperança de que os montes enfim se revelassem no horizonte. A cerração ainda escondia os limites do descampado.
Mas, não obstante, adivinhava-se atrás dela, em algum lugar não longe dali, o peso dos montes Malditos. E neles estava a grande zona épica cujo fascínio os levara
a atravessar o oceano. O mistério homérico haveria de estar ali, oculto pelo nevoeiro, esperando por eles para se deixar descobrir. Diversamente de uma hora antes,
agora Willy já não depositava tanta fé naquele descobrimento. Talvez ficassem vagando, minúsculos e impotentes, pelos arredores daquele reino de fantasmas, sem conseguir
penetrá-lo. E ele a custo reprimiu um gemido.
"Olhe, ali", disse Max de repente. "São pessoas ou meus olhos me enganam?"
"E você pergunta logo a mim? Não sabe que eu..."
Max pôs as mãos em pala, num esforço para enxergar melhor.
"Gente." E acrescentou: "A coisa mais comum do mundo. E, no entanto, não foi isso que eu senti".
Willy verificou que Max tampouco julgara possível que algo conseguisse escapar daquela névoa devoradora. Ainda assim, os pequenos pontos negros, depois de transpor
os limites entre os dois mundos, realmente se aproximavam. Pela emoção que se apossou deles, Willy e Max súbito compreenderam a razão de suas dúvidas, sobre se aqueles
montes ainda eram habitados e se as pessoas ainda cantavam como outrora. Mesmo se isso de fato tivesse ocorrido um dia, decerto agora estaria tudo semi-enregelado,
frio como um moribundo, e cada inverno poderia ser o último. Por isso deviam ter pressa, pressa de chegar a tempo, para que, ao menos no derradeiro suspiro, o enigma
se elucidasse.
Cada um deles ocultara suas dúvidas do outro, para não aumentar o abatimento dos momentos difíceis, quando os obstáculos se acumulavam como se tivessem combinado
jamais permitir que partissem para a Albânia. Porém, ambos tinham suplantado o abatimento, e agora, corno recompensa por tanta tenacidade, eis que os montes Malditos
arrancavam das entranhas aquelas criaturas que caminhavam na direção deles. Quase não se falaram durante a aproximação dos montanheses. Era a primeira vez que encontravam
habitantes da "Zona Épica na Acepção da Palavra". Suas vestes eram idênticas às descritas nos velhos poemas, e por pouco os dois não deixaram escapar uma exclamação:
como podiam continuar os mesmos de mil anos atrás?! As jaquetas, pretas, traziam nos ombros o que parecia ser um par de asas cortadas ou atrofiadas, algo de dar
arrepios. Ali ficava a fronteira entre os homens e os deuses, o trágico ponto de separação, ou de encontro, como se queira. A poesia épica falava disso, e existia
inclusive uma velha palavra albanesa, hyjanjeri, "deus-homem", talvez sem equivalente em outra língua exceto o grego antigo. Quanto às calças dos montanheses, eram da cor do leite, justas e com listras pretas
verticais na lateral que lembravam o sinal de perigo numa instalação elétrica de alta tensão. Uma vestimenta que aos irlandeses pareceu única, mesclando em si, com
a malha de um bailarino que representa no palco as forças do mal, o hábito de sabe-se lá qual monastério medieval. Havia nela uma luminosidade ilíria," um negrume
balcânico e ainda alguma coisa mais, que lhes evocou os montanheses celtas, ou outros habitantes de outros montes jamais assinalados em nenhuma carta geográfica.
"Lenhadores", disse Max, baixinhç, ao ver às costas dos montanheses os feixes de achas e os machados.
Sem dúvida eram lenhadores, até porque, como Willy e Max já sabiam, os albaneses não usavam armas brancas, proibidas pelo Kanun." "Com certeza, lenhadores", repetia
consigo Willy Norton. Ainda assim, sentia-se que aqueles machados podiam facilmente trazer nas lâminas manchas de sangue, derramado na punição de velhos crimes.
Agora os montanheses estavam muito próximos. A fisionomia deles tinha alguma coisa dos desenhos que ornamentam vasos antigos. O peso dos imprevistos, os trágicos
laços que o destino dá sem aviso, os remorsos pela tardança de um gesto que poderia evitai o golpe fatal, ou pelo afã de outro que levara a uma desgraça: todo um
mundo transparecia naquele jeito de andar, talvez moldado pelos preceitos do Kanun, diferente da marcha normal dos humanos.
"Bom dia", saudou o montanhês que vinha à frente.
O inesperado cumprimento os confundiu. Willy murmurou algo mais parecido com good morning. Max fez uma saudação com a mão.
Algum tempo depois, olharam em torno e viram que tinham se distanciado a ponto de perder de vista a estalagem. No caminho de volta, diziam-se que era preciso se
lançar ao trabalho o quanto antes, no dia seguinte, se por acaso aparecesse um rapsodo, ou até naquela mesma noite.
A calma imperava na hospedaria. Os dois subiram ao seu quarto e voltaram a abrir as caixas, tirando delas outra leva de fichas e mapas. Ainda havia lugar para afixá-los,
acima de um dos leitos e na parede entre as janelas.
"Será que há ratos aqui?", indagou Max de repente, erguendo os olhos para o teto.
Willy, que afixara um mapa da península balcânica, também olhou para cima.
"Não creio."
Ele voltou a observar o mapa, onde as cadeias de montanhas lembravam colunas vertebrais de cavalos dispostas caoticamente no pátio de um matadouro. Sobre elas estava
escrito: Albânia do Norte, Terras Altas, Kossovo, Antiga Sérvia.
Durante mais de mil anos, albaneses e eslavos haviam se entrematado interminavelmente naquelas terras. Batiam-se por qualquer coisa: terras, fronteiras, pastagens,
água; não seria de espantar se combatessem pelas estrelas do céu. E como se isso não bastasse, disputavam também a antiga epopéia, que, para completar a tragédia,
florescia nas duas línguas, albanês e servo-croata. Cada povo teimava em se proclamar o criador da epopéia, reduzindo o outro à condição de ladrão, ou, na melhor
das hipóteses, imitador.
"Já lhe passou pela cabeça que, mesmo que nosso negócio
seja Homero, sem querer nos intrometemos nessa disputa?", perguntou Willy, sem tirar os olhos do mapa.
"Como assim?"
"É quase inevitável. O estofo homérico da epopéia deles, que desejamos comprovar, tem um vínculo direto com a antigüidade da presença albanesa nesta península. Acontece
que justamente essa antigüidade provoca o ciúme dos sérvios."
"Hum, ciúme", murmurou Max. A despedida de sua mulher em Nova York tinha sido uma verdadeira cena: "Vai, vai cair nos braços da namorada que quiser e onde quiser.
Vai junto com aquele sem-vergonha do Willy Norton! Mas não me venha com essas invenções de estudos homéricos e não sei que outras lorotas. Não percebe que vocês
dois viraram uma piada?".
"Você está me ouvindo?", perguntou Willy.
"Claro. Você falava de ciúme."
"Exatamente. Os sérvios não suportam a idéia de que os albaneses tenham chegado aqui antes deles: uma questão de orgulho nacional, que, deve-se dizer, assume em
todos os Bálcãs os contornos mais doentios e grotescos. Ocorre que isso ganha cores expressamente políticas quando vem à baila o problema de Kossovo..."
Ele continuava postado diante do mapa. Fitava-o com olhos
turvos.
"Uma guerra de mil anos", disse, pensativo. "Comprida, não?"
"Bastante. Porém, foi ela que engendrou a poesia épica deles", contestou Max, voltando-se para as caixas metálicas. "Toda ela está encharcada de sangue."
Por um momento ambos ficaram olhando o brilho frio do metal. Sua tarefa seria recolher toda a epopéia dispersa pelas Terras Altas e encerrá-la naquelas caixas.
"Os alemães a denominaram guerra racial", comentou Max.
"Aliás, até definiram qual é a raça superior; segundo eles, a albanesa."
"Admito que tem sido um combate cruel", disse Willy. "Mas quando ouço falar em raça, e especialmente raça superior, raça inferior, revolto-me. Isso cheira a nazismo."
"E a explicação da moda hoje em dia."
Fez-se um longo silêncio.
"Já tentaram roubar-lhes a epopéia", disse Willy, virando as costas para o mapa.
"Faz sentido, é o que eles têm de mais precioso."
"Ê mesmo uma poesia encharcada de sangue." Willy agora cravava os olhos nas caixas, como se a epopéia já estivesse ali dentro mas pudesse a qualquer momento transbordar
e escapar.
"Está frio." Max esfregou as mãos, abandonou as fichas e pôs a coberta da cama nos ombros. Pouco depois Willy o imitou. O frio os deixava sonolentos.
Meio recostado no travesseiro, Willy tentou imaginar a chegada dos primeiros eslavos aos Bálcãs. As baladas épicas com freqüência relatavam o evento, como eles afluíram
vindos do Nordeste e do Leste, incontáveis, e como os povos já estabelecidos na península se viram forçados a recuar, passo a passo. A torrente eslava parecia inesgotável
e realizou sua ocupação diferentemente dos romanos: sem exércitos, tratados ou estandartes. Era uma infindável marcha de mulheres, crianças, desordenada, cheia de
brados confusos, que lembrava mais uma catástrofe natural que uma invasão. Deve ter sido o maior dos abalos para os povos balcânicos de então, sobretudo os albaneses.
Tinham diante de si o oceano eslavo, imenso, eurasiático, ameaçando devastar a parte do mundo onde as artes mais haviam florescido. E aconteceu o que tinha de acontecer:
os nativos se armaram e enfrentaram o oceano. A maré montante se deteve precisamente nas cercanias de Kossovo.
Bateram à porta.
"Entre!", disse Max.
Era Shtiefen, trazendo uma braçada de lenha.
"Querem que eu acenda a lareira? Hoje está muito frio."
"Oh, obrigado. Falávamos da desavença entre sérvios e albaneses. E mesmo tão grande como dizem?"
"Ah, quem sabe até maior", disse Shtiefen, arrumando as achas. "Os senhores sabem o que escreveu um poeta albanês? 'Na cólera entre nós nascemos.'"
"Um poeta albanês se exprimiu assim?"
"Sim, senhores."
'"Na cólera entre nós nascemos'", repetiu Willy. "Cólera, mênin, a mesma palavra do início da Ilíada."
Recordaram o embaixador albanês em Washington. Max se dirigiu novamente ao estalajadeiro.
"Há ratos aqui? Por duas vezes pensei tê-los ouvido."
Shtiefen fez que não com a cabeça.
"Desinfetei a casa inteira especialmente para os senhores."
O fogo pegou depressa. Shtiefen saiu, e eles prosseguiram a conversa, às vezes caminhando pelo quarto, às vezes se detendo diante da lareira com as palmas das mãos
voltadas para o fogo.
Após o almoço, dedicaram-se à organização das fichas. Lá fora, a luz do dia se extinguia rapidamente, e chegou o momento em que as palavras rarearam e eles se sentiram
isolados por completo no meio da tarde invernal, na estalagem esquecida e surda. Seriam sempre assim os dias?
Max foi o primeiro a sacudir o torpor e lembrar de acender os lampiões de querosene. A luz dos pavios expulsou do quarto o crepúsculo, que cobrira o mundo como uma
máscara mortuária.
capítulo 6
O primeiro rapsodo desceu à estalagem quatro dias depois. O tempo estava horrível; um vento mesclado de chuva fazia as folhas das janelas trepidarem assustadoramente.
Bastou Shtiefen surgir no umbral da porta do quarto para os dois saberem, pela expressão do estalajadeiro: aquilo que tanto esperavam acontecera.
"Ele está lá embaixo", disse Shtiefen, baixinho, como se revelasse um segredo.
O rapsodo ia tratar de uns assuntos numa província vizinha. Voltaria, pelo mesmo caminho, dentro de duas semanas. Portanto, era exatamente o que eles queriam, se
é que ele, Shtiefen, entendera direito: a chance de registrar duas vezes a cantoria de um mesmo tocador de lahute.
"Rapsodos são gente difícil", prosseguiu Shtiefen. "Foi um custo convencê-lo a ficar. Falei do rnau tempo, disse que era muito tarde... 'Acredite-me, não o faço
pelo lucro, posso até alojá-lo de graça, palavra, mas tenho um pedido a fazer...' E falei dos senhores."
No aposento coletivo do térreo havia vários montanheses, encharcados. Antes que Max e Willy descobrissem qual deles era o rapsodo, viram o lahute encostado na parede.
Então, Shtiefen pôs a mão no ombro de um dos hóspedes (mais precisamente no coto de asa da jaqueta dele), virando-o para os clois. Fecharam negócio ali mesmo, de
pé, num instante. O rapsodo ficou um bom tempo olhando para os estrangeiros, como se ainda precisasse se convencer de algo. Poucas vezes eles tinham visto olhos
assim, de um tom muito claro e com uma trinca como a de um vidro rachado, o que duplicava sua argúcia penetrante. O estalajadeiro continuava a explicar alguma coisa,
mas o montanhês não ouvia. Inesperadamente, ele baixou a cabeça para aquiescer. Obedecendo a um antigo costume, não aceitou remuneração, apenas deu a entender que
não pagaria pela noite no albergue.
Descer o aparelho pela escada se revelou uma operação tão barulhenta como fora levá-lo para cima. Do térreo, os montanheses espiavam com ar intrigado a caixa metálica.
Anoitecera, e Shtiefen acendera o grande lampião de querosene, reservado para as ocasiões importantes. Criara-se na estalagem uma atmosfera especial, como a de um
festejo religioso. Só o rapsodo, consciente de seu papel diferenciado, permanecia à parte, contemplando placidamente o equipamento. Willy, que a cada momento lhe
lançava uma olhadela, tentou imaginar a reação que o homem teria diante da moderna engenhoca: espanto, medo, ou algum sentimento de culpa para com seus remotos antecessores?
Na realidade, pensou, a fisionomia imperturbável do rapsodo devia estar encobrindo uma grande comoção. Pela primeira vez, sua cantoria e a toada do seu lahute não
se dispersariam no infinito, como vinha ocorrendo havia séculos, mas ficariam guardadas naquela caixa metálica, como
água numa moringa, como... Subitamente, Willy foi assaltado pelo temor de que o rapsodo mudasse de idéia. Só se tranqüilizou ao ver que os homens haviam se acomodado
num semicírculo, a maioria deles sentados no chão. Aquilo queria dizer que o ritual começara e que ninguém ousaria interrompê-lo.
Por fim, o rapsodo empunhou o lahute. O som monótono do instrumento se assemelhava a um convite para um sonho encantado de onde nunca mais se sairia. Willy e Max
se entreoIharam. O tocador de lahute iniciou a cantiga. Sua voz não tinha nada em comum com a que usara ao falar. Era uma voz forçada, com uma ressonância fria que
dava aflição, parecendo vir de outro mundo. Willy sentiu algo gélido percorrer sua espinha. Por mais de uma vez fez esforço para acompanhar a letra, porém a ressonância
na voz do rapsodo não permitia. Willy sentia que alguma coisa se ia de si, continuamente, como uma meada a se desfiar. Mais um pouco, e aquele punhado de homens
poderia se desvanecer bem ali, diante dos seus olhos. Mas o rapsodo parou antes do desvanecimento.
No silêncio que reinou em seguida, voltou-se a ouvir o barulhmho do aparelho, e Max foi o primeiro a lembrar de apertar um dos botões.
Então o pequeno grupo de repente ganhou vida, como se um feitiço se quebrasse. De todos os lados choviam cumprimentos ao tocador de lahute. Também Willy e Max disseram
seu "muito obrigado", mas ele soou débil e insosso em meio às homenagens dos outros, todas calcadas em antiqüíssimos cânones semelhantes a fórmulas litúrgicas.
Antes de o rapsodo entoar a segunda cantiga, fez-se um teste da gravação. Quando a máquina reproduziu aquela voz, até um pouco mais sonora, todos à sua roda ficaram
petrificados. O homem ali estava, de boca fechada, com seu lahute em silêncio, mas sua voz e sua toada voltavam a se fazer ouvir. Era a fuga assombrosa de uma parte do sujeito, que saía dele para recobrar vida em separado, independente.
Todos estavam amontoados em torno do magnetofone e acompanhavam pasmos a rotação dos dois discos metálicos, que pareciam as mós de um moinho em miniatura. Seus olhos
transbordavam de perguntas que não se atreviam a fazer. Então, agora a voz estava dentro da caixa, mas que forma ela assumira ali trancada?
Após um curto intervalo, o rapsodo entoou outro poema.
"Não vai se misturar tudo ali dentro?", indagou por fim um dos ouvintes, apontando para o aparelho.
Willy tratou de conter o riso.
Era noite alta quando eles guardaram o magnetofone e agradeceram ao tocador de lahute.
"Daqui a duas semanas, quando você voltar a passar por aqui, vai cantar de novo as mesmas cantigas?", insistiu Shtiefen. "Como disse, é disso que estes dois precisam,
querem fazer comparações e outras coisas que nem eu sei direito. Veja lá: você me deu sua palavra, homem, não vá me fazer passar vergonha."
"Não se preocupe", disse o rapsodo, aborrecido.
Willy e Max escutavam, de pé, com um sorriso fixo nos lábios. Sentiam-se culpados e gostariam de acrescentar explicações, mas teriam dificuldade.
"E a voz? Vai ficar duas semanas ali?", perguntou um jovem montanhês. "Não vai estragar?"
"Não", respondeu Willy. "Ela pode ficar ali por meses, anos."
O tocador de lahute mantinha o olhar fixo na máquina. Willy teve a sensação de divisar um lampejo obscuro naqueles olhos. "Parece que se arrependeu", pensou, temeroso.
Quem sabe o homem não julgaria de mau agouro deixar sua voz presa na caixa, como numa armadilha?
Os dois disseram boa-noite a todos e foram para o quarto. Shtiefen apagou o lampião de querosene, e o grande cômodo submergiu nas trevas. Em seu leito, Willy sentia
subirem até ele os desassossegos cio sono inquieto cios hóspedes do térreo. "Amanhã", disse, em voz baixa, como se desejasse trazer à mente algo mais palpável e
claro, capaz de se contrapor a uma luz primitiva que ele mesmo não saberia dizer de onde vinha. "Amanhã vamos ter um bocado de trabalho, meu Deus!", suspirou, acomodando-se
sob a coberta.
Willy despertou várias vezes, achando que o dia raiava, mas a manhã, em vez de se aproximar, dava a sensação de se afastar. A última vez em que abriu os olhos, viu
que já era tarde.
Desceu e, para seu grande espanto, deu com a hospedaria deserta.
"Foram embora", disse Shtiefen, notando seu assombro. "Os montanheses acordam cedo." Pela porta entreaberta se via o céu, chuvoso, escuro e pesado. "E imagine só
o que é viajar com um tempo assim..."
Ouviu-se o som dos tamancos de madeira de Martin, em seguida o rangido da porta, e o ajudante do estalajadeiro apareceu com dois jarros de água nas mãos.
"Bom dia", disse ele.
"Bom dia, Martin. Dormiu bem?", perguntou Max.
"Hum, mais ou menos. Fiquei pensando nele, no apa... no aparelho."
"E por quê?", quis saber Willy.
"Ha... Como vou explicar?...", balbuciou Martin. "Tudo pode acontecer, senhor."
Via-se nos seus olhos um medo indistinto, e Willy recor-
dou a noite que passara, a angústia que parecia vir de baixo, ou quem sabe de outro milênio.
27 de fevereiro, Estalagem do Osso do Búfalo
Hoje foi o nosso primeiro dia de trabalho efetivo em torno do enigma homérico.
Ouvimos os dois poemas várias vezes seguidas. Cada um deles tem perto de mil versos.
Fizemos as devidas comparações com as versões publicadas. Como esperávamos, detectamos diferenças significativas.
O primeiro poema é a história da traição de Aikuné, esposa do altivo Mu j. Os alemães a consideraram uma espécie de Helena de Tróia albanesa. Ocorre que, aqui, a
história dela é de dar calafrios.
O outro deve ser uma versão da epopéia de Zuk, o portabandeira. É difícil conceber acontecimento mais funesto. Fala de uma donzela que procura nas Terras Altas o
irmão mortalmente ferido pelo inimigo; de como ela o encontra afinal, coberto de sangue; de como ela decide buscar água para o ferido, mas as fontes estão distantes
e ela teme se perder na volta; de como o irmão lhe diz para embeber um trapo no seu sangue e ir deixando gotas pelo chão para assinalar o caminho, e assim ela faz;
de como, na hora de ela regressar, a chuva lava as marcas de sangue; de como a moça se perde e vaga às cegas pela montanha, até deparar com um corvo e um urso; de
como o corvo relata que acaba de devorar os olhos de um ferido, cuja cabeça, em parte, está agora na barriga do urso, e de como ela se vai, gritando sua dor pela
montanha que a névoa esconde.
"Que coisa!", exclamou Max, depois de ouvir a gravação.
Dedicamos o resto da jornada, e os dias seguintes, a decifrar o segundo poema.
Fim de fevereiro, Estalagem do Osso do Búfalo
Esperamos o retorno do rapsodo com impaciência, para não dizer ansiedade.
Às vezes somos tomados pelo temor de nos emaranharmos no universo da epopéia albanesa, perdendo de vista o objetivo específico de nossa viagem. Somos homeristas.
Repetimos essa afirmação todos os dias, a fim de nos lembrarmos de que não viemos à Albânia para estudar a poesia épica local, mas unicamente por causa do enigma
de Homero.
Acontece que falar é fácil, mas... A epopéia enfeitiça, mesmo a contragosto. Além disso, as questões freqüentemente estão mais entrelaçadas que raízes debaixo da
terra. Veja, por exemplo, a aventura de Aikuné, esposa de Muj: achamos duas novas variantes. Numa delas, a história encontra outra explicação. A mesma coisa deve
ter ocorrido com o rapto de Helena nos poemas para-homéricos, até que nosso cego elegeu uma das versões.
O próprio texto homérico deixa claro que houve anteriormente várias explicações para o comportamento de Helena. Todo o episódio do rapto da rainha é confuso. Teria
ela seguido Paris de bom grado, ou foi raptada e só depois se apaixonou por ele? Ou, quem sabe, ela nunca o amou, tendo sido simplesmente uma escrava do príncipe?
Ou, em vez disso, no princípio se deixou encantar por ele e mais tarde esfriou? Ou, ainda, foi ele que se apaixonou no início e com o tempo se tornou indiferente,
como não raro ocorre em casos assim?
A leitura de Homero permite todas essas suspeitas. As perguntas não são respondidas, nem durante a Guerra de Tróia,
nem após o seu desfecho, quando o enigma do rapto deveria vir à luz. Fala-se apenas num certo arrependimento de Helena pelo que aconteceu, mas mesmo este permanece
nebuloso. Não menos obscura é a postura dela em face do seu legítimo marido, Menelau: odiava-o, desprezava-o, ou o amava?
Na epopéia albanesa, cada uma das distintas variantes é clara e nítida ao dar a sua explicação particular para o comportamento de Aikuné. Numa delas, a personagem,
depois de ser raptada pelo oponente eslavo de Muj, é encarcerada e, como toda prisioneira, anseia pelo momento da libertação. Porém, em outra o raptor se deixa enfeitiçar
de tal forma que a toma piincesa e abandona por ela a esposa, a qual até obriga a segurar um archote entre os dentes para iluminar os dois durante as nove primeiras
noites de amor. Tal relato não explica o comportamento de Aikuné. Mas em duas outias variantes ele aparece às claras: numa, embora feita princesa, ela permanece
fiel ao primeiro marido; na outra, logo se apaixona pelo seu raptor, e isso é apenas o início, pois quando Muj vem libertá-la, ela o atraiçoa impiedosamente. Foi
precisamente essa a versão que o rapsodo cantou. Nela, Muj, depois de traído, é acorrentado ao pé do leito dos amantes, com um archote aceso enfiado à força entre
os dentes, para iluminar os jogos de amor do casal.
Salta aos olhos que nessas quatro variantes há traços da figura de Helena, ou, melhor, que Helena é uma mescla das quatro. Assim sendo, é um personagem nebuloso,
e não menos enigmática é a postura de Menelau perante ela.
1 de março, Estalagem do Osso do Búfalo
"Muito reluz um sol assim e pouco aquece."
Faz frio. Mas estamos felizes. Finalmente deparamos com
os alicerces de um proto-universo comum greco-ilírio-albanês. Poetas da Albânia medieval já insistiam na sua existência, mas, como ocorre amiúde com os poetas, só
lhes deram ouvidos quando já era tarde demais.
Procuramos nos colocar no lugar de Homero, a fim de compreender o cérebro tirânico que devia ter para impor sua ordem a toda aquela ebulição furiosa.
O velho desassossego periodicamente volta à tona: não estaremos nos perdendo neste caos? E há outra inquietação, esta mais palpável: o primeiro tocador de lahute
vai retornar?
3 de março, Estalagem do Osso do Búfalo
Enquanto contávamos as horas à espera do rapsodo, eis que dois outros tocadores de lahute se hospedaram na estalagem. Um era tranqüilo e lacônico como costumam ser
os montanheses, ao passo que o outro era todo ação e nervos: erguia-se e sentava sem parar, ia até a porta olhar a estrada como se aguardasse algo, uma notícia,
boa ou funesta. Surpreendentemente, foi ele quem, após uma conversa de pé de ouvido com Shtiefen, aceitou cantar para nós.
Também surpreendentemente, o homem disse que cantaria sem se acompanhar ao lahute. Não explicou por quê; talvez a corda tivesse se rompido, ou ele estivesse com
algum problema na mão. Fez-se silêncio em torno, tal qual na outra vez, mas quando o rapsodo, antes de dar início à cantoria, ergueu o braço direito, abriu a mão
e a pousou entre o malar e a orelha, com os dedos emergindo da nuca como uma crista de galo, nós dois exclamamos, quase a uma voz: "A maiekrah (ponta de asa)!".
Era o antiqüíssimo gesto referido em todos os ensaios por meio dessa palavra albanesa mtraduzível, que afinal encontrávamos, vivo.
Passaram-se alguns momentos antes que o rapsodo iniciasse o poema. Assim que começou, com os versos
Ho/e, ai, saldarei velha dívida de sangue. Sangue como esse nunca ninguém vingou,
eu e Max exclamamos: "A Rapsódia de Zuk, o porta-bandeira".
Era mesmo ela, dessa vez completa, em todo o seu magnetismo. Já a conhecíamos, e um dos nossos sonhos era conhecer inteiramente esta que os estudiosos alemães tinham
denominado "a Oréstia albanesa". Ali estão todos os ingredientes da tragédia antiga: a traição da mãe de Zuk, e a irmã que instiga o irmão ao matricídio, e as fúrias,
e o castigo.
Finda a apresentação, perguntamos ao rapsodo quando ele voltaria, mas para nosso espanto, e sobretudo para espanto de Shtiefen, ele disse que não regressaria mais
às Terras Altas.
Shtiefen ficou boquiaberto. Para ele, um montanhês deixar as Terras Altas era algo inacreditável, e antes de tudo um péssimo agouro, como os que profetizam catástrofes.
"Os tempos andam ruins", disse o estalajadeiro. "Hoje as pessoas cometem as piores loucuras."
Março
A estalagem anda vazia. Prosseguimos nosso trabalho, mas algo nos inquieta: o primeiro rapsodo ainda não retornou.
A espera dessa volta se tornou um fardo para nós. Temos certeza de que ouviremos os demais rapsodos, até várias vezes; contudo, se aquele não regressar, deixará
uma mágoa em nosso peito. Foi uma espécie de primeiro amor.
Shtiefen olha para nós com uma expressão culpada. Sabemos que sofre mais que nós com o atraso. Vez por outra ele vai até a porta e esquadrinha a estrada, que se dissolve na neblina. Ela é a imagem da desesperança, especialmente
quando chove.
Ontem, quando tomávamos o café da manhã, ouvimos uma barulheira extraordinária. Um ronco que vinha de longe. Saímos para ver do que se tratava.
"E o avião de carreira que passa por aqui duas vezes por semana", disse Shtiefen, que também erguera os olhos para o céu.
"Um avião com passageiros?"
Entreolhamo-nos. Shtiefen, percebendo nossa suspeita, aproximou-se.
"Não se preocupem", disse, num tom baixo, enquanto indicava com a cabeça a direção do ruído. "Não existe nenhum aeroporto nas Terras Altas do Norte, e mesmo que
existisse, jamais um montanhês subiria num avião."
"Ah", contestou Max, não sei bem por quê.
"Não faltam motivos para isso, acreditem", prosseguiu o estalajadeiro, "mas basta dizer um deles: para comprar uma passagem aérea, o montanhês teria que gastar no
mínimo a renda de toda a sua vida."
Balançamos a cabeça para dizer que tínhamos entendido.
"Isso quer dizer que ele virá sem falta", disse Shtiefen, pronunciando as palavras lentamente, uma a uma, antes de acrescentar em voz sumida: "A não ser que esteja
morto".
capítulo 7
Como predissera o estalajadeiro, o rapsodo voltou. Foi num dia abafado, de céu pétreo, em que se haveria de imaginar que tudo se congelara e as canções estavam para
sempre esquecidas. O homem parecia abatido, e os dois chegaram a pensar em alguma fatalidade, mas não ousaram perguntar. Afastaram toda esperança de que ele fosse
cantar, até advertiram o estalajadeiro de que não mencionasse a promessa, mas Shtiefen insistiu: "Vai cantar sim, não há dúvida. Pois ele não deu a palavra?".
E com efeito assim foi. No fim de uma noitada em que quase não falou, o tocador de lahutè se agachou ao soalho de madeira, como se cumprisse uma ordem, e diante
do microfone entoou os dois poemas, um após o outro.
Assim que ele se foi, os dois compararam as gravações, durante a madrugada e no dia seguinte. Haviam imaginado, por aquele semblante sombrio, que as letras conteriam
mudanças significativas. Max inclusive registrara, em inglês, à guisa de introdução: "Poema épico cantado após duas semanas, aparentemente sob o impacto de um grande abalo, consternação ou tragédia".
Ocorreu, porém, que, para assombro deles, as letras não apresentavam quase nenlíuma variação. Faltavam apenas dois dos cerca de mil versos, e, na passagem de Muj
acorrentado, o verso "As cinzas do archote no queixo de Muj negrejavam" mudara para "As negras cinzas do archote à saliva se mesclavam".
Eles debateram largamente os motivos das modificações. As vezes lhes parecia que tanto a pequena alteração como a supressão de dois versos eram, a rigor, ínfimas
minúcias, previsíveis no meio de um milhar de versos, e as explicavam pelo estado de espírito do rapsodo, que poderia ter elevado a dose de amargura da cantiga.
Depois deixavam de lado a explicação das lacunas, como um detalhe de menor importância, para se maravilharem com o verso modificado. Eis que por fim se defrontavam
com a tão longamente esperada primeira metamorfose. Ali estava ela, não como um engendro teórico, mas viva, verdadeira. E ali também se notava a falta dos versos,
uma pequena escoriação, o primeiro esquecimento. Fascinados, não cansavam de observar tanto as supressões como a mudança, e agora tudo voltava a lhes parecer possível.
Haviam pilhado em flagrante um dos fios condutores do enigma homérico, a unidade básica da mudança e do olvido, na cantiga de um rapsodo, num espaço de duas semanas.
Mas, em dois anos, quantas transformações ocorriam? E em um século, um milênio, e não com um tocador de lahuté, mas com uma legião deles, uma geração inteira, várias
gerações, uma após outra? Súbito, o mecanismo do esquecimento assumia proporções assustadoras, e eles sentiam as têmporas latejarem com o esforço do cérebro, que
aparentemente encontrava dificuldades para processar algo tão imenso.
Assim estavam eles, mergulhados no trabalho, quando chegou o convite do subprefeito e de sua esposa para o baile. A princípio mal entenderam do que se tratava, de
tão inesperado, despropositado, distante e tolo. Disseram um "não" a uma só voz, enquanto ainda se indagavam o que tinham a ver com aquilo e se não fora um equívoco.
Sem se conformar sequer com a idéia de que pudessem convidá-los para um baile, logo se convenceram de que fora de fato um engano: o mensageiro e seu convite deviam
ter errado o endereço. No entanto, o papel trazia seus nomes, escritos com caligrafia esmerada; além disso, o carro preto do subprefeito, com sua grande capota,
ali estava, diante da estalagem. Já iam repetindo a recusa quando lembraram que no dia da sua chegada alguém falara em bailes e que todo aquele lugar, e talvez boa
parte dos rapsodos itinerantes que por ali passavam, estava sob a autoridade do subprefeito.
Meia hora depois, vestindo ternos pretos, eles viajavam no veículo de modelo antigo através do descampado, cujos mistérios pareciam ganhar força com o crepúsculo
e o frio. Pelas janelas, viam aqui e ali fantasmas de moinhos. Por duas ou três vezes Willy suspirou: "Deus, aonde vamos?", e precisou de alguns segundos para atinar
que iam a um baile de província, mas em seguida o pensamento já lhe escapava de novo, e ele tinha a sensação de viajar em meio a perigos adormecidos e enregelados
pelo tempo porém prontos a despertar sob qualquer pretexto, para a sua desdita e a de Max.
"Que crepúsculo...", disse Max, em tom baixo. "Nunca vi um pôr-do-sol assim."
De fato, um vento escuro sugara como uma bomba todo vestígio de estrelas, todo vestígio de candura ou luz. "Um belo crepúsculo para raptar uma mulher", pensou Willy.
A esposa do subprefeito, um archote nos dentes do subprefeito, ou então nos
dele próprio, conforme as variantes do rapsodo, ai, que tortura era aquilo tudo!
Willy respirou aliviado quando divisou por fim as luzes da cidade. Lanternas iluminavam a po"rta da residência do subprefeito. No grande salão, viram alguns convidados
novos, além dos que conheceram em sua outra visita.
"Estamos muito contentes em vê-los novamente entre nós", disse o dono da casa, enquanto os apresentava aos desconhecidos. "O ginecologista da cidade. O advogado.
Sua esposa. O sr. Rrok, já conhecem. O diretor do correio também. É realmente ótimo tê-los mais uma vez entre nós. O chefe do serviço de recrutamento. E aí está
minha esposa."
Uma hora depois, os dois se sentiam tão deslocados como quando chegaram. Seguravam copos, como todos, conversavam, até dançaram uma vez, mas continuavam alheios
a tudo. Algo naquela cena lhes parecia artificial e ridículo, como que feito de papel. Sentiam-se incapazes de deixar o mundo da epopéia para agir com desenvoltura
num baile. Sua atitude distante com certeza fora notada, mas eles não se importavam. Aquelas mulheres que cochichavam pelos cantos e os seguiam com os olhos fatalmente
falavam dos dois, porém eles mal se davam conta disso. Estavam longe, na estalagem, onde as pessoas eram diferentes, onde as fisionomias, a postura e o código de
conduta eram outros.
Apoiado no mármore da lareira, Willy lembrou dos homens da estalagem, em suas vestes ornadas com motivos que evocavam o gelo e a neve, como se tivessem sido produzidas
numa máquina de costura que empregasse fios de raios.
Quanto aos convivas no salão do subprefeito, a chamada nata da sociedade de N., não passavam de ridículas marionetes que davam vontade de rir, ou vomitar.
"O senhor parece triste", disse-lhe a dona da casa, que se
aproximara silenciosamente. "Com certeza se aborrece aqui entre nós. É um fim de mundo, que fazer?"
"Oh, não, senhora", replicou Willy, enquanto procurava uma resposta. Tinha a impressão de que ela era a única exceção naquele teatro de marionetes, e não queria
ofendê-la.
O brilho do olhar de Daisy estava bem perto dele, úmido, tenro, como que marcado por aqueles dias de ausência. O anel na mão que empunhava o copo também dava a sensação
de refletir algo do langor da sua dona.
Ele sentiu o caro perfume dela, e de chofre lhe veio o desejo de indagar como era possível que no mesmo pedaço de terra convivessem duas Albânias tão distintas.
Uma, eterna, trágica na sua altivez, que ele conhecera não só por meio da poesia épica mas também na estalagem à beira da estrada; a outra, a daquele salão, a qual
- se a senhora perdoasse o cinismo - parecia uma pantomima.
"Pensativo", disse ela, "silencioso e pensatívo. Mas pessoas como o senhor me agradam."
"Obrigado. Na realidade, eu estava para lhe fazer uma pergunta."
Pensou ver o anel fremir na mão de Daisy. Talvez ela tivesse dificuldade em compreender. Poclia ser até que nem conhecesse aquela outra Albânia, que, afinal de contas,
qualquer um poderia questionar se era de fato verdadeira ou não passava de um sonho de poeta.
Empunhou seu copo, que estava sobre o mármore da lareira, bebeu um gole e o devolveu ao seu lugar. Lera, de um jovem escritor albanês, que os montanheses podiam
se mostrar insubordinados e rebeldes num dia e, no dia seguinte, reverenciar os donos do Estado. Mas as coisas vistas de longe sempre pareciam diferentes. Na verdade,
não havia motivo para surpresa. Quem podia garantir que nos tempos homéricos as pessoas eram
tão épicas assim? E quanto ao próprio Homero...? Uma imagem torturante retornou à sua mente, como quando se sonha dormir com a própria mãe: Homero, depois de cantar
o segundo ou o sétimo canto da Ilíada, conferindo seu cachê. Só se livrara dessa aflição ao saber que os rapsodos contemporâneos não aceitavam pagamento. Louvado
fosse Deus, suas desconfianças não tinham razão de ser.
"O senhor queria dizer alguma coisa?", perguntou Daisy,
com voz suave.
Ele a fitou longamente. Sem dúvida era loucura falar assim, ainda mais a ela, a esposa do subprefeito, primeira-dama de N.
Expôs seu raciocínio a Max tão logo subiram no carro que os conduziria de volta à estalagem, enquanto todos os demais convidados, em suas casas, certamente estariam
a chamá-los de insociáveis, intratáveis, presunçosos ou loucos.
Ao falar, manteve os olhos fixos numa luz perdida cujo brilho longínquo tornava a treva ainda mais medonha e desesperadora.
Esperou e esperou que Max respondesse, mas o outro não disse nada. Ao que parecia, havia adormecido.
capítulo 8
14 de março, Estalagem do Osso do Búfalo
Assim que surge uma esperança de que a chuva amainará, ela cai ainda mais forte. As poças d'água ao redor da estalagem se congelaram. Há gelo em toda parte.
Felizmente, o frio não nos impede de fazer novas gravações. Algumas, pela segunda vez.
Vai se comprovando a nossa hipótese sobre o esquecimento: a segunda gravação nunca é idêntica à primeira.
Portanto, ao ser entoado após uma semana ou mais (não conseguimos fazer o teste num intervalo menor), todo poema traz em si o primeiro germe do esquecimento.
O germe é a marca da mortalidade do canto, o micróbio, a doença que um dia irá extingui-lo? Ou será, ao contrário, a vacina que o defenderá através dos séculos?
Inclino-me para a segunda opção. .
Corrobora-se assim o que suspeitávamos desde Nova York.
O esquecimento na reprodução dos poemas orais não diz respeito às limitações da memória humana.
Era e é parte integrante do laboratório.
Em poucas palavras, é uma morte que assegura a continuidade da vida, assim como nos seres vivos em geral.
A indagação que fazíamos antes, esquecimento proposital ou involuntário?, agora nos parece um tanto ingênua. Até o momento nenhum dos rapsodos a respondeu. Aliás,
nem a responderam, nem a formularam, nem sequer a compreenderam. Ao que tudo indica, existem duas leis do esquecimento, todavia em tal interdependência que ambas
permanecem um mistério para nós.
Convém acrescentar aqui que o esquecimento é apenas um dos lados da medalha. O outro é o das adições. Os tocadores de lahuté, do mesmo modo que subtraem coisas,
acrescentam-nas.
Como corolário disso tudo, chegamos à pergunta crucial: qual a porcentagem de perda em uma dada unidade de tempo, dez semanas, dez anos, um século, um milênio?
A primeira impressão é que o corpo do poema está constantemente se esvaindo, porém isso é desmentido por sua incrível antigüidade.
Fizemos um cálculo simples que nos deixou boquiabertos:
Na cantiga sobre a perfídia da esposa de Muj, a mudança em duas sema-nas atingiu um milésimo da obra. A julgar por essa medida, depois de duas mil semanas a epopéia
deveria estar completamente desnaturada. Mas não foi o que aconteceu.
Então, o que houve?
Depois de quebrarmos a cabeça não poucas vezes, chegamos à conclusão de que a maior parte dos esquecimentos e acréscimos a rigor não é o que parece. Até seria mais
apropriado chamá-los pseudo-esquecimentos e pseudo-acréscimos.
Em outras palavras, a maioria das adições não passa de omissões anteriores, agora retificadas pelo rapsodo, ao passo que as
subtrações são apenas adições temporárias, que o rapsodo, talvez por motivos que nem ele próprio compreenda, decide excluir novamente da cantiga, e assim por diante,
indefinidamente.
Quando acumularmos dezenas e dezenas de gravações, talvez tenhamos melhores condições de examinar essa rotatividade verdadeiramente espantosa, da lembrança ao olvido
e viceversa. Aí poderemos realmente distinguir os verdadeiros e os falsos acréscimos e cortes.
No entanto, isso não será nada simples. Quem há de saber por que razões e por quais misteriosos caminhos um esquecimento mergulhado nas trevas por anos e anos volta
à superfície? Além do mais, isso pode ocorrer com o mesmo rapsodo da versão anterior, mas também pode muito bem, tal qual nos movimentos das camadas profundas do
oceano, aflorar em outro, até bem distante do primeiro, no espaço e no tempo. Mesmo que o primeiro rapsodo esteja apodrecendo há anos na sepultura, o fragmento esquecido
da epopéia pode romper a terra e retornar do mundo dos mortos, imutável.
Mês de março, Estalagem
Breves anotações sobre o papel dos ouvidos na poesia oral. A relação olhos-ouvidos. A maiekrah (ponta de asa).
Os estudiosos alemães, ao fazerem a descrição do antiqüíssimo gesto da maiekrah, acompanhando-a até com um desenho, aventaram a possibilidade de ele ser ditado por
uma imposição
fisiológica. E só.
Já nós julgamos que é preciso investigar mais. Quando indagamos sobre o significado do gesto, se estava relacionado a algum rito antigo ou tinha uma dimeneão simbólica,
o estalajadeiro nos deu uma resposta confusa, mais ou menos coincidente
com a dos alemães. Ao que parece, a necessidade de tapar um ouvido durante a apresentação se liga à transformação da voz do rapsodo, de "voz do peito" em "voz da
cabeça", e à necessidade de manter o equilíbrio em face da vertigem que a cantiga provoca.
Palavras do estalajadeiro: "Os senhores nem imaginam como é difícil cantar essas cantigas. Eu mesmo tentei, em outros tempos, mas não consegui. Repercutem na cabeça
como se estivéssemos no meio de uma avalanche. Quem não está habituado pode enlouquecer".
Não há dúvida de que a poesia épica oral é antes de mais nada arte do ouvido. Os olhos, sem os quais não se concebem os escritores de hoje, não desempenhavam nenhum
papel importante nos tempos homéricos. Podiam até atrapalhar.
Os rapsodos em geral devem ter a vista fraca. E possível que inclusive desdenhem os olhos. Abandonam-nos; quem sabe até não deixam que se deteriorem por algum processo
que só eles conhecem? (Não se diz que Demócrito se cegou intencionalmente para que os olhos não o impedissem de aprofundar suas reflexões?)
A associação dos rapsodos aos cegos pode ser uma espécie de credo, preconizando certa separação entre a arte e a vida cotidiana. A cegueira, ou ao menos o obscurecimento
da visão, há de ser um componente da oficina que produz a epopéia. Afinal de contas, a memória do cego deve ser diferente daquela de alguém que enxerga.
Tudo isso é muito atraente, mas antes é preciso verificarmos se os atuais tocadores de lahutê têm efetivamente a vista fraca. Poderíamos fazê-lo utilizando tabelas
semelhantes às dos oftalmologistas.
21 de março, Estalagem do Osso do Búfalo
Milagre. Gravações atrás de gravações. Muitas repetidas. Decidimos examinar o sistema de transmissão oral, as imitações de um rapsodo por outro e as influências
entre eles. Para tanto precisamos acumular uma quantidade de registros que permita, por exemplo, comparar o poema entoado pelo rapsodo A com a variante do rapsodo
B, que não o possuía no seu repertório mas o incluiu depois de ouvir o primeiro.
Isso não é fácil, sobretudo quando se leva em conta a natureza arredia dos tocadores de lahutê.
A circulação oral da epopéia deve ter suas leis, completamente distintas das que regem as publicações em nossos tempos. A despeito disso, também deve ter suas listas
de preferências, seus fracassos e best-sellers.
Porém, este seria apenas o primeiro passo. Não basta verificar simplesmente o que se dá com a cantiga quando ela passa de um rapsodo para outro. Seria preciso descobrir
o que ocorre quando a transmissão se faz entre duas gerações de rapsodos. Como a cantiga atravessa os abismos que separam as épocas, as eras. E o que acontece depois.
Há ainda um problema: como a poesia épica se encontra na interseção entre duas línguas, a questão fica muito mais complexa. O bilingüismo acrescenta uma dimensão
nova e colossal, que por enquanto não estamos em condições de enfrentar. A migração de uma língua para outra e de uma nação para outra há de ter sido dolorosa. Trata-se,
pelo que sabemos, da única criação artística no mundo a nascer assim bipartida. E falar em bipartição e bilingüismo ainda é pouco: são duas línguas que pertencem
a duas nações que se ctombatem. E ambos os lados, o albanês e o sérvio, esgrimem a epopéia da mesma maneira como se empregam as mesmas armas em um duelo de ciclopes.
Quando comparamos a poesia épica de uma língua com a da outra, é como se a virássemos de cabeça para baixo, ou a olhássemos num espelho mágico, em que os heróis
de uma variante são os vilões da outra; o branco é o negro; a alegria, tristeza; a vitória, derrota, e assim por diante, tudo ao revés.
Seria despropositado acreditar que a epopéia surgiu nos dois povos de maneira independente. Um deles deve ser o autor, e outro o imitador. E possível que os albaneses,
vivendo há mais tempo nos Bálcãs, tenham sido os criadores. Suas variantes são mais próximas da fonte homérica; isso aparece claramente. Mas não nos ocuparemos aqui
de política, nem de nada que nos distancie do objetivo principal: desvendar a tecnologia homérica. Examinaremos a biparüção apenas na medida em que ela diz respeito
à máquina do esquecimento e dos mecanismos de transmissão, nada mais.
Max afixou acima da lareira uma tira de papel onde escreveu com letras vermelhas: "Somos antes de tudo homeristas".
Março, Estalagem
A conversão de um acontecimento em epopéia. Ou, em outras palavras, sua "homerização".
Ê um dos problemas que revisitamos com freqüência cada vez maior. As perguntas são muitas: que princípios ou inclinações preliminares o poeta épico seguiu para escolher
entre os incontáveis eventos que tinha diante de si? Por onde se começa a embalsamar um fato, preparando-o para a imortalidade? Quais partes moles e entranhas são
extirpadas e quais fórmulas e padrões poéticos desempenham o papel de óleos balsâmicos?
Objetivando fazer a comparação entre um evento real e sua versão homerizada, procuramos um acontecimento tão recente
quanto possível, mas já convertido em epopéia. Encontramos doze versos, não mais, sobre o Congresso de Berlim de 1878. Como um monstro hibernai que permanece envolto
na cerração, não ousando chegar mais perto, a epopéia se deteve em
1878. Por quê? O que a deteve? O que a amedrontou?
Ao que parece, ela se aproxima cada vez mais raramente deste mundo que lhe é estranho.
Passamos revista a todo o Congresso de Berlim, protocolos, declarações de governos participantes, as atitudes de cada potência perante o Império otomano e a Albânia,
as resoluções adotadas e mesmo os bastidores. Comparado à sua descrição épica, o acontecimento se assemelha a um cadáver fresco que jaz ao lado da sua própria múmia.
Estamos procurando, sem resultados, um evento mais recente. Espantou-nos que 1913, o ano do retalhamento da Albânia/' mal tenha produzido alguns versos. É um indício
de que a epopéia está de fato a pique de se esclerosar.
Março, Estalagem
O que se move e o que não se move na poesia épica? Haverá um nódulo central que assegure sua integridade no correr
dos séculos?
A princípio estávamos convencidos de que o papel desse cerne competia às fórmulas poéticas, aos clichês, numa palavra, aos moldes básicos onde se derramaria a argila
poética.
Havíamos nos persuadido de que eram precisamente os elementos do velho laboratório que, permanecendo imutáveis, garantiam a continuidade da produção poética.
Agora, quanto mais mergulhamos no estudo, mais vamos constatando que as formas, os moldes, o próprio laboratório, tudo muda, ainda que tais mudanças, extremamente
lentas, sejam tão imperceptíveis aos olhos humanos quanto o envelhecimento das estrelas.
capítulo 9
Estafados pelas proporções insuportáveis do seu estudo, eles se voltavam para questões mais simples, como a influência da vida pessoal do rapsodo nas adições e subtrações
que ele processava nos poemas. Por exemplo: se o tocador de lahuté carregava nas tintas ao descrever os ciúmes de Muj em razão do rapto da mulher, haveria que investigar
sua vida em busca de uma explicação para isso. Seria maravilhoso, caso eles tivessem condições de promover um minucioso interrogatório, mas não havia a menor chance,
pois, como agora sabiam, os montanheses não toleravam perguntas sobre sua vida pessoal. Os dois gostariam de esquadrinhar tudo. Mesmo no tocante a um tema como o
enregelamento de uma caravana de krushq"' durante uma viagem
pelas montanhas, seria desejável apurarem detalhes como o dia do casamento do próprio rapsodo, eventuais perigos, ansiedades, e assim por diante. O cruzamento de
todos esses dados, colhidos de diferentes rapsodos, forneceria informações preciosas sobre a dose de tragicidade de cada variante. Com o correr dos dias, constataram
que também as lembranças de suas próprias vidas começavam a entrar numa espantosa relação de dependência com a epopéia.
Às vezes por brincadeira, às vezes a sério, passaram a recordar cenas de sua vida diária: um trajeto de táxi no dia do casamento de Max; as suspeitas deste sobre
a retomada de um caso antigo por sua mulher, num fim de semana do verão anterior, quando a mulher sumira deixando um bilhete em que dizia ter ido visitar os pais.
Willy, por sua vez, lembrou-se do segundo casamento de sua mãe, que ainda o magoava, apesar de ter se realizado quinze anos antes. Passo a passo, toda a vida de
ambos foi se esvaziando ante aqueles assustadores titãs medievais, e amiúde acontecia, na hora do crepúsculo, de eles confundirem as paisagens litorâneas da Irlanda
ou os arranha-céus de Manhattan com os contornos dos montes Malditos, que já lhes eram tão familiares, embora nenhum dos dois jamais tivesse posto os pés ali.
Nevava outra vez, ou eram seus olhos que o enganavam?
Willy aproximou a testa do vidro gelado da janela. De fato caíam flocos de neve, ralos e desdenhosos. Max se ocupava com o magnetofone.
Um dia Shtiefen lhes dissera que circulavam boatos de toda ordem sobre o aparelho deles; desde então, os dois procuravam operá-lo num volume bem baixo. Certa vez
um hóspede, aparentemente ao ouvir do térreo o retorno acelerado da fita de
gravação, ficou apavorado e se pôs a gritar: "Estão estrangulando alguém lá em cima! Meu Deus! Ele está sufocando!".
O estalajadeiro tentou, inutilmente, tranqüilizá-lo e explicar do que se tratava. O hóspede se enfurecera ainda mais: quer dizer então que andavam fazendo maldades
daquele tipo com as vozes dos rapsodos? Aquelas só podiam ser vozes desumanas, diabólicas. "E você deixa que façam essas desgraceiras aqui na sua estalagem? Que
vergonha, Shtiefen!"
Já na estrada, o homem gritara ainda uma vez: "Cuidado, Shtiefen! Você pôs um capeta na estalagem, entendeu?".
Embora o estalajadeiro tivesse lhes contado apenas uma versão parcial do episódio, eles ficaram contrariados. Só se consolavam ao pensar que, afinal de contas, aquele
tipo de oposição ao trabalho deles era previsível. A gravação dos poemas épicos, assim como sua publicação anos antes, eqüivalia a fazer soar o dobre fúnebre pelos
rapsodos, que a cada dia se tornavam mais desnecessários. O número de depositários do cancioneiro épico iria diminuindo paulatinamente, até que eles desaparecessem,
como os carregadores eliminados pelo progresso mecânico.
Falavam justamente disso - Willy dizia que a expressão "carregador da epopéia", apesar de soar bem, não era suficiente para designar os rapsodos, já que estes eram
mais que isso e sua rarefação denotava o envelhecimento e enferrujamento de toda a antiga oficina -, quando ouviram o som, agora familiar, do estalajadeiro batendo
à porta. As listras de cor clara nas bordas dos volumes em suas mãos lhes trouxeram à mente a agradável idéia da chegada do correio, antes mesmo que eles tomassem
conhecimento do que lhes fora enviado.
Era de fato o correio. Não os tinham esquecido; haviam encontrado o caminho até eles mesmo naquele fim de mundo. Impacientes, os dois arrebataram a correspondência
das mãos de
Shtiefen e se puseram a abri-la, sem sequer reparar a quem era endereçada.
"Max, veja", disse Will} de repente, tirando de um envelope grande alguns recortes de jornais.
Puseram as cartas de lado e, curvados sobre os recortes, começaram a ler os títulos dos artigos e a seguir seus textos. "Será o fim do enigma homérico?" Havia matérias
do New York Times, do Washington Post... "Uma espantosa aventura na terra que pode ser o último berço da poesia homérica."
"O assunto agora está na boca de todos...", disse Willy.
Leram e releram várias vezes cada artigo. Alguns eram simpáticos, outros nem um pouco. Comparava-se sua discreta partida de Nova York à de Dom Quixote e Sancho Pança
da aldeia, na manhã que dera início à sua tragicômica aventura. Só não se explicitava quem seria o cavaleiro e quem o escudeiro.
A vida na estalagem prosseguia, e embora os dois a acompanhassem ininterruptamente, ainda lhes parecia estranha e incompreensível quando paravam para pensar nela
nas poucas horas de descanso. O que acontecia no térreo, no grande aposento coletivo, permanecia sufocado em murmúrios e coberto por um véu de mistério. Os albaneses
das montanhas eram em geral caladões, avessos a tagarelices e gargalhadas. Ao amanhecer, desapareciam como sombras.
Vez por outra Martin lhes contava o que ocorria. Certa noite tinham hospedado um soturno grupo de homens que aparentemente perseguia alguém. Após sua partida apareceram
os gendarmes do reino e, logo depois, o perseguido. Ninguém sabia explicar o episódio Noutro dia chegaram à hospedaria uns montanheses das ravinas Negras que levavam
um doente para a capital. Pela manhã, quando Max e Willy desceram para o café, o
enfermo ainda estava ali, estendido sobre uma padiola. Seu rosto parecia uma máscara. Perguntaram o que ele tinha, e Martin disse que não era uma doença contagiosa.
"Pode ser que tenham emparedado a sua sombra", explicou o ajudante de Shtiefen. "Se for isso, nem adianta levar o homem para a capital, pois desta ele não escapa."
"Que doença é essa?", quis saber Max. "O que quer dizer 'emparedar a sombra'?"
Martin teve dificuldades para explicar. Era uma praga antiga. A vítima trabalhara como pedreiro, e aparentemente, durante a construção de uma casa, um dos seus colegas,
de propósito ou não, emparedara a sombra dele, ou seja, assentara pedras e cimento na parede onde a sombra se projetava. Os montanheses costumavam fugir do emparedamento
da sombra como o diabo da cruz, pois sabiam que quem passava por isso ficava prisioneiro da parede e portanto estava condenado à morte. Mas aquele montanhês devia
ser novo no trabalho e inexperiente, de modo que alguém lhe fizera a desgraça, por querer ou sem querer. "É uma pena, meu Deus. Ele nem completou vinte anos " Os
irlandeses se entreolharam.
"Mas o problema não pode ser outro?", indagou Willy. "Você mesmo falou que se trata apenas de uma suspeita."
"E verdade, não passa de uma suspeita", foi a resposta. "Se fosse certeza, eles nem iriam ter o trabalho de levá-lo até a capital." "Assombroso", disse Willy, já
no quarto. "Essas velhas doenças, ou melhor, essas velhas explicações para doenças... são de dar calafrios!"
A caixa metálica do magnetofone refletia lugubremente os restos de luz vespertina. Os dois evitavam olhar para ela. Ainda que não o dissessem, sentiam uma inquietação
que vinha do mais fundo da alma, um desassossego turvo, sombrio, que era impossível explicar racionalmente mas que estava ligado ao aparelho.
Um sábado, logo que Max e Willy voltaram de um passeio matinal, Martin, que desferrava um cavalo no terreiro, avisou que um desconhecido os esperava na estalagem.
Era um homem grandalhão, vestido num estilo semimonacal, com um rosto redondo e avermelhado de camponês. Pareceria um bonachão não fosse o seu sorriso, que incluía
o olhar, cujo brilho era perigoso. Falava inglês, albanês e sérvio.
"Eu estava de passagem por aqui, e ouvi falar dos senhores e do trabalho que estão fazendo", disse, sorrindo ora para um ora para o outro. "Um trabalho magnífico,
palavra! Senti uma enorme vontade de encontrá-los. Sou sérvio, do arcebispado de Peje, não longe daqui. Estou viajando a serviço, para Shkodra, um assunto de monges."
"Ah", fez Max, sem lhe dar muita importância.
"Pois então, também eu coleto algumas velhas cantigas épicas. Na medida do possível, quando consigo um tempo livre. Nós, monges, às vezes nos dedicamos a coisas
desse tipo. Naturalmente, como amadores, sem as pretensões de realizar um trabalho científico; aquilo que se pode esperar de um frade perdido nas montanhas, isolado
do mundo, solitário... Para ser franco, venho sonhando em encontrar gente como os senhores, para conversar sobre as epopéias. Mas talvez estejam ocupados, e não
quero tomar seu tempo...
"De maneira nenhuma", disse Willy. "Também para nós é um prazer conversar. Percorremos milhares de quilômetros exatamente para isso."
"Seria proveitoso", disse Max, convidando o frade a sentar. "Deseja beber alguma coisa?"
"Obrigado, mas gostaria de lhes oferecer eu mesmo alguma coisa. Embora eu não seja daqui, sou vizinho, bem próximo."
"Peje fica em Kossovo, na Iugoslávia, não é?", perguntou Willy.
"Sim, senhor."
Pediram um pouco de raki, que Shtiefen serviu lançando olhares atravessados ao recém-chegado.
Pouco depois a conversa corria solta e calorosa, como entre amigos. Ao ouvi-los, o monge balançava a cabeça, sem esconder sua admiração. "Eh, o que não faz a ciência!",
disse, após um silêncio. "Todas estas coisas estão debaixo do nosso nariz, e não sabemos observá-las. Somos uns pobres roceiros perdidos. Ignorantes. Dá dó."
Depois da segunda dose de raki, seus olhos ficaram menores porém mais penetrantes.
"Mas os senhores só se ocupam da poesia épica albanesa? A epopéia, como devem saber melhor que eu, existe também em outra língua, o servo-croata."
"Ah, sim", disse Max. "Naturalmente sabemos que ela existe nas duas línguas. Mas por enquanto vamos nos dedicar a esta variante daqui."
"E por quê, se me permitem perguntar?"
Os irlandeses se entreolharam rapidamente.
O sorriso na face do religioso começou a perder a forma, mas não desapareceu. Os dois nunca tinham visto antes um sorriso se transformar no seu contrário e, contudo,
manter seu feitio original. Esse aspecto contraditório fez o rosto do monge lhes parecer ainda mais azedo.
"Estamos aqui como pesquisadores, cientistas", disse Willy, "e não gostaríamos por nada no mundo de nos imiscuir nos problemas locais... quero dizer, balcânicos."
"Jamais se intrometam em brigas", dissera o cônsul americano em Tirana, na única entrevista que tiveram com ele. "Aqui, qualquer confronto de idéias pode num piscar
de olhos se transformar em confronto de armas. Particularmente quando o assunto é a antigüidade e a autoria da epopéia. As duas facções
vinculam a questão a princípios nacionais básicos, como as raízes dos povos, os direitos históricos sobre Kossovo e até as alianças internacionais contemporâneas."
O diplomata lhes mostrara uma pilha de jornais albaneses e iugoslavos; depois, em meio a risos, traduzira trechos do que eles diziam, para que os viajantes entendessem
o que era uma polêmica à moda balcânica. Ali se usavam todos os impropérios possíveis e imagináveis: um jornal sérvio afirmava que, para o bem da Europa, a Albânia
devia sumir da face da Terra, e um jornal albanês, que por certo pensava o mesmo sobre os sérvios, encerrava sua participação no debate dizendo que dois povos cujos
nomes provinham, respectivamente, das palavras águia e víbora não tinham nada para conversar.
No silêncio que se seguiu, Max ensaiou uma frase, mas se limitou a abrir os braços e dizer: "Penso que nos compreende, sobretudo sendo um homem de religião".
"Ah, claro, não há dúvida", disse o monge, logrando, num breve esforço, reestampar o sorriso na face. "Não tem importância. Os senhores me honraram muito ao se dignar
trocar idéias com um monge ignorante como eu... @eço ainda uma vez que me perdoem este meu, como direi?, entusiasmo. Mas os senhores compreendem, creio, que sou
sérvio e como tal devo defender minha nação. É inevitável, especialmente aqui nos Bálcãs. Por favor, não me levem a mal."
"Não, de maneira nenhuma", afirmaram os dois, em coro. "São coisas perfeitamente compreensíveis, e não apenas nos Bálcãs."
Fez-se um breve silêncio, repleto de ensaios de iniciativas para preenchê-lo.
"Os senhores, pelo que sei, procuram descobrir por meio da poesia épica quem foi Homero."
Max aquiesceu com a cabeça.
"Uma grande homenagem indireta que se faria à epopéia albanesa e aos albaneses em geral, não?"
"Sim, claro."
O monge alargou ainda mais o sorriso. Agora seu rosto era a imagem da benignidade, o rosto de um perfeito bonachão.
"Não vou ocultar meu ciúme. Gostaria que tamanha honra tocasse ao meu povo. Mas o que se há de fazer...?"
"É, o que se há de fazer...?", repetiram os irlandeses, um
após o outro.
O monge fez surgir um relógio de bolso das dobras do seu
hábito.
"Ora, vejam só: o tempo passou, e eu nem notei. Vou indo, senhores. Passem bem."
Saiu apressado. Pela janela, os dois o viram montar um cavalo preto e partir a galope, um galope que de longe lhes pareceu pesado como chumbo.
Havia dias em que eles tinham a impressão de dominar toda aquela infindável massa poética, alcançando seus horizontes até os recantos mais longínquos, mas logo se
apercebiam de que era ilusão. Vinha o dia seguinte, e os contornos da epopéia novamente mergulhavam na névoa, flutuavam, esvaneciam-se, primeiro as bordas, depois
as outras porções, até chegar ao cerne. Então, tomá-la nas mãos parecia completamente impossível. Era como tentar controlar um pedaço do caos, onde os eventos, personagens
e tragédias assumiam feições distintas como num pesadelo.
A grande epopéia parecia ter saído de um cataclismo. Horríveis rachaduras a percorriam em todos os sentidos, partes inteiras jaziam por terra, demolidas. Seus heróis
ensangüentados vagavam em meio ao pó das ruínas.
Quando teria ocorrido a catástrofe? Perdera a epopéia sua integridade em virtude do golpe sofrido? Ou sempre fora assim, uma nebulosa poética à espera do momento
de se condensar?
Tais perguntas, que eles faziam e refaziam dezenas de vezes, focavam agora a criação dos poemas homéricos. Se eles eram assim desde antes, uma espécie de matéria-prima
poética não elaborada, então devia-se reconhecer a grandiosidade do trabalho de Homero ao reuni-los e organizá-los. Labutavam em vão os que julgavam diminuir Homero
ao negar-lhe a autoria dos poemas. Na verdade, sua glória como organizador haveria de ser talvez maior do que como rapsodo.
Pensando desse modo, eles tornavam a fazer esforço para se colocar na situação de Homero, tal qual ela era, sem livros, sem anotações, sem magnetofones e, como se
isso não bastasse, sem olhos. "Meu Deus, sem nada disso ele coligiu a Ilíada, ou melhor, a pré-Ilíada, convertendo-a em Ilíadal Como será que o fez?" Às vezes lhes
parecia que se aproximavam da verdade; outras vezes, voltavam a se sentir longe dela. O raciocínio, que pouco antes luzia, cobria-se mais uma vez de mistério, submergia
nos abismos, emergindo a seguir no século XX, como um mergulhador que toma fôlego para um novo mergulho, e assim sucessivamente.
Tudo isso estava intimamente ligado à indagação sobre quem fora ele. Poeta genial ou genial coligidor, conformista, rebelde ou ideólogo? Seria um tipo de publisher
do seu tempo, o cronista mundano do Olimpo, um porta-voz oficial (alguns trechos da Ilíada se assemelham a entrevistas à imprensa) ou um chefe, cercado como todo
chefe por inúmeros auxiliares? Ou não seria nada disso, nem mesmo um indivíduo, mas uma instituição, cujo nome, na verdade uma sigla, devia-se grafar não "Homero",
e sim "H.O.M.E.R.O."?
Os dois sorriam diante de algumas dessas conjeturas, mas isso não os impedia de buscar outras. Ainda que não merecessem crédito, erarn as urnas onde estavam espalhadas
as cinzas da verdade. Ele por certo teria alguma deficiência física, porém,
mais que a cegueira, poderia ser a surdez, causada pela audição de dezenas de milhares de hexâmetros. A bem da verdade, a surdez combinaria melhor com Homero. A
cegueira seria para eras mais tardias, quando os livros fossem inventados. A despeito disso, era assim que o representavam na escultura: cego. Mas e se o escultor,
ao se deparar com a surdez, a tivesse substituído? Afinal de contas, olhos e ouvidos sempre estiveram bastante próximos, e talvez se rivalizem como traços mais notáveis
do ser humano.
"Deste jeito, um dia vamos enlouquecer", disse certa vez Willy.
Max olhou para ele de soslaio. Pareceu-lhe que, em lugar de "enlouquecer", o outro quisera dizer "ficar cegos". Na realidade, a vista de Willy vinha piorando, e
Max já pensara em, na primeira oportunidade, pedir ao subprefeito que os ajudasse a encontrar um médico. Em N. não havia oftalmologista, e talvez tivessem de ir
até Tirana. Em meio a tantas suposições sobre Homero, Max evitava ultimamente as que tratavam da sua cegueira.
Eles retornavam sem cessar à hipótese de outro auge da epopéia antes da catástrofe (agora empregavam a palavra como um conceito). Se houvera mesmo uma catástrofe,
certamente devia ter ocorrido na época do enfrentamento com os turcos. Mais que em qualquer outra ocasião, ali tudo estremecera e tombara por terra. A epopéia sofrerá
então o destino de todo o mundo albanês. Trechos inteiros soterrados debaixo de escombros. As partes que se salvaram decerto teriam sido proibidas. Os tocadores
de lahuté teriam sido obrigados a se refugiar nas montanhas. A conservação dos poemas teria se dificultado, e eles, como tudo o que se torna clandestino, teriam
sido forçados a se modificar. Isso talvez explicasse sua desagregação e as muitas variantes que transmitem uma sensação de febre.
Então se punham a imaginar que, se a Ilíadct transmitida por Homero não tivesse sido publicada, ela poderia ter se desagregado também, para se recondensar depois
em outra unidade. Os ciclos de aglutinação e dispersão da epopéia deviam ter algo em comum com os da criação, destruição e recriação dos mundos a partir da poeira
cósmica.
Para eles, a poesia épica lembrava cada vez mais um tipo de constelação poética em cujo seio atuavam forças misteriosas. Quem sabe os tocadores de lahuté, quando
limitavam sua liberdade, seus desejos de mudança ou rebelião, não obedeciam a essas diretrizes secretas vindas do centro? Por isso, vistos de tal ângulo, pareciam
todos um tanto lunáticos, com um brilho distante no olhar e um timbre inumano na voz, cujo refinamento só poderia vir dos espaços estelares.
Ocorria-lhes que a epopéia só poderia ser assim, dispersa, e que eles estariam contrariando a natureza dela ao reunir suas partes; estariam violentando-a. Então
julgavam que, mais que a uma unidade poética, ela se assemelharia a uma ordem religiosa medieval, cujos membros, os rapsodos, ao converter o canto em rito, dispersavam-no
aos quatro ventos conforme uma rigorosa liturgia. Um pacto de sangue nacional haveria de ser assim. Pois, de todos os antigos mandamentos, era sem dúvida a epopéia,
que apontara e pranteara antecipadamente a divisão da Albânia, o brado primeiro de lamento nacional dos albaneses. Desse modo explicar-se-ia aquele gemido prolongado,
milenar, a advertência em forma de soluço, a monotonia imposta pela repetição da ordem arcaica até o esgotamento.
Tanto pensavam em tudo isso que as reflexões se estendiam pelos sonhos. Para seu espanto, às vezes não viam grandes diferenças entre o que aparecia nos sonhos e
o que imaginavam durante as leituras e audições. Em ambos os casos o espaço assumia dimensões de delírio e o tempo obedecia a leis próprias. A
ação se prolongava por séculos, heróis eram mortos ou enfeitiçados, caíam num sono profundo, despertavam, prosseguiam o combate meio vivos, meio mortos, casavam-se
entre guerras, repousavam algum tempo na sepultura ("Deus do céu", comentara Willy certa vez, "parece que vão para uma estação de veraneio!"), erguiam-se novamente
e retomavam o fio de suas trágicas sinas, e assim por diante, sem descanso. Era o retrato fiel de uma contenda milenar onde tudo se precipitava num turbilhão. "Por
setecentos anos a fio trarei a morte dos teus", era como Muj ameaçava a sogra de seu contender eslavo. Por sua vez, o sérvio Rado matara os sete filhos de Muj, todos
chamados Omer e todos sepultados nos montes Malditos.
Em certas ocasiões o tempo arremetia, furioso, e num átimo acontecia tudo o que se previa para o dia do Juízo, mas isso não impedia que mais adiante o tempo inesperadamente
se entorpecesse, arrastando-se, requerendo décadas para a simples cura de um ferimento. Um cortejo de krushq partira para um casamento, fora congelado no meio do
caminho pelas fadas, descongelara-se séculos depois e prosseguira sua jornada para a cerimônia, que continuava à sua espera como no primeiro dia.
Eles não conheciam outro caso de emprego tão caprichoso do tempo; não o encontraram em nenhuma poesia épica européia, nem mesmo nas sagas da Islândia.
Março já estava no fim, todavia os dias continuavam tão gélidos quanto em fevereiro. Os dois aguardavam com impaciência que o tempo esquentasse, embora às vezes
temessem que o sol quebrasse o clima da epopéia, invariavelmente invernal. À primeira vista seria de estranhar que um país mediterrâneo como a Albânia contivesse
um mundo assim, repleto de ventanias, nevascas cintilantes, colunas de gelo. Toda a epopéia parecia gélida. Era um frio magnífico, onde a neve jamais derretia para revelar a lama, um clima que de quando em quando imaginavam ter sido criado expressamente para autenticar
a longa hibernação dos heróis, que se congelavam, morriam por algum tempo e a seguir ressuscitavam. No início, julgaram natural uma atmosfera como essa numa poesia
criada dois mil metros acima do mar; porém, um exame mais rigoroso os convenceu de que se tratava do clima de um lugar mais alto: seria possível falar sem medo em
quatro, cinco mil metros de altitude, ou, em outras palavras, num sítio entre a Terra e o céu.
Tinham feito novas gravações na primavera. O trabalho ia de vento em popa. Completaram a lista das coincidências entre os motivos albaneses e os da Antigüidade grega.
Afora a aproximação entre a família dos Artridê e Ulisses, encontraram versões de Circe, Nausícaa e Medéia, bem como das Fúrias e das Eumênides, que os albaneses
chamavam Ore e Zana. Haviam feito novas investigações sobre o esquecimento, examinando detalhes como a alimentação dos rapsodos, o consumo de fósforo (assombraram-se
ao descobrir que a dieta dos montanheses praticamente não incluía peixe, para não mencionar estimulantes da memória como os compostos de fósforo, que qualquer rapsodo
consideraria poções de bruxaria, dessas que exacerbam ou aniquilam as lembranças). Além disso, tinham gravado um tocador de lahutê que, segundo se dizia, matara
um homem uma semana antes, por questões de vendeta. Mas nunca conseguiam definir em que porcentagem isso influía sobre as letras dos poemas.
Apesar da realidade caótica, que dificultava seu trabalho, eles sentiam que a epopéia ia sendo recolhida lentamente, fita após fita. Pela manhã, logo que despertavam,
olhavam involuntariamente para o aparelho, que brilhava, plácido. Gostavam de repetir que a invenção daquela engenhoca fora um verdadeiro
milagre. Ao que parecia, estava escrito que o deciframento do enigma homérico teria de esperar pelo magnetofone.
Esse raciocínio fortalecia sua confiança e dissolvia toda sorte de dúvidas. Não fosse o aparelho, seria natural, nos maus momentos, que eles pensassem que também
seus antecessores homeristas, depois de se debater como eles diante de um mistério, tinham renunciado à pretensão, mofando do seu ardor inicial, rindo, talvez com
cinismo, de si próprios e dos próximos que haveriam de reincidir no seu erro. O aparelho afastava obstáculos. Os dois se compraziam em imaginar que seus predecessores
teriam resolvido muito tempo antes a questão homérica caso tivessem em mãos um magnetofone. Assim, parecia que haviam tido muita sorte, já que o tempo depositara
a chave do mistério em suas mãos e eles apenas precisavam seguir suas instruções.
Certa vez, pensaram que o magnetofone quebrara e quase enlouqueceram. Era noite alta. Ouviam uma fita quando repentinamente a voz engrossou, esparramou-se, pastosa,
tal qual a voz de alguém durante um ataque apoplético. Os dois empalideceram. Não ficariam mais abalados se um parente próximo balbuciasse daquele jeito. Desvairados,
andavam em círculos, sem saber o que fazer, abrindo e fechando várias vezes o manual de instruções, até que Max teve a idéia de examinar as pilhas. "Graças a Deus!",
exclamaram ambos com alívio, ao ver que de fato elas haviam acabado.
Não obstante, o sofrimento que a voz pungente do aparelho lhes causara não se foi. Imaginavam que o mesmo acontecera com toda a máquina da epopéia, cujas vozes atuais
soavam abafadas como gemidos de agonia. Num esforço supremo, ela produzira doze versos sobre 1878, enquanto sobre 1913 mal chegara a quatro ou cinco, e mesmo assim
sofridos como num delírio. Agora, entrara em coma, e dificilmente voltaria a si antes que o frio da morte a paralisasse para sempre.
Uma noite, gravaram trovoadas que ecoavam nas Terras Altas; outra noite, o assobio do vento. Julgavam que precisariam desses registros para criar a atmosfera apropriada
quando prosseguissem seus estudos na distante Manhattan.
Um dia Martin contou que avistara o monge sérvio vagando pelas redondezas, mas eles mal lembravam de quem se tratava.
"Antes de comunicar-lhe a importante investigação empreendida hoje na Gruta do Mocho, ou do Eremita, como querem outros, desejaria chamar a atenção do senhor subprefeito
para minha comunicação datada de le de fevereiro, referente à conversação entre os dois irlandeses e o sérvio Dushan, que interrompeu sua viagem até Shkodra para
passar metade do dia na Estalagem do Osso do Búfalo. Ouso incomodar o senhor subprefeito com essa lembrança unicamente por julgar que eventualmente seria mais fácil
compreender a conversa na Gruta do Mocho quando confrontada com a daquele dia. Outrossim, antes ainda de relatar o último diálogo, desejaria chamar a atenção do
senhor subprefeito, de forma nenhuma pensando em eludir minhas limitações na atividade de escuta ou minhas deficiências no cumprimento do dever, mas em atenção à
verdade, desejaria, portanto, chamar a atenção do senhor subprefeito para o fato de que ela se assemelhava não a uma troca de palavras entre pessoas normais, mas
aos desvarios de dois malucos, e dadas essas circunstâncias o senhor subprefeito facilmente há de deduzir minhas dificuldades para reproduzi-la. Reitero que jamais
pensaria em legitimar com isso..."
"Ah, capeta", disse consigo o subprefeito, erguendo a xícara de café, a qual deixara no relatório de Dull Baxhaj uma mancha circular que lembrava um carimbo. "E
o demônio em pessoa!"
Mais abaixo o informante asseverava ao senhor subprefeito
que sempre fora rigoroso no controle médico de seus ouvidos (obedecendo ao regulamento, fizera a última consulta duas semanas antes, e conforme o atestado médico
poderia corroborar, seus órgãos auditivos se mantinham em perfeito estado). Ademais, tendo em vista a necessidade de manter as boas condições de sua memória, o informante
se atinha estritamente às normas no que se referia à alimentação, não tocava numa gota de álcool sequer e, a despeito de suas predileções gastronômicas, comia regularmente
a quantidade de peixe requerida para assegurar suas reservas de fósforo, afora o suco de flor de sabugueiro que tomava três vezes ao dia, obedecendo à prescrição
médica. Ele voltava a pedir desculpas ao senhor subprefeito por aquela segunda digressão, mas empreendera-a com o propósito de coonestar a credibilidade de seu relatório,
não por carreirismo, desejo de ganhar um aumento etc., mas unicamente em atenção ao seu trabalho, pois sentia que a menor desconfiança quanto à veracidade do seu
testemunho poderia confundir as investigações ulteriores no que tocava aos dois suspeitos.
"Eh!", exclamou o subprefeito, tornando a bebericar na xícara, que marcara o relatório com um segundo carimbo. Sentia que, mesmo se passasse vinte anos estudando
retórica ou jurisprudência ou fosse lá o que fosse, jamais chegaria a dominar o estilo com aquela desenvoltura.
"Mas, eh, vamos ao que interessa", disse por fim, cansado do preâmbulo. Por certo o informante já teria atinado que a grande alegria do subprefeito ao ler os relatórios
residia justamente naquelas considerações prévias. Se ele dizia: "Eh, vamos ao que interessa", era para saber logo o que contava o informante, a fim de mais tarde
poder saborear com toda a calma as preliminares.
Dull Baxhaj escrevia a seguir que na data de 5 de março, depois de voltar a identificar o monge sérvio, Dushan, que rondava os arredores da estalagem, surpreendera-se
ao ver que o referido religioso não se esforçava nem um pouco para encontrar os dois estrangeiros, podendo até se dizer que os evitava. Ao constatar que o sérvio não fazia nenhuma
das coisas que o informante supusera, a saber, não se hospedava na estalagem, nem prosseguia o itinerário iniciado, nem retornava pela estrada de onde viera, o informante
reforçara suas suspeitas e junto com elas a atenção. De maneira que, quando o monge Dushan, após suas incompreensíveis perambulações pelo pátio dps fundos da estalagem,
partira de súbito, surpreendentemente sem o cavalo, e numa direção que não levava a parte alguma, a saber, num sentido sem sentido, como alguém que vagabundeia pelos
campos, o autor daquelas linhas vivera por um momento um dilema: deveria seguir o suspeito em sua caminhada, afastando-se do cenário da investigação, ou melhor seria
esperar seu retorno à hospedaria, e então retomar a vigilância segundo todas as normas? Ali o informante desejava fazer saber ao senhor subprefeito que a citada
hesitação não se devia a razões pessoais, nem demonstrava que ele se permitia julgamentos antecipados, muito menos que fazia escolhas de sua própria cabeça, quando
se tratava das normas e leis do Estado, não, isso nunca. A hesitação fora causada exclusivamente pelo fato de uma recente reunião de informantes ter discutido à
exaustão se um bom espia, em caso de deslocamento do investigado, devia se pôr a segui-lo, ou, para salvaguardar a discrição, permanecer pelo tempo anteriormente
definido no local sob investigação. Desgraçadamente, a reunião não chegara a nenhuma conclusão, deixando a questão em aberto, de modo que, como o senhor subprefeito
haveria de imaginar, a dúvida do relator daquele não era mais que um reflexo da citada polêmica, ou, mais precisamente, de sua interrupção sem chegar a qualquer
resultado.
"Capeta", murmurou o subprefeito, marcando toda aquela passagem com a unha.
Dull Baxhaj relatava logo adiante como seguira o monge pelo campo afora, naturalmente se atendo a todas as normas da correta vigilância, e como, para seu grande
espanto, testemunhara que o homem enveredava pela Gruta do Mocho, ou do Eremita, como a designavam ultimamente, depois que, como possivelmente seria do conhecimento
do senhor subprefeito, o eremita Frok passara a freqüentá-la.
"Não foi difícil deduzir", prosseguia o informante, "que devia haver alguma conexão entre os dois irlandeses, o monge sérvio, proveniente do Estado iugoslavo, e
o eremita Frok, ainda mais quando se leva em conta a insistência dos estrangeiros em se fixar exatamente naquela região. Tirando proveito do que conhecia sobre o
terreno e sabendo, entre outras coisas, afortunadamente, que a Gruta do Mocho possui um respiradouro natural, em outras palavras um buraco, ou uma chaminé, para
não usar a palavra estrangeira odják/' como exigem as recentes instruções pela salvaguarda da língua albanesa, o autor destas linhas deu a volta no morro onde fica
a gruta e, sem grandes dificuldades, graças a sua experiência fumeirística (se é que o senhor subprefeito perdoará o emprego de semelhante termo), conseguiu se instalar
de modo a ouvir a conversa entre os investigados."
Aqui o informante pedia licença ao senhor subprefeito para recordar ainda uma vez, embora de passagem, a questão da credibilidade de seu relatório, isto é, seu domínio
dos ouvidos, da memória etc. "Consciente de que o senhor subprefeito poderá, não sem razão, aborrecer-se com tais repetições, ele o faz ainda assim em atenção ao
seu trabalho, já que um trecho do diálogo ouvido na Gruta do Mocho, mais precisamente o trecho inicial, é tão parecido com uma conversa entre dois loucos, como,
aliás, foi acima mencionado, que poderia até justificadamente despertar no subprefeito as mais implacáveis suspeitas sobre quem o recolheu."
"O autor destas linhas", prosseguia Dull Baxhaj, "poderia ter optado por um modo mais fácil de evitar possíveis mal-entendidos, deixando fora do relatório, como
desprovida de valor, a primeira parte da conversa ouvida, mais ainda por ter ele chegado com algum atraso ao respiradouro, de maneira que perdeu o seu início. Poderia
tê-lo feito para facilitar sua vida, entretanto a consciência profissional, para não ir mais longe, ou seja, até a consciência cívica, chegando inclusive à lealdade
para com a Pátria e o Rei, não o permitiu. Efetivamente o primeiro trecho do diálogo poderia assim parecer à primeira vista, ou seja, à primeira audição, desconjuntado,
amalucado, um delírio de paranóicos etc., mas então surgiria a pergunta: e se não fosse desse modo? E se esse suposto desconjuntamento fosse na verdade um código
secreto para dois malfeitores se comunicarem? Uma tal hipótese bastou para que o redator destas linhas registrasse com o máximo rigor a baboseira toda.
"Quando o informante se instalou no conduto de ar, em postura de escuta, os dois investigados, ou mais precisamente o eremita Frok, que falava mais, expunha um ponto
de vista sobre onde se encontrariam os olhos do mundo. Até onde o presente relator entendeu, eles pensam, ou, melhor dizendo, o eremita Frok, que o disse expressamente,
pensa que o mundo, ou seja, o nosso globo terrestre, tal como a maioria dos seres vivos, possui dois olhos, os quais, segundo ele, encontram-se um no oceano Atlântico,
em algum lugar entre a Groenlândia e o mar do Norte, e o outro nas estepes de Caxemira. Um desses dois olhos está fraco, sempre segundo o eremita, e o planeta enxerga
mal com ele, mas não pense, como a maioria poderia pensar, que o olho fraco é o das estepes. Na verdade acontece o inverso: a vista cansada é a do oceano, e a saudável a das poeirentas planícies estépicas. 'É isso, monge', dizia o eremita.
"Vale registrar que o monge sérvio, embora quase não falasse, não contestava o eremita. Ele até deu alguns sinais de animação quando o velho Frok começou a contar
que havia pouco tempo conseguira fazer a distinção entre os raios normais e aqueles que o céu, como uma mulher, aborta. Habitualmente, segundo o eremita, o sétimo
raio é abortado, mas quanto pior é o tempo, mais abortos ocorrem.
"E por aí prosseguiu essa primeira parte da conversa, da qual o informante não pôde deduzir se o monge Dushan já conhecia o eremita ou fazia uma primeira visita
à caverna. A partir daqui, o autor destas linhas passa a reproduzir a segunda parte da conversa, em nada similar à primeira, solicitando a licença do senhor subprefeito
para dar a ela o formato de uma peça teatral, configuração que, no seu entender, conserva melhor a precisão das palavras."
"Então, agora começamos a escrever teatro", comentou em seu íntimo o subprefeito. "Esperto, muito espertinho, você."
Dull Baxhaj registrava que, quando o eremita voltava a falar sobre os olhos da Terra, mais precisamente sobre o enfraquecimento de um deles, que com certeza marchava
para a cegueira, o que faria do nosso globo um mundo caolho, acarretando conseqüências para a vida terrestre, para não mencionar o risco de um dia o único olho restante
se perder e reduzir o planeta a um mundo cego, o religioso o interrompeu:
MONGE SÉRVIO: Você ouviu falar daqueles dois estrangeiros, creio que são irlandeses, hospedados já faz algum tempo na Estalagem do Osso do Búfalo?
EREMITA: Não ouvi nem quero ouvir.
MONGE SÉRVIO: Faz bem. Também eu, se fosse você, trataria assim aquelas serpentes. Só que as serpentes mordem...
EREMITA: Serpentes, eles? Não me faça rir!
MONGE SÉRVIO: No início eu também encarei o trabalho deles assim, como uma coisa ridícula, mas quando fiquei sabendo o que pretendiam, senti o sangue ferver. Dizer
serpente é pouco. Eles são o demônio, o coisa-ruim em pessoa.
EREMITA: E qual é o trabalho deles? Ouvi dizer que têm uma caixa onde enrolam as vozes das pessoas, como um barbante num novelo, para depois desenrolarem.
MONGE SÉRVIO: É exatamente esse o instrumento de satã por meio do qual eles cometem a desgraça bem debaixo do nosso nariz, e todos continuam de braços cruzados,
pois ninguém enxerga o perigo. Você falou numa caixa, mas eu diria um caixão de defunto, e mesmo isso seria pouco. É pior, muito pior. A foice da Morte é uma flor
perto daquilo, irmão Frok.
EREMITA: É? Mas dizem que é uma espécie de caixa grande.
MONGE SÉRVIO: Uma espécie de caixa grande? Seria melhor se eles tivessem trazido a peste, uma forca, uma guilhotina, em vez daquele monstro. Uma caixa grande, é?
Pois aquilo é a canastra do demônio, irmão! Deixe-me explicar o assunto tintim por tintim.
Aqui, o signatário do relatório pedia licença para retornar ao formato clássico, devido a certos problemas técnicos cuja explicação ele omitiria por não querer fatigar
o senhor subprefeito.
"Pois então, o monge se pôs a explicar ao eremita Frok por que os dois estrangeiros eram uns facínoras e principalmente por que aquela caixa deles, o aparelho, ou
magnetofone, como o chamavam, era terrível. 'E um instrumento malévolo', disse ele, 'pior que as bruxas que esgotam as aguadas e secam os pastos. Pois as bruxas
matam as fontes e as ervas, enquanto a caixa
empareda as velhas cantigas e as tranca no seu interior, e você sabe o que ocorre a uma cantiga quando se tranca a voz. É como uma pessoa cuja sombra emparedaram:
ela definha e morre, eis o que acontece. Para mim tanto faz', prosseguiu, 'sou estrangeiro, meu país e minhas cantigas sérvias estão longe e em segurança, mas fico
penalizado por vocês. Eles vão desfigurar a vida de vocês com aquela máquina. Vão arrebatar todas as velhas cantigas e deixá-los surdos sem elas. Aí vocês vão lembrar
do que eu disse, mas será tarde demais. Um belo dia vão acordar num deserto, vão arrancar os cabelos, mas os dois malditos já estarão" longe. Terão saqueado tudo,
vocês estarão condenados a viver na surdez. E seus netos e bisnetos vão maldizê-los7 geração após geração. Tenho dito."'
Dull Baxhaj relatava que no início o eremita Frok escutara o monge com tranqüilidade, mas depois fora se enfurecendo, como atestavam os relinchos que soltava. "Você
me pôs nervoso", dissera por fim, "mas diga então o que se pode fazer." Entretanto, o monge não se apressara na resposta. Primeiro afirmara que deviam fazer alguma
coisa, sem dúvida, pensar em algo. Em seguida, subitamente, erguera-se, dissera que já estava tarde e precisava ir, mas voltaria outro dia para conversarem de novo.
No fim do relatório, o informante dizia que, ao retornar à estalagem, vira o monge caminhando pela estrada.
Capítulo 11
Daisy, com os olhos entrecerrados, distinguiu o tufo de cabelos do marido sobre o travesseiro branco, a duas polegadas do seu rosto, e, sonolenta, concluiu: domingo.
Nos outros dias da semana, acordava sozinha na cama, pois ele tinha o costume de trabalhar desde cedo; só aos domingos dormia até tarde, como ela.
Terminou de abrir os olhos e por um momento observou as feições do esposo, a quem o sono emprestava a expressão de alguém que implora piedade. "O sistema de aquecimento
está um gelo", pensou, puxando a coberta por sobre os ombros. No quarto, mal se sentia um resto de calor que a noite deixara. A umidade que se condensara nas vidraças
estava entrecortada aqui e ali por pequenos sulcos, sinal seguro de que o calor se fora. Naquele ano o inverno não queria acabar.
Como vinha acontecendo na maioria das manhãs, pensamentos fúteis, supérfluos e até incongruentes esvoaçaram pela mente de Daisy, até que ela se concentrou nos dois
irlandeses, que fazia tempo não via. Aparentemente havia uma relação en-
tre eles e o inverno que relutava em ir embora. Sim, eles tinham dito alguma coisa sobre o fim do inverno, a volta do calor, era isso, e a possibilidade de percorrerem
as montanhas.
"Vão ficar ainda mais longe", murmurou, com melancolia. Mas era uma melancolia suavizada, tal qual o vapor condensado nas vidraças. Nunca imaginara que eles (por
algum motivo, mesmo quando pensava em Willy, trazia à mente os dois juntos e se referia a Willy como "eles"), não, nunca imaginara que eles a desdenhariam daquele
jeito. Apesar disso, não se sentia ofendida. Tinha certeza de que não o faziam por arrogância, mas se tratava de uma falta causada pela impossibilidade de se verem
com mais freqüência. "Só querem saber daquele Homero", lamentou-se com azedume. Por pouco não sentia ódio dessa veIharia.
Ainda assim, tinha certeza de que os irlandeses haviam falado sobre ela. Mesmo na última vez, quando dançara com Willy e lhe lançara olhares langorosos, o colega
lhe dissera alguma coisa e ele respondera, por cima dos ombros dela. Não tinha dúvidas: falavam sobre ela.
My darling. My lord. Daisy suspirou profundamente, enquanto lembrava algumas das poucas palavras que sabia em inglês, as quais aprendeia nos filmes. Para dizer a
verdade, ficava feliz só de pensar que alguém, numa estalagem perdida no frio descampado, falava sobre ela em inglês.
Promoveriam outro baile, depois um jantar de despedida, imaginou, desanimada. Então viriam mais sonhos, mais horas de insônia, e em seguida outra desilusão. Melhor
seria não fazer nada. Por que provocar sofrimento? "Por quê?", indagou-se, com os olhos úmidos.
No entanto, logo depois ela se viu num jantar com eles. Estavam todos presentes, a lareira fora acesa como da outra vez, mas havia uma diferença: trocaram-se os
lugares à mesa, e a conversa mudara. Por exemplo, a fala que caberia ao diretor do correio ficava a cargo de Willy Norton, e ela, que horror!, pronunciava as frases da esposa do fabricante
de sabão.
O toque do telefone na mesa-de-cabeceira a despertou. Ela tapou a cabeça com a coberta enquanto sentia pelos movimentos do colchão que o marido, sonolento, estendia
o braço para atender.
"Alô", disse ele, com voz arrastada. "Alô, eu disse."
Antes mesmo que ele mudasse o tom de voz, ela sentiu seu corpo se retesar sob o efeito da surpresa.
"Como desejar, senhor ministro. Estou escutando, senhor ministro. Ah, recebeu? Fico muito contente, senhor ministro. Como? Aprovado o envio do informante anglófono?
Muitíssimo obrigado, senhor ministro, é uma notícia realmente maravilhosa. Para ser sincero, já tinha perdido as esperanças. Ah, não tenha dúvidas, senhor ministro.
Agora apanharemos os patinhos em flagrante delito. Rápido, muito rápido. Dou-lhe a minha palavra, senhor ministro."
Enquanto ele falava, Daisy tirou a coberta da cabeça para escutar. Quem seria aquele informante anglófono? Ela se sentia confusa. O marido continuava a falar com
o ministro. Repetia as palavras flagrante delito e patinhos.
Quando ele desligou o telefone, seu rosto parecia um prato cheio do qual o sorriso transbordava.
"Quem é esse informante anglófono?", quis saber ela.
"Ah, já acordou?", surpreendeu-se ele, com alegria. "Também, não tinha como não acordar. Maldito telefone."
"Você estava falando do informante anglófono", insistiu Daisy.
"Ah, um assunto maçante, administrativo. Você deve imaginar como essas coisas são tediosas."
"Tem a ver com os dois irlandeses?", perguntou ela.
"Como? Onde você está com a cabeça? E verdade que... Olhe7 é melhor você dormir de novo em vez de ficar quebrando a cabeça por tolices."
"Vão investigá-los?"
Ela o sentiu contrair-se na cama. Depois, as molas do colchão se distenderam, aliviadas.
"Vamos dizer que você tenha razão. E daí? Por acaso seria o fim do mundo?"
Ela ficou um bom tempo em silêncio, com um gosto amargo na boca.
"E monstruoso. Primeiro, nós os convidamos para jantares, e depois..."
"Ah, você!" Ele riu. "Sempre a mesma criança."
O subprefeito estendeu a mão para acariciar seu rosto, mas ela o afastou com energia.
"Apesar disso, você me agrada."
"Não amole", disse ela. "Quero dormir."
Daisy de fato fingiu adormecer, enquanto ele, depois de esperar um pouco, se levantou e deixou o quarto, tomando cuidado para não fazer barulho. Certamente iria
ao escritório, telefonar para seus delatores.
Ela se pôs a imaginar como soariam os telefones em seus quartos imundos e como os informantes, com os olhos empapuçados de sono, bebida e taras hereditárias, ergueriam
o fone, tal qual o marido pouco antes.
"Sou a mulher de um funcionariozinho vulgar", pensou. Nem adiantava evocar as mulheres do diretor do presídio e do fabricante de sabão. Seu marido, o subprefeito,
tinha um ofício ainda mais sujo. Na verdade, ela é que era digna de pena.
Abriu os olhos. Nos vidros da janela, os sulcos de vapor condensado lembravam lágrimas a escorrer numa máscara tragicômica. "Vão vigiar as conversas deles", pensou,
aflita. E os dois
eram tão distraídos que logo cairiam na armadilha. "Patinhes." O apelido não surgira por acaso. Estavam completamente perdidos, com o gavião em cima deles, como
diria a avó Mara. Todas as suas conversas seriam ouvidas, inclusive as que falassem dela. Daisy estremeceu de repulsa. Aquelas orelhas porcas, sebentas, ouviriam
seu nome. Moveu-se nervosamente no leito. "Preciso fazer alguma coisa." Não se tratava mais de uma fantasia cinematográfica; era hora de tomar uma providência de
verdade. Avisá-los...
Uma carruagem com as cortinas fechadas se pôs em movimento na sua imaginação. Dentro ia uma dama coberta por uma mantilha negra - ela própria. Ai, santo Deus, lá
estava ela outra vez no cinema. Ainda assim, a carruagem com a mulher de mantilha seguia seu caminho, rumo à Estalagem do Osso do Búfalo.
O informante anglófono chegou a N. no fim de semana. À exceção do subprefeito e de um de seus funcionários, ninguém sabia o verdadeiro ofício do homem de terno preto
e bigodinho de pontas retorcidas que ocupou um quarto no Hotel Glob. Naturalmente, mal ele desembarcou, a cidade, curiosa, se pôs em busca dos necessários esclarecimentos
sobre o visitante vindo da capital, e mais naturalmente ainda, como a busca não foi satisfatória, a bisbilhotice redobrou ao longo da semana. Dizia-se que o homem
era um comprador de imagens religiosas e velhos manuscritos cristãos, um criador de abelhas, um doente mental a quem haviam receitado os ares da montanha. Talvez
surgissem novas suposições para explicar seus sumiços periódicos do hotel, se um grão de verdade não tivesse vindo à tona. Teria a suspeita nascido no círculo dos
informantes da subprefeitura, por razões como companheirismo ou ciúme profissional? Ou
os informantes detectaram o boato alhures e pelas mesmas razões o difundiram? Seria difícil dizer, mas era muito fácil explicar a atração dos informantes pelo recém-chegado.
Como toda profissão, também a deles tinha seu mundo próprio (ainda que fosse um mundo de cochichos e penumbras), com sua elite e seu rebotalho; com seus mestres
cultuados pelas respectivas claques ou, ao contrário, invejados e odiados; com principiantes sonhando em chegar aos píncaros da glória; com os legendários informantes
da capital e suas rumorosas aventuras e proezas; com lamúrias pelas limitações da província. Tudo isso de uma ou outra maneira veio à luz com a chegada do sujeito
de ares senhoriais, cabelos colados na cabeça e bigodinho retorcido que vez por outra aparecia no restaurante do Glob.
Porém, o mais assombroso foi o vazamento do diz-que-dizque para fora do fechadíssimo círculo dos serviços de informação. Que a lealdade dos informantes de N. deixava
a desejar já era sabido, e até notório, desde o primeiro ano após a proclamação da monarquia, quando o novo ofício fora introduzido em N. pelo inesquecível Palok
Orelha, que tivera o verdadeiro sobrenome, Gjok, modificado por motivos que dispensam explicação. Pois então: que os informantes de N. não eram modelos de virtude
ninguém punha em dúvida. Mas realmente causou espécie o fato de as coisas assumirem proporções tão escandalosas, com um mexerico extravasando do círculo mágico da
corporação e se espalhando às claras pela cidade.
O subprefeito, após longo conciliábulo com seus auxiliares, concluiu que, distintamente do que ocorria em outras ocasiões, dessa vez a indiscrição não partira do
secreto desejo de que os ameaçados pusessem as barbas de molho. Longe disso, ninguém se condoía dos estrangeiros; pelo contrário, a chegada do informante, ao que
tudo indicava, despertara uma onda de orgulho patriótico entre os habitantes de N. e uma calorosa acolhida ("Isso é para vocês, estrangeiros, que chegam a nossa terra com seus charutos e engenhocas, não pensarem que aqui podem fazer o que bem entendem. Não, senhores!
Somos capazes de coisas que vocês nem imaginam, inclusive decifrar o seu inglês!"). E aparentemente fora essa a verdadeira causa do vazamento.
A argumentação baseada no surto de ardor nacionalista, ardor que na realidade andava em baixa em N. naqueles tempos, tranqüilizou o subprefeito, que imediatamente
fez ouvidos moucos aos mexericos.
E estes seguiram caminho. O nome do informante anglófono agora estava na boca das senhoras da cidade. Falavam de serviços especiais que ele prestara ao rei em Tirana,
das relações amorosas que teria com determinadas damas, entre elas a esposa de um embaixador, e de toda sorte de enredos. "Um informante de primeira classe, sem
dúvida!", comentavam, meio enciumados, os modestos informantes de N., imaginando-o nas cúpulas de palácios e catedrais, e não, como eles, em estrebarias cheias de
pulgas e estéreo. Dull Baxhaj, que deveria trabalhar com ele no Osso do Búfalo, por certo se sentia pouco à vontade. Indubitavelmente, seria uma honra colaborar
com um ás como aquele. Mas talvez já não precisassem mais de um Dull Baxhaj e o afastassem dos irlandeses. Sim, sim, com certeza era isso. Para que precisariam dele,
agora que o mestre chegara?
Contudo, outras vozes afirmavam que Dull Baxhaj continuava seu trabalho com os estrangeiros. E isso tinha lógica: gente da capital não rasteja dia e noite pelo telhado
de uma estalagem, nem precisa disso. O homem ia até lá somente em horários determinados, e à noite voltava ao seu acolhedor quarto de hotel, deixando Dull Baxhaj
no desvão.
Um dia Daisy perguntou ao marido: "Por que não me disse nada sobre a chegada do informante anglófono?".
"Não achei que fosse lhe interessar."
Os olhos dela seguiam os dele, que erravam pelos cantos da sala.
"Seja como for, eu agradeço que desta vez você não tenha negado."
"Ha?", fez ele, e simulou procurar alguma coisa.
Ela continuou de pé, com o olhar cravado no tapete. Sentia aquela tristeza especial que a possuía algumas vezes, uma tristeza apática, que lembrava flocos de neve
meio derretidos, portanto menos insuportável que a tristeza verdadeira, viva. Não fora ao Osso do Búfalo. Vacilara, agarrara-se a obstáculos como o modo de chegar
lá ou a maneira como se explicar ao marido. Às vezes se tranqüilizava: agora, o que estava feito, estava feito, a vigilância já começara, e ela não podia ajudá-los.
Mas logo em seguida pensava o contrário: talvez eles ainda não tivessem dito nada realmente perigoso, talvez ainda fosse tempo de evitar o pior.
A hesitação se prolongava. Ela se punha a preparar de antemão os argumentos que apresentaria à sua única amiga, a mulher do diretor do correio, e então vacilava
ainda mais. Até que ponto devia lhe confiar a verdade? O que devia contar, e como?
"Que tortura!", pensava às vezes. Nunca supusera que fosse tão incapaz de tomar uma decisão. Mas precisava fazer alguma coisa, ao menos dizer a eles que não falassem
dela, que não deixassem seu nome cair em ouvidos tão imundos. Ao menos isso. Quem sabe não seria o bastante para eles deduzirem o resto?
O dia estava nublado, e a despeito disso se sentia nele a claridade de março, expandindo-se na abóbada celeste. Willy, parado em frente à janela, olhava para fora.
Às suas costas, Max se entretinha com o magnetofone. A cantiga monocórdica dava vontade de dormir.
O barulho de uma carruagem no pátio arrancou Willy da sonolência. Ele aproximou o rosto da janela, enxugou o vapor condensado no vidro e ainda assim não distinguiu
quem descera do veículo. Por um instante a silhueta lhe pareceu familiar, mas logo se enevoou outra vez.
"Quem será essa mulher? Já a vi em algum lugar...", disse consigo. Continuou a enxugar mecanicamente o vidro, até que uma idéia gelou suas entranhas: a névoa não
estava no vidro, mas em seus próprios olhos. Então o mal já avançara tanto que ele não distinguia uma pessoa a poucos metros de distância?
O estado de sua vista o preocupava mais e mais. "Glaucoma galopante", pronunciou em seu íntimo. Era o nome da enfermidade que andava a assustá-lo. Fechou os olhos
e os abriu novamente, com um resto de esperança de que fosse um turvamento momentâneo e que no instante seguinte ele reconheceria a mulher da carruagem. Mas tudo,
até a carruagem, continuou como antes, imerso na cerração.
"Max", disse ele, voltando-se para o amigo, "precisamos ir imediatamente a Tirana. Meus olhos estão péssimos."
Max franziu o cenho, como era seu costume sempre que a doença de Willy vinha à tona.
No dia seguinte, ao abrir o envelope que habitualmente traria um dos relatórios de Dull Baxhaj, o subprefeito não acreditou no que via: no lugar do relatório, encontrou
um pedido de demissão.
"Ou meus olhos estão me enganando, ou Dull Baxhaj enlouqueceu", disse consigo. Uma demissão justamente no momento em que a armadilha para os dois estrangeiros se
aproximava do desfecho... Para surpresa do subprefeito, era mais ou menos assim que o informante iniciava sua carta: depois de pedir desculpas pelo incômodo, escrevia que, ao ler aquela missiva, o destinatário com toda a certeza diria que ou ele, subprefeito, andava sofrendo da vista, ou ele, Dull Baxhaj,
perdera a cabeça.
"Não", prosseguia o informante, nem o senhor subprefeito sofria da vista, nem Dull Baxhaj enlouquecera. Era em pleno gozo de suas faculdades físicas e mentais que
ele pedia demissão.
"Gente maldosa", afirmava mais abaixo, "haverá de interpretar que o pedido foi inspirado por pretensões rasteiras, como promoções, aumentos de salário etc., mas
o redator destas linhas espera que, conhecendo-o como o conhece, o senhor subprefeito compreenda que Dull Baxhaj jamais trabalhou por ambição. Outros mal-intencionados
talvez mencionem como motivo da demissão algum sentimento de amor-próprio ferido, quem sabe ciúme, que Dull Baxhaj teria sentido em razão da presença do informante
anglófono em N. É até natural que pensem assim, já que, da mesma maneira como a abóbora se compõe de noventa por cento de água, a vida dessa gente se compõe de noventa
por cento de amor-próprio e ciúme."
"Noventa por cento de água", admirou-se o subprefeito. Até disso Dull Baxhaj entendia! Era um homem talhado não para informante, mas para presidente da Academia
de Letras.
"Assim pensarão os outros", escrevia o demissionário, mas o senhor subprefeito com toda a certeza haveria de recordar que fora precisamente Dull Baxhaj quem solicitara,
com insistência por vezes até excessiva, a vinda de um informante da capital.
Não, nenhuma daquelas explicações se sustentava. E para não se alongar, ele, Dull Baxhaj, passava a justificar, franca e honradamente, seu pedido de demissão: no
dia 11 de março, às onze horas da manhã, após sete anos no exercício das funções de investigador do Reino da Albânia, ele, pela primeira vez, adormecera em serviço.
"Ah, então é isso!", pensou o subprefeito, aliviado. Era fato
sabido que metade dos funcionários de N. tirava suas sestas durante o horário oficial, sobretudo no verão. Mas Dull Baxhaj era mesmo fora de série. Para enfatizar
a tragédia, ele circundara a frase com um grosso traço preto, como numa comunicação fúnebre.
"Ninguém presenciou a falta", explicava o informante, "e ele poderia silenciar a respeito do ocorrido, pois se achava só, no desvão do telhado da Estalagem do Osso
do Búfalo. Sim, poderia ocultar tudo, mas Dull Baxhaj não é desse feitio. Jamais escondeu coisa alguma do seu Estado. Por anos a fio, sem a fiscalização de quem
quer que fosse, exceto sua própria consciência, ele cumpriu regular e solitariamente todas as tarefas que cabem a um informante; manteve os ouvidos atentos, mesmo
em condições difíceis, e até dificílimas, em meio aos ventos, à chuva, aos trovões, ao estrondo das ondas do mar e dos rios encachoeirados, aos latidos dos cães,
ao crocitar dos corvos, ao piar das corujas etc. Jamais se permitiu dormir, nem nas mormacentas noites de verão, nem nos mais gélidos invernos, nem após quarenta
e oito horas de vigília, ainda que postado sobre um quarto, ouvindo o soporífero ronco dos investigados. Além disso, Dull Baxhaj sempre prestou contas rigorosamente
em seus relatórios de tudo o que viu e ouviu, sem jamais se permitir nenhum exagero ou minimização, nenhuma esperteza ou truque. Fez seu trabalho, secreto e silencioso,
cumprindo com os deveres de um informante, mas, por mais secreto e silencioso que fosse perante os outros, sempre foi aberto para o seu Estado monárquico. Sendo
assim, não pode ocultar o que ocorreu na manhã de 11 de março."
O subprefeito deixou escapar um suspiro antes de prosseguir a leitura.
"No dia 11 de março", continuava Dull Baxhaj, "às onze horas da manhã, achando-se o informante como de hábito no
desvão em cima do quarto da Estalagem do Osso do Búfalo, onde os dois irlandeses estudavam longamente a gravação de um tocador de lahutê, ouviu de súbito o barulho
de uma carruagem no pátio dos fundos. Que carruagem seria aquela?, indagou-se ele, silenciosamente. De onde saíra? E por que ele não ouvira sua aproximação? O informante
esfregou os olhos, supondo que cochilara um pouco, mas não tinha sido um cochilo. Tinha sido sono mesmo, uma verdadeira vergonha. E tanto tinha sido sono que, mesmo
quando ele ouviu o ruído das rodas, não despertou de um só golpe, e foi assim, em meio a um confuso nevoeiro, que avistou uma mulher subir no veículo e partir.
"Não é o caso de fatigar o senhor subprefeito com o relato do choque que o autor destas linhas sentiu. O problema não reside apenas no fato de ele não ter identificado
a mulher, nem ouvido a conversa que eventualmente esta teve com os investigados. Afinal, não se sabe se houve mesmo um encontro. E a identificação poderia ser feita
mais tarde. Não. Não foram esses os motivos do choque. A catástrofe ocorreu no íntimo do informante. Ele se sentiu como um jarro que se quebra. Sofre uma dor sobre-humana,
um remorso ululante, uma crise irremediável. Ele não deseja perdão ou consolo. Coisas desse tipo só aumentariam seu padecer. Pede apenas uma coisa: a demissão, a
demissão e o esquecimento. Por isso solicita aqui ao senhor subprefeito, em termos oficiais e enfáticos, sua demissão das funções de informante do Estado."
Por muito tempo o subprefeito manteve os olhos perdidos na assinatura tão familiar do informante. Uma tristeza infinita se apoderou do seu peito. Mas por que se
demitir assim? Seria mesmo um caso de consciência pesada ou haveria um motivo secreto?
Acorriam-lhe em turbilhão mil reflexões sombrias e desordenadas, que se sobrepunham como nuvens carregadas de chuva. Que mulher seria aquela? A consternação pelo fim dos relatórios de Dull Baxhaj, cortante e com um sabor esquecido desde a juventude, como o de um amor que acaba,
misturava-se à desconfiança: Dull Baxhaj realmente não identificara a mulher? Ou agira como agira para encobri-la?
O subprefeito sentia a cabeça confusa, como alguém que está saindo de uma enfermidade. "A demissão e o esquecimento", repetiu. Sua impressão era que Dull Baxhaj
se afastava da vida cotidiana para ressurgir em seguida na qualidade de forasteiro misterioso, um profeta, quem sabe um pretendente ao trono. Santo Deus, podia-se
esperar qualquer coisa daquele homem. Às vezes parecia que ele seria capaz de ascender às esferas mais inacessíveis para se converter no informante-mor do mundo
inteiro.
Essa última suposição provocou um arrepio no subprefeito. Ele sentia que remoía absurdos, mas não conseguia parar. Não deviam ser gratuitas as filosofices do informante
sobre o olho do mundo nas estepes de Caxemira.
De repente, o subprefeito se deu conta de que nunca vira Dull Baxhaj. Por anos e anos lera seus relatórios sem saber como seria o seu rosto e sem ouvir a sua voz.
"Nunca visto, jamais ouvido", pensou, aterrado e quase gritando: "Mas Dull Baxhaj realmente existe?".
Depois, ergueu-se bruscamente da poltrona para pôr fim àquela nova insensatez.
Capítulo 12
Ao cair sobre a pupila, reduzida a uma lastimável imobilidade, a gota límpida pareceu duplicar sua mágoa. Depois veio outra gota, e outra, e cada uma delas submergia
os olhos nas ondulações do líquido.
Havia quatro dias ele usava um colírio, recentemente lançado, para reduzir a pressão do globo ocular. Para seu espanto, o remédio era vendido numa farmácia de Tirana
(dizia-se que a rainha-mãe, também doente da vista, mandara importá-lo). Willy sentia um certo alívio.
Isso devolvera aos dois a antiga animação. A melhora gradual do tempo também ajudara, e naquela manhã Willy exclamou, transbordante de alegria: "Max, veja, um pássaro!
Está voando para os montes Malditos, não está?".
Max espichou o pescoço pela janela e disse: "Está sim. Que maravilha!".
O outro compreendeu que as últimas palavras tinham duplo sentido. Era uma maravilha que Willy pudesse distinguir
não só um pássaro voando mas até mesmo a direção do vôo, e também era uma maravilha que os sinais de aproximação da primavera se multiplicassem. Na maior parte do
ano os pássaros evitavam os montes Malditos, que por isso receberam tal nome.
"Que maravilha, Willy", repetiu Max, esfregando as mãos.
A excursão pelos montes, que a doença de Willy tornara incerta, agora poderia se realizar. Eles já tinham até conversado com Shtiefen sobre o aluguel de uma carruagem
e a possibilidade de Martin acompanhá-los.
Seria efetivamente o coroamento do trabalho deles. Tinham reunido os nomes de onze rapsodos, cujas cantigas, em sua maioria, seriam gravadas pela segunda vez, em
alguns casos pela terceira.
Além disso, ainda alimentavam uma vaga esperança de topar com um último murmúrio da epopéia sobre algum acontecimento posterior a 1913. Se ela produzira uma dúzia
de versos sobre 1878 e, após três décadas, cinco versos sobre 1913, por que não seria possível que agora, vinte anos depois, produzisse ao menos dois ou três? Afinal
de contas, essas décadas, que tanto contavam para as pessoas, para a epopéia não passavam de migalhas de tempo, alguns minutos a menos ou a mais.
Os dois sabiam que essa esperança era infundada. A epopéia de fato despertara da letargia em 1913, mas apenas em virtude de uma catástrofe tremenda: o retalhamento
da Albânia. Já o período seguinte da história do país fora mais regular. Alguém até poderia dizer que não haveria época mais apropriada para a morte da poesia épica.
Tinham conversado sobre tudo isso, no entanto ainda acreditavam num epevento, palavra que fundia epopéia e evento, criada por eles próprios para designar um poema
épico inspirado num acontecimento contemporâneo.
Sua antiga inquietude com a desagregação da epopéia fora
substituída por um sentimento mais sereno: agora a epopéia ao menos havia sido recolhida. O que inicialmente parecia disperso no espaço e no tempo, cauda de arco-íris,
vento, espuma, agora estava etiquetado e encerrado naquela caixa metálica. Às vezes custavam a crer que tivessem conseguido amansar tanta fúria e paixão.
Daisy nunca examinara tão minuciosamente o caminho calçado com pedras que atravessava o jardim entre o portão da rua e a porta de sua casa. Chovia, e as pedras reluziam
com um brilho estranho, mquietante. Ela as conhecia uma por uma; nos dias chuvosos, sabia quais balançavam e deviam ser evitadas, para não respingar a roupa de lama.
Mas nunca as observara assim, do primeiro andar. Daquela altura, ficava difícil distinguir quais poderiam espirrar lama ao serem pisadas pelo desconhecido.
Era o informante anglófono que estava para chegar, dentro de meia hora. Um desconhecido, na casa dela, às onze horas da manhã, sem que o marido soubesse... Mas o
frêmito durou apenas um instante. Com uma ponta de contrariedade, ela recapitulou rapidamente as circunstâncias: o desconhecido vinha a seu convite para tratar de
uma questão específica ligada ao ofício dele.
Não fora fácil para Daisy se decidir a escrever aquele bilhete: "Desejo encontrá-lo; o assunto é importante. Por favor, peço-lhe que isso fique entre nós".
Escrevera-o uma semana antes, após uma tentativa fracassada de contatar os irlandeses. Aquela excursão pela estrada do Norte, a pretexto de visitar o afresco da
igreja de Santa Maria, a parada no Osso do Búfalo, ela a descer da carruagem e a entrar no albergue, dizendo estar com sede, o rápido diálogo com o estalajadeiro,
e a volta, sempre na carruagem, tudo lhe acorria à
memória confusamente, como se não tivesse acontecido de fato mas fosse uma fantasia de sua sonolência.
Depois disso, Daisy passara toda uma semana procurando um modo de entrar em contato com eles. Usar outra vez a carruagem decerto despertaria suspeitas no estalajadeiro;
levar consigo a mulher do diretor do correio ela também não ousava. Cogitou em escrever um bilhete e pedir que a criada, única pessoa em quem confiava, o entregasse.
Então, pensou no informante anglófono. E se lhe falasse diretamente? Afinal de contas, ele era a chave de tudo. A alternativa encerrava os atrativos de todo projeto
audacioso. O informante era mesmo a chave de tudo. Tinha os ouvidos colados nos dois. Caso estes houvessem de fato conversado sobre ela em seu inglês maravilhoso,
quem mais poderia dize-lo? My lord... My love... Aos poucos, as últimas palavras eclipsaram tudo o mais. A despeito de não querer confessá-lo, nem para si própria,
ela sentia que estava precisamente aí a mola mestra de todos os seus atos e da decisão impulsiva de escrever ao homem de Tirana. "Naturalmente", argumentava consigo
nos raros momentos de sensatez, "eles são cidadãos estrangeiros, e nada os ameaça." Ainda assim, esse raciocínio logo sucumbia, e na maior parte do tempo, inclusive
agora, quando esperava a porta da rua se abrir, ela se comprazia em acreditar que salvaria os dois do perigo.
Eram quase onze horas, e o informante anglófono poderia chegar a qualquer momento.
Mais tarde, ao reconstituir mentalmente o aparecimento do homem, Daisy elaboraria duas variantes: na primeira, em câmara lenta, ele caminhava de modo pausado, e
ela acompanhava todos os pormenores de seus passos, o movimento do portão, os passos sobre as pedras molhadas, os nós dos dedos batendo à porta, a subida pela escada,
depois o encontro com ela, o olhar e as suas palavras: "Senhora, estou muito satisfeito em poder servi-la".
Na segunda versão, o trajeto dele do portão ao primeiro andar mais parecia um salto-mortal que o conduzia para ela, diretamente, com um olhar ardendo de curiosidade,
encanto e algo mais, um misto de segurança e desinibição que a levou a pensar: "Ai, meu Deus, exatamente o olhar de um espia". Em seguida, as mesmas palavras: "Senhora,
estou muito satisfeito em poder servi-la".
Ele era igual e ao mesmo tempo diferente do que ela imaginara. Os cabelos colados na cabeça brilhavam perigosamente, como se fossem feitos da mesma substância que
os olhos. Ela nunca vira uma criatura cujos cabelos e olhos estivessem em tão perfeita harmonia. Olhos de informante, nos quais se enxertara lisonja. Pelo modo como
a fitava, Daisy teve a sensação de que ele teria ouvido alguma conversa dos dois estrangeiros a seu respeito. Sim, sim, era isso mesmo, um olhar cheio de subentendidos,
como o das pessoas que partilham um segredo. A vontade de saber o que haviam falado dela suplantou tudo o mais. Não fosse sua natureza recatada, teria dito na hora:
"Por favor, diga logo, tal qual você ouviu, em inglês. Deixe a tradução para depois, mas conte tudo, tudo o que eles disseram sobre mim".
Mas Daisy era recatada. Pôs-se a fazer longos rodeios. Mais tarde, recordaria confusamente essa parte do encontro. As vezes lembraria apenas dos olhos dele, que,
enquanto ela falava, soltavam faíscas como dois carvões ardentes que alguém atiça sem parar. Isso a fizera pensar: "Ele sabe mais sobre mim do que eu imagino".
"Eu conheço os dois estrangeiros que estão aqui", disse ela afinal, num tom abafado. "Talvez o senhor se surpreenda com as circunstâncias em que os conheci, mas..."
"Senhora", interrompeu ele, também falando baixo, como se receasse acordar alguém, "vejo que tem dificuldade para falar, mas leve em consideração que estou habituado a situações deste tipo."
"Ah, sim..."
Daisy ergueu a cabeça. Os olhos do informante estavam muito próximos e trouxeram de cambulhada à sua mente as muitas histórias que ouvira sobre ele. "Claro", pensou,
mas apenas sorriu debilmente. A mão dele segurou a sua com cautela.
"A senhora é muito bonita."
"Como ousa?", perguntou ela, pestanejando.
Sem soltar sua mão, o homem buscava o olhar dela.
"Senhora, em razão da profissão que exerço, muitas vezes tive a oportunidade de..."
"Sim, sei o que falam do senhor."
Ele sorriu e continuou, em voz ainda mais baixa: "... Muitas damas notáveis, que outros sonham apenas em conhecer, eu tive a oportunidade de apreciar despidas, no
banho ou no quarto de dormir... Talvez até mesmo a senhora, quando esteve em Tirana, no Hotel Kontinental...".
"Meu Deus!", exclamou ela consigo. De fato já estivera naquele hotel. O pensamento lhe paralisou uma parte do cérebro. Se ele realmente a vira nua, então... "Então
o quê? O quê?", indaeava-lhe ainda uma vozinha interior. Se ele a vira nua, era
quase o mesmo que...
Ela o viu aspirar o aroma dos seus cabelos, mas já perdera a lucidez. Sentiu que precisava de apoio. Todos os seus pensamentos giravam em torno de um só ponto: se
o que ele dissera acontecera realmente, nada mais tinha importância.
Sentiu as mãos do homem na sua cintura e, em vez de repeli-lo, como pensara fazer um momento antes, deixou que ele a atraísse.
"Já foi", disse Daisy consigo, ao ouvir o portão se fechar. Jogou um penhoar sobre os ombros e assim se aproximou da janela. Lá fora a chuva tamborilava, como se
nada houvesse ocorrido. Se pelo menos ela tivesse descoberto o que os irlandeses falavam a seu respeito, pensou Daisy, entorpecida. Nem chegara a perguntar. Mas agora aquilo já não
a incomodava tanto. Dentro dela se formara um vácuo. Ela não queria pensar em nada. Dirigiu-se em passos lentos até o banheiro, abriu a torneira de água quente e
entrou na banheira.
Quando o marido chegou, Daisy ainda estava no banho.
Mais tarde, enquanto ela punha a mesa, ele começou a falar sobre um possível noivado do rei com uma condessa húngara.
"O que há com você?", perguntou o subprefeito, dando-se conta de que, surpreendentemente, ela não se interessara pelo assunto. "Está com dor de cabeça?"
"Sim", disse ela. "Não me deixou a manhã inteira."
Ele baixou os olhos para o prato, tomado pelo sentimento de culpa que o invadia sempre que se falava das suas dores de cabeça. Sabia que a causa principal era a
falta de filhos.
O almoço foi pontilhado por frases esparsas, depois ela disse que ia se deitar; ele descansou um pouco e voltou para o gabinete.
No jantar a cena se repetiu, com apenas uma diferença: em vez de sair, ele se trancou no escritório. Ela se recolheu ao quarto.
Tentou dormir, mas era impossível. Pressentiu que teria pela frente uma noite insone, marcada pelas badaladas do relógio de bronze, cada vez mais trêmulas e solitárias.
Não atinava com as razões da insônia. Era a primeira vez que traía o marido, e no entanto sentia que não era remorso o que a atormentava. Era outra coisa, relacionada
com aquele vácuo insuportável, que parecia ter substituído toda a sua vontade de viver uma aventura. De onde vinha aquilo? E por que a angustiava? Chegou a rir
amargamente, pois sabia o motivo: tinha sonhado outra coisa, um relacionamento com o homerista estrangeiro, palavras em inglês, e acabara nos braços de um informante,
e logo qual, o encarregado de investigar o objeto do seu sonho. Era realmente grotesco.
Como se tudo isso não bastasse, já podia imaginar a cena da visita ao ginecologista, os olhos dele, sempre sonolentos, dessa vez finalmente avivados pela curiosidade:
"Com quem?"... Não, ela nunca iria lhe revelar a verdade. Inventaria uma história qualquer, uma fábula romântica, uma casualidade (ela meio embriagada, num baile,
por puro acaso, puro acaso...), mas nunca a verdade sobre o informante. O pensamento lhe trouxe algum alívio. O latejar das têmporas foi amainando. "Talvez eu não
tenha engravidado", pensou, percebendo que se acalmava ainda mais. Apavorara-se sem motivo. Afinal, não era a primeira nem seria a última. Não era aquele o tema
de metade dos filmes e livros: Anua Karenina, Greta Garbo e tantas outras que nem lembrava? Ah, por fim adormeceria, a dor de cabeça a abandonava, e só isso já era
um milagre; se pelo menos as têmporas... Golpes dolorosos... repetindo-se como o dobre de um sino... pareciam vir de fora... Ela se abraçou ao travesseiro numa derradeira
esperança de amortecer com ele a pulsação nas têmporas, quando sentiu que o marido se movera, como se soubesse o que se passava em sua cabeça. Não era impossível
que ele tivesse adivinhado... Ou tudo aquilo na verdade vinha de fora para se mesclar com sua angústia? Ainda estava completamente perturbada quando ouviu a voz
do marido: "Estão batendo".
"Como?", perguntou ela, ainda sem entender, apenas sentindo o movimento do braço dele, que se esticava para acender o abajur. Depois, quando a luz acendeu, a voz
do marido soou com um timbre diferente no quarto iluminado: "Estão batendo".
As batidas agora eram bem perceptíveis, e em meio a elas Daisy ouviu uma voz: "Senhor subprefeito... Senhor subprefeito!".
"Essa voz...", pensou, amedrontada; depois sacudiu a cabeça, como se quisesse arrancar dali aquela insensatez, enquanto ele, que rapidamente se pusera de pé, ia
até a janela.
"Senhor subprefeito! Senhor subprefeito!" A voz que vinha de fora agora soava mais distinta.
"O informante", disse o marido, perplexo. "Alguma coisa aconteceu."
Ela acompanhou com os olhos arregalados suas andanças pelo quarto, em busca da camisa e em seguida das calças.
"Não!", exclamou de repente, com voz rouca, estranha, a ponto de ele, apesar da sua agitação, fitá-la por um instante, como se duvidasse que a voz era dela. "Não
saia."
Tempestuosamente acorriam à mente de Daisy as possíveis explicações para a visita àquela hora. Nada de bom poderia ter motivado aquelas batidas e gritos. "Ai, meu
Deus do céu", gemeu ela, em silêncio, "que desgraça será desta vez?" Teria ele, num assomo de loucura, vindo raptá-la, ou contar ao marido o que fizera, para convencê-la
a deixá-lo, ou para humilhá-la, ou para mofar dos dois, ou ainda, quem sabe, para matá-lo, ou para pedir desculpas? Naquele momento todas essas hipóteses lhe pareceram
tão razoáveis quanto impossíveis. Talvez ele estivesse arrependido, ou então, pior, sucumbira a uma idiota crise de consciência, como devotado funcionário público
que havia de ser, e vinha relatar ao chefe que violara os regulamentos do Estado ao revelar informações reservadas sobre uma investigação... "Mas eu não perguntei
nada! Nem cheguei a dizer por que o chamara", tentou argumentar. Seus pensamentos continuavam a revolutear fragmentariamente, enquanto ela seguia com os olhos ainda
arregalados os movimentos do marido.
"Não saia", repetiu.
"Daisy, não se assuste", disse ele por fim, controlando sua própria inquietação, que, embora diferente, não era menor. "Alguma coisa aconteceu, com certeza, mas
você não precisa se assustar."
Ela não chegou a dizer pela terceira vez "Não saia" porque ele já descia a escada. "Agora acabou-se", pensou. A desgraça estava feita.
Num impulso, saltou da cama e se dirigiu à janela. Voltou a ouvir as batidas, seguidas de um "Senhor subprefeito" agora roufenho. Abriu a janela. O ar frio e impregnado
de chuva enregelou sua camisola. Ouviu os passos do marido, depois o rangido do ferrolho, que a fez estremecer. Agarrou-se ao parapeito para não cair, enquanto as
vozes dos dois homens se misturavam na entrada. Era impossível distinguir o que diziam. As palavras chegavam entrecortadas de gemidos e de exclamações que indicavam
surpresa e raiva.
Agora eles se aproximavam da porta da casa, e ela não se espantaria se ouvisse tiros de revólver. Permanecia à janela, paralisada, como alguém à espera de uma sentença
condenatória. A escada rangeu pesadamente sob os passos deles. A qualquer momento empurrariam a porta do quarto, pensava ela, mas a porta aberta foi a do escritório.
Ouviu-se o disco do telefone girando e as palavras do subprefeito: "Alô, gendarmaria?".
"Como?" Ela quase gritou. A novela chegava a uma conclusão banal. Como haviam se entendido tão rápido? Não, não era possível. Ouviu de novo a voz do marido no escritório:
"Depressa, dez gendarmes, dos melhores. Depressa!".
Ela ainda não conseguira coordenar os pensamentos quando a porta do quarto de fato se abriu. Por alguns segundos ele não disse nada, talvez por encontrar a cama
vazia. Depois, devia tê-la visto à janela.
"Aconteceu uma coisa horrível", disse. "Tenho que sair imediatamente."
"Como assim? O que aconteceu?"
"Lá na estalagem... Uns desconhecidos atacaram os irlandeses."
"E os mataram?"
"Não. Talvez os tenham ferido. Vou indo. Durma."
Ele fechou a porta, e Daisy voltou à janela. Embora tiritando? ali ficou até que as vozes e o ruído dos dois automóveis se perdessem na distância.
"Que noite maluca!", exclamou, levando as mãos às têmporas, com os olhos entrefechados. E acrescentou: "Como se o dia tivesse sido menos louco...".
Quando o subprefeito retornou, ao amanhecer, contou-lhe uma história confusa. E depois que ele adormeceu, Daisy teve a sensação de que seu relato não elucidara nada.
Enquanto o marido falava, ela tentara fazer perguntas, mas ele não deixara.
"Não me pergunte nada. Nem eu entendi direito. É uma maluquice tão grande, ufa, um novelo, um mistério. Vou dormir um pouco para me recuperar. Minha cabeça está
estourando."
Inutilmente ela esperou que o marido acordasse para lhe explicar com clareza o que ocorrera. Ele foi ainda mais obscuro, quase como se tivesse dormido só para justificar
sua confusão mental: dir-se-ia que não tinha condições sequer para distinguir, no relato, entre o que verdadeiramente acontecera e o que lhe aparecera em sonhos.
Era tudo tão inacreditável que em dado momento Daisy se perguntou se não seria de propósito, e logo se pôs a engendrar uma suspeita: e se, durante o caminho, o informante
encontrara um jeito de... Mas abandonou definitivamente a desconfiança quando ouviu o telefone tocar; a confusão, agora ecoando nas linhas telefônicas, aumentou.
A verdade é que, mesmo depois, quando o dia nasceu e chegaram as primeiras notícias, os testemunhos, e mais tarde ainda, quando tudo foi ordenado no dossiê e, em
parte, tornado público pela imprensa, não se esclareceu muito mais: o que se sabia era praticamente o mesmo que o subprefeito contara à sua esposa naquele amanhecer
memorável. Daisy tinha até a impressão de estar ouvindo aquele mesmo relato, apenas guarnecido de algumas precauções, sobretudo para evitar problemas jurídicos.
Conforme os mais diversos testemunhos (dos quais o principal era o do informante anglófono), acontecera mais ou menos isto:
Por volta das duas horas da madrugada, o informante anglófono (que, em razão do inexplicável abandono do posto por Dull Baxha], se vira obrigado a substituí-lo no
desvão em cima do quarto dos dois irlandeses) ouviu primeiro um ruído e em seguida um grito lancinante. O grito era confirmado por todas as testemunhas, que, no
entanto, o explicavam de diferentes maneiras. O informante teimava que o berro teria partido de Martin (o que tinha certa lógica, em especial porque o ajudante do
estalajadeiro fora o primeiro a ser ferido pelos atacantes), enquanto outros, inclusive o próprio Martin, garantiam que ele partira de outra pessoa. Alguns diziam
que um hóspede teria berrado ao ser atacado nas trevas; outros insistiam na tese de que quem gritara fora um dos bandidos, quem sabe por ter sido ferido, ou em virtude
do contra-ataque às cegas do próprio Martin, ou apenas para criar coragem antes da investida. Shtiefen supunha que os irlandeses é que tinham gritado, uma versão
bastante verossímil, que teria sido aceita por todos, não fosse a obstinação de Martin em afirmar que o grito soara antes de os bandidos
arrombarem o quarto dos estrangeiros. Havia também os que desconfiavam que quem gritara fora o próprio informante.
Toda vez que folheava o dossiê sobre o caso, o subprefeito se espantava com a enorme importância que atribuíam ao tal grito todos os presentes na estalagem naquela
noite, quando na verdade ele não tivera a menor influência no desenrolar dos acontecimentos. Externara essa opinião às testemunhas, mas elas o fitavam sempre como
quem ouvia uma besteira inimaginável, e ele se dava conta de que jamais chegariam a um acordo sobre a questão. Com o tempo, foi se convencendo de que na realidade
ninguém tinha gritado: o que todos julgavam ter ouvido era apenas o grito interior de cada um.
Assim, após o grito, ou suposto grito, irrompeu na hospedaria um grupo de desconhecidos que, ao se iniciar o tumulto, foram tomados por bandidos, assassinos ou doidos.
O primeiro a se defrontar com eles foi Martin, logo ferido na cabeça com uma barra de ferro. Alguns hóspedes tinham armas, mas nenhum deles pôde usá-las por causa
da escuridão, do alvoroço ou por temer atingir um inocente. O estalajadeiro Shtiefen chegou a acender o lampião de querosene, mas imediatamente alguém o apagou,
por certo um dos bandidos. Contudo, naquela fração de segundo em que o local ficou iluminado, o dono da estalagem reconheceu o eremita Frok, reconhecimento que era
nefasto para os atacantes. Em meio à escuridão e à balbúrdia, pisando, como se apurou mais tarde, o corpo desfalecido de Martin, os intrusos correram para a escada
e trataram de subir ao primeiro andar, rumo ao quarto dos irlandeses, evidenciando suas intenções. Quando eles forçaram a porta, os irlandeses começaram a gritar:
"O que está acontecendo?", "Quem está aí?", "Socorro!". O informante anglófono, que ainda se achava no desvão sobre o quarto, ouviu tudo o que se seguiu: o arrombamento
da porta, a gritaria dos agressores se misturando com a das vítimas, os arquejos, as pragas e os golpes num objeto metálico. Então ele abandonou seu posto de escuta e, saltando pela clarabóia para o pátio, se pôs a correr até
a cidade a fim de comunicar o incidente.
Ao chegar à estalagem, o subprefeito e os gendarmes tinham deparado com um quadro inacreditável. A luz do único lampião de querosene que não fora quebrado exibia
os rastros do vandalismo. Entre os agredidos pelos invasores estavam, além do ajudante do estalajadeiro, alguns hóspedes e um dos irlandeses. O outro soluçava com
a cabeça entre as mãos. Seus equipamentos, em particular o magnetofone, haviam sido completamente arruinados. Ao que parecia, o aparelho fora o alvo principal da
fúria destruidora. Além de arrebentá-lo barbaramente, tinham arrancado, cortado, estraçalhado e espalhado por toda parte a maioria das fitas.
Tudo fora muito rápido. Quando os hóspedes se recobraram da sjurpresa, os atacantes desapareceram na escuridão. Segundo o estalajadeiro, no momento em que o subprefeito
e os gendarmes chegaram, o bando não devia estar longe. Era possível que um deles estivesse ferido, já que um dos hóspedes disparara um tiro de espingarda quando
eles se retiravam, de modo que o senhor subprefeito, com algum esforço, poderia capturar parte da quadrilha.
A perseguição começara imediatamente. Para desventura dos fugitivos, havia um pouco de luar, e os gendarmes, cujo carro trafegava pela estrada com os faróis apagados,
não tiveram dificuldade para distinguir suas sombras distantes. Os primeiros capturados foram o ferido e os dois bandidos que o amparavam. Os demais foram detidos
bem no sopé dos montes, ao passo que o eremita Frok foi encontrado em sua gruta, delirando.
De manhãzinha toda N. já sabia do acontecido. Uma pequena multidão se aglomerava na rua do presídio, esperando pela passagem do bando de doidos, cujos motivos ainda
estavam envoltos em mistério. Uma chuva fina começara outra vez, mas as pessoas não deixavam o local. Esperaram até que afinal os bandidos apontaram no fim da rua,
acorrentados dois a dois. Seus cabelos desgrenhados e molhados de chuva que caíam em mechas sobre a testa realçavam a palidez do rosto. Também faziam que os olhos
parecessem maiores e um tanto soltos nas órbitas.
"O eremita Frok, o eremita Frok!", exclamaram algumas vozes assustadas, quando o cortejo de prisioneiros e gendarmes se aproximou. "Espia só o desgraçado."
O eremita, cuja palidez gélida era mais acentuada que a dos outros e cujos olhos, contra toda lógica, brilhavam febrilmente, fixava os curiosos.
"Meu Deus, estão com as mãos ensangüentadas", disse uma velha. "Não se faz uma coisa dessas."
"Não é isso, tia", explicou alguém, "não é sangue: é a água da chuva escorrendo das correntes enferrujadas."
Dois dias depois, a reportagem sobre o ocorrido publicada num dos jornais da capital se iniciava justamente pela descrição dos presos, às vezes designados como bandidos,
às vezes como fanáticos ou membros de uma seita misteriosa. A seguir, a matéria relatava o incidente e terminava com a descrição do magnetofone e das fitas destruídas;
trazia também uma entrevista completamente incompreensível com os dois estudiosos estrangeiros. "Agora a epopéia está novamente em cacos", dissera um deles, com
lágrimas nos olhos, apontando as fitas estraçalhadas. "Tentamos organizá-la, mas... ela se estilhaçou, como numa catástrofe..." O jornalista observava que o estudioso
estrangeiro mencionara várias vezes a palavra catástrofe, tendo falado até em "catástrofe cósmica".
capítulo 13
Durante dois dias eles ficaram trancados num quarto do Hotel Glob, sem receber ninguém. No terceiro dia, foram pegar sua bagagem no albergue. O tempo estava fechado
e tão frio como no inverno. Na ausência de Martin, Shtiefen, sem dizer quase nada, ajudou-os a levar as malas até a carruagem. Deixaram lá o aparelho quebrado, agora
um ferro-velho, assim como a maior parte das fitas danificadas. Pensaram em levar algumas que se achavam em melhor estado, na esperança de que ainda contivessem
algo, mas no último momento Willy disse: "Melhor deixarmos tudo aqui. Acho que não vamos mais precisar delas".
Ele esfregava os olhos constantemente, e embora já não se queixasse, Max sabia que sua vista voltara a se turvar. O frasco de colírio se quebrara na noite do ataque,
e a interrupção do tratamento ocasionara essa piora.
Enquanto se acomodavam na carruagem, viraram-se para a porta da hospedaria, onde a placa, meio torta, parecia projetar uma sombra de esquecimento e abandono sobre
toda a paisagem à sua roda. Cada movimento ou ruído apenas tornava mais palpável um sentimento de irremediável perda. Haviam se aproximado do enigma de Homero, e justo quando
estavam a ponto de decifrL'e1-lo, ele escapara de suas mãos, por um nada, menos que um nada. Algumas vezes, para se encorajar, diziamse que poderiam retornar no ano
seguinte, ou dali a alguns anos, e reiniciar a pesquisa, mas sabiam que não era verdade, que nunca mais voltariam. E mesmo se voltassem, não encontrariam os rapsodos,
ou encontrariam apenas meia dúzia de surdos, pois todo aquele derradeiro laboratório estaria coberto de pó. A era das epopéias já terminara no planeta, e fora por
puro acaso que eles viram suas últimas fagulhas antes da extinção definitiva; chegaram a tê-las nas mãos, mas as perderam. O véu da noite caía paia sempre sobre
o território épico.
Não havia dúvida, era isso: a noite caía para sempre. Ainda que não o confessassem, imaginavam um futuro retorno como uma excursão por um planeta já frio, desprovido
de vida, onde mal se distinguiriam entre as cinzas as marcas do cajado do grande cego cujo segredo eles tentaram em vão descobrir.
Era no que refletiam enquanto a carruagem se aproximava de N., onde ficariam até o fim de semana, à espera do ônibus para a capital.
Como na estadia anterior, não saíram do hotel e não receberam ninguém. Os últimos habitantes de N. a conversar com eles foram o gerente do Hotel Glob e o carregador
Csut Arap, que, depois de levar a bagagem até o ponto do ônibus, se dirigiu ao botequim, embebedou-se e, não se sabe por quê, caiu no choro recordando sua primeira
mulher.
Passaram-se alguns dias Mais uma semana normal transcorria em N., uma dessas semanas sem um único acontecimento, na qual se sentia que a incessante chuva fina era mais que um fenômeno climático. A chuva combinava com N., não só com sua arquitetura, mas, de certa forma,
com o estilo de vida das pessoas. Com seu barulho monótono, parecia se esforçar para livrá-las dos fardos excessivos de uma vida à margem de tudo.
A bem da verdade, o inverno produzira em N. acontecimentos extraordinários: o aparecimento dos estudiosos estrangeiros, a conexão entre a cidade e o nome de Homero,
os mexericos e especulações das senhoras, os enigmas do Osso do Búfalo, depois a chegada do informante anglófono, o misterioso ataque à estalagem, as correntes ensangüentadas
e a vinda dos jornalistas da capital. Tudo isso era demais para uma cidadezinha como N., sobretudo concentrado numa única estação do ano.
Porém, agora tudo passara. Nos cafés da cidade, aqueles que inicialmente tinham resistido aos arroubos da fantasia mas no final, instigados pelos demais, também
se deixaram levar, agora repetiam para quem quisesse ouvir: "Melhor para nós, senhores. Qual seria a vantagem de ligar nossa cidade com o nome de um sujeito morto
há quatro ou cinco mil anos? Aquilo era mesmo uma maluquice das boas. Se se tratasse de uma fábrica de massa de tomate, ou da abertura da estância hidromineral de
que se fala há tempos, ainda se compreenderia. Mas aquilo... Nacionalismo romântico, cheirando a mofo. Sair atrás de um fantasma... e que fantasma! Cego...".
A audiência balançava a cabeça vagarosamente, como se dissesse: "É verdade, como é que não nos demos conta disso? Um fantasma cego, credo. Mas pelo menos, louvado
seja Deus, essa história acabou, senão ainda poderia descambar em desgraça".
Era o que se pensava, com exceção do ginecologista de N., que naquela tarde de quinta-feira olhava por uma janela do primeiro andar de sua casa, onde ficava o consultório.
Na viela estreita, pisando com cuidado para evitar as poças d'água, a mulher que ele acabara de examinar se afastava em meio à chuva. No rosto alongado do médico, em algum
lugar entre o queixo e o lábio inferior (num rosto tão comprido, tudo acontecia de modo um tanto original), pairava ainda um sorriso que poderia ser qualificado
de distraído mas também de irônico. Após uma longa espera, sua curiosidade doentia por fim fora satisfeita: não, não seria tão simples assim apagar os rastros da
passagem dos dois estrangeiros pela cidade.
Voltou o olhar para os instrumentos cirúrgicos, captando seu brilho frio. Para suprimir, por exemplo, os vestígios naquela mulher, seria preciso intervir com aquelas
ferramentas no seu ventre. "É incrível", murmurou, tornando a olhar para a ruela, onde já não se via a mulher. Esperara por anos e anos aquela visita à sua clínica.
O tempo passava, e ele a pensar: "E, parece que ela não vai mesmo enganar o subprefeito". Mas finalmente ela viera, justo quando ele perdera a esperança. E estava
tal e qual ele previra: grávida.
Ela enrubesceu ao ouvir suas palavras: "A senhora está grávida, madame". E sem lhe dar oportunidade de pedir algum esclarecimento, como se houvesse um pacto silencioso
entre eles, começou a falar. Não, não pretendia lhe ocultar nada, aliás, não teria sentido; não, não lhe esconderia nada: tivera uma aventura amorosa com um dos
pesquisadores homenstas, mais precisamente com aquele que sofria de glaucoma... As palavras dela foram mais ou menos essas, ditas às pressas, como um texto decorado,
enquanto os olhos fitavam a porta, e ela não respondera à sua indagação sobre quando pensava em fazer o aborto, nem ao seu comentário final sobre ser um médico provinciano
mas saber se portar como um cavalheiro, de modo que ela podia estar certa de que não havia motivos para seu marido um dia se inteirar da verdade.
"É, aí está", disse o médico, ainda de pé junto à vidraça que a chuva embaçara. Ninguém imagina o que pode acontecer nos confins de uma província. E como quem sente
um velho reumatismo avivado pelo mau tempo, ele lamentou não ter feito anotações ao longo de todo aquele episódio.
Provavelmente no mesmo dia, no convés do navio da linha Durrès-Bari que deixava a Albânia, Willy Norton e Max Roth, envoltos em suas pelerines, contemplavam o litoral
a se afastar. Na verdade, apenas Max o fazia, pois o outro já não enxergava quase nada. Durante a semana em que esperaram a chegada do vapor, Max tentara em vão
convencer o amigo a retomar o tratamento, mas Willy desdenhara por completo suas tentativas. Numa ocasião dissera que faria alguma coisa quando desembarcassem em
Nova York, mas num tom que mal disfarçava seu fatalismo.
Max examinava obliquamente o perfil do amigo, constatando que ele próprio também passara a alimentar certa dose de fatalismo. A vingança de Homero... Embora buscasse
afastar essa idéia, ela sempre voltava a se insinuar em sua mente. Ao que parecia, o grande cego não queria que decifrassem seu enigma. Era algo que dava calafrios
só de pensar, mas talvez a perda da visão fosse necessária, um tributo inicial exigido de quem se dispusesse a penetrar na noite homénca...
Ele fez um movimento, como para se livrar daquela idéia sombria. Lembrou que ainda trazia consigo o jornal que comprara no porto pouco antes de embarcar. Abriu-o
e, enquanto tratava de evitar que o vento o enfunasse, disse: "Olhe só, olhe só... Parece que há algo sobre nós".
"É?"
Procuraram um canto abrigado do vento, e Max começou a ler.
"O julgamento dos bandidos será em breve", disse, pouco depois, interrompendo a leitura. "E há uma hipótese surpreendente sobre quem pode tê-los instigado contra
nós."
"Ah, é?"
"Mencionam os sérvios", prosseguiu Max, novamente defendendo seu jornal do vento.
"Então, então... Aquele monge com ar bonachão, lembra?", disse Willy.
O jornal parecia ter enlouquecido nas mãos de Max.
"Pois ouça o que dizem: 'Não é a primeira vez que chauvinistas eslavos atacam assim pesquisadores que se ocupam das origens remotas dos albaneses. Sobretudo quando
se faz referência à ascendência ilíria dos albaneses, há quem seja possuído por um selvagem acesso de ciúme, desgraçadamente tão freqüente aqui nos Bálcãs'. Hum...
Espere... ouça o que vem depois: 'Qualquer um que se dedique mesmo indiretamente a isso é declarado inimigo. Portanto, aqueles que dez anos atrás mataram com uma
barra de ferro o sábio Milan Sufflay, conterrâneo deles, numa ruela escura de Zagreb, não haveriam de ter escrúpulos em golpear dois homeristas vindos de além-mar'."
Willy levou a mão às têmporas, ainda inchadas em razão da pancada que levara.
"E, veja, há mais sobre nós nas páginas internas", disse Max.
Enquanto ele lia, franzia a testa impacientemente. Ora balançava a cabeça, ora sorria; depois murmurou: "Incrível!".
"O quê?", quis saber Willy.
"Incrível, Willy", repetiu Max, sem tirar os olhos do jornal. "O epevento que buscávamos está aqui. E sabe quem o inspirou? Ora, isso é mesmo fantástico. O tema
não poderia ser mais recente. E um poema épico inspirado em nós dois!" "O que diz?"
"Veja só aqui. Ah, você não está enxergando... Desculpe, Willy, esqueci completamente. Espere, vou ler. Começa assim: "Um apréjl negro saiu do mar...".
"Como?", perguntou Willy.
"Um apréjl negro saiu do mar."
"E o que é isso, apréjl? Não conheço essa palavra."
"Acho que é aparelho na pronúncia albanesa", disse Max. "Só pode ser." E continuou:
Um apréjl, ehu, saiu do mar. Uns dizem que veio pró bem, Uns dizem que veio pró mal. Parece, dizem, um rouxinol gelado Gela o lahute, dizem, meu Deus.
Max ergueu os olhos para o amigo, querendo partilhar seu assombro. Não conseguia acreditar no que lera. "Tem mais? Continue", disse Willy. Max engolii/em seco e
prosseguiu:
O eremita Frok saiu da gruta Onde há sete anos estava oculto. Uns dizem que é homem do bem, Uns dizem que é homem do mal. Pegou-se, Deus!, com o apréjl, Derramou
sangue negro e negro azeite, Uma a uma as tripas lhe arrancou Monte e céu tremeram com seu grito.
Max ergueu os olhos do jornal e fitou o amigo. O olhar de Willy, como era freqüente nos últimos tempos, parecia longínquo e alheado.
"De fato, é de nós que o poema fala", disse, em albanês.
"Que trágico mal-entendido!"
Agora era tarde demais para repará-lo. Ainda que em virtude de um mal-entendido, dali por diante eles integrariam aquele universo enigmático. O círculo vicioso se
fechava.
A sirene do navio emitiu um grito prolongado. Max voltou a folhear o jornal, mas a expressão de Willy reteve sua atenção. Parecia que alguma coisa estava prestes
a ocorrer naquele rosto. Algo o consumia rapidamente por dentro, preservando só a velha pele curtida pelo vento e os olhos, que, como os olhos de todos os que enxergam
mal, já se assemelhavam aos das estátuas.
"Um aprejl negro saiu do mar", disse Willy, bem baixinho.
Max, tomado de surpresa, quis perguntar: "O que está dizendo?", mas sentiu que sua pergunta não teria sentido.
De repente, com um movimento que Max julgou pertencer a outro corpo, Willy tirou a mão direita das dobras da pelerine, ergueu-a até a face, abriu-a e a pousou entre
o malar e a orelha, com os dedos emergindo da nuca como uma crista de galo. O gesto da maiekrah, pensou Max, mas não pôde dar seqüência ao pensamento, pois o outro,
com um timbre inumano e monocórdico na voz, se pôs a cantar os versos que acabara de ouvir.
Reproduziu-os com espantosa precisão, envoltos num esboço de melodia que os transportava para muito longe no tempo e no espaço.
"Meu Deus", pensou Max. "Ele está doente, vai morrer."
Por duas vezes lhe ocorreu a palavra morte, mas, na sua mente, ela não passava de um invólucro cujo conteúdo era outro.
Ismail Kadaré
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