Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Crueldade tem um Coração Humano
E a Inveja, um Rosto Humano,
O Terror, a Forma Humana do Divino
E o Segredo, o Aspecto Humano.
Aspecto Humano é um metal forjado,
Forma Humana, uma forja acesa,
Rosto Humano, uma fornalha fechada,
Coração Humano, a sua garganta sequiosa.
WILLIAM BLAKE, Cantos de Experiência
«Uma Imagem Divina[1]».
Will Graham instalou Crawford numa mesa de piquenique, entre a casa e o oceano, e serviu-lhe um copo de chá gelado.
Jack Crawford olhou com agrado a velha casa, distinguindo, na claridade do dia, o prateado do sal do mar que salpicava as madeiras da construção.
— Devia tê-lo apanhado em Marathon, quando saiu do escritório — disse. — Não vai querer falar desse assunto aqui.
— Não quero falar disso aqui nem em lugar nenhum, Jack, mas se acha que é necessário, que seja. Só peço que não mostre fotografias. Se as trouxe, deixe-as na pasta. Molly e Willy não demoram a chegar.
— O que é que sabe ao certo?
— O que foi publicado no Miami Herald e no Times — disse Graham. — Duas famílias massacradas nas suas próprias casas no intervalo de um mês. Birmingham e Atlanta. As circunstâncias foram semelhantes.
— Não foram semelhantes. Foram as mesmas.
— Até agora, quantas confissões espontâneas?
— Oitenta e seis, quando telefonei esta tarde — disse Crawford. — Lunáticos. Nenhum deles conhecia os detalhes. O assassino quebra os espelhos e serve-se dos fragmentos. Nenhum deles sabia deste pormenor.
— O que mais não disse aos jornais?
— É louro, destro e realmente forte, calça quarenta e três. Sabe dar nós de marinheiro. Não há impressões digitais. Usa luvas cirúrgicas.
— Já disse isso publicamente.
— Não se sente muito à vontade com fechaduras — disse Crawford. — Na última vez, usou um diamante corta-vidro e uma ventosa para entrar na casa. Ah, e o seu sangue é AB positivo.
— Alguém o feriu?
— Tanto quanto se sabe, acho que não. Foi caracterizado pelo sêmen e saliva. — Crawford olhou na direção do mar, que parecia um espelho. — Will, há uma coisa que preciso saber. Leu nos jornais e o segundo crime foi comentado na TV. Chegou a pensar em me fazer uma chamada?
— Não.
— Por que não?
— Porque sobre o primeiro, em Birmingham, não havia muitos detalhes. Podia ter sido qualquer coisa — vingança, um parente, sei lá!
— Mas depois do segundo, soube quem era?
— Soube. Um psicopata. Não telefonei porque não quis. Sei quem você já tem trabalhando nisto. Arranjou os melhores especialistas de laboratório, sem contar com o Heimlich, em Harvard, e o Bloorn, na Universidade de Chicago.
— E tenho você aqui consertando a merda dos barcos a motor.
— Estou convencido de que eu não serviria para nada, Jack. Deixei de me ocupar com esses assuntos.
— Sério? Os dois últimos que apanharam, foi exatamente você quem lhes colocou as mãos, não foi?
— Limitei-me apenas a fazer aquilo que você e os outros também são capazes de fazer.
— Isso não é totalmente verdade, Will. Você pensa de modo especial.
— Estou convencido de que já houve histórias demais sobre o modo como penso.
— Fez algumas deduções que ficaram sempre por explicar.
— As provas estavam lá — disse Graham.
— Certo. Havia tantas quantas se quisesse. Montes delas... depois de tudo ter acontecido. No início havia tão pouca coisa que praticamente nem sequer chegava para uma acusação.
— Tem uma boa equipe, Jack. Estou convencido de que eu não serviria de grande coisa. E além disso vim para cá para esquecer isso tudo.
— Eu sei. Da última vez se machucou. Agora já me parece em forma.
— E estou em forma, mas decidi parar, nem sei bem explicar porquê.
— Compreenderia perfeitamente que não fosse capaz de voltar a olhar...
— Não, não é isso. É verdade que é incômodo, mas é sempre possível continuar trabalhando depois deles terem morrido. A pior parte é o hospital e os interrogatórios. É preciso esquecer o que se vê e continuar pensando. Presentemente não me sinto capaz de uma coisa dessas. Conseguiria me forçar a ver, mas seria incapaz de refletir.
— Todos já morreram, Will — disse Crawford suavemente.
Jack Crawford reencontrava no modo de falar de Graham o seu próprio ritmo, a sua própria síntese. Já ouvira Graham fazer o mesmo em relação a outras pessoas. Acontecia muitas vezes, numa conversa importante, Graham adquirir os tiques de linguagem do seu interlocutor. Crawford chegara a acreditar que ele fazia de propósito, que se tratava de um truque para conservar um determinado ritmo, mas chegara rapidamente à conclusão de que se tratava de um fenômeno absolutamente involuntário e que Graham tentara evitá-lo, embora sem êxito.
Crawford meteu dois dedos no bolso do casaco. Tirou duas fotografias, que colocou em cima da mesa.
— Todos mortos.
Graham fitou-o nos olhos antes de pegar as fotografias.
Eram instantâneos: uma mulher, três crianças e um pato, junto a um lago com utensílios para um piquenique. Uma família agrupada por trás de um bolo.
Depois de alguns segundos, voltou a pousar as fotografias. Colocou uma sobre a outra antes de se voltar para a praia, onde uma criança, agachada, procurava alguma coisa na areia. Uma mulher, com as mãos nas ancas, mantinha-se de pé, observando o pequenino, enquanto as ondas vinham se desfazer junto aos seus pés. Inclinou-se para sacudir o cabelo molhado que se colava em seus ombros.
Graham, ignorando o seu convidado, observou Molly e o filho por tanto tempo quanto o que demorara olhando para as fotografias.
Crawford sentia-se contente, mas procurava não demonstrá-lo, quase de modo idêntico ao cuidado que tivera na escolha do local daquela conversa. Estava convencido de que conquistara Graham. Mas era preciso deixá-lo amadurecer.
Três cães excepcionalmente feios vagueavam por perto e vieram se deitar perto da mesa.
— Meu Deus — exclamou Crawford.
— Fique calmo, são só cães, acho — explicou Graham. — Há muita gente que vem abandonar cachorrinhos aqui por perto. Os mais bonitos ainda consigo dar. Os outros ficam por aí e vão crescendo ao Deus dará.
— Estão muito gordos, não estão?
— Molly é uma boba com estes vagabundos.
— Leva uma vida boa aqui, Will, com Molly e o garoto. Que idade tem ele?
— Onze.
— Está ótimo. Vai ser mais alto que você.
Graham concordou com um aceno.
— O pai era mais alto do que eu. Sim, me sinto bem aqui.
— A minha vontade era ter trazido Phyllis comigo para a Florida... Arranjar um cantinho para a minha aposentadoria e deixar de viver como um homem das cavernas. Ela diz que os amigos dela estão todos em Arlington.
— Era minha intenção lhe agradecer os livros que me levou ao hospital, mas nunca consegui arranjar tempo. Agradeça por mim.
— Fique descansado. — Duas pequenas aves de cores brilhantes pousaram na mesa, à procura de restos de doce. Crawford ficou vendo-as saltitar, até que levantaram vôo e desapareceram.
— Will, este bandalho[2] parece que se encontra na mesma fase que a lua. Assassinou os Jacobi em Birmingham num sábado à noite, 28 de Junho, dia de lua cheia. Assassinou os Leeds na noite de anteontem, 26 de Julho. Um dia a menos para completar um mês lunar. Deste modo, se tivermos sorte, resta-nos pouco mais de três semanas antes que volte a fazer a mesma gracinha.
— Me admiraria muito que fosse capaz de ficar aqui em Keys à espera de ler a reportagem do próximo crime no seu Miami Herald. Porra, não sou o papa, não estou aqui para lhe dizer o que tem que fazer, mas há uma coisa que quero saber Will: respeita a minha opinião?
— Sabe que sim.
— Estou convencido de que temos chances de apanhá-lo mais depressa se trabalhar conosco. Anda, Will, mexa esse traseiro e venha nos dar uma mão. Vá a Atlanta e Birmingham e observe à vontade. Depois vá falar comigo em Washington. Faça um esforço, é a única coisa que lhe peço.
Graham não respondeu.
Crawford esperou que algumas ondas viessem se desfazer na praia. Então levantou-se, colocando o casaco no ombro.
— Voltamos a falar depois do jantar.
— Fique e coma conosco.
Crawford abanou a cabeça.
— Venho mais tarde. Deve haver recados para mim no Holiday Inn e tenho que fazer uma série de chamadas. De qualquer modo, agradeça à Molly por mim.
O carro de aluguel de Crawford levantou uma camada de poeira fina que assentou lentamente nos arbustos de ambos os lados da estrada de terra batida.
Graham voltou para junto da mesa. Receava que esta fosse a sua última recordação de Sugarloaf Key — gelo derretendo em dois copos de chá, guardanapos de papel que a brisa fazia esvoaçar da mesa de madeira vermelha e Molly e Willy ao longe na praia.
Pôr-do-sol em Sugarloaf: garças-reais imóveis e a bola de fogo enorme.
Will Graham e Molly Foster Graham estavam sentados num tronco de árvore que chegara à costa pela maré, os rostos iluminados pelo alaranjado do pôr-do-sol, enquanto nas suas costas iam se formando sombras violentas. Ela pegou sua mão.
— Crawford parou na boutique para falar comigo antes de vir aqui — disse ela. — Perguntou-me qual era o caminho. Tentei telefonar. Bem que você poderia se dar ao trabalho de atender o telefone de vez em quando. Vimos o carro quando chegamos em casa e demos a volta pela praia.
— O que mais ele te perguntou?
— Como você estava.
— E o que você respondeu?
— Disse-lhe que estava em forma e que devia deixá-lo em paz de uma vez por todas. O que ele quer agora?
— Que encontre provas. Sou um especialista forense, Molly, está escrito no meu diploma.
— O seu diploma? Você o usou para tapar uma rachadura no teto. — Sentou-se de cavalinho no tronco de árvore. — Se sentisse falta da sua vida anterior e do seu trabalho, falaria nisso, mas nunca o fez. Está mais aberto, mais descontraído... e eu gosto disso.
— Temos passado um tempo ótimo, não temos?
O modo como ela pestanejou deu a entender que poderia ter dito qualquer coisa mais apropriada. Mas ela continuou sem lhe dar tempo para interromper.
— Só lhe fez mal ter trabalhado para Crawford. Quem o ouvir é até capaz de ficar convencido de que não tem mais ninguém, mas se quiser pode requisitar o governo inteiro. Será que não pode nos deixar em paz de uma vez por todas?
— Crawford não te contou que foi o meu supervisor nas duas vezes em que deixei a Academia do FBI para intervir em casos reais? Esses dois casos foram os únicos que lhe apareceram em toda a sua vida profissional. E olha que o Jack já trabalha há muito tempo. Agora surgiu um terceiro caso. Esta espécie de psicopata é muito rara. Ele sabe que eu tenho... experiência.
— Não é preciso que me diga — respondeu Molly. A camisa estava aberta e podia ver a cicatriz que lhe atravessava o abdômen. Saliente, da largura de um dedo, em alguns pontos talvez mais, nunca ficava bronzeada com o sol. Subia-lhe em diagonal da anca esquerda e terminava no lado contrário, junto à caixa torácica.
O Dr. Hannibal Lecter fizera-lhe aquilo com uma faca de sapateiro. Acontecera um ano antes de ter encontrado Molly e por pouco fora a causa da sua morte. O Dr. Lecter, conhecido pelos jornais como «Hannibal, o Canibal», fora o segundo psicopata que Graham apanhara.
Quando finalmente saiu do hospital, Graham demitiu-se do FBI, deixou Washington, e arranjou trabalho como mecânico diesel na doca de Marathon, em Florida Keys. Era um trabalho que conhecia bem. Viveu numa caravana estacionada nas docas até que Molly veio se instalar numa casa velha de Sugarloaf Key.
Foi a vez de Graham se sentar de cavalinho no tronco, ao mesmo tempo que segurava as mãos de Molly. Os pés dela deslizaram debaixo dos seus.
— Escute uma coisa, Molly, Crawford acha que tenho uma habilidade especial para lidar com monstros. Para ele chega a ser uma superstição.
— Acredita nisso?
Graham olhou para três pelicanos que voavam em linha sobre a arrebentação.
— Molly, um psicopata inteligente — em especial um sádico — é extremamente difícil de apanhar por várias razões. Em primeiro lugar, não se encontra nenhum móbil compreensível, o que obriga que seja uma pista que é preciso pôr de lado. Na maioria das vezes é impossível se conseguir qualquer coisa dos informantes. Não se esqueça de que a maioria das detenções que se efetuam é só porque alguém deu com a língua nos dentes, e não porque houve um trabalho sério de investigação. No caso deste tipo não existem informantes. Até pode acontecer que o assassino não saiba o que está fazendo. A única possibilidade que existe é a de se extrapolar a partir dos indícios que formos obtendo, por insignificantes que sejam. Somos obrigados a tentar reconstruir a sua atuação e a procurar encontrar padrões de comportamento.
— Antes de segui-lo e de encontrá-lo — disse Molly. -Tenho medo de que se lance na pista desse maníaco, ou seja lá de que raio que queira chamar. Tenho medo de que lhe façam o que o último fez. É isso, pronto!
— Não pense nisso, Molly. Ele nunca conseguirá me ver ou saber o meu nome. É a polícia que tem que prendê-lo, se conseguirem encontrá-lo, e não eu. Crawford precisa apenas da minha opinião.
Molly via a luz avermelhada do sol refletir-se na superfície espelhada do mar. Uma formação de cirros flutuava no horizonte.
Graham adorava a maneira como ela virava a cabeça, mostrando-lhe descuidadamente o seu pior perfil. Podia ver o pulsar da veia na garganta e de repente lembrou-se de uma forma intensa do gosto do sal na sua pele. Engoliu a saliva e acrescentou:
— O que é que eu posso fazer?
— Aquilo que já decidiu. Se ficar aqui e houver mais assassinatos, o mais certo é este lugar se tornar insuportável para você. Pensará sempre nessas histórias de lua cheia. E afinal para que pediu a minha opinião se já tinha decidido?
— E se eu te pedisse a sério, o que responderia?
— Que ficasse aqui comigo. Comigo, entende, e com o Willy. Seria capaz de fazer sei lá o quê se soubesse que funcionaria. Sei que espera que eu não chore e que me comporte normalmente. Se as coisas não correrem bem, terei a satisfação de saber que fez aquilo que estava certo. E tudo isto não passará de um momento fugidio. Depois só me restará voltar para casa e ligar um dos lados do cobertor elétrico.
— Me manterei à distância.
— Sabe muito bem que não. Acha que sou egoísta?
— Não me importo.
— Nem eu. Sinto-me bem aqui; é do prazer e da doçura que encontro aqui. E, quanto a você, é graças a tudo aquilo que te aconteceu anteriormente que tem consciência disso, que o aprecia.
Ele acenou com a cabeça.
— Haja o que houver, não quero perder isto — disse ela.
— Nem eu. E não vamos perder.
A escuridão caiu rapidamente e Júpiter apareceu a sudoeste no horizonte.
Voltaram para casa, atrás da qual se erguia, no céu, uma lua corcunda. Para lá da arrebentação, os peixes debatiam-se para escapar da morte.
Crawford voltou depois do jantar. Tirara o casaco e a gravata e enrolara as mangas da camisa para se sentir mais à vontade, Molly achava que os braços de Crawford, gordos e esbranquiçados, eram repugnantes. Parecia-lhe um estupor de um macaco diabolicamente hábil. Serviu-lhe o café junto ao ventilador instalado na varanda, onde ele se encontrava sentado se refrescando, e ficou lhe fazendo companhia enquanto Graham e Willy foram dar comida aos cães. Não disse nada. Os insetos noturnos esbarravam nos mosquiteiros.
— Está com bom aspecto, Molly — disse Crawford. Tanto um como o outro estão com muito bom aspecto — elegantes e bronzeados.
— Diga o que disser, vai levá-lo, não vai?
— É verdade, tem que ser. Tenho que fazê-lo. Mas juro-lhe, por Deus, Molly, que vou tornar as coisas para ele o mais fáceis que me seja possível. Está modificado. Foi ótimo vocês terem se casado.
— Tem melhorado pouco a pouco. Já não tem pesadelos como antes. Houve uma altura em que tinha uma obcecação pelos cães. Agora limita-se a tomar conta deles e deixou de falar no assunto a toda a hora. Jack, você é amigo dele. Por que é que não pode deixá-lo em paz?
— Simplesmente porque ele é o melhor. Porque não pensa como todo mundo e não tem um espírito de rotina.
— Will está convencido de que precisa dele para encontrar indícios.
— É verdade. Nesse domínio ninguém o ultrapassa. Mas há também o outro aspecto do trabalho, aquele de que ele não gosta: o trabalho de imaginação, de extrapolação.
— Estou convencida de que também não gostaria de fazê-lo. Jack, prometa-me uma coisa. Prometa-me que o impedirá de se embrenhar demais nessa história. Tenho medo que morra se tiver que lutar.
— Não vai ter que lutar, isso posso garantir.
Quando Graham terminou o trabalho com os cães, Molly ajudou-o a fazer a mala.
Will Graham passou lentamente diante da casa onde a família de Charles Leeds vivera e morrera. Não havia qualquer luz nas janelas. No jardim ficara acesa uma única lâmpada. Parou a dois quarteirões de distância e voltou a pé, trazendo debaixo do braço um dossiê com o relatório dos detetives da polícia de Atlanta. A noite estava amena.
Graham insistira em vir sozinho. Se houvesse mais alguém na casa não conseguiria se concentrar — fora a explicação que dera a Crawford. No entanto, havia uma outra razão, essa, de caráter particular: não sabia muito bem como é que iria reagir e não queria ter ninguém observando suas reações. Conseguira agüentar o choque do necrotério.
O edifício em tijolo de dois andares encontrava-se levemente recuado em relação à rua, no meio de um terreno arborizado. Graham deixou-se ficar muito tempo sob as árvores a observá-lo. Precisava recuperar a sua calma interior. Na sua mente, um pêndulo de prata oscilava na noite. Esperou que o pêndulo se imobilizasse.
Alguns vizinhos passaram de carro, olhando furtivamente para a casa antes de desviarem o olhar. Uma casa onde se cometeu um assassinato é sempre um assunto penoso para os vizinhos, como se se tratasse do rosto de alguém que os tivesse traído. Só os forasteiros e as crianças eram capazes de olhá-la de frente.
As persianas estavam subidas. Tanto melhor. Significava que não viera ninguém da família. Os familiares sempre baixam as persianas.
Deu lentamente a volta na casa sem acender a lanterna. Parou duas vezes para escutar. A polícia de Atlanta estava a par de sua visita, mas não acontecia o mesmo com os vizinhos. Podiam reagir de modo violento e chegar a disparar sobre ele.
Olhando através de uma janela dos fundos conseguiu ver os móveis que se encontravam dentro de casa, recortando-se em sombras chinesas, iluminados pela luz do candeeiro do jardim da frente. O aroma de jasmim que pairava no ar tornava o ambiente pesado. Uma varanda envidraçada ocupava a maior parte dos fundos da casa. A porta da varanda fora selada pela polícia de Atlanta. Graham quebrou o selo e entrou.
Na porta que dava da varanda para a cozinha, a polícia substituíra os vidros quebrados por compensados. Acendendo a lanterna, abriu a porta com a chave que os policiais tinham lhe dado. Queria ligar as luzes, usar o seu distintivo reluzente e fazer barulho para justificar a sua presença naquela casa silenciosa onde cinco pessoas haviam sido assassinadas. Não fez nada disso. Dirigiu-se para a cozinha mergulhada na escuridão e sentou-se à mesa.
Duas lâmpadas piloto do equipamento de cozinha projetavam reflexos azulados na escuridão. Sentia-se o cheiro de maçãs e cera para móveis no ar.
O termostato disparou e o ar condicionado começou a trabalhar. Graham sobressaltou-se com o ruído inesperado, sentindo um laivo de medo, uma sensação que ele conhecia bem, mas logo se refez, decidido a continuar.
Conseguia ver e ouvir melhor quando sentia medo, mas em contrapartida deixava de falar controladamente, chegando por vezes a mostrar-se grosseiro. Mas ali não havia ninguém com quem falar, ninguém a quem pudesse insultar.
A loucura entrara naquela casa pela porta da cozinha, calçando sapatos tamanho quarenta e três. Sentado na escuridão, Graham farejava a loucura como um cão-policial fareja uma camisa.
Passara praticamente todo o dia e o começo da noite estudando o relatório dos detetives de Homicídios de Atlanta. Lembrou-se de que a luz do exaustor sobre o fogão se encontrava acesa na hora em que a polícia chegou. Voltou a ligá-la.
Havia dois posters na parede, um de cada lado do fogão. Num deles estava escrito: «Os beijos são efêmeros, mas os bons petiscos são eternos» e no outro: «É sempre na cozinha que os nossos amigos se reencontram porque é aí que ouvem o coração da casa bater.»
Graham olhou o relógio. Onze e meia da noite. Segundo o médico legista, as mortes teriam ocorrido entre as onze da noite a uma da manhã.
A entrada em primeiro lugar. Tentou imaginar como é que as coisas teriam acontecido...
O lunático começou arrombando a porta da varanda. Na escuridão tirou alguma coisa do bolso: uma ventosa, talvez a base de um apontador de mesa.
Agachado contra a parte inferior de madeira da porta da cozinha, o lunático ergueu a cabeça para espreitar pelo vidro. Umedeceu a ventosa com a língua, fez pressão contra o vidro e apertou a alavanca para fixá-la. Um pequeno cortador de vidros de diamante que lhe permitia cortar um círculo de vidro, estava preso à ventosa por um fio.
Um leve rangido do diamante e uma pancada seca para partir o vidro. Uma mão para dar a pancada e a outra para segurar a ventosa. O vidro não deve cair. A peça de vidro que cortou tem uma forma ligeiramente oval porque o fio embaraçou no topo da ventosa à medida que ia cortando. Apenas um leve ruído quando retira o pedaço de vidro e o coloca no chão. Pouco se importa por ter deixado saliva do tipo AB positivo no vidro.
A mão enluvada introduz-se pelo buraco e encontra a fechadura. A porta se abre sem qualquer ruído. Já está dentro de casa. A luz do exaustor permite-lhe distinguir os objetos naquela cozinha desconhecida. O ambiente está agradavelmente fresco.
Will Graham engoliu duas pastilhas contra a azia, sentindo-se irritado com o ruído produzido pelo celofane que as continha.
Atravessou a sala de estar mantendo a lanterna afastada de si, um hábito de longa data. Estudara conscienciosamente a planta do andar, mas mesmo assim enganou-se no caminho antes de alcançar as escadas. Não rangeram sob o seu peso.
Encontrava-se agora à porta do quarto principal.
Conseguia distinguir as coisas sem a ajuda da lanterna. Numa mesinha de cabeceira, um relógio digital projetava as horas no teto e uma luz alaranjada de vigia encontrava-se acesa perto do banheiro. O cheiro de cobre metálico do sangue ainda era bastante forte.
Olhos acostumados à escuridão conseguiam distinguir as coisas de modo razoável. O lunático conseguira distinguir o Sr. Leeds da esposa. Vira o suficiente para atravessar a sala, agarrar Leeds pelos cabelos e cortar-lhe a garganta. E a seguir? De volta ao interruptor de parede, um pequeno cumprimento à Sra. Leeds antes do tiro que iria mutilá-la?
Graham acendeu as luzes e as manchas de sangue nas paredes, no colchão e no assoalho saltaram-lhe aos olhos. O ar ainda estava cheio de gritos lancinantes. Sentiu-se desfalecer perante o ruído deste quarto silencioso sujo de manchas sombrias.
Graham sentou-se no chão para tentar se acalmar. Calma, tenha calma, mantenha-se calmo.
O número e diversidade das manchas de sangue fora um enigma para os detetives de Atlanta que tentaram reconstituir o crime. Todas as vítimas tinham sido encontradas nos próprios leitos, o que não era consistente com a localização das manchas.
Inicialmente pensaram que Charles Leeds fora agredido no quarto da filha e em seguida arrastado para o seu quarto. Uma análise mais cuidadosa das manchas obrigara-os a reconsiderar.
Ainda não fora possível determinar os movimentos do assassino em todos os quartos.
Mas agora, com a ajuda do relatório da autópsia e do laboratório, Will Graham começava a ver como as coisas tinham acontecido.
O assassino cortara a garganta de Charles Leeds, que dormia ao lado da mulher, e voltara ao interruptor de parede para acender a luz — no interruptor foram encontrados cabelos de Leeds e vestígios de brilhantina, deixados por uma luva de borracha. Disparou sobre a Sra. Leeds na hora em que esta se erguia da cama e em seguida dirigiu-se aos quartos das crianças.
Apesar do ferimento, Leeds levantou-se e tentou fazer-lhe frente para proteger as crianças, embora sangrasse abundantemente, indício de hemorragia arterial. Foi empurrado, caiu e morreu junto da filha.
Um dos garotos foi abatido a tiro na cama. O outro também foi encontrado deitado, mas tinha cotão nos cabelos. A polícia concluiu que devia estar debaixo da cama e que foi arrastado para fora antes de ser morto igualmente a tiro.
Quando todos já se encontravam mortos, talvez com exceção da Sra. Leeds, foi a hora de quebrar os espelhos, de escolher os fragmentos e de consagrar uma atenção especial à Sra. Leeds.
Graham recebera cópias de todos os relatórios de autópsia. O da Sra. Leeds especificava que a bala entrara à direita do umbigo, indo se alojar na coluna vertebral na altura das vértebras lombares, mas que morrera estrangulada.
O aumento dos níveis de serotonina e de histamina ao nível da ferida da bala indicava que sobrevivera pelo menos cinco minutos depois do tiro. O nível de histamina era mais elevado do que o de serotonina, o que significava que não resistira mais de quinze minutos. A maior parte dos outros ferimentos teriam sido feitos depois de morta, embora não houvesse certeza.
Se os outros ferimentos eram posteriores à sua morte, que raio o assassino estivera fazendo durante o espaço de tempo em que a Sra. Leeds agonizava?, perguntava Graham a si mesmo. Não havia dúvida de que lutara com Leeds e assassinara os outros membros da família, mas tudo isso não demorara mais de um minuto. Quebrou os espelhos, e depois?
Os detetives de Atlanta eram muito minuciosos. Tinham medido e fotografado tudo de uma forma exaustiva, aspirado toda a área, inspecionado os cantos mais escondidos e investigado até os sifões do banheiro. Mesmo assim, Graham voltava a examinar toda a situação.
As fotografias da polícia e os contornos marcados nos colchões mostravam a Graham onde os corpos tinham sido encontrados. Vários indícios — por exemplo os vestígios de nitrato nas roupas de cama, no caso dos ferimentos a tiro, —indicavam que se encontravam aproximadamente na mesma posição na altura em que haviam falecido.
Mas a profusão de manchas de sangue e de marcas encontradas no tapete do patamar permaneciam sem qualquer explicação. Um dos detetives apresentara uma teoria segundo a qual algumas das vítimas teriam tentado rastejar para escapar do assassino. Graham não acreditava nisso. Era evidente que o assassino os deslocara depois de terem morrido para voltar a colocá-los no local onde foram encontrados.
Aquilo que ele fizera com a Sra. Leeds era óbvio. E a respeito dos outros? Não tinha lhes infligido as mesmas mutilações, como fizera com a Sra. Leeds. As crianças haviam sido apenas atingidas com um tiro na cabeça. Charles Leeds morrera da hemorragia e do sangue que engolira. A única marca adicional que se encontrara nele provinha de ter sido amarrado ao nível do peito, fato, muito possivelmente, posterior à sua morte. Sendo assim, o que o assassino fizera com eles depois de terem morrido?
Graham tirou do dossiê as fotografias da polícia, os relatórios do laboratório sobre manchas de sangue e de líquidos orgânicos individuais encontrados no quarto e um estudo comparativo permitindo calcular as projeções do sangue.
Estudou os quatro com atenção, esforçando-se por fazer corresponder os ferimentos às manchas e trabalhando no sentido inverso. Assinalou cada mancha num esboço à escala do quarto principal, usando os diagramas comparativos para calcular a direção e velocidade das projeções. Procurava deste modo determinar as posições dos corpos nos diferentes instantes do drama.
Uma fila de três manchas oblíquas, exatamente num dos cantos da parede do quarto. No tapete, três manchas muito tênues. Por cima da cabeceira da cama, do lado de onde dormia Charles Leeds, a parede encontrava-se manchada e havia marcas de sangue nos prumos. O diagrama de Graham começava a parecer um daqueles desenhos em que é preciso unir os pontos para formar uma imagem. Olhou-o com atenção, voltou a olhar para o quarto e de novo para o esquema, até começar a sentir uma dor de cabeça insuportável.
Foi ao banheiro, tomou os seus dois últimos comprimidos Bufferin e em seguida fez a água correr na mão em concha. Molhou o rosto e se limpou na barra da camisa. A água escorreu para o chão. Esquecera-se de que o sifão fora desligado para analisarem o filtro. Se não fosse esse detalhe, o banheiro se encontraria intacto, com exceção do espelho quebrado e do pó vermelho de impressões digitais, conhecido por «sangue de dragão». Escovas de dentes, cremes para o rosto, barbeador elétrico, encontrava-se tudo nos seus lugares.
Dir-se-ia que a família ainda continuava utilizando o banheiro: os collants da Sra. Leeds pendurados no toalheiro, onde ela os deixara secando. Reparou que cortava uma das pernas de um par quando tinha um fio corrido — podia usar dois pares ao mesmo tempo, cada um deles com uma perna só, conseguindo economizar dinheiro. Este tipo de pequena economia da Sra. Leeds impressionou-o; Molly agia de modo idêntico.
Graham passou por uma das janelas para se instalar sobre a cobertura de madeira da varanda. Abraçando os joelhos, a camisa úmida colada às costas, respirou fundo tentando libertar-se do cheiro de matadouro que lhe invadira o nariz.
As luzes de Atlanta iluminavam a noite, tornando difícil avistar as estrelas. Em Keys devia estar uma noite bonita. Podia estar naquele momento observando as estrelas cadentes na companhia de Molly e Willy, procurando ouvir o silvo — estavam todos de acordo sobre este ponto — que fariam ao cair. Os meteoros de Delta Aquário encontravam-se no seu apogeu e isto era uma coisa que Willy não queria perder.
Sentiu de novo um arrepio e fungou. Não era hora para pensar em Molly. Só podia servir para distraí-lo. E além disso não era de muito bom gosto.
Esse era exatamente o problema de Graham: nem sempre os seus pensamentos eram de muito bom gosto. Não existia uma separação real no seu espírito. Tudo aquilo que via e que aprendia contaminava todos os seus outros conhecimentos. Por vezes, estas misturas eram difíceis de suportar, mas não conseguia fazer nada para evitá-las. Todos os seus valores adquiridos de decência e de conveniência se rebelavam diante destas associações de idéias ou assustavam-se com os seus sonhos, e no ambiente fechado da sua mente não existia refúgio possível para aquilo que ele amava. As associações faziam-se à velocidade da luz, enquanto os juízos de valor preferiam o passo comedido da ladainha. Seria impossível que impusessem e orientassem a sua reflexão.
A sua própria mentalidade parecia-lhe grotesca e útil ao mesmo tempo, como se fosse uma cadeira tosca, mas não conseguia reagir contra isso.
Graham apagou a luz e atravessou a cozinha. Num dos cantos da varanda a lanterna iluminou uma bicicleta e uma cama para um cão feita num cesto de vime. No pátio havia uma casinha e perto dos degraus ficara abandonada uma tigela.
Tudo demonstrava que os Leeds haviam sido surpreendidos durante o sono.
Segurando a lanterna entre o queixo e o peito, escreveu uma nota: «Jack, onde estava o cão?»
Graham voltou ao hotel. Teve que se concentrar na direção embora o tráfego fosse praticamente nulo às quatro e meia da madrugada. A cabeça ainda doía e tentou encontrar uma farmácia que estivesse aberta a noite toda.
Encontrou uma em Peachtree. Um segurança de aspecto pouco cuidado cochilava perto da porta. O empregado da farmácia, envergando uma bata desbotada e cheia de caspa nos ombros, vendeu a Graharn os comprimidos Bufferin que este pediu. A iluminação da farmácia feria a vista. Graham detestava farmacêuticos jovens. Achava que tinham — na maioria das vezes — um ar convencido e desconfiava de que em casa deviam ser desagradáveis.
— Mais alguma coisa? — perguntou o farmacêutico, com os dedos pousados nas teclas da caixa registradora. — Mais alguma coisa?
Os escritórios do FBI de Atlanta tinham-lhe reservado um quarto num hotel absurdo, perto do novo centro comercial de Peachtree. Os elevadores eram envidraçados, em forma de vagem, para que não se esquecessem de que se encontravam na cidade.
Graham subiu no elevador juntamente com dois indivíduos cheios de adesivos, participantes numa convenção qualquer. Agarrados à barra do elevador, observavam o átrio do hotel.
— Olha para aquela maravilha junto da recepção, é a Wilma e os outros que estão chegando agora — disse o mais corpulento. — Porra, como eu gostaria de dar uma mordida naquilo.
— F... até que ela botasse sangue pelo nariz — disse o outro.
O medo, a violência, a cólera.
— A propósito, sabe por que uma mulher tem pernas?
— Não, porquê?
— Para não deixar um rasto como um caracol.
As portas do elevador se abriram.
— É aqui?
— É, chegamos — disse o mais corpulento. Ao sair foi de encontro à parede.
— Ora, ora, afinal não está melhor do que eu — disse o outro.
Chegando ao quarto, Graham colocou o dossiê em cima da cômoda. Mas arrependeu-se e guardou-o numa gaveta onde não pudesse vê-lo. Estava farto de todos aqueles mortos de grandes olhos arregalados. Teve vontade de telefonar para Molly, mas ainda era muito cedo.
Estava prevista uma reunião às oito da manhã na sede da polícia de Atlanta. Pouco tinha para lhes dizer.
Precisava tentar dormir. A sua mente era semelhante a uma casa onde todo mundo discutia e em que a luta começava logo no hall de entrada. Com uma sensação incômoda de vazio e de entorpecimento, bebeu dois dedos de whisky no copo de cabeceira antes de se deitar. O peso da escuridão o oprimia. Acendeu a luz do banheiro e voltou a deitar. Tentou imaginar Molly no banheiro escovando o cabelo.
Ressoavam-lhe na mente passagens do relatório de autópsia e era a sua própria voz que ele ouvia, embora nunca o tivesse lido em voz alta: «(...) (as fezes eram formadas (...) um vestígio de talco na parte inferior da perna direita. Fratura da parede média da órbita devido a inserção de um fragmento de espelho (...)»
Graham fez um esforço para pensar na praia de Sugarloaf Key e ouvir o ruído das ondas. Imaginou a sua oficina e pensou no escoamento da elepsidra que ele e Willy estavam construindo. Trauteou em surdina Whisky River e a seguir procurou cantar o Black Mountain Rag do começo ao fim. A música de Molly... Não tinha problemas com a parte de guitarra de Doc Watson, mas perdia-se sempre no solo de violão. Molly tentava ensinar-lhe sapateado no pátio da casa, fazia troça dele... acabou adormecendo.
Acordou menos de uma hora depois, banhado em suor: a silhueta da outra almofada recortava-se contra a luz do banheiro e era a Sra. Leeds que jazia a seu lado, mordida, despedaçada, os olhos vidrados, as têmporas e as orelhas cobertas de manchas de sangue, dando a idéia de hastes de óculos. Não conseguia olhá-la de frente. Com um uivo de sirene ecoando na cabeça, estendeu a mão e só encontrou os lençóis.
Experimentou um alívio imediato. Levantou-se, o coração pulsando desordenadamente, e vestiu uma blusa lavada antes de jogar aquela que tinha usado na banheira. Não foi capaz de se mudar para o lado seco da cama. Preferiu estender uma toalha sobre os lençóis empapados de suor e voltar a se deitar, as costas apoiadas na cabeceira da cama, um copo na mão. De uma só vez engoliu quase que um terço do conteúdo.
Procurou encontrar qualquer coisa em que pudesse pensar, não importava o quê. A farmácia onde comprara os comprimidos. Isso dava. Talvez porque tivesse sido a única coisa em todo o dia que não estivera relacionada a mortes.
Lembrou-se das velhas boticas e das suas fontes de soda. Nos seus tempos de criança sempre achara que tinham um ar esquisito. Quando se entra num deles, o primeiro pensamento que vem à cabeça é o de comprar preservativos, mesmo que não se tenha necessidade. Havia artigos nas prateleiras que já não se encontravam há muito tempo em outros lugares.
Na farmácia onde comprara o Bufferin, os contraceptivos com as suas embalagens ilustradas encontravam-se num mostruário em plástico brilhante, pendurado na parede por trás da caixa registradora.
Pessoalmente preferia a desordem da botica da sua infância. Graham aproximava-se a passos largos dos quarenta e começava a recordar com um aperto no coração o mundo que tinha conhecido; era como a âncora de um barco que arrastasse atrás de si durante uma tempestade.
Lembrou-se de Smoot. No tempo em que Graham era uma criança, o velho Smoot trabalhava como gerente para o farmacêutico proprietário da botica do bairro. Smoot, que bebia durante as horas de trabalho e que se esquecia de descer a persiana da vitrine, fazendo que as alpargatas em exposição ficassem desbotadas. Smoot, que se esquecia de desligar a máquina de fazer café para em seguida ter que chamar os bombeiros. Smoot, que dava crédito para as crianças que compravam sorvetes.
O seu maior crime fora o de ter encomendado cinqüenta bonecas Kewpie de um vendedor numa hora em que o proprietário se encontrava de férias. No seu regresso, este suspendeu Smoot durante uma semana. Logo a seguir fizeram uma campanha de venda das bonecas. As cinqüenta bonecas foram dispostas na vitrine em semicírculo, dando a impressão de que não tiravam os olhos de todas as pessoas que passavam na rua.
Tinham uns olhos enormes de um azul lindíssimo. A sua exposição atraía os olhares de todo mundo, e Graham por diversas vezes se perdera na sua contemplação. Sabia perfeitamente que não passavam de bonecas, mas a sensação era a de que não tiravam os olhos dele. Tantas bonecas iguais. Muitas pessoas paravam para olhar para elas. Bonecas de gesso, todas com os mesmos caracóis um pouco ridículos — e no entanto todos aqueles olhares fixados nele davam-lhe calafrios.
Só agora é que Graham começava a se descontrair. Bonecas olhando para ele. Tentou beber um gole, mas engasgou-se e entornou a bebida no peito. Procurou a luminária de cabeceira às apalpadelas. Tirou o dossiê da gaveta da cômoda.
Separou os relatórios de autópsia referentes às crianças dos Leeds e o esboço anotado do quarto principal e espalhou tudo em cima da cama.
Ali estavam as três manchas de sangue na parede do quarto e as manchas correspondentes no tapete. Também estavam anotados os tamanhos das três crianças. Tudo combinava. Tudo. Nos três casos.
Tinham sido instalados encostados à parede, em frente da cama. Um público. Um público de mortos. E Leeds. Amarrado pelo peito à cabeceira da cama. Numa posição como se estivesse sentado. Ficando com a marca da corda no peito e manchando a parede acima da cabeceira.
O que é que eles olhavam? Nada, estavam todos mortos. Mas tinham os olhos abertos. Assistiam ao espetáculo dado pelo lunático e pelo corpo da Sra. Leeds, na cama, ao lado do Sr. Leeds. Um público. Este tarado podia ver os rostos à sua volta.
Graham chegou a pensar se ele teria acendido uma vela. A luz vacilante teria dado um toque de vida aos seus rostos. Mas não fora encontrada nenhuma vela. Talvez utilizasse uma da próxima vez.
Esta insignificante primeira ligação com o assassino devorava-o como uma sanguessuga. Febril, Graham mordeu o lençol.
Por que mudou-os de posição? Não podia tê-los deixado onde estavam? perguntou Graham. Há alguma coisa que fez e que quer esconder de mim. Alguma coisa de que tem vergonha. A menos que não possa permitir que eu saiba.
Abriu-lhes os olhos?
A Sra. Leeds era linda, não era? Acendeu a luz depois de ter cortado a garganta do marido para que ela o visse sangrar, não foi? Era insuportável ter que usar luvas quando a tocou, não era?
Havia talco na perna dela.
Não havia talco no banheiro.
Parecia que alguém lhe enunciava estes dois fatos em voz baixa.
Tirou as luvas, não tirou? O talco caiu da luva de borracha que tirou para tocá-la, não foi, seu filha da puta? Tocou-a com as mãos nuas antes de voltar a calçar as luvas para limpar. Mas enquanto estava sem luvas, abriu-lhe os olhos?
Ao quinto toque Jack Crawford levantou o auscultador. Durante a noite atendera o telefone tantas vezes que esta nova chamada não o incomodou.
— Jack, é Will.
— Diga.
— O Price ainda está nas Impressões Digitais Latentes?
— Está. Já não sai muito. Está trabalhando no arquivo das impressões individuais.
— Acho que ele devia dar um pulo em Atlanta.
— Porquê? Você mesmo disse que eles tinham um bom especialista.
— É bom, mas não se compara com o Price.
— O que quer que ele faça? O que é que ele deve investigar?
— As unhas das mãos e dos pés da Sra. Leeds. Estão pintadas, é uma camada muito fina. E as córneas dos olhos de toda a família morta. Jack estou convencido de que ele tirou as luvas.
— Meu Deus, Price vai ter que se mexer — disse Crawford. O funeral está previsto para esta tarde.
— Estou convencido de que sentiu necessidade de tocá-la — disse Graham à laia de preâmbulo.
Os dois se encontravam no comando da polícia de Atlanta. Crawford estendeu-lhe uma coca-cola que tirara da máquina automática. Faltavam dez minutos para as oito da manhã.
— Com certeza a deslocou — disse Crawford. -Encontramos marcas nos pulsos e na parte posterior dos joelhos que o provam. Mas todas as impressões foram produzidas por luvas não porosas.
— Não se preocupe, Price já chegou. Um filho da mãe sempre resmungando. Neste momento já está a caminho da Casa Funerária. O necrotério deixou levantar os corpos ontem à noite, mas a Casa Funerária ainda não fez nada. Está com um aspecto horrível. Conseguiu dormir?
— Cerca de uma hora. Estou convencido de que sentiu necessidade de tocar com as mãos nuas.
— Espero que tenha razão, mas o laboratório de Atlanta jura de pés juntos que ele sempre usou luvas cirúrgicas —disse Crawford. — Os fragmentos de vidro tinham impressões lisas. Uma impressão do indicador na parte de trás do fragmento cravado nos grandes lábios e uma impressão borra da do polegar na parte da frente do mesmo pedaço de espelho.
— Provavelmente esfregou-o depois de tê-lo enterrado, certamente para se conseguir ver ao espelho — disse Graham.
— Aquele que ela tinha na boca estava manchado de sangue. E aconteceu o mesmo com os que lhe cravou nos olhos. Nunca chegou a tirar as luvas.
— A Sra. Leeds era uma mulher de família, não viu? Se me encontrasse numa situação íntima tenho certeza de que gostaria de lhe tocar a pele. E você, não?
— Íntima? — Crawford não conseguiu evitar que a voz traduzisse o nojo que a idéia lhe causava. Começou a verificar os bolsos como se procurasse alguma coisa, para disfarçar.
— Sim, íntima. Estavam sós. Todos os outros estavam mortos. Podia abrir ou fechar seus olhos conforme lhe apetecesse.
— Sim, podia fazer o que lhe apetecesse — disse Crawford. — Procuraram impressões em toda a pele, mas não deu nada. A única coisa que encontraram foi a marca de uma mão no pescoço.
— O relatório não diz nada sobre a investigação de resíduos nas unhas.
— Acho que as unhas estavam sujas quando fizeram o levantamento. Enterrou as unhas nas palmas das mãos. Nunca chegou a arranhá-lo.
— Tinha pés bonitos — observou Graham.
— Umm-hmm. E se subíssemos — respondeu Crawford. — Chegou a hora de passarmos as tropas em revista.
O equipamento de Jiminy Price era bastante volumoso: duas malas grandes, mais um saco de fotógrafo e o tripé. Fez uma algazarra enorme ao entrar pela porta principal da Casa Funerária Lombard em Atlanta. Era um homem idoso e frágil e o interminável trajeto de táxi desde o aeroporto não melhorara em nada o seu temperamento.
Um jovem untuoso, com o cabelo cortado na moda, conduziu-o para um gabinete decorado em tons de ameixa e creme. A escrivaninha encontrava-se limpa de qualquer papel, tendo apenas uma estatueta conhecida por Mãos em Oração.
Price estava examinando os dedos das mãos em oração quando o próprio Sr. Lombard entrou. Este verificou as credenciais de Price com um cuidado meticuloso.
— O seu escritório de Atlanta ou agência, como quiser chamar, me telefonou, como é lógico, Sr. Price. Mas na noite passada tivemos que chamar a polícia para pôr na rua um sujeito detestável, que tentava tirar fotografias para o The National Tattler. Vejo-me portanto na obrigação de ser extremamente prudente e tenho certeza de que compreende; Sr. Price. Os corpos só nos foram entregues por volta da uma da manhã e o funeral está previsto para esta tarde às cinco horas. Não temos qualquer hipótese de adiá-lo.
— Isto não vai demorar muito tempo — disse Price. —Preciso de um assistente razoavelmente inteligente, se é que tem alguém nestas condições. Tocou nos corpos, Sr. Lombard?
— Não.
— Tente saber quem tocou. Tenho que recolher as impressões digitais deles.
Naquela manhã, na reunião dos inspetores encarregados do caso Leeds, falou-se sobretudo de dentes.
O inspetor-chefe de Atlanta, R. J. Springfield, conhecido por Buddy, um tipo corpulento em mangas de camisa, encontrava-se junto da porta na companhia do Dr. Dominic Princi, enquanto os vinte e três detetives iam entrando.
— Muito bem, meus senhores, agora que estamos todos aqui, vamos dar um grande sorriso — disse Springfield. — Mostrem ao Dr. Princi os seus dentes. É isso, mostrem os dentes todos. Meu Deus, Sparks, que é que se passa? Isto é a sua língua ou engoliu uma serapilheira? Vamos, entrem.
Uma imagem frontal de uma dentadura muito ampliada, maxilar superior e inferior, estava afixada sobre o painel da ordem de serviço na parede por trás do estrado. Lembrava a Graham uma fantasia de Carnaval. Sentou-se com Crawford no fundo da sala enquanto os detetives se sentavam em carteiras.
O comissário de segurança pública de Atlanta, Gilbert Lewis, e o responsável das relações públicas encontravam-se à parte, em cadeiras desdobráveis, Lewis devia estar presente numa conferência de imprensa dali a uma hora.
O chefe de detetives Springfield iniciou a reunião.
— Muito bem, já nos divertimos o suficiente. Se deram uma olhada no relatório desta manhã, com certeza verificaram que não se avançou um milímetro.
— Os interrogatórios sistemáticos casa a casa vão continuar num raio de mais quatro blocos a partir da cena do crime. O Departamento R & 1 enviou-nos dois homens para ajudar a verificar todas as reservas aéreas e aluguéis de automóveis tanto em Birmingham como em Atlanta.
— Os detetives encarregados dos hotéis e do aeroporto vão sair mais uma vez. Sim, foi isso que eu disse, hoje, mais uma vez. Interroguem as empregadas domésticas, os miúdos, os empregados de recepção. O homem teve que tomar banho em algum lugar e é bem possível que tenha deixado vestígios. Se encontrarem alguém que tenha feito a limpeza, tirem as pessoas do quarto, selem-no e dirijam-se em passo de corrida para a lavanderia. Finalmente temos alguma coisa para lhes mostrar. Dr. Princi?
O Dr. Dominic Princi, médico-chefe de patologia do condado de Fulton, encaminhou-se para o estrado, tomando lugar junto da ampliação dos dentes. Na mão tinha uma dentadura.
— Meus senhores, os dentes do indivíduo devem ser muito parecidos com estes. O Smithsonian em Washington conseguiu fazer a reconstituição a partir das impressões recolhidas das mordidas encontradas no corpo da Sra. Leeds e de uma mordida muito mais nítida num pedaço de queijo que estava na geladeira dos Leeds. — Princi continuou. — Como podem ver, os incisivos laterais estão apertados, aqui e aqui — Princi apontou os dois pontos na dentadura que tinha na mão e em seguida na ampliação. — O alinhamento é imperfeito e falta um canto neste incisivo central. O outro incisivo tem um entalhe. Dá a idéia de um «chanfro de alfaiate», uma coisa que acontece a quem tem o hábito de partir linha com os dentes.
— Filho da mãe de dentuço — resmungou alguém no meio da assistência.
— Diga-me uma coisa, Doc, como é que tem certeza de que foi o indivíduo que deu uma mordida no queijo? — perguntou um detetive de elevada estatura que se encontrava na primeira fila.
Princi detestava que o chamassem de «Doc», mas não se deu por achado.
— Os vestígios de saliva encontrados no queijo e nos ferimentos correspondem ao mesmo tipo sanguíneo. Os dentes e o tipo de sangue das vítimas são diferentes.
— Bom trabalho, Doutor — disse Springfield. — Vamos agora entregar-lhes fotografias dos dentes.
— E se comunicássemos aos jornais? — perguntou Simpkins, o responsável das relações públicas. — Com um texto do gênero «Você já viu estes dentes alguma vez?».
— Não vejo qualquer inconveniente — disse Springfield. E o senhor, comissário?
Lewis acenou com a cabeça.
Mas Simpkins ainda não tinha terminado.
— Dr. Princi, a imprensa vai perguntar por que é que foram necessários quatro dias para construir esta reprodução. Também vai querer saber por que é que foi preciso pedir ajuda a Washington.
O agente especial Crawford não tirava os olhos da ponta da sua esferográfica.
O Dr. Princi corou, mas a voz manteve-se calma.
— As marcas de mordidas na carne são deformadas quando o corpo é removido, Sr. Simpson.
— Simpkins.
— Pois seja, Simpkins. Nunca teríamos conseguido este resultado apenas com as mordidas na vítima e é aí que o queijo entra em jogo. O queijo é relativamente sólido, bastante delicado para uma moldagem. É preciso começar untando de óleo para que não haja aderência de bolor — O Smithsonian já fez trabalhos deste tipo para o laboratório criminal do FBI. Está mais bem equipado para conseguir fazer um estudo facial e possui um articulador anatômico. Além disso, tem como consultor um especialista em odontologia. E nós não temos. Mais alguma coisa?
— Seria correto dizermos que o atraso foi devido ao atraso no laboratório do FBI em vez de nos considerarmos responsáveis?
Princi voltou-se para ele.
— O que seria correto dizermos, Sr. Simpkins, é que foi um investigador federal, o agente especial Crawford, que descobriu o queijo na geladeira há dois dias, muito depois de seus homens terem virado o local do avesso. Foi a meu pedido que ele requisitou o trabalho de laboratório. De qualquer modo, confesso que me sinto aliviado por saber que não foi nenhum de vocês que deu uma mordida no queijo.
O comissário Lewis interrompeu, fazendo ecoar por toda a sala a sua voz de baixo.
— Ninguém está pondo em causa a sua opinião, Dr. Princi. Simpkins, a última coisa de que precisamos é começar uma merda de uma disputa com o FBI. Acabem com isso.
— Estamos todos no mesmo barco — disse Springfield. — Jack, os seus homens querem acrescentar mais alguma coisa?.
Crawford tomou a palavra. Nem todos os rostos que se voltavam para ele mostravam sinais de simpatia. Era preciso fazer alguma coisa a esse respeito.
— A única coisa que me interessa, chefe, é desanuviar o ambiente. A alguns anos havia uma rivalidade acentuada entre nós. Quer fossem os federais, ou a polícia local, cada um procurava puxar a coberta e descobrir o outro. E os criminosos aproveitavam para escapar. Presentemente, o Bureau e eu já não pensamos dessa maneira. Estou nas tintas para quem levar a taça. O investigador Graham é da mesma opinião. Para quem ainda não o conheça, é aquele que está sentado ali ao fundo. Se o tipo que fez isto for atropelado por um caminhão de lixo, para mim está perfeito, uma vez que a única coisa que é importante é que seja posto fora de circulação. Tenho certeza de que vocês pensam da mesma maneira.
Crawford olhou para os detetives. Esperava que se acalmassem e que não procurassem armar-se em linha. O comissário Lewis dirigiu-lhe a palavra.
— O investigador Graham já trabalhou neste tipo de casos?
— Já.
— Sr. Graham, talvez tenha alguma coisa a acrescentar, uma sugestão?
Crawford interrogou Graham com o olhar.
— Quer fazer o favor de se aproximar do estrado? — disse Springfield.
Graham teria preferido falar com Springfield em particular. Fazer uma exposição diante de todos não o animava muito. No entanto, fez o que lhe pediam.
Despenteado e bronzeado pelo sol, Graham não se parecia de modo nenhum com um investigador federal. Springfield achava que se parecia mais com um pintor de construção civil que tivesse se endomingado para comparecer em tribunal.
Os detetives agitaram-se nas cadeiras.
Mas quando Graham se voltou para enfrentar a assistência, os olhos, de um azul-deslavado, fazendo contraste com o rosto bronzeado, conseguiram imobilizá-los nos lugares.
— Só algumas palavras — começou ele. — Não podemos concluir que se trate de um antigo doente mental ou de alguém que já tenha sido condenado por atentado ao pudor. Existem até muitas possibilidades de que não possua cadastro. E, se tiver, será mais do gênero de roubo por arrombamento.
— Pode ser que em crimes menores tenha manifestado a sua tendência para morder, como por exemplo em lutas de bar ou maus tratos infligidos a crianças. Neste aspecto, a maior ajuda que poderemos ter virá eventualmente do pessoal dos serviços de emergência e dos elementos da assistência social. Será preciso verificar todos os casos graves de mordidas de que eles se possam se lembrar, sem ter em conta a personalidade da vítima ou o modo de se relacionar com os acontecimentos. E era só isto o que queria lhes dizer.
O detetive de elevada estatura que se encontrava na fila da frente ergueu a mão e falou ao mesmo tempo.
— Mas para já, só tem mordido mulheres, não é?
— Segundo as informações que temos, é de fato assim. No entanto, não há dúvida de que morde demais. Seis mordidas graves na Sra. Leeds, oito na Sra. Jacobi. Temos de concordar que é um bocado acima da média.
— Que média?
— A dos crimes sexuais, que é de três. Não, não há dúvida de que gosta de morder.
— As mulheres.
— Na maioria dos crimes sexuais, a mordida caracteriza-se por uma mancha esbranquiçada no centro, na zona da sucção. Nestes casos, estas características não aparecem. O Dr. Princi citou este fato no seu relatório de autópsia e eu mesmo tive oportunidade de verificar no necrotério. Não existem vestígios de sucção. Talvez morda mais pelo prazer da luta do que por perversão sexual.
— É muito pouco — disse o inspetor.
— Mas vale a pena verificar — disse Graham. — Todos os casos de mordidas devem ser verificados. As pessoas mentem sobre o modo como as coisas se passaram. Os pais de uma criança que foi mordida dirão que foi um animal e deixarão que seja vacinada contra raiva, só para evitar o escândalo na família, todos vocês já se depararam com casos assim. É melhor informarem-se junto dos hospitais e procurarem saber quem foi vacinado contra raiva.
— Pronto, agora acabei. — Quando Graham se sentou, os músculos das coxas crisparam-se com a fadiga.
— Vale a pena perguntar e vamos fazê-lo — disse o inspetor-chefe Springfield. — O grupo dos Cofres e Armazéns vai se ocupar do quarteirão juntamente com o grupo de Furtos por Esticão. Pensem no cão. Os dados e a fotografia encontram-se no dossiê. Tentem descobrir se o cão foi visto na companhia de um estranho. Quanto aos Costumes e Drogas, ocupem-se dos cowboys da nossa praça e dos bares freqüentados depois do trabalho de rotina. Marcus e Whitman, atenção às presenças no funeral. Terão os parentes e amigos da família que desfilarão diante de vocês. Bom. O que se passa com o fotógrafo? Certo. Entreguem o livro de registro de condolências do funeral ao R & 1. Estes já receberam o de Birmingham. O resto das missões, encontram-se especificadas na folha de serviço. Vamos lá.
— Só mais uma coisa — disse o comissário Lewis. Os detetives voltaram a se afundar nos assentos. — Ouvi agentes deste comando referirem-se ao assassino pelo nome de Dentuço. Estou nas tintas para o modo que o chamam entre vocês, concordo que têm que chamá-lo de alguma coisa. Mas gostaria que nenhum agente se referisse a ele em público por «Dentuço». Não dá um ar muito profissional. Do mesmo modo, não quero que esse nome apareça em nenhum relatório interno. É tudo, meus senhores.
Crawford e Graham acompanharam Springfield de volta ao seu gabinete. O inspetor-chefe serviu-lhes café enquanto Crawford ligava para a central telefônica para tomar nota das mensagens que lhe eram destinadas.
— Ontem não consegui falar-lhe a sós — disse Springfield a Graham. — Isto está uma autêntica casa de doidos. O seu nome Will mesmo? Os rapazes conseguiram arranjar tudo aquilo que você precisava?
— Sim, foram perfeitos.
— Estamos «patinando» de uma forma incrível — observou Springfield. — É certo que se conseguiu uma fotografia das pegadas encontradas no canteiro de flores. Deixou pegadas nos arbustos e na relva e praticamente aquilo que se sabe é o número que calça e talvez uma idéia da sua estatura. A pegada esquerda é um pouco mais profunda, o que pode significar que transportava alguma coisa. É um trabalho delicado, mas no entanto, há alguns anos, conseguimos apanhar um ladrão a partir de uma fotografia como esta. Revelava que o indivíduo tinha a doença de Parkinson. Princi conseguiu identificar as características. Desta vez não temos tanta sorte.
— Tem uma boa equipe — disse Graham.,
— É verdade, mas não estamos habituados a este tipo de trabalho, graças a Deus. Responda-me francamente, vocês trabalham sempre juntos, o senhor, Jack e o Dr. Bloorn, ou só se reúnem para casos como este?
— Só para casos como estes — respondeu Graham.
— Não há dúvida de que é uma equipe de respeito. Ainda a pouco, o comissário dizia que foi o senhor que fisgou o Lecter há três anos.
— Estávamos os três trabalhando em colaboração com a polícia de Maryland — disse Graham. — Foi ela que o prendeu.
Springfield era teimoso, mas não era estúpido. Notava-se que Graham não estava à vontade. Fez rodar a cadeira ao mesmo tempo que reunia algumas folhas.
— Vocês quiseram saber o que aconteceu ao cão. Aqui está a informação a esse respeito. Na noite passada, um veterinário da zona telefonou ao irmão de Leeds. O cão estava na casa dele. Leeds e o menino mais velho levaram-no ao veterinário na tarde do dia em que foram assassinados. Tinha um abscesso no abdômen. O veterinário operou-o e correu tudo bem. No início, pensou que se tratava de um ferimento a bala, mas não encontrou nada. Está convencido de que o cão foi ferido com um picador de gelo ou com uma sovela. Temos perguntado aos vizinhos se viram alguém brincando com o cão e hoje telefonamos aos veterinários da zona para saber se encontraram mais algum caso de mutilação.
— O cão usava coleira com o nome dos Leeds?
— Não.
— E em Birmingham os Jacobi tinham um cão? — perguntou Graham.
— Já devíamos ter verificado isso — disse Springfield. — Espere um instante. — digitou um número interno. — O tenente Flatt faz a nossa ligação com Birmingham... Alô, Flatt? O que é que se sabe sobre o cão dos Jacobi? Sim, sim... Uh-huh... uh-huh. Um minuto. — colocou a mão sobre o fone. — Não há cão. Encontraram um prato de gato, sujo, no banheiro do térreo, mas não havia vestígios do gato. Os vizinhos estão tentando encontrá-lo.
— Peça a Birmingham para verificar no jardim e nas construções vizinhas — disse Graham. — Se o gato foi ferido, é possível que as crianças não o tenham encontrado a tempo e depois o tenham enterrado. Conhece os gatos. Escondem-se para morrer. Os cães voltam para junto dos donos. Pode também perguntar-lhes se tinha uma coleira?
— Diga-lhes que enviaremos uma sonda de metano, se precisarem — disse Crawford. — Evita as escavações.
Springfield transmitiu as questões. O telefone tocou logo que acabou de desligar. A chamada era para Jack Crawford, e era de Jiminy Price, que ainda se encontrava na Casa Funerária Lombard. Crawford atendeu no outro telefone.
— Jack, encontrei impressões num fragmento, provavelmente de um polegar e de parte da palma.
— Jimmy, você é a luz da minha vida.
— Eu sei. O fragmento está tingido e a impressão borrada. Tenho que ver o que posso fazer quando voltar. É do olho esquerdo do filho mais velho. É a primeira vez que faço uma coisa destas. Quase que passei sem notar, mas sobressaía da hemorragia provocada pelo ferimento de bala.
— Acha que consegue identificá-lo?
— Pode demorar muito tempo, Jack. É possível, se estiver registrado no arquivo de impressões individuais, mas é a mesma coisa que procurar uma agulha num palheiro. A impressão da palma foi recolhida no dedo grande do pé esquerdo da Sra. Leeds. Só serve para comparação. Teremos muita sorte se for possível avançar com isto. O adjunto responsável das relações públicas e o próprio Lombard estavam presentes. Tirei fotografias in situ. Acha que chega?
— Lembrou-se de tirar as impressões digitais dos empregados da Casa Funerária?
— Recolhi as impressões de Lombard e dos seus gatos-pingados, até mesmo daqueles que disseram que não tinham tocado nos cadáveres. Neste momento estão lavando os dedos e me rogando pragas. Quero ir embora, Jack. Trabalho melhor na minha própria câmara escura. Quem sabe o que será possível encontrar? Posso apanhar o avião de Washington dentro de uma hora e enviar as fotografias das impressões no início da tarde.
Crawford pensou por momentos.
— Ok, Jimmy, mas ande depressa com isso. E envie cópias ao FBI e à polícia de Atlanta e de Birmingham.
— Combinado. Há mais uma coisa que temos que esclarecer — disse Price.
Crawford ergueu os olhos para o teto.
— Não diga que vai me chatear com a diária?
— É isso mesmo.
— Meu velho Jimmy, nunca mais poderei lhe recusar o que quer que seja.
Graham olhou pela janela enquanto Crawford os punha a par sobre as impressões.
— É de fato notável — limitou-se a dizer Springfield.
O rosto de Graham estava lívido, fechado como o de um condenado, pensou Springfield.
Ficou observando Graham até este ter saído da sala.
Na altura em que Graham e Crawford deixaram o gabinete de Springfield, a conferência de imprensa dada pelo comissário estava terminando. Os jornalistas da imprensa escrita— precipitaram-se para os telefones. Os repórteres de televisão estavam fazendo «cortes», permanecendo de pé diante das câmaras para relatar as melhores perguntas que foram ouvidas na conferência de imprensa; a seguir, estendiam os microfones para o vazio, para obter uma resposta que seria inserida mais tarde a partir da seqüência de respostas dadas pelo comissário.
Crawford e Graham desciam a escada principal quando um homenzinho os ultrapassou para se voltar em seguida e lhes tirar uma fotografia. O rosto surgiu atrás da máquina fotográfica.
— Will Graham! — exclamou. — Lembra-se de mim? Freddy Lounds! Fiz a cobertura do caso Lecter para o Tattler e fui eu que escrevi a reportagem.
— Lembro-me muito bem — disse Graham. Crawford e ele continuaram descendo as escadas enquanto Lounds caminhava de lado diante deles.
— Quando é que o chamaram, Will? O que é que já conseguiu saber?
— Não tenho nada para lhe dizer, Lounds.
— Qual é a diferença entre este tipo e Lecter? Fez-lhes...
— Lounds — Graham quase gritou e Crawford. colocou-se entre os dois homens. — Lounds, os seus artigos são uma merda e o The National Tattler só serve para limpar o cú. Dê o fora!
Crawford agarrou Graham pelo braço.
— Vá, Lounds, andando. Já. Will, vamos tomar um café-da-manhã merecido. Vamos.
Viraram a esquina, caminhando calmamente.
— Desculpe-me, Jack, mas não consigo suportar esse tipo. Aproveitou o fato de eu estar no hospital para...
— Eu sei — disse Crawford. — Fui eu que o pus na rua, não lhe fez mal nenhum. — Crawford lembrou-se da fotografia publicada no The National Tattler na altura em que o caso Lecter terminara. Lounds introduzira-se no quarto do hospital enquanto Graham estava dormindo. Afastara o lençol, tirando uma fotografia que mostrava o ânus artificial temporário de Graham. O jornal limitara-se a cobrir o baixo-ventre de Graham com um quadrado negro e publicou a fotografia com o subtítulo «Louco esfaqueia policial».
O restaurante era tranqüilo e agradável. Graham, com as mãos ainda trêmulas, deixou entornar café no pires.
Viu que a fumaça do cigarro de Crawford incomodava um casal que se encontrava na mesa vizinha. O casal comia com lentidão, num silêncio carregado de rancor.
Duas mulheres — aparentemente mãe e filha — discutiam perto da porta. Falavam em voz baixa, mas os rostos encontravam-se deformados pela cólera, uma cólera que Graham conseguia sentir no seu próprio rosto, na nuca.
A perspectiva de ter que testemunhar num processo em Washington naquela mesma manhã irritava Crawford. Receava a possibilidade de ser retido durante vários dias. Enquanto acendia mais um cigarro, observava as mãos de Graham e o tom da pele.
— Atlanta e Birmingham vão comparar a impressão do polegar com as dos maníacos sexuais que já têm cadastro — disse Crawford. — Nós podemos fazer o mesmo. Entretanto Prince já tirou dos dossiês uma impressão individual. Vai submetê-la ao Finder. Olha que já adiantamos um bom bocado de trabalho!
O Finder era uma máquina do FBI que permitia ler e fazer o tratamento das impressões; era capaz de identificar a impressão do polegar a partir de uma ficha relativa a um assunto totalmente diferente.
— Quando o apanharmos, a impressão digital e os dentes constituirão provas conclusivas — disse Crawford. — No momento, temos que nos limitar a imaginar qual será o aspecto dele, o que poderá corresponder a muita gente. Mas suponhamos que conseguimos deter um suspeito com francas possibilidades de ser o nosso homem. —Avança para vê-lo. O que pode haver a respeito dele que não te surpreenda?
— Não faço idéia, Jack. Está vendo, para mim ele ainda não tem um rosto. Poderíamos passar anos à procura de gente que inventamos. Conseguiu falar com Bloorn?
— Falei com ele ontem à noite ao telefone. Bloorn não acredita que se trate de um suicida e Heiralich pensa o mesmo. Bloorn só esteve aqui meia-dúzia de horas no primeiro dia, mas ele e Heiralich têm o dossiê completo. Esta semana, Bloorn examinando candidatos a doutoramento. Mandou-lhe cumprimentos. Tem o número dele em Chicago?
— Tenho.
Graham gostava do Dr. Alan Bloorn, um homenzinho roliço de olhos tristes, mas que era um psiquiatra forense de primeira categoria. Graham apreciava sobretudo o fato do Dr. Bloorn nunca ter procurado ver nele um assunto de estudo. Não se podia dizer o mesmo de outros psiquiatras.
— Bloorn me disse que não ficaria nada surpreendido se viéssemos a ter notícias do Dentuço. Poderia até acontecer que nos envie uma mensagem — disse Crawford.
— Na parede de um quarto.
— Bloorn acredita que ele esteja desfigurado ou que acredite que se encontra desfigurado. Disse-me, no entanto, para não dar muita importância a esse aspecto. «Não quero que percam a presa em busca de uma sombra», foi o que ele me disse. «Só iria distraí-los e arruinar os seus esforços.» Parece que lhe ensinaram a falar assim na universidade.
— Ele tem razão — observou Graham.
— Deve saber alguma coisa, senão não tinha descoberto a impressão digital — disse Crawford.,
— Ouça Jack, havia indícios suficientes na parede. Não tive qualquer influência. E além disso, gostaria que não esperasse muito de mim. De acordo?
— Fique tranqüilo, vamos apanhá-lo. Tenho certeza de que concorda comigo.
— Sim, vamos apanhá-lo. De uma maneira ou de outra.
— Como, por exemplo?
— Havemos de encontrar indícios que nos tenham escapado.
— E a outra maneira, qual é?
— Vai continuar no mesmo ritmo até o dia em que fará barulho demais ao entrar na casa e o marido tenha tempo de pegar numa arma.
— Não há mais soluções?
— Acha que vou conseguir detectá-lo no meio de uma multidão? Isso é bom para o Ezio Pinza. O Dentuço continuará até que tenhamos sorte suficiente ou provas que cheguem. Mas não irá parar.
— Porquê?
— Porque encontra prazer nisso.
— Diga-me uma coisa, afinal conhece-o melhor do que aquilo que quer dar a entender — disse Crawford.
Graham só lhe respondeu depois de terem saído do restaurante.
— Espere até a próxima lua cheia — disse Graham. — E depois poderá me dizer o que é que eu sei a respeito dele.
Graham voltou ao hotel e dormiu duas horas e meia.
Acordou ao meio-dia, tomou uma ducha e encomendou café e um sanduíche. Chegara a hora de estudar com atenção o dossiê Jacobi. Lavou os óculos com o sabonete do hotel e sentou-se perto da janela com o dossiê. Durante os primeiros minutos, erguia a cabeça a cada ruído, passos no hall ou o bater longínquo da porta do elevador. Até que se concentrou totalmente no dossiê.
O empregado bateu à porta várias vezes. Quando se cansou de esperar, pousou o tabuleiro diante da porta e assinou ele mesmo a fatura.
Hoyt Lewis, leitor de contadores da Companhia de Eletricidade da Georgia, estacionou a caminhonete debaixo de uma grande árvore da avenida e recostou-se no assento, procurando uma posição mais confortável para almoçar. Deixara de ser agradável desembrulhar um almoço que fora embalado por ele. Ia longe o tempo dos bilhetinhos e das palavras carinhosas.
Estava na metade do sanduíche quando uma voz grossa lhe fez dar um pulo.
— Se não me engano devo ter gasto cerca de mil dólares de eletricidade apenas em relação ao mês passado.
Lewis voltou-se e viu a face corada de H. G. Parsons na janela da caminhonete. Vestia calções tipo bermudas e tinha uma vassoura na mão.
— Não entendi o que disse.
— Vai me dizer que gastei cerca de mil dólares de eletricidade? Entendeu agora?
— Sr. Parsons, não faço a menor idéia de quanto é que gastou porque ainda não li o seu contador. Quando o tiver lido faço o registro na minha ficha.
Parsons preocupava-se com o valor da fatura e já por várias vezes apresentara queixa junto aos serviços competentes.
— Sei muito bem aquilo que gasto — disse Parsons. — Vou apresentar uma queixa à Comissão de Litígios sobre o que está acontecendo.
— Quer ir ler o contador comigo? Podemos ir lá e...
— Sei perfeitamente ler um contador. E tenho certeza de que você também poderia fazê-lo se não fosse tão cansativo.
— Ouça uma coisa, Parsons — disse Lewis saindo da caminhonete. — No ano passado o senhor colocou um ímã no contador. A sua esposa me disse que estava no hospital. Aproveitei para retirá-lo e passei uma esponja sobre o assunto. Mas fui obrigado a fazer um relatório quando no Inverno passado o senhor jogou melaço no contador. E verifiquei que pagou sem discutir quando lhe apresentaram a fatura. A sua fatura aumentou depois de todas as instalações elétricas que o senhor fez. Fartei-me de lhe dizer que na sua casa havia uma fuga qualquer de corrente. Contratou um eletricista para ver qual era a razão? Não, preferiu ir aos escritórios queixar-se de mim. Estou farto até às pontas dos cabelos das suas atitudes. — Lewis estava branco de cólera.
— Vou ser franco com você — disse Parsons, dirigindo-se para o jardim da sua casa. — Está sendo vigiado, Sr. Lewis. Vi alguém que anda na sua frente fazendo o mesmo percurso de contagens — disse ele já do lado de lá da vedação. — Não demora muito para que tenha de começar a procurar outro trabalho.
Lewis arrancou, dirigindo ao longo da avenida. Precisava arranjar outro local para acabar de almoçar. E era uma pena. Há anos que almoçava à sombra daquela árvore.
Ficava exatamente nos fundos da casa de Charles Leeds.
Às cinco e meia da tarde, Hoyt Lewis meteu-se no seu carro particular e seguiu para o bar do aeroporto, Cloud Nine, onde bebeu vários copos para se descontrair.
Quando telefonou à sua ex-mulher, só conseguiu dizer:
— Gostaria tanto que continuasse preparando o meu almoço.
— Devia ter pensado nisso antes. Espertinho — disse ela, desligando em seguida.
Sem convicção, jogou uma partida de cartas com vários empregados da Georgia Power. Parecia procurar alguém no meio da multidão. Funcionários da companhia aérea começavam a invadir o Cloud Nine. Tinham todos o mesmo bigodinho e o mesmo anel com uma pedra de fantasia. Só faltava que montassem um jogo de dardos no Cloud Nine e o transformassem num pub inglês... Já não se consegue ficar tranqüilo em casa!
— Viva, Hoyt. Jogamos valendo uma caneca de cerveja? — Era Billy Meeks, o seu chefe de serviço.
— A propósito, Billy, preciso falar contigo.
— O que se passa?
— Conhece aquele velho filho da mãe do Parsons que passa a vida telefonando?
— Telefonou na semana passada — disse Meeks. — O que ele fez?
— Disse que há alguém fazendo minha ronda, antes de mim, como se estivesse verificando se eu faço o meu trabalho. Não acha que eu faça a leitura dos contadores deitado na cama, não é?
— Nem pensar nisso.
— Não acredita, não é? Quer dizer... Se estou na lista negra de alguém, quero que venham me dizer diretamente.
— Se estivesse na minha lista negra, acha que teria medo de te dizer cara a cara?
— Não.
— Assim está melhor. Escute, se alguém estivesse verificando o seu itinerário, eu seria o primeiro a saber. As chefias estão sempre a par desse tipo de situação. Ninguém está investigando você, Hoyt. Não pode ligar para aquilo que Parsons diz, ele não passa de um velho rabugento. Telefonou semana passada para me dizer: «Parabéns por ter começado a prestar mais atenção ao trabalho de Hoyt Lewis.» Nem sequer lhe dei atenção.
— A minha pena é não termos atirado a lei para cima dele quando foi o caso daquele contador — disse Lewis. — Veja você, hoje estava muito sossegado na avenida à sombra de uma árvore comendo meu sanduíche, quando o Fulano me pulou em cima. O espertalhão está precisando é de um bom pontapé no traseiro.
— Quando eu fazia o seu itinerário, também parava ali para almoçar — disse Meeks. — Olha só, já tinha lhe contado que cheguei a ver a Sra. Leeds? Não parece lá muito certo estar falando dela agora, uma vez que já morreu, mas uma ou duas vezes a vi do lado de fora, nos fundos, em traje de banho se bronzeando. Uau! Que corpo ela tinha! É uma vergonha o que lhe aconteceu. Era uma senhora simpática.
— Já apanharam alguém?
— Nem pó.
— Foi uma pena terem apanhado os Leeds quando os velhos Parsons estavam bem ali no jeito — comentou Lewis.
— Talvez não acredite, mas nunca consentiria que a minha companheira passeasse em traje de banho no jardim da nossa casa. «Billy, meu querido, ninguém me vê», foi aquilo que ela me dizia. E eu lhe respondi que não era possível ter certeza, que há malucos para tudo, que de um momento para o outro podiam pular a vedação com a «coisa» na mão.
— Os tiras chegaram a te convocar? Perguntaram se tinha visto alguém?
— Perguntaram, mas estou convencido de que fizeram as mesmas perguntas para todo mundo que trabalha naquela zona.
— Por minha parte terminei ontem de fazer um trabalho em Lauxelwood, do outro lado da Avenida Betty Jane, onde estive toda a semana — disse Lewis enquanto arrancava o rótulo da garrafa de cerveja. — Disse que Parsons te telefonou na semana passada?
— Foi.
— Então deve ter visto alguém lendo o seu contador. Não teria telefonado se a idéia fosse só a de me chatear como fez hoje. Você disse que não mandou ninguém e ele tem a certeza de que não foi a mim que ele viu?
— Talvez um tipo da Southeastern Bell verificando alguma coisa.
— É possível.
— Embora isso me admire. Não temos as mesmas linhas. —Acha que deveria telefonar aos tiras?
— Não faria mal nenhum — disse Meeks.
— Nah, até poderia ser um bem para Parsons encontrar-se diante de uma farda. Vai ficar num cagaço danado quando vê-los chegar.
Graham, que pouco mais possuía do que um equipamento básico de pesca, um Volkswagen em terceira mão e duas caixas de Vitrinechet, sentiu uma leve animosidade contra estes brinquedos de adultos e tentou entender porquê.
Quem era Leeds? Um funcionário do fisco que tinha tido sucesso na vida, um jogador de futebol Sewanee, um homem calmo que gostava de rir, um homem que, mesmo com a garganta dilacerada, se ergueu e tentou lutar.
Um estranho sentido de dever fez com que Graham continuasse a sua busca por toda a casa, na mesma tentativa de reconstituir a personalidade do dono. Investigando a seu respeito era, de certo modo, uma maneira de se desculpar e poder logo em seguida fazer o mesmo em relação à esposa.
Graham pressentia que tinha sido ela que tinha atraído o monstro, como o canto de um grilo atrai a morte das moscas de olhos vermelhos.
Graham voltou à casa dos Leeds ao fim da tarde. Entrou pela porta da frente e tentou não olhar para os estragos que o assassino tinha feito. Até aí tinha visto processos, o local onde as mortes tinham ocorrido e os cadáveres — tudo muito depois das coisas terem acontecido. Já sabia muita coisa sobre o modo como tinham morrido. Hoje tinha programado tentar saber quais eram os seus hábitos de vida.
Tratava-se portanto de uma inspeção. Na garagem encontrou um excelente barco de ski, com bastante uso, mas muito bem conservado, e uma caminhonete station, Havia também tacos de golfe e uma bicicleta de exercício. O equipamento de ginástica praticamente não tinha uso. Brinquedos de adultos.
Graham tirou um dos tacos do saco e quase se desequilibrou ao ensaiar um remate longo. Quando voltou a encostar o saco dos tacos de golfe à parede, sentiu o cheiro de couro que evolava dele. Eram os objetos pessoais de Charles Leeds.
Continuou a investigação sobre Charles Leeds, procurando em toda a casa. Os seus troféus de caça encontravam-se na sala de estar. Um conjunto de Grandes Obras, todas numa fila. Os anuários Sewanee, H. Allen Smith, Perelman e Max Shulman nas estantes. Vonnegut e Evelyn Waugh. O livro Beat to Quarters, de C. S. Forrester, encontrava-se aberto numa mesa.
No armário da sala, uma boa espingarda de caça, uma máquina fotográfica Nikon, uma máquina de filmar Bolex Super 8 e um projetor.
Portanto tinha sido a Sra. Leeds.
Tinha um pequeno quarto de vestir no alto das escadas. Graham conseguiu chegar lá sem que tivesse de olhar à sua volta. O quarto de vestir estava forrado em tons de amarelo e, se não fosse o fato do espelho por cima do toucador se encontrar quebrado, podia se dizer que se encontrava intacto. No chão em frente do armário encontrava-se um par de mocassins L L Bean, como se ela tivesse acabado de tirá-los. O roupão encontrava-se pendurado e o armário revelava a leve desorganização característica de uma mulher que tem muitos outros armários para organizar.
O diário da Sra. Leeds estava no toucador, numa caixa de veludo cor-de-ameixa. A chave estava colada à tampa com fita adesiva, juntamente com um talão de verificação do departamento de polícia.
Graham sentou-se numa frágil cadeira branca e abriu o diário à sorte:
Dezembro, 23, terça-feira. — Fomos à casa da mamãe. As crianças ainda estão dormindo. Quando a mamãe envidraçou a varanda dos fundos, detestei o modo como alterou o aspecto da casa, mas tenho que concordar que afinal é muito agradável poder ficar sentada aqui com uma temperatura amena olhando para a neve que cai lá fora. Quantos outros Natais ela será capaz de aguentar com uma casa cheia de netos? Espero que ainda sejam muitos.
Ontem, no regresso de Atlanta, começou a nevar depois de Raleigh e fizemos uma viagem difícil. Quase tivemos que vir andando. Ainda por cima me sentia cansada por ter sido obrigada a arrumar todo mundo. Perto de Chapel Hill, Charlie parou o carro e saiu. Tirou alguns cristais de gelo de um ramo para me preparar um martini. Regressou ao carro, as suas pernas imensas erguendo-se na neve, e ali estava ele com o cabelo e as pestanas cheias de neve. Neste instante o meu espírito foi invadido pelo amor que sinto por ele. Foi uma sensação como se dentro de mim alguma coisa se quebrasse com um mínimo de dor para logo em seguida ser inundada por um calor extremamente agradável.
Espero que a parka lhe sirva. Se ele me der aquele anel... tenho a impressão de que vai me dar alguma coisa. E se a Madelyn ver o anel, vai sentir como se tivesse lhe dado um chute naquele traseiro cheio de celulite. Quatro diamantes incrivelmente grandes, da cor de gelo sujo. O gelo formado da água congelada é tão transparente. O sol atravessou o pára-brisas do carro e incidiu no gelo partido que se encontrava dentro do copo, formando um pequeno prisma. Projetou uma mancha vermelha e verde na mão com que estava segurando o copo, e tive a sensação de sentir as cores projetadas.
Ele me perguntou o que eu queria que ele me desse de presente de Natal. Com as mãos em concha, sussurrei-lhe ao ouvido: o teu grande c... seu tolo e que o meta em mim tão fundo quanto puder.
Sua nuca ficou de um vermelho vivo de repente. Tem sempre receio de que as crianças possam ouvir. Os homens não têm confiança nenhuma nos sussurros.
A página estava suja da cinza de charuto do detetive que já tinha passado por ali.
Graham leu até já não ter luz, passando por episódios como a operação de amígdalas da filha e um susto que a Sra. Leeds tinha tido em Junho último quando tinha lhe aparecido um caroço num dos seios (meu Deus, as crianças ainda são tão pequenas).
Três páginas depois, o caroço já era um quisto benigno que tinha sido facilmente removido.
O Dr. Janovitch me deu alta esta tarde. Deixamos o hospital e fomos até o lago. Há muito tempo que não íamos lá. Parece que nunca conseguimos arranjar tempo para isso. Charlie levou duas garrafas de champanhe no gelo, bebemos e demos comida aos patos enquanto o sol se punha.
Ficou à beira da água, de costas voltadas para mim, e estou convencida de que chegou a chorar.
A Susana disse que tivera medo de que levássemos do hospital para casa mais um irmão para ela. Casa!
Graham ouviu o telefone tocar no quarto. Ouviu-se um click e o zumbido de uma secretária eletrônica. «Alô? Fala Valerie Leeds. Peço desculpas por não poder atender neste momento, mas se após o sinal me deixar o seu nome e número de telefone, ligo o mais rápido possível. Obrigada.»
De certo modo, Graham esperava ouvir a voz de Crawford depois do sinal, mas só distinguiu o ruído de fundo da ligação. Tinham desligado.
Ouvira a voz dela; agora queria vê-la. Voltou à sala de estar. Trazia no bolso uma bobina de filme Super 8 que tinha pertencido a Charles Leeds. Três semanas antes da sua morte, este deixara o filme numa loja para revelar. Nunca chegou a pegá-lo. A polícia encontrara o talão na carteira de Leeds, tinha levantado o filme na loja, e os detetives viram o filme caseiro, juntamente com algumas fotografias reveladas ao mesmo tempo, não tendo encontrado nada de interesse.
Graham queria ver os Leeds em vida. Na esquadra os detetives puseram um projetor à sua disposição. Mas ele recusou porque queria ver o filme na casa. De certo modo contrariados, deixaram-no levar o filme do depósito.
Encontrou a tela e o projetor no armário da sala, montou-os e sentou-se no grande sofá de couro de Charles Leeds para ver o filme. Sentiu que havia alguma coisa no braço da cadeira que se colava à palma da mão — marcas dos dedos de uma criança lambuzados com hortelã-pimenta. A mão de Graham ficou cheirando a bala.
Era um pequeno filme mudo bastante agradável, muito mais imaginativo do que a maioria dos que costumava ver. Começava com as imagens de um cão cinzento pêlo-de-arame dormindo no carpete da sala. O cão tinha ficado perturbado momentaneamente pelo zumbido e tinha levantado o focinho para olhar para a máquina. Mas aconchegou-se de novo e voltou a dormir. Um close up do focinho do cão ainda dormindo. De repente as orelhas do pêlo-de-arame arrebitaram-se. Ergueu-se e começou a latir — a câmera seguiu-o enquanto se dirigia para a cozinha, correndo para a porta, onde parou expectante, tremendo de excitação ao mesmo tempo que abanava o toco de cauda.
Graham mordeu o lábio enquanto também aguardava. Na tela a porta se abriu e surgiu a Sra. Leeds carregando sacos de supermercado. Pestanejou para logo em seguida rir surpreendida, ao mesmo tempo que compunha com a mão que tinha livre uma madeixa de cabelo que lhe caía sobre os olhos. Enquanto desaparecia da imagem notava-se o mover dos lábios. Logo em seguida surgiram as crianças com sacos menores. A menina tinha seis anos e os meninos, oito e dez.
O menino mais novo, aparentemente um veterano dos filmes feitos pela família, fez uma careta na direção da câmera. Esta estava numa posição muito alta. De acordo com o relatório da autópsia, Leeds tinha um metro e noventa de altura.
Graham ficou convencido de que esta parte do filme devia ter sido feita no início da Primavera. As crianças vestiam agasalhos e a Sra. Leeds tinha um aspecto pálido. No necrotério, o corpo apresentava-se bronzeado e viam-se as marcas do traje de banho.
Seguiram-se cenas breves dos meninos jogando pingue-pongue na garagem e de Susana desembrulhando um presente no quarto, a língua dobrada sobre o lábio superior num esforço de concentração, enquanto um farrapo de cabelo lhe caía sobre os olhos. Empurrou o cabelo para trás com a mãozinha gorducha como a mãe tinha feito na cozinha.
A cena seguinte mostrava Susana num banho de espuma, agachada como uma pequena rã. Na cabeça tinha uma enorme touca de banho. O ângulo da câmera era mais baixo, mas o foco não se mantinha estável — nitidamente o trabalho de um dos irmãos. A cena terminou com ela gritando para a câmera sem que se ouvisse qualquer som, cobrindo o peito enquanto a touca de banho lhe escorregava para os olhos.
Para não ficar atrás, Leeds tinha surpreendido a esposa no chuveiro. A cortina do chuveiro estremeceu, notando-se o vulto que estava por trás, como tantas vezes acontecia nas peças de teatro das festas do colégio. O braço da Sra. Leeds saiu da cortina. Na mão tinha uma enorme esponja de banho. A cena terminou com a lente obscurecida com espuma de banho.
O filme terminou com uma cena de Norman Vincent Peale falando na televisão e um grande plano de Charles Leeds ressonando na cadeira onde Graham se encontrava sentado agora.
Depois do filme ter acabado, ficou olhando para o retângulo de luz projetado na tela. Gostava dos Leeds e lamentava ter estado no necrotério. Lembrou-se de que o lunático que os tinha visitado também devia ter gostado deles. Mas o lunático gostava deles mais da maneira como se encontravam agora.
Graham sentia-se incapaz de raciocinar e a cabeça fervilhava de idéias. Nadou na piscina do hotel até sentir as pernas dormentes e saiu da água pensando em duas coisas ao mesmo tempo — um martini Tangueray e o gosto da boca de Molly. Preparou o martini num copo de plástico e telefonou para Molly.
— Olá, artista.
— Olá pequeno! Onde você está?
— Neste estupor de hotel em Atlanta.
— Fazer alguma coisa boa?
— Nada de interessante. Sinto-me só.
— Eu também.
— Com tesão.
— Eu também.
— Fale-me de você.
— Bom, tive uma questão com a Sra. Holper hoje. Ela queria devolver um vestido com uma mancha enorme de whisky no fundo das costas. Tenho quase certeza de que o usou naquela festa dos Jaycee.
— E que é que você disse?
— Disse-lhe que não o tinha vendido naquele estado.
— E o que é que ela respondeu?
— Disse que nunca tivera qualquer problema em devolver um vestido antes, e que era essa uma das razões que comprava na minha loja em vez de ir a outros lugares que estava farta de conhecer.
— E então o que é que você disse?
— Oh, disse-lhe que estava preocupada porque o Will falando ao telefone é impossível.
— Estou vendo.
— O Willy está ótimo. Anda cobrindo os ovos de tartaruga que os cães desenterram. Conte-me o que você tem feito.
— Tenho lido relatórios e a comida é uma porcaria.
— E com certeza tem pensado muito.
— Também.
— Posso ajudar em alguma coisa?
— Ainda não consegui agarrar nada de palpável, Molly. Os dados não são suficientes. Bom, há montes de informações, mas ainda não as trabalhei o suficiente.
— Ainda vai ficar em Atlanta durante muito tempo? Não quero te chatear pedindo que venha para casa, mas anseio que o faça.
— Não sei. Ainda vou estar aqui mais alguns dias. Sinto sua falta.
— Quer falar sobre foder?
— Tenho a impressão de que não agüentaria. Acho que é melhor não o fazermos.
— Não fazermos o quê?
— Falarmos sobre foder.
— Está bem. Mas não se importa se eu pensar nisso, não é?
— Sabe muito bem que não.
— Arranjamos mais um cão.
— Estou feito!
— Parece ser cruzado de basset e pequinois.
— Deve ser uma maravilha.
— Tem uns tomates enormes.
— Deixa os tomates do bicho.
— Quase que arrastam no chão. Quando corre tem que encolhê-los.
— Ele não é capaz de fazer isso.
— É, sim senhor. Você é que não sabe.
— Sei, sim senhora.
— Consegue fazer o mesmo com os teus?
— Lá vamos nós voltar ao ponto.
— E então?
— Se quer saber, tive que encolhê-los uma vez.
— Quando é que foi isso?
— Quando era rapaz. Tive que pular uma vedação de arame farpado a toda velocidade.
— Porquê?
— Levava debaixo do braço uma melancia que eu não tinha cultivado.
— Estava fugindo? De quem?
— Um porco qualquer que eu conhecia. Alertado pelos cães, disparou da barraca no seu BVD, de espingarda na mão. Felizmente tropeçou num arbusto, o que me deu o tempo de que eu precisava.
— Disparou em você?
— De início achei que sim. Mas os relatórios que ouvi devem ter sido feitos pelo meu traseiro. Nunca consegui saber ao certo o que tinha acontecido.
— Conseguiu passar a vedação? Tão novo e já tinha uma mentalidade criminosa.
— Menina, eu não tenho uma mentalidade criminosa.
— Eu sei que não. Estou pensando em pintar a cozinha. Qual é a cor que você gosta? Will? Qual é a cor que você gosta? Ainda está aí?
— Estou, uhm, pinte de amarelo.
— Para mim o amarelo é uma cor péssima. Ao café-da-manhã passaria a ter um aspecto esverdeado.
— Então azul.
— O azul é frio.
— Arre, se é assim... olha pinta de cor-de-caca-de-bebê, tanto faz... Não, espera, o mais certo é que dentro em breve eu já estar em casa e vamos juntos à loja de tintas, assim podemos escolher e compramos aquilo que quisermos. Combinado? Aproveitamos para comprar também alguns pincéis que nos fazem falta.
— Acho que sim, fazemos como você quiser. Nem sei por que é que estou falando disto. Sabe de uma coisa? Te amo, sinto a tua falta e está fazendo aquilo que tem de ser feito. Sei que também te custa muito. Estou aqui e estarei aqui quando voltar para casa ou então vou encontrá-lo onde quiser. E acho que é tudo.
— Querida Molly, minha querida Molly. Agora tem que ir para a cama.
— Está bem.
— Boa noite.
Graham estendeu-se na cama com as mãos atrás da cabeça enquanto relembrava os jantares que tinha tido com Molly. Caranguejo-das-rochas e Sancerre, com a brisa salgada misturando-se no aroma do vinho.
Um dos seus problemas era o de fixar os pormenores das conversas que tinha, e mais uma vez isso estava acontecendo. Lembrando-se da conversa telefônica que tinha tido, veio-lhe à mente aquela observação da «mentalidade criminosa». Era estúpido da sua parte.
Graham achava que o interesse que Molly tinha nele era na sua maioria inexplicável.
Telefonou para o comando da polícia e deixou um recado para Springfield dizendo-lhe que na manhã seguinte queria começar a ajudar no trabalho porta a porta. Não havia mais nada que se pudesse fazer.
O gin ajudou-o a adormecer.
Em cima da escrivaninha de Buddy Springfield estavam as cópias meio-amarrotadas de todos os recados telefônicos sobre o caso Leeds. Terça de manhã, quando Springfield chegou ao escritório, às sete horas, havia sessenta e três. A que se encontrava no alto tinha uma marca vermelha.
Dizia que a polícia de Birmingham encontrara um gato enterrado numa caixa de sapatos atrás da garagem dos Jacobs. O gato tinha uma flor presa nas patas e estava embrulhado numa toalha de mesa. O nome do gato estava escrito com uma letra infantil numa etiqueta atada à caixa com uma corda cheia de nós.
O examinador médico de Birmingham disse que o gato fora estrangulado. Rapara-lhe o pêlo e não tinha encontrado nenhuma ferida.
Enquanto pensava, Springfield batia com a haste dos óculos nos dentes.
No local encontraram terra macia e cavaram com uma pá.
Não fora necessária nenhuma prova de metano. No entanto, Graham tinha tido razão.
O chefe de detetives cuspiu no dedo e continuou a sua busca no monte das cópias de recados telefônicos. A maioria eram informações a respeito de veículos suspeitos na vizinhança durante a semana anterior, descrições vagas indicando só o tipo de veículo ou a cor. Quatro dos residentes de Atlanta tinham recebido chamadas telefônicas anônimas em que diziam: «Vou te fazer a mesma coisa que fiz aos Leeds.»
A chamada de Hoyt Lewis estava no meio do monte.
Springfield telefonou ao comandante do turno da noite.
— O que há sobre a informação desse leitor de contadores a respeito de um tal Parsons? Número quarenta e oito.
— Tentamos contatar o serviço de assistência ontem a noite, chefe, para verificar se eles tinham tido alguém naquela avenida — disse o comandante de serviço do turno da noite. — Vão nos telefonar esta manhã para dar uma resposta.
— Encarregue alguém para ligar o mais depressa possível — disse Springfield. — Verifique os serviços sanitários, os serviços de obras, licenças de construção ao longo da avenida, e depois me ligue no carro. — Em seguida ligou para o número de Will Graham.
— Will? Dentro de dez minutos estarei na porta do seu hotel para darmos uma volta.
Ainda não faltavam quinze minutos para as oito quando Springfield estacionou o carro no fundo da avenida. Ele e Graham seguiram os vestígios de pneus que se distinguiam no saibro — Mesmo àquela hora da manhã o sol já aquecia bastante.
— Precisa comprar um chapéu — disse Springfield enquanto descia o seu próprio chapéu de palha sobre os olhos.
A vedação no fundo da propriedade dos Leeds estava coberta com videiras. Pararam junto ao contador de luz que se encontrava no poste.
— Se veio por este caminho conseguia ver os fundos da casa — disse Springfield.
Só tinham passado cinco dias e a propriedade dos Leeds já começava a ter um aspecto abandonado. O gramado não estava aparado e cebolas-bravas despontavam da erva. O pátio encontrava-se juncado de pequenos ramos que tinham caído. Graham sentiu vontade de apanhá-los. A casa parecia adormecida, as janelas da varanda vazias e obscurecidas pelas longas sombras que de manhã eram projetadas pelas árvores. Parado na avenida ao lado de Springfield, Graham conseguia ver o seu reflexo no vidro da porta da varanda. Estranhamente, a reconstituição da entrada do assassino parecia-lhe agora totalmente diferente à luz do sol. Reparou num papagaio de criança que se movia suavemente na brisa da manhã.
— Aquele deve ser o Parsons — disse Springfield.
Com uma fita, Springfield mediu a altura a que se encontrava o contador.
Tinha apontamentos sobre todos os vizinhos dos Leeds.
Estes apontamentos diziam-lhe que Parsons se aposentara antecipadamente do posto que ocupava nos correios, a pedido do seu supervisor. O supervisor fizera um relatório em que especificava que Parsons era «incrivelmente distraído».
Os apontamentos de Springfield também continham uma parte de mexericos. Os vizinhos diziam que a esposa de Parsons, sempre que podia, ficava com a irmã, que vivia em Macon, o máximo de tempo que lhe era possível, e que o filho nunca mais tinha telefonado.
— Sr. Parsons, Sr. Parsons — chamou Springfield.
Parsons encostou o ancinho à casa e aproximou-se da vedação. Calçava sandálias e meias brancas. Os calcanhares das meias estavam manchados da terra e da relva. O rosto era de um rosado brilhante.
Arteriosclerose, pensou Graham. E já tomou o comprimido.
— Sim?
— Sr. Parsons, podemos lhe falar por um momento? Precisamos da sua ajuda — disse Springfield.
— São da Companhia de Eletricidade?
— Não, me chamo Buddy Springfield e sou da polícia.
— Então é sobre o assassinato. Já tinha dito ao agente que a minha mulher e eu estávamos em Macon.
— Eu sei, Sr. Parsons. Queríamos lhe fazer uma pergunta sobre o seu contador.
— Foi... se esse... esse leitor de contadores disse que eu fiz qualquer coisa de ilegal, está só ...
— Não, não, Sr. Parsons. Na semana passada viu alguém desconhecido lendo o seu contador?
— Não.
— Tem certeza? Tenho a impressão de que disse a Hoyt Lewis que tinha passado alguém fazendo a mesma leitura de contadores antes dele.
— De fato disse. E já não é sem tempo. Estou tratando do assunto e a Comissão de Serviços Públicos vai receber da minha parte um relatório completo.
— Tudo bem. Tenho certeza de que irão examiná-lo com toda a atenção. Quem é que viu lendo o contador?
— Não era um estranho, era alguém da Companhia de Eletricidade da Georgia.
— Como é que sabe?
— Bom, parecia-se com um leitor de contadores.
— O que é que ele vestia?
— O que eles todos vestem, acho eu. O que é? Uma bata castanha e um boné.
— Conseguiu ver-lhe o rosto?
— Já não tenho certeza. Estava olhando pela janela da cozinha quando o avistei. Quis falar com ele, mas tive que ir vestir o roupão e quando saí já tinha ido embora.
— Tinha um caminhão?
— Não me lembro de ter reparado nisso. O que se passa? Por que está me fazendo estas perguntas todas?
— Estamos investigando todas as pessoas que estiveram na vizinhança semana passada. É muito importante, Sr. Parsons. Faça um esforço para se lembrar.
— Então é sobre o assassinato. Ainda não prenderam ninguém, não é?
— Não.
— Na noite passada estive vigiando a rua durante uns minutos e não passou um único carro de polícia. O que aconteceu aos Leeds foi horrível. A minha mulher tem estado completamente transtornada. Só quero ver quem é que vai comprar a casa. No outro dia vi alguns pretos olhando para ela. Sabe, tive que falar com o Leeds algumas vezes por causa das crianças, mas eram impecáveis. Evidentemente que nunca fez nada daquilo que lhe aconselhei a respeito da grama. O Departamento de Agricultura tem alguns folhetos excelentes sobre o controle de ervas daninhas. Cheguei mesmo a pôr os folhetos na caixa do correio. Aqui para nós, quando cortou as cebolas-bravas, o cheiro era simplesmente sufocante.
— Sr. Parsons, quando é que viu exatamente esse tipo na avenida? — perguntou Springfield.
— Não tenho certeza, estou tentando me lembrar.
— Lembra-se a que horas foi? De manhã? Ao meio-dia? A tarde?
— Sei as horas do dia, não é preciso mencioná-las. Talvez de tarde. Não me lembro.
Springfield esfregou a nuca.
— Desculpe-me, Sr. Parsons, mas tenho que ter alguma certeza a este respeito. Podemos ir à sua cozinha para nos mostrar de onde é que o viu chegar?
— Primeiro mostrem a sua identificação. Os dois.
Dentro da casa havia silêncio, superfícies brilhantes e ar abafado. Limpa. Imaculadamente limpa. O cuidado desesperado de um casal a envelhecer e que começa a ver as suas vidas esfumaçarem-se.
Graham tinha preferido ter ficado lá fora. Tinha certeza de que as gavetas estavam cheias de prata polida e de toalhas de linho.
Pára com isso e vamos espremer a velha múmia.
Da janela que ficava sobre a banca da cozinha tinha-se uma boa vista dos fundos.
— Aqui estamos. Estão satisfeitos? — perguntou Parsons. — Daqui pode-se olhar lá para fora. Não falei com ele e não me lembro do aspecto dele. Se é tudo o que queriam, tenho muito o que fazer.
Graham falou pela primeira vez.
— Disse que foi vestir o roupão e que quando saiu ele tinha ido embora. Isso quer dizer que não estava vestido?
— Não estava.
— No meio da tarde? Sentia-se doente, Sr. Parsons?
— O que eu faço na minha própria casa só a mim diz respeito. Se me der na telha até posso vestir uma fantasia de canguru. Por que é que não estão lá fora à procura do assassino? Se calhar é porque aqui está mais fresco.
— Soube que se aposentou, Sr. Parsons, e por isso acho que não tem qualquer importância se se veste ou não durante o dia. Há muitos dias em que nem sequer chega a se vestir, não é verdade?
As veias das têmporas de Parsons estavam dilatadas.
— Só porque estou aposentado não quer dizer que não me vista e que não tenha que fazê-lo todos os dias. Simplesmente estava cheio de calor, entrei e fui tomar um chuveiro. Estava trabalhando. Estava adubando e durante a tarde já tinha feito um dia de trabalho, o que é muito mais do que aquilo que os senhores farão hoje.
— Estava fazendo o quê?
— Adubando.
— Em que dias costuma fazer isso?
— Sexta. Foi na sexta-feira passada. Fizeram a entrega de manhã, uma grande quantidade, e eu tinha... tinha tudo espalhado da parte da tarde. Pode perguntar ao Centro de Jardinagem a quantidade que era.
— E o senhor, como estava cheio de calor, entrou para tomar um chuveiro. O que é que estava fazendo na cozinha?
— Preparando um copo de chá gelado.
— E foi buscar gelo? Mas a geladeira fica do outro lado, longe da janela.
Parsons, junto da janela, olhou para a geladeira, parecendo perdido e confuso. Os olhos estavam sombrios e inexpressivos, como os olhos de um peixe no mercado já no fim do dia. De repente iluminaram-se, com um sentimento de triunfo. Dirigiu-se para o armário junto do lava-louças.
— Tinha vindo buscar comprimidos de sacarina e estava aqui precisamente quando o vi. É isso. E é tudo. Agora, se procurassem...
— Acho que ele viu Hoyt Lewis — disse Graham.
— Eu também — respondeu Springfield.
— Não era Hoyt Lewis. Não era ele. — Os olhos de Parsons estavam lacrimejantes.
— Como é que sabe? — disse Springfield. — Podia ter sido Hoyt Lewis e o senhor pensou...
— Lewis tem um tom de pele bronzeado. Tem o cabelo grisalho e oleoso e rugas na cara. — A voz de Parsons tinha subido de tom e falava tão depressa que era difícil compreendê-lo. — Foi por isso que eu vi que não era ele. Com certeza não era Lewis. Este tipo era mais pálido e o cabelo era louro. Voltou-se para escrever no bloco e pude ver debaixo do boné. Louro. Com o cabelo na nuca cortado reto.
Springfield permaneceu absolutamente imóvel e, quando falou, a sua voz ainda tinha um tom de ceticismo.
— E o rosto dele?
— Não sei. Talvez tivesse um bigode.
— Como Lewis?
— Lewis não tem bigode.
— Estou vendo — disse Springfield. — O contador estava ao nível dos olhos ou tinha que olhar para cima?
— Acho que ao nível dos olhos.
— Seria capaz de reconhecê-lo se o visse de novo?
— Não.
— Que idade ele tinha?
— Não era muito velho. Não faço idéia.
— Viu o cão dos Leeds perto dele?
— Não.
— Tenho de lhe confessar uma coisa, Sr. Parsons, verifico que tinha me enganado — disse Springfield. — A sua ajuda é muito importante para nós. Se não se importar, vou chamar o nosso artista. Sentado aqui à mesa da cozinha talvez o senhor consiga lhe dar uma idéia do aspecto desse fulano. Com certeza não era Lewis.
— Não quero que o meu nome apareça em nenhum jornal.
— Com certeza que não vai aparecer.
Parsons acompanhou-os até à saída.
— Fez um trabalho magnífico neste jardim, Sr. Parsons — disse Springfield. — Deviam lhe dar um prêmio.
Parsons não disse nada. O rosto estava vermelho e em constante movimento, enquanto os olhos lacrimejavam. Ficou ali, de sandálias e calções, que mais pareciam um saco, olhando para eles. Quando deixaram o jardim, pegou o ancinho e começou a revolver furiosamente a terra, espalhando o adubo na grama, sem se preocupar com as flores que encontrava pelo caminho.
Springfield pediu informações pelo rádio do carro. Nenhuma das companhias de serviços nem os departamentos da câmara eram capazes de dar qualquer informação sobre o homem que tinha percorrido a avenida no dia anterior ao assassinato. Springfield informou sobre a descrição de Parsons e deu instruções para o artista.
— Digam-lhe para desenhar o poste e o contador em primeiro lugar e começar a partir daí. Terá que pôr a testemunha à vontade para tentar conseguir alguma coisa.
— O nosso artista não gosta muito de atender chamadas a domicílio — disse o chefe de detetives a Graham, enquanto fazia deslizar o Ford conversível através do tráfego. — Gosta que as secretárias o vejam trabalhando, com a testemunha de pé, apoiando-se alternadamente num pé ou no outro, espiando por cima do ombro dele. Uma esquadra de polícia é um local muito triste para fazer perguntas a alguém a quem não seja necessário meter medo. Logo que tenhamos o retrato na mão vai ser preciso percorrer a vizinhança de porta em porta. Tenho a impressão de que conseguiremos alguma coisa, Will. Ainda está tudo muito vago, mas já temos alguma coisa, não acha? Está vendo, apertamos o pobre diabo e ele se abriu. Agora temos que explorar os resultados.
— Se de fato o homem da avenida é aquele que procuramos, essas são as melhores notícias no momento — disse Graham. Estava farto daquilo.
— É isso mesmo. Significa que não se limita a sair do ônibus e seguir na direção que lhe dá na telha. Trabalha com um plano. Passou a noite na cidade. Um ou dois dias antes, sabe qual é o alvo. Tem de ter uma idéia qualquer. Marca o local, mata o animal de estimação e a seguir mata a família. Que raio de idéia é que ele terá na cabeça? — Springfield fez uma pausa. — De certo modo é o seu território, não é?
— De fato. Se não for de mais ninguém, tenho a impressão de que é meu.
— Sei que já viu casos deste tipo antes. Não gostou quando te falei de Lecter no outro dia, mas preciso falar contigo a esse respeito.
— Está bem.
— Ao todo matou nove pessoas, não foi?
— Temos conhecimento de nove. Houve duas que não morreram.
— O que lhes aconteceu?
— Uma delas está num hospital de Baltimore, num pulmão artificial. A outra está num hospital para alienados mentais em Denver.
— O que é que o levou a fazer isso, até que ponto ele era louco?
Graham olhou para os transeuntes que passavam a seu lado na calçada. A sua voz parecia impessoal, como se estivesse ditando uma carta.
— Fez o que fez porque sentiu prazer nisso. Ainda o sente. O Dr. Lecter não pode ser considerado louco no sentido vulgar da palavra. Fez algumas coisas monstruosas porque sentiu prazer nisso. Mas quando quer, pode funcionar perfeitamente e parecer normal.
— Como é que os psicólogos classificaram o caso? O que é que estava errado com ele?
— Dizem que é um sociopata, porque não encontraram mais nenhum termo que pudessem aplicar a ele. Tem algumas das características que atribuem a um sociopata. Não tem qualquer sentimento de remorso ou de culpa. E apresentou o primeiro e o pior dos indicadores: sadismo para com os animais quando era criança.
Springfield resmungou.
— Mas não apresenta mais nenhuma das outras características — continuou Graham. — Não era um desenraizado e não apresentava nenhum histórico de problemas com a lei. Não era mesquinho e explorador nas pequenas coisas, como são a maioria dos sociopatas. Não é insensível. Não sabem como é que devem classificá-lo. Os seus encefalogramas mostram alguns padrões estranhos, mas não conseguiram tirar conclusões a esse respeito.
— Como é que o classificaria? — perguntou Springfield.
Graham hesitou.
— Só para você, como é que o classificaria?
— É um monstro. Quando penso nele, lembro-me dessas coisas que de vez em quando nascem nos hospitais e que só dão pena. Alimentam-nas, as mantém confortáveis, mas se as tiram da máquina, morrem. Sob o ponto de vista da mentalidade, Lecter é a mesma coisa, mas parece normal e ninguém é capaz de dizer o contrário.
— Alguns dos chefes meus amigos que tenho encontrado no sindicato são de Baltimore. Perguntei-lhes como é que conseguiu descobrir Lecter. Disseram-me que não sabem. Como é que o fez? Qual foi a primeira indicação, a primeira coisa que sentiu?
— Foi uma coincidência — disse Graham. — A sexta vítima foi assassinada na sua oficina. Havia equipamento para trabalhar madeira e também era lá que guardava o equipamento de caça. O corpo estava pendurado num gancho no local onde costumava pendurar as ferramentas e, de fato, encontrava-se numa lástima, cortado, esfaqueado e com setas por todo o corpo. As feridas lembravam-me alguma coisa. Mas não conseguia descobrir o que era.
— E teve que se preocupar com os seguintes.
— Foi. Lecter estava no seu máximo, fez os três seguintes em nove dias. Mas esta sexta vítima apresentava duas cicatrizes antigas na coxa. O patologista contatou o hospital local e soube que cinco anos antes caíra de uma árvore, quando andava caçando com arco e flecha, e que espetara uma na perna.
»O médico que fez o registro da ocorrência era o cirurgião residente, mas Lecter tratou-o em primeiro lugar, estava de serviço nas emergências. Encontramos o nome no registro de admissões. Já tinha se passado muito tempo desde o acidente, mas convenci-me de que Lecter poderia se lembrar de alguma coisa que lhe tivesse parecido estranha sobre a ferida com a flecha. Fui ao gabinete dele para lhe falar a este respeito. Naquela altura agarrávamo-nos a qualquer indício que aparecesse.
»Naquela época, passara a se dedicar à psiquiatria e o gabinete era muito agradável, todo em estilo antigo. Disse-me que já não se lembrava muito bem do caso da ferida com flecha, que tinha sido um dos companheiros de caça da vítima que o tinha trazido, e era tudo.
»No entanto, houve alguma coisa que não me soou bem. Não tinha certeza se tinha sido alguma coisa que Lecter tinha dito ou fora alguma coisa que eu tinha visto no gabinete dele. Crawford e eu debruçamo-nos sobre o assunto. Verificamos os registros e Lecter não possuía qualquer registro a esse respeito. Precisava ficar só por algum tempo no gabinete dele, mas não conseguíamos arranjar um mandato de busca. Não havia a mínima evidência. Decidi ir falar de novo com ele.
»Era domingo, mas ele também dava consultas aos domingos. O edifício estava vazio, só havia duas ou três pessoas na sala de espera. Viu-me logo que cheguei. Conversamos e, enquanto ele fazia um esforço delicado para me ajudar, olhei para a prateleira por cima da cabeça dele e vi alguns livros de medicina muito antigos. E soube que era ele.
»Quando o olhei de novo, é possível que o meu rosto tivesse se alterado, não faço idéia. Eu sabia e sabia que ele sabia. No entanto, não era capaz de descobrir o motivo. Não conseguia acreditar. Tinha que pensar sobre o assunto. Murmurei alguma coisa e saí dali na direção do hall, onde havia uma cabine telefônica. Não queria alarmá-lo antes de ter conseguido ajuda. Estava falando com o operador da polícia quando ele surgiu em meias por uma porta de serviço. Não o senti se aproximando. Senti o seu hálito e a seguir... foi aquilo que você sabe.
— Afinal como é que conseguiu saber?
— Acho que foi uma semana depois, já no hospital, que consegui descobrir. Era uma ilustração do Homem Ferido, que se via muito nos livros antigos de medicina, como aqueles que Lecter tinha. Mostra diferentes tipos de ferimentos em combate, todos na mesma figura. Já a tinha visto num curso de supervisores que um patologista dera na GWU. A posição da sexta vítima e os seus ferimentos eram em tudo semelhantes aos do Homem Ferido.
— Homem Ferido? Era só isso que tinha?
— De fato era. Foi uma coincidência que eu tivesse visto a gravura. Foi uma questão de sorte.
— E que sorte.
— Se não acredita em mim, por que raio perguntou?
— Faço de conta que não ouvi o que disse.
— Está bem. Também não era isso que queria dizer. No entanto foi o modo como as coisas se passaram.
— Okay — disse Springfield. — Okay. Obrigado por ter me contado. Preciso saber de coisas como esta.
A descrição que Parsons dera do homem na avenida e as informações sobre o gato e o cão eram possíveis indicações sobre os métodos do assassino: aparentemente tinha inspecionado primeiro o local, disfarçado de leitor de contadores, e sentira-se impelido a ferir os animais de estimação das vítimas antes de ter ido matar a família.
O problema imediato que a polícia enfrentava era o de divulgar ou não esta teoria.
Com o público alertado e ciente dos sinais de perigo, a polícia poderia ter um aviso prévio de um possível futuro ataque do assassino, mas com certeza o assassino também estaria atento às notícias.
E podia modificar os seus hábitos.
No departamento de polícia havia um sentimento muito forte de que as tênues pistas que tinham obtido deveriam se manter em segredo, com exceção de um boletim especial que seria distribuído em todo o Sudoeste pelos veterinários e responsáveis de centros de recolha de animais, pedindo relatórios imediatos se verificassem mutilações de qualquer animal doméstico.
Por outro lado, isto se traduzia em não fornecer ao público um alerta que poderia ser vital. Era uma questão de ética e a polícia não se sentia muito confortável a este respeito.
Consultaram o Dr. Alan Bloorn em Chicago. O Dr. Bloorn disse-lhes que, se o assassino lesse um aviso nos jornais, provavelmente mudaria de método na marcação de uma casa. O Dr. Bloorn tinha dúvidas de que o homem fosse capaz de parar de atacar os animais de estimação, independentemente do risco que pudesse correr. O psiquiatra disse à polícia que não deveriam de modo nenhum concluir que tinham vinte e cinco dias para trabalhar, ou seja, o tempo que faltava antes da próxima lua cheia, em 25 de Agosto.
Na manhã de 31 de Julho, três horas depois de Parsons ter fornecido a sua descrição, foi tomada uma decisão após uma conferência telefônica entre as polícias de Atlanta e de Birmingham e Crawford, em Washington: deviam mandar confidencialmente o boletim para os veterinários, investigar durante três dias na vizinhança com o esboço do artista e a seguir fornecer a informação à imprensa, rádio e televisão.
Durante esses três dias, Graham e os detetives de Atlanta calcorrearam os passeios, mostrando o esboço aos proprietários das casas situadas na área da residência dos Leeds. O esboço traduzia apenas a sugestão de um rosto, mas esperavam encontrar alguém que pudesse fornecer mais pormenores.
A cópia do esboço que foi fornecida a Graham foi desbotando nas margens devido ao suor das mãos. A maioria das vezes era extremamente difícil que os moradores atendessem à porta. A noite deitava-se no quarto, coberto de pó de talco nas bolhas e vergões feitos pelo calor, enquanto a mente andava às voltas com o problema como se se tratasse de um holograma. Namorava o sentimento que usualmente antecede uma idéia. Só que esta nunca chegava.
Entretanto, em Atlanta, verificaram-se quatro incidentes com ferimentos e uma morte, tudo devido a moradores que dispararam contra parentes que chegaram tarde em casa. No comando da polícia amontoavam-se as chamadas telefônicas e as informações sem qualquer interesse. O desespero alastrava como uma epidemia de gripe.
Crawford regressou de Washington no terceiro dia e foi encontrar Graham sentado, tirando as meias ensopadas de suor.
— Muito trabalho?
— Se amanhã pegar num esboço, verá como é — disse Graham.
— Não é preciso, vai aparecer tudo nas notícias desta noite. Andou o dia todo a pé?
— Não é possível andar de carro nos jardins deles.
— Nunca esperei que fosse possível conseguir qualquer coisa desta investigação — disse Crawford.
— Se é assim, que raio estava esperando que eu fizesse?
— Simplesmente o melhor que fosse possível — Crawford ergueu-se para ir embora. — O excesso de trabalho foi muitas vezes para mim uma droga, especialmente depois de ter deixado a bebida. Tenho a impressão de que com você acontece o mesmo.
Graham estava irritado. Evidentemente que Crawford tinha razão.
Graham era um preguiçoso inato, e ele sabia. Nos seus tempos de escola tentava compensar este fato com a velocidade com que desempenhava as tarefas. Mas agora já não estava na escola.
Havia mais alguma coisa que ele podia fazer e já a dias que tinha consciência disso. Podia esperar até que fosse levado a fazê-lo por desespero, nos últimos dias antes da lua cheia. Ou podia fazê-lo já, enquanto valesse a pena.
Havia uma opinião de que precisava. Uma análise da situação que ele precisava compartilhar; um equilíbrio da mente que ele precisava recuperar depois do conforto de todos os anos passados em Keys.
As razões surgiram-lhe de repente como ondas que se quebram na orla da praia e finalmente, sem dar conta de que encolhia a barriga, Graham disse em voz alta:
— Tenho que ver Lecter.
O Dr. Frederick Chilton, diretor do Hospital Psiquiátrico Chesapeake para Criminosos Inimputáveis, rodeou a escrivaninha para apertar a mão de Will Graham.
— O Dr. Bloorn telefonou ontem, Sr. Graham, ou devo tratá-lo por Dr. Graham?
— Não sou médico.
— Gostei muito de receber notícias do Dr. Bloorn, conhecemo-nos há anos. Sente-se.
— Estamos muito gratos pela sua ajuda, Dr. Chilton.
— Para ser franco, às vezes tenho mais a impressão de ser o secretário de Lecter do que o seu guarda — disse Chilton. — A correspondência que ele recebe é impressionante. Estou convencido de que, para certos investigadores, é muito chic corresponderem-se com ele. Já vi cartas dele emolduradas em serviços de psicologia. Durante algum tempo poderia se dizer que todos os estudantes inscritos nesta especialidade queriam ter uma entrevista com ele. Seja como for, sinto-me contente por poder colaborar com o Sr. e com o Dr. Blorn.
— Gostaria de ver o Dr. Lecter na maior privacidade — disse Graham. — E talvez seja preciso que tenha que voltar ou telefonar.
Chilton acenou com a cabeça.
— Antes de mais nada, o Dr. Lecter não deverá deixar o seu quarto. Trata-se do único local onde não é obrigado a usar camisa-de-força. Uma das paredes do seu quarto é constituída por uma barreira dupla que dá para o corredor. Se quiser posso dizer para levarem uma cadeira. Sinto-me na obrigação de lhe pedir que não lhe passe nenhum objeto, com exceção de folhas de papel, que não tenham grampos ou clips. Nem classificadores, nem canetas, nem lápis. Tem as suas próprias canetas especiais.
— É capaz de ser preciso mostrar-lhe documentos que poderão excitá-lo — disse Graham.
— Mostre-lhe tudo o que quiser, desde que se trate de papel. Deve passar os documentos pela abertura destinada ao tabuleiro de refeições. Através das barras não lhe estenda nada nem aceite nada. Ele deve lhe devolver os documentos pela mesma abertura do tabuleiro. É um ponto sobre o qual insisto. O Dr. Bloorn e o Sr. Crawford garantiram-me que seguiria escrupulosamente as minhas instruções.
— Não se preocupe — disse Graham, ao mesmo tempo que se levantava.
— Sei que tem pressa de vê-lo, Sr. Graham, mas antes quero contar-lhe uma coisa que de certeza vai interessá-lo.
»Pode parecer incongruente tentar precavê-lo, ao Sr., contra Lecter, mas as suas reações são absolutamente imprevisíveis. Comportou-se perfeitamente durante o primeiro ano de internamento e deu a idéia de que estava na disposição de querer colaborar com os médicos. Em conseqüência — isto passou-se durante a administração anterior — houve um certo abrandamento nas medidas de segurança a seu respeito.
»No dia 8 de Julho de 1976, na parte da tarde, queixou-se de dores agudas no peito. Na sala de exame tiraram-lhe a camisa-de-força para que pudessem fazer o eletrocardiograma. Um dos enfermeiros deixou a sala para fumar um cigarro e o outro voltou-se por segundos. A enfermeira era muito ágil, conseguiu salvar um dos olhos.
»Vai achar isto estranho. — Chilton tirou de uma gaveta uma fita de papel de eletrocardiograma que desenrolou em cima da mesa. Com o dedo seguiu a linha do gráfico. — Aqui, está deitado na mesa do exame. O pulso é de 72. Aqui, agarra a enfermeira pela cabeça e puxa-a para ele. Aqui, é neutralizado pelo enfermeiro. Não ofereceu a menor resistência, embora o enfermeiro lhe tenha deslocado o ombro. Está compreendendo? O seu pulso nunca passou dos 85. Mesmo quando arrancou a língua da enfermeira.
Chilton observava Graham, mas o rosto deste mantinha-se impenetrável. Recostou-se na cadeira e cruzou os dedos sob o queixo. As mãos estavam secas e brilhantes.
— Veja, quando Lecter foi preso, todos pensávamos que se tratava de uma ocasião única para ser possível estudar de perto um sociopata puro — disse Chilton. — É raro encontrar um vivo. Lecter é extraordinariamente lúcido e perceptivo, conhece a psiquiatria a fundo, mas é um criminoso terrível. Pareceu-nos que queria cooperar e ficamos convencidos de que tínhamos finalmente alguém para estudar este tipo de desvio. De um modo idêntico ao que se passou com Beaumont quando estudava a digestão no estômago de Saint Martin.
»Em resumo, não avançamos praticamente nada desde o dia da sua admissão. Chegou a ter conversas de interesse com Lecter?
— Não, só o vi no dia em que... Vi-o principalmente no tribunal. O Dr. Bloorn mostrou-me os artigos dele que foram publicados — disse Graham.
— Está muito ligado ao senhor, pensa muito em si.
— Já teve sessões com ele?
— Sim. Doze. É impenetrável. Encara os testes de modo sobranceiro, seja qual for o seu tipo ou finalidade. Edwards, Fabre e o próprio Dr. Bloorn em pessoa vieram conversar com ele. Fiquei com os seus apontamentos. Para eles, Lecter também constitui um enigma. É evidente que se torna impossível adivinhar o que ele esconde ou saber se compreende mais do que aquilo que quer dar a entender. Desde que entrou aqui, já escreveu alguns artigos brilhantes para o Boletim Americano de Psiquiatria e para os Arquivos Gerais, mas trata sempre de problemas que não se encontram relacionados a ele. Na minha opinião, tem medo de ser «resolvido», sabendo que a partir daí mais ninguém se interessaria por ele e que seria votado ao esquecimento até ao fim dos seus dias.
Chilton calou-se. Era seu hábito servir-se da sua visão periférica para observar os seus pacientes durante as entrevistas. E julgava poder fazer o mesmo com Graham.
— Aqui todos pensam que a única pessoa que deu provas de uma certa compreensão do Dr. Hannibal Lecter foi o senhor. Deseja fazer algum comentário a este respeito?
— Não.
— Parte do pessoal ficou com alguma curiosidade em saber se, quando o senhor viu as vítimas do Dr. Lecter, o «estilo» dos assassinatos, se assim podemos dizer, foi capaz de reconstituir as suas fantasias, e se isso o ajudou a identificá-lo.
Graham não respondeu.
— Dispomos de informações muito reduzidas a este respeito. Existe um artigo no Boletim de Psicologia Patológica e acho que é tudo. Acha que poderia discutir este assunto com o pessoal? Eu sei que desta vez não é possível, fui proibido formalmente pelo Dr. Bloorn. Devemos deixá-los a sós. Mas talvez numa próxima vez.
O Dr. Chilton conhecia bem o que era a hospitalidade e diante dele encontrava-se um exemplo típico.
Graham levantou-se.
— Obrigado, doutor. Agora gostaria de ver Lecter. Imediatamente.
A porta de aço da zona de alta segurança fechou-se atrás de Graham. Ouviu o barulho dos ferrolhos serem corridos.
Graham sabia que Lecter passava a maior parte da manhã dormindo. Lançou uma vista de olhos ao corredor. Do lugar onde se encontrava não conseguia ver a cela de Lecter, podendo, no entanto, ver que a luz se encontrava no mínimo.
Graham queria ver Lecter dormindo. Precisava de tempo para fortalecer a sua vontade. Se ele sentisse a loucura de Lecter invadir-lhe a mente precisava de se lhe opor rapidamente, como se se tratasse de preparar uma fuga.
Para cobrir o ruído dos seus passos acompanhou um empregado que empurrava um carro cheio de roupa suja. Era muito difícil apanhar o Dr. Lecter de surpresa.
Graham parou no meio do corredor. A frente da cela era em barras de aço. Mais atrás, e fora do alcance da mão, uma rede de nylon bastante rígida encontrava-se esticada do solo ao teto e de uma parede à outra. Graham distinguiu uma mesa e uma cadeira aparafusadas ao solo. A mesa encontrava-se cheia de livros e de correspondência. Aproximou-se das barras onde apoiou a mão para retirá-la logo em seguida.
O Dr. Hannibal Lecter estava deitado na cama, a cabeça apoiada numa almofada que se encontrava encostada à parede. Sobre o peito encontrava-se aberto o Grande Dicionário de Cozinha, de Alexandre Dumas.
Graham encontrava-se junto das barras não havia mais de cinco segundos quando Lecter abriu os olhos e disse:
— Continua com esse horrível after shave que usou no tribunal.
— Recebo-o todos os anos no Natal.
A luz desenhava minúsculos pontos vermelhos nos olhos castanhos do Dr. Lecter. Graham sentiu que os cabelos da nuca se eriçavam.
— Sim, no Natal — disse Lecter. — Recebeu o meu cartão?
— Recebi, muito obrigado.
O cartão de boas-festas do Dr. Lecter fora enviado a Graham pelo laboratório central do FBI em Washington. Queimara-o no jardim, lavando as mãos em seguida, antes de tocar em Molly.
Lecter levantou-se, dirigindo-se para a mesa. Um homem de baixa estatura e muito asseado.
— Então, Will, sente-se. Deve haver cadeiras dobráveis num desses armários. Pelo menos, acho que sim.
— O empregado foi me buscar uma.
Lecter permaneceu de pé enquanto Graham não se sentou.
— A propósito, como está o agente Stewart? — perguntou ele.
— Está bem.
O agente Stewart demitira-se depois de ter visto o subsolo do Dr. Lecter. Atualmente dirigia um motel, mas Graham não fez qualquer referência a esse assunto. Com certeza Stewart não estaria interessado em receber uma carta de Lecter.
— É uma pena que os problemas afetivos o tenham perturbado a tal ponto. Podia ter chegado muito longe. Você, Will, tem algum problema?
— Não.
— Era de esperar.
Graham. sentia que Lecter procurava adivinhar os pensamentos mais íntimos e sentia-se de certo modo como uma mosca apanhada numa armadilha.
— Sinto-me satisfeito que tenha vindo. Quanto tempo já se passou? Três anos? Os meus visitantes são todos pequenos psiquiatras ou doutores em Psicologia que ensinam em universidades de província. Escribas que redigem artigo atrás de artigo para preservar a sua reputação.
— O Dr. Bloorn mostrou-me o seu trabalho sobre habituação cirúrgica, o que foi publicado no Boletim de Psiquiatria Clínica.
— E depois?
— Achei-o muito interessante, mesmo sendo um profano.
— Um profano... um profano... eis um termo bastante interessante — disse Lecter. — Todos esses grandes professores, todos esses técnicos contratados pelo governo... e acha que é profano. No entanto foi o senhor que me prendeu, não foi, Will? Sabe como conseguiu?
— Tenho certeza que leu o relatório. Está tudo lá.
— Não, isso não está, Will, sabe como procedeu?
— Está no relatório. E, aliás, que importância isso tem?
— Para mim, nenhuma, Will.
— Dr. Lecter, gostaria que me ajudasse.
— Era isso que eu pensava.
— Trata-se de Birmingham e Atlanta.
— Sim.
— Está a par dos acontecimentos, tenho certeza.
— Li os jornais. Não pude recortar os artigos porque não me deixam ter tesoura. Sabe, às vezes ameaçam de me tirar os livros. Não queria de modo nenhum que pensassem que me interesso por um assunto tão mórbido. — Começou a rir. Os dentes do Dr. Lecter eram pequenos e brilhantes. — Quer saber como é que ele faz a sua escolha, é isso?
— Lembrei-me de que poderia ter uma opinião a este respeito que quisesse me transmitir.
— E por que é que eu faria uma coisa dessas?
Graham previra esta pergunta. Não podia dizer de modo nenhum que a razão seria para pôr fim a uma série de assassinatos, era coisa que não seria aceita por Lecter, pelo menos no momento.
— Há certas coisas que lhe fazem falta — respondeu Graham. — Material de investigação, filmes. Podia falar com o responsável.
— Chilton? Deve ter estado com ele antes de ter vindo aqui. Não acha que ele é macabro com aquele modo de nos triturar as meninges, como um aluno do colégio que tenta desapertar o seu primeiro soutien? Aposto como tentou a história da visão periférica com você. E aposto também que você percebeu isso. É capaz de não acreditar, mas tentou me submeter ao teste de percepção temática. Permanecia diante de mim, os lábios arreganhados, aguardando que eu tirasse o cartão MF 13. Ah, desculpe, esqueço-me sempre de que não faz parte dos eleitos. Trata-se de um cartão que representa uma mulher deitada e um homem de pé, em primeiro plano. Supostamente deveria evitar qualquer interpretação sexual. Escangalhei-me de rir. Inchado de orgulho, contou a quem quisesse ouvir que eu escapava à prisão graças a minha síndrome de Ganser. Mas estou aborrecendo-o com as minhas histórias.
— Poderia ter acesso aos documentos filmados da AAM.
— Não acredito que conseguisse o que me interessa.
— Ponha-me à prova.
— E, além disso, no momento tenho livros que cheguem.
— Podia ter acesso ao dossiê deste caso. Isso não lhe interessa?
— O que disse?
— Achei que pudesse estar interessado em verificar se é mais hábil do que aquele que estou procurando.
— Da sua afirmação sou levado a concluir que se considera mais hábil do que eu, uma vez que me prendeu.
— Não, sei que não sou mais hábil do que o senhor.
— Nesse caso, Will, como é que fez para me prender?
— Estava em desvantagem.
— Como?
— Estava sob o domínio da paixão. E além disso é um doente mental.
— E você está muito moreno, Will.
Graham não respondeu.
— As suas mãos estão todas estragadas, já não se parecem com as mãos de um policial. A sua loção pós barba é o tipo de presente que seria escolhido por uma criança. É aquela que tem um barco no rótulo, não é? — Dr. Lecter raramente erguia a cabeça. Quando fazia uma pergunta, colocava a cabeça de lado, como se pretendesse que partilhassem a sua própria curiosidade. Houve um novo instante de silêncio, após o que acrescentou: — Não acredite que é capaz de conseguir qualquer coisa fazendo apelo à minha vaidade intelectual.
— Não tenho qualquer intenção de tentar enganá-lo. Ou aceita ou recusa, é tudo. E, além disso, o Dr. Bloorn já está trabalhando no caso, e como é o maior ...
— Tem o dossiê com você?
— Tenho.
— Com fotografias?
— Sim.
— Me dê, para que eu possa estudar.
— Não.
— Will, você sonha muito?
— Adeus, Dr. Lecter.
— Não ameaçou de me tirar os livros.
Graham afastou-se.
— Me dê o dossiê e eu lhe digo o que penso sobre o caso.
Graham introduziu na abertura do tabuleiro a versão abreviada do dossiê. Lecter puxou-o para ele.
— O dossiê começa com um resumo. Pode lê-lo de imediato — disse Graham.
— Gostaria de ler sozinho, se não se importa. Me dê uma hora.
Graham aguardou numa sala triste, sentado num banco de plástico. Os enfermeiros trouxeram-lhe café. Não lhes dirigiu a palavra. Fixou os pequenos objetos que se encontravam na sala, feliz por verificar que não lhe dançavam diante dos olhos. Teve que ir ao banheiro duas vezes. Sentia o espírito enevoado.
O ajudante de carcereiro conduziu-o de novo à zona de alta segurança.
Lecter estava sentado à mesa, o olhar perdido na distância. Graham sabia que ele passara a hora inteira olhando para as fotografias.
— É um rapaz muito tímido, Will. Gostaria de encontrá-lo. Já considerou a possibilidade de que ele se encontre desfigurado ou de que pense que é desfigurado?
— Os espelhos.
— Exato. Repare que ele quebrou todos os espelhos da casa, mas a atitude teve uma segunda intenção. Quando enterra os fragmentos de espelho, não são os ferimentos que lhe interessam. Estão colocados de tal modo que pode se mirar neles. Pode se ver nos olhos da Sra. Jacobi e da... como é que se chama a outra?
— Sra. Leeds.
— É isso.
— É interessante — disse Graham.
— Não, não é «interessante». Você já tinha pensado nisso antes de mim.
— Confesso que considerei essa possibilidade.
— Você só veio aqui para me ver, para reencontrar o velho odor familiar, não é? Devia cheirar-se a si mesmo.
— Preciso da sua opinião.
— Ainda não tenho.
— Quando tiver gostaria muito de conhecê-la.
— Posso ficar com o dossiê?
— Ainda não decidi a esse respeito — disse Graham.
— Por que é que não foi feita nenhuma descrição do jardim? Existe de fato uma vista de frente da casa, a planta das dependências onde os crimes foram cometidos, mas não existe praticamente nada sobre o jardim. Qual é o aspecto do pátio nos dois casos?
— São pátios grandes com vedações e alguns arbustos. Por quê?
— Bom, meu caro Will, se é verdade que este peregrino mantém relações muito especiais com a lua, pode muito bem acontecer que goste de sair até o pátio para contemplá-la, antes de se arrumar, está entendendo? Já viu o sangue à luz do luar, Will? Tem um tom quase negro. Não deixa no entanto de conservar o seu brilho. Quando se está nu é preferível ter tranqüilidade suficiente para conseguir fazer este tipo de coisas ao ar livre. Digamos que é conveniente demonstrar consideração para com os vizinhos.
— Então está convencido de que o jardim poderia ser um fator preponderante de escolha quando ele procura as suas vítimas?
— Oh, pode ter certeza que sim. E a lista ainda não se encontra encerrada. Deixe-me ficar com o dossiê, Will. Vou estudá-lo. Quando tiver mais informações, gostaria que me deixasse a par. Pode telefonar. Às vezes, quando o meu advogado me telefona, me trazem um telefone. Antes ligavam a chamada ao sistema de intercomunicação. Todo mundo podia ouvir o que dizíamos nos alto-falantes. Quer me dar o seu número de telefone particular?
— Não.
— Will, sabe por que conseguiu me prender?
— Adeus, Dr. Lecter. Pode transmitir-me qualquer mensagem para o número de telefone indicado no dossiê. — Graham afastou-se.
— Sabe por que me apanhou?
Graham saíra do campo de visão de Lecter e dirigia-se a grandes passadas para a porta de aço.
— Apanhou-me porque você e eu somos semelhantes.
Foram as últimas palavras que Graham ouviu, quando a porta se fechou atrás dele.
Sentia-se entorpecido e ao mesmo tempo receava deixar este estado de entorpecimento. Caminhava de cabeça baixa e não falava com ninguém. O sangue latejava-lhe nas têmporas com um ruído que recordava um bater de asas. A distância que o separava da rua pareceu-lhe muito curta. Era um único edifício e só cinco portas entre Lecter e o mundo exterior. Sentia uma impressão absurda de que Lecter saíra com ele. Parou diante da porta do Hospital e olhou à sua volta para se certificar de que de fato se encontrava só.
Instalado numa viatura estacionada do outro lado da rua, a teleobjetiva apoiada na parte de cima do vidro, Freddy Lounds tirou uma fotografia excelente, apanhando Graham de perfil no enquadramento da porta e a inscrição que se encontrava gravada na pedra por cima dela: «Hospital Psiquiátrico Chesapeake para Criminosos Inimputáveis».
Mais tarde o National Tattler reduziu o enquadramento da fotografia de modo a que se visse apenas o rosto de Graham e as duas últimas palavras gravadas na pedra: «Criminosos Inimputáveis».
Depois da partida de Graham o Dr. Hannibal Lecter ficou durante várias horas na penumbra, deitado na cama.
Por momentos interessou-se pelos tecidos: a trama da fronha da almofada contra as mãos que mantinha cruzadas atrás da nuca, o tecido mais fino muito perto do rosto.
Depois foram os odores e deixou vaguear a imaginação.
Alguns eram reais, outros não. Tinham colocado cloro nos sanitários; esperma. Serviam chili na cantina, uniformes enrijecidos pelo suor. Graham não quisera dar-lhe o seu número de telefone particular; o perfume, um pouco ácido, do chá acabado de colher.
Lecter sentou-se na cama. Afinal de contas podia ter se mostrado amável. Os seus pensamentos tinham o odor quente e de cobre de um despertador elétrico.
Pestanejou por várias vezes e em seguida ergueu as pálpebras. Subiu a intensidade da luz e escreveu um recado a Chilton, em que lhe pedia autorização para ligar ao seu advogado.
A lei permitia a Lecter falar a sós com o advogado e ele nunca abusara desta regalia. Chilton nunca o autorizaria a dirigir-se ao telefone; foi portanto o telefone que veio até ele.
Dois guardas trouxeram o aparelho e desenrolaram um longo cordão que se encontrava ligado à tomada do seu gabinete. Um dos guardas trazia as chaves e o outro, um aerosol de gás paralisante.
— Dr. Lecter, vá para o fundo da sua cela. De cara para a parede. Se virar ou se aproximar das barras antes de ter ouvido a porta se fechar, atiro o aerosol na cara. Compreendido?
— Perfeitamente — disse Lecter. — Obrigado por terem trazido o telefone.
Teve que passar a mão através da rede de nylon para digitar o número. O serviço de informações de Chicago deu-lhe os números do Departamento de Psiquiatria, na Universidade de Chicago, e do gabinete do Dr. Alan Bloorn. Ligou à central do Departamento de Psiquiatria.
— Queria falar com o Dr. Alan Bloorn.
— Acho que ele não vem hoje, mas vou ligar ao seu serviço.
— Só um momento. Devia me lembrar do nome da sua secretária mas confesso que não consigo recordar.
— Linda King. Só um instante por favor.
— Obrigado.
O telefone tocou oito vezes até que alguém atendesse.
— Gabinete de Linda King.
— Bom dia, Linda.
— Linda não trabalha aos sábados.
O Dr. Lecter previra que as coisas se passariam desta maneira.
— Talvez consiga me dar uma informação. Aqui fala Bob Greer, das edições Blaine & Edwards. O Dr. Bloorn me pediu para enviar um exemplar do livro de Overholser, O Psiquiatra à Face da Lei à Will Graham. Linda deveria me indicar o endereço e o seu número de telefone mas ainda não o fez.
— Escute, sou interina, a Linda estará aqui na segun...
— Tenho que apanhar o Federal Express dentro de cinco minutos. Não queria ter que telefonar ao Dr. Bloorn porque foi ele que disse a Linda para enviá-lo e gostaria de evitar que ela arrumasse problemas por tão pouca coisa. Deve ter tomado nota na sua agenda. Se me der essa informação prometo-lhe um buque de flores.
— Ela não tem agenda.
— Bem, então deve estar num arquivo.
— Sim.
— Seja uma boa menina, me dê esta informação e prometo que não a faço perder mais tempo.
— Qual foi o nome que disse?
— Graham, Will Graham.
— Está aqui. O seu número particular é 305 5 7002.
— Tenho que enviar o livro para sua residência.
— Não tenho o endereço particular.
— Então qual é que tem?
— Federal Bureau of Investigation, Décima Rua e Avenida da Pensilvânia, Washington D. C. Espere, tenho aqui também a Caixa Postal 3680, Marathon, Florida.
— Você é um anjo. Obrigado.
— Não tem de quê.
Lecter sentia-se melhor. Talvez desse um telefonema a Graham ou, se ele não se mostrasse amável, pudesse fazer que um armazém de artigos médicos lhe enviasse uma bolsa para colostomia, como recordação dos bons velhos tempos.
A sudoeste dali e a mais de mil e cem quilômetros, na cafeteria da Gateway Filra, em Saint Louis, Francis Dolarhyde esperava pelo seu hamburger. As entradas dispostas no balcão geladeira estavam recobertas de molho coalhado.
Mantinha-se perto da caixa registradora e bebia café num copo de plástico.
Uma jovem ruiva, envergando uma bata de laboratório, entrou na cafeteria e aproximou-se do distribuidor de doces. Por diversas vezes olhou para as costas de Dolarhyde e fez um trejeito com a boca. Finalmente dirigiu-se a ele e disse:
— Sr. Dolarhyde?
Dolarhyde virou-se. Mesmo fora da câmara escura usava os seus óculos de proteção de lentes vermelhas. Ela se esforçou para não tirar os olhos da ponte da armação dos óculos. — Seria possível sentarmos por uns momentos? Preciso falar com o senhor.
— O que é que tem para me dizer, Eileen?
— Que me sinto verdadeiramente desolada. Bob estava um pouco tocado e se fazia de palhaço. Não o fazia por mal. Vamos nos sentar, eu lhe peço. Só um instante. Não quer?
— Mmm, hum — Dolarhyde nunca pronunciava «sim», sentia uma dificuldade enorme com as consoantes sibilantes.
Sentaram-se. A jovem torcia nervosamente um guardanapo de papel.
— Todo mundo estava se divertindo muito naquela noite e sentíamo-nos contentes por termos o senhor conosco — disse ela. — Um pouco surpreendidos, mas na realidade contentes. Sabe como é o Bob, nunca pára de fazer imitações, devia trabalhar na rádio. Imitou dois ou três sotaques, contou várias histórias, bem sabe que ele é mesmo capaz de falar como um negro. Quando ele imitou aquela outra voz, não era para ridicularizá-lo. Estava embriagado demais para saber quem estava lá.
— Todos eles riram muito e depois não riram mais.
— Foi então que Bob compreendeu o que estava fazendo.
— No entanto não deixou de continuar.
— Sim, eu sei. — Conseguiu erguer os olhos do guardanapo para a armação dos óculos sem se distrair. — Tive uma discussão com ele por causa disso. Ele não queria ofendê-lo. Tentava simplesmente fazer as pessoas rirem. Notou certamente como ele ficou corado.
— Convidou-me para... fazer um dueto com ele.
— Agarrou-o pelos ombros, queria que o senhor também risse. Acredite em mim, Sr. Dolarhyde.
— Tudo aquilo me divertiu muito, Eileen.
— Mas agora Bob está muito envergonhado.
— Ouça, não quero que ele fique preocupado por tão pouco. Não tem qualquer razão para isso. Diga-lhe isso da minha parte. Nunca mais falaremos disso no trabalho. Meu Deus, se eu tivesse tanto talento como o Bob faria... faria imitações também. Vamos nos encontrar dentro em breve e é preciso que ele compreenda que não lhe quero mal por causa disso.
— Ainda bem. Sabe, ele gosta de brincar, mas é um rapaz muito sensível.
— Não tenho qualquer dúvida. E igualmente temo.
A voz de Dolarhyde era abafada pela mão. Quando se encontrava sentado apoiava sempre o nó do dedo indicador contra o lábio superior.
— Perdão?
— Acho que tem uma boa influência sobre ele, Eileen.
— Com toda a franqueza também acho que sim. Nunca bebe a não ser aos fins-de-semana. Descontrai-se um pouco e depois a mulher telefona de casa. Faz caretas enquanto eu falo, mas sei que depois do telefonema fica preocupado. Uma mulher sente este tipo de coisas. — Pousou rapidamente os dedos sobre o pulso de Dolarhyde; apesar dos óculos, viu que o seu olhar se modificava. — Não se preocupe, Sr. Dolarhyde. Sinto-me feliz por termos tido esta conversa.
— Eu também, Eileen.
Dolarhyde ficou olhando para ela enquanto se afastava. Tinha uma marca na parte de trás do joelho. Disse então para si mesmo que Eileen não gostava dele. Aliás, não se enganava. Ninguém gostava dele.
A grande câmara escura estava fresca e cheirava a produtos químicos. Francis Dolarhyde trabalhava sob luz vermelha e verificava o revelador que se encontrava na cuba. Centenas de metros de filmes particulares vindos de todo o país passavam continuamente naquela cuba.
A temperatura e a frescura dos produtos químicos eram de uma importância vital.
Ele era o responsável por isso e por todas as outras operações antes dos filmes passarem no secador. Várias vezes ao dia tirava filmes da cuba e verificava-os, imagem por imagem. Na câmara escura não havia qualquer ruído. Dolarhyde desencorajava qualquer tipo de conversa entre os seus assistentes e se comunicava com eles sobretudo por gestos.
Depois da equipe ter terminado o seu trabalho, ficou só na câmara escura para revelar, secar e montar os seus próprios filmes.
Dolarhyde voltava para casa por volta das dez horas da noite. Vivia só, numa grande casa, uma herança dos avós, que se situava no extremo de um caminho coberto por saibro e que atravessava um enorme pomar a norte de Saint Charles, na outra margem do rio Missouri, bem em frente de Saint Louis. O proprietário do pomar encontrava-se ausente e ninguém cuidava dele. Árvores mortas e galhos quebrados misturavam-se com as árvores que ainda se encontravam verdejantes. Julho estava chegando ao fim e o cheiro das maçãs apodrecendo espalhava-se para lá do pomar. Durante o dia as abelhas tomavam conta do lugar numa azáfama constante. O vizinho mais próximo morava a cerca de um quilômetro.
Logo que entrava, Dolarhyde fazia uma inspeção na casa; a alguns anos fora vítima de uma tentativa de roubo. Acendeu a luz em cada uma das dependências e procurou em todos os cantos. Um visitante não seria capaz de acreditar que ele vivia só: as roupas dos seus avós continuavam penduradas nos armários, as escovas da avó, onde ainda havia alguns cabelos, arrumadas no toucador, a dentadura da avó encontrava-se num copo, na mesinha de cabeceira. A avó morrera a dez anos.
O encarregado das pompas fúnebres dissera-lhe: «Sr. Dolarhyde, pode fazer o favor de trazer a dentadura da sua avó?» e ele respondeu: «Cale a boca e faça o que tem a fazer.»
Tendo verificado que se encontrava só na casa, Dolarhyde subiu ao primeiro andar, tomou uma ducha prolongada e lavou o cabelo.
Vestiu um quimono feito de um tecido sintético imitando seda e em seguida deitou-se na cama estreita do quarto que ocupava desde a infância. O secador de cabelo da sua avó tinha um tubo e uma touca de plástico. Colocou a touca na cabeça e passou o tempo folheando uma revista de moda. A dureza e a brutalidade de certas fotografias possuíam qualquer coisa de notável.
Começava a se sentir excitado. Girou a lâmpada de leitura para iluminar uma gravura fixada na parede, junto da cama. Era uma reprodução de uma aquarela de William Blake, O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol.
Esta pintura transtornara-o completamente desde o momento em que a tinha visto. Antes, nunca vira nada que se encontrasse tão próximo do seu pensamento gráfico. Tinha a sensação de que Blake espiara por uma de suas orelhas e vira o Dragão Vermelho. Durante semanas, Dolarhyde receara que seus pensamentos pudessem sair pelas orelhas para se materializar na câmara escura e queimar os filmes. Colocara tampões de algodão nas orelhas. Mais tarde, temendo que o algodão fosse inflamável, tentara a lã de aço. Fizera-lhe sangrar as orelhas. Por último, cortara pequenos pedaços de tela de amianto da cobertura de uma tábua de passar ferro e fizera pequenas bolas que obstruíam perfeitamente os seus canais auditivos.
Durante muito tempo a única coisa que vira fora o Dragão Vermelho. Presentemente tinha outra coisa. Sentiu o início de uma ereção.
Por vontade dele as coisas teriam acontecido mais lentamente, mas agora, já não podia esperar.
Dolarhyde correu as pesadas cortinas das janelas da sala de estar do térreo. Montou a tela e o projetor. O seu avô não se importara com as objeções da avó e instalara uma cadeira reclinável na sala de estar (ela colocara um pano bordado no apoio da cabeça). Dolarhyde sentia-se bem. Colocou uma toalha no braço da cadeira.
Apagou a lâmpada. Deitado naquela sala escura, poderia imaginar-se em qualquer lugar. Instalara um pequeno aparelho rotativo no teto que projetava manchas multicoloridas nas paredes, no chão, na sua própria pele. Poderia ter se imaginado no assento de uma nave espacial, uma bola de vidro flutuando entre as estrelas. Quando fechava os olhos, parecia que sentia as manchas luminosas deslizarem sobre o corpo e, quando os reabria, podiam ser as luzes de uma cidade que brilhavam acima dele, abaixo dele. Não havia nem alto nem baixo. À medida que aquecia, o aparelho aumentava de velocidade e os pontos luminosos abatiam-se sobre ele, despejavam as suas torrentes angulares sobre a mobília, escorriam pelas paredes numa chuva de meteoros. Poderia ser um cometa mergulhando na direção da nebulosa de Câncer.
Havia um único lugar que se encontrava ao abrigo da luz.
Colocara diante do aparelho um pedaço de cartão que projetava uma sombra sobre a tela de cinema.
Talvez um dia viesse a fumar erva para aumentar os efeitos; mas hoje não sentia necessidade disso.
Acionou o interruptor para ligar o projetor. Um retângulo branco surgiu na tela, seguido de riscos acinzentados, estrias, até que se viu o pêlo-de-arame erguer as orelhas e dirigir-se para a porta da cozinha, agitando freneticamente a cauda. Um corte e em seguida o pêlo-de-arame mais uma vez, correndo, ao mesmo tempo que tentava pegar a cauda com os dentes.
A Sra. Leeds entra na cozinha com os sacos de supermercado. Começa a rir e leva a mão ao cabelo. As crianças entram por sua vez.
Novo corte seguido de um plano bastante mal iluminado. É o quarto de Dolarhyde no primeiro andar. Está nu diante d’O Grande Dragão Vermelho e a Mulher Vestida de Sol. Usa os «óculos de combate» fixos no rosto por uma tira elástica, semelhantes aos que os jogadores de hóquei no gelo usam. Tem uma ereção que mantém com a mão.
A imagem torna-se nublada quando se aproxima da câmera com movimentos estilizados, a mão estendida para fazer o ponto. O rosto ocupa toda tela. A imagem estremece para em seguida se estabilizar sobre um grande plano da boca; o lábio superior, disforme, está arreganhado, entre os dentes vê-se a ponta da língua. No alto da imagem pode ver um olho arregalado. A boca enche a tela, os lábios se afastam para deixar ver os dentes e por último é a escuridão total quando a boca se fecha sobre a objetiva.
A dificuldade da seqüência seguinte é evidente.
Uma imagem nublada, violentamente iluminada, transforma-se numa cama: Charles Leeds debate-se, a Sra. Leeds ergue-se, protege os olhos com a mão, volta-se para Leeds, coloca as mãos sobre o seu corpo, rola para a borda da cama e fica com as pernas presas nos lençóis, tenta se levantar. A câmara aponta na direção do teto, as molduras varrem a tela e por fim a imagem se estabiliza: a Sra. Leeds está deitada na cama de novo, vendo uma mancha escura que alastra pela roupa. Leeds agarra o pescoço com um olhar tresloucado. Durante alguns segundos a imagem fica negra para logo em seguida se verificar uma mudança brutal.
A câmera está imóvel, instalada num tripé. Já estão todos mortos. Cuidadosamente instalados. Duas crianças sentadas, encostadas à parede, diante da cama, a terceira de frente para a câmera. O Sr. e a Sra. Leeds encontram-se deitados na cama com os lençóis puxados. O Sr. Leeds está encostado à cabeceira, a cabeça levemente inclinada. O lençol dissimula a corda que lhe amarra o peito.
Dolarhyde aparece na esquerda da imagem, executando movimentos estilizados de dançarino de Bali. Coberto de sangue, nu, com exceção dos óculos, desliza e dá saltos entre os mortos. Aproxima-se da cama, do lado da Sra. Leeds, agarra nos lençóis e puxa-os com um gesto largo, antes de tomar uma pose como se estivesse segurando uma capa de toureiro.
Sentado na sala de estar da casa dos seus avós, Dolarhyde estava coberto de suor. Sua língua espessa saía constantemente, a cicatriz do lábio superior encontrava-se brilhante de saliva e gemia enquanto se excitava.
Mesmo no momento do orgasmo sentia-se triste por verificar que nas seqüências seguintes perdia toda a graça e elegância, onde rastejava como um porco, as nádegas voltadas para a câmera. Já não se tratava de uma questão de pose plástica, de sentido de ritmo, de subida dramática; a única coisa que restava era um frenesi bestial.
Apesar de tudo, era absolutamente fantástico. Ver este filme era fantástico. Embora menos do que os crimes.
Dolarhyde se deu conta de que este filme tinha um defeito grave: não mostrava exatamente a morte dos Leeds e o final do seu número deixava muito a desejar. Era como se tivesse mandado os seus próprios critérios às favas. O Dragão Vermelho não se comportaria dessa maneira.
Não importa. Ainda podia rodar muitos filmes e, com a experiência, esperava poder vir a adquirir uma certa desenvoltura estética, mesmo nos instantes mais íntimos.
Era preciso que se ultrapassasse. Era a obra da sua vida, uma obra magnífica. Permaneceria para sempre.
Precisava portanto de se pôr ao trabalho, escolher os seus próximos parceiros. Já fizera cópias de vários filmes rodados no 4 de Julho, dia da festa nacional. O fim do Verão trazia sempre um acréscimo de trabalho quando chegavam ao laboratório os filmes das férias — as férias de Natal constituíam tradicionalmente o outro período de ponta do ano.
Todos os dias havia famílias que enviavam a sua candidatura ...
O avião de Washington para Birmingham ia meio-vazio. Graham instalou-se à janela. Ao lado dele o lugar estava vago.
Recusou o sanduíche de mau aspecto que a comissária lhe ofereceu e pousou sobre a mesa o dossiê Jacobi. Na primeira página anotara os pontos comuns entre os Jacobi e os Leeds.
Os dois casais aproximavam-se dos quarenta anos e tinham filhos — dois meninos e uma menina. Edward Jacobi tinha um filho de um casamento anterior que se encontrava na universidade no dia em que a família foi massacrada.
Em ambos os casos, os chefes de família possuíam diplomas universitários, e as famílias habitavam casas de dois andares numa zona agradável dos arredores. A Sra. Jacobi e a Sra. Leeds eram mulheres muito atraentes. As famílias tinham cartões de crédito das mesmas instituições e eram assinantes de um certo número de revistas populares.
Quanto a semelhanças era tudo o que havia. Charles Leeds era consultor fiscal. Edward Jacobi engenheiro metalúrgico. A família de Atlanta era presbiteriana; os Jacobi eram católicos. Os Leeds sempre haviam residido em Atlanta; os Jacobi haviam deixado Detroit três meses antes para virem morar em Birmingham.
A palavra «acaso» produzia na mente de Graham um ruído semelhante ao de uma torneira que pinga. «Vítimas escolhidas ao acaso», «sem motivo aparente», eram estas as expressões que os jornais utilizavam e que os inspetores lançavam aos quatro ventos para tentar dissimular a sua cólera e a sua frustração.
«Acaso» não era o termo que convinha. Graham sabia que os autores de assassinatos coletivos não escolhiam as suas vítimas ao acaso.
O homem que matara os Leeds e os Jacobi encontrara neles alguma coisa que o atraíra e que o levara a agir daquela maneira. Talvez os conhecesse muito bem — era o que Graham esperava —, mas também era possível que nunca os tivesse visto. Fosse como fosse, Graham tinha certeza de que o assassino os vira pelo menos uma vez antes de matá-los. Escolhera-os porque havia neles alguma coisa que o despertara, e as mulheres encontravam-se no cerne do enigma. No entanto, os crimes apresentavam certas diferenças.
Edward Jacobi fora abatido quando descia a escada de lanterna na mão, provavelmente acordado por um ruído suspeito. A Sra. Jacobi e os filhos haviam sido abatidos com uma bala na cabeça, a Sra. Leeds recebera uma bala no abdômen. Tanto num caso como no outro, a arma era uma pistola automática de nove milímetros. Nos ferimentos foram encontrados vestígios de lã de aço provenientes de um silenciador de fabricação artesanal. Os invólucros não apresentavam impressões digitais.
A faca só servira para Charles Leeds. O Dr. Princi estava convencido de que se tratava de uma lâmina muito fina e muito pontiaguda, provavelmente uma faca de entalhar.
O modo como se introduziu nas casas também fora diferente: nos Jacobi forçara a porta do pátio, nos Leeds fora utilizado um diamante.
As fotografias dos crimes de Birmingham não mostravam a quantidade de sangue encontrada na casa dos Leeds, mas as paredes estavam manchadas numa zona compreendida entre os quarenta e os sessenta centímetros acima do assoalho. Tanto num caso como no outro, o assassino tivera público. A polícia de Birmingham procurara impressões nos cadáveres, inclusive nas unhas, e não encontrara nada. Um enterro ou um mês de Verão em Birmingham era o suficiente para destruir uma impressão como aquela que fora encontrada no filho dos Leeds.
E em ambos os casos eram os mesmos cabelos louros, a mesma saliva, o mesmo esperma.
Graham apoiou as fotografias das famílias contra as costas do assento da frente e ficou olhando longamente para elas no silêncio pesado do avião.
O que teria atraído mais a atenção do assassino na casa deles? Graham fazia de tudo para se convencer que existia um ponto comum e que não tardaria a descobri-lo.
Senão teria que visitar mais casas e ver o que o Dentuço teria deixado ali em sua intenção.
Graham havia recebido instruções dos escritórios de Birmingham e telefonou à polícia logo que chegou ao aeroporto. O ar condicionado da sua viatura projetava gotículas de água nos braços e nas mãos.
Parou em primeiro lugar junto à agência imobiliária Geelian, na Avenida Deimison.
Geelian, grande e calvo, atravessou o carpete turquesa para vir cumprimentar Graham. O sorriso desvaneceu-se logo que Graham lhe mostrou a sua placa de identidade e lhe pediu a chave da casa dos Jacobi.
— Hoje vamos ter policiais de uniforme? — perguntou ele, colocando a mão na cabeça.
— Acho que não.
— Espero mesmo que não, pois vou mostrá-la esta tarde a dois clientes. É uma bela casa. Todo mundo que a vê fica encantado com ela. Na última quinta-feira tive um casal vindo de Duluth, aposentados sem qualquer tipo de problema. Já estávamos na altura em que se falava de hipotecas quando chegaram os policiais na sua viatura. O casal fez algumas perguntas e no tocante às respostas, tiveram mais do que aquilo que esperavam. Esses valentes policiais levaram o casal para dar a volta completa, explicando-lhes quem fora assassinado em cada um dos locais. Depois disso tudo, adeusinho Geelian e desculpe por termos incomodado. Quis lhes dizer que já não havia problemas, mas não quiseram me ouvir. E partiram suavemente no seu Cadillac Sedan de Ville.
— Houve algum homem sozinho que tenha pedido para visitar a casa?
— Não sei, de qualquer modo, comigo não. Somos vários cuidando deste caso. Mas acho que não. A polícia não quis nos deixar pintar a casa mais cedo. Acabamos o interior na terça-feira passada. Foram necessárias duas demãos e em alguns lugares, até três. Ainda estamos trabalhando no exterior. Vai ficar um brinco.
— Como é que a pode vender antes da homologação da sucessão?
— Não se pode assinar, mas isso não impede que possa preparar tudo. As pessoas poderiam se mudar depois de terem assinado um protocolo de acordo. Não posso permitir-me ficar com os braços cruzados. É um dos meus colegas que está em poder da documentação e os juros não param de subir.
— Quem é o executor testamentário do Sr. Jacobi?
— Byron Metcalf, da firma Metcalf e Barnes. Quanto tempo pensa ficar por aqui?
— Ainda não sei. O mais provável é até ter acabado.
— Pode deixar a chave na caixa do correio.
Ao se dirigir à casa dos Jacobi, Graham teve a desagradável impressão de seguir uma pista já fria. A casa erguia-se na extremidade da vila, num quarteirão que havia sido reconstruído. Precisou parar à beira da estrada nacional para consultar o mapa antes de entrar por uma estrada secundária asfaltada.
Já se passara mais de um mês desde o assassinato. E ele, o que estava fazendo nessa altura? Montava um par de motores diesel num casco Rybovich de dezenove metros e cinquenta, fazia sinal a Ariaga para descer a grua de mais um centímetro suplementar. Molly juntara-se a eles ao fim da tarde e tinham-se instalado sob um toldo, na cabine do barco em construção, para saborear camarões enormes que Molly trouxera e beber Dos Equis, enquanto Ariaga lhes explicava como é que se limpavam as lagostas, desenhando a cauda na serragem que se encontrava no chão. Os raios de sol, que se refletiam nas águas, brincavam no ventre das gaivotas.
O ar condicionado salpicou de água a camisa de Graham e ele despertou tomando consciência de que se encontrava em Birmingham. Já não havia camarões nem gaivotas, apenas a estrada, tendo à sua direita pequenos bosques e prados, cabras e cavalos, e à esquerda, Stonebridge, quarteirão residencial já antigo, constituído por algumas casas elegantes e outras tantas de aspecto nitidamente abastado.
Viu o painel da agência a uma centena de metros. A casa dos Jacobi era a única do lado direito da estrada. A seiva das árvores que a bordejavam tornava o saibro pegajoso, vindo bater com estrépito no interior dos pára-choques. Um carpinteiro estava empoleirado numa escada consertando uma janela. Fez um sinal com a mão na direção de Graham, quando este deu a volta na casa.
Um pátio coberto de lajes era abrigado pela sombra de um carvalho imponente. De noite, a árvore devia ocultar a luz do projetor colocado à entrada. Era por ali que o Dentuço entrara, por aquelas portas de vidro de correr. As portas tinham sido substituídas, os caixilhos de alumínio brilhavam e ainda se via a etiqueta do fabricante. Diante das portas de correr fora instalada uma porta de segurança gradeada, em ferro forjado. A porta da cave também era nova — em aço e cheia de fechos de segurança. No pátio exterior viam-se os componentes de uma caldeira.
Graham entrou. Um assoalho nu, um cheiro de sala fechada. Os seus passos ecoaram na casa vazia.
Os novos espelhos do banheiro nunca chegaram a refletir o rosto dos Jacobi, nem o do assassino. Em cada espelho via-se uma pequena mancha branca, indicando o lugar onde estava a etiqueta de preço. Uma tela dobrada fora colocada a um canto do quarto de casal. Graham sentou-se e ficou muito tempo naquela posição, olhando para o sol que entrava pelas janelas.
Não havia nada ali. Mais nada.
Seria possível que, se ele tivesse vindo logo após o assassinato dos Jacobi, os Leeds ainda estivessem vivos? perguntava ele a si mesmo. Graham testava assim o pesado fardo desta dúvida.
E continuava sentindo esse peso nos ombros quando saiu para olhar o céu.
De costas curvadas e mãos nos bolsos, Graham colocou-se à sombra de uma árvore para observar a estrada que passava diante da casa dos Jacobi.
Como é que o assassino chegara à casa dos Jacobi? De carro. Onde é que estacionara? O caminho em saibro era ruidoso demais para uma visita noturna, mas a polícia de Birmingham não estava de acordo com Graham a este respeito.
Percorreu a área até a estrada. Havia valetas cavadas de um lado e do outro do asfalto. Com o terreno bem seco devia ser possível transpor a valeta e dissimular um veículo nos arbustos do lado da estrada onde viviam os Jacobi.
Em frente da casa havia a única estrada que conduzia a Stonebridge. Um painel indicava que Stonebridge dispunha de sua própria patrulha de serviço. Um veículo estranho teria sido imediatamente referenciado, e do mesmo modo qualquer homem que chegasse a pé durante a noite. Não havia, portanto, hipóteses de ter estacionado em Stonebridge.
Graham entrou de novo na casa e surpreendentemente verificou que o telefone não estava cortado. Ligou para o serviço de meteorologia local e soube que haviam caído cerca de oito centímetros de chuva no dia anterior ao da morte dos Jacobi. Por conseguinte, as valetas deviam estar cheias e o assassino não conseguira estacionar ao lado da estrada asfaltada.
Na zona adjacente ao pátio, um cavalo acompanhou Graham ao longo da vedação caiada que seguia na direção dos fundos da propriedade. Deu um torrão de açúcar ao cavalo, deixando-o em seguida, quando a vedação fez um ângulo para seguir ao longo das dependências.
Parou quando viu o buraco cavado na terra, no local onde os filhos dos Jacobi haviam enterrado o gato. No posto de polícia de Atlanta, quando se encontrara com Springfield, ficara com a idéia de que as dependências estavam pintadas de branco. Na realidade estavam pintadas de verde-escuro.
As crianças tinham embrulhado o gato numa toalha e colocaram-no depois numa caixa de sapatos, com uma flor nas patas.
Graham encostou-se à vedação.
O enterro de um animal, um ritual solene de infância. Os pais voltaram para casa para não serem obrigados a rezar. As crianças que olham umas para as outras e que descobrem em si uma coragem insuspeitada. A menina inclina a cabeça, os outros a imitam — a enxada é maior do que eles. Depois de terem discutido brevemente para saber se o gato se encontra no céu com Deus e Jesus, as crianças param de chorar por um momento.
De pé, o sol a dardejar-lhe a nuca, Graham tem pelo menos uma certeza: tão certo como o Dentuço ter morto o gato era o fato de que também os vira enterrá-lo. Era um espetáculo que não podia permitir-se perder.
E, além disso, não fizera duas viagens: uma para matar o gato e outra para massacrar os Jacobi. Viera, matara o gato e esperara que as crianças o descobrissem.
Era impossível saber exatamente onde as crianças haviam encontrado o gato. Os policiais não conseguiram encontrar ninguém que tivesse falado com os Jacobi durante a tarde, cerca de dez horas antes do momento da sua morte.
Como é que o assassino viera e onde se escondera para esperar?
Entre a vedação e as primeiras árvores havia uma zona de arbustos de cerca de trinta metros, tendo aproximadamente a altura de um homem. Graham tirou do bolso das calças um velho mapa, que estendeu em cima da cerca. Indicava um bosque que se prolongava por cerca de quatrocentos metros na parte de trás da casa dos Jacobi. Por trás das árvores, na orla sul, uma estrada secundária seguia paralelamente à que passava diante da casa.
Graham entrou no carro, voltando à estrada nacional e tomando nota dos números que o contador marcava. Em seguida, dirigiu-se para sul ao longo da nacional até voltar na estrada secundária indicada no mapa. Rodou lentamente até que o contador lhe indicou que se encontrava na parte de trás da casa dos Jacobi, do outro lado do pequeno bosque.
O revestimento da estrada interrompia-se bruscamente à entrada de um conjunto de habitações de aspecto modesto, tão recente que nem sequer se encontrava marcado no mapa. Entrou no parque de estacionamento. A maior parte dos veículos era muito velha, assentadas em suspensões extremamente fatigadas. Dois veículos estavam assentados em cepos.
Crianças negras jogavam basquete na terra batida, em volta de um único cesto sem rede. Graham sentou-se no pára-choques para observá-los por uns momentos.
Queria tirar o casaco, mas sabia que o .44 Special e a pequena máquina fotográfica presa no cinto iam chamar a atenção. Sentia-se sempre incomodado quando as pessoas olhavam para a sua pistola.
Havia oito jogadores na equipe que usavam camisetas. Em número de onze, os jogadores da outra equipe estavam de tronco nu. A arbitragem fazia-se por aclamação.
Um dos jogadores sem camiseta fora empurrado; deixou o jogo por instantes, voltando logo a seguir para se meter na confusão, depois de ter comido um biscoito.
Os gritos e os ruídos abafados da bola puseram Graham de bom humor.
Um cesto, uma bola de basquete. Mais uma vez se sentiu espantado pelo número de apetrechos que os Leeds possuíam. O mesmo acontecia com os Jacobi, segundo o relatório da polícia de Birmingham. Canoas e equipamentos de esporte, material de campismo, máquinas fotográficas, espingardas de caça, varas de pesca. Esta abundância era um outro ponto comum a ambas as famílias.
Tendo imaginado os Leeds e os Jacobi em vida, pensou automaticamente naquilo em que eles tinham se tornado presentemente, e deixou de conseguir continuar a ver o jogo de basquete. Inspirou profundamente e dirigiu-se para a orla sombria do bosque, do outro lado da estrada.
Bastante espessos na orla, os arbustos rareavam à medida que Graham avançava no sentido da mata de pinheiros, e não teve qualquer dificuldade em caminhar sobre o leito de caruma. Não havia o menor sinal de brisa. O ar estava morno e, nas árvores, os pássaros anunciavam o seu regresso.
O terreno descia em declive suave para o leito de um ribeiro seco, perto do qual cresciam alguns ciprestes. Pegadas de ratos-trocadores e de musaranhos estavam marcadas na argila vermelha. Havia igualmente pegadas de pés humanos, algumas delas de crianças. Os contornos estavam delineados para as chuvas sucessivas.
Do outro lado do riacho seco, o terreno elevava-se novamente: o aspecto era diferente, um terreno arenoso onde cresciam fetos. Graham continuou a sua ascensão até avistar a luz por entre as árvores na orla da floresta.
Por entre os troncos conseguia ver o andar superior da casa dos Jacobi.
De novo os arbustos, quase da sua altura, entre o bosque e a vedação da propriedade dos Jacobi. Graham abriu caminho por entre os arbustos e parou junto da vedação para olhar para o pátio.
O Dentuço devia ter estacionado no parque do conjunto habitacional e atravessado o bosque, para então se deter junto aos arbustos da parte de trás da casa, atrair o gato e estrangulá-lo, antes de rastejar até à vedação com o pequeno corpo inanimado na mão. Graham imaginou a cena: o gato atirado pelo ar, caindo pesadamente no pátio, em vez de se voltar e cair sobre as patas, se estivesse vivo.
O Dentuço fizera isso durante o dia, as crianças nunca teriam conseguido encontrar o gato à noite.
E esperara para observá-los.
Teria passado o dia todo no meio dos arbustos? Perto da vedação seria fácil avistá-lo. E para ver o pátio da zona dos arbustos seria necessário que se mantivesse de pé, ao sol, de frente para as janelas da casa. Só lhe restava portanto a solução de voltar ao bosque. Graham fez o mesmo.
Os polícias de Birmingham estavam muito longe de ser estúpidos. Haviam afastado os arbustos e investigado cuidadosamente toda a zona, mas isso fora antes do gato ter sido encontrado. Procuravam indícios, rastros, objetos abandonados, tudo, menos um posto de observação.
Will penetrou alguns metros na floresta e inspecionou o terreno. Começou por subir à elevação de onde conseguia ter uma vista parcial do pátio e em seguida prosseguiu ao longo da linha das árvores.
Procurava há mais de uma hora quando um ponto luminoso ao nível do solo lhe chamou a atenção. Tratava-se do anel metálico de uma lata de suco de fruta meio-enterrada sob as folhas, ao pé de um dos raros olmos que cresciam no meio dos pinheiros.
Encontrava-se a cerca de três metros quando o avistou, mas não se aproximou imediatamente, preferindo inspecionar o terreno durante vários minutos. Agachou-se e afastou as folhas diante dele, caminhando lentamente sobre a planta dos pés para não destruir eventuais indícios. Sem se apressar, limpou a base do tronco das folhas que se amontoavam ali. Não se avistava nenhuma pegada sob a camada de folhas do Outono passado.
Descobriu perto do anel metálico o resto de uma maçã roída pelas formigas. As aves tinham comido as sementes. Estudou o terreno durante mais dez minutos. Por último, sentou-se no solo, esticou as pernas e encostou-se à árvore.
Uma nuvem de mosquitos deslocava-se numa coluna de luz.
Uma lagarta rastejava pela face inferior de uma folha.
Por cima dele, num grande ramo, havia vestígios de lama avermelhada deixados por um calçado.
Graham pendurou o casaco num ramo e começou a trepar pelo outro lado do tronco, dando uma olhada nos ramos com vestígios de lama de vez em quando. Quando se encontrava a uma dezena de metros do solo, inclinou-se de lado e avistou a casa dos Jacobi a cerca de cento e setenta metros de distância. Vista daquele ângulo parecia ligeiramente diferente e a cor do telhado era predominante. Conseguia ver o pátio, bem como o terreno situado do outro lado dos anexos. Com um bom binóculo seria possível distinguir o menor detalhe do rosto dos ocupantes da casa.
Viaturas passavam ao longe. Um cão ladrou. Uma cigarra começou a cantar e cobriu rapidamente todos os outros ruídos.
Por cima dele um ramo de diâmetro considerável formava um ângulo reto com a casa dos Jacobi. Trepou ao longo do tronco e inclinou-se para ver melhor o ramo.
Muito perto do rosto, uma lata de suco de fruta encontrava-se entalada entre o ramo e a casca.
— Formidável — disse ele em voz baixa. — Sobretudo não se mexa daqui...
Qualquer criança poderia ter deixado a lata ali.
Continuou a sua ascensão, embora os ramos fossem cada vez mais finos, e voltou a olhar para o ramo grosso, agora debaixo de si.
Fora arrancado um fragmento da casca: numa superfície do tamanho de uma carta de baralho via-se o tegumento da árvore, mais verde. O retângulo verde estava gravado até à madeira branca. Graham descobriu um seguinte desenho.
Fora cuidadosamente executado com o auxílio de uma faca pontiaguda, que nada tinha a ver com o trabalho de uma criança.
Graham fotografou a marca depois de se certificar de que regulara convenientemente a exposição.
Daquele ramo tinha-se uma vista excelente, ainda melhor depois que um pequeno ramo pendente do ramo superior fora cortado para permitir uma abertura. As fibras estavam esmagadas e a extremidade levemente achatada.
Graham procurou o raminho. Se estivesse caído no solo já o teria encontrado. Não, estava lá, com as suas folhas amareladas, entalado na folhagem mais verde do ramo inferior.
O laboratório teria necessidade dos dois lados da incisão para medir a inclinação dos bordos cortantes. Isto queria dizer que era preciso voltar com uma serra. Tirou várias fotografias do toco sem deixar de resmungar.
Sei que trepou aqui e que esperou depois de ter matado e atirado o gato no pátio. Estou convencido de que vigiou as crianças e que não passou o tempo talhando um ramo e sonhando. Quando a noite caiu, viu-os passar diante das janelas iluminadas, viu os estores que desciam e as luzes que se apagavam uma após outra. Desceu em seguida e foi ao encontro deles. Foi assim, não foi? Não deve ter sido muito difícil ter descido deste grande ramo tendo uma lanterna e o luar.
Para Graham não foi assim tão fácil.
Enfiou um raminho na abertura da lata de suco de fruta e ergueu-a lentamente para libertá-la antes de descer ao longo do tronco, com o raminho preso nos dentes quando precisava das duas mãos.
Voltou ao parque e notou que haviam escrito sobre a poeira que cobria a viatura: «Levon é uma anedota.» A altura da inscrição mostrava que os residentes mais jovens do conjunto habitacional já eram ases da alfabetização.
Perguntou a si mesmo se teriam escrito no carro do Dentuço também.
Graham passou alguns momentos observando as janelas dos imóveis. Devia haver cerca de uma centena.
Alguém podia se lembrar de ter visto um branco no parque a altas horas da noite, mesmo já tendo passado mais de um mês. Para interrogar cada um dos moradores sem perder muito tempo seria preciso pedir a ajuda da polícia de Birmingham.
Resistiu à tentação de enviar a lata diretamente para Jinuny Price. Precisava dos policiais de Birmingham, portanto era melhor confiar-lhes a descoberta. Limpar a lata não seria muito complicado, mas já seria completamente diferente quando se tratasse de encontrar impressões provocadas por um suor ácido. Talvez Price pudesse tomar conta disso depois da polícia de Birmingham ter limpado a lata; o principal era não tocá-la com as mãos nuas. Sim, era melhor confiar o trabalho à polícia. Sabia que o FBI se agarraria freneticamente ao ramo gravado e que todo mundo teria uma fotografia.
Da casa dos Jacobi ligou para a Criminal de Birmingham.
Os inspetores chegaram exatamente ao mesmo tempo de Geelian, o agente imobiliário, que acompanhava eventuais compradores.
Quando Dolarhyde entrou na cafeteria, Eileen estava lendo um artigo do National Tattler intitulado «O pão envenenado!». Comera só o recheio do seu sanduíche de salada de atum.
Por trás dos seus óculos de lentes vermelhas, os olhos de Dolarhyde percorreram rapidamente a primeira página do Tattler. Entre os grandes títulos encontrava-se, além de «O pão envenenado!», «Elvis no seu ninho de amor: fotografias exclusivas!», «Medicamento miraculoso para as vítimas de câncer» e, sobretudo, ocupando toda a página, «Pedido de ajuda a Hannibal, o Canibal: o monstro colabora com a polícia no caso dos assassinatos do Dentuço».
De pé diante da janela, rodava lentamente o seu copo de café, esperando que Eileen se levantasse. Ela colocou o seu tabuleiro no carrinho e preparava-se para jogar o Tattler fora quando Dolarhyde tocou seu ombro.
— Eileen, posso ficar com o jornal?
— Com certeza. Só o comprei por causa do horóscopo.
Dolarhyde leu-o no seu gabinete, depois de ter fechado à chave.
Freddy Lounds publicara dois artigos na página central dupla. O artigo principal era uma reconstituição impiedosa do massacre das famílias Leeds e Jacobi. A polícia não divulgara os detalhes dos casos e Lounds recorrera a sua imaginação para rechear o seu artigo de notas macabras.
Dolarhyde achou-os essencialmente banais. O artigo de fundo era mais interessante.
UM LOUCO CRIMINOSO CONSULTADO PELA POLÍCIA A QUEM TENTARA ASSASSINAR
por Freddy Lounds
Chesapeake, Maryland. — Os inteligentes «cães de caça federais» patinam no caso do Dentuço — o assassino psicopata que massacrou famílias completas em Birmingham e Atlanta — e foram pedir ajuda do assassino mais bestial que atualmente se encontra em cativeiro. O Dr. Hannibal Lecter, cujas práticas inomináveis lhes foram relatadas há três anos nestas mesmas colunas, foi consultado esta semana na sua cela de alta segurança pelo investigador em destaque Will Graham.
Graham esteve a ponto de perecer sob os golpes de Lecter na altura em que conseguiu desmascarar este último autor de uma série de assassinatos aterradores.
Foi retirado de sua aposentadoria precoce para relançar a caça ao Dentuço.
O que se terá passado no decorrer deste espantoso encontro entre dois inimigos mortais? O que Graham procurava, afinal de contas?
«Quem se parece, se atrai», confiou-nos um elemento importante da administração federal. Fazia referência a Lecter, mais conhecido sob o nome de Hannibal, o Canibal, que era ao mesmo tempo psiquiatra e responsável por assassinatos coletivos.
Os responsáveis recusaram-se a dizer por que colocaram na primeira linha de uma caça tão importante um indivíduo que sofre de instabilidade mental.
* Tattler soube que Graham, antigo professor de Medicina Legal na Academia do FBI em Quântico (Virgínia), esteve em tempos internado durante quatro semanas numa instituição para doentes mentais...
A natureza exata do problema psicológico de Graham não nos foi revelada, mas um antigo enfermeiro em psiquiatria classificou-a como «depressão profunda».
Garmon Evans, antigo auxiliar do Hospital Naval de Bethesda, explicou-nos que Graham fora admitido na seção criminal psiquiátrica pouco depois de ter morto Garrett Jacob Hobbs, o Monstro de Minnesotta. Graham abatera Hobbs em 1975, pondo assim termo ao reino daquele que durante oito meses mergulhara Minneapolis num ambiente de terror.
Ainda segundo Evans, durante a primeira semana de internamento, Graham ficara prostrado, recusando qualquer alimento.
Graham nunca foi agente do FBI. Os observadores mais atentos explicam esta particularidade pelo fato de que o Bureau impõe critérios de admissão muito severos para evitar qualquer forma de instabilidade psíquica.
As fontes federais indicam apenas que Graham começou trabalhando no laboratório central e que lhe confiaram um posto de ensino na Academia do FBI, após ele ter dado provas de capacidades excepcionais, tanto no laboratório como no terreno, onde desempenhara um lugar de «investigador especial».
Tattler soube igualmente que, antes de ser admitido na administração federal, Graham trabalhara na Criminal em New Orleans, posto que ele deixou apenas para seguir cursos especiais de Medicina Legal na Universidade George Washington.
Um dos oficiais de polícia de New Orleans que trabalhou com Graham fez-nos o seguinte comentário: «Pode se dizer que está aposentado, mas os federais sabem onde podem encontrá-lo. É um pouco como se tivesse um mangusto no subsolo. Não se vê, mas sabemos que está lá para apanhar as serpentes.»
O Dr. Lecter está internado para o resto dos seus dias. Se chegar a ser considerado são de espírito, será julgado por ter cometido nove assassinatos com premeditação.
O advogado de Lecter informou-nos que o seu cliente passa o tempo redigindo artigos muito interessantes para as revistas científicas e que mantém um «diálogo permanente» por escrito com alguns dos maiores especialistas de psiquiatria.
Dolarhyde interrompeu a leitura para olhar para as fotografias. Havia duas por cima do artigo. A primeira mostrava Lecter espalmado contra uma viatura da polícia; a segunda era a que Freddy Lounds tirara de Will Graham diante do Hospital de Chesapeake. Cada um dos artigos de Lounds era ilustrado com um pequeno retrato do jornalista.
Dolarhyde olhou longamente para as fotografias. Acariciou-as durante muito tempo com a ponta do indicador e sentiu prazer naquele contato um pouco áspero. A tinta deixou uma mancha na ponta do dedo. Umedeceu-o com a língua e enxugou-o num lenço de papel. A seguir cortou o artigo e guardou-o no bolso.
No caminho de volta para casa, Dolarhyde comprou papel higiênico idêntico ao usado em camping e nos barcos, bem como um inalador.
Sentia-se em forma, apesar da sua asma dos fenos. Como a maior parte das pessoas que sofreram uma rinoplastia extensiva, Dolarhyde não tinha pêlos no nariz e a asma dos fenos atacava-o continuamente. Acontecia-lhe o mesmo no que dizia respeito às infecções das vias respiratórias superiores.
Quando um caminhão avariado bloqueou a circulação na ponte que atravessava o Missouri na direção de Saint Charles durante dez minutos, esperou pacientemente. A sua caminhonete negra, com o interior forrado de carpete, era um lugar agradável. A aparelhagem estereofônica difundia a Música Aquática, de Haendel.
Os dedos tamborilavam no volante ao som da música e por vezes dava pancadinhas no nariz.
Num conversível parado na fila vizinha estavam duas mulheres de shorts e blusas amarradas com um nó sobre o estômago. Dolarhyde tinha uma vista superior sobre o conversível.
Pareciam cansadas de pestanejar por causa do brilho do sol que se punha no horizonte. A passageira tinha a cabeça deitada para trás e os pés apoiados no painel de bordo.
Esta posição provocava-lhe duas pregas no estômago.
Dolarhyde reparou num sinal no interior da coxa. Ela surpreendeu-o olhando e sentou-se normalmente antes de cruzar as pernas. O rosto refletia um certo desagrado.
Disse qualquer coisa à motorista e ambas olharam para frente. Sabia que falavam dele, mas sentia-se tão feliz que nem sequer se importou. Aliás, cada vez acontecia menos de ficar encolerizado. Sabia que ia forjando uma dignidade impecável sob todos os aspectos.
A música era das mais agradáveis.
Os carros que o precediam conseguiram arrancar. A fila vizinha continuava paralisada. Tamborilou no volante ao som do ritmo e baixou o vidro com a outra mão.
Tossiu lançando em seguida um escarro esverdeado na direção da passageira, atingindo-a ao lado do umbigo. Arrancou e as imprecações da mulher foram rapidamente cobertas por Haendel.
O enorme arquivo de Dolarhyde tinha pelo menos um século. Forrado em couro negro e com cantos de cobre, era tão pesado que foi preciso uma mesa de datilógrafa para suportá-lo dentro do armário fechado à chave no alto das escadas, onde se encontrava arrumado. Dolarhyde soube que seria dele desde o primeiro momento em que o viu num leilão organizado por causa da falência de uma velha tipografia de Saint Louis.
Tomara banho e voltara a vestir o quimono; agora podia abrir a porta do armário e tirar a mesa de rodas. Logo que o livro se encontrou no seu lugar, sob a reprodução d’O Grande Dragão Vermelho, instalou-se numa cadeira e abriu-o. O cheiro do papel mofado subiu-lhe às narinas.
Na primeira página viam-se em toda a largura, em grandes letras iluminadas por ele, as palavras do Apocalipse: «E depois um outro prodígio apareceu no céu — era um grande dragão vermelho [...]»
A primeira peça deste dossiê era igualmente a única que não se encontrava impecavelmente apresentada. Entre as páginas encontrava-se uma fotografia amarelada, representando uma criança de pouca idade ao lado de sua avó, nos degraus da grande moradia. Agarrava-se à saia da avó. Esta mantinha-se rígida, de braços cruzados.
Dolarhyde apressou-se a virar a página, como se a fotografia tivesse sido esquecida por engano naquele lugar.
Havia vários recortes de jornais: os mais antigos diziam respeito ao desaparecimento de mulheres de idade madura em Saint Louis e Toledo. As páginas encontravam-se preenchidas com a escrita de Dolarhyde, em tinta preta, e que não era muito diferente da própria escritura de William Blake.
Colados na margem, fragmentos de couro cabeludo pareciam-se com cometas alinhados no livro de apontamentos do Criador.
Havia os recortes dos jornais referentes aos Jacobi, bem como as bobinas de filme e os dispositivos, metidos em pequenas bolsas coladas nas páginas.
Os artigos relativos à família Leeds também estavam acompanhados de um filme.
A expressão «Dentuço» só aparecera nos jornais depois de Atlanta. Este nome fora riscado de todos os comentários feitos sobre os Leeds.
E neste momento, Dolarhyde agia da mesma maneira com o artigo do Tattler, riscando cada menção de «Dentuço» com grandes traços enraivecidos de marcador vermelho.
A página seguinte estava virgem e cortou cuidadosamente o artigo do Tattler para colocá-lo na página. Devia conservar a fotografia de Graham? As palavras «Criminosos inimputáveis» gravadas na pedra por cima de Graham irritavam Dolarhyde. Tinha horror a tudo que simbolizava uma doença qualquer. O rosto de Graham estava fechado, indecifrável. Colocou-o de lado para mais tarde.
Mas Lecter... Lecter. A fotografia do doutor não estava muito boa. Dolarhyde possuía uma melhor que tirou de uma caixa arrumada no armário. Fora publicada na altura da detenção de Lecter e os seus olhos estranhos distinguiam-se perfeitamente. Apesar de tudo, também não o satisfazia plenamente. Na mente de Dolarhyde, Lecter só podia se parecer com um daqueles inquietantes retratos dos príncipes da Renascença. Porque Lecter era possivelmente o único homem no mundo que possuia a sensibilidade e a experiência suscetíveis de lhe permitirem compreender plenamente a glória e a majestade do destino de Dolarhyde.
Dolarhyde sentia que Lecter conhecia a irrealidade dos que morrem para ajudar a cumprir um determinado destino, atendendo a que não são seres de carne, mas de ar e de luz, de cores e de sons muito breves, que se desvanecessem no mesmo instante da sua transmutação. Como balões de ar coloridos que arrebentam. E em que a mudança lhes confere uma importância muito superior às vidas miseráveis a que se agarram.
Dolarhyde reunia os seus gritos como um escultor reúne a poeira que se liberta da pedra trabalhada.
Lecter era capaz de compreender que o sangue e o alento não passavam de elementos cuja transformação era necessária para o seu brilho. Do mesmo modo como a combustão é a fonte da luz.
Gostaria de se encontrar com Lecter, discutir e trocar idéias, alegrar-se com ele pela sua visão comum, ser reconhecido por ele do mesmo modo como João, conhecido pelo Batista, reconheceu Aquele que viria depois dele, apoiar-se nele como o Dragão sobre 666 nas aquarelas de William Blake consagradas ao Apocalipse, filmar finalmente a sua morte quando, no instante da morte, ele se fundiria com a força do Dragão.
Dolarhyde calçou um par de luvas de borracha novas e dirigiu-se para o seu gabinete. Desenrolou e rasgou a camada exterior do papel higiênico que comprara e em seguida destacou uma tira de sete folhas.
Com a mão esquerda, e cuidadosamente, escreveu uma carta a Lecter.
A fala nunca dá uma informação completa sobre as capacidades de escrita de um indivíduo; a de Dolarhyde era entrecortada, pontuada de dificuldades tanto reais como imaginárias, e o contraste com a sua escrita era impressionante. Apesar de tudo, deu conta de que lhe era impossível exprimir tudo o que lhe ia no coração.
Precisava ter notícias de Lecter. Precisava de uma resposta pessoal antes de poder dizer a Lecter aquilo que era realmente importante.
Como é que poderia conseguir isso? Procurou na caixa os recortes de jornais que se referiam a Lecter e leu todos. Foi então que descobriu um método simples e pôs-se ao trabalho.
Mesmo assim a sua carta pareceu-lhe muito hesitante quando a releu, tímida demais. Assinara como um «Admirador Fervoroso».
«Um fervoroso.» É isso mesmo. Ergueu a cabeça com um gesto imperioso.
Introduziu o polegar na boca, tirou a dentadura e colocou-a no mata-borrão.
A parte superior era pouco comum. Os dentes eram normais, brancos e bem implantados, mas a parte em acrílico cor-de-rosa tinha uma forma tortuosa que lhe permitia adaptar-se às intumescências e às deformações das suas gengivas. Além disso possuía uma prótese em plástico mole com um obturador que se destinava a fechar o palato mole quando falava.
Tirou da gaveta uma caixa pequena que continha uma outra dentadura. A parte superior era idêntica, com exceção da prótese que lhe faltava; entre os dentes, irregulares, havia manchas escuras e o conjunto libertava um cheiro levemente desagradável.
Esta dentadura era idêntica à da sua avó, que se encontrava no copo pousado na mesinha de cabeceira.
Dolarhyde aspirou o odor e em seguida abriu a boca, colocou a dentadura e umedeceu-a com a ponta da língua.
Dobrou a carta no local da assinatura e mordeu o papel com toda a força. Quando voltou a desdobrar a carta, a assinatura apareceu dentro de uma marca oval. Era a sua marca, o seu carimbo, um sinete constelado de sangue seco.
Eram cinco horas quando o advogado Byron Metcalf tirou a gravata, serviu-se de um copo e colocou os pés em cima da mesa.
— Tem certeza que não quer um?
— Fica para outra vez. — Graham desapertou os punhos da camisa. O ar condicionado não era suficiente.
— Não conhecia os Jacobi muito bem — disse Metcalf. Só moravam nesta cidade a três meses. Fui uma vez ou duas beber um copo na casa deles, juntamente com a minha mulher. Ed Jacobi me contatou para lhe redigir um novo testamento, foi assim que os conheci.
— E é o seu executor testamentário?
— Sou. A mulher estava designada em primeiro lugar; escolheu-me a seguir prevendo o caso de que ela também falecesse ou que estivesse doente. Tem um irmão na Filadélfia, mas acho que não se entendiam lá muito bem.
— O senhor foi procurador-adjunto no tribunal do distrito.
— Fui, de 1968 a 1972. Tentei conseguir a eleição para procurador em 1972 mas as coisas não correram bem. No momento já não penso nisso.
— Na sua opinião, Sr. Metcalf, o que é que se passou ao certo?
— De início pensei em Joseph Yablonski. Sabe, o líder sindicalista.
Graham acenou com a cabeça.
— Um assassinato com um motivo — neste caso o poder —, tudo disfarçado como se se tratasse de um crime sádico. Passamos a pente fino os papéis de Ed Jacobi. Quando digo «nós» refiro-me a Jerry Estridge, do gabinete do procurador, e a mim mesmo.
»Nada. A morte de Ed Jacobi não teria servido de proveito a ninguém. Evidentemente que ganhava bem e registrara licenças que lhe davam lucros, mas tudo o que entrava na casa saía imediatamente. A mulher herdaria tudo com exceção de uma propriedade na Califórnia, que seria para os filhos e para os seus descendentes. Existe também uma pequena quantia de parte destinada ao outro filho. Deveria ser suficiente para pagar três anos de estudos na universidade, o mais certo três anos a repetir.
— Niles Jacobi.
— Esse mesmo. Esse rapaz causava montes de preocupações a Ed Jacobi. Vivia com a mãe na Califórnia. Foi enviado para Chino por roubo. Estou convencido de que a mãe dele não presta para nada. Ed foi ver o garoto no ano passado. Trouxe-o para Birmingham e inscreveu-o no Bardwell Community College. Tentou tê-lo em casa, mas fazia a vida impossível a todos os outros elementos da família. A Sra. Jacobi agüentou algum tempo, mas depois puseram-no num lar para estudantes.
— Onde é que ele se encontrava?
— Na noite de 28? — Metcalf tinha as pálpebras semicerradas para olhar para Graham. — A polícia pôs a questão e eu também o fiz. Foi ao cinema, depois voltou para a escola. Foi confirmado. Além disso ele é do grupo O. Sr. Graham, tenho de ir buscar a minha mulher dentro de meia hora. Se quiser podemos nos encontrar amanhã. Diga-me se precisar de alguma coisa.
— Gostaria de ver os artigos pessoais dos Jacobi. Diários pessoais, fotografias, etc.
— Não existe grande coisa. Perderam praticamente tudo no incêndio da casa deles em Detroit. Não houve nada de suspeito no que aconteceu, Ed estava soldando no subsolo, caíram faíscas numas latas de tinta e a casa se incendiou.
»Há algumas cartas particulares. Estão no cofre com os valores. Não me lembro de ter visto qualquer diário particular. O resto está tudo no armazém. É possível que Niles tenha algumas fotografias, embora isso me admirasse. Ouça, tenho que estar no tribunal às nove e meia, mas poderia me encontrar um pouco mais tarde para lhe mostrar o cofre.
— Perfeito — disse Graham. — Oh, só mais uma coisa: gostaria de ter as cópias de tudo o que se refere à sucessão, correspondência, contestações, etc.
— O gabinete do juiz de Atlanta já me pediu o mesmo, estão fazendo comparações com a sucessão dos Leeds — disse Metcalf.
— De acordo, mas queria cópias para mim também.
— Bom, e vai tê-las. Não acredita que seja uma história de dinheiro, não é?
— Não. Mas tenho esperança de ver um nome que seja comum nos dois casos.
— Você não é o único.
Os estudantes do Bardwell Community College encontravam-se alojados em quatro pequenos dormitórios dispostos em volta de um retângulo de terra batida. Quando Graham chegou ao local, uma guerra de alto-falantes estava no auge.
Os alto-falantes, instalados nas varandas de estilo motel, enfrentavam-se a grandes golpes do Kiss de um lado e da Abertura 1812 do outro. Um saco plástico cheio de água desenhou uma curva no céu antes de vir arrebentar a três metros de Graham.
Afastou a roupa que estava secando e passou por cima de uma bicicleta para entrar na sala do apartamento que Niles partilhava com outros estudantes. A porta do quarto de Niles estava entreaberta e deixava escapar uma torrente de música. Graham bateu na porta.
Não houve resposta.
Abriu a porta para trás. Sentado num dos leitos gêmeos, um tipo com o rosto cheio de acne fumava um gigantesco cachimbo de ópio. Uma garota que usava uma bata encontrava-se deitada na outra cama.
O rapaz virou a cabeça para poder ver Graham melhor.
Via-se nitidamente que sentia dificuldade em refletir.
— Procuro Niles Jacobi.
O outro pareceu surpreendido. Graham baixou o volume da música.
— Procuro Niles Jacobi.
— É apenas um remédio para a asma. Não tem o hábito de bater na porta antes de entrar?
— Onde está Niles Jacobi?
— E eu é que sei? Além disso, o que quer com ele?
Graham exibiu o distintivo.
— Vamos, faça um esforço.
— Oh, merda — disse a garota.
— Os entorpecentes, não pode ser... ouça, não é aquilo que está pensando, eu vou explicar.
— Diga-me onde se encontra Niles Jacobi.
— Acho que consigo encontrá-lo — disse a garota.
Graham esperou que ela se informasse nos outros quartos. Um concerto de descargas de autoclismo assinalou a sua passagem.
No quarto havia poucos vestígios de Niles Jacobi: num toucador, uma fotografia da família Jacobi, era tudo o que existia. Graham ergueu um copo cheio de gelo que se derretia lentamente e enxugou com a manga a marca de umidade.
A garota voltou.
— Tente o Hateful Snake — disse ela.
O bar do Hateful Snake encontrava-se instalado num armazém de janelas pintadas de verde-escuro. Os veículos que se encontravam estacionados em frente eram dos mais extravagantes: cabines de caminhões sem os reboques, viaturas clássicas, um conversível lilás, um Chevrolet e um Dodge cujas carrocerias se encontravam assentadas sobre pneus traseiros sobredimensionados para se parecerem com dragsters, quatro Harley-Davidson em bom estado.
O ar condicionado instalado sobre a porta pingava no passeio.
Graham evitou as gotas que caíam e entrou no bar.
O local estava apinhado e tresandava a desinfetante e perfume barato. A empregada, uma espécie de matrona de macacão azul, estendeu uma coca a Graham por cima da cabeça dos clientes. Era a única mulher que se encontrava no estabelecimento.
Muito moreno e extremamente magro, Niles Jacobi encontrava-se perto da juke-box. Meteu uma moeda no aparelho mas deixou ao seu companheiro a tarefa de apertar as teclas para escolher a música.
O aspecto de Jacobi era o de um estudante libertino, o que já não era o caso daquele que escolhera os discos.
O companheiro de Jacobi tinha uma cara de menino num corpo musculoso. Usava uma t-shirt e jeans surrados até à trama sobre as costuras dos bolsos. Os braços eram nodosos e as mãos enormes eram bem feias. No antebraço esquerdo via-se uma tatuagem visivelmente executada por um profissional: «Rei do cacete». No outro braço, uma tatuagem, que fora certamente feita na prisão, mais grosseira: «Randy».
O cabelo rapado crescera a esmo. Na altura em que apertou numa das teclas da juke-box, Graham avistou um pequeno retângulo rapado no antebraço.
Graham sentiu um aperto no estômago.
Seguiu Niles Jacobi e Randy, que abriam caminho entre os clientes. Instalaram-se num reservado.
Graham parou a menos de um metro da mesa.
— Niles, me chamo Will Graham. Queria falar com você por uns minutos.
Randy dirigiu-lhe um sorriso autoritário. Um dos dentes da frente fora quebrado.
— Nos conhecemos?
— Não. Niles, tenho que lhe falar.
Niles ergueu as sobrancelhas com um olhar surpreendido. Graham interrogava-se sobre o que poderia ter acontecido na penitenciária de Chino.
— Gostaria de continuar a conversar em particular.
— Dá o fora — disse Randy.
Graham olhou para os braços musculosos, o pedaço de adesivo na parte de dentro do cotovelo, o retângulo liso onde Randy ensaiara o fio da lâmina da sua faca. A panóplia completa do profissional.
Randy faz-me medo. Ataca ou então afasta-te diplomaticamente.
— É surdo ou o quê? — disse Randy. — Estou dizendo para dar o fora!
Graham desabotoou o casaco e colocou a placa de identificação em cima da mesa.
— Nem um gesto, Randy. Se tentar se levantar fica com um segundo umbigo.
— Desculpe-me senhor. — A subserviência imediata do antigo presidiário.
— Randy, vai me fazer um favor. Vai meter dois dedos no bolso de trás das calças. Vais encontrar uma navalha de ponta e mola que deve ter uns bons doze centímetros. Coloque-a em cima da mesa. Aí... tal e qual.
Graham meteu a navalha no bolso. O cabo encontrava-se gorduroso.
— Bom, agora a sua carteira. Me dê. Vendeu sangue hoje, não vendeu?
— Sim, e daí?
— Vai me mostrar o recibo que eles te deram, aquele que deverá apresentar da próxima vez. Coloque-o aí.
Randy era do grupo O. Mais uma pista para pôr à parte.
— Há quanto tempo saiu da prisão?
— Três semanas.
— Qual é o nome do oficial de polícia que se ocupa de você?
— Eu não saí de condicional.
— Não está esperando que eu acredite, não é? — Graham tinha vontade de sacudir Randy durante um bocado. Poderia prendê-lo por porte de arma proibida. E freqüentar um bar constituía uma violação da liberdade condicional. Graham sabia que não suportava Randy por ter tido medo dele.
— Randy.
— Sim?
— Desapareça.
— Não sei o que possa lhe contar. Conhecia mal o meu pai — disse Niles Jacobi quando Graham o acompanhou de volta à escola. — Abandonou a minha mãe quando eu tinha três anos e depois disso nunca mais o vi, a minha mãe opunha-se terminantemente.
— Veio vê-lo na Primavera passada.
— Veio.
— Em Chino.
— Está muito bem informado.
— Só quero esclarecer as coisas. Como foi a visita?
— Bom, ele estava no parlatório, mantinha-se tenso, como se não quisesse olhar à sua volta, entende, há muitas pessoas que têm a impressão de estarem no zoológico. A minha mãe me falou muito dele, mas o aspecto não era tão terrível assim. Com o seu casaco esporte podia ser um tipo qualquer.
— O que ele te disse?
— Estava esperando que me enfiasse a cara na merda que eu tinha feito, ou que me acusasse de todas as desgraças da Terra, normalmente é assim que as coisas acontecem no parlatório. Mas limitou-se apenas a perguntar se pensava em voltar para a escola. Disse que eu seria confiado a ele se voltasse à escola e que era preciso que eu fizesse um esforço. «É preciso que se controle um pouco, entende? Faça um esforço e posso mandá-lo para a escola.» Este tipo de coisas.
— Isso foi quanto tempo antes da sua saída?
— Duas semanas.
— Ouça uma coisa, Niles, falou da sua família para alguém enquanto estava em Chino? A companheiros de cela, por exemplo.
Niles Jacobi ergueu os olhos por instantes na direção de Graham.
— Oh, estou entendendo. Não, não falei do meu pai, se é isso que quer dizer. Há anos que não pensava nele e não vejo razão pela qual poderia ter falado.
— E aqui? Alguma vez levou amigos para a casa dos seus pais?
— Não são os meus pais. Ela não é minha mãe.
— Já levou alguém à casa deles? Colegas de escola, por exemplo, ou então...
— Indivíduos pouco recomendáveis, é isso que quer dizer, senhor oficial de polícia Graham?
— Exato.
— Não.
— Nunca?
— Já lhe disse que não.
— Alguma vez recebeu alguma ameaça? Notou se ele tinha problemas particulares nestes dois últimos meses antes disso ter acontecido?
— Da última vez que o vi parecia preocupado, mas era por causa dos meus estudos. Acordava sempre tarde. Chegou a me comprar dois despertadores. Fora isso, não sei de mais nada.
— Tem alguma coisa que tenha pertencido a ele? Cartas, fotografias, por exemplo?
— Não.
— Tem uma fotografia da família toda, está sobre o toucador do teu quarto, ao lado do cachimbo de ópio.
— O cachimbo não é meu. Nunca me serviria de uma porcaria daquelas.
— Preciso dessa fotografia. Vou mandar tirar cópias e depois devolvo. Não tem mais nada?
Jacobi tirou um maço de cigarros e apalpou os bolsos à procura de fósforos.
— É tudo o que tenho. Aliás, gostaria de saber por que eles me deram a fotografia. O meu pai está sorrindo para a Sra. Jacobi e para os rebentos... Pode ficar com ela. Ele nunca olhou para mim daquela maneira.
Graham precisava conhecer os Jacobi. E as suas recentes ligações de Birmingham pouco adiantavam.
Byron Metcalf deu-lhe acesso ao cofre. Leu as poucas cartas que se encontravam ali — a maioria era correspondência profissional — e deu uma olhada nas jóias.
Passou três dias completos no armazém onde se encontravam os móveis dos Jacobi. Metcalf vinha ajudá-lo à noite. As caixas empilhadas sobre as paletas foram todas abertas e o seu conteúdo examinado. As fotografias da polícia permitiram a Graham situar o lugar dos diferentes objetos dentro da casa.
A maior parte dos móveis eram novos, tinham sido comprados com a indenização paga pela companhia de seguros depois do incêndio de Detroit. Os Jacobi nem sequer tinham tido tempo de deixar as suas marcas pessoais naqueles móveis.
Houve um móvel que atraiu em especial a atenção de Graham: tratava-se de uma mesinha de cabeceira sobre a qual ainda se viam restos de pó de impressões digitais. Um pouco de cera verde ficara colada no meio do tampo da mesinha.
Pela segunda vez Graham pensou se o assassino não teria acendido uma vela.
A equipe científica da polícia de Birmingham fizera um trabalho excelente.
A impressão borrada da extremidade de um nariz era tudo aquilo que em Birmingham e Jimmy Price em Washington tinham conseguido tirar da lata de suco de fruta encontrada na árvore.
A seção de Ferramentas e Armas de Fogo do laboratório central do FBI estudara o ramo cortado. As lâminas que haviam cortado a madeira eram espessas e pouco inclinadas: tratava-se com certeza de um alicate de corte para metal.
A seção de Documentos transmitira o desenho gravado na casca ao Departamento de Estudos Asiáticos de Langley.
Graham sentou-se numa caixa de embalagem e leu cuidadosamente o relatório. Os Estudos Asiáticos pensam que o desenho era um caractere chinês que significava «bateu» ou ainda «bateu na cabeça» — é uma expressão usada por vezes nos jogos a dinheiro. Este sinal possuía um significado «positivo» ou «benéfico». Os especialistas da seção indicavam ainda que o caractere aparecia igualmente numa das peças de mah-jong. Era a marca do Dragão Vermelho.
Washington, quartel general do FBI. Crawford falava ao telefone com Graham, que se encontrava no aeroporto de Birmingham, quando a sua secretária entrou no gabinete e lhe chamou a atenção.
— O Dr. Chilton, do Hospital de Chesapeake, no 2706. Diz que é muito urgente.
Crawford acenou com a cabeça.
— Will, não desligue. — Acionou as teclas do telefone.
— Frederick Chilton, Sr. Crawford, estou no...
— Diga, doutor.
— Tenho aqui uma mensagem, ou antes, dois pedaços de uma mensagem, que parece ter sido enviada pelo homem que matou as duas famílias, em Atlanta e...
— Onde a encontrou? —
— Na cela de Hannibal Lecter. Está escrita em papel higiênico e tem marcas de dentes.
— É capaz de lê-la sem tocar?
Chilton fez um esforço para se acalmar e começou a ler:
“Caro Dr. Lecter:
Gostaria de poder lhe dar uma idéia de como me sinto feliz por ver que se interessa por mim. E logo que soube da existência dos seus numerosos correspondentes, disse para mim mesmo: «Será que poderei me atrever?» pois bem, atrevi-me. Tenho certeza de que não diria a eles quem eu sou mesmo se o soubesse. Além disso, o corpo que ocupo neste momento não tem qualquer importância.
O que importa é a minha transformação. Sei que só o senhor poderá me compreender. Tenho comigo algumas coisas que gostaria de lhe mostrar. Talvez um dia, se as circunstâncias o permitirem. Espero que possamos nos corresponder... — Sr. Crawford, há um buraco porque o papel foi cortado nesta zona. Continuo.
“Há anos que o admiro e tenho a coleção completa dos artigos que a imprensa lhe consagrou. Por minha parte acho que são bastante injustos. Tão injustos como os que escreveram a meu respeito. Gostam muito de dar alcunhas humilhantes. «O Dentuço». Seria possível encontrar expressão menos apropriada? Sentia-me envergonhado por saber que lia uma coisa dessas e não fazia idéia de que suportara os mesmos insultos da imprensa.
O investigador Graham interessa-me muito. Tem um ar especial para um tira, não concorda? Não é muito bonito, mas tem um ar decidido.
Devia ter-lhe ensinado a não se meter nos seus assuntos. Perdoe-me pelo papel. Escolhi-o porque se dissolve rapidamente, isto para o caso de ter que engoli-lo.
— Senhor Crawford, falta uma passagem completa. Vou ler o final.
“Se receber notícias suas, da próxima vez envio-lhe possivelmente qualquer coisa úmida. Entretanto, receba a consideração e respeito do seu
Admirador Fervoroso.
Seguiu-se um longo silêncio à leitura de Chilton.
— Ainda aí está?
— Estou. Lecter sabe que o senhor tem essa mensagem?
— Ainda não. O transferimos para um calabouço para fazer a limpeza da sua cela. Em vez de utilizar um pano para limpar o sanitário, o empregado tirou folhas de papel higiênico do distribuidor. A mensagem estava escondida entre as folhas. Trouxe-me logo. Sempre me trazem tudo que encontram.
— Neste momento onde Lecter está?
— Continua no calabouço.
— Do lugar onde está consegue ver a cela?
— Deixe-me pensar... Não, é impossível.
— Bom. Não desligue, doutor. — Crawford deixou Chilton em espera. Durante vários segundos olhou fixamente para os pequenos indicadores luminosos do aparelho. Pescador de homens, via a sua bóia subir a corrente. Retomou o seu contato com Graham.
— Will, há uma mensagem, provavelmente do Dentuço, escondida na cela de Lecter em Chesapeake. Parece mais uma carta de um admirador. Quer a aprovação de Lecter e está interessado em você. Faz perguntas.
— Como é que se supõe que Lecter irá responder?
— Ainda não se sabe. Uma parte do texto foi arrancada, outra rasurada. É capaz de termos a possibilidade de assistir uma troca de correspondência, desde que Lecter não saiba que estamos a par. Quero enviar a mensagem ao laboratório e quero revistar de alto a baixo a sua cela, mas acho que é um pouco arriscado. Se Lecter desconfiar de alguma coisa, não deixará de encontrar um meio de prevenir esse safado. É preciso que eles se correspondam, mas entretanto precisamos dessa mensagem. — Crawford explicou a Graham onde Lecter se encontrava no momento e como a mensagem fora descoberta. — Daqui até Chesapeake são duzentos quilômetros e não posso ficar à sua espera. O que me diz?
— Dez vítimas num mês... não podemos demorar mais. Estou de acordo que é preciso ir para a frente.
— Eu também estou completamente de acordo — disse Crawford.
— Encontramo-nos dentro de duas horas.
Crawford chamou a sua secretária.
— Sara, arranje-me um helicóptero. Telefone para a polícia municipal ou para os Marines, não me interessa, mas ande depressa. Dentro de cinco minutos estarei na cobertura. Ligue para os Documentos, diga-lhes para prepararem uma maleta. Peça a Herbert para organizar uma equipe especializada em buscas. Na cobertura dentro de cinco minutos.
Restabeleceu a comunicação com Chilton.
— Dr. Chilton, vamos ter que fazer uma busca na cela de Lecter sem que ele saiba. Precisamos da sua ajuda. Já contou isto a alguém?
— Não.
— Onde está o empregado que descobriu a mensagem?
— Está no meu gabinete.
— Mantenha-o junto de si e diga-lhe para ficar calado. Lecter já saiu há muito tempo da cela?
— Há cerca de meia hora.
— É mais do que o normal?
— Não, ainda dá. Mas como não é preciso mais do que meia hora para limpar a cela, dentro em breve vai se interrogar sobre o que se passa.
— Bom, vai fazer o seguinte: chame o vigilante, o engenheiro, enfim a pessoa responsável pelo edifício. Ele que corte a água e que abra os disjuntores no corredor de Lecter. Faça que ele passe na frente do calabouço com ferramentas na mão. Deve se mostrar muito apressado e tão preocupado que não seja capaz de responder a perguntas. Compreendido? Se ele quiser explicações, eu as dou pessoalmente. Cancele o despejo dos baldes de lixo hoje, se a coleta ainda não tiver passado. E sobretudo não toque na mensagem.Vamos para aí.
Em seguida Crawford ligou para o responsável da seção de Análises Científicas.
— Brian, tenho uma mensagem e há fortes indícios de que vem do Dentuço. É uma prioridade absoluta. Tem que voltar para o lugar onde estava dentro da próxima hora, sem qualquer marca. Passará pelos Cabelos e Fibras, pelas Impressões e pelos Documentos, antes de ir parar nas suas mãos. Deve estabelecer uma coordenação com os diferentes serviços. De acordo? Sim, eu a levo de seção em seção.
Fazia bastante calor no elevador — os vinte e seis graus impostos pela administração federal —, quando Crawford desceu da cobertura com a mensagem, os cabelos despenteados pelas correntes de ar produzidas pelo helicóptero. Com o rosto inundado de suor, dirigiu-se para a seção de Cabelos e Fibras.
É um serviço com instalações modestas, calmo e ao mesmo tempo cheio de trabalho. A sala comum encontra-se apinhada de caixas cheias de provas enviadas pelos serviços de polícia de todo o país: adesivos que fecharam bocas ou amarraram pulsos, tecidos rasgados ou sujos, lençóis de leito mortuário.
Crawford avistou Everly Katz através do vidro que dava para uma pequena sala de exames, enquanto procurava abrir caminho entre as caixas que se encontravam por todo o lado. Ela tinha umas calças de criança penduradas por cima de uma mesa recoberta por uma folha de papel branco. À luz crua da sala, raspava as calças com uma espátula metálica, passando e repassando sobre as bandas de veludo, escovando o pêlo no sentido normal e no sentido inverso. Uma chuva de poeira e de areia caiu sobre o papel. Ao mesmo tempo, mais lentamente do que a areia e mais rapidamente do que a poeira, caiu igualmente um cabelo frisado. Inclinou a cabeça e contemplou-o com o seu olhar de lince.
Crawford conseguia ver seus lábios se mexerem.
Sabia o que ela dizia: «Te peguei».
Dizia sempre a mesma coisa.
Crawford bateu no vidro. Ela saiu da sala ao mesmo tempo que tirava as luvas.
— Ainda não foi fotocopiado?
— Não.
— Bom, vou me instalar na sala aqui ao lado.
Calçou um novo par de luvas enquanto Crawford abria a maleta. Os dois pedaços da mensagem tinham sido colocados entre duas folhas de plástico. Everly Katz viu a marca dos dentes e dirigiu um olhar rápido a Crawford.
Este acenou com a cabeça: estas marcas correspondiam ao molde da dentadura do assassino, que levara com ele para Chesapeake.
Através do vidro viu-a pegar a mensagem com uma pinça flexível, segurando-a sobre uma folha de papel branco. Estudou-a com uma lupa de grande aumento e em seguida sacudiu-a delicadamente. Bateu na pinça com uma espátula e em seguida examinou o papel branco à lupa.
Crawford olhou para o relógio.
Katz prendeu a mensagem com uma outra pinça para poder virá-la e observar o outro lado. Pinças quase que da grossura de um cabelo permitiram-lhe retirar algo minúsculo.
Fotografou as bordas rasgadas em grande plano e em seguida voltou a colocá-la na maleta. Juntou-lhe um par de luvas brancas. As luvas brancas significam que existe uma interdição formal de tocar no objeto; devem acompanhá-lo enquanto as impressões não forem investigadas.
— Aqui está — disse ela, entregando a maleta a Crawford. — Encontrei um fragmento de pêlo ou de cabelo que não chega a medir um milímetro. Alguns grãos azuis. Vou começar já com o trabalho. O que me traz?
Crawford estendeu-lhe três envelopes sobre os quais se encontrava marcado: cabelos do pente de Lecter; pêlos de barba da sua máquina elétrica; cabelos do empregado de limpeza.
— Até breve — disse Katz. — E parabéns pelo seu novo penteado.
No serviço de Impressões Ocultas, Jiminy Price fez uma careta quando viu que se tratava de papel higiênico poroso. Debruçou-se sobre o ombro do técnico que regulava o laser de heliocadinio para tentar detectar uma impressão e torná-la fluorescente. Pontos brilhantes apareceram no papel, manchas de suor e mais nada.
Crawford quis fazer uma pergunta, depois hesitou e esperou sob a luz azulada.
— Sabemos que houve três pessoas que a manipularam sem luvas. É isso? — perguntou Price.
— É verdade, o empregado, Lecter e Chilton.
— O fulano que limpa os sanitários provavelmente limpou as mãos. Quanto aos outros... que raio de papel! — Price colocou a mensagem diante da luz; na sua velha mão manchada a pinça não tremia. — Podia colori-lo Jack, mas não garanto que haja tempo para tirar as manchas de iodo.
— E a ni-hidrina? Também poderia aquecê-la.
Em circunstâncias normais, Crawford não teria se atrevido a pôr questões de ordem técnica, mas neste caso procurava desesperadamente um meio de conseguir resultados. Esperava que Price lhe respondesse com um ar resmungão, mas o velho disse com uma voz lúgubre:
— Não, não seria possível lavá-lo. Lamento, Jack, mas não consigo descobrir impressões digitais, não há nenhuma.
— Merda — disse Crawford.
O outro voltou-se. Crawford colocou a mão sobre o ombro ossudo de Price.
— Não se preocupe, Jimmy, sei perfeitamente que, se houvesse alguma, a teria encontrado.
Price não respondeu. Já estava desembalando os objetos referentes a um outro caso. Neve carbônica fumegava num cesto onde Crawford jogou as luvas brancas.
Com o estômago apertado pela desilusão sofrida, Crawford apressou-se a dirigir-se ao serviço de Documentação, onde era esperado por Lloyd Bowinan. Tinham ido buscá-lo no tribunal e esta brusca interrupção quebrara a sua concentração, o que fazia que pestanejasse como alguém que acaba de acordar.
— Antes de mais nada, quero lhe felicitar pelo seu penteado.
— Vejo que arrancou em quarta marcha — disse Bowman, que, com uma mão ágil, transferiu a mensagem para o seu plano de trabalho.
— Quanto tempo tenho?
— Vinte minutos, no máximo.
Os dois pedaços da mensagem pareciam irradiar sob as lâmpadas de Bowman. O mata-borrão aparecia em verde-escuro por um longo rasgão da parte superior.
— O que é importante, fundamental mesmo, é saber como Lecter iria responder — disse Crawford quando Bowman acabou a sua leitura.
— As instruções para uma resposta encontravam-se provavelmente na parte que falta. — Enquanto falava, Bowman regulava cuidadosamente as lâmpadas, os filtros e uma pequena câmera de vídeo. — Aqui diz: «Espero que possamos nos corresponder...» e o buraco começa a seguir. Lecter riscou o papel com um lápis de bico redondo e a seguir dobrou-o e rasgou a maior parte.
— Não tem nada para cortar.
Bowman fotografou a marca dos dentes bem como o verso da mensagem sob uma luz extremamente oblíqua; quando fazia a lâmpada rodar em volta do papel, a sombra dançava de uma parede à outra e as mãos desenhavam no ar estranhos arabescos.
— Agora já é possível apertá-lo um bocado. — Bowman colocou o texto entre duas placas de vidro para alisar a borda rasgada do buraco. As fibras estavam ligeiramente tingidas de tinta vermelha. Murmurava em voz baixa. Na terceira vez, Crawford conseguiu entender o que ele dizia: «Talvez sejas hábil, mas para hábil, hábil e meio».
Bowman colocou filtros numa pequena câmera de vídeo e em seguida focou a mensagem. Diminuiu a luz da sala, deixando apenas a luminosidade baça de uma lâmpada e o azul-esverdeado da tela de controle.
As palavras «Espero que possamos nos corresponder» e o rasgão apareceram na tela em grande plano. A mancha de tinta desaparecera, mas eram visíveis nas bordas fragmentas de escrita.
— Os corantes azóicos das tintas de cor são transparentes aos infravermelhos — disse Bowman. — Isto aqui podia ser a barra transversal de um T. Ali também e ainda ali. No principio podia ser a barra vertical de um M ou de um N, ou talvez de um R. — Bowman pegou numa fotografia e voltou a acender a luz. — Jack, só há dois meios de comunicação, o telefone e os jornais. Lecter pode receber chamadas telefônicas?
— Pode, mas a rotina é muito demorada e deve passar obrigatoriamente pela central telefônica do Hospital.
— Portanto, a única coisa que temos é o jornal.
— Sabemos que este queridinho lê o Tattler. Foi nesse jornal que apareceu o artigo sobre Graham e Lecter. Tanto quanto sei, mais nenhum jornal falou no assunto.
— Temos três T e um R em Tattler. Os anúncios classificados? Vale a pena verificar.
Crawford ligou para a biblioteca do FBI e em seguida transmitiu as suas instruções para o escritório de Chicago. Quando terminou, Bowman entregou-lhe a maleta.
— O Tattler sai esta noite — disse Crawford. — É impresso em Chicago às segunda e às quinta. Vamos arranjar as provas dos anúncios classificados.
— Devia ter conseguido encontrar mais alguma coisa — disse Bowman.
— Comunique imediatamente para Chicago tudo o que conseguir. Me ponha a par quando voltar do Hospital — disse Crawford já a caminho da porta.
A cancela do metro de Washington cuspiu de volta o bilhete de Graham e este saiu do edifício para a tarde abrasadora, carregando a sua maleta de vôo.
O Edifício J. Edgar Hoover parecia-se com uma imensa gaiola erguendo-se acima da nuvem de calor da Décima Rua. O FBI mudara-se para este novo edifício depois de Graham ter deixado Washington. Nunca trabalhara ali.
Crawford encontrou-se com ele no balcão de visitas situado no subsolo, para confirmar a validade das credenciais de Graham, emitidas às pressa. Este parecia cansado e mostrava-se impaciente enquanto assinava o registro. Crawford tentava imaginar como ele se sentiria, sabendo do interesse que o assassino demonstrava por ele.
Graham recebeu um cartão magnético codificado, semelhante àquele que Crawford trazia pendurado na lapela. Introduziu-o no leitor do portão e seguiu por um emaranhado de corredores pintados de branco. Crawford transportava a sua maleta.
— Esqueci de dizer a Sara para te mandar um carro. Provavelmente assim foi mais depressa.
— Conseguiu devolver a mensagem a Lecter sem problemas?
— Consegui — disse. — Voltei há pouco. Inundamos o chão do corredor. Procedeu-se como se um cano tivesse arrebentado e houvesse um curto-circuito. Simimons estava conosco, —acaba de ser nomeado adjunto de segurança de Baltimore —, limpava o chão do corredor quando Lecter passou para a cela. Siminons acha que ele não desconfia de nada.
— No avião vinha pensando se não terá sido Lecter que escreveu a carta a ele mesmo.
— De início também pensei nisso, antes de ver melhor a mensagem. As marcas de dentes no papel condizem com as marcas de dentes encontradas nas vítimas. Além disso é escrita com esferográfica, uma coisa que não damos a Lecter. A pessoa que escreveu a carta leu o Tattler, e Lecter não recebe este jornal. Rankin e Willingliam viraram a cela do avesso. Fizeram um trabalho excelente, mesmo não tendo encontrado nada. Antes de começarem, tiraram fotografias com uma Polaroid, para no final deixarem tudo exatamente como estava antes. A seguir entrou o homem da limpeza, que fez o seu trabalho normal.
— Se é assim, qual é a sua opinião?
— Como prova material no sentido de uma identificação, a carta não nos serve para nada — disse Crawford. — Talvez poderíamos utilizá-la para estabelecermos o contato, mas ainda não consegui ver muito bem como. Dentro de momentos teremos os resultados complementares do laboratório.
— Conseguiu organizar as coisas de modo a ter o correio e o telefone no Hospital sob vigilância?
— Somos informados sempre que Lecter se lembre de telefonar. No sábado de tarde fez um estupor de uma chamada numa linha direta. Disse a Chilton que ia telefonar ao advogado.
— E o advogado, o que é que ele disse?
— Nada. Separamos uma linha para ele na central telefônica e assim temos a escuta montada permanentemente. A partir da próxima distribuição vamos verificar toda a correspondência. Felizmente não há qualquer problema ao nível das comissões rogatórias.
Crawford parou diante de uma porta e introduziu na ranhura o seu cartão magnético.
— O meu novo escritório. Entre. O decorador utilizou o resto da tinta que sobrou de um barco de guerra que lhe fora confiado. Aqui está a mensagem. A fotocópia está na escala exata.
Graham leu-a duas vezes. A leitura do seu nome provocou-lhe um certo mal-estar.
— A biblioteca confirma que o Tattler é o único jornal que publicou um artigo a seu respeito e de Lecter — disse Crawford enquanto preparava uma alka-seltzer. — Quer uma? Te faria bem. Foi publicado na segunda à noite. Estava nas bancas em todo o país na terça — com exceção de alguns lugares como o Alaska e o Maine, por exemplo, que só o receberam na quarta. O Dentuço arranjou um — não antes de terça, de qualquer maneira. Leu-o antes de escrever a Lecter. Rankin e Willingliam ainda andam vasculhando o lixo do Hospital à procura do envelope. Mas é um trabalho quase impossível. No Chesapeake não separam os papéis das ligaduras.
— Lecter não pode ter recebido a mensagem antes de quarta-feira. Ele rasgou a parte referente ao modo como deverá responder e risca a passagem referente a um acontecimento mais antigo. Aliás, gostaria de saber por que não a rasgou também.
— Estava no meio de um parágrafo cheio de elogios — disse Graham. — Não foi capaz de destruí-lo! Foi por causa disso que não jogou a carta fora. — Esfregou as têmporas.
— Bowman está convencido de que Lecter vai publicar a resposta no Tattler. E você, acha que ele vai responder?
— Com certeza que sim. Gosta muito de escrever e tem correspondentes por toda parte.
— Se estão utilizando o Tattler, Lecter não terá tempo de publicar a sua resposta no número desta noite, mesmo que a tenha enviado por correio expresso no dia em que recebeu a mensagem. Chester, do escritório de Chicago, está no Tattler verificando todos os anúncios. Estão neste momento fazendo a paginação.
— Sobretudo é preciso que o Tattler não desconfie do que quer que seja — disse Graham.
— O mestre da tipografia pensa que Chester é um agente imobiliário que tenta curto-circuitar os anúncios. Vende-lhe discretamente as provas logo que a página se encontre pronta. Para disfarçar, pegamos em todos os anúncios classificados. Bom, admitamos que conseguimos descobrir a forma de resposta de Lecter e que somos capazes de imitá-lo. Podemos enviar uma mensagem falsa ao Dentuço, mas o que vamos dizer?
— O essencial é fazê-lo comparecer num ponto de encontro, que pode ser numa caixa de correio — disse Graham. — É preciso atraí-lo com qualquer coisa que ele gostasse de ver. Um «elemento importante» de que Lecter teria tomado conhecimento depois de ter conversado comigo. Um erro que ele teria cometido e que esperávamos que o Dentuço viesse a repetir.
— Era preciso ser idiota para cair numa coisa dessas.
— Eu sei. Quer saber qual seria a melhor isca?
— Não faço idéia.
— Simplesmente o próprio Lecter — disse Graham.
— E como é que faria isso?
— Sei perfeitamente que não seria fácil. Seria preciso colocar Lecter sob controle federal, e Chilton nunca aceitaria uma coisa dessas em Chesapeake, e fechá-lo na zona de alta segurança de um hospital psiquiátrico de Virgínia. E depois de estar lá, inventaríamos uma evasão.
— Oh, valha-me Deus.
— Enviaríamos uma mensagem ao Dentuço no número seguinte do Tattler. Lecter poderia marcar um encontro.
— Só gostaria de saber se haverá alguém com vontade de se encontrar com Lecter. Mesmo o Dentuço!
— Para assassiná-lo, Jack. — Graham ergueu-se. Não havia janelas no gabinete e deteve-se diante do aviso dos dez criminosos mais procurados, a única decoração da dependência. — Deste modo o Dentuço poderá absorvê-lo, torná-lo seu, vir a ser mais do que ele.
— Está muito seguro do que está dizendo.
— Não estou seguro de coisa nenhuma. Aliás, quem é que poderia estar? Ele escreveu na sua mensagem «Tenho comigo algumas coisas que gostaria de lhe mostrar». É possível que isto seja suficientemente sério e que não se trate de uma simples fórmula de delicadeza.
— Não consigo imaginar o que ele possa ter para mostrar. As vítimas estavam intactas. Não faltava nada a não ser um pouco de pele e de cabelos que foram certamente... como é que Bloorn disse?
— Ingeridos — disse Graham. — Só Deus sabe o que ele pode ter para mostrar. Olha, Tremont, por exemplo, lembra-se da história dos disfarces de Tremont em Spokane? Mesmo amarrado a uma maca erguia o queixo para mostrar aos tiras de Spokane onde os tinha escondido. Não, Jack, não tenho certeza de que Lecter consiga atrair o Dentuço. Estou só dizendo que é a nossa melhor chance.
— Vai ser um escândalo de todo o tamanho se as pessoas desconfiarem que Lecter anda à solta. Os jornais vão ficar histéricos. Talvez seja a nossa melhor chance, mas vamos guardá-la para o fim.
— É possível que não se aproxime do ponto combinado, mas com certeza vai querer ver para ter certeza de que Lecter não o traiu. Seria necessário observá-lo de bem longe. Poderíamos arranjar um lugar onde fosse possível ver a uma grande distância e de um número limitado de pontos, de modo a ser possível encurralá-los. — Graham não se sentia convencido com esta proposta.
— Os Serviços Secretos têm um espaço para anúncios que nunca utilizam e que poderiam nos ceder. Mas vai ser preciso esperar até à próxima segunda-feira se não publicarmos o anúncio hoje. As rotativas arrancam às cinco horas, hora de Washington. Chicago fica portanto ainda com uma hora e um quarto para encontrar o anúncio de Lecter. Se houver um, evidentemente.
— E a reserva de Lecter, a nota de encomenda que teria enviado ao Tattler encomendando o anúncio, não será possível consegui-lo mais rapidamente?
— Chicago só pode ocupar-se do mestre da tipografia — disse Crawford. — O correio fica no gabinete do gerente dos anúncios classificados. Vendem em seguida os nomes e endereços às firmas que efetuam vendas por correspondência e que enviam às pessoas solitárias prospectos oferecendo elixires do amor, produtos para aumentar a virilidade, métodos para ultrapassar a timidez, enfim, você conhece o gênero. Poderíamos evidentemente apelar para o sentido cívico do gerente dos anúncios e pedir-lhe para ficar calado, mas não quero correr o risco de ver o Tattler cair em cima de nós. Era preciso ter um mandato especial para poder ler o correio deles. É assunto para ser pensado.
— Se Chicago não encontrar nada, podemos pôr o nosso anúncio — disse Graham. — Se me enganei em relação ao Tattler apaga-se tudo e começa-se de novo.
— Está certo, mas se o Tattler serve para eles, de fato, como meio de comunicação e se nos espalharmos na resposta, isto é, se lhe parecer estranha, estamos feitos. A propósito, não te perguntei nada a respeito de Birmingham. Encontrou alguma coisa?
— O caso de Birmingham está encerrado de uma vez por todas. A casa dos Jacobi foi pintada e redecorada e está à venda. Aquilo que lhes pertencia está guardado em armazém, à ordem do executor do testamento. Estive inspecionando os caixotes. Aa pessoas com quem falei não conheciam os Jacobi muito bem. A única coisa que me disseram foi que pareciam na realidade muito ligados um ao outro. Andavam sempre de mãos dadas. E agora, tudo o que resta são cinco caixotes num armazém. Lamento não ter podido...
— Pare de se lamentar, agora está metido nisto.
— E a marca na árvore deu alguma coisa?
— «Bateu na cabeça», é,isso? Se quer saber, para mim não tem qualquer significado, nem mesmo o Dragão Vermelho. Everly sabe jogar mah-jong. É esperta, mas não sabe o que isso quer dizer. De qualquer modo, os cabelos provam que não é chinês.
— Cortou o ramo com um alicate de metal. Não vejo onde é que...
O telefone de Crawford começou a tocar. Respondeu com meias palavras.
— Will, o laboratório tem os resultados da mensagem. Vamos subir para o gabinete de Zeller. É maior e menos sinistro que o meu.
Indiferente ao calor ambiente, Lloyd Bowman encontrou-os no corredor. Trazia fotografias ainda úmidas e debaixo do braço um molho de folhas de datafax.
— Jack, tenho que estar no tribunal às quatro e quinze — disse enquanto os ultrapassava. — É aquele caso de falsificação de Nilton Eskew e da sua amiguinha, Nan. Estou convencido de que ela é capaz de desenhar uma nota de banco em três tempos. Nestes dois últimos anos me deixaram doido, fazendo os seus próprios traveller’s cheques numa Xerox em cores. Acha que consigo chegar a tempo ou será melhor telefonar ao Ministério Público?
— Vai conseguir — disse Crawford.
— Já chegou todo mundo.
Everly Katz, sentada num sofá no escritório de Zeller, sorriu para Graham quando este entrou, preparando-se para lhe apresentar Price, que se encontrava ao lado dela.
O chefe da seção de Análises Científicas, Brian Zeller, era jovem para o cargo, mas o cabelo já começava a rarear e usava lentes bifocais. Na estante que estava atrás da mesa de Zeller, Graham avistou o manual de ciência forense de H. J. Walls, a obra de Tedeschi Forensic Medicine, em três volumes, e uma edição antiga de The Wreck of the Deutschland, de Hopkins.
— Tenho a impressão de que já nos encontramos uma vez na universidade — disse ele. — Conhece todo mundo?... Ótimo.
Crawford encostou-se ao canto da mesa de Zeller com os braços cruzados.
— Alguém tem novidades? Okay, encontraram alguma coisa que possa indicar que a mensagem não veio do Dentuço?
— Não — disse Bowman. — Falei com Chicago há poucos minutos para dar uns números que encontrei escritos no verso da carta. Seis-seis-seis. Depois lhes mostro quando chegarmos a esse ponto. Chicago tem para analisar cerca de duzentos anúncios pessoais. — Estendeu a Graham um monte de folhas de cópias datafax. — Já as li e é a mesma história de sempre: ofertas de casamento, apelos para desaparecidos. Ainda não consegui saber como seremos capazes de reconhecer o anúncio se o virmos.
Crawford abanou a cabeça.
— Também não sei. É melhor começarmos analisando o papel. Um outro aspecto que temos que considerar é o de que Jimmy Price fez tudo aquilo que era possível e não conseguiu descobrir nenhuma impressão. E você, Bev, conseguiu alguma coisa?
— Tenho uma hipótese muito vaga. O peso e a textura coincidem com as amostras de Hannibal Lecter. O mesmo se passa com a cor. Esta cor é nitidamente diferente da cor das amostras obtidas em Birmingham e Atlanta. Três grãos azuis e algumas partículas escuras foram encontradas pela equipe de Brian.
Encarou Brian Zeller ao mesmo tempo que erguia as sobrancelhas.
— Os grãos eram de um detergente comercial granulado — disse ele. — Devem ter vindo das mãos do homem, quando ele limpou as mãos. Havia algumas partículas minúsculas de sangue seco. Não há dúvida de que é sangue, mas não há quantidade suficiente para determinar qual é o tipo.
— As marcas das bordas dos pedaços de papel dão idéia de perfurações — continuou Everly Katz. — Se conseguirmos encontrar o rolo na posse de alguém e ainda não tiver sido rasgado mais nenhum pedaço, será possível fazer um estudo comparativo. Recomendo que seja enviado um aviso aos agentes para que estes não se esqueçam de tentar encontrar o rolo.
Crawford acenou com a cabeça.
— Bowman?
— Sharon, do meu gabinete, fez uma investigação sobre o papel e encontrou amostras para poder comparar. É papel higiênico distribuído aos marinheiros e utilizado pelos campistas. A textura permite concluir que se trata de papel da marca Wedeker, fabricado em Minneapolis. É distribuído a nível nacional.
Bowman dispôs as suas fotografias num cavalete próximo da janela. A sua voz era surpreendentemente profunda, atendendo à sua pequena estatura, e o laço que usava agitava-se levemente enquanto falava.
— Considerando a caligrafia, verificou-se que se trata de uma pessoa que escreveu deliberadamente com a mão esquerda, embora use normalmente a mão direita, e que escreveu propositadamente em letras maiúsculas. Pode ver-se facilmente pela incerteza do traço e pelo tamanho diferente das letras.
»Os tamanhos diferentes levam-me a concluir que o nosso homem terá possivelmente uma certa dose de astigmatismo não corrigido.
»A tinta de ambas as partes da carta parece vir do mesmo tipo de esferográfica, azul-marinho à luz natural, embora se note uma pequena diferença com filtros coloridos. Usou duas esferográficas e tudo indica que mudou de caneta enquanto escrevia a parte da carta que falta. Nota-se perfeitamente a altura em que a primeira começou a falhar. A primeira caneta não era usada freqüentemente — estão vendo a mancha que fez quando ele começou a escrever? Deve ter sido guardada sem tampa e de bico para baixo num copo para lápis ou noutro recipiente qualquer, o que sugere uma situação de quem normalmente trabalha numa escrivaninha. Nota-se ainda que a superfície sobre a qual escreveu era suficientemente macia para nos ser permitido concluir que poderia ser um mata-borrão. Um mata-borrão que poderá ter impressões se for encontrado. Gostaria que o assunto do mata-borrão fosse considerado no relatório a ser elaborado pela Everly.
Bowman mostrou uma fotografia que tinha mandado fazer do verso da carta. A ampliação exagerada fazia que o papel apresentasse um aspecto enevoado, com depressões e zonas sombreadas.
— Ele dobrou a carta para escrever a parte final, incluindo aquela que mais tarde foi rasgada. Neste aumento do verso, a luz oblíqua revela algumas impressões. Podemos distinguir «666 e». É muito possível que tenha sido nesta altura que ele voltou a ter problemas com a esferográfica e precisou escrever por cima. Só consegui notar isso com esta fotografia de elevado contraste. Pelo menos até agora não há nenhum «666» em nenhum dos anúncios.
»A estrutura das frases é ordenada e não se nota qualquer vestígio de divagação. As dobras sugerem que a carta foi enviada num envelope de formato clássico. Estas duas manchas escuras são manchas de tinta de impressão. Possivelmente a carta foi enviada dentro de um impresso qualquer.
— É mais ou menos isso — disse Bowman. — Se não tiver mais perguntas, Jack, acho que é melhor ir andando para o tribunal. Volto logo que tenha prestado depoimento.
— Afunde-os bem — disse Crawford.
Graham estudou a coluna de anúncios pessoais do Tattler: «Senhora atrativa com aparência de rainha, jovem com 52 anos, procura cristão do signo de Leão, não fumante, com idade compreendida entre os 40 e os 70. Sem filhos por favor. Amputados são bem-vindos. Assunto sério. Enviar fotografia com a primeira carta.»
Perdido na dificuldade e no desespero dos anúncios, não percebeu que os outros tinham ido embora até Everly Katz falar com ele.
— Desculpe, Everly. O que disse? — Olhou para os seus olhos brilhantes e rosto de aspecto extremamente agradável.
— Estava dizendo que me sinto contente por ter voltado, Campeão. Está com bom aspecto.
— Obrigado, Everly.
— Saul anda numa escola de culinária. Ainda não está em forma, mas podia ir lá em casa um dia destes para lhe fazer um teste.
— Irei, não me esqueço.
Zeller dirigiu-se para o seu laboratório para ver como corriam as coisas. Crawford e Graham foram deixados sozinhos. De vez em quando olhavam para o relógio.
— Faltam quarenta minutos para as rotativas do Tattler começarem a rodar — disse Crawford. — Vou verificar o correio deles. O que você acha?
— Força.
Crawford ligou para Chicago pelo telefone de Zeller e deu o recado.
— Will, se Chicago acertar no alvo, temos que estar preparados com um anúncio substituto.
— Vou prepará-lo.
— Por minha parte vou tratar de arranjar um ponto de encontro. — Crawford ligou para os Serviços Secretos e falou durante algum tempo. Quando acabou, Graham ainda estava escrevendo.
— Okay, o local de coleta de correio é ideal — disse finalmente Crawford. — É no exterior de um serviço de extintores de incêndio nos arredores de Annapolis. É território que pertence a Lecter. O Dentuço vai concluir que se trata de qualquer coisa que Lecter sabe. As pessoas interessadas passam por lá para receber recados e correio. O nosso homem pode ficar observando instalado num parque do outro lado da rua. O Serviço Secreto jura de pés juntos que o local é ótimo. Prepararam aquele local para apanhar um falsificador, mas depois chegou-se à conclusão de que já não era preciso. O endereço é este. E a mensagem?
— Temos que pôr duas mensagens na mesma edição. A primeira avisa o Dentuço de que os seus inimigos estão mais próximos do que o que ele possa imaginar. Diz que cometeu um erro grave em Atlanta e que, se cometer o mesmo erro, está feito. Diz que Lecter lhe mandou por correio «informações confidenciais» baseadas naquilo que eu lhe disse sobre o que estávamos fazendo, o modo como nos encontramos extremamente próximos, as pistas que temos. E encaminha o Dentuço para uma segunda mensagem que começa com «a sua assinatura».
— A segunda mensagem começa com «Admirador Fervoroso... » e contém o endereço do local de recebimento do correio. Temos que fazer desta maneira. Mesmo considerando a linguagem perifrástica da primeira mensagem, vai ser o suficiente para excitar alguns lunáticos ocasionais. Não conseguindo descobrir o endereço também não conseguem encontrar a caixa postal e já não se corre o risco de que estraguem as coisas.
— Ótimo. Estupendo. Quer esperar no meu escritório enquanto as coisas se desenvolvem?
— Prefiro fazer alguma coisa. Preciso de falar com Brian Zeller.
— Então vai. Se precisar de você, sei onde posso encontrá-lo.
Graham encontrou o chefe de seção na Serologia.
— Brian, pode me fazer um favor?
— Com certeza, o que é?
— As amostras que usou para identificar o grupo sanguíneo do Dentuço.
Zeller olhou para Graham por cima dos óculos.
— Há alguma coisa no relatório que não tenha compreendido?
— Não.
— Há alguma coisa que esteja pouco clara?
— Não.
— Alguma coisa incompleta? — Zeller pronunciou a palavra como se tivesse um gosto detestável.
— O seu relatório estava ótimo, era impossível esperar melhor. Trata-se apenas do fato de querer ter as provas nas minhas mãos.
— Ah, com certeza, podemos fazer isso. — Zeller acreditava que todos os investimentos no terreno mantinham as superstições de um caçador primitivo. Sentia-se contente por poder fazer humor com Graham. — Está tudo resumido no final.
Graham seguiu-o ao longo dos armários cheios de aparelhos e equipamento.
— Está lendo Tedeschi.
— Estou — disse Zeller por cima do ombro. — Como sabe, não fazemos medicina forense aqui, mas Tedeschi tem uma série de assuntos muito interessantes. Graham. Will Graham, foi você que escreveu aquela monografia sobre a determinação da ocasião da morte provocada por insetos, não foi? Ou não se trata do mesmo Graham?
— Fui eu que escrevi. — Uma pausa. — Tem razão, na opinião de Tedeschi, Mant e Zvorteva são melhores no caso de insetos.
Zeller ficou surpreendido por ouvir o seu raciocínio ser pronunciado em voz alta.
— Não há dúvida de que têm melhores fotografias e uma tabela das ondas de invasão. Isto sem ofensa.
— Com certeza que não. São melhores, eu mesmo lhes disse.
Zeller tirou frascos e dispositivos de um armário e do frigorífico, colocando tudo na bancada.
— Se quiser perguntar alguma coisa, estou no lugar onde me encontrou. A luz da objetiva do microscópio fica deste lado.
Graham não queria saber do microscópio. Não punha em dúvida as conclusões de Zeller. Na realidade não sabia ao certo o que procurava. Ergueu os frascos e as lamelas à luz, bem como um envelope transparente que continha dois cabelos louros encontrados em Birmingham. Um segundo envelope continha três cabelos encontrados na Sra. Leeds.
Na mesa em frente de Graham havia saliva, cabelos e sêmen. Mas havia também um vazio onde tentava descortinar uma imagem, um rosto, qualquer coisa que pudesse substituir o pesadelo informe que o atormentava.
De um alto-falante no teto surgiu uma voz de mulher.
— Graham, Will Graham, ao gabinete do agente especial Crawford. Alerta vermelho.
Encontrou Sara com fones de ouvido colocados na cabeça enquanto ia escrevendo à máquina e Crawford que espiava por cima do ombro dela para ler o que escrevia.
— Chicago encontrou a encomenda de publicação de um anúncio que mencionava o 666 — disse Crawford num murmúrio pelo canto da boca. — Estão ditando para Sara agora. Já disseram que parte dele se parece muito com um código qualquer.
As linhas escritas iam surgindo na máquina de escrever de Sara.
Caro Peregrino,
Sinto-me muito honrado...
— É ele, é ele — disse Graham. Lecter chamou-lhe de peregrino quando esteve falando comigo.
...você é muito belo
— Meu Deus — disse Crawford.
Ofereço 100 orações pela sua segurança.
Encontrará consolo em João 6:22, 8:16, 9:1; Lucas 1:7, 3:1; Gálatas 6.11, 15:22; Atos 32; Revelação 18:7, Jonas 6:8...
A datilografia diminuiu de velocidade enquanto Sara repetia cada par de números para o agente em Chicago. Quando ela terminou, a lista de referências das escrituras enchia um quarto de página. Estava assinado «Que seja abençoado, 666».
— Acabou — disse Sara.
Crawford pegou o telefone.
— Okay, Chester, como é que as coisas se passaram com o chefe da seção de anúncios?... Não, fez bem... Uma completa ostra, certo. Não saia de perto do telefone, volto a telefonar.
— Código — disse Graham.
— Tinha que ser. Temos vinte e dois minutos para cozinhar uma mensagem se formos capazes de descodificar isto. O encarregado da tipografia precisa de dez minutos de pré-aviso e trezentos dólares para meter o anúncio à força nesta edição. Bowman tem um canto no seu gabinete onde pode trabalhar. Se quiser posso falar para a Criptografia em Langley por causa da descodificação. Sara, mande um telex com o texto do anúncio para a seção de Criptografia da CIA. Vou avisá-los de que vai a caminho.
Bowman colocou a mensagem na sua mesa, alinhando-a exatamente com os cantos do mata-borrão. Limpou lentamente os óculos sem armação, durante um tempo que pareceu uma eternidade a Graham.
Bowman tinha reputação de ser rápido.
— Temos vinte minutos — disse Graham.
— Compreendo. Ligou para Langley?
— Foi Crawford que ligou.
Bowman leu a mensagem várias vezes, mirou-a de todas as maneiras possíveis, até de lado e de pernas para o ar, e percorreu as margens com o dedo. Tirou uma Bíblia da estante. Durante cinco minutos os únicos sons que se ouviam eram a respiração dos dois homens e o restolhar das folhas de papel de seda.
— Não — disse ele. — Não vamos conseguir acabar a tempo. É melhor usarmos o tempo que temos para alguma coisa que possa fazer.
Graham mostrou-lhe as mãos vazias.
Bowman rodou na cadeira até ficar de frente para Graham e tirou os óculos. Tinha uma mancha cor-de-rosa de cada lado do nariz.
— Tem certeza absoluta de que a carta que Lecter recebeu foi a única comunicação que teve do Dentuço?
— Tenho.
— Então o código parece ser bastante simples. Precisam apenas que se proteger contra a curiosidade de leitores eventuais. Fazendo uma medição a partir das perfurações na carta que Lecter recebeu pode concluir-se que faltam cerca de três polegadas. Não dá muito espaço para instruções que se pretendesse enviar. Os números não correspondem à grelha do alfabeto penitenciário o código de batidas. Estou convencido de que se trata de um livro de código.
Crawford juntou-se à conversa.
— Livro de código?
— Parece que sim. O primeiro numeral, estas «100 orações», podia ser o número da página. Os pares de números nas referências das escrituras podiam representar a linha e a letra. Mas o pior é descobrir qual é o livro.
— Não é a Bíblia?
— Não, não é a Bíblia. De início também pensei que fosse. Mas foi o «Gálatas 6:11» que me convenceu do contrário: «Vede a extensa carta que vos escrevi com as minhas próprias mãos». Poderíamos dizer que bate, mas trata-se apenas de uma coincidência, porque logo a seguir vem «Gálatas 15:2». Os Gálatas têm só seis capítulos. A mesma coisa acontece com «Jonas 6:8», Jonas tem quatro capítulos. Não foi a Bíblia que ele usou.
— Talvez o título do livro possa estar oculto na parte clara da mensagem de Lecter — disse Crawford.
Bowman abanou a cabeça.
— Acho que não.
— Então foi o Dentuço que se referiu ao livro que deveria ser usado. Deve ter mencionado na carta que escreveu a Lecter — disse Graham.
— Tudo leva a crer que sim — disse Bowman. — E se déssemos um aperto em Lecter? Num hospital de alienados tenho a impressão de que as drogas...
— Já se tentou o amital de sódio, há três anos, para tentar descobrir onde ele enterrara um estudante de Princeton — disse Graham. — Deu-lhes a receita para um molho. Além disso, se o apertarmos, perdemos a ligação. Se o Dentuço escolheu o livro é porque se trata de alguma obra que ele sabia que Lecter tem na cela.
— Tenho certeza de que não encomendou nenhum, nem pediu nenhum emprestado a Chilton — disse Crawford.
— O que é que os jornais disseram a este respeito, Jack? Acerca dos livros de Lecter.
— Que ele tem livros de medicina, livros de psicologia, livros de culinária.
— Então tem que ser alguma coisa básica numa destas áreas, alguma coisa tão básica que o Dentuço tem certeza que Lecter possui — disse Bowman. — Precisamos de uma lista dos livros de Lecter. Tem alguma?
— Não — Graham ficou olhando para os sapatos. — Podia ligar para Chilton... Espere. Rankin e Willingliam tiraram fotografias para poderem voltar a pôr tudo no mesmo lugar.
— Pode lhes dizer que venham e que tragam as fotografias que tiraram dos livros? — disse Bowman enquanto arrumava a pasta.
— Onde?
— Biblioteca do Congresso.
Crawford tentou contatar a Criptografia da CIA mais uma vez. O computador em Langley continuava sistemática e progressivamente a processar a substituições números-letras, utilizando uma imensidade de grelhas de alfabetos. Sem qualquer progresso. O criptógrafo concordou com Bowman em que provavelmente deveria ter sido utilizado um livro de código. Crawford olhou para o relógio.
— Will, temos três possibilidades de escolha, mas temos que decidir agora. Podemos retirar o anúncio de Lecter do jornal e, no momento, as coisas ficam como estão. Podemos substituí-lo pela nossa mensagem em linguagem clara, convidando o Dentuço a se dirigir à caixa postal. Ou podemos deixar que Lecter publique o anúncio.
— Tem certeza de que ainda podemos retirar o anúncio de Lecter do Tattler?
— Chester está convencido de que o mestre da tipografia, por quinhentos dólares, é capaz de fazer milagres.
— Detesto ter que pôr uma mensagem em linguagem clara, Jack. O mais certo é Lecter nunca mais ouvir falar dele.
— Tem razão, mas também tenho medo de deixar o anúncio de Lecter seguir sem saber o que é que ele diz — disse Crawford.
— O que Lecter podia dizer que ele já não saiba? Se ele descobre que temos uma impressão parcial de um polegar e que as suas impressões não constam de qualquer arquivo, podia raspar a pele do polegar, mudar os dentes e no tribunal dar uma gargalhada monstruosa.
— A questão do polegar não estava mencionada no processo que Lecter viu. É melhor deixarmos a mensagem de Lecter seguir. Pelo menos tem a vantagem de encorajar o Dentuço a voltar a contatá-lo.
— E se isso o encoraja a fazer mais alguma coisa do que se limitar simplesmente a escrever?
— Seria o suficiente para nos pôr doentes durante muito tempo — disse Graham. — Mas temos que fazê-lo.
Em Chicago, quinze minutos mais tarde, as grandes rotativas do Tattler começaram a rodar, aumentando de velocidade até conseguirem levantar uma nuvem de pó na sala de tipografia. O agente do FBI que aguardava, envolvido pelo cheiro de tinta e pelo calor abafado das máquinas, pegou num dos primeiros exemplares que surgiram das rotativas.
Os cabeçalhos incluíam títulos como «Transplante de cabeça!» e «Astrônomos conseguem avistar Deus!».
O agente teve o cuidado de verificar que o anúncio pessoal de Lecter estava publicado no local próprio, e expediu o jornal por correio expresso para Washington. Havia de ver mais tarde o mesmo jornal e recordar-se da impressão do seu polegar sujo de tinta na primeira página, mas isso seria anos depois, ao visitar com os filhos a sala de provas célebres, numa visita que fizeram à sede do FBI.
Uma hora antes de amanhecer, Crawford acordou de um sono profundo. Viu o quarto às escuras, e sentiu o traseiro de sua esposa encostado confortavelmente contra os seus rins. Não compreendeu por que acordou, até que o telefone tocou uma segunda vez. Levantou o auscultador sem pressa.
— Jack, é Lloyd Bowman. Tenho a chave do código. Tem que saber imediatamente do que se trata.
— Okay, Lloyd. — Com as pontas dos pés Crawford procurava os chinelos.
— Diz: «A casa de Graham é em Marathon, Florida. Defenda-se. Mate todos.»
— Porra. Tenho que sair.
— Eu sei.
Crawford dirigiu-se para a escrivaninha sem sequer se preocupar em vestir o roupão. Telefonou duas vezes para a Florida, uma vez para o aeroporto, e a seguir telefonou para Graham no hotel.
— Will, Bowman acabou de decifrar a mensagem.
— O que é que diz?
— Já lhe digo. Mas primeiro tem que me ouvir. Não há qualquer problema. Tomei todas as providências, portanto faça-me o favor de se manter ao telefone enquanto estiver falando com você.
— Diga-me já.
— É o endereço da sua casa. Lecter deu ao filho da mãe o endereço da sua casa. Espere, Will. O departamento do xerife tem neste momento dois carros a caminho de Sugarloaf. A lancha da alfândega de Marathon vigia o lado do mar. O Dentuço não seria capaz de fazer o que quer que fosse em tão pouco tempo. Agüente. Consegue resolver as coisas muito mais depressa comigo ajudando. Ouça agora o que vou lhe dizer.
»Os ajudantes do xerife não vão assustar a Molly. Vão se limitar a fechar a estrada que vai para sua casa. Dois ajudantes vão se aproximar o suficiente para vigiarem a casa. Pode telefonar quando ela acordar. Vou buscá-lo dentro de meia hora.
— Já não me apanhará aqui.
— O primeiro avião não parte antes das oito. É muito mais rápido trazê-los para cá. A casa do meu irmão em Chesapeake está vaga e à disposição. Tenho um bom plano, Will, espere e ouça o que digo. Se não estiver de acordo, eu mesmo te levo ao avião.
— Preciso de algumas armas.
— Arranjaremos depois que for buscá-lo.
Molly e Willy foram dos primeiros a sair do avião no Aeroporto Nacional, em Washington. Ela avistou Graham no meio da multidão, não sorriu, mas voltou-se para Willy e disse alguma coisa, enquanto caminhavam apressadamente na frente da torrente de turistas que voltavam da Florida.
Olhou para Graham de alto a baixo e aproximou-se dele, dando-lhe um beijo de leve. Os dedos morenos com que lhe tocou o rosto estavam gelados.
Graham sentiu que o menino os observava. Apertou-lhe a mão com o braço estendido.
Enquanto caminhavam para o carro, Graham disse um gracejo sobre o peso da mala de Molly.
— Eu levo a mala — disse Willy.
Um Chevrolet castanho com placa de Maryland seguiu-os enquanto saíam do estacionamento.
Graham atravessou a ponte em Arlington, enquanto lhes indicava os monumentos a Lincoln e Jefferson e logo a seguir o monumento a Washington, antes de virarem para este em direção a Chesapeake Bay. Dez milhas depois de terem saído de Washington, o Chevrolet colocou-se ao lado deles na pista do lado de dentro e o condutor olhou para eles, ao mesmo tempo que punha uma mão em concha na boca, e uma voz, vinda não se sabia de onde, soou dentro do carro.
— Fox Edward, não são seguidos. Façam boa viagem.
Graham pegou no microfone que se encontrava oculto no painel do carro.
— Roger, Bobby, muito obrigado.
O Chevrolet voltou a ficar para trás, ao mesmo tempo que fazia sinal de que ia inverter o sentido de marcha.
— Foi só para termos certeza de que não éramos seguidos por nenhum carro da imprensa ou por qualquer outro carro — disse Graham.
— Compreendo — disse Molly.
Quase ao fim da tarde estacionaram num restaurante ao lado da estrada e comeram caranguejos. Willy foi espreitar o tanque das lagostas.
— Detesto toda esta situação, Molly. Perdoe-me — disse Graham.
— Agora ele anda atrás de você?
— Não temos nada que nos garanta isso. Lecter limitou-se a sugerir que o fizesse, dizendo até que o fizesse o mais rapidamente possível.
— É uma situação que me deixa doente e desorientada.
— Eu sei que tem razão. Na casa do irmão de Crawford estará perfeitamente em segurança com Willy. Ninguém neste mundo sabe que vai para lá a não ser eu e Crawford.
— No momento não gostaria de falar em Crawford.
— É um lugar agradável, você vai ver.
Inspirou profundamente e quando deixou escapar o ar parecia que a irritação se desvanecera com o ar que tinha expirado, deixando-a cansada e ao mesmo tempo calma. Sorriu-lhe com um ar astuto.
— Droga, já sei que vou ficar maluca durante algum tempo. Temos de aturar algum dos Crawford?
— Nenhum. — Afastou o cesto do pão para pegar sua mão. — O que Willy sabe sobre tudo isto?
— Praticamente tudo. A mãe de um dos seus amigos, Torrany, comprou uma porcaria de jornal no supermercado e levou-o para casa. Tommy o mostrou a Willy. Havia uma série de coisas a seu respeito e, ao que parece, bastante distorcidas. Sobre Hobs, o lugar para onde foi depois disso, Lecter, tudo. Deixou o menino preocupado. Perguntei-lhe se queria falar sobre o assunto. Só me perguntou se eu sabia o que estava acontecendo. Disse-lhe que sim, que você e eu já tínhamos falado uma vez a esse respeito, que me contou tudo antes de termos nos casado. Perguntei-lhe se queria que esclarecesse alguma coisa. Disse-me que iria perguntar a você cara a cara.
— Ainda bem. É ótimo para ele. Que jornal era, o Tattler?
— Não sei, acho que sim.
— Obrigadinho, Freddy. — O fato de ter se lembrado de Freddy Lounds fez com que tivesse um acesso de raiva que o obrigou a se levantar. Foi ao banheiro lavar o rosto com água fria.
Sara ia ao gabinete de Crawford para lhe dar boa-noite quando o telefone tocou. Pousou a bolsa e o guarda-chuva para atender.
— Gabinete do agente especial Crawford... Não, o Sr. Graham não está no escritório, mas deixe-me... Espere, tenho todo o gosto em... Sim, amanhã à tarde estará aqui, mas deixe-me...
O tom da voz dela chamou a atenção de Crawford, que se aproximou da mesa.
Segurava no auscultador com um ar incrédulo.
— Perguntou por Will e disse que talvez voltasse a telefonar amanhã à tarde. Tentei impedi-lo de desligar.
— Quem?
— Disse: «Diga ao Sr. Graham que é o Peregrino». Foi como o Dr. Lecter chamou ao...
— Dentuço — disse Crawford.
Enquanto Molly e Willy desfaziam as malas, Graham foi ao supermercado. Comprou melões e outras frutas. De volta, parou em frente da casa do outro lado da rua e deixou-se ficar sentado por alguns minutos, as mãos ainda agarrando o volante. Sentia-se envergonhado porque, por causa dele, Molly fora obrigada a sair da casa de que gostava e vir viver no meio de estranhos.
Crawford fizera o melhor que lhe fora possível. Não se tratava de nenhuma daquelas casas federais, seguras, mas sem qualquer identidade, onde os braços das cadeiras iam embranquecendo com a transpiração. Era uma casa agradável, recentemente pintada de branco, com hortênsias que floresciam emoldurando as escadas, resultado de mãos cuidadosas e de um certo bom gosto. O quintal descia em declive até à Chesapeake Bay, onde se avistava uma balsa que se encontrava amarrada.
Por trás das cortinas via-se o pulsar da luz azul-esverdeada da televisão. Graham sabia que Molly e Willy estavam vendo a competição de baseball.
O pai de Willy fora um jogador de baseball e por sinal até bastante bom. Molly conhecera-o no ônibus da escola e casaram-se quando ainda estavam na universidade.
Enquanto ele permaneceu na equipe dos Cardinals, andaram por todos os lugares onde se realizavam jogos da Liga do Estado da Florida. Levavam Willy com eles e passaram momentos felizes. Quando deixou de ser um simples reserva, atuou com segurança e eficácia nos seus dois primeiros jogos. Pouco depois começou a sentir dificuldade em engolir. O cirurgião tentou operá-lo, mas havia metástases que o minaram completamente. Morreu cinco meses depois, quando Willy tinha seis anos.
Willy via baseball sempre que podia. Molly via baseball quando se sentia preocupada.
Graham não tinha chave e teve que bater na porta.
— Eu abro — ouviu-se Willy dizer.
— Espere. — O rosto de Molly apareceu por entre as cortinas. — Pode abrir.
Willy abriu a porta. No punho fechado, meio oculto pela perna, empunhava uma matraca.
Graham não acreditava nos seus olhos. O garoto devia tê-la trazido na mala.
Molly pegou no saco que ele trazia.
— Quer café? Há gin mas não é da marca que você gosta.
Quando ela foi para a cozinha, Willy pediu a Graham para irem até o jardim.
Da varanda dos fundos viam-se as luzes de presença dos barcos ancorados na baía.
— Will, há alguma coisa que eu precise saber para poder proteger minha mãe?
— Aqui vocês estão perfeitamente em segurança Willy. Lembra-se do carro que nos seguiu desde o aeroporto, para se certificar de que ninguém nos vigiava? Ninguém conseguirá descobrir onde você e sua mãe estão.
— Esse doido quer matá-lo, não quer?
— Não temos certeza disso ainda. De qualquer forma, não me sentiria tranqüilo por ele saber o nosso endereço.
— Vai matá-lo?
Graham fechou os olhos por instantes.
— Não. O meu trabalho é simplesmente o de encontrá-lo. Vão interná-lo num hospital de doidos para poderem tratá-lo e impedir que ele ataque mais pessoas.
— A mãe do Tommy comprou aquele jornal, Will. Dizia que você matou um tipo em Minnesota e que esteve num hospital para doentes mentais. Nunca ouvi falar disso. É verdade?
— É.
— Comecei falando com a minha mãe sobre isto, mas depois achei que era melhor perguntar diretamente a você.
— Aprecio a sua franqueza. Não era apenas um hospital de doenças mentais; tratam de qualquer doença lá. — A diferença parecia importante. — Estive no pavilhão psiquiátrico. Quer saber tudo por ter casado com a tua mãe?
— Prometi ao meu pai que tomaria conta dela e vou fazê-lo.
Graham sentia que dissera o suficiente. Era melhor não dizer demais.
As luzes se apagaram na cozinha. Viu a silhueta vaga de Molly através da porta de tela e sentiu a importância do seu julgamento. O que acontecesse com Willy teria certamente influência no coração dela.
Era nítido que Willy já não sabia o que perguntar. Graham deu-lhe uma ajuda.
— O caso do hospital foi depois daquilo que aconteceu com Hobbs.
— Disparou contra ele?
— Disparei.
— Como aconteceu?
— Para começar, Garrett Hobbs era louco. Atacava garotas do colégio e... matava-as.
— Como?
— Com uma faca; bom, um dia encontrei nas roupas de uma das garotas um bocadinho de apara de metal. Era o tipo de apara que uma máquina de rosquear produz, lembra-se de quando montamos o chuveiro no pátio?
»Tive que investigar uma quantidade enorme de instaladores de tubulação de vapor, de canalizadores e de outras pessoas. Levou muito tempo. Hobbs tinha deixado a sua carta de demissão numa obra que eu estava investigando. Vi-a e achei... estranho. Já não estava trabalhar em lugar nenhum e tive que procurá-lo em casa.
— Ia subindo as escadas da casa onde Hobbs tinha o apartamento. Um agente fardado ia comigo. Hobbs deve nos ter visto subindo. Estava a meio caminho do lance de escadas para o seu apartamento quando ele, da porta, atirou uma mulher em nossa direção, que veio cair em cima de nós já morta.
— Ele a matou?
— Sim. Foi por isso que pedi ao agente que ia comigo para telefonar para o comando de intervenção especializado neste tipo de coisas. Mas nessa altura ouvi crianças gritando. Quis esperar, mas não fui capaz.
— Entrou no apartamento?
— Entrei. Hobbs segurava uma garota diante dele e a golpeava com uma faca. Matei-o.
— A garota morreu?
— Não.
— Ficou bem?
— Depois de algum tempo, sim. Agora já não tem nenhum problema.
Willy digeriu isto lentamente. Vinda de um dos barcos de recreio que se encontravam ancorados, ouvia-se uma música tênue.
Graham podia poupar Willy da descrição do que acontecera, mas não conseguia evitar reviver mais uma vez todas aquelas cenas.
A Sra. Hobbs no lance de escadas, caída sobre ele, esfaqueada tantas vezes. Ver que ela tinha morrido, ouvir os gritos no apartamento, libertar-se dos pequenos dedos tintos de sangue, atirar-se contra a porta antes que ela se fechasse. Quando conseguiu entrar, a visão de Hobbs segurando a própria filha enquanto lhe cortava o pescoço, a menina que se defendia, tentando proteger a garganta com o queixo, a 38 que ia desfazendo-o aos pedaços enquanto ele continuava a cortar sem se deixar ir abaixo. Hobbs sentado no chão gritando e a menina num estertor aflitivo. Segurar a menina e ver que ele tinha cortado sua traquéia, mas que não tinha atingido as artérias. A filha que olhava para ele com os olhos esgazeados e o pai sentado no chão e gritando: «Está vendo? Está vendo?», até cair morto.
Foi nessa hora que Graham perdeu a fé na 38.
— Willy, o caso de Hobbs incomodou-me muito. Não conseguia me esquecer daquilo e revivia a cena continuamente, compreende? Fiquei de tal forma que praticamente não era capaz de pensar em mais nada. Pensava que talvez pudesse ter agido de uma outra maneira. Até que chegou uma hora em que deixei de sentir o que quer que fosse. Não era capaz de comer e deixei de falar com as pessoas. Peguei mesmo uma depressão. Foi nessa hora que o médico me pediu para ir para o hospital, e eu fui. Depois de algum tempo já conseguia me distanciar de tudo aquilo. A filha de Hobbs veio me visitar. Já estava boa e falamos bastante. Finalmente consegui pôr o problema de lado e voltei ao trabalho.
— Quando se mata alguém, mesmo que seja necessário, dá para se ficar tão doente assim?
— Willy, é uma das coisas mais terríveis que existem no mundo.
— Olha, vou dar um pulo na cozinha. Quer que te traga alguma coisa, uma coca? — Willy gostava de fazer coisas para Graham, mas fazia sempre que tudo parecesse casual, como se houvesse outra coisa mais importante que tivesse que fazer. Nada de uma deslocação propositada com essa finalidade ou qualquer coisa no gênero.
— Está bem, uma coca.
— Mamãe devia vir até aqui fora para ver a iluminação.
Ainda nesta noite, Graham e Molly sentaram-se na cadeira de balanço na varanda dos fundos. Caía uma chuva leve e as luzes dos barcos projetavam halos granulosos no nevoeiro. A brisa que soprava da baía fazia que ficassem com a pele arrepiada.
— Isto ainda é capaz de demorar um bocado, não é? — disse Molly.
— Espero que não, mas pode acontecer.
— Will, a Evelyn disse que podia tomar conta da loja esta semana e mais quatro dias da próxima semana. Mas tenho que voltar a Marathon, nem que seja por um dia ou dois, por causa dos vendedores. Poderia ficar com a Evelyn e com Sam. Preciso fazer compras em Atlanta. Tenho que ter tudo preparado para Setembro.
— A Evelyn sabe onde você está?
— Só lhe falei em Washington.
— Ótimo.
— É difícil conseguir ter qualquer coisa, não é? É raro conseguir, e mais difícil conservar o que se tem. É um estupor de mundo.
— A quem está dizendo.
— Vamos voltar a Sugarloaf, não vamos?
— Se Deus quiser.
— Tente resolver as coisas de modo que isto não demore muito. Não vai demorar, não é?
— Não.
— Vai sair cedo? Esteve falando por meia hora ao telefone com Crawford.
— Um bocadinho antes de almoço. Se de fato tem que ir a Marathon, há umas coisas que temos que combinar de manhã. Willy pode ir pescar.
— Ele tinha coisas para te perguntar sobre o outro.
— Eu sei e não o censuro por isso.
— Raios partam esse repórter. Como é que ele se chama?
— Lounds. Freddy Lounds.
— Tenho certeza de que o detesta. Não devia ter falado no assunto. Vamos para a cama que eu lhe esfrego as costas.
Uma certa dose de ressentimento invadiu por momentos a mente de Graham. Justificara-se diante de um garoto de onze anos. Willy disse que estava tudo bem, que compreendia que ele tivesse necessitado de se tratar. Agora era ela que ia lhe esfregar as costas. Vamos para a cama
Quando estiver debaixo de tensão tente manter a boca fechada.
— Se quiser meditar um pouquinho deixo-o sozinho — disse ela.
Não queria pensar. Não havia qualquer dúvida a esse respeito.
— Esfregue minhas costas e eu lhe esfrego outra coisa... — disse ele.
— Vamos a isso, parceiro.
O vento arrastara a chuva miúda da baía e às nove da manhã o solo libertava nuvens de vapor. Os alvos mais distantes na linha de tiro do departamento do xerife pareciam agitar-se no ar pesado.
O diretor da linha de tiro observou com o binóculo até se ter convencido de que o homem e a mulher no extremo mais distante da linha de fogo estavam cumprindo todas as regras de segurança.
As credenciais do Departamento de Justiça que o homem mostrara quando pediu para usar a linha de tiro diziam: «Investigador». Podia ser qualquer coisa. O diretor não concordava que o ensino de tiro não fosse feito por um instrutor qualificado.
No entanto, tinha que admitir que o federal sabia o que estava fazendo.
Estavam só usando um revólver .22, mas estava ensinando à mulher tiro de combate no estilo Weaver, o pé esquerdo levemente avançado, o revólver seguro firmemente nas mãos, com uma tensão isométrica nos braços. Disparava contra o alvo de silhueta que se encontrava sete jardas à frente dela. Incansavelmente, tirava a arma do bolso exterior da bolsa a tiracolo. A situação repetiu-se até chegar a um ponto em que o diretor da carreira já não podia olhar para aquilo.
Uma alteração no som dos disparos fez com que o diretor voltasse a pegar no binóculo. Agora usavam protetores de ouvidos e ela usava um revólver atarracado de cano curto. Reconheceu o som de cargas mais leves.
Conseguia ver a arma que ela agarrava firmemente e interessou-se. Foi se deslocando ao longo da linha de fogo até que parou a algumas jardas deles.
Queria examinar a arma, mas não era uma boa hora para interromper. Teve oportunidade de examiná-la quando ela parou para retirar as cápsulas vazias e introduzir mais cinco projéteis alinhados numa placa de aço.
Estranha arma para um federal. Era um Bulldog .44 Special, curto e feio, em que o orifício do cano era simplesmente aterrador. Fora extensivamente modificado por Magna Port. O cano era ventilado próximo da mira para ajudar a mantê-la baixa no recuo. O percussor era reforçado e o punho era anatômico. Estava convencido de que era especialmente adaptado para ser carregado a alta velocidade. Um raio de uma arma diabólica quando era carregada com aquilo que o federal desconfiava. Tentava imaginar como é que a mulher agüentaria com aquilo.
As munições no balcão que se encontrava por trás deles apresentavam uma progressão interessante. Primeiro, via-se uma caixa de balas semiocas de carga leve. A seguir, viam-se projéteis normais de ponta endurecida, e por último havia qualquer coisa sobre a qual o diretor da carreira já ouvira falar, mas que raras vezes vira. Uma fila de projéteis de segurança Glaser. As pontas pareciam-se com borrachas de lápis. Depois da ponta havia uma cápsula de cobre contendo carga número doze suspensa em teflon líquido.
Este projétil ligeiro fora concebido para se deslocar a tremenda velocidade e esmagar-se no alvo libertando a carga. Na carne os resultados eram devastadores. O diretor lembrava-se bem dos números. Em noventa glasers disparados a distância média, todos os noventa provocaram uma parada imediata. Em oitenta e nove dos casos a morte foi instantânea. Um homem sobreviveu, o que deixou os médicos admirados. O projéctil Glaser tinha ainda uma vantagem sob o ponto de vista da segurança: não havia ricochetes e não conseguia atravessar uma parede, não correndo, portanto, o risco de matar alguém que se encontrasse na sala ao lado.
O homem era muito gentil com a mulher, ao mesmo tempo que ia encorajando-a, mas parecia sentir-se profundamente triste.
A mulher disparara carregadores completos e o diretor verificava com agrado que aguentava perfeitamente o recuo da arma, e mantinha ambos os olhos abertos e sem pestanejar. É certo que levava cerca de quatro segundos para disparar o primeiro tiro, sacando a arma da bolsa, mas três acertavam no círculo central. Nada mau para uma principiante. Não havia dúvida de que possuía um certo talento.
Já regressara à torre havia algum tempo quando ouviu o barulho diabólico dos glasers sendo disparados.
Disparava os cinco em rajada. Não poderia dizer que fosse procedimento standard dos federais.
O diretor tentava imaginar que raio eles teriam visto na silhueta do alvo que os levasse a disparar os cinco glasers.
Graham voltou à torre para devolver os protetores de ouvidos, tendo deixado a sua aluna sentada num banco, cabeça baixa, os cotovelos assentados nos joelhos.
O diretor pensou que ele deveria se sentir contente com os resultados que ela tinha obtido e lhe disse isso mesmo. Ela fizera progressos enormes num único dia. Graham agradeceu-lhe com um ar ausente. A expressão do seu rosto deixou o diretor confuso. Parecia um homem que tivesse testemunhado uma perda irreparável.
O interlocutor, o Peregrino, dissera a Sara que talvez voltasse a telefonar na tarde seguinte. Na sede do FBI foram tomadas algumas medidas para receber a chamada.
Quem era o Peregrino? Lecter não era. Crawford encarregara-se de se certificar sobre esse ponto. Seria o Peregrino, o Dentuço? Era possível, pensou Crawford.
As mesas e telefones do gabinete de Crawford haviam sido trocadas durante a noite para um gabinete mais amplo do outro lado do hall.
Graham permanecia à porta de uma cabine à prova de som.
Atrás dele, na cabine, estava o telefone de Crawford. Sara limpara-o. Com a escrivaninha e uma mesa adicional ocupadas com o espectrógrafo de impressão de voz, gravadores e calculador de stress e Everly Katz sentada na sua cadeira, Sara precisava encontrar alguma coisa para fazer.
No grande relógio de parede faltavam dez minutos para o meio-dia.
O Dr. Alan Blorn e Crawford permaneciam junto de Graham. Tanto um como o outro procuravam aparentar um ar despreocupado, com as mãos nos bolsos.
Um dos técnicos sentara-se em frente de Everly Katz tamborilando com os dedos na mesa, até que um franzir de sobrancelhas de Crawford fez que ele parasse.
A mesa de Crawford estava apinhada com dois novos telefones, uma linha aberta para o centro de comutação eletrônica da Bell System e uma linha direta para o centro de comunicações do FBI.
— Quanto tempo é necessário para localizar uma chamada? —perguntou o Dr. Blorn.
— Com o novo sistema de comutação é muito mais rápido do que se possa imaginar — disse Crawford. — Talvez um minuto, se todo o sistema for eletrônico, um pouco mais, se for uma central eletromagnética.
Crawford ergueu a voz para que todos o ouvissem.
— Se ele chegar a telefonar, tenham cuidado porque vai ser muito rápido. Temos que estar atentos para que não haja erros. Quer ensaiar de novo, Will?
— Certo. Quando chegarmos à altura em que eu falo, quero lhe fazer algumas perguntas, Doutor.
Blorn chegara depois dos outros. Tinha uma conferência programada em Quântico, ao fim do dia, na Seção de Ciência do Comportamento. Blorn sentiu o cheiro de cordite que exalava da roupa de Graham.
— Okay — disse Graham. — O telefone toca. O circuito se fecha imediatamente e começa a busca no Bell System, mas o gerador de tonalidade continua tocando, de modo que ele não sabe que já estamos na linha. Isso nos dá cerca de vinte segundos de vantagem. — Apontou para o técnico. — Gerador de tonalidade desligado no final do quarto toque, compreendeu?
O técnico acenou com a cabeça.
— No final do quarto toque.
— A seguir Everly pega no telefone. A sua voz é diferente daquela que ele ouviu ontem. Não haverá reconhecimento de voz. Everly deverá parecer chateada. Ele pergunta por mim. Everly diz-lhe: «Tenho que tentar encontrá-lo, importa-se de ficar na linha?» Pronta para isso, Ev? — Graham pensou que era melhor não ensaiarem de novo as falas. A repetição podia fazer que viessem a se tornar impessoais. — Certo, a linha estará aberta para nós, morta para ele. Estou convencido de que vai passar mais tempo na linha, à espera, do que na realidade falando.
— Tem certeza de que não quer colocar a música de fundo? — perguntou o técnico.
— Porra, nem pensar nisso — disse Crawford.
— Damos cerca de vinte segundos de espera em linha e a seguir Everly volta a falar e diz: «O Sr. Graham já vem atender o telefone. Vou ligá-lo agora». A seguir eu pego no telefone. — Graham voltou-se para o Dr. Bloorn. — Como é que o senhor lidaria com ele, Doutor?
— Ele vai esperar que você se mostre cético e que de fato tenha dúvidas de que seja ele. No seu lugar demonstraria uma certa dose de ceticismo delicado. Faria mesmo uma diferenciação nítida entre o aborrecimento das falsas chamadas e o significado, a importância, de uma chamada de uma pessoa real. As chamadas falsas são fáceis de reconhecer porque falta a capacidade de compreender o que se passou, coisas desse gênero.
»Faça-o dizer qualquer coisa que prove na realidade que é ele. — O Dr. Bloorn olhou para o chão enquanto massageava a nuca. — Você não faz idéia do que ele quer. Talvez procure compreensão, talvez tenha uma idéia fixa a seu respeito como seu adversário e tudo não passe de um desafio, veremos. Tente determinar o seu estado de espírito e dê-lhe aquilo de que ele está à procura, um pouco de cada vez. Seria perfeitamente ridículo lhe fazer um apelo para que viesse nos ajudar, a menos que note que é isso que ele está esperando.
»Se ele for paranóico vai perceber rapidamente. Nesse caso alinharia em concordar com as suas queixas de que se sente ofendido. Deixe-o desabafar. Se ele continuar a desabafar, talvez se esqueça de quanto tempo está falando. É tudo o que lhe posso dizer. — Blorn pôs a mão no ombro de Graham e falou calmamente. — Não se esqueça de que isto não é nenhuma conversa à toa nem lengalenga; pode conseguir levá-lo a fazer o que nós queremos. Esqueça-se dos conselhos e das regras e faça aquilo que lhe parecer que está certo.
Tinha começado a espera. Meia hora de silêncio era mais do que suficiente.
— Chamada ou não chamada, temos que decidir o que é que vamos fazer ao sair daqui — disse Crawford. — Quer tentar?
— Não consigo ver nada melhor — disse Graham.
— Isso nos daria duas possibilidades de o apanharmos, uma espera na sua casa em Keys e a caixa postal.
O telefone estava tocando.
Gerador de som ligado. No Bell System começou a busca. Quatro toques. O técnico rodou o comutador e Everly pegou no telefone. Sara estava à escuta.
— Gabinete do agente especial Crawford.
Sara abanou a cabeça. Conhecia a pessoa, um dos velhos amigos de Crawford do Departamento de álcool, Tabaco e Armas de Fogo. Everly livrou-se dele rapidamente e interrompeu a busca. Todos no edifício do FBI sabiam que era preciso deixar a linha livre.
Crawford começou a rever mais uma vez os detalhes do assunto da caixa postal. Sentiam-se ao mesmo tempo aborrecidos e tensos. Lloyd Bowman apareceu para lhes mostrar como os pares de números das escrituras se encaixavam na página 100 da brochura A Alegria de Cozinhar. Sara distribuiu café em copos de papel.
O telefone tocou.
O gerador de som entrou mais uma vez em funcionamento e o Bell System iniciou a busca. Quatro toques. O técnico rodou o comutador. Everly pegou no telefone.
— Gabinete do agente especial Crawford.
Sara estava acenando a cabeça num gesto afirmativo.
Grandes acenos de cabeça.
Graham foi para a sua cabine e fechou a porta. Conseguia ver os movimentos dos lábios de Everly. Apertou o botão «Hold» e ficou olhando para o ponteiro dos segundos no relógio de parede.
Graham conseguia distinguir o seu rosto no receptor polido. Duas imagens distorcidas no bocal e no auscultador. A camisa cheirava a cordite, recordação da linha de tiro. Não desligue. Meu Deus, faça com que ele não desligue. Passaram-se quarenta segundos. O telefone que estava na sua mesa estremeceu levemente quando tocou. Deixe-o tocar. Mais uma vez. Quarenta e cinco segundos. Agora.
— Fala Will Graham, em que posso ajudá-lo?
Um riso em tom baixo. Uma voz abafada:
— Irá saber mais tarde.
— Pode me dizer por favor quem está falando?
— A sua secretária não lhe disse?
— Não, meu caro senhor, mas me fez interromper uma reunião...
— Se me disser que não quer falar com o Peregrino, desligo imediatamente. Sim ou não?
— Sr. Peregrino, se tiver qualquer problema que eu tenha possibilidade de resolver, tenho o maior prazer em falar com o senhor.
— Tenho a impressão de que o problema é seu, Sr. Graham.
— Peço desculpas, mas não estou entendendo.
O ponteiro dos segundos marcava quase uma volta completa.
— Tem sido um rapaz muito ocupado, não tem? — disse o interlocutor.
— Ocupado demais para continuar ao telefone se não me disser o que pretende.
— Os nossos pontos de interesse coincidem: Atlanta e Birmingham.
— Sabe alguma coisa a esse respeito?
Um riso suave.
— Se sei alguma coisa a esse respeito? Está interessado no Peregrino? Sim ou não. Se mentir desligo já.
Graham via Crawford através do vidro. Tinha um telefone em cada mão.
— É evidente que sim. Mas veja bem, costumo receber muitas chamadas e a maior parte delas são de pessoas que dizem que sabem uma série de coisas.
Tinha passado um minuto.
Crawford pousou um dos telefones e rabiscou alguma coisa num pedaço de papel.
— Ficaria admirado se soubesse o número de pretendentes que tenho que atender — disse Graham. — Falo com eles alguns minutos e logo vejo que não têm capacidade nem para entender o que está acontecendo. Não concorda comigo?
Sara encostou uma folha de papel no vidro para que Graham conseguisse ler. Dizia: «Cabine telefônica em Chicago, busca em marcha.»
— Vamos combinar uma coisa, o senhor me diz alguma coisa que saiba sobre o Peregrino e talvez eu lhe diga se tem razão ou não — disse a voz abafada.
— Vamos direto ao assunto de que estamos falando — disse Graham.
— Estamos falando sobre o Peregrino.
— Como é que eu posso saber se o Sr. Peregrino fez qualquer coisa em que eu possa estar interessado? Fez?
— Digamos que sim.
— O senhor é o Peregrino?
— Tenho a impressão de que isso é uma das coisas que não vou lhe dizer.
— É amigo dele?
— Mais ou menos.
— Então prove. Diga-me qualquer coisa que mostre como o conhece bem.
— O senhor primeiro. Mostre-me primeiro o que é que sabe. — Um riso nervoso. — Logo que se engane, desligo.
— Está certo, o Sr. Peregrino é destro.
— Isso não tem qualquer dificuldade. Acontece o mesmo com a maior parte das pessoas.
— O Sr. Peregrino não é compreendido.
— Deixe de tretas, por favor.
— O Sr. Peregrino é muito forte fisicamente.
— Sim, acho que pode-se dizer isso.
Graham olhou para o relógio. Minuto e meio. Crawford fez-lhe um gesto de encorajamento.
Não lhe digas nada que o faça mudar de opinião.
— O Sr. Peregrino é branco e tem, digamos, cerca de um metro e oitenta de altura. Estou vendo que não me disse nada ainda. Começo a duvidar que o conhece.
— Quer parar de falar?
— Não, mas disse que se tratava de uma troca. E estou vendo que estou falando sozinho.
— Acha que o Sr. Peregrino é doido?
Blorn abanava a cabeça dizendo que não.
— Acho que alguém que pode ser tão cuidadoso como ele é, não pode ser doido. Acho que é diferente. Muita gente pensa que ele é doido e a única razão que vejo para isso é o fato dele ainda não ter deixado que se soubesse grande coisa a seu respeito.
— Descreva exatamente o que acha que ele fez à Sra. Leeds e talvez eu lhe diga se está certo ou errado.
— Não quero fazer isso.
— Adeus.
O coração de Graham deu um salto, mas ainda conseguia ouvir a respiração no outro extremo da linha.
— Não quero falar nisso até que...
Graham ouviu a porta da cabine telefônica em Chicago bater ao ser aberta violentamente e o telefone cair fazendo um ruído surdo. Murmúrios de vozes e as pancadas do telefone suspenso do cordão. Todos ouviam os mesmos ruídos nos alto-falantes.
— Não se mexa. Nem sequer pisque. Ponha as mãos na nuca e saia lentamente da cabine, de costas. Lentamente. Afaste as mãos, e encoste-as no vidro.
Graham sentia-se invadir por um alívio agradável.
— Não estou armado, Stan. O meu cartão de identidade está no bolso do peito. Isso faz cócegas.
Ouviu-se uma voz alta ao telefone.
— Com quem estou falando?
— Will Graham, FBI.
— Fala o sargento Stanley Riddle, Departamento de Polícia de Chicago. — E logo a seguir num tom irritado. — É capaz de fazer o favor de me dizer que raio está acontecendo?
— O senhor é que tem que me dizer. Deteve um homem?
— Claro que sim. Freddy Lounds, o repórter. Conheço-o há dez anos... Tome a sua agenda, Freddy... Tem alguma acusação contra ele?
O rosto de Graham estava pálido. Crawford estava vermelho. O Dr. Blorn observava a rotação das bobinas do gravador.
— Está me ouvindo?
— Sim, tenho uma acusação contra ele. — A voz de Graham parecia estrangulada. — Obstrução da justiça. Leve-o e detenha-o para ser ouvido pelo procurador-geral da República.
De repente Lounds estava ao telefone. Falava rápida e claramente, depois de ter tirado as bolas de algodão de dentro da boca.
— Will, ouça ...
— Diga o que tiver que dizer ao procurador-geral da República. O sargento Riddle que venha ao telefone.
— Sei umas coisas...
— Ponha Riddle ao telefone!
A voz de Crawford apareceu na linha.
— Deixe-me falar, Will.
Graham desligou com um gesto violento, o que fez com que todos que conseguiam ouvir os alto-falantes desse um pulo. Saiu da cabine e abandonou a sala sem olhar para ninguém.
— Lounds, você arranjou uma encrenca dos diabos, meu caro — disse Crawford.
— Quer apanhá-lo ou não? Eu posso ajudá-lo. Deixe-me falar só um minuto. — Em face ao silêncio de Crawford, Lounds procurou se apressar. — Ouça, você acaba de demonstrar como precisa desesperadamente do Tattler. Antes não tinha lá muita certeza, mas agora é diferente. E a prova está nessa história do anúncio do Dentuço. Se não fosse assim, você não teria vindo de peito para fisgar esta chamada. Ótimo. O Tattler está aqui à sua disposição. Tudo aquilo que você quiser.
— Como é que você descobriu?
— O chefe da seção de anúncios veio falar comigo. Disse-me que o Departamento de Chicago tinha mandado aquele manequim para verificar os anúncios. O vosso rapaz retirou cinco cartas dos anúncios recebidos. Disse que estava investigando um caso de «fraude postal». Fraude postal uma ova. O chefe da seção de anúncios tirou fotocópias das cartas e dos envelopes antes de entregá-los ao seu homem.
»Estive analisando-as. Sabia que tinha tirado cinco cartas para poder camuflar aquela que ele queria na realidade. Levei um dia ou dois para verificar tudo. A resposta estava no carimbo do envelope do Chesapeake. O número de código postal correspondia ao da zona do Hospital Psiquiátrico Chesapeake. Descobri logo que só podia ter sido o seu amigo de traseiro peludo. Quem mais poderia ter sido?
»No entanto tinha que me certificar. Foi por causa disso que telefonei, para me certificar se pulava em cima do Peregrino com unhas e dentes, e foi o que aconteceu.
— Cometeu um erro enorme, Freddy.
— Você precisa do Tattler e eu posso pô-lo à sua disposição. Anúncios, editorial, monitorização, correio recebido, qualquer coisa. Basta que me diga. E além disso sou capaz de ser discreto. Pode ter certeza que sim. Deixe-me entrar no jogo, Crawford.
— Não há nada em que possa deixá-lo entrar.
— Okay, então não há qualquer problema se alguém se lembrar de pôr seis anúncios pessoais na próxima edição. Todos destinados ao Sr. Peregrino e assinados todos da mesma maneira.
— E eu o espeto com um processo e uma acusação formal por obstrução da justiça.
— E tudo isto pode se espalhar para todos os jornais do país. — Lounds sabia que a conversa dele estava sendo gravada. Já não se importava. — Juro por Deus que faço, Crawford. Sou capaz de destruir as suas chances antes de destruir as minhas.
— Temos que acrescentar a transmissão de uma ameaça como resposta ao que acabei de lhe dizer.
— Deixe-me ajudá-lo, Jack. Pode crer que sou capaz.
— Vá para a esquadra, Freddy. Agora deixe-me falar com o sargento.
O Lincoln Versailles de Freddy Lounds cheirava a tônico capilar e loção pós barba, meias e charutos, e o sargento da polícia sentiu-se feliz quando conseguiu sair do carro ao chegarem à esquadra.
Lounds conhecia o capitão que comandava a esquadra e a maior parte dos agentes. O capitão serviu café a Lounds e telefonou para o gabinete do procurador-geral, para «tentar esclarecer toda aquela merda».
Não apareceu nenhum assistente federal por causa de Lounds. Meia hora depois, este recebeu uma chamada telefônica de Crawford no gabinete do comandante da esquadra. Depois disso, estava livre para poder ir embora. O capitão acompanhou-o ao carro.
Lounds sentia-se enervado e a sua condução era rápida e incerta, enquanto cruzava o Loop em direção a este, a caminho do seu apartamento com vista sobre o lago Michigan. Havia várias coisas que ele queria esclarecer nesta história e sabia que era capaz. Dinheiro era uma delas e sabia que havia de vir do jornal. Nas trinta e seis horas a seguir à sua captura ia verificar-se um aumento instantâneo da tiragem. Uma história exclusiva na imprensa diária ia ser um furo jornalístico. Ia ter a satisfação de ver a imprensa regular — o Chicago Tribune, o Los Angeles Times, o santificado Washington Post e o sagrado New York Times correr atrás do seu material com direitos reservados, seguindo as suas instruções e garantindo-lhes os créditos que ele pretendia.
E depois, ver os correspondentes desses augustos jornais, que tinham o hábito de olhá-lo de cima, que se recusavam a beber um copo com ele, a roerem-se de inveja.
Para eles, Lounds era um pária porque seguira princípios diferentes. Se ele tivesse sido um incompetente, um louco sem mais nenhum meio de rendimento, era possível que os veteranos da imprensa regular lhe tivessem perdoado o fato de trabalhar no Tattler, do mesmo modo que se perdoa um atrasado mental. Mas Lounds era bom. Tinha as qualidades de um bom repórter: inteligência, coragem e uma vista apurada. Tinha uma enorme vitalidade e tinha paciência.
Havia contra ele o seu comportamento, o que fazia que fosse detestado pelos diretores de notícias, isto além de ser incapaz de se manter afastado das suas histórias.
Em Lounds havia a necessidade desesperada de ser notado, o que muitas vezes o fazia cometer erros. Era coxo, feio e de pequena estatura. Tinha dentes de cavalo e os seus olhos de rato tinham o brilho de cuspe no asfalto.
Trabalhara dez anos na imprensa regular até se ter convencido de que nunca ninguém o mandaria a lugar nenhum, nem mesmo à Casa Branca. Verificou que os seus editores se serviriam dele, que o utilizariam até chegar a altura em que não passaria de um boneco arrebentado e bêbado, que passaria os seus últimos dias sentado numa escrivaninha, inútil, caminhando a passos largos para uma cirrose ou para qualquer outra coisa igualmente triste.
Queriam a informação que ele pudesse obter, mas não queriam Freddy. Pagavam-lhe de acordo com o topo da escala, o que não se podia dizer que fosse muito quando tinha que comprar mulheres. Batiam-lhe nas costas e diziam-lhe que tinha montes de coragem, mas recusavam-se a inscrever o seu nome num dos lugares do parque de estacionamento.
Uma noite, em 1969, quando se encontrava no escritório refazendo um artigo, Freddy teve a sua epifania.
Frank Larkin encontrava-se próximo dele, recebendo uma reportagem ao telefone. No jornal onde Freddy trabalhava, receber reportagens por telefone era o prato forte dos velhos repórteres que trabalhavam ali. Frank Larkin tinha cinqüenta e cinco anos, mas parecia que tinha setenta. Os seus olhos pareciam ostras e de meia em meia hora ia ao armário para beber. Do lugar onde se encontrava, Freddy conseguia sentir-lhe o cheiro.
Larkin levantou-se e arrastou-se até o intercomunicador, falando num murmúrio gutural com o editor de notícias, uma mulher. Freddy tinha o hábito de ouvir as conversas das outras pessoas.
Larkin pediu-lhe que mandasse buscar um absorvente higiênico da máquina que se encontrava no banheiro das senhoras. Tinha que usá-los no traseiro, que sangrava.
Freddy parou de escrever. Tirou o artigo da máquina, colocou novo papel e escreveu uma carta de demissão.
Uma semana depois estava trabalhando no Tattler.
Começou como editor de casos de câncer, com um vencimento que andava próximo do dobro do que ganhava antes. A administração mostrava-se impressionada com a sua conduta.
O Tattler podia permitir-se pagar bem porque os casos de câncer eram extraordinariamente lucrativos.
Um em cada cinco americanos morria de câncer. Os parentes dos moribundos, arrasados, fatigados de tanto rezarem, tentavam lutar contra um carcinoma devastador com pancadas nas costas, pudim de banana e anedotas que tinham o gosto amargo do fel, e acolhiam qualquer coisa que lhes trouxesse uma esperança.
Os analistas de mercado demonstravam que um cabeçalho direto, como «Nova cura para o câncer» ou «Medicamento milagroso para o câncer», aumentava as vendas nos supermercados de qualquer edição do Tattler em cerca de vinte por cento. Podia verificar-se uma queda de seis pontos nessas vendas quando a história era publicada logo a seguir ao cabeçalho, na primeira página, o que permitia que os clientes a lessem logo na banco, enquanto a caixa totalizava o preço das compras.
Os analistas de mercado chegaram à conclusão de que o ideal era publicar o cabeçalho a cores na primeira página e o artigo nas páginas centrais, o que fazia que fosse muito mais difícil manter o jornal aberto ao mesmo tempo que se conduzia o carrinho de compras e se manejava a carteira.
A história básica não devia ter mais de cinco parágrafos, em tom otimista, em letra de corpo dez, diminuindo progressivamente o corpo da letra até citar que a «droga milagrosa» não se encontrava disponível ou que a investigação animal só tinha começado agora.
Freddy ganhou o seu dinheiro com estas histórias e as histórias venderam montes de exemplares do Tattler.
Para aumentar o número de leitores havia ainda os anúncios de venda por correspondência de medalhões milagrosos e de roupas que curavam. Os fabricantes destes artigos pagavam um prêmio para poderem ter os seus anúncios publicados próximos da história semanal sobre o câncer.
Muitos leitores escreviam para o jornal pedindo mais informações. Com isto obtinham-se rendimentos adicionais, vendendo os seus nomes a um «evangelizador» da rádio, um sociopata que só sabia gritar e que lhes escrevia pedindo dinheiro, usando envelopes com um carimbo que dizia: «Alguém que você ama morrerá a não ser que...»
Freddy Lounds era bom para o Tattler e o Tattler era bom para ele. Atualmente, após onze anos trabalhando para o jornal, ganhava razoavelmente. Fazia mais ou menos aquilo que lhe apetecia e gastava o dinheiro se divertindo. Dentro das suas possibilidades, vivia tão bem quanto lhe era possível.
Da maneira como as coisas estavam, acreditava que era capaz de aumentar os seus rendimentos com as tiragens, além dos direitos que pudessem surgir por causa de um eventual filme. Tinha ouvido dizer que Hollywood era um lugar excelente para tipos obnóxios e com dinheiro.
Freddy sentia-se bem. Desceu a rampa em direção à garagem subterrânea do edifício onde morava e estacionou no seu lugar reservado com um chiar de borracha dos pneus. Ali, na parede, encontrava-se pintado o seu nome em letras de um pé de altura, assinalando o seu local privativo: «Sr. Frederick Lounds».
Wendy já tinha chegado — o seu Datsun estava estacionado no lugar depois do seu. Ótimo. Tinha vontade de levá-la junto na sua viagem a Washington. Enquanto subia no elevador ia assobiando uma melodia em voga.
Wendy estava fazendo as malas. Toda a vida tinha vivido no meio de malas, o que lhe proporcionava sempre bom trabalho.
Impecável nos seus jeans e blusa estampada, os cabelos castanhos apanhados num rabo de cavalo que lhe caía da nuca, podia confundir-se perfeitamente com uma garota do campo se não fosse a sua extrema palidez e as suas formas. O aspecto de Wendy era quase uma caricatura da puberdade.
Olhou para Lounds com olhos de quem já não se surpreende com nada. Viu que ele estava tremendo.
— Anda trabalhando demais, Roscoe. — Gostava de chamá-lo de Roscoe e o que era certo era que lhe agradava, embora não soubesse dizer porquê. — Em qual conexão vai, no avião das seis? — Trouxe-lhe uma bebida e tirou de cima da cama um terno de duas peças e a pasta para que ele pudesse se deitar. — Posso levá-lo ao aeroporto. Só tenho que ir ao clube depois das seis.
Wendy City era o bar topless onde ela trabalhava e já não era obrigada a dançar. Lounds tinha sido um dos responsáveis pela situação.
— Quando me telefonou parecia a Toupeira Morocco — disse ela.
— Quem?
— Sabe perfeitamente quem é, aparece na televisão no sábado de manhã, é muito misteriosa e ajuda o Esquilo Agente Secreto. Era o programa que costumávamos assistir quando pegou a constipação... Hoje conseguiu uma coisa importante, não conseguiu? Não cabe dentro de si.
— Pode crer que sim. Hoje me arrisquei e valeu a pena. Consegui uma oportunidade que deve ser estupenda.
— Tem tempo para uma soneca antes de partir. Está despencando.
Lounds acendeu um cigarro. Embora já tivesse outro no cinzeiro, que ardia lentamente.
— Sabe de uma coisa? — disse ela. — Aposto que, se acabasse a bebida e se deitasse, seria capaz de dormir um bocadinho.
O rosto de Lounds, comprimido como um punho contra a nuca dela, descontraiu-se por fim, tornou-se de repente flexível, do mesmo modo como um punho fechado se transforma numa mão. Os tremores tinham passado. Contou-lhe tudo num murmúrio, com a boca quase colada no vale dos seus volumosos seios, enquanto ela, com um dedo, desenhava oitos na sua nuca.
— Só mostra como você é inteligente, Roscoe — disse ela. — Mas agora vai dormir. Acordo-o quando estiver na hora para o avião. Fique descansado porque vai correr tudo bem. Quando tudo tiver acabado vamos nos divertir muito.
Murmuraram os locais que iriam visitar. Até que ele adormeceu.
O Dr. Alan Blorn e Jack Crawford sentavam-se em cadeiras de dobrar, a única mobília que tinha ficado no gabinete de Crawford.
— O bar está vazio, Doutor.
O Dr. Blorn estudava a face simiesca de Crawford enquanto tentava adivinhar o que viria a seguir. Além das indisposições de Crawford e da sua mania de tomar Alka-Seltzer, o Dr. Blorn conseguia distinguir nele uma inteligência fria como gelo.
— Onde o Will foi?
— Foi dar um passeio para se acalmar — disse Crawford. Ele odeia Lounds.
— Ele teve medo de perder Will quando Lecter divulgou seu endereço? Pensou que ele pudesse voltar para a sua família?
— Por momentos fiquei convencido disso. Foi uma coisa que o abalou muito.
— É compreensível — disse Blorn.
— Depois verifiquei que não lhe é possível voltar para casa, nem Molly e Willy, não há qualquer hipótese sem que o Dentuço esteja afastado do caminho.
— Conhece a Molly?
— Conheço. É estupenda, gosto dela. É evidente que o desejo dela era me ver no inferno. No momento tenho que me manter afastado.
— Está convencida de que você está usando Will?
Crawford olhou para o Dr. Blorn com um olhar astuto.
— Tenho uns assuntos para discutir contigo. São coisas que temos que verificar em conjunto. Quando tem que estar em Quântico?
— Só na terça de manhã. É a única coisa que tenho que fazer. — O Dr. Blorn era leitor convidado da Seção de Ciência do Comportamento na Academia do FBI.
— Graham gosta de você. Não é capaz de imaginar que você possa ter algum jogo escondido a respeito dele — disse Crawford. A observação de Blorn de que ele estava usando Will tinha-o atingido.
— E não tenho. Nem sequer me daria ao trabalho de tentar — disse Blorn. — Sou tão honesto com ele como seria com qualquer paciente.
— Exatamente.
— Não, quero ser seu amigo e o sou na realidade. Jack, estou habituado a observar por causa da minha especialidade. Lembre-se, no entanto, que quando você me pediu um estudo sobre ele, eu recusei.
— Foi Petersen, do andar de cima, que pediu o estudo.
— Foi você que pediu. Não interessa, se alguma vez tiver que fazer qualquer coisa a Graham, se houver mesmo qualquer coisa que possa beneficiar terapeuticamente outros, o farei de uma forma tão impessoal que será totalmente irreconhecível. Se alguma vez fizer qualquer coisa de natureza acadêmica, só será publicada postumamente.
— Depois de você ou depois de Graham?
O Dr. Blorn não respondeu.
— Uma coisa que eu notei, e sobre a qual sinto uma certa curiosidade: você não é capaz de ficar sozinho numa sala com Graham, não é? Sempre se conseguiu desembaraçar muito bem, mas nunca esteve frente a frente com ele. Qual é a razão disto tudo? Acha que ele é médium, é isso?
— Não, é um eideteker, tem uma memória visual absolutamente extraordinária, mas não penso que seja médium. Se assim fosse, nunca deixaria que Duke lhe fizesse um teste, embora isso possa não ter qualquer significado. Detesta ser examinado e testado, mas acontece o mesmo comigo.
— Mas...
— Will quer pensar nisto como se fosse um simples exercício intelectual e dentro da limitada definição da ciência forense, isso é que é na realidade. É bom nesse campo, mas acho que há pessoas tão boas como ele.
— Não muitas — disse Crawford.
— Além disso tem uma coisa que só se pode classificar como empatia pura e projeção — disse o Dr. Blorn. — Pode concordar com o seu ponto de vista, ou com o meu, e talvez até com outros pontos de vista que o aterrorizem e que possam deixá-lo doente. É um dom que se torna muito desconfortável, Jack. A percepção é uma ferramenta que pode ser usada nos dois sentidos.
— Por que você nunca fica sozinho com ele?
— Porque tenho uma certa curiosidade profissional a seu respeito e é uma coisa que ele perceberia num instante. É muito rápido.
— Se o apanhasse espiando seria capaz de baixar as persianas.
— É uma analogia, desagradável, mas não deixa de ser exata. Já teve a sua vingança, Jack. Vamos ao que interessa. E de uma forma resumida. Não me sinto muito bem.
— Uma manifestação psicossomática, provavelmente — disse Crawford.
— Neste momento é um problema com a minha vesícula. O que é que você pretende?
— Tenho um «médium» que me permite falar com o Dentuço.
— O Tattler — disse Blorn.
— Isso mesmo. Acha que haverá algum meio de o empurrarmos para um caminho autodestrutivo com aquilo que lhe possamos dizer?
— Levá-lo ao suicídio?
— O suicídio lhe cairia bem mesmo.
— Tenho dúvidas. Em certos casos de doenças mentais isso pode ser possível. Neste caso, tenho dúvidas. Se ele fosse autodestrutivo não seria tão cuidadoso, não se protegeria tão bem. Se ele fosse um esquizofrênico paranóico clássico, você seria capaz de influenciá-lo para que ele se tornasse visível. Poderia até levá-lo a fazer mal a si mesmo. De qualquer modo, não seria capaz de ajudá-lo. — O suicídio era um inimigo mortal de Blorn.
— Não, estou convencido que não — disse Crawford. Acha que conseguiríamos enraivecê-lo?
— Por que quer saber? Para que fim?
— Deixe-me fazer esta pergunta: seria possível enraivecê-lo e fixar a sua atenção?
— Já está fixado em Graham como seu adversário, e você sabe disso. Não se disperse. Está decidido a safar o pescoço de Graham, não está?
— Acho que tenho que fazê-lo. Ou é assim ou ele vai suar no dia 25. Ajude-me.
— Não estou muito certo de que você saiba o que está pedindo.
— Conselhos, é o que eu estou pedindo.
— Não me refiro a mim — disse o Dr. Blorn. — É o que você está pedindo a Graham. Não quero que interprete isto mal, eu normalmente não diria uma coisa dessas, mas acho que tem que saber: o que é que você pensa que constitui uma das mais fortes motivações de Will?
Crawford abanou a cabeça, indicando que não sabia.
— É medo, Jack. O homem tem que se defrontar com uma quantidade enorme de medo.
— Porque se feriu?
— Não, não na sua totalidade. O medo surge com a imaginação, é uma penalização, é o preço da imaginação.
Crawford ficou olhando para as suas mãos duras cruzadas sobre o estômago. Corou. Era embaraçoso falar sobre isso.
— Certo. Não se preocupe em me dizer que ele tem medo. Não sou tão burro assim, Doutor.
— Nunca pensei que você o fosse, Jack.
— Nunca o enviaria lá para fora se não fosse capaz de protegê-lo. Okay, se não pudesse protegê-lo em oitenta por cento. Ele não é mau. Não é o melhor, mas é rápido. Nos ajuda a pescar o Dentuço, Doutor? Já morreu uma série de gente.
— Só se Graham souber na sua totalidade o risco que tem à sua frente e o assumir voluntariamente. Quero ouvi-lo dizer isso.
— Sou como o senhor, Doutor. Nunca o engano. Ou pelo menos não o faço mais do que é costume fazermos uns aos outros.
Crawford encontrou Graham no pequeno gabinete de trabalho que ficava próximo do laboratório de Zeller, onde tinha se instalado e que estava cheio de fotografias e de artigos pessoais das vítimas.
Crawford esperou até que Graham pousasse o Law Enforcement Bulletin que estava lendo.
— Deixe-me lhe dar uma idéia do que está organizado para o dia 25. — Não precisava dizer a Graham que o próximo dia 25 seria dia de lua cheia.
— É o dia em que ele vai repetir a gracinha?
— Sim, se tivermos qualquer coisa que corra mal nesse dia.
— É quase certo.
— Ambas as vezes foi num sábado à noite. Birmingham, 28 de Junho, lua cheia, e caiu num sábado à noite. 26 de Julho, em Atlanta, foi um dia antes da lua cheia, mas também foi num sábado à noite. Desta vez a lua cheia cai numa segunda-feira, 25 de Agosto. Parece que gosta dos fins-de-semana, mas, mesmo assim, estaremos prontos à partir de sexta-feira.
— Prontos? Estaremos prontos?
— Correto. Sabe como é que vem no manual: a maneira ideal de investigar um homicídio?
— Nunca vi nada feito dessa maneira — disse Graham. Isso nunca funciona assim.
— Não. Praticamente nunca. No entanto seria estupendo se fôssemos capazes de fazê-lo: mandar um homem. Apenas um. Deixá-lo ir ao local. Equipado com um transmissor e vai falando continuamente. Tem o lugar todo por conta dele pelo tempo que quiser. Só ele... só você.
Seguiu-se uma longa pausa.
— O que está querendo me dizer?
— Para começar, a noite de sexta-feira, 22, temos um Grumman Gulfstream em alerta permanente na Base da Força Aérea de Andrews. Consegui emprestado do Ministério do Interior. Tem o equipamento básico de laboratório montado. Ficaremos aguardando: eu, você, Zeller, Jimmy Price, um fotógrafo e dois elementos da Seção de Interrogatórios. Logo que a chamada chegue, estaremos a caminho. Podemos estar em qualquer ponto do Leste ou do Sul em uma hora e quinze minutos.
— E os residentes? Não são obrigados a cooperar. Não vão esperar.
— Estamos cobrindo todos os chefes de polícia e departamentos de xerifes. Um por um. Estamos pedindo que as ordens sejam transmitidas a todos os despachantes e oficiais de serviço.
Graham abanou a cabeça.
— Tolice. Eles não colaborariam. Nem poderiam.
— O que nós pedimos não é tanto assim. Pedimos que, quando e se chegar um relatório, os primeiros agentes em cena se desloquem para inspecionar. O pessoal médico vai a seguir e certifica-se se não há sobreviventes. Se for assim, voltam a sair. Barreiras de estradas e interrogatórios, podem fazer como eles quiserem, mas a cena fica selada até que nós cheguemos. Quando nós aparecermos, você entra. Usa o transmissor. Só fala para nós quando sentir que vale a pena, não faça nada quando vir que não é necessário ou não tem interesse. Leve o tempo que quiser. A seguir nós entramos.
— As pessoas de lá não vão esperar.
— Evidentemente que não. Vão mandar alguns elementos dos Homicídios. Mas de qualquer modo, o pedido sempre terá algum efeito. Vai reduzir muito o tráfico no local e vai encontrar as pistas frescas.
Frescas. Graham inclinou a cabeça para trás, encostando-a na cadeira, e ficou olhando para o teto.
— Evidentemente — disse Crawford — que ainda temos treze dias antes desse fim-de-semana.
— Bolas, Jack.
— Bolas porquê? — disse Crawford.
— Parece que quer me matar.
— Não estou entendendo.
— Não finja. O que você decidiu foi me usar como isca porque não tinha mais nada. É por causa disso que, antes que faça a pergunta, vai me dizer exatamente até que ponto vai ser perigoso desta próxima vez. E deixe de psicologia barata, que só é boa para ser usada num estupor de um idiota qualquer. O que acha que eu diria? Está preocupado, com medo de que eu já não tenha tomates desde aquilo que aconteceu com o Lecter?
— Não.
— Não posso censurá-lo pelo fato de ter pensado isso. Ambos conhecemos gente a quem aconteceu isso. Detesto a idéia de ser obrigado a andar com um colete Kevlar, com a coronha da arma saindo de um dos bolsos. Mas, porra, agora estou metido nisso até os cabelos. Não podemos ir para casa enquanto ele andar à solta.
— Nunca pensei que o fizesse.
Graham viu que ele era sincero.
— Há mais qualquer coisa, não há?
Crawford não disse nada.
— Molly, nem pense. De maneira nenhuma.
— Meu Deus, Will, nem seria capaz de te pedir uma coisa dessas.
Graham ficou olhando para ele por alguns momentos.
— Oh, pelo amor de Deus, Jack. Decidiu fazer o jogo de Freddy Lounds, não foi? Você e o Freddy fizeram um acordo.
Crawford ficou olhando para uma pinta que tinha na gravata. Por fim ergueu o olhar para Graham.
— Você sabe que é a melhor maneira de lançar o anzol. O Dentuço vai passar o Tattler de fio a pavio. Quem mais nós temos?
— E tem que ser Lounds a fazê-lo?
— É ele que trabalha no Tattler.
— Então o programa é mandar umas bocas no Tattler a respeito do Dentuço e depois lhe damos um tiro. Acha que isto é melhor do que a caixa postal? Não vale a pena responder a isso, sei que é. Falou com Blorn a este respeito?
— Só de passagem. Vamos nos encontrar com ele. E com Lounds. Vamos desenvolver a operação da caixa postal ao mesmo tempo.
— E a respeito da encenação? Tenho a impressão de que tenho que sugerir algum lugar que tenha uma boa vista, ao ar livre. Um lugar qualquer de onde ele possa se aproximar. Não estou a vê-lo como atirador especial. Pode ser que me engane, mas não estou a imaginá-lo com uma espingarda.
— Vamos ter vigias fixos nos pontos elevados.
Estavam pensando a mesma coisa. O colete Kevlar conseguia deter os projéteis de nove milímetros do Dentuço e a sua faca, antes que Graham fosse atingido. Não havia qualquer modo de protegê-lo contra um tiro na cabeça, se um atirador escondido tivesse a oportunidade de disparar.
— Fale você com o Lounds. Não quero fazer isso.
— Ele precisa entrevistá-lo, Will — disse Crawford suavemente. — Tem que tirar uma fotografia sua.
Blorn tinha avisado Crawford de que este ia ser o ponto mais difícil.
Quando chegou a hora, Graham surpreendeu tanto Crawford como Blorn. Parecia ansioso para se encontrar com Lounds e, apesar dos frios olhos azuis, tinha uma expressão afável.
O fato de se encontrar na sede do FBI tivera um efeito positivo no comportamento de Lounds. Era delicado quando se lembrava de ser e fazia o seu trabalho rapidamente e em silêncio.
Graham irritou-se uma única vez: recusou frontalmente que Lounds pudesse ver o diário da Sra. Leeds ou qualquer correspondência particular de ambas as famílias.
Quando a entrevista começou, respondeu às perguntas de Lounds de uma maneira civilizada. Ambos os homens consultaram notas tiradas na conferência que tinham tido com o Dr. Blorn. As perguntas e as respostas foram muitas vezes reconstruídas.
Alan Blorn estava convencido de que era difícil esquematizar as coisas até o mais ínfimo pormenor. Por último resolveu-se expor simplesmente as suas teorias sobre o Dentuço. Os outros ouviam como estudantes de karate numa aula de Anatomia.
O Dr. Blorn citou que o comportamento do Dentuço e a sua carta indicavam um esquema de projeção de ilusões que o compensavam de sentimentos intoleráveis de inadaptação. O estilhaçar dos espelhos relacionava esses sentimentos com a sua aparência.
A objeção do assassino ao nome «Dentuço[3]» era baseada nas implicações psicológicas do nome. Blorn acreditava que ele tinha um conflito homossexual inconsciente, um medo terrível de ser gay. A opinião de Blorn era reforçada por uma curiosa observação que tinha sido feita na casa dos Leeds: as marcas de dobras e manchas de sangue tapadas indicavam que o Dentuço tinha vestido uns shorts em Charles Leeds depois deste ter morrido. O Dr. Blorn acreditava que ele tinha feito aquilo para salientar a ausência de interesse que tinha em Leeds.
O psiquiatra falou dos fortes elos de ligação que se encontram entre os comportamentos agressivos e sexuais de sádicos logo na primeira fase da sua vida.
Os ataques selvagens contra mulheres, executados na presença das suas famílias, representavam nitidamente ataques a uma figura maternal — Blorn, andando de um lado para o outro, dizendo metade das coisas quase que para ele mesmo, classificava o indivíduo como «filho de um pesadelo». Crawford baixou os olhos, sentindo a compaixão que havia na sua voz.
Na entrevista com Lounds, Graham fez afirmações que nenhum investigador faria e às quais nenhum jornal daria crédito.
Especulou dizendo que o Dentuço era feio, impotente com pessoas do sexo oposto, e afirmava falsamente que o assassino tinha molestado sexualmente as suas vítimas masculinas. Graham disse que o Dentuço era a maior piada que tinha conhecido em toda a sua vida e sem dúvida o resultado de uma relação incestuosa.
Salientou ser evidente que o Dentuço não era tão inteligente como Hannibal Lecter. Prometeu fornecer ao Tattler mais indicações e pontos de vista sobre o assassino, à medida que lhe ocorressem. Disse mesmo que muitos agentes da lei não concordavam com ele, mas enquanto dirigisse a investigação, o Tattler podia ter a certeza de que teria da parte dele todas as informações disponíveis.
Lounds tirou uma quantidade enorme de fotografias.
A fotografia de base tinha sido tirada no «esconderijo de Graham em Washington», um apartamento que ele tinha pedido emprestado até «conseguir esmagar o Dentuço». Era o único lugar onde conseguia «encontrar solidão» na «atmosfera agitada» da investigação.
A fotografia mostrava Graham em roupão de banho sentado a uma escrivaninha, trabalhando a altas horas da noite. Representava uma «concepção de artista» do Dentuço absolutamente grotesca.
Atrás dele podia se ver através da janela parte da cúpula do Capitólio iluminada. Mais importante ainda, no canto inferior esquerdo da janela, desfocado, mas legível, distinguia-se o anúncio de um motel conhecido do outro lado da rua.
Se quisesse, o Dentuço podia encontrar o apartamento.
Na sede do FBI, Graham foi fotografado junto a um espectrômetro de massa. Não tinha nada a ver com o caso, mas Lounds achou que dava um certo toque.
Graham chegou ao ponto de concordar que tirassem uma fotografia com Lounds, em que este o entrevistava. Tiraram esta fotografia diante dos imensos armeiros da seção de Armas de Fogo e Ferramentas. Lounds empunhava uma automática de nove milímetros do mesmo tipo da arma do Dentuço. Graham apontava para o silenciador de fabricação caseira, feito de um pedaço de tubo de antena de televisão.
O Dr. Blorn ficou surpreendido quando viu que, antes de Crawford disparar a máquina fotográfica, Graham colocava uma mão no ombro de Lounds num gesto amistoso de camaradagem.
A entrevista e as fotografias deviam ser publicadas no Tattler do dia seguinte, segunda-feira, 11 de Agosto. Logo que reuniu todo o material, Lounds partiu para Chicago. Disse que queria supervisionar a composição pessoalmente. Combinou se encontrar com Crawford na terça de tarde a cinco quarteirões da armadilha.
A partir de terça-feira, quando o Tattler se encontrava em todas as bancas, encontravam-se montadas duas armadilhas para o monstro.
Graham passaria a ir todas as noites à sua «residência temporária» mostrada na fotografia do Tattler.
Na mesma edição, um anúncio pessoal codificado convidava o Dentuço a deslocar-se a uma caixa postal em Annapolis, que passou a ser vigiada durante vinte e quatro horas por dia. Se ele desconfiasse da caixa postal, poderia pensar que o esforço para apanhá-lo tinha sido concentrado ali. A partir daí, Graham passaria a ser um alvo muito mais atraente, raciocinou o FBI.
As autoridades da Florida forneceram uma vigilância permanente em Sugarloaf Key.
Havia um ar de descontentamento entre os caçadores — duas operações de primeira grandeza ocupavam mão-de-obra que podia ser utilizada em outros trabalhos, e a presença de Graham todas as noites na armadilha limitava os seus movimentos na área de Washington.
Embora Crawford pensasse que esta era a melhor maneira de proceder, o plano era passivo demais para o seu gosto. Tinha a sensação de que estavam brincando com eles mesmos na escuridão da lua, com menos de duas semanas antes que ela se erguesse novamente como lua cheia.
O domingo e a segunda passaram de uma forma curiosamente agitada Os minutos arrastavam-se e as horas parecia que voavam.
Na segunda-feira de tarde, Spurgen, chefe de instrutores SWAT em Quântico, circundou o bloco de apartamentos. Graham ia ao seu lado e Crawford seguia no assento de trás.
— O tráfico de peões diminuiu por volta das sete e quinze. É a hora que todo mundo se prepara para jantar — disse Spurgen. Com um corpo compacto e peludo e o boné de baseball puxado para trás, parecia-se mais com um jogador. — Amanhã a noite, quando atravessar a linha da estrada de ferro da B&O, dê-nos um sinal na banda livre. Tente fazê-lo entre as oito e trinta e as oito e quarenta. — Entrou no parque dos apartamentos. — Esta disposição não é uma maravilha, mas podia ser pior. Amanhã à noite vai estacionar aqui. A partir daí vamos mudar todas as noites o local onde vai estacionar, mas será sempre deste lado. São setenta e cinco jardas para a entrada dos apartamentos. Vamos a pé.
Spurgen, baixo e de pernas arqueadas, caminhou na frente de Graham e de Crawford.
Anda à procura de lugares onde possa apanhar o bandido, pensou Graham.
— Provavelmente será no caminho a pé que a coisa acontecerá, se chegar a acontecer — disse o chefe da SWAT. — Veja, daqui temos uma linha direta do seu carro até à entrada dos apartamentos, um caminho natural passando pelo centro do parque. Fica tão longe quanto possível da linha de carros que estarão aqui durante todo o dia. Será obrigado a caminhar em campo aberto para se aproximar. Ouve bem?
— Perfeitamente — disse Graham. — Bem demais neste parque.
Spurgen tentou descobrir qualquer coisa no rosto de Graham, mas não encontrou nada que conseguisse reconhecer. Parou no meio do parque.
— Vamos reduzir levemente a intensidade de iluminação destes postes para tornar as coisas mais difíceis para um homem munido de uma espingarda.
— Também será mais difícil para o seu pessoal — disse Crawford.
— Dois dos nossos têm sistemas Startron de visão noturna — disse Spurgen. — Além disso, vou pedir para pulverizar os seus casacos com um spray incolor que vou lhe dar, Will. A propósito, não se esqueça de que, esteja o calor que estiver, tem que usar permanentemente colete à prova de bala. Certo?
— De acordo.
— O que é?
— É Kevlar... o quê, Jack? Segunda oportunidade?
— Segunda oportunidade — disse Crawford.
— É quase certo que se dirigirá a você, provavelmente vindo da retaguarda, ou poderá pensar em seguir em frente, voltando-se para disparar quando o tiver ultrapassado — disse Spurgen. — Já disparou na cabeça por sete vezes, não foi? Viu que isso funciona. Tentará fazer o mesmo com você, se lhe der tempo para tanto. Não lhe dê tempo para isso. Depois que lhe mostrar algumas coisas na entrada e no patamar, vamos à linha de tiro. Tem dúvidas? É capaz de agir como eu lhe disse?
— Ele é capaz — disse Crawford.
Na linha de tiro, Spurgen era uma autoridade. Obrigou Graham a colocar tampões e protetores de orelhas e apresentava-lhe alvos que surgiam dos mais variados ângulos. Sentiu-se aliviado porque Graham não usava o 38 regulamentar, mas o flash que saía do cano preocupava-o. Trabalharam durante duas horas. Insistiu em verificar o cilindro do 44 de Graham quando este acabou de disparar.
Graham tomou um chuveiro e mudou de roupa para se libertar do cheiro de fumaça da pólvora, antes de se por a caminho para a sua última noite livre com Molly e Willy.
Depois de jantar, levou a esposa e o enteado ao supermercado, onde fez uma considerável escolha de melões. Preocupou-se em se abastecessem abundantemente — a última edição do Tattler ainda estava nas estandes junto às caixas e fazia votos para que Molly não visse a edição seguinte na próxima manhã. Não queria lhe dizer o que estava acontecendo.
Quando ela perguntou o que ele queria para o jantar na semana seguinte, teve que lhe dizer que estaria ausente, que tinha que voltar a Birmingham. Era a primeira verdadeira mentira que tinha dito, e a consciência disso fazia-o sentir-se imensamente desconfortável.
Ficou a olhá-la no seu passeio pelos corredores do supermercado: Molly, a sua irrequieta e linda esposa, com a sua incessante vigilância no despiste de caroços, a sua insistência em exames médicos periódicos para ele e para Willy, o seu medo controlado do escuro, o seu conhecimento, adquirido às custas de muito sacrifício, de que tempo é felicidade. Conhecia o valor dos seus dias. Podia reter um momento pelo seu valor. Tinha-o ensinado a aproveitar tudo o que surgia.
Pachelbel’s Canon enchia o quarto inundado de sol onde tinham se conhecido e havia um sentimento de exultação impossível de ocultar — mesmo assim, o medo pairava no ar como a sombra de uma fera: era bom demais para durar muito.
Molly, nas suas deslocações nos corredores do supermercado de um lado para o outro, mudava freqüentemente a bolsa que trazia a tiracolo de um ombro para o outro, como se a arma que trazia na bolsa exterior pesasse demais.
Graham ocupou-se finalmente dos melões, blasfemando enquanto fazia a sua escolha, escandalizando-se ele mesmo com a sua linguagem.
Carregados de modos diferentes, com mentiras, armas e artigos de mercearia, os três constituíam uma pequena e curiosa tropa.
Molly pressentiu um rato, mas não disse a Graham até as luzes se apagarem. Teve um pesadelo com pegadas que se dirigiam para uma casa onde os quartos mudavam constantemente.
Há uma tabacaria para jornais no Aeroporto Internacional de Lambert, em Saint Louis, que tem a maior parte dos jornais publicados nos Estados Unidos. Os jornais de New York, Washington, Chicago e Los Angeles são transportados por via aérea, pelo que podem ser comprados no mesmo dia em que são publicados.
Como acontece em muitas tabacarias, esta faz parte de uma cadeia onde é costume haver também, juntamente com as revistas standard e os jornais, alguma quinquilharia.
Quando foi feita a entrega do Chicago Tribune, às dez horas da segunda-feira à noite, um molho de jornais Tattler amarrados encontrava-se no chão. O molho ainda estava morno no meio.
O empregado da tabacaria trabalhava em frente das estantes, distribuindo os Tribune. Tinha muito que fazer. Já era hábito os empregados de serviço durante o dia não executarem a parte do serviço que lhes competia.
No meio de toda esta azáfama percebeu a presença de um par de botas pretas com fecho de correr. Um turista. Não, as botas apontavam para ele. Alguém que queria realmente alguma coisa. O empregado da tabacaria queria acabar de arrumar os seus Tribune, mas a atenção insistente do cliente deixou-o irritado.
O seu negócio era direto. Não precisava ser amável.
— O que deseja — disse ele, falando sem se levantar.
— Dê-me um Tattler.
— Tem que esperar até eu desatar o molho.
As botas não se afastaram. Estavam muito próximas.
— Já lhe disse que tem que esperar até que eu desate o molho. Compreendeu? Não vê que estou trabalhando?
Uma mão, um lampejo de aço brilhante e a corda do molho que se partiu com um som estranho. Um dólar que caiu no chão à sua frente. Uma cópia fresca do Tattler tirada do meio do molho fez que as outras caíssem no chão.
O empregado pôs-se de pé. Tinha o rosto congestionado. O outro afastava-se com o jornal debaixo do braço.
— Hei! hei, você.
O homem voltou o rosto para ele.
— Eu?
— Sim, você. Eu disse que...
— Disse-me o quê? — Aproximava-se até ficar muito próximo. — Disse-me o quê?
Normalmente um negociante consegue, com modos rudes, intimidar os seus clientes, mas havia qualquer coisa de terrível na calma deste.
O empregado olhou para o chão.
— Tenho que lhe dar o troco.
Dolarhyde voltou-lhe as costas e se afastou. O rosto do empregado da tabacaria ficou ardendo por mais de meia hora. É isso, este tipo esteve aqui na semana passada também. Se ele voltar de novo lhe digo onde é que ele deve ir. Tenho uma coisa especial debaixo do balcão para os espertinhos.
Dolarhyde não olhou para o Tattler enquanto estava no Aeroporto. A mensagem que Lecter lhe mandara na última quinta-feira deixara-o confuso. Evidentemente que o Dr. Lecter tivera razão quando lhe disse que ele era lindo, e era excitante ler uma coisa dessas. Ele era lindo. Sentiu-se satisfeito pelo receio do Doutor em relação ao policial. Lecter parecia não ser capaz de compreender muito melhor do que o público.
No entanto, estava se coçando para saber se Lecter tinha mandado outra mensagem. Só ia ver quando chegasse em casa. Dolarhyde tinha orgulho no seu autocontrole.
Enquanto dirigia, pensava no que acontecera com o empregado da tabacaria.
Houve uma altura em que teria pedido desculpa por ter incomodado o homem e não voltaria a pôr os pés na tabacaria. Durante anos tinha aceitado toda a merda que as outras pessoas lhe tinham dado. Mas isso acabara. O homem podia ter insultado Francis Dolarhyde: mas não podia enfrentar o Dragão. Tudo fazia parte do renascer.
À meia-noite a luminária de sua escrivaninha ainda estava acesa. A mensagem do Tattler fora descodificada, para depois a amassar e jogar no chão. Pedaços do Tattler estavam espalhados por todos os lados, depois de Dolarhyde ter recortado os artigos para o seu diário. O grande volume permanecia aberto diante da pintura do Dragão, a cola ainda secando nos pontos em que tinham sido colados novos artigos. Por baixo deles, recentemente fixado, havia um pequeno saco de plástico que, por enquanto, ainda se encontrava vazio.
A legenda ao lado do saco dizia: «Com estes ele me ofendeu». Mas Dolarhyde já não estava na escrivaninha.
Estava sentado nas escadas do subsolo, envolvido pela umidade da terra e do bolor. A luz da lanterna elétrica percorreu as mobílias protegidas com panos, as costas poeirentas dos grandes espelhos que outrora estiveram pendurados na casa e que agora jaziam de encontro às paredes, a arca contendo a sua mala de dinamite.
A luz da lanterna deteve-se numa forma alta, envolvida em panos, uma das muitas que se encontravam no canto mais distante do subsolo. Teias de aranha roçaram-lhe o rosto quando se dirigiu para lá. O pó que se levantou quando tirou a cobertura de pano o fez espirrar.
Reteve as lágrimas enquanto fazia que a luz se refletisse na velha cadeira de rodas em carvalho que tinha descoberto. Era de costas altas, pesada e forte, uma das três que se encontravam no subsolo. O condado as tinha fornecido à sua avó em 1940, na altura em que ela dirigia um lar naquela mesma casa.
As rodas chiaram enquanto empurrava a cadeira pelo assoalho. Apesar do seu peso, transportou-a facilmente pelas escadas acima. Quando chegou à cozinha oleou as rodas. As pequenas rodas da frente ainda chiavam, mas as rodas de trás tinham bons rolamentos e giravam livremente com um pequeno toque do seu dedo.
A ira devastadora que sentia abrandou um pouco enquanto ouvia o som produzido pelo movimento das rodas. Sem reparar, Dolarhyde começou a imitar o ruído produzido pelas rodas.
Quando Freddy Lounds deixou o escritório do Tattler, ao meio-dia de terça-feira, sentia-se cansado e desorientado. Tinha preparado o artigo para o Tattler durante a sua viagem de avião para Chicago e exatamente trinta minutos depois de ter chegado, o artigo estava na composição.
Durante o resto do tempo trabalhara continuamente nos seus papéis, não recebendo qualquer chamada. Era bem organizado e conseguira assim um trabalho de base sólida em que se apoiar.
Quando o Dentuço fosse apanhado, o furo estava garantido, bem como o crédito de sua captura. O material de base encaixaria perfeitamente. Conseguira fazer que três dos melhores repórteres do Tattler estivessem prontos para arrancar ao menor sinal. Poucas horas depois da captura estariam em posição de poder investigar os detalhes sobre o modo como o Dentuço vivera.
O seu agente falava em números muito elevados. O fato de discutir o projeto com ele antes do tempo era uma violação do acordo que tinha feito com Crawford. Para cumprir o que fora combinado, todos os contatos e memorandos deveriam ter uma data posterior à captura.
Crawford tinha um argumento muito forte — gravara a ameaça de Lounds. A transmissão entre estados de uma ameaça era um crime passível de pronúncia, que não poderia ser englobado na proteção de que Lounds gozava. Lounds sabia também que Crawford, com um simples telefonema, podia causar-lhe problemas sérios com o Serviço de Impostos.
Embora tivesse poucas ilusões acerca do rigor do seu trabalho, havia em Lounds alguma honestidade, o que lhe permitia desenvolver o seu projeto com um fervor quase que religioso.
Sentia-se possuído por uma visão de uma vida melhor do lado onde ficava o dinheiro. Enterrado na lama onde sempre estivera atolado, as suas velhas esperanças ainda persistiam e começavam agora a agitar-se e a tentar erguer-se.
Satisfeito por suas máquinas e equipamentos de gravação se encontrarem prontos, meteu-se no carro a caminho de casa, para dormir três horas antes do vôo para Washington, onde iria se encontrar com Crawford, perto da armadilha.
Um aborrecimento imprevisto na garagem subterrânea. A caminhonete preta estacionada no lugar ao lado do seu estava em cima da linha. Quase que ocupava o espaço claramente marcado com o letreiro «Mr. Frederick Lounds».
Lounds abriu a sua porta com tanta força que esta bateu na parte lateral da caminhonete, deixando-lhe um amassado e um arranhão. Aquilo iria ensinar o filho da mãe a ter respeito pelos outros.
Estava fechando o carro quando a porta da caminhonete se abriu atrás dele. Ia se virando, já tinha quase feito meia volta, quando o bastão achatado bateu por cima da orelha. Ergueu as mãos, mas os joelhos não o agüentaram, ao mesmo tempo sentia uma enorme pressão no pescoço, faltando-lhe o ar. Quando conseguiu respirar de novo, inalou clorofórmio.
Dolarhyde estacionou a caminhonete atrás da sua casa, desceu e parou por momentos para se espreguiçar. Durante todo o caminho desde Chicago tinha agüentado vento lateral e sentia os braços doloridos. Observou o céu noturno. A queda dos meteoros Perseid não devia demorar e não queria de modo nenhum perder o espetáculo.
Revelação:... e a sua cauda atingiu um terço das estrelas do céu, fazendo-as cair sobre a terra...
Os seus feitos noutros tempos. Precisava ver o espetáculo e recordar-se.
Abriu a porta dos fundos e fez a investigação de rotina na casa. Quando voltou a sair, usava uma máscara feita com uma meia de mulher.
Ligou uma rampa à porta de trás da caminhonete. Em seguida tirou Freddy Lounds. Este só usava cuecas, além de uma mordaça e venda nos olhos. Embora estivesse só semiconsciente, não cambaleou. Mantinha-se sentado muito ereto, a cabeça apoiada no encosto da velha cadeira de rodas de carvalho. Estava colado à cadeira com uma cola especial da cabeça até as solas dos pés.
Dolarhyde levou-o para casa e colocou-o num canto da sala, voltado para a parede, como se tivesse se comportado mal.
— Está com frio? Quer um cobertor?
Arrancou os guardanapos que cobriam os olhos e a boca de Lounds. Este não respondeu. Desprendia-se dele um cheiro enjoativo a clorofórmio.
— Vou buscar um cobertor — Dolarhyde tirou uma manta de viagem de um sofá e enrolou-a em volta de Lounds, cobrindo-o até o pescoço. A seguir colocou-lhe um frasco de amoníaco debaixo do nariz.
Lounds abriu os olhos, conseguindo ver apenas a mancha indistinta das paredes. Tossiu e começou a falar.
— Acidente? Estou muito ferido?
Atrás dele soou a voz:
— Não, Sr. Lounds. Vai ficar bom.
— Doem-me as costas. A minha pele. Tenho queimaduras? Deus queira que não tenha me queimado.
— Queimado? Queimado. Não. Descanse. Volto já para falar com você.
— Então deixe-me deitar. Ouça, preciso telefonar para o meu escritório. Meu Deus, estou num aparelho especial. Tenho alguma coisa partida nas costas, diga-me a verdade!
Ouviram-se passos que se afastavam.
— O que eu estou fazendo aqui? — No final da frase o tom da pergunta subiu num tom agudo.
A resposta veio de uma certa distância atrás dele.
— Se recuperando, Sr. Lounds.
Lounds ouviu passos que subiam uma escada. Ouviu água a correr de um chuveiro. Agora sentia a cabeça menos pesada. Lembrava-se de que saíra do escritório e entrara no carro, mas a partir daí não se lembrava de mais nada. A parte lateral da cabeça latejava de uma forma insuportável e o cheiro de clorofórmio o fez tossir. Preso numa posição rigidamente ereta, receava ter um acesso de vômitos. Abriu a boca o máximo que podia e inspirou profundamente. Conseguia ouvir o bater do coração.
Lounds queria se convencer de que estava dormindo. Tentou erguer o braço do apoio da cadeira, fazendo força deliberadamente, até que a dor na palma da mão e no braço foi suficiente para acordá-lo, dissipando-lhe qualquer possível idéia de que fosse um sonho. Não estava dormindo. O cérebro começou a trabalhar a toda velocidade.
Fazendo um esforço conseguia ver os braços, embora só por alguns segundos de cada vez. Conseguiu ver como estava preso. Não era nenhum aparelho para proteger costas quebradas. Não era nenhum hospital. Alguém o tinha apanhado.
Teve a impressão de ouvir passos no andar de cima, mas também podiam ser as batidas do seu coração.
Tentou pensar. Fez um esforço para pensar. Mantenha-se frio e pense, murmurou. Pense friamente.
As escadas rangeram quando Dolarhyde desceu.
Sentiu o peso dele em cada passo. Uma presença que agora se encontrava atrás dele.
Lounds pronunciou várias palavras antes de conseguir ajustar o volume da voz.
— Ainda não vi seu rosto. Não fui capaz de identificá-lo. Não sei qual é o seu aspecto. O Tattler, trabalho para o The National Tattler, pagaria uma recompensa, uma grande recompensa por mim. Meio milhão, talvez um milhão. Um milhão de dólares.
Atrás dele fez-se silêncio. A seguir ouviu-se um rangido de molas de um sofá. Estava então se sentando.
— Em que está pensando, Sr. Lounds?
Coloque a dor e o medo de lado e pense. Já. De uma vez por todas. Para ganhar algum tempo. Para ganhar anos. Ainda não decidiu me matar. Não me deixou ver seu rosto.
— Em que está pensando, Sr. Lounds?
— Não sei o que me aconteceu.
— Sabe quem sou eu, Sr. Lounds?
— Não. Não quero saber, acredite-me.
— De acordo com a sua opinião, sou um tarado, um pervertido de um fracassado sexual. Um animal, como disse. Provavelmente liberto de um manicômio por um juiz benevolente. — Normalmente, Dolarhyde teria evitado o sibilante «s» de «sexual», mas na presença desta audiência, em que não havia o perigo de rirem dele, sentia-se à vontade. — Agora já sabe, não sabe?
Não minta. Pense depressa.
— Sim.
— Por que escreve mentiras, Sr. Lounds? Por que diz que eu sou doido? Responda.
— Quando uma pessoa... quando uma pessoa faz coisas que os outros não conseguem compreender, chamam de...
— Doido.
— Chamam... como fizeram aos Irmãos Wright. Vem tudo na história...
— História. Compreende qual é a minha missão, Sr. Lounds?
Compreender. Ali estava uma oportunidade. Uma oportunidade.
— Não, mas acho que terei uma oportunidade de compreender e então todos os meus leitores também poderão compreender.
— Sente-se privilegiado?
— Não há dúvida de que é um privilégio. Mas tenho que confessar, de homem para homem, que me sinto aterrorizado. A concentração é extremamente difícil quando nos sentimos aterrorizados. Se tem uma idéia brilhante, não tem necessidade de me aterrorizar para que eu me sinta impressionado.
— De homem para homem. De homem para homem. Noto que utiliza essa expressão num sentido de franqueza, Sr. Lounds. Mas veja bem, eu não sou um homem. Comecei sendo um homem, mas pela graça de Deus e pela minha própria vontade, tornei-me outro e mais do que um homem. Diz que está aterrorizado. Acredita que Deus está aqui presente, Sr. Lounds?
— Não sei.
— Neste momento está rezando?
— Algumas vezes rezo. Tenho que confessar que normalmente só rezo quando me sinto aterrorizado.
— E Deus vem em seu auxílio?
— Não sei. Depois que tudo passa não penso mais nisso. E no entanto devia fazê-lo.
— Devia. Hm-hmmmm. Há tantas coisas que devia compreender. Dentro em pouco vou ajudá-lo a compreender... Me dá licença por uns momentos?
— Com certeza.
Passos saindo da sala. O ruído do abrir de uma gaveta da cozinha. Lounds fizera a cobertura de muitos assassinatos cometidos em cozinhas, onde as coisas estavam à mão. Os relatórios da polícia eram capazes de modificar completamente o modo como se viam as cozinhas. Ouviu-se o barulho de água corrente.
Lounds achava que devia ser noite. Crawford e Graham estavam à espera dele. Com certeza já tinham dado pela sua falta. Uma grande e profunda tristeza pulsou por momentos em sintonia com o seu medo.
Enquanto sentia a respiração atrás dele, conseguiu apanhar pelo canto do olho um lampejo de branco. Uma mão possante e pálida. Segurava uma xícara de chá com mel. Lounds sorveu-o por um canudo.
— Seria capaz de fazer uma grande reportagem — disse entre dois sorvos. — Tudo aquilo que quiser dizer. Descreva as coisas da maneira que quiser ou então não descreva nada, não diga nada.
— Shhh. — Um dedo bateu-lhe no topo da cabeça. As luzes aumentaram de intensidade. A cadeira começou a rodar.
— Não. Não quero vê-lo.
— Oh, mas tem de ver, Sr. Lounds. O senhor é um repórter. Está aqui para fazer uma reportagem. Quando eu o voltar, abra os olhos e olhe para mim. Se não abri-los garanto-lhe que grampeio suas pálpebras na testa.
Um ruído de boca úmida, um estalo e a cadeira rodou.
Lounds ficou virado para a sala com os olhos fechados. Um dedo bateu insistentemente no peito. Um toque nas pálpebras. Olhou.
Para Lounds, que se encontrava sentado, parecia-lhe muito alto, de pé diante dele no seu quimono. Uma máscara com uma meia de mulher encontrava-se enrolada até o nariz. Virou as costas para Lounds e deixou cair o roupão. Os potentes músculos das costas flexionaram-se sob a brilhante tatuagem da cauda desenhada ao longo da parte inferior das costas e que se enrolava em volta da perna.
O Dragão virou a cabeça lentamente, olhou para Lounds por cima do ombro e sorriu de um modo infernal.
— Oh, meu querido Senhor Jesus — disse Lounds.
Lounds encontrava-se agora no meio da sala, voltado para a tela. Dolarhyde, atrás dele, tinha voltado a vestir o roupão e tinha colocado a dentadura que lhe permitia falar.
— Quer saber quem eu sou?
Tentou acenar com a cabeça; a cadeira puxou-lhe o escalpe.
— Mais do que qualquer outra coisa, mas tinha medo de perguntar.
— Olhe.
O primeiro slide era a gravura de Blake, o grande Homem-Dragão, asas abertas e cauda chicoteando o ar, pousado sobre a Mulher Vestida de Sol.
— Está vendo agora?
— Estou.
Rapidamente Dolarhyde foi passando os outros slides.
Click. A Sra. Jacobi viva.
— Está vendo?
— Sim.
Click. A Sra. Leeds viva.
— Está vendo?
— Estou.
Click. Dolarhyde, o Dragão ao ataque, músculos flexionados e tatuagem da cauda em evidência, na cama dos Jacobi.
— Está vendo?
— Sim.
Click. A Sra. Jacobi à espera.
— Está vendo?
— Sim.
Click. A Sra. Jacobi depois do que aconteceu.
— Está vendo? —
— Sim.
Click. O Dragão ao ataque.
— Está vendo?
— Sim.
Click. A Sra. Leeds à espera, o corpo do marido ao lado dela.
— Está vendo?
— Sim.
Click. A Sr. Leeds depois do que aconteceu, coberta de sangue.
— Está vendo?
— Sim.
Click. Freddy Lounds, uma amostra de um fotógrafo do Tattler.
— Está vendo?
— Oh, meu Deus.
— Está vendo?
— Oh, meu Deus.
— Está vendo?
— Por favor, não.
— Não o quê?
As palavras saíram-lhe como uma criança que está chorando.
— Eu não.
— Não o quê? Você é um homem, Sr. Lounds. Você é um homem?
— Sou.
— Quer dizer com isso que eu sou alguma espécie de maricas?
— Meu Deus, não.
— O senhor é maricas, Sr. Lounds?
— Não.
— Vai escrever mais mentiras a meu respeito, Sr. Lounds?
— Oh, não, não.
— Por que escreveu aquelas mentiras, Sr. Lounds?
— Foi a polícia que me disse. Fiz aquilo que eles me disseram.
— Citou Will Graham.
— Foi Graham que me disse as mentiras, Graham.
— E agora vai dizer a verdade? Sobre mim. Sobre o meu trabalho. A minha transformação. A minha arte, Sr. Lounds. Isto é arte?
— Arte.
O medo no rosto de Lounds fazia que Dolarhyde se sentisse livre para falar e sentia-se à vontade para voar pelas sibilantes e fricativas; explosivas eram as suas grandes asas rendilhadas.
— Você disse que eu, que vejo mais além do que você, sou louco. Eu, que impulsionei o mundo muito mais do que você, sou louco. Ousei muito mais do que você. Imprimi o meu único selo na terra, tão fundo que perdurará muito mais do que a sua poeira. A sua vida comparada com a minha é muito menos do que o rastro de um caracol numa pedra. Um pequeno rastro de muco prateado entrando e saindo das letras no meu monumento. — As palavras que Dolarhyde tinha escrito no seu diário vinham-lhe agora à mente numa enxurrada. — Eu sou o Dragão e você me chama de louco? Os meus movimentos são seguidos e registrados tão avidamente como os de uma famosa estrela convidada. Sabe alguma coisa sobre a estrela convidada em 1054? Evidentemente que não. Os seus leitores seguem-no como uma criança segue com um dedo o rastro de um caracol, e percorrendo as mesmas fatigadas evoluções de raciocínio. Volte ao seu diminuto crânio e à sua cara de bobo como um caracol segue o seu próprio rastro de volta para casa.
»Diante de mim, você é um caracol ao sol. Está na presença de um grande renascido e não é capaz de reconhecer nada. Você é menos do que uma formiga acabada de nascer.
»Está na sua natureza fazer uma única coisa corretamente: diante de mim você treme e tem razão para isso. Medo não é aquilo que você me deve, Lounds, você e todos os outros babacas. Você me deve reverência.
Dolarhyde manteve-se de pé com a cabeça baixa, o polegar e o indicador apoiados na ponta do nariz. A seguir abandonou a sala.
Ele não tirou a máscara, pensou Lounds. Ele não tirou a máscara. Se ele voltar sem a máscara, sou um homem morto. Deus meu, estou todo molhado. Tentou voltar os olhos para a porta de saída, procurando adivinhar os sons que se ouviam nos fundos da casa.
Quando Dolarhyde voltou ainda usava a máscara. Trazia com ele uma lancheira e duas térmicas.
— Para o seu regresso para casa. — Segurou uma das térmicas. — Gelo, vamos precisar disso. Antes de sairmos ainda temos que gravar algumas coisas. — Pendurou um microfone na manta de viagem, junto ao rosto de Lounds. — Repita comigo.
Gravaram durante cerca de meia hora. Finalmente, disse:
— É tudo, Sr. Lounds. Trabalhou muito bem.
— Vai me deixar ir embora agora?
— Falta pouco. No entanto há ainda algumas coisas que vão fazer com que eu o ajude a compreender melhor e a se lembrar.
Dolarhyde afastou-se.
— Quero compreender. Quero que saiba como lhe agradeço o fato de me libertar. Pode ter certeza de que, daqui para a frente, serei perfeitamente justo.
Dolarhyde não podia responder. Tinha mudado a dentadura.
O gravador estava trabalhando de novo.
Sorriu para Lounds, um sorriso onde sobressaíam as manchas acastanhadas da dentadura. Colocou a mão no coração de Lounds e, inclinando-se como se fosse beijá-lo, trincou-lhe os lábios, cuspindo-os no chão.
Madrugada em Chicago, um ar pesado e um céu cinzento e muito baixo.
Um guarda de segurança saiu do átrio do edifício do Tattler e parou na curva, fumando um cigarro e esfregando a nuca. Estava sozinho e no silêncio que se fazia sentir conseguia ouvir o click da mudança de luzes dos semáforos no alto da colina, a um bom quarteirão de distância.
A cerca de meio quarteirão a norte das luzes, fora da vista do guarda, Dolarhyde agachava-se ao lado de Lounds, nos fundos da caminhonete. Arrumou a manta que o envolvia, de modo a esconder-lhe a cabeça.
Lounds sentia dores enormes. Parecia que se encontrava em estado de choque, mas a mente trabalhava a toda velocidade. Havia coisas que tinha que se lembrar. A venda estava esticada sobre o nariz, o que lhe permitia ver os dedos de Dolarhyde que lhe verificavam a mordaça.
Dolarhyde vestiu um casaco de enfermeiro, colocou uma térmica no colo de Lounds e empurrou-o para fora da caminhonete. Quando travou a cadeira de rodas e se virou para voltar a pôr a rampa dentro da caminhonete, Lounds conseguiu ver a extremidade do pára-choques da caminhonete pela parte de baixo da venda.
Virou-se um pouco, vendo a parte de baixo do pára-choques... Era isso, a matrícula. Foi só um instante, mas Lounds gravou-a na mente.
Deslocavam-se agora. Rebordas de calçadas. Mais uma esquina e uma curva. Papel que estalava debaixo das rodas.
Dolarhyde parou a cadeira de rodas num ponto que lhe servia de abrigo, entre um recipiente de lixo e um caminhão estacionado. Deu uma esticada na venda. Lounds fechou os olhos. Um frasco de amoníaco debaixo do nariz.
A voz suave, muito próxima, a seu lado.
— Consegue me ouvir? Estamos chegando. — Tirou-lhe a venda. — Pisque os olhos se está me ouvindo.
Dolarhyde abriu-lhe um olho com o polegar e o indicador. Lounds estava olhando o rosto de Dolarhyde.
— Eu lhe disse uma mentira. — Dolarhyde bateu na térmica. —De fato não tenho os seus lábios, no gelo. — Afastou a manta ao mesmo tempo que abria a térmica.
Lounds retesou os músculos quando sentiu o cheiro de gasolina que lhe empolava a pele na parte inferior dos antebraços e que produzia toda uma série de ruídos estranhos na cadeira de rodas. Sentia o frio da gasolina que se espalhava pelo corpo, os vapores iam-lhe invadindo a garganta, enquanto rolavam em direção ao centro da rua.
— Gosta de ser o animal de estimação de Graham, Freeeddyyyyy?
Incendiado e empurrado, rolou em direção ao Tattler, as rodas da cadeira produzindo um eeek, eeek, eeekeeekeeek insuportável.
O guarda olhou no momento em que um grito cuspiu a mordaça, em chamas. Viu a bola de fogo que se aproximava, ressaltando nos buracos do pavimento, deixando um rastro de fumaça e de faíscas, as chamas alongando-se para a retaguarda como duas asas, imagens desfocadas que passavam num relance pelas vitrines das lojas.
Mudou de direção, bateu num carro estacionado e virou em frente do edifício, uma roda ainda a girar loucamente, chamas por todo o lado, os braços em chamas erguidos na posição de defesa de todos os queimados.
O guarda correu de novo ao átrio. Lembrou-se de repente se tudo aquilo não iria explodir, se não deveria afastar-se das janelas... Acionou o alarme de incêndios. Que mais poderia fazer? Tirou o extintor de incêndios da parede e olhou para fora... Ainda não tinha explodido.
O guarda aproximou-se cautelosamente através da fumaça gordurosa que se espalhava em camadas baixas sobre o pavimento e, finalmente, cobriu Freddy Lounds de espuma.
Estava combinado que Graham deixasse o apartamento em Washington que se encontrava vigiado às cinco e quarenta e cinco da manhã, muito antes do engarrafamento do trânsito de todos os dias.
Crawford telefonou enquanto estava fazendo a barba.
— Bom dia.
— Nem tanto — disse Crawford. — O Dentuço pegou Lounds em Chicago.
— Oh, que porra.
— Ainda não morreu e pediu para falar contigo. Não agüenta por muito mais tempo.
— Eu vou.
— Encontre-se comigo no aeroporto. É o vôo 245 da United. Parte dentro de quarenta minutos. Pode voltar esta noite para o apartamento, se ainda valer a pena continuar com isso.
O agente especial Chester do FBI de Chicago estava à espera deles no Aeroporto O’Hare, sob um leve aguaceiro. Chicago é uma cidade habituada às sirenes. O tráfego à frente deles afastou-se com relutância enquanto Chester disparava pela auto-estrada, a luz vermelha do capô colorindo de tons rosados a chuva que fustigava o pára-brisas.
Ergueu a voz para se conseguir fazer ouvir acima do ruído da sirene.
— O Departamento de Polícia de Chicago diz que ele foi apanhado na garagem do prédio onde mora. Tudo aquilo que sei é em segunda mão. Hoje não somos muito populares aqui pelas redondezas.
— O que é que se conseguiu saber? — perguntou Crawford.
— Praticamente tudo, a armadilha, a história completa.
— Lounds conseguiu vê-lo?
— Não ouvi nenhuma descrição. O Departamento de Polícia de Chicago emitiu um pedido de captura por volta das seis e vinte da manhã, com a indicação de uma placa de matrícula.
— Conseguiu contatar o Dr. Blorn e dar o meu recado?
— Falei com a esposa, Jack. O Dr. Blorn vai ser operado de um rim esta manhã.
— Era só o que me faltava — exclamou Crawford.
Chester estacionou debaixo do alpendre de entrada do hospital. Voltou-se no assento, olhando para trás.
— Jack, Will, antes de vocês subirem... Ouvi dizer que essa besta acabou com Lounds. Devem estar preparados para isso.
Graham acenou com a cabeça. Durante toda a viagem para Chicago tinha tentado afastar a idéia de que Lounds ia morrer antes de conseguir vê-lo.
O corredor do Centro de Queimados Paege era um tubo de mosaicos imaculados. Um médico de elevada estatura, com um rosto que era curiosamente um misto de velho e de rapaz, conduziu Graham e Crawford para longe do grupo de pessoas que se encontrava à porta do quarto de Lounds.
— As queimaduras do Sr. Lounds são fatais — disse o médico. — Posso ajudá-lo aliviando as dores e é isso que farei. Inalou as chamas e tem a garganta e os pulmões danificados. É possível que não volte a ficar consciente. Nas condições em que se encontra é até uma bênção.
»No caso de voltar a consciência de novo, a polícia me pediu para lhe tirar o tubo da garganta, para que possa eventualmente responder a qualquer pergunta. Concordei em tentar isso na condição de que seja muito rápido.
»Neste momento os seus pólos nervosos periféricos encontram-se anestesiados pelo fogo. Mas, se ele viver o suficiente, terá dores insuportáveis. Tentei explicar isto à polícia e quero fazer a mesma coisa com os senhores: interromperei qualquer tentativa de perguntas para anestesiá-lo, logo que ele me peça. Compreenderam?
— De acordo — disse Crawford.
Com um aceno para o agente que se encontrava à porta, o médico cruzou as mãos atrás da bata branca de laboratório que envergava e afastou-se como um fantasma.
Crawford olhou para Graham.
— Sente-se bem?
— Estou bem. Estive com a equipe da SWAT.
A cabeça de Lounds encontrava-se soerguida na cama. O cabelo e as orelhas tinham desaparecido e compressas sobre os olhos sem visão substituíam as pálpebras queimadas. As gengivas estavam recobertas de bolhas.
A enfermeira que se encontrava a seu lado afastou um suporte de soro para que Graham pudesse se aproximar. Lounds cheirava como um estábulo incendiado.
— Freddy, é Will Graham.
Lounds retesou a nuca contra a almofada.
— O movimento é apenas reflexo, não se encontra consciente — explicou a enfermeira.
O tubo de inalação que lhe mantinha aberta a garganta em chaga e cheia de bolhas produzia um som de passagem de ar em simultâneo com o respirador.
A um canto encontrava-se sentado um pálido sargento detetive, com um gravador e um bloco de apontamentos no colo. Graham só deu por ele quando o ouviu falar.
— Lounds mencionou o seu nome na sala de emergências antes de lhe colocarem o inalador.
— Você estava lá?
— Cheguei mais tarde. Mas tenho tudo aquilo que ele disse gravado. Quando o trouxeram tinha dado ao bombeiro o número de uma placa de matrícula. A seguir perdeu a consciência e veio nessas condições durante toda a viagem de ambulância, mas quando chegou à sala de emergências recuperou os sentidos durante cerca de um minuto, quando lhe deram uma injeção no peito. Alguns elementos do Tattler tinham seguido a ambulância, estavam presentes. Tenho uma cópia da fita que eles gravaram.
— Deixe-me ouvi-la.
O detetive pôs o gravador para funcionar.
— Acho que gostaria de usar o fone de ouvido — disse com um ar absolutamente inexpressivo. Acionou o botão.
Graham começou a ouvir vozes, ruídos metálicos:
«... ei! coloquem-no no três», a pancada de uma maca numa porta giratória, uma tosse áspera e o grasnar de uma voz, alguém que falava sem lábios.
«Hentuças.»
«Freddy, conseguiu vê-lo? Qual é o aspecto dele, Freddy?» «Wendy? Hur havor Wendy. Graham aranjou-he àto. O coiro sabia. Graham aranjou-he àto. O coiro identificou-he hor hausa da fotohrafia em que hareço um animal de estimação. Wendy?»
Um ruído como o de aspiração de um tubo. A voz de um médico:
«Acabou. Com licença. Saiam do caminho. Já.»
E foi tudo.
Graham inclinava-se sobre Lounds enquanto Crawford ouvia a gravação.
— Procuramos a placa de matrícula — disse o detetive.
— Conseguiu compreender aquilo que ele estava dizendo?
— Quem é Wendy? — perguntou Crawford.
— Essa dona que está no hall. A loura dos peitos grandes. Tem feito tudo para vê-lo. Não sabe de nada.
— Por que não a deixa entrar? — perguntou Graham, que se encontrava ao lado da cama. Estava de costas para eles.
— Não são permitidas visitas.
— O homem está morrendo.
— E acha que eu não sei disso? Estou aqui desde quando faltava um quarto de hora para a merda das seis da manhã... desculpe-me, enfermeira.
— Descanse por uns minutos — disse Crawford. — Vá tomar um café e lavar o rosto. Ele não consegue dizer nada. Se disser, estou aqui e tenho o gravador.
— Okay, acho que é isso que vou fazer.
Quando o detetive saiu, Graham deixou Crawford ao lado da cama e aproximou-se da mulher que estava na sala de espera.
— Wendy?
— Sim.
— Se tem certeza de que quer entrar eu a levo comigo.
— Quero. Talvez fosse melhor dar primeiro um jeito no cabelo.
— Não vale a pena — disse Graham.
Quando o policial voltou, não tentou fazer que ela saísse. Wendy, da Wendy City, segurava a mão de Lounds, que mais se assemelhava a uma garra enegrecida, enquanto o olhava fixamente. Um pouco antes do meio-dia mexeu-se levemente.
— Vai ficar bem, Roscoe — disse ela. — Ainda vamos passar uns momentos formidáveis como nos velhos tempos.
Lounds agitou-se mais uma vez e morreu.
O capitão Osborne dos Homicídios de Chicago tinha um rosto acinzentado e pontiagudo, fazendo lembrar uma raposa de pedra. Havia exemplares do Tattler espalhados por toda a seção. Um deles encontrava-se na sua mesa.
Não convidou Crawford e Graham para sentar.
— Tinham combinado algum trabalho com Lounds em Chicago?
— Não, estava planejado que ele fosse a Washington — disse Crawford. — Tinha uma reserva para o avião. Com certeza verificou isso.
— Sim, foi uma das coisas que verificamos. Deixou o escritório ontem por volta da uma e meia. Quando foi apanhado na garagem do edifício onde morava deveriam ser cerca de uma e cinqüenta.
— Havia alguma coisa na garagem?
— As chaves dele foram empurradas com o pé para baixo do carro. Não existe nenhum empregado na garagem, a porta abre por controle remoto e entraram logo depois de alguns carros, quando ela ainda se encontrava aberta. Ninguém viu o que aconteceu.
— Vai ser um refrão que eu vou ter que ouvir não sei quantas vezes hoje. Estamos trabalhando no assunto do carro.
— Podemos ajudá-lo nesse assunto?
— Vocês podem ter os resultados logo que eu os receba. Está muito calado, Graham. No jornal fartou-se de falar.
— Também pouco apanhei de tudo aquilo que você disse.
— Está chateado, capitão? — perguntou Crawford.
— Eu? Por que haveria de estar? Investigamos uma escuta telefônica para vocês e apanhamos a merda de um repórter. A seguir dizem-me que não têm nenhuma acusação contra ele. Arranjam não sei que acordo com ele e lixamo-nos por causa da sua página de escândalos. E agora os outros jornais acabam de adotá-lo como se fizesse parte da sua equipe.
»Por último temos a sorte de conseguir um assassinato do Dentuço exatamente aqui em Chicago. Não há dúvida de que é uma maravilha. «O Dentuço em Chicago», rapazes. Antes da meia-noite vamos arranjar pelo menos uns seis acidentes domésticos com arma de fogo, o parceiro que tenta entrar em casa perdido de bêbado e a mulher que ouve um ruído, não está com meias medidas e bang... Talvez o Dentuço goste de Chicago, decida ficar por aí se divertindo um pouco.
— Podemos decidir uma de duas coisas — disse Crawford. — Bater com a cabeça na parede, chamar o comissário de polícia e o procurador-geral e juntar todos os sacanas, os do seu lado e os do meu lado. Ou podemos nos sentar e tentar ver qual é a melhor maneira para apanharmos esse filho da mãe. Eu sei que esta operação era minha e caiu na merda. Alguma vez imaginou que isto podia acontecer aqui em Chicago? Não quero lutar com você, capitão. Queremos apanhá-lo e ir embora. O que decide?
Osborne mexeu em várias coisas que tinha em cima da mesa, um suporte de lápis, a fotografia de um menino com cara de raposa, vestindo uma farda de uma banda musical qualquer. Recostou-se na cadeira, franziu os lábios e expirou o ar lentamente.
— Agora eu só quero um café. Vocês também querem?
— Eu aceito — disse Crawford.
— E eu também — confirmou Graham.
Osborne distribuiu os copos de plástico. Apontou para as cadeiras.
— O Dentuço tinha que ter uma caminhonete ou um carro de caixa aberta para andar com Lounds na cadeira de rodas de um lado para o outro — disse Graham.
Osborne acenou com a cabeça.
— A matrícula que Lounds viu foi roubada de uma caminhonete de reparação TV em Oak Park. Roubou uma placa comercial, pelo que se destinava com certeza a uma caminhonete ou a um carro de caixa aberta. Substituiu a matrícula no veículo de reparação TV por outra matrícula também roubada, de modo que não se notasse tão depressa. Muito escorregadio este rapaz. Há uma coisa de que temos certeza: afanou a matrícula da caminhonete de reparações TV ontem de manhã, pouco depois das oito e trinta. A primeira coisa que o condutor da caminhonete fez ontem foi colocar gasolina e usou cartão de crédito. O empregado copiou a matrícula correta no talão, pelo que esta teve de ser roubada depois disso.
— Não houve ninguém que tivesse visto um carro de caixa aberta ou uma caminhonete? — perguntou Crawford.
— Nada. O guarda do Tattler não viu nada. Desculpa-se por ter estado assistindo luta livre na televisão, pelo que não deu conta de nada. Os primeiros a chegar ao Tattler foram os bombeiros. Tinham se deslocado apenas por causa do fogo. Investigamos todos os trabalhadores noturnos na vizinhança do Tattler e na vizinhança do local onde o empregado das reparações TV tinha trabalhado na terça de manhã. Espero que alguém o tenha visto tirando a placa de matrícula.
— Gostaria de ver a cadeira de rodas outra vez — disse Graham.
— Está no nosso laboratório. Vou telefonar para avisá-los. — Osborne fez uma pausa. — Lounds foi um idiotazinho muito corajoso, têm que concordar. Lembrar-se da placa de matrícula e ser capaz de cuspi-la, no estado em que estava. Ouviram aquilo que ele disse no hospital?
Graham fez um aceno com a cabeça.
— Não quero ser chato, mas gostaria de ter certeza de que o compreendemos da mesma maneira. Como é que vocês o interpretaram? — disse Osborne.
Graham disse num tom monótono:
— Dentuço. Graham arranjou-me isto. O couro sabia. Graham arranjou-me isto. O couro identificou-me por causa da fotografia em que pareço um animal de estimação.
Osborne não fazia idéia de como Graham se sentia a este respeito. Fez outra pergunta.
— Estava se referindo a fotografia que você tirou com ele e que apareceu no Tattler?
— Não podia ser outra.
— Onde ele teria ido arranjar essa idéia?
— Lounds e eu tivemos algumas discussões.
— Mas na fotografia você e Lounds pareciam tão amigos. O Dentuço mata primeiro o animal de estimação, é isso?
— É isso. — A raposa de pedra era muito rápida, pensou Graham.
— É uma pena não ter conseguido apanhá-lo.
Graham não respondeu.
— Tínhamos calculado que Lounds estivesse conosco quando o Dentuço visse o Tattler — disse Crawford.
— Aquilo que ele disse tem mais algum significado para vocês, qualquer coisa que seja possível utilizarmos?
Graham estava muito longe e por isso teve que repetir mentalmente a pergunta de Osborne antes de responder.
— Sabemos por aquilo que Lounds disse que o Dentuço viu o Tattler antes de tê-lo atacado, certo?
— Acho que sim.
— Se aceitar a idéia de que foi por causa do Tattler que ele entrou em ação, não concorda que foi obrigado a montar todo o esquema às pressas? A notícia surgiu no jornal segunda à noite, terça, não sabemos a que horas, provavelmente na terça de manhã, já está em Chicago roubando placas de matrícula, e na terça à tarde já está em cima de Lounds. O que isto lhe diz?
— Ou soube disso antes ou então não veio de muito longe — disse Crawford. — Ou leu a notícia aqui em Chicago ou a viu em algum lugar na segunda à noite. Não se esqueça de que estava esperando que o jornal saísse para ver a coluna de anúncios pessoais.
— Ou já estava aqui ou veio de carro de um lugar qualquer relativamente próximo — disse Graham. — Atacou Lounds depressa demais e usou uma cadeira de rodas que não podia ter transportado num avião, nem sequer é dobrável. E também temos a certeza de que não veio de avião para cá para roubar uma caminhonete na chegada, roubar placas de matrícula para ela e ainda por cima dar uma volta para encontrar uma cadeira de rodas de um modelo muito antigo. Tinha que ter uma velha cadeira de rodas... uma cadeira nova não serviria para aquilo que ele fez. Graham estava de pé, distraído com o cordão da persiana, enquanto olhava para a parede de tijolos que se avistava em frente através da janela. — Ou já tinha a cadeira de rodas ou sempre soube onde poderia encontrá-la.
Osborne ia fazer uma pergunta, mas a expressão do rosto de Crawford deu-lhe a entender que devia aguardar.
Graham dava nós no cordão da persiana. As suas mãos não estavam firmes.
— Sempre soube onde ela estava... — concluiu Crawford.
— Um-hmm, — disse Graham. — É fácil de ver como as coisas se passaram... a idéia começa com a cadeira de rodas. Vendo e pensando na cadeira de rodas. Foi daí que a idéia partiu, quando começou a pensar no que deveria fazer com aqueles cabrões. Freddy deslizando em chamas pela rua afora deve ter sido um espetáculo.
— Acha que ficou olhando?
— Talvez. Com certeza visualizou tudo antes de tê-lo feito, na altura em que decidia a atitude que ia tomar. Osborne olhou para Crawford. Crawford era duro. Osborne sabia que Crawford era duro e que concordava com isto.
— Se ele tinha a cadeira ou se sempre soube onde ela estava... podemos verificar nos lares das redondezas — disse Osborne.
— Era perfeita para imobilizar Freddy — disse Graham.
— Durante muito tempo. Durou mais ou menos quinze horas e vinte e cinco minutos — disse Osborne.
— Se ele quisesse só dar cabo de Freddy, podia ter feito isso na garagem — disse Graham. — Podia tê-lo queimado dentro do carro. Queria falar com Freddy ou torturá-lo durante um tempo.
— Ou o fez nos fundos da caminhonete ou então levou-o para algum lugar — disse Crawford. — Atendendo ao espaço de tempo, diria que o levou para algum lugar.
— Tinha que ser um lugar que fosse seguro. Se o tivesse amarrado bem, não ia chamar muita atenção entrando e saindo de uma casa — disse Osborne.
— No entanto isso era muito arriscado — disse Crawford.
— Além disso implicava um certo trabalho de limpeza. Partamos do princípio de que ele tinha a cadeira, tinha acesso à caminhonete e tinha um lugar seguro para onde pudesse levá-lo e ocupar-se dele. Não acham que tudo isso indica... a casa dele?
O telefone de Osborne tocou. Resmungou enquanto pegava no auscultador.
— O quê?... Não, não quero falar com o pessoal do Tattler... Bom, é melhor que não sejam só tolices. Pode ligá-la... Capitão Osborne, sim... A que horas? Quem é que atendeu o telefone inicialmente, na central? Tire-a da central, por favor. Diga-me de novo o que ele disse... Mando um agente dentro de cinco minutos.
Osborne ficou olhando pensativamente para o telefone depois de ter desligado.
— A secretária de Lounds recebeu uma chamada há cerca de cinco minutos — disse. — Jura que era a voz de Lounds. Disse qualquer coisa, qualquer coisa que não pegou bem, como «a força do grande Dragão Vermelho». Foi aquilo que ela acha que ele disse.
O Dr. Frederick Chilton encontrava-se no corredor, em frente da cela de Hannibal Lecter. Junto de Chilton estavam três corpulentos auxiliares. Um deles trazia uma camisa-de-força e cintas de prisão para as pernas e o outro uma lata de Mace.
O terceiro transportava uma espingarda de pressão de ar carregada com um dardo tranqüilizador.
Lecter estava consultando um mapa-planta estendido em cima da mesa e ia tomando notas. Tinha ouvido os passos que se aproximavam. Ouviu atrás de si o ruído da culatra se fechando, mas continuou a ler, não dando qualquer sinal de que sabia que Chilton se encontrava ali.
Chilton tinha lhe mandado os jornais por volta do meio-dia e deixou-o esperar até à noite, mantendo-o na expectativa sobre o castigo que ia lhe dar por ter ajudado o Dragão.
— Dr. Lecter — disse Chilton.
Lecter voltou-se.
— Boa noite, Dr. Chilton. — Fez de conta que não dava pela presença dos guardas. Olhava só para Chilton.
— Vim buscar os seus livros. Todos os seus livros.
— Compreendo. Posso perguntar-lhe por quanto tempo tenciona guardá-los?
— Isso depende da sua atitude.
— Essa decisão é sua?
— Sou eu quem decide sobre os castigos a aplicar nesta casa.
— Com certeza que é. Aliás não é o tipo de coisas que Will Graham lhe pedisse para fazer.
— Vire-se para a rede e vista isto, Dr. Lecter. E não vou pedir duas vezes.
— Com certeza, Dr. Chilton. Espero que seja o tamanho trinta e nove, o trinta e sete aperta-me muito no peito.
Lecter vestiu a camisa-de-força como se tratasse de um traje para jantar. Um dos auxiliares estendeu os braços através da barreira e apertou-a nas costas.
— Ajudem-no a se deitar no beliche — disse Chilton.
Enquanto os auxiliares esvaziavam as estantes, Chilton limpava os óculos e revolvia os papéis pessoais de Lecter com uma esferográfica.
Lecter observava-o do canto da cela que se encontrava na sombra. Curiosamente, mesmo com a camisa-de-forças, tinha um porte de certa elegância.
— Por baixo da pasta amarela — disse Lecter calmamente — pode encontrar um talão de devolução que o Archives lhe enviou. Trouxeram-no por engano com o correio que recebi deles, e lamento tê-lo aberto sem ter reparado no envelope. Peço desculpas.
Chilton ficou corado. Disse para um dos auxiliares.
— Acho melhor tirarmos a tampa do sanitário do Dr. Lecter.
Chilton olhou para o mapa-planta. Lecter tinha escrito a sua idade no topo: quarenta e um.
— E o que é que temos aqui? — perguntou Chilton.
— Tempo — disse Lecter.
O chefe de seção Brian Zeller levou a mala do correio e as rodas da cadeira de rodas para a Análise Instrumental, caminhando tão depressa que fazia assobiar as abas da sua gabardina.
Os elementos da equipe, que tinham recebido ordem para aguardar depois do turno diurno ter terminado, conheciam aquele assobio muito bem: Zeller estava cheio de pressa.
Já tinha havido atrasos demais. O correio, completamente arrasado, depois do seu vôo de Chicago ter atrasado devido ao mau tempo e em seguida desviado para Filadélfia, tinha alugado um carro e dirigido durante todo o caminho até o laboratório do FBI em Washington.
O laboratório da polícia de Chicago era eficiente, mas havia análises para as quais não se encontrava equipado. Zeller preparava-se para fazê-las.
Junto do espectrômetro de massa pousou algumas películas da pintura da porta do carro de Lounds.
Everly Katz, que estava na seção de Cabelos e Fibras, recebeu as rodas para partilhar a sua análise com os outros elementos da seção.
A última parada de Zeller foi na pequena sala aquecida onde Liza Lake se debruçava sobre um cromatógrafo de fase gasosa. Estava fazendo uma análise de cinzas referente a um caso de fraude ocorrido na Florida, observando o ponteiro traçar as linhas pontiagudas de um gráfico sobre o papel que ia se movendo lentamente.
— Gás Ace para isqueiro — disse ela. — Foi com isso que ele ateou o fogo.
— Já tinha examinado tantas amostras que podia distinguir as marcas, sem ser preciso consultar o manual.
Zeller desviou os olhos de Liza Lake e censurou-se asperamente por sentir prazer em estar no gabinete. Pigarreou e estendeu-lhe as duas pequenas latas brilhantes.
— Chicago? — perguntou ela.
Zeller acenou com a cabeça.
Ela verificou o estado das latas e o selo das tampas. Uma das latas continha cinzas da cadeira de rodas; a outra, material carbonizado de Lounds.
— Há quanto tempo se encontra nas latas?
— Mais ou menos seis horas — disse Zeller.
— Vou dispersá-lo.
Furou a tampa com uma seringa resistente e extraiu o ar que se encontrava dentro da lata juntamente com as cinzas, injetando esse ar diretamente no cromatógrafo de fase gasosa. Procedeu a ajustamentos meticulosos. À medida que a amostra se movia ao longo da coluna da máquina, o ponteiro oscilava nervosamente na larga banda de papel para gráficos.
— Sem chumbo... — disse ela. — É gasohol, gasohol sem chumbo. Não há muitos vestígios. — Folheou rapidamente um molho de gráficos de amostras. — Ainda não tenho elementos para lhe indicar uma marca. Deixe-me repetir a análise com pentano e depois entro em contato.
— Ótimo — disse Zeller. O pentano ia dissolver os fluidos que se encontravam nas cinzas, fraccionando-se no cromatógrafo logo no início e deixando os fluidos para uma análise mais em detalhe.
Por volta da uma da manhã, Zeller tinha conseguido tudo o que lhe fora possível.
Liza Lake conseguira determinar o tipo de gasohol: Freddy Lounds fo