Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
DROGA DE AMERICANA!
SEQUESTRO NO ELITE
A noite friorenta daquele início de junho caía quando as luzes se acenderam iluminando a área esportiva do Colégio Elite, completamente deserta, não fossem os dois cadáveres estendidos à frente da metade feminina dos vestiários.
Estranhas gravatas vermelhas, pegajosas, escorriam do pescoço de cada um deles, maculando-lhes o branco das camisas. Os dois sisudos e mal-encarados agentes de segurança da filha do presidente dos Estados Unidos tinham sido praticamente degolados...
Se não estivessem mortos, e se o ruído do motor de um helicóptero não se sobrepusesse a todos os sons, de dentro do vestiário os dois teriam ouvido uma voz de menina, que desafiava, furiosa, em inglês:
— I'm the president’s daughter! What do you think you're doing? Eu sou a filha do presidente! O que você pensa que está fazendo?
Estas foram as últimas palavras de Magrí no momento em que estava sendo seqüestrada em pleno vestiário do Colégio Elite...
Na semana anterior, tinha sido acalorada a reunião entre J. Edgar Hooper, o todo-poderoso diretor da CIA, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, onde a palavra "inteligência" na verdade queria dizer "espionagem", e dois policiais brasileiros: Doutor Pacheco, o delegado da Polícia Federal, que andava sempre de óculos escuros, e o gordo detetive Andrade, que enxugava a careca com um lenço, apesar da perfeita refrigeração da sala de conferências do luxuoso hotel brasileiro.
— Bem, senhores, os detalhes da segurança pessoal do presidente dos Estados Unidos durante sua permanência no Brasil já estão resolvidos. Vamos agora discutir o esquema de proteção à filha dele no Colégio Elite, na tarde em que ela estará participando da exibição de ginástica olímpica — propôs o Doutor Pacheco.
— J. Edgar Hooper deu um soco na mesa de reuniões:
— This is the problem! Esse é o ponto mais fraco, mister Pach... Pachino... Patchico...
— Pacheco, mister Hooper. Pacheeeeco!
— Hum...? — fez Andrade, olhando para a intérprete, que estava ali porque, embora o Doutor Pacheco falasse a língua do visitante, o detetive Andrade não conhecia mais de meia dúzia de palavras em inglês.
— Não estou gostando nada da idéia de miss Peggy MacDermott participar dessa exibição de ginástica com sua amiguinha brasileira — continuou Hooper. — Com o ginásio do Colégio Elite lotado, vai ser difícil garantir a segurança dela!
— Pode ficar sossegado, seu Hooper — garantiu Andrade, depois de ouvir a tradução. — O quarteirão inteiro estará cercado pelo exército brasileiro. E meus policiais são perfeitamente capazes de proteger essa menina de qualquer ameaça, até de correntes de ar!
— Just a moment, detective And... Androu... Android... — Hooper praticamente interrompeu a intérprete. — Como é que alguém consegue pronunciar um nome como esse?
— Andraaaade, seu Hooper — ajudou o detetive, contrariado.
— O que quer que seja! Nesse caso, só posso confiar nos policiais americanos. Nos meus homens! O senhor já pensou que desastre seria se, justamente no Colégio Elite, algum grupo de malucos resolvesse, por exemplo, seqüestrar a filha do presidente?
— Nem diga uma coisa dessas! — exclamou Pacheco. — Não brinque com uma coisa séria como um seqüestro!
— Não sou homem de brincadeiras, mister... Patchiec... ahn... mister policeman. Estou dizendo que a proteção de miss Peggy MacDermott durante sua permanência no colégio da amiga terá de ficar somente sob a minha responsabilidade.
— Só sob a sua responsabilidade?! — estranhou o detetive Andrade. — O que quer dizer com isso? E nós?
— Vocês ficam de fora. Meus agentes especiais revistarão os espectadores na entrada e só eles farão a segurança interna. E vão esvaziar toda a área esportiva da escola logo que terminar essa exibição idiota. Enquanto a filha do presidente não sair de lá, não quero por perto nenhum aluno, nenhum funcionário, nenhum professor!
— Ei, espere aí! — protestou Andrade. — O senhor pensa que os alunos, professores e funcionários do Elite são um bando de terroristas? A senhorita Peggy não correrá nenhum perigo lá. Ainda mais com Magrí!
— Who? — estranhou Hooper. — Quem é Magrí?
— Bem... é que... ela é... — Andrade percebeu que sem querer tinha revelado sua amizade com seus queridos meninos do Colégio Elite. Gaguejou e enxugou novamente a careca com o lenço. — Esse é o apelido da amiga brasileira da senhorita Peggy... É que ela é magrinha, sabem?
— Deixe esse caso conosco, mister Hooper — pediu o Doutor Pacheco, contrariado com a divagação de Andrade.
— Definitely not! — cortou Hooper. — Definitivamente não! Insisto que a polícia e o exército brasileiros fiquem fora do colégio!
Não adiantou discutir mais: o Colégio Elite teria mesmo de ser ocupado pelos agentes americanos e os policiais brasileiros ficariam de fora, ainda que o detetive Andrade deixasse bem clara sua desaprovação:
— Só quero saber se o senhor tem certeza de que seus orangotangos são mesmo os melhores, seu Hooper...
Automaticamente, a intérprete traduziu a frase malcriada e Hooper arregalou os olhos ao ouvir seus agentes especiais chamados de "apes":
— What?! O senhor chamou os agentes da CIA de macacos?
Pacheco interveio, salvando a situação:
— Oh, não, mister Hooper! O detetive Andrade quer saber é se os seus policiais são mesmo azes... Acesl
— Azes? É claro que meus homens são azes. São os melhores!
A intérprete sorriu, sem jeito, e baixou os olhos entendendo a pequena mentira do delegado da Polícia Federal, que continuou, tranqüilizador:
— Vai dar tudo certo, senhores. O Presidente Wilbur MacDermott não correrá nenhum risco no Brasil. Muito menos a filha dele no Colégio Elite. Então fica acertado que a CIA fará a segurança da área de esportes da escola enquanto nós cercaremos os quarteirões do colégio de tal modo que nem um gato possa entrar na área sem crachá de identificação. Para seqüestrar a filha do presidente americano, só mesmo se houver terroristas com asas!
— Buttshit! Ora, que bobagem! — cortou Hooper. — Crachá de identificação para gatos! E terroristas voadores! Ora essa!
E os três continuaram a discutir outros detalhes da visita dos americanos ao Brasil, mais tranqüilos com a parte do Colégio Elite. Nada poderia dar errado. Tudo seria um mar de rosas.
A exibição de ginástica olímpica no ginásio de esportes do Colégio Elite tinha sido um sucesso dos grandes. A platéia tinha adorado, apesar da falta de modos dos inúmeros brutamontes engravatados que revistaram todo mundo na entrada e permaneceram o resto do tempo de costas para a quadra, encarando a assistência de pais, parentes e alunos da escola como se cada um fosse um terrorista pronto para atacar de surpresa.
Ninguém tinha reclamado desse excesso de policiamento nem do alto preço dos ingressos, pois o dinheiro seria destinado à campanha contra o trabalho infantil e todos estavam ansiosos para ver a filha do presidente dos Estados Unidos bem de perto. De fato, a americana era boa atleta, assim como algumas das outras ginastas brasileiras presentes, mas a platéia tinha vibrado mesmo com a apresentação de Magrí, que parecia não ter peso ao evoluir nas barras assimétricas e na ginástica de solo.
— Que maravilha! — exclamara uma senhora. — Essa é que é a americana?
— Essa magrinha? Nada! É uma aluna do colégio...
No final daquele verdadeiro espetáculo de graça e elegância, os aplausos ainda nem tinham começado a diminuir de intensidade e os brutamontes de terno escuro já começavam a expulsar todo mundo das arquibancadas como se tangessem um rebanho.
Chumbinho tentava entrar na quadra para falar com Magrí quando um deles, do tamanho de um armário, agarrou o menino pelo braço.
Sentindo a indignação tingir-lhe o rosto, Chumbinho encarou o sujeito, falando num inglês perfeito:
— What is going on? Take your hands off me! O que está havendo? Me largue!
— Get out of there! Fora daqui! Todo mundo pra fora!
— Que negócio é esse? Fora daqui por quê?
— I don't have to explain anything! Não tenho de explicar nada! — respondeu o homem. — Just obey, kid! Apenas obedeça, garoto!
— Obedecer?! Assim, sem mais nem menos?
Ah, ah, isso é que Chumbinho jamais faria! Enfrentar fisicamente o orangotango engravatado isso ele não podia, mas como iria aceitar mansamente que alguém o expulsasse de algum lugar dentro de sua própria escola?
Conhecendo cada palmo do Elite, Chumbinho fingiu que ia embora, mas deu um jeito de driblar a vigilância dos policiais estrangeiros. Entrou furtivamente no quartinho das vassouras, que ficava ao lado da porta de entrada da metade masculina do vestiário. Em seguida, num salto, alcançou o alçapão que levava ao forro de concreto, onde ficava o...
O esconderijo secreto dos Karas!
Por que tinha subido para lá? Bem, talvez só para contrariar o orangotango americano e sentir-se aliviado como sempre se sentia quando conseguia resistir a alguma imposição absurda. Mas, no fundo, queria estar ali porque aquele era seu lugar de refúgio, porque ali Chumbinho gostava de isolar-se às vezes, mesmo quando não havia nenhuma "emergência máxima", nenhuma reunião secreta dos Karas programada. Havia momentos em que ele queria ficar só, com seus pensamentos e com as lembranças dos perigos excitantes que vivera com seus queridos amigos Miguel, Magrí, Crânio e Calú.
Deitou-se no chão do esconderijo, rememorando o espetáculo de ginástica:
"Que gatas! E a Natália, então?”.
De olhos fechados, revia a imagem da graça que era a Natália da oitava, toda fresquinha, jogando para trás aquele manto perfumado de cabelos negros ao preparar-se para alguma evolução. Pena que Natália fosse quase um palmo mais alta do que ele...
No esconderijo secreto estava quieto, agradável... Dava um sono...
Pensou nos Karas, seu grupo maluco de amigos...
Há quanto tempo!
Chumbinho sentia como se os Karas tivessem sido esquecidos dentro do sarcófago de alguma múmia. Há quanto tempo o grupo dos Karas não se envolvia em uma daquelas enrascadas que fariam tremer os adultos mais valentes! Há um tempão não se falava mais em lutas secretas e arriscadíssimas contra vilões fabulosos que o garoto Chumbinho ansiava por voltar a combater.
O que estariam os outros Karas fazendo depois de terem sido expulsos do ginásio de esportes? Chumbinho apostava que os três estariam pensando em Magrí. E ele mesmo sabia muito bem qual deles o coração de Magrí tinha escolhido...
E a própria Magrí? Ora, era certo que ela não estaria pensando nos Karas. Agora mesmo estaria com sua amiga americana e com as outras atletas, tomando sua ducha no vestiário feminino, exatamente debaixo da outra metade do forro de concreto, que ficava separada do esconderijo secreto por uma grossa parede.
Nenhum deles estaria, como Chumbinho, ansiando por novas aventuras. Mas que graça tem a vida sem aventuras, sem riscos estupendos a enfrentar? Sem ações arriscadas que...
A luz do entardecer, filtrada pelas poucas telhas de vidro do telhado, mal iluminava a silhueta adormecida de Chumbinho.
O menino estava sonhando com Natália, quando foi despertado pelo ruído ensurdecedor das hélices de um helicóptero que parecia pousar sobre o telhado do vestiário.
A FILHA DO PRESIDENTE AMERICANO
Na noite anterior, para mostrar a vista da cidade a Sherman Blake, o simpático guarda-costas de seu pai, Peggy MacDermott levara-o à varanda do luxuoso hotel brasileiro, cujo último andar havia sido reservado somente para o presidente e sua filha.
— Come here, uncle Sherm. Venha cá, tio Sherm. Veja, esta cidade até parece Chicago!
Sherman Blake era um homem atlético, que ostentava ainda a forma física do fuzileiro naval que mais condecorações tinha recebido por atos de bravura. Depois de reformado, Sherman Blake acompanhava há tantos anos a carreira política de Wilbur MacDermott, cuidando de sua segurança, que já fazia parte da família. Quando era pequena, muitas vezes Peggy havia cavalgado em seus ombros fortes e, no Natal, o primeiro presente que recebia era sempre daquele eficiente protetor de seu pai. Para Peggy, Sherman Blake sempre fora o querido "tio Sherm".
— Uncle Sherm, aqui as pessoas falam português, não é? Não vou entender nem uma palavra!
— Well. Aprendi um pouco de espanhol lutando contra as guerrilhas latino-americanas. De português, só conheço algumas frases...
Peggy repousou a cabeça em seu peito e o afável anjo da guarda do presidente pousou os lábios em seus cabelos e sussurrou, carinhosamente:
— My dear est Peggy, éo tchi áámôu...
— What? O que você disse, uncle Sherm?
— I said I love you, my little Peggy... In Portuguese!
A menina sorriu, feliz:
— I love you too, uncle Sherm...
A poucos metros da varanda, sentados nas confortáveis poltronas do grande salão, o presidente e J. Edgar Hooper discutiam o protocolo acertado para o dia seguinte, que transcorreria lá mesmo, no hotel.
— Pela manhã, Mister President, o trabalho ficará com as comissões técnicas em economia e política exterior — recapitulava Hooper. — À tarde, está marcada sua reunião com o presidente do Brasil, o senhor Augusto Rodrigues Lobo.
— E... Temos tantas coisas a decidir...
— Depois, exatamente à meia-noite, hora brasileira, será a hora do seu discurso, senhor. A transmissão será feita daqui mesmo, desta sala. Já está tudo acertado para formar a rede mundial de televisão.
— Esse horário foi bem escolhido, Hooper — comentou o presidente. — Corresponde às sete da noite em Los Angeles e às dez em Nova York. O horário certo para pegar nossos compatriotas na frente de seus aparelhos de tevê...
O diretor da CIA pigarreou:
— Bem... agora o roteiro de sua filha. À tarde, como o senhor concordou, lamento dizer que contra os meus conselhos, miss Peggy será levada ao Colégio Elite, para a exibição de ginástica com a amiga brasileira. E esse ponto me preocupa, Mister President, me preocupa muito...
MacDermott sorriu daquele cuidado exagerado:
— Come on, Hooper! Não se preocupe tanto. O esquema de segurança que você organizou está perfeito. Nada vai acontecer comigo nem com a minha filha no Brasil!
— I’m not sure. Não sei, Mister President. Vamos ter de confiar muito nas forças locais. Estive reunido com os encarregados brasileiros na semana passada. Eles parecem muito solícitos e organizados mas... como ter certeza? A proteção externa do colégio ficará a cargo do exército e da polícia do Brasil, fora do nosso comando!
— Não haverá problemas, meu caro Hooper. O Presidente Rodrigues Lobo é um grande estadista. O povo o adora. Ninguém nos fará mal.
— É, mas há muita gente que odeia o presidente brasileiro, Mister President.
— Assim como a mim, Hooper, assim como a mim. Principalmente dentro do meu próprio país...
— Ainda acho que o senhor não devia ter feito essa viagem, Mister President. Sua segurança é...
— Importante? Pois muito mais importante será meu discurso de amanhã à noite. O mundo ficará surpreso com a proposta que vou apresentar, você vai ver!
— Surpreso? No caso de sua segurança e de sua filha, espero que estejamos livres de surpresas, Mister President...
O presidente voltou-se para o lado da varanda, chamando carinhosamente a filha:
— My little kangaroo! Não está na hora de ir para a cama? Você deve estar exausta, depois da viagem para cá...
Pouco depois, Peggy aconchegava-se sob as cobertas, pensando em Magrí, a amiga que ela havia conquistado no campeonato mundial de ginástica olímpica, disputado nos Estados Unidos. Isso tinha sido poucos meses antes de seu pai, o senador Wilbur MacDermott, ter vencido as eleições presidenciais. Agora, os eleitores americanos a haviam transformado na filha do presidente dos Estados Unidos da América.
E, quando soube que o pai preparava uma visita oficial ao Brasil, pediu e teve permissão para acompanhá-lo, embora sua mãe não pudesse viajar desta vez, ocupada com suas atividades filantrópicas. Mas acabou consentindo, pois a filha ficaria só três dias longe dela.
E Peggy adormeceu, repetindo mentalmente a primeira frase em português que havia aprendido:
"Éo tchi áámôu... éo tchi áámôu...”.
— Hey, Magrí, could you handle me that towel, please? Pode me passar a toalha, Magrí?
No dia seguinte, depois que toda a platéia do ginásio de esportes já tinha sido levada para fora do Colégio Elite pelos homens de J. Edgar Hooper, a jovem americana enxugava o rosto com a toalha que Magrí lhe estendera e sorria:
— Como é que você consegue saltar dessa maneira, Magrí?
— Do mesmo jeito que você. Você está em ótima forma, Peggy!
As atletas ainda tinham se demorado na quadra, uma mostrando para a outra suas habilidades. Depois, abraçadas, rindo felizes pelo encontro, Magrí e Peggy haviam saído do ginásio para o vestiário, junto com três das garotas que tinham participado da exibição de ginástica.
Dois agentes da CIA, de terno e cara feia, escoltaram o grupo até a porta do vestiário. Naturalmente nenhum deles falava ou lia português, mas o desenho de um rosto feminino numa plaquinha na porta mostrava que havia um limite para sua vigilância. As meninas entraram no vestiário e os dois "orangotangos" postaram-se na entrada, dispostos a proteger a filha do presidente com suas próprias vidas.
— Oh, Magrí! Você é incrível. Eu nunca vou ser capaz de fazer uma saída das barras como você fez hoje!
— É claro que vai, Peggy. Você tem uma agilidade sensacional!
— Você acha? Meu pai diz que eu salto feito um canguru, até me chama de "my little kangaroo", mas ele deveria ver você saltando!
O PERIGO SOBREVOA O ELITE
Passava das seis horas da tarde e a noite caía depressa. Já no escuro, o público que havia vibrado com a sessão de ginástica era empurrado para fora do ginásio pelos homens de cara feia e terno preto.
Eram centenas de pessoas que surgiam dos grandes portões da área esportiva da escola, aumentando a confusão que tinha tomado conta das ruas em torno do Colégio Elite. Tudo estava cercado por policiais e soldados com cachorros, que formavam uma muralha para manter a distância inúmeros curiosos, repórteres insistentes, cinegrafistas nervosos, iluminadores de televisão tropeçando em fios, e grupos de piqueteiros que empunhavam faixas e bandeiras, berrando palavras de ordem contra o presidente americano, contra o presidente brasileiro e contra qualquer tipo de autoridade de que se lembrassem.
Miguel tinha sido um dos primeiros a sair da área esportiva, ainda ouvindo os aplausos da platéia, que gritava o nome de Magrí sem parar.
"Magrí... Você é incrível, minha querida...”
Novamente sentiu um aperto no coração, como acontecia toda vez que pensava na menina. Suspirou e sacudiu a cabeça, espantando a lembrança. No lugar dela, estampou-se a figura elegante de Peggy MacDermott, a filha do presidente americano. Uma garota diferente, perturbadora...
E Miguel estava perturbado.
Durante a apresentação, tinha ficado no alto da arquibancada, junto com um grupo de amigos barulhentos de sua classe. Como sempre, os Karas evitavam aparecer juntos em público. Assim, tanto ele quanto Crânio, Calú e Chumbinho tinham assistido de diferentes pontos da platéia à apresentação de Magrí, de Peggy e das outras garotas.
Miguel foi buscar a bicicleta no pátio de estacionamento do colégio pensando que, no meio da multidão que ocupava cada metro quadrado da rua, seria difícil encontrar seus amigos.
"Há quanto tempo a gente nem se reúne... Mais de três meses! Para mim, é como se fossem cinco anos. Dá uma vontade de... de quê? Bom, confusões nesse mundo até que não faltam. Qual a próxima que os Karas vão ter de enfrentar?”.
A muito custo, conseguiu atravessar aquele mar de gente e já estava a mais de cem metros do Elite, pedalando para casa, quando ouviu o ruído das hélices do helicóptero, sobrepondo-se ao barulho da multidão.
No meio de um grupo de piqueteiros, Crânio ficava na ponta dos pés para tentar localizar os amigos.
"Onde estará Miguel? E Calu? Bom, o pequeno Chumbinho eu nunca vou conseguir localizar no meio dessa gente... E Magrí? Será que ela vai continuar com a amiga americana?”.
Magrí... Ela era a sua... Sua o quê? Amiga? Irmã de sangue e coragem do grupo dos Karas? Ou... namorada?
Sempre que Crânio tentava falar-lhe de amor, Magrí cantarolava uma música que fizera grande sucesso no encerramento da Olimpíada de Barcelona:
— Amigos para síempre, you will always be my friend...
Ignorando a multidão que o cercava, Crânio isolava-se com esses pensamentos quando o ruído do motor de um helicóptero despertou-o novamente para a realidade.
Calú assistira à sessão de ginástica junto de um grupo de atores do elenco de teatro do Elite, derretendo-se a cada evolução que Magrí fazia na quadra.
"Magrí...”
Mas, aos poucos, a figura da visitante americana começava a chamar-lhe a atenção.
"Essa Peggy não é tão boa atleta quanto Magrí. Mas ela é... hum... uma gatinha!"
O ensaio da peça que o jovem ator protagonizava tinha sido adiado para o dia seguinte por causa da visita da americana que agora fazia seu coração bater mais acelerado.
"Teatro... Puxa vida! Era bem outro o tipo de peça que eu gostaria de representar agora!", o sangue circulava forte por suas artérias ao pensar nos amigos, ao pensar nos Karas. "Viver de verdade é muito melhor do que representar. Quando é que os Karas vão entrar em ação novamente?"
Tinha sido com uma das atrizes, a mais bonitinha delas, que Calú saíra do ginásio, deparando com a multidão que lotava a rua onde ficava a entrada da área esportiva do Elite.
Tentava enxergar por cima da multidão e localizar algum dos rostos que esperava encontrar.
A seu lado fascinada pela beleza do rapaz, a linda atrizinha sussurrava, com uma voz quente que revelava o convite que se seguiria:
— Calu... Que tal a gente sair daqui? Hein? Você não quer ficar comigo?
— Hum? É que... Estou procurando uns amigos...
Com o corpo quase colado ao dele, a garota erguia o rosto e o encarava, com um sorriso doce e quente. Suas mãos pousavam delicadamente no peito do rapaz, enquanto as pequenas narinas comprimiam-se, como se quisessem aspirá-lo para dentro dela.
Calu percebeu que a menina punha-se na ponta dos pés, oferecendo-lhe os lábios. Nesse momento, o corpo da menina subitamente estremeceu, sacudido pelo ruído estrondoso das hélices de um helicóptero.
O gordo detetive Andrade tinha decidido tirar um momento de descanso, depois da organização do esquema de segurança que envolvia o Elite.
— Um gelato, signore?— a dona da lanchonete, que prosperava a olhos vistos devido à contribuição das mesa das dos estudantes do Colégio Elite, que ficava bem ali em frente, recebia simpaticamente o policial careca, de terno amarrotado. — Nós temos um sorvete especial. Fabricação própria: pistacchio, crema e cioccolato. Un gelato crocante, tipicamente italiano!
— É claro! Pode trazer. E porção dupla, hein?
Logo Andrade recebia a taça com o sorvete pedido e verificava, deliciado, que havia três diferentes tipos de cobertura. "Isso é que é sorvete!", pensava o detetive, atirando-se com prazer à tarefa de esvaziar a taça transbordante, apesar do friozinho de começo de inverno brasileiro. "Se meus colegas lá da delegacia fizessem uma visitinha a esse colégio, acho que iriam querer transferência para a segurança escolar...”
Pediu mais um pouco de calda de chocolate e voltou a concentrar-se na tarefa de saborear o sorvete.
"Pena que o danado do Hooper deixou a gente de fora! Eu adoro ver a Magrí fazendo aquelas loucuras. Principalmente nas barras. Será que a tal americaninha é melhor do que ela? Duvido...”
Já começava a anoitecer e, de acordo com o programa planejado, em poucos minutos a limusine com a filha do presidente americano deixaria o Elite e ele poderia voltar para casa. Apesar da multidão que cercava a escola, o dia transcorrera na mais doce rotina. A missão de participar do esquema de segurança da menina afinal de contas tinha sido leve.
"Nada aconteceu e nada acontecerá. Felizmente!"
Andrade pensava satisfeito que aquela era uma das poucas vezes em que visitava o Elite sem se meter em alguma aventura mirabolante, junto com os cinco meninos que ele amava como se fossem os filhos que nunca teve.
"Miguel, Magrí, Calu, Crânio, Chumbinho! Que meninos! Bom, parece que agora eles estão livres de confusões...”, pensava ele, lembrando-se de como aqueles garotos o haviam ajudado em tantas ocasiões. "Chega! Essas loucuras já fazem parte do passado. Felizmente...”
O detetive Andrade já havia raspado o fundo da taça de sorvete quando ouviu o plac-plac das hélices de um helicóptero sobrevoando muito baixo o Colégio Elite.
NUAZINHAS EM PÊLO
No vestiário, três das garotas que haviam participado da exibição de ginástica olímpica riam e brincavam com Magrí, excitadas pela presença entre elas de uma novidade como a filha do presidente americano.
— Que amiga, hein, Magrí? — brincava Natália, acabando de se vestir e começando a maquiar-se na frente do espelho que havia sobre o mármore das pias. — Ela é bem do seu jeitinho. Acho até que dá para confundir vocês duas...
Sobre o tampo da pia, Magrí viu uma lata de talco. Muito grande.
"Que exagero!", pensou.
— O que ela disse?
— Nada, Peggy. Só uma brincadeira. Ela diz que nós somos parecidas.
Despiram os maiôs colantes e dirigiram-se para o banho, rindo das brincadeiras das colegas.
"Já estamos ficando altas demais para a ginástica olímpica...”, pensava Magrí, avaliando seu próprio corpo e o da amiga americana. “Agora, só me resta mesmo o vôlei”.
Parecidas de verdade elas não eram, mas a cor e o comprimento dos cabelos, que ambas prendiam atrás da cabeça para facilitar os movimentos da ginástica, eram muito semelhantes. Além disso, tinham praticamente o mesmo peso e altura. Tudo já "um pouco demais" para a ginástica olímpica...
Por entre a fartura de água quente que escorria por seu rosto, Magrí via Natália, na frente do espelho. Estranhamente, a colega sacudia com lentidão os cachos negros de seus cabelos. Parecia gemer baixinho.
Entre Magrí e Natália, Peggy largava o maio que acabara de despir e cambaleava, como se tivesse bebido.
— What is going on? O que está acontecendo? Estou me sentindo tonta...
Tonta?! Peggy estava tonta, Natália sacudia a cabeça e...
Magrí ouviu o barulho de um corpo caindo. Ao lado de Natália, as outras garotas desabavam, estendendo-se no chão, de comprido.
— O que é isso? — gritou Magrí, tirando a cabeça da água.
Por suas narinas, entrava um cheiro estranho, ácido...
— Gás!
Prendeu a respiração e voltou para o chuveiro. Debaixo d'água, talvez o efeito do gás fosse menor.
Os olhos de Peggy fixavam-se nos seus, e a menina estendia frouxamente os braços, tentando andar em sua direção. Atrás dela, Natália escorregava devagarinho, apoiada nas pias, até deixar-se cair molemente sobre o piso.
"Um gás narcotizante! Jogaram gás aqui! Por quê?"
O coração de Magrí disparava enquanto via a filha do presidente americano, completamente nua, cair no chão, de braços.
Seus pulmões pareciam explodir e, mesmo debaixo d'água, o gás começava a fazer efeito sobre Magrí.
"Respirar! Preciso respirar!"
Percebeu um movimento. Uma figura saída de algum pesadelo destacava-se no meio do vapor da água quente do chuveiro e da fumaça amarelada, quase imperceptível, que fluía da grande lata de talco.
Uma figura com... máscara contra gases!
"O que está acontecendo?", tentava pensar, lutando para segurar a respiração. "Esse homem... Barbaridade! Isso só pode ser um atentado contra a Peggy!"
Sacudiu a cabeça debaixo d'água. Mesmo sob o impacto de um susto como aquele, mesmo sob o efeito do gás, seu raciocínio era o raciocínio de um Kara. E a presença de espírito de Magrí era a da garota mais inteligente e corajosa que alguém já viu. Só havia uma coisa a fazer:
"Preciso salvar Peggy!"
O homem olhava em torno, ansioso e apressado.
"É agora...”
De repente, o seqüestrador viu o corpo de uma adolescente, toda nua, avançar um passo, saindo debaixo do jato do chuveiro e olhando diretamente para ele. Os olhos dela fuzilavam de ódio, ao gritar:
— I'm the President's daughter! What do you think you're doing?
Ao falar, o gás entrou pelo nariz e pela boca da menina. Magrí prendeu de novo a respiração, mas o narcótico inalado queimava-lhe os pulmões.
O homem corria para ela, quase tropeçando no corpo nu de Peggy, desfalecida no chão. Um par de mãos brutais agarrava Magrí pelos braços. A tontura já era grande e seu corpo molhado amoleceu como se não tivesse mais ossos. O bandido a sustentou, sem delicadeza alguma.
Vinda do alto, deu para entender uma frase:
— You have to open the door first, idiot! Você tem de abrir a porta antes, idiota! Está se esquecendo do plano?
Sentindo-se desmaiar, a única menina do grupo dos Karas ouviu, acima do vestiário, o ruído ritmado de um motor de helicóptero.
“O que está fazendo um helicóptero aqui?”
Chumbinho estava de pé, com o sistema nervoso pronto para a ação, como um ratinho ao ouvir um miado. A surpresa do primeiro momento logo dava lugar à iniciativa e à coragem de um perfeito membro do grupo dos Karas.
E Chumbinho não esperou mais nada para começar a agir.
Já estava levantando a tampa do alçapão, quando o ruído das hélices do helicóptero começou a diminuir, logo desaparecendo na distância.
Num instante, saía do quartinho das vassouras e via a porta da metade feminina do vestiário escancarada. À frente dela, dois corpos de terno e gravata jaziam estendidos, praticamente degolados...
"Que horror! Estes são dois dos seguranças da filha do presidente! Eu discuti com este aqui ainda há pouco! Assassinados! O que aconteceu?"
Pulando os cadáveres, Chumbinho correu para dentro do vestiário feminino.
Um cheiro ácido, desagradável, ainda pairava no ar, apesar do frio que entrava pela porta aberta. Um cheiro que entontecia, mas que já não era capaz de tirar os sentidos.
"Gás! Isso foi um atentado! Contra a filha do presidente! Só pode ser!"
A seus pés, Natália estava caída nos ladrilhos, com os cabelos negros espalhando-se desalinhados, formando uma moldura de cachos anelados em torno da expressão desfalecida do rosto.
"Natália!"
Ao lado da colega e um pouco mais além, Chumbinho percebeu mais dois corpos no chão.
"Um atentado! Isso foi um atentado contra Peggy MacDermott! Magrí! Magrí estava com ela. Onde estão as duas?"
Um chuveiro desperdiçava água e enchia o vestiário de vapor quente. Um pouco à frente dele, outro corpo feminino, pálido e nu, estava caído de bruços.
"Magrí!", gritou Chumbinho para si mesmo, correndo para ajoelhar-se junto ao corpo desfalecido.
Apressado, virou-o de frente e a visão do rosto da filha do presidente americano confundiu-o por um instante. Mas foi só por um instante:
"Peggy MacDermott?! A filha do presidente? Mas por que alguém jogaria gás no vestiário e mataria os seguranças, se não fosse por causa dela? Para fazer algum mal a ela? Para... seqüestrá-la? E Magrí? Cadê Magrí? Então... Ai, que desgraça! Já sei o que aconteceu!"
Na mente aguda de Chumbinho, a única hipótese cabível para ver ali, perto dos seus joelhos, o corpo nu da filha do presidente americano, e para não ver nem sombra de Magrí, revelou-se claramente.
"Magrí! Seqüestraram Magrí no lugar da Peggy! Os bandidos se confundiram! Mas... e quando eles descobrirem o engano? Barbaridade! Vão matar Magrí, na certa!"
O restinho de gás que ainda pairava no interior do vestiário feminino tirava-lhe um pouco das forças. Chumbinho tinha de agir depressa.
"Tempo! Não tenho tempo! Preciso tirar essa garota daqui antes que alguém apareça!"
O corpo a seus pés começava a mexer-se. Junto às pias, a cabeleira negra de Natália agitou-se um pouco. O efeito do gás não era duradouro.
Chumbinho ergueu o torso de Peggy e abraçou-se a ela. Com esforço, ficou de pé, levantando-a. Os braços da menina rodearam-no frouxamente mas as pernas não se firmaram no chão. O rapazinho aspirou fundo, abaixou-se um pouco, apoiou a cintura de Peggy na nuca, passou o braço esquerdo por entre suas coxas e segurou os pulsos da garota com a mesma mão. Por fim, levantou-se, com o corpo desfalecido atravessado em suas costas. Com esforço, saiu apressado, carregando-a em direção ao quartinho das vassouras.
Passou por Natália, quase perdendo o equilíbrio. Sobre seus ombros, ouviu um suspiro. A americaninha começava a despertar.
Dentro do quartinho, baixou-a delicadamente, apoiando-a à parede. Os olhos de Peggy ainda estavam cerrados.
"Um aviso! Preciso avisar os Karas!"
Voltou ao vestiário. Dentro de um cesto de lixo, havia uma lata de refrigerante vazia. Pegou-a. Com força, passou o dedo indicador na borda da abertura. O sangue fluiu. Sem um gemido, com três traços, desenhou o aviso no espelho.
A seus pés, Natália gemia, dolorosamente.
Chumbinho nem desviou o olhar. Em um segundo, de volta ao quartinho das vassouras, com a ponta do indicador na boca, para estancar o sangue. Ao longe, ouvia vozes e gritos.
"Estão vindo... Preciso agir depressa!"
Abaixou-se e deu um tapa no rosto da filha do presidente americano.
Os olhos da menina arregalaram-se, olhando surpresa para ele.
Tapou-lhe a boca com a mão, vigorosamente, e sussurrou-lhe com ansiedade, em inglês:
— Please, Peggy, don't say anything. Não diga nada, Peggy, por favor. Tente entender: seqüestraram Magrí em vez de você!
— What?!
— Entende o que isso significa? No momento em que os bandidos descobrirem que levaram a garota errada, Magrí será assassinada, sem piedade!
— They'll kill Magrí? O que você está dizendo?
— Você tem de ficar escondida, compreende? Os bandidos precisam pensar que a garota que eles seqüestraram é você!
— O que está querendo dizer? Who are you? Quem é você?
— Eu sou Chumbinho. Sou um dos melhores amigos de Magrí. Confie em mim. Você precisa desaparecer para que todos pensem que é você quem está em poder dos seqüestradores. É a única maneira de salvar a vida de Magrí! De fora, ouviam-se gritos de pânico, confusão e desespero:
— Murdered! Assassinados! Assassinaram os seguranças!
— Hurry up! Depressa! Onde está a filha do presidente? Procurem!
Não demoraria muito e alguém haveria de abrir a porta do quartinho das vassouras. Para o mundo, seria um alívio encontrar Peggy MacDermott ilesa, mas no momento em que as emissoras de rádio e tevê noticiassem que uma outra menina havia sido seqüestrada, Magrí estaria morta. Era isso, infelizmente essa era a lógica. Por que os bandidos haveriam de poupar a garota errada? Era a vida de sua melhor amiga que estava em perigo!
Somente a presença de espírito e a inteligência de um verdadeiro Kara explicariam a presteza com que Chumbinho chegara àquela conclusão e agira do único modo possível para preservar a vida de Magrí. O garoto arfava, ansioso. A americaninha precisava compreender, precisava colaborar, precisava ajudá-lo!
Peggy pensou depressa, examinando a expressão assustada do garoto que insistia com ela, contando-lhe o enredo mais maluco de sua vida. E viu que uma expressão como aquela só podia refletir a verdade. De repente, lembrou-se do gás e compreendeu: Magrí se sacrificara para impedir que ela fosse seqüestrada! O menino tinha razão. Se os bandidos descobrissem o engano, sua amiga brasileira seria assassinada!
— Okay, I understand. Compreendo. O que eu tenho de fazer?
— Preciso escondê-la, Peggy. Faça o que eu fizer.
Num salto, Chumbinho agarrou-se nas saliências da borda do alçapão, jogou a tampa para dentro e deu um impulso como de quem sobe em muro.
Do chão, Peggy viu o garoto fazer um gesto para que ela o imitasse.
Para uma ginasta como ela, não foi difícil. Silenciosamente, combatendo o resto de tontura que o gás ainda lhe deixara, saltou para agarrar-se na borda e deu outro arranco, como se girasse nas barras assimétricas.
Nua em pêlo, Peggy MacDermott estava no sótão do vestiário masculino, o esconderijo secreto dos Karas, na companhia de um menino desconhecido.
Abaixo, ruídos e vozes aos gritos mostravam aos dois adolescentes que o caos estava instalado no Colégio Elite.
Mais um pouco e o caos tomaria conta do planeta Terra.
OS KARAS ENTRAM EM AÇÃO
A tarde começava a cair, quando os presidentes Wilbur MacDermott e Augusto Rodrigues Lobo encerraram a entrevista coletiva à imprensa. Os repórteres tinham sido insistentes, exaustivamente insistentes, porque a curiosidade sobre o discurso do americano era enorme e o mundo ansiava por informações.
— Ufa! Acho que agora conseguimos ficar livres dos jornalistas! — exclamou aliviado o presidente do Brasil, depois que seu colega americano tinha fechado a porta do gabinete presidencial do luxuoso hotel.
— Em toda a minha vida política, Augusto, nunca consegui me acostumar com essa atitude da imprensa, que pensa que pessoas como nós têm respostas para tudo — lembrou MacDermott. — Será que ninguém nota que somos gente como as outras? Que amamos como todo mundo? Que temos família, que queremos a felicidade de nossos filhos como qualquer pessoa? Que temos os mesmos sonhos? As mesmas esperanças?
— E as mesmas dúvidas também, Wilbur — acrescentou Rodrigues Lobo, que tratava o colega americano como se fossem velhos amigos. — Esse pessoal exige demais de nós. Muito mais do que somos capazes de fazer!
— É sempre a mesma coisa, tanto aqui como no meu país, meu caro Augusto — comentou MacDermott, deixando-se arriar numa poltrona.
— O mundo está ficando muito parecido, Wilbur.
— Mas, pelo jeito, esse processo começou pelas coisas ruins.
— Está na hora de nos assemelharmos no que cada uma de nossas culturas tem de melhor, não de pior.
— Concordo plenamente, Augusto. Enquanto as relações internacionais forem ditadas pelo poder da ganância, só as coisas ruins serão exportadas. E é isso que eu quero mudar!
— Você já começou, meu caro Wilbur. E eu também já comecei a fazer a parte que me cabe. E, daqui a algumas horas, exatamente à meia-noite, com seu discurso sendo transmitido para todo o planeta, o processo de justiça pelo qual nós dois lutamos não terá mais retorno.
— Ou vencemos, ou o mundo continuará sem esperanças.
Wilbur MacDermott ficou sério:
— Eu não nasci para aceitar um mundo sem esperanças!
Nesse momento a porta era aberta sem qualquer cerimônia e o Doutor Pacheco entrava no gabinete presidencial sem óculos escuros, talvez para que os dois presidentes vissem seus olhos arregalados:
— Senhor Presidente, sua filha foi seqüestrada!
Sentindo-se muito tonta, Magrí não conseguia abrir os olhos. Não sabia por quanto tempo ficara sem sentidos, nem ao menos se tinha ou não desmaiado. Sua cabeça, pendida para frente, parecia pesar uma tonelada e, em seus ouvidos, o som do motor do helicóptero diminuía, até desaparecer por completo.
Levantavam seus braços. Mãos fortes agarravam seus pulsos. Sentiu-se suspensa, solta no ar por um instante. Com a mesma brutalidade, puxavam seu corpo para cima, fazendo-o passar por um espaço estreito. Alguma aresta arranhou-lhe a nádega. Foi largada no chão, numa superfície dura, que parecia forrada com plástico. Puxaram suas mãos para as costas e amarraram seus pulsos, enquanto mais alguém apertava uma larga faixa de fita colante sobre sua boca. Notou que as pessoas se afastavam.
O cheiro de gás a nauseava. Procurou respirar curta e apressadamente pelo nariz, lutando contra o enjôo. Se vomitasse com a boca amordaçada, na certa morreria sufocada. Aos poucos, a tonteira diminuía. Entreabriu os olhos. Pensou que estivesse sonhando. Tudo estava escuro, mas algo como um teatro de sombras projetava-se à frente. Como se ali fosse um estúdio de revelação fotográfica, havia uma iluminação avermelhada, tênue, que projetava as silhuetas de dois homens contra um pano esticado que havia diante dela.
"O que vai acontecer comigo agora?".
"Que helicóptero é esse aqui no Elite?", pensou Miguel. "Está escuro demais para ver... E por que essa correria de policiais?"
Uma multidão se aglomerava ao longo da rua lateral onde ficavam os portões da área esportiva do colégio e para onde acorriam carros de polícia fazendo um barulho infernal com suas sirenes. Miguel acorrentou a bicicleta em uma árvore e simplesmente esperou, sem mudar de lugar. O líder dos Karas sabia que Chumbinho, Calu e Crânio logo o encontrariam, pois haveriam de imaginar que o pior lugar para encontrar alguém é no meio de todo mundo.
Como ele pensava, logo dois dos rapazes avistaram-no à espera numa esquina, a cem metros do colégio. Dava para ler uma expressão determinada no rosto do jovem comandante.
"Somente Calu e Crânio? Onde andará Chumbinho?" Miguel fez um sinal e os três reuniram-se sob uma sibipiruna que, apesar do inverno, ainda mantinha sua farta copa. Num primeiro momento, olharam-se sem falar. Os três sabiam que alguma coisa grave deveria ter acontecido no interior de sua escola, só não podiam saber o quê.
— Onde está Chumbinho? — perguntou Miguel, entre dentes.
Calu sabia que estavam à beira de um momento de luta. O melhor ator do Colégio Elite era um verdadeiro Kara, sempre pronto para o que desse e viesse. Balançou a cabeça:
— Não sei. Ele deve estar procurando por nós. Já, já ele aparece.
Crânio estava sério e tenso. Jamais, durante todos os anos em que estudara no Elite, sua escola estivera, como agora, sendo invadida pela polícia e pelo exército ao mesmo tempo. Negou com firmeza:
— Nada disso, Karas. Tenho certeza de que ele está lá, no meio da confusão!
— Como você pode ter certeza? — perguntou Miguel.
— Quando eu estava saindo da área de esportes, vi o danado do moleque, com aquela carinha dele de resistência aos adultos mandões, discutindo com um americano grandalhão. Tenho certeza de que Chumbinho deu um jeito de continuar lá dentro, só pra contrariar!
— Contrariar a CIA?! — estranhou Calu. — Ora! Você acha que ele ia conseguir furar a vigilância desses tiras americanos?
— Você não conhece o Chumbinho, Calu? Proibição, para ele, é o mesmo que convite!
— Não adianta especular, Karas — decidiu Miguel. — precisamos saber o que aconteceu, realmente. Vamos atrás de informações.
— My daughter! Minha filha!
Pálido, Wilbur MacDermott parecia nem conseguir respirar ao ouvir a terrível notícia que o Doutor Pacheco acabava de trazer.
A surpresa de Rodrigues Lobo não era menor:
— O que o senhor está dizendo, Doutor Pacheco? O que aconteceu?
Enquanto o delegado da Polícia Federal contava o que seus homens haviam relatado por telefone, de fora da sala entrava o barulho dos jornalistas, que protestavam, exigindo explicações sobre as graves novidades que tinham aparecido subitamente. Com dificuldade, eram contidos por soldados e policiais que nada tinham a informar.
— ... degolados à faca! — num fio de voz, Pacheco terminava o relato. — Sinto muito, Senhores Presidentes, mas a única falha do esquema de segurança do senhor Hooper, da CIA, foi não imaginar que um helicóptero poderia ser utilizado e...
— Um helicóptero? — interrompeu Rodrigues Lobo.
— Sim, Senhores Presidentes. Todos ouviram o motor de um helicóptero sobrevoando os vestiários. A ação transcorreu num tempo tão curto que, quando os outros agentes da CIA chegaram ao local, a senhorita Peggy já tinha sido levada.
Nesse instante, invadiam o salão dois generais devidamente engalanados e em rígida posição militar. Um era o chefe do Gabinete Militar da Presidência da República do Brasil e o outro ocupava o cargo equivalente no governo americano. O primeiro a falar foi o brasileiro:
— Senhor Presidente, já colocamos no ar uma esquadrilha de caças moderníssimos, equipados com radar. Estamos fazendo uma operação pente-fino no ar. Isso é suficiente para localizar até uma pomba em vôo. Já bloqueamos todas as estradas e aeroportos. Tropas aerotransportadas estão vasculhando cada canto onde alguém possa pousar ou esconder um helicóptero. Não há modo de esses seqüestradores escaparem!
Chegou a vez do general americano, que atropelava as palavras:
— Mister President, a maior máquina de guerra do planeta Terra já foi mobilizada. Acionamos nossos satélites, que são capazes de enxergar até mesmo a placa de automóvel a milhares de milhas. Estão cobrindo mede do território brasileiro e enviando para nós imagens digitalizadas por computadores. Estamos vasculhando todas as distâncias para onde os bandidos podem ter voado levando a menina. Não há canto nenhum do mundo onde alguém possa esconder miss Peggy!
— Queremos ser informados do andamento das investigações a cada minuto, senhores generais! — ordenou Rodrigues Lobo.
— É claro, Mister President. — continuou o general americano. — A Sala de Guerra do Pentágono já está em alerta total e tomaremos conhecimento de cada pista encontrada, no exato momento em que alguém a descobrir!
Os dois bateram continência e deixaram o salão.
— Mas o que querem esses bandidos? — MacDermott abria os braços, com uma expressão de desconsolo. — Por que levaram minha filha?
— Estamos esperando alguma nota dos seqüestradores pedindo resgate, senhor... — foi tudo o que o Doutor Pacheco conseguiu dizer.
— Onde está Blake?
— Seu guarda-costas foi justamente para o colégio, Senhor Presidente. Pouco antes que essa desgraça acontecesse, ele foi procurar o senhor Hooper para saber como andava o esquema de segurança de sua filha.
— O Hooper, é? Ele está no colégio, não é? E por será que ainda não ligou para me dar satisfações?
— Miss Malloy! — MacDermott dirigia-se à secretária que se postava como uma sentinela ao lado dos telefones. — Ligue-me com o celular do Hooper, imediatamente!
Em um minuto, a ligação era transferida para sua mesa:
— Como é que você foi deixar isso acontecer, Hooper? Hein? Tem certeza de que não foi deixada nenhuma nota pedindo resgate? Não? Ora, então você não tem nada mais a investigar aí no colégio. Se esse foi um trabalho externo e se você não deixou que nenhuma pessoa permanecesse na área esportiva depois da exibição de ginástica, não há ninguém a interrogar nem pistas a descobrir. Agora só nos resta encontrar esse helicóptero. Venha imediatamente para cá!
Bateu o telefone e permitiu que, por um momento, todos na sala percebessem que, por trás da coragem do comandante de uma grande nação, havia uma alma de pai:
— Peggy... Onde está você?
O CÓDIGO DA MORTE
Em volta do Elite era o caos. Parecia que metade do exército brasileiro tinha sido deslocada para lá, ocupando o quarteirão como um enxame de abelhas na caça ao urso invasor de sua colméia. Soldados em uniforme de campanha e policiais à paisana corriam de um lado para outro. Os vários grupos que se acotovelavam à frente do colégio por diferentes motivações repentinamente tinham se posto em um movimento de baratas tontas, como se fossem sobreviventes de um terremoto. Um verdadeiro pandemônio. Vozes gritavam em duas línguas, berravam na língua universal dos palavrões, cães policiais latiam furiosamente e o quarteirão se transformara em alguma coisa como um asilo de loucos, com os loucos em fuga. Já era difícil saber a diferença entre curiosos e manifestantes ou entre policiais à paisana e repórteres. Todos perguntavam tudo ao mesmo tempo e diferentes versões tomavam corpo e espumavam-se como bolhas de sabão:
— Jogaram uma bomba no colégio!
— Que nada! A filha do presidente caiu do trapézio e quebrou a perna!
— Não tem trapézio em ginástica olímpica, seu burro!
— Vai ver pegou fogo!
— Pegou fogo? Onde? Não vejo fumaça...
— Sei lá. Fogo sem fumaça. Coisa de terrorista!
— Um atentado! Algum terrorista deu um tiro na filha do presidente!
— Ouvi dizer. Mas parece que ela não morreu...
— Seqüestro! Vai ver foi um seqüestro!
Empurrando os que o empurravam, um detetive gordo, careca e suarento ouvia o desencontro de palpites e tentava concentrar-se para descobrir qualquer informação mais sólida, que viesse de dentro da escola. Repentinamente, deu-se conta: "Magrí! Ela estava lá dentro! Será que fizeram alguma coisa com Magrí?"
Uma parede de homens de terno preto bloqueava os portões da área esportiva impedindo a entrada de qualquer pessoa.
Transtornado, Sherman Blake acabava de chegar. Mostrou suas credenciais e, logo depois de passar pelos agentes, avistou J. Edgar Hooper dando ordens no meio de outro grupo de subordinados.
Por cima dos ombros dos halterofilistas engravatados, sobrepondo-se à balbúrdia que tomava conta de tudo, Blake berrou:
— Hooper, you incompetent! Seus malditos agentes não viram o helicóptero? Até eu vi! Que tipo de gente você trouxe para cuidar da Peggy? Você não disse que eles eram os melhores?
Por trás de seus homens de preto, a voz de Hooper respondia, mas era difícil compreender suas palavras até para quem soubesse inglês:
— ... get out of here... ponha-se para fora... deixe-me trabalhar... estão mortos...
— Hein? Estão mortos? É claro que estão! Se não estivessem, acho que eu mesmo haveria de matá-los! — vociferava Blake, de volta. — Como é que eles foram deixar um helicóptero pairar sobre o telhado do colégio e uma quadrilha de terroristas levar Peggy, nas barbas deles?
— ... investigando... fora daqui... Blake, vai à...
— Você e seus macacos incompetentes! Investigando o quê? A menina está no ar! Voando para longe daqui. O que é que você está fazendo para encontrar o helicóptero?
— ... atrapalhando... não tenho de dar satisfações...
— Hooper, seu burocrata desgraçado! — a voz de Blake, já rouca, quase chorava. — Você só está perdendo tempo! E tempo é o que nós não temos! A menina já foi levada para longe. De que adianta ficar investigando aí? Você tem de ir atrás do helicóptero! Precisamos salvar Peggy!
— ... interrogar as outras garotas... estavam no vestiário... em estado de choque... chorando... ponha-se daqui pra fora...
— Você está se escondendo de que, Hooper?
O diretor da CIA resolveu atravessar em sentido contrário o círculo de ternos pretos que os separava e enfrentar de perto a fúria de Sherman Blake. Sua expressão era de absoluto transtorno. Parecia à beira de uma explosão:
— Blake, you bastard! I should...
Nesse momento, tentando abrir caminho no meio da parede humana que obturava os portões, um careca berrava em português e já estava dominado pelas mãos dos brutamontes.
— Me larguem! Tirem as mãos de cima de mim!
Hooper reconheceu o detetive Andrade, com quem estivera reunido na semana anterior e ordenou que o soltassem. Andrade veio bufando e tentando articular-se em inglês, enquanto apontava para si mesmo com o polegar:
— Seu Hooper! Seu Hooper! Me detetive Andrade! Me detetive Andrade!
O diretor da CIA não se esforçava nem um pouco para esconder seu desagrado com a presença do policial gordo e suado:
— O senhor é o detetive brasileiro, não é? O tal de Andr... Android... como quer que seja o seu nome! O que quer aqui? O que estavam fazendo seus homens enquanto uma desgraça como essa caía sobre nossas cabeças?
Andrade não entendia nada e continuava:
— ...seu Hooper, o que aconteceu? Estão falando em seqüestro! Ai, como é que se fala "seqüestro" em inglês? Seqüestrêichon! Seqüestrêichon!
A confusão estava instalada. Andrade sacudia os braços, querendo reforçar o que falava e os outros dois berravam de volta, sem que ninguém se entendesse.
Uma policial-intérprete brasileira foi chamada e a pobre mulher teve de entrar na dança, berrando estridentemente junto com Andrade, Hooper e Blake, para que suas traduções pudessem ser ouvidas no meio do pandemônio.
Sherman Blake continuava a desancar o diretor da CIA:
— A polícia brasileira estava fora, exatamente por uma decisão sua, Hooper! E o que estavam fazendo os seus agentes quando o helicóptero apareceu? Jogando baralho?
Hooper descarregava a raiva em cima de Andrade:
— A polícia do Brasil não serve para nada, mister Android! Leve seu pessoal daqui e vá cuidar do trânsito, que é melhor!
Blake voltou-se também agressivamente para Andrade:
— O senhor é um policial do Brasil, é? E quais as providências que vocês tomaram? Sua maldita aeronáutica não tem helicópteros, não tem aviões para perseguir o helicóptero dos seqüestradores? Vocês não têm sequer um radar para rastrear o helicóptero?
Ao ouvir a tradução, Andrade arregalou-se:
— Helicóptero?! A menina foi levada de helicóptero? Eu ouvi o barulho de um helicóptero mas...
— Só ouviu? — cortou Blake, malcriado. — O senhor não viu nada? O senhor é cego? Só há cegos na polícia do seu país? Será que vocês aprenderam com os palermas do Hooper, é?
Hooper aumentava o clima de desentendimento:
— Meus homens estavam o tempo todo de olho em todas as portas e...
Sherman Blake perdia a cabeça:
— E o céu, Hooper? Vocês tomaram conta das portas do céu? Como é que nem vocês nem a polícia do Brasil foram capazes de ver o helicóptero? Uma máquina pintada de preto, com as luzes apagadas?
Andrade continuava insistindo:
— Exijo que o senhor permita a minha entrada e de minha equipe, seu Hooper. Precisamos ver a cena do crime!
— Sangue por todos os lados, isso é que é a cena do crime! — Hooper respondia como se narrasse um filme de terror. — Uma faca de guerra! Meus homens foram assassinados com uma faca de guerra! Que assassino foi esse que conseguiu surpreender esses dois, usando apenas uma faca? As vítimas eram os meus melhores agentes!
Andrade não queria saber de lamentos. Queria ação:
— Esse é o meu país! E o que acontece aqui é problema dos brasileiros! Mande os seus gorilas liberarem a entrada para os meus policiais, seu Hooper. Eu preciso investigar esse seqüestro!
— Ninguém vai pôr os pés aqui dentro! O senhor quer criar um incidente internacional, mister Android? Quer criar um problema diplomático, confrontando-se com meus homens? As investigações vão ser exclusivamente da CIA!
— Então, Hooper, deixe que eu investigue! — exigiu o outro americano. — Ou você vai querer impedir a ação do guarda-costas do presidente dos Estados Unidos?
Andrade ainda não sabia direito quem era aquele quase gigante, com músculos de protagonista de filmes de destruição em massa. Mas o homem metia-se na discussão de tal maneira, que na certa ele devia ter alguma coisa com aquilo. Com o auxílio da intérprete, conseguiu saber de quem se tratava:
— O nome deste é Sherman Blake e é guarda-costas do presidente dos Estados Unidos. E diz que Peggy é a pessoa mais importante do mundo para ele...
— Esse desgraçado da CIA deixou que terroristas seqüestrassem a minha menina por cima de suas cabeças! — continuava Blake. — E ele disse que os escolheu pessoalmente, a dedo!
O telefone celular de Hooper tocou em seu bolso e ele o sacou como um cowboy saca uma arma. Não estava mais para conversa e tentou encerrar, antes de atender à chamada:
— Fora daqui! Todos vocês! Eu preciso agir!
— Agora é tarde, seu Hooper! — devolveu Andrade. — O senhor devia é ter agido antes. Devia ter deixado mais homens junto de Peggy!
— Bullshit Besteira! Agora não adianta discutir sobre o que devíamos ou não devíamos ter feito, mister Andr... mister-detective.
Hooper finalmente atendeu a chamada no telefone celular. Ao ouvir a voz do outro lado, empalideceu. Andrade só o ouvia falar em inglês, sem nada entender, a não ser um ou outro "yes, Mister President" de vez em quando.
O diretor da CIA desligou o telefone e, a um gesto seu, os halterofilistas vestidos de preto agarraram o detetive Andrade e o puseram para fora.
Um carro negro encostava em frente aos portões. Sem mais nada dizer, Hooper embarcou nele e bateu a porta.
Sem ser ouvido pelo guarda-costas que desaparecia atrás dos agentes para dentro do Elite, nem por Hooper, no carro que partia em alta velocidade, Andrade berrava na calçada:
— E Magrí? Aconteceu alguma coisa com ela? Responda, gringo, pelo amor dos seus filhinhos! Qualquer gringo!
Como não havia resposta possível aos seus pedidos, o detetive afastou-se esbaforido, à procura dos seus policiais, sem ver que mais alguém estava sendo arrastado de dentro do Elite e logo também jogado para fora.
Abrindo caminho no meio da turba, os Karas conseguiam aproximar-se dos grandes portões que levavam à área de esportes do colégio, quando um homem jovem de terno escuro era brutalmente empurrado para fora por outros homens também vestidos de preto.
— Jerônimo! — chamava o homem, com o rosto afogueado numa expressão de triunfo. — Jerônimo! Cadê você? Vê se aparece logo com essa câmera!
Atendendo ao chamado, logo apareceu um sujeito miudinho com uma câmera de tevê na mão, seguido por um rapaz que carregava uma série de fortes lâmpadas dispostas em uma cruz de madeira:
— Estou aqui, Solano. O que você conseguiu descobrir?
— Me dá logo o microfone, Jerônimo. Descobri tudo! Tudinho! Fale com o estúdio. Me ponha no ar já, já!
O tal Solano ajeitava um pouco o cabelo e, sob a forte iluminação, logo falava para a câmera, espalhando para o mundo sua excitação:
— Aqui Solano Magal, falando diretamente do Colégio Elite, onde uma tragédia sem precedentes acaba de acontecer. A senhorita Peggy MacDermott, a filha do presidente dos Estados Unidos, acaba de ser seqüestrada!
Um "oh!" de espanto e incredulidade elevou-se da multidão que cercava o jovem repórter. O rapaz falava depressa, procurando exibir sua habilidade jornalística junto com a notícia, enquanto na certa já sonhava com uma , ou no mínimo com um aumento de salário:
— Vim acompanhar a visita de Peggy MacDermott a este colégio vestindo roupa escura. Assim, aproveitando a confusão, dei um jeito de misturar-me aos "homens de preto", como são conhecidos os agentes da CIA. Cheguei ao prédio dos vestiários da área esportiva e pude ver tudo, senhoras e senhores! Dois agentes americanos estavam lá, mortos, quase degolados!
O repórter foi interrompido por um novo e prolongado "oh!", seguido de comentários revoltados.
— Fiquei circulando por lá o quanto pude e, como entendo inglês perfeitamente, ouvi o que diziam: em cima das pias do vestiário feminino, onde a filha do presidente americano tomava banho junto com três atletas brasileiras, os terroristas deixaram um cilindro de gás narcotizante comprimido em uma falsa lata de talco. Enquanto isso, um helicóptero praticamente pousava sobre o telhado do vestiário. Os bandidos devem ter descido por um cesto ou por uma escada de cordas e, em um minuto, desapareciam na escuridão da noite levando pelos ares a menina desacordada!
Um murmúrio comentava nervosamente a ousadia do seqüestro, enquanto o repórter prosseguia:
— Ouvi uma conversa em que diziam que Sherman Blake, o guarda-costas do presidente e de sua filha, estava chegando de carro ao colégio e conseguiu ver o helicóptero se afastando. Segundo ele, era um helicóptero todo preto e com luzes apagadas...
— Parece filme de espionagem! — admirava-se uma voz no meio da multidão.
— Consegui até mesmo entrar no vestiário feminino, mas os agentes da CIA acabaram me desmascarando e me expulsaram do colégio. Só que ainda deu tempo de perceber um estranho detalhe: no espelho do vestiário, os bandidos escreveram um enorme "K", senhoras e senhores! E com sangue! Um "K"! Os três rapazes sobressaltaram-se ao mesmo tempo, reconhecendo a mais grave convocação de emergência máxima. No código dos Karas, o "K" em sangue significava... Morte!
— As outras três garotas que também estavam no vestiário já recuperaram os sentidos. Parece que estão muito nervosas e, logo que for possível, devem ser interrogadas pelos agentes da CIA. Fora isso, nada de mais grave teria acontecido com elas...
"Magrí!", pensou Calu. "Uma delas é a Magrí!"
— A qualquer momento — encerrava o eufórico jornalista —, Solano Magal, o seu repórter, estará de volta com mais informações...
Os três Karas afastaram-se. Dentro de seus peitos, corações batiam descompassadamente.
SOCORRO, KARAS…
Instalado na ampla sala de recepções dos aposentos presidenciais do hotel, um monitor de cinqüenta polegadas exibia incessantemente os progressos da caça que estava sendo feita aos seqüestradores. Filmagens a partir de satélites exibiam trechos do território brasileiro com um detalhamento que possibilitava acompanhar até o movimento de automóveis nas estradas. Mas o que estava sendo procurado não era um automóvel, era um helicóptero levando a filha do presidente dos Estados Unidos e isso o fabuloso aparato de investigações ainda não tinha conseguido localizar.
— Nada ainda? Nem sinal de minha filha? — perguntava MacDermott para o coronel encarregado dos contatos com a Sala de Guerra do Pentágono.
— Infelizmente nada ainda, Mister President — respondia o militar. — Já conseguimos rastrear toda a área no raio máximo que poderia ter sido atingido por um helicóptero voando em linha reta e em alta velocidade desde hora do seqüestro. Até o momento, porém, nenhum dos muitos helicópteros que foram interceptados era o aparelho que queremos encontrar.
— Mas o helicóptero poderia estar escondido dentro de um hangar, não é?
— O exército brasileiro já invadiu vários hangares e grandes armazéns dentro deste raio, Mister President... E nada, até agora.
O telefone celular do Doutor Pacheco zumbiu dentro do bolso de seu paletó. Depois de ouvir o que lhe diziam, o delegado da Polícia Federal correu para a porta, abriu-a e recebeu um envelope.
— O que foi, mister Pacheco?
— Presidente... Presidentes... O gerente do hotel procurou um dos meus homens dizendo que haviam chegado muitas cartas para o senhor, Presidente MacDermott, e a ordem era que elas fossem entregues depois para o seu pessoal de relações públicas. Mas esta aqui... veja o que está escrito no envelope...
MacDermott recebeu o envelope e exclamou:
— Oh, my little Peggy!
No envelope, em letra de computador, estava escrito:
To the President of the United States, from the Kidnappers.
Dentro dele, havia apenas uma folha de papel comum, um impresso de computador que o presidente americano leu em silêncio. Suspirou profundamente e, de olhos baixos, estendeu o papel ao presidente do Brasil.
— Leia, por favor, Augusto...
Respeitosamente, o coronel e o Doutor Pacheco não se atreveram a esticar os pescoços para saber o conteúdo da mensagem, mas Rodrigues Lobo leu em voz alta, traduzindo do inglês:
Para o Presidente dos Estados Unidos. Dos seqüestradores.
Não somos bandidos, somos americanos que amam nosso país. Por isso, não podemos permitir que nosso modo de viver seja destruído. O senhor deve alterar seu discurso, eliminando a proposta que pretende apresentar nesta noite. Por outro lado, deve anunciar seu apoio à Emenda à Constituição americana que foi apresentada pelo senador do Alabama. Sua filha está bem e, se nossas instruções forem obedecidas à risca, o senhor a terá de volta logo após seu discurso. Caso contrário, o senhor nunca mais verá sua filha com vida. Dentro de pouco tempo, o senhor receberá uma prova de que miss Peggy está bem. Mas lembre-se: a vida de sua filha e a da América dependem agora de sua decisão.
Os Heróis em Defesa da América para os Americanos.
— Barbaridade! — exclamou o Doutor Pacheco, no final da leitura.
— Heróis?! — Rodrigues Lobo praticamente gritava. — Que heróis são esses que ameaçam matar uma menina?
— A proposta do senador pelo Alabama! — O Doutor Pacheco já havia lido sobre ela e lembrava-se do escândalo que aquela idéia louca havia provocado: se aprovada, isolaria o país, criando uma espécie de armadura jurídica e militar que protegeria ainda mais ferozmente os países ricos do desespero daqueles que nada tinham. Para aquele senador, a pobreza dos outros era um problema deles e os Estados Unidos deveriam defender cegamente sua prosperidade das ameaças provocadas pela miséria dos povos que tinham sido postos à margem do desenvolvimento.
"Nosso mundo pode não ser um paraíso", pensava o Doutor Pacheco, "mas esses canalhas querem transformá-lo direto num inferno!"
Nua, Magrí sentia um frio intenso. Encolhia-se, tiritando. Seus cabelos ainda estavam molhados, piorando ainda mais sua condição.
Sob seu corpo, sentia o plástico grosso, esticado. Rolou de lado e, mesmo com os braços amarrados às costas, conseguiu apalpar em volta. O plástico acabava unido a paredes de pano. Um pano áspero. Era aquele pano que funcionava como tela, refletindo as silhuetas dos seus dois guardas, que permaneciam fora, recortados pela luz avermelhada.
"Isso é lona. Estou dentro de uma barraca... "
Era uma barraca pequena, dessas de camping, em que uma pessoa mal consegue ficar de pé.
A mordaça incomodava bastante, mas ela conseguia suportar. Não haviam amarrado seus tornozelos. Pelo jeito, não temiam que ela tentasse fugir correndo. Ou sabiam que "fugir" seria completamente impossível...
"Provavelmente só me amarraram os pulsos para que eu não possa arrancar a mordaça... Esses bandidos não querem que eu grite. Bom, isso pode significar que essa barraca não está montada em nenhum lugar isolado... Onde estou?"
A luz vermelha criava um ambiente fantasmagórico, como o vestíbulo do inferno. Um inferno gelado. Uma antecipação da morte que a esperava, logo que descobrissem que ela não era Peggy MacDermott.
Ouvia vozes masculinas que sussurravam em inglês. Era um som abafado, como se estivessem em um lugar fechado, sem aberturas para o exterior.
— So far, so good... Até agora, tudo bem. O chato é ficar aqui, sem fazer nada. O captain disse que a gente tem de agüentar só até a meia-noite...
— Exactly. Logo depois da meia-noite, o captain vai ligar pelo celular e nos dar a ordem final. Meu palpite é que MacDermott não vai ceder. Daí, a gente vai ter de jogar esse material fora...
O coração da menina pulou forte, junto com a compreensão da realidade que devia enfrentar. Respirou fundo.
"Preciso ficar calma. Por enquanto, acho que não vai acontecer nada. Mas alguém vai acabar abrindo o zíper desta barraca. E se esse alguém der uma boa olhada, na hora vai descobrir que eu sou a garota errada. Aí esses malditos vão me matar... "
Os bandidos tinham falado em "jogar esse material fora", se o presidente MacDermott não concordasse com alguma coisa que eles queriam. Mas, como o Presidente concordaria, se era ela, e não a verdadeira Peggy, que estava ali? Isso queria dizer que sua morte era apenas uma questão de tempo...
"De um modo ou de outro, vão me matar. Ou eu morro como Magrí, ou morro como Peggy... "
Sacudiu-se, espantando o medo.
"Sou um Kara! Esses dois podem até conseguir me matar. Só que não vai ser fácil!"
Magrí lembrou-se do ruído de um helicóptero, no momento do seqüestro.
"Vai ver esses bandidos entraram no vestiário desembarcando do helicóptero. Na certa me levaram nele, mas eu nem me lembro. Será que fiquei tanto tempo assim desacordada?"
A mordaça sufocava. Seu corpo doía, machucado, arranhado. Sua cabeça latejava, ainda pelo efeito do gás. Apesar disso, estava alerta. Ela era um Kara.
"Para onde me trouxeram?", insistia em pensar. "Onde está montada esta barraca? Onde estou?"
Procurava manter-se firme, mas, lá no fundo, pensando nos seus queridos Karas, seu coraçãozinho implorava:
"Socorro, Miguel, Calu, Chumbinho! Socorro, Crânio... Ai, socorro, Karas... ".
Os três amigos estavam novamente reunidos sob a sibipiruna e Calu foi o primeiro a falar:
— Seqüestraram a filha do presidente dos Estados Unidos bem na nossa escola, Miguel! Isso é um trabalho para os Karas!
— É claro que isso é um trabalho para os Karas, Calu!
Crânio revoltava-se, temendo que sua querida Magrí pudesse estar ferida:
E o código da morte? O "K" escrito em sangue! O que será que aconteceu com Magrí? Será que os bandidos machucaram Magrí, antes de fugir? É bem capaz: ela nunca deixaria que um seqüestro ocorresse bem na frente dela, sem fazer nada!
— O sangue pode ser de Chumbinho, Crânio — lembrou Calu, tão transtornado quanto o amigo. — Você não disse que ele também está lá dentro?
— Magrí ou Chumbinho? — perguntava Calu, também muito preocupado. — Qual dos dois terá deixado o sinal dos Karas no espelho? De qual dos dois será o sangue?
— Não podemos perder tempo! — cortou Miguel. — Precisamos agir. Mas onde ela, ele ou os dois estão? É claro que não puderam sair do Elite. Isso quer dizer que..
— Isso quer dizer que ainda estão lá dentro, Miguel!
— Exato, Calu. E se estão lá dentro, esperando pela ação dos Karas, onde podem estar?
Só havia um lugar: o esconderijo secreto!
— Temos de ir para lá. Agora!
Os três Karas sabiam que a única alternativa que restava seria rastejar pelos telhados interligados dos prédios do Colégio Elite até o telhado do vestiário. Em seguida, teriam de retirar algumas telhas e entrar no forro, burlando o maior esquema de segurança que jamais tinham visto.
— Mas os policiais americanos devem ter vasculhado cada palmo do Elite! — lembrou Calu. — Se os dois Karas se esconderam lá, já devem ter caído nas mãos dos gringos!
— Talvez não — raciocinou Crânio. — Se a filha do presidente foi seqüestrada por um helicóptero, de que adiantaria ficar revistando o colégio?
— Você pode ter razão, Crânio — concordava parcialmente Calu. — Mas, se a garota foi seqüestrada de dentro de um dos vestiários, os policiais não revistariam pelo menos a cena do crime e os arredores?
— Não adianta discutir, Calu — encerrou Crânio. — Se essa é a nossa única chance em mil, temos de ir atrás dela. Eu vou para o esconderijo!
— Só um de nós vai — comandou Miguel. — Os outros ficam na calçada para dar cobertura na volta. Vamos usar o Código-Coruja. Não quero que nenhum tira gringo descubra um de nós descendo do muro.
— Já disse que eu vou! — repetiu Crânio.
— Não! — atalhou Calu. — Quem vai sou eu!
— Vamos tirar na sorte — decidiu Miguel. — Somos mais de dois, então vai ser no "jô-ken-pô".
Os três estenderam as mãos ao comando "pô". Deu tesoura, pedra e papel. Empate.
— Vamos de novo.
Desta vez, Miguel e Calu estenderam as mãos abertas: papel. Crânio tinha o punho fechado: pedra, facilmente embrulhada pelos dois papéis. Miguel e Calu disputaram a próxima rodada. Miguel repetiu o papel e Calu veio com tesoura. Calu iria, pois havia cortado o papel.
Sem mais uma palavra, foram para uma das esquinas dos imensos quarteirões ocupados pelo Colégio Elite, um ponto totalmente oposto à rua onde ficava a entrada da área de esportes e onde se concentravam os acontecimentos. Ali havia copas de árvores que, vindas dos jardins da escola, ultrapassavam o muro. Um lugar ideal para escalar.
Os três andavam normalmente, para não despertar nenhuma suspeita. Ao chegar sob os galhos, Miguel deu uma olhada em volta e fez um sinal com os dedos.
Calu sabia que aquilo queria dizer "em frente". Como um macaco, desapareceu no meio das folhagens.
DIGA QUE VOCÊ ESTÁ VIVA
— Mister President, meu cargo está à sua disposição. Falhei miseravelmente na guarda de sua filha e...
— Isso não é hora para histórias de honra ofendida, Hooper! — ralhou MacDermott, duramente. — A sua honra está em continuar ao meu lado e me ajudar a salvar a minha filha. Pois comece a trabalhar. Quero que seja investigado o estilo do texto, quem são esse tais "Heróis em Defesa da América para os Americanos", preciso saber quem está à frente dessa maldita organização nos Estados Unidos, quero que sejam checadas as fichas de cada um dos meus inimigos mais conhecidos, tudo, tudo!
A bronca do presidente americano pareceu aliviar pouco a tensão do diretor da CIA, que não era homem se entregar à primeira derrota:
— Obrigado por não me tirar da luta, Mister President!
Logo que Peggy entrou no esconderijo secreto atrás dele, Chumbinho só conseguia pensar na pressa que o empurrava para a ação. Mas, qual era essa ação? Não sabia direito como continuar o plano louco que imaginara, o de esconder uma adolescente como aquela. Para onde a levaria? Não dava para ficar por muito mais tempo ali em cima, pois os agentes americanos poderiam resolver enfiar os narizes em todos os cantos, invadindo até o forro do vestiário. Magrí tinha sido levada pelos ares e não faria sentido a polícia perder tempo dentro do colégio, mas Chumbinho não podia arriscar.
Com a chegada da noite, estava escuro ali dentro. Vinda das luzes externas do colégio, apenas uma claridade tênue entrava pelas poucas telhas de vidro que formavam um retângulo entre as telhas de barro maciço. Sob esse retângulo, Peggy o olhava com as sobrancelhas franzidas e uma expressão tão decidida, tão preparada para as loucuras que na certa teria de enfrentar que, por um momento, Chumbinho pensou que Magrí estivesse ali, pronta para a ação e... e nua!
Pela primeira vez, desde que entrara no vestiário feminino, Chumbinho deu-se conta da condição em que estava a menina e arregalou-se frente à nudez da filha do presidente dos Estados Unidos. E, como se os dois não estivessem envolvidos no maior risco de suas vidas, o menino enrubesceu.
"Ai, nem tive tempo de pegar roupas para ela, ou pelo menos uma toalha! Essa garota vai morrer de frio!"
Rapidamente, tirou o casaco e as calças do moletom que vestia. Somente de cuecas e camiseta do Elite, ofereceu as duas peças para a menina, sem nada dizer.
A filha do presidente americano enfiou as calças do abrigo sobre o corpo nu. Vestiu o casaco com o logotipo do Elite, puxou o zíper e voltou a encarar o incrível garoto, de quem aceitara a idéia doida de desaparecer do mundo para tentar salvar a vida de Magrí.
— Ela está arriscando a vida no meu lugar, Chumbinho! — sussurrou ela com força. — Não posso abandoná-la! O que nós vamos fazer?
— Fugir daqui, Peggy. Talvez a polícia resolva vasculhar cada canto do colégio à procura de pistas. Não podemos perder tempo. Me siga. E confie em mim. Eu tenho amigos que vão nos ajudar. Tudo vai dar certo!
— Okay. E não se preocupe comigo. Pode deixar que eu não sou de me apavorar.
Chumbinho afastou duas telhas do lado mais baixo do telhado e esgueirou-se pelo espaço deixado entre as ripas e os caibros. Peggy seguiu-o, decidida.
Como dois gatos, o menor componente do grupo dos Karas e a filha do presidente dos Estados Unidos rastejavam furtivamente pelos telhados do Colégio Elite...
A luz vermelha iluminava fantasmagoricamente o interior da barraquinha e as vozes dos dois bandidos chegavam abafadas aos ouvidos de Magrí:
— I didn't understand... uma coisa... não entendi.
O comentário do outro foi inaudível.
— ... porta aberta do vestiário... por quê?
— ... I don't know... para o gás ir embora logo... talvez...
— Ahn...
Magrí arrastou-se por dentro da barraca e grudou o ouvido na lona.
Seguia-se um breve silêncio de falta de assunto. Um deles rompeu-o, enfadado:
— Pena que a gente não tenha trazido nada para beber... Um gole de whisky até que ia bem... Ou mesmo essa fantástica aguardente dos brasileiros, a tal cachaça...
— Pra beber não tem. Mas tem pra comer.
— Os sanduíches? Dá aqui.
— Trouxe seis.
— Três pra cada um.
— Você vai comer tudo isso? Eu achei que eram dois pra cada um.
— Dois pra cada um dá quatro, stupid! Não dá seis.
— Mas, e a garota?
— Quem? Pra que é que ela precisa morrer de barriga cheia? Ela bem que pode ficar mais umas horas sem comer. Depois que a minha faca tiver feito o trabalho, ela não vai sentir mais fome...
— Ora... o pai dela pode obedecer ao que o captain quer... Daí ela não precisa morrer, não é?
— Se você só quiser dois, pode deixar que eu como quatro.
Dentro da barraca, a condenada, que não tinha direito à sua última refeição, ouvia cada palavra de sua sentença de morte...
"Eles vão me matar... Eles têm um celular. O tal captain vai acabar ligando para dizer que a verdadeira Peggy está livre e, daí, eles vão me matar! O que eu vou fazer?"
Durante alguns minutos, ouviu apenas ruídos de mastigação.
— Olha aqui. Eu trouxe até sobremesa!
— Bom! O que é?
— Sorvete!
O outro rugiu:
— Mas você é um cretino, mesmo! Não sabe que sorvete derrete?
— Mas eu trouxe no isopor!
— Mesmo assim. Quando você comprou? Na hora do almoço? Você acha que sorvete agüenta tanto tempo no isopor? Deixa ver... olha aí: tudo derretido! Virou um maldito mingau! Magrí ouviu um tapa desferido pelo bandido contra a caixa de isopor. Em seguida, um baque contra a lona da barraca. O bandido jogava fora a sobremesa derretida.
— Puxa, que pena... Era um sorvete tão bom! Logo, que isso acabar, vou lá fora comprar mais...
Um ruído encerrou a conversa. Magrí sentiu uma leve vibração no piso sob o plástico da barraca.
— É o captain. Desça a escada.
Logo em seguida, um murmúrio diferente da voz dos dois. Alguém mais estava com os bandidos.
— Oh, captain! Everything's under control. Está tudo bem, captain... — informou uma das vozes que a menina já conhecia.
O murmúrio respondeu ao bandido. Magrí só pôde perceber que era uma voz masculina. Mas falava baixo demais, como se estivesse numa igreja durante um culto.
"Ai, esse captain deve estar contando que eu não sou Peggy! Chegou a minha hora...“
— Um bilhete para o pai? o computador?
Mais uma ordem murmurada.
"Como?! O bandido não sabe que Peggy está livre? O que aconteceu? Será que a polícia resolveu esconder Peggy só para me proteger? Oh, tomara que sim, tomara que sim!"
— Certo. Ela não vai fazer nenhuma gracinha, captain, pode deixar.
Recortada contra a iluminação vermelha, a silhueta do seqüestrador aproximava-se. O zíper da entrada da barraca foi aberto uns dois palmos e uma mão peluda introduziu-se, sem que Magrí pudesse ver o corpo do homem.
Sentiu-se agarrada e trazida para a frente da barraca, O bandido puxava seus braços para fora e cortava as cordas que lhe amarravam os pulsos. Jogou-a de volta para dentro e deixou alguma coisa no chão plastificado.
O seqüestrador soltou o pano da entrada, sem fechar o zíper. O pano caiu, frouxamente.
Magrí esfregou os pulsos machucados pelas cordas e viu um pequeno computador portátil, que funcionava a bateria, ligado e com a tampa aberta. Na tela, estava escrito, em inglês:
Miss Peggy, white a note to your father. Escreva uma nota para o seu pai. Não tente nada, apenas diga que está bem. E não se esqueça de escrever alguma coisa que só seu pai conheça. Ele precisa saber que você está viva.
QUANTO TEMPO MAGRÍ AINDA TEM DE VIDA?
— Porcaria de CIA! — reclamava Andrade para seus subordinados, com o humor em seus piores momentos. — Esses sujeitos só entendem de espionagem. De polícia somos nós que entendemos! Ai, se eu pudesse entrar no colégio, para pelo menos falar com Magrí! Ela é esperta como ninguém. Na certa deve ter visto coisas que esses macacos da CIA não notariam nem com um telescópio!
Um policial veio com a informação de que os agentes estrangeiros tinham chamado uma ambulância para que as três garotas que estavam no vestiário no momento do seqüestro fossem levadas a um hospital.
— Hospital?! — berrou Andrade. — As meninas estão machucadas? Fizeram alguma coisa com Magrí?
— Não... parece que elas estão bem. Dizem que foi ordem dos diretores do Elite, porque elas estavam muito nervosas. Um médico da CIA aplicou-lhes um calmante e recomendou repouso até amanhã de manhã.
Andrade respirou, um pouco mais aliviado:
— Ai, que alívio! Os bandidos não fizeram nada com Magrí! Ainda bem!
À frente de Peggy, Chumbinho avançava pelos telhados do Colégio Elite. A noite era de lua nova, escura demais. Mas a iluminação vinda dos pátios da escola obrigava-os a rastejar com cautela, para que nenhum dos gringos de terno preto viesse a surpreender aqueles dois estranhos gatos em sua fuga noturna.
Passando suavemente por cima de uma cumeeira, Chumbinho deu um encontrão em uma caixa. Era uma caixa preta, de uns três palmos de altura.
"Parece um alto-falante... Deve ter sido posto aí para as festas juninas. Essa nova comissão de festas do grêmio inventa cada uma... Que lugar estranho para um alto-falante! Por que não puseram isso mais perto do beiral do telhado?"
Peggy seguia o menino com a suavidade de uma campeã de ginástica olímpica. E com a determinação de um verdadeiro Kara.
“E agora? Tenho de escrever um bilhete para o presidente americano, como se eu fosse a Peggy. Vou tentar tudo. Eu tenho de tentar tudo!"
Magrí começou a teclar, procurando redigir num inglês bem coloquial:
“I'm all right, daddy. Estou bem, papai. Eles não estão me ameaçando. Apenas faça tudo o que eles pedirem e eles vão me soltar”.
Nua, tremendo de frio, Magrí sentia o coração disparado dentro do peito.
"Preciso aproveitar esta mensagem! É minha única chance. A única chance de me salvar. Tenho de dar um jeito de mandar uma mensagem disfarçada para os Karas... Eles precisam saber onde eu estou. Mas, onde eu estou? Ah, se Crânio estivesse aqui, seria capaz de deduzir onde fica esse inferno iluminado de vermelho!"
Lutando contra o pavor que teimava em dominá-la, a coragem do incrível Kara que era aquela menina acabou vencendo. Cerrou os olhos, relaxou os braços, os dedos, e expirou devagar, profundamente, quase soprando, até sentir todo o ar sair dos pulmões. Aos poucos, seu coração foi batendo mais compassadamente e... pronto! Lá estava Magrí novamente, dona de si e de sua fantástica capacidade de raciocínio:
"Deixe ver... Depois de despertar do narcótico, eu ainda estava tonta mas ouvi o helicóptero indo embora... lembro de estar sendo erguida... daí puxada por alguma passagem estreita... Eles me ergueram. Para onde? Onde estou? Tudo o que sei é que essa barraca está montada no alto de algum lugar. Pode ser um compartimento escondido em cima de um barracão, ou de uma casa... Mas, onde fica essa casa?"
Seu raciocínio perdia-se em círculos em torno de coisa nenhuma:
"Devo ter perdido os sentidos mesmo... Nem sei dizer por quanto tempo me carregaram até que eu estivesse sendo erguida e colocada aqui, dentro dessa barraca... Ai, posso estar em qualquer lugar desse mundo! Como é que eu vou dar alguma pista para os Karas? Não sei onde estou, não sei onde estou!"
Uma voz sussurrada mas agressiva veio de fora, exigente:
— Hurry up, you damn girl! Anda logo, raio de menina! A gente não tem a noite toda!
Magrí lutava por uma idéia salvadora. Desesperada, baixou os olhos para a pequena abertura da barraca que o bandido deixara de fechar com o zíper. Pela fresta, pôde ter uma estreita visão do chão à frente. Era de concreto e, junto da lona, lá estava a caixa de isopor, emborcada, com um líquido pastoso, amarelado, verde e marrom, escorrendo. Na tampa, caída ao lado, dava para ler:
Pistacchio, crema e cioccolato Gelato crocante Italiano.
Na semi-obscuridade da barraca seus olhos arregalaram-se compreendendo:
"Espera aí! Eu estava sendo erguida, colocada numa barraca dentro de algum cômodo... o som do helicóptero afastando-se... Ei, na hora do seqüestro um deles estava mandando o outro não esquecer de abrir a porta do vestiário, como se eles não tivessem entrado por ela e como se existisse a possibilidade de sair sem abrir a porta! Então... eu não saí! Ah, ah! Entendi tudo! Eu não perdi os sentidos completamente! Tudo se passou num minuto! Ai, já sei onde estou!"
O coração da única menina do grupo dos Karas pulou dentro do peito:
"O plano desses bandidos é genial! Esses canalhas fizeram tudo direitinho para enganar a polícia! Mas eu descobri, eu descobri! Ah, eu descobri!"
Sua mão tremia, teclando no computador.
"Não tenho tempo, não tenho tempo! Preciso inventar um código, um código perfeito, um código que só os Karas possam decifrar!"
Escreveu:
I fell like I was in Onapo.
“Ai, usando o código Tênis-polar fica estranho... Fica Onapo. Ridículo! Os bandidos vão desconfiar na mesma. Tem de ser um código infalível... Ai, Crânio, ai, Miguel, me ajudem!"
Quando o som dos nomes dos seus queridos companheiros ressoou-lhe dentro do cérebro, a solução do problema veio junto.
"É isso! Ai, será que os Karas vão entender?"
Aproveitou o computador para calcular a transposição de letras.
"Tem dois T... Bom, é só mudar o segundo para y... "
E teclou os nomes dos dois amigos, um em cada linha, com as letras uma acima da outra:
Deu 'Yorty'. Acho que vai dar... Tem de dar certo!" E completou a mensagem:
“I'm all right, daddy. They aren't threatening me. Just do whatever they want and they'll let me go. I'm really all right, don't worry about me. I fell like I was in New Yorty, as I used to say when I was a little girl. Hurry up, daddy. Save me. Peggy. “
“Eu estou bem, papai. Eles não estão me ameaçando. Apenas faça tudo o que eles pedirem e eles vão me soltar. Estou realmente muito bem, não se preocupe comigo. Sinto-me como se estivesse em Nova Yorty, como eu falava quando era pequena. Rápido, papai. Salve-me. Peggy”.
De fora, a voz continuava apressando Magrí:
— Como é? Vai terminar ou eu vou ter de ajudar?
A menina não podia provocar os bandidos. Se eles entrassem na barraca ou a arrancassem de lá, veriam que tinham seqüestrado a garota errada. E sua morte viria mais cedo.
Impaciente, o homem aproximava-se novamente da barraca...
“Bom, eu disfarcei a pista como se fosse alguma coisa que só Peggy e o pai dela conhecessem. Mas agora eu preciso de algum detalhe pessoal de verdade... Alguma coisa que faça o presidente acreditar mesmo que foi sua filha que escreveu essa mensagem, mas o quê? Não conheço Peggy tão bem a ponto de... ah, já sei!"
O homem levantava o pano da entrada com um arranco, quando Magrí digitou, logo após a assinatura:
... your little kangaroo.
Quando a garra peluda entrou pela abertura do zíper, Magrí esticava-lhe o pequeno computador.
— All right, captain. It's done — anunciou o bandido. Puxando de novo os braços de Magrí para fora, voltou a amarrá-los com uma corda nova. — Tudo certo, capitão. Está feito.
O murmúrio repetiu-se.
O zíper foi fechado e Magrí respirou.
"Pronto. Agora só dependo da sorte... Ai, tomara que os Karas descubram o que eu tentei dizer! Me ajudem, Karas!''
Ouviu de novo a voz do chefe, murmurando muito baixo. Um dos bandidos respondia:
— Yes, captain? Sim, estamos com o celular.
Murmúrios.
— A gente espera, captain. À meia-noite em ponto? All right.
“Meia-noite! Que horas serão agora? Quanto tempo eu ainda tenho de vida?"
Depois de tanto tempo contidas, as lágrimas explodiram dos olhos de Magrí.
Chumbinho e Peggy tinham chegado a uma extensão do telhado que recebia transversalmente uma luz vinda do pátio de recreio dos alunos menores. Grupos de policiais de terno preto não paravam de passar por ali falando excitadamente em inglês. Com um gesto, o garoto avisou Peggy que era preciso esperar.
Rastejando com leveza, ultrapassaram uma cumeeira e abaixaram-se no encontro de dois telhados de diferentes prédios do Elite. Ali, mais protegidos da luz forte, era preciso aguardar um momento em que não houvesse ninguém no pátio abaixo deles para continuar a fuga.
"Coitada dessa garota!", pensava Chumbinho. "A coisa agora tornou-se crítica. Ela deve estar apavorada. Tenho de dar um jeito de acalmá-la... "
Segurou a mão de Peggy e olhou em seus olhos, procurando fazer a expressão mais calma e tranqüilizadora de que era capaz.
Mas o que a menina transmitia-lhe de volta não era pavor, era valentia. Erguidos para Chumbinho, seus olhos brilhavam sob a fraca iluminação, como se fossem duas luzinhas iluminando um porto seguro para náufragos.
Chumbinho sentou-se ao lado de Peggy, grudado nela, e abraçou-a. A garota encostou o rosto em seu peito, fazendo com que a boca e o nariz do menino mergulhassem em seus cabelos. Chumbinho batia-lhe com a mão ritmadamente nas costas, como se nina um bebê, procurando transmitir-lhe uma calma de que ela não parecia precisar. O dedo cortado latejava um pouco, mas o rapazinho nem parecia sentir.
A noite estava gelada. Só com a camiseta do Elite e de cuecas, abraçar o corpo da garota era uma troca bem-vinda de calor, mas foi um outro tipo de fogo que subiu pelas artérias de Chumbinho, incendiando-lhe as orelhas.
O risco era enorme, o frio intenso, a situação maluca. Se alguém do esquema de segurança da garota o encontrasse tentando escondê-la, atiraria nele antes de fazer qualquer pergunta. Se seu plano tivesse alguma falha, sua querida Magrí seria assassinada. Se os bandidos descobrissem Peggy ali, encolhida no telhado, o mundo estaria perdido.
Mas, no meio dessa loucura, Chumbinho não pensava nas ameaças do futuro. Depois de ter contemplado a beleza nua daquele corpinho, depois de tê-lo carregado nos ombros, depois de todos os lances que os tinham trazido até aquela situação e, agora, de roupas de baixo, abraçado ao corpo da filha do presidente americano, sentindo o perfume de seus cabelos, a beleza morena de Natália esvanecia-se do coração do garoto como um torrão de açúcar se dissolve na água...
O QUE ELES QUEREM É GUERRA!
A tensão que pesava no ar dos aposentos presidenciais do hotel transformara J. Edgar Hooper em alguém semelhante ao detetive Andrade: seu terno preto estava amarrotado e a gravata torta. Àquela altura, os relatórios que chegavam às suas mãos abatiam-lhe o ânimo.
— Mister President... Por favor, preciso falar a sós com o senhor.
— A sós? — surpreendeu-se MacDermott que, com o presidente do Brasil ao lado, examinava a imensa tela do monitor, onde eram exibidas as trilhas do rastreamento feito pelos satélites. — Não há nada que você tenha a me dizer que meu amigo Augusto não possa ouvir. Vamos, o que há?
Os olhos de Hooper agitaram-se de um lado para outro como se ele estivesse procurando as palavras certas. De qualquer modo, ele sabia que não havia palavras certas para que ele pudesse dizer o que tinha de ser dito:
— Já são mais de oito horas, senhor. Até agora, Não temos nem um fio de esperança de encontrar miss Peggy. Quanto mais o tempo passa, mais distante fica essa esperança. Minha conclusão é que o helicóptero pode ter conseguido furar o bloqueio dos radares e dos satélites e agora está totalmente fora do nosso alcance.
— Continue, Hooper. Onde você quer chegar?
O diretor da CIA suspirou fundo:
— Não há mais nenhuma pista a seguir, senhor. Se tivéssemos mais tempo, estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, acabaríamos encontrando sua filha. Mas essa tarefa é impossível de ser cumprida até a meia-noite de hoje...
— Muito bem, Hooper, vá direto ao ponto. Por que essa conversa?
O homem pigarreou:
— Sinto muito, mas devo aconselhá-lo a fazer o que os seqüestradores estão exigindo...
Wilbur MacDermott encarou-o, furioso:
— O que você está me dizendo, Hooper?
— Mister President, desculpe-me, mas este não é o momento para decisões românticas. Trata-se da vida de sua filha e...
MacDermott cortou, ríspido:
— Hooper, deixe que eu me preocupe em saber se minhas decisões são românticas ou não!
— Mas, senhor...
A reação de MacDermott era violenta. Levantou-se e apontou ameaçadoramente o indicador para a cara do outro: "Quem você está pensando que é o seu presidente, Hooper? Não há nada que me faça ceder a esses bandidos. Nada!
— Nem mesmo a vida de miss Peggy?
— Nem mesmo a vida de minha filha!
— Mas, Mister President, o senhor poderia pelo menos adiar o seu discurso, até que essa crise esteja resolvida!
— E você por acaso conhece o conteúdo do discurso que eu vou fazer?
— Não, senhor, mas eu calculo que deve ser sobre sua política de desarmamento...
— Contra a qual você sempre foi, não é, Hooper?
O diretor da CIA empertigou-se, ofendido:
— Mister President, por favor, não duvide de minha fidelidade. Minhas idéias pessoais não têm nenhuma interferência na minha lealdade para com o meu presidente. Eu...
— Por acaso você é simpático a esses tais "Heróis em Defesa da América para os Americanos"? — cortou MacDermott, forçando a pronúncia da palavra "heróis".
Hooper ficou pálido. Seus olhos arregalavam-se para o presidente como se o político tivesse xingado sua mãe:
— Eu... Como pode dizer uma coisa dessas, Mister President?
O presidente encerrou, duramente:
— Está bem. Já ouvi o que você tinha a dizer. Agora deixe-me tomar minhas próprias decisões.
— Mas, Mister President...
— Já chega, Hooper!
O diretor da CIA recuou para a porta, andando de costas, sem desviar os olhos de seu superior. Abriu a porta do salão e quase se chocou com o Doutor Pacheco, que entrava com uma pilha de papéis nas mãos.
— Saia da frente, mister Petchico!
MacDermott evitou olhar para o presidente do Brasil envergonhado pela covarde sugestão de Hooper. Voltou-se para a secretária:
— Miss Malloy, por favor, telefone para o celular de Sherman Blake. Não há mais nada que ele possa fazer no colégio. Diga-lhe que eu quero que ele volte para cá.
Sherman Blake fechou seu celular e guardou-o no bolso, depois de receber o telefonema da secretária do presidente. Saiu apressado e logo tinha embarcado num dos carros da embaixada.
Ansioso, tentava empurrar com berros o motorista no caminho para o hotel:
— Hurry up, man! Depressa!
Em menos de quinze minutos, o automóvel chegava ao luxuoso hotel, cuja rua estava tomada pelas equipes das redes de televisão e por centenas de curiosos. Desta vez era bem maior o número de manifestantes que portavam faixas e bandeiras e gritavam contra ambos os presidentes. Tudo era uma confusão de porta de estádio em dia de final. E Sherman Blake temia que o final estivesse mesmo se aproximando.
Um policial brasileiro tentou barrar-lhe os passos. Blake mostrou-lhe as credenciais diplomáticas e, empurrando a massa ululante de jornalistas, entrou no amplo saguão do hotel, onde mais uma multidão de repórteres dominava a cena. Um deles o reconheceu:
— Senhor Sherman Blake! Pode nos dar uma entrevista? Blake afastou-o, de mau humor:
— I don't speak Portuguese!
Calu seguia pelos telhados furtivamente, com uma maciez incapaz de deslocar uma telha sequer. Ele conhecia a planta do Colégio Elite como a palma da mão e, mesmo no escuro, sabia muito bem para onde se dirigia. Vez por outra o trajeto o obrigava a saltos de trapezista, para alcançar telhados separados. Mas a pressa e a ansiedade de reencontrar Magrí e Chumbinho não o faziam perder a concentração. Se algum dos tiras americanos que enxameavam lá embaixo o descobrisse, tudo estaria perdido.
Chegou aos telhados que cobriam as salas das primeiras séries. Dali, passando pelo recreio dos pequenos, faltaria pouco para atingir os vestiários e o esconderijo secreto dos Karas.
"Ah, tomara que nossa hipótese esteja certa! Tenho de encontrar Magrí e Chumbinho. E eles têm de estar bem!"
De repente, seu olhar já acostumado à escuridão divisou algo estranho. Eram duas sombras encolhidas na junção de dois lances de telhado.
"Será que são eles? Que danados! Esconderam-se no telhado!"
Abaixou-se silenciosamente e avançou com cautela redobrada. Poucos metros depois, mal iluminado pela claridade difusa vinda debaixo, um casalzinho estava encolhido e abraçado num desvão do telhado.
"Ótimo! Como eu pensava, Chumbinho e Magrí estão... Ei, Mas essa não é a Magrí!"
Calu estava paralisado, de boca aberta e olhos arregalado à frente dele, enrodilhada em Chumbinho, estava filha do presidente dos Estados Unidos!
Um turbilhão de dúvidas e sentimentos confundia seu coração e cérebro num só órgão.
O que fazia ali aquela menina cujo desaparecimento levava o mundo à loucura?
Onde Magrí tinha se metido?
E por que Chumbinho estava de cuecas?
Com a agitação que havia tomado conta do hotel, a pequena sala de contabilidade estava vazia, pois todos os funcionários tinham sido mobilizados para servir à comitiva presidencial americana, agora avolumada pelo aparato policial e militar que as circunstâncias haviam imposto: homens fardados ou em ternos escuros tudo exigiam dos exaustos funcionários.
Um homem de preto entrou na salinha e, sem acender a luz, ligou um computador. Digitou alguma coisa e introduziu um disquete no drive. Em pouco tempo, retirava o disquete, desligava tudo e saía furtivamente, ajeitando a gravata.
O Doutor Pacheco debatia aspectos da investigação com os Presidentes Rodrigues Lobo e MacDermott, quando rompido por um longo bip vindo do monitor.
— O que foi isso?
Na tela, um texto berrava, em letras garrafais:
Ao mesmo tempo, os dois presidentes e vários policiais, assessores e militares que ocupavam a sala liam a nova comunicação:
— Que canalhas! — exclamou Rodrigues Lobo.
Em seguida, o monitor exibia um novo texto:
Estou bem, papai. Eles não estão me ameaçando. Apenas faça tudo o que eles pedirem e eles vão me soltar. Estou realmente muito bem, não se preocupe comigo. Sinto-me como se estivesse em Nova Yorty, como eu falava quando era pequena. Rápido, papai. Salve-me. Peggy, sua canguruzinha.
MacDermott estava lívido, sem conseguir tirar os olhos do monitor:
— Acho que nós dois subestimamos a oposição, Augusto. O que eles querem é guerra. E vamos ter de lutar!
O presidente brasileiro apoiou a mão no ombro do amigo americano, tentando confortá-lo:
— Vamos ser fortes, Wilbur. Tenho certeza de que toda nação brasileira está do seu lado, neste momento.
MacDermott estava mais decidido do que nunca. Voltou-se para a secretária:
— Miss Malloy! Onde está o texto do meu discurso? Quero repassar os olhos nele.
O Doutor Pacheco perguntava, nervoso:
— Senhor presidente, há algo nessa mensagem que possa provar que ela foi escrita mesmo pela senhorita Peggy? Ela falava errado a palavra "York" quando era pequena?
MacDermott examinava cada palavra da mensagem.
— Hum... Não me lembro, toda criança fala errado não é? Mas os seqüestradores nunca poderiam saber que eu às vezes chamo minha filha de "my little kangaroo". É uma brincadeira, por causa das diabruras que ela faz na cama elástica e nas barras assimétricas. Foi ela mesma quem escreveu este texto sim, Doutor Pacheco. Bom, pelo menos isso quer dizer que minha filha ainda está viva!
Nesse momento, a porta da sala foi aberta e J. Edgar Hooper estava de volta, transtornado com o conteúdo das mensagens que havia lido no monitor da sala dos agentes da CIA.
— Mister President, perdoe-me a interferência de ainda há pouco. A situação é dramática e ficarei a seu lado, quaisquer que sejam suas decisões.
— Está bem, Hooper — concordou MacDermott. — Confio plenamente em sua lealdade.
— Obrigado, Mister President. Eu não o decepcionarei.
DE ONDE VOCÊ SURGIU?
A junção dos dois telhados criava um área sombreada, livre da iluminação que vinha do pátio de recreio do pré-primário do Elite. Os homens de preto já não circulavam tanto, mas infelizmente dois deles tinham resolvido dar uma descansada e conversavam sentados nos balancinhos, que ameaçavam desabar com seu peso.
Com um enorme ponto de interrogação no olhar, Calu havia se juntado a Chumbinho e à surpreendente presença de Peggy MacDermott ali em cima.
O menor dos Karas sorria, aliviado com a chegada do amigo. Eles agora não estavam mais sós.
Não podiam falar, não podiam fazer nenhum ruído, Chumbinho pegou no braço do amigo e começou a contar o que tinha acontecido. Com apertões curtos e longos usava o código Morse-Apertão, inventado pelos Karas para ser usado quando tinham de falar um com o outro no meio de um monte de gente, sem que ninguém notasse.
Como no código Morse, antigamente usado pelos telegrafistas, a combinação de apertos curtos e longos substituía as letras do alfabeto.
—E-s-t-a-é-a-f-i-1-h-a-d-o-p-r-e-s-i-d-e-n-t-e-V-o-c-ê-n-ã-o-v-a-i-a-c-r-e-d-i-t-a-r-C-a-l-u-m-a-s-M-a-g-r-í-f-o-i-s-e-q-ü-e-s-t-r-a-d-a-n-o-l-u-g-a-r-d-e-l-a-T-e-m-o-s-d-e-e-s-c-o-n-d-ê-l-a-p-o-r-q-u-e-s-e-o-s-s-e-q-ü-e-s-t-r-a-d-o-r-e-s-d-e-s-c-o-b-r-i-r-e-m-o-e-n-g-a-n-o-n-a-c-e-r-t-a-v-ã-o-m-a-t-a-r-M-a-g-r-í...
— V-o-c-ê-f-i-c-o-u-l-o-u-c-o-C-h-u-m-b-i-n-h-o?
O Código Morse foi um dos mais usados em telegrafia no passado. A comunicação é feita por batidas, por clarões ou até por escrito. Tudo não passa de uma combinação de pontos e traços, ou batidas curtas e longas.
Peggy não podia entender o que estava acontecendo: os dois rapazes pegavam no braço um do outro, apertavam-se e olhavam-se nos olhos, como se conversassem! Pareciam um par de malucos, fazendo expressões de dúvida, surpresa e decisão, como se realmente um estivesse ouvindo o que o outro dizia!
E... como era bonito aquele novo gato que tinha ido rastejando pelos telhados! Era mesmo um gato!
Embaixo, os tiras americanos levantavam-se dos balancinhos e sumiam de vista. O pátio estava momentaneamente vazio.
Peggy olhava fascinada para os rapazes. Alguma coisa aqueles dois malucos deviam ter combinado, porque, de repente, Chumbinho acenou para a garota pedindo calma e apontando o amigo. Em seguida, pôs-se a rastejar pelos telhados, logo desaparecendo de vista.
A seu lado, o rapaz bonito tocava os lábios com o dedo, pedindo silêncio. Tomou-lhe as mãos e olhou-a firmemente, para dar-lhe confiança. Nessa hora, o sorriso que o rapaz lhe dirigia iluminava a noite e o coração da filha do presidente dos Estados Unidos...
— Mister President, aqui estou. Nossa menina... ahn... sua filha... eu... — Sherman Blake apresentava-se ao seu superior, ansioso e embaraçado. — Ai, se eu não tivesse saído do lado dela, nada disso teria acontecido! Que tipo de guarda-costas sou eu?
— Blake, meu amigo, a culpa não é sua — acalmou-o suavemente o presidente americano. — Fui eu que quis que você ficasse aqui, no hotel, junto comigo, enquanto os agentes da CIA levavam Peggy para o colégio da amiga. Quando você decidiu ir para lá, nada mais havia a fazer.
Um oficial americano aproximava-se, vermelho com um pimentão:
— A mensagem foi transmitida daqui mesmo, Mister President. O endereço eletrônico do transmissor é o do hotel. Alguém usou um dos computadores daqui e endereçou a mensagem de miss Peggy para o endereço de e-mail secreto da CIA, que faz com que as mensagens recebidas entrem no monitor automaticamente!
— Que horror! — exclamou Rodrigues Lobo. — Esses bandidos conhecem até os códigos secretos da CIA!
— Reunimos todos os funcionários do hotel e estamos interrogando um por um — continuava o oficial. — Mas é improvável que consigamos alguma coisa por aí...
MacDermott derreou-se numa poltrona.
— Estamos nas mãos deles, Augusto! Nas mãos deles...
Rodrigues Lobo apoiou a mão no ombro de MacDermott, mostrando que estava a seu lado, ainda que soubesse ser impossível consolá-lo.
Miss Malloy aproximava-se de seu presidente, com uma importante informação:
— Mister President, logo que foi informada do seqüestro, sua esposa embarcou de Washington para cá. Eram cinco horas, horário de Nova York, senhor. Ela deverá chegar ao Brasil a uma da madrugada, horário daqui.
— Ligue-me com o avião dela, miss Malloy — pediu MacDermott, desanimado —, por favor...
A ligação foi imediatamente completada e os outros se afastaram, para deixar o americano à vontade.
— Hello, honey... Como você está suportando essa desgraça? Ah, você é forte demais, minha querida! Se eu pudesse, trocava meu mandato pela vida dela... Eu sei, eu sei. Mas é que Peggy... Como? Mas é nossa única filha!... Está bem, querida. Se você pode agüentar, eu também tenho de conseguir. Vou continuar, pode estar certa. Não, não vou desistir agora!... Obrigado, amor, você é uma rocha... I love you too...
De fora, do grande auditório de entrevistas, vinha o alarido dos jornalistas que protestavam contra a falta de informações sobre os desdobramentos do caso:
— Liberdade de imprensa! Exigimos liberdade de imprensa!
Quando Wilbur MacDermott desligou o telefone, todos se voltaram para ele. Parecia um novo homem, convencido do que tinha a fazer. Surdo aos protestos dos jornalistas, olhou fixamente à sua frente. Encarava homens de verde, os homens de preto, Rodrigues Lobo, J. Edgar Hooper, Sherman Blake e o Doutor Pacheco, reunidos como o elenco secundário de uma peça à espera da fala do protagonista.
A imagem do presidente americano não era mais a de um pai desolado com a possibilidade de perder a única filha. Respirando em pequenos haustos, como se tivesse corrido, procurava controlar-se. Solenemente declarou:
— Muito bem, senhores. Não há nada que esses bandidos possam fazer para me dobrar. Jamais negociarei com terroristas. Se for necessário que minha filha morra para que este mundo possa ser um pouco mais feliz e mais justo, assim será. Acabo de falar com a mãe dela. Minha mulher disse que, se ela pode aceitar esse risco extremo eu também tenho de conseguir. E estou certo de que até mesmo ela, a minha Peggy, estaria disposta a esse sacrifício final pelo que é justo.
Os homens ouviam em silêncio, emocionados pela decisão de Wilbur MacDermott.
"Eu sei onde estou... Os Karas precisam entender o meu código... Precisam..."
Magrí encolhia-se de frio sobre o plástico gelado da barraquinha. De fora, vinham as vozes dos seus guardas, cansados da espera:
— I need some booze! Preciso de bebida...
— Shut up! Cale a boca. Não venha piorar a situação. Você sabe que o captain não perdoa nenhum deslize. Você quer morrer, é? Já se esqueceu como é nosso captain com a faca de guerra na mão?
“O capitão!", pensava a prisioneira."Quem será ele? Porque ele falava tão baixo? Será que era para que eu, para que Peggy não ouvisse o que ele dizia? Se for por isso... Já sei! Se ele não queria que eu o ouvisse, é porque filha do presidente poderia reconhecer sua voz. Que horror! Peggy conhece esse bandido!"
Para não dar na vista, Miguel e Crânio não faziam a guarda da calçada juntos. Alternadamente, cada um andava para cima e para baixo, enquanto o outro permanecia de sentinela. Por isso, o geninho dos Karas estava distante quando Miguel ouviu o combinado pio de coruja:
— Uh-uh...
— Uh-uh-uh... — respondeu ele, sinalizando que o caminho estava livre.
Em pouco tempo, o mais jovem dos Karas, o menino que tinha ousado esconder a filha do presidente dos Estados Unidos, pulava suavemente para a calçada.
"É Chumbinho! E... está pelado?! O que houve?", surpreendeu-se Miguel.
Agilmente, Chumbinho desceu do muro e escondeu-se sob a sombra de uma árvore para que nenhum passante desconfiasse da presença de um menino em cuecas às nove da noite em plena rua.
Miguel encostou-se no tronco e ouviu o que Chumbinho tinha a contar.
— Miguel, você nem vai acreditar! Ouça só...
No fim do relato, falando o mais baixo que era possível, Miguel decidiu:
— Você agiu bem, Chumbinho. Seu plano é o mais louco em que já nos metemos, mas era a única coisa a ser feita. Se Peggy aparecer, os bandidos matarão Magrí, sem piedade. Mas é muito perigoso esconder a menina nos telhados. Volte lá e traga Peggy. Diga a Calu que nós temos de circular disfarçados. Ele saberá o que fazer. Vá, Kara.
— Certo, Kara.
Nesse momento, Crânio se aproximava e quase levou um susto ao encontrar o menor dos Karas nas sombras:
— Chumbinho! Onde você esteve?
— Você nem imagina, Kara!
— Onde está Magrí?
— Esse é o problema...
— Calu encontrou você?
— Encontrou. Ele ficou lá em cima, no telhado.
— Mas diga logo o que aconteceu!
— Uma loucura, Kara!
— E que história é essa de andar de cuecas?
— Sem comentários — cortou Chumbinho. — Emergência máxima é apelido, Kara. Prepare-se para a luta. Magrí foi seqüestrada!
O sangue fugiu do rosto do gênio dos Karas:
— Magrí foi seqüestrada?! Mas como? E a filha do presidente?
— Também. Só que essa fui eu quem seqüestrou!
Peggy MacDermott não conseguia tirar os olhos do rosto do rapaz, que também não desviava o olhar. O sorriso dele era terno, calmo, transmitia tranqüilidade, segurança... E algo mais, muito, muito mais...
"Como é o seu nome?", queria perguntar a menina, sem poder falar. "Quem é você? De onde você surgiu? Para onde você está me levando?"
Apesar do frio intenso, uma onda de calor veio subindo, subindo pelo corpo de Peggy e ela sentiu-se flutuar sobre os telhados, como se nada de sólido a prendesse, quando os braços do rapaz a envolveram, protegendo-a. Por um louco momento, Peggy esquecia-se do imenso perigo que estava enfrentando. Nada mais havia, senão aquele rapaz...
DROGA DE AMERICANA!
Depois que Chumbinho desapareceu na escuridão dos telhados, Crânio não conseguia acreditar no que o garoto tinha contado:
— Magrí, na mão de seqüestradores! E para salvar a pele dessa gringa... Droga de americana!
Miguel não gostou do mau humor do amigo:
— Magrí fez o que tinha de fazer. Exatamente o que você faria, no lugar dela.
Com Magrí em risco de vida, estava difícil para Crânio controlar-se:
— Precisamos do Chumbinho e do Calu de volta logo, Miguel. Esse helicóptero já deve estar longe, a esta hora. Temos de agir! Cadê esses dois Karas?
— Estão vindo. E Peggy virá junto.
— Não gosto disso. Essa droga de americana vai acabar nos atrapalhando!
— Controle-se, Crânio! — ralhou Miguel. — Chumbinho contou que a menina é valente. Disse que até parece um Kara de verdade!
— Não gosto disso mesmo, Miguel. Não gosto nem pouco disso. A única menina que é um Kara de verdade é a Magrí!
— Não adianta discutir agora. Eles estão muito vulneráveis, escondidos em cima do telhado. E não podemos expor a filha do presidente, senão Magrí estará perdida. Mandei que Calu arranjasse um modo de nos disfarçar. Precisamos do anonimato para investigar. Se a gente ficar especulando por lá, o Andrade vai cair na nossa pele, com aquele jeito de paizão dele, e vai acabar descobrindo o que estamos fazendo. O que será de Magrí então?
— Está bem, Kara — concordou Crânio, ainda descontente com essa história de comparar uma americaninha desconhecida com sua inigualável Magrí.
— Magrí foi demais! — comentou Miguel. — Salvou a vida da americana, sacrificando-se em seu lugar. Fazer-se passar pela filha do presidente dos Estados Unidos era mesmo a única saída. A idéia de um Kara!
Crânio avaliava a situação e não parecia contente com o que concluía:
— E por quanto tempo você acha que Magrí vai conseguir manter esse jogo, Miguel? Você não vê como isso é arriscado? Infelizmente o plano dela só serviu para salvar Peggy. Na hora em que ela chegar onde quer que os bandidos a estejam levando, algum dos seqüestradores vai perceber o erro cometido. E, daí...
Miguel ouvia o amigo com as sobrancelhas franzidas. Não o interrompeu.
— O que eu quero dizer é... Quero dizer que... que tudo o que Chumbinho fez talvez não baste para salvar a vida de Magrí. Talvez nem tenha adiantado nada ele esconder essa menina. Se os bandidos descobrirem o engano, Magrí estará morta!
Compreendendo os riscos da decisão de Magrí, o lábio inferior do líder dos Karas tremeu. Crânio continuava:
— Magrí assumiu conscientemente esse sacrifício, Miguel. Ela entendeu que o desaparecimento ou a morte da filha do presidente provocaria uma verdadeira crise, enquanto, no caso dela, seu desaparecimento, sua própria morte, não alterariam em nada a situação do mundo!
Juntos, os dois Karas haviam concluído que a situação não tinha remédio: salvar Magrí, que salvara Peggy, era praticamente impossível.
Após uma pausa, Crânio suspirou fundo:
— Desgraçadamente é isso. Mesmo que Magrí consiga continuar enganando os bandidos, há ainda outro perigo, e esse não temos jeito de evitar...
— Outro perigo?! — Miguel estava ofendido, corno se o raciocínio de Crânio fosse o culpado pela situação de Magrí. — Você não acha que já temos perigos demais?
— Mesmo que Magrí consiga enganá-los, esses seqüestradores podem resolver matar Peggy, isto é, Magrí, mesmo depois de receberem o resgate, ou seja lá o que tenham exigido em troca da menina!
— O que você está dizendo, Crânio?
— E as três garotas que estavam no vestiário, Miguel? Esqueceu-se delas? É claro que elas devem ter dito aos policiais que Peggy estava no vestiário junto com Magrí!
— Nesse caso, a polícia pode pensar que os seqüestradores levaram as duas... — Mas os seqüestradores sabem que só levaram uma! E daí, mesmo que Magrí consiga enganá-los mais um pouco, quando souberem de algum noticiário falando do desaparecimento de duas meninas, vão querer descobrir qual das duas eles levaram, não? E isso seria...
Miguel baixou os olhos:
— Isso seria o fim de Magrí, não é isso o que você quer dizer?
MacDermott entrou no luxuoso banheiro dos aposentos presidenciais. Sherman Blake o seguiu.
O banheiro era imenso e reluzia de tantos dourados. O presidente americano abrira uma torneira da pia, provocando um jorro forte, e estava com a cabeça debaixo d'água.
— Wilbur...
O presidente levantou a cabeça molhada e recebeu uma toalha das mãos de seu guarda-costas, que, atrás dele, estranhamente ousava chamá-lo pelo primeiro nome
— Ahn? O que você quer, Blake?
A expressão do atlético Sherman Blake era desafiadora:
— Eu quero que você salve a vida de Peggy, seu miserável!
— Como?! — os olhos do presidente arregalaram-se, surpresos com o absurdo de ser tratado daquela forma por um subordinado.
— O que é isso, Blake?
O guarda-costas tremia enquanto falava:
— Deixe o orgulho de lado, Wilbur! Peggy vale mais do que o seu maldito orgulho!
— Blake! Você enlouqueceu? Nós somos amigos há muitos anos, mas isso não lhe dá o direito de...
— Muuuuitos anos mesmo, Wilbur! — Blake quase gritava. — E foram anos em que você só pensou em si mesmo, na miserável da sua carreira. Anos em que jamais teve tempo para a pequenina Peggy! Nem você nem sua mulher. Vocês dois só sonhavam com o poder, com conchavos políticos, jantares diplomáticos, enquanto eu, somente eu, fazia o verdadeiro papel de pai para ela!
— Blake, controle-se! Eu exijo que você se controle. É natural que esteja sofrendo, todos nós estamos sofrendo, mas é preciso manter a cabeça no lugar! — Cabeça no lugar! — Blake ria nervosamente, descontrolado. — O único lugar em que sua cabeça sempre esteve foi nas nuvens, com seus sonhos doidos de poder, de prestígio! Pois agora, pelo menos agora, aproveite a oportunidade. Defenda a vida da menina. Tente amá-la um pouco, como eu a amo!
Os gritos no banheiro presidencial foram ouvidos no salão. E, quando Rodrigues Lobo, Pacheco e Hooper para lá acorreram, viram o guarda-costas presidencial soluçando como uma criança, abraçado a MacDermott.
— Vamos, Blake... — consolava o Presidente, compreendendo a explosão do amigo, que sempre havia amado e se dedicado a Peggy, como se ela realmente fosse sua filha. — Agora, calma... Tudo vai acabar bem, você vai ver, tudo vai acabar bem...
— Salve a minha Peggy, Wilbur... Por favor, salve a minha menina... Por favor... Faça qualquer coisa... O que tiver de ser feito... Salve Peggy... Ela é tudo o que eu amo nesta vida...
Os soluços de Blake calavam a todos. "Ah, que coisa mais triste!", pensava Pacheco. "A dor de perder alguém a quem se ama... "
"O que eu posso dizer?", hesitava Rodrigues Lobo. O que eu faria, se tivesse de decidir entre a felicidade do planeta e a vida da minha filha?"
Hooper balançava a cabeça, estranhando a cena: Quem é que está sofrendo realmente como um pai? MacDermott?... Ou Blake?"
— Uh-uh!
— É Chumbinho com a filha do presidente, Crânio. Responda.
— Uh-uh-uh...
Em um minuto, Chumbinho descia do muro trazendo a menina mais procurada do país.
O líder dos Karas reconheceu-a da exibição de ginástica daquela tarde, quando seu coração sentira-se apertado. Agora, vendo-a de perto, ainda que suja por ter-se arrastado pelos telhados, vestindo o uniforme de Chumbinho, aquela sensação voltou-lhe, mais forte ainda, perturbando as emoções de Miguel.
— Here we are, Peggy — anunciou Chumbinho. — Chegamos. Estes são os meus amigos.
A expressão da filha do presidente dos Estados Unidos era segura, decidida, de quem sabe que ninguém ali estava brincando.
Por um breve momento, Miguel deixava que a emoção lhe dominasse a cabeça. O rosto de Peggy entrava-lhe pelo olhar e em seu coração acomodava-se. Sacudiu a cabeça, procurando afastar aquela sensação inoportuna e decidiu, recuperando o controle sobre si mesmo:
— De agora em diante só vamos falar na língua dela. Ela precisa entender tudo o que combinarmos. Peggy, obrigado por nos ajudar a proteger Magrí.
— E o que mais eu poderia fazer? — disse a americana com uma coragem encantadora. — Ela está arriscando a própria vida por mim, não está?
— Certo. Agora suba nesta árvore — ordenou Miguel, como se fosse a coisa mais natural do mundo dar ordens para a filha de um presidente. — Você precisa ficar escondida, até que Calu possa disfarçá-la.
Agilmente, a americana obedeceu, desaparecendo entre as ramagens.
O rosto de Crânio queimava. Para salvar aquela intrometida, sua querida Magrí estava nas mãos de bandidos. E a vida de Magrí era tudo para aquele rapaz:
"Droga de americana! Por que essa danada tinha de vir para o Brasil? Ai, o que vai ser da minha Magrí? Droga de americana! Droga de americana!"
— Uh-uh!
Desta vez era Calu que chegava.
Chumbinho emitiu os pios de coruja avisando que a frente de batalha estava livre, e o ator dos Karas logo desceu do muro. Carregava um saco, feito Papai Noel. Tinha rastejado pelos telhados em outra direção e, afastando algumas telhas, conseguira entrar no teatro do Colégio Elite. De um dos camarins, pegou um estojo de maquiagem, procurou por perucas, escolheu alguns adereços e estava quase saindo quando se lembrou da figura de Chumbinho, de cuecas. No escuro, apanhou um par de calças qualquer, do armário de figurinos.
— Está tudo aí, Calu?
— Tudo, Miguel.
— Vamos. Depressa!
Miguel organizou a sessão de transformações que agora seriam operadas por Calu. Crânio ficaria por último esperando discretamente no meio da aglomeração que se mantinha inalterada à frente dos portões da área esportiva. Talvez alguma novidade surgisse por ali.
No alto da árvore, o jovem ator dos Karas começou a planejar a maquiagem de Peggy. A menina teria de ficar irreconhecível, ainda que o próprio pai trombasse com ela na rua.
"Os Karas não vão me libertar... Não há mais tempo... Eu vou morrer... vou morrer... "
As forças de Magrí tinham chegado ao fim. Sem uma peça de roupa sobre o corpo entorpecido pelo frio, nada mais havia para ela fazer, além de chorar e silenciosamente despedir-se da vida:
"Adeus, mamãe... adeus, papai... adeus, meus queridos Karas... adeus, Crânio, meu amor! Crânio... Por que eu não segui o que o meu coração mandava e fiquei para sempre com você? Ai! Para sempre? Não há mais 'para sempre'... Esses bandidos vão me matar... vão me matar... "
Lutou para não soluçar. Mesmo no fim de sua vida tão curta, ela havia de morrer como um Kara:
"Adeus, meus amigos... para sempre... "
O FIM DE MAGRÍ
Discretamente, Crânio circulava pelo meio da multidão, com os ouvidos em alerta, à espera de alguma informação que prestasse, quando ouviu alguém chamar:
— Jerônimo! Anda logo com essa câmera!
Era o mesmo repórter, ajeitando-se à frente da câmera de tevê, pronto a revelar mais uma novidade daquele rumoroso seqüestro:
— Aqui, Solano Magal, mais uma vez falando diretamente do Colégio Elite, de onde foi seqüestrada a filha do presidente americano. Acabamos de descobrir que as três meninas que estavam nos vestiários com a senhorita Peggy foram encontradas nervosas demais e não puderam ser interrogadas. Estão agora sob o efeito de calmantes e serão levadas a um hospital onde ficarão em observação até amanhã. Mas parece que a internação é apenas uma medida de cautela, porque nada de grave teria acontecido com elas...
"Um problema a menos... ", raciocinava Crânio. "As meninas não falaram de Magrí. Que ótimo!"
Nesse momento, o geninho dos Karas avistou ao longe o corpanzil do detetive Andrade, reclamando na frente dos portões.
Ainda havia um problema a resolver. Crânio precisava agir. E rápido!
"Droga de americana! Será que ela vai cooperar?"
Debaixo da árvore, Chumbinho bronqueava:
— Ei, Calu! Que brincadeira é essa? Como é que eu vou usar essas calças?
Encarapitado num galho, Calu preparava-se para disfarçar Peggy e, lá de cima, respondeu:
— Foi o que deu pra pegar no escuro. Sinto muito. Arregace um pouco as pernas, que vai servir...
— Que ridículo, Kara!
De sentinela, Miguel olhou ao longe e imediatamente levantou a mão:
— Calu, Crânio está vindo para cá. Fez o sinal de "parar tudo e esperar".
Calu parou de ajeitar uma peruca na cabeça de Peggy. Seus olhos encontraram-se. A filha do presidente americano era... hum... era uma graça!
A menina olhava-o firme, examinando seu rosto bonito sob a fraca iluminação que conseguia intrometer-se entre as folhas. Sinais secretos? Códigos que se transmitem com apertões? Sinalização com pios de coruja? E perguntou:
— Quem são vocês? O que são vocês? Policiais-mirins? Agentes secretos?
Calu não esperava pela pergunta e titubeou:
"E agora? Como é que eu vou falar dos Karas?"
— Bem... hum... ehr... humpf... não... quer dizer, sim...
— Sim o quê? São agentes secretos?
— Não... bem, sim... quer dizer... mais ou menos...
Para sua sorte, nesse instante Crânio chegava sob a árvore, com novas e estranhas ordens:
— Calu, preciso da Peggy.
— Como?
— Ei, Peggy! — chamava Crânio. — Magrí já se fez passar por você, não foi? Que tal agora você se fazer passar por Magrí?
— All right — respondeu a menina, de cima da árvore. — O que você quiser. O que eu tenho de fazer?
— Como assim, Crânio? — protestou Calu. — Eu ia maquiá-la de mulata, vai ficar um estouro!
— Depois, Kara. Primeiro preciso dela no papel de Magrí. Miguel, me empreste a bicicleta!
— Certo, Kara — concordou Miguel, correndo para onde tinha deixado a bicicleta acorrentada, sem perguntar qual era o plano do amigo.
— Peggy, listen... — sussurrava Crânio. — Ouça que eu quero que você faça...
Em poucos minutos, Peggy MacDermott estava pedalando a bicicleta de Miguel, com o cabelo ajeitado do modo como Magrí normalmente usava. De longe, com o moletom do Elite que Chumbinho lhe havia emprestado talvez o plano de Crânio pudesse dar certo...
Uma ambulância chegava aos portões do complexo esportivo do colégio com a sirene gorgolejando como um peru enlouquecido e exibindo um letreiro na carroçaria: "Hospital Brasiliano — Resgate Terrestre".
Do colégio, protegidas por vários agentes da CIA, três macas vinham sendo carregadas na direção da ambulância.
"Magrí! Uma das macas deve estar trazendo a Magrí!", Andrade rompeu a multidão, procurando ver quem estava sendo carregado.
Na primeira maca, encontrou uma garota de cabeleira negra, cacheada. Nas outras, mais duas alunas desconhecidas. Nem sinal de Magrí.
— Como?! Onde está Magrí?
Antes que o gordo detetive se pusesse a berrar no meio da rua, alguém tocava amistosamente em seu ombro. O detetive voltou-se:
— Quem... ? Oh, é você, Crânio? O que está fazendo aqui?
O rapazinho exibia a cara mais inocente deste mundo:
— Nada... Eu tinha de vir pegar um CD-ROM de pesquisa na sala de computação e...
— Uma pesquisa? — estranhou Andrade. — A essa hora?
— São as provas finais do semestre, Andrade... Um sufoco! Mas eu nem imaginava que tinha acontecido uma coisa dessas logo no nosso colégio! Seqüestraram a filha do presidente americano, é? Puxa! Vou correndo pra casa!
O detetive estava alterado, sem querer contagiar o rapaz com seus temores:
— Eu... é que... Onde estão os outros?
— Quem? Miguel, Calu e Chumbinho estão em casa, estudando para as provas. Magrí foi para a casa de uma amiga, aqui perto, depois da exibição de gin...
O detetive surpreendeu-se, abrindo os braços, numa posição de quem recebe um enorme presente:
— O quê?! Magrí não estava dentro do colégio?
Crânio sorriu, com uma cara de sonso ainda maior:
— Como assim, dentro do colégio? É claro que ela estava dentro do colégio para a exibição de ginástica. Depois, ela foi para a casa da Sandrinha, que fica para lá, logo atrás do... Ei, Andrade! Veja. Lá vai ela!
O confuso detetive olhou para onde apontava o garoto. A uns cinqüenta metros, uma menina com o uniforme do Elite passava pedalando tranqüilamente sua bicicleta, mal iluminada pelas luzes dos postes. E acenava na direção deles
— Magrí!
Andrade acenava de volta como um possesso e nem sabia o que dizer. Logo a bicicleta virava uma esquina e desaparecia de vista. O detetive começou a gaguejar:
— Magrí! Olha, Crânio! É a Magrí!
— Ora, é claro que é a Magrí, Andrade... O que deu em você?
— Não... é que... sabe? Magrí estava... quer dizer. Crânio, eu pensei que... Mas que maravilha!
E abraçou o jovem amigo com uma força de quem acabou de ser salvo de um incêndio:
— Crânio! Que beleza! Magrí está salva! Salva!
O rapaz abria a boca, fazendo-se de completamente desentendido:
— Salva? Mas de quê, Andrade?
O detetive ria com gosto, beliscava a bochecha de Crânio e dizia:
— Olhe aqui, meu filho. Você viu que desgraça aconteceu na sua escola, não é? Mas nem esquente a cabeça. Pode deixar que, amanhã, o colégio estará liberado normalmente para as aulas. Agora pode ir para casa tranqüilo. Deixe o problema conosco. Haveremos de salvar a filha do presidente!
— Puxa, Andrade... tomara mesmo! Mas agora eu tenho de ir. Você sabe, não é? As provas do semestre...
E Andrade ficou vendo o rapaz afastar-se calmamente. Em pensamento, o gordo detetive gargalhava, com vontade de dançar pela calçada:
"Magrí! Que alívio! Magrí saiu da escola antes do seqüestro! Mas que maravilha! Magrí está fora disso! Está foooora!"
Só a custo alguém muito íntimo poderia reconhecer Miguel, com enchimentos nas roupas, um bigodinho nascente e boné enfiado até as orelhas. Do mesmo modo, ninguém descobriria que era Crânio quem estava atrás de grossas sobrancelhas postiças, nem Calu, cheio de decalques de tatuagens em todas as partes visíveis do corpo mal coberto por uma camiseta estampadíssima e uma cabeleira arrepiada. E talvez nem mesmo o presidente dos Estados Unidos conseguiria reconhecer a própria filha, com aquela peruca enroladinha e a pele morena, deliciosamente achocolatada.
Agora, eles podiam circular à vontade.
Quem não estava nem um pouco satisfeito era Chumbinho, por causa da calça horrorosa que Calu havia trazido para ele. Além disso, tivera de emprestar os tênis para Peggy e, assim, descalço, com os cabelos escondidos um larguíssimo boné de abas caídas sobre a face e o rosto disfarçado por um par de óculos fundo-de-garrafa, o menino enfiara-se numa das mesas dos fundos da lanchonete da italiana, onde suas pernas podiam ficar escondidas da vista dos freqüentadores. À sua frente, o aparelho de tevê só transmitia notícias sobre o seqüestro.
Os outros quatro sentaram-se numa guia de calçada onde manifestantes e curiosos descansavam da vigília. Ali podiam discutir o que haveriam de fazer sem despertar suspeitas.
Estavam numa encruzilhada. Depois que Natália e as outras duas alunas tinham sido levadas para o hospital, nada mais havia no colégio que pudesse ajudá-los a localizar Magrí.
Peggy MacDermott quase elevava a voz, revoltada:
— Nem sei como, mas precisamos salvar Magrí!
— O que faremos? — perguntava Crânio, desorientado. — Para onde iremos? Como vamos descobrir para onde esses bandidos levaram Magrí?
— Vamos lutar, Karas! — conclamou Calu.
Peggy continuava a estranhar aquele modo como os rapazes se tratavam:
— What's this Karas business? Que história é essa de "Karas"?
Os três rapazes entreolharam-se. Calu deixara escapar mais um segredo para a americana. O mais importante.
Mas a solução desse problema tinha de ser adiada. Um estranho rapazinho, com um boné de lã enfiado na cabeça, calças desengonçadas arrastando-se pelo chão e óculos tão grossos que mal lhe permitiam enxergar em frente, chegava esbaforido:
— Karas! Magrí mandou uma mensagem para a gente!
"Karas again? Outra vez isso de 'Karas'? Quem são esses garotos?", pensou ela, mas o que disse foi:
— Yeah! Agora temos alguma coisa por que lutar! Vamos lutar!
Os rapazes olhavam a americaninha, admirados. Era como se Magrí estivesse de volta. Peggy MacDermott agia como um verdadeiro Kara!
Crânio desviou o olhar. Para ele, não era possível aceitar qualquer garota no lugar de Magrí.
EU QUERO SER UM KARA!
Miguel, Crânio, Calu e Peggy cercavam Chumbinho, lendo os dois textos que a tevê transmitira e que o menino havia copiado em dois guardanapos. O primeiro era a sinistra ameaça dos bandidos. O segundo era uma mensagem que só poderia ter sido redigida por Magrí:
Eu estou bem, papai... — Crânio lia em voz sussurrada. - Eles estão me ameaçando. Apenas faça tudo o que eles pedirem e eles vão me soltar. Estou realmente muito ao se preocupe comigo. Sinto-me como se estivesse Nova York, como eu falava quando era pequena. Rápido, papai. Salve-me. Peggy, sua canguruzinha...
— Nova York?!
A decepção estava estampada no rosto dos cinco jovens. Nova York!
— Como se estivesse em Nova York? — surpreendia-se Calu. — O que ela quis dizer com isso? Que está em alguma cidade parecida com Nova York? Ou que foi levada justamente para Nova York?
— Isso é impossível, Karas! — raciocinou Crânio. — São dez e cinco e Magrí foi seqüestrada às seis e meia. Por mais rápido que seja esse helicóptero, é impossível que tenha podido chegar a Nova York em apenas três horas e pouco!
— É claro! — completou Miguel. — Além disso, vocês acham que os bandidos iriam divulgar uma mensagem que mostrasse exatamente onde está Peggy, isto é, Magrí?
— Isso! — Calu mostrava esperança na voz. — E se Magrí nos mandou uma pista, é porque ela sabe que é possível a gente encontrá-la!
— Pode não haver nenhuma mensagem em código — argumentou Peggy. — É claro que Magrí tinha de obedecer aos bandidos e fazer esse texto, na certa por alguma condição imposta pelas negociações que devem estar sendo feitas com papai. A mensagem tinha de ser escrita de qualquer maneira, mesmo que ela não soubesse onde está.
— Não sei... é possível... — Crânio pensava concentrado, examinando a mensagem. — Pode ter alguma coisa aí, sim... Talvez em "não se preocupe comigo" ou em "não estão me ameaçando''... Meu palpite é esse negócio de "seu pequeno canguru"...
— Isso não é pista nenhuma! — rebateu Peggy. — É um apelido que meu pai me deu. Eu devo ter contado isso a ela e Magrí usou a frase para provar ao papai que eu estou bem e que sou eu mesma! Que menina esperta! Surpreendente!
— Surpreendente?! — riu Chumbinho. — Você não conhece a Magrí, Peggy!
Miguel encerrou o debate:
— Não adianta ficar especulando. De acordo com a ordem dos bandidos, temos menos de duas horas para salvar Magrí. Crânio, você é o nosso especialista em códigos. Trate de decifrar a mensagem o mais rápido possível. Chumbinho fica para ajudar. Calu, volte para a porta da área esportiva, de olho em novidades. Eu e Peggy ficaremos aqui por perto, de guarda, para que ninguém perturbe Crânio e Chumbinho enquanto trabalham. Vamos lá, Karas!
Miguel mais uma vez deixava escapar a palavra "Karas", como se conscientemente quisesse alimentar suspeitas de Peggy...
Três câmeras de tevê já estavam instaladas na frente ampla mesa de trabalho que fora destinada a Wilbur MacDermott nos aposentos presidenciais. Na parede atrás da mesa as secretárias tinham grampeado uma bandeira americana ao lado de uma brasileira, em deferência ao pais que hospedava a comitiva americana.
Tudo estava pronto para o discurso do presidente americano. Em menos de duas horas, o mundo conheceria o teor de suas importantes decisões e... a vida de Magrí estaria perdida.
Crânio e Chumbinho estavam debruçados numa mureta onde aproveitavam a iluminação de um jardim para trabalhar no bilhete de Magrí.
A poucos passos dos dois, junto de Miguel, Peggy MacDermott estava excitada. As quatro últimas horas que haviam transcorrido desde que ela entrara no vestiário do colégio para tomar uma inocente ducha tinham sido muito mais vibrantes do que qualquer das horas de seus catorze anos de vida,tinha se envolvido numa aventura mais incrível do que o mais exagerado filme de Hollywood, fora carregada nua para o forro de um vestiário por um garotinho maluco, sua amiga brasileira estava seqüestrada em seu lugar, três rapazes fascinantes cuidavam dela e as bati das de seu coração aceleravam-se toda vez que olhava o ouvia um deles, o gato que a protegera um tempão, lá no telhado, dentro de seu abraço. Bom, o garotinho maluco também a protegera em seus braços no mesmo telhado mas... mas era diferente.
O outro, o chefe do grupo de malucos, naquele momento também resolvia passar o braço em volta de seus ombros e falava com um tom paternalista:
— Não tenha medo, Peggy. Nós vamos conseguir. Magrí será salva!
— Não estou com medo, Miguel. Só quero saber uma coisa...
— O quê?
— Quem são vocês?
Andrade enxugou a careca. O que ele iria fazer ali, agora que não havia mais nenhuma testemunha importante dentro do Elite? Tomar outro sorvete, talvez? Afinal de contas, por causa do seqüestro, ele tinha perdido o jantar.
Ao entrar na lanchonete da italiana, passou por um rapaz cheio de tatuagens que, apesar do frio, vestia camiseta. Mas nem reparou nele.
— Who are you? A bunch of Rambos? Quem são vocês? Uma quadrilha de Rambos?
— Rambo? Não. Os Karas não usam de violência. A inteligência e a coragem são mais eficientes do que qualquer arma!
Miguel tinha acabado de contar tudo. Mas tudo mesmo Não tivera saída. Peggy havia presenciado os Karas em ação e, pela primeira vez, ele revelava o grande segredo a alguém de fora. Sim, eles eram os "Karas", um grupo secreto de adolescentes que havia começado a se reunir pelo espírito de aventura, pelo prazer do perigo e pela sede de justiça. A coisa toda havia começado e deveria continuar quase que somente como uma aventura imaginária, sem que jamais eles sonhassem em um dia serem obrigados a enfrentar a realidade. Mas a realidade tinha sido mais forte, tinha se imposto a eles e os havia envolvido em perigos reais, em aventuras fantásticas em que a vida dos cinco Karas muitas vezes estivera por um fio.
"Cinco loucos!", admirava-se a americaninha. "Mas que loucos maravilhosos! Se a loucura é assim tão fascinante, eu quero ser louca também!"
Miguel, como se estivesse lendo seus pensamentos, declarou, gravemente:
— Peggy; eu nunca deveria ter lhe contado sobre os Karas. Só que não tive outro jeito. Agora só você sabe do grande segredo. No mundo inteiro, ninguém mais sabe disso. Nem mesmo nosso querido amigo, o detetive Andrade, que já viveu tantos perigos conosco, tem idéia da existência dos Karas. Ele pensa que tudo o que tem acontecido com gente são coincidências, que tem sido a sorte ou o azar que se intromete em nossas vidas e nos envolve em problemas Mas, na verdade, somos nós mesmos que nos intrometemos com a sorte e com o azar e procuramos os problemas.
— Fascinante, Miguel! Mas por que esse nome? O que quer dizer "Karas"?
Miguel sorriu:
— No Brasil, as pessoas chamam maldosamente os velhos e chatos de "coroas". E chamam de "caretas" os covardes, os bobocas egoístas que não ligam para os outros. Os "caras" ou "Os Karas", seriam o contrário desses "coroas", o avesso desses "caretas".
— Isso mesmo! — concordou a menina. — Vocês são exatamente o contrário dos velhos chatos, dos covardes, dos bobocas e dos egoístas!
— Fui eu quem inventou esse nome, Peggy — continuou o rapaz. — Mas há uma outra razão. Sabe aquele jogo que o mundo inteiro faz com moedas? Aqui, a gente chama de "cara ou coroa" e vocês, na América, de "heads and tails", ou "cabeças e rabos". Assim, nós somos os Cabeças, sempre à frente da vida, encarando o futuro, nunca um Rabo, que vive na retaguarda do mundo! Qual desses você prefere ser? Um Cabeça, no topo de tudo? Ou um Rabo, sempre apontando para o chão?
Peggy agarrou-lhe os ombros, excitada:
— Eu quero ser um Kara, Miguel, é claro. Deixe-me ser um Kara! Por favor, deixe-me ser um de vocês.
Encostado na entrada da Lanchonete italiana, com uma cabeleira inacreditável, camiseta regata rasgada, coberto de brincos e colares e com adesivos imitando tatuagens, Calu estava irreconhecível. Como esse tipo de figurino extravagante normalmente é usado para "aparecer", o disfarce era perfeito, porque é claro que ninguém prestava a mínima atenção nele.
Ali era o lugar ideal, pois o rapaz podia ouvir as conversas de quem tinha estado na aglomeração e aparecia em busca de um lanche ou pelo menos um café expresso. Até mesmo alguns homens de preto da CIA passavam pela lanchonete e, pensando que ninguém dali entendia inglês, comentavam que as ordens do chefe eram para apenas manter a posição e parar de vasculhar o colégio.
No balcão, seu amigo, o detetive Andrade, exausto, terminava uma grande taça de sorvete, depois de ter devorado um sanduíche.
Cambaleando pela calçada, um bêbado chegou à lanchonete, carregando uma garrafa de cachaça intacta debaixo do braço, e dirigiu-se para a italiana:
— Ischcuta'qui, ô dona. Mi vê uma da qui matô u guarda!
A italiana respondeu, sorrindo:
— Desculpe, mas em lanchonete perto de escola não se pode vender bebidas alcoólicas.
O bêbado demorou uns segundos para compreender a recusa e protestou:
— Ischcuta'qui! Qui hischtória é escha? Comu é qui a schinhora vai querê qui eu incari esscha noiti sschelada?
A mulher riu, alto:
— Ora, me faça o favor! Por que não bebe da sua garrafa? Está cheinha!
— Num poschu... Escha garrafa num é minha... É du Alfredo... I eu num possu toma a caisschaça du Alfredo, schem pidi lischença, tô schertu o tô erradu?
Saiu cambaleando. Um pouco mais adiante, a resmungar, encostou-se numa parede. Foi escorregando devagarinho e acabou adormecido na calçada.
Miguel calava-se por um instante. Por que tinha decidido abrir os segredos dos Karas para a menina? E que direito tinha ele de contar tudo sem o consentimento dos outros membros do grupo? Aquilo não tinha sido uma... uma traição? Que chefe era ele, se não conseguia manter a língua quieta dentro da boca?
E será que ele realmente precisava ter contado tudo, ou será que, na verdade, ele queria contar tudo? Será q aquilo não teria sido uma forma de ele fazer com que ficasse para sempre junto dele? De fazer com que seu sorriso sempre estivesse aberto para ele, ouvindo suas idéias e seguindo suas decisões, vivendo a seu lado? Agora porém, o que estava feito estava feito e Miguel tinha de garantir o silêncio da americana:
— Você precisa jurar, Peggy. Os Karas já fizeram inimigos tremendos e correríamos enormes riscos se esses bandidos soubessem que somos um grupo organizado, que realmente lutou para desmascará-los. É preciso que eles continuem trancafiados nas cadeias onde estão, pensando que nós somos personagens secundários, que se envolveram sem querer em suas vidas criminosas.
— Faço o que você disser, Miguel.
— Ponha a mão sobre o coração e jure que...
Com a mão esquerda, Peggy segurou o pulso direito de Miguel e puxou-o, apertando-lhe a mão sobre seu próprio coração, enquanto espalmava sua mãozinha direita sobre o coração do rapaz:
— Eu juro, Miguel, pelo meu e pelo seu coração, que, de agora em diante, seus segredos são os meus segredos, sua coragem é a minha coragem, sua vida é a minha vida!
Os lábios do rapaz tremeram, seu corpo estremeceu, sentindo o calor e a maciez do seio de Peggy MacDermott na palma de sua mão. Foi como se uma descarga elétrica, carregada com os mais deliciosos volts do mundo, tivesse percorrido o seu corpo.
Sob a palma de Peggy, o coração de Miguel pulava como um cabrito solto no pasto.
CORUJAS NO TELHADO
Crânio lia e relia o segundo guardanapo anotado por Chumbinho e perdia a paciência:
— Não dá, não dá! Não há nada neste texto que pareça um dos nossos códigos. Magrí não nos contou coisa nenhuma! E agora, o que vamos fazer?
Chumbinho não aceitava o desânimo:
— Calma, Kara. Tem alguma coisa aqui. Eu tenho certeza de que tem alguma coisa aqui. Vamos olhar de novo!
— Não adianta olhar mais, Chumbinho. O texto que você leu na tela da tevê era esse mesmo?
— Palavra por palavra, Crânio. Eu copiei tudo!
— Hum... — resmungou Crânio, examinando novamente o guardanapo. — Além do "pequeno canguru", ela deve ter dado outra prova ao pai de que era mesmo a Peggy...
— Onde, Crânio?
— Aqui, veja: "como eu dizia quando era pequena...”.
— Dizia o quê? New York? Qualquer um fala New York com qualquer idade!
Chumbinho deu um tapa na própria testa:
— Ai, que mancada que eu dei, Kara!
— O que foi? — estranhou Crânio.
— Ai, ai, ai, como é que eu fui fazer uma besteira dessas? Eu corrigi uma palavra do texto na hora de copiar. Achei que tinha sido erro dos jornalistas da tevê. Que mancada!
— Mas que palavra era essa, Chumbinho? Ande logo!
— A palavra "York". Estava errada. Estava "Yorty"!
O rosto de Crânio iluminou-se:
— Só pode ser isso! Vamos aplicar o código Tenis-polar!(1) — Rapidamente, Crânio pegou o guardanapo e escreveu a palavra TÊNIS logo acima da palavra POLAR. — Bom, temos dois "Y"... Vamos substituí-los por "I"...
(1) Código “Tenis-polar" - Basta escrever a palavra "TÊNIS" logo abaixo palavra "POLAR", de modo que cada letra de "TENIS"fique acima de cada letra da palavra "POLAR". Depois, para escrever uma palavra secreta, basta substituir uma letra pela outra, desse modo: se houver um "T", substitui-se pelo "p", pois esta é a letra correspondente. Se for "P" substitui-se pelo "T", da mesma forma. A letra "E" será substituída pelo "O", a letra "O" pelo "E", a letra "L" pelo "N", e assim por diante. As letras da palavra secreta que não estiverem na palavra "TÊNIS" nem na palavra "POLAR" não mudam. Exemplo: a palavra "DROGA" vira "DSEGI".
Foi combinando as letras de "Yorty" com as letras correspondentes das duas palavras do código, mas a coisa não ia bem:
— Não faz sentido, Chumbinho... Só consigo "Aespa". Se eu não trocar o "Y", fica "Yespy", ou "Iespi"... o que isso significa?
— Parece que não é por aí, Crânio...
O geninho dos Karas franziu a testa, concentrando-se. Gostaria de poder sentar-se na calçada e soprar sua gaita bem baixinho. Era assim que ele tinha suas melhores idéias.
— Vamos pensar, Chumbinho, pensar... Hum, se Magrí não usou o código Tenis-polar foi porque com o nosso código ela só conseguiria palavras sem sentido, que dariam na vista. Ela deve ter criado uma variante. Mas, com que palavras? Na certa ela tentou usar palavras fáceis para nós... palavras comuns...
Chumbinho tentava ajudar:
— Palavras comuns para os Karas? Então só pode ser "perigo", "confusão" ou "loucura"!
— Pensar... pensar... O que é mais comum para nós? Para qualquer pessoa? Ei, e se fossem nossos próprios nomes?
— Vai ver é por aí...
— Que nomes? KARAS-MAGRI? Não, tem muitos "As", não ia dar... "Chumbinho" é muito comprido e "Calu" e muito curto...
— Mas "Miguel" e "Crânio" têm seis letras.
— Pode ser, mas tem o "I" repetido. Ei, veja: e se ela substituiu um dos "I" por "Y"? — os olhos de Crânio brilharam. — Vamos ver...
E escreveu seu próprio apelido acima do nome de Miguel.
— Trocando o "I" de Miguel por "Y"... Hum, dá "RLYTR"... Mas vamos ver se eu trocar o "I" de "Crânio" por "Y"... Hum-hum... Ah-ah! Achei! Leia!
No guardanapo, o geninho dos Karas havia escrito: E-L-I-T-E!
A boca de Chumbinho escancarou-se. Crânio era demais! Tinha descoberto que, substituindo o código Tenis-polar por um código inventado na hora, o código MIGUEL-CRANYO, Magrí criara a palavra "Yorty" para dizer aos Karas que ela estava... no Elite!
— Magrí está no Elite?! — Chumbinho não conseguia entender. — Mas, e o helicóptero que eu ouvi? Ei, eu só ouvi o helicóptero! Ah-ah, digo eu, Crânio! A caixa preta!
— Caixa preta? Que caixa preta?
Atraídos pelo entusiasmo dos dois, Miguel e Peggy vieram correndo. Chumbinho fazia uma força danada para não dar pulos de alegria e atrair atenções indesejadas:
— Agora tudo está se juntando na minha cabeça!
— Se Magrí usasse o código Tenis-polar, "Elite" daria “Onapo". Como é que ela iria escrever "Onapo" na mensagem sem dar na vista? Ai, essa menina é mesmo genial! Os bandidos também são, mas os Karas são muito mais! Descobrimos!
— Controle-se, Chumbinho! — ordenou Miguel. — Você quer dizer que Magrí está lá, dentro do Elite?!
— Me diga uma coisa, Miguel — continuou o menino, sem responder à pergunta —, você que é presidente do grêmio do colégio. Por acaso a comissão de festas resolveu colocar um alto-falante no telhado dos vestiários para as festas juninas?
— Alto-falante? É claro que não. A festa vai ser no pátio de recreio do colegial.
Chumbinho estava radiante:
— Ai, ai, Karas! Eu não falei disso antes porque achei que não tinha importância. Acontece que, quando eu saía com a Peggy do esconderijo, trombei com uma caixa preta bem ali em cima do telhado. Uma caixa de alto-falante!
Peggy não estava entendendo:
— Alto-falante? Mas o que isso quer dizer, Chumbinho?
— Quer dizer que nuuuuunca houve nenhum helicóptero! Os bandidos transmitiram uma gravação do motor de um helicóptero pelo alto-falante para todo mundo pensar que eles estavam levando a seqüestrada para longe! E os policiais idiotas caíram como patinhos!
Miguel tentava entender:
— No Elite? Mas onde, no Elite? Se os bandidos não levaram Magrí de helicóptero, como poderiam tê-la levado para qualquer canto do Elite passando por um monte de tiras americanos? Isso é uma loucura... Ei! Espere aí! Só se for...
— Isso mesmo, Miguel! — açulou Chumbinho. Vamos lá, Kara. Pense! Só há um lugar para onde os bandidos podem ter levado Magrí sem cair nas mãos dos tiras.
— Miguel! Chumbinho! — Peggy estava perdida. — O que vocês estão querendo dizer?
Chumbinho ria, aliviado com a descoberta:
— Estamos querendo dizer que Magrí nuuuunca saiu do vestiário, Peggy! Ela ainda está lá! O vestiário feminino também deve ter um alçapão que leva à outra metade do forro. Os danados a puseram no forro do vestiário das meninas, bem do lado do nosso esconderijo. E eu e você estávamos ali do lado e nem percebemos nada, por causa da parede grossa que separa os vestiários e até os forros!
A solução do caso era surpreendente e a dedução de Chumbinho tinha sido brilhante. A ação era urgente, mas Miguel tinha antes um grave problema a comunicar:
— Crânio, corra para a lanchonete e me traga o Calu para cá. Imediatamente!
De acordo com o que Miguel tinha pedido, Peggy ficou sozinha junto à mureta iluminada do jardim, enquanto os quatro rapazes reuniam-se debaixo da sibipiruna.
— Uma reunião do Comando de Guerra dos Karas, Miguel? — estranhou Calu. — Em plena rua?
— E Magrí? — protestou Crânio. — Vamos ficar discutindo enquanto Magrí está lá, no forro do vestiário feminino, aguardando nossa ação?
— Será um minuto só — Miguel falava seriamente — É importante.
— E o que essa americana vai pensar que estamos fazendo?
— Este é o assunto da reunião do Comando de Guerra, Karas... — começou Miguel, respondendo à curiosidade de todos.
— Como?! — Calu estranhava mais ainda. — Peggy é o assunto? E Magrí?
— Um momento — continuou o líder. — Quero me apresentar a julgamento pelo Comando de Guerra. Eu rompi nossos segredos...
— Como?! — Chumbinho arregalava-se todo.
Miguel falava de olhos baixos, compenetrado:
— É verdade, Karas. Meu coração fraquejou e eu revelei nossos segredos a Peggy...
— Mas... — Calu quase gaguejava — sem consultar a gente?
— Sim, Kara. Sinto muito. Submeto-me agora ao julgamento do Comando de Guerra...
Um silêncio de morte tomou conta de todos. Os segredos dos Karas tinham sido revelados a alguém de fora! O principal juramento do grupo tinha sido quebrado, e logo por Miguel, o grande líder, o mais duro deles!
Trêmulo, Calu foi o primeiro a quebrar o silêncio:
— Bom, Karas, só temos uma coisa a fazer...
Miguel sorriu amarelo:
— Eu sei, Calu. Só há mesmo uma coisa a fazer. Tenho de ser expulso do grupo. Só peço para continuar na ação até libertarmos Magrí.
Chumbinho pulou:
— Você ficou maluco, Kara? O que Calu quer dizer é que a única saída é a Peggy entrar no grupo dos Karas!
Desta vez, o protesto foi de Crânio. E foi um protesto mesmo:
— O quê?!
Calu ergueu a mão e agarrou o ombro de Crânio:
— É isso mesmo, Kara. Essa é a saída. Peggy mostrou-se valente como ela só. Seria mesmo impossível continuarmos em busca de Magrí e mantermos nossos segredos com Peggy do lado, ajudando a gente, lutando junto conosco, como um de nós.
— Um de nós?! — Crânio não aceitava a argumentação. — A única menina que é um de nós é a Magrí!
— Vamos votar!
Calu encerrava a discussão. Nada mais podia ser debatido quando uma votação era proposta.
Seriam apenas três votos, pois Miguel era o réu.
— Quem aceitar que Miguel seja perdoado e Peggy se torne um Kara, diga "sim".
Chumbinho votou na mesma hora: Sim, Kara! Sim ao quadrado!
— Eu também voto "sim" — secundou Calu. — Só falta você, Crânio. A decisão tem de ser unânime. Se você votar "não", temos de...
Crânio ergueu os olhos, que estavam voltados para o cimento da calçada. Havia lágrimas neles:
— É claro que eu voto "sim", Karas.
A emoção tomou conta de todos. Nenhum deles jamais seria capaz de repelir Miguel, mesmo depois de um erro tão grave.
— Todo mundo erra, não é? — continuou Crânio, contendo a emoção. — Mesmo um Kara. Mesmo o melhor deles... Você ainda é o chefe, Miguel. Estamos à espera do seu comando.
Olhos nos olhos, Miguel e Crânio tremiam. Mas o abraço tinha de ser adiado. A ação tinha prioridade.
— Oba! — comemorou Chumbinho. — Unanimidade! Peggy é uma de nós! Agora temos de furar o dedo dela e ela vai ter de escrever o juramento com sangue e...
— São quase onze horas, Karas — decidia Miguel olhando o relógio. — Falta pouco mais de sessenta minutos para a hora "H", de acordo com a mensagem dos seqüestradores que Chumbinho copiou junto com a pista de Magrí. Temos de agir, rápido!
Tinha sido difícil convencer Chumbinho de que não havia tempo para que Peggy assinasse o juramento com o próprio sangue. Mas o que Miguel poderia dizer? Que, naquela ocasião em que o garoto tinha sido aceito no grupo, a história de dedos furados e juramentos com sangue tinha sido apenas uma brincadeira?
Peggy parecia disposta a substituir Magrí à altura. Falava com garra, como se por toda a vida não tivesse feito outra coisa senão arrancar meninas seqüestradas das garras de bandidos violentos:
— Agora eu sou um de vocês, Karas! Vamos salvar Magrí. É preciso que a polícia seja informada do local onde ela está e...
Crânio interrompeu:
— E o que acontecerá quando a polícia chegar lá e encontrar Magrí? E você, Peggy? Na hora, vai aparecer dizendo que ficou escondida com um bando de lunáticos?
Miguel tomou as rédeas:
— Não há outra alternativa, Karas. Temos de trocar Magrí por Peggy!
— Como?
— É isso mesmo. Quando a polícia entrar lá, tem de encontrar Peggy e não Magrí. Afinal de contas, quem a Polícia espera libertar? Magrí ou Peggy?
— Isso não faz sentido! — protestou Calu. — Magrí sacrificou-se para impedir que Peggy caísse nas mãos dos bandidos, Chumbinho arriscou a pele para fugir com Peggy e agora você quer desfazer tudo, devolvendo a menina para eles? Você vai ajudar os seqüestradores, é?
— Nada disso! Temos de trocá-las, mas só pouco antes de a polícia estourar o cativeiro, para que Peggy não corra nenhum risco!
— É isso mesmo, Karas! — apoiou corajosamente a nova integrante do grupo. — E se eu tiver de correr riscos? E daí? Magrí não está arriscando a vida por mim?
Os outros entreolharam-se. Miguel e Peggy tinham razão. Mas, como realizar aquilo?
Chumbinho, o pequeno-grande herói da noite, parecia não se cansar. Propôs então uma nova ação, mais maluca do que a que ele havia realizado ao fugir carregando nos ombros a filha pelada do Presidente dos Estados Unidos:
— Vamos pelos telhados de novo, Karas! A gente tem de dar um jeito de enfiar Peggy por entre as telhas e tirar Magrí de lá da mesma forma!
— E você acha que os guardas vão ficar dormindo enquanto a gente faz tudo isso? — gozou Calu. — Isso é loucura, Chumbinho!
— Loucura? Loucura é deixar Magrí lá, para morrer nas mãos desses canalhas!
Miguel decidiu:
— Nem sei como a gente vai fazer essa troca, mas precisamos tentar. Temos de estar perto do local do cativeiro de Magrí quando chegar a meia-noite. No mínimo, a gente pode acalmar a Magrí.
— Acalmá-la? — estranhou Peggy. — Como?
— Na hora você vai ver. Agora não temos tempo de explicar.
— O quê?! — protestou Peggy. — Que machismo é esse? Agora eu sou um Kara. Exijo que me expliquem tudo direitinho!
Apesar da excitação daquele momento, Miguel sorriu:
— Está bem. Calu, explique o Código-Coruja para Peggy.
O jovem ator não precisou de mais de um minuto para transformar a nova companheira em uma perfeita coruja-espiã e logo Miguel retomava o planejamento:
— Precisamos decidir como a polícia vai ser avisada.
— O melhor é falar com meu tio Sherm — propôs Peggy. — Ele é o guarda-costas do papai. Um amigo maravilhoso, que me carrega no colo desde que eu era um bebê.
— E a CIA?
— Olhem, eu não vou com a cara daquele diretor da CIA, o tal Hooper — informou Peggy. — É um sujeito dissimulado, que já serviu a uma porção de governos racistas. Não sei, não...
Mais uma vez, Miguel encerrava a questão:
— Não. Acho que nenhum policial estrangeiro vai confiar em nós. Vão pensar que somos um bando de adolescentes que quer aparecer na televisão e inventa histórias sem pé nem cabeça. É o Andrade que tem de fazer o serviço!
Crânio não concordava:
— Não vai dar certo, Miguel. Magrí deve estar sendo bem guardada. Se a polícia invadir o forro do vestiário feminino, a primeira coisa que eles vão fazer vai ser usar a vida dela como escudo para tentar escapar.
— É mesmo! — lamentou Calu. — Bandidos desse tipo ficam sempre em alerta quando estão na guarda de gente seqüestrada, com medo de que apareça a polícia para estourar o cativeiro. Vivem com os instintos aguçados!
— Então temos de entorpecer os instintos deles, para ajudar o Andrade! — propôs Chumbinho. — E se a gente desse um fogo nos danados?
— Maluquice, Chumbinho! — repeliu Crânio.
— Boa, Chumbinho! — cumprimentou Calu. — Esperem aí que eu vou buscar uma coisa!
Caído na calçada, mergulhado em seus sonhos alcoólicos, lá estava o pobre bêbado, o amigo do Alfredo.
Calu abaixou-se e, com cuidado, tirou-lhe a garrafa cheia de cachaça de entre seus braços. Separou uma nota e enfiou-a no bolso do paletó do homem:
"Obrigado, amigo... ", pensava o rapaz. "Quando você despertar, vai encontrar esse dinheiro para comprar outra garrafa para o Alfredo. Ou um pouco de antiácido para enfrentar a ressaca de amanhã... "
Quando o ator dos Karas voltou com a garrafa de cachaça, os cinco discutiram rapidamente o plano e Miguel concluiu:
— Subimos eu, Crânio, Chumbinho e Peggy. Calu, você só vai depois. Preciso de você para outra coisa. Ouça o que eu quero que você faça...
Calu ouviu o que tinha de fazer e voltou aos portões. Muito sério, Miguel pôs a mão no ombro de Chumbinho e olhou firme em seus olhos:
— Vá na frente, Kara. Daqui em diante, as decisões serão suas. Você agora está no comando.
Chumbinho arrepiou-se de orgulho e respondeu:
— Deixa comigo, Kara!
Miguel, Crânio, Chumbinho e Peggy arrastavam-se silenciosamente pelos telhados do Colégio Elite em direção ao vestiário. Já tinham jogado no lixo as cabeleiras, óculos, bonés e demais adereços dos disfarces. E desta vez ninguém tinha ficado na rua para dar cobertura na volta porque, se eles não conseguissem salvar a vida de Magrí, não haveria volta para nenhum deles.
Separados, aproximaram-se do telhado do vestiário. Quando Miguel achou que já estavam a uma distância razoável, ele mesmo iniciou o combinado:
— Uh-uh-rhu!
— Rhu-uh-uh! — continuou Crânio, a uns vinte metros.
— Uh-uh-rhu-uh-uh! — rematou Chumbinho, um pouco mais perto do cativeiro da amiga.
Estendida de bruços sobre o telhado, a filha do presidente americano ajudou, completando a quadrifonia:
— Rhu-rhu-rhu!
Amordaçada, nua, com a pele quase dormente de tanto frio, com os pulsos amarrados atrás das costas, com o corpo miseravelmente doído, Magrí estava jogada dentro da barraquinha, já sem alimentar qualquer esperança de salvação.
— What is it? — perguntava uma das vozes de seus guardas. — O que é isso? Corujas?
— É claro que são corujas, seu idiota! Nunca ouviu falar que corujas piam à noite nos telhados?
A poucos passos deles, Magrí chorava de alegria: seus queridos Karas tinham entendido a mensagem!
É MEIA NOITE. VAMOS COMEÇAR...
Peggy acompanhava cada movimento de Chumbinho, junto dele, como se fosse sua sombra.
O menino colava o ouvido sobre as telhas. Lá embaixo, ouviam-se vozes masculinas abafadas, falando em inglês. Duas vozes diferentes. Eram dois os cães-de-guarda de Magrí.
Como tinha sido planejado, a coruja-Crânio piou longamente a uns vinte metros de distância dali. Só sendo um Kara para saber o que diziam os pios:
— M-a-g-r-í-e-s-t-a-m-o-s-s-o-b-r-e-v-o-c-ê-D-ê-s-i-n-a-l-d-e-v-i-d-a.
Imediatamente, Chumbinho ouviu algo mais, junto com as vozes. Era um som abafado, como se alguém estivesse tossindo com a boca fechada.
— A idiota da menina está resfriada! — riu-se um dos bandidos.
— Mas ela pode se engasgar, tossindo com aquela mordaça!
— Ora, deixa pra lá! Daqui a pouco, se o papaizinho dela não fizer o que o captain quer, minha faca vai curar o engasgo dela! Ah, ah!
No alto, Chumbinho aliviou-se. Era mesmo Magrí quem estava lá. Tinham sido três tossidinhas curtas, seguidas de mais duas também curtas e encerradas por duas mais longas: um "S-I-M" em código Morse. Sim! Sua amiga estava consciente! Fez um sinal de positivo para Peggy. O sorriso da americaninha iluminou-se.
Os dois engatinharam para um canto do telhado, no extremo oposto de onde tinham ouvido a tosse. Cuidadosamente, Chumbinho afastou uma telha. O forro estava iluminado por uma lâmpada vermelha, para que a luz não fosse vista de fora. No canto oposto aos dois Karas, dois homens estavam sentados em cadeiras de armar. Entre aquele ponto do telhado e os bandidos, uma pequena barraca de camping estava armada.
"Magrí deve estar dentro dessa barraca... ", concluiu o garoto.
Logo abaixo de Chumbinho e Peggy, havia mais duas cadeiras de armar. Em uma delas, os seqüestradores haviam pendurado seus coldres com pistolas automáticas.
A garrafa de cachaça do Alfredo fora envolvida por um laço de barbante. Miguel tinha encontrado um clipe no bolso que servira para fazer um gancho, agora amarrado a outro barbante. Com uma cautela imensa, Chumbinho baixou a cachaça do Alfredo pela fresta das telhas, bem devagar. A garrafa desceu suavemente e pousou entre as duas cadeiras. O garoto recolheu o barbante com o gancho, colocou a telha de volta e, com os nós dos dedos, deu-lhe uma pequena batida.
— O que foi isso? — surpreendeu-se um dos bandidos.
— Um maldito rato! — supôs o outro. — Deve haver ratos nessa porcaria de colégio brasileiro!
Do alto, Chumbinho ouvia um dos bandidos movimentar-se pelo forro.
— Ei! O que é isso? Como é que a gente não viu essa garrafa antes? Hum... tem cheiro da tal cachaça... E a garrafa está cheia!
A voz do outro agitava-se:
— Milagre! O que está esperando? Traga pra cá! Vamos poder esquentar os ossos antes do trabalho final!
Chumbinho pegou a mão de Peggy e imobilizou-se. Tinham mais de uma hora para esperar que a cachaça do Alfredo fizesse efeito.
"Faltam dez para as onze...", pensava o menino. "Espero que esses bandidos sejam rápidos na bebida..."
A distância, as outras duas "corujas" também se aquietaram. Desta vez, a estratégia era a paciência.
Grudado no corpinho de Peggy, abraçando seu próprio moletom, Chumbinho desejava que o tempo parasse.
Assim, deitados, juntinhos, Peggy nem parecia mais alta do que ele...
O celular do detetive Andrade vibrou dentro do bolso.
— Alô... Quem? Senhor Presidente?! A que devo a honra de...
Do outro lado da linha, a conhecidíssima voz de Rodrigues Lobo, o presidente da República, ordenava:
— Não há tempo para gentilezas, detetive! As investigações do nosso Serviço Secreto descobriram uma pista valiosa. Quero que você e seus homens invadam o colégio. Faça a confusão que for preciso na entrada, mas depois dê um jeito de agir em silêncio total. Vá direto para o vestiário feminino e arranje uma escada para subir pelo alçapão do teto até o forro. Lá talvez esteja a solução para este caso!
— Mas, Senhor Presidente, os homens da CIA...
— Não quero saber de CIA, detetive! Este país é nosso! Faça o que tem de ser feito. Não me importo se sua ação vier a criar um incidente diplomático. É a vida da menina Peggy que está em jogo! Não discuta as minhas ordens. Vá! Imediatamente!
Calu desligou o telefone público da lanchonete da italiana, mais aliviado. Sua parte tinha sido fácil. Para um ator como ele, imitar a voz do presidente era a coisa mais simples do mundo.
"Dez para a meia-noite. Agora é com o Andrade. Ele precisa entrar no vestiário na hora certa, para que Peggy não corra nenhum risco nas mãos dos bandidos. Senão, de que terá adiantado tudo o que Chumbinho fez? A esta hora, a cachaça do Alfredo já deve ter causado o efeito que a gente precisa. Minha parte está resolvida. Para o telhado!"
Na lanchonete, ninguém prestou atenção ao rapaz que corria para os muros do Colégio Elite balançando uma esquisita cabeleira ao vento.
Wilbur MacDermott pediu que o deixassem a sós no cenário do discurso, apenas com os técnicos da televisão. Sentou-se atrás da mesa, pronto para iniciar o tão esperado pronunciamento. Havia recusado os recursos do maquiador e agora estava pálido como se não mais houvesse sangue em suas artérias.
Uma lágrima teimava em brotar-lhe dos olhos e o americano tentou contê-la.
— Pronto, senhores — disse aos operadores das câmeras. — É meia-noite. Vamos começar...
As luzes acenderam-se e as câmeras foram ligadas, transmitindo para os satélites a imagem do presidente americano. E essa imagem era a de um homem tenso, com os pensamentos divididos:
"Tenho de ir em frente... Sei que minhas palavras podem levar minha própria filha à morte... Mas eu não tenho escolha. Peggy, meu amor! Me perdoe... Eu te amo muito, minha filha... "
Tudo não tinha sido mais do que uma breve pausa. Seus olhos ergueram-se para o olho da câmera e ele começou:
— Senhoras e senhores, meus irmãos de todo o mundo. Este é o momento mais difícil de minha vida. Como se sabe, os seqüestradores de minha filha exigem que eu não vá avante com as reformas que pretendo propor nesta noite. Seqüestraram minha filha para que eu me veja obrigado a apoiar a sinistra proposta para a 25ª Emenda à Constituição do meu país...
Respirou fundo e retomou:
— Infelizmente, esses covardes não me deixam escolha. Não posso trocar a vida da minha filha pela infelicidade do mundo. Tenho de prosseguir, custe o que custar...
A lágrima teimosa conseguiu escorrer por seu rosto, brilhando sob as luzes fortes da televisão e sendo transmitida para milhões de receptores espalhados pelo mundo.
Por todo o globo, sobrava oxigênio à vontade. A respiração da humanidade estava suspensa, à espera da continuação do discurso.
— Vamos! — ordenava o detetive Andrade, afobado, para seus homens da polícia civil. — Vamos arrebentar os portões, se for preciso. São ordens do presidente! Do próprio! À carga, homens!
Estendido de comprido sobre os telhados, Miguel acenou para Crânio e olhou o mostrador iluminado do relógio. Faltavam cinco minutos para a meia-noite. A hora combinada para o que Chumbinho tinha de fazer. Por trás do líder dos Karas, já sem a cabeleira horrorosa, Calu surgia sobre os telhados, fazendo o sinal de positivo. Andrade já tinha sido devidamente enrolado.
Os três Karas, agora somente espectadores, torciam em pensamento, assistindo de longe às duas sombras preparadas para os lances mais arriscados de suas vidas:
"Boa sorte, Chumbinho! Boa sorte, Peggy!"
A americana agia como tinha sido planejado por Miguel. Despiu-se completamente e dobrou o moletom de Chumbinho. Nua como tinha nascido, suportava o frio como uma heroína.
De longe, dos portões da área esportiva, vinha uma gritaria confusa. Andrade e seus policiais tentavam romper o bloqueio dos homens de preto da CIA.
Aquele era o momento mais crítico de toda a ação.
Chumbinho afastava a telha novamente e espiava para dentro. Nesse instante, Peggy notou que ele gelava, mas não de frio: de puro pavor. Olhava-a com olhos de pânico. Com a mão fechada e o polegar em direção à boca, tentava imitar uma pessoa bebendo. Mas, sacudindo o indicador da outra mão, o menino lhe dizia que os bandidos não tinham bebido a cachaça do Alfredo!
Peggy entendeu tudo e sobressaltou-se. Debaixo das telhas, a garota ouvia uma discussão:
— Puxa, deixa eu tomar ao menos um gole... Estou morrendo de frio!
A outra voz sussurrava, mas o que dizia era definitivo. E apavorante para os planos dos garotos:
— Não! Somos profissionais. Olha o que eu vou fazer com essa maldita bebida brasileira!
Do telhado, Chumbinho e Peggy sentiram o cheiro de álcool através das telhas. O plano da cachaça do Alfredo tinha sido derramado sobre o concreto do forro...
E agora? O que eles iriam fazer? Os bandidos atirariam em qualquer pessoa que ousasse enfiar a cabeça para dentro do forro! Seria um massacre! Magrí seria atingida por alguma bala e...
Chumbinho espalmava a mão na direção de Peggy, pedindo para que ela esperasse. Mexeu nas telhas que havia levantado, lidando com o barbante. Peggy não conseguia ver o que o menino estava fazendo...
Na ante-sala dos aposentos presidenciais, Rodrigues Lobo, J. Edgar Hooper, Sherman Blake e o Doutor Pacheco ouviam, tensos, com os olhos grudados em um monitor que transmitia a imagem do presidente americano.
O celular de Hooper vibrou e o diretor da CIA, contrariado pela interrupção, abriu o aparelho.
— Mister Hooper! — dizia afobada a voz do agente que ficara no comando dos homens de preto dentro do Colégio Elite. — Um detetive brasileiro, gordo, parece que enlouqueceu! Está forçando a entrada pelos portões da área de esportes. Diz que são ordens pessoais do próprio presidente do Brasil. O que faremos? Eu sou obrigado a recuar! Não posso começar uma guerra contra os policiais deste país!
— Que miséria! Não atire, não faça nada. Estou indo para aí! — encerrou Hooper.
O presidente estranhou a conversa e perguntou:
— Não atirar? Senhor Hooper, o que está acontecendo?
— Ahn... desculpe, Mister President Lobo... Um detetive gordo... hum... mister Android... está abrindo caminho à força para entrar no colégio de onde miss Peggy foi seqüestrada. Ele diz que são ordens suas...
— Minhas ordens?! Que história é essa?
Pacheco acudiu:
— Conheço muito bem o detetive Andrade, Senhor Presidente, e sei que ele jamais faria uma coisa dessas se não tivesse um palpite infalível!
— Você acha que ele tem uma pista? — perguntou Rodrigues Lobo. — Mas por que não ligou antes para cá?
— Vamos para o colégio, Pacheco. Imediatamente!
O delegado da Polícia Federal não acreditava no que estava ouvindo:
— Oh, Senhor Presidente! Não é seguro. Deixe que eu vá. O senhor não deve ir. Sua segurança...
— Vamos juntos, Pacheco! Quero saber por que esse detetive ousou meter-se nisso usando ordens que eu nunca dei! E quero saber que palpite infalível é esse. Depressa!
Agarrou o braço do policial de óculos escuros e os dois saíram com o diretor da CIA.
Quando Sherman Blake viu Hooper saindo apressado, imediatamente ligou para o andar térreo, pedindo um carro com o melhor motorista da embaixada que estivesse à disposição.
"Não estou gostando nem um pouco disso! O que Hooper vai fazer lá? Tenho de agir depressa!"
Com Peggy a seu lado, Chumbinho havia escolhido as telhas um pouco atrás de onde estava a pequena barraca, num ponto em que o telhado era mais baixo. Afastou duas e olhou para dentro.
"O ângulo mais agudo do triângulo-retângulo...", lembrou-se ele das aulas de geometria.
Estavam na parte de trás da barraca. Era naquele instante ou nunca mais!
O automóvel presidencial era precedido por batedores de motocicleta que abriam caminho e furavam os sinais vermelhos, a toda velocidade.
Rodrigues Lobo incitava o motorista:
— Mais depressa! Mais depressa!
A seu lado, o Doutor Pacheco ligava o rádio e as palavras de Wilbur MacDermott acompanhavam a louca corrida:
— ... A iniciativa privada e o lucro, sem dúvida, são bases sólidas da democracia. Mas a justiça vem antes dos interesses privados e do lucro, pois sem justiça a democracia não pode sobreviver. Por isso, temos de assumir a responsabilidade que nos cabe!...
Chumbinho estava dentro do forro e Peggy desceu em seguida.
Agachado atrás da barraca, o menor dos Karas arranhou a lona com as unhas, em código:
— Roc-roc-roc-roooc... roc-roooc... roooc-roooc...
Do outro lado, arranhões semelhantes lhe disseram que Magrí entendera e estava pronta:
— Roc... roc-roc-roc... roooc... roooc-roooc-roooc...roc-roc-roooc...
Chumbinho sacou o canivete de Calu do bolso da calça xadrez e, com o cuidado de um cirurgião, cortou o pano.
Enfiou a cabeça para dentro.
Mal iluminada pelas luzes vermelhas do ambiente, lá estava sua querida Magrí, nua, amordaçada e com as mãos amarradas atrás das costas!
"Magrí! Afinal!"
Peggy entrava na barraca. Por um instante, os olhos dos três se encontraram. Exausta, machucada, Magrí sorria por trás da mordaça.
A nova integrante do grupo dos Karas retirou a fita adesiva dos lábios de Magrí e apertou-a contra sua própria boca.
Chumbinho desatava o nó da corda que prendia sua amiga e em seguida amarrava as mãos de Peggy.
"Pelos meus cálculos, Andrade e seus homens já devem estar entrando no vestiário. Tomara que ele tenha trazido uma escada!"
O momento final estava próximo.
"Depressa! Vamos embora!", sinalizou Chumbinho.
Magrí sinalizou de volta para o amigo.
"Esperar?!", estranhou o menino. "Esperar o quê? Não há tempo!"
Sem dar atenção à pressa do amigo, Magrí começou a gatinhar pelo lado da barraca, na direção em que estavam os bandidos...
Dois outros carros seguiam velozmente os batedores do automóvel da Presidência do Brasil.
No banco traseiro, o ocupante ouvia a transmissão do discurso.
"Ele não vai fazer o que eu mandei... Não vai! Desgraçado! A América está perdida!"
Pegou o celular e começou a teclar.
O som do rádio invadia o carro com a voz inflamada do presidente americano:
— ... É chegada a hora de as nações ricas do mundo descobrirem que seu poder não terá o menor sentido enquanto houver outras nações à margem do progresso, outros povos mergulhados na fome, na ignorância e na miséria!...
Magrí chegava à frente da barraca e espiava. Com um arranco, avançou mais um pouco e logo estava de volta, sem que os bandidos tivessem percebido seus movimentos. Em suas mãos, trazia um pequeno e ultramoderno aparelho de som a pilha, uma miniatura, dessas usadas por espiões. Trazia também um telefone celular. Seus olhos diziam:
"Tudo pronto. Vamos!"
Por um último momento, os olhares dos três adolescentes se cruzaram de novo.
O olhar de Peggy, agora novamente nua, mal amarrada e amordaçada, declarava:
"Obrigada, Magrí. Obrigada, Chumbinho. Adeus..."
Os olhos de Chumbinho, ainda carregados pela tensão que o dominara durante as últimas horas, respondiam, começando a toldar-se de lágrimas:
"Cuide-se, querida. Foi um prazer salvar sua vida".
O alçapão foi movido nesse instante.
— Ei! — rugiu o bandido. — Não é o captain! Fogo na menina! Idiota! Meta bala na garota! Eu pego quem entrar!
Os bandidos corriam para o canto onde estavam as armas e engatilhavam as pistolas automáticas...
MATEM A GAROTA!
No chão, junto à parede, bem à frente da barraca, um alçapão era aberto e um facho de luz branca era projetado para cima, impondo-se ao ambiente vermelho-inferno que ali havia imperado.
Do quadrado de luz, despontava uma careca.
Um dos bandidos enfiava o braço armado para dentro da barraca e o outro mirava o alvo fácil que era aquela careca iluminada de branco por baixo e de vermelho por cima. Apertaram os gatilhos ao mesmo tempo...
Plec!
Plec!
— O que é isso? — gritou um deles.
Subindo mais um pouco, a careca agora era o meio corpo de um homem gordo, com um braço esticado que empunhava uma pistola que não estava descarregada e nem faria plec.
— Parem aí! Nem mais um passo! Nem pensem em respirar, seus canalhas, senão eu atiro!
Mesmo sem entender português, os bandidos estacaram, intimidados pelo tom agressivo da voz.
— Parados! Larguem as armas!
Como se um hipopótamo conseguisse subir em árvore, com uma agilidade e uma força de que nem ele mesmo sabia ser capaz, o detetive Andrade invadia o forro da metade feminina do vestiário do Colégio Elite. E, enquanto algemava os bandidos, nem prestou atenção ao ruído das telhas que deslizavam de volta para seus lugares.
— Que barraca é essa?
Com um safanão, o detetive abriu o zíper da barraca.
E perdeu completamente a respiração: lá dentro, nua, amarrada e amordaçada, estava... a filha do presidente dos Estados Unidos!
— E ela! Nós achamos a meniiiiinaaaa!!
Se Andrade não estivesse tão alterado, tão feliz com a descoberta daquela adolescente, teria notado que a libertada estava com a expressão mais marota do mundo.
Wilbur MacDermott já não conseguia impedir as lágrimas. Mas continuava o discurso, como o pai de um condenado que vê o filho caminhando para o patíbulo e ainda mantém a certeza de que sua causa merece o sacrifício.
— Nosso sonho de paz...
Nesse instante, no monitor que havia atrás das câmeras, sua própria imagem foi substituída por uma menina que sorria confiante, encolhida dentro de um paletó larguíssimo e sendo carregada no colo por um homem gordo e careca, que parecia ainda mais feliz do que ela.
E a menina dirigia-se a ele, a seu pai, a seu presidente, quase gritando:
— Go ahead, daddy! Vá em frente, papai! Diga tudo o que tem a dizer. Eu estou bem. Nunca estive melhor! Manda braaaasaaa!
O presidente americano retornou o olhar cheio de alívio para as lentes das câmeras. Reprimiu o grito que gostaria de dar e retomou o discurso, inflamadamente, unindo sua força à força daquela filha maravilhosa que se preocupava com ele, depois de ter vivido um pesadelo de verdade:
— Meus irmãos do mundo inteiro! Nosso sonho de paz nunca será possível enquanto um país poderoso como os Estados Unidos ainda insistirem em manter um arsenal nuclear, capaz de arrasar o planeta milhares de vezes, uma depois da outra, e enquanto conservarmos um estoque de armas químicas e biológicas capazes de impor epidemias mortais às populações inocentes de outros países. Por isso, precisamos ter a coragem de, unilateralmente, destruir por completo essas armas, antes que elas nos destruam! Proponho um desmantelamento total das armas nucleares, químicas e biológicas do mundo inteiro, a começar pelas nossas, as armas dos Estados Unidos. Nesse momento, meus assessores estão distribuindo à imprensa um mapa do meu país, com a localização de todos os arsenais, laboratórios e fábricas de artefatos nucleares, químicos e biológicos. Convido a Organização das Nações Unidas para que envie comissões de fiscalização para testemunhar a destruição das armas do Juízo Final. O Apocalipse, nunca!!
Magrí ainda não tivera tempo de vestir o moletom de Chumbinho, mas já estava em ação. Nos telhados, reunidos em torno da caixa preta do alto-falante, Miguel, Crânio, Calu e Chumbinho estavam atentos às instruções que a menina transmitia com a linguagem de sinais dos Karas.
Miguel entendeu o plano. Era mais uma jogada maluca como ela só, mas poderia dar certo, se eles fossem rápidos. Calu logo entendeu o que tinha de fazer e pegou o telefone celular, que foi ligado por Crânio ao aparelho de som.
Não demorou quase nada e o celular vibrou.
Imitando sotaque americano, o ator dos Karas atendeu:
— Hello...
Do outro lado, uma voz desconhecida ordenava:
— Kill the girl! Mate a garota!
— What?— perguntou Calu. — O quê?
— I said you have to kill Peggy MacDermott. Kill her! Disse que você tem de matar Peggy MacDermott! Mate-a! Já!
Com a ajuda do canivete, Crânio fazia uma ligação improvisada do aparelho de som com o alto-falante. Sem uma chave de fenda e um aparelho de solda, aquilo era quase impossível. E, para o geninho dos Karas, o impossível levava tempo...
No Colégio Elite, uma barulheira incrível assinalava a libertação de Peggy MacDermott.
O pátio à frente dos vestiários estava lotado por inúmeros homens de preto e policiais civis brasileiros, falando aos berros e ao mesmo tempo.
Todo mundo cercava Peggy, agora coberta até os pés pelo enorme paletó de Andrade, que procurava protegê-la, afastando quem pretendesse tocá-la:
— Pra trás! A menina precisa respirar!
-— Parabéns, detetive! Como descobriu?
— Você está bem, garota? Não fizeram nada com você?
— Quem são esses bandidos?
— Recusam-se a falar! São dois falsos agentes da CIA! Esses malditos parecem preferir a morte a abrir a boca! Pelo jeito, estão com mais medo do chefe deles do que da cadeia!
— Mas que danado, esse detetive Andrade! Resolveu um caso que nem mesmo a polícia americana conseguiu chegar perto!
— Um banho! A polícia brasileira deu um banho nos americanos!
Precedidos por soldados, quatro homens surgiam para encabeçar a confusão: três policiais de alta patente, um de óculos escuros e dois de terno preto, logo atrás do presidente da República, o próprio Augusto Rodrigues Lobo.
— Peggy! Você está salva!
Eufórico, o guarda-costas Sherman Blake atirava-se na direção de Peggy, querendo abraçá-la. Foi detido pelo braço de Andrade:
— Deixe a menina em paz! Ela está muito cansada e nervosa!
Peggy, que não demonstrava estar nem um bocadinho nervosa, tocou-lhe o rosto, delicadamente:
— Pode deixar, detetive Andrade. Este é Sherman Blake. É praticamente da nossa família.
— Hein? — perguntou Andrade, surpreendido ao distinguir seu nome muito bem pronunciado no meio de um monte de palavras naquela língua que ele não entendia. Na confusão, nem achou estranho o fato de aquela menina reconhecê-lo e ainda por cima saber o seu nome direitinho.
Nessa altura, Blake já envolvia o paletó de Andrade, com sua querida Peggy dentro, num forte abraço, levantando-a do chão.
— Peggy! Peggy! Que bom!
Hooper aproximava-se:
— Você está bem, miss Peggy?
Blake girou o corpo, tirando a garota do alcance do diretor da CIA:
— Tire as mãos sujas de cima dela, Hooper!
Sem paletó, com a camisa suada, o detetive Andrade avançou, espalmando a mão no peito de Hooper:
— Não sei o que ele disse, mas é isso mesmo, seu Hooper! Quero ter uma conversinha com o senhor!
Pacheco adiantou-se, segurando o braço de Andrade:
— O que é isso? Você ficou louco, Andrade? Isso é jeito de falar com o diretor da CIA?
Rodrigues Lobo entrou no meio, exigindo explicações:
— O que está acontecendo aqui, detetive?
— O que está acontecendo é que eu quero saber por que esse Hooper ficou o dia inteiro impedindo meus homens de entrar na escola! Eu acho que ele estava tentando impedir que eu descobrisse a menina, presa o tempo todo no forro do vestiário!
Um agente já tinha se juntado ao grupo, para servir como intérprete. Quando Hooper ouviu as acusações do detetive de quem ele nunca conseguira pronunciar o nome, ficou fora de si:
— O quê?! O senhor está me acusando de ter participado desse seqüestro? A mim, mister Android? O diretor da CIA?
— Por enquanto estou acusando de pouca coisa, seu Hooper — respondeu Andrade depois de ouvir a tradução. — Mas, como fui eu quem descobriu o cativeiro da filha do seu presidente, tenho o direito de continuar com essa investigação. E ela está apontando para o seu lado!
Sherman Blake, de cenho franzido, acompanhando o raciocínio do detetive brasileiro, continuou:
— Espere aí, Hooper. Pelo jeito, o helicóptero só veio para cá para descarregar esses dois seqüestradores, enquanto nós ficamos pensando que a menina Peggy tinha sido levada nele para longe daqui. Mas agora eu acho que o detetive brasileiro tem razão: por que você não procurou por pistas dentro do colégio e ainda impediu a policia brasileira de procurar?
Hooper não estava admitindo as acusações:
— Você ficou louco, Blake? Você acha que eu seria capaz de trair a confiança do meu presidente? Você acha que enquanto eu tivesse vida eu permitiria que alguém fizesse algum mal a miss Peggy?
— Confesse logo, Hooper! — exigia Blake. — Você sempre esteve do lado dos políticos mais reacionários do nosso país! Sempre ficou do lado da indústria de armas, não é?
Hooper defendia-se com raiva:
— Mas o que têm as minhas posições políticas com isso, Blake? Eu sabia que não adiantava ficar fazendo investigações aqui dentro enquanto a menina Peggy estava sendo levada pelo ar para longe! Deixei meus homens controlando o local do crime e fui para junto do presidente, acompanhar a perseguição do helicóptero!
Blake agarrou-o pela gola do paletó:
— Confesse, desgraçado! Foi você quem seqüestrou Peggy!
Rodrigues Lobo interveio, com autoridade:
— Chega! Aqui é o meu país e crimes cometidos aqui, aqui serão julgados. Detetive! Prenda o senhor Hooper!
Andrade não titubeou:
— Seu Hooper! O senhor está preso como suspeito do seqüestro da senhorita Peggy MacDermott. Está preso como suspeito do assassinato de dois agentes americanos. E, se eu pudesse, eu iria prendê-lo também por não saber pronunciar o meu nome direito!
— Me larguem! Let go off me!
Nesse momento, o ruído ensurdecedor das hélices de um helicóptero superou todas as vozes...
— O que é isso? O helicóptero voltou?
Até as paredes vibravam com o som altíssimo do motor do helicóptero, mas logo o barulho foi diminuindo e, antes que desaparecesse por completo, o grupo reunido no pátio em frente aos vestiários ouviu, boquiaberto:
— Hello...
— Kill the girl!
— What?
— I said you have to kill Peggy MacDermott. Kill her! Now!
O Presidente Rodrigues Lobo, o Doutor Pacheco e J. Edgar Hooper reconheceram a voz na mesma hora. Mas foi Peggy que deu um salto para a frente, fuzilando Sherman Blake com o olhar enfurecido:
— Você?! Você, tio Sherm?
Sherman Blake não deu tempo para que ninguém se recuperasse da surpresa. Estendeu o braço e agarrou Peggy, fazendo cair o larguíssimo paletó do detetive Andrade. Em um décimo de segundo, a faca de guerra dos fuzileiros navais americanos estava encostada na garganta de Peggy!
— Quietos! Senão eu degolo a menina!
Mais uma vez nua, num segundo, passaram pela cabeça de Peggy a coragem e o heroísmo daqueles garotos ao lado de quem ela havia lutado nas últimas horas. Reviveu com a velocidade do estourar de uma lâmpada o momento do juramento que fizera com a mão sobre o coração de Miguel, enquanto ele também punha a mão sobre o coraçãozinho dela. Agora, Peggy era um Kara!
E Sherman Blake mal tinha acabado de pronunciar "menina", quando os dentes de Peggy ferraram-se em sua mão, obrigando-o a largar a faca.
— Ai!
Tlin!
Quem estava mais perto era o presidente brasileiro, para surpresa de todos, sua perna subiu no ar, atingindo em cheio o peito de Blake! Foi um golpe espetacular e o enorme americano estatelou-se no chão!
— Canalha! Eu sou pernambucano! Já ouviu falar em "capoeira", desgraçado?
Uma montanha de homens de ternos de todas as cores, liderados por um gordo em mangas de camisa, empilhava-se em cima do guarda-costas do presidente dos Estados Unidos, imobilizando-o.
Enquanto era carregado por cerca de oito policiais brasileiros, Sherman Blake gritava:
— Perdoe-me, Peggy! Perdoe-me! Mas você precisa compreender. A América está acima de tudo! Está acima da minha própria vida! Está acima até de sua vidinha preciosa, querida, que eu tanto amo! Compreenda que não há sacrifícios que a grandeza da América não justifique! Até mesmo a sua morte, minha querida Peggy, até mesmo a sua morte! Você é a pessoa que eu mais amo no mundo! Eu te amo, Peggy! Eu te amo!
E desapareceu dos olhos emocionados de todos. Abraçada ao detetive Andrade, Peggy MacDermott inundava-se em lágrimas...
No alto dos telhados, cinco sombras se reuniam numa só.
No centro, estava o incrível Chumbinho, que tinha conseguido pescar com o gancho as armas dos bandidos, descarregando-as e entregando os seqüestradores indefesos nas mãos de Andrade!
Ninguém saberia do heroísmo daqueles cinco adolescentes, nem de tudo o que tinham realizado naquela noite. Ou seis, já que Peggy agora era um deles e tinha agido com a coragem de um verdadeiro Kara.
Agarraram-se num só abraço.
Numa mistura de alívio, de carinho, de amizade eterna, os cinco Karas choravam em silêncio.
Nada, coisa alguma nesse mundo seria capaz de separá-los...
Imundos, exaustos, famintos, os cinco Karas foram para suas casas. Magrí vestindo o moletom e os tênis de Chumbinho e Chumbinho descalço, de camiseta e com calças de palhaço enroladas nas pernas.
Tinham combinado que a desculpa para o inexplicável atraso seria uma festa junina, que teria terminado tarde demais.
Mas nada disso adiantou. Em cada uma das casas, foram recebidos com as broncas mais monumentais de suas vidas!
Na de Calu...
— E por que você ao menos não telefonou? Para o chuveiro e pra cama, já!
Na de Crânio...
— O que você está pensando, menino? Quase me mata do coração! Você nunca ouviu falar da violência desta cidade? Já pensou se você fosse envolvido em alguma confusão?
Na de Chumbinho...
— O que houve com você, meu filho? E as suas roupas? Sujou no pau-de-sebo? E onde você arranjou essas calças horrorosas? Uma semana sem videogame, é isso que você merece!
Na de Miguel...
— Onde já se viu uma coisa dessas? Você não tem consideração pelos seus pais? Você pensa que já é grande, é? Pois vai ficar um mês sem mesada!
Na de Magrí...
— Menina! Isso são horas? Ainda vou ter um enfarte por sua causa! Cheguei até a pensar que você tinha sido seqüestrada!
Depois de um banho demorado, a garota estava na cozinha, tomando um copo de leite quente oferecido pela velha Joana, a governanta que tinha sido sua babá no passado.
— Você estava na festa, é, queridinha? — perguntou Joana carinhosamente.
— É
— Então você nem sabe do que aconteceu nessa noite?
— Não, Joana. O que foi?
— A filha do presidente americano foi seqüestrada justo no seu colégio!
Magrí levantou para a governanta os olhos mais inocentes deste mundo:
— Não diga?!
AMIGOS PARA SEMPRE...
Na manhã seguinte, nas primeiras páginas dos jornais do mundo inteiro estava a foto do detetive Andrade carregando nos braços a filha do presidente dos Estados Unidos coberta apenas pelo seu paletó. Do Alasca à Austrália, quem ligasse a televisão só veria locutores comentando a inteligência e a valentia daquele humilde policial brasileiro, que havia superado as mais fabulosas máquinas de investigação do planeta, libertando Peggy MacDermott sem um arranhão e ainda prendendo os responsáveis pelo seqüestro.
Mas o tão festejado herói mal tinha conseguido dormir umas poucas horas naquela noite. Desde a madrugada, repórteres das agências internacionais acotovelavam-se para conseguir espaço entre os jornalistas brasileiros que já haviam cercado a casa do detetive.
De pijama e roupão, Andrade não se fazia de rogado e a todos atendia, repetindo dezenas de vezes o que acontecera naquelas seis horas de tensão:
Sherman Blake chegou na cadeia berrando como se fosse a única pessoa com razão neste mundo. Nosso escrivão fala inglês e deu para ficar sabendo de tudo. O sujeito foi um glorioso fuzileiro naval, um herói mesmo. Liderava grupos de resgate e ficou famoso no uso da faca de guerra. Acabou reformado com a patente de capitão e tornou-se guarda-costas de Wilbur MacDermott quando ele ainda era senador.
— Ouvimos dizer que ele era até um amigo da família, é verdade? — perguntou uma repórter da revista Paris Match.
— É verdade. Foi um amigo dedicado por muitos anos. Era extremamente ligado a Peggy, de quem realmente gostava muito. Mas, ao mesmo tempo, foi se tornando um fanático a favor da corrida armamentista e da força militar dos Estados Unidos. Secretamente, fundou a sinistra organização dos tais Heróis-em-Defesa-de-
não-sei-o-quê, usando como primeiros membros seus antigos comandados.
Andrade interrompeu a explanação por um momento, para fazer uma pose sorridente para os fotógrafos, e continuou:
— Aos poucos, Blake foi percebendo as posições pacifistas e pró-desarmamento do senador. E, quando MacDermott elegeu-se presidente, Blake entrou em pânico, pois descobriu que tudo aquilo em que acreditava piamente estava ameaçado...
— Foi aí que ele idealizou o seqüestro? — perguntou um repórter da United Press.
— Foi. Em seu desespero, Blake planejou essa barbaridade, o seqüestro e a possível morte de uma menina de quem ele gostava realmente. Pobre idiota! Vai ficar um bom tempo em uma de nossas cadeias, mas os verdadeiros responsáveis, os que lucram com a indústria de armas... — Andrade entusiasmava-se com o próprio discurso, como se fosse um político em época de eleição — ... esses vão continuar na sombra, tentando encontrar outro fanático como o Blake para cometer mais alguma loucura que tente deter os desejos de paz e fraternidade entre todos!
— Mas como ele conseguiu organizar o seqüestro? — perguntou um jornalista do Der Spiegel.
— Já chego lá. Blake infiltrou dois de seus homens como agentes da CIA. Eles faziam parte do esquema de segurança do Colégio Elite e esconderam-se no forro do vestiário antes da chegada do presidente ao Brasil. O resto foi fácil. Enquanto as meninas faziam sua exibição de ginástica olímpica nas quadras, esses dois bandidos prepararam o cativeiro lá no forro do vestiário feminino, armaram a barraquinha, depois deixaram sobre a pia do vestiário uma lata de talco com gás narcotizante e voltaram para o forro calmamente, só esperando a hora.
— Mas, e o helicóptero? — perguntou uma repórter da revista Time.
— Ah, ah! — riu-se o gordo detetive, como se fosse um mágico tirando uma carta da manga. — Essa é a parte mais engraçada da história! Todo mundo ficou perdendo tempo para localizar o helicóptero. E aí estava a esperteza do plano: o tal helicóptero nunca existiu!
— Como assim? — insistiu a repórter. — Mas uma porção de gente não ouviu o helicóptero na hora do seqüestro de miss Peggy?
— Ouviram, sim! Mas ninguém viu o helicóptero! O que ouviram não passava de uma gravação, reboando numa noite muito escura. Por isso o safado do Blake insistia em descrever o helicóptero, dizendo que era um aparelho pintado de preto, com as luzes apagadas e nem sei o que mais, só para desviar as investigações de Hooper de dentro do colégio!
E foi assim que Andrade conseguiu encerrar as entrevistas e retomar seu trabalho. Depois de passar na delegacia, tinha de voltar ao Colégio Elite, para supervisionar os últimos detalhes da investigação.
O detetive estacionou seu fusquinha numa esquina próxima ao Elite. Mal equilibrado contra um poste, um homem completamente embriagado fazia um inflamado discurso para quem passasse por ele:
— Todu mundu nesscha schidadi é ladrão! Ladrãããão! Levam a caisschaça du Alfredo inquantu eu isschtava dandu uma cusschilada! Depoisch eu asschei um dinhêru nu bolschu i cum u dinhêru eu bebi uma garrafa di caisschaça interinha, purque si eu asschchei u dinhêru nu bolschu, u dinhêru era meu, tô sschertu o tô erradu? Sssschertuuu! Maisssch agora, comu fica u Alfredo?
Como os jornalistas tinham prejudicado seu café da manhã, a primeira providência do detetive foi dar um pulo na lanchonete da italiana.
— Miguel! Crânio! Calu! Magrí! Chumbinho! Meus meninos!
Como era hora do recreio, lá estavam justamente seus cinco jovens amigos, seus queridos "meninos", como ele sempre chamava.
— Que bom encontrar vocês! Puxa, mas como vocês estão abatidos! O que houve? Não dormiram bem à noite?
Os "meninos" entreolharam-se. Foi Magrí quem respondeu:
— Ehr... São as provas do semestre, sabe, Andrade? A gente tem de rachar de tanto estudar...
Sentaram-se em uma das mesinhas, à frente do farto café da manhã de Andrade, e o detetive propôs-se a narrar tudo de novo para aqueles jovens de quem ele tanto gostava, enquanto passava geléia numa fatia de pão:
— Meninos, que ótimo que vocês estavam estudando como bons alunos! A noite passada aqui, na sua escola, foi uma loucura! Uma loucura!
— Atchim! — fez Chumbinho.
Logo seguido por Calu...
— Atchim!
E por Magrí.
— Atchim!
— O que foi? Vocês pegaram um resfriado? O que houve, hein? Andaram apanhando sereno? Vocês precisam se cuidar, meninos... E o que é isso no seu dedo, Chumbinho?
— Hum? Esse curativo? Não é nada... Só um cortezinho...
Andrade terminou a xícara de café com leite, esfregou os cabelos do garoto com carinho e fez um ar de mistério:
— Mas, como eu estava contando, meninos, ouçam só...
E, pela enésima vez, o detetive repetiu orgulhosamente os lances do seqüestro da filha do presidente dos Estados Unidos. Os seus "meninos" mostravam-se admirados, e não perdiam um intervalo sem que algum deles comentasse:
— Puxa!
— Mas que barbaridade!
— Ainda bem que a gente estava fora dessa!
— E o que você fez depois, hein?
— Coitada da menina!
Como se contasse uma história de livro de aventuras para crianças, Andrade caprichava nos detalhes, pintando tudo com cores ainda mais berrantes do que as do tremendo quadro real. E concluiu:
— Impressionante, não? E como ele, o Blake, podia entrar e sair de qualquer lugar com suas credenciais de guarda-costas do presidente americano, tratou pessoalmente de matar com sua faca os dois agentes que protegiam Peggy!
— Que horror!
— Não é? Daí, para seus dois comparsas, era só esperar o gás narcotizante fazer efeito, descer do forro com máscaras contra gases, deixar aberta a porta do vestiário para que todos pensassem que eles tinham fugido por ali para embarcar no helicóptero, pegar a garota desmaiada e carregá-la lá para cima do forro. E o mais incrível eu ainda não contei...
— Ah, conta, vai, Andrade! — pediu Magrí, fazendo charminho.
— O canalha ainda se deu ao luxo de fazer uma ameaça daquelas! Provavelmente com o sangue dos seguranças que estava na faca, escreveu um "K" no espelho do vestiário!
— Puxa! — exclamou Chumbinho. — E o que significa isso?
Andrade sorriu, superior:
— É a primeira letra da palavra "kill". Vocês sabem o que quer dizer "kill", em inglês?
— Kill?— Magrí fez carinha de sonsa. — Eu, não...
— Quer dizer "matar"!
— Que horror!
Esforçando-se para não rir, Crânio comentou:
— Mas esse plano era arriscado demais!
— Isso era. Mas eles sabiam que só precisavam agüentar por poucas horas, até o discurso. Depois, matariam Peggy e desceriam tranqüilamente para o pátio, misturando-se com seus colegas da CIA!
— Puxa, Andrade! Mas como é que você desmascarou o Sherman Blake?
— É que aconteceu uma falha inexplicável com o equipamento de som moderníssimo que os bandidos deixaram em cima do telhado, ligado à caixa do alto-falante. Automaticamente, o aparelho gravou o telefonema de Blake mandando matar a menina, e transmitiu tudo de volta pelo alto-falante! Daí, vocês precisavam estar lá para ver a cara dos agentes da CIA ouvindo o motor do helicóptero e depois a voz do canalha do Blake!
— Mas que coincidência feliz, hein? — admirava-se Miguel.
— Mais do que feliz! Essa história estava cheia de maluquices. Imaginem a sorte que eu tive: quando eu subi para o forro do vestiário, os seqüestradores estavam com as pistolas descarregadas!
— Incrível! — admirou-se Chumbinho.
— Não é? O Pacheco acha que isso era alguma ordem do maluco do Blake. Vai ver ele não queria barulho de tiros. Tudo tinha de ser feito a faca, em silêncio!
Vai ver foi isso mesmo, Andrade — concordou Chumbinho. — Só pode ser isso...
Andrade limpava a boca com o guardanapo:
— Hum... acho que não adianta pedir o sorvete da casa... Vou acabar perdendo o apetite para o almoço. Vocês já experimentaram o sorvete especial daqui? Creme, pistache e chocolate. Uma delícia! Querem que eu peça sorvete para vocês?
Magrí deu um pulo:
— Não! Esse sorvete, não!
— Atchim! — espirrou Miguel, com os olhos vermelhos.
— Mas que resfriado vocês pegaram, hein? É, acho melhor mesmo vocês se cuidarem. Sorvetes e gelados estão fora, ouviram?
— É claro, Andrade. Sem sorvetes...
— E olhem: agora eu vejo que vocês estão tomando juízo, porque desta vez não vieram meter o nariz nessa história terrível, como aconteceu das outras vezes que eu não quero nem me lembrar! Desta vez, ficaram quietinhos, enquanto nós, os profissionais, cuidamos de tudo e salvamos a vida da filha do presidente...
— Você foi mesmo demais, Andrade! — aplaudiu Miguel.
O gordo detetive fez uma festinha no queixo de Magrí e levantou-se.
— Bom, agora eu preciso ir. Tenho um relatório enorme para preencher. Eu ia até tentar um modo de falar com o Presidente Rodrigues Lobo, mas...
— Falar com o presidente?! — sobressaltou-se Calu.
— Pra quê?
— O próprio presidente ligou para mim, sabia, Calu? É! O pessoal da delegacia ficou verde de inveja. E eu queria tentar um telefonema para ele, para agradecer a dica do Serviço Secreto sobre o forro do vestiário, que ele me passou. Se não fosse isso, eu...
Calu estava ansioso:
— Telefonar para o presidente?! Ora, mas que absurdo, Andrade!
— Foi o que me disse o Pacheco, Calu. É que o tal Hooper da CIA ficou com a cara no chão com esse caso. Ciúme, sabe? Imagine, a polícia mais poderosa do mundo ser superada por um detetive brasileiro! Além disso, o homem ficou uma fera, porque eu quase cheguei a metê-lo na cadeia! Pois é. E o Pacheco me aconselhou a não mexer mais nesse vespeiro porque ainda vai acabar dando rolo. Pode até causar um mal-estar internacional, você não acha?
— Acho! — reforçou Calu. — Acho sim! Atchim!
— E cuidado com o sereno, hein? — recomendou Andrade enquanto saía. — Andem bem agasalhados!
Enquanto o detetive se distanciava, a italiana da lanchonete, cansada pela noite mal dormida, mas feliz pelos lucros inesperados que o caso lhe trouxera, não entendeu por que aqueles cinco adolescentes riam e batiam-se as mãos, como se comemorassem a vitória do seu time...
No salão principal dos aposentos de MacDermott, o Presidente americano e sua esposa recém-chegada abraçavam-se.
— Agora tudo passou, querida, tudo passou... Peggy está de novo conosco, sã e salva.
— Sã e salva? Está muito mais, Wilbur! — sorriu a primeira dama americana. — Você notou como ela está diferente? Em vez de abater-se com o que aconteceu, Peggy parece estar mais segura, mais confiante... Ela parece mais forte! — Os sofrimentos amadurecem, querida. E isso também se aplica a mim...
— É verdade, Wilbur. Devemos aprender a não confiar plenamente em pessoas como Blake, mesmo que se mostrem amáveis e solícitas...
— Talvez, querida, mas veja a situação de Peggy: dois homens em cujo amor ela pensava poder confiar estavam dispostos a aceitar sua morte... Sherman Blake, que em seu fanatismo julgava que suas idéias malucas sobre a América justificavam qualquer sacrifício, e eu próprio, que estava disposto a perder Peggy por achar que as minhas idéias também valiam mais do que a vida da minha própria filha!
— Vamos esquecer isso, Wilbur, por favor...
— Não, querida, vamos nos lembrar disso, para sempre. Blake tinha razão: durante estes anos, minhas obrigações políticas me roubaram o tempo que eu deveria ter dedicado a Peggy. Mas, daqui para a frente, vamos mudar isso. Antes de ser o presidente dos Estados Unidos, eu sou um pai...
Os cuidados de proteção ao presidente americano, à primeira dama e a sua filha tinham sido triplicados, mas havia sido aberta uma exceção, e um agente bateu na porta. A primeira dama abriu-a e o homem falou, cerimoniosamente:
— Boa-tarde, missís MacDermott. Já chegou o rapaz que miss Peggy autorizou que subisse até aqui.
— Oh, sim, querida — lembrou o presidente, que vinha atrás da esposa. — Peggy fez amizade com um garoto lá no colégio da amiga e convidou-o para um lanche com ela, aqui no hotel.
Voltou-se para um dos quartos e chamou:
— Peggy, seu amigo já chegou!
A menina apareceu, normalmente vestida, sem qualquer afetação, mas com um sorriso luminoso, de alguém na expectativa de algo maravilhoso.
— Eu e sua mãe temos de ir ao jantar de despedida na embaixada, Peggy, querida — disse o pai, abraçando-a.
— Só peço que você não teime em sair do hotel. Depois do que houve ontem, eu...
Peggy pôs-se na ponta dos pés e beijou-lhe o rosto.
— Está bem, papai. Nós só vamos conversar. Esse é um rapaz muito especial. Aqui no Brasil, eles iniciam as férias de inverno logo mais, no início de julho. Quero ver se a gente combina de ele ir a Washington para me encontrar. Adoraria mostrar minha terra para ele...
Nesse momento, um belo garoto era introduzido no salão. MacDermott estendeu-lhe a mão.
— Muito prazer, meu jovem. Vocês têm um lindo país. Adorei o Brasil.
— Thank you, Mister President — o garoto apertava-lhe a mão e devolvia o cumprimento, num inglês perfeito.
— A América também é linda. Eu e minha família já estivemos em seu país algumas vezes...
O casal saiu para o jantar. Já no carro, a primeira dama comentava:
— Aí tem coisa, Wilbur. Esse rapaz... hum... Peggy olhava para ele de uma maneira que nós, mulheres, sabemos o que significa. É... nossa filha está ficando uma moça, não está?
— Está, querida. O tempo passa e a gente nem percebe...
Depois que ficaram a sós, Peggy levou o jovem visitante para a mesma varanda de onde, na noite anterior, havia apreciado o anoitecer da cidade nos braços de Sherman Blake.
Só que, desta vez, foi em braços mais jovens que ela se aninhou...
— Calu...
— Peggy...
Como estrelas muito baixas, as luzes da cidade salpicavam a escuridão da noite que já se fechava. Acima, o mau tempo encobria as estrelas de verdade.
De olhos fechados, Peggy rememorava a noite anterior, quando tinha sido abraçada por aquele rapaz, em cima de um telhado, como num namoro entre gatos.
— Sabe, Calu? Pelo menos uma coisa aquele traidor, o tio Sherm, me ensinou de bom...
— Sim... ? — murmurava ele, aspirando seus cabelos.
— Ele me ensinou a dizer uma coisa em português...
— Em português? O que foi?
— Foi... Éééo tchiii áámôuu...
— Hum? O quê? Espere que eu vou ensiná-la a falar português. Repita comigo: Calu, eu te amo!
— Calu... Eeu... tchi... amou...
— Saiu mais ou menos. Mas você pode melhorar.
— Agora diga: Calu, eu te adoro!
— Calu... eeu... tchi... adoourou...
— Você vai indo bem. Agora diga: Calu, você é o garoto mais lindo do mundo!
— Oh, honey — ronronou a menina. — Vamos deixar essa lição para depois... Amor não se ensina. Amor a gente faz...
— Oh, Peggy...
Os lábios dos dois se encontraram, num beijo longo, carinhoso, cheio de estrelas...
— Vamos lá, menino, sua garganta inflamou, eu não disse? Você fica no sereno, tomando gelado, e é isso que dá! Agora não pode se queixar. Vai ter de tomar essa injeção e pronto!
Chumbinho reclamava:
— Não quero, mãe! Isso é aquela injeção que dói! É aquele antibiótico que deixa calombo na bunda!
— O que é isso, garoto? — repreendeu o farmacêutico, impaciente. — Deixe de ser covarde!
O menor dos membros do grupo dos Karas, no dia seguinte a tudo aquilo que fizera, resfriado, com febre e com a garganta inflamada, voltou a cabeça para o farmacêutico, sério:
— Covarde? Eu?!
E, resignadamente, abaixou as calças, dispondo-se à dolorida picada...
No Parque do Ibirapuera, o espetáculo ao ar livre estava sendo demais. O famoso tenor Plácido Carreras encerrava sua apresentação sob os aplausos de milhares de pessoas que se espalhavam pelo gramado.
No fim da multidão, quase conseguindo o isolamento que desejava, um casalzinho estava abraçado.
— Magrí...
— Oh, Crânio...
Os potentes alto-falantes espalhavam a bela voz do tenor, embalando o beijo apaixonado daquele dois...
— Amigos para siempre, you will always be my friend...
O Salão Oval da Casa Branca, em Washington, recebia a visita de um homem gordo, careca, tremendo de nervosismo dentro de um terno alinhado, acabado de sair de uma loja de roupas feitas.
O salão estava lotado pelas mais altas autoridades dos Estados Unidos e pelas câmeras de tevê, que transmitiam a cerimônia para o mundo.
Wilbur MacDermott prendia na lapela do paletó do convidado a mais alta condecoração do governo dos Estados Unidos. Uma medalha que representaria para sempre a gratidão de um país à coragem e ao desprendimento de um policial que salvara a vida da filha do presidente.
Emocionado, o detetive Andrade não suava nem um pouco.
Sozinho, pedalando sua bicicleta, Miguel relembrava os riscos extremos que os Karas tinham assumido para salvar a vida de duas garotas: sua adorada Magrí e a filha do presidente dos Estados Unidos.
Em seu coração, ao pensar na americana, vinha-lhe aquele aperto que ele só sentia quando pensava em Magrí. Por quê? O que tinha acontecido com ele? E por que ele se sentia tão só?
"Daqui para a frente, mesmo distante, Peggy será um de nós. Ela é um Kara. Dos melhores. Mas..."
Mas ele sabia que a garota tinha ficado com outro...
Sacudiu a cabeça, afastando a imagem da menina, e a gravidade dos problemas que assombravam o mundo voltou-lhe à consciência.
"Armas, guerras... Violência... É para viver nesse mundo que eu tenho de crescer? Ah, contra tanta coisa, a favor de tanta coisa eu tenho de lutar! Um trabalho para os Karas... Ah, a vida é um trabalho para os Karas!"
Lentamente, Miguel movia os pedais pensando que os Karas nunca, nunca poderiam acabar...
Ao longo da rua quase deserta daquele começo de férias, a figura de Miguel distanciou-se até se perder ao longe...
Pedro Bandeira
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