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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


DUAS VIDAS UM DESTINO / Violet Winspear
DUAS VIDAS UM DESTINO / Violet Winspear

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

DUAS VIDAS UM DESTINO

 

A igreja estava lotada. Há muitos anos o povo de Barton-le-Cross não assistia a um casamento assim tão pomposo.

No entanto, todos lamentavam que a mãe da noiva não estivesse viva para presenciar aquela união, esperada há tanto tempo. Edith Hartwell teria ficado muito orgulhosa de ver Glenda naquele suntuoso vestido de cetim branco, a cabeça coberta por uma grinalda de renda finíssima.

A noiva entrou na igreja conduzida pelo braço de sir Arthur Brake, que havia sido grande amigo de sua mãe. Os fotógrafos insistiam em que levantasse o véu mas, resistindo aos pedidos, ela atravessou a nave sem se deter, até o altar.

A solenidade do ritual emprestava aos seus gestos uma aura de irrealidade, e a visão das altas colunas do templo trazia-lhe à lembrança outra cerimônia, muito triste, completamente diferente da que estava acontecendo naquele momento.

Fora num dia chuvoso, há apenas algumas semanas, quando acontecera a missa pela morte de Edith Hartwell. Desde os dez anos Glenda vivia com ela, e todos acreditavam que eram mãe e filha.

Mesmo ali não havia quem suspeitasse que aquela moça que diante do altar se unia a Malraux d'Ath não fosse a filha de Edith Hartwell. Além dela, apenas sir Arthur sabia que a verdadeira Glenda tinha morrido há nove anos e estava enterrada na ilha de Malta.

— Como poderei levar adiante essa farsa, sir Arthur? — Glenda se lamentara.

Vai suportar tudo, minha querida! Você seria incapaz de trair o amor que sentia por Edith e quebrar a jura que lhe fez. Ela foi muito boa ao tirar você do orfanato e proporcionar-lhe uma vida confortável, cheia de carinho. Mas jamais lhe perdoaria se você se recusasse a casar com Malraux d'Ath.

Agora, como se estivesse em transe, Glenda desempenhava o papel que lhe fora destinado. Respondeu mecanicamente às palavras do sacerdote, e ao estender a mão para que o alto e sombrio Malraux d'Ath lhe colocasse a aliança no dedo, sentia-se agradecida ao véu que escondia suas feições.

Ele acreditava estar se casando com a menina que lhe fora escolhida há dez anos, numa promessa feita ao velho Duval Malraux, preso ao leito de morte. Duval tinha unido a mão de uma garota à do neto, fazendo-os prometer a mesma coisa que anos depois Edith pediria a Glenda.

— Eu enganei o velho todos esses anos — balbuciara Edith, muito, agitada, recusando o remédio para abrandar a dor, até que Glenda concordasse em levar às últimas conseqüências aquele pacto. — Nunca contei à família Malraux que a minha filha morreu num cruzeiro e está enterrada em Malta… Eles teriam cortado o dinheiro que me enviavam, mensalmente, e eu não teria meios para viver, entende? Não podia trabalhar, e o velho Duval só me mandava a mesada porque havia resolvido que minha filha se casaria com o neto dele.

O som do órgão se fez ouvir mais alto: estava tudo encerrado! Uma Glenda trêmula e pálida acabava de aceitar como marido a um homem que não amava, aliás, que mal conhecia. Conduzida pelo noivo, dirigiu-se à sacristia para assinar o registro.

Seu pensamento voou outra vez ao leito de morte de Edith. Aquela confissão desesperada esclarecia o empenho de sua mãe adotiva em registrá-la como Hartwell, assim que a tirou do orfanato em Llandudno. Quantos recursos sedutores ela utilizara para convencer à menina magricela e tímida de que aceitasse o nome de Glenda!

Naquela época, ela não pôde captar o sentido daquilo tudo. Além disso, qual a criança que seria capaz de recusar algo à mulher lindíssima, envolvida em peles e que demonstrava uma ternura tão encantadora?

Distraída com essas recordações, Glenda só percebeu que era sua vez de assinar o livro quando a caneta quase lhe caiu das mãos. Num gesto rápido, recuperou-a e escreveu o próprio nome abaixo da letra firme do homem alto e forte, elegantemente vestido num terno cinza, que estava a seu lado. Não pôde evitar uma comparação fora de propósito ao ler: Malraux Armand d'Ath. Esse nome soava tão aristocrático como seu dono… se combinavam! Apenas ela, uma impostora, destoava de tudo.

— Levante o véu — disse o noivo de repente. — As pessoas querem ver o seu rosto.

Ao ouvir esse pedido, Glenda sentiu que as pernas amoleciam e a vista se turvava. Tentou apoiar-se na mesa, mas não teve tempo e caiu ao chão desmaiada Adiantando-se a todos, sir Arthur correu em seu socorro, depois, justificou o ocorrido a Malraux:

— a pobrezinha acabou de perder a mãe. As duas eram muito unidas, e Glenda precisou reunir toda a coragem para suportar o fato de não ter Edith presente ao seu casamento.

Mais tarde, quando os recém-casados chegaram ao aeroporto, ela se sentia um pouco melhor. Mas, ao subir no jato que os levaria a Angervilliers, o marido envolveu-lhe a cintura com o braço e outra vez seus nervos ficaram à flor da pele.

Assim que o avião partiu, ela se encaminhou à toalete, para tirar alguns grãos de arroz que tinham caído na fina blusa de mousseline que estava usando. Olhou-se ao espelho e se assustou com a palidez do rosto alvo, os olhos cor de âmbar parecendo ainda mais dourados. Malraux teria percebido algum detalhe que denunciasse seu estado de espírito perturbado? Um arrepio percorreu-lhe o corpo ao lembrar-se das palavras do padre, pronunciadas há uma hora:

— Peço e exijo de todos, sob pena de responderem no dia terrível do Julgamento Final, quando os segredos de todos os corações serão revelados, que se conhecerem algum fato que impeça essa união pelos laços sagrados do matrimônio, confessem agora, ou se calem para sempre!

Seu sangue gelara nas veias… Não fosse o grande carinho que sentia por aquela que havia sido sua verdadeira mãe, não teria encontrado forças para manter-se em silêncio.

O desmaio que se seguiu foi de medo e culpa. Algo lhe avisava que Malraux d'Ath era o tipo de homem que podia tornar-se cruel se a confiança que depositava em alguém fosse traída. E, casando-se com ele, Glenda o havia enganado! Para pagar a sua dívida de gratidão a Edith Hartwell, concordara em participar daquela farsa e nem queria imaginar o peso da vingança de Malraux se descobrisse o logro de que fora vítima.

Glenda olhou a mão esquerda, e recordou o momento aterrador diante do altar, quando Malraux a olhou intensamente enquanto lhe enfiava o anel no dedo. O que ele estaria pensando naquele instante? Será que lamentava a noiva que lhe haviam escolhido? Era possível… Afinal, em suas veias corria também um pouco de sangue inglês, e ele poderia não compreender a razão daquele enlace, um contrato primitivo entre famílias, difícil de ser entendido por um saxão. E as coisas se tornariam ainda mais complicadas se algum dia ele viesse a saber que a Glenda com quem se casara não passava de uma órfã que Edith Hartwell tinha adotado.

Mais ainda: uma órfã que fora escolhida entre dezenas de outras porque possuía a pele branca dos galeses e os cabelos avermelhados e luminosos que a tornavam tão semelhante à menina falecida. O único traço que as diferenciava era a cor dos olhos que na verdadeira Glenda era de um verde profundo, igual ao da mãe.

A custo, Glenda conseguia conter a ansiedade. Suava muito e quase podia ouvir as batidas assustadas do coração, que parecia querer saltar pela boca. Estaria realmente com problemas se Malraux d'Ath tivesse uma boa memória para detalhes. Mas, como já fazia dez anos que o casamento fora combinado, podia ter esperanças de que ele não se lembrasse de que a menina do juramento tinha os olhos verdes, sem nenhum reflexo cor de âmbar.

O mais estranho daquela história era o fato de ele, durante todo esse tempo, nunca ter tentado uma aproximação com sua prometida. Nem uma única vez visitara a bela casa branca no alto do morro que fora o lar de Glenda desde a sua adoção. Edith se mudara de Chelsea e não voltara a freqüentar os lugares que faziam parte do passado. As pessoas em Barton-le-Cross por sua vez jamais desconfiaram que não havia laços de sangue entre ambas. O único amigo em que Edith confiara o suficiente para fazer confidencias fora sir Arthur Brake.

Ele era um boêmio bem-humorado, que provavelmente a tinha encorajado a continuar com a farsa. Na certa devia saber a quanto montava a pensão que a família d'Ath dava a Edith.

Bondosa, afetuosa e extravagante, Edith levava Glenda em viagens e garantia todas as vantagens de uma educação esmerada.

Assim, com a afeição de uma filha, Glenda não pudera recusar-se ao casamento dadas as circunstâncias dramáticas em que Edith lhe fizera o pedido.

— Não permita que aos olhos dele eu seja considerada uma ladra — dissera a moribunda. — Os d'Aths são muito ricos, mas igualmente, orgulhosos. Ninguém mais, além de sir Arthur, sabe que a minha Glenda está enterrada naquela ilha. Faça isso por mim, querida. Será uma mentira inofensiva.

Porém, ao contrário do que Edith imaginara, aquela encenação se revelava grave e perigosa, e o único sentimento que Malraux d'Ath inspirava a Glenda era pavor! Com toda certeza ele se sentiria no direito de pôr as mãos em volta de seu pescoço e a esganar, no momento mesmo em que desvendasse aquela trama. Além disso, Glenda era uma desconhecida, uma vez que tinha sido abandonada, ainda bebê, por sua verdadeira mãe.

Reunindo toda a coragem de que dispunha, Glenda voltou ao seu assento no avião. Ainda escondia uma parte do rosto com a aba de um chapeuzinho cinza, complemento do discreto conjunto marfim que vestia. Durante todo tempo, sentira uma compulsão para esconder os olhos, e era com muito esforço que fingia uma naturalidade que não tinha e se sentava ao lado do marido.

Mas, o que teria dado na cabeça de Edith para arquitetar todo aquele plano? Como ela pudera colocar Glenda na posição de uma reles impostora apenas para continuar vivendo comodamente com a mesada enviada pelo velho Duval?

Se a notícia da morte prematura da garota houvesse sido divulgada, Malraux estaria livre daquela exigência do avô e poderia traçar seu próprio caminho, sem ter sido obrigado a um casamento daqueles.

Não havia outra maneira de encarar o fato, e Glenda sofria um agudo sentimento de culpa. Embora as referências não fossem muito claras, sempre tivera conhecimento daquele desejo do velho, através de conversas leves e despreocupadas de Edith, porém acreditava que Malraux seria informado da verdade sobre a sua adoção a tempo.

Então, Edith adoecera. Fora operada e, apesar de o mal ter cedido por algum tempo, os estágios finais da doença se sucederam rapidamente. Antes que Glenda pudesse reagir, estava se comprometendo com uma mulher agonizante, que queria ocultar para sempre o fato de ter explorado a família do marido morto.

Malraux não vai precisar saber de nada — balbuciava a enferma, com muita dificuldade. — Na França são comuns esses casamentos arranjados, e como ele tem descendência francesa pelo lado materno, não deve se rebelar. E você, minha amada Glenda, tem sido uma verdadeira filha para mim… Nós temos sido muito felizes juntas, não é?

Era verdade. Aqueles anos em companhia da mãe adotiva haviam sido muito felizes… Glenda pensava nisso, quando recebeu das mãos de Malraux um copo de vinho. Abaixou a cabeça para não ter que encarar aqueles olhos cinzentos e frios e teve a sensação de que nunca mais seria feliz na vida. Tinha consciência de que seu rosto estava lívido, tão branco quanto as flores que esmagara ao desmaiar na sacristia.

Por certo que as pessoas que assistiam à cerimônia pensavam que seu mal-estar fora devido ao nervosismo e à tensão acumulada durante a doença de Edith. Mas a realidade é que ela estava aterrorizada com a idéia de estar casando com aquele estrangeiro sombrio, que não correspondia em nada ao homem que idealizara para marido durante a adolescência. Malraux d'Ath virou-se na poltrona e falou num tom enérgico:

— É para beber tudo! Você ainda está muito pálida… Não é comum as noivas desmaiarem daquele jeito. Você estava emocionada demais, não estava?

Enquanto ela se esforçava para sorrir, levando o copo até os lábios, ele continuou:

— Temos que começar a nos conhecer melhor. Não deve ter sido fácil para você aceitar unir-se a um estranho… Bem, quase um estranho… Afinal, já nos vimos uma vez, quando você era uma adolescente mais descontraída e irrequieta, não é?

Glenda bebeu o vinho de um só gole e não ousou levantar os olhos. Então, sem que tivesse tempo de impedi-lo, Malraux tirou-lhe o chapéu e jogou-o para o lado.

— Assim é melhor, agora posso ver o seu rosto. Você se tornou uma pessoa muito tímida, bem diferente daquela menina que lançava olhares dengosos para mim.

Ele examinava com aberta admiração os fartos cabelos ruivos que, em conjunto com a boca naturalmente vermelha, criavam um lindo contraste com a alvura da pele. Nesse momento, um raio de sol atravessou o vidro da janela e veio tornar os olhos dela ainda mais dourados. Ele pareceu levemente intrigado.

— Lembro-me também de suas longas pestanas — murmurou.

Assustada pelo rumo que a conversa tomava, Glenda se remexeu nervosa no assento, tentando dissimular a tensão. Reparou nos dedos do marido, segurando o copo de vinho… dedos finos, porém fortes, que tanto podiam acariciar como se transformarem em tenazes sobre o pescoço de uma mulher.

— É muito difícil para dois estranhos se sentirem marido e mulher — disse ele, como se estivesse falando para si mesmo. — Todos aqueles juramentos ao pé do altar devem tê-la abalado… Sente-se melhor agora?

— Acho que sim. Teria sido bem mais fácil… monsieur, se você tivesse nos visitado enquanto Edith… minha mãe vivia. Por que nunca foi até lá?

— Por causa destas marcas — respondeu, apontando para o lado esquerdo do rosto. — Eu era bem diferente, quando nos conhecemos. Isto aconteceu há dois anos, num incêndio em nossa fábrica, e achei melhor que une petite filie mantivesse viva a imagem que tinha de mim antes.

Glenda olhou para as cicatrizes que deformavam por completo o lado esquerdo do rosto bronzeado. Sim, ele devia ter sido bonito algum dia, mas, agora, as lesões da pele repuxavam o lábio e o olho, causando uma distorção mais sinistra do que feia.

— Doeu muito? — perguntou, impulsiva. Depois enrubesceu e se afundou mais na poltrona, como se quisesse desaparecer. — Que coisa boba de perguntar. Deve ter doído demais!

— Doeu mesmo — ele fumava um charuto muito perfumado, que segurava entre os dentes. — Foram as minhas cicatrizes que a assustaram? Será que foi só agora que percebeu que terá que olhar para elas todos os dias?

— Eu… eu não sou mais criança!

— Não, talvez não. Mas se está se perguntando por que não recorri à operação plástica, ma chérie, é porque quase não existe solução para um caso como o meu, além de não me sentir nada disposto a fazer enxertos. Sempre tive mais ossos do que carne no rosto e também nunca fui um galã…

— Não são suas cicatrizes que me preocupam…

— Está sentindo falta de romantismo, ao se casar com um perfeito desconhecido?

— Sim — disse ela, os cabelos vermelhos como uma chama brilhando à luz do sol.

— Não faz mal! — exclamou ele, rindo com ironia. — Tudo vai mudar, quando chegarmos ao Château Noir.

— Gostaria que me desse… — Não pôde continuar, a voz sumida pela emoção, o coração batendo acelerado. Sentia-se doente de vergonha por tê-lo enganado. Teria algum valor um casamento em que a noiva jurara em nome de uma menina morta? Será que algum dia deixaria de se sentir como uma farsante que pode a qualquer momento ser descoberta e castigada?

Ela não fazia a menor idéia da expressão de dor que havia nos próprios olhos, enquanto encarava Malraux d'Ath, e via nele uma determinação inabalável de levar adiante o que havia começado. Ele nunca recuaria. Se despedaçasse o coração de uma mulher, o faria completamente!

— Está me pedindo para lhe dar tempo? — perguntou ele, enquanto a fumaça do charuto escapava pelos lábios.

— Eu preciso de…

Ela uniu as duas mãos, depois de colocar o copo na mesinha. Tremia tanto que se continuasse a segurá-lo na certa o derrubaria no chão.

— Mas nós dois sempre soubemos que teríamos que enfrentar este dia — continuou Malraux. — Nem uma única vez sua mãe entrou em contato comigo para dizer que você estava… relutante… é isto? Os anos se passaram e nunca tive informação de nenhuma das duas de que o casamento não se realizaria quando você completasse vinte anos. O tempo dos apelos, minha querida, era antes de ficar diante do altar ao meu lado, e se entregar em minhas mãos.

Abruptamente ele pôs seu copo de lado e tirou uma caixinha quadrada do bolso do casaco. Abriu-a e um raio de sol iluminou um anel de ouro, com um brilhante lapidado em forma de coração.

— Este anel pertenceu à minha avó. Você deve usá-lo junto com a aliança.

— Não…

— Sim, Glenda — disse Malraux com firmeza, segurando-lhe a mão com força e energia.

Glenda quis se soltar, mas o instinto a preveniu de que era mais sensato ceder. Assim, deixou que ele enfiasse o anel em seu dedo delicado.

Sem deixar de fitá-la Malraux levou a mão dela até os lábios, depositou um beijo quente e suave.

— Na França é aqui que os homens beijam suas mulheres. As costas das mãos são reservadas para amigos e parentes. A esposa, assim como as amantes, recebem este beijo mais íntimo, e você é minha, Glenda. Estamos unidos para o bem ou para o mal. Portanto, lhe prometo minha lealdade, como espero que você me dê a sua.

O mesmo tremor que ela sentira no altar estava voltando, mas agora era tarde demais para que fugisse de tudo. Quase fizera isso! A custo conteve o impulso de confessar tudo ao padre na hora em que fora perguntado se havia algum impedimento para a união legal dos dois.

— Não gostou do anel, chérie? Mesmo depois de ter o trabalho de adaptar o aro para que coubesse perfeitamente?

— Mas como sabia que ia servir se nunca foi a Barton-le-Cross? Eu bem que poderia ter me tornado… bem diferente do que se lembrava. Meninas mudam…

— A cor de seus cabelos não podia mudar. Eles estavam presos em trancas, naquele dia em que meu avô uniu nossas mãos sobre seu leito de enfermo. Com o reflexo do sol, eles pareciam adquirir vida. Esses atributos não mudaram, ma chérie, mas você cresceu bem menos exuberante e menos empolgada com a idéia de ser a dona do Château Noir. Talvez quando voltar a ver o castelo você fique feliz outra vez em saber que vai morar lá.

— Eu… acho que vou achá-lo estranho, depois de tantos anos — ela conseguiu dizer.

— Acredito que sim — ele concordou, examinando-a com atenção. — E o que foi feito de suas trancas? Seus belos cabelos ruivos agora estão cortados na moda… Não estou querendo dizer que não esteja bonita e atraente, mas você ficou muito diferente…

Ela sentiu o coração se acelerar, ao ouvir esses comentários.

— Você parece… estar desapontado comigo — murmurou, sem querer parecer provocante, mas sua voz tinha um tom levemente rouco, uma característica fascinante que lembrava o sangue galês que corria em suas veias.

Malraux inclinou-se para ela, e seus olhos pareciam agora prata líquida.

— Na verdade ainda não sei o que sinto por você, Glenda. Mas certamente surpreendeu-me que desmaiasse a meus pés… seria a última coisa que eu esperaria daquela menina tão segura de si que foi até Angervilliers há tantos anos, e não se abalou nem um pouquinho em ficar noiva de um rapaz que já estava na faculdade. Quando meu avô disse que me beijasse, você não titubeou, e beijou-me o rosto. Só que eu não estava deformado naquele tempo, não havia nenhuma razão para sentir aversão…

— Não são suas cicatrizes — disse ela, abaixando os olhos que nunca se lembrariam dele como um belo jovem. — Tio Arthur lhe explicou que eu… eu ainda não me recuperei da morte da minha mãe. Eu a amava muito…

— Compreendo — disse ele, tocando-a de leve no rosto, seguindo-lhe o contorno das faces, até o canto da boca. — Sofri muito também quando perdi meu avô. Foi ele quem me criou depois que meus pais foram mortos pela explosão de uma bomba em nossa fazenda na Argélia. Os dois morreram queimados na sala de estar… Já eu tive mais sorte. Quando a minha fábrica se incendiou, sofri apenas queimaduras, apesar de as marcas não serem nada agradáveis aos olhos, por mais que você insista que elas não a assustam.

— Mas é verdade! — insistiu ela, embora não tivesse a mínima convicção do que dizia, pois aquela pequena deformação lhe dava uma aparência sinistra, que era realçada pelos cabelos e sobrancelhas muito negros… ameaçadores como a noite!

— Bem — disse ele, encolhendo os ombros num gesto de indiferença. — Sempre vão existir coisas desagradáveis, como dor, morte… e a retribuição de um amor.

— Retribuição de um amor? O que quer dizer com isso?

— Nós nos casamos para corresponder a um tipo de amor… o amor egoísta daqueles que cuidaram de nós quando éramos crianças. E nenhum de nós se rebelou, não é? Somos marido e mulher, e agora temos que tentar fazer com que a nossa vida a dois seja a melhor possível.

Glenda ficou sentada em silêncio e permitiu que ele enchesse novamente seu copo. Mas não quis comer o salmão defumado. Não conseguiria engolir nada, embora concordasse que o vinho poderia lhe subir à cabeça se não comesse. E, a bem da verdade, queria mesmo que a bebida lhe confundisse os pensamentos, e abrandasse sua culpa. Talvez a tornasse corajosa quando chegasse o momento de entrar no Château Noir, como sua nova dona.

Esperava que não fosse um lugar demasiado grande e assustador, com um exército de empregados a quem tivesse que dirigir. Tinha vivido confortavelmente com Edith, em Barton-le-Cross, mas não se acostumara a tomar conta de uma casa muito grande, nem a dar ordens a mordomos e criadas.

Com uma necessidade desesperada de fortalecer a coragem, Glenda bebeu o vinho. Tinha consciência de que o marido a observava atentamente através da fumaça do charuto.

Como iria conseguir conviver com um estranho, numa intimidade maior do que a que possuíra com qualquer outra pessoa? Edith sempre mantivera um olho vigilante sobre ela, mas Glenda, por sua própria escolha, nunca fora uma moça muito afoita para experimentar o amor. Interessava-se mais pelos lugares que visitava do que pelos homens que se aproximavam. Costumava dar-lhes respostas indiferentes, que depressa os afastavam. Era considerada uma filha devotada. O que era bem diferente de ser uma esposa que sentia medo do homem com quem unha se casado.

 

Assim que chegaram ao aeroporto, Malraux providenciou carregadores que levassem as bagagens até o possante carro marrom que estava guardado ali à espera dos dois. Feito isso, puseram-se a caminho pela estrada asfaltada que se elevava gradualmente até o rio Loire parecer uma faixa muito estreita ao pé da montanha. Era em um dos castelos nobres e deslumbrantes que pontilham o vale daquele rio que ela iria morar.

Instalada no luxuoso banco de veludo castanho, Glenda apreciou a viagem de automóvel, pois teve algum tempo para acumular as forças de que precisava para enfrentar os parentes que também moravam no castelo.

Era fim de tarde e o céu estava escarlate no poente, quando divisaram o lugar onde Malraux havia nascido. O Château Noir apareceu, contrastando com o horizonte. As muralhas altas e escuras se recortavam contra o céu e brilhavam com os últimos raios de sol.

A construção se localizava numa elevação, dominando o vale, com um amontoado de telhados, paredes de pedras e pátios escondidos atrás das heras. Cada uma das torres gêmeas, de formato pontudo como chapéus de feiticeiras, tinha janelas ovais incrustadas e possuía sua própria muralha. Entre elas ficava a parte mais importante do castelo, graciosamente conservada, com quatro andares. Viam-se luzes através de diversas vidraças, o que devia ser interpretado como sinal de que havia gente esperando. Glenda ainda viu na tarde que caía vários balcões com sacadas de ferro fundido.

A fortuna daquela família tinha se apoiado no ferro, desde o começo. Eles eram membros tradicionais da aristocracia francesa, e de suas metalúrgicas tinham saído os gradis mais rebuscados e sofisticados que se viam em Paris, Londres e em outras grandes cidades. Na época da guerra, em Londres, uma grande parte das grades originais fora destruída e a Fundição Malraux tinha sido chamada para fazer a reconstituição.

A tradição da família era agora continuada através da sociedade de Malraux d'Ath, que supervisionava as fábricas da Inglaterra, com seu primo Matthieu, responsável pelo ramo francês da empresa.

— Impressionada? — perguntou ele, virando-se para Glenda, quando o motor do carro parou, e os dois ficaram os últimos minutos a sós.

— É de perder o fôlego.

— Percebi quando você segurou a respiração e por isso concluí que tinha se esquecido de como era o castelo.

Ela mordeu os lábios e balançou a cabeça.

— Sim, dez anos é muito tempo…

— E volta como Uma estranha para o lugar que será o seu lar.

Lar… era uma palavra que possuía calor, mas em Glenda despertava calafrios que gelavam seu coração.

— Fique tranqüila. Não a obrigarei ao sofrimento de enfrentar a família esta noite. Depois de tomarmos banho, jantaremos a sós e vamos saborear o melhor vinho de nossa adega, o Puligny-Montrachet que meu avô destinou especialmente a mim. Ele não apreciava muito o champanhe e me ensinou a degustar os vinhos mais finos. Vinhos e mulheres, parece…

De puro nervosismo, Glenda cerrou os punhos e sentiu a pressão dos anéis, que para ela eram como cadeias douradas, símbolos secretos de escravidão.

— Sou a escolha de seu avô, muito mais do que sua… Sente-se ressentido por isso?

— Num momento desses, chérie, não se deve interrogar os nossos sentimentos, e sim deixar que a vida se desenrole. Venha, vamos entrar.

Ele saiu do automóvel e deu a volta para abrir a porta para Glenda. Com as pernas trêmulas, ela mal conseguiu ficar de pé, minutos depois, diante do duplo lance de degraus que levavam até a porta de entrada.

— Le oiseau crie trop tard quand il est pris — exclamou Malraux, enquanto retinha, entre as dele, as mãos delicadas da esposa.

Então ele sabia exatamente como ela estava se sentindo! Como um passarinho se lamentando tarde demais por estar preso numa armadilha. Ele sorriu levemente, o lábio repuxado.

— Qui ne dit mot consant, chérie. — Sim, o silêncio dela equivalia a uma confirmação do que ele dissera. — Mas pelo menos, uma armadilha maravilhosa. O Château Noir é considerado uma verdadeira festa para os olhos, embora o seu nome, castelo negro, seja um pouco sombrio.

— As pedras têm um reflexo prateado — comentou ela, olhando para uma das torres.

— O nome do castelo tem a ver com sua história. Como deve saber, a família Malraux conseguiu comprar este castelo com o dinheiro ganho na indústria, e não através da nobreza. Diz a lenda que um nobre sinistro vivia aqui com sua amante favorita, a qual tinha fama de ser feiticeira. Quando ele se cansou dela, mandou queimá-la viva.

— Que horror! Isto é verdade?

— Esta história está contada num dos livros da biblioteca antiga do castelo. A superstição era muito grande naqueles dias… Existe até mesmo um quadro retratando a jovem. Esqueceu disso também?

— Se eu esqueci?

Glenda o encarou e percebeu imediatamente um brilho diferente naqueles olhos cinzentos como as muralhas da construção, denotando muita surpresa com a reação dela.

— Você parece ter varrido da mente uma porção de coisas que achou intrigante da última vez em que esteve aqui. Esse quadro de que falei estava na parede do quarto do meu avô, e ele ainda comentou que a moça se parecia muito com você.

— Comigo?!

— Claro! Ela também possuía cabelos avermelhados como chamas, olhos amendoados e pele muito branca.

Glenda sentia a garganta se apertar e ficou paralisada quando Malraux segurou seu queixo e a obrigou a levantar o rosto para poder fitá-la nos olhos.

— Estive pensando durante todo o dia… E como você bem disse, ma chérie, dez anos é tempo suficiente não só para nos mudar, como também para transformar nossas recordações. Você era uma garota de escola, com a cabeça cheia de romantismo, e agora é uma jovem mulher, e tem medo de mim, não é?

Ela não negou. Sentia-o muito perto, a ponto de não poder esconder-lhe o tremor que passava por seu corpo.

— Nossa união foi contra sua vontade, não foi Glenda? Isto lhe causou muito sofrimento hoje?

— Imagino que aconteceu comigo o mesmo que com você. Afinal, não deve ser nada fácil casar-se com uma mulher por quem não se está apaixonado.

Ele deu um sorriso irônico e retrucou:

— Amor? Tudo que sei é moldar o ferro quente segundo meus desejos. Farei a mesma coisa com você, chérie. Bon gré, malgré!

— Quer eu goste quer não? Meu Deus, não posso acreditar que você seja assim tão rude!

— Todos os homens são assim… — ele respondeu irônico.

Glenda o olhou, atônita. Oh, Deus, só agora percebia que havia se casado com um homem que lhe devotava um profundo ressentimento, antes mesmo de entrarem na casa que iam partilhar. A força e a textura do ferro haviam governado a vida dele e aquela promessa que um dia fez ao avô marcou-o a fogo, tanto que ele não ousou quebrá-la.

O caso dela era bem diferente. Crescera num meio social normal, e era uma pessoa doce e sensível, mais fácil de ser destruída…

Um grito abafado escapou-lhe da garganta quando Malraux levantou-a nos braços e a carregou para dentro do castelo, passando pelo criado que lhes abrira-a porta.

— Aqui estamos, André. Trouxe a minha esposa para casa.

— Bem-vindos, monsieur et madame.

— Jantaremos em meu apartamento, André. Avise tia Héloise. Ela passou bem na minha ausência?

— Como sempre, monsieur. Ainda sente dores, mas não tem se queixado muito, a não ser para os jardineiros.

Malraux sorriu.

— Claro. Ela bem que gostaria de estar cuidando de suas flores. Espero que o jantar de hoje seja especial. E quero que me leve também uma garrafa de Puligny-Montrachet.

— Cuidaremos disso, senhor.

— Mande uma das moças para ajudar madame d'Ath em sua toalete.

Glenda ficou tensa nos braços dele e quis protestar, dizendo que se arranjaria muito bem sozinha. Ele deve ter percebido isso mas só voltou a falar depois de atravessarem o imenso hall e começarem a subir por uma escada.

— Em sua mente britânica talvez possa parecer um exagero ter uma criada particular, mas é parte de nosso modo de viver no Château Noir. Minha tia ficaria escandalizada se você se recusasse a desfrutar dessas regalias. Ela gostaria de ter ido ao nosso casamento, para conhecê-la, mas não está podendo viajar desde que quebrou á bacia, no ano passado. Uma tortura para Héloise, que sempre foi uma pessoa muito ativa! Antes de meu avô morrer, ela não morava aqui e dirigia sozinha um grande salão de modas em Paris. Ela é a mãe do meu sócio, Matthieu.

— Entendo — murmurou Glenda, sentindo cada movimento daquele corpo forte que a carregava pela escada em caracol com tanta facilidade como se ela fosse a adolescente que explorara emocionada o castelo, esperando um dia morar ali.

— O meu apartamento fica na Tour Etoile, onde viveremos isolados. O que todos os recém-casados desejam, não acha?

Glenda não conseguia falar. Ele, ao contrário, nem parecia perturbado com o peso do corpo dela nos braços. Depois do primeiro lance, porém, depositou-a no chão, mas continuou com o braço em sua cintura. Ela estava muito agitada e, cada vez que olhava para aquele homem forte e muito moreno a seu lado, tinha reforçada a impressão de que ele não se abalaria com seus receios, nem lhe daria tempo para acostumar-se à nova vida de esposa.

— Acho que já é tempo de nos beijarmos — disse ele, com seu leve sotaque galês, que o tornava ainda mais perturbador. — Aquele frio roçar de lábios no altar dificilmente pode ser chamado de beijo.

Glenda enxergou a expressão decidida de Malraux e pressentiu que precisaria ser dura e cruel para defender-se dele. Deliberadamente pousou o olhar nas cicatrizes e depois estremeceu da maneira mais convincente, oferecendo os lábios com uma expressão de mártir.

Malraux estreitou os braços em torno dela, enquanto perscrutava suas feições, procurando adivinhar o que lhe ia pela cabeça. Então largou-a de repente e soltou uma praga em francês.

— Desconfiei que você era covarde! Percebi o quanto tinha mudado, Mas logo voltará ao que era, ma chérie. Se não suporta me olhar na claridade, então vai ter que me agüentar no escuro!

— Não é nada disso, Malraux… Preciso de tempo para conhecê-lo.

— Nem pense numa coisa dessas — disse ele, passando os dedos pelos cabelos negros. — Já paguei caro por tudo nesta vida e agora está na hora de receber os juros… mesmo que precise forçar a barra para me divertir um pouco.

— Posso ser uma covarde, mas você é uma pessoa completamente sem sentimentos!

— É muito provável que sim. Tudo que passei me obrigou a ser deste modo. Fui levado criança para a fábrica e já trabalhava na fundição aos quatorze anos. Minha vivência é apenas essa e ela me leva a acreditar que as mulheres também precisam ser amolecidas e depois moldadas, segundo os desejos de um homem. Especialmente você, minha cara, que se casou comigo, e jurou me amar e honrar.

— Você fez a mesma promessa, Malraux.

Sua voz estava trêmula, embora tentasse se controlar. Não queria ter medo dele, pois isso seria uma traição a Edith, que tinha feito o máximo para desenvolver nela a autoconfiança e restaurar um pouco o orgulho que aqueles anos no orfanato haviam destruído. Poucas pessoas imaginavam o que significava ser uma criança que não pertencia a ninguém, e cujo lar, em seus anos de formação, era um antigo casarão cinzento, cheio de velhos preconceitos vitorianos. Ali os órfãos eram obrigados a seguir uma infinidade de regras, a serem gratos pela caridade que recebiam e a nunca responder a seus superiores.

Até agora, Glenda ainda carregava os reflexos daquela tirania e todas as normas continuavam gravadas em sua mente. Mesmo quando desafiava o homem com quem havia se casado, era assaltada por um sentimento de culpa. Lá no íntimo não se achava no direito de enfrentá-lo. Ainda que fosse para preservar a dignidade.

— Tranqüilize-se porque quando as luzes estiverem apagadas não poderá ver meu rosto — disse ele, as marcas desfigurantes parecendo mais lívidas. — Pode começar a se conformar com a idéia, pois não terá escolha.

— Nunca imaginei que você fosse tão cínico! — exclamou Glenda, o rubor colorindo seu rosto. — Ninguém me alertou sobre o tipo de homem que você era… ou se tornou.

— Pelo menos não estou lhe dizendo um monte de mentiras. Não faço de conta que a adoro somente para quebrar suas resistências e dominá-la mais fácil. Ou estava esperando fingimento?

— Como se eu pudesse pretender que você amasse uma… uma estranha…

Calou-se de repente. Não foi necessário muita percepção para Glenda perceber o desejo que o dominava. Apesar de não ignorar que teria que enfrentar isso, não se sentia forte o bastante para evitar que… Ali sozinha, sem os convidados nem os passageiros do avião que tornavam a farsa suportável, não via perspectivas de escapar às garras daquele homem. Decidiu que o melhor seria adiar ao máximo o desfecho daquela situação.

— Por que você foi até Barton-le-Cross se casar comigo? — perguntou Glenda, empertigando-se como se estivesse diante de um front inimigo. — Qual foi a verdadeira razão?

— E qual o motivo de sua curiosidade, ma chérie?

— Porque tenho certeza de que você não foi movido por razões sentimentais.

— Mas acha que pode suportar a verdade?

— Pelo menos saberei a quantas ando.

— Neste momento você está pisando um solo sagrado para mim. O Château Noir só seria minha herança se eu mantivesse a palavra dada a Duval Malraux. Caso contrário ele passaria para Matt, que também é neto. A minha prioridade em relação à herança deve-se a uma antiga rixa entre meu avô e a mãe de Matthieu, Héloise. Ela desobedeceu ao pai ao se casar com um pintor de talento discutível. O velho Duval nunca a perdoou por isso, pois nunca acreditou no amor e sempre foi partidário da idéia de que as uniões arranjadas tinham mais chances de sucesso. O tempo provou que ele estava com a razão. O casamento de titia fracassou, enquanto que o de meus pais, que foi combinado, deu certo.

Fez uma pausa, examinando-a com olhos frios e depois prosseguiu:

— Como pode ver, não foram os sentimentos mais nobres que me levaram a procurá-la. Tudo isso pode lhe soar estranho, mas faz parte da formação que tive, ma chérie. Meu avô deu-me a pouca afeição de que dispunha e empenhou-se em me forjar tão duro quanto o aço. Usou toda sua experiência acumulada em sessenta e sete anos para introduzir-me no mundo dos negócios e, além de treinar-me para cuidar das metalúrgicas, ensinou-me a ser ambicioso. Assim, para obter a posse do castelo, até aceitei me casar com uma “feiticeira ruiva e de pele branca” como o velho a chamava. Eu sentia que este castelo me pertencia e faria qualquer coisa para conquistá-lo.

— Compreendo — disse Glenda, num esforço sobre-humano para dominar a vontade de gritar.

Que outra reação deveria ter diante de um homem que nem ao menos fingia que seu único interesse nela era assegurar a posse daquele amontoado de torres e telhados, cuja história se perdia na antigüidade?

Malraux pareceu adivinhar o que lhe passava pela cabeça naquele momento e foi mais longe em sua rudeza:

— Francamente, Glenda, é impossível que não tenha suspeitado de que eu ganharia mais do que a sua pessoa com a nossa união. Ou sua ingenuidade é tanta a ponto de ter acreditado que eu estivesse apaixonado, depois de todos estes anos? Para falar a verdade, achei-a uma bela menina, e sua gulodice mal disfarçada até que era engraçada. Ainda come chocolates com a mesma satisfação? Meu avô até comentou que você ficaria cheia de marcas na pele e que seria obrigada a casar-se com um véu no rosto.

Seus olhos percorreram as faces de Glenda, observando cada detalhe da pele alva e perfeita, detendo-se nas maçãs do rosto e na testa, onde os cabelos ruivos caíam ligeiramente.

— Não vejo nenhum sinal de espinhas, Glenda. Por que então usou o véu?

— Para que as pessoas não me vissem! Todos esperam que as noivas estejam radiantes, não é mesmo? E eu me sentia… trágica!

— Trágica não é a palavra adequada quando se está recebendo as chaves de um castelo. Pelo menos não foi isso o que você afirmou diante do leito de meu avô. Ao contrário, declarou que seu sonho era viver como uma princesa num castelo no alto da montanha.

— Meninas de escola falam qualquer bobagem!

Ela se sentiu repentinamente tão fraca que teve que se sentar. Naquele instante percebia que, com exceção da semelhança física, não tinha nada em comum com a filha de Edith Hartwell, que devia ter sido muito precoce e nada tímida, enquanto ela era naturalmente reservada.

Teria sido pelo menos suportável, se pudesse ter acreditado que ele aceitara o casamento em respeito à vontade do avô. Mas agora ficava claro que agira como um interesseiro, um simples mercenário. Por isso, quando Glenda o encarou, a aversão que a atitude daquele homem lhe inspirava estava estampada no rosto.

Era inevitável que ele tirasse conclusões erradas daquela expressão e pensasse que a repulsa dela se devia às cicatrizes da queimadura. E embora Glenda soubesse que ele precisara ficar internado durante longo tempo num hospital, o sentimento de solidariedade e o respeito a seu sofrimento não implicavam nenhuma aceitação dele como homem.

Ele parecia ser tão implacável para conseguir o que queria quanto o nobre que um dia foi o senhor daquele lugar…

— Espero que você não tenha se tornado uma mulher manhosa, doentia ou angustiada. Quando menina você era muito cheia de vida, mas sua aparência atual é de alguém completamente esgotada.

Glenda ficou em silêncio por alguns instantes, tentando se lembrar do que Edith lhe contara sobre sua verdadeira filha. Apesar do aspecto saudável, a menina tinha problemas de coração e sua morte súbita se deveu a um ataque cardíaco num cruzeiro pelo Mediterrâneo.

Malraux tinha reparado na gulodice da garota em sua breve passagem pelo castelo. Também não lhe escapara seu espírito brincalhão e sua energia física e emocional.

Glenda disse a si mesma que, se estava vivendo uma mentira, não faria diferença se acrescentasse outra. Então falou:

— Não está sabendo sobre meu estado de saúde? Será que minha mãe escondeu de seu avô que eu tenho uma deficiência cardíaca?

Foi a vez dele ficar calado, meditando sobre o significado daquelas palavras. Glenda seria capaz de imaginar o que lhe passava pela cabeça: primeiro, a maneira pouco comum com que ela tremera no altar; depois o fato de ter desmaiado na sacristia. Naquela ocasião, branca como um fantasma, fora socorrida por ele que a levantara nos braços, enquanto sir Arthur a fez tomar uma dose de conhaque da garrafinha que sempre carregava consigo. Considerando-se que essa bebida era conhecida como um estimulante cardíaco, havia razões de sobra para que aquela história soasse verossímil.

— Dieu! — exclamou, a testa vincada por uma profunda ruga de apreensão. — Sua mãe não disse uma palavra sobre o assunto. Nunca deu a menor indicação de que havia alguma coisa errada com você!

— Mas que importância tem isso? — perguntou Glenda, enquanto inconscientemente pousava a mão sobre o coração. — O que interessa é que você conseguiu o que queria: o castelo.

— Não queira bancar a colegial! Tenho uma empresa sólida, que pretendo passar para um filho, e desejo também deixar este castelo para ele, sem as malditas maquinações como as de que fui vítima! Entende o que estou dizendo ou é tão estúpida quanto doente?

O rosto dele tinha se tornado terrível, tamanha a raiva que sentia. As cicatrizes estavam mais marcadas e os olhos brilhavam febris, como se algum fogo o consumisse internamente… da mesma maneira que o ferro brilha na fornalha, quando está sendo fundido.

— Então ambos fomos enganados, Malraux.

— Acredita seriamente nisso? — perguntou ele, rudemente. — Um filho representa muito para mim… muito mais do que você.

Essa afirmação cruel penetrou a mente dela como se fosse ferro despejado num cadinho, onde seria moldado tão duramente que se amoleceria outra vez se retornasse à fornalha.

— Eu… eu nunca esperei significar alguma coisa para você. Foi suficiente olhá-lo para perceber como você era realmente.

— E como sou, madame?

— Um homem sem sentimentos, moldado à imagem e semelhança de Duval Malraux. Provavelmente ele o criou para ser impiedoso como é agora… E não acredito que nada o tornaria mais compreensivo.

— Não mesmo.

Com uma das mãos ele tocou as cicatrizes que lhe desfiguravam o rosto. Segundo sir Arthur Brake, havia outras marcas pelo corpo, principalmente nos ombros.

Ela estremeceu ao imaginar o corpo dele sob o terno claro que estava usando, e que lhe realçava o tom trigueiro da pele. Além da evidente dureza, sentia nele uma profunda sensualidade latina, queimando com violência cada músculo daquele homem atlético e viril.

Não devia ter sido somente por causa do trabalho com a fundição que ele se mantivera afastado de Barton-le-Cross. Seguramente tinha havido muitas mulheres em sua vida, o que tornara pálida e sem graça a recordação da menina que tinham lhe impingido como esposa.

— Não pretendo ser enganado — disse ele, os olhos fixos no rosto suave e branco, e depois nos cabelos, que mais pareciam uma auréola de fogo. — Quero que o nome d'Ath continue, tanto ligado às fundições como ao castelo, que finalmente é meu. Agora, minha cara, vá se arrumar, e depois jantaremos e beberemos ao futuro.

Estendeu a mão e ajudou-a a se levantar. Embora Glenda fosse mais alta que a maioria das moças, não chegava sequer ao queixo dele. Malraux puxou-a para si, e ela sentiu o calor de seu corpo, fazendo esforço para suportar aquele abraço. Imaginou que mesmo tendo acreditado em sua mentira sobre a doença do coração, ele não pretendia mudar de planos.

Isto era visível pela maneira insinuante com que se colava a ela. Sem procurar disfarçar o quanto aquele contato lhe parecia falso e desagradável, ela se manteve esquiva e não fez um único movimento para corresponder ao seu abraço.

Sentindo sua reação, ele a obrigou a levantar o queixo e ficou contemplando os olhos dourados, sombreados por pestanas espessas e longas, mais escuras do que os cabelos cor de fogo. Glenda não era bonita no sentido clássico do termo, mas possuía aquela beleza etérea, encontrada nas moças que vivem nos vales selvagens e misteriosos do País de Gales.

Não quero que meu filho seja um covarde. Por isso, Glenda, não precisa ter medo de mim.

— Quem lhe disse que tenho medo de você? Nunca lhe daria essa satisfação.

— De você prefiro outro tipo de satisfação. Dizendo isso, inclinou a cabeça e seus lábios cobriram os dela, arrancando-lhe um grito, que foi abafado pela selvagem insistência de um beijo. Foi como se sobre ela se abatesse uma força sombria e poderosa, impossível de ser enfrentada. Então viu-se envolvida pelo turbilhão daquele beijo, agarrada pelos braços musculosos, mal podendo respirar até que, afinal, ele levantou a cabeça. Depois olhou-a cheio de desejo… mas soltou-a. Em seguida Malraux fez um gesto indicando a escada em espiral.

— Vá se preparar para o jantar. E ponha algum blush no rosto. Não quero vê-la parecendo um fantasma.

 

A primeira coisa que Glenda notou ao entrar no quarto foi uma finíssima camisola cor de damasco estendida na cama, ao lado do pijama de seda marrom de Malraux.

Ficou imóvel, observando aquela combinação insólita. Em sua mente dançavam imagens perturbadoras, e ainda sentia a profunda emoção em que se vira mergulhada quando há poucos instantes Malraux a tomara nos braços, dando-lhe uma amostra de como um homem podia ser levado pela paixão, sem ter nenhuma necessidade de sentir amor pela mulher que beijava e possuía.

“Você não representa para mim nem a metade do que um filho representa…” — Malraux tinha acabado de lhe dizer isso.

Ela devia ter imaginado… devia ter pensado que um homem que não se preocupa em visitar a moça com quem vai casar-se, era um homem que tinha feito uma encomenda, e que esperava que esta encomenda lhe fosse entregue perfeita e no prazo certo.

Ela era esta encomenda! Era isto o que ela significava para Malraux d'Ath. Seus sentimentos não lhe importavam nem um pouco. E provavelmente nem passara pela cabeça dele que ela poderia amar outro homem.

 

Glenda ainda estava ali de pé quando uma moça vestida com um uniforme bege saiu do banheiro, de onde vinha o barulho da água enchendo a banheira.

— Já desfiz suas malas, madame — disse a criada sorrindo tímida, e sem conseguir esconder a curiosidade que sentia. — Que vestido e roupas de baixo deseja que eu tire?

Aquela moça havia aparecido no quarto tão de surpresa que Glenda ficou intrigada.

— Existe… existe alguma outra entrada para essa torre? — perguntou esperançosa.

— Na parte de trás, madame.

— Obrigada.

Era ótimo saber que havia uma saída secreta caso tivesse coragem para tomar a decisão acertada. Por que tinha que ficar ali com um homem que não amava e em quem não podia sequer confiar? Oh, como fora tola em aceitar aquele casamento, que não representava nada mais que uma sentença de prisão perpétua!

— Qual é seu nome? — perguntou à empregada.

— Fleur, madame.

A moça a observava com perplexidade. Era evidente que esperava encontrar uma noiva risonha e ansiosa para escolher a roupa que encantaria o marido.

— É um belo nome, Fleur — olhou à sua volta, até que viu uma porta fechada. — Aonde dá aquela porta?

— No quarto de monsieur — respondeu a criada, o rosto ligeiramente corado, o olhar fixo na imensa cama de quatro colunas, sobre a qual pusera a camisola e o pijama para o casal. — Pensei que gostaria que a ajudasse…

Não é necessário. Estou com dor de cabeça e prefiro ficar sozinha por alguns minutos. Eu mesma escolherei o vestido. Não preciso de você agora, pode ir.

— Não quer que lhe traga um comprimido?

— Eu tenho aqui. Descansarei alguns minutos antes de tomar um banho e logo estarei boa. Sinto-me um pouco aturdida porque passei o dia cercada de gente. Compreende?

Fleur fez que sim, mas na realidade não estava entendendo nada. Jovem como era, tinha a cabeça cheia de idéias românticas sobre a noite de núpcias e nada no comportamento da noiva condizia com suas expectativas. Com muita relutância saiu do quarto por uma porta estreita que ficava ao lado do banheiro.

Assim que se viu sozinha, Glenda sentou-se num banco e escondeu o rosto entre as mãos. Estava trêmula, mas procurou se armar de coragem e decidir: ficar ali, e tentar enfrentar uma situação em que tinha se metido em parte por sua culpa, ou fugir pela saída que a criada utilizara, e tentar encontrar uma acomodação para passar a noite?

Teria que ser uma hospedaria na cidadezinha pela qual haviam passado ao virem para o castelo. Sentia menos medo de andar sozinha pelos campos escuros do que de permanecer naquela torre, como um animal preso numa armadilha.

Ficou de pé, respirou fundo algumas vezes e depois abriu a porta por onde Fleur havia desaparecido. Dava para uma escada em caracol, iluminada por uma arandela presa à parede. Desceu correndo os degraus até chegar a uma pesada porta de madeira, com uma tranca de ferro.

Abriu-a sem dificuldade e deu um passo para a escuridão da noite… mas sentiu-se repentinamente presa entre braços de ferro.

— Sabia que tentaria fugir, menina.

Malraux a agarrou com força, obrigando-a a se virar para ele. Seu coração saltou agitado e ela soltou um grito. Não lhe ocorrera que ele pudesse adivinhar suas intenções, e nunca levara um susto tão grande.

— Maldito! — exclamou.

— Sem dúvida!

Seus dedos se enterravam com violência na cintura fina, e logo Glenda compreendeu a inutilidade de lutar contra ele.

— Tire as mãos de cima de mim… Você é insuportável!

— E você é uma idiota.

Então, como se não lhe importasse que ela pudesse se machucar, inclinou-a para trás com brutalidade e silenciou sua boca com a dele. Seus lábios eram duros e ardentes.

Louco de raiva, beijou-a até deixá-la sem fôlego. E mesmo depois de levantar a cabeça ainda a manteve com o corpo colado ao dele.

— Por favor, não vá ter um ataque do coração — zombou.

— Oh, se eu soubesse…

— O que, minha cara?

— Que você era tão grosseiro!

— Porque não permiti que fugisse de mim? O tempo para isso acabou no momento em que fez seu juramento na igreja. Eu teria aceitado uma recusa sem problemas. Mas você ficou tranqüila e não disse nada quando o padre perguntou se havia algum impedimento para nos unir. Vi seus olhos através do véu e eles me deram a impressão de serem os de uma raposa presa numa armadilha. Mesmo assim você continuou respondendo “sim” a tudo. Quando peguei sua mão para pôr a aliança, parecia um bloco de gelo. Então compreendi por que você ocultava o rosto… Para que eu não ficasse chocado com a sua palidez. Na época em que ficamos noivos, você ainda era romântica, e foi capaz de sussurrar ao ouvido do meu avô que “eu parecia um príncipe. Ele achou muito engraçado e mais tarde me contou: “A menina está encantada com você, meu rapaz. É bom que não a decepcione”.

Ficou em silêncio por alguns instantes e depois completou:

— Sinto muito que tenha ficado desapontada comigo, ma chérie. Mas eu poderia lhe dizer que a recíproca é verdadeira. Você não tem nada da ardente garotinha de que me lembro!

Presa no anel de ferro de seus braços, Glenda pensou em esclarecer tudo naquele mesmo momento. Porém, a verdade só serviria para macular a memória de Edith Hartwell, mostrando-a como alguém que tinha trapaceado para arrancar dinheiro da família Malraux. Glenda não podia fazer uma coisa daquelas e preferiu engolir as palavras que poderiam levar Malraux a entender sua atitude. Era melhor que aquele homem continuasse pensando que ela não agüentava olhá-lo quando na realidade o que a apavorava era ter um estranho por marido.

Na verdade, não podia culpar Edith por essa situação. Aquela mulher adorável e impulsiva havia acolhido a órfã e lhe dado seu amor. Nada Poderia diminuir o carinho que Glenda lhe dedicava, nem apagar a lembrança da primeira vez em que a vira.

— Oh, mas que perninhas mais finas! — Edith tinha dito. — Precisa engordar um pouco, minha queridinha.

Depois arrastou a garota para um lindo restaurante e a enchera de sorvete de chocolate e bombons. Edith não comia muito, mas adorava champanhe, e ficou bebericando sua Bollinger, parecendo aos olhos da pobre menina uma verdadeira fada-madrinha.

Glenda nunca poderia trair aquela mulher que fora tão boa para ela… E manteve a boca fechada, suportando em silêncio a zombaria e a cólera de Malraux.

— Para o inferno, se acha meu rosto desagradável! Você é tão vazia como as outras mulheres…

Os olhos cor de âmbar brilhavam no rosto claro e delicado, vendo ao longe os pesados portões, agora fechados por causa da noite.

— De nada adianta contemplar os portões. Não vai poder escapar de mim. Todas as terras aqui em volta me pertencem. Agora voltemos ao nosso apartamento, e desta vez fará como mandei.

Virando-a de costas, empurrou-a para cima pela escada sinuosa e estreita até chegarem ao quarto de casal. Ela nem ousava pensar nas intenções dele, quando inesperadamente viu-se jogada na cama, forrada com a luxuosa colcha de rendas, e sobre a qual ainda estavam as roupas de dormir de ambos.

— Não quero ser aborrecido outra vez esta noite. Vá tomar seu banho e depois vista algo compatível com uma ceia de casamento. Está me ouvindo?

— Teria que ser surda para não escutar.

— A empregada já desfez suas malas?

Ele percorreu com o olhar o quarto bem mobiliado. Havia uma escrivaninha e uma penteadeira de madeira, enfeitada com madrepérola, e várias poltronas estofadas com cetins pesados e macios, o mesmo das cortinas. A um canto, dois imensos armários com frontões ricamente entalhados.

Malraux abriu os armários e encontrou num deles as roupas de Glenda penduradas. Examinou os vestidos e acabou escolhendo um, de cetim cor de pérola, com uma longa saia.

Atirou-o na cama, ordenando:

— Use esse. E trate de se apressar ou comeremos a ceia na hora do café da manhã.

Depois de olhar de passagem para a esposa, caminhou para a porta que separava os dois quartos, e antes de abri-la se voltou:

— Tenho aqui meu próprio toalete, portanto pode ficar à vontade. Provavelmente não faria bem aos seus nervos se eu sugerisse partilharmos o mesmo banheiro… pelo menos até nos conhecermos melhor.

Logo a porta se fechou com um clique, e Glenda ficou ali parada como se aquela figura morena e arrogante a tivesse cegado. Parecia que não havia jeito de escapar da armadilha em que se achava presa. Os portões agora estavam trancados e sabia que não conseguiria abri-los. Além disso, suspeitava que se os abrisse acionaria um sistema de alarme contra ladrões e não andaria cem metros sem que viessem em seu encalço. Era evidente, somente pelo que já vira ali na torre, que naquele castelo devia haver muita coisa que valia a pena ser roubada.

Descalçou os sapatos e sentiu a espessura agradável do tapete, enquanto caminhava até a escrivaninha, onde havia uma Colombina e um Arlequim de porcelana. Pelos detalhes e colorido tão perfeitos provavelmente eram porcelana de Dresden. Com muito cuidado, examinou a base da estatueta da Colombina. Fora Edith quem a ensinara a apreciar objetos artísticos, assim como a boa música, teatro, e a decifrar textos difíceis, como os de Henry James. Com um leve sorriso, Glenda recordou o quanto protestara quando fora obrigada a ler e interpretar seus escritos.

— Nada que é facilmente compreensível vale a pena realmente — Edith costumava dizer. — E pense só quantas palavras novas conhecerá depois que acabar de ler as obras dele!

Nos dez anos em que tinha convivido com Edith raramente se recusou a fazer alguma coisa que lhe pedisse. No entanto, enquanto examinava o Arlequim, pensava se não teria tido a coragem de se opor ao casamento com Malraux se ela ainda vivesse.

De repente, o relógio de pêndulo em cima da escrivaninha começou a bater e ela viu, assustada, que já eram oito horas e ainda não estava pronta para o jantar.

Correu para o banheiro, tirou a roupa e mergulhou na água morna. Tomou um banho rápido, e se enxugou, usando talco para secar a umidade. Não estava com medo de Malraux, mas não queria que ele entrasse no quarto enquanto não tivesse vestido a roupa de baixo.

Mas foi o que aconteceu! Estava procurando uma calcinha e combinação na gaveta, quando ele entrou porta adentro, magnífico em seu smoking negro.

— Je suis enchanté! — disse Malraux, quando ela se voltou com a combinação de seda na mão.

— Eu… eu ainda não estou vestida.

— Estou vendo, chérie — seus olhos a examinaram da cabeça aos pés. — Escolhi um momento afortunado, não?

— Por favor… espere lá fora. Eu… eu não vou me demorar muito…

— Não estou assim tão certo de querer vê-la toda coberta.

Com passos largos aproximou-se dela e foi inútil recuar, pois logo a alcançou.

— Não faça isso, Malraux!

Indiferente aos seus protestos, ele a agarrou pelos ombros ao mesmo tempo em que puxava a combinação que Glenda ainda segurava para atirá-la no tapete. Apertou contra si aquele corpo jovem e deslizou uma das mãos lentamente pelas costas dela chegando até os quadris.

— Dieu, que pele macia! Parece um bebê, e de certo modo você é tão inocente quanto um recém-nascido, não é? Venha, vamos fazer com que aconteça logo o que tem que acontecer…

— Não!

Como uma louca, tentou se desvencilhar dele, lutando, dando pontapés, mas Malraux simplesmente sorria daqueles inúteis esforços para escapar de seus braços.

— Sim, ma chérie, não haverá momento mais apropriado, você tem que admitir.

Olhando-o furiosa, descobriu que ele parecia achar aquilo tudo muito engraçado. Será que estava brincando com ela…?

— Você é muito infantil, Glenda!

— Eu? Como assim?

— Os homens têm apetites diversos, mignone. No momento o meu é para uma boa refeição e vários copos de vinho, por mais sedutora que você seja.

— Se pretende jantar, então tenho que me vestir…

— Precisa se vestir?

— Claro!

Ele riu, mais para si mesmo.

— Detesto lidar com donzelas ofendidas mas prefiro você assim com esse seu ar virginal.

— Os homens têm uma maneira muito injusta de encarar as mulheres. Por um lado, procuram seduzir todas as que encontram pelo caminho e ao mesmo tempo querem casar-se com uma que ainda não foi seduzida.

— Um homem espera discrição de sua noiva, ma belle. Agora será que posso assistir você se vestir?

— Não. Não pode!

— Então pretende ficar nua?

— Pare com isso e vá embora enquanto me visto.

— Quero ficar e olhar para você.

— Não…

— Sou seu marido e tenho os meus direitos.

— Está fazendo o máximo para… para me embaraçar.

— Você tem que ficar mais à vontade na minha presença.

Beijou-lhe os ombros delicados, e depois a soltou. Foi até uma das poltronas e se deixou cair sentado. Espichando as longas pernas à sua frente.

— É a primeira vez que tenho uma esposa e quero vê-la enquanto se veste. Comece logo, ou ficaremos aqui a noite toda.

— Como você é impertinente!

Agarrou a combinação, sentindo que a pele se tornava rosada com o sangue que circulava mais depressa, sob o olhar devorador do marido. Teve que passar por ele para apanhar a calcinha na gaveta, e depois foi o sofrimento de entrar dentro dela sem perder o equilíbrio.

— Está me fazendo sentir como se eu fosse uma qualquer! Começo a desconfiar que você é um sádico.

— Tolice. Uma mulher fica encantadora quando se veste, bem ao contrário do homem.

— Espero não ser obrigada a assistir a isso!

Pegou o vestido cor de pérola que estava sobre a cama e vestiu-o pela cabeça. Escutou a risada de Malraux às suas costas e logo após sentiu-o fechar o zíper.

Ele a fez voltar-se e sua expressão mostrava admiração.

— Sua mãe lhe ensinou a ter muito bom gosto.

— Ela fez o possível — respondeu Glenda, que percebia o brilho intenso que se filtrava dos olhos semicerrados do marido. — Agora Preciso calçar os sapatos.

— Estou atrapalhando? Não… claro que não.

Foi até o armário e pegou as sandálias de cetim. Nervosa, deixou cair uma delas. Malraux apressou-se em apanhar.

— Venha, Cinderela, sente-se enquanto seu príncipe mais ou menos encantado vai ajudá-la a se calçar.

Aos poucos ela estava aprendendo que não adiantava rebelar-se, e sentou-se no banquinho da penteadeira, observando a cabeça de cabelos negros inclinada a seus pés. De repente, ele ergueu a cabeça, e Glenda não teve tempo de disfarçar o olhar de repulsa quando a luz da mesinha bateu no rosto deformado. A expressão dele adquiriu uma frieza indisfarçável.

— Talvez eu devesse usar máscara de cetim negro, não?

Havia tanta angústia naquelas palavras que ela desejou ter coragem para acariciar as marcas terríveis e assim aliviar o sofrimento que ele devia sentir cada vez que um estranho o olhava e, da mesma maneira que ela, deixava transparecer a repulsa instintiva que aquele rosto transfigurado provocava.

— Deve ter sido um pesadelo estar no meio de um incêndio. Você deve sonhar muitas vezes com isso, não é?

— Algumas — disse ele, seco, e se levantou. Depois olhou-se no espelho e deu as costas para ela. — Sinto muito, Glenda, que tenha um monstro como marido.

— Malraux…

Mas antes mesmo que acabasse de pronunciar seu nome a porta já tinha se fechado atrás dele. Glenda se virou lentamente para o espelho. Sempre fora sensível ao sofrimento dos outros e, se ela e Malraux d'Ath fossem apenas amigos, acharia mais fácil mostrar a compaixão que sentia.

Passou a mão pelo próprio rosto e tentou imaginar como seria tê-lo cheio de cicatrizes de queimaduras… Talvez fosse possível que uma longa série de cirurgias diminuísse os danos, mas a remoção de cicatrizes podia também causar outras, e Glenda duvidava que Malraux tivesse a paciência e a vaidade necessárias para enfrentar essas operações. Na verdade já a prevenira de que devia se acostumar a vê-lo daquele jeito pelo resto da vida, porque tinha coisas mais importantes para fazer do que satisfazer os desejos de uma mulher frágil, por quem não sentia a menor afeição.

Glenda suspirou profundamente e escovou os cabelos, cortados na moda, realçando o rosto oval. Não costumava usar muita pintura e levou poucos minutos para passar um blush nas faces e o batom rosado na boca carnuda. Seu lábio inferior era mais cheio e levemente marcado no centro.

Olhando-se no espelho, sorriu ao se lembrar do comentário de Simon Brake a respeito:

— Costumam chamar este tipo de boca de “lábios-mordidos-pela-abelha”.

Ele falou aquilo brincando, no dia em que acompanhara ela e Edith a uma peça musical. Glenda tinha, então, dezessete anos e assim que o conhecera tinha ficado fascinada. O filho de sir Arthur Brake atraía os olhares das mulheres quando os três foram até o foyer[1], mas parecia indiferente, só se interessando por ela e Edith. Depois do teatro lhe presenteara com uma caixa de bombons finos, e escrevera no programa que o ator Yul Brynner era maravilhoso. Ela concordava, mas achava Simon muito mais atraente.

O que ele estaria fazendo em Chelsea, naquele instante? Glenda levantou-se do banquinho e alisou a saia. O vestido tinha um decote generoso, o que fazia com que seu colo parecesse muito nu. Depois de alguns segundos de hesitação, colocou no pescoço a corrente de ouro com a cruz que tinha usado naquela manhã.

A efígie[2] brilhava contra a pele clara, e ela pensou na crença de que a cruz afugentava os demônios da noite.

Uma rajada de vento frio, vinda, talvez, de alguma janela aberta, a trouxe à realidade. Levantando um pouco a saia, correu escada abaixo até a sala de estar. Encontrou a mesa posta para dois, com candelabros acesos e a comida esperando num aparador, coberta com tampas de prata.

A saleta estava aquecida e agradável. Glenda fechou a porta atrás de si e caminhou para perto da lareira. Malraux estava abrindo uma garrafa de vinho, e a luz trêmula das velas projetava sua sombra nas paredes brancas e no teto, dando a impressão de que ele a envolvia e a observava.

— Estou vendo que não pôs ruge — ele comentou, arrancando a rolha da garrafa.

— Sinto desapontá-lo, mas nunca uso ruge, e nem saberia como usar.

— Não estou desapontado, minha querida. Você está absolutamente linda!

Despejou o vinho nas taças de cristal e entregou-lhe uma.

— É muito bonita essa cruz que você está usando. Reparei nela esta manhã na igreja.

Foi um presente de casamento. Glenda segurava a taça com as duas mãos e estava trêmula. Cada vez que ficava diante de Malraux sentia-se muito tensa, e as palavras que trocavam sempre pareciam ter um significado especial.

— De quem? — perguntou ele.

— De… um amigo.

— Alguém que me conhece?

— Creio que não. Você nunca esteve em Barton-le-Cross…

— Parece que não me perdoa o fato de não ter estado lá para lhe fazer a corte, hein?

— Pelo menos teríamos nos conhecido melhor.

— Talvez. Mas eu tinha uma empresa para dirigir, e depois aconteceu aquele incêndio e meu rosto demorou um longo tempo para melhorar. Além do mais, nosso casamento já era uma coisa decidida.

— É verdade.

— Essa corrente de ouro combina com você… Mas, geralmente, as noivas recebem como presentes panelas, louças ou coisas do gênero. Quem lhe deu essa cruz?

— O filho de sir Arthur Brake — sua voz parecia tão calma que ninguém diria que, sob o vestido, o coração batia acelerado. — Sir Arthur era um grande amigo de Edith, e foi através dele que conheci o filho.

— Naturalmente — disse Malraux, levantando a taça e examinando a cor da bebida através do cristal. — Por que você não usaria um gage amour no dia de seu casamento?

— Não é um presente de amor!

— Então tem alguma significação especial, petite? Você deve saber que no coração da França ainda existe gente que se benze quando as sombras da noite caem, e o rio Loire brilha em seu leito noturno.

Glenda sustentou o olhar firme de Malraux, que levantou a taça num brinde.

— Bonheur! — os dois disseram ao mesmo tempo.

Felicidade…? Como ela poderia acreditar naquela palavra se deixara o coração com outro homem? E não havia meios de fazer com que deixasse de comparar o que sentia junto a Malraux com as emoções que experimentara ao lado de Simon.

O rapaz tinha colocado aquela corrente em seu pescoço e, fitando-a com adoração, dissera:

— Use esta cruz e saberei que está pensando em mim, mesmo se casando com ele! Se Shakespeare fosse o autor de nossa história, eu a mataria em vez de permitir que levasse adiante este maldito juramento!

Glenda tomou um longo gole para abafar a angústia que a invadiu naquele momento.

— Não se toma um Montrachet como se fosse refrigerante! — protestou Malraux.

— Minha garganta estava seca e…

— E seus olhos parecem meio chorosos… Foi uma pena que sua mãe não estivesse a seu lado, mas restou-lhe alguns amigos, como sir Arthur e seu filho.

Glenda olhou para o marido, mas o rosto dele estava impenetrável.

— Vamos jantar — disse ele. — Estou faminto!

A refeição começava com trufas com creme, e Malraux observava enquanto ela comia, deliciada.

— Há uma crença de que as trufas eram a comida dos reis. Um alimento afrodisíaco que torna as mulheres mais ternas e os homens mais apaixonados.

— É por isso que as estamos comendo hoje? — perguntou ela, apenas para não ficar calada.

Não podia ter esperanças de que ele a quisesse com paixão. Sabendo que não havia amor entre os dois, ele a trataria como se a tivesse adquirido num mercado de escravas… O que de certo modo era verdade, pois ela estava pagando as contas de Edith Hartwell e até as suas próprias. Tinha sido com o dinheiro dos Malraux que ela a educara, mandando-a para os melhores colégios; que lhe presenteara com roupas luxuosas e elegantes, além das viagens ao exterior e festas requintadas. Edith insistira para que ela debutasse, um costume entre as pessoas da alta classe média, a que Glenda passou a pertencer após a adoção.

Tudo fora muito bom e proveitoso, mas na mente de Glenda sempre esteve presente a idéia de que tudo aquilo teria que ser pago… Até que um dia ficou sabendo, pela boca de Edith, qual era o preço. Quis protestar, resistir, pensou até em fugir, pois já naquela época seu coração batia mais depressa quando o telefone tocava, esperando que fosse Simon. Durante a temporada em que debutou, Edith tinha alugado um apartamento em Londres, mas logo percebeu que ela estava se apegando a Simon, e assim voltaram rapidamente para Barton-le-Cross.

— Você tem que se lembrar de que já está prometida a alguém — Edith lhe dissera, com muito tato. — Sei que Simon é atraente, especialmente de uniforme, mas os Brake não têm dinheiro!

Glenda comeu rapidamente dois corações de alcachofra, quase sem apreciar a comida que estava excelente.

“Por onde eu andaria agora, se Edith Hartwell nunca tivesse visitado aquele orfanato?”, pensou.

Como sua vida teria sido diferente! Muito provavelmente seria agora uma datilografa num escritório sem vida, ou mesmo uma operária numa fábrica.

Nunca teria ido a festas no Claridge, nem a chás no Ritz, na companhia de um elegante oficial da Guarda Real Inglesa.

Mas também não teria sido obrigada a casar-se com um completo desconhecido.

O homem a quem amava estava distante, e havia assistido ao seu casamento com aquele outro, meio francês, alto e magro, o rosto deformado por uma cicatriz.

Será que Glenda tinha tido a louca esperança de que, quando o padre perguntasse se havia algum impedimento para aquela união, Simon se adiantasse e dissesse a todos que aquela mulher lhe pertencia?

Porque era esse o sentimento de Glenda em relação a ele, desde a noite em York… Aquela noite em que desabara uma violenta tempestade sobre os campos do Yorkshire.

Lágrimas de saudade desciam pelo seu rosto no momento em que estendeu a mão para a taça de vinho e tomou a bebida. Ainda bem que Malraux se virará de costas e estava preparando um prato especial, na mesinha ao lado.

Ele contava que um amigo, dono de um restaurante, é quem o havia ensinado a fazê-lo:

— Logo depois de meu acidente, Raf chegou à conclusão de que, se eu não me distraísse, poderia sofrer um distúrbio nervoso. Foi então que teve uma idéia simples, mas que funcionou: ensinou-me a cozinhar e especialmente a fascinante arte de fazer crêpes-suzette. Voilà!

Virou-se com a frigideira na mão, e havia um perfume acre de laranja e conhaque desprendendo-se das deliciosas panquecas em chamas. As labaredas dançavam alegremente, iluminando o rosto marcado de Malraux, enquanto ele se curvava sobre o prato de Glenda.

— Se um dia a fundição falir, já sei o que vou fazer. Vou virar um chef de cuisine.

— Você não tem o menor jeito de cozinheiro.

— Pareço com o que, então?

Se tivesse coragem Glenda diria que ele era uma sombra escura que tapara a luz do sol, roubando-lhe as horas que podia passar ao lado do homem a quem amava.

A tristeza de se ver ali, com Malraux, quando queria estar com outro a dominou. Por que Simon a deixara se casar? Como podia ter permitido aquilo, quando tinha dito que a amava?

— Coma seu crêpe enquanto ainda está quente.

Ela pegou o garfo e obedeceu.

— E então, qual é o veredito? — perguntou ele.

— Delicioso.

— Você diz isso sem a menor alma…

— Mas o que queria que eu dissesse? Quer que eu pule de alegria?

— Não seja infantil…

— Só por não ter ficado radiante ao comer uma panqueca?!

— Obrigado, minha querida, pelo entusiasmo — abruptamente ele estendeu a mão e segurou-lhe a corrente de ouro. — Não falei muito sobre isto, mas não quero que a use outra vez.

— Eu… eu a usarei quando quiser!

— Não. Se lhe digo para não usar, é isto o que quero!

— Não vou permitir que mande em mim…

— Não pretendo mandar em você, mas também não quero ter uma esposa que use uma cruz que a faz lembrar-se de outro homem. Entendeu?

Ela umedeceu os lábios secos com a ponta da língua.

— Esta corrente é um presente e gosto muito dela. Hoje em dia as esposas não recebem mais ordens para usar isto ou aquilo! A Idade Média já acabou há muito tempo.

Os dois olhares se enfrentaram, e ele sorriu levemente:

— Seu gênio combina com esse seu cabelo vermelho. Você se parece com uma raposa, com fogo dentro do coração. Tenho dúvidas se não preferia que você tivesse crescido tagarela como era quando menina. Talvez hoje gostasse de forrar os móveis com fazendas estampadas de flores e adorasse comer enormes bolos de creme.

— Qual é a diferença entre bolos e crêpes-suzette?

Percebeu que ele fazia esforço para manter o controle, enquanto retirava a frigideira da mesa.

— Você era uma criança meiga, ou minha memória está me pregando uma peça?

Glenda sentiu o coração bater mais depressa… E se lhe contasse agora que nunca tinha estado antes naquele castelo, e que não soubera de sua existência até ser uma adolescente? Qual seria a reação dele? Será que pediria a anulação do casamento? Ele aproximou-se dela, seu vulto negro a separando de tudo.

— Meiga ou não, você agora é minha, petite sorcière.

— Eu não…

Malraux a silenciou, colocando o dedo sobre seus lábios.

— Não insista em discutir comigo, minha querida. Existem mulheres que são belas por causa do tom alvo e acetinado da pele, em contraste com os cabelos que captam luzes e sombras. Você tem uma beleza estranha, Glenda, e é uma qualidade que eu gostaria que nossos filhos herdassem.

— Malraux, por favor, me escute…

— Quieta! Desta vez silenciou-a com um beijo, fazendo-a levantar-se da cadeira e tomando-a nos braços. Apagou as velas e carregou-a, pela escada iluminada pelas arandelas, até o quarto de dormir.

 

Malraux ficou parado ao lado da imensa cama, e tudo que Glenda pensava naquele momento é que não iria se entregar à um homem que não amava. Lutaria, pelo menos!

— Há uma coisa que você não sabe… tem que me escutar!

— Agora não é hora de conversar, chérie.

Sua mão alcançou o zíper do vestido dela e o abriu.

Sentindo a roupa escorregar a seus pés, ela gritou:

— Nunca terá certeza de que o filho é mesmo seu!

— O que está dizendo?!

— Eu… eu dormi com Simon — disse, recolocando o vestido.

Imediatamente ele a encarou com seus olhos cinzentos e gelados, mas que queimavam como fogo.

— Diga isso outra vez!

— Eu dormi com Simon — ela repetiu de um só fôlego, e em parte estava dizendo a verdade.

— E melhor que esteja mentindo, Glenda — ameaçou ele, os dedos duros enterrados na carne macia, o rosto tenso, as cicatrizes parecendo ainda mais sinistras.

— Você bem que podia ter desconfiado. Ele é atraente demais para uma moça dizer… dizer “não”. — E, com fria deliberação, pousou o olhar no rosto repuxado e deformado. — Conheço Simon há muito tempo, e me apaixonei por ele desde o primeiro encontro. Nunca contei nada a Edith… minha mãe, porque ela teria ficado abalada, mas depois de sua morte… Bem, não conseguimos mais dominar a paixão que sentíamos…

— E quando essa louca paixão chegou ao seu clímax? — perguntou Malraux com a voz carregada de sarcasmo, enquanto os dedos subiam Pelos ombros dela e paravam em volta do pescoço claro e delicado.

— O pai de Simon tem uma casa em York, e… e depois da morte de minha mãe fui até lá, passar alguns dias. Aconteceu… estas coisas acontecem.

— Foi arrebatada pela paixão e pela figura galante de seu galã? Mas que romântico!

— Isso mesmo! — Na verdade ela havia passado uma noite inteira com Simon, que a tinha convidado para um passeio a cavalo pelos campos.

Então, como se fossem poucos todos os conhecimentos daquela semana, eles foram surpreendidos pela pior tempestade que já se abatera sobre o York, em vários anos. Abrigaram-se numa velha cabana abandonada, cheia de ratos e teias de aranha, e a chuva continuava a cair, como se o céu todo estivesse sendo despejado naquele lugar.

Não havendo possibilidade de voltar para casa até que o temporal amainasse, Simon levou os cavalos para dentro da cabana para protegê-los dos raios e dos trovões que os assustavam. Depois acendeu um fogo na velha lareira e, abraçados para se aquecerem, eles jantaram duas barras de chocolate. Quando Glenda ficou sonolenta, ele a convenceu a dormir um pouco, e somente a acordou quando a tempestade tinha passado.

Os dois voltaram para casa às quatro da madrugada, encontrando pelo caminho pássaros mortos e galhos de árvores. Antes de entrarem, Simon a abraçou e beijou. E nesse dia ele falou pela primeira vez que desconfiava de que estavam apaixonados.

— Está me contando que Simon, foi seu amante? — As palavras de Malraux interromperam seus pensamentos.

— Sim! — ela respondeu com convicção. O que era mais uma mentira entre tantas? Sua vida tinha sido um rosário delas. E pelo menos nesta havia uma ponta de verdade… Talvez Simon e ela pudessem ter se amado, se ambos não tivessem medo do fantasma de Edith, presente ali na cabana.

— Sua vigarista! — Glenda enfrentou-o desafiadora, esperando pelo bofetão, mas ele deixou cair os braços e depois ergueu a mão até o lado esquerdo do rosto, como se quisesse esconder as cicatrizes. Os dois se encararam, num silêncio mortal. Ela ainda sentia medo, mas estava contente por tê-lo convencido de que Simon a tinha possuído antes de ele exigir seus direitos de marido; antes de forçá-la a dar-lhe um filho, que seria educado para um dia assumir o comando de todo aquele império, da mesma forma que Malraux fora treinado pelo avô.

— Como você disse, eu nunca poderia ter certeza que o filho era meu — disse Malraux, sombriamente.

Nunca em sua vida Glenda tinha sido tão cruel. Mas precisava se defender; fazer o impossível para preservar seu amor por Simon. As palavras do jovem oficial lhe vieram a mente: “Sinto que você me pertence. E nada poderá nos separar''.

— Malraux, deixe-me partir. Vamos anular o nosso casamento.

— Não! Não vou devolvê-la ao seu belo amante. Você vai ficar aqui no Château Noir, com seu marido feio. As pessoas nos apontarão nas ruas e seremos conhecidos como a Bela e a Fera. A partir de agora sua vida será um inferno.

Encaminhou-se para Glenda, que alimentava a esperança de que ele não fosse tocá-la, contentando-se apenas em ofendê-la.

Sua intenção, porém, não era essa. Depois de trancar a pesada fechadura, ele voltou-se, os olhos brilhando de crueldade, enquanto os dela expressavam terror.

— Só existe uma maneira de se lidar com mercadorias falsificadas que chegam às nossas mãos: sem o menor cuidado! É assim que vou tratá-la, Glenda.

Avançou sobre ela, segurando-lhe o vestido pelo decote e rasgando-o de cima a baixo, como se fosse papel. Peça por peça, tudo foi estraçalhado e atirado ao chão, e ele não parecia se importar com a repulsa estampada no rosto de Glenda. Da mesma forma, não demonstrava sentir os arranhões e pontapés que ela lhe infligia, em completo desespero naquela batalha desigual.

— Estuprador! — Esse grito histérico escapou-lhe da garganta no momento que foi jogada sobre a cama, e teria atravessado as paredes, se não fossem de pedra. Defendendo-se com unhas e dentes, Glenda trouxe do passado todas as palavras de baixo calão que aprendera no orfanato, onde crianças de todas as origens estavam misturadas. Naquele instante ela era uma criatura enlouquecida, presa numa armadilha, desejando escapar a qualquer custo.

— Você parece ter vindo da sarjeta — disse Malraux, prendendo-a debaixo de si, e parecendo se excitar com a luta. — Mas que língua suja! O que estava pensando pela manhã, parecendo tão pura ao meu lado? Achou que eu iria tratá-la com delicadeza? Que o que precisava fazer era dizer que sentia muito, mas gostava de outro homem, e que, por favor, eu me afastasse? Se não fosse por esses palavrões, minha cara, eu acharia sua inocência surpreendente. Não admira que o encantador capitão Brake tenha achado tão fácil seduzi-la!

— Simon não é como você! Ele não é um bruto sem sentimentos.

— Pode ficar descansada porque tenho sentimentos, Glenda, e você partilhará deles. Vai partilhar até o fim!

— Prefiro morrer!

Ele ainda não tinha conseguido dominá-la, e se tudo que podia fazer era feri-lo com palavras, era isso o que faria!

— Seu rosto deformado me dá asco! E se precisa mesmo me possuir, por favor, apague a luz!

O sangue pareceu sumir da pele bronzeada, e as cicatrizes ficaram mais lívidas. Ele estava completamente imóvel e só havia vida nos olhos, que brilhavam febris, mostrando um ódio tão intenso que involuntariamente ela teve que fechar os seus. Ficou esperando pela surra… Ou até que ele a estrangulasse.

— Dieu! Você tem uma língua de víbora!

Soltou-a de repente, como se estivesse enjoado, e saiu da cama deixando-a deitada, os braços abertos, os cabelos espalhados em volta do rosto.

Com os olhos semicerrados, ela o viu parado ao lado da cama, alto e moreno, o rosto na sombra.

— Por que se casou comigo, Glenda? Os Brake estão muito sem dinheiro?

— Foi a vontade de Edith… de minha mãe, antes de morrer — respondeu, tentando se cobrir com a colcha de renda. Não agüentava mais sentir o olhar dele sobre o corpo nu.

— Mas que comovente! Naturalmente não tinha nada a ver com dinheiro…

— Não somos mercenárias!

— Edith… sua mãe… foi generosamente contemplada no testamento de meu avô.

— Eu sei… E você conseguiu o que queria: o castelo.

— E a pobrezinha da Glenda foi arrancada dos braços de seu soldadinho! Estou penalizado! Ele ficou imóvel na igreja, enquanto você se tornava minha esposa. Francamente, se eu amasse uma mulher não permitiria uma coisa dessas! Eu a roubaria daquele altar, ou então partiria para bem longe. Mas… existem mulheres muito tolas. Bem, não ficarei para perturbar seus sonhos. Não quero que tenha um pesadelo — acrescentou, irônico.

Desapareceu pela mesma porta que havia trancado anteriormente, e o quarto ficou em silêncio. Glenda mal podia acreditar que estava sozinha, e por algum tempo seu coração ainda bateu acelerado.

Encolhida debaixo da colcha, de vez em quando seu corpo era sacudido por um tremor. Oh, Deus, como pudera ter sido tão cruel com alguém, como havia sido com Malraux, naquela noite? Amargurava-se com o próprio comportamento e tinha certeza de que, enquanto vivesse, não se esqueceria do brilho amargo daqueles olhos negros e profundos.

Tarde da noite sentiu o perfume de um charuto, e voltou a ficar tensa. Mas logo percebeu que Malraux estava no balcão do quarto dele e o vento trazia-lhe aquele aroma pelas janelas abertas.

Permaneceu ainda muito tempo se revirando na cama sem conseguir dormir e viu o dia começar a clarear. Só adormeceu de manhã, e acordou ao meio-dia, quando a sua criada particular entrou no quarto.

— Madame descansou bastante — disse Fleur, com um sorriso malicioso, enquanto abria as cortinas, e deixava o sol iluminar o quarto. — Monsieur saiu a cavalo, e avisou que eu não a incomodasse.

Glenda sentou-se na cama mas ao ver as roupas rasgadas no chão, e se lembrar de que estava nua, ficou muito vermelha.

A criada pegou o vestido com uma expressão de espanto e deu uma olhada para Glenda, que se metia depressa no penhoar de rendas.

— Madame, veja só como ficou seu vestido!

— Eu sei, Fleur.

Dirigiu-se para a penteadeira e começou a desembaraçar os cabelos, pensando nos mexericos que a criada espalharia para as outras empregadas do castelo. Com certeza elas achariam excitante que o marido estivesse tão desesperado para fazer amor com a esposa que não tivera paciência para deixá-la despir-se.

— Quer que tente consertá-lo, madame?

— Não. Pode jogá-lo fora. Acho que esse aí não tem mais jeito.

Da mesma maneira que aquele casamento… Para ela, o pagamento de uma dívida de honra da mãe; para Malraux, uma condição para se apossar do castelo.

— O tecido era tão bonito… — comentou Fleur, passando a mão pela saia longa. — Deseja que eu ponha a banheira para encher, ou prefere uma ducha?

— Prefiro a ducha. — Glenda achou que não havia razão para pedir a Fleur que não fizesse comentários sobre o vestido rasgado. A moça parecia aceitar o fato como uma demonstração de paixão, sem dúvida teria ficado atônita se imaginasse os acontecimentos da noite anterior.

Depois do banho, Glenda foi até o armário escolher a roupa que usaria no almoço com a família. Temia aquele momento, mas tinha que enfrentá-lo. Mais tarde encontraria uma oportunidade para falar em particular com Malraux sobre sua volta para a Inglaterra, pois estava decidida a não permanecer ali. Ele conseguira o que queria com aquele casamento horrível, e não poderia negar-se a atender seu pedido.

Graças à generosidade de Edith, Glenda tinha lindos vestidos, e depois de alguns momentos de indecisão, escolheu um branco, de pintinhas negras, simples mas muito elegante. Escovou os cabelos com força, até deixá-los brilhantes, e em seguida fez uma leve maquilagem.

— Será que estou bem? — perguntou, sentindo-se um pouco nervosa. Tinha tomado somente uma xícara de café, e sabia que toda a família a esperava para o almoço.

— Madame está muito elegante.

— Onde aprendeu a falar inglês, Fleur?

— Monsieur sempre tem hóspedes ingleses visitando o castelo, além dos parentes por parte do pai. A irmã viúva também mora aqui, com o filho Robert, como já deve saber.

Glenda já tinha ouvido falar dessa irmã, chamada Jeanne Talbot. Há poucos anos ela sofrerá um acidente e ficara muito ferida, enquanto que o marido americano morrera. Os dois estavam de férias na Flórida, e tinham se hospedado num hotel servido por elevadores expressos. Numa noite, um dos elevadores falhou e despencou até o chão, matando a maior parte dos passageiros e ferindo dois deles. Jeanne tinha escapado porque o marido a protegera com o próprio corpo. Mas, segundo Edith, seus nervos estavam destruídos.

Fleur entregou a Glenda o vaporizador negro que pertencera a Edith. Continha ainda um resto de perfume Arpège, que fora sua marca favorita. Glenda perfumou-se, sentindo mais vivida a lembrança daquela que havia transformado tanto a sua vida. Edith tinha um ar dos anos trinta, usava roupas e penteados daquela época. Glenda nem ousava pensar quanto custara à família Malraux aquele estilo de vida.

Glenda olhou sua imagem no espelho e viu uma jovem elegante sofisticada. Afastou-se da penteadeira, sentindo um gosto ácido na boca. As palavras amargas que dissera a Malraux tinham deixado aquele sabor…

— É melhor que venha comigo para me mostrar o caminho, Fleur. Tenho medo de me perder. Não sabia que o castelo era tão grande!

— Mas a senhora esteve aqui quando era criança, não?

— Oh, o tempo apaga muitas coisas.

Sentia-se cada vez mais nervosa, o coração quase parando no peito. Era doloroso ter consciência de estar vivendo uma farsa e notar a cada instante que se encontrava mais presa à teia de mentiras. Tinha que se libertar daquilo tudo. Olhando o vestido rasgado que Fleur carregava no braço, voltou-lhe à lembrança as palavras cruéis que havia trocado com o marido e seu olhar angustiado, quando ela afirmara que não suportava ver o rosto deformado.

A criada a conduziu pelas escadas da torre, e depois por um enorme pátio de pedra, até uma porta oval, que estava entreaberta. Sobre a porta havia um entalhe em pedra representando pássaros com longos bicos, e gárgulas por onde as águas escorriam. Misturadas à folhagem, viam-se algumas letras, que provavelmente faziam parte do brasão do primeiro dono daquele castelo.

No hall imponente, o sol penetrava pelas janelas góticas, iluminando as pesadas arcas de madeira maciça, as armaduras dos cavaleiros e os elmos inclinados para as enormes espadas.

Glenda ficou encantada com aquele ambiente medieval, realçado por enormes candelabros que pendiam de grossas vigas de madeira escura. No centro do hall havia ainda uma escada da mesma madeira escura, coberta por um tapete vermelho vivo.

O efeito era de uma viagem no tempo. Todas as marcas do mundo moderno pareciam distantes daquele castelo que, do alto dos montes rochosos onde se erguia, observava o Loire, resistindo aos séculos, imutável.

Não era de admirar que Malraux d'Ath quisesse tanto aquela fortaleza para si, assim como não era surpreendente que achasse um casamento sem amor um preço aceitável!

Mas Glenda não podia aceitar aquilo… E, se ele a deixasse partir, voltaria para Simon, finalmente desobrigada de seu compromisso com Edith Hartwell.

Estremeceu quando Fleur tocou em seu braço.

— Madame, aquela entrada é a do salão. A família já deve estar esperando para o almoço.

— Obrigada, Fleur. Reunindo a coragem de que dispunha, Glenda atravessou o hall até a porta oval, como as outras. Ao transpor o umbral da porta, imediatamente as pessoas que estavam lá dentro se calaram, dirigindo seus olhares para ela, examinando-a da cabeça aos pés. Sua vontade era sair correndo.

— Enfim chegou, ma chère.

Em trajes de montaria, a figura alta e elegante de Malraux se destacou do grupo e veio em sua direção.

— Estive contando que você quis descansar um pouco, esta manhã. Está mais disposta agora, chérie?

Glenda enrubesceu e ficou ainda mais desconcertada ao perceber seu olhar ameaçador. Ele estava de costas para a família e, quando se inclinou para beijá-la, não foram doces as palavras que sussurrou:

— Não ouse demonstrar nada!

Sabendo que devia fingir que tudo estava bem entre os dois, ela se deixou conduzir pelo braço até seus familiares. Mas por que ele continuava com aquela encenação depois dos acontecimentos da noite anterior? Aquilo não tinha sido suficiente para conscientizá-lo de que não podiam viver sob o mesmo teto?

— Ma chère, quero apresentá-la à minha tia Héloise, que sentiu muito não poder estar presente ao nosso casamento. Tante, esta é Glenda.

A velha senhora tinha um rosto pálido. Vivia à base de analgésicos desde que sofrerá o acidente em que fraturara a bacia. Mas seus olhos eram muito doces. Estava com um elegante vestido escuro, enfeitado com uma linda gola de rendas e usava um par de brincos de pérolas. Sua aparência era a de quem nunca precisou se preocupar com a sobrevivência e sempre dispôs de todo conforto.

— Ouvi dizer, minha querida, que você estava uma noiva deslumbrante. Gostaria muito de ter podido ir. A igreja era muito antiga e bela, não? Mas não faz mal, verei as fotografias.

Ao ouvi-la, Glenda lembrou com saudades de Edith. Então, com um movimento instintivo, abaixou-se e beijou-lhe o rosto. Surpreendida por aquele gesto, Héloise exclamou:

— Minha filha!

E abraçou-a com muito carinho. Glenda sentiu pena dela. Aquela mulher sempre fora mimada e protegida, mas agora vivia um momento de solidão tendo que enfrentar sozinha uma convalescência difícil.

Logo depois foi reapresentada a Renée e Rachel, primas de Malraux, que haviam assistido à cerimônia, mas que tinham voltado imediatamente para a França. Eram gêmeas, mas completamente diferentes uma da outra. Rachel possuía cabelos negros, um corpo bonito, e trabalhava como secretária para a Companhia Malraux. Renée, mais exuberante, não quis ficar na empresa da família e conseguiu um emprego numa fábrica de vinhos. Ela criticara o champanhe servido no casamento, e Malraux tinha rido e comentado que o fato de ela gostar tanto de seu patrão não tornava seu vinho de melhor qualidade.

— Apreciei muito seu vestido de noiva, Glenda — disse Rachel, a voz fria e controlada, combinando com sua aparência. — Um estilo clássico e despojado mas de muito efeito, especialmente porque realçava seus cabelos. Esse tom avermelhado é natural?

— Claro que é natural! — interferiu Malraux, impaciente. — A cor dos cabelos de Glenda era exatamente esta, quando ela esteve aqui, um pouco antes de nosso avô morrer.

Raquel continuou:

— Je suis desolée. Tenho a impressão de que o irrito, mas suponho que no início os maridos tendam a achar que as esposas não têm defeitos, mesmo quando o casamento é arranjado — e olhando novamente para Glenda: — Não se costuma fazer isso em seu país, não é? Vocês acreditam que é preciso haver amor para duas pessoas se casarem…

— O que a faz supor que Glenda e eu não estamos apaixonados?

Um risinho cínico se desenhou nos lábios da prima.

— Nunca o achei capaz de gostar de alguém, Malraux. Você só se preocupa com os negócios… Mas, diga-me uma coisa, Glenda: quem era aquele rapaz alto, loiro e tão encantador, que estava no lado direito do altar? Não pude deixar de notá-lo! E nas duas ou três vezes em que o observei percebi que ele tinha os olhos grudados em você. E seu parente ou algum amigo muito próximo?

Malraux ouviu impassível a resposta diplomática da esposa:

— O pai dele foi um grande amigo de minha mãe. Ele é filho de sir Arthur Brake, que me entregou ao seu primo.

— Entretanto… — Rachel observava com atenção o rosto de Glenda. — É uma palavra curiosa essa que você usou. Sente-se realmente como se tivesse sido entregue a alguém?

— Você faz perguntas demais, prima. Devia ter ido trabalhar no Departamento do Imposto de Renda. Vamos, Glenda, quero que conheça agora minha irmã.

Foi um alívio ser afastada daquela moça curiosa, que tivera muita Percepção e tirara conclusões com que agora atormentava Malraux. Sim, disse Glenda a si mesma, aquela jovem morena, bela e elegante parecia estar intimamente magoada com o casamento do primo. Os sentimentos que nutria por ele deviam ir muito além do parentesco que os unia.

Glenda olhou de soslaio para o marido, reparando no corpo bonito e bem proporcionado, no sombrio orgulho do rosto… o rosto que Rachel conhecera antes de ter sido marcado pelo fogo.

Jeanne Talbot não se parecia com o irmão. Seus cabelos eram prateados, o rosto bonito e delicado, mas não havia vida nos olhos e ela parecia estar a quilômetros dali.

Um menino tristonho estava sentado ao seu lado no sofá. Quando ele levantou os olhos do livro que estava lendo, Glenda ficou perturbada. Nunca tinha visto uma criança com expressão tão melancólica. Aquele garoto jamais se afastava da mãe, que tinha um medo mórbido de perdê-lo.

— Esta é sua nova tia, Robert. Espero que se tornem amigos — Malraux os apresentou.

“Por favor, não diga isto. Vou deixar você ainda hoje”, pensou ela. O garoto ficou de pé e se inclinou com cerimônia.

— Como vai?

— Estou contente por conhecê-lo, Robert — disse Glenda, tocada por suas maneiras sérias e contidas, como se fosse um adulto.

— Você ainda sente o mesmo encantamento pelo castelo? — perguntou Jeanne, de uma maneira apática.

Imediatamente Glenda ficou alerta. Aquela observação a prevenia de que a verdadeira Glenda a tinha conhecido quando criança.

— O Château Noir tem uma beleza indiscutível — murmurou.

— Acho que seria uma ótima idéia se Robert a levasse para dar uma volta pela propriedade, depois do almoço. Você precisa se reencontrar com seu novo lar — sugeriu Malraux.

“Não! Este lugar nunca será o meu lar, porque não ficarei aqui.”

— Talvez Robert tenha outra coisa que prefira fazer — disse em voz alta.

— Nada disso, chérie. Ele precisa tirar o nariz de dentro dos livros e vai gostar do passeio. Leve-a até os estábulos, Robert, e mostre a ela o salgueiro que a lenda conta que nasceu no lugar onde feiticeira foi queimada. Quando criança você também deve ter visto a árvore, Glenda, e escutado a história.

— Está bem — ela cedeu — Mas… gostaria de falar com você em particular mais tarde, Malraux.

Ele deu um sorriso irônico.

— Quer mesmo? Teremos todo o tempo do mundo para isso. Estou envaidecido de que deseje ficar sozinha comigo.

 

Quando o gongo soou, anunciando que o almoço estava servido, Glenda teve um sobressalto. Malraux ofereceu-lhe o braço.

— Você deve estar faminta. Vamos.

Ela não podia resistir à sua autoridade, e não havia nada que pudesse fazer naquele instante, a não ser acompanhá-lo até a sala de jantar e sentar-se a seu lado, na enorme mesa oval.

O ambiente era mobiliado em estilo provençal, e a decoração devia ter sido feita depois que a família Malraux adquirira o castelo. As janelas abertas davam para um pátio onde havia uma fonte.

Será que Edith e a filha tinham jantado ali, depois do casamento ter sido acertado com Duval Malraux, um homem determinado a dominar a vida de seus herdeiros mesmo depois de morto?

Glenda olhou para o marido e, vendo sua expressão absorta, perguntou-se no que ele estaria pensando. Estaria também recordando o acontecimento que decidira seu futuro e o obrigara a receber uma mulher completamente estranha como esposa?

Tentou concentrar-se na refeição e tomou seu creme de cogumelos, escutando sem interesse a conversa de Renée, que falava sobre um homem chamado Jacques.

— Vamos ser obrigados a ouvir histórias sobre esse vinhadeiro durante todo o almoço? — perguntou Rachel.

— Com ciúmes porque ninguém está interessado em você? — retrucou a irmã com um sorriso de vingança nos lábios. — Todo mundo está sabendo o quanto ficou decepcionada, querida!

— Cale essa boca, senão… Ou acha que alguém aqui acredita que um homem em seu juízo perfeito pode querer você? Desconfio que tudo isso não passa de imaginação sua…

— Você é quem vive imaginando coisas e…

— Não diga bobagens!

A voz irritada de Malraux as interrompeu:

— Que discussão é essa? Vocês duas não conseguem concordar em nada, e ainda resolvem brigar diante de todos, na hora do almoço? Glenda vai pensar que nossa família é um enxame de vespas!

— E será que ela tem medo de ferroadas que possam marcar sua pele de lírio? — era evidente a má vontade de Rachel para com Glenda.

— Se perturbar minha esposa vai ter que se ver comigo!

— Que mandão, Malraux! Só espero que as moças inglesas não gostem de receber ordens. Você está calada, Glenda, mas gostaria de saber o que pensa a respeito.

Glenda ergueu a cabeça e encontrou o olhar de Rachel, fixo nela.

— Não creio que aqui na França seja diferente, mas acho que a maioria das mulheres inglesas gosta de homens dominadores, desde que eles reconheçam nela uma pessoa, não uma propriedade.

— Está escutando, Malraux? Espero que concorde com o que sua mulher está dizendo. Você sempre foi autoritário e acredito que faria qualquer coisa para ter a fundição e o Château Noir, ainda que para isso tivesse que vender a alma ao diabo.

O fato de ele sorrir e não contestar a prima, fez com que Glenda sentisse um calafrio pela espinha. Quase recusou o prato que ele lhe ofereceu em seguida:

— Prove estas ostras, estão deliciosas.

Eram enormes, servidas em bandejas com rodelas de limão. Ele lhe ensinou a saboreá-las. Era preciso retirá-las com cuidado da concha, mergulhá-las no molho e engolir de uma só vez. Convidou o sobrinho para provar uma, sob o olhar assustado da mãe.

— Cuidado para ele não se engasgar…

— Deixe o garoto em paz, querida irmã! — e olhando para Robert: — Como é, meu rapaz, gostou?

— C’est bon, mon oncle! — disse Robert sorrindo, e com a boca lambuzada de molho ele parecia um pouco mais feliz.

— Robert, limpe a boca! — ordenou a mãe. — E pare de comer essas ostras, senão vai acabar doente.

— Ora, Jeanne, não seja desmancha-prazeres!

— Como pode ser tão insensível! — respondeu ela, as lágrimas começando a escorrer, os lábios trêmulos. — Seu coração deve ter sido forjado naquela fundição… Deus queira que Glenda o agüente!

— Dieu! Mulheres são diabos! Não podemos ter uma refeição sem discussões? Glenda é quem vai começar a duvidar que possa suportar esta família! Talvez eu devesse pôr todas vocês para fora de casa, e deixar de bancar o idiota que sustenta o bando todo!

Héloise fez um ar choroso.

— E para onde eu iria, na minha idade? Não ligue para a sua irmã, Malraux. Ela vive com os fantasmas do passado, e, como eu sempre digo, isso não pode ser bom para ninguém.

— Por piedade! — exclamou Renée. — Não podemos ser mais otimistas e fingir que nos amamos?

Rachel não perdeu a oportunidade para criticar a irmã gêmea:

— Lá vem você falando de amor, outra vez. Só tem romantismo na cabeça, mas vai aprender, como todo mundo, que o amor só existe nos livros. E por isso que todos gostam tanto de lê-los, por causa dos finais felizes. A vida real não pode dar esta garantia… Olhe só o que aconteceu à pobre Jeanne.

— Jeanne precisa fazer um esforço para esquecer o que aconteceu com ela… — disse Malraux aborrecido. — Agora seria pedir muito que dessem mais atenção ao Quiche Lorraine? E quem deseja mais vinho?

— Eu não — respondeu Renée. E acrescentou: — Jacques está produzindo um vinho branco excelente. Vou pedir a ele que mande uma garrafa para você provar.

— Eu agradeço, chérie — Malraux sorriu, irônico. — Mas estou desolado que ache o vinho de minha adega inferior ao dele. E também me surpreendo que com um ano você tenha aprendido tanto sobre bebidas. Nesse passo, daqui a algum tempo será a maior autoridade sobre o assunto. Uma verdadeira conaisseur.

Rachel deu uma gargalhada gostosa e ergueu o copo para o primo, num cumprimento bem-humorado.

— Malraux não é páreo para você, querida. Acho que a língua dele também foi temperada na fundição…

— Concordo com sua irmã, Renée. Não queira correr antes de saber andar. Sei que está fascinada com o ramo de fabricação de vinhos, mas deixe que lhe conte que estudo a indústria do ferro desde adolescente e acho que ainda tenho o que aprender! Agir com cautela também ajuda nos negócios. Aceite este conselho.

— Pois eu não gostaria nada de trabalhar para você, Malraux.

— Touché — disse ele, inclinando a cabeça. Depois virou-se para Glenda: — Não fique assustada, esta família adora discutir. Você vai se acostumar a isso.

— Vou mesmo?!

— Certamente, ma chérie — pousou a mão direita sobre a esquerda dela, um gesto significativo por si mesmo. — Nós latimos mas não mordemos.

Ela gostaria de acreditar naquela afirmação, mas esperava encrenca quando lhe dissesse que ia abandoná-lo. Devia-lhe uma explicação, e perdera a coragem de simplesmente ir embora, deixando apenas um bilhete pregado em algum lugar. Em todo o caso, ele não era pessoa fácil de ser enganada, e tentar escapar sem um carro para chegar ao aeroporto seria impraticável.

Sabendo que ela era a esposa de Malraux d'Ath, os habitantes da região não teriam interesse em ajudá-la a fugir. Ele era o patrão de quase todos, e isso tornava altamente improvável que se dispusessem a enfrentar sua ira. E Glenda não tinha a menor dúvida de que, quando zangado, ele era muito perigoso.

A sobremesa era uma deliciosa torta de ameixas com chantilly e Glenda mal pôde acreditar nos próprios ouvidos quando a mãe do pequeno Robert disse que em vez do doce ele devia comer um pedaço de queijo.

Sem refletir no que estava fazendo, intercedeu pelo garoto:

— Oh, Jeanne, deixe que Robert coma um pouquinho. Está tão gostosa…

— Seria uma pena se ele perdesse os dentes. Sei o que é melhor para o meu filho, e açúcar provoca cáries. Quando você tiver os seus, Glenda, faça como quiser, e se eles acabarem com dentaduras, o problema será seu. Malraux e eu nunca comemos doces quando crianças e veja os belos dentes que temos. Pode parecer maldade, mas Robert sabe que faço isso para o bem dele.

O menino comeu o queijo sem reclamar, e aparentemente não pareceu ter vontade de provar a torta.

Respondendo ao olhar interrogativo da esposa, Malraux deu sua opinião:

— Jeanne tem razão. Algumas vezes temos que saber o que é melhor para as crianças.

Os olhos dourados de Glenda mostraram indignação.

— Pois eu acho que um pouco de mimo não faz mal a ninguém. Edith sempre me deu guloseimas e nem por isso precisei usar dentaduras. Desde que a criança aprenda a limpar bem os dentes que mal pode haver?

- Cada mãe faz as coisas a seu modo — ele falou, procurando evitar atritos. Depois, com um sorriso maroto nos lábios, completou: — Da minha parte, prometo que não vou protestar se você quiser dar a nosso filho um pouco de torta, Glenda.

Muito vermelha, ela abaixou a cabeça. Ouviu a risada de Renée.

— Você é terrível, primo. Nem bem começou a lua-de-mel e já está pensando em ser pai!

— Vamos mudar de assunto? — reclamou Jeanne, irritada. — Não somos apanhadores de uvas para estar discutindo essas vulgaridades na mesa!

— Se eles fazem isso, acho muito saudável. Mostra que são desinibidos e gozam suas vidas, coisa que você não tem coragem de fazer, Jeanne. Passa a maior parte do seu tempo enfiada na capela, acendendo velas para os mortos…

— Como ousa…?

— Mas é a verdade! — continuou Renée. — Ninguém deseja a morte de ninguém, mas essa fatalidade tem que ser aceita. Nunca teremos de volta os entes queridos que se foram, nem poderemos partilhar nada com eles. Sei o quanto amou Gilles, mas ele se foi, e você é jovem ainda e não devia continuar a se comportar como se sua vida fosse uma… uma tragédia grega!

— Como é que essa menina ousa falar assim comigo? Se qualquer um, qualquer um de vocês tivesse sofrido tanto quanto eu…

— Malraux sofreu! — interveio Rachel. — Seu rosto marcado é prova disso… Ele não precisava voltar àquela caldeira em chamas para salvar o capataz, mas voltou! Salvou uma vida, como Gilles salvou a sua, mas não posso acreditar que seu marido desejasse vê-la assim tão infeliz.

— Ele deve estar se virando no túmulo escutando como vocês me tratam! Venha, Robert, não quero que escute as palavras cruéis que dirigem à sua pobre mãe. Você sabe, chéri, como eu sofro, não sabe?

Levantou-se da cadeira e tomou o filho pela mão. Preparava-se parar sair, quando Malraux interrompeu:

— Quero que Robert leve Glenda para dar uma volta pelo castelo. Não posso fazer companhia a ela porque tenho que examinar alguns documentos no escritório. Além disso, tenho que concordar que você se esforça para ser infeliz, com essas contínuas lamentações… Isso não faz bem para o garoto, será que não percebe? Dentes! O que são dentes, comparados com uma mente sadia?

Jeanne olhou chocada para o irmão.

— Nunca esperei que se voltasse contra mim, Malraux! Mas imagino que agora que tem uma esposa não vai mais dar atenção para a irmã. Meu pobre coração despedaçado o irrita!

— Tolice, Jeanne. Sente-se aí e espere pelo café. Seja razoável, e não procure exagerar. Rachel está certa quando diz que não podemos nos enterrar vivos, por mais que veneremos nossos mortos. Gilles foi um homem maravilhoso e provou isto até o fim. Sinta-se abençoada por ter sido amada por ele, e aceite sua morte. Ele não gostaria de vê-la assim, sabe muito bem disso!

— Sei…? — perguntou ela, crispando o rosto que um dia fora belo, mas que agora estava cheio de desespero com as rugas vincando os cantos da boca.

Glenda estava surpreendida pelo amor apaixonado que existira entre Jeanne e o esposo; uma capacidade de dedicação que provavelmente também corria nas veias de Malraux. Do marido que ela não queria.

Malraux se levantou, moreno e perturbador, com seu culote negro e botas que chegavam até os joelhos, a fina camisa de seda moldando os ombros musculosos.

— Jeanne, insisto que pare de se atormentar por não ter morrido com Gilles. Foi o destino.

Glenda sentiu o coração bater surdamente no peito quando ele se aproximou da irmã e a abraçou.

— Aceite o que lhe aconteceu, ma belle. Aceite ou será destruída pela dor, e então o que será de Robert?

Jeanne apoiou a cabeça contra a seda negra de sua camisa, o corpo frágil, visivelmente agitado. Ele acariciou-lhe os cabelos, sua mão curtida pelo sol contrastando com o prateado dos cabelos dela, o corpo forte enfatizando a fragilidade da irmã.

— Não sou insensível, Jeanne, acredite. É meu rosto marcado que cria esta imagem.

— Oh Mall… será que nossa família foi amaldiçoada? Olhe só como nossos pais morreram! E depois, quando tudo parecia esquecido… aconteceu novamente! O que virá agora? Tenho receio de que ocorra algo de mal com meu filho. Você não agiria como eu ajo?

— Não sei. É claro que você se preocupa com Robert, mas ele precisa aproveitar a infância, ou depois terá queixas, quando for homem. Não deseja isto, deseja?

— Eu… não quero que nada lhe aconteça. Ele é tudo o que me restou de Gilles, e tenho que evitar que alguma maldição que exista sobre a nossa família…

— Não existe maldição alguma! Tragédias acontecem em todas as famílias. Agora tome seu café e vá descansar, enquanto Robert faz companhia a Glenda. Que mal pode haver em que eles passem a tarde juntos?

Sem parecer convencida, Jeanne se sentou novamente. Robert segurou sua mão e olhou preocupado para ela.

— Posso ir com Glenda, mamãe?

— Você quer ir, chéri?

— Sim… se não se importar…

— Então faça o que seu tio pede. E você, Glenda, quero que me garanta que não vai deixar Robert fazer travessuras.

— Tenho certeza de que seu filho é bem-comportado.

Mas pensava que seria até bom para o seu desenvolvimento se ele fizesse alguma traquinagem de vez em quando.

O garoto possuía um sorriso meio misterioso, algo parecido com o de Malraux. Era possível que este, quando tinha a sua idade, se parecesse com ele, embora Robert fosse mais claro.

Malraux tinha a pele morena, que tornava os olhos cinzentos ainda mais penetrantes. Quando rapazinho, ou mesmo adulto, antes do acidente, devia ter sido extremamente atraente, o bastante para encantar a verdadeira Glenda Hartwell. Ele se lembrava dela como uma menina muito precoce, fascinada pela idéia de morar um dia no castelo. Era trágico pensar que uma garota tão cheia de energia tivesse morrido tão cedo. Será que Jeanne tinha razão, e todos os que se aproximavam da família Malraux também se tornavam vítimas de uma terrível maldição?

De acordo com a lenda, uma jovem mulher, que acusavam de ser feiticeira, tinha sido queimada viva nas terras do castelo. Será que a nuvem negra, que se erguera das chamas daquela fogueira, pairava há séculos, como uma praga, sobre os moradores do Château Noir?

“Oh, isto é uma superstição absurda”, pensou Glenda. Ela estava deixando que a imaginação se soltasse porque Malraux d'Ath tinha o rosto quase destruído pelo fogo, e porque Jeanne Talbot escapara da morte nos braços do marido, sendo resgatada dos escombros ainda agarrada ao morto.

No entanto, olhando para os dois irmãos, não pôde deixar de pensar que era impressionante como a tragédia se abatera sobre ambos. Era plausível acreditar que aquele castelo tinha sido amaldiçoado por uma jovem mulher, torturada até sofrer uma morte terrível!

A família se dispersou logo depois do café, e Glenda viu-se acompanhada pelo sobrinho do marido, num passeio pelos arredores do castelo.

Ela pedira para ver primeiro o salgueiro da lenda, e agora os dois estavam sob os galhos verdes. Tudo parecia muito quieto, como se nenhum pássaro ousasse ir cantar naquela árvore.

Logo uma mãozinha agarrou a sua, trazendo-a de volta ao presente. Robert a olhava, os expressivos e solenes olhos castanhos fixos nela.

— Existem bruxas? — perguntou ele, muito sério.

— Somente nas nossas cabeças, Robert. A gente acredita em todo tipo de fantasias, e de certa maneira isso é bom. Mostra que temos mentes ativas, e que não somos insípidos, gente sem imaginação.

— Você se parece com a feiticeira do quadro que está na biblioteca.

— Muito obrigada, rapaz!

— Ela é muito bonita e tem cabelos ruivos, como os seus.

— Depois você me mostra esse quadro. Vamos passear um pouco. Caminharam pela grama aveludada, passando ao largo da quadra de esportes, e atravessaram o campo de alvos para prática de arco-e-flecha, até chegarem aos estábulos.

Lá havia os mais belos cavalos que Glenda já vira. Um deles, negro brilhante, colocou a cabeça sobre a meia porta do compartimento e ela o acariciou. Surpreendeu-se ao ouvir uma voz avisando que tivesse cuidado.

Um homem de culotes, as pernas em arco, veio ao seu encontro.

— É perigoso aproximar-se de Armide, madame. Ele é imprevisível, arisco, e não faz muito tempo deu uma mordida num dos cavalariços.

— O animal parece calmo, monsieur. Talvez o rapaz o tenha irritado. Continuou com a mão na cabeça de Armide. Aprendera a montar logo depois de ter sido adotada, e, como toda menina tímida, tinha se tornado muito amiga dos animais. Percebia a resposta instintiva do cavalo e não sentia medo.

— Quem o monta? — perguntou.

— Pertence ao patrão. É raro outra pessoa montá-lo.

— É árabe?

— Mais oui, madame — respondeu o homem, enfiando as mãos nos bolsos da calça, e olhando rapidamente Glenda, de cima a baixo. — O patrão não iria querer que a senhora arriscasse o pescoço, montando Armide, e também não acredito que ele queira arriscar Armide deixando uma mulher cavalgá-lo.

Glenda riu.

— Não está convencido de que eu saiba como lidar com um cavalo?

— Não duvido, mas estou analisando o que o patrão pensaria.

— Monsieur Malraux é assim tão temível?

O homem encolheu os ombros e nada respondeu. Mas não tirou os olhos dela e de Robert até os dois estarem fora da cavalariça. O menino contou que ele se chamava Restif Gerent, era argelino e trabalhava antes na fazenda dos Malraux na África.

— Para onde vamos agora, Robert? — Glenda perguntou.

— Até o lago. É bem grande e está cheio de carpas.

Desceram alguns degraus de pedra, cercados de flores vermelhas. Dali podiam ver o castelo desenhado contra o céu, e Glenda se deteve um instante, fascinada pelas altas torres que se erguiam acima das muralhas de pedra acinzentadas, com seus telhados negros e pontudos.

Um homem podia ser criticado por querer que um lugar tão lindo lhe pertencesse? Ela achava que não, e sentia que poderia ter amado aquele castelo, caso não lhe tivessem pedido para que vivesse ali, ao lado de um homem a quem não queria como marido.

A sombra de uma enorme figueira caía sobre o lago, onde as carpas douradas nadavam entre a vegetação aquática e sob os lírios. Robert deslizou pelas margens cheias de musgo, inclinando-se sobre a água para observar os peixes. Riu alegre para Glenda, e, por um momento, aquele ar grave e solene desapareceu, surgindo uma criança normal e cheia de vida.

— Não são lindos esses peixes? — disse ele, e se aproximou ainda mais da água. — Vou pegar aquele com listras, parecido com um tigre. Veja só, Glenda!

Ela ficou observando, e se conteve, não querendo insistir para que tomasse cuidado. Era uma coisa que a mãe fazia com freqüência e que só servia para reprimir o entusiasmo infantil. Mas naquele mesmo instante escutou um grito e não teve tempo para segurar o garoto que resvalou para dentro da água.

— Espere, Robert!

Debruçou-se com cuidado na margem e conseguiu retirá-lo do lago. Ele estava encharcado, e a bela e alva camisa branca que usava ficara esverdeada pelo musgo.

— Que coisa mais inteligente para fazer! Se sua mãe, lhe vir assim, molhado feito um peixe, vai ter um chilique! Venha, vamos voltar e nos secar.

Todos estavam fazendo, a sesta, e ninguém percebeu a entrada deles pelos fundos do castelo. Restava o problema de como secar e trocar as roupas do garoto sem que a mãe descobrisse. Jeanne criaria um caso e seria capaz de ter um ataque de histeria. Seu filho não tinha o direito de fazer reinações como todas as crianças, e era obrigado a se comportar como um robô. Se ela continuasse a tratá-lo daquela maneira, Robert se tornaria um adulto neurótico. E seria uma pena!

Assim que cruzaram a porta de entrada, ele se apressou em pedir desculpas, um sorriso nervoso nos lábios:

— Eu… eu não queria que acontecesse… desculpe.

— É natural que crianças se metam em encrencas — disse ela, tentando acalmá-lo. — Espero que sua mamãe ainda esteja dormindo.

Ele fez que sim com a cabeça, a água ainda escorrendo pelo rosto e corpo.

— Acha que pode entrar em seu quarto e pegar uma roupa, sem que sua mãe acorde?

Ele pensou um instante, antes de responder.

— Creio que sim… não adiantaria nada deixá-la nervosa, não é? Mamãe chora por qualquer coisa desde que perdeu papai quando eu tinha três anos. Agora ela só tem a mim.

Falou de maneira muito comovente e séria, fazendo Glenda sentir uma onda de carinho súbita, de certo modo associada à lembrança de Malraux, com quem ele tinha uma vaga e perturbadora semelhança.

— Vamos depressa. Não quero que pegue um resfriado.

Como um par de conspiradores os dois correram escada acima, e depois pelo corredor que dava nos aposentos de Jeanne. Em seu quarto escrupulosamente arrumado, Robert pegou roupas limpas e foi com Glenda até o banheiro, onde tomou uma ducha quente, secou os cabelos e mais uma vez ficou impecavelmente vestido.

Glenda jogou as peças molhadas no cesto de roupa suja e sugeriu que fossem até a biblioteca para verem a pintura da feiticeira de cabelos vermelhos.

— Que tal se pedirmos chá com torradas? — disse ela, enquanto desciam.

— Sempre tomo chá com mamãe, no quarto dela…

Mas em seus olhos Glenda sentiu uma súplica para que insistisse no convite.

— Hoje é uma espécie de feriado. Tenho certeza de que Jeanne não vai se incomodar se passar a tarde toda comigo. E será uma novidade para você, não acha?

Ele concordou sem esforço e conduziu-a à biblioteca, uma sala ampla e acolhedora, com as paredes forradas de couro.

— É linda, não? Veja aquele tapete de pele de urso, com cabeça e tudo!

— Maravilhoso, Robert!

As estantes eram todas de mogno e estavam cheias de livros cuidadosamente encadernados. Havia poltronas com mesinhas espalhadas sobre tapetes orientais, e uma imponente lareira, onde no inverno seria possível queimar enormes toras, que soltariam fagulhas coloridas chaminé acima. Sua cornija era tão alta que somente um homem de estatura muito acima do normal poderia se apoiar nela. Num lado da lareira havia uma salamandra de pedra. Dentro de um móvel incrustado de madrepérola via-se uma bela coleção de moedas antigas e estatuetas de jade.

As janelas iam do teto ao chão, com cortinas de brocado verde, e uma delas estava ligeiramente aberta, revelando lá fora um céu carregado de nuvens cinzentas, o que prenunciava uma tempestade próxima.

A sala tinha um ar de romântica melancolia, e numa das paredes estava pendurado o quadro de um cavalo carregando um par de botas penduradas de cabeça para baixo, um símbolo assustador da morte do cavaleiro.

— Nos tempos antigos, costumavam sacrificar o cavalo junto ao túmulo do dono.

— Gosta de ler, Robert? — peguntou ela, o olhar vagando pelas estantes, à procura do quadro…

— Gosto muito, e mamãe também gosta que eu leia — disse ele com aquele seu jeito sério.

“Pobre garoto. Até quando vai viver sob as saias dessa mulher cuja trágica viuvez é algo tão mórbido?”

Pensando na triste sina daquele menino, deixou-se arrastar pela sala até um nicho iluminado por uma luz especial. Era ali que ficava o quadro famoso, preso a uma moldura muito antiga. O rosto da moça retratada era branco e puro, como o de uma dama medieval, e os olhos grandes e verdes. Seus cabelos longos caíam em cascata de fogo pelos ombros. Os lábios eram cheios e no queixo havia uma covinha. Estava com um vestido de veludo verde, de decote quadrado, revelando um pescoço delgado e perfeito, de onde pendia uma corrente com uma jóia. Olhando melhor, Glenda viu que era uma pequena figura, entalhada numa pedra cor de âmbar.

— Então é esta a feiticeira com quem acham que me pareço! Não estou vendo a verruga na ponta do nariz dela, você está?

— Como aquela de O Mágico de Oz?

— Aquela mesma — disse Glenda, afastando-se do quadro.

Era um tanto inquietante saber que estavam falando de uma pessoa que morrera no meio das chamas. Essas cenas horríveis tinham sido freqüentes no passado distante. Jovens mulheres eram amarradas numa fogueira, acusadas de bruxaria, apenas porque se comportavam de maneira diferente de seus vizinhos.

— Vai chover — disse Robert correndo até uma das janelas e se ajoelhando na poltrona ao lado. — Olhe como o céu está negro!

Glenda teve um arrepio. As nuvens escuras iam apressar a chegada da noite, e ela ainda precisava conversar com Malraux sobre o plano de abandonar o castelo naquele mesmo dia.

Puxou a pesada tira de seda para chamar a criada.

— Vamos pedir o chá. Seria bom se acendêssemos a lareira, o que acha? Se eu conseguir tocar fogo nos gravetos logo teremos um calorzinho gostoso. Vou ver se encontro fósforos.

Havia uma caixa de madeira entalhada numa mesinha ao lado das poltronas de couro. Abriu-a e viu que estava cheia de charutos, iguais ao que tinha visto Malraux fumar. Isto significava que devia haver fósforos por perto, pois reparara que ele não usava isqueiro.

Remexeu numa gaveta, procurando entre os vários objetos jogados ao acaso e acabou encontrando uma caixinha de palitos debaixo de um livro fino, encadernado em couro.

Curiosa por saber das preferências literárias do marido abriu o livro. Era um volume das obras do grande poeta Robert Browning.

Não! Malraux não podia ser do tipo que apreciava boa poesia! Mas ao folhear o livro sentiu exalar dele o cheiro inconfundível de seus charutos. Então devia ser um dos seus favoritos!

Cada vez mais curiosa, reparou no volume com vagar e encontrou a marca de uma dobra na ponta de uma página. Seus olhos percorreram as linhas, parando sobre alguns versos grifados:

Onde a maçã amadurece

Jamais espreite…

Para que não sejamos expulsos do Éden,

Eva e eu.

Glenda fechou o livro e o colocou de volta na gaveta, assaltada por um enorme sentimento de culpa. Tinha certeza de que Malraux, um homem conhecido por sua austeridade, gostaria de manter em segredo que apreciava os versos de Browning. Imaginou-o sentado ali naquela biblioteca, fumando um charuto, o pensamento vagando pelas ruas de Londres, até uma certa casa na Rua Wimpole, de onde Elizabeth Barrett tinha sido arrancada de sua cama de inválida por um poeta apaixonado e enérgico. Browning a levara escadas abaixo, atravessara a porta, carregando-a para a ensolarada e querida Itália.

Era uma história romântica, e Glenda nunca poderia desconfiar que Malraux sequer tivesse ouvido falar a respeito.

Ajoelhou-se para acender o fogo, usando três ou quatro fósforos antes que a madeira começasse a queimar. Como poderia acreditar que Malraux era um romântico se a razão para ter se casado tinha sido tão mercenária? Ele não se preocupara em ir a Barton-le-Cross conhecê-la melhor, ou apenas vê-la que fosse. Com arrogância e fria determinação estava convencido de que ela não iria se recusar. E agora sua presença no Château Noir, era a prova de que Malraux d'Ath sempre conseguia as coisas à sua maneira.

Ficou olhando as chamas se alastrarem pelas toras.

“Queime, feiticeira, queime!”, cantava o povo, nos tempos antigos. Ninguém impedia o dono do castelo e das terras em volta de fazer exatamente o que queria, e ninguém iria impedir Mall de fazer com ela o que bem entendesse. Precisava fugir dele… e de sua família. Não tinha nada em comum com aquelas pessoas nem com aquele lugar. E sua saída devia ser urgente, antes que começassem a suspeitar que tinham sido enganados por seus cabelos avermelhados, que os fizera acreditar que ela era a verdadeira filha de Edith Hartwell.

A porta da biblioteca se abriu, e uma empregada entrou.

— Chamou, madame?

— Sim. Nós queremos chá com torradas, por favor.

A moça fez um ar de espanto e dirigiu-se a Robert, que continuava sentado ao lado da janela.

— Não vai tomar o lanche com sua mãe? Ela sabe que você está aqui embaixo?

Antes que ele pudesse responder, Glenda se adiantou:

— Está tudo certo — disse à criada. — A sra. Talbot sabe que ele está comigo. Na verdade foi meu marido quem sugeriu que Robert passasse a tarde em minha companhia.

— Desculpe-me madame. Não quis questionar suas ordens. É que estamos muito acostumados a que o nosso jovem patrão passe a maior parte do tempo em companhia de sua maman.

— Entendo. Robert estava me mostrando o castelo. Tem algum problema se tomarmos o lanche aqui na biblioteca?

— Creio que não, senhora — respondeu a moça, olhando para a lareira acesa, como se achasse que a patroa já estava se sentindo em casa.

Quando ela saiu, Glenda sentou-se no tapete, os braços em volta dos joelhos. Sentindo o calor reconfortante do fogo às suas costas, só desejava que fosse Simon quem partilhasse com ela daquela casa fascinante. Que outro homem poderia desejar além daquele loiro, elegante e sedutor oficial, com quem tinha passado tantos momentos inesquecíveis?

Malraux era moreno, sombrio e parecia ameaçá-la com sua simples presença… Esta sensação ela teve desde a primeira vez em que o viu. Ele transpirava poder e autoridade, que não desapareciam mesmo que estivesse ausente. Era suficiente olhar a sua volta para imaginá-lo ali dentro. Aquelas prateleiras atulhadas de livros não eram mero enfeite, tinha certeza de que ele os lera. Os quadros também deviam ter sido escolhidos por ele, menos o da feiticeira de cabelos ruivos. E era evidente que o marido tinha um ótimo gosto. As peças de jade e marfim no armário de madeira eram raridades de coleção.

O homem com quem se casara era refinado, apesar de ser duro como se tivesse sido forjado em aço. Contudo, em sua juventude e inexperiência, ela ansiava pelo jovem alto e loiro que, disciplinado como um soldado, a vira se tornar propriedade de outro.

Inclinou a cabeça, os cabelos refletindo as chamas da lareira. Como sentia saudades de Simon! Como gostaria que ele viesse libertá-la! No fundo sabia que a única pessoa que poderia salvá-la daquele casamento sem amor era ela mesma.

 

Os dois se sentaram no tapete e se deliciaram com as torradas quentes, cheias de manteiga e geléia de ameixa. Glenda não perguntou a Robert se ele tinha permissão para comer doce, mas desconfiava, pelo jeito com que sua mãe falara na hora do almoço, que se ela entrasse na biblioteca naquele momento, faria um escândalo e obrigaria o filho a subir imediatamente para escovar os dentes.

— Está gostando, Robert?

Ele balançou a cabeça afirmativamente.

— Quando você era criança também gostava de geléia?

Sua memória voltou ao orfanato, onde as crianças raramente provavam doces. Que surpresa maravilhosa tinha tido quando fora viver em Barton-le-Cross e provou os primeiros bolos recheados de chantilly, com o chá de Darjeeling, que Edith tanto apreciava! Dormindo muito pouco, ela costumava tomar chá durante a noite. No quarto ao lado, Glenda escutava o ruído da colher de prata na fina porcelana, e pensava que aquela mulher era uma fada, que com um passe de mágica a arrancara daquele prédio cinzento e triste do orfanato. Lá não existiam lençóis cor-de-rosa, nem fronhas enfeitadas de rendas, nem tapetes macios ao lado da cama, ou cortinas transparentes e finas que a brisa da noite balança suavemente.

— Sua maman era boazinha? — perguntou Robert.

— Oh, sim, ela era ótima.

— Deixava você brincar com outras crianças?

Aquela pergunta comovente quase fez Glenda chorar. Era um egoísmo cruel de Jeanne negar ao filho a amizade de outras crianças. Nenhum amor podia ser tão absorvente, nenhum ser humano devia ser propriedade de outrem.

— Você tem amigos de sua idade, Robert?

Ele sacudiu a cabeça.

— É porque não vou à escola. Tenho um professor particular que me dá aulas de segunda a sexta. Ele é bravo e diz que não sirvo para matemática. Eu estudo muito, mas erro os problemas, e ele fala que sou vadio.

— Mas você deve ser bom em outras matérias.

— Gosto mesmo é de pintar. Tio Mall diz que pinto cavalos muito bem.

— Pode ser um grande artista quando crescer. Você gostaria?

— Eu… acho que sim. Mas minha mãe diz que tenho que ser advogado, como o meu pai era.

— Acredito que isto a faria feliz, Robert, mas quando crescemos temos que fazer o que gostamos. Se quiser ser pintor deve brigar por isso. Não é qualquer menino que consegue desenhar um cavalo. Você anda muito a cavalo?

— Mamãe não deixa — disse ele, mordendo o lábio. — Mas é porque ela gosta muito de mim, e sou seu único filho. Você tem irmãos, Glenda?

— Não. Também sou filha única, mas minha mãe gostava que eu passeasse a cavalo, e eu tinha um pônei chamado Panqueca.

Robert deu uma risada.

— Que nome engraçado! Por que pôs esse nome nele?

— Porque gostava muito dele, e ele era bonzinho.

Lembrou-se com saudades dos passeios pelos bosques em Barton-le-Cross, das árvores cobertas de neve no inverno e dos caminhos floridos de azaléias no verão. Quanto tinha de agradecer a Edith! Uma adolescência maravilhosa, que nunca conheceria se ela fosse uma mulher convencional, com medo de correr riscos, em vez de viver com classe… embora às custas da família Malraux.

Adorada Edith! Não era um anjo, na acepção do termo, mas possuía a virtude da bondade e da alegria, e Glenda cultuava sua memória. Não seria o casamento com Mall que iria manchá-la.

— É divertido darmos nome a nossos bichos de estimação, ou a nossos amigos. Gostaria de pôr um apelido em você.

— Tem que me chamar de Robert! Mamãe não gostou nada quando tio Mall começou a me chamar de Robbie.

— E você gostava?

O garoto balançou a cabeça, querendo dizer que sim, e lambeu os lábios lambuzados de geléia.

— Mamãe pediu ao tio para deixar de me chamar assim e ele concordou. Mas ficou muito zangado, com uma ruga na testa. Quando eu crescer vou querer ferrar meus cavalos como ele. Titio não deixa que ninguém faça isso, sabia? Ele tem sua forja atrás dos estábulos e algumas vezes deixa que eu segure o cavalo enquanto ajusta as ferraduras em brasa. Os animais não sentem dor, se o trabalho for bem-feito. Tio Mall sabe fazer uma porção de coisas! Você deve ter ficado muito contente por ter se casado com ele!

— Fiquei no céu — murmurou, distante.

Estava imaginando a cena. Malraux nu da cintura para cima no calor escaldante da forja, a pele brilhante de suor, ferrando cavalos como qualquer ajudante de estrebaria. Era uma imagem rude, grosseira, que a fez sentir um arrepio, e depressa afastou-a da mente.

Não queria se lembrar da força descomunal daquele homem, evidente até mesmo quando a esperava imóvel ao pé do altar, no terno impecável. Quando ele segurou sua mão, tão pequenina e branca, em contraste com a dele, grande e escura, teve medo de que a quebrasse.

Devia ter fugido antes de pronunciar as palavras que só deviam ser pronunciadas por uma mulher ou um homem apaixonado.

O dia estava acabando e pelas janelas do castelo entravam os últimos raios do sol poente. Com a sala cheia de sombras, iluminada apenas pelo fogo, Glenda começou a sentir a coragem lhe fugir e a consciência lhe recomendar cuidado.

Talvez fosse mais sensato optar pela maneira mais covarde, fugindo do marido sem comunicar-lhe nada. O que realmente não podia era permanecer ali! Malraux não tinha amor para lhe dar… Mas, como queria que o nome da família tivesse continuidade, não a deixaria sozinha naquela noite.

O cair do crepúsculo somado ao fogo que dançava na lareira estimularam a imaginação de Glenda, e ela começou a rememorar os acontecimentos da noite anterior. Sozinha com Malraux na torre, seu corpo grande e forte sobre o dela, seus braços a envolvendo, as mãos de dedos de aço obrigando-a a ceder… Sentia medo ao se lembrar com que facilidade ele a jogara na cama, sem piedade nem ternura.

Orgulho, não piedade, o tinha feito sair do quarto quando lhe pedira para apagar as luzes.

Tudo voltava agora à sua mente, e com tal força, que, quando a porta da biblioteca se abriu de repente, esperou ver Malraux. Mas era Jeanne, que ficou parada na soleira, olhando estarrecida para as xícaras e pratos espalhados ao lado do filho, deitado no tapete.

Depois de alguns segundos de indecisão, ela entrou na sala, os olhos negros parecendo soltar chispas. Robert sentou-se depressa, e Glenda, igualmente assustada com a expressão do rosto dela, preparou-se para o pior.

— Não faz dois dias que você está nesta casa e já está tentando roubar meu filho de mim!

Transtornada, a mulher agarrou o pote de geléia e o atirou contra a parede da lareira, espirrando doce e cacos de vidro por todos os lados. Glenda ficou atônita com essa demonstração de violência.

— Não diga tolices… Não estou fazendo nada disso. E nem poderia!

— Sei muito bem o que quer, sua oportunista! Nós todos sabemos que se casou com meu irmão para ser dona do castelo! Você enfeitiçou meu avô, mas não vai ser fácil dominar Mall. E eu não vou permitir que lance seu feitiço sobre Robert!

Tentou agarrar o menino, mas ele foi mais rápido, ficando de pé num salto, e fugindo para o outro lado da sala.

— Fique calma, Jeanne, que lhe explico tudo. Estávamos apenas tomando chá juntos. O que há de tão terrível nisso? Afinal, você estava descansando e…

— Robert sempre toma lanche comigo! Ele não estaria aqui agora se não o tivesse convencido. Quando eu ficar sozinha com ele vou ensinar-lhe a guardar distância de você. Nada como uma boa surra para aprender a não desobedecer a mãe!

— Não tem por que bater nele!

Movida por forte instinto de proteção, Glenda aproximou-se do menino e pôs o braço em volta de seus ombros. Sentiu-o trêmulo, o corpo gelado. E nem podia ser diferente. Ele era apenas um garoto de sete anos. Como iria entender uma mãe que num instante o sufocava com tanto carinho, e no momento seguinte fazia aquelas ameaças alucinadas de violência física?

Glenda o segurou a seu lado, servindo-lhe de escudo, e enfrentou o olhar enlouquecido de Jeanne.

— Não há razão para castigar Robert. Procure ser sensata e deixe que ele tenha os amigos que quiser. Pode possuir seu corpo mas não sua alma. Ninguém pode fazer isso, se não quiser transformar amor em ressentimentos. É isso o que deseja?

— Amor! O que você sabe sobre o amor? Acredita mesmo que meu irmão a ame? O casamento de vocês foi combinado, sei que é conveniente a ambos. Todo mundo sabia que Edith não tinha fortuna e é óbvio que não lhe deixou nada quando morreu. A generosa quantia que recebia vinha de nós. Meu avô comprou você e Malraux vai tentar tirar um lucro extra do negócio; se entende o que quero dizer. Não estou dizendo que ele não esteja gostando. Com esse seu cabelo ruivo e esses olhos verdes…

Parou de repente no meio da frase, olhando intrigada para a cunhada, cujo rosto estava iluminado pelo sol da tarde. Mas no mesmo instante aquela luz fugidia sumiu, e a sala ficou quase que completamente escura.

— Eu seria capaz de jurar que seus olhos eram verdes — continuou Jeanne, aproximando-se de Glenda. — Lembro-me de que meu avô tinha se encantado com eles, e que chegou até a lhe dar um broche em forma de meia-lua, crivado de pequenas esmeraldas. Para combinar com os seus olhos. Foram as palavras dele!

O coração de Glenda deu um salto no peito. O tempo todo ela temera esse momento em que alguém da casa reparasse na diferença entre os seus olhos e os da menina que estivera ali há muitos anos.

— Como é possível que seus olhos não sejam verdes, como eu me lembro muito bem? — perguntou Jeanne, desconfiada.

— Eu… eu realmente não sei. Olhos azuis tendem a ficar cinzentos e desconfio que os meus perderam o tom esverdeado.

— E onde está o broche que meu avô lhe deu? Ainda o tem?

— Não, perdi-o há muitos anos… infelizmente.

A verdadeira Glenda Hartwell o havia perdido nas férias em que morrera. Estava na blusa da menina, e, quando ela se debruçou na balaustrada do navio, ele caiu no mar. Edith sempre dizia que aquilo fora um aviso sobre a tragédia que pouco depois lhe levaria a filha.

— Que falta de cuidado, perder aquele broche! Era tão lindo! Eu o queria para mim, mas meu avô me negou. Ele só gostava de meu irmão. Queria que Mall ficasse com a fundição quando crescesse, e só via Mall na frente dele… Daí fugi para Nice quando fiz dezoito anos e me empreguei como recepcionista em um hotel. Foi lá que conheci meu marido… Oh, Gille… — Jeanne escondeu o rosto com as mãos e não conteve um lamento amargurado, quase um grito: — Não posso agüentar! Não posso agüentar!

Aos prantos, deu meia-volta e saiu correndo da biblioteca. Glenda se sentou, tremendo, o braço em volta dos ombros de Robert.

— Coitada da maman… Não será melhor que eu vá atrás dela?

— Não. Ainda não.

Alisou os cabelos dele, negros e brilhantes, tão escuros quanto os de Jeanne, antes da morte do marido. Será que Malraux percebia como a irmã estava próxima de uma depressão nervosa? Ou estava tão absorvido com os interesses econômicos da família que não notava que ela era capaz de praticar alguma loucura, prejudicando até o próprio filho?

Abraçou o menino com carinho. Às vezes os adultos criavam uma dependência tão grande nas crianças que acabavam transformando-as involuntariamente nas vítimas dos problemas que os afligiam. Pensando nisso, Glenda propôs:

— Robert, acho melhor irmos procurar o seu tio e conversarmos com ele sobre a sua mãe. Você é um menino esperto, e deve perceber que ela não está muito bem. Sei que a ama, mas não pode permitir que ela faça alguma coisa que possa feri-lo. Está me entendendo?

— Titio vai mandar minha mãe para o hospital?!

— Não sei. Talvez mande — respondeu, com sinceridade.

— Então quem vai tomar conta de mim? Você toma?

Glenda olhou para a janela. A noite já tinha caído, cobrindo com seu véu negro o vale do Loire, o Cher, o Indre e o Verde Vienne… esse que refletia as torres e torreões do Chinon.

Conhecia esses lugares através dos livros. Por ali andara Joana d'Arc… Naquelas paragens os reis da França tinham construído seus castelos, alguns sombrios como mosteiros, outros tão enfeitados como um bolo de casamento.

Robert estava olhando para ela, cobrando em silêncio uma resposta à sua pergunta. Compreendia muito bem como ele se sentia, pois conhecera de perto a insegurança.

— Eu estou aqui, não estou? — disse, sorrindo, e escondendo dele seus receios.

Pelo jeito teria que ficar pelo menos aquela noite. Havia outras mulheres na casa, mas depois de conhecê-las achava que nenhuma delas tinha condições nem sensibilidade para compreender os medos de uma criança.

Todas pareciam estar às voltas com mil problemas, e seria até cruel deixar Robert entregue a elas. A tia-avó estava velha e doente, e as duas gêmeas não primavam pela sensatez.

— Vamos procurar seu tio.

Tomou o garoto pela mão e foi com ele até o hall.

Chegaram a tempo de ver Malraux saindo apressadamente pela porta da frente, que estava escancarada, deixando entrar o ar frio e chuvoso da noite. Ele vestia capa de chuva e carregava uma lanterna na mão. Dois empregados vestidos também com abrigos impermeáveis seguiam atrás dele.

Rachel estava sentada à mesa do telefone, tentando fazer uma ligação. Um grupo de empregadas cochichava ao pé da escada, parecendo muito assustadas.

Glenda aproximou-se de Rachel, que havia desistido de telefonar.

— O que aconteceu?

Rachel olhou para ela, depois para Robert, e respondeu, hesitante:

— Jeanne tomou uma superdose de calmante e saiu correndo para a floresta… A floresta é densa, e está chovendo muito.

Caiu um silêncio pesado, quebrado por um soluço de Robert, que soltou a mão de Glenda e correu chorando para a porta.

— Mamãe… Mamãe… Quero você!

— Pare, Robert!

Glenda saiu em seu encalço, mas não conseguiu agarrá-lo. Ele era muito mais ágil e conhecia bem os atalhos do jardim. Em poucos minutos sumiu da presença dela e alcançou os homens que procuravam por sua mãe.

A chuva caía torrencialmente e Glenda parou sem fôlego, os cabelos molhados, a roupa colada ao corpo. Estava em pânico e rezou para que não acontecesse nada a ele. Como Jeanne devia se sentir desesperada para fazer uma loucura dessas!

Parecia mesmo decidida a dar cabo da vida. A maioria das tentativas de suicídio não passa de um brado de socorro para que as pessoas em volta ajudem, antes que seja tarde demais. Mas aquele caso era diferente. A floresta em torno do castelo era quase impenetrável, e Jeanne não podia contar com a lua ou com as estrelas para ajudarem Mall e seus homens na busca.

Pobre e infeliz mulher, que como um animal ferido cairia na chuva e talvez morresse sob as árvores!

Tremendo de frio e encharcada até os ossos, Glenda voltou para o castelo e encontrou no hall as duas primas do marido conversando com Héloise. Era a tia de Malraux quem estava falando:

— Meus nervos estão em tal estado que já nem sei mais o que fazer! Minha cabeça está latejando e sinto palpitações… Como Jeanne pôde ter feito uma coisa tão egoísta?

— Egoísta? Como assim? — Rachel quis saber.

— As pessoas que tentam se matar não se importam com os problemas que causam aos outros. Bem que pressenti que mais dia, menos dia isso ia acontecer. Era evidente que Jeanne já estava desequilibrada há algum tempo. Ora, todos nós temos uma cruz para carregar! Sempre tive uma saúde delicada, mas ninguém me vê tendo ataques histéricos nem tomando superdoses de sedativos.

— Ela amava Gilles demais — Renée tentou justificar. — E ele morreu tão estupidamente! Se não fosse por Robert, teria sido melhor que tivesse morrido com ele.

— Deixe de falar bobagens — disse Rachel, irritada. — O estado dela piorou hoje, no fim da tarde. Mall já tinha me pedido para entrar em contato com o dr. Corvelle, mas eu não consegui encontrá-lo. A empregada dele às vezes deixa o fone fora do gancho para que ele possa descansar. Marie não devia, fazer isso, mas ele trabalha demais. Não sei o que fazer!

— Uma coisa comum em você!

— Mas que falta de consideração de Jeanne, fazer uma coisa dessas conosco — insistiu Héloise. — Se alguém resolver acabar com a vida, por que não faz isso na intimidade do quarto, sem incomodar as outras pessoas da casa?

Para Glenda, que estava escutando tudo em silêncio, isso foi a gota d'água.

— Oh, calem a boca de uma vez! Nenhuma de vocês se importa com o fato de Robert estar lá fora, na chuva e no escuro, correndo como um animalzinho assustado chorando pela mãe? O que acontecerá se ele encontrar Jeanne…

Não teve fôlego para continuar, tremendo de frio e de raiva.

— Você está ensopada! Também apanhou chuva? — perguntou Renée.

— Tentei impedir que Robert fugisse, mas ele escapou de mim.

— Vai pegar uma pneumonia se não puser uma roupa seca imediatamente. Suba até meu quarto, que lhe arranjarei um roupão. Os homens podem demorar horas até encontrarem Jeanne.

— Obrigada, Renée, mas estou muito preocupada por Robert. Malraux o deixou comigo, e sinto-me responsável se alguma coisa lhe acontecer. Não tenho certeza se ele alcançou o tio e gostaria de sair para procurá-lo.

— Deixe isso comigo, que conheço melhor o lugar — disse Rachel, inesperadamente. — Mande fazer café, Renée, e tente outra vez falar com o médico. Estou pensando se não seria bom avisar também a polícia. O que vocês acham?

— Mall não concordaria com isso — respondeu a irmã. — Se Jeanne estiver bem, só causaria problemas. Ela pode até ter jogado fora algumas pílulas para fingir que tomou tudo.

— Na dúvida, acho melhor nos prepararmos para o pior. Vou ver se encontro pelo menos o garoto.

Dizendo isso, Rachel dirigiu-se ao armário do hall e pegou uma capa de chuva e um chapéu. Deu um até-logo rápido e saiu porta a fora.

Glenda foi convencida a subir com Renée para o quarto. A moça lhe deu uma toalha para secar-se e obrigou-a a vestir um grosso roupão de plush.

— Que maneira de começar sua vida de casada, hein? Esse corre-corre está estragando a lua-de-mel, não está?

Glenda fez que sim. Não ia contar a verdade a Renée. Uma lua-de-mel com Malraux era a coisa que mais desesperadamente queria evitar… mas não às custas da vida de outra pessoa.

Oh, Deus, será que Jeanne tinha mesmo acreditado que ela estava querendo afastar Robert dela?

— Jeanne já tentou se matar alguma vez?

— Não, embora todos esperassem por isso na época em que Gilles morreu. Se aquela pobre criatura não conseguisse realmente viver sem ele, já teria dado fim à vida há tempos.

— Acha, então, que o que está acontecendo agora é pura encenação? Estava escovando os cabelos e observou pelo espelho da penteadeira que Renée parecia muito surpresa. Seus olhos ligeiramente amendoados refletiam o dourado da luz do abajur.

— Ela adora o filho, e não acredito que queira deixá-lo sozinho no mundo. Nunca o perde de vista. E me surpreende que tenha deixado ele passar a tarde toda com você.

Glenda foi até a janela e afastou as cortinas.

— Ela não gostou nada. Encontrou-nos tomando chá e comendo; torradas com geléia na biblioteca e me acusou de estar tentando afastar o filho dela. Depois ameaçou dar uma surra nele. Robert ficou tão assustada que se agarrou a mim… Jeanne saiu chorando da sala e… e agora me sinto culpada pelo que ela fez.

Virou-se e ficou parada, emoldurada pela seda clara das cortinas, o que realçava ainda mais o tom vermelho-escuro de seus cabelos. Seu rosto estava lívido, a não ser pelo tom de âmbar dos olhos.

— Não deve pensar assim, Glenda. Jeanne não gosta que ninguém agrade Robert. Ela fez muita confusão quando Mall tentou convencê-la de que era melhor ser uma mãe menos superprotetora, que abafa seu desenvolvimento normal. Só Deus sabe o que ele se tornará quando for homem, pobrezinho. Gilles nunca aprovaria o que Jeanne está fazendo com aquela criança.

— Ela vive apavorada com o que possa acontecer com ele. Espero que a encontrem logo e que esteja bem. Ela precisa de tratamento para curar a ansiedade. Malraux deve ter percebido que o comportamento dela não é natural.

— Meu primo sabe o que ela passou e acredito que tenha tido receio de aumentar o seu sofrimento. Você pode ter se casado com ele, mas não o conhece bem.

— Mas a culpa não é exatamente minha! Ele não foi a Barton-le-Cross uma única vez, e achou que quando fosse o momento certo eu me casaria com ele. Eu considero isto uma arrogância da parte dele. Você concorda comigo?

Renée encolheu os ombros num gesto de indiferença.

— Se você não quisesse, não precisava casar. Mas, como estavam comentando na igreja, era um negócio vantajoso, especialmente porque depois que sua mãe morreu toda a renda dela voltou outra vez à família Malraux.

— Então também acredita que me casei por interesse! Desconfio que nenhum de vocês pensou que eu… eu tinha prometido à minha mãe que me casaria com Malraux, da mesma forma que ele prometeu a seu avô. No caso dele foi vantajoso se casar comigo porque assim herdou o castelo.

— Pois acho que o próprio Malraux é o marido que a maioria das moças gostaria de ter! Ele foi muito bom para minha irmã e para mim e por isso não vou criticá-lo. É verdade que às vezes é arrogante, mas que mulher aprecia um homem sem fibra? Ou você está apaixonada por aquele oficial loiro que a olhava tão intensamente enquanto você se casava com outro? Pode me contar, sou bem mais romântica do que Rachel.

— Simon é um bom rapaz — disse Glenda, sem se comprometer. — Oh, como gostaria de receber boas notícias sobre Jeanne! Vamos descer para tomar um café?

Atravessou o quarto antes que Renée tivesse tempo de responder, fugindo da curiosidade da outra.

A enorme porta de carvalho estava ainda escancarada e o vento frio trazia a chuva para dentro da casa. O hall estava deserto, a não ser pelas armaduras dos cavaleiros, que pareciam mais sinistras.

Fechando bem o roupão em torno do corpo, Glenda foi até a entrada e sentiu a violência do vento. Seu coração estava cheio de angústia.

— Por misericórdia, meu Deus, faça com que se salvem. Não permita que haja mais tristezas nesta casa — rezou.

— Não fique aí no frio — chamou Renée. — Venha ao salão tomar café.

— Acho que vi uma luz entre as árvores. Talvez os homens estejam voltando. Quem sabe encontraram Jeanne…

Renée foi para perto dela e as duas olharam aflitas quando o facho de luz de uma lanterna apareceu entre a folhagem e depois se alongou pelo pátio. Quando o grupo chegou mais perto, divisaram Malraux carregando um vulto imóvel.

Renée se agarrou a Glenda.

— Oh, não!

Malraux agora podia ser visto melhor, os cabelos negros grudados na cabeça. Rachel vinha logo atrás, segurando Robert pela mão. O rostinho dele estava marcado pelas lágrimas.

— Robert precisa de alguém para tomar conta dele — disse Malraux, transportando a irmã pelo hall.

— E Jeanne? — Glenda não conseguiu perguntar-lhe mais nada.

— Só Deus sabe. Avisaram o médico?

— Não conseguimos entrar em contato com ele. Tentarei outra vez — Renée correu para o telefone, agitada.

Rachel soltou os cabelos que estavam presos dentro do chapéu. Em silêncio, Glenda abriu os braços e o menino correu para ela, apoiando o corpinho trêmulo no seu.

— Tudo está bem agora, meu querido. Vou levar você para cima para se enxugar bem, e depois peço um leite bem quente. O médico vai chegai logo, não se preocupe.

— Coitadinha da maman… Tio Mall tentou, mas não conseguiu que ela respirasse.

— É melhor vir comigo agora, como um bom menino.

Cruzaram juntos o hall e subiram a escada. Agora não havia nada que ela pudesse fazer por Jeanne. A cabeça jogada, a pele acinzentada, restavam poucas esperanças de que ela ainda vivesse, sobretudo se Malraux tinha tentado respiração boca a boca sem resultado.

No alto da escadaria, Robert ainda se voltou, e olhou desesperado para baixo, vendo o tio levar a mãe para a biblioteca. O coração de Glenda sofria pelo garoto. Ele nunca esqueceria aquela noite. Ficaria gravada para sempre em sua mente e ele provavelmente se perguntaria se tinha tido alguma culpa.

—- Não tomei o chá com mamãe hoje… Acha que foi… por isso que ela…

— Não, meu bem, Você tem que acreditar que não teve nada a ver com a maneira como sua maman estava se sentindo. Desde que seu pai morreu ela ficou uma mulher triste e solitária, e as coisas que falou para você na biblioteca não foram de coração. Quando ficamos infelizes dizemos coisas de que nos arrependemos mais tarde. Portanto, não fique se culpando. Vai me prometer isso?

Ele fez que sim, balançando o rostinho abatido e pálido. No quarto, deixou que ela o enxugasse e o pusesse na cama. Depois tirou do pulso o relógio e o depositou na mesinha-de-cabeceira. Glenda viu que ele lutava contra as lágrimas.

— Está quentinho agora, Robbie?

Colocou na mesinha a bandeja com o lanche que um empregada acabara de trazer.

— Sim, obrigado, Glenda.

— Quer que eu corte o pão em pedacinhos? Assim pode molhar no ovo.

— Mamãe disse que só nenezinhos comem assim.

Todos nós gostamos de brincar de bebezinhos — disse ela, cortando pão.

— Sei que isto acontece comigo, principalmente quando fico infeliz.

— Ficou muito triste quando a sua maman morreu? — perguntou ele, enquanto quebrava a casca do ovo com a colher.

— Fiquei, mas a minha mãe estava muito doente, sentindo muitas dores, e a morte foi um alívio para ela. Nem sempre a morte é terrível, Robbie. E como se a pessoa voltasse para casa, e nós todos iremos descansar um dia, quando a nossa hora chegar.

— Já deve ter muita gente lá — disse ele, mergulhando o pão na gema do ovo. — Será que o céu não está cheio demais?

— Claro que não! O céu é um lugar especial e muito grande!

— É verdade mesmo?

— Eu não lhe diria uma coisa em que não acreditasse. O ovo está gostoso?

Robert sacudiu a cabeça, mas Glenda percebeu que o interesse dele na conversa ou na comida era desviado a cada instante por uma olhada à porta do quarto da mãe. Oh, Deus, devia ter pensado que aquela criança não poderia passar a noite ali, mesmo que ela ficasse dormindo numa poltrona ao lado de sua cama.

— Gostaria de dormir na Tour Etoile esta noite? Tem um sofá muito gostoso lá e acho que você adoraria dormir numa torre, não?

— Tio Mall vai deixar?

— Claro! Por que não? Agora termine o leite enquanto vou pegar sua escova de dentes no banheiro.

Ele saiu da cama, recolocou o relógio no pulso e depois o robe e os chinelos.

Alguns minutos mais tarde os dois estavam descendo a escada e encontraram Rachel, desanimada, fumando um cigarro.

— Vou levar Robbie para a torre, esta noite — explicou Glenda.

— Ótima idéia. O médico já chegou e mandou chamar uma ambulância. Jeanne está em coma e tem que ir para uma terapia intensiva. Graças a Deus eles estão bem equipados na clínica local. Por ironia foi Mall quem doou a aparelhagem toda…

— Maman vai morrer? — perguntou Robert, com voz trêmula.

— Ela está muito doente, Robbie, mas vai ser feito o possível para ajudá-la a ficar boa.

Nesse momento Malraux apareceu na porta da biblioteca e encaminhou-se para eles afastando uma mecha de cabelos que lhe caía sobre a testa.

— Sinto muito pelo que aconteceu — disse Glenda.

— Ela não tinha o direito de chegar a isso.

Levantou o sobrinho nos braços e lhe deu um beijo. Observando-os juntos, Glenda viu novamente uma vaga semelhança, pois um dos lados do rosto de Malraux era perfeito.

— Está tomando conta de Robert? — perguntou ele, olhando-a de frente, as marcas cruéis nítidas agora.

— Sim. Pensei que ele poderia dormir em meu quarto hoje.

— Concordo.

Ele ainda fez mais um carinho no menino, aninhando a cabecinha no ombro forte que há pouco amparara sua mãe.

— Vou com Jeanne para a clínica. As próximas horas são cruciais. Dieu, por que ela foi fazer uma coisas dessas? Fiz de tudo para que se sentisse bem aqui no castelo.

— Talvez ela pensasse que as coisas fossem mudar, agora que você se casou.

Ele se virou para encarar Rachel, que tinha feito o comentário.

— Nunca se falou sobre mudança alguma aqui. Por que as coisas deveriam mudar?

— Todos sabem que as mulheres querem que suas casas e seus maridos sejam só delas, Mall. Eu pelo menos não gostaria de dividir meu marido com um bando de parentes que têm o hábito de sobrecarregá-lo com seus problemas pessoais. Uma jovem esposa poderia achar isso… cansativo, não concorda?

— Pelo amor de Deus, Rachel, você fala como se Glenda e eu fôssemos sonhadores românticos que desejássemos ficar a sós o tempo todo!

— Pode ser que você já tenha superado essa fase, mas sua esposa é muito moça e romântica. Por que ela seria obrigada a dividir o castelo com sua tia doente, sua irmã atormentada e um par de primas pobres?

— Não vamos confundir as coisas. O nosso é um casamento de conveniência mútua. Glenda e eu não nutrimos ilusões, um pelo o outro… não é, ma chérie?

Glenda estava chocada com aquela franqueza rude, mas sabia que merecia aquelas palavras. Afinal, havia sido grosseira com ele na noite anterior e Malraux não era do tipo capaz de esquecer comentários maldosos que se fizesse à sua pessoa. Mesmo assim, que necessidade havia de levantar aquelas questões diante de terceiros que não tinham nada a ver com o que se passava com o casal?

Como ele era diferente dos homens que ela conhecera em companhia de Edith! Aqueles, sim, compreendiam que as mulheres são seres mais sensíveis, mais emocionais e instáveis, que têm temores que eles não conhecem e por isso precisam ser tratadas com mais tolerância e delicadeza.

Sentiu como se a tivesse esbofeteado na frente da prima. E pela expressão tranqüila e cínica que se estampava em seu rosto, tudo indicava que ele não se importava em dar a Rachel a satisfação de ouvir o que a moça queria: aquele casamento não servia para nada.

— Nenhuma ilusão, realmente — concordou Glenda, friamente. — Robbie está caindo de sono, Mall. Vai carregá-lo até a torre ou eu mesma o levo?

— Eu o levarei… venha comigo.

A chuva tinha passado, mas ainda soprava um vento frio e cortante, quando eles atravessaram o pátio de pedras em direção ao apartamento da torre.

A luz da sala estava acesa e se filtrava suave pelos abajures, espalhando uma tonalidade agradável pelo ambiente. A noite escura e assustadora tinha ficado lá fora, e o aquecimento elétrico e grossas cortinas davam àquele lugar uma gostosa sensação de segurança.

Glenda preferia ficar ali, esquecida dos terríveis acontecimentos daquela noite, mas, como Malraux continuou a subir, seguiu-o até o quarto. Viu-o acomodar o garoto sobre a enorme cama de quatro colunas e não se importou. Ela podia muito bem se arranjar no sofá.

— Acho que é preciso tirar o robe dele — sugeriu. Malraux fez que sim e com muito cuidado ajudou o garoto a se despir.

Caindo de sono, Robert enfiou a cabeça no travesseiro e fechou os olhos.

— Pobre garoto — disse Malraux. — Está muito esgotado. Você não devia ter deixado ele sair de casa.

— Tentei impedir, mas ele escapou das minhas mãos. Sinto muito, Mall.

— De qualquer forma, depois de uma noite bem-dormida, o que ele passou na floresta vai parecer bem menos terrível. E é melhor mesmo que durma aqui — inclinou-se sobre a cama e murmurou: — Dieu te bênisse, Robert.

— Mamãe vai ficar boa?

— Se le bon Dieu assim o quiser. Faça uma prece por ela. O menino obedeceu, fazendo muito esforço para abrir os olhos por alguns instantes.

— Boa noite. Glenda.

— Durma bem, Robbie — e beijou o rostinho molhado por uma lágrima.

Sentia o coração apertado ao sair do quarto cinco minutos mais tarde para encontrar o marido na sala de baixo.

Malraux esperou que ela se sentasse na poltrona, onde a luz suave do abajur revelou seu rosto pálido e exausto.

— Acho que nós dois precisamos de um conhaque. Tenho ainda um pouco de tempo. E daqui posso escutar quando a ambulância chegar.

— Coitada de Jeanne…

Ele entregou-lhe uma taça bojuda, servindo a bebida a seguir.

— Algo me dizia que isso ia acontecer, mas essas coisas ninguém gosta de admitir — sorveu um largo gole e continuou: — Por um motivo ou por outro nossa vida de casados está começando difícil, não?

— É verdade.

Segurava a taça com as duas mãos, aspirando ao forte aroma do conhaque, o que lhe provocava um leve enjôo. Não queria realmente beber nada, mas se sentia na obrigação de acompanhar Mall, que estava muito agitado.

— Parece que você não gostou do que eu disse para Rachel…

— Não posso criticar você por isso, Malraux. Nós nos casamos mesmo contra a nossa vontade. Por essa razão, quanto mais cedo eu for…

— Escute! A ambulância está chegando! Vou acompanhar Jeanne até a clínica e ficar lá o tempo que se fizer necessário. Enquanto isso, gostaria que você cuidasse do menino, não deixando que ele saia do quarto.

— Mall… — disse ela, pondo-se de pé. — Eu espero… oh, vou rezar para tudo dar certo e sua irmã ficar boa logo.

Depois que ele saiu, Glenda sentou-se outra vez. Estava desalentada, mas não havia outra alternativa a não ser ficar ali e tomar conta do filho de Jeanne, deu um longo suspiro. A sirene da ambulância havia abafado suas últimas palavras e não podia ter certeza de que Malraux tivesse escutado que ela pretendia partir o mais depressa possível.

Em todo o caso, seria uma desconsideração muito grande abandonar o castelo naquele momento. Tinha que pensar em Robert. Percebera desde o início o quanto ele gostara e confiara nela.

Compreendia muito bem como o garoto estava se sentindo. Ela própria já passara por situação semelhante e sabia como era importante uma criança contar com a segurança dos braços amigos e carinhosos de alguém que a amasse.

Glenda depositou a taça de conhaque na mesinha ao lado da poltrona e voltou ao quarto para verificar se Robert não havia acordado com a sirene da ambulância.

Robbie estava tão esgotado pelos acontecimentos daquela noite que dormia um sono pesado, embora bastante agitado. Glenda imaginou que a forte carga emocional que ele recebera poderia provocar-lhe pesadelos e achou melhor manter a luz acesa.

Sem sono e bastante intranqüila, ela pegou uma cadeira e sentou ao lado da janela. Dali podia-se avistar a parte mais importante do castelo, cujas luzes tremulavam fracas, mais parecendo velas ao longe. Que lugar esquisito! Durante o dia aquela construção imponente que dominava todo o vale do Loire tinha uma beleza inegável. Mas agora que a noite estava escura e pesada seu aspecto era tão sombrio! Aquilo valia o preço pelo qual havia sido adquirido? Valia a pena casar-se com uma desconhecida para obter aquele amontoado de paredes?

Quem o comprou devia estar satisfeito. Ela não. O que a faria feliz seria outro tipo de casamento. Seus pensamentos voaram, então, até a Inglaterra, para o quartel de Chelsea. Oh, Simon, Simon! O que ele estaria fazendo naquele exato momento? Será que estaria de guarda? Ou quem sabe havia conseguido folga e viajara para a casa de Yorkshire?

Num ou noutro caso, devia estar pensando nela! E… sofrendo! Enfrentar a situação de ver a mulher que amava nos braços de outro não é fácil. Imaginá-la dormindo todas as noites com um homem como Malraux d'Ath, mais difícil ainda!

Numa tentativa de se livrar daquelas idéias, Glenda debruçou-se sobre o parapeito da janela e contemplou os telhados escuros. Inútil. Nunca sentira tanta saudade de Simon. Mas era um tanto decepcionante saber que ele não era tão determinado quanto Malraux para conseguir o que queria.

Apesar disso, e mesmo conhecendo o caráter dominador do marido, alimentava esperanças e desejava de todo o coração que Simon o enfrentasse e a libertasse das amarras daquela união sem amor, onde só entrava em jogo interesses comerciais e ambições desmesuradas. Isto mesmo. O casamento com ela, por força do cumprimento do testamento do avô, proporcionara a Malraux a posse do Chateau Noir e das terras em volta e lhe dera ainda o controle total sobre as fundições. Matthieu, o outro neto, tinha um alto cargo na diretoria da empresa e uma sólida renda, mas o poder de decisão estava todo nas mãos de Malraux.

E era essa autoridade, aliada à personalidade forte e autoritária, tão diferente da cordialidade de Simon, o que Glenda mais temia.

Seu marido era ameaçador como a noite lá fora, onde o perigo ronda uma mulher que caminhe sozinha e sem proteção. Das sombras, surgiriam mãos que a tocariam na garganta e ela não conseguiria emitir nenhum som e saberia que estava perdida.

Além de ameaçador, sombrio… Sombrio como o destino que ilude as expectativas e desencanta as esperanças de todos. Um sonho pode ser acalentado por muito tempo e o futuro pode ser planejado. Mas quem nos dá a garantia de que nossos sonhos loucos fugirão da esperteza do destino?

Oh, Simon… Por que ele ficou naquela igreja, imóvel e silencioso feito uma estátua, e permitiu que o homem que até aquele dia era uma sombra se transformasse numa presença real que os separava? Ela tinha esperanças… Sim, tinha esperanças de que ele se adiantasse e afastasse para um lado o estrangeiro moreno. Em seguida, diante do padre e dos convidados, declarasse alto e claro: “Esta mulher me pertence”. Ele não fez nada disso e ela se encaminhou para a sacristia ao lado de Malraux d'Ath, quando devia ser ao lado de Simon!

Olhos atentos na escuridão, Glenda viu um pássaro noturno pousar entre as vigas do telhado. Nesse mesmo instante, Robert resmungou qualquer coisa no sono. Ela se afastou da janela e foi até a cama ver se o garoto estava bem. Ficou por longo tempo estudando o rostinho de perfil tão perfeito que se desenhava contra o travesseiro macio.

Era a própria imagem da inocência… mas também do desamparo. Crianças daquela idade necessitam de muita compreensão e carinho porque, embora tenham consciência das coisas, ao mesmo tempo não podem resolver nada por si próprias. Por isso, precisam ser educadas para não viverem numa dependência angustiante dos adultos.

Estava refletindo sobre isso quando ouviu o piado grave e enervante da ave noturna que se aninhava no telhado. Assustada, voltou-se rápido para o interior do quarto e ao deparar com a própria imagem refletida no espelho não pôde evitar uma comparação insólita.

Sim. Realmente ela se parecia com a moça retratada naquele quadro na biblioteca… Cabelos ruivos escuros, pele muito branca, olhos grandes e cheios de apreensão, lábios entreabertos…

Aquele dia tinha sido mesmo muito estranho e assustador! Que outra explicação existiria para estar deixando a imaginação ir tão longe? Por outro lado, analisando friamente a sucessão de infortúnios que se abatera sobre a família Malraux, como não trazer à mente a lenda da jovem que morrera na fogueira? Era tentador justificar tudo aquilo com a maldição que a moça teria jogado sobre todos que viessem a morar no castelo de paredes cinzentas e torreões negros, tão lindo à luz do dia… tão ameaçador quando a noite se aproximava de suas janelas.

 

A irmã de Malraux passou uma semana em coma, e ele não arredou pé do hospital, com a esperança de que ela voltasse a si e recuperasse a vontade de viver. Todos os dias Rachel levava as roupas limpas de que ele precisava e trazia informações sobre o estado da enferma.

Robert recebia notícias mais otimistas do que verdadeiras, e, durante aqueles dias de espera, Glenda tomou conta dele, fazendo o impossível para que não se sentisse solitário e triste. Seu professor particular foi dispensado até Jeanne ficar fora de perigo, pois o garoto se encontrava muito nervoso e preocupado. Não tinha a mínima condição para acompanhar as aulas.

Glenda o levava a passeios, jogava com ele, fazia todo tipo de brincadeiras para entretê-lo, mas ele insistia, implorava, queria a todo custo visitar a mãe. No entanto, havia recomendações expressas de Malraux no sentido de que isso não acontecesse, uma vez que seria muito chocante submetê-lo à visão da mãe presa a uma máquina que a ajudava a manter-se viva.

Certa manhã, porém, escapando à vigilância de Glenda, num momento em que ela se encontrava no quarto, Robert conseguiu se esconder no banco traseiro do carro esporte de Rachel. Se não tivesse espirrado na hora em que a porta se abriu para a moça entrar, sua presença não teria sido notada e ele acabaria tendo a chance de finalmente chegar ao hospital. Rachel teve que arrastá-lo para fora do veículo e ele fez tal escândalo, que seus gritos chamaram a atenção de Glenda, que veio correndo e levou a manhã toda para acalmá-lo.

— P-por que não posso ir? — perguntava ele, soluçando. — Eu… eu quero ver maman e odeio você p-porque não quer me deixar ir até lá!

— Vai poder visitá-la quando ela estiver se sentindo melhor. Sua mãe agora está dormindo a maior parte do tempo e você não quer incomodar, quer?

— E se ela acordar, perguntar por mim e eu não estiver lá?

Robert não se consolava, e a profundidade de seu sofrimento era tanta que Glenda se sentiu abalada. Lembrava-se da própria insistência em ficar no hospital na noite em que Edith morreu. Ninguém, nem mesmo Simon, fora capaz de convencê-la a sair da cabeceira da mãe adotiva. Era como se seu coração pressentisse que tinham que dizer adeus.

Por volta do meio-dia, Glenda decidiu que era crueldade obrigar o menino a ficar longe da mãe, por piores que fossem suas condições. Num gesto impulsivo, agarrou o telefone, ligou para a garagem e pediu ao motorista para levá-los até o hospital. Em seguida, conversou com o, garoto, explicando aonde iam, e desde logo preveniu-o de que Jeanne se achava sob tratamento intensivo e por isso devia estar muito abatida.

— Seu tio vai ficar muito zangado comigo — acrescentou, tentando não demonstrar o quanto estava apreensiva. — Quero que prometa que será obediente. Vai somente dar uma olhadinha em sua maman, e depois voltaremos para casa.

Abaixou-se para dar os últimos retoques na aparência de Robert. Depois de ajeitar a gravatinha e pentear outra vez seus cabelos negros, deu uma rápida olhada na roupa e concluiu que ele estava muito bonito e elegante naquele terninho azul.

— Por que tio Mall vai ficar bravo com você?

— Porque não gosta que ninguém desobedeça suas ordens.

— Mas você é a mulher dele, e não acho que ele vai brigar.

— Pois acho que vai, sim — disse ela, sincera.

Reparando na expressão intrigada de Robert, ela podia imaginar o que lhe passava pela cabeça naquele momento. Aquele garoto era filho de pais que se adoravam e devia ter presenciado muitas vezes suas demonstrações de afeto e amor mútuo. Por isso, era natural que ele acreditasse que todos os homens tratavam as esposas com carinho e que todas as mulheres respeitavam os maridos. Glenda reconhecia que havia muita gente que se deixava dominar pelo amor. No entanto, não achava que alguém devia ser tão dependente de outro a ponto de a vida perder o sentido sem aquela pessoa.

Sabia que amava Simon, mas não sentia uma necessidade doentia de estar sempre ao lado dele. Admirava sua aparência, gostava de apreciá-lo jogar pólo, partilhava a alegria de passeios a cavalo através dos campos, e gostava de conversar com ele. Tinha plena convicção de que o amor era uma forma de companheirismo e que grandes lances de paixão poderiam levar uma pessoa à ruína ou deixá-la à mercê do desespero… como acontecera com Jeanne.

Glenda e Robert se acomodaram no banco traseiro do Renault e partiram logo em seguida, atravessando os campos verdes do vale do rio Loire.

O mais longo dos rios da França, profundo e tranqüilo, corta uma região rica e de paisagem encantadora. Nos dois lados da margem crescem árvores frutíferas em abundância e o perfume das nêsperas enche o ar.

“Um dia dourado de verão e esse pobre garoto indo ver a mãe que está entre a vida e a morte”, pensou Glenda com tristeza.

Haviam chegado à cidade e Robert estava muito quieto, o rosto voltado para a rua estreita onde se viam nas calçadas mulheres tecendo renda… para véus de casamento e lingerie.

Glenda também as observava, fascinada, e cada vez se sentia mais distante daquele que tinha sido seu mundo até então, feito de uma paisagem bucólica, com a mansão estilo Tudor dominando o cenário, em vez de um castelo com torres e torreões, como o de seu marido…

Marido! Até mesmo a palavra era suficiente para deixá-la com medo, acuada, o coração apertado.

Estavam se aproximando do hospital e Robert estendeu a mãozinha e segurou a dela. Seu rosto pálido e apreensivo obrigou-a a se questionar se havia sido uma decisão acertada trazê-lo e se aquela visita era aconselhável.

De qualquer modo, era tarde demais para voltar atrás pois o motorista já tinha aberto a porta.

— Não vamos nos demorar — avisou ela com voz baixa e grave.

Ele tocou a aba do boné num rápido cumprimento e os viu entrar no prédio, localizado no meio de um imenso jardim, onde vários pacientes estavam sentados, lendo ou conversando.

A recepcionista ouviu com atenção as explicações de Glenda sobre o motivo da visita e convidou os dois a se sentarem, enquanto telefonava para a terapia intensiva.

— Preciso saber antes se o médico vai dar permissão, a senhora deve entender — disse, dirigindo um olhar compreensivo para o filho de Jeanne.

Glenda sentou-se numa cadeira da sala de espera, tendo Robert ao seu lado, e pegou uma revista. Mas sua intenção era apenas disfarçar o nervosismo. Estava morrendo de medo de que Malraux entrasse pela porta furioso, ou de que fossem informados do agravamento do estado da enferma.

Os minutos passavam vagarosamente, e ela quase deu um pulo quando a porta se abriu para deixar passar um enfermeiro, e não a figura autoritária do marido.

— Madame d'Ath?

— S-sim…

— Por favor, me acompanhe.

— Posso levar comigo o filho de mme. Talbot?

— Não há problema, madame.

— Merci. Pegou Robert pela mão, e seguiram o enfermeiro uniformizado de branco. Atravessaram o hall, subiram um lance de escada e entraram por um longo e sinuoso corredor. Glenda sentia as batidas agitadas do próprio coração e os dedinhos de Robert apertando sua mão. Era um bom ou um mau sinal o garoto ter conseguido permissão para ver Jeanne? Será que Malraux já sabia que eles estavam ali? Como reagiria ao vê-los?

Pararam diante de uma porta dupla de vaivém e o homem abriu um dos lados para deixá-los entrar. Repleta de leitos altos, separados uns dos outros por divisórias, aquela unidade de tratamento intensivo tinha um aspecto carregado e perturbador. Sons estranhos, vindos dos vários equipamentos eletrônicos, enchiam o ar. Aqui e acolá se ouvia o gemido de alguém.

A mãozinha de Robert apertou ainda mais a de Glenda quando eles se viram à entrada de um dos compartimentos… Naquele instante ela estava duvidando seriamente sobre o acerto de ter levado o menino àquele lugar cheio de pacientes mais mortos do que vivos, seus frágeis corações palpitando à força de máquinas.

Quando o enfermeiro abriu a cortina que escondia o leito de Jeanne, a atenção de Glenda concentrou-se logo no homem desolado que se encontrava ao lado da enferma. Num primeiro momento só teve olhos para Malraux cuja expressão dura e preocupada lhe provocara um frio no estômago. Seus olhares se encontraram e ela teve a impressão de captar no dele um brilho irônico.

— Entenda, por favor — começou a dizer aflita. — Robbie estava doente de tanto desespero, e eu…

— … Você decidiu trazê-lo apesar das minhas recomendações.

— Sim.

Desviou o olhar para Robert, que contemplava a figura pálida e imóvel da mãe. Um tubo entrava por uma de suas narinas, e um frasco invertido, preso a um suporte, soltava gota a gota um líquido incolor que lhe era injetado no braço.

— Como pode ver, Jeanne não precisa mais do coração artificial. Eles a trouxeram de lá ontem à noite. Eu não quis avisar logo porque vocês , podiam alimentar falsas esperanças. Mas falei com o médico há uma hora e ele acha que ela vai melhorar daqui para a frente.

— Está dizendo que…

— Jeanne abriu os olhos ontem à noite e me reconheceu. E pode abri-los outra vez a qualquer momento. Por isso é bom que Robert esteja aqui agora. Vá para perto de sua mãe e fale com ela — disse ao sobrinho.

O menino soltou a mão de Glenda e aproximou-se da cama.

— Maman…?

Como não houve resposta, levantou o olhar ansioso para o tio.

— Segure a mão dela — murmurou Malraux.

Robert fez como ele disse, pegando com extremo cuidado os dedos completamente inertes. Observando a cena, Glenda levou a mão à garganta, como se sentisse falta de ar. Os segundos pareciam horas. Começou a murmurar uma prece para Jeanne dar algum sinal de que sabia da presença do filho.

Voltou-se então para Malraux e reparou em seu olhar fixo na irmã e no sobrinho.

Não achava estranho a dedicação dele por Jeanne. O que a surpreendia de verdade era constatar que aquela aparência de dureza não significava que ele era um homem insensível. Era uma defesa, que o tornava inatingível… Esta descoberta a fez sentir-se insegura e ainda mais nervosa. De repente, Malraux virou-se e seu olhar pareceu penetrá-la até o fundo da alma, prendendo-a como se um gancho de aço a segurasse.

— Você é mesmo um pouco bruxa, não é? — disse ele, a voz controlada.

— Não… não estou compreendendo…

Malraux fez um gesto indicando Robert.

— Você trouxe o menino aqui, não trouxe? Teve algum pressentimento de que Jeanne tinha melhorado?

— Eu pensei… isto é… achei que ele tinha o direito de vir.

— Quer dizer que eu agi errado quando decidi mantê-lo longe da mãe?

Glenda balançou a cabeça devagar, num sinal de assentimento.

— Robert estava com muito medo do que pudesse acontecer. Deixá-lo em casa só podia piorar as coisas porque ele ia ficar imaginando bobagens. Sei como é isso porque eu amava Edith… minha mãe.

— Ah sim, Edith… Glenda notou uma leve inflexão na voz dele, mas não teve tempo de pensar sobre o assunto porque naquele instante Jeanne abriu os olhos e Robert deu um gritinho.

— Mamãe! Querida mamãe, você está melhor!

Jeanne olhava para o filho com uma expressão muito abatida. Seus lábios tentavam pronunciar o nome dele e Glenda de repente teve a sensação de que era uma intrusa naquele ambiente. Segurando as lágrimas, saiu do quarto e foi até o corredor, onde ficou esperando sentada num banco. Dava graças a Deus por Jeanne ter escapado. Era ainda muito moça e com o tempo sua dor ia ficar mais suportável, e ela acabaria se conformando.

Uma enfermeira passou por onde Glenda estava e entrou na unidade de terapia intensiva. Ela imaginou, então, que dentro de alguns minutos Malraux viria trazendo Robert.

E estava certa. Logo os dois apareceram e ela se levantou, examinando aquele homem muito alto e moreno, e o menino cujos olhos escuros brilhavam outra vez.

— Estou tão contente… — disse Glenda, com um sorriso tímido.

Dando um passo à frente, Robert correu e a abraçou pela cintura.

— Venho ver mamãe outra vez, amanhã. Vão levá-la para um quarto bonito, e titio disse que vai mandar uma porção de flores para ela ficar alegre. Estou tão feliz, Glenda!

— Eu também estou feliz, Robbie, muito feliz — olhou para Malraux.

— Você teve uma semana muito difícil… parece morto de cansaço!

— É desse jeito que eu me sinto. Malraux passou os dedos pelos cabelos negros. Depois observou-a com um ar muito intrigado, como se não entendesse por que ela se mostrava preocupada com o seu sofrimento naquela última semana. Seus olhos cansados tinham um brilho irônico, expressando com clareza que ele achava falso o interesse dela.

Lendo tudo isso na expressão dele, Glenda teve vontade de negar, dizer que sabia o que era ficar ao lado da cama de alguém que a gente amava, observando o rosto lívido no travesseiro e esperando que acontecesse algum milagre e que a morte não fechasse aqueles olhos para sempre.

— Estou cansado e com fome. Vamos comer alguma coisa — disse Malraux.

Dirigiram-se a um restaurante ao ar livre. Malraux pediu uma garrafa de Jasnières, assim que se acomodaram na mesa. Contou que aquele vinho a cada dia se tornava mais raro.

— Vai tomar comigo, não é mesmo, Glenda? — depois ordenou ao garçom que a servisse e enchesse a metade do copo de Robert. — Acho que você também merece, meu rapaz. Por ter sido corajoso.

Ele ficou encantado, mas Glenda disse que achava melhor que pedisse logo alguma coisa para comer.

— Não vamos querer ficar tontos, não é?

O menino riu e cheirou o conteúdo do copo. Malraux sugeriu como entrada patê de codorna com torradas. Parecia agora um pouco mais descontraído, sorvendo a bebida com vagar, recostado na cadeira de junco.

— Vai ser um luxo dormir numa cama confortável esta noite. A que me deram lá no hospital era macia, mas curta demais para mim.

Glenda brincava com o copo, imaginando se naquelas palavras não havia uma ameaça velada. Sabia que estava sendo observada e seus pensamentos provavelmente lidos. Era a esposa que não o queria como marido, mas se ele precisasse de apoio e calor humano e não encontrasse nela boa receptividade, se transformaria numa fera, tinha certeza disso.

Espalhou o patê na torrada, comendo em seguida com uma calma extraordinária. O jardim em volta, muito tranqüilo e agradável, tinha roseiras e vários outros tipos de flores. Tio e sobrinho conversavam e riam alegremente. Afinal, fazia uma semana que não se viam. Para as pessoas das outras mesas, os três davam a impressão de estar muito felizes. Contudo, não era bem isso o que acontecia. Glenda estava dando voltas à cabeça e tentava a todo custo achar uma solução para seu impasse. Podia ter abandonado Malraux enquanto ele se encontrava de plantão no hospital, mas a preocupação com o menino a havia impedido de tomar alguma decisão.

Malraux tinha que saber disso! Ele era suficientemente perspicaz para ter percebido que ela só ficara no castelo para dar ao menino o carinho de que ele tanto precisava. Sua preocupação com a irmã demonstrava que ele possuía sentimentos e com certeza ia escutá-la e compreender quando explicasse que não podia levar adiante aquele casamento.

Depois do almoço Robert estava sonolento e foi cochilar debaixo de uma macieira. Ele e Glenda haviam comido peito de pato assado com batatas e cenouras. Malraux tinha escolhido um guisado de carne de caça, flambado no conhaque, e como sobremesa os três pediram amoras com creme, e finalmente café, o de Robert com creme chantilly.

O menino mal tinha se alimentado durante aquela semana, mas agora, que havia esperanças na recuperação da mãe, havia devorado tudo.

— Quero lhe agradecer, ma chère, pela maneira como cuidou do garoto — disse Malraux enquanto acendia uma cigarrilha. Pôs o fósforo apagado no cinzeiro e olhou para ela, através da fumaça.

— Gostei de poder ser útil.

Agora que estavam a sós, Glenda voltou a ficar nervosa, mas não queria demonstrar o quanto ele a perturbava. Por mais que tentasse não conseguia aceitar o fato de tê-lo como marido e saber que aos olhos de todos, inclusive aos de Simon, pertencia a Malraux d'Ath.

Sim, realmente ela pertencia àquele homem alto e moreno e, diante de seu olhar, sentia-se indefesa, completamente desamparada. Irritava-se consigo mesma por ter essa reação instintiva. Afinal, ele era apenas um homem e não ia matá-la se o abandonasse.

— Foi uma semana difícil para todos nós — continuou ele. — Nada parecido com uma lua-de-mel, não é?

Ela sentiu um fogo percorrer-lhe o corpo e o rosto ficar muito vermelho.

— Temos que conversar sobre isso…

— Realmente, temos, Glenda — ele disse com uma calma enganadora, que o brilho irônico do olhar desmentia. — Nós mal nos conhecemos, somos dois estranhos. Como bem me lembro, você não foi muito receptiva aos meus avanços conjugais e ainda estamos um pouco cerimoniosos um com o outro.

— Mall… — começou a dizer, mas, sem encontrar as palavras adequadas, parou.

— Estava querendo falar alguma coisa, minha querida esposa? — perguntou ele, batendo a cinza da cigarrilha e obrigando-a a encará-lo.

— Deve ter sido um imenso alívio que Jeanne esteja fora de perigo.

— Ela quase morreu, escapou por pouco.

— Sei que você queria muito que ela vivesse.

— Eu tenho uma vontade de ferro, é verdade.

O olhar dele percorreu o corpo da esposa, pousando na saia de couro fino, depois na blusa de seda pura. Uma corrente de ouro rodeava-lhe o pescoço gracioso e ela a segurava com força, sem perceber o que fazia.

— Vai acabar arrebentando o cordão. Por que tanto nervosismo, ma chère? Minha irmã está a caminho da cura, o sol está brilhando, e nós almoçamos muito bem. Eu a deixo abalada?

— Tenho que ir embora, Malraux! Afinal, você já conseguiu o que queria.

Essas palavras foram pronunciadas de uma só vez, apesar do medo que a dominava. Seus olhos dourados o encararam, implorando que ele a libertasse com dignidade.

— E você não conseguiu também?

Ela mordeu os lábios nervosa.

— Não pode ser generoso comigo?

— Tão generoso quanto a família Malraux foi com Edith Hartwell, por tantos anos?

Glenda sentiu o coração bater mais apressado, com medo… havia alguma coisa na voz de Malraux que a assustava. O que ele sabia? Será que suspeitava de alguma coisa?

— Como deve saber, ma chère, Jeanne pretendia mesmo morrer e me deixou uma carta. Não falei com ninguém sobre isto e omiti o caso das autoridades porque nela há uma confissão de suicídio. Mas há uma frase… Quer saber qual é?

Glenda ficou imóvel, sem conseguir pronunciar palavra alguma, mas sabendo que a frase se referia a ela.

— Jeanne me alertou para que eu me certificasse de sua verdadeira identidade.

O coração dela quase foi parar na boca.

— Por que ela… ela escreveu uma coisa dessas?

— Diga-me, seu nome é realmente Glenda?

— Claro que sim!

— Não acredito! — ele a olhou bem nos olhos. — Tiveram que me lembrar que a menina que veio ao Château Noir como convidada de meu avô tinha olhos verdes. Hoje em dia a natureza é muito ajudada por meio de tinturas, cirurgia plástica, lentes de contato coloridas — parou e riu sarcástico. — Que falha, que falha imperdoável, mocinha, você não ter investido num par de lentes para dissimular a cor dos olhos, como a tintura que alterou a cor dos cabelos.

— Como ousa! — Glenda sentiu-se revoltada, pois pelo menos a cor de seus cabelos era natural. — Nasci com os cabelos desta cor!

— Mas não é filha de Edith Hartwell, é? Pode me contar a verdade. Não sou tolo para acreditar que olhos verdes podem de alguma maneira mudar para dourados. De onde você surgiu? O que aconteceu com a verdadeira Glenda Hartwell?

— Eu… sabia que isto ia acontecer, que mais cedo ou mais tarde alguém desconfiaria de que eu nunca tinha estado antes no Château Noir. Pensei que talvez pudesse evitar isto porque… pretendia abandoná-lo. Nunca quis ficar e continuar fingindo…

— Exijo que me diga agora mesmo quem é você — disse ele, a voz cortante. — Uma aventureirazinha barata, que se aliou com aquela mulher para continuar explorando a fortuna dos Malraux?

— Não a chame de “aquela mulher”!

— Eu a chamarei como quiser! Eu posso compreender sua gratidão pela quantia que lhe tocou na generosa renda que meu avô destinava a ela, com a condição de que um dia a filha se tornasse minha esposa! O que aconteceu à menina?

— Ela morreu há dez anos.

Ele respirou com dificuldade, a irritação evidente.

— E como morreu?

— Ficou doente durante um cruzeiro que fazia com a mãe pelo Mediterrâneo — explicou Glenda, tentando manter a calma, enquanto o olhar de Malraux a cobria de um frio desprezo. — Edith a enterrou na ilha de Malta. Mas você tem que entender que…

— Tenho mesmo?

— Edith estava acostumada a uma vida confortável, boas roupas, viagens, e o testamento de seu avô não a tinha contemplado, somente à sua filha. Sem aqueles rendimentos ela ficaria na miséria, pois nunca foi de economizar.

— Quando você entrou nesta trama?

— Edith me adotou. Eu estava num orfanato em Gales. Desde o dia em que me tirou daquele lugar melancólico, deu-me tantas coisas lindas, e sempre me tratou como se fosse minha verdadeira mãe.

— Mas que tocante!

— Oh, Deus! — Glenda cobriu o rosto com as mãos, numa tentativa inútil de fugir ao justificado sarcasmo. — Eu era apenas uma criança, não sabia o que a tinha levado a agir assim. Quando me contou eu já a amava demais para julgar seus atos… e ela estava morrendo quando me implorou para… para me casar com você, para que ninguém soubesse que durante nove anos espoliara a fortuna dos Malraux.

— Então você admite que houve fraude e que tomou parte dela?

— O que mais posso fazer a não ser admitir? — respondeu Glenda, sustentando a frieza do olhar dele. — Em defesa de Edith, e na minha, só posso dizer que se você tivesse passado a infância num orfanato poderia compreender como uma criança se sente grata quando aparece alguém e a escolhe como… como companheira. Edith foi realmente boa para mim.

— Ela podia se dar ao luxo de ser, e você tinha a maior parte dos requisitos exigidos, não é? A idade certa, o mesmo cabelo ruivo, e obviamente ela contou com o fato de que a maior parte das pessoas ou não repara na cor dos olhos dos outros ou se engana quanto a isso. Francamente, vocês duas tiveram topete!

— Eu… eu não me casei com você por causa do dinheiro — defendeu-se Glenda.

Parecia tão indefesa, ali sentada, com o sol batendo nos cabelos vermelhos… Como aquele homem que agora a acusava podia saber que Edith a protegera, tratara-a com amor, como se ela fosse sua própria filha? Aquela fisionomia dura parecia indicar que ele só pensava o pior dela… que a considerava uma aventureira.

— As coisas foram… acontecendo — ela disse, desamparada.

— É mesmo? Não diga!

As faces dela queimavam.

— Eu não esperava mesmo que você compreendesse. Afinal, é feito de ferro.

— Talvez você pensasse que eu era feito de gesso… um tolo sem fibra que pudesse ser manipulado. Deve ter sido um belo choque quando me conheceu e descobriu que precisava bem mais do que uma pele branca e cabelos ruivos para me tornar maleável. Dieu, mas você é mesmo surpreendente, sabe disso? — exclamou ele, sacudindo a cabeça e depois olhando-a nos olhos como se esperasse encontrar neles algo que pudesse considerar anormal. — E ainda tem a audácia de me dizer que ama esse tal Brake, embora tenha ido até a igreja para se casar comigo! Que tipo de mulher é você?

— Eu… eu lhe disse… fiz tudo por Edith!

— Minha cara, ninguém é assim dedicado!

— Precisa ser tão sarcástico? — perguntou ela, sentindo que ia chorar. Mas não queria chorar na frente dele. Tinha que buscar forças no próprio orgulho e não lhe dar a satisfação de humilhá-la tanto. Afinal de contas quem era aquele homem para tratá-la com tanto rigor? Ele fora até a igreja e se casara com ela só para poder pôr a mão num amontoado de torres!

— Pois acho que tenho o direito de ser sarcástico — respondeu Malraux. — Não esqueça que tive que assistir a uma bela farsa na noite de nosso casamento. Suponho, mesmo para alguém como você, que deve ter sido muito assustador ver-se repentinamente casada com um estranho. Dieu, não sei se o velho Duval acharia esta situação engraçada ou se ficaria furioso! — depois, inclinando-se na cadeira, sorriu com ironia. — Muito bem, mulherzinha, agora vai ter que pagar as despesas, não vai?

Glenda o olhou, sem compreender a que estava se referindo.

— O que foi que disse?

— Não me venha com essa cara de órfãzinha, por favor —- disse ele, rindo de forma ameaçadora, as cicatrizes acentuadas pelo sorriso. Jogou no chão o cigarro, depois cruzou as mãos e apoiou o queixo nelas. — Sabe muito bem do que estou falando, portanto pode dispensar encenações. Já fingiu bastante!

— Mas eu… eu não sei mesmo do que está falando! — sustentou ela com firmeza, embora, bem no íntimo, algo a tivesse abalado, pois podia adivinhar o que ele estava insinuando: cama.

— Está vendo estas mãos? — perguntou ele, abrindo-as, mostrando as palmas e depois os dorsos, onde os pêlos negros realçavam os pulsos fortes; os dedos, longos e flexíveis, agora pareciam ameaçadores. — Pois você está nelas, ma chère — enquanto falava, Malraux fechou as mãos como se na verdade a tivesse presa ali dentro.

Glenda prestou muita atenção àquele gesto e depois levantou vagarosamente o olhar para o rosto inflexível.

Talvez ele fosse mesmo insensível… Pelo menos assim parecia a Glenda, que tinha certeza de estar revelando naquele momento a angústia que trazia no coração. Ela o havia enganado e por isso dava a ele o direito de ficar furioso. Mas o que mais a abalava era a frieza que via naquele olhar.

— Você deve me desprezar muito — disse ela, a voz rouca. — Mas mergulhei numa apatia intensa… como se estivesse sonhando. Só despertei quando me vi na sacristia, tendo que assinar o livro de registros. Foi horrível… meu coração quase parou…

— Mas não parou, e você simplesmente desmaiou a meus pés. E desmaiou também de choque, desconfio, porque o seu herói não foi salvá-la.

— Oh… como pode ser tão grosseiro? Será que não tem um pouco de misericórdia?

— Sim, mas não pretendo gastá-la com você. Posso até acreditar que você pretendia salvar a honra da querida Edith, mas ao mesmo tempo queria que o galante Simon a impedisse. Mas ele não o fez. E quer que lhe diga por quê?

— Sei que vai dizer mesmo que eu não queira!

— Sim, eu lhe direi, porque está mais do que na hora de você aprender as verdades da vida. O jovem Brake adora usar uniforme e parecer um cavaleiro andante, mas quando chega a hora de arremessar a lança, fica firme como uma estátua, e decide que a prudência é mais importante do que a coragem…

Ultrajada, abalada por aquelas palavras, Glenda ficou imóvel, desejando ter uma lança nas mãos para atirar no coração de Malraux d’Ath.

— Você não sabe absolutamente nada sobre Simon — disse ela, as palavras saindo com dificuldade, tal sua revolta — e está sendo mesquinho porque sabe que eu… que eu o amo.

— Ama? — perguntou ele, com ironia. — Você nunca vai saber o que é o amor, minha cara! Não passa de uma mulherzinha tola, que se envolveu comigo, que não sou feito da mesma matéria podre que seu oficialzinho loiro, com seus botões dourados brilhando. Ele não é feito de aço, como eu. Talvez seja um amante ideal, ma belle, mas eu sou o seu marido.

Ela estremeceu ao ouvi-lo dizer isso. Marido… Sim, aquele homem era seu marido e, por estranho que pudesse parecer, Glenda começou a reparar que ele tinha um certo charme… uma certa sensualidade. Afastou isso do pensamento e continuou a falar:

— Mas nós… nós temos que nos divorciar. Agora você já sabe toda a verdade, o que de certo modo é um alívio para mim. Odiei ter que mentir esse tempo todo e admito que errei ao permitir que meu amor por Edith tivesse me convencido — parou e o fitou atentamente. — Por que está me olhando assim?

— Nunca houve um divórcio em nossa família — informou ele. — E não pretendo ser o primeiro.

— Mall… — os lábios dela estavam trêmulos. — Não brinque comigo… por favor!

— Não? — o olhar pousado nela revelava uma certa admiração. — Brincar com você, Glenda, é uma coisa que eu não desprezaria. Olhando-a agora não consigo ver aquela menina e sim uma mulher extremamente atraente que por acaso é minha esposa. Será que me fiz entender?

Glenda observou aquele corpo, moreno e poderoso, sentindo-se tão desesperada quanto um animal encurralado. Até mesmo na maneira como ele a encarava havia uma certa ameaça. Assustada, implorou:

— Deixe que eu vá embora, Mall.

— Eu não a estou segurando, minha cara — disse ele, abrindo as mãos num gesto de zombaria.

— Você sabe o que quero dizer.

— Quer voltar correndo para seu galante Simon?

— Eu… eu já disse que o amo.

— Sim, lembro que me contou um monte de mentiras.

— Isso não é mentira.

— Ah, não? Pois você não soube fazer outra coisa, Glenda, desde que entrou naquele castelo. Até agora tudo foi uma farsa. Mas as verdades estão aparecendo; minha Bela Adormecida acordou e não foi um Príncipe Encantado quem a despertou, infelizmente. Sei o que as mulheres sentem ao ver meu rosto… o que você sente, principalmente ao compará-lo ao clássico perfil do jovem Brake. Mas, como já lhe disse antes, você não vai ver as cicatrizes quando a luz estiver apagada.

— Pelo que me lembro, parece que você não gostou quando pedi que apagasse a luz.

— É verdade, minha querida, mas agora as coisas mudaram. Pelo menos no que se refere a você, sei que é uma mentirosa, uma ladra.

Ela recuou como se tivesse recebido um tapa no rosto.

— Você não mede as palavras, não é? Está disposto a me humilhar, a me machucar, mas não me dará o divórcio mesmo tendo todas as provas de que precisa.

— O divórcio está fora de cogitação.

— Por quê? — perguntou ela, desnorteada. — Você me acusou de ser cúmplice de uma fraude e… e sabe o que sinto por Simon. O que quer mais?

— Será que não é esperta o suficiente para descobrir? — quis saber ele, com um leve sorriso. — Será que seus instintos de fêmea não lhe dizem nada? Na noite de nosso casamento, ma chère, você estava me contando como era experiente.

Glenda ficou vermelha de vergonha e não conseguiu sustentar o olhar dele.

— Pare com isso! Você não pode continuar casado comigo, isso não faz sentido! Já conseguiu o que queria com o casamento. Sonhava com o castelo e agora ele é seu, e também o controle das fundições. Indiretamente eu o ajudei, então por que você não pode ser justo?

— Ser justo? De todas as bobagens que você falou até aqui, Glenda, esta é a que ganha o prêmio! Será que você foi justa quando chegou naquela igreja, tão imaculada em seu vestido branco de noiva, representando o papel de uma menina morta e enterrada há dez anos? Eu poderia ter o castelo e as fundições sem nada daquilo; tudo de que precisava era que me contassem que a verdadeira Glenda Hartwell estava morta. O casamento seria cancelado na hora. Não era possível que você não soubesse. Afinal, sei que não é a ingênua que aparenta ser.

— Obrigada! — exclamou ela, trêmula pela violência daquelas palavras. — Você vê tudo de seu ângulo, não é? Não quer compreender a minha posição!

— Sua devoção por Edith Hartwell? É isso o que quer dizer?

— Não ridicularize este sentimento, Malraux. Pela maneira como trata as pessoas provavelmente não sabe o que é isso.

— Pois acho que a tratei com tolerância — retrucou ele —, considerando a maneira como você retribuiu. E pretendo ser compensado por isso.

— E pensa que eu o compensarei? — perguntou ela, erguendo o rosto e fingindo uma coragem que estava longe de sentir.

— Exatamente, minha querida.

— Está se recusando a me dar o divórcio?

— Definitivamente.

— Mas não vai me impedir de abandoná-lo. A não ser que pretenda me aprisionar naquela torre.

— Parece uma boa idéia; sou capaz de levá-la em consideração.

— Vai me querer, mesmo sabendo o que houve entre Simon e eu?

— Ele provavelmente segurou-lhe a mão por alguns minutos, ma chère; talvez até a tenha beijado, mas é muito medíocre para ir mais longe com uma ingênua como você. Homens como ele procuram coristas ou prostitutas experimentadas com quem possam fazer suas farrinhas.

— Como você fez? — revidou ela, enfurecida com o sarcasmo com que ele falava de Simon.

— Como eu? — perguntou ele, imperturbável. — Não sou um velho precisando de uma bengala. Eu tenho trinta anos.

— Pois parece bem mais.

— É por causa de minhas cicatrizes — disse ele, sério. — E elas existem por causa de algo nobre, se isso representa alguma coisa para você.

— Não pense que pode me intimidar com suas histórias!

— Não ouse falar desta maneira! — disse ele, a voz fria e impiedosa. — Você é uma ladrazinha insolente que precisa de uma boa surra. Foi mimada por aquela mulher preguiçosa e fútil, que a tirou de um lugar decente, onde teria aprendido uma profissão, para transformá-la numa moça bonita, mas inútil!

— Como pode me dizer coisas tão grosseiras? — Glenda afastou a cadeira e ficou em pé. — Eu podia ter fugido há uma semana, mas fiquei por causa de Robert. Fui bem mais útil do que aquelas suas primas! Uma delas fica o tempo todo pensando no patrão enquanto a outra daria qualquer coisa para estar em meu lugar, casada com você. Eu… eu o odeio. Malraux d'Ath!

— Odeia mesmo? — perguntou ele, ficando também em pé, e num movimento ágil, aproximando-se de Glenda.

Ela recuou, assustada, e esbarrou num arbusto de mimosas. As florzinhas delicadas se desprenderam e caíram em seus cabelos, enquanto uma raiva surda e impotente a fazia tremer. Se não fosse pela criança, poderia estar livre das garras de Malraux d'Ath… poderia já estar na Inglaterra.

— Sim — disse ela, ofegante. — Acho que você é detestável!

— Pois então vamos nos entender muito bem — disse ele, enquanto a alcançava e a puxava para si. — Não preciso me preocupar com seus sentimentos e você não precisa se preocupar com os meus. Um dos aborrecimentos que as pessoas apaixonadas têm é que perdem muito tempo se preocupando umas com as outras, mas nós dois podemos viver sem estes empecilhos provincianos…

 

Não podia haver mal-entendido naquelas palavras. Malraux tinha sido muito claro, assim como as mãos dele, em volta do corpo de Glenda. Ele pretendia continuar casado e não deixá-la ir embora.

— Você… você está louco se imagina que vou ficar em sua companhia! Não estamos mais na Idade Média, mesmo que você continue se comportando como um seigneur reinando sobre os servos! Não pode ordenar a seus criados que me amarrem numa árvore, e façam uma fogueira embaixo!

— Como a sua imaginação é rica, Glenda! Não admira que Edith Martwell tivesse sido capaz de convencê-la de que era uma fada-madrinha.

Suas mãos se endureceram, e com a maior facilidade ele a puxou ainda mais para perto. Há muito as pessoas que estavam nas mesas em volta tinham ido embora, e o silêncio só era interrompido pelos passarinhos nas árvores e as abelhas voando pelas flores. Robert estava adormecido debaixo da macieira do restaurante, e, pela janela, um garçom discreto via um homem e uma mulher juntos, no que parecia um abraço. Ele encolheu os ombros de modo significativo e resolveu dar-lhes mais cinco minutos antes de levar a conta. Amantes, pensou, vivem num mundo só deles.

Malraux sorria, cínico:

— E certo que não estamos mais na Idade Média, mas ainda existe gente que não quer ser envolvida num escândalo… Por exemplo, um jovem oficial da Guarda Real, sem grande fortuna familiar, e com pretensões a subir no Regimento. Não vai ser nada agradável para o jovem Brake se todos ficarem sabendo que sua namorada era uma criança abandonada, adotada por uma mulher que a usava com finalidades de extorsão, crime passível de cadeia. Pode até ser que você fosse considerada inocente antes de se casar comigo, mas agora também é culpada.

Essas palavras ficaram ecoando no ar, e parecia não haver nada que Glenda pudesse dizer que abrandasse a fúria de Malraux. Ele havia se negado a considerar as razões que a levaram a aceitar o casamento, assim como as circunstâncias que a obrigaram a fazer-se passar por Glenda Hartwell, a menina que ele conhecera há dez anos. Da mesma forma, tinha escarnecido da sinceridade de seu amor por Edith, desconsiderando todos os argumentos dela. Em troca, apresentava apenas aquele ultimato assustador.

Realmente, um oficial jovem e ambicioso como Simon não tinha condições de ver sua reputação manchada, e Glenda lia nos olhos de Malraux a intenção de levar o assunto até o fim.

Se insistisse em deixá-lo, ele envolveria o rapaz no escândalo do casamento deles. E revelaria que Edith tinha roubado e mentido, além de ter traído a confiança de Duval Malraux.

Nenhuma daquelas revelações o atingiria… só atingiriam as duas pessoas que Glenda amava.

— E você faria isso, não faria? — ela falou, a voz quase um sussurro.

— Sim — disse ele, o olhar sustentando o dela, impiedoso. — Fico surpreso de ver até onde podemos chegar quando somos provocados.

— Provocados? Você — exclamou ela, cheia de ironia. — É seu ego que não pode me perdoar por eu tê-lo enganado; você continuaria acreditando que eu era a filha de Edith Hartwell se Jeanne não tivesse reparado que os meus olhos não eram verdes. Para você eu não valho tanto quanto a verdadeira Glenda, mas você precisa me possuir, não é?

— Sou um ser humano normal — disse ele, obrigando-a a colar o corpo ao seu, como se quisesse deixar evidente o quanto era humano. — E você tem uma pele muito bela, tão branca, tão macia! Por que esperava que a deixasse ir embora? Agora você me pertence, e no que é meu nenhum outro homem encosta a mão.

— É esse o seu lema? — perguntou ela, imóvel, sentindo que seria inútil tentar resistir àquele contato.

Droga! Ele parecia ver através da teia de mentiras a verdade a respeito de Simon. O jovem oficial a tinha tocado, mas não assim. Ele a beijava algumas vezes, mas havia menos sensualidade em seus beijos do que no olhar de Malraux sobre sua pele!

Querido, querido Simon… ele a tinha respeitado.

— Digamos antes que é o nosso lema, minha querida — respondeu Malraux, levantando o queixo dela com um dedo e forçando-a a enfrentar seu olhar. — Eu a aconselho a se esquecer de Simon Brake e a lembrar-se de que, se ele valesse o sal que come, a tinha levado embora daquele altar, sem dar a mínima para o que pensassem dele. Você pode arranjar mil desculpas, mas no íntimo está decepcionada porque ele ficou imóvel, metido naquele uniforme cheio de dourados, e permitiu que você dissesse que me amava — ele fez um gesto de zombaria. — É o que se chama de “agüentar firme”, não? Ele é bom nisso; eu sou bom em outras coisas, e digo sem a menor modéstia.

— Você é inacreditável! Eu amava Edith sim, mas teria fugido para os confins do mundo se soubesse o que me esperava aqui. Você não é um… cavalheiro!

— Nem você é uma dama, minha cara — retrucou ele. — Você era uma criança sem dono que a astuta Edith recolheu, e tenho certeza de que não faz a mais remota idéia de quem possa ser a sua mãe…

— Não faço mesmo — disse Glenda, muito magoada. — Por que, então, não me deixa ir se nome e posição social contam tanto para você?

Malraux examinou aquele rosto suave, de pele alva e perfeita, e se deteve nos olhos, que demonstravam muita preocupação.

— Para onde vai se eu lhe der o divórcio?

— O mais longe possível de você — respondeu ela, apesar de tudo ainda esperançosa de que ele a deixaria partir. — Afinal de contas, que tipo de casamento nós teríamos?

— Pois acho interessante descobrir — revidou ele, arrastando as palavras. — Agora, vá acordar o garoto enquanto eu pago a conta.

— Malraux… tenha coração!

— Você mesma disse que meu coração é de ferro, ma chère, não se lembra? — afrouxou o abraço e empurrou-a de leve. — Chame Robert; já estamos indo para casa.

— O castelo não é minha casa… Nunca será!

— Então que seja sua prisão, madame! Não estou me importando nem um pouco com isso.

Glenda viu-o afastar-se em direção ao caixa… Aquele homem de andar tão seguro tinha-a sob seu completo domínio. Estava sendo cruel, sim, ao recusar a separação, mas em situação idêntica outros homens agiriam de forma mais brutal. Alguns talvez até batessem na esposa! Entretanto, requintado como ele era, tocara apenas onde o dano seria menos aparente… mas onde com toda certeza ela o sentiria mais.

O que fazer para sair daquela situação? Não podia simplesmente fugir e tentar conseguir o divórcio por conta própria. Se ousasse isso, Malraux faria exatamente como tinha dito e envolveria até Simon naquela história vergonhosa.

Ele estava furioso demais, fervendo por dentro, e não seria preciso muito para fazê-lo explodir. Sempre conseguira o que queria e agora, talvez pela primeira vez na vida, achava-se diante do único problema que fugira ao seu controle: ter uma esposa a quem detestava como pessoa… e com reciprocidade.

Mas… uma esposa era uma mulher… e poderia dar a ele o que todo homem de fortuna ambiciona: o herdeiro.

Sim, isso ele desejava mesmo! Afinal, para quem deixaria o Château Noir e as Fundições Malraux?

Glenda olhou nervosa à sua volta, como se ali existisse uma maneira de escapar. Mas como? Se saísse correndo ele a alcançaria em poucos minutos… como um perdigueiro no encalço de uma presa. Esconder-se? Onde?

Malraux em nada se parecia com o refinado e bem-educado Simon. Ao contrário, era um homem cuja infância havia sido roubada por um avô rígido, que se empenhara em transmitir à criança apenas as próprias esperanças que tinha em relação às fábricas da família. O resultado não se fez esperar. Malraux dava a impressão de não ter outra preocupação a não ser o minério. Não era à toa que vivia dizendo que era de aço!

— Vamos embora de uma vez! — a voz dele interrompeu seus pensamentos.

Glenda se voltou e deu com Malraux carregando Robert no colo, de maneira muito carinhosa. Acompanhou-os em silêncio até o carro e ajudou o marido a acomodar a criança, que ainda dormia, no banco traseiro.

Meia hora depois eles haviam deixado para trás as ruas arborizadas e avistavam o castelo desenhado ao longe, contra o céu azul, envolto numa atmosfera de sonho, com as matas que cobriam as encostas. O sol reluzia nos vidros das janelas góticas, que se destacavam entre a hera que subia pelos muros.

— As torres têm chapéus de feiticeira — disse Robert, que havia acabado de acordar e agora se debruçava sobre o banco da frente, abraçando Glenda pelo pescoço.

Malraux deu uma risada e olhou-a de soslaio enquanto manobrava para atravessar o portão.

— Aqui é o lugar ideal para uma feiticeira viver, você não acha, Robert?

— Ele está falando de você, é, Glenda?

— Sim, Robbie, seu tio tem muito senso de humor.

— Não acredito que ela seja feiticeira, tio — disse o menino, sério. — Se fosse, teria uma verruga na ponta do nariz.

— Não tenha tanta certeza, rapaz — disse Malraux estacionando o carro — Tome cuidado, principalmente com aquelas que têm olhos claros; nessas a gente não pode confiar. São as que envolvem um homem e acabam virando a cabeça dele às avessas, se o sujeito não for esperto. É preciso ser muito duro para não se deixar enganar por uma mulher. Você ainda vai me agradecer por este conselho quando crescer.

Robert arregalou os olhos, muito assustado, e depois apertou o nariz contra a nuca de Glenda.

— Eu gosto das mulheres — comentou, — são tão cheirosas!

— Isso também faz parte da feitiçaria, mon ami — respondeu o tio, olhando com certo desagrado o abraço dos dois.

— Mall, pare de tentar desiludir o garoto! — protestou Glenda.

No mesmo instante o olhar de Malraux procurou o dela.

— Estou apenas querendo transmitir a ele a lição que me custou tanto aprender, querida esposa.

— Não seja ridículo! Mulheres perversas como eu não andam às dúzias por aí — ela ousou provocá-lo. — Tenho certeza de que Robbie nunca vai conhecer uma “impostora” como eu.

— O que é impostora? — o menino quis saber.

— Uma mulher mentirosa e fingida — respondeu o tio.

Ao ouvir aquilo, Glenda sentiu uma dor profunda no peito; estava indefesa contra a verdade, mas lhe parecia excesso de crueldade dizer essas coisas diante de uma criança… A não ser que a intenção dele fosse jogar o menino contra ela. Seria essa uma forma a mais de castigá-la? Como saber? Aquele rosto moreno e cínico, aquele sorriso misterioso não indicavam com clareza o que ele pretendia.

— Não soa muito agradável, não é? — perguntou Malraux. — Bem que você gostaria de negar com esses belos e mentirosos lábios; mas sabe que não pode.

— Mall, por favor… — ela fez um gesto rápido na direção de Robert e continuou: — Isto fica entre nós, sim? Diga o que quiser quando estivermos sozinhos, mas…

— … Mas deixe que os outros acreditem que você é doce e angelical!

Ela ficou muito corada.

— Nunca pretendi ser um anjo e não gosto que me chamem de doce. No entanto, mesmo sabendo que você não vai acreditar, sou uma pessoa que age muito mais com o coração do que com a cabeça.

— Isso não deve acontecer com muita freqüência, tenho certeza.

Dizendo isso, ele desceu do carro e abriu a porta de trás.

— Agora saia, rapaz. Está contente depois que viu maman e se convenceu de que ela está bem?

— Por que ela tentou… fazer aquilo, tio? Ela queria morrer, é?

— Algumas vezes, meu pequeno, não é que queremos morrer, mas não temos razões para viver. Isso pode acontecer com qualquer um. Le bon Dieu não fez ninguém perfeito e desconfio que uma pessoa sem defeitos seria até maçante.

Os três estavam atravessando o pátio de entrada; Robert segurava a mão do tio e Glenda estava ao seu lado.

— Quando maman vai voltar para casa? Eles não vão querer deixá-la no hospital muito tempo, vão?

— Jeanne vai ter que ficar lá até melhorar bastante, mon ami.

Entendo. Posso continuar dormindo em seu apartamento na torre, tio?

— Não. Acho que já é tempo de você retornar a seu quarto. Você é um menino crescido e deve compreender que eu e Glenda queremos ficar sozinhos em nosso recanto. É o que os casais fazem.

Robert lançou um olhar aflito para Glenda, e ela sentiu um aperto no coração. Mas o que podia fazer? Tinha pensado em sugerir a permanência dele na Tour Etoile até a mãe voltar para casa, mas depois da recusa categórica de Malraux não ousava nem tocar no assunto.

— Glenda… — o menino murmurou.

— Sinto muito, Robbie, mas quem manda é o seu tio.

— Fico satisfeito por você ter descoberto isso — disse Malraux.

— Você é ruim! — gritou Robert, soltando a mãozinha e correndo em direção à porta.

Revoltada, Glenda fez menção de segui-lo mas o marido a impediu, segurando-a pelo braço. Então ele explicou:

— Os avós do garoto estão vindo dos Estados Unidos e eu concordei em deixá-lo viajar com eles por um ou dois meses. Jeanne vai precisar de tratamento psiquiátrico e já tenho em mente uma boa clínica para ela ficar, em Paris. Foi uma lástima! Eu devia ter tomado providências antes que ela ficasse tão deprimida a ponto de tentar o suicídio. É que os negócios me absorveram muito e depois… o nosso casamento — fez uma pausa e olhou para Glenda com um interesse nunca antes demonstrado. Depois exclamou: — Diabo! Por que não me lembrei da cor dos olhos daquela menina?

— Mall, por favor…

Ela tentou se soltar mas os dedos fortes se fecharam ainda mais, machucando-lhe o braço. Os olhos dele brilhavam mais escuros no rosto e as cicatrizes pareciam mais assustadoras do que nunca.

— Agora já está feito! — disse ele, com os dentes cerrados. — Somos marido e mulher, quer você goste ou não. E tem mais: você é muito atraente e eu não sou nenhum monge.

Ela reteve a respiração, assustada, e um sorriso irônico arqueou os lábios de Malraux.

— E não me venha mais com mentiras sobre a sua suposta experiência com Brake… Você acredita mesmo que eu não saiba que você nunca dormiu com um homem? Quando isto acontece, minha querida, o olhar da mulher se altera… fica mais brilhante. E seus olhos, Glenda, estão muito sem vida, apagados!

— Mas você vai suportar fazer amor com uma mulher que não o ama? — ela perguntou, desafiadora.

— Tenho certeza de que não vai ser desagradável, principalmente com você — disse ele, deslizando o dedo pelo rosto dela até o pescoço; depois traçou o caminho de volta, alcançando o lóbulo da orelha. Em seguida abaixou a cabeça e roçou os lábios em sua pele macia, num beijo suave.

— Eu a farei esquecer seu soldadinho — sussurrou-lhe ao ouvido, o hálito quente fazendo cócegas e provocando um arrepio no corpo de Glenda.

— Simon tem meu coração…

— Ma chère, isto mais parece conversa de revista feminina. De que adianta ele ter o seu coração se não tem o que eu consegui, o seu corpo?

— Você é… horrível! — disse ela, traindo o embaraço que sentia.

— Certamente — zombou ele —, sou mesmo um monstro e tenho um rosto que prova isto.

— Oh, não é o seu rosto, é a sua atitude!

— Agora que entre nós dois ficou tudo esclarecido, acho que a minha atitude é muito razoável. Afinal, sou a parte ofendida!

— Pois me dá a impressão de que está se divertindo muito, como um menino cruel, que prende uma mosca numa garrafa!

— E você está pensando que vou arrancar as suas asas? — caçoou ele. — Sua opinião sobre mim é muito pouco envaidecedora… Estou me sentindo abalado.

— Não acredito que nada neste mundo consiga abalar você. Acho que os seus sentimentos estão protegidos sob uma capa muito dura.

— Com a quantidade de mulheres iguais a você que existe por aí, um homem tem que se cuidar. Esse seu ar inocente, vulnerável, esconde uma audácia muito grande. Você teve a coragem de casar-se com um estranho! Eu ficaria até bem impressionado com tanto sangue-frio… se o envolvido não fosse eu… Claro, admito que você tenha ficado um tanto apreensivo depois que me conheceu. Afinal sou bastante diferente daquele inglês molenga e disciplinado, por quem você insiste em dizer que está apaixonada.

— Como você também tem sangue inglês, talvez eu esperasse que você fosse um pouco… galante.

— Um Dom Quixote cretino? É isso o que quer dizer?

Glenda não conseguiu sustentar o olhar desconcertante que ele lhe dirigiu. Que homem mais perturbador! Parecia enxergar no interior dela, lendo-lhe os pensamentos com a mesma facilidade com que se lia um livro. Nunca sentira isso com outra pessoa!

— É inútil tentar resistir — continuou ele. — A situação em que se meteu foi criada por você própria; resolveu enganar um homem e agora vai ter que viver com ele. Acho melhor que faça como eu… que se conforme.

— Você não deixa dúvida quanto a isso!

— Nenhuma sombra de dúvida, ma belle!

Antes que ela pudesse perceber o que estava acontecendo, Malraux a tomou nos braços e cobriu sua boca com a dele, com violência e paixão. Glenda viu-se obrigada a entreabrir os lábios… Não tinha forças par enfrentá-lo e ao mesmo tempo começava a sentir um estranho amolecimento no corpo, uma sensação que nunca experimentara antes. Era como se um calor muito intenso a estivasse derretendo por dentro. De repente, Glenda teve medo das próprias reações e fez menção de empurrá-lo.

— Não! — ele conseguiu dizer e voltou a beijá-la.

Momentos depois mantendo-a estreitamente abraçada, voltou a falar:

— Não vou permitir que recuse meus beijos. Agora você é minha e vai parar de pensar no capitãozinho Brake, de sonhar com o rosto dele e com suas atenções langorosas. Não se aflija! A partir de hoje você vai ter tudo que andou procurando. Eu sou o homem com quem se casou!

Claro! Não era possível negar isso. Aquele homem moreno e alto, dominador e ardente era o marido dela e tinha o direito de beijá-la, abraçá-la… possuí-la.

Desesperada com esse pensamento, Glenda o olhou, mas não teve tempo de esboçar qualquer resposta. Malraux a levantou nos braços com a mesma desenvoltura com que levantava Robert.

— Mais uma vez eu a carrego para transpor as portas do castelo, querida — zombou ele.

Logo depois, com passos ágeis e firmes, ele subiu os poucos degraus de entrada e alcançou o hall. O dia estava chegando ao fim e a luz dourada do sol atravessando os vitrais da janela batia-lhe no rosto e parecia queimá-lo outra vez. Glenda o observou: os cabelos negros e lisos, o nariz reto, os olhos brilhando e aquele sorriso de vitória nos lábios lembravam-lhe muito mais um aventureiro roubando uma mocinha do que um marido!

Por alguns segundos… ou minutos?, ele permaneceu parado no meio do imenso salão; depois, com uma expressão enigmática como se estivesse vendo tudo aquilo pela primeira vez, girou sobre si mesmo, olhando em volta e falando:

— Preste atenção, Madame d'Ath, nós dois iremos partilhar tudo isso! — parou e assumiu um tom grave. — Mas… se algum dia você permitir que algum homem, seja lá quem for, toque em você, eu a estrangularei e a Corte dirá que foi um crime passional. Entendido?

“Não!” Realmente ela não conseguia compreendê-lo. Sua vida com Edith não a tinha preparado para conviver com alguém capaz de tanta violência. A que se devia o caráter daquele homem? Será que o fato de ser meio francês, meio inglês fizera com que não assimilasse os valores nobres nem de um povo nem de outro?

Tudo indicava. Parecia que nele a sagacidade e audácia características dos franceses havia dominado o sentimentalismo inglês, substituindo-o Por uma lógica implacável. Já que estavam casados tinham que viver juntos… não importava se existisse ou não amor entre eles.

— Você nunca amou alguém? — Glenda perguntou.

Malraux deu um sorriso zombeteiro enquanto a depositava vagarosamente no chão; manteve, porém, as mãos em volta dela, sobre os quadris.

— O que você chama de amor? Um ideal romântico… tipo Tristão e Isolda, Dante e Beatriz, Jane Eyre e Rochester?

— Eu nem imaginava que você conhecesse todos esses pares — disse ela, tentando ignorar as mãos que lhe acariciavam as nádegas. — Você deve considerá-los uns tolos sentimentais que perderam tempo amando-se. Acho que sua capacidade de amar é toda voltada para portões de ferro fundido e grades trabalhadas!

Ele deu uma risada, sem interromper as carícias perturbadoras que quase a deixavam sem fôlego.

— Conheço muito bem a diferença no trato do metal e no de uma mulher, Glenda. Qualquer dia destes vou levá-la à fábrica para que veja como o ferro Malraux é obtido. A fundição vai ser parte de sua vida… como eu já sou.

— Você… já tomou alguma decisão definitiva?

— Sobre você?

— Sobre… nós…

— Mais oui, madame — ele respondeu vagamente provocador, mas a expressão dos olhos era dura. — Minha resolução é que você vai continuar aqui no Château Noir. Este castelo é o seu lar e é aqui que você vai viver… com o homem com quem se casou!

— Então… não vou ser perdoada?

— Se o que entende por perdão é eu mandar você de volta para a Inglaterra, não — a voz dele agora estava firme. — Muita gente, sem dúvida, acharia que o castigo que estou lhe impondo é leve. Você, ao contrário, considera terrível que o marido, com o rosto deformado, esteja insistindo para que fique ao lado dele. Pois considere-se com sorte, porque eu não estou pedindo que… que me ame.

— Amar você?

— Não desmaie, minha querida — o sol já havia se escondido no céu e o hall estava cheio de sombras, mas mesmo assim ela podia ver o brilho nos olhos de Malraux. — Exigirei tudo, menos isso, pode ficar descansada.

Glenda não soube o que dizer. Será que ele não percebia que quando uma mulher tinha que dar tudo a um homem, menos o amor, na realidade não estava dando nada e não tinha nada como retribuição?

Nesse momento, ecoaram passos no hall e logo um criado apareceu para acender os lustres de ferro. Aproveitando a presença daquele empregado, já que Malraux soltou-a assim que o viu, Glenda pediu licença e foi embora, sentindo-se muito triste e desamparada. Não sabia bem para onde ir e por isso resolveu seguir a criada que estava levando um carrinho de chá para a biblioteca.

Com as pernas trêmulas entrou no salão quente e aconchegante e foi direto à lareira. Deixou-se cair numa poltrona confortável, ao lado de Héloise, que estava cochilando, e estendeu as mãos geladas para o fogo.

Quando o sol desaparecia no vale, as noites esfriavam muito durante a primavera, e aquilo fazia Glenda lembrar-se de sua casa, das vezes em que ficava diante do fogo acolhedor tomando chocolate quente.

Héloise acordou de repente e, depois de esfregar os olhos, reparou no rosto preocupado de Glenda.

— Jeanne piorou?

— Oh, não. Está bem melhor e vai ser transferida para um quarto particular. O processo de recuperação dela agora vai ser rápido.

— Graças a Deus! Foi uma loucura aquilo que ela fez! Vamos esperar que tenha aprendido a lição e que não a esqueça. Glenda… por favor, pode me servir um pouco de chá? Sem açúcar, que isso não faz bem a ninguém. Me passe também uns biscoitos Marie.

Glenda trouxe o carrinho para mais perto e serviu o lanche para Héloise, aliviada porque Malraux não tinha ido fazer-lhes companhia. Ela gostava daquela tia dele. A velha senhora era tão preocupada com a própria saúde que nem tinha tempo de pensar na vida dos outros. Edith também sempre fora uma mulher que não se intrometera com os assuntos de ninguém e esta era outra faceta que Glenda admirava e prezava nela. Edith tinha pavor daqueles que tentavam mandar na vida dos demais; que achavam que tinham o direito de criticar a maneira como uma mulher penteava os cabelos, escolhia a maquilagem ou as roupas. Era como se aquelas pessoas desejassem que todos vestissem uniformes escolhidos por elas. “Faça isso, faça aquilo, mas não faça o que realmente lhe dá prazer!”, era este o lema.

Edith nunca impusera seus gostos a Glenda, que tinha aprendido a apreciar aqueles que não interferiam também nos problemas pessoais de cada um. Todos tinham o direito a ter suas fobias, seus gostos e antipatias!

Consciente e formada com essas idéias, Glenda desenvolvera uma personalidade avessa a qualquer tipo de atitude dominadora. Por isso, irritava-se com a autoridade que Malraux exercia sobre os outros. Ao mesmo tempo, tinha medo de pouco a pouco ser absorvida por ele e chegar ao ponto de não poder fazer nada a não ser aceitar seu despotismo.

— Alguma coisa a está preocupando, Glenda? — perguntou Héloise. Glenda, que estivera com os olhos fixos nas chamas, a xícara esquecida na mão, sacudiu a cabeça numa negativa, mas a velha não pareceu nem um pouco convencida.

— Pode confiar em mim, minha filha. Já fui casada e sei que às vezes o casamento pode ser uma bênção discutível. Malraux a está tratando bem? Não quero ser intrometida, mas, como você já não tem a mãe a seu lado, pode contar comigo, se precisar de conselhos.

— É muita bondade sua, tia, mas no momento não estou precisando.

— Então tem sorte! Porque, quando me casei, percebi que a realidade do convívio diário com um homem era bem diferente das minhas idéias românticas a respeito. Os homens pensam diferente de nós, são mais lógicos e não entendem, às vezes, que as mulheres são mais sensíveis, que ficam mais afetadas por uma frase, um olhar, uma entonação de voz. Acredite em mim, filha, a pele do homem é mais grossa em vários sentidos do termo. Eles não conseguem entender que um dardo atirado pode penetrar bem mais fundo do que pretendiam. Malraux disse alguma coisa que a feriu?

— Alguns comentários dele são um tanto agressivos —: murmurou Glenda. — Eu… eu não sei se ele quer mesmo ferir ou não sabe o quanto fere. Ele sempre foi assim tão… duro?

— Mall sofreu muita influência do avô, para quem os negócios de família significavam tudo. Foi um grande desapontamento para meu pai só ter tido filhas e não filhos. Assim, quando Malraux nasceu, minha irmã sofreu forte pressão para que o deixasse ser educado na França, aqui no castelo. Naturalmente, quando aconteceu aquela tragédia na África, foi bom que Malraux e Jeanne estivessem vivendo aqui e não na Argélia. Quando as revoltas começaram, era suicídio para os europeus viverem naquele país, mas o meu cunhado tinha investido muito dinheiro nas fazendas de lá, e realmente não foi surpresa que ele e minha irmã tivessem sido vítimas da rebelião. Malraux foi preparado para tomar ai direção das fundições, e, como tinha habilidades ambição, Duval ficou encantado.

Héloise fez uma pausa para respirar e depois prosseguiu:

— Tenho que acrescentar que meu pai tinha um raciocínio tão enrolado quanto as voltas do ferro que fabricava. E às vezes era irracional! Queria continuar dominando a vida do neto mesmo depois de morto. Por isso, Mall só podia herdar o castelo se cumprisse todas as cláusulas do testamento, uma coisa nada fácil para um homem voluntarioso, numa época em que os casamentos arranjados estão completamente fora da realidade.

— Apesar de eu não aprovar certos excessos — continuou a velha —, acho compreensível que Malraux sinta-se impaciente com uma mulher que lhe foi imposta. Mas ele não é cruel demais, é? E, depois da preocupação toda criada por Jeanne, você não pode esperar dele um comportamento apaixonado.

— Não espero… e nem quero — disse Glenda, e no mesmo instante se arrependeu de ter falado.

Afinal, Malraux era o seu marido! Ou melhor, o homem com quem havia se casado, pois não o “sentia” como marido, assim como não se sentia como esposa. Contudo, não podia dizer à tia dele que o que mais queria era abandoná-lo e correr para os braços de Simon, um homem que não a abalava quando entrava numa sala, quando olhava para ela… principalmente quando a tocava!

Essa confissão chocaria Héloise porque era evidente que ela respeitava e amava o sobrinho. Além disso, o fato de a velha senhora ter um filho que havia sido preterido na divisão da herança podia causar-lhe certo ressentimento contra Malraux, que era quem detinha a maior parte de tudo.

— Sei o que está pensando — disse a velha. — Se Malraux não tivesse se casado com você Matthieu herdaria esta propriedade e também a direção das fábricas. Pois estou contente que ele não tenha herdado.

— Mas como a senhora pode dizer uma coisa dessas sendo a mãe dele? — perguntou Glenda, espantada. Será que nunca compreenderia aquela família?

— Não me entenda mal, querida. Matthieu é meu filho e eu o amo, mas ele cometeu um erro que homens bonzinhos, mas fracos, têm a tendência de cometer: casou-se com uma mulher insatisfeita e invejosa, que adoraria ser a dona do Château Noir. E, se Matthieu tivesse também herdado a maior parte das ações, a mulherzinha ia meter o nariz em tudo e as coisas iriam dar erradas: ela provocaria uma briga séria entre meu filho e meu sobrinho. Do jeito que as coisas estão agora, ela nada pode fazer a não ser tornar a vida de Matthieu miserável, com sua constante insatisfação. Quanto a isso, não posso mexer uma palha e tenho que esperar que algum dia ele fique farto e a abandone.

— Eles não têm filhos?

— Não, o que é uma sorte. Mulheres do tipo dela não dão boas mães. Eu observei como você trata de Robert… Você dará uma ótima mãe, e Malraux parece que deseja uma família. Ele tem senso de responsabilidade e foi bondoso em me convidar para morar no castelo. Minha nora pensava em me mandar para uma casa de repouso para velhos. Eu preveni Matthieu, mas ele não quis me acreditar.

— A senhora deve se preocupar muito com ele, tia.

— Você vai descobrir que maternidade e preocupação andam de mãos dadas, mas naturalmente sem as lágrimas não apreciaríamos o riso, não é? Mas, voltando a Malraux, ele às vezes é brusco, mas pode também ser um homem extremamente carinhoso. Quando minha saúde começou a declinar, ele não hesitou em me oferecer um apartamento aqui no castelo. Meu próprio filho tinha ficado indiferente. Mas é assim — continuou Héloise, agitando as mãos cheias de anéis —, quando as pessoas envelhecem têm que aceitar o inevitável.

— Eu tenho que aceitar mesmo sendo jovem — disse Glenda, emocionada.

— Está se referindo ao seu casamento sem amor com Malraux?

— Eu não tinha imaginado… todas as implicações…

— Mas certamente não estava esperando que ele aceitasse um casamento apenas de nome, não é? Era o que você esperava, minha filha?

— Não sei, tia. Aceitei tudo como uma criança numa brincadeira, uma atriz fazendo um papel. Quando acordei para a realidade era tarde demais.

— Mas você não… não tem repulsa por ele?

Glenda olhou para o fogo e teve a impressão de ver nele o vulto alto e impressionante, o rosto com uma metade marcada por cicatrizes, os olhos cinzentos e brilhantes, cercados por longas pestanas negras.

— Ele não gosta de mim — disse, num impulso, e depois desejou dizer toda a verdade, pois sentiu ter em Héloise uma aliada em sua dor. Já que aquela mulher era tão parecida com Edith, saberia entender o que se passara.

— Deus do céu! — exclamou a velha. — E meu sobrinho já sabe?

— Sim — disse Glenda, com o rosto muito pálido. — Jeanne descobriu que eu não era a menina que tinha vindo aqui e deixou isso escrito em seu bilhete de suicida.

- Ah, então ela deixou um bilhete! Malraux não disse nada e agora estou vendo por quê! O que você fez foi um erro, minha filha, e muito ousado. Ele é um homem orgulhoso! Não me admiro de que você esteja apreensiva, mas em seu lugar eu já teria fugido. Durante esta última semana ele teve que estar com Jeanne e não veio ao castelo. Por que você ficou aqui quando sentia tanto medo dele?

— O menino precisava de mim… oh, eu não quero bancar a santa — acrescentou Glenda, depressa. — Gosto de Robert, mas também… também parecia que era uma espécie de compensação. Não sou a aventureira que Mall me considera. Nunca prejudiquei ninguém, mas… Edith estava morrendo e ela foi tão maravilhosa comigo! O que eu podia fazer?

— Podia ter dito a ele toda a verdade antes de ter mergulhado um casamento. Desse modo, ele a respeitaria; mas agora só desconfia de você. Normalmente, ma petite, os homens não compreendem as mulheres, imagine só quando ele olha para você e vê uma moça sincera, mas depois sabe que esta moça mentiu, enganou-o perante o altar e o fez cúmplice de um casamento nulo e sem valor, pois a verdadeira Glenda morreu há uma década! — Héloise balançou a cabeça branca. — Você tem a minha simpatia, minha filha. O que mais posso dizer?

— Será que você poderia conversar com Malraux e explicar que não sou tão ruim quanto ele acredita?

— Não, Glenda. Quando vim morar aqui, fiz uma promessa a mim mesma, de nunca me meter na vida de meu sobrinho. Mantive a promessa e não pretendo quebrá-la. Este problema é seu, filha. Se o que espera receber de Malraux é só amargura, abandone-o!

— Ele se recusou a me deixar partir. Quer que eu fique para poder continuar me castigando. Disse ainda que se eu for embora vai contar a todos que Edith recebeu dinheiro dos Malraux durante dez anos, mesmo sabendo que não tinha este direito. Se eu achasse que isso era só ameaça, então iria, mas ele vai fazer o que disse! A senhora não acha?

— Conhecendo Malraux, tenho que concordar com você. Um homem de honra exige honra dos outros, e ele pode ser muito cruel. Sim, filha, você está num dilema e nada posso fazer para ajudá-la.

Não era surpresa ver que Héloise estava do lado dele; era uma vã esperança pensar que ela intercederia a seu favor, pedindo que não a culpasse tanto, ou pelo menos anulasse o casamento.

— Não quero me envolver num problema que você mesma causou — a velha insistiu. — Mas vou lhe dar um conselho, que você deveria ser bastante sábia para seguir. Há uma maneira para amolecer um homem: é a cama. Pense nisso.

Era exatamente o que Glenda não queria fazer… pensar nela e Malraux juntos na cama.

 

O comportamento de Malraux naquelas duas semanas vinha sendo desconcertante. Só se dirigia a Glenda através de cumprimentos secos à hora das refeições e no restante do tempo fingia ignorar a presença da esposa no Château Noir.

Não havia cumprido com suas ameaças e isso, longe de acalmá-la, aumentava-lhe a insegurança. Era como se ele estivesse querendo convencê-la de que o relacionamento deles seria igual ao de tantos casais que vivem sob o mesmo teto mas não mantêm nenhum contato físico.

Glenda sentia-se desnorteada a cada manhã que acordava sozinha na imensa cama de quatro colunas, mas não se deixava iludir com essa atitude do marido. Convencera-se de que aquilo não passava de uma brincadeira de gato e rato e assim que ele a julgasse vencida pela espera, daria o bote. Não ia poupá-la!

Como agora conhecia melhor o castelo, fora fácil para Glenda vencer aqueles dias de solidão. Descobria muitas coisas fascinantes e lindas e já se movimentava ali com muita familiaridade. Apesar disso, não considerava aquela casa seu lar.

Entrava nos salões como se fosse uma hóspede, incerta de ser bem recebida, sentava-se nas poltronas macias ao lado das janelas, e sentia-se como uma intrusa que estava ali sem licença e que se fosse descoberta seria posta na rua.

Havia muitos livros para ler, e, graças à educação que Edith lhe dera, Glenda pôde passar longas horas na biblioteca sem se aborrecer, porque não tinha nenhuma dificuldade com o idioma francês.

Ao longo das compridas galerias estavam quadros italianos e holandeses, que ela adorava examinar, e no sótão, sob os telhados pontudos e negros, encontrou brinquedos antigos, roupas fora de moda e todo tipo de quinquilharia que pertenceram algum dia aos membros da família Malraux.

Esperando conhecer alguma coisa da infância de Mall, Glenda examinou velhos álbuns de fotografias, que tinha achado num dos sótãos. Nessas fotos ele era ainda menino e aparecia ao lado de um homem alto e com fartos bigodes pretos, que ela desconfiou ser Duval Malraux, pois o velho possuía o mesmo olhar autoritário que o neto herdara. Glenda ficou desapontada ao descobrir que Mall tinha deixado de posar para fotos depois dos dezesseis anos, mas aquele rosto sério e magro dava uma idéia de como ele era antes do acidente na fundição.

Continuando sua pesquisa, olhou curiosa para uma pilha de discos com títulos românticos e se perguntou quem os teria escolhido. Tentou imaginar Malraux numa pista de danças, descontraído e feliz, com uma garota nos braços.

Tentando esquecer esse pensamento, Glenda sentou no banquinho de couro, o rosto sujo de poeira, e abriu uma velha caixinha de música, que tocou uma valsa de Brahms.

Imaginou, então, a caixinha de brocado tocando sua melodia infantil num berçário e, num gesto rápido, baixou a tampa antes que aqueles sons evocassem imagens que não agüentaria encarar. Não havia um só instante em que não estivesse alerta para os passos inconfundíveis de Malraux, para o tom grave e modulado de sua voz… ela sabia que numa noite qualquer veria aquele homem alto e moreno na porta do quarto. Ele a fitaria com aqueles olhos cinzentos e frios e a tomaria nos braços com mãos fortes e sem amor… E a faria engravidar. Não! Não podia suportar que seu filho nascesse de uma relação tão fria e impessoal.

Afastou a caixinha de música, mas a melodia ainda ecoava em seus ouvidos quando desceu pela escada em caracol, correndo como se quisesse escapar de seus pensamentos. Quando chegava aos últimos degraus, tropeçou e quase caiu, o coração batendo loucamente no peito.

Nesse momento uma sombra a assustou; era Malraux, vestido com culote e botas.

— O que andou fazendo? — perguntou ele. — Está com o rosto sujo… esteve no sótão?

— Sim — disse ela, se apoiando no corrimão de ferro, sentindo as pernas bambas.

— Lá em cima só tem velharias que deviam ir para o lixo. Vou tomar café, quer me fazer companhia?

Glenda caminhou ao lado dele, os sentidos despertos para sua aparência viril, e o perfume suave da loção. Os dedos fortes seguravam o chicote de montaria.

— Não há nada de interessante no sótão. Por que em vez de vasculhá-lo você não vem passear a cavalo comigo?

— Por que você nunca me chamou — respondeu ela, surpresa.

— Você também nunca falou que gostaria de vir. Entraram no petit salon e se acomodaram à mesa. Malraux pegou um sanduíche e o comeu com bastante apetite. Depois pediu a Glenda que servisse o café e, enquanto ela fazia isso, ofereceu-lhe um lenço.

— Limpe o rosto e me conte o que estava fazendo.

— Nada, fui ao sótão para passar o tempo.

— Acho que você está sentindo falta do menino.

Glenda concordou com um movimento de cabeça. Os avós de Robert o tinham levado para Boston, onde ele ficaria até a mãe melhorar. Desta vez Malraux estava resolvido a fazer com que a irmã se tratasse seriamente.

— Jeanne vai sair do hospital na sexta-feira — disse ele.

— Ela vai voltar para o castelo?

— Não; acho melhor eu levá-la direto a Paris. Trazê-la de novo para cá significaria reavivar lembranças que ela não tem condições de suportar. Passarei o fim de semana em Paris. Quer me acompanhar?

Aquele convite era tão inesperado que Glenda não sabia o que responder. Quase disse “sim”. Paris era uma linda cidade… Mas um lugar muito romântico! Seria isso o que ele tinha em mente? Envolvê-la num clima propício para a consumação do casamento?

— Estou esperando sua resposta, ma chérie.

— Não, acho melhor não ir, obrigada — respondeu ela, sem encará-lo.

— Permite que eu pergunte por quê? — A voz dele agora era áspera. — Já viajou tanto que pode se dar ao luxo de ser indiferente à cidade mais sofisticada do mundo?

— Não é isso…

— Então devo presumir que é por minha causa? Não tem vontade de viajar comigo?

— Eu atrapalharia… você vai levar Jeanne para a clínica… e tem que se lembrar de que ela não gosta de mim.

— Jeanne sabe o quanto você foi dedicada a Robert.

— Este é o problema. Ela tem ciúmes de mim com o garoto. Eu… eu acho melhor não ir.

— E se eu insistir?

— Você não… — Glenda o olhou e, pela expressão determinada do rosto dele, concluiu que a obrigaria a viajar, se quisesse. Viu a força atlética daqueles ombros másculos e um brilho perigoso nos olhos cinzentos… Malraux não a amava, portanto seria capaz de qualquer coisa… nunca se deteria para não feri-la.

— Pois eu a aconselho a não apostar nisso. Ele se levantou, deu a volta na mesa e se colocou ao lado dela. Segurando-lhe o ombro, disse: — Você não se recusaria a ir a Paris se Simon a convidasse. Não quer ir é comigo. Esta é a verdade.

Foi o orgulho, mais do que a coragem, que a fez responder:

— Realmente. Não quero ir com você.

— Então vá para o inferno! — ele a soltou, deu meia-volta e saiu da sala.

Glenda permaneceu imóvel, e ainda por muito tempo seu coração bateu acelerado. Estava cansada daquela batalha sem trégua. Não podia mais suportar a idéia de continuar sob o mesmo teto convivendo com um inimigo… Por outro lado, até quando resistiria a ele? Não seria melhor procurá-lo e tomar a iniciativa, entregar-se a ele e restabelecer a paz que os dois ansiavam?

Glenda encolheu as pernas e as abraçou. Naquela posição parecia uma criança indefesa e sozinha. Percebera pela expressão angustiada de Malraux que ele atribuíra a recusa à repulsa que julgava que as cicatrizes causavam, como se ela não quisesse ser vista ao seu lado em público. Ah, como faria para convencê-lo de que as razões eram bem outras? Paris era uma cidade para amantes… tudo lá lembrava cenários de filmes de amor. Seria um crime visitá-la sem a companhia de alguém por quem não se estivesse apaixonado!

Ah, Paris na primavera, seus cafés com mesinhas sob as árvores, casais românticos de mãos dadas, vinho…

De repente, Glenda desatou num choro convulsivo. Oh, quantos erros havia cometido! Quantos sonhos desfeitos! Apanhou o lenço que o marido lhe dera e enxugou o rosto, sentindo o perfume suave da colônia que ele usava… Estava angustiada, um sentimento de culpa apertando-lhe o peito. O que estava acontecendo com ela?

Por que sempre buscava atribuir segundas intenções a todos os gestos de Malraux? Ele não estaria apenas sendo amável ao convidá-la para aquela viagem?

Levantou-se num impulso e decidiu procurá-lo para esclarecer os reais motivos de sua recusa em acompanhá-lo.

Alguns minutos mais tarde encontrou-o na forja atrás dos estábulos.

Malraux estava nu da cintura para cima, o rosto brilhante pelo reflexo das chamas, e assim que a viu, dirigiu-lhe um olhar amedrontador. Glenda quase recuou em seus propósitos ao ouvir as palavras duras que ele falou:

— Vá meter o nariz em outro lugar. Você já me aborreceu demais hoje.

— Malraux…

— O que é, doçura? Teve um ataque de afeição por mim?

— Por que você tem que ser sempre… sarcástico?

— Não venha dizer que gostaria que eu fosse diferente… queria que eu a perdoasse e me tornasse terno, talvez?

— Eu… eu pensei que você podia me desculpar…

— Será que estou escutando direito? — disse ele, pondo a mão em concha no ouvido. — Você está realmente reconhecendo sua culpa por alguma coisa que fez?

Ela enrubesceu.

— Eu gostaria de ir a Paris… Não quero que você pense que minha decisão tem algo a ver com as suas cicatrizes.

— Mas quanto magnanimidade, chérie! Estou até emocionado por você disfarçar o asco, mas não gostaria que fizesse tanto sacrifício por mim. Por isso não vou levá-la comigo.

— Você está dizendo que não me quer…

Ela não pôde continuar. Sentia-se sufocada por uma onda de humilhação que a invadia… Idiota! Mil vezes idiota é o que ela era! Devia ter adivinhado que Malraux lhe atiraria no rosto a oferta de paz.

— Como se sente sendo rejeitada? — perguntou ele, tranqüilo.

— Você… você devia saber! — revidou ela.

Virou-se para fugir, mas com uma agilidade felina ele a alcançou antes que pudesse dar dois passos. Depois fez com que ela se voltasse e a ergueu no ar. Estupefata, Glenda percebeu que estava sendo jogada nos ombros fortes e carregada como se fosse um saco de batatas.

Calado, ele caminhou entre as árvores, passou pelo pátio e subiu a escada da Tour Etoile. Glenda, grudada à carne nua de Malraux, sabia que ele estava irritadíssimo. A brecha que tentara diminuir tinha aumentado assustadoramente, e agora estava morrendo de ódio dele. Chegando ao quarto, ele a atirou sobre a cama que ainda não tinham partilhado.

Agora ele decidira. Glenda tinha consciência disso, mas nada podia fazer contra a força e a explosão daquele temperamento forte. Encolheu-se assustada enquanto o marido arrancava-lhe as roupas com violência e logo viu-se sob o peso do corpo que tanto a desejava. Tentou lutar, suplicou, gritou… tudo em vão.

— Você estava pedindo por isso — disse ele entre dentes — desde que entrou neste castelo, mas saiba, madame, que não precisaria ser desta maneira.

— Não… — Glenda ainda tentou protestar mas foi sufocada pelo corpo do marido que procurava o seu com ânsia incontida, sem se importar se a estava ferindo. A única saída que se apresentava agora era permanecer fria e inerte, e fazer com que ele se sentisse um violentador. Mas como conseguir forças para isso e fingir indiferença àquele homem ardente?

De repente, ela sentiu uma dor violenta e perdeu o controle. Num gesto instintivo, enterrou os dentes nos ombros dele, arrancando sangue.

— Dieu! — Ele gemeu, enquanto mergulhava o rosto nos cabelos ruivos da esposa e a paixão explodia total, incontrolável.

O sol acabava de se pôr, emprestando ao horizonte um tom avermelhado. A noite caía suave. O quarto estava silencioso e na penumbra.

Malraux se movimentou na cama e seu braço pesado e forte soltou Glenda. Apoiando-se no cotovelo, ele ficou olhando os lábios dela agora fechados, mas intumescidos pelos beijos trocados.

— Não vou pedir desculpas — disse ele, numa voz velada.

— Como se eu esperasse…

Glenda estava surpresa pela obscuridade do quarto que denunciava o avançado da hora. Tudo acontecera diferente do que havia pensado. Imaginara que Malraux ia possuí-la com ódio e luxúria e que isso despertaria nela uma repulsa incontrolável. Em vez disso, observava agora aquele homem moreno de dentes muito brancos brilhando na meia-luz, sentia-lhe o hálito quente no rosto e não tinha a menor aversão pelo corpo macio, quente e suado que estava colado ao seu.

— Suas mentiras foram desmascaradas, não? — sussurrou ele.

Glenda sabia a que Malraux se referia. Experiente como ele era não tinha sido difícil deduzir que Simon nunca a possuíra.

Ele atirou as cobertas para o lado e saiu da cama. Esticou os braços e depois olhou o relógio.

— Puxa! Você tem idéia de que horas são? Vamos jantar que já estou faminto!

Como não houve resposta, Malraux inclinou-se para ela com uma expressão preocupada no rosto.

— Você está bem, menina?

— Não sou mais menina, Mall.

— Você me provocou e sabe disso.

— Agora eu sei.

— Desta vez, dei-lhe motivos para um divórcio e não tenho defesa.

— Divórcio?!

— Um marido não pode forçar a esposa a ter relações com ele.

Glenda escutou a porta se fechar assim que ele saiu e suas últimas palavras ficaram lhe martelando a mente.

Como tinha sido planejado, Malraux e Jeanne partiram para Paris na sexta-feira. Glenda não compreendia a atitude do marido que não tornou a convidá-la para o acompanhar, nem fez qualquer tentativa de aproximação. Ao contrário, ele fechou-se em si mesmo, agia como se nada tivesse acontecido, o que aumentou ainda mais a insegurança dela. Afinal, era completamente inexperiente com os homens.

Não conseguia tirar da cabeça as sensações que Malraux despertara naquela tarde. Todo seu mundo parecera desabar e ficara desnorteada ao perceber como os homens encaravam o sexo como coisa trivial, como pareciam estar imunes às emoções que nasciam daquele ato.

Durante a adolescência, na companhia de Edith, se habituara a enxergar o relacionamento íntimo de um casal como algo natural e que tinha por propósito apenas gerar filhos.

Mas agora, recordando os gemidos de prazer que Malraux conseguira arrancar dela, sentia as faces queimando e todos os conceitos que alimentara caíram por terra. Era impossível libertar-se do toque das mãos dele em sua carne, desfazendo todas as suas reservas, tornando-a mulher.

Como ele passaria aqueles dias em Paris, depois que a irmã já estivesse internada? Malraux conhecia bem a cidade romântica e boêmia e na certa tivera casos com várias mulheres ali. E se ele decidisse reviver alguma daquelas antigas paixões? Não seria nada difícil para um homem requintado encontrar lindas mulheres que, envolvidas pelo clima, depois de um jantar sofisticado à luz de velas, não oporiam a menor resistência em ir para a cama.

Glenda o imaginava ao lado de uma beldade elegantíssima, vestindo uma roupa desenhada por um famoso costureiro, perfumada com essências finíssimas, os cabelos na última moda emoldurando um rosto misterioso. A moça levantaria a cabeça para Malraux, que cobriria com beijos apaixonados a boca úmida que lhe era oferecida. Isto aconteceria numa romântica sacada de estilo belle-époque, e em seguida ele a levantaria nos braços fortes sem a menor dificuldade, carregando-a para um quarto em penumbra onde a despiria sem se deparar com qualquer protesto.

Será que ele beijaria o corpo da jovem como fizera com o de Glenda?

Sim. Sua língua quente passearia por todas as curvas da outra e ela murmuraria o nome dele com paixão, e, sorrindo, ambos se entregariam a um êxtase…

Agora, dominada por essas fantasias, Glenda só desejava ficar sozinha. Assim, quando Renée a convidou para ir a uma festa naquele sábado, arranjou uma desculpa qualquer para recusar o oferecimento.

— Mas vai ser muito divertida — insistiu Renée. — Se Mall está em Paris não há razão para que você não saia um pouco.

— Por que ele não levou você? — perguntou Rachel, abaixando o jornal que estava lendo e olhando curiosa para Glenda.

— Jeanne ainda não me aceita como cunhada e por isso achei melhor não ir — ela respondeu, evasiva.

— Oh, Jeanne está meio maluca — disse Renée, enquanto espalhava geléia de damasco numa torrada. — Ela não teria que se internar para tratamento se estivesse normal.

— Não é nada disso — reagiu Rachel. — Ela fez uma coisa que não é sensata: amar perdidamente um homem. Se uma pessoa fica dependendo da outra a este ponto e depois a perde, não lhe sobra razão para viver.

— Mas Jeanne tem Robert — exclamou Renée, olhando espantada para a irmã. — Você vive dizendo que eu sou muito romântica e agora está falando como uma colegial sonhadora. O que a fez ficar assim, cara irmã?

— Realmente o amor não é só romantismo. Às vezes ele maltrata, é muito terra-a-terra para ser parecido com o que se lê nas revistas. Amor é paixão do corpo e do espírito. Você bem viu como destruiu Jeanne quando Gilles morreu.

— Se fosse assim como você diz eu não gostaria de amar. Não acredito que estar apaixonada só pode trazer tristeza e melancolia. E mais, acho que você é muito pessimista. Concorda comigo, Glenda?

Rachel olhou para Glenda por cima da mesa. As três estavam tomando o café da manhã na varanda, sob um céu nublado. De vez em quando o sol surgia entre as nuvens.

— Tenho a impressão de que Glenda concorda bem mais comigo, Renée. Ela sabe o que estou dizendo.

— Sei? — Glenda perguntou.

— Deve saber — disse Rachel, sorrindo com malícia. — Você está completamente apaixonada, não?

Glenda afastou a cadeira, abruptamente.

— Preciso escrever uma carta, me desculpem…

— Então não vai à festa? Gostaria muito de apresentá-la ao meu chefe.

— Do jeito que o tempo está feio, desconfio que vai chover, e geralmente a chuva estraga este tipo de festa. Todos acabam se amontoando na barraca das bebidas e o ambiente fica insuportável.

— Sua estraga-prazeres! — reclamou Renée.

— Ela está triste — caçoou Rachel. — Quando a pessoa que a gente ama está em Paris, dá nisso… Quem sabe onde ele vai e com quem está se encontrando? Eu não deixaria meu marido solto naquela cidade.

— E quando pretende arranjar um marido? Você nasceu para cuidar de negócios e os homens não gostam disso.

— Talvez. Mas prefiro ter uma carreira de primeira classe do que um homem de segunda… — Rachel virou-se para Glenda: — Pena que você seja tão boazinha. Eu me sentiria culpada se tentasse tirar Malraux de você.

Glenda olhou para a outra, irritada.

— Puxa, isto é que é ser direta.

— Ele é tão excitante na cama quanto eu imagino?

— Rachel! — exclamou Renée verdadeiramente chocada. — Como pode perguntar uma coisa destas?

— Inveja, cara irmã. Em todo caso isto prova a Glenda que eu nunca dormi com Mall, não prova?

— Isso nem me passou pela cabeça — respondeu Glenda, recuperando o sangue-frio.

— Por que não?

— Instinto.

— Por minha causa?

— Não. Por causa dele.

Glenda saiu rapidamente da varanda, trêmula de emoção. Não estava zangada com Rachel, mas a moça ousara pôr em palavras coisas que ela não queria reconhecer. Além da verdade, que procurava nem pensar.

Podia estar loucamente apaixonada… mas não por Malraux!

Ela foi se refugiar num caramanchão escondido, e levou consigo os papéis de carta. O lugar estava decorado com pesados bancos de madeira rústica e no centro havia uma mesinha redonda e cadeiras de junco. Foi aí que sentou-se e abriu a pasta. Tirou envelopes e um maço de papéis, pensando nas palavras que escreveria contando a Simon que breve poderia estar livre, que Malraux assentira em conceder o divórcio e não a impediria de abandonar o castelo. Mas não conseguiu concentrar-se. Começava a escrever e logo sua atenção era desviada para as árvores que balançavam os galhos suavemente.

Depois de tentativas inúteis de iniciar a carta, atirou irritada a caneta para o chão. Quando deu por si estava fora do caramanchão, o rosto encostado à trepadeira de goivos, cujo perfume tão forte lhe subia à cabeça. Nesse momento, enormes pingos de chuva começaram a cair.

Por que se apaixonara por Mall justo agora que ele estava querendo o divórcio? Não havia mais nenhuma esperança de serem felizes juntos. Ele não a amava e tinha deixado isto claro através da indiferença que lhe dedicava. Por que continuar negando que poucas horas nos braços dele tinham sido o paraíso na terra? Naquela tarde em seu coração só havia Malraux, assim como em seus braços só havia lugar para ele. Seus beijos fizeram desaparecer os sonhos de menina, substituindo-os por desejos de mulher. As carícias que lhe fizera tinham despertado nela um prazer que nunca sonhara, e Glenda sentia que pertencia ao marido nesse instante, no meio da chuva, mesmo que ele estivesse em Paris… talvez com outra mulher.

Ela estremeceu ao pensar nisso e, percebendo como estava molhada, voltou ao caramanchão. Sentou-se olhando a chuva cair, aspirando o perfume dos goivos, enquanto cenas do dia do casamento lhe voltavam à memória. Sabia, agora, que tinha sido inevitável que se apaixonasse por aquele homem alto e prepotente, com o rosto marcado por cicatrizes. O feitiço acontecera naquela igreja antiga, com vitrais coloridos… pois o amor é uma espécie de feitiço.

Mas nesse sentimento existiam tonalidades diversas que, misturadas, formavam um todo maravilhoso. Algumas vezes, ele aquece a vida com ternura e companheirismo, outras, dilacera o coração de tanto sofrimento.

Este último caso era onde ela se enquadrava naquele instante. Sofria! Doía-lhe saber que Malraux partira, acreditando que ela não o queria, que o detestava, quando na verdade nunca desejou tanto alguém. Como o faria compreender que não podia viver mais sem seus beijos?

Seria tarde demais para fazer com que ele também a quisesse e a amasse com todo o calor e energia daquele corpo forte?

Glenda se recostou na cadeira de junco, fechou os olhos e escutou a chuva cair sobre as folhas. Os passarinhos faziam uma algazarra em seus abrigos, e o perfume das flores estava ainda mais inebriante. Ela mal dormira naquela noite e se pudesse cochilar um pouco ali no sossego do caramanchão se sentiria reanimada.

Glenda estava cochilando quando um vulto entrou e ficou olhando. Sentiu que Mall estava ali, mas não ousava se mexer, com medo de acordar do que acreditava ser um sonho.

— Glenda, está dormindo?

Ela piscou e arregalou os olhos, mas ele continuava ali, muito alto contra as nuvens cinzentas, ainda com o terno bege com que viajara para Paris.

— Não. Eu estava só cochilando.

— Eu me senti tentado a acordá-la com um beijo, mas isto poderia ser a última coisa que você quisesse.

— Não… Isto é… sim, oh, sim, por favor me beije!

Sem esforço Mall a levantou nos braços e a segurou junto de si. A boca dele, ávida, procurou a sua num beijo apaixonado, enquanto seus corações batiam violentamente.

— Não consegui ficar longe de você — ele murmurou, passando a mão pelos cabelos avermelhados de Glenda. — Internei Jeanne no hospital e comprei uma passagem no primeiro avião, para voltar… Tudo que eu conseguia pensar, chérie, era em você, em amá-la mais uma vez. Como a desejo! Estou ficando louco! Mon amour, ma bien aimée… Je t’aime, je t'adore.

— Oh, Mall, será que está mesmo acontecendo? Me belisque, ou não vou acreditar!

— Quero fazer uma porção de coisas, meu amor, mas beliscar não é uma delas. — Seus lábios a beijaram com ternura. Depois ele a fitou nos olhos. — Graças a Deus você é a mulher de olhos cor de âmbar. A outra não era para mim, mas você é. Diga ainda, feiticeirinha, não pode me amar porque imagina estar apaixonada por aquele soldadinho?

— Simon é muito mais bonzinho do que você mas… mas você, Malraux, é o meu marido.

— Você fala como se realmente sentisse isso — disse ele, aconchegando no peito forte, como se temesse perdê-la.

— Claro que sinto!

Glenda encostou os dedos carinhosamente no rosto marcado e o beijou com ternura. Afastou-se um pouco e, fitando-o com paixão, confessou:

— Quando você foi a Paris e me deixou sozinha tive vontade de morrer!

— Nunca mais irei a parte alguma sem você — prometeu ele. — Tive receio de que me odiasse pelo que aconteceu naquela tarde, mas depois que comecei não pude mais parar. Você é a mulher que mais desejei em minha vida, fico alucinado quando a vejo.

— Eu sempre pressenti que você tinha algo de diabólico, querido, mas tem algo de anjo também — ela olhou para o rosto moreno e marcado. — Você me perdoou, Mall?

— Inteiramente, ma chérie. Eu a perdoei quando você estava em meus braços, tão doce, tão ardente, tão apaixonada.

— Eu, apaixonada? — ela perguntou. — Você é um homem tão sensacional, Malraux, que eu não podia agüentar a idéia de que ficasse decepcionado comigo.

Ele sorriu daquela maneira encantadora que fazia o sangue dela correr mais depressa nas veias.

— Que dia, hoje! Vamos para a torre, para ficar bem juntinhos e nos amarmos?

— Eu adoraria! — ela confessou, apaixonadamente.

Segurando-a nos braços, com um carinho que ela antes não suspeitara nele, Malraux d'Ath levou a esposa para casa… ou melhor, a feiticeira de cabelos de fogo para seu castelo.

 

[1] Salão, nos teatros, onde os espectadores aguardam o início da sessão, e podem ficar nos intervalos.

[2] Representação plástica da imagem de uma pessoa real ou simbólica (especialmente a que é executada em baixo-relevo ou graficamente)

 

                                                                                Violet Winspear  

 

                      

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