Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Saga do Planeta “Duna”
DUNA
Parte III
O PROFETA
Nenhuma mulher, homem ou criança jamais chegou a penetrar na intimidade de meu pai. O mais perto que alguém chegou de uma camaradagem casual com o imperador Padishah foi no relacionamento oferecido pelo Conde Hasimir Fenring um companheiro de infância. O grau de amizade atingido pelo Conde Fenring pode ser visto primeiramente como algo positivo: ele acalmou as suspeitas da Laflásmad, depois do Caso Arrakis. Isso custou mais de um bilhão de solaris, em subornos com especiaria, contou minha mãe, e houve outros presentes também: mulheres escravas, honras reais, posições de influência. A segunda maior evidência da amizade do Conde foi negativa. Ele se recusou a matar um homem, embora isso estivesse dentro de suas possibilidades e meu pai o houvesse ordenado. Eu relatarei esse episódio em breve.
— Conde Fenring: Um Perfil, escrito pela Princesa Irulan
O Barão Vladimir Harkonnen avançou, furioso, ao longo dos corredores, saindo de seus aposentos pessoais, passando rapidamente através das poças de luz do entardecer que se derramavam das altas janelas. Ele ondulava e se contorcia em seus suspensores, com uma série de movimentos violentos.
Ele trovejou pela cozinha pessoal, passando pela biblioteca, pela pequena sala de recepção e para dentro da antecâmara dos servos, onde o descanso do cair da noite já começara.
O capitão da guarda, Iakin Nefud, encontrava-se agachado num divã, do outro lado da câmara, o estupor da semuta estampado em seu rosto liso, o estranho gemido da música de semuta a envolvê-lo. Sua própria corte sentava-se próximo, esperando fazer seus apelos.
— Nefud! — urrou o barão.
Homens correram.
Nefud levantou-se, o rosto calmo pelo efeito do narcótico, acrescido de uma palidez que revelava seu medo. A música de semuta parou.
— Senhor Barão — exclamou Nefud. Apenas a droga evitava, ainda, a vacilação em sua voz.
O Barão observou os rostos ao redor, notando a imobilidade nas feições. Voltou sua atenção para Nefud, falando num tom falsamente amável.
— Há quanto tempo tem sido capitão de minha guarda, Nefud?
Nefud engoliu em seco.
— Desde Arrakis, meu senhor. Quase dois anos.
— E sempre antecipou os perigos à minha pessoa?
— Esse é o meu único desejo, meu senhor.
— Então onde está Feyd-Rautha? — rugiu o Barão.
Nefud assustou-se:
— Meu senhor?!
— Não considerou que Feyd-Rautha pudesse constituir um perigo à minha pessoa? — novamente a voz era cortês.
Nefud umedeceu os lábios com a língua. Parte do estupor da semuta deixara seus olhos.
— Feyd-Rautha está no alojamento dos escravos, meu senhor.
— Com as mulheres de novo, hein? — O Barão tremia com o esforço para controlar o ódio.
— Senhor, pode ser que ele...
— Silêncio!
O Barão avançou outro passo para dentro da antecâmara, notando como os homens recuavam, abrindo um espaço sutil ao redor de Nefud, dissociando-se do objeto da ira.
— Não ordenei que soubesse com precisão o paradeiro do futuro Barão, durante todo o tempo? — indagou o Barão, avançando mais um passo. — Não lhe disse que devia saber, com precisão, tudo o que o futuro Barão estivesse dizendo durante todo o tempo, e para quem ele dissesse? — Mais um passo. — Não lhe disse que devia me avisar, sempre que ele fosse para os alojamentos das escravas?
Nefud engoliu novamente, o suor aparecendo em sua testa.
O Barão manteve a voz monótona, quase destituída de ênfase.
— Não lhe disse todas essas coisas?
Nefud assentiu.
— E não lhe disse que devia verificar todos os meninos escravos que me fossem enviados? E que devia fazer isso pessoalmente?
Novamente Nefud acenou, afirmativamente.
— Você por acaso não viu a marca na coxa daquele que me enviou esta noite? É possível que você...
— Tio!
O Barão voltou-se, vendo Feyd-Rautha de pé, na porta. A presença do sobrinho aqui, agora... a aparência de inquietação que o jovem não conseguia esconder inteiramente... tudo isso contribuía para revelar muita coisa. Feyd-Rautha tinha seu próprio sistema de espionagem focalizado no Barão.
— Existe um corpo no meu quarto que eu desejo que seja removido — disse o Barão, mantendo sua mão sobre a arma lançadora de projéteis embaixo do manto, grato por seu escudo ser o melhor.
Feyd-Rautha olhou para os dois guardas diante da parede à direita, e acenou. Os dois correram para a porta tomando o caminho do corredor, em direção aos apartamentos do Barão.
“Aqueles dois, hein?”, pensou o Barão. “Ah! esse jovem monstro tem muito que aprender ainda sobre conspiração!”
— Presumo que deixou tudo em paz no alojamento dos escravos, não, Feyd?
— Estive jogando queops com o mestre dos escravos — respondeu Feyd-Rautha, enquanto pensava: “O que saiu errado? O garoto que mandamos para meu tio foi morto, obviamente. Mas ele era perfeito para o serviço. Mesmo Hawat não poderia ter feito uma escolha melhor. O garoto era perfeito!”
— Jogando xadrez de pirâmides — comentou o Barão. — Que ótimo. Você venceu?
— Eu?... ah, sim, tio. — Feyd-Rautha lutava para conter sua inquietação.
O Barão estalou os dedos.
— Nefud, você deseja reconquistar minhas boas graças?
— Senhor, o que foi que eu fiz... — estremeceu Nefud.
— Isso não importa, agora. Feyd bateu o mestre de escravos em queops. Você ouviu isso?
— Sim... senhor.
— Quero que reúna três homens e vá ao encontro do mestre de escravos — instruiu o Barão. — O mestre de escravos deve ser garroteado. Tragam seu corpo para mim quando tiverem terminado, para que eu veja se foi feito adequadamente. Não podemos permitir jogadores de xadrez ineptos ao nosso serviço.
Feyd-Rautha ficou pálido, deu um passo à frente.
— Mas, tio, eu...
— Depois, Feyd — e o Barão acenou com a mão. — Depois.
Os dois guardas, que haviam seguido para os alojamentos do Barão, em busca do cadáver do garoto, passaram cambaleando pela porta da antecâmara, com sua carga pendendo entre eles, os braços balançando. O Barão observou-os até que desapareceram.
Nefud colocou-se ao lado do Barão.
— Deseja que eu mate o mestre de escravos agora, meu senhor?
— Agora! — respondeu o Barão. — E, quando houver terminado, adicione à sua lista aqueles dois que acabaram de passar. Não gostei do modo como carregavam aquele corpo. Deve-se fazer essas coisas adequadamente. Eu vou querer ver suas carcaças, também.
Nefud balbuciou.
— Senhor, foi alguma coisa que eu...
— Faça o que seu mestre — ordenou — disse Feyd-Rautha, pensando: “Tudo que posso esperar, agora, é salvar minha própria pele.”
“Bom”, pensou o Barão, “ele ainda sabe como cortar seus fracassos”. Sorriu internamente. “O garoto sabe também o que irá me satisfazer, e o que será mais adequado para receber minha ira, para que esta não caia sobre ele. Sabe que devo preservá-la. Quem mais tenho eu para tomar as rédeas que devo largar um dia? Não tenho ninguém tão capaz. Mas ele precisa aprender! E devo me preservar, enquanto ele está aprendendo.”
Nefud chamou homens para ajudá-lo, e os liderou porta afora.
— Quer acompanhar-me até os meus aposentos, Feyd?
— Ao seu comando — respondeu Feyd-Rautha. Curvou-se, pensando: “Fui apanhado.”
— Vá na frente — disse o Barão, apontando para a porta.
Feyd-Rautha demonstrou seu medo apenas com uma leve hesitação.
“Terei falhado inteiramente?”, perguntou a si mesmo. “Será que ele vai enfiar uma lâmina envenenada em minhas costas... lentamente, através do escudo? Será que possui um sucessor alternativo?”
“Deixe-o experimentar seu momento de terror”, pensava o Barão enquanto caminhava atrás do sobrinho. “Ele irá me suceder, mas na ocasião que eu escolher. Não quero que jogue fora o que construí!”
Feyd-Rautha tentava não caminhar muito rapidamente. Sentia a pele comichando em suas costas, como se seu corpo igualmente aguardasse o golpe. Os músculos tensionando e relaxando, alternadamente.
— Já ouviu as últimas notícias de Arrakis? — indagou o Barão.
— Não, tio.
Feyd-Rautha forçou-se a não olhar para trás. Viraram no corredor, saindo da ala dos servos.
— Há um novo profeta, ou líder religioso de algum tipo, entre os Fremen. Eles o chamam Muad'Dib. Muito divertido, realmente. Significa. “O Rato”. Já disse a Rabban que deixe que tenham sua religião. Vai mantê-los ocupados.
— Isso é muito interessante, tio — respondeu Feyd-Rautha.
Deu a volta em direção ao corredor particular para o quarto de seu tio, imaginando: “Por que ele fala em religião? Será alguma indireta para mim?”
— Sim, não é?
Entraram nos apartamentos do Barão através do salão de recepção, passando para o quarto. Percebiam-se, ali, indícios sutis de luta: uma lâmpada suspensora fora do lugar, um colchão fora da cama, um tranqui-rolo derramado sobre a cabeceira.
— Foi um plano muito hábil — comentou o Barão. Manteve seu escudo corporal ligado ao máximo enquanto parava, confrontando o sobrinho. — Mas não o bastante. Diga-me, Feyd, por que não me atacou pessoalmente? Teve oportunidades suficientes.
Feyd-Rautha encontrou uma cadeira suspensora, encolheu os ombros mentalmente, enquanto se sentava, sem ter recebido permissão.
“Devo ser ousado agora”, decidiu.
— Ensinou-me que minhas próprias mãos devem permanecer limpas.
— Ah... sim — reconheceu o Barão. — Quando enfrentar o Imperador, deve ser capaz de dizer que não fez nada. A bruxa ao lado do Imperador ouvirá suas palavras, e saberá se são falsas ou verdadeiras. Sim, eu o adverti a esse respeito.
— Por que nunca comprou uma Bene Gesserit, tio? Com uma Reveladora da Verdade ao seu lado...
— Você conhece os meus gostos! — retrucou o Barão.
Feyd-Rautha observou o tio, depois disse:
— Ainda assim, uma seria valiosa para...
— Eu não confio nelas! — rosnou o Barão. — E pare de tentar mudar de assunto!
Feyd-Rautha falou amavelmente.
— Como desejar, tio.
— Eu me lembro de uma ocasião, na arena, vários anos atrás. Naquele dia parece que um escravo fora enviado para matá-lo. Foi isso, de fato, o que aconteceu?
— Foi há tanto tempo, tio. Além do mais, eu...
— Sem evasões, por favor — disse o Barão, sua voz revelando o controle que exercia sobre a raiva.
Feyd-Rautha voltou a olhar para o tio, pensando: “Ele sabe, do contrário não iria perguntar.”
— Foi uma fraude, tio. Eu arranjei tudo para desacreditar o seu mestre de escravos.
— Muito hábil. E corajoso, também. Aquele gladiador-escravo quase o pegou, não?
— Sim.
— Se você tivesse fineza e sutileza para igualar sua coragem, então seria mesmo formidável. — O Barão sacudiu a cabeça de um lado para outro e, como fizera muitas vezes, desde aquele dia terrível em Arrakis, ele se encontrou lamentando a perda de Piter, o Mentat. Aquele fora um homem de sutilezas delicadas, diabólicas. E todavia isso não o salvara. Novamente sacudiu a cabeça.
O destino é, às vezes, inescrutável.
Feyd-Rautha observou o aposento, estudando os sinais da luta, tentando saber como o tio pudera dominar o escravo, que haviam preparado tão cuidadosamente.
— Como o venci? — perguntou o Barão. — Ahh, Feyd, deixe-me ficar com algumas armas para assegurar minha velhice. É melhor que usemos esta ocasião para fazer um acordo. Uma barganha.
Feyd-Rautha olhou fixamente para ele. “Um acordo! Então ele quer me manter como seu herdeiro com certeza. Por que mais faria um acordo? Um acordo é entre iguais, ou quase iguais!”
— Que acordo, tio? — Feyd-Rautha sentia-se orgulhoso por sua voz permanecer calma, sem trair a alegria que sentia.
O Barão também notou o controle, e acenou com a cabeça.
— Você é um ótimo material, Feyd, e eu não desperdiço bom material. Você persiste, todavia, em se recusar a aprender o meu verdadeiro valor, obstinado. Não percebe por que eu devo ser preservado como alguém de supremo valor para você. Isto... — Apontou para a evidência da luta no quarto. — Isto foi uma tolice, e eu não recompenso tolices.
“Vá direto ao ponto, seu velho tolo!”, pensou Feyd-Rautha.
— Você pensa em mim como um velho tolo — disse o Barão. — Devo dissuadi-lo a esse respeito.
— Falou em um acordo.
— Ah... a impaciência dos jovens. Bem, eis a substância do acordo. Você interromperá esses atentados tolos contra a minha vida. E eu, quando estiver pronto para isso, abdicarei em seu favor. Vou retirar-me para uma posição de conselheiro, deixando-o no assento do poder.
— Retirar-se, tio?
— Você me julga um tolo, e isso confirma esse julgamento? Você acha que estou suplicando-lhe! Ande com cuidado, Feyd. Este velho tolo viu a agulha coberta que você plantou na coxa daquele menino-escravo. Exatamente onde eu colocaria minha mão, não é? Uma leve pressão e... snick! Uma agulha envenenada na palma da mão do velho tolo! Ahhh, Feyd...
Sacudiu a cabeça, pensando: “Teria funcionado se Hawat não me prevenisse. Bem, deixe que o garoto acredite que eu vi a trama sozinho. De um certo modo, eu o fiz. Fui eu que salvei Hawat dos destroços de Arrakis. E esse garoto precisa ter mais respeito por minha perícia.”
Feyd-Rautha continuou em silêncio, lutando contra si mesmo.
“Será que ele diz a verdade? Pretende mesmo se retirar? Por que não? Tenho certeza de que lhe sucederei um dia, se me mover com cuidado. Ele não pode viver para sempre. Talvez eu tenha sido um tolo em tentar apressar o processo.”
— Falou num acordo. Que garantia devo dar?
— Como podemos confiar um no outro, hein? Bem, Feyd, quanto a você, estou encarregando Thufir Hawat de vigiá-lo. Confio em que as capacidades Mentat de Hawat possam fazer isso. Você me compreende? E quanto a mim, você terá que ter fé. Mas eu não posso viver para sempre, posso, Feyd? E talvez seja hora de começar a suspeitar de que sei coisas que você “deveria” saber.
— Eu lhe dou minha garantia, e o que você me dá? — indagou Feyd-Rautha.
— Eu permito que continue vivendo.
Novamente Feyd-Rautha observou seu tio. “Ele coloca Hawat em cima de mim. O que diria, se eu lhe contasse que Hawat planejou o truque com o gladiador, que lhe custou seu mestre de escravos? Provavelmente diria que estou mentindo, em uma tentativa para desacreditar Hawat. Não, o bom Thufir é um Mentat, e antecipou este momento.”
— Bem, o que diz? — indagou o Barão.
— Que posso dizer? Eu aceito, é claro.
Feyd-Rautha pensava: “Hawat! Ele joga nos dois lados... não é isso? Mudou-se para o campo de meu tio, porque não me aconselhei com ele sobre o atentado com o garoto-escravo.”
— Não disse nada quanto a ter colocado Hawat para vigiá-lo — comentou o Barão.
Feyd-Rautha demonstrou sua raiva ao dilatar as narinas. O nome de Hawat fora um sinal de perigo entre os Harkonnen por tantos anos... e agora tinha um novo significado: ainda perigoso.
— Hawat é um brinquedo perigoso — disse Feyd-Rautha.
— Brinquedo! Não seja estúpido. Eu sei o que tenho em Hawat, e como controlá-lo. Hawat possui emoções profundas, Feyd. Um homem sem emoções é o que se deve temer. Mas emoções profundas... ah, estes podem ser curvados de acordo com nossas necessidades.
— Tio, eu não o compreendo.
— Sim, isso é bastante evidente.
Somente o tremular de uma pálpebra revelou a passagem do ressentimento através de Feyd-Rautha.
— E você não compreende Hawat — acrescentou o Barão.
“Nem você”, pensou Feyd.
— A quem Hawat culpa por sua atual situação? — indagou o Barão. — A mim? Certamente. Mas ele era um instrumento dos Atreides, e me superou durante anos, até que o Império se intrometesse. Esse é o modo como ele vê a coisa. Seu ódio por mim é algo casual, agora. Ele acredita que pode me vencer quando quiser. E ao acreditar nisso, ele é vencido. Pois eu dirijo sua atenção para onde quero... contra o Império.
Tensões, causadas por esse novo entendimento, traçaram uma linha sobre a testa de Feyd-Rautha, comprimindo-lhe a boca. Contra o Imperador?
“Deixe que o meu querido sobrinho saboreie isso”, pensou o Barão. “Deixe que ele diga para si mesmo: “Imperador Feyd-Rautha Harkonnen!' Deixe-o imaginar quanto é que isso vale. Certamente, vale a vida de um velho tio, que pode tornar esse sonho realidade.”
Lentamente, Feyd-Rautha umedeceu os lábios com a língua.
“Poderia ser verdade o que o velho tolo estava dizendo? Existiria aqui alguma coisa a mais do que parecia?”
— E o que tem Hawat a ver com tudo isso? — indagou Feyd-Rautha.
— Ele pensa que pode nos usar como instrumento de sua vingança contra o Imperador.
— E quando isso for realizado?
— Ele não raciocina além de sua vingança. Hawat é um homem que deve servir a outros, e nem ao menos pensa em si próprio.
— Eu aprendi muito com Hawat — concordou Feyd-Rautha, sentindo a verdade nas palavras enquanto as pronunciava. — Mas quanto mais eu aprendo, mais sinto que devíamos nos livrar dele... logo.
— Não gosta da idéia de ele estar a observá-lo?
— Hawat vigia todo o mundo.
— E ele pode colocá-lo no trono. Hawat é sutil. Ele é perigoso, maquiavélico. Mas eu não retirarei o antídoto, ainda. Uma espada também é perigosa, Feyd, mas nós temos uma bainha para esta. O veneno permanece nele. Quando retirarmos o antídoto, a morte irá embainhá-la.
— De certo modo é como na arena — disse Feyd-Rautha. — Estratagemas dentro de estratagemas, dentro de estratagemas. Você observa para ver como o gladiador se inclina, para que lado ele olha, como empunha a faca.
Assentiu para si mesmo, vendo como essas palavras agradavam ao seu tio, mas pensando: “Sim, é como na arena! E o gume é a mente!”
— Agora pode ver como precisa de mim — disse o Barão. — Eu ainda sou útil, Feyd.
“Uma espada para ser empunhada até que esteja muito cega para o uso”, pensou Feyd-Rautha.
— Sim, tio.
— E agora — disse o Barão — vamos, os dois, até o alojamento dos escravos. E eu vou observar enquanto você, com suas próprias mãos, mata todas as mulheres da ala do prazer.
— Tio!
— Haverá outras mulheres, Feyd. Mas eu já disse para não cometer um erro tolo comigo.
O rosto de Feyd-Rautha tornou-se melancólico.
— Mas tio, você...
— Vai aceitar sua punição e aprender alguma coisa com ela.
Feyd-Rautha fitou o olhar maligno do tio. “E eu devo lembrar esta noite”, pensou ele. “E, ao lembrá-la, recordarei outras noites.”
— Você não vai recusar — advertiu o Barão.
“O que você poderia fazer se eu recusasse, meu velho?”, perguntou Feyd-Rautha a si mesmo. Sabia no entanto que haveria outra punição, talvez alguma mais sutil, mais brutal, para dobrá-lo.
— Eu o conheço, Feyd — disse o Barão. — Não vai recusar.
“Muito bem”, pensou Feyd-Rautha, “preciso de você agora. Percebi isso. O acordo está feito. Mas não vou precisar de você sempre. E... algum dia... “
Na profundidade do inconsciente humano, existe uma necessidade penetrante de um universo lógico, que faça sentido. Mas o universo real está sempre um passo adiante da lógica.
— de Citações do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
“Já me sentei diante de muitos governantes das Grandes Casas, mas nunca vi um porco mais perigoso e brutal do que este”, pensou Thufir Hawat.”
— Pode falar francamente comigo, Hawat — grunhiu o Barão.
Inclinava-se para trás em sua cadeira suspensora, os olhos sob as dobras de gordura, fixos em Hawat.
O velho Mentat olhou para a mesa que o separava de Vladimir Harkonnen, notando a opulência de seu material. Até mesmo isso era um fator a ser considerado ao analisar o Barão, assim como as paredes vermelhas dessa sala particular de conferências, e o cheiro fraco e suave de ervas que pairava no ar, ocultando o odor de almíscar.
— Você não me fez enviar aquele aviso para Rabban apenas por algum capricho — disse o Barão.
O rosto coriáceo de Hawat permaneceu impassível, sem revelar nada do asco que sentia.
— Eu suspeito de muitas coisas, meu senhor.
— Sim. Bem, desejo saber como Arrakis se coloca em suas suspeitas a respeito de Salusa Secundus. Não é suficiente dizer-me que o Imperador está preocupado a respeito de uma ligação entre Arrakis e o seu misterioso planeta-prisão. Mas só apressei o aviso para Rabban porque o mensageiro precisava partir naquele Heighliner. Você disse que não poderia haver atraso. Bem, ótimo. Mas agora eu quero uma explicação.
“Ele fala demais”, pensou Hawat. “Não é como Leto, que podia me dizer uma coisa com um simples erguer de uma sobrancelha, um aceno da mão. Nem como o Velho Duque, que podia expressar uma frase inteira pronunciando uma única palavra. Este é um imbecil! Destruí-lo será um serviço para a humanidade.”
— Você não sairá daqui até que eu tenha uma explicação completa — acrescentou o Barão.
— O senhor fala muito naturalmente de Salusa Secundus — observou Hawat, — uma colônia penal. Os piores refugos da galáxia são enviados para Salusa Secundus. Que mais devemos saber?
— As condições no planeta-prisão são mais opressivas do que em qualquer outro lugar — explicou Hawat. — Já ouviu dizer que a taxa de mortalidade entre os novos prisioneiros é superior a sessenta por cento. Já ouviu dizer que o Imperador pratica ali toda forma de opressão. Ouve tudo isso e não faz perguntas?
— O Imperador não permite que as Grandes Casas inspecionem sua prisão — grunhiu o Barão. — Mas ele também não olha dentro de minhas masmorras.
— E qualquer curiosidade a respeito de Salusa Secundus é... ah... — Hawat levou um dedo magro aos lábios — ... desencorajada.
— E daí? Ele não se orgulha de algumas das coisas que deve fazer por lá.
Hawat permitiu que o mais fraco dos sorrisos se formasse em seus lábios escuros. Seus olhos cintilaram na luz do tubo luminescente enquanto ele encarava o Barão.
— Nunca desejou saber de onde o Imperador tira os seus Sardaukar?
O Barão comprimiu seus lábios gordos. Isso dava às suas feições a aparência de um bebê. Sua voz tinha um tom de petulância, enquanto ele dizia:
— Por que deveria?... Ele recruta... quer dizer, há os convocados e os que se alistam de...
— Haa! — exclamou Hawat. — As histórias que se ouvem a respeito dos feitos dos Sardaukar, elas não são rumores, são? São relatos em primeira mão, vindas do limitado número de sobreviventes entre os que já lutaram com os Sardaukar, não é?
— Os Sardaukar são excelentes lutadores, sem dúvida. Mas eu creio que as minhas próprias legiões...
— Um bando de escoteiros, em comparação! — retrucou Hawat. — Você acha que eu não sei por que o Imperador se voltou contra a Casa de Atreides?
— Isso não é um assunto aberto à sua especulação — advertiu o Barão.
“Será possível que nem ele saiba o que motivou o Imperador?”, indagou a si mesmo Hawat.
— Qualquer área é aberta à especulação, se tiver relação com o que me contratou para fazer. Eu sou um Mentat. Não se sonegam informações e linhas de computação para um Mentat.
Por um longo minuto o Barão olhou para ele, e então:
— Diga o que deve dizer, Mentat.
— O Imperador Padishah voltou-se contra a Casa de Atreides, porque os Mestres de Guerra do Duque, Gurney Halleck e Duncan Idaho, haviam treinado uma força de combate — uma pequena força de combate — que era tão boa quanto os Sardaukar. Alguns deles eram até melhores. E o Duque se encontrava em posição de aumentar essa força, fazendo-a tão forte, em todos os detalhes, quanto a do Imperador.
O Barão pesou essa revelação e disse.
— O que tem Arrakis a ver com isso?
— Ele fornece um conjunto de recrutas já condicionados ao mais duro treinamento de sobrevivência.
O Barão sacudiu a cabeça.
— Você não está se referindo aos Fremen?
— Eu me refiro aos Fremen.
— Ahh! Então por que avisar Rabban? Não pode haver mais do que um punhado de Fremen depois do pogrom dos Sardaukar e da opressão de Rabban. — Hawat continuou a fitá-lo, silencioso.
— Nada mais do que um punhado — repetiu o Barão. — Rabban matou seis mil deles, só no ano passado!
Hawat continuou olhando.
— E no ano anterior foram nove mil. E, antes que os Sardaukar partissem, deram conta de pelo menos vinte mil.
— Quais foram as perdas nas tropas de Rabban durante os dois últimos anos? — indagou Hawat.
O Barão esfregou a papada.
— Bem, ele tem feito um severo recrutamento, é verdade. Seus agentes fazem promessas um tanto extravagantes e...
— Devemos considerar trinta mil baixas, em números redondos? — perguntou Hawat.
— Isso seria um pouco alto.
— Ao contrário. Posso ler nas entrelinhas dos relatórios de Rabban, tanto quanto você. E, certamente, deve ter entendido meu relatório quanto aos nossos agentes.
— Arrakis é um planeta hostil. Perdas causadas pelas tempestades podem ser...
— Ambos sabemos o cálculo para as tempestades — observou Hawat.
— E se perdemos trinta mil, que tem isso? — indagou o Barão, o rosto muito vermelho.
— Segundo sua própria contagem — explicou Hawat — ele matou quinze mil durante dois anos, enquanto perdia duas vezes esse número de homens. Você diz que os Sardaukar se encarregaram de eliminar outros vinte mil, possivelmente alguns mais. E eu vi suas relações de transporte, quando voltaram de Arrakis. Se eles mataram vinte mil, suas perdas foram de quase cinco para um. Por que não considera esses números, Barão? E compreende o que eles significam?
O Barão respondeu de modo frio e cadenciado.
— Esse é o seu trabalho, Mentat. O que eles significam?
— Eu lhe dei a contagem, cabeça por cabeça, feita por Duncan Idaho no sietch que visitou. Tudo se encaixa. Se eles possuem apenas duzentas e cinqüenta dessas comunidades sietch, sua população deve ser em torno de cinco milhões. Na pior das hipóteses, creio que eles possuem duas vezes esse número de comunidades. Se você espalha essa população em tal planeta...
— Dez milhões?
A papada do Barão estremeceu de espanto.
— No mínimo.
O Barão comprimiu os lábios. Seus olhos de conta olhavam sem vacilar para Hawat. “Será isso uma verdadeira computação Mentat? Como é possível que ninguém suspeite?”
— Nós nem sequer reduzimos expressivamente o crescimento de sua taxa de natalidade — continuou Hawat. — Tudo que fizemos foi podar os espécimes mais fracos, deixando os fortes para se tornarem mais fortes. Exatamente como em Salusa Secundus.
— Salusa Secundus! — gritou o Barão. — O que tem a ver isso com o planeta-prisão do Imperador?
— Um homem que sobrevive em Salusa Secundus começa a se tornar mais rijo que a maioria dos outros. Se adicionar o melhor treinamento militar...
— Tolice! Segundo seu próprio argumento, eu poderia recrutar homens entre os Fremen, depois do modo como eles foram oprimidos por meu sobrinho.
Hawat falou com voz branda.
— Não oprime as suas tropas?
— Bem... eu... mas...
— Opressão é algo relativo. Seus combatentes se encontram em melhor situação do que aqueles ao seu redor, não? Eles só terão alternativas desagradáveis, se não forem soldados do Barão, não é?
O Barão ficou em silêncio, os olhos no vazio. As possibilidades... teria Rabban, inconscientemente, fornecido à Casa Harkonnen a arma final?
Daí a pouco ele disse:
— Como poderia se certificar quanto à lealdade de tais recrutas?
Hawat explicou:
— Eu os colocaria em pequenos grupos, não maiores do que um pelotão. Eu os retiraria de sua condição opressiva, e os colocaria isolados, com um conjunto de treinadores que compreenderiam a origem e o ambiente deles. De preferência pessoas vindas de uma idêntica situação de opressão. Então, eu introduziria neles a mística de que seu planeta era, na verdade, um campo de treinamento secreto, destinado a produzir seres superiores, como eles. E durante todo o tempo, eu lhes mostraria o que tais seres superiores poderiam ganhar: uma vida de riqueza, lindas mulheres, mansões elegantes... o que desejassem.
O Barão começou a acenar.
— O modo como os Sardaukar vivem em seus lares.
— Depois de algum tempo, os recrutas chegam a acreditar que um lugar como Salusa Secundus é justificado, porque os produziu: a elite. O mais subalterno Sardaukar vive uma vida, em muitos aspectos, tão opulenta quanto qualquer membro de uma Grande Casa.
— Que idéia — sussurrou o Barão.
— Começa a compartilhar minhas suspeitas? — indagou Hawat.
— Mas onde começou tal coisa?
— Ah, sim: de onde se originou a Casa Corrino? Haveria pessoas em Salusa Secundus, antes que o Imperador enviasse para lá seus primeiros contingentes de prisioneiros? Mesmo o Duque Leto, um primo no lado feminino, nunca soube com certeza. Tais perguntas não são encorajadas.
Os olhos do Barão ficaram vidrados, enquanto ele pensava.
“Sim, um segredo mantido com muito cuidado. Eles usaram de todos os artifícios para...”
— Além disso, o que haveria lá para esconder? Que o Imperador Padishah possui um planeta-prisão? Todo o mundo sabe disso. O que ele tem...
— Conde Fenring! — exclamou o Barão.
Hawat interrompeu sua explicação, olhando intrigado.
— O que tem o Conde Fenring?
— No aniversário de meu sobrinho, vários anos atrás, esse papagaio imperial, o Conde Fenring, veio como observador oficial e para... ah, concluir um acordo de negócios entre mim e o Imperador.
— Então?
— Eu... ah, durante uma de nossas conversas, disse algo a respeito de transformar Arrakis num planeta-prisão. Fenring...
— O que disse, exatamente? — indagou Hawat.
— Exatamente? Isso foi há um bocado de tempo e...
— Meu senhor Barão, se deseja fazer o melhor uso possível de meus serviços, deve me dar as informações adequadas. Será que essa conversa não foi gravada?
O rosto do Barão corou de raiva.
— Você é tão ruim quanto Piter! Eu não gosto desses...
— Piter não está mais com o senhor. Quanto a isso, o que foi que aconteceu com Piter?
— Ele se tornou muito confiante, muito exigente...
— Assegurou-me que não desperdiça um homem útil. Vai me desperdiçar com ameaças e jogos de palavras? Estávamos discutindo o que disse ao Conde Fenring.
Lentamente o Barão se recompôs. “Quando chegar a hora”, pensou ele, “vou me lembrar de seus modos para comigo. Sim, vou me lembrar!”
— Um momento — disse o Barão, e pensou no grande salão.
O ambiente ajudava-o a lembrar-se, visualizou o cone de silêncio em que haviam se colocado.
— Eu disse alguma coisa mais ou menos assim: “O Imperador sabe que uma certa quantidade de mortos sempre constitui uma das necessidades do negócio. Estava me referindo às perdas em nossa força de trabalho. Então... eu disse algo a respeito de ter considerado uma outra solução para o problema de Arrakis, e disse que o planeta-prisão do Imperador me inspirara a imitá-la.”
— Sangue de Bruxa! — retrucou Hawat. — O que disse Fenring?
— Foi aí que ele começou a fazer perguntas a seu respeito.
Hawat recostou-se no assento, fechou os olhos, pensando: “Então é por isso que eles começaram a vigiar Arrakis.” E disse:
— Bem, agora está feito. — Abriu os olhos. — Agora eles devem ter espiões por todo Arrakis. Dois anos!
— Mas, certamente que minha inocente sugestão de que...
— Nada é inocente aos olhos do Imperador! Quais foram suas instruções para Rabban?
— Apenas que ensinasse Arrakis a nos temer.
Hawat sacudiu a cabeça.
— Você tem agora duas alternativas, Barão. Pode matar todos os nativos, exterminá-los inteiramente Ou...
— Desperdiçar toda uma força de trabalho?
— Prefere que o Imperador e as Grandes Casas, que ele ainda pode reunir, venham realizar uma curetagem por aqui, saqueando Giedi Prime até deixá-la como uma fruta oca?
O Barão observou seu Mentat.
— Ele não se atreveria!
— Não?
Os lábios do Barão tremeram.
— Qual é a outra alternativa?
— Abandonar seu querido sobrinho Rabban.
— Aband... — O Barão não terminou a palavra, olhando para Hawat.
— Não lhe mande mais tropas, nem ajuda de qualquer tipo. Não responda a suas mensagens, a não ser para dizer-lhe que ouviu falar do modo terrível como está cuidando dos negócios em Arrakis, e que pretende tomar medidas corretivas assim que for capaz. Providenciarei para que algumas dessas mensagens sejam interceptadas por espiões imperiais.
— Mas... e a especiaria, e os rendimentos, o...
— Exija seus lucros como Barão, mas seja cuidadoso em como faz as exigências. Exija somas fixas de Rabban. Nós podemos...
O Barão voltou as mãos com as palmas para cima.
— Mas como posso ter certeza de que meu sobrinho mexeriqueiro não vai...
— Nós ainda temos nossos espiões em Arrakis. Diga a Rabban que ou ele consegue as cotas de especiaria que estipula, ou será substituído.
— Eu conheço meu sobrinho. Isso só o faria oprimir a população ainda mais.
— É claro que ele fará isso! — retrucou Hawat. — Você não quer que isso pare agora! Apenas deseja ter suas mãos limpas. Deixe Rabban criar o seu Salusa Secundus para você. Não há nem mesmo necessidade de lhe enviar prisioneiros. Ele já tem toda a população necessária. Se Rabban está obrigando sua gente a produzir suas cotas de especiaria, então o Imperador não precisa suspeitar de nenhum outro motivo. Existem razões suficientes para torturar aquele planeta. E você, Barão, não demonstrará com palavras ou ações que existe alguma outra razão para isso.
O Barão não pôde evitar um tom matreiro de admiração em sua voz.
— Ah, Hawat, você é de fato maquiavélico. Mas, agora, como nos moveremos em Arrakis, fazendo uso do que Rabban prepara?
— Esta é a coisa mais simples de todas, Barão. Se a cada ano estipular uma cota um pouquinho mais alta do que a do ano anterior, as coisas logo chegarão a um extremo por lá, e a produção cairá. Poderá então remover Rabban, e assumir em pessoa... para corrigir o estrago.
— Faz sentido — respondeu o Barão. — Mas posso me sentir cansado de tudo isso. Estou preparando uma outra pessoa para tomar conta de Arrakis para mim.
Hawat observou o rosto gordo à sua frente. Lentamente, o velho soldado-espião começou a acenar com a cabeça.
— Feyd-Rautha — disse ele. — Então esse é o motivo para a opressão agora. Também é maquiavélico, Barão. Talvez possamos incorporar esses dois planos. Sim, seu Feyd-Rautha pode ir para Arrakis como salvador. Ele pode conquistar a população. De fato.
O Barão sorriu. E, por trás de seu sorriso, perguntou a si mesmo: “Agora, como isso se encaixa no esquema pessoal de Hawat?”
E Hawat, percebendo que estava dispensado, levantou-se, deixando a sala de paredes vermelhas. Enquanto caminhava, não podia esquecer os perturbadores fatores desconhecidos que se infiltravam em toda computação a respeito de Arrakis. Esse novo líder religioso a que Gurney Halleck aludira, de seu esconderijo entre os contrabandistas, esse Muad'Dib.
“Talvez não devesse ter aconselhado o Barão a deixar que essa religião floresça onde quiser, mesmo entre os povos das pias e panelas”, pensou ele. “Mas é bem conhecido que a repressão faz com que as religiões ganhem força.”
E pensou também nos relatórios de Halleck quanto às táticas de batalha dos Fremen. As táticas mostravam indícios do próprio Halleck... de Idaho... até mesmo das estratégias de Hawat.
“E se Idaho sobreviveu?”
Essa era uma pergunta tola. Não indagara a si mesmo se Paul teria sobrevivido. Sabia que o Barão estava convencido de que todos os Atreides estavam mortos. A bruxa Bene Gesserit fora sua arma, o Barão admitira. E isso só podia significar um fim para tudo... até mesmo para o filho da mulher.
“Que ódio venenoso ela devia ter nutrido pelos Atreides. Alguma coisa como o ódio que eu sinto por esse Barão. Será que meu golpe será tão completo e derradeiro quanto o dela?”
Existe, em todas as coisas, um padrão que é parte do nosso universo. Ele tem simetria, elegância e graça... aquelas qualidades que se podem encontrar nas criações do verdadeiro artista. Pode-se encontrá-las também no passar das estações, no modo como a areia se dispõe ao longo de uma crista, nos aglomerados de ramos do creosoto ou no padrão de suas folhas. Tentamos copiar esses padrões em nossas vidas e em nossa sociedade, buscando os ritmos, as danças e as forças que confortam No entanto, é possível ver o perigo em encontrar a perfeição derradeira. É evidente que a derradeira perfeição contém sua própria rigidez. Em tal perfeição, todas as coisas se movem em direção à morte.
— de As Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
Paul Muad'Dib relembrava-se de que houvera uma refeição carregada com essência de especiaria. Agarrava-se a essa memória porque constituía um ponto de apoio através do qual ele podia reconhecer que suas experiências mais recentes deviam ter sido um sonho.
“Estou num teatro de processos”, disse para si mesmo. “Sou uma presa da visão imperfeita, da consciência racial e seu terrível propósito.” Não podia escapar ao medo de que de algum modo havia ultrapassado a si próprio, perdendo sua posição no tempo, de maneira que o passado, o futuro e o presente se confundiam sem distinção. Era um tipo de fadiga visual, produzida, ele o sabia, por sua constante necessidade de manter o futuro presciente como um tipo de memória, algo intrinsecamente associado ao passado.
“Chani preparou a refeição para mim”, lembrou-se ele.
E, no entanto, Chani estava muito longe, no Sul, nas terras frias onde o sol era quente, escondida numa das novas fortalezas sietch, segura, com seu filho Leto II.
Ou seria isso uma coisa que ainda iria acontecer?
Não, ele procurou tranqüilizar-se, Alia, a Singular, sua irmã, fora com sua mãe e com Chani, numa viagem de vinte tumperes para o Sul, cavalgando num palanquim de Reverenda Madre, fixo nas costas de um Produtor Selvagem.
Contraía-se ante o pensamento de cavalgar um dos gigantescos vermes, indagando a si mesmo: “Ou será que Alia ainda vai nascer?”
“Eu estava numa razia”, lembrava-se. “Nós atacamos para recuperar a água dos nossos mortos em Arrakeen. E encontrei os restos de meu pai na pira funerária. E coloquei seu crânio num relicário, sobre uma montanha de rocha Fremen, acima do Passo de Harg.”
Ou seria isso uma coisa ainda por acontecer?
“Meus ferimentos são reais”, disse para si mesmo. “Minhas cicatrizes são reais. O santuário do crânio de meu pai é real.”
Ainda em seu estado de sonho, Paul se lembrava de que Harah, a esposa de Jamis, viera incomodá-lo uma vez, para dizer que houvera uma luta no corredor do sietch. Isso fora no sietch provisório, antes que as mulheres e as crianças fossem mandadas para o Sul. Harah ficara na entrada da câmara interna, as asas negras de seus cabelos presas atrás por anéis de água em uma corrente. Ela ficara ao lado das cortinas da câmara, e lhe dissera que Chani acabara de matar alguém.
“Isso aconteceu. Isso foi real, não nascido fora do seu tempo e sujeito a mudança.”
Lembrou-se de que correra para fora encontrando Chani em pé, debaixo dos globos amarelos do corredor, vestida num brilhante roupão azul, com o capuz caído para trás, um rubor de esforço em suas feições de fada. Estava embainhando sua faca cristalina.
Um grupo se afastava ao longo do corredor, levando um fardo.
E Paul lembrou-se de ter pensado: “Sempre se conhece quando eles estão carregando um corpo.”
Os anéis de água de Chani, que ela usava em uma corda ao redor do pescoço, tilintaram enquanto ela se voltava para ele.
— Chani, o que foi isso? — indagara ele.
— Eu despachei um sujeito que veio desafiá-lo em combate singular, Usul.
— Você o matou?
— Sim, mas talvez devesse tê-lo deixado para Harah.
(E Paul se lembrava de como os rostos das pessoas ao redor haviam demonstrado aprovar essas palavras. Até mesmo Harah sorrira. )
— Mas ele veio para me desafiar!
— Você me treinou no modo sobrenatural, Usul.
— Certamente! Mas você não devia...
— Eu nasci no deserto, Usul. Sei usar uma faca cristalina.
Ele suprimiu sua irritação, tentando falar de modo sensato.
— Isso pode ser verdadeiro, Chani, mas...
— Não sou mais uma criança caçando escorpiões no sietch à luz de um globo manual, Usul. Eu não brinco mais.
Paul olhou enérgico para ela, surpreendido pela violência oculta em seus modos espontâneos.
— Ele não valia a pena, Usul — disse Chani. — Eu não perturbaria suas meditações com gente como ele. — Ela se aproximou, olhando-o com o canto dos olhos, abaixando a voz, para que somente ele pudesse ouvir: — E... querido, quando se espalhar que um desafiante pode ter de me enfrentar, e ser levado a uma morte vergonhosa pela mulher do Muad'Dib, haverá poucos desafiantes.
“Sim, isso havia acontecido com certeza. Era passado verdadeiro. E o número de desafiantes, testando a nova lâmina do Muad'Dib, caíra, de fato, dramaticamente.”
Em algum lugar, num mundo que não pertencia ao sonho, houve um sinal de movimento, o grito de um pássaro noturno.
“Eu sonhei”, reconheceu ele. “Foi a refeição de especiaria.”
Ainda assim, sentia uma sensação de abandono. Imaginou se não seria possível que o seu espírito-ruh houvesse escorregado de algum modo para o mundo onde os Fremen acreditavam que ele tinha sua verdadeira existência: para o alam al-mithal, o mundo das similitudes, o reino metafisico onde todas as limitações físicas eram removidas. E ele conhecia o medo ao pensar em tal lugar, porque a remoção de todas as limitações físicas significava a remoção de todos os pontos de referência. No cenário de um mito, ele não poderia se orientar e dizer: “Eu sou quem sou, porque estou aqui.”
Sua mãe lhe dissera uma vez: “As pessoas estão divididas, algumas delas quanto ao modo de pensarem a seu próprio respeito.”
“Devo estar acordando de um sonho”, disse para si mesmo.
Pois isso havia acontecido: essas palavras de sua mãe, Lady Jessica, que era agora à Reverenda Madre dos Fremen. Essas palavras haviam passado para a realidade.
Jessica encontrava-se temerosa do relacionamento religioso entre ele e os Fremen, Paul sabia. Ela não gostava do fato de que pessoas dos sietch e dos vilarejos nas fendas se referissem ao Muad'Dib como Ele. E lá ia ela, questionando entre as tribos, mandando suas Sayyadinas espiãs, coletando suas respostas e meditando sobre elas.
Ela citara um provérbio Bene Gesserit para ele : “Quando a política e a religião viajam no mesmo carro, os ocupantes acreditam que nada pode ficar em seu caminho. Seu movimento se torna um avanço de cabeça, cada vez mais rápido, mais rápido. Eles colocam de lado todo pensamento quanto aos obstáculos, e se esquecem de que um precipício não se revela para um homem em corrida cega, a não ser quando já é tarde demais.”
Paul lembrava-se de ter se sentado com sua mãe no quarto dela, na câmara interna cercada por cortinas escuras, com as superfícies cobertas por desenhos bordados da mitologia Fremen. Ele ficara lá sentado, ouvindo-a e notando o modo como ela era sempre observadora, mesmo quando os olhos aparentemente se voltavam para o chão. Seu rosto oval tinha novas linhas nos cantos da boca, mas o cabelo ainda parecia de bronze polido. Os olhos verdes espaçados já se ocultavam embaixo de uma cobertura de azul induzido pela especiaria.
— Os Fremen possuem uma religião simples e prática — dissera ele.
— Nada a respeito de religião é simples — ela advertira.
Paul, entretanto, vendo o futuro nebuloso que ainda se erguia diante deles, encontrou-se agitado pela raiva. Só pôde dizer:
— A religião unifica nossas forças. É a nossa mística.
— Você cultiva deliberadamente esse ar de bravura — acusara ela. — Nunca pára de doutrinar.
— Assim você me ensinou.
Mas ela estivera cheia de alegações e argumentos naquele dia.
Fora o dia da cerimônia de circuncisão para o pequeno Leto. Paul entendera algumas das razões para seu desgosto. Ela nunca aceitara sua ligação, “o casamento dos jovens”, com Chani. Mas Chani dera-lhe um filho Atreides, e Jessica se descobrira incapaz de rejeitar a criança com sua mãe.
Ela se remexeu finalmente ante seu olhar e disse:
— Você me acha uma mãe desnaturada.
— É claro que não.
— Eu vejo o modo como me observa quando estou com sua irmã. Você não entende sua irmã.
— Eu sei por que Alia é diferente. Ela não havia nascido ainda, era parte de você, quando mudou a Água da Vida. Ela...
— Você não sabe nada a esse respeito!
Paul, subitamente incapaz de exprimir o conhecimento obtido de seu tempo, dissera apenas:
— Não acho que você seja desnaturada.
Ela notou sua angústia e disse:
— Há uma coisa, filho.
— Sim?
— Eu tenho de amar a sua Chani. Eu a aceito!
Isso fora real, disse ele para si mesmo. Não era uma visão imperfeita, a ser modificada pelas torções saídas da origem do tempo.
A nova confiança deu-lhe um novo apoio sobre seu mundo.
Trechos de sólida realidade começaram a mergulhar através do estado de sonho, para dentro de sua consciência. Soube, de repente, que se encontrava num hiereg, um campo do deserto. Chani plantara sua tenda destiladora num chão de areia, por causa de sua maciez. Isso só poderia significar que Chani estava por perto — Chani sua alma, Chani sua sihaya, doce como a fonte do deserto. Chani das palmeiras do sul distante.
Agora lembrava-se de tê-la ouvido cantando um cântico da areia para ele, na hora de dormir.
“Ó minha alma,
Que não se inclina para o
Paraíso esta noite,
juro pelo Shai-hulud
Você irá até lá,
Obediente ao meu amor.”
E ela cantara as canções dos amantes, compartilhadas na areia, seu ritmo como o arrastar das dunas sob seus pés.
“Diga-me dos seus olhos
E eu lhe direi do seu coração
Diga-me dos seus pés
E eu lhe direi de suas mãos
Diga-me do seu sono
E eu lhe direi do seu despertar
Diga-me dos seus desejos
E eu lhe direi das suas necessidades.”
Ouvira alguém tocando um baliset em outra tenda, e pensara em Gurney Halleck. Lembrado pelo instrumento familiar, ele pensara em Gurney, cujo rosto vira no meio de um bando de contrabandistas, mas que não o vira, não poderia vê-lo, ou saber a seu respeito, para não levar, inadvertidamente, os Harkonnen até o filho do Duque que haviam assassinado. Mas o estilo do tocador naquela noite, sua distinção com os dedos nas cordas do baliset, trouxe o verdadeiro músico de volta para a memória de Paul.
Agora era Chatt, o Saltador, capitão dos Fedaykin, líder dos comandos da morte que guardavam o Muad'Dib.
“Estamos no deserto”, Paul recordou. “Estamos no erg central, além das patrulhas Harkonnen. Estou aqui para caminhar na areia, para atrair um produtor e nele montar com minha própria astúcia, para poder ser um completo Fremen.”
Sentia agora a pistola maula em seu cinturão, a faca cristalina.
Sentia o silêncio a envolvê-lo.
Tratava-se daquele silêncio especial que precede a manhã, quando os pássaros noturnos já se foram e as criaturas do dia ainda não assinalaram seu despertar para o inimigo, o sol.
— Você deverá caminhar na areia, à luz do dia, para que Shai-hulud o veja, e saiba que não tem medo — dissera Stilgar. — Assim, nós revertemos nosso tempo e dormimos esta noite.
Silenciosamente, Paul se sentou, sentindo a frouxidão de um traje-destilador solto em torno de seu corpo, a tenda na penumbra, adiante. Ele se movia suavemente, e no entanto Chani percebeu.
Ela falou na escuridão da tenda, outra sombra lá dentro:
— Ainda não amanheceu completamente, meu amado.
— Sihaya — disse ele, falando com a alegria em sua voz.
— Você me chama de sua fonte no deserto. Mas neste dia eu sou sua observadora. A Sayyadina que vigia para que os ritos sejam obedecidos.
Ele começou a ajustar o traje-destilador.
— Você me disse certa vez as palavras do Kitab al-lbar — respondeu ele. — Você me disse: “A mulher é o teu campo, vá então para o teu campo e comece a cultivá-lo.”
— E eu sou a mãe do teu primeiro filho — concordou ela.
Ele a via na penumbra, acompanhando-o movimento por movimento, ajustando seu próprio traje-destilador para o deserto.
— Devia aproveitar todo o repouso de que dispõe — aconselhou ela.
Reconhecendo o amor que ela sentia por ele ao falar assim, Paul repreendeu-a gentilmente.
— A Sayyadina da Vigília não aconselha, nem avisa, o candidato.
Chani veio ficar ao seu lado, tocando-lhe o rosto com a palma da mão.
— Hoje eu sou as duas coisas: a observadora e a mulher.
— Devia ter deixado essa tarefa para outra.
— Esperar é muito pior. Eu preferi estar ao seu lado.
Ele beijou-lhe a palma da mão, antes de prender a cobertura do rosto em seu traje, depois virou-se e abriu o selo da tenda. O ar que penetrou trouxe um frio não inteiramente seco, que se precipitaria como traços de orvalho na madrugada. Com ele veio o cheiro da massa pré-especiaria, a massa que havia detectado na direção nordeste, revelando que haveria um produtor nas imediações.
Paul arrastou-se através da abertura esfíncter, ficou de pé sobre a areia e esticou os músculos para afugentar o sono. Uma fraca luminescência verde-pérola esboçava o horizonte leste, as tendas de sua tropa pareciam pequenas dunas falsas a cercá-lo na penumbra. Notou um movimento à esquerda: era o guarda, e percebeu que fora visto.
Todos sabiam o perigo que ele enfrentava nesse dia. Todo Fremen já o enfrentara. Permitiram-lhe seus últimos momentos de isolamento agora, para que pudesse se preparar.
“Deve ser feito hoje”, repetiu para si mesmo.
Pensou no poder que exercia em face do pogrom. Nos velhos que mandavam seus filhos para que ele os treinasse no modo “sobrenatural” de batalha, nos velhos que o ouviam agora em conselho, e seguiam seus planos, nos homens que retornavam para lhe transmitir o mais alto cumprimento Fremen :
— Seu plano funcionou, Muad'Dib.
E, no entanto, o menor e o mais desprezível dos guerreiros Fremen podia fazer uma coisa que ele nunca fizera. Paul tinha consciência de que sua liderança sofria com o conhecimento onipresente dessa diferença entre eles.
Ele ainda não cavalgara um produtor.
Oh! ele fora com os outros em ataques e viagens de treinamento, mas ainda não fizera sua própria viagem. Até que o fizesse, seu mundo estava restrito pelas habilidades dos outros, e nenhum Fremen verdadeiro poderia permitir isso. Até que fizesse isso sozinho, até mesmo as grandes terras do sul, a área a vinte tumperes além do erg, lhe seria negada, a menos que ordenasse um palanquim e viajasse como uma Reverenda Madre, ou um dos feridos ou doentes.
A memória de sua luta contra a visão interna, durante a noite, retornou. Via um estranho paralelo aqui: se dominasse o produtor, seu comando sobre os homens se fortaleceria. Se dominasse seu olho interior, teria sua própria noção de como comandar. Mas, além de ambos, estendia-se a área enevoada, A Grande Agitação, onde o universo inteiro parecia enredado.
A diferença nos modos como compreendia o Universo o assombrava: precisão igualada a imprecisão. Podia vê-la in Bitu. E no entanto, quando isso surgira, nascendo das pressões da realidade, o agora tinha sua própria vida, e crescia com suas diferenças sutis.
O terrível propósito permanecia. A consciência racial permanecia.
E, acima de tudo, assomava o jihad, sangrento e selvagem.
Chani reuniu-se a ele do lado de fora, braços dobrados com as mãos nos cotovelos, olhando do canto dos olhos como ela costumava fazer quando queria observar seu estado de espírito.
— Fale-me de novo sobre as águas de sua terra natal, Usul — pediu ela.
Ele percebeu que estava tentando distraí-lo, aliviar sua mente das tensões antes do teste mortífero. Ficava cada vez mais claro, e alguns de seus Fedaykin já começavam a desarmar suas tendas.
— Eu preferiria que me contasse a respeito do sietch e do nosso filho. Será que o nosso Leto já tem minha mãe em suas mãos?
— É Alia que ele segura muito bem. E está crescendo rapidamente. Vai ser um grande homem.
— Como é lá no Sul?
— Quando cavalgar o produtor verá por si mesmo.
— Mas eu preferiria ver primeiro através dos teus olhos.
— É tremendamente solitário.
Ele tocou o lenço nezhoni na testa dela, onde se projetava sob o capuz do traje.
— Por que não fala a respeito do sietch?
— Eu já falei. O sietch é um lugar solitário, sem nossos homens. É um lugar de trabalho. Nós trabalhamos nas fábricas e na sala de cerâmica. Existem armas para serem feitas, postes para implantar, de modo que possamos prever o tempo, especiaria a ser coletada para os subornos. Existem dunas para serem plantadas, de modo que cresçam e possam ser ancoradas. Existem panos e tapetes para fazer e células de combustível para serem recarregadas. E, por fim, há crianças para serem treinadas, de modo que a força da tribo nunca seja perdida.
— Não há nada agradável, então, no sietch?
— As crianças. Nós cumprimos os rituais. Temos comida suficiente. Algumas vezes uma de nós viaja para o Norte, para estar com seu homem. A vida deve continuar.
— Minha irmã Alia já é aceita pelo povo?
Chani voltou-se para ele, na crescente luz do dia. Seus olhos a fitá-lo diretamente agora.
— Isto é uma coisa para ser discutida em outra ocasião, meu querido.
— Vamos discuti-la agora.
— Deve conservar suas energias para o teste.
Percebeu que tocara num ponto sensível, notando o retraimento em sua voz.
— O desconhecido traz suas próprias preocupações — disse ele.
Daí a pouco ela acenou:
— Ainda há um... mal-entendido por causa do desenvolvimento de Alia. As mulheres têm medo porque uma criança, pouco mais do que um bebê, já fala... de coisas que só um adulto pode saber. Elas não compreendem a... mudança no ventre que fez Alia tão... diferente.
— Existe algum problema? — indagou ele, pensando ao mesmo tempo: “Tive visões a respeito de problemas com Alia.”
Chani olhou para a crescente linha da alvorada.
— Algumas das mulheres se reuniram para apelar ante a Reverenda Madre. Elas exigiram que ela exorcizasse o demônio em sua filha. Elas citaram a escritura: — “Que uma bruxa não viva entre nós.”
— E o que minha mãe disse para elas?
— Ela recitou a lei, e as mandou embora envergonhadas. Ela disse: — Se Alia cria problemas, é falha da autoridade que não previu nem preveniu o problema. E tentou explicar como a mudança atingira Alia dentro do ventre. Mas as mulheres estavam furiosas por terem sido embaraçadas. Foram embora resmungando.
“Haverá problemas por causa de Alia”, pensou ele.
Um sopro de areia cristalina tocou-lhe as partes expostas do rosto, trazendo o aroma da massa pré-especiaria.
— El Sayal, a chuva de areia que traz a manhã — comentou.
Olhou na luz crepuscular para a paisagem do deserto, a paisagem que não conhecia clemência, a areia que era a forma absorvida em si mesma. Um relâmpago serpenteou num canto escuro ao sul. Indício de que uma tempestade acumulara uma carga estática por lá. O trovão ribombou logo a seguir.
— A voz que embeleza a terra — murmurou Chani.
Mais homens saíam de suas tendas. Guardas chegavam do perímetro. Todas as coisas à sua volta moviam-se suavemente, dentro de rotinas ancestrais que não exigiam nenhuma ordem.
— Dê tão poucas ordens quanto possível — dissera-lhe seu pai... uma vez... há tanto tempo. — Uma vez que dê ordens sobre um determinado assunto, terá de repeti-las sempre.
Os Fremen conheciam essa regra instintivamente.
O mestre d'água da tropa começou o cântico da manhã, adicionando-lhe agora o chamado para o ritual de iniciação do cavaleiro da areia.
— O mundo é uma carcaça — cantou o homem, sua voz gemendo acima das dunas. — Quem pode fazer recuar o Anjo da Morte? O que Shai-hulud determinou é o que deve ser.
Paul ouvia, lembrando que eram as mesmas palavras que iniciavam o canto da morte dos seus Fedaykin, as palavras que os comandos suicidas recitavam ao se lançarem para a batalha.
“Haverá um santuário de pedra aqui, neste dia, para marcar a partida de outra alma?”, perguntou Paul a si mesmo. “Irão os Fremen passar por aqui, no futuro, para cada um adicionar outra pedra, e pensar no Muad'Dib que morreu neste lugar?”
Sabia que isso se encontrava entre as alternativas do dia, um fato ao longo das linhas de futuro que se irradiavam de sua posição no tempo-espaço. A visão imperfeita o importunava. Quanto mais resistia ao seu terrível propósito, quanto mais lutava contra a aproximação do jihad, maior a confusão lançada através de sua presciência. Todo o seu futuro tornava-se como um rio lançando-se em direção a um abismo. Um ponto violento além do qual tudo era coberto de nuvens e neblina.
— Stilgar se aproxima — avisou Chani. — Devo ficar afastada agora, meu amado. Agora devo ser a Sayyadina e observar os rituais, para que possam ser relatados verdadeiramente nas Crônicas. — Olhou para ele, e por um breve instante sua reserva desapareceu, mas logo ela se controlou novamente.
— Quando tudo isso houver passado, deverei preparar sua refeição com minhas próprias mãos — disse ela, virando-se e afastando-se.
Stilgar aproximou-se andando sobre a areia farinhenta, remexendo pequenos montes de pó. Os nichos escuros de seus olhos permaneciam fixos em Paul, com seu olhar indômito. Um vislumbre da barba negra, acima da máscara do traje-destilador, as linhas na face áspera, que poderiam ter sido esculpidas pelo vento na rocha nativa.
O homem carregava a bandeira de Paul — bandeira verde e negra, com um tubo de água no mastro — que já era uma lenda nessa terra.
Um pouco orgulhoso, Paul pensou: “Não posso fazer as coisas mais simples sem que se tornem lenda: eles irão notar como eu me despedi de Chani, como saudei Stilgar, cada movimento que fizer neste dia. Viva ou morra, será uma lenda. E eu não posso morrer. Senão será apenas lenda, e nada poderá parar o jihad.
Stilgar plantou o mastro na areia ao lado de Paul, deixando cair as mãos para os lados do corpo. Seus olhos de azul-dentro-de-azul permaneciam nivelados e atentos, fazendo com que Paul se lembrasse de como seus próprios olhos também já assumiam essa máscara de cor de especiaria.
— Eles nos negaram o Hajj — disse Stilgar com solenidade ritual.
Como Chani lhe ensinara, Paul respondeu:
— Quem pode negar a um Fremen o direito de caminhar e cavalgar para onde ele deseja?
— Eu sou um Naib — disse Stilgar. — Nunca serei apanhado vivo. Sou uma perna do tripé da morte que destruirá nossos inimigos.
O silêncio estabeleceu-se entre os dois.
Paul olhou para os outros Fremen, dispersos sobre a areia, mais além de onde estava Stilgar, notou o modo como eles se postavam imóveis, para esse momento de preces pessoais. E pensou em como os Fremen eram um povo cuja vida consistia em matanças, todo um povo que vivera com ódio e pesar em todos os seus dias, sem considerar, uma única vez, que algo poderia tomar o lugar desses sentimentos. Exceto no sonho que Liet-Kynes lhes incutira antes de morrer.
— Onde está o senhor que nos lidera através dos poços e das terras desertas? — indagou Stilgar.
— Ele está sempre conosco — entoaram os Fremen.
Stilgar caminhou para junto de Paul e disse baixinho:
— Agora, lembre-se do que lhe falei. Faça-o de modo simples e direto... nada de exibições. Entre nosso povo, nós cavalgamos o produtor com a idade de doze anos. Você está com mais de seis anos além dessa idade, e não nasceu para esta vida. Não precisa impressionar ninguém com sua coragem. Nós sabemos que é valente. Tudo que deve fazer é chamar o produtor e cavalgá-lo.
— Eu me lembrarei — respondeu Paul.
— Certifique-se de que sim. Não quero que envergonhe meu treinamento.
Stilgar tirou de sob o seu manto uma vara de plástico com um metro de comprimento. A vara tinha uma ponta em uma das extremidades, e um chocalho impulsionado por mola, na outra.
— Preparei este batedor pessoalmente. É muito bom. Leve-o.
Paul sentiu o plástico liso e morno enquanto aceitava o instrumento.
— Shishakli está com seus ganchos. Ele os entregará a você quando subir naquela duna lá embaixo. — Stilgar apontou para a direita. — Chame um grande produtor, Usul! Mostre-nos o caminho.
Paul notou o tom na voz de Stilgar. Metade ritualístico e metade a voz de um amigo preocupado.
Naquele instante o sol pareceu saltar sobre o horizonte. O céu assumiu uma cor azul-cinza prateada, indicando que esse seria um dia de grande calor e seca, mesmo para os padrões de Arrakis.
— É hora do dia escaldante — disse Stilgar, sua voz agora inteiramente ritualística. — Vá, Usul, e cavalgue o produtor, viaje pela areia como um líder de homens!
Paul saudou sua bandeira, notando como a flâmula verde e negra pendia imóvel, agora que a brisa da aurora já morrera.
Voltou-se na direção da duna que Stilgar indicara. Uma elevação cor de bronze sujo, com uma crista em forma de “S”. A maioria da tropa já começava a galgar a outra duna que protegia seu acampamento.
Uma figura envolta em mantos ainda permanecia no caminho de Paul: Shishakli, um líder de esquadrão dos Fedaykin, com apenas os olhos cobertos por espessas pálpebras visíveis entre o capuz do traje e a máscara.
Shishakli exibiu-lhe duas varas finas quando Paul se aproximou. Tinham um metro e meio de comprimento, com ganchos brilhantes de plasteel em uma das extremidades, a outra extremidade era dura, para permitir maior firmeza da mão.
Paul aceitou ambas com a mão esquerda, como estipulado pelo ritual.
— Estes são meus próprios ganchos — disse Shishakli com uma voz rouca. — Eles nunca me falharam.
Paul acenou com a cabeça, mantendo o exigido silêncio. Passou pelo homem e subiu a encosta da duna. Na crista ele olhou para trás, vendo a tropa se espalhar como um bando de insetos, seus mantos ondulando. Estava sozinho, agora, na crista arenosa, com apenas o horizonte à sua frente, o horizonte plano e imóvel.
Stilgar escolhera uma boa duna, mais alta que as demais, e com um bom ponto de observação.
Curvando-se para a frente, Paul enfiou o batedor profundamente na encosta voltada para o vento, onde a areia se encontraria compactada e forneceria um alcance máximo de transmissão às batidas. Então hesitou, relembrando as lições, as exigências de vida ou morte que o enfrentavam. Quando tirasse o trinco, o batedor começaria seu chamado. Através da areia, um gigantesco verme, um produtor, ouviria o som e viria em sua direção. Com as duas varas-ganchos, finas como chicotes, ele poderia montar no dorso alto e curvo do produtor. Enquanto a extremidade dianteira do anel-segmento de um verme estivesse aberta pelo gancho, permitindo que a areia abrasiva penetrasse no seu tecido interior mais sensível, o animal não mergulharia abaixo da superfície. Ele iria rolar seu gigantesco corpo para colocar o segmento aberto o mais distante possível da superficie arenosa.
“Eu sou um cavaleiro da areia”, disse para si mesmo.
Olhou para os ganchos em sua mão esquerda. Só tinha de mudar a posição daqueles ganchos ao longo da curva, no imenso dorso do produtor, para fazer a criatura rolar e virar, guiando-a para onde desejasse... Já vira isso ser feito. Haviam-no ajudado a subir nos lados de um verme para um curto passeio de treinamento. O verme, uma vez cativo, poderia ser cavalgado até que estivesse imóvel e exausto sobre a superfície do deserto, quando então um novo produtor seria chamado.
Uma vez que houvesse passado nesse teste, Paul sabia que estaria qualificado para fazer a jornada de vinte tumperes até as terras do Sul. Para repousar e se recuperar lá onde as mulheres e suas famílias haviam sido protegidas do massacre, entre as novas palmeiras e sietches. Ergueu a cabeça olhando para o Sul, lembrando-se de que um produtor selvagem, atraído de dentro do erg, era um fator desconhecido, e que aquele que o invocava era também uma incógnita nesse teste.
— Você deve avaliar cuidadosamente o produtor que se aproxima — explicara Stilgar. — Deve ficar suficientemente próximo para que possa montá-lo enquanto passa e, no entanto, não tão próximo a ponto de que ele o engula ao passar.
Em uma decisão repentina, Paul soltou o trinco do batedor. O chocalho começou a girar e os chamados ecoaram através da areia.
Uma batida regular: Lamp... lamp... lamp... lamp.
Levantou-se esquadrinhando o horizonte, lembrando-se das palavras de Stilgar:
— Avalie a linha de aproximação cuidadosamente. Lembre-se que um verme raramente se aproxima de um batedor sem ser visto. Mas ouça assim mesmo. Freqüentemente é possível ouvi-lo antes de vê-lo.
E as palavras de cautela de Chani, sussurradas à noite, quando o temor a dominara, enchiam agora sua consciência:
— Quando se posicionar ao longo da trilha de um produtor, você deve permanecer completamente imóvel. Deve pensar em si mesmo como um trecho de areia. Esconda-se embaixo de seu manto, e torne-se uma pequena duna em sua própria essência.
Lentamente vasculhou o horizonte, ouvindo, observando, em busca dos sinais que lhe haviam sido ensinados.
Veio do sudeste. Um assovio distante, um sussurrar de areia. Daí a pouco, ele viu a silhueta distante do rastro do animal recortando-se contra a luz da aurora, e percebeu nunca ter visto antes um produtor tão grande, nunca ouvira falar de um daquele tamanho. Parecia ter mais de meia légua de comprimento, e a onda de areia sobre sua cabeça era como uma montanha se aproximando.
“Isto é algo que eu nunca vi, em minha visão ou em minha vida”, acautelou-se Paul. Correu na direção do caminho percorrido pelo animal para tomar posição, apanhado inteiramente pelas rápidas exigências do momento.
“Controlem a cunhagem e as cortes — deixem que a ralé tenha o resto.” Assim aconselha a vocês o Imperador Padishah. E ele lhes diz: “Se querem lucros, devem dominar.” Há verdade nessas palavras, mas eu pergunto a mim mesmo: Quem é a ralé, e quem são os dominados?”
— “Mensagem Secreta do Muad'Dib para a Landsraad”, de O Despertar de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
Um pensamento espontâneo penetrou na mente de Jessica: “Paul deve estar se submetendo ao teste de cavaleiro da areia a qualquer momento, agora. Eles tentam esconder de mim esse fato, mas ele é óbvio.”
“E Chani partiu em alguma missão misteriosa.”
Jessica encontrava-se sentada em sua câmara de repouso, aproveitando o momento de quietude entre as aulas noturnas. Era uma câmara agradável, mas não tão grande quanto a que possuíra no Sietch Tabr antes de sua fuga do pogrom. Ainda assim, esse lugar tinha grossos tapetes sobre o chão, colchões macios, uma mesa baixa de café bem à mão, cortinas multicoloridas sobre as paredes, e os suaves globos luminosos amarelos acima. O aposento estava impregnado por aquele odor acre, característico de um sietch dos Fremen, que Jessica agora associava a um sentimento de segurança.
Ao mesmo tempo, ela sabia que nunca superaria o sentimento de se encontrar num lugar estranho. Era a aspereza que os tapetes e cortinas tentavam esconder.
Um ruído fraco e tilintante penetrou na câmara de repouso. Jessica sabia que se tratava de uma celebração de nascimento, provavelmente de Subiay. Seu tempo estava próximo e Jessica tinha certeza de que logo veria o bebê: um querubim de olhos azuis, trazido até a Reverenda Madre para sua bênção. Sabia também que sua filha Alia estaria presente à celebração, e iria relatá-la.
Ainda não era hora para a prece noturna da separação. Eles não teriam começado uma celebração de nascimento perto da hora da cerimônia que lembrava as incursões escravizadoras contra Poritrin, Bela Tegeuse, Rossak e Harmonthep.
Jessica suspirou. Sabia que estava tentando manter seus pensamentos distantes de seu filho e dos perigos que ele enfrentava: os fossos-armadilhas com suas farpas envenenadas, os ataques dos Harkonnen (embora estes estivessem diminuindo, à medida que os Fremen recebiam sua quota de aeronaves e atacantes, com as novas armas que Paul lhes fornecera). E havia os perigos naturais do deserto: produtores, a sede e os abismos de pó.
Pensou em pedir um café, mas com esse pensamento ocorreu-lhe notar, mais uma vez, o sempre presente paradoxo do modo de vida dos Fremen: como eles viviam bem nessas cavernas sietch em comparação com os pyons dos desfiladeiros graben, e, no entanto, eles suportavam muito mais durante uma hajr no deserto aberto. Mais do que qualquer servidor dos Harkonnen poderia suportar.
Uma mão escura saiu das cortinas ao seu lado, depositou uma xícara de café sobre a mesa e se retirou. Da xícara elevou-se o aroma do café com especiaria.
“Uma oferenda pela celebração do nascimento”, pensou ela.
Provou o café, sorrindo para si mesma. “Em que outra sociedade do nosso universo uma pessoa de minha posição aceitaria uma oferta anônima de bebida, e tomaria essa bebida sem temor? Posso alterar qualquer veneno agora, antes que me faça mal, é claro, mas esta doadora não sabe.”
Esvaziou a xícara sentindo a energia e o vigor de seu conteúdo. Quente e delicioso.
E perguntou também a si mesma que outra sociedade teria tamanha consideração por sua privacidade e conforto, a ponto de uma pessoa vir trazer uma oferenda e se introduzir apenas o suficiente para depositar o presente sem incomodá-la? Respeito e amor haviam enviado essa dádiva... com apenas um leve toque de medo.
Outra particularidade do episódio se revelou em sua consciência: ela desejara o café e ele aparecera. Não havia nada relacionado com telepatia aqui, ela sabia. Era o tau, a identidade da comunidade do sietch, uma compensação produzida pelo veneno sutil da dieta de especiaria que todos compartilhavam. Essa grande massa de gente jamais poderia esperar obter a iluminação que a especiaria lhe trouxera, eles não haviam sido treinados e preparados para isso. Suas mentes rejeitariam aquilo que não pudessem entender ou abarcar. Ainda assim, eles agiam e reagiam, algumas vezes, como se fossem um único organismo.
E o pensamento a respeito dessas coincidências nunca penetrara em suas mentes.
“Terá Paul conseguido passar no teste da areia?”, indagou Jessica a si mesma. “Ele é capaz, mas um acidente pode atingir até os mais capazes.”
A espera.
“É a monotonia”, pensou ela. “Podemos esperar por algum tempo, e então a monotonia e a fadiga da espera nos dominam.”
E havia todo tipo de espera em suas vidas.
“Há mais de dois anos que estamos aqui. E duas vezes esse número deve passar, no mínimo, antes que possamos pensar em tentar arrancar Arrakis das mãos do governador Harkonnen, o Mudir Nahya, Rabban, a Besta.”
— Reverenda Madre!
A voz vinda do outro lado das cortinas que cobriam a porta era de Harah, a outra mulher no lar de Paul.
— Sim, Harah.
As cortinas se separaram, e Harah pareceu deslizar através delas. Ela usava sandálias de sietch e um sarongue verde e amarelo que expunha seus braços quase até os ombros. Seu cabelo negro encontrava-se repartido no meio e penteado para trás, como as asas de um inseto, chato e oleoso sobre a cabeça. As feições proeminentes, de rapina, formavam uma máscara de preocupação.
Atrás de Harah vinha Alia, a menina-criança de apenas dois anos.
Ao ver sua filha, Jessica impressionou-se, como acontecia freqüentemente com a semelhança que Alia apresentava com Paul, quando na mesma idade. A mesma solenidade nos olhos muito abertos, no olhar indagador, o cabelo escuro e a firmeza da boca.
Mas havia também diferenças sutis, e era nessas diferenças que residia a inquietação sentida pelos adultos na presença de Alia.
A criança, pouco mais do que um bebê, comportava-se com uma calma e uma compreensão além de sua idade. Os adultos ficavam chocados ao vê-la rir ante um sutil jogo de palavras entre pessoas de sexos opostos. Ou surpreendiam-se ouvindo sua voz, balbuciante ainda, dificultada por um palato mole e malformado, e descobriam em suas palavras observações maliciosas que só poderiam basear-se em experiência que uma criança de dois anos jamais poderia ter tido.
Harah afundou num colchão com um suspiro de exasperação, olhando com uma expressão de censura para a criança.
— Alia — chamou Jessica.
A criança aproximou-se da mãe, sentando-se no colchão ao lado dela e segurando-lhe a mão. O contato da carne restaurou aquela consciência mútua que ambas compartilhavam desde antes do nascimento de Alia. Não era uma questão de pensamentos compartilhados, embora houvesse descargas desse tipo, se ambas se tocavam enquanto Jessica mudava o veneno de especiaria para uma cerimônia. Era alguma coisa maior, uma consciência imediata da centelha vital da outra, uma coisa aguda e pungente, uma identidade nervosa que as tornava unidas emocionalmente.
De modo formal, como convinha ante uma integrante da família de seu filho, Jessica disse:
— Subakh ul kuhar, Harah. Esta noite a encontra bem?
Com a mesma formalidade ela respondeu:
— Subakh un nar. Eu estou bem. — As palavras foram quase sem tonalidade. Novamente ela suspirou.
Jessica sentiu o divertimento de Alia.
— A ghanima de meu irmão está aborrecida comigo — disse Alia, em seu quase balbuciar.
Jessica notou o termo que ela usara para referir-se a Harah: ghanima. Nas sutilezas do idioma Fremen, a palavra significava: “alguma coisa adquirida em combate”, e com um tom de pronúncia especial significaria alguma coisa não mais usada em seu propósito original: um ornamento, uma ponta de lança usada como peso para cortinas.
Harah olhou carrancuda para a criança:
— Não tente insultar-me, pirralha. Eu conheço meu lugar.
— O que você fez dessa vez, Alia? — indagou Jessica.
Harah respondeu:
— Não somente ela se recusou a brincar com as outras crianças hoje, mas se intrometeu onde...
— Eu me escondi atrás das cortinas e observei a criança de Subiay nascendo — disse Alia. — É um menino. Ele chorou, chorou e chorou. Que jogo de pulmões! Quando já havia chorado o suficiente...
— Ela saiu e o tocou — disse Harah. — E ele parou de chorar. Todos sabem que um bebê Fremen deve esgotar seu choro ao nascer, se estiver num sietch, para que nunca chore de novo denunciando-nos numa hajr.
— Ele já chorara o suficiente — explicou Alia. — Eu só queria sentir sua centelha, sua vida. Isso é tudo. E, quando ele me sentiu, não quis chorar mais.
— Isso só provocou mais falatório entre as mulheres — disse Harah.
— A criança de Subiay é saudável? — indagou Jessica. Percebia que alguma coisa estava perturbando profundamente Harah.
— Saudável como qualquer mãe possa desejar — respondeu Harah. — Elas sabem que Alia não o feriu. Elas não se importaram muito que ela o tocasse, ele se acalmou logo depois, e estava feliz. Foi... — Harah deu de ombros.
— É a estranheza de minha filha, não é? — indagou Jessica, e acrescentou: — É o modo como ela diz coisas além de seus anos, falando o que uma criança de sua idade não poderia conhecer. Coisas do passado.
— Como poderia ela saber como uma criança se parecia em Bela Tegeuse? — perguntou Harah com veemência.
— Mas ele parece — disse Alia. — O menino de Subiay parece exatamente com o filho de Mitha, nascido antes da separação.
— Alia! — ralhou Jessica. — Eu lhe avisei.
— Mas, mãe, eu vi, era verdade e...
Jessica sacudiu a cabeça vendo os sinais de inquietação no rosto de Harah. “O que eu dei à luz?”, indagou a si mesma. “Uma filha que já conhecia ao nascer tudo que eu sabia, e mais: tudo que fora revelado a ela, através dos corredores do passado, pelas Reverendas Madres dentro de mim.”
— Não é apenas as coisas que ela diz — explicou Harah. — São os exercícios também: o modo como se senta e olha uma rocha, movendo apenas um músculo ao lado do nariz, ou um músculo no dorso de um dedo, ou...
— Isso faz parte do treino Bene Gesserit. Você sabe disso, Harah. Negaria à minha filha sua herança?
— Reverenda Madre, sabe que essas coisas não importam para mim. São as pessoas e o modo como murmuram. Sinto perigo nisso. Elas vêem sua filha como um demônio, as outras crianças se recusam a brincar com ela, que ela...
— Ela tem tão pouco em comum com as outras crianças. Ela não é demônio, é apenas...
— É claro que não é!
Jessica surpreendeu-se com a veemência no tom de Harah, e olhou para Alia. A criança parecia perdida em pensamentos, irradiando um senso de... espera. Jessica voltou sua atenção para Harah.
— Respeito o fato de que pertence à família de meu filho — disse ela. (Alia estremeceu de encontro à sua mão.) — Pode falar abertamente comigo sobre o que a perturba.
— Eu não pertencerei à casa de seu filho por muito tempo mais — respondeu Harah. — Esperei esse tempo pelo bem de meus filhos, pelo treinamento especial que eles recebem, como crianças de Usul. É pouco, entretanto, o que posso dar a eles, desde que é conhecido que não partilho o leito de seu filho..
Novamente Alia se remexeu ao lado dela, meio adormecida, morna.
— Você tem sido uma boa companheira para meu filho, no entanto — disse. E. acrescentou para si mesma, já que tais pensamentos a acompanhavam sempre: “Companheira... não esposa.”
Concentrou-se diretamente no centro da mágoa que surgira dos falatórios, comuns no sietch, de que o relacionamento de seu filho com Chani já se tornara algo permanente, um casamento.
“Eu amo Chani”, pensou ela, mas lembrava-se de que o amor teria de ser colocado de lado, ante as necessidades reais. Os casamentos, entre a realeza, obedeciam a outras razões que não o amor.
— Pensa que não sei o que planeja para seu filho? — indagou Harah.
— O que quer dizer?
— Você planeja unir as tribos sob o comando Dele — disse Harah.
— E isso é mau?
— Eu vejo perigo para ele... e Alia é parte desse perigo.
Alia se aconchegou junto da mãe, os olhos abertos agora, observando Harah.
— Observei vocês duas juntas — disse Harah. — O modo como se tocam. E Alia é como minha própria carne, porque ela é irmã daquele que é como meu irmão. Eu a vigiei e guardei, desde o tempo em que era uma recém-nascida, no tempo da razia, quando fugimos para cá. Já vi muitas coisas a respeito dela.
Jessica assentiu, sentindo o desassossego crescendo em Alia ao seu lado.
— Sabe o que eu quero dizer — continuou Harah. — O modo como ela sabia, desde o princípio, o que dizíamos a respeito dela. Quando houve algum outro bebê que conhecesse a disciplina da água tão jovem? Que outro bebê diria suas primeiras palavras para sua pajem: “Eu te amo, Harah?”
Harah olhou para Alia.
— Por que pensa que aceito seus insultos? Eu sei que não há malícia neles.
Alia olhou para a mãe.
— Sim, tenho poderes de raciocínio, Reverenda Madre — prosseguiu Harah. — Eu poderia ser uma Sayyadina. Eu vi o que vi.
— Harah... — Jessica encolheu os ombros. — Não sei o que dizer. — Sentiu-se surpreendida consigo mesma, porque isso era literalmente verdadeiro.
Alia levantou-se, endireitou os ombros. Jessica sentiu que o tempo de espera terminara, havia agora uma emoção composta de decisão e tristeza.
— Nós cometemos um erro — disse Alia. — Agora precisamos de Harah.
— Foi na cerimônia da semente — observou Harah. — Você mudou a Água da Vida, Reverenda Madre, quando Alia ainda estava em seu interior.
“Precisamos de Harah?”, pensou Jessica.
— Quem mais pode falar entre as pessoas, e fazer com que me compreendam? — indagou Alia.
— O que você deseja que ela faça? — perguntou Jessica.
— Ela já sabe o que fazer — respondeu Alia.
— Eu direi a eles a verdade — disse Harah, seu rosto parecendo subitamente velho e triste, com a pele cor de oliva franzida em vincos, um feitiço nas feições severas. — Direi a eles que Alia apenas finge ser uma garotinha, mas ela nunca foi uma garotinha.
Alia sacudiu a cabeça, lágrimas escorrendo em sua face, e Jessica sentiu uma onda de tristeza vinda de sua filha, como se fosse sua própria emoção.
— Sei que sou uma monstruosidade — sussurrou Alia. Esta consideração adulta, vinda da boca de uma criança, era como uma amarga confirmação.
— Você não é uma monstruosidade! — retrucou Harah. — Quem se atreveu a dizer isso?
Mais uma vez Jessica admirou-se ante o violento tom protetor na voz de Harah, e percebeu que Alia julgara corretamente. Elas precisavam de Harah. A tribo a entenderia em suas palavras e emoções, pois era óbvio que ela amava Alia como se fosse sua própria filha.
— Quem disse isso? — repetiu Harah.
— Ninguém.
Alia usou a aba do manto da mãe para enxugar as lágrimas em seu rosto, depois alisou o tecido onde ficara úmido e amarrotado.
— Então não fale assim — ordenou Harah.
— Sim, Harah.
— Agora poderia me dizer como aconteceu, para que eu possa contar aos outros. Diga-me o que foi que aconteceu com você.
A criança engoliu em seco e olhou para a mãe.
Jessica acenou afirmativamente.
— Um dia eu acordei — explicou Alia. — Foi como acordar de um sono, só que eu não podia me lembrar de ter ido dormir. Eu me encontrava num lugar escuro e morno. E estava assustada.
Ouvindo o quase balbuciar de sua filha, Jessica sentia-se transportada de volta àquele dia na grande caverna.
— Quando me assustei — continuou Alia —, tentei escapar, mas não havia jeito. E então vi a centelha... só que não era exatamente como vê-la. A centelha estava lá, comigo, e eu sentia suas emoções... acalmando-me, tranqüilizando-me, falando para mim que tudo ia ficar bem. Aquilo era minha mãe.
Harah esfregou os olhos, sorrindo de modo tranquilizador para Alia. Contudo transparecia um brilho alucinado nos olhos da mulher Fremen, uma intensidade, como se eles também estivessem tentando ouvir as palavras de Alia.
Jessica pensou: “Que sabemos realmente sobre o modo como alguém assim pensa... partindo de suas experiências únicas, seu treinamento e sua herança ancestral?”
— Quando eu estava me sentindo segura e tranqüila — explicou Alia — surgiu outra centelha ao nosso lado... e tudo começou a acontecer de uma vez. A outra chispa era a antiga Reverenda Madre. Ela estava... trocando vidas com minha mãe... tudo... e eu estava lá com elas, vendo tudo... tudo. E, quando acabou, eu era elas e todas as outras e eu mesma... só que levou algum tempo para me encontrar de novo... havia tantas outras...
— Foi uma coisa cruel — disse Jessica. — Nenhum ser deveria despertar para a consciência desse modo. O mais extraordinário é que tenha podido aceitar tudo que lhe aconteceu.
— Eu não podia fazer outra coisa. Eu não sabia como rejeitar, como esconder minha consciência... ou desligá-la... tudo apenas aconteceu... tudo...
— Nós não sabíamos — murmurou Harah — quando demos a Água para sua mãe mudar, não sabíamos que você já existia dentro dela.
— Não fique triste por isso, Harah — aconselhou Alia. — Eu não devia me sentir triste também. Apesar de tudo, há um motivo para alegria aqui. Eu sou uma Reverenda Madre. A tribo tem duas Rev...
Ela interrompeu a frase, e inclinou a cabeça para ouvir.
Harah girou nos calcanhares, esbarrando na almofada, olhando para Alia e, então, voltando sua atenção para o rosto de Jessica.
— Você não suspeitava? — indagou Jessica.
— Psiu! — pediu Alia.
Um cântico ritmado e distante filtrava-se através das cortinas a separá-las dos corredores do sietch. Tornou-se mais alto e distinto, os sons nítidos agora: “Ya! Ya! Yawm! Ya! Ya! Yawm! Mu zein, wallah! Ya! Ya! Yawm! Mu zein, Wallah!”
Os cantadores passaram diante da porta externa, suas vozes ressoando através das câmaras internas do apartamento. Depois, lentamente o som recuou.
Quando já diminuíra o suficiente, Jessica começou o ritual, a voz carregada de tristeza:
— Era o Ramadhan, abril, em Bela Tegeuse.
— Minha família sentava-se no jardim, ao redor da piscina — continuou Harah —, o ar carregado da umidade que se elevava do jorro de uma fonte. Havia uma árvore de portyguls, redonda e de cor viva, ao alcance da mão. Havia uma cesta com mish mish e Baklawa, e copos de liban... todo o tipo de coisas boas para comer. Em nossos jardins e em nossas aglomerações existia paz... paz em toda a terra...
— A vida era cheia de felicidade, até que os caçadores vieram... — prosseguiu Alia.
— O sangue correu frio ante os gritos de nossos amigos — prosseguiu Jessica. Sentia as memórias fluindo através dela, brotando de todos aqueles outros passados que compartilhava.
— La, la, la, as mulheres choraram — cantou Harah.
— E os caçadores vieram através do mushtamal, correndo para nós com suas facas gotejando, vermelhas, com as vidas de nossos homens — disse Jessica.
Um silêncio caiu sobre as três, como estaria acontecendo em todos os apartamentos do sietch. Silêncio enquanto todos se lembravam, mantendo assim a dor sempre renovada.
Daí a pouco Harah pronunciou o término ritual da cerimônia, dando às palavras uma dureza que Jessica nunca ouvira antes.
— Nós nunca perdoaremos, nem nunca esqueceremos.
Na quietude meditativa que se seguia à cerimônia elas ouviram um murmúrio de pessoas, o sussurro de muitos mantos em movimento. Jessica notou que alguém se colocava diante das cortinas que isolavam seus aposentos.
— Reverenda Madre!
Era uma voz de mulher, que Jessica reconheceu: a voz de Thartar, uma das esposas de Stilgar.
— Que foi, Thartar?
— Há problemas, Reverenda Madre.
Jessica sentiu um aperto no coração, um abrupto medo por Paul.
— Paul! — exclamou ela sem pensar.
Thartar abriu as cortinas, entrando na câmara. Jessica vislumbrou uma multidão se comprimindo no lado de fora, antes que as cortinas se fechassem. Olhou para Thartar: uma mulher escura e pequena, num roupão preto estampado com desenhos vermelhos, o azul total de seus olhos apontando fixamente para Jessica, as aberturas no nariz pequeno dilatando-se para revelar as cicatrizes dos tampões.
— O que foi?
— Há notícias da areia — disse Thartar. — Usul encontrará o produtor para seu primeiro teste... é hoje. Os homens jovens dizem que ele não pode falhar, ele será um cavaleiro da areia ao cair da noite. Os jovens estão se agrupando para uma razia. Eles tencionam atacar ao norte, e encontrar-se com Usul lá. Eles vão emitir seu grito, então. Dizem que vão forçá-lo a desafiar Stilgar e assumir o comando de todas as tribos.
“Recolhendo água, plantando nas dunas, mudando seu mundo lentamente mas com segurança, isso não é mais suficiente”, pensou Jessica. “Os pequenos ataques, as incursões seguras, não bastam, agora que Paul e eu mesma os treinamos. Eles sentem seu poder. Querem lutar.”
Thartar mudou o apoio do corpo de um pé para o outro, pigarreou.
“Conhecemos a necessidade de uma espera cautelosa, mas permanece o núcleo de nossa frustração. Sabemos o mal que uma espera muito prolongada pode nos causar: perderemos nosso senso de propósito, se a espera for muito prolongada.”
— Os jovens dizem que, se Usul não desafiar Stilgar, vai ter muito o que temer.
Thartar abaixou os olhos.
— Então é assim — murmurou Jessica. E pensou: “Bem, nós vimos esta situação se aproximar. Eu e Stilgar.”
Novamente Thartar pigarreou.
— Até mesmo meu irmão Shoab diz isso. Eles não deixarão escolha para Usul.
“Assim chegou a hora! E Paul terá de cuidar disso sozinho.”
A Reverenda Madre não deve se envolver na sucessão”, pensou Jessica.
Alia soltou a mão de sua mãe e disse:
— Vou com Thartar para ouvir os jovens. Talvez exista um caminho.
Jessica percebeu o olhar de Thartar, mas falou com Alia:
— Vá, então. E venha relatar-me assim que puder.
— Não queremos que isso aconteça, Reverenda Madre — disse Thartar.
— Não queremos — concordou Jessica. — A tribo precisa de toda a sua força. — Olhou para Harah. — Irá também com elas?
Harah respondeu à parte implícita da pergunta:
— Thartar não permitirá que façam mal a Alia. Ela sabe que logo seremos viúvas, juntas, ela e eu, para compartilhar o mesmo homem. Temos conversado a esse respeito.
Olhou para Thartar, depois de volta para Jessica.
— Temos um entendimento.
Thartar estendeu a mão para Alia:
— Devemos nos apressar. Os jovens já estão partindo.
Passaram pelas cortinas, a mão da criança na mão da pequena mulher. A criança parecendo liderar.
— Se Paul Muad'Dib matar Stilgar, isso não servirá à tribo — comentou Harah. — Sempre foi esse o modo de sucessão, mas os tempos mudaram.
— Os tempos mudaram para você também — respondeu Jessica.
— Não acredita que eu duvide do resultado dessa luta. Usul não pode evitar vencer.
— Foi isso que tencionei dizer.
— E acredita que meus sentimentos pessoais interferiram em meu julgamento — comentou Harah. Sacudiu a cabeça, os anéis de água tilintando em seu pescoço. — Como está enganada. Talvez pense também que lamento não ter sido a escolhida de Usul, que tenho ciúmes de Chani.
— Você fez sua própria escolha, quando pôde — respondeu Jessica.
— Eu tenho pena de Chani.
Jessica se empertigou:
— O que quer dizer?
— Eu sei o que pensa de Chani. Pensa que ela não é a esposa adequada para seu filho.
Jessica relaxou o corpo sobre as almofadas. Encolheu os ombros.
— Talvez.
— Pode estar certa. E, se estiver, vai encontrar uma aliada surpreendente: a própria Chani. Ela quer o melhor para Ele.
Jessica engoliu em seco para eliminar um súbito aperto em sua garganta.
— Eu gosto muito de Chani. Ela pode não ser...
— Seus tapetes estão muito sujos — comentou Harah, inesperadamente. Percorreu o piso com seu olhar, evitando fitar os olhos de Jessica. — Tanta gente entrando aqui o tempo todo. Realmente devia limpá-los com mais freqüência.
Não se pode evitar o jogo político dentro de uma religião ortodoxa. Esta luta pelo poder permeia o treinamento, a educação e a disciplina de qualquer comunidade ortodoxa. Devido às suas pressões, os líderes de tal comunidade devem, inevitavelmente, enfrentar um derradeiro dilema: ou sucumbirem ao completo oportunismo, como prego para manterem seu domínio, ou se arrastarem ao sacrificio próprio, pelo bem da ética ortodoxa.
— de Muad'Dib: As Questões Religiosas,
escrito pela Princesa Irulan
Paul esperava na areia, ao lado da linha de aproximação do imenso produtor. “Não devo esperar como um contrabandista: impaciente e nervoso”, recordou-se. “Devo ser parte do deserto.”
A coisa se encontrava a apenas alguns minutos, agora, enchendo a manhã com o assovio que sua passagem provocava ao friccionar a areia. Os grandes dentes dentro da boca cavernosa expandiam-se, como alguma imensa flor. O odor de especiaria dominava o ar.
O traje-destilador de Paul ajustava-se confortavelmente em seu corpo, e ele possuía apenas uma consciência distante dos tampões no nariz e da máscara respiradora. Os ensinamentos de Stilgar durante aquelas horas cansativas na areia apagavam tudo o mais.
— A que distância além do raio de um produtor você deve se colocar, sobre areia grossa? — perguntara Stilgar.
Ele respondera corretamente:
— Meio metro para cada metro de diâmetro do produtor.
— Por quê?
— Para evitar o vórtex de sua passagem, e ainda ter tempo de correr e montá-la.
— Já cavalgou os pequenos, criados para semear e produzir a “Água da Vida”. Mas o que vai invocar para seu teste será um produtor selvagem, um velho homem do deserto. Deve ter o respeito devido para com um desses.
Agora o tamborilar do batedor confundia-se com o assovio do verme que se aproximava. Paul respirou fundo, sentindo o odor mineral da areia até mesmo através de seus filtros. O produtor selvagem, o velho homem do deserto, erguia-se quase sobre ele. Seus segmentos dianteiros encrespados lançavam uma onda de areia que iria cobrir seus joelhos.
“Venha, seu monstro adorável”, pensou. “Suba, você ouviu meu chamado. Suba. Suba.”
A onda levantou seus pés, a poeira superficial arremessou-se sobre ele. Procurou se firmar, seu mundo agora dominado pela passagem daquela parede curva obscurecida pela areia, aquela colina segmentada, as linhas dos anéis nitidamente definidas.
Ergueu seus ganchos, apontando ao longo dos anéis, e inclinou-se para a frente. Sentiu quando prenderam e repuxaram. Saltou para cima, plantando seus pés contra aquela parede, inclinando-se para trás, puxando contra as farpas dos ganchos. Esse era o instante da verdade em todo o teste: se houvesse plantado seus ganchos corretamente, na borda dianteira do segmento-anel, de modo a abri-lo, o verme não poderia rolar e esmagá-lo.
A criatura diminuiu a velocidade. Deslizou sobre o batedor, silenciando-o. Lentamente começou a rolar, para o alto, sempre para o alto, levando aquelas farpas irritantes para o mais alto que podia, longe da areia que ameaçava o macio interior imbricado de seu anel-segmento.
Paul se encontrou de pé no topo do verme. Sentiu-se exultante, como um imperador observando seu mundo. Suprimiu um súbito impulso para pular lá em cima, fazer o verme virar, mostrar o seu domínio sobre a criatura.
Subitamente compreendia por que Stilgar o avisara quanto aos jovens imprudentes, que dançavam e brincavam com esses monstros, dando cambalhotas sobre o dorso, removendo ambos os ganchos, para recolocá-los antes que o verme pudesse derrubá-los.
Deixando um dos ganchos no lugar, Paul retirou o outro, e colocou-o em uma posição mais baixa, ao longo do lado. Quando esse segundo gancho se encontrava firme em posição, ele o testou, retirando então o primeiro e trazendo-o para mais baixo, descendo desse modo ao longo da circunferência. O produtor rolou, e ao rolar ele se voltou, vindo a circundar a extensão de areia fina onde os outros se encontravam esperando.
Paul os viu subir, usando seus ganchos para galgar o dorso do verme, mas evitando as bordas sensíveis dos anéis até se encontrarem no topo. Posicionaram-se, finalmente, em uma linha tripla atrás dele, firmes contra seus ganchos.
Stilgar avançou através das fileiras, verificou o posicionamento dos ganchos de Paul, depois olhou para o rosto sorridente do rapaz.
— Você conseguiu, hein? — disse, elevando a voz acima do assobio da passagem do verme. — Isso é o que pensa? Que conseguiu? — Ficou ereto. — Agora, deixe-me dizer-lhe que este foi um trabalho muito mal feito. Nós temos garotos de doze anos que fazem melhor. Havia areia-tambor à sua esquerda, enquanto esperava. Não teria podido recuar se o verme virasse naquela direção.
O sorriso desapareceu do rosto de Paul.
— Eu vi a areia-tambor.
— Então por que não sinalizou para que um de nós tomasse posição secundária a você? Isso era algo que poderia fazer, mesmo no teste.
Paul engoliu em seco, voltando o rosto para o vento provocado pela velocidade com que avançavam.
— Acha que estou fazendo mal em dizer isso agora — comentou Stilgar. — É o meu dever. Penso em seu valor para a tropa. Se houvesse tropeçado naquela areia-tambor, o produtor teria se voltado sobre você.
A despeito de um impulso de raiva, Paul sabia que Stilgar falava a verdade. Levou um longo minuto, e todo um esforço do treinamento que recebera de sua mãe, para recuperar um sentimento de calma.
— Perdão. Não acontecerá de novo.
— Em uma posição difícil, sempre recorra a um secundário, alguém para pegar o produtor, caso não possa — aconselhou Stilgar. — Lembre-se de que trabalhamos em conjunto. Desse modo estamos garantidos. Trabalhamos em conjunto, certo?
Bateu no ombro de Paul.
— Trabalhamos em conjunto — concordou ele.
— Agora — disse Stilgar, ríspido. — Mostre-me que sabe como controlar um produtor. Em que lado estamos?
Paul observou a superfície escamada do anel, notando o tamanho e as características das escamas, o modo como cresciam maiores para a direita, menores para a esquerda. Cada verme, ele sabia, movia-se caracteristicamente com um lado para cima, com mais freqüência. Quando iam envelhecendo, o lado “para cima” tornava-se uma constante, e as escamas debaixo ficavam maiores, mais pesadas, mais lisas. Escamas do topo podiam ser reconhecidas pelo tamanho, num grande verme.
Mudando a posição de seus ganchos, Paul moveu-se para a esquerda. Fez sinal para que os flanqueadores abrissem segmentos ao longo dos lados, mantendo o verme num curso retilíneo, enquanto rolava. Quando fez o animal virar-se, posicionou dois timoneiros adiante.
— Ach, haiii-yoh! — gritou, no chamado tradicional. O timoneiro da esquerda abriu um anel-segmento naquela posição.
Num majestoso círculo, o produtor voltou-se para proteger seu segmento aberto. Deu uma volta completa e, quando se encontrava apontado para o sul, Paul gritou:
— Geyrat!
O timoneiro soltou o gancho. O produtor alinhou-se em novo curso retilíneo. Stilgar comentou:
— Muito bom, Paul Muad'Dib. Com bastante prática, você ainda pode se tornar um cavaleiro da areia.
Paul franziu a testa, pensando: “Não fui eu o primeiro a subir?”
Atrás dele cresceu uma súbita risada. A tropa começou a cantar, lançando seu nome contra o céu.
— Muad'Dib! Muad'Dib! Muad'Dib! Muad'Dib!
E bem para trás, ao longo da superfície do verme, Paul ouviu a batida dos estimuladores golpeando os segmentos da cauda. O verme começou a ganhar velocidade. Seus mantos ondulavam ao vento, enquanto o som abrasivo da passagem do animal aumentava.
Paul olhou para trás, através da tropa, e descobriu o rosto de Chani entre eles. Olhou para ela enquanto falava para Stilgar.
— Então, Stil? Sou um cavaleiro da areia?
— Hal yawm! Você é um cavaleiro da areia, neste dia.
— Então posso escolher o nosso destino?
— Esta é a tradição.
— E sou um Fremen, nascido neste dia, aqui no erg Habbanya. Não tive outra vida antes deste dia. Eu era uma criança, até hoje.
— Não inteiramente uma criança — respondeu Stilgar, prendendo o canto do capuz que o vento açoitava. — Mas havia uma rolha fechando o meu mundo, e essa rolha foi arrancada.
— Não há rolha.
— Quero ir para o Sul, Stilgar. Vinte tumperes. Quero ver essa terra que nós criamos, essa terra que até hoje só vi pelos olhos dos outros.
“E verei meu filho e minha família”, pensou ele. “Preciso de tempo agora para considerar o futuro que é passado dentro de minha mente. O tumulto se aproxima, e se eu não me encontrar onde possa dominá-la, a coisa fugirá ao controle.”
Stilgar olhou para ele de modo fixo e avaliador. Paul continuou mantendo sua atenção em Chani, vendo o interesse aumentar no rosto dela, notando também a excitação que suas palavras haviam produzido na tropa.
— Os homens estão ávidos para atacar com você as pias dos Harkonnen — disse Stilgar. — As pias estão a apenas um tumper de distância.
— Os Fedaykin já incursionaram comigo. Eles atacarão comigo novamente, até que nenhum Harkonnen respire o ar de Arrakis.
Stilgar continuou a observá-lo enquanto cavalgavam, e Paul percebeu que o homem via esse momento através da memória, do como ele se erguera a uma posição de comando no sietch Tabr, e à liderança do Conselho dos Líderes, agora que Liet-Kynes estava morto.
“Ele já ouviu os relatórios de agitação entre os Fremen”, pensou Paul.
— Deseja uma reunião de líderes? — indagou Stilgar.
Olhos brilharam entre os jovens da tropa. Eles balançavam o corpo enquanto cavalgavam, sempre observando. E Paul notou também o olhar de inquietação em Chani, o modo como fitava alternadamente Stilgar, que era seu tio, e Paul Muad'Dib, que era seu companheiro.
— Você não imagina o que eu quero — respondeu Paul.
Pensou: “Não posso recuar. Devo manter o controle sobre esta gente.”
— Você é o mudir dos cavaleiros da areia, hoje — disse Stilgar, uma fria formalidade na voz. — Como vai usar esse poder?
“Precisamos de tempo para relaxar, tempo para uma fria reflexão”, pensava Paul.
— Nós iremos para o Sul.
Um senso de dignidade inevitável envolveu Stilgar enquanto ele puxava seu manto, apertando-o contra o corpo.
— Haverá uma Reunião. Eu mandarei as mensagens.
“Ele pensa que vou desafiá-lo”, compreendeu Paul. “E sabe que não pode me vencer.”
Olhou para o sul, sentindo o vento contra as maçãs do rosto, pensando nas exigências que forçavam suas decisões.
“Eles não sabem como é isso”, pensou.
Mas sabia que não podia permitir que nenhuma ponderação o desviasse. Precisava permanecer na linha central da tempestade de tempo, que podia ver no futuro. Havia um instante em que ela poderia ser desfeita, mas apenas se ele estivesse no lugar de onde pudesse cortar o nó central.
“Não vou desafiá-lo, se isso puder ser evitado”, concluiu. “Se houver algum outro modo de evitar o jihad...”
— Vamos acampar para a refeição noturna, e a prece, na Caverna dos Pássaros, embaixo da cordilheira Habbanya — disse Stilgar. Firmou-se com um dos ganchos contra o ondular do produtor, e com a outra mão apontou para uma barreira baixa de rochas erguendo-se do deserto.
Paul estudou a elevação, as grandes riscas de rocha cruzando-a como ondas. Nenhum verde, nenhuma florescência suavizava aquele horizonte rígido. E além estendia-se o caminho para o deserto austral, uma viagem de pelo menos dez dias e noites, incitando os produtores o mais rápido que pudessem.
Vinte tumperes.
O caminho conduzia para bem longe do alcance das patrulhas Harkonnen, e ele sabia como seria, os sonhos haviam mostrado.
Um dia, enquanto avançassem haveria uma fraca mudança de cor no horizonte, uma mudança tão ligeira que poderia pensar que a imaginara a partir de suas esperanças. E então haveria um novo sietch.
— A minha decisão convém ao Muad'Dib? — indagou Stilgar.
Somente o mais leve tom de sarcasmo marcava sua voz, mas os ouvidos dos Fremen em volta, capazes de distinguir cada tonalidade no canto de um pássaro ou na mensagem de um cielago, notaram claramente esse sarcasmo, e todos observaram Paul, para ver o que ele faria.
— Stilgar me ouviu jurar minha lealdade a ele quando consagramos os Fedaykin — disse Paul. — Meus comandos da morte sabem que eu falo com honra. Será que Stilgar duvida disso?
Uma verdadeira mágoa revelara-se na voz de Paul, e Stilgar abaixou a cabeça.
— Usul, o companheiro de meu sietch, dele eu nunca duvido — disse ele. — Mas você também é Paul Muad'Dib, o Duque Atreides, e Lisan al-Gaib, a Voz do Mundo Exterior. Esses homens eu não conheço.
Paul voltou-se para observar a cordilheira Habbanya emergir do deserto. O produtor embaixo deles ainda parecia forte e disposto, poderia carregá-los através do dobro da distância percorrida por qualquer outro conhecido pelos Fremen, Sabia disso, não havia nada nas histórias contadas para as crianças que igualasse esse velho homem do deserto. Era a matéria bruta para uma nova lenda, percebeu Paul.
Uma mão segurou o seu ombro.
Olhou-a, seguindo o braço até o rosto acima, com os olhos negros de Stilgar expostos entre a máscara-filtro e o capuz.
— O homem que liderava o sietch Tabr antes de mim — disse ele — era meu amigo. Nós enfrentamos perigos juntos. Ele devia a mim sua vida, várias vezes... e eu lhe devia a minha.
— Eu sou seu amigo, Stilgar.
— Ninguém duvida disso — disse. Removeu a mão e encolheu os ombros. — É o modo como deve ser...
Paul percebia que Stilgar, encontrando-se por demais mergulhado no modo de vida dos Fremen, não considerava a possibilidade de algum outro curso para as coisas. Aqui um líder tornava o controle das mãos mortas de seu predecessor, ou enfrentava mortalmente os homens mais fortes de sua tribo, se um líder morresse no deserto. Foi desse modo que Stilgar chegara a ser um naib.
— Devemos deixar este produtor em areia profunda — disse Paul.
— Sim — concordou Stilgar. — Caminharemos até a caverna a partir daqui.
— Já o cavalgamos bastante. Ele vai se enterrar e ficar amuado, por um dia ou dois.
— Você é o mudir dos cavaleiros da areia — lembrou Stilgar. — Diga quando nós...
Interrompeu-se no meio da frase, olhando para o céu do leste.
Paul girou o corpo. A cobertura azul da especiaria em seus olhos fazia com que o céu aparecesse escuro, um azul-celeste fortemente filtrado contra o qual o rítmico e distante reluzir aparecia em nítido contraste.
“Ornitóptero”!
— Um pequeno “tóptero” — avisou Stilgar.
— Pode ser um observador — comentou Paul. — Acha que nos viu?
— A essa distância, somos apenas um verme na superfície — respondeu Stilgar, moveu sua mão esquerda. — Para fora, espalhem-se na areia.
A tropa começou a descer pelos lados do verme, saltando e se confundindo com a areia, ocultos embaixo de seus mantos. Paul marcou o ponto onde Chani saltara e dentro em pouco ele estava sozinho com Stilgar.
— Primeiro a subir, último a saltar — disse.
Stilgar acenou, desceu pelo lado com seus ganchos e saltou para a areia.
Paul esperou, até que o produtor estivesse a uma distância segura da área de dispersão do pessoal, e então soltou os ganchos.
Este era sempre um momento delicado num verme ainda não completamente exausto.
Livre de seus incitadores e dos ganchos, o grande verme começou a se enterrar na areia. Paul correu para trás, ao longo do amplo dorso, julgou, cuidadosamente, o momento adequado, e saltou.
Caiu correndo, escorregou pelo lado mais fofo de uma duna, do modo como lhe haviam ensinado, e se escondeu embaixo de um deslizamento de areia que cobriu seu manto.
Agora, a espera.
Virou devagarinho, expondo-se a uma tira de céu, com uma dobra do manto. Imaginou os outros lá atrás, ao longo do caminho, fazendo a mesma coisa.
Ouviu o bater das asas do ornitóptero antes que pudesse vê-lo.
Houve um assovio de jatos e ele passou sobre aquele trecho do deserto, virando numa longa curva em direção à cordilheira.
Um “tóptero” sem marcas de identificação, notou Paul.
Voou para fora da vista, por trás dos penhascos.
Um pio de pássaro elevou-se sobre o deserto, depois outro.
Paul sacudiu a areia do corpo e subiu para o topo da duna. Outras figuras levantavam-se ao longo de uma linha, na direção da cordilheira. Reconheceu Stilgar e Chani, entre eles.
Stilgar assinalou na direção dos penhascos.
Reuniram-se e começaram a caminhada na areia, deslizando sobre a superfície num ritmo irregular, que não incomodaria nenhum produtor.
Stilgar seguia ao lado de Paul, sobre a crista compactada de areia de uma duna.
— Aquela era uma aeronave dos contrabandistas — disse ele.
— Assim me pareceu — respondeu Paul. — Mas estamos muito no interior do deserto para contrabandistas.
— Eles também andam tendo dificuldades com as patrulhas.
— Se estão incursionando tão profundamente, podem ir mais além.
— É verdade.
— Não vai ser bom para eles ver o que podem ver se se aventurarem muito profundamente para o sul. Contrabandistas também vendem informações.
— Eles estão caçando especiaria, não acha? — indagou Stilgar.
— Haverá uma asa e um trator esperando em algum lugar por aquele “tóptero”. Nós temos especiaria. Vamos colocar uma isca num trecho de areia e pegar alguns contrabandistas. Eles precisam saber que esta é nossa terra, e nossos homens precisam de prática com as novas armas.
— Agora, Usul fala — disse Stilgar. — Usul pensa como um Fremen.
“Mas Usul deve abrir caminho para decisões que enfrentam um terrível propósito”, pensou Paul.
A tempestade ganhava força e se aproximava.
Quando a lei e o dever estão unidos, fundidos pela religião, você nunca se torna inteiramente consciente, completamente conhecedor de si mesmo. Você é sempre um pouco menos do que um indivíduo.
— de Muad'Dib: As Noventa e Nove Maravilhas do Universo,
escrito pela Princesa Irulan
A fábrica de processamento de especiaria dos contrabandistas, com sua asa transportadora e um anel de ornitópteros, surgiu sobre uma elevação de dunas como um enxame de insetos seguindo sua rainha. Adiante do enxame, encontrava-se uma das cristas de rocha, pouco elevadas, que se erguiam do deserto como pequenas imitações da Muralha Escudo. As praias secas da elevação estavam varridas, totalmente livres de areia por causa de uma tempestade recente.
Na bolha de controle da fábrica, Gurney Halleck inclinou-se para a frente, ajustando as lentes de óleo de seu binóculo para examinar a paisagem. Mais além dos penhascos ele podia ver uma mancha escura, que poderia ser um afloramento de especiaria. Deu um sinal para o ornitóptero acima, mandando-o investigar.
A aeronave abanou as asas para indicar que recebera o sinal, e destacou-se do enxame, acelerando na direção da areia escura. Circundou a área, com seus detectores pendendo junto da superfície.
Quase imediatamente fez uma inclinação com as asas dobradas, e um círculo, que indicavam para a fábrica a descoberta de especiaria.
Gurney guardou o binóculo, sabendo que os outros haviam visto o sinal. Gostava desse ponto. Os penhascos ofereciam algum abrigo e proteção. Encontravam-se enfiados profundamente na vastidão do deserto, um lugar improvável para uma emboscada... mas ainda assim... Assinalou para a tripulação, indicando que voassem por sobre a montanha para sondá-la, enviando os reservas para assumirem posições em torno da área... Não muito alto para que não fossem percebidos de longe pelos detectores dos Harkonnen.
Duvidava, entretanto, que alguma patrulha Harkonnen viesse tão ao sul. Este era território Fremen.
Gurney verificou suas armas, amaldiçoando o destino que fizera os escudos inúteis aqui. Qualquer coisa que atraísse um verme devia ser evitada a qualquer custo. Coçou a cicatriz de inkvine ao longo do queixo, e observou o cenário, decidindo ser mais seguro liderar uma equipe de terra através dos penhascos. Inspeção a pé ainda era o método mais confiável. Nunca se é cuidadoso em demasia quando Fremen e Harkonnen estão se atirando nas gargantas um do outro.
Eram os Fremen que o preocupavam aqui. Eles não se importavam de comerciar, vendendo-lhe toda a especiaria que pudesse comprar, mas eram demônios na trilha da guerra se desse uma pisada em local que o proibissem de entrar. E estavam diabolicamente astutos, ultimamente!
A Gurney aborrecia a astúcia e a habilidade desses nativos em batalha. Eles exibiam uma sofisticação, na arte da guerra, tão elevada quanto qualquer coisa que ele já encontrara. E Gurney fora treinado pelos melhores combatentes do universo, ganhando experiência em batalhas onde apenas uns poucos, os melhores, haviam sobrevivido.
Novamente esquadrinhou a paisagem, querendo saber por que se sentia tão inquieto. Talvez fosse o verme que haviam visto... mas este se encontrava do outro lado da montanha.
Uma cabeça brotou na bolha de controle, ao lado de Gurney. O comandante da fábrica, um velho pirata de um olho só, com uma barba cheia, o olho azul e os dentes leitosos da dieta de especiaria.
— Parece um trecho rico, senhor — disse. — Devemos pegá-la?
— Desça na extremidade daqueles penhascos — ordenou Gurney. — Deixe-me desembarcar com os meus homens. Pode recolher a especiaria daquele ponto. Daremos uma olhada naquela rocha.
— Certo.
— Em caso de encrenca, salve a fábrica. Subiremos nos “tópteros”.
O comandante da fábrica fez uma saudação.
— Sim, senhor! — e mergulhou pela comporta.
Mais uma vez Gurney observou o horizonte. Tinha de respeitar a possibilidade de que houvesse Fremen por aqui, e que estava invadindo o território deles. Os Fremen o preocupavam, com sua dureza e imprevisibilidade. Muitas coisas a respeito desse negócio o preocupavam, mas as recompensas eram enormes. O fato de que não pudesse mandar os localizadores subirem bem alto e a necessidade de manter silêncio no rádio aumentavam seu desconforto.
A fábrica-trator fez uma volta e começou a descer. Suavemente, ela planou até a praia seca ao pé dos penhascos, e as esteiras tocaram a areia.
Gurney abriu a cúpula da bolha, soltou os cintos de segurança. No instante em que a fábrica parou, ele estava do lado de fora, descendo sobre os suportes das esteiras, depois de fechar a bolha, e pulando para a areia, mais além das redes de emergência. Os cinco homens de sua guarda pessoal também já estavam saindo, emergindo da comporta do nariz. Outros soltavam a asa transportadora, que se destacou da fábrica e subiu para voar num círculo de espera, a baixa altura.
Imediatamente o grande trator-fábrica começou a avançar aos solavancos, virando-se para longe do penhasco, em direção à mancha escura da especiaria sobre a areia.
Um “tóptero” mergulhou nas proximidades, deslizando até parar. Outro o seguiu, e depois mais outro. Desembarcaram os homens do pelotão de Gurney e se elevaram, pairando acima.
Gurney testou seus músculos, esticando-se dentro do traje-destilador. Deixou a máscara-filtro fora do rosto, perdendo umidade em beneficio de uma necessidade maior: aumentar a força de sua voz, caso precisasse gritar ordens. Começou a galgar as rochas, verificando o terreno. Cascalho e areia grossa sob os pés, o cheiro de especiaria.
“Ótimo lugar para uma base de emergência”, pensou. “Poderia ser sensato enterrar alguns suprimentos aqui.”
Olhou para trás, observando seus homens se dispersarem enquanto o seguiam. Bons homens. Até mesmo os novos, que ainda não tivera tempo de testar. Bons homens. Não era preciso ficar dizendo-lhes o tempo todo o que deviam fazer. Nem um brilho de escudo se mostrava em qualquer um deles. Não havia covardes nesse grupo, carregando escudos para o deserto, onde um verme poderia sentir o campo e aparecer para roubar-lhes a especiaria.
De sua pequena elevação nas rochas, Gurney podia ver a mancha de especiaria a meio quilômetro de distância, com o trator acabando de alcançar seus limites mais próximos. Olhou para sua cobertura aérea, notando a altitude... não estavam muito alto. Acenou com a cabeça para si mesmo, e recomeçou a escalada do penhasco.
Naquele mesmo instante a montanha entrou em erupção.
Doze riscas de fogo subiram rugindo, em direção aos “tópteros” e à asa transportadora. Ouviu-se um estrondo metálico na direção do trator-fábrica, e as rochas ao redor de Gurney fervilharam de homens encapuzados.
Ainda teve tempo para pensar: “Pelos chifres da Grande Mãe! Foguetes! Eles se atrevem a usar foguetes!”
Depois, estava face a face com uma figura encapuzada, que se agachava na sua frente, com uma faca cristalina na mão. Outros dois homens se encontravam à espera, nas rochas acima, à esquerda e à direita. Somente os olhos do lutador eram visíveis entre o gorro e o véu cor de areia do albornoz, mas a postura e a atitude alerta revelavam tratar-se de um combatente treinado. Os olhos eram da cor azul-dentro-de-azul dos Fremen do deserto profundo.
Gurney moveu uma das mãos em direção a sua faca, mantendo os olhos fixos na arma do oponente. Se eles se atreviam a usar foguetes, isso significava que deviam ter outros tipos de armas lançadoras de projéteis. Esse instante exigia extrema cautela. Somente pelo som já podia perceber que pelo menos uma parte de sua cobertura aérea fora derrubada. Ouvia grunhidos também, os sons de vários homens lutando lá atrás.
Os olhos do combatente na frente de Gurney seguiram o movimento de sua mão em direção à faca, depois se ergueram para encará-lo.
— Deixe essa faca embainhada, Gurney Halleck — disse o homem.
Gurney hesitou. Aquela voz soava estranhamente familiar, mesmo através do filtro de um traje-destilador.
— Conhece meu nome?
— Não precisa usar uma faca em mim, Gurney — disse o homem. Levantou-se, guardando sua faca cristalina embaixo do manto. — Diga aos seus homens para cessarem com essa resistência inútil.
O homem lançou o capuz para trás, puxando o filtro para o lado.
O choque, ao ver a cara do homem, gelou os músculos de Gurney. A princípio, ele acreditou estar olhando para uma imagem fantasmagórica do Duque Leto Atreides. O reconhecimento completo foi mais lento.
— Paul — murmurou ele. Então, mais alto: — Paul! É você mesmo?
— Não confia em seus olhos?
— Eles dizem que você está morto — disse Gurney, com a voz rouca. Deu um meio passo para a frente.
— Diga aos seus homens para se renderem — ordenou Paul, acenando para as partes mais baixas do penhasco.
Gurney voltou-se, relutante em tirar os olhos de Paul. Viu luta somente em alguns pontos. Homens do deserto, com suas cabeças cobertas, pareciam estar em toda parte. O trator-fábrica estava parado com Fremen em cima. Não havia mais aeronaves no céu.
— Parem a luta! — gritou Gurney. Respirou fundo e colocou as mãos em concha sobre a boca, improvisando um megafone.
— Aqui é Gurney Halleck! Parem a luta!
Aos poucos a luta foi cessando, os combatentes separando-se, cuidadosamente. Os olhos voltaram-se para ele, questionando.
— Estes são amigos — gritou Gurney.
— Ótimos amigos! — alguém gritou de volta. — Metade de nossa gente foi assassinada.
— É um engano — disse Gurney. — Não aumente o erro.
Voltou-se para Paul, fitando os olhos azuis de Fremen que o rapaz agora possuía.
Um sorriso se abriu nos lábios de Paul, mas havia uma dureza em sua expressão que fazia com que Gurney se recordasse do Velho Duque, o avô de Paul. Percebeu também uma aparência rude e musculosa no físico do rapaz, o que nunca notara antes num Atreides. Um aspecto coriáceo na pele, os olhos semicerrados, com um olhar avaliador que parecia medir tudo que houvesse ao redor.
— Eles disseram que você estava morto — repetiu Gurney.
— É a melhor proteção possível, eu creio, foi deixar que pensassem assim — respondeu Paul.
Gurney sentiu que ter acreditado na morte de seu jovem Duque não era uma boa desculpa para tê-lo abandonado à própria sorte.
Pensar que... seu amigo estava morto. E perguntou a si mesmo o que restaria ainda do menino que conhecera e treinara como um lutador.
Paul deu um passo em direção a Gurney, notando que seus olhos estavam ardendo.
— Gurney...
Aconteceu de repente: num instante eles estavam se abraçando, batendo um nas costas do outro, sentindo a segurança da carne sólida.
— Menino! Menino! — repetiu Gurney.
E Paul:
— Gurney, Gurney.
Depois se separaram, olhando um para o outro. Gurney respirou fundo.
— Então, é por sua causa que os Fremen estão se tornando tão sábios em táticas de batalha. Eu devia saber. Eles fazem coisas que eu poderia ter planejado. Se ao menos eu soubesse... — Sacudiu a cabeça. — Se ao menos houvesse me enviado uma notícia, nada iria me deter. Eu teria vindo correndo e...
O olhar de Paul fez com que parasse... um olhar duro, avaliador. Gurney suspirou.
— Certo... Haveria. aqueles que iriam se indagar por que Gurney Halleck saíra correndo, e alguns fariam mais do que se perguntar. Eles sairiam em busca das respostas.
Paul acenou, olhando para os Fremen à sua volta, o olhar curioso nos rostos dos Fedaykin. Ficou de costas para os comandos da morte, olhando novamente para Gurney Halleck. Seu antigo mestre espadachim o enchia de alegria, podia vê-lo como um bom presságio, um sinal de que se encontrava num curso para o futuro, onde tudo correria bem.
“Com Gurney ao meu lado...”
Olhou para baixo, ao longo do penhasco, além dos Fedaykin, observando a equipe de contrabandistas que viera com Halleck.
— Que posição tomam seus homens, Gurney?
— Eles são contrabandistas, todos eles. Eles ficam onde estiver o lucro.
— Haverá muito pouco lucro em nosso empreendimento — disse Paul, notando o sinal sutil que Gurney lhe fizera com o dedo da mão direita. O velho código manual de seu passado. Nessa quadrilha de contrabandistas havia homens que inspiravam temor e desconfiança.
Esticou o lábio para indicar que compreendera e olhou para os homens que montavam guarda acima deles, nas rochas. Viu Stilgar entre eles, e a lembrança do problema ainda não resolvido esfriou um pouco sua alegria.
— Stilgar, este é Gurney Halleck, sobre quem já lhe falei. O mestre de armas de meu pai e um dos espadachins que me instruíram. Trata-se de um velho amigo, a quem se pode confiar qualquer empreendimento.
— Eu ouvi — respondeu Stilgar. — Você é o seu Duque.
Paul olhou para o rosto escuro acima dele, cogitando que razões teriam levado Stilgar a dizer apenas isso. “Seu Duque.” Houvera uma entonação sutil e estranha na voz dele, como se desejasse dizer alguma outra coisa. E isso não era comum em Stilgar, que como líder dos Fremen era um homem que dizia o que pensava.
“Meu Duque!”, pensou Gurney. Olhou novamente para Paul. “Sim, com Leto morto, o título cai sobre os ombros de Paul.”
O padrão da guerra dos Fremen em Arrakis começava a tomar um novo aspecto na mente de Gurney. “Meu Duque!” Um lugar que estivera morto, dentro dele, começou a voltar à vida. Apenas uma parte de sua consciência concentrava-se em Paul, ordenando que a tripulação de contrabandistas fosse desarmada para os interrogatórios.
Mas a mente de Gurney retornou para essa ordem, ao ouvir alguns de seus homens protestarem. Sacudiu a cabeça e virou-se.
— Homens, vocês estão surdos? Este é, por direito, o Duque de Arrakis. Façam como ele ordena.
Resmungando, os contrabandistas se submeteram.
Paul moveu-se para ficar ao lado de Gurney, e falou em voz baixa:
— Eu não esperava que caísse nesta armadilha, Gurney.
— Estou devidamente punido — disse ele. — Aposto como seu trecho de especiaria não tem mais do que um grão de espessura. Uma isca para nos atrair.
— Esta é uma aposta que você ganhou — disse Paul. Olhou para os homens sendo desarmados. — Existe mais algum homem de meu pai entre a sua equipe, Gurney?
— Nenhum. Nós nos dispersamos. Existem alguns entre os comerciantes livres. A maioria gastou seus lucros deixando este lugar.
— Mas você ficou.
— Eu fiquei.
— Por que Rabban está aqui?
— Achei que não tinha mais nada, a não ser a vingança.
Um estranho grito interrompido soou no topo do penhasco. Gurney olhou, vendo um Fremen acenar com o lenço.
— Um produtor se aproxima — disse Paul. Andou até um ponto na rocha, com Gurney a segui-lo, e olhou para o sudoeste.
O sulco e o monte de um verme podiam ser vistos a meia distância, uma trilha coroada de poeira que cortava, diretamente através das dunas, num curso retilíneo para o penhasco.
— É grande o suficiente — comentou Paul.
Um som de metal batendo elevou-se do trator-fábrica abaixo deles. O veículo voltou-se sobre suas esteiras, como um gigantesco inseto, e partiu pesadamente em direção às rochas.
— É uma pena que não tenhamos podido salvar o transporta-tudo — lamentou Paul.
Gurney olhou para ele, depois para a fumaça e os destroços sobre o deserto, onde os ornitópteros e o transporta-tudo haviam sido derrubados pelos foguetes dos Fremen. Sentiu uma dor súbita pelos homens perdidos ali, seus homens, e disse:
— Seu pai teria se preocupado mais com os homens que poderia ter salvo.
Paul olhou-o rapidamente e abaixou o olhar. Depois disse:
— Eles eram seus amigos, Gurney, eu compreendo. Para nós, entretanto, eles eram intrusos que poderiam ver coisas que não deveriam ver. Deve compreender isso.
— Eu entendo muito bem. E agora estou curioso para ver o que não devia.
Paul olhou para o velho e bem lembrado sorriso cruel no rosto de Halleck, o estremecer da cicatriz de inkvine ao longo do queixo do homem.
Gurney apontou para o deserto abaixo. Os Fremen continuavam realizando suas tarefas naquele panorama, e ocorreu-lhe que nenhum deles parecia preocupado com a aproximação do verme.
Uma batida soou das dunas, adiante do trecho com a isca de especiaria. Um tamborilar profundo, que parecia ressoar embaixo de seus pés. Gurney viu os Fremen se posicionarem na areia, ao longo da trilha do verme. E o verme surgiu como um grande peixe da areia, criando uma onda na superfície, seus anéis ondulando e torcendo. Num instante, de seu ponto de vantagem acima do deserto, Gurney viu a tomada do verme: o salto atrevido do primeiro homem com os ganchos, a virada da criatura, o modo como um bando de homens escalou a curva escamosa e brilhante do dorso do verme.
— Eis uma das coisas que não devia ver — disse Paul.
— Tem havido histórias e rumores — comentou Gurney —, mas não é uma coisa fácil de acreditar, sem vê-la. — Sacudiu a cabeça. — A criatura que todos os homens temem em Arrakis, vocês o tratam como animal de montaria.
— Você ouviu meu pai falar em poder do deserto. Aí está. A superfície deste planeta é nossa. Nenhuma condição, tempestade ou criatura pode nos deter.
“Nós”, pensou Gurney. “Ele fala dos Fremen. Ele fala de si mesmo como um deles.” Novamente olhou para o azul da especiaria nos olhos de Paul. Seus próprios olhos, bem o sabia, tinham um tom dessa cor, mas contrabandistas podem conseguir alimentos de fora desse mundo, e restava um matiz casto e sutil na cor dos olhos deles. Eles falavam na “pincelada de especiaria”, significando que um homem se tornara nativo. E havia sempre uma insinuação de desconfiança nessa idéia.
— Houve épocas em que nós não cavalgávamos um produtor à luz do dia, nessas latitudes — explicou Paul. — Mas Rabban ficou com muito pouco apoio aéreo para desperdiçá-la olhando alguns pontos na areia. — Olhou para Gurney: — Suas aeronaves aqui foram um choque para nós.
“Para nós... para nós...”
Gurney sacudiu a cabeça para afastar tais pensamentos.
— Nós não fomos, para vocês, o choque que vocês foram para nós — respondeu.
— Que se diz a respeito de Rabban, nas pias e nas vilas?
— Dizem que eles fortificaram os povoados nos desfiladeiros graben de tal forma que vocês não podem ameaçá-los. Eles dizem que só precisam sentar-se dentro de suas defesas, enquanto vocês se esgotam num ataque inútil.
— Em resumo: eles estão imobilizados.
— Enquanto vocês podem ir para onde desejam — concordou Halleck.
— É uma tática que aprendi com você. Eles perderam a iniciativa, o que significa que perderam a guerra.
Gurney sorriu, com uma expressão de entendimento.
— Nosso inimigo se encontra exatamente onde queríamos — disse Paul, e olhou para Gurney. — Bem, Gurney, você se alista comigo para terminar esta campanha?
— Alistar? Meu senhor, eu nunca dei baixa do seu serviço. É o único que me restou... pensar que estava morto. E eu abandonado, fazendo o que podia, esperando o momento em que poderia dar minha vida pelo que ela vale... a morte de Rabban.
Um silêncio embaraçoso estabeleceu-se sobre Paul.
Uma mulher subiu as rochas ao encontro deles, seus olhos visíveis entre o capuz do traje e a máscara, olhando alternadamente para Paul e seu companheiro. Parou diante dele, e Gurney notou o modo como ela ficava junto de Paul, seu ar possessivo.
— Chani — disse Paul —, este é Gurney Halleck. Já me ouviu falar nele.
Ela olhou para Halleck, depois de volta para Paul.
— Eu ouvi.
— Aonde foram os homens com o produtor? — indagou Paul.
— Eles o estão apenas desviando, para dar-nos tempo de salvar o equipamento.
— Ótimo, então... — Paul interrompeu o que ia dizer, cheirou o ar.
— Há um vento se aproximando — disse Chani.
Uma voz gritou no topo da montanha:
— Ho! Lá... o vento!
Gurney viu a movimentação dos Fremen acelerar-se agora... Um correr para lá e para cá, um sentimento de pressa. Uma coisa que o verme não provocara, acontecia agora pelo temor ao vento.
O trator-fábrica subiu, vagarosamente, pela praia seca abaixo, e uma entrada se abriu diante dele nas rochas... rochas que se fecharam em seguida, tão habilmente que a passagem desapareceu ante seus olhos.
— Vocês têm muitos esconderijos como este? — Gurney perguntou a Paul.
— Freqüentemente muitos — respondeu. Olhou para Chani. — Encontre Korba. Diga-lhe que Gurney me avisou que há homens entre os contrabandistas em quem não podemos confiar.
Chani olhou mais uma vez para Gurney, depois para Paul, acenou afirmativamente e partiu sobre as rochas, saltando com a agilidade de uma gazela.
— Ela é sua mulher? — perguntou Gurney.
— A mãe de meu primeiro filho. Existe outro Leto entre os Atreides.
Gurney aceitou o fato com um arregalar dos olhos.
Paul observou a ação ao redor, com um olho crítico. Uma cor escura e barrenta dominava o céu ao sul, e as primeiras rajadas intermitentes começavam a lançar areia em torno de suas cabeças.
— Sele seu traje — disse, colocando a máscara e o capuz sobre a cabeça.
Gurney obedeceu, grato pelos filtros.
Paul perguntou, a voz abafada pela máscara:
— Quais os homens de sua equipe em quem não confia, Gurney?
— Há alguns recrutas novos. Gente de fora do planeta... — ele hesitou, pensando, subitamente, como o termo “gente de fora” viera tão facilmente à sua boca.
— Sim? — indagou Paul.
— Eles não são o tipo habitual de caçadores de fortuna que costumamos receber. Estes são duros.
— Espiões Harkonnen?
— Creio, meu senhor, que eles não fazem relatórios aos Harkonnen. Suspeito que sejam homens do serviço imperial. Há um toque de Salusa Secundus neles.
Paul olhou rapidamente para ele.
— Sardaukar?
Gurney encolheu os ombros.
— Podem ser, mas estão bem disfarçados.
Paul acenou, pensando na facilidade com que Gurney retornara aos modos de um servidor dos Atreides... mas com sutis reservas... diferenças. Arrakis o modificara também.
Dois Fremen encapuzados surgiram atrás de uma fenda de rocha, abaixo, e começaram a subir. Um deles carregava um grande embrulho negro sobre um dos ombros.
— Onde está minha equipe, agora? — indagou Gurney.
— Em segurança, nas rochas abaixo de nós. Temos uma caverna aqui — a Caverna dos Pássaros. Depois da tempestade decidiremos o que fazer com eles.
Uma voz chamou do alto:
— Muad'Dib!
Paul olhou para cima, viu um guarda Fremen indicando-lhes que entrassem na caverna. Paul assinalou que tinha ouvido.
Gurney o observava com uma nova expressão:
— Você é o Muad'Dib? Você é o “redemoinho de areia”?
— É o meu nome Fremen — respondeu Paul.
Gurney afastou-se, sentindo um pressentimento opressivo. Metade de sua equipe morta na areia, os outros prisioneiros. Ele não se importava com os novos recrutas, os tipos suspeitos, mas entre os outros havia bons homens, amigos, pessoas pelas quais se sentia responsável. “Depois da tempestade, decidiremos o que fazer com eles.” Fora isto que Paul dissera, o que o Muad'Dib dissera. E Gurney lembrou-se das histórias contadas a respeito do Muad'Dib, do Lisan al-Gaib: como ele arrancara a pele de um oficial Harkonnen para fazer couro de tambor, como ele andava cercado pelos comandos da morte, os Fedaykin, que se lançavam à batalha com o canto da morte nos lábios.
“Ele.”
Galgando as rochas, os dois Fremen saltaram para uma saliência diante de Paul. O de rosto escuro disse:
— Tudo seguro, Muad'Dib. É melhor descermos agora.
— Certo.
Gurney notou o tom de voz do homem: meio ordem, meio pedido. Tratava-se do homem chamado Stilgar, outro personagem nas novas lendas dos Fremen.
Paul olhou para o embrulho que o outro homem carregava e perguntou:
— Korba, o que há nesse embrulho?
Stilgar respondeu:
— Estava no trator. Tinha a inicial de seu amigo aqui, e contém um baliset. Muitas vezes eu o ouvi falar do talento de Gurney Halleck com um baliset.
Gurney observou o homem, vendo a borda da barba negra acima da máscara do traje-destilador, o olhar de rapina, o nariz cinzelado.
— Tem um companheiro que pensa, meu senhor. Obrigado, Stilgar.
Stilgar fez sinal para que seu companheiro passasse o embrulho para Gurney, e disse:
— Agradeça ao seu senhor Duque. Sua tolerância é o que permite que seja aceito aqui.
Gurney aceitou o embrulho, intrigado pelo tom áspero da conversação. Havia um ar de desafio no homem, e Gurney considerou se haveria um sentimento de ciúme no Fremen. Aqui estava alguém chamado Gurney Halleck, que conhecera Paul mesmo nos tempos anteriores a Arrakis, um homem que compartilhava uma camaradagem que Stilgar nunca poderia invadir.
— Vocês dois precisam ser amigos — disse Paul.
— Stilgar, o Fremen, é um nome de fama. Qualquer matador de Harkonnen me honrará se for meu amigo.
— Você dará a mão para meu amigo Gurney Halleck, Stilgar? — indagou Paul.
Lentamente, Stilgar estendeu a mão, segurando os grossos calos da mão de Gurney.
— Existem poucos que ainda não ouviram o nome de Gurney Halleck — disse, e soltou a mão. Voltou-se para Paul. — A tempestade se aproxima.
— Agora mesmo — respondeu Paul.
Stilgar voltou-se, liderando o caminho através das rochas, era uma trilha serpenteante, até uma fenda abrigada que os introduziu na entrada baixa da caverna. Alguns homens correram para fixar um selo de porta atrás deles. Globos luminosos revelavam um amplo espaço sob um teto abobadado, com uma saliência de rocha elevando-se de um dos lados, e uma passagem partindo dela.
Paul saltou para a saliência, com Gurney logo atrás, e entrou na passagem, os outros tornaram outro caminho, oposto à entrada.
Guiou Gurney através de uma ante-sala, e daí para dentro de uma câmara com cortinas escuras, cor de vinho, pendendo sobre as paredes.
— Podemos desfrutar uma certa privacidade aqui, por algum tempo. Os outros irão respeitar minha...
Um sino de alarme soou na câmara externa, sendo seguido por gritos e ruído de armas se chocando. Paul girou nos calcanhares, correndo para atravessar a ante-sala e alcançar a saliência do átrio, acima da câmara externa. Gurney veio logo atrás, de arma na mão.
Abaixo deles, no piso da caverna, agitava-se uma confusão de figuras em luta. Paul ficou parado um instante, avaliando a situação, separando os mantos e bourkas dos Fremen das roupas daqueles que os enfrentavam. Os sentidos que sua mãe havia treinado para perceber os indícios mais sutis captaram um fato significativo: os Fremen lutavam contra homens que usavam roupas de contrabandistas, mas estes encontravam-se agachados em trios, recuando em triângulos quando pressionados. Um modo de luta corpo-a-corpo que constituía uma marca dos Sardaukar imperiais.
Um Fedaykin, no meio da turba, viu Paul, imediatamente, seu grito de guerra elevou-se para ecoar dentro da câmara:
— Muad'Dib! Muad'Dib! Muad'Dib!
Outro olhar também percebera Paul, e uma faca negra foi lançada contra ele. Paul esquivou-se, ouvindo a faca tilintar de encontro à pedra atrás de si. Olhou, para se certificar de que Gurney a recuperara.
Os grupos triangulares estavam, agora, sendo pressionados para recuar. Gurney ergueu a faca diante dos olhos de Paul, apontando para a cabeça do leão dourado, com olhos multifacetados no cabo, a serpentina amarela da cor imperial. Sardaukar, com certeza.
Paul saltou de cima da projeção rochosa. Apenas três Sardaukar permaneciam. Montes sangrentos e esfarrapados de corpos Fremen e Sardaukar espalhavam-se por todo o piso da câmara.
— Parem! — gritou Paul. — O Duque Paul Atreides ordena que parem!
Os lutadores hesitaram.
— Vocês, Sardaukar! — gritou ele para o grupo remanescente. — Por ordem de quem vocês ameaçam um Duque governante? — E, rapidamente, enquanto seus homens começavam a cercar os Sardaukar, acrescentou: — Parem! Eu ordeno!
Um membro do trio encurralado se levantou.
— Quem diz que nós somos Sardaukar? — protestou ele.
Paul apanhou a faca das mãos de Gurney, e ergueu-a para que todos vissem.
— Isto diz que vocês são Sardaukar!
— Então quem diz que é um Duque governante?
Paul acenou para os Fedaykin:
— Estes homens dizem que eu sou um Duque no governo. Seu próprio imperador entregou Arrakis para a casa dos Atreides. Eu sou a Casa dos Atreides.
Os Sardaukar ficaram em silêncio, remexendo-se.
Paul observou o homem: alto, feições comuns, com uma pálida cicatriz estendendo-se por metade da maçã esquerda do rosto. Confusão e ódio revelavam-se em seus modos, mas ainda assim permanecia um orgulho característico, sem o qual um Sardaukar pareceria despido, e com o qual ele pareceria bem trajado, ainda que totalmente nu.
Paul olhou para um dos tenentes dos Fedaykin e perguntou:
— Korba, por que eles ainda tinham armas?
— Eles guardaram facas em bolsos ocultos, dentro de seus trajes-destiladores.
Paul observou os mortos e os feridos dentro da caverna, depois voltou sua atenção para o tenente. Não havia necessidade de palavras, e o tenente abaixou a cabeça.
— Onde está Chani? — indagou ele, aguardando com a respiração suspensa pela resposta.
— Stilgar retirou-a por uma passagem lateral. — Korba olhou para a entrada na rocha, e depois para os mortos e feridos. — Eu me considero responsável por esse erro, Muad'Dib.
— Quantos desses Sardaukar havia aqui, Gurney?
— Dez.
Paul atravessou o piso da câmara, até ficar a uma distância de golpe do porta-voz dos Sardaukar.
Os Fedaykin ficaram tensos. Não aprovavam que ele se expusesse assim ao perigo. Isso era algo que se comprometiam a evitar, porque os Fremen desejavam preservar a sabedoria do Muad'Dib.
Sem se voltar, Paul disse para o tenente:
— Quantas foram nossas baixas?
— Quatro feridos e dois mortos, Muad'Dib.
Percebeu um movimento além dos Sardaukar. Chani e Stilgar apareciam agora na outra passagem. Voltou sua atenção para o Sardaukar, olhando para o branco estrangeiro dos olhos do porta-voz.
— Você! Como é o seu nome? — intimou ele.
O homem enrijeceu-se, olhou para a direita e para a esquerda.
— Não tente! É óbvio, para mim, que vocês têm ordem de buscar e destruir o Muad'Dib. Garanto que foram vocês que sugeriram buscar especiaria no deserto profundo.
Uma exclamação de espanto, partindo de Gurney, lá atrás, trouxe um leve sorriso aos lábios de Paul.
O rosto do Sardaukar ficou vermelho.
— O que vê à sua frente é mais do que o Muad'Dib. Sete de vocês estão mortos, contra dois de nós. Três para um. Muito bom, contra Sardaukar, hein?
O homem ergueu-se na ponta dos pés, abaixou-se, quando os Fedaykin ameaçaram avançar.
— Eu lhe perguntei o seu nome — disse Paul, e recorreu às sutilezas da voz. — Diga-me o seu nome!
— Capitão Aramsham, Sardaukar Imperial! — respondeu o homem. Seu queixo caiu em seguida, e ele olhou para Paul em completa perplexidade. Sua atitude, indicando considerar essa caverna um refúgio de bárbaros, desaparecera.
— Bem, capitão Aramsham, os Harkonnen pagariam regiamente para saber o que o senhor agora sabe. E o Imperador, o que ele não daria para descobrir que um Atreides ainda vive, apesar de sua traição?
O capitão olhou novamente para os lados, fitando os dois homens que ainda lhe restavam. Paul quase podia ver os pensamentos percorrendo a cabeça do homem: “Os Sardaukar não se submetem, mas o imperador precisava saber dessa ameaça.”
Ainda usando a Voz, Paul ordenou:
— Renda-se, capitão.
O homem à esquerda do capitão saltou, sem aviso, em direção a Paul, recebendo no peito o impacto da faca de seu próprio superior. Caiu sobre uma pilha úmida, com a faca ainda no corpo.
O capitão voltou-se para o único companheiro que lhe restava.
— Eu decido o que serve melhor a Sua Majestade. Entendido?
O outro Sardaukar relaxou o corpo.
— Jogue sua arma no chão! — ordenou o capitão.
O Sardaukar obedeceu. O capitão voltou sua atenção para Paul.
— Eu matei um amigo por sua causa. Vamos nos lembrar disso sempre.
— Vocês são meus prisioneiros — respondeu Paul. — Vocês se submetem a mim, se vivem ou não, isso não importa. — Fez sinal à sua guarda para que levasse os dois Sardaukar, depois chamou o tenente que examinara os prisioneiros.
A guarda movimentou-se empurrando os Sardaukar para longe. Paul inclinou-se para seu tenente.
— Muad'Dib — disse o homem. — Eu falhei ante...
— A falha foi minha, Korba, eu devia tê-los advertido quanto ao que buscar. No futuro, quando revistar Sardaukar, lembre-se disso. Lembre-se também de que cada um leva uma ou duas unhas falsas, nos dedos dos pés. Unhas que podem ser combinadas com outros objetos ocultos em seus corpos, para produzir um transmissor eficiente. Eles têm mais de um dente falso. E carregam fios de shigawire nos cabelos, tão finos que é quase impossível percebê-los, e, no entanto, são suficientemente resistentes para estrangular um homem cortando-lhe o pescoço. Com Sardaukar é preciso esquadrinhá-los — com raios duros e refletidos — e depilar todo o seu corpo. E, quando houver terminado, certifique-se de ter encontrado tudo.
Olhou para Gurney, que se aproximara para ouvir.
— Então é melhor matá-los — sugeriu o tenente.
Paul sacudiu a cabeça, ainda olhando para Gurney.
— Não, eu quero que eles escapem.
Gurney olhou-o perplexo:
— Senhor!
— Sim?
— O homem aqui está certo. Mate estes prisioneiros de uma vez. Destrua toda a evidência a respeito deles. Acabou de envergonhar Sardaukar imperiais. Quando o Imperador souber, não vai descansar até assá-lo em fogo lento.
— Não é provável que o Imperador tenha tal poder sobre mim — respondeu Paul, falando de modo pausado e frio. Alguma coisa acontecera em seu interior enquanto enfrentava os Sardaukar. Uma soma de decisões que se acumulavam em sua consciência.
— Gurney, existem muitos homens da Corporação junto de Rabban?
Gurney empertigou-se, semicerrando os olhos.
— Sua pergunta não faz...
— Existem? — Paul repetiu a pergunta em voz alta.
— Arrakis está fervilhando de agentes da Corporação. Eles andam comprando especiaria como se fosse a coisa mais preciosa no universo. Por que outro motivo acha que nos arriscaríamos a penetrar tão profundamente no...
— É a coisa mais preciosa do Universo, para eles.
Olhou para Chani e Stilgar, que atravessavam a câmara agora, vindo em sua direção.
— E nós a controlamos, Gurney.
— Os Harkonnen a controlam! — protestou Gurney.
— As pessoas que podem destruir uma coisa são as que verdadeiramente a controlam — disse Paul, acenando com a mão para evitar outros comentários de Gurney. Depois, fez sinal para Stilgar, que parara em sua frente com Chani ao lado.
Pegou a faca do Sardaukar com a mão esquerda e a entregou a Stilgar.
— Você vive para o bem da tribo. Poderia tirar a minha vida com essa faca?
— Pelo bem da tribo — resmungou Stilgar.
— Então use essa faca.
— Está me desafiando?
— Se o fizer, deverei colocar-me desarmado na sua frente, e deixar que me mate.
Stilgar surpreendeu-se. Chani exclamou:
— Usul! — olhando para Gurney e, depois, de volta para Paul.
Enquanto Stilgar ainda pesava suas palavras, Paul disse:
— Você é Stilgar, um lutador. Quando os Sardaukar começaram a lutar aqui, você não estava na frente da luta. Seu primeiro pensamento foi proteger Chani.
— Ela é minha sobrinha — protestou Stilgar. — Se houvesse alguma dúvida quanto à capacidade dos seus Fedaykin em lidar com aquela escória...
— Por que pensou primeiro em Chani?
— Eu não pensei.
— Oh?
— Pensei primeiro em você — admitiu Stilgar.
— Acha que pode erguer sua mão contra mim? — indagou Paul.
Stilgar começou a tremer.
— É o costume — murmurou.
— É o costume matar estrangeiros encontrados no deserto, para tomar sua água como dádiva do Shai-hulud. E, no entanto, você permitiu que dois desses estrangeiros vivessem uma noite, eu e minha mãe.
Enquanto Stilgar permanecia trêmulo, a fitá-lo, Paul acrescentou:
— Os costumes se modificam, Stilgar. Você mesmo já os modificou.
Stilgar olhou para o emblema amarelo na faca em sua mão.
— Quando eu for um Duque em Arrakeen, com Chani ao meu lado, você acha que vou ter tempo para me preocupar com todos os detalhes a respeito do governo do sietch Tabr? Você se preocupa com os problemas internos de cada família?
Stilgar continuava a olhar para a faca.
— Acha que desejo cortar meu braço direito? — indagou Paul.
Stilgar olhou para ele, erguendo a cabeça, lentamente.
— Você! — exigiu Paul. — Acredita que desejo privar a tribo, e a mim mesmo, de sua sabedoria e de sua força?
Em voz baixa, Stilgar finalmente disse:
— O jovem de minha tribo cujo nome eu conheço, esse jovem eu poderia matar no campo do desafio, se Shai-hulud assim o desejasse. Mas ao Lisan al-Gaib que está nele, eu não posso ferir. Sabia disso quando me deu esta faca.
— Eu sabia — concordou Paul.
Stilgar abriu a mão. A faca tilintou no piso de rocha.
— Os costumes mudam — concordou ele.
— Chani — disse Paul —, vá até minha mãe. Peça-lhe que venha até aqui, para que seu conselho seja disponível quando...
— Mas você disse que nós iríamos para o Sul! — protestou ela.
— Eu estava errado. Os Harkonnen não estão lá. A guerra não é lá.
Chani suspirou, aceitando isso como uma mulher do deserto aceitava todas as necessidades no meio de uma vida entremeada com a morte.
— Você transmitirá a mensagem somente para minha mãe, sem que ninguém mais a ouça. Diga-lhe que Stilgar me reconhece como o Duque de Arrakis, mas que devemos encontrar uma forma de fazer com que os jovens aceitem isso sem combate.
Chani olhou para Stilgar.
— Faça como ele diz — resmungou Stilgar. — Ambos sabemos que ele poderia me vencer... eu não poderia erguer minha mão contra ele... pelo bem da tribo.
— Deverei retornar com sua mãe? — indagou Chani.
— Apenas mande que ela venha. Os instintos de Stilgar estavam certos. Eu sou mais forte quando você está em segurança. Permanecerá no sietch.
Ela começou a protestar, mas interrompeu-se.
— Sihaya — chamou Paul, usando seu nome íntimo. Ela girou para a direita, encontrando o olhar de Gurney.
A conversa entre Paul e o velho Fremen passara como uma nuvem ao redor de Gurney, desde que Paul se referira a sua mãe.
— Sua mãe? — indagou ele.
— Idaho nos salvou na noite do ataque — disse Paul, distraído pela partida de Chani. — Agora mesmo nós...
— O que aconteceu a Duncan Idaho, meu senhor?
— Ele morreu, conseguindo um pouco de tempo para que pudéssemos escapar.
“A bruxa está viva!”, pensou Gurney. “Aquela contra quem eu jurei vingança está viva! E é óbvio que o Duque Paul não sabe que tipo de criatura o trouxe ao mundo. A maldita! Atraiçoou seu pai com os Harkonnen!”
Paul passou por ele subindo para a projeção de rocha. Olhou para trás, notando que os mortos e os feridos estavam sendo removidos, e pensou, amargamente, que ali se tecera outro capítulo da lenda do Paul Muad'Dib. “Eu nem sequer desembainhei minha faca, mas será dito que neste dia matei vinte Sardaukar com minhas próprias mãos.”
Gurney acompanhou Stilgar, caminhando sobre o solo que nem mesmo sentia. A caverna, com sua iluminação amarela dos globos luminosos, fora expulsa de seus pensamentos pelo ódio. “A bruxa está viva, enquanto aqueles a quem ela atraiçoou estão reduzidos a ossos em tumbas solitárias. Devo agir para que Paul saiba a verdade a respeito dela, antes que eu a mate.”
Quão freqüentemente um homem furioso se nega a ouvir o que sua consciência lhe diz.!
— de Citações Reunidas do Muad'Dib, escrito pela Princesa Irulan
A multidão, na câmara de assembléia da caverna, irradiava aquele sentimento de conspiração que Jessica sentira no dia em que Paul matara Jamis. Havia um murmurar nervoso nas vozes.
Pequenos grupos se juntavam como nós no mar de mantos.
Jessica colocou o cilindro com a mensagem embaixo do manto, enquanto emergia da saliência rochosa que levava aos aposentos particulares de Paul. Sentia-se repousada após a longa viagem desde o Sul, mas ainda se ressentia de que Paul não houvesse permitido que usassem os ornitópteros capturados.
— Nós ainda não temos o controle completo do ar — dissera. — E não podemos nos tornar dependentes de combustível estrangeiro. Ambos, o combustível e as aeronaves, devem ser poupados para o dia do esforço máximo.
Paul encontrava-se agora junto com um grupo de jovens, próximo à saliência. A pálida luz dos globos luminosos emprestava à cena uma tintura de irrealidade. Era como uma representação, um quadro vivo, acrescido pela dimensão do cheiro dos alojamentos, os sussurros e os sons dos pés se arrastando.
Observou o filho, perguntando-se por que ele ainda não apresentara sua surpresa: Gurney Halleck. O pensamento em Gurney perturbava-a com recordações de um passado mais tranqüilo, dias de amor e beleza com o pai de Paul.
Stilgar aguardava com um pequeno grupo dos seus homens na outra extremidade da plataforma natural. Havia uma aparência de dignidade resignada nele, no modo como esperava sem falar.
“Não podemos perder este homem”, pensou Jessica. “O plano de Paul precisa funcionar. Qualquer outra coisa seria uma grande tragédia.” Desceu da plataforma, passando por Stilgar sem fitá-lo, e chegou junto da multidão. Um caminho foi aberto para ela, enquanto se dirigia para Paul. O silêncio seguiu-a.
Sabia o significado daquele silêncio: as perguntas não formuladas do povo, a admiração pela Reverenda Madre.
Os jovens afastaram-se de Paul quando se aproximou, e Jessica sentiu-se assombrada, momentaneamente, pela nova deferência que lhe demonstravam. “Todos os homens abaixo de sua posição cobiçam sua situação”, dizia um ditado Bene Gesserit. Mas ela não encontrava inveja ou cobiça nesses rostos. Eles eram mantidos a distância pela fermentação religiosa ao redor da liderança de Paul.
E ela se lembrou de outro ditado Bene Gesserit que dizia: “Os profetas têm o hábito de morrer pela violência.”
Paul olhou para ela.
— Está na hora — disse Jessica, passando-lhe o cilindro com a mensagem.
Um dos companheiros de Paul, mais ousado que os outros, olhou para Stilgar, dizendo:
— Vai desafiá-lo, Muad'Dib? Agora é o momento, com certeza. Eles pensarão que é um covarde se não...
— Quem se atreve a me chamar de covarde? — gritou Paul, levando a mão ao cabo da faca cristalina.
O silêncio caiu sobre o grupo, propagando-se pela multidão.
— Há trabalho a fazer — disse Paul, enquanto o homem recuava. Voltou-se, abrindo caminho com os ombros através da multidão, até chegar à saliência rochosa, subiu nela e enfrentou o povo.
— Faça-o! — gritou alguém.
Murmúrios e sussurros elevaram-se atrás do grito.
Paul esperou que fizessem silêncio. Ele veio lentamente, em meio a tosses e ruídos de gente se remexendo. Quando estava completamente quieto dentro da caverna, Paul ergueu o queixo, falando em uma voz que chegava até às extremidades mais distantes.
— Vocês estão cansados de esperar — disse.
Novamente aguardou até que os gritos de resposta cessassem completamente.
— De fato, eles estão cansados de esperar. — Ergueu o cilindro com a mensagem pensando no que continha. Sua mãe lhe mostrara, explicando como fora retirado de um correio dos Harkonnen.
E a mensagem era explícita: Rabban estava sendo abandonado à sua própria sorte aqui em Arrakis. Não podia pedir ajuda ou reforços.
Novamente Paul ergueu a voz:
— Vocês acham que é hora para que eu desafie Stilgar e mude a liderança das tropas! — Antes que pudessem responder, Paul lançou-lhes sua voz carregada de fúria: — Vocês pensam que o Lisan al-Gaib é tão estúpido?
Houve um silêncio de perplexidade.
“Ele está aceitando o manto religioso”, pensou Jessica. “Ele não pode fazer isso!”
— É o costume! — gritou alguém.
Paul falou de um modo seco, sondando as correntes emocionais:
— Os costumes mudam!
Uma voz irritada elevou-se de um dos cantos da caverna.
— Nós decidiremos o que deve mudar!
Gritos dispersos de concordância soaram através da multidão.
— Como quiserem — disse.
E Jessica ouviu as entonações sutis que ele estava usando: os poderes da Voz que ela lhe ensinara.
— Como quiserem — concordou ele. — Mas primeiro vão ouvir o que tenho a dizer.
Stilgar moveu-se ao longo da saliência, seu rosto barbado impassível.
— Este é o costume também — disse. — A voz de qualquer Fremen pode ser ouvida em conselho. Paul Muad'Dib é um Fremen.
— O bem da tribo é a coisa mais importante, não? — indagou Paul.
Ainda com a voz carregada de dignidade, Stilgar respondeu:
— Assim nossos passos são guiados.
— Certo — concordou Paul. — Então, quem governa essa tropa de nossa tribo, e quem governa todas as tribos e tropas através dos instrutores de luta que treinamos no “modo sobrenatural”?
Esperou, olhando por sobre as cabeças da multidão. Não houve resposta. Daí a pouco, disse:
— Será que Stilgar governa tudo isso? Ele mesmo diz que não. Será que eu governo? Mesmo Stilgar obedece a minhas ordens, em certas ocasiões, e os sábios, mesmo os mais sábios, me ouvem e me honram em conselho.
Algumas pessoas se remexiam, mas o silêncio permanecia na multidão.
— Bem — continuou Paul. — Será que minha mãe governa? — Apontou para Jessica, em seu manto negro característico, de pé entre eles. — Stilgar e todos os outros líderes de tropa buscam seus conselhos antes de qualquer decisão importante. Vocês sabem disso. Mas será que uma Reverenda Madre caminha na areia, ou lidera uma razia contra os Harkonnen?
Rugas surgiam nas testas daqueles que Paul podia ver, mas ainda havia murmúrios de protesto.
“Este é o modo mais arriscado de fazê-lo”, pensou Jessica, mas lembrou-se da mensagem no cilindro, e de tudo que ela implicava, percebendo a intenção de Paul: ir direto até a origem das incertezas deles, livrar-se delas de modo que todos o seguissem.
— Nenhum homem reconhece liderança sem o desafio e o combate, não é mesmo?
— Esse é o costume! — gritou alguém.
— E qual é o nosso objetivo? Derrubar Rabban, a Besta, e reconstruir nosso mundo, transformando-o num lugar onde possamos criar nossas famílias em meio a abundância de água. Não é esse o nosso objetivo?
— Tarefas duras exigem costumes duros — gritou alguém.
— Você quebra sua faca antes da batalha? — indagou Paul. — Eu digo isso como um fato, não como um desafio ou uma ostentação, não existe um homem aqui, Stilgar incluído, que possa me vencer em combate individual. Stilgar admitiu isso, ele sabe, assim como vocês o sabem.
Novamente os murmúrios de fúria ergueram-se da multidão.
— Muitos de vocês já me observaram na prática de solo. Vocês sabem que não estou me gabando tolamente. Digo isso porque é um fato conhecido por todos, e seria tolice não percebê-la. Comecei a treinar nessa modalidade de luta muito mais cedo do que vocês, e meus instrutores eram mais duros do que qualquer um que já tenham visto. De que outro modo eu teria vencido Jamis em uma idade em que vocês, garotos ainda, estavam lutando apenas combates simulados?
“Ele está usando muito bem a Voz”, pensou Jessica. “Mas isso não é o bastante com esta gente. Eles possuem bom isolamento contra o controle vocal. Ele deve apanhá-los também com lógica.”
— Então — disse Paul —, nós chegamos a isso. — Mostrou o cilindro-mensagem, removendo sua tira de teipe. — Isso foi tirado de um correio Harkonnen. Sua autenticidade encontra-se acima de qualquer suspeita. É dirigido a Rabban. Diz que sua requisição de novas tropas foi negada, que sua colheita de especiaria encontra-se abaixo da quota, e que ele deve extrair mais especiaria de Arrakis com o pessoal de que dispõe.
Stilgar colocou-se ao lado de Paul.
— Quantos, entre vocês, percebem o que isso significa? — indagou Paul. — Stilgar viu imediatamente.
— Eles estão isolados! — gritou alguém.
Paul colocou a mensagem e seu cilindro no cinturão. Do pescoço, ele tirou um fio de shigawire trançado, e dele removeu um anel, exibindo-o para a multidão.
— Este é o sinal ducal de meu pai. Eu jurei que nunca o usaria até que estivesse pronto para liderar minhas tropas através de Arrakis e reclamar meu feudo por direito! — Colocou o anel no dedo e fechou a mão num punho.
Completa imobilidade se produziu dentro da caverna.
— Quem governa aqui? — gritou Paul erguendo o punho. — Eu governo aqui! Governo cada polegada quadrada de Arrakis! Este é o meu feudo ducal, diga o Imperador sim ou não! Ele o deu a meu pai, e de meu pai ele vem a mim!
Ergueu-se na ponta dos pés, depois se apoiou novamente nos calcanhares. Observou a multidão, sentindo seu estado de espírito.
“Quase no ponto”, pensou.
— Existem homens aqui que receberão postos importantes em Arrakis, quando eu reclamar os direitos imperiais que são meus. Stilgar é um desses homens. Não porque eu deseje comprá-lo com isso! Nem por motivo de gratidão, embora eu seja um de muitos aqui que lhe devem a vida. Não! Mas porque ele é forte e sábio. Porque ele governa sua tropa com sua inteligência, e não apenas com as regras. Vocês me julgam estúpido? Acham que eu cortaria o meu braço direito para deixá-lo ensangüentado no fundo desta caverna, apenas para lhes proporcionar um circo? — Percorreu a multidão com o olhar. — Quem entre vocês diz que eu não sou o verdadeiro governante de Arrakis? Será que tenho de provar isso deixando cada tribo Fremen no erg sem seu líder?
Ao seu lado Stilgar se remexeu, olhando para ele com ar indagador.
— Devo diminuir nossa força, quando mais precisamos dela? Sou o seu governante, e digo a vocês que é hora de pararmos de matar os nossos melhores homens, e começar a matar nossos verdadeiros inimigos: os Harkonnen!
Num movimento rápido, Stilgar puxou de sua faca e a apontou sobre as cabeças da multidão.
— Longa vida ao Duque Paul Muad'Dib! — gritou.
Um rugido ensurdecedor encheu a caverna, ecoando sucessivamente. Eles estavam aplaudindo e cantando:
— Ya hya chouhada! Muad'Dib! Muad'Dib! Muad'Dib! Ya hya chouhada!
Jessica traduziu para si mesma: “Longa vida aos lutadores de Muad'Dib!” A cena que ela, Paul e Stilgar haviam planejado em segredo funcionara como esperado.
O tumulto cedeu lentamente.
Quando o silêncio retornou, Paul encarou Stilgar e disse:
— Ajoelhe-se, Stilgar.
Stilgar caiu de joelhos sobre a plataforma natural.
— Dê-me sua faca cristalina.
Stilgar obedeceu.
“Isto não é como planejamos”, pensou Jessica.
— Repita comigo, Stilgar — disse Paul, relembrando as palavras da consagração, como as ouvira sendo usadas por seu pai. — Eu, Stilgar, tomo esta faca das mãos de meu Duque.
— Eu, Stilgar, tomo esta faca das mãos de meu Duque — repetiu Stilgar, aceitando a lâmina leitosa oferecida por Paul.
— E onde meu Duque ordenar eu colocarei esta lâmina — disse Paul.
Stilgar repetiu as palavras, falando de modo lento e solene.
Relembrando a fonte do ritual, Jessica piscou os olhos para conter as lágrimas, sacudiu a cabeça. “Conheço as razões para isto”, pensou ela. “Não devia me permitir tal emoção.”
— Dedico esta lâmina à causa de meu Duque e à morte de seus inimigos, pelo tempo que fluir o nosso sangue! — disse Paul. Stilgar repetiu. — Beije a lâmina — ordenou Paul. Stilgar obedeceu, e então, na maneira Fremen, beijou o braço de Paul, o braço que empunhava a faca. A um aceno de Paul, ele embainhou a arma e levantou-se.
Um murmúrio de admiração percorreu a turba e Jessica ouviu as palavras:
— A profecia! Uma Bene Gesserit mostrará o caminho, e uma Reverenda Madre o verá. — E de mais longe, na multidão: — Ela nos mostra o caminho através de seu filho!
— Stilgar lidera esta tribo — disse Paul. — Que nenhum homem duvide disso. Ele comanda com minha voz. O que ele disser a vocês será como se eu houvesse dito.
“Sábio”, notou Jessica. “Um comandante tribal não deve perder sua dignidade diante daqueles que lhe obedecem.” Paul abaixou a voz e disse:
— Stilgar, quero que caminhantes da areia e cielagos sejam enviados, esta noite, para convocar uma Reunião do Conselho. Depois que os tiver enviado, traga Chatt, Korba e Otheym, e mais dois outros tenentes de sua própria escolha. Traga-os para os meus alojamentos, para o planejamento de batalha. Devemos possuir uma vitória, para mostrar ao Conselho dos Líderes quando eles chegarem!
Acenou para que sua mãe o acompanhasse, e liderou o caminho para fora da saliência, através de multidão, em direção à passagem central e às câmaras que haviam sido preparadas como aposentos. Enquanto Paul avançava através da multidão, mãos se estendiam para tocá-lo. Vozes chamavam.
— Minha faca irá aonde Stilgar ordenar, Paul Muad'Dib! Deixe-nos lutar logo, Paul Muad'Dib! Permita que molhemos o mundo com o sangue dos Harkonnen!
Sentindo a emoção de toda essa gente, Jessica percebia a vontade de lutar elevada ao extremo. Eles não poderiam se encontrar mais preparados. “Nós os levamos à crista da onda”, pensou ela. Na câmara interna, Paul fez sinal para que sua mãe se sentasse e disse:
— Espere aqui. — Depois abaixou-se saindo por entre as cortinas. Estava muito quieto, no interior do aposento, depois que Paul se fora, tão quieto, por trás das cortinas, que nem mesmo o fraco murmurar das bombas que circulavam o ar por dentro do sietch podia ser ouvido.
“Ele vai trazer Gurney Halleck aqui”, pensou ela. E admirou-se com a estranha mistura de emoções que isso lhe trazia. Gurney e sua música haviam sido parte de tantas ocasiões agradáveis em Caladan, antes da mudança para Arrakis! Sentia como se Caladan houvesse acontecido com alguma outra pessoa, parte de uma outra vida. De fato, nos quase três anos desde então, ela havia se tornado realmente outra pessoa. E tendo de enfrentar Gurney, era forçada a uma reavaliação das mudanças. O jogo de café de Paul, na adelgaçada liga de prata e jasmium, que ele herdara de Jamis, repousava em uma mesa baixa à sua direita. Ela olhou para aquilo, pensando em quantas mãos haviam tocado aquele metal. Chani servia Paul com esse jogo, há um mês.
“Que pode essa mulher do deserto fazer por um Duque, exceto servir-lhe café?”, perguntou a si mesma. “Ela não lhe traz nenhum poder, nenhuma família. Paul só tem uma chance: aliar-se com uma Grande Casa poderosa, talvez mesmo com a família imperial. Existem princesas com as quais ele pode casar, até mesmo uma que foi treinada Bene Gesserit.”
E Jessica se imaginou deixando os rigores de Arrakis em troca de uma vida de poder e segurança, uma vida que ela poderia conquistar, como mãe de um consorte imperial. Olhou para as grossas cortinas que obscureciam a rocha, nessa cela de caverna, pensando em como chegara até ali. Cavalgando em meio a um bando de vermes, os palanquins e as plataformas cheias de utensílios empilhados para a campanha que se avizinhava. “Enquanto Chani viver, Paul não verá seu dever. Ela lhe deu um filho, e para ele isso é o bastante.”
Uma súbita saudade de seu neto a acometeu, a criança cuja semelhança com o avô era tão evidente. Jessica colocou as palmas das mãos sobre o rosto, e começou a respiração ritual que acalmava as emoções e clareava a mente. Então, inclinou-se para a frente, a partir da cintura, no exercício religioso que preparava o corpo para as exigências da mente.
A escolha de Paul quanto à Caverna dos Pássaros como seu posto de comando não podia ser questionada, ela bem o sabia. O lugar era ideal. Para o norte, encontrava-se a Passagem dos Ventos, abertura para uma vila protegida, e uma pia cercada de penhascos. Era um povoado-chave, lar de artesãos e técnicos, um centro de manutenção para todo um setor defensivo dos Harkonnen.
Uma tosse soou do lado de fora das cortinas. Jessica ergueu-se, respirou fundo, exalando o ar lentamente.
— Entre — disse.
Cortinas foram lançadas para os lados, e Gurney Halleck saltou para dentro da câmara. Jessica só teve tempo para um vislumbre do rosto com uma estranha careta, e ele já se encontrava atrás dela, erguendo-a com um braço musculoso por baixo de seu queixo.
— Gurney, seu tolo, o que está fazendo? — indagou ela.
Sentiu a ponta da faca tocando suas costas, um frio espalhando-se daquela ponta. Sabia, naquele instante, que Gurney tencionava matá-la.
“Por quê?” Não podia pensar em nenhuma razão para isso, já que ele não era do tipo que se tornava traidor. Mesmo assim, sentiu a certeza de sua intenção, e ao conhecê-la sua mente se agitou. Ali estava um homem que não seria dominado facilmente. Um assassino precavido contra a Voz, consciente de cada estratagema de combate, de cada truque de morte e violência. Ali estava um instrumento que ela própria ajudara a treinar, com indícios e sugestões sutis.
— Você pensou que havia escapado, hein, bruxa? — rosnou Gurney.
Antes que ela pudesse pensar na pergunta, ou tentar respondê-la, as cortinas se abriram e Paul entrou.
— Aqui está ele, Mamãe... — Paul não terminou a frase, percebendo a tensão na cena.
— Vai ficar onde está, meu senhor — advertiu Gurney.
— O que... — Paul sacudiu a cabeça, atônito.
Jessica começou a falar, mas sentiu o braço apertar sua garganta.
— Vai falar somente quando eu permitir, bruxa. E quero somente uma coisa de você, para que seu filho ouça. Estou preparado para enterrar esta faca em seu coração num reflexo, ao primeiro sinal de uma ação contra mim. Sua voz deverá permanecer num único tom. Não vai mover ou retesar certos músculos. Agirá com extrema cautela, se quiser ganhar mais alguns segundos de vida. E isso, eu lhe asseguro, é tudo que tem.
Paul deu um passo à frente.
— Gurney, o que é isso, homem...
— Pare onde está! Mais um passo e ela está morta.
Paul levou a mão ao cabo de sua faca. Falou com uma calma mortífera.
— É melhor que se explique, Gurney.
— Eu fiz um juramento. Jurei que mataria o traidor de seu pai. Acha que eu me esqueceria do homem que me salvou de um fosso de escravos dos Harkonnen, deu-me liberdade, vida e honra... deu-me sua amizade, uma coisa que valorizo acima de tudo? E eu tenho quem o traiu sob minha faca. Ninguém pode evitar que eu...
— Você não poderia estar mais enganado, Gurney — disse Paul.
E Jessica pensou: “Então é isso! Que ironia!”
— Estou errado? — perguntou Gurney. — Então vamos ouvir isso da própria mulher. Mas deixe que ela se lembre de que eu subornei, espionei e trapaceei para confirmar essa suspeita. Até mesmo empurrei semuta num capitão da guarda Harkonnen para conseguir parte da história.
Jessica sentiu o braço em sua garganta aliviar o aperto ligeiramente, mas antes que ela pudesse falar ouviu a voz de Paul:
— O traidor era Yueh. Eu lhe digo isso uma vez, Gurney. A evidência é completa e não pode ser negada. Era Yueh! Não me importa como você chegou a essa suspeita, pois ela não pode ser mais do que isso... mas se ferir minha mãe...
Paul ergueu a faca cristalina e exibiu a lâmina...
— Eu terei o seu sangue.
— Yueh era um médico condicionado, adequado para uma casa real — retrucou Gurney. — Ele não podia se tornar um traidor!
— Conheço um modo de remover o condicionamento.
— Provas — insistiu Gurney.
— As provas não se encontram aqui. Estão no sietch Tabr, bem longe, no Sul, mas se...
— Isso é um truque — gritou Gurney, seu braço apertando a garganta de Jessica.
— Não é truque, Gurney — disse Paul, e sua voz carregava uma nota de tristeza tão terrível que seu som partiu o coração de Jessica.
— Vi a mensagem capturada de um agente Harkonnen — disse Gurney. — A nota indicava, diretamente, ...
— Eu a vi também — respondeu Paul — Meu pai mostrou-me, na noite em que explicou por que tinha de ser um truque dos Harkonnen destinado a fazê-lo suspeitar da mulher a quem amava.
— Ahh! — exclamou Gurney. — Você não...
— Fique quieto — ordenou Paul, e a calma monótona de sua voz carregava mais comando do que Jessica jamais ouvira em qualquer outra voz.
“Ele possui o Grande Controle”, pensou ela.
O braço de Gurney tremeu contra seu pescoço. A ponta da faca em suas costas moveu-se incerta.
— O que você não fez — disse Paul — foi ouvir minha mãe soluçando por seu Duque perdido durante a noite. Não viu seus olhos flamejarem, quando ela fala em matar Harkonnen.
“Então ele tem ouvido”, pensou Jessica. Lágrimas turvaram-lhe os olhos.
— O que você não fez — continuou Paul —, foi se lembrar das lições que aprendeu no fosso de escravos dos Harkonnen. Você fala de orgulho na amizade com meu pai! Não aprendeu a diferença entre Harkonnen e Atreides, de modo a poder cheirar um truque dos Harkonnen só pelo fedor que exala? Não aprendeu que a lealdade dos Atreides é comprada com amor, enquanto a moeda dos Harkonnen é o ódio? Não podia ver através da própria natureza dessa traição?
— Mas Yueh? — murmurou Gurney.
— A prova que temos é a própria mensagem de Yueh para nós, admitindo sua traição. Eu lhe asseguro isso pela amizade que tenho por você, uma amizade que ainda guardarei, mesmo depois de deixá-lo morto neste chão.
Ouvindo seu filho, Jessica maravilhava-se com a percepção dele, a visão penetrante de sua inteligência.
— Meu pai tinha um instinto para amigos. Ele transmitia o seu amor frugalmente, mas sem errar nunca. Sua fraqueza residia no mau entendimento do ódio. Ele achava que qualquer um que odiasse os Harkonnen não poderia traí-lo. — Paul olhou para sua mãe. — Ela sabe disso. Eu mesmo dei a ela a mensagem de meu pai, dizendo que nunca duvidara da lealdade dela.
Jessica sentiu que perdia o controle de suas emoções e mordeu o lábio inferior. Vendo a rígida formalidade em Paul, ela percebia o que essas palavras estavam lhe custando. Queria correr para ele, segurar sua cabeça de encontro ao seu peito como nunca fizera. Mas o braço ao redor de sua garganta cessara de tremer, a ponta da faca em suas costas ainda pressionava firme e afiada.
— Um dos momentos mais terríveis na vida de um garoto — disse Paul — é quando ele descobre que seu pai e sua mãe são seres humanos que compartilham um amor que ele nunca poderá receber inteiramente. É uma perda, um despertar para o fato de que o mundo é aqui e ali e nós estamos sozinhos nele. O momento carrega sua própria verdade, você não pode evitá-la. E eu ouvi meu pai, quando ele falou de minha mãe. Ela não é traidora, Gurney.
Jessica recuperou a voz e disse:
— Gurney, solte-me. — Não havia nenhum comando especial em sua voz, nenhum truque para atingir-lhe as fraquezas, mas a mão de Gurney cedeu. Ela caminhou para junto de Paul, ficando diante dele sem tocá-lo.
— Paul — disse —, existem outros tipos de revelação neste universo. Eu, de repente, vejo como usei você, como o modifiquei e manipulei para colocá-lo num caminho de minha escolha... um caminho que eu tinha de escolher, se isso é uma justificativa, por causa de meu próprio treinamento. — Ela engoliu em seco para se livrar de um aperto na garganta e continuou, olhando nos olhos de seu filho. — Paul, quero que você faça uma coisa por mim: escolha o seu próprio caminho, busque sua felicidade. Case-se com sua mulher do deserto, se é isso que deseja. Desafie a tudo e a todos para obter isso. Mas escolha por si mesmo...
Ela parou de falar, ouvindo um murmúrio atrás de si.
“Gurney!”
Viu os olhos de Paul apontados para uma direção além dela, virou-se. Gurney continuava no mesmo ponto, mas tinha embainhado a faca e arrancado o manto de seu peito, para expor o cinza lustroso de um traje-destilador, do tipo que os contrabandistas compravam nos sietches.
— Ponha sua faca bem aqui no meu peito — murmurou Gurney. — Peço-lhe que me mate e acabe com isso. Eu sujei meu nome. Traí meu próprio Duque! O melhor...
— Fique quieto! — ordenou Paul.
Gurney olhou para ele, surpreso.
— Feche esse manto e pare de agir como tolo. Já tive tolices suficientes por um dia.
— Mate-me, eu lhe peço! — rugiu Gurney.
— Você me conhece melhor. Quantos tipos de idiota pensa que eu sou? Será que devo passar por isso com cada homem de quem preciso?
Gurney olhou para Jessica, falando num tom desolado e suplicante, tão pouco característico de sua natureza.
— Então faça-o, minha senhora, por favor... mate-me.
Jessica caminhou para junto dele, colocando a mão sobre seu ombro.
— Gurney, por que você insiste em que os Atreides devem matar aqueles a quem amam? — Delicadamente, ela retirou o tecido do manto de entre os dedos de Gurney e o fechou, prendendo-o sobre seu peito.
Gurney disse soluçando:
— Mas... eu...
— Você pensa que estava fazendo uma coisa por Leto — disse ela. — E por isso eu o respeito.
— Minha senhora — exclamou Gurney. A cabeça tombou para a frente, o queixo quase tocando-lhe o peito, os olhos apertados tentando deter as lágrimas.
— Vamos pensar nisso como um mal-entendido entre velhos amigos — disse ela, e Paul percebeu tons tranqüilizadores em sua voz. — Está acabado, e nós podemos ser gratos porque nunca mais esse tipo de mal-entendido vai acontecer entre nós.
Gurney abriu os olhos brilhantes de umidade, olhando para ela.
— O Gurney Halleck que eu conhecia era um homem tão hábil com a lâmina quanto com o baliset. E era o homem do baliset que eu admirava mais. Será que esse Gurney Halleck não se lembra de como eu costumava ouvi-lo satisfeita, durante horas, enquanto tocava para mim? Você ainda tem um baliset, Gurney?
— Eu tenho um novo — respondeu Gurney —, comprado de Chusuk, um ótimo instrumento. Toca como um genuíno Varota, embora não tenha a assinatura. Creio que foi feito por um aluno de Varota que... — Ele se interrompeu. — Que posso lhe dizer, minha senhora? Aqui estamos nós falando sobre...
— Não apenas falando, Gurney — disse Paul. E aproximou-se para se colocar ao lado de sua mãe, olhando nos olhos de Gurney. — Não apenas falando, mas fazendo algo que traz a felicidade entre amigos. Eu receberia como uma gentileza se tocasse para nós agora. O planejamento da batalha pode aguardar um pouco. Nós não vamos entrar em luta até o dia de amanhã, em todo caso.
— Eu... eu vou apanhar meu baliset. Está no corredor.
Ele passou por eles e se foi através das cortinas. Paul colocou a mão no braço de sua mãe, e descobriu que ela estava tremendo.
— Está acabado, mãe — disse.
Sem virar a cabeça Jessica olhou para ele do canto dos olhos.
— Acabado?
— É claro. Gurney...
— Gurney? Oh... sim. — Ela abaixou o olhar.
As cortinas sussurraram quando Gurney retornou com seu baliset. Ele começou a afiná-lo, evitando encará-los. Os panos sobre as paredes abafavam os ecos, fazendo com que o instrumento soasse como algo pequeno e íntimo.
Paul levou sua mãe para uma das almofadas e sentou-se com ela de costas para as espessas cortinas das paredes. Subitamente percebeu como ela lhe parecia velha, com seu rosto começando a apresentar as rugas de linhas secas pelo deserto, o esticar da pele nos cantos de seus olhos velados de azul.
“Ela está cansada”, pensou. “Preciso encontrar um meio de aliviar sua carga.”
Gurney feriu uma corda.
Paul olhou para ele e disse:
— Há... algumas coisas que exigem a minha atenção. Espere por mim aqui.
Gurney acenou, sua mente parecendo muito distante, como se caminhasse nesse momento sob os céus amplos de Caladan, com a pluma das nuvens a prometer chuva lá do horizonte.
Paul forçou-se a voltar as costas para ele, e atravessou as pesadas cortinas saindo para a passagem lateral. Ouviu Gurney iniciar uma canção e parou por um momento, para ouvir o som abafado da música:
“Pomares e vinhas,
E huris de seios generosos,
E um cálice transbordando diante de mim.
Por que ainda falo de batalhas
E montanhas que se reduziram a pó?
Por que sinto estas lágrimas?
Os céus estão abertos,
Espalhando suas riquezas,
Basta-me estender a mão para recolher seus bens.
Por que ainda penso em emboscadas
E venenos em cálices fundidos?
Por que sinto minhas lágrimas?
Os braços do amor me acenam
Com suas delicias despidas,
A prometerem um éden de êxtases.
Por que ainda me lembro das cicatrizes,
Sonhando com velhas agressões...
Por que ainda durmo com medo?”
Um correio Fedaykin apareceu num canto da passagem, adiante de Paul. O homem tinha o capuz do manto caído para trás, e os fechos do traje-destilador soltos em torno do pescoço, uma prova de que acabara de chegar do deserto.
Paul fez sinal para que ele parasse, afastou-se das cortinas da porta e moveu-se ao longo do corredor, aproximando-se do correio.
O homem curvou-se, as mãos unidas na frente do corpo da maneira como deveria saudar uma Reverenda Madre, ou Sayyadina dos ritos. Ele disse:
— Muad'Dib, os líderes estão começando a chegar para o Conselho.
— Tão cedo?
— Estes são aqueles que Stilgar mandou chamar mais cedo, quando pensou que... — O homem encolheu os ombros.
— Eu percebo — respondeu Paul, olhando uma vez para trás, em direção aos sons fracos do baliset, pensando na velha canção que sua mãe preferia, uma curiosa mistura de música alegre e palavras tristes. — Stilgar virá aqui logo, com os outros. Mostre-lhe onde minha mãe espera.
— Eu aguardarei aqui, Muad'Dib — disse o correio.
— Sim... sim, faça isso.
Paul passou pelo homem, em direção às profundezas da caverna, dirigindo-se para um lugar que todas as cavernas como aquela possuíam. Um lugar próximo da bacia de contenção de água. Haveria um pequeno Shai-hulud nesse lugar, uma criatura com não mais do que nove metros de comprimento, mantida presa e impedida de crescer pelos poços de água ao seu redor. O produtor, depois de emergir de seu pequeno vetor, evitava a água pelo veneno que ela constituía para ele. E o afogamento de um produtor era o maior segredo dos Fremen, por produzir a substância de sua união: a Água da Vida, o veneno que só poderia ser modificado por uma Reverenda Madre.
A decisão viera quando Paul enfrentava a tensão de sua mãe em perigo. Nenhuma linha de futuro que houvesse visto carregara esse momento de perigo, partindo de Gurney Halleck. O futuro, o futuro cinzento e enevoado, com aquele sentimento de que o universo inteiro rolava em direção a um fervilhante núcleo, permanecia ao seu redor como um mundo fantasmagórico.
“Eu devo vê-la” — pensou ele.
Seu corpo adquirira lentamente uma certa tolerância para com a especiaria, o que tornava suas visões prescientes cada vez mais escassas... cada vez mais fracas... A solução lhe parecia óbvia.
“Eu vou afogar o produtor. Veremos agora se eu sou o Kwisatz Haderach, aquele que pode sobreviver ao teste a que as Reverendas Madres têm sobrevivido...”
E assim aconteceu, no terceiro ano da Guerra do Deserto, que Paul Muad'Dib se encontrasse sozinho na Caverna dos Pássaros, prostrado sob as cortinas kiszva de sua cela interna. Ele jazia como morto, apanhado nas revelações da Água da Vida, seu ser transportado, para além das fronteiras do tempo, pelo veneno que produz a vida. Assim se tornou verdadeira a profecia de que o Lisan al-Gaib se encontraria, ao mesmo tempo, morto e vivo.
— de Lendas Reunidas de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
Chani emergiu da bacia de Habbanya, na escuridão anterior à aurora, ouvindo o “tóptero” que a trouxera do sul partir zumbindo para seu esconderijo na vastidão. A sua volta, a escolta mantinha distância, dispersando-se nas rochas do penhasco em busca de perigos... e dando à companheira do Muad'Dib, a mãe de seu primeiro filho, algo que ela pedira: um momento para caminhar sozinha.
“Por que ele me chamou?”, indagava ela de si para si. “Ele me disse antes que eu devia permanecer no Sul, com o pequeno Leto e Alia.”
Puxou o manto e saltou sobre uma pequena barreira de rochas, galgando a trilha que somente os indivíduos treinados para o deserto poderiam reconhecer na escuridão. O cascalho escorregava sob seus pés e ela pulava sobre eles sem pensar na agilidade que isso requeria.
A subida era agradável, diminuindo os temores que haviam fermentado em seu interior, devido ao afastamento silencioso da escolta, e ao fato de que um precioso “tóptero” fora enviado para buscá-la. Sentia uma alegria interior ante a proximidade da reunião com seu Paul Muad'Dib, seu Usul. Seu nome poderia ser um grito de batalha sobre a terra: “Muad'Dib! Muad'Dib! Muad'Dib!” Mas ela conhecera um homem diferente, por um nome diferente: o pai de seu filho e o amante terno.
Um grande vulto elevou-se das rochas acima dela, acenando para que se apressasse. Ela apertou o passo. Os pássaros da alvorada começavam a cantar, elevando-se no céu. Uma fraca faixa de luz crescia sobre o horizonte oriental.
O vulto não era um membro de sua própria escolta. “Otheym?”, perguntou ela a si mesma, reconhecendo a familiaridade dos modos e movimentos. Chegou junto dele, reconhecendo-o na luz que aumentava. As feições largas e lisas do tenente dos Fedaykin, seu capuz aberto e o filtro da boca preso no modo frouxo que ele usava algumas vezes, quando se aventurava no deserto por apenas um instante.
— Depressa — sussurrou ele, levando-a para uma fenda escondida que conduzia ao interior da caverna oculta. — Já vai clarear disse ele, enquanto segurava o selo da porta, aberto para que ela entrasse. — Os Harkonnen têm mandado patrulhas desesperadas sobre parte desta região. Não podemos nos arriscar a ser descobertos agora.
Emergiram em uma estreita entrada lateral para a Caverna dos Pássaros. Globos luminosos acenderam-se. Otheym passou por ela, dizendo:
— Siga-me rápido, agora.
Correram pela passagem, penetrando por outra porta-válvula, percorrendo outra passagem e atravessando, finalmente, as cortinas do que fora o quarto de repouso da Sayyadina, nos dias em que essa caverna era um simples local de repouso durante o dia.
Tapetes e colchões cobriam agora o piso. Cortinas, bordadas com a figura do falcão vermelho, ocultavam as paredes rochosas. Uma mesa de campo, baixa, encontrava-se coberta de papéis num dos lados, papéis dos quais se elevava um aroma de especiaria, característico de sua origem.
A Reverenda Madre estava sentada sozinha, do outro lado da entrada. Ela olhou com aquele olhar interior que fazia os não iniciados tremerem. Otheym uniu as palmas das mãos, e disse:
— Eu trouxe Chani. — Curvou-se e depois recuou, saindo através das cortinas.
E Jessica pensou: “Como direi a Chani?”
— Como está meu neto? — indagou.
“Então teremos uma saudação ritual?”, pensou Chani, sentindo seus temores retornarem. “Onde está Muad'Dib? Por que ele não está aqui para me receber?”
— Ele se encontra saudável e feliz, minha mãe respondeu Chani. — Eu o deixei com Alia aos cuidados de Harah.
“Minha .mãe”, pensou Jessica. “Sim, ela tem o direito de me chamar desse modo, numa saudação formal. Ela me deu um neto.”
— Eu soube que um presente de tecidos foi enviado do sietch Coanua.
— São tecidos lindos — respondeu Chani.
— Alia envia alguma mensagem?
— Nenhuma mensagem. Mas o sietch funciona mais tranqüilamente agora que as pessoas começam a aceitar o milagre de sua condição.
“Por que ela está prolongando tanto isso”, pensou Chani. “Alguma coisa era tão urgente que eles enviaram um “tóptero” para me buscar. E agora nos arrastamos através dessas formalidades!”
— Devemos providenciar para que um pouco do novo tecido seja cortado em roupas para o pequeno Leto — disse Jessica.
— Como desejar, minha mãe — respondeu Chani, e abaixou o olhar. — Há alguma notícia das batalhas? — Procurou manter o rosto sem expressão, de modo que Jessica não percebesse ser essa uma pergunta a respeito do Muad'Dib.
— Novas vitórias — explicou Jessica. — Rabban tem enviado propostas cautelosas para uma trégua. Seus mensageiros têm sido enviados de volta, sem sua água. Rabban chegou mesmo a aliviar os encargos sobre as pessoas dos povoados, nas pias. Mas é muito tarde. As pessoas sabem que ele faz isso porque nos teme.
— E assim tudo corre como disse o Muad'Dib — concluiu Chani. Olhou para Jessica, tentando manter seus temores para si mesma. “Eu mencionei o nome dele, mas ela não respondeu. Não se pode perceber emoção naquela pedra de vidro que ela chama de rosto... mas ela está muito fria. Por que estará tão quieta? O que terá acontecido ao meu Usul?”
— Eu queria que estivéssemos no Sul — recomeçou Jessica.
— Os oásis lá estavam tão belos quando partimos! Você não anseia pelo dia em que toda a terra possa brotar desse modo?
— A terra é verdadeiramente bela, mas há muita dor sobre ela.
— A dor é o preço da vitória — respondeu Jessica.
“Estará ela me preparando para a dor?”, perguntou Chani consigo mesma. — Existem tantas mulheres separadas de seus homens. Elas ficarão com ciúmes quando souberem que eu fui chamada para o Norte.
— Eu a chamei — disse Jessica.
Chani sentiu seu coração acelerar-se. Queria levar as mãos aos ouvidos, temerosa do que eles pudessem ouvir. Ainda assim, manteve a voz calma.
— A mensagem estava assinada pelo Muad'Dib.
— Eu a assinei desse modo, na presença de seus tenentes explicou Jessica. — Tratava-se de um subterfúgio necessário. — E pensou: “A mulher de meu Paul é muito corajosa. Ela se mantém fiel às delicadezas mesmo quando o medo está quase dominando-a. Sim. Ela pode ser aquela de quem necessitamos agora.”
Apenas um leve tom de resignação transpareceu na voz de Chani quando ela falou:
— Agora, deve dizer-me aquilo que precisa ser dito.
— Nós precisamos de você aqui para me ajudar a reanimar Paul — disse Jessica enquanto pensava: “Aí está! Falei do modo precisamente correto. Reanimá-lo, assim ela saberá que Paul está vivo, e saberá que corre perigo, tudo em uma única palavra.”
Chani só levou um momento para se acalmar: “O que devo fazer?” Queria saltar para Jessica, sacudi-la e gritar: “Leve-me até ele!” Mas esperou, silenciosamente, por uma resposta.
— Suspeito que os Harkonnen conseguiram infiltrar um agente entre nós para envenenar Paul. É a única explicação que se encaixa. Um veneno bem fora do comum. Eu já examinei seu sangue dos modos mais sutis, sem que pudesse detectá-la.
Chani caiu de joelhos.
— Veneno? Ele está sofrendo dores? Posso...
— Ele está inconsciente — respondeu Jessica. — Seus processos vitais estão tão lentos que apenas podem ser detectados pelas mais refinadas técnicas. Estremeço só em pensar no que poderia ter acontecido, se não fosse eu a encontrá-lo. Ele parece estar morto, para um olhar não-treinado.”
— Você tem outras razões, além da cortesia, para me chamar até aqui. Eu a conheço, Reverenda Madre. O que acredita que eu possa fazer que você não pode?
“Ela é valente, adorável e... ahhh... tão perspicaz”, pensou Jessica. “Daria uma ótima Bene Gesserit.”
— Chani, você pode achar isso difícil de acreditar, mas eu não sei precisamente por que mandei buscá-la. Foi instintivo... uma intuição básica. O pensamento veio-me espontaneamente: “Mande buscar Chani.”
Pela primeira vez Chani percebeu a tristeza na expressão de Jessica, a dor não-dissimulada modificando-lhe o olhar interior.
— Fiz tudo que sabia — disse. — E esse tudo... é tão além do que normalmente se supõe que ele signifique, que você acharia difícil imaginá-la. E no entanto... eu falhei.
— O velho companheiro Halleck — perguntou Chani —, é possível que ele seja um traidor?
— Não! O Gurney não.
As duas palavras resumiam toda uma conversação, e Chani percebeu as buscas, os testes... as memórias de antigos fracassos que se resumiam nessa simples negação.
Chani levantou-se, alisou seu manto manchado pelo deserto e disse:
— Leve-me até ele.
Jessica ergueu-se e virou para a esquerda, passando pelas cortinas sobre a parede.
Chani a seguiu, encontrando-se no que devia ter sido um depósito, suas paredes rochosas agora ocultas sob pesadas cortinas.
Paul encontrava-se sobre uma maca de campanha encostada a uma parede. A luz de um único globo luminoso iluminava-lhe o rosto. Um manto negro o cobria até o peito, deixando os braços de fora, estendidos ao longo do corpo. Ele parecia estar despido sob o manto. A pele exposta parecia cera, rígida. Não havia movimento visível.
Chani suprimiu o impulso de se lançar para a frente, atirando-se sobre ele. Descobriu que seus pensamentos voltavam-se para seu filho, Leto, e percebeu que também Jessica, uma vez, havia enfrentado um momento como esse. Com o homem que amava ameaçado pela morte, forçando sua mente a se concentrar no que poderia ser feito para salvar seu jovem filho. Essa conscientização formou um elo súbito com a mulher mais velha, e Chani segurou-lhe a mão. O aperto, em resposta, foi doloroso em sua intensidade.
— Ele vive — disse Jessica. — Asseguro-lhe que ele vive. Mas o fio da vida se encontra tão tênue que pode escapar facilmente à detecção. Já existem alguns, entre os líderes, murmurando que é a mãe que fala e não a Reverenda Madre, que meu filho se encontra realmente morto, e eu me recuso a entregar sua água para a tribo.
— Há quanto tempo ele está assim? — indagou Chani, soltando a mão de Jessica e movendo-se para dentro do aposento.
— Três semanas. Passei quase uma semana tentando reanimá-lo. Houve reuniões, discussões... investigações. Então eu mandei buscá-la. Os Fedaykin obedecem a minhas ordens, de outro modo eu não teria sido capaz de retardar a... — Umedeceu os lábios com a língua, observando Chani se aproximar de Paul.
Ela encontrava-se sobre ele agora, olhando para a barba fina de jovem que lhe emoldurava o rosto, traçando com os olhos a linha alta das sobrancelhas, o nariz forte, os olhos fechados. Feições tão calmas nesse rígido repouso.
— Como ele recebe sua nutrição? — indagou ela.
— As exigências de sua carne são tão pequenas que ele ainda não necessitou de comida — respondeu Jessica.
— Quantas pessoas sabem o que aconteceu?
— Somente seus assessores mais próximos, alguns líderes, os Fedaykin e, é claro, quem quer que tenha administrado o veneno.
— Não existe nenhum indício quanto ao envenenador?
— E não é por falta de desejo em investigar.
— O que dizem os Fedaykin?
— Eles acham que Paul se encontra num transe sagrado, reunindo seus santos poderes para a batalha final. Este é um pensamento que eu tenho cultivado.
Chani ajoelhou-se ao lado da maca, e inclinou-se para junto do rosto de Paul. Sentiu uma diferença imediata no ar ao redor de sua face... mas era apenas a especiaria, o onipresente odor que permeava tudo na vida de um Fremen. Ainda assim...
— Você não nasceu no meio da especiaria como eu — disse Chani. — Já investigou a possibilidade de que seu corpo se tenha rebelado contra o excesso de especiaria em sua dieta?
— Os testes de reações alérgicas foram negativos — respondeu Jessica.
Fechou os olhos, tanto para apagar essa cena como por causa da súbita consciência de sua fadiga. “Há quanto tempo eu não durmo?”, perguntou ela de si para si. “Muito tempo.”
— Quando você muda a Água da Vida — explicou Chani —, você o faz dentro de si própria, pela consciência interna. Já usou essa consciência para testar-lhe o sangue?
— Sangue Fremen normal. Completamente adaptado à dieta e à vida aqui.
Chani sentou-se sobre os calcanhares, submergindo em si mesma enquanto estudava o rosto de Paul. Tratava-se de um truque que aprendera ao observar as Reverendas Madres. O tempo podia ser colocado para servir à mente. Bastava concentrar toda a atenção...
Daí a pouco ela disse:
— Há um produtor aqui?
— Existem vários — respondeu Jessica, com um toque de cansaço. — Nós não ficamos sem eles nestes dias. Cada vitória requer uma bênção. Cada cerimônia, antes de um reide...
— Mas Paul Muad'Dib tem-se mantido afastado dessas cerimônias.
Jessica acenou afirmativamente, lembrando-se dos sentimentos ambivalentes que seu filho nutria em relação à droga da especiaria, e à consciência presciente que ela lhe trazia.
— Como sabe disso? — indagou ela.
— Tem sido comentado.
— Comentado demais — reconheceu Jessica amargamente.
— Traga-me a água bruta de um produtor — pediu Chani.
Jessica enrijeceu-se ante o tom de comando na voz dela, observou a intensa concentração na fisionomia da jovem mulher e disse:
— Imediatamente. — Saiu através das cortinas para chamar um encarregado da água.
Chani continuou olhando para Paul. “Se ele tentou fazer isso”, pensava ela. “É o tipo de coisa que ele poderia tentar...”
Jessica ajoelhou-se ao lado dela segurando uma jarra de campanha. O cheiro forte do veneno penetrava nas narinas de Chani.
Ela mergulhou o dedo no fluido e levou-o para junto do nariz de Paul.
A pele, ao longo da ponta do nariz, enrugou-se levemente. Lentamente, as narinas se dilataram.
Jessica soltou uma exclamação de espanto.
Chani tocou com o dedo molhado o lábio superior de Paul. Ele inspirou profundamente.
— O que significa isso? — quis saber Jessica.
— Acalme-se. Deve converter uma pequena quantidade de água sagrada. Rápido!
Sem questionar, porque reconhecera o tom perceptivo da voz de Chani, Jessica levou a jarra até a boca, sorvendo um pequeno gole.
Os olhos de Paul se abriram. Ele olhou para cima em direção a Chani.
— Não é necessário que ela mude a Água — disse ele com a voz fraca mas nítida.
Jessica, com um gole de fluido sobre a língua, viu seu corpo entrar em ação, convertendo o veneno quase automaticamente.
Na leve aceleração que a cerimônia sempre produzia nos sentidos ela percebeu um brilho vital emanando de Paul, uma radiação que se imprimia em sua consciência. E naquele instante ela percebeu.
— Você bebeu da água sagrada!
— Apenas uma gota — respondeu Paul. — Tão pequena... uma gota...
— Como pôde fazer uma coisa tão tola?
— Ele é seu filho — comentou Chani.
Jessica olhou furiosa para ela.
Um raro sorriso, afetuoso e cheio de compreensão, surgiu nos lábios de Paul.
— Ouça minha amada — disse. — Escute o que ela diz, mãe. Ela sabe.
— Uma coisa que outros podem fazer ele deve fazer — observou Chani.
— Quando eu tive a gota em minha boca, quando a provei e senti, quando percebi o que ela estava fazendo comigo, então eu soube que poderia fazer aquilo que você fez. Suas inspetoras Bene Gesserit falam do Kwisatz Haderach, mas elas não podem imaginar os lugares em que estive nos poucos minutos em que eu... — Parou, olhando para Chani com uma expressão intrigada. — Chani? O que está fazendo aqui? Você devia estar... Por que está aqui?
Ele tentou se erguer, apoiando-se nos cotovelos. Chani o pressionou de volta, delicadamente.
— Por favor, meu Usul.
— Sinto-me tão fraco — disse ele, os olhos movendo-se para observar ao redor. — Há quanto tempo estou aqui?
— Esteve três semanas num estado de coma tão profundo que a centelha da vida parecia ter-lhe escapado — respondeu Jessica.
— Mas foi... apenas um momento atrás e...
— Um momento para você, três semanas de medo para mim.
— Foi apenas uma gota, mas eu a converti. Mudei a Água da Vida. — Antes que Jessica ou Chani pudessem impedi-lo, Paul mergulhou sua mão no frasco que elas haviam deixado no piso ao seu lado, e levou a mão gotejante à boca, engolindo todo o liquido contido na palma.
— Paul! — gritou Jessica.
Ele segurou-lhe a mão, encarando-a com um sorriso de morte, e Jessica sentiu-lhe a consciência penetrando em sua mente.
A união não era afetuosa, nem tão completa e compartilhada como fora com Alia ou com a Velha Reverenda Madre na caverna... mas era uma união: um sentimento de identidade compartilhada em todo o ser. Aquilo a sacudiu e enfraqueceu, e ela se encolheu em sua mente, com medo dele. Falando alto, disse:
— Você fala de um lugar onde não pode entrar? Mostre-me onde fica o lugar que as Reverendas Madres não podem ver. — Jessica sacudiu a cabeça, aterrorizada pelo pensamento. — Mostre-o para mim! — ordenou ele.
— Não!
Mas sabia que não podia escapar. Empurrada pela força terrível que dele emanava, ela fechou os olhos e focalizou para dentro... na direção-que-era-escura.
A consciência de Paul fluiu através dela, e à sua volta, na escuridão. Jessica vislumbrou fracamente um lugar, antes que sua mente se apagasse de terror. Sem que soubesse por quê, todo o seu corpo tremia com o que tinha visto. Uma região onde um vento soprava e centelhas brilhavam, onde anéis luminosos se expandiam e se contraíam, onde filas de formas brancas, tumescentes, fluíam por cima e por baixo das luzes, impulsionadas pela escuridão e por um vento que vinha de parte alguma.
Pouco depois ela abriu os olhos, vendo que Paul a observava.
Ele ainda segurava sua mão, mas a união terrível se fora. Ela dominou seus tremores, e Paul soltou-lhe a mão. Era como se alguma muleta tivesse sido removida. Jessica cambaleou, levantando-se e retrocedendo. Teria caído, se Chani não saltasse para ampará-la.
— Reverenda Madre! — disse Chani — o que está errado?
— Cansada — murmurou Jessica. — Tão... cansada.
— Aqui — mostrou Chani. — Sente-se aqui. — Ajudou Jessica a se acomodar em uma almofada, junto da parede.
Seus braços jovens e fortes pareciam tão bons a Jessica. Ela se agarrou a Chani.
— Ele realmente compreendeu a Água da Vida? — indagou Chani, soltando-se das mãos de Jessica.
— Ele compreendeu — sussurrou, a mente ainda oscilando e ondulando com o contato. Era como saltar em terra firme depois de semanas em mar agitado. Sentia a Velha Reverenda Madre dentro dela... e todas as outras que a haviam precedido despertarem indagando:
— O que era aquilo? O que aconteceu? Onde era aquele lugar?
E através de tudo isso permeava a compreensão de que seu filho era o Kwisatz Haderach, aquele que pode se encontrar em muitos lugares ao mesmo tempo. Ele era o fato brotando do sonho Bene Gesserit, e essa realidade não lhe dava paz.
— Que aconteceu? — insistiu Chani.
Jessica sacudiu a cabeça. Paul explicou:
— Existe, dentro de cada um de nós, uma força ancestral que tira, e uma força ancestral que dá. Um homem encontra pouca dificuldade em encarar aquele lugar, dentro de si mesmo, onde habita a força que tira, mas é quase impossível para ele fitar a força que dá, sem se transformar em alguma coisa diferente de um homem. Para uma mulher, a situação é revertida.
Jessica olhou para cima, encontrando Chani a fitá-la enquanto ouvia Paul.
— Você me compreende, mãe? — indagou ele.
Ela só podia acenar que sim.
— Essas coisas são tão antigas dentro de nós — continuou ele —, que se encontram enraizadas dentro de cada célula individual de nossos corpos. Nós somos moldados por essas forças. Você pode dizer para si mesma: “Sim, percebo como tal coisa pode ser.” Mas quando olha para dentro, e confronta a força pura de sua própria vida exposta, você percebe seu perigo. Percebe que poderia ser dominada completamente por ela, esmagada. O maior perigo para aquele que Dá é a força que toma. O maior perigo para o que Toma, é a força que dá. É tão fácil ser dominado pelo dar como pelo tomar.”
— E você, meu filho — indagou Jessica —, é aquele que dá ou aquele que toma?
— Eu sou o fulcro. Eu não posso dar sem tomar, e não posso tomar sem... — Paul se interrompeu, olhando para a parede à sua direita.
Chani sentiu uma brisa em seu rosto, voltou-se para ver as cortinas fechando.
— Era Otheym — disse Paul. — Ele estava escutando.
Aceitando as palavras, Chani sentiu-se tocada por uma parte da presciência que atormentava Paul, e conheceu uma coisa-que-ainda-ia-ser, como se já houvesse ocorrido: Otheym iria falar o que vira e ouvira, outros iriam espalhar a história, até que ela se houvesse tornado um fogo sobre a terra. Paul Muad'Dib não era como os outros homens, eles iriam dizer. Não pode haver mais dúvida. Ele é um homem, e no entanto ele enxerga através da Água da Vida como uma Reverenda Madre. Ele é, de fato, o Lisan al-Gaib.
— Você viu o futuro, Paul — disse Jessica. — Vai dizer o que viu?
— Não o futuro — respondeu. — Eu vi o Agora. — Forçou-se para uma posição sentada, acenando para que Chani se afastasse, quando ela se moveu para ajudá-lo. — O Espaço acima de Arrakis está repleto de naves da Corporação.
Jessica estremeceu ante a certeza em sua voz.
— O próprio Imperador Padishah se encontra aqui — disse Paul, olhando para o teta rochoso de sua cela —, com sua Reveladora da Verdade favorita, e cinco legiões de Sardaukar. O velho Barão se encontra aqui, com Thufir Hawat ao seu lado e sete naves abarrotadas com cada recruta que ele pôde conseguir. Cada uma das Grandes Casas tem seus guerreiros sobre nós... esperando.
Chani sacudiu a cabeça, incapaz de tirar os olhos de Paul. Sua estranheza, o tom monótono em sua voz, o modo como ele parecia olhar através dela a enchiam de espanto e admiração.
Jessica tentou engolir com a garganta seca.
— O que é que eles estão esperando?
Paul olhou para ela.
— A permissão da Corporação para que possam pousar. A Corporação abandonará, em Arrakis, qualquer força que pouse sem permissão.
— A Corporação está nos protegendo? — indagou Jessica.
— Nos protegendo! A própria Corporação causou isso, ao espalhar histórias sobre o que estamos fazendo aqui, e reduzindo as tarifas de transporte de tropas a um ponto em que até as Casas mais pobres estão lá em cima, agora, esperando para nos atacar.
Jessica notou a ausência de amargura em seu tom de voz e admirou-se. Não podia duvidar de suas palavras, ela as ouvira, com a mesma intensidade, naquela noite em que lhe revelava a trilha do futuro que os tinha conduzido entre os Fremen.
Paul respirou fundo, depois disse:
— Mãe, você deve mudar uma quantidade da Água para nós. Nós precisamos do catalisador. Chani, mande uma força de batedores partir para... encontrar massa de pré-especiaria. Se nós plantarmos uma quantidade de Água da Vida em cima de uma massa de pré-especiaria, você sabe o que irá acontecer?
Jessica mediu suas palavras, e de repente viu o significado.
— Paul! — exclamou ela, ofegante.
— A Água da Morte — respondeu ele. — Será uma reação em cadeia. — Ele apontou para o solo. — Espalhando a morte entre os pequenos produtores, matando o vetor do ciclo vital, que inclui a especiaria e os produtores. Arrakis se tornará uma verdadeira desolação... sem especiaria ou produtores.
Chani levou a mão aos lábios, chocada, num silêncio atordoado pela blasfêmia que se derramava dos lábios de Paul.
— Aquele que pode destruir uma coisa a controla. Nós podemos destruir a especiaria.
— O que segura a mão da Corporação? — sussurrou Jessica.
— Eles estão procurando por mim — respondeu Paul. — Pense nisso! Os melhores navegadores da Corporação, homens que podem sondar adiante através do tempo, encontrando o curso mais seguro para os Heighliners mais velozes. Todos eles procurando por mim... e incapazes de me encontrar. Como eles tremem! Eles sabem que eu possuo o seu segredo aqui! — Paul ergueu a mão em concha. — Sem a especiaria, eles estão cegos!
Chani recuperou sua voz:
— Disse que vê o “agora”?
Paul recostou-se, observando a extensão do “presente”, seus limites que se estendiam para o futuro e o passado, mantendo sua visão com dificuldade, à medida que a iluminação produzida pela especiaria começava a diminuir.
— Faça como ordenei — disse ele. — O futuro está se tornando confuso para a Corporação, assim como para mim. As linhas de visão estão se estreitando. Tudo se focaliza aqui, onde a especiaria se encontra... onde eles não se atreveram a interferir anteriormente... porque interferir significava perder o que possuíam.
Mas agora eles estão desesperados. Todos os caminhos conduzem à escuridão.
E o dia raiou quando Arrakis se encontrava no eixo do universo, com a roda pronta para girar.
— de O Despertar de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
— Dê uma olhada naquela coisa! — sussurrou Stilgar.
Paul encontrava-se ao lado dele, em uma fenda na rocha, sobre a borda da Muralha Escudo, olhos fixos no coletor de um telescópio Fremen. A lente de óleo encontrava-se focalizada em uma pequena nave estelar, exposta sob a luz da aurora, na depressão abaixo deles. A elevada face leste da nave brilhava sob a luz do sol, mas o lado na sombra ainda exibia vigias brilhando amareladas, com a luz noturna dos globos luminosos. Além da nave, a cidade de Arrakeen estendia-se, fria e reluzente, na luz do sol do norte.
Não era a nave que produzia admiração em Stilgar, Paul bem o sabia, mas a construção da qual ela era apenas o poste central.
Uma única tenda de metal, com muitos andares de altura, estendendo-se num círculo de mil metros ao redor da base da nave ligeira.
Uma tenda formada por folhas de metal encaixadas. O alojamento temporário para cinco legiões de Sardaukar e sua majestade imperial, o Imperador Padishah Shaddam IV.
De sua posição, agachado à esquerda de Paul, Gurney Halleck disse:
— Eu conto nove andares. Deve haver um bocado de Sardaukar ali.
— Cinco legiões — disse Paul.
— Está ficando claro — sussurrou Stilgar. — Não gosto disto, Muad'Dib, está se expondo. Vamos voltar para as rochas, agora.
— Estou perfeitamente seguro aqui.
— Aquela nave possui armas lançadoras de projéteis — disse Gurney.
— Eles acreditam que estamos protegidos por escudos respondeu Paul. — Não se arriscariam a desperdiçar um disparo num trio não identificado, mesmo se nos vissem.
Paul girou o telescópio para esquadrinhar a muralha oposta da depressão, vendo os penhascos cheios de perfurações, com os desmoronamentos que marcavam as tumbas de tantos soldados de seu pai. Naquele momento, ele teve uma impressão da adequação daquele cenário. Como era justo que as sombras dos homens de seu pai assistissem a esse momento. Os fortes dos Harkonnen e suas cidades, através das terras abrigadas, encontravam-se em poder dos Fremen, ou então isolados de suas fontes, como ramos cortados de uma planta, deixados para murchar. Apenas essa depressão e essa cidade ainda restavam nas mãos do inimigo.
— Eles podem tentar uma surtida com “tópteros” — disse Stilgar —, se nos virem aqui.
— Deixe que o façam. Teremos mais “tópteros” para queimar hoje... e sabemos que uma tempestade se aproxima.
Virou o telescópio para o lado oposto do campo de pouso de Arrakeen, visando as fragatas Harkonnen alinhadas lá. Uma bandeira da Companhia CHOAM ondulava suavemente em seu mastro, espetado no solo abaixo delas.
Paul pensou no desespero que forçara a Corporação a permitir que esses dois grupos pousassem, enquanto todos os outros eram mantidos na reserva. A Corporação era como um homem testando a areia com o dedo do pé, para verificar sua temperatura antes de erguer uma tenda.
— Existe algo novo para se ver daqui? — indagou Gurney. — Nós devíamos estar nos abrigando. A tempestade se aproxima.
Paul voltou sua atenção para a tenda gigante.
— Eles trouxeram até mesmo suas mulheres. E servos e lacaios. Ahh, meu querido Imperador, como és confiante.
— Os homens estão voltando pelo caminho secreto — avisou Stilgar. — Podem ser Otheym e Korba, retornando.
— Certo, Stil — concordou Paul. — Vamos voltar.
Ainda assim ele deu uma olhada final através do telescópio, estudando a planície com suas altas naves, a brilhante tenda metálica, a cidade silenciosa e as fragatas dos mercenários Harkonnen. Então deslizou para trás, em torno de uma escarpa de rocha, seu posto no telescópio sendo ocupado por um vigia Fedaykin.
Paul saiu para uma depressão rasa na superfície da Muralha Escudo. Era um lugar com aproximadamente trinta metros de diâmetro e três metros de profundidade, uma escavação natural da rocha que os Fremen haviam escondido embaixo de uma cobertura de camuflagem translúcida. O equipamento de comunicações fora aglomerado em torno de um buraco, na parede à direita. Guardas Fedaykin espalhados através da depressão esperavam pela ordem de ataque do Muad'Dib.
Dois homens emergiram do buraco junto ao equipamento de comunicações, e falaram com os guardas ali postados.
Paul olhou para Stilgar, e acenou na direção dos dois homens.
— Pegue o relatório deles, Stil.
Stilgar moveu-se para obedecer.
Paul agachou-se com as costas na rocha, esticou os músculos, depois se levantou. Viu Stilgar enviando os dois homens de volta através daquele orifício escuro na rocha, e pensou na longa descida através daquele túnel feito pelo homem, até o fundo da depressão.
Stilgar se aproximou.
— O que era tão importante, que eles não podiam enviar um cielago com a mensagem? — indagou Paul.
— Eles estão poupando seus pássaros para a batalha — respondeu Stilgar, e imediatamente olhou para o equipamento de comunicações. — Mesmo com um feixe estreito, é errado usar essas coisas, Muad'Dib. Eles podem nos localizar determinando a posição do emissor.
— Eles logo estarão ocupados demais para me encontrar — respondeu Paul. — Que foi que os homens relataram?
— Nossos queridos Sardaukar desembarcaram perto da Velha Falha, abaixo, no anel de montanhas, e estão a caminho agora para se unirem a seu senhor. Os lançadores de foguetes e outras armas de projéteis estão posicionados. As pessoas foram posicionadas como ordenou. Foi tudo rotina.
Paul olhou através da tigela rasa em que se encontravam, observando seus homens na luz filtrada admitida pela cobertura camuflada. Sentiu o tempo se arrastando, como um inseto a avançar sobre uma rocha exposta.
— Nossos Sardaukar vão levar algum tempo avançando a pé, antes que possam sinalizar para um transporte de tropas. Eles estão sendo vigiados?
— Eles estão sendo vigiados — repetiu Stilgar, em resposta.
Ao lado de Paul, Gurney Halleck pigarreou.
— Não seria melhor nos colocarmos num lugar seguro?
— Não existe tal lugar — respondeu Paul. — O relatório do tempo ainda é favorável?
— A Avó de todas as tempestades se aproxima — disse Stilgar. — Não pode senti-la, Muad'Dib?
— O ar parece favorável, mas eu gosto de certeza na previsão do tempo.
— A tempestade estará aqui dentro de uma hora — explicou Stilgar, acenou para a fenda que se abria na direção dos alojamentos do imperador e das fragatas Harkonnen. — Eles também sabem disso. Não há um “tóptero” no céu. Tudo está trancado e amarrado. Eles tiveram um relatório meteorológico de seus amigos lá no espaço.
— Houve mais algum ataque de sondagem?
— Nada, desde o pouso da noite passada — respondeu Stilgar.
— Eles sabem que estamos aqui, e aguardam para escolher sua hora.
— Nós escolheremos a hora.
Gurney olhou para o alto e grunhiu.
— Se eles nos permitirem...
— Aquela frota vai ficar no espaço — disse Paul.
Gurney sacudiu a cabeça.
— Eles não têm escolha — explicou Paul. — Nós podemos destruir a especiaria. A Corporação não se atreveria a arriscar isso.
— Gente desesperada é a mais perigosa — comentou Gurney.
— Não somos nós também desesperados? — indagou Stilgar.
Gurney olhou carrancudo.
— Você não viveu o sonho dos Fremen — advertiu Paul. — Stil está pensando em toda a água que gastamos em subornos, nos anos de espera, antes que Arrakis possa florescer. Ele não...
— Arrrgh — resmungou Halleck.
— Por que é ele tão lúgubre? — perguntou Stilgar.
— Ele é sempre assim antes da batalha. É a única forma de bom humor que o Gurney se permite.
Lentamente, um sorriso cruel espalhou-se pelo rosto de Gurney, seus dentes aparecendo brancos, acima da máscara do traje-destilador.
— Fico lúgubre só de pensar em todas as pobres almas Harkonnen que vamos despachar sem confissão.
Stilgar riu.
— Ele fala como um Fedaykin.
— Gurney já nasceu um comando da morte — disse Paul e pensou: “Sim, deixe que eles ocupem a mente com trivialidades antes que sejamos testados contra aquela força lá na planície.”
Olhou para a fenda na rocha, depois de volta para Gurney, descobrindo que o guerreiro-trovador voltara à sua carranca pensativa.
— A preocupação subtrai a força — murmurou Paul. — Disse-me isso uma vez, Gurney.
— Meu Duque — respondeu ele. — Minha principal preocupação é quanto aos atômicos. Se usá-los para abrir um buraco na Muralha Escudo...
— Aquelas pessoas lá em cima não usarão armas atômicas contra nós. Eles não se atreveriam... pela mesma razão por que não podem se arriscar a que venhamos a destruir sua fonte de especiaria.
— Mas a prescrição contra...
— A prescrição! — retrucou Paul. — É o medo, não a prescrição, que impede as Casas de lançarem armas atômicas umas contra as outras. A linguagem da Grande Convenção é suficientemente clara: “Uso de armas atômicas contra humanos será causa para obliteração planetária.” Nós vamos explodir a Muralha Escudo, não seres humanos.
— É uma distinção muito sutil.
— Os especialistas em sutilezas, lá em cima, aceitarão de bom grado qualquer justificativa. Não vamos mais falar nisso.
Paul virou-se, desejando poder se sentir tão confiante na verdade. Daí a pouco disse:
— E quanto às pessoas na cidade? Já tomaram posição?
— Sim — murmurou Stilgar.
Paul olhou diretamente para ele:
— O que o incomoda?
— Jamais conheci um homem de cidade em quem se pudesse confiar inteiramente.
— Eu já fui um homem de cidade.
Stilgar enrijeceu-se. Seu rosto cobriu-se de rubor.
— Muad'Dib sabe que eu não pretendia...
— Sei o que pretendia dizer, Stil. Mas o teste de um homem não é o que você acha que ele vai fazer. É o que ele realmente faz. Essa gente da cidade tem sangue Fremen. Apenas não aprendeu ainda a escapar de sua escravidão. Nós ensinaremos...
Stilgar acenou com a cabeça, falando num tom de arrependimento:
— São os hábitos de uma vida inteira, Muad'Dib. Na Planície Funerária aprendemos a desprezar os homens das comunidades.
Paul olhou para Gurney, notando que ele observava Stilgar.
— Diga-nos, Gurney, por que a gente da cidade, lá embaixo, foi retirada de suas casas pelos Sardaukar?
— Um velho truque, meu Duque. Eles pensaram em nos sobrecarregar com refugiados.
— Faz tanto tempo, desde a época em que as guerrilhas eram eficientes, que eles podem ter se esquecido de como combatê-las — disse Paul. — Os Sardaukar nos ajudaram. Eles apanharam algumas mulheres da cidade para se divertirem com elas, decoraram seus estandartes de batalha com as cabeças dos homens que fizeram objeção a isso. Desse modo, criaram um ódio febril entre gente que, de outro modo, teria. considerado a batalha que se aproxima como apenas um grande incômodo... a possibilidade de trocar um conjunto de patrões por outro... Os Sardaukar estão recrutando homens para nós, Stilgar.
— O povo da cidade parece ávido para lutar — concordou Stilgar.
— Seu ódio é recente e claro — explicou Paul. — É por isso que vamos usá-los como tropa de choque.
— O massacre entre eles será terrível — comentou Gurney, e Stilgar assentiu, concordando.
— Eles foram esclarecidos quanto às chances — respondeu Paul. — Sabem que cada Sardaukar que matarem será um a menos para nós. Como vêem, cavalheiros, eles têm algo por que morrer. Descobriram que são um povo. Estão despertando.
Um murmúrio de espanto partiu do vigia no telescópio. Paul dirigiu-se para a fenda na rocha e indagou:
— Que foi que houve lá embaixo?
— Uma grande agitação, Muad'Dib. Naquela monstruosa tenda de metal. Um carro de superfície chegou da Muralha Leste e foi como um falcão entrando num ninho de perdizes das rochas.
— Nossos prisioneiros Sardaukar chegaram, então — comentou Paul.
— Agora eles colocaram um escudo ao redor do campo inteiro — disse o vigia. — Posso ver o ar tremulando até mesmo na extremidade dos armazéns onde eles guardam a especiaria.
— Agora eles sabem com quem estão lutando — comentou Gurney. — Deixe que as bestas Harkonnen tremam e se martirizem ante a constatação de que um Atreides ainda vive.
Paul deu instruções ao Fedaykin no telescópio.
— Observe o mastro da bandeira no topo da nave do Imperador. Se minha bandeira for erguida lá...
— Não vai ser — disse Gurney.
Paul percebeu a expressão intrigada no rosto de Stilgar e explicou:
— Se o Imperador aceitar minha reivindicação, seu sinal será restaurar a bandeira dos Atreides sobre Arrakis. Nesse caso, usaremos o segundo plano, atacando somente os Harkonnen. Os Sardaukar ficarão de lado e deixarão que resolvamos a questão entre nós.
— Eu não tenho experiência com essas coisas de fora do planeta — disse Stilgar. — Já ouvi falar nelas, mas me parece improvável que...
— Não é preciso experiência para saber o que eles vão fazer — comentou Gurney.
— Eles estão erguendo uma nova bandeira na nave alta — avisou o observador. — A bandeira é amarela... com um círculo negro e vermelho no centro.
— Eis uma resposta sutil — disse Paul. — A bandeira da Companhia CHOAM.
— É a mesma bandeira das outras naves — acrescentou o guarda Fedaykin.
— Eu não compreendo — disse Stilgar.
— De fato, uma resposta sutil — explicou Gurney. — Se ele houvesse hasteado a bandeira dos Atreides, seria obrigado a agüentar as repercussões desse ato. Há observadores demais por aqui. Ele poderia responder com uma bandeira Harkonnen. Isso seria uma declaração muito óbvia. Mas não... ele ergue a bandeira da CHOAM. Diz às pessoas lá em cima — Gurney apontou para o espaço — onde está o lucro. Está dizendo que não se importa se há um Atreides aqui ou não.
— Quanto tempo vai levar até que a tempestade atinja a Muralha Escudo? — perguntou Paul.
Stilgar voltou-se para consultar um dos Fedaykin no interior da tigela. Logo depois retornou dizendo
— Bem pouco, Muad'Dib. Mais cedo do que esperávamos. E é a avó de todas as tempestades... talvez até mesmo maior do que desejaria.
— É a minha tempestade — disse Paul, e viu o espanto e a admiração nos rostos dos Fedaykin mais próximos. — Se sacudir o mundo inteiro, não será mais do que desejei. Irá atingir a Muralha Escudo com força total?
— Passará suficientemente perto para causar o mesmo efeito — respondeu Stilgar.
Um correio saiu do buraco que levava até o fundo da depressão abaixo e relatou:
— Os Sardaukar e as patrulhas Harkonnen estão se recolhendo, Muad'Dib!
— Eles esperam que a tempestade derrame muita areia sobre a depressão para permitir boa visibilidade — comentou Stilgar.
— Pensam que vamos fazer o mesmo.
— Diga aos nossos artilheiros para ajustarem bem a pontaria antes que a visibilidade diminua — avisou Paul. — Eles devem arrancar o nariz de cada uma daquelas naves assim que a tempestade tenha destruído os escudos.
Caminhou para a parede da tigela, puxando uma dobra da cobertura camuflada para observar o céu. Os redemoinhos em forma de rabo-de-cavalo já podiam ser vistos contorcendo-se contra o céu escuro. Paul restaurou a cobertura e ordenou:
— Comece a enviar nossos homens, Stil.
— Não vem conosco? — indagou Stilgar.
— Vou esperar aqui um pouco com os Fedaykin.
Stilgar fez um gesto de compreensão em direção a Gurney, caminhou para o orifício nas rochas e desapareceu.
— O detonador que estoura a Muralha Escudo vai ficar em suas mãos, Gurney. Acha que pode fazê-la?
— Eu o farei.
Paul acenou para um tenente dos Fedaykin.
— Otheym, comece a mover as patrulhas de reconhecimento para fora da área da explosão. Elas devem ter saído de lá quando a tempestade nos atingir.
O homem se curvou e seguiu Stilgar.
Gurney inclinou-se sobre a fenda da rocha e falou com o homem ao telescópio
— Mantenha sua atenção sobre a muralha sul. Estará completamente sem defesas até que a estouremos.
— Envie um cielago com um sinal de tempo — ordenou Paul.
— Alguns carros de solo estão se movendo na direção da muralha sul — avisou o homem do telescópio. — Alguns deles estão usando armas de projéteis, testando-as. Nossa gente está usando escudos corporais, como ordenou. Os carros de solo pararam.
No abrupto silêncio, Paul ouviu os demônios de vento soprando acima — a frente da tempestade. A areia começou a escorrer para dentro da tigela através de brechas na cobertura. Uma rajada de vento apanhou a cobertura e a carregou.
Paul gesticulou para que os Fedaykin se abrigassem e correu em direção aos homens junto ao equipamento de comunicações ao lado do túnel. Gurney ficou a seu lado enquanto Paul se curvava sobre o sinaleiro. Alguém disse:
— A avó de todas as tempestades, Muad'Dib.
Paul olhou para o céu que escurecia e ordenou:
— Gurney, recolha os observadores da muralha sul.
Teve de repetir a ordem gritando acima do rugido crescente da tormenta.
Gurney voltou-se para obedecer.
Paul prendeu a máscara filtradora e ajustou o capuz do traje-destilador.
Gurney voltou.
Paul tocou-lhe o ombro, apontando para o detonador colocado na boca do túnel, além do sinaleiro. Gurney foi para lá, parando com uma das mãos sobre o disparador, os olhos voltados para Paul.
— Não estamos recebendo mensagens — avisou o sinaleiro ao lado de Paul. — Muita estática.
Paul assentiu, mantendo os olhos sobre o mostrador do tempo standard diante do homem. Depois olhou para Gurney, ergueu uma das mãos, voltando a atenção para o mostrador. O ponteiro arrastou-se em sua volta derradeira.
— Agora! — gritou Paul, abaixando a mão.
Gurney pressionou o detonador.
Pareceu que um segundo inteiro transcorrera antes que sentissem o chão ondular e sacudir embaixo deles. Um trovão ribombante adicionou-se ao rugido da tempestade.
O vigia Fedaykin apareceu ao lado de Paul, com o telescópio embaixo do braço.
— A Muralha Escudo está aberta, Muad'Dib! — gritou ele.
— A tempestade está em cima deles, e nossos artilheiros já estão disparando.
Paul pensou na tempestade varrendo o interior da depressão, a carga de eletricidade estática dentro da muralha de areia destruindo cada barreira-escudo no campo inimigo.
— A tempestade! — alguém gritou. — Devemos nos abrigar, Muad'Dib!
Paul compreendeu imediatamente, saindo de seu devaneio ao sentir as agulhas de areia picando a parte exposta de seu rosto.
“Agora estamos comprometidos”, pensou. Colocou o braço sobre o ombro do sinaleiro.
— Abandone o equipamento, há mais no túnel.
Sentiu-se arrastado, com os Fedaykin pressionando à sua volta para protegê-lo. Comprimiram-se através da entrada do túnel, sentindo o silêncio relativo, e viraram numa curva para atravessar uma pequena câmara com globos luminosos no teto e outra abertura de túnel adiante.
Outro sinaleiro colocara-se lá com seu equipamento de comunicações.
— Muita estática — avisou o homem.
Um redemoinho de areia encheu o ar ao redor.
— Selem o túnel! — gritou Paul. Uma súbita quietude revelou que a ordem fora obedecida. — O caminho para o interior da depressão está aberto? — indagou.
Um Fedaykin foi olhar e retornou, dizendo:
— A explosão causou alguns deslizamentos de rochas, mas os engenheiros dizem que está aberto. Eles estão limpando a passagem com raios laser.
— Diga-lhes para usarem as mãos! — gritou Paul. — Há escudos ativos lá embaixo?
— Eles estão sendo cuidadosos, Muad'Dib — disse o homem, mas voltou-se para obedecer.
O sinaleiro do lado externo passou por eles carregando seu equipamento.
— Eu disse àqueles homens que abandonassem o equipamento! — reclamou Paul.
— Os Fremen não gostam de abandonar equipamento, Muad'Dib — respondeu um dos Fedaykin.
— Homens são mais importantes do que equipamento neste instante. Logo teremos mais equipamento do que poderemos usar, ou não teremos mais necessidade de qualquer equipamento.
Gurney Halleck surgiu ao seu lado:
— Ouvi dizer que o caminho está aberto até lá embaixo. Aqui, estamos muito próximos da superfície se os Harkonnen resolverem contra-atacar do mesmo modo.
— Eles não se encontram em posição de contra-atacar — respondeu Paul. — Agora mesmo estão descobrindo que não têm mais escudos e lhes é impossível abandonar Arrakis.
— Todavia, o novo posto de comando está preparado, meu senhor.
— Ainda não precisam de mim no posto de comando. O plano será levado adiante sem mim. Devemos esperar pelo...
— Estou recebendo uma mensagem, Muad'Dib — avisou o sinaleiro junto do posto de comunicações. O homem sacudiu a cabeça, pressionando o fone do receptor contra a orelha. — Muita estática! — Começou a escrever num bloco a sua frente, sacudindo a cabeça, esperando, escrevendo... esperando.
Paul colocou-se ao seu lado. O Fedaykin recuou, dando-lhe espaço, Paul olhou para o que o homem havia escrito e leu:
— Ataque... em sietch Tabr... prisioneiros... Alia (espaço em branco) famílias dos (espaço em branco) mortos são... eles (espaço em branco) o filho do Muad'Dib.
Novamente o sinaleiro sacudiu a cabeça.
Paul olhou para cima, vendo que Gurney o observava.
— A mensagem tem muitas lacunas — disse Gurney. — A estática. Você não sabe se...
— Meu filho está morto! — exclamou Paul, sabendo, enquanto falava, que isso era verdade. — Meu filho está morto e... Alia foi capturada... como refém.
Sentiu-se vazio, uma casca sem emoções. A tudo que tocava trazia morte e dor. Era como uma doença que poderia espalhar-se pelo universo.
Sentia a sabedoria dos velhos, a acumulação de experiências de incontáveis vidas possíveis. Alguma coisa parecia rir e esfregar as mãos dentro de si.
E Paul pensou: “Quão pouco sabe o universo a respeito da natureza da verdadeira crueldade!”
E o Muad'Dib se colocou diante deles e disse: — Embora nós consideremos os prisioneiros como mortos, ainda assim ela vive. Pois sua semente é a minha semente e sua voz é a minha voz. E ela vê até os limites mais extremos das possibilidades. Dentro do vale do incompreensível, ela enxerga por minha causa.
— de O Despertar de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
O Barão Vladimir Harkonnen mantinha-se com os olhos baixos na câmara de audiência imperial, uma selamlik oval dentro da tenda do Imperador Padishah. Com olhares reservados, o Barão observara a sala de paredes metálicas e seus ocupantes: os noukkers, os pajens, os guardas, a tropa de Sardaukar da Casa alinhada diante das paredes, em posição de descansar, embaixo de bandeiras sangrentas e esfarrapadas, capturadas em batalha para constituírem a única decoração da sala.
Vozes soaram à direita da câmara, ecoando de uma passagem elevada:
— Abram caminho! Abram caminho para Sua Alteza Real!
O Imperador Padishah Shaddam IV entrou na câmara de audiência seguido por sua corte. Ficou esperando enquanto lhe traziam o trono, ignorando o Barão e aparentemente a todos na sala.
O Barão percebeu-se incapaz de ignorar Sua Alteza Real, e observou o Imperador em busca de um sinal, de algum indício do propósito dessa audiência. O Imperador mantinha-se altivo, esperando. Uma figura magra e elegante, em uniforme cinza de Sardaukar, com ornamentos dourados e prateados. O rosto magro e os olhos frios lembravam o Duque Leto, há tanto tempo morto. Lá estava a mesma aparência de ave de rapina. Mas o cabelo do Imperador era ruivo, não escuro, e a maior parte dele encontrava-se oculta pelo capacete negro de Burseg, com a crista imperial dourada sobre o topo.
Pajens trouxeram o trono. Uma cadeira maciça esculpida em uma única peça de quartzo Hagal — translúcida, azul-esverdeada, com fios de fogo amarelo. Eles a colocaram sobre uma plataforma. O Imperador subiu e sentou-se. Uma velha em manto negro, com um capuz cobrindo-lhe a testa, destacou-se da comitiva do Imperador e tomou posição ao lado do trono, uma de suas mãos esqueléticas repousando no recosto de quartzo. Seu rosto surgia de dentro do capuz como uma caricatura de bruxa — olhos e bochechas afundados, nariz muito comprido, pele manchada e veias salientes. O Barão procurou controlar seus temores ante a visão daquela criatura. A presença da Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, a Reveladora da Verdade do Imperador, mostrava a importância da audiência. O Barão afastou os olhos dela, observando o séquito em busca de um indício. Havia dois agentes da Corporação, um alto e gordo, o outro baixo e também gordo, ambos com olhos cinzentos. E entre os lacaios erguia-se uma das filhas do Imperador, a Princesa Irulan, mulher de quem diziam estar sendo treinada nos mais profundos conhecimentos Bene Gesserit com o fito de se tornar uma Reverenda Madre. Era alta e loura, com um rosto de pura beleza esculpida e olhos verdes que pareciam fitar através dele.
— Meu caro Barão. — O Imperador condescendera em notar-lhe a presença. A voz era de barítono, com elaborado controle. Conseguia menosprezá-la ao mesmo tempo em que o saudava. O Barão curvou-se totalmente e avançou para a posição requerida, a dez passos da plataforma do trono.
— Eu vim ao seu chamado, Majestade.
— Chamado! — riu-se a velha bruxa.
— Reverenda Madre! — ralhou o Imperador, ao mesmo tempo em que sorria ante o embaraço do Barão. — Primeiro me dirá aonde enviou seu assecla Thufir Hawat. O Barão olhou de relance para a esquerda e para a direita, arrependendo-se de ter vindo a esse lugar sem seus próprios guardas. Não que eles fossem de muita ajuda contra os Sardaukar. Ainda assim...
— Bem? — insistiu o Imperador.
— Ele saiu há cinco dias, Majestade. — Olhou rapidamente na direção dos agentes da Corporação, depois de volta para o Imperador. — Devia pousar em uma base de contrabandistas e tentar infiltrar-se no campo desse Fremen fanático, o tal Muad'Dib.
— Incrível! — exclamou o Imperador.
Uma das garras da bruxa bateu no ombro do Imperador. Ela inclinou-se para a frente, sussurrando em seu ouvido.
O Imperador acenou com a cabeça, concordando, e disse:
— Cinco dias, Barão. Diga-me então por que não está preocupado com sua ausência.
— Mas eu estou preocupado, Majestade!
O Imperador continuou a fitá-lo, esperando. A Reverenda Madre emitiu uma risada cacarejante.
— O que quero dizer, Majestade — continuou o Barão —, é que, de qualquer modo, Hawat estará morto dentro de mais algumas horas.
E falou ao Imperador sobre o veneno latente e a necessidade do antídoto.
— Que inteligente, Barão! E onde se encontram os seus sobrinhos, Rabban e Feyd-Rautha?
— A tempestade se aproxima, Majestade. Eu os mandei inspecionar o nosso perímetro para o caso de os Fremen atacarem sob a cobertura da areia.
— Perímetro — disse o Imperador. A palavra saiu como se lhe enrugasse a boca. — A tempestade não nos afetará muito aqui na depressão e aquela escória Fremen não vai atacar enquanto eu estiver aqui, com cinco legiões de Sardaukar.
— Certamente que não, Majestade — concordou o Barão. — Mas um erro no lado da cautela não pode ser censurado.
— Ahhh! Censura. Então eu não devo falar sobre quanto tempo essa tolice de Arrakis tem me tomado? Nem nos lucros da Companhia CHOAM derramando-se neste buraco de rato? Ou das obrigações da corte, dos negócios de Estado que tive de retardar, até mesmo cancelar, por causa deste problema estúpido?
O Barão abaixou a cabeça, assustado pela raiva do Imperador.
A delicadeza de sua posição, sozinho e dependente da Convenção do dictum família das Grandes Casas, o inquietava. “Será que ele tenciona me matar?”, pensou. “Ele não pode! Não com as demais Grandes Casas aguardando lá em cima, esperando qualquer desculpa para lucrar com essa revolta em Arrakis.”
— Conseguiu algum refém? — indagou o Imperador.
— É inútil, Majestade — respondeu o Barão. — Esses loucos desses Fremen realizam uma cerimônia fúnebre para cada prisioneiro e agem como se ele já estivesse morto.
— Ah, sim?
O Barão aguardou, olhando para a direita e para a esquerda, na direção das paredes metálicas da selamlik, pensando na monstruosa tenda de fanmetal à sua volta. A riqueza ilimitada que ela representava deixava perplexo até mesmo o Barão. “Ele traz pajens”, pensou, “e inúteis lacaios da corte, suas mulheres e companheiros. Cabeleireiros, costureiros, projetistas, tudo... todos os parasitas da corte. Todos aqui, bajulando, tramando, pavoneando-se ante o Imperador... todos aqui para vê-lo pôr um fim no caso Arrakis, para escrever epigramas sobre as batalhas e idolatrar os feridos.”
— Talvez você nunca tenha procurado o tipo certo de reféns — disse o Imperador.
“Ele sabe de alguma coisa”, concluiu o Barão. O medo desceu como uma pedra em seu estômago, até que nem pudesse pensar em comer. E no entanto o sentimento era como a fome, e ele se ergueu várias vezes em seus suspensores como se fosse ordenar que lhe trouxessem comida. Mas não havia ninguém por perto para obedecer aos seus pedidos.
— Tem alguma idéia de quem pode ser esse Muad'Dib? indagou o Imperador.
— Um dos Umma, certamente — respondeu o Barão. — Um Fremen fanático, um aventureiro religioso. Eles surgem regularmente nas fronteiras da civilização. Vossa Majestade bem o sabe.
O Imperador olhou para a Reveladora da Verdade, depois voltou o rosto carrancudo para o Barão.
— E não possui qualquer outra informação quanto a esse Muad'Dib?
— Trata-se de um louco, Majestade. Mas afinal todos os Fremen são um pouco loucos.
— Louco?
— Sua gente grita o seu nome ao lançar-se à luta. As mulheres jogam seus recém-nascidos contra nós e se atiram sobre nossas facas a fim de abrir caminho para seus homens. Eles não têm nenhuma... nenhuma... decência!
— Tão ruim assim? — murmurou o Imperador, o tom de desprezo não passando despercebido ao Barão. — Diga-me, caro Barão, já mandou investigar as regiões em torno do pólo sul de Arrakis?
O Barão olhou para o Imperador, chocado com a súbita mudança de assunto.
— Mas... bem, como sabe, Majestade, toda aquela região é inabitável, aberta aos ventos e aos vermes. Não há nem mesmo especiaria naquelas latitudes.
— Não recebeu relatórios das naves de transporte de especiaria, falando de pequenas extensões verdes aparecendo por lá?
— Sempre houve tais relatórios. Alguns deles foram averiguados há muito tempo. Certas plantas foram vistas. Muitos “tópteros” foram perdidos. Demasiado custoso, Majestade. Trata-se de um lugar onde os homens não podem sobreviver por muito tempo.
— Então... — disse o Imperador.
Estalou os dedos e uma porta se abriu à sua esquerda, por trás do trono. Por ela saíram dois Sardaukar conduzindo uma menininha que parecia ter quatro anos de idade. Ela usava um manto aba negro, com o capuz jogado para trás revelando os cordões de um traje-destilador pendendo livres sobre sua garganta. Seus olhos tinham o azul dos Fremen, dominando um rosto redondo e macio.
Ela não demonstrava medo e em seu olhar havia algo que fazia com que o Barão se sentisse ainda menos à vontade, sem que pudesse explicar a razão.
Até mesmo a velha Reveladora da Verdade Bene Gesserit recuou ante a passagem da criança, fazendo um sinal de cautela em sua direção. A velha bruxa fora obviamente abalada por aquela presença.
O Imperador pigarreou para falar, mas a menina falou primeiro.
Voz fraca, com traços de um balbuciar causado pelo palato ainda mole, mas não obstante muito clara.
— Então, aqui está ele — disse, avançando até a borda da plataforma do trono. — Não parece grande coisa, parece? Um velho gordo e assustado, fraco demais para agüentar a própria carne sem a ajuda de suspensores.
Uma declaração tão inesperada, partindo da boca de uma criança, fez o Barão olhar para ela, sem fala, a despeito de sua raiva.
“Será uma anã?”, indagou a si mesmo.
— Meu caro Barão — disse o Imperador —, conheça a irmã do Muad'Dib.
— A ir... — O Barão voltou sua atenção para o Imperador.
— Mas eu não compreendo.
— Eu também, algumas vezes, erro pelo lado da cautela. Têm-me relatado que suas regiões em torno do pólo sul, ditas inabitáveis, mostram evidências de atividade humana.
— Mas isso é impossível! — protestou o Barão. — Os vermes... a areia é aberta aos...
— Essa gente parece capaz de evitar os vermes — explicou o Imperador.
A criança sentou-se na borda da plataforma ao lado do trono, os pés balançando. Havia uma aparência de total confiança no modo como ela observava ao redor.
O Barão olhou os pés chutando o ar, o modo como eles moviam o manto negro, o indício das sandálias ocultas sob o tecido.
— Infelizmente — continuou o Imperador —, enviei apenas cinco transportes de tropas com uma força de ataque ligeira a fim de recolher prisioneiros para interrogatório. Por pouco conseguimos escapar com três prisioneiros e um único transporte de tropas sobreviventes. Preste atenção, Barão, meus Sardaukar quase foram esmagados por uma força composta principalmente de mulheres, crianças e velhos. Esta criança aqui encontrava-se no comando de um dos grupos atacantes.
— Está vendo, Majestade! — exclamou o Barão. — Está vendo como eles são!
— Eu me deixei capturar — falou a criança. — Não queria encarar meu irmão e ter de lhe dizer que seu filho fora morto.
— Somente um punhado dos nossos homens conseguiu escapar — disse o Imperador. — Escapar, ouviu bem?
— Nós os teríamos apanhado também — gabou-se a criança — se não fossem as chamas.
— Meus Sardaukar usaram os jatos de altitude de seu transporte como lança-chamas. Um movimento desesperado e a única coisa que os tirou de lá com os três prisioneiros. Marque bem o que estou lhe dizendo, meu caro Barão: Sardaukar forçados a fugir em confusão para escapar de mulheres, crianças e velhos.
— Devemos atacar com força total — falou o Barão de modo estridente. — Devemos destruir até o último vestígio...
— Cale-se! — rugiu o Imperador, erguendo-se do trono. — Não abuse mais de minha inteligência! Você permanece aí, com essa inocência tola e...
— Majestade! — advertiu a Reverenda Madre.
O Imperador acenou para que ela se calasse.
— Diz que não sabe a respeito da atividade que encontramos, nem sobre as qualidades combativas dessa gente soberba! Pelo que me toma, Barão?
O Barão deu dois passos para trás, pensando: “Foi Rabban, ele fez isso comigo, Rabban tem...”
— E essa falsa disputa com o Duque Leto — murmurou o Imperador, deixando-se cair no trono. — Que lindo modo de manobrar tudo.
— Majestade! — suplicou o Barão. — Que está...
— Silêncio!
A velha Bene Gesserit colocou a mão sobre o ombro do Imperador, curvando-se para falar em seu ouvido.
A criança sentada na plataforma parou de mexer com os pés e disse:
— Faça-o ter mais medo, Shaddam. Eu não devia apreciar isso, mas acho impossível suprimir esse prazer.
— Quieta, criança — ordenou o Imperador. Inclinando-se para a frente, colocou a mão sobre a cabeça da menina e olhou diretamente para o Barão. — Será possível, Barão? Que seja tão ingênuo quanto sugere a minha Reveladora da Verdade? Não reconhece esta criança, filha de seu aliado, o Duque Leto?
— Meu pai nunca foi aliado dele — disse a criança. — Meu pai está morto e essa velha besta Harkonnen nunca me viu antes.
O Barão ficou reduzido a uma expressão estupefata. Quando reencontrou a voz, foi apenas para perguntar, rouco:
— Quem?
— Eu sou Alia, filha do Duque Leto e de Lady Jessica, e irmã do Duque Paul Muad'Dib — falou a criança, saltando para o piso da câmara de audiência. — Meu irmão prometeu que colocará sua cabeça no topo de um estandarte de batalha, e eu acho que ele deve fazer isso.
— Fique quieta, criança — disse o Imperador, recostando-se no trono, a mão no queixo, observando o Barão.
— Eu não recebo ordens do Imperador — respondeu Alia.
Voltou-se, olhando para a velha Reverenda Madre.
— Ela bem o sabe.
O Imperador olhou para sua Reveladora da Verdade.
— O que ela quer dizer?
— Essa criança é abominável — respondeu a velha. — Sua mãe merece uma punição maior do que qualquer coisa já registrada na história. A morte! Que não pode vir muito depressa para essa criança ou para aquela que a gerou! — A velha apontou um dedo para Alia. — Saia de minha mente!
— T-P? — sussurrou o Imperador, voltando a atenção para Alia. — Pela Grande Mãe!
— Não compreende, Majestade — disse a velha. — Não é telepatia. Ela está em minha mente. Ela é como aquelas que me precederam, aquelas que me deram suas memórias. Ela fica em minha mente! Ela não pode estar lá, mas está!
— Que outras? — quis saber o Imperador. — Que tolice é essa?
A velha levantou-se, abaixando a mão.
— Eu já falei demais, mas permanece o fato de que essa criança que não é criança deve ser destruída. Há muito fomos avisadas contra ela e a respeito de como evitar tal nascimento, mas uma de nós nos traiu.
— Você está dizendo tolices, velha — retrucou Alia. — Você não sabe como foi, e no entanto matraca como uma idiota obtusa.
Alia fechou os olhos, respirou fundo e prendeu a respiração.
A Velha Reverenda Madre gemeu e cambaleou.
Alia abriu os olhos.
— Assim é que foi, um acidente cósmico... e você desempenhou um papel nele.
A Reverenda Madre estendeu ambas as mãos, as palmas agitando-se no ar, tentando alcançar Alia.
— Que está acontecendo aqui? — indagou o Imperador. Criança, pode mesmo projetar seus pensamentos na mente de outra pessoa?
— Não é assim — respondeu Alia. — A não ser que eu tenha nascido como você, não posso pensar como você.
— Mate-a! — balbuciou a velha, agarrando-se ao recosto do trono como suporte. — Mate-a! — Os olhos fundos brilhavam para Alia.
— Silêncio! — ordenou o Imperador, observando Alia. — Criança, é capaz de se comunicar com seu irmão?
— Meu irmão sabe que estou aqui.
— Pode dizer-lhe que se renda para salvar sua vida?
Alia sorriu para o Imperador de modo inocente.
— Eu não faria isso.
O Barão cambaleou para a frente, até se colocar ao lado de Alia.
— Majestade — suplicou —, eu não sabia de nada...
— Interrompa-me mais uma vez, Barão — advertiu o Imperador —, e perderá a capacidade de interromper... para sempre.
Mantinha a atenção voltada para Alia, observando-a através de olhos semicerrados.
— Você não vai, hein? Pode ler em minha mente o que farei se me desobedecer?
— Já lhe disse que não posso ler mentes, mas ninguém precisa de telepatia para perceber suas intenções.
O Imperador franziu a testa.
— Criança, sua causa está perdida. Só tenho de reunir forças e reduzir este planeta a...
— Não é tão simples assim — respondeu Alia. Olhou para os dois homens da Corporação. — Pergunte a eles.
— Não é inteligente ir de encontro aos meus desejos — disse o Imperador. — Não me deve negar o mínimo que seja.
— Meu irmão virá agora — avisou Alia. — Mesmo um Imperador pode tremer ante o Muad'Dib, pois ele tem a força dos justos e os céus lhe sorriem.
O Imperador levantou-se abruptamente.
— Esta brincadeira já foi suficientemente longe. Eu pegarei o seu irmão e este planeta e vou pulverizá-los até...
A sala estremeceu e sacudiu ao redor deles. Uma súbita cascata de areia derramou-se atrás do trono, onde a tenda se acoplava à nave do Imperador. Uma abrupta tensão na pele revelou que um escudo de grande alcance estava sendo ativado.
— Eu o avisei — disse Alia. — Meu irmão vem aí.
O Imperador ficou de pé diante do trono, a mão direita pressionando o ouvido direito, com um servorreceptor ali colocado transmitindo seu relatório de situação. O Barão moveu-se dois passos para trás de Alia, enquanto os Sardaukar saltavam para posições junto às portas.
— Vamos retornar ao espaço e reagrupar-nos — disse o Imperador. — Minhas desculpas, Barão. Esses loucos estão atacando sob a cobertura da tempestade. Vamos mostrar-lhes a ira do Imperador. Apontou para Alia. — Entregue o corpo dela à tempestade.
Enquanto ele falava, Alia recuava, fingindo terror.
— Deixe que a tempestade tenha o que ela puder pegar! — gritou ela. E recuou, caindo nos braços do Barão.
— Eu a peguei, Majestade! — gritou ele. — Devo despachá-la agora, aaahhhh! — jogou Alia no chão, segurando o braço esquerdo.
— Sinto muito, vovô — disse Alia. — Você acaba de conhecer o gom jabbar dos Atreides. — Levantou-se, deixando uma agulha negra cair de sua mão.
O Barão recuou, os olhos arregalados enquanto olhavam para um talho vermelho na palma da mão esquerda.
— Você... você...
Caiu de lado sobre os suspensores, uma massa pendente de carne segura a algumas polegadas do piso, a cabeça tombada e a boca aberta.
— Essa gente é insana — rosnou o Imperador. — Rápido! Para a nave. Nós purificaremos este planeta de cada...
Alguma coisa emitiu centelhas à sua esquerda. Um relâmpago esférico saltou da parede naquele ponto, estalando ao tocar o piso metálico, o cheiro de isolamento queimado espalhando-se através da selamlik.
— O escudo! — gritou um dos oficiais Sardaukar. — O escudo externo está arriado! Eles...
Suas palavras foram apagadas num rugido metálico quando a parede da nave, atrás do Imperador, tremeu e balançou.
— Eles estouraram o nariz de nossa nave! — gritou alguém.
A poeira espalhava-se pela sala. Sob sua cobertura, Alia saltou, correndo para a porta externa.
O Imperador girou, movimentando seu pessoal na direção de uma porta de emergência que se abrira na parede da nave, ao lado do trono. Fez um sinal com a mão para um oficial Sardaukar que saltara do meio da poeira:
— Faremos nossa linha de defesa aqui! — ordenou.
Outra explosão sacudiu a tenda. As portas duplas abriram-se na extremidade oposta da câmara, admitindo areia carregada pelo vento e o som de gritos. Uma pequena figura em manto negro pôde ser vista momentaneamente contra a luz: Alia correndo para apanhar uma faca e, como convinha ao seu treinamento Fremen, matar os Harkonnen e os Sardaukar que estivessem feridos. Os Sardaukar da Casa avançaram através da névoa amarelo-esverdeada, na direção da abertura, armas prontas, formando um arco para proteger a retirada do Imperador.
— Salve-se, senhor! — gritou o oficial Sardaukar. — Entre na nave!
Mas o Imperador permanecia sozinho agora, sobre a plataforma do trono que apontava para a porta. Uma seção de quarenta metros da tenda gigante explodira e as portas da selamlik abriam-se para a areia levada pelo vento. Uma nuvem de poeira estendia-se baixa sobre o mundo exterior, soprada de uma distância apenas esboçada em tons pastéis. Relâmpagos de eletricidade estática saltavam da nuvem, e os clarões e centelhas dos escudos entrando em curto-circuito devido à carga da tempestade podiam ser vistos através da poeira. A planície fervilhava de figuras em combate — Sardaukar e homens envoltos em mantos que giravam e pulavam parecendo sair da própria tempestade.
Tudo isso era como uma moldura para o alvo indicado pela mão do Imperador.
Da neblina de areia apareceu uma massa ordeira de formas cintilantes — grandes curvas elevando-se, cheias de agulhas de cristal, e se convertendo em bocas de vermes da areia formando uma muralha maciça deles, cada qual com tropas Fremen cavalgando para o ataque. Aproximaram-se numa cunha sibilante, as roupas batendo ao vento enquanto cortavam seu caminho através da escaramuça na planície.
Eles avançaram para a frente, em direção à tenda do Imperador, enquanto os Sardaukar da Casa ficavam perplexos pela primeira vez em sua história, atordoados por um ataque que suas mentes não conseguiam aceitar.
Mas as figuras saltando do dorso dos vermes eram homens, e as lâminas brilhando àquela sinistra luz amarela eram algo que os Sardaukar haviam sido treinados para enfrentar. Eles se lançaram em combate, e foi homem contra homem na planície de Arrakeen, enquanto uma guarda pessoal de Sardaukar escolhidos empurrava o Imperador para dentro da nave, selando a porta atrás dele e se preparando para morrer ali como parte do seu escudo.
No choque do relativo silêncio dentro da nave, o Imperador olhou para os rostos e os olhos arregalados de seu séquito, vendo a filha mais velha corada pelo esforço, a velha Reveladora da Verdade parecendo uma sombra negra com o capuz puxado sobre o rosto, e afinal encontrando as faces que procurava: os dois homens da Corporação. Eles estavam vestidos na cor cinza característica, sem adornos, o que parecia adequado à calma que ambos mantinham, apesar da carga emocional ao seu redor.
O mais alto dos dois, entretanto, mantinha uma das mãos sobre o olho esquerdo. Enquanto o Imperador observava, alguém esbarrou no braço do homem, a mão se moveu e o olho foi revelado.
Ele havia perdido uma de suas lentes de contato dissimuladoras, e o olho mostrava agora um azul total, tão escuro a ponto de ser quase negro.
O mais baixo abriu caminho, parando a um passo do Imperador.
— Não sabemos o que vai acontecer.
E o companheiro mais alto, a mão de volta sobre o olho, acrescentou com voz fria:
— Mas esse Muad'Dib também não pode saber.
As palavras sacudiram o Imperador para fora de seu estupor.
Ele dominou o desprezo em sua voz com visível esforço, já que não era necessário o foco simplório de um navegador da Corporação sobre a maior probabilidade para ver o futuro imediato que se seguiria à luta naquela planície. “Estarão esses dois tão dependentes de sua faculdade a ponto de terem perdido a capacidade de usar seus olhos e seu raciocínio?”, perguntou-se o Imperador.
— Reverenda Madre — disse ele —, precisamos conceber um plano.
Ela ergueu o capuz do rosto, fitando o Imperador sem piscar.
O olhar que passou entre os dois revelava um completo entendimento. Ambos só tinham agora uma arma e sabiam qual era: traição.
— Chame o Conde Fenring em seus alojamentos — ordenou a Reverenda Madre.
O Imperador Padishah concordou com um aceno e gesticulou para que um dos auxiliares obedecesse ao comando.
Ele era um guerreiro e um místico, ogro e santo, a raposa e o inocente, cavalheiresco e implacável, menos que um deus, mais que um homem. Não há medida para as razões do Muad'Dib pelos padrões normais. No momento de seu triunfo, ele viu a morte e no entanto aceitou a traição. Pode-se dizer que ele fez isso por um sentimento de justiça? Então, justiça de quem? Lembrem-se de que estamos falando do Muad'Dib, que ordenou tambores de batalha feitos com a pele de seus inimigos, o Muad'Dib que negou as convenções de seu passado ducal com um aceno de mão, dizendo meramente: — Eu sou o Kwisatz Haderach. Isso é razão suficiente.
— de O Despertar de Arrakis, escrito pela Princesa Irulan
Foi para a mansão do governador de Arrakeen, a velha residência que os Atreides haviam ocupado ao chegarem à Duna, que eles escoltaram Paul Muad'Dib na noite de sua vitória. O prédio erguia-se exatamente como Rabban o restaurara, virtualmente intocado pela luta, embora houvessem ocorrido saques por parte da gente da cidade. Parte da mobília do salão principal fora revirada e destroçada.
Paul caminhou através da entrada principal, com Gurney Halleck e Stilgar seguindo-o um passo atrás. Sua escolta espalhara-se pelo salão principal, consertando o lugar e limpando uma área para o Muad'Dib. Um esquadrão começou a investigar para ter certeza de que nenhuma armadilha oculta fora deixada ali.
— Eu me lembro do dia em que chegamos aqui com seu pai — comentou Gurney. Olhou para as vigas e para as janelas altas e estreitas. — Não gostei deste lugar naquela ocasião e gosto menos agora. Uma de nossas cavernas seria mais segura.
— Falando como um verdadeiro Fremen — disse Stilgar, notando o sorriso frio que suas palavras traziam aos lábios do Muad'Dib. — Vai reconsiderar, Muad'Dib?
— Este lugar é um símbolo — respondeu Paul. — Rabban viveu aqui. Ao ocupar este local, eu selo minha vitória para que todos entendam. Envie homens para inspecionarem o prédio. Não toquem em nada. Apenas se certifiquem de que não restou gente dos Harkonnen ou um de seus brinquedos.
— As suas ordens — disse Stilgar, com nítida relutância em seu tom de voz enquanto se virava para obedecer.
Os homens das comunicações correram para dentro da sala com seu equipamento, começando a instalá-lo perto da grande lareira.
A guarda Fremen que se adicionara aos Fedaykin sobreviventes tomou posições ao redor do aposento. Havia murmúrios entre eles, e muitos olhares rápidos de suspeita. Por muito tempo esse fora um lugar do inimigo para que agora aceitassem casualmente a sua própria presença dentro dele.
— Gurney, mande uma escolta buscar minha mãe e Chani. Será que Chani já sabe a respeito de seu filho?
— A mensagem foi enviada, meu senhor.
— Os produtores já estão sendo retirados do interior da depressão?
— Sim, meu senhor, a tempestade já está quase no fim.
— Qual a extensão dos danos causados por ela?
— Em sua trilha direta, sobre o campo de pouso e os armazéns de estocagem na planície, os danos foram pesados respondeu Gurney. — Tanto os da tempestade quanto os da batalha.
— Nada que o dinheiro não possa consertar, presumo.
— Exceto pelas vidas, meu senhor — observou Gurney, um tom de censura em sua voz, como se dissesse: “Desde quando um Atreides se preocupa primeiro com as coisas quando há pessoas em jogo?”
Paul, todavia, só podia focalizar sua atenção na visão interna e nas fendas visíveis na muralha do tempo que ainda se estendia sobre seu caminho. Através de cada abertura, o jihad avançava furioso pelos corredores do futuro.
Ele suspirou e atravessou o salão, vendo uma cadeira contra a parede. Ela já estivera na sala de jantar e poderia até ter sido a de seu pai. Naquele momento, entretanto, era apenas um objeto sobre o qual repousar seu cansaço, ocultando-o de seus homens.
Sentou-se, puxando os mantos de sobre as pernas e afrouxando o traje-destilador ao redor do pescoço.
— O Imperador permanece entocado nos restos de sua nave disse Gurney.
— Por enquanto, mantenham-no lá. Já encontraram os Harkonnen?
— Ainda estão examinando os mortos.
— Qual foi a resposta das naves lá em cima? — Paul ergueu o queixo para o teto.
— Nenhuma resposta ainda, meu senhor.
Paul suspirou novamente, recostando-se na cadeira. Daí a pouco disse:
— Tragam-me um prisioneiro Sardaukar. Devemos enviar uma mensagem ao Imperador. É hora de discutir os termos.
— Sim, meu senhor.
Gurney voltou-se, fazendo um sinal com a mão para um Fedaykin que assumira posição de guarda junto de Paul.
— Gurney — sussurrou Paul. — Desde que nos reunimos ainda não o ouvi pronunciar a citação adequada ao evento.
Virou-se e viu Gurney engolir em seco, o súbito enrijecer dos músculos ao redor do queixo.
— Como quiser, meu senhor — respondeu Gurney. Pigarreou, falando com a voz rouca: — E a vitória naquele dia se transformou em tristeza para todo o povo: pois naquele dia as pessoas ouviram dizer que o rei perdera seu filho.
Paul fechou os olhos, forçando a mágoa para fora de sua mente, deixando-a esperar como ele uma vez esperara para lamentar pelo pai. Por ora, voltava os pensamentos para as descobertas acumuladas nesse dia: a união de futuros e a presença oculta de Alia em sua consciência.
De todos os usos da visão do tempo, esse era o mais estranho.
— Eu enfrentei o futuro para colocar minhas palavras onde apenas você pudesse ouvi-las — dissera Alia. — Nem mesmo você pode fazer isso, meu irmão. Eu acho um jogo interessante. E... ah sim, eu matei o nosso avô, o velho Barão demente. Ele quase não sentiu dor.
Silêncio. Seu sentido de tempo a vira retirar-se.
— Muad'Dib!
Paul abriu os olhos para ver, acima dele, o semblante escuro de Stilgar, as pupilas ainda brilhantes com o fogo da batalha.
— Vocês encontraram o corpo do velho Barão — disse Paul.
— Como poderia saber? — sussurrou Stilgar, surpreso. Acabamos de encontrar o corpo naquela grande pilha de metal que o Imperador construiu.
Paul ignorou a pergunta, vendo que Gurney voltava, acompanhado por dois Fremen suportando um prisioneiro Sardaukar.
— Aqui está um deles, meu senhor — disse Gurney, fazendo sinal para que os guardas segurassem o prisioneiro cinco passos à frente de Paul.
Os olhos do Sardaukar, percebeu Paul, tinham a aparência vidrada de uma pessoa em choque. Uma contusão azulada estendia-se da ponta do nariz até o canto da boca. Ele era da casta loura e bem apessoada cuja aparência constituía sinônimo de posição entre os Sardaukar. E no entanto não havia insígnia no uniforme rasgado, exceto pelos botões dourados com a crista imperial e as fitas esfarrapadas das calças.
— Creio que este é um oficial — disse Gurney.
Paul assentiu, dizendo:
— Sou o Duque Paul Atreides. Compreende isso, homem?
O Sardaukar olhou para ele, imóvel.
— Fale! — gritou Paul —, ou seu Imperador pode morrer.
O homem piscou, engolindo em seco.
— Quem sou eu? — perguntou Paul.
— O Duque Paul Atreides.
Ele parecia excessivamente submisso a Paul, mas nesse caso os Sardaukar nunca teriam sido preparados para acontecimentos como os desse dia. Nunca haviam conhecido outra coisa senão a vitória, e isso, Paul compreendeu, podia ser uma fraqueza. Colocou de lado esse pensamento para consideração posterior visando seu próprio programa de treinamento.
— Tenho uma mensagem para que leve ao Imperador — disse Paul, moldando suas palavras de acordo com a antiga fórmula: — Eu, um Duque de uma Grande Casa, membro da família imperial, dou minha palavra de juramento sob a Grande Convenção. Se o Imperador e sua gente depuserem as armas e vierem a mim, eu protegerei suas vidas como a minha própria. — Ergueu a mão com o sinete ducal para que o Sardaukar o visse.
— Juro por isto!
O homem umedeceu os lábios com a língua e olhou para Gurney.
— Sim — acrescentou Paul. — Quem senão um Atreides receberia a lealdade de Gurney Halleck?
— Eu levarei a mensagem — concordou o Sardaukar.
— Levem-no para nosso posto de comando avançado e enviem-no — ordenou Paul.
— Sim, meu senhor — Gurney fez sinal para que os guardas obedecessem e levou-os para fora.
Paul voltou-se para Stilgar.
— Chani e sua mãe acabam de chegar — disse Stilgar. — Chani pediu um pouco de tempo para ficar só com sua dor. A Reverenda Madre pediu um momento na sala estranha, não sei por quê.
— Minha mãe está doente, saudosa de um planeta que talvez nunca mais veja. Onde a água cai do céu e as plantas crescem tão juntas que não se pode caminhar entre elas.
— Água do céu — sussurrou Stilgar.
Naquele instante, Paul percebeu como Stilgar fora transformado de um Fremen naib em uma criatura do Lisan al-Gaib, receptáculo de obediência e admiração. Era uma redução do homem que fora e Paul sentiu os ventos fantasmagóricos do jihad naquela constatação.
“Acabo de ver um amigo transformar-se num adorador”, pensou.
Sentindo uma súbita solidão, olhou à volta notando como os guardas pareciam colocar-se em posição de revista na sua presença. Sentia uma competição sutil e orgulhosa desenvolvendo-se entre eles. Cada um esperando ser notado pelo Muad'Dib.
“O Muad'Dib, de quem fluem todas as bênçãos”, pensou Paul, como se esse fosse o pensamento mais amargo de toda a sua vida.
“Eles sentem que eu devo assumir o trono, mas não sabem que faço isso para evitar o jihad.”
Stilgar pigarreou e disse:
— Rabban também está morto.
Paul assentiu com a cabeça.
Os guardas à sua direita subitamente se colocaram em posição de sentido, abrindo caminho para Jessica. Ela usava o manto negro e seu andar mostrava indícios da maneira de se caminhar sobre a areia, mas Paul não deixou de perceber como essa casa restaurava um pouco do que ela já fora — a concubina de um Duque governante. Sua presença ainda tinha algo da antiga arrogância.
Jessica parou diante de Paul e olhou para ele. Percebeu sua fadiga e o modo como ele a ocultava, mas não conseguiu sentir compaixão. Era como se houvesse ficado incapaz de sentir qualquer emoção pelo filho.
Havia penetrado no Grande Salão imaginando por que esse lugar se recusava a encaixar-se harmoniosamente em suas memórias. Permanecia uma sala estranha, como se nunca houvesse caminhado por ela, nunca houvesse andado ali com seu amado Leto, nunca houvesse ali confrontado um Duncan Idaho bêbado... nunca, nunca, nunca...
“Devia haver uma palavra-tensão diretamente oposta a adab, a memória que se impõe. Devia existir uma palavra para as memórias que se anulam a si mesmas.”
— Onde está Alia? — indagou.
— Lá fora, fazendo o que qualquer boa criança Fremen deveria estar fazendo em tal ocasião — respondeu Paul. — Está matando inimigos feridos e marcando seus corpos para as equipes de recuperação de água.
— Paul!
— Deve compreender que ela faz isso por misericórdia. Não é curioso como interpretamos mal a unidade oculta entre bondade e crueldade?
Jessica olhou furiosa para o filho, chocada pela profunda mudança que ocorrera nele. “Que representou a morte de seu filho em meio a tudo isso?”, ela se perguntou. Depois disse:
— Os homens contam histórias estranhas a seu respeito, Paul. Dizem que possui todos os poderes da lenda, que nada lhe pode ser oculto, que vê onde outros não podem ver.
— Uma Bene Gesserit me indagando a respeito de lendas?
— Tive uma participação no que você se tornou — ela admitiu, — mas não deve esperar que eu...
— Como se sentiria vivendo bilhões de bilhões de vidas? — indagou Paul. — Há um tecido de lendas para você! Pense em todas aquelas experiências, na sabedoria que trariam. Mas a sabedoria tempera o amor, não é? E dá novas formas ao ódio. Como pode me dizer o que é cruel, a não ser que já tenha mergulhado nas profundezas de ambos, nos extremos da bondade e da crueldade? Você devia me temer, mãe. Eu sou o Kwisatz Haderach.
Jessica tentou engolir com a garganta seca, depois disse:
— Uma vez você me negou que fosse o Kwisatz Haderach.
Paul sacudiu a cabeça.
— Não posso negar mais nada. — Olhou nos olhos dela. O Imperador e sua gente vêm aqui agora. Serão anunciados a qualquer momento. Fique ao meu lado. Quero ter uma visão clara de todos eles. E minha futura noiva estará entre eles.
— Paul! Não cometa o erro de seu pai!
— Ela é uma princesa — insistiu Paul. — É a chave para o trono, e isso é tudo que ela vai ser. Erro? Pensa que por ser eu aquilo que fez de mim não sinto necessidade de vingança?
— Mesmo sobre uma inocente? — indagou Jessica, enquanto pensava: “Ele não deve cometer os erros que eu cometi.”
— Não há mais inocentes — respondeu Paul.
— Diga isso a Chani — disse Jessica, apontando para a passagem que conduzia aos fundos da residência.
Chani entrou no Grande Salão vinda de lá, caminhando entre os guardas Fremen como se não os visse. O capuz e o gorro do traje-destilador caindo para trás, a máscara facial presa ao lado. Caminhava com frágil incerteza, atravessando o salão para se colocar ao lado de Jessica.
Paul viu as marcas das lágrimas no rosto dela. “Ela dá água aos mortos.” Sentiu uma pontada de mágoa em seu interior, mas foi como se só pudesse ter esse sentimento na presença de Chani.
— Ele está morto, meu amado — disse ela. — Nosso filho está morto.
Mantendo-se sob rígido controle, Paul levantou-se e estendeu a mão para tocar o rosto de Chani, sentindo a umidade de suas lágrimas.
— Ele não pode ser substituído, mas haverá outros filhos — disse ele. — É Usul quem promete isso.
Colocou-a ao seu lado com delicadeza e acenou para Stilgar.
— Muad'Dib — apresentou-se Stilgar.
— Eles estão vindo da nave, o Imperador e sua gente disse Paul. — Eu ficarei aqui. Coloque os prisioneiros num espaço aberto no centro da sala. Eles serão mantidos a uma distância de dez metros de mim, a menos que eu ordene o contrário.
— Ao seu comando, Muad'Dib!
Enquanto Stilgar se virava para obedecer, Paul ouviu os murmúrios de admiração entre os guardas Fremen:
— Estão vendo? Ele sabia! Ninguém lhe disse, mas ele sabia!
Agora, podia-se ouvir o séquito do Imperador se aproximando, seus Sardaukar cantarolando uma das marchas destinadas a manter o moral. Houve um murmúrio na entrada e Gurney Halleck passou entre os guardas, conferenciando com Stilgar e depois se movendo para ficar ao lado de Paul, uma aparência estranha nos olhos.
“Será que vou perder o Gurney também?”, pensou Paul. “Do mesmo modo como perdi Stilgar... perder um amigo para ganhar uma criatura?”
— Eles não trazem armas de arremesso — avisou Gurney. — Eu mesmo me certifiquei disso. — Olhou a sala vendo os preparativos de Paul. — Feyd-Rautha Harkonnen está com eles. Devo separá-lo?
— Deixe-o.
— Há alguns homens da Corporação também, exigindo privilégios especiais e ameaçando um embargo contra Arrakis. Disse-lhes que lhe transmitiria a mensagem.
— Deixe que ameacem.
— Paul! — advertiu Jessica. — Ele está falando da Corporação!
— Vou arrancar-lhes as presas daqui a pouco — respondeu Paul.
E pensou então na Corporação, uma força que se especializara durante tanto tempo que se tornara um parasita, incapaz de existir independentemente da vida da qual se nutria. Nunca se haviam atrevido a empunhar a espada... e agora não podiam segurá-la.
Podiam ter-se apoderado de Arrakis quando compreenderam o erro que haviam cometido ao se especializarem no narcótico de ampliação de consciência para seus navegadores. Poderiam ter feito isso, vivendo seus dias gloriosos e morrendo. Em vez disso, preferiam existir de um momento para outro, esperando que os mares em que nadavam pudessem produzir um novo hospedeiro quando o antigo morresse.
Os navegadores da Corporação, dotados de um dom limitado de presciência, haviam tomado uma decisão fatal: escolher sempre o rumo mais claro e seguro que conduzia para baixo, em direção à estagnação.
“Deixe que olhem de perto para seu novo hospedeiro”, pensou Paul.
— Há também uma Reverenda Madre Bene Gesserit que afirma ser amiga de sua mãe — disse Gurney.
— Minha mãe não tem amigas Bene Gesserit.
Mais uma vez, Gurney olhou na direção do Grande Salão, e então se curvou junto ao ouvido de Paul.
— Thufir Hawat está com eles, meu senhor. Não tive chance de vê-lo em particular, mas ele usou nosso velho código de sinais manuais para dizer que esteve trabalhando com os Harkonnen e pensou que o senhor estivesse morto. Diz que deve ser deixado entre eles.
— Você deixou Thufir entre aqueles...
— Ele queria... e eu achei que era melhor. Se... acontecer algo errado, ele estará onde podemos controlá-lo. Se não, teremos um ouvido do outro lado.
Paul pensou nos vislumbres prescientes que tivera quanto às possibilidades desse momento — e em uma linha de tempo na qual Thufir carregava uma agulha envenenada que o Imperador lhe ordenara que usasse contra “esse novo Duque”.
Os guardas da entrada colocaram-se de lado, formando um corredor curto com suas lanças. Ouviu-se o som de roupas sendo arrastadas, pés raspando a areia que se introduzira na Residência.
O Imperador Padishah Shaddam IV liderou seu séquito para dentro do salão. Seu capacete burseg fora perdido e o cabelo ruivo aparecia em desarranjo. A manga esquerda do uniforme estava rasgada ao longo da costura interna. Ele estava sem cinto e sem armas, mas sua presença movia-se com ele, como uma bolha de escudo de força que mantinha uma área aberta ao seu redor.
Uma lança Fremen caiu subitamente, barrando-lhe o caminho onde Paul ordenara. Os outros atropelaram-se atrás, uma montagem de cores, de pés se arrastando e rostos olhando surpresos.
Paul percorreu o grupo com o olhar, vendo mulheres com sinais de choro dissimulados e lacaios que tinham vindo para apreciar de camarote uma vitória dos Sardaukar e que agora pareciam chocados pela derrota. Viu os olhos de pássaro brilhantes da Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam cintilando embaixo do capuz negro, e ao lado dela o furtivo Feyd-Rautha Harkonnen.
“Há um rosto ali que o tempo me negou”, pensou Paul.
Olhou além de Feyd-Rautha, atraído por um movimento e vendo um rosto magro de doninha que nunca encontrara antes... no tempo ou fora dele. Era um rosto que sentia dever conhecer, e o sentimento carregava a marca do medo.
“Por que devo temer esse homem?”, perguntou a si mesmo.
Inclinou-se para sua mãe, sussurrando:
— O homem à esquerda da Reverenda Madre, aquele de aparência maligna. Quem é ele?
Jessica olhou, reconhecendo o rosto a partir dos dossiês do Duque.
— Conde Fenring — ela disse. — Aquele que esteve aqui bem antes de nós, um eunuco-genético... e um matador.
“O garoto de recados do Imperador”, pensou Paul. E o pensamento era um choque reverberando através de sua consciência, pois ele havia visto o Imperador em incontáveis associações espalhadas através dos futuros possíveis... mas nem uma única vez o Conde Fenring aparecera nessas visões prescientes.
Ocorreu a Paul ter visto seu próprio corpo sem vida, ao longo de incontáveis extensões da teia do tempo, sem que nunca houvesse presenciado o momento de sua morte.
“Será que me foi negado vislumbrar esse homem por ser ele quem vai me matar?”
O pensamento produziu um pressentimento angustiante, e Paul forçou a atenção para longe de Fenring, olhando agora para os remanescentes dos Sardaukar, os soldados e os oficiais com a amargura e o desespero estampados nos rostos. Aqui e ali, entre eles, alguns rostos captaram-lhe a atenção brevemente. Oficiais Sardaukar notando a disposição da sala, tramando e planejando ainda, em busca de um meio para transformar a derrota em vitória.
Finalmente a atenção de Paul recaiu sobre uma mulher loura, alta, de olhos verdes e com um rosto de beleza aristocrática, clássica em sua altivez, intocada pelas lágrimas, completamente inconquistável. Sem que lhe dissessem, já sabia quem era ela — Princesa Real, Bene Gesserit em treinamento, um rosto que sua visão de tempo lhe mostrara em muitos aspectos: Irulan.
“Lá está minha chave”, pensou.
Notou então um movimento entre as pessoas aglomeradas, um rosto e uma figura surgindo: Thufir Hawat, as velhas feições enrugadas, os lábios tingidos de escuro, os ombros caídos, a aparência frágil dos idosos.
— Lá está Thufir Hawat — disse Paul. — Deixe que ele saia, Gurney.
— Meu senhor.
— Deixe que ele se aproxime.
Gurney assentiu.
Hawat cambaleou para a frente assim que uma lança Fremen foi erguida e recolocada atrás dele. Os olhos injetados olhavam para Paul, medindo, buscando.
Paul deu um passo à frente, sentindo os movimentos tensos e hesitantes do Imperador e sua gente.
O olhar de Hawat focalizou além de Paul, e o velho disse: Lady Jessica, só hoje compreendi como lhe fui injusto em meus pensamentos. Não precisa me perdoar.
Paul aguardou, mas sua mãe permaneceu em silêncio.
— Thufir, velho amigo — disse ele. — Como pode ver, minhas costas não se voltam para nenhuma porta.
— O universo é cheio de portas — respondeu Hawat.
— Sou como meu pai, Thufir?
— Mais como seu avô. Tem suas maneiras e o olhar dele nos olhos.
— E no entanto sou filho de Leto. Por isso lhe digo, Thufir: em pagamento pelos anos que serviu à minha família, você pode pedir o que quiser de mim agora. Qualquer coisa. Quer minha vida agora, Thufir? Ela é sua.
Paul deu outro passo à frente, as mãos pendendo ao lado do corpo, notando a compreensão crescer nos olhos de Hawat.
“Ele percebe que eu sei a respeito da traição”, pensou Paul.
Modulando a voz para que fosse levada num quase sussurro aos ouvidos de Hawat e a mais ninguém, Paul disse:
— Falo sério, Thufir. Se pretende me golpear, faça-o agora.
— Só queria estar em sua presença uma vez mais, meu Duque — respondeu Hawat, e Paul notou pela primeira vez o esforço que o velho fazia para não cair. Estendeu a mão, segurando Hawat pelos ombros e sentindo os tremores musculares por baixo deles.
— Está sentindo dor, meu velho amigo?
— Existe dor, meu Duque — concordou Hawat —, mas o prazer é maior. — Ele revirou-se nos braços de Paul, estendendo a mão esquerda, com a palma voltada para cima, em direção ao Imperador, revelando a pequenina agulha presa entre os dedos. — Está vendo, Majestade? Vê a agulha de seu traidor? Pensava que eu, que dediquei minha vida ao serviço dos Atreides, lhes concederia menos do que isso agora?
Paul cambaleou quando o velho tombou em seus braços, sentindo nele a morte, a total frouxidão. Suavemente, colocou Hawat no chão, levantou-se e fez sinal para que os guardas levassem o corpo.
O silêncio tomou conta da sala enquanto a ordem era obedecida.
Um olhar de espera mortal tornava agora o rosto do Imperador.
Olhos que nunca antes haviam admitido o medo aceitavam-no finalmente.
— Majestade — disse Paul, notando a contração de surpresa que sacudiu a esguia Princesa Real. A palavra fora pronunciada com o controle tonal Bene Gesserit, carregando cada matiz de desprezo e desdém que Paul pudera reunir.
“Treinamento Bene Gesserit de fato”, pensou ela.
O Imperador pigarreou e disse:
— Talvez meu respeitado parente acredite ter todas as coisas sob seu controle agora. Nada poderia estar mais distante dos fatos. Você violou a Convenção, usou atômicos contra...
— Eu usei atômicos contra o relevo natural do deserto. Estava em meu caminho e eu tinha pressa em alcançá-lo, Majestade, para lhe pedir explicação a respeito de algumas de suas estranhas atividades.
— Existe uma enorme armada das Grandes Casas esperando no espaço acima de Arrakis agora mesmo — disse o Imperador. — Só preciso dizer uma palavra e eles...
— Oh, sim — disse Paul —, quase me esquecia deles.
Procurou em meio ao séquito do Imperador até ver os rostos dos dois homens da Corporação. Falou com Gurney :
— São aqueles os dois agentes da Corporação, Gurney? Os dois gordos vestidos de cinza, ali?
— Sim, meu senhor.
— Vocês dois! — disse Paul, apontando. — Saiam daí imediatamente e enviem mensagens mandando aquela frota de volta para casa. Depois disso, pedirão minha permissão antes...
— A Corporação não aceita ordens suas! — retrucou o mais alto dos dois.
Ele e o companheiro abriram caminho através da barreira, de lanças, que foi erguida a um aceno de Paul. Os dois homens aproximaram-se e o mais alto apontou o braço para Paul e disse:
— Você pode muito bem considerar-se sob embargo por sua...
— Se ouvir mais alguma tolice como essa de um dos dois — respondeu Paul —, darei uma ordem para que se destrua toda a produção de especiaria de Arrakis... para sempre.
— Está louco? — indagou o mais alto, recuando um passo.
— Então reconhece que tenho poder para fazer isso?
O homem da Corporação pareceu fitar o espaço por um momento, e então disse:
— Sim, pode fazer isso, mas não deve.
— Ahhh! — exclamou Paul, acenando com a cabeça. — Navegadores da Corporação, vocês dois, não?
— Sim!
O mais baixo disse :
— Você ficaria também cego e condenaria todos nós a uma morte lenta. Tem alguma idéia do que significa ser privado do licor da especiaria, uma vez que se esteja viciado?
— O olho que vê adiante, na direção do curso seguro, fica fechado para sempre — disse Paul. — A Corporação estaria inutilizada. Os humanos tornar-se-iam pequenos aglomerados isolados em seus planetas. Vocês sabem que eu poderia fazer isso por puro rancor... ou por puro tédio.
— Vamos discutir isso em particular — pediu o mais alto. — Estou certo de que poderemos chegar a um acordo que seja...
— Mande a mensagem sobre Arrakis para a sua gente. Estou ficando cansado desta discussão — advertiu Paul. — Se aquela frota lá em cima não partir logo, não haverá mais motivo para conversa alguma. — Acenou em direção aos encarregados do equipamento de comunicações no lado da sala. — Podem usar nosso equipamento.
— Primeiro devemos conversar sobre isso — disse o mais alto. — Não podemos simplesmente...
— Faça-o! — gritou Paul. — O poder de destruir alguma coisa representa o controle absoluto sobre ela. Já concordaram em que possuo esse poder. Não estamos aqui para discutir, negociar ou chegar a qualquer acordo! Vocês vão obedecer minhas ordens ou sofrer as conseqüências imediatas!
— Ele realmente pretende fazê-lo! — exclamou o mais baixo, e Paul notou que o medo os dominava.
Lentamente, os dois aproximaram-se do equipamento Fremen de comunicações.
— Será que vão obedecer? — perguntou Gurney.
— Eles possuem uma visão do tempo muito estreita — respondeu Paul. — Podem enxergar adiante até um muro branco que marca as conseqüências de sua desobediência. Cada navegador da Corporação em cada nave acima de nós pode olhar adiante para a mesma barreira. Eles vão obedecer. — Paul voltou os olhos para o Imperador e disse: — Quando lhe permitiram que subisse ao trono de seu pai, foi apenas mediante a garantia de que mantivesse o fluxo da especiaria. Fracassou diante deles, Majestade. Sabe quais são as conseqüências?
— Ninguém me permitiu...
— Pare de bancar o tolo! — gritou Paul. — A Corporação é como uma vila diante de um rio. Eles precisam da água, mas só podem recolher o que necessitam. Não são capazes de represar o rio e controlá-lo, pois isso atrairia as atenções sobre sua dependência e acabaria acarretando sua destruição. O fluxo de especiaria é o rio deles e eu construí uma represa. Mas minha represa não pode ser destruída sem que se destrua o rio inteiro.
O Imperador passou a mão pelo cabelo ruivo, olhando para as costas dos dois homens da Corporação.
— Até sua Reveladora da Verdade Bene Gesserit está tremendo — continuou Paul. — Há outros venenos que as Bene Gesserit podem usar em seus truques, mas uma vez que se tenham acostumado ao licor de especiaria os outros não funcionam mais.
A velha puxou os mantos negros e disformes em torno do corpo e avançou através do grupo, até se colocar diante da barreira de lanças.
— Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam — disse-lhe Paul —, faz um bom tempo desde Caladan, não?
Ela olhou através dele em direção a Jessica.
— Bem, Jessica, vejo que seu filho é aquele que de fato aguardávamos. Por isso você poderá ser perdoada até mesmo pela abominação de sua filha.
Paul controlou uma raiva fria e penetrante, dizendo-lhe:
— Você nunca teve direito ou razão para perdoar minha mãe por coisa alguma!
Os olhos da velha encontraram os dele.
— Tente seus truques comigo, velha bruxa. Onde está seu gom jabbar? Tente olhar para aquele lugar que vocês não se atrevem a olhar! — disse Paul. — Vai me encontrar lá, olhando para você.
A velha abaixou a cabeça.
— Não tem nada a dizer?
— Eu lhe dei as boas-vindas às fileiras dos humanos — ela murmurou. — Não suje isso...
Paul ergueu a voz:
— Observem-na, camaradas! Isso é uma Bene Gesserit, uma Reverenda Madre, criatura paciente dedicada a uma causa paciente. Ela pode esperar junto com suas irmãs — noventa gerações de espera pela combinação ideal de genes e ambiente que produziria a pessoa que seus planos exigiam. Observem-na! Ela sabe agora que as noventa gerações produziram essa pessoa. Aqui estou... mas... eu... nunca... lhe... obedecerei!
— Jessica! — gritou a velha. — Faça com que ele se cale!
— Cale-o você mesma — respondeu Jessica.
Paul olhou furioso para a velha.
— Por sua participação em tudo isto, eu ficaria feliz em mandar que fosse estrangulada. Você não poderia evitá-lo! — gritou ele, enquanto ela se enrijecia de raiva. — Mas eu conheço uma punição melhor, que é deixá-la viver seus últimos anos, sem nunca poder me tocar ou me curvar para realizar qualquer de seus planos.
— Jessica, o que você fez? — quis saber a velha.
— Eu lhe darei somente uma coisa — disse Paul. — Vocês viram parte do que a raça necessita, mas sua visão foi muito pobre. Pensam em controlar a reprodução humana e unir alguns poucos selecionados de acordo com o plano-mestre! Quão pouco vocês compreendem do que...
— Você não deve falar dessas coisas! — silvou a velha.
— Silêncio! — rugiu Paul.
A palavra pareceu adquirir substância enquanto ondulava pelo ar, sob o controle de Paul.
A velha cambaleou para trás e tombou nos braços daqueles que se encontravam às suas costas, o rosto destituído de expressão pelo choque, ante o poder com que ele lhe dominara a mente.
— Jessica — ainda conseguiu sussurrar. — Jessica.
— Eu me lembro de seu gom jabbar — continuou Paul. — Você se lembrará do meu. Posso matá-la com uma única palavra.
Os Fremen através do salão se entreolharam. Afinal, a lenda não dizia: “E sua palavra levará a morte eterna àqueles que se colocarem contra a retidão”?
Paul voltou sua atenção para a esguia Princesa Real, ao lado de seu pai, o Imperador. Mantendo os olhos sobre ela, disse:
— Majestade, ambos conhecemos um caminho para sairmos de nossas dificuldades.
O Imperador olhou para a filha e de volta para Paul.
— Como se atreve? Você! Um aventureiro sem família, um ninguém saído de...
— Já admitiu quem eu sou. Um parente real, já o disse. Vamos parar com as tolices.
— Eu sou seu governante!
Paul lançou um olhar para os homens da Corporação, agora junto do equipamento de comunicações e olhando em sua direção. Um deles acenou afirmativamente.
— Eu poderia forçá-la.
— Não se atreveria — retrucou o Imperador. Paul limitou-se a encará-lo.
A Princesa Real colocou a mão sobre o braço do pai.
— Pai — disse ela, e sua voz era suave e tranqüilizadora.
— Não tente seus truques comigo — advertiu o Imperador. Depois olhou para a filha. — Você não precisa fazer isso, filha. Há outros recursos que nós ainda...
— Mas aqui está um homem adequado para ser seu filho — insistiu ela. A velha Reverenda Madre, parecendo recomposta, forçou caminho até ficar ao lado do Imperador, inclinou-se junto ao seu ouvido e sussurrou.
— Ela está pedindo a seu favor — disse Jessica.
Paul continuava a olhar para a Princesa de cabelos dourados. Indagou à mãe:
— Aquela é Irulan, a mais velha, não é?
Chani chegou junto dele pelo outro lado e perguntou:
— Deseja que eu saia, Muad'Dib?
Olhou para ela.
— Sair? Você nunca mais sairá de perto de mim.
— Nada mais há a nos prender — respondeu Chani.
Paul fitou-a durante um instante em silêncio, depois disse:
— Fale apenas a verdade comigo, Sihaya. — Quando ela tentou responder, ele a silenciou com um dedo sobre os lábios. — Aquilo que nos liga não pode ser afrouxado. Agora observe esta questão atentamente, pois desejo rever tudo isso mais tarde, através de sua sabedoria.
O Imperador e sua Reveladora da Verdade estavam tendo uma acalorada discussão em voz baixa.
Paul falou novamente com a mãe.
— Ela o está lembrando de que é parte de seu acordo colocar uma Bene Gesserit no trono, e Irulan é aquela que elas treinaram para isso.
— Era esse o plano delas?
— Não é óbvio?
— Eu vejo os indícios! — retrucou Jessica. — Minha pergunta destinava-se a lembrá-lo de que não deve tentar ensinar-me as matérias em que o instruí.
Paul olhou para ela, percebendo o sorriso frio em seus lábios.
Gurney Halleck inclinou-se entre eles, dizendo:
— Quero lembrá-lo, meu senhor, de que ainda existe um Harkonnen naquele grupo. — Acenou em direção a Feyd-Rautha, seus cabelos negros nítidos contra a barreira de lanças à esquerda. — Aquele que está olhando de soslaio, à esquerda. Uma face tão malévola como jamais vi. Prometeu-me uma vez que...
— Obrigado, Gurney — disse Paul.
— É o na-Barão... Barão agora que o velho está morto. Ele servirá para o que eu tinha em...
— Pode pegá-lo, Gurney?
— Meu senhor está brincando?
— Aquela discussão entre a Reverenda Madre e o Imperador já se alongou o suficiente, não acha, mãe?
— De fato — respondeu Jessica.
Paul elevou a voz, chamando o Imperador.
— Majestade, existe um Harkonnen entre o seu pessoal?
O desprezo real revelou-se no modo como o Imperador se voltou para encarar Paul.
— Acredito que meus acompanhantes se encontram sob a proteção de sua palavra ducal.
— Minha pergunta é para informação apenas. Desejava saber se um Harkonnen é oficialmente parte de sua corte ou se ele está meramente se escondendo por trás de uma definição, por covardia.
O sorriso do Imperador foi calculado.
— Qualquer um aceito para acompanhante imperial é membro de minha corte.
— Tem a palavra do Duque — disse Paul. — Mas o Muad'Dib é outra questão. Ele pode não reconhecer sua definição do que constitui uma corte. Meu amigo Gurney Halleck deseja matar um Harkonnen. Se ele...
— Kanly! — gritou Feyd-Rautha, pressionando contra a barreira de lanças. — Seu pai lançou esta vendetta, Atreides. Você me chama de covarde enquanto se esconde entre suas mulheres e propõe mandar um lacaio contra mim!
A velha Reveladora da Verdade sussurrou alguma coisa com veemência no ouvido do Imperador, mas ele a empurrou para o lado, dizendo:
— Kanly, não é? Existem regras muito definidas para kanly.
— Paul, coloque um fim nisto — pediu Jessica.
— Meu senhor — disse Gurney. — Prometeu que eu teria um dia contra os Harkonnen.
— Já teve seu dia contra eles, Gurney — respondeu Paul, sentindo uma sensação de abandono tomar conta de suas emoções.
Tirou o manto e o capuz de sobre os ombros e os entregou à mãe, junto com o cinturão e a faca cristalina. Começou a retirar o traje-destilador, sentindo agora como o universo parecia focalizar-se nesse momento.
— Não há necessidade disso — lembrou Jessica. — Há modos mais fáceis, Paul.
Paul acabou de despir o traje-destilador e tirou a faca cristalina de sua bainha, na mão de Jessica.
— Eu sei, venenos e assassinos, todos os velhos modos familiares.
— Prometeu-me um Harkonnen! — sussurrou Gurney e Paul notou o ódio no rosto do homem, o modo como a cicatriz de inkvine aparecia escura e saliente. — Deve-me isso, meu senhor!
— Será que sofreu mais por causa deles do que eu? — indagou Paul.
— Minha irmã — respondeu Gurney. — Meus anos no fosso dos escravos...
— Meu pai — disse Paul —, meus bons amigos e companheiros, Thufir Hawat e Duncan Idaho, meus anos como fugitivo, sem posição nem ajuda... e mais uma coisa: agora é um kanly e você conhece muito bem as regras que devem prevalecer.
Halleck encolheu os ombros.
— Meu senhor, se aquele suíno... ele não é mais que uma besta que se chuta e depois se joga fora o sapato por estar contaminado. Chame um executor, se precisar, ou deixe-me fazer isso, mas não se ofereça a...
— Muad'Dib não precisa fazer isso — disse Chani.
Paul olhou para ela, vendo o medo em seus olhos.
— Mas o Duque Paul deve — respondeu.
— Aquele é um animal Harkonnen! — falou Gurney.
Paul hesitou, pensando em revelar sua própria ascendência Harkonnen, mas parou ante um olhar significativo de sua mãe e disse apenas:
— Mas este ser tem forma humana, Gurney, e merece uma oportunidade.
Gurney recusava-se a aceitar.
— Se ele tem tanta...
— Por favor, fique de lado — pediu Paul, erguendo a faca cristalina e empurrando Gurney delicadamente para o lado.
— Gurney! — disse Jessica, tocando-lhe o braço. — Ele é como o avô em sua índole. Não o distraia. É tudo que pode fazer por ele agora. — E pensou: “Grande Mãe! Que ironia.”
O Imperador observava Feyd-Rautha, notando-lhe os ombros fortes, os músculos grossos. Voltou-se para olhar Paul: um jovem esguio e magricela, não tão desnutrido quanto os nativos de Arrakeen, mas com as costelas aparecendo para serem contadas. Tão magro nos flancos que o movimento dos músculos poderia ser acompanhado sob a pele.
Jessica inclinou-se junto de Paul, ajustando a voz para que somente ele pudesse ouvi-la:
— Uma coisa, filho: algumas vezes uma pessoa perigosa é preparada pelas Bene Gesserit, com uma palavra implantada nos mais profundos recessos de sua consciência pelos velhos métodos dador e do prazer. A palavra-som mais freqüentemente usada é Uroshnor. Se esse aí estiver preparado, como eu suspeito muito que esteja, essa palavra pronunciada em seu ouvido deixará seus músculos flácidos e sem...
— Não quero nenhuma vantagem especial. Saia de meu caminho.
Gurney falou com ela:
— Por que ele está fazendo isso? Será que pretende deixar-se matar para se tornar um mártir? Essa conversa religiosa dos Fremen, é isso que lhe está confundindo a razão?
Jessica ocultou o rosto com as mãos, percebendo não saber inteiramente por que Paul tornara esse curso. Podia sentir a morte na sala e sabia que esse Paul modificado seria capaz de fazer o que Gurney sugeria. Cada talento que ela possuía focalizava-se na necessidade de proteger o filho, mas nada havia que pudesse fazer.
— É essa conversa religiosa, não é? — insistiu Gurney.
— Cale-se — sussurrou Jessica. — E reze.
O rosto do Imperador foi marcado por um sorriso inesperado.
— Se Feyd-Rautha Harkonnen... de meu séquito... assim o deseja... eu o libero de qualquer constrangimento e lhe concedo inteira liberdade para escolher seu curso de ação. — Acenou com a mão em direção aos guardas Fedaykin de Paul. — Um membro de sua escória está com o meu cinturão e a minha lâmina curta. Se Feyd-Rautha assim o desejar, poderá enfrentá-lo com a minha lâmina em suas mãos.
— Eu o desejo! — respondeu Feyd-Rautha, e Paul viu o orgulho no rosto do homem.
“Ele está super-confiante”, pensou. “Essa é uma vantagem natural que posso aceitar.”
— Tragam a lâmina do Imperador! — ordenou Paul, observando enquanto seu comando era obedecido. — Coloquem-na ali no chão. — E indicou um lugar com o pé. — Ponham essa gentalha imperial de encontro à parede e deixem o Harkonnen desimpedido.
Um agitar de mantos, um arrastar de pés, ordens em voz baixa e protestos acompanharam a obediência à ordem de Paul. Os homens da Corporação permaneceram junto ao equipamento. Olhavam para ele preocupados, em evidente indecisão.
“Eles estão acostumados a ver o futuro”, pensou Paul, “mas neste lugar e momento eles estão cegos... tão cegos como eu próprio.” Tentou observar os ventos do tempo, sentindo a agitação, o olho da tempestade agora focalizado nesse instante. Até mesmo as fendas se haviam fechado. Aqui estava o jihad ainda não nascido, ele bem o sabia. Aqui estava a consciência racial que uma vez conhecera como seu próprio e terrível propósito. Aqui havia razão suficiente para a existência de um Kwisatz Haderach ou um Lisan al-Gaib, ou até mesmo para as vacilantes tramas das Bene Gesserit. A raça humana sentira sua própria dormência, sentira-se a si mesma tornando-se decadente e agora só conhecia a necessidade de experimentar uma agitação, uma desordem em meio à qual os genes pudessem misturar-se e as novas combinações, mais fortes, sobreviver. Todos os seres humanos vivos eram como um único organismo inconsciente nesse momento, experimentando uma espécie de estímulo sexual capaz de superar qualquer obstáculo.
E Paul percebia quão fúteis seriam quaisquer esforços para tentar mudar até mesmo a menor parte disso tudo. Pensara em se opor ao jihad dentro de si próprio, mas o jihad aconteceria. Suas legiões iriam partir em fúria de Arrakis, mesmo sem a sua presença. Só precisavam da lenda em que ele já se tornara. Já lhes mostrara o caminho, dera-lhes até mesmo o controle sobre a Corporação, que precisava de especiaria para sobreviver.
Um sentimento de fracasso o permeava, e através dele ele viu que Feyd-Rautha Harkonnen já despira o uniforme rasgado e permanecia apenas com uma cinta de luta com núcleo de malha.
“Este é o clímax. Daqui, o futuro se abrirá, as nuvens se dissipando como num instante de glória. E se eu morrer agora eles dirão que me sacrifiquei para que meu espírito pudesse liderá-los.
Se eu viver, dirão que nada pode opor-se ao Muad'Dib.”
— Está pronto o Atreides? — perguntou Feyd-Rautha, usando as palavras do antigo ritual kanly.
Paul escolheu responder ao modo Fremen.
— Que a tua faca se lasque e parta! — Apontou para a lâmina do Imperador sobre o piso, indicando que Feyd-Rautha deveria avançar para pegá-la.
Mantendo a atenção sobre Paul, Feyd-Rautha apanhou a faca, balançando-a na mão por um momento para sentir-lhe o peso. A excitação aumentava em seu interior. Essa era a luta com que sonhara, homem contra homem, perícia contra perícia, sem a intervenção de escudos. Podia ver um caminho para o poder se abrindo ali, já que o Imperador certamente recompensaria aquele que o livrasse desse incômodo Duque. A recompensa poderia ser até mesmo aquela filha arrogante e uma parte do trono. E esse Duque camponês, esse aventureiro de um mundo atrasado, não poderia ser páreo para um Harkonnen treinado em todo tipo de estratagema e traição num milhar de combates de arena. Esse simplório não tinha meios de perceber que estava enfrentando mais armas do que uma simples faca.
“Vamos ver se você é à prova de veneno!”, pensou Feyd-Rautha. Saudou Paul com a lâmina do Imperador, dizendo:
— Encontre sua morte, tolo.
— Vamos lutar, primo? — indagou Paul, e avançou na ponta dos pés, olhos fixos na lâmina que o esperava, corpo agachado, com sua própria faca cristalina leitosa apontando como se fosse uma extensão de seu braço. Circularam um ao redor do outro, os pés fazendo ruído contra o solo, os olhos atentos à menor abertura.
— Como você dança bonito — zombou Feyd-Rautha.
“Ele é um falador”, pensou Paul. “Eis aí outra fraqueza. Sente-se incomodado pelo silêncio.”
— Já se confessou? — indagou Feyd-Rautha.
Paul continuou a circundá-lo em silêncio.
E a velha Reverenda Madre, observando a luta em meio ao aperto da corte do Imperador, sentiu o corpo tremer. O jovem Atreides chamara o Harkonnen de primo. Isso só podia significar que ele conhecia a ascendência que ambos compartilhavam, algo fácil de se compreender, já que ele era o Kwisatz Haderach. Mas essas palavras obrigavam-na a focalizar sua atenção na única coisa que realmente lhe importava ali.
Isso poderia representar uma grande catástrofe para os planos de reprodução controlada das Bene Gesserit.
Sentira algo do que Paul tinha vislumbrado momentos antes.
Que Feyd-Rautha poderia matá-lo sem sair vitorioso. Outro pensamento, entretanto, quase a destruía: dois produtos finais do longo e custoso programa de seleção humana enfrentavam-se em uma luta de morte que poderia facilmente acabar com ambos. Se os dois morressem, isso deixaria apenas a filha bastarda de Feyd-Rautha, ainda um bebê, uma variável desconhecida, e Alia, a abominável.
— Talvez vocês só tenham ritos pagãos por aqui — falou Feyd-Rautha. — Gostaria que a Reveladora da Verdade do Imperador preparasse seu espírito para a jornada?
Paul sorriu circulando para a direita, alerta, os pensamentos lúgubres suprimidos pelas necessidades do momento.
Feyd-Rautha saltou, fingindo golpear com a mão direita enquanto a faca já se encontrava na esquerda.
Paul esquivou-se facilmente, notando a hesitação condicionada pelo uso do escudo no golpe de Feyd-Rautha. Ainda assim, não era um condicionamento tão grande quanto Paul já vira, e percebeu que o adversário já lutara antes contra inimigos sem escudo.
— Será que um Atreides corre ou fica e luta? — perguntou Feyd-Rautha.
Paul recomeçou a circular lentamente. Palavras de Idaho surgiram em sua mente, palavras ouvidas num treinamento de prática de solo, muito tempo atrás, em Caladan: “Use os primeiros momentos para estudar. Pode perder muitas oportunidades de uma vitória rápida, mas os instantes de observação constituem a garantia do sucesso. Aguarde a ocasião e se certifique.”
— Talvez ache que essa dança vai prolongar sua vida por alguns momentos — disse Feyd-Rautha. — Ótimo. — Parou de circular e se levantou.
Paul vira o bastante para uma primeira aproximação. Feyd-Rautha caminhava para o lado esquerdo, apresentando o lado direito do quadril como se a cinta de luta em malha pudesse proteger todo esse lado. Era a ação de um homem treinado no escudo e com uma faca em cada mão.
“Ou...” Paul hesitou... a cinta era mais do que parecia.
O Harkonnen parecia demasiado confiante contra um homem que, nesse mesmo dia, liderara uma vitória contra legiões de Sardaukar. Feyd-Rautha notou a hesitação, dizendo:
— Por que prolongar o inevitável? Está me impedindo de reclamar os meus direitos sobre essa bola de lixo.
“Se é um dardo”, pensou Paul, “está bem escondido. A cinta não mostra qualquer indício de modificação.”
— Por que não fala?
Paul recomeçou a descrever o círculo de observação, permitindo-se um frio sorriso ante o tom de nervosismo na voz de Feyd-Rautha, evidência de que a pressão do silêncio estava aumentando.
— Você sorri, não é? — indagou Feyd-Rautha, saltando no meio da frase.
Aguardando uma ligeira hesitação, Paul quase falhou no instante de se esquivar da lâmina que relampejou em sua trajetória descendente. Sentiu-a arranhar seu braço esquerdo e imediatamente controlou uma dor súbita naquele ponto, sua mente fluindo com a compreensão de que a hesitação anterior fora um truque — uma simulação. Ali estava mais que o simples oponente que esperara. Haveria truques dentro de truques, dentro de truques.
— Seu próprio Thufir Hawat me ensinou algumas de minhas habilidades — gabou-se Feyd-Rautha. — Ele me proporcionou o primeiro sangue que derramei. É uma pena que o velho tolo não tenha vivido para ver isto.
Paul lembrava-se do que Idaho lhe dissera uma vez: “Aguarde apenas o que acontece na luta. Desse modo, nunca será surpreendido.”
Novamente, ambos circularam agachados, um ao redor do outro, cautelosos.
Paul viu a confiança voltar ao oponente. Será que um arranhão significa tanto para o homem? A não ser que houvesse veneno na lâmina! Mas como poderia ser? Seus próprios homens haviam manuseado a faca, passando-a por um farejador antes de entregá-la. Eram muito bem treinados para deixar passar algo tão óbvio.
— Aquela mulher com quem estava falando — provocou Feyd-Rautha. — Aquela pequenina. É alguma coisa de especial para você? Um bichinho de estimação, talvez? Ela merecerá minha atenção especial.
Paul permaneceu calado, sondando seus sentidos internos, examinando o sangue do ferimento e encontrando um traço de soporífero da lâmina do Imperador. Realinhou o próprio metabolismo para enfrentar essa ameaça e modificar as moléculas da droga, mas sentiu um estremecimento de dúvida. Eles haviam preparado uma lâmina com soporífero. Soporífero. Nada que pudesse alertar um farejador de veneno, mas suficientemente forte para adormecer os músculos onde tocasse. Os inimigos tinham seus próprios planos dentro de planos, seu próprio estoque de traições. Novamente Feyd-Rautha saltou, golpeando.
Paul, o sorriso congelado no rosto, aparou o golpe com lentidão, como se estivesse sofrendo os efeitos da droga, mas no último instante se esquivou para atingir o braço que o golpeava com a ponta de sua faca cristalina.
Feyd-Rautha saltou de lado e saiu do caminho, a lâmina agora na mão esquerda e com apenas uma lividez no rosto para revelar a dor do ácido onde Paul o cortara.
“Deixe que ele tenha seu momento de dúvida”, pensou Paul.
“Deixe que ele suspeite de veneno.”
— Traição! — gritou Feyd-Rautha. — Ele me envenenou! Sinto veneno em meu braço!
Paul baixou seu manto de silêncio para responder:
— Apenas um pouquinho de ácido para contrabalançar o soporífefo da lâmina do Imperador.
Feyd-Rautha igualou o frio sorriso de Paul, ergueu a faca na mão esquerda para uma falsa saudação. Por trás da faca, seus olhos brilhavam de ódio.
Paul passou a faca cristalina para a mão esquerda, igualando seu oponente, e novamente eles circularam em observação.
Feyd-Rautha começou a reduzir o espaço entre eles, aproximando-se de lado, a faca em posição elevada, a raiva revelando-se nos olhos semi-cerrados e nos músculos do queixo. Ele atacou pela direita e por baixo, e então os dois estavam unidos, um contra o outro, faca contra faca, pressionando.
Paul, cauteloso quanto ao lado direito dos quadris de Feyd-Rautha, onde suspeitava que houvesse um dardo envenenado, forçou-se a virar para a direita. Quase não viu a ponta da agulha surgir debaixo da linha do cinturão. Uma mudança de direção e uma aparente entrega aos movimentos do adversário o avisaram. A minúscula ponta errou a carne de Paul por um espaço insignificante.
“No lado esquerdo do quadril!”
“Traição dentro de traição, dentro de traição”, lembrou-se Paul.
Usando os músculos através do treinamento Bene Gesserit, Paul cedeu o suficiente para apanhar Feyd-Rautha num reflexo. Todavia, a necessidade de evitar o minúsculo ponto projetando-se do oponente fez com que perdesse o apoio dos pés, caindo pesadamente ao chão, com Feyd-Rautha por cima.
— Está vendo aqui em meu quadril? — sussurrou Feyd-Rautha — Sua morte, seu tolo. — Começou a se contorcer, forçando a agulha envenenada cada vez mais perto. — Isso imobilizará seus músculos e dará à minha faca a chance de acabar com você. Não ficará nenhum traço da droga para ser detectado!
Paul retesou-se ouvindo os gritos silenciosos em sua mente, seus antecessores impressos em suas células a exigirem que ele usasse a palavra secreta para retardar Feyd-Rautha e se salvar.
— Não direi isso! — exclamou.
Feyd-Rautha surpreendeu-se, apanhado em uma mínima hesitação. Foi o suficiente para que Paul encontrasse o ponto fraco em seu equilíbrio, situado num dos músculos das pernas. As posições inverteram-se. Feyd-Rautha encontrou-se por baixo, com o lado direito do quadril erguido e incapaz de se virar por causa da agulha presa contra o solo.
Paul torceu a mão esquerda até livrá-la e, ajudado pela lubrificação do sangue que saía de seu braço, impulsionou-a com força por baixo do queixo de Feyd-Rautha. A ponta da faca penetrou ali, afundando até atingir o cérebro. Feyd-Rautha sofreu um espasmo e ficou inerte, tombando de lado, ainda preso pela agulha enterrada ao chão.
Respirando profundamente para recuperar a calma, Paul desprendeu-se e se levantou, ficando de pé ao lado do corpo, a faca na mão, erguendo os olhos com deliberada lentidão para fitar através da sala, na direção do Imperador.
— Majestade — disse —, suas forças estão reduzidas uma vez mais. Agora vamos abandonar os fingimentos e as desculpas? Vamos discutir o que deve ser feito? Sua filha se casará comigo, abrindo caminho para que um Atreides se sente no trono.
O Imperador voltou-se, olhando para o Conde Fenring. O Conde respondeu ao seu olhar — olhos cinzentos contra olhos verdes.
O pensamento passou claro entre eles, uma amizade tão antiga que o entendimento podia ser obtido com um único olhar.
“Mate esse idiota para mim”, dizia o Imperador. “O Atreides é jovem e cheio de recursos, sim... mas também está cansado pelo longo esforço e não será páreo para você, de qualquer modo. Desafie-o agora... sabe como fazê-lo... Mate-o.”
Lentamente, Fenring voltou a cabeça, num prolongado e lento movimento, até encarar Paul.
— Faça-o! — sussurrou o Imperador.
O Conde observou Paul, vendo-o com os olhos que sua Lady Margot haviam treinado nos modos Bene Gesserit, consciente do mistério e da grandeza escondidos no jovem Atreides.
“Eu poderia matá-lo”, pensou Fenring, sabendo que isso era verdade.
Mas alguma coisa nas profundezas ocultas de seu ser o deteve, e o Conde vislumbrou brevemente, inadequadamente, a vantagem que tinha sobre Paul — um modo de se ocultar do jovem, uma furtividade de personalidade, e motivos que nenhum olho poderia penetrar.
Paul, consciente disso pelo modo como o nó do tempo fervilhava, entendeu finalmente por que não vira antes o Conde Fenring ao longo das teias de sua presciência. Fenring era um dos que poderiam ter sido, um quase Kwisatz Haderach, danificado por uma falha em seu padrão genético — um eunuco, seu talento concentrado na furtividade e no isolamento interior. Um profundo sentimento de compaixão pelo Conde fluiu através de Paul, o primeiro sentido de irmandade que jamais experimentara.
Sentindo as emoções de Paul, Fenring disse:
— Majestade, devo recusar.
O ódio dominou Shaddam IV. Ele deu dois passos curtos através de seu séquito e mandou um soco violento no queixo de Fenring.
Um rubor escuro espalhou-se pela face do Conde. Ele olhou diretamente para o Imperador, falando com deliberada falta de ênfase:
— Nós temos sido amigos, Majestade. E o que faço agora é devido a essa amizade. Eu me esquecerei de que me golpeou.
Paul pigarreou, dizendo:
— Estávamos falando do trono, Majestade.
O Imperador girou nos calcanhares, olhando furioso para Paul.
— Eu me sento no trono! — gritou.
— Vai ter um trono em Salusa Secundus — respondeu Paul.
— Eu depus minhas armas e vim até aqui mediante sua palavra de honra. Atreve-se a me ameaçar?
— Sua pessoa está segura em minha presença. Um Atreides prometeu isso. Muad'Dib, entretanto, o sentencia ao seu próprio planeta-prisão. Mas não tema, Majestade. Eu aliviarei a dureza do lugar com todos os poderes à minha disposição. Ele deverá tornar-se um mundo-jardim, cheio de coisas adoráveis.
Enquanto o significado oculto nas palavras de Paul crescia na mente do Imperador, este olhou furioso, dizendo:
— Agora vemos seus verdadeiros motivos.
— De fato — respondeu Paul.
— E o que será de Arrakis? — perguntou o Imperador. — Outro planeta-jardim, cheio de coisas adoráveis?
— Os Fremen têm a palavra do Muad'Dib. Haverá água fluindo aqui, a céu aberto, e oásis verdes, cheios de coisas boas. Mas nós temos de pensar na especiaria também. Assim, sempre existirá deserto em Arrakis... e ventos violentos, e provas para endurecer um homem. Nós, Fremen, temos um ditado: “Deus criou Arrakis para educar os fiéis.” Não se pode ir contra a vontade de Deus.
A velha Reveladora da Verdade, a Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam, tivera sua própria visão do significado oculto nas últimas palavras de Paul. Ela vislumbrara o jihad e disse.
— Não pode soltar essa gente no universo!
— Vai ter saudades dos modos gentis dos Sardaukar! — retrucou Paul.
— Você não pode fazer isso — ela sussurrou.
— Você é uma Reveladora da Verdade. Reconsidere suas palavras. — Olhou para a Princesa Real, depois novamente para o Imperador. — Melhor que seja feito logo, Majestade.
O Imperador lançou um olhar aflito sobre a filha. Ela tocou-lhe o braço e falou de modo tranquilizador.
— Para isso eu fui treinada, pai.
Ele respirou fundo.
— Não pode impedir isso — murmurou a Reveladora da Verdade.
O Imperador empertigou-se, olhando com uma aparência de dignidade recuperada.
— Quem irá negociar por você, cavalheiro?
Paul voltou-se, vendo a mãe com os olhos semi-cerrados, a esperar juntamente com Chani e um esquadrão de guardas Fedaykin.
Ele aproximou-se delas e parou, olhando para Chani.
— Eu conheço suas razões, Usul — sussurrou Chani. — Se deve ser assim...
Paul, percebendo a tristeza em sua voz, tocou-lhe o rosto.
— Não tema nada, minha Sihaya, não tema nunca. — Abaixou o braço olhando para Jessica.
— Irá negociar por mim, mãe, com Chani ao seu lado. Ela tem sabedoria e olhos atentos. É sábio dizer que ninguém barganha mais duramente que um Fremen. Ela estará olhando por mim através dos olhos de seu amor, e com a mente em seus filhos que ainda vão nascer. Escute o que ela disser.
Jessica sentiu o frio calculismo do filho e controlou um estremecimento.
— Quais são suas instruções? — indagou.
— Todas as ações da Companhia CHOAM pertencentes ao Imperador como dote.
— Todas! — Jessica ficou chocada a ponto de quase perder a fala.
— Ele deve ser despido de tudo que tem. Quero o título de Conde e a diretoria da CHOAM para Gurney Halleck, além do feudo de Caladan. Haverá títulos e poder para cada homem dos Atreides que tenha sobrevivido, sem exceção do soldado mais inferior.
— E quanto aos Fremen? — indagou Jessica.
— Os Fremen são meus. O que receberem será dado pelo Muad'Dib. Começarei colocando Stilgar como governador de Arrakis, mas isso pode esperar.
— E quanto a mim?
— Há algo que deseje?
— Talvez Caladan — disse ela, olhando para Gurney. — Não estou certa. Me tornei demasiado Fremen... e Reverenda Madre. Preciso de um tempo de paz e quietude para pensar.
— Isso você terá — disse Paul. — E tudo mais que Gurney e eu lhe pudermos dar.
Jessica assentiu, sentindo-se subitamente muito velha e cansada.
Olhou para Chani:
— E para a concubina real?
— Nenhum título para mim — sussurrou Chani. — Nada, eu lhe peço.
Paul olhou nos olhos dela, lembrando-se de como a vira uma vez, tendo nos braços o pequeno Leto, seu filho agora morto em meio a essa violência.
— Eu lhe juro agora — ele falou baixinho — que não precisará de nenhum título. Aquela mulher será minha esposa e você concubina, porque essa é uma necessidade política, e precisamos solidificar uma paz neste momento, até reunir as Grandes Casas da Landsraad ao nosso lado. Devemos obedecer a formalidades. Todavia, aquela princesa não receberá de mim nada mais que um nome. Nenhuma criança, nenhum toque ou suavidade de olhar, nenhum instante de desejo.
— Assim você diz agora — respondeu Chani, enquanto olhava através da sala para a altiva princesa.
— Conhece muito pouco o meu filho — falou Jessica. Olhe aquela princesa, tão altiva e confiante. Dizem que ela tem pretensões de natureza literária. Vamos esperar que encontre consolo em tais coisas, pois terá muito pouco além disso. — Um riso amargo escapou dos lábios de Jessica. — Pense nisto, Chani: aquela princesa terá um nome, e no entanto receberá menos que uma concubina, nunca conhecerá um momento de carinho do homem ao qual está ligada. Enquanto nós, Chani, nós que carregamos o título de concubina... a história nos chamará de esposas.
APENDICE I: A ECOLOGIA DE DUNA
Além de um ponto crítico dentro de um espaço finito, a liberdade diminui à medida que os números crescem. Isso é verdadeiro para os seres humanos no espaço finito de um ecossistema planetário, assim como o é com relação às moléculas de gás num frasco selado. A questão humana não é tanto quanto poderão sobreviver dentro do sistema, mas sim quanto de existência será possível para aqueles que sobreviverem.
— Pardot Kynes, Primeiro Planetólogo de Arrakis
A impressão produzida por Arrakis na mente de um recém-chegado é a de uma terra excessivamente inóspita. O estrangeiro pode achar que nada poderia viver ou crescer em espaço aberto por aqui, que esta é uma verdadeira desolação que nunca foi fértil e nunca o será.
Para Pardot Kynes, o planeta era meramente uma expressão de energia, uma máquina impulsionada por seu sol. O que era preciso era apenas remoldá-la para se adequar às necessidades humanas. Sua mente voltou-se imediatamente para a população humana que se movia livremente: os Fremen. Que desafio! Que ferramenta eles podiam ser! Fremen: uma força ecológica e geológica de potencial quase ilimitado.
Pardot Kynes era, de muitas maneiras, um homem direto e simples. Como escapar às restrições dos Harkonnen? Casando-se com uma mulher Fremen. Quando ela lhe dá um filho Fremen, você começa com ele, com Liet-Kynes e outras crianças, ensinando-lhes conhecimentos ecológicos, criando uma nova linguagem com símbolos que capacitem a mente a manipular toda uma paisagem, seu clima, seus limites de acordo com as épocas do ano, até finalmente romper através de todas as idéias de força para chegar à deslumbrante consciência da ordem.
“Há uma beleza de movimentos e um equilíbrio internamente reconhecidos em qualquer planeta saudável para os seres humanos”, dizia Kynes. “Você pode ver nessa beleza um dinâmico efeito estabilizador essencial a toda forma de vida. Seu objetivo é simples: manter e produzir padrões coordenados de diversidade cada vez maior. A vida aumenta a capacidade de sustentação de vida de um sistema fechado. A vida — todas as suas formas — está a serviço da vida. Os nutrientes necessários tornam-se disponíveis, através da vida, para servirem a outros tipos de vida de variedade cada vez maior, à medida que aumenta a diversidade dessa mesma vida. Toda a paisagem se torna viva, então, cheia de relacionamentos e relacionamentos dentro de relacionamentos.”
Assim era Pardot Kynes dando aulas para uma turma num sietch.
Antes das aulas, entretanto, ele precisou convencer os Fremen. Para entender como isso aconteceu, é necessário primeiro compreender a enorme sinceridade e inocência com que ele abordava qualquer problema. Ele não era ingênuo, apenas não se permitia desvios em relação a seus objetivos.
Estava explorando a paisagem de Arrakis num carro de solo para um só homem, durante uma tarde quente, quando deu de cara com uma cena deploravelmente comum. Seis bravos Harkonnen, totalmente armados e protegidos com escudos, haviam encurralado três jovens Fremen num espaço aberto além da Muralha Escudo, próximo da vila de Windsack. Para Kynes, parecia uma luta de brincadeira, mais comédia que realidade, até perceber que os Harkonnen realmente pretendiam matar os Fremen. A essa altura, um dos jovens já tombara com uma artéria seccionada. Dois dos bravos também estavam caídos, mas ainda restavam quatro homens, muito bem armados, contra dois adolescentes.
Kynes não era valente, apenas tinha cautela e sinceridade de propósitos. Os Harkonnen estavam matando os Fremen. Estavam destruindo as ferramentas com que pretendia reestruturar o planeta! Ligou seu próprio escudo, aproximou-se e matou dois dos Harkonnen com uma espada curta, antes que percebessem que havia alguém atrás deles. Esquivou-se de um golpe de espada de um dos restantes e cortou a garganta do homem com um hábil entrisseur, deixando que o sobrevivente enfrentasse os dois jovens, enquanto se voltava para salvar o rapaz ferido. E de fato o salvou... enquanto o sexto Harkonnen era eliminado.
Ora, ali estava uma bela situação. Os Fremen não sabiam o que fazer com Kynes. Sabiam quem ele era, é claro. Nenhum homem chegava em Arrakis sem que um completo dossiê fosse parar nas fortalezas Fremen. Eles o conheciam: um servo imperial.
Mas ele matava Harkonnen!
Os adultos poderiam dar de ombros e, com um pouco de pesar, enviar essa alma para unir-se às dos seis homens mortos no chão. Esses Fremen, entretanto, eram jovens inexperientes e tudo que conseguiam perceber era que tinham uma dívida de morte para com esse servo imperial.
Kynes terminou encontrando-se, dois dias depois, num sietch que se abria sobre a Passagem dos Ventos. Para ele, tudo era muito natural. Falou com os Fremen a respeito de água, de dunas ancoradas por capim, de palmeiras cheias de tâmaras e de qanats fluindo sobre o deserto. Falou, falou e falou.
Em torno dele, desenvolvia-se um debate que Kynes nem percebeu. Que fazer com esse louco? Ele conhecia a localização de um dos principais sietches. Que fazer? E quanto às suas palavras? Essa conversa de louco sobre um paraíso em Arrakis? Apenas conversa. Ele sabe demais. Mas ele matou Harkonnen! E quanto à dívida da água? Quando foi que ficamos devendo alguma coisa ao Império? Ele matou Harkonnen? Qualquer um pode matar Harkonnen. Eu mesmo já fiz isso. Mas, e quanto a essa conversa de Arrakis florescendo? Muito simples. Onde está a água para isso? Ele diz que está aqui! E salvou três dos nossos. Salvou três tolos que se colocaram no caminho do punho dos Harkonnen! E ele viu as facas cristalinas!
A decisão necessária já era conhecida horas antes que fosse pronunciada. O tau do sietch diz a seus membros o que eles devem fazer, até mesmo a necessidade mais brutal torna-se conhecida. Foi enviado um lutador experiente com uma faca consagrada para fazer o trabalho. Dois encarregados de água o seguiram para obter a água do corpo. Uma brutal necessidade.
É duvidoso que Kynes tenha chegado sequer a reparar em seu suposto executor. Estava falando para um grupo que o cercava a uma distância cautelosa. Falava enquanto caminhava num curto círculo, gesticulando. Água livre, dizia Kynes, caminhar ao ar livre sem trajes-destiladores. Água para recolher de um lago! Portyguls!
O homem com a faca o confrontou.
— Remova-se daqui — disse Kynes, e continuou falando a respeito de armadilhas secretas de vento. Esbarrou no homem e voltou-lhe as costas, abertas para o golpe cerimonial.
O que se passou na mente daquele executar ninguém pode saber.
Será que ele acabou ouvindo Kynes e acreditou? Quem sabe? Mas o que ele fez está registrado. Uliet era seu nome, o Velho Liet.
Uliet caminhou três passos e deliberadamente caiu sobre a própria faca, assim “removendo” a si mesmo. Suicídio? Alguns dizem que foi Shai-hulud quem o guiou.
Histórias de profecias!
A partir daquele instante, Kynes só precisava apontar, dizendo “vão para lá”. E tribos inteiras de Fremen iam. Homens morreram, mulheres morreram, crianças morreram. Mas eles prosseguiram.
Kynes retornou a seus serviços imperiais, dirigindo as Estações de Testes Biológicos. E agora os Fremen começavam a aparecer entre o pessoal de tais estações. Os Fremen entreolhavam-se. Estavam infiltrando-se no “sistema”, possibilidade que nunca haviam considerado. Ferramentas das estações começaram a aparecer nos sietches, especialmente raios de corte, usados para escavar sob o solo criando bacias de coletagem e armadilhas de vento ocultas.
A água começou a ser coletada nessas bacias.
Tornou-se então evidente para os Fremen que Kynes não era um homem totalmente louco, apenas o suficiente para ser um santo.
Ele era um dos umma, a irmandade dos profetas. A sombra de Uliet foi promovida ao sadus, o trono dos juízes celestiais.
Kynes — direto, totalmente concentrado em sua missão sabia que a pesquisa altamente organizada tem a garantia de nunca produzir nada novo. Estabeleceu experiências com pequenas unidades e um intercâmbio regular de informações para produzir um rápido efeito Tansley, deixando cada grupo encontrar o seu próprio caminho. Eles deveriam acumular milhões de pequeninos fatos. Ele organizou somente testes isolados e toscos para colocar as dificuldades na perspectiva adequada.
Fizeram-se amostragens de núcleo rochoso. Delinearam-se mapas das longas alterações de tempo chamadas de clima. Ele descobriu que, no amplo cinturão contido pelas linhas de 70 graus ao Norte e ao Sul, durante milhares de anos as temperaturas não haviam escapado à faixa dos 254-332 graus (absolutos), e que esse cinturão possuía longas estações de crescimento, quando as temperaturas variavam de
E quando será resolvida?, indagaram os Fremen. Quando veremos Arrakis tornar-se um paraíso?
Da maneira como um professor responderia a uma criança que lhe perguntasse a soma de dois mais dois, Kynes respondeu-lhes: Dentro de trezentos a quinhentos anos.
Outro povo menos resistente teria gritado de desapontamento.
Mas os Fremen haviam aprendido a ter paciência com homens que usavam chicotes. Era um pouco mais do que esperavam, mas todos podiam ver que o dia abençoado iria chegar. Eles apertaram os cintos e voltaram ao trabalho. De algum modo, o desapontamento fez com que a perspectiva do paraíso parecesse mais real.
A preocupação em Arrakis não era com água, mas com umidade. Animais de estimação eram quase desconhecidos, animais de criação, raros. Alguns contrabandistas empregavam o asno do deserto domesticado, o kulon, mas o preço da água era elevado, mesmo quando as bestas eram dotadas de trajes-destiladores modificados.
Kynes pensou em instalar fábricas de redução para produzir água a partir do hidrogênio e do oxigênio encontrados nas rochas nativas, mas o fator energia versus custo revelou-se proibitivo. As calotas polares (não obstante o falso sentimento de segurança quanto à água que elas traziam para os pyons) continham uma quantidade muito pequena para o projeto... e ele já começava a suspeitar onde a água devia ser encontrada. Havia um aumento constante da umidade do ar nas latitudes médias e em determinados ventos. Havia um indício primário na composição do ar: 23 por cento de oxigênio, 75,4 por cento de nitrogênio e 0,23 por cento de dióxido de carbono, com gases residuais completando o resto.
Existia uma rara planta nativa dotada de raízes que crescia acima do nível de
Então Kynes viu a panela salgada.
Seu “tóptero”, voando entre estações situadas bem no meio do bled, foi afastado do curso por uma tempestade. Quando a tempestade passou, lá estava a “panela”: uma gigantesca depressão oval com uns trezentos quilômetros ao longo do eixo maior — cintilante surpresa branca em pleno deserto. Kynes pousou e provou da superfície varrida pela tempestade. Sal.
Agora ele tinha certeza.
Existira água livre em Arrakis em alguma ocasião. Ele começou a examinar as evidências dos poços secos onde fios de água haviam aparecido e desaparecido para nunca mais retornarem.
Kynes colocou os limnologistas Fremen, recentemente treinados, para trabalharem: seu principal indício eram pedaços de matéria coriácea encontrados algumas vezes após uma explosão da massa de especiaria. Isso fora atribuído à fictícia “truta da areia” do folclore Fremen. Quando os fatos se transformaram em evidências, uma criatura emergiu para explicar essas tiras coriáceas: um nadador da areia que bloqueava a água em bolsões férteis, dentro dos estratos porosos inferiores, abaixo da linha dos 280 graus absolutos.
Esses “ladrões de água” morriam aos milhões a cada estouro da especiaria. Uma mudança de cinco graus na temperatura poderia matá-los. Os poucos sobreviventes entravam em estado semi-dormente de hibernação em cisto para emergirem seis anos depois na forma de pequenos (seis metros de comprimento) vermes da areia. Destes, somente uns poucos conseguiam evitar seus irmãos maiores e os bolsões de água pré-especiaria para chegarem à maturidade como gigantescos shai-huluds. (A água é venenosa para o shai-hulud, como os Fremen já sabiam há muito tempo, de afogarem o raro “verme raquítico” do Pequeno Erg para produzirem o narcótico de ampliação da consciência a que chamavam Água da Vida. O “verme raquítico” é uma forma primitiva de shai-hulud que atinge o comprimento de apenas nove metros.) Agora eles possuíam a visão de todo o relacionamento circular: pequeno produtor para a massa de pré-especiaria, pequeno produtor para shai-hulud, shai-hulud para espalhar a especiaria, da qual se alimentam microscópicas criaturas chamadas de plâncton-da-areia, o plâncton-da-areia, alimento do shai-hulud, crescendo, enterrando-se e se transformando em pequenos produtores.
Kynes e sua gente deixaram de lado esses grandes relacionamentos e se concentraram na micro-ecologia. Primeiro o clima: a areia superficial freqüentemente atingia temperaturas de
Os lados das velhas dunas opostos ao vento forneceram as primeiras áreas de plantio. Os Fremen objetivaram primeiramente obter um ciclo do capim ralo, com pêlos semelhantes à turfa, para se entrelaçarem e se emaranharem, fixando as dunas ao privarem o vento de sua grande arma: os grãos móveis.
Zonas de adaptação foram estabelecidas no distante Sul, longe da observação dos Harkonnen. Capins mutantes foram plantados primeiro ao longo da face oposta ao vento (face escorregadia) de dunas escolhidas, que se colocavam na trilha dos ventos de Oeste predominantes. Com a face aposta ao vento ancorada, o lado voltado para o vento crescia cada vez mais alto e o capim avançava, acompanhando. Sifs gigantes (longas dunas com cristas sinuosas) de mais de
Quando as dunas de barreira atingiam altura suficiente, suas faces voltadas para o vento eram plantadas com o capim-espada, mais resistente. Cada estrutura, com base seis vezes mais espessa que a altura, era ancorada — fixada.
Agora começavam as plantações mais profundas — plantas efêmeras (quenopódios, carurus e amarantos, para começar), depois a vassoura-escocesa, o tremoceiro baixo, o eucalipto-trepadeira (tipo adaptado para as regiões do norte de Caladan), tamargueira-anã, pinhoda-praia — e depois as verdadeiras plantas de deserto: candelila, saguaro e bisnaga, o cacto-barril. Onde isso crescia, eles introduziram a salvade-camelo, o capim-cebola, o capim-de-gobi, a alfafa selvagem, o arbusto-toca, a verbena-da-areia, a prímula noturna, o arbusto-incenso, a árvore fumarenta, e o arbusto creosoto.
Voltaram então a atenção para a necessária vida animal, criaturas que se enterrassem no solo para arejá-la: pequena raposa, rato-canguru, lebre-do-deserto, tartaruga-da-areia... e os predadores, para manter a população sob controle: falcão-do-deserto, coruja-anã, águia e coruja-do-deserto, e insetos para preencherem os nichos que essas criaturas não pudessem alcançar: escorpião, centopéia, aranha-alçapão, vespa e mosca varejeira... mais o morcego-do-deserto, para manter os insetos sob controle.
Agora vinha o teste crucial: tamareiras, algodão, melões, café, plantas medicinais, mais de duzentas variedades de plantas comestíveis para testar e adaptar.
“O que os analfabetos em ecologia não são capazes de perceber é que um ecossistema é um sistema”, dizia Kynes. “Um sistema mantido dentro de certa estabilidade fluida que pode ser destruída por uma falha em apenas um nicho. Um sistema tem ordem, flui de um ponto para outro. Se alguma coisa interrompe esse fluxo, a ordem desaparece. Aqueles que não foram treinados podem não perceber esse colapso até que seja tarde demais. Por isso é que a função mais elevada da ecologia é a compreensão das conseqüências.”
Teriam eles atingido um sistema?
Kynes e sua gente observaram e esperaram. Os Fremen agora compreendiam o que ele pretendera dizer com uma previsão aberta de quinhentos anos.
Um relatório veio da região das palmeiras.
Na borda das plantações de deserto, o plâncton-da-areia está sendo envenenado pela interação com as novas formas de vida. Razão: incompatibilidade protéica. Formava-se lá uma água envenenada que as formas de vida de Arrakis não tocavam. Uma zona de desolação cercou as plantações, nem mesmo o shai-hulud se atrevia a invadi-la.
Kynes foi até lá pessoalmente — uma viagem de vinte tumperes (num palanquim como um ferido ou uma Reverenda Madre, já que ele nunca se tornou um cavaleiro da areia). Ele testou a zona desolada (ela fedia até o céu) e voltou com um bônus, um presente de Arrakis.
A adição de enxofre e fixação de nitrogênio convertiam a zona desolada num rico leito para vida terrestre. As plantações poderiam avançar à vontade.
— Isso muda o cronograma? — indagaram os Fremen.
Kynes voltou a suas fórmulas planetárias. Os números das armadilhas de vento estavam razoavelmente estabelecidos, então. Ele foi generoso com seus descontos, sabendo que seria impossível traçar linhas exatas em torno de problemas ecológicos. Certa quantidade de cobertura vegetal já fora destinada à fixação de dunas, outra quantidade para alimento (humano e animal), outra para captar umidade em sistemas de raízes e fornecer água às áreas calcinadas ao redor. Dessa vez eles mapearam os pontos frios móveis no bled. Estes tinham de ser computados nas fórmulas. Até mesmo o shai-hulud tinha seu lugar nas cartas. Ele nunca deveria ser destruído, ou a riqueza de especiaria iria terminar. Sua fábrica digestiva interna, com sua enorme concentração de ácidos e aldeídos, constituía gigantesca fonte de oxigênio. Um verme médio (com duzentos metros de comprimento) liberava tanto oxigênio na atmosfera quanto dez quilômetros quadrados de área coberta de plantas verdes fotos sintéticas.
Havia a Corporação a considerar. Os subornos em especiaria para a Corporação, visando evitar satélites meteorológicos e outros tipos de observadores nos céus de Arrakis, já haviam atingido grandes proporções.
Os Fremen também não podiam ser ignorados. Especialmente eles, com suas armadilhas de vento e sua ocupação irregular da terra organizada ao redor do suprimento de água. Os Fremen com seu novo conhecimento de ecologia e seu sonho de transformar vastas áreas de Arrakis, passando por uma fase de pradaria, até chegar à cobertura florestal.
De seus mapas emergiu um número e Kynes o relatou. Três por cento. Se eles conseguissem envolver três por cento das plantas verdes de Arrakis na formação de compostos de carbono, teriam seu ciclo auto-sustentável.
— Mas quanto tempo? — indagaram os Fremen.
— Oh, em torno de trezentos e cinqüenta anos.
Ah, sim, era verdade o que esse umma dissera no princípio: a coisa não viria no tempo de existência de qualquer homem agora vivo, nem no de seus netos oito gerações além, mas um dia viria.
O trabalho continuou: construir, plantar, escavar, treinar as crianças.
Então Kynes-o-Umma morreu num desabamento na Bacia do Gesso.
A essa altura, seu filho Liet-Kynes tinha dezenove anos um perfeito Fremen e cavaleiro da areia que já matara mais de cem Harkonnen. A nomeação real, para a qual o velho Kynes já indicara o nome do filho, chegou naturalmente. A rígida estrutura de classes dos faufreluches tivera seu propósito bem-ordenado aqui.
O filho fora treinado para seguir o caminho do pai.
O curso já fora estabelecido a essa altura, os Ecológicos Fremen tinham uma direção a seguir. Liet-Kynes só precisava observar e pressionar e espionar os Harkonnen... até o dia em que seu planeta foi atormentado por um herói...
APENDICE II: A RELIGIAO DE DUNA
Antes da vinda do Muad'Dib, os Fremen de Arrakis praticavam uma religião cujas raízes no Saari Maometano são evidentes a qualquer estudioso. Muitos já traçaram os grandes empréstimos tomados a outras religiões. O exemplo mais comum é o Cântico da Água, cópia direta do Manual Litúrgico Católico Laranja, chamando por nuvens de chuva que Arrakis nunca viu. Mas existem pontos de concordância mais profundos entre o Kitab al-Ibar dos Fremen e os ensinamentos da Bíblia, do Ihn e do Fiqh.
Qualquer comparação entre as crenças religiosas dominantes no Império até a época do Muad'Dib deve começar com as grandes forças que as moldaram!
1. Os seguidores dos Quatorze Sábios, cujo livro era a Bíblia Católica Laranja e cujos pontos de vista encontram-se expressos nos Comentários e no restante da literatura produzida pela Comissão de Tradutores Ecumênicos (C.T.E.).
2. As Bene Gesserit, que particularmente negavam constituir uma ordem religiosa, mas que operavam sob um escudo quase impenetrável de rituais místicos, com métodos de treinamento, simbolismo, organização e ensino quase inteiramente religiosos.
4. Os chamados Ensinamentos Ancestrais — incluindo-se os preservados pelos Peregrinos Zensunni do primeiro, do segundo e do terceiro Movimentos Islâmicos, o Navacristianismo de Chusuk, as Variantes Budislâmicas dos tipos predominantes em Lankiveil e Sikun, os Livros da União do Mahayana Lankavatara, o Zen Hekiganshu de Delta Pavonis III, o Tawrah e o Zabur Talmúdico que sobreviviam em Salusa Secundus, o disperso ritual Obeah, o Muadh Quran, com seu Ilm e seu Figh puros, preservados entre os fazendeiros de arroz pundi de Caladan, os afloramentos hindus encontrados por todo o universo em pequenos bolsões de pyons isolados, e finalmente o Jihad Butleriano.
Há uma quinta força que moldou a crença religiosa, mas seu efeito é tão universal e profundo que merece ser examinado separadamente.
Evidentemente, trata-se da viagem espacial, que em qualquer discussão sobre religião merece ser escrita assim:
VIAGEM ESPACIAL!
Os movimentos da humanidade através do espaço profundo exerceram um efeito singular sobre a religião durante os cento e dez séculos que precederam o Jihad Butleriano. De início, a viagem espacial, embora generalizada, era lenta, incerta e muito pouco controlada — e, antes do monopólio da Corporação, realizada através de uma barafunda de métodos. As primeiras experiências espaciais, muito mal divulgadas e sujeitas a extrema distorção, induziram a uma desenfreada especulação mística.
Imediatamente, o espaço deu sentido e sabor diferentes às idéias sobre a Criação. Essa diferença pode ser notada nos maiores feitos religiosos desse período. Em todas as religiões, o sentimento do sagrado era atingido pela anarquia da escuridão exterior.
Era como se Júpiter e todas as suas formas descendentes se retraíssem à escuridão maternal para serem substituídos por uma imanência feminina cheia de ambigüidades e com a face repleta de terrores.
As antigas fórmulas se entrelaçavam e se entremeavam ao serem adequadas às necessidades das novas conquistas e dos novos símbolos heráldicos. Era um tempo de luta entre as bestas-demônios, de um lado, e as velhas preces e invocações, do outro.
Nunca houve um desfecho claro.
Durante esse período, dizia-se que o Gênesis fora reinterpretado, permitindo que Deus dissesse: “Crescei e multiplicaivos, e enchei o universo, e o subjugai, governando sobre todo o tipo de bestas estranhas e criaturas vivas nos infinitos ares e infinitas terras e abaixo delas.”
Era um tempo de feiticeiras cujos poderes eram reais. A medida disso é encontrada no fato de que nunca revelaram como acenderam a tocha da discórdia.
E então veio o Jihad Butleriano — duas gerações de caos. O deus da lógica-máquina foi derrubado entre as massas para que um novo conceito se erguesse: “O Homem não pode ser substituído.”
Essas duas gerações de violência foram uma pausa talâmica para toda a humanidade. Os homens olharam para seus deuses e rituais e perceberam que eles estavam recheados com a mais terrível de todas as equações: medo sobre ambição.
Hesitantemente, os líderes de religiões cujos adeptos haviam derramado o sangue de bilhões começaram a se reunir para trocar pontos de vista. Tratava-se de um movimento encorajado pela Corporação Espacial, que então principiava a construir seu monopólio sobre todas as viagens interestelares, e pelas Bene Gesserit, que reuniam as feiticeiras.
Desses primeiros encontros ecumênicos, surgiram dois grandes resultados
A CTE reuniu-se na ilha neutra da Velha Terra, local de nascimento das religiões maternas. Eles se encontraram “na crença comum de que existe uma Essência Divina no universo”. Cada fé com mais de um milhão de seguidores foi representada, e todos chegaram a um acordo surpreendentemente rápido quanto à declaração de seu objetivo comum : “Nós estamos aqui para remover uma arma básica das mãos das religiões em disputa. Essa arma é a pretensão de possuir a única e derradeira revelação.”
O júbilo ante esse “sinal de profundo acordo” revelou-se prematuro. Durante mais de um ano standard, essa declaração constituiu o único anúncio feito pela CTE. Os homens falavam amargamente do atraso. Trovadores compunham canções satíricas a respeito dos cento e vinte e um “Velhos Maníacos”, como os delegados da CTE passaram a ser chamados. (O nome surgiu de uma piada obscena que brincava com as iniciais [em inglês, C.E.T.] e chamava os delegados de “Cranks-Effing-Turners”.) Uma das canções, o “Repouso de Brown”, tem sido relembrada periodicamente e ainda hoje é popular.
“Considerem O repouso de Brown e A tragédia Em todos aqueles Maníacos! Todos aqueles Maníacos Tão preguiçosos, tão preguiçosos Por todos estes dias.
Que o tempo tem cobrado ao meu Lorde Sandwich!”
Rumores ocasionais escapavam das reuniões da CTE. Diziam que eles estavam comparando textos e, irresponsavelmente, os textos eram citados. Tais rumores provocaram inevitavelmente distúrbios antiecumênicos e, é claro, inspiraram novos ditos espirituosos.
Dois anos se passaram... três anos.
Dos membros da Comissão, nove haviam morrido, tendo sido substituídos. Os restantes fizeram uma pausa para observar as formalidades de posse dos substitutos e anunciaram estar trabalhando para produzir um livro, unindo “todos os sintomas patológicos” das religiões passadas.
— Estamos produzindo um instrumento do Amor para ser tocado de todos os modos — disseram.
Muitos consideram singular que essa declaração tenha provocado os piores surtos de violência contra o ecumenismo. Vinte delegados foram chamados de volta por suas congregações. Um deles cometeu suicídio, roubando uma fragata espacial e mergulhando no sol.
Historiadores estimam que a revolta custou oito milhões de vidas. Isso representa quase seis mil vidas para cada um dos mundos que então compunham a Liga da Landsraad. Considerando a agitação da época, essa estimativa pode não ser exagerada, embora qualquer pretensão de precisão não seja mais que isso: uma pretensão. A comunicação entre os mundos achava-se então num de seus mais baixos recessos.
Os trovadores, naturalmente, tiveram bons momentos. Uma comédia musical muito popular naquele período colocava um dos delegados da CTE sentado embaixo de uma palmeira, em uma praia de areia branca, cantando:
“Por Deus, pela mulher e pelo esplendor do amor Nós vadiamos aqui sem medo ou preocupação Trovador! Trovador, cante outra melodia Por Deus, pela mulher e pelo esplendor do amor!”
Revoltas e comédias eram apenas sintomas daquela época, profundamente reveladores. Denunciavam o clima psicológico, as profundas incertezas... o empenho em conseguir algo melhor, mais o medo de que nada pudesse resultar de tudo aquilo.
As maiores forças contra a anarquia, nessa época, eram a embrionária Corporação, as Bene Gesserit e a Landsraad, que continuava seu registro de dois mil anos de reuniões, a despeito dos mais severos obstáculos. A participação da Corporação aparece claramente: ela fornecia livre transporte para todos os assuntos da Landsraad e da CTE. O papel das Bene Gesserit é mais obscuro.
Certamente, essa foi a época em que elas consolidaram seu domínio sobre as feiticeiras, exploraram os narcóticos sutis, desenvolveram o treinamento prana-bindu e conceberam a Missionária Protetora, o braço negro da superstição. Mas esse também foi o período que assistiu à composição da Ladainha contra o Medo e à montagem do livro de Azhar, essa maravilha bibliográfica que preserva os grandes segredos da maioria das antigas fés.
O comentário de Ingsley talvez seja o único possível: “Aqueles foram tempos de profundo paradoxo.”
Por quase sete anos, o CTE trabalhara. E enquanto seu sétimo aniversário se aproximava, seus membros prepararam o universo dos seres humanos para um anúncio significativo. Naquele sétimo aniversário, eles revelaram a Bíblia Católica Laranja.
— Eis um trabalho com significado e dignidade — disseram eles. — Aqui está o modo pelo qual a humanidade se tornará consciente de si mesma como criação completa de Deus.
Os homens da CTE estavam ligados a arqueólogos de idéias, inspirados por Deus na grandeza da redescoberta. Foi dito que eles haviam trazido de volta à luz “a vitalidade dos grandes ideais cobertos pelo sedimento dos séculos”, que haviam “aguçado os imperativos morais que surgem de toda consciência religiosa.”
Junto com a Bíblia C.L., a CTE apresentou o Manual Litúrgico e os Comentários — em muitos aspectos, um trabalho mais extraordinário, não apenas pelo aspecto de síntese (menos de metade do tamanho da Bíblia C.L.), mas também pela sinceridade e pela mistura de autopiedade e farisaísmo.
A abertura constituía um apelo a todos os governantes agnósticos. “Os homens, não encontrando respostas ao sunnan [as dez mil questões religiosas do Shari-ah], agora aplicam seu próprio raciocínio. Todos os homens buscam o esclarecimento. A religião é apenas o modo mais antigo e honroso pelo qual os homens procuram obter um sentido para o universo de Deus. Os cientistas buscam a legitimidade dos eventos. E tarefa da religião encaixar o homem nessa legitimidade.”
Em sua conclusão, todavia, os Comentários estabeleciam um tom duro que muito provavelmente predizia seu destino.
“Muito daquilo que tem sido chamado de religião carrega uma atitude inconsciente de hostilidade com relação à vida. A verdadeira religião deve ensinar que a vida é cheia de prazeres agradáveis ao olhar de Deus, que o conhecimento sem ação é vazio. Todos os homens devem perceber que o ensinamento de uma religião através de regras, mecanicamente, é uma farsa. O ensinamento adequado é facilmente reconhecido. Podemos reconhecê-lo sem dúvida quando ele nos desperta a sensação de termos ouvido algo que sempre soubemos.”
Houve um estranho sentimento de calma quando as prensas e os impressores de shigawire rodaram e a Bíblia C.L. se espalhou através dos mundos. Alguns interpretaram isso como um sinal divino, uma profecia de unidade.
No entanto, até os delegados da CTE mostraram como essa calma era fictícia, ao retornarem às respectivas congregações. Dezoito deles foram linchados no período de dois meses. Cinqüenta e três retrataram-se dentro de um ano.
A Bíblia C.L. foi denunciada como um trabalho produzido pelos “adoradores da razão”. Disseram que suas páginas estavam carregadas de um sedutor interesse pela lógica. Revisões que alimentavam o fanatismo e a intolerância popular começaram a aparecer.
Essas revisões inclinavam-se a aceitar simbolismos (a cruz, o crescente, o chocalho emplumado, os doze santos, o Buda magro, etc), e logo se tornou evidente que as antigas superstições e crenças não haviam sido absorvidas pelo novo ecumenismo.
O rótulo de Halloway para o esforço de sete anos da CTE “Determinismo Galactofásico” — foi aceito por bilhões de pessoas, que interpretaram as iniciais D.G. como “Demônio Gigante”.
O presidente da CTE, Toure Bomoko, um Ulemá dos Zensunnis e um dos quatorze delegados que nunca se retrataram (“Os Quatorze Sábios” da tradição popular), apareceu para admitir finalmente que a CTE errara.
— Não devíamos ter tentado criar novos símbolos — disse ele.
— Tínhamos de ter percebido que não era nossa missão introduzir dúvidas nas crenças aceitas, que não devíamos produzir curiosidade a respeito de Deus. Somos confrontados diariamente com a aterradora instabilidade de todas as coisas humanas, e no entanto permitimos que nossas religiões se tornem mais rígidas e controladas, mais conformistas e opressoras. Que sombra é essa sobre a estrada do Divino Comando? E um aviso de que as instituições persistem, de que os símbolos permanecem, mesmo quando seu significado foi perdido, de que não existe soma de todo o conhecimento obtido.
A amarga ambigüidade dessa “confissão” não escapou aos críticos de Bomoko, e logo depois ele foi forçado a fugir para o exílio, sua vida dependendo da garantia de sigilo da Corporação.
Conta-se que morreu em Tupile, honrado e estimado, sendo suas últimas palavras : — A religião deve permanecer como uma saída para pessoas que dizem a si mesmas : “Eu não sou o tipo de pessoa que desejaria ser.” Jamais deve reduzir-se a um encontro dos que se acham satisfeitos consigo mesmos.
É agradável pensar que Bomoko entendeu a profecia em suas palavras : “As instituições persistem.” Noventa gerações depois, a Bíblia C.L. e os Comentários permeavam o universo religioso.
Quando Paul Muad'Dib elevou a mão direita sobre o santuário de pedra que envolvia o crânio de seu pai (a mão direita dos abençoados, não a esquerda dos condenados), citou palavra por palavra o “Legado de Bomoko” : “Vocês que nos derrotaram comentam entre si que Babilônia caiu e que sua obra foi destruída. E eu lhes digo que o homem permanece sob julgamento, cada homem em seu próprio banco dos réus. Cada homem é uma pequena guerra.”
Os Fremen diziam do Muad'Dib que ele era como Abu Zide, cuja fragata desafiou a Corporação e que um dia viajou até “lá” e voltou. Lá, usado desse modo, traduz-se diretamente da mitologia Fremen como a terra do espírito-ruh, o alam al-mithal onde todas as limitações desaparecem.
O paralelo entre isso e o Kwisatz Haderach pode ser visto facilmente. O Kwisatz Haderach, que a Irmandade buscara através de seu programa de procriação controlada, era interpretado como o “Encurtamento do caminho” ou “Aquele que pode estar em dois lugares ao mesmo tempo”.
Mas ambas as interpretações, como se pode demonstrar, derivam diretamente dos Comentários: “Quando a tarefa da lei e a da religião são uma só, você raramente abarca o universo.”
De si mesmo, o Muad'Dib disse: “Eu sou uma rede no mar do tempo, livre para varrer o futuro e o passado. Eu sou uma membrana móvel da qual nenhuma possibilidade pode escapar.”
Esses pensamentos são um só e se relacionam com o Kalima 22 da Bíblia C.L., que diz: “Seja um pensamento enunciado em palavras ou não, ele constitui uma coisa real e tem poder sobre a realidade.”
E quando voltamos aos próprios comentários do Muad'Dib em “Os Pilares do Universo”, como interpretado por seu sagrado seguidor, o Qizara Tafwid, que vemos seu verdadeiro débito para com a CTE e os Fremen-Zensunni.
Muad'Dib: “A lei e a obrigação são uma só, e assim devem ser. Mas lembrem-se dessas limitações — assim, vocês nunca são inteiramente auto-conscientes. Assim, vocês permanecem imersos no tau comunitário. Assim, vocês são sempre menos que um indivíduo.”
Bíblia C.L.: Idêntico palavreado (61 Revelações).
Muad'Dib: “A religião freqüentemente compartilha o mito do progresso, que nos protege dos terrores de um futuro incerto. “
CTE, Comentário: Idêntico palavreado. (O Livro de Azhar atribui essa declaração a Neshou, autor religioso do primeiro século, através de uma paráfrase.)
Muad'Dib: “Se uma criança, uma pessoa não treinada, uma pessoa ignorante ou uma pessoa insana incita à desordem, a falha é da autoridade por não ter previsto ou evitado essa desordem.”
Bíblia C.L.: “Qualquer pecado pode ser atribuído, ao menos em parte, a uma tendência má, natural, que constitui circunstância atenuante aceitável por Deus.” (O Livro de Azhar atribui isso à antiga Tawra Semítica.)
Muad'Dib: “Estenda sua mão e se alimente do que Deus lhe deu, e quando estiver satisfeito, louve a Deus. “
Bíblia C.L.: uma paráfrase com idêntico significado. (O Livro de Azhar traça a origem disso, em forma ligeiramente diferente, no Primeiro Islã.)
Muad'Dib: “A bondade é o princípio da crueldade.”
Fremen Kitab al-Ibar: “O peso de um Deus bondoso é algo temível. Não nos deu Deus o sol flamejante (AI-lat)? Não nos deu Deus as Mães da Umidade (Reverendas Madres)? Não nos deu Deus Shaitan (Iblis, Satã?) E de Shaitan não recebemos a perniciosidade da pressa?”
(Essa é a fonte do ditado Fremen: “A velocidade vem de Shaitan.” Considere-se que, para cada cem calorias de calor geradas por exercícios [velocidade], o corpo evapora cerca de seis onças de transpiração. A palavra Fremen para transpiração é bakka ou lágrimas e, em uma pronúncia, se traduz como: “A essência vital que Shaitan espreme de sua alma.”)
A chegada do Muad'Dib é chamada por Koneywell de “religiosidade oportuna”, mas o oportunismo tem pouco a ver com ela. Como disse o próprio Muad'Dib: “Eu estou aqui, portanto...”
É vital, contudo, para se compreender o impacto religioso do Muad'Dib, que nunca se perca de vista o seguinte fato: os Fremen eram um povo do deserto cuja ascendência fora acostumada a ambientes hostis. O misticismo não é difícil quando você sobrevive cada segundo enfrentando uma hostilidade aberta. “Você está lá — portanto...”
Com tal tradição, o sofrimento é aceito — talvez como punição inconsciente, mas aceito. E é bom lembrar que os rituais Fremen oferecem uma liberdade quase total em relação aos sentimentos de culpa. Isso não deriva necessariamente do fato de sua lei e sua religião serem coisas idênticas, fazendo da desobediência um pecado. É mais certo dizer que eles se livravam mais facilmente da culpa porque sua existência diária exigia decisões brutais (freqüentemente mortais) que, em ambiente mais ameno, fariam pesar sobre os homens uma culpa insuportável.
Isso constitui provavelmente uma das raízes da ênfase que os Fremen colocavam sobre a superstição (desconsiderando-se o sacerdócio da Missionária Protetora). Que importa que areias assoviando sejam um presságio? Que importa se você faz o sinal do punho quando vê a Primeira Lua? A carne de um homem é dele mesmo e sua água pertence à tribo — e o mistério da vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser vivenciada. As profecias ajudam a relembrar isso. E porque você está aqui, porque você tem a religião, a vitória não lhe pode escapar no final.
Como as Bene Gesserit ensinaram durante séculos, muito antes de arranjarem complicações com os Fremen:
“Quando religião e política avançam no mesmo carro, quando esse carro é dirigido por um homem santo vivo (baraka), nada pode ficar em seu caminho.”
APENDICE III: RELATÓRIO SOBRE OS MOTIVOS E PROPÓSITOS DAS BENE GESSERIT
Aqui segue um resumo do Summa preparado pelos próprios agentes a pedido de Lady Jessica, imediatamente após o Caso Arrakis. A sinceridade deste relatório eleva seu valor bem além do trivial.
Pelo fato de as Bene Gesserit terem trabalhado durante séculos por trás do biombo de uma escola semi-mística, enquanto realizavam seu programa de procriação selecionada entre os seres humanos, temos uma tendência a atribuir-lhes maior importância do que realmente merecem. A análise de seu “julgamento dos fatos” durante o Caso Arrakis revela a profunda ignorância da escola quanto ao seu próprio papel.
Pode-se argumentar que as Bene Gesserit só podiam examinar os fatos que lhes eram disponíveis, e que não tinham acesso direto à pessoa do Profeta Muad'Dib. Mas a escola já superara obstáculos maiores e seu erro, desse modo, torna-se mais profundo.
O objetivo do programa das Bene Gesserit era provocar o nascimento de uma pessoa que elas rotulavam como o “Kwisatz Haderach”, termo que significa “aquele que pode estar em muitos lugares ao mesmo tempo”. Em termos mais simples, o que procuravam era um ser humano com poderes mentais que lhe permitissem compreender e usar dimensões de ordem mais elevada.
Elas estavam tentando obter um super-Mentat, um computador humano com algumas das habilidades prescientes encontradas nos navegadores da Corporação. Ora, prestem muita atenção a estes fatos: Muad'Dib, nascido Paul Atreides, era filho do Duque Leto, homem cuja linha de sangue fora acompanhada cuidadosamente por mais de mil anos. A mãe do Profeta, Lady Jessica, era filha natural do Barão Vladimir Harkonnen e portava produtores de genes cuja importância suprema para o programa de procriação fora conhecida durante quase dois .mil anos. Ela era uma Bene Gesserit por criação e treinamento, e deveria ter-se constituído em ferramenta ao projeto.
À Lady Jessica foi ordenado que produzisse uma filha para os Atreides. O plano era unir essa filha com Feyd-Rautha Harkonnen, com elevada probabilidade de que desse casamento resultasse um Kwisatz Haderach. Em vez disso, por motivos que ela mesma confessa nunca lhe terem sido totalmente claras, a concubina Lady Jessica desafiou as ordens e gerou um filho.
Só isso já devia ter alertado as Bene Gesserit quanto à possibilidade de uma variável descontrolada ter-se introduzido em seu esquema. Mas havia outras indicações mais importantes que foram praticamente ignoradas
1. Quando jovem, Paul Atreides demonstrou habilidade para prever o futuro. Era conhecido como tendo visões prescientes consideradas precisas, penetrantes e que desafiavam uma explicação quadridimensional.
3. Quando a família Atreides se mudou para o planeta Arrakis, a população Fremen saudou o jovem Paul como um profeta, “a voz do mundo exterior”. As Bene Gesserit estavam bem conscientes dos rigores de um planeta como Arrakis, com paisagem totalmente desértica, absoluta ausência de água livre e ênfase nas mais primitivas necessidades de sobrevivência, o que inevitavelmente produz elevada proporção de sensitivos. Todavia, essa reação dos Fremen, além do óbvio elemento que era a dieta alimentar de Arrakis, com grande quantidade de especiaria, foi subestimada pelas observadoras Bene Gesserit.
4. Quando os Harkonnen e os soldados-fanáticos do Imperador Padishah reocuparam Arrakis, matando o pai de Paul e a maioria dos soldados dos Atreides, Paul e sua mãe desapareceram. Mas quase imediatamente surgiram relatórios a respeito de um novo líder religioso entre os Fremen, um homem chamado Muad'Dib, novamente saudado como “a voz do mundo exterior”. Os relatórios afirmavam claramente ser ele acompanhado por uma nova Reverenda Madre do Rito Sayyadina, “que é a mulher que o gerou”. Registros disponíveis às Bene Gesserit declaravam em termos bem claros que as lendas Fremen a respeito do profeta continham as seguintes palavras: “Ele deverá nascer de uma bruxa Bene Gesserit.”
(Pode-se argumentar que as Bene Gesserit tinham enviado para Arrakis sua Missionária Protetora, séculos antes, com o fito de implantar algo da tipo dessa lenda como uma segurança caso alguma integrante da escola se encontrasse extraviada no planeta, necessitando de um santuário. Assim, a lenda da “voz do mundo exterior” devia ser ignorada, já que parecia parte de um estratagema-padrão das Bene Gesserit. Mas isso só seria verdadeiro caso se considerasse que as Bene Gesserit acertaram ao ignorarem os outros indícios a respeito de Paul Muad'Dib.)
5. Quando o Caso Arrakis começou a ferver, a Corporação Espacial deu indicações às Bene Gesserit. Afirmou que seus navegadores, que usavam a droga da especiaria de Arrakis para obter a limitada presciência necessária para que pudessem guiar espaço-naves através do vazio, estavam “incomodados quanto ao futuro” ou “viam problemas no horizonte”. Isso só poderia indicar que eles viam um nó, um ponto de encontro de inúmeras decisões delicadas, além do qual o caminho se achava oculto ao olhar presciente. Isso constituía uma indicação clara de que alguma agência estava interferindo com dimensões de ordem elevada!
(Algumas Bene Gesserit há muito tempo já possuíam o conhecimento de que a Corporação não poderia interferir diretamente na fonte vital de especiaria, pois seus navegadores já estavam lidando, ao seu modo inepto, com dimensões de ordem elevada, pelo menos a ponto de reconhecerem que o mais leve passo em falso que dessem em Arrakis poderia ser catastrófico. Era fato conhecido que os navegadores da Corporação não conseguiam prever um modo de assumir o controle da especiaria sem gerar esse nó. A conclusão óbvia era que uma pessoa com poderes de ordem mais elevada estava assumindo o controle da fonte de especiaria, mas ainda assim as Bene Gesserit deixaram de levar em conta esse indício!) Em face desses fatos, chega-se à conclusão inevitável de que o ineficiente comportamento das Bene Gesserit neste caso foi produto de um plano mais elevado, do qual elas se achavam completamente inconscientes!
APÊNDICE IV: O ALMANAQUE EN-ASHRAF
(Trechos Selecionados das Casas Nobres)
SHADDAMIV (10.134-10.202) O imperador Padishah, 81°. de sua linhagem (Casa Corrino) a ocupar o trono do Leão Dourado, reinou de 10.156 (data em que seu pai, Elrood IX, morreu sob os efeitos do chaumurky) até ser substituído pela Regência, em 10.196, estabelecida em nome de sua filha mais velha, Irulan. O principal acontecimento de seu reinado é a revolta em Arrakis, que muitos historiadores atribuem à preocupação de Shaddam IV com a pompa e as funções da corte. As fileiras do Burseg foram dobradas nos primeiros dezesseis anos de seu reinado. As verbas para o treinamento de Sardaukar declinaram continuamente nos últimos trinta anos anteriores à Revolta de Arrakis. Ele teve cinco filhas (Irulan, Chalice, Wensicia, Josifa e Rugi) e nenhum filho legítimo. Quatro das filhas o acompanharam no exílio. Sua esposa, Anirul, uma Bene Gesserit de Posto Desconhecido, morreu em 10.176.
LETO ATREIDES (10. 140-10. 191) Primo do lado feminino da Casa Corrino, ele é freqüentemente chamado de Duque Vermelho. A Casa de Atreides governou Caladan como um feudo-siridar durante vinte gerações, até ser pressionada a se transferir para Arrakis. Ele é conhecido principalmente como o pai do Duque Paul Muad'Dib, o Regente Umma. Os restos do Duque Leto ocupam a “Tumba da Caveira” em Arrakis. Sua morte é atribuída à traição de um médico Suk, num ato planejado pelo Barão-Siridar, Vladimir Harkonnen.
LADY Jessica (Hon. Atreider) (10. 154-10.256 Filha natural (referência Bene Gesserit) do Barão-Siridar Vladimir Harkonnen. Mãe do Duque Paul Muad'Dib. Ela graduou-se na escola B. G. de Wallach IX.
LADY ALIA ATREIDES (10. 19/Filha legítima do Duque Leto Atreides e sua formal concubina Lady Jessica. Lady Alia nasceu em Arrakis aproximadamente oito meses após a morte do Duque Leto. A exposição pré-natal a um narcótico de ampliação de espectro consciente é a razão dada para as referências Bene Gesserit que a chamam de “A Amaldiçoada”. É conhecida na história popular como Santa Alia ou Santa Alia da Faca. (Para uma história detalhada, ver Santa Alia, Caçadora de um Bilhão de Mundos, de Pander Oulson.)
ULADIMIR HARKONNEN (10. 1 10-10. 193) Comumente conhecido como Barão Harkonnen, seu título oficial é Barão-Siridar (governador planetário). Vladimir Harkonnen é descendente masculino em linha direta do Bashar Abulurd Harkonnen, banido por covardia após a Batalha de Corrin. O retorno da Casa Harkonnen ao poder é geralmente atribuído a uma astuta manipulação do mercado de pele de baleia, posteriormente consolidada com a abundância de melange em Arrakis. O Barão-Siridar morreu em Arrakis durante a revolta. O título passou brevemente para o na-Barão Feyd-Rautha Harkonnen.
CONDE HASIMIR FENRING (10. 133-10.225) Primo pelo lado feminino da Casa Corrino, foi amigo de infância de Shaddam IV. (A freqüentemente desacreditada História Pirata de Comino apresenta o curioso relato que Fenring teria sido responsável pelo chaumurky que eliminou Elrood IX.) Todos os registros concordam em que Fenring era o amigo mais chegado de Shaddam IV. Entre as tarefas imperiais realizadas pelo Conde Fenring constam as de Agente Imperial em Arrakis durante o regime Harkonnen e depois Siridar-Absentia de Caladan. Ele se reuniu a Shaddam IV em seu exílio em Salusa Secundus.
CONDE GLOSSU RABBAN (10. 132-10. 193) Glossu Rabban, Conde de Lankiveil, era o sobrinho mais velho de Vladimir Harkonnen. Glossu Rabban e Feyd-Rautha Rabban (que tomou o nome Harkonnen quando escolhido para pertencer à casa do Barão-Siridar) eram filhos legítimos do mais jovem meio-irmão do Barão-Siridar, Abulurd. Este renunciou ao nome Harkonnen e a todos os direitos do título ao receber o governo do subdistrito de Rabban-Lankiveil. Rabban era um nome feminino.
TERMINOLOGIA DO IMPÉRIO
Ao se estudar o Império, Arrakis e toda a cultura que produziu o Muad'Dib, ocorreram muitos termos não-familiares. Aumentar a compreensão é um objetivo louvável, portanto, definições e explicações são fornecidas abaixo.
A
ABA: manto frouxo usado pelas mulheres Fremen, geralmente preto.
ACH: vire à esquerda, comando de um condutor de vermes.
ADAB: memória insistente que surge por si mesma.
AKARSO: planta nativa de Sikun (de 70 Ofiuco A) caracterizada por folhas quase oblongas. Suas faixas verdes e brancas indicam a constante condição múltipla das regiões paralelas de clorofila ativa e dormente.
ALAM AL-MITHAL: o mundo místico das semelhanças, onde todas as limitações físicas são eliminadas.
AL-LAT: o sol original da humanidade, com o uso, qualquer primário de um planeta.
AMPOLIROS: o lendário “Holandês Voador” do espaço.
AMTAL ou REGRA AMTAL: regra comum em planetas primitivos sob a qual alguma coisa é testada para determinar seus limites ou defeitos. Comumente: teste de destruição.
AQL: o teste da razão. Originalmente, “Sete Questões Místicas” começando com: “Quem é este que pensa?”
ARRAKEEN: primeiro povoado de Arrakis, há muito tempo sede do governo planetário.
ARRAKIS: o planeta conhecido como Duna, terceiro planeta de Canopus.
ASSASSINOS, MANUAL DOS: compilação, datada do século III, dos venenos comumente usados em uma Guerra dos Assassinos. Posteriormente ampliado para incluir os dispositivos mortíferos permitidos sob a Paz da Corporação e a Grande Convenção.
AULIYA : na religião dos Peregrinos Zensunni, a mulher à mão esquerda de Deus: donzela na mão de Deus.
AUMAS : veneno administrado na comida. (Especificamente veneno em comida sólida.) Em alguns dialetos: Chaumas.
AYAT: os sinais de vida. (Ver Burhan.)
B
BAKKA: na lenda Fremen, aquele que chora por toda a humanidade.
BAKLAWA: massa folheada feita com xarope de tâmaras.
BALISET: instrumento musical de nove cordas, descendente linear da cítara, afinado de acordo com a escala musical Chusuk. Instrumento favorito dos trovadores imperiais.
BARADYE, PISTOLA: revólver de poeira com carga estática desenvolvido em Arrakis com a finalidade de lançar uma grande marca de tinta sobre a areia.
BARAKA : homem santo vivo, dotado de poderes mágicos.
BASHAR (freqüentemente Coronel Bashar) : oficial dos Sardaukar, uma fração acima do posto de Coronel na classificação militar padrão. Patente criada para o governador militar de um subdistrito planetário. (Bashar do Corpo é título reservado exclusivamente para uso militar.)
BATALHA, LINGUAGEM DE qualquer linguagem especial de etimologia restrita desenvolvida para comunicação vocal durante a guerra.
BEDWINE: ver Ichwan Bedwine.
BELA TEGEUSE: quinto planeta de Kuentsing: terceira parada na migração forçada dos Zensunni (Fremen).
BENS GESSERIT: antiga escola de treinamento físico e mental estabelecida basicamente para estudantes do sexo feminino, depois que o jihad Buferiano destruiu os robôs e as chamadas “máquinas pensantes”.
B.G.: expressão idiomática que significa Bene Gesserit, exceto quando acompanhada de uma data. Com a data significa Before Guild (Antes da Corporação) e identifica o sistema cronológico imperial baseado na gênese do monopólio da Corporação Espacial (Spacing Guild).
BHOTANI JIB: ver Chakobsa.
BI-LAL KAIFA: Amém. (Literalmente: “Nada mais precisa ser explicado.”)
BINDU: relativo ao sistema nervoso humano, especialmente ao treinamento neural. Freqüentemente expresso como nervura-Bindu. (Ver Prana.)
BINDU, SUSPENSÃO: forma especial de catalepsia auto-induzida.
BLED : deserto plano e aberto.
BOURKA: manto isolado usado pelos Fremen no deserto aberto.
BURHAN: as provas de vida. (Comumente, o ayat e o burhan da vida. Ver Ayat.) BURSEG: general comandante dos Sardaukar.
BUTLERIANO, JIHAD: ver jihad Butleriano (também Grande Revolta).
C
CAÇADOR-RASTREADOR: voraz estilha de metal com flutuação de suspensores, guiada como arma por um console controlador situado nas imediações. Dispositivo comum para assassinatos.
CAID: patente de oficial Sardaukar atribuída a um funcionário militar cujas tarefas exigem o trato com civis. Posto de governo militar exercido sobre todo um distrito planetário, acima do posto de Bashar, mas não equivalente ao de Burseg.
CAIXAS DE LANÇAMENTO: termo geralmente aplicado a qual-quer recipiente de carga, de forma irregular, equipado com superfícies de ablação e sistema suspensor de amortecimento. São usadas para, do espaço, lançar material sobre a superfície de um planeta.
CALADAN: terceiro planeta de Delta Pavonis, local de nascimento de Paul Muad'Dib.
CAMINHANTE DA AREIA: qualquer Fremen treinado para sobreviver no deserto aberto.
CANTO E RESPONDO: ritual invocatório, parte da panóplia pro pbeticus de uma Missionária Protetora.
CASA: clã governante de um planeta ou sistema planetário.
CASA MAIOR: governantes de um feudo planetário, negociantes interplanetários. (Ver Casa, acima.)
CASA MENOR:classe de negociantes e empresários restritos à superficie de um planeta.
CATCHPOCKET (BOLSA DE RECOLHIMENTO) : bolsa de um traje destilador onde a água filtrada é recolhida e armazenada.
CAVALEIRO DA AREIA: denominação Fremen para uma pessoa capaz de capturar e cavalgar um verme da areia.
CHAKOBSA : a chamada “linguagem magnética”, derivada em parte do antigo Bhotani (Bhotani Jib-jib significando dialeto). Reunião de antigos dialetos modificados pelas necessidades de sigilo, mas principalmente a linguagem de caça dos Bhotani, assassinos de aluguei da Primeira Guerra dos Assassinos.
CHAUMAS (Rumas em alguns dialetos) : veneno em comida só-lida, em oposição ao veneno administrado de outro .modo.
CHAUMURKY (Musky ou Murky em alguns dialetos) : veneno administrado na bebida.
CHEREM: irmandade do ódio (geralmente para vingança).
CHOAM: iniciais de Combine Honnete Ober Advancer Mercanti-les — a companhia de desenvolvimento universal controlada pelo Imperador e pelas Grandes Casas, tendo como sócios comanditários a Corporação e as Bene Gesserit.
CHUSUK: quarto planeta de Teta Shalish, o chamado “Planeta da Música”, famoso pela qualidade de seus instrumentos musicais. (Ver Varota.)
CIELAGO: qualquer Cbiroptera modificado de Arrakis, adaptado ao transporte de mensagens distrans.
COMERCIANTES LIVRES: expressão idiomática que significa contrabandistas.
CONDICIONAMENTO IMPERIAL: invenção da Escola Médica Suk, constitui a mais elevada forma de condicionamento canina a ação de tirar uma vida humana. Os iniciados são marcados na testa com a tatuagem do diamante e recebem permissão para usar o cabelo longo e preso a um anel de prata Suk.
CONE DE SILÊNCIO: campo de um distorcedor que limita o poder de alcance da voz ou de qualquer vibrador, abafando as vibrações com vibração idêntica, porém defasada de 180 graus.
CONSCIÊNCIA PIRÉTICA: a chamada “consciência do fogo”, nível inibitório tocado pelo condicionamento imperial. (Ver Condicionamento Imperial.)
CONTROLE LOCALIZADOR: ornitóptero leve de um grupo de caça à especiaria, encarregado de controlar a vigília e a proteção ao grupo.
CORIOLIS, TEMPESTADE DE: qualquer grande tempestade de areia em Arrakis, onde, sobre as terras planas, os ventos são intensificados pelo próprio movimento giratório do planeta, atingindo velocidades superiores a
CORPORAÇÃO ESPACIAL: uma das pernas do tripé político que mantém a Grande Convenção. A Corporação foi a segunda escola de treinamento fisico e mental ver Bene Gesserit), estabelecida após o Jihad Buferiano. O estabelecimento do monopólio da Corporação sobre o transporte e as viagens espaciais, bem como sobre as operações bancárias, é tomado como marco inicial do Calendário imperial.
CORRIN, BATALHA DE : batalha espacial da qual tirou o nome a Casa Imperial de Corrino. A batalha teve lugar próximo a Sigma Draconis, no ano 88 B.G., e estabeleceu a ascensão da Casa governante de Salusa Secundus.
D
DAR AL-HIKMAN: escola de tradução ou interpretação religiosa.
DERCH: virar à direita, comando de um condutor de vermes.
DICTUM FAMILIA: lei da Grande Convenção que proíbe que se mate uma pessoa real ou um membro de uma Grande Casa através de uma traição não-formalizada. A lei estabelece os meios formais e os limites nos modos de assassinato.
DISCIPLINA DA ÁGUA: o duro treinamento que prepara os habitantes de Arrakis para lá sobreviverem sem desperdício de umidade.
DISTRANS: engenho destinado a produzir uma impressão neural temporária no sistema nervoso de pássaros ou cbiroptera. O grito normal da criatura transporta então a mensagem impressa, que pode ser separada de sua onda portadora por outro distrans.
DROGA ELACA : narcótico produzido pela queima da madeira elaca de Ecas. Seu efeito é eliminar a maior parte da vontade de autopreservação de uma pessoa. A pele do dragado mostra uma característica cor de cenoura. Comumente usada no preparo dos escravos-gladiadores para a arena.
E
ECAZ: quarto planeta de Alfa Centauri B, o paraíso dos escultores, assim chamado por ser o lar da plantafog, vegetal capaz de ser moldado no local unicamente com a força do pensamento humano.
EL-SAYAL: “Chuva de areia”. Queda de poeira transportada a uma altitude média (em torno de 2 mil metros) por uma tempestade coriolis. El-sayals freqüentemente trazem umidade ao nível do solo.
ERG : extensa região de dunas, mar de areia.
ESCUDO DEFENSIVO: campo protetor produzido por um gerador Holtzman. Esse campo deriva da Fase Um do efeito anuladorsuspensor. O escudo permitirá apenas a passagem de objetos movendose a baixas velocidades (dependendo da regulagem, essa velocidade varia entre seis e nove centímetros por segundo). Somente um imenso campo elétrico poderá provocar-lhe um curto-circuito. (Ver laser, armas.)
ESMAGADORES : nave espacial militar composta de muitas naves menores, encaixadas e projetadas para caírem sobre uma posição inimiga, esmagando-a.
ESTOJO DE REPAROS: peças essenciais para reparos e substituição de trajes-destiladores.
F
FABRICA COLHEDORA (ou COLHEDORA) : grande máquina para mineração de especiarias (geralmente com
FACA CRISTALINA: a faca sagrada do Fremen de Arrakis. É manufaturada em duas formas, a partir de dentes de vermes da areia mortos. Essas formas são “fixa” e “não-fixa” (ou “estabilizada” e “nãoestabilizada”). Uma faca não-fixa requer a proximidade do campo elétrico de um corpo humano para evitar sua desintegração. As facas fixas são tratadas para armazenamento. Todas possuem aproximadamente vinte centímetros de comprimento.
FAI: o tributo da água, principal forma de imposto em Arrakis.
FANMETAL: metal formado pelo crescimento de cristais de jasmium em duralumínio, famoso pela enorme resistência à tração, em relação ao peso. O nome deriva de seu uso em estruturas desmontáveis que são abertas por desdobramento em forma de leque.
FAREJADOR DE VENENO: analisador de radiação dentro do espectro olfativo, regulado para detectar substâncias venenosas.
FAUFRELUCHES: a rígida lei de distinção de classes mantida pelo Império: “Um lugar para cada homem e cada homem em seu lugar.”
FEDAYKIN: comandos da morte dos Fremen, historicamente, um grupo que se forma prestando o juramento de dar a vida para corrigir uma injustiça.
FIBRA KRIMSKEL ou CORDA KRIMSKEL: a “fibra-garra”, tecida com fios das trepadeiras hufuf de Ecaz. Os nós atados com a fibra krimskel apertam-se cada vez mais, até os limites predeterminados, quando se puxam suas linhas. (Para um estudo mais detalhado, ver As Trpadeira.r E.rtranguladoras de Eca~., de Holjance Vohnbrook.)
FICHAS DE ÁGUA: anéis de metal de diferentes tamanhos, cada um designando uma quantidade específica de água pagável das reservas Fremen. As fichas de água possuem significado profundo (muito além da idéia de dinheiro), principalmente nos rituais de nascimento, morte e corte.
FIQH: conhecimento, lei religiosa, uma das origens semilendárias da religião dos peregrinos Zensunni.
FILME MINiMICO: shigawire de um micron de diâmetro, freqüentemente usado para a transmissão de dados de espionagem e contra-espionagem.
FOGO, PILAR DE : simples foguete pirotécnico destinado a enviar sinais através do deserto.
FRAGATA: maior espaçonave capaz de pousar inteira na superfície de um planeta e decolar.
FREMEN: as tribos livres de Arrakis, habitantes do deserto, remanescentes dos Peregrinos Zensunni. (“Piratas da Areia”, de acordo com o Dicionário Imperial. ) FREMEN, ESTOJO: estojo com equipamento para sobrevivência no deserto, manufaturado pelos Fremen.
G
GALACH: idioma oficial do Império. Híbrido anglo-eslávico, com fortes traços de termos de especialização cultural adotados durante a longa cadeia de migrações humanas.
GAMONT: terceiro planeta de Niushe, famoso pela cultura hedonista e por exóticas práticas sexuais.
GARE : .monte isolado e íngreme.
GEYRAT: direto à frente, comando de um condutor de vermes.
GHAFLA: entregar-se a distrações. Pessoa volúvel, na qual não se deve confiar.
GHANIMA : algo adquirido em batalha ou combate individual. Comumente, recordação de batalha guardada unicamente para despertar a lembrança.
GIEDI PRIME: planeta de Ofiuco B (36), lar da Casa Harkonnen. E um planeta de viabilidade mediana, com espectro fotossintético de baixa atividade.
GINAZ, CASA DE : em certa época, aliada do Duque Leto Atreides. Seus membros foram derrotados na Guerra dos Assassinos contra Grumman.
GIUDICHAR: verdade sagrada. (Termo comumente usado na expressão “Giudichar afirma”: uma verdade original que se mantém.) GLOBO LUMINOSO: equipamento para iluminação com flutuação de suspensores, dotado de energia interna independente (geralmente, baterias orgânicas).
GOM JABBAR: o inimigo manual, agulha especificamente envenenada com metacianeto e usada pelas Inspetoras Bene Gesserit no teste de alternativa mortal, para verificar a percepção humana.
GRABEN : longo fosso geológico formado quando o solo cede em razão do movimento das camadas inferiores da crosta.
GRANDE CONVENÇÃO: trégua universal imposta sob o equilí-brio de poder mantido pela Corporação, pelas Grandes Casas e pelo Império. Sua principal regra é a proibição do uso de armas atômicas contra alvos humanos. Cada regra da Grande Convenção começa dizendo: “As formalidades devem ser obedecidas.”
GRANDE MAE : a deusa com chifres, princípio feminino do espaço (comumente, Mãe Espacial), face feminina da trindade machofêmea-neutro aceita como Ser Supremo por muitas religiões dentro do Império.
GRANDE REVOLTA: termo popular para o Jihad Butleriano. (Ver jihad Butleriano.)
GRUMMAN . segundo planeta de Niusche, famoso principalmente pelo conflito de sua Casa governante (Moritani) com a Casa Ginaz.
GUERRA DOS ASSASSINOS: forma limitada de guerra permitida sob a Grande Convenção e a Paz da Corporação. O objetivo é reduzir o envolvimento de espectadores inocentes. Regras indicam as formas de declaração e restringem as armas permitidas.
H
HAGAL: o “Planeta jóia “ (II Thet'a Shaowei), minerado na época de Shaddam I.
HAIII-YOH: ordem de ação, comando de um condutor de vermes.
HAJJ: jornada sagrada.
HAJR: migração através do deserto.
HAJRA: jornada de busca.
HALL YAWM: “Agora! Finalmente!”, exclamação Fremen.
HARMONTHEP: Ingsley afirma ser esse o nome do planeta que serviu de sexto ponto de parada na migração Zensunni. Supõe-se que tenha sido um satélite de Delta Pavonis não mais existente.
HEIGHLINER: grande transporte de carga operando no sistema de transportes da Corporação Espacial.
HIEREG: acampamento temporário dos Fremen no deserto, sobre areia.
HOLTZMAN, EFEITO : efeito de repulsão negativa produzido por um gerador de escudo.
HOMEM DA ÁGUA: Fremen consagrado e investido nas tarefas rituais de circundar a água e a Água da Vida.
HOMEM DOS GANCHOS : Fremen com ganchos de produtor preparado paia capturar um verme da areia.
HOMENS DAS DUNAS : em Arrakis, trabalhadores do deserto, caçadores de especiarias, etc. Trabalhadores da areia. Trabalhadores das Especiarias.
I
IBAD, OLHOS DO: efeito característico de uma dieta carregada de melange, quando o branco e a pupila dos olhos ficam de cor azul profunda. (Indica profunda dependência de melange.)
IBN QIRTAIBA : “Assim dizem as palavras sagradas... “ Início formal de uma encantação religiosa dos Fremen (derivado da panoplia propbeticus).
ICHWAN BEDWINE: a irmandade de todos os Fremen de Arrakis.
IJAZ: profecia que, por sua própria natureza, não pode ser negada, profecia imutável.
I I HUT-EIGH: grito dos vendedores de água de Arrakis (etimologia incerta). Ver Soo-Soo Sook!
ILM: teologia, ciência da tradição religiosa, uma das origens semi-lendárias da fé dos Peregrinos Zensunni.
INKVINE: planta trepadeira nativa de Giedi Prime e freqüentemente usada como chicote nos fossos de escravos. As vítimas ficam marcadas com tatuagens cor de beterraba que provocam uma dor residual durante muitos anos.
INSPETORA SUPERIORA : uma Reverenda Madre Bene Gesse-rit que é também diretora regional da escola B.G. (Comumente, uma Bene Gesserit dotada da Visão.)
ISTISLAH: lei da guerra em geral, usualmente, o prefácio para uma necessidade brutal.
IX: ver Richese.
J
JIHAD: cruzada religiosa, cruzada fanática.
JIHAD BUTLERIANO: (ver também Grande Revolta) a cruzada contra os computadores, as máquinas pensantes e os robôs conscientes iniciada em
JUBBA, MANTO: capa para todas as ocasiões (pode ser regulada para refletir ou admitir calor radiante, convertendo-se assim em cobertor ou abrigo). Comumente usada em Arrakis por cima de um trai e-destilador.
JUIZ DA MUDANÇA: funcionário indicado pelo Alto Conselho da Landsraad e pelo Imperador para fiscalizar mudanças de feudo, negociações de kanly ou batalhas formais durante uma Guerra de Assassinos. A autoridade do juiz como árbitro só pode ser desafiada perante o Alto Conselho e com a presença do Imperador.
K
KANLY : Disputa formal ou vendetta sob as regras da Grande Convenção e realizada de acordo com suas limitações específicas. (Ver juiz da Mudança.) Originalmente, as regras foram estabelecidas para proteger espectadores inocentes.
KARAMA: milagre, ação iniciada pelo mundo espiritual.
KHALA: invocação tradicional para acalmar os espíritos furiosos de um lugar cujo nome se tenha mencionado.
KINDJAL: espada curta (ou faca longa) de lâmina dupla com comprimento aproximado de vinte centímetros e lâmina levemente curva.
KISWA: qualquer desenho ou figura da mitologia Fremen.
KITAB AL-IBAR: combinação de manual de sobrevivência e livro religioso redigido pelos Fremen de Arrakis.
KULL WAHAD! : “Estou profundamente impressionado!” Sincera exclamação de surpresa, comum no Império. A interpretação depende do contexto. (Dizem que o Muad'Dib, observando certa vez um filhote de falcão do deserto emergindo de seu ovo, sussurrou: “Kull wahad!”)
KULON: asno selvagem das estepes asiáticas da Terra adaptado para a vida em Arrakis,
KWISATZ HADERACH: “Encurtamento do Caminho”. Esse é o rótulo dado pelas Bene Gesserit ao “desconhecido” pára o qual elas buscavam uma solução genética: um Bene Gesserit macho cujos poderes mentais orgânicos iriam estender-se sobre o tempo e o espaço.
L
LA, LA, LA: grito de pesar dos Fremen. (Lã traduz-se como a negativa final, um “não” para o qual não pode haver apelo.)
LANDSRAAD, ALTO CONSELHO DA: o círculo fechado da Landsraad, autorizado a atuar como supremo tribunal nas disputas entre Casas.
LARANJA, BÍBLIA CATÓLICA: o “Livro Acumulador”, texto religioso produzido pela Comissão de Tradutores Ecumênicos. Contém elementos da maioria das religiões antigas, in-luindo o Saari Maometano, o Cristianismo Mahayana, o Catolicismo Zensunni e as tradições Budislâmicas. Seu supremo mandamento é considerado como sendo: “Não deturparás a alma.”
LASER, REVOLVER, ARMA: projetor laser de onda contínua. Seu uso como arma é limitado em uma cultura que emprega escudos de gerador de campo devido à explosiva pirotécnica (tecnicamente, fusão subatômica) produzida quando seu feixe atravessa um campo.
LEGIAO IMPERIAL: dez brigadas (cerca de 30 mil homens).
LENTE DE OLEO: óleo hufuf mantido sob tensão estática por um campo de força envolvente, dentro de um tubo de observação, como parte de um sistema de ampliação ou manipulação da luz. Pelo fato de cada lente poder ser ajustada individualmente, na proporção de um mícron de cada vez, a lente de óleo é considerada a precisão máxima em sistemas de manipulação da luz visível.
LIBAN: o liban Fremen é produzido com água de especiaria misturada com farinha de yucca. Originalmente, bebida feita com leite azedo.
LISAN AL-GAIB: “A Voz do Mundo Exterior”. Nas lendas mes-siânicas dos Fremen, profeta vindo de outro planeta. Algumas vezes traduzido como “Fornecedor da Água”. (Ver Mahdi.)
LITROJON: recipiente de um litro usado para o transporte de água em Arrakis, feito com plástico à prova de choque, de alta densidade e dotado de selo positivo.
LIVROFILME: texto em shigawire usado para treinamento e carregando um pulso mnemônico.
M
MAHDI: na lenda messiânica Fremen, “Aquele que nos Levará ao Paraíso”.
MANTENE: sabedoria subjacente, argumento sustentador, primeiro princípio. (Ver Giudichar.)
MAPA DE PIAS: mapa da superficie de Arrakis desenhado com referência às rotas (traçadas com parabússola) mais confiáveis para se atingir locais de refúgio. (Ver Parabússola.)
MASTRO NA AREIA : arte de colocar mastros de fibra e plástico nas vastidões do deserto de Arrakis e ler os padrões das marcas deixadas nesses mastros pelas tempestades de areia como indício para previsão meteorológica.
MAULA : escravo.
MELANGE : “especiaria das especiarias”, cultura da qual Arrakis constitui a única fonte. A especiaria, conhecida principalmente por suas qualidades geriátricas, produz moderada dependência quando ingerida em pequenas quantidades. Uma dependência severa surge do consumo de quantidades acima de dois gramas diários por cada setenta quilos de peso corporal. (Ver Ibad, Água da Vida e Massa Préespeciaria.) Muad'Dib afirmou que essa especiaria era a chave de seus poderes proféticos. Navegadores da Corporação fazem afirmações semelhantes. Seu preço no mercado imperial chegou a 620 mil solaris por decagrama.
MENTAT: classe dos cidadãos do Império treinados para supremas conquistas em lógica. “Computadores humanos”.
MESTRE DE AREIA: superintendente geral de optações com especiarias.
METAVIDRO: vidro produzido por infusão de gás a altas temperaturas através de folhas de quartzo jasmium. Famoso pela extrema resistência à tração (cerca de 450 mil quilos por centímetro quadrado em dois centímetros de espessura) e pela capacidade de agir como filtro seletivo de radiação.
MIHNA : estação para o teste de jovens Fremen que desejam ser considerados adultos.
MISH-MISH : damasco.
MISR: termo histórico que os Zensunni (Fremen) atribuem a si mesmos: “O Povo”.
MISSIONÁRIA PROTETORA: ramo da ordem Bene Gesserit encarregado de semear superstições contagiantes em mundos primitivos, abrindo caminho, assim, para a exploração dessas regiões pelas Bene Gesserit.
MODO BENS GESSERIT: uso da observação de minúcias.
MONITOR: espaçonave de guerra com dez seções dotada de pesada armadura e proteção de escudos. Projetada para ser separada em suas seções componentes durante decolagem após uma queda planetária.
MOTORISTA DE ESPECIARIAS: qualquer homem das dunas que controle ou dirija maquinaria móvel sobre a superfície desértica de Arrakis.
MUAD'DIB: rato-canguru adaptado para a vida em Arrakis, criatura associada na mitologia Fremen com o desenho visível na segunda lua do planeta. Essa criatura é admirada pelos Fremen por sua habilidade para sobreviver no deserto.
MUDIR NAHYA: nome Fremen para Rabban, a Besta (Conde Rabban de Lankiveil), o primo Harkonnen que foi governador-siridar em Arrakis durante muitos anos. Freqüentemente traduzido por “Demônio Governante”.
MURALHA ESCUDO: acidente geográfico montanhoso, situado na região Norte de Arrakis, que protege uma pequena área da força total das tempestades coriolis que assolam o planeta.
MUSHTAMAL: pequeno jardim anexo ou quintal.
MUSKY: veneno na bebida. (Ver Chaumurky.)
MU ZEIN WALLAH! : Mu zein significa “nada bom” e wallah é uma exclamação final reflexiva. Na abertura tradicional de uma maldição Fremen contra um inimigo, Wallah transforma-se em ênfase sobre as palavras Mu zein, significando “Nada bom, nunca bom, bom para nada”.
N
Na-: prefixo que significa “nomeado” ou “próximo na linha de sucessão”. Desse modo, na-Barão significava herdeiro aparente do baronato.
NAIB: pessoa que jurou nunca ser apanhada viva pelo inimigo, juramento tradicional de um líder Fremen.
NEZHONI, LENÇO: almofada-lenço usada na testa, por baixo do capuz do traje-destilador, por uma mulher Fremen casada ou “associada', após o nascimento de um filho.
NOUKKERS: oficiais do corpo de guarda-costas imperiais que se encontram ligados ao Imperador por laços de sangue. Posto tradicional para filhos de concubinas reais.
O
OPAFIRE : uma das raras jóias opalinas de Hagal.
ORNITÓPTERO (comumente, “tóptero”) : qualquer aeronave capaz de voar batendo as asas à maneira dos pássaros.
OUT-FREYN ou FORAFREYN: termo Galach para “estranho às imediações”, isto é, não-pertencente à comunidade imediata, nãopertencente aos selecionados.
P
PALMA, FECHO DE: qualquer tranca ou fecho capaz de ser aberto pelo contato com a palma da mão humana à qual foi ajustado.
PANELA : em Arrakis, qualquer região baixa ou depressão criada pelo rebaixamento do solo. (Em planetas com água suficiente, esse tipo de acidente geográfico indica região outrora coberta de água.) Acredita-se que Arrakis tenha pelo menos uma região dessas, embora isso ainda seja tema de discussão.
PANOPLIA PROPHETICUS: termo que abrange as superstições contagiantes usadas pelas Bene Gesserit para explorar regiões primitivas. (Ver Missionária Protetora.)
PARABÚSSOLA: qualquer bússola que determine a direção através das anomalias magnéticas locais, usada onde se dispõe de mapas e onde o campo magnético total de um planeta é instável ou sujeito a encobrimento por severas tempestades magnéticas.
PENTAESCUDO: gerador de campo de cinco camadas adequado para áreas pequenas, tais como portas e passagens. (Os grandes campos reforçados tornam-se cada vez mais instáveis com cada camada que se acrescente.) Virtualmente impenetrável para alguém que não esteja usando um desmontador sintonizado nos códigos de escudo. (Ver Porta Prudente.)
PEQUENO PRODUTOR: criatura meio planta, meio animal, que vive nas profundezas da areia e constitui o vetor do verme da areia de Arrakis. As excreções do pequeno produtor formam a massa de pré-especiaria.
PIA: região de terras baixas habitáveis de Arrakis, cercada por montanhas que a protegem das tempestades predominantes.
PISTOLA MAULA : arma de mola para lançamento de dardos envenenados, seu alcance é de quarenta metros.
PLANO GRIDEX :separador de cargas diferenciais usado para remover areia da massa de pré-especiaria, engenho usado no segundo estágio do refinamento de especiarias.
PLASTEEL: aço estabilizado com fibras de stravidium cultivadas dentro de sua estrutura cristalina.
PLENISCENTA: exótica flor verde de Ecaz, famosa pelo aroma suave.
PO, ABISMOS DE: qualquer fenda ou depressão profunda no deserto de Arrakis que tenha sido coberta pelo pó e não se destaque da superfície circundante. Armadilhas mortais para seres humanos ou animais, que neles afundarão sem deixar vestígios.
PORITRIN: terceiro planeta de Epsilon Alangue, considerado por muitos Peregrinos Zensunni como seu planeta de origem, embora sua linguagem e mitologia indiquem raízes planetárias muito mais antigas.
PORTA PRUDENTE ou BARREIRA PRUDENTE (idiomaticamente: pruporta ou prubarreira) , qualquer pentaescudo colocado para permitir a fuga de pessoas selecionadas sob condições de perseguição. (Ver pentaescudo.)
PORTYGULS: laranjas.
PRANA (musculatura prana): os músculos do corpo quando con-siderados como unidades para treinamento máximo. (Ver Bindu. )
PRE-ESPECIARIA, MASSA DE: estágio de violento crescimento fungosóide atingido quando a água penetra nas excreções dos pequenos produtores. Nesse estágio, a especiaria de Arrakis produz o característico “estouro”, trocando o material do subsolo profundo pela matéria da superfície acima. Essa massa, após a exposição ao ar e ao sol, transforma-se em melange. (Ver também Melange e Água da Vida.)
PRIMEIRA LUA: o maior satélite natural de Arrakis, primeiro a se elevar durante a noite, é conhecido pelo nítido contorno de um punho humano em sua superficie.
PRIMS: laços de sangue para além de primos.
PROCÉS VERBAL: relatório semiformalizado alegando crime contra o Império. Legalmente: ação situada entre uma simples alegação verbal e uma acusação formal de crime.
PRODUTOR: ver Shai-Hulud.
PRODUTOR, GANCHOS DE: ganchos usados para capturar, montar e dirigir um verme da areia de Arrakis.
PUNDI, ARROZ: arroz mutante cujos grãos, com elevado conteúdo de açúcar natural, atingem comprimentos acima de quatro centímetros. Principal produto de exportação de Caladan.
PYONS: camponeses ou trabalhadores ligados à superficie de um planeta, uma das classes inferiores segundo a Faufreluches. Legalmente: guarnição de um planeta.
Q
QANAT: canal aberto para transportar água de irrigação, sob con-dições controladas, através do deserto.
QUEOPS: xadrez de pirâmides em nove níveis com o duplo obje-tivo de colocar a própria rainha no ápex e o rei do adversário em xeque.
QIRTAIBA :ver Ibn Qirtaiba.
QUIZARA TAFWID: sacerdotes Fremen (após Muad'Dib).
R
RACHAG: estimulante do tipo cafeína extraído das uvas amarelas do akarso. (Ver Akarso.)
RAIO DE CORTE: versão de arma laser de curto alcance usada principalmente como ferramenta de corte e bisturi de cirurgia.
RAMADHAN: antigo período religioso marcado com jejuns e preces. Tradicionalmente, o nono mês de um calendário solar-lunar. Os Fremen marcam sua observância de acordo com o ciclo de passagem da primeira lua sobre o nono meridiano.
RAZZIA: ataque de guerrilha semipirático.
RECATHS: tubos que ligam o sistema de eliminação de dejetos de um corpo humano ao sistema de filtros de reciclagem de um trajedestilador.
RESIDUAL, VENENO: inovação atribuída ao Mentat Piter de Vries, pela qual o corpo é impregnado de uma substância para a qual se devem administrar contínuas doses de antídoto. A retirada do antídoto em qualquer ocasião provoca a morte.
REUNIÃO: distinta de uma Reunião de Conselho. Trata-se de uma convocação formal de lideres Fremen para testemunharem uma luta que decide a liderança tribal. (Uma Reunião de Conselho é uma assembléia destinada a obter decisões que envolvam todas as tribos.)
REVERENDA MADRE: originalmente, uma inspetora Bene Gesserit, alguém capaz de transformar o “veneno iluminador” dentro de seu corpo, elevando-se, assim, até um estágio superior de consciência. Título adotado pelos Fremen para suas próprias lideres religiosas que realizam uma “iluminação” semelhante. (Ver também Bene Gesserit e Água da Vida.)
RICHESE: quarto planeta de Eridani A, classificado, juntamente com Ix, como suprema cultura mecânica. Conhecido por sua miniaturização. (Para um estudo detalhado de como Richese e Ix escaparam aos efeitos mais severos do Jihad Butleriano, ver O último Jibad, de Sumer e Kautman.)
RUH-ESPIRITO: na crença Fremen, a parte de um indivíduo que se encontra sempre enraizada no mundo metafísico e que é capaz de senti-lo. (Ver Alam al-Mithal.)
S
SADUS: juízes. Esse título Fremen refere-se aos sagrados juízes, equivalentes aos santos.
SALUSA SECUNDUS: terceiro planeta de Gama Waiping, designado como Planeta Prisão Imperial após a remoção da Corte Real para Kaitain. Salusa Secundus é o mundo de origem da Casa Corrino, e o segundo ponto de parada na migração dos Peregrinos Zensunni. A tradição Fremen afirma que eles teriam sido escravos em S. S. durante nove gerações.
SAPHO: líquido rico em energia e extraído das raízes do Ecaz. Comumente usado pelos Mentats, os quais afirmam que ele amplia os poderes mentais. Os usuários desenvolvem escuras manchas cor de rubi na boca e nos lábios.
SARDAUKAR: soldados-fanáticos do Imperador Padishah. Eram homens criados em ambiente tão hostil que provocava a morte de seis em cada treze pessoas antes da idade de onze anos. Seu treinamento militar enfatizava a crueldade e uma desconsideração quase suicida pela própria segurança pessoal. Eram ensinados desde a infância a usar a crueldade como arma-padrão, enfraquecendo seus oponentes com o terror. No ápice de sua influência sobre o universo, costumavase dizer que a habilidade deles com a espada equivaleria ao nível de dez Ginaz, e sua astúcia na luta se aproximaria à de uma adepta da Bene Gesserit. Qualquer um deles era considerado equivalente a dez soldados comuns da Landsraad. Na época de Shaddam IV, embora ainda fossem formidáveis, sua força fora minada pelo excesso de confiança, e a mística sustentadora de sua religião guerreira encontrava-se enfraquecida pelo cinismo.
SARFA :ato de voltar as costas a Deus.
SAYYADINA: acólita feminina na hierarquia religiosa dos Fremen.
SCHLAG: animal nativo de Tupile que já foi caçado até quase a extinção por seu couro fino e resistente.
SEGUNDA LUA: o menor dos dois satélites de Arrakis, notável pela figura do rato-canguru delineada em sua superfície.
SELAMLIK: câmara de audiência imperial.
SELO DE PORTA: selo hermético de plástico, portátil, usado para manter a umidade nas cavernas ocupadas pelos Fremen durante o dia.
SEMELHANÇA DE EGO: retrato reproduzido através de um projetor de shigawire, capaz de reproduzir movimentos sutis que dizem transmitir a essência do ego.
SEMI-IRMAOS: filhos de concubinas da mesma casa e registrados como tendo o mesmo pai.
SEMUTA: o segundo narcótico derivado (por extração cristalina) do resíduo da madeira elaca queimada. O efeito (descrito como um êxtase mantido fora da noção do tempo) é provocado por certas vibrações atonais conhecidas como música de semuta.
SERVOK: mecanismo de relojoaria destinado a realizar tarefas simples, um dos engenhos “automáticos” limitados permitidos após o Jihad Buferiano.
SHADOUT: balde de poço, título honorário dos Fremen.
SHAH-NAMA : o semilendário primeiro livro dos Peregrinos Zensunni.
SHAI-HULUD : verme da areia de Arrakis, o “Velho do Deserto”, “Velho Pai da Eternidade” e “AVO do Deserto”. Significativamente, seu nome, quando dito em certo tom ou escrito em letras maiúsculas, designa a divindade terrena segundo as superstições Fremen. Os vermes da areia crescem até atingir enorme tamanho (espécimes com mais de
SHAITAN: Satã.
SHARI-A: a parte da panoplia propheticus que estabelece o ritual supersticioso. (Ver Missionária Protetora.) SHIGAWIRE: extrusão metálica de uma vinha de solo (1Varvi narviium) cultivada somente em Salusa Secundus e III Delta Kaising. Famosa pela extrema resistência à tração.
SIETCH: em Fremen, “local de reunião em ocasião de perigo”. Pelo fato de os Fremen terem vivido por tanto tempo em perigo, o termo passou a ser usado geralmente para designar qualquer caverna habitada por uma de suas comunidades tribais.
SIHAYA: em Fremen, a época da primavera no deserto, com conotações religiosas implicando o tempo da fertilidade e o “paraíso que virá”.
SIRAT: a passagem da Bíblia C.L. que descreve a vida humana como uma jornada através de uma ponte estreita (o Sirat), com “o paraíso à minha direita, o inferno à minha esquerda e o Anjo da Morte por trás”.
SNORK DE AREIA: equipamento respirador destinado a bombear o ar da superficie para uma tenda destiladora coberta por areia.
SOBRENATURAL: idiomático: aquilo que compartilha do místico ou da magia (bruxaria).
SOLARI: unidade monetária oficial do Império, com poder de compra estabelecido em negociações quatricentenárias entre a Corporação, a Landsraad e o Imperador.
SÓLIDO: imagem tridimensional de um projetor sólido usando sinais de referência de 360 graus impressos num rolo de shigawire. Os projetores sólidos Ixian são comumente considerados os melhores.
SONDAGI: tulipa-samambaia de Tupali.
SOO-SOO SOOK! : Grito dos vendedores de água de Arrakis. Sook é o local de um mercado. (Ver lkhut-eigh!)
STUNNER ou ATORDOADOR: arma de projétil lento que lança um dardo pontiagudo contendo droga ou veneno. A eficácia é limitada por variações na regulagem dos escudos e pelo movimento relativo entre alvo e projétil.
SUBAKH UL KUHAR: “Você está bem?”, saudação Fremen.
SUBAKH UN NAR : “Eu estou bem, e você?”, resposta tradicio-nal.
SUSPENSOR : fase secundária (baixo dreno de força) de um campo Holtzman. Anula a gravidade dentro de certos limites prescritos pela massa relativa e pelo consumo de energia.
T
TAHADDI, DESAFIO: desafio dos Fremen para combate mortal, normalmente com a finalidade de testar alguma questão fundamental.
TAHADDI AL-BURHAN: o teste final, do qual não pode haver apelação (geralmente porque ele traz a morte ou a destruição).
TAMBOR-AREIA: areia compactada de tal modo que qualquer golpe súbito sobre sua superficie produz um distinto som de tambor.
TAMPAO-FILTRO: filtro para nariz usado com trajedestilador com a finalidade de captar a umidade exalada na respiração.
TAQWA: literalmente, “o preço da liberdade”. Alguma coisa de grande valor. Aquilo que uma divindade exige de um mortal (e o temor provocado pela exigência).
TAU, O: na terminologia Fremen, a unicidade de uma comunidade de sietch, reforçada pela dieta de especiaria, e especialmente na orgia do tau produzida pela ingestão da Água da Vida.
TENDA DESTILADORA: pequeno abrigo fechado, de tecido micro ssanduíche, projetado para recuperar água potável a partir da umidade ambiente eliminada em seu interior pela respiração de seus ocupantes.
TESTE-MASHAD : qualquer teste no qual a honra (definida como uma posição espiritual) se encontre em jogo.
TLEILAX: único planeta de Thalim, conhecido como um centro renegado de treinamento para Mentats. Fonte dos Mentats “pervertidos”.
T.P.: telepatia.
TRAJE-DESTILADOR: roupa que envolve todo o corpo, inventada em Arrakis. Seu tecido é um micro ssanduíche que realiza as funções de dissipação de calor e de filtragem dos resíduos corporais. A umidade recuperada torna-se disponível para consumo a partir dos bolsões de recolhimento.
TRANSE DA VERDADE: transe semi-hipnótico, induzido por um dos vários narcóticos de “ampliação do espectro da consciência”, no qual pequenos indícios de falsidade deliberada tornamse evidentes ao observador. (Nota : os narcóticos de “ampliação da consciência” são freqüentemente fatais, exceto para indivíduos dessensibilizados, capazes de transformar a configuração venenosa dentro de seus próprios corpos.)
TRANSPORTA-TUDO: asa elevadora (comumente, “asa”), “pé-de-boi” aéreo de Arrakis, usado no transporte de grandes equipamentos de mineração, recolhimento e processamento de especiaria.
TRANSPORTE DE TROPA: qualquer nave da Corporação projetada especificamente para o transporte de tropas entre planetas.
TRATOR DA AREIA: termo genérico usado para designar maquinaria projetada com a finalidade de operar na superficie de Arrakis com vistas à caça e coleta da melange.
TREINAMENTO: quando aplicado às Bene Gesserit, esse termo, comum em outras situações, assume significado especial, referindo-se ao condicionamento de nervos e músculos ver Bindu e Prana) levado às últimas possibilidades permitidas pelas funções naturais.
TRIPÉ DA MORTE : originalmente, o tripé sob o qual os executores do deserto enforcavam suas vítimas. Pelo uso: os três membros de um Cherem que juraram a mesma vingança.
TUBO DE ÁGUA: qualquer tubo dentro de um traje-destilador ou tenda destiladora que transporte a água recuperada para o bolsão de recolhimento ou deste para o usuário.
TUPILE: o chamado “planeta santuário” (provavelmente, vários planetas) das Casas derrotadas do Império. Localização (ões) conhecida(s) somente pela Corporação e mantida(s) como segredo inviolável sob a Paz da Corporação.
U
ULEMA: doutor Zensunni em teologia.
UMMA: membro da irmandade dos profetas. (Termo pejorativo no Império, significando uma pessoa louca, dada a previsões fanáticas.)
UROSHNOR: um dos vários sons destituídos de significado e que as Bene Gesserit implantam na mente de vítimas selecionadas para fins de controle. A pessoa sensibilizada, ao ouvir esse som, fica temporariamente imobilizada.
USUL: em Fremen, “a base do pilar”.
V
VAROTA: famoso fabricante de balisets, nativo de Chusuk.
VERITE: um dos narcóticos eliminadores da vontade produzidos em Ecaz. Torna a pessoa incapaz de mentir.
VERME DA AREIA: Ver Shai-Hulud.
VIDA, ÁGUA DA: veneno “iluminador” (ler Reverenda Madre). Especificamente, o liquido exalado por um verme da areia ver Shai-Hulud) no momento de sua morte por afogamento e que, no corpo de uma Reverenda Madre, é transformado no narcótico usado nas orgias tau do sietch. Narcótico de “ampliação do espectro da consciência”.
VOZ: treinamento combinado, criado pelas Bene Gesserit, que permite que uma adepta controle outras pessoas meramente pelo uso de modulações da voz.
W
WALI: jovem Fremen ainda não testado.
WALLACH IX: nono planeta de Laoujin, onde se localiza a Escola Principal das Bene Gesserit.
WINDTRAP ou ARMADILHA DE VENTO: engenho colocado no caminho de um vento predominante e capaz de precipitar dentro da armadilha a umidade contida no ar por ele apanhado, geralmente através de brusca mudança de temperatura.
Y
YA HYA CHOUHADA!: “Longa vida aos lutadores!” Grito de guerra dos Fedaykin. O termo ya (agora), nesse grito, é reforçado pela forma hya (agora prolongado). O termo chouhada (lutadores) tem aqui o significado adicional de lutadores centra a injustiça. Há uma distinção nessa palavra que especifica que os lutadores não estão combatendo por alguma coisa, mas contra algo específico — e só isso.
YALI: alojamentos pessoais de um Fremen dentro de um sietch.
YA! YA! YAWM! : canto cadenciado dos Fremen, usado em ocasiões de profunda significação ritualística. Ya tem uma raiz linguística que significa “Agora prestem atenção!” A forma Yawm é um termo modificado que pede urgente aproximação. O canto traduz-se normalmente como “Agora, ouçam isto!”
Z
ZENSUNNI: seguidores da seita cismática que derivou dos ensinamentos de Maomé (o chamado “Terceiro Mohamede”) por volta de
NOTAS CARTOGRÁFICAS
Bacia Polar.—
Base para a latitude: meridiano que atravessa a Montanha do Observatório.
Cartbag: aproximadamente 200km a nordeste de Arrakeen. Caverna dos Pássaros: cordilheira Habbanya.
Grande Bled.— deserto plano e aberto, oposto à área de dunas do Erg. O deserto estende-se de 60 graus Norte até 70 graus Sul. É constituído principalmente de areia e rochas, com ocasionais afloramentos do complexo do subsolo.
Grande Planície: depressão aberta e rochosa que se derrama no Erg. Está a
Har
Harg, Passo de: o Santuário do Crânio de Leto fica acima desse passo.
Linha-base para a determinação de altitudes: o Grande Bled.
Oeste da Muralha da Borda: alta escarpa (
Palmeiras do Sul: não aparecem neste mapa. Encontram-se em torno de 40 graus de latitude Sul.
Planície Funerária: Erg Aberto.
Velha Fenda: fenda na Muralha Escudo de Arrakeen que desce a
Ventos, Passo dos: envolto em penhascos e abrindo-se para os povoados das pias.
Vermelho, Abismo:
Vermes, Linha dos: indica os pontos mais ao Norte onde os vermes têm sido observados (a umidade, não o frio, é o fator determinante).
Frank Herbert
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