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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ECOS DO FUTURO Vol.I - P.2 / Diana Galbadon
ECOS DO FUTURO Vol.I - P.2 / Diana Galbadon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ECOS DO FUTURO

Volume I

Segunda Parte

 

                   O GATO DO MINISTRO

Lallybroch Outubro, 1980

Ela se levantou cedo, antes das crianças, embora soubesse que era tolice - qualquer que tivesse sido o motivo de Roger ter ido a Oxford, levaria umas quatro ou cinco horas para chegar e o mesmo para voltar. Ainda que tivesse partido ao amanhecer - e talvez não pudesse, se não tivesse chegado a tempo para o que quer que tenha ido fazer no dia anterior - , não poderia chegar em casa antes do meio-dia, no mínimo. Mas ela dormira mal, com um desses sonhos monótonos e inevitavelmente desagradáveis, este apresentando a visão e o som da maré enchendo, uma onda após outra, após outra, após... e acordara à primeira luz, sentindo-se tonta e indisposta.

Ocorreu-lhe por um instante aterrador que ela pudesse estar grávida - mas ela sentara-se abruptamente na cama e o mundo imediatamente voltara ao normal a seu redor. Nada daquela sensação de estar com um dos pés do outro lado do espelho que o começo da gravidez traz. Colocou um pé cautelosamente para fora da cama e o mundo e seu estômago permaneceram fixos. Ótimo, então.

Ainda assim, a sensação de desconforto - quer por causa do sonho, pela ausência de Roger ou pelo espectro de uma gravidez - permaneceu com ela, e ela se ocupou da rotina diária da casa com a mente distraída.

Estava separando pés de meia por volta de meio-dia quando percebeu que tudo estava muito quieto - de uma maneira que fez os cabelos de sua nuca se arrepiarem.

- Jem? - chamou. - Mandy? Silêncio total. Ela saiu da lavanderia, procurando ouvir pancadas, batidas e rangidos em cima, mas não havia o menor som de pés batendo, blocos desmoronando ou as vozes agudas de briga de irmãos.

- Jem! - ela gritou. - Onde você está? Nenhuma resposta. Da última vez que isso aconteceu, há dois dias, ela descobriu seu despertador no fundo da banheira, perfeitamente desmontado em seus componentes, e as duas crianças do outro lado do jardim, fingindo ar de inocência.

- Não fui eu! - Jem declarara virtuosamente, arrastado para dentro de casa e colocado diante da prova. - E Mandy é muito pequena.

- Muito quena Mandy confirmara, balançando a cabeleira de cachos negros tão ferozmente que chegou a tampar seu rosto.

- Bem, não acho que papai fez isso - Bri disse, erguendo uma das sobrancelhas com ar severo. - E tenho certeza de que não foi Annie Mac. O que não deixa muitos suspeitos, não é?

- Chuspetos, chuspetos - Mandy disse alegremente, encantada com a nova palavra.

Jem sacudiu a cabeça de forma resignada, olhando para as engrenagens espalhadas e o mostrador desmembrado.

- Devem ter sido os piskies, mamãe. - Pishkies, páhkies - Mandy chilreou, jogando a saia por cima da cabeça e puxando os babadinhos de suas calcinhas. - Foi pishkies, mamãe!

No meio da comoção causada por essa afirmação, Jem desapareceu astutamente, sendo visto outra vez apenas na hora do jantar, quando então o caso do despertador já havia sido superado pela corrida geralmente acelerada dos acontecimentos diários, não sendo mais relembrado até a hora de dormir, quando Roger notou a ausência do despertador.

- Jem não costuma mentir - Roger disse pensativamente, depois de ver a pequena vasilha de cerâmica agora contendo os restos do despertador.

Bri, escovando os cabelos para dormir, lançou-lhe um olhar cáustico.

- Oh, também acha que temos pLxies?

- Piskies - ele corrigiu distraidamente, remexendo na pequena pilha de engrenagens na tigela com o dedo.

- O quê? Está dizendo que os duendes são realmente chamados de piskies aqui? Achei que Jem estava apenas pronunciando errado.

- Bem, não. Pisky é como se diz na Cornualha; mas são chamados de pixies em outras partes do sudoeste da Inglaterra.

- Como são chamados na Escócia?

- Na verdade, não temos duendes. A Escócia tem muitos personagens do reino das fadas - ele disse, pegando um punhado das peças do relógio e deixando-as tilintarem musicalmente de volta na vasilha. - Mas os escoceses têm uma tendência para as manifestações mais sombrias do sobrenatural: os cavalos das águas, as bansidhe, as bruxas azuis e o nuckelavee. Os pákies são um pouco frívolos para a Escócia. Nós temos os brownies, veja bem - ele acrescentou, tirando a escova da mão de Brianna - , mas são mais como elfos e gnomos prestativos no ambiente doméstico, não diabinhos travessos como os piskies. Você consegue remontar o relógio?

- Claro, se os piskies não perderam nenhuma parte. O que diabos quer dizer nuckelavee?

- É uma criatura monstruosa do folclore das ilhas Orkney. Nada que você queira ouvir antes de ir para a cama - ele assegurou-lhe. E, inclinando-se, respirou muito de leve em seu pescoço, logo abaixo do lóbulo da orelha.

A ligeira cócega provocada pela lembrança do que acontecera depois disso se sobrepôs às suas suspeitas sobre o que as crianças deviam estar tramando, mas a sensação se desfez, sendo substituída por uma crescente apreensão.

Não havia nenhum sinal de Jemmy ou de Mandy em nenhum lugar da casa. Annie MacDonald não vinha aos sábados e a cozinha... à primeira vista, parecia intocada, mas ela estava familiarizada com os métodos de Jem.

De fato, o pacote de biscoitos de chocolate não estava no lugar, assim como faltava uma garrafa de refrigerante de limão, embora tudo o mais no armário estivesse em perfeita ordem - e o armário ficava a um metro e oitenta do chão. jem mostrava um grande talento para gatuno, pensou. Ao menos, teria uma carreira, se fosse expulso da escola de uma vez por todas um dia desses por contar aos colegas algo especialmente pitoresco que ele observou no século XVIII.

As guloseimas desaparecidas apaziguaram sua preocupação. Se tinham resolvido fazer um piquenique, estariam lá fora, e embora pudessem estar em qualquer lugar a oitocentos metros de casa - Mandy não caminharia mais do que isso - , as probabilidades é de que não teriam ido longe antes de se sentarem para comer biscoitos.

Era um belo dia de outono e, apesar da necessidade de ir atrás de seus rebentos, estava contente de estar ao ar livre, no sol e na brisa. As meias podiam esperar. Assim como revirar os canteiros da horta. E falar com o encanador sobre o aquecedor no banheiro de cima. E...

"Não importa o quanto você faça em uma fazenda, sempre há mais que você pode fazer. É de admirar que o lugar não suba acima de minhas orelhas e me devore, como em "Jonas e a baleia."

Por um instante, ouviu a voz de seu pai, cheia de exasperada resignação diante de outra tarefa inesperada. Ela virou-se para olhar para ele, sorrindo, depois parou ao perceber ondas de saudade dominando-a.

- Oh, papai - ela disse, baixinho. Continuou a andar, mais devagar, repentinamente vendo não o fantasma de uma casa grande, parcialmente deteriorada, mas o organismo vivo que era Lallybroch, e todos de seu sangue que fizeram parte dela - que ainda faziam.

Os Fraser e os Murray, que haviam colocado seu próprio suor, sangue e lágrimas em seus prédios e seu solo, urdido suas vidas com a terra. Tio Ian, tia Jenny - o bando de primos que ela conhecera tão rapidamente. O Jovem Ian. Todos mortos agora... mas, curiosamente, ainda presentes.

- Ainda presentes - ela disse em voz alta, e encontrou consolo nas palavras. Chegara ao portão dos fundos da horta e parou, olhando para cima da colina, na direção da torre que dava o nome ao lugar; o cemitério ficava na mesma colina, a maior parte de suas lápides tão desgastada que os nomes e as datas eram indecifráveis, as próprias pedras em sua maioria ocultas pelos tojos e giestas-das-vassouras. E em meio às manchas salpicadas de cinza, verde-escuro e amarelo brilhante, viam-se dois pequenos borrões de vermelho e azul em movimento.

O caminho estava muito coberto de mato; as sarças raspavam em sua calça jeans. Encontrou as crianças de quatro, seguindo uma trilha de formigas - que por sua vez seguiam ma trilha de farelos de biscoitos, cuidadosamente colocados de modo a conduzir as formigas por um caminho de obstáculos na forma de galhinhos e cascalhos.

- Olhe, mamãe! - Jem mal ergueu os olhos para ela, absorto na cena à sua frente. Apontou para o chão, onde ele enfiara uma xícara velha na terra e a enchera de água. Um montículo preto de formigas, atraídas para o seu fim pelos farelos de biscoito de chocolate, lutava no meio da água.

- Jem! Que maldade! Não deve afogar as formigas... A menos que estejam na casa - ela acrescentou, com lembranças vívidas de uma recente infestação na despensa.

- Não estão se afogando, mamãe. Olhe, está vendo o que estão fazendo? Ela agachou-se ao lado dele, olhando mais de perto, e viu que, de fato, as formigas não estavam se afogando. Algumas formigas que haviam caído na água lutavam desesperadamente na direção do centro, onde um grande número de formigas se aglomerava, formando uma bola que flutuava, mal tocando a superfície. As formigas na bola moviam-se, lentamente, de modo a mudar de lugar constantemente, e enquanto uma ou duas próximas à borda do montículo estivessem imóveis, provavelmente mortas, a maioria obviamente não corria nenhum perigo iminente de se afogar, suportadas pelos corpos de suas companheiras. E a própria massa de formigas gradualmente se aproximava da borda da xícara, impulsionadas pelo movimento das formigas.

- Que interessante - ela disse, fascinada, e sentou-se ao lado dele por algum tempo, observando as formigas, antes de finalmente decretar misericórdia e fazer com que ele retirasse a bola de formigas da água com uma folha. Uma vez colocadas em terra firme, as formigas espalharam-se e imediatamente voltaram a seu trabalho. - Você acha que elas fazem isso de propósito? - ela perguntou a Jem. - Se aglomerarem dessa forma, quero dizer. Ou simplesmente procuram alguma coisa à qual se agarrar?

- Não sei - ele disse, dando de ombros. - Vou ver no meu livro sobre formigas se fala alguma coisa.

Ela recolheu os restos do piquenique, deixando um ou dois farelos de biscoito para as formigas, que, ela achava, fizeram por merecer. Mandy se afastara enquanto ela e Jem observavam as formigas na xícara e agora estava agachada na sombra de um arbusto um pouco acima da encosta, empenhada em uma animada conversa com um companheiro invisível.

- Mandy queria falar com vovô - Jem disse de forma pragmática. - Por isso viemos para cá.

- Ah, é? - ela disse devagar. - E por que aqui é um bom lugar para falar com ele?

Jem pareceu surpreso e olhou na direção das lápides desgastadas pelo tempo, inclinadas, do cemitério.

- Ele não está aqui? Algo muito mais poderoso do que um estremecimento percorreu sua espinha. Foram tanto a simplicidade de Jem quanto a possibilidade de ser verdade que tiraram seu fôlego.

- Eu... não sei - ela disse. - Imagino que possa estar. - Apesar de tentar não só não pensar muito sobre o fato de seus pais estarem mortos agora, ela de alguma forma presumira vagamente que teriam sido enterrados na Carolina do Norte - ou em algum outro lugar das colônias, se a guerra os tivesse tirado de Ridge.

Mas repentinamente se lembrou das cartas. Ele dissera que pretendia voltar à Escócia. E Jamie Fraser, sendo um homem obstinado, era mais do que provável que tivesse feito isso. Não teria mais ido embora? E se não tivesse... sua mãe também estaria ali?

Sem realmente ter a intenção, viu-se subindo a encosta, passando pela base da velha torre e através das lápides do cemitério. Ela subira ali uma vez, com sua tia Jenny. Fora no começo da noite, com uma brisa sussurrando no capim e um ar de paz na colina. Jenny lhe mostrara as sepulturas de seus avós, Brian e Ellen, juntos sob uma lápide de casal; sim, ela ainda podia divisar a curva da lápide, apesar de praticamente encoberta de musgo e mato, os nomes apagados pelo tempo. E a criança que morrera com Ellen fora enterrada com ela - seu terceiro filho. Robert, Jenny dissera; seu pai, Brian, insistira que ele fosse batizado e o nome de seu pequenino irmão falecido era Robert.

Estava entre as lápides agora; tantas. Muitas das mais recentes ainda eram legíveis, as com datas do final do século XIX. Na maior parte, dos Murray, McLachlan e McLean. Aqui e ali, uma ou outra dos Fraser ou Mackenzie.

As mais antigas, entretanto, estavam desgastadas demais para serem legíveis, não mais do que vestígios de letras surgindo em meio às manchas escuras de líquen e à maciez obliterante do musgo. Lá, ao lado do túmulo de Ellen, estava a pequena lápide quadrada de Caitlin Maisri Murray, o sexto filho de Jenny e Ian, que vivera apenas um dia. Jenny mostrara a lápide a Brianna, inclinando-se para passar a mão delicadamente pelas letras e colocar ao lado uma rosa amarela do caminho. Havia um pequeno montículo de pedras lá também, deixadas por aqueles que visitavam o túmulo. O montículo de pedras já havia se desfeito há muito tempo, mas Brianna se abaixou, encontrou uma pedra e colocou-a ao lado da pequena lápide.

Havia uma outra lápide, ela viu, ao lado. Outra pedra pequena, como para uma criança. Não tão desgastada, mas obviamente quase tão antiga. Havia apenas duas palavras gravadas na lápide, ela pensou e, fechando os olhos, correu os dedos devagar pela superfície, sentindo as linhas quebradas e superficiais. Havia um "E" na primeira linha. Um "Y", ela achou, na segunda. E talvez um "K".

Que tipo de nome das Highlands começa com "Y"?, perguntou-se intrigada. McKay, mas estaria na ordem errada...

- Você... hã... não sabe qual sepultura seria a do seu avô, sabe? - ela perguntou a Jem, hesitante. Quase teve medo de ouvir a resposta.

- Não. - Ele pareceu surpreso e olhou para onde ela estava olhando, na direção de um amontoado de pedras. Obviamente, ele não havia associado sua presença ao seu avô. - Ele disse que gostaria de ser enterrado aqui e que, se eu viesse aqui, deveria deixar uma pedra para ele. Foi o que fiz. - Seu leve sotaque a fez ouvir a voz de seu pai outra vez, distintamente, mas desta vez sorriu.

- Onde?

- Lá em cima. Ele gosta de ficar no alto, hein? De onde pode ver tudo - Jem disse descontraidamente, apontando para o topo da colina. Logo adiante da sombra da torre, ela pôde ver vestígios de algo que não era propriamente um caminho, através do matagal de tojeiras, urzes e pedaços de rocha. E projetando-se do mato no topo da colina, uma rocha grande, irregular, sobre a qual erguia-se uma pequena pirâmide de pedras pequenas, quase invisível.

- Você deixou todas essas ali hoje?

- Não, deixo uma toda vez que venho. É assim que se deve fazer, sabe? Ela sentiu um nó na garganta, mas engoliu e sorriu.

- É, sim. Vou subir e deixar uma também. Mandy agora estava sentada em uma das lápides caídas, dispondo folhas de bardana como pratos ao redor da xícara suja de terra, que ela desenterrara e colocara no meio. Conversava com os convidados invisíveis de sua reunião para o chá, educadamente animada. Não havia necessidade de perturbá-la, Brianna decidiu, e seguiu Jem pela escarpa pedregosa - a parte final da subida realizada de gatinhas, por ser muito íngreme.

O vento era forte ali perto do alto da colina e eles não eram muito incomodados pelos mosquitinhos. Molhada de suor, ela acrescentou sua própria pedra cerimoniosamente ao pequeno memorial e sentou-se por um instante para apreciar a vista. A maior parte de Lallybroch era visível dali, assim como a estrada que levava à rodovia principal. Olhou naquela direção, mas não havia sinal do Morris Mini cor de laranja de Roger. Ela suspirou e afastou o olhar.

Era agradável ali em cima. Silencioso, apenas com o murmúrio do vento frio e o zumbido de abelhas trabalhando com afinco nas flores amarelas. Não era de admirar que seu pai gostasse...

- Jem. - Ele estava confortavelmente recostado contra uma rocha, olhando as colinas ao redor.

- Sim?

Ela hesitou, mas tinha que perguntar.

- Você... não pode ver seu avô, pode?

Ele lançou-lhe um olhar azul espantado.

- Não. Ele está morto.

- Oh - ela disse, imediatamente aliviada e ligeiramente decepcionada. - Eu sei. Eu... só estava pensando.

- Acho que Mandy talvez possa - Jem disse, indicando a irmã com a cabeça, um borrão vermelho vivo na paisagem embaixo. - Mas não se pode saber realmente. Os bebês falam com um monte de gente que você não pode ver - acrescentou indulgentemente. - É o que a vovó diz.

Ela não sabia se queria que ele parasse de se referir a seus avós no tempo presente ou não. Era mais do que apenas um pouco inquietante, mas ele dissera que não podia ver Jamie. Ela não quis perguntar se ele podia ver Claire, achava que não, mas sentia seus pais próximos, sempre que Jem ou Mandy os mencionava, e ela certamente queria que Jem e Mandy se sentissem próximos deles também.

Ela e Roger haviam explicado as coisas para as crianças até onde podiam ser explicadas. E evidentemente seu pai havia tido sua própria conversa particular com Jem; o que foi muito bom, ela pensou. A mistura de Jamie de catolicismo devoto e a prática aceitação da vida, da morte e do sobrenatural de um escocês das Highlands provavelmente era muito mais adequada para explicar coisas como estar morto de um lado das pedras, mas...

- Ele disse que cuidaria da gente. Vovô - acrescentou, voltando-se para ela.

Ela mordeu a língua. Não, ele não estava lendo a sua mente, disse a si mesma com firmeza. Apenas haviam conversado sobre Jamie, afinal, e Jem escolhera aquele lugar para prestar sua homenagem. Assim, era natural que seu avô ainda estivesse em sua mente.

- Claro que sim - ela disse, e colocou a mão em seu ombro reto, massageando os ossos da base de seu pescoço com o polegar. Ele deu uma risadinha e agachou-se para se livrar de sua mão, em seguida começou a descer o morro saltitando, deslizando sobre o traseiro por parte do caminho, sem ligar para sua calça jeans. Ela parou para um último olhar em volta antes de segui-lo e notou uma confusão de pedras no topo de uma colina a uns quatrocentos metros de distância. Amontoados de pedras eram exatamente o que se poderia esperar em qualquer topo de colina nas Highlands - mas havia algo ligeiramente diferente sobre esse aglomerado de pedras em particular. Ela protegeu os olhos com a mão, tentando ver melhor. Devia estar errada, mas ela era engenheira; conhecia a aparência de alguma coisa construída pelo homem.

Uma fortaleza da Idade do Ferro, talvez?, ela pensou, intrigada. Havia pedras arrumadas em camadas na base daquela pilha, ela podia jurar. Um alicerce, talvez. Teria que subir lá um dia desses para ver de perto - talvez amanhã, se Roger... Olhou para a estrada outra vez e novamente a encontrou vazia.

Mandy se cansara de seu chá e já estava querendo voltar para casa. Segurando sua filha com firmeza pela mão e com a xícara de chá na outra, Brianna desceu a colina na direção da grande casa branca rebocada de cal e areia, suas janelas recém-lavadas e brilhantes.

Teria Annie feito isso?, perguntou-se. Ela não notara e certamente lavar janelas naquela escala teria causado uma boa dose de confusão e trabalho. Mas, por outro lado, ela andara distraída, com as expectativas e apreensões do novo emprego. Seu coração deu um pequeno salto à ideia de que na segunda-feira ela iria encaixar novamente no lugar mais uma peça de quem ela fora um dia, mais uma pedra no alicerce de quem ela era agora.

- Talvez tenham sido os piskies - ela disse em voz alta, e riu.

- Piskies, piskies - Mandy fez eco alegremente. Jem já chegara quase ao pé da colina e virou-se, impaciente, esperando por elas.

- Jem - ela disse:, o pensamento ocorrendo-lhe quando o alcançaram. - Você sabe o que é um nuckelavee?

Os olhos de Jem se arregalaram e ele tapou os ouvidos de Mandy com as mãos. Algo com uma centena de patinhas frias percorreu as costas de Brianna.

- Sei - ele disse, a voz fraca e arquejante.

- Quem lhe contou sobre isso? - ela perguntou, mantendo a voz calma. Iria matar Annie MacDonald, pensou.

Mas os olhos de Jem resvalaram para o lado e ele olhou involuntariamente por cima de seu ombro, até a torre.

- Ele - sussurrou.

- Ele? - ela retrucou incisivamente, e agarrou Mandy pelo braço quando a menina desvencilhou-se dela e virou-se furiosamente para seu irmão. - Não chute seu irmão, Mandy! De quem você está falando, Jemmy?

- Dele - disse sem titubear. - O nuckelavee.

"A criatura habitava os mares, mas se aventurava em terra firme para se alimentar de humanos. O nuckelavee cavalgava um cavalo em terra e às vezes não havia distinção entre o cavalo e seu próprio corpo, uma espécie de centauro. Sua cabeça era dez vezes maior do que a de um homem e a boca era projetada para fora como a de um porco, com uma boca larga e escancarada. A criatura não tinha pele, e suas veias amarelas, a estrutura dos músculos e os tendões podiam ser vistos claramente, recobertos de uma película vermelha e gosmenta. Era provida de hálito venenoso e grande força. No entanto, tinha um ponto fraco: aversão a água doce. O cavalo no qual montava é descrito como tendo um único olho, vermelho, a boca como a de uma baleia e abas como nadadeiras ao redor das pernas dianteiras."

- Credo! - Brianna largou o livro, um da coleção de Roger de folclore escocês, e olhou fixamente para Jem. - Você viu um desses? Lá em cima perto da torre?

Seu filho remexeu-se de um pé para o outro.

- Bem, ele disse que era. Disse que se eu não fosse embora imediatamente ele se transformaria no próprio monstro, e isso eu não queria ver, então fugi.

- Nem eu. - O coração de Brianna começou a se acalmar um pouco. Tudo bem. Ele encontrara um homem, então, não um monstro. Não que ela tivesse realmente acreditado... mas o fato de que alguém estivesse rondando a torre já era bastante preocupante.

- Como ele era, esse homem?

- Bem... grande - Jem disse, em dúvida. Considerando-se que Jem ainda não tinha nove anos, a maioria dos homens pareceria grande.

- Do tamanho do papai? - Talvez. Novas indagações extraíram relativamente poucos detalhes; Jem sabia o que era um nuckelavee - ele havia lido os artigos mais interessantes da coleção de Roger - e ficara tão aterrorizado ao encontrar alguém que podia a qualquer momento despir sua pele e comê-lo que suas impressões sobre o homem eram escassas. Alto, com uma barba curta, cabelos não muito escuros e roupas "como as do sr. MacNeil". Roupas de trabalho, então, como as de um fazendeiro.

- Por que você não contou a mim ou a seu pai sobre ele? Jem estava a ponto de chorar.

- Ele disse que voltaria e comeria Mandy se eu falasse alguma coisa.

- Oh. - Ela enlaçou-o e puxou-o para si. - Compreendo. Não tenha medo, querido. Está tudo bem. - Ele tremia agora, tanto de alívio quanto por causa da lembrança, e ela afagou seus cabelos brilhantes, acalmando-o. Um vagabundo, era o mais provável. Acampando na torre? Provavelmente já teria ido embora - pelo que pôde apreender da história de Jem, fazia mais de uma semana que ele vira o sujeito - mas...

- Jem - ela disse devagar. - Por que você e Mandy foram lá em cima hoje? Não ficaram com medo de que o homem estivesse lá?

Ele olhou para ela, surpreso, e sacudiu a cabeça, os cabelos ruivos esvoaçando.

- Não, eu fugi, mas me escondi e fiquei observando. Ele foi embora para oeste. É onde ele vive.

- Ele disse isso?

- Não. Mas coisas assim sempre moram no oeste. - Apontou para o livro. - Quando vão para o oeste, não voltam. E eu não o vi mais; fiquei observando, para ter certeza.

Ela quase riu, mas ainda estava muito preocupada. Era verdade; muitos dos contos da carochinha das Highlands sempre acabavam com alguma criatura sobrenatural indo para o oeste, ou entrando nas rochas ou na água onde moravam. E naturalmente não voltavam, já que a história terminava.

- Era apenas um vagabundo malvado - ela disse com firmeza, dando umas pancadinhas nas costas de Jem antes de soltá-lo. - Não se preocupe com ele.

- Tem certeza? - ele disse, obviamente querendo acreditar nela, mas ainda não inteiramente pronto a relaxar e se sentir seguro.

- Tenho - ela disse com firmeza.

- Ok. - Ele respirou fundo e afastou-se dela. - Além do mais - acrescentou, parecendo mais feliz - , vovô não o deixaria comer a mim ou Mandy. Eu devia ter pensado nisso. Já era quase hora do pôr do sol quando ela ouviu os ruídos de descarga do motor do carro de Roger na estrada da fazenda. Correu para fora e ele mal saíra do carro quando ela se atirou em seus braços.

Ele não perdeu tempo com perguntas. Abraçou-a apaixonadamente e beijou-a de uma forma que deixou claro que a briga entre eles acabara; os detalhes das desculpas mútuas podiam esperar. Por um instante, ela se abandonou completamente, sentindo-se leve em seus braços, respirando os cheiros de gasolina, poeira e bibliotecas,das de livros antigos que se sobrepunham ao seu cheiro natural, aquele almíscar indefinível de pele quente do sol, mesmo quando ele não estivera exposto ao sol.

- Dizem que as mulheres não podem realmente identificar seus maridos pelo cheiro - ela observou, voltando à Terra com relutância. - Eu não acredito. Eu poderia achar você na estação do metrô de King's Cross na mais completa escuridão.

- Mas eu tomei banho hoje de manhã, hein?

- Sim, e ficou na faculdade, porque posso sentir o cheiro do terrível sabonete industrial que eles usam lá - ela disse, torcendo o nariz. - Não sei como não arranca a sua pele. E você comeu chouriço no café da manhã. Com tomates fritos.

- Acertou, garota - ele disse, sorrindo. - Ou devo dizer Rin-Tin-Tin? Salvou alguma criançinha ou farejou algum ladrão até seu esconderijo hoje?

- Bem, sim. De certo modo. - Ela ergueu os olhos para a colina atrás da casa, onde a sombra da torre ficara longa e negra. - Mas achei melhor esperar até o xerife voltar da cidade antes de prosseguir.

Armado com um forte galho de abrunheiro-bravo que usava como bengala e uma lanterna elétrica, Roger aproximou-se da torre, furioso, mas com cautela. Não era provável que o homem estivesse armado, se ainda estivesse lá, mas Brianna estava na porta da cozinha, o telefone - o longo fio esticado ao máximo - a seu lado e dois noves já discados. Ela quis ir com ele, mas ele a convencera de que um deles tinha que ficar com as crianças. Ainda assim, teria sido um conforto se ela estivesse cobrindo as suas costas; ela era uma mulher alta e forte que não se intimidava com violência física.

A porta da torre estava torta; as antigas dobradiças de couro há muito haviam apodrecido e desaparecido, tendo sido substituídas por dobradiças de ferro barato, que por sua vez enferrujaram. A porta ainda estava presa ao batente, porém por um fio. Ele levantou a trava e manobrou a madeira pesada, lascada, para dentro, erguendo-a, de modo que ela se abriu sem raspar o chão.

Ainda havia bastante luz do lado de fora; não ficaria completamente escuro ainda por meia hora. Dentro da torre, entretanto, estava escuro como um poço. Iluminou o chão com sua lanterna e viu marcas recentes de algo arrastado na crosta de poeira que se acumulara no chão de pedra. Sim, alguém estivera ali, portanto. Jem podia ser capaz de abrir a porta, mas as crianças não tinham permissão de entrar na torre sem um adulto, e Jem jurou que não havia entrado.

- Olaaaá! - ele gritou, e foi recebido por um movimento de surpresa em algum lugar acima. Agarrou o galho num reflexo, mas reconheceu quase imediatamente a causa da agitação. Morcegos, pendurados do teto cônico. Ele iluminou à volta do andar térreo e viu alguns jornais manchados e amassados junto à parede. Pegou um deles e cheirou-o: velho, mas o cheiro de peixe e vinagre ainda era perceptível.

Ele não achara que Jem estava inventando a história do nucklelavee, mas esta nova prova de recente ocupação humana reacendeu sua raiva. Era inconcebível que alguém viesse se esconder em sua propriedade, mas ameaçar seu filho... Quase desejou que o sujeito ainda estivesse ali. Queria dar uma palavra com ele. Mas não estava. Ninguém com bom-senso iria para os andares superiores da torre; as tábuas estavam apodrecidas e, quando seus olhos se adaptaram, pôde ver os enormes buracos, uma luz fraca, vinda das janelas de fendas no alto, atravessando-os. Roger não ouviu nada, mas a necessidade de se certificar impulsionou-o pela estreita escada de pedra que subia em espiral pela parede interna da torre, experimentando cada degrau para ver se não havia pedras soltas antes de confiar seu peso a ele.

Ele perturbou um bom número de pombos no andar mais alto, os quais entraram em pânico e revoaram dentro da torre como um tornado emplumado, lançando fezes e penas para baixo, antes de encontrarem a saída pelas janelas. Ele se pressionou contra a parede, o coração batendo com força conforme eles passavam junto a seu rosto batendo as asas cegamente. Algo - um rato, um camundongo, um rato-do-mato - passou correndo por cima de seu pé e ele sacudiu-se espasmodicamente, quase perdendo a lanterna.

A torre tinha vida, sem dúvida; os morcegos no alto moviam-se, inquietos com todo o tumulto embaixo. Mas nenhum sinal de um intruso, humano ou não.

Depois de descer, colocou a cabeça para fora para sinalizar a Bri de que tudo estava em ordem, depois fechou a porta e começou a descer em direção à casa, limpando a poeira e as penas de pombos de suas roupas.

- Vou colocar uma nova tranca com cadeado na porta - ele disse a Brianna, recostando-se na velha pia de pedra enquanto ela começava a preparar o jantar. - Embora eu duvide que ele volte. Provavelmente era apenas um andarilho.

- Das ilhas Orkney, você acha? - Ela estava tranquilizada, ele podia ver, mas ainda havia uma ruga de preocupação entre suas sobrancelhas. - Você disse que é lá que há essas histórias de nuckelavee.

Ele deu de ombros. - É possível. Mas você encontra essas histórias em livros; o nuckelavee não é tão popular como as fadas ou os cavalos das águas, mas qualquer um pode encontrar material impresso sobre ele. O que é isso? - Ela havia aberto a geladeira para tirar a manteiga e ele avistou a garrafa de champanhe na prateleira, o rótulo aluminizado brilhando.

- Oh, isso. - Olhou para ele, pronta para sorrir, mas com certa apreensão nos olhos. - Eu, hum, consegui o emprego. Achei que podíamos... comemorar? - A pergunta hesitante atingiu diretamente seu coração e ele deu um tapa na testa.

- Santo Deus, esqueci de perguntar! Que ótimo, Bri! Mas eu sabia que você conseguiria - ele disse, sorrindo com todo entusiasmo e convicção que conseguiu reunir. - Nunca duvidei disso.

Ele pôde ver a tensão abandonar o corpo dela enquanto o rosto se iluminava, e sentiu certa paz descer sobre ele também. Essa sensação agradável permaneceu durante o abraço de quebrar costelas que ela lhe deu e o beijo subsequente, mas foi obliterada quando ela recuou um passo e, pegando uma caçarola, perguntou com afetada descontração:

- Então... você encontrou o que procurava em Oxford?

- Sim. - A resposta veio em um grasnido rouco; ele clareou a garganta e tentou outra vez. - Sim, mais ou menos. Olhe, o jantar pode esperar um pouco? Acho que vou ter mais apetite se lhe contar primeiro.

- Claro - ela disse devagar, deixando a caçarola. Seus olhos fixaram-se nele, interessada, talvez um pouco receosa. - Dei jantar às crianças antes de você chegar. Se não estiver morto de fome...

Ele estava; não havia parado para almoçar na viagem de volta e seu estômago estava vazio, mas não importava. Estendeu a mão para ela.

- Vamos lá fora. A noite está agradável. - E se ela não aceitasse bem não havia panelas do lado de fora.

- Fui até a antiga igreja de St. Stephen - ele disse abruptamente, assim que deixaram a casa. - Falar com o dr. Weatherspoon; ele é o reitor da igreja. Ele era amigo do reverendo, me conhece desde garoto.

A mão de Brianna se apertara em seu braço quando ele começou a falar. Ele arriscou uma olhadela para ela e viu que parecia ansiosa, mas também esperançosa.

- E...? - ela disse, incentivando-o.

- Bem... O desfecho final é que eu também consegui um emprego. - Sorriu, acanhado. - Assistente de mestre de coro.

Isso, é claro, não era em absoluto o que ela esperava, e ela pestanejou. Então, seus olhos dirigiram-se à sua garganta. Ele sabia muito bem o que ela estava pensando.

- Você vai usar isto? - ela perguntara, na primeira vez que foram fazer compras em Inverness.

- Sim, pretendia. Por quê, está manchada? - Ele havia esticado o pescoço para olhar por cima do ombro de sua camisa branca. Não era de admirar se estivesse. Mandy entrara correndo para saudá-lo, emplastando suas pernas com abraços cheios de areia. Ele a limpara um pouco antes de erguê-la nos braços para um beijo adequado, mas...

- Não isto - Brianna dissera, os lábios comprimindo-se um pouco por um instante. - É que ... O que vai dizer sobre... - Ela fez um gesto de cortar a garganta.

Levou a mão ao colarinho aberto da camisa, onde a cicatriz da corda fazia uma linha curva, distinta ao toque, como um cordão de minúsculas pedrinhas sob a pele. Desbotara um pouco, mas ainda era bastante visível.

- Nada. As sobrancelhas dela se ergueram e ele esboçou um sorriso enviesado. - Mas o que vão pensar? - Imagino que vão presumir que eu sou dado a asfixia erótica e fui longe demais um dia.

Familiarizado como era com a zona rural das Highlands, imaginava que seria o mínimo que iriam pensar. Externamente digna sua suposta congregação poderia ser - mas ninguém poderia imaginar uma depravação mais sinistra do que a de um devoto escocês presbiteriano.

- Você... hã... contou ao dr. Weatherspoon... O que você disse a ele? - ela perguntou agora, após um instante de reflexão. - Quero dizer, ele deve ter notado.

- Oh, sim. Ele notou. Mas eu não disse nada, nem ele. "Olhe, Bri", ele lhe dissera naquele primeiro dia, "só há uma escolha. Nós contamos a todos a absoluta verdade ou não lhes contamos nada, ou o mais próximo possível a nada, e deixamos que pensem o que quiserem. Inventar uma história não vai funcionar, não é? Seria muito fácil dar um passo em falso.

Ela não gostara da ideia; ele ainda podia ver a maneira como seus olhos se estreitaram nos cantos. Mas ele tinha razão, e ela sabia disso. Uma decisão se espalhou pelo seu rosto e ela assentiu, endireitando os ombros.

Tiveram que admitir certa dose de mentira, é claro, a fim de legalizar a existência de Jem e Mandy. Mas era final dos anos 1970; havia muitas comunidades independentes nos Estados Unidos e grupos improvados de "viajantes", como chamavam a si mesmos, vagando pela Europa em desfiles de ônibus enferrujados e caminhonetes barulhentas. Eles haviam trazido muito pouco com eles através das pedras, salvo as próprias crianças - mas entre a minúscula reserva que Brianna enfiara em seus bolsos e por dentro dos espartilhos estavam duas certidões de nascimento manuscritas, atestadas por uma médica chamada Claire Beauchamp Randall, que fizera os partos.

"É o documento apropriado para uma certidão de nascimento", Claire dissera, fazendo os arabescos de sua assinatura com cuidado. "E eu sou, ou era", corrigiu, com um trejeito irônico da boca, "uma médica registrada, licenciada por Massachusetts.

- Assistente de mestre de coro - Bri disse agora, analisando-o. Ele respirou fundo; o ar da noite estava realmente agradável, límpido e ameno, ainda que começando a se encher de mosquitinhos. Afastou uma nuvem deles de seu rosto, lidando corajosamente com a questão.

- Veja bem, eu não fui atrás de um emprego. Eu fui... clarear minha mente. A respeito de ser ministro.

Ela parou de repente.

- E...? - ela instigou-o.

- Vamos. - Ele puxou-a delicadamente. fazendo-a se movimentar outra vez. - Seremos comidos vivos se ficarmos parados aqui.

Atravessaram o quintal pela horta e dirigiram-se ao estábulo, andando ao longo do caminho que levava ao pasto de trás da casa. Ele já havia ordenhado as duas vacas, Milly e Blossom, e elas já haviam se acomodado para a noite, grandes vultos escuros na grama, tranquilamente ruminando.

- Eu lhe falei da Confissão de Westminster, não? - Era o equivalente presbiteriano ao Symbolim Nicaenum dos católicos: sua Declaração de doutrina oficialmente aceita.

- Hum-hum.

- Bem, veja, para ser um pastor presbiteriano, eu teria que jurar aceitar tudo da Confissão de Westminster. Eu o fiz, quando eu... bem, antes. - Ele chegara tão perto, pensou. Estivera prestes a ser ordenado como ministro quando o destino interveio, na pessoa de Stephen Bonnet. Roger fora obrigado a largar tudo, para encontrar e resgatar Brianna do esconderijo do pirata em Ocracoke. Não que ele lamentasse ter feito isso. Ela caminhava a seu lado, ruiva e longilínea, graciosa como um tigre, e a ideia de que ela poderia tão facilmente ter desaparecido de sua vida para sempre... e que ele jamais teria conhecido sua filha...

Ele tossiu e limpou a garganta, tocando distraidamente a cicatriz.

- Talvez eu ainda faça. Mas não tenho certeza. E tenho que ter.

- O que mudou? - ela perguntou com curiosidade. - O que você podia aceitar na época que não pode aceitar agora?

O que mudou?, ele pensou. Boa pergunta.

- Predestinação - respondeu. - Uma maneira de dizer. - Ainda havia luz suficiente para ele ver uma expressão levemente zombeteira atravessar seu rosto, embora não soubesse dizer se simplesmente pela justaposição irônica de pergunta e resposta ou pelo próprio conceito. Nunca haviam discutido questões de fé, eram mais do que cautelosos um com o outro nessas questões, mas ao menos estavam familiarizados com o conceito geral das crenças de cada um.

Ele lhe explicara a ideia de predestinação em termos simples: não algum destino inevitável ordenado por Deus, nem a noção de que Deus já havia planejado a vida de cada um detalhadamente antes do seu nascimento - apesar de que não poucos presbiterianos vissem a questão exatamente desse modo. Tinha a ver com salvação e com a ideia de que Deus escolhia um caminho que levava a essa salvação.

- Para algumas pessoas - ela disse ceticamente. - E Ele resolve amaldiçoar o resto?

Muita gente também acreditava nisso, e foram necessárias mentes melhores do que a dele para contestar essa impressão.

- Há livros inteiros escritos sobre isso, mas a ideia básica é que a salvação não depende apenas de nossa escolha. Deus age primeiro. Estendendo o convite, pode-se dizer, e nos dando uma oportunidade de aceitar. Mas ainda temos livrearbítrio. E de fato - acrescentou rapidamente - a única coisa que não é opcional, para ser um presbiteriano, é a crença em Jesus Cristo. Eu ainda tenho isso.

- Ótimo - ela disse. - Mas para ser um ministro...?

- Sim, provavelmente. E... bem, veja. - Enfiou a mão repentinamente no bolso e entregou-lhe uma fotocópia dobrada.

- Achei melhor não roubar o livro - ele disse, tentando brincar. - Para o caso de eu realmente decidir ser ministro, quero dizer. Mau exemplo para o rebanho.

- Ho-ho - ela disse distraidamente, lendo. Ergueu os olhos, uma das sobrancelhas arqueada.

- Está diferente, não está? - ele disse, a sensação de falta de ar de volta sob seu diafragma.

- É... - Seus olhos dardejaram de volta ao documento e ela franziu a testa. Olhou para ele um segundo depois, pálida e engolindo em seco. - Diferente. A data é diferente.

Ele sentiu uma leve diminuição da tensão que o dominara nas últimas vinte e quatro horas. Ele não estava enlouquecendo, então. Estendeu a mão e ela lhe devolveu a cópia do recorte do jornal Wilmington Gazette - a notícia da morte dos Fraser de Ridge.

- É apenas a data - ele disse, correndo o polegar sob as palavras quase indistintas. - O texto... acho que é o mesmo. É o que você se lembra? - Ela encontrara a mesma informação ao procurar por sua família no passado; foi o que a impulsionou a atravessar as pedras, e ele depois dela. E isso, ele pensou, fez toda a diferença. Obrigado, Robert Frost.

Ela se pressionara contra ele, para ler o texto outra vez. Uma vez, duas vezes e outra vez, para ter certeza, antes de balançar a cabeça.

- Apenas a data - ela disse, e ele percebeu a mesma falta de ar em sua voz. - Ela... mudou.

- Ótimo - ele disse, a voz estranha e rouca. - Quando comecei a pensar... eu tinha que ir verificar, antes de falar com você sobre isso. Só para verificar, porque o recorte de jornal que eu vira em um livro não podia estar certo.

Ela balançou a cabeça, ainda um pouco pálida.

- Se eu... se eu voltasse aos arquivos em Boston onde encontrei esse jornal... ele teria mudado também, você acha?

- Sim, acho. Ela permaneceu em silêncio por um longo instante, olhando para o papel em sua mão. Em seguida, olhou incisivamente para ele.

- Você disse, quando começou a pensar. O que o fez começar a pensar?

- Sua mãe.

Fora uns dois meses antes de deixarem Ridge. Certa noite, sem conseguir dormir, ele saíra para a floresta e, andando de um lado para o outro insone, ele encontrara Claire, de joelhos em uma depressão do terreno cheia de flores brancas, parecendo formar uma névoa ao redor dela.

Ele apenas se sentara e ficara observando Claire quebrar as hastes e retirar as folhas, colocando-as em seu cesto. Ela não tocava nas flores, ele viu, mas retirava algo que crescia sob elas.

- É preciso colher isso à noite - ela lhe dissera após algum tempo. - De preferência, na lua nova.

- Eu não esperava... - ele começou a dizer, mas interrompeu-se abruptamente.

Ela deu uma risadinha chiada, achando graça.

- Você não esperava que eu desse importância a tais superstições? - ela perguntou. - Espere, Roger. Quando tiver vivido tanto quanto eu, você mesmo poderá começar a dar importância a superstições. Quanto a esta... - Sua mão moveu-se, um borrão esbranquiçado na escuridão, e quebrou uma haste com um estalido suave e suculento. Um aroma penetrante encheu repentinamente o ar, forte e seco em meio ao perfume mais suave das flores. - Os insetos vêm e depositam seus ovos nas folhas de algumas plantas, sabe? As plantas segregam certas substâncias de odor forte, a fim de repelir os insetos, e a concentração dessas substâncias é mais alta quando a necessidade é maior. Acontece que essas substâncias inseticidas também têm propriedades medicinais muito fortes e o que mais perturba este tipo de planta em particular - ela passou uma haste leve sob seu nariz, fresca e úmida - é a larva das mariposas.

- Consequentemente, ela possui mais dessa substância no meio da noite, porque é quando as larvas se alimentam?

- Isso mesmo. - A haste foi retirada, a planta atirada em seu cesto com um farfalhar de musselina e sua cabeça se inclinou enquanto ela tateava em busca de mais. - E algumas plantas são fertilizadas pelas mariposas. Essas, é claro... - Florescem à noite. - No entanto, a maioria das plantas é incomodada por insetos do dia e, assim, começam a secretar seus úteis componentes ao amanhecer. A concentração aumenta conforme o dia prospera - mas, quando o sol fica quente demais, alguns dos óleos começam a se vaporizar das folhas e a planta para de produzilos. Assim, a maioria das plantas aromáticas deve ser colhida no final da manhã. E assim os xamãs e herbanários dizem a seus aprendizes para pegar uma planta na lua nova e outra ao meio-dia, criando uma superstição, hum? - Sua voz era um pouco seca, mas ainda tingida de humor.

Roger sentou-se sobre os calcanhares, observando-a tatear ao redor. Agora que seus olhos estavam acostumados, ele podia distinguir sua forma facilmente, apesar de os detalhes de seu rosto permanecerem ocultos.

Ela trabalhou durante algum tempo e depois se sentou sobre os calcanhares e espreguiçou-se; ele ouviu sua coluna estalar.

- Eu o vi uma vez, sabe. - Sua voz era abafada; ela desviara o rosto, vasculhando sobre os galhos arriados de um rododendro.

- Viu? Quem? - O rei. - Ela encontrou alguma coisa; ele ouviu o farfalhar de folhas conforme ela puxava a planta e o estalo da haste quebrada.

- Ele foi ao Pembroke Hospital visitar os soldados. Ele veio e conversou em separado conosco: os médicos e as enfermeiras. Era um homem tranquilo, muito digno, mas de maneiras calorosas. Não sei lhe contar uma palavra do que ele disse. Mas foi... muito inspirador. Só o fato de ele estar lá, sabe?

- Mmmhum. - Seria o começo da guerra, ele se perguntou, que a fazia trazer de volta essas lembranças?

- Um jornalista perguntou à rainha se ela iria pegar os filhos e fugir para o campo; muita gente estava fazendo isso.

- Sei. - Roger viu mentalmente duas crianças: um menino e uma menina, os rostos magros, silenciosas, juntas ao lado de uma lareira familiar. - Nós tivemos duas... em nossa casa em Inverness. Que estranho, eu não me lembrara delas até este momento.

Mas ela não estava prestando atenção. - Ela disse, e eu posso não estar citando suas palavras exatamente, mas a ideia geral foi: "Bem, as crianças não podem me deixar e eu não posso deixar o rei, e naturalmente o rei não partirá." Quando seu pai foi morto, Roger?

O que quer que estivesse esperando ela dizer, não era isso, Por um instante, a pergunta pareceu tão incongruente que se tornou incompreensível.

- Como? - Mas ele a ouvira e, sacudindo a cabeça para dispersar uma sensação de irrealidade, ele respondeu: - Outubro de 1941. Não sei se me lembro da data exata... não, lembro-me, sim, o reverendo a escreveu na árvore genealógica. Foi em 31 de outubro de 1941. Por quê? - Por quê, em nome de Deus, ele quis dizer, mas ele andava tentando controlar o impulso de dizer o nome de Deus em vão. Reprimiu o impulso ainda mais forte de se deixar levar por pensamentos aleatórios e repetiu, muito calmamente: - Por quê?

- Você disse que o avião dele foi abatido na Alemanha, não foi?

- No Canal da Mancha, a caminho da Alemanha. Assim me disseram. - Ele podia apenas divisar suas feições ao luar, mas não conseguia ler sua expressão.

- Quem lhe contou? Você se lembra?

- O reverendo, eu acho. Ou talvez tenha sido minha mãe. - A sensação de irrealidade estava passando e ele começava a sentir raiva. - Isso importa?

- Talvez, não. Quando nós o conhecemos, Frank e eu, em Inverness, o reverendo disse na ocasião que seu pai tinha sido morto no Canal da Mancha.

- É mesmo? Bem... - Ele não disse "E daí?", mas ela obviamente percebeu, pois a ouviu resfolegar, quase o som de uma risada, do meio dos rododendros.

- Tem razão, não tem importância. Mas... tanto você quanto o reverendo mencionaram que ele era um piloto de Spitfire. É isso mesmo?

- Sim. - Roger não sabia ao certo a razão, mas começava a sentir uma sensação estranha na nuca, como se algo estivesse em pé atrás dele. Ele tossiu, arranjando uma desculpa para virar a cabeça, mas não avistou nada às suas costas, salvo a floresta branca e preta, manchada pelo luar. - Não tenho tanta certeza disso - ele disse, sentindo-se estranhamente na defensiva. - Minha mãe tinha uma fotografia dele com seu avião. Rag Doll era o nome do avião. Estava pintado no nariz, com um desenho tosco de uma boneca de pano com vestido vermelho e cabelos cacheados escuros. - Disso ele tinha certeza. Dormira COM a foto sob o travesseiro durante muito tempo depois que sua mãe foi morta, porque o retrato de estúdio de sua mãe era grande demais e ele temia que alguém desse por sua falta. - Rag Doll - ele repetiu, como se algo lhe ocorresse repentinamente.

- O que foi? Abanou a mão, acanhado. - Nada não. Eu... apenas percebi que "Rag Doll" devia ser como meu pai chamava minha mãe. Um apelido, sabe? Vi algumas das cartas que ele mandou para ela; eram em geral endereçadas a Dolly, Bonequinha. E agora, lembrando-me dos cachos negros... O retrato de minha mãe... Mandy. Mandy tem os cabelos de minha mãe.

- Oh, que bom - Claire disse sucintamente. - Detestaria achar que eu era a única responsável por isso. Por favor, diga-lhe isso, quando ela for mais velha, sim? Meninas com cabelos muito cacheados geralmente detestam isso; ao menos na adolescência, quando querem ser iguais a todo mundo.

Apesar de sua preocupação, ele notou o leve tom de desconsolo em sua voz e pegou sua mão, sem se importar com o fato de que ela ainda segurava uma planta.

- Eu direi a ela - ele disse suavemente. - Direi tudo a ela. Nunca pense que deixaríamos as crianças esquecê-la.

Ela apertou sua mão, com força, e as perfumosas flores brancas derramaram-se pela escuridão de sua saia.

- Obrigada - ela sussurrou. Ele a ouviu fungar um pouco e ela passou as costas da mão rapidamente pelos olhos. - Obrigada - disse outra vez, com mais força, endireitando-se. - É muito importante. Lembrar-se. Se eu não soubesse disso, não lhe diria.

- Diria... O quê? Suas mãos, pequenas, fortes e cheirando a remédio, envolveram a dele. - Eu não sei o que aconteceu com seu pai - ela disse. - Mas não foi o que lhe contaram.

- Eu estava lá, Roger - ela repetiu, paciente. - Eu li os jornais, eu cuidei de pilotos-aviadores; eu conversei com eles. Spitfires eram aviões pequenos, leves, destinados à defesa. Eles nunca atravessavam o Canal; eles não tinham potência para ir da Inglaterra à Europa e voltar, embora tenham sido usados lá mais tarde.

- Mas... - Qualquer argumento que ele pensara em apresentar - desvio de rota, erro de cálculo - desapareceu. Os pelos de seu braço haviam se eriçado sem que ele notasse.

- Claro, as coisas acontecem - ela disse, como se pudesse ler os pensamentos dele. - Os relatos também são truncados, com o tempo e a distância. Quem quer que tenha contado à sua mãe deve ter se enganado; ela deve ter dito algo que o reverendo compreendeu mal. Tudo isso é possível. Mas durante a Segunda Guerra Mundial eu recebi cartas de Frank; ele escrevia sempre que possível, até o recrutarem para o M16. Depois, passavam-se meses sem que eu tivesse qualquer notícia. Mas pouco antes disso ele me escreveu e mencionou, apenas como um comentário, que ele se deparara com algo estranho nos relatórios que estava lendo. Um Spitfire caíra, sofrera um acidente, mas não fora abatido, achavam que foi uma falha do motor, na Nortúmbria, e apesar de não ter pegado fogo, o que era de admirar, não havia o menor sinal do piloto. Nada. E ele de fato mencionou o nome do piloto, porque ele achava que Jeremiah era um nome que carrega a sina da fatalidade.

- Jerry - Roger disse, sentindo os lábios dormentes. - Minha mãe sempre o chamou de Jerry.

- Sim - ela disse, baixinho. - E há círculos de pedras verticais espalhados por toda a Nortúmbria.

- Perto de onde o avião...

- Não sei. - Ele viu o leve movimento quando ela deu de ombros, impotente.

Ele fechou os olhos e respirou fundo, o ar denso com o aroma dos talos quebrados.

- E você está me dizendo isso agora que estamos voltando - ele disse, muito calmamente.

- Venho travando uma batalha comigo mesma há semanas - ela disse, como se pedisse desculpas. - Foi somente há mais ou menos um mês atrás que me lembrei. Eu não penso muito no meu... passado, mas com tudo que vem acontecendo... - Abanou a mão, abrangendo a partida iminente de sua filha, seu genro e seus netos, e as intensas discussões que a cercavam. - Eu só estava pensando na Guerra... e me pergunto se alguém que tenha participado dessa guerra alguma vez pensa nela sem um "G" maiúsculo... e contando a Jamie.

Fora Jamie quem lhe perguntara sobre Frank. Queria saber o papel que ele desempenhara na guerra.

- Ele tem curiosidade sobre Frank - ela disse abruptamente.

- Eu também teria, no lugar dele - Roger respondeu secamente. - Frank não tinha curiosidade sobre ele?

Isso pareceu perturbá-la e ela não respondeu diretamente, mas com firmeza conduziu a conversa de volta aos trilhos, se é que se poderia usar tal palavra para essa conversa, ele pensou.

- De qualquer forma, foi isso que me fez lembrar das cartas de Frank. E eu estava tentando lembrar o que ele me escrevia, quando repentinamente essa frase me veio à mente: de Jeremiah ser um nome que carrega uma certa fatalidade. - Ele a ouviu suspirar.

- Eu não tinha certeza... mas conversei com Jamie e ele disse que eu devia lhe contar. Disse que você tinha o direito de saber... e que você agiria certo ao saber disso.

- Estou lisonjeado - ele disse. Mais arrasado do que lisonjeado. - Então é isso. - As estrelas começavam a aparecer, fracas, acima das montanhas. Não tão brilhantes como as estrelas em Ridge, onde a noite na montanha descia sobre eles como um manto de veludo negro. Já haviam voltado para casa, mas demoravam-se no pátio de entrada, conversando.

- Eu costumava pensar nisso vez por outra: como a viagem no tempo se encaixa no plano divino? Os fatos podem ser mudados? Deveriam ser mudados? Seus pais... eles tentaram mudar a história, tentaram com todos os seus recursos, e não conseguiram. Eu pensei que isso era tudo... e de uma perspectiva presbiteriana. - Deixou um certo humor transparecer em sua voz. - Foi quase um alívio pensar que o passado não podia ser mudado. Não deveria ser possível mudá-lo. Sabe como é, Deus no céu, tudo certo no mundo. Esse tipo de coisa.

- Mas. - Bri segurava a fotocópia dobrada; sacudiu-a para afastar uma mariposa que passava, uma minúscula mancha branca.

- Mas - ele concordou. - Prova de que as coisas podem ser mudadas.

- Conversei com mamãe um pouco sobre isso - Bri disse, após um momento de reflexão. - Ela riu.

- É mesmo? - Roger disse secamente, e ouviu o resfolegar de uma risada de Bri em resposta.

- Não que ela achasse engraçado - ela assegurou-lhe. - Eu perguntei a ela se achava possível que um viajante mudasse as coisas, mudasse o futuro, e ela me disse que sim, era possível, obviamente, porque ela mudava o futuro toda vez que impedia alguém de morrer, alguém que morreria se ela não estivesse ali. Algumas dessas pessoas vieram a ter filhos que não teriam tido, e quem sabia o que esses filhos fariam, que não teriam feito se não tivessem nascido... e foi então que ela riu e disse que era bom que os católicos acreditassem no Mistério e não insistissem em tentar descobrir exatamente como Deus agia, como os protestantes.

- Bem, não sei se eu diria...

- Oh, ela falava de mim?

- Talvez. Não perguntei.

Agora foi a vez dele de rir, embora sua garganta doesse ao fazê-lo. -

Prova - ela disse, pensativamente. Estava sentada no banco perto da porta, dobrando a fotocópia nervosamente em pregas longas. - Não sei. Isso é prova?

- Talvez não para os seus rígidos padrões de engenharia - ele disse. - Mas eu me lembro... e você também. Se tivesse sido apenas eu, então, sim, eu acharia que minha mente havia me enganado. Mas tenho um pouco mais de fé nos seus processos mentais. Está fazendo um aviãozinho de papel com a cópia?

- Não, é... epa. Mandy. - Ela já estava de pé e se afastando antes que ele registrasse o gemido vindo do quarto das crianças em cima, e desapareceu dentro de casa um instante depois, deixando a seu cargo trancar a casa no térreo. Nem sempre se davam ao trabalho de trancar as portas, ninguém nas Highlands o fazia, mas esta noite...

As batidas de seu coração se aceleraram quando uma longa sombra cinza atravessou o caminho como um raio à sua frente. Em seguida, diminuíram, quando ele sorriu. O pequeno Adso, em busca de uma presa. Um menino da vizinhança viera com um cesto de gatinhos alguns meses atrás, tentando arranjar um lar para eles, e Bri ficara com o cinza, de olhos verdes, que lembrava o gato de sua mãe, e lhe dera o mesmo nome. Se arranjassem um cão de guarda, será que o chamariam de Rollo?

- O gato do ministro... - ele disse. O gato do ministro é um gato de caça. - Boa caçada, então - ele acrescentou para a cauda que desaparecia sob o pé de hortênsia e abaixou-se para pegar o papel dobrado do caminho onde Brianna o deixara cair.

Não, não era um aviãozinho de papel. O que era? Um chapéu? Não havia como saber; enfiou o papel no bolso da camisa e entrou em casa.

Encontrou Bri e Mandy na sala da frente, diante da lareira que acabara de ser reanimada. Mandy, reconfortada e tendo tomado leite, já cochilava novamente nos braços de Bri; pestanejou sonolentamente para ele, chupando o dedo.

- Sim, qual foi o problema, então, a leannan? - ele perguntou-lhe suavemente, afastando os cachos dos seus olhos.

- Um pesadelo - Bri disse, a voz cuidadosamente despreocupada. - Alguma coisa do lado de fora, tentando entrar pela janela dela.

Ele e Brianna tinham estado sentados embaixo daquela mesma janela na ocasião, mas ele olhou, como um reflexo, para a janela ao seu lado, que refletia apenas a cena doméstica da qual ele fazia parte. O homem no reflexo parecia preocupado, os ombros arqueados, pronto para lançar-se sobre o inimigo. Levantou-se e cerrou as cortinas.

- Venha - ele disse abruptamente, sentando-se e inclinando-se para pegar Mandy. Ela veio para os braços dele com a lenta amabilidade de um bicho-preguiça, enfiando o polegar molhado em seu ouvido no processo.

Bri foi buscar chocolate quente para eles, retornando com o chocalhar de louças, o cheiro de leite quente e chocolate, e a expressão de alguém que estivera pensando o que dizer a respeito de um assunto difícil.

- Você... quero dizer, considerando-se a natureza do, hã, da dificuldade... você, talvez, chegou a perguntar a Deus? - ela disse, timidamente. - Diretamente?

- Sim, eu pensei nisso - ele assegurou-lhe, dividido entre a contrariedade e o humor diante da pergunta. - E sim, eu realmente perguntei... muitas vezes. Especialmente a caminho de Oxford. Onde encontrei isso. - Balançou a cabeça indicando o pedaço de papel. - O que é isso, afinal? A forma, quero dizer.

- Oh. - Ela pegou a folha e fez as últimas dobras, com habilidade e rapidez, depois a estendeu na palma da mão. Ele franziu a testa por um momento, depois compreendeu o que era. A dobradura chinesa de adivinhação, que as crianças gostavam de fazer; havia quatro bolsos e você colocava os dedos neles e podia abrir a dobradura em diferentes combinações enquanto as perguntas eram feitas, de modo a mostrar as diferentes respostas - Sim, Não, Às vezes, Sempre - escritas na parte interna das dobras.

- Muito apropriado - ele disse.

Ficaram quietos por um instante, tomando chocolate quente em um silêncio que se equilibrava precariamente na borda da pergunta.

- A Confissão de Westminster também diz: Somente Deus é o Senhor da consciência. Eu farei minha paz com isso - disse serenamente, por fim - ou não farei. Eu disse ao dr. Weatherspoon que parecia um pouco estranho ter um assistente de coro que não podia cantar. Ele apenas sorriu e disse que queria que eu aceitasse o emprego para me manter no rebanho enquanto estivesse considerando as coisas.como ele disse. Provavelmente, com receio que eu fosse pular fora do barco e partir para Roma - ele acrescentou, com uma tentativa de fazer graça.

- Isso é bom - ela disse suavemente, sem levantar os olhos das profundezas do chocolate que não estava bebendo.

Mais silêncio. E a sombra de Jerry Mackenzie, RAF, veio sentar-se junto à lareira em seu casaco de couro de piloto, observando a luz do fogo brincar nos cabelos negros de sua neta.

- Então, você... Ele pôde ouvir o estalido de sua língua ao desgrudar da boca seca. - Você vai olhar? Ver se pode descobrir para onde seu pai foi? Onde ele poderia... estar?

Onde ele poderia estar. Aqui, lá, depois, agora? Seu coração deu uma súbita guinada, ao pensar no vagabundo que ficara na torre. Meu Deus... não. Não podia ser. Nenhuma razão para pensar desse modo, nenhuma. Somente a vontade.

Ele pensara muito nisso, a caminho de Oxford, entre uma prece e outra. O que ele diria, o que perguntaria, se tivesse a oportunidade. Queria perguntar tudo, dizer tudo - mas na verdade existia apenas uma coisa a dizer a seu pai, e era roncar em seus braços como um abelhão bêbado.

- Não. - Mandy remexeu-se em seu sono, emitiu um pequeno arroto e aconchegou-se novamente contra seu peito. Ele não levantou a cabeça, mas manteve os olhos fixos no escuro labirinto de seus cachos. - Eu não poderia arriscar que meus próprios filhos perdessem o pai. - Sua voz quase desaparecera; sentiu as cordas vocais rangerem como engrenagens para forçar as palavras a saírem.

- É importante demais. Você não se esquece de ter tido um pai. Os olhos de Bri desviaram-se para o lado, o azul não mais do que uma centelha à luz do fogo.

- Eu pensei... você era tão pequeno. Então, você se lembra mesmo de seu pai?

Roger sacudiu a cabeça, as câmaras de seu coração contraindo-se, agarrando o vazio.

- Não - ele disse suavemente, e abaixou a cabeça, respirando o perfume dos cabelos de sua filha. - Eu me lembro do seu.

 

                     BORBOLETA

Wilmington, colônia da Carolina do Norte 3 de maio de 1777

pude ver imediatamente que Jamie andara sonhando outra vez. Seu rosto tinha uma expressão desfocada, interiorizada, como se ele visse outra coisa que não o chouriço frito em seu prato.

Vê-lo assim me dava uma vontade premente de lhe perguntar o que ele vira - vontade imediatamente reprimida, por medo de que se eu perguntasse muito cedo ele pudesse perder parte do sonho. Também, verdade seja dita, isso me dava uma grande inveja. Eu daria qualquer coisa para ver o que ele via, quer fosse real ou não. Isso não importava, na realidade - era conexão, e os terminais nervosos cortados, que haviam me ligado à minha família desaparecida, acendiam-se e queimavam como cabos elétricos em curto-circuito quando eu via aquela expressão em seu rosto.

Eu não podia aguentar ficar sem saber o que ele sonhara, embora, como em geral acontece com os sonhos, raramente fosse descomplicado.

- Andou sonhando com eles, não foi? - eu disse, depois que a criada que servia as mesas se afastou. Havíamos acordado tarde, cansados da longa viagem para Wilmington no dia anterior, e éramos os únicos hóspedes na pequena sala de refeições da estalagem.

Ele olhou para mim e balançou a cabeça devagar, uma pequena ruga entre as sobrancelhas. Isso me deixou inquieta; os sonhos que ele tinha de vez em quando com Bri ou as crianças normalmente o deixavam feliz e tranquilo.

- O que foi? - perguntei. - O que aconteceu? Ele deu de ombros, ainda franzindo o cenho.

- Nada, Sassenach. Vi Jem e a menina... - Um sorriso aflorou em seu rosto ao mencioná-los. - Santo Deus, ela é uma garotinha travessa! Me faz lembrar de você, Sassenach.

Era um duvidoso elogio, da maneira como foi dito, mas senti um grande contentamento diante da ideia. Eu passara horas olhando para Jem e Mandy, memorizando cada pequeno traço ou gesto, tentando extrapolar, imaginar como seriam ao crescer - e eu tinha quase certeza de que Mandy tinha a boca igual à minha. Eu sabia com certeza que ela possuía o mesmo formato dos meus olhos. E meus cabelos, coitada, apesar de serem negros como as asas da graúna.

- O que estavam fazendo? Ele esfregou um dedo entre as sobrancelhas, como se sua testa coçasse.

- Eles estavam do lado de fora - ele disse devagar. - Jem lhe disse para fazer alguma coisa e ela o chutou na canela e saiu correndo, e ele foi atrás dela.

Acho que era primavera. - Sorriu, os olhos fixos no que vira em seu sonho. - Lembro-me das florezinhas, presas nos cabelos dela e espalhadas pelas pedras.

- Que pedras? - perguntei incisivamente.

- Oh. As lápides - ele respondeu, prontamente. - Isso mesmo. Elas estavam brincando entre as lápides na colina atrás de Lallybroch.

Suspirei, feliz. Esse era o terceiro sonho que ele tinha em que os via em Lallybroch. Podia ser apenas uma ilusão, mas eu sabia que isso o deixava tão feliz quanto a mim, sentir que haviam feito de Lallybroch seu lar.

- Podem estar - eu disse. Roger foi lá... quando procurávamos por você. Disse que o lugar estava vazio, à venda. Bri teria dinheiro; podem ter comprado Lallybroch. Eles podem estar lá! - Eu já lhe dissera isso antes, mas ele balançou a cabeça, satisfeito.

- Sim, podem estar - disse, os olhos ainda enternecidos com a lembrança das crianças na colina, correndo entre o capim alto e as lápides cinzentas e antigas que assinalavam o local de repouso de sua família.

- Uma borboleta apareceu com eles - ele disse repentinamente. - Eu havia me esquecido disso. Uma borboleta azul.

- Azul? Há borboletas azuis na Escócia? - Franzi a testa, tentando me lembrar. As borboletas que eu notara tendiam a ser brancas ou amarelas, pensei.

Jamie me deu um olhar de leve exasperação.

- É um sonho, Sassenach. Eu poderia ter borboletas com as asas em xadrez como o meu tartã, se quisesse.

Eu ri, mas não me deixei distrair.

- Sim. Então, o que foi que o incomodou?

Olhou curiosamente para mim.

- Como sabe que fiquei perturbado?

Olhei para ele de cima para baixo - ou tanto quanto me era possível, dada a disparidade de alturas.

- Você pode não ter um rosto transparente, mas estou casada com você há mais de trinta anos.

Ele deixou passar sem comentários o fato de eu não estar com ele por vinte desses anos, e apenas sorriu.

- Sim. Bem, na verdade, não foi nada. Só que elas entraram na torre.

- Na torre? - eu disse, sem firmeza. A torre antiga que dava nome a Lallybroch de fato ficava na colina atrás da casa, sua sombra passando diariamente pelo cemitério como a marcha vagarosa de um gigantesco relógio do sol. Jamie e eu havíamos subido lá várias vezes à noite em nossos primeiros dias em Lallybroch, para nos sentarmos no banco que ficava junto à parede da torre e ficarmos distantes do burburinho da casa, apreciando a vista tranquila da propriedade e suas terras espalhando-se brancas e verdes abaixo de nós, suave à luz do crepúsculo.

A pequena ruga voltara entre suas sobrancelhas.

- A torre - ele repetiu, olhando para mim, indefeso. - Não sei o que era. Só que eu não queria que elas entrassem. Era como... como se houvesse alguma coisa lá dentro. À espera. E eu não gostei nem um pouco disso.

 

                                                         CORSÁRIO DE GUERRA

 

                   CORRESPONDÊNCIA DO FRONT

3 de outubro de 1776

Ellesmere Para: Lady Dorothea Grey

Cara prima

Escrevo às pressas para alcançar o correio. Estou embarcado, em uma rápida viagem em companhia de outro oficial, a serviço do capitão Richardson, e não sei ao certo por onde andarei no futuro imediato. Pode me escrever aos cuidados de seu irmão Adam; farei todo o possível para me manter em contato com ele.

Executei sua solicitação da melhor maneira que me foi possível e continuarei a seu serviço. Dê minhas lembranças e respeitos a meu pai e aos seus, assim como meu permanente afeto, e não deixe de guardar grande parte deste último para si mesma.

Seu mais obediente, William

3 de outubro de 1776

De Ellesmere para lorde John Grey

Querido pai

Depois de muito pensar, decidi aceitar a proposta do capitão Richardson para acompanhar um oficial superior a uma missão em Quebec, servindo como intérprete para ele, meu francês sendo considerado adequado para a finalidade. O general Howe concordou.

Ainda não conheci o capitão Randall-Isaacs, mas irei me encontrar com ele em Albany na semana que vem. Não sei quando devemos retornar e não sei dizer quais serão as oportunidades que terei lá de escrever, mas ofarei sempre que puder e, enquanto isso, rogo-lhe que pense em mim com afeto.

Seu filho, William

Final de outubro de 1776 Quebec

William não sabia ao certo o que pensar do capitão Denys Randall-Isaacs. Aparentemente, ele era apenas o tipo de sujeito afável, comum, encontrável em qualquer regimento: com cerca de trinta anos, um razoável jogador de cartas, sempre pronto a contar uma piada, moreno e de boa aparência, com um rosto franco e confiável. Era também um companheiro de viagem muito agradável, sempre com uma história divertida para contar e um vasto conhecimento de canções e poemas obscenos do pior tipo possível.

O que ele não fazia era falar de si mesmo. O que, na experiência de William, era o que as pessoas melhor sabiam fazer - ou ao menos com mais frequência.

Ele tentara uma pequena investigação por conta própria, apresentando a história um tanto dramática de seu próprio nascimento e recebendo em troca alguns poucos fatos esparsos: o próprio pai de Randall-Isaac, um oficial dos dragões, morrera na campanha das Highlands antes do nascimento de Denys, e sua mãe se casara novamente um ano depois.

- Meu padrasto é judeu - ele disse a William. - Muito rico - acrescentou, com um sorriso irônico.

William balançara a cabeça, afavelmente. - Melhor do que um pobre - ele dissera, parando por aí. Não era muito, em termos de fatos, mas explicava em parte por que Randall-Isaacs estava trabalhando para Richardson em vez de estar perseguindo a fama e a glória com os lanceiros ou com os fuzileiros galeses. O dinheiro podia comprar uma patente, mas não garantia uma recepção calorosa em um regimento, nem o tipo de oportunidade que as conexões familiares e a influência a que se costumava referir delicadamente como "interesses" fariam.

Ocorreu - de passagem - a William perguntar-se exatamente por que ele estava dando as costas às suas próprias conexões e oportunidades substanciais a fim de se engajar nas aventuras sombrias do capitão Richardson, mas descartou essas considerações como uma questão a ser considerada posteriormente.

- Espantoso - Denys murmurou, erguendo os olhos. Haviam freado os cavalos na estrada que levava da margem do St. Lawrence para a cidadela de Quebec; dali, podiam ver a encosta íngreme do penhasco que as tropas de Wolfe haviam escalado, há dezessete anos, para tomar a fortaleza - e Quebec - dos franceses.

- Meu pai fez essa escalada - William disse, tentando soar natural. Randall-Isaacs girou a cabeça abruptamente para ele, atônito.

- É mesmo? Quer dizer, lorde John, ele lutou nas Planícies de Abraham com Wolfe?

- Sim. - William olhou para o rochedo com respeito. Era coberto de pequenas árvores, mas a rocha sedimentar sob elas era xistosa e fragmentária; ele podia ver as fissuras escuras e pontiagudas e as rachaduras quadrangulares através das folhas. A ideia de escalar aquela altura na escuridão, e não somente subindo, mas puxando toda a artilharia pelo penhasco acima com eles...!

- Ele disse que a batalha terminou quase tão logo começou. Uma única saraivada. Mas a subida para o campo de batalha foi a pior coisa que ele já fez.

Randall-Isaacs grunhiu respeitosamente e parou por um instante antes de retomar as rédeas.

- Você disse que seu pai conhece sir Guy? - ele perguntou. - Ele certamente vai gostar de ouvir a história.

William olhou para seu companheiro. Na verdade, ele não havia dito que lorde John conhecia sir Guy Carleton, o comandante em chefe para a América do Norte - embora conhecesse. Seu pai conhecia todo mundo. E com este pensamento simples percebeu de repente qual era sua verdadeira função naquela expedição. Ele era o cartão de visita de Randall-Isaacs.

Era verdade que ele falava francês muito bem - tinha facilidade em aprender línguas - e que o francês de Randall-Isaacs era rudimentar. Richardson provavelmente estava dizendo a verdade em relação a isso; é sempre melhor ter um intérprete em quem pode confiar. Mas, apesar de Randall-Isaacs ter demonstrado um lisonjeiro interesse em William, William percebeu ex post facto que Randall-Isaacs estava muito mais especificamente interessado em lorde John: os pontos principais de sua carreira, onde ele servira, com quem ou sob o comando de quem ele servira, quem ele conhecia.

Já acontecera duas vezes. Haviam visitado os comandantes de Fort Saintean e Fort Chambly, e nas duas ocasiões Randall-Isaacs apresentara suas credenciais, mencionando de maneira casual que William era filho do lorde John Grey. Depois do que, as boas-vindas oficiais se animaram imediatamente, passando a uma longa noite de conversa e reminiscências, abastecidas por um bom conhaque, durante a qual - William agora percebia - ele e os comandantes mantiveram toda a conversa. E Randall-Isaacs permanecera ouvindo, o rosto bonito e afogueado brilhando com um interesse lisonjeiro.

Hum, William pensou. Tendo descoberto isso, não sabia ao certo como se sentia. Por um lado, estava satisfeito por ter deduzido o que estava acontecendo. Por outro, estava menos satisfeito em pensar que ele era desejável principalmente por suas ligações, em vez das próprias virtudes.

Bem, era útil, ainda que humilhante, saber. O que ele não sabia era qual o verdadeiro papel de Randall-Isaacs. Estaria ele apenas coletando informações para Richardson? Ou teria outras incumbências não reveladas? Várias vezes, Randall-Isaacs o deixara por sua própria conta, dizendo descontraidamente que tinha um assunto particular a resolver e para o qual achava que seu próprio francês era suficiente.

Eles estavam, segundo as instruções muito limitadas que o capitão Richardson lhe dera, avaliando os sentimentos dos habitants - os colonos franceses - e dos colonos ingleses em Quebec, com um olho em apoio futuro, no caso de incursão dos rebeldes americanos ou tentativas de ameaças e aliciamentos por parte do Congresso Continental.

Tais sentimentos até agora pareciam claros, ainda que não o que William esperava. Os colonos franceses na região simpatizavam com sir Guy, que - como governador-geral da América do Norte - aprovara a Lei de Quebec, que legalizava o catolicismo e protegia o comércio dos católicos franceses. Os ingleses ficaram contrariados com essa lei, por razões óbvias, e se recusaram en masse a atender aos apelos de sir Guy pela ajuda de milícias durante o ataque americano à cidade no inverno anterior.

- Deviam estar loucos - ele observou a Randall-Isaacs, quando atravessavam a planície aberta diante da cidadela. - Os americanos que tentaram isso aqui no ano passado, quero dizer.

Haviam atingido o cume do penhasco e a cidadela erguia-se da planície diante deles, pacífica e sólida - muito sólida - ao sol do outono. O dia estava quente e belo, e o ar vívido com os aromas intensos, naturais, do rio e da floresta. Ele nunca vira floresta igual. As árvores que debruavam a planície e cresciam ao longo das margens do St. Lawrence formavam uma floresta densa e impenetrável, agora flamejante de ouro e vermelho. Visto contra a escuridão da água e o incrível azul-escuro do vasto céu de outubro, o cenário inteiro lhe dava a sensação irreal de cavalgar por uma pintura medieval, resplandecente de folha de ouro e ardente com um sentimento de fervor sobrenatural.

Mas, além da beleza, ele sentia a crueza do lugar. Sentia-a com uma clareza que fazia seus ossos parecerem transparentes. Os dias ainda eram quentes, mas o frio do inverno era um dente afiado que mordia com mais força ao crepúsculo de cada dia, e ele não precisava de quase nenhuma imaginação para ver aquela planície dali a algumas semanas, coberta com um manto de gelo, branca e inóspita para qualquer tipo de vida. Com uma viagem de mais de trezentos quilômetros atrás dele e uma compreensão imediata dos problemas de suprimentos para dois cavaleiros na acidentada jornada para o norte com tempo bom, combinadas com o que sabia dos rigores de suprir um exército no mau tempo...

- Se não fossem loucos, não estariam fazendo o que estão fazendo. - Randall-Isaacs interrompeu seus pensamentos, ele, também, parando por um instante para avaliar a perspectiva com o olhar de um soldado. - Mas foi o coronel Arnold quem os liderou até aqui. Aquele homem sem dúvida é louco. Mas um excelente soldado. - Sua voz deixou transparecer a admiração que sentia, e William olhou para ele com curiosidade.

- Você o conhece? - perguntou descontraidamente, e Randall-Isaacs riu.

- Não de falar com ele - respondeu. - Vamos. - Ele esporeou o cavalo e voltaram-se para o portão da cidadela. No entanto, ele exibia uma expressão um tanto desdenhosa, como se revolvesse uma lembrança e, após alguns instantes, falou novamente. - Ele teria conseguido, Arnold, quero dizer, tomado a cidade. Sir Guy não tinha nenhuma tropa, e tivesse Arnold chegado aqui quando planejava, e com a pólvora e a munição que precisava... bem, a história teria sido diferente. Mas ele escolheu o homem errado para consultar.

- O que quer dizer com isso? Randall-Isaacs pareceu repentinamente cauteloso, mas depois pareceu dar de ombros internamente, como se dissesse: "Que diferença faz?" Ele estava de bom humor, já antevendo uma refeição quente, uma cama macia e lençóis limpos, após semanas de acampamento em florestas escuras.

- Ele não podia vir por terra - ele disse. - Buscando uma forma de transportar um exército e suas necessidades para o norte pela água, Arnold começara a procurar alguém que já tivesse feito a arriscada viagem, e conhecesse os rios e os meios de transporte - Randall-Isaacs acrescentou. - E encontrou alguém: Samuel Goodwin. - Mas nunca lhe ocorreu que Goodwin pudesse ser um legalista. - Randall-Isaacs sacudiu a cabeça diante de tal ingenuidade. - Goodwin me procurou e perguntou o que deveria fazer. Assim, eu lhe disse, e ele deu seus mapas a Arnold... cuidadosamente refeitos para servirem a seu propósito.

E de fato serviram a seu propósito. Ao adulterar as distâncias, remover pontos de referência, indicar passagens onde não havia nenhuma e fornecer mapas que não passavam de puros produtos da imaginação, a orientação do sr. Goodwin conseguiu enganar e atrair as forças de Arnold para dentro da região selvagem, obrigando-os a carregar seus navios e suprimentos por terra dias a fio e, por fim, atrasando-os tanto que o inverno alcançou-os, bem perto da cidade de Quebec.

Randall-Isaacs riu, embora houvesse um tom de remorso em sua risada, William pensou.

- Fiquei surpreso quando me disseram que ele conseguira chegar apesar de tudo. Além de tudo o mais, ele fora enganado pelos carpinteiros que fizeram seus navios; acredito que isso tenha sido pura incompetência, não política, embora hoje em dia às vezes seja difícil dizer. Feitos com madeiras verdes e mal-acabados. Mais da metade deles desmoronou e afundou dias depois do lançamento. Deve ter sido um inferno absoluto - Randall-Isaacs disse, como se falasse consigo mesmo. Endireitou-se na sela, então, sacudindo a cabeça. - Mas eles o seguiram. Todos os seus homens. Apenas uma companhia deu meia-volta. Famintos, semidespidos, enregelados... eles o seguiram - repetiu, maravilhado. Olhou de soslaio para William, sorrindo. - Acha que seus homens o seguiriam, tenente? Em tais condições?

- Espero ter mais bom-senso do que conduzi-los a tais condições - William retrucou secamente. - O que aconteceu a Arnold no final? Ele foi capturado?

- Não - Randall-Isaacs disse pensativamente, erguendo a mão para cumprimentar os guardas ao portão da cidadela. - Não, não foi. Quanto ao que aconteceu a ele, só Deus sabe. Ou Deus e sir Guy. Espero que este último possa nos dizer.

 

                     JOYEUX NE TLI

Londres 24 de dezembro de 1776

As madames mais prósperas eram criaturas robustas, lorde John refletiu. Quer fosse apenas a satisfação de apetites negados em seus primeiros anos ou um escudo contra a possibilidade de um retorno aos patamares mais baixos de sua ocupação, quase todas elas eram bem carnudas.

Não Nessie. Ele podia ver a sombra de seu corpo através da musselina fina de sua combinação - ele havia inadvertidamente tirado-a da cama - enquanto ela ficava diante do fogo vestindo seu roupão. Não tinha nem um grama a mais sobre sua estrutura magra do que tinha quando a vira pela primeira vez, então - segundo ela - com quatorze anos, embora ele suspeitasse na época que ela devesse ter onze.

Isso lhe daria agora trinta e poucos anos. Ela ainda parecia ter quatorze. Sorriu diante do pensamento e ela devolveu o sorriso, amarrando o roupão. O sorriso a envelhecia um pouco, pois havia lacunas entre seus dentes, e os restantes eram enegrecidos na raiz. Se ela não era robusta, era porque lhe faltava a capacidade de mastigar; ela adorava açúcar e era capaz de comer uma caixa inteira de violetas cristalizadas ou uma Turkish Delight em questão de minutos, compensando a fome de sua juventude nas Highlands escocesas. Ele lhe trouxera meio quilo de docinhos de frutas secas.

- Acha que qualquer coisa me compra? - ela disse, erguendo uma das sobrancelhas ao receber a caixa lindamente embrulhada das mãos dele.

- Nunca - ele lhe assegurou. - Isto é apenas um pedido de desculpas por ter perturbado seu sono. - Isso era uma improvisação; ele havia, na verdade, esperado encontrá-la trabalhando, sendo mais de dez horas da noite.

- Sim, bem, afinal é noite de Natal - ela disse, respondendo à pergunta subentendida. - Qualquer homem com uma casa para onde voltar está lá agora. - Ela bocejou, retirou sua touca de dormir e passou os dedos pela desgrenhada cabeleira de cachos negros.

- No entanto, você parece ter uma celebração especial - ele observou. Uma cantoria distante vinha de dois andares abaixo e a sala de visitas lhe parecera bem cheia quando ele passou.

- Oh, sim. Os desesperados. Eu os deixo a cargo de Maybelle; não gosto de vê-los, as pobres criaturas. Dá pena. Eles não querem realmente uma mulher, os que vêm na Noite de Natal querem apenas companhia, ficar sentados junto a uma lareira com outras pessoas. - Abanou a mão e sentou-se, gulosamente desatando a fita de seu presente.

- Então, deixe-me lhe desejar um feliz Natal - ele disse, observando-a com divertida afeição. Ela jogou um dos docinhos na boca, fechou os olhos e suspirou em êxtase.

- Huum - gemeu, sem parar para engolir, antes de inserir na boca e mastigar outro doce. Pela entonação cordial desse gemido, ele presumiu que ela estivesse retribuindo o sentimento.

Ele sabia que era noite de Natal, é claro, mas de certa forma tirara essa ideia da cabeça durante as horas longas e frias do dia. Chovera torrencialmente o dia inteiro, fustigantes agulhas de uma chuva gélida, de vez em quando intensificada por irritantes rajadas de granizo, e ele ficara enregelado desde antes do amanhecer, quando o criado de Minnie o despertara, convocando-o à Casa Argus.

O quarto de Nessie era pequeno, mas elegante, e cheirava confortavelmente a sono. Sua cama era imensa, com cortinas de lã no padrão xadrez preto e cor-de-rosa "Rainha Charlotte", muito em voga. Cansado, com frio e faminto como estava, sentia a atração desta caverna aconchegante e convidativa, com seus numerosos travesseiros de penas de ganso, colchas e lençóis limpos e macios. O que ela pensaria, ele se perguntou, se lhe pedisse para compartilhar sua cama esta noite?

- "Uma lareira junto à qual se sentar e pessoas com as quais se sentar junto a ela." - Bem, ele tinha isso, ao menos no momento.

Grey percebeu um zumbido baixo, algo como uma mosca varejeira presa, atirando-se contra uma vidraça. Olhando na direção do ruído, notou que o que ele pensara ser meramente uma pilha de roupas de cama amontoadas na verdade continha um corpo; a borla elaboradamente ornamentada com passamanarias de uma touca de dormir estendia-se pelo travesseiro.

- Ah, é só o Rab - disse uma sorridente voz escocesa, e ele virou-se, deparando-se com ela rindo para ele. - Gostaria de um ménage à trois?

Compreendeu, enquanto enrubescia, que gostava dela não só por ela mesma, ou por sua habilidade como espiã, mas porque possuía uma inigualável capacidade de desconcertá-lo. Achava que ela não conhecia exatamente os verdadeiros desejos dele, mas ela era prostituta desde criança e possuía uma compreensão sagaz dos desejos de praticamente todo mundo, quer conscientes ou não.

- Oh, creio que não - ele disse educadamente. - Não vou querer perturbar seu marido. - Tentou não pensar nas mãos brutas e coxas duras de Rab MacNab; Rab fora um liteireiro, antes de seu casamento com Nessie e o sucesso do bordel que possuíam. Certamente, ele não...?

- Você não conseguiria acordar o tolo nem com um tiro de canhão - ela disse, com um olhar afetuoso para a cama. No entanto, levantou-se e cerrou as cortinas do dossel, abafando os roncos de Rab. - Por falar em canhão - ela acrescentou, inclinando-se para espreitar Grey enquanto retornava à sua poltrona - , você mesmo parece que esteve na guerra. Vamos, tome uma dose e eu mandarei vir um prato quente. - Indicou com um sinal da cabeça a garrafa de bebida e os copos na mesinha de cabeceira e estendeu a mão para a corda da sineta.

- Não, obrigado. Não tenho muito tempo. Mas tomarei uma bebida para espantar o frio, obrigado.

O uísque - ela não tomava nenhuma outra bebida, desdenhando o gim como uma bebida de mendigos e considerando o vinho bom, porém insuficiente para os seus propósitos - o aqueceu, e seu casaco molhado começara a desprender vapor no calor do fogo da lareira.

- Você não tem muito tempo - ela disse. - De que se trata, então?

- Estou de partida para a França - ele disse. - Pela manhã.

As sobrancelhas dela se ergueram e ela colocou outro doce na boca.

- E ão vai assar o Naal com sua amília?

- Não fale com a boca cheia, minha cara - ele disse, sorrindo ainda assim. - Meu irmão sofreu um grave ataque ontem à noite. Seu coração, segundo o médico, mas duvido que ele saiba realmente. Mas o tradicional almoço de Natal provavelmente não vai ser grande coisa.

- Lamento saber - Nessie disse, com mais clareza. Limpou o açúcar do canto da boca, o cenho franzido com um ar de preocupação. - Ele é um bom homem.

- Sim, ele... - Parou, fitando-a. - Você conheceu meu irmão? Nessie riu recatadamente, formando duas covinhas no rosto.

- A discrição de uma madame é seu principal capital no negócio - ela cantarolou, obviamente imitando a sabedoria de uma antiga patroa.

- Diz a mulher que espiona para mim. - Ele tentava visualizar Hal... ou talvez não visualizar Hal... pois certamente ele não... para poupar Minnie de suas necessidades, talvez? Mas ele achava...

- Sim, bem, espionagem não é a mesma coisa de simples bisbilhotice, hein? Eu quero chá, mesmo que você não queira. Conversar dá sede. - Ela tocou a campainha chamando o criado, em seguida virou-se, uma das sobrancelhas erguida. - Seu irmão está morrendo e você vai para a França? Deve ser muito urgente, então.

- Ele não está morrendo - Grey disse, incisivamente. A ideia abriu o tapete a seus pés, um grande abismo esperando para puxá-lo para dentro. Desviou o olhar com determinação.

- Ele... ele teve um choque. Ele recebeu a notícia de que seu filho mais novo foi ferido na América e capturado.

Os olhos dela se arregalaram diante disso e ela agarrou o roupão com mais força junto aos seios inexistentes.

- O mais novo. Seria... Henry, não?

- Sim. E como, com os diabos, você sabe disso? - quis saber, a agitação alterando sua voz. Um sorriso cheio de lacunas brilhou para ele, mas logo desapareceu quando ela percebeu a gravidade de sua aflição.

- Um dos criados do lorde é um cliente regular aqui - ela disse simplesmente. - Quintas-feiras; é seu dia de folga.

- Oh. - Ele permaneceu imóvel, as mãos nos joelhos, tentando de algum modo controlar seus pensamentos, e seus sentimentos. - É que... compreendo.

- Já é tarde no ano para estar recebendo notícias da América, não? - Ela olhou para a janela, coberta em camadas de renda e veludo vermelho, incapazes de obliterar o som de uma chuva fustigante. - Chegou algum navio atrasado?

- Sim. Desviado da rota pelos ventos e arrastado até Brest com o mastro principal avariado. A mensagem foi trazida por terra.

- E é para Brest que você está indo, então?

- Não, não é. Uma batida suave veio da porta antes que ela pudesse fazer mais perguntas. Ela foi atender, deixando entrar o criado, que trazia - sem que lhe pedissem, Grey notou - uma bandeja com xícaras e guloseimas para o chá, inclusive um bolo fartamente confeitado.

Revolveu a ideia mentalmente. Poderia lhe contar? Mas ela não estava brincando quando falara de discrição, ele sabia. A seu próprio modo, ela guardava tantos segredos - e tão bem - quanto ele.

- É por causa de William - ele disse, quando ela fechou a porta e voltou-se novamente para ele•

Ele sabia que a aurora estava próxima, pela dor em seus ossos e o leve repique do seu relógio de bolso. Não havia nenhum sinal disso no céu. Nuvens da cor da fuligem de uma chaminé tocavam os telhados de Londres e as ruas estavam mais escuras do que à meia-noite, todas as lanternas já tendo sido apagadas há muito tempo, o fogo de todas as lareiras se extinguindo.

Ele ficara acordado a noite inteira. Havia muito a fazer; devia ir para casa e dormir algumas horas antes de pegar a carruagem de Dover. Mas não podia partir sem ver Hal mais uma vez. Só para se tranquilizar.

Havia luzes nas janelas da Casa Argus. Mesmo com as cortinas cerradas, uma leve claridade se refletia nas pedras molhadas do pavimento do lado de fora. Nevava pesadamente, mas a neve ainda não se acumulava no chão. Havia uma boa chance de a carruagem ficar retida - certamente andaria bem devagar, atolada nas ruas lamacentas.

Por falar em carruagens - seu coração deu um salto ao ver uma carruagem surrada parada na porte-cochère, e que ele achava que pertencia ao médico.

Sua batida na porta foi atendida imediatamente por um criado parcialmente vestido, a camisa de dormir enfiada às pressas nas calças. O rosto ansioso do sujeito relaxou um pouco quando reconheceu Grey.

- O duque... - Passou mal à noite, milorde, mas está melhor agora - o sujeito, Arthur, esse era seu nome, interrompeu-o, recuando um passo para deixá-lo entrar e tirando a capa de seus ombros, sacudindo a neve.

Ele balançou a cabeça e dirigiu-se às escadas, sem esperar ser anunciado. Encontrou o médico descendo as escadas - um homem magro e grisalho, facilmente identificável pelo casaco preto e malcheiroso e pela valise na mão.

- Como ele está? - perguntou, segurando o sujeito pela manga ao chegar ao patamar. O médico recuou, ultrajado, mas depois viu a expressão de seu rosto na claridade do candeeiro e, reconhecendo sua semelhança com Hal, apaziguou-se.

- Um pouco melhor, milorde. Eu o sangrei, oitenta e cinco mililitros, e sua respiração tornou-se mais fácil.

Grey soltou a manga e retomou as escadas, o próprio peito apertado. A porta para os aposentos de Hal estava aberta e ele entrou imediatamente, surpreendendo uma criada que levava um urinol para fora, tampado e depois delicadamente envolvido em um pano lindamente bordado com flores grandes e coloridas. Passou por ela, balançando a cabeça em um sinal de desculpas, e entrou no quarto de Hal.

Ele estava sentado na cama, recostado em uma larga almofada, travesseiros calçando-o por trás; parecia quase morto. Minnie estava a seu lado, o afável rosto redondo desolado de ansiedade e falta de sono.

- Vejo que Sua Graça até caga com elegância - Grey observou, sentando-se do outro lado da cama.

Hal abriu uma pálpebra cinzenta e fitou-o. O rosto podia ser o de um esqueleto, mas o olho penetrante, claro, era do Hal vivo, e Grey sentiu o peito encher-se de alívio.

- Oh, o pano? - Hal disse, fracamente, mas com clareza. - É a Dottie. Ela se recusa a sair, mesmo eu tendo lhe assegurado que, se pretendesse morrer, eu certamente esperaria ela voltar para fazer isso. - Parou para respirar, com um ligeiro chiado, depois tossiu e continuou: - Ela não é do tipo, graças a Deus, de se deixar levar por devoções religiosas, não possui nenhum talento musical e sua vitalidade é tamanha que chega a ser uma ameaça para o pessoal da cozinha. Assim, Minnie a colocou para bordar, como uma forma de válvula de escape para suas formidáveis energias. Ela puxou a mamãe, você sabe.

- Sinto muito, John - Minnie disse-lhe, desculpando-se. - Eu a mandei ir dormir, mas vi que sua vela ainda está acesa. Acredito que ela esteja trabalhando no momento em um par de chinelos para você.

Grey achava que chinelos eram provavelmente inofensivos, qualquer que fosse o motivo que ela tivesse escolhido, e disse isso.

- Desde que ela não esteja bordando um par de cuecas para mim. Os nós, você sabe...

Isso fez Hal rir, o que por sua vez o fez tossir assustadoramente, embora isso tenha levado um pouco de cor às suas faces.

- Então você não está morrendo? - Grey perguntou.

- Não - Hal respondeu laconicamente.

- Ótimo - Grey disse, sorrindo para seu irmão. - Não o faça. Hal pestanejou e, em seguida, lembrando-se da ocasião em que ele dissera exatamente isso para Grey, sorriu também.

- Farei o melhor possível - disse secamente e, depois, virando-se, colocou a mão afetuosamente sobre a de Minnie. - Minha querida...

- Vou mandar trazer chá - ela disse, levantando-se imediatamente. - E um bom café da manhã quente - acrescentou, após um olhar escrutinador para Grey. Ela fechou a porta delicadamente ao sair.

- Do que se trata? - Hal ergueu-se mais nos travesseiros, sem se incomodar com o pano sujo de sangue enrolado em um dos braços. - Tem notícias?

- Muito poucas. Mas um grande número de perguntas preocupantes. A notícia da captura de Henry fora incluída como um bilhete para Hal dentro de uma carta endereçada a ele próprio, de um de seus contatos no mundo da espionagem, e trazia uma resposta às suas indagações relativas às conexões francesas de um tal de Percival Beauchamp. Mas ele não quis discutir isso com Hal enquanto não se encontrasse com Nessie. De qualquer forma, Hal não estivera em condições para tais discussões.

- Nenhuma conexão conhecida entre Beauchamp e Vergennes - citando o ministro francês das Relações Exteriores - , mas ele tem sido visto com frequência na companhia de Beaumarchais.

Isso provocou novo acesso de tosse.

- Não é mesmo de admirar - Hal observou roucamente, ao se recobrar. - Um interesse mútuo em caça, sem dúvida? - Essa última observação era uma referência sarcástica, tanto à aversão de Percy a esportes sangrentos quanto ao título de Beaumarchais de "Tenente Geral de Caça", a ele conferido há alguns anos pelo falecido rei.

- E - Grey continuou, ignorando o comentário - com um tal de Silas Deane.

Hal franziu a testa.

- Quem?

- Um comerciante americano. Em Paris, em nome do Congresso Americano. Mais exatamente, ele se esgueira ao redor de Beaumarchais. E ele tem sido visto conversando com Vergennes.

- Oh, ele. - Hal abanou uma das mãos. - Ouvi falar dele. Vagamente.

- Ouviu falar de uma companhia denominada Rodrigue Hortalez et Cie? - Não. Soa espanhol, não é? - Ou português. Meu informante tinha apenas o nome e um boato de que Beaumarchais tem algo a ver com isso.

Hal grunhiu e recostou-se.

- Beaumarchais está metido em muita coisa. Fabrica relógios, pelo amor de Deus, como se escrever peças teatrais já não fosse suficiente. Beauchamp tem alguma coisa a ver com essa companhia?

- Não se sabe. Tudo não passa de associações vagas neste ponto, nada além disso. Pedi tudo que fosse possível obter que tivesse qualquer coisa - qualquer coisa não de conhecimento geral, quero dizer - a ver com Beauchamp ou com os americanos; isso foi o que voltou.

Os dedos esbeltos de Hal tamborilavam sem sossego na coberta.

- Seu informante sabe o que essa companhia espanhola faz?

- Comércio, o que mais? - Grey respondeu ironicamente, e Hal resfolegou com desprezo.

- Se fossem banqueiros também, eu imaginaria que você poderia ter alguma coisa.

- Aliás, talvez tenha. Mas o único meio de descobrir, eu acho, é ir e cutucar a onça com vara curta. Vou pegar a carruagem para Dover em - apertou os olhos para o relógio de carrilhão sobre o consolo da lareira, obscurecido pela penumbra - três horas.

- Ah. A voz soou neutra, mas Grey conhecia seu irmão realmente muito bem. - Estarei de volta da França no mais tardar no final de março - ele disse, acrescentando afavelmente: - E estarei no primeiro navio que partir para as colônias no ano-novo, Hal. E trarei Henry de volta. - Vivo ou morto. Nenhum dos dois pronunciou as palavras; não era necessário.

- Estarei aqui quando o fizer - Hal disse finalmente, com serenidade. Grey colocou a mão sobre a do irmão, que se virou imediatamente para segurar a sua. Podia parecer frágil, mas sentiu-se encorajado pela força e determinação do aperto da mão de Hal. Permaneceram em silêncio, as mãos unidas, até a porta se abrir e Arthur - agora completamente vestido - entrar com uma bandeja do tamanho de uma mesa de carteado, abarrotada de bacon, salsichas, rins, peixe frito, ovos mexidos na manteiga, cogumelos grelhados e tomates, torradas, geleia de laranja, um enorme bule de chá fumegante e aromático, tigelas de açúcar e de leite - e uma vasilha coberta que ele colocou cerimoniosamente diante de Hal, verificando-se depois que continha uma espécie de horrível papa rala.

Arthur fez uma mesura e saiu, deixando Grey se perguntando se ele seria o criado que ia à casa de Nessie às quintas-feiras. Virou-se novamente e deparou-se com Hal se servindo generosamente dos rins de Grey.

- Você não devia estar comendo sua papa? - Grey perguntou.

- Não me diga que você está determinado a me levar mais depressa para o túmulo também - Hal disse, fechando os olhos em breve êxtase enquanto mastigava. - Como alguém pode esperar que eu me recupere sendo alimentado com coisas como mingau e bolachas... - Bufando de raiva, espetou outro rim.

- É mesmo o seu coração, você acha? - Grey perguntou.

Hal sacudiu a cabeça.

- Eu realmente acho que não - ele disse, em tom neutro. - Eu fico ouvindo-o, sabe, depois do primeiro ataque. Continua batendo como sempre. - Parou para tocar o peito, o garfo suspenso no ar. - Não dói lá. Certamente, doeria, não é?

Grey deu de ombros.

- Que tipo de ataque foi, então?

Hal engoliu o restante do rim e estendeu a mão para uma torrada amanteigada, pegando a faca da geleia de laranja com a outra.

- Não conseguia respirar - ele disse, descontraidamente. - Fui ficando azul, esse tipo de coisa.

- Oh. Bem, então.

- Me sinto muito bem agora - Hal disse, parecendo ligeiramente surpreso.

- É mesmo? - Grey disse, sorrindo. Teve um momento de dúvida, mas afinal de contas... estava indo para o exterior e coisas inesperadas não só podiam acontecer, mas geralmente aconteciam. Era melhor não deixar a questão pendente, para o caso de alguma coisa desagradável ocorrer a um dos dois antes de se encontrarem outra vez.

- Muito bem, então... Se você tem certeza de que um pequeno choque não vai matá-lo, permita-me contar-lhe uma coisa.

Suas novidades com respeito à tendresse existente entre Dottie e William fizeram Hal pestanejar e parar de comer por um instante, mas após um momento de reflexão ele balançou a cabeça e retomou a mastigação.

- Está bem - ele disse.

- Está bem? - Grey repetiu. - Você não tem nenhuma objeção?

- Eu iria ficar mal com você se tivesse, não é?

- Se espera que eu acredite que uma preocupação com meus sentimentos iria de alguma forma afetar suas próprias ações, sua doença de fato o afetou muito.

Hal esboçou um largo sorriso e tomou chá.

- Não - ele disse, abaixando a xícara vazia. - Isso não. É só que - reclinou-se para trás, as mãos entrelaçadas sobre sua barriga ligeiramente protuberante, e olhou diretamente para Grey. - eu podia morrer. Não pretendo, não acho que vou. Mas podia. Eu morreria mais tranquilo se soubesse que ela encontrou alguém que a protegeria e cuidaria bem dela.

- Fico lisonjeado que ache que William o faria - Grey disse secamente, embora na realidade estivesse imensamente satisfeito.

- Claro que ele o faria - Hal disse, de maneira pragmática. - É seu filho, não é?

Um sino de igreja começou a tocar, em algum lugar distante, fazendo Grey se lembrar.

- Oh! - exclamou. - Feliz Natal! Hal pareceu igualmente surpreso, mas depois sorriu.

- Para você também.

Grey ainda estava repleto de sentimentos natalinos quando partiu para Dover - literalmente repleto, já que os bolsos de seu sobretudo estavam atulhados de doces e pequenos presentes e ele carregava sob o braço um embrulho contendo o infame par de chinelos, fartamente bordado com ninfeias e sapos verdes, em fio de lã. Ele abraçara Dottie quando ela lhe deu o presente, conseguindo sussurrar em seu ouvido que sua incumbência estava cumprida. Ela o beijou com tanto vigor que ele ainda podia sentir o beijo na face e esfregou distraidamente o local.

Precisava escrever para William imediatamente - embora na realidade não houvesse nenhuma pressa em particular, já que uma carta não podia chegar mais rápido do que se ele próprio fosse entregá-la. Fora sincero com Hal; assim que um navio pudesse içar velas na primavera, ele estaria nele. Só esperava chegar a tempo.

E não apenas por Henry. As estradas estavam tão precárias quanto ele esperava e a barca de Calais estava ainda pior, mas ele estava alheio ao frio e ao desconforto da viagem. Com sua ansiedade em relação a Hal em parte aplacada, estava livre para pensar no que Nessie lhe dissera - uma informação que ele pensara em contar a Hal, mas que não contara, não querendo sobrecarregar a mente de seu irmão, podendo vir a prejudicar sua recuperação.

- Seu francês não veio aqui - Nessie lhe dissera, lambendo o açúcar dos dedos. - Mas ia ao Jackson's quando estava na cidade. Mas já foi embora; de volta à França, dizem.

- Jackson's - ele disse devagar, refletindo. Ele próprio não frequentava prostíbulos, salvo o estabelecimento de Nessie, mas certamente conhecia o Jackson's e estivera lá uma ou duas vezes com amigos. Uma casa de prostituição, oferecendo música no térreo, jogo no segundo andar e diversões mais particulares acima. Muito popular entre oficiais militares de médio escalão. Mas não era certamente um lugar que atendesse aos gostos particulares de Percy Beauchamp.

- Compreendo - ele dissera, tomando chá calmamente, sentindo o coração latejar nos ouvidos. - E você já conheceu um oficial chamado Randall-Isaacs? - Essa era a parte da carta que ele não contara a Hal; Denys Randall-Isaacs era um oficial do exército que costumava frequentar a companhia de Beauchamp, tanto na França quanto em Londres, sua informante dissera - e o nome perfurara o coração de Grey como um pingente de gelo.

Podia não passar de coincidência que um homem conhecido por sua associação com Percy Beauchamp tivesse levado William em uma expedição de espionagem a Quebec, mas ele não acreditava nisso.

Nessie levantara a cabeça abruptamente à menção de "Randall-Isaacs", como um cachorro ouvindo barulho no mato.

- Sim, já - ela disse devagar. Havia um grumo de açúcar fino em seu lábio inferior; teve vontade de limpá-lo para ela e, em outras circunstâncias, o teria feito. - Ou ouvi falar dele. É judeu, dizem.

- Judeu? - Isso o surpreendeu. - Claro que não. - Um judeu jamais teria permissão de obter uma patente no exército ou na marinha, não mais que um católico.

Nessie arqueou uma sobrancelha escura para ele.

- Talvez ele não queira que ninguém saiba - ela disse e, lambendo os lábios como um gato, limpou o coágulo de açúcar. - Mas, se não, ele deve se manter longe das meninas, é só o que posso dizer! - Riu animadamente, depois ficou séria, puxando o roupão sobre os ombros e fitando-o, os olhos escuros à luz do fogo.

- Ele também tem alguma coisa a ver com seu rapazinho, o francesinho - ela disse. - Pois uma garota do Jackson's me contou sobre o sujeito judeu e o choque que foi para ela quando ele tirou as calças. Ela disse que se recusou a se deitar com ele, só que o amigo dele, o francesinho, estava lá também, querendo assistir, e quando ele, o francesinho, quero dizer, viu que ela estava se esquivando, ofereceu-lhe o dobro, e ela aceitou. Ela disse que, no final das contas - e nesse ponto ela riu lascivamente para ele, a ponta de sua língua contra os dentes da frente que ainda possuía - , tinha sido melhor do que muitos.

- Melhor do que muitos - ele murmurou distraidamente consigo mesmo, notando apenas superficialmente o olhar desconfiado que lhe lançou o outro único passageiro da barca com resistência suficiente para se manter no convés superior. - Maldição!

A neve caía pesadamente sobre o Canal e agora varria quase horizontalmente, conforme o vento uivante mudava de direção e a barca dava uma guinada de causar tontura e enjoo. O outro passageiro sacudiu-se e desceu, deixando Grey comendo pêssegos ao conhaque com os dedos de um vidro em seu bolso e olhando impassivelmente para a costa da França que se aproximava, apenas vislumbrada através das nuvens baixas.

24 de dezembro de 1776 Cidade de Quebec

Querido papai

Escrevo-lhe de um convento. Não, apresso-me a explicar, um do tipo de Covent Garden, mas um verdadeiro convento romano, administrado pelas irmãs ursulinas.

O capitão Randall-Isaacs e eu chegamos à cidadela no final de outubro, pretendendo visitar sir Guy e descobrir sua opinião sobre os simpatizantes locais da Insurreição americana, mas fomos informados de que sir Guy marchou para Fort Saint-Jean, para lidar pessoalmente com uma deflagração da referida Insurreição, tratando-se aqui de uma batalha naval (ou assim acho que devo chamá-la), que teve lugar no estreito lago Champlain, que se liga ao lago George, o qual talvez você mesmo tenha conhecido quando aqui esteve.

Fui enfaticamente a favor de nos juntarmos a sir Guy, mas o capitão RandallIsaacs ficou relutante por causa da distância envolvida e da época do ano. Na verdade, sua decisão mostrou-se acertada, já que o dia seguinte trouxe uma chuva glacial, que logo deu lugar a uma uivante nevasca, tão severa que escureceu o céu a ponto de não se poder dizer se era noite ou dia, e que soterrou o mundo em neve e gelo em poucas horas. Vendo esse espetáculo da natureza, admito que minha decepção em perder a oportunidade de me unir a sir Guyfoi consideravelmente aliviada.

Na realidade, eu chegaria tarde demais de qualquer modo, já que a batalha ocorreu em 1° de outubro. Somente ficamos sabendo dos detalhes em meados de novembro, quando alguns oficiais alemães do regimento do barão von Riedesel chegaram à cidadela com notícias. É mais provável que você já tenha ouvido descrições mais oficiais e diretas da batalha quando receber esta carta, mas pode haver alguns pormenores de interesse omitidos nas versões oficiais - e, para ser franco, a redação deste relato é o único trabalho disponível para mim no momento, já que recusei um gentil convite da madre superiora para assistir à missa que farão celebrar hoje à meia-noite em observância do Natal. (Os sinos das igrejas da cidade soam a cada quarto de hora, dia e noite. A capela do convento fica logo depois do muro do albergue em que estou hospedado, no andar mais alto, e o sino fica a uns seis metros da minha cabeça quando me deito na cama. Assim, posso lhe informar com toda a certeza que agora são 9:15 da noite.)

Vamos aos pormenores, então: sir Guy ficou alarmado com a tentativa de invasão de Quebec no ano passado, mesmo tendo terminado em total fracasso, e assim resolveu aumentar seu controle sobre a nascente do Hudson, sendo esta a única via possível pela qual mais tumulto poderia vir, as dificuldades de viagem por terra sendo tão severas que impedem qualquer forma de vida senão dos mais determinados (tenho um pequeno vidro de álcool de vinho para presenteá-lo, contendo mutucas medindo quase cinco centímetros de comprimento, assim como uma boa quantidade de carrapatos, estes removidos de minha pessoa com a ajuda de mel, que os sufoca se aplicado generosamente, fazendo com que se soltem).

Apesar de a invasão do inverno passado não ter sido bem-sucedida, os homens do coronel Arnold resolveram negar a sir Guy acesso aos lagos e, assim, afundaram ou incendiaram todos os navios em Fort Saint-Jean conforme batiam em retirada, assim como incendiaram a serraria e o próprio forte.

Depois disso, sir Guy requisitou navios desmontáveis, a lhe serem enviados da Inglaterra (gostaria de tê-los visto!) e, com a chegada de dez desses navios, desceu a St. John para supervisionar a reunião deles no alto do rio Richelieu. Enquanto isso, o coronel Arnold (que parece um sujeito habilidoso, extraordinário, se metade do que ouço a seu respeito for verdade) ficou construindo freneticamente sua própria frota de galés caindo aos pedaços e corvetas tortas.

Não satisfeito com seus prodígios de navios desmontáveis, sir Guy também tinha o Indefatigable, uma fragata de cerca de 180 toneladas métricas (alguma discussão entre meus informantes quanto ao número de canhões que ele carrega; após uma segunda garrafa de clarete do convento as próprias freiras o fazem e, pela cor do nariz do padre, não é pouco o que é consumido aqui também, chegou-se ao consenso de "um montão, companheiro", sempre levando em conta erros de tradução, sendo o número final), desmontados, rebocados para o rio e lá remontados.

Aparentemente, o coronel Arnold decidiu que esperar mais tempo era perder qualquer vantagem de iniciativa que pudesse ter e partiu de seu esconderijo na ilha Valcour em 30 de setembro. Pelos relatos, ele possuía quinze embarcações, comparadas às vinte e cinco de sir Guy, todas apressadamente construídas, imprestáveis para o mar e conduzidas por marinheiros inexperientes que não sabiam distinguir uma bitácula de um joanete - a Marinha americana em toda a sua glória!

Ainda assim, não devo rir muito. Quanto mais ouço falar do coronel Arnold (e ouço muito sobre ele aqui em Quebec), mais acredito que ele deva ser um cavalheiro de fibra, como o vovô sir George gostava de dizer; gostaria de conhecê-lo um dia.

Há um coro lá fora; os habitants estão chegando à catedral próxima. Não conheço a música e estou longe demais para conseguir compreender a letra, mas posso ver o clarão de tochas do meu ninho de águia. Os sinos informam que são dez horas.

(Aliás, a madre superiora diz que o conhece - ela se chama Soeur Immaculata. Eu dificilmente deveria ficar surpreso com isso; contei-lhe que você conhece o arcebispo de Canterbury e o papa, com o que ela se mostrou muito impressionada e roga que você transmita sua mais humilde obediência à Sua Santidade quando o vir na próxima vez. Ela amavelmente me convidou para jantar e me contou histórias da tomada da cidadela em 1759 e como você alojou vários homens das Highlands no convento. Como as freiras ficaram escandalizadas com as pernas nuas dos escoceses e fizeram uma requisição de lona para fazerem calças para eles. Meu uniforme sofreu consideravelmente nas últimas semanas de viagem, mas ainda estou bem coberto da cintura para baixo, alegro-me em dizer. E a madre superiora também, sem dúvida!)

Retorno ao meu relato da batalha: a frota de sir Guy velejou para o sul, pretendendo alcançar e retomar Crown Point, depois Ticonderoga. No entanto, ao passar pela ilha Valcour, dois dos navios de Arnold surpreendeu-os, disparando contra eles em desafio. Em seguida, estes mesmos navios tentaram recuar, mas um deles (Royal Savage, disseram) não conseguiu avançar contra os ventos de proa e encalhou. Várias canhoneiras britânicas avançaram sobre ele e capturaram alguns homens, mas foram forçadas a bater em retirada sob fogo pesado dos americanos - embora não deixando de atearfogo ao Royal Savage ao fazê-lo.

Seguiu-se muita manobra no Estreito e a batalha começou a sério por volta do meio-dia, o Carleton e o Inflexible empreendendo a maior parte da ação, juntamente com as canhoneiras. O Revenge e o Philadelphia de Arnoldforam seriamente atingidos no costado e o Philadelphia afundou ao anoitecer.

O Carleton continuou a disparar até que um tiro certeiro dos americanos cortou o cabo da âncora, deixando o navio à deriva. Ele foi pesadamente atacado e muitos de seus homens mortos ou feridos, as baixas incluindo o comandante do navio, tenente James Dacres (tenho a inquietante sensação de que já o conheci, talvez em um baile na última temporada) e os oficiais superiores. Um dos seus aspirantes assumiu o comando e levou o navio para local seguro. Disseram que foi Edward Pellew, e tenho certeza de que já o vi uma ou duas vezes, em Boodles, com tio Harry.

Em resumo, outro tiro certeiro atingiu o arsenal de uma canhoneira e a enviou pelos ares, mas enquanto isso o Inflexible finalmente entrou em ação e castigou os barcos americanos com suas armas pesadas. A menor embarcação de sir Guy desembarcou índios nas praias da ilha Valcour e nas margens do lago, assim bloqueando essa via de fuga, e o restante da frota de Arnold foi, assim, obrigado a recuar pelo lago.

Eles conseguiram passar por sir Guy, a noite estando enevoada, e refugiaram-se na ilha Schuyler, a algumas milhas ao sul. Entretanto, a frota de sir Guy perseguiuos e conseguiu aproximar se deles no dia seguinte, as embarcações de Arnold estando muito estorvadas por vazamentos, danos e pelas condições do tempo, que passara a uma chuva intensa e ventos fortes. O Washington foi alcançado, atacado e forçado a se render, a tripulação de mais de cem homens sendo capturada. O resto da esquadra de Arnold, entretanto, conseguiu atravessar para a baia de Buttonmold, onde, pelo que sei, as águas são rasas demais para que os navios de sir Guy pudessem segui-lo.

Lá, Arnold foi para a praia, esvaziou e ateou fogo à sua embarcação - sua bandeira ainda tremulando, como um sinal de desafio, segundo os alemães; eles acharam engraçado, mas admiraram o feito. O coronel Arnold pessoalmente ateou fogo ao Congress, este sendo seu navio capitânia, e partiu por terra, escapando por pouco dos índios que deviam interceptá-los. Suas tropas conseguiram alcançar Crown Point, mas não se demoraram ali, parando apenas para destruir o forte antes de se retirarem para Ticonderoga.

Sir Guy não conduziu seus prisioneiros de volta a Quebec, mas devolveu-os a Ticonderoga sob uma bandeira de trégua - um gesto muito elegante e muito admirado pelos meus informantes.

10:30. Você viu a aurora borealis quando esteve aqui ou era cedo demais no ano? É uma visão extraordinária. Nevou o dia inteiro, mas parou perto do pôr do sol e o céu ficou limpo. Da minha janela, vejo o lado norte e no momento há uma surpreendente cintilação que toma conta de todo o céu, ondas tremulantes de azulclaro e um pouco de verde, apesar de às vezes eu ver um pouco de vermelho, que giram como gotas de tinta derramadas em água e mexidas. Não consigo ouvir no momento, por causa dos cânticos - alguém toca violino ao longe; é um som agudo e melodioso - , mas quando vi o fenômeno de fora da cidade, na floresta, há um som - ou sons - muito peculiar, que acompanha o espetáculo. Às vezes, uma espécie de leve assobio, como o do vento ao redor de um prédio, apesar de não haver nenhum movimento do ar; às vezes, um estranho ruído alto e sibilante, interrompido de vez em quando por uma fuzilaria de estalos e diques, como se uma horda de grilos avançasse sobre o ouvinte através de folhas secas - embora, quando a Aurora comece a ser vista, o frio já tenha matado há muito tempo todos os insetos (E ainda bem! Aplicamos um unguento usado pelos índios locais, que ajudava um pouco contra picadas de moscas e mosquitos, mas que de nada adiantava para afastar a curiosidade de lacrainhas, baratas e aranhas.)

Tivemos um guia para nossa viagem entre St. John e Quebec, um mestiço (ele tinha uma notável cabeleira, cheia e encaracolada como lã de carneiro e da cor da casca da canela) que nos disse que alguns dos nativos acham que o céu é uma abóboda, separando a Terra do céu, mas que há buracos nessa cúpula e que as luzes da Aurora são as tochas do céu, enviadas para guiar os espíritos dos mortos através dos buracos.

Mas vejo que ainda tenho que terminar meu relato, embora apenas para acrescentar que, em seguida à batalha, sir Guy recolheu-se aos alojamentos de inverno em St. John e provavelmente não voltará a Quebec antes da primavera.

Agora, chego ao verdadeiro objetivo da carta. Ontem, quando acordei, descobri que o capitão Randall-Isaacs havia levantado acampamento durante a noite, deixando-me um breve bilhete em que afirmava que tinha negócios urgentes a tratar, apreciara minha companhia e valiosa assistência e que eu deveria permanecer aqui até sua volta ou a chegada de novas ordens.

A neve é profunda, pode nevar ainda mais a qualquer momento, e os negócios têm que ser realmente muito urgentes para compelir um homem a se aventurar a qualquer distância. Estou, é claro, um pouco transtornado com a partida repentina do capitão Randall-Isaacs, curioso quanto ao que possa ter acontecido para causá-la e um pouco ansioso quanto ao seu bem-estar. Entretanto, esta não parece ser uma situação em que eu tenha justificativa para Ignorar minhas ordens e, assim... eu espero.

11:30. Parei de escrever por um curto espaço de tempo, afim de observar o céu. As luzes da Aurora vêm e vão, mas creio que tenham desaparecido definitivamente agora; o céu está negro, as estrelas brilhantes, mas minúsculas em contraste com o brilho desaparecido das luzes. Há um grande vazio no céu que raramente se percebe na cidade. Apesar do barulho dos sinos, dasfogueiras na praça e dos cânticos das pessoas - há um tipo de procissão em andamento - , posso sentir o grande silêncio mais além.

As freiras estão entrando na capela. Debrucei-me na janela há pouco para vê-las caminhando apressadamente, duas a duas, como uma coluna militar em marcha, seus hábitos e mantos escuros fazendo-as parecer pequenos pedaços da noite, vagando entre as estrelas de suas tochas. (Estou escrevendo há muito tempo, perdoe as fantasias de uma mente exausta.)

Este é o primeiro Natal que passo completamente longe de casa ou da família. O primeiro de muitos, sem dúvida.

Sempre penso em você, papai, e espero que esteja bem e preparando-se para assar um ganso amanhã com vovó e vovô sir George. Dê-lhes meu amor, por favor, assim como a tio Hal e sua família. (E para minha Dottie, em especial.)

Um Natal muito feliz, de seu filho William

PS.: 2:00 da madrugada. Desci, afinal, e fiquei nos fundos da capela. Foi um pouco papista, e havia uma grande quantidade de incenso, mas fiz uma prece para mamãe Geneva e para mamãe Isobel. Quando saí da capela, vi que as luzes tinham voltado. Agora são azuis.

 

                     O O ÂMAGO DAS PROFUNDEZAS

15 de maio de 1777

Queridos

Odeio barcos. Eu os detesto com todas as forças do meu ser. No entanto, vejo-me mais uma vez lançado no terrível seio do mar, a bordo de uma embarcação chamada Tranquil Teal, ou calmo verde-azulado, de onde podem deduzir o humor estranho e sombrio do capitão. Este senhor é um contrabandista mestiço, de aspecto maligno e mal-humorado, que me diz, descaradamente, que seu nome é Trustworthy Roberts, ao pé da letra: Confiável Roberts.

Jamie parou para mergulhar a pena na tinta, olhou para a costa da Carolina do Norte que se distanciava e, observando-a subir e descer de uma maneira inquietante, fixou os olhos imediatamente na página que pregara em sua mesinha de colo para impedir que fosse levada pela forte brisa que enfunava as velas acima de sua cabeça.

Estamos bem de saúde, escreveu devagar. Deixando de lado a ideia de enjoo, na qual não queria pensar. Perguntou-se se deveria lhes contar sobre Fergus.

- Está se sentindo bem? Ele ergueu os olhos e viu Claire, inclinando-se para espreitá-lo, com aquela expressão de intensa mas cautelosa curiosidade, que ela reservava às pessoas que podiam a qualquer momento vomitar, verter sangue ou morrer. Ele já fizera os dois primeiros, em consequência de ela ter acidentalmente enfiado uma de suas agulhas em um pequeno vaso sanguíneo em seu couro cabeludo, mas esperava que ela não visse nenhum outro sinal de sua morte iminente.

- Bastante bem. - Ele não queria nem sequer pensar em seu estômago, por medo de incitá-lo, e mudou de assunto a fim de evitar mais discussões. - Devo contar a Brianna e Roger a respeito de Fergus?

- Quanta tinta você tem? - ela perguntou, com um sorriso oblíquo. - Sim, claro que deve. Terão muito interesse em saber. E isso vai distraí-lo - ela acrescentou, olhando-o com os olhos ligeiramente estreitados. - Você ainda está um pouco verde.

- Sim, obrigado. Ela riu com a alegre insensibilidade do bom marinheiro, beijou o topo da cabeça dele - evitando as quatro agulhas que se projetavam de sua testa - e foi postar-se junto à balaustrada, observando a terra oscilante desaparecer gradualmente de vista. Ele desviou o olhar da inquietante paisagem e retornou à sua carta.

Fergus e sua família também estão bem, mas devo lhes contar uma ocorrência intrigante. Um homem que se denomina Percival Beauchamp...

Ele precisou quase de toda a página para descrever Beauchamp e seu desconcertante interesse. Ergueu os olhos para Claire, imaginando se deveria também incluir a possibilidade de parentesco de Beauchamp com a família dela, mas resolveu não o fazer. Sua filha certamente conhecia o nome de solteira de sua mãe e notaria isso na mesma hora. Ele não tinha nenhuma informação útil para lhe dar a esse respeito - e sua mão começava a doer.

Claire continuava junto à balaustrada, uma das mãos apoiando-se nela para se equilibrar, o rosto sonhador.

Ela havia amarrado os cabelos para trás com uma fita, mas o vento soltava algumas mechas, e com os cabelos, as saias e o xale esvoaçando para trás, o tecido do seu vestido moldando o que ainda eram belos seios, ele achou que ela parecia uma daquelas carrancas de navio, graciosa e feroz, um espírito protetor contra os perigos das profundezas.

Achou esse pensamento obscuramente reconfortante e retornou mais animado à redação, apesar do conteúdo perturbador que ele agora precisava confidenciar.

Fergus decidiu nãofalar com monsieur Beauchamp, o que achei prudente, e assim presumimos que esse seria o fim da questão.

No entanto, enquanto estávamos em Wilmington, fui às docas certa noite, ao encontro do sr. DeLancey Hall, nossa conexão com o capitão Roberts. Devido à presença de um navio de guerra inglês no porto, o combinado é que deveríamos subir discretamente a bordo do brigue de pesca do sr. Hall, que nos transportaria para fora do porto, onde então passaríamos ao Teal, já que o capitão Roberts não gostava da proximidade com o navio britânico. (Essa é uma reação universal por parte dos comandantes de navios mercantes e navios de guerra particulares, devido tanto à prevalência de contrabando a bordo da maioria dos navios quanto à atitude voraz da Marinha em relação às tripulações dos navios, que são rotineiramente sequestradas - recrutadas compulsoriamente, eles dizem - e para todos os fins escravizadas pelo resto da vida, a não ser que estejam dispostas a serem enforcadas por deserção.)

Eu havia trazido comigo alguns pequenos itens de bagagem, pretendendo, sob o pretexto de levá-los a bordo para inspecionar tanto o brigue quanto o sr. Hall mais detalhadamente antes de confiar nossas vidas a ambos. Mas o brigue não estava ancorado e o sr Hall não apareceu durante algum tempo, de modo que comecei a ficar preocupado, pensando que tivesse confundido suas instruções ou que ele tivesse fugido da Marinha de Sua Majestade, de algum outro patife ou de um navio corsário.

Esperei até escurecer e já estava prestes a retornar à nossa hospedaria quando vi um pequeno barco entrar no porto com uma lanterna azul na popa. Era o sinal do sr Hall e o barco era seu brigue, que eu o ajudei a amarrar no desembarcadouro. Ele me disse que tinha algumas notícias e nós nos dirigimos a uma taverna local, onde ele me disse que estivera em New Bern no dia anterior e que encontrara a cidade em pandemônio, devido a um deplorável ataque ao tipógrafo, sr. Fraser.

Segundo o relato, ele - Fergus - estava fazendo seu percurso de distribuição e acabara de descer da carroça puxada por Clarence quando alguém veio de trás e saltou à sua frente, enfiando uma saca em sua cabeça, enquanto outra pessoa tentava ao mesmo tempo agarrar suas mãos, provavelmente com a intenção de amarrá-las. Fergus naturalmente resistiu energicamente ao ataque e, segundo a história do sr Hall, conseguiu ferir um dos atacantes com seu gancho, havendo certa quantidade de sangue corroborando sua suposição. O homem ferido caiu para trás com um grito e proferiu muitos insultos aos berros (eu gostaria de saber quais foram essas imprecações, afim de descobrir se o sujeito era francês ou inglês, mas essa informação não foi fornecida), quando então Clarence (de quem você provavelmente se lembra) ficou agitada e aparentemente mordeu o segundo agressor, ele e Fergus tendo caído contra a mula em sua luta. O segundo homem foi desencorajado por essa vigorosa intervenção, mas o primeiro retornou à briga nesse ponto e Fergus - ainda encapuzado, mas pedindo socorro - atracou-se com ele, atacando-o novamente com seu gancho. Alguns relatos (segundo o sr. Hall) alegam que o bandido arrancou o gancho do pulso de Fergus, enquanto outros alegam que Fergus conseguiu atingi-lo outra vez, mas que o gancho se prendeu nas roupas do bandido e foi arrancado na luta.

De qualquer modo, as pessoas na pensão de Thompson ouviram o tumulto e saíram correndo, quando então os bandidos fugiram, deixando Fergus um pouco ferido e muito indignado com a perda de seu gancho, mas fora isso ileso, graças a Deus e a S. Dimas (sendo este o padroeiro particular de Fergus).

Interroguei o sr. Hall o mais detalhadamente possível, mas havia pouco mais a dizer. Ele contou que a opinião pública estava dividida, com muitos dizendo que foi uma tentativa de deportação e que os Filhos da Liberdade eram os culpados do ataque, enquanto alguns membros dos Filhos da Liberdade negavam indignadamente tal acusação, alegando tratar-se de obra dos Legalistas furiosos com a publicação de Fergus de um discurso particularmente incitante de Patrick Henry, e que o rapto era um prelúdio ao alcatrão e penas. Aparentemente, Fergus tem sido tão bem-sucedido em evitar parecer tomar partido no conflito que é provável que ambos os lados tenham igualmente se ofendido e decidido eliminar sua influência.

Isso, é claro, é possível. Mas, com a presença e o comportamento do sr. Beauchamp em mente, creio que uma terceira explicação seja mais provável. Fergus recusou-se a falar com ele, mas não teria sido necessária muita investigação para descobrir que, apesar do seu nome e de sua mulher escocesa, Fergus era francês. Sem dúvida, a maioria dos habitantes de New Bern sabe disso e alguém pode facilmente ter dito isso a ele.

Confesso não ter a menor ideia do motivo que Beauchamp poderia ter para querer raptar Fergus, em vez de simplesmente ir confrontá-lo pessoalmente para averiguar se ele poderia ser a pessoa que o cavalheiro alegava estar à procura. Imagino que ele não pretenda causar nenhum mal imediato a Fergus, pois, se quisesse, teria sido simples mandar matá-lo; há muitos homens sem nenhuma filiação e de mau caráter vagando pela colônia ultimamente.

A ocorrência é preocupante, mas pouco posso fazer a respeito em minha precária posição atual. Enviei uma carta a Fergus - ostensivamente com referência às especificações de um trabalho de impressão - que lhe informa que depositei uma quantia com um ourives em Wilmington, que ele pode sacar em caso de necessidade. Eu havia discutido com ele os perigos de sua atual situação, sem saber na época o quanto poderia realmente ser perigoso, e ele concordou que poderia haver alguma vantagem para a segurança de sua família se ele se mudasse para uma cidade onde a opinião pública fosse mais alinhada com suas próprias inclinações. Esse último incidente pode forçar sua decisão, ainda mais quando a proximidade a nós já não é uma consideração.

Teve que parar outra vez, já que a dor se irradiava pela sua mão e subia pelo pulso. Esticou os dedos, contendo um gemido; parecia que um fio quente de metal golpeava-o de seu quarto dedo até o antebraço em breves choques elétricos.

Ele estava mais do que preocupado com Fergus e sua família. Se Beauchamp tentara uma vez, iria tentar novamente. Mas por quê?

Talvez o fato de ser francês não fosse prova suficiente de que ele era o Claudel Fraser que Beauchamp procurava e, assim, ele tenha resolvido tirar a dúvida em particular, por quaisquer meios necessários. Era possível, mas isso demonstrava uma frieza de propósito que perturbava Jamie mais do que ele quis dizer na carta.

E, para ser justo, tinha que admitir que a ideia de que o ataque tivesse sido executado por pessoas de sensibilidade política exaltada era uma possibilidade real, e talvez de maior probabilidade do que as sinistras intenções de monsieur Beauchamp, que eram altamente românticas e teóricas.

- Mas não vivi todo este tempo para não saber reconhecer o cheiro de um rato quando vejo um - murmurou, ainda esfregando a mão.

- Jesus H. Roosevelt Cristo! - exclamou sua figura de proa pessoal, aparecendo repentinamente ao seu lado com uma expressão de acentuada preocupação. - Sua mão!

- Sim? - Abaixou os olhos para ela, o rosto crispado de desconforto. - O que tem de errado? Todos os meus dedos ainda estão no lugar.

- Isso é o máximo que se pode dizer por ela. Parece o nó górdio. – Ela ajoelhou-se a seu lado e tomou a mão dele nas suas, massageando-a vigorosamente, o que sem dúvida era útil, mas tão imediatamente doloroso que fez os olhos dele lacrimejarem. Fechou-os, respirando devagar através dos dentes cerrados.

Ela o repreendia por escrever tanto de uma só vez. Qual era a pressa, afinal? - Só chegaremos a Connecticut daqui a dias, e depois levaremos meses a caminho da Escócia. Você podia escrever uma frase por dia e citar todo o Livro de Salmos ao longo do caminho.

- Eu quis escrever - ele disse. Ela disse algo depreciativo num sussurro, em que figuravam as palavras "escocês" e "cabeça-dura", mas ele preferiu não dar atenção. Ele realmente quis escrever; clareava seus pensamentos colocá-los em preto e branco, e era até certo ponto um alívio expressá-los no papel, em vez de ficar com a preocupação entupindo sua cabeça como lama nas raízes do mangue.

Além disso - não que ele precisasse de uma desculpa, pensou, estreitando os olhos para o topo da cabeça inclinada de sua mulher - , ver a costa da Carolina do Norte desaparecer o fizera sentir saudades de sua filha e Roger Mac, e ele precisara da sensação de conexão que escrever para eles lhe proporcionava.

- Acha que irá vê-los? - Fergus lhe perguntara, pouco antes de se despedirem. - Talvez você vá à França. - No que dizia respeito a Fergus, Marsali e aos habitantes de Ridge, Brianna e Roger Mac tinham ido para a França, fugindo da guerra iminente.

- Não - ele dissera, esperando que o desalento em seu coração não transparecesse em sua voz. - Duvido que a gente se veja outra vez algum dia.

A forte mão direita de Fergus fechara-se com força em seu antebraço, depois relaxara.

- A vida é longa - ele disse serenamente.

- Sim - ele respondera, mas pensara "A vida de ninguém é tão longa assim". Sua mão estava mais relaxada agora; embora ela ainda a massageasse, os movimentos já não doíam tanto.

- Eu também sinto saudade deles - ela disse serenamente, e beijou os nós dos dedos de sua mão. - Me dê a carta, eu a termino.

O vento aumentou um pouco e o mar está ficando revolto. Seu pai ficou um pouco pálido e viscoso, como isca de peixe; vou terminar aqui e levá-lo para baixo para vomitar tranquilamente e tirar um cochilo, creio eu.

Com todo o meu amor, Mamãe

A mão de seu pai não aguenta mais por hoje. Há algo notável a respeito do navio, além do nome do capitão. Eu estava lá embaixo no porão hoje, no começo do dia, e vi um bom número de caixas, todas gravadas com o nome Mrnold" e "New Haven, Connecticut". Eu disse ao taifeiro (cujo nome é o muito corriqueiro "John Smith", embora sem dúvida para compensar essa inquietante falta de distinção ele tenha três brincos de ouro em uma das orelhas e dois na outra. Ele me disse que cada um representa a sobrevivência de um naufrágio. Espero que seu pai não venha a saber disso) que o sr. Arnold devia ser um comerciante muito bem-sucedido. O sr Smith riu e disse que, de fato, o sr. Benedict Arnold é um coronel do Exército Continental e, na verdade, um oficial muito valente. As caixas deverão ser entregues a sua irmã, srta. Hannah Arnold, que cuida dos seus três filhos pequenos e de sua loja de grãos e artigos importados, enquanto ele está lidando com a guerra.

Devo dizer que senti um calafrio percorrer minha espinha ao ouvir isso. Conheci homens cuja história eu já conhecia - e ao menos um desses eu sabia que estava fadado a um terrível destino. Mas você não se acostuma com a sensação. Olhei para aquelas caixas e me perguntei - eu deveria escrever para a srta. Hannah? Descer do navio em New Haven e ir vê-la? E lhe dizer o quê, exatamente?

Toda a nossa experiência até esta data sugere que não existe absolutamente nada que eu pudesse fazer para alterar o que vai acontecer E olhando a situação objetivamente não vejo como... e entretanto. E entretanto!

E, entretanto, estive próxima de tantas pessoas cujas ações têm um feito perceptível, quer terminem fazendo história ou não. Como poderia não ser assim?, seu pai pergunta. As ações de todo mundo têm algum efeito no futuro. E obviamente ele tem razão. E, entretanto, passar tão perto de um nome como Benedict Arnold faz uma pessoa dar uma guinada para a direita, como o capitão Roberts gosta de dizer (Sem dúvida uma situação que fizesse alguém dar uma guinada para a esquerda seria realmente muito surpreendente.)

Bem. Retornando tangencialmente ao assunto original desta carta, o misterioso monsieur Beauchamp. Se você ainda tiver as caixas de documentos e livros do escritório de seu pai - de Frank, quero dizer - em casa, e tiver um momento livre, talvez queira examiná-los e ver se encontra uma velha pasta de papelão com um brasão desenhado em lápis de cor Creio que é em azul e dourado, e recordo-me que possui pássaros. Com sorte, deve conter a árvore genealógica da família Beauchamp que meu tio Lamb desenhou para mim, há tantos e tantos anos.

Você pode dar uma olhada e ver se o nome que consta em 1777 seria de um Percival. Somente por curiosidade.

 

                     CERVO ACUADO

Roger soprou cuidadosamente a boca de uma garrafa de cerveja vazia, produzindo um gemido grave, gutural. Quase. Talvez, um pouco mais profundo... e certamente faltava aquele som nostálgico, aquela inflexão áspera. Mas o tom... Levantou-se e vasculhou a geladeira, encontrando o que procurava atrás de um pedaço de queijo e seis caixas de margarina cheias de só Deus sabia o quê; a probabilidade é que não fosse de margarina.

Não restavam mais do que dois ou três dedos de champanhe no fundo da garrafa - remanescente do jantar comemorativo da semana anterior, em homenagem ao novo emprego de Bri. Alguém havia parcimoniosamente coberto a boca da garrafa com papel de alumínio, mas a bebida, é claro, ficara choca. Foi esvaziar a garrafa na pia, mas uma vida inteira de parcimônia escocesa não podia ser tão facilmente negligenciada. Sem mais do que um instante de hesitação, tomou o resto do champanhe, abaixando a garrafa vazia para se deparar com Annie MacDonald segurando Amanda pela mão e olhando fixamente para ele.

- Bem, ao menos você ainda não está colocando isso nos cereais do café da manhã - ela disse, passando por ele. Içou Mandy para sua cadeirinha alta e saiu, sacudindo a cabeça diante do baixo caráter moral de seu patrão.

- Me dá, papai! - Mandy estendeu a mão para a garrafa, atraída pelo rótulo brilhante. Com a pausa estatutária de um pai, enquanto repassava mentalmente os potenciais cenários de destruição, ele lhe deu, em vez disso, seu copo de leite e assobiou pela boca canelada da garrafa de champanhe, produzindo um tom melodioso e grave. Sim, era isso, algo próximo do fá abaixo do dó. - De novo, papai! - Mandy ficou encantada. Sentindo-se levemente embaraçado, ele assoviou outra vez, desencadeando uma cascata de risadinhas de Mandy. Ele pegou a garrafa de cerveja e soprou, depois alternou entre uma e outra, produzindo uma variação de duas notas à canção "Mary tinha um carneirinho".

Atraída pelo assovio e gritinhos arrebatados de Mandy, Brianna apareceu no vão da porta, um brilhante capacete rígido de plástico azul na mão.

- Pretendendo começar sua própria banda de garrafas? - ela perguntou.

- Já tenho uma - ele respondeu, e tendo concluído que o pior que Mandy conseguiria fazer com a garrafa de champanhe era deixá-la cair no tapete, entregou-a a ela e dirigiu-se ao corredor com Brianna, onde a puxou com força para si e beijou-a longamente, a porta de baeta fechando-se com um som abafado.

- Champanhe no café da manhã? - ela interrompeu o beijo apenas o suficiente para perguntar, depois voltou ao beijo, sentindo o gosto dele.

- Precisava da garrafa - ele murmurou, sentindo o gosto dela também. Ela comera mingau com manteiga e mel no café da manhã, e sua boca estava doce, acentuando o amargo do champanhe nas bordas de sua língua. O corredor estava frio, mas ela estava quente como uma torrada sob o pulôver de lã. Seus dedos demoraram-se logo abaixo da barra do pulôver, na pele nua e macia na base de sua coluna. - Tenha um bom dia - ele sussurrou. Lutou contra o desejo de deslizar os dedos pelas costas de sua calça jeans; não era respeitoso estar passando a mão no traseiro da novíssima inspetora da Hidrelétrica do Norte da Escócia. - Vai trazer o capacete para casa, depois?

- Claro. Por quê? - Achei que talvez pudesse usá-lo na cama. - Pegou-o de sua mão e colocou-o delicadamente na cabeça de sua mulher. Isso fez com que seus olhos ficassem azul-marinhos.

- Use-o e eu lhe direi o que eu queria com a garrafa de champanhe.

- Oh, está aí uma proposta que não posso re... Os olhos azul-marinhos deslizaram repentinamente para o lado e Roger olhou naquela direção, deparando-se com Annie no final do corredor, vassoura e pano de pó na mão e uma expressão de profundo interesse no rosto fino.

- Sim. Ah... tenha um bom dia - Roger disse, soltando-a apressadamente.

- Você, também. - Contendo uma risada, Brianna segurou-o com firmeza pelos ombros e beijou-o, antes de descer o corredor a passos largos e passar por uma espantada Annie de olhos arregalados, a quem ela irreverentemente desejou um bom-dia em gaélico.

Ouviu-se um barulho repentino na cozinha. Ele virou-se automaticamente para a porta de baeta, embora menos da metade de sua atenção estivesse no incipiente desastre. A maior parte estava concentrada na súbita percepção de que sua mulher parecia ter partido para o trabalho sem usar calcinha por baixo.

Mandy conseguira, só Deus saberia como, atirar a garrafa de champanhe pela janela e estava de pé em cima da mesa, tentando alcançar a vidraça estilhaçada, cheia de cacos pontiagudos, quando Roger entrou correndo.

- Mandy! - Ele agarrou-a, tirou-a da mesa e no mesmo instante deu-lhe uma palmada. Ela emitiu um grito lancinante e ele levou-a dali debaixo do braço, passando por Annie Mac, que estava parada à porta com a boca e os olhos redondos como "O"s. - Recolha os cacos, sim? - ele disse.

Sentia-se muito culpado; o que estava pensando, dando-lhe a garrafa? Quanto mais deixá-la sozinha com ela! Também sentia certa irritação com Annie Mac - afinal, ela fora contratada para tomar conta das crianças - , mas a noção de justiça o fez admitir que antes de sair ele devia tê-la feito voltar para tomar conta de Mandy. A irritação estendeu-se a Bri, também, arrogantemente correndo para seu novo emprego, esperando que ele cuidasse da casa.

Mas ele reconheceu que sua irritação era apenas uma tentativa de fugir do sentimento de culpa e fez o possível para afastá-la enquanto consolava Mandy, tendo uma pequena conversa sobre não ficar em pé em mesas, não atirar coisas na casa, não tocar em coisas pontiagudas, chamar um adulto se precisasse de ajuda - sem nenhuma chance, pensou, com um sorriso interior; Mandy era a criança de três anos mais independente que ele já vira. O que era dizer muito, considerando-se que ele também vira Jem nessa idade.

Uma coisa se podia dizer de Mandy: ela não guardava rancor. Cinco minutos depois de levar uma palmada e ser repreendida, já estava rindo e suplicando-lhe que brincasse de boneca com ela.

- Papai precisa trabalhar hoje de manhã - ele disse, mas inclinou-se para que ela pudesse subir em seus ombros. - Venha, vamos procurar Annie Mac. Talvez você e as bonecas possam ajudá-la a arrumar a despensa.

Deixando Mandy e Annie Mac alegremente trabalhando na despensa, supervisionadas por uma coleção de bonecas surradas e bichos de pelúcia encardidos, ele voltou ao seu gabinete e retirou o caderno de anotações em que estava transcrevendo as canções que ele tão diligentemente gravara na memória. Tinha uma reunião mais para o fim da semana com Siegfried MacLeod, o diretor do coro na igreja de St. Stephen, e pretendia apresentar-lhe uma cópia de algumas das canções mais raras, como forma de criar uma disposição favorável.

Achava que iria precisar. O dr. Weatherspoon mostrara-se confiante, dizendo que MacLeod ficaria encantado em ter ajuda, especialmente com o coro de crianças, mas Roger já passara bastante tempo em círculos acadêmicos, lojas maçônicas e tavernas do século XVIII para saber como funcionava a política local. MacLeod podia muito bem se ressentir de lhe impingirem um forasteiro - por assim dizer - sem aviso prévio.

E havia a delicada questão de um mestre do coro que não podia cantar. Ele tocou a garganta, com sua cicatriz áspera.

Ele se consultara com dois especialistas, um em Boston, outro em Londres. Ambos disseram a mesma coisa. Havia uma possibilidade de que a cirurgia melhorasse sua voz, ao remover algumas das cicatrizes em sua laringe. Havia uma possibilidade igual de que a cirurgia causasse ainda mais danos - ou destruísse completamente a sua voz. - A cirurgia das cordas vocais é muito delicada - um dos médicos lhe dissera, sacudindo a cabeça. - Normalmente, não corremos esse risco a não ser em casos de necessidade extrema, como um tumor cancerígeno, uma malformação congênita que impede a fala inteligível ou uma forte razão profissional. Um famoso cantor com nódulos, por exemplo; nesse caso, o desejo de restaurar a voz pode ser motivo suficiente para correr o risco da cirurgia, embora em tais casos, em geral, não haja um grande risco de deixar a pessoa permanentemente muda. Em seu caso...

Ele pressionou dois dedos contra a garganta e cantarolou com os lábios fechados, sentindo a tranquilizante vibração. Não. Ele se lembrava muito bem de como era se sentir impossibilitado de falar. Estava convencido, na época, de que nunca mais voltaria a falar - muito menos cantar - outra vez; a lembrança desse desespero o fez suar. Nunca mais falar com seus filhos, com Bri? Não, não iria correr esse risco.

Os olhos do dr. Weatherspoon demoraram-se em sua garganta com interesse, mas ele não dissera nada. MacLeod poderia ter menos tato.

Aqueles que o Senhor ama, Ele pune. Weatherspoon - diga-se a seu favor - não dissera isso no decorrer da conversa. No entanto, fora essa a citação escolhida para a discussão do Grupo de Bíblia naquela semana; foi impressa em seu boletim, que estava sobre a escrivaninha do reitor. E no estado de espírito hipersensível de Roger na ocasião tudo parecia uma mensagem.

- Bem, se é isso o que Você tem em mente, agradeço o elogio - disse em voz alta. - Mas tudo bem comigo se eu não for Seu favorito apenas esta semana.

Isso foi dito jocosamente, mas não havia como negar a raiva por trás de suas palavras. O ressentimento de ter que provar a si mesmo - para si mesmo - mais uma vez. Tivera que o fazer fisicamente da última vez. Fazê-lo agora de novo, espiritualmente, neste mundo enganoso, mais complicado? Ele estivera disposto, não?

- Você perguntou. Desde quando você não aceita Sim como resposta? Estou perdendo alguma coisa aqui?

Bri achara que sim; a intensidade da discussão que tiveram voltou para ele agora, fazendo-o corar de vergonha.

- Você tinha... eu achava que você tinha - ela corrigira - uma vocação. Talvez não seja assim que os protestantes denominam isso, mas é o que é, certo? Você me disse que Deus falou com você. - Seus olhos estavam fixos nele, intensos, inabaláveis, e tão penetrantes que ele teve vontade de desviar os seus, mas não o fez. - Você acha que Deus muda de opinião? - ela perguntou mais serenamente e pousou a mão em seu braço, apertando-o. - Ou acha que você estava enganado?

- Não - ele dissera, após um instante de reflexão. - Não, quando alguma coisa assim acontece... bem, quando de fato aconteceu, eu não tinha nenhuma dúvida.

- E tem agora?

- Você fala como sua mãe. Fazendo um diagnóstico. - Falara por brincadeira, mas não era. Bri parecia-se com seu pai fisicamente a tal ponto que raramente via nela algo que lembrasse Claire, mas a calma franqueza de suas perguntas era típica de Claire Beauchamp. Assim como o leve arqueamento de uma das sobrancelhas, esperando uma resposta. Ele respirou fundo. - Não sei.

- Sabe, sim. A raiva aflorou, repentina e intensa, e ele libertou o braço de sua mão com um movimento brusco.

- Desde quando você me diz o que eu sei e o que não sei? Ela arregalou os olhos ainda mais.

- Eu sou casada com você.

- Acha que isso lhe dá o direito de tentar ler meus pensamentos?

- Acho que isso me dá direito de me preocupar com você!

- Bem, não o faça! Fizeram as pazes, é claro. Beijaram-se - bem, um pouco mais do que isso - e perdoaram-se. Perdoar, é claro, não significava esquecer.

"Sabe, sim." Ele sabia? - Sim - disse desafiadoramente para a torre, visível da janela. - Sim, eu sei muito bem! - O que fazer com isso: essa era a dificuldade.

Será que ele estaria predestinado a ser um ministro, mas não presbiteriano? Se tornar ministro de uma igreja autônoma, evangélica... católica? A ideia era tão perturbadora que se sentiu obrigado a se levantar e caminhar um pouco de um lado para o outro. Não que ele tivesse alguma coisa contra católicos - bem, salvo os reflexos inerentes a uma vida como protestante nas Highlands - , mas ele simplesmente não conseguia imaginar isso. "Se passando para o lado de Roma", é como a sra. Ogilvy e a sra. MacNeil e todo o resto veriam isso ("Indo direto para o Mau Lugar" sendo a implicação não enunciada); sua deserção seria discutida em tons sussurrados de absoluto horror durante... bem, durante anos. Riu relutantemente diante do pensamento.

Bem, e além do mais ele não podia ser um padre católico, não é? Não com Bri e as crianças. Isso o deixou um pouco mais calmo e ele sentou-se outra vez. Não. Ele teria que confiar que Deus - através da interferência do dr. Weatherspoon - pretendia mostrar-lhe o caminho através desta passagem particularmente espinhosa de sua vida. E se ele o fizesse... bem, isso não era em si mesmo prova de predestinação?

Roger gemeu, tirou toda essa preocupação de sua cabeça e lançou-se obstinadamente em seu caderno de anotações.

Alguns dos poemas e canções que ele registrara eram famosos: seleções de sua vida anterior, canções tradicionais que ele cantara como artista. Muitas das mais raras ele obtivera durante o século XVIII; de imigrantes escoceses, viajantes, caixeiros-viajantes e homens do mar. E algumas ele desencavara da coleção de caixas que o reverendo lhe deixara. A garagem da antiga casa residencial do ministro estava repleta delas e ele e Bri não haviam feito mais do que um pequeno entalhe na coleção. Pura sorte que ele tivesse encontrado a caixa de madeira contendo as cartas tão pouco tempo depois de sua volta.

Ergueu os olhos para ela, tentado. Não podia ler as cartas sem Bri; não seria direito. Mas os dois livros - haviam examinado os livros superficialmente quando encontraram a caixa, mas estavam preocupados principalmente com as cartas, a fim de descobrir o que acontecera a Claire e Jamie. Sentindo-se como Jem surrupiando um pacote de biscoitos de chocolate, trouxe a caixa para baixo cuidadosamente - era muito pesada - e colocou-a sobre a escrivaninha, investigando cuidadosamente sob as cartas.

Os livros eram pequenos, o maior era o que chamavam de formato inoitavo, com cerca de 18 x 13cm. Era um tamanho comum, de uma época em que o papel era caro e difícil de ser obtido. O menor seria talvez um "crown sixteenmo", com apenas 11 x 13cm aproximadamente. Sorriu levemente, pensando em Ian Murray; Brianna lhe contara a reação escandalizada de seu primo à sua descrição de papel higiênico. Talvez nunca mais conseguisse limpar o traseiro sem uma sensação de extravagância.

O pequeno estava cuidadosamente encadernado em couro de bezerro tingido de azul, com as páginas orladas de dourado; um livro caro, muito bonito. Princípios básicos de saúde, intitulava-se, do dr. C. E. B. E Fraser. Uma edição limitada, produzida por A. Bell, Tipógrafo, Edimburgo.

Isso lhe deu uma pequena sensação de euforia. Então, eles haviam conseguido chegar à Escócia, sob os cuidados do capitão Trustworthy Roberts. Ou, ao menos, imaginava que deviam ter conseguido - embora o estudioso nele o prevenisse de que isso não era prova; sempre era possível que os originais manuscritos houvessem de algum modo chegado à Escócia, sem que necessariamente tivessem sido levados pelo autor pessoalmente.

Eles teriam vindo para Lallybroch?, perguntou-se. Olhou em volta do aposento gasto, confortável, facilmente visualizando Jamie à grande escrivaninha antiga junto àjanela, examinando os livros de contabilidade da fazenda com seu cunhado. Se a cozinha era o coração da casa - e era - , este aposento provavelmente sempre fora seu cérebro.

Movido por impulso, ele abriu o livro e quase ficou sem ar. O frontispício, no estilo comum do século XVIII, mostrava uma gravura do autor. Um médico, perfeitamente arrumado em uma peruca amarrada com um laço e casaco preto, com um lenço de pescoço alto e preto, do alto do qual o rosto de sua sogra olhava serenamente para ele.

Ele riu alto, fazendo Annie Mac espreitar com curiosidade para dentro do gabinete, para o caso de ele estar tendo algum tipo de ataque, assim como estar falando sozinho. Ele abanou a mão, dispensando-a, e fechou a porta antes de retornar ao seu livro.

Era ela, sem dúvida. Os olhos bem separados sob as sobrancelhas escuras, os ossos graciosos e bem-delineados das faces, das têmporas e do maxilar. Quem quer que tivesse feito a gravura não conseguira reproduzir sua boca perfeitamente; aqui tinha uma forma mais severa, o que era bom - nenhum homem tinha lábios como os dela.

De quando seria...? Verificou a data de impressão: MDCCLXXVIII. 1778. Não muito depois de quando ele a vira pela última vez, portanto - e ainda parecendo bem mais jovem do que ele sabia que ela era.

Haveria uma gravura de Jamie no outro...? Pegou-o e abriu-o. De fato, outra gravura a buril, embora esta fosse um desenho mais simples. Seu sogro, sentado em uma bergère, os cabelos amarrados simplesmente para trás, um xale de xadrez drapejado sobre o encosto da poltrona atrás dele e um livro aberto sobre o joelho. Ele lia para uma criança pequena sentada em seu outro joelho - uma menina de cabelos escuros e encaracolados. O rosto dela estava virado, absorta na história. Claro - o entalhador não podia saber como era o rosto de Mandy.

Histórias do vovô, o livro intitulava-se, com o subtítulo: Histórias das Highlands da Escócia e do interior das Carolinas, deJames Alexander Malcolm Mackenzie Fraser. Novamente, impresso por A. Bell, Edimburgo, no mesmo ano. A dedicatória dizia simplesmente: Aos meus netos.

O retrato de Claire o fizera rir; este quase o levara às lágrimas, e ele fechou o livro delicadamente.

Quanta fé eles tiveram. Para criar, guardar, enviar essas coisas, esses frágeis documentos, através dos anos, apenas com a esperança de que sobreviveriam e alcançariam aqueles a quem se destinavam. Fé de que Mandy estaria ali para lê-lo um dia. Engoliu em seco, um nó dolorido na garganta.

Como conseguiram? Bem, diziam que a fé remove montanhas, ainda que a dele no momento não parecesse adequada para achatar um montículo de toupeira. - Santo Deus - ele murmurou, sem saber se era simples frustração ou um pedido de ajuda.

Um rápido movimento através da janela chamou sua atenção do documento e ele levantou os olhos e viu Jem saindo da porta da cozinha na outra extremidade da casa. Estava com o rosto vermelho, os ombros arqueados e tinha uma grande sacola de barbante em uma das mãos, através de cuja trama ele pôde ver uma garrafa de refrigerante de limão, um pão inteiro e alguns outros comestíveis. Surpreso, Roger olhou para o relógio sobre o console da lareira, achando que perdera inteiramente a noção do tempo - mas não perdera. Era uma hora.

- O que diabos... Afastando o documento para o lado, levantou-se e dirigiu-se aos fundos da casa, emergindo bem a tempo de ver a pequena figura de Jem, vestido de calça jeans e blusão - ele não podia usar calça jeans na escola - dirigindo-se ao campo de feno.

Roger poderia tê-lo alcançado com facilidade, mas em vez disso diminuiu o passo, seguindo-o a distância.

Obviamente, Jem não estava doente - então era provável que algo drástico tivesse acontecido na escola. A escola o mandara de volta para casa ou ele simplesmente viera embora por conta própria? Ninguém telefonara, mas a hora do almoço acabara na escola; se Jem tivesse aproveitado a oportunidade para fugir, era possível que ainda não tivessem dado por falta dele. Eram quase três quilômetros a pé, mas isso não era nada para Jem.

Jem chegara ao portão giratório que impede a passagem de animais na mureta de pedras que cercava o campo, saltou por cima e começou a atravessar com determinação o pasto repleto de ovelhas. Onde ele estaria indo?

- E o que será que você fez agora? - Roger murmurou consigo mesmo. Jem estava na escola do vilarejo de Broch Mordha há apenas uns dois meses - sua primeira experiência com a educação do século XX. Depois que retornaram, Roger ensinara Jem em casa, em Boston, enquanto Bri estava com Mandy durante sua recuperação da cirurgia que salvara sua vida. Com Mandy a salvo em casa outra vez, tiveram que decidir o que fazer em seguida.

Foi principalmente Jem que os fizera decidir ir para a Escócia, em vez de permanecer em Boston, embora Bri desejasse isso de qualquer modo. "É o legado deles", ela argumentara. "Jem e Mandy são escoceses dos dois lados, afinal. Quero manter isso para eles." E a ligação com o avô; isso nem era preciso dizer.

Ele concordara, e concordara também que Jem chamaria menos atenção na Escócia - apesar da exposição à televisão e meses nos Estados Unidos, ele ainda falava com um forte sotaque das Highlands que o tornaria uma pessoa marcada na escola primária em Boston. Por outro lado, como Roger observou consigo mesmo, de qualquer modo Jem era o tipo de pessoa que chamava atenção.

De qualquer forma, não havia dúvida de que as vidas em Lallybroch e numa pequena escola das Highlands eram bem mais parecidas ao que Jem estava acostumado na Carolina do Norte - embora, considerando-se a flexibilidade natural das crianças, ele achasse que Jem se adaptaria muito bem a qualquer lugar em que estivesse.

Quanto às suas próprias perspectivas na Escócia... mantivera-se calado a esse respeito.

Jem chegou ao fim do pasto e expulsou um grupo de ovelhas que bloqueava o portão que levava à estrada. Um carneiro preto abaixou a cabeça e ameaçou-o, mas Jem não se preocupou com os animais. Ele gritou e agitou sua sacola, e o carneiro, espantado, recuou abruptamente, fazendo Roger sorrir.

Ele não tinha nenhuma dúvida sobre a inteligência de Jem - bem, tinha, mas não com a falta dela. Muito mais com o tipo de problema a que ela poderia conduzi-lo. A escola não era simples para ninguém, muito menos uma escola nova. E uma escola em que uma pessoa se sobressaía, qualquer que fosse a razão... Roger lembrou-se de sua própria escola em Inverness, onde ele era peculiar primeiro por não ter pais de verdade e depois como o filho adotado do pastor. Após algumas infelizes semanas sendo provocado, insultado e tendo sua merenda roubada, ele começara a revidar. E, embora isso tivesse levado a certa dificuldade com os professores, por fim resolvera o problema.

Jem teria andado brigando? Não vira nenhum sangue, mas podia não ter chegado perto o suficiente. Mas ficaria surpreso se fosse esse o problema.

Houve um incidente na semana anterior, quando Jem notou um enorme rato correndo para dentro de um buraco sob o alicerce da escola. Ele levara um pedaço de corda fina com ele no dia seguinte, armou uma armadilha logo antes de entrar para a primeira aula e saiu durante o intervalo para pegar sua presa, da qual então passara a tirar a pele de uma maneira muito eficiente, para admiração de seus colegas garotos e horror das meninas. Sua professora também não ficara muito satisfeita; a srta. Glendenning era uma mulher urbana de Aberdeen.

Ainda assim, era uma escola interiorana das Highlands e a maioria dos alunos vinha das fazendas e sítios próximos. Seus pais caçavam e pescavam - e certamente sabiam tudo sobre ratos. O diretor, sr. Menzies, parabenizara Jem por sua habilidade, mas disse-lhe para não fazer isso outra vez na escola. No entanto, ele deixou Jem guardar a pele; Roger a prendera com toda a cerimônia na porta do barracão de ferramentas.

Jem não se deu ao trabalho de abrir o portão do pasto; apenas agachou-se pelo meio das barras, arrastando a sacola atrás de si.

Estaria se dirigindo à estrada principal, planejando pedir carona? Roger aumentou um pouco a velocidade, esquivando-se das fezes escuras dos animais e dando joelhadas para passar pelo meio de um bando de ovelhas pastando. Elas abriram caminho com indignação, emitindo balidos agudos.

Não, Jem tomara a direção contrária. Para onde podia estar indo? O caminho de terra que levava à estrada principal em uma das direções não levava a absolutamente lugar algum na outra - ele terminava onde a terra elevava-se em colinas rochosas e íngremes.

E era para lá, evidentemente, que Jem se dirigia - para as colinas. Ele saiu do caminho e começou a subir, sua figura pequena quase oculta pela vegetação luxuriante de fetos e os galhos pendentes de tramazeiras nas encostas mais baixas. Evidentemente, ele se dirigia ao urzal, à maneira tradicional dos fora da lei das Highlands.

Foi a ideia de marginais das Highlands que o fez perceber. Jem dirigia-se à caverna de Dunbonnet.

Jamie Fraser morara lá por sete anos após a catástrofe de Culloden, quase à vista de sua casa, mas escondido dos soldados de Cumberland - e protegido por seus colonos, que nunca usavam seu nome em voz alta, mas o chamavam de "Dunbonnet", por causa do gorro de lã das Highlands que ele usava para esconder os cabelos flamejantes.

Esses mesmos cabelos faiscaram como um farol, no meio da encosta, antes de desaparecerem atrás de uma rocha.

Compreendendo que, cabelos ruivos ou não, ele podia facilmente perder Jem na paisagem acidentada, Roger apertou o passo. Deveria chamá-lo? Ele sabia aproximadamente onde ficava a caverna - Brianna lhe descrevera a localização - , mas ele mesmo ainda não fora lá em cima. Perguntou-se como Jem sabia onde era. Talvez não soubesse e estivesse procurando por ela.

Ainda assim, não chamou Jem, mas começou ele também a subir a colina. Agora que olhava com mais atenção, notou uma trilha estreita de cervos através da vegetação rasteira e a impressão parcial de um pequeno pé de tênis na lama da trilha. Relaxou um pouco à vista da pegada e diminuiu o passo. Agora, não perderia Jem.

Era silencioso e tranquilo na encosta da colina, mas o ar movia-se, incansável, nas tramazeiras.

As urzes formavam uma névoa de roxo intenso nas cavidades da rocha que assomava acima dele. Captou um cheiro forte no vento e virou-se, buscando sua origem, curioso. Outro vislumbre ruivo: um cervo, esplendidamente galhado e cheirando a cio, a dez passos dele abaixo na encosta. Ficou paralisado, mas o cervo ergueu a cabeça, as narinas largas e pretas abrindo-se para farejar o ar.

Percebeu repentinamente que levara a mão ao cinto, onde antes carregava uma faca de esfolar, e que seus músculos estavam tensos, pronto a correr para baixo e cortar a garganta do cervo, depois que o tiro do caçador o abatesse. Podia sentir a pele dura e peluda, o estalo da traqueia e o jato de sangue fétido e quente sobre suas mãos, ver os compridos dentes amarelos expostos, sujos do verde da última refeição do animal.

O animal soltou um rugido gutural, ressonante, seu desafio a qualquer outro cervo ao alcance de seu berro. Por uma fração de segundo, Roger esperou uma das flechas de Ian zunir do meio das tramazeiras atrás do cervo ou o eco do rifle de Jamie espocar no ar. Então, sacudiu-se de volta à realidade e, abaixando-se, pegou uma pedra para atirar - mas o cervo o ouvira e fugira, com um ruidoso farfalhar de folhas secas.

Permaneceu imóvel, sentindo o cheiro do próprio suor, ainda deslocado. Mas não estava nas montanhas da Carolina do Norte e a faca em seu bolso destinava-se a cortar barbantes e abrir garrafas de cerveja.

Seu coração batia com força, mas ele se voltou de novo para a trilha, ainda adaptando-se de novo ao tempo e espaço. Certamente ficava mais fácil com a prática, não? Já estavam de volta há bem mais de um ano agora e ele às vezes ainda acordava à noite sem nenhuma noção de quando e de onde estava - ou, pior, atravessava algum buraco momentâneo para o passado enquanto ainda estava acordado.

As crianças, sendo crianças, não pareciam sofrer muito com essa sensação de estar em... outro lugar. Mandy, é claro, era pequena demais e doente demais na ocasião para se lembrar de alguma coisa, quer de sua vida na Carolina do Norte ou da viagem através das pedras. Jem se lembrava. Mas Jem - ele dera uma olhada nos automóveis na estrada que alcançaram meia hora depois de emergirem das pedras em Ocracoke e ficara transfixado, um enorme sorriso no rosto conforme os carros passavam zunindo por ele.

"Vruuum", ele dissera alegremente consigo mesmo, o trauma da separação e da viagem no tempo - o próprio Roger mal conseguia andar, sentindo que havia deixado uma parte importante e irrecuperável de si mesmo presa nas pedras - aparentemente esquecido.

Um amável motorista parara para lhes dar carona, sensibilizado com a história de um acidente de barco, e os levara até a cidade, onde um telefonema a cobrar para Joe Abernathy resolvera as contingências imediatas de dinheiro, roupas, um quarto e comida. Jem sentara-se no joelho de Roger, olhando boquiaberto pela janela enquanto subiam a estrada estreita, o vento da janela aberta agitando seus cabelos macios e brilhantes.

Mal podia esperar para repetir a façanha. E depois que se estabeleceram em Lallybroch importunou Roger para que o deixasse dirigir o Morris Mini pelas trilhas da fazenda, sentado no colo de Roger, as mãozinhas agarradas ao volante, exultante.

Roger sorriu ironicamente consigo mesmo; imaginava que tinha sorte de Jem ter decidido evadir-se a pé desta vez - mais um ou dois anos e ele provavelmente já teria altura suficiente para alcançar os pedais. Era melhor ele começar a esconder as chaves do carro.

Ele estava bem acima da fazenda agora e diminuiu o passo para olhar para cima da encosta. Brianna dissera que a caverna ficava na face sul da colina, a cerca de doze metros acima de uma grande rocha esbranquiçada conhecida localmente como "Salto do Barril". Assim denominada porque o criado de Dunbonnet, levando cerveja para seu patrão escondido, deparara-se com um grupo de soldados ingleses e, ao se recusar a lhes entregar o barril que carregava, teve a mão amputada...

- Oh, Santo Deus - Roger murmurou. - Fergus. Oh, meu Deus, Fergus. - Pôde ver imediatamente o rosto de traços finos, risonho, os olhos escuros sorridentes, enquanto levantava um peixe agonizante com o gancho que usava no lugar da mão esquerda decepada - e a visão da mão pequena, flácida, jazendo, ensanguentada, no caminho diante dele.

Porque foi ali. Exatamente ali. Virando-se, viu a rocha, grande e bruta, testemunhando, silenciosa e impassível, o horror e o desespero - e a repentina mão do passado que o agarrou pela garganta, violenta como o aperto de um laço de forca.

Tossiu com força, tentando abrir a garganta, e ouviu o rouco e assustador bramido de outro cervo no cio, logo acima dele na encosta, mas ainda invisível.

Ele agachou-se e saiu da trilha, pressionando-se contra a rocha. Seria possível que tivesse soado tão assustadoramente que o cervo o tomara por um rival? Não - o mais provável é que ele estivesse descendo a encosta para enfrentar aquele que ele vira há poucos instantes.

De fato; um pouco depois um enorme cervo desceu do alto da colina, escolhendo o caminho quase delicadamente através das urzes e das pedras. Era um belo animal, mas já mostrava a tensão da estação do cio, as costelas proeminentes sob a pele espessa e o focinho encovado, os olhos vermelhos de falta de sono e de desejo sexual.

Ele o viu; a enorme cabeça girou em sua direção e ele viu os olhos injetados, revirados, fixos nele. Mas não demonstrava medo de Roger; provavelmente não havia espaço em seu cérebro para qualquer outra coisa que não fosse lutar e copular. Ele esticou o pescoço na direção de Roger e bramiu para ele, os olhos mostrando a parte branca com o esforço.

- Olhe, companheiro, se você a quer, pode ficar com ela. - Ele retrocedeu lentamente, mas o cervo seguiu-o, ameaçando-o com a galhada abaixada. Assustado, ele abriu os braços, agitou-os e gritou para o cervo; normalmente, isso o faria debandar. Mas um cervo no cio não é normal; o bicho abaixou a cabeça e partiu para o ataque.

Roger desviou-se para o lado e atirou-se no chão, na base da rocha. Achatou-se o mais que pôde contra a face da rocha, na esperança de impedir que o cervo enlouquecido o pisoteasse. O animal parou subitamente a alguns passos dele, batendo com os chifres nas urzes e respirando como um fole - mas em seguida ouviu o rugido do adversário mais embaixo e ergueu a cabeça abruptamente.

Outro berro lá de baixo e o novo cervo virou-se e começou a descer a trilha, o ruído de sua passagem impulsiva pela encosta abaixo marcado pela trituração de urzes e chocalhar de pedras levantadas pelos seus cascos.

Roger pôs-se de pé atabalhoadamente, a adrenalina correndo por suas veias como mercúrio. Ele não atinara que os cervos estavam no cio ali em cima ou não teria perdido tempo passeando, divagando sobre o passado. Tinha que encontrar Jem agora, antes que o garoto se deparasse com um desses animais.

Ele podia ouvir os urros e o choque das galhadas dos dois cervos mais abaixo, lutando pelo controle de um harém de corças, embora estivessem fora de alcance da visão de onde ele estava.

- Jem! - gritou, sem se importar se soasse como um cervo no cio ou um elefante. - Jem! Onde você está? Responda agora mesmo!

- Estou aqui em cima, papai. - A voz de Jemmy veio de algum ponto acima, um pouco trêmula, e ele girou nos calcanhares, deparando-se com Jem sentado no Salto do Barril, a sacola de barbante agarrada ao peito.

- OK. Desça. Agora. - O alívio lutou com o aborrecimento, mas prevaleceu. Estendeu os braços e Jem deslizou pela face da rocha, aterrissando com toda força nos braços do pai.

Roger emitiu um grunhido do esforço e colocou-o no chão, em seguida abaixou-se para pegar a sacola, que caíra no solo. Além do refrigerante de limão e do pão, ele viu, continha várias maçãs, um bom pedaço de queijo e um pacote de biscoitos de chocolate.

- Planejando ficar algum tempo? - perguntou. Jemmy enrubesceu e desviou o olhar.

Roger virou-se e olhou para cima da encosta.

- Lá em cima? Na caverna do seu avô? - Ele não conseguia ver nada; a encosta era um emaranhado de pedras e urzes, generosamente entremeado de arbustos atrofiados de tojo e um ou outro broto de tramazeira ou amieiro.

- Sim. Bem ali. - Jemmy apontou para cima da encosta. - Veja, onde está aquela árvore-da-bruxa torcida.

Ele viu a tramazeira torcida - uma árvore adulta, nodosa e retorcida com a idade; não podia estar ali desde a época de Jamie, podia? - , mas ainda assim não viu nenhum sinal da entrada da caverna. Os sons do embate lá embaixo haviam cessado; olhou ao redor, para o caso de o perdedor estar voltando por aquele caminho, mas evidentemente não estava.

- Mostre-me - ele disse. Jem, que até então parecia profundamente constrangido, relaxou um pouco com isso e, virando-se, começou a subir a encosta, Roger nos seus calcanhares.

Você poderia estar do lado da abertura da caverna e não vê-la. Era encoberta por um afloramento de rocha e um denso aglomerado de tojeiras. Não se podia ver de forma alguma a estreita abertura, a menos que estivesse parado diante dela.

Um ar fresco saía da caverna, úmido em seu rosto. Ele ajoelhou-se para espreitar dentro da caverna; não podia ver mais do que alguns passos para dentro, mas não era convidativa.

- É frio para dormir aqui - ele disse. Olhou para Jem e indicou uma pedra próxima. - Quer sentar-se e me contar o que aconteceu na escola?

Jem engoliu em seco e mudou o peso do corpo de um pé para o outro.

- Não.

- Sente-se. - Não ergueu a voz, mas deixou claro que esperava ser obedecido. Jem não se sentou propriamente, mas recuou um pouco, recostando-se no afloramento de rocha que ocultava a entrada da caverna. Não levantou os olhos.

- Levei uma surra de cinta - Jem murmurou, o queixo enterrado no peito.

- É? - Roger manteve a voz descontraída. - Bem, isso é muito chato. Eu também levei, uma ou duas vezes, quando estava na escola. Não gostei nada.

Jem ergueu a cabeça abruptamente, os olhos arregalados.

- É mesmo? E por quê?

- Brigas, principalmente - Roger disse. Imaginava que não devia estar dizendo isso ao menino, mau exemplo, mas era a verdade. E se brigar fosse o problema de Jem... - Foi isso que aconteceu hoje? - Ele examinara Jem superficialmente quando se sentou e agora o olhou com mais atenção. Jem não parecia machucado, mas quando virou o rosto Roger pôde ver que algo acontecera à sua orelha. Estava muito vermelha, o lóbulo quase roxo. Ele reprimiu uma exclamação ao vê-la e apenas repetiu: - O que aconteceu?

- Jaclçy McEnroe disse que, se você soubesse que eu tinha apanhado, me daria outra surra quando eu chegasse em casa. - Jem engoliu em seco, mas agora olhou diretamente nos olhos de seu pai. - Vai fazer isso?

- Não sei. Espero não ter que fazê-lo. Ele havia surrado Jem certa vez - fora necessário - e nenhum dos dois queria repetir a experiência. Estendeu a mão e tocou delicadamente na orelha de Jem.

- Conte-me o que aconteceu, filho. Jem respirou fundo, inflando as bochechas, depois as esvaziou, resignado.

- Sim. Bem, começou quando Jimmy Glasscock disse que mamãe, eu e Mandy vamos arder no inferno.

- É mesmo? - Roger não estava nada surpreso; os presbiterianos escoceses não eram conhecidos por sua tolerância religiosa e a raça não mudara muito em duzentos anos. Os bons modos podiam impedir a maioria de dizer a seus conhecidos papistas que eles iriam direto para o inferno - mas o provável é que a maioria pensasse assim. - Bem, você sabe o que fazer nessa situação, não sabe? - Jem ouvira sentimentos semelhantes em Ridge, embora em geral mais disfarçadamente, Jamie Fraser sendo quem era. Ainda assim, haviam conversado sobre isso e Jem estav bem preparado para responder a esse tipo de conversa em particular.

- Oh, sim. - Jem deu de ombros, olhando para os tênis outra vez. - "Apenas diga: tudo bem, eu o vejo lá então." Foi o que eu disse.

- E? Suspiro profundo. - Eu disse isso em gaidhlig. Roger coçou atrás da orelha, intrigado. O gaélico estava desaparecendo nas Highlands, mas ainda era bastante comum para ser ouvido de vez em quando em um pub ou na agência dos correios. Sem dúvida alguns dos colegas de classe de Jem já o ouviram de seus avós, mas mesmo que não entendessem o que ele dissera...?

- E? - ele repetiu. - E a srta. Glendenning agarrou-me pela orelha e quase a arrancou. - O rubor cresceu nas faces de Jemmy à lembrança. - Ela me sacudiu, papai!

- Pela orelha? - Roger sentiu um rubor semelhante inundar suas próprias faces.

- Foi! - Lágrimas de humilhação e raiva assomavam aos olhos de Jem, mas ele limpou-as com a manga da camisa e bateu com o punho fechado na perna. - Ela disse: "Nós - não - falamos - ASSIM! - Nós - falamos - INGLÊS!" - Sua voz estava algumas oitavas mais alta do que a da terrível srta. Glendenning, mas sua imitação tornou a ferocidade de seu ataque mais do que evidente.

- E então ela bateu em você com a cinta? - Roger perguntou incrédulo. Jem sacudiu a cabeça e limpou o nariz na manga. -

Não - ele disse. - Foi o sr. Menzies. - O quê? Por quê? Tome. - Estendeu a Jem um lenço de papel amarrotado de seu bolso e esperou enquanto o menino assoava o nariz.

- Bem... eu já estava com raiva por causa de Jimmy e, quando ela me agarrou pela orelha, doeu muito. E... bem, minha raiva aumentou - ele disse, lançando a Roger um olhar azul de fervente honradez tão parecido com o de seu avô que Roger quase sorriu, apesar da situação.

- E então você disse algo mais a ela, não foi?

- Sim. - Jem abaixou os olhos, esfregando a ponta do tênis na terra. - A srta. Glendenning não gosta de gaidhlig, mas ela não entende nada também. O sr. Menzies sabe. - Oh, meu Deus.

Atraído pela gritaria, o sr. Menzies surgiu no pátio de recreio bem a tempo de ouvir Jem dando à srta. Glendenning o benefício de alguns dos melhores xingamentos em gaélico de seu avô, a plenos pulmões.

- Então, ele me obrigou a me inclinar sobre uma cadeira e me deu três cintadas, depois me mandou para o vestiário para ficar lá até acabar a aula.

- Só que você não ficou lá. Jem sacudiu a cabeça, os cabelos brilhantes esvoaçando. Roger inclinou-se e pegou a sacola de barbante, lutando contra a indignação, a consternação, o riso e a solidariedade que fechava sua garganta. Pensando melhor, ele resolveu demonstrar um pouco da solidariedade.

- Então, você estava fugindo de casa?

- Não. - Jem ergueu os olhos para ele, surpreso. - Eu não queria ir à escola amanhã. Não queria que Jimmy risse de mim. Assim, pensei em ficar aqui em cima no fim de semana e talvez na segunda-feira as coisas tivessem se acalmado. A srta. Glendenning podia morrer - acrescentou esperançosamente.

- E talvez sua mãe e eu estivéssemos tão preocupados quando você finalmente descesse daqui que você iria se safar sem uma segunda surra?

Os olhos azul-escuros de Jem arregalaram-se de surpresa.

- Oh, não. Mamãe ficaria brava comigo se eu simplesmente saísse sem dizer nada. Deixei um bilhete na minha cama. Disse que ia ficar fora um ou dois dias. - Ele disse isso com perfeita praticidade. Depois, meneou os ombros e levantou-se, suspirando. - Podemos acabar com isso e voltar para casa? - ele perguntou, a voz um pouco trêmula. - Estou com fome.

- Não vou bater em você - Roger assegurou-lhe. Estendeu o braço e puxou Jem para si. - Venha cá, meu garoto.

A fachada de coragem de Jemmy desabou diante disso e ele deixou-se afundar nos braços de Roger, chorando um pouco de alívio, mas deixando-se consolar, aconchegando-se como um cachorrinho no ombro de seu pai, confiante de que ele consertaria tudo. E seu pai certamente o faria, Roger prometeu silenciosamente. Nem que tivesse que estrangular a srta. Glendenning com as próprias mãos.

- Por que é ruim falar gaidhlig, papai? - ele murmurou, exausto de tantas emoções. - Eu não quis fazer nada de mal.

- Não é - Roger sussurrou, alisando os cabelos macios atrás da orelha de Jem. - Não se preocupe. Mamãe e eu vamos resolver isso. Eu prometo. E você não precisa ir à escola amanhã.

Jem soltou um suspiro de alívio, ficando inerte como uma saca de grãos. Em seguida, levantou a cabeça e deu uma risadinha.

- Acha que mamãe vai ficar brava com o sr. Menzies?

 

                   OS TIGRES DOS TÚNEIS

O primeiro anúncio de desastre de Brianna foi a faixa de luz na pista, diminuindo até desaparecer na fração de segundo que levou para as enormes portas se fecharem, ecoando atrás dela com um estrondo que pareceu estremecer o ar no túnel.

Ela disse algo que a teria feito lavar a boca de Jem se ele tivesse dito, e o fez com sincera fúria - mas também falara baixinho, percebendo o que estava acontecendo no instante em que as portas levaram para fechar.

Não conseguia ver nada, salvo os redemoinhos de cor que eram a reação de sua retina à escuridão repentina, mas ela estava a apenas uns dez passos dentro do túnel e ainda podia ouvir o som das travas se encaixando; funcionavam com grandes rodas do lado de fora das portas de aço e faziam um ruído de moagem como ossos sendo triturados. Ela virou-se cuidadosamente, deu cinco passos e estendeu as mãos. Sim, havia as portas; grandes, sólidas, de aço, e agora hermeticamente trancadas. Podia ouvir o som de risos do lado de fora.

Risadinhas, ela pensou com furioso desdém. Como moleques! Moleques, sem dúvida. Respirou fundo algumas vezes, lutando tanto contra a raiva quanto contra o pânico. Agora que a cegueira da escuridão desaparecera, podia ver a fina linha de luz que separava as duas portas de quatro metros e meio. Uma sombra da altura de um homem interrompeu a luz, mas foi retirada bruscamente, ao acompanhamento de sussurros e mais risadinhas. Alguém tentando espionar, o idiota. Boa sorte para ele, conseguir ver alguma coisa aqui dentro. Fora o fio de luz entre as portas, o túnel da hidrelétrica sob o lago Errochty estava escuro como as profundezas do inferno.

Ao menos, podia usar o fio de luz para se orientar. Ainda respirando com deliberação, avançou - pisando cautelosamente; não queria divertir os babuínos do lado de fora mais do que o necessário tropeçando e caindo espalhafatosamente - na direção da caixa de metal na parede à esquerda onde estavam localizados os interruptores de luz que controlavam a iluminação do túnel.

Achou a caixa e ficou momentaneamente em pânico ao encontrá-la trancada, antes de se lembrar que possuía a chave; estava no enorme e ruidoso monte de chaves sujas que o sr. Campbell lhe dera, cada qual com uma etiqueta de papel pendurada identificando sua função. Claro, ela não podia ler as malditas etiquetas - e o desgraçado Andy Davies havia descontraidamente lhe pedido emprestado a lanterna que deveria estar em sua cintura, com o pretexto de examinar um suposto vazamento de óleo sob o caminhão.

Eles haviam planejado tudo muito bem, ela pensou com raiva, experimentando uma chave, depois a seguinte, tateando e arranhando para inserir a ponta na fenda minúscula e invisível. Todos os três estavam evidentemente mancomunados: Andy, Craig McCarty e Rob Cameron.

Ela possuía uma mente metódica e, após ter experimentado cada chave cuidadosamente sem resultado, não tentou outra vez. Sabia que haviam pensado nisso também; Craig pegara as chaves com ela para abrir a caixa de ferramentas no painel do caminhão e as devolvera com uma mesura de exagerado galanteio.

Eles a olharam fixamente - é claro - quando a apresentaram como a nova inspetora de segurança, embora imaginasse que já tivessem sido informados de que ela era essa coisa chocante - uma mulher. Rob Cameron, um bonito rapaz que obviamente se achava especial, olhara-a descaradamente de cima a baixo antes de estender a mão com um sorriso. Ela devolvera o lento de-cimaa-baixo antes de apertá-la, e os outros dois riram. E Rob também, verdade seja dita. Ela não sentira nenhuma hostilidade da parte deles durante o percurso de caminhão até o lago Errochty, e ela achava que teria percebido se houvesse. Tratava-se apenas de uma pilhéria estúpida. Provavelmente.

E, para falar francamente, as portas fechando-se atrás dela não haviam sido seu primeiro indício de que alguma coisa estava sendo tramada, ela pensou furiosamente. Já era mãe há muito tempo para não perceber o ar de secreta malícia ou de excessiva inocência que marcava o rosto de um homem disposto a fazer alguma maldade, e tal expressão estivera nos rostos de toda a sua equipe de manutenção e reparos, se ela tivesse se dado ao cuidado de observar. Mas sua mente estava apenas parcialmente no trabalho; a outra metade estava no século XVIII, preocupada com Fergus e Marsali, mas encorajada pela visão de seus pais e Ian a salvo, viajando finalmente para a Escócia.

Mas o que quer que estivesse acontecendo - tivesse acontecido, corrigiu-se com firmeza - no passado, tinha outras coisas com que se preocupar aqui e agora.

O que esperavam que ela fizesse?, perguntou-se. Gritar? Chorar? Bater nas portas e implorar para que a deixassem sair?

Caminhou silenciosamente até a porta e colou o ouvido na fresta, a tempo de ouvir o ronco do motor do caminhão dando partida e o esguicho de cascalhos de suas rodas quando ele virou para subir a estrada de serviço.

- Malditos filhos da mãe! - disse em voz alta. O que pretendiam com isso? Já que não os satisfizera gritando e chorando, haviam decidido simplesmente ir embora para deixá-la sepultada ali por algum tempo? Voltar depois na esperança de encontrá-la alquebrada - ou, melhor ainda, vermelha de raiva? Ou - um pensamento mais sinistro - pretendiam voltar ao escritório da companhia, com um ar inocente nos rostos, e dizer ao sr. Campbell que sua nova inspetora simplesmente não aparecera para trabalhar esta manhã?

Expirou pelo nariz, lenta e deliberadamente. Muito bem. Ela os estriparia quando a oportunidade se apresentasse. Mas o que fazer no momento?

Desviou-se da caixa de força, olhando para o breu absoluto. Não estivera naquele túnel em particular antes, embora tivesse visto um semelhante durante a visita às instalações com o sr. Campbell. Era um dos túneis originais do projeto da hidrelétrica, escavado à mão com pás e picaretas pelos "garotos da hidro" na década de 1950. Estendia-se por aproximadamente um quilômetro e meio através da montanha e sob parte do vale inundado que agora continha o muito expandido lago Errochty e um trenzinho elétrico parecendo de brinquedo corria em seus trilhos pelo meio do túnel.

Originalmente, o trem servira para carregar os operários, os "tigres dos túneis", para o local da escavação e de volta; agora reduzido a apenas uma máquina, servia a um ou outro operário da hidrelétrica para verificar os enormes cabos que se estendiam ao longo das paredes do túnel ou trabalhar nas enormes turbinas ao pé da represa, na outra extremidade do túnel.

Que era, ocorreu-lhe, o que Rob, Andy e Craig deviam estar fazendo, erguendo uma das monstruosas turbinas e substituindo uma das pás danificadas.

Pressionou as costas contra a parede do túnel, as mãos espalmadas na rocha áspera, e pensou. É para lá que eles foram, então. Não fazia diferença, mas ela fechou os olhos para melhorar sua concentração e tentou lembrar-se das folhas da volumosa pasta - agora em cima do banco do caminhão desaparecido - que continha os detalhes estruturais e de projeto de todas as estações hidrelétricas sob sua alçada.

Ela examinara os diagramas mais uma vez na noite anterior e de novo, apressadamente, enquanto escovava os dentes esta manhã. O túnel levava para a represa, e obviamente fora usado na construção dos níveis inferiores dessa represa. Qual a profundidade? Se o túnel terminava no nível da câmara de serviços acima - uma enorme sala equipada com potentes gruas rolantes no teto necessárias para içar as turbinas de seus nichos - , então, haveria ainda uma porta; não teria havido necessidade de vedá-la, não havendo água do outro lado.

Por mais que tentasse, não conseguia trazer os diagramas à mente com detalhes suficientes para ter certeza de que havia uma abertura para dentro da barragem na outra extremidade do túnel - mas seria simples descobrir.

Ela vira o trem, naquele breve instante antes de as portas se fecharem; não foi preciso tatear muito para entrar na cabine aberta da minúscula locomotiva. Agora, aqueles palhaços teriam levado a chave da máquina também? Ah. Não havia chave; funcionava com um interruptor no painel. Acionou-o e um botão vermelho brilhou repentinamente enquanto ela sentia o zumbido da eletricidade correr pelos trilhos embaixo.

O trem não podia ser mais simples de operar. Tinha uma única alavanca, que você empurrava para frente ou para trás, dependendo da direção em que quisesse ir. Ela empurrou-a delicadamente para frente e sentiu o ar mover-se pelo seu rosto conforme o trem silenciosamente movia-se para fora das entranhas da Terra.

Tinha que ir devagar. O minúsculo botão vermelho lançava uma claridade reconfortante sobre suas mãos, mas em nada adiantava para penetrar a escuridão à frente, e ela não fazia a menor ideia de onde ou do quanto os trilhos faziam curvas. Nem queria alcançar o fim da linha a uma velocidade alta e descarrilar a locomotiva. Parecia que avançava centímetro por centímetro na escuridão, mas era muito melhor do que andar, tateando por mais de um quilômetro e meio de um túnel ladeado de cabos de alta voltagem.

Foi atingida no escuro. Por uma fração de segundo, achou que alguém colocara um cabo elétrico na linha. No instante seguinte, um som que não era verdadeiramente um som tamborilou pelo seu corpo, pinçando cada nervo e fazendo sua visão embranquecer. Em seguida, sua mão roçou pela superfície da rocha e ela compreendeu que havia caído por cima do painel, estava pendurada para fora do minúsculo carro e prestes a cair na escuridão.

Com a cabeça girando, conseguiu agarrar a borda do painel e içar-se de volta para dentro da cabine. Desligou o interruptor com a mão trêmula e praticamente deixou-se cair no chão da cabine, onde se encolheu, agarrando os joelhos, a respiração uma lamúria na escuridão.

- Santo Deus - murmurou. - Oh, Santa Mãe de Deus. Oh, Jesus. Podia senti-lo lá fora. Ainda o sentia. Não fazia nenhum ruído agora, mas ela sentia sua proximidade e não conseguia parar de tremer.

Permaneceu sentada, imóvel, por um longo tempo, a cabeça entre os joelhos, até que o pensamento racional começou a voltar.

Não podia estar enganada. Já atravessara o tempo duas vezes e conhecia a sensação. Mas esta não fora nem de longe tão impressionante. Sua pele ainda formigava, seus nervos saltavam e os ouvidos zumbiam como se tivesse enfiado a cabeça em um vespeiro - mas se sentia intacta. Era como se um arame em brasa a tivesse dividido ao meio, mas ela não tivera a terrível sensação de estar sendo desmembrada, fisicamente virada pelo avesso.

Um terrível pensamento a fez ficar de pé com um salto, agarrando-se ao painel. Ela teria saltado? Estaria em outro lugar - em outra época? Mas o painel metálico era frio e sólido sob suas mãos, o cheiro de rocha úmida e isolante de cabos continuava o mesmo.

- Não - sussurrou, e acionou o interruptor outra vez para ter certeza. Ele acendeu-se e o trem, ainda engatado, deu um salto para frente. Apressadamente, ela reduziu drasticamente a marcha.

Não podia ter saltado para o passado. Parecia que pequenos objetos em contato direto com um viajante do tempo moviam-se com ele, mas um trem e seus trilhos sem dúvida não era viável.

- Além do mais - disse em voz alta - , se você tivesse voltado vinte e cinco anos ou mais no passado, o túnel não estaria aqui. Você estaria dentro... da rocha sólida. - Sentiu um súbito enjoo e vomitou.

No entanto, a sensação... aquilo... estava desaparecendo. O que quer que fosse, ficara para trás. Bem, acabara, então, pensou, limpando a boca com as costas da mão. Certamente, tinha que haver uma porta na outra extremidade, porque nada a faria voltar por onde viera.

Havia uma porta. Uma porta industrial, de metal, simples e comum. E um cadeado, destravado, pendurado da alça aberta. Sentiu o cheiro de W-d40; alguém lubrificara as dobradiças, muito recentemente, e a porta abriu-se facilmente quando ela girou a maçaneta. Sentiu-se repentinamente como Alice, depois de cair pelo buraco do Coelho Branco. Uma Alice realmente furiosa.

Havia um íngreme lance de escadas do outro lado da porta, fracamente iluminado - e no topo uma outra porta de metal, debruada de luz. Podia ouvir o ronco e o rangido metálico de uma grua de teto em operação.

Sua respiração se Acelerou, e não do esforço de subir as escadas. O que encontraria do outro lado? Era a câmara de consertos e reparos de dentro da represa; isso ela sabia. Mas encontraria a quinta-feira do outro lado? A mesma quinta-feira em que estava quando as portas do túnel se fecharam atrás dela?

Cerrou os dentes e abriu a porta. Rob Cameron aguardava, recostado na parede, um cigarro aceso na mão. Abriu um largo sorriso ao vê-la, largou o toco de cigarro no chão e apagou-o com o pé.

- Sabia que você conseguiria, benzinho - ele disse. Do outro lado da sala, Andy e Craig viraram-se de seu trabalho e aplaudiram.

- Pago-lhe uma cerveja depois do trabalho, então, moça - Andy gritou.

- Duas! - Craig gritou. Ela ainda sentia gosto de bílis no fundo da garganta. Lançou a Rob Cameron o mesmo tipo de olhar que lançara ao sr. Campbell.

- Não - disse sem alterar a voz - me chame de benzinho.

Ele contraiu o belo rosto e tocou o topete com fingida subserviência.

- Como quiser, chefe - ele disse.

 

                   TOPOS DE COLINA

Eram quase sete horas quando ele ouviu o carro de Brianna no caminho de entrada. As crianças já haviam jantado, mas correram para ela, agarrando-se às suas pernas como se ela tivesse acabado de voltar dos confins da África ou do polo Norte.

Demorou algum tempo até aprontar as crianças para dormir e Bri poder lhe dar sua total atenção. Ele não se importou.

- Está com fome? - ela disse. - Posso... Ele interrompeu-a, segurando-a pela mão e arrastando-a para dentro do seu gabinete, onde cuidadosamente fechou e trancou a porta. Ela estava parada ali, os cabelos marcados pelo capacete de obra, suja de passar o dia nas entranhas da Terra. Ela cheirava a terra. Também a graxa de motor, fumaça de cigarro, suor e... cerveja?

- Tenho um monte de coisas para lhe contar - ele disse. - E sei que você tem muito a me contar também. Mas primeiro... será que você podia tirar seus jeans, talvez, sentar-se na escrivaninha e abrir as pernas?

Seus olhos se arregalaram.

- Sim - disse suavemente. - Eu podia fazer isso.

Roger sempre se perguntara se seria verdade o que diziam sobre os ruivos serem pessoas mais voláteis do que o normal - ou se era apenas porque suas emoções transparecessem tão repentina e assustadoramente em sua pele. Ambos, c concluiu.

Talvez ele devesse ter esperado até ela acabar de se vestir para lhe falar da srta. Glendenning. Mas, se o tivesse feito, teria perdido a extraordinária visão de sua mulher, nua e vermelha de raiva do umbigo para cima.

- Aquela maldita bruxa! Se ela acha que pode...

- Não pode - ele interrompeu-a com firmeza. - Claro que não pode.

- Certamente não pode! Amanhã vou lá logo de manhã e...

- Bem, talvez não.

Ela parou e olhou para ele, um dos olhos estreitado.

- Talvez não o quê?

- Talvez não você. - Fechou o próprio jeans e pegou o dela. - Estava pensando que talvez seja melhor eu ir.

Ela franziu o cenho, refletindo.

- Não que eu ache que você iria perder a paciência e avançar para cima da megera - ele acrescentou sorrindo - , mas você tem que ir para o trabalho, hein?

- Humm - ela disse, parecendo cética quanto à habilidade dele de impressionar adequadamente a srta. Glendenning com a magnitude de seu crime. - E se você de fato perdesse a cabeça e atacasse a mulher, eu detestaria ter que explicar para as crianças por que estávamos visitando a mamãe na cadeia.

Isso a fez rir e ele relaxou um pouco. Na verdade, não acreditava que ela recorresse à violência física, mas, por outro lado, ela não vira a orelha de Jem assim que ele voltou para casa. Ele próprio tivera vontade de ir à escola naquela hora mesmo e mostrar à mulher como aquilo doía, mas agora recuperara o autocontrole.

- Então, o que pretende dizer a ela? - Ela fisgou seu sutiã de baixo da escrivaninha, proporcionando-lhe uma visão suculenta de seu traseiro, já que ainda não vestira o jeans.

- Nada. Falarei com o diretor. Ele pode dar uma palavrinha com ela.

- Bem, talvez seja melhor - ela disse devagar. - Não vamos querer que a srta. Glendenning desconte em Jemmy.

- Exato. - O belo rubor se desvanecia. Seu capacete de obra rolara para baixo da cadeira; pegou-o e colocou-o em sua cabeça outra vez. - E então? Como foi o trabalho hoje? E por que você não usa calcinhas para trabalhar? - ele perguntou, lembrando-se repentinamente.

Para seu espanto, o rubor retornou com toda a força de um incêndio em mato seco.

- Perdi o hábito no século XVIII - ela retrucou, obviamente irada. - Só uso calcinhas em ocasiões cerimoniosas. O que pensou? Que eu planejava seduzir o sr. Campbell?

- Bem, não se ele é como você o descreveu - ele disse pacificamente. - Só notei quando você saiu hoje de manhã, e fiquei me perguntando.

- Ah. - Ela ainda estava irritada, ele percebia, e se perguntou qual seria o motivo. Estava prestes a lhe perguntar outra vez como fora o seu dia quando ela tirou o capacete e fitou-o especulativamente. - Você disse que se eu usasse o capacete você me diria o que estava fazendo com aquela garrafa de champanhe. Além de dá-la a Mandy para que atirasse pela janela - acrescentou, com um tom de censura conjugal. - Em que estava pensando, Roger?

- Bem, com toda a franqueza, eu estava pensando no seu traseiro - ele disse. - Mas nunca me ocorreu que ela atiraria a garrafa. Ou que ela pudesse atirá-la daquele modo.

- Perguntou a ela por que fez isso?

Ele parou, perplexo.

- Não me ocorreu que ela pudesse ter uma razão - ele confessou. - Tirei-a da mesa quando já estava prestes a se lançar de cara na janela quebrada, e fiquei com tanto medo que simplesmente peguei-a no colo e lhe dei uma palmada.

- Não creio que ela fizesse uma coisa assim sem algum motivo - Bri disse pensativamente. Deixara de lado o capacete e se ajeitava dentro de seu sutiã, um espetáculo que Roger achava divertido em praticamente qualquer situação.

Somente quando voltaram à cozinha para seu próprio jantar tardio é que ele se lembrou de lhe perguntar outra vez como tinha sido seu dia de trabalho.

- Nada mau - ela disse, fingindo descontração. Não tão bem a ponto de convencê-lo, mas suficientemente bem para ele achar melhor não insistir e, em vez disso, perguntar: - Ocasiões cerimoniosas?

Um amplo sorriso se espalhou pelo rosto dela.

- Para você.

- Para mim?

- Sim, você e seu fetiche por calcinhas de renda.

- O que... quer dizer, você só usa calcinhas para...

- Para você tirar, é claro.

Não há como saber para onde a conversa teria ido nesse ponto, porque foi interrompida por um grito de lamúria vindo de cima. Bri desapareceu apressadamente na direção das escadas, deixando Roger considerando essa última revelação.

Ele já fritara o bacon e esquentara o feijão em lata quando ela reapareceu, uma pequena ruga entre as sobrancelhas.

- Pesadelo - ela disse, em resposta à sobrancelha levantada de Roger. - O mesmo.

- Uma coisa ruim tentando entrar pela janela dela outra vez? Ela balançou a cabeça e pegou a panela de feijão que ele lhe entregou, embora não começasse a servir a comida imediatamente.

- Perguntei a ela por que tinha atirado a garrafa.

- Sim? Brianna pegou a colher do feijão, segurando-a como uma arma. - Ela disse que viu ele do lado de fora da janela.

- Ele? O...

- O nuckelavee.

Pela manhã, a torre estava do mesmo jeito que estivera na última vez que ele olhara. Escura. Silenciosa, a não ser pelos sussurros dos pombos no alto. Ele retirara o lixo; nenhum novo jornal de embrulho de peixe havia surgido. Varrida e arrumada, ele pensou. Esperando pela ocupação de qualquer espírito errante que passasse por ali?

Afastou esse pensamento e fechou a porta com firmeza. Compraria novas dobradiças e um cadeado para ela na próxima vez que passasse pela Farm and Household.

Mandy teria realmente visto alguém? E se tivesse, seria o mesmo vagabundo que assustara Jem? A ideia de alguém rondando por ali, espionando sua família, fez algo negro e rígido enroscar-se em seu peito, como uma mola de ferro pontiaguda. Ficou parado por alguns instantes, examinando atentamente a casa, o terreno, por qualquer vestígio de um intruso. Qualquer lugar onde um homem pudesse se esconder. Já revistara o estábulo e os outros anexos.

A caverna de Dunbonnet? A ideia - com sua lembrança de Jem parado junto à entrada - lhe deu um calafrio. Bem, ele logo descobriria, pensou sombriamente, e com um último olhar a Annie MacDonald e Mandy, tranquilamente pendurando a roupa lavada no pátio lá embaixo, ele partiu.

Mantinha os ouvidos atentos hoje. Ouviu o eco dos bramidos dos cervos, ainda no cio, e uma vez viu um pequeno bando de corças ao longe, mas por sorte não se deparou com nenhum macho enlouquecido. Nenhum vagabundo à espreita, tampouco.

Levou algum tempo procurando a entrada da caverna, apesar de ter estado ali no dia anterior. Fez bastante barulho ao se aproximar, mas ficou do lado de fora e gritou, por precaução.

- Olá, alguém na caverna? Nenhuma resposta. Aproximou-se da entrada pelo lado, pressionando para trás as tojeiras que a encobriam com o antebraço, pronto para o caso de o vagabundo estar espreitando de dentro da caverna - mas pôde ver assim que o ar úmido tocou seu rosto que o lugar estava vazio. Ainda assim, enfiou a cabeça pela abertura, depois se lançou para dentro da caverna. Era seca, para uma caverna nas Highlands, o que não era dizer pouco. Porém fria como um túmulo. Não era de admirar que os habitantes das Highlands tivessem fama de resistentes; qualquer um que não fosse teria sucumbido à fome ou pneumonia em pouco tempo.

Apesar da friagem do lugar, ficou parado por um minuto, imaginando seu sogro ali. Era vazia e fria, mas estranhamente tranquila, pensou. Nenhuma sensação de mau presságio... Na realidade, sentia-se... bem-vindo, e a ideia fez os pelos de seus braços se arrepiarem.

- Fazei, Senhor, com que eles estejam bem - disse serenamente, a mão pousada na pedra da entrada. Em seguida, içou-se para fora, para a bênção do calor do sol.

A estranha sensação de boas-vindas, ou de ter sido de alguma forma reconhecido, permaneceu com ele.

- Bem, e agora, athair-céile? - disse em voz alta, quase de brincadeira. - Algum outro lugar onde eu deva procurar?

Mesmo enquanto dizia isso, percebeu que ele estava procurando. No topo da colina ao lado estava o monte de pedras de que Brianna lhe falara. Feito pelo homem, ela dissera, e achou que se tratasse de um forte da Idade do Ferro. Não parecia restar muito do que quer que tenha sido para oferecer abrigo a alguém, mas, por pura inquietação, desceu pelo meio do emaranhado de pedras desmoronadas e urzes da encosta, chapinhou por um regato que gorgolejava pela rocha no pé da colina e começou a subir a outra colina, na direção do monte de escombros antigos.

Era realmente antigo - mas não tanto quanto a Idade do Ferro. O que encontrou pareciam as ruínas de uma pequena capela; uma pedra no chão tinha uma cruz entalhada rusticamente e ele viu o que pareciam ser os fragmentos desgastados pelo tempo de uma estátua de pedra, espalhados na entrada. Havia mais do que ele imaginara a distância; uma das paredes ainda alcançava a altura de sua cintura e havia partes de duas outras. O telhado há muito havia desabado e desaparecido, mas um pedaço de uma viga de cumeeira ainda estava lá, a madeira dura como metal.

Enxugando o suor da nuca, agachou-se e pegou a cabeça da estátua. Muito antiga. Dos celtas, dos pictos? Não restava o suficiente nem para dizer o gênero da estátua.

Passou o polegar delicadamente sobre os olhos sem vida da estátua, depois colocou a cabeça cuidadosamente em cima da meia-parede; havia uma depressão ali, como se um dia tivesse havido um nicho na parede.

- OK - disse, sentindo-se estranho. - Até outra hora, então. - E, virando-se, desceu a encosta acidentada da colina na direção da casa, ainda com a estranha sensação de estar sendo acompanhado.

A Bíblia diz "Procura e encontrarás", pensou. E disse em voz alta para o ar estimulante:

- Mas não há nenhuma garantia sobre o que vai encontrar, não é?

 

                   CONVERSA COM UM DIRETOR DE ESCOLA

Depois de um tranquilo almoço com Mandy, que parecia ter esquecido tudo sobre seus pesadelos, vestiu-se com certo esmero para sua reunião com o diretor da escola de Jem.

O sr. Menzies foi uma surpresa; Roger não pensara em perguntar a Bri como era o sujeito e esperava alguém atarracado, de meia-idade e autoritário, mais ou menos como o diretor de sua própria escola. Em vez disso, Menzies tinha aproximadamente a mesma idade de Roger, um homem magro, de pele clara, óculos e o que pareciam ser olhos bem-humorados por trás deles. Mas Roger não deixou de notar a linha firme da boca e achou que fizera bem em não deixar Bri ir falar com ele.

- Lionel Menzies - o diretor disse, sorrindo. Tinha um aperto de mão firme e um ar amistoso, e Roger começou a refazer a sua estratégia.

- Roger Mackenzie. - Soltou a mão e aceitou a cadeira oferecida, do outro lado da mesa de Menzies. - O pai de Jem... Jeremiah.

- Oh, sim, claro. Imaginei que veria o senhor ou sua esposa, quando Jem não apareceu na escola esta manhã. - Menzies reclinou-se um pouco para trás, entrelaçando as mãos. - Antes que a gente vá mais adiante... posso lhe perguntar exatamente o que Jem lhe contou sobre o que aconteceu?

A opinião de Roger sobre o sujeito elevou-se um ponto, a contragosto. - Ele disse que a professora ouviu-o dizer alguma coisa a outro menino em gaélico, quando então ela o agarrou pela orelha e sacudiu-o. Isso o deixou furioso e ele a xingou, também em gaélico, razão pela qual o senhor bateu nele com uma cinta. - Ele vira a cinta, discretamente pendurada na parede ao lado de um armário de arquivo, mas visível ainda assim.

As sobrancelhas de Menzie ergueram-se por trás dos óculos.

- Não foi isso que aconteceu? - Roger perguntou, imaginando pela primeira vez se Jem teria mentido ou omitido alguma coisa ainda mais terrível em seu relato.

- Não, foi exatamente isso que aconteceu - Menzies disse. - É que eu nunca ouvi um pai fazer um relato tão conciso. Em geral eles fazem uma meia hora de prólogo, com irrelevantes relatos cheios de contradições, isso quando ambos os pais vêm, e ataques pessoais antes que eu possa descobrir exatamente qual é o problema. Obrigado. - Sorriu e, a despeito de si mesmo, Roger devolveu o sorriso. - Lamentei muito ter que fazer isso - Menzies continuou, sem parar para uma resposta. - Gosto de Jem. Ele é inteligente, esforçado... e realmente engraçado.

- É, sim - Roger disse. - Mas...

- Mas não tive escolha, na verdade - Menzies interrompeu-o com firmeza. - Se nenhum dos outros alunos soubesse o que ele estava dizendo, poderíamos resolver tudo com um simples pedido de desculpas. Mas... ele lhe disse o que ele falou?

- Não com detalhes, não. - Roger não perguntara; ele ouvira Jamie Fraser insultar alguém em gaélico apenas três ou quatro vezes, mas foi uma experiência memorável, e Jem tinha uma excelente memória.

- Bem, não o farei, tampouco, a menos que insista. Mas o problema é que, apesar de somente algumas das crianças no pátio serem capazes de entender o que ele disse, elas contariam... bem, de fato, contaram... a todos os seus colegas exatamente o que ele disse. E eles sabem que eu também entendi. Tenho que apoiar a autoridade de meus professores; se não houver respeito pela equipe, o lugar inteiro vira um inferno... Sua esposa me disse que o senhor também leciona? Em Oxford, se não me engano? É esplêndido.

- Isso foi há alguns anos e eu era apenas um professor-assistente. E entendo o que está dizendo, embora eu infelizmente tivesse que manter a ordem e o respeito sem a ameaça de força física. - Não que ele não tivesse adorado poder dar um soco no nariz de um ou dois de seus alunos do segundo ano em Oxford...

Menzies examinou-o com uma ligeira piscadela.

- Eu diria que sua presença foi provavelmente adequada - ele disse. - E, considerando que o senhor tem o dobro do meu tamanho, fico satisfeito em saber que não é inclinado a usar de força.

- Alguns dos outros pais são? - Roger perguntou, erguendo as próprias sobrancelhas.

- Bem, nenhum pai realmente me agrediu, não, embora tenha sido ameaçado uma ou duas vezes. Mas uma das mães realmente entrou aqui com a espingarda da família. - Menzies inclinou a cabeça indicando a parede atrás dele e, levantando os olhos, Roger viu um leque de pontos pretos no reboco, a maior parte - mas não todos - coberta por um mapa emoldurado da África.

- Disparada acima de sua cabeça, ao menos - Roger disse secamente, e Menzies riu.

- Bem, não - ele disse, protestando. - Eu lhe pedi encarecidamente para abaixar a arma com todo o cuidado, e ela o fez, mas não muito cuidadosamente. Esbarrou no gatilho de alguma forma e bum! A pobre mulher ficou realmente consternada, embora não tanto quanto eu.

- O senhor é bom nisso - Roger disse, sorrindo em reconhecimento das habilidades de Menzies em lidar com pais difíceis, inclusive Roger, mas inclinando-se um pouco para a frente para indicar que pretendia assumir o controle da conversa. - Mas não estou, ao menos ainda não, reclamando por ter batido em Jem. Mas pelo que o levou a isso.

Menzies inspirou fundo e balançou a cabeça, colocando os cotovelos na mesa e unindo as mãos.

- Sim, certo.

- Compreendo que tenha que apoiar seus professores - Roger disse, colocando as próprias mãos sobre a escrivaninha. - Mas essa mulher quase arrancou a orelha do meu filho e evidentemente por nenhum crime maior do que dizer algumas palavras, não xingamentos, apenas palavras, em gaidhlig.

Os olhos de Menzies aguçaram-se, notando o sotaque.

- Ah, o senhor sabe gaélico. Eu me perguntei se seria o senhor ou sua esposa que sabia gaélico.

- O senhor faz parecer como se fosse uma doença. Minha mulher é americana, certamente notou, não?

Menzies lançou-lhe um olhar divertido - ninguém deixava de notar Brianna - , mas disse apenas:

- Sim, notei. Mas ela me disse que o pai era escocês, e das Highlands. Vocês falam gaélico em casa?

- Não, não muito. Jem aprendeu com o avô. Ele... não está mais conosco - acrescentou.

Menzies balançou a cabeça.

- Ah! - exclamou baixinho. - Sim, eu também aprendi com meus avós, a família de minha mãe. Também já falecidos. Eram de Skye. - A pergunta implícita pairou no ar e Roger respondeu-a.

- Nasci em Kyle de Lochalsh, mas cresci em Inverness. Aprendi a maior parte do meu gaélico nos barcos de pesca no Minch. - E nas montanhas da Carolina do Norte.

Menzies balançou a cabeça outra vez, pela primeira vez abaixando os olhos para as próprias mãos e não olhando diretamente para Roger.

- Esteve em um barco de pesca nos últimos vinte anos?

- Não, graças a Deus.

Menzies sorriu ligeiramente, mas não ergueu os olhos.

- Não se encontra muito gaélico lá atualmente. Espanhol, polonês, estoniano... muito desses, mas não gaélico. Sua esposa disse que o senhor passou muitos anos nos Estados Unidos, então talvez não tenha notado, mas não é muito falado em público hoje em dia.

- Para ser franco, não prestei muita atenção nisso, não até agora. Menzies balançou a cabeça outra vez, como para si mesmo, em seguida tirou os óculos e esfregou as marcas que deixaram no cavalete de seu nariz. Seus olhos eram azul-claros e repentinamente pareceram vulneráveis, sem a proteção das lentes.

- Está em declínio há muitos anos. Principalmente nos últimos dez, quinze anos. As Highlands de repente fazem parte do Reino Unido, ou ao menos é o que diz o resto do Reino Unido, de uma maneira como nunca aconteceu antes, e manter uma língua à parte é visto não só como antiquado, mas totalmente destrutivo. Não é o que se poderia chamar de uma política oficial, para exterminar o gaélico, mas o uso da língua é muito... desencorajado... nas escolas. Veja bem - ele ergueu a mão para impedir a resposta de Roger - , eles não conseguiriam seu intento se os pais protestassem, mas eles não o fazem.

A maioria está ansiosa para que seus filhos façam parte do mundo moderno, falem perfeitamente inglês, consigam bons empregos, adaptem-se em outro lugar, possam deixar as Highlands... Não há muita coisa para eles aqui, fora o mar do Norte, não é?

- Os pais... - Se aprenderam o gaélico com seus próprios pais, eles propositalmente não o ensinam a seus filhos. E se não sabem gaélico, certamente não fazem nenhum esforço para aprender. É visto como algo retrógrado, ignorante. É sem dúvida uma marca das classes mais baixas.

- Bárbaras, na realidade - Roger disse, incisivamente.

- O bárbaro erse? Menzies reconheceu a descrição pejorativa de Samuel Johnson da língua falada pelos seus anfitriões das Highlands no século XVIII, e um sorriso breve e pesaroso iluminou seu rosto outra vez.

- Exatamente. Há muito preconceito, a maior parte declarada, contra... - Teuchters? - "Teuchter" era um termo escocês das Lowlands da Escócia para alguém de Gaeltacht, as Highlands que falavam gaélico, e em termos culturais o equivalente geral de "caipira" ou "bronco".

- Ah, o senhor sabe, então.

- Alguma coisa. - Era verdade; mesmo nos recentes anos 1960 os que falavam gaélico eram vistos com certo desdém e menosprezo público, mas isto... Roger limpou a garganta.

- De qualquer forma, sr. Menzies - ele disse, carregando um pouco no "sr." - , eu me oponho enfaticamente a que a professora de meu filho não só o castigue por falar gaélico, mas que o agrida da maneira como fez.

- Compartilho sua preocupação, sr. Mackenzie - Menzies disse, erguendo os olhos e fitando-o diretamente de uma forma que o fazia parecer sincero. - Já tive uma palavrinha com a srta. Glendenning e creio que isso não se repetirá.

Roger enfrentou seu olhar por alguns instantes, querendo dizer todo tipo de coisas, mas compreendendo que Menzies não era responsável por quase nenhuma delas.

- Se acontecer - ele disse sem se alterar - , não vou voltar com uma espingarda, mas com o xerife. E um fotógrafo de jornal para documentar a srta. Glendenning sendo levada algemada.

Menzies pestanejou uma vez e recolocou os óculos.

- Tem certeza de que não prefere mandar sua mulher com a espingarda da família? - ele perguntou esperançosamente, e Roger teve que rir, a contragosto. - Muito bem, então. - Menzies empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Eu o acompanho. Tenho que trancar a escola. Veremos Jem na segunda-feira, então, não é?

- Ele estará aqui. Com ou sem algemas.

Menzies riu.

- Bem, ele não precisa se preocupar com a recepção que terá. Como as crianças que falam gaélico contaram aos amigos o que ele disse, e o fato de que ele apanhou sem dar um pio, acho que a classe inteira agora o encara como um Robin Hood ou Billy Jack.

- Oh, Deus.

 

                   NAVIOS QUE PASSAM À NOITE

19 de maio de 1777

O tubarão tinha facilmente quatro metros de comprimento, uma figura escura, sinuosa, acompanhando o navio, quase invisível em meio às águas cinzentas agitadas pela tormenta. Aparecera repentinamente logo antes do meio-dia, assustando-me, quando olhei por cima da amurada e vi sua barbatana cortando a superfície.

- O que há de errado com a cabeça dele? - Jamie, surgindo em resposta ao meu grito de susto, olhou para as águas escuras franzindo o cenho. - Tem uma espécie de protuberância.

- Acho que é o tipo que chamam de tubarão-martelo. - Agarrei-me com força à balaustrada, escorregadia com os respingos da água. A cabeça realmente parecia deformada: uma coisa rombuda, desajeitada, estranha na extremidade de um corpo sinistramente gracioso. No entanto, enquanto observávamos, o tubarão se aproximou da superfície e rolou, trazendo uma projeção carnuda com seu olho frio e distante momentaneamente para fora da água.

Jamie emitiu um som de horrorizada repugnância.

- Essa é a aparência normal deles - informei a ele.

- Por quê?

- Acho que Deus estava se sentindo entediado certo dia. - Isso o fez rir e olhei-o com aprovação. Estava corado e bem-disposto, e comera com tal apetite no café da manhã que eu achei que poderia dispensar as agulhas de acupuntura.

- Qual foi a coisa mais estranha que você já viu? Um animal, quero dizer. Um animal não humano - acrescentei, pensando na medonha coleção de deformidades e "curiosidades naturais" que o dr. Fentiman mantinha em conserva.

- Estranho por si mesmo? Não deformado, quero dizer, mas como Deus quis que ele fosse? - Estreitou os olhos para o mar, pensando, depois abriu um largo sorriso. - O mandril no zoológico de Luís da França. Ou... bem, não. Talvez um rinoceronte, embora eu não tenha visto um em carne e osso. Isso conta?

- Digamos alguma coisa que você tenha visto pessoalmente - eu disse, pensando em algumas gravuras de animais que eu vira nesta época, os quais pareciam ter sido profundamente afetados pela imaginação do artista. - Você achou o mandril mais estranho do que o orangotango? - Lembrei-me de seu fascínio pelo orangotango, um jovem animal de expressão solene que parecera igualmente fascinado por ele, o que levou a uma série de piadas relativas à origem dos cabelos ruivos por parte do duque d'Orleans, presente na ocasião.

- Não, já vi muita gente que parecia mais estranha do que um orangotango - ele disse. O vento mudara de direção, arrancando mechas de cabelos ruivos de sua fita. Ele virou-se de frente para o vento e alisou-as para trás, ficando Um pouco mais sério. - Eu senti pena da criatura; parecia saber que estava sozinho e talvez jamais visse outro de sua espécie outra vez.

- Talvez ele realmente achasse que você era um de sua espécie - sugeri. - Ele pareceu gostar de você.

- Era uma meiga criatura - ele concordou. - Quando lhe dei a laranja, ele tomou a fruta da minha mão como um cristão, muito educadamente. Você acha... - Sua voz definhou, os olhos tornando-se vagos.

- Eu acho...?

- Oh. Eu só estava pensando - ele olhou rapidamente por cima do ombro, mas estávamos fora do alcance dos ouvidos dos marinheiros - no que Roger Mac disse sobre a França ser importante para a Revolução. Pensei em fazer umas perguntas, quando estivermos em Edimburgo. Ver se alguma das pessoas que eu conheci tem ligações na França... - Ergueu um dos ombros.

- Você não está pensando em realmente ir à França, está? - perguntei, repentinamente desconfiada.

- Não, não - respondeu apressadamente. - Só pensei... se por acaso fôssemos, será que o orangotango ainda estaria lá? Já faz muito tempo, mas eu não sei quanto tempo eles vivem.

- Não tanto quanto as pessoas, creio que não, mas podem viver bastante tempo, se receberem bons cuidados - eu disse, em dúvida. A dúvida não se devia apenas ao orangotango. Voltar à corte francesa? A mera hipótese fez meu estômago dar uma reviravolta.

- Ele está morto, sabe - Jamie disse serenamente. Virou a cabeça para olhar para mim, os olhos firmes. - Luís.

- Está? - eu disse, inexpressivamente. - Eu... quando? Ele abaixou a cabeça e emitiu um pequeno ruído que podia ser uma risada.

- Morreu há três anos, Sassenach - disse, secamente. - Estava nos jornais. Embora, devo admitir, o Wilmington Gazette não tenha dado grande importância ao assunto.

- Não notei. - Olhei para baixo, para o tubarão, ainda pacientemente acompanhando o navio. Meu coração, após o salto inicial de surpresa, relaxara. Minha reação geral, na realidade, era de agradecimento, e isso em si de certa forma me surpreendeu.

Eu já havia feito as pazes com minha lembrança de ter compartilhado a cama de Luís - pelos dez minutos que foram necessários - há muito tempo, e Jamie e eu há muito havíamos feito as pazes, voltando-nos um para o outro no rastro da perda de nossa primeira filha, Faith, e de todos os terríveis acontecimentos que tiveram lugar na França antes do Levante.

Não que saber da morte de Luís fizesse qualquer diferença real - mas ainda assim eu tive uma sensação de alívio, como se uma música enervante que vinha tocando ao longe tivesse finalmente terminado, de forma graciosa, e agora o silêncio da paz cantasse para mim no vento.

- Que Deus guarde sua alma - eu disse, um pouco tardiamente. Jamie sorriu e colocou a mão sobre a minha.

- Pois shiorruidh thoir dha - ele ecoou. Que Deus guarde sua alma. - Faz a gente pensar, não? Como será para um rei ficar diante de Deus e responder por sua vida. Deve ser muito pior, quero dizer, ter que responder por todas as pessoas sob seus cuidados.

- Acha que ele teria? - perguntei, intrigada e um pouco desconfortável com a ideia. Eu não conhecera Luís de nenhuma maneira mais íntima, salvo o óbvio, e isso pareceu menos íntimo do que um aperto de mão; ele nunca sequer me olhou nos olhos, mas não parecera um homem consumido de preocupação com seus súditos. - Uma pessoa pode realmente ter que responder pelo bem-estar de todo um reino? Não seriam apenas seus próprios pecadilhos, você acha?

Ele considerou a pergunta com seriedade, os dedos rígidos da mão direita tamborilando devagar no corrimão escorregadio.

- Acho que sim - ele disse. - Você responderia pelo que fez à sua família, não? Digamos que você tivesse cuidado mal de seus filhos, os tivesse abandonado ou deixado que passassem fome. Certamente, isso iria pesar contra a sua alma, pois você é responsável por eles. Se você nasce um rei, você recebe responsabilidade pelos seus súditos. Se você os trata mal, então...

- Bem, mas onde isso termina? - protestei. - Suponha que você aja bem com uma pessoa e mal com outra? Suponha que você tenha pessoas sob seus cuidados, por assim dizer, e suas necessidades sejam contrárias umas às outras? O que me diz disso?

Ele abriu um sorriso.

- Eu diria que fico muito feliz por não ser Deus e não ter que tentar decifrar coisas desse tipo.

Fiquei em silêncio por um instante, imaginando Luís diante de Deus, tentando explicar aqueles dez minutos comigo. Tenho certeza de que ele achava que tinha o direito - os reis, afinal, eram reis - , mas, por outro lado, tanto o sétimo quanto o nono mandamento eram bastante explícitos e não pareciam ter nenhuma cláusula eximindo a realeza.

- Se você estivesse lá - eu disse impulsivamente - , no céu, observando esse julgamento... você o perdoaria? Eu perdoaria.

- Quem? - ele disse, surpreso. - Luís? - Balancei a cabeça e ele franziu a testa, esfregando um dedo devagar pelo cavalete do nariz. Em seguida, suspirou e balançou a cabeça. - Sim, perdoaria. Mas não me incomodaria de vê-lo se contorcer um pouco antes, veja bem - acrescentou, soturnamente. - Uma fisgada com o garfo no traseiro seria bom.

Ri diante disso, mas antes que pudesse acrescentar qualquer coisa fomos interrompidos por um grito de "Vela à vista!" vindo de cima. Se no instante anterior estávamos sozinhos, esse aviso fez os marinheiros surgirem de escotilhas e escadas de tombadilho como gorgulhos de biscoitos de navio, invadindo o cordame como um enxame para ver o que estava acontecendo.

Apertei os olhos, mas não havia nada imediatamente visível. O Jovem Ian, entretanto, subira com os outros e agora aterrissava no convés com uma pancada. Estava corado pelo vento e pela empolgação.

- Um navio pequeno, mas com canhões - disse a Jamie. - E a Union Jack desfraldada.

- É um cúter naval - disse o capitão Roberts, que surgira no meu outro lado e espreitava com uma carranca através do telescópio. - Merda.

A mão de Jamie dirigiu-se à sua adaga, inconscientemente verificando, e ele olhou por cima do ombro do capitão, os olhos apertados contra o vento. Eu podia ver a vela agora, aproximando-se rapidamente a estibordo.

- Podemos correr mais rápido do que ele, capitão? - O imediato juntara-se ao grupo na amurada, observando o navio que se aproximava. De fato, possuía canhões; seis, que eu pudesse ver - e havia homens por trás deles.

O capitão ponderou, distraidamente abrindo e fechando sua lente com uma série de diques, depois levantou os olhos para o cordame, provavelmente avaliando as chances de inflar bastante as velas para deixar o perseguidor para trás. O mastro principal estava rachado; ele pretendia substituí-lo em New Haven.

- Não - ele disse soturnamente. - O mastro principal vai ceder se for colocada muita pressão sobre ele. - Fechou o telescópio com um dique decisivo e guardou-o no bolso. - Temos que enfrentá-lo, da melhor forma possível.

Perguntei-me exatamente quanto da carga do capitão Roberts seria contrabando. Seu rosto taciturno não revelava nada, mas havia um distinto ar de nervosismo em suas mãos, que aumentou notoriamente quando o cúter alinhou-se com o navio, saudando-o.

Roberts deu a ordem sucinta para parar e as velas se afrouxaram, o navio diminuindo imediatamente a velocidade. Eu podia ver marinheiros junto aos canhões e à balaustrada do cúter; olhando de lado para Jamie, vi que ele os contava e olhei de volta.

- Contei dezesseis - Ian disse, num sussurro.

- Com poucos homens, droga - disse o capitão. Olhou para Ian, estimando seu tamanho e sacudiu a cabeça. - Provavelmente vão recrutar à força, tentar levar o máximo que puderem. Sinto muito, rapaz.

A sensação um pouco indefinida de perigo que eu senti à aproximação do cúter intensificou-se abruptamente diante das palavras do capitão - e aumentou ainda mais quando vi Roberts olhar para Jamie de forma avaliadora.

- Você não acha que eles - comecei a dizer.

- Uma pena que tenha feito a barba esta manhã, sr. Fraser - Roberts comentou para Jamie, ignorando-me. - Tirou vinte anos de sua idade. E parece bem mais saudável do que outros homens com a metade de sua idade.

- Agradeço o elogio, senhor - Jamie retrucou secamente, um dos olhos na balaustrada, onde o chapéu bicorne do capitão do cúter surgira repentinamente como um cogumelo agourento. Ele desafivelou seu cinto, soltou a bainha da adaga e a entregou a mim.

- Segure isso para mim, Sassenach - ele disse baixinho, afivelando o cintooutra vez.

O capitão do cúter, um homem atarracado de meia-idade, com uma carranca mal-humorada e um par de calças muito remendadas, lançou um olhar rápido e incisivo ao redor do convés quando subiu a bordo, balançou a cabeça para si mesmo, como se suas piores suspeitas tivessem sido confirmadas, depois gritou por cima do ombro para que seis homens o acompanhassem.

- Revistem o porão - disse a seus subordinados. - Sabem o que procurar.

- Que modos são esses? - o capitão Roberts indagou com raiva. - Não tem nenhum direito de revistar meu navio! O que acham que são, um bando de malditos piratas?

- Eu pareço um pirata? - O capitão do cúter ficou mais satisfeito do que insultado com a ideia.

- Bem, certamente você não pode ser um capitão naval - Roberts disse friamente. - Sempre achei a Marinha de Sua Majestade um amável e educado grupo de indivíduos. Não do tipo que aborda um negociante respeitável sem permissão, muito menos sem a devida apresentação.

O capitão do cúter pareceu achar aquilo engraçado. Tirou o chapéu e fez uma mesura - para mim.

- Permita-me, madame - ele disse. - Capitão Worth Stebbings, seu humilde criado. - Endireitou-se, recolocando o chapéu, e fez sinal com a cabeça para seu tenente. - Vasculhem o porão rapidamente. E você - cutucou o peito de Roberts com o dedo indicador - coloque todos os seus homens no convés, na frente e no centro, idiota. Todos eles, veja bem. Se eu tiver que arrastá-los aqui para cima, não vou ficar nem um pouco satisfeito, estou avisando.

Seguiram-se tremendas batidas e pancadas embaixo, com marinheiros surgindo periodicamente pari informar o capitão Stebbings de suas descobertas. O capitão, reclinado contra a amurada, observava enquanto os homens do Teal eram recolhidos e amontoados no convés - Ian e Jamie entre eles.

- Ora, vamos! - O capitão Roberts era corajoso, justiça seja feita. - O sr. Fraser e seu sobrinho não fazem parte da tripulação; são passageiros pagantes! Não tem o direito de molestar cidadãos livres, cuidando de seus negócios legítimos. Nem tampouco o direito de raptar minha tripulação!

- São súditos ingleses - Stebbings informou-o laconicamente. - Tenho todo direito. Ou todos vocês se consideram americanos? - Fitou-os com um olhar malicioso ao dizer isso; se o navio fosse considerado uma embarcação rebelde, ele podia simplesmente apoderar-se de tudo como prêmio, despojos de guerra: tripulação, carga e tudo o mais.

Um murmúrio percorreu os homens no convés e eu vi os olhos de mais de um dos marujos dardejarem para as malaguetas ao longo da balaustrada. Stebbings também viu e gritou por cima da amurada para que mais quatro homens fossem trazidos a bordo - com armas.

Dezesseis menos seis menos quatro são seis, pensei, aproximando-me sorrateiramente da balaustrada para espreitar dentro do cúter balançando nas ondas um pouco abaixo e amarrado ao Teal por um cabo. Se os dezesseis não incluírem o capitão Stebbings. Se incluem...

Havia um único homem no leme, este não sendo uma roda, mas uma espécie de arranjo de alavancas projetando-se do assoalho do convés. Mais dois manipulavam um canhão, uma arma longa, de bronze, na proa, apontando para a lateral do Teal. Onde estavam os outros? Dois no convés. Os outros talvez embaixo.

O capitão Roberts continuava reclamando com Stebbings atrás de mim, mas a tripulação do cúter estava rolando barris e pacotes pelo convés, pedindo uma corda para abaixar o espólio para o cúter. Olhei para trás e vi Stebbings andando ao longo da fileira de tripulantes, indicando suas escolhas para quatro homens musculosos que o seguiam. Estes arrancavam os escolhidos da fileira e os amarravam juntos, uma corda indo de tornozelo em tornozelo. Três homens já haviam sido escolhidos, John Smith entre eles, pálido e tenso. Meu coração deu um salto ao vê-lo, depois quase parou por completo quando Stebbings aproximou-se de Ian, que abaixou os olhos para ele impassivelmente.

- Apto, apto - Stebbings disse com aprovação. - Um filho da mãe petulante, ao que parece, mas logo o amansaremos. Levem-no!

Vi os músculos dos antebraços de Ian se avolumarem conforme seus punhos se cerravam, mas o bando a cargo do recrutamento forçado estava armado, dois com as pistolas engatilhadas, e ele deu um passo à frente, embora com um olhar maligno que teria feito um homem mais sensato pensar duas vezes. Eu já observara que o capitão Stebbings não era um homem sensato.

Stebbings recrutou mais dois, depois parou diante de Jamie, olhando-o de cima a baixo. O rosto de Jamie mantinha-se cuidadosamente inescrutável. E ligeiramente esverdeado; o vento ainda soprava e, sem nenhum movimento para frente no navio, ele subia e descia pesadamente, com um balanço que teria desconcertado mesmo um marinheiro muito melhor do que ele.

- Este é forte, senhor - disse um do bando, com aprovação.

- Um pouco velho - Stebbings disse, em dúvida. - E não gosto muito da cara dele.

- Eu também não gosto da sua - Jamie disse, sem se alterar. Empertigou-se, endireitando os ombros, e olhou para baixo, para Stebbings, pela linha longa e reta do cavalete de seu nariz. - Se eu já não soubesse que é um grande covarde pelos seus atos, senhor, o tomaria por um lambe-botas e um retardado pela sua cara de idiota.

O rosto maligno de Stebbings ficou lívido de espanto, depois roxo de raiva. Um ou dois dos recrutadores riu pelas suas costas, embora apressadamente apagando essa expressão quando ele se virou.

- Levem-no - rosnou para os recrutadores, abrindo caminho na direção do fruto da pilhagem reunido junto à amurada. - E não deixem de derrubá-lo algumas vezes no caminho.

Fiquei paralisada de choque. Obviamente, Jamie não podia deixar que levassem Ian, mas sem dúvida também não pretendia me abandonar no meio do oceano Atlântico.

Nem mesmo com sua adaga no bolso amarrado sob a minha saia e a minha própria faca na bainha, presa ao redor de minha coxa.

O capitão Roberts observara esse pequeno desempenho boquiaberto, se por respeito ou assombro eu não saberia dizer. Era um homem baixo, um pouco rechonchudo, e obviamente não possuía a constituição adequada para o confronto físico, mas ele trancou o maxilar e avançou pesadamente para Stebbings, agarrando-o pela manga.

A tripulação empurrou os prisioneiros por cima da amurada. Não havia tempo para pensar em nada melhor. Agarrei a balaustrada e mais ou menos rolei por cima dela, as saias voando. Fiquei pendurada pelas mãos por um instante aterrador, sentindo meus dedos deslizarem pela madeira molhada, buscando com as pontas dos pés a escada de corda que a tripulação do cúter havia atirado por cima da balaustrada. Um balanço do navio atirou-me com força contra o costado, minhas mãos se soltaram, mergulhei no ar por um terrível momento e agarrei a escada de corda logo acima do convés do cúter.

A corda esfolara minha mão direita e parecia que arrancara toda a pele da palma da mão, mas não havia tempo para pensar nisso agora. A qualquer momento, um dos homens me veria e...

Calculando meu salto para a próxima subida do convés do cúter, soltei a escada e aterrissei como um saco de pedras. Uma dor aguda subiu por dentro do meu joelho direito, mas levantei-me atabalhoadamente, sendo lançada de um lado para o outro com a oscilação do convés, e me arremessei na direção da escada do tombadilho.

- Ei! Você! O que está fazendo? - Um dos canhoneiros me vira e me olhava boquiaberto, obviamente incapaz de decidir se deveria descer e lidar comigo ou permanecer com seu canhão. Seu parceiro olhou para mim por cima do ombro e berrou para que o primeiro permanecesse parado em seu lugar, aquilo não passava de um truque para desviar a atenção, ele disse. - Pare aí onde está, desgraçada!

Eu os ignorei, o coração batendo com tanta força que eu mal conseguia respirar. E agora? O que aconteceria? Jamie e Ian haviam desaparecido. - Jamie! - gritei, a plenos pulmões. - Estou aqui! - E em seguida corri na direção da corda que prendia o cúter ao Teal, puxando minhas saias para cima enquanto corria. Só fiz isso porque minhas saias haviam se embolado durante a minha humilhante descida e eu não conseguia encontrar a abertura onde enfiar a mão e pegar a faca em sua bainha na minha coxa, mas o ato em si pareceu desconcertar o timoneiro, que se virara com meu grito.

Ele ficou me olhando estupidamente, abrindo e fechando a boca, como um peixinho dourado, mas teve presença de espírito suficiente para manter a mão na cana do leme. Agarrei a corda e enfiei minha faca no nó, usando-a para soltar o laço apertado.

Roberts e sua tripulação, que Deus os abençoe, faziam um tremendo tumulto no Teal acima, abafando os gritos do timoneiro e dos canhoneiros. Um desses, com um olhar desesperado para o convés do Teal no alto, finalmente se decidiu e veio em minha direção, pulando da proa para baixo.

O que eu não daria por uma pistola neste momento?, pensei com raiva. Mas o que eu tinha era uma faca e eu a arranquei do nó parcialmente afrouxado e enfiei-a no peito do meu atacante com todas as forças que consegui. Seus olhos se arregalaram e eu senti a faca bater em osso e girar na minha mão, deslizando pela Página carne. Ele deu um grito agudo e caiu para trás, aterrissando no convés com um baque surdo e por pouco não levando minha faca com ele.

- Sinto muito - eu disse e, arfando, retomei meu trabalho no nó, a corda esgarçada agora suja de sangue. Havia barulho vindo das escadas agora. Jamie e Ian podiam não estar armados, mas meu palpite é que isso não faria muita diferença em um lugar confinado.

A corda soltou-se relutantemente. Desfiz o último laço e ela caiu, batendo contra o costado do Teal. Imediatamente, a corrente começou a distanciar as embarcações, o cúter, menor, deslizando pela grande chalupa. Não estávamos indo rápido, mas a ilusão ótica de velocidade me fez cambalear e eu me agarrei à balaustrada para me equilibrar.

O canhoneiro ferido ficara de pé e avançava para mim, cambaleando, mas furioso. Sangrava, mas não profusamente, e não estava de modo algum incapacitado. Afastei-me rapidamente para o lado e, olhando para a escada do tombadilho, fiquei imensamente aliviada ao ver Jamie saindo dela.

Ele me alcançou com três passos largos.

- Rápido, minha faca! Fitei-o estupidificada por um instante, mas depois me lembrei e, tateando rapidamente, consegui acessar meu bolso. Agarrei o cabo da adaga de Jamie, mas ela estava presa no tecido. Jamie agarrou e puxou a faca com um safanão, rasgando tanto o meu bolso quanto o cós da minha saia no processo, e arremeteu-se de volta para as entranhas do navio. Deixou-me para enfrentar um canhoneiro ferido, um canhoneiro não ferido agora descendo cautelosamente do seu posto e o timoneiro, que gritava histericamente para alguém fazer alguma coisa com algum tipo de vela.

Engoli em seco e segurei minha faca com todas as forças.

- Para trás - eu disse, na voz mais alta e autoritária que consegui. Considerando-se minha falta de ar, o vento e a algazarra reinante, duvido que me ouvissem. Por outro lado, não creio que fizesse qualquer diferença se me ouvissem. Arranquei minha saia pendurada com uma das mãos, agachei-me e ergui a faca de uma determinada maneira, pretendendo indicar que eu sabia o que fazer com ela. Eu sabia.

Ondas de calor percorriam minha pele e eu sentia o suor formigar meu couro cabeludo, secando imediatamente no vento frio. No entanto, o pânico passara; minha mente estava muito clara e muito distante.

Você não vai me tocar era a única coisa em minha mente. O homem que eu ferira mostrava-se cauteloso, demorando-se para trás. O outro canhoneiro não via nada mais além de uma mulher e não se deu ao trabalho de se armar, implesmente estendendo a mão para mim com um desdém furioso. Vi a faca mover-se para cima, rápida, e traçar um arco como se tivesse vontade própria, o brilho da lâmina embaçado de sangue quando talhou sua testa.

O sangue escorreu pelo seu rosto, cegando-o, ele deu um berro estrangulado de dor e perplexidade, e recuou, as duas mãos pressionadas, contra o rosto.

Hesitei por um instante, sem saber o que devia fazer em seguida, o sangue ainda latejando em minhas têmporas. O navio seguia à deriva, subindo e descendo nas ondas; senti a bainha pesada de ouro da minha saia arrastar-se pelas tábuas e puxei o cós rasgado para cima outra vez, irritada.

Então, vi uma malagueta enfiada em seu buraco na balaustrada, uma corda enrolada ao redor. Andei até lá, metendo a faca pela barbatana dos meus espartilhos por falta de um lugar melhor, segurei a malagueta com as duas mãos e soltei-a com um puxão. Segurando-a como um pequeno bastão de beisebol, inclinei-me para trás sobre um dos calcanhares e desferi um golpe com todas as minhas forças na cabeça do homem cujo rosto eu havia cortado. O pino de madeira ricocheteou de seu crânio com um barulho oco e ressonante, e ele saiu cambaleando, chocando-se contra o mastro como uma bola de bilhar.

O timoneiro, a essa altura, já estava farto. Abandonando o timão à própria sorte, largou seu posto atabalhoadamente e veio em minha direção como um macaco enfurecido, os dentes arreganhados, os braços para frente para me alcançar. Tentei atingi-lo com a malagueta, mas ela se deslocara em minha mão quando atingi o canhoneiro e agora escorregou, rolando para longe pelo convés que subia e descia, enquanto o timoneiro se atirava sobre mim.

Ele era pequeno e magro, mas seu peso me jogou para trás e fomos arremessados contra a balaustrada; minhas costas bateram com força contra ela, expulsando todo o ar dos meus pulmões, o impacto como uma sólida barra de choque sobre meus rins. Aquilo se transformou em segundos em uma vívida agonia e eu me contorci sob ele, deslizando para o chão. Ele veio comigo, lutando para me agarrar pela garganta com um único propósito. Eu me debatia, braços e mãos batendo em sua cabeça, os ossos de seu crânio machucando-me.

O vento rugia em meus ouvidos; eu não ouvia nada além de imprecações ofegantes, arfadas ásperas que podiam ser minhas ou dele, e então ele derrubou minhas mãos e me agarrou pelo pescoço, com apenas uma das mãos, o polegar pressionando com força sob meu maxilar.

Doía insuportavelmente e eu tentei golpeá-lo com o joelho, mas minhas pernas estavam enroscadas na minha saia e presas sob o peso do sujeito. Minha vista escureceu, com pequenas explosões de luz dourada disparando no meio da escuridão, minúsculos fogos de artifício anunciando minha morte. Alguém choramingava como um bebê e percebi turvamente que devia ser eu. A mão em meu pescoço apertou-se ainda mais e as luzes piscantes desfizeram-se no breu.

Acordei com a sensação confusa de estar simultaneamente aterrorizada e sendo embalada em um berço. Minha garganta doía e, quando tentei engolir, a dor resultante me fez engasgar.

- Você está bem, Sassenach. - A voz suave de Jamie veio das trevas ao meu redor. Onde eu estava? Sua mão apertou meu braço, acalmando-me.

- Eu... vou... acreditar em você - falei com um grasnido, o esforço fazendo meus olhos lacrimejarem. Tossi. Doeu, mas pareceu ajudar um pouco. - O que...?

- Tome um pouco de água, a nighean. - Sua mão enorme segurou minha cabeça, levantando-a um pouco, e a boca de um cantil pressionou-se contra meu lábio. Engolir a água doía também, mas não me importei; meus lábios e minha garganta estavam ressecados e sabiam a sal.

Meus olhos começavam a se acostumar à escuridão. Eu podia ver o vulto de Jamie, encurvado sob o teto baixo, e o formato dos caibros do telhado - não, das vigas - acima. Um cheiro forte de alcatrão e águas servidas. Navio. Claro, estávamos em um navio. Mas qual navio?

- Onde...? - sussurrei, abanando a mão.

- Não faço a menor ideia - ele disse, parecendo um pouco irritado. - O pessoal do Teal está manejando as velas, eu espero, e Ian está apontando uma pistola para um dos sujeitos da Marinha para fazê-lo pilotar, mas até onde eu saiba o desgraçado está nos levando direto para o meio do mar.

- Eu quis dizer... qual... navio. - No entanto, suas observações já haviam deixado isso muito claro; devíamos estar no cúter da Marinha.

- Disseram que o nome dele é Pin. - Muito apropriado, parece mesmo o inferno, como o nome faz lembrar. - Olhei desfocadamente ao redor do ambiente sujo e escuro, e minha sensação de realidade sofreu novo abalo quando vi uma enorme e mosqueada espécie de trouxa, aparentemente dependurada do ar turvo a alguns passos atrás de Jamie.

Sentei-me abruptamente - ou tentei, somente então percebendo que eu estava em uma rede.

Jamie agarrou-me pela cintura com um grito de alarme, a tempo de me salvar de cair de cabeça e, enquanto eu me firmava, agarrando-me a ele, percebi que aquilo que eu tomara por um enorme casulo era na verdade um homem, deitado em outra rede suspensa das vigas, mas amarrado dentro dela como o jantar de uma aranha, e amordaçado. Seu rosto pressionava-se contra a trama da rede, fuzilando-me com os olhos.

- Jesus H. Roosevelt... - coaxei, e deitei-me, respirando pesadamente.

- Quer descansar um pouco, Sassenach, ou devo colocá-la de pé? - Jamie perguntou, obviamente tenso. - Não quero deixar Ian sozinho muito tempo.

- Não - respondi, esforçando-me novamente para me levantar. - Ajude-me a sair daqui, por favor. - O cômodo, cabina ou o que quer que fosse girou ao meu redor e fui obrigada a me agarrar a Jamie com os olhos fechados por um instante, até meu giroscópio interior se estabilizar. - Capitão Roberts? - perguntei. - O Teal?

- Só Deus sabe - Jamie disse, sucintamente. - Nós o procuramos assim que consegui fazer os homens velejarem o barco. Pelo que sei, eles estão no nosso rastro, mas não consegui ver nada quando olhei a ré.

Eu começava a me sentir mais estável, embora o sangue ainda latejasse dolorosamente em minha garganta e têmporas a cada batimento cardíaco, e eu podia sentir os lugares machucados nos meus cotovelos e ombros, e uma nítida faixa atravessando minhas costas onde eu me chocara contra a balaustrada.

- Prendemos a maior parte da tripulação no porão - Jamie disse, com um sinal da cabeça indicando o homem na rede - , exceto por esse sujeito. Eu não sabia se você ia querer dar uma olhada nele primeiro. Como médica, quero dizer - acrescentou, ao ver minha momentânea incompreensão. - Embora eu não ache que ele esteja gravemente ferido.

Aproximei-me do sujeito na rede e vi que era o timoneiro que tentara me estrangular. Via-se um grande calombo em sua testa e ele tinha o começo de um monstruoso olho roxo, mas até onde eu podia ver, inclinando-me para perto na luz turva, suas pupilas estavam do mesmo tamanho e, descontando-se o pano enfiado em sua boca, sua respiração estava bem regular. Provavelmente sem ferimentos graves, portanto. Fiquei parada por um instante, fitando-o. Era difícil dizer - a única luz na coberta vinha de um prisma embutido no convés em cima-, mas eu achei que talvez o que eu julgara ser um olhar de ódio era na verdade apenas um olhar de desespero.

- Você precisa fazer xixi? - perguntei educadamente. O homem e Jamie fizeram ruídos quase idênticos, apesar de no primeiro caso ser um gemido de necessidade e, no caso de Jamie, de exasperação.

- Pelo amor de Deus! - ele disse, agarrando meu braço quando comecei a estender a mão para o sujeito. - Eu me encarrego dele. Vá para cima. - Ficou claro pelo tom exasperado de sua voz que ele atingira o estágio da última gota d'água e não adiantaria discutir com ele. Saí, subindo cautelosamente a escada ao acompanhamento de uma enxurrada de murmúrios em gaélico que eu não tentei traduzir.

O vento fustigante em cima foi suficiente para me fazer cambalear perigosamente quando agitou as minhas saias, mas agarrei-me firmemente a uma corda, deixando o ar fresco clarear minha cabeça antes de me sentir em condições de me dirigir à popa do navio. Lá, encontrei Ian, como anunciado, sentado em um barril, uma pistola carregada mantida negligentemente em cima de um joelho, evidentemente entabulando uma conversa amigável com o marujo ao leme.

- Tia Claire! Você está bem? - ele perguntou, ficando de pé num salto e gesticulando para que eu me sentasse no barril.

- Estou bem - eu disse, sentando-me. Eu não achava que houvesse torcido alguma coisa em meu joelho, mas eu o sentia um pouco vacilante. - Claire Fraser - eu disse, balançando a cabeça educadamente para o homem ao leme, que era negro e tinha tatuagens elaboradas no rosto, apesar de estar vestido Com roupas baratas de marinheiro comum do pescoço para baixo.

- Guiné Dick - ele disse, com um largo sorriso que exibiu dentes lixados - , seu criado, madame - acrescentou, com forte sotaque.

Fitei-o de boca aberta por um instante, mas depois recobrei um arremedo de compostura e sorri para ele.

- Vejo que Sua Majestade pega seus marinheiros em qualquer lugar que lhe seja possível - murmurei para Ian.

- É verdade. O sr. Dick aqui foi tirado de um navio pirata da Guiné, que o raptou de um navio negreiro, que por sua vez o pegou de um armazém de escravos na costa da Guiné. Não tenho muita certeza se ele acha que as acomodações de Sua Majestade são uma melhoria, mas ele diz que não faz nenhuma reserva sobre ir conosco.

- Você confia nele? - perguntei, em um gaélico claudicante.

Ian me lançou um olhar ligeiramente escandalizado.

- Claro que não - respondeu na mesma língua. - E por favor não se aproxime muito dele, mulher do irmão de minha mãe. Ele me disse que não come carne humana, mas isso não é garantia de que seja confiável.

- Sei - eu disse, retornando ao inglês. - O que aconteceu a... Antes que eu pudesse terminar a frase, uma forte pancada no convés me fez virar, deparando-me com John Smith, aquele dos cinco brincos de ouro, que saltara do cordame. Ele, também, sorriu ao me ver, embora seu rosto estivesse tenso.

- Tudo bem até agora - ele disse a Ian, tocando em seu topete para mim. - Tudo bem com a senhora?

- Sim. - Olhei para a ré, mas não vi nada além de vagalhões. O mesmo em todas as outras direções também. - Hã... sabe para onde estamos indo, sr. Smith?

Ele pareceu um pouco surpreso.

- Bem, não, senhora. O capitão não disse.

- O cap...

- É tio Jamie - Ian disse, achando graça. - Está lá embaixo botando os bofes para fora?

- Não na última vez em que o vi. - Comecei a sentir uma sensação estranha na base da minha espinha dorsal. - Está me dizendo que ninguém a bordo deste navio tem nenhuma ideia de para onde, ou ao menos em que direção, estamos indo?

A pergunta foi recebida com um silêncio eloquente. Tossi. - O, hum, canhoneiro. Não aquele com um corte na testa, o outro. Onde ele está, vocês sabem?

Ian virou-se e olhou para a água.

- Oh - eu disse. Havia uma grande mancha de sangue no convés onde o homem caíra quando eu o esfaqueei. - Oh - eu disse outra vez.

- Oh, o que me faz lembrar, tia. Encontrei isto aqui no convés. - Ian tirou minha faca de seu cinto e entregou-a a mim. Tinha sido limpa, percebi.

- Obrigada. - Enfiei-a pela abertura em minhas anáguas e encontrei a bainha da faca, ainda amarrada ao redor de minha coxa, embora alguém tivesse removido minha saia rasgada e o bolso. Pensando no ouro na bainha, esperava que tivesse sido Jamie. Sentia-me estranha, como se meus ossos estivessem cheios de ar. Tossi e engoli em seco outra vez, massageando minha garganta dolorida, depois retornei à minha questão anterior. - Então ninguém sabe para onde estamos indo?

John Smith sorriu ligeiramente.

- Bem, não estamos indo na direção do mar aberto, se é isso que a senhora temia.

- Sim, na verdade, era. Como você sabe?

Os três sorriram diante da pergunta.

- "Sol estar lá" - o sr. Dick disse, sacudindo o ombro na direção do objeto em questão. Balançou a cabeça na mesma direção. - "Então, ele descer lá também.

- Ah. - Bem, isso era tranquilizador, sem dúvida. E de fato, já que o "sol" estar lá, isto é, descendo rapidamente no oeste, isso significava que estávamos na realidade indo para o norte.

Nesse momento, Jamie uniu-se ao grupo, muito pálido.

- Capitão Fraser - Smith disse respeitosamente.

- Sr. Smith.

- Ordens, capitão?

Jamie olhou para ele, desoladamente.

- Ficarei satisfeito se não afundarmos. Pode conseguir isso?

O sr. Smith não se deu ao trabalho de disfarçar o sorriso.

- Se não batermos em outro navio ou em uma baleia, acho que continuaremos à tona, senhor.

- Ótimo. Por gentileza. não bata. - Jamie passou as costas da mão pela boca e empertigou-se. - Há algum porto que possamos alcançar em um dia mais ou menos? O timoneiro disse que há comida e água suficientes para três dias, mas quanto menos precisarmos melhor me sentirei.

Smith virou-se, estreitando os olhos para a terra invisível, o sol poente reluzindo em seus brincos de ouro.

- Bem, já passamos de Norfolk - ele disse, pensativo. - O próximo porto grande seria Nova York.

Jamie lançou-lhe um olhar amarelado.

- A marinha britânica não está fundeada em Nova York?

O sr. Smith tossiu.

- Acho que estava, da última vez que ouvi. Claro, eles podem ter se mudado.

- Eu estava pensando em um porto menor - Jamie disse. - Bem pequeno.

- Onde a chegada de um cúter da Marinha Real poderá impressionar a população? - perguntei. Eu simpatizava com a ideia de colocar o pé em terra firme o mais cedo possível, mas a questão era: e depois?

A enormidade de nossa situação somente agora começava a se abater sobre mim. Havíamos passado, no espaço de uma hora, de passageiros com destino à Escócia a fugitivos, a caminho de só Deus sabia onde.

Jamie fechou os olhos e respirou longa e profundamente. A embarcação oscilava fortemente sobre as ondas e vi que ele estava ficando verde outra vez. E, com uma pontada de aflição, percebi que havia perdido minhas agulhas de acupuntura, deixadas para trás no meu êxodo apressado do Teal.

- E quanto a Rhode Island ou New Haven, Connecticut? - perguntei. - Era para New Haven que o Teal estava indo, de qualquer modo. E creio que é muito menos provável que a gente se depare com legalistas ou tropas inglesas em um desses portos.

Jamie balançou a cabeça, os olhos ainda fechados, fazendo uma careta com o balanço da embarcação.

- Sim, talvez.

- Rhode Island, não - Smith protestou. - Os ingleses entraram em Newport em dezembro e a marinha americana, o que existe dela, está bloqueada dentro de Providence. Eles podem não atirar em nós, se entrarmos em Newport com a bandeira britânica - gesticulou, indicando o mastro, onde a Union Jack ainda tremulava - , mas a recepção quando aportássemos seria mais calorosa do que desejaríamos.

Jamie abrira uma fenda em um dos olhos e olhava para Smith, pensativo.

- Parece-me que você mesmo não tem nenhuma tendência legalista, não é, sr. Smith? Porque, se tivesse, nada mais simples do que me dizer para aportar em Newport; eu não teria objeção.

- Não, não tenho, senhor. - Smith remexeu em um de seus brincos. - Veja bem, também não sou um separatista. Mas não estou nem um pouco inclinado a ser afundado outra vez. Acho que já usei todo o meu quinhão de sorte nessa direção.

Jamie balançou a cabeça, parecendo doente.

- New Haven, então - ele disse, e eu senti um pequeno baque de nervosa empolgação. Será que eu me encontraria com Hannah Arnold, afinal? Ou, e essa era uma ideia ainda mais perturbadora, com o próprio coronel Arnold? Imaginava que ele devia visitar a família de vez em quando.

Seguiu-se certa dose de discussões técnicas, envolvendo muitos gritos entre o convés e o cordame, com respeito à navegação: Jamie sabia como usar tanto um sextante quanto um astrolábio - o primeiro estava, na verdade, disponível - , mas não sabia como aplicar os resultados às velas de um navio. Os marujos recrutados do Teal estavam mais ou menos em concordância quanto a conduzir o navio onde quer que quiséssemos levá-lo, uma vez que a única alternativa imediata era serem presos, julgados e executados por pirataria involuntária, mas embora todos fossem marinheiros capazes nenhum deles possuía conhecimentos de navegação.

Isso nos deixava com as estratégias alternativas de interrogar os marinheiros capturados e presos no porão - descobrindo se algum deles sabia velejar, e, se assim fosse, oferecendo tais incentivos no que diz respeito a violência ou ouro que o compelisse a fazê-lo - ou navegar até avistar terra firme e manter-se perto da costa, o que seria mais lento, muito mais perigoso, em termos de se deparar tanto com bancos de areia quanto com a marinha britânica, e incerto, na medida em que nenhum dos marujos do Teal atualmente conosco jamais vira o porto de New Haven antes.

Não tendo nada de útil a contribuir nessa discussão, fui postar-me à balaustrada, observando o sol descer no céu e imaginando quais seriam nossas probabilidades de encalhar em um banco de areia na escuridão, sem o sol para nos guiar?

O pensamento era frio, mas o vento era ainda mais. Eu usava apenas um casaco leve quando saí abrupta e dramaticamente do Teal, e sem a minha sobressaia de lã, o vento do mar atravessava minhas roupas como uma faca. Essa lastimável imagem me fez lembrar o canhoneiro morto e, revestindo-me de coragem, olhei por cima do ombro para a mancha escura de sangue no convés.

Ao fazê-lo, meus olhos captaram um breve movimento no timão, e eu abri a boca para gritar. Eu não conseguira emitir nenhum som, mas Jamie por acaso estava olhando para mim e o que quer que tenha visto na expressão do meu rosto foi o suficiente. Virou-se com uma guinada e se atirou sem nenhuma hesitação sobre Guiné Dick, que tirara uma faca de algum lugar de sua pessoa e se preparava para enterrá-la nas costas de Ian, negligentemente voltadas para ele.

Ian girou nos calcanhares com o barulho, viu o que estava acontecendo e, enfiando a pistola nas mãos surpresas do sr. Smith, atirou-se sobre a bola humana que rolava sob o oscilante leme. Perdendo a direção, a embarcação diminuiu a marcha, as velas se afrouxaram e o navio começou a jogar de modo assustador.

Dei dois passos pelo convés inclinado e arranquei habilmente a pistola da mão do sr. Smith. Ele olhou para mim, piscando, assombrado.

- Não é que eu não confie no senhor - eu disse, como forma de desculpas. - É que eu não posso correr o risco. Considerando-se tudo que está acontecendo. - Calmamente, considerando-se tudo que estava acontecendo, verifiquei a pistola; estava armada e engatilhada. Era de admirar que não tivesse disparado sozinha, com todo aquele manuseio intempestivo. Apontei-a para o centro da peleja, esperando para ver quem emergiria dali.

O sr. Smith olhou de um lado para o outro, de mim para a briga, e em seguida começou a recuar devagar, as mãos delicadamente erguidas.

- Eu... estarei... lá em cima - disse. - Se precisarem. O resultado fora o esperado, mas o sr. Dick havia se conduzido nobremente como um marinheiro britânico. Ian levantou-se devagar, praguejando e pressionando o braço contra a camisa, onde um ferimento irregular deixara manchas vermelhas.

- O desgraçado traiçoeiro me mordeu! - disse, furioso. - Maldito canibal! - Chutou seu ex-adversário, que grunhiu com o impacto, mas permaneceu inerte, e em seguida apoderou-se do leme com uma furiosa imprecação. Moveu-o devagar para frente e para trás, buscando direção, e o navio se estabilizou, a proa virando-se para o vento enquanto as velas se inflavam outra vez.

Jamie rolou de cima do corpo caído de costas do sr. Dick e sentou-se no convés ao lado dele, a cabeça caída, arquejante. Abaixei e desengatilhei a arma.

- Tudo bem? - perguntei-lhe, por formalidade. Sentia-me muito calma, de uma maneira remota e estranha.

- Estou tentando me lembrar de quantas vidas ainda me restam - ele disse, entre uma arfada e outra.

- Quatro, eu acho. Ou cinco. Certamente, você não considera que escapou desta por pouco, não é? - Olhei para o sr. Dick, cujo rosto estava em péssimo estado. O próprio Jamie tinha uma grande mancha vermelha no lado do rosto que certamente estaria preta e azulada em poucas horas, e segurava a região da cintura, mas fora isso parecia incólume.

- Quase morrer de enjoo conta?

- Não. - Com um olhar cauteloso para o timoneiro caído, agachei-me ao lado de Jamie e examinei-o. A luz vermelha do sol poente banhava o convés, tornando impossível avaliar sua palidez, ainda que a cor de sua pele tornasse a tarefa fácil. Jamie estendeu a mão e eu lhe entreguei a pistola, que ele enfiou no cinto. Onde, eu vi, ele havia recolocado sua adaga na respectiva bainha.

- Não teve tempo de puxar isso? - perguntei, indicando-a com um sinal da cabeça.

- Não queria matá-lo. Ele não está morto, está? - Com um perceptível esforço, ele rolou sobre as mãos e os joelhos e respirou por um instante, antes de se por de pé com um impulso.

- Não. Vai acordar em um ou dois minutos. - Olhei para Ian, cujo rosto estava desviado, mas cuja linguagem corporal era eloquente. Seus ombros rígidos, a vermelhidão na nuca e os músculos dos braços contraídos demonstravam raiva e vergonha, o que era compreensível, mas havia uma inclinação de sua espinha dorsal que falava de desolação. Fiquei refletindo sobre isso, até que um pensamento me ocorreu e aquela estranha sensação de calma desapareceu subitamente em uma explosão de horror quando percebi o que devia ter feito Ian baixar a guarda.

- Rollo! - sussurrei, agarrando com força o braço de Jamie. Ele ergueu os olhos, espantado, viu Ian e trocou um olhar consternado comigo.

- Oh, meu Deus - ele disse baixinho. As agulhas de acupuntura não eram as únicas coisas de valor deixadas para trás, a bordo do Teal.

Rollo era o maior companheiro de Ian há anos. O imenso subproduto de um encontro casual entre um enorme cão irlandês e um lobo, ele aterrorizava os marujos no Teal a ponto de Ian o ter prendido na cabine; caso contrário, ele provavelmente teria avançado na garganta do capitão Stebbings quando os marinheiros prenderam Ian. O que ele iria fazer quando percebesse que Ian desaparecera? E o que o capitão Stebbings, seus homens ou a tripulação do Teal fariam com ele?

- Santo Deus. Vão dar um tiro no cachorro e atirá-lo ao mar - Jamie disse, expressando meu pensamento, e fez o sinal da cruz.

Pensei no tubarão-martelo outra vez e um tremor violento percorreu meu corpo. Jamie apertou minha mão com força.

- Oh, meu Deus - ele disse novamente, num sussurro. Ficou parado, refletindo, por um instante, depois se sacudiu, mais ou menos como Rollo sacudindo água dos pelos, e soltou minha mão. - Tenho que falar com a tripulação e nós temos que alimentá-los... e os marinheiros no porão. Pode ir lá embaixo, Sassenach, e ver o que pode fazer com a cozinha? Eu só vou... dar uma palavrinha com Ian primeiro. - Vi sua garganta se mover ao olhar para Ian, rigidamente parado, como um índio de madeira ao leme, a luz evanescente implacável em seu rosto sem lágrimas.

Balancei a cabeça e comecei a caminhar, de maneira instável, para o buraco negro, aberto, da escada que levava à escuridão.

A cozinha do navio não passava de um cubículo na coberta, no final do refeitório, com uma espécie de altar baixo, de tijolos, contendo o fogo, vários armários no tabique e uma prateleira pendurada de onde pendiam vasilhas de cobre, pegadores de panela, panos de prato e outros itens de bagagem de cozinha. Nenhum problema em localizar os utensílios; ainda havia uma luminosidade avermelhada do fogo da cozinha, onde - graças a Deus! - algumas brasas sobreviviam.

Havia uma caixa de areia, uma de carvão e um cesto de gravetos para acender o fogão, arrumados sob o balcão minúsculo, e comecei imediatamente a reavivar o fogo. Um caldeirão dependurava-se sobre o fogo; um pouco do conteúdo havia derramado pelos lados em consequência do balanço do navio, extinguindo parcialmente o fogo e deixando listras grudentas pelos lados do caldeirão. Sorte outra vez, pensei. Se o líquido derramado não tivesse quase extinguido o fogo, o conteúdo da panela há muito teria secado e queimado, deixando-me o trabalho de começar algum tipo de jantar a partir do zero.

Talvez eu tivesse realmente que começar do zero. Havia vários engradados de frangos empilhados perto da cozinha; andavam cochilando na escuridão quente, mas despertaram com meus movimentos, adejando, cacarejando e empinando suas cabeças tolas de um lado para o outro em agitada investigação, os olhos de conta pestanejando, vermelhos, para mim através da treliça de madeira.

Imaginei se haveria outros tipos de animais domésticos a bordo, mas, se havia, não estavam na cozinha, graças a Deus. Agitei o caldeirão, que parecia conter uma espécie de ensopado grudento e então comecei a procurar pão. Eu sabia que devia haver algum tipo de substância farinhenta; os marujos viviam de bolacha dura - uma bolacha d'água, sem sal nem fermento, sempre servida nos navios - ou bolacha macia, esta um tipo de pão com fermento, embora o termo "macio" sempre fosse relativo. De qualquer forma, teriam algum tipo de pão. Onde...?

Encontrei-o, finalmente: pães escuros, duros e redondos, em um saco de barbante trançado, pendurado de um gancho em um canto escuro. Para mantêlos fora do alcance de ratos, eu imaginava, e olhei atentamente para o assoalho ao redor, por precaução. Devia haver farinha também, pensei - oh, claro. Estaria no porão, juntamente com as demais provisões do navio. E os descontentes remanescentes da tripulação original. Bem, nos preocuparíamos com eles mais tarde. Ali havia o suficiente para o jantar de todos a bordo. Também me preocuparia com o café da manhã mais tarde.

O esforço de reavivar o fogo e vasculhar a cozinha e o refeitório me aqueceu e me fez esquecer os machucados. A sensação de fria perplexidade que sentia desde que me joguei por cima da amurada do Teal começou a se dissipar.

Isso não era algo inteiramente bom. Conforme eu emergia do meu estado de estupefação, também comecei a assimilar as verdadeiras dimensões da presente situação. Já não estávamos a caminho da Escócia e dos perigos do Atlântico, mas a caminho de um destino desconhecido em uma embarcação estranha, com uma tripulação inexperiente e apavorada. E tínhamos, na realidade, acabado de cometer um ato de pirataria em alto-mar, assim como todos os crimes envolvidos em resistir ao recrutamento forçado e atacar a marinha de Sua Majestade. E assassinato. Engoli em seco, a garganta ainda dolorida, e minha pele ficou arrepiada apesar do calor do fogo.

O choque da faca atingindo o osso ainda reverberava nos ossos da minha mão e do meu braço. Como eu podia tê-lo matado? Eu sabia que não havia penetrado a cavidade do peito, não podia ter atingido os vasos grandes do pescoço.... Choque, é claro... mas poderia apenas o choque...?

Eu não podia pensar no canhoneiro morto agora e afastei o pensamento com firmeza. Mais tarde, disse a mim mesma. Eu faria as pazes com isso - afinal, fora legítima defesa - e rezaria por sua alma, porém mais tarde. Não agora.

Não que as outras coisas que se me apresentavam enquanto eu trabalhava fossem muito mais atraentes. Ian e Rollo - não, também não podia pensar nisso.

Raspei o fundo da panela energicamente com uma grande colher de pau. O ensopado estava um pouco queimado no fundo, mas ainda podia ser comido. Havia ossos nele, e era espesso e grudento, com grumos. Ligeiramente enjoada, enchi uma panela menor com água de uma barrica e pendurei-a no fogo para ferver.

Navegação. Fixei-me nisso como um tópico para preocupação, com base em que, apesar de ser profundamente preocupante, não possuía os aspectos emocionais de alguns dos outros tópicos em minha agenda mental. Em que lua estávamos? Tentei me lembrar da noite anterior, do convés do Teal. Eu não havia notado a lua, portanto não estava quase cheia; a lua cheia erguendo-se do mar é um espetáculo extraordinário, com aquele caminho brilhante pela água que nos faz sentir como seria simples pular por cima da amurada e caminhar em frente, por aquele tranquilo esplendor.

Não, nenhum tranquilo esplendor na noite anterior. Mas eu fora à proa do navio, bem tarde, em vez de usar o urinol, porque eu queria um pouco de ar fresco. Estava escuro no convés e eu parei por um instante junto à balaustrada, porque havia fosforescência nas ondas longas, contínuas, uma bela e estranha luminosidade verde sob a água, e o rastro do navio lavrava um sulco brilhante pelo mar.

Lua nova, então, concluí, ou uma lâmina fina, o que dava no mesmo. Não podíamos nos aproximar muito do litoral à noite, então. Eu não sabia a que distância ao norte estávamos - será que John Smith sabia? - , mas tinha noção de que a linha costeira de Chesapeake envolvia todo tipo de canais, bancos de areia, baixios das marés e tráfego de navios. Mas, espere, Smith dissera que havíamos passado de Norfolk...

- Ora, droga! - exclamei, exasperada. - Onde fica Norfolk? Eu sabia onde era em relação à estrada 1-64, mas não fazia a menor ideia de como era o maldito lugar visto do oceano.

E se fôssemos obrigados a ficar distantes da terra firme durante a noite, o que nos impediria de ir à deriva para o meio do mar?

- Bem, do lado positivo, não precisamos nos preocupar em ficar sem combustível - eu disse de modo encorajador para mim mesma. Comida e água... bem, ainda não, ao menos.

Eu parecia estar ficando sem material de preocupação impessoal. E que tal o enjoo de Jamie? Ou qualquer outra catástrofe médica que pudesse ocorrer a bordo? Sim, esse era um bom tema. Eu não tinha nenhuma erva, agulhas, suturas, ataduras ou instrumentos. No momento, eu estava absolutamente sem nenhum remédio prático, a não ser água fervente e qualquer habilidade que pudesse haver em minhas duas mãos.

- Creio que conseguiria reduzir um deslocamento ou colocar o polegar em uma artéria esguichando - eu disse em voz alta - , mas provavelmente isso seria tudo.

- Haã... - disse uma voz profundamente hesitante atrás de mim e eu girei nos calcanhares, inadvertidamente respingando ensopado da minha concha.

- Oh. Sr. Smith.

- Não quis assustá-la. madame. - Deslizou sorrateiramente para a luz como uma aranha desconfiada, mantendo uma cautelosa distância de mim. - Especialmente depois que vi seu sobrinho lhe devolver aquela sua faca. - Sorriu ligeiramente, para indicar que era uma piada, mas ele obviamente estava nervoso. - A senhora... hum... sabe lidar muito bem com ela, devo dizer.

- Sim - eu disse sucintamente, pegando um pano para limpar os respingos. - Tenho prática.

Isso levou a um profundo silêncio. Após alguns instantes, ele tossiu.

- O sr. Fraser me mandou perguntar, com muito cuidado, se logo haverá alguma coisa para comer.

Dei uma risada debochada ao ouvi-lo.

- O "muito cuidado" foi ideia sua ou dele?

- Dele - respondeu prontamente.

- Pode dizer a ele que a comida está pronta, a qualquer hora que alguém queira vir comer. Oh, SR. Smith?

Ele virou-se imediatamente, os brincos balançando.

- Eu só estava pensando... O que os homens... bem, eles devem estar muito contrariados, é claro, mas como os marinheiros do Teal se sentem sobre... hã... os últimos acontecimentos? Quer dizer, se o senhor souber... - acrescentei.

- Eu sei. O sr. Fraser me perguntou isso também, não faz dez minutos - ele disse, parecendo achar um pouco engraçado. - Nós estivemos conversando, lá em cima, como pode imaginar, madame.

- Oh, sim. - Bem, estamos muito aliviados de não termos sido recrutados à força, é claro. Se isso acontecesse, o mais provável é que ninguém veria nem a casa, nem a família novamente durante anos. Sem dizer nada sobre ser forçado talvez a lutar contra nossos compatriotas. - Ele coçou o queixo; como todos os homens, ele estava ficando barbado e com um ar de pirata. - Por outro lado, entretanto... bem, deve compreender que a situação atual não é a que nossos amigos gostariam que fosse. Perigosa, quero dizer, e nós agora sem nosso pagamento e nossas roupas, ainda por cima.

- Sei, compreendo. Do seu ponto de vista, qual seria o final mais desejável de nossa situação?

- Aportar o mais perto de New Haven possível, mas não no porto. Levar a embarcação para um banco de cascalhos e incendiá-la - ele respondeu prontamente. - Levar o bote até a terra firme e depois correr em disparada.

- O senhor incendiaria o navio com os prisioneiros no porão? - perguntei, por curiosidade. Para meu alívio, ele pareceu chocado com a ideia.

- Oh, não, madame! Talvez o sr. Fraser queira entregá-los aos continentais como moeda de troca, mas também não nos importaríamos se fossem soltos.

- É muito magnânimo de sua parte - assegurei-lhe com ar grave. - E tenho certeza de que o sr. Fraser ficou muito agradecido por suas recomendações. O senhor, hã, sabe onde o Exército Continental está no momento?

- Em algum lugar em Nova Jersey, foi o que ouvi dizer - ele respondeu, com um breve sorriso. - Mas não creio que seria muito difícil encontrá-los, se quisessem.

Fora a Marinha Real, a última coisa que eu pessoalmente queria ver era o Exército Continental, mesmo a distância. No entanto, Nova Jersey parecia a uma distância segura.

Eu o mandei vasculhar os alojamentos da tripulação à procura de utensílios - cada homem devia ter seus próprios talheres para as refeições - e começar a complicada tarefa de acender os dois lampiões pendurados acima da mesa do refeitório, na esperança de que pudéssemos ver o que estávamos comendo.

Examinando mais atentamente o ensopado, mudei de ideia quanto à conveniência de mais iluminação, mas considerando o trabalho que dera acender os lampiões também não estava disposta a apagá-los.

No cômputo geral, a refeição não foi ruim. Embora provavelmente não fizesse nenhuma diferença para eles se eu tivesse servido aveia crua e cabeças de peixe; os homens estavam famintos. Devoraram a comida como uma horda de alegres gafanhotos, notavelmente bem-humorados, considerando-se nossa situação. Não pela primeira vez, admirei-me com a capacidade dos homens de trabalhar de forma competente em meio à incerteza e ao perigo.

Isso, em parte, se devia a Jamie. Ninguém podia deixar de notar a ironia de alguém que detestava o mar e navios como ele tornar-se de repente o capitão de facto de um cúter da marinha. No entanto, apesar de detestar navios, ele na realidade sabia conduzi-los - e possuía o talento especial de se manter calmo diante do caos, além de uma liderança natural.

Se você puder manter a cabeça no lugar quando todos ao seu redor estão perdendo a deles e culpando-o por isso... pensei, observando-o conversar calma e sensatamente com os homens.

Somente a pura adrenalina me mantivera em pé até então, mas agora, fora de perigo imediato, ela desaparecia rapidamente. Entre fadiga, preocupação e garganta dolorida, só consegui comer uma ou duas colheres do ensopado. Os outros machucados em meu corpo haviam começado a latejar e meu joelho ainda doía. Eu fazia um mórbido inventário dos danos físicos quando vi os olhos de Jamie fixos em mim.

- Você precisa se alimentar, Sassenach - ele disse suavemente. - Coma. - Abri a boca para dizer que não estava com fome, mas pensei melhor. A última coisa de que ele precisava era se preocupar comigo.

- Sim, sim, capitão - eu disse, e resignadamente peguei a colher.

 

                   A VISITA GUIADA PELAS CÂMARAS DO CORAÇÃO

Eu devia estar me preparando para dormir. Deus sabia o quanto precisava de sono. E haveria bem pouca oportunidade de dormir até chegarmos a New Haven. Se chegarmos, o fundo da minha mente comentou com ceticismo, mas ignorei essa observação como prejudicial à atual situação. Eu ansiava para mergulhar no sono, tanto para fugir dos medos e incertezas da minha mente quanto para restaurar meu corpo muito machucado. Mas eu estava tão cansada que a mente e o corpo haviam começado a se separar.

Era um fenômeno conhecido. Médicos, soldados e mães deparam-se com isso rotineiramente; eu mesma, inúmeras vezes. Incapaz de reagir a uma emergência imediata enquanto entorpecida de fadiga, a mente simplesmente se retrai um pouco, separando-se meticulosamente das prementes necessidades egocêntricas do corpo. Desse distanciamento impessoal, ela pode comandar, contornando emoções, dor e cansaço, tomando decisões necessárias, friamente dominando as estúpidas necessidades corporais de comida, água, sono, amor, pesar, superando seus pontos à prova de falhas.

Por que emoções?, perguntei-me vagamente. Sem dúvida, a emoção era uma função da mente. No entanto, parecia tão arraigada na carne que essa abdicação da mente sempre suprimia a emoção também.

O corpo se ressente dessa abdicação, eu acho. Ignorado e maltratado, não permite facilmente que a mente retorne. Em geral, a separação persiste até que a pessoa finalmente consegue dormir. Com o corpo absorto em suas tranquilas intensidades de regeneração, a mente se instala cautelosamente na carne turbulenta, tateando delicadamente para encontrar seu caminho através das passagens sinuosas dos sonhos, fazendo as pazes. E você acorda inteiro outra vez.

Mas ainda não. Eu tinha a sensação de que restava alguma coisa a fazer, mas não tinha a menor ideia do que seria. Eu alimentara os homens, enviara comida aos prisioneiros, examinara os feridos... recarregara todas as pistolas... limpara o caldeirão da comida... Minha mente aos poucos ficou vazia.

Coloquei as mãos na mesa, as pontas dos dedos sentindo a textura da madeira, como se os minúsculos veios, alisados por anos de serviço, pudessem ser o mapa que me permitiria encontrar meu caminho para o sono.

Eu podia me ver mentalmente, sentada ali. Magra, quase esquelética; a borda do meu rádio mostrava-se, afiado, contra a pele do meu braço. Eu ficara mais magra do que notara, nas últimas semanas de viagem. Os ombros arqueados de cansaço. Uma cabeleira emaranhada, embaraçada, de mechas retorcidas, listradas de branco e prateado, uma dúzia de tons claros e escuros. Isso me fez lembrar de algo que Jamie me dissera, uma expressão cherokee... penteando cobras dos cabelos, era isso. Para aliviar a mente de preocupações, raiva, medo, possessão de demônios - isso era pentear as cobras de seus cabelos. Muito apropriado.

Eu não possuía, é claro, um pente no momento. Eu costumava ter um no meu bolso, mas o perdera na luta.

Minha mente parecia um balão, puxando teimosamente a linha que o prendia. Mas eu não o soltava; eu temia, repentina e irracionalmente, que ela não voltasse.

Em vez disso, concentrei minha atenção ferozmente em pequenos detalhes físicos: o peso do ensopado de frango e do pão em minha barriga; o cheiro, quente e de peixe, do óleo nos lampiões. A batida de pés no convés em cima e a canção do vento. O silvo da água escorrendo pelos costados do navio.

A sensação de uma lâmina na carne. Não a força da determinação, a destruição dirigida da cirurgia, dano causado com o propósito de curar. Uma estocada em pânico, o salto e a vibração de uma lâmina atingindo um osso inesperado, o adernar violento de uma faca descontrolada. E a grande mancha escura no convés, úmida e cheirando a ferro.

- Eu não pretendia - sussurrei em voz alta. - Oh, meu Deus, eu não pretendia.

Sem nenhum aviso prévio, comecei a chorar. Sem soluços, sem espasmos fechando a garganta. As lágrimas simplesmente afloravam aos meus olhos e fluíam pelas minhas faces, lentas como mel frio. Um reconhecimento silencioso do desespero conforme os acontecimentos entravam em uma lenta espiral fora de controle.

- O que foi, Sassenach? - a voz de Jamie, suave e baixa, veio da porta.

- Estou tão cansada - eu disse, a voz embargada. - Tão cansada. O banco rangeu sob seu peso quando ele se sentou a meu lado e um lenço imundo enxugou minhas faces delicadamente. Ele passou o braço ao meu redor e sussurrou para mim em gaélico, as palavras carinhosas e tranquilizadoras que se diz a um animal assustado. Afundei o rosto em sua camisa e fechei os olhos. As lágrimas ainda rolavam pelo meu rosto, mas eu começava a me sentir melhor; ainda mortalmente cansada, mas não completamente destruída.

- Eu não queria matar aquele homem - murmurei. Seus dedos estavam alisando meus cabelos para trás da orelha; pararam por um instante, depois recomeçaram.

- Você não matou ninguém - ele disse, parecendo surpreso. - Era isso o que a estava perturbando, Sassenach?

- Entre outras coisas, sim. - Sentei-me direito, limpando o nariz na minha manga, e fitei-o. - Eu não matei o canhoneiro? Tem certeza?

Sua boca torceu-se no que poderia ser um sorriso, se fosse um pouco menos amargo.

- Tenho certeza. Eu o matei, a nighean.

- Você... oh. - Funguei e olhei para ele atentamente. - Está dizendo isso para me fazer sentir melhor.

- Não, não estou. - O sorriso se desfez. - Eu também gostaria de não ter matado o sujeito. Mas não tive escolha. - Estendeu a mão e empurrou um cacho de meus cabelos para trás da orelha com o dedo indicador. - Não se preocupe, Sassenach. Eu posso suportar isso.

Eu chorava novamente, mas desta vez com sentimento. Eu chorava de dor e tristeza, certamente de medo. Mas a dor e a tristeza eram por Jamie e pelo homem que ele não tivera escolha senão matar, e isso fez toda a diferença.

Após algum tempo, a tempestade se amainou, deixando-me exausta, mas inteira. A incômoda sensação de distanciamento passara. Jamie virara-se no banco, as costas contra a mesa enquanto me segurava em seu colo, e permanecemos sentados em um silêncio tranquilizador, observando o clarão das brasas enfraquecidas no fogo da cozinha e os fiapos de vapor elevando-se do caldeirão de água quente. Eu devia colocar alguma coisa para cozinhar durante a noite, pensei sonolentamente. Olhei para os engradados, onde as galinhas haviam se acomodado para dormir, sem mais do que um breve cacarejo ocasional de surpresa quando alguma acordava de qualquer que seja o sonho que sonham as galinhas.

Não, eu não conseguiria matar uma galinha esta noite. Os homens teriam que se satisfazer com o que estivesse à mão pela manhã.

Jamie também notara as galinhas, embora com um efeito diferente.

- Você se lembra das galinhas da sra. Bug? - ele disse, com um humor pesaroso. - O pequeno Jem e Roger Mac?

- Oh, meu Deus. Pobre sra. Bug. Jem, com uns cinco anos, recebera a incumbência diária de contar as galinhas para se certificar de que todas houvessem retornado ao galinheiro à noite. Depois disso, é claro, a porta era bem fechada, para impedir a entrada de raposas, texugos e outros predadores que adoram galinhas. Só que Jem se esquecera. Apenas uma vez, mas uma vez fora o suficiente. Uma raposa entrara no galinheiro e a carnificina fora terrível.

É tolice dizer que só o homem mata por prazer. É possível que tenham aprendido com os homens, mas todos os animais da família do cachorro o fazem também - raposas, lobos e mesmo cachorros teoricamente domesticados. As paredes do galinheiro ficaram emplastadas de sangue e penas.

- Oh, minhas filhinhas! - a sra. Bug não parava de repetir, as lágrimas rolando pelo seu rosto como contas de vidro. - Oh, minhas pobres filhinhas!

Jem, chamado à cozinha, não conseguia erguer a cabeça.

- Sinto muito - ele murmurou, os olhos no chão. - Sinto muito mesmo.

- Bem, e deve mesmo - Roger lhe dissera. - Mas isso não vai adiantar muito, não é?

Jemmy sacudiu a cabeça, mudo, as lágrimas assomando aos olhos. Roger limpou a garganta, com um ruído rouco e ameaçador.

- Bem, é o seguinte, então. Se você já tem idade para lhe confiarem um trabalho, também já tem idade para assumir as consequências de quebrar essa confiança. Está me compreendendo?

Era óbvio que não, mas ele balançou a cabeça energicamente, fungando. Roger respirou fundo pelo nariz. - Quero dizer - ele disse - que vou bater em você.

O rosto pequeno, redondo, de Jem ficou completamente pálido. Ele pestanejou e olhou para sua mãe, boquiaberto.

Brianna fez um pequeno movimento na direção dele, mas a mão de Jamie fechou-se em seu braço, impedindo-a.

Sem olhar para Bri, Roger colocou a mão no ombro de Jem e virou-o com firmeza na direção da porta.

- Tudo bem, garoto. Para fora. - Apontou para a porta. - Vá para o estábulo e espere lá por mim.

Jemmy engoliu em seco de modo audível. Ele ficara com uma cor doentia quando a sra. Bug trouxera o primeiro corpo coberto de penas, e os acontecimentos subsequentes não melhoraram sua cor.

Pensei que ele fosse vomitar, mas não o fez. Parara de chorar e não recomeçara, mas pareceu encolher-se dentro de si mesmo, os ombros arriados.

- Vá - Roger disse, e ele obedeceu. Enquanto Jemmy arrastava-se pesadamente para fora, a cabeça baixa, parecia tanto um prisioneiro a caminho da execução que eu não sabia se ria ou chorava. Meus olhos encontraram os de Brianna e vi que ela lutava com um sentimento semelhante; parecia aflita, mas sua boca torceu-se no canto e ela desviou rapidamente o olhar.

Roger soltou um profundo suspiro e preparou-se para segui-lo, endireitando os ombros.

- Santo Deus - murmurou. Jamie permanecera calado, no canto, observando a conversa, embora não sem compaixão. Moveu-se apenas ligeiramente e Roger olhou para ele. Ele tossiu.

- Mmmmhum. Sei que é a primeira vez, mas acho que é melhor bater com força - ele disse suavemente. - O pobrezinho se sente muito mal.

Brianna voltou-se para ele, surpresa, mas Roger assentiu, a linha implacável de sua boca relaxando um pouco. Seguiu Jem para fora, desafivelando o cinto enquanto saía.

Nós três permanecemos na cozinha, constrangidos, sem saber ao certo o que fazer em seguida. Brianna endireitou-se com um suspiro, mais ou menos como Roger, sacudiu-se como um cachorro e estendeu a mão para uma das galinhas mortas.

- Podemos comê-las? Toquei uma das galinhas; a carne moveu-se sob a pele, flácida e trêmula, mas a pele ainda não começara a se separar. Levantei o galo e cheirei; havia um odor forte de sangue seco e o cheiro bolorento de fezes expelidas, mas nenhum cheiro adocicado de apodrecimento.

- Creio que sim, se forem bem cozidas. As penas não servem mais, mas podemos fazer ensopado com algumas das aves e cozinhar o resto para caldos e fricassée.

Jamie foi buscar cebolas, alho e cenouras no porão, enquanto a sra. Bug se retirava para repousar um pouco. Brianna e eu começamos o trabalho sujo de depenar e eviscerar as vítimas. Não dissemos muita coisa, além de breves perguntas e respostas murmuradas sobre o trabalho à mão. Quando Jamie voltou, no entanto, Bri ergueu os olhos para ele quando ele colocou a cesta com os legumes na mesa ao lado dela.

- Vai ajudar? - ela perguntou, séria. - Realmente? Ele balançara a cabeça.

- Você se sente mal quando fez alguma coisa errada e quer consertar, certo? Mas não há como consertar uma coisa como esta. - Indicou a pilha de galinhas mortas. Moscas começavam a aparecer, rastejando sobre as penas macias, - O melhor que você pode fazer é sentir que pagou por isso.

Um som fraco e agudo chegou até nós através da janela. Brianna instintivamente fez menção de correr diante do som, mas depois sacudiu a cabeça levemente e pegou uma das aves, abanando as moscas.

- Eu me lembro - eu disse agora, baixinho. - E Jemmy também, tenho certeza.

Jamie emitiu um pequeno ruído, achando graça, depois recaiu no silêncio. Eu podia sentir seu coração batendo contra as minhas costas, lento e compassado.

Fizemos vigília a intervalos de duas horas a noite inteira, nos certificando de que Jamie, Ian ou eu mesma estivéssemos acordados. John Smith parecia confiável - mas havia sempre a chance de alguém do Teal cismar de soltar os marinheiros no porão, achando que isso pudesse salvá-los de serem enforcados como piratas mais tarde.

Consegui fazer a vigia da meia-noite sem maiores dificuldades, mas despertar ao amanhecer foi difícil. Lutei para sair de um poço profundo, forrado de lã preta e macia, um dolorido cansaço agarrando-se aos meus membros machucados e emperrados.

Jamie prontamente se deixara afundar na rede forrada com um cobertor, assim que saí dela, e apesar do desejo urgente e automático de tirá-lo dali e eu mesma voltar para dentro da rede sorri levemente. Ou ele tinha absoluta confiança em minha capacidade de ficar de guarda ou estava prestes a morrer de cansaço e enjoo. Ou ambos, refleti, pegando a capa de oficial da marinha que ele acabara de tirar. Isso fora uma vantagem da presente situação: eu deixara a terrível capa de leproso morto a bordo do Teal. Esta era muito superior, sendo feita de lã grossa azul-marinho, forrada de seda vermelha e ainda guardando uma boa parte do calor do corpo de Jamie.

Apertei-a bem ao meu redor, acariciei sua cabeça para ver se ele iria sorrir em seu sono - ele o fez, apenas um ligeiro movimento no canto da boca - e me dirigi à cozinha, bocejando.

Outro pequeno benefício: uma lata de um bom chá Darjeeling no armário. Eu havia reanimado o fogo sob o caldeirão de água quando fui dormir; estava muito quente agora e eu tirei uma xícara, usando o que obviamente era a louça particular do comandante, pintada com violetas.

Levei a xícara de chá para cima e, após um passeio oficial pelos conveses, de olho nos dois marujos de serviço - o sr. Smith estava ao leme - , parei junto à balaustrada para tomar o aromático fruto da minha pilhagem, observando o sol nascer do mar.

Se alguém estivesse disposto a contar suas bênçãos - e estranhamente eu parecia estar - , ali estava mais uma. Eu já vira auroras em mares tropicais que surgiam como o desabrochar de uma enorme flor, um lento e grandioso desenrolar de calor e luz. Este era um nascer do sol do norte, como o lento abrir de uma concha bivalve - frio e delicado, o céu brilhando em madrepérola sobre um mar cinza-claro. Havia algo íntimo a respeito deste amanhecer, pensei, como se pressagiasse um dia de segredos.

Exatamente quando eu me aprofundava em pensamentos poéticos, fui interrompida por um grito de "Vela à vista!", diretamente acima de mim. A xícara de porcelana pintada de violetas do capitão Stebbings espatifou-se no assoalho do convés e eu girei nos calcanhares, deparando-me com a ponta de um triângulo branco no horizonte atrás de nós, aumentando a cada segundo.

Os instantes seguintes foram dignos de uma comédia pastelão, conforme eu corri para a cabine do capitão tão afogueada e sem fôlego que era incapaz de dizer alguma coisa coerente, apenas repetindo ofegante "Ve... ve... vista!", como um Papai Noel demente. Jamie, capaz de saltar instantaneamente de um sono profundo para um estado de completa prontidão, assim o fez. Ele também tentou saltar para fora da cama, esquecendo-se no afã do momento de que estava em uma rede. Quando finalmente conseguiu erguer-se do chão, praguejando, ouviam-se pancadas de pés no convés conforme o resto dos marinheiros do Teal saltava mais agilmente de suas próprias redes e corria para ver o que estava acontecendo.

- É o Teal? - perguntei a John Smith, apertando os olhos para ver melhor. - Consegue ver?

- Sim - ele disse distraidamente, esforçando-se para ver. - Ou melhor, não. Eu saberia, não é o Teal. Ele tem três mastros.

- Vou acreditar em você. - A essa distância, o navio que se aproximava parecia uma nuvem vacilante movendo-se rapidamente em nossa direção por cima da água; eu ainda não conseguia distinguir nada de seu casco. - Não temos que fugir dele, temos? - perguntei a Jamie, que desencavava um pequeno telescópio da escrivaninha de Stebbings e examinava nosso perseguidor com o cenho franzido. Abaixou o telescópio, sacudindo a cabeça.

- Não importa se temos ou não; não teríamos a menor chance. Ele passou o telescópio para Smith, que o apertou contra o olho, murmurando:

- Bandeira... não tem nenhuma bandeira hasteada... A cabeça de Jamie virou-se abruptamente para cima e eu percebi de repente que o Pitt ainda portava a Union Jack desfraldada.

- Isso é bom, não acha - perguntei. - Certamente, não vão querer perturbar um navio da marinha.

Jamie e John Smith pareceram extremamente em dúvida quanto a esse exemplo de lógica.

- Se chegarem perto, provavelmente notarão que alguma coisa está fedendo e não é uma baleia - Smith disse. Olhou de viés para Jamie. - Ainda assim... você não poderia vestir a capa do capitão? Pode ajudar, de longe.

- Se chegarem perto o suficiente para isso fazer diferença, não vai adiantar mais, de qualquer modo - Jamie disse, com ar soturno.

Ainda assim, ele desapareceu, parando rapidamente para vomitar por cima da balaustrada, retornando instantes depois com uma aparência esplêndida - se você ficasse a uma boa distância e apertasse os olhos - no uniforme do capitão Stebbings. Como Stebbings era provavelmente trinta centímetros mais baixo do que Jamie e bem mais avantajado na cintura, o casaco apertava nos ombros e sobrava na cintura, e tanto as mangas quanto a calça exibiam un pedaço bem maior da camisa e das meias do que deveriam; a calça foi franzida na cintura com o cinto da espada de Jamie para não cair. Ele agora portava a espada do capitão, percebi, e um par de pistolas carregadas, assim como sua própria adaga.

As sobrancelhas de Ian empinaram-se ao ver o tio assim trajado, mas Jamie fulminou-o com o olhar e Ian não fez nenhum comentário, embora sua expressão se desanuviasse pela primeira vez desde que nos deparamos com o Pitt.

- Nada mau - o sr. Smith disse, de forma encorajadora. - Talvez se faça passar pelo capitão, certo? Nada a perder, afinal de contas.

- Mmmmhum. - "O menino ficou parado no convés em chamas, de onde todos haviam fugido, exceto ele" - eu disse, fazendo Jamie transferir o olhar fulminante para mim.

Tendo visto Guiné Dick, eu não estava preocupada em Ian não passar em uma revista como um marujo na Marinha Real, com suas tatuagens e tudo o mais. O restante dos marujos do Teal era razoavelmente comum. Éramos convincentes.

O navio que se aproximava estava bem perto agora para eu ver sua figura de proa, uma mulher de cabelos negros que parecia segurar uma...

- É mesmo uma cobra que ela segura? - perguntei, em dúvida. Ian inclinou-se para frente, estreitando os olhos por cima do meu ombro.

- Tem presas.

- O navio também, garoto. - John Smith balançou a cabeça indicando a embarcação e, nesse momento, vi que de fato tinha: os longos canos de dois pequenos canhões de bronze projetando-se da proa e, como o vento empurrava o navio para nós em um ligeiro ângulo, pude ver também que ele possuía portinholas para as bocas de canhões. Podiam ou não ser reais; os navios mercantes às vezes pintavam falsas portinholas nas laterais, para desencorajar interferências.

As peças de artilharia da proa, entretanto, eram de verdade. Uma delas detonou, uma baforada de fumaça branca e uma pequena bola que bateu na água perto do Pitt.

- Isso é uma saudação? - Jamie perguntou, em dúvida. - Eles pretendem sinalizar para nós?

Evidentemente, não; os dois canhões da proa dispararam simultaneamente e uma das balas atravessou uma vela acima de nós, deixando um grande buraco com as bordas chamuscadas. Ficamos olhando, boquiabertos.

- O que ele acha que está fazendo, atirando em um navio do rei? - Smith perguntou, indignado.

- Ele acha que é um maldito navio corsário e pretende nos tomar, é isso - Jamie disse, recobrando-se do choque e apressadamente tirando o uniforme. - Vamos nos render, pelo amor de Deus!

Smith olhava nervosamente de Jamie para o navio que se aproximava. Viam-se homens nas balaustradas. Homens armados.

- Eles têm canhões e mosquetes, sr. Smith - Jamie disse, atirando seu casaco pela amurada com um arremesso que o fez ir girando pelo alto em direção às ondas. - Eu não vou tentar enfrentá-los pelo navio de Sua Majestade. Abaixe aquela bandeira!

O sr. Smith deu um salto e começou a escarafunchar entre as miríades de cordas aquela que se ligava à Union Jack. Outro estrondo veio dos canhões de proa, só que desta vez um feliz balanço nos jogou para dentro de um cavado entre duas ondas e as duas balas passaram por cima de nós.

A bandeira desceu farfalhando, para aterrissar em um montículo humilhante no convés. Tive um momentâneo e escandalizado impulso de correr e pegá-la, mas me contive.

- E agora? - perguntei nervosamente, de olho no navio. Já estava tão perto que eu podia divisar as figuras dos canhoneiros, que definitivamente estavam recarregando os canhões de bronze da proa e mirando-os novamente. E os homens nas balaustradas atrás deles estavam de fato carregados de armas; achei ter visto espadas e sabres, assim como mosquetes e pistolas.

Os canhoneiros haviam parado; alguém apontava por cima da balaustrada, virando-se para falar com alguém atrás dele. Protegendo os olhos com a mão, vi o casaco do capitão, flutuando na crista da onda. Aquilo parecia ter intrigado o corsário; vi um homem saltar para a proa e ficar olhando fixamente para nós.

E agora?, me perguntei. Corsários podiam ser qualquer coisa desde capitães profissionais de navios particulares, contratados por um ou outro governo, até verdadeiros piratas. Se o navio à nossa ré fosse um dos primeiros, as chances eram de que passaríamos bem por passageiros. Se dos últimos, poderiam facilmente cortar nossas gargantas e nos atirar no mar.

O homem na proa gritou alguma coisa a seus homens e saltou para baixo. O navio mudou de direção por um momento; a proa virou e as velas encheram-se com uma audível pancada do vento.

- Vai bater na gente - Smith disse, em um tom de voz de absoluta incredulidade.

Eu tinha certeza de que ele estava certo. A figura de proa estava tão perto que eu podia ver a cobra na mão da mulher, pressionada contra seu seio nu. Tal foi a natureza do choque que eu tive consciência de minha mente tolamente considerando se era mais provável que o navio se chamasse Cleópatra ou Áspide, quando passou por nós em uma precipitação de espuma e o ar se estilhaçou com um estrondo de metal abrasador.

O mundo se dissolveu e eu estava estatelada no chão, o rosto pressionado contra uma superfície que cheirava a carnificina, surda e esforçando-me para ouvir o grito da bala de morteiro seguinte, a que iria nos atingir bem no centro.

Algo pesado caíra em cima de mim e lutei maquinalmente para sair debaixo do que quer que fosse, ficar de pé e correr, correr para qualquer lugar, qualquer lugar longe dali... longe...

Gradualmente, percebi pela sensação em minha garganta que eu estava fazendo pequenos ruídos lamurientos e que a superfície sob minha face achatada era tábua pegajosa de sal, e não lama encharcada de sangue. O peso em minhas costas moveu-se repentinamente por vontade própria, quando Jamie rolou de cima de mim, ficando de joelhos.

- Santo Deus! - ele gritou, furioso. - Qual é o seu problema?! A única resposta a isso foi um único estrondo, vindo evidentemente de um canhão na popa do outro navio, que nos ultrapassara.

Levantei-me, tremendo, mas já tendo ultrapassado o puro terror a ponto de notar, com uma espécie de interesse puramente distanciado, que havia uma perna jogada no convés a alguns passos de distância. Estava descalça, vestida com a perna arrancada de uma calça de lona. Havia muito sangue respingado aqui e ali.

- Santo Deus, Santo DEUS! - alguém repetia sem parar. Olhei apaticamente para o lado e vi o sr. Smith, olhando horrorizado para cima.

Olhei, também. O topo do único mastro havia desaparecido e o que sobrara das velas e do cordame pendia em frangalhos num amontoado fumegante por cima da metade do convés. Evidentemente, as portinholas de canhões do navio corsário não eram de mentira.

Zonza como eu estava, nem começara a perguntar a mim mesma por que haviam feito isso. Jamie também não estava perdendo tempo com perguntas. Ele agarrou o sr. Smith pelo braço.

- Maldição! Os desgraçados niunhaid estão voltando! Estavam. O outro navio movia-se muito depressa, percebi tardiamente. Passara a toda velocidade por nós quando atirara da lateral, mas o provável era que apenas uma das pesadas balas de canhão houvesse realmente nos atingido, arrancando o mastro e o infeliz que estava no cordame.

O resto dos marujos estava agora no convés, berrando perguntas. A única resposta vinha do corsário, que agora descrevia um amplo círculo, obviamente pretendendo voltar e terminar o que começara.

Vi Ian olhar intensamente para o canhão do Pin - mas isso era claramente inútil. Ainda que os homens doTeal incluíssem alguns com experiência em artilharia, não havia nenhuma possibilidade de serem capazes de manejar os canhões de repente, sem nenhuma preparação prévia.

O corsário completara o círculo. Estava retornando. Em todo o convés do Pin os homens gritavam, abanando os braços, colidindo uns com os outros, conforme corriam aos trambolhões para a balaustrada.

- Nós nos rendemos, malditos desgraçados! - um deles gritou. - Vocês são surdos?!

Evidentemente; um desgarrado bafejo de vento carregou até mim um cheiro sulfuroso de estopim e pude ver mosquetes sendo direcionados para atirar em nós. Alguns dos homens perto de mim perderam a cabeça e correram para as cobertas inferiores. Eu me vi pensando que talvez essa não fosse uma má ideia.

Jamie andara acenando e gritando a meu lado. No entanto, ele desapareceu de repente, e virei-me, vendo então que ele corria pelo convés. Arrancou a camisa pela cabeça e pulou em cima de nosso canhão de proa, uma peça de artilharia de bronze brilhante e cano longo.

Ele agitou a camisa em um grande e esvoaçante arco branco, a mão livre agarrada no ombro de Ian para se equilibrar. Isso causou certa confusão por um instante; o crepitar dos disparos cessou, apesar de a embarcação continuar seu círculo mortal. Jamie acenou com a camisa outra vez, de um lado para o outro. Sem dúvida, tinham que tê-lo visto!

O vento soprava em nossa direção; eu podia ouvir o barulho surdo e retumbante dos canhões sendo rolados para fora outra vez, e o sangue congelou em meu peito.

- Eles vão nos afundar! - o sr. Smith gritou esganiçadamente, seguido por gritos de terror de alguns dos outros homens.

O cheiro de pólvora chegou até nós pelo vento, pungente e cáustico. Houve gritos dos homens no cordame, metade deles agora desesperadamente sacudindo as camisas também. Vi Jamie parar por um instante, engolir em seco, depois inclinar-se para baixo e dizer algo a Ian. Apertou o ombro de Ian com força, depois se agachou em cima do canhão, sobre as mãos e os joelhos.

Ian passou por mim a toda velocidade, quase me derrubando em sua pressa.

- Aonde vai? - gritei. - Soltar os prisioneiros! Vão se afogar se naufragarmos! - gritou por cima do ombro, desaparecendo pela escada do tombadilho.

Virei-me novamente para o navio que se aproximava e vi que Jamie não havia descido do canhão como eu imaginara. Em vez disso, ele havia se virado, de modo a ficar de costas para o navio que se aproximava.

Com o corpo retesado para enfrentar o vento, os braços abertos para manter o equilíbrio e os joelhos agarrados com todas as forças ao metal do canhão, esticou-se em toda a sua altura, os braços estendidos, exibindo suas costas nuas - e a malha de cicatrizes que ostentava, agora vermelha com o embranquecimento de sua pele no vento frio.

O navio corsário diminuíra a marcha, manobrando para deslizar ao longo do Pitt e nos mandar pelos ares com um último disparo lateral. Eu podia ver as cabeças dos homens espreitando acima da amurada, inclinando-se do cordame, todos esticando o pescoço de curiosidade. Mas não atirando.

Repentinamente, senti meu coração martelando com batidas fortes e dolorosas, como se na verdade houvesse parado por um minuto e agora, lembrando-se de seu dever, tentasse compensar o tempo perdido.

A lateral do costado da chalupa assomou acima de nós e o convés mergulhou em uma fria e profunda escuridão. Tão perto, eu podia ouvir a conversa dos canhoneiros, intrigados, fazendo perguntas; ouvir os tinidos e estrépitos da munição em seus suportes, o rangido das carretas dos canhões. Eu não conseguia erguer os olhos, não ousava me mover.

- Quem é você? - disse uma voz nasalada, muito americana, do alto. Parecia profundamente desconfiado e muito aborrecido.

- Se fala do navio chama-se Pitt. - Jamie descera do canhão e postara-se a meu lado, seminu e com a pele tão arrepiada que seus pelos projetavam-se do corpo como fios de cobre. Ele tremia, se de terror, raiva ou simplesmente de frio, eu não sabia. Mas sua voz não falseou; estava furioso.

- Caso se refira a mim, sou o coronel James Fraser, da milícia da Carolina do Norte.

Um silêncio momentâneo, enquanto o comandante do corsário digeria essa informação.

- Onde está o capitão Stebbings? - a voz perguntou. A desconfiança em sua voz não diminuíra, mas a contrariedade amainara um pouco.

- É uma longa história - Jamie disse, soando irritado. - Mas não está a bordo. Se quiser vir e procurar por ele, faça-o. Importa-se se eu vestir minha camisa?

Uma pausa, um murmúrio e os diques das armas sendo desengatilhadas. Nesse ponto, consegui sair um pouco da minha paralisia e levantar os olhos. A balaustrada estava apinhada de canos de mosquetes e pistolas, mas a maior parte das armas fora recolhida e agora apontava inofensivamente para cima, enquanto seus proprietários empurravam-se para frente para observar, boquiabertos, por cima da balaustrada.

- Só um minuto. Vire-se - a voz disse. Jamie inspirou fundo pelo nariz, mas atendeu. Olhou para mim, rapidamente, depois ficou parado com a cabeça erguida, o maxilar trincado e os olhos fixos no mastro, em torno do qual os prisioneiros do porão estavam agora reunidos, sob os olhos de Ian. Pareciam completamente desnorteados, olhando boquiabertos para o navio corsário, depois vasculhando ansiosamente o convés com os olhos, antes de localizarem Jamie, seminu e com o olhar fulminante de um basilisco. Se eu não tivesse começado a me preocupar de estar tendo um ataque cardíaco, teria achado a cena engraçada.

- Desertor do exército britânico? - disse a voz vinda da chalupa, parecendo interessada. Jamie virou-se, mantendo o mesmo olhar.

- Não - respondeu laconicamente. - Sou um homem livre, sempre fui.

- É mesmo? - A voz começava a soar divertida. - Muito bem. Coloque sua camisa e venha a bordo.

Eu mal conseguia respirar e estava banhada em um suor frio, mas meu coração começou a bater mais calmamente.

Jamie, agora vestido, segurou meu braço.

- Minha mulher e meu sobrinho vão comigo - ele disse, e sem esperar permissão da chalupa agarrou-me pela cintura e levantou-me, colocando-me em pé na balaustrada do Pitt, de onde eu podia agarrar a escada de corda que a tripulação da chalupa atirara para baixo. Ele não iria correr o risco de ser separado de mim ou de Ian outra vez.

O navio balançava nas ondas e tive que me agarrar com força à escada com os olhos fechados por alguns instantes, quando uma tontura tomou conta de mim. Senti-me nauseada, assim como zonza, mas certamente isso era apenas uma reação ao choque. Com os olhos fechados, meu estômago acomodou-se um pouco e eu pude colocar o pé no degrau seguinte.

- Vela à vista! Inclinando minha cabeça bem para trás, pude ver apenas o braço agitado do homem acima. Virei-me para olhar, a escada torcendo-se sob meu peso, e vi a vela aproximando-se. No convés acima, a voz nasalada gritava ordens e pés descalços tamborilavam nas tábuas enquanto a tripulação corria para retomar seus postos.

Jamie estava de pé na balaustrada do Pitt, segurando-me pela cintura para eu não cair.

- Jesus Cristo! - ele exclamou, em tom de absoluto assombro, e eu olhei por cima do meu ombro, vendo-o virado para o navio que se aproximava. - É o maldito Teal.

Um homem alto, muito magro, de cabelos grisalhos, um pomo de Adão proeminente e olhos azuis frios e penetrantes, nos recebeu no alto da escada.

- Capitão Asa Hickman - ele gritou para mim e, instantaneamente, voltou sua atenção para Jamie. - Que navio é esse? E onde está Stebbings?

Ian passou por cima da balaustrada atrás de mim, olhando ansiosamente para trás por cima do ombro.

- Eu recolheria essa escada se fosse você - ele disse para um dos marinheiros. Olhei para baixo, para o convés do Pitt, onde uma confusão de homens dirigia-se como um enxame para a amurada, aos empurrões. Houve muitos gritos e braços acenando, os homens da marinha britânica e os marinheiros recrutados à força tentando apresentar seu caso, mas o capitão Hickman não estava disposto a ouvir.

- Recolha a escada - ele ordenou ao marinheiro. - Venha comigo - disse, voltando-se para Jamie. Andando arrogantemente, começou a sair do convés, sem esperar resposta e sem se virar para ver se estava sendo seguido.

Jamie olhou incisivamente para os marinheiros que nos cercavam, mas aparentemente decidiu que eram bastante seguros e saiu atrás de Hickman, com uma recomendação sucinta para Ian:

- Cuide de sua tia. Ian não prestava atenção a nada, salvo ao Teal, cada vez mais perto.

- Nossa - sussurrou, os olhos fixos na vela. - Acha que ele está bem? - Rollo?

Ah, espero que sim. - Meu rosto estava frio; e não apenas por causa dos respingos do mar; meus lábios haviam ficado dormentes. E havia pequenos lampejos de luz nas bordas da minha visão. - Ian - eu disse, o mais calmamente possível. - Acho que vou desmaiar.

A pressão no meu peito pareceu aumentar, sufocando-me. Forcei uma tosse e senti um alívio momentâneo. Santo Deus, eu estava mesmo tendo um ataque do coração? Dor no braço esquerdo? Não. Dor no maxilar? Sim, mas eu estava com os dentes trincados, não era de admirar... Não senti quando caía, mas senti a pressão de mãos quando alguém me amparou e me deitou no chão do convés. Meus olhos estavam abertos, eu achava, mas não conseguia ver nada. Obscuramente, ocorreu-me que eu poderia estar morrendo, mas rejeitei a ideia peremptoriamente. Não, não estava. Não podia estar. Mas havia uma estranha espécie de névoa cinzenta em redemoinho aproximando-se de mim.

- Ian - eu disse, ou achei ter dito. Sentia-me muito calma. - Ian, por via das dúvidas... diga a Jamie que eu o amo. - Não ficou tudo escuro, para minha surpresa, mas a névoa me alcançou e eu me senti delicadamente envolta em uma serena nuvem cinzenta. Toda a tensão, o sufocamento, a dor se aplacaram. Eu poderia ter flutuado, alegremente despreocupada, na névoa cinzenta, se não fosse pelo fato de não ter certeza se tinha realmente conseguido falar, e a necessidade de mandar o recado incomodava como um carrapicho na sola do pé.

- Diga a Jamie - eu continuava a repetir a um Ian imerso em neblina. - Diga a Jamie que eu o amo.

- Abra os olhos e diga-me você mesma, Sassenach - disse uma voz grave, ansiosa, em algum lugar perto do meu ouvido.

Tentei abrir os olhos e vi que conseguia. Aparentemente, eu não havia morrido, afinal. Ensaiei uma cautelosa respiração e descobri que meu peito movia-se com facilidade. Meus cabelos estavam úmidos e eu estava deitada em alguma coisa dura e coberta com um cobertor. O rosto de Jamie oscilou acima de mim, depois se estabilizou, à medida que eu piscava.

- Diga-me - ele repetia, sorrindo ligeiramente, embora a ansiedade enrugasse a pele entre seus olhos.

- Dizer a você... Oh! Eu o amo. Onde...? - A lembrança dos acontecimentos recentes inundou-me e eu me sentei abruptamente. - O Teal? O que...

- Não faço a menor ideia. Quando foi que você comeu alguma coisa pela última vez, Sassenach?

- Não me lembro. Ontem à noite. O que quer dizer com "não faço a menor ideia"? Ele ainda está lá?

- Oh, sim - ele disse, de forma assustadora. - Está. Disparou dois tiros em nós há alguns minutos atrás, embora eu imagine que não tenha podido ouvir.

- Disparou contra. - Passei a mão pelo rosto, satisfeita em perceber que agora eu já podia sentir meus lábios e que o calor normal retornara à minha pele. - Pareço pálida e suada? - perguntei a Jamie. - Meus lábios estão azulados?

Ele pareceu espantado, mas inclinou-se para olhar minha boca mais de perto.

- Não - disse categoricamente, endireitando-se após uma minuciosa inspeção. Em seguida, inclinou-se e beijou-me rapidamente, colocando um selo no meu estado de cor rosada. - Eu também a amo - ele sussurrou. - Estou feliz que não esteja morta. No entanto - acrescentou em um tom de voz normal, endireitando-se quando um inequívoco tiro de canhão veio de algum lugar distante.

- Presumo que o capitão Stebbings tenha tomado o Teal, não? - perguntei. - Acho que o capitão Roberts não andaria por aí atirando em navios desconhecidos. Mas por que será que Stebbings está atirando em nós? Por que não está tentando abordar o Pitt e tomá-lo de volta? Está disponível para ele agora.

Meus sintomas haviam desaparecido completamente a essa altura e eu me sentia perfeitamente lúcida. Sentando-me, descobri que fora colocada sobre um par de baús grandes, de tampa plana, no que parecia ser um pequeno porão; a escotilha no alto tinha uma tampa de treliça por onde avistei as sombras agitadas de velas em movimento, e junto às paredes do compartimento empilhava-se um variado sortimento de barris, pacotes e caixas. O ar era denso dos cheiros de alcatrão, cobre, tecidos, pólvora e... café? Cheirei mais profundamente, sentindo-me mais forte por um instante. Sim, café!

O barulho de outro tiro de canhão atravessou as paredes, abafado pela distância, e um estremecimento visceral me percorreu. A ideia de estar presa no porão de um navio que podia a qualquer momento ser afundado era suficiente para sobrepujar até mesmo o aroma de café.

Jamie também se virara em reação ao tiro, levantando-se parcialmente. Antes que eu pudesse me levantar e sugerir que fôssemos para cima, e depressa, houve uma mudança na luz e uma cabeça redonda, de cabelos espetados, surgiu na escotilha.

- A senhora está melhor? - um garoto perguntou educadamente. - O capitão disse que, se ela estiver morta, o senhor não é mais necessário aqui e ele gostaria que subisse e fosse falar com ele imediatamente, senhor.

- E se eu não estiver morta? - perguntei, tentando alisar minhas anáguas, molhadas na barra, úmidas e irremediavelmente amarrotadas. Droga! Agora, eu havia deixado meu bolso e minha saia pesados de ouro a bordo do Pitt. Nesse ritmo, estaria com sorte de chegar a terra firme de espartilho e combinação.

O garoto - olhando melhor, ele devia ter uns doze anos, embora parecesse ainda mais novo - sorriu.

- Nesse caso, ele se ofereceu para vir e ele mesmo atirá-la pela amurada, madame, na esperança de fazer a mente de seu marido se concentrar. O capitão Hickman é um pouco afobado para falar - acrescentou, com uma careta de desculpas. - Não se pode levá-lo ao pé da letra. Geralmente.

- Vou com você. - Levantei-me sem perder o equilíbrio, mas aceitei o braço de Jamie. Atravessamos o navio, conduzidos pelo nosso novo conhecido, que prestativamente me informou que seu nome era Abram Zenn ("Meu pai, um homem dado a leituras e grande admirador do dicionário do sr. Johnson, cismou com a ideia de eu ser de A a Z, veja só."), que ele era o taifeiro do navio (o nome do navio de fato era Áspide, o que me deixou satisfeita) e que o motivo da atual agitação do capitão Hickman era um antigo ressentimento contra o capitão Stebbings da marinha; houve mais de um confronto entre eles e o capitão Hickman jurara que só haveria mais um.

- Imagino que o capitão Stebbings seja da mesma opinião, não é? - Jamie perguntou secamente. Com o que Abram concordou com um vigoroso balanço da cabeça.

- Um sujeito em uma taverna em Roanoke me contou que o capitão Stebbings estava bebendo lá e disse para os presentes que pretendia enforcar o capitão Hickman de seu próprio cais de verga e abandoná-lo ali para que as gaivotas comessem seus olhos. E elas fariam isso mesmo - ele acrescentou ameaçadoramente, com uma olhadela para as aves marinhas girando no alto a distância. - São aves malvadas, as gaivotas.

Outras pequenas bisbilhotices interessantes foram restringidas pela nossa chegada ao refúgio sagrado do capitão Hickman, uma apertada cabine na popa, tão apinhada de carga quanto o porão. Ian estava lá, parecendo um mohawk prestes a ser queimado na fogueira, de onde deduzi que ele não simpatizara com o capitão Hickman. O sentimento parecia mútuo, a julgar pelas manchas vermelhas febris ardendo nas faces magras deste último.

- Ah! - Hickman exclamou sucintamente ao nos ver. - Fico feliz em ver que ainda não partiu desta vida, madame. Seria uma triste perda para seu marido, uma mulher tão dedicada. - Havia um tom sarcástico nessas últimas palavras que me fizeram imaginar desconfortavelmente quantas vezes eu tinha dito a Ian para transmitir meu amor a Jamie e quantas pessoas me ouviram fazer isso, mas Jamie simplesmente ignorou o comentário, indicando a cama desfeita do capitão para que eu me sentasse antes de se virar para lidar com o próprio sujeito.

- Soube que o Teal está atirando em nós - ele observou serenamente. - Isso não o preocupa, senhor?

- Não, ainda não. - Hickman dispensou uma olhadela negligente às suas vigias de popa, metade delas coberta com persianas, provavelmente por causa de vidro quebrado; a maioria das vidraças estava estilhaçada. - Ele só está atirando na esperança de dar sorte e um tiro nos atingir. O vento está a nosso favor, e vai permanecer assim pelas próximas horas.

- Compreendo - Jamie disse, com uma atitude convincente de quem sabe o que está dizendo.

- O sr. Hickman está decidindo se trava uma batalha com o Teal, tio - Ian colocou diplomaticamente - ou se foge. Ter o vento a favor é uma questão de manobra, o que lhe dá mais latitude na situação do que o Teal tem no momento, eu acho.

- Já ouviu a máxima "Quem luta e foge fica vivo para lutar outro dia"? - Hickman disse, lançando um olhar fulminante a Ian. - Se eu puder afundá-lo, eu o farei. Se eu puder atingi-lo em seu próprio tombadilho e tomar o navio, vou preferir, mas já fico satisfeito em mandá-lo para o fundo se for preciso. Mas não vou deixar que ele me afunde, não hoje.

- Por que não hoje? - perguntei. - Ao invés de qualquer outro dia, quero dizer.

Hickman pareceu surpreso; ele obviamente havia presumido que a minha presença era puramente decorativa.

- Porque tenho uma carga importante a entregar, madame. Uma carga que não ouso pôr em risco. A menos que eu possa colocar as mãos naquele rato Stebbings sem me arriscar muito - acrescentou taciturnamente.

- Entendo que a sua suposição de que o capitão Stebbings estava a bordo explica sua tentativa determinada de afundar o Pitt? - Jamie perguntou. O teto da cabine era tão baixo que ele, Ian e Hickman eram obrigados a conversar encurvados, como uma convenção de chimpanzés. Não havia realmente nenhum outro lugar para se sentar além da cama e ajoelhar-se no chão sem dúvida não teria a dignidade necessária a uma reunião de cavalheiros.

- Sim, e lhe agradeço por me impedir a tempo. Talvez possamos compartilhar uma bebida quando houver mais tempo e você possa me contar o que aconteceu às suas costas.

- Talvez não - Jamie disse educadamente. - Vejo também que estamos de velas estendidas. Onde está o Pitt no momento?

- À deriva, a cerca de duas milhas a bombordo. Se eu puder acabar com Stebbings - e os olhos de Hickman faiscaram, vermelhos, diante da perspectiva - , eu volto e tomo o Pitt também.

- Se restar alguém vivo a bordo capaz de navegá-lo - Ian disse. - Houve um grande tumulto no convés na última vez que vi o PIM. O que pode predispô-lo a tomar o Teal, senhor? - ele perguntou, erguendo a voz. - Meu tio e eu podemos lhe dar informações a respeito dos canhões e da tripulação. E mesmo que Stebbings tenha tomado o navio, duvido que consiga levá-lo a travar uma batalha. Ele não tem mais do que dez homens seus e o capitão Roberts e sua tripulação não vão querer tomar parte nesse combate, tenho certeza.

Jamie lançou um olhar incisivo a Ian.

- Você sabe que eles provavelmente já o mataram.

Ian não se parecia nem um pouco com Jamie, mas a expressão de implacável obstinação em seu rosto eu conhecia muito bem.

- Sim, talvez. Você me deixaria para trás se achasse que eu podia estar morto? Pude ver Jamie abrir a boca para dizer: "Ele é um cachorro." Mas não o fez. Fechou os olhos e suspirou, obviamente antevendo a perspectiva de instigar uma batalha naval - e incidentalmente arriscar todas as nossas vidas muitas vezes, sem falar das vidas dos homens a bordo do Teal - por causa de um cachorro velho, que já podia estar morto, se não devorado por um tubarão. Então, abriuos e assentiu.

- Sim, está bem. - Empertigou-se, o quanto possível na cabine acanhada, e virou-se para Hickman. - Um grande amigo do meu sobrinho está a bordo do Teal e provavelmente em perigo. Sei que isso não é problema seu, mas explica nosso próprio interesse. Quanto ao seu... além do capitão Stebbings, há uma carga a bordo doTeal que talvez lhe interesse, também. Seis caixas de rifles.

Tanto Ian quanto eu sufocamos uma exclamação de surpresa. Hickman endireitou-se abruptamente, batendo a cabeça em uma viga.

- Oh! Minha Nossa! Tem certeza disso?

- Tenho. E imagino que o Exército Continental poderia achá-los muito úteis, não?

Achei que isso era pisar em terreno perigoso; afinal, o fato de que Hickman tivesse um forte rancor em relação ao capitão Stebbings não significava necessariamente que ele fosse um patriota americano. Do pouco que eu pude observar, o capitão Stebbings parecia inteiramente capaz de inspirar a mais pura animosidade pessoal, inteiramente à parte de quaisquer considerações políticas.

Mas Hickiman não fez nenhuma negação; na realidade, ele mal notou a observação de Jamie, empolgado com a menção dos rifles. Seria verdade?, perguntei-me. Mas Jamie falara com absoluta certeza. Retrocedi minha mente para o conteúdo do porão de carga do Teal, procurando alguma coisa que...

- Jesus H. Roosevelt Cristo - eu disse. - As caixas destinadas a New Haven? - Mal me contive a tempo de deixar escapar o nome de Hannah Arnold, percebendo a tempo que se Hickman fosse realmente um patriota - pois de fato me ocorreu que ele pudesse ser simplesmente um comerciante, disposto igualmente a vender para qualquer dos lados - ele poderia muito bem reconhecer o nome e ver que muito provavelmente esses rifles já se destinavam aos continentais, via coronel Arnold.

Jamie balançou a cabeça, observando Hickman, que olhava fixamente para um pequeno barômetro na parede como se fosse uma bola de cristal. O que quer que ele lhe tenha visto, pareceu ser favorável, pois Hickman balançou a cabeça uma vez, em seguida arremessou-se para fora da cabine como se suas calças estivessem pegando fogo.

- Aonde ele foi? - Ian quis saber, vendo-o sair.

- Verificar o vento, imagino - eu disse, orgulhosa de saber alguma coisa. - Certificar-se de que o vento ainda está a seu favor.

Jamie vasculhava freneticamente a escrivaninha de Hickman e, nesse ponto, emergiu com uma maçã um pouco murcha, que atirou no meu colo.

- Coma isso, Sassenach. O que realmente significa que o vento está a favor?

- Ah. Agora você me pegou - admiti. - Mas parece ser importante. - Cheirei a maçã; obviamente, ela já vira melhores dias, mas ainda tinha um aroma fraco e adocicado que repentinamente reanimou o fantasma do meu desaparecido apetite. Dei uma mordida cautelosa e senti minha boca encher-se de saliva. Comi a maçã em mais dois grandes bocados, vorazmente.

A voz alta e nasalada do capitão Hickman veio do convés, de forma penetrante. Eu não conseguia ouvir o que ele dizia, mas a reação foi imediata; pés corriam de um lado para o outro no convés e o navio deu uma guinada repentina, virando enquanto as velas eram ajustadas. O ruído de balas de canhão sendo erguidas e o troar das carretas ecoavam pelo navio. Aparentemente, o vento ainda estava a nosso favor.

Pude ver uma empolgação febril iluminar o rosto de Ian e me alegrei por ele, mas não pude deixar de expressar meus receios.

- Não tem nenhuma dúvida a respeito disso? - eu disse a Jamie. - Quero dizer, afinal, ele é um cachorro.

Ele me lançou um olhar de viés e deu de ombros, mal-humorado.

- Sim, bem. Já vi batalhas serem travadas por razões piores do que essa. E desde ontem eu já cometi atos de pirataria, motim e assassinato. Posso muito bem acrescentar traição para completar o dia.

- Além do mais, tia - Ian disse com ar de reprovação - , ele é um bom cachorro.

Com ou sem vento a favor, foi preciso um tempo infindável de manobras cautelosas antes que os navios se colocassem no que parecia uma perigosa distância um do outro. Agora, o sol parecia ao alcance da mão acima do horizonte, as velas começavam a brilhar com um vermelho sinistro e minha aurora virtuosamente pura parecia terminar em um lamacento mar de sangue.

O Teal cruzava suavemente, apenas com metade das velas enfunadas, a menos de oitocentos metros de distância. O capitão Hickman estava postado no convés do Áspide, as mãos agarradas à balaustrada como se fosse a garganta de Stebbings, com a expressão de um cão de caça antes de soltarem o coelho.

- Hora de ir para baixo, madame - Hickman disse, sem olhar para mim. - A situação vai esquentar aqui em cima. - Ele flexionou as mãos uma vez, na expectativa.

Não discuti. A tensão no convés era tão densa que eu podia sentir seu cheiro, testosterona temperada com enxofre e pólvora. Os homens sendo as notáveis criaturas que são, todos pareciam alegres.

Parei para dar um beijo em Jamie - um gesto a que ele correspondeu com tanto entusiasmo que deixou meu lábio inferior latejando - resolutamente ignorando a possibilidade de que na próxima vez em que eu o visse pudesse ser aos pedaços. Eu já enfrentara essa possibilidade inúmeras vezes antes e, embora não ficasse menos assustadora com a prática, eu melhorara em ignorá-la.

Ou ao menos assim acreditava. Sentada no porão principal em quase absoluta escuridão, sentindo o mau cheiro das águas servidas e ouvindo o que eu tinha certeza serem ratos movimentando-se nas correntes, achei mais difícil ignorar os sons que vinham de cima: o ronco surdo de carretas de canhão. OW ide tinha apenas quatro canhões de um lado, mas era armamento pesado para uma escuna costeira. O Teal, equipado como um navio mercante próprio para navegar no oceano e que poderia ter que rechaçar todo tipo de ameaça, tinha oito canhões de um lado, com duas caronadas no convés superior, mais dois canhões de proa e um de popa.

- Ele fugiria de um navio de guerra - Abram explicou-me, depois de me pedir para descrever o armamento do Teal. - E provavelmente não tentaria afundar ou tomar outro navio, portanto não iria transportar uma enorme quantidade de armas pesadas, mesmo que tivesse uma construção que aguentasse, e duvido que tenha. Também duvido que o capitão Stebbings possa manejar um lado inteiro com eficácia, portanto não devemos ficar desanimados. - Ele falou com grande confiança, o que achei engraçado e também estranhamente tranquilizador. Ele pareceu perceber isso, pois se inclinou para a frente e delicadamente deu umas palmadinhas na minha mão. - Ora, não precisa ter medo, senhora - ele disse. - O sr. Fraser me disse para eu não deixar que nenhum mal lhe aconteça, e não deixarei, pode ter certeza disso.

- Obrigada - eu disse, com ar solene. Sem querer rir ou chorar, eu limpei a garganta e perguntei: - Você sabe o que causou o problema entre o capitão Hickman e o capitão Stebbings?

- Oh, sim - ele respondeu prontamente. - O capitão Stebbings tem sido uma praga na região há alguns anos, detendo navios que ele não tem nenhum direito de revistar, apreendendo mercadorias legais que ele diz ser contrabando. E duvido que alguma delas jamais veja o interior de um armazém da Alfândega! - acrescentou, obviamente citando algo que ouvira mais de uma vez. - Mas na verdade foi o que aconteceu com o Annabelle.

"O Annabelle era um grande brigue, de propriedade do irmão do capitão Hickman. O Pitt parou-o e tentou recrutar à força alguns homens da tripulação. Theo Hickman protestou, houve resistência e Stebbings ordenou a seus homens que bombardeassem o Annabelle, matando três membros da tripulação, Theo Hickman entre eles.

"Houve um considerável clamor público sobre o fato e foi feito um esforço para levar o capitão Stebbings à justiça por seus atos. Mas o capitão insistira que nenhum tribunal local tinha o direito de julgá-lo; se alguém quisesse processálo, isso tinha que ser feito na corte britânica. E a justiça local concordara com isso."

- Isso foi antes da guerra ser declarada no ano passado? - perguntei, curiosa. - Porque se foi depois...

- Bem antes - o jovem Zenn admitiu. - Ainda assim - ele acrescentou com justa indignação - , eles são covardes e deviam ser castigados com alcatrão e penas, todos eles, inclusive Stebbings!

- Sem dúvida - eu disse. - Você acha... Mas não tive oportunidade de explorar melhor a opinião do rapaz, pois nesse momento o navio deu uma violenta guinada, atirando nós dois nas tábuas úmidas do assoalho, e o som de uma explosão violenta e prolongada estilhaçou o ar à nossa volta.

No começo, eu não soube dizer qual navio havia atirado, mas um instante depois os canhões do Áspide rugiram acima de nós e compreendi que o primeiro ataque fora do Teal.

A resposta do Áspide foi fragmentada, os canhões ao longo do estibordo disparando a intervalos mais ou menos aleatórios acima de nossas cabeças, pontuada pelos estampidos secos de armas leves.

Resisti às nobres tentativas de Abram de atirar seu corpo magro protetoramente sobre o meu e, rolando no chão, levantei-me sobre as mãos e os joelhos, ouvindo atentamente. Havia muita gritaria, nada que fosse compreensível, embora os disparos tivessem cessado. Não parecia que estivéssemos fazendo água, até onde eu podia dizer, portanto presumivelmente não tínhamos sido atingidos abaixo da linha-d'água.

- Eles não podem ter desistido, não é? - Abram disse, levantando-se atabalhoadamente. Parecia desapontado.

- Duvido. - Fiquei de pé também, apoiando-me em um grande barril. O porão principal estava tão abarrotado quanto o fronteiro, embora com mercadorias mais volumosas; mal havia espaço para Abram e eu encontrarmos um caminho entre os grandes volumes de engradados dentro de redes e fileiras de barris, alguns dos quais cheiravam fortemente a cerveja. O navio adernava para um dos lados agora. Devíamos estar dando a volta, provavelmente para tentar outra vez. As rodas das carretas dos canhões rangeram no convés acima; sim, estavam recarregando. Alguém já teria sido ferido? E o que eu iria fazer a respeito se tivesse?

O barulho de um único tiro de canhão veio de cima. - O covarde deve estar fugindo - Abram murmurou. - Nós o estamos perseguindo.

Houve um longo período de relativo silêncio, durante o qual achei que o navio estivesse mudando de direção, mas não podia saber ao certo. Talvez Hickman estivesse perseguindo o Teal.

Uma gritaria repentina em cima, com um som de susto e surpresa, e o navio balançou violentamente, atirando-nos no chão novamente. Dessa vez, aterrissei em cima. Delicadamente, removi meu joelho da barriga de Abram e ajudei-o a se sentar, arquejando como um peixe fora d'água.

- O que - ele começou, respirando com dificuldade, mas não conseguiu ir adiante. Um terrível solavanco nos arremessou no assoalho outra vez, imediatamente seguido de um barulho esgarçado, rangente, de vigas guinchando. Soou como se o navio estivesse se desmoronando ao nosso redor, e eu não tive a menor dúvida de que estava.

Berros agudos como os de banshees e um estrondo retumbante de pés no convés.

- Estamos sendo abordados! - Pude ouvir Abram engolir em seco e minha mão deslizou para a fenda em minha anágua, tocando a faca em busca de coragem. Se...

- Não - sussurrei, estreitando meus olhos para a escuridão acima, como se isso fosse me ajudar a ouvir melhor. - Não. Nós é que estamos abordando eles! - Pois as batidas de pés no convés haviam cessado.

A gritaria, não; mesmo abafada pela distância, eu podia ouvir o tom de insanidade, de pura alegria do guerreiro no furor da batalha. Achei ter distinguido o grito de guerra das Highlands de Jamie, mas provavelmente era imaginação; todos pareciam igualmente frenéticos.

- "Pai nosso que estais no céu... Pai nosso que estais no céu..." - Abram sussurrava para si mesmo na escuridão, mas não conseguia sair da primeira frase.

Cerrei os punhos e fechei os olhos numa reação automática, contraindo o rosto como se eu pudesse ajudar pela simples força de vontade.

Nenhum de nós dois podia. Foi um momento de ruídos abafados, tiros esporádicos, estrépitos e baques surdos, gritos e grunhidos. E depois silêncio.

Pude ver apenas a cabeça de Abram virar-se para mim, indagando. Apertei sua mão com força.

Então, um canhão disparou com um estrondo que ecoou pelo convés em cima e uma onda de choque ribombou pelo ar do porão, com tal força que meus ouvidos estalaram. Outro disparo se seguiu, eu senti, mais do que ouvi, um baque surdo, e então o chão se ergueu e se inclinou, e as vigas do navio reverberaram com um ruído rouco e estranho. Sacudi a cabeça com força, engolindo em seco, tentando forçar o ar através das minhas trompas de Eustáquio. Elas estouraram outra vez, finalmente, e eu ouvi pés na lateral do casco do navio. Mais de um par. Movendo-se devagar.

Levantei-me num salto, agarrei Abram e literalmente icei-o, empurrando-o na direção da escada. Eu podia ouvir água. Não correndo pelos lados do navio; água jorrando, água gorgolejando para dentro do porão.

A escotilha em cima fora fechada, mas não travada, e eu soltei-a com uma pancada desesperada das duas mãos, quase perdendo o equilíbrio e caindo no escuro, mas felizmente fui amparada por Abram Zenn, que plantou um ombro pequeno, mas sólido, sob o meu traseiro para dar suporte.

- Obrigada, sr. Zenn - eu disse e, estendendo a mão para trás de mim, puxei-o para cima da escada e para a luz.

Havia sangue no convés; foi a primeira coisa que vi. Homens feridos também - mas não Jamie. Ele foi a segunda coisa que vi, inclinando-se pesadamente por cima do remanescente de uma balaustrada estraçalhada, juntamente com vários outros homens. Corri para ver o que estavam olhando e vi o Teal a algumas centenas de metros.

Suas velas tremulavam freneticamente e seus mastros pareciam estranhamente inclinados. Então, percebi que o próprio navio estava inclinado, a proa erguida para fora da água.

- Minha nossa! - Abram disse, estupefato. - Ele bateu nos recifes.

- Nós também, filho, mas não foi tão ruim - Hickman disse, olhando para o lado ao ouvir a voz do taifeiro. - Entrou água no porão, Abram?

- Sim - respondi antes que Abram, perdido em contemplação do destroçado Teal, conseguisse se recobrar. - Tem algum material médico a bordo, capitão Hickman?

- Se eu tenho o quê? - ele pestanejou para mim, distraído. - Isso não é hora para... por quê?

- Sou médica - eu disse - , e o senhor precisa de mim.

Em quinze minutos, eu me vi de volta ao pequeno porão de carga da proa onde eu despertara de meu desmaio algumas horas antes, agora designado como a enfermaria.

O Áspide não viajava com um médico, mas possuía uma pequena reserva de medicamentos: meia garrafa de láudano, uma vasilha e uma lanceta para sangria, uma tesoura cirúrgica grande, uma jarra de sanguessugas mortas e desidratadas, duas serras de amputação enferrujadas, um tenáculo quebrado, um saco de algodão para curativos e uma enorme botija de gordura canforada.

Fiquei muito inclinada a beber o láudano eu mesma, mas o dever chamava. Amarrei os cabelos para trás e comecei a tatear pela carga, à cata de qualquer coisa útil. O sr. Smith e Ian haviam remado para o Teal, na esperança de recuperar meu próprio estojo médico, mas, considerando-se os danos que eu podia ver na área onde era a cabine, eu não tinha muita esperança. Um tiro certeiro do Áspide perfurara o Teal abaixo da linha d'água; se não tivesse encalhado nas pedras, provavelmente afundaria mais cedo ou mais tarde.

Eu fizera uma rápida triagem no convés; um homem morto na hora, vários ferimentos de menor monta, três ferimentos graves, mas que não ofereciam risco de morte iminente. Provavelmente, havia mais feridos no Teal; pelo que os homens disseram, os navios haviam trocado disparos laterais a uma distância de poucos metros. Uma ação rápida e sangrenta.

Alguns minutos após o término do confronto, o Pitt surgiu à vista, avançando com dificuldade, a tripulação mista e beligerante tendo evidentemente chegado a alguma espécie de acomodação que lhe permitiu velejar. Agora, ocupavam-se em transportar os feridos. Ouvi o grito fraco da saudação de seu contramestre acima dos lamentos do vento lá fora.

- Estão chegando - murmurei e, pegando a menor das serras de amputação, me preparei para minha própria ação sangrenta.

- Vocês possuem canhões - ressaltei para Abram Zenn, que pendurava duas lanternas para mim, o sol já tendo quase sumido agora. - Presumivelmente, isso significa que o capitão Hickman estava preparado para usá-los. Ele não pensou que havia a possibilidade de vítimas?

Abram deu de ombros, como forma de desculpas.

- É nossa primeira viagem com a "carta de corso", madame. Faremos melhor da próxima vez, tenho certeza.

- Primeira? Que tipo de... há quanto tempo o capitão Hickman navega? - perguntei. A essa altura, eu vasculhava impiedosamente a carga e fiquei satisfeita de encontrar um baú com peças de morim estampado.

Abram franziu a testa para o pavio que estava aparando, pensando.

- Bem, ele teve um barco de pesca por algum tempo, em Marblehead. Ele e o irmão eram os proprietários. Mas depois que seu irmão entrou em conflito com o capitão Stebbings ele foi trabalhar para Emmanuel Bailey, como imediato em um dos seus, do sr. Bailey, quero dizer, navios. O sr. Bailey é judeu - ele explicou, vendo minha sobrancelha erguida. - É dono de um banco na Filadélfia e de três navios que viajam regularmente para as Antilhas. Ele é dono deste navio também e foi ele quem conseguiu a "carta de corso" do Congresso para o capitão Hickman, quando a guerra foi anunciada.

- Compreendo - eu disse, mais do que ligeiramente surpresa. - Mas esta é a primeira viagem do capitão Hickman como comandante de uma chalupa?

- Sim, senhora. Mas os navios corsários nem sempre têm um oficial encarregado da carga, sabe - ele disse, gravemente. - Seria tarefa do oficial de carga abastecer o navio e providenciar coisas como suprimentos médicos.

- E como você sabe disso? Há quanto tempo você navega? - perguntei com curiosidade, liberando uma garrafa do que parecia ser um conhaque muito caro, para usar como antisséptico.

- Oh, desde os oito anos de idade, madame - ele disse. Ficou na ponta dos pés para pendurar a lanterna, que lançou uma claridade acolhedora, tranquilizadora, sobre meu cenário de operação improvisado. - Tenho seis irmãos mais velhos e o mais velho administra uma fazenda, com os filhos. Os outros... bem, um é construtor naval em Newport News. Certo dia, ele conversava com um capitão e falou sobre mim. Quando dei por mim, era taifeiro no Antioch, que era um grande navio de comércio com as Índias Orientais. Voltei com o capitão para Londres e viajamos para Calcutá no dia seguinte. - Voltou à posição normal e sorriu para mim. - Estou no mar desde então, madame. E estou satisfeito.

- Isso é muito bom - eu disse. - Seus pais... eles ainda são vivos?

- Oh, não, senhora. Minha mãe morreu quando me deu à luz e meu pai quando eu tinha sete anos. - Ele não parecia perturbado com isso. Mas, afinal, refleti, rasgando o morim em tiras de ataduras, isso havia sido há metade de sua vida.

- Bem, espero que continue satisfeito com o mar - eu disse. - Mas tem alguma dúvida, depois de hoje?

Ele ficou pensativo, seu rosto jovem e franco crispado nas sombras lançadas pelas lanternas.

- Não - disse devagar, e ergueu os olhos para mim, a expressão grave, e não tão jovem quanto algumas horas atrás. - Eu sabia quando assinei contrato com o capitão Hickiman que poderia haver batalhas. - Seus lábios comprimiram-se, talvez para impedir que tremessem. - Não me importo de matar um homem, se for necessário.

- Agora não... não precisa - disse um dos feridos, baixinho. Estava estendido nas sombras, sobre dois engradados de porcelana chinesa, respirando devagar.

- Não, agora não - concordei secamente. - Mas talvez você deva conversar com meu sobrinho ou meu marido sobre isso, quando as coisas tiverem se acalmado um pouco.

Pensei que isso seria o fim do assunto, mas Abram seguiu-me conforme eu arrumava meus instrumentos rudimentares e começava o processo de esterilização da melhor forma possível, banhando tudo prodigamente com conhaque, até o porão ficar cheirando a destilaria - para escândalo do ferido, que achava um desperdício usar uma boa bebida dessa forma. No entanto, o fogo da cozinha fora extinto durante a batalha; iria demorar até eu ter água quente.

- A senhora é uma patriota, madame? Se não se importa que eu pergunte - ele acrescentou, corando e sem jeito.

A pergunta me desconcertou um pouco. A resposta direta seria "Sim, claro". Afinal, Jamie era um rebelde, assim declarado por ele próprio. E, apesar de ele ter feito a declaração original por simples necessidade, eu achava que a necessidade agora se tornara convicção. Mas e eu? Sem dúvida eu fora, um dia.

- Sim - eu disse, sem conseguir dizer mais nada. - Obviamente, você é, Abram. Por quê?

- Por quê? - Ele pareceu chocado por eu perguntar e ficou parado, piscando para mim, por cima do topo da lanterna que segurava.

- Diga-me mais tarde - sugeri, pegando a lanterna. Eu fizera o que fora possível no convés; os feridos que precisavam de mais cuidados estavam sendo trazidos para baixo. Não era hora para discussões políticas. Ou assim eu achava.

Abram corajosamente se dispôs a me ajudar e se saiu bastante bem, embora tivesse que parar de vez em quando para vomitar em um balde. Após a segunda ocorrência, ele começou a fazer perguntas aos feridos - àqueles em condições de responder. Eu não sabia se era simples curiosidade ou uma tentativa de se distrair do que eu estava fazendo.

- O que acha da Revolução, senhor? - perguntou fervorosamente a um marinheiro grisalho do Pitt, com um pé esmagado. O homem lançou-lhe um olhar claramente desconfiado, mas respondeu, provavelmente a fim de distrair a si mesmo.

- Uma grande perda de tempo - ele disse rispidamente, enfiando os dedos na borda do baú em que estava sentado. - Melhor lutar contra os franceses do que contra os ingleses. O que se ganha com isso? Santo Deus - ele disse, prendendo a respiração e ficando pálido.

- Dê alguma coisa para ele morder, Abram, sim? - eu disse, ocupada em recolher pequenos estilhaços de osso do pé destroçado e me perguntando se uma rápida amputação não seria melhor para ele. Talvez menos risco de infecção e de qualquer maneira ele iria sempre mancar dolorosamente, mas ainda assim eu detestava...

- Não, tudo bem, madame - ele disse, prendendo a respiração. - O que você acha disso, então, garoto?

- Acho que é certo e necessário, senhor - Abram respondeu corajosamente. - O rei é um tirano e a tirania tem que ser combatida por todos os homens de bem.

- O quê? - disse o marinheiro, chocado. - O rei, um tirano? Quem diz algo tão absurdo?

- Ora... O sr. Jefferson. E... todos nós! Todos nós pensamos assim - Abram disse, desconcertado diante de uma discordância tão veemente.

- Bem, então, vocês são um bando de idiotas. Salvo sua presença, madame - ele acrescentou, com um sinal da cabeça para mim. Olhou para o próprio pé e oscilou um pouco, fechando os olhos, mas perguntou: - A senhora não tem uma opinião tão tola, não é, madame? Devia colocar juízo na cabeça do garoto aqui.

- Juízo? - disse Abram, alterado. - Acha que ter juízo é não poder falar ou escrever o que quisermos?

O marinheiro abriu um único olho. - Claro que isso é juízo - ele disse, com um evidente esforço para ser razoável. - Você tem vagabundos idiotas, com sua licença, madame, dizendo todo tipo de asneiras, incitando as pessoas, e aonde isso leva? Revolta, é isso, e o que se pode chamar de desordem, caos, pessoas tendo suas casas incendiadas e sendo atacadas nas ruas. Já ouviu falar das badernas promovidas pelos tecelões de seda, garoto?

Era evidente que Abram não ouvira falar, mas revidou com uma enérgica denúncia dos Atos Intoleráveis, o que fez o sr. Ormiston - já havíamos entrado em termos pessoais a essa altura - escarnecer sonoramente e relatar as privações suportadas pelos londrinos em comparação com o luxo desfrutado por colonos ingratos.

- Ingratos! - Abram protestou, o rosto congestionado. - E por que deveríamos ser gratos? Por ter soldados impingidos sobre nós?

- Oh, impingidos, hein? - gritou o sr. Ormiston, indignado. - Que palavra, hein? E se significa o que eu acho que significa, meu rapaz, devia ficar de joelhos e agradecer a Deus por essa "impingência". Quem você acha que salvou todos vocês de serem escalpelados pelos peles-vermelhas ou conquistados pelos franceses? E quem você acha que pagou por tudo isso, hein?

Essa resposta perspicaz arrancou vivas - e não poucas zombarias - dos feridos que aguardavam a vez, que a essa altura já haviam sido atraídos para a discussão.

- Isso é uma absoluta... completa... baboseira - Abram começou, enfunando o peito como um pombo mirrado, mas foi interrompido pela entrada do sr. Smith, um saco de lona na mão e uma expressão pesarosa no rosto.

- Receio que sua cabine tenha sido destruída, madame - ele disse. - Mas peguei o que estava espalhado pelo chão, caso...

- Jonah Marsden! - O sr. Ormiston, prestes a se levantar, deixou-se cair de novo no baú, boquiaberto. - Ora vejam se não é!

- Quem? - perguntei, espantada. - Jonah. Bem, esse não é seu nome de verdade, qual era mesmo... oh, Bill, acho que era, mas passamos a chamá-lo de Jonah, por ter naufragàdo tantas vezes.

- Ora, Joe. - O sr. Smith, ou sr. Marsden, recuava em direção à porta, sorrindo nervosamente. - Isso já foi há muito tempo e...

- Nem tanto tempo assim. - O sr. Ormiston pôs-se de pé desajeitadamente, apoiando uma das mãos em uma pilha de barris de arenque para não colocar peso no pé enfaixado. - Não tanto tempo que faria a marinha se esquecer de você, desertor desgraçado!

O sr. Smith desapareceu abruptamente pela escada, empurrando dois marujos que tentavam descer, carregando um terceiro como se fosse um pedaço de carne. Murmurando imprecações, largaram-no com um baque surdo no chão à minha frente e recuaram um passo, arfando. Era o capitão Stebbings.

- Ele não está morto - um deles me informou, prestativamente.

- Oh, ótimo - eu disse. Meu tom de voz deve ter deixado alguma dúvida no ar, pois o capitão abriu um olho e fitou-me com raiva.

- Está me deixando aqui... para ser assassinado... por esta megera? - ele disse com voz rouca, respirando com dificuldade. - Prefiro morrer hon-honrosa... - O sentimento foi expelido com um barulho gorgolejante que me fez rasgar sua camisa e casaco chamuscados e encharcados de sangue. De fato, havia uma perfuração perfeitamente redonda no lado direito de seu peito e o abominável ruído gorgolejante vinha dele.

Eu disse um palavrão e os dois homens que o haviam trazido para mim arrastaram os pés e resmungaram. Eu repeti o palavrão, mais alto, e agarrando a mão de Stebbings plantei-a sobre o ferimento.

- Aperte com firmeza, se quiser ter a chance de uma morte honrosa - eu disse a ele. - Você! - gritei para um dos homens que tentava escapulir sorrateiramente. - Traga-me um pouco de óleo da cozinha. Agora! E você. - Minha voz alcançou o outro, que parou abruptamente com um ar de culpa. - Lona de vela e alcatrão. O mais rápido possível! - ordenei. - Não fale - adverti Stebbings, que parecia inclinado a fazer observações. - Seu pulmão sofreu um colapso, e ou consigo fazê-lo funcionar outra vez ou você morre como um cachorro, aqui mesmo.

Ele murmurou alguma coisa, que eu tomei como assentimento. Sua mão era bem polpuda e fazia um trabalho razoavelmente bom em fechar o buraco por enquanto. O problema é que ele indubitavelmente tinha não só um buraco no peito, mas um buraco no pulmão também. Tive que providenciar uma tampa para o buraco externo, de modo que o ar não pudesse entrar no peito e manter o pulmão comprimido, mas tive também que me certificar de que houvesse uma passagem para o ar do espaço pleural ao redor do pulmão poder sair. Do jeito que estava, toda vez que ele expirava o ar do pulmão ferido entrava direto nesse espaço, piorando o problema.

Ele podia também estar se afogando no próprio sangue, mas não havia muito que eu pudesse fazer a respeito, de modo que resolvi não me preocupar com isso.

- Pelo lado bom - eu disse a ele - , foi uma bala e não um estilhaço ou uma farpa. Uma coisa pode-se dizer a respeito de ferro em brasa: esteriliza o ferimento. Levante a mão por um instante, por favor. Expire. - Eu mesma agarrei sua mão e a levantei, contando até dois, enquanto ele expirava, depois a plantei novamente sobre o ferimento. Fez um som esborrachado, devido ao sangue. Era muito sangue para um furo daquele tamanho, mas ele não estava tossindo ou cuspindo sangue... Onde... oh. - Este sangue é seu ou de outra pessoa? - perguntei, apontando.

Seus olhos estavam semicerrados, mas à minha pergunta ele virou a cabeça e exibiu seus dentes podres para mim, em um sorriso de lobo.

- Do... seu marido - ele disse num sussurro rouco.

- Imbecil - eu disse, irritada, erguendo sua mão outra vez. - Expire. - Os homens haviam me visto lidar com Stebbings; havia outras baixas do Teal sendo trazidas, mas a maioria parecia ambulatorial. Dei instruções apressadas aos fisicamente aptos para lidar com esses, concernentes à aplicação de pressão em ferimentos ou recolocação de pernas ou braços quebrados, de modo a evitar novos ferimentos.

Parecia uma eternidade até o óleo e o pano chegarem, e eu tive tempo suficiente para imaginar onde Jamie e Ian estavam, mas finalmente os suprimentos de primeiros socorros foram trazidos. Cortei um pedaço de lona com minha faca, rasguei uma longa tira de morim para usar como bandagem temporária, depois afastei a mão de Stebbings com um empurrão, limpei o sangue com uma dobra da minha anágua, borrifei óleo de lampião em seu peito, depois pressionei o pano para baixo para formar uma tampa rudimentar, colocando sua mão novamente em cima de tal modo que uma ponta da lona permanecesse livre, enquanto eu enrolava a atadura improvisada ao redor de seu torso.

- Muito bem - eu disse. - Vou ter que colar a tampa de lona com alcatrão para selar melhor, mas vai levar algum tempo para aquecê-lo. Você pode ir fazer isso agora - disse ao marinheiro que trouxera o óleo e que novamente tentava escapulir silenciosamente. Apressei-me para ver os feridos agachados ou estendidos no convés. - Certo. Quem está morrendo?

Espantosamente, apenas dois dos homens trazidos do Teal estavam mortos, um com terríveis ferimentos na cabeça provocados por estilhaços e metralha, o outro com hemorragia em consequência de ter perdido metade da perna esquerda, provavelmente com um tiro de canhão.

Poderia ter salvo este, pensei, mas o sentimento de pesar do momento foi incorporado nas necessidades do momento seguinte.

Não tão mau assim, pensei, avançando rapidamente pela fileira de joelhos, fazendo uma rápida triagem e dando instruções a meus contrariados assistentes. Ferimentos de estilhaços, dois com raspão de bala de mosquete, um com metade da orelha arrancada, um com uma bala alojada na perna, mas bem longe da artéria femoral, graças a Deus...

Pancadas e arrastamentos vinham do porão inferior, onde consertos estavam sendo feitos. Enquanto eu trabalhava, juntei as peças dos atos da batalha pelas observações passadas pelos feridos que aguardavam meus cuidados.

Em seguida a uma troca irregular de ataques laterais, que derrubara o mastro principal já rachado do Teal e fizera um buraco no casco do Áspide acima da linha d'água, oTeal - as opiniões diferiam se o capitão Roberts tinha feito de propósito ou não - mudou repentinamente de direção, virando-se para o Áspide, raspando a lateral do navio e fazendo as balaustradas dos dois navios ficarem lado a lado.

Era inconcebível que Stebbings tivesse tido a intenção de subir a bordo do Áspide com tão poucos homens confiáveis como ele tinha; se tivesse sido deliberado, ele teria pretendido chocar-se conosco. Olhei para baixo, mas os olhos do capitão estavam fechados e ele estava quase sem cor. Levantei sua mão e ouvi um pequeno assobio de ar, em seguida coloquei-a de volta em seu peito e continuei meu trabalho. Obviamente, ele não estava em condições de dar um depoimento sobre suas intenções.

Quaisquer que tenham sido, o capitão Hickman frustrou-as, saltando por cima da balaustrada do Teal com um grito agudo, seguido por um enxame de áspides. Atravessaram o convés sem muita resistência, embora os homens do Pitt tivessem se reunido ao redor de Stebbings perto do timão e lutado ferozmente. Mas estava claro que os áspides venceriam - e então o Teal chocou-se violentamente contra recifes e encalhou, atirando todo mundo no assoalho do convés.

Convencidos de que o navio estava prestes a afundar, todos que podiam se mover o fizeram, atacantes e defensores igualmente voltando por cima da balaustrada para bordo do Áspide, que se afastou com uma guinada brusca - ainda com algum defensor ignorante do que se passava disparando os últimos um ou dois tiros em sua direção - e acabou raspando o próprio fundo no banco de cascalhos.

- Não precisa se preocupar, madame - um dos homens assegurou-me. - Tão logo a maré encha, ele vai flutuar.

Os barulhos embaixo começaram a diminuir e eu olhava por cima do ombro a cada intervalo de alguns minutos, na esperança de ver Jamie ou Ian.

Eu examinava um pobre sujeito com um estilhaço no olho, quando seu outro olho arregalou-se repentinamente de terror. Virei-me e me deparei com Rollo arquejante e escorrendo água a meu lado, os dentes enormes expostos em um sorriso que envergonhava a fraca tentativa de Stebbings.

- Cachorro! - gritei, encantada. Eu não podia abraçá-lo, bem, eu não o faria, de qualquer modo, mas olhei rapidamente ao redor à procura de Ian, que vinha mancando em minha direção, encharcado também, mas com um sorriso igualmente largo.

- Caímos na água - ele disse com voz rouca, agachando-se no convés a meu lado. Uma pequena poça formou-se sob ele.

- Estou vendo. Respire fundo para mim - eu disse para o homem com o estilhaço no olho. - Um... sim, isso mesmo... dois... sim... - quando ele expirou, segurei o estilhaço e puxei, com força. Ele soltou-se, seguido de um jato de humor vítreo e sangue que me fez ranger os dentes e fez Ian ter ânsias de vômito. Mas não muito sangue. Se não tiver atravessado a órbita, talvez eu possa evitar uma infecção removendo o globo ocular e preenchendo a cavidade com um curativo. Mas isso vai ter que esperar. Cortei uma tira de pano da fralda da camisa do sujeito, dobrei-a rapidamente em uma bucha, impregnei-a de conhaque, pressionei-a contra o olho arruinado e o fiz segurá-la com firmeza no lugar. Ele o fez, embora gemesse e oscilasse assustadoramente, e eu temi que ele fosse emborcar para frente.

Então perguntei a Ian, com a sensação torturante de que eu não queria ouvir a resposta:

- Onde está seu tio?

- Bem ali - Ian disse, balançando a cabeça para um lado. Girei nos calcanhares, uma das mãos ainda segurando o ombro do homem de um olho só, e vi Jamie descendo a escauda, em uma discussão acalorada com o capitão Hickman, que o seguia. A camisa de Jamie estava ensopada de sangue e ele segurava Um chumaço de alguma coisa igualmente encharcado de sangue contra o ombro com uma das mãos. Era possível que Stebbings não estivesse apenas tentando me irritar. Entretanto, Jamie não estava cambaleando e, apesar de estar pálido, também estava furioso. Eu tinha quase certeza de que ele não morreria enquanto estivesse com raiva e peguei outra faixa de lona para estabilizar uma fratura múltipla do braço.

- Cachorro! - Hickman exclamou, parando ao lado de Stebbings, deitado de costas. No entanto, ele não falou com a mesma entonação que eu usara, e Stebbings abriu um olho.

- Cachorro é você - disse, com voz pastosa.

- Cachorro, cachorro, cachorro! Maldito cachorro! - Hickman acrescentou como um extra, e mirou um chute na lateral do corpo de Stebbings. Agarrei seu pé e consegui desequilibrá-lo, de modo que ele caiu para o lado. Jamie segurou-o, grunhindo de dor, mas Hickman endireitou-se atabalhoadamente, empurrando Jamie para trás.

- Não pode matar o sujeito a sangue-frio!

- Posso, sim - Hickman retrucou prontamente. - Veja! - Ele tirou uma enorme pistola de um surrado coldre de couro e engatilhou-o. Jamie segurou a arma pelo cano e tirou-a habilmente de sua mão, deixando-o flexionando os dedos com um ar de surpresa.

- Vamos, senhor - Jamie disse, tentando ser sensato - , certamente não pretende matar um inimigo ferido, um inimigo de uniforme, preso sob sua própria bandeira, e um homem que se rendeu a você. Nenhum homem honrado compactuaria com isso.

Hickman empertigou-se, ficando vermelho-escuro.

- Está contestando minha honra, senhor? Vi os músculos no pescoço e nos ombros de Jamie se retesarem, mas antes que ele pudesse falar Ian surgiu ao lado dele, ombro a ombro.

- Sim, está. E eu também. Rollo, os pelos ainda eretos em espetos molhados, rosnou e arreganhou para trás os lábios pretos, exibindo a maioria dos dentes como sinal de seu apoio a essa opinião.

Hickiman olhou do rosto ameaçador, tatuado, de Ian para os impressionantes dentes carniceiros de Rollo e de novo para Jamie, que havia desengatilhado a pistola e colocado-a no próprio cinto. Respirou pesadamente.

- Que seja, então - disse abruptamente, e se afastou. O capitão Stebbings também respirava pesadamente, um som molhado, aflitivo. A pele estava branca ao redor dos lábios e os lábios mesmos estavam azuis. Ainda assim, estava consciente. Seus olhos mantiveram-se fixos em Hickman durante toda a conversa e seguiram-no agora, quando ele deixou a cabine. Quando a porta se fechou atrás de Hickman, Stebbings relaxou um pouco, transferindo o olhar para Jamie.

- Podia... ter se ... poupado... o trabalho - disse, ofegante. - Mas... obrigado. O que quer... - Tossiu, engasgado, pressionou a mão com força contra o peito e sacudiu a cabeça com uma careta. - ...que possa valer - conseguiu dizer.

Fechou os olhos, respirando devagar e dolorosamente, mas ainda assim respirando. Levantei-me, com os membros dormentes, e finalmente tive um instante para examinar meu marido.

- Foi só um pequeno corte - assegurou-me, em resposta a meu olhar de desconfiança. - Estou bem agora.

- Todo esse sangue é seu? - Ele olhou para baixo, para a camisa emplastrada contra as costelas, e levantou o ombro são desdenhosamente.

- Sobrou bastante para continuar vivo. - Sorriu para mim, em seguida olhou ao redor do convés. - Vejo que você tem tudo sob controle aqui. Vou pedir a Smith para lhe trazer um pouco de comida, hein? Vai chover daqui a pouco.

De fato; o cheiro da tormenta que se avizinhava varreu o porão, fresco e tinindo de ozônio, levantando os cabelos da minha nuca suada.

- Provavelmente não Smith - eu disse. - E onde você vai? - perguntei, vendo-o se afastar.

- Preciso falar com o capitão Hickman e com o capitão Roberts - ele disse, com ar grave. Olhou para cima e os cabelos emaranhados atrás de suas orelhas esvoaçaram na brisa. - Não creio que vamos para a Escócia no Teal, mas não faço a menor ideia de para onde estamos indo.

Por fim, o navio ficou silencioso - ou tão silencioso quanto um grande objeto composto de tábuas rangentes, lonas ondulando e aquele zumbido assustador feito pelo cordame esticado pode ficar. A maré encheu e o navio de fato flutuou; navegávamos para o norte outra vez, suavemente. Eu já despachara o último ferido; somente o capitão Stebbings permaneceu, deitado em um estrado rústico atrás de um baú de chá contrabandeado. Ele ainda respirava e não com terrível desconforto, pensei, mas sua condição era precária demais para eu o deixar fora da minha vista.

Por algum milagre, a bala parecia ter cauterizado seu caminho até o pulmão, em vez de simplesmente cortar vasos sanguíneos em seu caminho. Isso não significava que ele não estivesse sangrando para dentro do pulmão, mas, se assim fosse, era um vazamento pequeno e lento; caso contrário, há muito eu já saberia. Ele deve ter sido baleado à queima-roupa, pensei sonolentamente. A bala ainda estava em brasa quando o atingiu. Eu mandara Abram ir dormir. Eu mesma deveria me deitar, pois a fadiga arriava meus ombros e se assentara em nós doloridos na base da minha espinha. Mas ainda não.

Jamie ainda não voltara. Eu sabia que ele voltaria ao meu encontro quando tivesse terminado sua reunião com Hickman e Roberts. E ainda havia alguns preparativos a serem feitos, por precaução.

Anteriormente, quando Jamie vasculhara a escrivaninha de Hickman em busca de algo para eu comer, eu notara um punhado de penas de escrever novas. Mandei Abram pedir algumas para mim e trazer a maior agulha de consertar velas que pudesse encontrar - e alguns ossos de asa jogados fora do ensopado de frango a bordo do Pitt.

Cortei as pontas de um osso bem fino, olhei para ter certeza de que a medula fora totalmente removida pelo cozimento, em seguida afinei uma das pontas cuidadosamente, usando a pequena pedra de amolar do carpinteiro do navio para esse fim. A pena de ganso foi mais fácil; a ponta já havia sido aguçada para escrever; tudo que precisei fazer foi cortar as farpas, depois submergir a pena, o osso e agulha em uma pequena vasilha rasa de conhaque. Isso me serviria.

O cheiro do conhaque ergueu-se doce e pesado no ar, competindo com alcatrão, terebintina, tabaco e as velhas ripas impregnadas de sal do navio. Ao menos, obliterava parcialmente os cheiros de sangue e matéria fecal deixados por meus pacientes.

Eu descobrira uma caixa de vinho Meursault na carga e agora retirei dali uma garrafa, acrescentando-a à meia garrafa de conhaque e a uma pilha de curativos e ataduras de morim limpo. Sentando-me em uma barrica de alcatrão, recostei-me contra um grande barril, de meia-pipa, de tabaco, bocejando e me perguntando distraidamente a quem se destinava tudo aquilo.

Descartei o pensamento e fechei os olhos. Eu podia sentir meu pulso latejando nas pontas dos dedos e nas pálpebras. Não dormi, mas lentamente desci a uma espécie de semiconsciência, vagamente ciente do murmúrio da água deslizando pelos lados do navio, do sopro mais alto da respiração de Stebbings, das vagarosas expansões dos meus próprios pulmões e das lentas e tranquilas batidas do meu coração.

Parecia que haviam se passado anos desde o tumulto e os terrores da tarde, e da distância imposta pela fadiga e intensidade dos acontecimentos minha preocupação de que eu pudesse estar tendo um ataque cardíaco parecia ridícula. Mas seria? Não era impossível. Sem dúvida, não fora mais do que pânico e hiperventilação - ridículos em si mesmos, mas não ameaçadores. Ainda assim...

Coloquei dois dedos no peito e esperei que a pulsação na ponta dos meus dedos se igualasse com a do meu coração. Devagar, quase sonhando, comecei a percorrer o meu corpo, do topo da cabeça à ponta dos pés, sentindo meu percurso pelas longas e serenas passagens de veias, da cor violeta-escura do céu pouco antes de anoitecer. Perto, vi o brilho das artérias, largas e ativas, cheias de vida carmesim. Entrei nas câmaras do meu coração e me senti encerrada lá dentro, as paredes espessas movendo-se em um ritmo ininterrupto, infindável, reconfortante e firme. Não, nenhum dano, nem ao coração, nem às suas válvulas.

Senti meu trato digestivo, firmemente contraído durante horas sob meu diafragma, relaxar e assentar-se com uma delicada golfada, e uma sensação de bem-estar fluiu como mel morno pelos meus membros e coluna vertebral.

- Não sei o que você está fazendo, Sassenach - uma voz suave disse perto de mim. - Mas parece bem satisfeita.

Abri os olhos e sentei-me direito. Jamie desceu as escadas, movendo-se com cuidado, e sentou-se.

Ele estava muito pálido e seus ombros estavam arriados de exaustão. Porém sorriu debilmente para mim e seus olhos estavam límpidos. Meu coração, forte e confiável como eu acabara de provar a mim mesma, se enterneceu e derreteu como se fosse de manteiga.

- Como você - comecei a dizer, mas ele ergueu a mão, detendo-me.

- Vou ficar bem - ele disse, com um olhar para o estrado onde Stebbings estava deitado, respirando audível e superficialmente. - Ele está dormindo?

- Espero que sim. E você deveria estar - observei. - Deixe-me cuidar de você para que possa se deitar.

- Não é nada grave - ele disse, cautelosamente tirando o chumaço de tecido endurecido enfiado por dentro da camisa. - Mas deve precisar de um ou dois pontos, eu acho.

- Eu também acho - eu disse, examinando as manchas marrons pelo lado direito de sua camisa. Considerando sua costumeira inclinação para subestimar seus ferimentos, ele provavelmente tinha um corte aberto no peito. Ao menos, o acesso ao corte seria fácil, ao contrário do estranho ferimento sofrido por um dos marinheiros do Pitt, que de algum modo fora atingido bem atrás do escroto por um projétil de metralha. Eu achava que a bala devia ter atingido alguma outra coisa primeiro e ricocheteado para cima, pois felizmente não penetrara profundamente, mas estava achatada como uma moeda quando a retirei. Eu lhe dei a bala como lembrança.

Abram havia trazido uma lata de água quente pouco antes de sair. Coloquei o dedo na água e fiquei satisfeita de ver que ainda estava morna.

- Certo - eu disse, indicando com um sinal da cabeça as garrafas em cima do baú. - Quer conhaque ou vinho, antes de começarmos?

O canto de sua boca torceu-se e ele estendeu a mão para a garrafa de vinho.

- Deixe-me manter a ilusão de civilização por mais um pouco de tempo.

- Oh, acho que é coisa bastante civilizada - eu disse. - Mas eu não tenho um saca-rolhas.

Ele leu o rótulo e suas sobrancelhas ergueram-se.

- Não tem importância. Tem alguma coisa onde possa servi-lo?

- Tome. - Retirei uma pequena e elegante caixa de madeira de um ninho de palha dentro de uma caixa de embalagem e a abri triunfalmente, exibindo um aparelho de chá de porcelana chinesa, de bordas douradas e decorado com minúsculas tartarugas vermelhas e azuis, todas parecendo misteriosamente asiáticas, nadando através de uma floresta de crisântemos dourados.

Jamie riu - não mais do que uma exalação, mas certamente uma risada - e cortando um sulco no gargalo da garrafa com a ponta de sua adaga, arrancou-a com precisão contra a borda de um barril de tabaco. Ele serviu o vinho cuidadosamente nas duas xícaras que preparei, balançando a cabeça para as vívidas tartarugas.

- Aquela azul pequena me faz lembrar o sr. Willoughby, hein? Ri também, depois olhei com culpa para os pés de Stebbings - tudo que se podia ver dele no momento. Eu tirara suas botas e as pontas soltas de suas meias imundas pendiam comicamente sobre seus pés. Estes, entretanto, não se mexiam, e a respiração lenta e difícil continuava como antes.

- Há anos não penso no sr. Willoughby - observei, erguendo a minha xícara em um brinde. - Aos amigos ausentes.

Jamie respondeu brevemente em chinês e tocou a borda de sua própria xícara na minha com um débil tinido.

- Você ainda consegue falar chinês? - perguntei, intrigada, mas ele sacudiu a cabeça.

- Não muito. Não tive oportunidade de falar chinês desde que o vi pela última vez. - Ele inspirou o buquê do vinho, fechando os olhos. - Isso parece ter sido há muito tempo.

- Há muito tempo e muito longe. - O vinho tinha um aroma reconfortante de amêndoas e maçãs, era seco, mas encorpado, aderindo suntuosamente ao céu da boca. Jamaica, para ser precisa, e há mais de dez anos. - O tempo voa quando você está se divertindo. Acha que ele ainda está vivo, o sr. Willoughby?

Ele ficou pensativo, bebericando o vinho.

- Sim, acho. Um homem que escapou de um imperador chinês e viajou por metade do mundo para conservar suas bolas é uma pessoa com muita determinação.

Mas ele pareceu desinteressado em desencavar novas reminiscências de antigos conhecidos e eu o deixei beber seu vinho em silêncio, sentindo a noite se acomodar confortavelmente ao nosso redor com o suave balanço do navio. Após sua segunda xícara de vinho, tirei sua camisa coberta de sangue seco e cuidadosamente levantei o lenço também endurecido de sangue que ele usara como tampão para estancar o ferimento.

Um pouco para minha surpresa, ele tinha razão: o ferimento era pequeno e não precisaria de mais do que dois ou três pontos. Uma lâmina cortara fundo, logo abaixo da clavícula, e rasgara uma aba triangular da carne ao sair.

- Esse é todo seu sangue? - perguntei, intrigada, levantando a camisa descartada.

- Não, ainda sobrou um pouco - ele disse, os olhos enrugando-se para mim por cima da xícara. - Mas não muito.

- Você sabe muito bem o que quero dizer - eu disse, severamente.

- Sim, é todo meu. - Esvaziou a xícara e estendeu a mão para a garrafa.

- Mas de um corte tão pequeno... oh, meu Deus. - Senti-me ligeiramente tonta. Eu podia ver a frágil linha azul de sua veia subclavicular passando logo abaixo da clavícula e correndo diretamente acima da abertura coagulada do corte.

- Sim, eu fiquei surpreso - ele disse descontraidamente, envolvendo a delicada xícara de porcelana nas duas mãos enormes. - Quando ele arrancou a lâmina, o sangue jorrou como uma fonte e encharcou nós dois. Nunca vi isso antes.

- Provavelmente nunca ninguém tinha dado um pique na sua artéria subclavicular antes - eu disse, com todo o esforço para manter a calma que pude reunir. Lancei um olhar de viés ao ferimento. Havia coagulado; as bordas da aba haviam ficado azuis e a carne talhada embaixo estava quase preta de sangue seco. Nenhuma exsudação, muito menos um jorro arterial. A lâmina lançara-se de baixo para cima, perdendo a veia e apenas dando um pique na artéria por trás.

Soltei um suspiro longo e profundo, tentando sem sucesso não imaginar o que teria acontecido se a lâmina tivesse alcançado um milímetro mais fundo ou se Jamie não tivesse um lenço, o conhecimento e a oportunidade de pressionar o ferimento.

Posteriormente, é que compreendi o que ele dissera: "O sangue jorrou como uma fonte e encharcou nós dois." E quando eu perguntara a Stebbings se era seu próprio sangue que encharcava sua camisa ele me olhara maliciosamente e dissera: "Do seu marido." Eu achara que ele só estava sendo desagradável, mas...

- Foi o capitão Stebbings que o esfaqueou?

- Mmmmhum. - Fez um breve ruído afirmativo enquanto mudava de posição, recostando-se para trás para que eu tivesse melhor acesso ao corte. Esvaziou a xícara outra vez e depositou-a no chão, com um ar resignado. - Fiquei surpreso de ele ter conseguido. Eu achei que o tinha derrubado, mas ele bateu no chão e se levantou com uma faca na mão, o desgraçado.

- Foi você que atirou nele? Ele piscou com o tom de minha voz.

- Sim, claro. Não consegui pensar em nenhum palavrão capaz de abranger a situação e, murmurando "Jesus H. Roosevel Cristo" baixinho, comecei a limpar e suturar.

- Agora, escute - eu disse, em minha melhor voz de cirurgiã militar. - Até onde eu saiba, foi apenas um corte muito pequenino e você conseguiu estancar o sangramento o tempo suficiente para se formar um coágulo. Mas esse coágulo é tudo que está impedindo você de sangrar até a morte. Me entendeu? - Isso não era inteiramente verdade, ou não seria, depois que eu tivesse costurado a pele solta de volta no lugar; mas agora não era hora de dar a ele uma brecha.

Ele olhou para mim por um longo instante, impassível.

- Entendi.

- Isso significa - enfatizei, enfiando a agulha em sua carne com força suficiente para fazê-lo soltar um pequeno grito - que você não pode usar o braço direito ao menos pelas próximas quarenta e oito horas. Não pode se dependurar em cordas, escalar o cordame, não pode dar socos, não pode nem sequer coçar o traseiro com a mão direita, está me ouvindo?

- Acho que o navio inteiro está ouvindo - ele murmurou, mas olhou para baixo, tentando ver a clavícula. - De qualquer modo, eu sempre coço meu traseiro com a mão esquerda.

O capitão Stebbings definitivamente havia nos ouvido; uma risadinha quase inaudível veio de trás do baú de chá, seguida de uma tosse surda e um leve chiado.

- E - continuei, puxando o fio pela pele - você não pode se enfurecer. Ele inspirou, sibilando.

- Por que não? - Porque vai fazer seu coração bater com mais força, elevando sua pressão, que por sua vez vai...

- Me fazer explodir como uma garrafa de cerveja fechada há muito tempo?

- Exatamente. Agora... O que quer que eu fosse dizer desapareceu de minha mente no instante seguinte, quando a respiração de Stebbings mudou repentinamente.

Deixei a agulha cair e, virando-me, peguei a vasilha. Afastei o baú de chá com um empurrão, colocando a vasilha em cima, e caí de joelhos ao lado do corpo de Stebbings.

Seus lábios e pálpebras estavam azuis, e o resto de seu rosto estava da cor de massa de vidraceiro. Ele fazia um horrível barulho arquejante, a boca aberta, tentando engolir ar.

Felizmente, havia bastantes palavrões conhecidos para esta situação e eu usei alguns deles, rapidamente afastando o cobertor e enfiando os dedos na lateral gorducha de seu corpo, procurando as costelas. Ele contorceu-se e emitiu uma sonora, ridícula risadinha, que fez Jamie - a agulha ainda balançando de sua clavícula pelo fio de sutura - dar uma risada nervosa em reação.

- Não é hora de sentir cócegas - eu disse, irritada. - Jamie, pegue uma daquelas penas de escrever e enfie a agulha dentro. - Enquanto ele fazia isso, eu rapidamente limpei a pele de Stebbings com um chumaço de pano embebido em conhaque, em seguida peguei a pena com agulha em uma das mãos, a garrafa de conhaque na outra, e enfiei a pena, pela ponta pontiaguda, no segundo espaço intercostal, como se enfiasse um prego. Senti o estalido subterrâneo quando a pena furou a cartilagem e penetrou no espaço pleural.

Ele soltou um som agudo e estridente, mas não era uma risada. Eu havia cortado a pena um pouco mais curta do que a agulha, mas a agulha havia afundado para dentro da pena com o impacto. Tive um momento de pânico, tentando segurar a agulha com as unhas para puxá-la para fora, mas finalmente consegui. Sangue com mau cheiro de estagnado e fluidos saíram num jato pela pena oca, mas apenas por um instante, depois o fluxo diminuiu apenas para um silvo de ar.

- Respire devagar - eu disse, mais calma. - Os dois.

Eu observava a pena ansiosamente, procurando qualquer outra drenagem de sangue - obviamente, se ele estivesse sangrando muito para dentro do pulmão, não haveria praticamente nada que eu pudesse fazer - , mas eu via apenas a leve exsudação do ferimento da perfuração, um borrão vermelho na parte externa da pena.

- Sente-se - eu disse a Jamie, que o fez, ficando com as pernas cruzadas no chão, a meu lado.

Stebbings parecia melhor; o pulmão havia inflado ao menos em parte, e ele estava branco agora, os lábios pálidos, mas levemente rosados. O assobio da pena oca tornou-se quase inaudível e eu coloquei o dedo na extremidade aberta.

- O ideal - eu disse em tom de conversa - seria eu passar um tubo do seu peito a uma jarra de água. Dessa forma, o ar ao redor de seu pulmão poderia escapar, mas o ar não podia entrar de volta. Como não tenho nada que se assemelhe a um tubo mais longo do que alguns centímetros, isso não vai funcionar. - Levantei-me sobre os joelhos, fazendo sinal para Jamie. - Venha cá e coloque o dedo na ponta desta pena. Se ele começar a sufocar outra vez, tire-a por um instante, até o ar parar de sair como um assobio.

Ele não podia alcançar Stebbings de forma apropriada com a mão esquerda; com um olhar de viés para mim, estendeu a direita bem devagar e tampou a pena com o polegar.

Levantei-me, com um gemido, e fui vasculhar a carga outra vez. Teria que ser alcatrão. Eu havia aplicado a compressa de pano oleado ao seu peito em três lados com alcatrão morno, e ainda restava bastante. Não era ideal; provavelmente, eu não poderia extrair mais outra vez com pressa. Será que uma pequena tampa de tecido úmido seria melhor?

No entanto, em um dos baús de Hannah Arnold, encontrei um tesouro: uma pequena coleção de ervas secas em botijas - inclusive uma com goma arábica em pó. As ervas eram interessantes e úteis por si mesmas, sendo obviamente importadas: casca de cinchona - eu devia tentar enviá-la de volta à Carolina do Norte, para Lizzie, se conseguíssemos sair desta horrível banheira - , mandrágora e gengibre, plantas que nunca cresciam nas colônias. Tê-las à mão me fez sentir repentinamente rica. Stebbings gemeu atrás de mim e eu ouvi a fricção de tecido e um leve assobio quando Jamie tirou o polegar por um instante.

Nem mesmo as riquezas do lendário Oriente poderiam fazer muita coisa por Stebbings. Abri a botija de goma arábica e, tirando um pouco na palma da mão, gotejei água sobre ela e comecei a moldar a bola grudenta resultante em uma rolha mais ou menos cilíndrica, que enrolei em um recorte de morim amarelo estampado com abelhas, terminando com uma perfeita torcida em cima. Satisfeita com o resultado, voltei e, sem comentários, retirei a pena oca - já mostrando sinais de rachadura por causa dos movimentos dos músculos das costelas de Stebbings - de sua perfuração e introduzi o osso de galinha oco - mais resistente e maior - em seu lugar.

Ele também não riu dessa vez. Tampei com perfeição a ponta do osso e, ajoelhando-me diante de Jamie, retomei a sutura em sua clavícula. Eu me sentia perfeitamente lúcida - mas daquele jeito estranhamente sobrenatural, que é uma indicação de total esgotamento. Eu fiz o que tinha que ser feito, mas sabia que não conseguiria me manter em pé muito mais tempo.

- O que o capitão Hickman tem a dizer? - perguntei, muito mais como forma de nos distrair do que por um real interesse em saber.

- Inúmeras coisas, como pode imaginar. - Ele respirou fundo e fixou os olhos em um enorme casco de tartaruga enfiado entre as caixas. - Deixando de lado as opiniões puramente pessoais e uma certa dose de excesso de linguagem, entretanto... vamos subir o rio Hudson. Para Fort Ticonderoga.

- Nós... O quê? - Franzi a testa para a agulha com metade enfiada na pele. - Por quê?

As mãos dele estavam apoiadas no convés, os dedos pressionando as tábuas com tanta força que as unhas ficaram brancas.

- Era para lá que ele estava indo quando as complicações começaram e é para lá que ele pretende ir. É um homem de opiniões muito determinadas, pelo que vi. Um sonoro som de desdém veio de trás do baú de chá.

- Eu realmente notei algo assim. - Arrematei a última sutura e cortei a linha habilmente com minha faca. - Disse alguma coisa, sr. Stebbings?

O ruído se repetiu, mais alto ainda, mas sem nenhum aperfeiçoamento.

- Ele não pode ser convencido a nos deixar no litoral? Os dedos de Jamie pairaram por cima do ferimento recém-suturado, obviamente querendo coçar o local, mas eu os afastei.

- Sim, bem... há mais complicações, Sassenach.

- Conte-me - murmurei, levantando-me e alongando-me. - Oh, Deus, minhas costas. Que tipo de complicações? Quer chá?

- Só se vier com uma boa dose de uísque. Inclinou a cabeça para trás, contra o tabique, fechando os olhos. Havia um leve rosado em suas faces, apesar de sua testa brilhar de suor.

- Conhaque serve? - Eu mesma precisava muito de chá, sem álcool, e me dirigi para a escada, sem esperar pelo seu assentimento. Eu o vi estender a mão para a garrafa de vinho quando coloquei o pé no primeiro degrau.

Havia um vento refrescante soprando em cima; fez a longa capa girar ao meu redor quando emergi das profundezas, e enfunou minhas anáguas de uma maneira muito revigorante. Ele revigorara o sr. Smith - ou melhor, o sr. Marsden - também, que pestanejou e desviou o olhar apressadamente.

- Boa-noite, madame - ele disse, educadamente, depois que consegui controlar minhas vestimentas. - Espero que o coronel esteja passando bem.

- Sim, está - estanquei e lancei-lhe um olhar incisivo. - O coronel? - Tive uma leve sensação de desfalecimento.

- Sim, senhora. Ele é um coronel de milícia, não é?

- Ele foi - eu disse, com ênfase. O rosto de Smith abriu-se em um sorriso.

- Nada de "foi", madame - ele disse. - Ele nos deu a honra de aceitar o comando de uma companhia: os Irregulares de Fraser, é como seremos chamados.

- Um nome muito apropriado - eu disse. - Mas que diabos... como isso aconteceu?

Ele puxou nervosamente um de seus brincos, vendo que talvez eu não estivesse tão satisfeita com a notícia como se podia esperar.

- Ah. Bem, para dizer a verdade, madame, receio que a culpa tenha sido minha. - Abaixou a cabeça, envergonhado. - Um dos marujos a bordo do Pin me reconheceu e quando ele contou ao capitão quem eu era...

A revelação do verdadeiro nome do sr. Marsden - em combinação com seus adornos - havia causado um considerável rebuliço entre a tripulação variada atualmente a bordo do Áspide. Tanto assim que ele correu o risco de ser atirado pela amurada ou deixado à deriva em um barco. Após algum tempo de áspera discussão, Jamie sugerira que talvez o sr. Marsden pudesse ser persuadido a mudar de profissão e se tornar um soldado - pois um grande número de marinheiros a bordo do Áspide já havia proposto deixá-lo e se juntar às forças continentais em Ticonderoga, transportando as mercadorias e as armas através do lago Champlain e depois permanecendo como voluntários de milícias.

Isso teve aprovação geral - apesar de algumas pessoas insatisfeitas ainda serem ouvidas dizendo que um Jonah era um Jonah, quer ele fosse um marinheiro ou não.

- Foi por isso que achei melhor não aparecer muito lá embaixo, se entende o que quero dizer, madame - o sr. Marsden concluiu.

Isso também solucionou o que fazer com os marujos prisioneiros do Pin e os marinheiros desalojados do Teal; os que preferiam unir-se à milícia americana poderiam fazê-lo, enquanto os marinheiros britânicos que preferissem a perspectiva de vida como prisioneiros de guerra podiam ser atendidos em seu desejo e acomodados em Fort Ticonderoga. Cerca de metade dos homens do Teal expressou uma preferência inequívoca pelo emprego em terra firme, após suas recentes aventuras marítimas, e também iriam se unir aos Irregulares.

- Compreendo - eu disse, esfregando dois dedos entre as sobrancelhas. - Bem, com licença, sr.... Marsden, preciso ir preparar uma xícara de chá. Com muito conhaque.

O chá me reanimou, o suficiente para enviar Abram - encontrado cochilando junto ao fogo da cozinha apesar de ter sido mandado para a cama - para levar um pouco para Jamie e o capitão Stebbings, enquanto eu passava meus outros pacientes em revista. Estavam quase tão confortáveis quanto se podia esperar, ou seja, não muito, mas estoicos a respeito e sem nenhuma necessidade de intervenção médica premente.

Entretanto, o ânimo temporário que o chá com conhaque me emprestara já havia se dissipado quase inteiramente quando refiz o caminho de volta pela escada para o porão e meu pé escorregou no último degrau, fazendo-me cair pesadamente no convés, com uma pancada que provocou um grito assustado de Stebbings, seguido de um gemido. Abanando a mão para a sobrancelha suspensa de Jamie, apressei-me a ir ver o paciente.

Ele estava com muita febre, o rosto gordo afogueado e uma xícara de chá quase cheia estava posta de lado junto a ele.

- Eu tentei fazê-lo beber, mas ele disse que não conseguia beber mais do que um gole. - Jamie me seguira e falou suavemente às minhas costas.

Inclinei-me e coloquei o ouvido perto do peito de Stebbings, auscultando da melhor maneira possível através da camada de gordura que o cobria. O tubo de osso de galinha, momentaneamente destampado, soltou apenas um modesto assobio de ar e não mais do que um vestígio de sangue.

- Até onde eu saiba, o pulmão se expandiu ao menos em parte - eu disse, dirigindo-me a Stebbings, por formalidade, embora ele tenha meramente me dirigido um olhar fixo, vidrado. - E eu acho que a bala deve ter cauterizado grande parte dos danos causados; caso contrário, creio que estaríamos vendo sintomas muito mais alarmantes. - Caso contrário, ele já estaria morto, mas achei mais diplomático não dizer isso. Ele podia facilmente estar morto em pouco tempo, de qualquer modo, de febre, mas resolvi não dizer isso também.

Consegui persuadi-lo a beber um pouco de água e passei uma esponja úmida em sua cabeça e torso. A tampa da escotilha fora retirada e estava razoavelmente fresco no porão, embora o ar não circulasse muito embaixo. De qualquer forma, eu não via nenhum benefício em levá-lo para o vento no convés superior e, quanto menos ele fosse movido do lugar, melhor.

- Essa é... minha... capa? - ele perguntou repentinamente, abrindo um único olho.

- Hã... provavelmente - respondi, desconcertada. - Você a quer de volta? Ele fez uma leve careta e sacudiu a cabeça, depois relaxou, os olhos fechados, respirando superficialmente.

Jamie estava recostado contra o baú de chá, a cabeça para trás, os olhos fechados e respirando pesadamente. No entanto, ao sentir eu me sentar ao seu lado, levantou a cabeça e abriu os olhos.

- Você parece que está a ponto de desmoronar, Sassenach - disse suavemente. - Deite-se, hein? Eu vigiarei o capitão.

Vi onde ele queria chegar. Na verdade, eu estava vendo dois Jamies. Pestanejei e sacudi a cabeça, momentaneamente unificando os dois Jamies, mas não havia como negar que ele tinha razão. Eu perdera o contato com meu corpo outra vez, mas minha mente, em vez de se restringir à sua função, simplesmente começara a vagar sem direção, em uma espécie de estupor. Esfreguei o rosto com força, mas isso não ajudou muito.

- Preciso dormir - expliquei aos homens, os quatro agora me observando com a perfeita atenção de olhos arregalados de corujas em um celeiro. - Se sentir a pressão aumentar outra vez, e acho que vai sentir - eu disse a Stebbings tire a tampa do tubo até melhorar, depois a recoloque. Se algum de vocês achar que está morrendo, me acorde.

Sem maiores confusões, e me sentindo como se eu estivesse me observando de fora do meu corpo, estendi-me nas tábuas, coloquei a cabeça em uma dobra da capa de Stebbings e adormeci.

Acordei muito tempo depois e fiquei deitada por alguns minutos sem conseguir pensar de forma coerente, minha mente subindo e descendo com o movimento do convés sob mim. Em determinado momento, comecei a distinguir o murmúrio de vozes masculinas dos sussurros e batidas que fazem parte dos ruídos de um navio.

Eu caíra em um estado de esquecimento tão profundo que levei algum tempo para me lembrar dos acontecimentos anteriores a meu sono, mas as vozes os trouxeram de volta. Ferimentos, os vapores de conhaque, a lona de velas, áspera, rasgando-se em minhas mãos, e o cheiro de tintura no morim molhado, de cores vivas. A camisa ensanguentada de Jamie. O som aspirado do buraco no peito de Stebbings. Apenas a lembrança disso teria sido suficiente para me fazer sentar num salto, mas meu corpo se enrijecera de ficar deitado nas tábuas. Uma aguda pontada de agonia lancetou do meu joelho à virilha, e os músculos das minhas costas e braços doeram insuportavelmente. Antes que eu pudesse esticá-los o suficiente para conseguir ficar de pé, ouvi a voz do capitão.

- Chame Hickman. - A voz de Stebbings era rouca e baixa, mas decidida. - Prefiro levar um tiro do que continuar com isso.

Eu não achei que ele estivesse brincando. Nem Jamie.

- Não o culpo - ele disse. Sua voz era suave, mas séria, tão decidida quanto a de Stebbings.

Meus olhos começavam a se focalizar outra vez, conforme a dor paralisante em meus músculos diminuía um pouco. De onde eu estava, podia ver Stebbings dos joelhos para baixo e a maior parte de Jamie, sentado ao lado dele, a cabeça abaixada nos próprios joelhos, a figura alta curvada contra o baú de chá.

Houve uma pausa e em seguida Stebbings disse:

- Não, hein? Ótimo. Vá chamar Hickman.

- Por quê? - Jamie perguntou, após o que pareceu uma pausa igual para pensar, ou talvez apenas para reunir forças para responder. Ele não levantou a cabeça; parecia quase drogado de fadiga. - Não há necessidade de tirar o homem da cama, há? Se quer morrer, basta arrancar este negócio do seu peito.

Stebbings fez um ruído ininteligível. Pode ter começado como uma risada, um gemido ou uma resposta irritada, mas terminou em um sibilo de ar entre dentes cerrados. Meu corpo retesou-se. Ele teria na verdade tentado retirar o tubo?

Não. Ouvi o movimento pesado de seu corpo, vi seus pés curvarem-se ligeiramente quando ele procurou uma posição mais confortável e ouvi o grunhido de Jamie quando se inclinou para ajudá-lo.

- Alguém... pode obter... satisfação... com a minha morte - ele disse com um som sibilante. - Eu fiz um buraco em você - Jamie ressaltou. Endireitou-se e esticou-se com extremo cuidado. - Não ficaria muito satisfeito em vê-lo morrer disso. - Achei que ele já devia ter passado há muito tempo do ponto de exaustão e obviamente estava tão dolorido quanto eu. Tenho que me levantar, fazê-lo ir dormir. Mas ele ainda conversava com Stebbings, parecendo despreocupado, como um homem que estivesse discutindo uma questão obscura de filosofia natural. - Quanto a satisfazer o capitão Hickman... sente algum tipo de obrigação em relação a ele?

- Não. - A resposta veio breve e precisa, apesar de seguida de uma profunda arfada. - É uma morte limpa - Stebbings conseguiu dizer após mais algumas arfadas. - Rápida.

Stebbings emitiu um ruído que poderia ser interrogativo. Jamie suspirou. Após um instante, ouvi o farfalhar de tecidos e o vi mover a perna esquerda, gemendo ao fazê-lo, e levantar seu kiut.

- Está vendo isso? - Seu dedo correu devagar por toda a extensão de sua coxa, começando logo acima do joelho, até quase a virilha.

Stebbings deu um grunhido ligeiramente mais interessado, esse definitivamente interrogativo. As pontas pendentes de suas meias moveram-se conforme ele movimentou os pés.

- Baioneta - Jamie disse, negligentemente cobrindo de novo a cicatriz retorcida e falhada com o kilt. - Fiquei deitado por dois dias depois disso, a febre me devorando vivo. Minha perna inchou e começou a feder. E quando o oficial inglês chegou para estourar nossos miolos eu fiquei muito satisfeito.

Um breve silêncio.

- Culloden? - Stebbings perguntou. Ele ainda estava rouco e eu podia ouvir a febre em sua voz, mas agora havia interesse também. - Ouvi... falar.

Jamie não disse nada em resposta, mas bocejou de repente, sem se preocupar em reprimir o bocejo, e esfregou as mãos devagar pelo rosto. Pude ouvir o som áspero provocado pela barba por fazer.

Silêncio, mas a qualidade do silêncio havia mudado. Eu podia sentir a raiva de Stebbings, sua dor e seu medo - mas havia uma leve sensação de humor em sua respiração difícil.

- Vai me... fazer.... perguntar? Jamie sacudiu a cabeça. - Uma história longa demais e que eu não gosto de contar. Basta saber que eu queria que ele me desse um tiro, queria muito, mas o filho da mãe não o fez.

O ar no pequeno porão estava estagnado, mas inquieto, pleno dos cheiros alternados de sangue e luxo, de mercadorias e doença. Inspirei, devagar, profundamente, e pude sentir o cheiro acre dos corpos dos homens, um cheiro penetrante e selvagem de cobre, amargo de esforço e exaustão. As mulheres nunca exalavam este cheiro, pensei, mesmo em circunstâncias extremas.

- Vingança, então, não é? - Stebbings perguntou após algum tempo. Seus pés irrequietos haviam sossegado. Suas meias imundas estavam arriadas e sua voz cansada.

Os ombros de Jamie moveram-se, devagar, enquanto ele suspirava, e sua própria voz estava quase tão cansada quanto a de Stebbings.

- Não - ele disse, muito suavemente. - Chame de pagamento de uma dívida.

Uma dívida?, pensei. Com quem? Com lorde Melton, que se recusara a matá-lo, por questão de honra, que em vez disso o enviara para casa depois de Culloden, escondido em uma carroça cheia de feno? Com sua irmã, que se recusara a deixá-lo morrer, que o arrastara de volta à vida por pura força de vontade? Ou com aqueles que haviam morrido quando ele não?

Eu havia me esticado o suficiente agora para poder me levantar, mas não o fiz, ainda não. Não havia urgência. Os homens estavam silenciosos, sua respiração parte da respiração do navio, o suspiro do mar lá fora.

Aos poucos, silenciosamente, ocorreu-me que eu sabia a resposta. Eu havia vislumbrado o abismo muitas vezes, por cima do ombro de alguém quando estavam na borda, olhando para baixo. Mas eu vira por mim mesma uma vez, também. Eu conhecia sua vastidão e sua atração, a possibilidade de pôr termo a tudo.

Eu sabia que estavam de pé agora, lado a lado, e cada qual sozinho, olhando para baixo.

 

                                                         CONJUNÇÃO

 

                   UMA LEVE SUSPEITA

De lorde John Grey Para sr. Arthur Norrington 4 de fevereiro de 1777 (Código 158)

Caro Norrington

De acordo com nossa conversa, fiz certas descobertas que acho prudente confidenciar.

Fiz uma visita à França no final do ano e, enquanto estava lá, visitei o barão Amandine. Na verdade, hospedei-me com o barão por vários dias e conversei com ele em diversas ocasiões. Tenho motivos para acreditar que Beauchamp está de fato envolvido na questão que discutimos e se ligou a Beaumarchais, que portanto deve estar igualmente envolvido. Creio que Amandine não está ele próprio envolvido, mas que Beauchamp pode usá-lo como uma espécie de fachada.

Solicitei uma reunião com Beaumarchais, mas foi recusada. Como ele normalmente teria me recebido, acho que cutuquei algum ninho. Seria útil observar esse lado.

Fique alerta também a qualquer menção na correspondência francesa de uma companhia chamada Rodrigue Hortalez et Cie (rogo-lhe que fale com a pessoa que lida com a correspondência espanhola também). Não descobri nada irregular, mas também não consigo descobrir nada sólido em relação a eles, como o nome dos diretores, e isso por si só me parece suspeito.

Se o seu dever assim o permitir, gostaria de ser informado de qualquer coisa que venha a saber com relação a essas questões.

Seu criado, lorde John Grey

PS.: Pode me dizer quem está atualmente encarregado do Departamento Americano, em relação à correspondência?

De lorde John Grey Para Harold, Duque de Pardloe 4 de fevereiro de 1777 (código de família)

Hal...

Encontrei-me com Amandine. Wainwright de fato vive na mansão senhorial - chamada Trois Flèches - e assim mantém uma relação doentia com o barão. Conheci a irmã do barão, a mulher de Wainwright. Ela sem dúvida tem conhecimento da ligação entre seu irmão e seu marido, mas não o admite abertamente. Fora isso, ela não parece saber de mais nada. Poucas vezes conheci uma mulher mais idiota. Ela é francamente libertina nos modos e uma péssima jogadora de cartas. Assim como o barão, por meio do qual fiquei convencido de que ele realmente sabe alguma coisa sobre as maquinações políticas de Wainwright; ele se comportou evasivamente quando desviei a conversa nessa direção e tenho certeza de que não é versado na arte de disfarçar. Mas não é bobo. Ainda que fosse, certamente terá contado a Wainwright a respeito da minha visita. Alertei Norrington para observar qualquer atividade nessa frente.

Sabendo o que eu sei sobre as habilidades e conexões de Wainwright (ou melhor, a falta de), não consigo compreender seu envolvimento. É bem verdade que, se o governo francês tiver tais planos em mente como ele indicou, dificilmente os comunicaria abertamente, e enviar alguém como Wainwrikht para falar com alguém como eu pode ser considerado suficientemente secreto. Sem dúvida, tal abordagem tem o benefício de ser contestada. Ainda assim, parece haver algo errado nisso tudo, de uma forma que ainda não consigo definir.

Logo estarei com você e espero, então, estar de posse de algumas informações claras referentes a certo capitão Ezekiel Richardson, bem como a outro chamado capitão Denys Randall-Isaacs. Caso lhe seja possível investigar esses nomes através de suas próprias conexões, eu ficaria muito agradecido.

Com todo o afeto de seu irmão, John

PS.: Espero que esteja bem de saúde.

De Harold, Duque de Pardloe Para lorde John Grey 6 de março de 1777 Bath (código de família)

Não estou morto. Quisera estar Bath é horrível. Sou diariamente enrolado em lona e carregado como um embrulho a ser imerso em água fervente que cheira a ovo podre, depois tirado e forçado a bebê-la, mas Minnie diz que vai apresentar uma petição à Câmara dos Lordes para se divorciar de mim, com base em insanidade causada por atos imorais, caso eu não obedeça. Eu duvido, mas aqui estou.

Denys Randall-Isaacs é filho de uma inglesa chamada Maly Hawkins e um oficial do exército britânico: Jonathan Wolverton Randall, capitão dos dragões, falecido, morto em Culloden. A mãe ainda é viva e casada com um judeu chamado Robert Isaacs, um comerciante de Bristol. Ele também ainda é vivo e é sócio em um armazém em Brest. Denys é um dos seus malditos políticos, tem ligações com os alemães, mas não posso descobrir mais do que isso sem ser evidente demais para o seu gosto. Não consigo descobrir nada na maldita Bath.

Não sei muito a respeito de Richardson, mas vou averiguar diretamente. Enviei cartas para algumas pessoas na América. Sim, sou discreto, obrigado, e eles também.

John Burgoyne está aqui, se curando. Muito pretensioso, já que os alemães aprovaram seu plano de invadir a partir do Canadá. Eu mencionei William para ele, já que seu francês e alemão são bons e Burgoyne deverá ter muitos soldados alemães. Ainda assim, diga a William para ter cuidado; Burgoyne parece pensar que ele será o comandante em chefe dasforças armadas da América - uma ideia que ouso dizer será uma surpresa tanto para Guy Carleton quanto Dick Howe.

33 - Trois Flèches. Três flechas. Quem será a terceira?

Londres 26 de março de 1777 The Societyfor the Appreckition of the English Beefsteak, um Clube de Cavalheiros

- Quem será o terceiro? - Grey repetiu, espantado, fitando a carta que acabara de abrir.

- O terceiro o quê? - Harry Quarry entregou sua capa encharcada para o gerente e deixou-se afundar na poltrona ao lado de Grey, suspirando de alívio enquanto estendia as mãos para o fogo da lareira. - Santo Deus, estou congelado. Vai para Southampton neste tempo? - Lançou uma das mãos brancas de frio para a janela, que emoldurava uma desalentadora perspectiva de chuva com neve, quase horizontal pela ação do vento.

- Somente amanhã. Já deve ter melhorado até lá. Harry lançou um olhar de profunda suspeita para a janela e sacudiu a cabeça.

- Não há a menor chance.

- Senhor! O sr. Bodley já vinha oscilando na direção deles sob o peso de uma bandeja de chá carregada de broinhas, pão, geleia de morango, geleia de laranja, pãezinhos quentes amanteigados em uma cesta coberta com linho branco, bolinhos, creme azedo, biscoitos de amêndoas, sardinhas em torradas, uma travessa de feijão cozido com bacon e cebola, um prato de presunto fatiado com pepinos em conserva, uma garrafa de conhaque com dois copos e - talvez uma lembrança de última hora - um bule fumegante com duas xícaras de porcelana e pires.

- Ah! - Harry exclamou, parecendo mais feliz. - Vejo que já me esperava. Grey sorriu. Se não estivesse em campanha ou viajando a serviço, Harry Quarry invariavelmente entrava no Beefsteak às quatro e meia de quarta-feira.

- Achei que você iria precisar de sustância, com Hal na lista de doentes. - Harry era um de dois coronéis regimentais - diferentemente de Hal, que era Coronel do Regimento, sendo este seu próprio regimento. Nem todos os coronéis tinham uma participação ativa nas operações de seus regimentos, mas Hal fazia questão.

- Desgraçado, ele está se fingindo de doente - Harry disse, estendendo a mão para o conhaque. - Como ele está?

- O mesmo de sempre, a julgar pela correspondência. - Grey entregou a Quarry a carta aberta, que o último leu com um largo sorriso.

- Sim, Minnie vai dar um jeito nele. - Deixou a carta na mesa, indicando-a com um sinal da cabeça, enquanto levantava seu copo. - Quem é Richardson e por que você quer saber dele?

- Ezekiel Richardson, capitão. Lanceiro, mas requisitado para serviço de inteligência.

- Oh, um rapaz da inteligência, hein? Um do seu grupo da Black Chamber? - Quarry torceu o nariz, embora não fosse claro se era uma reação à ideia de rapazes no serviço secreto ou à presença de uma tigelinha de raiz-forte ralada acompanhando as sardinhas.

- Não, eu não o conheço bem pessoalmente - Grey admitiu e sentiu a mesma pontada de profunda inquietação que o afligia com crescente frequência desde que recebera a carta de William de Quebec há uma semana. - Fui apresentado a ele por sir George, que conhecia seu pai, mas não conversamos muito na ocasião. Eu ouvira algumas coisas a seu favor, de uma maneira discreta.

- Isso sendo, imagino, a única maneira que se quer ouvir alguma coisa sobre um homem nessa área. Huuuuh! - Harry inspirou com uma tremenda absorção de ar pela boca aberta e, a julgar pelo som, para cima, até os seios da face. A seguir, tossiu uma ou duas vezes, os olhos lacrimejando, e sacudiu a cabeça, admirado. - Raiz-forte fresca - grasnou roucamente, pegando outra colher cheia. - Muito... huuuuuuh... fresca.

- Muito. De qualquer modo, encontrei-o outra vez na Carolina do Norte, conversamos mais um pouco, e ele pediu minha permissão para se aproximar de William com uma proposta para o serviço de inteligência.

Quarry parou, uma fatia de torrada cheia de sardinha a meio caminho da boca.

- Não está me dizendo que você o deixou fisgar Willie!

- Essa, sem dúvida, não era minha intenção - Grey disse, aborrecido. - Eu tinha alguma razão para acreditar que a sugestão poderia ser boa para Willie; para começar, o tiraria da Carolina do Norte e terminaria com ele no exército de Howe.

Quarry balançou a cabeça, mastigando com cuidado, e engoliu com esforço.

- Sim, sei. Mas agora você tem dúvidas?

- Tenho. Ainda mais porque eu não encontro ninguém que realmente conheça Richardson bem. Todos que o recomendaram a mim inicialmente o fizeram em função da recomendação de uma outra pessoa, ao que parece. Exceto por sir George Stanley, que está agora na Espanha com minha mãe, e o velho Nigel Bruce, que inconvenientemente morreu nesse meio-tempo.

- Que falta de consideração.

- Sim. Imagino que eu conseguiria extrair mais informações, se tivesse tempo, mas não tenho. Dottie e eu partimos depois de amanhã. Se as condições do tempo permitirem - ele acrescentou, com um olhar na direção da janela.

- Ah, e seria aí que eu entraria - Harry observou, sem ânimo. - O que devo fazer com as informações que conseguir? Contar a Hal ou enviá-las para você?

- Conte a Hal - Grey disse com um suspiro. - Só Deus sabe como deve estar o correio na América, mesmo com o Congresso na Filadélfia. Se alguma coisa parecer urgente, Hal pode agilizar as providências por aqui com muito mais facilidade do que eu por lá.

Quarry balançou a cabeça e encheu novamente o copo de Grey.

- Você não está comendo - ele observou.

- Almocei tarde. - Muito tarde. Na verdade, ele ainda não havia almoçado. Pegou um pãozinho e o besuntou de geleia.

- E esse tal de Denys? - Quarry perguntou, empurrando a carta com um garfinho de picles. - Devo investigá-lo também?

- Sim, por favor. Embora provavelmente eu possa fazer mais progresso com ele no lado americano da questão. Ao menos, é onde foi visto pela última vez. - Deu uma mordida no pãozinho, observando que a massa havia alcançado aquele delicado equilíbrio ideal entre firme e esfarelada, e sentiu o apetite retornar. Perguntou-se se deveria colocar Harry no encalço do ilustre judeu com o armazém em Brest, mas resolveu não o fazer. A questão das conexões francesas era mais do que delicada e, embora Harry fosse competente, ele não era sutil.

- Está certo, então. - Harry selecionou um pedaço de pão, encimou-o com dois biscoitos de amêndoas e uma colherada de creme azedo, enfiando tudo dentro da boca. Onde ele o colocou?, Grey se perguntou. Harry era sólido e musculoso, mas nunca obeso. Sem dúvida, ele suava todas as calorias durante os exercícios puxados nos bordéis, sendo este seu esporte favorito, apesar da idade.

Que idade Harry teria?, ele se perguntou repentinamente. Alguns anos mais velho do que Grey, alguns anos mais novo do que Hal. Nunca pensara nisso, não mais do que o fazia em relação a Hal. Os dois sempre lhe pareceram imortais; ele nunca contemplara um futuro sem um dos dois. Mas o crânio sob a peruca de Harry já estava quase careca - ele a havia retirado, como era próprio dele, para coçar a cabeça em determinado momento e a colocara de volta distraidamente, sem se preocupar com a posição certa - e as juntas dos dedos estavam inchadas, apesar de segurar sua xícara com a delicadeza de costume.

Grey sentiu, de repente, sua própria mortalidade na rigidez de um polegar, na dor aguda em um joelho. Acima de tudo, no medo de não estar lá para proteger William, enquanto ainda fosse necessário.

- Hein? - Harry disse, erguendo uma das sobrancelhas para o que quer que se revelava no rosto de Grey. - O que foi?

Grey sorriu e sacudiu a cabeça, pegando seu copo de conhaque outra vez.

- Timor mortis conturbat me - ele disse.

- Ah - disse Quarry pensativamente, e ergueu uma das sobrancelhas. - Vou beber a isso.

 

                   A TRAMA SE COMPLICA

28 de fevereiro de 1777 Londres

General de divisão John Burgoyne, Para sir George Germain

..não concebo que nenhuma outra expedição a partir do mar possa ser tão terrível para o inimigo ou tão eficaz para o término da guerra quanto uma invasão a partir do Canadá, por Ticonderoga.

4 de abril de 1777 A bordo do HMS Tartar

E ele dissera a Dottie que o Tartar era apenas uma fragata de vinte e oito canhões e que, portanto, ela devia ser modesta em sua bagagem. Mesmo assim, ficou surpreso ao ver o único baú - é bem verdade que era um baú grande - , duas valises e uma bolsa de material de bordado que compreendia toda a sua bagagem.

- Não vai levar nem um único manto florido? - ele caçoou. - William não vai reconhecê-la.

- Bobagem - ela retrucou com o talento de seu pai para a clareza sucinta. Mas sorriu ligeiramente. Estava muito pálida e ele esperava que não fosse um incipiente enjoo do mar. Ele apertou sua mão com força e continuou segurando-a o tempo inteiro, até a última lasca escura da Inglaterra desaparecer no horizonte.

Ele ainda estava admirado de ela ter conseguido. Hal devia estar mais debilitado do que ele deixava transparecer, para ser convencido a deixar sua filha pegar um navio para a América, ainda que sob a proteção de Grey e para o louvável propósito de cuidar do irmão ferido. Minnie, é claro, não saía do lado de Hal nem por um instante, apesar de morrer de preocupação com seu filho. Mas ela não ter emitido nem uma palavra de protesto contra esta aventura...

- Sua mãe está de acordo com isso? - ele perguntou descontraidamente, provocando um olhar espantado através de um véu de cabelos agitados pelo vento.

- Com o quê? - Dottie passava a mão pela teia de cabelos louros, escapados en masse da inconsequente rede em que os prendera e dançando acima de sua cabeça como chamas. - Oh, socorro!

Ele capturou os cabelos dela, puxando-os e alisando-os sobre a cabeça com as duas mãos, juntou-os na nuca, onde os trançou habilmente, para admiração de um marinheiro que passava, e amarrou a trança com a fita de veludo que foi tudo que restou da rede desfeita.

- Com o quê, ora - ele disse para a parte de trás de sua cabeça, enquanto terminava o trabalho. - Com este empreendimento temerário em que você embarcou.

Ela virou-se e fitou-o diretamente nos olhos.

- Se quer descrever resgatar Henry como um empreendimento temerário, concordo inteiramente - ela disse com dignidade. - Mas minha mãe naturalmente faria qualquer coisa que pudesse para tê-lo de volta. Assim como você, creio eu, ou não estaria aqui. - E sem esperar uma resposta girou espevitadamente nos calcanhares e dirigiu-se à escada do tombadilho, deixando-o sem fala.

Um dos primeiros navios da primavera trouxera uma carta com mais notícias de Henry. Ele estava vivo, graças a Deus, mas fora gravemente ferido: levou um tiro no abdômen e ficou muito doente por conta disso durante todo o rigoroso inverno. Mas sobrevivera e fora removido para a Filadélfia com vários outros prisioneiros britânicos. A carta fora escrita por um colega oficial, também prisioneiro, mas Henry conseguira rabiscar algumas palavras de amor à sua família no final e assinar seu nome; a lembrança daquele rabisco desordenado devorava o coração de John.

No entanto, sentiu-se um pouco encorajado pelo fato de ser Filadélfia. Ele havia conhecido um proeminente cidadão da Filadélfia quando estava na França e imediatamente estabelecera uma ligação com ele que achava ser correspondida; poderia ser um conhecimento útil, riu involuntariamente, lembrando-se do instante de seu encontro com o americano.

Ele não permanecera muito tempo em Paris, apenas o tempo suficiente para investigar Percival Beauchamp, que não estava lá. Havia se retirado para sua casa de campo para passar o inverno, disseram-lhe. A principal propriedade da família Beauchamp, um lugar chamadoTrois Flèches, perto de Compiègne.

E assim ele comprara um chapéu forrado de pele e um par de botas, enrolara-se em sua capa mais quente, alugara um cavalo e partira implacavelmente para as garras de uma tempestade inclemente.

Chegando coberto de lama seca e congelado, fora recebido com desconfiança, mas a qualidade de sua indumentária e seu título lhe angariaram a entrada. Ele foi conduzido a uma sala de estar bem-mobiliada - com, graças a Deus, uma excelente lareira - para aguardar o barão.

Ele formara uma expectativa do barão Amandine com base nas observações de Percy, embora achasse que Percy provavelmente andara apenas inventando. Também sabia como era inútil teorizar antes de observar, mas fazia parte da condição humana imaginar.

Em termos de imaginação, ele fizera um bom trabalho em não pensar em Percy durante os últimos... seriam dezoito anos, dezenove? Mas desde que ficou evidente que pensar nele era agora uma necessidade profissional, assim como pessoal, ele estava tanto surpreso quanto desconcertado em descobrir o quanto se lembrava. Ele sabia do que Percy gostava e portanto havia desenvolvido em sua mente uma imagem de Amandine de acordo.

A realidade era diferente. O barão era um homem mais velho, talvez alguns anos a mais do que Grey, baixo e um pouco gordo, com um rosto franco e agradável. Bem-vestido, mas sem ostentação. Cumprimentou Grey com muita cortesia. Mas, em seguida, ele tomou a mão de Grey e um pequeno choque elétrico percorreu o inglês. A expressão do barão era gentil, nada além disso - mas os olhos exibiam uma expressão de interesse e avidez, e, apesar da aparência pouco atraente do barão, a carne de Grey respondeu ao olhar.

Claro, Percy havia contado a Amandine sobre ele. Surpreso e desconfiado, deu a sucinta explicação que havia preparado, apenas para ser informado de que, hélas, monsieur Beauchamp não estava em casa, mas fora com monsieur Beaumarchais caçar lobos na Alsácia. Bem, uma suposição fora confirmada, Grey pensou. Mas certamente Vossa Senhoria se dignaria a aceitar a hospitalidade deTrois Flèches, ao menos por uma noite?

Aceitou o convite com muitas expressões de agradecimentos indevidos e, depois de remover as roupas externas e substituir as botas pelas espalhafatosas chinelas de Dottie - que fizeram Amandine pestanejar, embora ele imediatamente as elogiasse de maneira esfuziante - , foi conduzido por um longo corredor revestido de retratos.

- Vamos fazer um lanche na biblioteca - Amandine dizia. - Obviamente, você está perecendo de frio e inanição. Mas, se não se importar, permita-me apresentá-lo ao meu outro hóspede. Vamos convidá-lo a se unir a nós.

Grey murmurara sua concordância, distraído pela leve pressão da mão de Amandine, pousada em suas costas - um pouco mais abaixo do habitual.

- Ele é americano - o barão dizia, quando alcançaram a porta quase no fim do corredor, e sua voz deixou transparecer certa ironia na palavra. Ele possuía uma voz extremamente incomum: suave, cordial e um pouco fermentada, como alguns chás chineses com muito açúcar.

- Ele gosta de passar algum tempo no solário todos os dias - o barão continuou, empurrando a porta e gesticulando para que Grey entrasse à sua frente. - Diz que o mantém em excelente estado de saúde.

Grey estivera olhando educadamente para o barão durante essa apresentação, mas agora se voltou para falar com o hóspede americano e assim foi apresentado ao dr. Franklin, confortavelmente reclinado em uma espreguiçadeira acolchoada, submerso em um dilúvio de luz solar, completamente nu.

Na conversa subsequente - conduzida com o maior aprumo por todos os envolvidos - ele ficou sabendo que era uma prática constante do sr. Franklin banhar-se de ar todos os dias em que fosse possível, já que a pele respirava tanto quanto os pulmões, absorvendo ar e liberando impurezas; assim, a capacidade do corpo de se defender de infecções era substancialmente prejudicada se a pele ficasse constantemente sufocada em roupas insalubres.

Durante todas as apresentações e conversas, Grey estava intensamente cônscio dos olhos de Amandine sobre ele, cheio de especulação e humor, e da sensação incômoda de suas próprias roupas insalubres sobre a pele indubitavelmente sufocante.

Era uma sensação singular, conhecer um estranho e saber que esse estranho já tinha conhecimento de seu mais profundo segredo, que ele na realidade - se Percy não estivesse mentindo completamente, e Grey não achava que ele estivesse - compartilhava. Isso lhe dava uma sensação de perigo e vertigem, como se ele se debruçasse de um íngreme precipício. E também o excitava, e isso o alarmava muito.

O americano (agora falando cordialmente sobre uma formação geológica incomum que vira em sua viagem de Paris; Vossa Senhoria percebera?) era um homem mais velho e seu corpo, apesar de em bom estado, à exceção de algumas manchas arroxeadas de um tipo de eczema na parte inferior das pernas, não era um objeto de consideração sexual. No entanto, a carne de Grey estava tensa nos ossos e faltava sangue em sua cabeça. Podia sentir os olhos de Amandine sobre ele, avaliando-o francamente, e lembrou-se com absoluta clareza da conversa com Percy referente à mulher de Percy e seu cunhado barão: Ambos, de vez em quando. Juntos? Teria a irmã do barão acompanhado o marido ou estava em casa talvez? Por uma das poucas vezes em sua vida, Grey considerou seriamente se ele seria um pervertido.

- Vamos nos juntar ao caro doutor em sua benéfica prática, milorde? Grey desviou o olhar bruscamente de Franklin, vendo o barão começando a tirar o casaco. Felizmente, antes que pudesse pensar em alguma coisa a dizer, Franklin se levantou, observando que achava que já se beneficiara do ar livre o suficiente para o dia.

- Embora, é claro - ele disse, fitando Grey diretamente nos olhos, com uma expressão de profundo interesse e não pouco humor também - , não devam deixar que minha partida os impeça de sua própria satisfação, messieurs.

O barão, impecavelmente educado, imediatamente recolocou o casaco e, dizendo que se uniria a eles para un aperitif na biblioteca, desapareceu no corredor.

Franklin tinha um roupão de seda; Grey segurou-o para ele, observando as nádegas brancas, ligeiramente caídas - mas notavelmente firmes e lisas - , desaparecerem conforme o americano enfiava os braços nas mangas devagar, comentando enquanto o fazia sobre uma leve artrite nas articulações de seus ombros.

Virando-se e amarrando a faixa, fixou um olhar franco e cinza em Grey.

- Obrigado, milorde - ele disse. - Pelo que entendi, o senhor não conhecia Amandine?

- Não. Eu conheci seu... cunhado, monsieur Beauchamp, há alguns anos. Na Inglaterra - acrescentou, sem nenhum motivo em particular.

Algo estremeceu nos olhos de Franklin à menção de Beauchamp, fazendo Grey perguntar.

- Conhece-o?

- De nome - Franklin respondeu sem se alterar. - Então Beauchamp é inglês?

Várias possibilidades surpreendentes passaram pela mente de Grey à simples observação "De nome", mas uma avaliação igualmente rápida dessas possibilidades o fez se decidir pela verdade como a mais segura e ele meramente respondeu "Sim", em um tom que indicava que isso era apenas um simples fato, nada mais.

Durante os dias seguintes, ele e Franklin tiveram várias conversas interessantes, nas quais o nome de Percy Beauchamp era notável pela ausência. No entanto, quando Franklin retornou a Paris, Grey ficou com a sensação de genuíno apreço pelo idoso cavalheiro - que, ao saber que Grey estava indo para as colônias na primavera, fizera questão de lhe dar cartas de apresentação a diversos amigos lá - e a convicção de que o dr. Franklin sabia exatamente o que Percy Beauchamp era e já fora.

- Desculpe-me, senhor - disse um dos marinheiros doTartar, afastando Grey indelicadamente do caminho e interrompendo seus devaneios. Ele pestanejou, descobrindo que suas mãos sem luvas haviam congelado ao vento e que suas faces estavam dormentes. Deixando os marinheiros entregues às suas tarefas congelantes, desceu ao convés inferior, sentindo um calorzinho estranho e indecoroso à lembrança de sua visita aTrois Flèches.

3 de maio de 1777

Nova York

Querido pai

Acabo de receber sua carta sobre o primo Henry e espero fervorosamente que o senhor consiga descobrir onde ele está e obter sua soltura. Se eu puder saber alguma coisa sobre ele, farei o que puder para informá-lo. Há alguém a quem eu possa lhe endereçar cartas nas colônias? (Se eu não souber de nenhuma alternativa, as enviarei aos cuidados do sr. Sanders, na Filadélfia, com uma cópia, por segurança, ao juiz O'Kede em Richmond.)

Espero que perdoe minha própria e triste preguiça em escrever. Isso não ocorre - infelizmente! - por nenhuma pressão de atividade urgente de minha parte, mas por tédio e falta de absolutamente qualquer coisa de interesse sobre a qual escrever. Após um tedioso inverno confinado em Quebec (embora eu tenha caçado bastante e até abatido um animal muito feroz chamado glutão), finalmente recebi novas ordens do ajudante de ordens do general Howe no final de março, quando alguns homens de sir Guy voltaram para a cidadela, e em consequência eu voltei para Nova York.

Nunca mais tive nenhuma notícia do capitão Randall-Isaacs, nem consegui saber nada a seu respeito desde a minha volta. Receio que ele tenha se perdido na nevasca. Se conhece sua família, poderia enviar-lhes um bilhete com minhas esperanças de sua sobrevivência? Eu mesmo ofaria, mas não sei bem onde encontrá-los, nem como colocar meus sentimentos delicadamente, caso já estejam em dúvida quanto à sua sorte, ou pior, não tenham nenhuma dúvida. Mas você saberá o que dizer; você sempre sabe.

Eu tive um pouco mais de sorte em minhas próprias viagens, tendo sofrido apenas um naufrágio de menor importância quando descia o rio (o desastre ocorreu quando aportávamos em Ticonderoga em pequenos barcos. Um grupo de franco-atiradores americanos disparou contra nós do forte. Ninguém ficou ferido, mas as canoas ficaram crivadas de balas e alguns buracos infelizmente só foram descobertos quando as embarcações retornaram à água, após o que duas delas afundaram rapidamente), seguido de lama até a cintura e o reaparecimento de insetos carnívoros quando peguei a estrada. No entanto, desde a minha volta, não temos feito quase nada de interesse, embora haja rumores constantes do que poderemos fazer. Considerando que essa inatividade irrita mais no que se pode chamar de ambiente civilizado (embora nenhuma jovem em Nova York saiba dançar), ofereci-me para levar despachos e tenho encontrado algum alívio nisso.

Ontem, entretanto, recebi ordens para voltar ao Canadá e me juntar ao exército do general Burgoyne. Estou detectando a sua mão nisso, papai? Se assim for, obrigado!

Além disso, vi o capitão Richardson outra vez; ele veio aos meus aposentos ontem à noite. Eu não o via há quase um ano e fiquei muito surpreso. Ele não pediu um relatório de nossa viagem a Quebec (o que não é de surpreender, já que as informações estariam tristemente ultrapassadas a esta altura), e quando perguntei a respeito de Randall-Isaacs ele apenas sacudiu a cabeça e disse que não sabia.

Ele soubera que eu tinha a missão de levar despachos especiais à Virgínia, antes de ir para o Canadá, e apesar de que nada, é claro, deve me fazer demorar nessa missão, pensara em me pedir para fazer um pequeno serviço para ele quando eu retornasse para o norte. Um pouco cauteloso em consequência de minha longa permanência no gélido norte, perguntei do que se tratava e ele me explicou que não era nada além da entrega de uma mensagem cifrada a um grupo de legalistas na Virgínia, algo que seria simples para mim, devido à minha familiaridade com o terreno; a tarefa não me atrasaria mais do que um ou dois dias, assegurou-me.

Eu disse que o faria, porém mais porque eu gostaria de ver algumas partes da Virgínia de que eu me lembrava com carinho do que para fazer um favor ao capitão Richardson. Ele me inspira certa desconfiança. Que Deus proteja suas viagens, papai, e porfavor dê meu amor à minha preciosa Dottie, a quem anseio em rever (Diga-lhe que eu abati quarenta e dois arminhos no Canadá; mandareifazer uma capa das peles!)

Seu filho amoroso, William

 

                     SALMOS, 30

6 de outubro de 1980 Lallybroch

O acordo de Brianna com a Hidrelétrica do Norte da Escócia estipulava três dias fazendo inspeções em campo, supervisionando manutenção e reparos conforme necessários, mas lhe permitia ficar em casa fazendo relatórios, preenchendo formulários e outras papeladas nos outros dois dias. Ela estava tentando decifrar as anotações de Rob Cameron sobre a produção de energia da segunda turbina no lago Errochty, que pareciam ter sido escritas com lápis litográfico no que restara de um saco de papel onde ele trouxera seu almoço, quando percebeu sons vindos do gabinete do outro lado do corredor.

Estivera vagamente consciente de um zumbido baixo por algum tempo, mas até onde pudera notar o som se resumia ao de uma mosca presa pela vidraça. Mas agora o zumbido adquirira palavras e uma mosca não estaria cantando "O Rei do Amor é meu Pastor", com a melodia de "São Columba".

Ficou paralisada, percebendo que ela reconhecera a melodia. A voz era áspera como uma lixa grossa e falhava de vez em quando... mas subia e descia, e era, realmente era, uma canção.

A música parou abruptamente em um acesso de tosse, mas após alguns sérios esforços de clarear a garganta e cantarolar cautelosamente a voz retornou, desta vez usando uma antiga canção escocesa que ela achava se chamar "Crimond".

"O Senhor é meu pastor, e nada me faltará. Deitar-me faz em verdes pastos; guia-me Mansamente a águas tranquilas."

Ela permaneceu sentada à sua escrivaninha, trêmula, as lágrimas escorrendo pelas faces e um lenço pressionado contra a boca para que ele não a ouvisse chorar.

- Obrigada - sussurrou dentro do lenço. - Oh, obrigada! A cantoria parou, mas o zumbido foi retomado, grave e satisfeito. Ela recuperou o autocontrole e limpou as lágrimas apressadamente; era quase meio-dia - ele entraria ali a qualquer momento perguntando-lhe se já estava pronta para almoçar.

Roger tivera muita dúvida sobre o cargo de assistente do mestre do coro - dúvida que tentara não deixá-la perceber e dúvida que ela compartilhara até ele chegar em casa e lhe contar que haviam lhe dado o Coro Infantil como sua responsabilidade principal. A própria dúvida de Brianna desaparecera então; as crianças eram ao mesmo tempo inteiramente desinibidas em expressar os tipos de observações concernentes a esquisitices sociais que seus pais jamais expressariam e completamente prontas a aceitar tal esquisitice, quando se acostumavam com ela.

- Quanto tempo levaram para perguntar sobre sua cicatriz? - ela perguntara, quando ele chegou em casa sorrindo depois de sua primeira sessão com as crianças.

- Eu não marquei o tempo, mas talvez trinta segundos. - Ele passou dois dedos de leve pela marca irregular em sua garganta, mas não parou de sorrir. - "Porfavor, sr. Mackenzie, o que aconteceu com seu pescoço? Vocêfoi enforcado?"

- E o que você disse a elas? - Disse que sim, que fui enforcado nos Estados Unidos, mas que sobrevivi, graças a Deus. E umas duas delas tinham irmãos mais velhos que haviam visto O estranho sem nome e lhes contado, de modo que isso aumentou um pouco meu prestígio. Mas acho que esperam que eu leve minhas seis armas para a próxima sessão, agora que o segredo foi revelado. - Piscou um olho para ela à Clint Eastwood, o que a fizera desatar em uma risada.

Riu agora, relembrando, e bem a tempo, pois Roger enfiou a cabeça pela porta, dizendo:

- Quantas versões diferentes do Salmo 23 você diria que existem, musicadas?

- Vinte e três? - ela tentou adivinhar, levantando-se.

- Apenas seis, nos hinos presbiterianos - ele admitiu - , mas há arranjos métricos para isso, quero dizer, em inglês, que datam de 1546. Há um no Livro de Salmos da Baía e outro no Livro de Salmos Escocês, e muitos outros aqui e ali. Vi a versão em hebraico também, mas acho melhor não tentar essa na congregação de St. Stephen. Os católicos têm arranjos musicais?

- Os católicos têm um arranjo musical para tudo - ela lhe disse, empinando o nariz para farejar alguma indicação do almoço proveniente da cozinha. - Mas os salmos geralmente são cantados com um arranjo de cânticos. Conheço quatro tipos de cantos gregorianos - ela informou-o orgulhosamente - , mas há muitos mais.

- É mesmo? Cante para mim - ele pediu, e parou de repente no corredor, enquanto ela apressadamente tentava se lembrar da letra do Salmo 23. O mais simples dos cânticos voltou automaticamente, ela o cantara tantas vezes quando criança que já fazia parte dos seus ossos.

- É mesmo extraordinário - ele disse, agradecido, quando ela terminou. - Pode repassá-lo uma ou duas vezes comigo mais tarde? Gostaria de passá-lo às crianças, só para elas ouvirem. Acho que elas poderiam entoar cânticos gregorianos muito bem.

A porta da cozinha abriu-se de supetão e Mandy surgiu correndo, segurando com força o sr. Polly, uma criatura de pelúcia que começara a vida como um tipo de pássaro, mas agora se parecia com um saco de tecido peludo e sujo, com asas.

 

- Sopa, mamãe! - ela gritou. - Vem tomar sopa! E tomaram sopa, de frango e macarrão, de uma lata da Campbell, e sanduíches de queijo e picles para complementar. Annie MacDonald não era uma cozinheira sofisticada, mas tudo o que ela fazia era comível, e isso já era bastante, Brianna pensou, lembrando-se de outras refeições feitas ao redor de fogueiras mortiças. Lançou um olhar de profundo afeto ao fogão Aga, a gás, que fazia da cozinha o aposento mais aconchegante da casa.

- Canta pra mim, papai! - Mandy, os dentes cobertos de queijo e com mostarda ao redor da boca, lançou um sorriso suplicante a Roger.

Roger tossiu, engasgando-se com um farelo de pão, e limpou a garganta.

- Oh, sim? Cantar o quê? - "Tês ratinho cego!" - Está bem. Mas você tem que cantar comigo, para eu não me perder. - Ele sorriu para Mandy e marcou o compasso suavemente na mesa com o cabo de sua colher. - "Três ratinhos cegos..." - ele cantou, e apontou o cabo da colher para Mandy, que inspirou heroicamente e fez eco: "Tês, ratinho, CEGO!", a plenos pulmões, mas com ritmo perfeito. Roger ergueu as sobrancelhas para Bri e continuou a canção, com o mesmo contraponto. Após cinco ou seis animadas repetições, Mandy se cansou e, com um breve "licença", levantou-se da mesa e partiu como uma abelha voando baixo, ricocheteando do batente da porta na saída.

- Bem, ela sem dúvida tem uma excelente noção de ritmo - Roger disse, encolhendo-se quando uma forte batida ecoou do corredor - , ainda que não de coordenação. Mas ainda vai levar um tempo até sabermos se ela tem alcance de voz. Seu pai tinha um grande senso de ritmo, mas não conseguia alcançar a mesma nota duas vezes.

- Isso me faz lembrar o que você fazia em Ridge - ela disse, num impulso. - Cantar um verso de um salmo e fazer as pessoas repetirem.

Seu rosto mudou um pouco à lembrança dessa época. Ele acabara de descobrir sua vocação e a certeza de seus sentimentos o transformara. Ela nunca o vira tão feliz antes - ou desde então, e seu coração se apertou ao relance de nostalgia que ela viu em seus olhos.

Mas ele sorriu e, estendendo um dedo coberto com o guardanapo, limpou um pouco de mostarda do canto de sua própria boca.

- Antiquado - ele disse. - Embora ainda o façam desse modo, cantando verso por verso na igreja, nas Ilhas, e talvez também nas regiões mais remotas do Gaeltacht. Mas os presbiterianos americanos não aceitam isso.

- Não? - "O certo é cantar sem separar verso por verso do salmo" - ele citou. - "O costume de ler o salmo verso por verso foi introduzido em uma época de ignorância, quando grande parte da congregação não sabia ler; portanto, recomenda-se que a prática seja posta de lado, sempre que conveniente." Isso é da Constituição da Igreja Presbiteriana Americana.

Oh, então você realmente pensou em ser ordenado enquanto estivemos em Boston, hein?, ela pensou, mas não disse em voz alta.

- "Época de Ignorância" - ela repetiu. - Gostaria de saber o que Hiram Crombie teria a dizer a isso!

Ele riu, mas sacudiu a cabeça.

- Bem, é bastante verdadeiro; a maioria das pessoas em Ridge não sabia ler. Mas discordo da ideia de que se cantariam os salmos dessa forma por causa de ignorância, ou falta de escolaridade. - Parou para pensar, distraidamente pegando um macarrão desgarrado e comendo-o. - Cantar todos juntos é grandioso, não resta dúvida. Mas dessa forma para frente e para trás... acho que é uma maneira que de certa forma aproxima as pessoas, faz com que sintam o que estão cantando, o que está realmente acontecendo. Talvez seja apenas porque elas têm que se concentrar mais para se lembrar de cada verso. - Sorriu debilmente e desviou o olhar.

Por favor! ela pensou fervorosamente, se para Deus, a Virgem Maria ou o anjo da guarda de Roger, ou se para os três. "Façam com que ele encontre um caminho!"

- Eu... queria lhe perguntar uma coisa - ele disse, de repente.

- Sim?

- Bem... Jemmy. Ele sabe cantar. Você... claro que ele continuaria a ir à missa com você... mas se importaria se ele fosse comigo também? Só se ele quiser - acrescentou apressadamente. - Mas acho que ele iria gostar de participar do coro. E eu... acho que gostaria que ele visse que eu também tenho um emprego - acrescentou, com um sorriso melancólico.

- Ele vai adorar - Brianna disse, observando mentalmente os céus: Puxa, essa foi rápida! Porque ela viu imediatamente, e até se perguntou se Roger também teria visto, mas ela achava que não, que isso proporcionava uma maneira harmoniosa pela qual ela e Mandy poderiam frequentar os cultos presbiterianos também, sem nenhum conflito aberto entre as duas religiões.

- Você viria conosco à primeira missa na St. Mary? - ela perguntou. - Porque então todos nós poderíamos simplesmente atravessar para a St. Stephen juntos e ver você e Jem cantarem.

- Sim, claro. Ele parou, o sanduíche a caminho da boca, e sorriu para ela, os olhos verdes como musgo.

- Está melhor, não está? - ele disse.

- Muito - ela respondeu.

Mais tarde naquele mesmo dia, Roger chamou-a a seu gabinete. Havia um mapa da Escócia sobre sua escrivaninha, ao lado do caderno de anotações aberto onde ele compilava o que haviam passado a chamar - com uma zombaria que mal encobria a aversão que sentiam até mesmo em falar sobre isso - "O Guia do Mochileiro das Galáxias", de acordo com a comédia da rádio BBC.

- Desculpe interromper - ele disse. - Mas achei melhor fazermos isso antes que Jem volte para casa. Se você vai voltar ao lago Errochty amanhã... - Colocou a ponta de seu lápis na mancha azul designada L.Errochty. - Você poderia talvez obter uma orientação precisa para o túnel, se não tiver bem certeza de onde ele está. Ou você tem?

Ela engoliu em seco, sentindo os remanescentes de seu sanduíche de queijo se revirarem desconfortavelmente à lembrança do túnel escuro, o balanço do pequeno trem, de passar através... daquilo.

- Não, não tenho, mas tenho algo melhor. Espere. - Atravessou o corredor para seu próprio escritório e trouxe de volta o fichário das especificações do lago Errochty.

- Aqui estão os desenhos para a construção do túnel - ela disse, abrindo o fichário e colocando-o sobre a escrivaninha. - Tenho as plantas, também, mas ficam no escritório central.

- Não, isto está ótimo - ele garantiu-lhe, debruçando-se sobre o desenho. - Tudo que eu realmente queria é a orientação do túnel em relação à represa. - Ergueu os olhos para ela. - Por falar nisso, você mesma já atravessou toda a represa?

- Não de ponta a ponta - ela disse devagar. - Apenas no lado leste da área de reparos e manutenção. Mas eu não acho... quero dizer, olhe. - Colocou o dedo no desenho. - Eu bati naquilo em algum lugar no meio do túnel e o túnel segue quase alinhado com a represa. Se ele corre alinhado... é isso que você acha? - ela acrescentou, olhando-o com curiosidade. Ele deu de ombros.

- É um lugar para começar. Embora eu suponha que engenheiros teriam uma palavra mais categórica do que "acho".

- Hipótese de trabalho - ela disse secamente. - De qualquer forma, se de fato corre alinhado, em vez de apenas existir em pontos aleatórios, eu provavelmente o teria sentido na represa se ele estivesse lá. Mas eu podia voltar lá e verificar. - Até ela mesma pôde sentir a relutância em sua voz; ele sem dúvida sentiu e passou a mão de leve pelas suas costas para tranquilizá-la.

- Não. Eu farei isso.

- O quê?

- Eu farei isso - ele repetiu serenamente. - Veremos se eu sentirei também.

- Não! - Ela endireitou-se abruptamente. - Não pode. Você não... quero dizer, e se alguma coisa... acontecer? Não pode correr esse tipo de risco!

Ele olhou para ela pensativamente por um instante e balançou a cabeça.

- Sim, imagino que haja um risco. Mas pequeno. Já estive por toda a região das Highlands quando era mais novo. E de vez em quando eu sentia algo estranho me percorrer. Assim como muita gente que mora por aqui - ele acrescentou com um sorriso. - Essa esquisitice faz parte do lugar, hein?

- Sim - ela disse, com um breve estremecimento à lembrança de cavalos da água, bansidhe e nuckelavees. - Mas você não sabe que tipo de esquisitice é esta, e você sabe muito bem que ela pode matá-lo, Roger!

- Não matou você - ele ressaltou. - Não nos matou em Ocracoke. - Ele falou tranquilamente, mas ela pôde ver a sombra dessa jornada em seu rosto ao mencioná-la. Não os matara, mas chegara perto.

- Não. Mas... - Olhou para ele e teve um instante intenso e doloroso em que experimentou ao mesmo tempo a sensação do corpo longilíneo dele, quente, ao lado do seu na cama, o som de sua voz grave e rouca... e o silêncio frio de sua ausência. - Não - ela disse, e deixou claro pelo tom de sua voz que estava preparada para ser tão teimosa a respeito disso quanto fosse necessário. Ele percebeu e deu uma pequena risada.

- Está bem - ele disse. - Deixe-me apenas anotar isso, então. - Comparando mapa e desenho, escolheu um ponto no mapa que devia corresponder aproximadamente ao centro do túnel e ergueu uma sobrancelha escura interrogativamente. Ela balançou a cabeça e ele fez uma leve marca a lápis na forma de uma estrela.

Havia uma estrela grande, bem delineada, em tinta preta, no local do círculo de pedras em Craigh na Dun. Outras menores a lápis nos locais de outros círculos de pedras. Algum dia, eles teriam que visitar esses monumentos de pedras. Mas ainda não. Não agora.

- Já esteve em Lewis? - Roger perguntou, descontraidamente, mas não como se fosse uma pergunta sem importância.

- Não, por quê? - ela disse, cautelosa. - As Hébridas Exteriores fazem parte da Gaeltacht - ele disse. - Eles fazem o cântico verso por verso em gaidhlig em Lewis, e em Harris também. Não sei em Uist e Barra, são de maioria católica, mas talvez. Estou pensando em ir ver como é hoje em dia.

Ela podia ver a Ilha de Lewis no mapa, no formato de um pâncreas, ao largo da costa oeste da Escócia. Era um mapa grande. O suficiente para ela ver a pequena legenda Pedras Callanish, na Ilha de Lewis.

Ela soltou o ar lentamente.

- Ótimo - ela disse. - Eu vou com você.

- Você tem que trabalhar, não é?

- Vou tirar uns dias de folga. Entreolharam-se em silêncio por um instante. Brianna quebrou o silêncio primeiro, olhando para o relógio na prateleira.

- Jem vai chegar em casa daqui a pouco - ela disse, a natureza prosaica da vida diária se fazendo prevalecer. - É melhor eu começar a fazer alguma coisa para o jantar. Annie trouxe um belo salmão que o marido pescou. Será que eu o tempero e asso no forno ou você prefere grelhado?

Ele sacudiu a cabeça e, levantando-se, começou a dobrar o mapa para guardá-lo.

- Não vouficar para o jantar hoje. É noite da loja maçônica.

A grandiosa loja maçônica do distrito de Inverness incluía várias lojas locais, duas delas em Inverness. Roger unira-se à Número 6, a Antiga Loja de Inverness, aos vinte e poucos anos, mas não colocava o pé no prédio há quinze anos e agora o fazia com um sentimento misto de desconfiança e expectativa.

Entretanto, eram as Highlands - e seu lar. A primeira pessoa que viu ao entrar foi Barney Gaugh, que fora o sorridente e robusto chefe da estação quando Roger viera para Inverness de trem, com cinco anos, para viver com seu tioavô. O sr. Gaugh havia minguado bastante e seus dentes manchados de fumo há muito haviam sido substituídos por dentaduras igualmente manchadas de fumo, mas ele reconheceu Roger imediatamente e abriu um grande sorriso de satisfação, segurando-o pelo braço e puxando-o para um grupo de outros homens idosos, metade dos quais saudou sua volta com o mesmo entusiasmo do sr. Gaugh.

Era estranho, ele pensou um pouco depois, quando iniciaram os trabalhos da loja, fazendo os rituais de rotina do Rito Escocês. Como uma dobra do tempo, pensou, e quase riu em voz alta.

Havia diferenças, sim, mas eram pequenas - e a sensação... ele podia fechar os olhos e, se imaginasse a névoa dos cigarros apagados como a fumaça da lareira, poderia ser a cabana dos Crombie em Ridge, onde a loja de lá se reunia. O murmúrio de vozes, verso e resposta, e depois o relaxamento, corpos se remexendo, buscando chá e café, conforme a noite se tornava estritamente social.

Havia um bom número presente - muito mais do que ele estava acostumado - e no começo ele não notou a presença de Lionel Menzies. O diretor da escola estava do outro lado da sala, franzindo a testa em concentração, ouvindo alguma coisa que um sujeito alto em manga de camisa lhe dizia, inclinando-se para perto. Roger hesitou, não querendo interromper a conversa, mas o homem que falava com Menzies ergueu os olhos, viu Roger, retornou à sua conversa - em seguida, parou abruptamente, o olhar saltando de novo para Roger. Mais especificamente para a sua garganta.

Todos na loja haviam olhado fixamente para a cicatriz, quer aberta ou disfarçadamente. Ele usava uma camisa aberta no colarinho por baixo do casaco; não fazia sentido tentar escondê-la. Melhor acabar logo com isso. Mas o estranho fitou a cicatriz tão descaradamente, a ponto de ser quase grosseiro.

Menzies notou a indelicadeza de seu companheiro - dificilmente poderia deixar de notar - e, virando-se, viu Roger e abriu um sorriso.

- Sr. Mackenzie - ele disse.

- Roger - Roger disse, sorrindo; o primeiro nome era comum nas lojas, quando não estavam sendo formais e dizendo "irmão fulano de tal". Menzies balançou a cabeça, em seguida inclinou-a, atraindo seu companheiro para uma apresentação.

- Rob Cameron, Roger Mackenzie. Rob é meu primo, Roger é um dos pais da escola.

- Foi o que pensei - Cameron disse, apertando calorosamente sua mão. - Quero dizer, achei que devia ser o novo mestre do coro. Meu sobrinho está no seu coro infantil, é Bobby Hurragh. Ele nos contou tudo sobre você durante o jantar no fim de semana.

Roger notara os olhares trocados entre os homens quando Menzies o apresentou e achou que o diretor da escola devia também tê-lo mencionado a Cameron, provavelmente lhe contando sua visita à escola, por causa do incidente com o gaélico de Jem. Mas isso não o preocupava no momento.

- Rob Cameron - ele repetiu, apertando sua mão com um pouco mais de força do que de costume antes de soltá-la, o que o fez parecer espantado. - Você trabalha para a hidrelétrica, não é?

- Sim. O que...

- Conhece minha esposa, eu acho. - Roger mostrou os dentes no que podia, ou não, ser tomado como um sorriso cordial. - Brianna Mackenzie?

A boca de Cameron abriu-se, mas ele não emitiu nenhum som. Ele percebeu isso e fechou-a abruptamente, tossindo.

- Eu... uh. Sim. Claro. Roger examinara o sujeito automaticamente quando segurou sua mão e compreendeu que, se chegassem às vias de fato, seria uma briga curta. Evidentemente, Cameron notou isso também.

- Ela, uh...

- Sim, ela me contou. - Ei, foi só uma pequena brincadeira, hein? - Cameron examinou-o com cautela, para o caso de Roger convidá-lo a ir lá fora.

- Rob? - Menzies disse, curioso. - O que...

- O que é isso, o que é isso? - gritou o velho Barney, aproximando-se intempestivamente. - Nada de política na loja, rapaz! Se quiser falar sua baboseira do PNE com o irmão Roger, deixe para o pub mais tarde. - Segurando Cameron pelo cotovelo, Barney puxou-o para outro grupo do outro lado da sala, onde Cameron imediatamente se integrou na conversa, sem mais do que um olhar de relance para trás.

- Baboseira do PNE? - Roger perguntou, as sobrancelhas erguidas para Menzies. O diretor da escola ergueu um dos ombros, sorrindo.

- Ouviu o que o velho Barney disse. Nada de política na loja! - Era uma regra maçônica, uma das mais básicas - nenhuma discussão de religião ou de política na loja - e provavelmente a razão para a maçonaria ter durado tanto tempo, Roger pensou. Ele não ligava muito para o Partido Nacional Escocês, mas queria saber mais sobre Cameron.

- Eu nem sonharia Roger disse. - Nosso Rob, no entanto, é um político, é?

- Minhas desculpas, irmão Roger - Menzies disse. A expressão benévola e bem-humorada não o havia abandonado, mas ele realmente parecia um pouco constrangido. - Não tive a intenção de expor os assuntos de sua família, mas de fato contei à minha mulher sobre Jem e a sra. Glendenning, e sendo as mulheres como são, e a irmã de minha mulher morando ao lado de Rob, ele ficou sabendo da história. Ele ficou interessado por causa do gàidhlig, hein? E ele de fato se deixa entusiasmar de vez em quando. Mas tenho certeza de que não pretendia parecer familiarizado demais com sua mulher.

Roger compreendeu que Menzies interpretara erroneamente a situação entre Rob Cameron e Brianna, mas não tinha a intenção de esclarecê-lo. Não eram apenas as mulheres; os mexericos eram um modo de vida nas Highlands, e se a notícia da peça que Rob e seus colegas pregaram em Brianna se espalhasse poderia causar mais problemas para ela no trabalho.

- Ah - ele disse, buscando uma maneira de desviar a conversa de Brianna. - Claro. O PNE é a favor da ressurreição do gàidlig, não? O próprio Cameron o domina?

Menzies sacudiu a cabeça.

- Seus pais estavam entre aqueles que não queriam que seus filhos falassem gàidhlig. Agora, é claro, ele está interessado em aprender. Por falar nisso... - Parou abruptamente, examinando Roger com a cabeça inclinada para o lado. - Tive uma ideia. Depois do que conversamos no outro dia.

- Sim?

- Eu fiquei pensando. Você talvez consideraria a possibilidade de dar uma aula de vez em quando? Talvez apenas por Jem, talvez uma palestra para a escola toda, se você se sentisse confortável com isso.

- Uma aula? De gàidhlig?

- Sim. Você sabe, somente o básico, mas talvez com uma palavra ou outra sobre história, talvez uma canção... Rob disse que você é mestre de coro na St. Stephen?

- Assistente - Roger corrigiu. - E não sei sobre canções. Mas gàidhlig... sim, talvez. Vou pensar nisso.

Encontrou Brianna esperando acordada, em seu escritório, uma carta da caixa de seus pais na mão, fechada.

- Não temos que lê-la esta noite - ela disse, colocando a carta sobre a mesa, levantando-se e vindo a seu encontro para beijá-lo. - Só senti vontade de estar próxima deles. Como foi a loja?

- Estranha. - Os assuntos da loja eram secretos, é claro, mas ele podia contar-lhe sobre Menzies e Cameron, e o fez.

- O que é PNE? - ela perguntou, franzindo a testa.

- Partido Nacional Escocês. - Ele tirou o casaco e estremeceu. Estava frio e não havia nenhum fogo aceso ali. - Surgiu no final dos anos 1930, mas só ganhou força recentemente. Mas elegeu onze membros do Parlamento até 1974. Respeitável. Como você pode imaginar pelo nome, o objetivo deles é a independência escocesa.

- Respeitável - ela repetiu, parecendo em dúvida.

- Bem, moderadamente. Como qualquer partido, tem seus lunáticos. Mas, ao que parece - ele acrescentou - , Rob Cameron não é um deles. É apenas um idiota comum.

Isso a fez rir, e o som de sua risada o aqueceu. Assim como seu corpo, que ela apertou contra o seu, os braços ao redor de seus ombros.

- Rob é isso mesmo - ela concordou.

- Mas Menzies diz que ele está interessado em gaélico. Se eu der um curso, espero que ele não apareça na primeira fila.

- Espere. O quê? Agora está dando aulas de gaélico?

- Bem, talvez. Veremos. - Sentia-se relutante em pensar muito sobre a sugestão de Menzies. Talvez fosse apenas a menção a cantar. Entoar uma canção roucamente para guiar as crianças era uma coisa; cantar sozinho em público, ainda que fossem somente alunos da escola, era bem diferente. - Isso pode esperar - ele disse, e beijou-a. - Vamos ler sua carta.

2 de junho de 1777 Fort Ticonderoga

- Fort Ticonderoga? - a voz de Bri ergueu-se de espanto e ela simplesmente arrancou a carta das mãos de Roger. - O que diabos estão fazendo em Fort Ticonderoga?

- Não sei, mas se você se acalmar por um instante talvez a gente descubra. Ela não respondeu, mas deu a volta à escrivaninha e inclinou-se sobre ele, o queixo apoiado em seu ombro, os cabelos roçando a face dele enquanto ela se concentrava ansiosamente na folha.

- Tudo bem - ele disse, virando-se para beijar seu rosto. - É sua mãe e ela está especialmente inclinada a usar parênteses. Ela normalmente não faz isso, a não ser que esteja se sentindo feliz.

- Bem, sim - Bri murmurou, franzindo o cenho para a folha - , mas... Fort Ticonderoga?

Querida Bri et al.

Como sem dúvida perceberam pelo cabeçalho desta carta, nós (ainda) não estamos na Escócia. Tivemos certa dificuldade em nossa viagem, envolvendo a) a marinha britânica, na pessoa do capitão Stebbings, que tentou recrutar seu pai e seu primo Ian à força (não funcionou); b) um corsário americano (embora o capitão,- e um dele é mais do que suficiente - um tal de Asa Hickman, insista em uma "carta de corso" como a designação mais digna da missão de seu navio, que é essencialmente pirataria, mas realizada sob o aval do Congresso americano); c) Rollo; e d) o cavalheiro que mencionei anteriormente, chamado (eu acreditava) John Smith, mas que veio a ser um desertor da Marinha Real, chamado Bill (vulgo Jonah", e começo a achar que eles têm razão) Marsden.

Sem entrar em detalhes de toda a sanguinária farsa, vou apenas relatar que Jamie, Ian, o maldito cachorro e eu estamos todos bem. Até agora. Espero que esse estado de coisas continue pelos próximos quarenta e dois dias, quando então o contrato de curto prazo de comandante de milícia de seu pai expira. (Não pergunte. Essencialmente, ele estava salvando o pescoço do sr. Marsden, bem como garantindo o bem-estar de algumas dezenas de marinheiros inadvertidamente forçados à pirataria.) Quando isso acontecer, pretendemos partir prontamente em qualquer embarcação que possa estar se dirigindo à Europa, desde que esse transporte não seja comandado por Asa Hickman. Talvez tenhamos que viajar por terra até Boston afim de fazer isso, Mas que assim seja. (Creio que seria interessante ver como Boston é atualmente. A Back Bay ainda sendo de água e tudo o mais, quero dizer. Ao menos, o parque Common ainda estará lá, apesar de que com mais vacas do que estávamos acostumados.)

O forte está sob o comando de um certo general Anthony Wayne, e eu tenho a desconfortável sensação de ter ouvido Roger mencionar este homem, usando o apelido deAnthony Maluco". Espero que essa designação se refira ou vá se referir à sua conduta em batalha, e não na administração. Até agora, ele parece racional, ainda que atormentado.

Estar atormentado é racional, já que ele espera a chegada mais ou menos iminente do exército britânico. Enquanto isso, seu engenheiro-chefe, sr leduthan Baldivin (você iria gostar dele, eu acho. Um sujeito muito ativo!), está construindo uma enorme ponte, ligando oforte à colina que chamam de Independence. Seu pai comanda uma turma de operários em serviço nessa ponte; posso vê-lo agora mesmo, do alto de minha posição em uma das baterias em meia-lua do forte. Ele se destaca, não só pelo dobro do tamanho da maioria dos homens, mas por ser um dos poucos usando camisa. A maioria deles, na verdade, trabalha nu ou usando apenas uma tanga, por causa do calor e da umidade. Considerando-se os mosquitos, acho que isso é um erro, mas ninguém me perguntou.

Ninguém pediu minha opinião sobre os protocolos de higiene envolvidos em manter uma adequada enfermaria de doentes e acomodações de prisioneiros (trouxemos vários prisioneiros ingleses conosco, inclusive o mencionado capitão Stebbings que deveria com justiça estar morto, mas por alguma razão não está), mas eu lhes disse ainda assim. Assim, sou persona non grata com o tenente Stactoe, que acha que é médico, mas não é, e assim estou proibida de tratar dos homens sob seus cuidados, a maioria dos quais estará morta dentro de um mês. Felizmente, ninguém se importa se eu tratar das mulheres, crianças ou prisioneiros, e assim estou utilmente ocupada, já que há muitos deles.

Tenho a exata impressão de que o Ticonderoga trocou de mãos em algum momento, provavelmente mais de uma vez, mas não tenho ideia de quem tomou o forte de quem, nem quando. Esta última questão não sai do meu pensamento.

O general Wayne quase não possui tropas regulares. Jamie diz que o forte está com séria falta de homens - e até eu posso ver isso; metade do quartel está vazio - e, apesar de uma ou outra companhia de milícia chegar de New Hampshire ou Connecticut, elas normalmente se alistam por apenas dois ou três meses, como nós. Mesmo assim, os homens geralmente não cumprem todo o prazo; há uma constante dispersão e o general Wayne se queixa - publicamente - de que ele está reduzido a (textualmente) "negros, índios e mulheres". Eu disse a ele que podia ser pior.

Jamie diz também que o forte não conta com metade de seus canhões, tendo sido roubados por um gordo livreiro chamado Henry Fox, que os pegou há dois anos e conseguiu por um milagre de persistência e engenharia levá-los até Boston (o próprio sr. Fox teve que ser transportado em uma carroça juntamente com os canhões, ele pesando mais de cento e cinquenta quilos. Um dos oficiais aqui, que acompanhou essa expedição, descreveu-a, para hilaridade geral), onde se mostraram realmente úteis para se livrarem dos ingleses.

O que é um pouco mais preocupante do que tudo isso é a existência de uma pequena colina, diretamente à nossa frente do outro lado da água, e não muito distante. Os americanos chamavam-na de Mount Ddiance quando tomaram o Ticonderoga dos ingleses em 1775 (lembra-se de Ethan Allen? "Rendam-se em nome do grande Jeová e do Congresso Continental!" Soube que o pobre sr. Allen está atualmente na Inglaterra, sendo julgado por traição, após tentar tomar Montreal nos mesmos termos), e ela é bastante adequada - ou seria, se o forte fosse capaz de colocar homens e artilharia no seu cume. Mas não é, e acho que ofato de que a colina domina o forte e está ao alcance de um tiro de canhão provavelmente não passará despercebido pelo exército britânico, se e quando chegarem aqui.

Pelo lado bom, já é quase verão. Os peixes estão saltando e se houvesse algodão provavelmente estaria na altura da minha cintura. Chove com frequência e nunca vi tanta vegetação em um único lugar. (O ar é tão rico em oxigênio que às vezes acho que vou ter um desmaio, e sou obrigada a dar uma volta pelas barracas para um sopro restaurador de roupas sujas e urinóis. Seu primo Ian leva grupos para caçar e procurar alimentos de vez em quando, Jamie e diversos outros homens são exímios pescadores e, em consequência, nós comemos extremamente bem.

Não vou me estender muito, já que não sei ao certo quando ou onde eu poderei despachar esta carta via uma ou mais das diversas rotas de Jamie (nós copiamos cada carta, quando dá tempo, e enviamos múltiplas cópias, já que até mesmo a correspondência normal é incerta atualmente). Com sorte, ela irá conosco para Edimburgo. Enquanto isso, enviamos a vocês todo o nosso amor. Jamie sonha com as crianças de vez em quando; quisera sonhar também.

Mamãe

Roger permaneceu sentado por um instante, para ter certeza de que Bri tivera tempo de terminar de ler a carta - embora na realidade ela lesse muito mais depressa do que ele; achou que ela devia estar lendo a carta duas vezes. Após um momento, ela suspirou ruidosamente pelo nariz de uma maneira aflita e endireitou-se. Ele ergueu o braço e colocou a mão em sua cintura, e ela a cobriu com a sua própria mão. Não mecanicamente; ela agarrou seus dedos com força - mas distraidamente. Ela olhava para a estante de livros.

- Aqueles são novos, não são? - ela perguntou serenamente, erguendo o queixo na direção das prateleiras à direita.

- Sim. Mandei vir de Boston. Chegaram há uns dois dias. - As lombadas eram novas e brilhantes. Textos históricos, sobre a Revolução Americana. Enciclopédia da Revolução Americana, de Mark M. Boatner III. Relato de um soldado revolucionário, de Joseph Plumb Martin. - Quer saber? - ele perguntou. Balançou a cabeça, indicando a caixa aberta na mesa à sua frente, onde um grosso maço de cartas ainda permanecia fechado, em cima dos livros. Ele ainda não conseguira admitir a Bri que dera uma olhada nos livros. - Quero dizer, sabemos que provavelmente conseguiram sair de Ticonderoga sem maiores problemas. Há muito mais cartas.

- Sabemos que um deles provavelmente o fez - Bri disse, olhando para as cartas. - A menos que... Ian sabe, quero dizer. Ele poderia...

Roger retirou a mão de sua cintura e pegou a caixa com determinação. Bri inspirou sofregamente, mas ele ignorou-a, pegando um punhado de cartas da caixa e passando-as rapidamente.

- Claire, Claire, Claire, Jamie, Claire, Jamie, Jamie, Claire, Jamie - ele parou, pestanejando diante de uma carta com caligrafia diferente. - Talvez você tenha razão a respeito de Ian; você conhece a letra dele?

Ela sacudiu a cabeça.

- Acho que nunca o vi escrever nada, embora imagine que ele saiba escrever - acrescentou, em dúvida.

- Bem... - Roger colocou a carta dobrada sobre a mesa e olhou das cartas espalhadas para a estante de livros e depois para ela. Brianna estava ligeiramente afogueada. - O que quer fazer?

Ela refletiu, os olhos indo e vindo da estante para a caixa de madeira.

- Os livros - ela disse, decidida, e dirigiu-se à estante a passos largos. - Qual destes nos dirá quando Ticonderoga caiu?

Jorge III, Rex Britannia Para lorde George Germain

..Burgoyne pode comandar a unidade a ser enviada do Canadá para Albany... Como doenças e outras contingências devem ser esperadas, creio que não mais do que um efetivo de 7.000 deva ser usado no Lago Champlain, pois seria altamente imprudente correr qualquer risco no Canadá... índios devem ser empregados.

 

                     FORTE TICONDEROGA

12 de junho de 1777 Fort Ticonderoga

Encontrei Jamie dormindo, estendido nu no catre no minúsculo quarto que nos destinaram. Ficava no alto de um dos prédios de pedra do quartel e, portanto, quente como Hades no meio da tarde. No entanto, raramente estávamos ali durante o dia, Jamie ficando no lago com os construtores da ponte e eu no prédio do hospital ou nos alojamentos das famílias - todos esses locais sendo igualmente quentes, é claro.

No entanto, as pedras retinham calor suficiente para nos manter aquecidos nas noites frias - não havia lareiras - e ainda havia uma pequena janela.

Uma boa brisa soprava da água na hora do pôr do sol e por algumas horas, digamos, entre vinte e duas horas e duas da madrugada, era bastante agradável. Eram cerca de vinte horas agora - ainda claro lá fora e ainda tórrido ali dentro; o suor brilhava nos ombros de Jamie e escurecia os cabelos nas têmporas, deixando-os em um tom escuro de bronze.

Pelo lado bom, nosso minúsculo sótão era o único aposento no topo do prédio e assim desfrutava de um pouco de privacidade. Por outro lado, havia quarenta e oito degraus de pedra para nosso ninho de águia e a água limpa tinha que ser levada para cima e as águas servidas carregadas para baixo. Eu acabava de trazer um balde grande de água e a metade que não derramara pela frente do meu vestido pesava uma tonelada. Coloquei o balde no chão com um baque metálico que fez Jamie sentar-se na cama no mesmo instante, pestanejando na semiescuridão.

- Oh, desculpe-me - eu disse. - Não pretendia acordá-lo.

- Não tem importância, Sassenach - ele disse, bocejando enormemente. Empertigou-se, espreguiçou-se, depois passou as mãos pelos cabelos soltos e úmidos. - Já jantou?

- Sim, comi com as mulheres. E você? - Ele normalmente comia com sua equipe de operários quando paravam de trabalhar, mas às vezes era chamado para jantar com o general ST. Clair ou com os outros oficiais de milícias, e essas ocasiões quase formais ocorriam bem mais tarde.

- Hum-hum. - Estendeu-se novamente na cama e ficou observando enquanto eu despejava água em uma bacia e pegava um pequeno pedaço de sabão de lixívia. Fiquei apenas com a roupa de baixo e comecei a me esfregar meticulosamente, apesar de o sabão forte fazer minha pele já sensível arder e os seus vapores fazerem meus olhos lacrimejar. Enxaguei minhas mãos e meus braços, joguei a água pela janela - parando ligeiramente antes para gritar "Olha a água!" - e recomecei.

- Por que está fazendo isso? - Jamie perguntou com curiosidade.

- Estou quase certa de que o menino da sra. Wellman tem caxumba. Ou será está com caxumba? Nunca soube ao certo. De qualquer modo, não vou correr o risco de transmitir a doença para você.

- Caxumba é uma doença terrível? Pensei que só crianças pegavam.

- Bem, normalmente é uma doença infantil - eu disse, encolhendo-me ao toque do sabão. - Mas quando um adulto pega caxumba, especialmente um homem, é uma questão mais grave. Ela pode se instalar nos testículos. E a menos que você queira ter bolas do tamanho de melões...

- Tem certeza de que este sabão aí é suficiente, Sassenach? Posso ir buscar mais. - Riu para mim, em seguida sentou-se novamente e estendeu a mão para a tira de linho que nos servia de toalha. - Vem cá, a nighean, deixe-me enxugar suas mãos.

- Em um minuto. - Contorci-me para fora do meu espartilho, deixei cair minha combinação e pendurei-os no gancho perto da porta, em seguida vesti pela cabeça minha combinação "de casa". Não era tão higiênico quanto vestir jalecos cirúrgicos para trabalhar, mas o forte pululava de doenças e eu faria todo o possível para evitar levá-las de volta a Jamie. Ele já se deparava com muitas delas ao ar livre.

Joguei o restante da água do balde no meu rosto e braços, depois me sentei no catre ao lado de Jamie, dando um pequeno grito quando meu joelho estalou dolorosamente.

- Meu Deus, suas pobres mãos - ele murmurou, enxugando-as delicadamente com a toalha, em seguida passando a toalha pelo meu rosto. - E seu nariz também está queimado de sol, o pobrezinho.

- E as suas? - Calosas como normalmente eram, as mãos dele ainda eram uma concentração de cortes, juntas raladas, farpas e bolhas, mas ele descartou a questão com um breve movimento de uma das mãos e deitou-se novamente com um gemido de prazer.

- Seu joelho ainda dói, Sassenach? - ele perguntou, vendo-me friccioná-lo. Não havia se recuperado inteiramente da entorse durante nossas aventuras no Pitt, e subir escadas o esforçava.

- Oh, faz parte do declínio geral - eu disse, tentando pilheriar. Flexionei o braço direito, cautelosamente, sentindo uma pontada no cotovelo. - As coisas já não se flexionam com a mesma facilidade de antigamente. E tudo dói. Às vezes, acho que estou desmoronando.

Jamie fechou um dos olhos, avaliando-me.

- Eu me sinto assim desde que tinha uns vinte anos - ele observou. - Você se acostuma. - Espreguiçou-se, fazendo sua espinha dorsal emitir uma série de estalidos abafados, e estendeu a mão. - Venha para a cama, a nighean. Nada dói quando você me ama.

Ele tinha razão; nada doeu.

Adormeci rapidamente, mas acordei instintivamente umas duas horas mais tarde para ir verificar os poucos pacientes que precisavam ser vigiados. Esses incluíam o capitão Stebbings, que havia, para minha surpresa, resolutamente se recusado a morrer ou a ser tratado por qualquer outra pessoa senão eu. Isso não fora bem recebido pelo tenente Stactoe nem pelos outros médicos, mas como a exigência do capitão Stebbings era respaldada pela intimidante presença de Guiné Dick - dentes pontiagudos, tatuagens e tudo o mais - eu continuei sendo sua médica particular.

Encontrei o capitão um pouco febril e chiando audivelmente, mas dormindo. Guiné Dick levantou-se de seu próprio catre com o ruído dos meus passos, parecendo a manifestação particularmente assustadora do pesadelo de alguém.

- Ele comeu? - perguntei em voz baixa, pousando a mão de leve no pulso de Stebbings. A figura rechonchuda do capitão havia minguado consideravelmente; mesmo na penumbra, eu podia facilmente ver as costelas que antes eu tinha que tatear para achar.

- Um pouco de sopa, madame - o africano sussurrou e Moveu a mão na direção de uma tigela no chão, coberta com um lenço para evitar as baratas. - Como a senhora disse. Eu dou mais a ele quando ele acordar para urinar.

- Ótimo. - O pulso de Stebbings estava um pouco acelerado, mas nada alarmante, e quando me inclinei sobre ele e inalei profundamente não detectei nenhum cheiro de gangrena. Eu pude retirar o tubo de seu peito há dois dias e, apesar de haver uma pequena exsudação de pus no local, achei que se tratava de uma infecção localizada que provavelmente desapareceria sem ajuda. Teria que desaparecer; eu não tinha nada com que tratá-la.

Não havia quase nenhuma luz no prédio do hospital, apenas uma vela de junco e sebo perto da porta e a fraca iluminação que vinha das fogueiras no pátio. Eu não podia avaliar a cor de Stebbings, mas eu vi o lampejo branco quando ele abriu parcialmente os olhos. Resmungou quando me viu e fechou-os outra vez.

- Ótimo - repeti, deixando-o sob os cuidados do sr. Dick. Foi oferecida ao homem da Guiné a chance de se alistar no Exército Continental, mas ele recusara, preferindo se tornar um prisioneiro de guerra com o capitão Stebbings, o ferido sr. Ormiston e alguns outros marinheiros do Pitt.

- Sou inglês, homem livre - ele disse com simplicidade. - Prisioneiro talvez por algum tempo, mas homem livre. Marinheiro, mas homem livre. Americano, talvez não homem livre.

Talvez não. Deixei o prédio do hospital, visitei os aposentos dos Wellman para verificar meu paciente de caxumba - desconfortável, mas não perigosa - e em seguida caminhei devagar pelo pátio sob a lua nascente. A brisa da noite arrefecera, mas o ar noturno tinha certa friagem e, movida por um impulso, subi à bateria em meia-lua que dava para o Mount Defiance, do outro lado da ponta estreita do lago Champlain. Havia dois guardas, mas ambos dormiam profundamente, cheirando a bebida. Não era incomum. O moral no forte não era elevado e bebidas alcoólicas estavam disponíveis com facilidade.

Fiquei parada junto à muralha, a mão pousada em um dos canhões, o metal ainda levemente morno do calor do dia. Conseguiríamos ir embora, eu me perguntei, antes de ele estar quente por ter sido disparado? Faltavam trinta e dois dias e não passavam rápido o suficiente para mim. Fora a ameaça dos ingleses, o forte fedia a doenças; era como viver em uma fossa e eu só podia esperar que Jamie, Ian e eu pudéssemos ir embora sem contrair alguma doença maligna ou ser atacados por algum idiota bêbado.

Ouvi um leve passo atrás de mim e voltei-me, deparando-me com o próprio Ian, alto e magro sob a claridade das fogueiras lá embaixo.

- Posso falar com você, tia?

- Claro - eu disse, estranhando a formalidade. Afastei-me um pouco e ele veio se postar a meu lado, olhando para baixo.

- A prima Brianna teria uma ou duas coisas para dizer a respeito disso - ele disse, indicando com a cabeça a ponte em construção embaixo. - Tio Jamie também.

- Eu sei. - Jamie vinha repetindo isso nas últimas duas semanas, para o novo comandante do forte, Arthur St. Clair, para os outros coronéis de milícia, para os engenheiros, para quem quisesse ouvir e não poucos que não queriam. A loucura de gastar grandes quantidades de força de trabalho e material na construção de uma ponte que poderia ser facilmente destruída por artilharia no alto da colina era evidente a qualquer um, exceto aos que estavam no comando.

Suspirei. Não era a primeira vez que eu via cegueira militar e receava que não seria a última.

- Bem, deixando isso de lado... sobre o que você queria falar comigo, Ian?

Ele respirou fundo e voltou-se para a paisagem iluminada pelo luar do outro lado do lago.

- Sabe os hurons que vieram ao forte há pouco tempo? Eu sabia. Há duas semanas, um grupo de índios huron visitara o forte e Ian passara uma noite fumando com eles, ouvindo suas histórias. Algumas delas diziam respeito ao general inglês Burgoyne, de cuja hospitalidade haviam desfrutado anteriormente.

Burgoyne estava ativamente aliciando os índios da Liga Iroquesa, disseram, gastando muito tempo e dinheiro para atraí-los.

- Ele diz que seus índios são sua arma secreta - um dos hurons dissera, rindo. - Vai soltá-los contra os americanos, como um raio, e exterminá-los.

Sabendo o que eu sabia de índios em geral, achei que Burgoyne estava sendo um pouco otimista demais. Ainda assim, eu preferia não pensar no que poderia acontecer se ele realmente conseguisse persuadir os índios a lutar por ele.

Ian ainda fitava a distante elevação do Mount Defiance, perdido em seus pensamentos.

- Seja como for - eu disse, impondo ordem na conversa. - Por que está me dizendo isso, Ian? Devia dizer a Jamie e St. Clair.

- Eu disse. - O grito de um pato selvagem veio do outro lado do lago, surpreendentemente alto e sinistro. Soavam como fantasmas cantando à tirolesa, particularmente quando havia mais de um.

- Sim? Muito bem, então - eu disse, ligeiramente impaciente. - Sobre o que você queria conversar comigo?

- Bebês - ele disse, abruptamente, empertigando-se e virando-se para olhar diretamente para mim.

- O quê? - eu disse, espantada. Ele andava quieto e melancólico desde a visita dos hurons e eu presumia que a causa fora alguma coisa que eles disseram, mas eu não podia imaginar o que podiam ter dito a ele com relação a bebês.

- Como eles são feitos - ele disse obstinadamente, apesar de seus olhos se desviarem dos meus. Se houvesse mais luz, tenho certeza de que o veria enrubescer.

- Ian - eu disse, após uma breve pausa. - Recuso-me a acreditar que você não saiba como os bebês são feitos. O que você realmente quer saber?

Ele suspirou, mas por fim olhou para mim. Seus lábios se comprimiram por um instante, depois ele falou de uma só vez.

- Eu queria saber por que eu não posso fazer um. Passei ajunta de um dedo pelos lábios, desconcertada. Eu sabia - Bri me contara - que ele tivera uma filha natimorta com sua mulher mohawk, Emily, e que depois ela abortara ao menos duas vezes. Ainda, que fora esse fracasso que levara Ian a deixar os mohawks em Snaketown e retornar para nós.

- Por que acha que deve ser você? - perguntei sem rodeios. - A maioria dos homens culpa a mulher quando uma criança nasce morta ou acontece um aborto. A maioria das mulheres também, aliás.

Eu culpara tanto a mim mesma quanto a Jamie. Ele emitiu um pequeno ruído escocês na garganta, impaciente.

- Os mohawks não. Eles dizem que quando um homem se deita com uma mulher seu espírito luta com o dela. Se ele a domina, a criança é plantada; se não, nada acontece.

- Huum - eu disse. - Bem, é uma forma de colocar a questão. E eu também não diria que eles estejam errados. Pode ser alguma coisa tanto com o homem quanto com a mulher, ou algo a respeito dos dois juntos.

- Sim. - Eu o ouvi engolir em seco antes de continuar. - Uma das mulheres no grupo dos hurons era Kahnyen'kehaka, uma mulher de Snaketown, e ela me conhecia, de quando eu vivia lá. E ela me contou que Emily tem um filho. Um filho vivo.

Ele se remexia, irrequieto, enquanto falava, estalando os nós dos dedos. De repente parou. A luz estava alta no céu e iluminava seu rosto, tornando seus olhos fundos.

- Andei pensando, tia - ele disse, baixinho. - Andei pensando durante muito tempo. Sobre ela. Emily. Sobre Yeksa'a. A... minha filhinha. - Parou. Os nós dos dedos pressionados com força contra as coxas, mas ele recuperou o autocontrole e continuou, com mais firmeza na voz. - E ultimamente andei pensando em outra coisa. Se... quando - ele se corrigiu, com um rápido olhar por cima do ombro, como se esperasse que Jamie saltasse de um alçapão, furioso - formos para a Escócia, não sei como serão as coisas. Mas se eu... se eu me casar outra vez, talvez, aqui ou lá... - Ergueu os olhos para mim repentinamente, o rosto amadurecido de sofrimento, mas dolorosamente jovem de esperança e dúvida. - Eu não poderia me casar com uma moça se eu soubesse que jamais poderia lhe dar bebês vivos.

Ele engoliu em seco outra vez, abaixando os olhos.

- Você poderia talvez... dar uma olhada nas minhas partes, tia? Para ver se talvez tenha alguma coisa errada? - Sua mão dirigiu-se à braguilha e eu o interrompi com um gesto apressado.

- Talvez isso possa esperar um pouco, Ian. Deixe-me fazer um histórico primeiro; então veremos se um exame será necessário.

- Tem certeza? - Ele pareceu surpreso. - Tio Jamie contou-me sobre o esperma que você lhe mostrou. Achei que talvez o meu não fosse totalmente bom de alguma forma.

- Bem, eu precisaria de um microscópio para ver, de qualquer modo. E, embora realmente haja espermas anormais, geralmente quando é esse o caso a concepção simplesmente não ocorre de jeito nenhum. E pelo que compreendi, não era essa a dificuldade. Diga-me - eu não queria perguntar, mas não havia como evitar. - Sua filha. Você a viu?

As freiras haviam me dado minha filha natimorta. "Será melhor se você a vir", disseram, insistindo delicadamente.

Ele sacudiu a cabeça.

- Pode-se dizer que não. Quero dizer... vi a trouxinha que fizeram com ela, enrolada em pele de coelho. Colocaram-na no alto, na forquilha de um cedro vermelho. Eu ia lá à noite, durante algum tempo, só para... bem. Pensei em trazer a trouxinha para baixo, em desembrulhá-la, só para ver seu rosto. Mas isso teria perturbado Emily, então eu não o fiz.

- Você tem razão. Mas... oh, droga, Ian, sinto muito... mas sua mulher ou qualquer uma das outras mulheres alguma vez disse que havia alguma coisa visivelmente errada com a criança? Ela era... deformada, de alguma forma?

Ele olhou para mim, os olhos arregalados de choque, e seus lábios moveram-se sem som por um instante.

- Não - ele disse, finalmente, e havia tanto dor quanto alívio em sua voz. - Não. Eu perguntei. Emily não queria conversar sobre ela, sobre Iseaball, é como eu iria chamá-la, - ele explicou - , mas eu insisti até ela me contar como era o bebê. Ela era perfeita - ele falou baixinho, os olhos abaixados, fixos na ponte, onde uma fileira de lanternas brilhava, refletidas na água. - Perfeita.

Faith também. Perfeita. Coloquei a mão em seu braço, sentindo seus músculos rígidos.

- Isso é bom - eu disse serenamente. - Muito bom. Conte-me o máximo que puder, então, sobre o que aconteceu durante a gravidez. Sua mulher teve algum sangramento entre o momento em que você soube que ela estava grávida e quando ela deu à luz?

Devagar, eu o conduzi através da esperança e do medo, da desolação de cada perda, os sintomas que ele conseguia lembrar e o que ele sabia da família de Emily; já tinha havido natimortos entre os parentes dela? Abortos?

A lua passou pelo alto e começou a descer no céu. Finalmente, espreguiceime e estremeci.

- Não posso ter certeza - eu disse. - Mas acho que é ao menos possível que talvez seja o que chamamos de problema de Rh.

- O quê? - Ele estava recostado em um dos canhões de grande porte e, com isso, levantou a cabeça.

Não fazia sentido tentar explicar grupos sanguíneos, antígenos e anticorpos. E não era, na verdade, tão diferente da explicação dos mohawks para o problema.

- Se o sangue de uma mulher for Rh negativo e o sangue de seu marido for Rh positivo - expliquei - , a criança será Rh positivo, porque ele é dominante. Não importa o que isso signifique, mas a criança será positiva como o pai. Às vezes, a primeira gravidez corre bem e você não detecta nenhum problema até a segunda gravidez. Às vezes, acontece com a primeira. Essencialmente, o corpo da mãe produz uma substância que mata a criança. Mas, se uma mulher Rh negativo tiver um filho de um homem Rh negativo, então o feto sempre será Rh negativo também, e não há problema. Como você diz que Emily teve um filho vivo, então é possível que seu novo marido seja Rh negativo também. - Eu não sabia absolutamente nada sobre a prevalência do tipo de sangue Rh negativo nos índios nativos americanos, mas a teoria se adequava à evidência. - E se assim for - terminei - , então você não deverá ter esse problema com outra mulher. A maioria das mulheres europeias é Rh positivo, embora não todas.

Ele fitou-me durante tanto tempo que eu me perguntei se ele havia entendido o que eu disse.

- Chame de destino - eu disse amavelmente - ou chame de azar. Mas não foi culpa sua. Nem dela. - Nem minha. Nem de Jamie.

Ele balançou a cabeça, devagar, e inclinando-se para frente descansou a cabeça em meu ombro por um instante.

- Obrigado, tia - sussurrou e, erguendo a cabeça, beijou meu rosto. No dia seguinte, ele havia desaparecido.

 

                   O GREAT DISMAL

21 de junho de 1777

William estava extasiado com a estrada. É verdade que eram apenas uns poucos quilômetros, mas o milagre de ser capaz de cavalgar direto até o imenso pantanal chamado Great Dismal, através de uma região que ele se recordava vividamente de ter tido que fazer seu cavalo nadar em uma visita anterior, o tempo inteiro desviando-se de tartarugas devoradoras e cobras venenosas - sua conveniência era extraordinária. O cavalo parecia concordar, erguendo as patas descontraidamente, ultrapassando as nuvens de minúsculas mutucas amarelas que tentavam enxameá-los, os olhos dos insetos brilhando como pequenos arco-íris quando se aproximavam.

- Aproveite enquanto pode - William avisou o cavalo, com um breve afago em sua crina. - O lamaçal está mais à frente.

Na verdade, a própria estrada, apesar de livre das mudas de liquidâmbar e pinheiros desgarrados que entulhavam as margens, era bastante enlameada. Nada como os traiçoeiros lodaçais e poças inesperadas que se escondiam do outro lado da cortina de árvores. Ergueu-se um pouco nos estribos, espreitando o terreno à frente.

Qual a distância?, perguntou-se. A vila - Dismal Town - ficava na margem do lago Drummond, que por sua vez ficava no meio do pântano. No entanto, ele nunca entrara tanto no Great Dismal quanto agora e não fazia ideia de seu tamanho real.

A estrada não ia até o lago, isso ele sabia, mas certamente haveria uma trilha a seguir; os habitantes de Dismal Town devem ir e vir de vez em quando.

- Washington - ele repetiu baixinho. - Washington, Cartwright, Harrington, Carver. - Esses foram os nomes que ele recebera do capitão Richardson, dos cavalheiros legalistas de Dismal Town; ele os gravara na memória e escrupulosamente queimara a folha de papel que os continha. No entanto, tendo feito isso, foi tomado por um pânico irracional de esquecer os nomes e vinha repetindo-os para si mesmo a intervalos durante toda a manhã.

Já passava bastante do meio-dia e as nuvens diáfanas da manhã haviam se enredado em um céu baixo da cor de lã suja. Ele inspirou devagar, mas o ar não tinha aquele cheiro incômodo de um aguaceiro iminente - ainda. Além do odor adocicado do pântano, pleno de lama e plantas apodrecidas, ele podia sentir o cheiro da própria pele, salgado e fétido. Ele lavara as mãos e a cabeça como pôde, mas não trocara, nem lavara as roupas em duas semanas, e a rústica camisa de caça e calças de tecido grosseiro começavam a dar coceira em sua pele.

Embora talvez não fosse apenas suor seco e poeira. Ele coçou furiosamente com as unhas uma sensação de formigamento dentro de suas calças. Podia jurar que havia pego um piolho na última estalagem em que dormira.

O piolho, se havia um, sabiamente desistiu e a coceira passou. Aliviado, William respirou fundo e notou que os cheiros do charco haviam se tornado mais penetrantes, a resina de certas árvores erguendo-se em resposta à chuva que se aproximava. O ar adquirira repentinamente uma qualidade abafada que amortecia o som. Nenhum pássaro cantava; era como se ele e o cavalo cavalgassem sozinhos por um mundo envolto em algodão.

William não se importava de ficar sozinho. Crescera praticamente sozinho, sem irmãos ou irmãs, e ficava satisfeito na própria companhia. Além do mais, a solidão, ele disse a si mesmo, era boa para pensar.

- Washington, Cartwright, Harrington e Carver - cantarolou baixinho. Mas, além dos nomes, pouco havia a pensar com relação à sua missão atual e ele viu seus pensamentos se voltarem em uma direção mais familiar.

O principal objeto de seus pensamentos quando estava na estrada eram as mulheres e ele tocou no bolso sob a aba de seu casaco, pensativo. O bolso podia guardar até um livro pequeno; teve que escolher para esta viagem entre o Novo Testamento que sua avó lhe dera ou seu valioso exemplar da Lista das Damas de Covent Garden, de Harris. Não foi difícil.

Quando William tinha dezesseis anos, seu pai o flagrou, juntamente com um amigo, absorvidos nas páginas do exemplar, pertencente ao pai do seu amigo, do famoso guia do sr. Harris aos esplendores das mulheres do prazer de Londres. Lorde John ergueu uma das sobrancelhas e folheou o livro devagar, parando de vez em quando para levantar a outra sobrancelha. Em seguida, fechou o livro, respirou fundo, administrou um breve sermão sobre a necessidade de respeito devido ao sexo feminino, depois mandou os garotos irem buscar seus chapéus.

Em uma casa discreta e elegante no final da rua Brydges, tomaram chá com uma mulher escocesa maravilhosamente vestida, uma sra. McNab, que parecia grande amiga de seu pai. Ao final, a sra. McNab tocou uma sineta de bronze e...

William remexeu-se na sela, suspirando. Seu nome era Margery e ele escrevera um fervoroso panegírico para ela. Ficara loucamente apaixonado por ela.

Ele retornara, após uma semana febril avaliando suas contas, com a firme intenção de propor-lhe casamento. A sra. McNab recebeu-o gentilmente, ouviu suas declarações gaguejadas com a mais solidária atenção, em seguida lhe disse que Margery, ela tinha certeza, ficaria muito satisfeita com sua boa opinião sobre ela, mas infelizmente estava ocupada no momento. No entanto, havia uma jovem muito meiga chamada Peggy, que acabara de chegar de Devonshire, que parecia solitária e sem dúvida ficaria muito satisfeita em conversar um pouco com ele enquanto ele esperava para falar com Margery...

A compreensão de que Margery estava naquele exato momento fazendo com outra pessoa o que fizera com ele foi um choque tão tremendo que ele ficara sentado, fitando boquiaberto a sra. McNab, levantando-se apenas quando Peggy entrou, um rosto doce e inexperiente, loura, sorridente, e com o mais notável...

- Ah! - William deu um tapa na nuca, picada por uma mutuca, e praguejou.

O cavalo diminuíra a marcha sem que ele notasse e agora que ele realmente notava...

Praguejou outra vez mais alto. A estrada desaparecera.

- Como isso foi acontecer? - Ele falou em voz alta, mas sua voz pareceu fraca, amortecida pelas árvores espalhadas. As mutucas o haviam seguido; uma delas picou o cavalo, que relinchou e sacudiu a cabeça violentamente. - Vamos, calma - William disse, mais serenamente. - Não pode estar muito longe, não é? Nós acharemos.

Fez o cavalo dar meia-volta, cavalgando devagar no que ele esperava fosse um amplo semicírculo que deveria cortar a estrada. O solo estava úmido ali, enrugado com tufos de capim longo e emaranhado, mas não estava um lodaçal. As patas do cavalo deixavam curvas fundas onde pisavam e grossos respingos de lama e capim emaranhados voavam, agarrando-se nos jarretes e flancos do cavalo e nas botas de William.

Antes ele vinha seguindo na direção norte-noroeste... Olhou instintivamente para o céu, mas não encontrou nenhuma ajuda lá. O cinza claro e uniforme estava se alterando, aqui e ali uma nuvem carregada encorpando-se através da camada amortecedora, soturna e roncante. Um ribombo fraco e surdo de trovão chegou até ele e William praguejou outra vez.

Seu relógio tocou baixinho, o som estranhamente reconfortante. Freou o cavalo por um instante, não querendo se arriscar a deixá-lo cair na lama, e atrapalhadamente retirou-o do bolso. Três horas.

- Não é muito ruim - ele disse ao cavalo, encorajado. - Ainda resta muita luz do dia. - Claro, isso não passava de mero tecnicismo, considerando-se as condições atmosféricas. Podia muito bem ser o prenúncio do crepúsculo.

Ergueu os olhos para as nuvens concentradas, calculando. Não havia dúvida: iria chover, e logo. Bem, não seria a primeira vez que ele e o cavalo se molhavam. Suspirou, desmontou e desenrolou seu saco de dormir de lona, parte de seu equipamento de exército. Montou de novo e, com a lona dobrada ao redor dos ombros, o chapéu desamarrado e bem enfiado na cabeça, retomou a obstinada procura da estrada.

As primeiras gotas começaram a tamborilar e um cheiro extraordinário ergueu-se do pântano em resposta. Cheiro de terra e plantas, penetrante e... fecundo, de certo modo, como se o pântano se espreguiçasse, abrindo seu corpo para o céu em preguiçoso prazer, liberando seu odor como o perfume que bafeja dos cabelos soltos de uma prostituta de luxo.

William estendeu a mão num reflexo para o livro em seu bolso, pretendendo anotar o pensamento poético nas margens, mas depois sacudiu a cabeça, murmurando "idiota" para si mesmo.

Não estava muito preocupado. Ele já havia, como dissera ao capitão Richardson, entrado e saído inúmeras vezes do Great Dismal. É bem verdade que nunca estivera ali sozinho; ele e seu pai iam de vez em quando com um grupo de caça ou com alguns dos amigos índios de seu pai. E há alguns anos. Mas...

- Droga! - exclamou. Ele havia forçado o cavalo a entrar no que esperava que fosse o matagal que ladeava a estrada, mas continuou encontrando apenas mais matagal - moitas sombrias de zimbro de casca escura, aromático como um copo de gim holandês na chuva. Não havia espaço para virar. Murmurando consigo mesmo, ele bateu no cavalo com os joelhos e recuou, estalando a língua.

Inquieto, viu que as pegadas dos cascos do cavalo enchiam-se de água devagar. Não da chuva; o solo estava encharcado. Muito encharcado. Ouviu o barulho de sucção quando os cascos traseiros do cavalo atingiram terreno de charco e num reflexo inclinou-se para frente, batendo os joelhos com premência nas costelas do cavalo.

Pisando em falso, o cavalo cambaleou, reequilibrou-se - e então as pernas traseiras do animal cederam de repente, escorregando na lama, e ele lançou a cabeça para cima, relinchando, espantado. William, também pego de surpresa, embaralhou-se na lona do seu saco de dormir e caiu do cavalo, aterrissando com uma pancada na água.

Levantou-se como um gato escaldado, em pânico com a ideia de ser tragado para dentro de uma daquelas poças de areia movediça que se escondiam no Great Dismal. Certa vez, vira o esqueleto de um cervo apanhado em uma delas, nada ainda visível, salvo o crânio com a galhada, semienterrado e virado para o lado, os longos dentes amarelos à mostra, no que ele imaginara ser um grito.

Chapinhou apressadamente em direção a uma moita, saltou para cima dela e ficou agachado ali, como um sapo-rei, o coração disparado. Seu cavalo - teria ficado preso, o pântano o tragara?

O cavalo estava caído, debatendo-se na lama, relinchando em pânico, leques de água lamacenta voando de seus esforços.

- Santo Deus. - Ele agarrava punhados de capim áspero, equilibrando-se precariamente. - Seria areia movediça? Ou apenas um atoleiro?

Rangendo os dentes, esticou uma perna comprida, cautelosamente colocando o pé na superfície agitada. Sua bota pressionou para baixo... mais para baixo... Retirou o pé apressadamente, mas ele soltou-se com facilidade, com um estalido de lama e água. Outra vez... sim, havia um fundo firme! Muito bem, agora o outro... Levantou-se, os braços agitando-se para manter o equilíbrio e...

- Muito bem! - exclamou, sem fôlego. - Um atoleiro, nada além disso, graças a Deus!

Chapinhou na direção do cavalo e agarrou o saco de dormir de lona que se soltara na queda. Atirando-o sobre a cabeça do cavalo, envolveu-a rapidamente ao redor dos olhos do animal. Era o que se devia fazer com um cavalo apavorado demais para fugir de um celeiro em chamas; seu pai lhe mostrara como fazer quando o celeiro em Mount Josiah fora atingido por um raio certa vez.

Um pouco para seu assombro, a medida pareceu funcionar. O cavalo sacudia a cabeça de um lado para o outro, mas parara de agitar as pernas. Ele agarrou a rédea e soprou dentro das narinas do cavalo, dizendo palavras tranquilizadoras.

O cavalo resfolegou, lançando um jato de respingos sobre ele, mas pareceu se acalmar. Ele puxou a cabeça do animal para cima e ele rolou sobre o peito, espadanando água lamacenta para todos os lados, e quase no mesmo movimento ergueu-se pesadamente sobre as patas. O cavalo sacudiu-se da cabeça à cauda, soltando a lona e espalhando lama num raio de três metros ao redor.

William estava feliz demais para se importar. Pegou a ponta da lona e tirou-a da lama, em seguida segurou a rédea.

- Muito bem - disse, sem fôlego. - Vamos sair daqui. O cavalo não prestava atenção; sua cabeça ergueu-se com uma guinada, virada para o lado.

- O que... As enormes narinas alargaram-se, vermelhas, e com um grunhido explosivo o cavalo partiu em disparada, arrancando as rédeas de suas mãos e fazendo-o estatelar-se na água - outra vez.

- Seu desgraçado filho da mãe! Que diabos. - William parou de repente, agachado na lama. Algo comprido, pardacento e extremamente veloz passou a menos de dois passos dele. Algo grande.

Ele girou a cabeça bruscamente, mas o que quer que fosse já desaparecera, silencioso, em perseguição ao cavalo disparado, cuja fuga em pânico ele podia ouvir desaparecendo ao longe, pontuada pelos estalidos de galhos quebrando-se e um ou outro barulho metálico de itens do equipamento caindo.

Engoliu em seco. Eles costumavam caçar juntos de vez em quando, ele ouvira dizer. Gatos-do-mato. Em pares.

Os cabelos de sua nuca se arrepiaram e ele virou a cabeça até onde foi possível, com medo de se mover muito e chamar a atenção de qualquer coisa que pudesse estar espreitando no escuro emaranhado de liquidâmbares e mato rasteiro atrás dele. Nenhum som, exceto o crescente tamborilar de gotas de chuva no pântano.

Uma garça levantou voo, branca, das árvores do outro lado do atoleiro, quase fazendo seu coração parar. Ele ficou paralisado, a respiração suspensa até achar que iria sufocar no esforço para ouvir, mas nada aconteceu, e finalmente respirou e levantou-se, as abas de seu casaco emplastadas em suas coxas, pingando.

Estava de pé em uma turfeira; havia uma vegetação esponjosa sob seus pés, mas o nível da água ultrapassava os canos de suas botas. Ele não estava afundando, mas não conseguia puxar as botas para fora com seus pés ainda dentro e foi obrigado a retirar os pés um de cada vez, depois arrancar as botas com força e sair chapinhando de meias para o terreno mais alto, as botas nas mãos.

Tendo alcançado o santuário de um tronco caído, sentou-se para tirar a água das botas, sombriamente avaliando sua situação enquanto as calçava outra vez.

Estava perdido. Em um pantanal conhecido por ter devorado inúmeras pessoas, tanto índios quanto brancos. A pé, sem comida, fogo ou qualquer abrigo além da frágil proteção oferecida pelo saco de dormir de lona - este um produto padrão do exército, literalmente um saco feito de lona com uma fenda, para ser enchido com palha ou capim seco - ambos notoriamente inexistentes nas presentes circunstâncias. Fora isso, tudo que ele possuía era o conteúdo de seus bolsos, consistindo em uma navalha, uma lapiseira, um encharcado pedaço de pão com queijo, um lenço imundo, algumas moedas, seu relógio e seu livro, igualmente, sem dúvida, encharcado. Rebuscou os bolsos para verificar, constatou que o relógio havia parado e que o livro sumira, e xingou, em voz alta.

Isso pareceu ajudar um pouco e ele então xingou alto de novo. A chuva caía torrencialmente agora, não que isso fizesse a menor diferença, considerando-se seu estado. O piolho em suas calças, evidentemente acordando e descobrindo que seu habitat estava alagado, partiu em marcha determinada para descobrir alojamentos mais secos.

Murmurando blasfêmias, ele levantou-se, enrolou a lona vazia em volta da cabeça e saiu claudicando na direção em que o cavalo partira, coçando-se.

Nunca encontrou o cavalo. Ou o gato-do-mato o matara, em algum lugar fora do alcance de sua vista, ou conseguira fugir e vagava sozinho pelo pântano. Na realidade, encontrou dois itens que caíram da sela: um pequeno pacote encerado contendo tabaco e uma frigideira. Nenhum dos dois parecia imediatamente útil, mas ele estava pouco inclinado a desfazer-se de qualquer remanescente de civilização.

Encharcado até a pele e tremendo sob a reduzida proteção de sua lona, agachou-se entre as raízes de um liquidâmbar, observando um relâmpago cortar o céu noturno. Cada clarão branco-azulado era ofuscante, mesmo através das pálpebras cerradas, cada trovão sacudindo o ar causticante com o cheiro de raios e coisas queimadas.

Ele quase já se acostumara com o canhoneiro quando uma tremenda explosão o atirou ao chão e varreu-o, derrapando de lado pela lama e folhas mortas. Sufocado e arquejando, ele sentou-se, limpando a lama do rosto. Que diabos havia acontecido? Uma dor forte no braço destacava-se em sua confusão e, olhando para baixo, viu à luz do clarão de um raio que uma farpa de madeira, de uns quinze centímetros, estava engastada na carne de seu braço direito.

Olhando desesperadamente à sua volta, viu que o charco a seu redor ficara repentinamente cravejado de lascas e pedaços de madeira fresca, e o cheiro de resina e cerne elevava-se, penetrante em meio ao odor ardente, flutuante de eletricidade.

Lá. Outro clarão, e ele viu. A uns cem metros, ele notara um imenso cipreste sem folhas, pensando em usá-lo como um marco para quando o dia amanhecesse; era de longe a árvore mais alta das redondezas. Não mais: o relâmpago

mostrou-lhe o ar vazio onde o tronco altaneiro estivera, outro clarão, as lanças pontiagudas do que restara.

Tremendo e parcialmente surdo pelo trovão, retirou a farpa de seu braço e pressionou o tecido de sua camisa no ferimento para interromper o sangramento. Não era profundo, mas o choque da explosão fazia sua mão tremer. Puxou a lona ao redor dos ombros contra a chuva fustigante e enroscou-se outra vez entre as raízes do liquidâmbar.

Em algum momento durante a noite, a tempestade se dissipou e, com a cessação do barulho, ele resvalou em uma sonolência inquieta, da qual acordou deparando-se com o nada branco do nevoeiro.

Um frio maior do que a friagem do amanhecer percorreu-o de cima a baixo. Passara sua infância em Lake District na Inglaterra e sabia, de suas lembranças mais antigas, que a chegada do nevoeiro nas charnecas elevadas era um perigo. Ovelhas frequentemente se perdiam na névoa, encontrando a morte, separadas do rebanho e mortas por cachorros ou raposas, congeladas ou simplesmente desaparecendo. Homens às vezes se perdiam no nevoeiro também.

Os mortos descem com o nevoeiro, a babá Elspeth disse. Podia vê-la, uma mulher magra e idosa, empinada e destemida, parada à janela do seu quarto de criança, observando a névoa branca em movimento. Ela dissera isso serenamente em voz baixa, como se falasse consigo mesma; achava que ela não percebera que ele estava ali. Quando percebeu, fechou a cortina com um movimento brusco e foi preparar seu chá, sem dizer mais nada.

Ele gostaria de uma xícara de chá, pensou, de preferência com uma boa dose de uísque dentro. Chá quente, torrada com manteiga, sanduíches de geleia e bolo...

A ideia dos chás quando era criança o fez lembrar seu naco de pão com queijo molhado e o retirou cuidadosamente do bolso, imensamente reconfortado com a sua presença. Comeu devagar, saboreando a massa sem gosto como se fosse um pêssego em conserva de conhaque, e se sentiu muito melhor, apesar do toque pegajoso do nevoeiro em seu rosto, da água gotejando das pontas de seus cabelos e do fato de que ainda estava molhado até a pele; seus músculos doíam de tanto tremer a noite inteira.

Ele tivera a presença de espírito de colocar sua frigideira na chuva na noite anterior e, assim, tinha água limpa para beber, com um gosto delicioso de gordura de bacon.

- Nada mau - ele disse em voz alta, limpando a boca. - Ainda. Sua voz soou estranha. As vozes sempre soavam estranhas em um nevoeiro. Ele já estivera perdido em um nevoeiro por duas vezes e não tinha a menor vontade de repetir a experiência, embora a revivesse, de vez em quando, em pesadelos. Tropeçando cegamente por uma cortina branca tão densa que não conseguia ver os próprios pés, ouvindo as vozes dos mortos.

Ele fechou os olhos, preferindo momentaneamente a escuridão aos redemoinhos brancos, mas ainda podia sentir seus dedos, frios em seu rosto.

Ele ouvira as vozes naquela ocasião. Tentou não ouvi-las agora.

Levantou-se, determinado. Tinha que se mover. Ao mesmo tempo, sair vagando às cegas pelos charcos e pela vegetação cerrada seria loucura.

Amarrou a frigideira ao cinto e, atirando a lona molhada sobre os ombros, estendeu a mão e começou a tatear. O zimbro não serviria; a madeira se esfrangalhava sob uma faca e as árvores cresciam de tal maneira que nenhum galho seguia reto mais do que alguns centímetros. Liquidâmbar ou nissa seria melhor, mas um amieiro seria ótimo.

Encontrou um bosquete de amieiros novos após um longo tempo avançando cautelosamente pela névoa, plantando um pé de cada vez e esperando para ver o efeito, parando sempre que encontrava uma árvore para pressionar suas folhas contra a boca e o nariz, a fim de identificá-la.

Tateando entre os troncos finos, escolheu um de mais ou menos três centímetros de diâmetro e, plantando os pés firmemente, agarrou a muda de árvore com as duas mãos e arrancou-a. Ela saiu, com um gemido de terra dilacerada e uma chuva de folhas - e um corpo pesado deslizou repentinamente pela sua bota. Soltou um grito e bateu com a ponta das raízes de sua muda, mas a cobra já havia fugido há muito tempo.

Suando apesar do frio, desamarrou a frigideira e usou-a para explorar cuidadosamente o chão invisível. Não evocando nenhum movimento, e achando a superfície relativamente firme, virou a frigideira e usou-a para se sentar em cima.

Trazendo a madeira para perto do rosto, ele podia divisar os movimentos de suas mãos o suficiente para não se cortar e, laboriosamente, conseguiu limpar a muda e apará-la para um comprimento de um metro e oitenta aproximadamente, de fácil manejo. Então, começou a desbastar a ponta para aguçá-la.

O Great Dismal era perigoso, mas pululava de caça. Esse era o chamariz que atraía os caçadores para suas misteriosas profundezas. William não pretendia matar um urso ou um veado com uma lança artesanal. No entanto, era razoavelmente adepto a arpoar rãs, ou fora. Um cavalariço da propriedade de seu avô o ensinara há muito tempo, ele o fizera com seu pai na Virgínia muitas vezes, e apesar de não ser uma habilidade que ele tivesse oportunidade de praticar nos últimos anos em Londres, tinha certeza de que não havia esquecido.

Podia ouvir as rãs por toda parte à sua volta, alegremente alheias ao nevoeiro. Murmurou alguns sons, chamando as rãs, mas elas não pareciam impressionadas com suas citações de Aristófanes.

- Certo. Mas esperem - disse a elas, experimentando a ponta com o polegar. Bastante boa. Idealmente, um arpão deveria ser tridente... Bem, por que não? Ele tinha tempo.

Mordendo a língua em concentração, começou a esculpir dois outros galhinhos, depois os entalhou na lança principal. Considerou rapidamente arrancar tiras da casca do zimbro para amarrar as pontas, mas rejeitou a ideia em favor de desembaraçar um fio da barra de sua camisa.

O pantanal estava encharcado depois de uma tempestade. Ele perdera sua caixa de pederneira, mas duvidava que até mesmo um dos raios de Jeová, como aquele que ele testemunhara na noite anterior, pudesse acender um fogo ali. Por outro lado, quando o sol saísse e ele conseguisse pegar uma rã, provavelmente já estaria bastante desesperado para comê-la crua.

Paradoxalmente, achou o pensamento reconfortante. Não iria morrer de fome, nem de sede - estar naquele pântano era como viver em uma esponja.

Ele não possuía nenhum plano definido. Apenas o conhecimento de que o pântano era grande, mas era finito. Assim sendo, quando tivesse o sol para guiá-lo e pudesse ter certeza de que não estaria andando em círculos, pretendia seguir em linha reta até atingir terreno firme ou o lago. Se encontrasse o lago... bem, Dismal Town erguia-se em sua margem. Ele só precisaria caminhar pela circunferência e por fim a encontraria.

Assim, desde que tomasse cuidado com as areias movediças, não fosse pego por algum animal de porte, não fosse mordido por uma cobra venenosa ou não pegasse uma febre da água suja ou o miasma do pântano, tudo daria certo.

Testou a amarração, dando leves estocadas com a lança na lama, e considerou-a firme. Nada a fazer senão esperar, portanto, que o nevoeiro se dissipasse.

O nevoeiro não mostrava nenhuma disposição de se dissipar. Na verdade, parecia mais denso; ele mal conseguia ver os próprios dedos erguidos a alguns centímetros dos olhos. Suspirando, apertou o casaco úmido ao redor do corpo, colocou o arpão ao seu lado e acomodou as costas precariamente contra os amieiros restantes. Abraçou os joelhos para armazenar o pouco calor que seu corpo ainda tinha e fechou os olhos para bloquear a brancura.

As rãs continuavam a coaxar. No entanto, agora sem distração, ele começou a ouvir as outras vozes do pântano. A maioria dos pássaros fazia silêncio, esperando o nevoeiro passar assim como ele, mas de vez em quando o grito repentino, grave, de um abetouro ecoava pelo nevoeiro. Às vezes, ouviam-se ruídos de patas correndo e chapinhando na água - um rato-almiscarado?

Uma pancada surda denunciou uma tartaruga caindo de um tronco dentro da água. Ele preferia esses sons, porque sabia o que eram. Mais assustadores eram os débeis ruge-ruges, que deviam ser o farfalhar de galhos - embora o ar estivesse parado demais, sem dúvida, para ser o vento - ou o movimento de algo caçando. O grito agudo de um animal pequeno, interrompido abruptamente. E os estalidos e rangidos do próprio pântano.

Ele ouvira as rochas falando umas com as outras nas colinas elevadas em Helwater. O Lake District, terra dos seus avós maternos. No nevoeiro. Ele nunca contara isso a ninguém.

Moveu-se um pouco e sentiu algo logo abaixo do seu maxilar. Batendo a mão espalmada no lugar, descobriu uma sanguessuga que grudara em seu pescoço. Enojado, arrancou-a e atirou-a com todas as forças dentro do nevoeiro. Tateando por todo o corpo com mãos trêmulas, acomodou-se novamente, encolhido, tentando afastar as lembranças que o inundavam com as espirais de névoa. Ele ouvira sua mãe - sua verdadeira mãe - sussurrar para ele também. Foi por isso que ele entrara no nevoeiro. Estavam fazendo um piquenique nas colinas elevadas da charneca, seus avós, mamãe Isobel e alguns amigos, com alguns criados. Quando o nevoeiro desceu, repentino como às vezes acontecia, houve uma corrida geral para guardar os apetrechos do piquenique e ele fora deixado sozinho, observando a muralha branca inexorável silenciosamente girando em sua direção.

Podia jurar que ouvira o sussurro de uma mulher, baixo demais para distinguir palavras, mas de algum modo com um tom nostálgico, e ele soube que ela falava com ele.

E ele entrara no nevoeiro. Por alguns instantes, ficou fascinado com o movimento do vapor d'água perto do solo, pelo modo como bruxuleava e tremeluzia, e parecia vivo. Mas logo o nevoeiro ficou mais denso e em questão de instantes ele compreendeu que estava perdido.

Ele chamara. Primeiro a mulher que achava que era sua mãe. Os mortos descem no nevoeiro. Isso era praticamente tudo que sabia de sua mãe - que ela estava morta. Quando morreu, tinha a idade que ele tinha agora. Vira três retratos dela. Diziam que ele tinha seus cabelos e seu jeito para lidar com cavalos.

Ela respondera, podia jurar que ela respondera a seu chamado - mas em uma voz sem palavras. Sentira a carícia de dedos frios em seu rosto e ele continuara a vagar, extasiado.

Então, ele caíra, um tombo feio, rolando pelas pedras até uma pequena depressão do terreno, machucando-se e perdendo o fôlego. O nevoeiro encapelara-se acima dele, passando veloz, em sua pressa de engolfar tudo, enquanto ele jazia, atordoado e arquejante no fundo do pequeno declive. Então, ele começou a ouvir as pedras murmurarem à sua volta e começou a se arrastar, depois a correr, o mais rápido que podia, gritando. Caiu de novo, levantou-se e continuou correndo.

Caiu, finalmente incapaz de prosseguir, e agarrou-se, aterrorizado e cego, ao mato áspero, cercado por uma imensa vastidão deserta. Então, ouviu-os chamando por ele, vozes que ele conhecia, e tentou gritar em resposta, mas sua garganta estava ferida de tanto berrar e ele não conseguia emitir mais do que ruídos roucos, desesperados, correndo na direção de onde achava que vinham as vozes. Mas o som vagueia em um nevoeiro e nada é o que parece: nem o som, nem o tempo, nem o espaço.

Inúmeras vezes, ele correu na direção das vozes, mas caiu sobre alguma coisa, tropeçou e rolou por um declive, esbarrou contra afloramentos rochosos, viu-se agarrado à borda de uma escarpa, as vozes agora atrás dele, desaparecendo no nevoeiro, abandonando-o.

Mac o encontrara. A enorme mão havia repentinamente se estendido para baixo e o agarrado. No instante seguinte, foi levantado - machucado, esfolado e sangrando, mas agarrado com força à camisa rústica do cavalariço escocês, braços fortes segurando-o como se jamais o fossem soltar.

Engoliu em seco. Quando tinha pesadelos, às vezes acordava com Mac abraçando-o. Às vezes, não, e acordava suando frio, incapaz de voltar a dormir por medo do nevoeiro e das vozes.

Ele Parou, completamente imóvel, ouvindo passos. Respirou cautelosamente - e sentiu o cheiro inconfundível de fezes de porco. Não se moveu; porcos selvagens eram perigosos se você os assustasse.

Ruídos do animal fungando, farejando, mais passos, o farfalhar de galhos e a chuva de gotas de água quando corpos pesados roçaram as folhas de moitas de azevim e chá-dos-apalaches. Vários deles, movendo-se devagar, mais ainda assim se movendo. Sentou-se ereto, virando a cabeça de um lado para o outro, tentando localizar o som exatamente. Nada podia se mover com determinação naquele nevoeiro - a menos que estivessem seguindo uma trilha.

O pântano estava cruzado com trilhas de animais, feitas pelos cervos e usadas por todos, de gambás a ursos negros. Essas trilhas davam voltas sem direção, havendo apenas duas coisas certas a respeito delas: uma, que de fato levavam a água potável e, duas, que não levavam a uma poça de areia movediça. O que, nas circunstâncias atuais, era o suficiente para William.

Haviam dito outra coisa a respeito de sua mãe. "Imprudente", sua avó dissera tristemente, sacudindo a cabeça. - "Ela era sempre tão imprudente, tão impulsiva." E, então, seus olhos pousaram nele, apreensiva. E você é exatamente como ela, diziam aqueles olhos ansiosos. Que Deus nos ajude.

- Talvez eu seja - ele disse em voz alta e, agarrando a lança, levantou-se, desafiador. - Mas não estou morto. Ainda não.

Isso ele sabia. E que permanecer parado quando perdido era uma boa ideia somente se alguém estivesse à sua procura.

                  

                     PURGATÓRIO

Ao meio-dia do terceiro dia, ele encontrou o lago. Chegara até ele através de uma catedral de imponentes ciprestes desfolhados, seus enormes troncos de onde se projetavam raízes aéreas erguendo-se como pilares do solo alagado. Faminto, um pouco zonzo de uma febre leve, caminhou devagar com água até as panturrilhas.

O ar estava parado; assim como a água. O único movimento era o lento arrastar de seus pés e o zumbido dos insetos que o atormentavam. Seus olhos estavam inchados das picadas de mosquitos e o piolho tinha companhia na forma de ácaros e bichos-do-pé. As libélulas que dardejavam de um lado para o outro não picavam como as centenas de minúsculas moscas e mosquitos, mas tinham sua própria forma de tormento - faziam-no olhar para elas, a luz do sol refletindo dourada, azul e vermelha de suas asas diáfanas e corpos brilhantes, ofuscantes na luz.

A superfície lisa da água refletia tão perfeitamente as árvores que dela se projetavam que ele não conseguia saber ao certo onde ele próprio estava, equilibrado precariamente entre dois mundos espelhados. Ele continuava perdendo sua noção do que era para cima e do que era para baixo, a visão vertiginosa através dos galhos do cipreste altaneiro acima igual à de baixo. As árvores assomavam a mais de vinte e cinco metros acima e a vista de nuvens deslizantes parecendo navegar diretamente através dos galhos delicadamente agitados embaixo dava-lhe a permanente sensação de que ele estava prestes a cair - se para cima ou para baixo, ele não sabia dizer.

Ele havia arrancado a farpa de cipreste do braço e feito o melhor possível para sangrar o ferimento, mas haviam ficado pequenas lascas de madeira presas sob a pele, e seu braço estava quente e latejando. Assim como sua cabeça. O frio e o nevoeiro haviam desaparecido como se nunca tivessem existido e ele caminhava lentamente através de um mundo de calor e imobilidade que bruxuleava nas bordas. Seus olhos queimavam por trás.

Se ele mantivesse os olhos fixos no movimento da água que se afastava de suas botas, as pequenas ondas em forma de V quebravam o reflexo perturbador e o mantinham em pé. Mas observar as libélulas... isso o fazia cambalear e perder o equilíbrio, já que não pareciam fixas nem na água nem no ar, mas parte de ambos.

Uma estranha depressão surgiu na água, a um passo de sua panturrilha direita. Ele pestanejou, depois viu a sombra, sentiu a sensação do corpo pesado ondulando pela água. Uma cabeça maligna, pontuda e triangular.

Engoliu em seco e estancou. A serpente do pântano, para sua sorte, não. Observou-a se afastar na água e se perguntou se ela seria comestível. Não importava; ele quebrara seu arpão de rã, embora tivesse pego três rãs antes da frágil amarração se desfazer. Pequenas. Não tinham um gosto ruim, apesar da sensação borrachuda da carne crua. Seu estômago contraiu-se, roncando, e ele lutou contra o impulso insano de mergulhar atrás da cobra, agarrá-la e arrancar a carne dos ossos com os dentes.

Talvez conseguisse pegar um peixe. Permaneceu imóvel por vários minutos, para ter certeza de que a cobra fora embora. Em seguida, engoliu em seco e deu mais um passo. E continuou andando, os olhos fixos nas pequenas ondas que seus pés faziam, quebrando o espelho d'água em fragmentos ao seu redor.

Pouco tempo depois, no entanto, a superfície começou a se mover, centenas de minúsculas ondulações batendo contra a madeira marrom-acinzentada dos ciprestes, cintilando tanto que o estonteante redemoinho de árvores e nuvens desapareceu. Ele levantou a cabeça e viu o lago à sua frente.

Era grande. Muito maior do que ele imaginara. Ciprestes desfolhados e gigantescos erguiam-se da água, os tocos e carcaças de antigos progenitores embranquecendo ao sol entre eles. A margem distante estava escura, densa de nissas, amieiros e viburnos. A própria água parecia se estender por quilômetros diante dele, marrom da cor de chá com as infusões das árvores que cresciam nele.

Umedecendo os lábios, abaixou-se e, com as mãos em concha, pegou a água marrom e bebeu-a, depois outra vez. Era potável, um pouco amarga.

Passou a mão molhada pelo rosto; a água fria o fez estremecer com um repentino calafrio.

- Muito bem - ele disse, sentindo-se sem fôlego. Continuou avançando, o solo descendo gradualmente sob seus pés, até ficar parado na água livre, o denso matagal do pântano atrás dele. Calafrios ainda o percorriam, mas ele ignorou-os.

O lago Drummond recebera o nome de um antigo governador da Carolina do Norte. Um grupo de caça, que incluía o governador William Drummond, entrara no pantanal. Uma semana depois, Drummond, o único sobrevivente, saíra dele cambaleando, semimorto de fome e febre, mas com a notícia de um lago imenso e desconhecido no meio do Great Dismal.

William respirou fundo, estremecendo. Bem, nada o devorara ainda. E ele alcançara o lago. Para que lado ficaria Dismal Town?

Examinou as margens devagar, procurando qualquer traço de fumaça de chaminé, qualquer interrupção no matagal denso que poderia indicar uma vila. Nada. Com um suspiro, enfiou a mão no bolso e encontrou uma moeda. Atirou-a no ar e quase a deixou escapar, manuseando-a com grande nervosismo quando ela saltou de seus dedos emperrados. Peguei-a, peguei-a. Coroa. Portanto, esquerda. Virou-se e partiu decididamente.

Sua perna bateu contra alguma coisa na água e ele olhou para baixo, bem a tempo de ver o lampejo branco da boca de uma cobra quando ela se ergueu e deu um bote em sua perna. Por puro reflexo, ele lançou o pé para cima e as presas da cobra agarraram-se por um breve instante no couro da boca de sua bota.

Ele gritou e sacudiu a perna violentamente, expulsando o réptil, que saiu voando pelo ar e aterrissou com uma pancada na água. Nem um pouco desanimada, a serpente virou-se sobre si mesma quase instantaneamente e partiu como uma flecha pela água em sua direção.

William arrancou a frigideira do cinto e girou-a com toda força, tirando a cobra da água e erguendo-a no ar. Não esperou para ver onde ela aterrissou, mas virou-se e saiu correndo, lançando água para todos os lados, em direção à margem.

Subiu correndo no aglomerado de zimbros e liquidâmbares e parou, arquejando, aliviado. O alívio durou pouco. Virou-se então, para olhar, e viu a cobra, a pele marrom brilhando como cobre, deslizar para a margem em seu encalço e vir ondulando com determinação atrás dele.

William soltou um ganido e fugiu em disparada. Correu cegamente, os pés chafurdando a cada passo, ricocheteando de árvores e chocando-se contra galhos, as pernas agarrando-se aos azevinhos e viburnos, através dos quais ele abria caminho sob uma chuva de folhas e galhinhos arrancados. Não olhou para trás, mas também não estava olhando para frente, e assim colidiu em cheio com um homem parado em seu caminho.

O homem soltou um grito e caiu de costas, William sobre ele. Levantou o tronco atabalhoadamente e viu-se fitando o rosto de um índio atônito. Antes que pudesse pedir desculpas, outra pessoa agarrou-o pelo braço e puxou-o rispidamente, colocando-o de pé.

Era outro índio, que lhe disse alguma coisa, com raiva e interrogativamente.

Ele tateou em busca de alguma palavra que pudesse servir à ocasião, não encontrou nenhuma e, apontando na direção do lago, exclamou, arquejante:

- Cobra! No entanto, os índios evidentemente compreenderam a palavra, pois seus rostos mudaram imediatamente para um ar de cautela e eles olharam na direção em que ele apontava. Para corroborar sua história, a enfurecida serpente surgiu à vista, contorcendo-se pelas raízes de um liquidâmbar.

Os dois índios soltaram exclamações e um deles agarrou um tacape de uma funda às suas costas e golpeou a cobra. Ele errou; o animal enrolou-se instantaneamente em uma apertada espiral e atacou-o. A serpente errou também, mas não muito, e o índio deu um salto para trás, largando o tacape.

O outro índio disse alguma coisa, desgostoso. Segurando seu próprio tacape, começou a rodear a serpente cautelosamente. Esta, ainda mais furiosa com a perseguição, girou em sua própria espiral com um silvo alto e lançou-se, como uma flecha, atacando o pé do segundo índio. Ele gritou e deu um salto para trás, embora sem soltar seu tacape.

William, enquanto isso, encantado de não ser mais o foco do aborrecimento da cobra, afastara-se da cena. No entanto, vendo a cobra momentaneamente desequilibrada - se é que se podia dizer que as cobras tinham equilíbrio - , agarrou sua frigideira, girou-a do alto e desfechou um poderoso golpe na serpente com a borda da panela.

Golpeou-a várias vezes, suas forças alimentadas pelo pânico. Finalmente, parou, respirando como o fole de um ferreiro, o suor escorrendo pelo rosto e pelo corpo. Engolindo em seco, ergueu a frigideira cuidadosamente, esperando ver a cobra transformada em uma massa sanguinolenta no solo revolvido.

Nada. Podia sentir o cheiro do réptil - um odor abjeto, como o de pepinos podres - , mas não via nada. Estreitou os olhos, tentando distinguir alguma coisa na massa de folhas esmigalhadas e lama, depois ergueu os olhos para os índios.

Um deles encolheu os ombros. O outro apontou para o lago e disse alguma coisa. Evidentemente, a cobra prudentemente concluíra que estava em desvantagem e retornou às suas próprias atividades.

William levantou-se, constrangido, a frigideira na mão. Os homens trocaram sorrisos nervosos.

Em geral, ele se sentia confortável em meio aos índios; muitos deles cruzavam suas terras e seu pai sempre lhes dava as boas-vindas, fumando com eles na varanda, jantando com eles. Ele não sabia dizer a qual tribo estes dois pertenciam - os rostos pareciam de alguma das tribos algonquinas, de traços fortes e audazes, mas certamente eles não estariam muito mais ao sul de suas costumeiras regiões de caça?

Os índios, por sua vez, o examinavam e trocaram um olhar que fez um calafrio percorrer sua espinha. Um deles disse alguma coisa ao outro, observando-o de esguelha para ver se ele entendia. O outro sorriu largamente para ele, exibindo dentes manchados e escuros.

- Tabaco? - o índio perguntou, estendendo a mão, palma para cima. William balançou a cabeça, tentando reduzir o ritmo de sua respiração, e enfiou a mão devagar dentro do casaco, a mão direita, para não ter que largar a frigideira na esquerda.

Era provável que aqueles dois soubessem o caminho de saída do pântano; ele devia estabelecer relações amistosas, e depois... Tentava pensar logicamente, mas suas faculdades inferiores interferiam. Suas faculdades inferiores achavam que ele devia sair correndo dali, e agora.

Retirando o embrulho de tabaco do casaco, atirou-o com todas as forças que conseguiu reunir no índio mais próximo, que começara a vir em sua direção, e saiu correndo.

Uma exclamação de surpresa atrás dele e em seguida o som de grunhidos e passadas. Suas faculdades inferiores, completamente justificadas em sua apreensão, instigavam-no a correr mais rápido, mas ele sabia que não conseguiria manter a velocidade por muito tempo; ser perseguido pela cobra havia consumido a maior parte das poucas forças que lhe restavam - e ser obrigado a correr com uma frigideira de ferro em uma das mãos não estava ajudando.

Sua melhor chance seria distanciar-se deles o suficiente para encontrar um esconderijo. Com essa ideia em mente, fez um esforço sobre-humano, arremetendo-se pelo terreno livre sob um bosquete de liquidâmbares, depois se desviando abruptamente para dentro de outro bosquete de zimbros, emergindo outra vez quase imediatamente em uma trilha de animais de caça. Hesitou por um instante - se esconder no mato? - , mas a ânsia de continuar correndo era avassaladora e ele arremeteu-se pela trilha estreita, trepadeiras e galhos açoitando suas roupas.

Ouviu os porcos a tempo, graças a Deus. Grunhidos e fungadas de surpresa, e um grande farfalhar de moitas e barulho de patas chafurdando na lama, conforme um bando de corpos pesados se colocava atabalhoadamente de pé. Ele sentiu o cheiro de lama morna e o fedor de porcos; devia haver um lamaçal depois da curva da trilha.

- Droga - disse baixinho, e saltou da trilha para dentro do mato. Santo Deus, e agora? Subir em uma árvore? Respirava pesadamente, o suor escorrendo para dentro de seus olhos.

Todas as árvores próximas eram zimbros, algumas bastante grandes, mas densas e retorcidas, impossíveis de escalar. Circundou uma delas e agachou-se atrás, tentando acalmar sua respiração.

Seu coração martelava nos ouvidos, nunca ouviria quem o estivesse perseguindo. Algo tocou em sua mão e ele girou a frigideira com força em reflexo, ficando de pé num salto.

O cachorro soltou um ganido de surpresa quando a panela passou de raspão em seu flanco, depois arreganhou os dentes e rosnou para ele.

- Que diabos você está fazendo aqui? - William sibilou para ele. Maldição, o bicho era do tamanho de um pônei!

Os pelos do pescoço do animal se eriçaram, fazendo-o se parecer exatamente com um lobo - meu Deus, não podia ser um lobo, podia? - e ele começou a latir.

- Cale-se, pelo amor de Deus! - Mas era tarde demais; podia ouvir vozes de índios, agitadas e muito próximas. - Parado - ele sussurrou, estendendo a palma da mão para o cachorro enquanto recuava devagar. - Parado. Bom cachorro.

O cachorro não parou, mas seguiu-o, continuando a rosnar e latir. O barulho perturbou ainda mais os porcos; ouviu-se uma trovoada de cascos ao longo do caminho e uma exclamação de surpresa de um dos índios.

William vislumbrou um lampejo de movimento pelo canto do olho e girou nos calcanhares, a arma na mão. Um índio muito alto pestanejou para ele. Droga, mais índios.

- Quieto, cachorro - disse o índio suavemente, com um claro sotaque escocês. William também pestanejou.

O cachorro, de fato, parou de latir, embora continuasse a cercá-lo, assustadoramente próximo e rosnando o tempo todo.

- Quem - William começou, mas foi interrompido pelos dois primeiros índios, que nesse momento surgiram repentinamente do mato. Pararam abruptamente ao verem o recém-chegado e lançaram um olhar cauteloso para o cachorro, que voltou sua atenção para eles, franzindo o focinho e exibindo uma impressionante fileira de dentes brilhantes.

Um dos índios originais disse alguma coisa rispidamente para o recém-chegado - graças a Deus, não estavam juntos. O índio alto retrucou, em um tom de voz distintamente pouco amistoso. William não fazia a menor ideia do que ele dissera, mas os outros dois não gostaram. Seus rostos se anuviaram e um deles levou a mão impulsivamente ao tacape. O cachorro fez uma espécie de som gorgolejante na garganta e a mão se abaixou imediatamente.

Os dois índios originais pareciam dispostos a argumentar, mas o índio alto os calou, dizendo alguma coisa em tom de ordem e fazendo um gesto com a mão que claramente dizia: "Caiam fora daqui!" Os outros dois trocaram um olhar e William, empertigando-se, postou-se ao lado do índio alto e fitou-os furiosamente. Um deles lhe devolveu o olhar maligno, mas seu amigo olhou pensativamente do índio alto para o cachorro e sacudiu a cabeça, o movimento quase imperceptível. Sem mais nenhuma palavra, os dois viraram-se e foram embora.

As pernas de William tremiam, ondas de calor da febre percorrendo seu corpo. Apesar da relutância em se aproximar mais do nível do cachorro do que o necessário, ele sentou-se no chão. Seus dedos haviam se enrijecido, de apertar com tanta força o cabo da frigideira. Com certa dificuldade, abriu-os e colocou a panela no chão a seu lado.

- Obrigado - ele disse, passando a manga do casaco pelo rosto suado. - Você... fala inglês?

- Já conheci ingleses que diriam que não, mas acho que você talvez me compreenda, ao menos. - O índio sentou-se a seu lado, olhando-o com curiosidade.

- Santo Deus - William disse - , você não é um índio. - Aquele sem dúvida não era um rosto algonquino. Vendo com clareza agora, o sujeito era muito mais jovem do que ele pensara, talvez apenas um pouco mais velho do que ele próprio, e obviamente um homem branco, apesar de sua pele ser bronzeada e ele usar tatuagens no rosto, uma linha dupla de pontos que faziam um semicírculo nas maçãs do rosto. Vestia perneiras e camisa de couro, e usava um incongruente xale escocês de xadrez vermelho e preto sobre um dos ombros.

- Sou, sim - o sujeito disse secamente. Ergueu o queixo, indicando a direção tomada pelos índios. - Onde você se deparou com aqueles dois?

- Na margem do lago. Eles pediram o tabaco e eu... dei para eles. Mas eles vieram atrás de mim, não sei por quê.

O sujeito deu de ombros.

- Pensaram em levá-lo para oeste e vendê-lo como escravo nas terras dos shawnees. - Sorriu ligeiramente. - Ofereceram-me metade do seu preço.

William respirou fundo.

- Muito obrigado, então. Quero dizer, suponho que não tenha nenhuma intenção de fazer a mesma coisa, não é?

O sujeito não riu alto, mas emitiu um ruído bem-humorado.

- Não. Eu não vou para oeste. William começou a se sentir um pouco melhor, apesar do calor de seus esforços estar começando a dar lugar a calafrios outra vez. Abraçou os joelhos com força. Seu braço direito começara a doer novamente.

- Você não... Acha que eles podem voltar?

- Não - o sujeito disse, descontraidamente. - Eu disse a eles para irem embora.

William olhou fixamente para o estranho.

- E por que acha que eles farão o que você mandou?

- Porque eles são mingos - o sujeito respondeu pacientemente - e eu sou kahnyen'kehaka, um mohawk. Eles têm medo de mim.

William lançou-lhe um olhar desconfiado, mas o sujeito não parecia estar mentindo. Ele era quase tão alto quanto o próprio William, mas magro como uma vara, os cabelos castanho-escuros alisados para trás com gordura de urso. Parecia competente, mas não alguém que inspirasse medo.

O sujeito o analisava com igual interesse. William tossiu e limpou a garganta, em seguida estendeu a mão.

- Seu criado, senhor. Sou William Ransom.

- Oh, eu o conheço muito bem - o sujeito disse, um tom estranho na voz. Ele estendeu a mão e apertou a de William com firmeza. - Ian Murray. Já nos encontramos. - Seus olhos viajaram pelas roupas sujas e estraçalhadas de William, seu rosto suado e arranhado, e suas botas cobertas de lama. - Parece um pouco melhor do que da última vez que o vi, mas não muito.

Murray tirou a chaleira de acampamento do fogo e depositou-a no chão. Colocou a faca nas brasas por um instante, em seguida mergulhou a lâmina quente na frigideira, agora cheia de água. O metal quente chiou e liberou nuvens de vapor.

- Pronto? - ele perguntou.

- Sim. William ajoelhou-se junto a um grande tronco de choupo caído e estendeu o braço em cima da madeira. Estava visivelmente inchado, uma grande farpa remanescente sob a pele formando uma saliência escura, a pele ao redor distendida e transparente de pus, dolorosamente inflamada.

O mohawk - não conseguia ainda pensar nele de nenhuma outra forma, apesar do nome e do sotaque - olhou para ele do outro lado do tronco, as sobrancelhas erguidas interrogativamente.

- Foi você que eu ouvi? Gritando, antes? - Ele segurou o pulso de William.

- Eu gritei, sim - William disse, tenso. - Uma cobra me atacou. - Oh. - A boca de Murray torceu-se um pouco.

- Você berra como uma menina - ele disse, os olhos retornando ao trabalho. A faca foi pressionada para baixo.

William fez um ruído profundamente visceral.

- Sim, melhor - Murray disse. Ele sorriu brevemente, como se para si mesmo, e segurando com firmeza o pulso de William fez uma incisão precisa na pele ao lado da farpa, abrindo-a por cerca de quinze centímetros. Virando a pele para trás com a ponta da faca, lançou a lasca grande para fora, em seguida retirou delicadamente as farpas menores que o estilhaço de cipreste havia deixado para trás.

Uma vez removido o máximo possível, ele enrolou uma ponta de seu xale esfarrapado ao redor do cabo da chaleira, pegou-a e despejou a água fervente no ferimento aberto.

William emitiu um som muito mais visceral, desta vez acompanhado de palavrões.

Murray sacudiu a cabeça e estalou a língua em reprovação.

- Sim, bem. Imagino que vou ter que impedir que você morra, porque, se você morrer, provavelmente vai para o inferno, usando uma linguagem assim.

- Não pretendo morrer - William disse laconicamente. Respirava com força e enxugou a testa com o braço livre. Ergueu o outro cuidadosamente e sacudiu a água tingida de sangue das pontas de seus dedos, embora a sensação resultante o tenha deixado zonzo. Sentou-se no tronco, um pouco abruptamente.

- Coloque a cabeça entre os joelhos, se estiver tonto - Murray sugeriu.

- Não estou tonto. Não houve resposta a isso, salvo o som de mascar. Enquanto esperava a chaleira ferver, Murray vadeou pela água e arrancou vários punhados de uma erva de cheiro forte que crescia perto da margem. Agora, estava no processo de mastigar as folhas, cuspindo a massa verde resultante em um pedaço de pano. Extraindo uma cebola um pouco murcha do bornal que carregava, cortou uma fatia generosa e examinou criticamente, mas achou que poderia ser usada sem mastigação. Acrescentou-a ao seu emplastro, dobrando o pano cuidadosamente sobre o conteúdo.

Colocou a compressa sobre o ferimento e amarrou-a no lugar com tiras de pano rasgadas da fralda da camisa de William.

Murray ergueu os olhos para ele pensativamente.

- Imagino que você seja muito teimoso, não?

William olhou fixamente para o escocês, desconcertado com a observação, embora na realidade tenha ouvido repetidamente, de amigos, parentes e superiores militares, que sua intransigência um dia iria matá-lo. Certamente isso não transparecia em seu rosto!

- O que quer dizer com isso?

- Não tive intenção de insultá-lo - Murray disse suavemente, inclinando-se para apertar o nó da atadura improvisada com os dentes. Virou-se e cuspiu alguns fiapos. - Espero que seja, porque vai ser uma boa distância até encontrarmos ajuda para você e, se você for bastante teimoso para não morrer comigo, seria bom, eu acho.

- Eu disse que não pretendo morrer - William assegurou-lhe. - E não preciso de ajuda. Onde... estamos perto de Dismal Town?

Murray franziu os lábios.

- Não - ele disse, levantando uma das sobrancelhas. - Estava indo para lá?

William pensou por um instante, mas balançou a cabeça, confirmando. Certamente, não havia nenhum mal em contar-lhe isso.

Murray ergueu uma das sobrancelhas.

- Por quê?

- Eu... tenho uns negócios com alguns senhores de lá. - Enquanto dizia isso, o coração de William deu um salto. Santo Deus, o livro! Ficara tão atarantado com suas diversas experiências e aventuras que a verdadeira importância dessa perda nem sequer lhe ocorrera.

Além do seu valor geral como entretenimento e sua utilidade como palimpsesto para suas próprias meditações, o livro era vital para a sua missão. Continha várias passagens cuidadosamente assinaladas cujo código lhe dava os nomes e endereços dos homens que ele devia visitar - e mais importante ainda, o que deveria lhes dizer. Podia se lembrar de muitos nomes, pensou, mas quanto ao resto...

Sua consternação foi tão grande que ofuscou o latejamento em seu braço e ele levantou-se abruptamente, dominado pela ânsia de correr de volta para dentro do Great Dismal e começar a vasculhá-lo, centímetro por centímetro, até recuperar o livro.

- Você está bem, rapaz? - Murray levantara-se também e olhava para ele com uma combinação de curiosidade e preocupação.

- Eu... sim. É que... lembrei-me de uma coisa, só isso.

- Bem, pense nisso sentado, hein? Você está quase caindo dentro da fogueira.

De fato, a visão de William iluminara-se e pontos pulsantes obscureciam a maior parte do rosto de Murray, embora o ar de preocupação ainda fosse visível.

- Eu... sim. - Sentou-se ainda mais abruptamente do que se levantara, um suor frio e repentino cobrindo seu rosto. A mão de Murray em seu braço bom forçou-o a se deitar, e ele o fez, achando indistintamente que isso era preferível a desmaiar.

Murray fez um ruído escocês de consternação e murmurou alguma coisa incompreensível. William podia sentir o sujeito pairando acima dele, em dúvida.

- Estou bem - ele disse, sem abrir os olhos. - Eu... só... preciso descansar um pouco.

- Mmmmhum. William não sabia dizer se esse ruído em particular significava resignação ou temor, mas Murray se afastou, voltando instantes depois com um cobertor, com o qual cobriu William sem comentários. William fez um gesto débil de agradecimento, incapaz de falar, já que seus dentes haviam começado a bater com um frio repentino.

Seus músculos já doíam há algum tempo, mas ele ignorara o problema diante da necessidade de continuar avançando. Agora, o peso da exaustão se abatia em cheio sobre ele, uma dor que atingia os ossos e o fazia querer gemer em voz alta. Para não fazer isso, esperou até os calafrios diminuírem o suficiente para ele conseguir falar e, então, chamou Murray.

- O senhor conhece Dismal Town? Já esteve lá?

- Uma vez ou outra, sim. - Ele podia ver Murray, uma silhueta escura agachada junto à fogueira, e ouvir os tinidos de metal sobre pedra. É um lugar triste e funesto, como o nome quer dizer. Bem apropriado.

- Ah - William disse debilmente. - Imagino que sim. E c-c-conheceu um sr. Washington, por acaso?

- Uns cinco ou seis. O general tem muitos primos, sabe? - O g-g-g...

- General Washington. Ouviu falar dele? - Havia um distinto tom de humor na voz do escocês-mohawk.

- Já, sim. Mas... certamente isso... - Não fazia sentido. Sua voz definhou e ele se esforçou para fazer seus pensamentos desconexos voltarem à coerência. - É um sr. Henry Washington. Ele também é parente do general?

- Até onde eu saiba, qualquer um chamado Washington num raio de quinhentos quilômetros é parente do general. - Murray inclinou-se para sua sacola, tirando dali um grande volume peludo, uma cauda longa e pelada pendurada. - Por quê?

- Eu... nada. - Os calafrios haviam amainado e ele respirou fundo, os músculos contraídos de sua barriga relaxando-se. Mas os débeis fios de fadiga estavam se fazendo sentir através do atordoamento e do nevoeiro cada vez mais denso da febre. - Alguém me disse que o sr. Henry Washington era um eminente legalista.

Murray virou-se para ele, atônito.

- Quem, em nome de Brígida, lhe diria isso?

- Obviamente, alguém muito enganado. - William pressionou as bases de suas mãos contra os olhos. O braço ferido doía. - O que é isso? Gambá?

Gato-do-mato. Não se preocupe; está fresco. Eu o matei pouco antes de encontrar você.

- Oh. Ótimo. - Sentiu-se obscuramente reconfortado e não conseguiu saber por quê. Não por causa do gato-do-mato; ele já havia comido gato-do-mato várias vezes e achava a carne saborosa, apesar de a febre ter tirado seu apetite. Sentia-se fraco de fome, mas sem nenhuma vontade de comer. Oh. Não, foi o "Não se preocupe". Falado naquele mesmo tom prático e gentil. O cavalariço Mac costumava dizer isso para ele, muitas vezes, quer o problema fosse ter sido jogado para fora da sela do seu pônei ou não ter tido permissão para acompanhar seu avô à cidade. "Não se preocupe; vaificar tudo bem."

O som de pele arrancada dos músculos subjacentes o deixou momentaneamente zonzo e ele cerrou os olhos.

- Você tem barba ruiva. A voz de Murray chegou até ele, cheia de surpresa.

- Só agora você notou isso? - William disse contrariado, e abriu os olhos. A cor de sua barba era um constrangimento para ele; enquanto os cabelos na cabeça, no peito e nos membros eram de um decente tom castanho-escuro, no seu queixo e em suas partes privadas era de um tom inesperadamente vívido que o mortificava. Ele se barbeava meticulosamente, mesmo a bordo de um navio ou na estrada - mas sua navalha, é claro, fora embora com o cavalo.

- Bem, sim - Murray disse indulgentemente. - Acho que eu estava distraído antes. - Fez silêncio, concentrando-se em seu trabalho, e William tentou relaxar sua mente, esperando dormir um pouco. Estava muito cansado. Porém, imagens recorrentes do pântano brincavam diante de seus olhos fechados, cansando-o com visões que ele nem podia ignorar, nem repudiar.

Raízes como laços de armadilhas, lama, fétidas massas marrons de fezes de porco frias, estranhamente semelhantes a fezes humanas... folhas mortas amassadas...

Folhas mortas flutuando na água como vidro marrom, reflexos estilhaçando-se ao redor de suas pernas... palavras na água, as páginas de seu livro, quase apagadas, zombando dele conforme afundavam...

Erguendo os olhos, o céu tão vertiginoso quanto o lago, sentindo que ele poderia cair para cima tão facilmente quanto para baixo, e se afogar no ar encharcado de água... se afogando em seu suor... uma jovem lambia o suor de seu rosto, fazendo cócegas, seu corpo pesado, quente e farto, de modo que ele se contorcia e se virava, mas não conseguia escapar das opressivas atenções...

..O suor se acumulando atrás de suas orelhas, espesso e gorduroso em seus cabelos... crescendo como pérolas lentas e gordas nos pelos espetados de sua barba... esfriando-se sobre sua pele, suas roupas uma mortalha encharcada... A mulher continuava lá, morta agora, um peso morto sobre seu peito, prendendo-o no chão gelado...

Névoa e o frio insinuante... dedos brancos espionando dentro de seus olhos, de suas orelhas. Precisava manter a boca fechada ou ela entraria dentro dele... Tudo branco.

Curvou-se em uma bola, tremendo. William, por fim, caiu mais fundo em um sono agitado, do qual acordou algum tempo mais tarde com o cheiro delicioso de gato-do-mato assado, e se deparou com o enorme cachorro deitado, pressionado contra ele, roncando.

- Santo Deus - exclamou, com desconcertantes lembranças da jovem em seus sonhos. Empurrou o cachorro devagar. - De onde veio isso?

- Esse é Rollo - Murray disse com reprovação. - Eu o fiz se deitar junto a você para lhe dar um pouco de calor; você está com uma tremedeira de febre, caso não tenha notado.

- Sim, notei. - William esforçou-se para se sentar e comer, mas ficou feliz quando se deitou outra vez, a uma distância segura do cachorro, que agora estava deitado de costas, as patas caídas para os lados, parecendo apenas um inseto, gigantesco e peludo, morto. William passou a mão pelo rosto pegajoso, tentando remover aquela imagem perturbadora de sua mente antes que ela se infiltrasse em seus sonhos febris novamente.

A noite caíra completamente e o céu abrira-se no alto, amplo, límpido e vazio, sem lua, mas brilhante com as estrelas distantes. Pensou no pai de seu pai, morto muito antes de seu próprio nascimento, mas um famoso astrônomo amador. Seu pai muitas vezes o levara - e às vezes sua mãe - para se deitarem no gramado de Helwater e ficar olhando as estrelas, nomeando as constelações. Era uma visão fria, aquela vastidão negro-azulada, e fazia seu sangue febril tremer, mas ainda assim as estrelas eram um consolo.

Murray também estava olhando para cima, um ar distante no rosto tatuado. William recostou-se contra o tronco de árvore, tentando pensar. O que deveria fazer em seguida? Ainda estava tentando absorver a notícia de que Henry Washington e, portanto, presumivelmente, o resto de seus contatos em Dismal Town eram rebeldes. Aquele estranho escocês mohawk estaria certo no que dissera? Ou pretendia confundi-lo, por alguma razão própria?

Mas qual seria ela? Murray não podia fazer a menor ideia de quem William era, além de seu nome e do nome de seu pai. E lorde John fora um cidadão civil quando se encontraram há anos, em Fraser's Ridge. Murray não podia saber, sem dúvida, que William era um soldado, muito menos um homem da inteligência militar, e certamente não podia conhecer sua missão. E se ele não queria enganá-lo e estivesse certo no que dizia... William engoliu em seco, a boca seca e pegajosa. Depois, ele escapara por pouco. O que poderia ter acontecido se ele tivesse se deparado com um ninho de rebeldes, em um lugar remoto como Dismal Town, e despreocupadamente se revelado e à sua missão? Eles o enforcariam da árvore mais próxima, seu cérebro respondeu friamente, e atirariam seu corpo no pântano. O que mais?

O que levou a um pensamento ainda mais desconfortável: como o capitão Richardson podia estar tão enganado em suas informações?

Sacudiu a cabeça violentamente, tentando ordenar os pensamentos, mas o único resultado foi deixá-lo tonto outra vez. O movimento atraíra a atenção de Murray; ele olhou na direção de William e William falou, impulsivamente.

- Você disse que é um mohawk.

- Sou. Vendo aquele rosto tatuado, os olhos escuros nas órbitas, William não duvidou.

- Como isso aconteceu? - ele perguntou apressadamente, com receio de que Murray pensasse que ele estava lançando dúvidas sobre a verdade do outro. Murray hesitou visivelmente, mas respondeu.

- Casei-me com uma mulher dos kahnyen'kehaka. Fui adotado no clã do Lobo do povo de Snaketown.

- Ah. Sua... mulher está...

- Não sou mais casado. - Não foi dito com nenhum tom de hostilidade, mas de uma maneira tão conclusiva que não dava margem a mais nenhuma conversa.

- Sinto muito - William disse formalmente, e calou-se. Os calafrios começavam a voltar e, apesar de sua relutância, deitou-se outra vez, puxou o cobertor até as orelhas e aconchegou-se junto ao cachorro, que suspirou profundamente e soltou uma sonora flatulência, mas não se mexeu.

Quando a febre finalmente arrefeceu outra vez, ele resvalou para os sonhos outra vez, agora violentos e terríveis. Sua mente de algum modo se voltara para os índios e ele era perseguido por selvagens que se transformavam em cobras, cobras que se transformavam em raízes de árvores, que se contorciam pelas fissuras de seu cérebro, fazendo seu crânio rachar, liberando novos ninhos de cobras, que se enroscavam como laços de armadilhas...

Acordou novamente, banhado de suor e dolorido até os ossos. Tentou se levantar, mas verificou que seus braços não iriam aguentar seu peso. Alguém se ajoelhou a seu lado - era o escocês, o mohawk... Murray. Localizou o nome com certo alívio e com mais alívio ainda percebeu que Murray pressionava um cantil em seus lábios.

Era água do lago; reconheceu seu gosto estranho e amargo, mas fresco, e bebeu avidamente.

- Obrigado - disse com voz rouca, devolvendo o cantil vazio. A água lhe dera forças suficientes para ele se sentar. Sua cabeça ainda estava zonza de febre, mas os sonhos haviam cessado, ao menos por enquanto. Imaginava que espreitassem logo depois do pequeno círculo de luz lançado pelo fogo, à espera, e resolvidos a não deixá-lo dormir outra vez - não imediatamente.

A dor em seu braço piorara; uma sensação ardente, repuxando, e um latejamento que se estendia da ponta dos dedos ao meio do braço. Ansioso para manter tanto a dor quanto a noite a distância, fez nova tentativa de entabular conversa.

- Ouvi dizer que os mohawks acham efeminado demonstrar medo; que, se capturado e torturado por um inimigo, não demonstram nenhum sinal de angústia. É verdade?

- Você tenta não se colocar nessa posição - Murray disse, secamente. - Mas se acontecer... você tem que mostrar coragem, só isso. Você canta a sua canção da morte e espera morrer bem. E é diferente para um soldado inglês? Você não quer morrer como um covarde, não é?

William observou os desenhos bruxuleantes por trás de suas pálpebras cerradas, quentes e sempre mudando de forma, de acordo com o fogo.

- Não - ele admitiu. - E não é muito diferente, a esperança de morrer bem se for inevitável, quero dizer. Mas provavelmente é mais uma questão de levar um tiro ou uma pancada na cabeça, sabe, se você é um soldado. Em vez de ser torturado até a morte, pouco a pouco. A não ser que você se meta em problemas com um selvagem, creio. O que... Você já viu alguém morrer assim? - perguntou com curiosidade, abrindo os olhos.

Murray estendeu um braço comprido para virar o espeto, sem responder imediatamente. A luz do fogo mostrou seu rosto, indecifrável.

- Sim, já - ele disse serenamente, por fim.

- O que fizeram a ele? - Não sabia ao certo por que perguntara; talvez apenas como forma de distração do latejamento em seu braço.

- Você não vai querer saber. - Isso foi dito de forma muito decisiva; Murray não estava de forma alguma incitando-o a fazer mais perguntas. No entanto, teve o mesmo efeito; o vago interesse de William aguçou-se imediatamente.

- Quero, sim. Murray apertou os lábios, mas William sabia algumas maneiras de extrair informações a essa altura e foi bastante inteligente para manter-se em silêncio, meramente mantendo os olhos fixos no homem à sua frente.

- Tiraram sua pele - Murray disse finalmente e remexeu as brasas com uma vareta. - Um deles. Pedacinho por pedacinho. Atiraram lascas incandescentes de pinheiro na carne viva. Deceparam suas partes íntimas. Depois, armaram uma fogueira ao redor de seus pés, para queimá-lo vivo, antes que morresse de choque. Isso... levou algum tempo.

- Imagino. - William tentou evocar uma cena dos procedimentos, e com tanto sucesso que desviou os olhos da carcaça do gato-do-mato enegrecido, descarnado até os ossos.

Fechou os olhos. Seu braço continuava a latejar a cada batida do seu coração e ele tentou não imaginar a sensação de lascas incandescentes enfiadas em sua carne.

Murray ficou em silêncio; William não conseguia nem sequer ouvir sua respiração. Mas ele sabia, com tanta certeza como se estivesse dentro da cabeça do outro, que ele, também, estava imaginando a cena - embora no caso dele não fosse necessário imaginação. Ele estaria revivendo a cena.

William remexeu-se um pouco, provocando uma dor abrasadora em seu braço, e cerrou os dentes, para não fazer nenhum ruído.

- Os homens... você mesmo, eu deveria dizer... pensou como se sairia nessa situação? - perguntou serenamente. - Se conseguiria aguentar?

- Todo homem pensa nisso. - Murray levantou-se abruptamente e dirigiu-se ao outro lado da clareira. William o ouviu urinar, mas ele ainda se demorou mais alguns minutos antes de voltar.

O cachorro acordou repentinamente, levantando a cabeça, e balançou sua enorme cauda devagar de um lado para o outro ao ver seu dono. Murray riu baixinho e disse alguma coisa em uma língua estranha - mohawk? gaélico? - para o cachorro, depois abaixou-se e arrancou um quarto traseiro dos restos do gato-do-mato, atirando-o para o animal. O cachorro ergueu-se como um raio, os dentes fechando-se sobre a carcaça, em seguida saiu trotando alegremente para o outro lado do fogo e sentou-se, lambendo sua presa.

Despojado de seu companheiro de cama, William esticou-se cuidadosamente, a cabeça apoiada sobre o braço bom, e observou enquanto Murray limpava sua faca, tirando o sangue e a gordura com tufos de capim.

- Você disse que canta sua canção da morte. Que tipo de canção é essa? Murray pareceu desconcertado. - Quero dizer - William procurou ser mais claro - , que tipo de coisa você... alguém... diria em uma canção da morte?

- Oh. - O escocês abaixou os olhos para as mãos, os dedos longos e nodosos deslizando devagar pela lâmina. - Só a ouvi uma vez, veja bem. Os outros dois que eu vi morrer dessa forma... eram homens brancos e não tinham canções da morte, propriamente. O índio, ele era um onondaga, ele... bem, havia muita coisa no começo sobre quem ele era: um guerreiro de qual povo, quero dizer, e seu clã, sua família. Depois, bastante sobre o quanto ele desprezava o povo que estava prestes a matá-lo. - Murray limpou a garganta. - Um pouco sobre o que ele fizera: suas vitórias, os guerreiros valorosos que matara e como o receberiam bem na morte. Então... como ele pretendia atravessar o... - tateou em busca de uma palavra - ...o caminho entre aqui e o que existe depois da morte. A divisa, imagino que você diria, mas a palavra significa algo mais como um abismo.

Ele ficou em silêncio por um instante, mas não como se tivesse terminado - mais como se tentasse se lembrar de algo exatamente. Empertigou-se repentinamente, respirou fundo e, com os olhos cerrados, começou a recitar algo que William achou ser na língua mohawk. Era fascinante - toques ritmados de "n"s, "r"s e "t"s, como batidas de tambor.

- Depois, vinha uma parte que falava sobre as terríveis criaturas que ele encontraria a caminho do paraíso - Murray disse, num rompante. - Coisas como cabeças voadoras, com dentes.

- Cruzes - William disse, e Murray riu, tomado de surpresa.

- Sim. Eu mesmo não gostaria de ver uma dessas. William pensou nisso por alguns instantes.

- Você compõe sua própria canção da morte com antecedência, para o caso de ser necessária, quero dizer? Ou apenas confia na, hum, inspiração do momento?

Murray pareceu um pouco desconcertado com isso. Pestanejou e olhou para o lado.

- Eu... bem... não se fala muito sobre isso, sabe? Mas, sim, eu realmente tive um ou dois amigos que me disseram um pouco sobre o que haviam pensado, no caso de haver uma necessidade.

- Hum. - William virou-se de costas, olhando para as estrelas. - Você só canta uma canção da morte se estiver sendo torturado até a morte? E se você estiver apenas doente, mas ache que vai morrer?

Murray parou o que estava fazendo e espreitou-o, desconfiado.

- Você não está morrendo, está?

- Não, só pensando - William assegurou-lhe. Não achava que estivesse morrendo.

- Mmmmhum - o escocês disse, em dúvida. - Sim, bem. Não, você canta sua canção da morte se tiver certeza de que está prestes a morrer, não importa como.

- Mais crédito para você, entretanto - William sugeriu - , se o fizer enquanto estiverem enfiando farpas em brasa em você, não é?

O escocês riu alto e de repente se pareceu bem menos com um índio. Passou os nós dos dedos pela boca.

- Para ser franco... O onondaga... não sei se ele fez isso muito bem - Murray disse repentinamente. - Mas não parece direito criticar. Quero dizer, não posso dizer que eu faria melhor... nas circunstâncias.

William riu, também, mas em seguida ambos silenciaram. William achou que Murray estivesse, como ele estava, imaginando-se nessa situação, amarrado a uma estaca, prestes a sentir uma terrível tortura. Ergueu os olhos para a vastidão do céu, tentando compor alguns versos: Sou William Clarence Henry George Ransom, Conde de... Não, ele nunca gostara de sua fileira de nomes. Sou William... pensou, indistintamente. William...James... James era seu nome secreto; há anos não pensava nele. Mas era melhor do que Clarence. Eu sou William. O que mais havia a dizer? Não muito, ainda. Não, era melhor ele não morrer, não até que tivesse feito alguma coisa que valesse uma canção da morte adequada.

Murray permaneceu em silêncio, o fogo refletido em seus olhos sombrios. Observando-o, William pensou que o escocês mohawk devia ter sua própria canção da morte pronta há algum tempo. Logo adormeceu ao som dos estalidos da fogueira e à tranquila mastigação de ossos, ardendo em febre, mas corajoso. Ele vagava através de uma névoa de sonhos torturantes envolvendo ser perseguido por serpentes negras por uma ponte oscilante e infindável sobre um abismo sem fundo. Cabeças voadoras amarelas, com olhos nas cores do arco-íris, atacavam-no em bandos, seus dentes minúsculos, afiados como os de um rato, perfurando sua carne. Agitou um braço para afastá-las, e a dor que dardejou pelo seu braço com o movimento o acordou.

Ainda estava escuro, embora o ar límpido e frio lhe dissesse que o amanhecer não estava distante. O toque em seu rosto o fez estremecer, provocando um calafrio.

Alguém disse alguma coisa que ele não entendeu e, ainda emaranhado no miasma dos delírios febris, achou que devia ser uma das serpentes com que estivera falando antes de começarem a persegui-lo.

A mão de alguém tocou sua testa e um polegar grande levantou uma de suas pálpebras. Um rosto indígena flutuou em sua visão turva de sono, com um ar de interrogação.

Ele fez um ruído irritado e desviou a cabeça com um safanão, pestanejando. O índio disse alguma coisa, perguntando, e uma voz familiar respondeu. Quem... Murray. O nome pareceu estar flutuando junto a seu cotovelo e ele se lembrou vagamente de que o próprio Murray o acompanhara em seu sonho, repreendendo as serpentes com um forte sotaque escocês.

Mas ele não estava falando inglês agora, nem mesmo a peculiar língua escocesa das Highlands. William forçou sua cabeça a se virar, apesar de seu corpo ainda estremecer de frio.

Havia vários índios agachados ao redor da fogueira, sem se sentar no chão para manter o traseiro fora do capim molhado de sereno. Um, dois, três... seis ao todo. Murray estava sentado no tronco com um deles, conversando.

Não, sete. Outro homem, o que havia tocado nele, inclinou-se sobre ele, espreitando seu rosto.

- Acha que vai morrer? - o homem perguntou, com um leve ar de curiosidade.

- Não - William disse entre dentes cerrados. - Quem diabos é você? O índio pareceu achar a pergunta engraçada e gritou para seus amigos, aparentemente repetindo-a. Todos riram e Murray olhou em sua direção, levantando-se quando viu que William estava acordado.

- Kahnyen'kehaka - disse o homem que assomava acima dele, rindo. - Quem diabos é você?

- Ele é meu parente - Murray disse sucintamente, antes que William pudesse responder. Empurrou levemente o índio para o lado e agachou-se ao lado de William. - Ainda está vivo, hein?

- Evidentemente. - Lançou um olhar mal-humorado para Murray. - Não vai me apresentar aos seus... amigos?

O primeiro índio desatou a rir e aparentemente traduziu o que ele disse para os outros dois ou três que haviam se aproximado para espreitá-lo com interesse. Também acharam engraçado.

Murray não pareceu achar graça.

- Meus parentes - ele disse secamente. - Alguns deles. Quer água?

- Você tem muitos parentes... primo. Sim, por favor. Esforçou-se para se levantar, com a ajuda de um só braço, relutante em deixar o conforto pegajoso de seu cobertor úmido de sereno, mas obedecendo a uma necessidade inata que lhe dizia que ele precisava ficar em pé. Murray parecia conhecer bem esses índios, mas, parentes ou não, havia certa tensão na boca e nos ombros de Murray. E era bastante evidente que Murray lhes dissera que William era seu parente, porque se não dissesse...

Kahnyen'kehaka. Foi o que o índio disse quando perguntado quem ele era. Não era seu nome, William compreendeu de repente. Era o que ele era. Murray usara a palavra no dia anterior, quando mandou os dois mingos embora.

Sou kahnyen'kehaka, ele dissera. Um mohawk. Eles têm medo de mim. Ele dissera isso como afirmação de um simples fato e William preferiu não insistir no assunto, as circunstâncias sendo as que eram. Vendo o que evidentemente era um grupo de mohawks, pôde compreender a prudência dos mingos. Os mohawks tinham um ar de cordial ferocidade, sobre uma camada de confiança descontraída, inteiramente apropriada a alguém que estava preparado para cantar, ainda que mal, enquanto era emasculado e queimado vivo.

Murray entregou-lhe um cantil e ele bebeu sofregamente, depois despejou um pouco de água no rosto. Sentindo-se um pouco melhor, afastou-se para urinar, depois voltou e agachou-se junto à fogueira, entre dois dos selvagens, que o examinaram com franca curiosidade.

Somente o homem que levantara sua pálpebra parecia falar inglês, mas o resto balançou a cabeça para ele, reservados, mas bastante amistosos. William olhou para o outro lado do fogo e começou a recuar, quase perdendo o equilíbrio. Uma figura comprida, castanho-amarelada, jazia no capim do outro lado do fogo, a luz brilhando em seus flancos.

- Está morto - Murray disse secamente, vendo seu espanto. Todos os mohawks riram.

- Percebi - ele retrucou, igualmente seco, embora seu coração ainda martelasse com o choque. - Bem feito, se for o que pegou meu cavalo. - Agora que olhava melhor, percebia mais formas do outro lado da fogueira. Um pequeno veado, um porco, uma onça pintada e duas ou três garças, montículos brancos na grama escura. Bem, isso explica a presença dos mohawks no pântano: tinham vindo caçar, como todo mundo.

Amanhecia; o vento fraco agitava os cabelos úmidos em sua nuca e trazia até ele o cheiro acre de sangue e almíscar dos animais. Tanto sua mente quanto sua língua pareciam espessas e lentas, mas ele conseguiu dizer algumas palavras elogiosas pelo sucesso dos caçadores; ele sabia ser gentil. Murray, traduzindo por ele, pareceu surpreso, embora satisfeito, em descobrir que William tinha boas maneiras. William não se sentia bem o suficiente para se ofender.

A partir daí, a conversa se tornou geral, realizada em sua maior parte em mohawk. Os índios não demonstravam nenhum interesse em particular em Wiliam, embora o índio a seu lado lhe passasse um pedaço de carne fria com camaradagem. Ele fez um sinal com a cabeça em agradecimento e se forçou a comer, embora tivesse preferido engolir a sola de seu sapato. Sentia-se mal e pegajoso, e ao terminar de comer a carne balançou a cabeça educadamente para o índio a seu lado e foi se deitar outra vez, esperando não vomitar.

Vendo isso, Murray ergueu o queixo na direção de William e disse alguma coisa a seus amigos em mohawk, terminando com uma espécie de pergunta.

O índio que falava inglês, um sujeito baixo e troncudo, com uma camisa de lã xadrez e calças de camurça, deu de ombros em resposta, em seguida levantou-se e veio inclinar-se sobre ele outra vez.

- Mostre-me o braço - ele disse, e sem esperar a aquiescência de William pegou seu pulso e levantou a manga de sua camisa. William quase desmaiou.

Quando os pontos negros pararam de girar diante de seus olhos, viu que Murray e mais dois índios tinham vindo se juntar ao primeiro. Todos eles olhavam para seu braço exposto, francamente consternados. Ele não queria ver, mas arriscou uma olhadela. Seu antebraço estava grotescamente inchado, quase duas vezes o tamanho normal, e veios escuros, avermelhados, corriam de baixo do curativo firmemente atado até o pulso.

O índio que falava inglês - como Murray o chamara? Glutão, pensou, mas por quê? - tirou sua faca e cortou a bandagem. Somente com a remoção da constrição da atadura é que William percebeu o quanto era desconfortável. Reprimiu a vontade urgente de coçar o braço, sentindo o formigamento da circulação que retornava. Formigamento, maldição. Parecia que seu braço estava envolvido por um enxame de lava-pés, todos picando-o.

- Merda - exclamou, entre dentes. Todos os índios conheciam a palavra, evidentemente, pois todos gargalharam, exceto Glutão e Murray, que inspecionavam seu braço.

Glutão - ele não parecia gordo, por que era chamado assim? - cutucou seu braço com extremo cuidado, sacudiu a cabeça e disse algo a Murray, depois apontou na direção oeste.

Murray passou a mão pelo rosto, depois sacudiu a cabeça violentamente, como uma pessoa que tenta afastar a fadiga ou a preocupação. Em seguida, deu de ombros e perguntou alguma coisa ao grupo mais afastado. Uns balançaram a cabeça, outros deram de ombros, e vários homens se levantaram e se embrenharam na mata.

Uma série de perguntas girou devagar pelo cérebro de William, redondas e brilhantes como os globos de metal do planetário de seu avô na biblioteca da casa de Londres em Jermyn Street.

O que estão fazendo? O que está acontecendo? Estou morrendo? Estou morrendo como um soldado inglês? Por que ele... soldado inglês... Sua mente pegou a ponta dessa última, puxando-a para baixo para examiná-la melhor. "Soldado inglês" - quem dissera isso?

A resposta girou devagar até se colocar diante de seus olhos. Murray. Quando conversaram à noite... O que Murray havia dito?

"E é diferente para um soldado inglês? Você não quer morrer como um covarde, não é?"

- Não vou morrer de jeito nenhum - ele murmurou, mas sua mente o ignorou, determinada a averiguar esse pequeno mistério. O que Murray quisera dizer com isso? Teria falado teoricamente? Ou ele de fato reconhecera William como um soldado inglês?

Sem dúvida, não era possível. E o que ele dissera em resposta? O sol começava a surgir, a luz da aurora suficientemente brilhante para ferir seus olhos, apesar de branda como era. Apertou os olhos, concentrando-se.

"Não é muito diferente, a esperança de morrer bem, se for inevitável", ele dissera. Então, ele respondera como sendo um soldado inglês, droga.

No momento, ele não se importava realmente se morresse bem ou como um cachorro.... Onde estava o... oh, ali. Rollo cheirou seu braço, emitindo um pequeno ganido no fundo da garganta, depois encostou o focinho no ferimento e começou a lambê-lo. Foi uma sensação muito peculiar, mas estranhamente calmante, e ele não fez nenhum movimento para afastar o cachorro.

O que... oh, sim. Ele havia apenas respondido, sem notar o que Murray dissera. Mas e se Murray realmente soubesse quem - ou o quê - ele era? Uma pequena pontada de sobressalto penetrou na confusão de seus pensamentos arrastados. Murray já o estaria seguindo antes de ele entrar no pântano? Talvez o tivesse visto falando com o homem da fazenda perto da borda do pantanal e o tivesse seguido, pronto a interceptá-lo quando a oportunidade se oferecesse? Mas se isso fosse verdade...

O que Murray dissera sobre Henry Washington, sobre Dismal Town - seria mentira?

O índio atarracado ajoelhou-se a seu lado, afastando o cachorro. William não podia fazer nenhuma das perguntas que entupiam seu cérebro.

- Por que o chamam de Glutão? - ele perguntou, em vez disso, em meio a uma neblina de dor e febre.

O índio exibiu um largo sorriso e abriu a gola da camisa, revelando uma rede de cicatrizes altas que cobriam pescoço e peito.

- Matei um - ele disse. - Com as mãos. Meu espírito animal de proteção agora. Você tem um?

- Não. O índio olhou-o com reprovação. - Você precisa de um, se vai sobreviver a isso. Escolha um. Um bastante forte.

Confusamente obediente, William tateou através de imagens aleatórias de animais: porco... cobra... veado... gato-do-mato... não, fedidos demais.

- Urso - ele disse, escolhendo esse com determinação. Nenhum mais forte do que um urso, não é mesmo?

- Urso - o índio repetiu, balançando a cabeça. - Sim, este é bom. - Ele cortou a manga da camisa de William com a faca; o tecido já não se ajustava facilmente sobre o braço inchado. A luz do sol inundou-o repentinamente, refletindo-se, prateada, da lâmina da faca. Ele olhou para William então e riu.

- Você tem uma barba muito ruiva, Ursinho, sabe disso?

- Sim, sei - William disse, e fechou os olhos contra as lanças da luz da manhã.

Glutão queria a pele do gato-do-mato, mas Murray, alarmado com as condições de William, recusou-se a esperar que ele a preparasse. O resultado da discussão foi que William se viu ocupando um travois apressadamente construído, lado a lado com o felino morto, sendo arrastado pelo terreno irregular, atrás do cavalo de Murray. Seu destino, pelo que pôde perceber, era um vilarejo a uns quinze quilômetros de distância, que tinha um médico.

Glutão e dois dos outros mohawks os acompanhavam para mostrar o caminho, deixando os demais companheiros continuando a caçada.

O gato-do-mato fora estripado, o que William imaginava que era melhor do que se não tivesse sido - o dia estava cada vez mais quente - , mas o cheiro de sangue atraía enxames de moscas, que se banqueteavam sem nenhuma pressa, uma vez que o cavalo, sobrecarregado com o travois, não conseguia deixá-las para trás. As moscas zumbiam e zuniam, um som agudo junto aos ouvidos, deixando seus nervos à flor da pele, e, embora muitas estivessem interessadas no animal, tantas resolviam experimentar o gosto de William que ele até se esquecia do braço.

Quando os índios paravam para urinar e beber água, eles içavam William, colocando-o de pé - um alívio, mesmo vacilante como ele estava. Murray olhou para suas feições mordidas de mosquitos e queimadas do sol, e enfiou a mão na bolsa de pele pendurada na cintura; retirou dali uma latinha amassada, contendo um unguento extremamente malcheiroso, com o qual untou William generosamente.

- Só faltam oito ou nove quilômetros - ele assegurou a William, que não havia perguntado.

- Oh, ótimo - William disse, com todo o vigor que conseguiu reunir. - Não é o inferno, então, afinal de contas; apenas o purgatório. O que são mais mil anos?

Isso fez Murray rir, apesar de Glutão o ter olhado com perplexidade.

- Você vai conseguir - Murray disse, dando um tapinha em seu ombro. - Quer caminhar um pouco?

- Oh, por Deus, quero. Sua cabeça girava, seus pés recusavam-se a apontar para frente e seus joelhos pareciam dobrar em direções inesperadas, mas qualquer coisa era melhor do que mais uma hora de convivência com as moscas que cobriam os olhos vidrados e a língua seca do gato-do-mato. Apoiando-se em um vigoroso galho cortado de uma muda de carvalho, avançava penosa e obstinadamente atrás do cavalo, alternadamente banhado de suor e tremendo com calafrios viscosos, mas determinado a se manter em pé, a menos que realmente caísse.

O unguento de fato manteve as moscas a distância - todos os índios estavam igualmente untados - e, quando não estava lutando com os tremores, ele caía em uma espécie de transe, preocupado apenas em colocar um pé adiante do outro.

Os índios e Murray ficaram de olho nele durante algum tempo, depois, porém, satisfeitos de ver que ele conseguia se manter em pé, retornaram às suas próprias conversas. Ele não conseguia entender os dois índios que falavam em mohawk, mas Glutão parecia estar interrogando Murray rigorosamente em relação à natureza do purgatório.

Murray tinha alguma dificuldade em explicar o conceito, aparentemente devido ao fato de o mohawk não ter nenhuma noção de pecado ou de um Deus preocupado com as fraquezas do homem.

- Você tem sorte de ter se tornado um kahnnyen'kehaka Glutão disse finalmente, sacudindo a cabeça. - Um espírito que não está satisfeito com o fato de um homem mau estar morto, mas ainda quer torturá-lo após a morte? E os cristãos acham que somos cruéis!

- Sim, bem - Murray retrucou - , mas pense bem. Digamos que um homem seja um covarde e não tenha morrido dignamente. O purgatório lhe dá uma oportunidade de provar sua coragem, afinal de contas, não é? E quando ele provar que é um homem bom, então a ponte é aberta para ele e ele pode atravessar sem problemas as nuvens de coisas terríveis até o paraíso.

- Hum! - Glutão disse, embora ainda parecesse em dúvida. - Imagino que se um homem pode aguentar ser torturado por centenas de anos... mas como ele faz isso, sem corpo?

- Acha que um homem precisa de um corpo para ser torturado? - Murray fez a pergunta com certa aridez e Glutão resmungou com um ruído que tanto poderia ser concordância quanto uma risadinha, e não insistiu no assunto.

Todos continuaram avançando em silêncio por algum tempo, cercados por gritos de pássaros e pelo alto zumbido das moscas. Preocupado com o esforço de se manter de pé, William fixara sua atenção na nuca de Murray como um meio de não sair da trilha e assim notou quando o escocês, que conduzia o cavalo, diminuiu um pouco a marcha.

Pensou, a princípio, que fosse por causa dele e estava prestes a protestar, afirmando que podia acompanhar o passo - por um breve período, ao menos - , mas viu, então, que Murray olhou de relance para o outro mohawk, que se adiantara, depois se virou para Glutão e lhe perguntou alguma coisa, em uma voz baixa demais para que William pudesse decifrar as palavras.

Glutão deu de ombros, relutante, depois relaxou, resignado.

- Oh, compreendo - ele disse. - Ela é seu purgatório, hein?

Murray fez um som de hesitante, achando graça.

- E isso importa? Perguntei se ela está bem.

Glutão suspirou, encolhendo um dos ombros.

- Sim, bem. Ela tem um filho. Uma filha, também, eu acho. Seu marido...

- Sim? - A voz de Murray endurecera repentinamente.

- Conhece Thayendanegea?

- Conheço. - Agora Murray parecia curioso. William também estava curioso, de uma maneira vaga, desfocada, e esperou para ouvir quem seria Thayendanegea e o que ele tinha a ver com a mulher que era - que fora - amante de Murray? Oh, não.

"Não sou mais casado." Sua mulher, então. William sentiu uma leve pontada de compaixão, pensando em Margery. Pensara nela apenas ocasionalmente, se pensara, nos últimos quatro anos, mas de repente sua traição lhe pareceu uma tragédia. Sua imagem girou ao seu redor, fragmentada por um sentimento de pesar. Sentiu gotas escorrendo pelas suas faces, não sabia se lágrimas ou suor. Ocorreu-lhe o pensamento, lentamente, como se viesse de uma grande distância, de que ele devia estar delirando, mas não tinha a menor ideia do que deveria fazer a respeito.

As moscas não estavam picando, mas ainda zumbiam em seus ouvidos. Ficou ouvindo o zumbido com grande concentração, convencido de que as moscas estavam tentando lhe dizer alguma coisa importante. Ouviu com grande atenção, mas só conseguiu discernir sílabas sem sentido. "Shosha." "Nik." "Osonni." Não, essa era uma palavra, essa ele conhecia! Homem branco, significava "homem branco" - estariam falando dele?

Abanou a mão desajeitadamente junto à orelha, afastando as moscas, e discerniu aquela palavra outra vez: "purgatório".

Durante algum tempo, não conseguiu identificar o significado da palavra; ela pairou diante de si, coberta de moscas. Obscuramente, ele percebeu os flancos do cavalo, brilhando ao sol, as linhas gêmeas feitas na terra pelo - como se chamava mesmo? Uma coisa feita de - cama - não, lona; sacudiu a cabeça. Era seu saco de dormir, enrolado em dois paus compridos, se arrastando, arrastando... "trovoá", essa era a palavra - sim. E o animal, havia um animal ali, olhando para ele com olhos como âmbar bruta, a cabeça virada sobre o ombro, a boca aberta, as presas à mostra.

Agora, o gato falava com ele, também. - Você está maluco, sabe? - Sei - ele murmurou. Não apreendeu a resposta do gato, resmungada com sotaque escocês.

Inclinou-se mais para perto, para ouvir melhor. Sentiu como se flutuasse para baixo, através do ar denso como água, na direção daquela boca aberta. Repentinamente, toda a sensação de esforço desapareceu; já não se movia, mas de algum modo era amparado. Não conseguia ver o gato... oh. Ele estava estendido no chão, capim e terra sob sua face.

A voz do gato flutuou até ele novamente, com raiva, mas resignada. - Este é o seu purgatório? Acha que pode sair dele andando para trás? Bem, não, William pensou, sentindo-se em paz. Isso não fazia o menor sentido.

                     LUCIDEZ

A jovem deu um pique com as lâminas de sua tesoura, cuidadosamente.

- Tem certeza? - ela perguntou. - Que pena, amigo William. Uma cor tão brilhante!

- Imagino que não a consideraria apropriada, srta. Hunter - William disse, sorrindo. - Sempre ouvi dizer que os quakers consideram as cores berrantes mundanas. - A única cor no próprio vestido dela era um pequeno broche cor de bronze que prendia o lenço em seu colo. Tudo o mais era em tons de bege, apesar de ele achar que lhe caíam bem.

Ela olhou para ele com ar de reprovação. - Enfeites vistosos nas roupas não são o mesmo que a aceitação agradecida dos dons que Deus lhe deu. Por acaso os pássaros arrancam suas penas coloridas ou as rosas atiram fora suas pétalas?

- Duvido que as rosas sintam comichão - ele disse, coçando o queixo. A ideia de sua barba como um dom de Deus era novidade, mas não suficientemente persuasiva a ponto de convencê-lo a andar por aí como um barba-ruiva. Além de sua cor infeliz, ela crescia com vigor, mas era rala. Ele olhou com desaprovação para o modesto espelhinho quadrado em sua mão. Não havia nada que pudesse fazer com aquela pele queimada de sol que estava descascando no nariz e nas bochechas, nem com as esfoladuras e arranhões, agora com casca, adquiridos durante suas aventuras no pântano - mas os odiosos caracóis cor de cobre que brotavam vistosamente de seu queixo e se espalhavam como um musgo desfigurante ao longo do maxilar - isso, ao menos, podia ser resolvido de imediato.

- Por favor, sim? Ela torceu o canto dos lábios e ajoelhou-se ao lado do banquinho em que ele estava sentado, virando a cabeça de William com uma das mãos sob seu queixo, de modo a aproveitar melhor a luz da janela.

- Muito bem, então - ela disse, encostando a tesoura fria contra seu rosto. - Pedirei a Denny que venha barbeá-lo. Atrevo-me a dizer que posso cortar sua barba sem feri-lo, mas... seus olhos se estreitaram e ela inclinou-se mais para perto, cortando a barba delicadamente ao redor de seu queixo - nunca raspei a pele de nada além de um porco morto.

- Barbeiro, barbeiro - ele cantarolou a música infantil, tentando não mover os lábios - , barbeie um porco. Como...

Os dedos da jovem pressionaram-se por baixo de seu queixo, fechando sua boca com firmeza, mas ela fez o pequeno som resfolegado que, para ela, passava por uma risadinha. Plique, 4ique, plique. As lâminas faziam cócegas agradavelmente em seu rosto e os pelos crespos roçavam em suas mãos conforme caíam na velha toalha de linho que ela estendera em seu colo.

Ele não tivera oportunidade de estudar o rosto dela de tão perto e aproveitou a breve oportunidade. Seus olhos eram quase castanhos, não inteiramente verdes. Teve a vontade súbita de beijar a ponta de seu nariz. Em vez disso, fechou os olhos e respirou fundo. Ela andara ordenhando uma cabra, ele podia sentir.

- Eu mesmo posso me barbear - ele disse, quando ela abaixou a tesoura. Ela ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar a seu braço. - Eu ficaria admirada se você já conseguisse comer com a própria mão, quanto mais se barbear.

Na verdade, ele mal conseguia levantar o braço direito, e ela andara lhe dando comida nos últimos dois dias. Assim sendo, achou melhor não lhe contar que ele, na realidade, era canhoto.

- Está sarando bem - ele disse, virando o braço na direção da luz. O dr. Hunter havia removido o curativo naquela manhã, expressando satisfação com o resultado. A ferida ainda estava vermelha e enrugada, a pele ao redor desagradavelmente branca e úmida. Estava, entretanto, sarando; o braço já não estava inchado e os nefastos veios vermelhos haviam desaparecido.

- Bem - ela disse, pensativamente - , é uma bela cicatriz, eu acho. Bem costurada e, de certa forma, até bonita.

- Bonita? - William repetiu, olhando ceticamente para o braço. Já ouvira homens de vez em quando descreverem uma cicatriz como "bonita", mas geralmente se referiam a uma que tivesse cicatrizado diretamente, sem desfigurar o ferido. Esta era irregular e espalhada, com uma longa cauda se estendendo na direção do pulso. Ele quase - assim lhe contaram depois do fato - perdera o braço: o dr. Hunter o segurara e colocara a serra de amputação logo acima do ferimento, quando então o abscesso que se formara sob a ferida explodiu em sua mão. Vendo isso, o médico apressadamente drenou a ferida, aplicou uma compressa de alho e confrei, e rezou - com ótimo resultado.

- Parece uma enorme estrela - Rachel Hunter disse, com aprovação. - Uma de significado. Um grande cometa, talvez. Ou a Estrela de Belém, que conduziu os sábios à manjedoura de Cristo.

William girou o braço, considerando. Ele próprio achou que se parecia mais com uma bala de morteiro explodindo, mas disse apenas "hum!" de maneira encorajadora. Queria continuar a conversa - ela quase não se demorava quando vinha dar-lhe comida, tendo muitas outras tarefas a cumprir - e assim levantou seu queixo recém-tosqueado e indicou o broche que ela usava.

- É bonito - disse. - Não é muito mundano?

- Não - ela respondeu secamente, colocando a mão no broche. - É feito do cabelo de minha mãe. Ela morreu quando eu nasci.

- Ah. Sinto muito - ele disse, e com um instante de hesitação acrescentou: - A minha também.

Ela parou e olhou para ele. Por um instante, ele viu o lampejo de algo em seus olhos que era mais do que a atenção prática que ela daria a uma vaca prenha ou a um cachorro que havia comido alguma coisa estragada.

- Sinto por você, também - ela disse suavemente, depois se virou com determinação. - Vou chamar meu irmão.

Seus passos ecoaram pela escada, rápidos e leves. Ele pegou a toalha pelas pontas e sacudiu-a pela janela, espalhando as aparas de pelos ruivos aos quatro ventos, e já iam tarde. Ele deixaria a barba crescer como um disfarce rudimentar se ela fosse de um castanho-escuro decente. No entanto, sendo como era, uma barba naquela cor espalhafatosa atrairia os olhares de quem quer que o visse.

O que fazer agora?, perguntou-se. Sem dúvida, ele estaria em condições de partir amanhã.

Suas roupas ainda estavam usáveis, apesar de em péssimo estado; a srta. Hunter havia remendado os rasgos em suas calças e casaco. Mas ele não tinha cavalo, não tinha dinheiro, salvo duas moedas de seis pennies que estavam em seu bolso, e havia perdido o livro com a lista de seus contatos e suas mensagens. Podia se lembrar de alguns dos nomes, mas sem o código de palavras e sinais adequados...

Pensou repentinamente em Henry Washington e naquela conversa enevoada, lembrada apenas em parte, que tivera com Ian Murray junto à fogueira, antes de começarem a conversar sobre canções da morte. Washington, Cartwright, Harrington e Carver. A lista cantarolada voltou à sua mente, juntamente com a intrigada resposta de Murray à sua menção de Washington e Dismal Town.

Não conseguia imaginar nenhuma razão para Murray tentar enganá-lo no assunto. Mas se ele estivesse certo - o capitão Richardson estaria grosseiramente equivocado em seu trabalho de inteligência? Era possível, sem dúvida. Apesar do pouco tempo em que estava nas colônias, ele aprendera que as lealdades podiam mudar muito rapidamente, com a mudança das notícias de ameaça ou oportunidade.

Mas... disse a vozinha fria da razão, e ele sentiu seu toque gelado na nuca. Se o capitão Richardson não estava errado... então, ele pretendia enviá-lo para a morte ou a prisão.

A gravidade da ideia deixou çua boca seca e ele estendeu a mão para a xícara de chá de ervas que a srta. Hunter lhe trouxera. Tinha um gosto horrível, mas ele mal notou, agarrando a xícara como se fosse um talismã contra a perspectiva que imaginava. Não, garantiu a si mesmo. Não era possível. Seu pai conhecia Richardson. Certamente, se o capitão fosse um traidor... O que ele estava pensando? Tomou um grande gole do chá, fazendo uma careta enquanto engolia.

- Não - disse em voz alta - , não é possível. Ou não é provável - acrescentou, com justiça. - A navalha de Occam.

O pensamento acalmou-o um pouco. Ele aprendera os princípios básicos da lógica quando ainda era muito novo e já tivera a oportunidade de encontrar em Guilherme de Occam um guia confiável. Seria mais provável que o capitão Richardson fosse um traidor secreto que enviara de propósito William para o perigo - ou que o capitão estivesse mal-informado ou simplesmente cometera um erro?

Pensando bem, por que motivo? William não tinha ilusões em relação à sua própria importância no esquema geral. Onde estaria o benefício para Richardson - ou qualquer outra pessoa - em destruir um oficial novato encarregado de uma tarefa menor da inteligência?

Muito bem, então. Relaxou um pouco e, tomando um inadvertido gole do horrível chá, engasgou-se com ele e tossiu, pingando chá para todos os lados.

Ainda limpava a sujeira com a toalha quando o dr. Hunter veio subindo as escadas rapidamente. Denzell Hunter deveria ser uns dez anos mais velho do que a irmã, perto dos trinta anos, de ossatura miúda e alegre como um galo de briga. Sorriu, radiante, ao ver William, obviamente tão encantado com a recuperação de seu paciente que William retribuiu o sorriso calorosamente.

- Sissy me disse que você quer se barbear - o médico disse, colocando sobre a mesa a caneca e o pincel de barbear que trouxera. - Pelo visto, deve estar se sentindo bastante bem para querer voltar à sociedade, pois a primeira coisa que um homem faz quando está livre das restrições sociais é deixar a barba crescer. Seus intestinos já se movimentaram?

- Não, mas pretendo fazer isso quase de imediato - William assegurou-lhe. - Não pretendo, entretanto, me aventurar em público parecendo um bandido, nem mesmo na latrina. Não gostaria de escandalizar seus vizinhos.

O dr. Hunter riu e, retirando uma navalha de um dos bolsos e os óculos de armação prateada do outro, assentou o último com firmeza no nariz e apanhou o pincel de barba.

- Oh, Sissy e eu já somos alvo de comentários e bisbilhotices - assegurou a William, inclinando-se para perto dele para aplicar a espuma. - Ver bandidos saindo de nossa latrina apenas confirmaria as opiniões de nossos vizinhos.

- É mesmo? - William falou com cautela, virando a boca para evitar que fosse inadvertidamente enchida de espuma. - Por quê? - Ficou surpreso de ouvir isso; quando recobrou a consciência, perguntara onde estava e soubera que Oak Grove era um pequeno assentamento quaker. Ele achava que os quakers geralmente eram muito unidos em seus sentimentos religiosos - mas, por outro lado, não conhecia de fato nenhum quaker.

Hunter suspirou fundo e, deixando de lado o pincel, pegou a navalha.

- Oh, política - ele disse, em um tom de voz descontraído, como alguém que desejasse descartar um assunto trivial, mas cansativo. - Diga-me, amigo Ransom, há alguém a quem gostaria que eu notificasse do que lhe aconteceu e aonde veio parar? - Ele parou de barbear, para que William pudesse responder.

- Não, obrigado, senhor. Eu mesmo lhes contarei - William disse, sorrindo. - Tenho certeza de que conseguirei partir amanhã, embora eu lhe assegure que não me esquecerei de sua bondade e hospitalidade quando encontrar meus... amigos.

A fronte de Denzell franziu-se um pouco e seus lábios se comprimiram enquanto retomava o trabalho com a navalha, mas não argumentou.

- Peço que perdoe minha curiosidade - ele disse após um instante - , mas para onde pretende ir daqui?

William hesitou, sem saber ao certo o que responder. Na realidade, ele não havia decidido exatamente para onde ir diante do estado lamentável de suas finanças. A melhor ideia que lhe ocorrera foi de se dirigir a Mount Josiah, sua própria fazenda. Não tinha absoluta certeza, mas achava que devia ficar a uns setenta, oitenta quilômetros dali. Se os Hunter lhe dessem um pouco de comida, achava que poderia chegar lá em poucos dias, uma semana no máximo. E, uma vez lá, poderia pegar roupas, um cavalo decente, armas e dinheiro, e assim retomar sua jornada.

Era uma perspectiva tentadora. Fazer isso, entretanto, significava revelar sua presença na Virgínia, causando muitos comentários, já que todos no condado não só o conheciam, como sabiam que era um soldado. Aparecer na vizinhança vestido desse jeito...

- Há alguns católicos em Rosemount - o dr. Hunter observou timidamente, limpando a navalha na velha toalha. William olhou para ele surpreso.

- É? - exclamou, cauteloso. Por que diabos Hunter estava lhe falando de católicos?

- Desculpe-me, amigo - o médico disse ao ver sua reação. - Você mencionou seus amigos... eu pensei...

- Você achou que eu era... - À perplexidade seguiu-se um solavanco diante da compreensão do que acontecera. William bateu a mão espalmada no peito num reflexo, naturalmente não encontrando nada além da muito usada camisa de dormir que estava usando.

- Tome. - O médico inclinou-se rapidamente para abrir a arca de cobertores ao pé da cama e levantou-se, o rosário de madeira balançando de uma das mãos. - Nós tivemos que tirá-lo, é claro, quando o despimos, mas Sissy guardou-o para você.

- Nós? - William disse, agarrando-se a isso como forma de adiar perguntas. - Você... e a srta. Hunter... me despiram?

- Bem, não havia mais ninguém - o médico disse, em tom de desculpas. - Fomos obrigados a colocá-lo nu no riacho, na esperança de baixar sua febre... não se lembra?

Lembrava-se vagamente, mas presumira que a lembrança de um frio extremo e uma sensação de estar se afogando fossem os remanescentes de seus delírios de febre. A presença da srta. Hunter felizmente - ou talvez infelizmente - não fazia parte dessas recordações.

- Eu não podia carregá-lo sozinho - o médico explicava ansiosamente. - E os vizinhos... mas eu arranjei uma toalha para preservar seu recato - assegurou a William apressadamente.

- Que divergências seus vizinhos têm com você? - William perguntou com curiosidade, estendendo o braço para pegar o rosário da mão de Hunter. - Eu mesmo não sou papista - acrescentou descontraidamente. - É uma... lembrança, presente de um amigo.

- Oh. - O médico esfregou um dedo pelo lábio, obviamente desconcertado. - Compreendo. Pensei...

- Os vizinhos...? - William perguntou, e dissimulando seu embaraço pendurou o rosário no pescoço outra vez. Talvez o engano sobre sua religião tenha sido o motivo da animosidade dos vizinhos?

- Bem, eu diria que eles teriam ajudado a carregá-lo - o dr. Hunter admitiu - se tivesse havido tempo para ir buscar alguém. Mas o problema era urgente e a casa mais próxima fica a uma boa distância.

Isso deixou a pergunta sobre a atitude dos vizinhos em relação aos Hunter sem resposta, mas não lhe pareceu educado insistir. William meramente assentiu e se levantou.

O chão inclinou-se repentinamente sob ele e uma luz branca tremeluziu no canto de seus olhos. Agarrou-se ao parapeito da janela para não cair e recobrou os sentidos um instante depois, banhado de suor, com a mão surpreendentemente forte do dr. Hunter segurando seu braço e impedindo-o de cair de cabeça no pátio embaixo.

- Não tão rápido, amigo Ransom - o médico disse amavelmente e, puxando-o para dentro, conduziu-o de volta para a cama. - Mais um dia, talvez, antes de poder ficar em pé sozinho. Receio que seja muito arriscado.

Ligeiramente nauseado, William sentou-se na cama e deixou que o dr. Hunter enxugasse seu rosto com a toalha. Por certo, ele dispunha de mais algum tempo para decidir aonde ir.

- Quanto tempo acha que ainda vai levar até eu poder caminhar um dia inteiro?

Denzell Hunter lançou-lhe um olhar avaliador.

- Cinco dias, talvez... quatro, no mínimo - ele disse. - Você é forte e resistente, caso contrário eu diria uma semana.

William, sentindo-se fraco e zonzo, assentiu e deitou-se. O médico ficou olhando-o com a testa franzida por alguns instantes, embora não parecesse que o ar de preocupação tivesse a ver com William; parecia uma questão de foro íntimo.

- A que... distância sua viagem o levará? - o médico perguntou, parecendo escolher as palavras com cuidado.

- Uma boa distância - William respondeu, com igual cautela. - Estou indo... na direção do Canadá - ele disse, repentinamente percebendo que dizer mais poderia implicar revelar do que ele gostaria em relação aos motivos de sua viagem.

Na verdade, um homem podia ter assuntos a tratar no Canadá sem necessariamente ter a ver com o exército britânico que ocupava Quebec, mas como o médico mencionara política... O melhor era ser político a respeito da questão. E certamente ele não mencionaria Mount Josiah. Quaisquer que fossem as relações tensas dos Hunter com os vizinhos, as notícias sobre seu hóspede poderiam se espalhar rapidamente.

- Canadá - o médico repetiu, como se falasse consigo mesmo. Em seguida, seu olhar retornou a William. - Sim, é uma distância considerável. Felizmente matei um bode hoje de manhã, teremos carne. Isso o ajudará a recuperar as forças. Eu o sangrarei amanhã, para restaurar um pouco de equilíbrio a seus humores, e então veremos. Por enquanto.... - Ele sorriu e estendeu a mão. - Venha. Eu o ajudarei a chegar à latrina.

 

                   UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA

Uma tempestade estava a caminho; William podia senti-la na mudança do ar, vê-la nas sombras céleres das nuvens que passavam rapidamente pelas desgastadas tábuas do assoalho. O calor e a opressão úmida do dia de verão haviam dissipado e o desassossego do ar parecia agitá-lo também. Embora ainda fraco, não podia continuar de cama e conseguiu se levantar, agarrando-se ao lavatório até que a tontura inicial passasse.

Estando sozinho, passou algum tempo andando de um lado para o outro do aposento - uma distância de aproximadamente três metros - , uma das mãos pressionada contra a parede para se equilibrar. O esforço esgotou suas forças e o deixou tonto, e de vez em quando era obrigado a sentar-se no chão, a cabeça entre os joelhos, até que os pontos parassem de girar diante de seus olhos.

Foi em uma dessas ocasiões, enquanto estava sentado embaixo da janela, que ele ouviu vozes no terreno embaixo. A voz da srta. Rachel Hunter, surpresa e indagadora - a resposta de um homem, de voz baixa e rouca. Uma voz familiar - Ian Murray!

Pôs-se de pé num salto e com a mesma velocidade deixou-se cair novamente no chão, a visão escura e a cabeça girando. Cerrou os punhos e respirou com força, tentando fazer o sangue voltar à cabeça. - Ele vai viver, então? - As vozes eram distantes, semienterradas no murmúrio das castanheiras próximas à casa, mas ele conseguiu ouvir isso. Ergueu-se com esforço sobre os joelhos e apoiou-se no parapeito, pestanejando para a luminosidade do dia fragmentada pelas nuvens.

A figura alta de Murray era visível na borda do pátio, esquelética em seus trajes de camurça, o cachorro enorme a seu lado. Não havia sinal de Glutão, nem dos outros índios, mas dois cavalos pastavam no caminho atrás de Murray, as rédeas soltas. Rachel Hi Unter gesticulava em direção à casa, obviamente convidando Murray a entrar, mas ele sacudiu a cabeça. Enfiou a mão na bolsa à sua cintura e retirou dali um pequeno embrulho, que entregou à jovem.

- Ei! - William gritou, ou tentou gritar, não tinha muito fôlego, então agitou os braços. O vento se intensificava com uma corrida trêmula pelas folhas das castanheiras, mas o movimento deve ter atraído a atenção de Murray, pois ele ergueu os olhos e, vendo William à janela, sorriu e levantou a própria mão em uma saudação.

No entanto, não fez nenhuma menção de entrar na casa. Em vez disso, pegou as rédeas de um dos cavalos e colocou-as na mão de Rachel Hunter. Em seguida, com um aceno de despedida para a janela de William, montou no outro cavalo com um volteio simples e elegante, e partiu.

As mãos de William apertaram-se no parapeito, a decepção dominando-o ao ver Murray desaparecer no meio das árvores. Espere, mas... Murray deixara um cavalo. Rachel Hunter o conduzia ao redor da casa, seu avental e anáguas agitados pelo vento, uma das mãos na touca para mantê-la no lugar.

Sem dúvida deveria ser para ele! Então Murray pretendia voltar para buscálo? Ou ele deveria segui-lo? Com o coração martelando nos ouvidos, William vestiu as calças remendadas e as meias novas que Rachel tricotara para ele, e após um pequeno esforço calçou as botas endurecidas pela água. A batalha travada para se vestir deixou-o trêmulo, mas ele obstinadamente desceu as escadas, aos trancos, suando e escorregando, mas chegando inteiro à cozinha no final.

A porta dos fundos se abriu com um pé de vento e uma explosão de luz, depois bateu abruptamente, arrancada das mãos de Rachel. Ela se virou, viu-o e deu um gritinho de espanto.

- Deus nos acuda! O que está fazendo aqui embaixo? - Ela ofegava do esforço e do susto, fitando-o com os olhos arregalados e enfiando fios dos cabelos escuros para dentro da touca outra vez.

- Não quis assustá-la - William disse, desculpando-se. - Queria... eu vi o sr. Murray indo embora. Pensei que devia alcançá-lo. Ele disse onde eu deveria encontrá-lo?

- Não, não disse. Sente-se, pelo amor de Deus, antes que caia. Ele não queria. A vontade de estar lá fora, de ir embora, era mais forte. Mas seus joelhos tremiam e se ele não se sentasse logo... Relutantemente, ele se sentou.

- O que ele disse? - perguntou e, percebendo de repente que estava sentado na presença de uma dama, indicou o outro banco. - Sente-se, por favor. Conte-me o que ele disse.

Rachel fitou-o, mas se sentou, alisando suas roupas agitadas pelo vento. A tempestade se aproximava; sombras de nuvens corriam pelo chão, pelo seu rosto, e o ar parecia tremular, como se o aposento estivesse submerso em água.

- Ele perguntou sobre sua saúde e, quando eu disse que o senhor estava ficando bom, ele me deu o cavalo, dizendo que era para o senhor. - Ela hesitou por um instante e William insistiu.

- Ele lhe deu mais alguma coisa, não foi? Eu o vi lhe entregar um pequeno embrulho.

Ela apertou os lábios por um instante, mas balançou a cabeça e, enfiando a mão no bolso, entregou-lhe o pacotinho envolto frouxamente em um pedaço de pano.

Ele estava ansioso para ver o que o embrulho continha - mas não tão ansioso que não notasse as marcas no tecido, linhas fundas onde antes havia um barbante amarrado. E amarrado bem recentemente. Ele olhou para Rachel Hunter, que desviou o olhar, o queixo erguido, mas ruborizada nas faces. Ele ergueu uma sobrancelha para ela, depois voltou sua atenção para o pacote.

Aberto, continha um pequeno maço de notas de "continentais", o papel-moeda das colônias; uma bolsinha usada contendo a soma de um guinéu, três xelins e dois pennies em moedas; uma carta dobrada - dobrada várias vezes, pelo que pôde notar - e um outro pacotinho, menor, este ainda amarrado. Deixando este e o dinheiro de lado, abriu a carta.

Primo,

Espero encontrá-lo com mais saúde do que a última vez em que o vi. Se assimfor, deixarei um cavalo e algum dinheiro para ajudá-lo em sua viagem. Se não, deixarei o dinheiro, para pagar remédios ou seu enterro. O outro é um presente de um amigo a quem os índios chamam de Matador de Urso. Ele espera que você o use em boa saúde. Desejo-lhe sorte em suas aventuras.

Seu criado, Ian Murray

- Hum! - William ficou desconcertado. Evidentemente, Murray tinha negócios próprios e não podia ou não queria esperar até William estar em condições de viajar. Apesar de um pouco decepcionado, pois gostaria de conversar mais com Murray, agora que sua mente estava lúcida outra vez, viu que era melhor que Murray não Quisesse que viajassem juntos.

Compreendeu que seu problema imediato estava resolvido; ele agora possuía os meios para retomar sua missão, ou o quanto pudesse retomar. Ele poderia ao menos alcançar o quartel-general do general Howe, fazer um relatório e obter novas instruções.

Era muito generoso da parte de Murray; o cavalo parecia robusto e o dinheiro era mais do que suficiente para ele viajar bem alimentado e bem hospedado por todo o trajeto até Nova York. Perguntou-se onde Murray teria obtido tudo aquilo; pela sua aparência, o sujeito não tinha nem um urinol para suas necessidades - embora tivesse um bom rifle, William lembrou a si mesmo - e obviamente era instruído, pois escrevia bem. Mas o que poderia ter feito o estranho escocês-índio interessar-se tanto por ele?

Confuso, pegou o embrulho menor e desamarrou o barbante. Desembrulhado, verificou que se tratava da pata de um urso grande, furada e amarrada em um cordão de couro. Era antigo; as bordas da tira de couro estavam desgastadas e o nó na tira havia endurecido tanto que obviamente jamais poderia ser desatado outra vez.

Acariciou a pata com o polegar, experimentou a ponta. Bem, o espírito do urso o havia ajudado até agora. Sorrindo consigo mesmo, passou o cordão por cima da cabeça, deixando a pata pendurada sobre a camisa na frente. Rachel Hunter fitou-a, o rosto inextrincável.

- Leu a minha carta, srta. Hunter - William disse, com reprovação. - Isso não se faz!

O rubor subiu às suas faces com mais intensidade, mas ela o olhou nos olhos com uma franqueza que ele não estava acostumado a ver em uma mulher - com a notável exceção de sua avó paterna.

- Sua conversa é muito superior às suas roupas, amigo William, ainda que fossem novas. E, apesar de já estar consciente há vários dias, não quis nos dizer o que o trouxe ao Great Dismal. Não é um lugar frequentado por cavalheiros.

- Oh, é, sim, srta. Hunter. Muitos homens de bem do meu círculo vão lá para caçar, que é inigualável. Mas naturalmente ninguém caça javalis e gatos-do-mato em seus melhores trajes.

- Nem ninguém vai caçar armado apenas com uma frigideira, amigo William - ela retrucou. - E se é realmente um cavalheiro, diga-me, onde é sua casa?

Ele hesitou por um instante, incapaz de se lembrar de imediato das particularidades de seu alter ego, e agarrou-se à primeira cidade que lhe veio à mente.

- Ah... Savannah. Nas Carolinas - acrescentou.

- Sei onde fica - ela retrucou asperamente. - E já ouvi o modo de falar de homens que vêm de lá. Você não é de lá.

- Está me chamando de mentiroso? - ele disse, surpreso.

- Estou.

- Oh. - Permaneceram quietos, fitando-se na luz mortiça da tempestade em formação, cada qual raciocinando. Por um instante, ele teve a impressão de estar jogando xadrez com sua avó Benedicta.

- Desculpe-me por ter lido a sua carta - ela disse abruptamente. - Não foi por curiosidade vulgar, acredite-me.

- Por que, então? - Ele sorriu levemente, para indicar que não alimentava nenhuma animosidade por sua indiscrição. Ela não devolveu o sorriso, mas fitou-o com os olhos apertados - não com desconfiança, mas como se o avaliasse de alguma forma. Por fim, suspirou e seus ombros arriaram.

- Gostaria de saber um pouco sobre você e o seu caráter. Os companheiros que o trouxeram para nós parecem homens perigosos. E seu primo? Se você for um deles, então... - Seus dentes fixaram-se brevemente no lábio superior, mas ela sacudiu a cabeça, como se o fizesse para si mesma, e continuou com mais firmeza. - Nós devemos partir daqui dentro de alguns dias, meu irmão e eu. Você disse a Denny que viaja para o norte; eu gostaria que fôssemos com você, ao menos parte da viagem.

O que quer que ele esperasse, não era isso. Ele pestanejou e disse a primeira coisa que lhe veio à mente.

- Sair daqui? Por quê? Seus... hã... vizinhos? Ela pareceu surpresa.

- Como?

- Desculpe-me, senhora. Seu irmão deu a entender que as relações entre sua família e os que moram aqui perto eram... um pouco tensas?

- Oh. - Um dos cantos de sua boca se torceu; ele não sabia dizer se em sinal de aflição ou de humor, mas concluiu que se tratava do último. - Sei - ela disse, tamborilando os dedos pensativamente na mesa. - Sim, é verdade, embora não o que eu... bem, mesmo assim tem a ver com a questão. Vejo que preciso contar-lhe tudo, então. O que você sabe sobre a Sociedade dos Amigos?

Ele conhecia apenas uma família de quakers, os Unwin. O sr. Unwin era um rico negociante que conhecia seu pai e ele havia conhecido suas duas filhas em um sarau em certa ocasião, mas a conversa não girara em torno de filosofia ou religião.

- Eles... hã, você... não gosta de conflitos, não é? - ele respondeu cautelosamente.

Isso, para sua surpresa, a fez rir e ele ficou satisfeito em conseguir remover a pequena ruga entre suas sobrancelhas, ainda que temporariamente.

- Violência - ela corrigiu. - Vivemos em conflito, ainda que verbal. E considerando-se nossa forma de devoção... Denny diz que você não é um papista afinal, no entanto suponho que nunca tenha assistido a uma reunião Quaker.

- Não, a oportunidade ainda não se apresentou.

- Achei que não. Muito bem, então. - Olhou fixamente para ele, avaliando-o. - Temos pregadores que vão falar nesses encontros, mas qualquer pessoa pode falar em uma reunião, sobre qualquer assunto, se o espírito dele ou dela assim o desejar.

- Dela? As mulheres falam em público também? Ela lançou-lhe um olhar fulminante. - Tenho língua, assim como você.

- Notei - ele disse, sorrindo para ela. - Continue, por favor. Ela inclinou-se um pouco para frente para continuar, mas foi interrompida pelo barulho de uma persiana batendo com o vento, seguido por uma saraivada de pingos de chuva contra a janela. Rachel levantou-se num salto com uma pequena exclamação. - Tenho que colocar as galinhas para dentro! Feche as persianas - ordenoulhe, arremetendo-se para fora.

Um pouco desconcertado, mas achando graça, ele obedeceu, movendo-se devagar. Subir para fechar as persianas de cima o deixou tonto outra vez e ele parou na entrada do quarto, segurando o batente da porta até recuperar o equilíbrio. Havia dois cômodos no andar de cima: o quarto de dormir na frente da casa, onde o haviam instalado, e um quarto menor nos fundos. Os Hunter agora dividiam esse aposento; havia uma cama baixa, de rodinhas, um lavatório com um candelabro de prata sobre o móvel, e pouco mais, salvo uma fileira de ganchos nos quais penduravam-se uma camisa e um par de calças sobressalentes do médico, um xale de lã e o que deveria ser o vestido de sair de Rachel Hunter, uma vestimenta sóbria, tingida de índigo.

Com a chuva e o vento abafado pelas persianas fechadas, o quarto às escuras parecia silencioso e tranquilo, um porto seguro da tormenta. Seu coração diminuíra o ritmo pelo esforço de subir as escadas e ele ficou parado por um instante, apreciando a sensação ligeiramente ilícita de estar invadindo. Nenhum som vindo lá de baixo; Rachel ainda devia estar perseguindo as galinhas.

Havia algo levemente estranho a respeito do quarto e ele levou apenas um instante para descobrir o que era. O desgaste e a escassez dos pertences pessoais dos Hunter indicavam pobreza, no entanto contrastavam com os pequenos sinais de prosperidade evidentes nos utensílios: o candelabro de prata, não de estanho ou laminado, e a bacia e a jarra não eram de cerâmica, mas de fina porcelana, decorada com pinturas de crisântemos azuis.

Ele levantou a saia do vestido azul pendurado no gancho, examinando-o com curiosidade. Recatado era uma coisa; esfarrapado era outra. A bainha estava tão desgastada a ponto de já estar quase branca, o índigo tão desbotado que as dobras da saia apresentavam um padrão em forma de leque de partes claras e partes escuras. As senhoritas Unwin se vestiam discretamente, mas suas roupas eram da melhor qualidade.

Em um impulso repentino, levou o tecido ao rosto, inspirando. Ainda cheirava levemente a índigo, bem como a capim e coisas vivas - e muito distintamente a um corpo de mulher. O aroma almiscarado percorreu-o como o prazer de um bom vinho.

O barulho da porta se fechando embaixo o fez largar o vestido como se ele estivesse em chamas e dirigir-se às escadas, o coração batendo com força.

Rachel Hunter sacudia-se junto à lareira, lançando respingos de água de seu avental, a touca murcha e ensopada na cabeça. Sem vê-lo, tirou-a, torceu-a com um murmúrio de impaciência e pendurou-a em um prego no consolo da lareira.

Seus cabelos caíam pelas costas, molhados e brilhantes, escuros contra o tecido claro de seu casaco.

- Então, as galinhas estão a salvo? - ele falou, porque observá-la sem o seu conhecimento, com os cabelos soltos, seu cheiro ainda em suas narinas, pareceu-lhe repentinamente uma injustificável familiaridade.

Ela se virou, os olhos cautelosos, mas não fez nenhum movimento imediato para cobrir os cabelos.

- Todas, menos uma que meu irmão chama de a Grande Prostituta da Babilônia. Nenhuma galinha possui nada que se assemelhe a inteligência, mas essa é mais perversa do que o normal.

- Perversa? - Evidentemente, ela percebeu que ele estava contemplando as possibilidades inerentes a essa descrição e achando-as engraçadas, pois resfolegou ruidosamente e abaixou-se para abrir o baú de cobertores.

- A criatura está empoleirada a uns seis metros de altura no alto de um pinheiro, no meio de uma tempestade. Perversa. - Retirou uma toalha de linho da arca e começou a secar os cabelos.

O barulho da chuva alterou-se de repente, o granizo batendo como cascalhos arremessados contra as persianas.

- Humm - Rachel disse, com um olhar sombrio para a janela. - Espero que ela seja derrubada pelo granizo e devorada pela primeira raposa que passar, e será bem feito. - Continuou a enxugar os cabelos. - Não tem importância. Ficarei feliz de nunca mais ver essas galinhas outra vez.

Vendo-o ainda em pé, ela sentou-se, indicando-lhe um outro banquinho.

- Você disse que pretendia deixar este lugar juntamente com seu irmão e ir para o norte - ele a fez lembrar, sentando-se. - Devo supor que as galinhas não seguirão a viagem com vocês.

- Não, graças a Deus. Elas já foram vendidas, juntamente com a casa. - Deixando a toalha amarrotada de lado, tateou no bolso e retirou um pequeno pente de chifre. - Eu disse que ia lhe contar o motivo.

- Creio que havíamos chegado ao ponto em que você me dizia que tinha algo a ver com a reunião de vocês, não foi?

Ela inspirou fundo pelo nariz e balançou a cabeça.

- Eu disse que uma pessoa fala em uma reunião quando se sente guiada pelo espírito? Bem, o espírito guiou meu irmão. Foi assim que deixamos a Filadélfia.

Uma reunião de culto podia ser realizada, ela explicou, sempre que houvesse Amigos suficientes com a mesma opinião. Mas além dessas pequenas reuniões locais havia organismos maiores: as reuniões trimestrais e anuais, onde as questões de princípios mais importantes são discutidas e as ações que afetam os quakers em geral são resolvidas.

- A Reunião Anual da Filadélfia é a maior e mais influente - ela disse. - Você tem razão: os Amigos repudiam a violência e buscam tanto evitá-la quanto extingui-la. E quanto à rebelião, a Reunião Anual da Filadélfia meditou e rezou sobre o assunto, e aconselhou que o caminho da sabedoria e da paz obviamente estava na reconciliação com a pátria-mãe.

- Entendo. - William estava interessado. - Então, todos os quakers das colônias agora são legalistas, é o que quer dizer?

Os lábios dela comprimiram-se por um instante.

- Esse é o conselho da Reunião Anual. No entanto, como eu disse, os Amigos são guiados pelo espírito e uma pessoa deve agir seguindo sua orientação.

- E seu irmão foi levado a falar a favor da rebelião? - William achava graça, mas estava cauteloso; o dr. Hunter parecia um improvável ativista.

Ela abaixou a cabeça, não exatamente confirmando.

- A favor da independência - ela corrigiu.

- Certamente falta alguma coisa na lógica dessa distinção - William observou, erguendo uma das sobrancelhas. - Como a independência pode ser alcançada sem o exercício da violência?

- Se você acha que o espírito de Deus é necessariamente lógico, você deve conhecê-Lo melhor do que eu. - Ela passou a mão pelos cabelos úmidos, agitando-os sobre os ombros com impaciência. - Denny disse que ficou claro para ele que a liberdade, de um indivíduo ou de uma nação, é um dom de Deus, e que ele foi instruído a se unir à luta para conquistar e preservar a liberdade. Assim, fomos excluídos da reunião - ela concluiu abruptamente.

Estava escuro no aposento de persianas fechadas, mas ele podia ver o rosto dela pela claridade turva do fogo abafado da lareira. Aquela última declaração a emocionara profundamente; seus lábios estavam contraídos e havia um brilho em seus olhos que sugeria que as lágrimas poderiam aflorar, se ela não estivesse tão determinada a contê-las.

- Imagino que seja algo grave ser excluído de um culto, não? - ele perguntou, cautelosamente.

Ela balançou a cabeça, desviando os olhos. Pegou a toalha descartada, alisou-a devagar e dobrou-a, obviamente escolhendo as palavras.

- Eu lhe disse que minha mãe morreu quando eu nasci. Meu pai morreu três anos depois, afogado em uma inundação. Ficamos sem nada, meu irmão e eu. Mas os Amigos cuidaram para que não passássemos fome, que houvesse um teto, ainda que com buracos, sobre nossas cabeças. Havia uma questão na reunião sobre como Denny deveria ser ensinado. Eu sei que ele temia ter que se tornar um vaqueiro ou um sapateiro... ele não tem capacidade de ser ferreiro - acrescentou, sorrindo um pouco, apesar da seriedade. - E ele o teria feito, para me manter alimentada.

No entanto, a sorte interviera. Um dos Amigos assumira por conta própria a incumbência de rastrear algum parente dos órfãos Hunter, e depois de muitas idas e vindas de cartas descobrira um primo distante, originariamente escocês, mas atualmente em Londres.

- John Hunter, Deus o abençoe. Ele é um médico famoso, ele e seu irmão mais velho, que é accoucheur da própria rainha. - Apesar de seus princípios igualitários, a srta. Hunter parecia um pouco reverente e ele balançou a cabeça respeitosamente. - Ele perguntou sobre as habilidades de Denny e, ouvindo boas referências, providenciou para que ele fosse levado para a Filadélfia, para se hospedar com uma família quaker e frequentar a nova faculdade de medicina. E ele chegou a mandar Denny para Londres, para estudar com ele próprio!

- De fato, foi muita sorte - William observou. - Mas e você?

- Oh. Eu... fiquei com uma mulher da vila - ela disse com uma rápida descontração que não o enganou. - Mas Denzell voltou e assim, é claro, fui tomar conta de sua casa até ele se casar.

Ela franzia a toalha entre os dedos, com os olhos abaixados para o colo. Pequenas luzes dançavam em seus cabelos onde o fogo se refletia, um tom de bronze nas mechas castanho-escuras.

A mulher... ela era uma boa mulher. Ela fez questão de me ensinar a cuidar de uma casa, cozinhar, costurar. Que eu soubesse... O que era útil para uma mulher saber. - Olhou para ele com aquela estranha franqueza, a expressão grave.

- Acho que você não pode compreender o que significa ser excluído de uma reunião.

- Algo como ser expulso de um regimento ao toque de tambores, imagino. Vergonhoso e doloroso.

Seus olhos estreitaram-se por um instante, mas ele falara com seriedade, e ela viu isso.

- Uma Reunião de Amigos não é simplesmente uma irmandade de devoção. É... uma comunidade da mente, do coração. Uma grande família, de certo modo.

E para uma jovem ser privada de sua própria família? - E ser excluído, então... sim, eu compreendo - ele disse serenamente. Seguiu-se um breve instante de silêncio, quebrado apenas pelo barulho da chuva. Ele achou ter ouvido um galo cantar, ao longe.

- Você disse que sua mãe também morreu. - Rachel olhou para ele, os olhos escuros e meigos. - Seu pai é vivo?

Ele sacudiu a cabeça.

- Vai achar que sou dramático demais - ele disse. - Mas é a verdade, meu pai também morreu no dia em que nasci.

Ela pestanejou.

- É verdade. Ele era uns cinquenta anos mais velho do que minha mãe. Quando soube que ela morrera de par... parto, teve uma apoplexia e morreu na hora. - Ele ficou aborrecido; muito raramente gaguejava agora. Mas ela não notou.

- Então, você também é órfão. Lamento - ela disse em voz baixa. Ele deu de ombros, embaraçado. - Bem. Eu não conheci nem meu pai, nem minha mãe. Mas, na verdade, tive pais. A irmã de minha mãe tornou-se minha mãe, em todos os aspectos. Ela já morreu também, e seu marido... sempre o considerei um pai, embora eu não tenha nenhum parentesco de sangue com ele.

Ocorreu-lhe que estava pisando em terreno perigoso ali, falando demais sobre si mesmo. Limpou a garganta e procurou direcionar a conversa de volta a assuntos menos pessoais.

- Seu irmão. Como ele pretende implementar... hã... essa sua revelação? Ela suspirou.

- Esta casa pertencia a um primo de nossa mãe. Ele era viúvo, sem filhos. Ele deixou a casa para Denzell, apesar de que, quando soube que havíamos sido excluídos da reunião, escreveu dizendo que pretendia alterar o testamento. No entanto, por acaso, ele teve uma febre forte e morreu antes que pudesse fazer isso. Mas todos os seus vizinhos sabiam, é claro, sobre Denny, e é por isso que...

- Compreendo. - Pareceu a William que, embora Deus pudesse não ser lógico, Ele parecia estar demonstrando um interesse muito particular em Denzell Hunter. Mas achou que não seria educado dizer isso e desviou a conversa para outro assunto. - Você disse que a casa foi vendida. Então, seu irmão...

- Ele foi à cidade, ao tribunal, para assinar os documentos da venda da casa e desfazer-se das cabras, porcos e galinhas. Assim que isso for feito, nós... partiremos. - Ela engoliu em seco. - Denny pretende se alistar no Exército Continental como médico.

- E você vai com ele? Como uma acompanhante? - William falou com certo ar de reprovação; muitas mulheres de soldados, ou concubinas, de fato seguiam "o tambor", essencialmente alistando-se no exército com seus maridos. Ele mesmo ainda não vira muitas delas, já que não havia nenhuma na campanha de Long Island, mas ele ouvira seu pai falar dessas mulheres de vez em quando, geralmente com pena. Não era vida para uma mulher refinada.

Ela ergueu o queixo, ao perceber a desaprovação dele.

- Sem dúvida. Havia um longo palito de cabelo sobre a mesa; ela deve tê-lo tirado ao remover a touca. Agora, ela enrolou os cabelos úmidos em um coque e enfiou o palito por ele com determinação.

- Bem - ela disse. - Vai viajar conosco? Somente caso se sinta confortável em fazê-lo - acrescentou rapidamente.

Durante todo o tempo em que conversava, ele ficara remoendo a ideia no fundo da mente. Obviamente, tal arranjo seria vantajoso para os Hunter, um grupo maior sempre era mais seguro, e era evidente para William que, apesar de sua revelação, o médico não era um guerreiro inato. Também haveria, pensou, alguma vantagem para ele próprio. Os Hunter conheciam um pouco da região próxima, ao passo que ele não, e um homem viajando em grupo - especialmente em um grupo que incluía uma mulher - chamava bem menos atenção, e levantava ainda menos suspeitas do que um homem sozinho.

Compreendeu de repente que, se Hunter pretendesse se unir ao Exército Continental de imediato, poderia haver uma excelente oportunidade de se aproximar o suficiente das tropas de Washington para obter informações valiosas sobre elas - algo que compensaria com folga a perda do livro de contatos.

- Sim, claro - ele disse, sorrindo para a srta. Hunter. - Uma excelente sugestão!

O clarão de um relâmpago atingiu repentinamente as frestas das persianas e o estrondo de um trovão irrompeu no alto, quase simultaneamente. Ambos se sobressaltaram com o barulho.

William engoliu em seco, sentindo os ouvidos ainda retinindo. O cheiro penetrante de um raio ardeu no ar.

- Eu faço votos de que isso seja um sinal de aprovação divina. Ela não riu.

 

                   BÊNÇÃO DE SANTA BRÍGIDA E SÃO MIGUEL ARCANJO

Os mohawks o conheciam como Thayendanegea - Duas Apostas. Para os ingleses, ele era Joseph Brant. Ian ouvira falar muito do sujeito quando vivia entre os mohawks, pelos dois nomes, e se perguntara mais uma vez como Thayendanegea conseguia sobreviver no terreno traiçoeiro entre os dois mundos. Seria como a ponte?, pensou repentinamente. A ponte delgada entre este mundo e o próximo, o ar à sua volta assaltado por cabeças voadoras com dentes afiados? Um dia gostaria de sentar-se junto a uma fogueira com Joseph Brant e perguntar-lhe.

Dirigia-se à casa de Brant agora - mas não para conversar com ele. Glutão lhe dissera que Alce do Sol deixara Snaketown para se unir a Brant e que sua mulher fora com ele.

- Estão em Unadilla - Glutão dissera. - Provavelmente ainda lá. Thayendanegea luta com os ingleses, você sabe. Está conversando com os legalistas de lá, tentando convencê-los a se unir a ele e seus homens. Chama-os de "Voluntários de Brant". - Glutão falava descontraidamente; ele não se interessava por política, apesar de lutar de vez em quando, quando o espírito o guiava.

- É mesmo? - Ian disse, no mesmo modo casual. - Bem, então. Não sabia onde exatamente ficava Unadilla, salvo de que era na colônia de Nova York, mas isso não era uma grande dificuldade. Partiu ao amanhecer do dia seguinte, para o norte.

Não tinha nenhuma companhia, salvo o cachorro e seus pensamentos, na maior parte do tempo. Em certo momento, entretanto, chegou a um acampamento de verão dos mohawks e foi alegremente recebido.

Sentou-se com eles, conversando. Após algum tempo, uma jovem lhe trouxe uma tigela de ensopado e ele comeu, mal notando o que havia na comida, embora sua barriga parecesse grata pelo calor do alimento e tivesse parado de roncar.

Não sabia dizer o que atraíra sua atenção, mas ele ergueu os olhos da conversa dos homens e viu a jovem que lhe trouxera a comida sentada nas sombras, logo depois da claridade da fogueira, olhando para ele. Ela sorriu, muito discretamente.

Ele mastigou mais devagar, repentinamente saboreando o ensopado. Carne de urso, gorda e saborosa. Milho e feijões, temperados com cebolas e alho. Delicioso. Ela inclinou a cabeça para o lado; uma sobrancelha escura se ergueu, elegante, depois ela também se levantou, como se içada por sua pergunta.

Ian deixou a tigela e arrotou por educação, em seguida levantou-se e saiu, sem dar nenhuma atenção aos olhares intencionais dos homens com quem estivera comendo.

Ela o esperava, uma mancha clara na sombra de um vidoeiro. Conversaram - ele sentia sua boca formar as palavras, a cócega das palavras dela em seus ouvidos, mas não tinha plena consciência do que diziam. Ele conservava o ardor de sua raiva como um carvão incandescente na palma de sua mão, uma brasa fumegante em seu coração. Não pensava nela como água para esse sentimento abrasador, nem pensou em atiçá-la. Havia chamas por trás dos olhos dele e era descuidado como o próprio fogo, devorando tudo onde houvesse combustível, morrendo onde não houvesse.

Ele a beijou. Ela cheirava a comida, peles de animais curtidas e terra aquecida pelo sol. Nenhuma sugestão de madeira, nenhum vestígio de sangue. Ela era alta; sentiu a maciez de seus seios, pressionados contra ele, abaixou as mãos para a curva dos seus quadris.

Ela encostou-se nele, firme, receptiva. Depois recuou, deixando o ar fresco tocar a pele dele onde ela estivera, e tomou-o pela mão para conduzi-lo à sua cabana. Ninguém olhou para eles quando ela o levou para sua cama e, no calor da semiescuridão, voltou-se para ele, nua.

Ele achou que seria melhor se não pudesse ver seu rosto. Anônimo, rápido, um pouco de prazer para ela, talvez. Catarse, para ele. Ao menos pelos poucos instantes em que ele se deixou perder.

Mas no escuro ela era Emily, e ele fugiu de sua cama envergonhado e furioso, deixando a perplexidade atrás de si.

Pelos doze dias seguintes, ele caminhou, o cachorro a seu lado, sem falar com ninguém.

A casa de Thayendanegea erguia-se sozinha em um amplo terreno, mas ainda bem próxima da vila para fazer parte dela. A vila era como qualquer outra, a não ser pelo fato de que muitas das casas tinham duas ou três mós de pedra na entrada; toda mulher moía farinha para sua família, em vez de levar os grãos a um moinho.

Havia cachorros na rua, cochilando nas sombras das carroças e dos muros. Todos eles sentavam-se, espantados, quando Rollo chegava ao alcance de seus faros. Alguns rosnavam ou latiam, mas nenhum se apresentou para brigar.

Os homens já eram uma outra questão. Havia vários deles apoiados em uma cerca, observando um outro com um cavalo em um campo. Todos lançaram olhares para ele, em parte curiosos, em parte cautelosos. Não conhecia a maioria. Um deles, entretanto, era um sujeito chamado Come Tartarugas, que ele conhecera em Snaketown. Outro era Alce do Sol.

Alce do Sol pestanejou para ele, tão espantado quanto qualquer um dos cachorros, depois se aproximou dele na estrada.

- O que está fazendo aqui? Ele considerou, por uma fração de segundo, dizer a verdade - mas não era uma verdade que pudesse ser dita rapidamente, se é que poderia, e certamente não diante de estranhos.

- Não é da sua conta - respondeu calmamente. Alce do Sol falara com ele em mohawk e ele respondera na mesma língua. Viu sobrancelhas erguerem-se e Tartaruga fez menção de cumprimentá-lo, obviamente esperando dissipar qualquer tormenta que estivesse se formando, deixando claro que o próprio Ian era kahnyen'kehaka. Ele retribuiu a saudação de Tartaruga e os demais recuaram um pouco, intrigados - e interessados - , mas não hostis.

Alce do Sol, por outro lado... Bem, afinal de contas, Ian não esperava que o sujeito fosse se atirar sobre ele. Esperara - até onde ele pensara em Alce do Sol, o que foi bem pouco - que ele estivesse em algum outro lugar, mas ali estava ele, e Ian sorriu amargamente para si mesmo, pensando na velha vovó Wilson, que uma vez descrevera seu genro, Hiram, como parecendo alguém "que não daria a estrada a um urso".

Era uma boa descrição, e o humor de Alce do Sol não melhorou nem com a resposta de Ian, nem com o sorriso subsequente.

- O que você quer?

- Alce do Sol indagou. - Nada que lhe pertença - Ian retrucou, o mais serenamente possível. Os olhos de Alce do Sol se estreitaram, mas antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa Tartaruga interveio, convidando Ian a entrar na casa, para comer e beber.

Devia aceitar. Seria uma ofensa recusar. E ele poderia perguntar, mais tarde, em particular, onde Emily estava. Mas a necessidade que o trouxera por quase quinhentos quilômetros de vastidões inóspitas não reconhecia nenhuma exigência de civilidade. Nem iria tolerar demora.

Além do mais, refletiu, preparando-se, ele sabia que iria chegar a isso. Não fazia sentido adiar.

- Quero falar com aquela que foi minha mulher - ele disse. - Onde ela está?

Vários homens piscaram ao ouvi-lo, interessados ou desconcertados - mas ele viu os olhos de Tartaruga dardejarem na direção dos portões de uma casa grande no final da rua.

Alce do Sol, verdade seja dita, meramente empertigou-se e se plantou com mais firmeza no chão, pronto a desafiar dois ursos, se necessário. Rollo não se preocupou com isso e ergueu o lábio em um rosnado que fez um ou dois homens recuarem prontamente. Alce do Sol, que tinha mais razões do que qualquer outro para saber do que Rollo era capaz, não se moveu nem um centímetro.

- Pretende lançar seu demônio sobre mim? - ele perguntou. - Claro que não. Sheas, a à - disse calmamente a Rollo. O cachorro defendeu sua posição por mais um instante, apenas o suficiente para deixar claro que isso era ideia de seu dono - e depois virou para o lado e se sentou, mantendo, mesmo assim, um rosnado surdo, como um trovão distante.

- Não vim tirá-la de você - Ian disse a Alce do Sol. Tinha a intenção de ser conciliatório, mas não esperara realmente que funcionasse, e não funcionou.

- Acha que poderia? -

Se eu não quero, que diferença faz? - Ian disse com irritação, voltando ao inglês.

- Ela não iria com você, ainda que você me matasse! -

Quantas vezes tenho que dizer que não quero tirá-la de você?

Alce do Sol fitou-o por um instante, os olhos sombrios.

- O bastante para seu rosto dizer o mesmo - ele sussurrou, cerrando os punhos.

Um murmúrio de interesse ergueu-se dos outros homens, mas houve um intangível afastamento. Eles não iriam interferir em uma briga por causa de mulher. Isso era uma bênção, Ian pensou vagamente, observando as mãos de Alce do Sol. O sujeito era destro, ele se lembrava. Havia uma faca em seu cinto, mas sua mão não pairava perto dela.

Ian espalmou as próprias mãos pacificamente.

- Só quero falar com ela.

- Por quê? - Alce do Sol bradou colericamente. Ele estava bastante perto para Ian sentir o borrifo de saliva em seu rosto, mas não o limpou. Também não recuou, e abaixou as mãos.

- Isso é entre mim e ela - ele disse tranquilamente. - Acredito que ela lhe contará depois. - Esse pensamento lhe deu uma pontada no peito. Suas palavras não pareceram convencer Alce do Sol, que sem aviso prévio desfechou um soco em seu nariz.

O golpe reverberou pelos seus dentes superiores e o outro punho de Alce do Sol atingiu-o na maçã do rosto de relance. Ele sacudiu a cabeça para clareála, viu o borrão de movimento através dos olhos lacrimejantes e - mais por sorte do que intenção - chutou Alce do Sol com força entre as pernas.

Ficou parado, ofegante, pingando sangue na estrada. Seis pares de olhos foram dele para Alce do Sol, enroscado no chão de terra, fazendo pequenos ruídos de dor. Rollo levantou-se, aproximou-se do homem caído e cheirou-o com interesse. Todos os olhos voltaram a Ian.

Ele fez um pequeno gesto que trouxe Rollo para perto de si e caminhou pela estrada na direção da casa de Brant, seis pares de olhos fixos em suas costas.

Quando a porta abriu, a jovem mulher branca ali parada fitou-o de boca aberta, os olhos arregalados como duas moedas. Ele estava no ato de limpar o nariz ensanguentado com a barra da camisa. Completou sua ação e inclinou a cabeça civilizadamente.

- Poderia fazer a gentileza de perguntar a Wakyo'teyehsnonhsa se ela gostaria de falar com Ian Murray?

A jovem pestanejou, duas vezes. Em seguida, assentiu e começou a fechar a porta, parando a meio caminho, a fim de olhar para ele outra vez e se certificar de que realmente o vira.

Com uma sensação estranha, ele desceu para o jardim. Era um jardim inglês tradicional, com roseiras, lavanda e caminhos delineados com pedras. Seu perfume o fez lembrar de tia Claire e perguntou-se distraidamente se Thayendanegea havia trazido um jardineiro inglês de Londres.

Havia duas mulheres trabalhando no jardim, a certa distância; uma era uma mulher branca, pela cor dos cabelos sob a touca, e de meia-idade pela inclinação dos ombros - talvez a mulher de Brant?, perguntou-se. A jovem que atendeu à porta seria filha deles? A outra mulher era uma índia, os cabelos em uma trança caindo pelas costas, porém grisalhos. Nenhuma das duas virOu-se para olhar para ele.

Quando ouviu o dique do ferrolho da porta atrás dele, esperou um instante antes de se virar, preparando-se para a decepção de ouvir que ela não estava - ou, pior ainda, que se recusava a vê-lo.

Mas ela estava lá. Emily. Pequena e empertigada, com os seios à mostra, redondos, no decote de um vestido de morim azul, os cabelos compridos presos na nuca, mas descobertos. E seu rosto amedrontado - mas ansioso. Seus olhos se iluminaram de alegria ao vê-lo e ela deu um passo em sua direção.

Ele a teria esmagado contra o peito se ela tivesse vindo até ele, feito qualquer gesto convidando-o a isso. E depois?, perguntou-se vagamente, mas não importava; após aquele primeiro impulso em sua direção, ela parou, as mãos adejando por um instante como se moldassem o ar entre eles, mas a seguir entrelaçando-se com força à sua frente, escondidas nas pregas da saia.

- Irmão do Lobo - ela disse suavemente, em mohawk. - Meu coração se alegra em vê-lo.

- O meu também - ele disse, na mesma língua.

- Veio falar com Thayendanegea? - ela perguntou, inclinando a cabeça para trás na direção da casa.

- Talvez mais tarde. - Nenhum dos dois mencionou seu nariz, apesar de que, pelo latejamento, provavelmente estivesse do dobro do tamanho normal e houvesse sangue por toda a frente de sua camisa. Olhou ao redor; havia um caminho que se afastava da casa e ele o indicou com um sinal da cabeça. - Quer caminhar comigo?

Ela hesitou por um instante. A chama em seus olhos não havia se extinguido, mas ardia brandamente agora; havia outros sentimentos ali - cautela, uma leve inquietação e o que ele achava que seria orgulho. Surpreendeu-se que pudesse ler esses sentimentos com tanta clareza. Era como se ela fosse feita de vidro.

- Eu... as crianças - ela disse de repente, virando-se parcialmente para a casa.

- Não tem importância - ele disse. - Eu só... - O sangue escorrendo de uma das narinas o impediu de continuar e ele parou para passar as costas da mão pelo lábio superior. Ele deu os dois passos necessários para ficarem a uma distância em que poderiam se tocar, embora ele tivesse o cuidado de não tocá-la. - Eu queria lhe dizer que lamento - ele acrescentou formalmente, em mohawk. - Não ter podido lhe dar filhos. E que fico feliz por você os ter.

Um rubor adorável aflorou às suas faces e ele viu o orgulho que ele sentia sobrepujar a aflição.

- Posso vê-los? - ele perguntou, surpreendendo tanto ela quanto a si próprio.

Ela hesitou por um instante, depois se virou e entrou na casa. Ele sentou-se em um muro de pedra, esperando, e ela retornou alguns instantes depois com um menino, de uns cinco anos, e uma menina de mais ou menos três, de tranças curtas, que olhou gravemente para ele e enfiou a mãozinha fechada na boca.

O sangue escorrera pelo fundo de sua garganta; era ácido e tinha gosto de ferro.

De vez em quando, em sua viagem, ele repassara cuidadosamente a explicação que sua tia Claire lhe dera. Não pensando em explicá-la a Emily; poderia não significar nada para ela - ele próprio mal a compreendia. Apenas, talvez, como uma espécie de escudo contra o momento, ao vê-la com os filhos que ele não pôde lhe dar.

"Chame de destino", Claire dissera, fitando-o com os olhos de falcão, aquele que vê lá de cima, tão de cima, talvez, que o que parece falta de misericórdia é na verdade compaixão. "Ou chame de azar Mas não foi culpa sua. Nem dela."

- Venha cá - ele disse em mohawk, estendendo a mão para o menino. Ele olhou para a mãe, mas aproximou-se dele, os olhos erguidos para seu rosto com curiosidade. - Vejo você no rosto dele - ele falou suavemente para ela, falando em inglês. - E nas mãos - acrescentou em mohawk, tomando as mãos da criança, tão pequenas, nas suas. Era verdade: o menino tinha as mãos da mãe, delgadas e flexíveis; fecharam-se como camundongos adormecidos em suas palmas, depois os dedos abriram-se como as pernas de uma aranha e o menino deu uma risadinha. Ele riu também, fechou as próprias mãos rapidamente sobre as do menino, como um urso engolindo um par de trutas, fazendo a criança dar um gritinho, e soltou-as em seguida. - Você está feliz? - ele perguntou a ela.

- Sim - ela disse, brandamente. Abaixou os olhos, sem olhar diretamente em seus olhos, e ele compreendeu que era porque ela respondia honestamente, mas não queria ver se sua resposta o iria magoar. Ele colocou a mão sob seu queixo - sua pele era tão macia! - e ergueu seu rosto.

- Você está feliz? - ele perguntou outra vez, e sorriu ligeiramente ao fazer a pergunta.

- Sim - ela disse novamente. Mas depois deu um pequeno suspiro e sua mão tocou o rosto dele finalmente, leve como a asa de uma mariposa. - Mas às vezes eu sinto sua falta, Ian. - Não havia nada de errado com o sotaque dela, mas seu nome escocês soou impossivelmente exótico em sua língua, sempre fora assim.

Ele sentiu um nó na garganta, mas manteve o leve sorriso no rosto.

- Vejo que não pergunta se eu estou feliz - ele disse, e teve vontade de dar um chute em si mesmo.

Ela lançou-lhe um rápido olhar, penetrante como a ponta de uma faca.

- Eu tenho olhos - ela disse, com simplicidade. Fez-se silêncio entre ambos. Ele desviou o olhar, mas podia senti-la ali, respirando. Madura. Terna. Sentiu-a enternecer-se ainda mais, abrindo-se. Ela fora sensata em não ter entrado com ele no jardim. Ali, com seu filho brincando na terra junto aos seus pés, era seguro. Para ela, ao menos.

- Pretende ficar? - ela perguntou por fim, e ele sacudiu a cabeça.

- Estou de partida para a Escócia - ele disse.

- Terá uma mulher de seu próprio povo. - Havia alívio, mas também pesar, nas palavras dela.

- O seu povo não é mais o meu? - ele perguntou, com um lampejo feroz.

- Eles lavaram o sangue branco do meu corpo no rio, você estava lá.

- Eu estava lá. Ela fitou-o por um longo tempo, analisando seu rosto. Era muito provável que jamais o visse outra vez; será que procurava gravá-lo na memória ou estaria procurando alguma coisa em suas feições?, ele se perguntou.

Esta última hipótese. Ela virou-se abruptamente, erguendo a mão para que ele esperasse, e desapareceu dentro da casa.

A menina correu atrás dela, não querendo ficar com o estranho, mas o menino continuou ali, interessado.

- Você é Irmão do Lobo?

- Sim, sou. E você? - Me chamam de Digger. - Era uma espécie de nome infantil, usado por conveniência até que o verdadeiro nome da pessoa se apresentasse de alguma forma. Ian balançou a cabeça, e permaneceram em silêncio por alguns instantes, olhando com interesse um para o outro, mas sem nenhum constrangimento entre eles. - Aquela que é a mãe da mãe para a minha mãe - Digger disse inesperadamente. - Ela falou de você. Para mim.

- É mesmo? - Ian disse, surpreso. Era Tewaktenyonh. Uma grande mulher, chefe do Conselho de Mulheres em Snaketown, e a pessoa que o mandara embora. - Tewaktenyonh ainda vive? - ele perguntou, curioso.

- Oh, sim. É mais velha do que as montanhas - o menino respondeu gravemente. - Só lhe restam dois dentes, mas ela ainda come.

Ian sorriu.

- Ótimo. O que ela lhe disse sobre mim? O menino contraiu o rosto, tentando se lembrar. - Ela disse que eu era filho do seu espírito, mas que eu não devia dizer isso a meu pai.

Ian sentiu o impacto daquelas palavras, mais forte do que o soco que o pai dele lhe dera, e ficou sem palavras por um momento.

- Sim, também acho que você não deveria contar - ele disse, quando conseguiu falar. Ele repetiu em mohawk, caso o menino pudesse não ter entendido em inglês, e o menino assentiu, tranquilo.

- Vou ficar com você alguma vez? - ele perguntou, apenas vagamente interessado na resposta. Um lagarto aparecera sobre o muro de pedra para tomar sol, e seus olhos estavam fixos nele.

Ian forçou as próprias palavras a parecerem descontraídas.

- Se eu estiver vivo. Os olhos do menino estavam apertados, observando o lagarto, e a pequena mão direita se mexeu, apenas um pouco. Mas a distância era grande demais; ele sabia disso, então olhou para Ian, que estava mais perto. Ian lançou o olhar para o lagarto sem se mover, depois olhou de novo para o menino e um acordo tácito surgiu entre eles. Não se mexa, seus olhos disseram, e o menino pareceu parar de respirar.

Não adiantava pensar em tais situações. Sem parar para inspirar, ele lançou o braço e o lagarto já estava em sua mão, atônito e debatendo-se.

O menino deu uma gargalhada e ficou pulando, batendo palmas de alegria; em seguida, estendeu as mãos e recebeu o lagarto com grande concentração, envolvendo-o com as mãos para que não escapasse.

- E o que pretende fazer com ele? - Ian perguntou, sorrindo. O menino levou o lagarto junto ao rosto, espreitando-o atentamente, e sua testa franziu-se, pensando.

- Vou dar um nome a ele - disse finalmente. - Então, ele será meu e me abençoará quando eu o vir outra vez. - Levantou o lagarto, olhos nos olhos, e cada qual fitou o outro sem piscar.

- Seu nome é Bob - o menino declarou finalmente em inglês e, com grande cerimônia, colocou o lagarto no chão. Bob saltou de suas mãos e desapareceu sob um tronco caído.

- Um nome muito bom - Ian disse com seriedade. Suas costelas machucadas doeram com a necessidade de não rir, mas a vontade desapareceu no momento seguinte, quando a porta distante se abriu e Emily saiu, uma trouxinha nos braços.

Aproximou-se dele e mostrou-lhe um bebê, enrolado e preso a uma espécie de berço portátil para recém-nascidos, bem semelhante à maneira como ele apresentara o lagarto a Digger.

- Esta é minha segunda filha - ela disse, timidamente orgulhosa. - Gostaria de escolher o nome dela?

Ele ficou emocionado e tocou a mão de Emily, muito de leve, antes de colocar o minúsculo berço sobre o joelho e perscrutar atentamente o rostinho. Ela não poderia ter lhe dado maior honra, esta marca permanente do sentimento que um dia nutrira por ele - que ainda podia nutrir.

Mas ao olhar para a garotinha - ela o fitava com olhos redondos e sérios, assimilando aquela nova manifestação de sua paisagem pessoal - uma convicção dominou-o. Ele não a questionou; ela simplesmente estava lá, inegável.

- Obrigado - ele disse, sorrindo para Emily com grande afeto. Colocou a mão, enorme e áspera de calos e de marcas da vida, na cabecinha perfeita, de cabelos finos e macios. - Abençoo todos os seus filhos com as bênçãos de santa Brígida e de são Miguel Arcanjo. - Ergueu a mão, então, e estendendo o braço puxou Digger para ele. - Mas é este aqui a quem eu devo dar um nome.

O rosto de Emily ficou lívido de espanto e ela olhou rapidamente dele para seu filho e de volta para ele. Ela engoliu em seco, visivelmente em dúvida - mas não importava; ele tinha certeza.

- Seu nome é O Mais Rápido dos Lagartos - ele disse, em mohawk. O Mais Rápido dos Lagartos pensou por um instante, depois balançou a cabeça, contente, e com uma risada de puro prazer correu em disparada.

 

                   ABRIGO CONTRA A TORMENTA

Não pela primeira vez, William surpreendeu-se com o número de conhecidos de seu pai. Em uma conversa casual enquanto cavalgavam, ele mencionara a Denzell Hunter que seu pai certa vez conhecera um dr. John Hunter - na realidade, a associação, envolvendo uma enguia elétrica, um duelo improvisado e as implicações de roubo de cadáver, fazia parte da situação que enviara lorde John para o Canadá e as Planícies de Abraão. Seria esse John Hunter talvez o parente caridoso que a srta. Rachel havia mencionado?

Denny Hunter iluminou-se imediatamente.

- Que extraordinário! Sim, deve ser o mesmo. Particularmente, se houver roubo de corpos associado a ele. - Tossiu, parecendo um pouco embaraçado. - Foi uma ligação... muito educativa - Hunter disse. - Embora perturbadora, de vez em quando. - Olhou para trás, para sua irmã, mas Rachel estava bem para trás deles, sua mula trotando vagarosamente e ela própria meio adormecida na sela, a cabeça oscilando como um girassol. - Você compreende, amigo William - Hunter disse, abaixando a voz - , que a fim de se tornar hábil na arte da cirurgia é necessário aprender como o corpo humano é constituído e entender seu funcionamento. Somente assim, pode-se aprender com os textos, e os textos nos quais a maioria dos médicos confia são... bem, para ser franco, são errados.

- Oh, é mesmo? - William só dedicava metade de sua atenção à conversa. A outra metade estava igualmente dividida em sua avaliação da estrada, a esperança de que chegassem a algum lugar habitável a tempo de arranjar um local para jantar e a apreciação da finura do pescoço de Rachel Hunter nas raras ocasiões em que ela seguia à sua frente. Teve vontade de virar-se e olhar para ela outra vez, mas não podia fazê-lo já, em nome do decoro. Mais alguns minutos...

- ...Galeno e Esculápio. A crença comum é, e tem sido por muito tempo, de que os antigos gregos haviam registrado tudo que se conhece em relação ao corpo humano; não havia nenhuma necessidade de duvidar desses textos ou de criar mistério onde não havia nenhum.

William resfolegou ironicamente.

- Você devia ouvir meu tio falar sobre textos militares antigos. Ele é a favor de César, que ele diz que era um general muito honrado, mas se permite duvidar que Heródoto algum dia tenha visto um campo de batalha.

Hunter olhou para ele com surpreso interesse.

- Exatamente o que John Hunter dizia, em termos diferentes, com relação a Avicena! "O sujeito nunca viu um útero grávido na vida." - Ele bateu com o punho contra o cabeçote de sua sela para enfatizar a ideia e seu cavalo ergueu a cabeça com um safanão, assustado. - Ah!, ôa - Hunter disse, alarmado, puxando e soltando as rédeas de uma forma que logo faria o cavalo dar ré e escavar o solo com as patas. William inclinou-se para frente e habilmente tomou as rédeas das mãos de Denzell, deixando-as frouxas.

Ficou satisfeito com a breve distração, já que impediu que Hunter continuasse a discorrer sobre úteros. William não sabia bem o que era um útero, mas, se ficava grávido, devia ter a ver com as partes íntimas de uma mulher, e isso não era algo que William desejasse discutir ao alcance dos ouvidos da srta. Hunter.

- Mas você disse que sua ligação com o dr. Hunter foi perturbadora - ele disse, entregando as rédeas de volta a Hunter e apressando-se a mudar de assunto, antes que o médico pudesse pensar em algo mais embaraçoso para mencionar. - Como foi isso?

- Bem... nós, seus alunos, aprendemos os mistérios do corpo humano com... o corpo humano.

William sentiu um leve aperto na barriga.

- Dissecação, você quer dizer?

- Sim. - Hunter lançou-lhe um olhar, preocupado. - É uma perspectiva desagradável, eu sei, no entanto ver o modo maravilhoso como Deus arrumou as coisas! As complexidades de um rim, o surpreendente interior de um pulmão... William, não tenho como lhe explicar que revelação isso é!

- Bem... sim, imagino que deva ser - William disse, cautelosamente. Agora ele já podia, de forma razoável, olhar para trás, e foi o que fez. Rachel empertigara-se, endireitando as costas, a cabeça inclinada de modo que seu chapéu de palha caiu para trás, o sol no rosto, e ele sorriu. - Você... hã.... onde conseguia os corpos para dissecar?

O dr. Hunter suspirou.

- Esse era o aspecto perturbador. Muitos eram mendigos das ruas ou dos asilos, e suas mortes eram dignas de pena. Mas muitos eram os corpos de criminosos executados. E, apesar de dever ficar satisfeito que algum bem tenha vindo de suas mortes, eu não podia deixar de ficar horrorizado com essas execuções.

- Por quê? - William perguntou, interessado.

- Por quê? - Hunter pestanejou para ele por trás dos óculos, mas depois sacudiu a cabeça, como se afastasse moscas. - Mas eu me esqueço de que você não é um dos nossos, perdoe-me. Nós não toleramos violência, amigo William, e certamente não matar alguém.

- Nem mesmo criminosos? Assassinos? Os lábios de Denzell se comprimiram e ele pareceu infeliz, mas sacudiu a cabeça.

- Não. Que sejam encarcerados ou condenados a trabalhos forçados. Mas o próprio Estado cometer assassinato é uma terrível violação dos mandamentos de Deus; implica todos nós no cometimento desse pecado. Não vê isso?

- Vejo que o Estado, como você diz, tem responsabilidade para com seus cidadãos - William disse, um pouco irritado. - Você espera que policiais e juízes cuidem para que você e sua propriedade tenham segurança, não é? Se o Estado tem essa responsabilidade, certamente deve ter os meios de cumpri-la.

- Não contesto isso, prendam-se os criminosos, se necessário, como eu disse. Mas o Estado não tem o direito de matar pessoas em meu nome!

- Não tem? - William retrucou secamente. - Você tem alguma ideia da natureza de alguns desses criminosos que são executados? Ou de seus crimes?

- E você tem? - Hunter ergueu a sobrancelha para ele.

- Tenho, sim. O diretor da penitenciária de Newgate é um conhecido, outro conhecido, do meu pai; já me sentei à mesa com ele e ouvi histórias que deixariam os cachos de sua peruca em pé, dr. Hunter. Se usasse uma - acrescentou.

Hunter respondeu ao gracejo com um sorriso fugaz.

- Chame-me pelo primeiro nome - ele disse. - Sabe que não nos apegamos a títulos. E admito a verdade do que você diz. Eu ouvi, e vi, coisas mais terríveis do que você provavelmente ouviu à mesa do seu pai. Mas a justiça está nas mãos de Deus. Cometer violência, tirar a vida de alguém, é violar a lei de Deus e cometer um grave pecado.

- E se você for atacado, ferido, não vai revidar? - William perguntou. - Não podem se defender? Nem defender suas famílias?

- Nós confiamos na bondade e na misericórdia divinas - Denzell disse com firmeza. - E, se somos mortos, morremos na firme expectativa da vida e da ressurreição de Deus.

Cavalgaram em silêncio por alguns instantes antes de William dizer de forma coloquial:

- Ou você confia na disposição de outra pessoa de cometer violência por você.

Denzel inspirou fundo, instintivamente, mas achou melhor não dizer o que pensara em dizer. Continuaram em silêncio por algum tempo e quando falaram outra vez foi a respeito de pássaros.

Chovia quando acordaram na manhã seguinte. Não uma chuvarada rápida, que cai e logo desaparece, mas um tipo de chuva implacável, pesada, disposta a cair sem parar pelo resto do dia. Não adiantava permanecer onde estavam; o afloramento de rocha sob o qual haviam se abrigado para passar a noite ficava diretamente exposto ao vento e a chuva já umedecera suficientemente a lenha para fazer com que a fogueira do café da manhã liberasse muito mais fumaça do que calor.

Ainda com acessos de tosse intermitentes, William e Denny carregaram a mula enquanto Rachel enrolava em lona um feixe de galhos e gravetos menos úmidos. Se encontrassem abrigo ao cair da noite, poderiam ao menos ser capazes de acender uma fogueira para cozinhar o jantar, ainda que a chuva continuasse.

Havia pouca conversa. Ainda que estivessem inclinados a isso, o barulho da chuva pesada sobre as árvores e o solo e sobre seus chapéus era tão forte que qualquer coisa dita tinha que ser quase gritada para ser ouvida.

Em um estado de determinação encharcada, mas obstinada, cavalgaram devagar para o norte pelo nordeste, Denny ansiosamente consultando sua bússola quando chegaram a uma encruzilhada.

- O que acha, amigo William? - Denny tirou os óculos e limpou-os, sem grande sucesso, na barra do casaco. - Nenhuma das estradas segue exatamente como gostaríamos e o amigo Lockett não mencionou esta encruzilhada em suas instruções. Aquela - apontou para a estrada que atravessava a que estavam - parece ir para o norte, enquanto esta deve ir para leste. No momento. - Ele olhou para William, o rosto estranhamente despido sem os óculos.

Um fazendeiro chamado Lockett e sua mulher haviam sido seu último contato com a raça humana, há três dias. Ela lhes dera uma refeição, vendera-lhes pão, ovos e queijo, e o marido os colocara na estrada - para Albany, ele dissera; eles deveriam encontrar uma indicação do Exército Continental em algum lugar entre a fazenda e Albany. Mas ele não mencionara uma encruzilhada.

William olhou para o chão lamacento, mas a encruzilhada propriamente dita ficava em um terreno baixo e agora não passava de um pequeno lago. Nenhuma pista quanto ao movimento de tráfego, mas a estrada em que estavam era bem mais larga do que a estrada que a cruzava.

- Esta - ele disse com firmeza e fez o cavalo avançar chapinhando pelo lago até o outro lado.

Agora já era final de tarde e ele começava a ficar preocupado com sua decisão. Se estivessem na estrada certa, deveriam, segundo o sr. Lockett, encontrar um vilarejo chamado Johnson's Ford ao final do dia. Claro, a chuva os atrasara, disse a si mesmo. E, apesar do campo parecer vazio e verde como sempre, vilarejos e casas de fazendas realmente surgiam tão repentinamente quanto cogumelos após um dia chuvoso. Nesse caso, deveriam encontrar Johnson's Ford a qualquer momento.

- Talvez o lugar tenha se dissolvido - Rachel inclinou-se para fora da sua cela para gritar para ele. A própria Rachel já quase se dissolvera, e ele riu, apesar de sua preocupação. A chuva arriara a aba de seu chapéu de palha, de modo que ele pendia flácido como um espanador ao redor de sua cabeça; ela era obrigada a levantar a frente da aba a fim de espreitar para fora, como um sapo desconfiado embaixo de um restelo. Suas roupas também estavam encharcadas e, como ela usava três camadas de tudo, não parecia mais do que uma trouxa grande e desfeita de roupa lavada, que acabava de ser tirada, fumegante, da tina.

Mas antes que pudesse responder seu irmão empertigou-se na sela, espalhando água em todas as direções, e apontou dramaticamente para um ponto mais abaixo na estrada.

- Vejam! William virou a cabeça abruptamente, presumindo que seu destino estava à vista. Não estava, mas a estrada já não estava vazia. Um homem caminhava energicamente na direção deles pela lama, um saco de aniagem aberto protegendo a cabeça e os ombros da chuva. No atual estado de desolação, qualquer coisa humana era uma visão de alegrar os olhos e William esporeou um pouco o cavalo para saudar o sujeito.

- Olá, rapaz - disse o sujeito, espreitando William de seu refúgio de aniagem. - Pra onde vão, neste dia horrível? - Ergueu o lábio numa tentativa de parecer simpático, exibindo um canino quebrado, manchado de tabaco.

- Johnson's Ford. Estamos na direção certa?

O homem recuou um passo, como se estivesse perplexo.

- Johnson's Ford, foi o que disse?

- Sim - William confirmou, com certa dose de impaciência. Ele compreendia a solidão da vida no interior e o impulso subsequente dos habitantes de deter os viajantes o maior tempo possível, mas aquele não era o dia para isso. - Onde fica?

O homem sacudiu a cabeça para frente e para trás devagar, em desalento.

- Receio que perdeu o lugar onde devia virar, senhor. Devia ter pego à esquerda na encruzilhada.

Rachel fez um pequeno som de pesar. A luz já começava a amortecer, sombras começando a se formar ao redor das patas dos cavalos. Eram várias horas de cavalgada de volta à encruzilhada; não podiam esperar chegar lá antes do cair da noite, muito menos alcançar Johnson's Ford.

O homem obviamente percebeu isso também. Sorriu alegremente para William, revelando uma ampla extensão de gengiva marrom.

- Se os cavalheiros me ajudarem a pegar minha vaca e levá-la para casa, a mulher terá prazer em lhes oferecer cama e comida.

Não havendo alternativa razoável, William aceitou a sugestão com toda a elegância possível e, deixando Rachel abrigada sob uma árvore com os animais, ele e Denny Hunter foram ajudar a pegar a vaca.

A vaca em questão, um animal peludo e descarnado com um olhar maligno, mostrou ser tanto intratável quanto teimosa, e foi necessária a combinação dos talentos dos três homens para capturá-la e arrastá-la para a estrada. Encharcado até a pele e coberto de lama, o grupo estropiado seguiu o sr. Antioch Johnson - pois assim seu anfitrião se apresentara - através das crescentes sombras da noite até uma pequena casa caindo aos pedaços.

A chuva, entretanto, continuava a cair torrencialmente e qualquer teto era bem-vindo, vazando ou não.

Verificou-se que a sra. Johnson era uma mulher desleixada e maltrapilha de idade incerta, com menos dentes ainda do que o marido e um temperamento ainda mais mal-humorado. Ela fitou os hóspedes encharcados com raiva e deu-lhes as costas rudemente, mas trouxe tigelas de madeira com um infame ensopado solidificado - e havia leite fresco da vaca. William notou que Rachel deu apenas uma única mordida na comida, empalideceu, tirou alguma coisa da boca e largou a colher, depois do que se restringiu ao leite.

Ele próprio estava faminto demais tanto para sentir o gosto do ensopado quanto para se importar com o que havia dentro dele - e, felizmente, estava escuro demais para examinar o conteúdo da tigela.

Denny esforçava-se para ser sociável, embora oscilasse de cansaço, respondendo às infindáveis perguntas sobre suas origens, jornada, destino, conexões, notícias da estrada e opiniões e novidades relativas à guerra. Rachel tentava um sorriso de vez em quando, mas seus olhos não paravam de percorrer nervosamente o ambiente, retornando invariavelmente para a anfitriã, sentada em um canto, seus próprios olhos encobertos, cismando sobre um fumegante cachimbo de barro pendurado sobre um flácido lábio inferior.

Com a barriga cheia e meias secas, William começou a sentir o preço dos extenuantes esforços do dia. Havia um bom fogo na lareira e o movimento das chamas o embalou em uma espécie de transe, as vozes de Denny e do sr. Johnson desaparecendo em um murmúrio agradável. Ele teria adormecido ali mesmo, se o ruído de Rachel levantando-se para ir à latrina não tivesse quebrado o transe, fazendo-o lembrar que deveria ir verificar os cavalos e mulas. Ele os havia enxugado da melhor forma possível e pago ao sr. Johnson por feno, mas não havia nenhum estábulo verdadeiro para abrigá-los, apenas um rústico teto de galhos assentados sobre estacas finas. Ele não queria que ficassem a noite inteira de pé na lama caso o abrigo inundasse.

Ainda chovia, mas o ar do lado de fora estava límpido e fresco, repleto do cheiro noturno de árvores, mato e água em precipitação. Após o ar abafado de dentro da casa, William sentiu-se quase zonzo com a fragrância. Encolheu-se e atravessou a chuva até o abrigo, fazendo o melhor possível para manter acesa a pequena tocha que levara, desfrutando cada respiração.

A tocha bruxuleava, mas continuou queimando, e ele ficou satisfeito de ver que o abrigo não inundara; os cavalos e mulas - e a vaca de olhos arregalados - estavam todos em pé sobre palha úmida, mas não enfiados na lama até o jarrete. A porta da latrina rangeu e ele viu a figura escura e delgada de Rachel emergir. Ela viu a tocha e foi até ele, enrolando o xale ao redor do corpo para se proteger da chuva.

- Os animais estão bem? - Gotas de chuva cintilavam em seus cabelos e ela sorriu para ele.

- Espero que a comida deles tenha sido melhor do que a nossa. Ela estremeceu à lembrança. - Eu teria preferido comer feno. Você viu o que havia...

- Não - ele interrompeu - e ficarei muito mais feliz se você não me contar. Ela resfolegou com desdém, mas desistiu. Ele não tinha a menor vontade de voltar para dentro da fétida casa imediatamente e Rachel parecia com igual disposição, adiantando-se para afagar as orelhas arriadas de sua mula.

- Não gosto da maneira como aquela mulher olha para nós - Rachel disse após um instante, sem olhar para ele. - Ela não tira os olhos dos meus sapatos. Como se imaginasse se caberiam nela.

O próprio William olhou para os pés de Rachel; seus sapatos não eram de modo algum elegantes, mas eram fortes e de boa qualidade, apesar de gastos e sujos de lama seca.

Rachel olhou com inquietação para a casa.

- Vou ficar contente de ir embora daqui, ainda que continue a chover pela manhã.

- Iremos embora - ele assegurou-lhe. - Sem esperar pelo café da manhã, se preferir. - Recostou-se contra uma das estacas que suportava o abrigo, sentindo a névoa fria da chuva em seu pescoço. A sensação de tontura o deixara, embora o cansaço não, e ele percebeu que compartilhava sua sensação de mal-estar.

O sr. Johnson parecia amável, apesar de estranho, mas havia algo quase ansioso demais em seus modos. Ele se inclinava avidamente para frente na conversa, os olhos brilhantes, e suas mãos encardidas não sossegavam em seus joelhos.

Podia ser apenas reflexo da solidão natural de um homem sem companhia - pois certamente a presença da emburrada sra. Johnson seria de pouco consolo - , mas o pai de William o ensinara a prestar atenção a seus instintos, e portanto ele não tentava descartá-los. Sem comentários ou pedido de licença, ele remexeu no alforje pendurado na estaca e encontrou a pequena adaga que carregava na bota quando estava cavalgando.

Os olhos de Rachel seguiram seus movimentos quando ele enfiou a adaga no cós de suas calças e soltou mais a camisa para escondê-la. Ela contraiu o queixo, mas não protestou. A tocha começava a falhar, quase extinta. Ele estendeu o braço e Rachel tomou-o sem protestar, aconchegando-se contra ele. Teve vontade de passar o braço ao seu redor, mas contentou-se em aproximar o cotovelo do corpo, achando conforto no calor distante de seu corpo.

O vulto da casa da fazenda era mais escuro do que a noite, não tendo nem porta, nem janela nos fundos. Deram a volta à casa em silêncio, a chuva batendo em suas cabeças, os pés chapinhando no chão encharcado. Somente uma luz trêmula aparecia por baixo das persianas, uma indicação mínima da presença de ocupantes. Ouviu Rachel engolir em seco e tocou sua mão de leve ao abrir a porta para ela.

- Durma bem - sussurrou-lhe. - O dia vai amanhecer antes que você se dê conta.

Foi o ensopado que salvou sua vida. Ele adormeceu quase instantaneamente, dominado pelo cansaço, mas seu sono foi perturbado por sonhos abomináveis. Ele caminhava por um corredor com um tapete turco decorado com figuras, mas percebeu após algum tempo que aquilo que ele tomava por arabescos no tapete eram de fato cobras, que erguiam as cabeças, oscilando, à sua aproximação. As cobras moviam-se devagar e ele conseguia passar por cima delas, mas em consequência lançava-se de um lado para o outro, batendo nas paredes do corredor, que pareciam se fechar sobre ele, estreitando o caminho.

Então, ficou tão enclausurado que teve que continuar avançando de lado, a parede atrás dele roçando suas costas, a superfície de argamassa à sua frente tão próxima que ele não podia abaixar a cabeça para olhar para baixo. Estava preocupado com as cobras no tapete, mas não podia vê-las, e chutava para os lados, de vez em quando atingindo algo pesado. Em pânico, sentiu uma delas enroscar-se em sua perna, depois deslizar para cima, enrolando-se ao redor de seu corpo e enfiando a cabeça pela frente de sua camisa, sondando-o com força e dolorosamente no abdômen, procurando um lugar para morder.

Acordou repentinamente, ofegante e suado, cônscio de que a dor em suas entranhas era real. Sua barriga contraiu-se com um espasmo agudo e ele ergueu as pernas e rolou de lado um segundo antes de o machado atingir as tábuas do assoalho onde sua cabeça acabara de estar.

Soltou uma ruidosa ventosidade e rolou em um pânico cego na direção da figura escura que lutava para arrancar o machado da madeira. Atingiu as pernas de Johnson, agarrou-as e deu um puxão. O sujeito caiu sobre ele com uma imprecação e agarrou-o pela garganta. William socava e chutava seu adversário, mas as mãos em sua garganta agarravam-no com toda a força e sua visão escurecia e lampejava com luzes multicoloridas.

Havia uma gritaria em algum lugar próximo. Mais por instinto do que planejamento, William lançou-se repentinamente para frente, dando uma cabeçada no rosto de Johnson. Doeu, mas o aperto em sua garganta afrouxou; contorceu-se para se livrar de seu atacante e rolou sobre o corpo, pondo-se de pé atabalhoadamente.

O fogo reduzira-se a brasas quase extintas e não havia mais do que uma leve claridade no aposento. Um aglomerado de corpos arfantes no canto era a fonte da gritaria, mas não havia nada que ele pudesse fazer a respeito.

Johnson conseguiu soltar o machado com um chute; William viu o brilho opaco da lâmina na fração de segundo antes que Johnson o brandisse e desfechasse um golpe procurando atingir sua cabeça. Ele agachou-se, arremeteu-se para a frente e conseguiu agarrar o pulso de Johnson, puxando-o com força. O lado da lâmina do machado ao cair bateu em seu joelho com uma pancada paralisante, e ele desmoronou, levando Johnson com ele, mas levantou o outro joelho a tempo de não ser achatado embaixo do corpo do adversário.

Deu um safanão para o lado, sentiu um calor repentino nas costas e o estalido de fagulhas; haviam rolado para a borda da lareira. Ele estendeu a mão para trás, agarrou um punhado de carvão em brasa, que esfregou no rosto de Johnson, ignorando a dor lancinante na palma de sua mão.

Johnson caiu para trás, segurando o rosto e fazendo ruídos curtos, como se não tivesse fôlego para gritar. O machado pendia de uma de suas mãos; ele percebeu que William se levantava e girou-o cegamente, com apenas uma das mãos.

William agarrou o cabo do machado, arrancou-o da mão de Johnson, segurou-o firmemente com as duas mãos e lançou-o para baixo, atingindo a cabeça de Johnson com um barulho oco como o de uma abóbora chutada. O impacto vibrou através de suas mãos e de seus braços; soltou-o e cambaleou para trás.

Sua boca estava cheia de bílis; a saliva escorreu e ele limpou a boca na manga da camisa. Respirava como um fole, mas parecia não conseguir levar nenhum ar aos pulmões.

Johnson girou em sua direção, os braços estendidos, o machado cravado em sua cabeça. O cabo tremia, balançando de um lado para o outro como uma antena de inseto. Devagar, horrendamente, as mãos de Johnson levantaram-se tentando segurá-lo.

William tinha vontade de gritar, mas não tinha fôlego para isso. Recuando em pânico, roçou a mão pelas calças e sentiu o lugar úmido. Olhou para baixo, temendo o pior, mas viu o tecido escuro de sangue e ao mesmo tempo percebeu que havia uma sensação levemente ardente no alto de sua coxa.

- Maldição - murmurou, tateando na cintura. Ele conseguira ferir-se com a própria adaga, mas ela ainda estava lá, graças a Deus. A sensação do cabo em sua mão o reequilibrou e ele sacou a adaga, ainda recuando, enquanto Johnson vinha em sua direção, emitindo uma espécie de uivo, puxando o cabo do machado.

O machado se soltou, liberando um jato de sangue que escorreu pelo rosto de Johnson e espalhou-se no rosto, nos braços e no peito de William. Johnson brandiu o machado com um acesso de fúria e esforço, mas seus movimentos eram lentos e descoordenados. William desviou-se para o lado, soltando gases com o movimento, mas recobrando o sangue-frio. Agarrou com mais força o cabo da adaga e buscou um lugar onde enfiá-la. Nas costas, sua mente sugeriu. Johnson passava o braço inutilmente pelo rosto, tentando limpar os olhos, o machado na outra mão, balançando-se de um lado para o outro em amplos e trêmulos movimentos.

- William! - Surpreso com a voz, olhou para o lado e quase foi atingido pela lâmina vacilante.

- Cale-se - ele disse, irritado.

- Estou ocupado.

- Sim, posso ver - disse Denny Hunter. - Deixe-me ajudá-lo. - Ele estava quase tão lívido e trêmulo quanto Johnson, mas deu um passo à frente, com uma investida repentina, apoderou-se do cabo do machado e arrancou o instrumento da mão de Johnson. Recuou e soltou-o no chão com uma pancada surda, parecendo que iria vomitar a qualquer instante.

- Obrigado - William disse. Ele deu um passo à frente e enfiou a adaga para cima sob as costelas de Johnson, em seu coração. Os olhos de Johnson se arregalaram com o choque e olharam diretamente nos de William. Eram azulacinzentados, com partículas douradas e amarelas espalhadas ao redor da íris escura. William nunca vira nada tão bonito e ficou paralisado por um instante, até que a sensação do sangue jorrando sobre sua mão o fez voltar a si.

Soltou a faca com um puxão e recuou, deixando o corpo cair. Tremia de cima a baixo e estava prestes a defecar nas calças. Virou-se cegamente e arremeteu-se para a porta, roçando em Denny ao passar, o qual disse alguma coisa que ele não entendeu bem.

No entanto, tremendo e arquejando na latrina, achou que o médico dissera: "Você não precisava ter feito isso."

Sim, pensou, precisava, e abaixou a cabeça sobre os joelhos, esperando que tudo se acalmasse.

William emergiu finalmente de dentro da latrina, sentindo-se suado e pegajoso, as pernas trôpegas, porém menos volátil internamente. Denny Hunter passou correndo por ele e entrou na casinhola, de onde se ouviram imediatamente barulhos explosivos e gemidos altos. Afastando-se depressa, andou pela chuva intermitente na direção da casa.

A aurora ainda estava distante, mas o ar começava a se agitar e a casa destacava-se contra o céu que empalidecia, negra e esquelética. Entrou, sentindo-se muito inseguro, e encontrou Rachel, branca como um osso, vigiando com uma vassoura a sra. Johnson, firmemente enrolada em um lençol imundo, debatendo-se um pouco e fazendo estranhos ruídos sibilantes e de cuspe.

O cadáver de seu marido jazia de barriga para baixo junto à lareira em uma poça de sangue coagulado. Ele não queria olhar o corpo, mas sentiu que de certo modo seria errado não o fazer, e foi postar-se ao lado dele por um instante, olhando para baixo. Um dos Hunter havia atiçado o fogo e acrescentado lenha; havia calor no aposento, mas ele não conseguia senti-lo.

- Está morto - Rachel disse, a voz monótona.

- Sim. - Ele não sabia como deveria se sentir em tal situação e não tinha nenhuma ideia real de como na verdade se sentia. No entanto, virou-se, com uma leve sensação de alívio, e olhou para a prisioneira.

- Ela...? - Ela tentou cortar a garganta de Denny, mas pisou na minha mão e me acordou. Vi a faca e gritei, e ele agarrou-a, e... - Ela passou a mão pelos cabelos e ele viu que ela havia perdido a touca e que seus cabelos estavam soltos e emaranhados. - Sentei em cima dela - disse - e Denny enrolou-a no lençol. Acho que ela não consegue falar - Rachel acrescentou quando ele inclinou-se para a mulher. - Sua língua é fendida.

A sra. Johnson, ouvindo isso, colocou a língua para fora vingativamente e sacudiu as duas metades independentes para ele. Com a lembrança das cobras de seus sonhos vívida em sua mente, ele encolheu-se instintivamente de repugnância, mas viu o ar de satisfação que cruzou o rosto da mulher.

- Se ela consegue fazer isso com sua língua repulsiva, ela consegue falar - ele disse e, estendendo a mão, agarrou a garganta magra da mulher. - Diga-me por que eu não deveria matá-la também.

- Não tenho culpa! - ela disse prontamente, com um silvo tão áspero que ele quase a soltou com o choque. - Ele me fazzz ajudar.

William olhou por cima do ombro para o corpo junto à lareira.

- Não mais. - Ele apertou a mão na garganta da sra. Johnson, as batidas de sua pulsação contra seu polegar. - Quantos viajantes vocês mataram, os dois juntos?

Ela não respondeu, mas tocou o lábio superior lascivamente com a língua, primeiro uma das metades, depois a outra. Ele soltou seu pescoço e esbofeteou-a com força. Rachel soltou uma arfada.

- Você não deve...

- Oh, sim, devo. - Ele esfregou a mão pela lateral da calça, tentando se livrar da sensação do suor da mulher, de sua pele flácida, sua garganta ossuda. Sua outra mão começava a latejar dolorosamente. Teve a súbita vontade de pegar o machado e golpeá-la sucessivas vezes, esmagar sua cabeça, cortá-la em pedacinhos. Seu corpo tremia com o impulso; ela viu isso nos olhos dele e encarou-o, os olhos negros e brilhantes. - Não quer que eu a mate? - ele perguntou a Rachel.

- Você não deve fazer isso - ela sussurrou. Muito devagar, ela estendeu o braço para sua mão queimada e, quando ele não a retirou, ela tomou-a na sua. Havia uma zoada em seus ouvidos e ele se sentia tonto.

- Você está ferido - ela disse suavemente. - Vamos lá fora. Vou lavar o ferimento.

Conduziu-o para fora, quase cego e tropeçando, e o fez se sentar no tronco de cortar lenha enquanto trazia um balde de água da tina. Parara de chover, embora o mundo inteiro gotejasse e o ar do amanhecer fosse úmido e fresco em seu peito. Rachel lavou sua mão na água fria e a sensação de ardência diminuiu um pouco. Ela tocou em sua coxa, onde o sangue secara em uma longa mancha pelas suas calças, mas não fez nada quando ele abanou a cabeça.

- Vou lhe trazer uísque. Temos um pouco na sacola de Denny. - Levantou-se, mas ele agarrou seu pulso com a outra mão, segurando-a com força.

- Rachel. - Sua própria voz soou estranha para ele, remota, como se outra pessoa estivesse falando - Nunca matei ninguém antes. Eu não... não sei exatamente o que fazer a respeito disso. - Ergueu os olhos para ela, buscando compreensão em seu rosto. - Se tivesse sido... eu esperava que isso acontecesse numa batalha. Isso... eu acho que saberia como. Como me sentir, quero dizer. Se tivesse sido assim.

Ela fitou-o nos olhos, o rosto tenso, perturbado. A luz tocou em seu rosto, um tom rosado mais suave do que o lustre de pérolas, e após um longo tempo ela pôs a mão em seu rosto, muito delicadamente.

- Não - ela disse. - Não saberia.

 

                                                                                Diana Gabaldon  

 

                      

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