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ECOS DO FUTURO Vol.II - P.2 / Diana Galbadon
ECOS DO FUTURO Vol.II - P.2 / Diana Galbadon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ECOS DO FUTURO

Volume II

Segunda Parte

 

                                                           DE VOLTA PARA CASA

 

                     UM ESTADO DE CONFEITO

10 de setembro de 1777

John Grey viu-se imaginando quantas alternativas um dilema podia ter. Duas, ele achava, era o número padrão, mas supondo que fosse teoricamente possível encontrar uma forma mais exótica de dilema...

   A alternativa mais premente disposta diante dele no momento dizia respeito a Henry.

   Ele havia escrito a Jamie Fraser, explicando o estado de Henry e perguntando se a sra. Fraser poderia considerar sua vinda. Havia, o mais delicadamente possível, lhe assegurado sua disposição de pagar todas as despesas da jornada, providenciar sua viagem em ambas as direções de navio (com proteção contra as emergências de guerra até onde a Marinha Real poderia proporcioná-la) e fornecer-lhe qualquer material e instrumento de que ela pudesse precisar. Ele havia até chegado a encomendar uma quantidade de vitríolo, que ele se lembrava de ela precisar para a produção de seu éter.

   Ele passara um bom tempo com a pena suspensa sobre a página, imaginando se deveria acrescentar alguma coisa referente a Fergus Fraser, o tipógrafo, e a incrível história que Percy lhe contara. Por um lado, isso poderia trazer Jamie Fraser correndo da Carolina do Norte para investigar o assunto, aumentando, assim, as chances de a sra. Fraser vir também. Por outro... tinha muita relutância em expor qualquer assunto que tivesse a ver com Percy Beauchamp para Jamie Fraser, por diversas razões, tanto pessoais quanto profissionais. No final, ele não mencionou nada sobre isso e fez seu apelo somente em nome de Henry.

   Grey esperara ansiosamente um mês inteiro, observando seu sobrinho sofrer de calor e inanição. No final do mês, o mensageiro pelo qual enviara sua carta à Carolina do Norte retornou, banhado de suor, coberto de lama seca e com dois buracos de bala no casaco, para informar que os Fraser haviam deixado Fraser's Ridge com a declarada intenção de viajar para a Escócia, acrescentando ainda assim que essa viagem teria apenas o caráter de uma visita, e não de Uma emigração definitiva.

   Ele havia arranjado um médico para visitar Henry, é claro, sem esperar pela resposta da sra. Fraser. Conseguira se apresentar a Benjamin Rush e fazer com que o médico examinasse seu sobrinho. O dr. Rush se mostrou muito circunspecto, mas animador, dizendo que acreditava que uma das balas de mosquete, Pelo menos, havia criado uma cicatriz, obstruindo parcialmente os intestinos de Henry e propiciando a formação de um foco localizado de sépsis, causando infecção e febre permanentes. Ele sangrou Henry e prescreveu um febrífugo, mas advertiu Grey de que o quadro era delicado e poderia piorar repentinamente; somente uma intervenção cirúrgica permitiria a cura.

   Ao mesmo tempo, ele disse que realmente acreditava que Henry fosse bastante forte para sobreviver a tal cirurgia - apesar de não haver nenhuma garantia de um resultado feliz. Grey agradeceu ao dr. Rush, mas resolveu esperar mais um pouco, na esperança de ter notícias da sra. Fraser.

   Olhou pela janela da casa que alugou na rua Chestnut, observando folhas marrons e amarelas cruzando a rua de um lado para o outro entre as pedras do calçamento, levadas por um vento aleatório.

   Era meado de setembro. Os últimos navios partiriam para a Inglaterra no final de outubro, logo à frente das tormentas do Atlântico. Deveria tentar embarcar Henry em um deles?

   Ele travara conhecimento com o oficial americano local encarregado dos prisioneiros de guerra alojados na Filadélfia e fez uma solicitação de livramento condicional. O pedido foi atendido sem dificuldade; oficiais capturados normalmente obtinham liberdade condicional, a não ser que houvesse algo extraordinário ou perigoso a respeito deles, e obviamente era improvável que Henry tentasse fugir, fomentar rebelião ou apoiar manifestações rebeldes em seu estado atual.

   Mas ele ainda não conseguira uma troca para Henry. A condição de troca permitiria que Grey o transportasse de volta à Inglaterra. Sempre presumindo que a saúde de Henry aguentasse a viagem e que o próprio Henry quisesse ir. O que provavelmente não aguentaria, nem Henry iria querer, estando tão ligado à sra. Woodcock. Grey estava plenamente disposto a levá-la para a Inglaterra também, mas ela não pensaria em ir embora, já que ouvira dizer que seu marido fora feito prisioneiro em Nova York.

   Grey esfregou dois dedos entre as sobrancelhas, suspirando. Poderia forçar Henry a subir a bordo de um navio da marinha contra a sua vontade - drogado, talvez? - assim infringindo sua liberdade condicional, arruinando sua carreira e colocando sua vida em perigo, na suposição de que Grey pudesse encontrar um cirurgião na Inglaterra mais capaz do que o dr. Rush de lidar com a situação? O melhor que se podia esperar de tal linha de ação era que Henry sobrevivesse à viagem o tempo suficiente para se despedir de seus pais.

   Mas, se ele não desse esse passo drástico, restaria apenas a opção de forçar Henry a se submeter a uma terrível cirurgia que ele temia desesperadamente e que provavelmente o mataria - ou ficar vendo o rapaz morrer aos poucos. Porque ele estava morrendo; Grey via isso claramente. Absoluta teimosia e os cuidados da sra. Woodcock eram tudo que o mantinha vivo.

   A ideia de ter que escrever a Hal e Minnie e lhes contar... Não. Levantou-se abruptamente, incapaz de suportar mais indecisão. Iria visitar o dr. Rush imediatamente e tomar providências...

   A porta da frente abriu-se com estrondo, deixando entrar uma rajada de vento, folhas mortas e sua sobrinha, pálida e assustada.

   - Dottie! - Seu primeiro e excruciante temor foi de que ela viesse correndo para casa para lhe dizer que Henry havia morrido, pois fora visitar o irmão como fazia toda tarde.

   - Soldados! - exclamou, arfando, agarrando-o pelo braço. - Há soldados na rua. Batedores. Alguém disse que o exército de Howe está a caminho! Avançando para a Filadélfia!

Howe encontrou o exército de Washington em Brandywine Creek em 11 de setembro, um pouco ao sul da cidade. As tropas de Washington tiveram que retroceder, mas conseguiram se reorganizar e fincar posição alguns dias mais tarde. Entretanto, uma tempestade terrível irrompeu no meio da batalha, colocando um ponto final nas hostilidades e permitindo que o exército de Washington fugisse para Reading Furnace, deixando uma pequena tropa para trás sob o comando do general Anthony Wayne em Paoli.

   Um dos comandantes de Howe, o general de divisão lorde Charles Grey - um primo distante de Grey - atacou os americanos em Paoli à noite, com ordens às suas tropas de retirar as pederneiras de seus mosquetes. Isso evitava que fossem descobertos por causa do disparo acidental de uma arma, mas também obrigava os homens a usarem baionetas. Inúmeros americanos foram mortos a baioneta em suas camas, suas barracas incendiadas, cerca de cem homens foram feitos prisioneiros - e Howe avançou sobre a cidade de Filadélfia, triunfante, em 21 de setembro.

   Da varanda da casa da sra. Woodcock, Grey observou fileiras e fileiras de casacos vermelhos marchando ao som de tambores. Dottie temia que os rebeldes, forçados a abandonar a cidade, incendiassem as casas ou matassem seus prisioneiros ingleses de uma só vez.

   - Bobagem - Grey lhe dissera. - São ingleses rebeldes, não são bárbaros. - Ainda assim, ele vestiu seu próprio uniforme com sua espada, enfiou duas pistolas no cinto e passou vinte e quatro horas sentado na varanda da casa da sra. Woodcock - com um lampião à noite - descendo de vez em quando para falar com qualquer oficial que conhecesse que passasse por ali, tanto para obter notícias da situação quanto para assegurar que a casa não fosse molestada.

   No dia seguinte ele retornou à sua própria casa, passando por ruas de janelas fechadas. A Filadélfia era hostil, assim como a região rural ao redor. Ainda assim, a ocupação da cidade foi pacífica - ou tão pacífica quanto uma ocupação militar possa ser. Os congressistas fugiram enquanto Howe avançava, assim como muitos dos rebeldes mais proeminentes, inclusive o dr. Benjamin Rush.

   O mesmo fez Percy Beauchamp.

 

                     DIA DE TODOS OS SANTOS

Lallybroch 20 de outubro de 1980

Brianna aproximou a carta do nariz e inalou profundamente. Tanto tempo depois, tinha certeza de que se tratava de imaginação e não de cheiro, mas ainda sentia o suave aroma de fumaça nas folhas. Talvez fosse a lembrança tanto quanto a imaginação; ela sabia como era o ar no restaurante de uma estalagem, repleto dos aromas da lareira, de carne assada e tabaco, com um cheiro adocicado de cerveja sublinhando tudo.

   Sentiu-se tola ao cheirar as cartas na frente de Roger, mas desenvolvera o hábito de cheirá-las em particular, quando as relia sozinha. Haviam aberto esta na noite anterior e a leram várias vezes juntos, discutindo-a - mas a retirara da caixa outra vez agora, querendo apenas segurá-la reservadamente e ficar sozinha com seus pais por alguns instantes.

   Talvez o cheiro estivesse realmente ali. Ela percebeu que na verdade uma pessoa não lembra de cheiros, não da mesma forma que se lembra de algo que viu. É que, quando se sente um cheiro novamente, sabemos o que é - e em geral ele traz de volta consigo uma série de outras lembranças. E ela estava sentada ali em um dia de outono, cercada de maçãs maduras e urzais, a poeira de antigos lambris de madeira e o cheiro abafado de pedra molhada - Annie MacDonald acabara de passar um pano no corredor mas via o salão da frente de uma hospedaria do século XVIII, e sentia cheiro de fumaça.

1º de novembro de 1777 Nova York

Querida Bri et al

   Lembra-se daquela excursão do colégio quando sua turma de economia foi a Street? Estou neste momento sentada no restaurante de uma estalagem ao pé da Wall Street, e não se vê nenhum touro ou urso, muito menos uma telimpressora da Bolsa de Valores. Entretanto, há algumas cabras e um pequeno aglomerado de homens sob um plátano gigante e desfolhado, fumando cachimbo e conferenciando com as cabeças unidas. Não sei dizer se são legalistas se queixando, rebeldes conspirando em público (o que é, aliás, muito mais seguro do que fazê-lo a portas fechadas, embora" eu realmente espere que você não vá precisar fazer uso desse conhecimento especial), ou simplesmente comerciantes - os negócios estão sendo realizados, posso garantir; mãos são apertadas, pedaços de papel rabiscados e trocados, é surpreendente como os negócios prosperam em tempos de guerra; creio que isso se dá porque as regras normais - sejam quais forem - estão suspensas.

   Aliás, isso também se aplica à maioria das atividades humanas. Daí o desabrochar de romances de guerra e a construção de grandes fortunas no rastro das guerras. Parece um pouco paradoxal - embora talvez seja apenas lógico (pergunte a Roger se existe isso de paradoxo lógico, sim?) - que um processo tão destrutivo de vidas e substância possa depois resultar em uma explosão de bebês e negócios.

   Já que falo de guerra - estamos todos vivos e basicamente intactos. Seu pai foi levemente ferido durante a primeira batalha de Saratoga (houve duas, ambas muito sangrentas) e fui obrigada a remover o dedo anular de sua mão direita - aquele rígido, sem movimentos, você deve se lembrar. Naturalmente, isso foi traumático (tanto para mim quanto para ele, eu acho), mas não um desastre completo. O ferimento sarou muito bem e, apesar de a mão ainda lhe causar muita dor, está muito mais flexível e acho que de um modo geral agora lhe será mais útil.

   Estamos - tardiamente - prestes a tomar um navio para a Escócia, em circunstâncias um tanto peculiares. Devemos partir amanhã, no HMS Ariadne, acompanhando o corpo do general de brigada Simon Fraser. Conheci o general muito rapidamente antes de sua morte - ele estava à morte na ocasião -, mas era evidentemente um soldado extraordinário e muito querido por seus homens. O comandante inglês em Saratoga, John Burgoyne, pediu como uma espécie de nota de rodapé ao acordo de rendição que seu pai (por ser parente do general e saber onde fica a propriedade de sua família nas Highlands) leve o corpo para a Escócia, de acordo com o desejo do general. Isso foi inesperado e um pouco inusitado, para dizer o mínimo. Não consigo imaginar como conseguiríamos ir para a Escócia se não fosse por isso, embora seu pai diga que ele teria pensado em alguma coisa.

   A logística desta expedição é um pouco delicada, como pode imaginar. O sr. Kosciuszko (conhecido como "Kos" para os íntimos, o que inclui seu pai - bem, na realidade, ele é conhecido como Kos por todo mundo, porque ninguém (além do seu pai) consegue pronunciar seu nome, ou se dá ao trabalho de tentar. Seu pai gosta muito dele e vice-versa) ofereceu seus serviços e com a ajuda do mordomo do general Burgoyne (e todo mundo não leva seu mordomo consigo para a guerra?), que lhe forneceu uma boa quantidade de lâmina de chumbo de garrafas de vinho (bem, não se pode culpar o general Burgoyne se ele deu para beber, nas circunstâncias, embora minha impressão geral seja de que todo mundo, dos dois lados, bebe como peixe o tempo todo, independente da situação militar do momento), produziu um milagre de engenharia: um caixão forrado de chumbo (muito necessário) sobre rodinhas removíveis (também muito necessárias; o caixão deve pesar quase uma tonelada - seu pai diz que não, somente uns trezentos ou quatrocentos quilos, mas como ele não tentou levantá-lo, não vejo como possa saber).

   O general Fraser estava enterrado há mais ou menos uma semana e teve que ser exumado para transporte. Não foi agradável, mas podia ter sido pior. Ele tinha Muitos batedores indígenas, muitos dos quais também o estimavam; alguns deles compareceram à exumação com um curandeiro (acho que era um homem, mas não tenho certeza; era baixo e gordo e usava uma máscara de pássaro) que incensou fortemente os restos mortais queimando sálvia e mogno da montanha (não uma grande ajuda em termos de olfato, mas a fumaça realmente lançava um véu delicado sobre os aspectos mais horrendos da situação) e cantaram sobre seu corpo durante um bom tempo. Eu gostaria de ter perguntado a Ian o que estava sendo dito, mas devido a um desagradável conjunto de circunstâncias que não vou explicar aqui ele não estava presente.

   Explicarei tudo em uma carta posterior; é muito complicado e eu devo terminar esta antes de subirmos a bordo. O importante, a respeito de Ian, é que ele está apaixonado por Rachel Hunter (que é uma jovem adorável, e quaker, o que traz algumas dificuldades) e que ele é tecnicamente um assassino e portanto impossibilitado de aparecer em público nas proximidades do Exército Continental. Como dano colateral do assassinato técnico (uma pessoa muito desagradável e nenhuma perda para a humanidade, eu lhe garanto), Rollo levou um tiro e ficou ferido (além do ferimento superficial de bala, ele está com a escápula quebrada); deve se recuperar, mas não pode ser facilmente removido. Rachel está cuidando dele para Ian enquanto vamos para a Escócia.

   Como era notório que o general era reverenciado por seus aliados índios, o capitão do Ariadne ficou espantado, mas não extremamente desconcertado, ao ser informado que o corpo estava sendo acompanhado não somente pelo seu parente próximo (e esposa), mas por um mohawk que fala um pouco de inglês (aliás, eu ficaria mais do que surpresa se alguém na Marinha Real soubesse a diferença entre gaélico e mohawk).

   Espero que esta viagem seja menos acidentada do que a primeira. Se assim for, a próxima carta deverá ser escrita na Escócia. Mantenha os dedos cruzados.

Com todo o meu amor, Mamãe

  1. Seu pai insiste em acrescentar algumas palavras. Esta será sua primeira tentativa de escrever com a mão operada e eu gostaria de observar para ver como está funcionando, mas ele me afirma que precisa de privacidade. Não sei se isso tem a ver com seu assunto ou simplesmente com o fato de que ele não quer que ninguém veja o seu esforço. Ambos, provavelmente.

   A terceira página da carta era notoriamente diferente. A caligrafia era muito maior do que o normal e mais espalhada. Ainda assim, era identificável como a escrita de seu pai, mas as letras pareciam mais soltas, menos pontudas, de certa forma. Sentiu seu coração se apertar, não só à ideia da mão mutilada de seu pai lentamente desenhando cada letra - mas pelo que ele achou que valia a pena tanto esforço para escrever:

Minha querida

   Seu irmão está vivo e incólume. Eu o vi marchando em retirada de Saratoga com suas tropas, com destino a Boston e finalmente Inglaterra. Ele não lutará outra vez nesta guerra. Deo gratias.

Seu pai amoroso,

JF

   PS.: É o dia de Todos os Santos. Reze por mim.

   As freiras sempre lhes disseram - e ela dissera a ele. Rezando um pai-nosso, uma ave-maria e uma salve-rainha no dia de Todos os Santos, você pode obter a libertação de uma alma do purgatório.

   - Maldito - ela murmurou, fungando ferozmente e tateando em sua escrivaninha em busca de um lenço de papel. - Eu sabia que você ia me fazer chorar. Outra vez.

- Brianna?

   A voz de Roger veio da cozinha, surpreendendo-a. Não esperava que ele descesse das ruínas da capela por mais uma ou duas horas, e ela assoou o nariz apressadamente, respondendo "Estou indo!" e esperando que suas lágrimas recentes não transparecessem em sua voz. Somente quando alcançou o corredor e o viu segurando a porta verde de baeta que dava para a cozinha parcialmente aberta é que lhe ocorreu que havia algo estranho em sua voz também.

- O que foi? - ela disse, apressando o passo. - As crianças...?

   - Estão bem - ele interrompeu. - Eu disse a Annie para levá-las ao correio na cidade para tomar um sorvete. - Ele afastou-se um passo da porta e fez sinal para ela entrar.

   Ela estancou repentinamente, assim que entrou. Um homem estava encostado na velha pia de pedra, os braços cruzados. Ele endireitou-se ao vê-la e fez uma mesura, de uma forma que lhe pareceu terrivelmente estranha e, ainda assim, familiar. Antes que pudesse pensar por quê, ele endireitou-se outra vez e disse, com uma suave voz escocesa:

- Seu criado, madame.

   Ela olhou diretamente dentro daqueles olhos que eram iguais aos de Roger, depois olhou para Roger, só para se certificar. Sim, eram.

- Quem...

- Permita que eu apresente William Buccleigh Mackenzie - Roger disse, com um tom cortante distinto na voz. - Também conhecido como o Nuckelavee.

Por um instante nada daquilo fez sentido. Em seguida, tudo - perplexidade, fúria, incredulidade - inundou sua mente em tal turbilhão que nenhuma reação chegava à sua boca e ela simplesmente ficou olhando boquiaberta para o homem.

   - Peço-lhe desculpas, madame, por assustar suas crianças - o homem disse. - Eu não sabia que eram seus filhos, para começar. Mas sei como são as crianças e eu não queria ser descoberto antes de conseguir entender tudo.

   - Tudo... O quê? - Brianna finalmente encontrou algumas palavras. O homem sorriu, muito ligeiramente.

   - Sim, bem. Quanto a isso, acho que você e seu marido sabem mais do que eu.

   Brianna puxou uma cadeira e sentou-se um tanto abruptamente, indicando com um gesto que ele fizesse o mesmo. Quando ele se afastou da janela, entrando na luz, ela viu que seu rosto estava esfolado - um rosto de ossos proeminentes que, juntamente com a forma da testa e das órbitas, lhe pareceu terrivelmente familiar; o próprio sujeito lhe parecia familiar. Mas claro que era, pensou, aturdida.

   - Ele sabe quem ele é? - ela perguntou a Roger, o qual, agora que ela percebia, afagava a mão direita, que parecia ter sangue nas juntas. Ele balançou a cabeça afirmativamente.

   - Eu disse a ele. Mas não sei se acreditou em mim.

   A cozinha continuava sendo aquele lugar sólido e familiar, tranquilo, com o sol de outono entrando e os panos de prato de xadrez azul pendurados no Aga. Mas agora parecia o lado de trás de Júpiter, e quando ela estendeu a mão para o açucareiro não teria ficado surpresa se visse sua mão atravessá-lo.

   - Estou muito mais disposto a acreditar hoje do que estaria há três meses - o homem disse, com uma entonação seca que guardava uma leve ressonância da voz de seu pai.

   Ela sacudiu a cabeça violentamente, na esperança de desanuviá-la, e disse, numa voz educada que poderia ter sido a de uma dona de casa em uma comédia de televisão.

   - Aceita uma xícara de café?

   Seu rosto se iluminou e ele sorriu. Seus dentes eram manchados e um pouco tortos. Bem, claro que são - ela pensou com extraordinária lucidez. Não havia dentistas no século XVIII. A lembrança do século XVIII a fez levantar-se abruptamente.

   - Você! - ela exclamou. - Você fez Roger ser enforcado!

- É verdade - ele disse, sem parecer muito perturbado. - Não que eu tivesse tido a intenção. E se ele quiser me bater outra vez por causa disso, eu deixo. Mas...

   - Isso foi por assustar as crianças - Roger disse com igual frieza. - O enforcamento... vamos conversar sobre isso mais tarde.

   - Bela conversa para um ministro - o sujeito disse, parecendo achar ligeiramente divertido. - Não que a maioria dos ministros saia por aí interferindo com a mulher dos outros.

   - Eu - Roger começou, mas ela o interrompeu.

   - Eu é que vou lhe dar um soco - Brianna disse, fitando-o furiosamente. - Este, para seu aborrecimento, fechou os olhos com força e inclinou-se para frente, as feições contraídas.

   - Tudo bem - ele disse, através de lábios comprimidos. - Vá em frente.

   - No rosto, não - Roger aconselhou, examinando a mão machucada. - Faça-o ficar de pé e chute suas bolas.

   Os olhos de William Buccleigh arregalaram-se e ele olhou para Roger com ar de censura.

   - Acha que ela precisa de conselho?

   - Acho que você precisa de um lábio inchado - ela lhe disse, mas se sentou devagar novamente, examinando-o. Respirou fundo e expirou devagar. - Certo - ela disse, mais calma. - Comece a falar.

   Ele balançou a cabeça cautelosamente e tocou na contusão em seu rosto, contraindo-se um pouco.

   Filho da mãe, ela pensou repentinamente. Ele sabe?

   - Você não falou em café? - ele perguntou, soando um pouco esperançoso. - Há anos que não tomo café de verdade.

Ele ficou fascinado com o Aga e encostou as costas no fogão, estremecendo de prazer.

   - Oh, Virgem Maria - disse com um suspiro, os olhos fechados, enquanto deleitava-se com o calor. - Isso é maravilhoso.

   O café, ele considerou bom, porém um pouco fraco - compreensível, Brianna pensou, sabendo que o café como ele estava acostumado era fervido diretamente sobre uma fogueira, geralmente por várias horas, em vez de delicadamente coado na máquina. Ele pediu desculpas pelos seus modos, que na verdade eram educados, dizendo que não comia há algum tempo.

   - Como tem se alimentado? - Roger perguntou, observando a pilha cada vez menor de sanduíches de geleia e manteiga de amendoim.

   - Roubando das cabanas, para começar - Buccleigh admitiu com franqueza. - Após algum tempo, descobri o caminho para Inverness e estava sentado no meio-fio da calçada, completamente aturdido pelas enormes e barulhentas máquinas que passavam por mim; eu já vira carros na estrada para o norte, é claro, mas é diferente quando estão passando velozmente pelas suas canelas. De qualquer modo, eu havia me sentado na frente da High Street Church, pois conhecia aquele lugar, ao menos, e pensei em ir pedir ao ministro um pedaço de Pão assim que estivesse em condições. Eu estava um pouco abalado, sabe - ele disse, inclinando-se confidencialmente para Brianna.

   - Imagino - ela murmurou, erguendo uma das sobrancelhas para Roger. - igreja é a Old High de St. Stephen?

   - Sim, era High Church, significando que ficava na High Street, e não Anglicana, antes de ser chamada de Old, ou juntar congregações com a igreja.

   - St. Stephen. - Roger voltou sua atenção para William Buccleigh. - E então? falou com o ministro? Dr. Weatherspoom?

   Buccleigh confirmou com um sinal da cabeça, a boca cheia.

   - Ele me viu sentado lá e veio até mim, o bom ministro. Perguntou se eu estava passando necessidade e, quando lhe assegurei que estava, disse-me aonde ir para conseguir comida e uma cama, e eu fui lá. Assistência social, eles chamavam, uma instituição de caridade, e certamente era.

   As pessoas que administravam a instituição lhe deram roupas, pois estava em andrajos, e o ajudaram a encontrar um trabalho, fazendo o serviço pesado para uma fazenda de gado leiteiro fora da cidade.

   - Então, por que você não está nessa fazenda? - Roger perguntou.

   Simultaneamente, Brianna perguntou:

   - Mas como você veio para a Escócia?

   Com as suas perguntas se colidindo, eles pararam, gesticulando um para o outro para que continuasse, mas William Buccleigh abanou a mão para ambos e mastigou rapidamente por um instante, depois engoliu várias vezes e tomou outro grande gole de café.

   - Mãe de Deus, esse negócio é gostoso, mas gruda na garganta. Sim, vocês querem saber por que estou aqui em sua cozinha comendo a sua comida e não morto em um riacho na Carolina do Norte.

   - Já que mencionou, sim - Roger disse, inclinando-se para trás em sua cadeira. - Por que não começa pela Carolina do Norte?

   Buccleigh assentiu outra vez, inclinando-se para trás por sua vez, com as mãos cruzadas confortavelmente sobre o estômago, e começou.

Ele fora expulso da Escócia, como tantos outros, pela fome que se seguiu a Culloden, e juntou todo o pouco dinheiro que pôde conseguir para emigrar com sua mulher e seu filho recém-nascido.

   - Eu sei - Roger disse. - Foi a mim que você pediu para salvá-los, no navio. Na noite em que o capitão jogou os doentes ao mar.

   Buccleigh ergueu a cabeça, espantado, os olhos verdes arregalados.

   - Era você, então? Eu não o vi, estava muito escuro e eu estava desesperado. Se eu soubesse disso... - Sua voz definhou, depois ele sacudiu a cabeça. - Bem, o que está feito está feito.

   - De fato - Roger disse. - Eu também não consegui vê-lo na escuridão. Só o conheci mais tarde, por causa de sua mulher e seu filho, quando os encontrei outra vez em Alaman-k. - Para seu grande aborrecimento, o último som prendeu em sua garganta com um estalido glótico. Limpou a garganta e repetiu uniformemente: - Em Alamance.

   Buccleigh balançou a cabeça devagar, os olhos fixos com interesse na garganta de Roger. Seria arrependimento em seus olhos? Provavelmente não, Roger pensou. Ele tampouco lhe agradeceu por ter salvado sua mulher e seu filho.

   - Sim. Bem, eu pensara em arranjar uma terra e administrar uma pequena fazenda, mas... bem, em resumo, eu não era um fazendeiro. Nem um construtor. Não sabia nada a respeito de terras incultas, nem muito mais sobre lavoura. Não era um caçador, tampouco. Nós certamente teríamos passado fome, se eu não tivesse levado Morag e Jem, esse é o nome do meu filho, também, não é estranho?, de volta ao piemonte e arranjado alguns serviços em uma pequena fazenda de terebintina lá.

   - Mais estranho do que possa imaginar - Brianna disse, à meia-voz. E um pouco mais alto: - E depois?

   - Depois, o sujeito para quem eu trabalhava uniu-se à Regulação, e os que trabalhavam para ele foram, também. Eu deveria ter deixado Morag para trás, mas havia um sujeito no lugar que estava de olho nela; era o ferreiro e tinha apenas uma perna, de modo que não podia nos acompanhar para lutar na rebelião. Eu não podia deixá-la e, assim, ela e o bebê foram comigo. Onde o próximo sujeito que ela encontra é você - ele disse, enfaticamente.

   - Ela não lhe disse quem eu era? - Roger perguntou, irritado.

   - Bem, ela disse, na ocasião - Buccleigh admitiu. - Ela falou do navio e tudo mais e que aquele era você. Ainda assim - acrescentou, lançando um olhar duro a Roger você sai por aí namorando as mulheres de outros homens normalmente ou foi apenas Morag que atraiu sua atenção?

   - Morag é minha tataravó ou mais ainda - Roger disse sem se alterar. Devolveu a Buccleigh o mesmo olhar fixo. - E já que me perguntou quem você é... você é meu avô, cinco ou seis vezes para trás. Meu filho recebeu o nome de Jeremiah do meu pai, que o recebeu de seu avô, que foi chamado assim pelo seu filho. Eu acho - acrescentou. - Posso estar errando em um ou dois Jeremiahs pelo caminho.

   Buccleigh fitava-o, perplexo, o rosto barbado completamente atônito. Piscou uma ou duas vezes, olhou para Brianna, que balançou a cabeça, depois voltou a olhar para Roger, examinando seu rosto cuidadosamente.

   - Olhe para os olhos dele - Brianna disse, prestativamente. - Devo lhe trazer um espelho?

   A boca de Buccleigh abriu-se como se fosse responder, mas ele não encontrou nenhuma palavra e sacudiu a cabeça como se quisesse espantar moscas. Pegou sua xícara, ficou olhando para dentro dela por um instante como se admirado por vê-la vazia, e recolocou-a sobre a mesa. Em seguida, olhou para Brianna.

   - Você não teria nada em casa mais forte do que café, teria, a bhana-mhaighstir?

Roger precisou vasculhar um pouco seu gabinete para encontrar a árvore genealógica que o reverendo havia desenhado anos antes. Enquanto ele estava ausente, Bri encontrou a garrafa de Oban e serviu um generoso copo a William Ucdeigh. Sem nenhuma hesitação, serviu a bebida para si mesma e Roger bém, e colocou uma jarra de água sobre a mesa.

   " Toma com um pouco de água? - ela perguntou amavelmente. - Ou prefere Puro?

Para sua surpresa, ele pegou a água imediatamente e despejou um pouco no seu uísque. Ele viu a expressão de seu rosto e sorriu.

   - Se fosse uma bebida ordinária, eu engoliria de uma vez só. Um bom uísque vale a pena ser bebido devagar e um pouco de água abre o sabor. Mas você sabe disso, não? Entretanto, não é escocesa.

   - Sou, sim - ela disse. - Pelo lado do meu pai. Seu nome é... era... James Fraser, de Lallybroch. Chamavam-no de Dunbonnet.

   Ele piscou, olhou ao redor da cozinha, depois novamente para ela.

   - Você é... mais uma, então? - ele disse. - Como seu marido e eu. Outra dos... seja lá o que for?

   - Seja lá o que for - ela concordou. - E sim. Conheceu meu pai?

   Ele sacudiu a cabeça, fechando os olhos ao tomar um pequeno gole do uísque, e levou um instante para responder, enquanto o uísque descia pela garganta.

   - Santo Deus, como isso é bom. - Respirou fundo e abriu os olhos. - Não, eu nasci apenas um ano aproximadamente antes de Culloden. Mas ouvi falar do Dunbonnet, quando era garoto.

   - Você disse que não era um bom fazendeiro - Bri disse com curiosidade. - O que fazia na Escócia, antes de partir?

   Ele respirou fundo e soltou o ar ruidosamente pelo nariz, exatamente como seu pai costumava fazer. Uma característica dos Mackenzie, ela pensou, achando graça.

   - Eu era advogado - ele disse bruscamente, e pegou o copo.

   - Bem, é uma profissão muito útil - Roger disse, entrando a tempo de ouvi-lo. Olhou pensativamente para Buccleigh, depois sacudiu a cabeça e abriu a árvore genealógica da família Mackenzie em cima da mesa. - Aqui está você - ele disse, colocando o dedo na anotação, e em seguida arrastou o dedo pela folha. - E aqui estou eu. - Buccleigh pestanejou, depois se inclinou mais para perto para examinar a árvore genealógica em silêncio. Brianna viu sua garganta se mover quando ele engoliu em seco uma ou duas vezes. Seu rosto estava pálido sob a barba por fazer quando ele levantou os olhos.

   - Sim, estes são meus pais, meus avós. E lá está o pequeno Jem, meu Jem, exatamente onde deveria estar. Mas tenho outro filho - ele disse de repente, virando-se para Bri. - Ou acho que tenho. Morag estava grávida quando eu... quando eu... viajei.

   Roger sentou-se. Seu rosto havia perdido um pouco da desconfiança e da raiva, e ele olhou para William Buccleigh com o que poderia ser compaixão.

   - Conte-nos sobre isso - ele sugeriu. - Como você viajou.

   Buccleigh empurrou seu copo de uísque vazio sobre a mesa, mas não esperou até ele ser reabastecido.

   O proprietário da plantação para a qual ele trabalhara ficara arruinado nas águas de Alamance, foi preso por ter tomado parte na Regulação e sua propriedade foi confiscada. Os Mackenzie perambularam por algum tempo, sem casa ou dinheiro, sem nenhum parente próximo que pudesse ajudá-los.

Brianna trocou um rápido olhar com Roger. Se Buccleigh soubesse, estava bem perto de um parente próximo, e ainda por cima um parente rico. Jocasta Cameron era irmã de Dougal Mackenzie, tia deste homem. Se ele soubesse.

   Ela ergueu as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa a Roger, mas ele sacudiu ligeiramente a cabeça. Isso devia esperar.

   Finalmente, Buccleigh disse, tomaram a decisão de voltar para a Escócia. Morag tinha família ali, um irmão em Inverness que estava bem de vida, era um próspero comerciante de grãos. Morag escrevera para ele e ele os instara a voltar, dizendo que encontraria um lugar para William em seu negócio.

   - Nesse ponto, eu ficaria satisfeito com um emprego de tirar com pá o esterco dos porões de navios de gado - Buccleigh admitiu com um suspiro. - Ephraim, o irmão de Morag, Ephraim Gunn, entretanto, disse que ele teria lugar para um funcionário no escritório. E eu sei escrever bem e fazer contas.

   A sedução do trabalho - para o qual era bem qualificado - e de um lugar para morar foi forte o suficiente para fazer a pequena família estar disposta a se aventurar outra vez pela perigosa travessia do Atlântico. Ephraim enviou uma ordem de pagamento através do seu banco para as passagens e, assim, eles retornaram, aportando em Edimburgo e de lá empreendendo a lenta viagem para o norte.

   - De carroça, na maior parte. - Buccleigh estava no terceiro copo de uísque, Brianna e Roger não muito atrás. Ele despejou um pouco de água em seu copo vazio e bochechou a água pela boca antes de engolir, para limpar a garganta, depois tossiu e continuou: - A carroça quebrou, novamente, perto do lugar que chamam de Craigh na Dun. Imagino que vocês dois o conheçam, não? - Olhou de um para o outro e balançou a cabeça. - Sim. Bem, Morag não estava se sentindo muito bem-disposta e a criança também estava agitada; assim, deitaram-se na grama para dormir um pouco enquanto a roda era consertada. O cocheiro tinha um ajudante e não precisava da minha ajuda, assim fui dar uma volta para esticar as pernas.

   - E subiu a colina, até as pedras - Brianna disse, sentindo um aperto no peito à ideia.

   - Sabe qual era a data? - Roger interrompeu.

   - Foi no verão - William Buccleigh disse devagar. - Perto do Midsummer, mas não sei exatamente o dia. Por quê?

   - O Solstício de Verão - Brianna disse, com um breve soluço. - É que... achamos que está aberto. O seja-lá-o-que-for abre nas festas do sol e nas festas do fogo.

   O som de um carro se aproximando pelo caminho da casa chegou até eles e os três ergueram os olhos, como se tivessem sido flagrados em algum negócio escuso.

   - Annie e as crianças. O que vamos fazer com ele? - ela perguntou a Roger.

   Ele olhou para Buccleigh com os olhos apertados por um instante, depois tomou uma decisão.

   - Vamos precisar de um plano para explicá-lo - Roger disse, levantando-se. - Mas por enquanto apenas me acompanhe, sim?

   Buccleigh levantou-se imediatamente e seguiu Roger para dentro da copa. Ela ouviu a voz de Buccleigh se erguer momentaneamente de espanto, um breve murmúrio de explicação de Roger, em seguida o barulho áspero, conforme moviam o banco que escondia o painel de acesso que encobria o buraco do padre.

   Movendo-se como se estivesse em transe, Brianna levantou-se apressadamente para tirar da mesa e lavar os três copos, guardar a água e o uísque. Ouvindo a aldrava bater na porta da frente, sobressaltou-se. Não eram as crianças, afinal. Quem poderia ser?

   Retirou a árvore genealógica da família de cima da mesa e saiu às pressas pelo corredor, parando para atirar o mapa na mesa de Roger enquanto se dirigia à porta.

   Que idade ele teria?, ela pensou abruptamente, enquanto levava a mão à maçaneta. Ele parece estar próximo dos quarenta anos, talvez, mas...

   - Olá - disse Rob Cameron, parecendo ligeiramente alarmado com a expressão de seu rosto. - Cheguei em má hora?

Rob viera devolver um livro que Roger havia lhe emprestado e entregar um convite: Jem gostaria de ir ao cinema com Bobby na sexta-feira, depois uma boa ceia de peixe e passar a noite?

   - Tenho certeza de que vai gostar - Brianna disse. - Mas ele não está... ah, lá está ele. - Annie acabara de surgir no caminho de casa, com uns estrépitos das engrenagens que fez o motor morrer. Brianna estremeceu ligeiramente, satisfeita por Annie não ter levado seu carro.

   Quando finalmente as crianças foram retiradas do carro, limpas com um lenço e levadas a apertar a mão do sr. Cameron educadamente, Roger saiu dos fundos da casa e foi imediatamente envolvido em uma conversa sobre seus esforços na capela, que chegaram a um ponto em que se tornou óbvio que era hora do jantar e seria indelicado não convidá-lo a ficar...

   E assim Brianna viu-se fazendo ovos mexidos, esquentando feijão e fritando batatas em uma espécie de torpor, pensando em seu hóspede inesperado sob o chão da copa, que devia estar sentindo o cheiro da comida e morrendo de fome - e o que iriam fazer com ele?

   Durante todo o tempo em que jantavam, conversando agradavelmente, levando as crianças para a cama enquanto Roger e Rob falavam de pedras dos pic tos e escavações arqueológicas nas Orkneys, ela viu seu pensamento fixando-se em William Buccleigh Mackenzie.

   As Orkneys, ela pensou. Roger disse que o Nucklavee é um monstro das Orkneys. Ele teria estado nas Orkneys? Quando? E por que ele esteve rondando nossa casa todo tempo? Quando descobriu o que acontecera, por que não voltou imediatamente? O que está fazendo aqui?

   Quando Rob se despediu - levando outro livro - com profusos agradecimentos pela comida e um lembrete do encontro para o cinema na sexta-feira, ela estava preparada para arrancar William Buccleigh do buraco do padre pela gola, levá-lo ela própria diretamente para Craigh na Dun e enfiá-lo em um dos monólitos.

   Mas quando ele finalmente se arrastou para fora do esconderijo, movendo-se devagar, lívido e obviamente faminto, ela sentiu sua agitação se abrandar. Apenas um pouco. Preparou ovos para ele, rapidamente, e sentou-se com ele, enquanto Roger dava a volta na casa, verificando portas e janelas.

   - Embora eu ache que não precisamos nos preocupar muito com isso - ela observou causticamente já que agora você está dentro da casa.

   Ele ergueu os olhos, cansado, mas alerta.

   - Eu pedi desculpas - ele disse brandamente. - Quer que eu vá embora?

   - E para onde você iria, se eu dissesse que sim? - ela perguntou sem piedade.

   Ele virou o rosto na direção da janela que ficava acima da pia da cozinha. À luz do dia, dava para uma paisagem de paz, a horta com seu velho portão de madeira e, além dele, o pasto. Agora, não se via nada ali, senão a escuridão de uma noite sem lua nas Highlands. O tipo da noite em que cristãos permaneciam dentro de suas casas e colocavam água benta na soleira da porta, porque os entes que perambulavam pelas charnecas e pelos lugares altos nem sempre eram sagrados.

   Ele não disse nada, mas engoliu em seco, e ela viu os cabelos louros de seus braços se arrepiarem.

   - Você não precisa ir - ela disse, com voz rouca. - Arranjaremos uma cama para você. Mas amanhã...

   Ele balançou energicamente a cabeça, sem olhar para ela, e fez menção de se levantar. Ela o impediu colocando a mão em seu braço e ele olhou para ela, surpreso, os olhos escuros na luz suave.

   - Apenas me diga uma coisa agora - ela disse. - Você quer voltar?

   - Oh, meu Deus, sim - ele disse, e desviou o rosto, mas sua voz estava embargada. - Quero Morag de volta. Quero meu filho pequeno.

Ela largou seu pulso e se levantou, mas outro pensamento lhe ocorreu.

   - Que idade você tem? - ela perguntou abruptamente, e ele deu de ombros, passando as costas da mão pelos olhos.

   - Trinta e oito - respondeu. - Por quê?

   - Apenas... curiosidade - ela disse, virando-se para ajustar o calor do fogão para a noite. - Venha comigo; farei uma cama para você na sala de estar.

E amanhã... amanhã, veremos.

Ela o conduziu pelo corredor, passando pelo gabinete de Roger, sentindo uma bola de gelo no estômago. A luz estava acesa e o mapa genealógico que pegara para mostrar a William Buccleigh ainda estava onde ela o atirara, na escrivaninha. Ele teria visto a data? Achava que não. Ou, se tivesse, não notara. As datas de nascimento e morte não estavam anotadas para todos naquele mapa - mas estavam para ele. William Buccleigh Mackenzie havia morrido, segundo aquele mapa, aos trinta e oito anos.

   Ele não vai voltar, ela pensou, e o gelo tomou conta de seu coração.

O lago Errochty estendia-se escuro como estanho sob o céu nublado. Estavam de pé na ponte para pedestres que se estendia sobre Alt Ruighe nan Saorach, o rio que alimentava o lago, olhando para baixo para onde o lago feito pelo homem se espalhava pelo meio das suaves colinas. Buck - ele dissera que era assim que as pessoas o chamavam na América, e ele se acostumara a isso - olhava e olhava, o rosto um esboço de assombro e desalento.

   - Lá embaixo - disse em voz baixa, apontando. - Está vendo onde aquele riacho desemboca no lago? Era lá que ficava a casa de minha tia Ross. Uns trinta metros abaixo do riacho.

   Cerca de trinta metros abaixo da superfície do lago agora.

   - Imagino que seja um golpe doloroso - Brianna disse, não sem compaixão. - Ver tudo tão mudado.

   - É, sim. - Ele olhou para ela, aqueles olhos, tão perturbadores quanto os de Roger, perspicazes no semblante. - Talvez seja mais o fato de que tanta coisa não tenha mudado. Lá em cima, hein? - Ergueu o queixo na direção das montanhas distantes. - Exatamente como sempre foram. E os pequenos pássaros na grama e o salmão saltando no rio. Eu podia pisar naquela margem - indicou com a cabeça a extremidade da ponte de pedestres - e sentir como se tivesse caminhado ali ontem. Eu realmente caminhei lá ontem! No entanto... todos se foram. Todos eles - ele terminou brandamente. - Morag. Meus filhos. Estão todos mortos. A menos que eu consiga voltar.

   Ela não planejara lhe perguntar nada; melhor esperar até que ela e Roger pudessem falar com ele juntos, à noite, depois que as crianças tivessem dormido. Mas a oportunidade se apresentou. Roger levara Buck para um passeio pelas Highlands - nas vizinhanças de Lallybroch, pelo Great Glen ao longo do lago Ness, e finalmente o deixara na represa do lago Errochty, onde ela estava trabalhando hoje; ela o levaria de volta para o jantar.

   Eles haviam discutido o assunto - em sussurros - na noite anterior. Não sobre o que dizer a respeito dele; ele seria um parente do papai, ali para uma curta visita. Era verdade, afinal. Mas se deveriam levá-lo para dentro do túnel. Roger fora a favor disso, ela muito contrária, lembrando-se do choque da... linha do tempo?... atravessando-a como um arame cortante. Ela ainda não havia decidido.

   Mas agora ele havia levantado o assunto da sua volta, por conta própria.

   - Quando você recuperou os sentidos depois que... atravessou, e percebeu o que tinha acontecido - ela perguntou com curiosidade por que não voltou para dentro do círculo no mesmo instante?

   Ele deu de ombros.

   - Eu fiz isso. Embora não possa dizer que tenha percebido imediatamente o que havia acontecido. Só cheguei a essa conclusão depois de alguns dias. Mas sabia que algo terrível havia acontecido e que as pedras tinham a ver com isso. Assim, fiquei com medo delas, como bem pode compreender. - Ergueu uma das sobrancelhas para ela e ela balançou a cabeça relutantemente.

   Ela podia compreender. Ela própria não se aproximaria nem a um quilômetro de um monólito, a menos que fosse para salvar algum membro da família de um terrível destino. E ainda assim pensaria duas vezes. Mas descartou a ideia e retornou ao seu interrogatório.

   - Mas você voltou, você disse. O que aconteceu?

   Olhou desamparadamente para ela, espalmando as mãos.

   - Não sei como lhe descrever isso. Nada parecido já me aconteceu antes.

   - Tente - ela sugeriu, endurecendo a voz, e ele suspirou.

   - Sim. Bem, caminhei até o círculo de pedras e dessa vez eu podia ouvi-las... as pedras. Como se falassem com elas mesmas, zumbindo como uma colmeia e com um som que fazia os cabelos da minha nuca ficarem em pé.

   Teve vontade de se virar e sair correndo, mas pensando em Morag e Jemmy resolveu continuar. Caminhou até o centro do círculo, onde o barulho o atacava de todos os lados.

   - Achei que ia enlouquecer com aquele ruído - ele disse francamente. - Colocar o dedo nos ouvidos de nada adiantava; estava dentro de mim, como se viesse dos meus ossos. Foi assim com você? - ele perguntou de repente, espreitando-a com curiosidade.

   - Sim, foi - ela respondeu sucintamente. - Ou quase. Continue. O que fez então?

   Ele vira a fenda na pedra maior por onde ele havia atravessado na primeira vez e, inspirando fundo e prendendo a respiração ao máximo, arremessara-se por ela.

   - E pode me matar por me achar um mentiroso, se quiser - ele afirmou. - Não sei o que aconteceu em seguida, eu juro, mas depois disso eu me vi deitado na grama no meio das pedras, e estava em chamas.

   Ela olhou para ele, surpresa.

   - Literalmente? Quero dizer, suas roupas queimavam, ou foi apenas...

   - Eu sei o que "literalmente" significa - ele replicou, com um laivo de irritação na voz. - Eu posso não ser o que você é, mas eu tive educação.

   - Desculpe-me. - Fez um pequeno sinal de desculpas com a cabeça e gesticulou, indicando-lhe que continuasse.

   - De qualquer modo, sim, eu estava literalmente em chamas. Minha camisa estava em chamas. Olhe - Ele abriu o zíper de seu casaco e tateou com os botões da camisa de cambraia azul de Roger, abrindo-a para mostrar a marca espalhada e avermelhada de uma queimadura curada no peito. Ele teria abotoado a camisa outra vez imediatamente, mas ela fez sinal para que ele não o fizesse e inclinou-se para olhar mais de perto. Parecia centralizada em seu coração. Teria significado?, pensou.

   - Obrigada - ela disse, endireitando-se. - O que... O que você estava pensando quando atravessou a fenda?

   Ele fitou-a, espantado.

   - Estava pensando que queria voltar, o que mais?

   - Sim, claro. Mas estava pensando em alguém em particular? Em Morag, quero dizer, ou no seu filho?

   A expressão mais extraordinária - vergonha? constrangimento? - atravessou seu rosto e ele desviou o olhar.

   - Estava - ele disse sucintamente, e ela percebeu que ele mentia, mas não conseguia imaginar por quê. Ele tossiu e continuou apressadamente. - Bem. Rolei pela grama para apagar o fogo e depois vomitei. Fiquei lá por um bom tempo, sem forças para me levantar. Não sei por quanto tempo, mas não foi pouco. Sabe como é aqui, perto do Solstício do Verão? Aquela luz esbranquiçada quando a gente não consegue ver o sol, mas na verdade ele ainda não se pôs?

   - Sim, a claridade pálida do verão - ela murmurou. - Sim... quero dizer, sim, eu sei. Então, você tentou outra vez?

   Agora, era vergonha. O sol estava baixo e as nuvens irradiavam uma cor de laranja opaca que banhava o lago, as colinas e a ponte com um rubor soturno, mas ainda era possível divisar o rubor mais intenso que se espalhou pelas proeminentes maçãs do rosto de Buccleigh.

   - Não - ele murmurou. - Tive medo.

   Apesar de sua falta de confiança nele e da raiva persistente que sentia pelo que ele fizera a Roger, ela sentiu um involuntário jorro de compaixão com a admissão. Afinal, tanto ela quanto Roger sabiam, mais ou menos, o que estavam fazendo. Ele não esperava de modo algum o que acontecera e ainda não sabia praticamente nada.

   - Eu também teria - ela disse. - Você...

   Um grito vindo de trás a interrompeu e ela se virou, vendo Rob Cameron aproximando-se pela margem do rio. Ele acenou e subiu na ponte, arquejando um pouco com a corrida.

   - Olá, chefe - ele disse, rindo para ela. - Eu a vi quando saía. Se já estiver livre, imaginei se gostaria de tomar um drinque no caminho de casa? E seu amigo também, é claro - ele acrescentou, cumprimentando William Buccleigh amistosamente com um sinal da cabeça.

   Com isso, é claro, ela não teve alternativa senão apresentá-los, fazendo Buck passar por um parente de Roger, hospedado com eles, de passagem pela cidade, de acordo com a história que haviam combinado. Ela educadamente recusou a proposta de um drinque, dizendo que precisava voltar para casa para o jantar das crianças.

   - Fica para outra vez, então - Rob disse descontraidamente. - Prazer em conhecê-lo, amigo. - Afastou-se outra vez, saltitante como uma gazela, e ela virou-se, encontrando William Buccleigh observando-o com os olhos estreitados.

   - O que foi? - ela perguntou.

   - Esse homem está de olho em você - disse abruptamente, virando-se para ela. - Seu marido sabe?

   - Não seja ridículo - ela disse, no mesmo tom. Seu coração se acelerara com as palavras dele e ela não gostou. - Eu trabalho com ele. Ele pertence à mesma loja de Roger e eles conversam sobre canções antigas. Só isso.

   Ele fez um daqueles ruídos escoceses que podem carregar todo tipo de significado e sacudiu a cabeça.

   -- Posso não ser o que você é - ele repetiu, sorrindo desagradavelmente. - Mas também não sou nenhum tolo.

 

                     UM CORDEIRO RETORNA AO REBANHO

24 de novembro de 1777 Filadélfia

Lorde John Grey precisava desesperadamente de um criado pessoal. Havia empregado uma pessoa nessa função, mas achou o sujeito pior do que inútil, e um ladrão ainda por cima. Descobrira o antigo criado escondendo colherinhas de chá nas calças e o havia - depois de retirar as colheres à força - demitido. Deveria, imaginara, mandar prender o sujeito, mas na verdade não sabia ao certo o que a polícia local faria se convocado por um oficial inglês.

   A maioria dos prisioneiros de guerra ingleses tinha sido levada para fora da cidade enquanto o exército de Howe avançava, os americanos querendo guardá-los para troca. Henry não fora.

   Escovou o próprio uniforme, refletindo soturnamente. Usava-o diariamente agora, como proteção para Dottie e Henry. Há anos ele não era um oficial da ativa, mas, ao contrário da maioria dos homens nessa posição, tampouco renunciara à sua patente de tenente-coronel. Não sabia ao certo o que Hal teria feito caso ele tivesse realmente tentado renunciar, mas como era um encargo no próprio regimento de Hal e Grey não precisar abrir mão dele, o caso era discutível.

   Um dos botões estava solto. Tirou seu estojo de costura, enfiou linha em uma agulha sem apertar os olhos e prendeu o botão firmemente no casaco. O feito lhe deu uma pequena sensação de satisfação, apesar de que o reconhecimento disso o obrigasse a admitir como era pouco o que ele podia controlar atualmente - tão pouco que pregar um botão podia ser motivo de satisfação.

   Franziu o cenho para si mesmo no espelho e crispou-se irritadamente diante do galão dourado em seu casaco, que estava manchado em alguns pontos. Ele sabia o que fazer em relação a isso, mas certamente não iria ficar sentado polindo-o com um pedaço de pão embebido em urina. Conhecendo o general sir William Howe como conhecia, duvidava que sua própria aparência afetasse sua recepção, ainda que ele se dirigisse ao quartel-general de Howe em uma liteira com a cabeça envolvida em um turbante turco. Howe geralmente não tomava banho, nem trocava de roupa por um mês ou mais - e não apenas quando estava em campanha.

   Ainda assim. Teria que ser um cirurgião do exército e Grey queria fazer sua própria escolha. Fez uma careta diante do pensamento. Conhecera muitos médicos militares, alguns deles desagradavelmente de perto. Mas o exército de Howe entrara na cidade no final de setembro. Era meado de novembro agora, a ocupação estava bem estabelecida e, com isso, um ânimo geral entre os cidadãos.

- Os médicos de inclinação rebelde ou haviam deixado a cidade ou não queriam ter nada a ver com um oficial inglês. Os simpatizantes dos legalistas ficariam mais do que satisfeitos em prestar seus serviços - ele tinha sido convidado a muitas festas oferecidas pelos legalistas ricos da cidade e fora apresentado a dois ou três médicos - mas não encontrara nenhum com reputação em cirurgia. Um deles lidava principalmente com casos de doenças venéreas, outro era um accoucheur e o terceiro era obviamente um charlatão da pior espécie.

   Assim, estava se dirigindo ao quartel-general de Howe para pedir ajuda. Não podia esperar mais; Henry aguentara firme e até parecia ter ganho um pouco de forças com a chegada da temperatura mais amena. Era melhor que fosse feito agora, para lhe dar a oportunidade de se curar um pouco antes da chegada do inverno, com sua friagem e a esqualidez fétida de casas fechadas.

   Pronto, ele afivelou sua espada e saiu para a rua. Havia um soldado, um pouco encurvado sob uma pesada mochila, andando devagar pela rua em sua direção, olhando para as casas. Ele mal olhou para o sujeito enquanto descia as escadas - mas um olhar de relance foi suficiente. Olhou novamente, incrédulo, e começou a correr pela rua, sem se incomodar com chapéu, galões dourados, espada ou dignidade, e tomou o jovem e alto soldado nos braços.

   - Willie!

   - Papai!

   Seu coração transbordava de felicidade; não se lembrava de se sentir assim tão feliz, mas fez o melhor para se conter, não querendo constranger Wile com excessos de emoção impróprios a um homem. Não soltou seu filho, mas recuou um pouco, examinando-o de cima a baixo.

   - Você está... sujo - ele disse, incapaz de conter um sorriso largo e tolo. - Muito sujo mesmo. - Estava. Também maltrapilho e surrado. Ainda usava seu gorjal de oficial, mas faltava o lenço de pescoço, assim como vários botões, e um dos punhos de seu casaco fora arrancado.

   - Também tenho piolho - William afirmou, coçando a cabeça. - Tem comida aí?

   - Sim, claro. Entre, entre. - Tirou a mochila do ombro de Willie e gesticulou para que ele o seguisse. - Dottie! - ele gritou para cima das escadas ao abrir a porta. - Dottie! Desça aqui embaixo!

   - Eu estou embaixo - sua sobrinha disse atrás dele, saindo da saleta onde costumava tomar o café da manhã. Segurava um pedaço de torrada com manteiga. - O que você... oh, Willie...

   Desdenhando questões de imundície e piolho, William tomou-a nos braços e ela deixou a torrada cair no tapete e apertou-o ao redor do corpo, rindo e chorando, até ele protestar que ela estava quebrando suas costelas e ele nunca mais iria poder respirar direito.

   Grey ficou observando a cena com extrema benevolência, apesar de terem pisoteado a torrada amanteigada no tapete alugado. Eles realmente pareciam se amar, refletiu. Talvez ele estivesse errado. Tossiu educadamente, o que não desvencilhou os dois corpos, mas ao menos fez Dottie olhar para ele por cima do ombro.

   - Vou pedir um café da manhã para William, está bem? - disse. - Por que não o leva para a sala, querida, e lhe dá uma xícara de chá?

   - Chá - Willie exclamou com um suspiro, o rosto assumindo a expressão beatificada de alguém contemplando - ou ouvindo falar de - algum prodigioso milagre. - Há semanas não tomo chá. Meses!

   Grey saiu para o prédio da cozinha que ficava a uma pequena distância atrás da casa propriamente dita, de modo que esta não fosse incendiada quando - não se - algo pegasse fogo e destruísse a cozinha no incêndio. Aromas apetitosos de carne assada, doces de frutas e pão fresco flutuavam daquela estrutura precária.

   Ele contratara a sra. Figg, uma negra quase esférica, como cozinheira, na suposição de que ela não podia ter adquirido aquela figura sem ter tanto o gosto pela boa comida como a habilidade de prepará-la. E essa suposição se confirmou, e nem o temperamento instável dessa senhora, nem a inclinação para dizer palavrões o fizeram lamentar sua decisão, apesar de fazer com que ele sempre a abordasse cautelosamente. No entanto, ouvindo suas novidades, ela prestativamente deixou de lado a torta de carne de caça que estava fazendo, a fim de preparar uma bandeja com um café da manhã completo.

   Ele esperou para ele mesmo levar a bandeja, pretendendo dar a William e Dottie um pouco mais de tempo a sós. Ele queria ouvir tudo - pois evidentemente todo mundo na Filadélfia sabia sobre o encontro desastroso de Burgoyne em Saratoga, mas queria particularmente descobrir através de William o que John Burgoyne soubera ou concluíra de antemão. Segundo alguns de seus conhecidos militares, sir George Germain assegurara a Burgoyne que seu plano fora aceito e que Howe marcharia para o norte ao seu encontro, cortando as Colônias americanas ao meio. Segundo outros - vários do exército de Howe inclusive -, Howe nunca fora informado desse plano para começar, quanto mtais ter concordado com ele.

   Seria isso arrogância e presunção da parte de Burgoyne, obstinação e orgulho de Howe, idiotice e incompetência de Germain - ou uma combinação dos três fatores? Se pressionado, ele apostaria nessa última hipótese, mas estava curioso para saber até onde o gabinete de Germain estava implicado. Com Percy Beauchamp desaparecido da Filadélfia, sem deixar rastro, seus próximos movimentos teriam que ser observados por outra pessoa, e era provável que Arthur Norrington informasse suas próprias descobertas a Germain, em vez de Grey.

   Carregou a pesada bandeja cuidadosamente de volta, encontrando William no sofá em manga de camisa, tomando seu chá, os cabelos soltos e espalhados pelos ombros.

   Dottie estava sentada na bergère em frente à lareira, segurando seu pente de prata sobre o joelho e com uma expressão no rosto que quase fez Grey deixar cair a bandeja. Ela virou um rosto espantado para ele quando ele entrou, tão pasmo que era evidente que mal o enxergava. Então, algo mudou e seu rosto se alterou, como alguém voltando num piscar de olhos de algum lugar a léguas de distância.

   - Ah - exclamou, levantando-se imediatamente e estendendo os braços para pegar a bandeja. - Deixe que eu seguro.

   Ele deixou, disfarçadamente olhando de um jovem para o outro. Sem dúvida, Willie também parecia estranho. Por quê?, perguntou-se. Haviam ficado exultantes, exuberantemente amorosos um com o outro, há apenas alguns instantes. Agora ela estava pálida, mas trêmula com uma emoção interior que fez as xícaras chocalharem nos pires quando ela começou a servir o chá. Ele estava ruborizado, enquanto ela estava pálida, mas não - Grey tinha quase certeza - com qualquer tipo de excitação sexual. Ele tinha a expressão de um homem que... bem, não. Era excitação sexual, pensou, intrigado - havia, afinal, visto isso muitas vezes e era um perspicaz observador disso em um homem - mas não estava concentrado em Dottie. De modo algum.

   O que diabos eles estão aprontando?, pensou. Entretanto, fingiu ignorar a perturbação de ambos e sentou-se para tomar seu chá e ouvir as experiências de Willie.

   O relato acalmou William um pouco. Grey observou a expressão do rosto de William mudar conforme ele falava, às vezes com hesitação, e sentiu uma pontada aguda de dor. Orgulho, sim, grande orgulho; William era um homem agora, um soldado, e um bom soldado. Mas Grey sentia também um furtivo pesar pelo desaparecimento dos últimos traços de inocência de Willie; um breve olhar dentro de seus olhos provava essa ausência.

   Os relatos de batalhas, política, índios, tudo tinha o efeito oposto em Dottie, ele viu. Longe de ficar mais calma ou mais feliz, ela foi ficando visivelmente mais agitada a cada instante.

   - Eu estava indo visitar sir William, mas acho que vou ver Henry primeiro - Grey disse finalmente, levantando-se e limpando farelos de torrada das abas de seu casaco. - Quer vir comigo, Willie? Ou vocês dois, se quiserem. Ou prefere descansar?

   Trocaram um olhar onde cumplicidade e conspiração eram tão evidentes que ele piscou. Willie tossiu e levantou-se, também.

   - Sim, papai. Eu quero muito ver Henry, é claro. Mas Dottie acaba de me contar como o estado dele é grave... e sobre sua intenção de conseguir um cirurgião do exército para operá-lo. Eu estava... pensando... eu conheço um médico do exército. Um sujeito extraordinário. Muito experiente e de maneiras maravilhosamente gentis, mas rápido como uma cobra com seu bisturi - apressou-se a acrescentar. Suas cores melhoraram consideravelmente ao dizer isso e Grey observou-o, fascinado.

   - É mesmo? - Grey disse devagar. - Ele parece uma resposta às minhas preces. Qual é o nome dele? Eu poderia perguntar a sir William...

   - Oh, ele não está com sir William - Willie apressou-se a informar.

   - Oh, é um dos homens de Burgoyne? - Os soldados, em liberdade condicional, do derrotado exército de Burgoyne haviam, todos eles, com exceções como a de William, marchado para Boston, para de lá embarcarem para a Inglaterra. - Bem, eu obviamente gostaria de tê-lo aqui, mas duvido que possamos mandar buscá-lo em Boston e fazer com que chegue a tempo, considerando-se a época do ano e a probabilidade...

   - Não, ele não está em Boston. - Willie trocou outro daqueles olhares com Dottie. Desta vez, ela viu Grey observá-los, ficou vermelha como as rosas nas xícaras de chá e olhou diligentemente para as pontas de seus sapatos. Willie limpou a garganta. - Na realidade, ele é um médico do Exército Continental. Mas o exército de Washington se aquartelou para o inverno em Valley Forge, a menos de um dia a cavalo. Ele virá se eu for pessoalmente lhe pedir, tenho certeza.

   - Compreendo - Grey disse, pensando rapidamente. Tinha certeza de que não estava vendo metade do que se passava - o que quer que fosse mas diante das circunstâncias isso realmente parecia uma resposta às suas preces. Seria uma questão simples pedir a Howe para arranjar uma escolta e uma bandeira de trégua para Willie, assim como um salvo-conduto para o médico. - Está bem - disse, tomando uma decisão na hora. - Falarei com sir William sobre isso esta tarde.

   Dottie e Willie deram sinais idênticos de... alívio? O que diabos está se passando? -, perguntou-se outra vez.

   - Muito bem, então - disse energicamente. - Pensando melhor, você vai querer tomar um banho e mudar de roupa, Willie. Vou ao quartel-general de Howe agora e iremos ver Henry esta tarde. Qual é o nome desse famoso médico continental, para que sir William mande preparar um salvo-conduto para ele?

   - Hunter - Willie disse, e seu rosto queimado de sol pareceu se iluminar. "Denzell Hunter. Não se esqueça de dizer a sir William para emitir salvo-conduto para dois; a irmã do dr. Hunter é sua enfermeira, ele vai precisar que também venha para ajudar.

 

                     ENXERGANDO BEM

20 de dezembro de 1777 Edimburgo

O texto impresso na página entrou em foco de repente, nítido e preto, e eu soltei uma exclamação de surpresa.

   - Ah, perto, então? - o sr. Lewis, o oculista, piscou para mim por cima de seus próprios óculos. - Tente estes. - Removeu delicadamente os óculos experimentais do meu nariz e entregou-me um outro par. Coloquei-os, examinei a página do livro diante de mim, em seguida ergui os olhos.

   - Eu não fazia a menor ideia - disse, perplexa e encantada. Era como nascer de novo; tudo estava nítido, vívido, novo. Eu havia repentinamente reentrado no mundo quase esquecido da boa impressão.

   Jamie estava parado junto à vitrine da loja, livro na mão e um belo par de óculos quadrados, de aro de metal, em seu longo nariz. Eles lhe emprestavam um ar erudito incomum e por um momento ele pareceu um distinto estranho, até ele se virar para olhar para mim, os olhos ligeiramente aumentados por trás das lentes. Ele olhou por cima dos óculos e sorriu ao me ver.

   - Gosto desses - disse com aprovação. - Os redondos caem bem em seu rosto, Sassenach.

   Eu ficara tão entusiasmada com os novos detalhes do mundo ao meu redor que nem me ocorreu imaginar como eu ficara. Curiosa, levantei-me e fui me olhar no pequeno espelho pendurado na parede.

   - Santo Deus - eu disse, contraindo-me ligeiramente. Jamie riu e o sr. Lewis sorriu indulgentemente.

   - Assentam-lhe muito bem, madame - ele disse.

   - Bem, pode ser - eu disse, cautelosamente examinando o reflexo da estranha no espelho. - É que é um choque.

   Não é que eu me esquecera da minha aparência. Apenas, eu não pensava nela há meses, além de vestir uma roupa limpa e não usar cinza, que me fazia parecer ter sido mal embalsamada.

   Eu vestia marrom hoje, um casaco aberto de veludo castanho, no tom de taboa madura, com uma fita estreita de gorgorão, dourada, nas bordas, sobre meu vestido novo - este de pesada seda cor de café com um corpete bem-ajustado e três anáguas com renda na barra, aparecendo nos tornozelos. Não nos demoraríamos em Edimburgo, devido às exigências de levar o general de brigada ao seu lugar de repouso final e à ansiedade de Jamie de partir para as Highlands - mas tínhamos negócios a resolver ali. Jamie dissera com firmeza que não podíamos parecer mendigos maltrapilhos e mandara vir uma costureira e um alfaiate assim que chegamos às nossas instalações.

   Recuei um pouco, vaidosamente. Com toda a honestidade, eu estava surpresa de ver o quanto era boa a minha aparência. Durante os longos meses de viagem, de retirada e de luta com o Exército Continental, eu ficara reduzida à minha essência: sobrevivência e função. A minha aparência era inteiramente irrelevante, ainda que eu tivesse um espelho.

   Na verdade, subconscientemente eu esperava ver uma bruxa no espelho, uma mulher acabada, de cabelos grisalhos desgrenhados e expressão feroz. Possivelmente, um ou dois pelos longos brotando do queixo.

   Em vez disso... bem, eu ainda podia me reconhecer. Meus cabelos - sem touca, mas cobertos com um pequeno e reto chapéu de palha enfeitado com um caprichoso buquê de margaridas de pano - estavam presos em um coque atrás da cabeça. Mas alguns fios soltos encaracolavam-se graciosamente em minhas têmporas e meus olhos eram de um âmbar límpido e brilhante por trás dos novos óculos, com um surpreendente ar de franca expectativa.

   Eu tinha as rugas e sulcos da minha idade, é claro, mas no geral meu rosto se assentara bem nos meus ossos, em vez de despencar em queixadas e papadas pelo meu pescoço. E o colo, com apenas uma sombra discreta mostrando o volume dos meus seios - a Marinha Real havia nos alimentado prodigamente na viagem marítima e eu havia recuperado um pouco do peso que perdera durante a longa marcha de retirada de Ticonderoga.

   - Bem, nada mau, na verdade - eu disse, parecendo tão surpresa que Jamie e o sr. Lewis desataram a rir. Tirei os óculos com grande pesar - os óculos de Jamie eram simples óculos de leitura com aro de metal, de modo que ele podia levá-los agora mesmo, mas os meus somente estariam prontos, com o aro de ouro, na tarde seguinte, conforme o sr. Lewis prometeu - e nós deixamos a loja para a nossa missão seguinte: a tipografia de Jamie.

- Onde está Ian nesta manhã? - perguntei, enquanto nos dirigíamos à Princes Street. Ele já havia saído quando acordei, sem deixar nenhuma pista, quanto mais algum recado sobre seu paradeiro. - Você não acha que ele resolveu fugir em vez de ir para casa, não é?

   - Se fugiu, eu o encontrarei e lhe darei uma surra, e ele sabe disso perfeitamente bem - Jamie disse distraidamente, olhando para cima, do outro lado do parque, para o enorme vulto do castelo em sua rocha, depois colocando os óculos - desnecessariamente - para ver se faziam alguma diferença. - Não, acho que provavelmente foi a um bordel.

   - As onze horas da manhã? - exclamei.

   - Bem, não há regras sobre isso - Jamie disse serenamente, tirando os óculos, envolvendo-os em seu lenço e guardando-os em seu sporran. - Eu fazia isso de manhã de vez em quando. Embora eu duvide que ele esteja empenhado em conhecimento carnal neste momento - acrescentou. - Eu disse a ele para ir ver se madame Jeanne ainda é dona do lugar, porque, se for, ela será capaz de me dizer mais em um espaço de tempo mais curto do que qualquer outra pessoa em Edimburgo. Se ela estiver lá, irei vê-la à tarde.

   - Ah - eu disse, não gostando muito da ideia de ele sair para um aconchegante tête-à-tête com a elegante francesa que um dia fora sua sócia nos negócios de contrabando de uísque, mas admitindo a conveniência da proposta. - E onde você acha que Andy Bell estaria às dez horas da manhã?

   - Na cama - Jamie disse prontamente. - Dormindo - acrescentou com um sorriso, vendo a expressão em meu rosto. - Os tipógrafos são criaturas sociáveis, de um modo geral, e se reúnem à noite nas tavernas. Nunca conheci nenhum que madrugasse, a não ser que tivessem filhos pequenos com cólica.

   - Está pensando em tirá-lo da cama? - perguntei, esticando o passo para acompanhá-lo.

   - Não, nós o encontraremos no Mowbray's na hora do almoço - ele disse.

- Ele é gravador, precisa de alguma luz para trabalhar, de modo que acorda ao meio-dia. E come no Mowbray's quase todo dia. Só quero ver se seu estabelecimento foi incendiado ou não. E se o patife está usando minha prensa.

   - Você fala como se ele estivesse usando sua mulher - eu disse, achando graça do tom soturno de sua fala.

   Ele fez um pequeno ruído escocês, reconhecendo o suposto humor dessa observação, enquanto simultaneamente se recusava a compartilhar dele. Eu não sabia que ele tinha sentimentos tão fortes em relação ao seu maquinário de imprensa - afinal, estava longe dele há quase doze anos. Não era de admirar que seu coração apaixonado estivesse começando a bater com a ideia de se reencontrar finalmente com o objeto de seu amor, pensei, secretamente achando graça.

   Por outro lado, talvez ele estivesse com medo de que a gráfica de Andy Bell tivesse sido destruída em um incêndio. Não era um temor vão. Sua própria gráfica fora destruída por um incêndio doze anos antes; tais estabelecimentos eram particularmente vulneráveis ao fogo, tanto devido à presença de uma pequena forja aberta para derreter e moldar tipos quanto à quantidade de papel, tinta e substâncias inflamáveis semelhantes guardadas no local.

   Meu estômago roncou suavemente com a ideia de um almoço no Mowbray's; eu tinha lembranças muito agradáveis de nossa última - e única - visita ao local, que envolvera um excelente ensopado de ostras e um vinho branco resfriado ainda melhor, entre outros prazeres da carne.

   Mas ainda faltava algum tempo até o almoço; os trabalhadores deveriam abrir suas marmitas ao meio-dia, mas os elegantes de Edimburgo comiam a hora civilizada de três horas. Poderíamos comprar um pastel fresco em um vendedor ambulante, pensei, apressando o passo no rastro de Jamie. Só para aguentar até a hora do almoço.

   A gráfica de Andrew Bell, felizmente, ainda estava de pé. A porta estava fechada por causa do vento, mas uma sineta soou acima do barulho do vento e anunciou nossa presença. Um senhor de meia-idade em mangas de camisa e avental ergueu os olhos de um cesto de lingotes que ele separava.

   - Bom-dia, senhor. Madame - ele disse cordialmente, balançando a cabeça para nós, e eu vi de imediato que não era escocês. Ou, melhor, não era nascido na Escócia, pois seu sotaque era um inglês suave, ligeiramente arrastado, das Colônias do sul. Jamie ouviu e sorriu.

   - Sr. Richard Bell? - ele perguntou.

   - Sim, sou eu - o homem respondeu, parecendo surpreso.

   - James Fraser, seu criado, senhor - Jamie disse educadamente, inclinando-se em um cumprimento. - Permita-me apresentar minha mulher, Claire.

   - Seu criado, senhor. - O sr. Bell inclinou-se também, parecendo um pouco aturdido, mas mantendo perfeitamente as boas maneiras.

   Jamie enfiou a mão no bolso do peito do casaco e retirou um pequeno maço de cartas, amarrado com uma fita cor-de-rosa.

   - Eu lhe trouxe notícias de sua mulher e de suas filhas - ele disse simplesmente, entregando as cartas. - E vim ver se posso mandá-lo de volta para casa para ficar com elas.

   O rosto do sr. Bell perdeu toda a expressão e em seguida todo o sangue. Por um instante, pensei que ele fosse desmaiar, mas não desmaiou, apenas se agarrando na borda do balcão para se apoiar.

   - O senhor... para casa? - disse, com a voz entrecortada. Agarrara o maço de cartas junto ao peito e agora o fitava, os olhos rasos de lágrimas. - Como... como foi que ela... Minha mulher. Ela está bem? - ele perguntou abruptamente, erguendo a cabeça de repente para olhar para Jamie, um súbito temor nos olhos. - Elas estão bem?

   - Estavam todas bonitas como pombas quando as vi em Wilmington - Jamie assegurou-lhe. - Muito desoladas com sua ausência, mas passando bem.

   O sr. Bell tentava desesperadamente controlar o rosto e a voz, e o esforço deixou-o sem fala. Jamie inclinou-se por cima do balcão e tocou delicadamente em seu braço.

   - Vá ler suas cartas, meu caro - sugeriu. - Nossos outros negócios podem esperar.

   A boca do sr. Bell abriu-se uma ou duas vezes, sem nenhum som, em seguida assentiu energicamente e, girando nos calcanhares, atravessou atabalhoadamente pela porta que levava à sala dos fundos.

   Suspirei e Jamie olhou para mim, sorrindo.

   - É bom quando alguma coisa dá certo, não é? - eu disse.

   - Ainda não está tudo certo, mas vai ficar. - Ele então tirou seus óculos novos do sporran e, colocando-o no nariz, levantou o tampo do balcão e entrou com passos decididos. - Esta é a minha prensa! - ele exclamou acusadoramente, dando a volta na enorme máquina como um falcão pairando sobre a presa.

   - Acredito em você, mas como pode saber? - Eu o segui cautelosamente, afastando minhas saias da prensa suja de tinta.

   - Bem, para começar, tem meu nome estampado nela - ele disse, inclinando-se e apontando para algo embaixo. - Alguns deles, pelo menos. - Inclinando-me de lado e estreitando os olhos, consegui decifrar Alex. Malcolm esculpido na parte de baixo de uma trave pequena.

   - Aparentemente, ainda funciona bem - observei, endireitando-me e olhando ao redor do aposento, para os cartazes, letras de baladas e outros exemplos das artes da gravação e impressão exibidos ali.

   - Mmmmhum. - Experimentou as partes móveis e examinou a prensa minuciosamente antes de admitir com relutância que, de fato, parecia em boas condições. Mas ainda parecia furioso. - E eu paguei o patife durante todos esses anos para conservá-la para mim! - murmurou. Empertigou-se, olhando funestamente para a prensa. Nesse ínterim, eu andara bisbilhotando pelas mesas perto da parede da frente, que exibia livros e folhetos à venda, e peguei um desses últimos, intitulado Encyclopedia Britannica e, embaixo, "Láudano".

   A tintura de ópio, ou láudano líquido, também chamado de extrato tebaico, é feita da seguinteforma: tome duas onças de ópio preparado, canela e cravo, um dracma de cada um, de um quartilho de vinho branco, faça uma infusão durante uma semana sem calor e em seguida filtre-a em papel.

   O ópio atualmente é muito apreciado e considerado um dos mais valiosos de todos os remédios simples. Aplicado externamente, é emoliente, relaxante e carminativo, além de grande promotor de supuração: se mantido por bastante tempo sobre a pele, ele remove os pelos e sempre provoca coceira; às vezes, causa úlceras e cria pequenas bolhas, se aplicado a uma parte sensível: às vezes, em aplicações externas, mitiga a dor e até promove o sono; não deve de forma alguma ser aplicado à cabeça, especialmente às suturas do crânio, pois se sabe que pode ter os mais terríveis efeitos em sua aplicação e até causar a morte. O ópio usado internamente elimina a melancolia, diminui a dor e predispõe ao sono; em muitos casos, elimina hemorroidas e tem efeito sudorífero.

   Uma dose moderada em geral tem peso inferior a um grão...

   - Sabe o que "carminativo" significa? - perguntei a Jamie, que lia o tipo montado na forma na prensa, franzindo a testa ao fazê-lo.

   - Sei. Significa que pode dissolver alguma coisa. Por quê?

   - Ah. Talvez seja por isso que aplicar láudano às suturas do crânio seja ma ideia.

   Ele me lançou um olhar perplexo.

   - Por que alguém faria isso?

   - Não faço a menor ideia. - Retornei aos folhetos, fascinada. Um deles, intitulado "O Útero", tinha algumas gravuras muito boas de uma pélvis feminina dissecada, com os órgãos internos, feita de diversos ângulos, assim como desenhos do feto em vários estágios de desenvolvimento. Se era trabalho do sr. Bell, pensei, ele era não só um magnífico artesão mas também um observador muito diligente.

   - Tem um penny? Gostaria de comprar isto.

   Jamie enfiou a mão no sporran e colocou um penny no balcão, olhou para o folheto em minha mão e se contraiu.

   - Santa Mãe de Deus - ele disse, fazendo o sinal da cruz.

   - Bem, provavelmente, não - eu disse, brandamente. - Mas, sem dúvida, uma mãe.

   Antes que ele pudesse responder a isso, Richard Bell saiu da sala dos fundos, os olhos vermelhos, mas estava sereno, e tomou a mão de Jamie.

   - Não sabe o que fez por mim, sr. Fraser - disse, comovido. - Se o senhor pode realmente me ajudar a retornar para a minha família, eu... eu... bem, na verdade, eu não sei o que eu poderia fazer para demonstrar minha gratidão, mas pode ter certeza de que eu abençoarei sua alma para sempre!

   - Fico muito agradecido por sua consideração, senhor - Jamie lhe disse, sorrindo. - Talvez o senhor possa me fazer um pequeno serviço, mas, se não puder, ainda assim ficarei muito agradecido pelas suas bênçãos.

   - Se houver alguma coisa que eu possa fazer, senhor, absolutamente qualquer coisa! - Bell assegurou-lhe fervorosamente. Em seguida, uma leve hesitação sobreveio ao seu rosto - provavelmente uma lembrança de alguma coisa que sua mulher dissera sobre Jamie na carta. - Qualquer coisa que não seja... traição, eu diria.

   - Oh, não. Muito longe de traição - Jamie garantiu-lhe, e nós nos despedimos.

Comi uma colherada do ensopado de ostras e fechei os olhos em êxtase. Havíamos chegado um pouco cedo, a fim de conseguir um lugar junto à janela que dava para a rua, mas o Mowbray's se encheu rapidamente e a barulheira dos talheres e da conversa era quase ensurdecedora.

   - Tem certeza de que ele não está aqui? - eu disse, inclinando-me sobre a mesa para ser ouvida. Jamie sacudiu a cabeça, bochechando um gole do Moselle resfriado na boca com uma expressão de bem-aventurança.

   - Você vai saber quando ele estiver, não tenha dúvida - ele disse, engolindo.

   - Está bem. Que tipo de serviço "muito longe de traição" você pretende fazer o pobre sr. Bell executar em troca de sua passagem para casa?

   - Pretendo enviá-lo para casa como responsável pela minha prensa - ele respondeu.

   - O quê, confiar sua preciosa queridinha a praticamente um estranho? - Perguntei, achando graça. Ele me lançou um olhar maligno em troca, mas terminou seu bocado de pãozinho amanteigado antes de responder.

   - Não espero que ele vá maltratá-la. Afinal, ele não vai imprimir uma tiragem de mil exemplares de Clarissa a bordo do navio.

   - Oh - exclamei, achando muita graça -, e qual é, se me permite perguntar, o nome dela?

   Ele corou um pouco e desviou o olhar, cuidadosamente empurrando uma ostra especialmente suculenta para sua colher, mas finalmente murmurou, antes de engoli-la:

   - Bonnie.

   Eu ri, mas antes que pudesse fazer mais perguntas um novo barulho surgiu no meio da algazarra e as pessoas começaram a largar suas colheres e se levantar, esticando o pescoço para ver pela janela.

   - Esse deve ser Andy - Jamie me disse.

   Olhei para a rua e vi um pequeno agrupamento de garotos ociosos, batendo palmas e dando vivas. Olhando para o começo da rua para ver o que se aproximava, avistei um dos maiores cavalos que já vi. Não era um cavalo de tração, mas um cavalo extremamente alto, com cerca de um metro e setenta de altura, até onde meu olhar inexperiente podia dizer.

   Montado no cavalo, estava um homem muito pequeno, sentado ereto e magnificamente ignorando os aplausos da multidão. Parou logo abaixo de nossa janela e, virando-se, retirou um quadrado de madeira da sela atrás dele. Sacudiu-o, revelando uma escada dobrável de madeira e uma das crianças da rua correu para segurar o pé da escada enquanto o sr. Bell - pois não poderia ser outro - desceu sob os aplausos dos transeuntes. Ele atirou uma moeda para o menino que segurara a escada, outra para um rapaz que tomara as rédeas de seu cavalo, e desapareceu de vista.

   Alguns instantes depois, ele atravessou a porta, entrando no principal salão de jantar, tirando seu chapéu de bicos e fazendo uma mesura graciosa às saudações dos comensais. Jamie ergueu a mão, chamando "Andy Bell!" com uma voz retumbante que atravessou o zumbido das conversas, e a cabeça do homenzinho virou-se bruscamente em nossa direção, surpreso. Observei-o fascinada enquanto vinha em nossa direção, um sorriso lento espraiando-se em seu rosto.

   Eu não sabia se ele tinha alguma forma de nanismo ou se apenas sofrera de grave subnutrição e escoliose na juventude, mas suas pernas eram curtas em proporção ao tronco, e seus ombros eram arqueados; ele mal alcançava um metro e vinte e somente se via o topo de sua cabeça - coberta por uma peruca muito elegante - no momento em que passava entre as mesas.

   Mas esses aspectos de aparência desfizeram-se em insignificância quando ele se aproximou e eu notei seu atributo mais extraordinário. Andrew Bell tinha o maior nariz que eu já vira, e no curso de uma vida memorável eu vira alguns espécimes notáveis. Começava entre as sobrancelhas e curvava-se delicadamente para baixo por uma curta distância, como se a natureza tivesse tido a intenção de lhe dar o perfil de um imperador romano. No entanto, alguma coisa dera errado na execução e algo como uma pequena batata fora afixada a esse começo promissor. Protuberante e vermelho, atraía o olhar.

   Atraiu muitos olhares; quando se aproximava de nossa mesa, uma jovem nas proximidades o viu, soltou o ar com uma arfada e cobriu a boca com a mão, essa precaução sendo totalmente insuficiente para sufocar suas risadinhas.

   O sr. Bell a ouviu e, sem diminuir o passo, enfiou a mão no bolso, retirou dali um enorme nariz de papier-mâché decorado com estrelas roxas, que colocou sobre o próprio nariz e, fixando um olhar glacial na jovem, passou por ela e continuou andando.

   - Querida - Jamie me disse, rindo enquanto se levantava e estendia a mão para o pequeno gravador -, deixe-me lhe apresentar meu amigo, o sr. Andrew Bell. Minha mulher, Andy. Seu nome é Claire.

   - Encantado, madame - ele disse, retirando o falso nariz e fazendo uma pronunciada mesura sobre minha mão. - Quando adquiriu esta rara criatura, Jamie? E o que uma senhora tão adorável pode querer com um brutamonte vulgar como você?

   - Eu a convenci a se casar comigo com descrições das belezas de minha máquina impressora - Jamie disse secamente, sentando-se e fazendo sinal a Andy Bell para que se juntasse a nós.

   - Ah - Andy exclamou, com um olhar penetrante para Jamie, que ergueu as sobrancelhas e arregalou os olhos. - Humm. Estou vendo que já estiveram na gráfica. - Fez sinal com a cabeça indicando minha bolsinha, de onde se projetava a ponta do folheto.

   - Estivemos - eu disse apressadamente, retirando o folheto. Eu não achava que Jamie pretendia esmagar Andy Bell como um inseto por ter usado sua prensa tipográfica livremente, mas seu relacionamento com "Bonnie" era novidade para mim e eu não sabia a extensão do seu sentimento de proprietário indignado. - E um belíssimo trabalho - eu disse ao sr. Bell, com absoluta sinceridade. - Diga-me, quantos espécimes diferentes o senhor usou?

   Ele piscou um pouco, mas respondeu prontamente, e tivemos uma agradável - ainda que um pouco horripilante - conversa sobre as dificuldades da dissecação no clima quente e o efeito de solução salina versus álcool para preservação. Isso fez com que as pessoas na mesa próxima terminassem sua refeição apressadamente, lançando olhares velados de horror enquanto saíam. Jamie reclinou-se para trás em sua cadeira, parecendo amável, mas mantendo um olhar fixo em Andy Bell.

   O pequeno gravador não deixou transparecer nenhum desconforto em particular sob aquele olhar basilisco e continuou me contando sobre a reação quando ele publicou a edição encadernada da Encyclopedia - o rei de algum modo havia visto os clichês da seção "Útero" e ordenara que aquelas páginas fossem arrancadas do livro, o idiota alemão ignorante! -, mas quando o garçom veio anotar seu pedido, ele pediu tanto um vinho caro quanto uma grande garrafa de uísque de qualidade.

   - Uísque com o ensopado? - exclamou o garçom, perplexo.

   - Não - ele disse com um suspiro, empurrando a peruca para trás. - Concubinagem. Se é assim que você chama quando aluga os serviços da amada de um homem.

   O garçom voltou seu olhar de espanto para mim, depois ficou vermelho e, engasgando um pouco, se afastou.

   Jamie fixou os olhos estreitados em seu amigo, agora passando manteiga em um pãozinho com grande desenvoltura.

   - Quero mais do que uísque, Andy.

   Andy Bell suspirou e coçou o nariz.

   - Sim, bem - disse. - Diga.

Encontramos Ian esperando no pequeno hotel, conversando com dois carroceiros de carretas na rua. Ao nos ver, se despediu - e enfiou um pequeno pacote sob o casaco sorrateiramente - e entrou conosco. Era hora do chá e Jamie pediu que fosse servido em nossos quartos, por discrição.

   Havíamos, de certa forma, feito uma extravagância em termos de acomodações, pois ocupamos um conjunto de aposentos. O chá foi servido na sala de estar, um apetitoso arranjo de hadoque defumado grelhado, ovos à escocesa, torradas com geleia de laranja e pãezinhos com queijo branco e geleia de frutas, acompanhando um enorme bule de chá preto forte. Inalei o vapor aromático e suspirei de prazer.

   - Vai ser um sofrimento voltar a não ter chá - observei, servindo-o para todos. - Não creio que possamos conseguir algum na América pelos próximos... O quê?... três ou quatro anos?

   - Oh, eu não diria isso - Jamie contrapôs judiciosamente. - Depende do lugar para onde vamos voltar, não é? Você pode muito bem obter chá em lugares como Filadélfia ou Charleston. Só precisa conhecer um ou dois bons contrabandistas, e se o capitão Hickman não tiver naufragado ou sido enforcado quando nós estivermos de volta...

   Coloquei a xícara de volta na mesa e olhei para ele, espantada.

   - Não está dizendo que não planeja voltar para Ridge, não é? - Senti um vazio repentino na boca do estômago, lembrando-me de nossos planos para a Casa Nova, o perfume dos abetos balsâmicos e a quietude das montanhas. Ele realmente pretenderia se mudar para Boston ou Filadélfia?

   - Não - ele disse, surpreso. - Claro que devemos voltar para lá. Mas se eu pretendo entrar no negócio de impressão, Sassenach, teremos que ficar algum tempo em uma cidade, não? Somente até a guerra terminar - ele disse, animado.

   - Oh - exclamei baixinho com um fio de voz. - Sim. Claro. - Tomei chá sem sentir o gosto. Como pude ser tão tola? Não me passara pela cabeça que uma prensa seria inútil em Fraser's Ridge. Em parte, eu supunha, eu simplesmente não havia realmente acreditado que ele iria recuperar seu maquinário de impressão, muito menos saltar para a conclusão lógica, caso ele conseguisse.

   Mas agora ele tinha sua Bonnie de volta e o futuro repentinamente adquiriu uma solidez desagradável. Não que as cidades não tivessem consideráveis vantagens, disse a mim mesma corajosamente. Eu poderia enfim adquirir um conjunto decente de instrumentos médicos, refazer meu estoque de remédios - ora, eu poderia até mesmo fazer penicilina e éter outra vez! Com um pouco mais de apetite, peguei um ovo escocês.

   - Por falar em contrabandistas - Jamie dizia a Ian o que é que você tem aí dentro do casaco? Um presente para uma das damas da casa de madame Jeanne?

   Ian lançou um olhar frio a seu tio e retirou o pequeno pacote do bolso.

   - Um pedaço de renda francesa. Para minha mãe.

   - Bom garoto - Jamie disse com aprovação.

   - Que lembrança amável, Ian - eu disse. - Você... quero dizer, madame Jeanne ainda está in situ?

   Ele balançou a cabeça, colocando o pequeno embrulho de volta no bolso do casaco.

   - Está. E muito ansiosa para renovar seu contato com você, tio - acrescentou, com um sorriso ligeiramente malicioso. - Perguntou se você poderia ir lá esta noite para se divertir um pouco.

   Jamie olhou para mim e torceu o nariz.

   - Oh, acho que não, Ian. Enviarei um bilhete dizendo que esperaremos por ela amanhã de manhã às onze horas. Mas esteja à vontade para aceitar o convite você mesmo, é claro. - Era óbvio que ele estava apenas caçoando, mas Ian sacudiu a cabeça.

   - Não, eu não iria com uma prostituta. Não até estar tudo resolvido entre mim e Rachel - ele disse, sério. - De um modo ou de outro. Mas não levarei outra mulher para a cama enquanto ela não me der uma palavra final.

   Nós dois olhamos para ele por cima de nossas xícaras de chá, um pouco surpresos.

   - Você, então, está falando sério - eu disse. - Você se sente... hã... comprometido com ela?

   - Bem, é claro que sim, Sassenach - Jamie disse, estendendo a mão para pegar outra torrada. - Ele deixou o cachorro com ela.

Acordei tarde e preguiçosamente na manhã seguinte, e como Jamie e Ian provavelmente iriam demorar em seus negócios, eu me vesti e fui fazer compras.

Sendo Edimburgo uma cidade de comércio, Jamie pôde converter nosso estoque de ouro - ainda nos restava uma boa quantidade - em dinheiro vivo e créditos bancários, bem como providenciar o depósito em cofre do banco do maço de cartas que havíamos acumulado desde Fort Ticonderoga. Ele havia deixado uma gorda carteira para meu uso pessoal e eu resolvi passar o dia fazendo compras, bem como pegar meus óculos novos.

   Foi com eles orgulhosamente plantados no nariz e uma sacola com uma seleção das melhores ervas e remédios disponíveis no boticário Haugh's que retornei para o hotel Howard na hora do chá, com grande apetite.

   Meu apetite, no entanto, recebeu um pequeno revés quando o gerente do hotel saiu de seu santuário, com uma expressão ligeiramente contrita, e pediu Para dar uma palavrinha comigo.

   - Nós apreciamos a honra da... presença do general Fraser - disse, apologético, conduzindo-me a um vão de escada pequeno e confinado, que levava ao porão. - Um grande homem, e um grande guerreiro, e obviamente estamos Cientes da natureza heróica das... hã... circunstâncias de sua morte. É só que... bem, eu hesitei em mencionar isso, madame, mas um entregador de carvão mencionou hoje de manhã que havia um... cheiro.

   Essa última palavra foi dita tão discretamente que ele quase a sussurrou em meu ouvido enquanto me conduzia da escada para dentro do depósito de carvão do Howard, onde nós providenciamos para que o general pudesse repousar com dignidade até que partíssemos para as Highlands. O próprio cheiro não era tão discreto e eu retirei um lenço do bolso e tampei meu nariz. Havia uma pequena janela no alto da parede, e uma luz turva e suja penetrava no porão. Sob ela, havia uma larga calha, sob a qual se erguia um pequeno monte de carvão.

   Bem afastado dali, em solitária dignidade e envolto em lona, repousava o caixão do general, iluminado por um solene facho de luz da minúscula janela. Uma luz que se refletia de uma pequena poça sob o caixão. O general estava vazando.

- "E via o crânio por debaixo da pele" - citei, amarrando um pano embebido em terebintina ao redor da cabeça, bem embaixo do meu nariz. - "E criaturas sem torso torcidas sobre a terra a sorrir escarninhas sem os lábios. "

   - Apropriado - Andy Bell disse, lançando-me um olhar de esguelha. - Palavras suas?

   - Não, de um cavalheiro chamado Eliot - eu lhe disse. - Mas, como diz... apropriado.

   Considerando-se a agitação do pessoal do hotel, achei melhor tomar providências sem esperar que Jamie e Ian retornassem, e após um momento de reflexão enviei um mensageiro às pressas para perguntar ao sr. Bell se ele gostaria de vir observar algo interessante no aspecto médico.

   - A luz está deplorável - Bell disse, ficando na ponta dos pés para espreitar dentro do caixão.

   - Solicitei dois lampiões - assegurei-lhe. - E baldes.

   - Sim, baldes - ele concordou, pensativo. - Mas o que acha para o que se pode chamar de longo prazo? Serão necessários alguns dias até ele chegar às Highlands, talvez semanas, nesta época do ano.

   - Se arrumarmos um pouco as coisas, achei que talvez você conhecesse um ferreiro discreto que pudesse vir e reforçar o forro. - Uma soldadura nas folhas de chumbo do forro havia se soltado, provavelmente devido ao balanço na hora de retirar o caixão do navio, mas parecia um conserto bastante simples, desde que tivéssemos um ferreiro de estômago forte e um nível baixo de superstição com relação a cadáveres.

   - Mmhum. - Ele retirara um bloco de desenho e fazia esboços preliminares, apesar da precariedade da luz. Coçou seu nariz de batata com a ponta de seu lápis de prata, pensando. - Poderia fazer isso, sim. Mas há outras maneiras.

   - Sim, poderíamos fervê-lo até sobrarem apenas os ossos, claro - eu disse, um pouco asperamente. - Embora não queira nem pensar no que o hotel diria se eu pedisse emprestados seus caldeirões de ferver roupas.

   Ele riu, para o indisfarçável horror do criado que aparecera na escada, segurando dois lampiões.

   - Ah, não se preocupe, rapaz - Andy Bell lhe disse, pegando os lampiões. - Não tem ninguém aqui além de nós, espíritos necrófilos.

   Abriu um sorriso largo ao som do criado subindo os degraus de três em três, mas depois virou e me olhou especulativamente.

- É uma ideia, hein? Eu poderia levá-lo para a minha loja. Tirá-lo de suas mãos, e ninguém ficaria sabendo, tão pesado é o caixão. Quero dizer, provavelmente ninguém vai querer ver o rosto do caro falecido quando você o levar ao lugar para onde vai, não é?

   Não fiquei ofendida com a sugestão, mas sacudi a cabeça.

   - Deixando de lado a possibilidade de um de nós, ou ambos, ser preso como sequestrador de cadáver, o pobre homem, afinal, é parente do meu marido. E, para começar, ele não queria estar aqui.

   - Bem, ninguém quer, não é? - Bell disse, pestanejando. - Mas não há muito o que se possa fazer. O crânio por debaixo da pele, como esse Eliot coloca de forma tão comovente.

   - Eu quis dizer Edimburgo, não um caixão - esclareci. Felizmente, minhas compras em Haugh's haviam incluído uma garrafa grande de álcool desnaturado, que eu trouxera para baixo, discretamente embrulhado em um avental rústico que consegui de uma das camareiras. - Ele queria ser enterrado na América.

   - É mesmo? - Bell murmurou. - Ideia singular. Ah, bem. Então, posso sugerir duas coisas. Consertar o vazamento e encher o caixão com um galão ou dois de gim barato... bem, é mais barato do que o que você tem aí - ele disse, vendo minha expressão. - Ou... quanto tempo você acha que pode permanecer em Edimburgo?

   - Não pretendíamos ficar mais do que uma semana, mas podemos prolongar por mais um ou dois dias - eu disse cautelosamente, desfazendo o fardo de trapos que o gerente havia me dado. - Por quê?

   Ele inclinou a cabeça para frente e para trás, contemplando os restos mortais à luz do lampião. Uma palavra apropriada, "restos".

   - Larvas - ele disse sucintamente. - Elas podem fazer um belo trabalho, mas levam algum tempo. Ainda assim, se pudermos remover a maior parte da carne... humm. Tem algum tipo de faca aí? - ele perguntou.

   Balancei a cabeça, enfiando a mão no bolso. Afinal, Jamie me dera a faca Porque achara que eu poderia precisar.

   - Tem larvas? - perguntei.

Larguei a deformada bala de chumbo em um pires. Ela tilintou e rolou até parar e todos nós olhamos para ela em silêncio.

   - Foi isso que o matou - eu disse finalmente. Jamie fez o sinal da cruz e murmurou algo em gaélico. Ian balançou a cabeça com ar circunspecto. - Que Deus o tenha.

   Eu não comera muito dos excelentes acompanhamentos do chá; o cheiro de decomposição demorava-se no fundo de minha garganta, apesar da terebintina e do banho que eu tomara de álcool, seguido de um banho verdadeiro na banheira do hotel, com sabão e água tão quente quanto eu pude suportar.

   - Então - eu disse, clareando a garganta. - Como estava madame Jeanne?

   Jamie ergueu os olhos da bala, o rosto se iluminando.

   - Oh, muito bonita - ele disse, rindo. - Ela tinha muito a dizer sobre a situação na França. E um bocado a dizer sobre um certo Percival Beauchamp.

   Empertiguei-me um pouco mais.

   - Ela o conhece?

   - Sim, conhece. Ele comparece ao seu estabelecimento de vez em quando, mas não a negócios. Ou melhor - acrescentou, com um olhar de viés para Ian -, não em função dos negócios dela.

   - Contrabando? - perguntei. - Ou espionagem?

   - Provavelmente ambos, mas, se for esta última, ela não iria me dizer. No entanto, ele traz muita coisa da França. Estive pensando que talvez eu e Ian pudéssemos ir até lá, enquanto o general faz o que quer que esteja fazendo... quanto tempo o pequeno Andy acha que vai levar para ele ficar apresentável?

   - De três ou quatro dias a uma semana, dependendo do quanto as larvas estejam...hum... ativas. - Tanto Ian quanto Jamie estremeceram em reação. - E exatamente o mesmo que acontece embaixo da terra - ressaltei. - Vai acontecer com todos nós, mais cedo ou mais tarde.

   - Bem, sim, é - Jamie admitiu, pegando outro pãozinho e cobrindo-o generosamente com creme. - Mas geralmente isso é feito com privacidade, decentemente, de modo que não se tem que pensar nisso.

   - O general tem absoluta privacidade - assegurei-lhe, com certo azedume.

- Está coberto Com uma boa camada de farelo. Ninguém verá nada, a não ser que comecem a bisbilhotar.

   - Bem, isso é possível, hein? - Ian disse jovialmente, enfiando um dedo na geleia. - Isso aqui é Edimburgo. O lugar tem uma terrível reputação por roubo de cadáveres, por causa de todos os médicos que querem dissecá-los para estudo. Não seria melhor colocar um guarda no general, só para garantir que ele chegue às Highlands com todas as suas partes? - Enfiou o dedo na boca e ergueu os olhos para mim.

   - Bem, na realidade, ele tem um guarda - admiti. Foi Andy Bell quem sugeriu, exatamente por esse motivo. - Não mencionei que o próprio Andy fizera um lance pelo corpo do general, nem que eu dissera ao sr. Bell, com todas as letras, o que lhe aconteceria se o general desaparecesse.

   - Você disse que Andy a ajudou com o serviço? - Jamie perguntou com curiosidade.

   - Ajudou. Nós nos demos muito bem. Na realidade... - Eu não ia mencionar o assunto de nossa conversa até que Jamie tivesse bebido uma ou duas doses de uísque, mas o momento me pareceu oportuno, de modo que falei francamente. - Eu descrevi a ele várias coisas enquanto trabalhávamos: cirurgias interessantes e ocorrências médicas comuns, esse tipo de coisas.

   Ian murmurou algo baixinho a respeito de "farinha do mesmo saco", mas eu o ignorei.

   - Ah, é mesmo? - Jamie parecia desconfiado; sabia que algo estava a caminho, mas não sabia o que era.

   - Bem - eu disse, respirando fundo -, em resumo, ele sugeriu que eu escrevesse um livro. Um livro de medicina.

   As sobrancelhas de Jamie haviam se erguido lentamente, mas fez um sinal com a cabeça para que eu continuasse.

   - Uma espécie de manual para pessoas comuns, não para médicos. Com princípios de higiene adequada e nutrição, e orientação para os tipos comuns de doenças, como preparar remédios simples, o que fazer com ferimentos e dentes em mau estado, esse tipo de coisa.

   As sobrancelhas ainda estavam levantadas, mas ele continuava a balançar a cabeça, terminando o último bocado do pãozinho. Ele engoliu.

   - Sim, bem, parece um bom tipo de livro, e sem dúvida você seria a pessoa certa para escrevê-lo. Por acaso ele "sugeriu" quanto ele achava que custaria imprimir e encadernar tal livro?

   - Ah. - Soltei a respiração que andara prendendo. - Ele fará trezentos exemplares, com o máximo de cento e cinquenta páginas, encadernado com entretela e os distribuirá através de sua loja, em troca dos doze anos de aluguel que ele lhe deve por sua prensa.

   Os olhos de Jamie se arregalaram e seu rosto ficou vermelho.

   - E ele está acrescentando as larvas de graça. E o guarda - acrescentei apressadamente, empurrando o vinho do porto para a sua frente antes que ele pudesse falar. Ele agarrou o copo e esvaziou-o de uma só vez.

   - Aquele aproveitador barato! - ele disse, quando conseguiu falar. - Você não assinou nada, não é? - ele perguntou, ansiosamente. Sacudi a cabeça.

   - Mas eu lhe disse que achava que você iria querer barganhar com ele - propus timidamente.

   - Oh. - Sua cor começou a voltar aos níveis normais.

   - Eu realmente gostaria de fazer isso - eu disse, abaixando os olhos para as mãos, entrelaçada no colo.

   - Você nunca disse nada sobre querer escrever um livro antes, tia - Ian disse, curioso.

   - Bem, eu não tinha realmente pensado nisso - disse, defensivamente. - E teria sido terrivelmente difícil e caro de fazer enquanto estivéssemos vivendo em Ridge.

   Jamie serviu outro copo de porto, que ele bebeu mais devagar, ocasionalmente fazendo uma careta com o gosto enquanto pensava, depois murmurou:

   - Caro.

   - Você quer mesmo isso, Sassenach? - ele disse finalmente e, diante da minha confirmação, recolocou o copo sobre a mesa com um suspiro.

   - Está bem - disse, com resignação. - Mas você vai ter uma edição especial encadernada em couro também, com as margens das páginas douradas. E quinhentos exemplares. Quero dizer, vai querer levar alguns de volta para a América, não vai? - ele acrescentou, ao ver meu olhar de estupefação.

   - Oh. Sim. Eu gostaria disso.

   - Muito bem, então. - Pegou a sineta e chamou a criada. - Diga à jovem para levar essa bebida horrível e trazer um uísque decente. Vamos brindar ao seu livro. E depois irei falar com o patife sem-vergonha.

Eu tinha um novo caderno de papel de boa qualidade. Eu tinha uma dúzia de resistentes penas de ganso, um canivete de prata com o qual afiá-las e um tinteiro fornecido pelo hotel - um pouco surrado, mas cheio, o gerente me garantira, com a melhor tinta ferrogálica. Jamie e Ian partiram para a França por uma semana, para averiguar várias pistas interessantes que madame Jeanne lhes dera, deixando-me a cargo do general e livre para começar meu livro. Eu tinha todo o tempo e condições necessárias.

   Peguei uma folha de papel, imaculada e cor de creme, coloquei-a à minha frente e mergulhei a pena na tinta, a empolgação latejando em meus dedos.

Fechei os olhos em reflexo, depois os abri novamente. Por onde deveria começar?

   Comece do começo e continue até chegar ao fim: então, pare. A frase de Alice no País das Maravilhas atravessou minha mente, e eu sorri. Bom conselho, suponho - mas somente se você souber onde fica o começo, e eu não sabia.

   Brinquei um pouco com a pena, pensando.

   Talvez eu devesse ter um esboço? Fazia sentido - e era um pouco menos assustador do que começar a escrever diretamente. Abaixei a pena e fiquei segurando-a acima do papel por um instante, depois a retomei. Um esboço também tinha que ter um começo, não é?

   A tinta começava a secar na ponta. Um pouco irritada, limpei-a e estava prestes a mergulhá-la na tinta outra vez quando a criada bateu discretamente na porta.

   - Sra. Fraser? Há um cavalheiro lá embaixo, querendo falar com a senhora - ela disse. Pelo ar de respeito, imaginei que não podia ser Andy Bell. Além do mais, ela teria dito isso, se fosse; todos em Edimburgo conheciam Andy Bell.

   - Vou descer - eu disse, me levantando. Talvez meu subconsciente chegasse a algum tipo de conclusão com relação ao começo enquanto eu lidava com esse cavalheiro, quem quer que ele fosse.

   Quem quer que ele fosse, era um cavalheiro, percebi imediatamente. Era também Percival Beauchamp.

   - Sra. Fraser - ele disse, o rosto se iluminando com um sorriso ao virar-se ao som dos meus passos. - Seu criado, madame.

   - Sr. Beauchamp - eu disse, permitindo que tomasse minha mão e a levasse aos lábios. Uma pessoa elegante da época teria sem dúvida dito algo do tipo: "Receio que me encontre em desvantagem, senhor", entre coquete e insolente. Não sendo uma pessoa elegante da época, eu apenas disse:

- O que está fazendo aqui?

   O sr. Beauchamp, por outro lado, era extremamente elegante.

   - Procurando pela senhora, minha cara - ele respondeu, apertando levemente minha mão antes de soltá-la. Contive uma vontade automática de limpá-la em meu vestido e fiz sinal com a cabeça, indicando duas poltronas próximas àjanela.

   - Não que eu não fique lisonjeada - eu disse, ajeitando minhas saias. - Mas não é com meu marido que deseja falar? Oh! - eu disse, outro pensamento me ocorrendo. - Ou queria me consultar como médica?

   Seus lábios contraíram-se, como se ele achasse graça da ideia, mas sacudiu a cabeça respeitosamente.

   - Seu marido está na França, ou assim me disse Jeanne LeGrand. Vim falar com a senhora.

   - Por quê?

   Ele ergueu as sobrancelhas escuras e lisas diante disso, mas não respondeu imediatamente. Em vez disso, levantou um dedo, em um gesto para o funcionário do hotel, a fim de pedir bebidas. Eu não sabia se ele estava apenas sendo gentil ou precisava de tempo para formular seu discurso, agora que me vira outra vez. De qualquer modo, não parecia ter pressa.

   - Tenho uma proposta para seu marido, madame. Eu teria falado com ele - disse, antecipando minha pergunta -, mas ele já havia partido para a França quando eu soube que estava em Edimburgo, e eu mesmo terei que partir antes do retorno dele. Achei melhor falar diretamente com a senhora, em vez de me explicar em uma carta. Há coisas que é melhor não pôr por escrito, sabe - acrescentou, com um sorriso repentino que o tornava muito atraente.

   - Está bem - eu disse, acomodando-me. - Fale.

Peguei o copo de conhaque e tomei um gole, depois o ergui e olhei através dele com ar crítico.

   - Não, é apenas conhaque - eu disse. - Não é ópio.

   - Como? - Ele olhou involuntariamente para dentro de seu próprio copo, Por via das dúvidas, e eu ri.

   - Quero dizer - esclareci - que, por melhor que seja, não é tão bom a ponto de me fazer acreditar em uma história como essa.

   Ele não se ofendeu, mas inclinou a cabeça para o lado.

   - Pode me dizer algum motivo para eu inventar essa história?

   - Não, mas isso não significa que não haja uma, não é?

   - O que eu lhe contei não é impossível, é?

   Considerei a pergunta por um instante.

   - Não tecnicamente impossível - admiti. - Mas sem dúvida implausível.

   - Já viu um avestruz? - disse e, sem perguntar, serviu mais conhaque em meu copo.

   - Sim. Por quê?

   - Deve admitir que avestruzes são francamente implausíveis - ele disse. - Mas obviamente não impossíveis.

   - Ponto para você - admiti. - Mas eu realmente penso que Fergus ser o herdeiro perdido da fortuna do conde St. Germain é ligeiramente mais implausível do que um avestruz. Particularmente se considerar a parte sobre a certidão de casamento. Quero dizer... um herdeiro perdido legítimo? É da França que estamos falando, hein?

   Ele riu. Seu rosto se ruborizara de conhaque e humor, e pude ver o quanto ele devia ter sido atraente na juventude. Aliás, não tinha uma aparência nada má agora.

   - Posso lhe perguntar como ganha a vida? - perguntei, curiosa.

   Ele ficou desconcertado e passou a mão pelo queixo antes de responder, mas fitou-me nos olhos.

   - Durmo com mulheres ricas - ele disse, e sua voz carregava um traço leve, mas perturbador de amargura.

   - Bem, espero que não esteja me encarando à luz de uma oportunidade de negócios. Apesar dos óculos de aros de ouro, eu na verdade não tenho um tostão.

   Ele sorriu e disfarçou o sorriso no copo de conhaque.

   - Não, mas seria muito mais divertida do que as mulheres que têm.

   - Estou lisonjeada - eu disse educadamente. Tomamos o conhaque em silêncio por alguns instantes, ambos pensando como prosseguir dali. Chovia - naturalmente - e o tamborilar da chuva lá fora na rua e o zumbido do fogo ao nosso lado eram extremamente relaxantes. Sentia-me estranhamente à vontade com ele, mas eu não podia passar o dia todo ali, afinal; tinha um livro a escrever. - Muito bem - eu disse. - Por que me contou essa história? Espere. Há duas partes nessa pergunta: primeira, por que contar a mim e não diretamente a Fergus? E segunda, qual o seu interesse pessoal na questão, presumindo-se que seja verdadeira?

   - Eu tentei dizer ao sr. Fraser... quero dizer, Fergus Fraser - ele disse devagar. - Ele se recusou a falar comigo.

   - Oh! - exclamei, lembrando-me de um fato. - Foi o senhor que tentou raptá-lo, na Carolina do Norte?

   - Não, não fui eu - disse prontamente e com toda evidência de sinceridade. - Eu ouvi falar do incidente, mas não sei quem o cometeu. Possivelmente, alguém que ele incomodou com seu trabalho. - Deu de ombros e continuou: - Quanto ao meu interesse pessoal... tem a ver com a razão por eu estar contando isso a seu marido, já que eu só estou contando a você porque seu marido não está disponível.

   - E qual seria?

   Ele olhou rapidamente ao redor para se certificar de que não estivéssemos sendo ouvidos. Não havia ninguém perto de nós, mas ainda assim ele abaixou a voz.

   - Eu... e os interesses que represento na França... queremos que a rebelião na América seja bem-sucedida.

   Eu não sei o que esperava, mas não era isso, e fiquei olhando-o, embasbacada.

   - Espera que eu acredite que é um patriota americano?

   - De modo algum - ele disse. - Não ligo a mínima para política. Sou um homem de negócios. - Olhou-me especulativamente. - Já ouviu falar de uma companhia chamada Hortalez et Cie?

   - Não.

   - E uma firma de importação e exportação, administrada da Espanha. O que é na realidade é uma fachada com a finalidade de encaminhar dinheiro para os americanos, sem visivelmente envolver o governo francês. Até agora, já conseguimos repassar muitos milhares através dela, a maior parte para comprar armas e munição. Madame LeGrand mencionou a companhia a seu marido, mas sem lhe dizer do que se tratava. Deixou a meu encargo decidir se deveria revelar a verdadeira natureza da Hortalez para ele.

   - O senhor é um agente da inteligência francesa, é isso que está me dizendo? - indaguei, finalmente compreendendo.

   Ele fez uma mesura.

   - Mas não é francês, eu acho - acrescentei, olhando-o friamente. - O senhor é inglês.

   - Era. - Desviou o olhar. - Sou um cidadão francês agora.

   Ele silenciou e eu me inclinei um pouco para trás na poltrona, observando-o - e refletindo. Imaginando tanto até que ponto aquilo tudo era verdade quanto, de uma maneira mais distante, se seria possível que ele fosse um ancestral meu. Beauchamp não era um nome incomum e não havia nenhuma grande semelhança física entre nós. Os dedos de suas mãos eram longos e graciosos, como os meus, mas tinham um formato diferente. As orelhas? As dele eram um pouco grandes, embora delicadamente torneadas. Eu realmente não tinha nenhuma ideia de como eram minhas orelhas, mas presumia que, se fossem notoriamente grandes, Jamie teria mencionado isso em algum momento.

   - O que o senhor quer? - perguntei serenamente por fim, e ele ergueu os olhos.

   - Conte a seu marido o que eu lhe contei, por favor, madame - ele disse, sério dessa vez. - E lhe sugira que não é apenas no interesse de seu filho adotivo perseguir este assunto, mas muito no interesse da América.

   - Como assim?

   Ele ergueu um dos ombros, esbelto e elegante.

- O conde St. Germain tinha extensas concessões de terras em uma parte da América atualmente ocupada pela Grã-Bretanha. A parte francesa de sua propriedade, atualmente reivindicada por vários pretendentes, é extremamente

valiosa. Se for provado que Fergus Fraser é Claudel Rakoczy, sendo Rakoczy o nome de família, e herdeiro desta fortuna, ele poderia usá-la para ajudar a financiar a revolução. Pelo que eu sei dele e de suas atividades, e a essa altura eu sei o bastante, acho que ele seria receptivo a esses objetivos. Se a revolução for bem-sucedida, aqueles que a apoiaram teriam grande influência sobre qualquer governo que se forme.

   - E o senhor poderia parar de dormir com mulheres ricas por dinheiro?

   Um sorriso irônico espalhou-se em seu rosto.

   - Exatamente. - Levantou-se e fez uma profunda reverência. - Foi um grande prazer falar com a senhora, madame.

   Ele já havia quase alcançado a porta quando eu o chamei.

   - Monsieur Beauchamp!

   - Sim? - Ele virou-se e olhou para trás, um homem esbelto e moreno, cujo rosto era marcado pelo humor... e pela dor, pensei.

   - O senhor tem filhos?

   Ele pareceu completamente surpreso.

   - Eu realmente acho que não.

   - Oh - eu disse. - Só estava me perguntando. Tenha um bom dia, senhor.

 

                   SICTRANSITGIORIAMUNDI

As Highlands escocesas

Era uma longa caminhada da casa da fazenda em Balnain. Como era começo de janeiro na Escócia, também estava frio e úmido. Muito úmido. E muito frio. Nenhuma neve - e eu em parte desejava que houvesse, já que podia desencorajar a ideia insana de Hugh Fraser -, mas chovia há dias, daquele modo lúgubre que faz a lareira enfumaçar e até mesmo roupas que não estiveram expostas ao tempo ficarem úmidas, e faz o frio penetrar tão fundo nos ossos que você acha que jamais se sentirá aquecido de novo.

   Eu mesma chegara a essa convicção algumas horas atrás, mas a única alternativa a continuar se arrastando penosamente pela chuva e pela lama era se deitar e morrer, e eu não havia chegado a esse extremo. Ainda.

   O rangido das rodas parou abruptamente, com aquele barulho chapinhado que indicava que haviam atolado mais uma vez na lama. Baixinho, Jamie disse alguma coisa terrivelmente inadequada a um funeral e Ian abafou uma risada com uma tossida - que se tornou real e continuou roucamente sem parar, parecendo o latido de um cachorro grande e cansado.

   Tirei o frasco de uísque de baixo da minha capa - eu não acreditava que algo com aquele teor alcoólico pudesse congelar, mas não queria correr nenhum risco - e entreguei-o a Ian. Ele deu um grande gole, chiou como se tivesse sido atingido por um caminhão, tossiu mais um pouco, em seguida devolveu o frasco, respirando com força, e balançou a cabeça, agradecendo. Seu nariz escorria, vermelho.

Assim como todos os narizes à minha volta. Alguns deles, provavelmente por causa do choro, embora eu suspeitasse de que o tempo ou a gripe fosse responsável pela maioria. Os homens haviam se reunido sem comentários - já tinham prática - ao redor do caixão e, com um esforço coordenado, conseguiram tirá-lo dos sulcos para uma parte mais firme da estrada, esta em grande parte coberta de pedras.

   - Quanto tempo você acha que faz desde que Simon Fraser veio para casa pela última vez? - sussurrei para Jamie, quando ele voltou para assumir novamente seu lugar ao meu lado, quase no fim da procissão fúnebre. Ele deu de ombros e limpou o nariz com um lenço encharcado.

   - Anos. Ele não teria motivo, não é mesmo?

   Eu imaginava que não. Em consequência do velório realizado na noite anterior na casa da fazenda - um lugar um pouco menor do que Lallybroch, mas construído com as mesmas características -, eu agora sabia muito mais sobre a carreira e as façanhas militares de Simon Fraser do que antes, mas o discurso fúnebre não incluíra um cronograma. Mas, se ele tivesse lutado em todos os lugares que disseram que tinha, dificilmente teria tido tempo de trocar as meias entre uma campanha e outra, quanto mais voltar à sua casa na Escócia. E a propriedade não lhe pertencia, afinal; ele era o segundo mais novo de nove filhos. Sua mulher, a minúscula bainisq caminhando penosamente na frente da procissão no braço de seu cunhado Hugh, não tinha uma casa própria, pelo que compreendi, e vivia com a família de Hugh, não tendo nenhum filho vivo - ou por perto, ao menos - para cuidar dela.

   Eu realmente me perguntei se ela teria ficado satisfeita que o tivéssemos trazido para casa. Não teria sido melhor que ele simplesmente tivesse morrido no estrangeiro, cumprindo seu dever, com honras, do que se ver diante dos detritos desalentadoramente melancólicos de seu marido, por mais profissionalmente embalados que estivessem?

   Mas ela parecera, se não feliz, ao menos um pouco gratificada por ser o centro de tanta azáfama. Seu rosto enrugado ficara corado e pareceu se abrir um pouco durante as festividades da noite, e agora ela caminhava sem nenhum sinal de esmorecimento, tenazmente prosseguindo pelos sulcos lamacentos deixados pelo caixão de seu marido.

   Era culpa de Hugh. O irmão bem mais velho de Simon e dono de Balnain era um velhinho mirrado e esturricado, pouco mais alto do que sua cunhada viúva, e com ideias românticas. Foi decisão sua que, em vez de depositar Simon decentemente no cemitério da família, o mais nobre guerreiro da família deveria ser enterrado em um lugar mais adequado à sua honra e à reverência que lhe era devida.

   Bainisq, pronunciado "ban-iishg", significava uma velhinha; um velhinho seria apenas "iishg"?, perguntei-me, olhando para as costas de Hugh. Achei melhor só perguntar quando estivéssemos de volta à casa - presumindo-se que conseguíssemos chegar lá ao cair da noite.

   Finalmente, Corrimony surgiu no horizonte. Segundo Jamie, o nome significava "um vão na charneca", e era. Dentro da cavidade em forma de xícara, no capim e no urzal, erguia-se uma cúpula baixa; conforme nos aproximávamos, vi que era feita de milhares e milhares de pequenas pedras do rio, a maioria do tamanho de um punho fechado, outras do tamanho de uma cabeça. E ao redor desse monumento de pedras cinza-escuro, liso e brilhante da chuva, havia um círculo de pedras verticais.

   Agarrei o braço de Jamie automaticamente. Ele olhou para mim com surpresa, depois percebeu o que chamava minha atenção e franziu o cenho.

   - Está ouvindo alguma coisa, Sassenach? - murmurou.

   - Somente o vento. - Este andara gemendo durante toda a procissão fúnebre, praticamente abafando a voz do velho que cantava uma nênia à frente do caixão, mas quando saímos para a charneca aberta ele ganhou força e se elevou em vários tons, fazendo capas, casacos e saias baterem como asas de corvos.

   Mantive um olhar vigilante nas pedras, mas não pressenti nada quando paramos diante do marco de pedras. Era um túmulo megalítico, uma tumba de corredor, do tipo geral que chamavam de clava; eu não fazia a menor ideia do que isso significava, mas tio Lamb tinha fotografias de muitos sítios arqueológicos como este. A passagem, ou corredor, destinava-se a orientar com algum objeto astronômico de alguma data significativa. Ergui os olhos para o céu gotejante, plúmbeo, e concluí que este não era o dia, de qualquer forma.

   - Nós não sabemos quem foi enterrado lá - Hugh nos explicara no dia anterior. - Mas obviamente algum grande líder. Tem que ter sido, o grande problema é construir um monumento mortuário como esse!

   - Sim, sem dúvida. - Jamie dissera, acrescentando delicadamente: - O grande líder: ele não está mais enterrado lá?

   - Oh, não - Hugh nos assegurou. - A terra o tragou, há muito tempo. Não há mais do que uma pequena mancha de seus ossos lá agora. E também não precisa se preocupar de haver alguma maldição sobre o lugar.

   - Oh, ótimo - murmurei, mas ele não prestou atenção.

   - Algum intrometido abriu o túmulo há uns cem anos ou mais, de modo que, se havia uma maldição, certamente se foi com ele.

   Isso era reconfortante e de fato nenhuma das pessoas agora em volta do túmulo parecia desconcertada ou preocupada com sua proximidade. Embora pudesse ser apenas o fato de que viviam fazia tanto tempo próximos a ele que se tornara não mais do que parte da paisagem.

   Houve uma pequena discussão prática, os homens olhando para o túmulo de pedras e sacudindo a cabeça em dúvida, gesticulando por sua vez para a passagem aberta que levava à câmara mortuária, depois na direção do topo do monumento, de onde as pedras ou haviam sido removidas ou haviam simplesmente caído para dentro e retiradas embaixo. As mulheres gravitavam umas perto das outras, aguardando. Nós havíamos chegado zonzos de cansaço no dia anterior e, apesar de ter sido apresentada a todas elas, tinha dificuldade em relacionar o nome certo à pessoa certa. Na verdade, todos os rostos pareciam semelhantes - finos, desgastados e pálidos, com uma aparência de exaustão crônica, um cansaço muito mais profundo do que velar um morto podia explicar.

Lembrei-me repentinamente do funeral da sra. Bug. Improvisado e apressado - e no entanto realizado com dignidade e tristeza sincera por parte dos pranteadores. Eu achava que estas pessoas mal haviam conhecido Simon Fraser.

   Teria sido muito melhor considerar seu próprio último pedido como declarado e deixado seu corpo no campo de batalha com seus companheiros mortos, pensei. Mas quem quer que tenha dito que os funerais são para os vivos tinha razão.

   A sensação de fracasso e inutilidade que se seguiu à derrota em Saratoga deixou seus próprios oficiais determinados a realizar alguma coisa, fazer um gesto apropriado para um homem que tinham amado e um guerreiro que admiravam. Talvez tivessem desejado enviá-lo para casa por causa de seu próprio desejo de ir para suas casas também.

   A mesma sensação de fracasso - acrescida de um veio mortal de romantismo - sem dúvida fizera o general Burgoyne insistir no gesto; ele provavelmente achava que sua própria honra exigia o gesto. E depois Hugh Fraser, reduzido a uma existência de mera sobrevivência no rastro de Culloden e arrostado com a inesperada volta para casa de seu irmão mais novo, incapaz de fazer um grande funeral, mas ele próprio profundamente romântico... e, por fim, esta estranha procissão, levando Simon Fraser para uma casa que não era mais sua e uma mulher que era uma estranha para ele.

   E sua casa não mais o reconhecerá. A frase me veio à mente quando os homens tomaram uma decisão e começaram a tirar o caixão de cima das rodas. Eu havia me aproximado, juntamente com as outras mulheres. E vi que agora estava a cerca de dois passos de uma das pedras verticais que cercavam o túmulo de Pedras. Eram menores do que os monólitos de Craigh na Dun - não mais do que setenta a noventa centímetros. Movida por um súbito impulso, estendi o braço e toquei-a.

   Eu não esperava que nada acontecesse e por sorte realmente nada aconteceu. Apesar de que, se eu tivesse repentinamente desaparecido no meio do funeral, isso sem dúvida teria animado substancialmente o evento.

   Nenhum zumbido, nenhum grito, absolutamente nenhuma sensação. Era apenas uma pedra. Afinal, pensei, não havia nenhuma razão para se supor que todas as pedras verticais fossem portais do tempo. Aparentemente, os construtores antigos usavam pedras para marcar qualquer lugar significativo - e sem dúvida um marco de pedras como este devia ser importante. Perguntei-me que espécie de homem - ou mulher, talvez? - havia jazido ali, deixando não mais do que um eco de seus ossos, tão mais frágil do que as rochas duradouras que os abrigavam.

   O caixão foi colocado no chão - com muitos grunhidos e resfolegadas - e empurrado pela passagem para dentro da câmara mortuária no centro da tumba Havia uma grande e plana laje de pedra, encostada nas pedras do monumento, com estranhas incisões cônicas, aparentemente feitas pelos construtores originais. Quatro dos homens mais fortes seguraram a laje e a manobraram devagar para o alto do monte de pedras, vedando o buraco acima da câmara.

   Ela caiu com uma pancada surda que lançou algumas pedras pequenas para baixo, pelos lados do monumento. Os homens desceram, então, e todos nós ficamos parados, constrangidamente, ao redor do túmulo de pedras, nos perguntando o que fazer em seguida.

   Não havia nenhum sacerdote ali. A missa fúnebre por Simon fora realizada antes, em uma pequena e desguarnecida igreja de pedras, antes da procissão para aquele enterro inteiramente pagão. Evidentemente, as pesquisas de Hugh não haviam descoberto nada com relação aos ritos para tal ocasião.

   Exatamente quando parecia que seríamos obrigados simplesmente a dar meia-volta e nos arrastar pela lama de volta à casa da fazenda, Ian tossiu explosivamente e deu um passo à frente.

   A procissão fúnebre tinha um aspecto geral extremamente monótono e insípido, sem nenhum dos tartãs vivamente coloridos que enfeitaram as cerimônias das Highlands no passado. Até a aparência de Jamie era apagada, enrolado na capa e com os cabelos cobertos com um chapéu preto de abas arriadas. A única exceção à sobriedade geral era Ian.

   Ele provocara olhares admirados quando descera do quarto naquela manhã, e não haviam mais deixado de fixar os olhos nele. E com toda a razão. Ele raspara a maior parte da cabeça e untara a tira de cabelos que restara, fazendo uma crista rígida pelo meio da cabeça, à qual pendurara um enfeite de penas de peru com uma moeda de prata perfurada. Ele estava usando uma capa, mas por baixo vestira sua surrada camisa de camurça, com o amuleto de contas azuis e brancas que sua mulher, Emily, fizera para ele.

   Jamie olhou-o de cima a baixo devagar quando ele apareceu e balançou a cabeça, um dos cantos de sua boca torcendo-se para cima.

   - Não vai fazer diferença, hein? - dissera calmamente a Ian quando nos dirigíamos à porta. - Para eles, você continuará sendo quem você é.

   - É mesmo? - Ian dissera, mas em seguida saiu para o aguaceiro sem esperar resposta.

   Jamie certamente tinha razão; os ornamentos indígenas eram um figurino de ensaio, em preparação para sua chegada a Lallybroch, pois iríamos para la diretamente dali, assim que tivéssemos acabado de resolver decentemente a questão da entrega do corpo de Simon e o uísque de despedida tivesse si bebido.

   Entretanto, teve sua utilidade agora. Ian retirou sua capa devagar e entregou-a a Jamie, depois caminhou para a entrada da passagem e virou-se de frente para os espectadores - que observavam essa aparição com os olhos esbugalhados. Ele abriu as mãos, as palmas para cima, fechou os olhos, virou a cabeça para trás de modo que a chuva escorresse pelo seu rosto e começou a entoar alguma coisa em mohawk. Ele não era um bom cantor e sua voz estava tão rouca do frio que muitas palavras ficavam entrecortadas ou desapareciam, mas captei o nome de Simon no começo. A canção da morte do general. Não durou muito tempo, mas quando deixou cair as mãos a congregação emitiu um profundo suspiro coletivo.

   Ian afastou-se, sem olhar para trás, e sem dizer nenhuma palavra os acompanhantes do enterro o seguiram. Estava terminado.

 

                   VENTO FÚNEBRE

O tempo continuou horrível, com nevascas intermitentes agora acrescidas à chuva, e Hugh insistiu para que ficássemos, ao menos mais alguns dias, até o céu clarear.

   - Pode ficar assim até o dia do Arcanjo Miguel antes que isso aconteça - Jamie lhe disse, sorrindo. - Não, primo, temos que partir.

   E assim partimos, enrolados em todas as roupas que possuíamos. Levamos mais de dois dias para chegar a Lallybroch e fomos obrigados a pernoitar em uma fazendola abandonada, colocando os cavalos ao nosso lado no curral das vacas. Não havia nenhuma mobília ou turfa para a lareira e metade do telhado já desaparecera, mas as paredes de pedra quebravam o vento.

   - Sinto falta do meu cachorro - Ian resmungou, encolhendo-se sob a capa e puxando um cobertor sobre a cabeça repleta de pontinhos vermelhos arrepiados.

   - Ele sentaria em sua cabeça? - Jamie perguntou, segurando-se em mim com mais força quando uma rajada de vento passou uivando pelo nosso abrigo, ameaçando arrancar o resto da estropiada cobertura de sapê acima de nossas cabeças. - Antes de raspar a cabeça, você devia ter se lembrado de que estamos em janeiro, antes de raspar a cabeça.

   - Tudo bem pra você - Ian retrucou, espreitando funestamente de baixo do cobertor. - Você tem tia Claire para mantê-lo quente.

- Bem, você vai arranjar uma mulher para você um dia desses. Rollo vai com vocês dois quando você se casar? - Jamie perguntou.

   - Mmmmhum - Ian resmungou, puxando o cobertor por cima do rosto, tremendo.

   Tremi, também, apesar do calor de Jamie, de nossas duas capas, três anáguas de lã e dois pares de meias. Eu já estivera em muitos lugares frios em minha vida, mas há algo de extraordinariamente penetrante no frio na Escócia. No entanto, apesar do meu anseio por uma lareira acolhedora e o inesquecível aconchego de Lallybroch, eu estava quase tão ansiosa com nossa iminente volta para casa quanto Ian - e quanto mais nos embrenhávamos nas Highlands mais Ian se comportava como um gato pisando em tijolos quentes. Agora, ele se contorcia e resmungava consigo mesmo, remexendo-se sob seus cobertores nos confins escuros de nosso abrigo.

   Eu me perguntara, quando aportamos em Edimburgo, se devíamos mandar anunciar nossa chegada a Lallybroch. No entanto, quando sugeri isso, Jamie riu.

   - Você acha que existe a menor chance de chegarmos a vinte quilômetros do lugar sem que todos já saibam? Não tenha medo, Sassenach - ele me assegurou. - No instante em que pusermos o pé nas Highlands, todo mundo, do Loch Lemond a Inverness, saberá que Jamie Fraser está voltando para casa com sua bruxa inglesa, e ainda por cima com um pele-vermelha também.

   - Bruxa inglesa? - eu disse, sem saber se devia achar graça ou ficar ofendida. - Eles me chamavam assim? Quando estávamos em Lallybroch?

   - Geralmente na sua presença, Sassenach - ele disse, secamente. -, mas na época você não sabia gaélico suficiente para entender. Não fazem isso por mal, a nighean - ele acrescentou mais amavelmente. - É que os escoceses das Highlands dão o nome de acordo com o que estão vendo.

   - Humm - eu disse, um pouco desconcertada.

   - E não estarão errados, não é? - ele acrescentou, rindo.

   - Está querendo dizer que eu pareço uma bruxa?

   - Bem, não tanto neste momento - ele disse, fechando um dos olhos judiciosamente. - Mas logo de manhã, talvez... sim, essa é uma perspectiva mais assustadora.

   Eu não tinha um espelho, não tendo pensado em comprar um em Edimburgo. Mas eu ainda tinha um pente e, aconchegando-me agora com a cabeça embaixo do queixo de Jamie, decidi parar perto de Lallybroch e usá-lo cuidadosamente, com ou sem chuva. Não, pensei, que fosse fazer muita diferença se eu chegasse parecendo a rainha da Inglaterra ou um dente-de-leão murcho. O importante era a volta de Ian.

   Por outro lado... eu não sabia ao certo qual seria a minha própria recepção. Havia assuntos não terminados, para dizer o mínimo, entre mim e Jenny Murray.

   Nós tínhamos sido boas amigas em certa época. Esperava que pudéssemos ser outra vez. Mas ela fora a principal arquiteta do casamento de Jamie com Laoghaire Mackenzie. Pelo melhor dos motivos, sem dúvida; ela se preocupara com ele, com a solidão e a ausência de raízes em sua volta do cativeiro na Inglaterra. E, com toda a justiça, ela me considerava morta.

   O que ela teria pensado, eu me perguntava, quando eu reapareci de repente? Que eu abandonei Jamie antes de Culloden e depois me arrependi? Não houve tempo para explicações e reaproximações - e houve aquele momento embaraçoso quando Laoghaire, convocada por Jenny, apareceu em Lallybroch, acompanhada das filhas, pegando a mim e a Jamie de surpresa.

   Uma bolha de riso subiu em meu peito à lembrança daquele encontro, embora eu certamente não tenha achado graça na ocasião. Bem, talvez houvesse tempo de conversar agora, depois que Jenny e Ian tivessem se recuperado do choque da volta ao lar de seu filho mais novo.

   Percebi, pelas sutis mudanças de posição atrás de mim, que enquanto os cavalos respiravam pesada e pacificamente em seu curral e Ian houvesse finalmente se acalmado em roncos ruidosos eu não era a única ainda acordada, pensando no que estaria à nossa espera.

   - Você também não está dormindo, não é? - sussurrei para Jamie.

   - Não - ele disse baixinho, mudando de posição outra vez, puxando-me para mais junto de si. - Estava pensando na última vez em que voltei para casa. Tinha tanto medo... e uma pequena esperança. Imagino que seja assim agora para o garoto.

   - E para você agora? - perguntei, fechando minhas próprias mãos sobre o braço que me envolvia, sentindo os ossos sólidos, elegantes, do pulso e do antebraço, delicadamente tocando em sua mão direita mutilada. Ele suspirou profundamente.

   - Não sei, mas vai dar tudo certo. Desta vez, você está comigo.

O vento perdeu força em algum momento durante a noite, e o dia, por algum milagre, amanheceu límpido e luminoso. Ainda frio como o traseiro de um urso polar, mas sem chuva. Considerei aquilo um bom presságio.

   Ninguém falou quando deixamos o último desfiladeiro alto que levava a Lallybroch e vimos a casa lá embaixo. Senti um relaxamento no peito e só então percebi por quanto tempo andara prendendo a respiração.

   - Não mudou nada, não é mesmo? - eu disse, o hálito branco no ar frio.

   - O pombal tem um teto novo - Ian disse. - E o cercado de ovelhas da mamãe está maior. - Ele estava fazendo o melhor possível para parecer descontraído, mas a ansiedade em sua voz era indisfarçável. Ele cutucou seu cavalo e Parou um pouco à nossa frente, as penas de peru em seus cabelos erguendo-se na brisa.

Era início da tarde e o lugar estava calmo; as tarefas matinais tinham sido feitas, a ordenha da noite e a preparação do jantar ainda não tinham sido iniciadas. Não havia ninguém do lado de fora, a não ser algumas vacas das Highlands, grandes e Peludas, ruminando feno no pasto próximo, mas havia fumaça nas chaminés.

     A casa grande e caiada tinha sua costumeira aparência hospitaleira e sólida.

   Será que Bri e Roger algum dia voltariam ali?, perguntei-me repentinamente Ela mencionara isso, quando a ideia de partirem se tornou um fato e eles começaram a planejar.

   - Está vazia - ela dissera, os olhos fixos na camisa ao estilo do século XX que estava fazendo. - A venda. Ou estava, quando Roger foi lá há alguns anos... - Ela erguera os olhos com um sorriso melancólico; não era realmente possível discutir o tempo de nenhuma maneira habitual. - Gostaria que as crianças crescessem lá, talvez. Mas teremos que ver como... as coisas vão funcionar.

   Ela, então, olhara para Mandy, dormindo no berço, ligeiramente azulada ao redor dos lábios.

   - Vai dar certo - eu dissera com firmeza. - Vai dar tudo certo.

   Meu Deus, rezei agora silenciosamente, que eles estejam sãos e salvos!

   Ian descera de seu cavalo e esperava impacientemente por nós. Quando desmontamos, ele dirigiu-se à porta, mas nossa chegada fora percebida e ela abriu-se de par em par antes que ele pudesse tocá-la.

   Jenny estancou, paralisada, no vão da porta. Pestanejou uma vez e sua cabeça inclinou-se devagar para trás conforme seus olhos percorriam para cima o longo corpo vestido em camurça, com seus músculos bem-delineados e pequenas cicatrizes, até a cabeça com a crista de cabelos em pé, enfeitada de penas, e seu rosto tatuado, tão cuidadosamente sem expressão - a não ser pelos olhos, cuja esperança e temor ele não conseguia esconder, mohawk ou não.

   A boca de Jenny torceu-se. Uma... duas vezes... em seguida sua expressão se desfez e ela começou a emitir pequenos e histéricos gritinhos de surpresa que se transformaram em uma risada indisfarçável.

   Ela engoliu, engasgou e riu com tanta força que cambaleou para trás, para dentro de casa, e teve que se sentar no banco do vestíbulo, onde se dobrou ao meio, com os braços apertando o estômago, e riu até o som se esgotar e sua respiração vir em arfadas chiadas e fracas.

   - Ian - ela disse finalmente, sacudindo a cabeça. - Oh, meu Deus, Ian. Meu garotinho.

   Ian parecia completamente desconcertado. Olhou para Jamie, que deu de ombros, a própria boca torcendo-se nos cantos, depois de novo para sua mãe.

   Ela procurou recuperar o fôlego, o peito arfando, depois se levantou, dirigiu-se a ele e envolveu-o em seus braços, o rosto banhado em lágrimas pressionado contra o lado do corpo do filho. Devagar, cuidadosamente, os braços de Ian rodearam-na e ele ficou abraçando-a como algo frágil, de imenso valor.

   - Ian - ela disse outra vez, e eu vi seus ombros pequenos e empertigados baixarem repentinamente.

Ela era menor do que eu me lembrava, e estava mais magra, os cabelos mais brancos, embora ainda escuros e lustrosos - mas os olhos de gato azul-escuros continuavam exatamente iguais, assim como o ar natural de comando que ela compartilhava com seu irmão.

   - Deixem os cavalos - ela disse energicamente, enxugando os olhos na ponta do avental. - Mandarei um dos rapazes cuidar deles. Devem estar congelados e morrendo de fome. Peguem suas coisas e venham para a sala. - Ela olhou para mim, com um breve olhar de curiosidade e algo mais que eu não consegui interpretar - mas não me fitou diretamente nos olhos, nem disse mais do que "Venham", enquanto liderava o caminho para a sala de estar.

   A casa tinha um cheiro familiar, porém estranho, impregnado de fumaça de turfa e do cheiro de comida; alguém acabara de assar pão e o aroma flutuava pelo corredor, vindo da cozinha. O próprio corredor estava quase tão frio quanto lá fora; todos os aposentos tinham as portas bem fechadas para guardar o calor de suas lareiras, e uma onda de calor aconchegante girou como um redemoinho quando ela abriu a porta da sala, virando-se para puxar Ian para dentro primeiro.

   - Ian - ela disse, em um tom de voz que eu nunca a ouvira usar antes. - Ian, eles chegaram, seu filho voltou para casa.

   Ian, o pai, estava sentado em uma grande poltrona junto à lareira, um cobertor grosso sobre as pernas. Ele pôs-se de pé imediatamente, com dificuldade, um pouco instável sobre a perna de pau que ele usava desde que perdera a perna na guerra, e deu alguns passos em nossa direção.

   - Ian - Jamie disse, a voz baixa com o choque. - Santo Deus, Ian.

   - Oh, sim - Ian disse, a própria voz amarga. - Não se preocupe; ainda sou eu mesmo.

   Tísica, era como chamavam. Ou como os médicos chamavam. Significava "definhamento", do grego. Os leigos chamavam de "consumpção". A doença consumia suas vítimas, as devorava vivas. Uma doença devastadora. Assolava a carne e debilitava a vida, como um canibal.

   Eu vira a tuberculose muitas vezes na Inglaterra dos anos 1930 e 1940, muito mais aqui no passado. Mas eu nunca a vira trinchar a carne viva dos ossos de alguém que eu amava, e meu coração se desfez no meu peito.

   Ian sempre fora magro como um cordel de chicote, mesmo em tempos de fartura. Rijo e vigoroso, os ossos sempre na superfície da pele, assim como o Jovem Ian. Agora...

   - Posso tossir, mas não vou partir ao meio - ele assegurou a Jamie e, dando um passo à frente, colocou os braços ao redor do pescoço de Jamie, que o abraçou muito delicadamente, a cautela do abraço tornando-se mais firme enquanto descobria que Ian não iria se quebrar, e fechou os olhos para conter as lágrimas. Seus braços enrijeceram-se, tentando salvar Ian do abismo que evidentemente se abria aos seus pés.

   Posso contar todos os meus ossos. A citação bíblica veio à minha mente espontaneamente. Eu literalmente podia-, o tecido de sua camisa caía sobre costelas tão visíveis que eu podia ver as articulações onde cada uma se unia aos nós protuberantes de sua coluna vertebral.

   - Quanto tempo? - falei de repente, voltando-me para Jenny, que observava os homens, os próprios olhos rasos de lágrimas. - Há quanto tempo ele está assim?

   Ela pestanejou uma vez e engoliu em seco.

   - Há anos - ela disse, com bastante firmeza. - Ele voltou do Tolbooth em Edimburgo com uma tosse, e nunca mais ficou bom. Mas piorou no último ano.

   Balancei a cabeça. Um caso crônico, portanto; era alguma coisa. A forma aguda - "tuberculose galopante", como a chamavam - o teria levado em questão de meses.

   Ela me devolveu a pergunta que eu lhe fizera, mas com um significado diferente.

   - Quanto tempo? - ela disse, tão baixinho que quase não a ouvi.

   - Não sei - eu disse, da mesma forma. - Mas... não muito tempo.

   Ela balançou a cabeça; já sabia disso.

   - Ainda bem que vocês chegaram a tempo, então - ela disse, pragmaticamente.

   Os olhos do Jovem Ian estavam fixos em seu pai desde o momento em que ele entrou na sala. O choque era evidente em seu rosto, mas ele mantinha o autocontrole.

   - Papai - ele disse, e sua voz era tão rouca que a palavra emergiu como um grasnido engasgado. Limpou a garganta energicamente, adiantou-se e repetiu: - Papai.

   O Ian mais velho olhou para seu filho e seu rosto se iluminou com uma alegria tão profunda que eclipsou as marcas da doença e do sofrimento.

   - Oh, Ian - ele disse, estendendo os braços. - Meu garotinho!

Eram as Highlands. E eram Ian e Jenny. O que significava que as questões que podiam ser evitadas por constrangimento ou delicadeza eram, em vez disso, tratadas com toda franqueza.

   - Posso morrer amanhã ou somente daqui a um ano - Ian disse abertamente, durante o chá com pão e geleia, apressadamente saídos da cozinha como num passe de mágica para sustentar os viajantes exaustos até que o jantar ficasse pronto. - Eu mesmo estou apostando em três meses. Cinco a dois, se alguém quiser arriscar uma aposta. Embora eu não saiba como vou resgatar meus ganhos. - Riu, o Ian de outrora surgindo repentinamente através da máscara mortuária.

   Houve um murmúrio entre os adultos que não se traduziu realmente em risos. Havia muita gente amontoada na sala de estar, pois a notícia que fizera aparecer pão e geleia também fizera com que muitos moradores de Lallybroch transbordassem de seus aposentos e recessos, trovejando escada abaixo na ansiedade de saudar e reclamar seu filho pródigo. O Jovem Ian quase foi derrubado e pisoteado pelo carinho de sua família, e isso, logo depois do choque de ver seu pai, o deixara mudo, embora não parasse de sorrir, totalmente indefeso diante de mil perguntas e exclamações.

   Jenny finalmente o resgatara do turbilhão, pegando-o pela mão e empurrando-o com firmeza para dentro da sala de estar com o pai, em seguida saindo outra vez para acalmar a algazarra com um olhar fulminante e uma palavra decisiva, antes de conduzir o resto para dentro da sala de uma maneira ordenada.

   O Jovem Jamie - o filho mais velho de Ian e Jenny - agora vivia em Lallybroch com sua mulher e filhos, assim como sua irmã, Maggie, e seus dois filhos, seu marido sendo um soldado. O Jovem Jamie estava fora, na propriedade, mas as mulheres vieram se sentar em minha companhia. Todas as crianças aglomeravam-se ao redor do Jovem Ian, olhando-o com espanto e fazendo tantas perguntas que elas se empurravam e colidiam, discutindo sobre quem perguntara o que e quem deveria receber uma resposta primeiro.

   As crianças não haviam prestado nenhuma atenção ao comentário de Ian. Eles já sabiam que o avô estava morrendo e o fato não era de nenhum interesse em comparação com a presença fascinante de seu novo tio. Uma garotinha com tranças curtas sentava-se no colo do Jovem Ian, traçando as linhas de suas tatuagens com os dedos, de vez em quando enfiando um deles inadvertidamente em sua boca, enquanto ele sorria e dava respostas hesitantes a seus curiosos sobrinhos e sobrinhas.

   - Você podia ter escrito - Jamie disse a Jenny, com um tom de reprovação na voz.

   - Eu escrevi - ela disse, com seu próprio tom cortante na voz. - Há um ano, quando ele começou a ficar descarnado e nós soubemos que era mais do que uma tosse. Eu lhe pedia para enviar o Jovem Ian, se possível.

   - Ah - Jamie disse, embaraçado. - Provavelmente já havíamos deixado Ridge quando a carta chegou. Mas eu lhe escrevi no final de abril, dizendo que estávamos a caminho. Enviei a carta de New Berna.

   - Se o fez, eu nunca recebi. Não é de admirar, com o bloqueio; não recebemos mais do que a metade do que costumávamos receber da América. E, se você partiu em março passado, foi uma longa viagem, não?

   - Sim, um pouco mais longa do que eu esperava - Jamie disse secamente. - Muita coisa aconteceu ao longo do caminho.

   - Entendo. - Sem a menor hesitação, ela pegou sua mão direita e examinou a cicatriz e os dedos unidos com interesse. Olhou para mim, uma das sobrancelhas erguidas, e eu confirmei com um sinal da cabeça.

   - Ele... foi ferido em Saratoga - eu disse, sentindo-me estranhamente na defensiva. - Eu tive que operar.

   - Um bom trabalho - ela disse, delicadamente flexionando os dedos. - Dói muito, Jamie?

   - Dói no frio. Mas fora isso não me incomoda.

   - Uísque! - ela exclamou, empertigando-se de repente. - Aqui está você, enregelado até os ossos, e eu não pensei em... Robbie! Vá correndo buscar a garrafa de uísque especial da prateleira acima das panelas. - Um garoto desengonçado que andara pairando na borda do agrupamento ao redor do Jovem Ian lançou um olhar relutante a sua avó, mas depois, percebendo a intensidade da expressão dela, saiu correndo da sala para atender sua ordem.

   O aposento estava mais do que aquecido; com um fogo de turfa queimando na lareira e tanta gente rindo, conversando e exsudando calor corporal, estava mais parecido com os trópicos. Mas havia um frio profundo ao redor do meu coração sempre que eu olhava para Ian.

   Ele recostava-se em sua cadeira agora, sempre sorrindo. Mas a exaustão era evidente na forma como seus ombros ossudos estavam arriados, na queda das pálpebras, no esforço evidente para continuar sorrindo.

   Desviei os olhos e vi Jenny olhando para mim. Ela desviou os olhos no mesmo instante, mas eu vira especulação em seus olhos, e dúvida. Sim, teríamos que conversar.

Dormiram confortavelmente naquela primeira noite, cansados ao ponto do colapso, juntos e envolvidos por Lallybroch. Mas Jamie ouviu o vento quase ao acordar. Ele voltara durante a noite, um lamento frio ao redor dos beirais da casa.

   Ele sentou-se na cama no escuro, as mãos entrelaçadas ao redor dos joelhos, ouvindo. A tempestade de neve estava a caminho; podia ouvir a neve no vento.

   Claire dormia ao seu lado, um pouco encolhida, os cabelos uma mancha escura sobre o travesseiro branco. Ouviu sua respiração, agradecendo a Deus pelo som, sentindo-se culpado ao seu fluxo suave, imperturbado. Ele ouvira a tosse de Ian a noite inteira e fora dormir com o som daquela respiração difícil em sua mente, se não em seus ouvidos.

   Conseguira, por força de pura exaustão, afastar da mente a questão da doença de Ian, mas ela estava lá ao acordar, pesada como uma pedra em seu peito.

   Claire remexeu-se em seu sono, virando-se parcialmente de costas, e o desejo por ela avolumou-se nele como água. Hesitou, padecendo por Ian, sentindo-se culpado pelo que Ian já perdera e ele ainda tinha, relutante em acordá-la.

   - Sinto-me talvez como você se sentiu - sussurrou para ela, baixo demais para acordá-la. - Quando você atravessou as pedras. Como se o mundo ainda estivesse lá, mas não o mundo que você conhecia.

   Podia jurar que ela não tinha acordado, mas sua mão saiu do meio das cobertas, tateando, e ele a tomou na sua. Ela suspirou, um suspiro longo e pesado de sono, e puxou-o para baixo, ao seu lado. Tomou-o em seus braços e embalou-o, aquecido em seus seios macios.

   - Você é o mundo que eu tenho - ela murmurou, e então sua respiração mudou, e ela o levou com ela para a segurança.

 

                     MÊMORE

Estavam tomando o café da manhã na cozinha, só os dois Ians, pois seu pai acordara tossindo antes do amanhecer e depois adormecera tão profundamente que sua mãe não quis acordá-lo, e ele próprio estivera caçando nas colinas com seu irmão e sobrinhos a noite toda. Na volta, haviam parado na casa de Kitty e o Jovem Ian declarou que iriam parar ali para comer e dormir um pouco, mas Ian ficara aflito, querendo voltar para casa, embora não soubesse dizer por quê.

   Talvez por causa disso, ele pensou, observando seu pai sacudir sal sobre o mingau da mesma maneira que o vira fazer durante quinze anos, antes de deixar a Escócia. Nunca voltara a pensar nisso, durante todo o tempo em que esteve longe, mas agora que via a mesma cena outra vez era como se nunca tivesse ido embora, como se tivesse passado cada manhã de sua vida ali naquela mesa, observando seu pai comer mingau.

   Foi possuído por um tal desejo de memorizar o momento, ver e sentir cada detalhe, desde a madeira lisa e lustrosa pelo uso sob seus cotovelos até o granito manchado da bancada e o modo como a luz incidia através das cortinas surradas na janela, iluminando o volume de músculo no canto do maxilar de seu pai conforme ele mastigava um pedaço de linguiça.

   O Ian mais velho ergueu os olhos subitamente, como se pressentisse os olhos do filho fixos nele.

   - Devemos sair para a charneca? - ele disse. - Tenho vontade de ver se os cervos vermelhos já estão dando cria.

   Ficou surpreso com a resistência de seu pai. Caminharam por vários quilômetros, conversando sobre nada - e sobre tudo. Ele sabia que era para que pudessem se sentir à vontade um com o outro novamente e dizer as coisas que tinham que ser ditas - mas ele temia a conversa.

   Pararam finalmente no alto de uma extensão elevada da charneca, de onde podiam ver o desdobramento das belas montanhas ondeadas e alguns pequenos lagos, brilhando como peixe sob um sol alto e pálido. Encontraram uma fonte de santo, um pequeno lago com uma antiga cruz de pedra, e beberam a água, fazendo a prece de respeito pelo santo; em seguida, sentaram-se para descansar um pouco adiante.

   - Foi num lugar assim que eu morri pela primeira vez - seu pai disse descontraidamente, passando a mão molhada pelo rosto suado. Parecia rosado e saudável, apesar de tão magro. Isso incomodou o Jovem Ian, sabendo que ele estava morrendo e, ainda assim, vendo-o com esta aparência.

   - É mesmo? - ele disse. - E quando foi isso?

   - Oh, na França. Quando perdi a perna. - O Ian mais velho olhou para baixo, para sua perna de pau, indiferente. - Em um minuto, eu estava de pé para disparar meu mosquete, no seguinte eu estava deitado de costas. Nem sabia que tinha sido atingido. Você imagina que sentiria se fosse atingido por uma bola de ferro de três quilos, não é?

   Seu pai riu para ele e ele relutantemente devolveu o sorriso.

   - Sim, imagino. Mas você deve ter sentido que alguma coisa tinha acontecido, não?

   - Oh, sim, senti. E após um ou dois instantes compreendi que devia ter sido atingido. Mas não sentia absolutamente nenhuma dor.

   - Bem, isso foi bom - o Jovem Ian disse, de forma encorajadora.

   - Eu percebi que estava morrendo, sabe? - os olhos de seu pai estavam fixos nele, mas olhavam além dele, para um distante campo de batalha. - Mas não estava realmente me importando. E não estava sozinho. - Seu olhar focalizou-se, então, no filho, e ele sorriu ligeiramente. Estendendo a mão, segurou a mão de Ian, a sua própria descarnada até os ossos, as juntas inchadas e salientes, mas a abrangência de seu palmo ainda tão grande quanto a de seu filho. - Ian - ele disse, e parou, os olhos enrugando-se. - Sabe como é estranho dizer o nome de alguém quando é o mesmo que o seu? Ian - ele repetiu, mais delicadamente não se preocupe. Eu não tive medo na época. Eu não tenho agora.

   Eu tenho, Ian pensou, mas não podia dizer isso.

   - Conte-me a respeito do cachorro - seu pai disse, então, sorrindo. E assim ele contou a seu pai sobre Rollo. Sobre a batalha naval quando ele achou que Rollo tinha sido morto ou se afogado, como eles acabaram indo para Ticonderoga e participado das terríveis batalhas de Saratoga.

   E contou-lhe, sem pensar muito nisso, pois se pensasse as palavras se congelariam em sua garganta, sobre Emily. Sobre Iseabail. E sobre O Mais Rápido dos Lagartos.

   - Eu... nunca contei a mais ninguém sobre isso - ele disse, repentinamente tímido. - Sobre o menino, quero dizer.

   Seu pai respirou fundo, parecendo feliz. Depois tossiu, tirou um lenço do bolso e tossiu mais um pouco, parando finalmente. Ian tentou não olhar para o lenço, para o caso de estar sujo de sangue.

   - Você devia - o Ian mais velho disse com voz rouca, depois limpou a garganta e cuspiu no lenço com um grunhido abafado. - Devia contar a sua mãe. - ele disse, a voz clara outra vez. - Ela ficaria feliz de saber que você tem um filho, independente das circunstâncias.

   - Sim, bem. Talvez eu conte.

   Ainda era cedo para insetos, mas os pássaros da charneca já revoavam, explorando aqui e ali, fazendo voos rasantes sobre suas cabeças e gritando alarmados. Ouviu os sons de sua terra natal por uns instantes e depois disse:

   - Pai, preciso lhe contar uma coisa ruim.

   E sentado junto a uma fonte de santo, na paz de um dia do começo da primavera, Ian lhe contou o que acontecera com Murdina Bug.

   Seu pai ouviu com grave atenção, a cabeça baixa. O Jovem Ian podia ver as mechas grisalhas em seus cabelos e achou a visão tanto emocionante quanto paradoxalmente reconfortante. Ao menos, ele viveu uma boa vida, pensou. Mas talvez a sra. Bug também tenha vivido. Eu me sentiria pior a respeito disso se ela fosse jovem? Achou que sim, mas se sentia mal de qualquer modo. Mas um pouco melhor depois de desabafar.

   O Ian mais velho balançou-se para trás em seus quadris, os braços entrelaçados ao redor do joelho bom, pensando.

   - Não foi culpa sua, é claro - ele disse, com um olhar de viés para o filho. - Sabe disso, no fundo do seu coração?

   - Não - Ian admitiu. - Mas estou tentando.

   Seu pai sorriu diante de sua resposta, mas em seguida ficou sério outra vez.

   - Você vai conseguir. Se você já viveu com isso até aqui, ficará bem no final. Mas essa questão com o velho Arch Bug. Ele deve ser tão velho quanto as montanhas, se for o mesmo que eu conheci; era um arrendatário de Malcolm Grant.

   - Esse mesmo. Eu fico pensando que... ele é velho... vai morrer... mas se ele morrer e eu não ficar sabendo? - Fez um gesto de frustração. - Não quero matar o sujeito, mas como posso não fazer isso e ele ficar andando por aí, decidido a causar algum mal a Ra... à minha... bem, se eu um dia tiver uma mulher... - Ele se atrapalhava e tropeçava nas palavras, e seu pai colocou um fim nisso, segurando seu braço.

   - Quem é ela? - perguntou, o interesse iluminando seu rosto. - Fale-me dela.

   E assim ele falou de Rachel. Ficou surpreso, na verdade, que houvesse tanto a dizer, considerando-se que a conhecera apenas por algumas semanas e a beijara apenas uma vez.

   Seu pai suspirou - ele suspirava o tempo todo, era a única maneira de obter bastante ar, mas esse foi um suspiro de felicidade.

   - Ah, Ian - ele disse amorosamente. - Estou feliz por você. Nem sei dizer o quanto estou feliz. É o que sua mãe e eu temos pedido a Deus, todos esses anos, que você tenha uma boa mulher para amar e construir uma família com ela.

   - Bem, é cedo para falar de minha família - o Jovem Ian ressaltou. - Considerando que ela é uma quaker e provavelmente não se casará comigo. E considerando que estou na Escócia e ela está com o Exército Continental na América, provavelmente levando um tiro ou infectada com uma peste neste exato momento.

   Ele falara a sério e ficou um pouco ofendido quando seu pai riu. Mas dePois o Ian mais velho inclinou-se para a frente e disse com absoluta gravidade:

   - Você não precisa esperar eu morrer. Você tem que ir e encontrar a sua jovem.

   - Eu não posso...

   - Pode, sim. O Jovem Jamie tem Lallybroch, as meninas estão bem casadas e Michael... - Riu à menção de Michael. - Michael se sairá muito bem, eu acho. Um homem precisa de uma mulher e uma boa mulher é a maior dádiva de Deus para um homem. Eu partiria mais tranquilamente, a bhailach, sabendo que você estava bem encaminhado neste aspecto.

   - Sim, bem - o Jovem Ian murmurou. - Talvez. Mas não partirei já.

 

                   DÍVIDAS ANTIGAS

Jamie engoliu a última colherada de mingau e respirou fundo, largando a colher.

- Jenny?

   - Claro que há mais - ela disse, estendendo a mão para a tigela dele. Então, ela viu seu rosto e parou, estreitando os olhos. - Ou não é disso que você precisa?

   - Eu não diria que é uma necessidade, exatamente. Mas... - Ergueu os olhos para o teto para evitar o olhar de Jenny e encomendou a alma a Deus. - O que você sabe de Laoghaire Mackenzie?

   Arriscou um rápido olhar para sua irmã e viu que seus olhos haviam se arregalado, brilhantes de interesse.

   - Laoghaire, hein? - Ela voltou a se sentar e começou a tamborilar os dedos pensativamente no tampo da mesa. Suas mãos eram bem conservadas para a idade, ele pensou: desgastadas pelo trabalho, mas os dedos ainda esbeltos e ágeis.

   - Ela não está casada - Jenny disse. - Mas você sabe disso, imagino.

   Ele balançou a cabeça rapidamente.

   - O que quer saber sobre ela?

   - Bem... como está indo, eu acho. E...

   - E quem está dividindo sua cama?

   Ele lançou um olhar a sua irmã.

   - Você é uma mulher obscena, Janet Murray.

   - Oh, é mesmo? Você não me engana. - Os olhos azuis iguais aos seus cintilaram para ele por um instante e a covinha em seu rosto surgiu. Ele conhecia aquele olhar e rendeu-se com a dignidade possível.

   - Você sabe?

   - Não - ela respondeu prontamente.

   Ele ergueu uma das sobrancelhas, incrédulo.

   - Oh, sim. Conte outra.

   Ela sacudiu a cabeça e correu o dedo pela borda da jarra de mel, limpando uma gota dourada.

   - Juro pelos dedos dos pés de são Fouthad.

   Ele não ouvia essa desde que tinha dez anos de idade e deu uma risada, apesar da situação.

   - Bem, então, nada mais a ser dito, não é? - Ele se inclinou para trás em sua cadeira, fingindo indiferença. Ela fez um pequeno ruído ofendido, levantou-se e começou a tirar a mesa com pressa. Ele observou-a com os olhos estreitados, sem saber ao certo se ela estava tentando confundi-lo apenas para se divertir - se assim fosse, ela cederia em um minuto - ou se havia alguma coisa a mais.

   - Por que você quer saber? - ela perguntou de repente, os olhos na pilha de tigelas sujas. Isso o fez despertar de suas divagações.

   - Eu não disse que quero saber - ressaltou. - Mas já que mencionou... qualquer um teria curiosidade, não?

   - É verdade - ela concordou. Empertigou-se e olhou diretamente para ele, uma espécie de olhar longo e perscrutador, que o fez imaginar se tinha lavado atrás das orelhas. - Eu não sei - ela disse finalmente. - E é a verdade. Só tive notícias dela daquela vez em que escrevi para você.

   Sim, e por que me escreveu sobre isso?, ele se perguntou, mas não o fez em voz alta.

   - Mmmmhum - ele disse. - E espera que eu acredite que você parou por aí?

Ele se lembrava. Ali parado em seu antigo quarto em Lallybroch, que fora dele quando criança, na manhã de seu casamento com Laoghaire.

   Vestia uma camisa nova para a ocasião. Não havia dinheiro para muita coisa além do estritamente necessário e às vezes nem isso - mas Jenny lhe conseguira uma camisa nova; ele suspeitava de que ela havia sacrificado suas duas melhores combinações para isso. Lembrava-se de ter se barbeado no reflexo da bacia de água, vendo o rosto macilento e severo de um estranho emergir de baixo da lâmina, pensando que deveria se lembrar de sorrir ao se encontrar com Laoghaire. Não queria assustá-la e o que ele via na água era suficiente para assustar ele próprio.

   Pensou repentinamente em compartilhar sua cama. Resolutamente, afastou a ideia do corpo de Claire - tinha muita prática nisso -, o que o fez pensar repentinamente que fazia anos - sim, anos! Deitara-se com uma mulher apenas duas vezes nos últimos quinze anos, e a última vez fora há cinco, seis, talvez sete anos...

   Teve um momento de pânico à ideia de que poderia não conseguir e tocou Seu membro cautelosamente através do kilt, só para descobrir que já começava a endurecer à mera ideia de ir para a cama com uma mulher.

   Respirou fundo, um pouco aliviado. Menos uma coisa com que se preocupar.

   Um breve som da porta o fez virar repentinamente a cabeça e ele se deparou com Jenny ali, com uma expressão indecifrável no semblante. Tossiu e tirou a mão do seu pênis.

   - Você não é obrigado a fazer isso, Jamie - ela disse serenamente, os olhos fixos nos dele. - Se você pensou melhor, diga-me.

   Ele quase aceitara a sugestão. Mas podia ouvir os sons da casa. Havia uma agitação no ar, uma determinação de propósito e uma felicidade que há muito tempo não se via ali. Não era apenas a sua própria felicidade que estava em risco ali - nunca fora.

   - Não - ele dissera abruptamente. - Estou bem. - E sorriu para ela de forma tranquilizadora.

   No entanto, quando desceu para se encontrar com Ian ao pé da escada, ouviu a chuva nas janelas e sentiu uma súbita sensação de estar se afogando - uma indesejável lembrança do dia de seu primeiro casamento e como um apoiara o outro, ele e Claire, ambos sofrendo, ambos aterrorizados.

   - Tudo bem, então? - Ian lhe dissera, inclinando-se para ele e falando em voz baixa.

   - Sim, tudo bem - ele respondeu, satisfeito com a calma que transparecia em sua voz.

   O rosto de Jenny apareceu por um breve instante pela porta da sala de estar. Parecia preocupada, mas relaxou ao vê-lo.

   - Está tudo bem, mo nighean - Ian a tranquilizara com um largo sorriso. - Já o agarrei, para o caso de ele querer fugir. - Ian de fato segurava seu braço, para surpresa de Jamie, mas ele não protestou.

   - Bem, arraste-o para dentro, então - sua irmã dissera, secamente. - O padre já chegou.

   Ele entrara com Ian e assumira seu lugar ao lado de Laoghaire, diante do velho padre McCarthy. Ela ergueu os olhos rapidamente para ele, depois desviou o olhar. Estaria com medo? Sua mão estava fria na dele, mas não tremia. Ele apertou seus dedos delicadamente e ela virou a cabeça, erguendo os olhos diretamente para ele. Não, não era medo, nem ternura ou deslumbramento. Havia gratidão em seu olhar - e confiança.

   Aquela confiança penetrara em seu coração, um peso pequeno que mantinha seu equilíbrio, restaurava ao menos um pouco das raízes cortadas que o haviam mantido no lugar. Ele também se sentira grato.

   Virou-se ao som de passos agora e viu Claire se aproximando pelo corredor. Sorriu - observando que o fizera absolutamente sem pensar - e ela veio até ele, tomando sua mão enquanto espreitava para dentro do quarto.

   - Seu, não foi? Quando você era pequeno, quero dizer.

   - Sim, foi.

   - Acho que Jenny me disse... quando viemos aqui na primeira vez, quero dizer. - Sua boca torceu-se ligeiramente. Ela e Jenny se falavam agora, é claro, mas era uma conversa afetada, ambas extremamente cautelosas, com medo de falar muito ou dizer a coisa errada. Sim, bem, ele próprio tinha medo de falar demais ou dizer a coisa errada, mas certamente não iria agir como uma mulher a respeito disso.

   - Preciso ir ver Laoghaire - disse abruptamente. - Vai me matar se eu for?

   Ela pareceu surpresa. E depois, contra a vontade, achou graça.

   - Está pedindo minha permissão?

   - Não, não estou - ele disse, sentindo-se tenso e constrangido. - É só que... bem, achei que devia lhe contar, só isso.

   - Muita consideração sua. - Ela ainda sorria, mas o sorriso adquirira certo ar de cautela. - Você se importaria... de me dizer por que quer ir vê-la?

   - Eu não disse que quero vê-la - ele disse, um tom cortante evidente na voz. - Eu disse que preciso.

   - Seria presunção de minha parte perguntar por que você precisa vê-la? - Seus olhos estavam apenas um pouco mais abertos e mais amarelos do que de costume; ele despertara o falcão nela. Ele não tivera a intenção, de forma alguma, mas hesitou por um instante, repentinamente com vontade de se refugiar de sua própria confusão em uma boa briga. Mas não podia fazer isso em sã consciência. Menos ainda poderia explicar a lembrança do rosto de Laoghaire no dia de seu casamento, o ar de confiança em seus olhos, e a sensação incômoda de que ele havia traído essa confiança.

   - Você pode me perguntar qualquer coisa, Sassenach. E você perguntou - acrescentou enfaticamente. - Eu responderia se achasse que poderia dar uma resposta sensata.

   Ela fungou com um pequeno ruído de desdém, não propriamente "Hum!", mas ele entendeu muito bem.

   - Se você só quer saber com quem ela está dormindo, provavelmente há maneiras menos diretas de descobrir - ela disse. Sua voz era cuidadosamente equilibrada, mas suas pupilas haviam se dilatado.

   - Não me importo com quem ela esteja dormindo!

   - Oh, se importa, sim! - ela retrucou prontamente.

   - Não, não me importo!

   - "Mentiroso, mentiroso, de calça pegando fogo" - ela disse e, em vez de explodir, ele deu uma gargalhada. Ela pareceu momentaneamente desconcertada, mas depois riu também, resfolegando e ficando com o nariz vermelho.

   Pararam em questão de segundos, envergonhados por estar gargalhando em uma casa que há muito tempo não sabia o que era uma risada - mas ainda sorriam um para o outro.

   - Venha cá - ele disse brandamente, estendendo a mão para ela. Ela tomou-a no mesmo instante, seus dedos quentes e fortes sobre os dele, e veio enlaçá-lo em seus braços.

   Seus cabelos tinham um cheiro diferente. Ainda fresco e repleto dos aromas de plantas vivas, mas diferente. Como as Highlands. Como urzes, talvez.

   - Você quer mesmo saber quem é, você sabe disso - ela disse, a voz quente e fazendo cócegas através do tecido de sua camisa. - Quer que eu lhe diga por quê?

   - Sim, quero e não, não quero - ele disse, apertando sua mão com mais força. - Sei muito bem por quê, e tenho certeza de que você e Jenny e qualquer outra mulher num raio de cinquenta quilômetros acham que sabem também. Mas não é por isso que eu preciso vê-la.

   Ela empurrou-o um pouco para trás e afastou os cachos soltos dos olhos para olhar para ele. Examinou seu rosto pensativamente e balançou a cabeça.

   - Bem, não deixe de lhe dar minhas mais sinceras lembranças, sim?

   - Ora, você, criaturinha vingativa! Nunca pensei que fosse capaz disso!

   - Não mesmo? - ela disse, seca como uma torrada. Ele sorriu para ela e passou o polegar delicadamente pelo lado de seu rosto.

   - Não - ele disse. - Você não é de guardar rancor, Sassenach. Nunca foi.

   - Bem, não sou escocesa - ela observou, alisando os cabelos para trás. - Não é uma questão de honra nacional, quero dizer. - Ela colocou a mão em seu peito antes que ele pudesse responder, e disse, com ar muito sério: - Ela nunca o fez rir, fez?

   - Posso ter sorrido uma ou duas vezes - ele disse, com ar sério. - Mas não.

   - Bem, não se esqueça disso - ela disse, e com um rodopio das saias saiu. Ele riu como um tolo e seguiu-a.

   Quando ele chegou às escadas, ela o esperava a meio caminho.

   - Outra coisa - ela disse, erguendo um dedo para ele.

   - O quê?

   - Se descobrir com quem ela está dormindo e não me contar, então eu o matarei de verdade.

Balriggan era um lugar pequeno, pouco mais de cinco hectares de terra, além da casa principal e construções anexas. Ainda assim, era bonito, uma grande cabana de pedra cinzenta aninhada na curva de uma colina, um laguinho brilhando como um espelho ao pé da encosta. Os ingleses haviam ateado fogo às plantações e ao celeiro durante o Levante, mas as plantações retornam. Muito mais facilmente do que os homens que as lavraram.

   Ele passou devagar pelo lago em seu cavalo, pensando que aquela visita era um erro. Era possível deixar as coisas para trás - lugares, pessoas, lembranças - ao menos por algum tempo. Mas os lugares se apegavam às coisas que haviam acontecido neles, e voltar a um lugar onde você viveu um dia era ser colocado frente a frente com quem você era e o que fizera lá.

   Balriggan no entanto... não fora um mau lugar. Ele adorava o laguinho e como ele espelhava o céu, tão plácido em certas manhãs que se podia sentir estar entrando nas nuvens refletidas em sua superfície, sentindo sua névoa fria elevar-se ao seu redor, envolvê-lo em sua paz etérea. Ou nas noites de verão, quando a superfície brilhava em centenas de círculos sobrepostos criados pelo aparecimento de insetos, o ritmo quebrado somente de vez em quando pela súbita pancada na água de um salmão que saltava.

   A estrada o levou mais perto e ele viu os baixios de leito de pedra onde ele mostrara à pequena Joan e a Marsali como pegar peixes com as mãos, os três tão atentos no que faziam que não prestaram atenção às picadas dos mosquitos e voltaram para casa molhados até a cintura e vermelhos das picadas e do sol, as meninas saltitando e balançando-se de suas mãos, alegres ao pôr do sol. Sorriu ligeiramente - depois fez o cavalo mudar de direção e começou a subir a encosta para a casa.

   O lugar estava em mau estado, mas decentemente consertado, observou com má vontade. Havia uma mula pastando no curral atrás da casa, velha, mas de aparência saudável. Muito bem. Pelo menos Laoghaire não estava gastando o dinheiro dele em extravagâncias ou em uma carruagem.

   Colocou a mão no portão e sentiu um nó na barriga. A sensação da madeira sob sua mão era estranhamente familiar; ele o levantara sem pensar, no lugar onde ele sempre raspava o chão. O nó subiu à sua boca quando ele se lembrou de seu último encontro com Ned Gowan, o advogado de Laoghaire. O que a maldita mulher quer, então?, ele perguntara, exasperado. Ao que Ned respondera alegremente: Sua cabeça, espetada no portão dela.

   Com uma breve resfolegada de desdém, ele atravessou o portão, fechando-o com um pouco mais de força do que o necessário, e ergueu os olhos para a casa.

   Um movimento chamou sua atenção. Um homem estava sentado no banco do lado de fora da casa, fitando-o por cima de uma peça de arreios quebrada em seu joelho.

   Um sujeitinho feio, Jamie pensou, magricela e de rosto fino como um fuinha, com um olho opaco e a boca permanentemente aberta como se estivesse apalermado. Ainda assim, Jamie cumprimentou o sujeito amavelmente, perguntando se sua patroa estava em casa.

   O rapaz - visto mais de perto, ele parecia ter trinta e poucos anos - pestanejou para ele, depois virou a cabeça para fixar em Jamie o olho bom.

   - Quem é você? - ele perguntou, parecendo hostil.

   - Fraser de Broch Tuarach - Jamie respondeu. Era uma ocasião formal, afinal. - A sra... - Hesitou, sem saber como se referir a Laoghaire. Sua irmã dissera que ela insistia em ser chamada de "sra. Fraser", apesar do escândalo. Não achara que podia se opor - a culpa sendo dele e estando ele na América, de qualquer modo, mas certamente ele próprio não iria chamá-la assim, nem mesmo para seu criado. - Vá chamar sua patroa, por favor - ele disse secamente.

   - O que quer com ela? - O olho bom estreitou-se, desconfiado.

   Ele não esperava nenhum impedimento e estava inclinado a responder asperamente, mas se conteve. O sujeito obviamente sabia alguma coisa a respeito dele e era certo que o criado de Laoghaire se preocupasse com seu bem-estar, ainda que os modos do sujeito fossem rudes.

   - Quero falar com ela, se não tiver objeção - ele disse, com extrema educação. - Acha que pode ir lhe dizer isso?

   O sujeito fez um som malcriado na garganta, mas colocou os arreios de lado e levantou-se. Tarde demais, Jamie viu que sua espinha era muito torta e uma perna mais curta do que a outra. Mas não havia nenhum modo de pedir desculpas que não piorasse as coisas, e assim ele apenas balançou a cabeça rapidamente e deixou o sujeito se arrastar para dentro de casa, pensando que era bem próprio de Laoghaire manter um empregado aleijado com a finalidade expressa de constrangê-lo.

   Em seguida, sacudiu-se com irritação, envergonhado de seu pensamento. O que havia com ele que fazia uma mulher infeliz como Laoghaire Mackenzie trazer à tona o mais vil e vergonhoso traço que ele possuísse? Não que sua irmã não fizesse isso também, refletiu pesarosamente. Mas Jenny evocava seu mau gênio ou linguagem ferina, botava lenha na fogueira até ele ficar roxo de raiva e depois extinguia o fogo perfeitamente com uma única palavra, como se o tivesse mergulhado em água fria. "Vá vê-la", Jenny dissera.

   - Está bem, então - ele disse, beligerante. - Aqui estou eu.

   - Estou vendo - disse uma voz seca, clara. - Por quê?

   Girou nos calcanhares dando de cara com Laoghaire, parada no vão da porta, vassoura na mão, lançando-lhe um olhar frio.

   Ele tirou o chapéu e inclinou-se, cumprimentando-a.

   - Bom-dia. Espero que esteja gozando de plena saúde. - Aparentemente, estava; seu rosto estava ligeiramente corado por baixo de um lenço branco engomado, os olhos azuis muito límpidos.

   Ela examinou-o de cima a baixo, o rosto sem expressão, a não ser pelas sobrancelhas louras arqueadas no alto.

   - Soube que estava vindo para casa. Por que está aqui?

   - Para ver como você está passando.

   Suas sobrancelhas ergueram-se um pouco mais.

   - Bastante bem. O que quer?

   Ele havia ensaiado isso mais de cem vezes mentalmente, mas devia saber que era esforço perdido. Algumas coisas podiam ser planejadas, mas nada que envolvesse uma mulher.

   - Eu vim lhe pedir desculpas - ele disse sem rodeios. - Já pedi antes, e voce me deu um tiro. Quer ouvir desta vez?

   As sobrancelhas se arriaram. Olhou dele para a vassoura em sua mão, como se avaliasse sua utilidade como arma, depois olhou novamente para ele e deu de ombros.

   - Como quiser. Quer entrar, então? - Fez um sinal com a cabeça na direção da casa.

   - E um belo dia. Vamos caminhar pelo jardim? - Ele não tinha nenhuma vontade de entrar na casa, com suas lembranças de lágrimas e silêncios.

   Ela fitou-o por um ou dois instantes, depois assentiu e virou-se na direção do caminho do jardim, deixando que ele a seguisse se quisesse. Ele notou, no entanto, que ela continuava segurando a vassoura e não sabia ao certo se achava graça ou ficava ofendido.

   Caminharam em silêncio e atravessaram um portão, entrando no jardim. Era, na verdade, uma horta, feita por sua utilidade, mas tinha um pequeno pomar no final e havia flores entre os pés de ervilha e os canteiros de cebolas. Ela sempre gostara de flores; lembrou-se disso com um pequeno aperto no coração.

   Ela colocara a vassoura sobre o ombro, como um soldado carregando um rifle, e seguiu a seu lado - sem pressa, mas também sem lhe oferecer uma abertura. Ele limpou a garganta.

   - Eu disse que vim pedir desculpas.

   - Sim, disse. - Ela não se virou para olhar para ele, mas parou e enfiou a ponta do pé em uma enroscada trepadeira de batata.

   - Quando nos... casamos - ele disse, tentando recuperar o discurso cuidadoso que ensaiara. - Eu não devia ter pedido você em casamento. Meu coração estava frio. Eu não tinha o direito de lhe oferecer um coração morto.

   As narinas de Laoghaire abriram-se ligeiramente, mas ela não ergueu os olhos. Continuou com o cenho franzido para o pé de batata, como se suspeitasse de que estivesse bichado.

   - Eu já sabia - ela disse finalmente. - Mas eu esperava - interrompeu-se, os lábios pressionados com força, enquanto engolia em seco. - Mas eu esperava poder ajudá-lo. Todo mundo via que você precisava de uma mulher. Não especificamente de mim, imagino - acrescentou amargamente.

   Ofendido, ele disse a primeira coisa que lhe veio à língua.

   - Pensei que você precisasse de mim.

   Ela ergueu os olhos, então, agora brilhantes. Santo Deus, ela ia chorar, ele sabia. Mas ela não chorou.

   - Eu tinha filhos pequenos para alimentar. - Sua voz era ríspida e sem entonação, e o atingiu como um tapa no rosto.

   - É verdade - ele disse, controlando a raiva. Ao menos, isso era honesto. - Mas elas já cresceram. - E ele havia arranjado dotes tanto para Marsali quanto para Joan também, mas achava que não recebera nenhum crédito por isso.

   - Então é isso - ela disse, a voz mais fria. - Você acha que pode deixar de me pagar agora, não é?

   - Não, não é isso, pelo amor de Deus!

   - Porque - ela disse, ignorando sua negativa e girando nos calcanhares para encará-lo, os olhos cintilando - não pode. Você me envergonhou diante de toda a paróquia, Jamie Fraser, atraindo-me para um casamento pecaminoso com você e depois me traindo, rindo de mim pelas minhas costas com sua Prostituta sassenach!

   - Eu não...

   - E agora você volta da América, todo arrumado e bem-falante, parecendo um almofadinha inglês - seu lábio curvou-se em desdém diante de sua camisa nova e de babados, que ele usara em sinal de respeito a ela, droga! -, pavoneando sua riqueza e bancando o todo-poderoso com sua antiga sirigaita, toda espevitada em suas sedas e cetins, pelo braço, não é? Bem, vou lhe dizer uma coisa - tirou a vassoura de cima do ombro e enfiou o cabo violentamente no chão. - Você não entende nada a meu respeito e acha que pode me impressionar e me fazer rastejar para longe como um cachorro moribundo e não incomodá-lo mais! Pense melhor, é tudo que tenho a lhe dizer, pense melhor!

   Ele arrancou a bolsinha de dentro do bolso e atirou-a na porta do barracão da horta, onde bateu com uma pancada ruidosa e quicou. Só teve um instante para lamentar ter trazido um pedaço de ouro, e não moedas que tilintassem, antes de perder as estribeiras.

   - Sim, tem razão a respeito disso, ao menos! Eu não entendo nada a seu respeito! Nunca entendi, por mais que tentasse!

   - Oh, por mais que tentasse, hein? - ela gritou, ignorando a bolsa. - Você nunca tentou, nem por um instante, Jamie Fraser! Na realidade... - Seu rosto contraiu-se enquanto ela lutava para manter a voz sob controle. - Você nunca sequer olhou de verdade para mim. Nunca... bem, não, acho que olhou uma vez. Quando eu tinha dezesseis anos. - Sua voz tremeu e ela desviou o olhar, o maxilar cerrado com força. Em seguida, olhou novamente para ele, os olhos brilhantes, sem lágrimas.

- Você levou uma surra por mim. Em Leoch. Lembra-se disso?

   Por um instante, ele não se lembrou. Depois parou, respirando ruidosamente. Sua mão dirigiu-se automaticamente ao queixo e contra sua vontade sentiu o esboço de um sorriso erguer-se acima de sua raiva.

   - Oh. Sim. Sim, me lembro. - Angus Mhor lhe dera um castigo mais suave do que devia, mas foi uma boa surra, de qualquer modo. Suas costelas doeram por vários dias.

   Ela balançou a cabeça, observando-o. Suas faces estavam cobertas de manchas vermelhas, mas ela havia se acalmado.

   - Achei que você tinha feito aquilo porque me amava. Continuei pensando assim, sabe, até bem depois de termos nos casado. Mas eu estava enganada, não é?

   A perplexidade deve ter transparecido em seu rosto, pois ela fez aquele pequeno ruído "Mph!" pelo nariz, que significava que estava exasperada. Pelo menos, a conhecia o suficiente para saber isso.

   - Você teve pena de mim - ela disse, sem inflexão na voz. - Eu não vi isso na época. Você teve pena de mim em Leoch, não só depois, quando se casou comigo. Achei que você me amava - ela repetiu, espaçando as palavras como se falasse com um retardado. - Quando Dougal fez você se casar com a prostituta sassenach, achei que iria morrer. Mas achei que talvez você também tivesse vontade de morrer... mas não era nada disso, não é?

   - Ah... não - ele disse, sentindo-se tolo e constrangido. Ele não percebera nada dos sentimentos dela na ocasião. Não vira nada a não ser Claire. Mas claro que Laoghaire achara que ele a amava; era uma menina de dezesseis anos. E deve ter sabido que seu casamento com Claire fora forçado, sem nunca saber que ele o desejara. Claro que ela pensou que ela e ele estavam destinados um ao outro. Exceto que ele nunca mais olhara para ela outra vez. Passou a mão pelo rosto, sentindo-se completamente desamparado.

   - Você nunca me contou isso - ele disse finalmente, deixando a mão cair.

   - De que teria adiantado? - ela disse.

   Então, era isso. Ela soubera - deve ter compreendido - quando se casaram qual era a verdade da situação. Mas ainda assim tivera a esperança... Incapaz de encontrar o que dizer em resposta, sua mente refugiou-se no irrelevante.

   - Quem foi? - perguntou.

   - Quem? - Ela franziu a testa, confusa.

   - O rapaz. Seu pai queria castigá-la por libertinagem, não? Com quem você andou se agarrando, quando eu levei uma surra por você? Nunca pensei em perguntar.

   As manchas vermelhas em suas faces se intensificaram.

   - Não, você nunca perguntaria, não é?

   Um silêncio mordaz de acusação recaiu entre os dois. Ele não perguntara, na época; não se importara em saber.

   - Sinto muito - ele disse brandamente, por fim. - Mas diga-me. Quem era? - Ele não se importara nem um pouco na época, mas estava curioso agora, ao menos como uma maneira de não pensar em outras coisas - ou de não dizê-las. Não tiveram o passado que ela havia imaginado, mas o passado ainda estava entre eles, formando uma tênue ligação.

   Os lábios de Laoghaire se estreitaram e ele achou que ela não iria dizer, mas depois se abriram, relutantes.

   - John Robert MacLeod.

   Ele franziu a testa por um instante, desconcertado, mas logo o nome caiu no lugar certo na memória e ele fitou-a, espantado.

   - John Robert? Aquele de Killiecrankie?

   - É - ela disse. - Ele mesmo. - Sua boca fechou-se com um estalo.

   Ele não conhecera bem o sujeito, mas a reputação de John Robert MacLeod entre as jovens fora o assunto de muita conversa entre os soldados em Leoch durante o breve período que passou ali. Um sujeito de boa aparência, manhoso e sedutor, as feições bonitas e bem delineadas - e o fato de que tinha mulher e filhos pequenos em casa, em Killiecrankie, não lhe servia de empecilho de modo algum.

   - Santo Deus! - ele exclamou, incapaz de se conter. - Teve sorte de não perder a virgindade!

   Um rubor violento espalhou-se sobre ela, dos espartilhos à touca, e ele ficou boquiaberto.

   - Laoghaire Mackenzie! Você não foi tão tola a ponto de deixar que ele a levasse para a cama!?

   - Eu não sabia que ele era casado! - ela gritou, batendo o pé. - E isso foi depois de você ter se casado com a sassenach. Eu fui para ele em busca de consolo.

   - Oh, e ele certamente não se fez de rogado!

   - Cale a boca! - ela gritou, com voz estridente, e pegando um regador de pedra do banco junto ao barracão atirou-o em sua cabeça. Ele não esperava aquilo - Claire frequentemente atirava coisas nele, mas Laoghaire nunca o fizera - e quase foi atingido na cabeça; bateu em seu ombro, quando ele se desviou.

   O regador foi seguido por uma chuva de outros objetos que estavam no banco e uma torrente de palavras incoerentes, xingamentos nada apropriados a uma mulher, pontuados por guinchos agudos como os de uma chaleira. Uma panela de coalhada zuniu em sua direção, errou o alvo, mas o encharcou do peito aos joelhos com soro e grumos de leite.

   Ele ria - do choque - quando ela repentinamente agarrou uma picareta da parede do barracão e partiu para cima dele. Seriamente alarmado, ele agachou-se e agarrou seu pulso, torcendo-o de tal modo que ela largou a pesada ferramenta com uma pancada no chão. Ela emitiu um grito agudo como o de uma ban-sidhe e lançou a outra mão pelo seu rosto, quase o cegando com as unhas. Ele agarrou esse pulso também e pressionou-a contra a parede do barracão, ela ainda chutando suas canelas, esperneando e contorcendo-se contra ele como uma cobra.

   - Desculpe-me! - Ele gritava em seu ouvido para ser ouvido acima do barulho que ela fazia. - Desculpe-me! Está me ouvindo? Desculpe-me! - A algazarra, no entanto, o impediu de ouvir qualquer coisa atrás deles e ele não teve o menor aviso quando algo monstruoso atingiu-o atrás da orelha e o fez cambalear, luzes espocando em sua cabeça.

   Ele continuou agarrando seus pulsos enquanto tropeçava e caía, arrastando-a por cima dele. Envolveu-a fortemente com seus braços, para impedi-la de arranhá-lo outra vez, e pestanejou, tentando clarear os olhos lacrimejantes.

   - Solte-a, Madfrimü - A picareta tirou um naco do chão ao lado de sua cabeça.

   Ele virou-se de supetão, Laoghaire ainda agarrada a ele, rolando desenfreadamente pelos canteiros da horta. Som de arfadas e passos irregulares; a picareta desceu sobre ele outra vez, prendendo sua manga no chão e arranhando a pele de seu braço.

   Soltou-se com um safanão, sem se preocupar em rasgar o tecido e a pele, rolou para longe de Laoghaire e pôs-se de pé, em seguida se lançando sem fazer uma pausa sobre a figura encarquilhada do criado de Laoghaire, em pleno ato de erguer a picareta acima da cabeça, o rosto minguado contorcido com o esforço.

   Ele deu uma cabeçada no rosto do sujeito com um ruído oco e lançou-se sobre ele, socando-o no estômago antes que se estatelassem no chão. Arrastou-se atabalhoadamente para cima do sujeito e continuou a socá-lo, a violência uma forma de alívio. O homem gemia, grunhia e gorgolejava, e ele retirara o joelho para trás, a fim de dar um soco nos testículos do canalha para acabar de vez com a escaramuça, quando percebeu turvamente a presença de Laoghaire, berrando esganiçadamente e batendo em sua cabeça.

   - Largue-o! - ela gritava, chorando e estapeando-o com as mãos. - Lar gue-o, largue-o, pelo amor de santa Brígida, não o machuque!

   Ele parou, então, ofegante, sentindo-se repentinamente um completo idiota. Batendo em um aleijado franzino que só pretendia proteger sua patroa de um óbvio ataque, dominando uma mulher como se fosse um baderneiro de rua. Santo Deus, qual era o seu problema? Saiu de cima do sujeito, reprimindo um impulso de se desculpar, e desajeitadamente se levantou, pretendendo ao menos dar a mão ao pobre coitado para ajudá-lo a se levantar.

   Mas antes que o fizesse, entretanto, Laoghaire caiu de joelhos ao lado do sujeito, chorando e agarrando-o, finalmente conseguindo fazê-lo se sentar, a cabeça pequena pressionada contra seus seios redondos e macios, ela indiferente ao sangue que jorrava do nariz do sujeito, afagando-o e acariciando-o, murmurando seu nome. Joey, parecia.

   Jamie ficou parado, oscilando um pouco, olhando admirado para aquela demonstração efusiva. Escorria sangue de seus dedos e seu braço começava a arder onde a picareta o esfolara. Sentiu algo pinicante escorrer para dentro de seus olhos e, limpando-os, descobriu que sua testa sangrava. Joey, permanentemente de boca aberta, evidentemente o havia atingido com os dentes quando ele lhe deu uma cabeçada. Fez uma careta de nojo, sentindo a marca dos dentes na testa, e tateou à cata de um lenço para estancar o sangue.

   Enquanto isso, apesar de zonzo, a situação no chão à sua frente se tornava mais clara a cada instante. Uma boa patroa podia tentar consolar um empregado ferido, mas ele nunca ouvira uma mulher chamar um criado de mo chridhe. Muito menos beijá-lo apaixonadamente na boca, sujando o próprio rosto de sangue e muco no processo.

   - Mmmmhum - ele disse.

   Espantada, Laoghaire virou o rosto sujo de sangue, banhado de lágrimas, para ele. Ela nunca lhe parecera tão bonita.

   - Ele? - Jamie perguntou, incrédulo, fazendo um sinal com a cabeça na direção do encolhido Joey. - Por que, pelo amor de Deus?

   Laoghaire fitou-o com os olhos estreitados, agachada como um felino prestes a saltar. Considerou-o por um instante, depois lentamente se endireitou, segurando a cabeça de Joey novamente contra o peito.

   - Porque ele precisa de mim - ela disse sem alterar a voz. - E você, seu filho da mãe, nunca precisou.

Deixou o cavalo pastando à beira do lago e, tirando as roupas, entrou na água. O céu estava nublado e o lago estava cheio de nuvens.

   O leito pedregoso do lago desapareceu e ele deixou a água cinzenta e fria levá-lo, suas pernas soltas atrás dele, seus pequenos ferimentos entorpecendo-se com a friagem. Enfiou o rosto dentro da água, os olhos fechados, para lavar o corte em sua cabeça, e sentiu as bolhas de sua respiração deslizarem, fazendo cócegas, pelos seus ombros.

   Ergueu a cabeça e começou a nadar, devagar, sem pensar em nada.

   Deitou-se de costas entre as nuvens, os cabelos flutuando como algas, e fitou o céu. Um chuvisco perfurava a água ao seu redor, depois se intensificaram. Mas era uma chuva suave; nenhuma sensação de gotas pesadas atingindo-o, apenas uma noção do lago e de suas nuvens banhando seu rosto, seu corpo lavando o sangue e o aborrecimento dos últimos momentos.

   Ele voltaria algum dia?, perguntou-se.

   A água encheu seus ouvidos com seu próprio silêncio e ele se sentiu reconfortado pela conclusão de que, na verdade, nunca havia ido embora.

   Virou-se finalmente e nadou para a margem, cortando a água suavemente. Ainda chovia, com mais força agora, as gotas um tamborilar constante em seus ombros nus enquanto ele nadava. Ainda assim, o sol poente brilhava sob as nuvens e iluminava Balriggan e sua colina com uma claridade suave.

   Sentiu o fundo do lago se erguer e colocou os pés em seu leito, depois ficou parado por um instante, com água até a cintura, olhando para a casa por um momento.

   - Não - disse baixinho, e sentiu o remorso se reduzir a pesar e, finalmente, à absolvição da resignação. - Tem razão, eu nunca a compreendi. Sinto muito.

   Saiu da água e, com um assovio para seu cavalo, jogou o xale molhado por cima dos ombros e tomou a direção de Lallybroch.

 

                     A CAVERNA

Ervas Úteis, escrevi, e parei - como sempre - para pensar. Escrever com uma pena fazia a pessoa ser tanto mais deliberada quanto mais econômica na redação do que fazê-lo com uma esferográfica ou em uma máquina de escrever. Mesmo assim, pensei, eu deveria fazer apenas uma lista aqui e lançar as anotações sobre cada erva conforme abordasse cada uma, depois passar tudo a limpo, quando tivesse certeza de que estava tudo certo e que não havia me esquecido de incluir nada, em vez de tentar fazer tudo de uma vez só.

   Alfazema, hortelã, confrei, escrevi com determinação. Calêndula, tanaceto, dedaleira, ulmária. Depois, voltei para acrescentar um grande asterisco ao lado de dedaleira, para me lembrar de adicionar inúmeras restrições sobre sua utilização, já que todas as partes da planta eram extremamente venenosas, a não ser em minúsculas doses. Brinquei com a pena, mordendo o lábio com indecisão. Deveria mesmo mencioná-la, considerando-se que o livro pretendia ser um guia médico útil para o homem comum, não para praticantes de medicina com experiência em diversos medicamentos? Porque, na verdade, não se devia administrar dedaleira a ninguém, a menos que tivesse experiência... Melhor não. Risquei-a, mas depois comecei a ter dúvidas. Talvez fosse melhor mencioná-la, com um desenho, mas também com um sério alerta de que deveria ser usada apenas por um médico, para o caso de alguém ter a brilhante ideia de tratar a hidropisia de tio Tophiger de uma vez por todas...

   Uma sombra estendeu-se no assoalho à minha frente e eu ergui os olhos. Jamie estava parado ali, com uma expressão estranha no rosto.

   - O que foi? - perguntei, sobressaltada. - Aconteceu alguma coisa?

   - Não - ele disse e, avançando para dentro do gabinete, inclinou-se e colocou as mãos sobre a escrivaninha, trazendo o rosto para perto do meu. - Você algum dia teve a menor dúvida de que eu preciso de você? - perguntou.

   Precisei de aproximadamente meio segundo de reflexão para responder.

   - Não - respondi categoricamente. - Até onde eu saiba, você precisou de mim urgentemente no instante em que eu o vi. E não tive nenhuma razão para achar que você ficou mais autossuficiente depois disso. O que aconteceu com sua testa? Parecem marcas de dentes... - Ele se inclinou por cima da mesa e me beijou antes que eu pudesse terminar minha observação.

   - Obrigado - disse fervorosamente e, endireitando-se, girou nos calcanhares e saiu, evidentemente muito satisfeito.

   - O que houve com tio Jamie? - Ian perguntou, entrando assim que Jamie saiu. Olhou para trás, para a porta aberta para o corredor, das profundezas do qual vinha um zumbido alto e desafinado de alguém cantarolando, como o de um abelhão preso numa armadilha. - Ele está bêbado?

   - Acho que não - respondi, em dúvida, passando a língua pelos lábios. - Não tinha gosto de nada alcoólico.

   - Sim, bem. - Ian ergueu um dos ombros, desdenhando as excentricidades do tio. - Eu estava lá em cima, depois de Broch Mordha, e o sr. MacAllister me disse que a mãe de sua mulher passou mal à noite e se você poderia ir lá, se não fosse muito incômodo.

   - Não, nenhum incômodo - assegurei-lhe, levantando-me animadamente. - Deixe-me pegar minha bolsa.

Apesar de ser primavera, uma estação fria e traiçoeira, os colonos e vizinhos pareciam notavelmente saudáveis. Com alguma cautela, eu voltara a medicar, aos Poucos oferecendo conselhos e remédios onde podiam ser aceitos. Afinal, eu já não era a senhora de Lallybroch e muitas das pessoas que haviam me conhecido antes já estavam mortas. As que não estavam pareciam de um modo geral contentes em me ver, mas havia um ar de cautela em seus olhos que não estava ali antes. Isso me entristecia, mas eu compreendia, perfeitamente.

   Eu deixara Lallybroch, deixara o senhor de Lallybroch. Deixara-os. E apesar de fingirem acreditar na história que Jamie espalhou, sobre eu ter achado que ele morrera e depois fugi para a França, eles não podiam deixar de sentir que eu os traíra ao ir embora. Eu mesma sentia que os traíra.

   O relacionamento fácil que havia entre nós antes desaparecera e assim eu não visitava as pessoas rotineiramente como costumava fazer; eu esperava ser chamada. E nesse ínterim, quando eu tinha que sair de casa, ia colher plantas sozinha ou caminhava com Jamie - que também tinha que sair de casa de vez em quando.

   Certo dia, quando ventava, mas o tempo estava bom, ele me levou mais longe do que de costume, dizendo que me mostraria sua caverna, se eu quisesse.

   - Gostaria muito - eu disse. Protegi os olhos do sol com a mão para olhar para o topo de uma encosta íngreme. - É lá em cima?

   - Sim. Você consegue ver?

   Sacudi a cabeça. Fora a grande pedra branca que as pessoas chamavam de Salto do Barril, podia ser qualquer colina das Highlands, coberta de tojeiras, giestas e urzes nas poucas áreas de terra entre as rochas.

   - Vamos, então - Jamie disse, e colocando o pé em um estribo invisível sorriu e estendeu a mão para me ajudar a subir.

   Era uma subida árdua e eu estava suada e arquejante quando ele afastou a cortina de tojo para me mostrar a boca estreita da caverna.

- Quero entrar.

   - Ah, não quer, não - ele assegurou-lhe. - É úmido e sujo.

   Ela lhe lançou um olhar estranho e esboçou um sorriso.

   - Eu jamais teria imaginado - ela disse, muito secamente. - Eu ainda quero entrar.

   Não adiantava discutir com ela. Ele deu de ombros e tirou o casaco para que não sujasse, pendurando-o em uma muda de sorveira que nascera perto da entrada. Ergueu as mãos para as pedras de cada lado da entrada, mas depois ficou em dúvida; era ali que ele sempre segurara na rocha ou não? Santo Deus, e isso importa?, repreendeu a si mesmo e, segurando a rocha com firmeza, balançou-se para dentro e saltou para baixo.

   Estava tão fria quanto ele se lembrava que estaria. Ficava protegida do vento, ao menos - não era um frio cortante, mas uma friagem úmida que penetrava através da pele e corroía as extremidades dos ossos.

   Virou-se e estendeu os braços para cima, e ela se inclinou para ele, tentou descer pela parede da caverna, perdeu o equilíbrio e escorregou, aterrissando nos braços dele em uma confusão de roupas e cabelos soltos. Ele riu e virou-a para ver a caverna, mas manteve os braços ao seu redor. Teve vontade de se entregar a seu calor e segurou-a como um escudo contra a fria lembrança.

   Ela permaneceu quieta, recostada contra ele, apenas a cabeça se movendo enquanto olhava de uma extremidade à outra da caverna. Mal chegava a dois metros e meio de comprimento, mas a extremidade mais distante estava oculta nas sombras. Ela ergueu o queixo, vendo as fracas manchas pretas que revestiam a rocha em um dos lados da entrada.

   - Era ali que ficava minha fogueira... quando eu ousava acender uma. - Sua voz soou estranha, fraca e abafada, e ele limpou a garganta.

   - Onde era sua cama?

   - Bem ali, perto do seu pé esquerdo.

   - Você dormia com a cabeça para cá? - Ela bateu o pé delicadamente no solo de terra e cascalho.

   - Sim. Eu podia ver as estrelas, se a noite estivesse clara. Virava para o outro lado, se chovia. - Ela ouviu o riso em sua voz e colocou a mão em sua coxa, apertando-a.

   - Foi o que pensei - ela disse, a própria voz um pouco embargada. - Quando soubemos do Dunbonnet e da caverna... pensei em você, aqui sozinho... e torci para que pudesse ver as estrelas à noite.

   - Eu podia - ele sussurrou, e inclinou a cabeça para pousar os lábios em seus cabelos. O xale que ela usara na cabeça havia deslizado e seus cabelos cheiravam a erva-cidreira e ao que ela chamava de erva-dos-gatos.

   Ela fez um pequeno ruído na garganta e cruzou os próprios braços sobre os dele, aquecendo-o através da camisa.

   - Sinto como se já a tivesse visto antes - ela disse, parecendo um pouco surpresa. - Embora eu imagine que uma caverna provavelmente se pareça muito com qualquer outra, a menos que tenha estalactites penduradas do teto ou mamutes desenhados nas paredes.

   - Nunca tive talento para decoração - ele disse, e ela achou graça. - Quanto a já ter estado aqui... você esteve muitas noites aqui comigo, Sassenach. Você e nossa filha, as duas. Embora eu não soubesse que era uma menina, acrescentou silenciosamente, lembrando-se com uma pequena e estranha pontada que de vez em quando ele se sentava na pedra plana na entrada da caverna, imaginando às vezes uma filha, aquecida em seus braços, mas às vezes sentindo um garotinho em seu joelho, e apontando para ele as estrelas que podiam guiá-lo em uma viagem, explicando-lhe como se caçava e a prece que devia rezar quando matava para comer.

   Mas ele dissera tudo isso a Brianna mais tarde - e a Jem. O conhecimento não se perderia. Mas seria útil?, perguntou-se repentinamente.

   - As pessoas ainda caçam? - ele perguntou. - No outro tempo?

   - Oh, sim - ela assegurou-lhe. - Todo outono, tínhamos uma leva de caçadores chegando ao hospital; a maioria idiotas que se embebedavam e atiravam uns nos outros acidentalmente, embora certa vez tenha tido um paciente que fora gravemente pisoteado por um veado que ele achou que estava morto.

   Ele riu, chocado, mas reconfortado. A ideia de caçar bêbado... apesar de que ele já vira uns tolos fazerem isso. Mas ao menos os homens ainda caçavam. Jem poderia caçar.

   - Tenho certeza de que Roger Mac não deixaria Jem beber muito antes de caçar - ele disse. - Ainda que os outros rapazes bebessem.

   Sua cabeça inclinou-se um pouco de um lado para o outro, como costumaVa fazer quando se perguntava se deveria contar-lhe alguma coisa, e ele apertou um Pouco os braços ao seu redor.

   - O que foi?

   - Eu só estava imaginando um bando de adolescentes do colégio tomando uma dose de uísque antes de partir para casa, na chuva, depois da escola - ela disse, resfolegando brevemente. - As crianças não tomam bebida alcoólica na minha época... em momento algum. Ou ao menos, não devem, e se os pais deixarem isso é considerado um escandaloso caso de negligência infantil.

   - É mesmo? - Aquilo parecia estranho; deram-lhe cerveja com a comida desde... bem, desde que se lembrava. E sem dúvida uma dose de uísque contra o frio, ou se sentisse frio na barriga ou tivesse dor de ouvido ou... No entanto, era verdade que Brianna fazia Jem tomar leite, mesmo depois de não usar mais macacão de criança.

   O rangido de cascalhos na encosta embaixo o surpreendeu e ele soltou Claire, dirigindo-se à entrada da caverna. Achava que não devia ser nenhum problema, mas ainda assim fez sinal para ela permanecer ali, içou-se para fora da caverna e estendeu a mão para seu casaco com a faca no bolso, antes mesmo de olhar para ver quem estava a caminho.

   Havia uma mulher mais abaixo, uma figura alta de capa e xale, perto da pedra grande onde Fergus perdera a mão. No entanto, ela olhava para cima e o viu sair da caverna. Acenou para ele e fez sinal para que descesse. Com um rápido olhar à volta para se assegurar de que ela estava sozinha, ele começou a descer, praticamente deslizando pelo declive abaixo, até a trilha onde ela estava.

   - Feasgarmath - ele a saudou, enfiando-se no casaco. Ela era bastante jovem, talvez com vinte e poucos anos, mas ele não a conhecia. Ou achou que não conhecia, até ouvi-la falar.

   - Ciamar a tha thu, mo athair - ela disse formalmente. Como vai, papai?

   Ele pestanejou, espantado, mas depois se inclinou para frente, olhando-a mais atentamente.

   - Joanie? - ele disse, incrédulo. - A pequena Joanie? - Seu rosto comprido, bastante circunspecto, abriu-se em um breve sorriso.

   - Me reconhece, então?

   - Sim, reconheço, agora que a vejo melhor. - Ele estendeu a mão, querendo abraçá-la, mas ela se manteve um pouco afastada, tensa, e ele deixou a mão cair, limpando a garganta para disfarçar o momento. - Já faz algum tempo, menina. Você cresceu - ele acrescentou, sem jeito.

   - As crianças crescem - ela disse, secamente. - É sua mulher que está com você? A primeira, quero dizer.

   - É, sim - ele respondeu, o choque de sua presença inesperada substituído pela cautela. Ele examinou-a rapidamente de cima a baixo, para o caso de ela estar armada, mas não tinha como saber; estava enrolada em sua capa, por causa do vento.

   - Por que não pede a ela para vir aqui? - Joan sugeriu. - Gostaria de conhecê-la.

   Ele duvidava um pouco disso. Ainda assim, ela parecia controlada e ele certamente não podia se recusar a apresentá-la a Claire, se ela assim desejava.

Claire devia estar observando-os; ele se virou e fez um sinal na direção da boca da caverna, chamando-a, depois se virou novamente para Joan.

   - Como veio parar aqui, menina? - ele perguntou, virando-se para ela. Balriggan ficava a uns doze quilômetros dali e não havia nada perto da caverna que pudesse atrair alguém.

   - Eu estava indo a Lallybroch para vê-lo... perdi sua visita quando você foi lá em casa - ela acrescentou, com um breve lampejo de humor. - Mas eu vi você e... sua mulher... andando, assim vim atrás de vocês.

   Enterneceu-se ao pensar que ela quisesse vê-lo. Ao mesmo tempo, estava cauteloso. Já haviam se passado doze anos e ela era uma criança quando ele foi embora. E ela passara todos esses anos com Laoghaire, sem dúvida ouvindo opiniões nada lisonjeiras a seu respeito durante esse tempo.

   Examinou seu rosto, vendo apenas uma vaga lembrança das feições infantis de que se recordava. Ela não era linda, nem mesmo bonita, mas tinha uma certa dignidade que a tornava atraente; ela fitou-o diretamente nos olhos, não parecendo se importar com o que ele pensasse do que via. Possuía os mesmos olhos e nariz de Laoghaire, embora nada mais de sua mãe, sendo alta, de cabelos escuros, ossos proeminentes, um rosto fino e comprido, e uma boca que não parecia muito afeita a sorrisos, ele pensou.

   Ele ouviu Claire descendo a encosta atrás dele e virou-se para ajudá-la, mas sem deixar de vigiar Joanie, por via das dúvidas.

   - Não se preocupe - Joan disse calmamente às suas costas. - Não pretendo dar um tiro nela.

   - Oh!? Bem, isso é bom. - Desconcertado, ele tentou se lembrar: ela estava na casa quando Laoghaire atirou nele? Achava que não, embora não estivesse em condições de notar. Mas ela sem dúvida tomara conhecimento do ocorrido.

   Claire segurou sua mão e deu um pequeno salto para a trilha, sem parar para se recompor, mas adiantando-se imediatamente e tomando as duas mãos de Joan nas suas, sorrindo.

   - Fico muito contente em conhecê-la - ela disse, com grande sinceridade. - Marsali me pediu para lhe dar isto. - E, inclinando-se para frente, beijou o rosto de Joan.

   Pela primeira vez, ele viu a jovem desconcertada. Ela corou e recolheu as mãos, virando-se para o lado e passando uma dobra de sua capa sob o nariz como se sentisse cócegas, para que ninguém visse seus olhos ficarem rasos de lágrimas.

   - Eu... obrigada - ela disse, rapidamente enxugando os olhos. - Você... minha irmã me escreveu sobre você. - Ela limpou a garganta e pestanejou com força, depois fitou Claire com franco interesse, um interesse retribuído por inteiro.

   - Félicité se parece com você - Claire disse. - Henri-Christian também, um pouco... mas Félicité se parece muito.

- Coitada - Joan murmurou, mas não conseguiu reprimir o sorriso que iluminou seu rosto ao ouvir as palavras de Claire.

   Jamie tossiu.

   - Vamos descer até em casa, Joanie? Seria muito bem-vinda.

   Ela sacudiu a cabeça.

   - Mais tarde, talvez. Eu queria falar com você, mo athair, onde ninguém pudesse nos ouvir. A não ser sua mulher - ela acrescentou, com um rápido olhar para Claire. - Já que ela certamente tem algo a dizer sobre o assunto.

   Isso pareceu ligeiramente sinistro, mas em seguida ela acrescentou:

   - É sobre o meu dote.

   - Oh, sim? Bem, venha, vamos sair do vento, ao menos. - Ele as conduziu para a face da rocha protegida do vento, perguntando-se o que estaria ocorrendo. Estaria a jovem querendo se casar com alguém inapropriado e sua mãe estava se recusando a lhe dar seu dote? Alguma coisa acontecera com o dinheiro? Duvidava disso; o velho Ned Gowan redigira os documentos e o dinheiro estava a salvo em um banco em Inverness. E o que quer que ele pudesse pensar de Laoghaire, tinha certeza de que ela jamais faria alguma coisa que prejudicasse as filhas.

   Uma forte rajada de vento subiu pela trilha, agitando as saias das mulheres como folhas ao vento e arremessando sobre eles nuvens de poeira e urzes secas. Eles correram para o abrigo da rocha e ficaram rindo um pouco com a euforia do tempo, batendo a poeira das roupas e arrumando os cabelos.

   - Bem, então - Jamie disse, antes que o bom humor se azedasse entre eles -, com quem pretende se casar?

   - Jesus Cristo - Joan respondeu prontamente.

   Ele fitou-a por um instante, até perceber que sua boca estava aberta e fechá-la.

   - Você quer ser freira? - As sobrancelhas de Claire ergueram-se com interesse. - É mesmo?

   - Quero. Há muito tempo que sei que tenho vocação, mas... - hesitou. - É... complicado.

   - Imagino que seja - Jamie disse, recobrando-se um pouco do choque. - Já conversou com alguém sobre isso? O padre? Sua mãe?

   Os lábios de Joan pressionaram-se em uma linha fina.

   - Com ambos - disse laconicamente.

   - E o que disseram? - Claire perguntou. Ela estava obviamente fascinada, recostada contra a rocha, penteando os cabelos para trás com os dedos.

   Joan resfolegou desdenhosamente.

   - Minha mãe diz - ela disse meticulosamente - que eu fiquei maluca de tanto ler livros... e que isso é culpa sua - acrescentou enfaticamente para Jamie - por me fazer gostar de ler. Ela quer que eu me case com o velho Geordie McCann, mas eu disse que prefiro morrer na miséria.

   - Que idade tem o velho Geordie McCann? - Claire perguntou, e Joan pestanejou, olhando para ela.

   - Vinte e cinco mais ou menos - ela disse. - O que isso tem a ver?

   - Apenas curiosidade - Claire murmurou, parecendo achar divertido. - um jovem Geordie McCann, então?

   - Sim, seu sobrinho. Tem três anos - Joan acrescentou, no interesse da absoluta precisão. - Não quero me casar com ele também.

   - E o padre? - Jamie interveio, antes que Claire pudesse fazer a conversa descarrilar completamente.

   Joan inspirou fundo, parecendo ficar mais alta e mais decidida.

   - Ele diz que é minha obrigação ficar em casa e cuidar da minha mãe em sua velhice.

   - A qual está se deitando com Joey, o empregado, no barracão de cabras - jamie acrescentou prestativamente. - Você sabe disso, não é? - Pelo canto do olho, ele viu o rosto de Claire, o que lhe deu tanta vontade de rir que ele teve que se virar e não olhar para ela. Ergueu a mão atrás das costas, indicando que lhe contaria mais tarde.

   - Não quando estou em casa - Joan disse friamente. - Que é a única razão por eu ainda estar na casa. Acha que minha consciência vai me deixar partir, sabendo o que eles estariam fazendo pelas minhas costas? Esta é a primeira vez que fui mais longe do que a horta em três meses, e se não fosse pecado fazer apostas eu apostaria minha melhor roupa que estão fazendo exatamente isso neste momento, condenando suas almas ao inferno.

   Jamie limpou a garganta, tentando - e fracassando - não pensar em Joey e Laoghaire, atracados apaixonadamente na cama dela com a colcha azul e cinza.

   - Sim, bem. - Ele podia sentir os olhos de Claire perfurando sua nuca e sentiu o sangue subir ao pescoço. - Então. Você quer se tornar freira, mas o padre diz que não deve, sua mãe não lhe dará seu dote por isso e sua consciência, de qualquer modo, não permitirá que faça isso. Esta é a situação, não é?

   - Sim, é - Joan disse, satisfeita com seu resumo.

   - E, hum, o que é que você quer que Jamie faça a respeito disso? - Claire perguntou, dando a volta para se postar ao lado dele. - Matar Joey? - Lançou um olhar de esguelha fulminante para Jamie, pleno de maldosa satisfação com o embaraço dele. Ele estreitou os olhos para ela e ela retribuiu com um largo sorriso.

   - Claro que não! - As grossas sobrancelhas de Joan arriaram-se. - Quero que eles se casem. Assim, não estariam em pecado mortal toda vez que eu virasse as costas e o padre não poderia dizer que eu tinha que ficar em casa, não se minha mãe tiver um marido para cuidar dela.

   Jamie passou um dedo devagar para cima e para baixo do cavalete de seu nariz, tentando imaginar como ele poderia induzir dois pecadores imorais de meia-idade a se casarem. A força? Sob a mira de uma espingarda? Até poderia, imaginava, mas... Bem, quanto mais pensava no assunto, mais gostava da ideia...

- Ele quer se casar com ela, você acha? - Claire perguntou, surpreendendo-o. A ideia não lhe ocorrera.

- Sim, quer - Joan disse, com óbvia desaprovação. - Está sempre se lamuriando sobre isso para mim, o quanto ele a ama... - Ela revirou os olhos. - Não que eu ache que ele não devesse amá-la - apressou-se a acrescentar, ao ver a expressão de Jamie. - Mas ele não devia estar falando disso para mim, não é?

   - Ah... não - ele disse, sentindo-se ligeiramente zonzo. O vento ribombava pela rocha e seu lamento nos ouvidos dele o irritava, fazendo-o se sentir repentinamente como costumava se sentir na caverna, vivendo sozinho durante semanas a fio, sem nenhuma voz para ouvir, a não ser do vento. Sacudiu a cabeça violentamente para clareá-la, forçando-se a se concentrar no rosto de Joan, a ouvir suas palavras acima do vento.

   - Ela também quer, eu acho - Joan dizia, ainda com a testa franzida. - Embora ela não fale sobre isso comigo, graças a santa Brígida. Mas ela gosta dele. faz comidinhas especiais para ele, esse tipo de coisa.

   - Bem, então... - Ele tirou uma mecha esvoaçante dos cabelos de dentro da boca, sentindo-se aturdido. - Por que não se casam?

   - Por sua causa - Claire disse, com um pouco menos de bom humor. - E é aí que eu entro, imagino.

   - Por causa do...

   - Do acordo que você fez com Laoghaire, quando eu... voltei. - Sua atenção estava focalizada em Joan, mas ela se aproximou e tocou a mão dele de leve, sem olhar para ele. - Você prometeu sustentá-la, arranjar dotes para Joan e Marsali, mas isso terminaria se ela se casasse outra vez. É isso, não é? - ela disse a Joan, que confirmou com um sinal da cabeça.

   - Ela e Joey conseguem ir sobrevivendo - ela disse. - Ele faz o que pode, mas... você o viu. Mas, se você parasse de mandar dinheiro, ela provavelmente teria que vender Balriggan para viver... e isso partiria seu coração - acrescentou em voz baixa, abaixando os olhos pela primeira vez.

   Uma estranha dor tomou conta de seu coração - estranha porque não era dele, mas ele a reconhecia. Foi em algum momento nas primeiras semanas de seu casamento, quando ele preparava novos canteiros na horta. Laoghaire lhe trouxe uma caneca de cerveja fria e ficou ali parada enquanto ele a bebia, depois lhe agradeceu pelo trabalho. Ele ficara surpreso e rira, perguntando por que ela achava que devia lhe agradecer por isso.

   - Porque você cuida da minha casa - ela respondeu simplesmente -, mas não tenta tirá-la de mim. - Então, pegara a caneca vazia de sua mão e voltara para dentro de casa.

   E certa vez, na cama - e ele corou diante do pensamento, com Claire bem ali ao seu lado -, ele lhe perguntara por que ela gostava tanto de Balriggan; não era uma propriedade de família, afinal, nem extraordinária em nenhum aspecto. E ela suspirara um pouco, puxara a colcha até o queixo e dissera:

   - É o primeiro lugar em que me senti segura.

   Ela não quis dizer mais nada quando ele lhe perguntou, mas apenas virou-se e fingiu que dormia.

   - Ela preferiria perder Joey a perder Balriggan - Joan dizia a Claire. - Mas ela também não quer perdê-lo. Vê a dificuldade?

   - Sim, vejo. - Claire parecia sentir pena dela, mas lançou um olhar para Jamie indicando que isso, naturalmente, era problema dele. Claro que era, ele pensou, exasperado.

   - Eu... farei alguma coisa - ele disse, sem ter a menor noção do que faria, mas como poderia recusar? Deus provavelmente iria derrubá-lo por interferir na vocação de Joan, isso se seu próprio sentimento de culpa não acabasse com ele primeiro.

   - Oh, papai! Obrigada.

   O rosto de Joan iluminou-se repentinamente com um deslumbrante sorriso e ela se atirou em seus braços - e ele mal teve tempo de levantá-los para ampará-la; ela era uma jovem bastante sólida. Mas ele envolveu-a no abraço que quisera lhe dar assim que se encontraram e sentiu a estranha dor se aplacar, conforme essa desconhecida filha se encaixava com perfeição em um lugar vazio em seu coração que ele nem sabia que existia.

   O vento continuava açoitando e deve ter sido um grão de poeira que fez os olhos de Claire brilharem ao olhar para ele, sorrindo.

   - Só uma coisa - ele disse com ar severo, depois que Joan o soltou e recuou um passo.

   - Qualquer coisa - ela disse fervorosamente.

   - Vai rezar por mim, não é? Quando for freira?

   - Todos os dias - ela lhe assegurou - e duas vezes aos domingos.

O sol já começava a descer no horizonte, mas ainda faltava algum tempo para o jantar. Eu deveria, imaginava, estar lá para oferecer ajuda nos preparativos da refeição. Esses preparativos eram tanto enormes quanto trabalhosos, com tanta gente indo e vindo, e Lallybroch já não podia se dar ao luxo de ter uma cozinheira. Mas, ainda que Jenny estivesse ocupada cuidando de Ian, Maggie com as filhas e as duas criadas eram mais do que capazes de dar conta. Eu só iria atrapalhar. Ou assim disse a mim mesma, plenamente consciente de que sempre havia trabalho para mais um par de mãos.

   Mas fiz a difícil descida da colina atrás de Jamie e não disse nada quando ele desviou-se da trilha que levava a Lallybroch. Fomos caminhando, sem pressa, contentes, na direção do pequeno lago.

   - Talvez eu realmente tenha tido alguma coisa a ver com os livros, hein? - Jamie disse, após algum tempo. - Quero dizer, eu lia para as meninas à noite de vez em quando. Elas sentavam-se no banco comigo, uma de cada lado, com as cabeças recostadas em mim, e era... - Interrompeu-se com um olhar para mim e pigarreou, evidentemente preocupado que eu ficasse ofendida com a ideia de que ele tenha desfrutado algum momento feliz na casa de Laoghaire. Sorri e tomei seu braço.

   - Tenho certeza de que elas adoravam. Mas realmente duvido que tenha lido alguma coisa para Joan que a tenha feito querer ser uma freira.

   - Sim, bem - ele disse, em dúvida. - Na realidade, eu costumava ler para elas Vidas dos santos. Oh, e O livro dos mártires, de Fox também, embora grande Parte dele tenha a ver com protestantes, e Laoghaire disse que os protestantes não podiam ser mártires porque eram horrendos hereges, e eu retruquei que ser um herege não excluía a possibilidade de ser um mártir e... - Ele riu subitamente. - Acho que essa foi a troca de palavras mais próxima de uma conversa decente que tivemos.

   - Pobre Laoghaire! - eu disse. - Mas deixando-a de lado, e por favor, vamos deixar, o que achou da situação de Joan?

   Ele sacudiu a cabeça, em dúvida.

   - Bem, talvez eu consiga subornar Laoghaire para se casar com o aleijadinho mas isso iria requerer muito dinheiro, já que ela iria pedir mais do que recebe de mim agora. Não me resta muito do ouro que trouxemos, de modo que isso teria que esperar até eu conseguir voltar a Ridge e extrair mais um pouco, levar a um banco, providenciar uma ordem de pagamento... detesto a ideia de Joan ter que passar mais um ano em casa, tentando manter aqueles assanhados nos trilhos.

   - Assanhados? - eu disse, achando graça. - Não, francamente. Você os viu se agarrando?

   - Não exatamente - ele disse, tossindo. - Mas se podia ver que havia uma atração entre eles. Venha, vamos seguir pela margem; eu vi o ninho de um maçarico-real no outro dia.

   O vento abrandara e o sol estava quente e brilhante - por enquanto. Eu podia ver nuvens espreitando no horizonte e certamente estaria chovendo de novo ao anoitecer, mas no momento era um belo dia de primavera, e nós dois estávamos dispostos a apreciá-lo. Por consentimento mútuo, deixamos de lado todos os assuntos desagradáveis e não conversamos sobre nada em particular, apenas desfrutando a companhia um do outro, até chegarmos a um pequeno outeiro recoberto de grama onde pudemos nos empoleirar e nos deliciar com o sol.

   No entanto, a mente de Jamie parecia voltar de vez em quando a Laoghaire - imagino que ele não conseguisse evitar. Não importava, na verdade, já que as comparações que ele fazia eram todas em meu benefício.

   - Se ela tivesse sido minha primeira mulher - ele disse pensativamente em determinado momento -, acho que eu teria uma opinião muito diferente das mulheres em geral.

   - Bem, você não pode definir todas as mulheres em termos de como elas são, ou de como uma delas é, na cama - objetei. - Conheci homens que, bem...

   - Homens? Frank não foi seu primeiro? - ele perguntou, surpreso.

   Coloquei uma das mãos atrás da cabeça e olhei para ele.

   - Faria diferença se não tivesse sido?

   - Bem... - Obviamente desconcertado com a possibilidade, ele hesitou em busca de uma resposta. - Suponho que... - Parou de repente e me observou, pensativamente passando um dedo pelo cavalete do nariz. Um dos cantos de sua boca torceu-se. - Não sei.

   Eu mesma não sabia. Por um lado, de certa forma gostei do choque que ele levou diante da ideia - e na minha idade eu não era nem um pouco avessa a me sentir ligeiramente libertina, ao menos em retrospecto. Por outro...

   - Bem, e quem é você para começar a atirar pedras?

   - Você foi minha primeira - ele ressaltou, com considerável aspereza.

   - Foi o que você disse - retruquei, caçoando. Para meu divertimento, ele enrubesceu.

   - Não acredita em mim? - ele disse, a voz se elevando, a despeito de si mesmo.

   - Bem, você parecia muito bem-informado para um pretenso virgem. Sem falar de... imaginativo.

   - Pelo amor de Deus, Sassenach, eu cresci em uma fazenda! É uma questão muito clara, afinal. - Olhou-me detalhadamente de cima a baixo, o olhar demorando-se em alguns pontos de interesse. - E quanto à imaginação fértil... Santo Deus, eu passara meses... anos!... imaginando! - Uma certa luminosidade tomou conta de seus olhos e eu tive a distinta impressão de que ele não parara de imaginar nos anos subsequentes, de modo algum.

   - Em que está pensando? - perguntei, intrigada.

   - Estou pensando que a água do lago está um pouco fria demais, mas se não encolhesse meu pau instantaneamente a sensação do calor quando eu mergulhasse em você... Claro - acrescentou de maneira prática, examinando-me como se avaliasse o esforço envolvido em forçar-me a entrar no lago -, não precisaríamos fazer isso dentro d'água, a menos que você quisesse; eu podia apenas afundá-la algumas vezes, arrastá-la para a margem e... meu Deus, seu traseiro fica bonito com a combinação molhada agarrada à pele. Fica completamente transparente e eu posso ver o peso de suas nádegas, como dois grandes melões, lisos e redondos...

   - Retiro o que eu disse... não quero saber o que você está pensando!

   - Você perguntou - ele ressaltou logicamente. - E posso ver o suave rego de seu traseiro também... e quando tiver você presa embaixo de mim e não puder fugir... você quer deitada de costas, Sassenach, ou dobrada para a frente, sobre os joelhos, e eu por trás? Poderia segurá-la de um jeito ou de outro e...

   - Não vou entrar num lago gelado para satisfazer seus desejos pervertidos!

   - Está bem - ele disse, rindo. Estendendo-se ao meu lado, passou a mão por trás de mim e agarrou minha nádega. - Você pode satisfazê-los aqui mesmo, se quiser, onde está quente.

 

                   OENOMANCIA

Lallybroch era uma fazenda ativa. Nada em uma fazenda pode parar por muito tempo, mesmo para chorar um morto. E foi assim que eu vim a ser a única pessoa na frente da casa quando a porta se abriu no meio da tarde.

   Ouvi o barulho e enfiei a cabeça para fora do gabinete de Ian para ver quem havia entrado. Um rapaz desconhecido estava parado no vestíbulo, olhando ao redor de forma avaliadora. Ele ouviu meus passos e se virou, fitando-me com curiosidade.

   - Quem é você? - dissemos simultaneamente, e rimos.

   - Sou Michael - ele disse, em uma voz grave e aveludada, com um leve sotaque francês. - E você deve ser a mulher-fada do tio Jamie, imagino.

   Ele me examinava com franco interesse e eu me senti, portanto, à vontade para fazer o mesmo.

   - É assim que a família me chama? - perguntei, examinando-o.

   Era esbelto, não sendo forte e corpulento como o Jovem Jamie, nem tendo a altura rija do Jovem Ian. Michael era gêmeo de Janet, mas também não se parecia nem um pouco com ela. Este era o filho que fora para a França, para se tornar sócio no negócio de vinhos de Jared Fraser, Fraser et Cie. Quando tirou a capa de viagem, vi que estava muito bem-vestido para as Highlands, embora seus trajes fossem sóbrios tanto no corte quanto na cor - mas ele usava uma fita de crepe preta no braço.

   - Isso ou a bruxa - ele disse, sorrindo ligeiramente. - Dependendo se for papai ou mamãe que estiver falando.

   - De fato - eu disse, com certa aspereza, mas não consegui deixar de sorrir também. Era um jovem tranquilo, mas muito cativante... bem, relativamente jovem. Devia ter quase trinta anos, pensei. - Meus pêsames por sua... perda - eu disse, com um sinal da cabeça indicando a fita preta. - Posso lhe perguntar...

   - Minha mulher - respondeu simplesmente. - Morreu há duas semanas. Eu teria vindo antes, não fosse por isso.

   Aquilo me deixou consideravelmente desconcertada.

   - Oh, eu... compreendo. Mas seus pais, seus irmãos e irmãs... não sabem ainda?

   Ele sacudiu a cabeça e se adiantou, de modo que a luz da janela em forma de leque acima da porta recaiu sobre seu rosto, e eu vi as olheiras sob seus olhos e as marcas de profunda exaustão que é o único consolo pela morte de um ente querido.

   - Sinto muito mesmo - eu disse e, movida por um impulso, abracei-o. Ele inclinou-se para mim, sob o mesmo impulso. Seu corpo cedeu por um instante ao meu toque e houve um momento extraordinário em que senti o profundo entorpecimento que havia dentro dele, a guerra insuspeita entre a aceitação e a negação. Ele sabia o que acontecera, o que estava acontecendo, mas não conseguia sentir nada. Ainda não. - Oh, querido - eu disse, dando um passo para trás, afastando-me daquele curto abraço. Toquei de leve em seu rosto e ele olhou fixamente para mim, piscando.

   - Minha nossa - disse brandamente. - Eles têm razão.

Uma porta abriu-se e fechou-se em cima, ouvi passos na escada - e um instante depois Lallybroch tinha despertado para a notícia de que seu último filho voltara para casa.

   O redemoinho de mulheres e crianças nos transportou para dentro da cozinha, onde os homens apareceram, de um em um ou de dois em dois, pela porta dos fundos, para abraçar Michael ou bater em seu ombro.

   Houve grandes demonstrações de solidariedade, as mesmas perguntas e respostas repetidas várias vezes - como a mulher de Michael, Lillie, morrera? Ela morrera da gripe; assim como a avó dela; não, ele mesmo não pegara a gripe; o pai dela enviava suas preces e solidariedade pelo pai de Michael - e por fim os preparativos para o banho, o jantar e colocar as crianças na cama começaram, e Michael esquivou-se do alvoroço. Eu mesma, ao sair da cozinha para pegar meu xale no gabinete, o vi ao pé da escada com Jenny, falando serenamente. Ela tocou seu rosto, exatamente como eu fizera, perguntando-lhe alguma coisa em voz baixa. Ele esboçou um sorriso, sacudiu a cabeça e, endireitando os ombros, subiu sozinho para ver Ian, que se sentia muito mal para descer para o jantar.

Somente ele entre os Murray, Michael herdara o gene para cabelos ruivos, e destacava-se entre seus irmãos, queimando como uma brasa. Mas ele herdara uma cópia exata dos meigos olhos castanhos do pai.

   - E ainda bem - Jenny dissera-lhe reservadamente - ou o pai dele provavelmente teria certeza de que eu andara me deitando com o pastor de cabras, pois Deus sabe que ele não se parece com mais ninguém da família.

   Mencionei isso a Jamie, que pareceu surpreso, mas depois sorriu.

   - Sim. Ela não sabe, porque nunca conheceu Colum Mackenzie pessoalmente.

   - Colum? Tem certeza? - Olhei por cima do ombro.

   - Oh, sim. A tonalidade é diferente, mas levando-se em conta a idade e a boa saúde... Havia um retrato de Colum em Leoch, pintado quando ele tinha uns quinze anos, antes de sua primeira queda. Lembra-se? Ficava pendurado no solário, no terceiro andar.

   Fechei os olhos, franzindo a testa em concentração, tentando reconstruir o andar térreo do castelo.

   - Me leve até lá - eu disse. Ele fez um ruído na garganta, achando graça, mas pegou minha mão, traçando uma linha delicada na palma.

   - Sim, aqui está a entrada, com a grande porta dupla. Uma vez dentro, você atravessaria o pátio, depois...

   Ele me conduziu sem vacilar ao ponto exato em minha mente e, de fato, havia um retrato lá de um jovem com um rosto fino e inteligente e uma expressão nos olhos de alguém que enxerga longe.

- Sim, acho que tem razão - eu disse, abrindo os olhos. - Se ele for tão inteligente quanto Colum... tenho que lhe contar.

   Os olhos de Jamie, escuros de reflexão, esquadrinharam meu rosto.

   - Não pudemos mudar as coisas, antes - ele disse, um tom de advertência na voz. - Provavelmente, você não pode mudar o que está por vir na França.

   - Talvez não - eu disse. - Mas o que eu sabia, o que eu lhe disse, antes de Culloden, não impediu Carlos Stuart de fazer o que fez, mas você sobreviveu.

   - Não intencionalmente - ele disse secamente.

   - Não, mas seus homens viveram também, e esse era o propósito. Assim, talvez... talvez... possa ajudar. E não posso viver em paz comigo mesma se não o fizer.

   Ele balançou a cabeça, circunspecto.

   - Está bem, então. Eu os chamarei.

A rolha se soltou com um suave pop e o rosto de Michael relaxou também. Ele cheirou a rolha escurecida, depois passou a garrafa delicadamente sob o nariz, os olhos semicerrados em apreciação.

   - Bem, o que diz, rapaz? - seu pai perguntou. - Vai nos envenenar ou não?

   Ele abriu os olhos e lançou um olhar ligeiramente ofendido ao pai.

   - Você disse que era importante, não foi? Portanto, tomaremos o negroamaro. De Apulia - acrescentou, com uma nota de satisfação, e virou-se para mim.

- Está bom, tia?

   - Sim.... an... certamente - eu disse, levemente desconcertada. - Por que me pergunta? É você o especialista em vinhos.

   Michael olhou para mim, surpreso.

   - Ian disse - começou, mas parou no meio da frase e sorriu para mim. - Minhas desculpas, tia. Devo ter entendido mal.

   Todos se viraram e olharam para o Jovem Ian, que corou sob aquele escrutínio.

   - O que foi exatamente que você disse, Ian? - o Jovem Jamie perguntou. O Jovem Ian estreitou os olhos para seu irmão, que parecia estar achando graça na situação.

   - Eu disse - o Jovem Ian retrucou, endireitando-se com ar de desafio - que tia Claire tinha algo importante a dizer a Michael e que ele devia ouvir porque ela é uma... uma...

   - Bansidhe, foi o que ele disse - Michael terminou em sua ajuda. Não riu para mim, mas um profundo humor brilhou em seus olhos e, pela primeira vez, eu vi o que Jamie quis dizer ao compará-lo a Colum Mackenzie. - Eu não sabia ao certo se era isso que ele realmente queria dizer, tia, ou se é apenas que você seja uma curandeira... ou uma bruxa.

   Jenny soltou o ar em uma arfada diante da palavra e até mesmo o Ian mais velho pestanejou. Ambos viraram-se e olharam para o Jovem Ian, que encolheu os ombros defensivamente.

   - Bem, eu não sei exatamente o que ela é - ele disse. - Mas ela é do Povo Antigo, não é, tio Jamie?

   Algo estranho pareceu atravessar o ar no aposento; um vento fresco, repentino, lamentou-se pela chaminé, fazendo o fogo abafado explodir e lançar uma chuva de fagulhas e borralhos na lareira. Jenny levantou-se com uma pequena exclamação e apagou-os com uma vassoura.

Jamie estava sentado ao meu lado; segurou minha mão e fixou em Michael um olhar firme.

   - Não há uma palavra exata para o que ela é, mas ela tem conhecimento de coisas que irão acontecer. Preste atenção ao que ela disser.

Isso fez todos pararem o que faziam e prestar atenção, e eu limpei minha garganta, profundamente embaraçada com meu papel de profeta, mas obrigada a falar, de qualquer modo. Pela primeira vez, tive uma repentina sensação de parentesco com alguns dos mais relutantes profetas do Velho Testamento. Achei que sabia exatamente como Jeremias se sentiu quando lhe disseram para ir e profetizar a destruição de Nínive. Eu só esperava ter uma recepção melhor; eu me lembrava mais ou menos que os habitantes de Nínive o haviam jogado em um poço.

   - Você deve saber mais do que eu sobre a política na França - eu disse, olhando diretamente para Michael. - Não sei lhe dizer nada em termos de acontecimentos específicos pelos próximos dez ou quinze anos. Mas depois disso... as coisas vão se deteriorar rapidamente. Haverá uma revolução. Inspirada pela que está ocorrendo agora na América, mas não igual. O rei e a rainha serão feitos prisioneiros com sua família e ambos serão decapitados.

   Uma arfada geral elevou-se da mesa, e Michael pestanejou.

   - Haverá um movimento chamado de Terror e as pessoas serão arrancadas de suas casas e denunciadas, todos os aristocratas serão mortos ou terão que fugir do país, e não será bom para os ricos de um modo geral. Jared poderá estar morto até lá, mas você não. E, se você tiver metade do talento que eu acho que tem, você será rico.

   Ele resfolegou um pouco, desdenhosamente, e houve uma sombra de risos no aposento, mas não durou muito.

   - Eles construirão uma máquina chamada guilhotina... talvez já exista, eu não sei. Foi feita originalmente como um método humanitário de execução, eu acho, mas será usado com tanta frequência que se tornará o símbolo do Terror, e da revolução em geral. Você não vai querer estar na França quando isso acontecer.

   - Eu... como você sabe disso? - Michael perguntou. Parecia pálido e um pouco beligerante. Bem, ali estava a dificuldade. Segurei a mão de Jamie com força por baixo da mesa e contei-lhes como eu sabia.

   Fez-se um silêncio mortal. Somente o Jovem Ian não parecia estarrecido - mas ele já sabia, e mais ou menos acreditava em mim. Eu podia ver que a maioria ao redor da mesa não acreditava. Ao mesmo tempo, não podiam realmente me chamar de mentirosa.

   - Isso é o que eu sei - eu disse, falando diretamente para Michael. - E é assim que eu sei. Você tem alguns anos para se preparar. Leve seu negócio para a Espanha ou Portugal. Venda e emigre para a América. Faça o que quiser, mas não fique na França por mais dez anos. É só - eu disse, abruptamente. Levantei-me e saí, deixando um rastro de absoluto silêncio.

Eu não devia ter ficado surpresa, mas fiquei. Foi no galinheiro, colhendo os ovos, que ouvi os cacarejos assustados e o bater de asas das galinhas do lado de fora, anunciando que alguém entrara em seu terreiro. Lancei um olhar fixo e glacial para a última galinha, desafiando-a a me bicar, agarrei um ovo de baixo dela e saí para ver quem era.

   Era Jenny, com um avental cheio de milho. Isso era estranho; eu sabia que as galinhas já tinham sido alimentadas, pois vira uma das filhas de Maggie fazendo isso há uma hora.

   Ela balançou a cabeça para mim e começou a jogar o milho aos punhados. Coloquei o último ovo, ainda morno, no meu cesto e esperei. Obviamente, ela queria falar comigo e arranjara uma desculpa para fazê-lo em particular. Tive uma profunda sensação de mau presságio.

   Aliás, inteiramente justificada, pois ela deixou cair o último punhado de milho socado e, com isso, toda a pretensão de casualidade.

   - Quero lhe pedir um favor - ela me disse, mas evitava me olhar diretamente e eu pude ver que o sangue latejava em sua têmpora.

   - Jenny - eu disse, sem poder impedi-la ou atendê-la. - Eu sei...

   - Queria que você curasse Ian - ela disse num rompante, erguendo os olhos para os meus. Eu estava certa sobre o que ela pretendia pedir, mas errada quanto à sua emoção. Havia preocupação e medo por trás de seus olhos, mas nenhuma timidez, nenhum constrangimento; ela tinha olhos de falcão e eu sabia que ela rasgaria minha carne como um falcão se eu lhe negasse o favor.

   - Jenny - eu disse. - Eu não posso.

   - Não pode ou não quer? - ela retrucou bruscamente.

   - Eu não posso. Pelo amor de Deus, acha que eu já não teria feito isso se tivesse o poder?

   - Talvez não, por causa do rancor que você guarda de mim. Se é isso... direi que sinto muito, e falo sinceramente, embora eu tenha feito o que fiz com a melhor das intenções.

   - Você... O quê? - Eu estava sinceramente confusa, mas isso pareceu enfurecê-la.

   - Não finja que não sabe do que quero dizer! Na última vez que você voltou e eu mandei chamar Laoghaire!

   - Oh. - Eu não havia realmente me esquecido disso, mas não me parecera importante, à luz de tudo o mais. - Está... tudo bem. Não guardo rancor por isso. Mas por que você mandou chamá-la? - perguntei, tanto por curiosidade quanto na esperança de esvaziar um pouco a intensidade de sua emoção. Eu já vira muitas pessoas à beira da exaustão, da dor e do terror, e ela certamente estava dominada pelos três.

   Ela fez um movimento impaciente, espasmódico, e pareceu que ia virar as costas e ir embora, mas não o fez.

   - Jamie não lhe falara sobre ela, nem ela sobre você. Eu podia entender o porquê, talvez, mas eu sabia que, se a trouxesse aqui, ele não teria escolha senão pegar o touro a unha e esclarecer a questão.

   - Ela quase o matou! - eu disse, começando eu mesma a ficar enfurecida. - Ela atirou nele, pelo amor de Deus!

   - Bem, eu não lhe dei a arma, dei? - ela rebateu. - Eu não pretendi que ele lhe dissesse o que quer que tenha dito a ela, nem que ela pegasse uma pistola e atirasse nele.

   - Não, mas você me disse para ir embora!

   - Por que não o faria? Você já havia partido o coração dele uma vez e eu achava que o faria de novo! E você com o descaramento de voltar aqui toda arrogante, bela e cheia de viço, quando nós tínhamos... nós tínhamos... foi isso que deu a tosse a Ian!

   - Isso...

   - Quando o levaram e o prenderam em Tolbooth. Mas você não estava aqui quando isso aconteceu! Não estava aqui quando passamos fome e congelamos de frio e tememos pelas vidas de nossos homens e de nossas crianças! Em nada disso! Você estava na França, bem a salvo!

   - Eu estava em Boston, a duzentos anos de agora, achando que Jamie estava morto - eu disse friamente. - E eu não posso ajudar Ian. - Lutei para dominar meus próprios sentimentos, liberados em um jato ao remexermos nas feridas do passado, e senti compaixão ao ver sua expressão, seu rosto bem delineado macilento e atormentado, as mãos apertadas com tanta força que as unhas penetravam na carne. - Jenny - eu disse com mais serenidade. - Por favor, acredite-me. Se eu pudesse fazer qualquer coisa por Ian, daria minha alma para fazer. Mas não sou mágica; não tenho nenhum poder. Apenas um pouco de conhecimento, e não o suficiente. Eu daria minha alma para fazer isso - repeti, com mais ênfase, inclinando-me para ela. - Mas não posso. Jenny... não posso.

   Ela me fitou em silêncio. Um silêncio que durou além do suportável, e finalmente eu passei por ela e me dirigi para a casa. Mas por trás de mim eu a ouvi sussurrar.

   - Você não tem alma nenhuma.

 

                     PURGATÓRIO II

Quando Ian se sentia bastante bem, saía para caminhar com Jamie. Às vezes, apenas até o pátio ou o celeiro, para se apoiar na cerca e dizer umas palavras às ovelhas de Jenny. As vezes, sentia-se suficientemente bem para caminhar quilômetros, o que surpreendia - e assustava - Jamie. Ainda assim, pensou, era bom caminharem lado a lado pelas charnecas, pela floresta e pelas margens do lago, sem falar muito, mas lado a lado. Não tinha importância que caminhassem devagar; sempre o fizeram, desde que Ian voltara da França com uma perna de pau.

   - Estou ansioso para ter minha perna de volta - Ian comentara descontraidamente certa vez, quando estavam sentados ao abrigo da rocha onde Fergus perdera a mão, olhando para o riacho que corria pelo sopé do monte, observando o lampejo eventual de uma truta saltando.

   - Sim, isso vai ser bom - Jamie dissera, sorrindo ligeiramente e também um pouco amargamente ao se lembrar de quando acordara depois de Culloden e achara que sua própria perna tivesse sido decepada. Ficara transtornado e tentara se consolar com o pensamento de que a teria de volta por fim, se conseguisse sair do purgatório e entrar no céu. Claro, ele também achara que estava morto, mas isso não lhe parecera tão ruim quanto a perda imaginária da perna. - Acho que não vai ter que esperar muito - disse sem constrangimento, e Ian pestanejou para ele.

   - Esperar o quê?

   - Sua perna. - Ele percebeu repentinamente que Ian não fazia nenhuma ideia do que ele andara pensando, e apressou-se a explicar. - Eu só estava pensando, você não vai passar muito tempo no purgatório, se é que vai passar algum tempo lá, portanto logo terá sua perna de volta.

   Ian abriu um largo sorriso.

   - O que o faz ter tanta certeza de que não passarei mil anos no purgatório? Eu posso ser um terrível pecador, hein?

   - Bem, sim, pode ser - Jamie admitiu. - Mas se for assim você deve ter muitos pensamentos pecaminosos, porque se você andasse fazendo alguma coisa eu saberia.

   - Oh, acha mesmo? - Ian pareceu achar graça naquilo. - Há anos você não me vê. Eu posso ter andado fazendo qualquer coisa e você nunca ficaria sabendo!

   - Claro que ficaria - Jamie disse logicamente. - Jenny me contaria. E voce não vai querer me dizer que ela não ficaria sabendo se você tivesse uma amante e seis filhos bastardos, ou que andara pelas grandes estradas assaltando as pessoas com uma máscara negra de seda?

   - Bem, provavelmente saberia - Ian admitiu. - Mas, convenhamos, meu caro, não há nada que você possa chamar de grande estrada num raio de duzentos quilômetros. E eu congelaria de frio muito antes de encontrar alguém que valesse a pena roubar em um desses caminhos. - Parou, os olhos estreitados contra o vento, contemplando as possibilidades criminosas ao seu alcance. - Eu poderia estar roubando gado - informou. - Mas existem tão poucos animais hoje em dia que toda a paróquia ficaria sabendo assim que desse falta de um deles. E duvido que eu pudesse escondê-lo entre as ovelhas de Jenny com qualquer esperança de que não fosse notado.

   Continuou pensando, o queixo na mão, depois sacudiu a cabeça relutantemente.

   - A triste verdade, Jamie, é que ninguém nas Highlands tem tido nada que valha a pena roubar nos últimos vinte anos. Não, receio que o roubo esteja definitivamente descartado. Assim como fornicação, pois Jenny já teria me matado. O que resta? Não há realmente nada para cobiçar... imagino que só restem a mentira e o assassinato, e apesar de ter encontrado um ou outro homem que teria gostado de matar, nunca o fiz. - Sacudiu a cabeça pesarosamente, e Jamie riu.

   - Oh, é mesmo? Você me disse que matou homens na França.

   - Bem, sim, matei, mas isso era uma questão de guerra... ou negócios - acrescentou justificadamente. - Eu estava sendo pago para matá-los; não fiz isso por maldade.

   - Bem, então, eu estou certo - Jamie ressaltou. - Você vai passar direto pelo purgatório como uma nuvem ascendente, pois não me lembro de uma única mentira que você tenha me contado.

   Ian sorriu com grande afeto.

   - Sim, bem, eu posso ter contado uma ou outra mentira de vez em quando, Jamie... mas não, não para você.

   Ele abaixou os olhos para a gasta perna de pau estendida à sua frente e coçou o joelho naquele lado.

   - Fico me perguntando, será que fará diferença?

   - Como poderia deixar de fazer?

   - Bem, a questão é - Ian disse, meneando o único pé de um lado para o outro -, eu ainda posso sentir o pé que perdi. Sempre fui capaz de senti-lo, desde que o perdi. Não o tempo todo, veja bem - acrescentou erguendo os olhos. - Mas eu realmente o sinto. Uma sensação muito estranha. Você sente seu dedo? - ele perguntou com curiosidade, levantando o queixo para indicar a mão direita de Jamie.

   - Bem... sim, sinto. Não o tempo todo, mas de vez em quando... e o pior é que, embora o tenha perdido, ele ainda dói um bocado, o que não me parece justo.

   Teve vontade de morder a língua depois de falar, pois ali estava Ian morrendo, e ele se queixando de que a perda de um dedo não era justa. Mas Ian chiou com uma risada e recostou-se para trás, sacudindo a cabeça.

   - Se a vida fosse justa, como seria?

   Permaneceram sentados em amistoso silêncio por algum tempo, observando o vento se mover pelo meio dos pinheiros na encosta da colina em frente. Depois, Jamie enfiou a mão no seu sporran e retirou um pacotinho embrulhado em branco. Estava um pouco surrado por ter ficado em seu sporran, mas fora cuidadosamente embrulhado e bem amarrado.

   Ian examinou o pequeno embrulho na palma de sua mão.

   - O que é?

   - Meu dedo - Jamie disse. - Eu... bem... eu pensei se você não se importaria que eu o enterrasse junto com você.

   Ian olhou para ele por um instante. Em seguida, seus ombros começaram a se sacudir.

   - Por Deus, não ria! - Jamie disse, assustado. - Não pretendia fazê-lo rir! Nossa, Jenny me matará se você tossir um pulmão para fora e morrer bem aqui!

   Ian estava tossindo, acessos de tosse entremeados de longos e laboriosos chiados de risada. Lágrimas de alegria afloraram aos seus olhos e ele pressionou os dois pulsos contra o peito, lutando para respirar. Finalmente, entretanto, a tosse cessou e ele endireitou-se devagar, fazendo um som como o de um fole. Ele fungou com força e descontraidamente cuspiu uma massa de um terrível escarlate nas pedras.

- Eu prefiro morrer aqui rindo de você do que em minha cama com seis padres rezando - ele disse. - Mas duvido que tenha a chance. - Estendeu a mão, a palma para cima. - Sim, me dê isso.

   Jamie colocou o embrulhinho branco em sua mão e Ian guardou o dedo despreocupadamente no próprio sporran.

   - Vou guardá-lo comigo até você me alcançar.

Ele desceu pelo meio das árvores e dirigiu-se para a borda da charneca que ficava embaixo da caverna. Fazia um frio cortante, com uma brisa inclemente, e a luz mudava sobre a paisagem como o adejar das asas de um pássaro conforme as nuvens deslizavam no alto, longas e efêmeras. Ele encontrara uma trilha de cervo através do urzal mais cedo pela manhã, mas a trilha desaparecera em um declive pedregoso perto de uma encosta, e agora ele retornava para casa; estava atrás da colina em que ficava a torre, este lado coberto por um pequeno bosque de pinheiros e faias. Ele não vira nenhum cervo, nem mesmo um coelho esta manhã, mas não se importava.

   Com tanta gente na casa, seria bom pegar um veado, sem dúvida - mas ele estava satisfeito só de ficar fora de casa, ainda que voltasse de mãos vazias.

   Não podia olhar para Ian sem querer fixar os olhos em seu rosto, gravá-lo na memória, incutir aquelas últimas imagens de seu cunhado na mente da maneira como se lembrava de momentos especialmente vívidos, ali guardados para serem acessados e revividos quando necessário. Mas, ao mesmo tempo, ele não queria se lembrar de Ian como ele era agora; muito melhor conservar o que tinha dele: a luz do fogo ao lado do rosto de Ian, prestes a ter um acesso de riso quando conseguiu vencer Jamie em uma queda de braço, a própria força de seus tendões vigorosos surpreendendo a ambos. As mãos longas, de juntas proeminentes, de Ian na faca de caça, o movimento rápido e o cheiro de metal quente do sangue que escorria pelos seus dedos, seus cabelos castanhos agitados pelo vento que vinha do lago, as costas estreitas, curvadas e retesadas como um arco quando se baixava para levantar um de seus filhos ou netos pequenos do chão e atirá-los, dando risadinhas, no ar.

   Foi bom terem vindo, pensou. Melhor ainda que tivessem trazido o filho de volta a tempo de conversar com seu pai como homem, reconfortar a mente de Ian e se despedir adequadamente. Mas viver na mesma casa com um irmão amado que morria embaixo do seu nariz desgastava tristemente os nervos.

   Com tantas mulheres na casa, as altercações eram inevitáveis. Com tantas mulheres Fraser, era como caminhar por uma fábrica de pólvora com uma vela acesa. Todos se esforçavam tanto para manter a calma, para contemporizar... mas isso só piorava as coisas quando uma fagulha finalmente explodia um barril de pólvora. Ele não saíra para caçar apenas porque precisavam de carne.

   Teve um pensamento solidário por Claire. Depois do pedido angustiado de Jenny, Claire passou a se esconder no quarto ou no gabinete de Ian - ele a convidara a usá-lo, e Jamie achou que isso exasperou Jenny ainda mais - escrevendo ativamente, preparando o livro que Andy Bell colocou em sua cabeça.

Ela tinha um grande poder de concentração e podia se dedicar ao trabalho por horas a fio - mas tinha que sair para comer. E estava sempre lá, o conhecimento de que Ian estava morrendo, triturando como uma pedra de moinho, devagar, mas inclemente, desgastando os nervos.

   Os nervos de Ian, também.

   Ele e Ian estavam andando - devagar - pela margem do lago há dois dias, quando Ian parou repentinamente, curvando-se sobre si mesmo como uma folha de outono. Jamie apressou-se a segurá-lo pelo braço antes que ele caísse, e ajudou-o a sentar-se no chão, encontrando uma pedra grande para ele apoiar as costas, puxando o xale bem alto nos ombros debilitados, procurando alguma coisa, qualquer coisa que pudesse fazer.

   - O que foi, a charaid? - ele disse, ansioso, agachando-se junto ao seu cunhado, seu amigo.

   Ian tossia, quase silenciosamente, o corpo sacudindo-se com o esforço. Finalmente, o espasmo amainou e ele conseguiu inspirar, o rosto brilhando com o acesso febril da doença, aquela terrível ilusão de saúde.

   - Dói muito, Jamie. - As palavras foram ditas com simplicidade, mas as pálpebras de Ian estavam cerradas, como se não quisesse olhar para Jamie enquanto falava.

   - Eu o carregarei de volta. Talvez a gente possa lhe dar um pouco de láudano e...

   Ian abanou a mão, reprimindo suas ansiosas promessas. Respirou superficialmente por um instante antes de sacudir a cabeça.

   - Sim, parece que tem uma faca no meu peito - ele disse por fim. - Mas não é isso o que quero dizer. Não me importo muito em morrer... mas, Cristo, a demora está me matando. - Ele abriu os olhos, então, fitando os de Jamie, e riu tão silenciosamente quanto tossira, um débil sopro de som enquanto seu corpo se sacudia.

   "Está doendo muito, Dougal. Preferia que acabasse logo." As palavras vieram à sua mente tão claramente como se tivessem sido ditas agora diante dele, em vez de trinta anos antes em uma igreja escura, arruinada por tiros de canhão. Rupert dissera isso, morrendo devagar. "Você é meu chefe", ele dissera a Dougal, implorando. "É seu dever." E Dougal Mackenzie fizera o que o amor e o dever exigiam.

   Ele segurava a mão de Ian, com força, tentando incutir-lhe alguma noção de bem-estar de sua própria palma calosa para dentro da pele fina e acinzentada de Ian. Seu polegar deslizou para cima, pressionando o pulso onde ela vira Claire apertar, buscando a verdade da saúde de um paciente.

   Sentiu a pele ceder, deslizando pelos ossos do pulso de Ian. Pensou de repente nos votos de sangue que fizera em seu casamento, a picada da lâmina e o pulso frio de Claire pressionado contra o dele e o sangue escorregadio entre eles. O pulso de Ian estava frio, também, mas não de medo.

   Olhou para seu próprio pulso, mas não havia nenhum sinal de cicatriz, de votos ou grilhões; esses ferimentos eram passageiros, curados há muito tempo.

   - Lembra-se de quando fizemos um pacto de sangue? - Os olhos de Ian estavam fechados, mas ele sorriu. A mão de Jamie apertou-se no pulso fino, um pouco espantado, mas não realmente surpreso que Ian tivesse entrado em sua mente e captado o eco de seus pensamentos.

   - Sim, claro. - Não pôde deixar de esboçar um sorriso também, um sorriso doloroso.

   Tinham oito anos de idade, os dois. A mãe de Jamie e seu filho haviam morrido no dia anterior. A casa estivera cheia de gente, seu pai aturdido com o choque. Eles saíram furtivamente, ele e Ian, escalaram com dificuldade a colina atrás da casa, tentando não olhar para a sepultura recém-cavada junto à torre. Entraram na floresta, sentindo-se a salvo sob as árvores.

   Diminuíram o passo, então, vagando sem rumo, pararam finalmente no topo da alta colina, onde uma antiga construção de pedra que eles chamavam de forte desmoronara há muito tempo. Ficaram sentados nas ruínas, enrolados em seus xales para se protegerem do vento, sem falar muito.

   - Pensei que ia ter um novo irmão - ele dissera de repente. - Mas não. Vamos continuar somente Jenny e eu.

   Nos anos seguintes, ele conseguira esquecer aquela pequena dor, a perda de seu esperado irmão, o menino que lhe poderia devolver um pouco de seu amor pelo seu irmão mais velho, Willie, que morrera de sarampo. Ele alimeentara essa dor por algum tempo, um frágil escudo contra a enormidade de saber que sua mãe havia desaparecido para sempre.

   Ian ficara parado, pensando, por um instante, em seguida enfiou a mão no seu sporran e retirou dali a faquinha que seu pai lhe dera no último aniversário.

   - Eu serei seu irmão - ele dissera, de modo prático, e fez um corte no polegar, chiando um pouco entre os dentes.

   Ele entregara a faca a Jamie, que se cortou também, surpreso de doer tanto, e em seguida eles pressionaram os polegares juntos e juraram ser irmãos para sempre. E foram.

   Jamie respirou fundo, preparando-se para a aproximação da morte, o negro fim.

   - Ian. Quer que eu... - As pálpebras de Ian ergueram-se, o meigo castanho de seu olhar aguçando-se à claridade diante do que ouvira na rouquidão da voz de Jamie. Jamie clareou a garganta e olhou para longe, depois retornou o olhar para Ian, sentindo obscuramente que seria covardia desviar o olhar. - Você quer que eu o apresse? - perguntou, muito brandamente. No mesmo instante em que falava, a parte fria de sua mente buscou a maneira. Não com uma lâmina, não; era rápido e limpo, uma partida adequada para um homem, mas causaria uma grande dor a seu irmão e aos filhos; nem ele, nem Ian tinham o direito de deixar uma lembrança final manchada de sangue.

   O aperto dos dedos de Ian não aumentou, nem diminuiu, mas de repente Jamie sentiu o pulso que procurara em vão, uma pulsação fraca, constante, contra sua própria palma.

   Ele não desviara os olhos, mas eles se turvaram, e ele abaixou a cabeça para esconder as lágrimas.

   Claire... ela saberia como, mas não lhe podia pedir para fazer isso. Seu próprio juramento a impedia.

- Não - Ian disse. - Ainda não, pelo menos. - Ele sorrira, os olhos enternecidos. - Mas fico contente de saber que você fará isso se eu precisar, mo brathair.

   Um leve movimento estancou seus passos e o arrancou instantaneamente de seus pensamentos.

Ele não o vira, apesar de estar à vista. Mas o vento soprava para Jamie e o cervo estava ocupado, mordiscando entre as crostas de urzes secas, à cata de pequenos tufos de capim e plantas mais macias da charneca nos vãos. Ele esperou, ouvindo o vento. Somente a cabeça e as espáduas do animal eram visíveis atrás de uma moita, embora ele achasse, pelo tamanho do pescoço, que se tratasse de um macho.

   Esperou, sentindo a emoção da caça infiltrar-se nele outra vez. Caçar um cervo vermelho na charneca era diferente de caçar nas florestas da Carolina do Norte. Uma operação muito mais lenta. O veado moveu-se um pouco de trás da moita, concentrado em seu alimento, e ele começou, gradual e imperceptivelmente, a erguer o rifle. Ele mandara um armeiro em Edimburgo endireitar o cano de seu rifle, mas não o usara desde então; esperava que estivesse com a mira certeira.

   Não o usava desde que acertara o hessiano com ele na batalha. Teve uma lembrança vívida e repentina de Claire deixando cair a bala deformada que matara Simon no prato de louça, sentiu o tinido em seu sangue.

   Mais um passo, dois; o cervo encontrara algo suculento e arrancava e mastigava com grande concentração. Como a finalização de um único movimento, a boca da arma fixou-se delicadamente em seu alvo. Um grande macho e a não mais de cem metros. Podia sentir o grande e sólido coração, bombeando sangue sob suas próprias costelas, pulsando nas pontas de seus dedos sobre o metal. A coronha encaixou-se com força na cavidade de seu ombro.

   Ele começava a apertar o gatilho quando ouviu os gritos da floresta atrás dele. A arma disparou, o tiro partiu descontroladamente, o cervo desapareceu com um estrépito de urzes se quebrando e os gritos cessaram.

   Ele virou-se e correu para dentro da floresta, na direção de onde os gritos haviam partido, o coração batendo com força. Quem? Uma mulher, mas quem?

   Encontrou Jenny sem muita dificuldade, paralisada na pequena clareira onde ele, ela e Ian costumavam vir quando eram pequenos, para compartilhar pequenas guloseimas e brincar de cavaleiros e soldados.

   Ela fora um bom soldado.

   Talvez ela estivesse esperando por ele, tendo ouvido sua arma. Talvez simplesmente não conseguisse se mover. Permanecia empertigada, mas com o olhar vazio, vendo-o se aproximar, o xale enrolado à sua volta como uma armadura enferrujada.

   - Você está bem, mana? - ele perguntou, colocando o rifle junto ao grande pinheiro onde ela costumava ler para ele e Ian nas longas noites de verão quando o sol mal se escondia do crepúsculo à aurora.

   - Sim, bem - ela disse, a voz sem entonação.

   - Bem, então - ele disse, suspirando. Aproximando-se, insistiu em segurar suas mãos; ela não estendeu as mãos para ele, mas não opôs resistência. - Ouvi você gritar.

   - Não queria que ninguém escutasse.

   - Claro que não. - Ele hesitou, querendo perguntar outra vez se ela estava bem, mas seria tolice. Sabia muito bem qual era o problema e por que ela precisava ir ali e gritar na floresta, onde ninguém a ouviria, nem perguntaria estupidamente se ela estava bem. - Quer que eu vá embora? - ele perguntou, em vez disso, e ela fez uma careta, tentando libertar as mãos, mas ele não as soltou.

   - Não. Que diferença faz? Que diferença qualquer coisa faz? - Ele ouviu o tom de histeria em sua voz.

   - Ao menos... trouxemos o garoto para casa a tempo - ele disse, por falta de outra coisa a lhe oferecer.

   - Sim, você trouxe - ela disse, com um esforço para se controlar que se esfrangalhava como seda velha. - E trouxe sua mulher de volta também.

   - Me censura por ter trazido minha mulher? - ele disse, chocado. - Ora pelo amor de Deus? Você não deveria estar feliz por ela ter voltado? Ou você... - Reprimiu as palavras seguintes rapidamente; estivera a ponto de perguntar se ela tinha raiva por ele ainda ter sua esposa quando ela estava prestes a perder o marido, mas não podia dizer isso.

   Mas não fora absolutamente isso que Jenny quis dizer.

   - Sim, ela voltou. Mas para quê? - berrou. - Para que serve uma feiticeira de coração frio demais para erguer um dedo sequer para salvar Ian?

   Ele ficou tão espantado com isso que não conseguiu fazer nada além de repetir, aturdido:

   - Coração frio? Claire?

   - Eu pedi a ela e ela se negou a me atender. - Os olhos de sua irmã estavam secos, tresloucados de dor e ansiedade. - Não pode convencê-la a ajudar, Jamie?

   A chama da vida em sua irmã, sempre brilhante e pulsante, agora estremecia como relâmpagos em cadeia. Era melhor que ela desabafasse com ele, pensou. Ela não poderia feri-lo.

   - Mopiuthar, ela o curaria se pudesse - ele disse, o mais delicadamente possível, sem soltá-la. - Ela me contou que você lhe pediu... e chorou ao contar. Ela ama Ian tanto...

   - Não ouse me dizer que ela ama meu marido tanto quanto eu! - gritou, arrancando as mãos das suas com tal violência que ele teve certeza de que ela pretendia esbofeteá-lo. Ela o fez, com tanta força que seu olho lacrimejou daquele lado.

   - Eu não ia dizer isso de forma alguma - ele disse, mantendo a calma. Tocou cuidadosamente o lado de seu rosto. - Eu ia lhe dizer que ela o ama tanto...

   Pretendera dizer "quanto a mim", mas não chegou tão longe. Ela o chutou na canela com tanta força que fez sua perna vergar, e ele cambaleou, agitando os braços para manter o equilíbrio, o que lhe deu a oportunidade de se virar e descer pela encosta como uma bruxa numa vassoura, as saias e os xales agitando-se ao seu redor.

 

                   ARRANJOS

Limpeza de ferimentos, escrevi cuidadosamente, e parei, arrumando minhas ideias. Água fervente, panos limpos, remoção de detritos. Utilização de larvas em carne morta (com um aviso referente às larvas das moscas-varejeiras mais comuns? Não, sem sentido; ninguém seria capaz de diferenciar sem uma lente de aumento). A costura de ferimentos (esterilização de agulha e linha).

Emplastros úteis. Deveria colocar uma seção específica sobre a produção e uso da penicilina?

   Tamborilei a pena no mata-borrão, formando estrelinhas de tinta, mas finalmente decidi não incluir. O livro pretendia ser um guia útil para a pessoa comum. A pessoa comum não estava preparada para o penoso processo de fazer penicilina, muito menos ter um aparato de injeção - embora eu tivesse considerado por um instante a seringa de pênis que o dr. Fentiman me mostrara, com uma leve pontada de humor.

Isso, por sua vez, me fez pensar - rápida, mas vividamente - em David Rawlings e seu jugum penis. Ele próprio o usaria?, perguntei-me, mas apressadamente afastei a visão evocada pelo pensamento e folheei várias páginas, à procura de minha lista de tópicos principais.

   Masturbação, escrevi pensativamente. Se alguns médicos discutiram o assunto a uma luz negativa - e sem dúvida o faziam -, imagino que não houvesse nenhuma razão para que eu não oferecesse a visão oposta - discretamente.

   Alguns momentos depois, vi que eu continuava fazendo estrelinhas de tinta, completamente absorta no problema de falar discretamente sobre os benefícios da masturbação. Meu Deus, e se eu dissesse com todas as letras que as mulheres costumavam fazer isso também?

   - Queimariam a edição inteira, e provavelmente a gráfica de Andy Bell também - disse em voz alta.

   Ouvi alguém inspirar profundamente e ergui os olhos, deparando-me com uma mulher parada na porta do gabinete.

   - Oh, está procurando por Ian Murray? - eu disse, empurrando a cadeira para trás. - Ele...

   - Não, é você quem eu estou procurando. - Havia um tom muito estranho em sua voz e eu me levantei, sentindo-me repentinamente na defensiva, sem saber por quê.

   - Ah - disse. - E você é...?

   Ela deu um passo à frente, saindo do corredor às escuras e entrando na luz.

   - Você me conhece, não? - Sua boca torceu-se em um sorriso rancoroso. - Laoghaire Mackenzie... Fraser - acrescentou, quase relutantemente.

   - Oh - exclamei.

   Eu a teria reconhecido imediatamente, pensei, se não fosse pela incongruência do contexto. Este era o último lugar em que eu esperaria encontrá-la e o fato de ela estar ali... A lembrança do que acontecera na última vez em que ela viera a Lallybroch me fez disfarçadamente pegar o abridor de cartas de cima da escrivaninha.

   - Estava procurando por mim - repeti cautelosamente. - Não Jamie?

   Ela fez um gesto de desdém, afastando a ideia de Jamie, e enfiou a mão no bolso à sua cintura, retirando dali uma carta dobrada.

   - Vim lhe pedir um favor - ela disse, e pela primeira vez ouvi o tremor em sua voz. - Leia isto. Por favor - acrescentou, e pressionou os lábios com força.

   Olhei desconfiadamente para seu bolso, mas não estava volumoso; se tivesse trazido uma pistola, não a carregava ali. Peguei a carta e indiquei-lhe uma cadeira do outro lado da escrivaninha. Se ela resolvesse me atacar, eu perceberia.

   Ainda assim, eu não estava realmente com medo dela. Ela estava transtornada; isso era evidente. Mas muito controlada.

   Abri a carta e, com uma olhada ocasional para me certificar de que ela permanecia onde estava, comecei a ler.

15 de fevereiro de 1778 Filadélfia

   - Filadélfia? - exclamei, surpresa, erguendo os olhos para Laoghaire. Ela balançou a cabeça.

   - Eles foram para lá no verão do ano passado, o senhor achando mais seguro. - Seus lábios torceram um pouco. - Dois meses depois, o exército britânico entrou marchando na cidade e eles estão lá desde então.

   "O senhor", imaginei, era Fergus. Notei o uso da palavra com interesse; evidentemente, Laoghaire se reconciliara com o marido de sua filha mais velha, pois usou a palavra sem ironia.

   Querida mamãe

   Preciso lhe pedir para fazer uma coisa por amor a mim e aos meus filhos. O problema é com Henri-Christian. Por causa da peculiaridade de sua forma física, ele sempre teve algum problema em respirar, particularmente quando gripado, e tem roncado como um golfinho desde que nasceu. Agora, ele começou a parar completamente de respirar quando dorme, se não estiver recostado em almofadas, quase sentado. Mamãe Claire examinou sua garganta quando ela e papai nos visitaram em New Berna e disse na época que suas adenóides - sendo isso alguma coisa em sua garganta - eram muito grandes e poderiam causar problemas no futuro. (Germain também tem isso e dorme com a boca aberta a maior parte do tempo, mas não é um risco para ele como é para Henri-Christian.)

   Sinto um terror mortal de que Henri-Christian pare de respirar uma noite dessas e ninguém perceba a tempo de salvá-lo. Nós nos revezamos ao lado de sua cama, para manter sua cabeça na posição certa e acordá-lo quando ele parar de respirar, mas não sei por quanto tempo conseguiremos manter essa vigília. Fergus está exausto com o trabalho da loja e eu com o trabalho da casa (ajudo na loja, também, e naturalmente Germain também. As meninas são uma grande ajuda para mim na casa, que Deus as abençoe, e estão sempre dispostas a cuidar de seu irmãozinho - mas não podemos deixá-las acordadas à noite, vigiando-o sozinhas).

   Mandei um médico examinar Henri-Christian. Ele concorda que as adenóides são provavelmente as responsáveis pela obstrução da respiração. Ele sangrou o menino e me deu um remédio para fazê-las encolher, mas de nada adiantou e somente fazia Henri-Christian chorar e vomitar. Mamãe Claire - perdoe-me por falar dela com você, pois sei dos seus sentimentos, mas é necessário - disse que talvez fosse preciso remover as amídalas e adenóides de Henri-Christian em algum momento, para facilitar sua respiração, e obviamente esse momento chegou. Ela fez isso para os gêmeos Beardsley algum tempo atrás, em Ridge, e eu não confiaria em mais ninguém para tentar tal operação em Henri-Christian.

   Poderia ir vê-la, mamãe? Creio que ela deva estar em Lallybroch agora e eu vou escrever para ela, suplicando-lhe que venha à Filadélfia o mais rápido possível. Mas temo minha inabilidade de comunicar o horror de nossa situação.

   Como você me ama, mamãe, por favor, procure-a e peça-lhe para vir o mais rápido possível.

Sua afetuosa filha, Marsali

   Abaixei a carta. Temo minha inabilidade de comunicar o horror de nossa situação. Não, ela fizera isso muito bem.

   Apneia do sono, é como chamavam a tendência a parar de respirar repentinamente quando dormindo. Era comum - e muito mais comum em alguns tipos de nanismo, onde as vias respiratórias eram prejudicadas pelas anormalidades do esqueleto. A maioria das pessoas que sofriam disso acordava se debatendo e roncando antes de voltar a respirar normalmente. Mas as adenóides e amídalas aumentadas, obstruindo sua garganta - provavelmente um problema hereditário, pensei distraidamente, pois eu as notara em Germain e, com menor intensidade, nas meninas também agravavam a dificuldade, já que, mesmo que o reflexo que faz com que uma pessoa com falta de oxigênio para respirar consiga retomar a respiração automaticamente, Henri-Christian provavelmente não conseguiria inspirar com a rapidez e a profundidade que o acordaria.

   A visão de Marsali e Fergus - e provavelmente Germain - revezando-se em uma vigília na casa escura, observando o menino respirar, talvez eles mesmos cambaleando de sono no frio e no silêncio, despertando abruptamente, aterrorizados de que ele tivesse mudado de posição em seu sono e parado de respirar... Um nó de temor se formara sob minhas costelas ao ler a carta.

   Laoghaire me observava, os olhos azuis fixos diretamente em mim por baixo da touca. Ao menos desta vez, a raiva, a histeria e a suspeita com que sempre me observava não estavam presentes.

- Se você for - ela disse, e engoliu em seco eu desistirei do dinheiro. Olhei fixamente para ela.

   - Acha que eu... - comecei a dizer, incrédula, mas parei. Bem, sim, ela obviamente acreditava que eu iria querer ser subornada. Ela achava que eu abandonara Jamie depois de Culloden, retornando somente quando ele se tornara próspero outra vez. Lutei com a ânsia de tentar dizer a ela... mas de nada adiantava, e era totalmente irrelevante agora. A situação era clara e cortante como caco de vidro.

   Ela inclinou-se para frente abruptamente, as mãos sobre a escrivaninha, pressionadas com tanta força que suas unhas ficaram brancas.

   - Por favor - ela disse. - Porfavor.

   Eu tinha consciência de impulsos fortes e conflitantes: de um lado, esbofeteá-la e, de outro, colocar a mão solidariamente sobre a dela. Lutei contra ambos e me forcei a pensar com calma por um instante.

   Eu iria, é claro; eu teria que ir. Não tinha nada a ver com Laoghaire ou com o que havia entre nós. Se eu não fosse e Henri-Christian morresse - ele poderia de fato eu jamais me perdoaria. Se chegasse a tempo, eu poderia salvá-lo; ninguém mais poderia. Era simples assim.

   Meu coração esmoreceu à ideia de deixar Lallybroch agora. Que horror; como eu poderia, sabendo que deixava Ian pela última vez, talvez deixando todos eles e o próprio lugar pela última vez. Mas até mesmo enquanto esses pensamentos passavam por minha cabeça a parte de minha mente que era médica já havia apreendido a necessidade de ir e começava a planejar a maneira mais rápida de voltar para a Filadélfia, considerando como eu poderia adquirir o que eu precisava quando chegasse lá, as possíveis obstruções e complicações que poderiam surgir - toda a análise prática de como eu deveria fazer o que tão repentinamente me havia sido solicitado.

   Enquanto minha mente saltava entre essas questões, a implacável lógica dominando o choque, subjugando a emoção, comecei a ver que este repentino desastre podia ter outros aspectos.

   Laoghaire esperava, os olhos fixos em mim, a boca firme, instando-me a concordar.

   - Está bem - eu disse, recostando-me em minha cadeira e devolvendo-lhe o mesmo olhar direto. - Vamos chegar a um acordo, então?

- Assim - eu disse, os olhos fixos no voo de uma garça cinzenta que atravessava o lago -, fizemos um trato. Eu vou para a Filadélfia o mais rápido possível para cuidar de Henri-Christian. Ela se casará com Joey, desistirá da pensão... e dará sua permissão para que Joan vá para um convento. Embora eu ache melhor nós colocarmos isso por escrito, por via das dúvidas.

   Jamie fitava-me espantado e mudo. Estávamos sentados no capim alto e áspero à margem do lago, onde eu o levara para relatar o que acontecera - e o que iria acontecer.

   - Ela, Laoghaire, manteve o dote de Joan intacto; Joan o receberá, para viajar e para sua entrada no convento - acrescentei. Respirei fundo, esperando manter a voz firme. - Estou pensando que... bem, Michael partirá em poucos dias. Joan e eu poderíamos ir com ele para a França; posso partir de lá em um navio francês e ele poderia levá-la em segurança ao seu convento.

   - Você - ele começou, e eu estendi o braço, para apertar a mão dele, para impedi-lo de falar.

   - Você não pode ir agora, Jamie - eu disse, suavemente. - Sei que não pode.

   Ele fechou os olhos com uma careta e sua mão apertou a minha em uma instintiva negação do óbvio. Agarrei seus dedos com igual força, apesar do fato de estar segurando sua sensível mão direita. A ideia de ficar longe dele por menor que fosse o tempo ou o espaço - quanto mais o oceano Atlântico e os meses que se passariam antes que pudéssemos nos reencontrar - fez um buraco no meu estômago e me encheu de desolação e de uma vaga sensação de terror.

   Ele iria comigo se eu lhe pedisse - se eu sequer lhe desse espaço para dúvida sobre o que ele devia fazer. Eu não podia permitir.

   Ele precisava tanto disso. Precisava de qualquer breve período de tempo que restasse a Ian; precisava ainda mais estar ali por Jenny quando Ian morresse, pois ele podia ser um conforto para ela que nem mesmo seus filhos poderiam ser. E se ele tivera necessidade de ir ver Laoghaire por culpa do fracasso de seu casamento - quanto mais agudo seria seu sentimento de culpa em abandonar sua irmã, mais uma vez, quando ela mais precisava.

   - Você não pode ir embora - sussurrei, ansiosamente. - Eu sei, Jamie.

Ele abriu os olhos e olhou para mim, um olhar angustiado.

   - Não posso deixar você ir. Não sem mim.

   - Não... vai demorar muito - eu disse, forçando as palavras através do nó que se formara em minha garganta - um nó que reconhecia tanto a minha tristeza em separar-me dele quanto a dor maior pelo motivo pelo qual nossa separação não duraria muito. - Afinal, eu já fui mais longe sozinha - eu disse, tentando sorrir. Sua boca moveu-se, tentando responder, mas a inquietação em seus olhos não mudou.

   Ergui sua mão aleijada aos meus lábios e a beijei, pressionei minha face contra ela, a cabeça virada para o outro lado - mas uma lágrima escorreu pelo meu rosto e eu percebi que ele sentiu a umidade em sua mão, pois estendeu a outra mão para mim e puxou-me para ele, e ficamos sentados, pressionados um contra o outro, por um longo, longo tempo, ouvindo o vento que agitava o capim e encrespava a água. A garça havia pousado no outro lado do lago, parada em uma das pernas, esperando pacientemente entre as pequenas ondulações na superfície da água.

   - Vamos precisar de um advogado - eu disse, finalmente, sem me mover. - Ned Gowan ainda está vivo?

Para minha grande surpresa, Ned Gowan ainda estava vivo. Que idade ele poderia ter?, me perguntei, fitando-o. Oitenta e cinco? Noventa? Estava encarquilhado como um saco de papel amassado e sem nenhum dente, mas ainda lampeiro como um grilo e com sua sede de sangue intacta.

   Ele havia redigido o acordo de anulação do casamento entre Jamie e Laoghaire, alegremente dispondo os pagamentos anuais a Laoghaire, os dotes de Marsali e Joan. Agora, sentava-se com a mesma alegria para desfazer tudo isso.

   - Agora, a questão do dote da srta. Joan - ele disse, pensativamente lambendo a ponta de sua pena. - O senhor especificou, no documento original, que essa quantia, devo dizer, uma quantia muito generosa, deveria ser destinada à jovem na ocasião de seu casamento e passar a ser de sua única propriedade dali em diante, sem passar para seu marido.

   - Sim, isso mesmo - Jamie disse, sem muita paciência. Ele havia me dito em particular que preferia ser preso a uma estaca, nu, em um formigueiro do que ter que lidar com um advogado por mais de cinco minutos, e estávamos lidando com as complicações deste acordo por mais de uma hora. - E então?

   - Bem, ela não está se casando - o sr. Gowan explicou, com a indulgência devida a alguém não muito inteligente, mas ainda assim merecedor de respeito, pelo fato de ser ele quem estava pagando os honorários do advogado. - A questão se ela pode receber o dote sob esse contrato...

   - Ela está se casando - Jamie disse. - Está se tornando Noiva de Cristo, seu protestante ignorante.

   Olhei para Ned um pouco surpresa, não tendo nunca ouvido falar que ele era protestante, mas ele não contestou a afirmação. O sr. Gowan, perspicaz como sempre, notou minha surpresa e sorriu para mim, os olhos piscando.

   - Não tenho nenhuma religião, a não ser a lei, senhora - ele disse. - A observância de uma forma de ritual sobre outra é irrelevante; Deus para mim é a personificação da Justiça, e eu O sirvo neste aspecto.

   Jamie fez um ruído escocês no fundo da garganta em resposta a essa declaração.

   - Sim, e isso lhe serve muito bem, que seus clientes aqui jamais percebam que não é um papista.

   Os olhinhos escuros do sr. Gowan não pararam de piscar quando os voltou para Jamie.

   - Tenho certeza de que não sugere algo tão desprezível quanto chantagem, não é, senhor? Ora, hesito até mesmo em mencionar essa nobre instituição escocesa, conhecendo como conheço a nobreza de seu caráter... e o fato de que não vai conseguir este maldito contrato sem mim.

   Jamie suspirou profundamente e acomodou-se na cadeira.

   - Sim, ande logo com isso. O que tem o dote, então?

   - Ah. - O sr. Gowan voltou-se prontamente para a questão em pauta. - Conversei com a jovem a respeito de seus próprios desejos no assunto. Como autor original do contrato, você pode, com o consentimento dos outros signatários, que, pelo que sei, foi concedido, alterar os termos do documento original. Já que, como eu disse, a srta. Joan não pretende se casar, você quer rescindir o dote completamente, manter os termos existentes ou alterá-los de alguma forma?

   - Quero dar o dinheiro a Joan - Jamie disse, com um ar de alívio ao ser finalmente colocado diante de uma pergunta concreta.

   - Absolutamente? - o sr. Gowan perguntou, a pena parada no ar. - A palaVra "absolutamente" tendo um significado na lei diferente de...

   - Você disse que conversou com Joan. O que diabos ela quer, então?

   O sr. Gowan pareceu satisfeito, como sempre acontecia quando percebia uma nova complicação.

   - Ela quer aceitar apenas uma pequena parte do dote original, para custear sua recepção em um convento; tal doação é costumeira, acredito.

   - É mesmo? - Jamie ergueu uma das sobrancelhas. - E quanto ao resto?

   - Ela quer que o resíduo seja dado a sua mãe, Laoghaire Mackenzie Fraser, mas não dado "absolutamente", se me compreende. Dado com condições.

   Jamie e eu trocamos olhares.

   - Quais condições? - ele perguntou cautelosamente.

   O sr. Gowan ergueu a mão ressequida, dobrando os dedos enquanto enumerava as condições.

   - Primeira, que o dinheiro não seja liberado até que haja um documento oficial do casamento de Laoghaire Mackenzie Fraser e Joseph Boswell Murray registrado na paróquia de Broch Mordha, testemunhado e atestado por um padre. Segunda, que um contrato seja assinado, reservando e garantindo a propriedade de Balriggan e todos os seus bens a Laoghaire Mackenzie Fraser, como proprietária exclusiva, até sua morte, sendo depois destinada como a supracitada Laoghaire Mackenzie Fraser assim dispuser em um testamento oficial. Terceira, o dinheiro não deverá ser dado "absolutamente", mas retido por um curador e desembolsado na quantia de vinte libras por ano, pagas em conjunto à supramencionada Laoghaire Mackenzie Fraser e a Joseph Boswell Murray. Quarta, que esses pagamentos anuais sejam usados exclusivamente em questões relativas à manutenção e melhoria da propriedade de Balriggan. Quinta, o pagamento do desembolso de cada ano deverá ser contingenciado ao recibo da documentação adequada relativa ao uso do desembolso do ano anterior.

   Ele dobrou o polegar e abaixou o punho fechado, em seguida ergueu um dedo da outra mão.

   - Sexta, e última, que James Alexander Gordon Fraser Murray, de Lallybroch, seja o curador desses fundos. Concorda com as condições, senhor?

   - Concordo - Jamie disse com firmeza, levantando-se. - Faça dessa maneira, sr. Gowan, por favor. E agora, se ninguém se importar, vou me afastar e tomar uma dose de uísque. Provavelmente duas.

   O sr. Gowan colocou a tampa em seu tinteiro, arrumou suas anotações em uma pilha caprichada e igualmente se levantou, embora mais devagar.

   - Vou acompanhá-lo nesta dose, Jamie. Quero saber sobre esta sua guerra na América. Parece uma extraordinária aventura!

 

                     CONTANDO CARNEIROS

Conforme o tempo se escoava, Ian achava cada vez mais difícil adormecer. A necessidade de partir, encontrar Rachel, ardia dentro dele de tal forma que ele sentia carvão em brasa na boca do estômago o tempo inteiro. Tia Claire chamava isso de "azia". Dizia que era causada por engolir a comida sem mastigar adequadamente, mas não era - ele mal conseguia comer.

   Passava os dias com seu pai, a maior parte do tempo possível. Sentado no canto do aposento onde recebia os colonos, observando seu pai e seu irmão mais velho tratar dos negócios de Lallybroch, não conseguia compreender como seria possível levantar-se e ir embora, deixando-o para trás. Para sempre.

   Durante o dia, havia coisas a fazer, pessoas a visitar, conversar e a terra a ser percorrida, a beleza impressionante da propriedade um bálsamo quando seus sentimentos se tornavam quase insuportáveis. A noite, entretanto, a casa ficava silenciosa, o silêncio rangente, pontuado pela tosse distante de seu pai e a respiração pesada de seus dois sobrinhos mais novos ao seu lado no mesmo quarto. Começava a sentir a própria casa respirar à sua volta, com uma respiração pesada e entrecortada após a outra, e a sentir o peso dessa respiração no próprio peito; sentava-se na cama, então, tragando grandes goles de ar, apenas para se certificar de que conseguia respirar. E, por fim, deslizava para fora da cama, descia as escadas furtivamente com as botas nas mãos e saía pela porta da cozinha para caminhar pela noite sob estrelas ou nuvens, o vento límpido abanando as brasas de seu coração, atiçando as chamas, até ele poder encontrar suas lágrimas e a paz para vertê-las.

   Certa noite ele encontrou a porta já destravada. Saiu cautelosamente, olhando ao redor, mas não viu ninguém. Provavelmente, o Jovem Jamie indo ao celeiro; uma das duas vacas iria dar cria a qualquer momento. Talvez ele devesse ir ajudar... mas a queimação sob suas costelas era dolorosa, precisava caminhar um pouco primeiro. Jamie teria ido buscá-lo, de qualquer forma, se achasse que precisava de ajuda.

   Afastou-se da casa e das suas construções anexas e começou a subir a colina, passando pelo cercado das ovelhas e carneiros, sonolentamente amontoados, pálidos sob o luar, de vez em quando emitindo um suave, repentino, balido, como se espantado com algum sonho de animal.

   Tal sonho adquiriu forma diante dele repentinamente, uma figura escura movendo-se contra a cerca, e ele emitiu um breve grito que fez com que os animais mais próximos se assustassem e resmungassem em um coro de balidos abafados.

   - Quietos, a bhailach - sua mãe disse baixinho. - Desperte os outros e acordará os mortos.

   Podia divisá-la agora, uma figura pequena, magra, com os cabelos soltos formando um volume macio contra a brancura de sua combinação.

   - Por falar em mortos - ele disse, irritado, forçando o coração a descer de sua garganta. - Pensei que fosse um fantasma. O que está fazendo aqui fora mamãe?

   - Contando carneiros - ela disse, um toque de humor na voz. - É o que deve fazer quando não consegue dormir, não é?

   - Sim. - Ele se aproximou e ficou ao seu lado, apoiado na cerca. - Funciona?

   - As vezes.

   Ficaram imóveis por alguns instantes, observando os animais se remexerem e se acomodarem outra vez. Exalavam um cheiro imundo e adocicado, de capim mastigado e fezes e lã engordurada, e Ian achou que era estranhamente reconfortante apenas estar ali com eles.

   - Funciona contá-los, quando você já sabe quantos são? - ele perguntou, após um breve silêncio. Sua mãe sacudiu a cabeça.

   - Não, eu fico repetindo seus nomes. É como rezar o rosário, só que você não sente necessidade de pedir. Pedir cansa.

   Principalmente quando você sabe que a resposta será não, Ian pensou, e movido por um impulso repentino passou o braço pelos seus ombros. Ela fez um pequeno ruído de divertida surpresa, mas depois relaxou, apoiando a cabeça contra seu peito. Ele podia sentir seus ossos pequenos, leves como os de um passarinho, e achou que seu coração ia se partir.

   Ficaram assim por algum tempo e ela então se libertou, delicadamente, afastando-se um pouco e virando-se para ele.

   - Já está com sono?

   - Não.

   - Sim, bem. Vamos, então. - Sem esperar por uma resposta, virou-se e começou a atravessar a escuridão, afastando-se da casa.

   Havia uma lua, crescente, e ele já estava fora mais do que o suficiente para seus olhos se adaptarem; era simples segui-la, apesar do emaranhado de capim, pedras e urzes que crescia na colina atrás da casa.

   Onde ela o estaria levando? Ou melhor, por quê? Pois estavam escalando a colina, na direção da velha torre - e o cemitério ao lado. Sentiu um frio no coração: ela pretenderia lhe mostrar o lugar da sepultura de seu pai?

   Mas ela parou abruptamente e abaixou-se, de modo que ele quase tropeçou nela. Endireitando-se, ela se virou e colocou uma pedrinha em sua mão.

   - Aqui - ela disse baixinho e conduziu-o a uma pequena pedra quadrada enfiada na terra. Ele pensou que fosse a sepultura de Caitlin - a criança que viera antes da Jovem Jenny, a irmã que vivera apenas um dia -, mas depois viu que a pedra da sepultura de Caitlin ficava a alguns passos de distância. Esta era di mesmo tamanho e formato, porém - ele agachou-se ao lado da laje e, correndo os dedos pelas sombras de sua gravação, descobriu o nome: Yeksa'a.

   - Mamãe - ele disse, e sua voz soou estranha aos seus próprios ouvidos.

   - Está correto, Ian? - ela disse, um pouco ansiosa. - Seu pai disse que não estava absolutamente certo da grafia do nome indígena. Mas mandei o gravador escrever os dois nomes. Achei que estava certo.

   - Os dois? - Mas sua mão já se movera para baixo e encontrara o outro nome.

   Iseabail.

   Ele engoliu com força.

   - Está certo - ele disse, quase sem voz. Pousou a mão, aberta, sobre a laje de pedra, fresca sob sua palma.

   Ela agachou-se ao seu lado e, estendendo a mão, colocou sua própria pedrinha sobre a laje. Era o que se fazia, ele pensou, perplexo, quando se ia visitar um morto. Deixava uma pedra para dizer que você esteve ali; que você não havia esquecido.

   Sua própria pedrinha ainda estava na outra mão; não conseguia depositá-la na laje. As lágrimas escorriam pelo seu rosto e a mão de sua mãe segurou seu braço.

- Está tudo bem, mo duine - ela disse ternamente. - Vá para a sua jovem. Você sempre estará aqui conosco.

   O vapor de suas lágrimas se erguia como fumaça de incenso de seu coração, e ele colocou a pedrinha delicadamente na sepultura de sua filha. A salvo em meio à sua família.

   Foi somente muitos dias depois, no meio do oceano, que ele percebeu que sua mãe o considerara um homem.

 

                   DO LADO DIREITO

Ian morreu logo após o amanhecer. A noite fora infernal; por uma dúzia de vezes, Ian quase se afogara em seu próprio sangue, engasgando, os olhos se esbugalhando, depois se revirando em convulsão, cuspindo fragmentos de seus Pulmões. Sua cama parecia o local onde ocorrera um massacre e o quarto fedia a suor de um desesperado, de luta inútil, o cheiro da presença da morte.

   Por fim, entretanto, ele se apaziguara, o peito magro mal se movendo, o som de sua respiração um débil estertor, como o roçar dos espinhos da roseira selvagem na vidraça.

   Jamie se mantivera afastado, para dar ao Jovem Jamie o lugar à cabeceira de seu pai como filho mais velho; Jenny passara a noite toda sentada do outro lado de Ian, limpando o sangue, o suor doentio, todos os líquidos fétidos que exsudavam de Ian, dissolvendo seu corpo diante de seus olhos. Mas perto do fim, no escuro, Ian erguera a mão direita e sussurrara "Jamie". Não abriu os olhos para olhar, mas todos eles sabiam qual Jamie ele queria, e o Jovem Jamie abriu espaço, tropegamente, para que seu tio pudesse se aproximar e segurar aquela mão súplice.

   Os dedos ossudos de Ian fecharam-se ao redor dos seus com surpreendente força. Ian murmurara alguma coisa, baixo demais para ser ouvido, e depois soltou sua mão - não com o relaxamento involuntário da morte; simplesmente a soltou, tendo terminado de dizer o que queria, e deixou sua mão cair de novo, aberta, para seus filhos.

   Ele não falou outra vez, mas pareceu se acalmar, o corpo diminuindo de volume conforme a vida e o sopro o abandonavam. Quando seu último suspiro sobreveio, aguardaram em estupefato sofrimento, esperando nova respiração, e somente após um minuto inteiro de silêncio é que realmente começaram a se entreolhar disfarçadamente, olhar de relance para a cama devastada, a quietude no rosto de Ian - e compreenderam devagar que finalmente acabara.

Jenny teria se importado?, perguntou-se. Que as últimas palavras de Ian tenham sido para ele? Mas achava que não; a única misericórdia para uma partida como fora a de seu cunhado era que tinha havido tempo para se despedir. Ele encontrara um tempo para falar a sós com cada um de seus filhos, Jamie sabia. Confortá-los como podia, talvez deixar um conselho para eles, ao menos a reafirmação do quanto os amava.

   Ele estava de pé ao lado de Jenny quando Ian morreu. Ela suspirou e pareceu desmoronar ao seu lado, como se a vara de metal que mantivera suas costas eretas no último ano tivesse repentinamente sido arrancada pela sua cabeça. Seu rosto não demonstrara nenhum pesar, embora ele soubesse que estava lá; mas naquele momento ela apenas ficara feliz por ter terminado - pelo bem de Ian, pelo bem de todos eles.

   Portanto, sem dúvida, eles haviam achado um tempo, ela e Ian, para dizer o que tinha que ser dito entre eles, nos meses desde que souberam.

   O que ele diria a Claire em tais circunstâncias?, perguntou-se subitamente. Provavelmente, o que já dissera a ela, quando se despediram. Eu a amo. Eu a verei novamente. Não vinha nenhuma forma de aprimorar o sentimento, afinal.

   Não pôde ficar na casa. As mulheres haviam lavado Ian e colocado seu corpo na sala de estar; agora, estavam furiosamente empenhadas em uma orgia de limpar e cozinhar, pois a notícia se espalhara e as pessoas já começavam a chegar para o velório.

   O dia amanhecera com chuva, mas no momento não caía nem um pingo de chuva. Ele saiu pela horta e subiu a pequena encosta até o bosque. Jenny estava sentada lá, e ele hesitou por um instante, mas depois se aproximou e sentou-se ao seu lado. Ela podia mandá-lo embora se quisesse ficar sozinha.

   Não o fez; ela estendeu a mão para ele e ele a tomou, engolfando-a nas suas, pensando em como seus ossos eram delicados, frágeis.

   - Quero ir embora - ela disse calmamente.

   - Não a culpo - ele disse, com um olhar de relance para a casa. O bosque estava coberto de folhas novas, o verde fresco e macio da chuva, mas logo alguém os encontraria. - Quer descer e caminhar pelo lago um pouco?

   - Não, quero dizer que quero ir embora daqui. Lallybroch. Para sempre.

   Isso o surpreendeu com um choque.

   - Não fala de coração, eu acho - ele disse finalmente, cauteloso. - Afinal foi um golpe. Você não devia...

   Ela sacudiu a cabeça e levou a mão ao peito.

   - Alguma coisa se partiu em mim, Jamie - ela disse, suavemente. - O que quer que me prendia aqui... não me prende mais.

   Ele não sabia o que dizer. Ele evitara a visão da torre e do cemitério em sua base quando saíra de casa, incapaz de suportar a ideia da nova sepultura escavada lá - mas agora virou a cabeça deliberadamente e ergueu o queixo, apontando para o local.

   - E você deixaria Ian? - ele perguntou.

   Ela fez um pequeno ruído no fundo da garganta. Sua mão ainda repousava sobre o peito e, diante disso, pressionou-a, espalmada, com força contra o coração.

   - Ian está comigo - ela disse, e suas costas se empertigaram em desafio à sepultura recém-escavada. - Ele nunca me deixará, nem eu a ele. - Ela virou a cabeça, então, e fitou-o diretamente; seus olhos estavam vermelhos, mas secos.

- Ele também nunca o deixará, Jamie - ela disse. - Você sabe disso, tão bem quanto eu.

   Lágrimas assomaram aos seus próprios olhos então, inesperadamente, e ele desviou o rosto.

   - Sei disso, sim - ele murmurou, e esperava que fosse verdade. No momento, o lugar dentro dele em que costumava encontrar Ian estava oco e ressonante como um bodhran. Ele voltaria? Jamie se perguntou. Ou Ian apenas se movera um pouco, para um lugar diferente de seu coração, um lugar onde ele ainda não procurara por ele? Esperava que sim, mas não iria procurar ainda por algum tempo e sabia que era pelo medo de não encontrar nada.

   Queria mudar de assunto, dar a ela espaço e tempo para pensar. Mas era difícil encontrar alguma coisa a dizer que não tivesse a ver com o fato de Ian estar morto. Ou com a morte de um modo geral. Toda perda é única, e uma única perda se torna todas as perdas, uma única morte, a chave do portão que bloqueia a memória.

   - Quando papai morreu - ele disse repentinamente, surpreendendo a ela e a si mesmo. - Conte-me o que aconteceu.

   Ele sentiu sua vez de olhar para ele, mas manteve os próprios olhos nas mãos, os dedos da mão esquerda esfregando, devagar, a cicatriz grossa e vermelha que cortava as costas da mão direita.

   - Eles o trouxeram para casa - ela disse finalmente. - Estendido em uma carroça. Dougal Mackenzie estava com eles. Ele me disse que papai o vira sendo chicoteado e de repente caiu, e quando o levantaram um lado de seu rosto estava contraído de angústia, mas o outro estava flácido. Ele não conseguia falar, nem caminhar, e assim eles o levaram e o trouxeram para casa.

   Ela parou, engolindo em seco, os olhos fixos na torre e no cemitério.

   - Chamei um médico para examiná-lo. Ele sangrou papai, mais de uma vez, e queimou coisas em um pequeno fogareiro, depois passando a fumaça sob seu nariz. Tentou lhe dar remédio, mas papai não conseguia realmente engolir. Eu colocava gotas de água em sua língua, mas isso era tudo. - Ela suspirou profundamente. - Ele morreu no dia seguinte, por volta de meio-dia.

   - Ah. Ele... não falou mais nada?

   Ela sacudiu a cabeça.

   - Ele não conseguia falar absolutamente nada. Apenas movia a boca de vez em quando e emitia uns sons gorgolejantes. - Seu queixo franziu-se um pouco diante da lembrança, mas ela firmou os lábios. - Eu podia ver, no entanto, perto do fim, que ele estava tentando falar. Sua boca tentava formar as palavras e seus olhos ficavam fixos em mim, tentando me fazer compreender. - Ela olhou para ele. - Ele de fato disse "Jamie", uma única vez. Isso eu tenho certeza. Pois eu achei que ele estava tentando saber sobre você e eu disse a ele que Dougal dissera que você estava vivo e prometera que você ficaria bem. Isso pareceu confortá-lo um pouco, e ele morreu logo depois.

   Ele engoliu com dificuldade, o som do esforço alto em seus ouvidos. Recomeçara a chover, uma chuva fina, as gotas batendo nas folhas acima.

   - Taing - ele disse baixinho por fim. - Eu fiquei me perguntando. Eu queria ter podido dizer a ele que eu sentia muito.

   - Não precisava - ela disse, no mesmo tom. - Ele sabia.

   Ele balançou a cabeça, incapaz de falar por um instante. Recuperando o autocontrole, no entanto, ele segurou sua mão outra vez e virou-se para ela.

   - Mas posso dizer a você que sinto muito, a piuthar, e eu digo.

   - Sente muito de quê? - ela disse, surpresa.

   - Por acreditar em Dougal quando ele me disse... bem, quando ele disse que você se tornara a prostituta de um soldado inglês. Fui um tolo. - Olhou para sua mão mutilada, sem querer fitá-la nos olhos.

   - Sim, bem - ela disse, e colocou a mão sobre a dele, leve e fria como as folhas novas que se agitavam ao redor deles. - Você precisava dele. Eu não.

Permaneceram ali sentados mais algum tempo, sentindo-se em paz, de mãos dadas.

   - Onde você acha que ele está agora? - Jenny perguntou repentinamente. - Ian, quero dizer.

   Ele olhou para a casa, depois para a nova sepultura que o esperava, mas naturalmente esse não era mais Ian. Ficou em pânico por um instante, a sensação de vazio anterior retornando - mas então lhe veio à mente e, sem surpresa, compreendeu o que Ian lhe dissera.

   "À sua direita, amigo." A sua direita. Guardando seu lado mais vulnerável.

   - Está bem aqui - ele disse a Jenny, indicando com a cabeça o lugar entre eles. - No lugar que lhe pertence.

 

                                                             ECOS DO PASSADO

 

                   FILHO DE UMA BRUXA

Quando Roger e Buccleigh pararam o carro em frente à casa, Amanda saiu correndo ao encontro deles e retornou para sua mãe, agitando um pequeno cata-vento de plástico azul preso a uma vareta.

   - Mamãe! Olhe o que eu ganhei, olhe o que eu ganhei!

   - Oh, que lindo! - Brianna inclinou-se para admirá-lo e, soprando, fez o brinquedo girar.

   - Eu faço, eu faço! - Amanda pegou o cata-vento de volta, soprando e bufando com grande determinação, mas fazendo pouco progresso.

   - De lado, a leannan, de lado. - William Buccleigh deu a volta no carro e pegou Amanda no colo, delicadamente virando sua mão de modo que o cata-vento ficasse perpendicular ao rosto. - Agora sopre. - Colocou o rosto junto ao dela e ajudou a soprar, e o cata-vento girou alegremente. - Sim, assim é melhor, não é? Tente você agora, sozinha. - Deu de ombros para Brianna como um sinal de desculpas e carregou Amanda pelo caminho, ela diligentemente soprando e bufando. Passaram por Jem, que parou para admirar o cata-vento.

Roger saiu do carro com duas sacolas de compras e parou para dar uma palavra em particular com Brianna.

   - Se tivéssemos um cachorro, eu me pergunto se iria gostar dele também - ela murmurou, fazendo um sinal com a cabeça na direção de seu hóspede, que agora mantinha uma animada conversa com as duas crianças.

   - Um homem pode sorrir mil vezes e ainda assim ser um patife - Roger retrucou, observando-o com os olhos estreitados. - E, tirando os apelos do instinto, não creio que cachorros ou crianças sejam necessariamente bons juizes de caráter.

   - Hum. Ele lhe disse mais alguma coisa enquanto estavam fora hoje? - Roger levara William Buccleigh a Inverness para comprar roupas, já que não possuía nada além de jeans, camiseta e um casaco da instituição de caridade com os quais chegara.

   - Algumas coisas. Eu perguntei a ele como tinha vindo parar aqui, em Lallybroch, quero dizer, e o que ele fazia vagando por perto. Ele disse que me viu na rua em Inverness e me reconheceu, mas eu entrei no carro e partiu antes que ele pudesse se decidir a falar comigo. Mas ele me viu mais uma ou duas vezes e andou indagando cautelosamente por aí até descobrir onde eu morava.

- Ele... - Parou e olhou para ela, com um leve sorriso. - Lembre-se do que ele é e de que época veio. Ele achou, e não creio que estivesse inventando uma história, que eu devia ser alguém do Povo Antigo.

   - É mesmo?

   - Sim, é verdade. E diante disso... bem, eu realmente sobrevivi a um enforcamento, o que a maioria das pessoas não consegue. - Sua boca torceu-se um pouco ao tocar a cicatriz em sua garganta. - E eu... nós... realmente, é claro, viajamos através das pedras em segurança. Quero dizer... eu pude compreender o que se passava na mente dele.

   Apesar de nervosa, ela resfolegou, achando graça.

   - Bem, sim. Quer dizer que ele estava com medo de você?

   Roger deu de ombros.

   - Estava. E acho que acredito nele, embora deva dizer que, se for este o caso, ele sabe disfarçar bem.

   - Você agiria como se tivesse medo se topasse com um poderoso ser sobrenatural? Ou tentaria aparentar calma? Sendo um macho da espécie, como mamãe costuma dizer. Ou um homem de verdade, como papai diz. Tanto você quanto papai agem como John Wayne se alguma coisa suspeita está acontecendo e este sujeito tem parentesco com vocês dois.

   - Bem pensado - ele disse, embora sua boca se torcesse ao "poderoso ser sobrenatural". Ou talvez à parte de "John Wayne". - E ele admitiu que estava meio zonzo com o choque de tudo que acontecera. Eu podia entender isso.

   - Hum. E nós sabíamos o que estávamos fazendo. Mais ou menos. Ele me contou o que aconteceu quando ele atravessou as pedras. Ele lhe contou isso também?

   Estavam andando devagar, mas já haviam quase alcançado a porta; ela podia ouvir a voz de Annie no corredor, perguntando alguma coisa, falando acima da tagarelice das crianças, e o ruído mais grave da voz de William Buccleigh em resposta.

   - Sim, contou. Ele queria... quer, e quer muito... voltar para sua própria época. Obviamente, eu sabia como e ele teria que vir conversar comigo para descobrir. Mas só um tolo bateria à porta de um estranho, ainda mais um estranho que ele quase matara, muito menos um estranho que podia matá-lo ali mesmo ou transformá-lo em um corvo. - Deu de ombros outra vez. - Assim, ele deixou seu emprego e começou a espreitar aqui por perto, observando. Para ver se estávamos atirando ossos humanos pela porta dos fundos, imagino. Jem deparou-se com ele perto da torre um dia e ele lhe disse que era um Nuckelavee, em parte para afugentá-lo de medo, mas também porque, se ele voltasse e me dissesse que havia um Nuckelavee no alto da colina, eu poderia sair e fazer alguma coisa mágica em relação a isso. E se eu fizesse... - Ergueu as mãos, as palmas para cima.

   - Se fizesse, você podia ser perigoso, mas ele ficaria sabendo que você tinha o poder de enviá-lo de volta. Como o Mágico de Oz.

   Ele olhou para ela por um instante.

   - Qualquer um menos parecido com Judy Garland do que ele - começou a dizer, mas foi interrompido por Annie MacDonald querendo saber por que estavam se demorando ali fora, sendo devorados pelos mosquitos, quando o jantar já estava na mesa. Desculpando-se, eles entraram.

Brianna jantou sem realmente notar o que havia em seu prato. Jem ia passar a noite com Bobby outra vez e sair para pescar no sábado com Rob em Rothiemurchus. Ela sentiu uma pequena pontada com isso; lembrava-se de seu pai pacientemente ensinando Jem a pescar, com a vara feita em casa e a linha de costurar, que era tudo que tinham. Ele se lembraria?

   Ainda assim, era conveniente tê-lo fora de casa. Ela e Roger teriam que se sentar com William Buccleigh e decidir a melhor maneira de fazê-lo voltar à sua própria época, e era melhor que Jem não estivesse rondando nas proximidades desta conversa com ouvidos atentos. Deveriam consultar Fiona?, perguntou-se repentinamente.

   Fiona Graham era a neta da velha sra. Graham, que trabalhara como governanta para o pai adotivo de Roger, o reverendo Wakefield. A idosa e digna sra. Graham também fora a "inovadora" - a guardiã de uma tradição secular. Na festa do fogo de Beltane, as mulheres cujas famílias haviam passado a tradição para elas encontravam-se ao alvorecer e, vestidas de branco, realizavam uma dança que Roger disse ser uma antiga dança de roda nórdica. E, ao final, a inovadora cantava com palavras que nenhuma delas compreendia mais, fazendo o sol se levantar no horizonte de forma que o raio de luz atravessasse a fenda da pedra.

   A sra. Graham morrera tranquilamente durante o sono há anos - mas deixara seu conhecimento, e seu papel como guardiã dos rituais, para sua neta, Fiona.

   Fiona ajudara Roger quando ele atravessou as pedras para encontrar Brianna - contribuindo até com seu próprio diamante do anel de casamento para ajudá-lo, depois que sua primeira tentativa terminara de modo bem semelhante à descrição da própria tentativa de William Buccleigh: em chamas no meio do círculo.

   Podiam conseguir uma pedra preciosa sem muita dificuldade, ela pensou, automaticamente passando a saladeira para Roger. Do que sabiam até agora, não havia necessidade de ser uma pedra terrivelmente cara, nem mesmo uma pedra muito grande. As granadas do medalhão da mãe de Roger aparentemente haviam sido suficientes para impedir que fosse morto na primeira tentativa malograda.

   Ela pensou repentinamente na marca de queimadura no peito de William Buccleigh e, ao fazê-lo, percebeu que olhava fixamente para ele - e ele devolvia o olhar fixo. Ela se engasgou com um pedaço de pepino e a subsequente confusão de tapas nas costas, soerguimento dos braços, tosse e busca de água por sorte explicou a vermelhidão de seu rosto.

   Todos voltaram a se concentrar em sua comida, mas ela estava consciente do olhar enviesado de Roger sobre ela. Lançou-lhe um rápido olhar por baixo das pestanas, com uma ligeira inclinação da cabeça que dizia "Mais tarde. Lá em cima", e ele relaxou, retomando uma conversa com "tio Buck" e Jemmy sobre a pesca de trutas.

   Ela queria conversar com ele sobre o que Buccleigh dissera e decidir o que fazer com ele o mais rápido possível. Ela não diria a Roger o que William Buccleigh dissera a respeito de Rob Cameron.

Roger estava deitado na cama, observando o luar sobre o rosto adormecido de Brianna. Era muito tarde, mas ele não conseguia dormir. Estranho, pois geralmente adormecia em questão de segundos depois de fazer amor com ela. Felizmente, ela adormecia também; ela adormecera esta noite, enroscando-se contra ele como um camarão grande e afetuoso, antes de resvalar para uma inércia cálida e nua em seus braços.

   Fora maravilhoso - mas um pouquinho diferente. Ela estava quase sempre disposta, até mesmo ansiosa, e desta vez não fora diferente, embora ela tivesse feito questão de trancar a porta do quarto. Ele havia instalado a tranca porque Jem aprendera a forçar fechaduras aos sete anos. Ainda estava trancada, na realidade, e vendo isso deslizou cuidadosamente de baixo das cobertas para destrancá-la. Jem estava passando a noite com seu novo amigo, Bobby, mas se Mandy precisasse deles durante a noite ele não queria que ela encontrasse a porta trancada.

   O quarto estava frio, mas agradável; eles haviam instalado aquecedores de rodapé, que mal seriam adequados para as temperaturas do inverno das Highlands, mas excelentes para o final do outono. Bri ficava quente quando dormia; ele podia jurar que sua temperatura subia dois ou três graus quando estava dormindo, e ela geralmente arrancava as cobertas. Dormia agora, nua até a cintura, os braços atirados acima da cabeça e roncando levemente. Ele segurou seus testículos distraidamente, imaginando preguiçosamente se deveria fazer amor outra vez. Achava que ela não iria se importar, mas...

   Mas talvez ele não devesse. Quando fazia amor com ela, ele geralmente não se apressava e, no final, sentia um prazer enorme quando ela cedia seu órgão coberto de pelos ruivos, de bom grado, sem dúvida, mas sempre com um instante de hesitação, um único suspiro final de algo que não era exatamente resistência. Ele achava que era um meio de assegurar a si mesma - se não também a ele - que tinha o direito de recusar. Uma fortaleza uma vez violada e reparada possui defesas mais fortes. Ele não achava que ela tivesse consciência de que fazia isso; nunca mencionara isso para ela, não querendo que nenhum fantasma se intrometesse entre eles.

   Fora um pouco diferente esta noite. Ela relutara mais perceptivelmente, depois cedera com uma espécie de ferocidade, puxando-o para si e arranhando suas costas com as unhas. E ele...

   Ele parou por um ínfimo momento, mas, uma vez seguramente montado, sentira a necessidade insana de cavalgar sem piedade, para mostrar a si mesmo - se não a ela - que ela na verdade pertencia a ele, e não a si própria, inviolável.

   E ela o encorajara.

   Notou que não havia retirado a mão e agora olhava para sua mulher como um soldado romano avaliando o peso e a portabilidade de uma das Sabinas.

Raptio era a palavra em latim, geralmente traduzida por "estupro", apesar de na verdade significar sequestro, ou rapto. Raptio, a captura da presa. Ele podia ver isso dos dois lados, e notou nesta altura que ele ainda não havia removido a mão de seus genitais, os quais nesse ínterim haviam decidido unilateralmente que, não, ela não se importaria nem um pouco.

   Seu córtex cerebral, sendo rapidamente dominado por algo muito mais antigo e muito mais embaixo, aventurara uma última e fraca conjetura de que tinha a ver com ter um estranho na casa - especialmente alguém como William Buccleigh Mackenzie.

   - Bem, ele terá partido até o Halloween - Roger murmurou, aproximando-se da cama. O portal nas pedras deveria estar totalmente aberto na ocasião e, com alguma pedra preciosa na mão, o patife estaria de volta para sua mulher em...

   Deslizou para baixo dos lençóis, segurou sua mulher com a mão firme em seu traseiro muito aquecido e sussurrou em seu ouvido a frase clássica da bruxa malvada do Mágico de Oz:

   - Vou pegá-la... e o seu cachorrinho também.

   O corpo dela estremeceu com uma risada muda, subterrânea, e sem abrir os olhos ela estendeu a mão para baixo e deslizou uma unha delicadamente por sua carne muito sensível.

   - Estou deeeeeeeerrrrrretendo - ela murmurou.

Ele de fato dormiu depois disso. Mas acordou novamente, em algum momento da madrugada, e se viu aborrecidamente desperto.

   Deve ser ele, pensou, deslizando para fora da cama. Não vou conseguir dormir direito enquanto não nos livrarmos dele. Não se preocupou em ser cauteloso; sabia pelo som áspero do ronco de Brianna que ela estava morta para o mundo. Enfiou-se em seu pijama e saiu para o corredor de cima, ouvindo com atenção.

   Lallybroch conversava consigo mesma à noite, como fazem todas as casas antigas. Ele estava acostumado com os repentinos estalos das vigas de madeira quando se esfriavam à noite, e até mesmo com o rangido do corredor do andar de cima, como se alguém estivesse andando depressa por ele, de um lado para o outro. O chocalhar das janelas quando o vento estava a oeste, fazendo-o se lembrar, confortavelmente, do ronco irregular de Brianna. No entanto, tudo estava extraordinariamente quieto agora, envolto na sonolência do meio da noite.

   Eles haviam instalado William Buccleigh no final do corredor, tendo decidido, sem discutir o assunto, que não o queriam no mesmo andar das crianças. Deviam mantê-lo por perto, ficar de olho nele.

   Roger percorreu o corredor silenciosamente, ouvindo. A fenda embaixo da Porta de Buccleigh estava escura, e de dentro do aposento ele ouvia um ronco regular, profundo, interrompido uma vez, quando o hóspede se virou na cama, murmurou alguma coisa incompreensível e caiu no sono outra vez.

   - Tudo bem, então - Roger murmurou para si mesmo, afastando-se. Seu córtex cerebral, interrompido anteriormente, agora pacientemente retomava o curso de seus pensamentos. Claro que tinha a ver com ter um estranho na casa - e que estranho. Tanto ele quanto Brianna sentiam-se obscuramente ameaçados por sua presença.

   Em seu próprio caso, havia um sólido substrato de raiva sob a cautela, e uma boa dose de confusão também. Ele havia, por absoluta necessidade, assim como por convicção religiosa, perdoado William Buccleigh por seu papel no enforcamento que lhe tirara a voz. Afinal, o sujeito não tentara matá-lo pessoalmente e não podia ter sabido o que iria acontecer.

   Mas era muito mais fácil perdoar alguém que se sabia que estava morto há duzentos anos do que manter esse perdão com o desgraçado vivendo sob seu nariz, comendo sua comida e sendo encantador com sua mulher e filhos.

   E também não vamos nos esquecer de que ele é um bastardo, Roger pensou furiosamente, descendo as escadas no escuro. A árvore genealógica que ele mostrara a William Buccleigh o revelava com correção, registrado no papel, perfeitamente, como pais e filho. O mapa genealógico, entretanto, era uma mentira. William Buccleigh Mackenzie era o filho ilegítimo de Dougal Mackenzie, chefe de guerra do Clã Mackenzie, e Geillis Duncan, bruxa. E Roger achava que William Buccleigh não sabia disso.

   Em segurança ao pé da escada, ele acendeu a luz do corredor térreo e dirigiu-se à cozinha para se certificar de que a porta dos fundos estava trancada.

   Eles haviam discutido o assunto, ele e Brianna, mas ainda não haviam chegado a um acordo. Ele achava melhor não remexer neste assunto; que bem podia fazer ao sujeito conhecer a verdade de suas origens? As Highlands que haviam gerado aquelas duas almas desgraçadas já desapareceram, tanto agora quanto na época verdadeira de William Buccleigh.

   Bri insistira que Buccleigh tinha direito de saber a verdade - apesar de, quando desafiada, não saber explicar exatamente que direito era esse.

   - Você é quem você acha que é e sempre foi - ela dissera finalmente, frustrada por não conseguir explicar. - Eu não era. Acha que teria sido melhor se eu nunca tivesse sabido quem era meu verdadeiro pai?

   Com toda a honestidade, poderia ter sido, ele pensou. O conhecimento, uma vez revelado, havia dilacerado suas vidas, havia exposto ambos a coisas terríveis. Destruíra sua voz. Quase acabara com sua vida. Colocara Brianna em perigo, fizera com que fosse estuprada, responsável por matar um homem - não havia falado com ela a esse respeito; deveria. As vezes, ele via o peso desse conhecimento em seus olhos e o reconhecia. Ele carregava o mesmo peso.

   No entanto... ele teria preferido não ter sabido o que agora sabia? Nunca ter vivido no passado, conhecido Jamie Fraser, visto o lado de Claire que só existia na companhia de Jamie?

   Afinal, não se tratava da árvore do bem e do mal no Jardim do Éden; era a árvore do conhecimento do bem e do mal. O conhecimento pode ser uma dádiva venenosa - mas ainda era uma dádiva e poucas pessoas voluntariamente o devolveriam. Ainda bem, imaginava, já que não podiam devolvê-lo. E esse tinha sido o seu argumento na discussão.

   - Não sabemos que danos isso poderia causar - argumentara. - Mas não sabemos que não poderia causar nenhum dano, e danos graves. E qual seria o benefício para o sujeito, saber que sua mãe era uma louca, uma feiticeira, ou ambos, sem dúvida muitas vezes assassina, e seu pai um adúltero e no mínimo um quase assassino? Já foi um choque grande para mim quando sua mãe me contou sobre Geillis Duncan e ela está oito gerações atrás de mim. E antes que pergunte, sim, eu poderia viver sem saber disso.

   Ela mordera o lábio e balançara a cabeça, relutante.

   - É só que... eu não paro de pensar em Willie - Bri dissera finalmente, desistindo. - Não em William Buccleigh, mas... no meu irmão. - Ela corou ligeiramente, como sempre acontecia, embaraçada ao pronunciar a palavra. - Eu realmente queria que ele soubesse. Mas papai e lorde John... eles absolutamente não queriam que ele soubesse, e talvez tivessem razão. Ele tem uma vida, uma vida boa. E eles disseram que ele não poderia continuar tendo essa vida, se eu lhe contasse.

   - Eles tinham razão - Roger disse bruscamente. - Contar-lhe, se ele acreditasse, iria forçá-lo a viver em um estado de ilusão e negação, o que o devoraria vivo, ou a reconhecer abertamente que ele é o filho bastardo de um criminoso escocês. O que não seria justo. Não na cultura do século XVIII.

   - Eles não tirariam seu título de nobreza - Bri argumentara. - Papai disse que pela lei inglesa uma criança nascida em um casamento é o herdeiro legal do marido, não importa que o marido seja ou não o verdadeiro pai.

   - Não, mas imagine viver com um título a que você acha que não tem direito, sabendo que o sangue em suas veias não é o sangue azul que você sempre pensou que fosse. Ouvir as pessoas chamá-lo de "Lorde Tal" e saber do que elas o chamariam se soubessem a verdade. - Ele a sacudira ligeiramente, tentando fazê-la compreender. - De qualquer modo, isso destruiria a vida que ele tem, como se você o colocasse em cima de um barril de pólvora e acendesse o pavio.

Você não saberia quando a explosão viria, mas sem dúvida viria.

   - Mmmmhum - ela dissera, e a discussão terminara ali. Mas não fora um som de concordância, e ele soube que a discussão não terminara.

   Agora, já havia verificado todas as portas e janelas do andar térreo, terminando em seu gabinete.

   Acendeu a luz e entrou no aposento. Estava completamente desperto, os nervos à flor da pele. Por quê? A casa estaria tentando lhe dizer alguma coisa?

Bufou desdenhosamente. Era difícil não se entregar a fantasias no meio da noite em uma casa antiga, com o vento chacoalhando as vidraças. No entanto, ele sempre se sentia muito confortável naquele aposento, sentia que o lugar lhe pertencia. O que havia de errado?

   Olhou rapidamente por cima da escrivaninha, o fundo parapeito da janela, com o pequeno vaso de crisântemos amarelos que Bri colocara ali, as prateleiras...

   Parou de repente, o coração batendo no peito. A cobra não estava lá. Não, não, estava - seu olhar desenfreado fixou-se nela. Mas estava no lugar errado, não estava na frente da caixa de madeira que continha as cartas de Claire e Jamie, mas na frente dos livros duas prateleiras abaixo.

   Pegou-a, automaticamente afagando a madeira polida de cerejeira com o polegar. Talvez Annie MacDonald a tivesse mudado de lugar? Não, ela realmente varria e tirava o pó do gabinete, mas nunca trocara nada de lugar. Aliás, nunca mudava coisa alguma de lugar; ele a vira pegar um par de galochas descuidadamente deixado no meio da entrada, varrer cuidadosamente embaixo delas e colocá-las de volta no mesmo lugar, sujas de lama e tudo. Ela jamais teria mudado a cobra de lugar.

   Muito menos Brianna. Ele sabia - sem saber como sabia - que ela se sentia como ele a respeito disso; a cobra de Willie Fraser guardava o tesouro de seu irmão.

   Ele já trazia a caixa para baixo antes que o curso de seu pensamento consciente tivesse chegado à sua conclusão lógica.

   Sinais de alarme disparavam de todas as direções. O conteúdo da caixa fora remexido; os livretos estavam em cima das cartas em uma das extremidades da caixa, não embaixo. Ele tirou as cartas, amaldiçoando a si mesmo por nunca tê-las contado. Como ele saberia se uma delas estivesse faltando?

   Separou-as rapidamente, lidas e não lidas, e achou que a pilha de não lidas continuava a mesma; quem quer que tivesse remexido na caixa, não as abrira, o que já era alguma coisa. Mas quem quer que tenha sido também quis evitar ser descoberto.

   Folheou apressadamente as cartas abertas e imediatamente percebeu que faltava uma: aquela escrita no papel feito à mão, com flores embutidas, de Brianna. A primeira. Santo Deus, o que ela dizia? Estamos vivos. Lembrava-se disso. E depois Claire lhes contara tudo sobre a explosão e o incêndio da casa grande. Ela havia dito nessa carta que estavam indo para a Escócia? Talvez. Mas por que diabos...

   Dois andares acima, Mandy sentou-se repentinamente na cama e começou a gritar como uma bansidhe.

Ele alcançou o quarto de Amanda meio passo antes de Brianna e levantou a criança nos braços, embalando-a junto ao seu coração disparado.

   - Jemmy, Jemmy! - ela soluçava. - Ele desapareceu, ele desapareceu. Ele DESAPARECEU! - Este último foi um grito estridente enquanto ela se retesava nos braços de Roger, enfiando os pés com força em sua barriga.

   - Ei, ei - ele tentava acalmá-la. - Está tudo bem, Jemmy está bem. Ele esta bem, só foi passar a noite com Bobby. Ele vai voltar para casa amanhã.

   - Ele DESAPARECEU! - Ela se contorcia como uma enguia, não tentando se desvencilhar, mas meramente possuída por um paroxismo de angústia frenetica. - Ele não tá aqui, ele não tá aqui!

   - Sim, eu já disse, ele está na casa de Bobby, ele...

   - Não tá aqui - ela disse, aflita, batendo com a palma da mão repetidamente no topo da cabeça. - Não tá aqui comigo!

   - Aqui, querida, venha cá - Bri disse angustiadamente, tomando a criança banhada em lágrimas dos braços de Roger.

   - Mamãe, mamãe! Jemmy DESAPARECEU! - Ela se agarrou a Bri, fitando-a desesperadamente, ainda batendo na cabeça. - Não tá comigo!

   Bri franziu a testa para Mandy intrigada, passando a mão por ela, verificando a temperatura, glândulas inchadas, barriga dolorida...

   - Não tá com você - ela repetiu, falando decididamente, tentando arrancar Mandy de seu pânico. - Conte pra mamãe o que você quer dizer, querida.

   - Não está aqui - Em completo desespero, Mandy abaixou-se e deu uma cabeçada no peito da mãe.

   - Uuuuf!

   A porta no final do corredor abriu-se e William Buccleigh saiu, vestindo o roupão de lã de Roger.

   - Que confusão é essa, em nome da Virgem Maria? - ele perguntou.

   - Ele levou, ele levou o Jemmy! - Mandy gritou estridentemente, enterrando a cabeça no ombro de Brianna.

   A despeito de si mesmo, Roger começou a se sentir contagiado pelo temor de Amanda, irracionalmente convencido de que alguma coisa terrível acontecera.

   - Sabe onde Jem está? - perguntou rispidamente a Buccleigh.

   - Não, não sei. - Buccleigh franziu o cenho. - Não está na cama dele?

   - Não, não está! - Brianna retrucou. - Você o viu sair, pelo amor de Deus. - Abriu caminho entre os dois homens. - Parem com isso, vocês dois! Roger, segure Mandy. Vou ligar para Martina Hurragh. - Ela atirou Amanda, gemendo ao redor do polegar em sua boca, em seus braços e correu para as escadas, as roupas vestidas apressadamente farfalhando como folhas.

   Ele ficou embalando Mandy, distraído, assustado, quase dominado por sua sensação de pânico. Ela emitia medo e angústia como uma torre de transmissão de rádio, e sua própria respiração vinha em espasmos curtos, as mãos úmidas de suor onde ele agarrava sua camisola.

   - Calma, a chuisle - ele disse, com a entonação mais tranquila que conseguiu imprimir à sua voz. - Calma, agora. Nós vamos resolver isso. Conte ao papai o que a acordou e eu vou resolver isso, eu prometo.

   Ela obedientemente tentou reprimir os soluços, esfregando as mãozinhas rechonchudas pelos olhos.

   - Jemmy - choramingou. - Eu quero o Jemmy!

   - Vamos trazê-lo de volta agora mesmo - Roger prometeu. - Diga-me, o que a fez acordar? Você teve um pesadelo?

   - Hum-hum. - Agarrou-se a ele com mais força, o rosto aterrorizado. - Era pedas gandes, gandes. Elas guitaram comigo!

   Sentiu água gelada correr pelas suas veias. Meu Deus, oh, meu Deus. Talvez ela realmente se lembrasse de sua viagem através das pedras.

   - Sim, compreendo - ele disse, dando tapinhas em suas costas da maneira mais apaziguadora que conseguia, para a ebulição em seu próprio peito. Ele realmente compreendia. Mentalmente, viu aquelas pedras, as sentiu e ouviu outra vez. E, virando-se um pouco, viu a palidez do rosto de William Buccleigh e percebeu que ele também ouvira o tom da verdade na voz de Mandy. - O que aconteceu, então, a leannan? Você se aproximou das pedras grandes?

   - Eu não. Foi Jem! Aquele homem levou ele e as pedas engoliram ele! - Com isso, ela irrompeu em lágrimas outra vez, soluçando inconsolavelmente.

   - Aquele homem - Roger disse devagar, e virou-se um pouco mais, de modo que William Buccleigh ficasse no campo de visão de Mandy. - Você quer dizer este homem, querida? Tio Buck?

   - Não, nãnãnãnãnã, outo homem. - Ela endireitou-se, olhando-o fixamente com olhos arregalados e cheios de lágrimas, esforçando-se para fazê-lo compreender. - O pai de Bobby!

   Ouviu Brianna subindo as escadas. Rápido, mas irregularmente; parecia que ela dava encontrões contra as paredes da escada, perdendo o equilíbrio enquanto corria.

   Ela surgiu de repente no topo da escada e Roger sentiu cada pelo de seu corpo se eriçar ao ver seu rosto lívido, assustado.

   - Ele desapareceu - ela disse, rouca. - Martina disse que ele não está com Bobby, ela não estava esperando-o esta noite de jeito nenhum. Eu a fiz sair e ir olhar... Rob vive três casas mais abaixo. Ela disse que sua caminhonete não está lá.

As mãos de Roger estavam dormentes de frio e o volante estava escorregadio do seu suor. Pegou a saída da autoestrada em tal velocidade que as rodas de fora se ergueram ligeiramente e o carro se inclinou. A cabeça de William Buccleigh bateu no vidro.

   - Desculpe - Roger murmurou mecanicamente e recebeu um grunhido de aceitação das desculpas em resposta.

   - Tenha cuidado com você mesmo - Buccleigh disse, esfregando a têmpora. - Vai nos jogar em uma vala, e depois?

   De fato, e depois? Com grande esforço, afrouxou o pé do acelerador. A lua estava quase desaparecendo no céu e uma pálida lua minguante pouco ajudava a clarear a paisagem, escura como breu à volta deles. Os faróis do pequeno Morris mal penetravam a escuridão e os fracos fachos de luz oscilavam de um lado para o outro conforme sacolejavam loucamente na estrada de terra que levava até perto de Craigh na Dun.

   - Por que diabos esse trusdair levaria seu filho? - Buccleigh girou a manivela e abriu a janela, depois enfiou a cabeça para fora, tentando em vão enxergar mais longe do que era possível através do para-brisa empoeirado. - E por que, pelo amor de Deus, trazê-lo aqui?

   - Como eu vou saber? - Roger disse entre dentes. - Talvez ele ache que precisa de sangue para abrir a passagem pelas pedras. Santo Deus, por que eu escrevi isso? - Bateu com o punho cerrado no volante, sentindo-se frustrado.

   Buccleigh pestanejou, muito espantado, mas seu olhar aguçou-se imediatamente.

   - É isso? - perguntou, ansioso. - É assim que se faz? Sangue?

   - Não, droga! - Roger disse. - E a época do ano, as pedras preciosas. Nós achamos.

   - Mas você escreveu sangue, com um ponto de exclamação ao lado.

   - Sim, mas... O que quer dizer? Você leu minhas anotações também, filho da mãe?

   - Olha a linguagem, meu caro - William Buccleigh disse, soturno, mas sereno. - Claro que li. Li tudo de seu escritório em que pude pôr as mãos, e você faria o mesmo, em meu lugar.

   Roger reprimiu o pânico que se apoderara dele, o suficiente para fazer um breve sinal com a cabeça.

   - Sim, provavelmente sim. E, se você tivesse levado Jem, eu o mataria assim que o encontrasse, mas talvez eu entendesse. Mas esse desgraçado! O que ele acha que está fazendo, pelo amor de Deus?

   - Acalme-se - Buccleigh aconselhou-o. - Você não vai ajudar seu filho em nada se perder a cabeça. Esse Cameron... ele é um de nós?

   - Não sei. Eu realmente não sei.

   - Mas há outros, não é? Não ocorre só na família?

   - Não sei. Acho que há outros, mas não tenho certeza. - Roger esforçou-se para pensar, esforçou-se para manter o carro a uma velocidade relativamente baixa nas curvas da estrada, parcialmente invadidas pelo tojo rastejante.

   Ele tentava rezar, mas não conseguia nada além de um aterrorizado Senhor, porfavor! Quisera que Bri estivesse com ele, mas não podiam trazer Mandy para perto das rochas, e se chegassem a tempo de alcançar Cameron... se Cameron estivesse lá... Buccleigh o ajudaria, tinha certeza disso.

   No fundo de sua mente, ele acalentava uma esperança desesperada de que houvesse algum mal-entendido, que Cameron errara a noite e, ao perceber, estivesse trazendo Jem de volta para casa, naquele mesmo instante em que Roger e seu cinco vezes bisavô irrompiam pela charneca pedregosa na escuridão, dirigindo-se diretamente para a coisa mais terrível que conheciam.

   - Cameron, ele leu meu caderno também - Roger disse num rompante, incapaz de suportar seus próprios pensamentos. - Acidentalmente. Ele fingiu achar que tudo não passava de uma... uma... ficção, algo que eu inventara por diversão. Meu Deus, o que eu fiz?

   - Cuidado! - Buccleigh lançou os braços sobre o rosto e Roger pisou fundo no freio, saindo da estrada e batendo em uma pedra grande - por pouco não colidindo com a velha caminhonete azul parada na estrada, escura e vazia.

Ele se arrastou aos trambolhões encosta acima, tateando em busca de apoio para as mãos no escuro, pedras deslizando de baixo de seus pés, espinhos de tojo espetando suas palmas, de vez em quando penetrando embaixo das unhas, fazendo-o praguejar. Bem lá embaixo, ele conseguia ouvir William Buccleigh seguindo-o. Devagar, mas seguindo-o.

   Começou a ouvi-los muito antes de chegar ao topo. Faltavam três dias para o Halloween, e as pedras sabiam disso. O som que não era som vibrou pela medula de seus ossos, fez seu crânio reverberar e seus dentes doerem. Ele cerrou os dentes e continuou subindo. Quando finalmente chegou às pedras verticais, estava sobre as mãos e os joelhos, incapaz de ficar em pé.

   Meu Deus, pensou, Meu Deus, ajude-me! Mantenha-me vivo o tempo suficiente para encontrá-lo!

   Ele mal conseguia formular seus pensamentos, mas lembrara-se da lanterna. Trouxera-a do carro e agora procurava-a, remexendo no bolso, deixando-a cair e tateando freneticamente pela grama do círculo de pedras, encontrando-a finalmente e apertando o botão com um dedo que escorregou quatro vezes antes que ele finalmente conseguisse a força para acendê-la.

O facho de luz projetou-se abruptamente e ele ouviu uma exclamação abafada de surpresa, vinda de trás dele. Claro, pensou atordoadamente, William Buccleigh nunca vira uma lanterna. O facho de luz oscilante percorreu o círculo lentamente, e de volta. O que ele procurava? Pegadas? Algo que Jem tivesse deixado cair, que mostraria que ele viera para este lugar?

   Não encontrou nada.

   Nada além das pedras. Estava ficando pior, e ele deixou a lanterna cair, segurando a cabeça com as duas mãos. Tinha que se mover... tinha que ir... ir pegar Jem...

   Ele se arrastava pela grama, cego de dor e quase maquinalmente, quando mãos fortes o agarraram pelos tornozelos e o puxaram para trás. Achou ter ouvido uma voz, mas, se assim fosse, perdera-se na gritaria lancinante que ecoava dentro de sua cabeça, dentro de sua alma, e ele gritou o nome de seu filho com todas as forças para ouvir alguma coisa além daquele barulho, sentiu sua garganta se rasgar com o esforço, mas não ouviu nada.

   Então, a terra se abriu sob ele e o mundo despencou no abismo.

Despencou literalmente. Quando ele recobrou os sentidos algum tempo depois, viu que ele e William Buccleigh descansavam em uma cavidade rasa na encosta da colina, doze metros abaixo do círculo de pedras. Haviam caído e rolado; sabia disso pela maneira como se sentia e pela aparência de Buccleigh. A aurora começava a se insinuar pelo céu e ele pôde ver Buccleigh, arranhado e rasgado, sentado, agachado, ao seu lado, curvado sobre si mesmo como se sua barriga doesse.

   - O que...? - Roger murmurou. Limpou a garganta e tentou perguntar novamente o que acontecera, mas não conseguiu emitir mais do que um sussurro, e até mesmo isso fez sua garganta arder como fogo.

   William Buccleigh murmurou alguma coisa baixinho e Roger percebeu que ele rezava. Tentou se sentar e conseguiu, apesar de sua cabeça girar.

   - Você me puxou para fora? - quis saber, com um sussurro rouco. Os olhos de Buccleigh estavam fechados e permaneceram assim até terminar sua prece. Então, abriu-os e olhou de Roger para o alto da colina, onde as pedras ocultas de sua vista ainda entoavam sua canção fantasmagórica de outros tempos - nada mais dali, graças a Deus, do que um lamento estranho que fazia seus dentes rangerem.

   - Sim - Buccleigh respondeu. - Achei que não iria conseguir sozinho.

   - Não, não conseguiria. - Roger deixou-se estender no chão, zonzo e dolorido. - Obrigado - acrescentou instantes depois. Havia um grande vazio dentro dele, amplo como o céu cada vez mais claro.

   - Sim, bem. Talvez ajude a compensar por ter causado o seu enforcamento - Buccleigh disse, prontamente. - E agora?

   Roger fitou o céu, girando no alto devagar. Isso o deixou ainda mais tonto, de modo que ele fechou os olhos e estendeu a mão.

   - Agora, vamos para casa - grasnou roucamente. - Pensar melhor. Ajude-me a levantar.

 

                     VALLEY FORGE

- Denzell Hunter é um homem de grande consciência e princípio. Não posso convencê-lo a deixar o acampamento americano sem uma licença adequada de seu oficial. Acho que ele não viria. Mas se eu puder obter permissão, e acho que posso, então acredito que ele venha.

   Mas, para obter permissão formal para os serviços de um médico continental, obviamente ele tinha que pedir formalmente. O que significa ir ao quartel-general de inverno de Washington em Valley Forge de casaco vermelho, independente do que pudesse acontecer em seguida.

   Lorde John fechou os olhos por um instante, obviamente visualizando exatamente que tipo de coisa poderia acontecer em seguida, mas depois os abriu e disse energicamente:

   - Muito bem, então. Quer levar um criado com você?

   - Não - William disse, surpreso. - Para que precisaria de um?

   - Para cuidar dos cavalos, dos seus pertences... e para ser os olhos atrás de sua cabeça - seu pai disse, lançando-lhe um olhar indicando que ele já devia ter alguma ideia do que iria precisar. Portanto, ele não disse "Cavalos?" ou "Que pertences? -, mas meramente balançou a cabeça e disse:

   - Obrigado, papai. Pode me arranjar alguém adequado?

   "Adequado" veio a ser um tal de Colenso Baragwanath, um jovem mirrado da Cornualha que viera com as tropas de Howe como tratador de cavalos. Ele realmente conhecia cavalos, William reconhecia.

   Eram quatro cavalos e uma mula de carga, a última carregada com cortes de carne de porco, quatro ou cinco perus gordos, um saco de batatas, outro de nabos e um bom barril de cidra.

   - Se as condições lá forem tão ruins quanto eu acho que são - seu pai lhe dissera, enquanto supervisionava o carregamento da mula -, o comandante lhe concederia os serviços de metade de um batalhão em troca disso, quanto mais um médico.

   - Obrigado, papai - ele disse outra vez, montando na sela, seu novo gorjal de capitão em volta do pescoço e uma bandeira branca de trégua perfeitamente dobrada no alforje.

   Valley Forge parecia um gigantesco acampamento de carvoeiros amaldiçoados. O lugar era essencialmente uma terra para plantio de árvores, ou fora antes de os soldados de Washington começarem a derrubar tudo que estava à vista. Havia tocos por toda parte e o solo estava coberto de galhos quebrados. Enormes fogueiras ardiam aleatoriamente em diversos pontos e viam-se pilhas de toras cortadas. Estavam construindo cabanas o mais rápido possível - e já não era sem tempo, pois a neve começara a cair há três ou quatro horas e o acampamento já estava coberto de branco.

William esperava que pudessem ver a bandeira de trégua.

   - Certo, vá na minha frente - ele disse a Colenso, entregando ao rapaz a longa vara em que amarrara a bandeira branca. Os olhos do jovem arregalaram-se, horrorizados.

   - Eu?

   - Sim, você - Willie disse com impaciência. - Vá ou dou um chute no seu traseiro.

   As costas de William coçavam entre as espáduas quando entraram no acampamento, Colenso agachado como um macaco em cima do seu cavalo, segurando a bandeira o mais baixo que ousava segurar e murmurando estranhas imprecações em seu idioma córnico. A mão esquerda de William coçava também, querendo agarrar o punho de sua espada, o cabo de sua pistola. Mas ele fora desarmado. Se pretendessem atirar nele, o fariam de qualquer jeito, armado ou não, e vir desarmado era um sinal de boa-fé. Assim, ele jogou sua capa para trás, apesar da neve, para mostrar a ausência de armas, e entrou devagar no meio da tormenta.

As preliminares foram bem. Ninguém atirou nele e ele foi conduzido a um coronel Preston, um homem alto, esfarrapado, vestindo o que restara de um uniforme continental, que o olhou de viés, mas ouviu com surpreendente cortesia sua solicitação. A permissão foi concedida - mas sendo aquele o exército americano a permissão concedida não foi uma licença para levar o médico, mas para perguntar ao médico se ele queria ir.

   Willie deixou Colenso com os cavalos e a mula, com instruções rígidas de ficar de olhos abertos, e subiu a pequena colina onde haviam lhe dito que Denzell Hunter provavelmente estaria. Seu coração batia acelerado e não apenas do esforço. Na Filadélfia, ele tinha certeza de que Hunter viria a seu pedido.

Agora, já não tinha tanta certeza.

   Ele já lutara contra americanos, conhecia muitos que não eram, em nenhum aspecto, diferentes dos ingleses que haviam sido dois anos antes. Mas ele nunca atravessara um acampamento do exército americano antes.

   Parecia caótico, mas todos os acampamentos pareciam nos estágios iniciais, e ele podia perceber a ordem grosseira que de fato existia entre as pilhas de escombros e tocos de árvores abatidas sem qualquer esmero. Mas havia algo muito diferente naquele acampamento, algo quase exuberante. Os homens pelos quais ele passava estavam extremamente maltrapilhos; um em dez tinha sapatos, apesar das condições do tempo, e vários grupos amontoavam-se como mendigos em torno da fogueira, enrolados em cobertores, xales e restos de lonas de barracas e sacos de aniagem. No entanto, não se aglomeravam em um silêncio infeliz. Eles conversavam.

   Conversavam amistosamente, contando piadas, discutindo, afastando-se para ir urinar na neve, para bater os pés ao redor da fogueira para manter o sangue circulando. Ele já vira um acampamento com moral baixo, e aquele ali não era. O que era, tudo considerado, surpreendente. Presumia que Denzell Hunter estava com o mesmo ânimo. Assim sendo, ele consentiria em deixar seus companheiros? Não havia como saber, a não ser perguntando.

   Não havia nenhuma porta onde bater. Deu a volta em um pequeno grupo de pequenos carvalhos sem folhas que até agora haviam conseguido escapar do machado e encontrou Hunter agachado no chão, costurando um corte na perna de um sujeito estendido diante dele em um cobertor. Rachel Hunter segurava os ombros do ferido, a cabeça coberta pela touca inclinada sobre ele enquanto lhe dirigia palavras encorajadoras.

   - Eu não lhe disse que ele era rápido? - ela dizia. - Não mais do que trinta segundos, eu disse, e assim foi. Eu contei, não foi?

   - Você conta de uma maneira muito descansada, Rachel - o médico disse, sorrindo, enquanto estendia a mão para a tesoura e cortava o fio. - Um homem poderia dar três voltas ao redor da St. Paul em um dos seus minutos.

   - Bobagem - ela disse, suavemente. - Está terminado, de qualquer forma. Vamos, sente-se e beba um pouco de água. Você não... Ela se voltara para o balde ao seu lado e, ao fazê-lo, percebeu William parado lá. Sua boca abriu-se com o choque e logo estava de pé, atravessando a clareira correndo para abraçá-lo.

   Ele não esperava por isso, mas ficou encantado e retribuiu o abraço com grande afeto. Ela cheirava a seu próprio cheiro e a fumaça, e isso fez seu sangue correr mais rápido.

   - Amigo William! Pensei que nunca mais o veria - ela disse, dando um passo para trás, o rosto iluminado. - O que faz aqui? Porque eu acho que não veio se alistar - ela acrescentou, examinando-o de cima a baixo.

   - Não - ele disse, um pouco rispidamente. - Vim pedir um favor. A seu irmão - ele acrescentou, um pouco tardiamente.

   - Oh? Venha, então, ele já está terminando - Ela o conduziu a Denny, ainda olhando para ele com grande interesse.

   - Então, você é realmente um soldado britânico - ela observou. - Achávamos que devia ser, mas temíamos que pudesse ser um desertor. Estou contente que não seja.

   - É mesmo? - ele perguntou, sorrindo. - Mas certamente você preferiria que eu renegasse meu serviço militar e buscasse a paz?

   - É claro que eu gostaria que você buscasse a paz... e a encontrasse - ela disse, de modo prático. - Mas você não pode encontrar paz na quebra de um juramento e numa fuga ilegal, sabendo que sua alma estava mergulhada no erro e temendo por sua vida. Denny, veja quem chegou!

   - Sim, eu vi. Amigo William, fico feliz em vê-lo! - O dr. Hunter ajudou seu paciente recém-enfaixado a ficar de pé e veio ao encontro de William, sorrindo. - Ouvi você dizer que veio me pedir um favor. Se estiver ao meu alcance, considere feito.

   - Não vou cobrar essa promessa - William disse, sorrindo e sentindo um nó se desfazer na base de seu pescoço. - Mas ouça-me, e acho que concordará em vir.

   Como ele esperara, Hunter no começo ficou hesitante em deixar o acampamento. Não havia muitos médicos e com tantas doenças devido ao frio e ao excesso de gente... mais de uma semana poderia se passar até ele poder retornar ao acampamento... mas William sabiamente se manteve em silêncio, olhando apenas uma vez para Rachel e depois fitando Denzell diretamente nos olhos.

   - Vai preferir fazê-la permanecer aqui durante todo o inverno?

   - Quer que Rachel me acompanhe? - Hunter perguntou, imediatamente compreendendo o significado do olhar de William.

   - Eu irei com você quer ele queira ou não - Rachel ressaltou. - E ambos sabem disso perfeitamente.

   - Sim - Denzell disse indulgentemente -, mas achei mais educado perguntar. Além do mais, não é só uma questão de você vir. É que...

   William não ouviu o final da frase, pois um enorme objeto foi repentinamente atirado entre suas pernas por trás e ele emitiu um gritinho pouco másculo, dando um salto para frente e girando para ver quem o atacara dessa maneira covarde.

   - Sim, eu estava me esquecendo do cachorro - Rachel disse, ainda tranquila. - Ele já pode andar, mas não creio que aguente fazer a viagem à Filadélfia a pé. Você pode dar um jeito de transportá-lo?

   Ele reconheceu o cachorro de imediato. Sem dúvida, não podia haver dois iguais.

   - Este é o cachorro de Ian, não é? - ele perguntou, estendendo o punho fechado para o enorme animal cheirar. - Onde está o dono dele?

   Os Hunter trocaram um rápido olhar, mas Rachel respondeu prontamente.

   - Escócia. Ele foi à Escócia em uma missão urgente, com seu tio, James Fraser. Conhece o sr. Fraser? - Pareceu a William que os irmãos Hunter o olhavam um pouco intensamente demais, mas ele apenas balançou a cabeça e disse:

   - Eu o encontrei uma vez, há muitos anos. Por que o cachorro não foi para a Escócia com seu dono?

   Novamente, aquele olhar entre os dois. O que teria havido com Murray?, perguntou-se.

   - O cachorro se machucou, pouco antes de embarcarem. O amigo Ian foi muito gentil em deixar seu companheiro aos meus cuidados - Rachel disse calmamente. - Você consegue arranjar uma carroça, talvez? Acho que seu cavalo pode não gostar de Rollo.

Lorde John ajeitou a tira de couro entre os dentes de Henry. O rapaz estava quase inconsciente com uma dose de láudano, mas ainda tinha suficiente consciência do que se passava ao seu redor para dar a seu tio uma débil tentativa de sorriso. Grey podia sentir o terror pulsando através do corpo de Henry - e compreendia. Havia uma bola de serpentes venenosas em sua barriga, uma sensação escorregadia constante, pontuada por pontadas repentinas de pânico.

   Hunter insistira em amarrar os braços e pernas de Henry à cama, para que não houvesse nenhum movimento durante a operação. O dia estava brilhante; o sol cintilava da neve congelada que emoldurava as janelas, e a cama fora movida para aproveitar ao máximo essa luz.

   O dr. Hunter ouvira falar do rabdomante, mas dispensara educadamente a sua vinda, dizendo que aquilo cheirava a adivinhação e, se ele tivesse que pedir a ajuda de Deus nesta empreitada, achava que não poderia fazê-lo sinceramente se houvesse alguma coisa de feitiçaria no processo. Isso ofendera um pouco Mercy Woodcock, que bufou, mas se manteve em silêncio, alegre demais - e ansiosa demais - para discutir.

   Grey não era supersticioso, mas tinha uma mente prática e havia registrado cuidadosamente a localização da bala que o rabdomante encontrara. Explicou isso e com o relutante consentimento de Hunter pegou uma pequena régua e triangulou o local na barriga afundada de Henry, aplicando um pouco da fuligem preta da vela no lugar para assinalá-lo.

   - Creio que estamos prontos - Denzell disse e, aproximando-se da cama, colocou as mãos na cabeça de Henry e rezou rapidamente pedindo orientação e apoio para si mesmo, força e cura para Henry, e terminou reconhecendo a presença de Deus entre eles. Apesar de seus sentimentos puramente racionais, Grey sentiu uma pequena diminuição da tensão no quarto e sentou-se do lado oposto ao médico, com as serpentes em sua barriga sossegadas por enquanto.

   Segurou a mão flácida de seu sobrinho e disse calmamente:

   - Aguente firme, Henry. Não vou soltá-lo.

Foi rápido. Grey já vira cirurgiões militares trabalhando e sabia como eram rápidos, mas mesmo por esses parâmetros a velocidade e destreza de Denzell Hunter eram notáveis. Grey perdera qualquer noção de tempo, absorto no errático aperto dos dedos de Henry, no queixume estridente de seus gritos através da mordaça de couro e nos movimentos do médico, rapidamente brutais, depois fastidiosos enquanto ele espetava delicadamente, limpava e costurava.

   Ao terminar os últimos pontos, Grey respirou, ao que parecia pela primeira vez em horas, e viu pelo relógio de viagem no console da lareira que mal havia se passado um quarto de hora. William e Rachel Hunter estavam de pé junto à lareira, um pouco afastados para não atrapalhar, e ele notou com algum interesse que eles estavam de mãos dadas, os nós dos dedos tão lívidos quanto seus rostos.

   Hunter verificava a respiração de Henry, levantando suas pálpebras para examinar suas pupilas, enxugando as lágrimas e o muco de seu rosto, tocando embaixo de seu queixo para sentir seu pulso - Grey podia ver isso, fraco e irregular, mas ainda bombeando, um fio azul minúsculo sob a pele cor de cera.

   - Muito bem, muito bem, e graças ao Senhor que me deu forças - Hunter murmurava. - Rachel, você poderia trazer os curativos para mim?

   Rachel imediatamente desvencilhou-se de William e foi buscar a pilha perfeita de pequenas almofadas de gaze dobrada e tiras de linho, juntamente com um tipo de massa viscosa, ensopando de verde o pano em que estava enrolada.

   - O que é isso? - Grey perguntou, apontando.

   - Um emplastro que me foi recomendado por uma colega, a sra. Fraser. Já constatei que possui efeitos louváveis sobre ferimentos de todos os tipos - o médico assegurou-lhe.

   - Sra. Fraser? - Grey exclamou, surpreso. - Sra.James Fraser? Onde diab... quero dizer, onde o senhor encontrou essa senhora?

   - Em Fort Ticonderoga - foi a surpreendente resposta. - Ela e o marido estavam com o Exército Continental durante as batalhas de Saratoga.

   As serpentes na barriga de Grey despertaram abruptamente.

   - Está querendo me dizer que a sra. Fraser está agora em Valley Forge?

   - Oh, não. - Hunter sacudiu a cabeça, concentrado no curativo. - Poderia levantá-lo um pouco, amigo Grey? Preciso passar esta atadura por baixo... ah, sim, exatamente, obrigado. Não - ele retomou, endireitando-se e enxugando a testa, pois estava muito quente no quarto, com tanta gente e um fogo forte na lareira. - Não, os Fraser foram para a Escócia. Apesar de o sobrinho do sr. Fraser ter feito a gentileza de nos deixar seu cachorro - ele acrescentou, enquanto Rollo, curioso com o cheiro de sangue, levantou-se de seu lugar no canto e enfiou o focinho sob o cotovelo de Grey. Cheirou com interesse os lençóis sujos de sangue, para cima e para baixo do corpo nu de Henry. Em seguida, espirrou explosivamente, sacudiu a cabeça e voltou para o seu canto, onde prontamente se deitou, rolou de costas e relaxou, com as patas para o ar. - Alguém precisa ficar com ele nos próximos dias - Hunter dizia, limpando as mãos em um pano.

- Ele não deve ser deixado sozinho, caso pare de respirar. Amigo William - ele disse, virando-se para Willie seria possível encontrar um lugar para nós ficarmos? Devo ficar por perto por vários dias, de modo que eu possa vir visitá-lo regularmente para ver como está progredindo.

   William afirmou-lhe que isso já fora providenciado: uma hospedaria muito respeitável e - neste ponto ele olhou para Rachel - bem próxima. Deveria acompanhar os Hunter até lá? Ou levar a srta. Rachel, se seu irmão ainda não tivesse terminado inteiramente?

   Era evidente para Grey que nada teria agradado mais a Willie do que um passeio pela cidade reluzente de neve sozinho com a atraente quaker, mas a sra. Woodcock jogou água fria em seus planos observando que, na realidade, era Natal; ela não tivera tempo, nem a oportunidade de fazer uma grande refeição, mas os senhores e a senhorita não honrariam sua casa e o dia tomando um copo de vinho, para beber à recuperação do tenente Grey?

   Todos concordaram que essa era uma excelente ideia e Grey se ofereceu para ficar sentado com seu sobrinho enquanto iam buscar o vinho e os copos.

   Com tanta gente tendo saído repentinamente, o quarto ficou muito mais fresco. Quase frio, na verdade, e Grey puxou tanto o lençol quanto a colcha delicadamente sobre a barriga envolta em ataduras de Henry.

   - Você vai ficar bom, Henry - ele sussurrou, apesar dos olhos de seu sobrinho estarem fechados e ele achar que o rapaz devia estar dormindo - esperava que estivesse.

   Mas não estava. Os olhos de Henry se abriram devagar, as pupilas mostrando os efeitos do ópio; as pálpebras enrugadas mostrando a dor que o ópio não conseguia minorar.

   - Não, não vou - ele disse, com uma voz fraca e clara. - Ele só tirou uma. A segunda bala vai me matar.

   Seus olhos se fecharam outra vez, enquanto o som das aclamações do Natal subia as escadas. O cachorro suspirou.

Rachel Hunter colocou uma das mãos sobre o estômago, a outra sobre a boca e reprimiu um arroto que se formava.

   - A gula é um pecado - ela disse. - Mas um pecado que carrega seu próprio castigo. Acho que vou vomitar.

   - Todos os pecados fazem isso - seu irmão retrucou distraidamente, mergulhando a ponta de sua pena na tinta. - Mas você não é gulosa. Eu a vi comer.

   - Mas parece que vou explodir! - ela protestou. - E, além do mais, não posso deixar de pensar no pobre Natal que aqueles que deixamos em Valley Forge vão passar, em comparação com a... a... decadência de nossa refeição esta noite.

   - Bem, isso é culpa, não gula, e uma culpa falsa, além do mais. Você comeu não mais do que constituiria uma refeição normal; é só que você há meses não faz uma refeição decente. E acho que ganso assado talvez não seja a última palavra em decadência, mesmo quando recheado de ostras e castanhas. Agora, se fosse um faisão recheado de trufas ou um javali com uma maçã dourada na boca... - Sorriu para ela acima de seus papéis.

   - Você já viu essas coisas? - ela perguntou, curiosa.

   - Sim, já. Quando trabalhei em Londres com John Hunter. Ele frequentava a sociedade e de vez em quando me levava com ele para atender um caso e às vezes para acompanhar ele e sua mulher a alguma grande ocasião... muita gentileza dele. Mas não devemos julgar, você sabe, especialmente não pelas aparências. Mesmo aquele que parece muito frívolo, perdulário ou doidivanas ainda tem uma alma e valor perante Deus.

   - Sim - ela disse vagamente, sem prestar muita atenção. Afastou a cortina da janela, vendo a rua lá fora como uma mancha branca. Havia um lampião pendurado junto à porta de entrada da hospedaria que lançava um pequeno círculo de luz, mas a neve continuava a cair. Seu próprio rosto flutuava no vidro escuro da janela, fino e de olhos grandes, e ela franziu o cenho para a própria imagem, ajeitando uma mecha extraviada de cabelos escuros de volta para baixo da touca. - Acha que ele sabe? - ela perguntou abruptamente. - O amigo William?

   - Ele sabe o quê?

   - Sua surpreendente semelhança com James Fraser - ela disse, deixando a cortina cair. - Certamente você não acha que se trata de uma coincidência.

   - Acho que não é da nossa conta. - Denny retomou a escrita arranhada com sua pena.

   Ela deu um suspiro de exasperação. Ele tinha razão, mas isso não significava que ela estava proibida de observar e se perguntar. Sentira-se feliz - mais do que feliz - de ver William outra vez, e, apesar do fato de ele ser um soldado inglês ter vindo confirmar suas suspeitas, ficara extremamente surpresa ao verificar que ele era um oficial de alta patente. Muito mais do que surpresa de saber por intermédio de seu mal-encarado ajudante de ordens da Cornualha que ele era um lorde, embora a criatura não soubesse de que tipo.

   Entretanto, sem dúvida dois homens não podiam se parecer tanto se não tivessem o mesmo sangue em um grau muito próximo. Ela vira James Fraser muitas vezes e o admirava por sua dignidade alta e ereta, impressionando-se um pouco com a ferocidade de seu rosto, sempre sentindo aquela sensação de reconhecimento quando o via - mas foi somente quando William surgiu repentinamente diante dela no acampamento que ela compreendeu por quê. No entanto, como poderia um lorde inglês ter qualquer parentesco com um jacobita escocês, um criminoso perdoado? Pois Ian lhe contara um pouco de sua própria história familiar - embora não o suficiente; nem de longe o suficiente.

   - Está pensando em Ian Murray outra vez - seu irmão observou, sem levantar os olhos do papel. Parecia resignado.

   - Pensei que você repudiava a feitiçaria - ela disse com sarcasmo. - Ou você não inclui leitura da mente entre as artes da adivinhação?

   - Vejo que não nega. - Ergueu os olhos, então, empurrando os óculos para cima do nariz com um dedo, para vê-la melhor.

   - Não, não nego - ela disse, levantando o queixo. - Como soube, então?

- Você olhou para o cachorro e suspirou de uma maneira que revelava uma emoção geralmente não compartilhada entre uma mulher e um cachorro.

   - Hum! - ela disse, desconcertada. - Bem, e se eu realmente penso nele? Isso não é da minha conta? Imaginar como ele está, como sua família na Escócia o recebeu? Se ele sente que voltou para casa lá?

   - Se ele voltará? - Denny tirou os óculos e passou a mão pelo rosto. Ele estava cansado; podia ver o esforço do dia em suas feições.

   - Ele vai voltar - ela disse, sem alterar a voz. - Ele não abandonaria seu cachorro.

   Isso fez seu irmão rir, o que a aborreceu muito.

   - Sim, ele é bem capaz de voltar pelo cachorro - ele concordou. - E se ele voltar com uma esposa? - Sua voz era delicada agora e ela virou-se para a janela outra vez, para que ele não visse que a pergunta a perturbara. Não que ele precisasse ver para saber disso.

   - Pode ser melhor para você e para ele se isso acontecer, Rachel. - A voz de Denny ainda era suave, mas tinha um tom de aviso. - Você sabe que ele é um homem da violência.

   - O que preferia que eu fizesse, então? - ela retrucou rispidamente, sem se virar. - Casar-me com William?

   Houve um breve silêncio na direção da escrivaninha.

   - William? - Denny disse, parecendo ligeiramente surpreso. - Você gosta dele?

   - Eu... claro que tenho amizade por ele. E gratidão - acrescentou apressadamente.

   - Eu também - seu irmão observou. - No entanto, a ideia de você casar-se com ele não tinha passado pela minha cabeça.

   - Você é uma pessoa muito irritante - ela disse, virando-se e olhando-o furiosamente. - Não pode deixar de rir de mim por um dia ao menos?

   Ele abriu a boca para responder, mas um barulho do lado de fora atraiu sua atenção e ela voltou-se novamente para a janela, abrindo a pesada cortina. Seu hálito embaçou o vidro escuro e ela o esfregou impacientemente com a manga do casaco, a tempo de ver uma liteira embaixo. A porta da liteira se abriu e uma mulher saiu para o torvelinho de neve. Vestia peles e estava apressada; entregou uma bolsinha para um dos carregadores da liteira e correu para dentro da hospedaria.

   - Bem, isso é estranho - Rachel disse, virando-se para olhar primeiro para seu irmão e depois para o pequeno relógio que decorava seus quartos. - Quem vai fazer uma visita às nove horas na noite de Natal? Não pode ser um Amigo, não é? - Pois os Amigos não celebram o Natal e não achariam a data um impedimento para viajar, mas os Hunter não tinham nenhuma ligação - ainda não - com os Amigos de nenhuma congregação da Filadélfia.

   O barulho de passos nas escadas impediu a resposta de Denzell e um instante depois a porta do quarto abriu-se de par em par. A mulher envolta em peles ficou parada na soleira da porta, branca como suas peles.

   - Denny? - ela disse, com a voz embargada.

   Seu irmão levantou-se como se alguém tivesse aplicado uma brasa nos fundilhos de suas calças, e entornou a tinta.

   - Dorothea! - ele gritou e com um único salto já atravessara o aposento e abraçava apaixonadamente a mulher vestida de peles.

   Rachel ficou parada, paralisada. A tinta gotejava da escrivaninha sobre o tapete de lona pintada e ela achou que devia fazer alguma coisa a respeito, mas não fez. Continuou paralisada, boquiaberta. Achou que devia fechar a boca, e o fez.

   Repentinamente, compreendeu o impulso que fazia com que os homens blasfemassem sem nenhuma cerimônia.

Rachel pegou os óculos de seu irmão do chão e ficou parada segurando-os, aguardando que eles se desvencilhassem do abraço. Dorothea, ela pensou consigo mesma. Então esta é a mulher... mas certamente ela é a prima de William! William havia mencionado sua prima para ela quando viajavam de Valley Forge. Na verdade, a mulher estivera na casa quando Denny realizava a operação em... mas, então, Henry Grey devia ser irmão daquela mulher! Ela se escondera na cozinha quando Rachel e Denny foram à casa naquela tarde. Ora... Claro: não era timidez ou medo, mas a intenção de ficar cara a cara com Denny quando ele estava prestes a realizar uma operação perigosa.

   Com isso, a impressão que tinha da mulher ganhou alguns pontos, embora não estivesse ainda disposta a abraçá-la contra o peito e chamá-la de irmã. Duvidava de que a mulher também se sentisse assim em relação ela - embora, na realidade, talvez ainda nem tivesse percebido a presença de Rachel, quanto mais tirado conclusões a seu respeito.

   Denny soltou a mulher e deu um passo atrás, embora, pela expressão radiante de seu rosto, ele mal pudesse deixar de tocá-la.

   - Dorothea - ele disse. - O que você...

   Mas ele foi impedido de continuar; a jovem - ela era muito bonita, Rachel via agora - recuou um passo e deixou sua elegante capa de arminho cair no chão com um ruído suave e surdo. Rachel pestanejou. A jovem usava um saco de aniagem. Não havia nenhuma outra palavra para isso, apesar de que, agora que olhava, percebesse que tinha mangas. Mas era feito de um tecido rústico e cinzento, caindo reto dos ombros da jovem, mal tocando seu corpo em alguma parte.

   - Serei uma quaker, Denny - ela disse, erguendo um pouco o queixo. - Ja tomei minha decisão.

   O rosto de Denny se contorceu e Rachel achou que ele não sabia se ria, chorava ou cobria sua amada com a capa de arminho outra vez. Não gostando de ver a bela capa jogada no chão, Rachel abaixou-se e pegou-a.

   - Você... Dorothea - ele repetiu, sem saber o que dizer. - Tem certeza? Acho que você não sabe nada sobre os quakers.

   - Claro que sei. Você... vê Deus em todos os seres humanos, busca paz em Deus, repele a violência e usa roupas sem graça para não distrair a mente com as coisas fúteis do mundo. Não é isso? - Dorothea perguntou ansiosamente. Lady Dorothea, Rachel se corrigiu. William dissera que seu tio era um duque.

   - Bem... mais ou menos, sim - Denny disse, os lábios torcendo-se enquanto a olhava de cima a baixo. - Você mesma... fez esta roupa?

   - Sim, claro. Alguma coisa errada com ela?

   - Oh, não - ele disse, a voz soando um pouco estrangulada. Dorothea lançou-lhe um olhar penetrante, depois outro a Rachel, parecendo notar sua presença repentinamente.

   - O que há de errado com ela? - disse, apelando para Rachel, e Rachel viu seu pulso latejando no pescoço branco e roliço.

   - Nada - ela disse, reprimindo sua própria vontade de rir. - Mas os Amigos podem usar roupas ajustadas ao corpo. Você não precisa se enfear propositadamente, quero dizer.

   - Oh, compreendo. - Lady Dorothea olhou pensativamente para a saia e o casaco bem arrumados de Rachel, que podiam ser de tecido rústico de cor creme, mas que sem dúvida tinham um bom corte e lhe assentavam muito bem.

- Bem, então está certo - lady Dorothea disse. - Vou ajustá-lo um pouco aqui e ali. - Deixando de lado a questão, deu um passo à frente outra vez e tomou as mãos de Denny nas suas. - Denny - ela disse, suavemente. - Oh, Denny. Achei que nunca mais o veria.

   - Eu também - ele disse, e Rachel viu um novo esforço assomar ao seu rosto, uma luta entre o dever e o desejo, e seu coração se condoeu dele. - Dorothea... você não pode ficar aqui. Seu tio...

   - Ele não sabe que eu saí. Vou voltar - Dorothea garantiu-lhe. - Depois que tivermos acertado as coisas entre nós.

   - Acertado as coisas - ele repetiu e, com notável esforço, retirou as mãos das suas. - Quer dizer...

   - Aceita um pouco de vinho? - Rachel interpôs pegando a garrafa que a criada deixara para eles.

   - Sim, obrigada. Ele também tomará um pouco - Dorothea disse, sorrindo para Rachel.

   - Acho que ele vai precisar - Rachel murmurou, com um olhar para seu irmão.

   - Dorothea... - Denny disse, desamparado, passando a mão pelos cabelos.

- Sei o que pretende. Mas não é apenas uma questão de você se tornar uma Amiga... presumindo-se que isso seja... seja... possível.

   Ela empertigou-se, orgulhosa como uma duquesa.

   - Duvida de minha convicção, Denzell Hunter?

   - Hã... não exatamente. Só acho que talvez você não pensou bem no assunto.

   - É o que você pensa! - Um rubor inundou as faces de lady Dorothea e ela olhou fixamente para Denny. - Saiba que eu não fiz outra coisa senão pensar, desde que você deixou Londres. Como você acha que eu consegui chegar aqui?

   - Conspirou para que atirassem na barriga de seu irmão? - Denny perguntou. - Parece um pouco cruel e talvez sem sucesso garantido.

   Lady Dorothea inspirou profundamente duas ou três vezes pelo nariz, fitando-o sem piscar.

   - Agora, veja bem - ela disse, em um tom de voz comedido -, se eu não fosse uma perfeita quaker, eu lhe daria um tapa. Mas não dei, não é? Obrigada, querida - ela disse a Rachel, pegando o copo de vinho. - Você é irmã dele, não?

   - Não, não deu - Denny admitiu cautelosamente, ignorando Rachel. - Mas mesmo aceitando, para fins de discussão - ele acrescentou, com um vislumbre de seu eu costumeiro -, que Deus de fato lhe falou e disse que você deve se unir a nós, isso ainda deixa a pequena questão de sua família.

   - Não há nada em seus princípios de fé que exija que eu tenha a permissão do meu pai para me casar - ela retrucou rispidamente. - Eu me informei.

   Denny pestanejou.

   - Quem?

   - Priscilla Unwin. É uma quaker que eu conheço em Londres. Você também a conhece, eu acho; ela disse que você lancetou um furúnculo no traseiro do irmãozinho dela.

   Nesse ponto, Denny percebeu - talvez porque os olhos de seu irmão estivessem esbugalhados para Dorothea, Rachel pensou, sem achar graça - que estava sem os óculos. Ele estendeu um dedo para empurrá-lo mais para cima no cavalete do nariz, depois parou e olhou ao redor, estreitando os olhos. Com um suspiro, Rachel deu um passo à frente e colocou-os em seu nariz. Em seguida, pegou o segundo copo de vinho e entregou-o a ele.

   - Ela tem razão - disse a ele. - Você precisa deles.

- Obviamente - lady Dorothea disse -, não estamos chegando a lugar algum. - Ela não parecia uma mulher acostumada a não chegar a lugar algum, Rachel pensou, mas está mantendo um bom controle sobre seu gênio. Por outro lado, estava longe de ceder à insistência de Denny para que ela voltasse para a casa de seu tio. - Não vou voltar - ela disse, em um tom de voz moderado -, porque, se eu o fizer, você vai fugir para o Exército Continental em Valley Forge, onde acha que eu não o seguirei.

   - Você não faria isso, não é? - Denny disse, e Rachel achou ter divisado um fio de esperança na pergunta, mas ela não sabia ao certo que tipo de esperança era.

   Lady Dorothea cravou nele um olhar azul e arregalado.

   - Eu o segui através de um maldito oceano inteiro. Você acha que um maldito exército pode me impedir?

   Denny esfregou o nó de um dedo pelo cavalete do nariz.

   - Não - ele admitiu. - Acho que não. É por isso que eu não fui. Não quero que você me siga.

   Lady Dorothea engoliu de forma audível, mas corajosamente manteve o queixo erguido.

   - Por quê? - ela disse, e sua voz estremeceu apenas um pouco. - Por que não quer que eu o siga?

   - Dorothea - ele disse, o mais delicadamente possível. - Deixando de lado o fato de que ir comigo a colocaria como rebelde e em conflito com sua família, trata-se de um exército. Mais ainda, de um exército muito pobre, que não tem nenhum conforto imaginável, inclusive roupas, roupas de cama, sapatos e comida. Além disso, é um exército à beira do desastre e da derrota. Não é um lugar adequado para você.

   - E é um lugar adequado para sua irmã?

   - Na verdade, não é - ele disse. - Mas... - Parou, obviamente percebendo que estava prestes a cair em uma armadilha.

   - Mas não pode me impedir de ir com você. - Rachel completou a frase por ele, meigamente. Não tinha muita certeza se deveria ajudar aquela mulher estranha, mas admirava a determinação de lady Dorothea.

   - E também não pode me impedir - Dorothea disse com firmeza.

   Denny esfregou três dedos com força entre as sobrancelhas, fechando os olhos como se estivesse sofrendo.

   - Dorothea - ele disse, deixando cair a mão e empertigando-se. - Tenho a vocação de fazer o que faço e é uma questão entre mim e Deus. Rachel vem comigo não só porque é cabeça-dura, mas também porque ela é minha responsabilidade; ela não tem outro lugar para ir.

   - Eu tenho também! - Rachel disse, fervorosamente. - Você disse que encontraria um lugar seguro com o Amigos, se eu quisesse. Eu não quis e não quero.

   Antes que Denny pudesse vir com outra resposta, lady Dorothea estendeu a mão em um dramático gesto de comando, paralisando-o.

   - Tenho uma ideia - ela disse.

   - Temo muito perguntar qual é - Denny disse, parecendo falar com grande sinceridade.

   - Eu não - Rachel disse. - Qual é?

   Dorothea olhou de um para o outro.

   - Eu fui a uma reunião quaker. Duas, na realidade. Sei como é. Vamos realizar uma reunião e pedir a Deus para nos orientar.

   Denny ficou boquiaberto, para grande diversão de Rachel, que raramente era capaz de deixar seu irmão sem fala, mas começava a apreciar ver Dorothy fazer isso.

   - Isso - ele começou, parecendo perplexo.

   - E uma excelente ideia - Rachel disse, já puxando outra cadeira para perto da lareira.

   Denny mal pôde argumentar. Visivelmente desconcertado, ele se sentou, embora Rachel tenha percebido que ele colocou-a entre Dorothea e si mesmo. Ela não sabia se ele tinha medo de ficar muito perto de Dorothea, no caso do poder de sua presença dominá-lo, ou se era apenas o fato de que se sentar do outro lado da lareira, mais longe dela, lhe desse um ângulo de visão melhor.

   Todos se acomodaram devagar, remexendo-se um pouco para ficar mais confortável, e caíram em silêncio. Rachel fechou os olhos, vendo a vermelhidão quente do fogo por dentro de suas pálpebras, sentindo o conforto do seu calor em suas mãos e pés. Agradeceu silenciosamente por isso, lembrando-se do constante frio que passavam no acampamento, as unhas dos dedos das mãos e dos pés congeladas, e o tremor contínuo, que diminuía, mas não parava, quando ela se enrolava em seus cobertores à noite e deixava seus músculos fatigados e doloridos. Não era de admirar que Denny não quisesse que Dorothea fosse com eles. Ela não queria voltar, daria quase qualquer coisa para não voltar - qualquer coisa que não o bem-estar de Denny. Ela detestava sentir fome e frio, mas seria muito pior estar aquecida e bem-alimentada, sabendo que ele sofria sozinho.

   Será que lady Dorothea fazia ideia de como seria?, perguntou-se, e abriu os olhos. Dorothea estava sentada em silêncio, mas ereta, as mãos graciosas entrelaçadas no colo. Imaginava que Denny estivesse, assim como Rachel estava, visualizando aquelas mãos avermelhadas e manchadas de frieiras, aquele rosto adorável macilento de fome e sujo de poeira e fuligem.

   Os olhos de Dorothea estavam ensombreados pelas pálpebras, mas Rachel tinha certeza de que ela estava olhando para Denny. Aquilo era um jogo arriscado da parte de Dorothea, pensou. Pois, e se Deus falasse com Denny e dissesse que era impossível, que ele tinha que mandá-la embora? E se Deus falasse com Dorothea agora, pensou repentinamente, ou se já tivesse falado? Rachel ficou desconcertada com a ideia. Não que os Amigos pensassem que o Senhor só falasse a eles; é só que achavam que as outras pessoas geralmente não ouviam.

   Ela mesma teria ouvido? Com toda a honestidade, era forçada a admitir que não. E sabia por quê: por não querer ouvir o que sabia que iria ouvir - que deveria se afastar de Ian Murray e esquecer os pensamentos que aqueciam seu corpo e seus sonhos na floresta gelada. Aqueciam tanto que às vezes ela acordava com a certeza de que se pusesse a mão para fora, na neve que caía, esta chiaria e desapareceria da palma de sua mão.

   Engoliu com força e fechou os olhos, tentando se abrir para a verdade, mas tremendo de medo de ouvi-la.

   Tudo que ouviu, entretanto, foi um ruído arquejante, e um instante deppois o nariz úmido de Rollo enfiou-se em sua mão. Desconcertada, ela afagou suas orelhas. Certamente, não era adequado fazer isso no meio de uma reunião, mas ele iria continuar esfregando o focinho em sua mão até ela ceder, sabia. Ele semicerrou os olhos amarelos de prazer e descansou a cabeça pesada em seu joelho.

   O cachorro o ama, ela pensou, afagando os pelos ásperos e grossos. Ele pode ser mau, sendo assim? Não foi Deus quem ela ouviu em resposta, mas seu irmão, que certamente diria: "Apesar de os cachorros serem criaturas de valor, não creio que sejam bons juizes de caráter."

   Mas eu sou, ela pensou consigo mesma. Sei quem ele é... e também o conheço pelo que ele possa ser. Olhou para Dorothea, imóvel em seu largo vestido cinzento. Lady Dorothea Grey estava disposta a abandonar sua vida prévia, e muito provavelmente sua família, para se tornar uma Amiga, por Denny. Não poderia ser, perguntou-se, que Ian Murray deixasse a violência por ela?

   Bem, esse é um pensamento arrogante, ela repreendeu a si mesma. Que tipo de poder você acha que tem, Rachel Mary Hunter? Ninguém tem esse tipo de poder, a não ser Deus.

   Mas o Senhor de fato tinha. E se Deus assim desejasse, tudo era possível. Rollo balançou o rabo devagar, batendo três vezes no assoalho.

   Denzell Hunter endireitou-se um pouco em seu banco. Foi um movimento quase imperceptível, mas, vindo como veio do meio da absoluta imobilidade, surpreendeu as duas mulheres, que ergueram a cabeça como pássaros surpresos.

   - Eu a amo, Dorothea - ele disse. Falou muito devagar, mas seus olhos meigos ardiam por trás dos óculos, e Rachel sentiu seu peito doer. - Quer se casar comigo?

 

                     SEPARAÇÃO E REENCONTRO

20 de abril de 1778

No que diz respeito a viagens transatlânticas - e após nossas aventuras com o capitão Roberts, Hickman e Stebbings, eu me considerava algo como uma connoisseur em desastres marítimos -, a travessia para a América foi bastante maçante. Na verdade, tivemos um pequeno atrito com um navio de guerra britânico, mas felizmente o deixamos para trás, enfrentamos dois vendavais e uma tempestade, mas felizmente não naufragamos, e, apesar da comida ser execrável, eu estava distraída demais para fazer algo além de tirar gorgulhos do biscoito antes de comê-lo.

   Metade da minha mente estava no futuro: a precária situação de Fergus e Marsali, o perigo da condição de Henri-Christian e a logística de lidar com o problema. A outra metade - bem, para ser justa, sete oitavos - ainda estava em Lallybroch com Jamie.

   Sentia-me machucada e ferida em carne viva. Com alguma parte vital extirpada, como sempre quando me separava de Jamie por muito tempo, mas também como se eu tivesse sido violentamente ejetada de meu lar, como uma craca arrancada de sua rocha e negligentemente atirada na arrebentação.

   A maior parte disso, pensei, era a iminente morte de Ian. Ele era uma parte tão vital de Lallybroch, sua presença ali tão constante e tão reconfortante para Jamie todos esses anos, que a sensação de sua perda era de certa forma a perda da própria Lallybroch. Estranhamente, as palavras de Jenny, injuriosas como possam ter sido, não me perturbavam realmente; eu conhecia muito bem a dor desesperadora, que se transformava em fúria, porque essa era a única maneira de continuar vivendo. E, na verdade, eu também compreendia seus sentimentos, porque os compartilhava: irracional ou não, eu também sentia que deveria ter sido capaz de ajudar Ian. De que adiantava todo o meu conhecimento, toda a minha capacidade, se eu não podia ajudar quando a ajuda era realmente vital?

   Mas havia uma outra sensação de perda - e uma outra perturbadora sensação de culpa - no fato de que eu não poderia estar lá quando Ian morresse, que eu tenha tido que deixá-lo pela última vez, sabendo que não o veria mais, incapaz de lhe oferecer conforto, ou de estar com Jamie ou sua família quando o golpe fosse desfechado, ou mesmo simplesmente testemunhar seu falecimento.

   O Jovem Ian também sentia isso, em grau ainda maior. Eu sempre o achava sentado perto da popa, olhando fixamente para o rastro do navio com olhos transtornados.

   - Acha que ele já se foi? - ele me perguntou abruptamente em certa ocasião, quando fui me sentar ao seu lado ali. - Papai?

   - Não sei - eu lhe disse honestamente. - Eu creio que sim, com base no estágio de sua doença... mas as pessoas às vezes surpreendem. Quando é o aniversário dele, você sabe?

   Ele olhou para mim, confuso.

   - E em algum dia de maio, perto do aniversário de tio Jamie. Por quê?

   Dei de ombros e me enrolei mais no meu xale contra a friagem do vento.

   - Geralmente, as pessoas que estão muito doentes, mas estão perto de seu aniversário, parecem esperar até ele passar antes de morrerem. Li um estudo sobre isso certa vez. Por alguma razão, é mais provável se a pessoa for famosa ou bem conhecida.

   Isso o fez rir, ainda que dolorosamente.

   - Papai nunca foi isso. - Suspirou. - No momento, eu acho que deveria ter ficado com ele. Sei que ele disse para eu vir... e eu queria vir - acrescentou de modo justo. - Mas me sinto mal por ter vindo.

   Suspirei.

   - Eu também.

   - Mas você tinha que vir - ele protestou. - Não podia deixar o pequeno Henri-Christian morrer sufocado. Papai entenderia isso. Sei que entendeu.

   Sorri à ansiosa tentativa de me fazer sentir melhor.

   - Ele também compreendeu por que você tinha que partir.

   - Sim, eu sei. - Ele ficou em silêncio por uns instantes, observando o sulco do rastro do navio; era um dia límpido, com um ar revigorante, e o navio singrava bem as águas, embora o mar estivesse agitado, salpicado de cristas espumantes. - Gostaria - ele disse de repente, depois parou e engoliu em seco. - Gostaria que papai tivesse conhecido Rachel - ele disse, a voz baixa. - Quisera que ela pudesse conhecê-lo.

   Fiz um ruído solidário. Lembrei-me muito vividamente dos anos em que vi Brianna crescer, sofrendo porque ela jamais conheceria seu pai. E então um milagre acontecera - mas não aconteceria para Ian.

   - Sei que você contou sobre a Rachel para seu pai. Ele me disse isso e estava muito feliz em saber. - Isso o fez sorrir um pouco. - Você falou a Rachel sobre seu pai? Sua família?

   - Não. - Ele pareceu surpreso. - Não, nunca falei.

   - Bem, você precisa falar... O que foi? - Ele franziu a testa e sua boca se curvou para baixo.

   - Eu... na verdade, nada. É que acabo de pensar... eu nunca contei nada a ela. Quero dizer, nós... não conversamos realmente, sabe? Quero dizer, eu lhe dizia algumas coisas de vez em quando, e ela também, mas somente de uma maneira normal, como todo mundo. E então nós... eu a beijei e... bem, isso foi tudo. - Fez um gesto de desalento. - Mas eu nunca perguntei a ela. Eu tinha certeza.

   - E agora não tem?

   Ele sacudiu a cabeça, os cabelos castanhos voando ao vento.

   - Oh, não, tia. Tenho certeza do que existe entre nós como eu tenho de... de... - Ele olhou ao redor em busca de algum símbolo de solidez no convés oscilante, mas desistiu. - Bem, tenho mais certeza de como me sinto do que tenho de que o sol se levantará amanhã.

   - Tenho certeza de que ela sabe disso.

   - Sim, sabe - ele disse, com voz mais branda. - Sei que sabe.

   Permanecemos sentados em silêncio por mais algum tempo. Então, levantei-me e disse:

   - Bem, neste caso... talvez você deva rezar uma prece para o seu pai e depois ir sentar-se perto da proa.

Eu já estivera na Filadélfia uma ou duas vezes no século XX, em congressos médicos. Eu não gostara do lugar na época, achando-o sujo e inóspito. Era diferente agora, porém não muito mais atraente. As ruas que não eram pavimentadas com paralelepípedos eram verdadeiros mares de lama e as ruas que por fim iriam ficar ladeadas de fileiras de conjuntos residenciais caindo aos pedaços, com quintais cheios de lixo, brinquedos de plástico quebrados e peças de motocicletas, estavam agora orladas com casebres em ruínas, quintais cheios de lixo, conchas de ostras descartadas e cabras amarradas. É bem verdade que não havia nenhum policial bravo, de uniforme preto, à vista, mas os pequenos criminosos ainda eram os mesmos, e ainda visíveis, apesar da presença ostensiva do exército britânico; casacos vermelhos formavam enxames nas portas das tavernas e colunas em marcha passaram pela carroça, os mosquetes nos ombros.

   Era primavera. Isso eu tinha que reconhecer. Havia árvores por toda parte, graças ao pronunciamento formal de William Penn de que um acre em cinco deveria ser deixado com árvores - nem mesmo os gananciosos políticos do século XX não haviam conseguido deflorestar inteiramente o lugar, embora provavelmente apenas porque não descobriam um meio de lucrar com isso sem ser pegos -, e muitas das árvores estavam floridas, confetes de pétalas brancas caindo sobre os lombos dos cavalos conforme a carroça entrava na cidade propriamente dita.

   Uma patrulha militar fora instalada na principal estrada de entrada na cidade; ela nos parou, exigindo salvo-conduto do condutor e dos dois passageiros homens. Eu colocara uma touca adequada, não olhei ninguém nos olhos e murmurei que eu estava vindo do interior para cuidar de minha filha, que estava prestes a dar à luz. Os soldados olharam rapidamente dentro do enorme cesto de comida que eu carregava no colo, mas nem olharam meu rosto antes de mandarem a carroça prosseguir. Respeitabilidade tinha suas vantagens. Perguntei-me distraidamente quantos chefes de espiões tinham pensado em usar senhoras de idade. Não se ouvia falar de mulheres idosas como espiãs - mas, por outro lado, isso poderia apenas indicar o quanto elas eram boas no que faziam.

   A gráfica de Fergus não ficava no bairro mais elegante, mas não ficava longe, e fiquei satisfeita de ver que era um sólido prédio de tijolos vermelhos, em meio a uma fileira de casas sólidas e agradáveis como a loja. Não havíamos escrito avisando que viríamos; eu teria chegado ao mesmo tempo da carta. Com o coração enlevado, abri a porta.

   Marsali estava de pé junto ao balcão, separando pilhas de papéis. Ela ergueu os olhos quando o sino acima da porta soou, pestanejou, depois ficou me olhando boquiaberta.

   - Como vai, querida? - eu disse e, colocando minha cesta no chão, corri para suspender a tampa da passagem pelo balcão e abraçá-la.

   Ela parecia um zumbi, apesar de seus olhos terem se iluminado com um intenso alívio ao me ver. Ela praticamente se deixou cair em meus braços e irrompeu em lágrimas. Bati de leve em suas costas, dizendo palavras tranquilizadoras e me sentindo um pouco alarmada. Suas roupas caíam frouxamente no corpo e ela cheirava a ranço, os cabelos sem lavar há muito tempo.

   - Vai dar tudo certo - repeti com firmeza pela duodécima vez. Ela parou de soluçar e recuou um passo, tateando no bolso à cata de um lenço. Levei um choque ao ver que ela estava grávida outra vez.

   - Onde está Fergus? - perguntei.

   - Não sei.

   - Ele a deixou?! - disse num rompante, horrorizada. - Ora, o desgraçado...

   - Não, não - ela disse apressadamente, quase rindo através das lágrimas. - Ele não me deixou, de jeito nenhum. É que ele está escondido, ele muda de lugar constantemente e eu não sei em qual deles ele está no momento. As crianças o encontrarão.

   - Por que ele está se escondendo? Não que eu precise perguntar, imagino - eu disse, com um olhar à máquina impressora negra, baixa e sólida, que se via atrás do balcão. - Mas algum motivo específico?

   - Sim, um pequeno panfleto para o sr. Paine. Ele tem uma série em andamento, sabe, chamada "A crise americana".

   - Sr. Paine... O sujeito do Senso Comum?

   - Sim, ele mesmo - ela disse, fungando e limpando os olhos. - Ele é um bom homem, mas você não vai querer beber com ele, segundo Fergus. Sabe como alguns homens são meigos e gentis quando estão bêbados, mas alguns ficam insanos e querem partir para a luta cantando a marcha de Bonnie Dundee sem nem mesmo serem escoceses?

   - Oh, esse tipo. Sim, conheço bem. Com quanto tempo você está? - perguntei, mudando para um assunto de interesse geral. - Não deveria se sentar? Não deveria ficar em pé durante muito tempo.

   - Com quanto...? - Ela pareceu surpresa e colocou a mão involuntariamente onde eu estava olhando, em sua barriga ligeiramente protuberante. Então, ela riu. - Oh, isso. - Ela enfiou a mão sob seu avental e retirou uma bolsa de couro volumosa que amarrara ao redor da cintura. - Para fugir - ela explicou. - Caso ateiem fogo à casa e eu tenha que fugir com as crianças.

   A bolsa era surpreendentemente pesada quando a tirei de sua cintura, e ouvi tinidos abafados no fundo, sob a camada de papéis e pequenos brinquedos de criança.

   - O Caslon Itálico 24? - perguntei, e ela sorriu, no mesmo instante se livrando de dez anos.

   - Tudo, exceto o "X". Tive que derretê-lo e trocá-lo por dinheiro no ourives para comprar comida, depois que Fergus partiu. Mas ainda há um "X" aí dentro, veja bem - ela disse, pegando a bolsa de volta -, mas este é de chumbo mesmo.

   - Teve que usar o Goudy Negrito 10? - Jamie e Feigus haviam moldado dois conjuntos completos de tipos com o ouro, estes depois esfregados com fuligem e recobertos de tinta até ficarem imperceptíveis entre os muitos conjuntos de tipos de chumbo genuínos na caixa de tipos que ficava discretamente contra a parede atrás da impressora.

   Ela sacudiu a cabeça e estendeu a mão para pegar a bolsa de volta.

   - Fergus o levou com ele. Pretendia enterrá-lo em local seguro, por via das dúvidas. Você parece bastante cansada da viagem, mamãe Claire - ela continuou, inclinando-se para frente para me ver melhor. - Quer que eu mande Joanie ao restaurante para trazer uma jarra de sidra?

   - Seria maravilhoso - eu disse, ainda um pouco zonza com as revelações dos últimos minutos. - E Henri-Christian... como vai ele? Está aqui?

   - Lá no fundo com seu amigo, eu acho - ela disse, levantando-se. - Eu vou chamá-lo. Ele está um pouco cansado, coitado, por não dormir bem, e sua garganta está em tal estado que ele soa como um sapo resfriado. Mas isso não o desanima muito, posso lhe afirmar. - Ela sorriu, apesar do cansaço, e atravessou a porta que levava aos aposentos da família, chamando "Henri-Christian!".

   Caso ateiem fogo à casa. Quem?, perguntei-me com um calafrio. O exército britânico? Legalistas? E como Marsali estava conseguindo administrar um negócio e uma família sozinha, com um marido escondido e uma criança doente que não podia ser deixada sozinha enquanto dormia? O horror de nossa situação, ela dissera na carta a Laoghaire. E isso fora há meses, quando Fergus ainda estava em casa.

   Bem, ela não estava sozinha agora. Pela primeira vez desde que deixara Jamie na Escócia, senti algo mais do que a força da triste necessidade em minha situação. Escreveria para ele esta noite, decidi. Ele poderia - esperava que pudesse - deixar Lallybroch antes de minha carta chegar lá, mas, se assim fosse, Jenny e o resto da família ficariam contentes em saber o que estava acontecendo ali. E se por acaso Ian ainda estivesse vivo... mas eu não queria pensar nisso; saber que sua morte significaria a liberação de Jamie para vir ao meu encontro fazia-me sentir um espírito do mal, como se eu desejasse que sua morte acontecesse mais cedo. Embora, com toda a honestidade, eu acreditasse que o próprio Ian preferisse que não se demorasse.

   Esses pensamentos mórbidos foram interrompidos pelo retorno de Marsali, Henri-Christian saltitando ao seu lado.

   - Grandmère! - ele gritou, ao me ver, e pulou nos meus braços, quase me derrubando. Era um menino muito compacto.

   Ele esfregou o nariz em mim carinhosamente e eu senti uma notável onda de ternura ao vê-lo. Beijei-o e abracei-o furiosamente, sentindo o buraco deixado em meu coração pela partida de Mandy e Jem encher-se um pouco. Isolada da família de Marsali na Escócia, eu quase havia me esquecido de que ainda tinha quatro lindos netos e fiquei grata por ser lembrada disso.

   - Quer ver um truque, grandmère? - Henri-Christian coaxou ansiosamente. Marsali tinha razão; ele realmente soava como um sapo resfriado. Mas balancei a cabeça e, pulando do meu colo, ele retirou três sacolinhas de couro cheias de farelo de trigo do bolso e começou imediatamente a fazer malabarismos com grande destreza.

   - Seu pai lhe ensinou - Marsali disse, com certo orgulho.

   - Quando eu for grande como Germain, meu pai vai me ensinar a bater carteira também!

   Marsali soltou um suspiro e cobriu a boca com a mão.

   - Henri-Christian, nunca fale disso - ela disse, severamente. - A ninguém. Está me ouvindo?

   Ele olhou para mim, confuso, mas assentiu obedientemente.

   O calafrio que eu sentira anteriormente retornou. Germain estaria batendo carteira profissionalmente, por assim dizer? Olhei para Marsali, mas ela sacudiu ligeiramente a cabeça; falaríamos sobre isso mais tarde.

   - Abra a boca e ponha a língua para fora, querido - sugeri a Henri-Christian. - Deixe a vovó ver sua garganta... parece muito inflamada.

   - Hong, hong, hong - ele rosnou, com um largo sorriso, mas obedientemente abriu a boca. Um cheiro ligeiramente pútrido flutuou de sua boca aberta e, mesmo não dispondo de um instrumento com luz para exame, pude ver que as amídalas inchadas quase obstruíam completamente sua garganta.

   - Santo Deus - eu disse, virando sua cabeça de um lado para o outro para ver melhor. - Surpreende-me que ele consiga comer, quanto mais dormir.

   - As vezes, ele não consegue - Marsali disse, e eu ouvi a tensão em sua voz. - Em geral, ele não consegue engolir nada, a não ser um pouco de leite e mesmo isso são como facas em sua garganta, pobrezinho. - Ela agachou-se ao meu lado, alisando e afastando os belos cabelos escuros de Henri-Christian de seu rosto corado. - Acha que pode ajudar, mamãe Claire?

   - Oh, sim - eu disse, com muito mais confiança do que realmente sentia. - Sem dúvida.

   Senti a tensão se esvair dela como água e, como se fosse uma drenagem literal, as lágrimas começaram a escorrer silenciosamente pelo seu rosto. Ela puxou a cabeça de Henri-Chistian para o seu peito para que ele não a visse chorar, e eu estendi os braços para envolver ambos em um abraço, repousando minha face contra sua cabeça coberta pela touca, sentindo o cheiro rançoso e almiscarado de seu terror e exaustão.

   - Está tudo bem agora - eu disse suavemente, afagando suas costas magras. - Eu estou aqui. Você pode dormir.

Marsali dormiu o resto do dia e a noite inteira. Eu estava cansada da viagem, mas consegui cochilar na cadeira de braços junto ao fogo da cozinha, Henri-Christian aninhado em meu colo, roncando pesadamente. Ele de fato parou de respirar, uma ou duas vezes durante a noite, e apesar de eu ter conseguido fazê-lo retomar a respiração sem nenhuma dificuldade, pude ver que algo tinha que ser feito imediatamente. Em consequência, tirei um rápido cochilo de manhã e, depois de lavar o rosto e comer um pouco, saí em busca do que precisava.

   Eu tinha os mais rudimentares instrumentos médicos comigo, mas o fato era que a extirpação de amídalas e adenóides não requeriam nada complexo nessa linha.

   Quisera que Ian tivesse vindo à cidade comigo; ele me seria útil, e a Marsali também. Mas era perigoso para um homem de sua idade; ele não podia entrar abertamente na cidade sem ser parado e questionado por patrulhas britânicas, provavelmente preso por aparência suspeita - o que ele sem dúvida tinha. Fora isso... ele estava ansioso para procurar Rachel Hunter.

   A tarefa de encontrar duas pessoas - e um cachorro - que podiam estar praticamente em qualquer lugar entre o Canadá e Charleston, sem nenhum meio de comunicação além dos pés e da palavra, teria desalentado qualquer um menos teimoso do que alguém de sangue Fraser. No entanto, por mais amável que ele pudesse ser, Ian era tão capaz quanto Jamie de perseguir um rumo traçado, custasse o que custasse e independente de sugestões sensatas.

   Ele tinha, como ressaltou, uma vantagem. Denny Hunter provavelmente ainda era um médico do exército. Se assim fosse, ele estaria obviamente com o Exército Continental - alguma parte do Exército Continental. Assim, a ideia de Ian era descobrir onde estaria a parte do exército mais próxima no momento e começar suas investigações ali. Para esse fim, ele pretendia esgueirar-se pela periferia de Filadélfia, entrando sorrateiramente em tavernas e bares ilegais nas cercanias da cidade e, por meio dos mexericos locais, descobrir onde uma parte do exército estava no momento.

   O máximo que consegui persuadi-lo a fazer foi mandar notícias para a gráfica de Fergus dizendo-nos para onde estava indo, quando descobrisse alguma coisa que lhe desse um destino.

   Enquanto isso, tudo que eu podia fazer era uma pequena prece para seu anjo da guarda - um ser muito atarefado -, depois dar uma palavrinha com o meu próprio (que eu imaginava como uma espécie de figura de avó, com uma expressão ansiosa) e dedicar-me a fazer o que viera fazer.

   Agora eu caminhava pelas ruas lamacentas, refletindo sobre os procedimentos. Eu só fizera uma cirurgia para retirada das amídalas uma vez - bem, duas, se contasse os gêmeos Beardsley separadamente - nos últimos dez anos. Normalmente, era um procedimento rápido, sem complexidades, mas por outro lado não era normalmente realizado em uma gráfica escura em um anão com as vias respiratórias contraídas, sinusite e um abscesso na região das amídalas.

   Ainda assim, eu não precisava fazer isso na gráfica, se pudesse encontrar um local mais bem iluminado. Onde poderia ser? A casa de alguém rico, provavelmente; onde cera de vela fosse gasta sem restrições. Eu já estivera em muitas casas assim, particularmente durante o tempo que passamos em Paris, mas não conhecia ninguém nem sequer moderadamente próspero na Filadélfia. Nem Marsali; eu perguntara.

   Bem, uma coisa de cada vez. Antes que eu me preocupasse mais com um teatro de operação, eu precisava encontrar um ferreiro capaz de fazer trabalhos delicados, para fazer o laço de fio metálico que eu precisava. Eu poderia, com uma rápida picada, cortar as amídalas com um bisturi, mas seria mais do que difícil remover as adenóides, localizadas acima do palato mole, dessa forma. E a última coisa que eu queria era ficar talhando e remexendo na garganta gravemente inflamada de Henri-Christian no escuro com um instrumento cortante. O laço de fio de metal seria suficientemente cortante, mas pouco provável de danificar qualquer coisa em que esbarrasse; somente o fio circundando o tecido a ser removido seria capaz de cortar, e mesmo assim somente quando eu fizesse o movimento contundente que iria remover uma amídala ou adenóide com precisão.

   Perguntei-me, ansiosamente, se ele teria uma infecção por estreptococos.

Sua garganta estava muito vermelha, mas outras infecções podiam causar isso.

   Não, teríamos que correr o risco em relação a estreptococos, pensei. Eu havia colocado algumas tigelas de penicilina para fermentar, logo depois que cheguei. Não havia como saber se o extrato que eu poderia obter delas em alguns dias estava ativo ou não - nem, se estivesse, exatamente quanto estaria. Mas era melhor do que nada.

   Eu tinha, no entanto, algo inquestionavelmente útil - ou teria, se a busca desta tarde fosse bem-sucedida. Há quase cinco anos, lorde John Grey me enviara um vidro de vitríolo e um utensílio de vidro necessário para destilar. Ele obtivera esses objetos de um farmacêutico na Filadélfia, eu achava, apesar de não conseguir lembrar seu nome. Mas não devia haver muitos farmacêuticos na Filadélfia e eu pretendia visitar todos eles até encontrar o que procurava.

   Marsali dissera que havia duas grandes lojas de boticário na cidade e somente uma grande teria o que eu precisava para produzir éter. Qual era o nome do cavalheiro de quem lorde John adquirira meu aparato? Ele estaria na Filadélfia? Minha mente parecia uma folha em branco, de fadiga ou simples esquecimento; a época em que eu preparei éter em meu consultório em Fraser's Ridge parecia tão distante e mítica quanto o dilúvio de Noé.

   Encontrei o primeiro boticário e obtive dele alguns itens úteis, inclusive uma jarra de sanguessugas - apesar de estremecer um pouco à ideia de colocar uma dentro da boca de Henri-Christian; e se ele engolisse o bicho?

   Por outro lado, refleti, ele era um menino de quatro anos com um irmão mais velho muito imaginativo. Ele provavelmente já havia engolido coisas muito piores do que uma sanguessuga. Com sorte, entretanto, eu não precisaria delas. Também adquiri dois instrumentos de cauterização, bem pequenos. Era uma maneira dolorosa e primitiva de parar um sangramento - mas, na realidade, muito eficaz.

   O boticário, entretanto, não tinha nenhum vitríolo. Desculpou-se pela falta, dizendo que tais coisas tinham que ser importadas da Inglaterra e com a guerra... Agradeci e me dirigi à segunda loja, onde fui informada que tiveram um pouco de vitríolo, mas já haviam vendido há algum tempo, para um lorde inglês, embora o homem atrás do balcão não soubesse para que ele poderia querer tal coisa.

   - Um lorde inglês? - perguntei, surpresa. Certamente, não podia ser lorde John. Embora, pensando bem, não é que a aristocracia inglesa estivesse vindo em bandos para a Filadélfia ultimamente, a não ser aqueles que eram soldados.

E o sujeito dissera "um lorde", não um major ou um capitão.

   Quem não arrisca não petisca; perguntei e fui prestativamente informada de que se tratava de um lorde John Grey e ele pedira que o vitríolo fosse entregue em sua casa na Chestnut Street.

   Sentindo-me um pouco como Alice caindo pelo buraco do coelho - eu ainda estava um pouco tonta por falta de dormir e do cansaço da viagem da Escócia -, perguntei onde ficava a rua.

   A porta da casa foi aberta por uma jovem extraordinariamente bonita, vestida de tal forma que ficava evidente que não se tratava de uma criada. Pestanejamos uma para a outra, surpresas; ela obviamente não estava me esperando, mas quando perguntei por lorde John, dizendo que era uma velha conhecida, ela prontamente me convidou a entrar, dizendo que seu tio logo estaria de volta, só levara um cavalo para pôr ferradura.

   - É de se imaginar que ele mandasse o criado - a jovem, que disse chamar-se lady Dorothea Grey, disse em tom de desculpas. - Ou meu primo. Mas tio John é muito meticuloso com seus cavalos.

   - Seu primo? - perguntei, minha mente vagarosa traçando as possíveis ligações familiares. - Não está falando de William Ransom, está?

   - Ellesmere, sim - ela disse, parecendo surpresa, mas satisfeita. - Você o conhece?

   - Nos encontramos uma ou duas vezes - eu disse. - Se não se importa com a minha pergunta... como ele veio parar na Filadélfia? Eu... hã... tinha entendido que ele tinha obtido liberdade condicional com o resto do exército de Burgoyne e ido para Boston a fim de voltar para a Inglaterra.

   - Oh, ele está, sim! - ela disse. - Em liberdade condicional, quero dizer. Mas ele veio aqui, primeiro, para ver seu pai, tio John, e meu irmão. - Seus grandes olhos azuis anuviaram-se um pouco à menção de seu irmão. - Receio que Henry esteja muito mal.

   - Lamento muito - eu disse, com sinceridade, mas sucintamente. Eu estava muito mais interessada na presença de William ali, mas antes de poder perguntar qualquer outra coisa ouviram-se passos leves e ligeiros na varanda da frente e a porta se abriu.

   - Dottie? - disse uma voz familiar. - Sabe onde... oh, desculpe-me. - Lorde John Grey entrara na sala de visitas e parara ao me ver. Depois, ele realmente me viu e ficou parado, boquiaberto.

   - Que prazer revê-lo - eu disse, amavelmente. - Mas lamento saber que seu sobrinho está doente.

   - Obrigado - ele disse e, observando-me de maneira cautelosa, fez uma profunda reverência sobre a minha mão, beijando-a com elegância. - Estou encantado em vê-la novamente, sra. Fraser - acrescentou, parecendo estar sendo sincero. hesitou por um momento, mas certamente não pôde deixar de perguntar: - Seu marido...?

   - Está na Escócia - eu disse, sentindo-me um pouco mesquinha em desapontá-lo. A decepção atravessou rapidamente seu rosto, mas foi prontamente apagada - ele era um cavalheiro e um soldado. Na realidade, usava um uniforme militar, o que me surpreendeu. - Você voltou para a ativa, então? - perguntei, erguendo as sobrancelhas para ele.

   - Não exatamente. Dottie, ainda não chamou a sra. Figg? Tenho certeza de que a sra. Fraser gostaria de tomar alguma coisa.

   - Eu acabo de chegar - disse apressadamente, enquanto Dottie se levantava

   - É mesmo? - ele disse, educadamente reprimindo o por quê? tão evidente em seu rosto. Indicou-me uma cadeira e ele mesmo se sentou, com uma estranha expressão no rosto, como se tentasse pensar como dizer algo embaraçoso. - Estou encantado em vê-la - ele disse outra vez, devagar. - Você... não quero de forma alguma ser indelicado, sra. Fraser, deve me desculpar... mas... veio me trazer um recado de seu marido, talvez?

   Ele não pôde conter a pequena luminosidade que assomou aos seus olhos e eu me senti quase pesarosa ao sacudir a cabeça.

   - Sinto muito - eu disse, e fiquei surpresa de ver que falava sinceramente. - Vim pedir um favor. Não para mim mesma, para meu neto.

   Ele pestanejou.

   - Seu neto - repetiu, sem compreender. - Pensei que sua filha... oh! claro, estava me esquecendo que o filho adotivo de seu marido... A família dele está aqui? Trata-se de um dos filhos dele?

   - Sim, isso mesmo. - Sem mais confusão, expliquei a situação, descrevendo o estado de Henri-Christian e lembrando-o de sua generosidade ao me enviar o vitríolo e o instrumento de vidro há mais de quatro anos. - O sr. Sholto... O boticário na Walnut Street?... me disse que lhe vendeu uma garrafa grande de vitríolo há alguns meses. Será que por acaso ainda tem algum? - Não fiz nenhum esforço para ocultar a ansiedade em minha voz e a expressão de seu rosto se suavizou.

   - Sim, tenho - ele disse e, para minha surpresa, sorriu como o sol saindo de trás de uma nuvem. - Eu o comprei para você, sra. Fraser.

Fizemos um acordo no mesmo instante. Ele não só me daria o vitríolo, como também compraria quaisquer outros suplementos médicos que eu pudesse precisar, se eu consentisse em operar seu sobrinho.

   - O dr. Hunter removeu uma das balas no Natal - ele disse - e isso melhorou um pouco o estado de Henry. Mas a outra continua incrustada e...

   - Dr. Hunter? - interrompi. - Não está falando de Denzell Hunter, está?

   - Estou, sim - ele disse, surpreso e franzindo um pouco a testa. - Não está me dizendo que o conhece, está?

   - Estou, sim, na verdade - eu disse, sorrindo. - Trabalhamos muitas vezes juntos, tanto em Ticonderoga quanto em Saratoga com o exército de Gates. Mas o que ele está fazendo na Filadélfia?

   - Ele... - começou a dizer, mas foi interrompido pelo som de passos leves descendo as escadas. Eu estivera vagamente consciente de passos em cima enquanto conversávamos, mas não prestara atenção. Mas olhei na direção da porta agora e meu coração deu um salto quando vi Rachel Hunter, parada no vão da porta, fitando-me com a boca formando um "O" perfeito de assombro.

   No instante seguinte, ela estava em meus braços, abraçando-me a ponto de quebrar minhas costelas.

   - Amiga Claire! - ela disse, soltando-me finalmente. - Nunca imaginei vê-la. isto é, estou tão contente... oh, Claire! Ian. Ele voltou com você? - Seu rosto estava carregado de ansiedade e temor, esperança e cautela passando como nuvens aceleradas pelas suas feições.

   - Voltou - assegurei-lhe. - Mas ele não está aqui. - Seu rosto se desfez.

   - Oh - disse, quase sem voz. - Onde...

   - Ele foi procurar por você - eu disse suavemente, tomando suas mãos.

   A alegria resplandeceu em seus olhos como um incêndio numa floresta.

   - Oh! - ela exclamou, em um tom completamente diferente. - Oh!

   Lorde John tossiu educadamente.

   - Talvez fosse melhor eu não saber exatamente onde seu sobrinho está, sra. Fraser - ele observou. - Como presumo, ele compartilha os princípios de seu marido? De fato. Se me dá licença, então, vou contar a Henry sobre sua chegada. Imagino que queira examiná-lo, não?

   - Oh - eu disse, repentinamente convocada de volta à questão em pauta. - Sim. Sim, é claro. Se me permitir...

   Ele sorriu, olhando para Rachel, cujo rosto ficara branco ao me ver, mas que agora estava da cor de uma maçã de empolgação.

   - É claro - ele disse. - Suba assim que puder, sra. Fraser. Vou esperar pela senhora lá em cima.

 

                   UM POUCO CONFUSO

Eu sentia falta de Brianna o tempo todo, em maior ou menor grau, dependendo das circunstâncias. Mas senti mais falta especialmente agora. Ela poderia, eu tinha certeza, ter resolvido o problema de fazer a luz chegar à garganta de Henri-Christian.

   Eu o fiz deitar em uma mesa na parte da frente da gráfica, tirando o máximo proveito da luz que entrava ali. Mas ali era a Filadélfia, não New Bern. Quando o céu não estava encoberto de nuvens, estava enevoado da fumaça das chaminés da cidade. E a rua era estreita; os prédios em frente bloqueavam a maior parte da luz que havia.

   Não que fizesse muita diferença, disse a mim mesma. O aposento podia estar ensolarado e ainda assim eu não poderia ver nada nos recônditos da garganta de Henri-Christian. Marsali tinha um pequeno espelho com o qual direcionava a luz e isso talvez ajudasse com as amídalas - as adenóides teriam que ser feitas pelo tato.

   Eu podia sentir a borda macia e esponjosa de uma adenóide, logo atrás do palato mole; ela tomou forma em minha mente conforme eu cuidadosamente ajustava o laço de metal ao seu redor, com grande delicadeza, de modo a não deixar o fio de metal cortar a ponta dos meus dedos ou o corpo da adenóide inchada. Haveria um jato de sangue quando eu a extirpasse.

   Eu tinha Henri-Christian preso em ângulo, Marsali segurando seu corpo inerte quase de lado. Denzell Hunter mantinha a cabeça firme, segurando o chumaço encharcado de éter firmemente sobre seu nariz. Eu não tinha nenhum outro meio de sucção além da minha própria boca; eu teria que virá-lo rapidamente depois de fazer o corte e deixar o sangue escorrer de sua boca antes que descesse pela sua garganta e o sufocasse. O minúsculo instrumento de cauterização estava esquentando, a ponta em forma de pá enfiada em uma panela de brasas. Essa poderia ser a parte mais complicada, pensei, parando para me estabilizar e acalmar Marsali com um sinal da cabeça. Eu não queria queimar sua língua ou a parte interna de sua boca, e isso iria ser muito escorregadio...

   Girei o cabo com um movimento rápido e preciso e o menino sacudiu-se sob minha mão.

   - Segure-o firme - eu disse calmamente. - Um pouco mais de éter, por favor.

   Marsali respirava ruidosamente e os nós de seus dedos estavam lívidos como seu rosto. Senti a adenóide desprender-se perfeitamente, deslizar, solta, e pincei-a entre os dedos, tirando-a de sua boca antes que ela escorregasse pelo seu esôfago. Inclinei sua cabeça rapidamente para o lado, sentindo o cheiro metálico de sangue quente. Deixei o pedaço de tecido extraído cair em uma vasilha e balancei a cabeça para Rachel, que tirou o ferro de cauterização das brasas e colocou-o cuidadosamente em minha mão.

Eu continuava com a outra mão em sua boca, mantendo a língua e a úvula fora do caminho, um dedo no local de onde tirara a adenóide, marcando o ponto exato. O instrumento de cauterização queimou uma linha branca de dor ao longo do meu dedo quando a deslizava pela garganta do menino e eu deixei escapar um pequeno chiado entre os dentes, mas não movi nem um dedo. O cheiro contundente de sangue e tecido chamuscados veio quente e denso, e Marsali fez um pequeno ruído convulsivo, mas não afrouxou as mãos que seguravam o corpo de seu filho.

   - Está tudo bem, amiga Marsali - Rachel sussurrou-lhe, segurando seu ombro com força. - Ele respira bem, não está sentindo dor. Ele está sob a luz, vai ficar bom.

   - Sim, vai - eu disse. - Tire o ferro agora, Rachel, por favor. Mergulhe o laço no uísque, por favor, e passe-o para mim novamente. Um já foi, faltam três.

- Eu nunca vi nada igual - Denzell Hunter disse, talvez pela nona vez. Ele olhou do chumaço de éter em sua mão para Henri-Christian, que começava a se mexer e choramingar nos braços de sua mãe. - Eu não teria acreditado, Claire, se não tivesse visto com meus próprios olhos!

   - Bem, achei que era melhor que você visse - eu disse, limpando o suor do meu rosto com um lenço. Sentia-me tomada por uma sensação de profundo bem-estar. A cirurgia fora rápida, não mais do que cinco ou seis minutos, e Henri-Christian já estava tossindo e chorando, saindo do estado de torpor causado pelo éter. Germain, Joanie e Félicité observavam de olhos arregalados da porta que dava para a cozinha, Germain segurando com força as mãos de suas irmãs. - Eu lhe ensinarei a preparar isso, se quiser.

   Seu rosto, já brilhante de felicidade com a cirurgia bem-sucedida, iluminou-se.

   - Oh, Claire! Que dádiva! Ser capaz de cortar sem causar dor, manter um paciente imóvel sem amarras. E... é inimaginável.

   - Bem, está longe da perfeição - eu o avisei. - E é muito perigoso, tanto para fazer quanto para usar. - Eu havia destilado o éter no dia anterior, lá fora, no barracão de depósito de lenha; era uma substância muito volátil e havia uma grande probabilidade de explodir e destruir o barracão, matando-me no processo. Tudo correra bem, embora a ideia de fazer isso de novo deixasse a palma de minhas mãos suadas e uma sensação oca no estômago.

   Levantei o conta-gotas e o sacudi delicadamente; cheio com mais de três quartos, e eu já tinha outro frasco ligeiramente maior.

   - Vai ser suficiente, você acha? - Denny perguntou, percebendo o que eu estava pensando.

   - Depende do que encontrarmos. - A cirurgia de Henri-Christian, apesar das dificuldades técnicas, fora muito simples. A de Henry Grey não seria. Eu o examinara, Denzell ao meu lado para explicar o que ele vira e fizera durante a cirurgia anterior, que removera uma bala alojada logo abaixo do pâncreas. Isso causara irritação e cicatrizes locais, mas na verdade não danificara gravemente um órgão vital. Ele não conseguira encontrar a outra bala, já que estava profundamente alojada no corpo, em algum lugar sob o fígado. Ele temia que pudesse estar próxima à veia portal hepática e assim não ousara sondar muito à sua procura, já que uma hemorragia seria muito provavelmente fatal.

   No entanto, eu estava quase certa de que a bala não atingira a vesícula ou o duto biliar, e considerando-se o estado geral e a sintomatologia de Henry eu suspeitava de que a bala havia perfurado o intestino delgado, mas cauterizara o ferimento interno de entrada, fechando-o em seu rastro; caso contrário, o rapaz certamente teria morrido em poucos dias, de peritonite.

   Podia estar encrustada na parede do intestino; essa seria a melhor situação. Podia estar na verdade alojada dentro do próprio intestino, e isso não seria nada bom, mas eu não saberia dizer a gravidade da situação até chegar lá.

   Mas tínhamos éter. E os bisturis mais amolados que o dinheiro de lorde John podia comprar.

A janela, depois do que parecera a John Grey uma discussão prolongada de maneira excruciante entre os dois médicos, permanecia parcialmente aberta. O dr. Hunter insistia nos benefícios do ar fresco e a sra. Fraser concordava com isso por causa dos vapores do éter, mas ficava falando de algo que chamava de germes, preocupada que entrassem pela janela e contaminassem o "campo cirúrgico". Ela fala como se encarasse isso como um campo de batalha, ele pensou, mas depois olhou atentamente para seu rosto e compreendeu que de fato ela pensava assim.

   Ele nunca vira uma mulher como esta, pensou, fascinado, apesar de sua preocupação com Henry. Ela prendera para trás seus escandalosos cabelos e enrolara um pano cuidadosamente ao redor da cabeça como uma escrava negra. Com o rosto assim exposto, os ossos delicados em evidência, a intensidade de sua expressão - com aqueles olhos amarelos movendo-se rapidamente como os de um falcão de um objeto para o outro - era a coisa menos feminina que ele já vira. Era o olhar de um general comandando suas tropas para a batalha, e, vendo-a, sentiu a bola de serpentes em sua barriga relaxar um pouco.

   Ela sabe o que está fazendo, ele pensou.

   Ela olhou para ele, então, e ele endireitou os ombros, instintivamente aguardando ordens - para sua completa surpresa.

   - Você quer ficar? - ela lhe perguntou.

   - Sim, claro. - Sentia um pouco de falta de ar, mas não havia nenhuma dúvida em sua voz. Ela lhe contara com franqueza quais eram as chances de Henry - não eram boas, mas havia uma chance - e ele estava resolvido a permanecer com seu sobrinho, independente do que acontecesse. Se Henry morresse, ao menos morreria ao lado de alguém que o amava. Embora, na realidade, ele estivesse resolvido que Henry não morreria. Grey não iria deixar.

   - Sente-se lá, então. - Ela indicou-lhe um banco na outra extremidade da cama com um sinal da cabeça, e ele sentou-se, dando um sorriso encorajador a Henry ao fazê-lo. Henry parecia aterrorizado, mas determinado.

   - Não posso continuar vivendo assim - ele dissera na noite anterior, finalmente se decidindo a permitir a operação. - Simplesmente não posso.

   A sra. Woodcock insistira em estar presente também e, após instruções detalhadas, a sra. Fraser declarara que ela deveria administrar o éter. Aquela substância misteriosa em um conta-gotas em cima do móvel, um cheiro ligeiramente enjoativo emanando dele.

   A sra. Fraser deu ao dr. Hunter algo que parecia um lenço e levou outro ao seu rosto. Era um lenço, Grey viu, mas com tiras presas nos cantos. Amarrou-as atrás da cabeça, de modo que o tecido cobrisse seu nariz e sua boca, e Hunter obedientemente seguiu o exemplo.

   Acostumado como Grey estava à rápida brutalidade dos cirurgiões do exército, os preparativos da sra. Fraser pareciam extremamente laboriosos: ela esfregou a barriga de Henry repetidamente com uma solução alcoólica que ela havia preparado, conversando com ele através de sua máscara de assaltante de estrada em voz baixa e apaziguadora. Ela lavou as mãos - e fez com que Hunter e a sra. Woodcock fizessem o mesmo - e seus instrumentos, de modo que o quarto inteiro rescendia a uma destilaria de baixa qualidade.

   Seus movimentos eram, na verdade, bastante enérgicos, ele percebeu após um instante. Mas suas mãos moviam-se com tanta segurança e... sim, graça, esta era a única palavra... que davam a ilusão de plainar como um par de gaivotas no ar. Nenhum bater de asas frenético, apenas movimentos seguros, serenos e quase místicos. Ele se viu mais calmo ao observá-los, ficando hipnotizado e em parte esquecendo o propósito final daquela silenciosa dança de mãos.

   Ela moveu-se para a cabeceira da cama, inclinando-se bem baixo para falar com Henry, alisar os cabelos para fora de sua fronte, e Grey viu os olhos de falcão se suavizarem momentaneamente em dourado. O corpo de Henry relaxou devagar sob o toque de suas mãos; Grey viu suas mãos cerradas, rígidas, se abrirem. Ela ainda tinha outra máscara, ele viu, esta um objeto rígido feito de vime, forrado com camadas de tecido de algodão macio. Ela ajustou-a delicadamente ao rosto de Henry e, dizendo-lhe algo inaudível, pegou seu conta-gotas.

   O ar se encheu imediatamente de um aroma doce e pungente que grudou no fundo da garganta de Grey e fez sua cabeça girar um pouco. Ele pestanejou, sacudindo a cabeça para dissipar a tontura, e percebeu que a sra. Fraser lhe dissera alguma coisa.

   - Desculpe-me, o que disse? - Ergueu os olhos para ela, um grande pássaro branco com olhos amarelos - e uma garra brilhante que brotou repentinamente de sua mão.

   - Eu disse - ela repetiu calmamente através da máscara - que talvez queira se sentar um pouco mais longe. Vai ficar um pouco confuso aqui.

William, Rachel e Dorothea sentavam-se na borda da varanda da frente como passarinhos no parapeito de uma cerca, Rollo esparramado no passeio de tijolos aos seus pés, desfrutando o sol de primavera.

   - Está um silêncio terrível lá em cima - William disse, relanceando um olhar inquieto para a janela em cima, onde ficava o quarto de Henry. - Acha que já começaram? - Ele pensou, mas não disse, que esperava ouvir Henry fazendo algum barulho se já tivessem começado, apesar da descrição de Rachel do relato de seu irmão sobre as maravilhas do éter da sra. Fraser. Um homem ficar tranquilamente adormecido enquanto alguém abre sua barriga com uma faca? Asneira, ele teria dito. Mas Denzell Hunter não era um homem que pudesse ser facilmente enganado - embora ele achasse que Dottie houvesse de algum modo conseguido isso. Lançou um olhar de esguelha a sua prima.

   - Já escreveu para tio Hal? Sobre você e Denny, quero dizer?

   Sabia que não - ela contara a lorde John, forçosamente, mas o convencera a deixá-la dar a notícia ao seu pai -, mas queria distraí-la, se pudesse. Ela estava com os lábios exangues e as mãos embolavam o tecido sobre os joelhos. Ele ainda não se acostumara a vê-la em cinza e bege, em vez de sua brilhante plumagem de costume - embora ele achasse, na realidade, que as cores suaves lhe caíam bem, particularmente agora que Rachel lhe afirmara que ela ainda podia usar seda e musselina, se quisesse, em vez de tecido rústico de algodão.

   - Não - Dottie disse, lançando-lhe um olhar de agradecimento pela distração, enquanto ao mesmo tempo mostrava-lhe que sabia o que ele estava fazendo. - Ou, sim, mas ainda não enviei a carta. Se tudo ficar bem com Henry, escreverei imediatamente com a notícia e acrescentarei a parte sobre Denny e eu no final, como um pós-escrito. Ficarão tão contentes por causa de Henry que talvez nem notem, ou ao menos não se aborreçam com isso.

   - Acho que irão notar - William disse pensativamente. - Papai notou. - Lorde John ficara perigosamente quieto quando lhe contaram e lançara a Denzell um olhar que sugeria espadas ao amanhecer. Mas o fato é que Denny salvara a vida de Henry uma vez e agora estava ajudando, com sorte e a sra. Fraser, a salvá-lo outra vez. E lorde John era, acima de tudo, um homem honrado. Além do mais, William achava que seu pai estava na verdade aliviado de finalmente saber o que Dottie andara tramando. Ele não dissera nada diretamente a William com relação ao próprio papel de William na aventura de Dottie - ainda. Ele o faria.

   - Que o Senhor mantenha seu irmão a salvo - Rachel disse, ignorando a observação de William. - E o meu e a sra. Fraser também. Mas e se nem tudo for como desejamos? Você ainda terá que contar a seus pais e eles poderão ver a notícia de seu iminente casamento como um insulto acrescentado a uma injúria.

   - Você é a criatura mais franca e sem tato que conheço - William lhe disse, um pouco irritado, ao ver Dottie ficar ainda mais pálida à lembrança e que Henry poderia morrer nos próximos minutos, horas ou dias. - Henry vai ficar bem. Eu sei disso. Denny é um excelente médico e a sra. Fraser... ela é... hã... - Com toda a honestidade, ele não sabia ao certo o que a sra. Fraser era, mas ela o assustava um pouco. - Denny diz que ela sabe o que está fazendo - finalizou canhestramente.

   a - Se Henry morrer, nada mais importará - Dottie disse suavemente, olhando para as pontas de seus sapatos. - Para nenhum de nós.

   Rachel fez um ruído de solidariedade e passou o braço ao redor dos ombros de Dottie. William clareou a garganta, acrescentando seu próprio ruído rouco de pesar, e por um instante achou que o cachorro fizera o mesmo.

   A intenção de Rollo, entretanto, não foi de solidariedade. Ele levantara a cabeça repentinamente e os pelos de seu pescoço se eriçaram, um rosnado surdo retumbando pelo peito. William olhou automaticamente na direção em que o cachorro olhava e sentiu um repentino enrijecimento dos músculos.

   - Srta. Hunter - ele disse displicentemente. - Conhece aquele homem? Aquele lá, perto do final da rua, conversando com a vendedora de ovos e manteiga?

   Rachel protegeu os olhos com a mão, olhando para onde ele indicara, mas sacudiu a cabeça.

   - Não. Por quê? Acha que é ele que está perturbando o cachorro? - Ela cutucou Rollo com a ponta do pé. - O que há de errado, amigo Rollo?

   - Não sei - William disse honestamente. - Pode ser o gato; teve um que atravessou a rua correndo logo atrás da mulher. Mas eu já vi esse homem antes; tenho certeza. Eu o vi ao lado da estrada, em algum lugar em Nova Jersey. Ele me perguntou se eu conhecia Ian Murray... e onde ele poderia estar.

   Rachel soltou a respiração com uma arfada diante disso, fazendo William olhar de viés para ela, surpreso.

   - O que foi? - ele disse. - Sabe onde Murray está?

   - Não - ela disse incisivamente. - Não o vejo desde o outono, em Saratoga, e não faço a menor ideia de onde ele esteja. Sabe o nome desse homem? - ela acrescentou, franzindo o cenho. O homem desaparecera, afastando-se por uma rua secundária. - Aliás, tem certeza de que se trata do mesmo homem?

   - Não - William admitiu. - Mas acho que é. Ele tinha um cajado com ele, e esse homem também. E tem alguma coisa na maneira como ele fica em pé, meio curvado para frente. O homem que eu encontrei em Nova Jersey era muito velho e este anda do mesmo jeito. - Ele não mencionou a falta dos dedos; não havia necessidade de fazer Dottie se lembrar de violência e mutilação exatamente neste momento, e de qualquer forma ele não conseguiu ver a mão do sujeito a essa distância.

   Rollo parara de rosnar e se acomodara com um breve resmungo, mas seus olhos amarelos ainda estavam alertas.

   - Quando pretende se casar, Dottie? - William perguntou, tentando manter sua mente ocupada. Um cheiro estranho vinha da janela acima deles; o cachorro torcia o focinho, sacudindo a cabeça de uma maneira confusa, e William não o censurava. Era um odor horrível, enjoativo - mas ele podia distintamente sentir o cheiro de sangue também, e o leve fedor de fezes. Era um cheiro de campo de batalha e isso fez suas entranhas se revolverem.

- Quero me casar antes que a luta recomece a sério - sua prima respondeu gravemente, virando o rosto para ele -, de modo que eu possa ir com Denny... e Rachel - ela acrescentou, tomando a mão de sua futura cunhada com um sorriso.

   Rachel devolveu o sorriso, porém rapidamente.

   - Que coisa estranha - ela disse para ambos, mas seus olhos castanhos estavam fixos em William, meigos e perturbados. - Em pouco tempo deveremos ser inimigos outra vez.

   - Nunca me senti seu inimigo, srta. Hunter - ele retrucou, do mesmo modo brando e suave. - E sempre serei seu amigo.

   Um sorriso aflorou aos lábios de Rachel, mas a inquietação continuou em seus olhos.

   - Sabe o que quero dizer. - Seus olhos deslizaram de William para Dottie, sentada do seu outro lado, e ocorreu a William com um choque que sua prima estava prestes a se casar com um rebelde - na realidade, ela própria se tornara uma rebelde. Que ele logo deveria, na verdade, estar diretamente em guerra com uma parte de sua própria família. O fato de que Denny Hunter não pegaria em armas não o protegeria - nem a Dottie. Nem a Rachel. Todos os três eram culpados de traição. Qualquer um deles poderia ser morto, capturado ou preso. O que ele faria, pensou repentinamente, horrorizado, se tivesse que ver Denny enforcado um dia? Ou mesmo Dottie?

   - Sei o que quer dizer - ele disse em voz baixa. Mas tomou a mão de Rachel e ela lhe deu sua mão. Os três permaneceram sentados em silêncio, interligados, aguardando o veredito do futuro.

Voltei para a gráfica mortalmente cansada e naquele estado de espírito em que uma pessoa se sente bêbada - eufórica e descoordenada. Eu estava na verdade um pouco fisicamente bêbada também; lorde John insistira em cumular tanto Denzell Hunter quanto a mim com seu melhor conhaque, vendo o quanto estávamos exaustos em consequência da cirurgia. Eu não recusara.

   Foi uma das mais assustadoras cirurgias que eu já fizera no século XVIII. Eu havia feito duas outras cirurgias abomináveis: a bem-sucedida extirpação do apêndice de Aidan McCallum, sob o efeito do éter, e a malsucedida cesárea que realizara com uma faca de jardim no corpo assassinado de Malva Christie. Essa lembrança me fez sentir a costumeira pontada de tristeza e pesar, mas estava estranhamente amenizada. O que eu me lembrava agora, caminhando para casa na noite fria, era a sensação da vida que eu segurara em minhas mãos - tão breve, tão fugaz - mas ali, inebriante e inequívoca, uma breve chama azul.

   Eu segurara a vida de Henry Grey em minhas mãos há duas horas e senti essa chama ardente novamente. Mais uma vez, eu colocara todas as minhas forças em manter essa chama viva - mas desta vez eu a senti se estabilizar e se erguer em minhas mãos, como uma vela ganhando força.

   A bala penetrara em seu intestino, mas não se enquistara. Em vez disso, mantivera-se embutida, mas móvel, sem conseguir deixar o corpo, mas movendo-se o suficiente para irritar o revestimento interno do intestino, seriamente ulcerado. Após uma rápida discussão com Denzell Hunter - que estava tão fascinado com a novidade de examinar as entranhas ativas de uma pessoa, enquanto ela permanecia desacordada, que mal conseguia manter-se concentrado no problema à mão, exclamando, estupefato, diante das cores vívidas e da vibração pulsante de órgãos vivos -, decidi que a ulceração era extensiva demais. Removê-la iria estreitar o intestino delgado drasticamente e arriscar a formação de uma cicatriz que iria estreitá-lo ainda mais, talvez até obstruindo-o por completo.

   Em vez disso, fizemos uma modesta excisão cirúrgica e eu senti uma pontada de algo entre o riso e a consternação ao lembrar-me do rosto de lorde John quando cortei o segmento ulcerado do intestino e deixei-o cair no chão aos seus pés. Eu não fizera de propósito; eu simplesmente precisava das minhas duas mãos e das de Denzell para controlar o sangramento, e não tínhamos uma enfermeira para ajudar.

   O rapaz não estava fora de perigo, nem de longe. Eu não sabia se a minha penicilina seria eficaz ou se ele poderia desenvolver alguma terrível infecção apesar dela. Mas ele estava consciente e seus sinais vitais eram surpreendentemente fortes - talvez, pensei, por causa da sra. Woodcock, que segurara sua mão com força e afagara seu rosto, instando-o a acordar com uma ardente ternura que não deixavam dúvidas a respeito de seus sentimentos por ele.

   Eu me perguntei por um instante o que o futuro lhe reservaria. Surpresa com seu nome fora do comum, eu indagara cautelosamente sobre seu marido e tinha certeza de que eu cuidara dele, que tivera a perna amputada, durante a retirada de Ticonderoga. Achei muito provável que ele estivesse morto; se assim fosse, o que aconteceria entre Mercy Woodcock e Henry Grey? Ela era uma mulher livre, não era uma escrava. Um casamento não estava fora de questão - nem tão fora de questão quanto tal relacionamento seria nos Estados Unidos duzentos anos no futuro: casamento envolvendo negras e mulatas de boa família com homens brancos, se não comuns nas Antilhas, também não eram uma questão de escândalo público. Mas a Filadélfia não era as Antilhas e pelo que Dottie me contara de seu pai...

   Eu estava simplesmente cansada demais para pensar nisso e não precisava - Denny Hunter se oferecera para ficar com Henry a noite toda. Afastei esses dois da minha mente ao descer a rua, cambaleando ligeiramente. Eu não havia comido nada desde o café da manhã e já estava quase escuro; o conhaque fora absorvido diretamente através das paredes do meu estômago vazio e entrado em minha corrente sanguínea, e fui cantarolando baixinho para mim mesma enquanto andava. Era hora do crepúsculo, quando as coisas flutuam no ar, quando as pedras redondas da calçada parecem etéreas e as folhas das árvores dependuram-se pesadas como esmeraldas, brilhando com um verde cuja fragrância penetra no sangue.

   Eu devia caminhar mais depressa; havia um toque de recolher. No entanto, quem iria me prender? Eu era velha demais para que os soldados das patrulhas me molestassem, como fariam a uma jovem, e do sexo errado para ser suspeita. Caso encontrasse uma patrulha, não fariam mais do que me xingar e mandar ir para casa - o que eu estava fazendo, de qualquer modo.

   Compreendi repentinamente que podia transportar as coisas que Marsali descreveu secretamente como "o trabalho do sr. Smith": as cartas escritas que os Filhos da Liberdade faziam circular entre os vilarejos, entre as cidades, e que giravam pelas Colônias como folhas levadas por uma tormenta de primavera; eram copiadas e novamente enviadas, às vezes impressas e distribuídas dentro das cidades, se um tipógrafo corajoso pudesse ser encontrado para fazer o trabalho.

   Havia uma rede frouxa através da qual essas coisas se moviam, mas estavam sempre correndo o risco de serem descobertas, muitas vezes com pessoas sendo presas. Germain frequentemente carregava esses papéis e meu coração vinha à boca toda vez que pensava nisso. Um rapaz ágil era menos notado do que uma jovem ou um comerciante cuidando de seus negócios - mas os ingleses não eram bobos e certamente o parariam se ele parecesse suspeito. Enquanto eu...

   Repassando as possibilidades mentalmente, cheguei à gráfica e entrei, deparando-me com o cheiro de um jantar saboroso, com as alegres saudações das crianças e com algo que eliminou da minha mente qualquer pensamento a respeito da minha futura carreira como espiã: duas cartas de Jamie.

 

                     SUJO DE TINTA

20 de março de 1778 Lallybroch

   Querida Claire

   Ian morreu. Já faz dez dias de seu falecimento e achei que agora já poderia escrever calmamente sobre isso. No entanto, ver estas palavras escritas no papel infligiu-me a mais inesperada tristeza; lágrimas escorrem pelos lados do meu nariz e fui forçado a parar para enxugar o rosto com um lenço antes de continuar. Não foi uma morte tranquila e eu deveria estar aliviado por Ian agora estar em paz e contente com sua passagem para o céu. E estou. Mas também estou desolado, de uma forma que nunca estive antes. Somente a ideia de poder confiar meus sentimentos a você, minha alma, me consola.

   O Jovem Jamie é o novo proprietário, como deveria ser; o testamento de Ian foi lido e o sr. Gowan o fará executar. Não há muito mais além da terra e das construções; apenas pequenos legados aos outros filhos, na maior parte objetos pessoais. Ele confiou minha irmã aos meus cuidados (ele me perguntou antes de sua morte se eu estava de acordo. Eu lhe respondi que ele nem precisava perguntar. Ele disse que sabia disso, mas achou melhor perguntar se eu me sentia à altura da tarefa, e riu como um lunático. Santo Deus, que falta vou sentir dele).

   Havia algumas dívidas insignificantes a serem pagas, eu já as saldei, como havíamos combinado.

   Preocupo-me com Jenny. Sei que ela sofre com a perda de Ian com todo o seu coração, mas ela não chora muito, apenas fica sentada por longos períodos, olhando para alguma coisa que somente ela vê. Há uma calma nela que chega a ser estranha, como se sua alma tivesse voado com a de Ian, deixando para trás apenas o seu corpo, como uma concha vazia. E, por falar em conchas, ocorre-me que talvez ela seja como o náutilo de concha alveolar, o molusco que Lawrence Sterne nos mostrou nas Antilhas.

Uma concha grande e bela, de múltiplas câmaras, mas todas vazias, salvo a mais interna, em que o pequeno animal se esconde com segurança.

   Já que falo de Jenny, ela me roga que lhe diga de seu remorso pelas coisas que lhe disse. Eu disse a ela que nós dois conversamos sobre isso e que sua compaixão não lhe permitiria guardar rancor, compreendendo as circunstâncias desesperadoras em que ela se encontrava.

   Na manhã da morte de Ian, ela conversou comigo com aparente racionalidade e disse que pensava em deixar Lallybroch, que nada a prende aqui depois da morte de Ian. Fiquei, como pode imaginar, perplexo em ouvir isso, mas não tentei questioná-la ou dissuadi-la, presumindo que não passasse do conselho de uma mente perturbada pela dor e pela falta de dormir.

   Desde então, ela vem repetindo essa intenção para mim, afirmando-me que tem plena consciência do que está dizendo. Vou à França por um curto período - tanto para realizar algumas transações particulares que não mencionarei aqui, como para me assegurar antes de partir para a América que tanto Michael quanto Joan estão bem instalados, pois partiram juntos, no dia seguinte ao enterro de Ian. Eu disse a Jenny que ela deve pensar bem enquanto eu estiver ausente - mas que se ela estiver de fato convencida de que é isso que quer eu a levarei para a América. Não para morar conosco (sorrio, imaginando seu rosto, que é transparente, mesmo em minha mente).

   Mas ela teria um lugar para ela com Fergus e Marsali, onde seria útil, e não seria relembrada diariamente de sua perda - e onde estaria em condições de ajudar e dar apoio ao Jovem Ian, caso ele precise dessa ajuda (ou ao menos saber como ele está passando).

   (Também me ocorre - como certamente ocorreu a ela - que a mulher do Jovem Jamie será agora a senhora de Lallybroch, e que não há lugar para duas. Ela é bastante sábia para saber quais seriam as dificuldades de tal situação, e bastante generosa para querer evitá-las, em prol de seu filho e da mulher dele.)

   De qualquer modo, pretendo partir para a América até o final deste mês, ou o mais perto dessa época que eu possa conseguir passagens. A perspectiva de me reunir a você outra vez alegra meu coração. Para sempre seu,

Seu dedicado marido,

Jamie

Paris 1º de abril

Querida esposa

   Retornei muito tarde para a minha hospedaria em Paris esta noite. Na realidade, encontrei a porta trancada quando cheguei e fui obrigado a gritar, chamando a senhoria, que ficou de mau humor por ser tirada da cama. Eu, por minha vez, fiquei ainda mais mal-humorado ao não encontrar a lareira acesa, ou algo para jantar e nada em cima da cama, a não ser um colchão fino e mofado, e um cobertor esfarrapado que não serviria para cobrir nem o pior dos mendigos.

   Novos gritos não me propiciaram nada além de xingamentos (de trás de uma porta trancada) e meu orgulho não me deixou oferecer subornos ainda que meu bolso pudesse pagar. Assim, permaneço em meu sótão árido, enregelado e faminto (este triste quadro aqui descrito com o covarde propósito de angariar sua compaixão e convencê-la do quanto estou sofrendo sem você).

   Estou resolvido a deixar este lugar assim que amanhecer e buscar outra hospedaria melhor sem grandes danos ao meu bolso. Enquanto isso, vou me esforçar para esquecer tanto o frio quanto a fome em uma agradável conversa com você, esperando que o esforço de redigir possa evocar sua imagem diante de mim e me dar a ilusão de sua companhia.

   (Consegui uma fonte suficiente de luz descendo furtivamente as escadas, de meias, e retirando dois candelabros de prata da sala de estar, cuja enganosa grandiosidade me seduziu a ficar hospedado aqui. Devolverei os candelabros amanhã - depois que Madame me devolver a exorbitante diária desta miserável acomodação.)

   A assuntos mais agradáveis: vi Joan, agora em segurança em seu convento e aparentemente satisfeita (bem, não, já que pergunta; eu não compareci ao casamento de sua mãe com Joseph Murray - que é, ao que se descobriu, um primo de segundo grau de Ian. Enviei um bonito presente e meus votos de felicidades, que são sinceros). Visitarei Michael amanhã; estou ansioso para ver Jared outra vez e lhe darei lembranças suas.

   Enquanto isso, hoje de manhã fui comer em um café em Montmartre e tive a sorte de encontrar o sr. Lyle, que conheci em Edimburgo. Ele me cumprimentou muito amavelmente, perguntou como eu estava passando e, após uma curta conversa de natureza pessoal, me convidou a comparecer à reunião de uma certa Sociedade, cujos membros incluem Voltaire, Diderot e outros, cuja opinião é ouvida nos círculos que busco influenciar.

   Assim, às duas horas, de acordo com a hora marcada, fui admitido a uma casa luxuosamente mobiliada, sendo a residência de Paris de monsieur Beaumarchais.

   O grupo ali reunido era bastante diversificado; abrangia dos mais pobres filósofos dos cafés de Paris aos espécimes mais elegantes da sociedade parisiense, a característica comum a todos eles sendo apenas o amor pela conversa. Sem dúvida, foram feitas algumas pretensões à razão e ao intelecto, porém sem muito empenho. Eu não poderia encontrar um vento melhor para a minha viagem de estreia do que um provocador político - e vento é, como verá, uma imagem muito apropriada, considerando-se os acontecimentos do dia.

   Após algumas conversas inconsequentes junto à mesa de comes e bebes (se eu tivesse sido avisado das condições desta estalagem aqui, eu teria tomado a providência de encher os bolsos disfarçadamente com bolos, como eu vi mais de um dos meus colegas convidados fazendo), o grupo se retirou para um salão e todos tomaram seus assentos, com a finalidade de testemunhar um debate formal entre dois grupos.

   O assunto em debate era aquela tese popular, a saber: que a pena é mais poderosa do que a espada, com o sr. Lyle e seus seguidores defendendo a proposição, monsieur Beaumarchais e seus amigos resolutamente afirmando o contrário. A conversa era animada, com muita alusão às obras de Rousseau e Montaigne (e não pouco menosprezo pessoal do primeiro, devido à sua visão imoral do casamento), mas por fim os argumentos do grupo do sr. Lyle prevaleceram. Pensei em mostrar à Sociedade minha mão direita, como prova da contraproposição (uma amostra da minha escrita teria comprovado a tese para satisfação de todos), mas me abstive, não sendo mais do que um espectador.

   Mais tarde, encontrei uma oportunidade de me aproximar de monsieur Beaumarchais e fiz tal observação para ele como um gracejo, visando prender sua atenção. Ele ficou muito impressionado com a visão da falta de meu dedo e, informado de como acontecera (ou melhor, do que eu escolhi lhe contar), ficou muito empolgado e insistiu em que eu acompanhasse seu grupo à casa da duquesa de Chaulnes, onde era esperado para o jantar, já que se sabe que o duque possui grande interesse nas questões relativas aos indígenas das Colônias.

   Você deve estar se perguntando, sem dúvida, qual é a conexão existente entre os selvagens aborígines e sua elegante cirurgia. Tenha paciência por mais algumas linhas.

   A residência ducal fica situada em uma rua com um extenso caminho para a entrada de veículos no qual eu observei diversas carruagens elegantes à frente da carruagem de monsieur Beaumarchais. Imagine minha satisfação ao ser informado de que o cavalheiro que desceu logo antes de nós não era outro senão monsieur Vergennes, ministro das Relações Exteriores.

   Fiquei satisfeito com a minha sorte de encontrar logo tantas pessoas essenciais aos meus propósitos e fiz o melhor que pude para me aproximar delas - para isso, contando histórias de minhas viagens na América e, no processo, tomando emprestado não poucas histórias de nosso bom amigo Myers.

   O grupo ficou muito bem impressionado, particularmente à história de nosso encontro com o urso e com Nacognaweto e seus amigos. Exaltei seus valorosos esforços com o peixe, o que muito divertiu o grupo, apesar de as senhoras parecerem muito chocadas com minha descrição de suas vestimentas indígenas. O sr. Lyle, ao contrário, ficou ansioso para saber mais sobre sua aparência com as calças de couro - eu o considerei, por isso, um inveterado libertino e depravado, um julgamento corroborado mais tarde na noite por uma ocorrência que observei no corredor entre o sr. Lyle e mademoiselle Erlande, que vi ser muito libertina em sua própria conduta.

   De qualquer forma, essa história levou o sr. Lyle a chamar a atenção do grupo para a minha mão e me instar a contar-lhes a história que eu lhe contara à tarde, de como eu vim a perder o dedo.

   Vendo que o grupo tinha atingido um grau de diversão tão elevado - muito bem lubrificado com champanhe, gim e grande quantidade de vinho do Reno - que estavam presos às minhas palavras, não medi esforços em tecer uma história de terror capaz de deixá-los trêmulos em suas camas.

   Eu fora (eu disse a eles) capturado pelos terríveis iroqueses quando viajava de Trenton para Albany. Descrevi com grande detalhe a temível aparência e os hábitos sanguinários desses selvagens - o que certamente não exigia nenhum grande exagero - e elaborei extensivamente sobre as horríveis torturas que as iroqueses costumam infligir às suas indefesas vítimas. A condessa Poutoude teve um desmaio diante do meu relato da morte horrenda do padre Alexandre e o resto do grupo ficou muito abalado.

   Contei-lhes sobre Duas Lanças, que espero que não se oporá à minha difamação de seu caráter por uma boa causa, ainda mais porque ele nunca ficará sabendo. Esse cacique, eu disse, estando determinado a me torturar, me desnudou e cruelmente me açoitou. Pensando em nosso bom amigo Daniel, que tirou vantagem do mesmo infortúnio, levantei minha camisa e exibi minhas cicatrizes. (Senti-me um pouco como uma prostituta, mas já observei que a maioria das prostitutas seguem essa profissão por necessidade e me consolei que este era também meu caso.) A reação da minha plateia foi tudo que se podia esperar e eu continuei minha narrativa, na certeza de que a partir daquele ponto eles acreditariam em qualquer coisa.

   Depois disso (eu disse), dois índios me levaram desmaiado à presença do cacique e me amarraram, estendido, sobre uma laje de pedra, cuja superfície dava um sinistro testemunho de sacrifícios anteriores ali conduzidos.

   Então, um sacerdote pagão ou um xamã se aproximou de mim, emitindo gritos abomináveis e sacudindo um cajado decorado com muitos escalpos pendurados, o que me fez temer que minha própria cabeleira pudesse parecer tão atraente devido à sua cor inusitada que logo seria acrescentada à coleção (eu não havia empoado meus cabelos, mas por falta de talco, e não por ter previsto essa situação). Esse pavor aumentou ainda mais quando o xamã arrancou uma enorme faca e avançou para mim, os olhos brilhando de maldade.

   Nesse momento, os olhos de meus ouvintes também brilhavam, arregalados do tamanho de pires, atentos à minha história. Muitas senhoras gritaram de compaixão pela minha situação desesperadora e os cavalheiros emitiram ferozes imprecações contra os selvagens infames responsáveis pelo meu infortúnio.

   Eu lhes contei como o xamã enfiara a faca direto através da minha mão, me fazendo perder a consciência de medo e de dor. Acordei (continuei) e vi que meu dedo anular havia sido completamente extirpado, o sangue escorrendo da minha mão mutilada.

   Porém o mais apavorante foi a visão do cacique iroquês, sentado no tronco escavado de uma árvore gigante, arrancando a carne do dedo decepado com os dentes, como se fosse uma coxa de galinha.

   Nesse ponto da minha narrativa, a condessa desmaiou outra vez e a ilustre srta. Elliot - para não ser superada - se lançou em um completo acesso de histeria, o que felizmente me salvou de ter que inventar o meio pelo qual escapei dos selvagens. Afirmando estar abalado pelas lembranças de minhas provações aceitei uma taça de vinho (eu suava copiosamente a essa altura) e afastei-me do grupo, assediado por convites de todos os lados.

   Estou muito satisfeito com os resultados da minha primeira incursão. Estou ainda mais alentado pela reflexão de que se a idade ou um ferimento me impedirem de ganhar a vida com uma espada, um arado ou uma impressora, posso me dedicar à escrita de romances.

   Imagino que Marsali vai querer saber com grandes detalhes como eram os vestidos usados pelas senhoras presentes, mas devo pedir-lhe que se contenha por enquanto.

Não vou fingir que não notei os referidos trajes (embora pudesse negar, se achasse que assim o fazendo pudesse tranquilizar sua mente de apreensões concernentes a qualquer suposta vulnerabilidade aos artifícios femininos. Conhecendo sua natureza desconfiada e irracional, minha Sassenach, não faço tais declarações), mas minha mão não suportará o esforço de relatar tais descrições agora. Por enquanto, basta dizer que os vestidos eram muito suntuosos e os encantos das senhoras dentro deles muito visíveis em função do estilo.

   Minhas velas roubadas estão chegando ao fim, e tanto minha mão quanto meus olhos estão tão fatigados que tenho dificuldade em decifrar minhas próprias palavras, quanto mais criá-las - posso apenas esperar que você consiga ler a última parte desta carta ilegível. Ainda assim, retiro-me para minha cama inóspita de bom humor, encorajado pelos acontecimentos do dia.

   Assim, desejo-lhe boa-noite e meus pensamentos mais amorosos, certo de que terá paciência e permanente afeto por mim.

   P.S.: Sujo de tinta, sem dúvida, pois vejo que consegui cobrir tanto meu papel quanto minha pessoa com feios borrões. Tento me convencer de que o papel é o mais desfigurado.

   P.S.: 2: Fiquei tão absorto na redação que esqueci a intenção original de minha carta: dizer que reservei passagem no Euterpe, que sai de Brest dentro de duas semanas. Caso surja alguma coisa em contrário, eu lhe escreverei outra vez.

  1. S.: 3: Anseio por deitar-me ao seu lado outra vez e ter seu corpo junto ao meu.

Seu marido devotado e sujo de tinta, James Fraser.

 

                     ARMADOS DE DIAMANTE

Brianna desmontou o broche com a mão firme e um par de tesouras de cozinha. Era uma antiguidade, mas não era valioso - um feio adorno vitoriano na forma de uma flor de prata esparramada, cercada por galhinhos retorcidos de uma trepadeira. Seu único valor residia em pequenos diamantes espalhados que decoravam as folhas como gotas de orvalho.

   - Espero que sejam grandes o suficiente - ela disse e ficou surpresa ao ver como sua própria voz soava calma. Passara as últimas trinta e seis horas gritando dentro de sua própria cabeça, que foi o tempo que levaram para fazer seus planos e preparativos.

   - Acho que vão servir - Roger disse, e ela sentiu a tensão sob a calma de suas próprias palavras. Ele estava de pé atrás dela, a mão em seu ombro e o calor de sua mão era ao mesmo tempo consolo e tormento. Mais uma hora e ele teria ido embora. Talvez para sempre.

   Mas não havia escolha, e ela fazia o que era necessário com os olhos secos e mãos firmes.

   Amanda, muito estranhamente, adormecera repentinamente depois que Roger e William Buccleigh partiram em perseguição a Rob Cameron. Brianna a colocara em sua cama e ficara lá sentada observando-a dormir e se preocupando, até os homens retornarem quase ao amanhecer com suas terríveis notícias. Mas Amanda acordara como sempre, alegre como o dia, e aparentemente sem nenhuma lembrança de seu sonho de pedras gritantes. Nem parecia incomodada com a ausência de Jem; ela perguntou uma vez, descontraidamente, quando ele estaria em casa e, tendo recebido um evasivo "logo", voltara à sua brincadeira, aparentemente satisfeita.

   Ela estava com Annie agora; tinham ido a Inverness para fazer compras grandes, com a promessa de um brinquedo. Só estariam de volta no meio da tarde e a essa hora os homens já teriam partido.

   - Por quê? - William Buccleigh perguntara. - Por que ele teria levado seu menino?

   Essa era a mesma pergunta que ela e Roger se faziam desde o instante em que descobriram a perda de Jem - não que a resposta pudesse ser de alguma ajuda.

   - Só podem ser duas coisas - Roger respondera, a voz rouca e entrecortada. - Viagem no tempo... e ouro.

   - Ouro? - Os olhos verde-escuros de Buccleigh voltaram-se para Brianna, intrigados. - Que ouro?

   - A carta que está faltando - ela explicara, cansada demais para se preocupar se seria seguro lhe contar. Nada mais era seguro e nada importava. - O pós-escrito que meu pai escreveu. Roger disse que você leu as cartas. A propriedade de um cavalheiro italiano, lembra-se?

   - Não prestei muita atenção - Buccleigh admitiu. - E ouro, não é? Quem é o cavalheiro italiano, então?

   - Carlos Stuart. - E assim eles haviam explicado, de uma maneira descoordenada, sobre o ouro que viera à praia nos últimos dias do levante jacobita. O próprio Buccleigh seria mais ou menos da idade de Mandy na época, Brianna pensou, espantada com a ideia. O ouro deveria ser dividido, por segurança, entre três cavalheiros escoceses, homens de confiança de seus clãs: Dougal Mackenzie, Hector Cameron e Arch Bug, dos Grant de Leoch. Ela observou atentamente, mas ele não deu nenhum sinal de reconhecimento ao nome de Dougal Mackenzie. Não, pensou, ele não sabe. Mas isso também não era importante agora.

   Ninguém sabia o que acontecera aos dois terços do ouro francês guardado com os Mackenzie ou os Grant - mas Hector Cameron fugira da Escócia nos últimos dias do Levante, a arca de ouro sob o assento de sua carruagem, e o trouxera consigo para o Novo Mundo, com parte do qual comprara sua propriedade, River Run... O resto...

   - O espanhol o guarda? - Buccleigh disse, as grossas sobrancelhas louras contraídas. - O que isso significa?

   - Não sabemos - Roger disse. Ele estava sentado à mesa, a cabeça entre as mãos, fitando a madeira. - Só Jem sabe. - Então, ele levantara a cabeça repentinamente, olhando para Brianna.

   - As Orkneys - ele disse. - Callahan.

   - O quê?

   - Rob Cameron - ele disse ansiosamente. - Que idade você acha que ele tem?

   - Não sei - ela dissera, confusa. - Trinta e pouco, quase quarenta, talvez. Por quê?

   - Callahan disse que Cameron o acompanhou em escavações arqueológicas quando tinha vinte e poucos anos. Será que isso foi há bastante tempo... quero dizer, só agora é que me ocorreu... - Ele teve que parar para clarear a garganta e o fez com raiva antes de continuar. - Se ele teve contato com essa matéria antiga há quinze, dezoito anos, pode ter conhecido Geilie Duncan? Ou Gillian Edgars, eu creio que é como se chamava na época.

   - Oh, não - Brianna exclamou, mas em negação, não em descrença. - Oh, não. Mais um fanático jacobita, não!

   Roger quase sorriu diante de sua exclamação.

   - Duvido - ele disse secamente. - Não acho que o sujeito seja louco, muito menos um idealista político. Mas ele de fato pertence ao Partido Nacional Escocês. Eles também não são loucos... mas quais as chances de Gillian Edgars também ter estado envolvida com eles?

   Não havia como saber, não sem vasculhar as ligações e a história de Cameron, e não havia tempo para isso. Mas era possível. Gillian - que mais tarde assumira o nome de uma famosa bruxa escocesa - certamente esteve profundamente interessada tanto na antiguidade escocesa quanto em política escocesa. Ela e Rob Cameron poderiam perfeitamente ter se cruzado. Se assim for...

   - Se assim for - Roger disse sombriamente. - Só Deus sabe o que ela pode ter dito a ele, pode ter deixado com ele. Alguns dos cadernos de anotações de Geillis estavam em seu gabinete; se Rob a tivesse conhecido, ele os teria reconhecido. E nós sabemos muito bem que ele leu o pós-escrito de seu pai - ele acrescentou. Esfregou a testa - havia um ferimento roxo ao longo da linha de seus cabelos - e suspirou. - Não faz diferença, não é? A única coisa que importa agora é Jem.

   E assim Brianna deu a cada um deles um pedaço de prata cravejado de pequenos diamantes e dois sanduíches de pasta de amendoim.

   - Para a viagem - ela disse, com uma débil tentativa de humor. Roupas quentes e sapatos fortes. Ela deu a Roger seu canivete suíço; Buccleigh pegou uma faca de carne de inox da cozinha, admirando o gume serrilhado. Não havia tempo para muito mais.

   O sol ainda estava alto no céu quando o Mustang azul seguiu sacolejando pela estrada de terra que levava até perto de Craig na Dun; ela teria que estar de volta antes que Mandy chegasse em casa. A caminhonete azul de Rob Cameron ainda estava lá; um tremor a percorreu ao vê-la.

   - Vá na frente - Roger disse rispidamente a Buccleigh quando ela parou. - Já estou indo.

   William Buccleigh dera um rápido olhar a Brianna, direto e desconcertante, com aqueles olhos, tão iguais aos de Roger, tocou rapidamente em sua mão e saiu. Roger não hesitou; tivera tempo no caminho para decidir o que dizer - e só havia uma coisa a dizer, de qualquer modo.

   - Eu a amo - ele disse suavemente, segurando-a pelos ombros tempo suficiente para dizer o resto: - Eu o trarei de volta. Acredite-me, Bri... eu a verei de novo. Neste mundo.

   - Eu o amo - ela dissera, ou tentara. Saiu como um sussurro quase inaudível contra a boca de Roger, mas ele o recebeu, juntamente com seu hálito, sorriu, agarrou seus ombros com tanta força que ela veria manchas roxas ali mais tarde - e abriu a porta.

   Ela os observara - não podia tirar os olhos deles - enquanto subiam para o topo da colina, na direção das pedras invisíveis, até eles desaparecerem de sua vista. Talvez fosse imaginação; talvez realmente pudesse ouvir as pedras lá em cima: um zumbido estranho que reverberava em seus ossos, uma lembrança que permaneceria lá para sempre. Trêmula e cega pelas lágrimas, ela dirigiu de volta para casa. Com cuidado, com cuidado. Porque agora ela era tudo que Mandy tinha.

 

                       PASSOS

Mais tarde, naquela mesma noite, ela se dirigiu ao gabinete de Roger. Sentia-se entorpecida e pesada, o horror do dia embotado pela fadiga. Sentou-se à mesa dele, tentando sentir sua presença, mas o aposento estava vazio.

   Mandy dormia, surpreendentemente despreocupada com o caos dos sentimentos de seus pais. Claro, ela estava acostumada às ausências ocasionais de Roger, viajando a Londres ou Oxford, noites na loja em Inverness. Ela se lembraria dele se ele nunca mais voltasse? Brianna pensou com uma pontada de dor.

   Não podendo suportar esse pensamento, levantou-se e ficou rondando, inquieta, pelo escritório, buscando o que não podia ser encontrado. Não fora capaz de comer nada e estava se sentindo zonza e fraca.

   Pegou a pequena serpente, encontrando um consolo mínimo em sua lisa sinuosidade, sua expressão agradável. Ergueu os olhos para a caixa, perguntando-se se deveria buscar consolo na companhia de seus pais - mas a ideia de ler cartas que Roger talvez nunca lesse com ela... Devolveu a serpente ao seu lugar e ficou olhando cegamente para os livros nas prateleiras mais baixas.

   Ao lado dos livros sobre a Revolução Americana que Roger encomendara estavam os livros de seu pai, de seu antigo escritório. Franklin W. Randall, as lombadas perfeitas diziam, e ela tirou um deles e se sentou, segurando-o contra o peito.

   Ela lhe pedira ajuda uma vez antes - para olhar pela filha perdida de Ian.

Certamente, ele tomaria conta de Jem.

   Ela folheou as páginas, sentindo-se um pouco apaziguada pela fricção do papel.

   Papai, pensou, não encontrando nenhuma outra palavra além dessa, e não precisando de mais nenhuma. A folha de papel dobrada enfiada entre as páginas não veio como nenhuma surpresa.

   A carta era um rascunho - pôde ver isso no mesmo instante pelas palavras riscadas, acréscimos nas margens, palavras circuladas com ponto de interrogação. E, sendo um rascunho, não tinha data nem saudações, mas era obviamente destinada a ela.

   Você acaba de me deixar, querida e exímia atiradora, depois de nossa maravilhosa tarde no Sherman's (o lugar do pombo de barro - lembra-se do nome?). Meus ouvidos ainda estão tilintando. Sempre que atiramos, fico dividido entre um imenso orgulho em sua habilidade, inveja e temor. Não sei quando você vai ler esta, ou se vai lê-la algum dia. Talvez eu tenha a coragem de lhe dizer antes de morrer (ou farei algo tão imperdoável que sua mãe o fará - não, não fará. Nunca conheci ninguém tão confiável quanto Claire. Ela manterá sua palavra).

   Que sensação estranha é escrever isto. Sei que porfim você saberá quem - e talvez o quê - você é. Mas não faço nenhuma ideia de como chegará a esse conhecimento. Estarei prestes a revelar você a você mesma, ou será notícia velha quando a descobrir? Somente posso esperar que eu tenha conseguido salvar sua vida, de uma maneira ou de outra. E que você a descobrirá, mais cedo ou mais tarde.

   Desculpe-me, querida, isto é terrivelmente melodramático. E a última coisa que eu desejo é assustá-la. Tenho toda a confiança do mundo em você. Mas sou seu pai e assim sujeito aos medos que afligem todos os pais - que algo terrível e imprevisível

aconteça a seu filho, e você ser impotente para protegê-lo. E a verdade é que, não sendo de forma alguma culpa sua, você é...

   Nesse ponto, ele mudara de opinião várias vezes, escrevendo uma pessoa perigosa, emendando isso para sempre em algum perigo, depois riscando isso por sua vez, adicionando em uma posição perigosa, riscando isso e fazendo um risco em volta de uma pessoa perigosa, embora com um ponto de interrogação.

   - Eu entendi, papai - ela murmurou. - De que você está falando? Eu...

   Um som emudeceu as palavras em sua garganta. Passos desciam o corredor. Passos lentos, confiantes. De homem. Todos os pelos de seu corpo se arrepiaram.

   A luz do corredor estava acesa; escureceu um pouco quando uma figura assomou na porta do escritório.

   Ela olhou para ele, estupefata.

   - O que você está fazendo aqui? - Enquanto falava, já se levantava de sua cadeira, tateando em busca de alguma coisa que pudesse servir de arma, a mente ficando muito para trás de seu corpo, ainda incapaz de penetrar o nevoeiro de horror que apoderou-se dela.

   - Vim atrás de você, meu bem - ele disse, sorrindo. - E do ouro. - Ele colocou alguma coisa em cima da escrivaninha: a primeira carta de seus pais. - Diga a Jem que o espanhol o guarda - Rob Cameron citou, tamborilando na carta. - Achei que talvez seja melhor que você diga isso a Jem. E diga a ele para me mostrar onde está esse espanhol. Se quiser mantê-lo vivo, quero dizer. Mas você é quem sabe. - O sorriso ampliou-se. - Chefe.

 

                   DIA DA INDEPENDÊNCIA, II

Brest

Ver Jenny lidar com tudo aquilo estava perturbando sua própria presença de espírito consideravelmente. Ele pôde ver o coração dela na garganta na primeira vez em que ela falou francês com um verdadeiro francês; seu pulso adejou na curva de seu pescoço como um beija-flor capturado numa armadilha. Mas o boulanger compreendeu o que ela dizia - Brest era cheia de estrangeiros e seu sotaque peculiar não despertou nenhum interesse em particular - e o puro prazer em seu rosto quando o sujeito pegou sua moeda e lhe entregou uma baguete recheada com queijo e azeitonas fez Jamie ter vontade de rir e chorar ao mesmo tempo.

   - Ele me entendeu! - ela disse, agarrando-o pelo braço conforme saíam. - Jamie, ele me entendeu! Eu falei francês com ele e ele compreendeu o que eu disse, claro como água!

   - Com muito mais clareza do que teria se você tivesse falado com ele em gaidhlig - ele lhe garantiu. Sorriu diante de sua empolgação, dando uns tapinhas em sua mão. - Muito bem, a nighean.

   Ela não estava ouvindo. Sua cabeça virava de um lado para o outro, absorvendo a vasta exibição de lojas e vendedores que enchiam a rua cheia de curvas, avaliando as possibilidades que se abriam para ela. Manteiga, queijo, feijão, linguiça, roupa, sapatos, botões... Ela enterrou os dedos no braço dele.

- Jamie! Eu posso comprar qualquer coisa! Sozinha!

   Ele não pôde deixar de compartilhar sua alegria ao descobrir assim sua independência, apesar de sentir uma pequena pontada. Ele estava gostando da sensação nova de sua irmã depender dele.

   - Bem, é verdade - ele concordou, pegando a baguete de sua mão. - Mas é melhor não comprar um esquilo amestrado ou um relógio de pêndulo. Seria difícil de levar no navio.

   - Navio - ela repetiu, e engoliu em seco. O pulso em sua garganta, que havia se acalmado momentaneamente, retomou sua palpitação. - Quando é que nós vamos... subir no navio?

   - Ainda não, a nighean - ele disse delicadamente. - Vamos comer alguma coisa primeiro, sim?

O Euterpe estava marcado para partir com a maré da noite e eles se dirigiram às docas no meio da tarde para subir a bordo e ajeitar suas coisas. Mas a rampa no cais onde o Euterpe flutuava no dia anterior estava vazia.

   - Onde diabos estará o navio que estava aqui ontem? - ele perguntou, agarrando pelo braço um rapaz que passava.

- O Euterpe? - O rapaz olhou displicentemente para o local que ele apontava e deu de ombros. - Partiu, eu acho.

   - Você acha? - Seu tom de voz assustou o rapaz, que libertou o braço com um safanão e começou a recuar, na defensiva.

   - Como eu poderia saber, monsieur? - Vendo o rosto de Jamie, ele acrescentou apressadamente: - Seu mestre foi para o distrito há algumas horas; provavelmente ainda está lá.

   Jamie viu o queixo de sua irmã formar uma covinha e percebeu que ela estava à beira do pânico. Ele próprio não estava muito longe disso, pensou.

   - Oh, é mesmo? - disse, muito calmo. - Sim, bem, então eu vou buscá-lo. A que casa ele costuma ir?

   O rapaz deu de ombros.

   - A todas, monsieur.

   Deixando Jenny no cais para tomar conta da bagagem, ele voltou para dentro das ruas próximas às docas. Uma moeda de cobre assegurou-lhe os serviços de um dos moleques que vagavam pelos estábulos, na esperança de uma maçã meio podre ou uma bolsa não vigiada, e ele seguiu seu guia soturnamente pelas vielas imundas, uma das mãos na bolsa, a outra no cabo da adaga.

   Brest era uma cidade portuária e, aliás, um porto muito movimentado. O que significava, ele calculava, que aproximadamente uma em três de suas cidadãs era uma prostituta. Várias do tipo independente o saudavam quando ele passava.

   Foram necessárias três horas e várias moedas, mas finalmente ele encontrou o mestre do Euterpe, completamente bêbado. Empurrou para o lado sem nenhuma cerimônia a prostituta que dormia com ele e acordou o sujeito bruscamente, esbofeteando-o até ele recuperar um pouco da consciência.

   - O navio? - O sujeito fitou-o estupidamente, passando a mão pelo rosto barbado. - Merda. Quem se importa?

   - Eu me importo - Jamie disse entre os dentes cerrados. - E você também vai se importar, seu patife desgraçado. Onde está o navio e por que você não está nele?

   - O capitão me expulsou - o homem disse mal-humorado. - Tivemos uma discussão. Onde está o navio? A caminho de Boston, eu acho. - Abriu um sorriso largo e debochado. - Se nadar bem depressa, talvez consiga alcançá-lo.

Precisou usar o resto do seu ouro e uma bem calculada mistura de ameaças e persuasão, mas ele encontrou outro navio. Este se dirigia para o sul, para Charleston, mas no momento ele aceitaria ir para o continente certo. Uma vez na América, ele decidiria como fazer.

   Sua ira começou finalmente a se aplacar quando o Philomene chegou a mar aberto. Jenny estava de pé ao seu lado, pequena e silenciosa, as mãos apoiadas na balaustrada.

   - O que foi, a piuthar? - Ele colocou a mão nas suas costas, afagando-a com os nós dos dedos. - Sente falta de Ian?

   Ela fechou os olhos por um instante, pressionando as costas contra a mão dele, em seguida os abriu e virou o rosto para ele, franzindo a testa.

   - Não, estou preocupada, pensando em sua mulher. Ela vai ficar furiosa comigo... sobre Laoghaire.

   Ele não pôde evitar um sorriso irônico ao pensar em Laoghaire.

   - Laoghaire? Por quê?

   - O que eu fiz... quando você trouxe Claire de volta a Lallybroch, de Edimburgo. Nunca lhe pedi perdão por isso - ela acrescentou, erguendo os olhos ansiosamente para ele.

   Jamie riu.

   - Eu nunca pedi perdão a você, pedi? Por trazer Claire para casa e ser bastante covarde para não lhe contar sobre Laoghaire antes de chegarmos lá.

   Sua expressão se suavizou e uma centelha de luz voltou aos seus olhos.

   - Bem, não - ela disse. - Você não pediu perdão. Então, estamos quites, não é?

   Ele não a ouvia dizer isso a ele desde que deixara sua casa aos quatorze anos de idade para viver em Leoch.

   - Estamos quites - ele disse. Ele colocou um braço ao redor de seus ombros e ela passou seu próprio braço pela cintura dele, e ficaram ali abraçados, observando as últimas terras francesas desaparecerem no mar.

 

                   UMA SÉRIE DE CHOQUES CURTOS E VIOLENTOS

   Eu estava na cozinha de Marsali, trançando os cabelos de Félicité enquanto vigiava o mingau no fogo, quando a sineta da porta da gráfica tocou. Amarrei rapidamente uma fita na ponta da trança e, com um rápido aviso às meninas para tomarem conta do mingau, saí para atender o freguês.

   Para minha surpresa, era lorde John. Mas um lorde John que eu nunca vira antes. Não que estivesse desarrumado, mas estava destruído, tudo em ordem, salvo seu rosto.

   - O que foi? - eu disse, profundamente alarmada. - O que aconteceu? Henry está...

   - Henry, não - ele disse com voz rouca. Espalmou a mão sobre o balcão, como se precisasse se apoiar. - Tenho... más notícias.

   - Estou vendo - eu disse, um pouco rispidamente. - Sente-se, pelo amor de Deus, antes que caia.

   Ele sacudiu a cabeça como um cavalo espantando as moscas e olhou para mim. Seu rosto estava lívido e transtornado, e as bordas de seus olhos estavam vermelhas. Mas se não era Henry...

   - Oh, meu Deus - eu disse, levando o punho cerrado ao peito. - Dottie. O que aconteceu a ela?

   - Euterpe - ele falou abruptamente. Estanquei, abalada até a medula.

   - O que foi? - murmurei. - O quê?

   - Perdido - ele disse, em uma voz que não era a sua. - Perdido. Com todos os tripulantes.

   - Não - eu disse, tentando raciocinar. - Não, não é verdade.

   Ele me fitou diretamente nos olhos, então, pela primeira vez, e agarrou-me pelo braço.

   - Me ouça - ele disse, e a pressão de seus dedos me aterrorizou. Tentei me desvencilhar, mas não consegui. - Me ouça - ele repetiu. - Eu soube hoje de manhã por um capitão da marinha que eu conheço. Encontrei-o no café e ele contava a tragédia. Ele viu. - Sua voz tremia e ele parou por um instante, firmando o maxilar. - Uma tempestade. Ele estivera perseguindo o navio, pretendendo pará-lo e abordá-lo, quando a tormenta atingiu-os. Seu próprio navio sobreviveu e veio se arrastando, muito danificado, mas ele viu o Euterpe submergir debaixo de um vagalhão, ele disse... O navio afundou diante de seus olhos. O Roberts, seu navio, ficou por ali na esperança de recolher sobreviventes. - Engoliu em seco. - Não havia nenhum.

   - Nenhum - repeti, entorpecida. Eu tinha ouvido o que ele dissera, mas não compreendia o significado de suas palavras.

   - Ele está morto - lorde John disse brandamente, e soltou meu braço. - Morto.

   Da cozinha, veio o cheiro de mingau queimado.

John Grey parou de andar porque tinha chegado ao fim da rua. Estava andando para cima e para baixo, ao longo de todo o comprimento da State Street desde antes do amanhecer. O sol já ia alto agora e a poeira grossa, úmida de suor, irritava sua nuca, lama e esterco respingavam em suas meias e cada passo parecia enfiar os pregos da sola de seu sapato na sola de seus pés. Ele não se importava.

   O rio Delaware fluía pelo seu campo de visão, lamacento e cheirando a peixe, e as pessoas passavam, esbarrando nele, se aglomerando na ponta do cais na esperança de pegar a barca que vinha lentamente em direção a eles, desde o outro lado do rio. Pequenas ondas erguiam-se e batiam contra o píer com um som agitado que parecia provocar as pessoas que esperavam, pois começaram a empurrar e se acotovelar, e um dos soldados no cais tirou o mosquete do ombro e usou-o para empurrar uma mulher para trás.

   Ela tropeçou, com um gritinho estridente, e seu marido, um homem pequeno e briguento, deu um salto para frente, os punhos cerrados. O soldado disse alguma coisa, arreganhou os dentes e enxotou-o com um movimento da arma. Seu amigo, atraído pelo distúrbio, virou-se para ver e, sem nenhum outro incitamento, formou-se repentinamente uma aglomeração enfurecida no final das docas, e gritos e berros percorreram o resto, enquanto as pessoas na retaguarda tentavam fugir da violência, homens na multidão tentavam pressionar em sua direção, e alguém foi empurrado para dentro da água.

   Grey deu três passos para trás e ficou observando enquanto dois meninos saíam correndo da multidão, os rostos apavorados, e fugiram correndo pela rua.

Em algum lugar na multidão, ele ouviu os gritos de uma mulher, desesperada:

   - Ethan! Johnny! Joooooohnnny!

   Algum confuso instinto lhe disse que deveria interferir, erguer a própria voz, fazer valer sua autoridade, resolver aquilo. Virou-se e se afastou.

   Não estava de uniforme, disse a si mesmo. Não o atenderiam, seria confuso, ele iria fazer mais mal do que bem. Mas ele não estava acostumado a mentir para si mesmo e abandonou essa linha de pensamento imediatamente.

   Ele já havia perdido outras pessoas antes. Algumas a quem ele amava muito, mais do que à própria vida. Mas agora ele se perdera.

   Caminhou lentamente de volta para sua casa, em um estado de entorpecimento. Ele não dormia desde que recebera a notícia, a não ser nos intervalos de completa exaustão física, afundado na cadeira da varanda de Mercy Woodcock, acordando desorientado, pegajoso com a resina dos plátanos em seu pátio e coberto com as minúsculas lagartas que se balançavam das folhas em invisíveis fios de seda.

   - Lorde John.

   Finalmente percebeu uma voz insistente e, com ela, a compreensão de que quem quer que estivesse falando já chamara seu nome várias vezes. Parou e, virando-se, viu-se diante do capitão Richardson. Sua mente ficou completamente vazia. Provavelmente seu rosto também, pois Richardson segurou-o pelo braço de uma maneira muito familiar e conduziu-o para dentro do restaurante de uma estalagem.

   - Venha comigo - Richardson disse em voz baixa, soltando seu braço, mas fazendo um sinal com a cabeça na direção das escadas. Uma pequena movimentação de curiosidade e cautela se fez sentir através da névoa que o envolvia, mas ele seguiu o capitão, o som de seus sapatos oco nas escadas de madeira.

   Richardson fechou a porta do quarto atrás dele e começou a falar antes que Grey pudesse sair de sua perplexidade para começar a questioná-lo com relação às circunstâncias muito peculiares que William havia lhe contado.

   - Sra. Fraser - Richardson disse sem preâmbulos. - Até onde você a conhece?

   Grey ficou tão desconcertado com isso que respondeu.

   - Ela é a mulher... A viúva - corrigiu-se, sentindo como se tivesse enfiado um alfinete em uma ferida aberta - de um grande amigo.

   - Um grande amigo - Richardson repetiu, sem nenhuma ênfase em particular. O sujeito não poderia parecer mais comum, Grey pensou, e teve uma visão repentina e arrepiante de Hubert Bowles. Os mais perigosos espiões eram homens para os quais ninguém olharia duas vezes.

   - Um grande amigo - Grey repetiu com firmeza. - Suas lealdades políticas não são mais um problema, são?

   - Não, não se ele estiver realmente morto - Richardson concordou. - Acha que está?

   - Tenho absoluta certeza disso. O que deseja saber, senhor? Estou ocupado.

   Richardson sorriu ligeiramente diante dessa declaração obviamente falsa.

   - Pretendo prender esta senhora como espiã, lorde John, e queria ter certeza de que não havia nenhuma... ligação pessoal de sua parte, antes de o fazer.

   Grey sentou-se, um tanto abruptamente, e agarrou a borda da mesa em busca de apoio.

   - Eu... ela... por que razão? - perguntou incisivamente.

   Richardson educadamente sentou-se à sua frente.

   - Ela vem passando materiais subversivos de um lado a outro por toda a Filadélfia nos últimos três meses... talvez há mais tempo. E, antes que pergunte, sim, tenho certeza. Um dos meus homens interceptou uma parte deste material; dê uma olhada, se quiser. - Enfiou a mão no bolso e retirou um maço desordenado de papéis, que parecia já ter passado por várias mãos. Grey não achava que Richardson estivesse pondo sua lealdade à prova, mas examinou o material com deliberada atenção. Largou os papéis sobre a mesa, sentindo-se exangue. - Ouvi dizer que esta senhora foi recebida em sua casa e que ela está sempre na casa em que seu sobrinho está hospedado - Richardson disse. Seus olhos pousaram no rosto de Grey, atentos. - Mas ela não é uma... amiga?

   - Ela é médica - Grey disse e teve a pequena satisfação de ver as sobrancelhas de Richardson se arquearem. - Ela tem prestado... serviços inestimáveis para mim e meu sobrinho. - Ocorreu-lhe que provavelmente seria melhor que Richardson não soubesse quanta estima ele tinha pela sra. Fraser, pois, se achasse que havia um interesse pessoal, deixaria imediatamente de dar informações a Grey. - Mas isso já terminou - acrescentou, falando o mais descontraidamente possível. - Eu respeito esta senhora, é claro, mas não há nenhuma ligação, não. - Levantou-se, então, de maneira decidida, e despediu-se, pois fazer mais perguntas iria comprometer a impressão de indiferença.

   Partiu na direção de Walnut Street, não mais entorpecido. Sentia-se novamente mais dono de si mesmo, forte e determinado. Havia, afinal, mais um serviço que ele podia prestar a Jamie Fraser.

- Você tem que se casar comigo - ele repetiu.

   Eu o ouvira na primeira vez, mas não fez mais sentido com a repetição. Enfiei um dedo no ouvido e o balancei, depois repeti o processo no outro.

   - Você não pode ter dito o que eu acho que disse.

   - De fato, eu disse - confirmou, com seu habitual tom ferino de volta à voz.

   O torpor do choque começava a se dissipar e algo horrível começava a rastejar de um pequeno buraco em meu coração. Eu não podia olhar para isso e busquei refúgio olhando fixamente para lorde John.

   - Sei que estou chocada - eu lhe disse -, mas tenho certeza de que não estou delirando, nem ouvindo coisas. Por que diabos você está me dizendo isso, pelo amor de Deus?! - Levantei-me abruptamente, disposta a esbofeteá-lo. Ele percebeu e deu um passo para trás.

   - Você vai se casar comigo - ele disse, um tom cortante na voz. - Tem ideia de que está prestes a ser presa como espiã?

   - Eu... não. - Sentei-me outra vez, tão bruscamente quanto tinha me levantado. - O que... por quê?

   - Você deve saber melhor do que eu - ele disse friamente.

   De fato, eu sabia. Reprimi o repentino estremecimento de pânico que ameaçava me dominar, pensando nos papéis que eu levara secretamente de um par de mãos para outra dentro da minha cesta, alimentando a rede secreta dos Filhos da Liberdade.

   - Ainda que fosse verdade - eu disse, lutando para manter a voz inalterada -, por que diabos eu deveria me casar com você? Quanto mais, por que você iria querer se casar comigo, o que eu não acredito nem por um instante.

   - Acredite-me - ele me aconselhou laconicamente. - Farei isso porque é o último serviço que posso prestar a Jamie Fraser. Eu posso protegê-la; como minha mulher, ninguém pode tocá-la. E você fará isso porque... - Lançou um olhar frio para trás de mim, levantando o queixo, e eu olhei para trás, deparando-me com todos os quatro filhos de Fergus amontoados no vão da porta, as meninas e Henri-Christian observando-me com olhos enormes e redondos. Germain olhava diretamente para lorde John, medo e desafio evidentes em seu rosto comprido e bonito.

   - Eles também? - perguntei, respirando fundo e virando-me para fitá-lo diretamente nos olhos. - Pode protegê-los também?

   - Sim.

   - Eu... sim. Está bem. - Coloquei as duas mãos abertas sobre o balcão, como se isso pudesse de alguma forma me impedir de sair girando e ser projetada no espaço. - Quando?

   - Agora - ele disse, e me segurou pelo cotovelo. - Não há tempo a perder.

Eu não tinha a menor lembrança da breve cerimônia, conduzida na sala de estar da casa de lorde John. A única recordação que mantive de todo o dia foi a visão de William, sobriamente ao lado de seu pai - seu padrasto - como padrinho. Alto, ereto, o nariz reto e longo, os olhos puxados de gato pousados em mim com vaga compaixão.

   Ele não pode estar morto, lembro-me de ter pensado, com lucidez incomum. Ele está ali.

   Eu disse o que me mandaram dizer e depois fui escoltada ao andar de cima para me deitar. Adormeci imediatamente e só acordei na tarde seguinte.

   Infelizmente, ainda era verdade.

Dorothea estava lá, pairando acima de mim, preocupada. Permaneceu ao meu lado o resto do dia, tentando me fazer comer alguma coisa, oferecendo-me pequenos goles de uísque e conhaque. Sua presença não era exatamente um consolo - nada poderia ser -, mas ela era ao menos uma distração inócua, e eu a deixei falar, as palavras derramando-se sobre mim como o som de água corrente.

   Quase ao anoitecer, os homens voltaram - lorde John e Willie. Eu os ouvi no térreo. Dottie desceu e eu a ouvi conversando com eles, uma ligeira elevação de interesse em sua voz, em seguida seus passos na escada, leves e ligeiros.

   - Tia - ela disse, sem fôlego. - Acha que está bem o suficiente para descer?

   - Eu... sim, creio que sim. - Ligeiramente desconcertada por ser chamada de "tia", levantei-me e fiz algumas tentativas vagas de me arrumar. Ela pegou a escova das minhas mãos, prendeu meus cabelos para cima e, abrindo uma touca enfeitada de fitas, enfiou meus cabelos carinhosamente por baixo. Deixei que o fizesse, como deixei que me conduzisse delicadamente ao térreo, onde encontrei lorde John e William na sala de estar, ambos um pouco afogueados.

   - Mamãe Claire. - Willie tomou minha mão e delicadamente a beijou. - Venha ver. Papai encontrou algo que acha que você vai gostar. Venha ver - ele repetiu, arrastando-me gentilmente para a mesa.

   Era uma grande caixa de madeira, feita de madeira nobre, com aros de ouro. Pestanejei e estendi a mão para tocá-la. Parecia um estojo de talheres, porém muito maior.

   - O que...? - Ergui os olhos e vi lorde John de pé ao meu lado, parecendo um pouco envergonhado.

   - Um, hã, presente - ele disse, privado desta vez de seus modos tranquilos e imperturbáveis. - Pensei... quero dizer, notei que lhe faltam... bons equipamentos. Não quero que abandone sua profissão - ele acrescentou gentilmente.

   - Minha profissão. - Um calafrio começava a se espalhar pela minha espinha dorsal, como pelas bordas dos meus maxilares. Tateando um pouco, tentei levantar a tampa do estojo, mas meus dedos suavam; escorregaram, deixando uma mancha de suor brilhando na madeira.

   - Não, não, assim. - Lorde John inclinou-se para me mostrar, virando a caixa para ele próprio. Ele deslizou o ferrolho escondido, ergueu a tampa e abriu as portas com dobradiças, depois recuou um passo com o ar de um mágico.

   Meu couro cabeludo se arrepiou com suor frio e pontos negros começaram a dançar nos cantos dos meus olhos.

   Duas dúzias de frascos vazios com a boca dourada. Duas gavetas rasas embaixo. E acima, brilhando em sua cama de veludo, as peças de um microscópio. Um estojo médico.

   Meus joelhos cederam e eu desmaiei, apreciando a madeira fria do assoalho sob a minha face.

 

                       OS CAMINHOS DA MORTE

Deitada no emaranhado inferno de minha cama à noite, busquei o caminho para a morte. Desejava com todas as fibras do meu ser passar desta existência para a outra. Se o que estava do outro lado da vida fosse uma glória inimaginável ou apenas o misericordioso esquecimento, o mistério era infinitamente preferível ao meu atual e incontornável sofrimento.

   Não sei o que me impedia de uma fuga simples e violenta. Os meios, afinal, estavam sempre à mão. Eu tinha escolha de tiro de pistola ou lâmina de faca, ou de venenos que iam da rapidez ao estupor.

   Revirei frascos e jarras do armário de remédios como uma louca, deixando as gavetinhas abertas, as portas escancaradas, buscando, remexendo tudo em minha pressa, saqueando conhecimento e memória como saqueava o armário, derrubando vidros e potes e fragmentos do passado no chão em uma grande desordem.

   Finalmente, achei que tinha todos eles e, com mão trêmula, arrumei-os um a um sobre a mesa à minha frente.

   Acônito. Arsênico...

   Tantas formas de morte a escolher. Como, então?

   Éter. Seria a mais fácil, senão a mais segura. Deitar, encharcar uma grossa almofadinha de pano na substância, colocar a máscara sobre o nariz e a boca, e me deixar levar, sem dor. Mas sempre havia a chance de alguém me encontrar. Ou que, tendo perdido a consciência, minha cabeça pudesse virar para o lado ou eu sofrer convulsões que deslocariam o pano, e eu iria simplesmente acordar de novo para esta existência dolorosamente vazia.

   Permaneci sentada, imóvel, por um instante, e depois, sentindo-me em um sonho, estendi a mão para pegar a faca que estava sobre a mesa, onde eu descuidadamente a deixara depois de usá-la para cortar hastes de linho. A faca que Jamie me dera. Era afiada; a lâmina brilhava, brutal e prateada.

   Seria certeira, e seria rápida.

Jamie Fraser estava de pé no convés do Philomene, observando a água deslizar interminavelmente, pensando na morte. Ele havia ao menos parado de pensar nisso de uma maneira pessoal, desde que o enjoo do mar havia - finalmente - diminuído. Seus pensamentos agora eram mais abstratos.

   Para Claire, ele pensou, a morte era sempre o inimigo. Algo contra o qual sempre lutar, ao qual nunca ceder. Ele estava tão familiarizado com a morte quanto ela, mas fizera forçosamente as pazes com a morte. Ou achava que tinha feito. Como o perdão, não era uma coisa que se aprendia e depois confortavelmente deixava de lado, mas uma questão de prática permanente - aceitar a ideia da própria mortalidade e ainda assim viver plenamente era um paradoxo digno de Sócrates. E esse valoroso ateniense havia abraçado exatamente esse paradoxo, refletiu, com a sombra de um sorriso.

   Ele ficara frente a frente com a morte vezes suficientes - e lembrava-se desses encontros com bastante nitidez - para compreender que de fato havia coisas piores. Muito melhor morrer do que sobreviver para prantear.

   Ele ainda tinha a terrível sensação de algo pior do que tristeza quando olhava para sua irmã, pequena e solitária, e ouvia a palavra "viúva" em sua mente.

Era errado. Ela não podia ser isso, não podia ser excluída dessa forma brutal. Era como vê-la ser cortada em pedaços e ser impotente para fazer qualquer coisa.

   Voltou-se desses pensamentos para suas lembranças de Claire, suas saudades dela, sua chama a vela dele na escuridão. Seu toque um consolo e um calor além daquele do corpo. Lembrou-se da última noite antes de sua partida, de mãos dadas no banco do lado de fora da torre, sentindo as batidas de seu coração nas pontas de seus dedos, seu próprio coração firmando-se àquela pulsação rápida e quente.

   Estranho como a presença da morte parecia trazer consigo tantos acompanhantes, sombras há muito esquecidas, rapidamente vislumbradas na penumbra do anoitecer. A lembrança de Claire, e de como ele jurara protegê-la desde o primeiro instante em que a abraçara, trouxe-lhe de volta a jovem sem nome.

   Ela morrera na França, do outro lado do vazio em sua cabeça que fora provocado pelo golpe de um machado. Há anos não pensava nela, mas repentinamente ela estava ali outra vez. Ela esteve em sua mente quando ele abraçara Claire em Leoch e sentira que seu casamento podia ser uma pequena reparação. Ele aprendera - devagar - a se perdoar por aquilo que não fora culpa sua e, amando Claire, deu alguma paz à sombra da jovem, esperava.

   Ele sentia de forma obscura que devia uma vida a Deus e pagara essa dívida tomando Claire como sua esposa - embora Deus soubesse que ele a teria desposado de qualquer forma, pensou, com um sorriso melancólico. Mas mantivera a promessa de protegê-la. A proteção do meu nome, do meu clã-e a proteção do meu corpo, ele dissera.

   A proteção do meu corpo. Havia uma ironia nisso que o fez se encolher, quando vislumbrou outro rosto entre as sombras. Estreito, malicioso, de olhos dissimulados - tão jovem.

   Geneva. Mais uma mulher jovem morta em decorrência de sua luxúria. Não culpa sua, exatamente - ele lutara e conseguira vencer a culpa, nos longos dias e noites que se seguiram à sua morte, sozinho em sua cama fria em cima dos estábulos, tirando um pouco de consolo da presença sólida, muda, dos cavalos, remexendo-se e mastigando nas baias embaixo. Mas, se ele não tivesse se deitado com ela, ela não teria morrido; disso não havia como fugir.

   Ele deveria outra vida a Deus?, perguntou-se. Ele achava que dera a William a vida que lhe fora dada para proteger com a sua própria vida, em troca da vida de Geneva. Mas essa confiança tivera que ser entregue a outra pessoa.

   Bem, tinha sua irmã agora e assegurou a Ian silenciosamente que zelaria por sua segurança. Enquanto eu viver, pensou. E isso ainda iria levar algum tempo. Pensou que tinha usado apenas cinco das mortes que a adivinha em Paris lhe garantira ter.

   Você morrerá nove vezes antes de descansar em seu túmulo, ela dissera. Seriam necessárias tantas tentativas para provar isso?, perguntou-se.

Deixei minha mão cair para trás, expondo meu pulso, e coloquei a ponta da faca no meio do meu antebraço. Eu já vira muitos suicídios malsucedidos, aqueles que cortavam os pulsos de um lado ao outro, os ferimentos pequenas bocas que gritavam por socorro. Eu vira aqueles que realmente tinham intenção de morrer. A maneira correta era cortar as veias ao comprido, profundamente, cortes certeiros que iriam drenar o meu sangue em questão de minutos, provocar a inconsciência em segundos.

   A marca ainda era visível no monte na base do meu polegar. Um fraco e lívido "J", a marca que ele deixara em mim na véspera de Culloden, quando pela primeira vez enfrentamos o conhecimento da morte e da separação.

   Tracei a fina linha branca com a ponta da faca e senti o sussurro sedutor do metal em minha pele. Eu quis morrer com ele na época e ele me mandara através das pedras com mão firme. Eu carregava uma filha sua; eu não podia morrer.

   Eu já não a carregava - mas ela ainda estava lá. Talvez ao meu alcance. Permaneci sentada, imóvel, pelo que me pareceu um longo tempo, depois suspirei e coloquei a faca de volta sobre a mesa cuidadosamente.

   Talvez fosse o hábito de muitos anos, uma tendência da mente que considerava a vida sagrada por si mesma, ou um medo supersticioso de extinguir uma chama acesa por outra mão que não a minha. Talvez fosse obrigação. Havia aqueles que precisavam de mim - ou ao menos a quem eu podia ser útil. Talvez fosse a teimosia do corpo, com sua inexorável insistência em processo infinito.

   Eu podia reduzir meus batimentos cardíacos, reduzi-los o suficiente para contar as batidas... reduzir o fluxo do meu sangue até meu coração ecoar nos meus ouvidos com a perdição de tambores distantes.

   Havia caminhos na escuridão. Eu sabia; eu já vira pessoas morrerem. Apesar da decadência física, não havia morte enquanto o caminho não fosse encontrado. Eu não podia - ainda - encontrar o meu.

 

                   TORPOR

O novo estojo médico estava sobre a mesa do meu quarto, brilhando suavemente à luz de vela. Ao lado, estavam as sacolinhas de gaze de ervas desidratadas que eu comprara pela manhã, os novos frascos de tintura que eu preparara à tarde, para grande desprazer da sra. Figg em ver a pureza de sua cozinha assim corrompida. Seus olhos oblíquos diziam que ela sabia que eu era uma rebelde e me considerava uma bruxa; ela se retirara para a porta do prédio da cozinha enquanto eu trabalhava, mas não se afastou inteiramente, mantendo, em vez disso, uma vigilância desconfiada e silenciosa sobre mim e meu caldeirão.

   Uma grande garrafa de conhaque de ameixa me fazia companhia. Durante a última semana, eu descobrira que um copo à noite me deixava encontrar uma trégua no sono, ao menos por algumas horas. Não estava funcionando esta noite. Ouvi o relógio no console da lareira no andar de baixo soar melodicamente, uma vez.

   Inclinei-me para pegar uma caixa de camomila seca que derramara, varrendo as folhas espalhadas cuidadosamente de volta para dentro do recipiente. Uma garrafa de xarope de papoula havia tombado também e ficara ali deitado, o líquido aromático infiltrando-se ao redor da rolha. Sentei-me ereta, limpei as gotículas douradas do gargalo da garrafa com meu lenço, enxuguei a minúscula poça do chão. Uma raiz, uma pedra, uma folha. Uma a uma, peguei-as, limpei-as e guardei-as, os equipamentos de minha profissão, os ingredientes do meu destino.

   O vidro frio parecia de certa forma longínquo, a madeira reluzente uma ilusão. Com o coração batendo devagar, de modo errático, coloquei a mão espalmada sobre a caixa, tentando me estabilizar, fixar-me no tempo e no espaço. Estava ficando mais difícil a cada dia que se passava.

   Lembrei-me, com uma nitidez dolorosa e repentina, de um dia durante a retirada de Ticonderoga. Havíamos alcançado um vilarejo, encontrado refúgio temporário em um celeiro. Eu havia trabalhado o dia inteiro, fazendo o que podia ser feito sem nenhum suprimento, nenhum remédio, nenhum instrumento, nenhuma atadura, a não ser as que eu fazia com as roupas imundas, suadas, dos feridos. Sentindo o mundo se perder cada vez mais na distância enquanto trabalhava, ouvindo minha voz como se pertencesse a outra pessoa. Vendo os corpos sob minhas mãos, apenas corpos. Membros. Ferimentos. Perdendo o contato.

   A escuridão sobreveio. Alguém chegou, colocou-me de pé e me mandou para fora do celeiro, para uma pequena taverna. Estava apinhada de gente. Alguém - Ian? - disse que Jamie tinha comida para mim lá fora.

   Ele estava sozinho lá, no barracão de lenha vazio, turvamente iluminado por uma lanterna distante.

   Eu fiquei parada na soleira da porta, cambaleando. Ou talvez fosse o barracão que oscilava.

   Pude ver meus dedos se cravarem na madeira dos batentes da porta, as unhas brancas.

   Um movimento na penumbra. Ele se levantou rapidamente, ao me ver, veio em minha direção. Qual era seu...

   - Jamie. - Senti uma distante sensação de alívio ao descobrir seu nome.

   Ele me segurou, levou-me para dentro do barracão e eu me perguntei por um instante se eu estaria andando ou se ele estava me carregando; ouvi o barulho dos meus pés se arrastando no chão de terra, mas não sentia meu peso, nem seu deslocamento.

   Ele falava comigo, o som de sua voz tranquilizante. Parecia um esforço terrível distinguir as palavras. Mas eu sabia o que ele devia estar dizendo e consegui dizer, perguntando-me enquanto falava se aqueles sons seriam palavras e se faziam sentido.

   - Tudo bem. Apenas... cansada.

   - Quer dormir, então? - ele dissera, os olhos preocupados fixos em mim. - Ou pode comer um pouco primeiro?

   Ele me soltou para pegar o pão e eu coloquei a mão contra a parede para me apoiar, surpresa ao encontrá-la sólida.

   A sensação de frio e entorpecimento voltara.

   - Cama - eu disse. Sentia meus lábios azuis e exangues. - Com você. Agora mesmo.

   Ele colocou a mão em meu rosto, a palma calosa quente em minha pele. Mão grande. Sólida. Acima de tudo, sólida.

   - Tem certeza, a nighean? - ele dissera, um tom de surpresa na voz. - Você parece que...

   Eu colocara a mão em seu braço, temendo que fosse atravessar sua carne.

   - Com força - eu sussurrara. - Me machuque.

   Meu copo estava vazio, a garrafa pela metade. Servi outro e segurei o copo cuidadosamente, sem querer derramá-lo, determinada a encontrar o esquecimento, por mais temporário que fosse.

   Eu poderia me separar inteiramente?, perguntei-me. Minha alma poderia realmente deixar meu corpo sem que eu morresse primeiro? Ou já deixara?

   Bebi devagar, um gole de cada vez. Outro. Um gole de cada vez.

   Deve ter havido algum som que me fez erguer os olhos, mas eu não tinha consciência de ter levantado a cabeça. John Grey estava parado na porta do meu quarto. Não usava seu lenço de pescoço e sua camisa dependurava-se, frouxa, de seus ombros, vinho entornado na frente. Seus cabelos estavam soltos e emaranhados, e seus olhos tão vermelhos quanto os meus.

   Levantei-me, devagar, como se estivesse submersa em água.

   - Não vou chorar sua morte sozinho esta noite - ele disse asperamente, e fechou a porta.

Fiquei surpresa de acordar. Eu realmente não esperava e continuei deitada por algum tempo tentando encaixar a realidade novamente à minha volta. Sentia apenas uma leve dor de cabeça, que era quase mais surpreendente do que o fato de eu ainda estar viva.

   Ambos os fatos perderam o significado diante do homem na cama ao meu lado.

   - Quanto tempo faz desde a última vez que dormiu com uma mulher, se não se importa que eu pergunte.

   Ele não pareceu se importar. Franziu um pouco a testa e coçou o peito pensativamente.

   - Oh... quinze anos? Pelo menos. - Olhou para mim, a expressão se alterando para um ar de preocupação. - Oh. Peço-lhe desculpas.

   - Pede? Por quê? - Arqueei uma das sobrancelhas. Eu podia pensar em inúmeras coisas pelas quais ele poderia pedir desculpas, mas provavelmente nenhuma delas era o que ele tinha em mente.

   - Receio que talvez eu não tenha sido... - hesitou. - Um verdadeiro cavalheiro.

   - Oh, não foi - eu disse, um tanto rispidamente. - Mas eu lhe garanto que eu também não estava sendo uma verdadeira dama.

   Ele olhou para mim e sua boca torceu-se um pouco, como se tentasse formular uma resposta para isso, mas após um instante sacudiu a cabeça e desistiu.

   - Além do mais, não foi comigo que você estava fazendo amor - eu disse - e nós dois sabemos disso.

   Ele levantou a cabeça, surpreso, os olhos muito azuis. Então, a sombra de um sorriso atravessou seu rosto e ele abaixou os olhos para a colcha.

   - Não - ele disse, suavemente. - Nem você, eu acho, estava fazendo amor comigo. Estava?

   - Não - eu disse. A dor e o pesar da noite anterior haviam abrandado, mas seu peso ainda estava lá. Minha voz era baixa e rouca, porque minha garganta estava parcialmente obstruída, onde a mão da tristeza me pegara desprevenida.

   John sentou-se e estendeu a mão para a mesa, onde havia uma garrafa de bebida, outra garrafa e um copo. Ele serviu algo da segunda garrafa e entregou-me o copo.

   - Obrigada - eu disse, levando-o aos lábios. - Santo Deus, isso é cerveja?

   - Sim, e muito boa - ele disse, virando a garrafa para trás. Tomou vários goles generosos, os olhos semicerrados, depois devolveu a garrafa para cima da mesa com um suspiro de satisfação. - Limpa o céu da boca, refresca o hálito e prepara o estômago para a digestão.

   A despeito de mim mesma, achei graça - e fiquei chocada.

   - Está me dizendo que tem o hábito de beber cerveja como café da manhã todos os dias?

   - Claro que não. Eu como alguma coisa com ela.

   - Surpreende-me que ainda tenha um dente sequer na cabeça - eu disse severamente, mas arrisquei um pequeno gole. A cerveja era boa: encorpada e adocicada, com um toque amargo na medida certa.

   Nesse ponto, notei certa tensão em sua postura, que o conteúdo da conversa não explicava. Com o raciocínio lento como eu estava, levei algum tempo para perceber qual era o problema.

   - Oh. Se precisa peidar - eu disse -, não se preocupe comigo. Vá em frente.

   Ele ficou tão surpreso com minha observação que o fez.

   - Peço-lhe mil desculpas, senhora! - ele disse, a pele clara enrubescendo até a linha dos cabelos.

   Tentei não rir, mas o riso reprimido sacudiu a cama e ele ficou ainda mais vermelho.

   - Você teria alguma hesitação sobre isso se estivesse na cama com um homem? - perguntei, apenas por curiosidade.

   Ele esfregou os nós dos dedos contra a boca, a cor esmaecendo um pouco de suas faces.

   - Ah. Bem, isso iria depender do homem. Mas, de um modo geral, não.

   O homem. Eu sabia que Jamie era o homem em sua cabeça - assim como na minha. No momento, não estava disposta a me ofender com isso.

   Ele também sabia o que eu estava pensando.

   - Ele me ofereceu seu corpo certa vez. Sabia disso? - Sua voz era seca.

   - Imagino que não tenha aceito. - Eu sabia que ele não aceitara, mas estava mais do que curiosa em ouvir seu lado da história.

   - Não. O que eu queria dele não era isso... ou não somente isso - acrescentou, honestamente. - Eu queria tudo, e era jovem e orgulhoso o suficiente para achar que, se não pudesse ter tudo, não aceitaria menos. E tudo, naturalmente, ele não podia me dar.

   Fiquei em silêncio por algum tempo, pensando. A janela estava aberta e as longas cortinas de musselina agitavam-se com a brisa.

   - Você se arrependeu? - perguntei. - De não ter aceitado sua oferta, quero dizer.

   - Dez mil vezes, no mínimo - garantiu-me, abrindo um sorriso largo e melancólico. - Ao mesmo tempo... recusá-lo foi um dos poucos atos de verdadeira nobreza que eu alegaria em meu favor. É verdade, sabe - disse -, o desprendimento tem suas próprias recompensas, pois, se eu tivesse aceitado, isso teria destruído para sempre o que realmente existia entre nós. Ter lhe dado, em vez disso, a dádiva de minha compreensão, por mais difícil que tenha sido - ele acrescentou ironicamente -, me deixou sua amizade. Assim, enquanto sinto um arrependimento momentâneo por um lado, tenho satisfação por outro. E no final das contas foi à amizade que eu dei mais valor.

   Após um momento de silêncio, ele virou-se para mim.

   - Posso... você vai me achar estranho.

   - Bem, você é um pouco estranho, não? - eu disse, tolerantemente. - Mas não me importo. O que é?

   Lançou-me um olhar que dizia que, se um de nós era realmente estranho, ele não achava que fosse ele próprio. Entretanto, instintos de cavalheiro reprimiram qualquer comentário que pudesse ter feito a esse respeito.

   - Você permitiria que eu a visse? Ah... nua?

   Fechei um dos olhos e olhei para ele.

   - Esta certamente não é a primeira vez que você dorme, e quero dizer realmente dorme, com uma mulher, é? - perguntei. Ele fora casado, embora eu me recordasse que ele passara a maior parte da vida de casado vivendo longe de sua mulher.

   Ele torceu os lábios pensativamente, como se tentasse se lembrar.

   - Bem, não. Mas acho que esta é a primeira vez que fiz isso de uma maneira inteiramente voluntária.

   - Oh, estou lisonjeada!

   Ele olhou para mim, sorrindo ligeiramente.

   - E deveria estar - ele disse serenamente.

   Eu era de uma época, afinal, em que... Bem, por outro lado, ele provavelmente não tinha as mesmas reações instintivas que a maioria dos homens, em termos de atrações femininas. O que de certa forma deixava aberta a questão...

   - Por quê?

   Um sorriso tímido tocou o canto de sua boca e ele se levantou um pouco, recostando-se no travesseiro.

   - Eu... não sei bem, para lhe dizer a verdade. Talvez seja apenas um esforço para conciliar minhas lembranças desta noite com a... hã... realidade da experiência?

   Senti um forte solavanco, como se ele tivesse me golpeado no peito. Ele não poderia ter percebido meus primeiros pensamentos ao acordar e vê-lo - aquele clarão repentino, desorientador, quando pensei que era Jamie, lembrando-me de forma tão aguçada do peso, do corpo e do calor de Jamie, e tão desesperadamente desejando que ele fosse Jamie que consegui por um instante achar que fosse, somente para ser esmagada como uma uva diante da realidade de que ele não era Jamie, todas as minhas entranhas se desfazendo.

   Ele teria sentido ou pensado as mesmas coisas, ao acordar e me encontrar ali ao seu lado?

   - Ou talvez seja curiosidade - ele disse, abrindo um pouco mais o sorriso. - Eu não vejo uma mulher nua há muito tempo. Salvo escravas negras nas docas em Charleston.

   - Quanto é muito tempo? Quinze anos, você disse?

   - Oh, bem mais do que isso. Isobel... - Parou abruptamente, o sorriso desaparecendo. Ele nunca havia mencionado sua falecida esposa.

   - Você nunca a viu nua? - perguntei, com mais do que mera curiosidade. Ele desviou um pouco o rosto, os olhos abaixados.

   - Ah... não. Não era... Ela não... Não. - Limpou a garganta, depois ergueu os olhos, fitando dentro dos meus com uma honestidade capaz de me fazer querer desviar o olhar. - Eu estou nu para você - ele disse simplesmente, e afastou o lençol.

   Assim convidada, eu dificilmente poderia deixar de olhar para ele. E com toda a verdade eu queria, por simples curiosidade. Ele era esbelto e de constituição delicada, mas musculoso e rígido. Um pouco de flacidez na cintura, mas nenhuma gordura - e suavemente recoberto de pelos fortes e dourados, que se escureciam para castanho no triângulo entre as pernas. Era o corpo de um guerreiro; estava bem familiarizada com eles. Um dos lados de seu peito era recoberto de cicatrizes em forma cruzada, e havia outras - uma bem profunda no alto de uma das coxas, uma linha irregular, recortada, como um relâmpago ao longo do antebraço esquerdo.

Ao menos, minhas próprias cicatrizes não eram visíveis, pensei, e antes que pudesse hesitar ainda mais retirei o lençol do meu próprio corpo. Ele olhou-o com grande curiosidade, sorrindo ligeiramente.

   - Você é linda - disse educadamente.

   - Para uma mulher da minha idade?

   Seu olhar me percorreu desapaixonadamente, sem nenhum senso de julgamento, mas com o ar de um homem de gosto refinado avaliando o que ele via à luz de anos de observação.

   - Não - ele disse finalmente. - Não para uma mulher da sua idade; nem mesmo para uma mulher, eu acho.

   - Como o quê, então? - perguntei, fascinada. - Um objeto? Uma escultura? - De certo modo, eu podia entender isso. Algo como esculturas de museu, talvez: estátuas envelhecidas, fragmentos de culturas desaparecidas, conservando em seu interior algum remanescente da inspiração original, esse remanescente estranhamente amplificado pelas lentes da idade, santificado pela antiguidade. Eu nunca havia me visto sob tal luz, mas não podia imaginar o que mais ele podia estar querendo dizer.

   - Como minha amiga - ele disse simplesmente.

   - Oh - eu disse, enternecida. - Obrigada.

   Esperei, depois puxei o lençol para cima, sobre nós dois.

   - Já que somos amigos... - eu disse, um pouco encorajada.

   - Sim?

   - Eu só me pergunto... você... ficou inteiramente sozinho todo esse tempo? Desde que sua mulher morreu?

   Ele suspirou, mas sorriu para que eu soubesse que ele não se importava com a pergunta.

   - Se quer mesmo saber, eu tenho há muitos anos desfrutado um relacionamento físico com meu cozinheiro.

   - Com... seu cozinheiro? Ou cozinheira?

   - Não, não com a sra. Figg, não - ele disse apressadamente, ouvindo o horror em minha voz. - Eu me referi a meu cozinheiro em Mount Josiah, na Virgínia. Seu nome é Manoke.

   - Ma... oh! - lembrei-me de Bobby Higgings ter me contado que lorde John mantinha um índio chamado Manoke como seu cozinheiro.

   - Não se trata apenas de aliviar necessidades urgentes - ele acrescentou enfaticamente, virando a cabeça para olhar-me diretamente nos olhos. - Há um verdadeiro afeto entre nós.

   - Fico satisfeita em saber - murmurei. - Ele, hã, ele é...

   - Não faço a menor ideia se sua preferência é exclusivamente por homens. Duvido que seja... fiquei um pouco surpreso quando ele me deu a conhecer seu interesse por mim. Mas não estou em posição de me queixar, quaisquer que sejam seus gostos.

   Passei o nó de um dedo pelos lábios, não querendo parecer vulgarmente curiosa - mas mesmo assim vulgarmente curiosa.

   - Você não se importa, se ele... tiver outros amantes? Ou ele em relação a você, se for este o caso? - Tive uma repentina e inquietante apreensão. Eu não pretendia que o que acontecera na noite anterior voltasse a acontecer. Na realidade, eu ainda estava tentando me convencer de que não acontecera desta vez. Nem eu pretendia ir à Virgínia com ele. Mas e se eu fosse e os empregados de lorde John presumissem... tive visões de um índio ciumento colocando veneno na minha sopa ou de tocaia atrás da latrina com um tacape.

   O próprio John parecia estar considerando a questão, os lábios franzidos. Ele tinha uma barba cerrada, eu vi; os pelos louros da barba por fazer suavizavam suas feições e ao mesmo tempo me davam certa sensação de estranheza - só muito raramente eu o vira sem estar perfeitamente barbeado e bem arrumado.

   - Não. Não há... nenhum sentimento de posse nisso - ele disse finalmente.

   Lancei-lhe um olhar de evidente descrença.

   - Eu lhe asseguro - ele disse, sorrindo ligeiramente. - Na... bem. Talvez eu possa descrever isso melhor por analogia. Em minha fazenda... ela pertence a William, é claro; refiro-me a ela como minha somente no sentido de habitação...

   Fiz um ruído educado na garganta, indicando que ele podia abreviar suas inclinações à absoluta precisão no interesse de contar logo o fato.

   - Na fazenda - ele disse, ignorando-me - há uma grande área aberta nos fundos da casa. No começo, era uma pequena clareira e, com o passar dos anos, eu a aumentei e finalmente fiz um amplo gramado, mas a borda da clareira encosta nas árvores. Durante a noite, com muita frequência, os cervos saem da floresta para se alimentar nas bordas do gramado. De vez em quando, entretanto, eu vejo um determinado cervo. É branco, eu acho, mas parece ser prateado. Não sei se ele aparece somente quando há luar ou se é apenas que não consigo vê-lo se não tiver a claridade da lua, mas é uma visão de rara beleza.

   Seus olhos haviam se enternecido e eu podia ver que ele não estava olhando o teto acima, mas o cervo branco, brilhante ao luar.

   - Ele vem durante duas noites, três, raramente quatro, e depois desaparece, e eu não o vejo novamente durante semanas, às vezes meses. Depois ele vem de novo e eu fico fascinado outra vez.

   Ele rolou sobre o corpo com um farfalhar de cobertas e ficou de lado, olhando para mim.

   - Compreende? Eu não sou dono dessa criatura. Não seria, ainda que pudesse. Sua vinda é uma dádiva, que aceito com gratidão, mas quando ele vai embora não há nenhum sentimento de abandono ou privação. Fico apenas feliz por tê-lo pelo tempo que ele quiser ficar.

   - E está dizendo que seu relacionamento com Manoke é igual. Você acha que ele também se sente dessa forma a seu respeito? - perguntei, fascinada. Ele olhou para mim, obviamente perplexo.

   - Não faço a menor ideia.

   - Vocês, hum, não... conversam na cama? - eu disse, tentando ser delicada.

   Sua boca torceu-se e ele desviou o rosto.

   - Não.

   Permanecemos em silêncio por alguns momentos, examinando o teto.

   - Já teve alguma vez? - perguntei repentinamente.

   - Tive o quê?

   - Teve um amante com quem conversava.

   Lançou-me um olhar de esguelha.

   - Sim. Talvez não tão francamente como me vejo conversando com você, mas sim. - Ele abriu a boca como se fosse dizer ou perguntar mais alguma coisa, mas em vez disso respirou fundo, fechou a boca com firmeza e soltou o ar devagar pelo nariz.

   Eu sabia - não tinha como não saber - que ele queria muito saber como Jamie era na cama, além do que eu inadvertidamente lhe mostrara na noite anterior. E fui obrigada a admitir a mim mesma que me sentia muito tentada a contar-lhe, apenas para trazer Jamie de volta à vida pelos breves momentos em que conversávamos. Mas eu sabia que tal revelação teria um preço: não só uma posterior sensação de traição a Jamie, mas uma sensação de vergonha em usar John - quer ele quisesse ser usado ou não. Mas se as lembranças do que se passara entre Jamie e mim em nossa intimidade não fossem mais compartilhadas... ainda assim, elas pertenciam apenas a essa intimidade e não eram minhas para dispor delas.

   Ocorreu-me - tardiamente, quanto tantas coisas ultimamente - que as lembranças íntimas de John pertenciam somente a ele também.

   - Eu não tive intenção de bisbilhotar - disse, desculpando-me.

   Ele sorriu debilmente, mas com verdadeiro humor.

   - Sinto-me lisonjeado, senhora, que possa ter algum interesse em mim. Conheço muitos casamentos mais... convencionais em que os parceiros preferem permanecer na mais completa ignorância dos pensamentos e histórias um do outro.

   Com grande surpresa, percebi que havia agora uma intimidade entre mim e John - inesperada e voluntária para ambas as partes, mas... lá estava ela.

   Essa percepção me intimidou e com ela veio outra mais prática: a saber, que uma pessoa com rins funcionais não podia ficar deitada na cama tomando cerveja para sempre.

   Ele notou meu leve movimento e levantou-se imediatamente, vestindo seu banyan antes de ir buscar meu próprio roupão - o qual, vi com inquietação, alguém fizera a gentileza de pendurar no encosto de uma cadeira para aquecer diante da lareira.

   - De onde veio isso? - perguntei, indicando com a cabeça o roupão de seda que ele segurava para mim.

   - De seu quarto, eu presumo. - Franziu a testa para mim por um instante antes de entender o que eu queria dizer. - Oh. A sra. Figg trouxe para cá quando veio atiçar o fogo.

   - Oh - exclamei frouxamente. A ideia de a sra. Figg me ver no quarto de lorde John - sem dúvida, com frio, descabelada e roncando, se não na verdade babando - era terrivelmente mortificante. Quanto a isso, o mero fato de eu estar em sua cama era profundamente embaraçoso, independente da minha aparência.

   - Nós somos casados - ele ressaltou, com um tom ligeiramente cortante na voz.

   - Hã... sim. Mas... - Um outro pensamento me ocorreu: talvez esta não fosse uma ocorrência tão incomum para a sra. Figg quanto eu imaginara. Ele teria recebido outras mulheres em sua cama de vez em quando? - Você dorme com mulheres? Hã... não dormir, quero dizer, mas...

   Olhou-me fixamente, parou no ato de desembaraçar os cabelos.

   - Não de bom grado - ele disse. Parou, em seguida abaixou o pente de prata. - Há mais alguma coisa que gostaria de me perguntar - ele indagou, com extrema educação - antes que eu mande o engraxate entrar?

   A despeito do fogo na lareira, o aposento estava frio, mas minhas faces irradiavam calor. Apertei ainda mais o roupão de seda ao redor do corpo.

   - Já que propõe... Sei que Brianna lhe contou o que... O que somos. Você acredita?

   Ele me considerou por algum tempo antes de falar. Ele não possuía a habilidade de Jamie de mascarar seus sentimentos e pude ver sua leve irritação com a minha pergunta anterior se desfazer em divertimento. Fez uma pequena mesura para mim.

   - Não - ele disse mas lhe dou minha palavra que eu naturalmente me comportarei sob todos os aspectos como se acreditasse.

   Fiquei olhando fixamente para ele até perceber que estava de boca aberta, de uma maneira bem pouco atraente. Fechei a boca.

   - Bastante justo - eu disse.

   A estranha e diminuta bolha de intimidade em que havíamos passado a última meia hora estourara e, apesar do fato de que fora eu quem fizera perguntas intrometidas, sentia-me como um caracol repentinamente privado de sua concha - não meramente nua, mas fatalmente xposta, emocionalmente, assim como fisicamente. Completamente perturbada, murmurei uma despedida e me dirigi para a porta.

   - Claire? - ele disse, uma interrogação na voz.

   Parei, a mão na maçaneta, sentindo-me muito estranha; ele nunca me chamara pelo primeiro nome antes. Precisei fazer um esforço para olhar por cima do ombro para ele, mas quando o fiz eu o vi sorrindo.

   - Pense no cervo - ele disse suavemente.

   Assenti, sem dizer nada, e saí. Somente mais tarde, depois de ter tomado banho - vigorosamente - e me vestido, e depois de uma revigorante xícara de chá com conhaque, é que sua última observação fez sentido para mim.

Sua vinda é uma dádiva, ele dissera a respeito do cervo branco, que aceito com gratidão.

   Inspirei o vapor aromático e observei as minúsculas espirais das folhas de chá flutuarem para o fundo da xícara. Pela primeira vez em semanas, perguntei o que o futuro me reservaria.

   - Bastante justo - murmurei, e esvaziei a xícara, os fragmentos de folhas de chá fortes e amargos em minha língua.

 

                     VAGA-LUME

   Estava escuro. Mais escuro do que qualquer lugar onde ele já esteve. A noite lá fora nunca era completamente escura, mesmo com o céu nublado, mas ali era mais escuro do que o fundo do closet de Mandy quando brincavam de esconde-esconde. Havia uma fenda entre as portas, podia senti-la com seus dedos, mas nenhuma luz passava por ali. Ainda devia ser noite. Talvez houvesse luz pela fenda quando amanhecesse.

   Mas talvez o sr. Cameron voltasse de manhã também. Jem afastou-se um pouco da porta, pensando nisso. Não achava que o sr. Cameron quisesse machucá-lo - ele disse que não queria -, mas ele podia tentar levá-lo de novo lá para cima das rochas e Jem não iria lá por nada neste mundo.

   Pensar nas pedras doía. Não tanto quando o sr. Cameron o empurrou contra uma delas e ela... começou a funcionar, mas doía. Havia um arranhão em seu cotovelo onde ele batera na pedra, quando revidava, e ele esfregou o local agora, porque era muito melhor sentir isso do que pensar nas pedras. Não, disse a si mesmo, o sr. Cameron não iria machucá-lo, porque ele o puxara de volta da pedra quando ela tentou... engoliu em seco e procurou pensar em outra coisa.

   Ele achava que sabia onde estava, apenas porque se lembrava de mamãe contar a papai sobre a peça que o sr. Cameron pregara nela, trancando-a no túnel, e ela disse que as rodas que trancavam as portas soavam como ossos sendo triturados e foi exatamente assim que soaram quando o sr. Cameron empurrou-o ali para dentro e fechou as portas.

   Estava meio trêmulo. Fazia frio ali, mesmo estando com seu casaco. Não tão frio quando ele e seu avô levantavam-se antes do amanhecer e esperavam na neve que o cervo descesse para beber água, mas ainda assim bastante frio.

   O ar tinha uma sensação estranha. Farejou o ar, tentando descobrir o que estava acontecendo, como seu avô e seu tio Ian sabiam fazer. Sentiu cheiro de pedra - mas apenas as velhas pedras comuns, não... elas. De metal também, e um cheiro de óleo, como em um posto de gasolina. Um tipo de odor superaquecido que lhe pareceu ser de eletricidade. Havia alguma coisa no ar que não era bem um cheiro, mas uma espécie de zumbido. Isso era a usina de força, ele reconheceu. Não exatamente igual à grande câmara que sua mãe mostrara a ele e Jimmy Glasscock, onde as turbinas funcionavam, mas parecida. Máquinas, portanto. Sentiu-se um pouco melhor. Sentia-se bem com as máquinas.

   Pensar em máquinas o fez lembrar que sua mãe dissera que havia um trem ali, um trenzinho, e isso o fez se sentir muito melhor. Se havia um trem ali, não era tudo apenas espaço escuro e vazio. Talvez aquele zumbido fosse do trem.

   Ele estendeu os braços e seguiu em frente arrastando os pés até bater em uma parede. Então, tateou ao redor e caminhou ao longo da parede com uma das mãos sobre ela, e descobriu que estava indo na direção errada quando literalmente deu de cara com as portas.

   - Ai! - exclamou.

   O som de sua própria voz o fez rir, mas a risada soou estranha no grande espaço vazio; parou e deu meia-volta, seguindo na outra direção, com a outra mão na parede para se guiar.

   Onde estaria o sr. Cameron agora? Ele não disse aonde ia. Só disse a Jem para esperar que ele voltaria com comida.

   Sua mão tocou em algo redondo e liso, e ele deu um salto para trás. Mas nada se moveu e ele colocou a mão sobre o objeto. Cabos de força, correndo ao longo da parede. Grandes. Podia sentir um leve zumbido dentro deles, o mesmo que ouvia quando seu pai ligava o motor do carro. Isso o fez pensar em Mandy. Ela possuía aquele tipo de zumbido sereno quando dormia e um mais alto quando estava acordada.

   Imaginou repentinamente se o sr. Cameron não teria ido buscar Mandy e o pensamento o deixou com medo. O sr. Cameron queria saber como se atravessava as pedras e Jem não sabia lhe dizer - mas Mandy sem dúvida tampouco poderia, ela era apenas um bebê. Pensar nisso o fez se sentir oco e ele tentou entrar em contato com ela, em pânico.

   Mas lá estava ela. Algo como uma pequena luz cálida em sua cabeça, e ele respirou fundo. Mandy estava bem, então. Ficou interessado em descobrir que ele podia saber disso mesmo estando ela distante. Nunca antes pensara em tentar, em geral ela simplesmente estava lá, enchendo seu saco, e quando ele e seus amigos saíam sem ela ele não pensava nela.

   Seu pé bateu em algo e ele parou, estendendo uma das mãos para descobrir o que era. Não encontrou nada e, após um instante, adquiriu coragem de se afastar da parede e ir mais longe, avançando para dentro da escuridão. Seu coração batia com força e ele começou a suar, embora ainda sentisse frio. Seus dedos tocaram em metal e seu coração deu um salto no peito. O trem!

   Encontrou a abertura e foi tateando para dentro engatinhando sobre as mãos e os joelhos. Ao se levantar, bateu a cabeça na peça dos controles. Isso o fez ver estrelinhas e ele deu um gritinho agudo. Soou estranho, sem tanto eco agora que ele estava dentro do trem, e ele deu uma risadinha.

   Ele sondou os controles. Eram como sua mãe havia dito, apenas um interruptor e uma pequena alavanca, e ele apertou o interruptor. Uma luz vermelha brilhou repentinamente e o fez dar um salto. Mas só o fato de vê-la o fez se sentir muito melhor. Podia sentir a eletricidade percorrendo o trem e isso também o fez se sentir melhor. Empurrou a alavanca, apenas um pouco, e ficou encantado de sentir o trem se mover.

   Para onde ele ia? Empurrou a alavanca um pouco mais e o ar começou a soprar seu rosto. Cheirou-o, mas ele não lhe disse nada. Mas estava se afastando das grandes portas - se afastando do sr. Cameron.

   Será que o sr. Cameron iria tentar saber sobre as pedras com sua mãe e seu pai? Jem esperava que sim. Seu pai iria fazer picadinho do sr. Cameron, disso ele tinha certeza, e o pensamento o reconfortou. Então, eles viriam e o encontrariam, e tudo ficaria bem. Imaginou se Mandy conseguiria dizer a eles onde ele estava. Ela o conhecia do mesmo modo que ele a conhecia. E ele olhou para a pequena luz vermelha no trem. Brilhava como Mandy, firme e afetuosa, e ele sentiu-se bem olhando para ela. Empurrou a alavanca um pouco mais e o trem acelerou dentro da escuridão.

 

                     NEXUS

Rachel cutucou a ponta de um pão, desconfiada. A vendedora, percebendo, virou-se para ela com um rosnado.

   - Ei, você, não toque nisso! Se quiser, custa um penny. Se não, vá embora.

   - De quando é este pão? - Rachel perguntou, ignorando a carranca da jovem. - Tem cheiro de pão dormido e é tão velho quanto parece, eu não lhe daria mais do que meio penny por um.

   - Só tem um dia! - A jovem puxou de volta a bandeja de pães, indignada. - Não haverá pão fresco até quarta-feira; meu patrão não consegue farinha de trigo até lá. Agora, quer pão ou não?

   - Humm - Rachel disse, fingindo ceticismo. Denny teria um ataque se achasse que ela estava tentando ludibriar a mulher, mas havia uma diferença entre pagar um preço justo e ser roubado, e não era mais justo deixar que a mulher a enganasse do que ao contrário.

   Aquilo eram farelos na bandeja? E aquelas eram marcas de dentes na ponta daquele pão? Inclinou-se para examinar mais de perto, franzindo o cenho, e Rollo ganiu de repente.

   - Acha que os ratos andaram por ali, cachorro? - ela lhe perguntou. - Eu também.

   Mas Rollo não estava interessado em ratos. Ignorando tanto a pergunta de Rachel quanto a resposta indignada da vendedora de pães, ele cheirava o chão com grande aplicação, fazendo um ruído estranho, agudo, na garganta.

   - O que você tem, cachorro? - Rachel disse, olhando consternada para aquele comportamento. Colocou a mão em seu pescoço e ficou surpresa com a vibração que percorria o grande corpo peludo.

   Rollo ignorou o toque de sua mão, assim como sua voz. Ele se movia - quase correndo - em pequenos círculos, ganindo, o focinho rente ao chão.

   - Este cachorro não ficou maluco, não é? - a ajudante do padeiro perguntou, observando a cena.

   - Claro que não - Rachel disse distraidamente. - Rollo... Rollo!

   O cachorro havia repentinamente irrompido para fora da padaria, o focinho no chão, e dirigia-se para o final da rua, quase correndo em sua ansiedade.

   Resmungando baixinho, Rachel agarrou sua cesta de compras e foi atrás dele.

   Para seu espanto, ele já estava na rua seguinte e desapareceu em uma esquina enquanto ela olhava. Ela correu, chamando-o, a cesta batendo contra sua perna e ameaçando derramar as compras que ela já fizera.

   O que havia com ele? Ele nunca agira assim antes. Correu mais depressa, tentando não perdê-lo de vista.

   - Cachorro malvado - disse, arfando. - Vai ser bem feito para você se eu deixá-lo ir embora! - Mas continuou correndo atrás dele, chamando-o. Uma coisa era Rollo deixar a estalagem em suas próprias expedições de caça - ele sempre retornava. Mas ela estava bem longe da hospedaria e temia que ele se perdesse. - Mesmo com um olfato tão bom assim, sem dúvida você poderia me seguir de volta! - ela arquejou e, em seguida, parou de repente, atingida por um pensamento.

   Ele estava seguindo um cheiro, isso era claro. Mas que cheiro faria o cachorro correr assim? Certamente não se tratava de um gato, nem de um esquilo...

   - Ian - sussurrou consigo mesma. - Ian.

   Segurou as saias e correu atrás do cachorro, o ccoração martelando em seus ouvidos, enquanto ela mesma tentava restringir a desenfreada esperança que sentia. Ainda podia ver o cachorro, o focinho no chão e o rabo abaixado, concentrado em sua trilha. Ele entrou em um beco e ela o seguiu sem hesitação, saltando e dando guinadas para os lados, no esforço de evitar pisar nos detritos nojentos, esparramados no caminho.

   Qualquer um desses teriam normalmente fascinado qualquer cachorro, inclusive Rollo - e no entanto ele ignorava tudo, seguindo seu faro.

   Agora entendia por que as pessoas diziam "obstinado como um cão", pensou com um sorriso.

   Poderia ser Ian? Sem dúvida, era loucura pensar isso; sua esperança seria frustrada, mas mesmo assim não conseguia dominar a convicção que tomara seu peito de assalto com a possibilidade. A cauda de Rollo abanou-se de uma esquina e ela arremeteu-se para frente, sem fôlego.

   Se fosse Ian, o que poderia estar fazendo? A pista os levava na direção da periferia da cidade - não ao longo da rua principal, mas bem longe da parte próspera e organizada da cidade, para uma zona de casas miseráveis e acampamentos informais dos seguidores do exército britânico. Um bando de galinhas se espalhou, cacarejando, com a aproximação de Rollo, mas ele não parou. Agora ele andava em círculos, de volta, saindo de trás de um barraco para uma viela de terra batida, ziguezagueando entre fileiras de casas amontoadas.

   Ela sentia uma dor no lado do corpo e o suor escorria pelo seu rosto, mas ela, também, conhecia o significado de "obstinado como um cão" e continuou. Mas o cachorro estava se distanciando dela; iria perdê-lo de vista a qualquer instante - seu sapato direito havia esfolado a pele de seu calcanhar e sentia como se estivesse cheio de sangue, embora isso provavelmente fosse imaginação. Ela vira homens com os sapatos cheios de sangue...

   Rollo desaparecera no final da rua e ela lançou-se atrás dele, suas meias descendo pelas pernas e suas anáguas pendendo, de modo que ela pisava na bainha e as rasgava. Se de fato encontrasse Ian, ela teria algo a lhe dizer, pensou. Se ainda conseguisse falar, a essa altura.

   Não havia sinal do cachorro no fim da rua. Olhou desesperadamente em volta. Estava nos fundos de uma taverna; podia sentir o cheiro do lúpulo das tinas de fermentação e o mau cheiro do refugo, e ouvia vozes vindas do outro lado do prédio. Vozes de soldados - não havia como se enganar com a maneira como os soldados falavam, ainda que não pudesse distinguir as palavras - e ela estancou, o coração na boca.

   Mas eles não haviam capturado alguém; era apenas a maneira comum de os homens conversarem, descontraídos, preparando-se para fazer alguma coisa. Ouviu o tilintar e o chocalhar dos equipamentos, o barulho de botas no calçamento...

   Alguém agarrou seu braço e ela engoliu o grito antes que irrompesse pela sua garganta, aterrorizada de revelar a presença de Ian. Mas não foi Ian quem a agarrou. Dedos rígidos fincaram-se em seu braço, e um velho alto, de cabelos brancos, olhou-a de cima a baixo com olhos ardentes.

Ian estava faminto. Não comia há mais de vinte e quatro horas, sem querer perder tempo para caçar ou encontrar uma fazenda que pudesse lhe dar comida. Já percorrera os trinta e cinco quilômetros de Valley Forge em uma espécie de transe, mal notando a distância.

   Rachel estava ali. Por algum milagre, ali, na Filadélfia. Ele levara algum tempo para superar as suspeitas dos soldados de Washington, mas finalmente um corpulento oficial alemão, com um enorme nariz e um jeito amistoso e inquiridor, aproximara-se e demonstrara curiosidade em relação ao arco de Ian. Uma breve demonstração da arte de manejar arco e flecha com uma conversa em francês - uma vez que o inglês do oficial alemão era muito rudimentar - e ele pôde finalmente perguntar sobre o paradeiro de um médico chamado Hunter.

   No começo, isso provocou apenas olhares vazios, mas Von Steuben gostara de Ian e enviou alguém para indagar enquanto ele trazia um pouco de pão. Finalmente, a pessoa enviada voltou e disse que havia um médico chamado Hunter, que geralmente estava no acampamento, mas que ia de vez em quando à Filadélfia para cuidar de um paciente particular. A irmã de Hunter? A pessoa não soube dizer.

   Mas Ian conhecia os Hunter: onde Denzell estivesse, Rachel estaria. É bem verdade que ninguém sabia onde na Filadélfia morava o paciente particular do dr. Hunter - havia alguma reserva a esse respeito, alguma hostilidade que Ian não compreendia, mas que estava impaciente demais para deslindar -, ao menos eles estavam na Filadélfia.

   E agora Ian também estava. Ele se esgueirara para dentro da cidade pouco antes do amanhecer, movendo-se cautelosa e silenciosamente pelos acampamentos que cercavam a cidade, passando pelas formas enroladas em cobertores, dormindo, e pelas fogueiras dos acampamentos, abafadas e com forte cheiro de fumaça.

   Havia comida na cidade, comida em abundância, e ele parou por um instante de antecipado êxtase na beira da praça do mercado, decidindo-se entre peixe empanado ou um pastel. Ele acabara justamente de dar um passo à frente, na direção da barraca da vendedora de pastéis, quando viu a mulher olhar por cima do ombro dele e seu rosto mudar para uma expressão de horror.

   Ele girou nos calcanhares e foi derrubado no chão. Ouviu uma gritaria, mas se perdeu na louca lambança da língua de Rollo lambendo cada centímetro de seu rosto, inclusive dentro do seu nariz.

   Com isso, ele resfolegou com força e sentou-se parcialmente, protegendo-se do cachorro extático.

   - A cú! - exclamou, e abraçou a criatura enorme e agitada, encantado. Em seguida, segurou o pescoço do cachorro com as duas mãos, rindo de suas demonstrações de alegria. - Sim, eu também estou feliz em ver você - ele disse a Rollo. - Mas o que foi que você fez com Rachel?

A mão decepada de Fergus coçava. Há bastante tempo isso não acontecia e quisera que não acontecesse agora. Ele estava usando uma luva recheada de farelo de trigo e presa à sua manga em vez de seu útil gancho - ele era muito mais notado com ele - e era impossível coçar o toco de seu braço.

   Procurando se distrair, saiu do celeiro onde dormia e foi caminhando descontraidamente até uma fogueira de acampamento próxima. A sra. Hempstead cumprimentou-o com um sinal da cabeça, pegou uma caneca de lata, onde despejou uma concha de mingau ralo, e entregou-a a ele. Sim, bem, pensou, havia alguma vantagem na luva, afinal - não podia agarrar a caneca com ela, mas podia usá-la para segurar a caneca quente contra o peito sem se queimar. E, ficou satisfeito em descobrir, o calor acabava com a coceira.

   - Bort jour, madame - ele disse, com uma mesura educada, e a sra. Hempstead sorriu, apesar de seu cansaço e desalinho. Seu marido fora morto em Paoli e ela tentava obter o sustento de seus três filhos lavando roupa para os oficiais ingleses. Fergus aumentava sua renda em troca de comida e abrigo. Sua casa fora tomada pelo irmão de seu marido, mas ele havia felizmente permitido que ela e sua família dormissem no celeiro - Fergus alugava um dos três ou quatro cubículos do celeiro.

   - Teve um homem procurando pelo senhor - ela disse em voz baixa, ao lhe dar um copo de água.

   - É mesmo? - Absteve-se de olhar ao redor; se o homem ainda estivesse ali, ela teria lhe dito. - Você viu esse homem?

   Ela sacudiu a cabeça.

   - Não, senhor. Ele falou com o sr. Jessop, que contou ao filho mais novo da sra. Wilkins, que passou por aqui e falou com Mary. Jessop disse que ele era um escocês, muito alto, um homem de boa aparência. Achou que ele já devia ter sido um soldado.

   O peito de Fergus encheu-se de ânimo, quente como o mingau.

   - Tinha cabelos ruivos? - ele perguntou, e a sra. Hempstead olhou-o surpresa.

   - Bem, não sei o que o menino disse. Mas deixe-me perguntar a Mary.

   - Não se preocupe, senhora. Eu mesmo perguntarei. - Engoliu o resto do mingau, quase escaldando a garganta, e devolveu-lhe a caneca.

   A pequena Mary, cuidadosamente interrogada, não sabia se o escocês alto tinha cabelos ruivos; ela não o vira e Tommy Wilkins não dissera. No entanto, ele havia lhe dito onde o sr. Jessop vira o sujeito, e Fergus, agradecendo a Mary com o melhor de sua cortesia gaulesa - o que a fez corar -, dirigiu-se para a cidade, o coração acelerado.

Rachel puxou o braço com um safanão, mas o velho apenas apertou-o com mais força, o polegar enfiando-se no músculo abaixo do seu ombro.

- Solte-me, amigo - ela disse calmamente. - Você me confundiu com outra pessoa.

   - Oh, acho que não - ele disse educadamente, e ela notou que ele era escocês. - O cachorro é seu, não é?

   - Não - ela disse, intrigada e começando a ficar assustada. - Só estou tomando conta dele para um amigo. Por quê? Ele comeu uma de suas galinhas? Terei prazer em lhe pagar por ela... - Procurou afastar-se dele, tateando com a mão livre em busca de sua bolsa, avaliando as chances de fuga.

   - Ian Murray é o nome de seu amigo - ele disse e ela ficou, então, genuinamente alarmada ao ver que ele não formulou a frase como uma pergunta.

   - Solte-me - ela disse, com mais ênfase. - Não tem direito de me deter.

   Ele não deu nenhuma atenção a isso, mas fitou intensamente seu rosto. Seus olhos eram velhos, avermelhados e remelentos - mas afiados como lâminas.

   - Onde ele está?

   - Na Escócia - ela lhe disse, e o viu pestanejar de surpresa. Ele inclinou-se um pouco para fitá-la nos olhos.

   - Você o ama? - o velho perguntou baixinho, mas não havia nada de suave no tom de sua voz.

   - Solte-me! - Ela chutou sua canela, mas ele deu um passo para o lado com uma agilidade que a surpreendeu. Sua capa abriu-se quando ele se moveu e ela vislumbrou um brilho de metal em sua cintura. Era um pequeno machado e, com a repentina lembrança da terrível casa em Nova Jersey, ela deu um safanão para trás e gritou com todas as forças.

   - Quieta! - o velho retrucou rispidamente. - Venha comigo. - Ele colocou a mão grande sobre sua boca e tentou puxá-la, mas ela se debateu, chutou e conseguiu livrar sua boca o tempo suficiente para gritar outra vez, o mais alto possível.

   Exclamações alarmadas, assim como o som de botas pesadas, vieram rapidamente em sua direção.

   - Rachel! - Um berro familiar atingiu seus ouvidos e seu coração deu um salto.

   - William! Socorro!

   William corria para ela e, a alguma distância atrás dele, mais três ou quatro soldados ingleses, mosquetes na mão. O velho disse alguma coisa em gaélico, em tons de absoluta surpresa, e soltou-a tão repentinamente que ela cambaleou para trás, tropeçou na bainha rasgada de sua anágua e caiu sentada na rua.

   O velho afastava-se, mas William estava enfurecido; arremeteu-se contra o sujeito, abaixando o ombro, obviamente pretendendo derrubá-lo. Mas o velho tinha o machado na mão e Rachel gritou o nome de William com todas as suas forças. Em vão. Viu-se um lampejo de luz sobre o metal e um baque surdo nauseante, e William cambaleou para o lado, deu dois passos desengonçados e caiu.

   - William! William! Oh, meu Deus, oh, meu Deus... - Ela não conseguiu ficar de pé, mas arrastou-se até ele o mais depressa possível, gemendo. Os soldados gritavam, rugindo, perseguindo o velho, mas ela não tinha nenhuma atenção a dispensar a eles. Tudo que via era o rosto de William, mortalmente pálido, os olhos revirados para trás de modo que se via o branco dos olhos, e o sangue escorrendo, escuro, ensopando seus cabelos.

Ajeitei William na cama, apesar de seus protestos, e mandei que ficasse lá. Eu tinha quase certeza de que os protestos eram por Rachel, já que assim que eu a enxotei do quarto ele permitiu que eu o ajudasse a se recostar no travesseiro, o rosto pálido e pegajoso sob a atadura enrolada ao redor de sua cabeça.

   - Durma - eu disse. - Vai se sentir muito mal pela manhã, mas não vai morrer.

   - Obrigada, mãe Claire - ele murmurou, com um débil sorriso. - Você é sempre um grande consolo. Mas, antes que vá... - Por pior que ele se sentisse, sua mão em meu braço era sólida e firme.

   - O que foi? - perguntei cautelosamente.

   - O homem que atacou Rachel. Tem ideia de quem é ele?

   - Sim - eu disse relutantemente. - Pela descrição dela, é um homem chamado Arch Bug. Ele vivia perto de nós na Carolina do Norte.

   - Ah. - Seu rosto estava pálido e viscoso, mas os olhos azul-escuros brilharam um pouco de interesse. - Ele é louco?

   - Sim, creio que sim. Ele... perdeu a mulher em circunstâncias muito trágicas e acredito que isso de certo modo tenha afetado suas faculdades mentais.

- Eu realmente achava que essa era a verdade, e os meses e meses desde aquela noite de inverno em Ridge, sozinho na floresta, percorrendo estradas intermináveis, ouvindo a voz distante de sua esposa morta... Se no começo ele não era maluco, eu achava que agora era. Ao mesmo tempo, não estava disposta a contar toda a história a William. Não agora, e provavelmente nunca.

   - Falarei com alguém - ele disse, e repentinamente deu um grande bocejo. - Desculpe-me. Estou... com um sono terrível.

   - Você tem uma concussão - eu lhe disse. - Virei acordá-lo de hora em hora. Vai falar com quem?

   - Oficial - ele disse indistintamente, os olhos já se fechando. - Mandar homens à procura dele. Não posso deixar que ele... Rachel. - Seu nome veio com um suspiro enquanto o corpo grande e jovem ficava paulatinamente frouxo. Observei-o por um instante para ter certeza de que estava realmente adormecido. Então, beijei sua testa delicadamente, pensando, com o mesmo aperto no coração com que beijara sua irmã com a mesma idade - Meu Deus, você é tão parecido com ele.

   A própria Rachel aguardava no patamar da escada, ansiosa e desalinhada, embora tivesse feito algum esforço para arrumar os cabelos e a touca.

   - Ele vai ficar bem?

   - Sim, creio que sim. Tem uma concussão leve... sabe o que é? Sim, claro que sabe. Dei três pontos em sua cabeça. Ele vai ter uma dor de cabeça insuportável amanhã, mas foi um ferimento de raspão, nada grave.

   Ela suspirou, os ombros delicados abaixando-se repentinamente quando a tensão se esvaiu.

   - Graças a Deus - ela disse, depois olhou para mim e sorriu. - E a você, também, mamãe Claire.

   - Foi um prazer ajudar - eu disse sinceramente. - Tem certeza de que está bem? Devia se sentar e tomar alguma coisa. - Ela não estava ferida, mas o choque da experiência havia obviamente deixado suas marcas. Eu sabia que ela não tomava chá, por uma questão de princípios, mas um pouco de conhaque, até mesmo de água...

   - Estou bem. Melhor do que nunca. - Aliviada de sua preocupação com William, ela agora olhou para mim, o rosto radiante. - Claire, ele está aqui! Ian!

   - O quê? Onde?

   - Não sei! - Ela olhou para a porta do quarto de William e puxou-me para mais longe um pouco, abaixando a voz. - O cachorro, Rollo. Ele farejou alguma coisa e partiu atrás do cheiro como uma bala. Corri atrás dele, e foi então que me deparei com o pobre louco. Eu sei, você vai me dizer que ele pode correr atrás de qualquer coisa, e pode mesmo... mas, Claire, ele não voltou! Se não tivesse encontrado Ian, ele teria voltado.

   Sua empolgação me contagiou, apesar de ter medo de ter tantas esperanças quanto ela. Havia outras coisas que podiam impedir Rollo de voltar, e nenhuma delas era boa. Uma delas era Arch Bug.

   A descrição que ela fez dele me desconcertara - e no entanto ela estava certa, compreendi. Desde o funeral da sra. Bug em Fraser's Ridge, eu via Arch Bug como uma ameaça apenas a Ian - no entanto, com as palavras de Rachel, eu também vi as mãos artríticas, aleijadas, tateando para colocar um broche na forma de um pássaro na mortalha de sua amada mulher. Pobre louco, de fato.

   E extremamente perigoso.

   - Vamos descer - eu lhe disse, com outro olhar para a porta do quarto de William. - Tenho que lhe falar do sr. Bug.

- Oh, Ian - ela murmurou, quando terminei meu relato. - Oh, pobre homem.

- Eu não sabia se a última exclamação se referia ao sr. Bug ou a Ian, mas ela tinha razão, de qualquer forma. Ela não chorou, mas seu rosto ficara pálido e imóvel.

   - Ambos - concordei. - Todos os três, se contar a sra. Bug.

   Ela sacudiu a cabeça, de consternação, não por discordar.

   - Então foi por isso que... - ela disse, mas parou.

   - O quê?

   Ela fez uma leve careta, mas olhou para mim e deu de ombros.

   - Foi por isso que ele me disse que tinha medo de que eu pudesse morrer porque o amava.

   - Sim, imagino que sim.

   Continuamos sentadas por mais alguns instantes com nossas xícaras fumegantes de chá de erva-cidreira, analisando a situação. Finalmente, ela ergueu os olhos e engoliu em seco.

   - Acha que Ian pretende matá-lo?

   - Eu... bem, não sei - respondi. - Certamente, em princípio, não; ele se sentiu muito mal com o que aconteceu à sra. Bug...

   - Com o fato de tê-la matado, você quer dizer. - Lançou-me um olhar franco e direto; Rachel Hunter não era pessoa de fugir dos problemas.

   - Sim. Mas se ele compreender que Arch Bug sabe quem você é, souber o que você significa para Ian, e pretender lhe causar algum mal... e não se engane sobre isso, Rachel, ele realmente pretende atingi-la... - tomei um gole do chá quente e respirei fundo - sim, acho que Ian iria tentar matá-lo.

   Ela ficou absolutamente imóvel, a fumaça de seu chá o único movimento.

   - Ele não deve - ela disse.

   - Como pretende impedi-lo? - perguntei, por curiosidade.

   Ela soltou um suspiro lento e longo, os olhos fixos no suave redemoinho da superfície de seu chá.

   - Rezar - ela disse.

 

                   MISCHIANZA

18 de maio de 1778 Walnut Grove, Pensilvânia

Já fazia muito tempo desde a última vez em que eu vira um pavão dourado assado e realmente não esperava ver outro. Certamente, não na Filadélfia. Não que eu devesse estar surpresa, pensei, inclinando-me para olhar mais de perto - sim, ele realmente tinha olhos feitos de diamantes. Não depois da regata no Delaware, as três bandas de música levadas em barcaças e a saudação de dezessete tiros de canhão dos navios de guerra no rio. A noite fora anunciada como uma "mischianza". A palavra significa "miscelânea" em italiano - segundo me disseram - e no caso presente parecia ter sido interpretada de forma a permitir às almas mais criativas do exército britânico e da comunidade legalista rédea larga na produção de uma celebração de gala em homenagem ao general Howe, que pedira exoneração do cargo de comandante em chefe, a ser substituído por sir Henry Clinton.

   - Sinto muito, minha cara - John murmurou ao meu lado.

   - Por quê? - perguntei, surpresa.

   Ele, por sua vez, também ficou surpreso; suas sobrancelhas louras arquearam-se.

   - Ora, conhecendo suas preferências políticas, devo supor que seja difícil para você, ver tanta... - fez um gesto discreto com a mão, indicando a exibição de opulência à nossa volta, que certamente não se limitava ao faisão - ...tanta pompa e despesas extravagantes dedicadas a... a...

   - À gula? - terminei secamente. - Talvez... mas não. Sei o que vai acontecer.

   Ele pestanejou, muito desconcertado.

   - O que vai acontecer? A quem?

   O tipo de profecia que eu possuía raramente era uma dádiva bem-vinda; nestas circunstâncias, entretanto, eu senti um prazer um pouco cruel em lhe contar.

   - A vocês. Ao exército britânico, quero dizer, não a você pessoalmente. Eles vão perder a guerra dentro de três anos. De que vão adiantar faisões dourados, então, hein?

   Seu rosto torceu-se e ele disfarçou um sorriso.

   - De fato.

   - Sim, de fato - retruquei amistosamente. - Fuirich agus chi thu.

   - O quê? - Olhou-me fixamente.

   - Gaélico - eu disse, com uma pequena e profunda pontada de dor. - Significa "Espere e verá".

   - Oh, farei isso - assegurou-me. - Nesse ínterim, permita-me apresentar-lhe o tenente-coronel Banastre Tarleton, da Legião Britânica. - Ele fez uma mesura para um jovem baixo e rijo que se aproximara de nós, um oficial dos dragões em um uniforme verde-garrafa. - Coronel Tarleton, minha esposa.

   - Lady John. - O jovem inclinou-se diante de minha mão, roçando-a com lábios muito vermelhos e muito sensuais. Tive vontade de limpar a mão na minha saia, mas não o fiz. - Está se divertindo?

   - Estou aguardando os fogos de artifício. - Ele possuía olhos astutos de raposa que não deixavam nada escapar, e sua boca vermelha e suculenta torceu-se diante disso, mas ele sorriu e não fez nenhum comentário, virando-se para lorde John. - Meu primo Richard me roga que lhe mande suas lembranças.

   O ar de agradável cordialidade de John tornou-se uma satisfação genuína diante disso.

   - Richard Tarleton foi meu oficial subalterno em Crefeld - ele me explicou antes de voltar sua atenção novamente para o dragão verde. - Como ele vai indo, senhor?

   Resvalaram imediatamente para uma conversa detalhada de comissões, promoções, campanhas, movimentos de tropas e política parlamentar, e eu me afastei. Não por tédio, mas por diplomacia. Eu não prometera a John que iria me abster de passar adiante informações úteis; ele não pediu. Mas tato e um certo senso de obrigação exigiam que eu ao menos não adquirisse tais informações através dele, ou diretamente embaixo do seu nariz.

   Perambulei devagar pelo meio da multidão no salão de baile, admirando os vestidos das mulheres, muitos importados da Europa, a maioria do restante modelada segundo tais importações com os tecidos que podiam ser encontrados localmente. As sedas brilhantes e bordados reluzentes formavam um contraste tão grande com os tecidos rústicos e as musselinas que eu estava acostumada a ver que tudo parecia irreal - como se de repente eu me visse em um sonho. Essa impressão era intensificada pela presença no meio da multidão de vários cavaleiros, vestidos com mantos e tabardos, alguns com o elmo enfiado debaixo do braço - os festejos da tarde haviam incluído um torneio simulado de justa - e de diversas pessoas com máscaras fantásticas e fantasias extravagantes, que presumi que mais tarde fariam parte de alguma apresentação teatral. Minha atenção voltou para a mesa onde as espalhafatosas iguarias estavam dispostas: o pavão, as penas da cauda abertas em um grande leque, ocupava o lugar de honra no centro da mesa, mas estava ladeado por um javali assado inteiro em uma cama de repolho - este exalando um aroma que fez meu estômago roncar - e três enormes tortas de carne de caça, decoradas com pássaros canoros recheados. Estes me fizeram recordar do jantar do rei da França com os rouxinóis recheados, e meu apetite desapareceu imediatamente em uma ânsia de náusea e de pesar.

   Desviei o olhar apressadamente de volta ao pavão, engolindo. Perguntei-me o quanto seria difícil extrair aqueles olhos de diamantes e se alguém os estaria vigiando. Era quase certo que sim e eu olhei à volta para ver se conseguia identificá-lo. Sim, lá estava ele, um soldado uniformizado, parado em um canto entre a mesa e o enorme console da lareira, os olhos vigilantes.

   Mas eu não precisava roubar diamantes, pensei, e meu estômago contraiu-se um pouco. Eu os tinha. John me dera um par de brincos de diamantes. Quando chegasse a hora de eu partir...

   - Mãe Claire!

   Eu estava me sentindo agradavelmente invisível e, arrancada repentinamente dessa ilusão, olhei para o outro lado do salão e avistei Willie, a cabeça desgrenhada despontando do tabardo com uma cruz vermelha de um Cavaleiro Templário, acenando entusiasticamente.

   - Gostaria que você pensasse em outra maneira de me chamar - eu disse, alcançando-o. - Sinto-me como se devesse estar rodopiando por aí em um hábito de madre religiosa com um rosário na cintura.

   Ele riu, apresentou a jovem que lhe lançava olhares melosos como srta. Chew e se ofereceu para ir pegar sorvetes para nós duas. A temperatura no salão de baile era elevada e o suor escurecia não poucas das sedas luminosas.

   - Que vestido elegante - a srta. Chew disse educadamente. - É da Inglaterra?

   - Oh - eu disse, um pouco desconcertada. - Não sei. Mas obrigada - acrescentei, abaixando os olhos para mim mesma pela primeira vez. Eu não havia realmente prestado atenção ao vestido, além das necessidades mecânicas de entrar nele; vestir-me não passava de um estorvo diário e, desde que nada fosse apertado demais ou me incomodasse, eu não me preocupava com o que estava vestindo.

   John me presenteara com o vestido esta manhã, bem como convocara um cabeleireiro para me arrumar do pescoço para cima. Eu fechara os olhos, um pouco chocada em como era prazeroso o toque dos dedos do sujeito nos meus cabelos - porém ainda mais chocada quando ele me deu um espelho e eu vi uma elaborada torre de cachos e talco, com um minúsculo navio encarapitado nela. Com as velas desfraldadas.

   Esperei até ele sair, depois apressadamente escovei meus cabelos retirando enfeites e cachos e os prendi para cima da maneira mais simples possível. John me lançara um olhar, mas não disse nada. No entanto, preocupada com a cabeça, eu não tivera tempo de me olhar abaixo do pescoço e fiquei vagamente satisfeita agora de ver como a seda cor de chocolate me caía bem. Escura o suficiente para não mostrar manchas de suor, pensei.

   A srta. Chew olhava para William como um gato espreitando um rato gordo e bonito, franzindo um pouco a testa quando ele parou para flertar com duas outras jovens.

   - Lorde Ellesmere vai permanecer muito tempo na Filadélfia? - ela perguntou, os olhos ainda fixos nele. - Alguém me disse que ele não deverá ir com o general Howe. Assim espero!

   - É verdade - eu disse. - Ele se rendeu com o general Burgoyne; essas tropas estão todas em condicional e devem voltar para a Inglaterra, mas há alguma razão administrativa que os impede de embarcar agora. - Eu sabia que William esperava ser trocado por outro oficial, para poder lutar outra vez, mas não mencionei o fato.

   - Verdade? - ela disse, iluminando-se. - Que notícia esplêndida! Talvez ele esteja aqui para meu baile no mês que vem. Naturalmente, não será tão bom quanto este - arqueou o pescoço um pouco, inclinando a cabeça na direção dos músicos que haviam começado a tocar na outra extremidade do salão -, mas o major André disse que usará seus dons para pintar a tela de fundo de modo que tenhamos um cenário, portanto será...

   - Desculpe-me - eu a interrompi -, você disse major André? Major... John André?

   Ela olhou para mim com surpresa, um pouco contrariada com minha interrupção.

   - Claro. Ele desenhou as fantasias para ajusta hoje e escreveu a peça que encenarão mais tarde. Olhe, lá está ele, conversando com lady Clinton.

   Olhei para onde ela apontara com seu leque, sentindo um calafrio percorrer meu corpo, apesar do calor no aposento.

   O major André estava no centro de um grupo de homens e mulheres, rindo e gesticulando, obviamente o foco da atenção de todos. Era um jovem bem-apessoado de vinte e poucos anos, o uniforme de corte perfeito e um rosto vívido, afogueado de calor e satisfação.

   - Ele parece... encantador - murmurei, querendo desviar os olhos dele, mas sem conseguir.

   - Oh, sim! - a srta. Chew exclamou com entusiasmo. - Ele, eu e Peggy Shippen fizemos quase tudo para a mischianza juntos; ele é maravilhoso, sempre com excelentes ideias, e toca flauta divinamente. Uma pena que o pai de Peggy não a tenha deixado vir esta noite, muito injusto! - Mas achei que havia um tom de satisfação subjacente em sua voz; ela estava muito contente de não ter que dividir os holofotes com sua amiga. - Deixe-me apresentá-lo a você - ela disse repentinamente e, fechando o leque, passou o braço pelo meu. Fui pega inteiramente de surpresa e não consegui encontrar uma maneira de me desvencilhar antes de me ver arrastada para o grupo ao redor de André, com a srta. Chew tagarelando alegremente com ele, rindo para ele, a mão pousada em seu braço com familiaridade. Ele sorriu para ela, depois se voltou para mim, os olhos entusiasmados e vívidos.

   - Encantado lady John - ele disse, com uma voz suave e aveludada.

   - Eu... sim - eu disse abruptamente, quase me esquecendo da resposta de praxe. - Você... sim. Prazer em conhecê-lo! - Retirei minha mão antes que ele a pudesse beijar, desconcertando-o, e recuei um passo. Ele piscou, mas a srta. Chew solicitou sua atenção novamente e eu me afastei, indo ficar perto da porta onde ao menos havia um pouco de ar fresco. Eu estava coberta de suor frio e todos os meus músculos vibravam.

   - Oh, aí está você, mãe Claire! - Willie surgiu ao meu lado, dois sorvetes um pouco derretidos nas mãos, suando copiosamente. - Tome.

   - Obrigada. - Peguei um, notando distraidamente que meus dedos estavam quase tão frios quanto a taça de prata embaçada com a temperatura do sorvete.

   - Está se sentindo bem, mãe Claire? - Ele inclinou-se para olhar para mim, preocupado. - Está muito pálida. Como se tivesse visto um fantasma. - Ele fez uma expressão de constrangimento como um breve pedido de desculpas por esta desastrada referência à morte, mas fiz um esforço para devolver o sorriso. Não foi um esforço terrivelmente bem-sucedido, porque ele tinha razão. Eu acabara de ver um fantasma.

   O major John André era o oficial inglês com quem Benedict Arnold - herói de Saratoga e ainda um lendário patriota - por fim iria conspirar. E o homem que iria para a forca por tomar parte nessa conspiração, em algum momento nos próximos três anos.

   - Gostaria de se sentar um pouco? - Willie olhava-me com a testa franzida, preocupado, e fiz um esforço para me livrar do meu horror. Não queria que ele se oferecesse para deixar o baile e ir me levar para casa; ele obviamente estava se divertindo. Sorri para ele, mal sentindo meus lábios.

   - Não, está tudo bem - eu disse. - Acho... que vou dar uma volta lá fora para tomar um pouco de ar fresco.

 

                     UMA BORBOLETA NO PÁTIO DE UM AÇOUGUEIRO

Rollo estava embaixo de uma moita, ruidosamente devorando os restos de um esquilo que capturara. Ian sentava-se em uma pedra, contemplando-o.

   A cidade da Filadélfia estava fora de vista; ele podia sentir o cheiro da névoa de nuvem, o odor de milhares de pessoas vivendo amontoadas. Podia ouvir o barulho das pessoas indo para lá, na estrada que ficava há apenas cem metros dali. E em algum lugar, a menos de dois quilômetros dele, escondida naquele aglomerado de prédios e pessoas, estaria Rachel Hunter.

   Ele queria pegar a estrada, entrar no coração da Filadélfia e começar a desmontar a cidade, tijolo por tijolo, até encontrá-la.

   - Por onde começamos, a cú? - perguntou a Rollo. - A gráfica, imagino.

   Ele não estivera lá, mas imaginava que não seria difícil de encontrar. Fergus e Marsali lhe dariam abrigo - e comida, pensou, sentindo o estômago roncar - e talvez Germain e as meninas pudessem ajudá-lo a procurar Rachel. Talvez tia Claire pudesse... Bem, ele sabia que ela não era uma bruxa ou uma fada, mas não havia nenhuma dúvida em sua mente de que ela fosse alguma coisa, e talvez ela pudesse encontrar Rachel para ele.

   Esperou Rollo terminar sua refeição, depois se levantou, uma extraordinária sensação de calor permeando-o, apesar de o dia estar nublado e frio. Poderia encontrá-la dessa forma?, perguntou-se. Caminhando pelas ruas, fazendo o jogo das crianças de "mais quente, mais frio", ficando cada vez mais quente à medida que se aproximasse dela, encontrando-a finalmente pouco antes de entrar em combustão?

   - Você poderia ajudar, sabe - ele disse a Rollo em tom de censura. Ele havia tentado fazer Rollo seguir a pista de Rachel assim que o cachorro o encontrara, mas ele estava tão frenético de alegria com a volta de Ian que nada o fazia prestar atenção. Mas isso era uma ideia - se por um acaso cruzassem seu caminho, talvez Rollo pudesse captar seu cheiro, agora que estava mais sóbrio.

   Sorriu tortuosamente diante desse pensamento; a maior parte do exército britânico estava acampada em Germantown, mas havia milhares de soldados aquartelados na própria Filadélfia. Era o mesmo que pedir ao cachorro para seguir o cheiro de uma borboleta no pátio de um açougueiro.

   - Bem, não vamos encontrá-la ficando aqui sentados - disse a Rollo, levantando-se. - Vamos, cachorro.

 

                     UMA DAMA A ESPERA

Eu esperava as coisas fazerem sentido. Nada fazia. Eu vivia na casa de John Grey, com sua escada elegante e seu candelabro de cristal, seus tapetes turcos e porcelana fina, há quase um mês e, no entanto, eu acordava todos os dias sem noção de onde estava, estendendo a mão à procura de Jamie na cama vazia.

   Eu não conseguia acreditar que ele estivesse morto. Não podia. Eu fechava os olhos à noite e o ouvia respirando devagar e suavemente na noite, ao meu lado. Sentia seus olhos em mim, cheios de humor, de desejo, aborrecidos, brilhantes de amor. Virava-me uma dúzia de vezes por dia, achando que ouvira seus passos atrás de mim. Abria a boca para lhe dizer alguma coisa - e mais de uma vez realmente falara com ele, só percebendo que ele não estava ali quando ouvia as palavras perderem-se no ar vazio.

   Eu me sentia destruída cada vez que isso acontecia. No entanto, nada me reconciliava com sua perda. Eu havia, com grande esforço de concentração, visualizado sua morte. Como ele teria detestado morrer afogado! De todas as maneiras que havia para morrer! Eu só podia esperar que o naufrágio do navio tivesse sido violento e que ele tenha caído na água inconsciente. Porque de outro modo... ele não podia desistir, ele não teria desistido. Ele teria nadado e continuado a nadar, quilômetros infindáveis de qualquer praia, sozinho nas profundezas vazias, teria nadado teimosamente porque não podia desistir e se deixar afundar. Nadado até aquele corpo vigoroso ficar exausto, até não conseguir mais levantar a mão, e então...

   Rolei sobre meu corpo e pressionei o rosto com força dentro do travesseiro, o coração oprimido de horror.

   - Que maldito, maldito desperdício! - disse isso para dentro das penas, agarrando o travesseiro com todas as forças. Se ele tivesse morrido em uma batalha, ao menos... rolei sobre o corpo novamente e cerrei os olhos, mordendo o lábio até sentir gosto de sangue.

   Por fim, minha respiração diminuiu e eu abri os olhos para a escuridão outra vez, e retomei a espera. A espera por Jamie.

   Algum tempo mais tarde, a porta se abriu e uma fresta de luz do corredor penetrou no quarto. Lorde John entrou, colocando uma vela na mesa junto à porta, e aproximou-se da cama. Não olhei para ele, mas sabia que ele estava olhando para mim.

   Continuei deitada em minha cama, fitando o teto. Ou, melhor, olhando através dele para o céu. Escuro, cheio de estrelas e vazio. Eu não me dera ao trabalho de acender uma vela, mas também não maldizia a escuridão. Apenas olhava para dentro dela. A espera.

   - Você está muito solitária, minha cara - ele disse, com grande delicadeza -, e eu sei. Permite que eu lhe faça companhia, ao menos por um pouco de tempo?

   Eu não disse nada, mas me afastei um pouco e não resisti quando ele deitou-se ao meu lado e envolveu-me cuidadosamente em seus braços.

   Descansei a cabeça em seu ombro, agradecida pelo consolo do simples toque e calor humano, apesar de não atingirem as profundezas do meu desolamento.

   Tente não pensar. Aceite o que existe; não pense no que não existe.

   Permaneci quieta, ouvindo a respiração de John. Ele respirava diferente de Jamie, mais superficialmente, mais rápido. Uma falha muito leve em sua respiração.

   Percebi, devagar, que eu não estava sozinha em meu desolamento ou em minha solidão. E que eu sabia muito bem o que acontecera na última vez que esse estado de espírito se tornou óbvio para ambos. É bem verdade que não estávamos bêbados, mas achei que ele também não pôde deixar de se lembrar.

   - Você quer... que eu... A console? - ele perguntou quase num sussurro. - Eu não sei, você sabe. - E, levando a mão para baixo, moveu um dedo muito devagar, em tal lugar e com tal delicadeza que eu arfei e me afastei abruptamente.

   - Sei que sabe. - Eu realmente tive um instante de curiosidade de como exatamente ele aprendera, mas não pretendia perguntar. - Não é que eu não aprecie a ideia... eu aprecio - garanti-lhe, e senti minhas faces ficarem ainda mais quentes. - E... é só que...

   - Que você iria se sentir infiel? - ele indagou. Sorriu um pouco tristemente. - Eu compreendo.

   Houve um longo silêncio depois disso. E uma sensação crescente de consciência um do outro.

   - Você não se sentiria? - perguntei. Ele permaneceu absolutamente imóvel, como se estivesse dormindo, mas não estava.

   - Um pau duro é totalmente cego, minha cara - ele disse finalmente, os olhos ainda fechados. - Certamente você sabe disso, sendo médica.

   - Sim, eu sei disso. - E tomando-o delicada, mas firmemente em minha mão, eu lidei com ele em terno silêncio, evitando qualquer pensamento de quem ele podia estar vendo mentalmente.

Colenso Baragwanath correu como se os saltos de suas botas estivessem em chamas. Irrompeu na taverna Fox perto do fim da State Street e atravessou o salão como um bólide, irrompendo na sala de jogos de cartas nos fundos.

   - Eles o encontraram - disse, arquejante. - O velho. Machado. Com o machado.

   O capitão lorde Ellesmere já se levantava. Para Colenso, ele parecia ter mais de dois metros, e com um aspecto assustador. O lugar onde o médico havia costurado sua cabeça estava espetado de cabelos novos, mas o corte escuro ainda podia ser visto. Seus olhos deviam estar lançando chamas, mas Colenso teve medo de olhar atentamente. Seu peito subia e descia por causa da corrida e ele estava sem fôlego, mas ainda assim não conseguia pensar em nada para dizer.

   - Onde? - o capitão perguntou. Ele falou bem baixo, mas Colenso o ouviu e recuou para a porta, apontando. O capitão pegou o par de pistolas que deixara ao lado e, colocando-as em seu cinto, aproximou-se dele. - Mostre-me - ele disse.

Rachel sentou-se no banquinho alto atrás do balcão da gráfica, a cabeça na mão. Acordara com uma sensação de pressão na cabeça, provavelmente por causa da tempestade iminente, e ela evoluíra para uma dor de cabeça latejante. Preferia ter voltado para a casa do amigo John, para ver se Claire teria um chá que pudesse ajudar, mas prometera a Marsali que viria e tomaria conta da loja enquanto sua amiga levava as crianças ao sapateiro para consertar os sapatos e Henri-Christian tirar as medidas para um par de botas, pois seus pés eram curtos e largos demais para caber nos sapatos que não davam mais em suas irmãs.

   Ao menos, a loja estava tranquila. Apenas uma ou duas pessoas entraram ali e somente uma delas lhe dirigira a palavra - perguntando o caminho para Slip Alley. Ela esfregou seu pescoço dolorido, suspirando, e deixou seus olhos se fecharem. Marsali voltaria logo. Então, ela poderia ir se deitar com um pano úmido na cabeça e...

   A sineta acima da porta da loja soou e ela endireitou-se, um sorriso de boas-vindas se formando em seu rosto. Viu o visitante e seu sorriso desapareceu.

   - Saia - ela disse, descendo atabalhoadamente do banquinho, medindo a distância entre ela e a porta que dava para dentro de casa. - Saia agora mesmo.

- Se conseguisse passar por lá e sair pelos fundos...

   - Fique onde está - Arch Bug disse, com uma voz de ferro enferrujado.

   - Sei o que pretende fazer - ela disse, recuando um passo. - E não o culpo pelo seu luto, pela sua raiva. Mas tem que saber que não é certo o que pretende, o Senhor não pode querer que você...

   - Fique quieta, garota - ele disse, e seus olhos pousaram nela com uma estranha espécie de delicadeza. - Ainda não. Vamos esperar por ele.

   - Por... ele?

   - Sim, ele. - Com isso, ele lançou-se por cima do balcão e a agarrou pelo braço. Ela gritou e debateu-se, mas não conseguiu se soltar. Ele levantou a tampa do balcão e arrastou-a para fora, empurrando-a com força contra a mesa de livros, de modo que as pilhas oscilaram e desmoronaram com uma série de baques surdos.

   - Não pode ter esperança de que...

   - Eu não tenho nenhuma esperança - ele interrompeu-a, absolutamente calmo. O machado estava em sua cintura; ela o viu, sem capa. Prateado. - Não preciso de nenhuma.

   - Você certamente vai morrer - ela disse, sem fazer nenhum esforço para evitar que sua voz tremesse. - Os soldados o levarão.

   - Oh, sim, levarão. - Seu rosto se suavizou um pouco, surpreendentemente. - Verei minha mulher de novo.

   - Não aconselho suicídio - ela disse, furtivamente se afastando o máximo possível. - Mas, se pretende morrer de qualquer forma, por que insiste em... em manchar sua morte, sua alma, com violência?

   - Acha que a vingança é uma mancha? - As sobrancelhas brancas e hirsutas se arquearam. - É uma glória, garota. Minha glória, meu dever para com minha esposa.

   - Bem, certamente, não minha - ela disse acaloradamente. - Por que devo ser forçada a servir à sua vingança bestial? Não fiz nada a você ou a ela!

   Ele não ouvia. Ao menos, não a Rachel. Virara-se um pouco, a mão dirigindo-se ao machado, e sorriu ao som de passos correndo.

   - Ian! - ela gritou estridentemente. - Não entre!

   Ele entrou, é claro. Ela agarrou um livro e arremessou-o na cabeça do velho, mas ele desviou-se facilmente e agarrou-a pelo pulso outra vez, o machado na mão.

   - Solte-a - Ian disse, rouco da corrida. Seu peito arfava e o suor escorria pelo seu rosto; ela podia sentir seu cheiro, acima mesmo do odor bolorento do velho. Ela arrancou sua mão das garras de Arch Bug, muda de pavor.

   - Não o mate - ela disse, para ambos. Nenhum dos dois a ouviu.

   - Eu lhe disse, não foi? - Arch disse a Ian. Sua voz soou de maneira sensata, um professor demonstrando um teorema. Quod erat demonstrandum. Q.E.D.

   - Afaste-se dela - Ian disse.

   Sua mão pairou sobre a faca e Rachel, engasgando-se nas palavras, disse:

   - Ian! Não! Não faça isso. Por favor!

   Ian lançou-lhe um olhar de furiosa confusão, mas ela enfrentou seu olhar e ele abaixou a mão. Respirou fundo e deu um rápido passo para o lado. Bug girou para mantê-lo ao alcance do machado e Ian deslizou ainda mais rápido para a frente de Rachel, protegendo-a com seu corpo.

   - Mate-me, então - ele disse deliberadamente a Bug. - Ande.

   - Não! - Rachel disse. - Não foi isso que eu... não!

   - Venha cá, garota - Arch disse, estendendo a mão boa, chamando-a. - Não tenha medo. Serei rápido.

   Ian empurrou-a com força, de modo que ela chocou-se contra a parede e bateu a cabeça. Ele se preparou para a luta, à frente dela, agachado, à espera. Desarmado, porque ela pedira.

   - Vai ter que me matar primeiro - ele disse, em tom coloquial.

   - Não - Arch Bug disse. - Você vai esperar a sua vez. - Os olhos envelhecidos mediram-no de cima a baixo, frios e astutos, e o machado moveu-se um pouco, impaciente.

   Rachel fechou os olhos e começou a rezar, sem encontrar as palavras, mas rezando mesmo assim, em um frenesi de terror. Ouviu um barulho e os abriu.

   Uma longa mancha cinzenta cortou o ar e, em um instante, Arch Bug estava no chão, Rollo em cima dele, rosnando e batendo os dentes na garganta do velho. Ele podia ser velho, mas ainda era robusto e tinha a força do desespero. Com a mão boa, agarrou a garganta do cachorro, empurrando-o para trás, mantendo afastadas as mandíbulas salivando, e um braço longo e vigoroso estendeu-se, o machado agarrado à mão aleijada, e se ergueu.

   - Não! - Ian mergulhou para frente, derrubando Rollo, buscando agarrar a mão que segurava o machado, mas era tarde demais; a lâmina desceu com um ruído oco que fez a visão de Rachel ficar branca, e Ian gritou.

   Ela estava se movendo antes de poder enxergar e ela própria gritou quando a mão de alguém a agarrou repentinamente pelo ombro e arremessou-a para trás. Ela bateu na parede e deslizou para o chão, aterrissando sem fôlego e boquiaberta. Travou-se uma luta de membros, pelos, roupas e sangue engalfinhados no chão à sua frente. Um sapato bateu aleatoriamente contra seu tornozelo e ela saiu rastejando como um caranguejo, os olhos arregalados.

   Parecia haver sangue por toda parte. Respingado no balcão e na parede, lambuzado pelo chão, e as costas da camisa de Ian estavam encharcadas de vermelho e agarradas ao corpo de tal forma que ela via os músculos retesados sob ela. Ele estava ajoelhado sobre Arch Bug, que se debatia desesperadamente, tentando agarrar o machado com uma das mãos, o braço esquerdo frouxamente caído, e Arch atacava seu rosto com dedos rígidos, tentando cegá-lo, enquanto Rollo lançava-se como uma enguia, enfurecido, no meio da luta corpo a corpo, rosnando e mordendo. Concentrada na cena, percebeu com uma vaga consciência alguém de pé atrás dela, mas ergueu os olhos, sem compreender, quando o pé dele tocou seu traseiro.

   - O que é que você tem que atrai homens com machados? - William perguntou, irritado. Ele mirou cuidadosamente ao longo do cano da pistola e disparou.

 

                     REDIVIVU

Eu estava prendendo meus cabelos para cima para o chá quando ouvi um arranhão na porta do quarto.

   - Entre - John disse, enquanto calçava as botas. A porta abriu-se cautelosamente, revelando o estranho e pequeno rapaz da Cornualha que às vezes servia como ordenança de William. Ele disse alguma coisa para John, no que presumi ser inglês, e entregou-lhe um bilhete. John balançou a cabeça amavelmente e dispensou-o.

   - Compreendeu o que ele disse? - perguntei com curiosidade, enquanto ele quebrava o selo com o polegar.

   - Quem? Oh, Colenso? Não, nem uma palavra - ele disse distraidamente, depois enrugou os lábios em um assovio sem som diante do que estava lendo.

   - O que foi? - perguntei.

   - Uma mensagem do coronel Graves - ele disse, dobrando o bilhete cuidadosamente. - Será que...

   Houve outra batida na porta e John franziu a testa.

   - Agora não - ele disse. - Volte depois.

   - Bem, eu voltaria - disse uma voz educada com um sotaque inglês. - Mas há certa urgência, sabe?

   A porta abriu-se e Jamie entrou, fechando-a atrás de si. Ele me viu, ficou paralisado por um instante, e logo eu estava em seus braços, seu tamanho e calor devastadores apagando instantaneamente tudo o mais ao meu redor.

   Eu não sei para onde meu sangue fugira. A última gota deixara minha cabeça e luzes piscantes dançavam diante dos meus olhos - mas nenhuma gota alimentava minhas pernas, que bruscamente se dissolveram sob mim.

   Jamie me segurava no ar e me beijava, com gosto de cerveja e os pelos curtos da barba arranhando meu rosto, os dedos enterrados em meus cabelos, e meus seios quentes e inchados contra seu peito.

   - Oh, lá está ele - murmurei.

   - O quê? - ele perguntou, separando-se de mim por um instante.

- Meu sangue. - Toquei meus lábios formigantes. - Faça isso de novo.

   - Oh, eu farei - assegurou-me. - Mas há muitos soldados ingleses nas vizinhanças e eu acho...

   O som de batidas fortes veio do térreo e a realidade bateu de volta como um elástico. Fitei-o e sentei-me abruptamente, o coração batendo como um tambor.

   - Por que diabos você não está morto?

   Ele ergueu um dos ombros ligeiramente, o canto da boca torcendo-se num sorriso. Estava muito magro, o rosto bronzeado, e sujo; eu podia sentir o cheiro de suor e das roupas imundas, usadas por muito tempo. E o leve cheiro de vômito - não fazia muito tempo que ele saíra de um navio.

   - Demore-se mais alguns segundos, sr. Fraser, e poderá voltar a estar morto. - John dirigira-se àjanela, espreitando a rua. Virou-se e eu vi que seu rosto estava lívido, mas luminoso como uma vela.

   - É mesmo? Foram um pouco mais rápidos do que eu pensava - Jamie disse pesarosamente, indo olhar. Virou-se da janela e sorriu. - É um prazer revê-lo, John, ainda que só por um instante.

   John respondeu com um sorriso que iluminou seus olhos. Estendeu a mão e tocou o braço de Jamie, muito rapidamente, como se quisesse se certificar de que ele de fato estava vivo.

   - Sim - ele disse, dirigindo-se, então, para a porta. - Mas venha. Pela escada dos fundos. Ou há uma escotilha para o sótão... se conseguir subir ao telhado...

   Jamie olhou para mim, o coração nos olhos.

   - Eu voltarei - ele disse. - Quando puder. - Ergueu uma das mãos para mim, mas parou com um esgar, virou-se abruptamente para seguir John, e desapareceram, o som de seus passos quase abafados pelo barulho no térreo. Ouvi a porta se abrir embaixo e uma voz masculina ríspida exigindo entrar. A sra. Figg, que Deus abençoe seu coraçãozinho intransigente, mantinha-se inarredável.

   Eu fiquei sentada como a mulher de Lot, paralisada pelo choque, mas diante dos profusos protestos da sra. Figg fui incitada à ação.

   Minha mente estava tão estupefata com os acontecimentos dos últimos cinco minutos que eu fiquei, paradoxalmente, muito lúcida. Simplesmente não havia espaço em minha mente para pensamentos, especulações, alívio, alegria ou mesmo preocupação - a única faculdade mental que eu ainda possuía, aparentemente, era a capacidade de reagir a uma emergência. Agarrei minha touca, enfiei-a na cabeça e comecei a me dirigir à porta, empurrando os cabelos para dentro da touca enquanto prosseguia. Certamente, a sra. Figg e eu poderíamos atrasar os soldados tempo suficiente...

   Esse plano provavelmente teria funcionado, se eu, ao correr para o patamar da escada, não tivesse esbarrado em Willie - literalmente, já que ele veio galgando os degraus aos saltos e colidiu pesadamente contra mim.

   - Mãe Claire! Onde está papai? Há... - Ele me agarrara pelos braços quando eu cambaleei para trás, mas sua preocupação comigo foi sobrepujada por um som vindo do corredor do outro lado do patamar. Ele olhou na direção do barulho - em seguida, soltou-me, os olhos arregalados.

   Jamie estava parado no final do corredor, a uns três metros de distância; John estava ao seu lado, branco como uma folha de papel, e os olhos tão esbugalhados quanto os de Willie. Esta semelhança com Willie, apesar de surpreendente, foi completamente superada pela própria semelhança de Jamie com o nono conde de Ellesmere. O rosto de William havia endurecido e amadurecido, perdendo qualquer traço de suavidade infantil, e das duas extremidades do curto corredor, os olhos de gato azul-escuros dos Fraser fitavam a estrutura óssea sólida, arrojada, dos Mackenzie. E Willie já tinha idade para se barbear todos os dias; ele conhecia sua aparência.

   William mexeu a boca sem conseguir emitir nenhum som com o choque. Olhou desvairadamente para mim, de novo para Jamie, de novo para mim - e viu a verdade em meu rosto.

   - Quem é você? - ele perguntou com voz rouca, ignorando o barulho embaixo.

   - James Fraser - ele disse. Seus olhos estavam fixos em William com uma intensidade flamejante, como se quisesse absorver cada vestígio de uma visão que ele não teria de novo. - Você me conheceu um dia como Alex Mackenzie. Em Flelwater.

   William pestanejou, pestanejou outra vez, e seu olhar moveu-se momentaneamente para John.

   - E quem... quem com os diabos sou eu? - indagou, o final da pergunta elevando-se em um grito esganiçado.

   John abriu a boca, mas foi Jamie quem respondeu.

   - Você é um maldito papista - ele disse, com muita precisão - e seu nome de batismo é James. - O fantasma do arrependimento atravessou seu rosto e desapareceu. - Era o único nome que eu tinha o direito de lhe dar - ele disse serenamente, os olhos fixos no filho. - Sinto muito.

   A mão esquerda de Willie bateu em seu quadril, automaticamente buscando uma espada. Não a encontrando, bateu no peito. Suas mãos tremiam tanto que ele não conseguia lidar com os botões; simplesmente agarrou o tecido e rasgou a camisa, enfiando a mão e tateando em busca de alguma coisa. Puxou-a por cima da cabeça e, com o mesmo movimento, atirou o objeto em Jamie.

   Os reflexos de Jamie fizeram-no levantar as mãos automaticamente e o rosário de madeira chocou-se contra elas, as contas balançando-se, emaranhando em seus dedos.

   - Maldito seja, senhor - William disse, a voz trêmula. - Que Deus o mande para o inferno! - Ele virou-se um pouco, cegamente, depois girou nos calcanhares para encarar John. - E você! Você sabia, não é? Maldito seja você também!

   - William... - John estendeu uma das mãos para ele, desamparado, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa ouviram-se vozes no corredor embaixo e passos pesados na escada.

   - Sassenach, detenha-o! - A voz de Jamie me alcançou em alto e bom som através da algazarra. Por puro reflexo, obedeci e agarrei Willie pelo braço. Ele olhou para mim, boquiaberto, completamente atônito.

   - O que... - Sua voz foi abafada pelo troar de pés na escada e um brado triunfante do casaco vermelho na frente.

   - Lá está ele!

   Repentinamente, o patamar ficou apinhado de corpos empurrando-se e acotovelando-se, tentando passar por mim e Willie, e entrar no corredor. Finquei-me no chão com todas as forças, apesar do empurra-empurra e apesar dos próprios e tardios esforços de Willie para se libertar.

   Repentinamente, a gritaria parou e a pressão dos corpos relaxou um pouco. Minha touca fora deslocada para cima dos meus olhos durante a refrega e eu soltei uma das mãos do braço de Willie, a fim de tirá-la. Deixei-a cair no chão. Tinha a impressão de que minha condição de mulher respeitável não seria importante por muito mais tempo.

   Afastando os cabelos desgrenhados dos olhos com um antebraço, retomei minha pressão no braço de Willie, embora isso fosse absolutamente desnecessário, já que ele parecia petrificado. Os casacos vermelhos remexiam os pés, obviamente preparados para atacar, mas inibidos por alguma coisa. Virei-me um pouco e vi Jamie, um dos braços ao redor do pescoço de John Grey, segurando uma pistola contra a têmpora de John.

   - Mais um passo - ele disse, calmamente, mas alto o suficiente para ser facilmente ouvido - e eu enfio uma bala no cérebro dele. Acham que tenho alguma coisa a perder?

   Na verdade, considerando que Willie e eu mesma estávamos parados bem à sua frente, eu achava que ele teria - mas os soldados não sabiam disso e, ajulgar pela expressão no rosto de Willie, ele teria preferido arrancar a língua do que deixar escapar a verdade. Também achei que ele não se importava particularmente no momento se Jamie de fato matasse John e depois morresse com uma saraivada de balas. Seu braço era como aço sob minhas mãos; ele próprio teria matado ambos, se pudesse.

   Houve um murmúrio de ameaça dos homens à minha volta e uma movimentação de corpos, os homens preparando-se para atacar - mas ninguém se moveu.

   Jamie olhou uma vez para mim, o rosto inexpugnável, depois se moveu para a escada dos fundos, praticamente arrastando John com ele. Eles desapareceram de vista e o cabo ao meu lado entrou em ação, virando-se e gesticulando para seus homens na escada.

   - Deem a volta por trás! Depressa!

   - Parem! - Willie voltara repentinamente à vida. Puxando o braço com um safanão do aperto frouxo de minha mão, ele virou-se para o cabo. - Você colocou homens de guarda nos fundos da casa?

   O cabo, notando o uniforme de Willie pela primeira vez, endireitou-se e bateu continência.

   - Não, senhor. Não achei que...

   - Idiota - Willie disse laconicamente.

   - Sim, senhor. Mas podemos alcançá-los, se corrermos, senhor. - Ele já se balançava sobre as pontas dos pés enquanto falava, desesperado para sair correndo.

   Os punhos de Willie estavam cerrados, assim como seus dentes. Eu podia ver os pensamentos passando pelo seu rosto, com tanta clareza como se estivessem impressos em sua testa com tipos móveis.

   Ele não achava que Jamie iria atirar em lorde John, mas não tinha certeza.

Se enviasse homens atrás deles, havia uma boa chance de que os soldados os alcançassem - o que por sua vez significava alguma chance de que um deles, ou ambos, morreria. E se nenhum dos dois morresse, mas Jamie fosse capturado - não tinha a menor ideia do que ele poderia dizer, nem a quem. Arriscado demais.

   Com uma leve sensação de déjà vu, eu o vi fazer esses cálculos, depois se virar para o cabo.

   - Retorne ao seu comandante - ele disse calmamente. - Faça-o saber que o coronel Grey foi feito refém por... pelos rebeldes, e peça-lhe para notificar todos os postos de guarda. Devo ser informado imediatamente de qualquer novidade.

   Houve um murmúrio de insatisfação dos soldados no patamar, mas nada que pudesse ser chamado de insubordinação, e mesmo isso definhou diante do olhar fulminante de William. Os dentes do cabo apertaram o lábio por um breve instante, mas ele bateu continência.

   - Sim, senhor. - Virou-se energicamente nos calcanhares, com um gesto autoritário, que enviou os soldados escada abaixo com passos rápidos e pesados.

   Willie observou-os sair. Em seguida, como se a notasse repentinamente, abaixou-se e pegou minha touca do chão. Girando-a entre as mãos, lançou-me um olhar longo e especulativo. Os próximos instantes seriam interessantes, percebi.

   Não me importava. Embora eu tivesse absoluta certeza de que Jamie não atiraria em John em nenhuma circunstância, eu não tinha nenhuma ilusão sobre o perigo que ambos corriam. Eu podia sentir a ameaça; o cheiro de suor e pólvora pairava, pesado, no ar do patamar, e as solas dos meus pés ainda vibravam com a batida da pesada porta da frente. Nada disso importava.

   Ele estava vivo.

   Eu também.

Grey ainda estava em mangas de camisa; a chuva havia penetrado pelo tecido até sua pele.

   Jamie foi para a parede do barracão e colocou o olho em uma fenda entre as tábuas. Ergueu uma das mãos, pedindo silêncio, John ficou parado, à espera, tremendo, enquanto o som de cascos e vozes passava por eles. Quem poderia ser? Não soldados; não havia nenhum som metálico, nenhum chocalhar de armas ou esporas. Os sons desapareceram e Jamie virou-se novamente. Ele franziu o cenho, notando pela primeira vez que Grey estava encharcado e, tirando o casaco, envolveu-o ao redor de seus ombros.

   O casaco também estava úmido, mas era de lã, e o calor do corpo de Jamie permanecia nele. Grey fechou os olhos por um instante, sentindo-se abraçado.

   - Posso saber o que você anda fazendo? - Grey perguntou, abrindo-os.

   - Quando? - Jamie esboçou um sorriso. - Agora mesmo ou desde a última vez que eu o vi?

   - Agora mesmo.

   - Ah. - Jamie sentou-se em um barril e reclinou-se para trás - cautelosamente -, recostando-se na parede.

   Grey notou com interesse que o som foi quase um "Arrh" e deduziu que ultimamente Fraser havia passado a maior parte de seu tempo na Escócia. Também observou que os lábios de Fraser estavam franzidos, como ele fazia quando estava pensativo. Os olhos azuis rasgados viraram-se em sua direção.

   - Tem certeza que quer saber? Provavelmente, é melhor que não saiba.

   - Tenho absoluta confiança em sua capacidade de julgamento e em sua discrição, sr. Fraser - Grey disse educadamente -, porém um pouco mais em mim mesmo. Tenho certeza de que poderá me desculpar.

   Fraser pareceu achar aquilo engraçado; a boca larga torceu-se, mas ele balançou a cabeça e tirou de dentro da camisa um embrulhinho, costurado em pele de animal oleada.

   - Eu fui observado no ato de aceitar isso de meu filho adotivo - ele disse. - A pessoa que me viu seguiu-me até um restaurante, depois foi buscar a companhia de soldados mais próxima enquanto eu comia. Ou assim eu deduzi. Eu os vi descendo a rua, achei que deviam estar vindo para me pegar e... fui embora.

   - Você está familiarizado, eu suponho, com a alegoria a respeito de um culpado que foge quando ninguém o persegue? Como sabe que estavam atrás de você para começar e não apenas interessados em sua intempestiva fuga?

   O leve sorriso tremulou outra vez, desta vez com um toque de ironia.

   - Chame a isso de instinto da presa.

   - Compreendo. Estou surpreso que você tenha se deixado encurralar, seus instintos sendo como são.

   - Sim, bem, até raposas envelhecem, não é? - Fraser disse secamente.

   - Por que diabos você veio à minha casa? - Grey indagou, repentinamente irritado. - Por que não correu para a periferia da cidade?

   Fraser pareceu surpreso.

   - Minha mulher - ele disse simplesmente, e ocorreu a Grey, com uma pontada, que não fora inadvertência ou falta de cautela o que impelira Jamie Fraser a ir à sua casa, mesmo com soldados nos calcanhares. Ele fora por ela. Por Claire.

   Jesus!, pensou repentinamente em pânico. Claire!

   Mas não tinha havido tempo de dizer nada, ainda que ele tivesse pensado no que dizer. Jamie levantou-se e, tirando a pistola da cintura, acenou para ele vir.

   Desceram uma viela, depois atravessaram o quintal de uma taverna, esgueirando-se pela tina de fermentação aberta, a superfície perfurada pelos pingos da chuva que caía. Cheirando levemente a lúpulo, emergiram em uma rua e diminuíram o passo. Jamie agarrara seu pulso durante todo o caminho e lorde John sentia sua mão começando a ficar dormente, mas não disse nada. Passaram por dois ou três grupos de soldados, mas ele caminhou com Jamie, acompanhando-o passo a passo, olhando para a frente. Não havia nenhum conflito entre coração e dever ali: gritar pedindo ajuda poderia resultar na morte de Jamie; certamente resultaria na morte de pelo menos um soldado.

   Jamie mantinha sua pistola fora de vista, parcialmente escondida pelo casaco, mas em sua mão, somente colocando-a de volta no cinto quando alcançaram o local onde ele havia deixado seu cavalo. Era uma residência particular; deixou Grey sozinho na varanda por um instante com um murmurado "Fique aqui", enquanto desaparecia dentro da casa.

   Um forte senso de autopreservação instava lorde John a correr, mas não o fez e foi recompensado quando Jamie emergiu outra vez e sorriu um pouco, vendo-o. Então, não tinha certeza se eu ficaria? Bastante justo, Grey pensou. Ele mesmo não teve certeza.

   - Vamos, então - Jamie disse e, com um sinal da cabeça, chamou Grey para acompanhá-lo até o estábulo, onde ele rapidamente selou e colocou os arreios em um segundo cavalo, entregando as rédeas a Grey antes de montar em seu próprio cavalo. - Pro forma - ele disse educadamente a Grey e, sacando a pistola, apontou-a para ele. - Caso alguém pergunte depois. Você virá comigo e eu vou atirar em você, caso faça qualquer movimento para me denunciar antes que estejamos fora da cidade. Estamos compreendidos?

   - Estamos - Grey respondeu sucintamente e subiu na sela.

   Cavalgou um pouco à frente de Jamie, consciente do pequeno lugar redondo entre suas omoplatas. Pro forma ou não, ele falara a sério.

   Perguntou-se se Jamie iria dar um tiro em seu peito ou simplesmente quebrar seu pescoço quando descobrisse. Talvez com as próprias mãos, pensou. Sexo era um tipo de coisa visceral.

   A ideia de esconder a verdade não havia seriamente lhe ocorrido. Ele não conhecia Claire Fraser tão bem quanto Jamie a conhecia - mas sabia sem sombra de dúvida que ela não conseguia guardar segredos. De ninguém. E certamente não de Jamie, devolvido a ela pela morte.

   Claro, poderia se passar algum tempo até Jamie poder falar com ela outra vez. Mas conhecia Jamie Fraser infinitamente melhor do que conhecia Claire - e a única coisa de que tinha certeza é que absolutamente nada ficaria muito tempo entre Jamie e sua mulher.

   A chuva passara e o sol brilhava nas poças conforme eles chapinhavam pelas ruas. Havia uma sensação de movimento por toda parte, uma agitação no ar. O exército estava aquartelado em Germantown, mas sempre havia soldados na cidade, e o conhecimento de sua partida iminente, a expectativa de retorno à campanha militar, contagiava a cidade como uma praga, uma febre passada invisivelmente de homem a homem.

   Uma patrulha na estrada fora da cidade os parou, mas depois acenou para que prosseguissem quando Grey deu seu nome e patente. Seu companheiro, ele apresentou como sr. Alexander Mackenzie e achou que sentiu uma vibração de humor do dito companheiro. Alex Mackenzie era o nome que Jamie usara em Helwater - como prisioneiro de Grey.

   Oh, meu Deus, Grey pensou repentinamente, liderando o caminho para fora da vista da patrulha. William. No choque do confronto e sua partida abrupta, ele não tivera tempo de pensar. Se Grey estivesse morto, o que William faria?

   Seus pensamentos zumbiam como um enxame de abelhas, amontoando-se umas sobre as outras em uma massa fervilhante; impossível concentrar-se em um por mais de um segundo antes que ele se perdesse no zumbido ensurdecedor. Denys Randall-Isaacs. Richardson. Com Grey morto, ele sem dúvida prenderia Claire. William tentaria detê-lo, se soubesse. Mas William não sabia o que Richardson era... Grey tampouco sabia, não com certeza. Henry e sua amante negra. Grey sabia que eram amantes agora, vira isso no rosto de ambos - Dottie e seu quaker: se os dois choques não matassem Hal, ele estaria em um navio com destino à América no mesmo instante, e isso, sim, certamente o mataria. Percy. Oh, Jesus, Percy.

   Jamie seguia à sua frente agora, liderando o caminho. Havia pequenos grupos de pessoas na estrada: a maioria fazendeiros vindo com carroças carregadas de suprimentos para o exército. Olhavam com curiosidade para Jamie, mais ainda para Grey. Mas ninguém os parou ou desacatou, e uma hora mais tarde Jamie os conduziu por uma trilha que partia da estrada principal e penetrava em uma pequena região de bosque, gotejante e enevoado da chuva recente. Havia um riacho; Jamie desceu do cavalo e deixou-o beber água, e Grey fez o mesmo, sentindo-se estranhamente irreal, como se o couro da sela e das rédeas fosse estranho à sua pele, como se o ar frio da chuva passasse através dele, através de seu corpo, em vez de ao redor.

   Jamie agachou-se junto ao riacho e bebeu água, depois jogou água sobre a cabeça e o rosto, e levantou-se, sacudindo-se como um cachorro.

   - Obrigado, John - ele disse. - Não tive oportunidade de dizer isso antes. Sou muito grato a você.

   - Grato a mim? Não foi minha escolha. Você me raptou sob a mira de uma arma.

   Jamie sorriu; a tensão da última hora diminuíra e, com isso, as rugas de seu rosto.

   - Não é isso. Por cuidar de Claire, quero dizer.

   - Claire - ele repetiu. - Ah. Sim. Isso.

   - Sim, isso - Jamie disse pacientemente, inclinando-se para espreitá-lo, preocupado. - Você está bem, John? Parece um pouco indisposto.

   - Indisposto - Grey murmurou. Seu coração batia erraticamente; talvez ele convenientemente parasse de bater. Aguardou um instante para permitir que isso acontecesse se quisesse, mas ele continuou a bater alegremente. Nenhuma ajuda daí, portanto. Jamie ainda o fitava com um olhar examinador. Era melhor acabar logo com isso.

   Respirou fundo, fechou os olhos e encomendou a alma a Deus.

   - Eu tive conhecimento carnal de sua mulher - falou de um só jato.

   Esperara morrer mais ou menos instantaneamente depois da declaração, mas tudo continuou como sempre. Os pássaros continuaram gorjeando nas árvores, e os ruídos dos cavalos mascando capim eram o único som acima da água corrente. Abriu um dos olhos e encontrou Jamie Fraser ali parado, observando-o, a cabeça inclinada para o lado.

   - Oh? - Jamie disse com curiosidade. - Por quê?

 

                     ENTRANHADO NOS OSSOS

   Eu... hã... Poderia me dar licença por um instante... - Recuei devagar para a porta do meu quarto e, segurando a maçaneta, entrei rapidamente e fechei a porta, deixando Willie recobrar-se com digna privacidade. E não só Willie.

   Pressionei-me contra a porta como se estivesse sendo perseguida por lobisomens, o sangue latejando em meus ouvidos.

   - Jesus H. Roosevelt Cristo - murmurei. Algo como um gêiser erguia-se dentro de mim e explodia em minha cabeça, os respingos cintilando com sol e diamantes. Eu estava vagamente consciente de que começara a chover lá fora e uma água cinzenta e suja escorria pelas vidraças, mas isso não tinha a menor importância para a efervescência dentro de mim.

   Fiquei imóvel por vários minutos, os olhos fechados, sem pensar em nada, apenas murmurando "Obrigada, Senhor" sem parar, silenciosamente.

   Uma batida hesitante na porta arrancou-me desse transe e eu me virei para abri-la. William estava no patamar. Sua camisa ainda pendia aberta onde ele a rasgara e eu pude ver a pulsação rápida em sua garganta. Ele fez uma reverência desajeitada para mim, tentando forçar um sorriso, mas notoriamente fracassando na tentativa. Desistiu.

   - Não sei bem como chamá-la - ele disse. - Nas atuais... circunstâncias.

   - Oh - eu disse, ligeiramente desconcertada. - Bem. Não creio... ao menos, espero que o relacionamento entre nós não tenha mudado. - Compreendi, com um súbito arrefecimento de minha euforia, que agora poderia muito bem mudar, e o pensamento me deu uma profunda pontada de dor. Eu gostava muito dele, por ele mesmo, tanto quanto pelo seu pai - ou pais, com base na situação. - Conseguiria continuar me chamando de "mãe Claire"? Pelo menos até conseguirmos pensar em alguma coisa mais... apropriada - acrescentei apressadamente, vendo a relutância estreitar seus olhos. - Afinal, acho que ainda sou sua madrasta. Independente da... hã... situação.

   Ele considerou isso por um instante, depois assentiu sucintamente.

   - Posso entrar? Gostaria de falar com você.

   - Sim, claro que sim.

   Se eu não conhecesse seus dois pais, teria ficado impressionada com sua habilidade de reprimir a raiva e a confusão que tão claramente demonstrara há quinze minutos. Jamie fazia isso por instinto, John pela longa experiência - mas ambos tinham uma força de vontade de ferro e, se essa capacidade de William estava entranhada nos ossos ou fora adquirida através do exemplo, ele sem dúvida a possuía.

   - Devo pedir alguma coisa? - perguntei. - Um pouco de conhaque? É bom para um choque.

   Ele sacudiu a cabeça. Recusava-se a sentar - acho que ele não conseguiria -, mas se reclinou contra a parede.

   - Imagino que você soubesse, não? Você não poderia deixar de notar a semelhança, imagino - ele acrescentou amargamente.

   - De fato, é notável - concordei, com cautela. - Sim, eu sabia. Meu marido me contou - busquei uma maneira delicada de colocar a questão - as, hum, circunstâncias de seu nascimento há alguns anos.

   E exatamente como eu iria descrever essas circunstâncias?

   Não que eu não tivesse percebido que havia algumas explicações embaraçosas a serem feitas, mas, surpreendida com o súbito reaparecimento e fuga de Jamie e a vertigem de minha própria euforia subsequente, de algum modo não me ocorrera que eu seria a pessoa que iria dar essas explicações.

   Eu tinha visto o pequeno santuário que ele mantinha em seu quarto, os retratos de suas duas mães - ambas tão dolorosamente jovens. Se a idade fosse boa para alguma coisa, certamente teria me dado a sabedoria para lidar com isto, não?

   Como eu poderia lhe dizer que ele era o resultado da chantagem de uma jovem impulsiva e voluntariosa? Quanto mais dizer que ele fora a causa da morte de seus pais legítimos? E se alguém fosse lhe contar o que seu nascimento significara para Jamie, teria que ser Jamie.

   - Sua mãe... - comecei a dizer, e hesitei. Jamie teria assumido a culpa sozinho em vez de sujar a memória de Geneva para seu filho, eu sabia. Eu não concordava com isso.

   - Ela era imprudente - William disse, observando-me atentamente. - Todo mundo diz que ela era imprudente. Foi... acho que eu só queria saber, foi estupro?

   - Santo Deus, não! - eu disse, horrorizada, e vi seus punhos cerrados relaxarem um pouco.

   - Isso é bom - ele disse, soltando a respiração que estava prendendo. - Tem certeza de que ele não mentiu para você?

   - Tenho absoluta certeza. - Ele e seu pai podiam ser capazes de ocultar seus sentimentos; eu certamente não podia, e apesar de nunca poder viver de jogos de cartas, ter um rosto transparente às vezes era uma boa coisa. Permaneci imóvel, deixando-o ver que eu falava a verdade.

   - Você acha... ele disse... - Ele parou e engoliu, com força. - Eles se amavam, você acha?

   - Tanto quanto puderam, eu acho - eu disse suavemente. - Não tiveram muito tempo, apenas uma única noite. - Senti pena dele e tive vontade de tomá-lo em meus braços e consolá-lo. Mas ele era um homem, e jovem, feroz em relação à sua dor. Lidaria com ela da forma que melhor pudesse e achei que levaria alguns anos até ele aprender a compartilhá-la, se o fizesse algum dia.

   - Sim - ele disse, e pressionou os lábios, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas achou melhor não o fazer. - Sim, eu... eu compreendo. - Era bastante claro pelo seu tom de voz que não compreendia, mas zonzo com o impacto dos acontecimentos não fazia a menor ideia do que perguntar em seguida, quanto mais o que fazer com as informações que possuía. - Eu nasci quase exatamente nove meses depois do casamento dos meus pais - ele disse, lançando-me um olhar intenso. - Eles enganaram meu pai? Ou minha mãe agiu como uma prostituta com seu cavalariço antes de se casar?

   - Isso pode ser um pouco difícil - comecei.

   - Não, não é - ele retrucou rispidamente. - Qual das duas opções?

   - Seu p... Jamie. Ele jamais enganaria outro homem em seu casamento. - Exceto Frank, pensei, um pouco transtornada. Mas, é claro, no começo ele não sabia que estava fazendo isso...

   - Meu pai - ele disse abruptamente. - Pa... lorde John, quero dizer. Ele sabia... sabe?

   - Sim. - Terreno perigoso outra vez. Eu achava que ele não tinha a menor ideia de que lorde John se casara com Isobel principalmente para o bem dele - e de Jamie -, mas não queria que ele sequer chegasse perto da questão dos motivos de lorde John.

   - Todos eles - eu disse com firmeza -, todos os quatro queriam o melhor para você.

   - O melhor para mim - ele repetiu sem entender. - Sei. - As juntas de seus dedos haviam ficado brancas outra vez e ele me lançou um olhar através de olhos apertados que eu conhecia muito bem: um Fraser prestes a explodir. Eu também sabia perfeitamente bem que não havia nenhuma maneira de impedir alguém de detonar, mas tentei assim mesmo, estendendo a mão para ele.

   - William - comecei. - Acredite-me...

   - Acredito - ele disse. - Não me diga mais nada! Droga! - E, girando nos calcanhares, deu um soco no painel de madeira da parede com uma pancada surda que sacudiu o quarto, arrancou a mão do buraco que fizera e saiu intempestivamente. Ouvi ruídos de madeira arrancada e estraçalhada quando ele parou para chutar vários dos balaústres no patamar e arrancar um pedaço do corrimão da escada. Cheguei à porta a tempo de vê-lo levantar um pedaço de madeira de mais de um metro acima do ombro, girar e golpear o candelabro de cristal pendurado no vão da escada com uma explosão de estilhaços. Por um instante, ele oscilou na beira aberta do patamar e eu achei que ele fosse cair, ou se atirar dali, mas ele cambaleou para trás, afastando-se da borda, e arremessou o pedaço de madeira como uma lança no que restara do candelabro, com uma arfada que podia ter sido um grunhido ou um soluço.

   Em seguida, precipitou-se pelas escadas, batendo o pulso ferido a intervalos contra a parede, deixando manchas de sangue para trás. Chocou-se contra a porta da frente com o ombro, ricocheteou, abriu-a com um safanão e saiu como uma locomotiva.

   Fiquei paralisada no patamar, no meio do caos e da destruição, agarrada na borda da balaustrada destroçada. Minúsculos arco-íris dançavam nas paredes e no teto, como libélulas multicoloridas saídas do cristal estilhaçado que se espalhava pelo chão.

   Algo se moveu; uma sombra projetou-se no assoalho do corredor embaixo. Uma figura escura e pequena entrou devagar pela porta aberta. Afastando para trás o capuz de sua capa, Jenny Fraser Murray olhou para a devastação ao redor, depois ergueu os olhos para mim, o rosto um oval pálido reluzente de humor.

   - Tal pai, tal filho, pelo que vejo - observou. - Que Deus nos ajude.

 

                     A HORA DO LOBO

O exército britânico estava deixando a Filadélfia. O Delaware estava entulhado de navios e as barcaças atravessavam o rio sem parar, do final da State Street até Cooper's Point. Três mil tories estavam deixando a cidade também, com medo de permanecer ali sem a proteção do exército; o general Clinton lhes prometera passagem, embora a bagagem deles causasse uma terrível confusão - empilhada nas docas, abarrotando as barcaças - e ocupasse muito espaço a bordo dos navios. Ian e Rachel sentavam-se na margem do rio abaixo da Filadélfia, sob a sombra de um chorão, e observavam uma plataforma de artilharia sendo desmontada, a uns cem metros.

   Os artilheiros trabalhavam em mangas de camisa, seus casacos azuis dobrados sobre a grama próxima, retirando os canhões que haviam defendido a cidade, preparando-os para despachá-los nos navios. Não tinham pressa e não prestavam atenção a espectadores; não importava mais.

   - Sabe para onde eles vão? - Rachel perguntou.

   - Sei, sim. Fergus disse que estão indo para o norte, para reforçar Nova York.

   - Você o viu? - Ela virou a cabeça, interessada, e a sombra das folhas tremulou pelo seu rosto.

   - Sim, ele voltou para casa ontem à noite; estará seguro agora, com a saída do exército e dos tories.

   - Seguro - ela disse, com uma entonação cética. - Tão seguro quanto qualquer um pode estar em tempos como este, você quer dizer. - Ela tirara sua touca por causa do calor e afastou os cabelos escuros, úmidos, do seu rosto.

   Ele sorriu, mas não disse nada. Ela sabia tão bem quanto ele quais eram as ilusões de segurança.

   - Fergus disse que os ingleses pretendem dividir as Colônias ao meio - observou. - Separar o norte do sul e lidar com elas separadamente.

   - É mesmo? E como ele sabe disso? - ela perguntou, surpresa.

   - Um soldado inglês chamado Randall-Isaacs; ele conversa com Fergus.

   - E um espião, você quer dizer? Para qual lado? - Seus lábios se comprimiram um pouco. Ele não sabia ao certo onde a traição recaía, em termos de filosofia quaker, mas não se preocupou em perguntar neste momento. Era um assunto delicado, a filosofia quaker.

   - Não quero especular - ele disse. - Ele se faz passar por agente americano, mas pode ser apenas um disfarce. Não se pode confiar em ninguém durante uma guerra, não é?

   Ela virou-se para olhá-lo de frente, as mãos atrás das costas ao se apoiar contra a árvore.

   - Você não pode?

   - Eu confio em você - ele disse. - E em seu irmão.

   - E em seu cachorro - ela disse, com um olhar para Rollo, contorcendo-se no chão para coçar as costas. - Em sua tia e seu tio também, e em Fergus e a mulher dele, não? Parece um bom número de amigos. - Inclinou-se para ele, estreitando os olhos, preocupada. - Sente dor no braço?

   - Oh, já está quase bom. - Encolheu o ombro bom, sorrindo. Seu braço realmente doía, mas a tipoia ajudava. O golpe do machado quase arrancara seu braço esquerdo, cortando a carne e quebrando o osso. Sua tia havia dito que ele tivera sorte, já que não danificara os tendões. O corpo é flexível, ela disse. Os músculos se recuperariam, e o osso também.

   Os de Rollo haviam se recuperado; não havia nenhum vestígio de rigidez do ferimento do tiro e, apesar de seu focinho estar ficando branco, ele deslizava pelo meio das moitas como uma enguia, farejando diligentemente.

   Rachel suspirou e lhe lançou um olhar direto por baixo das sobrancelhas escuras e retas.

   - Ian, você está pensando em algo doloroso e eu preferia que você me dissesse o que é. Aconteceu alguma coisa?

   Muitas coisas haviam acontecido, estavam acontecendo à sua volta, continuariam a acontecer. Como podia lhe dizer...? E no entanto tinha que fazê-lo.

   - O mundo está virando de cabeça para baixo - ele disse, num ímpeto. - E você é a única coisa estável. A única coisa que me prende à terra.

   Os olhos dela se enterneceram.

   - Sou?

   - Sabe muito bem que é - ele disse, a voz rouca. Desviou o olhar, o coração batendo forte. Tarde demais, pensou, com um misto de consternação e euforia. Ele começara a falar; não podia parar agora, independente do que pudesse acontecer. - Sei o que eu sou - ele disse, canhestramente, mas com determinação. - Eu viraria um quaker por você, Rachel, mas no fundo do meu coração sei que não sou; acho que jamais poderia ser. E acho que você não iria querer que eu falasse sem sinceridade ou fingisse ser alguém que não sou.

   - Não - ela disse suavemente. - Eu não ia querer isso.

   Ele abriu a boca, mas não encontrou mais nada a dizer. Engoliu, a boca seca, esperando. Ela também engoliu em seco; ele viu o leve movimento de sua garganta, macia e bronzeada; o sol começava a tocá-la outra vez, a jovem morena cor de noz amadurecendo após o florescimento pálido do inverno.

   Os artilheiros carregaram o último canhão em uma carroça, amarraram as carretas dos canhões a parelhas de bois e com risadas e estardalhaço começaram a subir a estrada em direção ao ponto das barcas. Quando finalmente desapareceram, fez-se um silêncio. Ainda havia ruídos - o borbulhar da água do rio, o farfalhar dos galhos e folhas do chorão e, muito além, os gritos e batidas de um exército em movimento, o som de violência pairando no ar. Mas entre eles havia silêncio.

   Perdi, ele pensou, mas a cabeça de Rachel ainda estava abaixada, pensativa. Será que ela está rezando? Ou apenas tentando imaginar como me mandar embora?

   O que quer que fosse, ela ergueu a cabeça e se levantou, afastando-se da árvore. Apontou para Rollo, agora sentado com a cabeça levantada, imóvel, mas alerta, os olhos amarelos seguindo cada movimento de um gordo pintarroxo ciscando na grama.

   - Este cachorro é um lobo, não é?

   - Sim, bem, em grande parte.

   Um pequeno lampejo cor de mel lhe disse para não usar de evasivas.

   - E no entanto ele está em sua boa companhia, uma criatura de rara coragem e afeição, e no geral um ser de valor?

   - Oh, sim - ele disse com mais confiança. - Ele é, sim.

   Ela lançou-lhe um olhar direto.

   - Você é um lobo também, e eu sei disso. Mas você é meu lobo, e é bom que saiba disso.

   Ele começara a arder quando ela falava, uma ignição rápida e forte como a de um dos fósforos de sua prima. Ele estendeu a mão, a palma para frente, para ela, ainda cauteloso, com receio de que ele, também, entrasse em combustão.

   - O que eu disse para você, antes... que eu sabia que você me amava...

   Ela deu um passo à frente e pressionou a palma de sua mão contra a dele, seus dedos pequenos e frios apertando com força.

   - O que eu lhe digo agora é que realmente o amo. E se você caça à noite você voltará para casa.

   Sob o chorão, o cachorro bocejou e colocou o focinho em cima das patas.

   - E dormirei aos seus pés - Ian sussurrou, puxando-a para si e envolvendo-a com o braço são, ambos ardentes como a luz do sol.

 

                                                                                Diana Gabaldon  

 

                      

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