A ascensão de Eduardo I ao trono da Inglaterra restaurou a autoridade real e as finanças, abaladas durante o reinado de seu pai, Henrique III. Dotado de extraordinário vigor físico, que lhe valeu o apelido de Pernas longas, Eduardo deixou a marca de sua personalidade num período em que a Inglaterra atingiu o auge da prosperidade. No Sétimo Livro da Saga dos Plantagenetas, Jean Plaidy reconstitui a trajetória deste notável estadista, da coroação ao segundo casamento com a irmã do rei de França, e a luta para alcançar a unidade britânica através da conquista da Escócia e do País de Gales.
Seu único ponto de fragilidade era a constante preocupação com os filhos, especialmente com o jovem Eduardo - a quem, no futuro, deveria entregar a Coroa...
EMBORA o REI JÁ TIVESSE morrido fazia mais de um ano, a rainha ainda lamentava a sua perda. Em algum lugar além-mar estava seu filho, o novo rei, que agora precisava voltar para reivindicar a coroa. A rainha, que durante tanto tempo governara o marido e, portanto, a corte, ficara prostrada de dor. Ela não pensava em outra coisa, a não ser em que ele se fora para sempre - aquele seu querido e bondoso marido que a adorara a partir do dia em que ela lhe fora apresentada como sua noiva.
Muitas vezes ela sorria ao lembrar o quanto ele regateara, quando o casamento dos dois fora negociado, sobre a insignificância do seu dote, e que chegara um momento em que parecera que, devido à pobreza do pai dela, não haveria casamento. No entanto, assim que ele a vira, aquele pagamento deixara de ter qualquer importância, e a partir daquele momento e durante a vida toda ele não fizera segredo do fato de se considerar o mais feliz dos monarcas por ter conseguido como esposa aquela filha sem dote de um conde pobre. Fora amor à primeira vista, e continuara pela vida toda. Ela o dominara, e isso criara uma bem-aventurança matrimonial num grau raramente experimentado em famílias reais. O fato de ela ter tentado governar a Inglaterra ao mesmo tempo provocara resultados menos felizes.
E agora o rei estava morto, e ela estava sozinha naquele suntuoso leito real no palácio de Westminster naquele esplêndido quarto que deixava maravilhados todos os que o viam. O rei fora o responsável por aquela beleza. Henrique adorara arte, literatura, música e arquitetura. Muitas vezes dissera que gostaria de fugir das atribulações da monarquia e passar a fazer aquilo em que se sobressaísse. Alguns dos barões tinham trocado olhares dissimulados naquelas ocasiões, dando a entender que teria sido um bem para o país se ele tivesse feito isso. Os barões sabiam ser insolentes. Eles tinham exercido um poder grande demais desde que o pai de Henrique, João, fora forçado a apor sua assinatura àquele documento chamado de Magna Carta, que lançara uma sombra sobre a vida de seus descendentes.
Ela gostava de ficar deitada na cama e correr os olhos por aquele quarto e lembrar-se de que os dois o tinham planejado juntos. Os murais eram requintados. Henrique fora um homem profundamente religioso e ordenara que se pintassem anjos no teto. "Podia-se deitar na cama e pensar que se estava no céu", dissera ela. E, sempre o amante ardente, Henrique respondera que quando a rainha estava ao seu lado, ele se sentia no céu.
- Oh, Deus - disse ela, em voz alta -, por que o Senhor o levaste? Nós ainda poderíamos ter muitos anos juntos.
Lembrava-se de que muitas vezes os dois iam observar os empregados. "Isso tem que ficar pronto antes de o verão terminar", dissera Henrique. "Se vocês contratarem mil empregados por dia, eu acabo." "O custo, majestade...", queixaram-se eles. Como Henrique ficava impaciente com aquela lamúria sobre dinheiro! Ele não dava importância a desculpas daquele tipo. O povo pagaria. Por que não? Os comerciantes de Londres eram ricos, e sempre havia os judeus. "O povo não tem alma", dissera o rei a ela. "Ele está sempre preocupado com dinheiro."
Oh, sim, Henrique fora um homem bom e religioso. Havia provas de sua piedade naquele quarto. Até nos umbrais das janelas tinham sido esculpidos textos da Bíblia. Cenas da vida de Eduardo, o Confessor, estavam pintadas nas paredes, para confirmar o fato de que Henrique admirara o Confessor, de longe, muito mais do que admirara qualquer um de seus ancestrais guerreiros. "Um rei nobre", dissera ele. "Eu gostaria de ser igual a ele." A rainha objetara. Esperava, dissera ela, que o rei não preferisse viver como um monge e que não se arrependesse de sua vida com ela, que produzira seus adoráveis filhos. E ele a aplacara, tranquilizara-a! No seu círculo familiar, ele era o homem mais feliz do mundo. Só os barões o tinham atormentado porque viviam tentando dominá-lo, e os comerciantes de Londres, que não davam parte de sua riqueza para o progresso do país. As pessoas deviam pagar pelos privilégios. O lema preferido dele estava, de fato, entalhado num dos frontões daquele quarto. "Quem não dá o que tem, não recebe o que deseja." Era um aviso aos gananciosos súditos que reclamavam tanto do pagamento de impostos.
A rainha precisava parar de remoer o passado. Tinha de pensar no futuro. Mas que futuro havia para uma rainha viúva? A maioria delas entrava para um convento, a fim de viver os últimos anos de vida em piedosa solidão, para que pudessem ser perdoadas pelos atos que as necessidades mundanas as haviam obrigado a cometer.
Aquilo não era vida para Eleanor de Provença. Era uma governante nata, e não iria abrir mão de seu papel com tanta facilidade assim.
Em breve, Eduardo retornaria para reivindicar a coroa. Seu adorado primogénito - aquele filho do qual ela e Henrique tanto se haviam orgulhado. Enquanto isso não acontecia, ainda era a rainha, e não iria deixar que ninguém se esquecesse disso.
Quando suas aias chegaram para a cerimónia do vestir-se, a primeira pergunta da rainha foi:
- Como estão as crianças?
As aias sabiam que ela iria perguntar, e estavam prontas, depois de se certificarem de que tudo estava bem na ala infantil real antes de irem até ela. Os netos dela eram, agora, a sua maior preocupação, e desde a morte do pequenino príncipe João ela se decidira a certificar-se, antes de se levantar, de que não havia motivo para angústia.
Garantiram-lhe que as crianças estavam bem.
- E o príncipe João passou bem a noite?
- Diz ele que sim, majestade.
Ela sorriu e segurou a camisa que lhe foi estendida.
Depois de ter completado a toalete e bebido um pouco de cerveja com pão de aveia, um dos guardas entrou para dizer-lhe que um mensageiro queria falar com ela.
Ela o recebeu de imediato, e mesmo enquanto ele se ajoelhava à sua frente e ela lhe pedia que se levantasse, adivinhou que o homem viera a mando de seu filho Eduardo. Tinha razão.
- Majestade - disse o mensageiro -, o rei mandou que eu viesse procurá-la a toda velocidade. Ele está vindo para a Inglaterra, e se o vento for bom, deve estar com Vossa Majestade nos próximos dias.
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça. Fazia muitos meses que esperara por uma mensagem daquelas.
Assim que dispensou o mensageiro, a rainha foi para a ala infantil. Ela insistira em que, enquanto os pais estivessem ausentes, as crianças deveriam ficar sob seus cuidados. Só elas podiam aliviar a tristeza que tomava conta dela quando pensava no finado marido. Claro que as crianças tinham causado grandes preocupações. A morte do pequeno João representara uma agonia, mas Henrique estivera lá para ajudá-la a suportá-la.
Como os dois haviam chorado e se enfurecido com os médicos que não puderam salvar aquela jovem vida! Como os dois tinham se agarrado e confortado um ao outro! Henrique dissera: "Eduardo ainda é jovem. Vai ter muitos filhos. E graças a Deus nós temos o pequeno Henrique."
Fora doloroso ter de enviar a Eduardo e sua mulher Eleanor a notícia da morte do filho: e o fato de ela ser seguida quase que de imediato pela notícia da morte do pai dele era angustiante. Não era de admirar que os dois que restavam na ala infantil estivessem sob seus cuidados especiais, que ela perguntasse, todas as manhãs, pela saúde do jovem Henrique, que era frágil demais para que ela ficasse despreocupada.
Agora estava se voltando para as crianças a fim de se consolar, e como as amava com tanta devoção, dando continuidade à tradição da família, elas a adoravam.
Seu ânimo melhorou quando ela ouviu os gritos de alegria ao entrar na sala de aula. Crianças preciosas! Não só porque o pai era um rei, mas porque eram suas netas.
Estavam sentados à mesa - a princesa Eleanor, de oito anos de idade, e o irmão Henrique, que era um ano mais moço. A rainhamãe não podia olhar para eles sem uma emoção avassaladora - metade dor, metade prazer. Não conseguia esquecer o pequeno João - que teria sido o mais velho dos três. Tudo fora feito para mantê-lo vivo, mas os santos, quando invocados, tinham ficado cruelmente surdos às súplicas reais; os médicos os tinham prevenido e não conseguiram salvá-lo. Não havia um remédio conhecido, no reino, que não tivesse sido experimentado - e no entanto, João morrera. Alguns diziam que o nome era malfadado. Como podiam ter esperado que uma criança chamada João vingasse? Todos os diabos do inferno tinham esperado para receber o bisavô do menino que, diziam alguns, era o diabo em pessoa que voltara à Terra por um curto prazo. Eles tinham ignorado aquela loucura, mas não iriam dar a outro menino um nome ao qual ainda estava vinculada uma reputação assim tão má.
A princesa Eleanor jogou para trás os longos cabelos louros e correu para a avó, lançando os braços em torno dela.
A rainha acariciou os cabelos da menina. Claro que deveria ter exigido o respeito que lhe era devido, mas preferia ter aquela espontânea demonstração de afeto da parte deles do que uma fria cerimónia, sempre. Embora não houvesse ninguém que exigisse mais rigorosamente do que ela o respeito devido à sua posição em público, no seu círculo familiar não havia nada, a não ser ternura.
Estendeu a mão para Henrique, que se aproximava dela mais devagar do que a irmã.
- E como estão os meus queridos hoje?
- Eu estou bem, majestade, mas Henrique tem andado doente - disse a princesa.
Tremores de alarma apossaram-se da rainha.
- Henrique, meu queridinho...
- Henrique está sempre doente - disse a princesa Eleanor, um tanto desdenhosa.
O garotinho ergueu para a avó um olhar suplicante.
- Não posso evitar, majestade. Eu tento não ficar doente.
A rainha ergueu-o e apertou-o contra ela. Como era frágil! Fora assim que João tinha ido. O que havia de errado a ponto de um homem como Eduardo não conseguir ter filhos homens saudáveis? Ela e Henrique tinham gerado Eduardo - e não havia dúvidas de que não existia um exemplo mais belo de homem.
Ela beijou o menino.
- vou fazer você ficar bom - prometeu. Ele abraçou-a pelo pescoço e retribuiu o beijo.
- Então, vou correr mais do que qualquer outra pessoa. vou caçar e levar meu falcão para a floresta.
- Sim, meu amor, é isso mesmo, e quando seu pai chegar irá encontrá-lo transformado num príncipe alto e bonito.
- Quando ele voltará para casa? - perguntou a princesa.
- Pois é isto que vim dizer a vocês. Ele está de volta. Dentro de muito breve, seu pai e sua mãe estarão aqui.
As crianças ficaram muito compenetradas. Tinham vagas lembranças de um belo homem louro, o maior homem do mundo, um gigante. Ele era forte e os colocara nos ombros e andara com eles pelo quarto. Henrique sentira um pouco de medo do pai. E havia a mãe deles - recordações de uma voz macia, mãos delicadas. Henrique havia chorado bastante quando os dois partiram.
- Quando, quando...? - perguntou a princesa, e Henrique esperou pela resposta com a respiração presa.
A rainha-mãe sentou-se e pegou Henrique no colo, enquanto Eleanor sentava-se num tamborete aos pés da avó.
- Nosso avô vai voltar com ele? - perguntou Henrique.
- Claro que não - bradou a princesa, em tom de desprezo.
- Ele foi para o céu, não foi, majestade? Foi para ficar ao lado do nosso irmão João. As pessoas não voltam do céu, voltam, majestade?
- Por que não voltam? - perguntou Henrique.
- Porque lá é muitomelhor, é claro - retrucou a instruída Eleanor.
- Acho que meu avô voltaria para me ver, se soubesse o quanto eu peço que volte.
A rainha achou melhor interromper aquela conversa inocente, caso contrário não conseguiria conter as lágrimas.
- E agora - disse ela -, você deve se preparar para a volta do rei e da rainha.
Disse-lhes o que já dissera antes - mas os dois nunca se cansavam de ouvir -, que o pai deles tinha ido à Terra Santa para lutar por Deus e pela cruz, e que a mãe deles o acompanhara, e que quando ele voltasse o povo queria colocar a coroa sobre a sua cabeça, porque o querido avô deles estava no céu.
- E você, meu queridinho, é o herdeiro do trono, de modo que temos de prepará-lo para ser rei.
Henrique teve uma expressão de alarma.
- Quando é que eu terei que ser rei?
- Só quando for homem, e Deus queira que só muito tempo depois disso. Mas você deve estar preparado quando chegar a hora.
Vai aprender a fazer tudo melhor do que os outros... como seu pai. Vai aprender a ser exatamente igual a ele.
Henrique continuou intrigado, e a avó beijou-lhe a testa.
- Não fique alarmado, meu queridinho. Estarei por perto para lhe mostrar.
- Eu também vou mostrar a ele - disse a princesa, aninhandose mais na avó.
Como os dois eram adoráveis! E como a rainha estava assustada enquanto mantinha protetoramente o corpinho demasiado pequeno em seus braços!
- Agora - disse ela - precisamos nos preparar para receber o rei. Vamos até Dover, para ver a chegada do navio dele, porque a primeira coisa que ele vai querer ver,
quando pisar em solo inglês, será a família. Oh, vocês vão se divertir bastante. Haverá uma coroação... o que nenhum de vocês já viu. Oh, eu lhes prometo que a vida será maravilhosa quando o rei Eduardo voltar.
A rainha Eleanor estava em pé ao lado de Eduardo, seu marido, enquanto o navio os levava cada vez mais para perto da costa. Os rochedos brancos já podiam ser vistos, e Eduardo estava, é claro, nitidamente emocionado ao vê-los.
Eduardo colocou o braço em torno dela e disse:
- Daqui a pouco, você vai ver o castelo. Eles o chamam de a chave para a Inglaterra. E você compreenderá por quê. Lá está ele... oferecendo uma ameaça aos nossos inimigos, mas as boasvindas a nós. Já estava na hora de voltarmos.
Eleanor concordou. Ela sempre concordava com Eduardo. Mais alto do que a maioria dos homens, de modo que a maioria só lhe chegava até os ombros, com aquela cabeleira de brilhantes cabelos claros que estava ficando um pouco mais escura à medida que ele ficava mais velho, mas que quando ela o vira pela primeira vez tinha sido quase branca, com as compridas pernas e braços e o magnífico físico herdado de seus ancestrais normandos, que lhe tinham valido o apelido de Pernas Longas, ele parecia um deus. O fato de uma das pálpebras ser um pouco caída - como acontecera com seu pai, embora isso não fosse tão perceptível em Eduardo como fora no rei Henrique - dava-lhe um ar ligeiramente sinistro, que ela acreditava ter sido de grande valia quando ele lidava com os inimigos. Quando Eduardo ficava de pé em meio a outros homens, podia ser selecionado, sem qualquer dúvida, como o rei e líder. Eduardo era magnífico, e muitas vezes ela se perguntava como é que ela - a pequena Eleanor de Castela - chegara a ser esposa de criatura tão esplendorosa.
A partir do momento em que o vira, ficara maravilhada. Eduardo tinha apenas quinze anos de idade, naquela ocasião, e ela era quase cinco anos mais moça. Criança demais para o casamento, mas muitas vezes os príncipes e as princesas reais ficavam noivos numa idade muito tenra. Era por isso que muitas vezes os casamentos não aconteciam. Ela sabia que sua família não esperava que o rei inglês
- pai de Eduardo - honrasse seus compromissos. Por estranho que pareça, a mãe dela fora prometida ao pai de Eduardo, mas ele a desprezara, a fim de casar-se com Eleanor de Provença - agora sua temível sogra -, e sua avó era aquela Alice de França que fora enviada à Inglaterra para se casar com Ricardo Coração de Leão e em torno da qual houvera um grande escândalo, porque quando ela ainda era uma criança, Henrique II a seduzira e a mantivera como amante durante anos, de modo que ela acabara não se casando com o Coração de Leão. Por isso, a família real inglesa não tinha uma reputação muito boa no que se referia a cumprir compromissos. No entanto, disseram a Eleanor que se o casamento acontecesse, seria um casamento de grande pompa. Ela era, afinal, apenas a meio-irmã do rei de Castela. Seu pai, Ferdinando, o rei daquele país, era velho quando se casara com sua mãe - que fora mantida na esperança de se casar com Henrique da Inglaterra - e já tivera um filho, Alfonso, de modo que o casamento com a Inglaterra era altamente interessante.
Joanna, mãe de Eleanor, decidira que a filha não deveria ter o mesmo destino que ela e, em combinação com Alfonso, conseguira que o noivado tivesse lugar em Burgos e declarara que se Eduardo não estivesse em Burgos para receber a mão da noiva até determinada data, o contrato seria desfeito.
Para um certo assombro dos castelhanos, Eduardo comparecera no prazo indicado, e a jovem Eleanor, ao ver o futuro marido, ficara tão dominada pela admiração, que se decidira a crescer rapidamente e aprender tudo o que pudesse para ser digna dele.
As festividades que aconteceram! Não havia dúvidas de que nenhuma infanta fora tão festejada; e estava claro que era tudo devido à importância da união. Ela se sentara ao lado de Eduardo e ficara maravilhada com a sua esplêndida aparência. Além do mais, ele fora muito delicado para com ela, muito carinhoso. Explicara que ela teria de partir, a fim de completar sua educação, e assim que estivesse pronta, ele iria buscá-la.
Eleanor ficara com um medo terrível da sogra - uma das mulheres mais bonitas que já vira - e seus temores não tinham sido aplacados pela evidente animosidade de sua mãe para com aquela senhora. Era de se compreender, porque a imponente rainha nascida na Provença fora aquela que vencera Joanna na disputa do afeto de Henrique, e as notícias sobre a atitude excessivamente terna dele para com a sua rainha tinham-se espalhado, inclusive até Castela.
Mas a garota gostara imediatamente do sogro, Henrique, rei da Inglaterra, que a recebera de maneira muito calorosa e a mantivera a seu lado durante a suntuosa festa que mandara preparar para homenageá-la. "Você agora faz parte da nossa família", dissera ele; e ela aprendera que aquilo era um privilégio, não tanto porque se tratava da família real da Inglaterra, mas porque não poderia ter existido família mais adorável e dedicada no mundo inteiro.
O falecido rei da Inglaterra e sua rainha podiam não ter sido os mais sensatos dos monarcas, mas não havia dúvidas de que tinham talento para a vida em família.
Na corte de seu irmão, em Castela, fora bem agradável, mas só depois de ir para a Inglaterra é que ela percebera o quanto a vida em família podia ser calorosa e reconfortante. Tudo o que precisava fazer era obedecer ao marido e à sogra; se fizesse isso, contaria com o ilimitado amor deles.
Tinha sido um dia maravilhoso quando ela se unira ao cavalheiresco marido. Ele se mostrara muito delicado, muito amoroso e, por estranho que parecesse, muito fiel, embora ela tivesse logo ouvido rumores de que enquanto Eduardo esperava que ela atingisse uma idade adequada, tivera aventuras e que muitas damas da corte estavam bastante dispostas a se entregar a ele. Felizmente, ela ouvira esses rumores depois do casamento, e assim mesmo só porque as pessoas que lhe haviam contado tinham ficado impressionadas com a conversão dele num marido-modelo.
De modo que Eleanor tinha muita coisa a agradecer, e a única vez em que realmente fizera valer sua vontade fora quando ele se decidira a ir à Terra Santa. Até ali, ela se mostrara uma esposa fértil - para o encanto da família -, e na ala infantil estavam João, Eleanor e o pequeno Henrique. Eduardo ficara profundamente emocionado quando ela se pusera diante dele e mostrara uma firmeza jamais exibida antes.
- Nada deve separar aqueles que Deus uniu - dissera ela -, e o caminho para o céu é do mesmo tamanho, se não for mais curto, a partir da Síria, da Inglaterra ou da Espanha.
Ela se lembrava do assombro refletido no rosto de Eduardo ao ouvir aquilo. Ele soltara uma gargalhada e a abraçara com firmeza enquanto explicava os incómodos e os perigos da expedição.
- Tudo isso eu sei muito bem - replicara ela. - Há mais de cem anos que essas coisas têm sido temas de nossas canções. Sei da história de seu tio-avô, Ricardo Coração de Leão, que ficou preso até ser salvo pelo fiel Blondel. Estou a par dos perigos que terá de enfrentar e, como sua esposa, quero dividi-los com você.
Ele sacudira a cabeça e lhe dissera que, embora a adorasse por ter apresentado aquela sugestão, via-se obrigado a proibi-la de acompanhá-lo.
Eduardo aprendera, então, que as pessoas aparentemente fracas podiam, às vezes, ser fortes e que era como se elas cedessem nas questões menos importantes, reservando a plena força de suas energias para as mais importantes.
Eleanor estivera decidida a acompanhá-lo, e não desistira. Porque ele dissera que não se colocaria no caminho de um amor daqueles, e o sogro dela - o bom e delicado rei Henrique - ouvira com lágrimas nos olhos e a sogra dissera que se estivesse em seu lugar teria insistido da mesma maneira. Além do mais, as crianças ficariam em boas mãos, com os avós.
E assim, os dois tinham partido.
Claro que ela sofrera muitas agruras e houvera momentos em que pensara, com saudades, nas frias chuvas da Inglaterra e no conforto dos palácios reais, pois muitas vezes era desconfortável terrivelmente desconfortável - dormir em tendas, importunada por moscas e outros insetos detestáveis. E depois, ficara grávida. Talvez, quando perdera a filha poucos dias depois de nascida, ela tivesse se perguntado se fora sensata; mas assim que passara a depressão causada pela perda, percebera que jamais poderia ter ficado em casa, porque isso teria significado perder Eduardo, e compartilhar da vida dele era mais importante do que ficar com os filhos.
Como se houvesse um sinal do céu, ela quase que imediatamente concebera e, daquela vez, nascera uma criança sadia. Ela dera àquela filha o nome de Joanna, em homenagem
à sua mãe, e Joanna tinha os traços morenos de Castela, e não os dos louros Plantagenetas.
Desde o início, fora uma menina animada e voluntariosa, que dava prazer aos pais.
As pessoas começaram a chamá-la de Joanna de Acre, devido ao local de seu nascimento, e Eduardo dizia que a menina iria sempre lembrar a ele e ao mundo a maravilhosa esposa que ele tinha e que o acompanhara em sua cruzada e lhe dera uma filha enquanto isso.
Havia outra razão pela qual Eleanor sabia que agira certo. Tinha sido quando Eduardo fora ferido em sua tenda. Se ela não estivesse ao seu lado, Eduardo teria sobrevivido? Ele dizia que não. Os médicos que trataram dele reivindicavam o crédito, é claro, embora admitissem que uma parte se devesse a ele, por ter-se submetido à dolorosa cirurgia. Mas Eduardo sempre dizia que tinham sido as providências que ela tomara que lhe haviam salvado a vida, e que aquilo era a Providência dizendo a eles que Deus gostava muito de uma brava esposa que acompanhava o marido, não importava aonde os deveres o levassem.
Eleanor jamais iria pensar naquela ocasião sem reviver o terrível momento em que pensara tê-lo perdido.
Claro que eles estavam cercados pelo perigo e que Eduardo era sabidamente ousado. Aqueles destemidos cavaleiros acreditavam que fazia parte da bravura que se esperava que tivessem não ligar para o perigo ou recusar-se a percebê-lo. Oh, como se sentia aliviada ao ver aqueles rochedos brancos, aquela impregnável fortaleza, desafiante sobre o rochedo! Eles poderiam correr perigo na Inglaterra. Um rei jamais podia deitar-se em paz na cama, dissera-lhe o irmão dela, e repetidas vezes isso se confirmara. Mas numa Guerra Santa, quando eles estavam cercados pelos sarracenos, o perigo não era apenas uma possibilidade, mas uma certeza.
Enquanto vivesse, ela teria recordações da fase que passara numa terra estranha. Aquelas noites quietas, quentes, quando um súbito barulho a fazia sair assustada da cama, jamais seriam esquecidas. Eles viviam em alerta, pois como podiam saber que destino terrível poderia assaltá-los a qualquer momento, quando havia mil perigos à espreita, prontos para atacá-los? Muitas vezes, ela sentira vontade de estar em casa e soubera que se tivesse pedido a Eduardo que a deixasse ir embora, ele teria providenciado para mandá-la de volta. Mas sabia que jamais poderia abandoná-lo. Como teria sido a vida sem ele? Uma vez, Eleanor estivera perto de descobrir a resposta a essa pergunta. Em seus pesadelos, agora, ela via o homem morto caído no chão da tenda de Eduardo, e Eduardo perto da morte, estirado na cama. Um simples olhar lhe dissera o que acontecera. O assassino tentara matar Eduardo e Eduardo o matara. Mas naqueles primeiros momentos, ela pensara que o marido tinha sido mortalmente ferido na luta.
Havia perversidade naquela terra, e estavam sempre circulando rumores sobre o Velho das Montanhas - uma criatura lendária que poderia ter existido. Quem poderia ter certeza? Dizia-se que o Velho vivia nas montanhas, onde criara um paraíso terrestre. Seu palácio, lá, era feito de calcedônia e mármore, e nos jardins belos frutos e flores de cores vivas cresciam em abundância. Os homens eram atraídos para lá, tal como se dizia que as sereias atraíam os marinheiros para o desastre. As vítimas viviam no paraíso do Velho durante muitos meses, com belas mulheres para servi-los e suprir-lhes as necessidades. Então, um dia o Velho mandava chamá-los e dizia-lhes que tinham sido banidos e tinham de voltar para o mundo. O fato de terem experimentado aquela vida por tanto tempo afetara tanto aqueles homens, que não podiam imaginar-se vivendo de forma diferente. O Velho lhes dizia que eles poderiam adquirir o direito a voltar se cumprissem suas ordens, e em geral aquelas perigosas missões envolviam o assassinato de alguém que o Velho queria ver destruído. Desse modo, o Velho criara um bando de assassinos que matavam segundo a sua vontade, o que significava que ele era um poder no mundo todo.
Muita gente acreditava que fora o Velho das Montanhas que quisera que Eduardo fosse eliminado, embora ostensivamente seu atacante viesse do lado do emir de Joppa, com quem se empregara pouco tempo antes. O emir estava negociando as condições de paz com Eduardo, na época, e seus mensageiros iam com frequência e livremente ao acampamento. Fora por isso que o homem não despertara suspeita e tivera permissão para entrar na tenda de Eduardo, onde este estava deitado na cama sem a armadura e vulnerável a um assassino, que poderia facilmente ter-lhe enfiado a adaga no coração, o que evidentemente fora a sua intenção. Mas Eduardo estava alerta e seu olhar arguto percebera a adaga que fora retirada da manga e erguida para golpeá-lo, e com grande presença de espírito ele levantara as pernas e desviara com um pontapé o braço erguido. A ação lhe salvara a vida, mas ele não escapara de todo, e a lâmina envenenada penetrara-lhe fundo no braço.
Eleanor teve um estremecimento, e Eduardo, de pé a seu lado, percebeu.
- Está com frio? - perguntou, surpreso. Ela sacudiu a cabeça.
- Não. Eu estava pensando no assassino.
Eduardo riu baixo. Era frequente encontrá-la absorta em pensamentos e descobrir que estava pensando no assassino.
- Isso tudo já acabou, querida. Graças à sua ação, minha vida foi salva.
Ela sacudiu a cabeça.
- Foram os médicos que o salvaram. Eles realizaram aquela difícil operação...
Ele estremeceu ao se recordar. Nunca sentira tamanha dor. Ela quisera ficar na tenda enquanto a operação era realizada, mas tinham insistido para que ela saísse. Uma vez mais, Eleanor mostrara aquela resistência que era sua por natureza, e tiveram de levá-la para fora, sob protesto.
- Nunca vou me esquecer de como você colocou sua boca naquele horrível ferimento e extraiu todo o veneno com os seus doces lábios. Eleanor, minha rainha, se algum dia eu me esquecer do que você fez por mim, mereço perder o meu reino.
- Não fale em perder o reino. Pode dar azar. Ele tomou-lhe a mão e a beijou.
- Meu avô perdeu o reino e também todos os bens, até as jóias da coroa ele perdeu no Wash. Meu pai esteve muito perto de perder a coroa. Que tipo de rei vou ser?
- O melhor que o país já teve.
- Uma declaração ousada.
- Mesmo assim, verdadeira.
- Você parece impetuosa e inflexível. Creio, minha pequena rainha, que toda essa delicadeza é um disfarce. Por baixo há uma mulher com a força do aço.
- Eu sei ser forte... por você e nossos filhos.
Ele se curvou e a beijou. Ela tocou-lhe o braço... aquele braço que levava a cicatriz do ferimento e que nunca ficaria inteiramente bom.
- Você ainda sente, não é, Eduardo?
- Não é nada. Só uma pontada.
Mas ela sabia que não era assim. Havia momentos em que o rosto dele ficava desolado de dor. Temia que a vida toda ele ficasse sendo lembrado daquele horrível momento na tenda, quando estivera cara a cara com a morte.
- Deus quer que você governe e seja um grande rei - disse ela. - Eu sei. Veja como está protegido. Lembre-se daquela noite, em Bordeaux, quando estávamos sentados no sofá conversando sobre a nossa casa e os nossos filhos, e de repente houve um raio. Os dois homens que estavam de pé perto de nós morreram, mas nós saímos ilesos.
- Eles estavam bem no caminho do raio.
- Sim, mas nós nos salvamos. Acredito que a Providência desviou o raio, a fim de que você pudesse viver para governar o seu país.
Eduardo sorriu.
- Acredita mesmo nisso, Eleanor?
- Tenho certeza - disse ela, com veemência.
Eduardo viu que ela se sentia reconfortada pela ideia e lembroulhe outra ocasião, quando ele estava jogando xadrez e de repente se levantara sem motivo algum - e
depois não soubera dizer por que fizera aquilo. Quase que de imediato, parte do telhado desabara, matando o seu adversário no jogo.
Os dois voltaram o rosto para a costa, e agora os pensamentos dele estavam voltando para tentativas de recuperar as forças, depois que aquele veneno lhe penetrara no corpo. Lembrava-se da dor lancinante do braço lacerado e da agonia da faca que cortara a carne gangrenosa e da expressão no rosto dos que o cercavam, que mostrava claramente que acreditavam que iriam deixá-lo na Terra Santa.
Mas ele sobrevivera. Meu Deus, pensava ele agora, passara por muitos obstáculos e os superara. Havia a Inglaterra, que seria dele. Havia sua mulher e seus filhos... seu pai e sua mãe... a sagrada família que ele fora criado para acreditar que era a coisa mais importante que um homem podia ter. Mas havia algo mais importante, se esse homem fosse rei. Há muito que ele sabia disso. O sangue de seus ancestrais corria nele e às vezes, em seus sonhos, era como se aqueles grandes homens do passado viessem até ele. Guilherme, o Conquistador, Henrique, o Leão da Justiça, seu bisavô Henrique II - os homens que tinham se preocupado com a Inglaterra, que a tinham tornado uma grande nação. Era como se estivessem dizendo a ele: "Agora, é sua vez. Você tem as qualidades de que precisamos. Você, Eduardo Plantageneta, com o sangue dos normandos nas veias. A Inglaterra - a nossa Inglaterra - tem sofrido devido à fraqueza de seus antepassados. Rufus, Estêvão, Ricardo - aquele bravo homem que desertou de seu país em troca de um sonho de glória na Terra Santa -, o desastrado e maligno João e, por último - oh, sim, sabemos que você não gosta disso -, Henrique, o pai que você amava, e que quase destruiu este país porque vivia ocupado demais em amar a família e agradar a uma esposa extravagante, que estava sempre implorando por coisas luxuosas e esgotando o sangue vital do comércio da nação. Você sabe disso, Eduardo. Cabe a você, que é um de nós, salvar a Inglaterra." - vou salvar - murmurava ele. - com a ajuda de Deus, vou salvar.
Ultimamente, ficara cônscio de suas grandes responsabilidades. Depois do caso da adaga envenenada, percebera que estava errado ao se expor a perigos. Seu pai estava envelhecendo e embora ele, Eduardo, tivesse dois filhos homens na ala infantil, João e Henrique não passavam de bebés. Sua força fora prejudicada; ele precisava do clima temperado do seu país. Percebera que não havia esperança de conquistar o sarraceno. Outros antes dele tinham falhado naquela tentativa. Nem mesmo o grande Coração de Leão conseguira capturar Jerusalém.
Quando surgira a oportunidade de chegar a bons termos com o grande sultão Bibars, ele a aproveitara. Uma trégua... fora tudo o que conseguira, mas isso podia significar alguns anos de descanso. Todo aquele sangue, todo aquele perigo para conseguir aquilo! Seu braço estava dolorido; ele acreditava que o ferimento afetara a sua saúde. Tinha de voltar para casa, porque quem sabia o que os barões estariam tramando? Eles estavam sempre desconfiados quanto ao seu pai e odiavam sua mãe, cuja extravagância Eduardo sabia, no fundo do coração, que devia ser contida. A riqueza de uma nação não devia ser gasta em banquetes e jóias finas, na satisfação dos caprichos de uma esposa extravagante e na concessão de presentes e pensões a seus parentes desprovidos de recursos. Por mais que gostasse do pai, Eduardo via claramente suas deficiências como rei.
Por isso, partira da Terra Santa e, na Sicília, recebera as notícias de partir o coração. Primeiro, a morte do filho mais velho, João. Eleanor ficara arrasada de dor. Perguntara a si mesma se não teria cometido um erro ao partir e deixar os filhos, e não parava de pensar na escolha amarga que uma esposa tinha de fazer quando se tratava de deixar os filhos para ficar ao lado do marido.
Em seguida, chegara a notícia da morte de seu pai. Aquilo o deixara realmente prostrado. Isolara-se de todos, até mesmo de Eleanor, e ficara refletindo sobre a perda do tipo de pai que tanto o amara.
Lembrara-se da época, quando ele era criança, em que os dois tinham brincado juntos; quando ele estivera doente - e por estranho que pareça, não fora uma criança forte -, o rei e a rainha tinham ficado ao lado de sua cama. Questões de Estado podiam ser deixadas de lado; ministros importantes eram mandados esperar, para que uma criança doente pudesse ser confortada. Nunca mais ver o pai! Nunca mais conversar com ele! Nunca mais andar de braço dado com ele pelos jardins do palácio! Nunca mais encontrar conforto naquele elo entre os dois, que só a morte fora capaz de romper.
Os sicilianos tinham ficado assombrados com ele. Fazia muito pouco tempo que ele soubera da morte do filho mais velho, mas aquilo não o afetara com a mesma gravidade da morte do pai.
- A perda de filhos pode ser compensada pelo mesmo Deus que os deu - dissera ele. - Mas quando um homem perdeu um bom pai, não está na ordem natural das coisas que Deus lhe vá mandar outro.
E ele percebera, é claro, que tinha de voltar para casa. Precisava consolar sua triste mãe, pois fazia ideia de como ela iria receber aquela perda. A morte do pai fizera com que ficasse mais maduro, mais sério, fizera com que olhasse para o passado e pensasse na morte do bisavô, Henrique II, que seria considerado como um dos mais dignos reis da Inglaterra, e Eduardo pensou em como ele morrera, abandonado pelos filhos, tristemente ciente disso, e odiado pela mulher - na verdade, um velho solitário, sem amigos, e com poucos para ficarem ao lado de sua cama e oferecer-lhe consolo. No entanto, fora um rei que fizera muito pela Inglaterra. E aquele outro Henrique, o adorado pai de Eduardo, que colocara a coroa em perigo e, mesmo, chegara quase a perdê-la por causa de homens como Simon de Montfort, morrera lamentado a tal ponto, que seus filhos e sua mulher ficariam prostrados de dor e manteriam sua lembrança viva para sempre. Era irónico, pensou Eduardo, e perguntou-se qual seria o seu destino. Mas não era uma questão de escolha. Por que um homem não podia ser um bom rei e um bom pai? Ele sabia que a sua Eleanor estaria do seu lado; ela não iria tentar governálo, como sua mãe governara seu pai. Eduardo adorava a mãe, mas isso não significava que não lhe reconhecesse os defeitos. Agora que era o rei, ele teria de conter suas extravagâncias. Não iria provocar problemas com os barões, como fizera seu pai.
Num repentino acesso de afeição, segurou a mão da esposa e apertou-a, enquanto os dois ficavam ali no convés do navio vendo a aproximação dos rochedos brancos.
A partir do momento da morte do pai, ele se tornara rei, mas não se apressara a voltar para casa. Tinha um trabalho mais importante a fazer no continente. Aquele não era o momento de alimentar a dor, mas de consolidar sua posição. Visitara o importantíssimo papa, a fim de assegurar boas relações com Roma; depois, ele e Eleanor resolveram ficar algum tempo com a família dela em Castela. De lá, seguiram para Paris, onde ele fora recebido pelo rei francês, Filipe in, e pela mãe de Filipe, que era tia de Eduardo, Marguerite; ele chegara até a se encontrar com o conde de Flanders em Montreuil e resolver uma disputa que interrompera as exportações de lã inglesa para Flanders.
Aproveitara bem o tempo e se portara, segundo acreditava, como um rei, ao resolver assuntos de Estado antes de suas inclinações.
Agora, a rainha tinha-se voltado para ele e disse:
- Daqui a pouco vamos ter de desembarcar.
- É uma nova vida que está começando para nós - replicou ele. - Quando pisarmos de novo em solo inglês, será como rei e rainha.
- Será que as crianças estarão lá? Oh, Eduardo, nossos próprios filhos, e talvez não os reconheçamos!
Havia lágrimas nos olhos da esposa, e Eduardo sabia que ela estava pensando na pequenina Joanna. Delicado, disse:
- Não precisa se preocupar. Não vai ser por muito tempo. Ela voltará para nós.
- Eu nunca deveria ter implorado para que você permitisse - disse ela.
- Pense na alegria de sua mãe.
- Eu tento. Ah, não devo ser egoísta. Tenho meus dois queridinhos esperando por mim. Deveriam ser três.
- Você não deve ficar remoendo isso. Crianças morrem. Mas podem ser substituídas. Nós vamos ter mais. Eu lhe prometo uma dúzia completa.
- Rogo a Deus que isso possa acontecer. Mas não consigo esquecer Joanna.
Era natural que sua mãe tivesse mimado a menina. Joanna fora esperta e animada desde a mais tenra idade. Era estranho como as pessoas tinham uma atração especial pelos seus homónimos. O mesmo acontecera com a mãe de Eleanor. Ela adorara a criança desde o momento em que a vira. Levara-a para seus aposentos e não a deixara entregue aos cuidados das babás ou da mãe; quando chegara a hora de Eduardo e Eleanor deixarem a corte castelhana, ela ficara desolada, declarando que depois que eles tivessem ido embora, levando o bebé, ela não teria motivo algum para viver. O que uma filha adorada poderia fazer? Pobre Eleanor, seu doce coração ficara profundamente tocado pelo estado de solidão da mãe.
- Nós devemos algo a ela - dissera ela a Eduardo. - Seu pai a fez perder a juventude quando fingia que iria se casar com ela. E depois a desprezou por causa de sua mãe, e ninguém pediu a mão dela até meu pai aparecer. Fui a única filha que ela pôde ter, então, e estou casada, e fui para longe dela.
Eduardo compreendera. Pobre Eleanor; uma vez mais, era chamada a tomar uma daquelas decisões que cabem a pessoas iguais a ela. Uma mulher egoísta não teria tido dificuldade alguma. Teria simplesmente feito o que queria. Mas Eleanor faria sempre o que era certo para os outros, antes de pensar em si mesma.
Por isso, os dois tinham deixado a pequenina Joanna com a mãe de Eleanor, que agarrara a menina com ânsia e praticamente a escondera, com medo de que os pais mudassem de ideia.
E agora ali estavam os dois - de volta para a Inglaterra, a pequenina Joanna deixada em Castela.
Mas em terra, os filhos que tinham deixado na Inglaterra esperavam por eles.
Houve um grito de alegria quando o rei desembarcou, seguido rapidamente da rainha.
- Viva o rei! - Os gritos reais se erguiam.
Eduardo parou por um instante, a mulher ao lado, ouvindo as saudações do povo.
Então, viu a mãe, ereta, a beleza fora do comum praticamente inalterada pela idade e pelo sofrimento. Estava segurando duas crianças pelas mãos, e os olhos da rainha se dirigiram de imediato para elas. Soltou um grito contido e estendeu os braços.
As crianças correram em sua direção - a princesa Eleanor, a filha que fora
batizada em sua homenagem, e o menino, príncipe Henrique, pálido e ofegante.
- Meus queridos! - A rainha ajoelhara-se, os braços envolvendo-os, lágrimas nos olhos.
- Majestade - bradou a princesa -, finalmente, a senhora voltou. Há muitos e muitos anos que a senhora partiu...
Ela só podia apertá-los contra o seu corpo.
- Henrique, meu querido... - Oh, Deus, pensou ela. Como está pálido! Ele é muito pequeno, muito frágil...
Então, Eduardo ergueu o filho. Colocou-o sobre o ombro. Manteve a filha junto dele e ficou ali assim.
Uma visão emocionante. Aquele grande rei, que era muito mais alto que seus súditos, abrindo mão da cerimónia, naquela profunda emoção provocada pela reunião com a família.
A rainha - mais bonita do que conseguiam se lembrar -, de pé, ali ao lado dele. Um feliz presságio. Um rei que voltava para sua terra. O velho Henrique estava morto; sua extravagante mulher ficara relegada a um segundo plano. O rei Eduardo assumira o poder.
- Viva o rei!
Todos os que presenciaram aquela tocante cena tinham a certeza de que aquilo era um bom agouro para a Inglaterra.
Eduardo sentia-se orgulhoso enquanto subia a cavalo a íngreme encosta do morro até a torre de menagem do castelo. A estrada estava margeada por filas de súditos que ovacionavam e que estavam decididos a fazer com que ele soubesse o quanto se sentiam satisfeitos por ele ter voltado, e nas saudações estava a esperança de que nele tivessem um rei forte que fosse corrigir tudo o que dera errado durante a má administração dos reinados anteriores.
Dover fora chamada, com muita propriedade, pelos primeiros bretões, de Dvfyrrha, que significava lugar íngreme. E que vista inspiradora era olhar lá de cima para aquela magnífica baía e para o mar, onde ele sabia que nos dias bonitos era possível ver a costa da França. Parte do castelo era obra dos romanos, e ao lado dele havia o velho farol, para lembrar às pessoas a ocupação por eles. O castelo ficava cem metros acima do nível do mar - numa situação perfeita para uma defesa. Não admirava que fosse chamado de a Chave da Inglaterra.
Ali tinham vivido seus ancestrais. O Conquistador tomara posse dele logo após a Batalha de Hastings, e o bisavô de Eduardo, Henrique II, reconstruíra a torre de menagem. Ah, sim, foi sem dúvida um grande momento quando ele entrou no castelo.
A rainha vinha a seu lado, mas só tinha olhos para os filhos e estava ansiosa por conversar com a sogra sobre o estado de saúde de Henrique.
Havia um ar frio no castelo, apesar de se estar em agosto. Ela, que passara tanto tempo em climas mais quentes, percebeu, e a primeira reação foi perguntar-se se Henrique sofria com aquele frio.
Em seus aposentos, Eduardo voltou-se para ela.
- Finalmente em casa, meu amor - disse ele. - Espero que se passe muito tempo antes de precisarmos viajar outra vez.
Ela confirmou com um gesto da cabeça. Uma esperança vã. Quando algum rei da Inglaterra pudera viver pacificamente na Inglaterra?
A rainha-mãe foi ter com eles. Instintivamente, a rainha sabia que sua sogra estava ansiosa por exercer seu poder e avisá-los de que ela era tão importante, agora, quanto fora quando o marido estava vivo.
- Que prazer ter vocês de volta - bradou ela. - A lealdade do povo foi estimulante.
Eduardo olhou para a mãe com um certo cinismo. Não houvera saudações para ela, e em certos momentos isso se mostrara muito evidente.
- Eles estão muito felizes por vê-los de volta, e devem estar, mesmo. - Os olhos dela brilhavam. Sentia-se orgulhosa por ter gerado um filho com porte de um rei. - Ora, Eduardo, se eu não o tivesse visto antes, teria sabido que você era o rei. Você se destaca de todos os outros homens.
A mulher de Eduardo concordou com um gesto da cabeça.
- Temos de comemorar a sua volta - prosseguiu a rainhamãe. - Faremos um banquete em Westminster, e depois virão os preparativos para a coroação.
- Vamos dispensar o banquete, majestade - disse o rei. A coroação já vai ser muito cara.
- Querido Eduardo, você não deve se esquecer de que agora é o rei. Precisa agir como tal.
- É o que pretendo fazer. É por isso que não me proponho a dissipar o Tesouro.
A rainha-mãe soltou uma gargalhada.
- Seu pai teria dado uma festa esplêndida - disse ela, em tom de reprovação.
- Não tenho dúvidas. Mas devo agir à minha moda. A coroação será imponente. O povo espera por isso, e estará pronto a pagar por ela. Mas não há necessidade de envolvê-lo em mais despesas do que é necessário.
A rainha-mãe ficou séria.
- Ora, meu filho, o que andou acontecendo com você durante as suas viagens? Seu pai...
- Fico triste ao ouvir o nome dele ser mencionado - disse Eduardo. - Nunca me senti tão infeliz como quando recebi a notícia, mas uma coisa eu lhe digo, majestade: não haverá desperdício de dinheiro com festanças. Vamos nos concentrar, de imediato, na coroação.
Eleanor sentiu-se orgulhosa dele. Era realmente um rei. Podia, até, subjugar sua terrível mãe. A rainha-mãe ergueu os ombros, num gesto de impotência.
- Os comerciantes de Londres são ricos. Os judeus continuam progredindo. Eles poderiam facilmente ser tributados...
- Novos impostos, tão no início de um reinado, poderiam fazer com que o rei ficasse muito impopular - disse Eduardo. - Quero manter o povo ao meu lado.
Fez uma mesura para a esposa e a mãe e deixou o aposento. A rainha-mãe deu um leve sorriso para a rainha.
- Está ansioso por nos mostrar que é o rei - foi o seu comentário.
A rainha, que sabia ser ousada quando se tratava de seus entes queridos e de seu dever, retrucou:
- Ele é o rei, senhora, e está decidido a governar bem.
- O pai dele nunca me negou nada. Ele sempre seguia o meu ponto de vista.
- Eduardo vai seguir as próprias intuições.
- É claro que ele esteve ausente durante muito tempo. Talvez seja diferente depois que tiver se acostumado a todos nós outra vez.
A rainha ficou em silêncio por uns instantes, e depois disse:
- Estou preocupada com Henrique.
A fisionomia da rainha-mãe ficou logo séria.
- Ele não é forte - admitiu ela.
- Fiquei com medo quando o vi. Pensei no pequeno João...
- Eu o tenho vigiado sempre. Tenho providenciado para que se alimente bem. Minha querida filha, quando ele fica doente, fico ao lado da cama dele noite e dia.
A rainha segurou a mão da rainha-mãe e apertou-a com afeição.
- Sei muito bem o quanto a senhora gosta dele.
- Que garotinho querido! Ele tem sido o centro de minha vida desde que o rei se foi.
- Eu sei. Mas ele está magro demais. É muito frágil. Quase chorei quando o vi.
- Era o que eu receava. A viagem até Dover o cansou.
- Talvez ele não devesse ter feito essa viagem.
- Tive medo de deixá-lo em casa. Não creio que seja bom para ele ficar cônscio de sua fraqueza. Isso o preocupa, e ele tenta viver como os outros.
- Foi a mesma coisa com o pequeno João?
A rainha-mãe fez um gesto afirmativo com a cabeça.
- Oh, eu não iria suportar se... A rainha-mãe disse:
- Temos de fazer tudo o que pudermos, sem chamar atenção para a fraqueza dele. Tenho mandado queimar imagens de cera dele nos santuários.
- E isso de nada adiantou? - perguntou a rainha.
- Às vezes ele parecia ficar mais forte por alguns dias, e depois tornava a ficar doente.
- Talvez devamos contratar algumas viúvas pobres para fazerem vigílias pela saúde dele.
- Isso iria chamar atenção para o estado dele.
A rainha fez um gesto afirmativo com a cabeça. E a rainhamãe, toda suavidade porque o bem-estar da família estava em jogo, disse, delicada:
- Vamos esperar que, agora com o seu regresso, ele fique bom da fraqueza. Você sabe que tive meus momentos angustiantes com Eduardo. Eu me lembro de uma época em que fomos à Abadia de Beaulieu, para a dedicação de uma igreja. Ele estava com uma tosse que me preocupava, e durante a cerimónia ficou com febre. Insisti em mante-lo na abadia e em ficar para cuidar dele. Oh, que tumulto que houve! Uma mulher dormindo na abadia! Nunca se ouvira falar numa coisa daquelas. Diziam que aquilo estava ofendendo as leis de Deus. Eu lhe digo que estava disposta a pôr de lado as leis de Deus para ajudar meu filho. E lá fiquei, e cuidei dele. Eu lhe conto isso, minha filha, porque basta olhar para Eduardo hoje. Dá para acreditar que ele foi tudo, menos uma criança saudável?
- A senhora me deixa reconfortada - disse a rainha.
- Vamos esperar que Henrique se livre, com o tempo, de sua fraqueza, como o pai se livrou da dele.
- Pretendo fazer o possível para que isso aconteça.
- Pode contar comigo para estar a seu lado.
A rainha sentiu-se atraída pela sogra. Era verdade que era extravagante, e Eleanor compreendia, pelos relatos de Eduardo, que fora a responsável por grande parte da impopularidade do rei Henrique; mas era uma mulher cuja inarredável lealdade à família jamais vacilara.
Apesar de tudo, Eleanor de Provença dedicava-se ao máximo à família.
A comitiva real não devia demorar-se em Dover. Precisava seguir para Londres, caso contrário os londrinos ficariam contrariados. Como Eduardo comentou com a rainha, ele não podia se dar ao luxo de ficar impopular na capital. Tinha visto o que aquilo fizera a seus pais. Seus lábios comprimiram-se um pouco, e a rainha sentiu-se orgulhosa e contente por estar decidido a não permitir que a mãe o dominasse. Ela receara que aquilo pudesse acontecer, pois vira o poder daquela mulher decidida e sabia muito bem que entre os dois havia um forte elo de afeição. Mas não, Eduardo não iria se esquecer de que era o rei e seria o único governante do país.
Foi uma procissão alegre, ao longo de todo o caminho. Eduardo sabia que não devia passar tão depressa. Seus leais súditos queriam vê-lo, e muita coisa dependia das primeiras impressões. Tinha de mostrar a todos - mesmo aos mais humildes - que se preocupava com o bem-estar deles. Naquele momento, a lealdade deles era sua, e precisava mante-la assim; tinha de se lembrar de que, embora fosse o indiscutível filho e herdeiro do falecido rei, a melhor de todas as reivindicações ao trono vinha através da vontade do povo. Aquela fora uma lição que aprendera com o pai, cujo exemplo o ensinara como um rei não devia se portar em relação a seus súditos. Para ele, parecia estranho que, amando os pais como amava, pudesse ver com tamanha nitidez os defeitos deles.
Foi um bom plano ter os filhos cavalgando junto. Nada havia que agradasse tanto aos humildes como crianças. Eduardo via, também, que o povo gostava da rainha. A vantagem dela era que o povo ficara tão contrariado com a rainha anterior, que a tendência era achar que qualquer uma que viesse depois era preferível; mas havia algo no comportamento delicado de Eleanor e em seu evidente cuidado com os filhos que conquistou totalmente o coração deles.
O cenário estava bem montado. Eduardo sabia. E cabia a eles mante-lo assim.
Por toda parte havia saudações e flores espalhadas pelo caminho que eles seguiam.
- Viva o rei! Viva a rainha! - Aquilo era como uma melodia aos ouvidos dele.
Não conseguiu abafar um sorriso irónico quando a rainha-mãe passou no cortejo, e um silêncio quase soturno caiu sobre a multidão. Minha querida senhora, pensou ele, indulgente, ela jamais compreendera que o povo a culpava por tudo que dera errado porque ela levava os parentes pobres para o país. Teria sido tão fácil conquistar a aprovação deles! Mas ela simplesmente não se dera ao trabalho de fazer isso. Eduardo a amava com um grande carinho. Lembrava-se do cuidado maternal que ela tivera para com ele e de sua apaixonada dedicação à família; no entanto, ao mesmo tempo a razão sempre lhe dissera que fora ela mesma que atraíra sobre si a impopularidade. Lembrou-se da ocasião em que os londrinos tinham atacado a balsa na qual ela estava tentando fugir, atirando lixo e pedras pesadas, na esperança de que ela morresse afogada. Nenhum membro da família perdoara os londrinos pelo incidente; e no entanto, ele entendia as razões deles. Adorada mãe, era tão esperta para tanta coisa, mas nunca entendera que reis e rainhas tinham de contar com a aprovação de seus súditos, se quisessem ficar em segurança no trono.
Eles fizeram uma parada no castelo de Tonbridge, onde Gilbert de Clare, chamado de Vermelho devido à cor dos cabelos, esperava para receber a comitiva real e declarar sua vassalagem ao rei.
Eduardo recebeu aquilo com prazer, porque Gilbert de Clare era um homem que valia a pena ter como aliado. Homem franco, Gilbert nunca tivera medo de expor suas opiniões e, portanto, ser recebido por ele aumentava aquela sensação de segurança que as saudações do povo tinham dado a Eduardo.
A rainha-mãe não ficou tão satisfeita assim. Ela achara que eles não deveriam ter ficado em Tonbridge.
- Aquele é um homem em que não se pode confiar - dissera a Eduardo. - Ele não foi um bom amigo de seu pai. Agora chegou a hora de mostrar a homens como Gilbert de Clare que se darão mal se forem desleais para com o rei.
- Minha mãe - disse Eduardo, com cortesia -, eu conheço a mente desse homem. Ele vai ficar do lado que quiser, e nada seria capaz de alterar isso. Se ele não gostar do que eu fizer, ficará contra mim como ficou contra meu pai. Ele agora jurou vassalagem a mim, o que significa que está pronto a me apoiar.
- Desde que ele consiga o que quer.
- Não se trata do que ele quer ou do que eu quero, é uma questão de como o país é governado.
- E você vai deixar que ele dê palpite sobre isso e lhe diga o que fazer?
- Claro que ele e outros barões devem dar suas opiniões. É assim que o povo quer que seja. Mas fique tranquila, querida senhora, que será a minha vontade que será feita... embora eu possa ter que convencer meus súditos a aceitá-la.
- Eles devem obedecer sem discutir.
- Isso é uma coisa que eles nunca fizeram. Um rei não pode evitar que o mais humilde dos camponeses questione alguma coisa, ainda que apenas em pensamento.
- Os camponeses, querido filho, não têm raciocínio.
- Ah, querida mãe, não vamos cometer o erro de subestimar o povo. Temos visto os efeitos desastrosos que isso pode ter.
- Seu pai nunca teve consideração para com o povo.
- Isso é verdade, e vamos ser sinceros: ele esteve perto de perder a coroa.
- Oh, como pode falar assim de seu pai? Ele envolveu-a com um dos braços.
- Nós o amávamos muito - disse ele -, mas o nosso amor não evitou os desastres da guerra civil. Estou decidido a fazer com que isso nunca aconteça no meu reino. Jamais houve um braço mais forte do que este que tenha brandido uma espada, querida mãe, mas meu coração e minha mente irão me dizer quando ele deve embainhar essa espada.
A rainha-mãe olhou para o filho, perturbada. Sentia que o seu domínio estava chegando ao fim.
No grande salão de Tonbridge houve comemorações dignas da ocasião. Gilbert de Clare sentou-se ao lado do rei e expressou o prazer que sentia pela sua volta. Aquilo foi uma expressão sincera de seus sentimentos, porque Gilbert não gostava de fingimentos. Como todos os homens sensatos, ele queria ver o país em paz consigo mesmo, pois só então poderia haver prosperidade. Ele era três ou quatro anos mais novo do que Eduardo, e se tornara o mais poderoso dos barões. Houvera uma época em que ele apoiara Simon de Montfort contra o partido real, mas não hesitaria em trocar de lado.
Iria sempre preferir apoiar o rei. Além do mais, havia laços de família. Vinte anos antes, quando os meio-irmãos e irmãs do rei tinham invadido o país para ver que vantagens podiam obter, Henrique decidira que ele daria um bom marido para sua parenta, Alice de Angoulême. Gilbert nem completara dez anos de idade na época, e não dera opinião alguma sobre o assunto. O casamento tinha sido muito desagradável.
Agora, enquanto bebiam vinho juntos e ouviam os menestréis, que cantavam para o deleite dos convidados, Gilbert contemplava a felicidade do rei e sua rainha e seus olhos tomaram um certo ar sonhador - fato que não passou despercebido pelo rei.
- Espero que agora tenhamos um período de paz - disse Gilbert. - Os barões estão esperançosos.
- vou fazer o possível para que as esperanças deles se tornem realidade, porque acredito que todos querem a prosperidade do país tanto quanto eu.
- É isso o que os barões sempre desejaram, majestade.
Um lembrete da honestidade de Gilbert. Ele não iria fingir agradar ao rei e enredar uma ideia errónea de que os mortos deviam ser elogiados e que Henrique era um santo. Henrique provocara seus próprios problemas, e como era o rei, os problemas passaram a ser também do povo. Gilbert deu a entender que os barões estariam apoiando o novo rei enquanto o novo rei agisse com bom senso e pelo bem do país.
Como era exatamente isso que Eduardo pretendia fazer, ele não ficou ressentido com a atitude de Gilbert.
- Este é realmente um bom augúrio - prosseguiu Gilbert. Vossa Majestade tem a sua cruzada no seu passado. O povo gosta de um rei cruzado, desde que a sua cruzada seja coisa do passado e que ele não possa ser tributado para pagá-la enquanto o rei vai embora e deixa o país em mãos outras que não as suas. De modo que o povo gosta de um rei que foi um cruzado e que tenha provado com antecedência o seu valor como grande guerreiro, e se esse rei tiver uma esposa adorada e filhos, isso o agrada. É uma grande vantagem para um homem.
- Perdoe-me, meu amigo - disse o rei -, mas será que percebo que o senhor não é feliz neste ponto?
- vou lhe dizer uma coisa, majestade: se pudesse me livrar de Alice e arranjar outra esposa, eu o faria de bom grado. Ela pertence a uma família dominadora. Sua avó foi uma mulher insensata, majestade, e quando foi rainha da Inglaterra tinha poderes até mesmo sobre o rei João durante muito tempo depois do casamento, mas quando se casou com Hugh de Lusignan, deu à luz uma raça de pessoas ávidas.
Eduardo sorriu de leve. A mulher de Gilbert, Alice de Angoulême, era sobrinha de Alice de Lusignan, que era meio-irmã de Henrique III-
- Está falando de minha família, senhor.
- E da minha, já que entrei para ela ao me casar. Mas a verdade merece ser dita, e Vossa Majestade será o primeiro a reconhecer que isso é verdade.
- com que então o senhor gostaria de se divorciar de sua mulher, e sou capaz de jurar que o papa está se mostrando intransigente.
- Vossa Majestade adivinhou. Como é fácil cair na armadilha de um casamento! Eu era um menino de dez anos. O que é que um menino nessa idade pode fazer, a não ser obedecer aos desejos de seus pais, e lá está ele amarrado a uma mulher para o resto da vida.
Eduardo soltou uma gargalhada. Sua mulher fora escolhida para ele, e no entanto, se tivesse tido uma chance de escolher entre as mulheres do mundo inteiro, a teria escolhido.
Ele tivera sorte. Precisava ser complacente para com o pobre do Gilbert.
- Pois que seja muito feliz - disse ele -, e quando estiver livre, Gilbert, vamos arranjar-lhe uma boa mulher.
- Se Vossa Majestade me permite, eu mesmo vou arranjar a minha - foi a resposta.
Foi uma parada muito agradável, em Tonbridge. Gilbert, conde de Gloucester, e o mais poderoso homem do país governado pelo rei, estava do seu lado.
Eduardo expressou sua gratidão pela hospitalidade que lhe fora oferecida; deixou subentendida sua satisfação pelo apoio do conde, enquanto se decidia a manter-se alerta para evitar que esse apoio não se desviasse.
Depois de Tonbridge, veio Reigate, onde João de Warenne estava à espera para receber a comitiva.
Neto do grande Guilherme Marechal e, portanto, pertencente a uma das mais ricas famílias do país, quando menino João de Warenne fora um dos grandes negócios matrimoniais
da época; e Henrique III tinha arranjado um casamento para ele com a sua meio-irmã, Alice de Lusignan, que era tia da mulher de Gilbert de Clare. Para o rei, aquilo
parecera um arranjo ideal, pois, dedicado à família como era, ele estava ansioso por colocar seus parentes desprovidos de recursos da melhor maneira possível. Eduardo nunca tivera qualquer motivo para duvidar da lealdade daquele homem que lhe era tão chegado através dos laços familiares.
Por isso, a estada em Reigate foi muito agradável, perturbada apenas pelos crescentes temores da rainha com relação ao jovem Henrique.
- Me dói o coração ao ver como ele tenta esconder a sua fraqueza - disse ela a Eduardo quando, depois de um longo dia de reuniões e festividades, os dois ficaram a sós. - Eu sei que o menino não está nada bem. Ele se cansa com muita facilidade. Sua mãe disse que com o pequeno João acontecia a mesma coisa.
- Henrique ainda é criança, meu amor. À medida que for crescendo, vai ficar bom.
- Mas nós perdemos o pequeno João.
- Naquela ocasião, não estávamos aqui.
- Sua mãe ficava ao lado dele como um cão de guarda. Ela é dedicada às crianças, mas no entanto... - A rainha se calou, mas Eduardo colocou-lhe delicadamente a mão no ombro e sorriu para ela.
- Acho que compreendemos minha mãe - disse ele. - Nunca houve outra mais dedicada à família. Por ser inteligente e bonita e por deixar meu pai encantado, ela se acostumou a fazer o que queria. Ela vai aprender...
Mas a rainha estava inquieta, e passara sua ansiedade para Eduardo. A filha deles, Eleanor, gozava de excelente saúde. O mesmo acontecia com Joanna quando a haviam deixado em Castela; e podia-se dizer que Joanna tivera uma chegada ao mundo muito difícil. Acre não era o local mais temperado para se nascer, e houvera uma grande falta de conforto. No entanto, ela florescera desde o início. A outra pequenina também morrera, mas aquilo poderia ter sido devido às agruras sofridas pela mãe antes do nascimento. Não, os dois podiam ter filhos saudáveis. Eleanor estava indevidamente perturbada devido à morte de João, e sua consciência continuava a incomodá-la, porque ficara no dilema entre deixar os filhos e o marido.
No dia seguinte, a rainha continuava desanimada, embora tentasse esconder os sentimentos, porque sabia que seus temores perturbavam o marido.
Mas o rei estava ciente disso e levou-a até a capela de Reigate e, chamando o padre, falou-lhe sobre a angústia da rainha.
- Creio que há um santuário perto daqui - disse o rei. Mande fazer uma imagem de cera de meu filho e queimá-la em óleo diante da imagem do santo. Talvez ele interceda junto a Deus e à Santa Virgem pela segurança do menino.
O padre curvou-se e disse que aquilo seria feito, pois era um costume muito usado queimar em óleo uma figura de cera representando alguém que precisasse de uma intercessão junto ao céu.
- Agora - disse Eduardo, com firmeza -, está nas mãos dos santos, e você tem dúvida, meu amor, de que eles não ouvirão as orações de mãe tão dedicada quanto você?
O rei era muito bom para ela, disse a rainha. E Eleanor quase acreditou que suas preocupações eram uma tolice, mas o seu pequenino Henrique era uma criança muito querida, e ela ansiava, havia muito tempo, por vê-lo tão cheio de saúde quanto a irmã.
- Isso vai acontecer, eu lhe prometo - disse Eduardo. Pouco depois, eles partiram de Reigate para Londres.
Sai Henrique, Entra Alfonso
O PAÍS INTEIRO parecia estar convergindo para Londres, para a coroação, e Eduardo estava certo de que aquela era uma das ocasiões em que era insensato poupar despesas. A rainha-mãe estava no elemento dela. Ela teria gostado de assumir todas as providências e ordenar o que precisava ser feito, como ordenara enquanto o marido era vivo.
Em vez disso, teve de se contentar em reunir a família. Foi maravilhoso saber que sua filha Margaret estava vindo da Escócia e que Beatrice, a outra filha, com o marido, João de Bretanha, também estaria presente. E havia o filho, Edmund, conde de Lancaster, que estaria com eles. Na verdade, todos os seus filhos vivos estariam lá. Se ao menos o marido estivesse vivo, ela não precisaria de mais nada para sentir-se inteiramente feliz.
Margaret era sua filha muito favorita. Talvez porque quando a filha era jovem a rainha-mãe sofrera muitas angústias por causa dela. Seus fortes instintos maternais tinham sido invocados em toda a sua fúria porque sua querida filha estava sendo maltratada por aqueles bárbaros escoceses. Agora pensava, com frequência, na ida da menina para a Escócia, no quanto a filha chorara na despedida e se agarrara à mãe e implorara para que a deixassem ficar com ela para sempre. Mas eles tinham sido obrigados a mandá-la para lá, e ela e Henrique tinham chorado juntos e sofrido por causa da filha. Ao saber que a filha estava sendo mantida prisioneira naquele sombrio castelo de Edimburgo e que não lhe davam nada para comer, a não ser aqueles desprezíveis bolos de aveia e uma mistura horrível que chamavam de mingau, Henrique, incitado pela mulher, preparara-se para entrar em guerra, ainda que aquilo significasse desafiar os barões e rasgar a Magna Carta e atirá-la na cara deles, o que, achava a rainha, era a melhor coisa que poderia acontecer àquele horrível documento. Eles tinham ido à Escócia; tinham libertado a filha, que vivia agora com o marido, Alexandre, que naquela época também era pouco mais do que uma criança. Margaret era feliz, agora. Sim, ela e Alexandre eram dedicados um ao outro e tinham três belos filhos para abençoar a união. A rainha-mãe esperava que fossem tão felizes quanto ela e Henrique tinham sido. Margaret era de um temperamento mais delicado do que a mãe e, como a família inteira, era indulgente para com aquela dominante figura maternal. Tinha uma filha que era muito querida pela rainhamãe, por ter nascido em Windsor, durante aquele período em que Margaret fora visitar a família e dera um jeito de se demorar até que ficara difícil, naquele estado, voltar para a Escócia. Os escoceses não ficaram nada satisfeitos com o fato de o primeiro rebento de sua rainha nascer fora da Escócia. O fato de ter sido uma menina talvez os tivesse acalmado um pouco. Aquela criança, chamada de Margaret em homenagem à mãe, estava agora com treze anos e herdara a beleza da mãe. Além do mais, Margaret dera à luz um filho, Alexandre, três anos depois do nascimento de Margaret um belo menino e herdeiro do trono escocês - e fazia quatro anos nascera o pequeno David.
Como seria maravilhoso ter todos os netos à sua volta, para que pudesse mimá-los um pouco e certificar-se de que eles gostavam da avó e, ao mesmo tempo, certificar-se de que os pais os estavam criando de um jeito que ela aprovasse. Adorava admoestá-los com ternura, e todos escutavam o que ela dizia e aceitavam sua sabedoria superior. Apesar de seu sofrimento, a promessa era de dias felizes pela frente.
Depois vinha Beatrice, sua segunda filha, que era muito amada, esposa de João, conde de Bretanha, um marido que a adorava, e tinham cinco belos filhos; Beatrice acompanhara o marido na cruzada e estivera com a rainha Eleanor em Acre, quando Joanna nascera, de modo que as duas tinham se tornado como irmãs, tendo partilhado dos desconfortes da vida nómade, enquanto que ao mesmo tempo em que compadeciam-se uma da outra quanto à terrível escolha que tinham tido que fazer, de deixar os filhos ou os maridos. Agora, estariam todos reunidos; e haveria mais netos para a rainha-mãe colocar sob suas asas.
Edmund - seu querido filho, o conde de Lancaster - também estaria lá. Ele não era tão popular, junto ao povo, quanto seu irmão Eduardo. Naturalmente, Eduardo era o rei e tinha aquela excelente boa aparência. Eduardo era todo Plantageneta - o jovem dourado com os compridos membros dos normandos. Bastava olhar para ele para ver que descendia do Conquistador. Os ingleses gostavam de reis fortes, ou gostavam depois que eles tivessem morrido. Eles tinham gemido sob as duras leis do Conquistador, de seu filho, Henrique I, de seu bisneto, Henrique II, enquanto aqueles reis viviam, mas quando morriam, a severidade era chamada de justiça, os reis eram venerados. Mesmo assim tão cedo, parecia evidente que Eduardo seria um rei forte. A rainha-mãe ficava apreensiva quando pensava nisso. Eduardo mostrara claramente que não iria aceitar seus conselhos. Era verdade que ele os ouvia com ar sério, e às vezes dava a entender que os seguiria; depois, afastava-se e fazia exatamente o que queria.
Edmund era menos alto, menos louro, mais provençal do que normando. Sofria de uma ligeira curvatura da espinha que tinha sido impossível disfarçar e que acabara dando a seus inimigos a oportunidade de chamá-lo de Corcunda. Ela ficara muito zangada com isso, em especial porque não havia nada que ela pudesse fazer. Ela achava a frustração mais enlouquecedora do que qualquer outra coisa.
Tinha sido motivo de congratulações quando ele se casara com Aveline de Fortibus, herdeira do conde de Albemarle, porque o casamento deveria ter levado uma grande riqueza para a família e a escassez de dinheiro era uma reclamação constante. Infelizmente, Aveline morrera antes de poder herdar a fortuna, e logo depois Edmund entrara numa cruzada e fora com o irmão para a Palestina.
"Precisamos encontrar uma nova esposa para Edmund", pensou ela; e sua mente agitada vasculhava as fileiras dos ricos.
A maior de todas as alegrias era estar com Margaret, e fora grande o prazer de vê-la entrar na capital a cavalo, com o marido e os filhos, porque a comitiva de Margaret era a mais pomposa de todas. Uma lição para Eduardo, pensou a rainha-mãe. Iria ele permitir que o rei da Escócia se destacasse mais do que ele?
Ela mal pôde esperar para levar Margaret para um lugar em que as duas pudessem ficar a sós. Lá, abraçou aquela mais querida de seus filhos - talvez, no passado, ela tivesse inclinada a ser a favor de Eduardo. Era natural, porque ele era o mais velho e era homem, mas as mães sentiam-se mais chegadas às filhas, e desde as experiências de Margaret na Escócia, quando fora uma esposamenina, a jovem rainha da Escócia tivera a ideia de que seus pais eram onipotentes e nada podia ser mais gratificante do que uma ideia dessas para Eleanor de Provença.
Tomou a filha nos braços e examinou-a com atenção. Margaret parecia um pouco delicada demais para que mãe não se preocupasse.
- Minha querida - disse a rainha-mãe -, você ainda acha o clima rigoroso?
- Eu vou me acostumando. As crianças gostam.
- Seu pai vivia preocupado com você. Sempre que via neve, ele dizia: "Eu gostaria de saber o que está se passando ao norte da fronteira e se a nossa querida filhinha está sofrendo com o frio."
- Minha mãe, a senhora sempre se preocupou demais conosco.
- Eu nunca poderia me sentir inteiramente feliz, a menos que soubesse que vocês todos estavam bem e em segurança, e nunca vou me esquecer daquela fase horrível.
- Isso tudo ficou para trás. Alexandre, agora, é rei de verdade. Ninguém teria a ousadia de traí-lo.
- E é um bom marido para você, minha querida.
- Nenhum outro poderia ser melhor. Ele é o que mais se aproxima do que foi o meu querido pai.
- Seu pai era incomparável. Margaret, não tenho como explicar o quanto estou sofrendo.
- Eu sei, eu sei. Mas papai não iria gostar que ficássemos nos lamentando. Ele ficaria feliz com o fato de Eduardo ser um homem tão bom e de o povo estar com ele como nunca esteve...
- com seu pai? Oh, o povo foi maldoso para com ele. As pessoas foram tão mesquinhas... tão parcimoniosas...
- Temos que nos alegrar, mamãe, por eles darem a impressão de que esqueceram seus ressentimentos. Esperemos que não haja mais revolta dos barões. O povo estará sempre pronto a se lembrar de Simon de Montfort.
- Aquele traidor!
- Ele se opôs ao nosso pai, majestade, mas não acho que pretendesse ser um traidor. E a morte dele em Evesham foi... horrível. Preciso lhe contar uma coisa estranha que aconteceu. Não muito tempo antes de eu receber a notícia da volta de Eduardo e de que deveríamos vir ao sul para a coroação, estávamos em Kinchleven, às margens do Tay. Estávamos no salão de banquetes, os presentes falando, como acontece sempre, de suas proezas e aventuras, mas eu me sentia melancólica, como tenho estado desde que chegou a notícia da morte de meu pai, e o meu desejo era fugir das risadas e da conversa despretensiosa deles.
Então, o nome de Simon de Montfort foi mencionado e um de meus cavaleiros, que viera da Inglaterra fazia algum tempo, falou sobre a batalha de Evesham, na qual ele lutara, e se vangloriou de ter dado o primeiro golpe mortal em Montfort. Eu estava cansada de todo aquele falatório, então me levantei da mesa e disse que iria andar um pouco pela margem do rio. Meus criados foram comigo, e entre eles estava aquele cavaleiro. Eles perceberam que eu estava deprimida, pois aquela conversa sobre Simon de Montfort me fizera lembrar de meu pai, e eu vivia pensando no dia terrível em que recebera a notícia da morte dele. Caí em tal melancolia, que uma de minhas aias disse que eles deviam organizar jogos para me animar. Foi o que fizeram. Os homens participaram de lutas, e houve concursos de saltos e de subidas em árvores. Os trejeitos deles eram engraçados, e quando me dei conta, estava rindo. O cavaleiro que provocara o assunto sobre Simon de Montfort foi o vencedor da maioria dos esportes. Uma de minhas acompanhantes disse que eu deveria dar a ele um símbolo de aprovação, e eu disse que daria minha luva. Eles quiseram uma cerimónia. Ele deveria se aproximar e tirá-la de mim. Quando ficou ao meu lado, ele olhou para as mãos, que estavam sujas de lama, fez uma mesura acentuada e disse: Bondosa senhora, não posso tocar sua mão neste estado. Permita que eu vá até o rio lavar as mãos. Dei a permissão. Sabe, era uma espécie de cerimónia de brincadeira. Quando ele se curvou para lavar as mãos, fiz sinal para uma de minhas aias, para que o empurrasse para dentro do rio. Foi o que ela fez, e foram muitas as gargalhadas. O cavaleiro voltou-se para rir conosco. O que me importa?, disse ele. Eu sei nadar. E então, começou a mostrar a todos nós que podia ser tão habilidoso na água como em terra, e fez todo tipo de graciosas figuras enquanto se afastava da margem. Nós aplaudíamos, e eu gritei que ele estava pedindo mais trofeus. Então, de repente, alguma coisa aconteceu. Era como se as águas fossem agitadas por uma mão invisível, para formar um remoinho. Ele soltou um grito horrível e desapareceu. Seu pequeno pajem deve ter pensado que seu patrão estava chamando por ele, então correu para o rio e entrou na água, nadando em direção ao ponto em que o patrão desaparecera. Num instante, ele também sumiu. É uma brincadeira, disse eu. O nosso inteligente cavaleiro está tentando nos mostrar o quanto é inteligente.
Nós esperamos, rindo um pouco, esperando a cada segundo vê-lo surgir e nadar para a margem com o seu pequeno pajem. Demoramos um pouco a perceber que nunca mais tornaríamos a vê-lo e a perceber que a nossa inocente brincadeira acabara em tragédia. Nunca descobrimos o corpo do cavaleiro, nem o do pajem.
- Minha querida filha, que história horrível! Como aquele remoinho surgiu de repente no rio?
- Isso nós não soubemos. Mas lhe conto essa história para que a senhora saiba como o povo... até mesmo da Escócia... se lembra de Simon de Montfort. Dizem que o céu ficou zangado. Que de Montfort era um santo e aquilo era a vingança do céu contra aquele cavaleiro, porque ele se vangloriara de sua participação no assassinato.
- Sempre haverá quem veja significados nesses acontecimentos. De Montfort não era nenhum santo. Foi um traidor que se levantou contra seu pai. Isto é uma coisa pela qual nunca o perdoarei.
- Sempre gostei da tia Eleanor. Acho que ela o amava muito.
- Eu me lembro bem daquele casamento. Realizado em segredo. Seu pai ficou furioso quando descobriu que Simon de Montfort casara com a irmã dele.
- Mas ele sabia do casamento. Ele esteve presente.
- Só porque Simon seduzira sua tia e ele achava que naquelas circunstâncias era melhor o casamento.
Margaret olhou para a mãe. Claro que aquilo não era verdade. O rei Henrique permitira o casamento porque a irmã o convencera, e depois, quando viu a tempestade que aquilo provocara, fingira ter sido porque Simon a seduzira primeiro.
Mas sua mãe sempre acreditara no que queria, e um desmentido lhe era desagradável.
- Onde estarão eles, agora? - perguntou Margaret.
- Quem? Os de Montfort? No exílio na França, creio eu. É melhor que não tentem voltar para cá.
- A senhora refere-se à mulher e à filha de Simon? E os filhos?
- O jovem Simon morreu. Merecia ter a morte de um traidor, mas em vez disso Deus o levou. Ele era culpado de assassinato, com o irmão Guy, que é o pior de todos.
Você sabe como eles assassinaram, da forma mais brutal, o nosso primo, Henrique da Cornualha, numa igreja em Viterbo. Aquilo foi uma maldade. Deixou seu tio Ricardo de coração partido. Ele adorava Henrique, e Henrique era um homem bom, fiel e leal a seu pai e ao seu irmão Eduardo.
- Eu sei, majestade. Ele e Eduardo foram criados juntos... com os meninos de de Montfort. Eu me lembro de vê-los juntos no período anterior ao meu casamento.
- Tem havido muita tragédia na nossa família, Margaret.
- Eu sei, majestade. Mas agora Eduardo está de volta, e o povo o adora. Talvez vivamos em paz.
- Existe um problema perpétuo. Não vou me sentir feliz enquanto aqueles de Montfort viverem.
- Desculpe ter feito a senhora lembrar-se deles.
- Santos, vejam só! Nunca houve alguém com menos atributos de santo do que Simon de Montfort.
- Foi uma pena ele ter sido morto com tanta brutalidade.
- Foi em combate. O lado dele teria feito o mesmo ao seu pai ou a Eduardo, se tivesse saído vencedor.
- Suponho que Guy e o jovem Simon achavam que o estavam vingando. Isso é compreensível. Seria melhor se tudo pudesse ser esquecido.
- Minha querida Margaret, você sempre foi a pacificadora. Eu gostaria de receber a notícia de que os de Montfort estavam todos mortos. Não gosto de me lembrar de que Guy ainda vive e seu irmão Almeric também. Ele está com a mãe, creio eu, e com Eleanor. Eles a chamam de a Demoiselle. É uma boa ideia. Existem Eleanores demais na nossa família.
- Isso é verdade. Temos a senhora, e agora a mulher e a filha de Eduardo, e a nossa tia que se casou com de Montfort, e a filha de de Montfort... Ficou tão contente por ter dado à minha filha o nome de Margaret!
- O que significa, minha querida, que ela pode ser facilmente confundida com a mãe.
- Eu sei, mas Alexandre quis esse nome.
A rainha-mãe tomou o rosto da filha nas mãos e o beijou.
- Eu sei. Ele ama muito você, e quis que a filha tivesse o seu nome. Aposto que ele diz a si mesmo que está ficando exatamente igual a você.
- Como adivinhou?
A rainha-mãe teve uma risada de felicidade. Sua raiva, provocada pela deferência para com os de Montfort, desaparecera.
- Porque, minha adorada, ele tem o aspecto de um marido feliz. Agora me diga como achou Beatrice.
- Muito bem.
- Ela me deu cinco netinhos. Eu me orgulho muito dela.
- Sinto muito, mãe querida, por não ter atingido esse número.
- Minha adorada, tudo o que peço é que seja feliz. Você tem meus três queridinhos, e isso me deixa bastante contente. Aposto que Beatrice está com a mulher de Eduardo. Eu soube que as duas se tornaram grandes amigas em Acre.
- Eduardo teve a sorte de ter a rainha que tem, majestade. Ela parece muito delicada e dedicada a ele.
- É uma boa esposa. Considera-o o ser mais maravilhoso que existe sobre a Terra. Faz exatamente o que ele diz, o tempo todo. Eu nunca fui assim.
- Estou certa de que Eduardo gosta disso.
- Seu pai gostava de mim e, no entanto, sempre tive minhas opiniões.
- Adorada mamãe, não pode esperar que todos sejam iguais à senhora.
A rainha-mãe soltou uma gargalhada. Achava estar mais perto da felicidade do que jamais estivera desde a morte de Henrique.
- Vamos procurar Beatrice - disse ela. - Há tanta coisa que quero dizer a ela! É tão raro eu ficar com vocês, que tenho ressentimento de cada momento passado longe de mim.
Cara mamãe, pensou Margaret, ela não suporta que qualquer uma de nós goste mais de alguém do que gostamos dela.
Houve uma agitação por toda a capital que se estendeu pelo país inteiro. Um rei estava para ser coroado, e segundo os profetas estava chegando ao país uma nova era de prosperidade.
Os dois últimos reinados tinham sido agitados - o primeiro, desastroso, e o segundo, pouquíssimo menos do que isso. Dois reis fracos haviam governado o país, e agora chegara um homem forte, que parecia um rei, que agia como um rei e que, por acabar de voltar de uma campanha à Terra Santa, teria nele o selo de aprovação de Deus.
Grandes dias aguardavam a Inglaterra.
Corriam pelo interior histórias de sua força e sua bravura. Sua rainha era uma mulher boa e virtuosa. A narrativa de como ela sugara o veneno do ferimento dele era repetida. Eles se esqueceram de que ela tinha origem num país estrangeiro e que tinham zombado de seus seguidores quando ela chegara ao país pela primeira vez. Gente pequena e morena, que disseram parecer-se com macacos. Agora, ela se transformara numa bela mulher. Abandonara seus modos estrangeiros. Era inglesa e uma esposa adequada para o grande rei.
Eduardo dissera que deveria haver hospitalidade para todos, na sua coroação. Queria que o povo soubesse que ele iria adotar leis justas, que estava decidido a tornar o país próspero. Já resolvera aquele irritante caso da lã com os comerciantes estrangeiros. Acreditava que o povo deveria poder realizar seus negócios em paz, e que só deveria ser solicitado a dar dinheiro quando o país precisasse.
No entanto, só daquela vez, deveria haver um espetáculo grandioso. Os comerciantes de Londres estavam dispostos a pagar para ver o seu rei coroado com toda cerimónia. Era correto que houvesse comemorações, pois aquele era o início de uma nova era.
Prédios de madeira foram erguidos nos pátios do palácio. Neles, a comida seria cozida, porque ninguém deveria deixar de comer naquele grande dia. Não havia telhados naqueles prédios; eles eram abertos para o céu, para que a fumaça das fogueiras saísse. Ali, anunciou Eduardo, seria servida comida a todos que fossem à cidade não importava quem. Homens do campo iriam comer com comerciantes de Londres, e aprendizes e qualquer pessoa iriam comer como convidados do rei -, ricos e pobres, ricos comerciantes e mendigos. Durante quatorze dias haveria aquela festança. E no dia da coroação, os dutos e as fontes ficariam cheios de vinho tinto e branco.
Todo mundo deveria estar ciente de que aquele era um momento para comemorar.
Não houve murmúrios por parte do povo. Aquele era um tipo de celebração diferente dos preparados pelo pai do novo rei. Henrique dera banquetes generosos, é verdade, mas eles tinham sido sempre para os amigos e parentes. Mas à mesa do rei Eduardo haveria apenas a boa comida simples que era servida ao seu povo. Ele queria que todos soubessem que ele não era homem de dar muita importância a comemorações e bebidas e ao uso de roupas finas. O seu prazer estaria numa terra próspera e num povo feliz.
Talvez estivesse dizendo, sutilmente, que eles iriam achá-lo diferente do pai. Se estivesse, era exatamente aquilo que o povo queria ouvir.
O arcebispo de Canterbury, Robert Kilwardby, chegara a Westminster para oficiar a coroação. Eduardo achava ter tido sorte com o seu principal arcebispo. Não que tivesse uma grande afeição por ele. Longe disso. Os dois nada tinham em comum. Mas Kilwardby, ao contrário de muitos de seus predecessores, não tentava interferir em questões do Estado. Um tanto pedante e um estudioso, era mais provável que se preocupasse com detalhes de gramática do que com as políticas adotadas pelo país. Um estudioso que durante muitos anos ensinara em Paris como mestre de artes, ex-prior dos dominicanos, não era um homem que se considerava rival do rei como governante.
- Vamos agradecer a Deus pelo nosso arcebispo - disse Eduardo à rainha.
E assim, lado a lado, Eduardo e Eleanor, sua rainha, foram coroados ao som da aclamação do povo, e depois da cerimónia encaminharam-se para o grande salão de Westminster, onde a festa fora preparada.
O casal real usava as coroas que fazia tão pouco tempo haviam sido colocadas em suas cabeças, e Eduardo sussurrou para a rainha perguntando como é que ela estava conseguindo aguentar a coroa dela e desejando que não fosse muito incómoda. Ela lhe garantiu que podia suportá-la, e ficou tomada de emoção ao pensar o quanto era afortunada, não por se tornar a rainha coroada de um país como aquele, mas por ter um marido daqueles.
- Eu juro - sussurrou Eduardo para ela - que assim que tirar a minha da cabeça não vou tornar a usá-la tão cedo.
- Você continua sendo rei, Eduardo, e todo mundo reconhece isso, sem a coroa.
Ele apertou-lhe a mão, e em meio à aclamação dos espectadores tomou o seu lugar na poltrona sobre a plataforma. Chegara a hora dos súditos homenagearem-no. Primeiro foi o rei da Escócia - Alexandre, marido de sua irmã Margaret. Uma bela figura de homem, aquele Alexandre, homem de coragem e orgulho. Deixara claro que não estava ali para prestar homenagem a Eduardo como rei da
Escócia, pois um rei não se ajoelhava diante de outro rei - mas apenas para reconhecer que Eduardo era seu senhor feudal em relação às terras que ele, Alexandre, possuía na Inglaterra. Muito justo, dissera Eduardo; e ficou satisfeito por ter o rei dos escoceses como aliado.
Alexandre, cujo reino era menor do que o da Inglaterra, tinha, pela própria natureza dos reis, que fazer uma esplêndida demonstração de seu poder e de sua riqueza, e não havia ninguém, entre os presentes, mais ricamente vestido do que ele. Eduardo sorrira ao ver os olhos de sua mãe brilharem ao contemplarem seu genro da Escócia. Qualquer demonstração de extravagância a deixava encantada. Ela teria gostado de ver aquela ocasião muito mais pomposa. A rainhamãe teria que ser curada, pensou Eduardo. Quanto a Alexandre, não havia dúvida de que teria que passar uma fase de aperto para pagar pelo espetáculo que dera na coroação do rei da Inglaterra.
Assim, Alexandre entrou a cavalo no salão, acompanhado por cem de seus cavaleiros, só ligeiramente menos esplendorosamente trajados do que ele, e quando chegou à plataforma em que Eduardo estava sentado, desmontou, atirando as rédeas sobre o pescoço do cavalo, a fim de que o animal ficasse solto. Seus cavaleiros fizeram o mesmo, de modo que cento e um cavalos saíram do salão para o lugar onde o público se aglomerava para ver a cerimónia.
O rei da Escócia fizera uma proclamação dizendo que aqueles que pegassem os cavalos que tinham sido abandonados pela sua comitiva poderiam ficar com eles. Houve gritos de alegria quando os cavalos saíram e foram seguros pelos felizardos que conseguiram pegá-los.
Não querendo ser sobrepujado naquele gesto de esbanjamento e decidido a fazer com que os escoceses não recebessem todo o crédito por uma generosidade sem igual como aquela, o irmão do rei, Edmund, duque de Lancaster, que também entrou no salão seguido por cem cavaleiros, fez o mesmo. Depois, os condes de Gloucester, Pembroke e Warenne soltaram seus cavalos, de modo que o fato mais memorável daquele dia da coroação, para o povo, foi que quinhentos cavalos valiosos foram soltos para tornar-se propriedade de quem conseguisse pegá-los.
Mas houve outro grande acontecimento que teve uma importância maior, e Eduardo ficou profundamente cônscio disso.
Um a um, os grandes duques, condes e barões vieram jurar sua vassalagem ao rei, mas houve um ausente notável.
Eduardo cruzou o olhar com o de Gilbert de Clare, conde de Gloucester, que murmurou:
- Não vejo Llewellyn de Gales, majestade.
- E por um bom motivo, senhor conde. Ele não está aqui. O que acha que isso significa?
- Desafio ao comando real, majestade.
- Problema à vista, Gilbert.
- Assim parece, majestade. Mas não passa de um pequeno chefe de clã do País de Gales.
Eduardo confirmou com a cabeça. Tudo muito bem em se referir a ele daquela maneira. Era verdade, até certo ponto, mas o País de Gales, tal como a Escócia, fazia muito que era uma fonte de irritação - e pior - para os predecessores de Eduardo, e ele tivera a esperança de que se se mostrasse disposto a ser amigável, poderia conseguir a confiança daquele povo. E agora Llewellyn desobedecera abertamente à ordem de comparecer à coroação. Eduardo podia estar certo de que não fora o único a notar aquilo - e muitos dos presentes estariam cônscios da importância do fato.
Maldito fosse Llewellyn!
Mas aquela era a sua coroação, e ele precisava aparentar estar feliz e cheio de esperança quanto ao futuro. Não podia deixar que se percebesse que a ausência de um petulante chefe de clã galês o perturbara.
Mas aquilo ficou na sua cabeça durante a festa que se seguiu à cerimónia de juramento de fidelidade. As pessoas que se achavam no salão estavam muito alegres, o mesmo acontecendo com as que estavam do lado de fora, que dançaram, cantaram nas ruas e ficaram bêbedas com o vinho do rei, distribuído em abundância. Aqueles que tinham conseguido cavalos valiosos estavam prontos a morrer pelo rei... pelo menos no dia da coroação.
O povo, feliz; o futuro, brilhante. O que mais poderia um rei pedir?
Sua rainha a seu lado - feliz pelo seu triunfo, a rainha-mãe contente mas comparando aquela com a sua própria coroação que fora muitíssimo mais dispendiosa, a família reunida à sua volta -; ele devia estar contente.
Mas ele era rei demais para não dar importância ao fato de que problemas poderiam estar fermentando na fronteira galesa.
Enquanto os convidados ficavam sonolentos como resultado da ação do vinho, do calor e das comemorações, Eduardo se mantinha alerta, ainda pensando na ausência do galês. Gloucester, Pembroke e Warenne estavam cientes disso.
- Mesmo que ele tivesse vindo à coroação, não poderíamos ter estado certos de que não teria voltado e provocado confusão comentou Warenne.
- Ele não poderia ter feito isso depois de fazer o juramento - lembrou-lhe Eduardo. - Pelo menos, por enquanto.
- É melhor sabermos como ficamos em relação a ele.
- Como podemos saber como ficamos em relação aos galeses? - perguntou Eduardo. - Dê-lhes a oportunidade, e eles ficam prontos a ir à guerra. Não foi sempre assim?
- Desde a época do Conquistador - concordou Warenne.
- E antes dela - acrescentou Eduardo. - Eles podem precipitar-se sobre as nossas terras, atacá-las e depois correr de volta para suas montanhas. O senhor mencionou o Conquistador. Ele tentou pôr um paradeiro nisso. Chegou, até, a entrar em Gales com um exército. Depois - grande guerreiro que era - percebeu que, devido à sua natureza montanhosa, a conquista daquele país custaria mais, em vidas, despesas e tempo, do que valia. Por isso, contentava-se com incursões e pequenas guerras, que têm acontecido desde então. Não vejo motivo para ir contra a decisão dele. Esse meu ancestral era um homem sensato. Era um génio no que se referia a estratégia. Decidiu transformar aquela faixa de terra pela qual todos os exércitos tinham de passar... os ingleses ou os galeses, para atingirem uns aos outros... numa terra de ninguém. Depois, instalou os barões, que passaram a ser conhecidos como Barões das Fronteiras e, em troca das terras, delegou-lhes a obrigação de protegerem o país e ficarem responsáveis por manter os galeses em ordem. Essa situação já existe há duzentos anos. Não vejo razão para que seja alterada.
- E o que aconteceu? - perguntou Gilbert. - Os Barões das Fronteiras controlam a terra e eles, tal como os galeses, tornaram-se uma lei especial só para eles. Eles se consideram isentos de jurar fidelidade a qualquer pessoa, inclusive a Vossa Majestade.
- É verdade - disse Eduardo. - E já que Llewellyn acha justo zombar de mim assim, talvez seja necessário resolver essa questão dos galeses de uma vez por todas.
- E se isso pudesse ser feito, majestade, não tenho dúvidas de que seria bom para a Inglaterra e para o País de Gales - disse Pembroke. - Mas será possível?
- Senhor conde - replicou Eduardo -, nada é possível para os que acham que é impossível. A primeira regra quando se ataca uma tarefa difícil é parar de dizer "Não posso"e dizer "vou fazer".
Os lordes fizeram um gesto afirmativo com a cabeça e Warenne disse:
- Llewellyn tornou-se muito amigo dos Montfort.
- Eu sei, e não gosto disso - replicou Eduardo. - Os Montfort já causaram complicações demais para o meu pai. Estou decidido a não deixar que façam o mesmo comigo.
- Ainda restam dois dos filhos dele e uma filha - comentou Warenne.
Eduardo confirmou com a cabeça.
- Henrique morreu com o pai em Evesham, como sabemos, e Simon morreu na Itália, pouco depois do assassinato do meu primo. Por Deus, juro que nunca os perdoarei pelo que fizeram a Henrique. Eles são amaldiçoados e condenados por isso para sempre. Matá-lo de maneira tão vil, enquanto ele rezava ajoelhado... meu primo Henrique! Os senhores conhecem os meus sentimentos para com ele. Era meu companheiro... falando nisso, éramos todos companheiros na ala infantil real - Henrique da Cornualha, o primo de quem eu mais gostava, e aqueles outros... primos, também... os filhos de Montfort. Henrique da Cornualha era um homem de uma nobreza fora do comum. Aprendi muito com ele, pois era alguns anos mais velho do que eu, aqueles poucos anos que são tão importantes quando se é jovem. Eu me mirava nele. Houve época em que eu era descontrolado e tolo, quando era capaz de cometer uma crueldade sem sentido algum. Graças a Deus, meu primo Henrique me mostrou a loucura disso tudo. Devo muito a ele, e quando penso nele ajoelhado diante do altar e aqueles miseráveis aproximando-se furtivamente contra ele... quando penso nas coisas horríveis e obscenas que fizeram com o corpo depois de tê-lo assassinado, clamo por vingança contra os que cometeram esse crime cruel. Eu digo: "Maldito seja de Montfort."
- Assim como aqueles que viram a mesma coisa feita com os corpos de Simon de Montfort e de seu filho Henrique clamaram em relação a Vossa Majestade e sua família - disse Gilbert, que nunca resistia a fazer um comentário lógico, mesmo que pusesse a vida em perigo ao fazê-lo.
Mas Eduardo também era um homem lógico.
- É verdade - disse ele, secamente. - É verdade. Mas não tive participação alguma no assassinato de Simon de Montfort. Ele morreu em combate. O fato de ter sido mutilado depois foi um desses azares da guerra. Mas matar aquele bom e nobre homem enquanto ele estava ajoelhado para rezar! Não, Gilbert, não posso concordar com isso. Malditos sejam os Montfort... a família toda... até mesmo minha tia, que se tornou uma Montfort por meio de um casamento secreto.
- É fácil compreender seus sentimentos, majestade - disse Warenne. - E é contra os Montfort que temos de nos proteger.
- O Guy é um assassino, e como tal é desprezado - disse o rei. - Não vai prosperar. Mas os meus primos Almeric e Eleanor vivem no exílio com minha tia, e há um boato de que Llewellyn está apaixonado por minha prima Eleanor.
- Está, mesmo! - disse Gilbert. - Ela é de sangue real, porque a mãe é irmã do rei Henrique, e Llewellyn e ela, segundo dizem, estão profundamente apaixonados.
- Ela era uma garota bonita, da última vez que a vi - disse Eduardo.
- Educada como deve ter sido, como se sentiria ela em relação ao rude chefe de clã das montanhas? - perguntou Pembroke.
- Ouvi dizer que ficou tão entusiasmada por Llewellyn quanto ele por ela, e que juramentos foram trocados pelos dois. Claro que ela está no exílio e não pode vir aqui e ele... um chefe de clã rebelde... não tem condições de trazê-la. Assim, os amantes de verdade são mantidos afastados. - A boca de Edmund estava firme.
- E vão continuar assim.
- A menos, é claro... - começou Gilbert.
- A menos, senhor? - interrompeu Eduardo. - Imagino o que vai dizer. A menos que possamos usar minha prima, a Demoiselle Eleanor, como uma oferta atraente para dominarmos Llewellyn.
- Se isso fosse possível, seria um bom plano.
- E seria, mesmo - disse Eduardo. - Estamos chamando atenção. Nossa conversa séria dá a impressão de que estamos realizando um conselho de guerra.
- O que, de certo modo, estamos, majestade - disse Gilbert.
- E não é assim que se realiza uma coroação. Vamos pedir aos menestréis que cantem.
As festividades da coroação continuaram. Não havia um homem mais popular, na cidade de Londres, do que o rei. Ele era forte, dizia o povo. Não era um homem que seria dominado pela mulher; e ela também não era uma mulher que procurasse mandar.
Todos sabiam que o falecido rei fora dominado pela mulher, e tinha sido ela a pessoa que eles odiavam; embora desprezassem o rei. Mas agora uma nova era surgia.
Aquele rei era justo. A questão da ponte confirmava a crença do povo nele.
Um grupo de cidadãos de Londres pedira licença para falar com o rei durante o período das celebrações da coroação e ele, reconhecendo muito bem a importância da capital do seu reino, concordou em receber seus líderes e ouvir o que tinham a dizer.
O chefe do grupo fez uma acentuada mesura diante do rei, e quando lhe perguntaram qual era o seu problema, explicou que era o estado da ponte de Londres.
- Senhor meu rei - disse o homem -, ela chegou a tal estado de destruição, que praticamente não há mais segurança.
- Então, isso precisa ser corrigido de imediato - bradou o rei. - Por que já não o fizeram?
- Majestade, os reparos são feitos com a receita obtida com a custódia da ponte, e antigamente eram feitos com regularidade, a fim de que a ponte pudesse ser mantida em bom estado.
- Então, por que não se fez isso agora?
Houve um silêncio, e o rei pediu-lhes que continuassem.
- Majestade, o rei, seu pai, deu a custódia da ponte à rainha, sua mãe, a fim de que ela pudesse usar as receitas ali geradas. Desde então, a senhora rainha tem arrecadado os direitos e não se preocupa com o estado da ponte.
Eduardo sentiu uma onda de raiva contra a mãe. Sabia que não precisava mandar confirmar aquilo. Não era exatamente o que sua mãe vinha fazendo desde que chegara ao país? Não era aquela a razão da impopularidade dela e de seu pai e será que ela jamais iria compreender que atos como aquele os tinham levado a quase perder a coroa?
Ele conteve o desabafo que lhe subiu aos lábios e retrucou:
- Meus amigos, podem deixar este assunto comigo. Eu lhes digo uma coisa: a ponte será restaurada e sua manutenção será feita, no futuro, com o produto da cobrança.
Exultante pela rápida percepção da situação por parte dele, e acreditando na sua promessa, pois o rei já estava adquirindo a reputação de um homem de palavra, a delegação retirou-se e, entre os amigos, seus membros teceram elogios ao novo rei que, sem dúvida alguma, iria fazer com que o governo justo voltasse ao país.
A rainha-mãe estava em companhia da filha e acabara de receber a alegre notícia de Beatrice, de que esta estava grávida outra vez.
Quando Eduardo entrou, ela bradou:
- Eduardo, querido, venha juntar-se a nós. Tenho ótimas notícias.
Eduardo encontrou dificuldade em controlar a irritação. Ele tinha uma parte daquele defeito dos Plantagenetas, mas dissera a si mesmo que precisava aprender a controlá-la. Foi preciso então usar de toda a sua força de vontade, naquele momento.
- Sua irmã Beatrice vai ter outro filho. Ele tomou a mão de Beatrice e a beijou.
- Parabéns, irmã - disse ele. - Aposto que João está contente.
- Ah, está, mas ele sempre fica aflito. Diz que temos cinco e deveríamos estar contentes com isso.
A rainha-mãe deu uma risada de condescendência. Nada lhe dava mais prazer do que ouvir falar na devoção dos maridos das filhas.
- Eu gostaria de manter você aqui, Beatrice, até a criança nascer.
Ela olhou para Margaret e as duas sorriram, lembrando-se da ocasião em que tinham enganado os nobres escoceses e Margaret ficara na Inglaterra para estar com a mãe quando do nascimento da sua filha.
- Se for menina - disse Beatrice -, vou chamá-la de Eleanor em sua homenagem, mãe querida.
A rainha-mãe riu.
- Mais uma Eleanor na família, não! Minha adorada, a confusão já é grande assim como está.
- Mesmo assim, não há ninguém que tenha outro nome, que não o seu, que eu preferiria dar à minha filha.
- Foi bom eu ter chamado minha filha de Margaret - disse a rainha da Escócia. - Mas faço aqui a ameaça de que se um dia eu tiver outra filha, também será uma Eleanor.
A rainha-mãe sentiu-se satisfeita, mas ficou logo angustiada.
- Minha querida, espero que não haja mais filhos. Você sofreu demais quando David nasceu. Se vocês, meninas, soubessem o que sofro quando vocês têm filhos, iriam jurar não ter mais nenhum. Fico esperando pelos mensageiros...
e eles chegam sempre muito atrasados.
- Ah, mãezinha querida - bradou Margaret -, a senhora precisa se lembrar de que já não somos crianças.
Eduardo foi atraído para aquele círculo familiar, mesmo contra a vontade. Todos eles tinham tido uma infância maravilhosa, muito diferente da dos filhos das famílias reais. Ele precisava lembrar-se, sempre, por mais exasperado que ficasse com a irresponsabilidade de sua mãe, de que eles tinham desfrutado de um círculo familiar feliz.
Eduardo sussurrou para Margaret:
- Tenho uma coisa importante para discutir com mamãe.
- vou levar Beatrice comigo para junto da sua esposa - disse Margaret. - Ela vai querer ouvir a notícia sobre o bebé.
- Vá mesmo, por favor - disse Eduardo. Quando ficou a sós com a mãe, assumiu um ar sério.
- Recebi uma reclamação, majestade - disse ele -, dos cidadãos de Londres.
- Aquela gente cansativa! Como ousam reclamar no momento de sua coroação? Já não receberam tanto... vinho de graça, banquetes...?
- Vinho de graça e banquetes não vão restaurar a Ponte de Londres, majestade.
- A Ponte de Londres! O que tem isso a ver com a coroação?
- Se ela desabasse, isso seria lembrado por muitos e muitos anos como o ponto alto desta coroação.
- Desabar! Por que ela iria desabar?
- Porque está precisando de reparos e as taxas arrecadadas em parte com essa finalidade têm sido usadas para outras coisas.
- Que coisas?
- A senhora sabe disso melhor do que eu, pois as tem recolhido e tem malbaratado o dinheiro.
- Nunca ouvi tamanho absurdo. Na época de seu pai...
- Majestade, não estamos na época de meu pai. Estamos na minha, e quero que saiba que não vou querer dinheiro destinado a restaurar a ponte gasto com outras coisas.
- Seu pai me deu a custódia da ponte por seis anos...
- E desde então, a ponte se transformou num perigo para o povo. Será que a senhora nunca vai aprender? A revolta dos barões nada significou para a senhora?
- Os barões foram derrotados.
- Os barões jamais serão derrotados, majestade, enquanto representarem a vontade do povo, e só quando esta estiver a seu favor é que um rei poderá governar.
- Seu pai viveu muito bem sem ela.
- Infelizmente, não é este o veredicto do mundo. Meu pai tentou governar sem ela, e por causa disso só a maior das sortes manteve a coroa dele no lugar, e a senhora deve se lembrar muito bem, minha mãe, que ele esteve muito perto de perdê-la. Já se esqueceu daqueles dias em que ele e eu ficamos prisioneiros de Simon de Montfort e a senhora foi até a França como uma mendiga, para a corte de sua irmã, e tentou levantar dinheiro para reunir um exército para nos libertar?
A rainha-mãe enxugou os olhos.
- Você acha que algum dia vou me esquecer do período mais triste de minha vida, quando eu e seu pai ficamos separados?
- Espero que nunca se esqueça e que se lembre da facilidade com que aquilo aconteceu. O povo não tolerava sua extravagância, seus gastos de dinheiro proveniente de tributação com a senhora e com seus amigos e parentes.
- Eduardo! Como tem coragem de dizer isso! E você é meu filho! De que lado você está? Da coroa, ou dos barões rebeldes?
- Não deve haver divisão de lados, majestade. Estou a favor da justiça. vou fazer com que os erros sejam corrigidos. Levarei este país de volta à prosperidade e à crença no seu soberano. E começarei restaurando a Ponte de Londres e tirando a custódia dela de suas mãos.
- Eduardo... como pode me fazer uma coisa dessas?
Ele se aproximou da mãe e colocou-lhe as mãos nos ombros, pois a adorava e eram muitas as recordações que guardara da sua infância, quando ela fora o seu conforto e seu consolo, e ficar com ela e com seu pai tinha sido a melhor coisa do mundo daquela fase de sua vida.
- Posso, porque devo. Querida mãe, sabe do meu amor pela senhora, mas em primeiro lugar sou um rei, e pretendo governar. Eu a amo, agora, como sempre amei, e nunca me esquecerei de sua devoção para comigo e para com o meu querido pai. Mas não posso deixar que coloque minha coroa em perigo, como fez com a de meu pai. Por isso, faço o que considero certo e, a meu ver, esta é a maneira adequada e justa de agir.
- com que então você me humilharia aos olhos daqueles londrinos gananciosos.
- A senhora só vai conquistar honrarias por cancelar essa custódia. E esses londrinos não são gananciosos por quererem ver a ponte deles restaurada.
- Se a querem restaurada, que paguem!
- É exatamente o que estão fazendo. A senhora sabe que parte das tarifas pagas destina-se à manutenção da ponte.
- Estou decepcionada com você, Eduardo.
- Sinto muito, mas, se para agradar à senhora eu tiver que decepcionar meus súditos e negar-lhes a justiça, querida senhora, sou obrigado a contrariá-la.
Ela olhou para ele - tão bonito, tão nobre, e de repente esqueceu tudo, exceto o seu orgulho por ele. Encostou-se no filho, e ele envolveu-a nos braços.
Ele beijou-lhe os cabelos.
- Querida mãe - disse ele, com delicadeza -, eu não suportaria o fato de não sermos bons amigos.
- Você é um sujeito teimoso, Eduardo - disse ela, carinhosa. - É estranho que eu não o queira diferente do que é. Mas sinto tanta saudade de seu pai, meu filho! Nunca mais vou deixar de chorar a morte dele.
- Eu sei - disse Eduardo. - Eu também choro a morte dele.
- Você não é como seu pai. Ele gostava tanto... Gostar, pensou o rei, muitas vezes era acompanhado de insensatez, e isto era uma coisa que um rei não podia ter.
Depois de deixar a mãe, Eduardo foi ter com sua mulher. Dava graças a Deus por Eleanor. Como era diferente da sogra dela! Jamais poderia ter suportado uma mulher dominadora, mas estava claro que um homem fraco precisava de uma mulher forte a seu lado. E agora admitia para si mesmo que seu pai era um dos homens mais fracos que ele conhecera. Um rei precisava enfrentar a verdade. Tinha de aprender suas lições, e a primeira de todas era que enquanto a verdade não fosse olhada cara a cara e admitida - por mais desagradável que fosse -, não haveria progresso.
- Eduardo - disse a rainha, aflita -, você parece um pouco perturbado.
- Um assunto desagradável. - Contou-lhe sobre a ponte e revelou que a mãe estivera usando os recursos para os fins errados.
- Eu tinha que proceder dessa forma.
- E tinha, mesmo.
- Ela ficou magoada. Acho que a princípio pensou que eu fosse uma espécie de traidor da família.
- Você, um traidor! Isso é impossível. Você é tão sensato... tão forte. Sempre faz o que é certo.
Eduardo dirigiu-lhe um sorriso carinhoso.
- Eu sei que, independente do que fizer, terei o apoio de minha mulher.
- Mas isso é o certo e natural. Ele tomou-lhe a mão e beijou-a.
- Tenho uma coisa a lhe dizer - disse ela.
- Eleanor. Você está grávida?
Ela confirmou com um gesto da cabeça, e ele a tomou nos braços.
- Desta vez - disse ele -, vamos rezar por um menino. vou mandar que se façam orações por todas as igrejas.
- Por enquanto, não, eu lhe peço. É muito cedo. Tenho medo de que alguma coisa saia errada se eu falar nisso cedo demais.
- Minha adorada, por que iria dar errado?
- Aconteceu com João e com o bebezinho em Acre.
- Minha querida senhora, muitas crianças morrem. João era fraco. Algumas crianças nascem assim. Quanto ao bebezinho em Acre, o que podíamos esperar, depois de todas as agruras. E o que dizer da jovem Joanna, hein? Goza de boa saúde, embora tenha nascido em Acre.
- Eu gostaria que ela estivesse conosco.
- Sua mãe não vai se separar dela de bom grado. E você vai ter este outro filho. Temos a nossa querida Eleanor. Que bela garota ela está se tornando! E o pequeno Henrique...
A rainha ficou séria.
- Eu me preocupo muito com ele.
- Achei que ele parecia melhor. Ela abanou a cabeça.
- Ora vamos, meu amor, ele é um garotinho inteligente.
- Tem muita falta de ar e sempre parece ter tosse. Eduardo, não gosto da Torre de Londres. É muito fria e tem muitas correntes de ar, e também uma atmosfera sombria.
- Ela foi construída para ser uma fortaleza, é claro - disse Eduardo. - E se parece com uma fortaleza.
- O palácio da torre me deprime, Eduardo. Não acho que Henrique vá melhorar enquanto estiver lá. Quero encontrar um lugar mais saudável para as crianças, e com o novo bebé quero ter um cuidado especial. Estou sempre pensando no pequenino João e me perguntando se eu tivesse ficado aqui...
- Por favor, não deixe que minha mãe a ouça dizer isso. Ela é louca pelas crianças e, como você sabe, praticamente não as perde de vista. Ela está meio eufórica, meio apreensiva, quanto à novidade de Beatrice. Adoraria ter todos aqui sob seus cuidados.
- Eu sei, é claro, que ela fez o possível pelo pequeno João, e não acho que houvesse alguma coisa que eu poderia ter feito para salvá-lo. Mas quero, mesmo, escolher uma casa para as crianças, e que seja um local saudável. Em alguma região do interior.
- vou lhe dizer o que precisamos fazer - disse Eduardo. Depois que todas as cerimónias da coroação tiverem acabado, vamos para Windsor. Acho que aquele será o lugar que você irá escolher.
- Oh, Eduardo, você é tão bom para mim!
Eduardo tornou a toma-la nos braços e acariciou-lhes os belos e compridos cabelos pretos. Comparou-a, como fazia com frequência, à sua mãe, a agradeceu a Deus por lhe dar uma esposa como aquela.
A animação da coroação não melhorara o estado do pequeno Henrique. Ou talvez a doença que estava lhe tirando as forças estivesse a caminho do seu ponto culminante. Houve então um evidente declínio na saúde dele.
A rainha-mãe ficou num estado de grande angústia - muito mais do que a rainha, cuja gravidez parecia tê-la dotado de uma certa serenidade. Mas a rainha-mãe, àquela altura, já se convencera de que Margaret não aparentara estar tão bem quanto deveria, e confidenciara à rainha que tivera uma conversa com Alexandre, que partilhava de sua preocupação.
O tratamento que Margaret recebera da primeira vez em que fora para a Escócia, na condição de menina-esposa, tivera um efeito sobre a sua saúde do qual jamais se recuperara inteiramente. E agora que o pequenino Henrique mostrava sinais de se tornar cada vez mais fraco, a rainha-mãe temia que Deus tivesse desprezado a família real.
A morte nunca vinha sozinha, dizia ela. O pequeno João fora seguido, muito depressa, pelo seu querido marido, e desde então ela passara a ter medo do que pudesse acontecer aos seus entes queridos.
Eduardo ordenou que vários carneiros fossem abatidos, para que o garotinho fosse envolvido pelas peles. Aquilo era considerado bom para quem sofria de ataques de calafrios, porque se achava que o calor animal fornecia o aquecimento necessário a uma pessoa doente.
Foram feitas mais imagens de cera do corpo dele e levadas a vários santuários, para serem colocadas ali e queimadas em óleo. Cem viúvas pobres foram contratadas, a fim de que pudessem realizar vigílias nas igrejas, rezando para a recuperação do menino. Os médicos mantinham atenção constante, e a rainha ou a rainha-mãe mantinham uma vigília ao lado da cama dele.
Falavam sobre qual poderia ser o seu mal. O pequeno João sofrera da mesma maneira. A criança parecia encolher e ficar mais apática a cada dia que passava.
- Por que isso acontece com os meninos? - perguntou a rainha.
- Parece uma maldição - disse a rainha-mãe. - Às vezes me pergunto se isso tem alguma coisa a ver com os Montfort.
- Por que ser tão cruel assim com um menino?
- Talvez porque esse menino pudesse ser rei um dia.
- Eu odeio a torre - disse a rainha. - Ela me deixa muito apreensiva. Não suporto pensar nos meus filhos vivendo lá. Eduardo disse que posso escolher o lugar que quiser, que iremos morar lá, mas é claro que o rei precisa se deslocar muito, e creio que é bom ficarmos todos juntos. Acho que vou escolher Windsor. A senhora acha que seria mais saudável para Henrique?
- Tenho certeza de que sim, querida. Já visitou Windsor recentemente?
- Não, mas pretendo ir até lá! Temos de ficar aqui em Westminster para as comemorações.
Os olhos da rainha-mãe ficaram momentaneamente embaciados quando ela se lembrou da sua coroação. Ela fora levada ao Palácio da Torre e não percebera que era sombrio; talvez fosse porque a sua coroação tivesse sido mais pomposa do que qualquer outra e porque tivesse estado bem cônscia do brilho de aprovação que havia nos olhos do marido. Ah, ser jovem novamente, voltar para toda aquela glória, com o reconhecimento de que era inteligente e, acima de tudo, tão bonita, que o marido a adorava! Aquela pequena criatura meiga - por melhor que fosse - nada poderia saber da felicidade que coubera a Eleanor de Provença.
E agora as angústias tomavam conta dela. Eduardo era o filho querido, mas era duro com ela, passando-lhe uma reprimenda por gastar algum dinheiro. Eduardo não fazia ideia de como era viver com elegância. Ela esperava que ele não fosse adotar um estilo parcimonioso. Estava preocupada com o pequeno Henrique, que estava definhando como o jovem João, e sabia que o lugar para onde eles se mudassem não faria diferença alguma. O que dizer de Margaret, que nunca recuperara plenamente as forças? Beatrice estava grávida, e Eleanor sempre ficava com medo quando elas tinham filhos. Estava ficando doente de tanto se preocupar.
Deixou que a rainha falasse sobre as vantagens de Windsor em relação a Westminster. De nada adiantaria amedrontar a pobre jovem com os seus temores.
Ela mesma falou sobre Windsor e de quanto seu marido o adorava.
- Ele fortaleceu as defesas - disse ela - e reconstruiu o muro ocidental. Você precisa ver a torre do sino, querida. Foi ele que mandou construir. Ele era um génio em arquitetura, e adorava. Se o povo não tivesse sido tão tolo e não tivesse importunado tanto sempre que ele queria gastar algum dinheiro para embelezar castelos, ele teria feito muito mais.
- Eu gosto de Windsor - disse a rainha. - Gosto do rio e acho que o ar será fresco e bom para Henrique.
- Sem dúvida. Meu marido sempre disse que era. Acho que o castelo era o seu local preferido. Como falávamos e nos animávamos com as modificações que ele fez por lá! Ele insistia em murais, que eram sempre de natureza religiosa. O rei era um homem muito piedoso. Ah, ele era tão bom! Adorava a cor verde. Também gostava do azul e do roxo. A gente percebe logo isso, quando se entra naqueles aposentos. Foi logo depois do nosso casamento que ele fez essas modificações no castelo. "Para você, querida", dizia ele, "e se houver alguma coisa de que não goste, deve me dizer." Ele fez quartos dando para os claustros, e mandou fazer um canteiro de ervas para mim... Sim, querida, você vai ser feliz em Windsor.
Infelizmente, a cada dia o menino parecia ficar mais fraco, e a rainha ficou num dilema. Deveria levá-lo para o interior, ou seria mais sensato deixá-lo onde estava? Enquanto isso, contratou mais viúvas para as vigílias, e mais imagens foram queimadas em óleo.
A viagem até Windsor seria muito longa, mas a rainha sentiu a necessidade de levar o filho para longe de Londres, de modo que tomou as providências para ir com ele ao Priorato de Merton, onde poderiam ser feitas orações pela sua recuperação.
- Pode ser - salientou ela para Eduardo - que se elas forem feitas num lugar santo, Deus nos ouça.
E assim, ela levou o garotinho ao Priorato de Merton que, por não ser longe de Westminster, significava que a viagem não seria muito cansativa. Quanto ao menino, ficou muito contente por ir, desde que a mãe o acompanhasse.
- Lá - disse-lhe ela - você vai ficar bom. Vai crescer e se transformar num menino grande e forte.
- Como meu pai? - perguntou ele.
- Exatamente como ele - garantiu-lhe a rainha.
Mas preferia tê-lo levado para Windsor. Como seria agradável, para o menino, ficar naqueles aposentos embelezados pelo avô! Ela poderia contar-lhe as histórias das pinturas que adornavam as paredes. Um priorato, pela sua própria natureza, era um lugar tranquilo.
- Assim que você ficar bom - disse ela -, nós vamos para Windsor.
- Todos nós? - perguntou o garotinho. Ela sacudiu a cabeça.
- Seu pai, sua avó, sua irmã e eu... vamos estar todos lá, dentro em pouco haverá mais um irmãozinho ou uma irmãzinha para se juntar a nós. Você vai gostar, Henrique.
Henrique achou que sim, e se sentia evidentemente satisfeito por estar com a mãe. Nunca se esquecera do longo tempo que ela estivera longe dele.
"Quando você ficar bom..." Vivia a rainha dizendo essa frase para ele, mas todos os dias, ao levantar, e mesmo durante a noite, ia até a cama dele e se assegurava de que o filho já não os tinha deixado.
À medida que os dias se passavam, ela sabia que Merton nada tinha a oferecer a ele.
Talvez, pensou ela, devêssemos voltar para Westminster.
Mas Henrique não voltou mais. Certa manhã, quando ela se dirigiu à cama dele, percebeu que as vigílias das viúvas, as imagens em óleo e as peles de carneiro recém-abatidos de nada tinham adiantado.
O pequeno príncipe se fora, como acontecera com seu irmão João antes dele.
Seu ânimo era sustentado pela criança que ela estava gestando.
- Vai ser menino, você vai ver - disse Eduardo. - Deus levou Henrique, mas vai nos dar outro menino. Tenho certeza, meu amor.
Eduardo estava perturbado, mas não tanto quanto ela e a rainha-mãe. Uma grande depressão tomara conta desta última.
- Nada dá certo para mim, desde que o rei morreu - reclamava ela.
Aqueles que a cercavam poderiam ter dito que nada dera certo para os outros enquanto ele vivera, mas não tinham coragem de dizer-lhe isso.
Era como se ela tivesse tido uma premonição de uma desgraça, porque, pouco depois da morte do pequeno príncipe, chegara um mensageiro da Escócia com a notícia que ela vinha temendo.
Alexandre o enviara para dizer-lhe que Margaret estava realmente muito doente e que quando eles voltaram para a Escócia depois da coroação a saúde dela piorara.
A rainha-mãe, desvairada pela dor, estava pronta para partir imediatamente para o lado da filha, mas Eduardo a conteve.
- Nada disso, mamãe - disse ele -, a senhora não deve ir. Espere um pouco. Haverá outras notícias mais tarde.
- Não ir! Quando minha filha está doente e precisa de mim! Você sabe que quando Margaret esteve prisioneira naquele miserável castelo de Edimburgo, eu insisti com seu pai para partir imediatamente, a fim de que pudéssemos ir até onde ela estava. Acha que ele tentou me deter?
- Não, querida mãe, sei que ele não tentou. Mas este caso... este caso é diferente.
- Diferente! Até que ponto? Se um filho meu precisa de mim, é lá que eu estarei.
Eduardo olhou para ela com um ar triste, e a horrível verdade foi percebida por ela.
- Há mais alguma coisa - disse ela, lentamente. - Eles não me disseram a verdade... - Eleanor aproximou-se dele e colocoulhe as mãos no peito. - Eduardo - disse ela baixinho - me diga.
O rei a puxou contra ele e apertou-a com força nos braços.
- Há alguma coisa mais. Eu sei - bradou a rainha-mãe.
Então o ouviu dizer o que ela temia.
- Sim, mãe querida, é verdade que há alguma coisa mais. Eu queria que isso fosse dito com delicadeza...
- Então... ela se foi... minha Margaret... morta.
- Alexandre está desolado. Ele tinha chamado os melhores médicos, os mais nobres prelados, para ficarem ao lado dela. Não havia nada que pudesse ser feito. Ela... a nossa Margaret... morreu de forma tranquila. Ela agora está descansando.
- Mas ela era muito jovem... minha garotinha... uma simples criança.
- Estava com 34 anos, majestade.
- É muito cedo para morrer... muito jovem... muito jovem... Estão todos morrendo... e no entanto, eu vou ficando.
- E vai ficar conosco ainda por muitos anos, se Deus quiser
- disse Eduardo. - Eu compreendo a sua dor. Sinto a mesma coisa. Permita que a leve até o seu quarto. Devo mandar a rainha para ficar com a senhora? Ela tem uma delicadeza rara para ocasiões como esta.
- Primeiro, me conte.
- Sei apenas que ela ficara doente durante algumas semanas. Na verdade, ela nunca foi saudável.
- Sei muito bem disso. Eles minaram a saúde dela, aqueles malvados lá de cima. Nunca vou perdoar os escoceses por isso. Ela devia ter ficado comigo. Nunca devíamos ter deixado que partisse.
- Margaret tinha sua própria vida. Tinha o marido e os filhos, e os adorava. Ela se sentia feliz na Escócia depois que os dois cresceram e ficaram juntos. Vamos agradecer a Deus por ela não ter sofrido. Segundo Alexandre, a morte dela foi tranquila, no castelo de Cupar. Eles tinham ido a Fife, para uma curta temporada, e lá ela caíra de cama. Alexandre diz que ela foi enterrada com uma grande cerimónia em Dumfermlme e que a Escócia inteira chora por ela.
- Minha filha... minha menina... - lamentou a rainha. Eu gostava tanto dela, Eduardo! Ela era a filha favorita, depois que foi para a Escócia. Nunca esquecerei a angústia que sofremos quando soubemos do sofrimento dela. E agora, está morta... Pobres dos filhos! Como vão sentir falta... E Alexandre... Ele a amava, eu sei. Quem poderia deixar de amar Margaret...
- vou levar a senhora para junto de minha mulher - disse Eduardo, com delicadeza. - Ela saberá consolá-la melhor do que eu.
Enquanto a corte lamentava a morte da rainha Margaret da Escócia, Beatrice deu à luz uma menina.
Foram um parto e um puerpério difíceis, e os médicos acharam que o choque da morte da irmã afetara Beatrice de forma negativa, e por isso a saúde dela começou a decair.
Felizmente para a rainha-mãe, ela pôde ficar com a filha, mas isso pouco lhe serviu de consolo, porque ela percebeu que Beatrice parecia tão debilitada quanto a irmã Margaret.
Beatrice tossia muito; cansava-se com facilidade, e uma terrível premonição tomou conta da rainha-mãe.
- Será que Deus realmente me abandonou? - perguntou ela à nora.
A rainha respondeu que ela não devia perder as esperanças. Beatrice tinha sua filhinha querida, a quem dera o nome de Eleanor, como disse que faria, e muito em breve iria se recuperar. Ela já tivera cinco filhos antes do novo bebé e atravessara as provações de forma satisfatória.
Mas a saúde de Beatrice não melhorava, e o marido ficava cada vez mais preocupado.
A rainha-mãe animava-o quando ele lhe falava de seus temores. Ele realmente a amava. Aquilo era óbvio, e ela reconheceu, então, que aquilo era algo pelo qual devia ser grata. Todos os seus filhos tinham feito casamentos felizes, o que era uma coisa muito rara, em especial nos círculos reais, e ela acreditava ter sido devido ao exemplo que ela e o pai deles tinham dado.
- Uma das coisas que ensinamos a eles - disse ela a Lady Mortimer, uma de suas amigas mais íntimas - foi o prazer da vida em família e que, quando ela é ideal, não existe nada neste mundo que se compare com a felicidade que ela proporciona.
Mas o que João da Bretanha tinha a lhe dizer não lhe serviu de consolo.
- Majestade - disse ele -, a saúde de Beatrice ficou prejudicada na Terra Santa. Ela nunca devia ter ido, mas insistiu e talvez seja abençoada por isso, mas estou muitíssimo preocupado com ela. A umidade do ar, aqui, agrava o estado de seus pulmões. Quero levá-la de volta para casa, na Bretanha, e isto já.
A rainha-mãe ficou em silêncio. Seu íntimo clamava contra aquilo. Beatrice era o seu grande consolo, agora que perdera Margaret. Ao cuidar daquela filha, ela poderia encontrar algum consolo. Mas se a filha fosse embora, ela ficaria muito solitária! E no entanto, ela vira a saúde da filha deteriorar-se, e talvez João estivesse certo. Claro que ele estava olhando para ela com uma tal expressão de súplica, que ela achou impossível protestar.
- Beatrice está ansiosa por ver os filhos - disse João. - Está no dilema de escolher entre a senhora e eles. Muitas vezes censura a si mesma por tê-las deixado para me acompanhar na cruzada. Acredito que se eu a levar para casa, ela poderá se recuperar.
Quaisquer que fossem os defeitos da rainha-mãe, ela nunca deixara de fazer o que era melhor para os filhos.
Muito triste, ela se despediu da única filha que lhe restava.
Ela tentava não se preocupar com Beatrice. João lhe assegurara que mandaria mensageiros com frequência, com notícias da saúde da filha. Um repouso em casa seria bom para Beatrice, embora acreditasse, no fundo do coração, que se Margaret tivesse ficado sob seus cuidados, em vez de voltar para a sombria Escócia, teria cuidado dela a ponto de fazê-la recuperar a saúde.
Voltou a atenção para a neta Eleanor, que precisava ser consolada por causa da perda do irmão Henrique. Embora fosse muito criança, dentro em pouco seria preciso pensar no noivado dela com alguém de uma família da qual pudesse surgir alguma vantagem para a Inglaterra. E depois, havia a rainha, que a cada semana ficava maior e dentro em breve teria de dar à luz - Deus quisesse que, daquela vez, um menino. Se ela tivesse um menino, todos ficariam mais animados. Seria uma prova de que Deus não se voltara de todo contra eles. com tantas mortes cruéis, dava para se começar a pensar se não era aquilo que estava acontecendo.
- Oh, Deus, mande-nos um menino - rezava a rainha-mãe; e sendo quem era, não podia deixar de acrescentar: - O Senhor está nos devendo isso.
Eduardo se encontrava profundamente envolvido com as questões de Estado. Estava preocupado com um possível problema na fronteira galesa, e aquelas questões o ocupavam tanto, que ele parecia sentir menos a tristeza da família do que a rainha-mãe esperava.
- Ele não é igual ao pai - lamentava-se ela. Mas quem podia ser igual àquele homem adorado? Henrique teria esquecido tudo, no seu sofrimento pela morte da filha. Ele jamais deixara que as questões de Estado viessem antes do seu amor pela família.
O filho da rainha-mãe, Edmund, duque de Lancaster, estava se preparando para embarcar para a França. Quando foi se despedir, ela mal pôde conter a emoção.
- Parece que vocês todos estão indo embora - lamentou-se a rainha-mãe.
Edmund tinha um espírito alegre. Despreocupado e popular junto aos amigos - talvez por ser sabidamente generoso -, faltavalhe a seriedade do irmão. Claro que ele não tinha as responsabilidades do rei.
- Voltarei dentro de pouco tempo, querida senhora - assegurou ele. - com a minha mulher.
- Ah, Edmund, espero que ela seja uma boa esposa para você.
- Tenho certeza de que vai ser - disse ele, com o seu humor característico.
Ela o olhou com afeição - os ombros ligeiramente curvos, que lhe haviam valido o injusto apelido de Corcunda, faziam com que ela sentisse um carinho muito grande por ele. Era muito mais vulnerável do que Eduardo, e ela estava começando a ter um certo ressentimento para com Eduardo, porque este mostrava claramente que não precisava dela e não ia dar ouvidos aos seus conselhos. Aquele caso da ponte criara um fosso entre os dois. Ele sempre seria o seu filho adorado, é claro, seu primogénito, o jovem mais bonito que ela já vira - mas estava mostrando nitidamente que não precisava dela, e ela sempre estivera no cerne da família. Para o rei era bom, pensou ela, ter uma esposa dócil sem ter na cabeça outro pensamento que não o de dizer "sim, sim, sim" a tudo o que ele queria. Isso ia bem com Eduardo. Ele não iria tolerar uma mulher enérgica.
A rainha-mãe sorriu, pensando no orgulho que o marido sentia por ela, e como jamais teria pensado em agir contra ela. Oh, Henrique, Henrique, se ao menos você estivesse comigo agora!
- Meu filho querido - disse ela para Edmund -, cuidado com os franceses. Minha irmã se casou com o rei francês e eu tenho recebido ajuda deles - principalmente por intermédio dela -, mas você deve ter cuidado com eles.
- Não se preocupe. Saberei cuidar de mim e de meus interesses.
- Ela é uma mulher bonita, pelo que ouvi dizer, e já provou que pode ter filhos.
- Ela tem uma filha do primeiro casamento, Jeanne. Espero que eu e ela tenhamos filhos e filhas.
- Não há nada que possa trazer conforto maior à família. Faleme sobre Blanche, sua futura esposa, e filha de Robert de Artois.
- E por intermédio dele, de sangue real. Como a senhora sabe, o primeiro marido dela foi Henrique, conde de Champagne e rei de Navarra.
A rainha-mãe confirmou com um gesto da cabeça.
- Eu me lembro bem de Robert. Eu estava na França quando minha irmã se casou com o rei francês. Aquilo criou um elo entre a França e a Inglaterra quando me tornei mulher de seu pai. Mas embora eles digam que o marido de minha irmã era um santo e o chamem realmente de são Luís, nunca confiei neles. Seu pai iria aprender muitas lições amargas com eles.
- Este será um casamento bom, mãe querida. Por intermédio de Blanche, a Champagne passará para mim até que Jeanne, filha dela, atinja a maioridade para herdá-la ou se casar.
- E você vai viver lá... longe de todos nós?
- vou ficar viajando de um lado para o outro. Não pense que me sentirei contente em viver no exílio. Trarei minha mulher para a Inglaterra assim que tiverem celebrado o nosso casamento lá. Fique certa de que vai me ver em breve.
- vou lhe cobrar essa promessa, meu filho.
- Se Eduardo precisar de mim, pode estar certa de que estarei do lado dele.
- Lembre-se disso, meu filho querido. As famílias devem ficar unidas.
Foi um dia triste, para ela, quando o filho partiu. Mas sabia que para ele aquilo era bom. O filho precisava de uma esposa. Talvez tivesse sido melhor se Aveline de Fortibus tivesse vivido e herdado, mas uma vez mais o destino fora cruel para com eles.
Ela viajou até Windsor com a rainha, que estava certa de que aquele seria o lugar ideal para a instalação da residência principal. Não ficava tão longe assim de Westminster, onde o rei teria de estar com muita frequência, e o ar era bom. Talvez ela tivesse o novo filho ali.
- vou dizer quando ficar cansada, naturalmente - disse a rainha -, ou se sentir o esforço.
- Não, minha querida - disse a rainha-mãe. - Eu é que vou dizer quando você tiver que cavalgar, pois estou certa de que você pode muito bem ser menos cuidadosa do que eu em relação à sua saúde.
A rainha, então, obedeceu à sogra e viajou de liteira, mesmo quando não sentia vontade alguma.
- Sim - continuou a rainha-mãe -, Henrique gostava muito de Windsor, embora, é claro, fosse lá que o pai dele ficara quando os barões se comportaram tão mal e o obrigaram a assinar a Magna Carta. Henrique sempre dizia que qualquer coisa que lembrasse aquilo lhe seria repugnante. Mesmo assim, ele fez alguns acréscimos maravilhosos. Aumentou o Pátio Inferior e acrescentou uma belíssima capela. Era de se pensar que com tudo o que o rei fizera, ele e eu fôssemos ser mais felizes. Era um homem muito religioso.
A rainha ficou calada. Era demasiado delicada para salientar que Eduardo lhe contara que o pai dele - apesar de bom e adorado pela família - pouca ideia fazia da melhor maneira de governar.
A rainha maravilhava-se com a beleza do interior - os campos verdes, as ricas terras cobertas por florestas, e o serpeante rio Tamisa que corria perto. Aquele era o lugar que ela iria escolher para os filhos, e passou a imaginar se não poderia ter salvado o pequeno Henrique se o tivesse levado para lá.
Em Windsor, a rainha-mãe foi golpeada uma vez mais. Ficou sabendo tão logo os mensageiros chegaram da Bretanha. A rainha foi correndo para o lado dela e a encontrou prostrada de dor.
Era o que ela receara. Beatrice morrera. Enfraquecida pelo nascimento de um filho, do qual jamais se recuperara, e arrasada pela notícia da morte da irmã, Beatrice entrara num declínio semelhante ao que matara a irmã e, apesar dos incansáveis esforços do marido no sentido de restabelecer-lhe a saúde, se tornara mais fraca a cada dia que passava.
Todos os remédios conhecidos tinham sido usados; os melhores médicos tinham ficado ao lado de sua cama - tudo em vão.
Seu corpo estava sendo mandado para a Inglaterra, porque fora aquele o seu desejo. Ela sempre quisera ser enterrada no arco da parede norte do coro em frente ao altar da Igreja de Cristo em New Gate, a igreja que ela mesma fundara antes de se casar.
Isso deveria ser feito, disse o marido João, e o corpo foi enviado para a Inglaterra, mas o coração fora retirado e deveria ser colocado na abadia de Fontevraud, onde seu bisavô e sua bisavó, Henrique II e Eleanor de Aquitânia, jaziam juntos com os restos mortais de seu tio-avô, Ricardo Coração de Leão.
A rainha-mãe ficou atordoada com o choque. Não podia acreditar que aquilo tinha acontecido. Tantas mortes... mortes sem sentido... num período muito curto! Parecia, mesmo, que a mão de Deus se voltara contra ela.
Trancou-se em seus aposentos e esbravejou contra o TodoPoderoso. Depois, lembrou-se de seu adorado marido, que fora um homem profundamente religioso, e imaginou o quanto ele teria ficado contrariado se pudesse ouvi-la. Aquilo a fez cair na realidade.
- Se esta for a minha cruz - disse ela -, terei que carregála. Mas quando o Senhor o levou, levou a melhor parte de minha vida, e agora o Senhor parece querer levar o que me resta.
Pareceu que Deus dera ouvidos às suas vituperacões e se arrependera realmente do que fizera, pois pouco depois do funeral de Beatrice a rainha começou os trabalhos de parto e, para alegria de todos, deu à luz um filho saudável.
Houve uma grande alegria por toda a corte. Era um bom presságio. Os pequeninos João e Henrique tinham morrido, mas a rainha era jovem e tinha filhos sem dificuldades. E ali estava o menino que todos queriam.
A rainha-mãe saiu de sua letargia enlutada e começou a fazer planos para o garoto.
Eduardo ficou tão satisfeito que, quando a rainha, que raramente expressava um desejo que não fosse o dele, disse que gostaria de chamar o bebé de Alfonso, em homenagem ao pai dela, concordou.
A rainha-mãe ficou estupefata.
- Ele devia se chamar Eduardo. Não é o herdeiro do trono? Alfonso! Você pensa que os ingleses vão receber de bom grado um rei Alfonso?
- Quando ele subir ao trono - disse o rei -, teremos que dar-lhe um novo nome. Enquanto isso, a mãe dele quer que seja Alfonso, e Alfonso será.
Enquanto Alfonso crescia, o mesmo acontecia com as esperanças da família. Ela havia atravessado a tempestade da má sorte que levara a morte a tantos de seus membros; o tempo, agora, estava bonito e a viagem parecia plena de promessas.
O Príncipe Galês e a Demoiselle
COMO SE ESPERARA, surgiram problemas na fronteira galesa.
Gilbert de Gloucester chegou a galope a Westminster, à procura do rei, para dar-lhe a notícia. O rei recebeu Gilbert numa das salas ricamente pintadas do palácio
que seu pai restaurara.
Eduardo soube logo que a notícia era má.
- Llewellyn? - disse ele, antes mesmo que Gilbert começasse a falar.
- Isso tinha que acontecer, majestade. Os Barões das Fronteiras têm mandado notícias sobre problemas por lá. Parece que os galeses descobriram uma profecia do mago Merlim que diz que um homem chamado Llewellyn vai reinar não apenas o País de Gales, mas também a Inglaterra.
O rei ficou pálido. Ele tinha mais medo de profecias do que de exércitos, pois sabia o ponto até o qual o povo podia ser afetado por elas.
- E estão dizendo que este é o tal Llewellyn escolhido?
- Isso mesmo, majestade.
- Por Deus, vou mostrar a esse Llewellyn que ele jamais será rei da Inglaterra enquanto o rei verdadeiro viver.
- Achei que Vossa Majestade ia dizer isso mesmo.
- Que ousadia é essa desse homem? Que direito ele tem? É descendente do Conquistador?
- Ele pretende unir-se à linhagem do Conquistador, majestade.
- São realizações, não intenções, de que ele vai precisar se quiser tornar seus sonhos realidade. Diga-me, por favor, como é que ele pensa que vai se tornar membro de nossa família?
- Por intermédio da esposa.
- Esposa! Ele é solteiro.
- Mas pretende se casar em breve. Vossa Majestade deve-se lembrar de que certa vez ele esteve noivo de Eleanor de Montfort, aquela a quem chamam de Demoiselle.
- O pai dela concordou com o noivado quando estava levantando os galeses para lutarem contra o meu pai.
Gilbert confirmou com a cabeça.
- Estão dizendo que, naquela época, os dois ficaram apaixonados. Deve ter sido há quase dez anos, e a Demoiselle era uma menina muito jovem, mas a sua juventude não evitou que ela ficasse profundamente apaixonada.
Eduardo encolheu os ombros.
- Majestade - disse Gilbert -, não se deve menosprezar este caso. Não se esqueça de que a Demoiselle tem sangue real através da mãe... irmã do pai de Vossa Majestade. Ela é sua prima, e se se casar com ela, Llewellyn vai achar que não lhe falta o direito de pleitear o trono inglês.
- Neste caso, ele deve estar doido.
- Ele está alucinado pelo sonho de glória. Diz que vai fazer com que a profecia de Merlim se torne realidade.
- E como fará isso?
- Vai tentar conseguir a Inglaterra mediante uma conquista.
- E você acha que vou ficar parado e deixar que ele aja?
- Por Deus e por todos os anjos, não. Vossa Majestade irá lutar. Irá mostrar a ele quem é que manda aqui. Pobre Llewellyn, no fundo do coração eu posso sentir pena dele quando penso no que Vossa Majestade fará com ele quando ele se arriscar a sair da proteção de suas montanhas galesas. Mas ele pretende criar esse elo com o trono através do casamento com a Demoiselle.
- Que está no exílio com a mãe e com os seus perversos irmãos.
- A notícia é esta, majestade. Ele mandou buscar a Demoiselle. Eles vão se casar quando ela chegar ao País de Gales.
- Vinda da França?
- Ele mandou um navio buscá-la. Ela estará a caminho dentro em pouco. Depois que estiver casado com ela, fará mais do que um ataque à região da fronteira. Os galeses
estão todos do lado dele... e talvez haja outros mais. Como foi divulgado que Merlim profetizara que um Llewellyn seria rei da Inglaterra, há quem comece a acreditar que isso pode ser verdade.
Os olhos de Eduardo estavam semicerrados. Ficou por alguns segundos ali de pé, as longas pernas separadas, com o olhar distante. Depois, teve um lento sorriso.
- Você está dizendo que a Demoiselle vai sair do exílio para se casar com ele, não é?
- É verdade, majestade.
- Acha que ela vai chegar até ele? Eu, não. A primeira coisa a fazer, Gilbert, é mandar navios para interceptarem a Demoiselle. Vamos tomar as providências para que Llewellyn não receba a sua noiva.
Num pequeno castelo na cidade de Melun, situada às margens do rio Sena, Eleanor de Montfort, condessa de Leicester, estava morrendo. A seu lado sentava-se a filha - uma bela jovem de uns 23 anos - que era conhecida, mesmo na família, por Demoiselle.
A condessa moribunda estava mais tranquila desde que a mensagem lhe chegara uns dias atrás, pois estivera profundamente preocupada com o que aconteceria à sua filha se ela morresse. Agora havia a chance de que ela pudesse ser feliz. Llewellyn, o príncipe de Gales, queria casar-se com ela. Ele, explicava a mensagem, pensara sempre nela aqueles anos todos. Nunca se casara, devido ao seu afeto por ela e por considerar que os dois estavam noivos. O que queria, mais do que tudo, era que ela se tornasse sua esposa.
Qualquer dia daqueles, viria a notícia da chegada do navio. A condessa sabia que a filha não a deixaria enquanto ela vivesse, mas tinha plena ciência de que não lhe restavam muitos dias mais.
Estava pronta para partir. Sua vida fora agitada, e tinham sido muitas as oportunidades de pensar no passado enquanto jazia ali na cama, doente. Era estranho o quanto se lembrava da época de sua juventude e como aquela fase parecia muito mais vívida do que o que acontecia em volta dela naquele momento!
Mas depois que se fosse, seu filho Almeric levaria a irmã para o País de Gales, e lá a querida Demoiselle tornar-se-ia esposa de um homem que gostava dela e iria idolatrá-la.
Tinha acontecido tanta coisa horrível à sua família, que ela esperava o pior. Talvez devesse ter esperado acontecimentos violentos quando se casara com o grande Simon de Montfort. Mas jamais se arrependeria. Muitas vezes, dissera para si mesma, recordando todas as tragédias que se seguiram àquele casamento afoito: "Mas eu faria tudo de novo."
Simon de Montfort era um nome que seria lembrado com respeito para sempre. Um homem estranho, um homem bom, um homem de ideais, ele tivera seu apoio, mesmo apesar de ter-se colocado contra o irmão dela, o rei Henrique. Pobre Henrique, ela também o adorava. Ele sempre fora muito bom, muito ansioso por que todos gostassem dele, mas tinha feito um mau reinado; sua extravagância e a de sua rainha tinham quase trazido de volta os dias terríveis do rei João; e Simon fora obrigado a fazer o que fizera, muito embora acreditasse que a guerra civil era uma das maiores desgraças que podia se abater sobre um país; e quando o marido lutava contra o irmão de sua mulher, era realmente uma tragédia. Ela se lembrava da vez em que seu irmão Henrique e seu sobrinho Eduardo tinham sido levados para Kenilworth como prisioneiros de seu marido e colocados sob os cuidados dela. Tratara-os com respeito; quisera sacudir o irmão e dizer: "Por que você não percebe o que está fazendo? Simon tem razão." Simon teria reinado com inteligência. Fora Simon que inaugurara o primeiro Parlamento. Simon queria um país pacífico e próspero. Henrique poderia dizer que também queria isso, e queria, mesmo, mas também queria dinheiro... dinheiro e terras para que pudesse atender às exigências de sua gananciosa mulher. No entanto,
ela amara os dois - Henrique, seu irmão, e Eleanor de Provença, sua cunhada. Eles tinham feito um mau reinado; tinham sido inimigos mortais de seu marido; mesmo assim, ela adorava a todos.
Que problema difícil a vida preparava, com guerra no país e guerra na família! Violência gerara violência. O que tinham feito ao seu marido e seu filho Henrique em Evesham iria persegui-la enquanto ela vivesse. Ela tinha pesadelos com Evesham. Aquele corpo adorado ser tratado daquela maneira! Não era de admirar que seus filhos Guy e Henrique tivessem agido daquela forma. Eles tinham venerado o pai. Tinham querido vingança.
E o caso acabara daquele jeito, com os orgulhosos de Montfort no exílio. Guy, um fugitivo procurado pelo assassinato de Henrique da Cornualha, que ele e o irmão Simon tinham cometido numa igreja em Viterbo. Um crime que chocara o mundo, porque Henrique da Cornualha fora assassinado enquanto rezava diante de um altar e, depois de morto a golpes de espadas, seu corpo fora obscenamente tratado, como acontecera com o de Simon de Montfort depois de Evesham. Aquilo deveria ter sido uma grande vingança pelo que acontecera ao pai deles. Pobre Guy! Pobre Simon! Tinham escolhido a vítima errada, um homem conhecido pela bravura e pela bondade; eles nunca deveriam ter mutilado o cadáver, e agora o jovem Simon estava morto, mas ninguém jamais esqueceria o assassinato em Viterbo, e ela muitas vezes se perguntava o que acabaria acontecendo com Guy.
Tantos filhos promissores, e tinham acabado daquela maneira! Ela chamou a filha e gostou de admirá-la. Era alta, graciosa, uma Plantageneta. Não havia dúvida de que Llewellyn ficaria satisfeito com a esposa.
- Minha filha - disse ela -, agora não vai demorar.
A Demoiselle curvou-se para se aproximar da mãe e perguntou se queria uma bebida para se refrescar.
- Estou sucumbindo depressa, minha filha. Não, não se lamente. Este é o fim de minha vida... e foi uma vida rica... mas é o começo da sua. Você irá para Llewellyn com prazer.
- Sim, mamãe, irei para o lado dele com prazer.
- Já faz muito tempo que você o viu.
- Faz, mas naquela época nós dois já sabíamos... Estou certa de que ele não mudou e eu também não.
- Seja feliz, minha filha. Quando eu era muito jovem e recémsaída da ala das crianças, casaram-me com um velho. Quando ele morreu, pensei que não devia tornar a me casar. Falou-se na ida para um convento. Então, seu pai apareceu. Casar por amor é a melhor coisa que pode acontecer a uma mulher.
- A senhora e meu pai enfrentaram obstáculos terríveis. A mulher à morte sorriu.
- Uma aliança condenável. A filha de um rei com um aventureiro, diziam eles. Talvez seja o melhor tipo de casamento, porque as pessoas que o fazem devem querer desesperadamente isso, para desafiar todos os que as cercam.
- A senhora e meu pai queriam muito se casar, eu sei.
- Ah, queríamos. Que época, aquela! A agitação... a intriga! Suponho que eu era uma pessoa que vivia de intrigas. Agora, procuro paz. É um ponto ao qual todos nós chegamos. Quero apenas saber que você está decidida e a caminho do País de Gales. Depois, poderei morrer feliz.
- Jamais deixarei a senhora, mãe querida.
- Deus a abençoe, mas não vou detê-la por muito mais tempo. Quando o navio chegar, você deve ir. Almeric irá levá-la. Tenho muita coisa a dizer a Almeric.
- Quer que o mande vir falar com a senhora?
- Quero, minha filha. Diga a ele que venha.
Almeric de Montfort sentou-se ao lado da cama da mãe e perguntou-se quanto tempo ela poderia ter de vida e ficou imaginando que futuro haveria para ele e a irmã no País de Gales.
Ele adorava a mãe; havia venerado o pai. Era motivo de raiva o fato de o grande homem de sua época - como ele acreditava que o pai tivesse sido - ter morrido de forma tão ignóbil. Não pelo fato de ter sido morto em combate. Aquela era uma forma honrada de um homem morrer. Mas o que tinham feito com o seu corpo depois... Como tinham tido coragem de fazer aquilo? Humilhar daquela maneira os restos mortais do grande Simon de Montfort! Depois, tinham querido saber por que seus irmãos tinham feito a mesma coisa com Henrique da Cornualha.
- Você está aí, Almeric, meu filho? - perguntou a condessa moribunda.
- Estou aqui, mamãe.
- Vocês precisam ir para o País de Gales assim que o navio chegar.
- Não vamos deixar a senhora, mamãe.
- Seria melhor que partissem logo.
- Não se preocupe com isso. Tudo vai dar certo.
- Tome conta de sua irmã.
- Pode confiar em mim, querida mãe. É o que vou fazer. Ela fechou os olhos como se se sentisse aliviada.
Ela estava certa. Deveriam partir assim que o navio chegasse. A qualquer momento, deveriam chegar mensageiros para dizer-lhes que deviam ir embora. Mas sua irmã não iria concordar em deixá-la - e ele tampouco.
Desde Evesham que as fortunas da família tinham entrado em declínio. Ah, que loucura de Guy e Simon, cometerem um assassinato que chocara o mundo! Guy sempre fora violento e odiara o primo Eduardo; dizia que Eduardo tinha tudo a seu favor. Talvez naquela época, na sala de aula real, todos eles tivessem sentido inveja de Eduardo. O Menino de Ouro, o filho do rei, o herdeiro do trono. Aquele que se dava ares de grandeza e tentava mandar nos demais - mais alto do que qualquer um deles, aquele que era o escolhido para atenções e homenagens, já naquela época. Guy o odiara e tentara voltar todos contra ele. Henrique da Cornualha fora um daqueles meninos - o mais velho - e tinha sido um fiel aliado de Eduardo. Henrique, o menino nobre, que levara Eduardo pelo caminho da virtude. Eduardo, o futuro rei, Henrique, o santo. Não era de admirar que eles tivessem escolhido Henrique para vítima. Almeric podia imaginar a alegria mórbida com que Guy mutilara o corpo de Henrique.
Ah, fora uma tolice, aquilo. Colocara o mundo todo contra eles. Levara a desonra para o grande nome de Montfort. Agora, quando as pessoas o pronunciavam, falavam mais do assassinato do que do grande bem que o pai deles, Simon de Montfort, fizera pela Inglaterra.
Almeric jamais esqueceria a época em que fora acusado, juntamente com os irmãos, do assassinato. Aquilo representara um grande sofrimento para ele, porque não só tinha sido educado na Igreja, como era inocente do crime. Prenderam-no com facilidade, pois na ocasião estava trabalhando na universidade de Pádua. Graças a Deus, pudera provar que não estivera nem mesmo por perto de Viterbo quando do assassinato e, na verdade, estivera seriamente doente, com febre.
Agora, fora chamado para o lado da cama em que sua mãe jazia, e refletiu que, se aquele casamento com um membro da família real do País de Gales pudesse ser realizado e se Llewellyn se tornasse rei da Inglaterra, a sorte dos Montfort poderia ser revertida. Sua irmã, rainha da Inglaterra! O orgulhoso Eduardo, deposto! Que perspectiva gloriosa! E Merlim profetizara que um Llewellyn iria ser rei da Inglaterra. Se fosse aquele Llewellyn...
A respiração de sua mãe tornou-se mais difícil. Perguntou-se se não deveria chamar um padre.
A irmã entrou e quando olhou para a cama seus belos olhos se entristeceram.
Ajoelhou-se junto ao leito, e a mãe, sentindo sua presença, estendeu uma das mãos.
Eleanor a pegou.
- Estou aqui, mamãe.
- Vá... e seja feliz - disse a condessa. - Almeric...
- Sim, senhora.
- Tome conta de sua irmã. Prometa. Leve-a para o lado do futuro marido. Comecem uma vida nova... Não se lamentem.
Ela fechou os olhos sorrindo. Talvez, pensou a jovem Eleanor, estivesse pensando no casamento dela mesma; na época em que ela, a ousada princesa aventureira, viúva de um velho, conhecera e amara o belo Simon de Montfort - o homem que iria deixar sua presença assinalada na História -, aquele a quem chamavam de aventureiro.
Os dois tinham-se aventurado juntos e aquilo estava chegando ao fim. Ela estava morrendo, e Simon de Montfort encontrara o seu fim fazia muitos anos, no campo de batalha de Evesham.
Um suave sorriso de reminiscência estava nos lábios da condessa de Montfort, enquanto ela se retirava desta vida.
Não havia motivo para que eles postergassem, disse Almeric quando chegou a notícia de que Llewellyn, príncipe de Gales, enviara dois navios para escoltarem sua noiva até o novo lar.
A condessa foi enterrada no convento de freiras de Montargis, de acordo com os seus desejos, e depois disso a jovem Demoiselle, tendo o irmão como acompanhante, dirigiu-se para a costa, onde os navios aguardavam para levá-los ao País de Gales.
Era gratificante olhar para aqueles navios. Llewellyn enviara os seus dois melhores, bem equipados para o conforto de sua noiva. Ele mandara uma companhia de cavaleiros e soldados armados, para protegê-la caso necessário.
E assim, partiram. Enquanto a costa da França desaparecia de vista, a tripulação ficava mais apreensiva. A esperança era de que a notícia da viagem pudesse não ter caído em ouvidos ingleses, mas isso não parecia provável, pois sempre havia espiões para espalhar notícias desse tipo, e era natural que a descoberta da profecia de Merlim tivesse se espalhado pelo país inteiro. Do ponto de vista dos galeses, era bom que os ingleses soubessem. Não havia nada como uma profecia daquela natureza
para provocar o terror no coração do inimigo. Se os ingleses acreditassem que poderes sobrenaturais estavam agindo contra eles, estariam a meio caminho da derrota.
A viagem seria longa, pois a comitiva não ousava desembarcar na Inglaterra ou ser vista por navios ingleses. Portanto, a travessia do canal da Mancha seria realmente arriscada.
Os temores aumentaram quando eles avistaram a costa da Inglaterra. O navegador temia o aparecimento de um vento forte capaz de levá-los para perto da costa e, o que era pior, forçá-los a procurar um abrigo. Foi grande a alegria deles quando viram que o fim da terra estava à vista. Assim que tivessem contornado a ponta conhecida como Fim da Terra, poderiam seguir direto para o País de Gales.
Infelizmente, enquanto mudavam de curso preparando-se para seguir em direção ao norte, avistaram quatro navios mercantes seguindo em sua direção.
Os dois navios galeses não tiveram chance alguma contra eles.
Orgulhoso, o capitão inglês escoltou seus prisioneiros de volta a Bristol e imediatamente enviou uma mensagem ao rei dizendo que sua missão fora cumprida com sucesso.
Llewellyn ab Gruffyd, príncipe de Gales, ficou possesso de raiva ao saber que sua noiva fora capturada pelos ingleses.
Que bela profecia era aquela? Será que ele ia sempre ser derrotado pelos ingleses? Ele, Llewellyn ab Gruffyd, o eleito - se a profecia de Merlim realmente apontasse para ele -, ser derrotado uma vez mais pelos ingleses e bem no momento em que a sua Demoiselle ia ao seu encontro!
Ele sonhara com ela durante muitos anos. Não se casaria com nenhuma outra. Jamais a esqueceria - uma bela menina com olhos que brilharam de admiração por ele quando ela soube que iria ser sua esposa. Isso acontecera fazia muitos anos, quando o pai dela, Simon de Montfort, era um homem muito poderoso na Inglaterra e parecia que iria depor o rei. Se ao menos a situação não tivesse virado contra Simon, a Demoiselle já teria sido sua mulher há muito tempo.
O desastre fora devido a Eduardo, que fugira da prisão e derrotara o exército de Montfort - Eduardo Pernas Longas, que parecia um conquistador, e era mesmo.
Eduardo inspirara a fé que os líderes exigiam - o tipo de fé que uma profecia de Merlim podia provocar. Eduardo tinha a aparência, os modos, a força de um rei. Só o sobrenatural poderia enfrentá-lo. E Merlim profetizara...
Llewellyn jamais acreditara que Eduardo pudesse sequestrar sua noiva, e ficara abalado ao perceber que o primeiro movimento na tentativa de fazer com que a profecia de Merlim se transformasse em realidade falhara.
A vida não fora fácil para ele. Quando fora fácil para um príncipe de Gales? Quando não era perturbado pelos ingleses nas suas fronteiras, eram problemas familiares.
Em primeiro lugar, fora um azar ter nascido como o segundo filho homem de Gruffyd ab Llewellyn; não que ele não tivesse vencido essa dificuldade e Owain, seu irmão mais velho, estava agora bem seguro, sendo seu prisioneiro.
Mas o conflito familiar não era bom, e ele teria preferido ter tido irmãos leais - desde, é claro, que ele tivesse sido o mais velho. Uma série de aventuras o levara à posição atual.
O País de Gales era uma angústia constante para a Inglaterra, mas não uma angústia menor do que a Inglaterra era para Gales. Os galeses celtas eram diferentes dos ingleses. Aquela raça mista, formada por alguns dos maiores guerreiros do mundo, como os aventureiros viquingues, e com o sangue dos anglos, dos saxões e dos romanos nas veias, nascera para ser governante e conquistadora. Os galeses, tal como os celtas no norte e aqueles que viviam na parte extrema do sudoeste da Inglaterra, eram de uma raça diferente. Gostavam de cantar e tocar alaúde ou harpa, pois a música significava muito para eles; possuíam uma veia poética e uma imaginação viva, que lhes incutia a superstição. Eram cheios de fantasias; e parecia que não podiam comparar-se com aquela raça híbrida que agora se chamava de inglesa.
Fazer uma surtida partindo das montanhas e entrar em guerra com os ingleses poderia significar um desastre. Llewellyn dava graças a Deus pelas montanhas. Elas haviam evitado, muitas vezes, que o seu país fosse tomado pelos invasores ingleses.
Guilherme o Conquistador sabia que podia conquistar os galeses, mas nem mesmo ele pudera conquistar-lhes as montanhas. Foi ele que criou os Barões das Fronteiras - grandes normandos liderados por senhores feudais como os FitzOsborn e os Montgomery. Fazia duzentos anos, os Barões das Fronteiras controlavam aquela terra de ninguém.
Agora, chegara a profecia de Merlim. Llewellyn acreditava que devia ser ele o escolhido. Mas se perguntava por que o Llewellyn da profecia não tinha sido o seu avô, um poderoso guerreiro para quem muita gente se voltara à espera da libertação do País de Gales da perseguição inglesa. Todos o chamavam de LIewellyn o Grande, porque se dizia que era o maior governante que Gales conhecera em toda a sua história até aquele momento.
Devia haver um maior do que ele... o escolhido de Merlim.
Olhando para o passado, parecia ter havido muita briga entre eles mesmos. Nenhum país poderia progredir quando irmão lutasse contra irmão. Mas a realidade era aquela, e assim fora na época de LIewellyn o Grande.
Os homens do País de Gales cantavam LIewellyn o Grande, filho de lorwerth que, por sua vez, era o único filho de Owain Gwynedd que podia dizer que era legítimo. Aqueles governantes do País de Gales eram uma gente agitada e itinerante - que adorava cantar e fazer amor aonde quer que fossem. Os meninos então ficavam sabendo das proezas de seus ancestrais através das canções que eram cantadas quando se sentavam no colo de suas mães, e aquelas mães. raramente eram as esposas de seus pais.
O pai de LIewellyn, Gruffydd, era o resultado de uma ligação entre LIewellyn o Grande e uma de suas muitas amantes. Mas LIewellyn tivera uma esposa, uma das filhas do rei João da Inglaterra. O nome dela era Joan e, apesar de ilegítima, o rei a aceitara como filha, e ela, por ser uma mulher de caráter, tentara estabelecer a paz entre o País de Gales e a Inglaterra. Depois da morte do rei João, ela continuara a trabalhar em prol das relações de amizade entre o marido e seu meio-irmão Henrique III; enquanto isso, tivera um filho, Davydd, que, naturalmente, achava ter mais direito do que Gruffydd de suceder ao pai.
O País de Gales, mais do que a maioria dos outros países, precisava de um homem forte, e o velho LIewellyn, sem dúvida, fora esse homem. Ele lançara as fundações de uma grande potência e mostrara aos ingleses que Gales era um país que merecia respeito. Era, também, um homem que sabia agir com energia em suas relações familiares, como mostrara no caso de amor entre sua mulher Joan com Guilherme de Broase. Aquilo ainda era cantado em baladas.
Guilherme de Broase fora capturado por LIewellyn e mantido como seu prisioneiro. Para obter a liberdade, ele se oferecera a pagar um resgate e dar a filha Isabella como esposa do filho de LIewellyn. A oferta tentara muito LIewellyn, pois ele via em de Broase um aliado rico e poderoso. No entanto, enquanto de Broase estava preso, a esposa de LIewellyn, Joan, tivera por hábito visitá-lo na cela e os dois descobriram um grande interesse pelas canções e pelas histórias da Inglaterra, porque Joan não se esquecia de que, embora fosse esposa de um governante galês, era filha de um rei inglês. Broase e Joan se apaixonaram e, quando as visitas de sua mulher à cela de seu prisioneiro chegaram aos ouvidos de Llewellyn, este decidira preparar uma armadilha para os amantes. Fora o que ele fizera, e os dois foram apanhados. A indignação de Llewellyn fora enorme, mas ele não castigara sua mulher, nem impedira o casamento que fora combinado. Simplesmente tirara Guilherme de Broase da cela da prisão, anunciara o seu crime e enforcara-o publicamente na cidade de Crockeen, na presença de várias testemunhas.
Aquele ato fora aplaudido. Ele punira o adúltero e, ao mesmo tempo, não perdera nenhuma das vantagens que adviriam do casamento do seu herdeiro com a filha de de Broase.
Aquele tinha sido o avô do atual Llewellyn, Llewellyn o Grande. Gruffydd, seu pai, era um homem muito gordo e de uma ambição igualmente forte. Como filho mais velho de Llewellyn, sempre acreditara ser aquele que tinha mais direito aos domínios do pai, mesmo apesar de Joan ter tido aquele filho, o Davydd. Quando da morte do pai, começou a briga entre eles e Davydd, que tinha o poder maior devido à sua legitimidade, logo depois pegou Gruffyd e mandou prendê-lo.
Mas Gruffyd contava com o apoio de muitos galeses, e o bispo de Bangor, depois de excomungar Davydd, foi à Inglaterra falar com o rei e tentar interessá-lo na causa de Gruffyd. Se o rei ajudasse a recolocá-lo no seu lugar, disse o bispo, os amigos de Gruffydd estariam dispostos a pagar um tributo ao rei. Henrique jamais resistia a uma oferta de dinheiro; invadiu o País de Gales e obrigou Davydd a entregar Gruffydd, que foi levado para a Torre de Londres e lá mantido enquanto o rei encenava o julgamento de seu caso.
Embora Gruffydd não fosse maltratado, ainda era um prisioneiro. Percebeu que Henrique tentaria obter dele toda sorte de condições antes de lhe dar a liberdade e, uma noite, fez uma corda com a roupa de cama e tentou fugir por uma janela. Cometeu um erro fatal; a corda ficou comprida demais, e ele era um homem muito pesado. Foi descoberto caído no chão, com o pescoço quebrado. E aquele foi o fim de Gruffydd.
A morte do pai deles significou que Llewellyn e seu irmão eram herdeiros do País de Gales, agora governado pelo tio, Davydd, o filho legítimo do avô deles; mas dois anos depois da morte de Gruffydd, o tio morreu. Os galeses, que tinham desconfiado que Davydd se tornara demasiado cortês para com os ingleses, receberam de bom grado os irmãos Owain e Llewellyn e dividiram certas terras entre eles. Parecia uma solução amigável, e o povo esperava que houvesse paz. Além do mais, o rei Henrique convidou os dois para irem a Woodstock, onde publicamente perdoou-lhes a rebelião e fizeram um acordo de paz; mas isto envolvia assinar um documento abrindo mão de uma grande parte de terras galesas, a ponto de só Snowdon e Anglesey ficarem em poder dos irmãos.
No entanto, a paz foi mantida - embora uma paz inquieta, pois a ambição de Llewellyn era grande. Owain era menos agressivo e teria preferido não ligar para as terras perdidas e instalar-se para levar uma vida tranquila, sem uma guerra perpétua.
Mas Llewellyn não era homem de ficar passivo por muito tempo, e pouco depois entrou em desavença com Owain, que procurou o apoio do irmão mais moço, Davydd. As forças dos dois enfrentaram-se em combate e, como era de se prever, Llewellyn saiu vitorioso; capturou Owain e trancou-o na prisão; Davydd, para infelicidade de Llewellyn, conseguiu fugir para a Inglaterra.
Llewellyn decidiu, então, recuperar para o País de Gales toda a terra que pertencera ao avô, Llewellyn o Grande. Ele vira a sua grande oportunidade quando os barões, sob a liderança de Simon de Montfort, revoltaram-se contra o rei. Ele se declarara em favor deles, e fora enorme o triunfo por todo o Gales quando se soube que o rei e seu filho Eduardo eram prisioneiros de Simon de Montfort!
Fora em Hereford que Llewellyn conhecera Eleanor - a Demoiselle, uma jovem encantadoramente bonita com traços dos Plantagenetas herdados da mãe, que era irmã do rei - e que também se chamava Eleanor.
O casamento de Simon de Montfort tinha sido um dos romances da época. Mas também, Simon de Montfort era o tipo de homem que se distinguia em tudo o que realizava, até mesmo no casamento. Que homem, para roubar a irmã do rei de debaixo do nariz dele! Embora num momento de fraqueza Henrique tivesse concordado com o casamento, por mais que depois tentasse negar isso.
Eles a chamavam de Demoiselle. Llewellyn a queria. Nenhuma outra mulher serviria para ele. Podia imaginar seu avô olhando lá do céu e fazendo um gesto de concordância com a cabeça.
Uma esposa que era sobrinha do rei da Inglaterra! Uma profecia feita pelo Merlim!
- O que você está esperando? - teria dito o velho Llewellyn.
- Vá pegar o que lhe é oferecido.
Rei da Inglaterra! Assim dizia a profecia. Llewellyn I. Um título maior do que o do avô. Quando cantassem as baladas, as pessoas não iriam cantar Llewellyn o Grande, que mandara enforcar o amante da mulher. Não, iriam cantar Llewellyn I da Inglaterra e sua bela mulher, a Demoiselle Eleanor.
Mas ele dera azar. Eduardo, o novo rei da Inglaterra, não era igual ao pai. Era um homem de ação. com Eduardo, não havia perda de tempo. A Demoiselle estava indo da França para se casar com Llewellyn e havia uma profecia feita por Merlim, segundo a qual um Llewellyn iria tornar-se rei da Inglaterra. Eduardo estava decidido a impedir aquilo assim que pudesse. Por isso, capturara a noiva de Llewellyn e a mantivera presa, e a primeira manobra para provocar a realização da profecia de Merlim fracassara.
Mas aquilo era apenas o começo.
Naquele ínterim, a Demoiselle estava em algum lugar da Inglaterra, e Llewellyn estava no País de Gales.
Ele sempre se recusara a comparecer à coroação de Eduardo e jurar-lhe fidelidade. Seria aquilo vingança de Eduardo?
Llewellyn tinha de salvar a noiva. Tinha que mostrar ao povo do País de Gales que ele era o Llewellyn citado na profecia de Merlim.
Mas como?
As semanas se passavam, e a Demoiselle continuava prisioneira dos ingleses.
Eduardo ficou encantado com os marinheiros de Bristol que tinham interceptado os navios que seguiam para o País de Gales.
Entrou no quarto da rainha com a fisionomia brilhando de satisfação.
- Profecia de Merlim, hein? - bradou ele. - Por que o Merlim não estava ao largo das ilhas Scilly quando os navios passaram por lá? Por que não provocou uma tempestade e afundou os nossos navios?
- Deus nos livre! - bradou a rainha. Estava grávida outra vez, e tinha a esperança de que fosse menino, como tinham todos... ela, Eduardo e a rainha-mãe. Um não tinha falado nisso com o outro, mas todos estavam cientes de que Alfonso, com dois anos de idade, não era tão saudável quanto eles gostariam que fosse. Era bem inteligente, mas havia uma certa delicadeza nele. O mesmo acontecera com João e Henrique. A rainha pensara: não posso sofrer outra vez aquela angústia.
Agora, Eduardo não estava pensando no menino, mas na sua vitória naval que lhe trouxera uma coisa mais valiosa do que um carga de peças valiosas.
- Eles vão trazer os prisioneiros para terra a toda velocidade - disse ele.
- Pobre Demoiselle! - disse a rainha. - Vai sentir-se muitíssimo contrariada.
- Pobre Demoiselle, nada! Se ela tivesse chegado até Llewellyn, estaríamos ouvindo dizer que Merlim voltara de onde quer que esteja para ajudá-los. E isso, minha adorada, é a última coisa que eu quero. Essa profecia de Merlim é um absurdo. Tenho que provar isso aos galeses... e talvez a alguns ingleses.
A rainha teve um estremecimento.
- Como pode ser verdade? - disse ela. - Mas estou certa de que a Demoiselle está desolada e, talvez, um pouco amedrontada.
- Ninguém fará mal a ela - prometeu Eduardo.
- Exceto o fato de ela ter sido afastada do marido.
- Ele não é marido dela. Nem será, a menos que esteja pronto a negociar a libertação dela. Por Deus e todos os santos, este é um dia feliz para nós, Eleanor. Ele me deu o melhor objeto de barganha possível para minhas negociações com os impertinentes galeses.
- Ah, como eu queria que eles ficassem nas suas montanhas e nós pudéssemos viver em paz!
- Nunca viveremos em paz, meu amor, enquanto não formos um só conjunto. Se o País de Gales e a Escócia estivessem nas nossas mãos...
- Você já tem bastante coisa a controlar, Eduardo.
- Esse controle seria mais fácil com súditos leais por toda a parte.
- É de se pensar que vai ser sempre assim. Alexandre é seu cunhado, mas sempre esteve decidido a não jurar vassalagem a você.
- E agora Margaret está morta e, sem dúvida, ele vai se casar de novo e haverá novas lealdades. Não, meu amor, eu quero ver o País de Gales e a Escócia sob a coroa inglesa. Depois, poderemos ter esperança de paz.
- Duvido que a encontremos mesmo que isso aconteça. Sempre haverá rebeldes.
- Tem razão. Como vai o pequenino aí dentro?
- Debatendo-se com animação.
- Como um menino se debateria?
- Como posso saber? Só posso rezar para que desta vez seja menino.
- Até que seria muito bom se fosse.
Ele franziu o cenho. Estava pensando no delicado Alfonso, mas não queria falar de suas angústias com a rainha naquele momento. Ela não devia ser perturbada enquanto estivesse grávida. O rei tinha uma bela filha - aquela sua orgulhosa e bonita filha era a menina de seus olhos. Era a mais velha de todos... onze anos de idade, forte de corpo e alma. Uma beleza Plantageneta. Nela não havia nada de Castela. Ele não devia vangloriar-se disso. Era fazer pouco de sua rainha, sua querida Eleanor, que o deixava exultante devido à aparência e aos modos delicados e àquela tranquila força que só era exercida para o bem dele. E ele também tinha Joanna em Castela. Ele desejava que eles nunca tivessem concordado em deixar que a filha ficasse, mas iriam tê-la de volta dentro em pouco. E depois, Alfonso. Ele não parecia ter a saúde vigorosa das irmãs - pois havia notícias vindas de Castela de que Joanna era uma menina viva e vigorosa. Por que seus filhos eram fracos? João, Henrique e, agora, Alfonso. Ele poderia ter tido três meninos saudáveis da sua ala infantil. E uma filhinha enterrada em Acre. Bem, era compreensível que, nascida daquela maneira, naquele ambiente, ela pudesse não sobreviver. Mas a rainha era fértil. Se Deus quisesse, daquela vez seria um menino saudável.
A rainha estava um pouco triste, percebendo a linha de seus pensamentos.
- vou rezar para que seja menino, Eduardo - disse ela. Ele se enterneceu.
- Minha adorada, se não for, teremos o nosso menino mais tarde. Temos o nosso Alfonso. Quando ele chegar ao trono, teremos que lhe mudar o nome. Você sabe como são os ingleses. Iriam pensar que ele não era inglês bastante se tivesse um nome espanhol. O que você acha de Eduardo, hein? Eduardo II.
Ela franziu o cenho.
- Por favor, Eduardo, não fale nesse dia.
- Ah, você ficaria triste ao me ver substituído.
- Por favor!
- Desculpe, minha rainha. Não vou morrer. Veja como sou forte.
Ficou ali de pé diante dela, em toda a sua glória, as longas pernas separadas - o rei mais bonito que o país já conhecera. O rei Estêvão fora um homem bem-apessoado, mas que homem fraco! Força, beleza e um caráter severo e correto, era disso que a Inglaterra precisava e era isso que ela possuía. Mas ela também precisava de um herdeiro. Sempre era preciso haver um herdeiro. Porque a vida só poderia servir durante um certo período, e os reis, por maiores que fossem, não viviam para sempre.
Como também não sabiam, naquelas fases de conflito contínuo, quando era chegada a sua hora.
A rainha precisava ter mais um menino.
Eduardo mudou de assunto.
- Eu vim falar com você sobre os prisioneiros. Agora, temos os dois... irmão e irmã.
- Vai manter os dois juntos.
- Na verdade, não. Como vou saber o que Almeric de Montfort vai tramar? Lembre-se de quem ele é, de quem seu pai foi. Simon de Montfort! Este é um nome que deve ter sido um peso no coração de meu pai. com o meu avô, o rei João, foi a Magna Carta; com o meu pai, o rei Henrique, foi Simon de Montfort.
- E com você, meu rei, o que será?
- Não pretendo ter coisa alguma. vou ficar no comando, assim espero, e tornar a Inglaterra um país mais forte do que era quando cheguei ao trono. Nada de cartas, nada de reformadores... será este o meu objetivo. É por isso que serei muito cuidadoso com Almeric de Montfort. Já dei ordens para que seja levado para o castelo Corfe e que lá permaneça... como meu prisioneiro. Vai viver com conforto, mas devo tomar as providências para que não fique em liberdade.
- E a irmã?
- Mandei que a trouxessem para você. Você saberá como cuidar dela.
A rainha sorriu.
- vou tentar consolá-la - disse ela.
- Nunca se esquecendo de que ela é filha do grandeinimigo de meu pai e se esforça por ser a esposa de um dos meus.
- vou me lembrar disso e, também, de que ela é filha de sua tia. Ela é de sangue real e deve ser tratada como tal.
- Sei que você fará o melhor - disse o rei.
- Sempre farei o que achar melhor... para você! - acrescentou ela.
Ele sorriu, sabendo que ela dizia a verdade.
Eleanor de Montfort chegou a Windsor desesperançosa. Desde o momento em que percebera que o navio em que se achava fora dominado pelos súditos de seu primo Eduardo, ela acreditara que todas as esperanças do casamento estavam fadadas ao fracasso. Estava com 24 anos de idade e se não fosse o fato de sua família se achar no exílio, ela já teria se casado há oito ou nove anos. Para ela, tinha sido sempre Llewellyn. Ela e o príncipe galês tinham-se apaixonado à primeira vista, e ela ainda se recordava do êxtase que fora compartilhado quando os dois souberam que estavam para serem prometidos um ao outro. Muitas vezes ela ouvira falar da tumultuada passagem de sua mãe para o casamento, e que ela e seu pai tinham se casado em segredo e como os dois tinham sido obrigados a fugir do país quando a ira do rei se voltara contra eles. Aquilo era romântico e emocionante, mas muita coisa poderia ter dado errado; e Eleanor ficara muito contente pelo fato de seus pais serem a favor daquele casamento que ela queria.
Mas como a vida podia se modificar com rapidez, e quando tudo estava tranquilo como um barco no oceano, um vento cruel podia surgir e o barco, que estivera navegando calmamente, podia ser desviado do seu curso e, às vezes, feito em pedaços contra os temíveis rochedos!
O mesmo acontecera com ela. Todos aqueles anos atrás, poderia ter-se casado, e os acontecimentos se voltaram contra ela. E agora, quando realmente acreditava estar a caminho da felicidade, uma vez mais ficara frustrada.
O que Eduardo lhe reservaria depois que ela lhe fosse entregue como uma escrava? Ouvira dizer que ele era forte e implacável. Sabia que seu irmão, Guy, o odiava. O mesmo acontecia com Almeric. Guy e Simon tinham assassinado Henrique da Cornualha. Teriam gostado de assassinar Eduardo.
Eduardo devia saber disso. Ela ouvira dizer que quando lhe comunicaram o assassinato de Henrique da Cornualha, ele sentira raiva e dor, e jurara vingança. Ela sabia que há pouco tempo, depois de ter-se tornado rei, antes de seguir para a Inglaterra para reivindicar a coroa, ele fizera uma visita ao papa, a fim de pedir uma indenização pelo assassinato do primo da Cornualha. Eduardo odiava a família dela e, por isso, o que é que ela e Almeric poderiam esperar dele?
Ficara horrorizada quando levaram Almeric para longe dela. Abraçara-se com ele, e o irmão lhe sussurrara:
- Não se desespere. Lembre-se de que você tem sangue real e, o melhor de tudo, que é uma Montfort. Não deixe que eles tenham a satisfação de se jactarem de sua dor.
Mas ela fora tratada com respeito, como se ela, a prima do rei, estivesse fazendo uma visita a ele. No entanto, o rei era um homem implacável, e sabia que ele se lembraria de que o pai dela conseguira, certa vez, tirar o dele do trono, ainda que por um curto período.
E assim eles chegaram a Windsor.
A rainha, pelo que Eleanor soube, dera ordens para que ela fosse levada à sua presença.
A rainha estava na ala infantil. A Demoiselle viu uma mulher num estado muito adiantado de gestação, com um sorriso delicado, de forma alguma de uma beleza notável, mas de aparência agradável.
A Demoiselle se aproximou e caiu de joelhos.
A mão da rainha tocou-lhe o ombro.
- Levante-se, prima - disse a rainha. - O rei me disse que você estava para chegar.
Olhos bondosos estavam estudando-lhe a fisionomia, olhos que evidenciavam a simpatia que a rainha estava sentindo pela pobre prisioneira que tinha sido roubada ao noivo.
- O rei a colocou sob a minha guarda - disse ela. - Nós somos primas, e espero que nos tornemos amigas.
A Demoiselle, que até então mantivera a cabeça erguida e dera a entender, assim esperava, que eles podiam fazer com ela o que quisessem e não iria implorar piedade, agora sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Seus lábios tremeram, e a rainha disse:
- Venha sentar-se ao meu lado, prima. Como vê, não estou longe de minha hora. Quero que conheça meu filho e minha filha.
- Majestade - disse a Demoiselle -, sei que sou sua prisioneira.
- Não gosto desta palavra - disse a rainha. - vou fazer com que a esqueça durante a sua estada conosco. Agora, prima, vamos nos sentar e conversar.
A Demoiselle acordava todas as manhãs com uma sensação de desolação. Ansiava por saber o que se passava no País de Gales e como Llewellyn recebera a notícia de sua captura. Achava a rainha simpática. Como todos os demais, ela recebia consolo daquela calorosa e delicada personalidade. A rainha sentava-se diante de sua tapeçaria, pois adorava trabalhar nela. Fora ela que lançara a moda de pendurar tapeçarias nas paredes, e não havia dúvida de que davam calor e colorido aos aposentos. A rainha ficava mais gorda a cada semana, e sua hora iria chegar em breve. Não falava sobre o parto e o puerpério que se aproximavam na presença da Demoiselle, por temer que pudesse fazer com que a pobre jovem percebesse que estava sendo negado a si mesma o tipo de conforto de que ela, a rainha, gozava.
A rainha-mãe tinha menos tato. Deixava claro que não aprovava o fato de a Demoiselle ser tratada como um honrado membro da família. Ela mencionara isso à rainha, que teve uma de suas raras reações contra a sogra, como fazia de vez em quando ao achar que se tratava de um caso de bondade ou solidariedade para com uma pessoa que estava sofrendo.
- Majestade - disse a rainha -, a Demoiselle é prima de Eduardo. A senhora é tia dela, pelo casamento. Ela é, portanto, membro de nossa família.
Os olhos da rainha-mãe semicerraram-se.
- Ela é filha do maior inimigo do meu marido.
- Ela é, também, filha da irmã dele.
- Se ao menos você soubesse o que sofremos por causa de Simon de Montfort, iria compreender. Foram os irmãos dela que assassinaram o querido Henrique da Cornualha... primo de Eduardo e seu maior amigo.
- Mas ela não foi responsável por isso.
- Não suporto olhar para ela.
A rainha limitou-se a sacudir a cabeça numa expressão de tristeza. Se a rainha-mãe não suportava ver a Demoiselle, devia manterse afastada de onde a jovem estivesse.
A rainha-mãe teve um acesso de raiva. Que diferença da época em que Henrique estava vivo! Então, a Demoiselle teria sido mandada para longe da corte. Nada que ofendesse a adorada rainha de Henrique teria sido permitido.
A rainha lamentou ter de desapontar a sogra, mas achava, àquela altura, que a pobre Demoiselle precisava de mais atenção do que aquela dominadora senhora que, infelizmente, só sabia ver a vida naquilo que a afetasse diretamente.
A rainha-mãe consolou-se indo até a sala de aula e passando algum tempo com a sua querida neta - uma menina muito atraente - e com o querido Alfonso, de quem ela gostava muito, embora o menino lhe causasse muita angústia.
No entanto, não iria deixar o assunto morrer, e achava que seria melhor para a rainha se esta percebesse que sua delicadeza para com os inimigos da família não era uma boa coisa e que ela faria bem se às vezes se esquecesse de sua simpatia sempre pronta e ouvisse bons conselhos.
Ela cercou Eduardo. Não era muito fácil enfrentá-lo naquela fase. Estava muito apreensivo com a questão galesa. Llewellyn ficara irritado, é claro, por ter perdido a noiva com quem pretendia se casar e estava disposto a provocar confusão. Eduardo enviara uma força até lá a título de preparativos, mas estava muito preocupado e ficava irritado por não poder estar com seus exércitos lá, porque seus deveres o mantinham, por enquanto, em Londres.
- Meu filho querido - disse ela -, você acha que a rainha está bem?
Eduardo ficou assustado.
- Ela está bem, não está? - perguntou, aflito.
A rainha-mãe fizera com que ele desviasse o pensamento de seus problemas galeses. Ele gostava mesmo da esposa. Uma mulher tão fraca! A rainha-mãe pensava que ele praticamente não notasse a presença dela, exceto como geradora de seus filhos, mas supunha que ele, por ser de natureza dominadora, ficasse contente por ter uma criatura submissa que não soubesse dizer outra coisa que não sim, sim, sim. Ah, que pena ter passado a época em que a palavra dela era lei! Henrique tivera muito bom senso. Ele sempre percebera imediatamente o ponto de vista dela.
- Oh, a criança vai muito bem, sem dúvida. Peço a Deus que seja um menino com saúde. Mas talvez ela esteja um pouco preocupada com a nossa... prisioneira, o que é natural. Quando se pensa no que o pai dessa criatura fez ao seu...
O cenho de Eduardo voltou ao normal.
- Ah, a Demoiselle. A rainha não está preocupada com ela. Falou-me que é uma moça encantadora e a cada semana que passa gosta mais dela.
- Não tenho dúvida de que esta Demoiselle herdou um pouco da astúcia do pai. Uma pessoa tão simples quanto a rainha... Eduardo franziu o cenho, e ela acrescentou, depressa - ...e com um coração tão bom... não veria nada de errado em ninguém... enquanto não lhe fizessem cair na realidade. Eduardo, a moça deveria ser mantida presa. Por que não mandá-la para Corfe? O irmão dela estala...
- Minha mãe, essa jovem não fez nada de errado. Llewellyn mandou buscá-la, e tive a sorte de interceptá-la. Nada tenho contra ela. Llewellyn sim, é meu inimigo.
- E não a jovem que seria esposa dele. Eduardo, você não está vendo...
- Eu digo o que sinto - disse Eduardo, decidido, com ar de soberania. Mais de 1,80m de esplêndida masculinidade olhando para ela fizeram com que ela não se intimidasse tanto quanto decidisse mudar de tática. De certa maneira, sentia-se orgulhosa dele, como de certa forma ele a adorava e admirava. Mas se aquilo era uma batalha pelo poder, não havia dúvida quanto a quem iria vencer. Ele agora tinha tudo a seu favor. Era o rei, e a mãe o conhecia o bastante para perceber que as chances de a Demoiselle ficar no palácio em companhia da rainha eram bem maiores do que teriam sido se ela não tivesse intervindo.
Soltou um suspiro.
- Bem, talvez um dia você mude de ideia quando...
Eduardo olhou para ela, e aquela pálpebra que lhe caía ligeiramente sobre o olho e a fazia lembrar-se com carinho do pai dele podia ter feito com que a fisionomia dele se tornasse mais severa, mas a expressão de seus lábios era afetuosa.
- Se eu tiver que mudar de ideia, querida senhora, por ter ficado provado que estava errado, serei o primeiro a admiti-lo.
Ele era forte. Se ao menos pudesse tê-lo orientado como orientara Henrique, poderia ter-se reconciliado muitíssimo com a vida. A rainha-mãe quis testar o amor dele por ela.
- Às vezes imagino que não sirvo para mais nada. Talvez eu devesse fazer o que as senhoras de minha idade fazem com tanta frequência... entrar para um convento.
- A senhora não iria gostar, disso eu tenho certeza.
- Você gostaria, Eduardo?
- Querida senhora, sabe como Eleanor e eu gostamos de tê-la conosco. Sabe o quanto as crianças a adoram. Como iríamos querer que se isolasse? Mas se é isso que a senhora quer...
- Bem, vou lhe dizer uma coisa. Estive pensando em entrar para um convento, e estive em Amesbury para dar uma olhada.
O rei sorriu. Imaginava a mãe entrando para um convento, tornando-se a abadessa e instaurando o seu governo por lá.
- E decidiu não entrar?
- Enquanto elas quiserem ficar com os meus bens, sim. Não tenho intenção alguma de entregar o qe possuo a um convento.
- Isso mesmo. Terá de fazer com que revoguem essa regra. - E devia fazer isso, mesmo, antes de entrar para um lugar desses.
- Enquanto isso não acontece, a Senhora vai continuar a nos abençoar com a sua companhia.
- Enquanto eu estiver bem de saúde.
Viu os pequenos brilhos de alarme nos olhos do filho. Ela nunca fora uma pessoa de reclamar da saúde. Sempre achara, isso sim, que as pessoas que diziam não gozar de boa saúde eram, de certa forma, culpadas por aquela fraqueza.
Eduardo pensou, de repente, na sua infância, quando a mãe estivera a seu lado - a pessoa mais importante de sua vida. Ela significara amor, segurança... tudo para ele. Jamais se esqueceria disso. Gostava imensamente dela, e nada Doderia alterar aquele amor, muito embora não pudesse tolerar a interferência dela, não poderia amá-la menos por intrometer-se do que ela poderia amá-lo menos por recusar-se a aceitar seus conselhos.
Ultimamente, ela passara por um sofrimento cruel. A morte das duas filhas adoradas fora um grande choque. O que mais a atingia era o que acontecia aos filhos, e por piores que fossem os seus defeitos, fora a mais dedicada das esposas e das mães.
Eduardo estava a seu lado, tomando-lhe o rosto nas mãos, olhando ansioso para ela. A alegria inundou-lhe o coração. Preocupação sincera. Os galeses tinham sido esquecidos, a Demoiselle não tinha importância. Até mesmo o iminente parto da rainha fora relegado a. um segundo plano. Não havia outra coisa que não a preocupação com a mãe.
- Minha mãe - disse, tranquilo - há alguma coisa que queira me dizer? Se a senhora estiver doente... se estiver ocultando alguma coisa...
- Meu adorado filho, estou ficando velha, só isso. Nos últimos tempos, a vida tem sido cruel para comigo. A morte de seu pai matou metade de mim... e agora Deus levou minhas filhas. Duas, Eduardo. Como Ele pôde fazer isso? O que eu fiz para merecer isso? Mas tenho meus filhos... meu queridíssimo rei. Se meu velho médico Guilherme estivesse aqui, eu iria consultá-lo. Mas nenhum outro... Não, não é nada... Sou apenas uma velha que sofreu demais a dor da perda.
- Mamãe, vou mandar chamar Guilherme.
- Não, meu filho. Acho que ele está em Provença. É muito longe. Vamos esquecer isso. Eu nunca deveria ter falado neste assunto.
- vou mandar chamar o médico agora mesmo. Estará aqui tão logo lhe seja possível.
- Eduardo, meu filho, você tem outras coisas com que se preocupar.
- O que poderia ter mais importância do que a saúde de minha mãe?
Palavras doces. Não de todo verdadeiras, mas mesmo assim doces.
E ele as levou ao pé da letra. Não demorou muito e o médico de sua mãe chegou de Provença.
Setembro chegara e o nascimento do filho da rainha era iminente.
Havia um silêncio por todo o palácio. Todos estavam na expectativa. Devia ser menino. Tinha que ser menino. O príncipe Alfonso era um menino inteligente, mas tinha aquele ar delicado que todos conheciam demais e que João e Henrique também tinham tido. Ele era cercado de muitos cuidados, e os médicos diziam que se sobrevivesse aos sete primeiros anos da infância, iria tornar-se um homem saudável. Eles se lembravam da infância do pai dele. Era difícil acreditar, àquela altura, que certa vez Eduardo tivesse sido uma criança doentia. Alfonso tinha apenas dois anos de idade. Seria um grande alívio se nascesse um menino realmente saudável.
A rainha mostrava-se um pouco triste, perguntando-se se ela não teria alguma deficiência. Parecia estranho. Tivera seis filhos aquele seria o sétimo. Só três estavam vivos. Talvez não se devesse destacar demais a garotinha que nascera em Acre. As circunstâncias do nascimento dela lhe eram contrárias. Mas Joanna vivera e se desenvolvera, e Eleanor era uma bela menina saudável. O problema estava nos meninos, que eram muito difíceis de criar. Algum dia ela poderia esquecer João e Henrique? Nunca! Porque jogava sobre si mesma a culpa por tê-los deixado. E agora Alfonso não era tão forte quanto deveria. Ela os mudara da Torre e de Westminster para Windsor, que ela pensava ser muito mais saudável. Mas tinha de admitir que Alfonso pouco mudara desde que chegara a Windsor.
Ela precisava rezar por um menino - um menino saudável.
Durante a tarde, as dores começaram enquanto ela se achava tranquilamente à janela, olhando para a floresta, onde as folhas das árvores já estavam ficando cor de bronze, com a chegada de setembro.
com calma, pediu a uma das aias que fosse aos aposentos da rainha-mãe e perguntasse se esta podia ir vê-la bem depressa. A mulher partiu rápido, e assim que a rainha-mãe viu a expressão do rosto da mulher ofegante, percebeu o que se passava e dirigiu-se imediatamente aos aposentos da rainha.
A rainha estava tranquila. O nascimento de um sétimo filho não é igual ao primeiro. Ela sabia o que esperar e sempre dera à luz sem grande mal-estar.
A enérgica rainha-mãe deu ordens ríspidas. Em pouco tempo era grande a atividade nos aposentos reais.
Como se esperava, o trabalho de parto não foi árduo, mas o resultado foi decepcionante.
A Demoiselle escolheu um momento em que a rainha-mãe estava ausente para ir ao quarto da rainha ver o bebé.
- Que garotinha linda! - disse ela. A rainha sorriu.
- É, uma garotinha linda.
- Mas você queria um menino.
- Agora que a vi, é ela que eu quero.
- O rei vai adorá-la.
- O rei adora todos os filhos.
A Demoiselle fez com a cabeça um gesto afirmativo e seus olhos estavam embaciados. Pobrezinha, pensou a rainha, ela sonha com os filhos que, pelo que parece, nunca terá.
- Ouvi dizer que ela poderá se chamar Margaret - disse a Demoiselle, observando a piedade nos olhos da rainha.
- É o que a rainha-mãe quer - disse a rainha. - Em homenagem à memória da rainha da Escócia.
A Demoiselle confirmou com a cabeça e Jembrou-se de que a vida era tão triste para outras pessoas quanto para ela.
Perguntou se podia segurar o bebé, e a rainha, sorrindo, permitiu. Depois de algum tempo, a rainha disse:
- As crianças vão querer vê-la. Elas estão sendo trazidas para cá.
A Demoiselle colocou o bebé no berço e ficou preparada para sair correndo no caso de a rainha-mãe chegar com as crianças.
Ela chegou, e a moça saiu. A rainha-mãe franziu o cenho, mas as crianças exclamavam em voz alta.
- Ah, mas ela é pequenina! - bradou Alfonso, em tom de decepção.
- Ora - retrucou a rainha-mãe -, o que você esperava que ela fosse? Do seu tamanho? Lembre-se de que você está com dois anos. Ela só tem duas semanas.
- Disseram que íamos ganhar um irmão - disse a princesa Eleanor, em tom de reprovação.
- Em vez disso, Deus nos mandou uma menina - respondeu a rainha.
- O que - comentou Eleanor - foi muito indelicado da parte de Deus, quando Ele sabia o que meu pai queria.
- Ora, temos de aceitar o que nos é mandado - disse a rainhamãe, animada.
- A senhora não aceita, majestade - retrucou a princesa. A senhora tem o que quer.
Á rainha-mãe adorava Eleanor. Que menina inteligente! Na pior das hipóteses, Eduardo teria de fazer dela a sua herdeira. Iria conversar com ele sobre isso... mas talvez esperasse um pouco. Aquilo era um pouco indelicado enquanto Alfonso vivesse, mas o menino tinha realmente um ar de fraqueza e se parecia muito com o pequeno João quando este era da mesma idade; e pouco depois, Henrique começara a ficar do mesmo jeito.
Ah, que pena aquela criança não ser mais um menino!
Assim que lhe foi possível, Eduardo foi ver a esposa.
Estava deitada na cama, olhando para ele com uma expressão de súplica.
- Desculpe, Eduardo.
Ele soltou uma gargalhada. Não ia deixar que ela percebesse o quanto estava decepcionado.
- Ora, é uma bela menina, e se chama Margaret, hein? Foi escolha de minha mãe, e você concordou.
- Ela gostaria de homenagear a rainha da Escócia.
- E você, a querida alma bondosa que é, vai concordar em homenagem a ela. Deus a abençoe, minha rainha.
- Fico muito contente por você não ficar zangado.
- Que tipo de homem seria eu, se ficasse zangado com você? Por Deus, nós ainda teremos filhos homens. Você nasceu para ser mãe deles, e eu o pai. Não se preocupe, doce mulher. Já tivemos sete até agora. Haverá mais outros sete, você vai ver, e se entre eles houver um ou dois meninos saudáveis, ficarei satisfeito.
Ela sorriu e pensou que um marido daqueles era realmente uma bênção.
Poucas semanas depois do nascimento da criança, chegaram notícias alarmantes do País de Gales. Desde a captura da Demoiselle, como era de se esperar, Llewellyn estivera fazendo ataques relâmpagos em território inglês, com algum sucesso. Eduardo enviara um exército para enfrentá-lo e esperara a notícia de um sucesso. Aquela notícia demorara mais do que ele calculara.
E então a notícia chegou. O exército inglês tinha sido derrotado em Kidwelly.
Eduardo ficou consternado. A rainha, aflita. A rainha-mãe, furiosa. E a Demoiselle não conseguiu ocultar por completo a satisfação.
Eduardo entrou de supetão nos aposentos da rainha. Não havia dúvidas. Ele teria de reunir o melhor de seus exércitos. Se um trabalho tinha de ser bem-feito, só havia uma pessoa a fazê-lo: ele mesmo.
- Eduardo - disse a rainha -, foi só uma escaramuça que ele venceu. Você precisa enfrentar o perigo? Será que seus soldados não podem fazer com que ele saiba que deve manter a paz?
- Se não fosse essa profecia de Merlim, eu poderia concordar com você. Ele não pode vencer... nem mesmo uma escaramuça. Suas pequenas vitórias serão transformadas em grandes vitórias pelas canções. Você conhece os galeses e suas canções. Os versos, e não as proezas, fazem os heróis deles. É possível que essa profecia de Merlim tenha sido feita por um poeta e cantada até que o povo a aceitou como verdade. Não, eu tenho que dar uma lição em Llewellyn. Não vou ficar fora muito tempo. Tenho que obrigar esse homem a voltar para as montanhas. É o único jeito.
O rei fez os preparativos para partir e, antes que ele saísse, a rainha pôde lhe dizer que estava grávida outra vez.
A Demoiselle estava pálida de tanto sofrimento. Para ela, era difícil continuar acreditando na profecia de Merlim, quando vivia junto ao poder do grande rei inglês.
Eduardo marchou em direção ao País de Gales, e elas ficaram à espera de notícias. A rainha aumentava de volume devido à gravidez.
- Desta vez - dizia ela -, tem de ser menino. Que notícia maravilhosa para mandar ao rei!
A Demoiselle sentava-se ao lado da princesa Eleanor e as duas trabalhavam juntas na sua tapeçaria.
- Você está triste - disse a princesa - porque meu pai vai matar o seu amado.
- E se o meu amado matasse o seu pai? - replicou a Demoiselle.
- Ninguém poderia matar meu pai. Ele é o rei.
- O Merlin prometeu a coroa ao Llewellyn.
- Ele viveu há muito tempo. Já não conta - disse a princesa, bordando placidamente. - Gosta desta seda azul?
- Gosto - disse a Demoiselle.
- Me fale sobre Llewellyn - pediu Eleanor. - Ele é bonito?
- Ele é o homem mais bonito do mundo.
- Isso é o meu pai. Portanto, você está mentindo.
- Ele é bonito para mim, como seu pai é bonito para você.
- Mas você disse "mais bonito". - Eleanor soltou um grito. Tinha espetado o dedo. - Você acha que minha mãe vai ter um menino?
- Isto está nas mãos de Deus.
- E Deus não é muito bom, é? Ele levou meus dois irmãos e minhas tias Margaret e Beatrice. Minha avó está muito zangada com Ele. - Ela teve um arrepio. Era óbvio que sentia pena de todo aquele com o qual a avó estivesse zangada. - vou lhe contar um segredo, Demoiselle, se prometer não contar a ninguém.
A Demoiselle ficou ansiosa. Estava sempre com a esperança de saber alguma coisa sobre Llewellyn, e sabia que não deixavam que notícias dele chegassem até ela.
- Não vou contar a ninguém.
- Eu fiquei contente pela Margaret ter sido menina. Espero que essa criança agora seja menina.
- Por quê? Você não sabe o quanto todos querem um menino? A princesa confirmou com a cabeça, séria.
- Ouvi eles falando sobre Alfonso. Estavam dizendo que ele se parecia com João e Henrique. Então, um deles disse: "Pode muito bem acontecer que o rei faça a princesa Eleanor"... isto é, eu... "herdeira do trono." Percebe, Demoiselle, se não houver meninos e Alfie seguir o caminho de... dos outros... eu seria a escolhida. Eu, a princesa. Princesas podem chegar a rainhas, sabe? Rainhas de verdade. .. não como a minha mãe e minha avó, que apenas se casaram com reis, mas A Rainha.
A Demoiselle ficou chocada.
- Você não devia dizer essas coias. Não fica... bem.
- Eu sei. É por isso que elas são segredo. Quando se trata de segredo, não é preciso que fique... bem.
A Demoiselle estudou a ambiciosa garotinha, que mantinha ouvidos e olhos abertos. Achou que havia uma possibilidade de que ela conseguisse o que ambicionava.
Pobrezinha, ainda tinha de aprender as agruras de usar uma coroa.
À medida que os meses se passavam e o período de parto da rainha se aproximava, eram poucas as notícias do País de Gales.
Então, menos de um ano depois do nascimento da pequenina Margaret, nasceu mais uma criança para a rainha.
O desapontamento foi geral. Outra menina! Deram a ela o nome de Berengária, devido a uma preferência da rainha, e quando, pouco tempo depois, a criança foi ficando cada vez mais doente, disseram que aquele era um nome azarado para se dar a uma menina. Ele lembrava a infeliz rainha de Ricardo Coração de Leão. Ele jamais a amara; desprezara-a; e ela fora uma mulher infeliz, uma mulher estéril. Pobre criatura, disse a rainha-mãe, raramente teve oportunidade de ser outra coisa, porque todo mundo conhecia a preferência do rei por lutar em cruzadas e por elementos bonitos do seu próprio sexo. Um homem mais para servir de tema de canções do que para se viver com ele.
Berengária. Era um nome condenado.
A rainha estava triste, esperando ansiosa notícias da fronteira galesa, mas não mais ansiosa do que a Demoiselle.
Mas a princesa Eleanor tinha um brilho nos olhos que mostrava que ela não estava de todo contrariada com o que acontecera.
O desalento tomou conta de Windsor. O rei estava na fronteira galesa com suas forças, mas não era fácil conseguir a vitória que procurava. As montanhas galesas derrotavam-no repetidas vezes.
A Demoiselle parecia um fantasma cinzento no palácio. Ela ansiava por uma notícia, e ao mesmo tempo a temia. Rezava por Llewellyn; não se importava se a profecia de Merlim viesse a se tornar realidade, ou não. Não era um rei da Inglaterra que ela queria; poderia ser completamente feliz com um príncipe de Gales... e paz.
A rainha-mãe dedicava-lhe tamanha hostilidade, que ela se perguntava por que não a obrigava a deixar Windsor. Mas a delicada rainha mantinha-se firme. Afinal, o desejo do rei era que, embora fosse uma prisioneira, não devia ser tratada como tal. Às vezes, ela sonhava com o quanto sua vida teria sido diferente se o navio que a estava levando para o País de Gales não tivesse sido interceptado pelos ingleses. Ela e Llewellyn juntos, com talvez um filho ou uma filha. Ela não teria se importado se fosse menino ou menina. Ah, como teria sido diferente daquela espera cansativa, daquela angústia sem fim! Toda vez que chegava um mensageiro ao castelo, ela sentia horror ao pensar na notícia que ele traria. O mesmo acontecia com a rainha. Ela temia tanto pelo que pudesse acontecer a Eduardo, quanto a Demoiselle temia pelo que pudesse acontecer a Lewellyn.
A rainha descobrira como Almeric estava passando no castelo de Corfe e garantira a Demoiselle que estava sendo bem-tratado.
- Apesar de tudo - disse a rainha -, o rei não esquece que vocês são primos.
Eduardo era justo, e a Demoiselle não achava que ele seria de uma crueldade indevida, a menos que pensasse ser vantajoso agir assim. Ele não era como o avô dela, o rei João, que sentia prazer em provocar sofrimento.
Tinham sido as circunstâncias, e não os indivíduos, que haviam decidido quanto ao seu destino cruel.
A rainha-mãe recebera o médico provençal Guilherme, que lhe assegurara que seus males eram apenas os da idade que avançava e que como em geral era saudável, ainda lhe restavam muitos anos de vida. Foi uma boa notícia, e ficou satisfeita por Eduardo ter mandado chamar o médico. Guilherme deveria permanecer na Inglaterra – eram estas as ordens do rei - e receber certos privilégios a critério da rainha-mãe.
Aquilo era muito bom. Se ao menos Eduardo pudesse resolver aquele cansativo problema no País de Gales e mandar a Demoiselle para Corfe, a fim de ficar com o irmão, e Eduardo pudesse voltar para casa e fazer a rainha ficar esperando um filho homem, e se o pequeno Alfonso mostrasse um pouco mais de vitalidade, tudo ficaria tão bem quanto seria possível sem o falecido rei.
Nesse ínterim, Eduardo iniciara a invasão galesa e estava em Chester quando um de seus soldados armados veio lhe dizer que um mensageiro vindo do País de Gales pedia para falar com ele. - vou receber este homem - disse Eduardo.
O homem hesitou. Era evidente que estava pensando numa outra ocasião, quando Eduardo recebera um mensageiro em sua tenda na Terra Santa.
Eduardo agradeceu a preocupação do soldado e dirigiu-lhe um amigável aceno com a cabeça.
- Traga-o até aqui - disse ele.
O homem ficou de pé diante do rei, uma figura alta e orgulhosa.
Eduardo reconheceu-o logo; fora um destacado membro da delegação galesa numa reunião em que se fizera uma trégua entre ingleses e galeses.
- Davydd ab Gruffydd - disse ele. - O que o traz a mim?
- Vim oferecer-lhe meus serviços.
O rei semicerrou os olhos. Ele não gostava de traidores, e o fato de o irmão de Llewellyn ir procurá-lo daquela maneira deixou-o desconfiado. Sabia que havia conflito entre os irmãos. Sabia que o irmão mais velho, Owain, lutara, ao lado de Davydd, contra Llewellyn e que por Llewellyn ter vencido ele era considerado o governante do principado. Uma coisa era galês lutar contra galês, mas lutar do lado dos ingleses contra os galeses era outra coisa.
Claro que havia um longo registro de traições entre aquele povo. O que justificava ainda mais, pensou Eduardo, não confiar nele. Ainda assim, se fosse bem vigiado, talvez representasse um benefício. Seria bom, para aqueles que acreditavam na profecia de Merlim, saber que até mesmo o irmão de Llewellyn estava lutando ao lado dos ingleses contra ele.
Eduardo disse:
- Eu aceito a sua oferta.
- vou lhe mostrar como conquistar meu falso irmão. Conheço os pontos fracos dele.
- Eu também - disse Eduardo. - Bem, Davydd ab Gruffyd, você será meu aliado. Se trabalhar comigo, irei recompensá-lo. Se bancar o traidor comigo, vou agir de tal maneira que vai se arrepender de ter nascido para não ter que enfrentar o que farei com você.
- Majestade, irei servi-lo fielmente, até o momento que achar adequado para me recompensar.
Davydd sorria, triunfante. Aquilo iria mostrar a Llewellyn que, apesar de ser seu irmão, estava mais disposto a passar para o lado do inimigo do que a se submeter a um papel insignificante nos assuntos galeses.
Quando Llewellyn soube que o irmão passara para o lado dos ingleses, sentiu uma grande melancolia. Parecia que estava sendo perseguido por todos os lados. Acreditava que se a sua Demoiselle tivesse sido levada sã e salva para o seu lado, isso teria sido um sinal de que Deus estava do seu lado, e todos os seus seguidores também teriam pensado assim. Apesar de supersticiosos, eles já tinham começado a duvidar da profecia de Merlim, e ele sabia o perigo que isso significava. Ele fizera um apelo ao papa para que repreendesse os ingleses por capturarem e prenderem sua noiva, mas o papa não deveria apoiar um príncipe sem importância contra o crescente poder do rei da Inglaterra. Llewellyn obtivera sucesso naquelas escaramuças, mas não constituíam uma guerra de verdade, e agora o grande Eduardo em pessoa viera marchar contra ele. com o rei estavam seu irmão, Edmund de Lancaster, que retornara da França com a nova esposa, Blanche, filha de Robert de Artois, De Lacy, Roger Mortimer, o conde de Hereford e toda a nata do exército de Eduardo. Era evidente que, daquela vez, ele tinha ido para conquistar.
Llewellyn sabia que seu aliado de verdade era o terreno montanhoso e que, não fosse isso, seria um homem derrotado.
Imaginou se ela estava pensando nele naquele instante, se ela se lembrava com frequência daquele dia em que os dois tinham ficado noivos e tinham acreditado que iriam casar-se em pouco tempo. Se ele fracassasse agora, o que seria dela? Iriam arranjar um novo marido para ela? Afinal, ela era prima do rei. Querida Demoiselle, tão delicada, tão bonita! Sabia que ela estaria pensando nele, rezando por ele. Os dois precisavam se casar. A profecia de Merlim devia ser verdade.
Naquele mesmo instante foi-lhe transmitida a notícia de uma derrota fragorosa no sul do País de Gales, onde Edmund de Lancaster avançava e a Llewellyn não cabia fazer outra coisa que não proteger o que lhe restava.
Os navios vindos dos Cinco Portos estavam, agora, no estreito de Menai; Anglesey ficara isolada de Snowdon. Seria simples expulsar os galeses devido à fome. Essa era a intenção de Eduardo, isso ficou claro porque, em vez de avançar e, assim correr o risco de perder alguns de seus homens em combate, ele se dedicou a consolidar sua posição e fortalecer os castelos que capturara. Furioso, Llewellyn ficou sabendo que ele estava não só trabalhando nas fortificações, mas embelezando-as, como se já fosse o dono.
Foram meses sombrios. Lá estava Llewellyn com aqueles de seus seguidores que eram fiéis e continuavam a acreditar na profecia de Merlim, cientes de que num determinado momento teriam que desistir, porque as intenções do rei eram fazer com que passassem fome até a rendição.
Llewellyn falou aos seus homens.
- Fiquem certos de que a profecia vai se tornar realidade. Llewellyn reinará sobre toda a Inglaterra, e então ele não esquecerá os amigos fiéis. Mas talvez o momento ainda não tenha chegado. Deveremos forçosamente sofrer por muito tempo e lutar por esse grande prémio.
Lutar era normal. Passar fome, era diferente.
Chegou uma mensagem de Eduardo. Queria que Llewellyn soubesse que ele não lhe queria mal. Tudo o que queria dele era a lealdade. Tinha, na verdade, de prestar vassalagem em nome das terras do País de Gales, e teria permissão para governá-las em paz, desde que não fizesse nada que infringisse as leis do rei da Inglaterra. Eduardo estava pronto a chegar a um acordo com Llewellyn. Iria devolver-lhe a noiva, pois não queria detê-la contra a vontade dela e de Llewellyn. Tudo o que Llewellyn tinha a fazer era jurar vassalagem ao rei da Inglaterra e aceitá-lo como seu soberano.
Era um pedido e tanto, mas as vantagens eram muitas.
O resultado foi que os dois se encontraram em Conway - a grande fortaleza na qual Eduardo já pusera seus homens a trabalhar.
Eduardo era forte, enérgico, mas não sem uma certa dignidade. Não queria continuar numa guerra que Llewellyn sabia perfeitamente já ter perdido. Tampouco queria ser indevidamente duro. Por causa disso, mandara chamar a Demoiselle para ir até Worcester e lá, se Llewellyn concordasse com as suas condições, iriam todos encontrar-se para assinar o tratado, depois do qual o casamento seria celebrado.
Do desespero, Llewellyn subiu para a esperança. Tudo o que tinha a fazer era submeter-se a Eduardo, declarar-se vassalo dele, pagar certas quantias em dinheiro, fazer certas concessões, e teria sua Demoiselle.
- vou mandar para falar com você - escreveu Eduardo seu irmão Davydd, que teve o bom senso que lhe faltou quando se uniu a mim. Ele irá expor minhas condições a você, e quando tudo estiver resolvido, iremos a Worcester para a assinatura e lá será realizado o seu casamento.
Receber Davydd, o irmão traidor! Como poderia ele fazer uma coisa daquelas? No entanto, compreendeu o motivo de Eduardo. Eduardo queria a paz... paz entre os irmãos e também entre a Inglaterra e o País de Gales. Llewellyn não tinha outra alternativa a não ser receber Davydd, e foi o que fez.
Os dois irmãos se olharam com reservas.
Foi Davydd quem falou primeiro.
- Não me arrependo de nada do que fiz - disse ele. - Passei para o lado do rei porque sabia que você estava lutando uma batalha perdida e que ao trabalhar com Eduardo um número menor de nossos castelos seria arruinado, uma área menor do nosso país seria profanada. Mostrei que tinha razão, porque você agora está pronto para chegar a um acordo com ele.
- Talvez esse acordo não tivesse sido necessário se todos nós tivéssemos ficado juntos - disse Llewellyn.
- Talvez devêssemos ter ficado juntos se o país tivesse sido dividido com justiça. Nós, os irmãos, queríamos uma certa porção, Llewellyn, e não havia terra suficiente.
- Podemos confiar em Eduardo?
- Ele é um homem que se orgulha de cumprir a palavra. É possível confiar mais nele do que na maioria dos reis. Ele já cumpriu a palavra para comigo. Eu agora estou casado, sabe, Llewellyn?
- É mesmo?
- Uma mulher rica, arranjada por Eduardo. A filha do conde de Derby é, agora, minha esposa. Ela me trouxe muita alegria... e riqueza. Você se preocupa com a Demoiselle. Faça o seu acordo e case-se. Um homem deve ter filhos, não passar os dias numa tenda úmida e cheia de correntes de ar.
- Você é um homem contente, Davydd.
- Por enquanto - disse Davydd.
Claro que ele tinha razão, pensou Llewellyn. Tolo era o homem que não reconhecia quando estava derrotado. Havia um momento para parar de lutar, fazer a paz, a fim de que pudesse viver para lutar um outro dia.
E enquanto isso, a Demoiselle acenava para ele, chamando-o.
E lá estava ele em Worcester. O rei mandara buscá-la, e ele olhou, encantado, enquanto a jovem seguia em sua direção. Ela crescera, desde a última vez em que a vira, tornara-se uma mulher graciosa e elegante. O amor brilhava em seus olhos, que eram suplicantes, um tanto apreensivos, como se ela temesse não agradá-lo. Ele queria tranquilizá-la. Ela não devia titubear. Será que ele era de seu agrado? Era uns dez anos mais velho do que ela, e um soldado levava uma vida dura. Talvez aquilo deixasse seus sinais... Ele segurou-a pela mão e disse:
- Minha Demoiselle... minha bela Demoiselle.
- Llewellyn - disse o nome dele com voz suave. Foi o bastante.
O rei, com a rainha ao lado, assistia a tudo com um olhar benevolente. Felizes no casamento, eles compreendiam e mostravam sua solidariedade. Havia lágrimas nos olhos da rainha; ela era uma mulher boa e delicada.
- Não precisa haver demora para a cerimónia - disse o rei, vivamente. - Desde que todas as condições sejam aceitas.
Todas as condições. Eduardo era um homem que sabia negociar. Mas podia-se confiar nele. Ele prometera a Demoiselle e ela ali estava.
Llewellyn entregara todos os seus prisioneiros ao rei da Inglaterra, e entre eles estava seu próprio irmão, Owain, que ele mantivera preso por mais de dez anos; desistira de suas reivindicações sobre Gales do Sul e concordara em pagar uma multa de cinquenta mil libras. Anglesey foi devolvida a ele, mas ele teria que pagar uma renda por ela, e se ele morresse sem deixar herdeiros, ela seria devolvida ao rei. Os barões do País de Gales iriam prestar vassalagem a Eduardo, em vez de a Llewellyn.
Sim, foi uma negociação com exigências duras que Eduardo fez. O território de Llewellyn ficou, por assim dizer, reduzido ao que ficava em torno de Snowdon, e o rei libertara Owain e o recompensara com terras e fizera o mesmo em favor de Davydd e ainda lhe arranjara uma esposa rica. Estava mostrando a eles como recompensava os que agiam contra seus inimigos.
A situação era lamentável, mas Llewellyn estava apaixonado. E o que mais importava era que tinha a sua Demoiselle.
O Retorno de Joanna
O REENCONTRO DE EDUARDO e sua rainha resultou em mais duas gravidezes.
Havia uma certa angústia durante aquele triste mês de março em Windsor, à medida que chegava a hora da rainha. Fazia dois anos que a triste e pequenina Berengária fizera sua breve aparição, e havia um sentimento geral de que embora a rainha fosse evidentemente fértil, seus filhos tendiam a ter saúde fraca.
A saúde de Alfonso não chegara mesmo a melhorar. Estava, agora, com cinco anos de idade, aproximando-se do período perigoso. Havia dias, no entanto, em que ele parecia ficar mais forte e, no verão, muitas vezes parecia um menino muito saudável. Mas no inverno, decaía, e tinham acabado de sair de um inverno. Daí a angústia.
- Este tem de ser menino - disse a rainha-mãe em tom um tanto peremptório, como se estivesse dando uma ordem à rainha... ou talvez a Deus... para que daquela vez tivesse um pouco mais de consideração para com todos eles.
Aquele tipo de conversa deixava a rainha aflita, mas ela sabia que a rainha-mãe tinha razão. Tinha de ser um menino.
- Se for menina - continuou a rainha-mãe - deverá ser freira.
- Isso é uma escolha que caberá a ela fazer - disse a rainha com um leve toque de firmeza.
- Nada disso, minha cara - insistiu a rainha-mãe. - O céu deve saber que essa criança será dedicada ao seu serviço. Aí, talvez, Deus se compadeça e, se já tiver decidido que se trata de uma menina, Ele poderá trocá-la por um menino.
A rainha achou aquele raciocínio estranho, mas não contradisse a rainha-mãe. Ninguém a contradizia - nem mesmo Eduardo, que em geral sorria e ouvia os conselhos dela e depois se afastava e ignorava-os.
Chegou a hora da rainha. Ficou deitada na cama esperando, ansiosa, mas acabou por ouvir as palavras desanimadoras:
- Outra menina.
Mas daquela vez era uma menina saudável, inteiramente diferente da desditosa Berengária.
- Não há dúvida - disse a rainha-mãe - de que esta menina deverá ser freira. Eu escolhi Amesbury, onde um dia também vou me enclausurar... quando chegar a hora e se o papa me der uma dispensa que me permita manter o meu dote. Não tenho intenção alguma de entregá-lo a qualquer convento sobre a Terra.
Deram à menina o nome de Mary e em pouco tempo a rainha esqueceu o desapontamento e, no fundo do coração, viu que não a trocaria por todos os meninos do país.
A princesa Eleanor ficou encantada. Ela percebera que o pai lhe dedicava um interesse especial. Ele sempre mostrara que ela era a sua favorita, e por mais que ele ansiasse por um menino, isso jamais toldara o relacionamento dos dois. Ela acreditava poder ler os pensamentos do pai.
Se a rainha continuava a ter meninas e a saúde de Alfonso não melhorava, a criança mais importante da ala infantil real era a princesa Eleanor. Ela adorava o irmãozinho, mas também gostava de ser importante e não podia deixar de perceber que, à medida que aumentava a sua idade, também aumentava a sua importância.
Ficou muito satisfeita, portanto, com o fato de a pequena Mary ser a nova adição à família, e não um menino chorão que teria reduzido a sua importância e exigido todas as atenções.
Seus pensamentos relativos à sua situação eram, sem dúvida, baseados no fato de que ela percebia que, depois de voltarem de Worcester, o pai parecia passar mais tempo em sua companhia. Como na família toda, havia um profundo elo de amor entre eles, mas a princesa achava que havia algo de especial entre ela e o pai; ela era dedicada à mãe, é claro, mas não sentia o mesmo prazer emocionante na companhia dela que sentia na do pai.
Gostava de caminhar pelos jardins com o pai e ele, por estranho que parecesse, embora muita gente quisesse falar com ele, encontrava um tempo para ela.
Agora que o rei estava de volta, ela perguntou sobre a guerra no País de Gales, e ele estava plenamente disposto a conversar com ela, como se a filha fosse um de seus generais, e deliciou-se com suas perguntas e comentários inteligentes.
- Você está deixando a infância para trás - disse ele, naquela ocasião. - Treze anos. Que idade excelente!
Ela concordou com ele, com ar solene.
- Acho que está na hora de ter uma criadagem própria. O que acha disso? Um conjunto completo de criados... só seus.
- Como eu gostaria disso!
- E por que não? Você não é minha filha mais velha? E muito mais velha do que os demais. Joanna terá que vir para casa dentro em pouco.
- É estranho - disse a princesa - eu nunca ter visto minha irmã.
- Ela vai voltar para casa em breve, porque teremos de combinar um casamento para ela. Já existem negociações em andamento com o rei dos romanos. O filho mais velho dele é Hartman, que um dia será o rei dos romanos. Eu gosto de ver minhas filhas se tornarem rainhas.
- Fico imaginando como é Joanna.
- Acho que um pouco mimada. A avó dela tendia a mimá-la quando era criança, e não há dúvida de que continuou.
- Neste caso - disse a princesa com uma severidade que divertiu o rei -, está na hora de ela voltar para casa.
- Oh? Então você não acha que seus pais mimam os filhos? Ela agarrou-lhe o braço e apoiou o corpo no dele, pelo lado.
- Meu querido pai, seus filhos são tratados como filhos devem ser tratados. Tudo o que o senhor faz é... perfeito.
- Que opinião para uma filha ter de seu pai!
- Quando falou comigo de forma tão solene, tive receio de que o senhor fosse falar do meu casamento. Eu não suportaria deixálo, papai, nem deixar minha mãe, e nem mesmo minha avó.
- Ainda falta algum tempo - murmurou ele, em tom tranquilizador.
Por quê?, perguntou-se ela. Já era noiva do infante de Aragão fazia
muitos anos. O avô dele, o rei de Aragão, morrera havia pouco tempo, e o filho, Pedro, tornara-se
rei. Assim, o filho de Pedro, Alfonso, o noivo da princesa, era o herdeiro direto do trono aragonês. Naquelas circunstâncias, não deveria haver demora em fazer com que ela se casasse. O pânico tomou conta dela. Será que aquela mudança na atitude do pai para com ela significava que ela iria sair de casa?
Ela bradou:
- Eu não suportaria deixar todos vocês.
- Eu prometo que ainda vai demorar bastante. - Tomou-lhe a mão e a segurou com firmeza, como se dando a entender que não a deixaria ir embora. - Eu queria falar com você sobre a sua nova criadagem. É um assunto muito mais agradável.
- Vai demorar bastante, mesmo, não vai, meu caro senhor?
- Fique tranquila, meu amor, que vou fazer demorar tanto quanto me for possível.
- Mas o senhor pode fazer tudo o que quiser. Se disser que eu jamais irei embora, jamais irei.
- Vejo que você é uma filha obediente que tem ideias próprias sobre o pai.
- Meu pai é o rei - disse ela, com orgulho.
Estava dominado pelo amor por ela. Se eu tivesse um outro menino, pensou ele, jamais iria gostar dele como gosto desta filha.
- E agora - disse, animado -, um camareiro, eh, um encarregado do salão, um criado de quarto?
- Uma cozinheira - prosseguiu ela, rindo, os temores afastados, porque se o rei estava lhe dando uma criadagem, como estava dando a entender, não podia estar pensando em deixá-la sair do país. - Um salgador... sim, eu tenho que ter um salgador.
- Claro que precisa! Que criadagem real estaria completa sem um salgador? Que grande criadagem você vai ter!
- À altura de um rei - disse ela. - Mas só que eu sou a filha do rei... a filha mais velha. O pobre do Alfie poderia ficar com inveja... se fosse uma pessoa invejosa. Mas ele vai apenas ficar contente por me ver assim.
- Alfonso é um bom menino - disse o rei, franzindo o cenho. E houve um entendimento entre os dois. Se Alfonso morresse como os irmãos, e se não houvesse outro menino, ela, a princesa Eleanor, ficaria numa situação muito importante. Seria a herdeira do trono.
Os dois continuaram a andar e discutiram a criadagem que ela deveria ter.
Estavam, os dois, profundamente cônscios da importância daquilo.
A princesa Joanna percebera que alguma coisa andava errada. Os olhos de sua avó estavam vermelhos, o que significava que ela estivera chorando. Fato inaudito. Em várias ocasiões, ela agarrara a jovem Joanna e a mantinha apertada contra o corpo de uma maneira muito incómoda e provocara protestos indignados por parte da menina.
- Oh, minha querida! - tinha sido a resposta da avó.
Aquilo era muito estranho. A precoce Joanna, de sete anos, tinha nascido com uma natureza ardente e arrogante, e para ela ficara logo aparente que era uma pessoa muito importante na corte de Castela. A avó a idolatrava, o que lhe dava uma consciência de sua importância, e como a rainha viúva vivia agradecendo aos céus pela pequena Joanna, não podia ser outra coisa que não estimulante considerar-se uma dádiva divina, pela qual todos deviam ser gratos.
A pequena dádiva divina sabia que era bonita, que seus poderes mentais eram de causar assombro, que bastava mostrar o desejo por alguma coisa e esta coisa era sua - desde, é claro, que não lhe causasse nenhum mal, uma concessão que, quando foi ficando mais velha, estava pronta a fazer.
Por isso, quando viu que a avó estava realmente perturbada, adivinhou que se tratava de algo que lhe dizia respeito.
Não adiantava perguntar ao bispo. Suerus, bispo de Calixien, era o seu tutor e, tal como a avó, a adorava. Na verdade, Joanna não acreditava que fosse outra coisa que não totalmente adorável. "Filiola" era o apelido carinhoso que ele usava para ela. Significava "filhinha".
- O que eu não sou - salientou ela, dirigindo-se a ele. - Meu pai é o rei da Inglaterra e minha mãe é a rainha. Um dia estarei ao lado deles.
Gostava de dizer aquilo, porque quando dizia os dois baixavam os olhos e murmuravam uma oração a Deus que, ela sabia, significava que estavam pedindo a Ele que não lhes tirasse a sua querida. Suerus replicara:
- É verdade que você é filha do rei e da rainha da Inglaterra, mas para mim é como uma filha... uma filha muito querida.
A única pessoa que não demonstrava aquela adulação era a sua governanta, Lady Edeline, que seus pais tinham deixado com ela quando seguiram para a Inglaterra. Joanna sabia que Edeline gostava dela tanto quanto os outros, mas o seu amor se apresentava de forma diferente. Edeline sabia brigar, criticar e até castigar. Joanna não compreendia bem por quê, mas apesar de tudo aquilo era de Edeline que mais gostava.
Por isso, estava claro que devia procurar Edeline agora para descobrir a verdade.
Edeline estava remendando a renda de um vestido de Joanna, que tinha sido descuidadamente rasgado enquanto ela brincava. Edeline zangara com ela por causa disso.
Joanna correu para junto dela e atirou-se contra o joelho da governanta.
- Cuidado, menina - disse Edeline. - Você me fez espetar o dedo.
- Oh, pobre, pobre Edeline. Está mesmo sangrando. Pronto, vou beijar o furo e fazer ele ficar melhor.
- Então você acha que tem um poder especial de fazer isso, não é? - disse Edeline. Joanna sorriu. Edeline sempre achava que ela devia ser um pouco depreciada. Era tudo para seu próprio bem. Mas gostara de ter o dedo beijado para que melhorasse.
- Todo mundo tem poderes especiais quando beija para melhorar. Mas isso pouco importa, agora. Por que vovó está triste?
- Ela lhe disse que está triste?
- Ela está com olhos de quem chorou.
- Talvez você devesse perguntar a ela.
- Quero perguntar a você, Edeline. Você vai me dizer a verdade. Eu vou... embora?
Edeline ficou calada.
- Então, vou! Eu vou! - bradou Joanna.
- Isso tinha que acontecer um dia, não tinha? - perguntou Edeline. - Sua mãe a deixou com sua avó quando você era um bebé.
Joanna franziu o cenho enquanto olhava para a governanta.
- Eles nunca deveriam ter me deixado.
- Eles não queriam. Sua mãe ficou muito, muito triste. Mas a pobre da sua avó implorou tanto, que por fim seu pai disse que você poderia ficar... durante um certo tempo.
- E esse tempo acabou, agora? É isso, não é?
- Você vai para a Inglaterra.
Pela primeira vez, Joanna teve medo. Atirou-se contra Edeline.
- vou deixar a minha avó... meu tio, o rei... todas as pessoas daqui que eu conheço...
Ergueu os olhos para o rosto de Edeline, com medo, e não teve coragem de fazer a pergunta que lhe subiu aos lábios. Edeline respondeu.
- Eu vou com você.
Joanna soltou um suspiro profundo. Estava claro que sentia um grande alívio.
- Quando partimos?
- Não vai demorar.
- Ah, pobre, pobre da vovó!
A rainha viúva de Castela poderia ter repetido aquelas palavras. O que iria fazer sem a criança que ela idolatrava? A vida tinha sido injusta para com Joanna de Castela. Nunca fora amada como ansiava por ser amada. Henrique III pedira sua mão, certa vez, e então quando ela acreditava estar prestes a se casar, desprezara-a em troca de Eleanor de Provença. Aquilo fora uma humilhação insuportável. Sua mãe tinha sido tratada mais ou menos da mesma forma, e por um rei inglês. Ricardo,
que era chamado de Coração de Leão, tinha sido o noivo dela e, ainda criança, ela fora enviada à Inglaterra. Mas pelo menos Henrique II se apaixonara por ela e a seduzira quando era uma menina na sala de aula e a mantivera como amante, de modo que era natural que Ricardo a rejeitasse. Depois ela se casara já madura com o conde de Ponthieu, que tinha sido o pai da rainha Joanna, e os dois tinham tido apenas uma filha. Essa filha - rejeitada pelo rei da Inglaterra - acabara por casarse com o rei de Castela, mas quando ele já era um velho e ela quase já passara da idade de ter filhos, de modo que tivera apenas uma filha - sua querida e delicada Eleanor, que agora era a esposa de Eduardo da Inglaterra. Fora uma vida humilhante, e quando a filha se casara e saíra dela, ela ansiara por ter alguém que a substituísse. Então, Eduardo e Eleanor tinham chegado, vindos da cruzada e a caminho de casa, com a querida filhinha que tinha nascido em Acre e, ao ver a criança - balizada com o seu nome, o que parecia torná-la sua de um modo mais especial -, ela implorara para que deixassem a criança com ela. Para sua surpresa e para seu intenso
deleite, os dois satisfizeram a sua vontade. Claro que tinham enfatizado o detalhe de que um dia a pequena Joanna teria que ir para casa, mas ela se recusara a pensar nesse dia. Agora, chegara a hora.
Tinham arranjado um marido para ela. Um marido, pensou a rainha viúva, indignada. Um marido para uma criança!
E iam levar a sua querida neta para longe dela. Não podia suportar aquilo.
Não havia ninguém com quem ela pudesse discutir o caso, a não ser com Lady Edeline. Seu meio-irmão, o rei, tinha seus assuntos para resolver, e o de uma criança que estava sendo devolvida aos pais era, a seu ver, sem importância.
Lady Edeline foi procurá-la e lhe disse que a princesa Joanna adivinhara que iria para a Inglaterra.
A rainha arregalou bem os olhos e olhou para Edeline.
- Mas como é que... ela soube?
- Ela percebeu a sua melancolia e pensou que tinha alguma coisa a ver com ela, e a partir disso adivinhou.
- Ela não é uma menina muito inteligente, Edeline? Imagine! Então, ela sabia.
- Ela é inteligente e se considera o centro da vida. Tudo o que acontece, ela acredita que deve lhe dizer respeito. Foi assim que chegou a essa conclusão.
- Como podem levá-la daqui?
- Ela é filha deles, majestade.
- E esse casamento... uma criança.
- É o costume.
- Acha que vão enviá-la para a Alemanha?
- Talvez a intenção seja essa. A família do futuro marido dela vai querer que seja criada de acordo com o costume deles.
A rainha apertou bem as mãos, num gesto de raiva.
- Ser uma princesa real é uma crueldade, Edeline.
- Talvez seja, majestade, mas há vantagens.
A rainha ergueu os olhos e examinou Edeline. Calma, honesta, precisa, ela jamais bajularia, sempre diria o que pensava. A rainha disse, com fervor:
- Dou graças a Deus por você acompanhar a nossa menina.
- Eu também agradeço a Ele - disse Edeline.
Era uma longa viagem da corte de Castela para a da Inglaterra, mas a princesa Joanna estava agitada com a perspectiva que esta oferecia.
Houve uma chorosa despedida de sua avó - mas as lágrimas, na verdade, ficaram por conta da avó. Joanna iria sentir saudade daquela bondade idólatra que representava mais do que adoração, mas havia muita coisa a esperar. O bispo abraçara sua Filiola pela última vez e eles tinham deixado a ensolarada terra de Castela, atravessado os ricos vinhedos da França, e acabaram chegando à costa. Os pobres pequenos criados espanhóis tagaleravam muito, com um medo quase histérico, ao verem as águas agitadas que tinham de atravessar, o navio jogava e gemia muito, vários ficaram enjoados, e a jovem Joanna adorou a pressão do vento e o gemido de protesto das madeiras do navio enquanto ele singrava aquelas águas espumantes em direção à costa da Inglaterra.
E então... a chegada.
Ela foi erguida e sufocada por beijos. Aquela era sua mãe, para quem ela olhou com frieza. Por que ela me abandonou?, perguntava-se. Oh, sei que minha avó pediu e implorou, mas ela me abandonou.
O pai estava lá - grande e glorioso. Nunca vira um homem igual. Ela se curvou - com muita cerimónia, como faziam em Castela -, e ele riu e pegou-a no colo.
- Ah, temos uma belezinha aqui - disse ele e a beijou com uma certa força. A menina lhe dirigiu um sorriso frio. O rei, também, a abandonara. - Temos prazer em vê-la de volta para casa, filha.
E depois, havia a irmã, a princesa Eleanor - quatorze anos de idade, bem crescida e bonita; e muito importante, segundo parecia pela maneira de todos a tratarem.
- Seja bem-vinda ao lar, Joanna - disse aquela importante irmã. - E venha conhecer seu irmão Alfonso.
Alfonso estava com cinco anos - quase dois anos mais novo do que ela. E também era muito dócil; e um pouco tímido. Olhou para ela como se estivesse implorando para que o amasse. Ela gostou disso.
- E Margaret. - Uma menina de três anos de idade que tinha apenas uma ligeira noção do que se tratava, mas encantada, como todos, por ter uma irmã de sete anos apresentada a eles. - Mary está na ala infantil - disse a princesa Eleanor. - Ela ainda é um bebé.
De modo que agora ela conhecia todos - a sua família. Ela poderia ser a figura dominante absoluta, como tinha sido em Castela, mas havia uma pessoa que poderia evitar isso, e essa pessoa era a sua importante irmã, a princesa Eleanor.
A primeira disputa aconteceu em relação aos criados. Os espanhóis desapareceram de repente.
- Onde estão eles? - perguntou ela à irmã.
- Foram mandados de volta para Castela - foi a resposta.
- Mas eu não quero que eles voltem para Castela.
- Nosso pai foi quem mandou.
- vou falar com ele, e todos serão mandados de volta para mim.
A princesa Eleanor soltou uma gargalhada.
- Eles foram embora por ordem do rei.
- Mas eram meus criados.
- Eu não sei o que se passa em Castela, mas aqui, quando o rei dá uma ordem, ela é obedecida sem discussão. Você terá de entender isso, Joanna.
- Mas esses criados vieram comigo. A irmã deu de ombros.
- Eu quero voltar - disse Joanna.
- Não seja boba. Você agora está de volta para ficar conosco, e nós somos a sua família.
- Minha avó era minha família e ela jamais teria mandado meus criados embora se eu quisesse ficar com eles.
- Esta não é a corte de sua avó, e você foi mimada por lá. Alguém disse isso outro dia.
- Quem?
- Não digo.
Joanna agarrou o pulso da irmã e bradou:
- Diga. Diga. Quem disse isso será castigado.
A princesa Eleanor empurrou calmamente os dedos da menina do seu pulso.
- Você não deve me desrespeitar. Eu sou a mais velha e tenho minha criadagem especial. O rei conversa comigo. Não vou tolerar esse comportamento na ala infantil.
Joanna ficou desconcertada.
- Eu... eu... - gaguejou ela.
Mas Eleanor fez um gesto de rejeição.
- Nossa mãe diz que devemos ser delicados com você, ajudá-la a aprender o nosso modo de viver, de modo que desta vez não vou castigá-la.
- Castigar-me... Mas... ninguém me castiga.
- Ninguém castigava. Mas agora, castiga.
- Quem?
- Edeline, acho eu. Ela é a sua governanta.
- Edeline não teria a ousadia...
- Acho que teria. Você agora está com a sua família, Joanna. Queremos amá-la... todos nós. Queremos que seja a nossa querida irmã. Deixaram que você agisse demais à sua maneira em Castela, onde ficava sozinha na ala infantil. Aqui, vai ser diferente.
- A princesa Eleanor ajoelhou-se de repente e abraçou-a. - Todos queremos gostar de você... que seja a nossa irmãzinha... mas nós somos muitos, e você não pode se sentir mais importante do que os demais.
Joanna ficou num silêncio repentino. Depois, ficou muito contente. Começava a pensar que na Inglaterra seria mais divertido do que em Castela. E se tinham tirado seus criados espanhóis - com os quais ela pouco se importava - ainda lhe restava Lady Edeline, da qual gostava muito.
Depois disso, ela começou a se integrar. Era diferente das irmãs e, sem dúvida alguma, do pequeno Alfonso. Era mais expansiva, mais alegre e mais geniosa. Edeline vivia tentando contê-la, mas sem muito resultado. A rainha dizia que Joanna, por ter nascido num clima tórrido, era diferente dos outros. Os criados referiam-se a isso constantemente, encontrando desculpas pelo comportamento dela. Era característico que quisessem fazer isso, devido a sua beleza. Era morena, o que parecia normal, já que nascera numa terra daquelas, e tinha mais os traços castelhanos da mãe do que os dos Plantagenetas. Era chamada de Joanna de Acre e gostava. Aquilo fazia com que se destacasse. Estava constantemente no centro de alguma confusão na ala infantil, e também gostava disso. Tinha de chamar atenção para si, porque sua irmã Eleanor era uma pessoa realmente muito importante e, depois de ser absoluta na ala infantil castelhana, precisava fazer com que sua presença fosse sentida em casa.
Ela sentia saudade de muitas coisas - o clima mais quente, a adulação da avó, a sensação de que estava no centro da vida deles. Por estranho que parecesse, sentia-se melhor junto à sua família. A mãe a adorava e queria redimir-se por tê-la deixado em Castela; o pai sentia orgulho dela, mas instintivamente sabia que a irmã mais velha, a importante Eleanor, era a favorita dele; o pequeno Alfonso achava-a maravilhosa. Fora avisada de que deveria ter cuidado com ele e não deveria derrubá-lo no chão ou tratá-lo com brutalidade, porque era um menino delicado. Margaret não passava de uma criança - dois anos mais nova até do que Alfonso, de modo que não contava muito, e, quanto a Mary, o bebé, era jovem demais para ter qualquer importância.
Ela, Joanna, era madura para a sua idade. Diziam os criados que ela já nascera com um certo conhecimento. "Pode estar certo de que vai haver problemas quando essa aí crescer", diziam eles. Ela ouvia os comentários e se deliciava com isso. Gostava do modo de sacudirem a cabeça num gesto afirmativo e curvavam os cantos da boca quando diziam aquilo.
Às vezes, a grande irmã Eleanor fazia uma concessão e falava com -ela. Conversavam sobre casamento, pois as duas estavam noivas.
A pobre da Mary, a recém-nascida, jamais iria se casar. Iria para um convento. Como sabiam disso?, perguntou Joanna. Por enquanto, Mary era um bebé. O que ela sabia sobre conventos? A rainha-avó decidira aquilo. Era para agradar a Deus, que dera à mãe delas tantos bebés que não tinham sobrevivido, dos quais dois tinham sido meninos. Alfonso também era fraco, e Eleanor achava que ele jamais seria rei, porque não iria crescer o suficiente.
Era tudo muito interessante.
Ela, Joanna, estava noiva de Hartman, que parecia um homem interessante. Pensava nele. Era alemão e seria rei, de modo que ela seria a rainha Joanna. Era uma perspectiva muito agradável.
Eleanor lhe disse que ia se casar com um Alfonso, que iria ser o rei de Aragão.
- Então você também vai ser rainha - disse Joanna.
- Estou ansiosa por ser rainha - replicou a irmã.
- Você tem idade - disse Joanna -; a essa altura, já devia ser rainha.
- Terei de esperar até o pai de Alfonso morrer, e o mesmo ocorrerá com você em relação ao seu noivo.
- Mas eles casam as pessoas antes de elas serem reis e rainhas, não é? Você deve ser muito velha.
- Estou com quinze - disse Eleanor.
Joanna abanou a cabeça, com ar de comiseração.
- É muito, muito velha.
- Que absurdo! Não é velhice. Irei para Aragão quando... e se tiver pronta.
- Mas - insistiu Joanna, que nunca deixava de insistir num assunto enquanto não deixasse claro o que tinha em mente - agora você tem idade suficiente. Por que
não se casa agora!
Eleanor deu um sorriso dissimulado.
- Porque, irmãzinha, eu acho que papai não quer.
Joanna examinou a irmã com grande respeito. Um segredo. Desde que ela chegara à Inglaterra, de vez em quando começava a pef ceber que não sabia de tudo.
Era como um padrão que se repetisse. A rainha estava de cama, em Woodstock, rezando por um menino.
Ela era bem fértil. Parecia como se uma gravidez tivesse acabado com o inevitável desapontamento e uma outra tivesse começado.
Ela quisera ir para Woodstock. Fazia uma ideia de que poderia dar sorte mudar de lugar. Nunca dera à luz em Woodstock e perguntara a Eduardo se podia ir passar lá as últimas semanas de esperã e, marido indulgente que era, ele estava pronto a atender aos caprichos dela.
Ela adorara a paz do local. Caminhara pelos bosques com a filha Eleanor e a jovem Joanna, as criadas seguindo um pouco atrás. As árvores estavam muito bonitas, pois estavam em maio - sem dúvida o mais bonito dos meses. Ela estava ansiosa para que Joanna gostasse do interior inglês, que era muito diferente do de Castela, e sentia uma grande satisfação em mostrar os botões e as flores dos pilriteiros e das árvores frutíferas, que naquela época do ano se encontravam carregadas de flores.
Prestava atenção ao canto dos pássaros e tentava ensinar Joanna a reconhecer um pássaro pelo canto.
Joanna gostava de ser o centro das aulas e de assombrar a mãe com a rapidez com que aprendia.
A menina adora elogios, pensou a rainha, um pouco angustiada. Era verdade que sua querida mãe, no excesso de sua solidão, dera uma importância demasiada a Joanna e incutira nela uma certeza dessa importância.
A princesa Eleanor fez um colar de margaridas e pendurou-o no pescoço da mãe. Como a filha mais velha se preocupava! Ficava sempre nervosa quando a mãe esperava um filho. Na verdade, parecia saber da gravidez antes de lhe contarem. Queridas crianças, que consolo eram elas para Eleanor!
Olhava para aquelas duas fisionomias vivas e saudáveis e sentia-se consolada. Se não podia ter um menino com saúde, podia ter belas meninas.
E assim, elas tinham passeado pelos bosques, e sempre havia quem insistisse para que a rainha não se cansasse. Ela não se cansava na paz de Woodstock. Um lugar diferente poderia trazer uma sorte melhor.
Lady Edeline dissera:
- Vossa Majestade não deve se preocupar. É melhor deixar as coisas caminharem naturalmente. Que mulher inteligente, a Edeline. Era um grande conforto saber que ela estava muito ligada a Joanna. Quando a menina partisse para a Alemanha para se casar com Hartman, Eleanor iria pedir a Eduardo que deixasse Edeline acompanhá-la.
Claro que ela estaria indo dentro em breve. O futuro sogro queria isso. Mas Eduardo alegava que ela era criança demais. Quanto a Eleanor, ele vivia colocando obstáculos à ida dela para Aragão.
- Não, não - dizia ele com frequência -, deixe-as crescer primeiro. Ainda são crianças.
Na verdade, ele queria mantê-las a seu lado. Amava-as muito - e por estranho que parecesse, embora quisesse muito um filho, era das filhas que gostava.
Ah, se ao menos eu pudesse dar um filho a ele!, pensava ela.
Deitada na cama, ela pensava no que acontecera naquele palácio ao longo de todos aqueles anos. Existia ali havia muitos e muitos anos - com uma forma diferente, talvez, pois era natural que lugares como aquele recebessem acréscimos ao longo dos séculos. Ali, os reis saxônicos tinham realizado seus conselhos nacionais anglo-saxônicos. O rei Alfredo vivera ali, e um ancestral mais recente, Henrique I, construíra o seu curral de cervos, no qual introduzira animais selvagens para distrair todos os que iam observar o comportamento daqueles animais. Mas era o fantasma da bela Rosamund que, mais do que qualquer outro, assombrava Woodstock. Existiam várias lendas sobre a bela Rosamund, tão adorada pelo rei, que provocara a fúria ciumenta daquela virago da Eleanor de Aquitânia. A rainha não estava certa se acreditava, ou não, que a violenta senhora oferecera a Rosamund a escolha entre a adaga e o veneno, mas assim diziam os versos da canção.
No seu pavilhão, que Henrique construíra para a bela amante, Rosamund esperara o nascimento do filho que também era do rei.
Teria ela também rezado por um menino?
E ela dera, mesmo, meninos ao rei - dois meninos fortes.
Pobre Rosamund, que morrera no Convento de Godstow, perto dali, pagando seus pecados.
A rainha rezou pela alma da Bela Rosamund.
Quando as filhas vinham sentar-se a seu lado, ela lhes falava sobre Woodstock. Eram muitas as histórias sobre o castelo. Não queria discutir a da Bela Rosamund com as filhas, mas elas sabiam que o avô, Henrique III, e a avó, que representava uma parte muito importante de suas vidas, tinham ficado em Woodstock certa vez e caminhado sozinhos do palácio até o pavilhão de Rosamund. Naquele local romântico, tinham passado a noite. E aquilo fora providencial, porque naquela mesma noite um padre louco entrara no quarto do rei e, na escuridão, enterrara repetidas vezes uma faca na cama, pensando que o rei estivesse nela, e onde o rei teria estado se não tivesse ficado no pavilhão de Rosamund.
- Imaginem se ele tivesse matado seus avós - disse a rainha.
- Seu pai nunca teria nascido... o mesmo acontecendo com vocês.
Joanna ficou apavorada com aquela perspectiva. Não conseguia imaginar um mundo sem uma Joanna de Acre.
No dia seguinte, as dores da rainha começaram.
Como sempre, foi um parto fácil. Foi, como ela pensara antes, o mesmo sistema. O parto rápido, a menina... dessa vez uma menina fraca, diante da qual as mulheres abanaram a cabeça.
As crianças foram ver a mãe. Eleanor, de olhos alerta, Joanna, curiosa, Alfonso, assustado, Margaret, perplexa.
- Querida senhora - disse Eleanor -, como está passando? Disseram que é uma menina.
- Mais uma menina - disse a rainha. - É muito pequena.
- Eu quero vê-la - disse Joanna.
Eles foram levados até o berço onde a criança estava e ficaram em silêncio, olhando com assombro e desapontamento para a mirrada criaturinha que era a nova irmã.
A princesa Eleanor voltou para perto da cama.
- Mãezinha querida, a senhora não está doente, está?
- Não, minha filha, eu estou bem. Seu pai vai ficar desapontado, mas o próximo será um menino.
A princesa estava preocupada. A mãe estava pálida, e ocorrera-lhe a ideia de que se a rainha morresse, seu pai tornaria a se casar. Ele era jovem e viril. E se se casasse com uma mulher jovem que pudesse ter meninos!
A mãe interpretou de forma errada sua expressão de alarme.
- Não se preocupe, filha. Uma mulher fica exausta depois de uma experiência dessas. Dentro de poucos dias estarei bem.
A princesa ajoelhou-se ao lado da cama, segurando a mão da mãe.
- Oh, querida senhora, fique boa, fique boa.
A rainha tocou os cabelos da filha e sorriu para os outros que tinham voltado para o lado da cama. Edeline chegou para levá-los embora.
- A rainha precisa repousar - disse ela.
A rainha precisava de consolo, também, porque três dias depois, o franzino bebé morreu - e a longa provação, a vigília da esperança e de oração mostraram ter sido, uma vez mais, em vão.
As Vésperas Sicilianas
LLEWELLYN DESCOBRIRA a paz e a felicidade na fortaleza de Snowdonia. Sua Demoiselle era tudo o que ele sonhara que fosse. Amorosa, delicada e inteligente, era toda sua. O bem-estar dele era sua maior preocupação. Ela tomava conta dele, cuidava dele, e tinha capacidade para assessorá-lo. Ensinou-lhe as delícias do amor desinteressado. Sempre houvera conflitos na família dele, irmão contra irmão, sem nunca se ter certeza de onde surgiria a próxima traição. Ali, pelo menos, estava alguém em quem ele podia confiar por completo. Era uma revelação maravilhosa. A princípio, aquilo o divertira um pouco; ele não acreditara muito que era verdade. Mas agora que ele havia provado, repetidas vezes, que era, adquiriu uma sensação de segurança que chegava quase à exaltação.
Ele jamais sonhara que uma felicidade daquelas fosse possível.
A Demoiselle, também, encontrara satisfação. Sua única tristeza vinha das angústias relativas a seus irmãos. Almeric ainda era prisioneiro de Eduardo no castelo de Corfe e Guy continuava no exílio, procurado pelo assassinato de Henrique da Cornualha. Se ao menos pudessem ser liberados; se fosse possível dar-lhes a oportunidade de recomeçar a vida, ela poderia deixar de se preocupar com os dois e dedicar-se inteiramente à paz e à satisfação de sua nova vida.
Fazia mais de um ano desde que Eduardo dera permissão para que eles se casassem, e todos os dias, ao acordar, ela agradecia a Deus por tê-la feito encontrar finalmente a paz.
Ela adorava as montanhas - escarpadas e belas, uma ameaça para o inimigo, segurança para eles.
- Nossas adoradas montanhas - assim ela as chamava.
Havia épocas em que ela imaginava que Llewellyn se preocupava com a perda de poder. Então, os dois conversavam, e ela tentava fazer com que ele entendesse o quanto a glória temporal era desprezível quando comparada com o que os dois haviam descoberto. Sentia-se delirante de felicidade quando achava que ele estava percebendo aquilo.
Então, aquilo que eles esperavam ansiosos finalmente aconteceu. A Demoiselle ficou grávida.
Foi o ponto culminante do amor dos dois. Llewellyn ficou muitíssimo emocionado. Gostava de se deitar aos pés da mulher e fazer planos para o menino.
Ela ria dele.
- O menino. Sempre "o menino"! E se for menina?
- Se for igual à mãe, nada mais tenho a pedir.
- Insinceridade galesa - reprovou ela. - Você está pedindo um menino que se pareça com você.
- Ora, qual dos dois você prefere?
- vou querer o que vier.
- Ah, falou a minha sábia Demoiselle.
- Desde que estamos juntos, tenho sido tão feliz que me sinto satisfeita.
- Se for menino, iremos chamá-lo de Llewellyn. Ora, ele pode ser aquele de quem o Merlim falou.
Ela abanou a cabeça.
- Nada disso. Não quero um guerreiro. Quero que meu filho seja o chefe de uma família feliz. Quero que ele tenha filhos que o amem e o venerem... e não súditos que o temam.
- Sábia Demoiselle! - disse ele, beijando-lhe a mão.
Ela estava olhando para além dele, voltando ao passado, pensando, ele sabia, no pai - um dos maiores homens de sua época, segundo se começava a dizer. Um homem que acreditara no direito e, durante algum tempo, subjugara um rei. com o tempo, as pessoas iriam lembrar-se de Simon de Montfort porque ele vivera e morrera de forma violenta. Não iriam lembrar-se da Demoiselle que ansiara pela paz e levara felicidade a um selvagem das montanhas.
E assim faziam planos para o filho que estava por chegar.
Certo dia, o irmão de Llewellyn, Davydd, foi visitá-los. Davydd, na verdade, saíra-se melhor do que Llewellyn do acordo com a Inglaterra. Como Davydd tinha-se passado para o lado de Eduardo, o rei o considerara um aliado. Llewellyn tinha sido o inimigo.
Eduardo não conhecia Davydd, que era um homem disposto a lutar pelo lado que fosse mais forte.
Fazia algum tempo que havia paz nas fronteiras, e Davydd estava inquieto. Queria conversar com o irmão sobre as possibilidades de recuperarem o que fora perdido.
A Demoiselle ficou inquieta quando saudou Davydd. Estava certa de que a vinda dele representava problemas. Não queria nem mesmo que a ideia de guerra fosse levada para dentro de seu lar feliz.
Davydd demorou-se bastante, conversando com o irmão.
- Então você está contente - perguntou ele - por ser um vassalo do rei inglês? Onde está o seu orgulho, Llewellyn?
- Nunca fui tão feliz assim, em toda a minha vida. Davydd estava cético.
- Um novo marido. Um novo futuro papai. Pelos santos sagrados, Llewellyn, o que seu filho vai pensar de um pai que ficou contente por transferir sua herança para os ingleses?
Llewellyn ficou calado. Quando não estava com a Demoiselle, às vezes pensava, envergonhado, no acordo de paz que fizera. O que teria dito o seu avô? E seu pai?
- Não tive forças suficientes contra os ingleses - disse ele. Olhou para Davydd com o cenho franzido. - Eu estava cercado por traidores.
Davydd encolheu os ombros, num gesto de desprezo.
- Se eu não tivesse passado para o lado dos ingleses, não teria sobrado nada de Gales para nós.
- Se você tivesse ficado do meu lado...
- Eu não queria ser vassalo de homem algum... nem mesmo de meu irmão.
- Exceto, é claro, do rei da Inglaterra.
- Não será por muito tempo - disse Davydd.
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer o seguinte: deveríamos reunir uma força e recuperar o que nos foi tirado.
Llewellyn, pensando na Demoiselle, abanou a cabeça.
- Já se esqueceu da profecia?
- Ficou claro que ela não se referia a mim.
- Claro que não se referia a uma pessoa que deixa passar a sua oportunidade de grandeza. Llewellyn, você foi feito para governar o País de Gales... e pode muito bem governar a Inglaterra. Merlim pode ter querido dizer que a Inglaterra seria sua se você fosse ousado bastante para toma-la.
Fez-se um silêncio profundo. Aquela ideia ocorrera mais de uma vez a Llewellyn.
Falando lentamente, ele disse:
- Nunca senti tanta felicidade como tenho sentido ultimamente.
Davydd adotou um tom de zombaria.
- Você está recém-casado. Esperou demais. Sua noiva lhe foi roubada. Oh, foi muito romântico. Sonhos, sonhos... e ainda está vivendo um sonho. Pense, Llewellyn. Quando ficar velho, seus filhos vão dizer: "E o País de Gales? E a nossa tradição? Você a jogou fora em troca de seus sonhos românticos."
- Caberá a eles seguir seus caminhos, aprender as lições da vida por si mesmos, pedir o que quiserem... felicidade como a que tenho agora, paz... alegria... ah, não sei explicar. Davydd... é isso, ou a guerra, derramamento de sangue, sofrimento, decepção.
- E a glória de Gales? Gales para os galeses!
- Está perdendo o seu tempo comigo, Davydd. E por fim Davydd viu que era verdade.
Llewellyn ficou pensativo depois que Davydd foi embora. A Demoiselle o consolou.
- Ele me acha um bobo - disse ele.
- Um bobo sábio - respondeu ela. Depois, os dois conversaram sobre o bebé que estava para vir e sobre a beleza das montanhas galesas.
Nossas montanhas, como ela as chamava, e eles com o seu casamento feliz e seu filho para chegar, para ele era o suficiente.
E assim viviam no seu paraíso pacífico, e aproximava-se o momento em que a Demoiselle deveria recolher-se ao leito. As mulheres chegaram e isolaram-na dele.
Ele ficou sentado do lado de fora do quarto dela e esperou.
Os dois ainda não tinham chegado ao cume da felicidade. Seria diferente quando o bebé chegasse. Ela estava ansiosa pelo bebé, e ele também.
Um garotinho. Llewellyn. Aquele Llewellyn que iria fazer com que a profecia de Merlim se tornasse realidade. Não, ela não iria querer aquilo. Significaria enfrentar o poder de Eduardo. Talvez Eduardo estivesse morto quando aquela criança crescesse. Talvez fosse o filho de Eduardo que o menino teria de enfrentar.
Llewellyn sorriu. Aquela devia ser a resposta. Homem algum podia enfrentar o grande Eduardo. Isso era uma coisa que as pessoas sabiam por instinto. Até mesmo a profecia de Merlim sucumbia diante de Eduardo.
O trabalho de parto demorou. O dia esmaeceu. Nenhum sinal, ainda. Será que ela está sofrendo? Aquilo era insuportável. Eu devia estar ao lado dela. Oh, não, meu senhor, diziam elas. É melhor não ficar. Não deve demorar muito, agora.
Oh, minha Demoiselle, filha de um grande homem e princesa real, que prazer você me trouxe! Isso não pode durar. Não deve haver mais filhos. Você vai dizer que é natural uma mulher ter filhos, mas eu não aguento este... tormento.
Ele riu de si mesmo. O seu tormento era mental, o dela, físico. As mulheres andavam de um lado para o outro, atarefadas. Fisionomias sérias e aquela exclamação perpétua: "Não vai demorar."
E então ele ouviu o choro de uma criança.
Foi até a porta.
- Uma menina, meu senhor. Uma adorável e saudável menina. Ele não olhou para a criança. Só conseguiu ir para onde a Demoiselle jazia na cama, fraca e exausta.
Ajoelhou-se ao lado da cama e as lágrimas rolaram-lhe dos olhos. Não conseguiu evitá-las. Não se importava se as mulheres vissem.
- Como ele gosta dela! - disse a velha parteira, e abanou a cabeça. Em seus olhos havia uma tristeza infinita.
- Uma menininha - sussurrou a Demoiselle.
- Uma bela menina, meu amor - respondeu ele.
- Você não se importa...
- Quero apenas a minha Demoiselle. Não ligo para mais nada...
- Você precisa tomar conta da menina. Disseram-lhe que ela agora precisava dormir.
- Ela está exausta por ter dado à luz sua filha - disse a parteira.
E ele se retirou e a deixou, foi para o seu quarto e rezou. Esquecera-se de ver a criança. Estavam batendo à sua porta.
- Meu senhor, venha depressa. A senhora quer vê-lo.
Ele correu. Chegou ao lado da cama. Ela olhava para ele com os olhos embaciados.
- Llewellyn - sussurrou o nome dele. Ele se ajoelhou ao lado da cama.
- Minha Demoiselle, eu estou aqui. Ela disse:
- Tome conta... da menina... E fechou os olhos.
Uma das mulheres veio postar-se ao lado dele. - Ela se foi, meu senhor - disse ela.
- Ela se foi! - bradou ele. - Que ousadia dizer isso! Foi-se. Ela está aqui... Ela está aqui...
Ele ergueu-a nos braços. Ficou segurando o corpo sem vida, desafiando Deus a tirá-la dele.
Ele ficou louco de dor. Não queria viver.
- Ali está a criança - disseram-lhe.
Ele pouco se importava com a criança. Ele a odiava. A chegada dela havia levado a Demoiselle... uma troca muito desvantajosa. Uma troca trágica. Eu nunca deveria ter tido um filho. Oh, Deus, como eu gostaria de nunca ter tido um filho! O que é que eu quero com uma filha... sem ela?
Ele estava vivendo num sonho... um sonho de desespero. Nada importava mais. Ele se trancou no quarto. Não queria comer. Não queria ver ninguém. Perdera tudo o que amava.
As pessoas imploravam para que pensasse na criança.
- A senhora disse que gostava do nome Gwenllian. Ela disse: "Se for menina, vou chamá-la assim." Meu senhor, deve-se dar esse nome a ela?
Podiam dar a ela o nome que quisessem. Para ele, não tinha importância.
E assim a menina, que custara a vida da mãe, recebeu o nome de Gwenllian; e ficou contente com a ama-de-leite que haviam arranjado para ela, sem saber o que seu nascimento custara.
Llewelyn perambulava pelas montanhas - apesar de escuras e tristes quando o sol lá não batia. E o sol se pusera para sempre em sua vida. Não se importava com o que pudesse lhe acontecer.
A princesa Eleanor estava com os seus dezoito anos, e em geral todo mundo se perguntava por que não se casara. O noivo, Alfonso de Aragão, agora era o infante; um dia, seria o rei de Aragão, mas todas as vezes que o assunto do casamento era abordado, o rei estava ocupado demais para discuti-lo, ou achava que o projeto de mandar a filha para longe era inconveniente no momento.
A princessa ficava encantada. Não tinha vontade alguma de ir para Aragão. Por que iria? Ela estava perfeitamente feliz na Inglaterra. Tinha a sua querida família e a posição de herdeira do trono.
O pobre do Alfonso estava, agora, com oito anos, e as pessoas abanavam a cabeça em relação a ele. "Ele não vai viver muito", diziam.
Quanto ao rei, adorava todos os filhos, mas não conseguia evitar ser um pouco impaciente com um menino que era tão diferente dele. Alfonso não teria aquele belo físico herdado dos normandos; na verdade, parecia muito um castelhano, com os cabelos pretos, olhos claros e delicado. Qualidades admiráveis na rainha, mas dificilmente adequadas ao herdeiro da Inglaterra. Além do mais, o rei adorava a filha mais velha. Os dois cavalgavam juntos e conversavam, e ele não suportava tê-la longe dos olhos. Era uma mulher forte; parecia-se com a avó; e por este motivo, o amor da rainha-mãe pela moça era quase tão forte quanto seu amor pelo rei.
Ela adorava que a princesa a visitasse. Fora até Amesbury, mas só para curtas visitas. Estava experimentando o convento, antes de acabar se instalando de vez, e não havia dúvida de que não faria isso enquanto o cansativo problema do dote não tivesse sido resolvido. Não havia dúvida de que não iria perder parte alguma de sua riqueza. Ela adorava o dinheiro e as propriedades que tinha, tanto quanto amava a família, e não abriria mão de um tostão.
Além disso, amava demais a vida para isolar-se por completo. Talvez Deus ficasse satisfeito, por enquanto, com umas breves temporadas de santidade. Afinal, ainda gozava de boa saúde, de modo que ainda restavam alguns anos para que pagasse a totalidade da dívida.
Não que ela acreditasse que tivesse muito pelo que responder. Tinha sido uma mulher fiel a Henrique; os dois tinham sido como uma só pessoa; ela o ajudara a governar o reino. Não, não achava que lhe fosse exigida uma grande recompensa.
Ela gostava da nora, a rainha, mas a achava uma criatura fraca. Era, no entanto, o que Eduardo queria, porque ele era um homem dominador - não como o seu querido pai, que ouvia os conselhos... da mulher. Eduardo não dava ouvidos a ninguém nem mesmo à sua mãe. Eduardo acreditava que o certo era ele.
Felizmente, era um grande general. Os homens o temiam; era justo e, como era de se esperar de um filho dela e de Henrique, era um marido fiel que respeitava a vida em família. Isso era bom para o país, porque os súditos seguiam as modas estabelecidas pelo rei.
Ela recebeu a neta Eleanor com o maior dos prazeres. Interessava-se muito por todos os netos, mas principalmente por Eleanor, e por Mary, é claro, que ela decidira que iria para um convento
- provavelmente para Amesbury, se este correspondesse às suas expectativas.
- Minha querida, querida neta - disse ela e abraçou a princesa. - Que prazer em vê-la! Acabo de vir de Amesbury, e o descanso me fez bem.
- A senhora está com ótima aparência.
- Estou muito bem, querida. Jamais pensei que me sentiria tão bem depois da morte do seu querido avô.
- Algo na senhora morreu com ele - disse a princesa, rápida, antes que a avó o dissesse.
- Como você compreende! Dou graças a Deus por tê-la, minha filha. Você é um grande conforto para seus pais.
E então as duas falaram sobre a rainha.
- Não tenho dúvidas - disse a rainha-mãe - de que em breve ela ficará grávida outra vez.
- Mãezinha querida! Ela não devia ter tantos filhos. Isso a enfraquece.
- É demais. Eduardo deveria perceber que é praticamente impossível ele ter um filho homem agora. Seus meninos nunca são fortes. Achei Alfonso muito fraco quando o vi pela última vez. É um menino muito encantador. Estou com as viúvas fazendo vigília por ele, mas do que adianta isso?
- Não adiantou nada para os outros - disse a princesa.
- Eu acredito - disse a rainha-mãe em tom de conspiração
- que Alfonso nunca chegará à maturidade.
A princesa concordou, com um gesto solene da cabeça.
- Ora, nós temos você, meu amor.
- Majestade, suponha que o pobre do Alfie...
- Morra? - disse a rainha-mãe. - Infelizmente, acho que é muito provável que isso aconteça.
- E eu...?
- Minha bendita menina, você é a filha mais velha. Sou capaz de jurar que é tão boa quanto um homem, em todos os detalhes. Sempre me deixou maluca... esse desejo de ter filhos homens. Como se fossem mais inteligentes do que nós. Já percebeu isso? Ora, seu avô dizia que eu equivalia a dez de seus ministros.
- E ficou provado que valia.
- Seu avô dizia que eu poderia ter governado o país tão bem quanto ele.
Não teria sido político dizer: "E o governo dele não foi muito bom", e a princesa ficou agitada porque via que contava com o apoio da avó, e todo mundo concordaria que valia a pena ter esse apoio.
- Então, majestade, se tudo isso acontecesse, acha que eu poderia, daqui a muitos anos, vir a ser a rainha da Inglaterra?
- Poderia acontecer, menina, e acho que não seria tão ruim assim para este país.
- Mas se eu for para Aragão para me casar com aquele homem...
- Ah, neste caso, minha querida, não aconteceria. Seu marido iria querer a coroa, e o povo jamais aceitaria isso. Não, você teria que estar aqui... e vai ter de mostrar ao povo que é forte e capaz. No íntimo, acredito que o rei pensa assim. Veja como ele a tem distinguido.
- Mas é sobre isto que quero conversar com a senhora. Chegaram notícias de Aragão. Eles querem que eu saia da Inglaterra imediatamente. Oh, majestade, o que vou fazer?
- Isto tem de ser evitado - disse a rainha-mãe. - vou falar com sua mãe e com o rei.
- Eu não suportaria ser mandada embora. Não ver a senhora, majestade... e os outros.
A princesa observava atentamente a avó. A velha senhora cerrou os lábios com força.
- Claro que você não deve ir... por enquanto. É jovem demais.
O absurdo daquilo não importava a nenhuma das duas. Quando a rainha-mãe fazia uma declaração, devia ser verdade, por mais que a realidade apontasse o contrário.
O rei estava perfeitamente pronto a ser persuadido de que sua filha era criança demais para sair de casa. Embora se protegesse escrevendo ao rei de Aragão dizendo que eram "a rainha, mãe dela, e nossa querida mãe que não estão dispostas a admitir que ela cruze o mar antes do tempo, devido à sua tenra idade". Mas acrescentava que concordava com aquilo.
Os aragoneses ficaram desconfiados. Falar em tenra idade de uma noiva que estava com dezoito anos, quando tantas meninas eram enviadas para junto dos maridos com doze e treze parecia, realmente, muito estranho.
Nasceu uma frieza entre o embaixador de Aragão e a corte do rei que deixou Eduardo perturbado e, como as condições no exterior precisavam da amizade de Aragão, ele teria que ter cuidado e não deixar que pensassem que ele queria romper o contrato.
Enquanto isso, a rainha ficara grávida uma vez mais.
Llewellyn continuava de luto. A filha fora deixada aos cuidados das amas, e ele nunca queria vê-la. Cavalgava até as montanhas porque queria ficar a sós com a sua desgraça.
As pessoas comentavam: "Se continuar assim, vai morrer de melancolia."
Seu irmão Davydd, ouvindo falar sobre o seu estado, voltou a visitá-lo.
- Não está vendo como é errado dar muita importância a prazeres tão efémeros? - perguntou ele.
- Quem iria pensar que ela fosse morrer? - lamentou-se Llewellyn. - Passamos tão pouco tempo juntos! Como pôde Deus ser tão cruel?
- Às vezes, Deus é cruel com um homem para que ele possa cumprir o seu destino.
- Destino! Qual é o meu destino sem ela?
- Houve uma profecia de Merlim.
- Um falso profeta.
- Cuidado, Llewellyn. Não é de admirar que o céu lhe desfira golpes assim, se você blasfema desse jeito.
- O céu pode me dar quantos golpes quiser. Já não sinto mais. Pouco me importa o que possa me acontecer.
- Você ainda não está liquidado, Llewellyn. Tem o futuro pela frente.
- Pouco me importa o futuro. Nunca mais vou ser feliz.
- É possível encontrar a felicidade fora da vida em família. Dê a si mesmo uma chance de encontrar uma compensação.
- Você não compreende, Davydd.
- Compreendo perfeitamente. Se ficar aqui se lamentando, vai morrer de melancolia. Deixe que lhe diga uma coisa, irmão. Eu poderia organizar um exército. Poderíamos nos lançar contra os ingleses... juntos. Eduardo está dominado por uma sensação de segurança. Ele acha que nos derrotou. Llewellyn, por que não mostramos a ele que está errado?
Llewellyn escutava só pela metade. Estava pensando: Eduardo nos manteve afastados. Eduardo capturou-a e não deixou que ela viesse para cá. Poderíamos ter vivido mais tempo juntos. Eu odeio Eduardo. Odeio o mundo. Odeio Deus.
- Nós poderíamos... juntos... derrotá-lo. Trazer o País de Gales de volta para os galeses. Llewellyn, não está vendo que esta é a nossa oportunidade? É Deus mostrando a você uma saída para o seu sofrimento. Llewellyn, você agora está zonzo de tanta dor, mas se der a si mesmo uma chance, vai vencer tudo isso. Ah, sei que nunca se esquecerá dela. Sei o que você perdeu. Mas precisa seguir em frente. Continuar vivendo. Não pode viver por ela, mas pode pelo País de Gales.
Pelo País de Gales! Pelas magníficas montanhas, pelos vales e pelos montes. À honra de Gales. Gales para os galeses. E talvez um dia a profecia de Merlim se tornasse realidade. Davydd estava insistindo. Não podia confiar em Davydd. Já o enganara uma vez.
Ele ficou assombrado. Por alguns minutos, parara de pensar na Demoiselle.
Agora, prestava atenção ao que Davydd dizia.
Não se importava com o que pudesse acontecer com ele. Talvez fosse essa a melhor maneira de se lançar num combate desesperado.
Os aragoneses estavam decididos. Não iriam esperar mais. O Infante queria a noiva. Se ela não fosse para o lado dele, era provável que ele fosse procurar outra em algum lugar; e estava claro que não consideraria aliado alguém que o tivesse tratado como fizera o rei inglês ao reter a filha.
Os lábios pressionados, Eduardo explicou a situação à filha. Viu o desespero lívido na fisionomia dela. E então não se conteve mais e abraçou a filha.
- Minha filha querida, o que posso fazer? Você está prometida a Aragão.
Não havia coisa alguma que ela pudesse fazer. Nada que a rainha-mãe pudesse fazer. A princesa estava prometida a Aragão e não havia motivo sério para que não fosse ao encontro do noivo.
A princesa estava de joelhos, rezando. Deus precisava fazer alguma coisa que evitasse a sua ida. Ela não podia ir. Todos os seus planos iriam fracassar se ela fosse. Não queria ser a rainha de Aragão, queria ser a rainha da Inglaterra. Sua mãe estava grávida novamente. Se Deus enviasse um menino daquela vez, ela interpretaria como um sinal de que Ele a abandonara.
Alguma coisa vai acontecer, era o que estava sempre dizendo para si mesma. Tem que acontecer alguma coisa.
E então chegaram as estarrecedoras notícias do País de Gales. Llewellyn e seu irmão Davydd tinham-se levantado contra o rei. Eduardo ficou furioso. Ele acreditara que o problema galês estivesse resolvido. Dera a Llewellyn sua Demoiselle e esperava muitos anos de paz naquela fronteira. Agora, os irmãos tinham-se revoltado.
Ele não confiaria a ninguém a tarefa de subjugá-los. Iria ele mesmo.
Avisou à filha que estava indo para o País de Gales. Ela agarrouse a ele e disse:
- O senhor vai e eu terei que ir embora. É provável que não nos tornemos a ver.
- Isso não pode acontecer - disse ele. - Você irá comigo até o País de Gales. Você, sua mãe e seus irmãos e irmãs ficarão alojados num lugar seguro, mas onde eu possa vê-los entre uma batalha e outra. Minha adorada filha, parece que você tem que ir para Aragão, mas agora, ainda não... ainda não. Posso deter o avanço deles por mais um pouco.
- Isso faz parecer que eles são inimigos - disse ela, metade chorosa e metade alegre porque o pai deixava bem às claras o seu amor por ela.
- Quem tira minha filha adorada de mim é meu inimigo disse o rei.
- Por uns tempos, então, eu vou esquecer - disse ela. - Tentarei ser feliz. Não vou pensar que logo terei de ir embora. Por enquanto, posso estar ao lado de meu pai adorado.
A rainha também ficou ansiosa por ir até o País de Gales. Mantinha a crença supersticiosa de que se tivesse um filho num lugar diferente, poderia ter um filho homem saudável.
E foi assim que a comitiva real viajou para o norte, e o rei colocou a família no castelo de Rhudlan, enquanto seguia em frente com seus exércitos para dominar Llewellyn e o irmão Davydd.
Eduardo transformara Rhudlan em sua place darmes e nele também mantinha as provisões para o exército. Para ele, era um grande consolo ter a família por perto. A guerra seria muito menos estafante se, em algum lugar - tão longe dos combates quanto as medidas de segurança recomendassem , ele pudesse tê-la instalado. Quando houvesse um intervalo nos combates e as circunstâncias indicassem que ele deveria descansar um pouco, poderia ficar com a família.
A rainha estava na expectativa. Era otimista por natureza e, a cada gravidez, era estimulada pela ideia de que daquela vez iriam ter o filho tão desejado; e mesmo quando ficava desapontada, dizia para si mesma: "Fica para a próxima." Sentia-se grata por ter filhos com facilidade - um dom que algumas mulheres tinham, mas que nem sempre era concedido a rainhas. Eduardo sempre concordara com ela: um dia, o menino tão esperado viria. "E se não vier", dissera ele não fazia muito tempo, "temos a nossa filha." Ele ficara muito perturbado daquela vez, diante da perspectiva de perdê-la. A princesa devia ter ido para Aragão fazia muitos anos. Mas era um consolo saber que Eduardo gostava tanto das filhas que não suportava separar-se delas.
Joanna também teria de ir embora. A rainha achava que isso aconteceria logo porque, embora Joanna fosse oito anos mais nova do que a irmã Eleanor, estava com dez anos e esta era uma idade em que as futuras esposas deviam estar vivendo com as famílias dos noivos, para que pudessem crescer integradas na maneira de viver de cada uma delas. Como seria triste quando Eleanor fosse para Aragão e Joanna para a Alemanha! Mas parece que não havia como evitar aquilo. As princesas nasciam para sair de casa e ir morar na dos maridos. Ela tivera que fazer o mesmo; isso acontecera até mesmo com a dominadora rainha-mãe - embora, pelo que a rainha ouvira dizer, tivesse acreditado que quem escolhera aquilo tivesse sido ela mesma.
Era maravilhoso estar perto do Eduardo, porque ela podia receber logo notícias sobre o andamento da guerra. Eduardo não esperava que aquilo durasse muito tempo. Os chefes de clãs galeses que se revoltavam nos seus morros deveriam ser colocados em seus lugares em breve e dessa vez, disse Eduardo, eles irão sentir a minha ira. Fizeram um trato comigo. Não terei misericórdia com os que não honraram sua palavra para comigo.
E falava sério. Por mais delicado que fosse para com a família, estava se tornando um rei enérgico. Claro que tinha razão. As pessoas só obedeciam àqueles que mostravam ter um braço forte.
- Que seja um menino - rezava ela. Se fosse, Rhudlan seria lembrado como o local em que seu filho nascera. Havia Alfonso, é claro. Eles tendiam a esquecer que era um menino e o mais velho. Pobre criança, saberia ele que as pessoas trocavam sussurros a seu respeito? Todos achavam que não viveria muito. Eduardo era bom para ele, mas não sentia orgulho dele, e às vezes a rainha achava que o garoto sabia disso e perdera a vontade de viver. Como João e Henrique tinham morrido, esperava-se que o mesmo acontecesse com Alfonso. Ele estava com nove anos, agora, e vivera mais do que João ou Henrique. Talvez como acontecera com o pai, perdesse aquela fraqueza à medida que fosse crescendo.
A rainha rezava para que ele conseguisse, mas mesmo assim seria aconselhável ter outro irmão - um menino saudável que estivesse ali para ocupar o trono, em caso de necessidade.
Ela gostava de Rhudlan. Sentia-se logo à vontade num castelo porque assim que chegava mandava os criados pendurarem as tapeçarias que levara. E, é claro, havia certas peças de mobília que eram levadas de um canto para outro - sua cama, sua cómoda, suas cadeiras. De modo que um castelo se parecia muito com o outro.
Ficava contente por ver que o hábito de pendurar tapetes nas paredes - moda que ela levara de Castela - era apreciado ali. Um número cada vez maior de pessoas o estava adotando.
Mas Rhudlan era diferente, claro. O castelo ficava num barranco íngreme que permitia uma boa visão da região que o cercava. Era banhado pelo rio Clweyd e impressionava com seu arenito vermelho que viera das rochas da vizinhança. A rainha ficara reanimada ao avistar as seis maciças torres flanqueando as altas cortinas da torre do rei acima delas. Eduardo fizera certas reformas quando lá estivera. Eduardo nunca resistia a melhorar seus castelos sempre que descansava. Tinha o talento e o amor do pai pela arquitetura, só que, enquanto Henrique havia feito reformas sem pensar no custo, pelo simples prazer de melhorar a construção, Eduardo era prático, jamais gastando mais do que o necessário, e preocupava-se principalmente em reforçar as fortificações.
Ali ela esperava, como havia esperado tantas vezes antes. Aquele seria o seu décimo primeiro parto. Deles, tinham nascido só três meninos e dois deles estavam mortos e o outro era doente. Sem dúvida que agora Deus seria bom para com ela. Sem dúvida Ele ouviria suas orações.
As filhas iam vê-la, pois estavam todas lá - até Mary, de quatro anos -, embora a rainha-mãe tivesse querido que a menina ficasse com ela. Decidira que Mary devia entrar para um convento. A rainha achava que a filha deveria escolher por si mesma o que iria fazer da vida. Tudo iria depender, insistia a rainha-mãe, de como a menina fosse criada. Ela deveria ser informada, desde o início, sobre o que se pretendia fazer com ela. Era necessário que uma das filhas levasse uma vida isolada, e a rainha-mãe escolhera Mary.
A rainha estava inclinada a deixar os assuntos desagradáveis para o momento em que precisassem ser resolvidos, e Eduardo tinha outras questões com que se preocupar, de modo que Mary era deixada muito tempo a cargo da rainha-mãe, que até mesmo em certa ocasião a levara até Amesbury e, sem dúvida, dera a entender a ela que o seu futuro seria ali.
A hora dela chegara. Sentiu os sinais que lhe eram familiares. Era mais calma do que as criadas. Afinal, passara por aquilo muitas vezes.
Chamou-as e disse:
- Precisamos nos preparar, agora.
Poucas horas depois, a criança nasceu. Foi o que todos esperavam. Uma filha. Mas ela agradeceu a Deus por parecer uma criança saudável.
Eduardo não iria vê-la de imediato, mas a notícia foi enviada a ele.
Ela se recuperou depressa, como sempre fazia. Mandou chamar os filhos, para que pudesse mostrar-lhes o novo bebé: Eleanor, com dezoito anos, Joanna, com dez, Alfonso, com nove, Margaret, com sete, e Mary, com quatro.
Eles examinaram o novo bebé no berço.
- Ela vai se chamar Elizabeth - disse-lhes a rainha.
Os olhos da princesa Eleanor estavam brilhando com uma emoção que a mãe não entendeu. Mas a irmã Joanna, sim. Ela disfarçou um sorriso e, depois que saíram dos aposentos da mãe, seguiu a irmã até os dela.
- Mais uma menina - disse Joanna. - Não é estranho que eles, que precisam com tanta urgência de um menino, só consigam meninas? É como se Deus estivesse pregando uma peça neles. Eleanor, você acha que Deus prega peças?
- Eu acho - disse Eleanor - que Deus tem Seus motivos.
- Todos nós temos os nossos - lembrou-lhe Joanna.
- Quero dizer que Ele deixa as coisas acontecerem de uma certa maneira porque tudo faz parte de seus planos. Eu pensava...
- Eu sei o que você pensava. Se Alfie morrer, você se torna rainha.
A princesa Eleanor estava para negar isso, mas quando olhou para os olhos inteligentes da irmã, mudou de ideia. Ninguém teria acreditado que Joanna fosse tão criança. Era esperta demais para sua idade; colava-se a portas para ouvir o que se falava do outro lado; interrogava os empregados de uma maneira astuta e rápida, o que significava que revelavam mais do que pretendiam. Desse modo, Joanna sabia de muita coisa.
Eleanor deu de ombros.
- Devo ir para Aragão.
- E eu, para a Alemanha.
- Eu não quero ir para Aragão. Se for...
- Nada será como você quer. Daqui a algum tempo, você será a rainha de Aragão, quando na verdade quer ser a rainha da Inglaterra. Rainha consorte de Aragão ou rainha de verdade da Inglaterra. É fácil entender.
Eleanor disse, zangada:
- Se Deus vai me mandar para Aragão, por que Ele dá à rainha mais uma menina? A impressão é de que Ele está do meu lado... todas essas meninas... e depois, Ele deixa que me mandem para Aragão.
- E eu para a Alemanha - disse Joanna, suspirando. - Embora eu perceba que não é exatamente a mesma coisa, porque eu jamais poderia ter a esperança de ser rainha da Inglaterra. É você que nosso pai quer, irmã, mas se não for vontade de Deus, isso de nada adianta.
- Podíamos rezar por um milagre.
- Que tipo de milagre? Que Alfie morra? Eleanor bradou, assustada:
- Não diga isso. Pode dar azar. Claro eu não quero que Alfie morra. Quero apenas que seja fraco demais para governar... de modo que eles tenham uma rainha...
- Rainha Eleanor - disse Joanna, imitando um ar de respeito. A princesa cerrou as mãos.
- Eu não devo ir para Aragão - disse ela.
- Não - repetiu Joanna -, você não deve ir para Aragão. Como vamos impedir isso?
- Você acredita que se rezar com bastante fervor fará com que aconteça alguma coisa?
- Comigo, isso nunca funcionou.
- Tente. É tudo o que nos resta. Reze comigo para que eu não vá para Aragão... - e acrescentou, como se a ideia lhe tivesse surgido como consequência: - ...e você não vá para a Alemanha.
Joanna adorava experimentos.
- Vamos tentar! Orações especiais! Vamos rezar com intenção firme. Vamos nos concentrar totalmente nisso. Para dizer a verdade, irmã, eu quero tanto ir para a Alemanha quanto você quer ir para Aragão.
A princesa Eleanor agarrou a mão da irmã, os olhos brilhando com um fanatismo que Joanna achou muito interessante.
A princesa Eleanor e a irmã Joanna ficaram muitíssimo satisfeitas. Eleanor disse que nunca duvidara que o seu milagre fosse acontecer, e que fora por isso que acontecera.
Era o que se chamava de "Fé".
Joanna ficou impressionada. Eleanor devia ser muito importante aos olhos de Deus, se Ele podia matar tanta gente só para atender às suas ambições, e o fato de ter acontecido tão longe, por um motivo que na verdade nada tinha a ver com elas, tornava a coisa duplamente interessante.
Acontecera na Sicília, naquela ensolarada ilha em que o povo adorara cantar e dançar antes de ser conquistado pelos franceses. Os sicilianos amantes da liberdade, inquietos sob o jugo francês, tinham tramado em segredo e, mais para o começo daquele ano no Domingo de Páscoa, para sermos precisos -, tinham-se levantado contra os inimigos. O sinal para a revolta fora a primeira badalada do sino ao soar a véspera, e os sicilianos haviam exterminado todos os franceses que estavam na ilha - oito mil, ao todo.
A notícia do massacre demorou um pouco a chegar à Inglaterra e, na época, não passou pela cabeça de Eleanor que isso poderia ser tão importante para ela. Mas os efeitos tiveram um longo alcance e os sicilianos, depois de terem participado do que ficou conhecido como as Vésperas Sicilianas, ficaram quase que imediatamente com um medo terrível dos poderosos franceses. Tinham procurado a ajuda de Pedro de Aragão - pai do futuro marido de Eleanor.
O motivo de terem-se voltado para Aragão era o fato de a mulher de Pedro ser Constance, filha do antigo rei da Sicília, e de eles pensarem que se a coroa da Sicília fosse oferecida a Aragão aquele país não hesitaria em ir em seu auxílio. Eles estavam certos, e Pedro foi recebido na Sicília com grande alegria.
Era praticamente improvável que os franceses fossem deixar que aquela situação continuasse como estava. Carlos de Anjou, que fora rei da Sicília, era muito íntimo da família real inglesa por ter-se casado com Beatrice, irmã da rainha-mãe. Constance estivera muito ansiosa para que a princesa Eleanor fosse para Aragão, a fim de que pudesse estabelecer um elo com a Inglaterra mais forte do que o que já existia entre a Inglaterra e a França, devido ao parentesco entre Beatrice e a rainha-mãe. Claro que os franceses, agora, estavam extremamente ansiosos para que aquele casamento não se realizasse.
Carlos de Anjou recuperou bem depressa a possessão perdida, e o papa foi levado a re-examinar a concessão de dispensa relativa a casamentos de membros das famílias reais, e entre eles estava o de Eleanor e Alfonso de Aragão que, devido à muito recente morte de Pedro, passara a ser o rei.
O papa, portanto, mandou emissários para falar com o rei da Inglaterra, levando injunções no sentido de que a dispensa que fora concedida para um casamento entre a Inglaterra e Aragão já não tinha validade; e o papa acrescentava que esperava que o rei da Inglaterra abrisse mão de todas as intenções de formar uma aliança com inimigos da Santa Sé que se haviam aliado àqueles que tinham usado os sinos das vésperas como um sinal para o levante.
O rei voltara para uma rápida chegada a Rhudlan e, mesmo antes de ver a nova filha Elizabeth, mandou chamar Eleanor.
Abraçou-a com vigor.
- Ah, minha filha querida - disse ele -, trago boas notícias. Não haverá casamento aragonês. Você não irá para Aragão. Vai ficar aqui... comigo.
O rubor tomou conta do rosto dela; os olhos brilhavam de alegria. Sempre fora a mais bonita de suas filhas. Ele não conseguia tirar os olhos de seu belo rosto.
- Parece que você ficou feliz com esta notícia - disse ele.
- Nada poderia ter me deixado mais feliz. É o milagre pelo qual tenho rezado.
Como os dois exultaram! Como riram juntos!
- Precisamos ficar sérios - disse o rei. - Vamos fingir que estamos aborrecidos. Como é que o papa tem a ousadia de dar ordens ao rei da Inglaterra, hein? Mas o rei da Inglaterra está em guerra contra os rebeldes galeses e não iria correr o risco de uma ameaça de excomunhão num momento desses, iria? Portanto, temos de fazer o que o papa deseja. Esta deve ser uma das poucas vezes em que as ordens do papa agradaram a um rei da Inglaterra.
A princesa se agarrou nele. Não queria largá-lo.
Ele acariciou-lhe os cabelos e murmurou palavras de carinho. Muita gente teria ficado surpresa se pudesse ter visto a forte expressão de ternura do rei para com a filha mais velha.
Depois de algum tempo, ele se afastou e foi para o quarto de dormir da rainha.
Beijou-a com ternura. Rainha querida, que dera os filhos que ele adorava - e em especial sua filha mais velha.
- Eduardo, eu sinto que tenha sido mais uma menina.
- Nada disso, meu amor, você não deve se lamentar. Eu amo minhas filhas. E nós temos Alfonso. Logo teremos de mudar o nome dele. Alfonso não é nome para um rei da Inglaterra. Vamos mudar para Eduardo?
- Não, Eduardo, não, por favor...
- Você não gosta do nome?
- Gosto demais - disse, incisiva. - Tenho medo de que dê azar.
- Então, vai ficar sendo Alfonso - e ele pensou: esse menino jamais subirá ao trono. E não há nada de errado com uma rainha da Inglaterra.
Por uma estranha coincidência, os entendimentos para o casamento de Joanna acabaram de forma abrupta.
Quando, naquele mesmo ano, o príncipe Hartman, conde de Hapsburg e Kyburg, landgrave da Alsácia e filho do rei dos romanos, anunciara sua intenção de ir à Inglaterra visitar a futura esposa, e se ele tivesse ido isto teria significado um compromisso e o seu retorno ao seu país levando Joanna, a visita fora adiada. Seu pai estivera, na época, envolvido num conflito e não podia pensar em mandar o filho à Inglaterra sem uma proteção adequada por parte de seus melhores soldados. Na verdade, precisava daqueles homens nas suas batalhas, motivo pelo qual a visita fora adiada. Aquilo não tinha muita importância, escreveu o príncipe Hartman; iria tão logo ele e seus homens pudessem ser dispensados, e então a princesa Joanna deveria partir com ele e iria continuar sua educação na casa real de Hapsburg.
Havia algo de determinante naquela carta. Estava decidido a ir, e o adiamento era apenas temporário. Joanna não via como escapar do destino. Era verdade que, tendo sido criada em Castela e depois enviada para a Inglaterra, não era tão avessa a uma mudança quanto a irmã Eleanor. Joanna acreditava que onde quer estivesse as pessoas iriam amá-la e admirá-la. Mesmo assim, queria ficar na Inglaterra.
Em Rhudlan a notícia foi levada a seu pai.
Ele mandou chamá-la, abraçou-a e disse que tinha más notícias para ela.
- Houve um acidente - disse ele. - O príncipe Hartman estava instalado no castelo de Brisac, às margens do Reno, e resolveu visitar o pai. Partiu, e de repente surgiu um nevoeiro. Seus marinheiros não sabiam onde estavam, pois o nevoeiro era tão forte que eles não conseguiam ver as próprias mãos quando as colocavam diante dos olhos. O barco deles bateu num rochedo e afundou. Minha filha querida, o príncipe Hartman, seu futuro esposo, morreu afogado. Eles retiraram o corpo do rio, de modo que não pode haver dúvida.
- Neste caso, não haverá casamento - disse Joanna, séria.
- Ora, você ainda é uma criança. Não se preocupe, que vamos arranjar um marido do mesmo nível para você.
- Eu não me preocupo, majestade, e não estava querendo sair daqui.
O rei teve um sorriso carinhoso. Que filhas encantadoras, as suas! Joanna era quase tão bonita quanto a irmã Eleanor.
- Para dizer a verdade, minha filha, não consigo ficar muito triste com isso, porque significa que nós não iremos perdê-la... por enquanto.
- Talvez, quando eu me casar, seja com alguém daqui... do nosso país - disse Joanna. - Sei que minha irmã tem esperanças de que isso aconteça com ela.
O rei sorriu, contente.
- Quem sabe? - disse ele. - Você pode muito bem ter esta sorte.
Joanna não perdeu tempo para ir falar com a irmã. As duas se entreolharam com olhos arregalados.
- Então os milagres existem - disse Eleanor.
- Se a gente quiser - replicou Joanna.
As duas sorriram no íntimo, acreditando terem feito uma grande descoberta.
O Príncipe de Gales
DAVYDD TINHA RAZÃO, disse Llewellyn para consigo mesmo. Ele tornara a sentir-se vivo. Só a perspectiva de recuperar o que tinha perdido podia dar-lhe aquele interesse
pela vida.
Por volta da mesma época em que os sicilianos se levantavam contra os franceses e aguardavam o sinal do sino que soaria as vésperas, ele levantara toda aquela parte do País de Gales que continuava em mãos galesas.
Eles iriam marchar contra os ingleses. O entusiasmo com que ele era recebido o deixava impressionado. Todos o admiravam. Era um homem em quem eles podiam confiar, o que não acontecia em relação ao irmão dele, Davydd, que ficara do lado dos ingleses, certa vez, e passara depressa para o lado dos galeses. Ele podia ser um bom general, mas não era homem em quem se podia confiar. com Llewellyn era diferente. A história de amor de Llewellyn estava registrada em canções; a triste morte de sua mulher transformara o idílio numa tragédia. Llewellyn era uma figura romântica popular; e depois, havia a profecia de Merlim.
No início houve poucas vitórias para Llewellyn. Chegou até a tomar o castelo de Rhudlan e controlá-lo por um curto período. Mas quando Eduardo iniciou sua marcha para o norte, Llewellyn percebeu que não poderia defender o castelo e, sensatamente, bateu em retirada. Mas o sucesso inicial foi inspirador.
A raiva de Eduardo, ele calculava que era grande, e sabia que seria um exército poderoso que estaria marchando contra ele, e o fato de ser chefiado pelo próprio rei iria provocar o terror de todos os que pareciam ter dotado Eduardo de um poder sobrenatural.
A guerra continuou ao longo de todo o verão. Eduardo estava derrotando os inimigos, mas a vitória não era fácil. Havia um sucesso ocasional que animava muito os galeses, como quando uma grande força dos ingleses atravessara a ponte do Menai e acampara ali à espera do resto do exército, que iria juntar-se a ela. Durante a noite, a maré enchente quebrara a ponte sobre o estreito, e os ingleses tinham ficado isolados. Fora fácil, para as superiores forças galesas - que teriam sido facilmente derrotadas se todo o exército inglês tivesse atravessado a ponte - eliminar os ingleses isolados.
- Uma grande vitória - bradaram os bardos galeses. Era a vontade de Deus. Era como Moisés dividindo os mares, só que daquela vez Deus enviara a maré enchente para destroçar a ponte. Era a profecia de Merlim tornando-se realidade.
Infelizmente, porém, viu-se que aquilo fora, na verdade, uma vitória sem importância e percebeu-se que não poderia ter efeito algum sobre o resultado final da guerra, quando a cada dia que passava ficava cada vez mais claro que Llewellyn e os galeses estavam perdendo.
Uma vez mais, Llewellyn foi obrigado a recuar para Snowdon. Ali, ficou pensando na sua infelicidade, relembrando os dias felizes com a Demoiselle, e tornou a amaldiçoar o destino que a tirara dele.
Se ao menos ela tivesse vivido, jamais o teria deixado entrar em guerra. Ela o teria mantido como príncipe do seu pequeno país e os dois teriam ficado satisfeitos.
O que lhe restava, agora? Não podia recuperar o poder. Não era adversário para o poderoso Eduardo. Perdera tudo o que fizera com que a vida valesse a pena ser vivida e esperava ansioso pela morte.
Ali, na sua fortaleza das montanhas, ele recebeu a visita de João Peckham, substituto de Robert Kilwardby como arcebispo de Canterbury e que fora discutir as condições com base nas quais Eduardo faria um acordo de paz.
Essas condições, disse João Peckham, eram razoáveis e Llewellyn devia aceitá-las.
- Razoáveis! - bradou Llewellyn. - Nada vejo de razoável nelas. Elas vão me roubar o meu país.
E iam mesmo, porque Eduardo estabelecera que Llewellyn deveria abandonar o principado de Gales e entregá-lo a Eduardo, em troca do que este colocaria entre os bens de Llewellyn terras que renderiam mil libras anuais. Essas terras seriam num condado inglês que ainda não fora escolhido. O rei da Inglaterra tomaria conta da jovem filha de Llewellyn e iria examinar seriamente a possibilidade de permitir que quaisquer herdeiros homens que ela tivesse ficassem com os direitos de sucessão em relação a Snowdon.
- Condições razoáveis para se oferecer a um príncipe! - bradou Llewellyn. - Senhor arcebispo, eu não compreendo.
- O senhor é um homem arruinado - disse o arcebispo. E tem havido abusos nas igrejas galesas que não são do meu agrado.
Llewellyn sabia que estava derrotado.
- Senhor arcebispo - disse ele -, sei que devo ficar sujeito à generosidade do rei da Inglaterra, mas eu não poderia me submeter a condições tão duras assim. Se o rei da Inglaterra quiser alterar suas exigências, talvez possamos chegar a um acordo.
O arcebispo retirou-se e, mais tarde, chegaram mensageiros enviados por Eduardo com a informação de que o rei não aceitaria coisa alguma, a não ser uma rendição incondicional. Ele fizera um acordo, antes. Mantivera a palavra. Libertara a Demoiselle e providenciara para que se casasse com Llewellyn. E o que acontecera? Llewellyn rompera a sua parte do contrato. O rei não poderia tornar a confiar nele, e ele - e todos os homens - precisava ver o que acontecia com os que perdiam a confiança do rei da Inglaterra.
Só havia uma coisa a fazer. Retirar-se para as montanhas, reunir galeses fiéis, lembrá-los uma vez mais da profecia de Merlim e defender os passos.
Voltar para as montanhas! Era o mês de novembro. O inverno estava chegando. Ele e seus seguidores seriam obrigados a se submeterem por causa da fome. Tinha de se afastar das montanhas. Precisava juntar-se a amigos no sul. Seguiria para Llandeilo, onde os ingleses estavam obtendo grandes vitórias.
Conhecia bem suas montanhas e conseguiu seguir por passos pouco frequentados, escapando, assim, aos sitiantes ingleses, mas os Barões das Fronteiras estavam alerta. Alguns dos arrendatários deles tinham passado para o lado de Llewellyn, mas de nada valiam contra as forças experientes dos barões. Quando os violentos irmãos Mortimer souberam que Llewellyn estava no distrito deles, decidiram capturá-lo.
O nome de Roger Mortimer era mencionado com temor. Embora fosse o terceiro filho homem, já fizera o seu nome. Um homem violento, audacioso e forte, e ainda por cima devasso, que fora censurado por João Peckham por viver cometendo adultério com inúmeras mulheres. Roger Mortimer não ligara para o arcebispo e, àquela altura, estava ansioso por obter a aprovação do rei.
A chegada de Llewellyn parecia uma oportunidade caída do céu.
Havia quem dissesse que Llewellyn queria morrer. Não tinha coisa alguma pela qual viver. Perdera seu país e, o que era mais trágico, a mulher. Não se importava com coisa alguma. Recebeu a morte de bom grado, foi o que se disse depois.
Foi uma maneira estranha para um príncipe morrer.
Ali, na terra dos Mortimer, ele estava no seu acampamento quando viu um grupo de seus seguidores sendo atacado por uma tropa de homens de Mortimer. Foi loucura, pois não tinham chance alguma, e ele poderia ter continuado escondido, mas cavalgou para unir-se ao grupo, como um homem, comentou-se depois, indo alegremente ao encontro do seu Deus.
Foi logo abatido.
Quando Roger Mortimer soube e foi ver o corpo, ficou exultante.
- Cortem-lhe a cabeça - disse ele. - vou dá-la ao rei. Eduardo a recebeu com ar solene.
- A cabeça do meu inimigo - disse ele. - Assim morrem todos os que tentam me trair.
- Majestade, o que será feito com esse homem? - perguntou Mortimer.
Eduardo ficou em silêncio por alguns momentos e depois disse:
- Que o corpo seja enterrado em terreno consagrado em Cwmhir. Não quero que digam que não homenageei um homem bravo, porque isso ele era, embora tolo.
- E a cabeça, majestade?
- Ah, a cabeça. Sr. Mortimer, quero que todos saibam o que acontece aos que usam de falsidade para comigo. Ele achava que seria rei da Inglaterra. Havia uma certa profecia de Merlim. Quero que os homens vejam o que acontece àqueles que acreditam que irão tirar o verdadeiro rei da Inglaterra do trono com histórias de profecias.
O rei ordenou, então, que a cabeça fosse levada e espetada na ponta de um poste. Este poste deveria ser instalado na torre de Londres e, para lembrar a todos que olhassem que aquele era um homem que acreditava poder vir a ser o rei da Inglaterra, deveria ser colocada sobre a sua cabeça uma coroa de hera.
E assim, a cabeça em decomposição de Llewellyn olhava para o rio de Londres. Quando a balsa da rainha passou por baixo, ergueu os olhos e pensou na bela Demoiselle que amara aquela cabeça e sentiu um tremor ao pensar que um destino daqueles pudesse atingir duas pessoas que tinham tido uma pela outra um amor tão sincero.
Restava Davydd.
-. Eu o quero, morto ou vivo - disse o rei -, pois embora eu tenha derrotado os galeses, haverá problemas enquanto ele viver.
Quando Davydd soube da morte do irmão, seus sentimentos foram confusos. Era evidente que a profecia de Merlim quanto a um Llewellyn não se referia àquele, e ela constituíra um grande incentivo para que os homens lutassem por eles. Por outro lado, com Llewellyn fora do seu caminho, ele era o líder incontestável.
Retirou-se para as montanhas com alguns seguidores - um número bastante reduzido. Ficou imaginando como seria possível atrair mais homens para sua bandeira. Não era Llewellyn. Certa vez, passara para o lado dos ingleses; mas voltara para ficar do lado do irmão quando achara que teria uma chance. Agora o irmão estava morto, e o País de Gales se encontrava nas mãos dos ingleses o país todo, exceto as inacessíveis montanhas. Conversou com os seguidores que restavam; tentou inspirá-los
com promessas do que ganhariam quando os odiados ingleses fossem expulsos do país. Faltando-lhe a sinceridade de Llewellyn, faltava-lhe o fogo que o animava. Ninguém acreditava mesmo em Davydd. Achavam que se ficasse comprovado que haveria vantagem, ele venderia todos ao inimigo.
Restava-lhe um castelo - o de Bere, e quando ele soube que o conde de Pembroke o atacara e ocupara, ficou sem ter onde se refugiar. Tornara-se um nómade nas montanhas e todas as manhãs, quando acordava, era para descobrir que o seu bando de seguidores diminuíra ainda mais.
Houve um momento em que, à exceção de três, todos os demais tinham ido embora. E assim, Davydd, um príncipe de Gales, perambulou pelas montanhas como um fora-da-lei, que ele achava que era. O País de Gales pertencia, agora, a Eduardo.
- Por Deus - bradava ele -, não vai continuar pertencendo. vou mostrar a ele que os galeses não ficarão sendo vassalos para sempre.
Era obrigado a se proteger onde pudesse - em qualquer chalé pobre que encontrasse. Nem sempre se identificava, por temer uma traição, pois mesmo os que lhe ofereciam socorro tinham medo, porque o rei da Inglaterra - que agora era o senhor deles - dissera que ele era um homem procurado.
Certa noite, exausto e com fome, ele chegou a um chalé e implorou que lhe dessem comida e abrigo. Foi-lhe dado um prato de carne e uma jarra de cerveja, que ele devorou enquanto o homem e sua mulher o interrogavam quanto ao motivo de sua presença nas montanhas.
Ele disse que era um soldado que fugira quando o exército galês se achava em retirada e estava tentando voltar para junto da mulher e dos filhos.
Os dois ouviram com ar de quem compreendia o problema e concordaram em ajudá-lo.
- Mas você precisa, primeiro, de uma noite de descanso disse o morador do chalé. - Fique à vontade, que amanhã de manhã vou ajudá-lo a seguir caminho.
Davydd mergulhou num sono agradecido.
Quando acordou, foi para ver soldados de pé à sua volta.
O homem e a mulher do chalé olhavam para dentro do quarto.
- Davydd ap Gruffydd - disse um dos soldados -, o senhor está preso. Levante-se. Vamos partir imediatamente.
- Então é ele mesmo - disse a mulher do homem do chalé.
- Nós não erramos.
- Errar - replicou o homem. - Claro que não. Eu lhe disse, não disse? Servi com ele antes dele passar para o lado dos ingleses.
- Ele agora vai voltar para o lado dos ingleses - disse a mulher com um certo humor negro.
Eles o levaram para Rhudlan e, lá, colocaram-no a ferros. Ele mandou um mensageiro procurar Eduardo pedindo uma audiência, lembrando-o de que os dois já tinham trabalhado juntos.
A resposta de Eduardo dizia que ele não discutia com traidores, e Davydd percebeu que o fato de já ter trabalhado ao lado de Eduardo não seria um ponto a seu favor.
Eduardo tivera respeito por Llewellyn, que sempre fora fiel à sua causa, mas por um homem como Davydd, que mudava de lado de acordo com a situação, não sentia outra coisa que não desprezo.
As ordens de Eduardo foram no sentido de que Davydd devia ser levado para Shrewsbury e que o julgamento daquele traidor (como Eduardo o chamava) fosse realizado ali.
Em Shrewsbury reuniram-se os condes, barões, juizes e cavaleiros para tomar parte no julgamento, e o rei deixou claro que queria que se fizesse justiça. Aquele homem que estava sendo julgado era um assassino, sacrílego e traidor do rei. Deveria sofrer a penalidade máxima.
Davydd foi logo declarado culpado e sentenciado à morte. O método de sua execução seria de um tipo nunca utilizado antes. Era chamado de "enforcado, estripado e esquartejado". Era a forma mais bárbara de execução já inventada, e Davydd seria lembrado como o primeiro homem ao qual ela fora aplicada.
O sofrimento de Davydd foi intenso no seu último dia de vida.
Foi arrastado pelas ruas de Shrewsbury a passo lento, até a forca, e lá, à vista de uma grande multidão, foi enforcado. Antes de morrer, foi retirado da forca e teve as entranhas arrancadas e queimadas. Felizmente para ele, foi então decapitado e o corpo foi esquartejado, para que partes pudessem ser exibidas em cinco cidades.
Houve uma disputa entre York e Winchester pelo ombro direito, e Winchester ganhou. York teve que se contentar com outra parte, presumivelmente menos interessante, e Bristol e Northampton dividiram outras honras lúgubres. A cabeça foi guardada para Londres e colocada ao lado da agora irreconhecível cabeça de seu irmão. . Eduardo podia olhar para elas com satisfação. Ele conquistara Io País de Gales.
Mas não era fácil subjugar um povo orgulhoso como aquele. Estavam indignados com o conquistador e continuavam a existir pequenos focos de rebelião por todo o país.
Mas todas tinham consciência da força do rei inglês. Era tão diferente do pai quanto era possível um homem ser diferente do outro; percorreu os castelos do país levando construtores com ele, para melhorá-los. Onde existiram fortalezas de pedra, começavam a aparecer castelos imponentes. Por ser um homem de grande energia, Eduardo não deixava que os que o cercavam esmorecessem. Assim que decidia que um castelo devia ser reformado, os operários já estavam ocupados, cumprindo suas ordens.
Muitos galeses percebiam que se o aceitassem como rei poderiam prosperar, mas sempre havia os rebeldes. Por isso, era necessário que Eduardo mantivesse uma poderosa força nas fronteiras e, como ele ainda não tinha certeza quanto ao seu território recémconquistado, queria ficar por perto.
Rhudlan continuou sendo o quartel-general, e ali ele mantinha a família, passando com ela todo o tempo que podia. Ficara impressionado com as coincidências que lhe haviam permitido ficar com a filha adorada, embora acreditasse que aquilo era apenas uma pausa. Ainda assim, aproveitava essa pausa. A filha estava, agora, com vinte anos, no auge da beleza. Claro que devia ter-se casado fazia muito tempo, mas ele preferia esquecer esse fato.
Em Rhudlan, a atmosfera familiar era feliz. A conquista do País de Gales estava quase completa. Por toda parte, Eduardo era aceito como o homem forte que faltara à Inglaterra desde o reinado de Henrique II, porque Ricardo, por forte que fosse, não tinha sido um bom rei para a Inglaterra e desperdiçara suas forças em outras partes. Não, Ricardo era uma lenda, não um rei. Quem iria querer um rei, por mais valente que fosse, por mais que fosse um lendário herói popular, que gostava tanto de gente do mesmo sexo que não conseguira ter um herdeiro? Eles preferiam Henrique II, que espalhara sua semente pelo país inteiro. Melhor ainda era Eduardo um general vitorioso, um rei forte disposto a levar justiça ao país e um bom chefe de família. Nunca houvera qualquer escândalo sobre relações extraconjugais em que ele se envolvesse, porque não havia relação alguma. Aquilo era raro num homem de poder. Ele tinha sido um marido fiel e um pai dedicado. Era um rei raro.
O único inconveniente era que não conseguia ter um filho homem saudável. Alfonso ficava mais fraco a cada dia que passava. Rosto pálido, corpo frágil, ele não era o rei que deveria vir depois de um pai daqueles.
Mas, louvado fosse! A rainha ficou grávida uma vez mais.
Seria o velho sistema conhecido? Um parto fácil e então... outra menina.
O rei adorava as filhas, e havia quem dissesse que ele não queria muito um menino porque estava tão apaixonado pela filha mais velha que gostaria de vê-la no trono. Aquilo não podia ser verdade. Por mais que a adorasse e admirasse, ficaria contente ao ter um menino. Era só porque contava com ela como sua substituta que ele a endeusava tanto.
Em princípios de abril de 1284, ele estava no castelo de Caernarvon, lugar do qual se sentia imensamente orgulhoso porque terminara a construção havia muito pouco tempo. A estrutura que existira ali antes de ele erguer o seu impressionante castelo não passava, comparada a ele, de uma fortaleza. E que local para se construir!
O castelo ficava sobre um rochedo que se projetava para dentro do estreito de Menai. De um lado ficava o mar, do outro, o rio Seiont. A arquitetura acastelada enchia o rei de orgulho. Dava uma impressão imediata de beleza aliada a força. Era tanto um lugar encantador para servir de moradia como uma fortaleza inexpugnável. De todos os seus castelos no País de Gales, aquele era o favorito. Torres erguiam-se acima dos parapeitos ameados. Havia treze dessas torres, e ele ordenara que não houvesse uma que fosse exatamente igual à outra. Disse ele que não haveria outro castelo igual ao de Caernarvon, e não havia. As torres eram pentagonais, hexagonais e octogonais.
Diante da torre de entrada, mandou colocar uma estátua sua - com uma espada desembainhada pela metade nas mãos. Aquilo iria fazer com que os galeses se lembrassem de que ele era o conquistador e que todo o País de Gales estava sob o seu domínio.
Enquanto estava numa das janelas dos aposentos reais, sentiu uma grande vontade de estar com a família. O nascimento do filho não podia estar longe. Era esperado por volta do dia 20 daquele mês. A família estava em Rhudlan e ele achou que seria ótimo ter todos ali com ele.
Mandou um mensageiro até Rhudlan. Que a rainha e o resto da família se juntassem a ele em Caernarvon. Queria que o próximo filho nascesse no castelo que ele acabara de construir havia tão pouco tempo e que era o mais bonito do País de Gales.
Pouco depois, eles chegaram. A rainha estava muito pesada, mas garantiu que fizera uma viagem tranquila. Ela estava tão acostumada com gravidez, que aquilo lhe causava poucos transtornos. Ele sentiu um grande prazer em mostrar-lhes o castelo.
- É claro que ainda falta fazer muita coisa, mas os trabalhos continuam.
Ele gostaria de poder passar mais tempo com os seus, mas mal eles tinham-se instalado, chegou a notícia de que depois que a família saíra de Rhudlan surgira um problema por lá e pensava-se que a presença do rei era necessária com urgência.
- Então a coisa continua - disse Eduardo. - Acho que teremos problemas aqui durante muitos anos ainda, a menos que eu encontre um meio de acalmar essa gente.
Despediu-se com carinho da família.
As últimas palavras da rainha para ele foram:
- Desta vez, tem que ser menino.
- Mande-me notícias dele para Rhudlan, assim que ele chegar - foi a resposta do rei.
Em Rhudlan, ele conferenciou com os seus generais. Havia problemas nas montanhas. Certos chefes de clãs estavam erguendo suas bandeiras e tentando atrair homens para a causa de um País de Gales livre.
- Eles deviam ser levados até Londres para ver as cabeças em decomposição dos que tentaram me desafiar - foi a resposta grave do rei.
- Eles estão falando de um príncipe que devia ser nomeado. Querem um galês. Alguém que nem mesmo fale a língua inglesa.
- O que vai acontecer não é o que eles querem, mas o que eu quero. Esquecem-se de que são uma nação conquistada.
- Ainda há alguns homens, majestade, que jamais admitirão a derrota. Os galeses são assim.
- Veremos - disse Eduardo.
Ele estava um pouco melancólico. Queria voltar para o sul. Estava achando que um número demasido de problemas o cercava e que eles vinham de todos os lados. Queria estar em Windsor ou em Westminster. Ali estava o centro do seu governo. Como podia saber o que se passava por lá enquanto se preocupava com a questão galesa?
- Por Deus - bradou ele -, este povo foi derrotado. Vai fazer o que eu mandar, ou sentir a minha ira.
Enquanto pensava, chegaram mensageiros vindos de Caernarvon.
A rainha dera à luz um menino. Um menino saudável.
Ele olhou para o mensageiro. A princípio, não acreditou. Depois, teve um brado de alegria.
- Então isto é verdade?
- É verdade, majestade. A rainha não cabe em si de contente.
- Como eu. Como eu. E você diz que é um menino saudável.
- Dizem que nunca viram um menino mais saudável. Se os pulmões puderem indicar alguma coisa, majestade, ele apresenta boas provas de sua força.
- Bendito seja você. Será recompensado por ter-me trazido esta notícia. Uma doação de terras e, a partir de hoje, você tem o título de cavaleiro.
- Que o Senhor conserve Vossa Majestade e o principezinho. O homem estava prostrado, de joelhos, mas Eduardo já seguira em frente.
Manteria a promessa feita àquele homem e depois... a toda velocidade para Caernarvon.
Era verdade. A rainha estava deitada em seu quarto, que ela tornara belo e confortável à sua moda, pendurando suas tapeçarias espanholas. Ao lado dela estava o berço de madeira, pendurado em anéis presos por dois suportes retos.
- Meu amor - bradou ele e ajoelhou-se ao lado da cama, beijando-lhe as mãos.
E ali estava ele, deitado, com apenas alguns dias de nascido mas com um aspecto saudável - tão diferente dos outros meninos que tinham sido todos raquíticos desde o nascimento.
- Vamos chamá-lo de Eduardo - disse a rainha.
- É Eduardo que ele vai se chamar.
- vou rezar para que cresça para ser exatamente igual ao pai. As princesas saudaram o pai com a devoção de costume, mas
a princesa Eleanor estava sem o mesmo ânimo. Não queria falar com ninguém, nem mesmo com Joanna. Eleanor estava, agora, com vinte anos, e Joanna tinha doze. Não haveria mais adiamentos, pensou Eleanor. Como poderia haver? A criança que estava no berço a tirara de sua posição. Alfonso não poderia viver por muito mais tempo. E quando sua ambição estava prestes a se tornar realidade, aquele menino tinha de nascer!
Joanna era um pouco maliciosa.
- Eu gostaria de saber por que Deus enviou as Vésperas Sicilianas - disse ela. - Tudo parece não ter importância alguma, não parece? Tanto faz você estar em Aragão como aqui na Inglaterra.
Eleanor não conseguiu falar. Não podia trancar-se para ficar isolada de tudo, de modo que precisava tentar controlar-se, para que o pai não visse o quanto estava amargamente desapontada.
Ela não conseguia tirar da lembrança o comentário jocoso de Joanna. Sabia-se lá o que Deus estava pensando!
Era uma imprudência dividir os pensamentos secretos com alguém - mesmo com a própria irmã.
Eduardo recebeu os chefes de clãs galeses que tinham ido a Caernarvon prestar-lhe homenagens.
Recebeu-os com respeito e, depois que admitiram sua fidelidade a ele, pediram permissão para falar com ele. O que ele deu prontamente.
- Majestade - disse o líder do grupo -, não haverá paz neste país enquanto não tivermos um príncipe só nosso... um príncipe que esteja acima de qualquer censura, que não saiba falar francês nem inglês.
Eduardo ficou calado. Se ele não soubesse falar francês nem inglês, aquilo significava que tinha de ser galês.
- Um príncipe - repetiu ele - que nunca os tenha ofendido, um príncipe que nunca tenha lutado contra os senhores do lado dos ingleses, querem dizer. - Ficou pensativo. - Um príncipe que não fale inglês nem francês. Entendo o que querem dizer. Acho que posso concordar com isso. E se concordar, os senhores me prometem a paz no País de Gales?
- Prometemos, majestade.
- Não haverá mais levantes. Não haverá mais rebeliões. Os senhores irão aceitar o príncipe que irei nomear e farão dele o seu Príncipe de Gales.
- É o que faremos, majestade.
- Esperem um pouco aqui. Eu não demoro.
Os chefes dos clãs se entreolharam, assombrados. Aquilo era uma vitória acima de suas expectativas. O rei estava concordando com o pedido deles. Um príncipe galês para o País de Gales!
O rei voltou. Eles olharam para ele perplexos, porque nos braços ele levava um bebé.
- Os senhores me pediram um príncipe de Gales - bradou ele. - Aqui está ele. Eu o dou para os senhores. Ele nasceu no seu país. Seu caráter está acima de qualquer restrição. Ele não fala francês ou inglês e, se quiserem, as primeiras palavras que ele falar serão em galês.
Os chefes estavam pasmos. Sabiam que tinham sido enganados. Mas algo no gesto do rei atraiu a simpatia deles. Ali estava um homem de grande habilidade. Era um homem que seria do interesse do País de Gales seguir.
Os chefes discutiram o assunto entre eles. Depois, o porta-voz disse:
- Majestade, nós aceitamos o seu filho como o nosso príncipe de Gales.
O rei ficou encantado enquanto, um a um, os chefes de clãs beijavam a mão do recém-nascido e juravam-lhe fidelidade.
Ele acreditava ter completado a conquista do País de Gales.
O Casamento de Joanna
A ESTRELA DA FAMÍLIA era, agora, o jovem Eduardo. Ele era vigiado, cantavam para ele, todos ficavam maravilhados com ele. Tinha uma ama galesa - porque Eduardo estava decidido a cumprir a palavra dada aos chefes de clãs - e Mary de Caernarvon o protegia como se fosse um dragão.
Alfonso, com onze anos de idade, adorava o irmão. Alfonso sempre estivera cônscio da tristeza que sua saúde causara. Era desconcertante saber que imagens suas estavam sempre sendo queimadas em óleo nos santuários, enquanto viúvas eram pagas por sua mãe e sua avó para fazerem vigílias naquelas igrejas, a fim de que a piedade delas pudesse induzir os santos e aqueles que tivessem alguma influência junto aos céus fizessem alguma coisa quanto à saúde dele.
Tinha sido uma grande responsabilidade, e o peso do futuro cargo de rei era demasiado para seus frágeis ombros; e agora, aquela nova criança que chorava bastante e requeria a atenção exclusiva de Mary de Caernarvon tirara aquele peso de cima dele. Todos ficavam encantados com a saúde de Eduardo. "Mais um igual ao pai!", diziam. "Olhem as pernas dele. O anjinho vai ser um outro Pernas Longas." Ao passo que o pobre Alfonso era baixo para a idade que tinha.
Estavam todos maravilhados com Eduardo, exceto sua irmã Eleanor, e até ela dava de ombros e percebia a impossibilidade de um sonho louco que certa vez tivera.
Eles tinham Eduardo. Poderia haver mais filhos homens. Sua mãe tinha uma aptidão natural para colocar crianças na ala infantil.
Eles tinham continuado em Caernarvon porque, dizia o pai, aquele era o lugar em que Eduardo nascera e ele era o príncipe de Gales. Queria mostrar aos galeses que ele fora sincero quando dissera que as primeiras palavras do filho seriam em galês. Além do mais, os galeses precisavam ser vigiados durante algum tempo, e era necessário esperar e ver se cumpriam suas promessas.
A rainha achava o castelo uma beleza, mas que talvez pudesse ser frio quando chegasse o inverno. Estava preocupada com a tosse de Alfie, que parecia ter piorado nas últimas semanas. No entanto, sentia-se contente por ter a família a seu lado; era bom, também, a rainha-mãe estar em Amesbury, embora não se tivesse mudado para lá em definitivo, porque ainda estava à espera da dispensa do papa que lhe permitiria entrar para o convento sem perder o dinheiro que tinha. Era um alívio, admitia a rainha apenas no íntimo de seu coração, não ter a rainha-mãe com eles. Sorriu um pouco, prevendo o conselho que ela teria tentado dar ao filho sobre a maneira que ele devia adotar ao tratar os galeses. Ela teria querido pesadas multas e grandes celebrações. Pobre povo derrotado, não tinha como pagar multas. Eduardo sabia disso, e que o melhor meio de conseguir a cooperação pacífica do povo era tratá-lo com delicadeza. Ah, Eduardo era muito inteligente!
O médico, que nunca ficava muito afastado do lado de Alfonso, foi procurá-la um tanto consternado.
- Ele está perguntando pela senhora, majestade.
Ela foi para perto de Alfonso. Ele parecia ter encolhido, e a mãozinha que procurou a dela estava quente e febril.
- Querida senhora - disse o garotinho -, eu acho que vou morrer agora.
- Não, meu amor - disse ela, beijando-lhe a mão. - Nós vamos fazer você ficar bom de novo.
- Desta vez, não, querida senhora. E agora isso pouco importa, não é? Agora temos o meu irmão.
- Meu adorado - disse a rainha. - Isso importa muitíssimo... para mim, para seu pai...
Ele teve um sorriso fraco.
- Não, agora está tudo bem. Eu posso ir. Eu sempre lhes causei uma grande preocupação.
- Meu filhinho, eu te amo muito.
- A senhora sempre foi uma mãe muito boa para mim. Mas eu posso ir, agora... Eu quero, mãe querida. Chegou a hora.
Ela ficou sentada ao lado da cama, mas sabia que o filho estava morrendo. Há anos que ele ia morrendo lentamente. Ela pensou em seu meio-irmão, em cuja homenagem ela dera o nome ao menino. Que homem inteligente ele era, mas ficava mais envolvido com os seus estudos matemáticos do que com o seu reino. O filho dele, Pancho, estava ficando inquieto e ela ouvira rumores de que ele pretendia depor o pai e assumir o trono. Como podia haver aquele tipo de luta em certas famílias? Pais voltarem-se contra os filhos? Rezava para que o recém-nascido Eduardo sempre venerasse o pai e trabalhasse com ele. Não precisava rezar para que Alfonso apoiasse o pai. Lamentavelmente, Alfonso não chegaria a crescer.
Alfonso fechara os olhos, e a rainha ouvia que ele estava respirando com dificuldade.
O rei aproximou-se da cama e ficou ao lado dela, a mão na dela.
- O nosso Alfonsinho está indo - disse a rainha. O rei balançou a cabeça.
- Isso tinha de acontecer.
- É como se ele, ao saber que tinha um irmão, desistisse de tentar viver.
- Graças a Deus temos Eduardo - disse o rei.
E ficaram de pé, um ao lado do outro, olhando para o corpo do filho morto.
O povo do País de Gales parecia ter aceitado seu destino. Eduardo incutira nas pessoas que se elas lhe fossem leais, iriam ter a sua recompensa, e começavam a confiar nele. Era verdade que os bardos cantavam canções sobre a bravura de Llewellyn e Davydd e sobre a morte cruel de Davydd nas mãos do tirano inglês. Mas tratava-se de canções das montanhas. Nos vales, cidades e aldeias, as pessoas começavam a ver que era melhor fazer parte da Inglaterra, que se estava tornando cada vez mais próspera sob o comando do rei, do que ser um Principado de Gales independente miseravelmente pobre.
Lembravam-se, também, de que Davydd fora um traidor, um homem que agia com base no interesse próprio. Apesar da bravura, era cruel para com os inimigos, e não se devia esquecer que ele os trairá, certa vez, junto aos ingleses.
Quando os chefes de clãs levaram a Eduardo um presente de uma coroa que, segundo afirmavam, pertencera ao grande rei Artur, Eduardo ficou muito impressionado. Os galeses alegavam que o País de Gales tinha sido o quartel-general do lendário rei, e Eduardo estava pronto a conceder-lhes o benefício da dúvida quanto a isso, porque via um meio de forjar um elo entre eles que resultaria em amizade.
Logo depois da morte de Alfonso, ele reuniu a família e conversou com todos sobre o que se propunha a fazer.
Os olhos da princesa Eleanor brilhavam enquanto ouvia, e foi a ela que o pai se dirigiu. Ele queria que ela soubesse que, embora ele se alegrasse com o nascimento do jovem Eduardo e a chegada do menino devesse, necessariamente, prejudicar a posição dela no reino, ainda era a filha adorada e favorita. Ele adorava a esposa; ela constituía uma parte necessária dele; sentia que podia sempre contar com o apoio dela em tudo que realizasse, mas nada havia de controvertido nela. Ela concordava com o rei de coração, ao passo que sua inteligente filha às vezes expressava sua discordância sobre determinado ponto, discordância esta que com frequência era bem oportuna.
O fato era que ele se sentia feliz com a família e que agora que tinham um menino saudável, estava muitíssimo contente. A conquista do País de Gales era um motivo de grande satisfação, mas a sua felicidade com a família valia mais, para ele, do que qualquer outra coisa. Às vezes ficava um pouco envergonhado disso. Mas era verdade.
- Temos de celebrar essa vitória sobre os galeses - disse ele -, e penso que encontrei uma maneira de fazer isso de modo que agrade a eles. Vocês sabem que eles dão muito valor ao rei Artur e insistem que era aqui que ele reunia a sua Távola Redonda. vou fazer como se Artur tivesse voltado. vou recriar a cena. vou mandar construir uma mesa redonda e eu, com os meus cavaleiros, irei me sentar à volta dela e jurar, com eles, manter o espírito da fidalguia e a justiça em todo o país. Vai ser uma ocasião que ficará na lembrança de todos. Haverá justas, torneios, como antigamente. O passado será trazido de volta.
Os olhos da princesa brilharam de satisfação.
- Majestade - bradou ela -, isso é um plano excelente. Os galeses irão participar. Será o maior sinal de paz e prosperidade que o senhor pode dar a eles.
Ela percebera logo a intenção do rei. A rainha concordou com ele e com a filha, como sempre.
- Agora - disse o rei -, vou convocar meus cavaleiros e vamos nos dedicar aos planos desse grande espetáculo.
E assim, no mês de agosto de 1284, Eduardo celebrou a sua conquista do País de Gales instalando a sua Távola Redonda em Nevin, em Caernarvonshire, e para ela convidou todos os mais renomados cavaleiros da Inglaterra e do continente. Os galeses nunca tinham visto tamanho esplendor - e era isto que Eduardo queria. Que percebessem que agora pertenciam a uma grande e poderosa nação governada por um rei invencível. Ele se comparara ao grande Artur, e o próprio Artur não poderia ter apresentado uma figura mais nobre do que o rei de estatura elevada que, no seu gesto romântico, estava dizendo a eles que pretendia manter a justiça e a fidalguia na terra deles.
Todos se mostravam cientes do que o rei estava fazendo pelo País de Gales. Os grandes castelos de Conway, Caernarvon e Harlech deviam seu poderio e sua beleza à capacidade dele.
O País de Gales fazia, agora, parte da Inglaterra e dizia-se que se o bom senso predominasse, não haveria tentativa alguma de alterar aquela situação.
As forças da rainha-mãe tinham começado a diminuir de repente. Ela, que gozara de boa saúde a vida toda, ficou seriamente alarmada e ocorreu-lhe que estava na hora de entrar para o convento.
Por um grande golpe de sorte, o papa permitira que, se entrasse para um convento, ela mantivesse seus bens terrenos, e isto a fez decidir-se.
Fazia muito tempo que ela decidira que a neta Mary deveria entrar para um convento e parecia-lhe que aquele seria o momento adequado.
Nem o rei nem a rainha estavam ansiosos por verem a filha murada num convento, e a rainha achava que a menina - que estava com sete anos - devia ter um pouco mais de tempo para descobrir se aquele era o tipo de vida que queria.
Mas a rainha-mãe foi inflexível.
- Se vocês me negarem isso, vou morrer infeliz - declarou ela. - Vocês tiveram sorte no País de Gales. Deus estava do seu lado. Ora, havia a profecia de Merlim. Isso não teve importância, porque Deus estava decidido a ajudá-los. E por que vocês acham que isso aconteceu? Porque fora feita a promessa de que Mary seria colocada a serviço dele. Se vocês não derem importância à vontade dele, a sua sorte vai mudar, podem acreditar.
Passou, de fato, pela mente da rainha que com muita frequência, ao longo da vida deles, a vontade de Deus coincidira com a da rainha-mãe. Mas Eduardo acreditava nela até certo ponto, e a rainha sabia que se ele não cedesse aos argumentos dela, as dúvidas de sua mãe iriam infiltrar-se em sua mente, e era necessário que a confiança dele continuasse firme.
Na sua maneira tranquila, a rainha compreendia os dois muito mais do que pensavam, e era mais fácil deixar que Mary fosse, já que ela-não demonstrava repugnância alguma pela vida escolhida para ela. Pobre menina, como poderia ser de outra forma, pois desde que nasceu lhe diziam o que a aguardava e ela passara a aceitar aquilo? E o que ela sabia, de qualquer modo, sobre como seria a vida com um marido e filhos?
- Mary não vai se sentir sozinha - disse a rainha-mãe. - Estarei lá para tomar conta dela, e a prima dela, Eleanor, já está lá.
- Claro que Eleanor é muito mais velha do que Mary.
- É verdade, mas é prima e é do mesmo nível. Estou certa de que Mary vai conhecer uma felicidade que é negada a muita gente.
A rainha suspirou. A rainha-mãe, quando da morte de sua filha Beatrice, enviara a filha de Beatrice, Eleanor, para o convento de Amesbury. Ela quisera que uma jovem de cada família fosse para lá, porque era de opinião de que aquilo agradava aos céus e sentia a necessidade cada vez maior, à medida que os dias se passavam, de gozar das boas graças lá de cima.
A rainha-mãe achava que a princesa Mary devia entrar para o convento na época do festival da assunção da Virgem Maria - já que a menina tinha o nome da Virgem.
Isso foi providenciado, e a família voltou para Londres para de lá fazer a viagem até Amesbury, a fim de estar presente à cerimónia.
Até o pequenino Eduardo - agora com um ano de idade foi levado até lá.
A rainha-mãe ficou muito contente. Estava certa de que nenhum deles iria se arrepender. O rei, adorando as filhas, mostrava-se um pouco indeciso, mas insistira para que treze meninas de famílias nobres e da idade de Mary a acompanhassem como damas de companhia.
A cerimónia foi impressionante, e a rainha chorou quando os véus monásticos foram jogados sobre a cabeça das meninas e o anel esponsalício foi colocado em seus dedos.
Depois disso, todos os membros da família real colocaram um rico presente sobre o altar, e o rei prometeu à filha uma pensão anual para a manutenção de sua situação no convento. As princesas Eleanor e Joanna conversaram, depois, sobre a cerimónia e Joanna comentou que era fácil entender por que os conventos e os mosteiros recebiam de braços abertos membros de famílias reais e pessoas de grandes fortunas.
- A riqueza daqueles que entram vai para o convento, é claro - disse Eleanor.
- Nem sempre - retorquiu Joanna. - Vovó tomou providências para que pudesse ficar com a dela.
As duas sorriram. Elas adoravam a avó, mas não lamentavam vê-la instalar-se na nova moradia. Sempre sentiam um pouco de medo da interferência dela e de que ela convencesse os pais delas de que alguma coisa que a rainha-avó quisesse era boa para elas.
Tinha sido uma sorte ela ter ficado tão impressionada com a princesa Eleanor a ponto de ser a favor de que ela fosse reconhecida como herdeira do trono da Inglaterra - mas agora com a chegada do jovem Eduardo, ninguém podia fazer mais nada.
- Que tristeza, ser tão velha quanto ela! - disse Joanna. Está sempre pensando no passado e muitas das pessoas que ela amava já morreram, até mesmo aquelas que se teria acreditado que iriam estar vivas depois que ela morresse.
- Acho que ela nunca se recuperou da morte das filhas. Foi muito estranho Beatrice ter morrido tão pouco depois de Margaret.
- Eu penso que ela gostava mais de Margaret do que de qualquer outra. Ela nunca se esqueceu daquele caso do casamento de Margaret, quando a deixaram morrendo de fome e a mantiveram longe do marido. Oh, Eleanor, você acha que um dia vamos arranjar um marido? Você está com bastante idade, e eu já não sou jovem.
- Nós não quisemos ser mandadas para fora... Eu para Aragão e você para a Alemanha. Nosso desejo foi atendido.
- Eu sei. Mas agora que Eduardo chegou, é diferente. Acho que devíamos nos casar logo. Eu gostaria de me casar com alguém da Inglaterra. Você gostaria?
Eleanor teve um sorriso disfarçado.
- Acho que é isso que o papai quer.
- Então - acrescentou Joanna -, já que a mãe dele não está mais aqui, ele poderá fazer o que quiser.
- Isso não é justo. Ele sempre fez o que quis... e sempre fará.
- Mas você tem de admitir que ele dedicava muita atenção à mãe. Veja a Mary. Acha que ele queria que ela entrasse para um convento?
- Ele não se importava muito com isso e achava que seria bom para ele lá no céu. Se Mary estivesse contrariada, ele não teria deixado.
- Bem, irmã, você está com vinte e dois anos. Se vai se casar, tem de ser logo.
- E você está com quatorze.
- Uma criança de colo, comparada com você. Eleanor suspirou. Era verdade.
- O cavalheiro de Aragão ainda está em seu reino. É bem possível que as negociações sejam renovadas.
- Não quero ir para Aragão.
- Ora, irmã, nem mesmo nosso pai iria evitar sua partida, se isso fosse necessário por motivos de Estado.
- Era necessário antes, e ele evitou.
- Oh, acho que foi Deus, com as Vésperas Sicilianas.
- Nosso pai aproveitou a oportunidade que foi oferecida.
- Oh, ele gosta realmente de você. É a favorita, e sempre será. Infelizmente, porém, neste mundo em que vivemos, um menino é um menino e, portanto, tem mais importância do que nós.
- No entanto, nossa avó adorava as filhas, e o mesmo acontece com nosso pai.
- É, mas é um amor particular. Mas eu gosto muito quando uma mulher fica independente.
- Oh, sim, uma rainha... rainha por direito próprio... não simplesmente porque está casada com o rei!
Foi estranho, mas pouco depois dessa conversa aconteceu uma coisa que teria um grande efeito sobre a coroa da Inglaterra.
Dizia respeito à sucessão escocesa. Havia uma coisa pela qual a rainha-mãe sempre se sentira agradecida, e era sua filha Margaret ter sido poupada do sofrimento que sem dúvida teria tido se tivesse vivido para ver a morte de seus dois filhos homens - os príncipes David e Alexandre, aos quais ela tanto se dedicara. David morrera quando tinha apenas onze anos de idade e Alexandre, o mais velho, que acabara de fazer um bom casamento com a filha do conde de Flanders, morrera fazia poucos anos. Isso significava que apenas um dos filhos de Margaret estava vivo, e era uma menina, chamada de Margaret em homenagem à mãe, que nascera na Inglaterra e pela qual a rainha-mãe tinha uma afeição muito especial. A princesa Margaret era bonita e, para a rainha-mãe, dolorosamente parecida com a mãe; era inteligente, também, e o rei Eric, da Noruega, pediralhe a sua mão em casamento. A princesa, a princípio, ficara muitíssimo contrariada e implorara ao pai para que não a mandasse para a Noruega.
A política, no entanto, determinava que ela deveria ir. Fazia muito tempo que havia uma disputa entre a Escócia e a Noruega sobre a soberania das Ilhas Ocidentais, e o casamento representaria uma enorme ajuda para ambos os lados. Por isso, Margaret pôs de lado seus preconceitos e foi para a Noruega para ser a esposa de Eric. O casamento saiu melhor do que poderia ser esperado, e isto devido à maneira delicada e graciosa da jovem princesa da Escócia. A certa altura, nasceu uma filha. Ficou conhecida como Margaret, A Donzela da Noruega.
Alexandre já estava viúvo fazia nove anos. Ele gostara demais da esposa e não sentia vontade de substituí-la, mas com a morte dos dois filhos um novo casamento tornara-se uma necessidade política. Escolhera, portanto, como segunda esposa, Volante, filha do conde de Dreux, e os dois se casaram.
No casamento, foi apresentado um espetáculo teatral de amadores e muita gente declarou que, entre os dançarinos mascarados, surgiu um que tinha uma forma que não parecia humana e que gesticulava para Alexandre como se o estivesse chamando. Mais tarde, comentou-se que aquele era o anjo da morte, que fora buscar o rei.
Parecia, de fato, que Alexandre era azarado. Menos de um ano depois do casamento - e até então não havia sinal algum de filho ele resolveu dar um banquete no castelo de Edimburgo. Circulavam rumores de que o fim do mundo estava próximo e que, na verdade, deveria acontecer exatamente na noite escolhida para o banquete. Em vez de deprimir os convidados, aquilo pareceu deixá-los mais alegres ainda, como se estivessem decididos a comer e beber o quanto pudessem antes de ficarem frente a frente com o Criador.
Por uma estranha coincidência, houve uma tempestade violenta e a escuridão foi intensa.
A rainha Volante não comparecera ao banquete, mas ficara no castelo de Kinghorn, onde o rei prometera ir ter com ela naquela noite.
Todos os presentes protestaram quando ele se despediu. Diziam que ele não podia sair a cavalo numa noite como aquela. Bastava que ouvisse o vento e a chuva para saber o motivo.
- Eu prometi à rainha - replicou o rei -, e vou cumprir a palavra. Quem estiver com medo de cavalgar hoje à noite, pode ficar aqui.
Um dos cavaleiros retrucou:
- Majestade, não ficaria bem eu me recusar a morrer pelo filho de seu pai.
- A decisão é sua - replicou o rei.
E assim, Alexandre deixou Edimburgo em companhia de um pequeno grupo de seus amigos mais dedicados. Em segurança, eles atravessaram Queens Ferry e chegaram a Inverkeithing.
- Viram? - disse o rei. - Aqui estamos, e o que nos aconteceu de mau?
- Majestade - disse um dos cavaleiros do rei -, veja que, longe de diminuir, a tempestade está ficando mais violenta. As estradas à frente estão inundadas. Nossos cavalos não podem cavalgar em trilhas como essas e há trechos perigosos na estrada costeira para Kinghorn.
- Vejo que vocês têm medo - replicou o rei. - Muito bem, vou continuar sozinho. vou levar dois homens para me mostrarem o caminho, e isto é tudo o que peço.
- Majestade, majestade - bradou um homem que era um amigo muito chegado -, isto é uma imprudência. A estrada para Kinghorn é muito perigosa. A rainha não irá esperá-lo numa noite como esta. Vossa Majestade conhece o precipício perto do qual teria de passar. Na mais clemente das condições de tempo, aquela trilha deve ser usada com cautela.
- Chega - replicou o rei, e havia um brilho de fanatismo em seus olhos e, depois, houve quem se perguntou se na noite anterior ele não desafiara deliberadamente a morte. - Estou decidido a ir.
E assim ele partiu. A estrada de que haviam falado corria ao longo do alto dos rochedos, de onde havia um precipício acabando na costa de Pettycur. Na escuridão e sob a chuva violenta, o cavalo do rei tropeçou e, junto com o seu cavaleiro, despencou em direção às rochas lá embaixo.
Foi assim que o rei da Escócia encontrou a morte - por vontade própria, disseram alguns, pois ele quisera juntar-se à primeira mulher, Margaret, e dizia-se que naquela íngreme trilha pelo rochedo o anjo da morte tornara a aparecer, como fizera na festa do casamento dele, e daquela vez ele o seguira até a morte.
Era uma lenda fantasiosa, do tipo que os celtas adoravam. O rei da Inglaterra foi cético em relação ao anjo da morte. O que logo lhe chamou a atenção foi que a garotinha que vivia na Noruega era, agora, a rainha da Escócia e ele percebera um jeito de unir os dois reinos sem o desastroso derramamento de sangue que fora necessário no País de Gales.
Eric da Noruega ficou encantado com o fato de sua filha ficar noiva do herdeiro do trono da Inglaterra e o jovem Eduardo soube, por sua mãe, que iria ter uma esposa.
Ficou muito pouco interessado, mas quando soube que não seria para já, esqueceu logo o assunto.
- A situação é ótima - disse Eduardo à sua rainha. - A sorte sorri para mim. Gales nas minhas mãos, e se Eduardo se tornar rei da Escócia, quando ele subir ao trono os dois reinos poderão ser unidos. Você percebe o quanto seremos mais pacíficos quando estivermos juntos?
- Percebo, Eduardo. E o povo deverá ser grato a você. Espero que reconheçam o que você fez por eles.
- Eles aplaudem o que fiz quando tudo corre bem - respondeu ele. - Se tudo não corresse bem, poriam logo a culpa em mim. Na arte de ser rei, é preciso um pouco de sorte.
- Um bom critério resulta, muitas vezes, no que parece ser sorte.
- É isso, minha rainha, e a sorte se parece, muitas vezes, com um bom critério. Por Deus, se eu puder ser tão bem-sucedido na Escócia quanto fui no País de Gales, se puder fazer de nós uma só nação, terei realizado aquilo que nem mesmo o Conquistador conseguiu fazer.
- Você vai conseguir, Eduardo. Eu sei.
Parecia que ia, mesmo. Vários dos lordes escoceses foram procurá-lo e, quando percebeu que eles não eram, em absoluto, avessos ao casamento entre a herdeira da Escócia e o herdeiro da Inglaterra, ficou exultante.
- Eles ainda são muito crianças - disse ele. - Mas não vamos esperar muito. Faremos com que a menina seja mandada da Noruega para cá, e será criada aqui na sua ala infantil, meu amor. Lá, ela irá ficar conhecendo e aprenderá a gostar de Eduardo muito antes de os dois poderem se casar.
Era um plano excelente.
Tão bom que Eduardo achou que podia fazer uma visita ao continente, adiada há muito tempo e muito necessária. Eram vários os assuntos que exigiam sua atenção. Em primeiro lugar, ele precisava ir a Aquitânia; ficara um tempo longo demais afastado daquele baluarte. Tinha sido uma grande decepção quando a enteada de seu irmão Edmund se casara com o filho do rei da França. Eduardo tivera a esperança de que o casamento de Edmund com a condessa de Champagne fosse levar Champagne para a Inglaterra. O rei Filipe da França era esperto demais para deixar que aquilo acontecesse. Fora por isso que oferecera o prémio deslumbrante - seu filho e herdeiro - à herdeira de Champagne, o que garantia que aquele rico território passaria para a coroa da França.
Havia outra questão. Eduardo não podia mais fechar os olhos para o fato de que estava na hora de suas filhas se casarem. Eleanor completara vinte e tantos anos.
O casamento com Aragão ainda poderia ser feito, e era bom. Ele precisava vencer sua repugnância quanto à saída dela da Inglaterra e, uma vez mais, encetar negociações com Aragão.
Teria de deixar suas filhas adoradas e ir à França. Havia um consolo: podia levar a mulher.
Começaram os preparativos para o rei e a rainha partirem para a França.
Antes de saírem, Eduardo fez uma visita à sua mãe em Amesbury.
Encontrou-a mal-humorada. Disse ela que não se sentia bem. Estava inquieta. A vida monástica não era para ela, embora entendesse a necessidade de adotá-la. Passava longas horas deitada na cama e pensando no seu glorioso passado. Queria falar sobre ele com Eduardo quando este chegou.
com que então ele estava indo até a França. Ela se lembrava muito bem de quando ela e o pai dele tinham estado lá. E houvera aquela fase horrível, quando tinha ido sozinha... uma fugitiva daqueles homens cruéis que mantinham Henrique preso.
- E você também, meu filho. Não se esqueça disso.
Ele não se esquecia, assegurou-lhe Eduardo. Lembrava-se muito bem de como ela trabalhara para reunir um exército.
- Do qual vocês não precisaram, porque você fugiu e foi salvar seu pai.
- Ah, mas foi uma ato de bravura de sua parte. A senhora é uma mulher fora do comum, mamãe.
Ela ficou contente.
- Ah, que época, aquela! Uma época trágica... mas, de algum modo, gloriosa.
- Não queremos mais tragédias desse tipo - disse Eduardo.
- Seu pai foi um santo... um santo abençoado. Eduardo não concordava com aquilo e, por isso, ficou calado.
- Há uma coisa que preciso lhe dizer. Um homem veio me procurar, não faz muito tempo. Era cego e, um dia, estava rezando junto ao túmulo de seu pai quando recuperou a visão. Eduardo, seu pai foi um santo. Isto foi a prova. Acho que devíamos mandar construir uma igreja em homenagem a ele... um mosteiro...
- Querida mãe, isso é um absurdo.
- Absurdo! O que quer dizer? Eu lhe digo que esse homem veio me procurar. "Eu era cego", disse ele, "e agora estou enxergando. Oh, glória ao Santo Henrique!"
Foram estas as palavras dele.
- Ele a enganou, majestade. Está procurando recompensas, pode estar certa. Aposto que ele quer que se construa um santuário e que ele fique encarregado dele, não? E muitas pessoas irão depositar ofertas nesse santuário, grande parte das quais irá para o bolso dele.
- Estou abismada. Eu lhe digo que seu pai foi um santo. Não tem havido gente curada junto ao túmulo de São Thomas Becket?
- Meu pai não era Becket, mamãe.
- Você me deixa chocada. Você me decepciona. Você... filho dele.
- É por ser filho dele que sei que isso é falso. Nós amávamos nosso pai. Ele foi bom para a família, mas não foi santo e esse homem está tentanto enganar a senhora.
- Então você não só nega a bondade de seu pai, como também me insulta. Por favor, retire-se. Eu queria saber por que vem me procurar... já que minha opinião é tão insignificante que você perde tempo em conversar comigo.
- Minha querida senhora...
- Por favor, vá embora - disse ela.
Ele deu de ombros e, embora fosse o rei, curvou-se e retirou-se.
Ao sair zangado dos aposentos da mãe, ele encontrou-se com o provincial dos dominicanos, que sabia ser um homem piedoso e culto e com o qual mantinha relações de amizade.
- O senhor ouviu essa história de um homem curado de cegueira junto ao túmulo de meu pai?
O dominicano admitiu que sim.
- Eu lhe digo uma coisa: esse homem é um patife que procura tirar vantagem. Não houve milagre coisa alguma. Quanto ao meu pai, sei o suficiente a respeito da justiça dele para ter certeza de que ele teria preferido arrancar os olhos desse patife quando estavam bons do que dar a visão a um canalha como ele.
O dominicano concordou com o rei.
- Ele é um homem que se aproveita da piedade da rainha replicou-ele.
Eduardo, no entanto, não podia deixar o país brigado com a mãe. Voltou a procurá-la antes de ir embora.
A rainha-mãe ficou encantada ao vê-lo, pois, tal como ele, não suportava brigas.
- Mãe querida - disse ele -, desculpe a minha saída repentina.
Ela o abraçou.
- Não devemos nos separar zangados, meu filho. É uma coisa que para mim seria intolerável. Você esteve em meus pensamentos a noite toda. Meu filhinho de cabelos cor de linho! Como eu me orgulhava de você! Seu pai, também. Nosso primogénito, e um belo filho. Até mesmo os abomináveis londrinos e os judeus gostaram de nós durante algum tempo quando você nasceu.
- Não gosto quando quaisquer membros da nossa família não estão de bem um com o outro.
- Querido Eduardo, sei que agora sou uma velha. Foi-se a época em que as pessoas me ouviam. Oh, quando seu querido pai estava aqui, como era diferente!
- A vida tem de mudar para todos, mamãe.
- Mas tê-lo perdido... e depois suas queridas irmãs... Oh, sou uma mulher solitária... que agora não vale nada.
- A senhora sempre valerá muito.
- Para você, Eduardo?
- Para mim, sempre.
Ele começou a contar-lhe a ela seus planos para o casamento das filhas e o que esperava conseguir na França. Precisava impedir que a mãe rememorasse os incidentes do passado que já ouvira centenas de vezes.
Mas ficou contente por se despedir em termos afetuosos. O elo entre os dois era firme demais para ser rompido porque se transformara num homem decidido que queria as coisas à sua moda e dizia o que achava ser a verdade e porque ela era uma velha egoísta que não acreditava que fizera o que quisera porque tinha um marido bajulador que nada lhe negava, mas pensava que era porque tinha sempre razão.
Como iria um ou o outro saber o tempo que ele ficaria fora e o que iria acontecer naquele ínterim e se os dois iriam tornar a se ver?
Agora que os pais estavam fora do país e a rainha-mãe se encontrava em Amesbury, a princesa Eleanor era a indiscutível chefe da família. Estava com 24 anos de idade e, por isso, era uma mulher madura. Havia uma grande diferença entre a idade dela e a do resto da família, porque Joanna, que vinha em seguida, estava com dezesseis e Margaret, com treze; a pobre da Mary, com dez anos, estava em Amesbury; Elizabeth, que nascera em Rhudlan, tinha apenas seis e Eduardo, quatro.
Era verdade que Mary de Caernarvon, a ama galesa de Eduardo, protegia-o como um dragão e o colocava fora do domínio da princesa. Fosse como fosse, era um menino mimado e achava que o mundo fora criado para ele. Eleanor ficava zangada por se fazer tanta agitação em torno dele porque era um menino. E também jamais esqueceria que, pelo simples fato de nascer, ele arruinara os seus sonhos. Era verdade que ele era uma criança bonita - louro e alto para a idade que tinha, muito parecido com o pai quando criança. Era bem inteligente, mas já mostrava sinais de indolência. Eleanor ficava se perguntando como fora seu pai quando tinha a idade de Eduardo. Um dia, ela perguntaria à avó, mas a rainha-mãe tinha uma mente muito fantasiosa e dava a todas as histórias do passado um colorido tão brilhante, que nunca se sabia até que ponto se podia acreditar nela.
Elena, Lady de Gorges, que fora governanta deles durante anos, ainda estava com eles na sala de aula. Não que a princesa Eleanor estivesse na sala de aula, mas agora com a ausência dos pais, ela estava muito com as irmãs e os irmãos e, quanto a isso, podia dizer que fazia parte do grupo. Tinha a sua própria criadagem, é claro, e era um grupo grandioso, pois quando seu pai realmente a considerava uma possível herdeira do trono, fora tratada de acordo com essa posição, e ele praticamente não podia pedir-lhe que abrisse mão dele quando Eduardo nasceu. Longe disso. Estava ansioso por mostrar à sua querida filha que ela ainda era importante para ele - se não para o país - como sempre fora.
Era muito raro, é evidente, a filha de um rei ter chegado aos 24 anos sem se casar. Duvidava que fosse continuar solteira para sempre. Sabia que o pai iria procurar Alfonso de Aragão enquanto estivesse fora e talvez chegassem a algum acordo.
Ela esperava que não - esperava ardorosamente que não. Queria ficar na Inglaterra, e sabia que o pai queria que ela ficasse.
- Preciso falar com o rei de Aragão - dissera ele quando os dois se despediram. - Mas é bem possível que não se consiga coisa alguma. Minha filha, seria uma dor terrível se você tivesse que nos deixar.
Ela se agarrara ao pai, que lhe declarara a bênção que ela sempre fora para ele.
Eleanor queria muito que o pai voltasse. Seria terrível se alguma coisa lhe acontecesse no continente. Então, Eduardo seria o rei.. . um menino de quatro anos. Ah, como as pessoas eram obtusas, ao darem tanta importância ao sexo dos herdeiros de um rei.
Mesmo quando o pai partira, não nomeara a filha regente da Inglaterra. Ela podia imaginar os protestos que teriam surgido se aquilo tivesse sido sugerido. A tarefa coube ao primo dela, Edmund, conde da Cornualha, filho do irmão de seu avô Ricardo. Gostava do primo Edmund, que sempre se preocupara com a sua importância e nunca a tratara de outro modo que não com o máximo de respeito.
Joanna, com frequência, era bem maliciosa em sua atitude para com a irmã mais velha, de modo que Eleanor gostaria que não fosse tão franca. Joanna gostava de inspirar confidências e depois mexer com as pessoas sobre elas. Joanna não se parecia, nem um pouco, com ela ou com Margaret.
Como ela dissera a Margaret: "Isso tem algo a ver com o fato de ter nascido numa parte diferente do mundo." Era uma coisa que as pessoas jamais esqueciam. Mesmo agora, era chamada muitas vezes de Joanna de Acre.
Joanna era extravagante. Vivia gastando mais do que a verba que Egis de Audenarde lhe concedia. Esse homem fora nomeado pelo pai delas tesoureiro das filhas e recebera instruções sobre quanto deveria ser dado às filhas para que gastassem no que precisassem; e Joanna perdia a paciência com ele quando a repreendia por ser mais extravagante do que os recursos à disposição dele permitiam.
De nada adiantava reclamar de Joanna. Não ficava menos voluntariosa à medida que se tornava mais velha.
Como Margaret era diferente, a doce Margaret, que era sempre dominada pela esperta irmã. Eleanor percebera que, quando se encontravam no altar em Westminster prestando suas homenagens ao santuário de Eduardo o Confessor, todas tinham feito suas oferendas, mas Margaret dera mais dois xelins.
Margaret fizera aquilo sem chamar atenção e, quando Eleanor comentou o fato com ela, ficou corada de constrangimento e murmurou que o avô delas tivera um amor especial pelo Confessor e que ela estivera, na verdade, pensando no querido avô quando fizera aquilo.
- Você não chegou a conhecê-lo - disse Joanna com rispidez, pois jamais iria pensar em dar além do normal mas, isso sim, em guardar um pouco para ser gasto em algo para adorná-la. Ele morreu três anos antes de você nascer.
- Mas vovó o tornou vivo para nós - salientou Margaret.
- Oh, as pessoas sempre viram santas depois de mortas. Chego até a duvidar que o Confessor tenha sido tão santo quanto dizem. - Joanna era muito irreverente. Era uma felicidade não ter sido a escolhida para entrar para um convento. Joanna se entusiasmou com o assunto. - Acho que ele não passava de um velho muito desagradável. - Baixou a voz. - Ele não consumou o casamento, como você sabe. Era puro demais. Eu é que não gostaria de um marido assim.
- O que você sabe de maridos? - perguntou Eleanor.
- Tanto quanto você, irmã, já que nenhuma de nós ainda teve um. Claro que você está ficando tão velha que é possível que você nunca arranje marido.
Margaret disse:
- Ora, você sabe como ficamos com medo quando achamos que iam mandá-la para Aragão.
Eleanor mudou de assunto e disse que iria remexer no seu guarda-roupa, para decidir o que iria precisar para a peregrinação.
- Eu gostaria que pudéssemos ficar na corte - disse Joanna. - Estou muito cansada de visitar santuários.
- O rei e a rainha, e nossa avó também, querem que façamos issO - lembrou Eleanor à irmã.
- Quase chego a desejar estar no lugar de Mary - retrucou Joanna. - Não, não! - bradou ela, cruzando os dedos. - Não quis dizer isso. Pobre Mary. Que vergonha, obrigá-la a entrar para um convento!
- Ela foi por sua livre e espontânea vontade - lembrou-lhe Margaret.
- Livre e espontânea vontade. O que uma criança sabe sobre conventos? Como se pode renunciar ao mundo, quando não se sabe o que ele tem a oferecer? Garanto-lhes que nunca me fariam entrar para um convento.
- Não precisa nos garantir, Joanna - replicou Eleanor. Nós acreditamos.
Em seguida estavam todas rindo e Joanna dizia-lhes que tipo de festividade teria no seu casamento. Haveria uma mascarada como ela adorava mascaradas! Haveria representação de peças teatrais e torneios.
- Mas não se pode ter casamento sem noivo - disse Margaret. - E o seu morreu.
- Afogado, pobre Hartman! Queríamos que isso acontecesse, não é, Eleanor?
- Que absurdo! - disse Eleanor. - Agora vou mandar chamar o Perrot e vou dizer-lhe o que deve ser feito com essas roupas. Tenho muitos vestidos precisando de conserto.
- Precisamos de vestidos novos - reclamou Joanna.
Mesmo assim, Eleanor mandou chamar Perrot, o alfaiate, e conversou com ele sobre como suas roupas podiam ser remendadas, enquanto que algumas tinham chegado a tal ponto que não podiam ser reformadas. Precisaria de novas.
Perrot estava ansioso por consertar tanto quanto fosse possível, pois fora avisado por Egis de Audenarde que Lady Joanna estava gastando mais dinheiro do que ele estava autorizado a fornecer.
Examinou as sobretúnicas e as faixas que as prendiam na cintura e os mantos adornados de peles e tão compridos que varriam o chão. Contou quantos botões de prata e quantos de ouro seriam necessários.
Muito acanhado, sugeriu que o manto de Lady Joanna fosse consertado e disse que talvez pudesse encontrar pele para substituir a que estivesse gasta.
- Não vou aceitar um manto remendado - bradou Joanna.
- O remendo vai aparecer, e as pessoas vão dizer que as filhas do rei se vestem como mendigas.
- Eu lhe asseguro, senhora, que depois de consertado, este manto ficará muito bonito, mesmo.
- Bonito aos seus olhos, pode ser, mas não aos meus. Quero um novo, porque não vou permitir que as pessoas me vejam vestindo o que você vai conseguir fazer desse aí.
- Minha senhora, acho que os recursos não permitirão a compra de um novo manto.
- Você não vai remendar esse aí.
- Mas, Joanna - disse Eleanor. - Se Perrot não remendar, o que você vai usar como manto?
- vou comprar um novo.
- Mas você acabou de ouvir...
Foi então que Joanna teve um de seus acessos de raiva.
- Não vou ser mandada por Perrot, o alfaiate - bradou ela.
- Não procuro mandar na senhora. Só dizer-lhe que o dinheiro disponível não vai dar para isso.
- Como odeio essa conversa vulgar sobre dinheiro! Só porque o rei está fora você pensa que pode mandar em nós, mestre Perrot.
Perrot estava tão angustiado que quase chorou.
- Perrot - bradou Joanna -, não quero mais conversa com você. Não mais discutirei o que vou ou não comprar. Comprarei o que quiser.
E com isso girou sobre os calcanhares e retirou-se bruscamente do quarto, deixando Perrot abismado e triste. Eleanor o consolou.
- A princesa Joanna vai acabar compreendendo que não se pode gastar um dinheiro que não existe. Por favor, não se atormente, mestre Perrot. vou dizer a meu pai que isso aconteceu sem que o senhor tivesse culpa. Agora, veremos o que preciso para minhas roupas, e prometo que não vou pedir mais do que a minha verba.
Perrot agradeceu a Deus pela calma justiça da princesa Eleanor e pela delicada bondade de Margaret. Sabia, é claro, pelo que outros criados tinham dito, que lidar com a princesa Joanna era um sofrimento.
Depois que Perrot se retirou, Eleanor disse a Margaret:
- Não se preocupe com isso. Esqueça. Você conhece a Joanna. Mais cedo ou mais tarde, ela vai se recuperar do acesso de raiva. Depois, vai tentar agradar Perrot para compensar a injustiça que cometeu.
- Espero que sim - disse Margaret. - O pobre do Perrot ficou perturbadíssimo.
Joanna recuperou-se do acesso de raiva, mas não mandou chamar Perrot. Estava decidida a ter o que queria, de modo que mandou chamar comerciantes e fez compras com extravagância. Era mais ricamente vestida do que qualquer uma das irmãs e recusava-se a usar qualquer roupa remendada por Perrot. Quando Eleanor chamou-lhe a atenção para o fato de que estava acumulando dívidas que teriam de ser pagas, ela disse:
- É, vou falar com o rei quando ele voltar. - Dirigiu um sorriso travesso para Eleanor. - Ele vai ficar tão satisfeito por voltar para junto dos filhos, que irá nos perdoar tudo.
Eleanor achou provável que aquilo fosse verdade, mas nunca iria fazer contas como Joanna, porque a irmã estaria afundada em dívidas quando o pai delas voltasse.
Em dezembro daquele ano, as três princesas partiram para Glastonbury. O rei e a rainha tinham providenciado aquela viagem para elas antes de seguirem para o continente. Era bom, dissera o rei, que o povo sentisse a piedade da família real e as três jovens estavam na idade de mostrar ao país que eram devotas. Seria preciso levantar dinheiro para o casamento delas quando o rei voltasse à Inglaterra, porque ele não podia manter as filhas solteiras para sempre. Por isso, que o povo visse que meninas boas e piedosas elas eram.
Glastonbury era a mais importante das abadias, porque guardava os ossos que se dizia pertencerem ao rei Artur; e como aquele monarca fora muito discutido na época da revolta de Llewellyn, ele estava ansioso por lembrar ao povo que Artur não era mais galês do que inglês.
O fato de as princesas viajarem no inverno tornava a peregrinação mais elogiável, porque não era elegante seguir pelo interior na temporada de neve e gelo, e mesmo que não estivesse muito frio para isso, era preciso enfrentar chuva e lama.
Assim, as irmãs partiram e não seguiram a cavalo, mas em carruagens, e em meio a um grande cortejo de cavaleiros, damas e criados de todas as categorias.
Aonde quer que chegavam, as pessoas saíam para dar-lhes as boas-vindas. Não havia dúvida de que o rei e a rainha reinantes eram mais populares do que seus antecessores.
Foram calorosamente recebidas em todas as abadias em que paravam, e por um bom motivo, porque era um costume reconhecido o fato de visitantes reais significarem doações reais.
Depois de prestarem suas homenagens aos ossos que estavam em Glastonbury, iniciaram a viagem de volta parando na abadia de Cerne em Dorsetshire, para que pudessem homenagear o santuário de São Ethelwold. Passaram o Natal em Exeter, onde ficaram até meados de janeiro, e fevereiro já chegara quando se acharam de volta a Westminster.
Nessa época houve uma violenta discussão entre Joanna e Egis de Âudenarde, quando ele disse francamente a ela que não podia mais lhe adiantar dinheiro. Ela gastara tão além de sua verba, que teria de parar até saldar as dívidas do que comprara.
Aquela foi uma das ocasiões em que o mau génio de Joanna não pôde ser controlado. O fato de ela, uma princesa da Inglaterra, receber ordens de um dos criados do pai - nada mais do que um escriturário - era intolerável.
- vou gastar quanto quiser - bradou ela.
- Não do dinheiro de seu pai, senhora.
- Acho que o senhor se esquece de com quem está falando - disse, ríspida.
- A senhora se esquece de que estou encarregado de cuidar das contas do rei e que tenho de cumprir as ordens dele.
- Saia da minha frente - berrou ela. - Não quero saber mais do senhor. Daqui por diante, o senhor não tem mais nada a ver com os meus negócios.
De Âudenarde fez uma mesura acentuada.
- Minha senhora - disse ele -, eu me retiro. Pode fazer o que quiser, e caberá à senhora responder perante o rei.
Ainda enfurecida, Joanna foi procurar as irmãs e contou-lhes o acontecido.
- Ele teve razão - disse Eleanor. - Ele não pode gastar o dinheiro do nosso pai.
- Que absurdo. Como podemos nos vestir se não gastamos dinheiro?
- Você sabe que nós temos muitas roupas. Perrot pode consertá-las.
- Não serei vista usando remendos. Quando quiser roupas novas, terei que comprá-las.
Eleanor deu de ombros.
- Pois compre, mas lembre-se de que terá de responder perante o nosso pai quando ele voltar.
Joanna disse que faria isso de bom grado. E gastou de maneira ainda mais irresponsável do que pretendia, só para mostrar às irmãs que pouco se importava.
As princesas estavam sentadas, bordando, em um dos aposentos do castelo de Windsor que era claro e, por isso, bom de se trabalhar nele e, ao mesmo tempo, dava-lhes uma vista para a floresta.
Joanna estava de bom humor. Por estranho que parecesse para uma pessoa de sua natureza irrequieta, ela adorava bordar. Aquilo exercia um efeito calmante sobre o seu génio, dizia ela muitas vezes, e muito maliciosamente escolhia cores que combinassem com o seu estado de espírito. Dizia-se que se suas amas a vissem bordando com cores sombrias, sabiam que estava na hora de ficarem longe dela. Ela aprendera aquela arte com Lady Edeline, na época em que estava na ala infantil castelhana. Os castelhanos faziam um trabalho muito bonito. Por isso gostavam de vê-lo nas paredes, para que ficassem sempre em exposição.
Ela gastara bastante com as suas sedas e agora as exibia, encantada, a Eleanor e a Margaret, que estavam sentadas ao seu lado.
- Mas você tinha bastante - disse Eleanor.
- Eu precisava de mais - retrucou ela.
Estava trabalhando com um uma bela seda azul, o que significava que estava de bom humor. Eleanor deu de ombros. Era Joanna que teria que pedir ao pai para pagar suas dívidas. Aquilo não dizia respeito à princesa Eleanor e a Margaret.
- Olhem só para este vestido. Não é de uma cor divina? vou passar um fio de ouro pelo azul e torná-lo ainda mais encantador.
- Parece que vai a um casamento - disse Margaret.
- Ah, casamentos. Tenho andado pensando em casamentos. Quando o rei e a rainha devem voltar, Eleanor?
- Não pode demorar, agora. Eles estão fora há quase dois anos.
- Não tenho dúvidas de que assuntos no continente absorvem a atenção deles - disse Margaret.
- Aposto como nós somos temas de discussões - Joanna estava sorrindo. - Casamentos. Sou capaz de jurar que haverá casamentos quando eles voltarem. Um marido para mim, outro para você. Oh, Margaret, minha doce irmã, dentro em breve iremos deixá-la.
- Por favor, não fale nisso.
- Ela iria sentir saudade de nós - bradou Joanna. - Você sentiria saudade das minhas provocações?
- Muita - respondeu Margaret.
- Ela gosta de mim, apesar do meu génio mau - disse Joanna. - Gosta, sim. Nem sempre as pessoas gostam de quem é bom, gostam? É muito injusto. Estou decidida a fazer o que quero e uma coisa eu lhes digo: se não gostar do marido que for escolhido para mim, não irei aceitá-lo.
- Terá que aceitar aquele que lhe derem - disse Eleanor.
- Não tenho! Não tenho! Eu não vou ser governada por...
- Pelo rei? - disse Eleanor.
- Casamento é uma questão muito importante - insistiu Joanna. - Não é estranho que Margaret é a única que está noiva? A pequenina Margaret, que ainda não fez quinze anos. O que acha do seu duque, Margaret?
- Se o nosso pai o escolheu para mim, deve ser o melhor marido que poderei arranjar.
- Filha obediente! Será que vai ser uma esposa obediente? Eleanor, o que você acha do duque de Brabant?
- Achei-o bonito - disse Eleanor.
- Achei que ele estava mais interessado nos cavalos e falcões dele do que na futura noiva.
- Margaret era uma menina quando ele esteve aqui. Como ele poderia estar interessado nela?
Margaret sentiu-se um pouco inquieta. Sabia que o duque de Brabant fora escolhido para ela, mas como os casamentos das irmãs não deram em nada, achava que o mesmo poderia ocorrer com o seu.
Tentou lembrar-se do que sabia a respeito de João de Brabant, que em uma ou duas ocasiões ficara muito pouco tempo hospedado com eles. Lembrava-se de um menino animado que estava sempre se jactando dos cavalos que tinha e que se interessara tão pouco por ela quanto ela por ele.
- Ainda vou custar muito a me casar - disse ela.
- Pode estar certa - tranquilizou-a Eleanor - de que nosso pai jamais a deixará sair daqui tão nova. com toda certeza, ele vai dizer que você é jovem demais.
Joanna disse:
- Ouvi dizer que o duque de Brabant é um jovem vigoroso e já tem várias amantes.
- É normal correrem boatos desse tipo - disse Eleanor, rápida.
Eleanor ficou contente por haver uma interrupção naquele momento, pois via que os comentários de Joanna estavam deixando Margaret apreensiva.
Chegou do continente um mensageiro trazendo cartas e pacotes.
- Notícias do rei - bradou Eleanor, e as jovens largaram o trabalho que estavam fazendo e correram para ele.
- Ele deve estar vindo para casa - disse Joanna. - Oh, quando será?
Havia uma carta para Eleanor. Estava cheia de doces sentimentos para com a queridíssima filha e dizia que os dois estavam prestes a iniciar a viagem de volta. Enquanto isso, só para mostrar que não se esquecera delas, ele lhes mandava algumas lembranças para que se recordassem dele.
As princesas soltaram gritinhos de satisfação enquanto desembrulhavam os pacotes. Havia jóias e sedas para todas.
Mas para Eleanor havia o melhor de todos os presentes - uma taça de ouro e um diadema decorado com esmeraldas, safiras, rubis e pérolas. Houve um silêncio de espanto enquanto as irmãs olhavam para ele. Eleanor, com um gesto solene, colocou-o na cabeça.
- É a coisa mais bonita que já vi - disse Joanna.
- Nosso pai diz que foi dado a ele pelo rei da França. Diz ele: "Guarde-o como se fosse uma preciosidade. Quero que você, minha adorada filha mais velha, o receba como lembrança minha."
- Você sempre foi a favorita dele - disse Joanna. Eleanor não negou.
- Estarão de volta em breve - disse ela, com voz suave. Oh, como estou ansiosa por tornar a vê-los!
Mais tarde, ela reprovou Joanna por falar de João de Brabant como falara diante de Margaret.
- Não percebeu que a deixou amedrontada?
- Acho que é bom ela estar preparada. Todo mundo sabe que libertino ele é. Pobre Margaret, eu não teria inveja dela casada com ele.
- Talvez não chegue a esse ponto.
- Se chegar, ela deve saber que terá um mulherengo como marido! O correio é ela estar avisada.
Eleanor não estava certa se era melhor saber ou continuar na ignorância de questões como aquela.
Foi grande a alegria na cidade de Londres quando o rei passou por ela a cavalo. Fazia dois anos que se ausentara, e o povo estava contente por vê-lo de volta. Exibia o seu aspecto de rei personificado de sempre e mantinha aquele ar de invencibilidade que dava ao povo uma sensação de segurança. O povo achava que tudo ia bem enquanto o rei estivesse em seu castelo.
Algumas pessoas perceberam que a rainha envelhecera um pouco. Havia em torno dela um novo ar de delicadeza que, por vê-la com frequência, o rei não notara; e os filhos ficaram tão contentes por vê-la, e a rainha a eles, que não perceberam.
Os dois ficaram muito contentes com a recepção que tiveram; o rei trancara-se com seus ministros; mas estava ansioso por se achar no círculo íntimo da família e conversar sobre assuntos domésticos. Numa família real, aqueles problemas domésticos podiam acabar misturando-se com questões de Estado, e todos sabiam disso.
Depois de ter estudado todos os filhos, vibrado de satisfação com o encanto e a beleza das filhas, maravilhado-se com o progresso do filho e ouvido de Lady Edeline e Lady de Gorges que estava tudo bem com as filhas e de Mary de Caernarvon que a saúde de Eduardo não dava motivo algum, por menor que fosse, para preocupações, procurou ficar a sós com a sua favorita, Eleanor, e os dois andaram pelos jardins juntos.
- Vossa Majestade - disse ela - esteve em Aragão.
- Estive com Alfonso - respondeu ele.
- Oh? E quais são as notícias dele?
- Eleanor, minha doce filha, você ficaria muito desapontada se eu lhe dissesse que não vai haver casamento algum com Aragão?
Ela voltou-se para ele e encostou a cabeça nele. Ele beijou-lhe os cabelos.
- Então, minha querida, não ficou muito desapontada?
- Eu não teria suportado ir para Aragão.
- Nem eu teria suportado deixá-la partir. Para falar a verdade, minha filha, não vejo felicidade para você lá. Essa questão siciliana foi mal planejada. Ele é um homem que se envolve em muitas coisas ao mesmo tempo e acaba não aproveitando nenhuma. Conversei com ele. Um casamento com Aragão... sim, poderia ser bom para nós. Mas eu não poderia dar você a ele. Não, não poderia. Os dois caminharam de braços dados, em silêncio, por alguns instantes.
- Quer dizer que para mim não vai haver casamento.
- Casamento... vai. Tem de haver. Mas não com alguém de Aragão.
- O senhor tem outra pessoa em mente?
- Ainda não... para você, não. Mas para as outras, tenho. Margaret tem de se casar com Brabant e Joanna também tem de se casar. Quanto a você, meu amor, sua vez chegará. Mas fiquemos um pouco mais tempo juntos, filha querida, antes de você me deixar. Não pode imaginar o quanto senti a sua falta.
- Posso, pois foi o quanto eu senti a sua.
Os dois caminharam em silêncio, e Eduardo se perguntou se devia falar com a filha sobre seus planos para Joanna.
Seria melhor não falar, decidiu. Seria melhor que Joanna soubesse por ele primeiro. Ele esperava problemas.
E assim continuou a caminhar, satisfeito, com a filha de quem mais gostava, e durante algum tempo, pelo menos, os dois poderiam ficar contentes por não se separarem.
Por mais encantada que ficasse ao ver os pais uma vez mais, a apreensão de Joanna aumentara, porque sabia que não se poderia adiar por muito tempo o momento em que Egis de Audenarde comunicasse a seu pai que ela se recusara a apanhar sua verba dele e fizera contas em nome dela.
Ela não suportava olhar para aquelas contas; fazia apenas uma ideia do quanto ultrapassavam a quantia que havia sido separada para seu uso.
Encontrou o pai sozinho e sabia que aquela era a hora em que devia confessar o que fizera. Quanto mais cedo, melhor, porque ele se achava tão satisfeito por estar de volta ao seio da família, que talvez fosse clemente.
Ela entrou no aposento em que o rei estava sentado a uma mesa e, com horror, viu as contas diante dele. Era um homem perseguido pelas loucuras do pai, e a maior delas fora a extravagância. Eduardo só gastava quando era oportuno.
Ela atirou-se de joelhos e enterrou o rosto no manto dele.
- Querida filha - bradou ele -, o que significa isso?
- Oh, meu pai - disse ela -, tenho que confessar algumas indiscrições.
A aflição estampou-se no rosto dele. Pensou logo que a filha se envolvera com algum homem. Joanna era diferente das outras. Era rebelde. Ele sempre temera que houvesse algum problema com ela.
- Você precisa me contar - disse ele.
- Majestade, prometa que não vai ter raiva de mim. Ele teve um sorriso indulgente.
- Não posso imaginar que isso venha a acontecer.
- Tenho sido uma tola.
- Isso, eu posso acreditar muito bem.
- Entende, pai querido, eles eram muito velhos. Eu estava cansada deles. Eles tinham sido remendados tantas vezes... e como sua filha eu tinha o dever de me apresentar com uma certa exuberância.
- Do que está falando, minha filha?
- Não gosto de Egis de Audenarde. Ele é um homem autoritário, arrogante. Parecia que era dinheiro dele que ele estava nos dando!
O rei respirou mais aliviado. Estava começando a ver que sua fútil filhinha tinha discutido com de Audenarde e andara gastando com um exagero maior do que devia.
- Ele recebeu ordens de cuidar de minhas contas.
- Um sujeito arrogante. Ele me censurou... eu... sua filha... Joanna permitiu que umas poucas lágrimas escapassem de seus
olhos enquanto observava atentamente o pai.
- Ouvi dizer o quanto você gastou, filha. Foi bastante. Ela ficou em silêncio.
- Teria sido mais prudente você ter deixado que Egis cuidasse dessas questões. Mas - acrescentou ele - está feito.
- Então o senhor não está zangado!
- Acho difícil ficar zangado com uma pessoa que eu amo tanto, minha filha. O que está feito, está feito. Você gastou muito dinheiro. Seu avô e sua avó gastavam de maneira irresponsável. Não foi bom para eles. Você vai ter de ser cautelosa no futuro.
- Oh, meu pai querido, vou ser cautelosa. Farei qualquer coisa se o senhor me perdoar isso... qualquer coisa que me peça para mostrar meu amor e minha devoção pelo senhor... peça, que eu faço. vou até deixar que Egis de Audenarde decida o que será gasto com os meus vestidos.
- Qualquer coisa? - disse o rei. - É um prazer ouvir isso, porque arranjei um marido para você e quero que se case nos próximos meses.
- Casar! Mas com quem eu devo me casar?
- É isso que eu quero que compreenda. Esse casamento seria da máxima importância para mim. Preciso desse casamento. Preciso desse homem como meu aliado. Ele é o homem mais importante da Inglaterra.
O coração de Joanna batia acelerado; ela ficara confusa demais, por uns segundos, para raciocionar com clareza. O único pensamento que lhe ocorreu foi: o homem mais importante da Inglaterra... neste caso, deverei ser a mulher mais importante.
- Quem... é ele? - perguntou ela, devagar.
O rei hesitou como se estivesse adiando o momento incómodo, e Joanna ficou alarmada.
- Por favor, diga-me - disse ela, falando com rapidez.
- É muito mais velho do que você. Mas uma jovem com o seu temperamento precisa de um homem mais velho. Ele está profundamente apaixonado por você.
- Por favor, papai, quem?
- O conde de Gloucester... Gilbert de Clare.
- Gloucester? Mas ele é um velho.
- Mais velho do que você, sem dúvida, mas ainda não fez cinquenta.
- Ainda não fez cinquenta. Mas ele tem uma esposa. Está casado com Alice de Angoulême.
- Houve um divórcio. Há muito tempo que ele tentava. Faz anos que aquilo não era casamento de forma alguma. Posso lhe dizer que ele está profundamente apaixonado por você. Ele gosta do seu espírito, de sua beleza. Ele a admira tanto, que nada o agradará mais do que o fato de você se casar com ele.
Ela ficou estupefata. O homem mais importante da Inglaterra. Ela percebia. Começou a pesar as vantagens e as desvantagens. Não sairia da Inglaterra. Aquilo era o primeiro e mais importante detalhe. A pobre da Margaret ia ter que se casar com aquele libertino João de Brabant e ir para uma terra estrangeira que poderia odiar e na qual talvez se sentise como uma prisioneira. Um velho que iria adorar sua juventude! O homem mais importante da Inglaterra!
O rei a observava atentamente.
- Há muitas vantagens - disse ele. - Ele é um homem de muita influência. Eu preciso dele, Joanna. Preciso dele como meu aliado. Os barões sempre representaram um perigo para a monarquia. Você sabe o que eles fizeram ao seu avô e ao seu bisavô. Arruinaram um e quase fizeram o mesmo com o outro.
- Eles não poderiam prejudicar o senhor, papai.
- Não, não pretendo deixar que prejudiquem. Mas gostaria de saber que o mais poderoso deles está preso a mim... por laços de família.
- Existe a possibilidade de que o conde de Gloucester se vire contra o senhor?
- Ele já mudou de lado antes. Esteve algum tempo ao lado de Montfort, sabe? Mas lutou do meu lado. Trabalhou bem no País de Gales, contra Llewellyn.
- O senhor não confia muito nele. Por esta razão daria a ele uma de suas filhas?
- Minha querida Joanna, eu sei que ele é um cavaleiro inteiramente dedicado ao lado ao qual presta sua lealdade. A perspectiva de um casamento com você faria dele um amigo meu para a vida inteira. Ele está apaixonado por você, e isso já há algum tempo. Você será tão adorada, que não poderá deixar de ser feliz. Para ele, você será sempre jovem.
- Como para mim ele sempre será velho.
- Ele é rico... não existe homem mais rico no país. Estará pronto a satisfazer os seus desejos. Você tem de se casar. Está na idade. Não posso ficar com todas as minhas filhas solteiras. Ele tem belas propriedades... e uma em Clerkenwell. Se você se casar com Gloucester, meu amor, nunca precisará ficar longe de sua mãe e de mim, poderemos estar juntos com um mínimo de trabalho de nossa parte.
- O senhor está me fazendo gostar desse casamento.
- Você está me deixando muito feliz.
- Querido pai, o senhor foi bom com relação às contas. Os senhor vai pagá-las, então?
- Será que eu poderia ser tão usurário a ponto de recusar à minha filha um pedido desses, quando ela está decidida a me fazer feliz?
Ela o beijou com cerimónia.
Depois, afastou-se. Estava ansiosa por contar a novidade a Eleanor.
Agora os preparativos para as bodas reais, que aconteceriam no dia 13 de abril, estavam acelerados.
Joanna estava encantada por ser a primeira princesa a se casar. Não se sentia apreensiva. Iria viver na Inglaterra; ficaria perto da família; o noivo era velho, mas estava encantado com a juventude dela, que não o teria impressionado tanto se ele fosse da mesma idade que ela.
Ela comentou com Eleanor que o casamento era um grande empreendimento, se um dos parceiros fosse tão velho que não pudesse ter tanto tempo mais de vida tinha-se a chance de uma segunda escolha e se uma princesa tivesse se casado uma vez para agradar à família, era muito justo que no segundo casamento ela fizesse o que quisesse.
Eleanor ficou horrorizada, mas Joanna, com base na sua experiência superior, conheceria muito melhor o mundo.
Deliciava-se em ser o centro das atrações. Adam, o ourives de seu pai, fizera para ela uma magnífica touca decorada com rubis e esmeraldas. Um belo vestido estava sendo feito para ela. O noivo não era, em absoluto, desagradável. Era velho, é verdade; mas irradiava poder, e o fato de que até o pai dela desconfiava dele provocava a sua admiração. Mas acreditava que poderia dominá-lo. Ele já dava sinais de que seria assim. Sim, um marido idoso por uns tempos, e depois um homem de sua própria escolha, se ela achasse o casamento de seu agrado a ponto de querer sair para um segundo.
Ela consolava Margaret, que se sentia menos feliz com relação ao seu casamento, que estava próximo. E não era de admirar. João de Brabant não era nenhum conde de Gloucester velho e apaixonado. Nada disso. O que iria ele querer de uma jovem de quinze anos quando, se se fosse acreditar nos rumores, tinha as mais vistosas amantes do seu país? Pobrezinha da Margaret! Que sorte, a de Joanna!
O dia do casamento chegou. Seria uma cerimónia íntima, realizada na abadia de Westminster pelo capelão do rei, mas depois começariam os banquetes e as comemorações. O povo saudava e se divertia nas ruas, bebendo o vinho tinto que saía dos chafarizes. Ele estava satisfeito por não se tratar de um casamento com um estrangeiro, e os mais astutos gostavam de ver o mais poderoso dos barões unido ao rei por intermédio de sua bela filha.
Joanna sempre fora atraente, e havia quem achasse que sua vitalidade lhe dava uma vantagem, no que se referia à aparência, sobre Eleanor, que era mais bonita. Agora, ela brilhava com uma nova beleza que impressionava a todos que a contemplavam e era fonte de grande prazer para o marido.
Estava muito ansiosa por ver as propriedades dele, e ele estava ansioso por mostrá-las, mas o rei e a rainha queriam que ela ficasse na corte para tomar parte nas comemorações do casamento de Margaret.
Seria em julho.
- É só um pouco mais de um mês - disse a rainha. - Seu pai e eu queremos muito que você esteja aqui.
- Um marido e uma mulher devem ficar a sós nas semanas seguintes ao casamento - disse Joanna, em tom de recato.
- Minha querida filha, vocês terão tempo para isso.
A rainha, conhecendo o amor da filha pelos cavalos, deu-lhe cinco belos corcéis brancos para a sua carruagem, na qual ela passearia por Londres e desfrutaria da admiração de todos os que a vissem.
Mas ela gostava de falar sobre as propriedades do marido. Estava ansiosa por visitá-las. Além do mais, queria fazer um teste para ver se ele seria capaz de desafiar a vontade do rei e da rainha para agradá-la.
Gilbert de Clare, o recém-casado conde de Gloucester, explicoulhe que assim que o casamento de Margaret acabasse, ela iria para onde quisesse.
- Mas eu quero ir agora.
- Eu também, querida.
- Então, Gilbert, por que não vamos? - Os olhos dela cintilaram. - Vamos escapulir... nós dois. Ah, nós devíamos ficar a sós, sabe? É muito justo.
Gilbert insistiu que não seria prudente desobedecer a vontade do rei.
Aquilo fez com que ela ficasse ainda mais decidida. Ela pensara, disse com um certo ar de tristeza, que era a ela que ele queria agradar... não ao rei.
Ele queria. Estava ansioso por agradá-la, mas o rei...
- Meu pai vai me perdoar. Ele sempre perdoa.
Ela conseguiu o que queria, como decidira. Os dois fugiram um dia de manhã cedo, antes de a corte acordar.
Foi uma grande aventura cavalgar a manhã toda com o marido ao lado, tão intoxicado de amor por ela que estava pronto a afrontar o rei. Não que houvesse algo de dócil nele. Não era a primeira vez que afrontara o rei. Na verdade, aquele era exatamente o motivo pelo qual ele conquistara a sua princesa.
Aquilo dava a ela uma sensação maravilhosa de poder, e era disto que Joanna gostava.
O rei ficou zangado. Sabia que aquilo era um gesto de desafio da filha e que Gilbert agira daquela maneira para agradá-la. Num súbito acesso de raiva, ele disse que os trajes que ela usara no casamento seriam confiscados. Ele sabia o quanto ela adorava seus vestidos e ornamentos.
Na cidadela do castelo do marido em Turnbridge Wells, Joanna estalou os dedos. Tinha um marido rico e apaixonado. O que ela quisesse - sedas finas, veludos, brocados e jóias, e cavalos para sua carruagem -, era só pedir.
Êxodo
AGORA QUE ESTAVA de volta, Eduardo ficou ativamente envolvido em problemas do Estado. Ele casara Joanna com o chefe dos barões; precisava, agora, dedicar seus pensamentos à união da Inglaterra com a Escócia, que ele planejava fazer por meio do casamento de seu herdeiro com a pequenina rainha da Escócia, que ainda estava morando com o pai na Noruega; havia outro assunto que parecia da máxima importância para ele e dizia respeito aos seus súditos judeus.
Depois da conquista normanda, a Inglaterra tornara-se próspera, o que atraiu os judeus, que pouco depois começaram a se instalar em grande quantidade por todo o país. Especializaram-se nas atividades bancárias e na agiotagem e, como eram espertos e ativos com um génio para os negócios, em pouco tempo ficaram muito ricos. Além disso, eram infiéis, fato que as pessoas alegavam para usar contra eles, mas na verdade era a riqueza deles o motivo da inveja. Os comerciantes e cidadãos das grandes cidades gostariam de vê-los expulsos do país; espalhavam-se histórias sobre eles; era fácil incitar um ódio contra eles que pudesse resultar em arruaças, cujo propósito principal era saquear os seus pontos comerciais e roubar-lhes os pertences. Havia um boato favorito que era espalhado de vez em quando e que os acusava de raptarem meninos cristãos e crucificarem-nos como certa vez haviam crucificado Cristo.
Aquilo era, em geral, uma preliminar para as arruaças. Havia uma exigência de que fossem expulsos do país, mas uma boa proporção do dinheiro deles ia para o rei, em geral através de multas ou subornos, e se eles não vivessem mais na Inglaterra, o erário sofreria uma grande perda. Para Henrique III, eles tinham sido uma fonte de renda e seu amor pelo dinheiro e a necessidade de satisfazer as exigências insaciáveis de sua mulher significavam que ele pouco agia contra os judeus.
Eduardo era muito mais contrário a eles do que seu pai tinha sido. Ele não aprovava o empréstimo de dinheiro a altas taxas de juros, um dos principais métodos de ganhar dinheiro. Era fervoroso quanto à sua religião e tinha uma grande aversão a todos os que não fossem cristãos. Ele mesmo vivia em dificuldades financeiras e fora obrigado a levantar grandes empréstimos, e o fato de ter de pagar, devido ao valor do juro pedido, mais do que tinha levantado, deixava-o irritado.
As leis contra os judeus tornavam-se cada vez mais severas no seu reinado - tanto assim, que um número muito grande deles fora obrigado a encerrar as atividades.
Não eram um povo que admitisse derrota e em pouco tempo encontravam outros meios de ganhar dinheiro. Um deles era conhecido como cercear a moeda, o que significava que o ouro e a prata eram raspados de tal maneira das moedas, que raramente se percebia, mas o metal retirado das moedas podia ser vendido. Isso era um crime punível com enforcamento e, como a execução era acompanhada do confisco de bens, uma vez mais ajudava o erário.
Eduardo se mostrava profundamente preocupado com o problema judaico. Sabia que o povo ficaria satisfeito ao vê-los expulsos do país. A falta das multas impostas sobre eles seria sentida. Mas ele sabia que devia haver um problema contínuo entre eles e os cidadãos cristãos e, naquele momento, os rumores de atrocidades por parte dos judeus estavam aumentando. Ele não queria problemas na capital. Estava pensando seriamente em expulsar os judeus.
Quando foi visitar a mãe em Amesbury, ela o recebeu com grande satisfação. Ficou chocado ao ver que não estava bem de saúde, muito embora mentalmente continuasse ativa como sempre e quisesse ouvir tudo o que acontecera com ele durante a sua estada no exterior. Estava encantada com o casamento de Joanna.
- Ela vai manter Gloucester em ordem - disse ela, com um muxoxo. Embora a princesa Eleanor, a mais velha, fosse a sua favorita, ela dedicava uma grande admiração à agitada Joanna.
- E agora, chegou a vez de Margaret - continuou ela. - Uma pena, ela ser tão criança. Ouvi dizer que Brabant é mulherengo.
- Sem dúvida vai melhorar com o casamento.
- Esperemos que sim.
A rainha-mãe estava tristonha. Odiava ficar isolada dos acontecimentos. Ansiava pela volta daquela época em que fora o centro da família e jamais se recuperaria da perda do marido bajulador. Eduardo era um bom filho, mas fazia as coisas à sua maneira. Ela queria ser jovem outra vez, e que as pessoas dependessem dela.
- Ouvi rumores de que os judeus estão aprontando novamente - disse ela.
- Rumores... aqui, em Amesbury?
- Recebo visitas, e elas sabem que se quiserem me agradar devem trazer-me notícias do seu reino. Cercear a moeda... crucificar meninos cristãos.
- O primeiro, sim - o segundo... ora, mamãe, a senhora sabe que isso não é verdade.
Os olhos da rainha-mãe faiscaram. Ela estava pensando em como Henrique e ela tinham tomado dinheiro emprestado aos agiotas judeus e nos juros que haviam exigido.
Sempre afirmara que eles deviam ter dado, por sua livre e espontânea vontade, parte de sua riqueza ao rei e à rainha, pelo privilégio de viverem naquele país. Ela sempre os odiara.
- Você devia expulsá-los do país - disse ela com firmeza.
- Expulsá-los! Eles são tantos!
- Mais uma razão para irem embora.
- Isto é um assunto que precisa de muita análise.
- Enquanto isso, eles são o motivo de arruaças nas cidades... estão reduzindo o valor da cunhagem...
Ele ergueu a mão.
- Eu sei disso - disse ele. - Na verdade, estou pensando em me livrar deles. Estou sendo coagido de todos os lados... Isso vai trazer uma certa perda para o erário.
- Você vai prosperar, Eduardo. Eu sei. Livre-se daquela gente, que Deus irá recompensá-lo.
Ela continuou a falar do jeito que o filho conhecia muito bem. Se fosse algo sobre o qual a decisão dele tivesse sido contrária, ouvia, delicado, já tendo tomado a sua decisão. Mas com relação aos judeus, estava preparado para prestar atenção na longa diatribe dela contra eles, o que mostrava que estava pronto a aceitar o ponto de vista dela.
Só quando falou à mãe sobre suas intenções relativas ao jovem Eduardo foi que ele conseguiu desviá-la do assunto.
- Joanna está casada; como estará em breve Margaret. É imperioso que Eduardo fique noivo. Quero que a Donzela da Noruega seja trazida para cá. Quero que ela seja criada no meu reino e, assim que for possível, o casamento será celebrado.
A rainha-mãe fez um vigoroso gesto afirmativo com a cabeça. Tinha visto o filho levar o País de Gales para o domínio inglês. Agora era a vez da Escócia, e se pudesse ser feito por uma aliança através de um casamento, seria muito melhor do que anos de horríveis lutas. O jovem Eduardo e a pequenina Donzela da Noruega precisavam casar-se.
- Você deve trazê-la para cá com urgência - disse a rainhamãe, enfática.
Mas antes de Eduardo se retirar, ela falou mais sobre a necessidade de expulsar os judeus.
Num dia quente de princípios de julho, a princesa Margaret casouse com João de Brabant.
A noiva brilhava em seu diadema e seu cinto incrustados de jóias, que o rei mandara seu ourives fazer para ela e que eram decorados com leopardos em safiras. A pequena jovem, oprimida sob o pesado vestido de samito, incrustado de jóias, estava ao lado do bem rechonchudo e espalhafatoso noivo que, embora fosse apenas uns cinco anos mais velho do que ela, já mostrava sinais de dissipação.
Eleanor era a principal ajudante da irmã, e seu vestido exibia o mesmo luxo, pois 53 belos botões ornamentais de prata tinham sido pregados nele, e ela compunha uma visão estonteante.
Eduardo, com seis anos de idade, lá estava com um séquito de oitenta cavaleiros e as pessoas perguntavam umas às outras quando seriam convocadas para presenciar o noivado dele com a pequena Donzela da Noruega.
O pesado vestido de Margaret e todas as jóias que era obrigada a carregar a deixavam cansada, e ela sentia um pouco de medo do atraente noivo que estava muito elegante em sua sobretúnica de mangas que caíam até os cotovelos e seu manto de veiros.
A rainha estava preocupada. Não andara bem durante o final da estada deles na França e prometera a si mesma que quando voltasse para a Inglaterra sua saúde seria recuperada. Sentira-se momentaneamente melhor ao voltar a ficar com os filhos, mas o cansaço retornara, trazendo dores vagas e sentia um certo desconforto físico.
Temia que pudesse não ser capaz de acompanhar o ritmo do ativo Eduardo, mas decidira firmemente não lhe dizer nada sobre seus males. Felizmente, com toda aquela agitação do casamento, nem mesmo seus parentes mais chegados perceberam que havia algo de errado com ela.
Agora, estava preocupada com Margaret. Joanna sabia cuidar de si mesma e a mais velha, Eleanor, estaria numa idade em que aceitaria um marido com serenidade - se um dia lhe arranjassem um. Mas Margaret era muito criança.
Ela insistira com Eduardo para que não a mandasse embora por enquanto e, por ser sempre indulgente quando se tratava das filhas, ele concordara. Assim, ficara combinado que o casal ficaria um pouco na Inglaterra, onde os dois poderiam acostumar-se um ao outro antes de Margaret ter de sair de casa.
Depois de encerradas as comemorações, eles iriam acompanhar o pai do noivo, o duque de Brabant, até Dover, onde iriam despedirse dele antes de ele partir para os seus domínios.
Aquilo pareceu, na medida do possível, um plano satisfatório.
Enquanto isso não acontecia, eles podiam entregar-se aos banquetes e diversões que tinham programado para o casamento da filha, e ela só podia rezar para que os rumores que ouvira sobre a vida devassa do noivo não tivessem fundamento.
Dois acontecimentos importantes vieram depois do casamento de Margaret.
O primeiro dizia respeito aos judeus. Eduardo discutira o assunto com seus barões liderados por Gloucester. Eleja havia expulsado os judeus de suas propriedades continentais, para a grande alegria dos habitantes da região. Ele sugerira fazer o mesmo na Inglaterra. Todos concordavam que aquilo seria uma boa manobra. A impopularidade dos judeus era tamanha, que parecia que Eduardo só poderia conquistar a aprovação de seus súditos ao expulsálos. Os templários estavam, agora, envolvidos financeiramente nos assuntos do país e, nos últimos anos, muitos banqueiros italianos tinham-se instalado em Londres, onde estavam assumindo os negócios que antigamente estiveram inteiramente em mãos dos judeus.
- Não precisamos dos judeus agora - disse Gloucester. E o povo aceitará mais facilmente os italianos. Eles são cristãos. Os judeus crucificaram Cristo, e isso é uma coisa pela qual jamais serão perdoados.
A rainha salientara que o próprio Cristo falara, muitas vezes, de um dever cristão de perdoar os inimigos, e Eduardo lhe explicara, delicado, que a expulsão dos judeus era tanto política quanto religiosa. "Um assunto de Estado, meu amor", dissera ele; e ela, que sempre aceitara o domínio dele, não devia discordar; de qualquer maneira, sentia-se fraca demais para contestar qualquer coisa naquele momento.
Os ministros dele eram a favor da expulsão. Os judeus tinham feito fortunas graças à Inglaterra; que fossem embora, agora, mas que deixassem uma parte do que tinham ganhado, como diziam alguns, com a exploração do povo da Inglaterra. O rei não quisera ser severo. Abominava a falta de fé cristã neles, mas tinham trabalhado muito, e ele gostaria de ser tão justo quanto possível.
Iria tomar 1/15 dos bens deles; poderiam levar parte dos bens móveis e dinheiro suficiente para cobrir as despesas da viagem. Suas casas e terras passariam a pertencer ao rei. Teriam tempo para providenciar a mudança, mas todos deveriam estar fora do país antes da festa de Todos os Santos.
O povo perseguido mostrou-se astuto até o fim. Informados de que podiam levar o que pudessem, contrataram um grande navio que subiu pelo Tamisa e no qual puderam carregar muitas coisas de valor.
Mas o mestre do navio estava decidido a fazer com que eles, como dizia ele, não tapeassem o rei e o país. Ele partiu, como combinado, mas ao chegar à foz do rio, onde ele desaguava no mar, dirigiu o navio para um banco de areia. Lá, convidou os judeus a desembarcar com ele para se exercitarem antes de deixarem a Inglaterra. Foi o que fizeram e, quando ele viu que a maré estava subindo, subiu a bordo mas disse aos judeus que eles ainda tinham um pouco de tempo e que iria avisá-los quando tivessem que embarcar.
Quando os judeus perceberam o quanto a maré estava subindo, correram para o lado do navio, mas o capitão não lhes permitiu subir a bordo.
- Vamos morrer afogados - bradavam eles.
- Não - disse o capitão. - Os seus antepassados não atravessaram o mar Vermelho? Peçam a Moisés que venha ajudá-los, a fim de que possa ser feito por vocês o mesmo que foi feito pelos seus antepassados.
Os judeus suplicavam aos berros, mas a maré subiu e o navio pôde livrar-se do banco de areia e entrar no rio. Dizia-se que aquele ponto era assombrado e que às vezes era possível ouvir os gritos dos judeus afogados.
Até o momento fixado, dezesseis mil judeus haviam deixado o país.
Os Cruzeiros da Rainha
DEPOIS DE TER CASADO duas de suas filhas e livrado o país dos judeus, os olhos de Eduardo voltaram-se para a Escócia. Suas esperanças eram muitas. Se pudesse casar o jovem Eduardo com a rainha escocesa, que agora estava na Noruega, teria conseguido muito, pois via uma era de paz em toda a ilha, e paz significava prosperidade. Poderia, então, voltar os olhos para o continente, proteger as possessões que ainda continuavam fazendo parte da Coroa e, quem sabe, talvez pudesse recuperar algumas das que seu tolo pai e seu cruel avô tinham perdido. As perspectivas para o futuro eram promissoras.
Fora uma casualidade a maneira pela qual os acontecimentos se encadearam para atender aos seus desejos.
Margaret, a Donzela da Noruega, tinha apenas seis anos de idade - poucos meses mais velha do que o príncipe Eduardo. Era uma pena os dois serem tão crianças, mas se ele pudesse levá-la para a Inglaterra e criá-la na sua corte, e se o casamento fosse realizado tão logo possível, o resultado poderia ser muito bom.
Havia uma boa regência na Escócia, instalada depois da morte de Alexandre - o avô da pequena Donzela. A mãe da menina, Margaret, morrera ao dá-la à luz; e o pai, Eric da Noruega, não passava na época, de um adolescente. Estivera muito propenso a prometer mandar a menina para Eduardo, de modo que, com a visão e a energia usuais, Eduardo conseguira uma dispensa para que os dois primos pudessem casar-se e iniciara as negociações com a Escócia e a Noruega. Acabou obtendo o Tratado de Salisbury, embora Eduardo tivesse de admitir que não deveria haver contrato algum de casamento entre as duas crianças enquanto os escoceses não tivessem dado o consentimento. Eduardo não previa dificuldades quanto a isso, desde que tivesse a menina nas mãos.
Mais recentemente, ele tivera um encontro com os nobres escoceses e eles tinham concordado que, na eventualidade de um casamento entre os dois jovens, a Escócia deveria continuar sendo um país de vida própria, separado da Inglaterra. Eduardo concordara. Ele previa o futuro em que o jovem Eduardo e a Donzela da Noruega iriam ter um filho homem que unisse os dois reinos. Ele olhava para muito longe, à sua frente.
O importante, agora, era apossar-se da Donzela da Noruega. Aquela menina de seis anos era o pivô sobre o qual girava todo o projeto.
Ele mandaria buscá-la. Graças a Deus, Eric estava disposto a deixá-la ir, embora avisasse a Eduardo que sua filha era de constituição delicada e que eles tinham tido dificuldade em criá-la. Eric achava que a viagem por mar poderia ser cansativa para ela e talvez devesse ser adiada até a primavera.
Isso era impossível. Eduardo não queria demoras. A Donzela devia estar na sua corte antes da temporada de Todos os Santos. Estava certo de que se ela não estivesse lá naquele prazo, alguns daqueles barões inquietos da Escócia poderiam tentar evitar a ida dela para a Inglaterra. A Donzela era a indiscutível rainha da Escócia mas, se não estivesse lá, haveria vários outros pretendentes ao trono. Precisava tê-la ao seu lado o mais rápido possível.
Ele mesmo foi a Yarmouth para supervisionar a adaptação do navio que deveria ir até Bergen, pegar a preciosa menina e trazê-la para a Inglaterra.
Levou a rainha com ele, pois os conselhos de uma mulher seriam úteis para o consolo da menina. Uma cabine fora preparada para ela, uma cabine bastante bonita e que daria prazer a uma garota de seis anos.
- O que acha que ela gostaria de comer? - perguntou Eduardo.
- Açúcar e passas - disse a rainha. - Eduardo gosta muito dos dois e ela tem a idade dele. Gengibre também era um dos preferidos das crianças... e nozes... oh, sim, elas gostavam muito de nozes. E as crianças adoram pão de mel, especialmente quando feito em formatos imaginativos.
E por isso o rei ordenou:
- Acrescentem isso ao estoque normal.
Ele próprio supervisionou a colocação daqueles itens a bordo e, ao lado da rainha, viu o navio partir a caminho de Bergen.
- Quando essa menina estiver em nossas mãos - disse ele, jubilante, à rainha -, eu posso prever o início de uma nova era de paz para a Inglaterra.
- Acha que todos aqueles que reivindicam o trono escocês vão entender isso?
- Baliol? Bruce? Eles têm que respeitar a verdadeira sucessão. A nossa pequenina Donzela está na linha direta de sucessão de Alexandre e de Guilherme o Leão. Quando a menina chegar, iremos recebê-la com uma cerimónia digna e com afirmações de nossa preocupação pelo bem-estar dela. Terá um lugar à sua disposição nas nossas alas infantis. Vai estudar suas lições ao lado de Eduardo.
- Estou tão contente! - replicou a rainha. - Assim, quando os dois se casarem não serão estranhos um para o outro. Espero que sejam tão felizes quanto você e eu.
- Isso é pedir bastante - replicou o rei; e percebeu, então, que ela estava mais pálida do que o normal e, talvez, um pouco magra.
- Acho que nossas viagens foram demais para você - disse ele, solícito. - Agora vamos passar uma fase mais tranquila com a família. Nossa querida filha Eleanor é uma alegria muito grande, e ainda temos Margaret conosco e Joanna não está longe, em Clerkenwell.
- É um grande prazer estar cercada pelos filhos!
Os dois cavalgaram de volta para Londres, o rei animado, e vê-lo assim fazia a rainha feliz, porque ela acreditava que se houvesse paz entre a Inglaterra e a Escócia e se a preocupação permanente com o que acontecia nas fronteiras pudesse ser eliminada, agora que o País de Gales estava sob controle, eles poderiam ficar em Westminster e Windsor e estar juntos em casa. Aquilo a deixava tão entusiasmada, que a cor voltou a brilhar em suas faces e os olhos cintilavam de felicidade, de modo que o fato de ter perdido um pouco de peso não deu para perceber e a mente do rei estava tranquila em relação à saúde dela.
Foi um grande prazer descansar em Clerkenwell e ver a querida Joanna fazer as honras de castelã e anfitriã. Ela irradiava o orgulho que sentia pela nova condição.
Já estava grávida e assumira uma nova dignidade. Dominava o marido bajulador com um olhar, e Eduardo se divertia vendo o orgulhoso Gilbert reduzido ao estado de amante estupidificado por aquela sua jovem filha dominadora e bonita.
Clerkenville, onde o rio Holeburne serpeava por entre as verdes campinas e montes cobertos de bosques, era um lugar encantador; e o fato de a cidade poder ser vista de longe aumentava o encanto.
Eduardo achava maravilhoso estarem num lugar romântico como aquele e tão perto de Londres que ele podia, caso preciso, estar lá em pouco tempo.
Eles haviam voltado a Westminster quando chegou a notícia de que o navio enviado para levar a preciosa menina para a Inglaterra aportara em Yarmouth.
- Vamos logo para Yarmouth! - bradou o rei; mas percebeu que o mensageiro estava deprimido e não conseguia encarar o rei.
- O que foi? - perguntou ele, e o alarme que sentia era óbvio. Cem pensamentos passaram-lhe como um raio pela cabeça, cada um com um aviso sobre possíveis tragédias. O primeiro foi de que os rebeldes escoceses tinham atacado o navio e estavam levando a menina para a Escócia.
Mas não se tratava disso. Aquilo era irrevogável.
- A Donzela estava muito doente, majestade - disse o mensageiro. - Quando subiu a bordo em Bergen, ficamos muito preocupados com ela. O mar estava agitado; e ela ficou muito enjoada...
- E o que aconteceu? - interrompeu o rei, impaciente.
- Majestade... a menina morreu durante a viagem. O frio... o mar agitado... foram demais para ela. Ela era muito frágil... muito delicada...
O rei afastou-se, a fúria dominando seu coração. Aquilo era o fim de um sonho que dependera da vida de uma menina debilitada.
A rainha da Escócia estava morta. Ele podia imaginar o que aconteceria naquele país indisciplinado quando recebessem a notícia. Ele teria que fazer planos para marchar até lá, bem rápido. Seu sonho de uma vitória fácil acabara.
A guerra civil ameaçava a Escócia.
Já não havia um herdeiro direto do trono. David, irmão de Guilherme o Leão, não tivera filhos; mas tivera três filhas. A mais velha e a mais moça tinham um neto vivo e a segunda filha tinha um filho.
O neto da mais velha era João Baliol, que acreditava ser o primeiro com direito ao trono. Robert Bruce, no entanto, filho da segunda filha, se julgava com mais direitos, por estar uma geração mais perto de Guilherme o Leão. O neto da filha mais nova era João Hastings, a quem Eduardo fizera um Barão das Fronteiras. Eduardo era a favor desse Hastings, mas sabia que haveria uma aceitação geral no-sentido de que Baliol e Bruce estavam na frente dele.
Os dois pertenciam à aristocracia escocesa mas eram tanto ingleses quanto escoceses, devido à criação que tinham tido. Possuíam propriedades na Inglaterra, onde Baliol era dono do castelo Bernard em Durham e, embora as propriedades de Bruce ficassem na Escócia, ele exercera a função de xerife de Cumberland. Era um homem velho, mas tinha um filho, Robert, que seria considerado um dos principais candidatos.
Eduardo percebia que sua presença se fazia necessária no norte, e preparou-se para partir logo.
Como a rainha o acompanhara à Terra Santa, ela adotara a prática de acompanhá-lo nos combates e, embora nem sempre lhe fosse possível estar no campo das batalhas, ela nunca ficava muito para trás.
Quando soube que eles deveriam ir à Escócia, ficou preocupada. Aquilo era uma decepção muito grande, depois de ela ter acreditado que iria ficar em Windsor para receber na ala infantil a pequenina recém-chegada. Significava mais do que uma decepção: era medo. Ela passara a perceber que as cansativas viagens eram demais para ela e que estava ficando exausta devido ao último esforço.
Ter explicado isso a Eduardo, naquele momento, teria aumentado as preocupações dele, de modo que ela prosseguiu com os preparativos para acompanhá-lo.
Eduardo despediu-se dela dizendo que em breve os dois estariam juntos, e ela dedicou-se aos preparativos.
Não demorou muito e a rainha ficou pronta e começou a viagem para o norte. A umidade do outono parecia penetrar-lhe os ossos, aumentando a rigidez dos movimentos. Sentia-se cansada demais para montar a cavalo e foi carregada numa liteira, o que reduziu muito o ritmo da viagem.
Sua filha Eleanor insistira em acompanhá-la, pois estava ciente da crescente fraqueza da mãe, e ficou evidente, à medida que elas avançavam, que ela iria ter uma crise daquela febre que muitas vezes a atacava no outono.
- Majestade - disse a princesa -, acho que devíamos ficar um pouco em Herdeby, até cessar sua febre.
- Seu pai vai ficar imaginando o que foi que nos fez demorar.
- Ele não iria querer que viajássemos enquanto a senhora estivesse assim tão doente.
- Não é nada - disse a rainha. - Já tive isso antes.
- Mesmo assim, acho que a senhora deveria descansar aqui um pouco.
A rainha abanou a cabeça, mas quando chegou a hora de seguirem viagem descobriu que não podia se levantar da cama.
A princesa estava muito preocupada. Foi a um dos mensageiros e disse-lhe que fosse a toda velocidade procurar o rei e dizer-lhe que ela achava que a rainha estava muito doente.
O homem partiu imediatamente, e a princesa voltou para o lado da mãe, porque insistia em cuidar pessoalmente dela.
- Ora, minha filha querida - disse a rainha -, quer me fazer ficar uma inválida?
- A senhora está doente - replicou a princesa -, e eu vou tratar da senhora para fazê-la recuperar a saúde.
Até mesmo enquanto ela falava, sua voz tremeu um pouco. Fazia algum tempo que sabia que a rainha estava ficando cada vez mais fraca. Vira a deterioração gradativa que a mãe fizera um esforço enorme para esconder de seu pai.
Era por isso que o recado que mandara ao pai informava-o de que a rainha estava muito, muito doente, e que a presença dele em Herdeby poderia ser necessária.
Claro que ele não podia deixar a Escócia. Estava envolvido em assuntos importantes, cujo resultado poderia significar a guerra contra os escoceses. Fora uma infelicidade a Donzela da Noruega ter morrido. Se ela tivesse vivido, seu pai não teria tido que ir à Escócia; teria ficado com sua mãe; esta não teria saído naquela longa viagem. Oh, teria sido tão diferente!
Mas no íntimo, a princesa sabia que a mãe estava ficando cada vez mais fraca, e isso vinha ocorrendo havia algum tempo. Aquela terrível febre que a atacava periodicamente solapara-lhe as forças e mesmo quando se recuperava parecia ter ficado um pouco mais fraca.
Ela sentou-se ao lado da cama da mãe.
- Fico contente por seu pai não saber... - sussurrou a rainha. A princesa não disse que mandara avisá-lo sobre a gravidade do estado de saúde dela. Aquilo só iria deixá-la preocupada. Iria deixá-lo preocupado, também, lá na Escócia, onde aquela ameaça de guerra teria de ser dissipada, se possível.
Poucos dias depois de enviada a mensagem, o estado da rainha piorou. A princesa ficou chocada quando entrou no quarto da mãe. O rosto outrora bonito, estava pálido, os belos olhos estavam um pouco embaciados.
- Minha filha - sussurrou a rainha - é você?
- Querida mãe, estou aqui. Estarei sempre aqui, quando precisar de mim.
- Você tem sido uma filha muito boa. Ele tem tanto orgulho de você... Ele gosta muito de você... mais do que de qualquer um deles... Às vezes, eu acho que mais do que de qualquer outra pessoa.
- A senhora sempre esteve em primeiro lugar para ele, mãe querida.
Ela deu um sorriso fraco.
- Eu tinha muito orgulho... Eleanor... orgulho por ele me amar. Ele é um grande homem, um grande rei. Existem poucos iguais a ele...
- Por favor, mamãe, não fale assim... como se...
- Como se eu estivesse indo. Eu estou indo, minha filha. Eu sei. Já faz algum tempo que sei que estou ficando cada vez mais fraca. Eu escondi dele... Mas agora... Não posso esconder mais. Minha vida está se esvaindo...
A princesa encostou a cabeça na cama, para que a mãe não visse as lágrimas.
Numa voz abafada, porque não era mais possível fingir, disse:
- Preciso chamar um padre.
- Daqui a pouco, filha querida. Ainda não. Esta será a nossa última conversa. A vida foi boa... muito boa. Eu o amei desde o momento em que o vi. Não acreditava na minha boa sorte... e então vocês todos nasceram... eu amei a todos. Meus filhos... minhas queridas meninas... meu pequeno Eduardo. Deus abençoe a todos vocês. Agora, tenho de ir enfrentar o meu Criador...
- A senhora não tem com que se preocupar, querida. Na sua vida, não houve nada a não ser bondade.
- Eu pequei, filha. Há atos que eu preferiria não ter cometido. Os judeus...
- A senhora não deve se preocupar com eles. Eles não lhe dizem respeito.
- Espero que tenha sido grande o número dos que não sofreram muito. Acho que sofreram. Serem expulsos de suas casas...
- A culpa não foi sua, mamãe.
- Eu gostava demais de bens terrenos. Acumulei tesouros na Terra. Foi porque antes de me casar com Eduardo eu tinha muito pouco. Fiquei, então, indefesa diante de tudo que recebia. Sim, eu dava muito valor aos bens terrenos. Algumas de minhas propriedades... você sabe, as que passaram para minhas mãos através dos agiotas judeus. Você sabe que me uni a eles para tirar as propriedades dos cristãos que estavam em dificuldades e tomavam dinheiro emprestado... Aquilo estava errado, eu gostaria de poder repassar minha vida...
- Nenhum de nós pode fazer isso. E se a senhora gostou muito de bens preciosos e de dinheiro, também amou seu marido e seus filhos. O povo a adorou. Ele nunca a odiou como odiou a nossa avó. Se a senhora trabalhou com os judeus para obter o pagamento dos que tinham levantado dinheiro emprestado, não deve culpar-se por isso agora. Se não tivessem levantado os empréstimos, nunca teriam ficado em dificuldades. A senhora confessou esse pecado. Agora, pense em todo o bem que trouxe ao mundo. Que ficou ao lado de seu marido... e dos filhos...
- Você é um consolo para mim, filha.
A princesa curvou-se sobre a mãe e beijou-lhe a testa fria e úmida.
Percebeu que estava na hora de mandar chamar o padre.
Eduardo estava se aproximando da fronteira escocesa quando o mensageiro chegou.
- De minha filha? Da rainha? Quais são as notícias?
- Majestade - disse o mensageiro -, a princesa quer que saiba que a rainha está seriamente doente e que ela tem a triste impressão de que ela vai morrer.
A rainha, doente! Para morrer!
Ele sentiu como se tudo o que construíra estivesse desabando à sua volta.
Problemas na Escócia... mas o que eram problemas na Escócia, quando a sua rainha estava para morrer?
Ficou calado um longo tempo, pensando nela. Eram tantas as recordações! Todas caras a ele.
Um de seus cavaleiros entrou em sua tenda e, vendo-o atordoado, disse:
- Majestade, o que está sentindo? Ele respondeu, então:
- É a rainha. Ela está doente... talvez morrendo. Nós vamos voltar.
- Majestade, os escoceses...
- Vamos cavalgar a toda velocidade até Herdeby - disse o rei, com firmeza.
Noite adentro... os quilómetros passavam devagar. Como demorava! Ele estava desvairado.
Pensava nela. Sim, tantas recordações... A garotinha que tinham levado para ele. "Ela vai ser sua esposa." Como era submissa! Como era dócil! Como era fácil agradá-la! A pequena princesa vinda de Castela. E quando crescera, ficara bonita. A única vez em que ela o desafiara fora quando dissera que iria com ele na sua cruzada. "A mulher e o marido devem ficar juntos", dissera ela. Graças a Deus, ela fora. Ele tinha certeza de que teria morrido por causa da faca envenenada daquele assassino feroz se ela não tivesse estado lá. Ela chupara o veneno do ferimento. Os médicos haviam dito que fora o corte da carne gangrenada que lhe salvara a vida. Mas no fundo do coração ele sempre acreditara que aquilo se devia ao ato de Eleanor.
Depois, o nascimento dos filhos. Como ela ficara triste por ser de novo menina! Tantas meninas! Ele amava todas. Suas adoradas filhas... suas e de Eleanor.
E agora, ela ia morrer.
Não podia ser. Sua filha estava com medo porque a mãe estava doente. Ela não ia morrer. Eleanor jamais o abandonaria. Ele precisava dela. Não conseguia imaginar a vida sem ela. Sempre, nas suas viagens, ela estivera com ele... no auge da luta, ela nunca ficara muito longe.
Iria tomá-la nos braços. Iria dizer: "Minha rainha, meu amor. Você precisa ficar boa... para mim."
Por isso, varar a noite. Como era longe!
A filha o recebeu. O rosto dela estava pálido, os olhos refletiam tragédia.
Ele tomou-a nos braços. Sua filha adorada, a mais amada de todos os seus filhos.
- Minha adorada...
Ela não conseguiu falar. Apenas abanou a cabeça. E então ele compreendeu.
Entrou na câmara da morte. Olhou para ela, ali estirada, branca e imóvel... e bela. Sempre fora bonita em vida... e na morte.
Ele se ajoelhou junto à cama.
- Tarde demais - sussurrou. - Tarde demais para vê-la viva, dizer a ela uma vez mais o que ela significava para mim. Se ao menos eu pudesse trazê-la de volta. Eu daria qualquer coisa... qualquer coisa...
A conquista do País de Gales, o próximo conflito com a Escócia... Naquele momento, nada significavam, porque Eleanor estava morta.
- Majestade - disseram -, temos que voltar para a Escócia. Ele abanou a cabeça.
- Meu lugar é ao lado dela.
- Majestade, a rainha está morta.
Ele deu as costas. Não podia falar. Estava mudo em seu sofrimento.
Eu devia ter ficado ao lado dela. Nunca devia ter deixado que ela morresse sem mim. Eu deveria ter dito a ela, bem no final, o quanto ela significou para mim.
Claro que ela sabia. Mas Eduardo queria que ela ouvisse outra vez. Queria implorar-lhe que não o deixasse. Dizer o quanto ela significava para ele.
Mas ela se fora, e agora seu dever era enterrá-la. Estaria ao lado dela na viagem dela até Westminster. Escócia. Ele não se importava com o que acontecesse na Escócia. Baliol; Bruce; Hastings. Que viessem com suas reivindicações. Não conseguia pensar neles porque Eleanor, a sua querida rainha, estava morta.
O rei isolou-se com sua dor. Não queria falar com ninguém, a não ser com a filha. Aqueles que se preocupavam com ele ficaram contentes por ela estar lá. Só a filha poderia consolá-lo.
- vou homenageá-la - disse à filha. - O país inteiro deverá chorar a sua perda. Vão saber que perdemos uma boa rainha.
- Eles sabem, papai. Todo mundo sabe.
- Irei com ela até Westminster e ela vai ficar em Westminster perto de meu pai. Eu gostava dele quase tanto quanto dela. É justo que os dois fiquem juntos.
Mandou que a rainha fosse embalsamada e, depois que isso foi feito, partiram em sua lenta viagem até Westminster.
O rei ordenou que um cruzeiro fosse erguido em Lincoln e em cada lugar em que a procissão parasse para descansar deveria ser erguido um cruzeiro para fazer com que as pessoas se lembrassem de sua adorada rainha.
Em Grantham, Stamford, Geddington, Northampton, Stony Stratford, Woburn, Dunstable, St. Albans, Waltham, West Cheap e, o último, perto de Westminster. Este último foi o mais bonito de todos, e as pessoas passaram a chamá-lo de cruzeiro da Chere Reine.
À medida que a procissão se aproximava de Londres, os principais cidadãos saíam para ir ao encontro dela. Usavam capuzes pretos e mantos de luto e cantavam um canto
fúnebre, enquanto o cortejo passava.
E assim enterraram a rainha, e as pessoas se impressionaram com o amor que o rei tinha por ela, pois continuou a pranteá-la. Mandou que uma estátua fosse feita e colocada sobre o túmulo dela. A estátua foi feita em bronze e mostrava a rainha em toda a sua beleza, com os belos cabelos caindo por baixo do diadema incrustado de jóias que estava sobre a cabeça.
O rei fez doações à abadia de Westminster e mandou rezar missas pela alma da rainha. Mandou que nunca se deixasse que as lamparinas de cera colocadas em torno do túmulo se extinguissem e separou uma quantia em dinheiro com esssa finalidade.
Pessoas iam ver o magnífico túmulo esculpido em mármore cinza de Petworth, no qual estavam gravadas as torres de Castela e os leões de Leão.
Os cruzeiros eram um monumento constante à memória dela, e o lugar em que o último cruzeiro fora erguido passou a ser chamado por um nome que a homenageava. Chère Reine Cross, que pouco depois ficaria conhecido como Charing Cross.
Joanna Desafiante
O REI ESTAVA constantemente com a filha mais velha. Só ela podia consolá-lo. Os dois conversavam sobre a rainha, sobre o quanto ela fora boa e como eles não tinham reconhecido isso enquanto ela vivera. A rainha fora muito discreta, pensando apenas no bem da família, e eles tinham aceitado o desprendimento dela como parte de suas vidas e, com isso, não haviam dado a devida importância.
Gloucester e Joanna saíram de Clerkenwell e foram até Westminster, e os quatro conversaram sobre o que a perda da rainha significava para eles.
Gloucester disse ao rei que ele poderia sufocar sua tristeza dedicando-se por inteiro aos seus deveres de rei. Havia o caso da Escócia, que não ficara menos grave com a morte da rainha.
O rei concordou. Devia tirar a si mesmo da sua tristeza. Precisava continuar aquela jornada que fora interrompida.
Joanna, agora dando sinais mais do que evidentes de que estava grávida, tendia a tratar a irmã com condescendência. Na qualidade de condessa de Gloucester, casada com o mais importante barão do país, rica, idolatrada pelo marido e estando para ser mãe em breve, ela fazia Eleanor achar que estava perdendo algo na vida.
Quando ficaram a sós, Joanna discutiu os prazeres da vida de casada.
- Pode acreditar - disse ela -, nosso pai, daqui a pouco, vai estar à procura de uma esposa.
- Nosso pai! Ele jamais faria isso.
- E por que não?
- Ele era dedicado à nossa mãe.
- Minha querida irmã, como você sabe pouco a respeito do mundo! Claro que ele era dedicado à nossa mãe. Ele a amava. Mas ela morreu. Ele não está velho. Vai querer uma mulher, isso eu lhe digo. Vai querer filhos.
- Ele já teve doze e ainda somos seis vivos. Joanna, você acha que ter tantos filhos foi o que a matou?
- Ela jamais se preocupou com gravidez.
- Não, porque achava que era o seu dever e que devia morrer fazendo aquilo. Ela sabia como era grave o seu estado e tentou esconder de nós. Oh, Joanna, nosso pai jamais poderia arranjar outra esposa.
- Dê tempo a ele - disse a sábia Joanna. - Posso apostar que dentro de pouco tempo haverá comentários e o nosso pai será persuadido a se casar de novo. Ah, você não está gostando. Querida irmã, você não deve dedicar-se com tanta intensidade ao nosso pai. Você precisa de um marido. Eu lhe garanto que se encontrar o homem certo, a vida de casada será muito boa.
Eleanor também começava a pensar assim. Já não era mais jovem. Vinte e seis anos de idade. Ainda havia tempo para se casar e ter filhos. Joanna estava certa. Ela precisava de um marido. Mas estava noiva de Alfonso de Aragão. Ela não pretendia ir para Aragão - e seu pai também não queria que ela fosse. Ele não gostava de Alfonso. Mas a filha precisava enfrentar a infeliz realidade de que tinha sido prometida a ele e que aquilo correspondia a um noivado. Se ela se casasse com qualquer outra pessoa, precisaria, primeiro, de uma dispensa do papa, e isso poderia provocar problemas com Aragão, que era um país importante demais para se entrar em desavença com ele.
Tinha de pedir que se abrissem negociações com Aragão ou convencer-se de que para ela não haveria casamento.
Consolou-se confortando a irmã Margaret, que ficou muito contente quando o marido voltou para Brabant sem ela. Ele estava voltando, disseram, para receber as congratulações dos súditos de seu pai pelo casamento, mas era evidente que não se sentia mais infeliz ao deixar a esposa do que ela se sentia ao vê-lo partir.
Quanto ao rei, a ligação tinha sido feita, de modo que o lado político fora atendido. Ele jamais quisera separar-se de nenhuma das filhas, de modo que Margaret poderia ficar na sua corte o tempo que fosse possível segundo as convenções sociais.
Vendo o casamento de Margaret, Eleanor ficava contente por ser solteira. Só quando Joanna chegou alardeando as vantagens que passara a ter, ela ficou em dúvida.
Eduardo tentou desviar o pensamento de sua dor e examinar a questão escocesa.
Reuniu os ministros e lembrou-lhes que aquele problema era da máxima importância para eles.
Um deles sugeriu que talvez o rei pudesse reduzir a Escócia à mesma situação a que reduzira o País de Gales.
Ele abanou a cabeça.
- Não é tão fácil assim, meu amigo. Llewellyn e Davydd revoltaram-se contra mim. Foram capturados e receberam o castigo justo. com o desaparecimento deles, lá se foram os pretendentes ao trono. Na Escócia, veja quantos pretendentes existem. Há os três principais e, se fossem eliminados, podemos estar certos de que haveria outros. Teríamos de nos envolver em guerras caras que durariam muitos e muitos anos. Você sabe como é difícil lutar naquelas terras montanhosas e conhece a violência com que os homens irão combater naquilo que consideram ser um território que lhes pertence. Não. O que pretendo é fazer com que eles escolham o governante mas que reine sob o meu controle.
Por isso, ele iria continuar com a viagem que fora interrompida pela morte da mulher. Iria convocar uma conferência e comunicaria aos escoceses que eles deviam vassalagem a ele, como soberano deles. Se reconhecessem aquilo, teriam liberdade para escolher seu próprio rei entre os pretendentes que reivindicavam a coroa.
Mas primeiro ele teria de ser reconhecido por eles como seu soberano.
A dor pela perda da rainha foi um pouco atenuada pela ação e, enquanto cavalgava em direção ao norte, Eduardo concentrou de tal maneira o pensamento na questão escocesa, que descobriu que só de vez em quando tinha tempo para recordar.
Convocara os lordes da Escócia para se encontrarem com ele em Norham, e lá começaram os procedimentos.
Eduardo estava ansioso por provar aos escoceses que, nos últimos anos, a Escócia vinha prestando vassalagem aos reis da Inglaterra.
Os lordes escoceses, no entanto, rejeitaram aquilo, ao que Eduardo se levantou e, de pé ali diante deles, mais alto do que todos, com a fisionomia carrancuda e a voz em tom correspondente, bradou:
- Por são Eduardo, vou querer o direito devido ao meu reino e à coroa da qual sou o guardião, ou morrerei tentando consegui-lo.
O rei da Inglaterra possuía uma qualidade que inspirava uma admiração respeitosa. Aos escoceses que observavam, parecia que era dotado de poderes sobrenaturais.
Irradiava uma magia que chegara até ele através de seu grande ancestral, o Conquistador. Ele era outro conquistador. O Coração de Leão também tivera aquela magia. Henrique II tivera um pouco. Ela jamais deixava de implantar o medo no coração de quem a contemplava.
Poucos dias depois, quando a assembleia estava reunida, os escoceses reconheceram a superioridade do rei e disseram estar prontos a prestar-lhe vassalagem.
Eduardo ficou contente. Eles poderiam, então, escolher qual dos pretendentes deveria ser o rei deles.
A questão deveria ficar a cargo deles.
Joanna e o marido tinham viajado para as propriedades dele em Wynchecombe, perto de Tewkesbury, para que o filho pudesse nascer lá.
O conde estava ansioso por satisfazer todas as vontades de sua bela e jovem esposa, e Joanna estava em seu elemento. Tinha certeza de que teria um menino. Ninguém podia negar coisa alguma a Joanna... nem mesmo Deus.
Mimada e adorada, ela se preparou para recolher-se ao leito. Fazia dezenove anos que ela nascera na cidade de Acre. Agora, estava tendo seu primeiro filho. Seria muito diferente de sua chegada ao mundo. Enquanto jazia ali à espera e sentindo os alarmes e desconfortes preliminares, dedicou um momento para pensar na mãe deitada naquela terra quente e árida, importunada pelas moscas e insetos ainda mais irritantes, sentindo falta dos confortos existentes em seu palácio inglês.
Aquilo era diferente. A cama luxuosa; o marido ansioso; inúmeros criados.
O destino parecia decidido a ser bom para Joanna. Os trabalhos de parto não foram longos, e ali, quase antes que eles pudessem expressar alguma esperança, estava a criança. Ela ouviu o choro e sussurrou:
- O que é?
- Um menino, senhora. Um encantador e saudável garoto. Claro. Ela sabia que seria assim. Nada lhe poderia ser negado. O marido veio e ajoelhou-se junto ao leito. Ela sorriu com ar triunfante. Era como se ele estivesse fazendo uma adoração num santuário.
- Minha adorada - murmurou ele -, o que posso dizer...
- Ficou contente?
Uma pergunta desnecessária, mas ela queria ouvir outra vez as expressões de gratidão; queria que ele agradecesse aos céus, como fazia desde que os dois se casaram, sua bela, adorável e insuperável esposa.
Ela tocou delicadamente a mão dele.
- Vamos dar a ele o nome de Gilbert - disse ela, gentil. Em homenagem a você.
O rei precisava, é claro, ir ver o primeiro neto. Fez uma visita em meio à sua volta da Escócia para Westminster.
Pegou o jovem Gilbert no colo, andou com ele pelo quarto, ficou impressionado com as mínimas perfeições do menino e sentiu-se mais feliz do que se sentira em qualquer outra ocasião desde a morte de Eleanor.
Enquanto ele se achava em Wynchecombe, chegou um mensageiro do convento de Amesbury para dizer-lhe que sua mãe estava muito doente e pedia para vê-lo. Era necessário que ele fosse a toda velocidade.
Dessa vez, estava decidido a não chegar tarde demais e, quando chegou a Amesbury, foi direto para o quarto da mãe. Os olhos dela se animaram ao vê-lo. Estava muito mal, percebeu o rei logo e se entristeceu. Aquilo era cruel. Perdera a esposa e, agora, ia perder a mãe. Já estava esperando aquilo, pois ela jamais teria concordado em isolar-se do mundo enquanto não estivesse bem convencida de que seu fim estava próximo. Mesmo assim, uma previsão daquelas não atenuava o golpe.
- Oh, Eduardo - disse ela -, que prazer você ter vindo. Eu estou indo... finalmente. Sabe, faz dezenove anos que perdi seu querido pai.
- Sei disso muito bem - disse Eduardo. - É o mesmo período em que venho reinando.
- Oh, Eduardo, meu filho, que vida boa nós tivemos juntos, seu pai e eu! Isso é muito raro, e você e sua querida mulher... Agora que ela se foi... oh, Eduardo, compreendo bem a sua dor. Ela foi uma boa mulher... raramente as mulheres são tão boas assim. Você teve sorte na escolha que fez, meu filho, com eu tive na minha.
- Mamãe, eu lhe peço...
O rei estava tão emocionado, que teve medo de cair no choro.
Ela sabia disso.
- Não tenha medo de mostrar seus sentimentos à sua família, meu filho. Seu pai nunca teve. Oh, ele era um grande e bom homem... muito caluniado, nunca apreciado pelo povo... Eles apreciam você, Eduardo. Sim, acho que eles o amam... e amavam a rainha. E agora você é um grande rei. Muita gente diz isso, Eduardo. Você é o rei de que o país precisava... depois de seu pai e de seu avô. Você é forte, um pouco enérgico, talvez. Mas é disso que eles precisam, dizem. Eu me lembro de quando você nasceu, meu filho. Que alegria! Uma criancinha forte... de pernas longas desde o começo. Pernas Longas. Seu pai gostava de ver as pessoas chamarem você assim. Como eu sofria quando você ficava doente! É muito estranho que você fosse ser um menino fraco. Mas nós cuidamos muito de você. Quantas vezes eu mesma tomei conta de você! Não admitia outra pessoa perto de você. Eduardo. Eduardo, meu filho.
Ele se ajoelhou junto à cama e tomou-lhe uma das mãos.
- Mãe querida, a senhora foi muito maravilhosa para todos nós. A senhora fez a nossa família aquilo que ela foi. Éramos muito felizes e Eleanor e eu tentamos seguir o seu exemplo, e conseguimos. Nossos filhos sempre foram felizes onde viviam.
Ela confirmou com a cabeça.
- Isso vale muito... vale qualquer coisa... Eu adorava viver bem... talvez demais, diriam alguns... Adorava terras e bens, jóias... Nós éramos pobres, na Provença, e quando vim para a Inglaterra foi como se tivesse descoberto riquezas acima daquelas com as quais eu sonhava. Talvez eu tenha gostado demais delas... Mas eu sempre soube que o verdadeiro tesouro era o amor de seu pai e de vocês, os filhos. Minha verdadeira felicidade estava em vocês. E quando seu pai morreu... eu tive vontade de ir com ele... e é isso que vou fazer agora... dezenove anos depois.
- Nós não poderíamos ter vivido sem a senhora esses anos todos, mãe querida.
- Você me consola. Eduardo, há uma coisa que preciso dizer... É o seguinte. Você vai se casar de novo?
- Jamais haveria outra mulher para mim - disse ele.
- É o que parece agora, mas isso vai mudar. Eduardo abanou a cabeça.
- Você terá o seu dever para com o país.
- Eu tenho um filho.
- Só um.
- Eduardo é uma criança saudável.
- É sempre prudente um rei ter mais de um. Você vai ver, meu filho.
Mas Eduardo não concordava.
Ela dirigiu ao filho um sorriso delicado. E seus pensamentos desviaram-se para a época da infância dele. Henrique estava ao lado dela. Os dois tinham amado muito o belo filho. Um amor partilhado... Oh, Henrique, pensou ela, trazida repentinamente de volta ao presente. Estou indo ao seu encontro, agora.
Eduardo estava com a rainha-mãe quando ela morreu, pois não quis sair de junto de sua cama.
Sentiu-se afogado na dor, porque em menos de um ano perdera suas adoradas esposa e mãe.
Precisava voltar logo para a Escócia, mas a mãe devia ser embalsamada em Amesbury e um imponente túmulo deveria ser preparado. O coração dela, ele levaria consigo para Londres.
Havia muita coisa para ocupar a mente de Eduardo, e isso ajudou a afastar o pensamento da perda que sofrera.
Dificilmente se esperava que de vez em quando não se levantassem agitadores no País de Gales, pois sempre havia aqueles que se ressentiam do domínio inglês e tentavam derrubá-lo. Eram tentativas fracas, é verdade, mas ele precisava controlá-las. João Baliol, rei da Escócia, era um homem fraco e não representava a escolha unânime do povo escocês. Uma medida de sua impopularidade eram os apelidos que lhe davam. Para o povo, ele era o Velho Toom Tabard, que significava jaqueta vazia, e Tyne Tabard, casaco solto, que era uma referência à sua falta de bens e sua desclassificação para ser o rei da Escócia. Os escoceses sentiam-se ofendidos pelo fato de o rei deles ter sido obrigado a jurar vassalagem ao rei da Inglaterra. Não havia dúvida de que Eduardo precisava ficar atento a todas as direções.
Havia outro fator - e talvez o mais perigoso de todos, e essa ameaça vinha do outro lado do canal. Era difícil Filipe da França não aproveitar todas as oportunidades
de causar-lhe embaraços, e há muito que Filipe lançava olhares cobiçosos para a Gasconha.
Por isso, Eduardo precisava manter os olhos atentos em todas as direções e estar pronto para uma ação imediata caso necessário.
Quase que imediatamente após o nascimento do filho, Joanna ficara grávida e, no devido tempo, dera à luz uma filha e batizara de Eleanor, em homenagem à avó e à bisavó da criança. Eduardo estava muito satisfeito pelo fato de o casamento ser um sucesso, pois ele tivera suas dúvidas devido à diferença de idade do casal. Mas Joanna parecia contente por ser admirada e adorada, e Gilbert era um escravo totalmente submisso a ela; além do mais, o caráter dele parecia ter mudado e agora sua ambição parecia habitar a ala infantil, onde ele exagerava na preocupação com os filhos. Ele ficara em casa numa ocasião em que o rei esperava que ele se juntasse ao seu conselho - e o motivo fora a recém-nascida estar doente e ele ter medo de sair de perto dela. O fato de a criança estar simplesmente sofrendo de um desses problemas sem importância que afetam os recém-nascidos de vez em quando pareceu-lhe uma desculpa adequada para a sua conduta.
Eduardo não deu importância. Ele sentia-se feliz pelo fato de Joanna ter um marido tão dedicado e lembrava-se de que seu pai e sua mãe teriam desafiado todos os barões da Inglaterra pelo bem de um dos filhos.
E depois, havia Eleanor. Preocupava-se muito com ela. Era uma injustiça a filha não se casar. Ela vira a união das duas irmãs, a de Joanna, muito bem-sucedida, a de Margaret, nem tanto. Ainda assim, as duas estavam casadas e parecia errado que uma mulher jovem, tão bonita e vivaz quanto sua filha mais velha, tivesse negada a geração de filhos.
A própria princesa Eleanor estava começando a sentir que perdera a oportunidade. O pai vivia se deslocando de um lugar para outro, e nem sempre era fácil ela ficar ao seu lado; era verdade que ela dispunha de uma bela criadagem - nenhum membro da família, nem mesmo o príncipe Eduardo, tivera melhor -, mas isso não era o bastante.
Ou ela se conformava em ficar solteira ou devia pedir ao pai que voltasse às negociações com Aragão. Talvez aquilo não fosse aceitável para os aragoneses, porque o amour propre deles devia ter ficado ferido pelas recusas anteriores.
Eleanor começou a imaginar se haveria um homem pelo qual ela ficaria pronta a sair de casa e, pouco depois da morte de sua mãe, descobriu que havia.
Para a corte de seu pai tinha ido Henrique III, duque de Barle-Duc. Era o filho mais velho de Thibaut II e, com a morte deste, herdara vastas terras de grande importância por estarem situadas entre a França e a Alemanha. O ducado fora formado já no século X, e os duques que reinavam alegavam descendência de Carlos Magno e consideravam-se de sangue mais real do que os Capetos.
O duque de Bar-Ie-Duc logo sentiu-se atraído por Eleanor, e os dois gostavam muito de cavalgar à frente de seus criados na floresta de Windsor e então, depois de livrarem-se deles, fazer os cavalos andar a passo e conversar, ele falando do seu ducado na França, ela, da vida na Inglaterra.
Joanna, a quem Eleanor sempre via, estava interessada naquela crescente amizade.
- Seria um bom casamento - comentou ela. - Tenho certeza de que nosso pai concordaria com ele.
Eleanor abanou a cabeça.
- Eu teria medo de sugerir isso. Há o caso de Aragão.
- Você foi amaldiçoada por Aragão! E nós pensávamos que as Vésperas Sicilianas tinham resolvido isso.
Joanna olhou para a irmã com ar de quem a analisava.
- Você ainda é bonita - prosseguiu ela. - Na verdade, sempre foi a mais bonita de todas nós. Embora muitas vezes eu engane as pessoas levando-as a achar que sou a mais bela. Gilbert, sem dúvida nenhuma, pensa assim. Você devia administrar melhor a sua vida, irmã, como eu faço.
- Como posso pedir ao duque de Bar-le-Duc que se case comigo?
- Há meios. Por que não se casar com ele em segredo e tornar a coisa um fait accomplil Aí, ninguém poderá fazer coisa alguma.
- Você fala como se nós fôssemos filhas de uma família comum.
- Nossas vidas são aquilo que fazemos dela - disse Joanna, judiciosamente -, e se você for aceitar o que parece ser o seu destino, não merece algo melhor.
- Isso é bom para você. Você tem um marido que a bajula o tempo todo...
- Que a princípio parecia velho demais... e que é muito velho. Sejamos francas. Gilbert não vai viver para sempre, e depois não há dúvida de que farei minha própria escolha.
- Você fala de uma maneira muito irresponsável, Joanna.
- E há quem diga que ajo assim. Mas veja o que isso me trouxe. Dois filhos e um terceiro a caminho, isso é o que importa. Tudo o que quero. É divertido ver como Gilbert tenta prever minhas necessidades antes de eu mesma descobri-las. Minha querida irmã, pegue o que quer. Caso contrário, jamais o terá.
Para ela, era fácil dar conselhos, pensou Eleanor.
E então, de repente, e sem dúvida que por uma estranha coincidência que fez Eleanor lembrar-se de outra ocasião em que ela e Joanna tinham rezado por um milagre, Alfonso de Aragão morreu. Ela estava livre.
O pai foi até Windsor, vindo das fronteiras do País de Gales.
Tomou as mãos da filha e beijou-a. Eleanor agarrou-se a ele. A tristeza estava nos olhos dele, e ela sabia que o pai chorava a morte da mãe. Ele ainda estava insistindo que a falecida rainha fosse homenageada em Westminster com missas de réquiem e missas pela sua alma.
- Minha adorada filha - disse ele -, está na hora de resolvermos o seu futuro. Você está com quase trinta anos. Se for se casar e conhecer a felicidade de ter filhos, tem que ser agora.
- Eu sei, pai querido.
- Minha tendência é manter você comigo, mas muitas vezes, meu amor, vou ter de entrar em combate. Isso é inevitável. Há o País de Gales, a Escócia, e os franceses estão vigilantes. Eu gostaria de vêla feliz como sua irmã Joanna. Os filhos são uma grande bênção, minha filha. Já percebi sua crescente amizade com o duque de Bar-le-Duc.
Eleanor sorriu, e quando ele viu a alegria na fisionomia dela, sentiu-se imensamente aliviado.
- Ele terá prazer em pedir a sua mão. Ele a ama e tenho certeza de que você tem uma certa consideração por ele.
- Ele é um grande nobre.
- É realmente de sangue real. É um bom homem, um homem leal. Isso é da máxima importância para mim. E a posição estratégica das terras dele poderia ser de grande importância se eu estivesse em conflito com o rei da França, e sei perfeitamente que o rei está interessado na Gasconha. Eu receberia de bom grado o casamento entre vocês dois... se você não se opusesse.
- Querido pai - respondeu ela -, há muito que venho pensando no que estou perdendo. Se pudesse ver o senhor com frequência, eu teria prazer em ir para Bar.
Eduardo abraçou-a e garantiu-lhe que dentro em pouco haveria um casamento para ela.
E foi o que aconteceu, pois quando o duque de Bar-le-Duc percebeu que sua corte era aceitável, ficou contentíssimo.
Eduardo decidira que a filha favorita não iria se casar com um estranho e convidou o duque a ficar na Inglaterra até os preparativos do casamento, e durante todo aquele verão Eleanor e o duque ficaram constantemente na companhia um do outro. No mês de setembro, o rei convocou a família toda, os principais cavaleiros do país e todos os nobres do reino, a Bristol, onde teve lugar a cerimónia.
Houve celebrações de grande esplendor porque, embora ao contrário de seu pai e sua mãe Eduardo não fosse extravagante, ele acreditava que havia ocasiões em que era necessário mostrar ao povo a importância do que estava acontecendo. Além do mais, aquele era o casamento da filha de que ele mais gostava e queria que as recordações que ela tivesse da Inglaterra fossem agradáveis. E também se deveria fazer o noivo tomar ciência do poder da família para a qual entrara ao se casar, porque não havia dúvida de que o rei iria precisar de sua ajuda em determinada ocasião.
Depois disso, a comitiva viajou para Mortlake, para ficar hospedada com o príncipe Eduardo. Ele estava, agora, com dez anos
- alto, simpático e muito parecido com o pai. Tendia para a indolência e seus criados e jovens amigos nem sempre se portavam com o decoro necessário à sua posição, o que causara uma certa preocupação ao rei, mas ele acreditava que se tratasse apenas de animação dos jovens e que Eduardo iria ficando mais sério à medida que a idade avançasse.
A princesa Eleanor estava feliz. Sabia que teria de deixar a Inglaterra e que aquilo era algo que temera fazer, mas agora parecia diferente; e o marido prometera que, sempre que possível, eles iriam visitar a Inglaterra e o rei seria sempre bem-vindo em Bar.
Ele voltaria para lá agora, a fim de fazer os preparativos para a chegada dela, pois queria que ela recebesse uma recepção digna de uma rainha e não confiava em ninguém, a não ser nele mesmo, para tomar as providências.
Dentro de poucas semanas, Eleanor iria juntar-se a ele.
Ela estava muito agitada enquanto fazia os preparativos. Joanna dava um jeito de ficar com ela por muito tempo.
- Porque - disse Joanna -, depois que você for embora, eu raramente vou vê-la.
Joanna dera à luz mais uma filha, a quem chamara de Margaret, em homenagem à irmã. De modo que agora estava com três filhos. Ter filhos parecia combinar bem com Joanna. Tal como a mãe, ela passava pelo processo sem maiores desconfortes, e como a devoção de Gilbert não diminuía, sentia-se feliz com a maternidade.
- Irmã - disse ela, certo dia -, acho que você está grávida. Eleanor enrubesceu levemente. Ela desconfiara daquilo, e o fato de Joanna ter percebido confirmava tudo.
- É o que quero mais do que qualquer coisa - declarou ela.
- O duque vai ficar contente.
- Vai; assim que eu tiver certeza, vou mandar uma mensagem para ele.
Joanna soltou uma gargalhada.
- A vida é boa, não é, irmã? Eu não tinha razão ao lhe dizer que você devia se casar? Pobre Margaret, duvido que ela ache o casamento tão feliz. É estranho que o duque dela a deixe ficar longe dele. Ouvi dizer que ele prefere assim. Oh, nós somos as felizardas, Eleanor.
Eleanor concordou.
Ela estava grávida, mesmo, e o marido, quando soube, pediu que ela partisse para Bar imediatamente. Precisava fazer a cansativa viagem no início, antes que se tornasse fatigante ou perigoso. E era essencial que o herdeiro dele nascesse no ducado.
Um grande cortejo, o rei à frente, acompanhou-a até Dover.
Os dois se despediram com ternura, e o rei só saiu da praia quando já não podia mais ver o navio que levava a filha embora.
Em seu novo lar, ela foi recebida pelo marido, que estava decidido a oferecer-lhe uma recepção tão suntuosa quanto a que o rei Eduardo preparara para agradá-los. Ele organizara um torneio e convidara, de todas as partes do continente, cavaleiros conhecidos pela mestria. Entre eles estava João, duque de Brabant, pai do marido de Margaret, que fora conhecido a vida toda como um dos mais perfeitos cavaleiros e distinguira-se tanto que ganhara os títulos de "Glória do Mundo" e "Flor da Fidalguia", o que significava que quando participava de uma justa vinha gente de todas as partes do mundo para vê-lo.
- Minha adorada - disse o duque -, você, é claro, deverá entregar a coroa ao vencedor das justas, pois todos irão participar em sua homenagem.
Ela ficou encantada. Sempre fora bonita, mas parecia ter ficado ainda mais depois do casamento. Havia uma nova cor em suas faces, um novo brilho nos olhos e nos cabelos, que ela usava soltos sobre os ombros.
O velho duque de Brabant foi conquistado pela sua beleza e disse-lhe que estava decidido a vencer a coroa pela honra de recebêla de suas mãos.
Ela queria que Joanna pudesse vê-la agora. Será que sentiria um pouco de inveja? Talvez. Mas Joanna estava a tal ponto no controle de sua vida, que raramente sentia inveja de alguém. Havia uma preocupação incómoda, no recesso da mente de Eleanor, com relação à irmã. Ela mencionara, mais de uma vez, a possibilidade de seu marido morrer - e sem se preocupar muito - quando então iria escolher seu novo marido.
Mas Eleanor não podia pensar em Joanna naquele dia. Que dia bonito! O sol brilhava, lanças faiscavam, e os cavaleiros estavam reunidos, vestindo armaduras, prontos para o combate simulado. Eleanor estava sentada em seu banco, com as damas ao lado, numa plataforma sob um dossel escarlate e dourado, e todos os olhares estavam fixos nela. Impressionavam-se com a beleza de seus cabelos e dos olhos, com o frescor da pele macia. Ela gostaria que o pai a visse agora.
Os cavaleiros estavam todos ansiosos por ganhar o trofeu; não havia um só que não desejasse a honra de ter a coroa colocada na cabeça por aquelas belas mãos.
Sim, pensou ela, eu sou feliz como nunca pensei em ser. Joanna tinha razão. Eu precisava do casamento e de filhos. Isto sim, é que é vida de verdade. A coroa da Inglaterra, pela qual ela ansiara, parecia ter pouca importância - uma ninharia. Ali, ela era uma esposa feliz, uma futura mãe, a rainha do torneio.
A justa começou e prosseguiu o dia todo. O velho duque de Brabant saíra com sucesso de vários encontros, e Eleanor esperava que ele vencesse. Ela queria que aquilo fosse a realização máxima dele, pois era evidente que estava velho demais para participar de justas por muito mais tempo.
Eleanor o observava. O adversário dele era um estrangeiro que ela não conhecia. Mas devia ser um cavaleiro de certa reputação, caso contrário não estaria ali. Era um homem alto e montava seu cavalo como se os dois formassem um todo. O pai dela era assim. Eles tinham os braços e pernas compridos dos normandos, e por isso levavam vantagem quando montavam a cavalo.
Era a terceira etapa. Ela ouviu a expressão de surpresa da multidão; houve mais ou menos um segundo de silêncio, e então pessoas corriam para o campo em que o velho duque de Brabant jazia sangrando na grama.
Seu oponente estava ajoelhado ao lado do homem idoso, implorando-lhe perdão, pedindo que usasse a espada contra ele, que o matasse pelo que ele fizera.
O velho duque abanou a cabeça.
- Foi uma luta leal - sussurrou ele. - Eu devia ter sabido que meu dia tinha chegado.
Ele foi carregado do campo para dentro do castelo de Lê Bar, onde morreu pouco depois. Sua morte cobriu de tristeza as comemorações, e o duque e Eleanor chegaram a um acordo de que deveriam encerrá-las.
Houve quem dissesse que aquilo não era um bom agouro. Agora que o velho duque de Brabant estava morto, o marido de Margaret era o novo duque.
Chegada a hora, a criança de Eleanor nasceu e para sua alegria - e de seu marido - foi um menino. Ela insistiu em chamá-lo de Eduardo, como uma homenagem a seu pai, e quando a notícia chegou à Inglaterra, houve uma grande alegria. O rei queria muito estar com a filha. Era impossível, claro, mas embora ficasse triste de tantas saudades dela, sentia-se feliz por ela finalmente ter um marido e um filho e rezava pela sua felicidade.
Não demorou muito e Eleanor ficou grávida outra vez, e dessa vez teve uma filha. Escreveu à irmã Joanna dizendo-lhe o quanto se sentia feliz e que iria dar à filha o nome de Joanna, como uma recordação da irmã que lhe fora mais chegada.
Não havia dúvida de que a felicidade reinava no ducado de Barle-Duc e felizmente nem o duque nem a duquesa sabiam, na época, como aquela felicidade iria durar pouco.
Joanna era, agora, mãe de quatro filhos - Gilbert, Eleanor, Margaret e Elizabeth. Todos tinham nascido no espaço de cinco anos, e a novidade de ser esposa e mãe desaparecera.
Como acontecera com sua mãe, ter filhos fora fácil para Joanna e pouco afetara sua aparência. Sua vitalidade estava forte como sempre. Ela estava com 23 anos e, embora quando se casasse parecesse interessante ter um marido já com idade, agora começava a considerá-lo um homem muito velho, cuja devoção era tão constante que se tornava enjoativa.
Ela estava percebendo cada vez mais a existência de um dos escudeiros de Gilbert, um certo Ralph de Monthermer - bemapessoado, forte e, acima de tudo, jovem. Quando ela comparava aquele escudeiro com o marido, o pobre do Gilbert parecia realmente muito velho, e ela se perguntava o que teria acontecido se ela tivesse conhecido Ralph de Monthermer antes do seu casamento. Ficou convencida de que jamais poderia ter-se casado com Gilbert, então, e imaginou o que seu pai teria dito se ela tivesse sugerido Ralph como marido.
Um escudeiro para a filha de um rei! Eduardo teria pensado que ela ficara maluca. Talvez fosse um pouco. De qualquer modo, não havia dúvida de que se sentia agitada quando olhava para aquele rapaz.
Gostava de pregar umas pequenas peças nele. Erguer os olhos de repente e perceber o olhar dele nela e perguntar se ele via algo de errado.
Ele ficava contrafeito, mas só um pouco, porque era um jovem bem ousado.
- Errado, minha senhora? Não, certo... certo demais para minha tranquilidade mental.
Uma agradável alusão aos seus encantos, coisa de que ela gostava.
Joana providenciava para que ele fosse colocado perto dela, mas não demais. Quando ela cantava depois do jantar, cantava canções de amor sem esperança e gostava muito do efeito que aquilo exercia sobre o jovem. Quando Joanna saía com um grupo a cavalo, ele estava invariavelmente no grupo e ela fingia estar surpresa ao ver-se ao lado dele.
Algumas pessoas diziam que era perigosa a situação em que ela se afundava mais a cada dia que passava, mas o perigo era irresistível para Joanna, e ela foi ficando cada vez mais interessada em Ralph de Monthermer.
Quem poderia dizer como aquilo teria acabado e quando seria levado à atenção de Gilbert, se ultimamente Gilbert não se cansasse com tanta facilidade que gostasse de se recolher cedo? Era óbvio que a última campanha afetara de algum modo a sua saúde.
Joanna representou o papel de esposa preocupada por algum tempo, mas foi um papel do qual logo se cansou. Felizmente para Gilbert, ele não viveu o suficiente para ver que ela estava se cansando da representação, pois uma certa manhã, quando seus criados entraram no quarto para acordá-lo, descobriram que ele tinha morrido enquanto dormia.
Aquilo não foi de todo uma surpresa, pois se tornara evidente que Gilbert se tornava mais fraco a cada dia que passava.
Joanna recebeu a notícia com calma. Achou difícil expressar uma dor profunda. O casamento fora satisfatório enquanto durara, mas durara o bastante. Não poderia ter continuado a ser uma mulher cumpridora de seus deveres por muito mais tempo, de modo que era melhor para todos Gilbert ter morrido antes de descobrir.
E havia Ralph de Monthermer.
Ela mandou chamá-lo e ofereceu-lhe a mão para ser beijada em saudação. Ele não a soltou, mas continuou a segurá-la e puxou-a para junto dele.
- O que significa isso, meu senhor? - perguntou ela, mas o jovem viu o brilho nos seus olhos.
- Acho que a senhora sabe.
- Meu marido está morto.
- Eu sei.
- E o senhor acha que por causa disso pode abusar de mim com impunidade?
- Eu acho, senhora, pelo que leio em seus olhos, que posso ter um pouco de presunção quanto à sua bondade.
- O senhor se esquece de que sou a viúva do seu senhor e a filha do seu rei, Ralph de Monthermer?
- Eu me esqueço de tudo, exceto de uma coisa, quando estou perto da senhora.
- O senhor deve retirar-se agora. Vamos falar sobre isso mais tarde.
O jovem hesitou, e ela quis e não quis que ele a desobedecesse, a agarrasse, a possuísse. Aquilo seria instigante, com Gilbert ainda nem enterrado. Em vez disso, ele se retirou, o que, no final das contas, foi melhor.
Temos o resto de nossas vidas, pensou ela. Podemos, durante algum tempo, homenagear os bons princípios.
Na câmara mortuária de Gilbert, levemente iluminada por um sol invernal, porque era dezembro, Joanna ordenara que se acendessem velas e, um a um, os escudeiros dele entraram para um último adeus - um bom patrão, um homem de caráter forte, que mais de uma vez na vida desafiara seu rei. No entanto, era um homem que devia ser respeitado porque, apesar de um dia ter lutado contra a realeza do lado de Simon de Montfort, o rei lhe dera a filha.
Joanna estivera vigilante, naqueles dias no castelo de Monmouth, para onde eles tinham ido, para que Gilbert protegesse suas propriedades galesas e só de vez em quando se permitia encontrar o olhar de Ralph de Monthermer, com o dela transmitindo a mensagem: "Espere um pouco. Mas não muito."
O cemitério da família dos Ciares ficava em Tewkesbury e, com grande pompa, Gilbert foi levado para a abadia de lá. Joanna mandou que se fizesse uma estátua dele vestindo uma cota de malha, porque acima de tudo ele fora um grande guerreiro; e no seu tabardo mandou gravar as armas da família e, na mão direita, colocar a lança e, na esquerda, a espada.
- Pobre Gilbert - disse ela -, foi um bom marido, mas infelizmente era velho e seria de esperar que fosse antes de mim.
E sorriu intimamente. Sempre dissera que se uma mulher se casasse uma vez por questões de Estado - que, por ser uma princesa, talvez o dever exigisse que ela se casasse -, a segunda vez em que se casasse deveria ser por sua livre escolha.
Era imperativo que ela se certificasse de que não perderia nada com a morte do marido. As propriedades dele eram imensas, pois fora um dos mais ricos barões da Inglaterra, e quando seu pai estava em St. Edmundsbury, ela viajou até lá para estar com ele.
Eduardo ficou muito contente ao vê-la.
Abraçou-a com afeto e olhou-a ansioso, esperando, pelo que ela imaginava, ver a dor de uma viúva enlutada.
Joanna não podia fingir tanto, e quando ele procurou consolála, replicou:
- Meu caro senhor, Gilbert foi um bom marido para mim. Eu me casei com ele porque foi uma ordem sua. Mas era muito mais velho do que eu e à medida que os anos iam passando, mais velho parecia ficar.
O rei ficou um pouco embaraçado, mas ficou satisfeito ao ver que a filha não se sentia tão infeliz quanto ele esperava.
- Tenho de pensar nos meus filhos. Quero ter a certeza de que as propriedades de Gilbert passarão para mim. Sei que o senhor não permitiria que eu não pudesse ficar com elas.
- Há uma certa quantia que deve ser paga ao erário, pelo que me disseram - disse o rei. - Creio que são dez mil marcos.
- Não pode ser, papai.
- Pode, minha filha querida. Os dez mil marcos cobrem dívidas que ele fez por uma multa que nunca foi paga. - O rei apertou a mão dela. - O resto do espólio será passado para o seu nome. Sei que é uma soma considerável.
Ela ficou satisfeita; mas queria ver até que ponto o pai iria fazer a sua vontade. Ele chegara decidido a dar-lhe uma grande importância. Sentia muita falta da filha mais velha, a princesa Eleanor, e agora se voltava para a filha que continuara na Inglaterra.
- Querido pai - disse ela -, o senhor não podia esquecer os dez mil marcos? Eu teria que levantá-los e isso não seria fácil. Por favor, papai, por mim e pelos meus filhos...
Enfiara o braço pelo dele e encostara o rosto no dele. Era muito atraente - não tão bonita quanto Eleanor, não tão delicada quanto Margaret, nem tão boa quanto Mary, nem tão dependente quanto Elizabeth... mas sempre houvera algo de muito atraente em Joanna.
Além do mais, o rei tinha algo em mente, e era um casamento. Ele chorara a morte de sua rainha e sofrera sinceramente com a sua perda, mas vários anos tinham-se passado e muitos de seus ministros tinham sugerido que ele tornasse a se casar. Não era jovem, em absoluto. Estava mais perto dos sessenta do que dos cinquenta; mas se sentia excepcionalmente cheio de vigor - até mesmo com uma certa agitação diante da perspectiva de uma companhia feminina. Exceto no auge da juventude, nunca fora homem de ter relações fora do matrimónio. Não podia começar agora. Não queria macular a memória de Eleanor, mas parecia perfeitamente certo e natural um rei casar-se uma segunda vez.
Ele ouvira comentários elogiosos sobre a princesa da França. O nome dela era Blanche e era filha do rei Filipe, conhecido como o Ousado. com a morte de Filipe, Blanche estava sob a guarda do irmão, o novo rei Filipe, o Belo. Antes da ideia de casamento passarlhe pela cabeça, ele ouvira Blanche ser elogiada por sua beleza e jovialidade.
Ocorrera-lhe então que devia se casar e que a esposa mais indicada era a bela Blanche. Naquele momento, estavam sendo efetuadas negociações.
Enquanto Joanna implorava, ele se perguntava como iria dar às filhas a notícia de que esperava se casar. Todas elas tinham dedicado à mãe um grande amor, e ele declarara, muitas vezes, depois da morte dela, que jamais colocaria outra mulher em seu lugar. Os tempos mudavam, e os reis tinham seus deveres a cumprir. Não, ele era honesto demais para aquilo. Nunca vira Blanche, mas pelos rumores que escutara, já estava apaixonado por ela e descobrira que o amor aos 56 anos de idade podia ser tão forte quanto aos vinte. Talvez mais, porque com aquela idade o homem que ainda mantivesse o vigor também sabia que não restava muito tempo.
Iria precisar do apoio das filhas. Queria que elas compreendessem. Portanto, não iria querer que houvesse qualquer divisão entre eles.
- Minha filha querida - disse ele -, eu não iria querer contrariá-la por causa de dez mil marcos.
Tinha sido mais fácil do que Joanna pensara. Ela estava exultante.
Aquilo tentou-a a levar seus planos um pouco mais adiante.
- Majestade - disse ela -, há uma outra coisa.
- Estou escutando, filha.
- Há um escudeiro que serviu bem a Gilbert. Creio que ele devia ser recompensado. Durante a doença de Gilbert, ele sempre esteve ao lado dele... um homem muito fiel, não se importando com o que fizesse pelo conforto de seu senhor.
- O que você gostaria de dar a ele?
- Ele é apenas um humilde escudeiro.
- De que família?
- Uma família muitíssimo humilde, majestade, mas suas maneiras são as de um verdadeiro cavaleiro. Poderia o senhor, pelo amor que me dedica, dar a ele o privilégio do cavaleirismo?
- Farei isso pelo amor que dedico a você - disse o rei. Ela beijou-lhe a mão.
- Querido pai, como o senhor tem sido sempre bom para nós! A única retribuição que posso lhe oferecer é o meu amor inabalável.
- Ele seria sempre meu, não seria? - disse o rei.
- Sempre - respondeu a filha.
Joanna despediu-se do pai e, com sua comitiva, voltou para Gloucester. Estava contente. Estava livre e provara a si mesma que independente do que fizesse, seria perdoada. Mandou chamar Ralph de Monthermer.
- Bem - disse ela -, o senhor subiu de categoria, não? Nada menos que um cavaleiro!
- Pelo que devo agradecer à minha graciosa senhora.
- O rei sempre foi um pai bom para nós. Acho que ele não me negaria coisa alguma.
No íntimo, ela sorria.
Estendeu a mão para o jovem. Prontamente, ele a agarrou.
- Minha senhora - começou ele.
- .Decidi que poderemos nos casar - disse ela. Ele prendeu a respiração, de tão surpreso.
- É - continuou ela. - vou ser franca. Há algo em você que me agrada. Eu lhe agrado?
Soltou uma gargalhada ao ver a expressão dele.
- Ora vamos, senhor. Não seja tímido.
- Minha senhora, só tenho medo...
- Você com medo. Então, eu me enganei. Não gotsto de homens que têm medo...
- De não agradar à senhora.
- Mas você não me agrada ficando aí de pé e tremendo como um menino bobo.
Ele se aproximou dela. Joanna viu o brilho selvagem nos olhos dele e aquele brilho combinava com o dos seus.
Ele a agarrou e manteve firme; ela riu, exultante.
- Era por isto que eu estava esperando - disse ela.
- Você... a filha do rei!
- E amante do meu cavaleiro.
- Joanna... minha Joanna!
Claro que foi como ela sabia que seria. Gilbert fora um homem muito velho. Agora, encontrara o parceiro perfeito. Aquele homem sensual e incansável lhe pertencia.
Enquanto estavam deitados juntos, ela disse:
- Devemos esperar um pouco antes de nos casarmos. Ainda está muito cedo.
- Você... chegaria a esse ponto?
- Você ainda não descobriu que não há ponto até o qual eu não iria?
- Estou começando a aprender.
- Ah, você tem muito que aprender, Ralph de Monthermer.
- E quando nos casarmos, o que acha que o rei vai fazer?
- Vai usar linguagem bombástica, ter um acesso de raiva e ameaçar me renegar. Talvez mande você para a prisão. Está com medo? Vai recuar?
- Jamais recuarei.
- Ainda bem. Eu jamais iria querer um covarde. Quero viver ousadamente... livremente. Não tenha medo, o rei me adora. Nunca ficaria zangado comigo por muito tempo. E se você me agradar e eu quiser que meu marido seja retirado de uma cela fria e úmida, vou pedir por ele e ele me será entregue.
- E se o seu marido tiver deixado de agradá-la, àquela altura?
- Ele terá que se preocupar em continuar me agradando... como faz agora.
Os dois fizeram amor repetidas vezes. Isso é que é viver, pensou Joanna. Claro que foi isto que eu sempre quis.
Depois do que Joanna considerou ser um prazo razoável, ela e Ralph de Monthermer casaram-se em segredo. Ficou encantada com o casamento e a intriga que tinha sido necessária deixou-a muito agitada, mas quando o ato acabou, ficou aflita em saber como daria a notícia ao pai.
Sabia que, àquela altura, ele estava profundamente envolvido em problemas pessoais. Pretendia se casar e, na verdade, estava ficando inteiramente inebriado por Blanche da França; dizia-se que quando o nome dela era mencionado seus olhos brilhavam de satisfação e sua voz adquiria um calor fora do comum. Ela era jovem e bonita, e Eduardo queria casar-se com ela. Ao mesmo tempo, pensava muito na falecida rainha, à qual sempre dissera que seria eternamente fiel. Era um homem que não gostava de faltar com a palavra.
Havia outro assunto que também o preocupava bastante. Estava preocupado com a filha mais velha - sua querida Eleanor, agora duquesa de Bar-le-Duc, que tinha sido, pensavam alguns, aquela que ele amara acima de qualquer outra pessoa antes de sua obsessão por Blanche.
As coisas iam mal no castelo de Lê Bar. Durante o conflito de Eduardo com o rei da França, como seria de esperar, o marido de Eleanor saíra em pleno apoio ao sogro e, devido ao fato de suas propriedades estarem situadas tão perto da França, aquilo fora de extrema utilidade para ele. Eduardo, é claro, fornecera-lhe armas e dinheiro, e o duque tentara ocupar a Champagne, projeto com o qual Eduardo estava de acordo, já que a captura daquela região teria significado o aumento das possessões de seu neto.
A Champagne, porém, pertencia de direito à rainha da França, que detinha o título de condessa de Champagne. Ela ficara furiosa com o que chamou de audácia do duque de Bar-le-Duc e reunira toda a força disponível, que fora considerável, para enfrentá-lo.
O resultado fora desastroso... para o duque.
Seu exército fora derrotado e ele se tornara prisioneiro. Não contente com isso, a rainha, com um sentimento de vingança contra desmandara agrilhoá-lo e enviá-lo a uma masmorra em Paris. O rei da França, porém, refreara a mulher e, embora concordasse que o duque devia continuar preso, achara que devia ser tratado com mais dignidade, e o duque - talvez o parentesco dele com o rei da Inglaterra tornasse isso aconselhável - fora levado para uma prisão mais confortável em Bourges. Mas o rei da França decidira que ao duque não devia ser concedida a liberdade, já que ele só iria usála a serviço do rei da Inglaterra contra a França.
Eleanor estava, portanto, sozinha no castelo de Lê Bar, pensando no destino do marido que ela amava, protegendo o pequenino Eduardo, seu filho, e Joanna, sua filha, e todo dia perguntando-se o que seria deles.
Eduardo estava louco de aflição por causa da filha e planejava uma reunião. Queria que Eleanor fosse até Ghent, onde ele poderia encontrar-se com ela e os dois poderiam estar juntos para discutir o seu futuro.
Joanna se perguntava se, tendo em vista as preocupações do rei, seria bom lançar sobre ele a notícia do seu casamento ou se, cercado de preocupações, ele estaria mais propenso a enfurecer-se contra ela. Havia muita coisa em jogo, disse ela a Ralph. Ele poderia confiscar os bens deles. Poderia mandar Ralph para a prisão. Não havia como saber como ele iria agir. Tinha sido um pai indulgente, mas possuía a notória raiva Plantageneta e embora a mantivesse bem controlada, ela podia ser uma coisa terrível quando provocada.
Depois de muito pensar, Joanna achou que poderia ser uma boa ideia mandar espalhar um boato de que ela e Ralph estavam apaixonados e pensavam em casamento. Eles poderiam ver o efeito que aquilo teria sobre o rei e se ele aceitasse o caso sem dar muita importância, poderiam se apresentar e confessar. Por outro lado, se ele expressasse sua fúria, eles poderiam ficar calados e deixar que o rei pensasse que o caso poderia dar em nada.
O rei remoía as dificuldades suas e da filha mais velha, quando a notícia do boato chegou até ele.
- É mentira! - berrou ele. - Ela não teria coragem!
Ficou horrorizado. Estivera pensando que Joanna não era o tipo de mulher que devia ficar sem se casar e durante algum tempo examinara a oferta do conde de Savóia, que andara enviando exploradores que sugeriam um casamento entre ele, o conde, e a filha do rei, que estava viúva.
Lembrou-se de que a filha o levara a conceder o grau de cavaleiro a Ralph de Monthermer e sua fúria aumentou. Claro que havia fundamento para o rumor. Lembrou-se de como ela o ludibriara, como fizera com que ele esquecesse as dívidas do falecido marido, como parecera muito contente por estar com ele e obter um grande consolo com a presença dele. Quando o tempo todo ela estivera planejando enganá-lo!
Eleanor jamais teria feito isso. Nem Margaret, Mary, nem Elizabeth. Joanna era diferente. Nascida num país estrangeiro e passando os primeiros anos de vida com a avó, Joanna era diferente... uma enganadora... uma mulher fatal. Mas ele lhe daria uma lição.
Mandou chamar dois de seus cavaleiros e deu-lhes ordens aos gritos.
- Confisquem - disse ele - em meu nome todas as terras e bens da condessa de Gloucester.
Só o fato de se referir a ela como condessa e não como princesa Joanna, sua filha adorada, era significativo. Eles hesitaram.
- Andem - berrou o rei. - Não ouviram? E eles partiram.
Joanna ficou desesperada. Então era assim que o pai se portara quando ouvira o boato de que ela estava pensando em casamento. O que diria quando soubesse que o fato já estava consumado?
- Temos de agir com o máximo cuidado - disse a a Ralph.
- Talvez devêssemos nos separar por algum tempo.
Ralph disse que preferia enfrentar qualquer coisa a fazer aquilo, e o perigo que corriam pareceu intensificar a paixão dos dois. Ela estava exultante. Aquele era o amante que estivera esperando a vida toda. Estava pronto a enfrentar a morte por ela, e bem poderia fazer isso mesmo, pois a ira do rei - embora rara - era terrível. Mas duvidava que o pai, quaisquer que fossem as circunstâncias, um dia prejudicasse a filha, embora pudesse muito bem despejar sua ira sobre aqueles que partilhassem de seus pecados.
Foi uma sorte ela ter amigos, pois um dos cavaleiros da corte do rei que sempre a admirara resolveu correr o risco de cair no desagrado do rei se fosse apanhado, a fim de prepará-la para o desastre que estava por vir.
Esse cavaleiro saiu da corte em segredo, foi até o castelo de Monmouth e pediu para ser levado imediatamente à presença da condessa Joanna.
Ela o recebeu logo e, antes que pudesse dizer que era um prazer vê-lo, ele soltou logo:
- O rei está mandando o confessor dele, Walter de Winterborn, para falar com a senhora. A missão dele é descobrir a verdadeira situação entre a senhora e Ralph de Monthermer.
- Entendo - disse Joanna, a mente trabalhando rápido.
- Ele deverá informar se existe alguma verdade no boato de que a senhora está pensando em se casar. E deverá trazer a notícia de um casamento que o rei está arranjando para a senhora.
- Arranjando um casamento para mim!
- Sim, está sendo feito um acordo com Amadeus, conde de Savóia, e o rei declara que está ansioso por que a senhora se case logo. Isso poria um fim aos boatos.
Não havia saída. Ela percebeu que não podia manter o casamento em segredo por muito mais tempo, mas não podia enfrentar Walter de Winterborn agora. Podia imaginar como seriam as inquirições dele.
Agradeceu o cavaleiro por tê-la avisado e foi à procura de Ralph.
- Isso é uma tragédia - disse ela. - O rei tem um marido para mim.
- Ele não pode se casar com você - bradou Ralph.
- É evidente que não. Mas você está vendo como meu pai pode ser quando sua ira é provocada. Ele já me deixou sem nada, tomou tudo o que tenho. Não faz mal, vou pegar tudo de volta. Mas preciso de tempo. Se Winterborn vier aqui, vai descobrir logo. Vai interrogar os criados à sua maneira
confessional e eles não vão poder resistir, por mais leais que sejam.
- Então, o que sugere, meu amor?
- Vamos sair daqui agora mesmo. Preciso de tempo. Meu pai vai ter de saber que estamos casados, mas eu mesma quero dizer a ele... e na hora que eu achar melhor. Apronte-se. Vamos partir imediatamente para o castelo da condessa de Pembroke em Herefordshire. Ela vai me ajudar. Sempre foi minha amiga. Quero conversar com ela sobre isso tudo. Preciso raciocinar em paz.
- vou me preparar logo - disse Ralph.
- vou levar as crianças comigo - continuou ela. - Meu pai adora-as e fará com que nada de mau lhes aconteça, o que significa que ele não pode afastar a mãe de suas filhas. Acabarei convencendoo, mas isso vai demorar.
- Você sempre consegue convencer todo mundo - replicou Ralph, em tom de admiração.
Joanna deu um sorriso de concordância e, pouco depois, eles estavam a caminho do castelo de Goodrich, a residência dos Pembroke, em Herefordshire.
A condessa sempre fora amiga de Joanna, embora fosse muito mais velha, e ficara viúva fazia pouco tempo. Joanna a tivera muitas vezes como confidente e tinha total confiança nela. A filha da condessa, Isabella, esposa de Hastings, um dos pretendentes ao trono escocês, estava agora com a mãe no castelo e as duas faziam tudo para mostrar a Joanna o prazer que sentiam pela visita.
Joanna procurou logo uma oportunidade para ficar a sós com a condessa. Os rumores já tinham chegado até ela, mas ela não sabia, é claro, que o casamento já se realizara. Quando soube, ficou horrorizada.
- Mas, minha querida Joanna - disse ela -, o rei vai ficar louco de raiva!
- Eu sei, e quero conversar com a senhora sobre o que devo fazer.
- Você não poderia ter pedido o consentimento dele?
- Não, porque teria sido recusado.
- E era tão importante para você?
- Minha querida amiga, a senhora viu Ralph. Creio que agora tenho o direito de fazer o que quero.
- Mas não se casar sem o consentimento do rei.
- Eu me casei sem o consentimento dele, e nada pode alterar isso. O que quero conversar agora não é sobre o que eu deveria ou não ter feito, mas sobre o que vou fazer agora. Há mais uma coisa, que só Ralph sabe. vou lhe dizer...
A condessa olhou para ela com ar incrédulo.
- Sim - prosseguiu Joanna -, pode olhar. É verdade. Estou grávida. - Joanna começou a rir. - A senhora está vendo que não há nada que ele possa fazer agora... nada.
- Ele pode prender seu marido e confiscar suas terras.
- A segunda parte ele já fez. Diga-me, condessa, o que posso fazer?
A condessa ficou pensativa.
- Só há uma coisa - disse ela, afinal. - Vá falar com ele. Peça perdão. Diga o quanto ama o seu marido. Diga que vai ter um filho.
- Disso ele vai saber em breve. Ele está zangado porque eu o convenci a conceder a Ralph o grau de cavaleiro e disse que aquilo era em retribuição a serviços prestados ao meu marido.
A condessa abanou a cabeça.
- Tenho certeza de que a tempestade vai passar. O rei adora os filhos, como todos sabemos, e estou certa de que não vai permitir que seja mais do que um conflito passageiro. Vai ficar zangado por algum tempo, de modo que talvez fosse melhor você manter-se longe dele até que fique mais calmo.
- Acho que a senhora tem razão. Mas serei convocada e não posso desobedecer à ordem dele. vou mandar as meninas na frente. Ele gosta muito delas, como gosta de todas as crianças, em especial de meninas. Elas vão derreter o coração dele. Papai jamais agirá com crueldade com a mãe delas.
- Talvez seja uma boa ideia - concordou a condessa. Ela enviou as meninas para St. Albans, onde o rei estava na ocasião, e recebeu notícias de que o rei as recebera com o afeto de sempre, que tinham podido subir nele por todos os lados e puxarlhe os cabelos e que ficara encantado quando o beijaram sem que ninguém pedisse.
Um bom agouro!, pensou Joanna.
Foi um choque, portanto, quando os guardas do rei chegaram em Goodrich com ordens de prender Ralph de Monthermer e encarcerá-lo no castelo de Bristol, onde deveria ficar como prisioneiro do rei. Joanna - ele se referia à filha como a condessa de Gloucester - deveria pagar imediatamente as contas pertencentes ao conde de Gloucester, que antes ela convencera o rei a perdoar.
Aquilo era um sinal de que Eduardo estava disposto a não perdoar e mais zangado com um membro da família do que ela jamais vira antes.
Durante cerca de um mês, o rei se recusou a receber a filha e ela ficou como que numa orgulhosa indiferença à frieza do pai para com ela. Mas enquanto isso, Ralph ficou preso em Bristol, e Joanna não podia permitir que aquilo continuasse.
Ela estava sempre discutindo o assunto com a condessa de Pembroke e sua filha Isabella.
- Preciso fazer alguma coisa - declarou ela. - Não posso deixar Ralph ficar em Bristol. Meu pai sabe que esta é a maior vingança que pode fazer contra mim... tirar meu marido. vou procurálo e fazer o meu pedido.
A condessa abanou a cabeça, e Isabella lembrou a grande raiva que o rei tinha dela. Fizera papel de bobo, porque estivera arranjando um casamento para a filha quando ela já estava casada. Era difícil um rei orgulhoso aceitar aquilo, disse a condessa.
- Mas ele sempre foi condescendente com as filhas. Sempre conseguimos vencer a zanga dele conosco.
- Isso pode ter sido em assuntos de pouca importância. Este é diferente.
- Eu tenho de fazer com que ele entenda. Ele ama os netos. Devia ficar contente por este filho ter Ralph como pai. Vamos, confessem, já viram um homem mais bonito?
A condessa sorriu, e Isabella disse, com um certo grau de fervor:
- Ele é realmente bonito. Raramente se vê um homem tão bem constituído.
- Ah - disse Joanna, rápido. - Vejo que você sente atração por ele.
- Senhora - disse a condessa -, Isabella tem um marido e é muito dedicada a ele.
Joanna soltou uma gargalhada.
- Eu sei muito bem disso. Eu teria ficado contrariada se vocês não admirassem Ralph. Bem, agora compreendem por que não posso deixar que ele fique definhando na prisão. Só há uma coisa a fazer, e é procurar meu pai, falar com ele pessoalmente.
- Será que ele vai recebê-la? - perguntou Isabella.
- Vai, se eu chegar lá. Eu o conheço bem. Ele gosta demais de todos nós para não ansiar por uma reconciliação. Minhas caras amigas, partirei amanhã para a corte. Não, não tentem dissuadir-me.
- Não tentaríamos - replicou a condessa com um sorriso. Sempre soubemos que quando você se decide, é inútil pedir que mude de ideia.
- vou implorar a papai e vocês verão que ele vai ceder.
- Rezo para que isso aconteça - disse a condessa.
Joanna entrou a cavalo em St. Albans num quente dia de julho.
Foi recebida com aflição, porque as pessoas que atendiam ao rei mostravam-se indecisas. Ela estava em desgraça, mas era a filha do rei e eles não tinham coragem de ofendê-la; por outro lado, qual seria a atitude do rei se a continuassem tratando como antes?
Não havia como não perceber que Joanna estava grávida, e ela disse que se sentia cansada da viagem. Esperava que não lhe negassem uma cama.
Eles foram dominados pela sua maneira imperiosa. Ninguém jamais duvidaria da realeza de Joanna. Havia, em seu comportamento, uma ordem implícita para ser tratada com respeito.
Ela mandou um recado para o rei.
"Sua filha está aqui. É a primeira vez na vida que ela é forçada a implorar uma audiência, mas o faz agora e espera que seja cortesmente recebida."
O rei soubera da sua gravidez e não podia deixar de se preocupar com a sua saúde. Deu ordens para que cuidassem bem dela e a receberia no dia seguinte.
Joanna sentiu-se triunfante. O pai agira como ela deduzira. Uma demonstração de afeto, um pouco de adulação, e o conquistaria.
Mas quando ficou diante dele, sentiu-se um pouco consternada pela frieza da expressão dele. Nunca antes a olhara daquela maneira. Era como se não gostasse dela. Joanna não desanimou. Tinha plena confiança em seus poderes.
O rei estava sentado numa cadeira semelhante a um trono, que chamava atenção para a sua realeza. Joanna estava de pé diante dele.
- Senhor meu pai - disse ela -, rogo permissão para me sentar.
Ele sacudiu a cabeça, e ela se sentou num tamborete.
- Por que veio aqui?
- Porque o senhor é meu pai, embora também seja o rei.
- Não me esqueço disso. Você me ofende duplamente... como filha e como súdita.
- Querido pai, não suporto quando o senhor me olha com tanta frieza. Eu me lembro muito de quando minha querida mãe estava viva. Ah, quem dera que ela estivesse aqui hoje. Iria me ouvir... iria interceder por mim junto ao senhor. Como se sentiria infeliz ao ver o senhor me odiando tanto!
- Ela iria sentir-se realmente infeliz por ter gerado uma filha tão rebelde.
- O senhor amou muito minha mãe - disse ela. - É assim que amo meu marido.
- Esse... joão-ninguém... que você me convenceu a transformar em cavaleiro!
- Ninguém merecia mais a honra do que ele... nem a de ser genro do maior dos reis. Papai, lembre-se... do passado... da felicidade que tivemos juntos. Meu filho vai nascer num prazo normal, fruto de meu amor pelo meu marido, que o senhor mantém cruelmente preso.
- Foi um erro - disse o rei, ríspido. - Ele tem o castigo que merece. Eu poderia arranjar para ele uma prisão mais cruel, que sem dúvida combinaria melhor com o crime que cometeu.
Ao pensar no marido, a tática tranquila de Joanna desmoronou. Ela bradou:
- Solte-o! Ele não fez mal algum. Eu o amo, papai. O senhor compreende o que isso significa. Eu o convenci a fazer esse casa mento... eu o forcei... por meio do amor dele por mim.
Uma leve contração que poderia ter sido um sinal de bom humor apareceu no canto da boca do rei. Ele estava pensando: sim, a filha era capaz de forçá-lo a casar-se com ela. Devia tê-lo escolhido e depois ele não pudera dizer nada. Aquela era a sua filha Joanna. Como podia deixar de admirar uma filha daquelas? Era só fogo e energia. E também não demonstrava nenhum medo.
- Diga-me uma coisa - prosseguiu ela. - Por que não é vergonhoso um homem de posição casar-se com uma mulher pobre, mas quando uma mulher de posição se casa com um homem humilde, isso é considerado vergonhoso?
- Você é uma princesa. Ele não é ninguém. Você tem que pedir minha permissão para se casar. Você zombou de mim... e de todo o país. Havia muitos querendo a sua mão.
- Dispostos a melhorar de situação por meio de uma aliança real. Majestade, eu me casei uma vez para agradá-lo. O senhor me deu a um homem velho.
- Gilbert foi bom para você.
- Que outra coisa ele poderia ter sido? Ele fez bem, não fez, em se casar com a filha do rei? Mas eu me casei com ele para agradar o senhor. Aceitei aquele homem de idade porque ele era importante para os seus planos. Vivi com ele, gerei os filhos dele, e depois ele morreu. Por que, agora, não posso me casar de acordo com uma escolha feita por mim?
- Você não deve se casar, a não ser com quem eu disser.
- Isso é muito injusto. Então devo privar-me do amor, porque sou filha de um rei? Um casamento por interesses de Estado... eu aceitei. Mas reivindico o direito de escolher por mim mesma da segunda vez.
- Você não tem esse direito - berrou o rei. - Vai fazer o que eu disser.
- O senhor não pode desmanchar nosso casamento. Ralph é meu marido. Nada que o senhor possa fazer a ele vai alterar isso.
- Ele pode continuar como meu prisioneiro. Você perderá seus bens. Vai ter que aprender o que acontece com todo aquele que desobedecer ao rei.
- Vejo que me enganei. Pensei que tivesse um pai amoroso. Como nós nos amamos... antigamente! Quando nossa mãe estava aqui, com as meninas e o pequeno Eduardo... Como confiávamos no senhor; como estávamos seguras do seu amor! Mas eram botões delicados, não eram?, destruídos pelo primeiro vento frio... como os botões em maio... belos, mas delicados.
Joanna colocou a mão em seu corpo, onde podia sentir a criança.
- Majestade... talvez minhas aias... O rei estava junto dela.
- O que é?
Ela fez um gesto para que ele se afastasse.
- É como se o neném sentisse a indelicadeza do avô.
- Você deve ser levada para os seus aposentos. Ela deu de ombros.
- Adeus, papai; o senhor é um homem inflexível. Eu não poderia acreditar...
As lágrimas brotaram em seus olhos, e de repente Joanna se atirou nos braços dele.
- Não posso suportar - disse ela. - Não o meu pai tão querido...
O rei colocou os lábios contra os cabelos da filha. Como era bonita! Como a sua paixão era violenta! Não queria que ela fosse diferente. A rebelde, sua filha querida. Sempre se orgulhara muito dela.
Joanna se agarrava nele. Não queria soltá-lo. Não que ele desse qualquer sinal de obrigá-la a soltá-lo.
- Diga que estou perdoada - murmurou, de forma quase incoerente. - Depois, eu vou embora... Talvez eu devesse me juntar ao meu marido na prisão... Seu neto vai nascer no cativeiro, mas pelo menos estarei com o meu marido...
- Está bem! - disse ele, mal-humorado.
- Oh, papai, creio que, no final das contas, o senhor gosta um pouco de mim.
- Você é minha filha adorada, e sabe disso.
Joanna passou os braços pelo pescoço dele e seu rosto estava radiante.
- Ainda... sua filha adorada?
- Vai ser sempre.
- Oh, meu querido pai, como o senhor me deixou feliz!
- Minha querida filha, eu me sentia muito triste por existir essa infelicidade entre nós dois.
- Isso não deve acontecer mais. Querido pai, deixe que eu lhe diga o quanto gosto do meu marido. O senhor também vai gostar dele, bastará vê-lo. O senhor tem que amar uma pessoa que ama tanto sua filha e deu a ela tamanha felicidade. Papai, para me fazer feliz, quer me dar a ordem para a soltura dele?
Ele tomou-lhe a mão e a beijou.
- Suponho que deva fazer isso, já que minha filha está mandando.
- Ninguém manda no rei, mas devido à bondade que há no seu coração e ao amor pelos filhos, ele não pode deixar que continuem inconsoláveis. Quero visitar todos os cruzeiros em homenagem à minha mãe e dar graças, junto a eles, porque o senhor me perdoou. Quero levar meu marido até lá, para que nós dois possamos agradecer a ela. Se o senhor voltar a me amar, poderei ser a mulher mais feliz sobre a Terra.
- Eu nunca deixei de amar você. Era a vez da filha castigá-lo.
- Parecia que tinha deixado. Nossa mãe deve ter chorado no céu pela sua crueldade para comigo e com os meus.
Ele estremeceu de leve. Perguntava-se o que Eleanor, lá no céu, estaria pensando de seus planos de tornar a se casar, de seus anseios em relação à bela Blanche, a mais bela princesa jamais vista, segundo se dizia.
Sentia-se contrafeito, porque o seu desejo por Blanche parecia uma infidelidade para com Eleanor.
- Ela vai se alegrar, agora, porque somos bons amigos - disse Joanna. - Estou certa de que está olhando para nós lá de cima e chorando de alegria.
Ela vai compreender, pensou Eduardo. Eleanor sempre compreendera. Se ela tivesse vivido, ele teria continuado a ser seu marido fiel até o fim de seus dias. Mas ela se fora e Eduardo estava sozinho, e Blanche, pelo que todo mundo dizia, era muito bonita.
Ele disse:
- Seu marido será libertado, suas terras lhe serão devolvidas.
Joanna agarrou-se nele, beijando-o, exultante com o seu triunfo. Ela tivera razão. Força, teimosia, mau génio Plantageneta nada disso podia resistir aos seus estratagemas. O sentimentalismo dele a ajudara, claro, o senso de família dele. Mas a habilidade dela influíra naquilo.
Eduardo ficou muito feliz ao ver o relacionamento deles restabelecido. Admitia que preferia perder um castelo a ouvir uma palavra descortês ou merecer um ato rude dos filhos. Gostava muito de todos. Eles tinham sido a gloriosa coroação de seu amor pela rainha.
Eduardo estava aflito por causa da filha. Toda aquela perturbação não era boa para o filho que estava gestando.
- O neném está feliz, agora. O senhor pode rir, mas posso lhe dizer que ele agora sossegou. Acho que já sabe que tem um avô que é rei.
- Você está falando bobagem - disse ele, carinhoso.
Ela queria se lembrar de cada palavra que fosse dita, de cada gesto que ele fizesse. Iria contar tudo a Ralph, quando os dois estivessem juntos outra vez. Ele iria perceber que tinha uma mulher inteligente e também sedutora.
Despediu-se carinhosamente do pai, e todos ficaram impressionados com a maneira pela qual o rei fora convencido, porque num prazo muito curto Ralph de Monthermer foi solto e, como a corte estava, na ocasião, no palácio de Eltham, dirigiu-se até lá para prestar sua vassalagem ao rei.
Eduardo recebeu-o com gentileza e deu-lhe o título de conde de Gloucester e Hereford. Realmente uma honra. Ele e Joanna foram, então, para o castelo de Marlborough, onde a criança nasceu. Foi uma menina, e deram-lhe o nome de Mary.
A Esposa do Rei
O REI RECEBERA um golpe terrível. Fazia alguns anos que vinha sonhando com Blanche. Tinha-lhe escrito, recebera respostas a suas cartas, e instruíra seus embaixadores junto à corte da França para que mandassem todas as notícias que pudessem da princesa Blanche.
Filipe, o ardiloso rei da França, estava bem ciente do efeito que as notícias sobre os encantos de sua irmã estavam provocando no monarca da Inglaterra, que já estava envelhecendo. Aquilo o divertia. Eduardo estava construindo uma imagem em sua mente, e para o rei da França era vantajoso deixar que ele assim fizesse. Quanto mais desejasse Blanche, maior o preço que seria solicitado a pagar por ela.
O preço foi realmente elevado. A Gasconha deveria passar para os franceses para sempre.
Como posso fazer isso?, perguntava-se Eduardo. A Gasconha! Era da máxima importância estratégica para ele. O rei francês sabia muito bem disso - e sabia do apaixonado desejo de Eduardo e a ele parecia que poderia conseguir que o maravilhado rei concordasse.
As noites de Eduardo eram assombradas pela Gasconha. Era como se a Gasconha se deitasse ao lado dele com a desejável Blanche.
Como poderia ele abrir mão da província? No entanto, como poderia viver sem Blanche? Estava viúvo havia um tempo longo demais. Fazia mais de sete anos que Eleanor morrera. Ela iria compreender que era muito tempo para um rei que, embora com idade avançada, ainda era jovem demais de corpo e alma para ficar sem uma esposa.
Por fim, não pôde esperar mais e tomou uma decisão. Sim, Filipe ficaria com a Gasconha e ele ficaria com Blanche. Seu irmão Edmund estava negociando em seu nome com a corte da França e mantendo-o bem-informado do que acontecia por lá.
Edmund estava aflito, naturalmente. Não confiava naquele ardiloso monarca que, devido à sua bela aparência, era conhecido como Filipe, o Belo.
Em dado momento, Eduardo recebeu um aviso do irmão dizendo que a Gasconha tinha sido entregue aos franceses e um contrato de casamento estava a caminho, mas infelizmente não era o contrato que Eduardo previra. A verdade, escreveu Edmund, era que a princesa Blanche tinha sido motivo de um contrato para se casar com o duque da Áustria, filho mais velho do imperador. Blanche, no entanto, tinha uma irmã mais moça, Marguerite, e o rei da França propunha colocar o nome dela no lugar do de Blanche no contrato de casamento.
O rei teve um acesso de raiva e de dor. Porque todos aqueles anos sonhara com Blanche e agora ficaria com a irmã dela! Marguerite era muito mais nova do que Blanche, mas uma jovem bonita, escreveu Edmund. Era uma situação difícil. Os franceses já estavam com a Gasconha e recuperá-la significaria uma luta dura. E Blanche já estava prometida, de modo que não havia alternativa - se o rei quisesse mesmo uma esposa - senão aceitar Marguerite.
Eduardo amaldiçoou o rei da França. Comparou-se a Jacó, que servira sete anos por Raquel e fora enganado pelo pai da moça e recebera a filha mais velha, Lia. A diferença era que lhe haviam oferecido a filha mais nova.
Mas nada havia que ele pudesse fazer. Tinha de aceitar Marguerite ou ficar sem uma esposa até que realizassem mais negociações demoradas.
Naquele ínterim, ele teve problemas de família. Joanna estava de novo nas boas graças, e ele aceitara o marido dela, mas estava profundamente preocupado com sua filha mais velha, Eleanor, cujo marido, o duque de Bar-le-Duc, permanecia prisioneiro dos franceses. Eleanor estava desolada, mas era impossível o rei fazer alguma coisa. Ele se preocupava muito com ela e estava providenciando uma viagem a Ghent, onde esperava que a filha pudesse juntar-se a ele. Estar ao lado dela outra vez seria um grande prazer, escreveu-lhe Eduardo, e em sua resposta ela disse que nada, a não ser estar de novo ao lado do marido, lhe daria maior prazer.
Eram muitos os problemas a deixarem Eduardo preocupado. Havia diferenças com a França além de pequenos levantes no País de Gales. Estes últimos já eram esperados, pois não podia ter a esperança de que aquele povo orgulhoso fosse aceitar tranquilamente o domínio inglês. Os acontecimentos na Escócia estavam caminhando para um clímax e João Baliol estava se mostrando um governante insatisfatório. Havia também questões de família. O comportamento de Joanna lhe dera muitas noites insones; vivia se preocupando com Eleanor e agora era preciso pensar no casamento da jovem Elizabeth. Margaret não estava muito contente com o marido libertino; como teria sido diferente se todas tivessem entrado para um convento, como fizera Mary. No entanto, ele também se preocupava com Mary, porque de vez em quando lhe ocorria que a filha fora isolada da vida antes de poder decidir se queria ou não. O jovem Eduardo também precisava ser vigiado. Estava com quase quatorze anos e, embora inteligente, não se dedicava aos livros e tinha o hábito de reunir à sua volta as companhias menos desejáveis, pelas quais demonstrava uma amizade exagerada.
Agora havia a jovem Elizabeth - dois anos mais velha do que Eduardo e noiva de João da Holanda. João estivera na Inglaterra durante algum tempo e, portanto, não era um estranho para Elizabeth. Era um rapaz meigo e seria um marido delicado, mas Elizabeth muitas vezes dizia ao pai que tinha horror à ideia de deixar a Inglaterra.
Claro que ele devia ter sido como outros reis. Deveria ter ordenado que os filhos o obedecessem e, se se rebelassem, forçado a obediência. Mas gostava muito dos filhos e ser enérgico com eles significaria uma infelicidade tão grande para Eduardo quanto para eles. Na verdade, ele fora criado numa atmosfera de dedicação familiar - ninguém podia ter tido pais mais dedicados do que ele e aceitara aquilo como um modo de viver. Havia momentos em que era compensador. Ele e Eleanor tinham sido muito felizes com os filhos; mas havia o outro lado da moeda. Amor e indulgência significavam, muitas vezes, angústia.
com ele, não havia dúvida disso. Se tivesse sido um pai menos amoroso, estaria se preocupando com os filhos agora?
O conde da Holanda morrera recentemente e João, o noivo de Elizabeth, era o herdeiro. Houvera um certo mistério quanto à morte do pai de João, Florence, conde da Holanda. Eduardo estivera observando-o de perto desde a morte da Donzela da Noruega, pois o conde da Holanda era um dos descendentes da princesa escocesa Ada, uma das filhas de um dos irmãos de Guilherme o Leão: e Florence ficara decepcionado quando João Baliol foi escolhido como rei da Escócia. A partir daquele momento, mostrara ser mais amigo da França do que da Inglaterra. Chegara, até, a prometer à França uma ajuda contra os ingleses se Filipe lhe pagasse bem, o que, naturalmente, teria significado o fim da proposta aliança com Elizabeth.
Eduardo podia dar o desprezo àquilo, porque o filho de Florence, João, que fora enviado para a Inglaterra a fim de ser educado lá, ainda estava no país. João, quando informado da situação, disse a Eduardo que se considerava compromissado com Elizabeth e, como só havia recebido o bem nas mãos de seu futuro sogro, ficaria com Eduardo contra o próprio pai.
Florence tivera várias amantes e, com isso, tivera muitos filhos ilegítimos, de modo que João teve uma resposta imediata.
- Já que meu filho legítimo acha que deve insultar-me, vou deserdá-lo. Tenho filhos bastardos dignos e posso colocar um deles em seu lugar.
Eduardo ficou chocado com uma sugestão daquela e escreveu em termos veementes a Florence, chamando atenção para a loucura de seu comportamento. A ameaça também não agradara a alguns de seus súditos e eles começaram a tramar contra ele. Florence tinha muitos inimigos, entre os quais um de seus ministros, Gherard de Valsen, que tinha uma razão muito especial para odiá-lo, porque Florence quisera arranjar casamento para uma de suas amantes e escolhera Valsen para ser o marido. A discutível honra fora recusada, com indignação, por Valsen, primeiro porque estava prestes a se casar com a mulher que ele mesmo escolhera e, segundo, porque mesmo que não estivesse, não tinha vontade alguma de aceitar uma das mulheres descartadas por Florence. Florence ficara furioso e decidira vingar-se de Valsen. Poucos meses depois do casamento deste, Florence mandou um bando de malfeitores raptar a mulher de Valsen e levá-la para um de seus castelos. Lá, ele estava esperando por ela. Estuprou-a e mandou-a de volta para Valsen, dizendo que Valsen estava enganado, pois se casara com uma das amantes do conde Florence.
Aquilo fora a sua sentença de morte, porque Valsen agora colocara-se à frente de seus inimigos e decidira vingar-se. O plano era raptar Florence e foi posto imediatamente em ação e, quando Valsen ficou com Florence em seu poder, escarneceu dele dizendo o que iriam fazer com ele e declarou que sua vingança seria amarga. Antes que aquela ameaça pudesse ser concretizada, alguns dos amigos de Florence tentaram libertá-lo. A tentativa foi frustrada e, desesperado, Valsen convenceu seus companheiros conspiradores de que Florence tinha de morrer. Ele foi brutalmente assassinado e teve o corpo mutilado.
O jovem João fora declarado conde da Holanda.
Era opinião geral que Eduardo estivera envolvido na conspiração com Valsen. Ele negava isso e convidou os nobres holandeses a irem à Inglaterra para discutir o casamento do conde deles com sua filha. Eles foram, e o casamento ficou combinado. Eduardo disse que o ato deveria realizar-se logo.
O rei convocou o bispo de Londres a Ipswich, onde seria realizado o casamento.
O príncipe Eduardo foi para Ipswich, com uma comitiva imponente e sua irmã Margaret também esteve presente. Ela ainda estava na Inglaterra, sempre colocando obstáculos à sua ida para unir-se ao marido em Brabant, e o rei, conhecendo o caráter do marido dela, não tentara persuadi-la.
Foi uma ocasião importante para a cidade de Ipswich, e o povo saiu às ruas aos milhares para aglomerar-se em volta da igreja e ver a noiva real e seu noivo.
Houve grandes festejos, e o rei chamara os melhores menestréis, tamborileiros, palhaços e tocadores de alaúde de todas as partes do país. Houve danças e comemorações, com mímicos para divertir os participantes e vinho até para quem estava nas ruas.
Depois que as festividades acabassem, Elizabeth devia ir para a Holanda, e fizeram-se preparativos para a partida.
Mas Elizabeth não queria ir. Recusava-se a sair do quarto e o rei, sabendo disso, entrou de supetão e quis saber o que havia de errado.
A jovem atirou-se para ele e passou-lhe os braços pelo pescoço.
- Meu querido senhor, não posso deixá-lo.
- Ora, ora - disse o rei. - Você já não é mais criança. Tem um marido, e seu lugar é ao lado dele.
- Querido pai, o senhor irá a Ghent muito em breve. Quero esperar e ir com o senhor. Por favor, papai, deixe eu ficar um pouco mais com o senhor.
- Minha filha querida - replicou o rei -, está tudo combinado. As pessoas que vão com você estão prontas para partir. Você não pode decidir, a esta altura, que não vai.
- Não suportarei me afastar do senhor.
- Seu amor me deixa agradecido - disse o rei -, mas você tem que ir, minha filha. Talvez nos encontremos em Ghent. Pronto. Que tal?
A filha recuou, afastando-se dele. Estava muito bonita com os longos cabelos caindo do diadema incrustado de jóias que a coroava.
- Eu não vou - disse, com firmeza.
- Você tem que ir - replicou ele.
- Não posso. Não vou.
- Como ousa me desobedecer? - bradou o rei.
- Querido pai, não quero desobedecê-lo. Mas como posso ir embora da minha casa? Se nossa mãe estivesse aqui...
Era demais. Eram tantos os encargos que ele tinha sobre os ombros! De repente, ficou furiosamente zangado. As filhas viviam desafiando-o. Ele fora muito leniente com elas. Achavam que por serem muito bonitas e por ele e Eleanor terem dado muita importância a elas, podiam fazer o que quisessem com ele. Num acesso de raiva, Eduardo arrancou o diadema da cabeça dela e jogou-o na lareira.
Ela gritou, assustada. O diadema era a sua jóia mais valiosa.
- Majestade! - gritou ela, e correu para a lareira. Ele a deteve.
- Você vai ver - disse ele - que deve tudo o que tem a mim. Tudo o que peço em troca é obediência. Oh, Deus, quem entende as filhas?
Elizabeth começou a chorar.
- O senhor já não gosta mais de nós. Não gosta mais de mim. Jogou meu diadema na fogueira. Oh, papai, o senhor não pode gostar de mim.
Então, o pensamento sobre as valiosas jóias que o diadema continha foi demais para ela. Correu até a lareira e recuperou o diadema.
Ele estava empretecido e duas das pedras tinham sido perdidas. Ela o largou porque estava quente demais e o diadema caiu no chão entre os dois. O rei afastou-o com um pontapé e estava para sair do quarto quando ela segurou-lhe o braço.
- Papai, é porque não posso suportar abandonar o senhor. Ele se sentiu enternecer.
- Queimou os dedos? - perguntou.
- Um pouco, talvez.
- Sua tola.
- Era a minha jóia mais bonita - disse ela, e começou a rir.
O rei nunca resistia ao riso das filhas. Eleanor dissera, certa vez, que poucas coisas a deixavam tão feliz quanto ouvir os filhos rindo, e Eduardo concordara com ela.
- Oh, meu pai querido, o senhor está sorrindo. Acho que já não está contrariado comigo. Se não estiver, fico muito feliz... e se eu puder ficar com o senhor um pouco mais... só um pouco, até o senhor ir a Ghent...
Ele franziu o cenho. Depois disse, mal-humorado:
- Muito bem. Você vai ficar até lá. E quando eu sair de lá - prosseguiu, com veemência -, terá de ficar com o seu marido.
Era desobediente como a irmã Joanna, mas elas o amavam, e Eduardo ficou contente por ela não querer deixá-lo.
Ele estava ansioso por chegar a Ghent onde, acreditava, Eleanor, a mais querida de todas as suas filhas, o encontraria. A querida Eleanor, que se achava numa situação muito trágica. Poderia conversar com ela sobre o seu casamento que estava próximo. Ela compreenderia.
Finalmente ele chegara e Eleanor estava lá à sua espera. O rei esqueceu todo o cerimonial ao vê-la, sua filha mais querida.
- Minha doce filha - disse, abraçando-a.
- Oh, pai querido, como estava ansiosa por vê-lo!
- Você se sente infeliz, eu sei.
- Não há notícias dele.
- Nós temos de conseguir a soltura dele.
- Oh, papai, se o senhor pudesse! Eu e as crianças estamos ansiosas pela volta dele.
Eduardo disse que faria tudo ao seu alcance. Talvez depois do seu casamento pudesse fazer alguma coisa.
- Eleanor, minha filha, você não acharia que eu estaria cometendo um erro ao me casar de novo?
- Muitas vezes me pergunto por que não se casou antes - respondeu ela. - O senhor é um homem que adora a vida em família, e tem sido difícil para o senhor desde a morte de nossa mãe.
Eduardo sabia que a filha iria compreender. Animado, falou sobre suas esperanças em relação a Blanche e contou como o rei da França o enganara e estava oferecendo Marguerite.
Eleanor teve um tremor.
- O rei da França é um homem cruel - disse ela. - Tenho motivos para saber disso. Dizem que a primeira coisa que se percebe nele é a beleza de seus traços. Depois, percebe-se que é ríspido, cruel, vingador... e ambicioso.
- Aprendi que não se deve confiar nele e vou me lembrar disso.
- Querido pai, talvez o senhor seja mais feliz com Marguerite do que com aquela famosa beldade, cujos elogios têm sido cantados por toda a Europa. Isso pode muito bem ter feito com que ela ficasse um pouco convencida. Marguerite, à sombra dela, pode ser a esposa para o senhor. Lembra-se de como nossa mãe sempre foi delicada e bondosa. Minha avó tinha a reputação de uma mulher de grande beleza, e embora a amássemos muito, todos sabíamos que ela achava sempre certo que se fizesse o que ela queria. Ouvi minha mãe dizer que nunca poderia competir, em aparência, com a sogra. Mas sabemos, querido pai, o quanto era doce o temperamento dela.
- Meu consolo - disse ele, carinhoso. - Eu sabia que você seria assim.
Sentiu-se aliviado, feliz, e decidido a fazer o possível para tirar o marido dela da prisão. Devia pesar um pouco o fato de ele estar pronto a se casar com a irmã mais nova do rei da França, quando lhe haviam prometido a mais velha.
Era ótimo estar com ela, embora o prazer fosse maculado pelas pontadas de aflição que sentia em relação à saúde da filha. Envelhecera bastante desde que saíra da Inglaterra, o que não era de admirar, pois sofrera muito. Eduardo ficara muito feliz por ela, casada já madura, ter, afinal, feito um casamento por amor. Felizmente, ela contava com os filhos queridos. Eduardo gostava muito dos netos e dos filhos de Eleanor em especial, simplesmente por serem dela.
Precisava aproveitar aquela visita ao máximo.
A filha lhe trouxera, como presente, um estojo de couro envernizado e contendo um pente e um espelho, e ele disse que iria conservá-lo com carinho enquanto vivesse.
Foi um Natal feliz em Ghent. Margaret estava lá com o marido e, embora dificilmente estivesse feliz com o casamento, parecia têlo aceitado. Eduardo soubera que ela recebera vários dos filhos ilegítimos do marido e os tratara com delicadeza. Pobre Margaret, Eduardo supunha que ela não tinha como protestar, mas imaginava como Joanna teria agido em circunstâncias como aquelas.
Elizabeth esteve presente e ele tinha a esperança de que não fizesse mais cenas para não se separar dele. Claro que se sentia lisonjeado pelo fato de as filhas gostarem tanto dele assim. Era uma pena que tivessem de crescer.
Mas a sua principal preocupação era com a saúde de Eleanor. Sabia que a filha fingia sentir-se melhor do que aparentava porque não queria que ficasse preocupado.
Ele- tinha de conseguir que o marido de Eleanor fosse libertado. Assim que se casasse, ele o faria. Aquilo o fez voltar às ideias de casamento. Estaria agindo com inteligência? Logo faria sessenta anos. Ainda era viril. Claro que devia ter-se casado havia quatro ou cinco anos; devia ter pensado nisso logo após a morte de Eleanor. Não, não poderia ter feito aquilo.
Teria parecido desleal demais. Na verdade, precisava de mais filhos homens. Tinha suas filhas adoradas e não as teria trocado por meninos... mas um rei devia ter filhos homens, e ele só tinha Eduardo.
Eduardo o preocupava um pouco. Não estava crescendo exatamente como o pai desejaria. Era inteligente, mas não se aplicava e cercava-se de companhias de reputação discutível. com o tempo ele iria se corrigir, pois ainda era muito jovem. Era alto e bemapessoado. Aquilo representava uma vantagem. O povo gostava de um rei bonito e, acima de tudo, de um rei alto. Ficava bem, num rei, ser mais alto do que os súditos.
Tudo ficaria bem, e era correto ele tornar a se casar e ter mais filhos.
Por isso, dedicou-se aos festejos de Natal em Ghent. Quando estivesse tudo terminado, iria despedir-se das três filhas. Quisera têlas casado com membros de famílias nobres inglesas. Mas claro que isso não era bom. Gilbert de Clare fora um homem que era tão necessário aplacar quanto os membros de casas reais. Por isso ele ficara com Joanna. E agora, Joanna se casara com aquele tal de Monthermer. Pelo menos aquilo lhe deixara uma filha na Inglaterra. Não podia levar a pobre da Mary em consideração.
Terminadas as comemorações, ele se despediu de Eleanor com muitos protestos carinhosos de afeto. Ficou meditando, angustiado, depois que ela se foi. Estava muito pálida e de aparência doentia, muito diferente da saudável moça de quem ele sempre se orgulhara tanto.
Foi em março que ele voltou para a Inglaterra e não estava lá havia muito tempo quando recebeu a notícia da morte de sua filha Eleanor.
Ficou prostrado de dor. Andara preocupado com a palidez dela, mas aquilo era inteiramente inesperado. Ficou cheio de remorsos. Deveria ter insistido para que o marido dela conseguisse a liberdade. Não deveria ter-se deixado deter por coisa alguma... coisa alguma...
Sentia-se oprimido por tantas preocupações.
Problemas na França, na Escócia. Teria de tomar medidas drásticas ao norte da fronteira. E Eleanor, a mais adorada de suas adoradas filhas, estava morta.
Só pensando no casamento que estava próximo ele conseguia sair do seu desânimo.
Foi com grande consternação que Marguerite, irmã do rei da França, soube que iria se casar com o velho rei da Inglaterra. Sua irmã, a bela Blanche, sobre quem os poetas cantavam, ria quando recebia as cartas dele. Lia-as em voz alta para a irmã, que ficava impressionada com o fato de um grande rei, que nunca vira Blanche, ter-se apaixonado tanto pelo que ouvira falar sobre sua irmã.
Blanche considerara aquilo compreensível. Eram muitas as canções compostas sobre ela, e Marguerite soubera que pessoas ficavam pasmas quando a viam.
Seu irmão, o rei, também era muito bonito. Tanto assim, que todos o conheciam como Filipe, o Belo. Ela, Marguerite, que poderia ter sido reconhecida como muito bonita em qualquer outra família, era tão ofuscada pelo belo irmão e pela bonita irmã, que passara a ser considerada insignificante.
- Pouco importa - dissera-lhe a sua mãe, a rainha Marie -, você pode ser boa. Tem os traços de seu avô e sabe que ele foi um grande homem e ficou conhecido, ainda vivo, como são Luís.
Marguerite, sem dúvida, sempre cedera a vez a Blanche que, de qualquer modo, era seis anos mais velha, e não se lembrava de uma única vez em que as pessoas não tivessem comentado a beleza dela.
Blanche achara muito divertida a ideia do que Eduardo estava disposto a pagar por ela.
- Nosso irmão está achando muito divertido - disse ela. Ele começa a me dar um grande valor. Para o rei da Inglaterra, estou valendo a Gasconha. Isso representa valer bastante, irmãzinha.
- O rei da Inglaterra deve gostar muito de você.
- Ele ama uma mulher que nunca viu. E por quê? Porque outras pessoas a acham bonita. Nosso irmão refere-se a mim como o nosso grande prémio e diz que o rei da Inglaterra é um velho sátiro devasso que está ansioso por ter a cama aquecida por uma mulher jovem.
Marguerite tremeu.
- Pobre Blanche... - começou ela.
Blanche odiava que sentissem pena dela e o fato de sua insignificante irmã expressar isso a deixou com raiva.
- Pobre, sim! vou ser rainha da Inglaterra. Já pensou nisso? É o mesmo que ser rainha da França.
- Ora, como você agora é uma princesa da França, será um avanço tão grande assim?
- Minha séria e pequena Marguerite. Espero que tenha razão, mas me agrada ter esse velho - que ainda por cima é rei - tão ansioso por mim que dá ao nosso irmão um território que os ingleses juraram nunca entregar.
- Deve ser maravilhoso ser tão bonita assim - disse Marguerite.
Blanche puxou os longos cabelos da irmã e riu dela.
E assim, Blanche falara muitas vezes em ir para a Inglaterra e achava divertido o rei inglês ser mantido na expectativa.
Então, aconteceu uma coisa estranha. Eduardo não era o único que procurava a mão de Blanche. O duque da Áustria a queria, e ele era filho do imperador.
O irmão delas discutira demoradamente o assunto com os seus ministros. A Gasconha estava nas mãos deles; por que não deveria Blanche ir para Rudolfph da Áustria? Ainda sobrava Marguerite para o rei da Inglaterra.
Ela jamais se esqueceria do dia em que Filipe mandou chamála para que soubesse qual seria o seu destino.
- Você, irmã, vai para a Inglaterra no lugar de Blanche.
- Mas... majestade... - gaguejara ela. - Como posso ir? Estão esperando por Blanche... É Blanche... que ele quer.
Filipe inclinou para trás a bela cabeça e soltou uma gargalhada.
- Esperando Blanche, ele pode estar, mas vai ter uma surpresa. Receberá Marguerite em troca.
Houve muitas consultas, porque Eduardo era muito temido. Tratava-se de um lutador que era preciso respeitar - muito diferente do pai e do avô -, e Filipe, o Belo, não pretendia irritá-lo demais.
- Uma jovem mais nova! - refletiu Filipe. - A juventude é adorável. Por que não iria ele ficar satisfeito com você? Pode não ter a vivacidade de Blanche, mas isto às vezes pode ser incómodo. Você é mais meiga do que Blanche, e viver com mulheres meigas pode ser muito agradável. Eu diria que o velho Eduardo vai fazer um negócio muito bom.
Sozinha em seu quarto, Marguerite estava amedrontada. Depois, consolou-se. Ele jamais vai me aceitar, garantiu a si mesma. Vai dizer que não me aceita. Isso vai dar em nada.
Mas Eduardo não disse aquilo. Depois de expressar sua fúria diante da perfídia do rei da França quando foi sugerido que a infante filha do rei, Isabella, devia ser dada ao filho de Eduardo, este concordou em aceitar Marguerite.
- Ele vai ficar muito decepcionado comigo - lamentou-se Marguerite. - Vai me odiar por eu não ser Blanche.
Blanche estava inclinada a pensar que isso poderia acontecer, mas ficou muito contente por ir para a Áustria em vez de para a Inglaterra, confiante em que aonde quer que fosse, sua excepcional beleza seria apreciada e lhe traria os benefícios merecidos.
Enquanto isso, Marguerite precisava preparar-se para seguir para a Inglaterra, pois o futuro marido não queria mais saber de demora.
E assim Blanche partiu para a Áustria, e pouco depois Marguerite e sua comitiva dirigiram-se para a costa. Foi uma viagem estranha para uma pessoa que nunca se afastara de casa. O mar estava cinzento e agitado e amedrontador, e ela ficou contente quando pôde ver terra, embora aquilo a levasse para mais perto do noivo que começava a recear conhecer.
Em Dover, muitos homens e mulheres ricamente vestidos esperavam por ela e, depois de passar uma noite sem dormir no castelo de lá, seguiu para Canterbury, onde o rei a aguardava.
Aquele momento foi algo que jamais esqueceria. O rei era tão alto, que os outros homens pareciam diminuir de tamanho. Era idoso... sim, muito velho, mas estivera preparada para isso. Embora tivesse o porte de um rei e a impressão que desse fosse de uma força implacável, ao mesmo tempo irradiava uma bondade tranquilizadora.
- Então, finalmente você veio - disse ele, sorrindo, tomando-lhe a mão e beijando-a.
Ele pensou: como é jovem! Pouco mais que uma criança. Mais moça que minhas filhas... minha agitada Joanna, minha bela Eleanor que nunca mais vou tornar a ver. Pobre menina. Parece assustada, e não é de admirar. Mandada para além-mar, para um homem velho!
E era bonita. Sim, muito bonita. Tinham esquecido de dizerlhe o quanto ela era bonita. Devem ter ficado confundidos pela estonteante perfeição de Blanche.
Quando olhou para aquela menina que tremia, o rei encheu-se de ternura.
Inclinou a cabeça para a dela.
- Vai ficar tudo bem - disse ele. - Não precisa ter medo. E daquele momento em diante, ela ficou pronta para amá-lo.
Eles foram casados em Canterbury pelo arcebispo Robert de Winchelsea. Marguerite ainda não tinha dezessete anos, e Eduardo completara sessenta. As pessoas que se aglomeraram nas ruas e em torno da catedral ficaram encantadas com a esposa muito jovem, e Eduardo também. Estava pensando nas sábias palavras de sua filha Eleanor e não foi difícil persuadir-se de que, afinal, a irmã mais nova talvez fosse a melhor opção.
A jovem estava tão ansiosa por agradar, tão obviamente pedindo desculpas por não ser Blanche, que ele decidiu-se a convencêla de que não estava decepcionado e, ao convencê-la, convenceu a si mesmo.
Quanto a ela, admirou o poder e a realeza dele; a grande estatura seria sempre impressionante, e embora os cabelos - antigamente tão claros - estivessem agora brancos, ele irradiava vitalidade. Era um rei - um rei forte -, e isso ninguém podia negar. Que ele podia ser implacável quando lidasse com os inimigos era óbvio, mas a ternura de seus sentimentos pela família representava um contraste tão grande, que ele se tornava cativante e humano, apesar do seu grande poder.
Aquela ternura ficava muito em evidência no que dizia respeito à jovem esposa. Ele eliminara a maioria dos temores dela e a convencera de que, longe de ser inadequada, o agradava imensamente.
Era um amante delicado; falou-lhe sobre as virtudes da primeira mulher e disse que ficara desolado com a morte dela. Os dois tinham ficado juntos durante muitos anos; ela o acompanhara à Terra Santa; dera-lhe muitos filhos; e quando morrera, ele mandara erigir cruzeiros em todos os pontos em que o caixão descansava a caminho de Londres. Ele iria amar Marguerite como amara Eleanor e sabia que ela faria o mesmo.
- Eu vou - disse ela, com veemência.
- Minha querida rainha - replicou ele -, estou muito contente por ter vindo casar-se comigo. Agora vamos nos conhecer cada vez mais, e o nosso amor um pelo outro irá aumentar da mesma forma.
Infelizmente, aquele terno período acabou de forma abrupta. As notícias da Escócia eram alarmantes. Ele sempre estivera ciente dos problemas que poderiam vir daquela região. Baliol fora deposto. Raramente sentara-se no trono um homem menos capaz de estar ali. Eduardo era o senhor supremo e estava decidido a continuar naquela posição. Iria governar a Escócia, porque via que enquanto não o fizesse haveria problemas por lá; e se quisesse manter o seu lugar na França, não podia ter um inimigo esperando para apunhalálo pelas costas.
Se Baliol tivesse sido um homem forte, e assim mesmo pronto a trabalhar sob o comando dele, tudo teria corrido bem. Mas Baliol se mostrara fraco; não tinha talento para governar e, o pior, não tinha vontade de governar.
Havia um homem que adquirira uma posição de destaque e que dava ao rei grandes motivos para preocupação. Era Guilherme Wallace. Possuía um certo poder magnético. Era o tipo de homem de quem o rei devia desconfiar. Guilherme Wallace tinha talento para atrair homens para a sua bandeira. Sabia como inspirar os homens.
Eduardo colocara lordes ingleses em várias províncias da Escócia para manter a ordem para ele e lembrar aos escoceses, se precisassem de ser lembrados, que deviam vassalagem ao rei da Inglaterra.
Era natural que houvesse problemas constantes entre os escoceses e os senhores feudais ingleses. Os saques tornaram-se frequentes, vários ingleses tinham sido assassinados. Mas isso era inevitável.
O deplorável era que os escoceses tinham encontrado um líder em Guilherme Wallace.
Não se tratava de uma questão de um levante sem expressão. Wallace reunira um exército.
Além do mais, colocara os ingleses para correr em Stirling Bridge e tivera a ousadia de atravessar a fronteira e molestar os habitantes de Cumberland e Westmorland. Aquilo não podia continuar. Ele se aproveitara da ausência de Eduardo quando este estivera na França.
Bem, agora Eduardo voltara. Fizera uma trégua com a França. Casara-se com a irmã do rei francês e podia viver em paz - temporária, talvez - com seus inimigos do outro lado do canal. Mas precisava voltar as atenções para a Escócia, onde eles haviam-se livrado do jugo que ele lhes estabelecera. Eduardo marcharia para o norte. Iria forçar aqueles escoceses a obedecerem. Ele jurara acrescentar a Escócia à sua coroa, como fizera com o País de Gales, e nada - nem mesmo seu casamento - iria impedir que entrasse logo em ação.
Explicou à esposa de uma semana que precisava deixá-la.
- É o que acontece com os reis, querida. Minha primeira mulher, Eleanor, me acompanhava nas viagens. Era vontade dela. Para onde quer que eu fosse, ela não ficava muito atrás. Eu não a levava para o centro das batalhas... apesar de que teria me acompanhado se eu a tivesse levado... que Deus dê descanso à sua alma! Não, ela ficava perto de mim. Chegou até a gerar minha filha em Acre. Espero que você queira ficar perto de mim em todas as ocasiões.
- Oh, vou querer, sim - disse Marguerite, com fervor.
- Eu sei - bradou ele. - Agora, tenho de ir. Você seguirá no momento devido, mas com menos pressa do que eu. Quero que vá para Londres e fique por lá durante algum tempo em seus aposentos na torre. Lá, o povo irá vê-la. Ele vai querer vê-la. Devemos sempre levar em consideração a vontade do povo... e do povo de Londres em especial. Quando o momento for propício, mandarei buscá-la. Você vai?
- De todo o meu coração, majestade. Ele a beijou com ternura.
- Você é uma esposa encantadora, e fico satisfeito por ser minha. Eu poderia desejar ser quarenta anos mais novo e, mesmo assim, ainda seria mais velho do que você, minha doce criança. Vou lhe dizer o que espero de todo o coração. Talvez seja querer demais. Espero que você já possa estar grávida.
- Eu também - respondeu Marguerite.
- Se isso acontecer, mande-me um mensageiro com a notícia. Isso teria um grande significado para mim.
- E para mim, majestade. Logo mandarei o mensageiro.
- Que Deus permita que o nosso desejo se torne realidade. Como eu amaldiçoo esse Guilherme Wallace que me tira de perto de você!
- É só um homem, majestade?
- Sim, um homem. Porque sem ele os escoceses não se rebelariam. Não uma rebelião dessas. com as pequenas incursões para saques, nós podemos lidar. Mas quando surge um grande líder, um que capte a imaginação do povo, precisamos prestar atenção. Por isso, Guilherme Wallace, meu inimigo, vou aí para pegá-lo e quando você estiver em minhas mãos, prometo que vai se arrepender de ter nascido.
- Majestade, talvez ele pense que está fazendo o que é correto pelo seu país.
Ela ruborizou-se um pouco. Não tivera a intenção de dar uma opinião. Mas o rei pareceu não ter ouvido.
A fisionomia dele se fechou; ela viu o punho cerrado e pela primeira vez teve medo dele. Guilherme Wallace provocara um lado da natureza de seu marido que ela não tinha visto antes.
Mas quase que de imediato ele voltou a ser delicado.
- Adeus, querida esposa. Voltarei em breve e lhe digo uma coisa: vou ter a cabeça de Guilherme Wallace num poste para enfeitar minha torre... tal como fiz com os rebeldes de Gales.
No dia seguinte, o rei partiu à frente de seu exército, e à jovem rainha parecia que o nome de Guilherme Wallace estava em todos os lábios.
As Aventuras de Guilherme Wallace
GUILHERME WALLACE sempre odiara os ingleses. Quando se sentava no estúdio com seus livros, em casa do tio, sonhava com batalhas gloriosas, com a expulsão do país dos senhores feudais ingleses, com uma ignominiosa retirada do rei Eduardo para trás da fronteira e permanecendo por lá.
Tanto sonhou, que aquilo passou a ser uma obsessão, e aquele ódio se tornou a maior força de sua vida. Bastava ouvir a palavra "inglês" para o sangue subir-lhe às têmporas e a fúria dominá-lo. Quando via um inglês, tinha de reprimir o desejo de atacá-lo na hora; e via ingleses com muita frequência, porque o rei da Inglaterra os colocara para proteger as cidades que eram guarnições. Quando ia a Stirling, encontrava-os nas tabernas ou perambulando pelas ruas, senhores e donos do lugar - e fazendo com que todo aquele que os ofendesse soubesse disso. Não era raro ver-se um escocês morto pendurado numa forca. Qual tinha sido o seu crime?, perguntava ele. Havia um dar de ombros, um erguer de sobrancelhas, um aperto dos lábios exprimindo um ódio que não ousava ser transformado em palavras. "Oh, ele era um rapaz ousado. Ofendeu os ingleses."
Guilherme estava cheio de amor pelo seu país e de ódio pelos opressores. Enquanto andava pelas ruas de Stirling, dizia para si mesmo: "Isso não vai ser sempre assim. Um dia..." Ele estava esperando por esse dia. Seria um dia de realização de um sonho para Guilherme Wallace.
Ele cavalgava de volta para Dunipace levando o seu sonho de glória militar. Sentava-se à mesa do tio depois de terem comido e conversava com ele. Morava com o tio desde muito cedo em sua infância, porque o pai achara que o irmão dele, o padre de Dunipace, seria um bom mentor para o filho. Guilherme demonstrara, desde o início, que tinha tendência a ser um rebelde; de vez em quando, metera os irmãos - Malcolm, mais velho do que ele, e João, mais novo -, em encrencas. Se achava que sofrera uma injustiça, tinha sempre que vingá-la e seu pai, Sir Malcolm Wallace, decidira que o irmão, que servia a Igreja e levava uma vida tranquila em Dunipace, poderia ter um efeito moderador sobre o filho dele. O padre era também um homem culto e podia receber a incumbência da educação do garoto.
Assim, Guilherme deixara os pais e os dois irmãos e fora morar com o tio. Mostrara-se atento às lições e se saíra bem, mas sua natureza agitada nunca foi dominada, e o menino que tinha ido para Dunipace parecia-se muito com o jovem de dezoito anos que, no estúdio do tio, ouvira falar no plano de casar o filho de Eduardo com a Donzela da Noruega e que quando a garota morrera, Eduardo se transformara numa espécie de senhor feudal e permitira que o fraco João Baliol fosse coroado rei da Escócia.
Ele vociferava contra a situação em que seu país caíra. Amaldiçoava Eduardo.
Seu tio, homem amante da paz, o avisara.
- O que tiver que ser, será - disse ele. - Não adianta zangarse com o destino.
- O que tiver que ser, será, sim - retrucou Guilherme. - Mas não há razão para que aqueles que amam o nosso país não ajudem a torná-lo orgulhoso novamente. Somos nós que iremos torná-lo aquilo que se pretendia que ele fosse.
- Não se meta nisso - aconselhou o tio. - Você podia entrar para a Igreja...
- Para a Igreja! Tio, o senhor me conhece.
- Conheço muito bem - replicou o tio, triste. - E sei de uma coisa: que se você insistir em falar com tanta liberdade com todos que encontra, se mostrar tão claramente o seu ódio pelos ingleses, vai arrumar encrenca.
- com muito prazer - bradou Guilherme. - E o senhor vai ver a encrenca que vou arranjar para eles.
Eduardo é um rei poderoso. Todo mundo sabe disso. Ele é muito diferente do pai. Se não estivesse tão preocupado com suas diferenças com a França, nós estaríamos em dificuldades.
- Jamais ficarei contente sob o tacão do tirano.
- Se você não os provocar...
- Não provocá-los! Eles ocupam as nossas cidades! Perambulam pelas ruas afastando-nos aos empurrões quando passam, tirando nossas mulheres, agindo como conquistadores. E o senhor diz: "Não os provoque!" Eles vão ficar sabendo que não conquistaram a Escócia... e jamais conquistarão.
- Conversa rebelde - disse o tio, sério - e isso vai lhe causar problemas.
Mas Guilherme nunca fora homem de fugir dos problemas.
- Não - disse o tio -, nós vivemos numa paz relativa. É verdade que o rei inglês está acima de nós. Ele quer governar este país. Quer nos conquistar como fez com os nossos companheiros celtas no País de Gales. Entendo o raciocínio dele. Quer fazer desta ilha um só país.
- Para ser governado por ele.
- Ele governa os ingleses bem.
- Por Deus, tio, acho que o senhor está do lado dele.
- Não tome o nome do Senhor em vão em minha casa, eu lhe rogo, meu sobrinho. Estou do lado da paz e vejo uma época em que, se os nossos países fossem um só, com um só rei, poderia ser evitado muito derramamento de sangue.
- Isso é verdade, se formos dominados por esse tirano.
- Se não nos revoltássemos, se ficássemos sossegados sob o governo dele, desfrutaríamos do bom governo que vigora na Inglaterra. É por temer a revolta que ele é enérgico.
- E tem bons motivos para temê-la. Vai descobrir que nós também sabemos ser enérgicos.
O tio abanou a cabeça. Ele jamais mudaria Guilherme. Continuava tão agitado quanto antes de ir para Dunipace.
Pouco depois daquela conversa, o pai de Guilherme, Sir Malcolm Wallace, foi às pressas a Dunipace e seu filho mais velho que recebeu o nome de Malcolm em sua homenagem - foi com ele.
O padre deu as boas-vindas ao irmão e ao sobrinho com prazer, mas soube logo que não traziam boas notícias.
Guilherme desceu correndo para saudar o pai e o irmão mais velho, e seu pai, depois de abraçá-lo e assegurar-se de que gozavam boa saúde, disse estar com muita pressa e precisava falar em segredo.
No estúdio, Malcolm Wallace disse o motivo de sua visita.
- Não podemos mais tolerar o mando dos ingleses em Elderslie - explicou ele. - Deixei isso muito claro e ao fazê-lo coloquei a mim e à minha família em perigo.
- Papai, estou orgulhoso - bradou Guilherme. O pai ergueu a mão.
- Pode ter sido uma loucura. Mas eles estão atrás de mim. Mandei sua mãe e seu irmão João para Kilspindie, no Carse de Gowrie, e quero que você, Guilherme, também vá para lá o mais rápido possível.
- E o senhor? - perguntou Guilherme. - Para onde vai?
- Eu e seu irmão Malcolm vamos prosseguir até Lennox. Há um plano de formar tropas para atacar os ingleses.
- Papai, irei com o senhor.
- Não, meu filho. Tenho uma missão mais importante para você. Quero que vá para Kilspindie e proteja sua mãe e seu irmão.
Guilherme hesitou. Estava ansioso por entrar em combate contra os ingleses, mas a tarefa de proteger a família era, compreendia ele, da máxima importância.
- Quando devo partir?
- O mais cedo possível. Dentro em pouco vai haver um preço pela minha cabeça, podem ter certeza, e os membros de minha família não estarão a salvo.
- vou imediatamente, senhor - bradou Guilherme.
O padre abanou a cabeça e disse que mandaria os criados servirem uma refeição e enquanto estivesse sendo preparada, Guilherme poderia se preparar para partir. O padre estava triste. Sentia, no coração, que nada de bom resultaria daquela rebelião e ele estaria mais feliz se pudessem ter resolvido a questão numa conferência entre escoceses e ingleses.
Guilherme chegou a Kilspindie e encontrou a mãe e o jovem irmão João ansiosos à sua espera. A mãe estava aflita.
- Eu não queria que seu pai saísse com Malcolm dessa maneira.
- Oh, mamãe - bradou Guilherme -, a senhora pensa como o titio. Vocês estão prontos a pagar qualquer preço pela paz.
- A paz é a coisa mais desejável na Terra para uma mulher que tenha marido e filhos.
- Não, mamãe - replicou Guilherme. - A honra vale mais. Eu lhe digo uma coisa. Um dia, vamos expulsar os ingleses da Escócia e eu...
Ele fez uma pausa. Não queria falar do seu sonho. Era valioso demais, e achava que se falasse nele poderia dar azar. Não queria dizer que via a si mesmo à frente de um exército, levando os escoceses à vitória, esmagando o poder de Eduardo. Mas aquele era o sonho e tornava-se mais vívido à medida que ficava mais velho.
Kilspindie! Como era enfadonha! Ali não havia perigo. João tinha aulas com um tutor, mas Guilherme estava muito adiantado para isso. A mãe se preocupava com a sua educação interrompida. Disse que estava em segurança em Kilspindie. Queria que ele fosse para Dundee, para junto de um irmão dela que o abrigaria, e ele poderia frequentar a escola anexa ao mosteiro de lá.
Quando ele lhe garantiu que estava com idade suficiente para parar de ir à escola, ela abanou a cabeça. Estava ansiosa por que completasse os estudos e insistiu em suas tentativas de convencê-lo. Guilherme lhe lembrava que fora mandado para junto dela para protegê-la. Mas ela não via necessidade. De fato, estaria mais segura sem um filho que tinha por hábito expressar em voz alta o que pensava dos ingleses. Se vivesse sossegada, não precisaria de proteção.
Na verdade, a vida calma de Kilspindie não o atraía muito. Se pudesse ter-se unido ao pai, teria ido, mas não fora avisado de onde ele estava, de modo que acabou concordando em sair de Kilspindie e ir para Dundee, para a casa do tio por parte de mãe.
Essa decisão veio a ser fatal. O tio recebeu-o com satisfação e em pouco tempo ele estava instalado na escola, onde trabalhou com afinco na esperança de completar sua educação assim que possível, para que pudesse dedicar-se ao seu destino. Sentia-se ansioso por ir para junto do pai, mas sabia que não devia sair à procura dele, mas ficar num lugar de onde pudesse ir com facilidade em auxílio da mãe se ela precisasse dele.
Em pouco tempo, ficou muito popular na casa do tio, especialmente com a governanta, que o irritava um pouco, às vezes, com suas atenções constantes, por insistir que ele não saísse sem a jaqueta de agasalho por causa dos ventos frios e que comesse todo o mingau. Guilherme a provocava, e ela gostava das provocações e estava visivelmente encantada por ter
um jovem na casa.
O castelo de Dundee estava nas mãos do governador Selby, um dos piores representantes de Eduardo, e o homem era muito impopular na cidade. Seus castigos por insubordinação eram excepcionalmente cruéis e, por ser um homem arrogante, ele insistia no máximo de respeito por parte dos habitantes escoceses. Quando Guilherme passeava a pé pelas ruas da cidade, ardia de fúria. Ficava sentado nas tabernas e ouvia as histórias de injustiça e estava preparado para provocar encrenca.
Um dia ele vestiu a melhor capa e a melhor túnica verdes, a cor da moda, e, colocando a adaga e a espada no cinto, saiu para encontrar os amigos em uma das tabernas.
Na rua estreita, viu um jovem indo em sua direção acompanhado por dois amigos e ficou logo claro que o jovem era alguém de importância, a julgar pelo servilismo dos acompanhantes. Guilherme não precisou que lhe dissessem quem era ele. Vira-o antes, cavalgando com o pai, o governador Selby.
O jovem esperava que Guilherme tirasse o chapéu e fizesse uma mesura acentuada.
Em vez disso, Guilherme barrou-lhe a passagem e mostrou claramente que não tinha intenção nem mesmo de afastar-se para o lado para deixar que ele passasse.
O jovem Selby olhou para Guilherme de alto a baixo com uma insolência que fez com que o coração escocês de Guilherme batesse de raiva e agitação. Finalmente, ele estava cara a cara com um dos inimigos.
- E quem é este? - perguntou Selby, voltando-se para um dos amigos. - Ele é impolido bastante para ser um escocês.
- E você é arrogante bastante para ser um inglês - retorquiu Guilherme, inflamado.
- Vocês ouviram - bradou o jovem Selby. - Ele insultou o nosso rei.
- O quê, aquele tirano! - bradou Guilherme, o sangue fervendo, de modo que se mostrava imprudente ao extremo.
- Pelo corpo de Deus - bradou o jovem Selby. - Vocês ouviram. Ele fala assim do grande Eduardo!
- Eu gostaria de fazer mais do que falar contra ele.
- Acho que precisamos dar uma lição ao escocês – disse Selby. - Quando ele estiver pendurado pelo pescoço na forca, não estará tão atrevido nem parecerá tão bonito nos seus trajes verdes, Selby estava com a mão apoiada na adaga, mas Guilherme se antecipou a ele. Agarrou Selby pelo pescoço, sacudiu-o e então, tirando adaga da bainha, enfiou-a no peito do rapaz, retirou-a, e jogou o jovem ao chão. Ficou claro, bastando um olhar para o filho do governador estirado sobre as pedras do pavimento, que estava morto.
Guilherme matara seu primeiro inglês, e tudo acontecera em poucos segundos. Por um instante, os acompanhantes de Selby ficaram atónitos, mas não por muito tempo. Guilherme, no entanto, agiu mais depressa do que eles. O filho do governador morto pelas suas mãos! Aquilo seria morte certa para ele - provavelmente, tortura. Se fosse apanhado agora, jamais viveria para salvar a Escócia. Girou sobre os calcanhares e, reunindo todas as suas forças, saiu correndo.
Correra de volta para a casa do tio antes de perceber a loucura daquele ato. Ele era conhecido. Tinha sido visto. Aquele era o primeiro lugar em que iriam procurar por ele.
Precisava ir embora. Mas, para onde?
A governanta de seu tio, sentada junto ao seu tear, olhou para ele horrorizada, pois a sua túnica estava suja de sangue.
- Não posso ficar aqui - disse Guilherme, ofegante. - Eles virão atrás de mim. Este é o primeiro lugar onde me procurarão. Tenho de fugir... rápido.
- O senhor matou alguém!
- O filho do governador.
- Que Deus nos proteja. O senhor foi visto? Ele sacudiu a cabeça.
- Adeus, Goody. Não tenho coragem de ficar.
- Espere! Tenho um plano.
- Eles já estão a caminho daqui.
- O senhor iria encontrar-se com eles se tentasse sair. Um momento. Tome. - Ela havia tirado o vestido. - Vista isso...
Ele protestou, mas ela bradou, zangada:
- Faça o que eu digo. É sua única chance.
Ele percebeu a razão daquilo e obedeceu. O vestido era muito pequeno.
- Espere - disse ela, e saiu correndo do quarto. Poucos minutos depois, tendo vestido uma túnica, voltou com um xale e uma touca semelhante à que ela usava sempre.
- Coloque isso - ordenou. - O xale vai esconder o vestido apertado e a touca vai transformá-lo em mulher. Depois, sente-se ao tear e trabalhe.
Ele viu a sensatez do raciocínio dela e obedeceu. Foi bem a tempo, pois ao se voltar para o tear homens de Selby irromperam casa adentro.
- Onde está ele? - perguntou o chefe do grupo. - Onde está o jovem Wallace?
- O jovem Guilherme... - disse a governanta. - Como é que vou saber? O mais provável é que esteja na cidade. É lá que o preguiçoso rapaz passa a maior parte do tempo. Ele gosta é de mulheres e tabernas e é lá que os senhores vão encontrá-lo.
Os homens correram os olhos pelo aposento e mal olharam para a pessoa que acharam ser a criada ao tear.
- Ele pode muito bem estar escondido aqui - disse um deles.
- Dêem uma busca na casa.
Examinaram a casa. Olharam em todos os cómodos e o tempo todo Guilherme continuou a tecer.
Quando desceram, disseram à governanta:
- Se ele chegar, mande nos chamar imediatamente. Ele é um homem procurado.
- Eu mando, meus senhores. Oh, senhor... meus senhores, o que foi que ele fez?
- Assassinato, Goody. Foi o que ele cometeu. E vai ser enforcado por isso. Mas não antes de o fazermos sofrer. O filho do governador...
- Oh, não, meu senhor... oh, não... - A governanta cobrira o rosto com o avental e oscilava de um lado para outro.
- Abatido na sua juventude. Por Deus, vai correr sangue por causa disso. Espere até o governador se recuperar de sua dor.
- Foi assassinato... foi assassinato... o malvado do rapaz disse a governanta, aos soluços.
- Sim, foi assassinato. Lembre-se. Se aquele assassino vier aqui... o que parece que fará em determinado momento. Mantenha-o aqui... venha nos procurar e nos avise. Será recompensada, minha boa mulher. E verá que a justiça será feita.
- Como ele pôde fazer isso? Eu sempre soube que ele era impetuoso. Sabia que não acabaria bem.
Os homens se retiraram. Ela se dirigiu ao tear.
- Continue. Não pare. Continue por algum tempo. Até que eu saiba que não há perigo.
Guilherme obedeceu, exultando com a maneira pela qual eles tinham enganado os ingleses. Ela sentou-se ao lado dele.
- Temos de aguardar o momento propício. Enquanto isso, prepare-se para partir. Para onde vai?
- Tenho de ir para a casa de minha mãe, em Kilspindie. Preciso me certificar de que ela está a salvo.
- Vai precisar ter cuidado. Quando chegar à casa dela, não deve ficar lá. Seria bom que a levasse embora. Oh, meu rapaz, o que foi que você fez? Por que tinha de matar o inglês?
- Minha tarefa, na vida, é matar ingleses e expulsá-los do nosso belo país.
Ela abanou a cabeça.
- Eu gostaria que pudéssemos viver em paz.
- Você fala igual à minha mãe.
- É, rapaz, isso é conversa de mulher. Não vemos bem algum em morrer, mas há muito bem em viver.
- Ser humilhado... ser insultado...
- Cale a boca. Devíamos estar pensando na sua fuga. Você deve esperar até o anoitecer. Depois, deverá sair. Vamos até o estábulo, onde seu cavalo estará pronto. Até lá, você será a minha criada Tabbie...
- E meu tio!
- Vou dizer-lhe o que você provocou. Ele jamais o trairá. Pelo que aconteceu, se formos apanhados, vou assumir a culpa.
- Você é boa para mim. Está arriscando a vida por mim, como sabe.
- Acha que eu ficaria do lado dos ingleses?
- Nunca. Mas se arriscar...
- Bobagem! - disse ela, rápido.
Ele se levantou do tear e deu-lhe um beijo.
Cavalgando durante a noite para Kilspindie, Guilherme ia pensando no que teria pela frente. Finalmente, entrara em combate. Seria um homem procurado. O assassinato do filho de um governador seria considerado traição ao rei da Inglaterra. João Baliol, rei da Escócia, não lhe serviria de ajuda. Era homem de Eduardo. A Escócia precisava de um rei pelo qual valesse a pena lutar. Mas Eduardo deixara que colocassem o velho Toom Tabard no trono porque sabia que se tratava de um homem fraco e isso interessava ao ardiloso
Eduardo, porque quem mandava de verdade na Escócia? Eduardo. Eduardo era o inimigo.
A chegada de Guilherme foi recebida com uma certa aflição em Kilspindie, pois quando souberam que matara o filho do governador Selby, os parentes de sua mãe ficaram horrorizados e temiam que a sua irresponsabilidade trouxesse problemas para todos. Disseram-lhe que não podia ficar em Kilspindie. Isso era claro, porque em breve o clamor público iria segui-lo até lá.
Houve uma reunião imediata da família para discutir o que poderia ser feito, e Guilherme percebeu que ao ir para lá colocara a mãe e todos eles em perigo.
- Você tem de partir já - disseram-lhe os parentes e acrescentaram: - Não seria prudente deixar sua mãe aqui.
Depois de alguma discussão, chegaram à conclusão que João poderia ficar na escola, mas era evidente que Lady Wallace devia ir com o filho. E imediatamente, porque não demoraria muito para que os ingleses chegassem a Kilspindie, pois iriam adivinhar que ele fora procurar a família.
- E não demorem - disse o anfitrião deles, cuja grande preocupação parecia ser pô-los para fora de sua casa e muito rápido. Ficou combinado que eles deveriam disfarçar-se de peregrinos a caminho do santuário de Sta. Margaret; e não querendo demorar mais do que precisassem onde sua presença inspirava tamanho medo, eles logo partiram.
O disfarce era bom, e eles eram aceitos, nas vilas e aldeias por onde passavam, pelo que pretendiam ser e acabaram chegando a Dunipace.
O tio de Guilherme ficou impressionado ao vê-los. Abanou a cabeça. Sabia que o sangue quente de Guilherme e seu violento ódio dos ingleses iriam trazer problemas para ele e sua família. No entanto, precisavam descansar e ser alimentados e discutir com ele qual deveria ser o próximo passo.
Depois que comeram, ele levou-os para aquele estúdio em que antigamente Guilherme trabalhara e sonhara e pediu que se sentassem.
- Tenho más notícias para vocês - disse ele, sério. - Não quis dar enquanto vocês se alimentavam e descansavam um pouco. Acho que será um grande choque.
- Por favor, não nos mantenha mais tempo em suspense, tio - pediu Guilherme e foi para perto da mãe e segurou-lhe uma das mãos, porque previa que as notícias más diziam respeito a seu pai.
- Seu pai enfrentou os ingleses em combate em Elderslie disse o tio. - Foi uma coisa temerária. Ele e seus criados estavam em menor número.
- Eles o prenderam - bradou Lady Wallace, horrorizada.
- Não. Ele morreu em combate e, com ele... Malcolm. Lady Wallace ficou com um olhar parado dirigido à sua frente. Guilherme envolveu-a com um braço e puxou-a para junto dele.
- Os demónios! - bradou ele. - Então, mataram meu pai e meu irmão!
- Seu pai e Malcolm levaram alguns com eles, também, sobrinho. Causaram baixas aos ingleses ao perderem a vida.
- Mortos - sussurrou Lady Wallace. - Meu marido... e meu filho...
- Por Deus - bradou Guilherme. - Eles vão pagar por isso. Não descansarei enquanto não tiver matado vinte ingleses como compensação por essas duas vidas.
- Nada pode compensá-las - disse o tio. - É lamentável que seu pai tenha-se envolvido num combate desses. Era derrota na certa.
- Sinto orgulho dele - bradou Guilherme. - vou vingar ele e meu irmão.
- Primeiro, tem de se preocupar em salvar a sua vida. Você é um homem procurado... e agora, é Sir Guilherme. Precisa cuidar de sua mãe e seu irmão.
Guilherme vacilou quando percebeu a implicação do que aquilo significava. Seu pai... seu irmão... mortos num único dia. E ele o chefe da família. Olhou para a mãe. Parecia frágil em seu sofrimento.
- Mamãe, preciso levá-la para algum lugar seguro. A senhora não fez nada.
- Faça isso assim que puder. Leve-a para a casa do irmão, Ronald Crawford. Ele é amigo do governador de Ayr e não tenho dúvidas de que poderá convencê-lo de que sua mãe é inocente do que eles chamariam de traição. Mas ele não poderá salvá-lo, Guilherme. Nada poderá salvá-lo. Você é um homem procurado.
- Sei muito bem disso - disse Guilherme.
- Então, leve sua mãe daqui. Certifique-se da segurança dela e... trate de se proteger.
Era um conselho sensato. Eles saíram de Dunipace na noite daquele dia e por fim chegaram à casa do irmão de Lady Wallace, em Crosbie. Quando ouviu a história, ele disse que a irmã devia ficar sob sua proteção, mas não havia nada que pudesse fazer para salvar Guilherme. E assim Guilherme, sentindo que a mãe estava em boas mãos, seguiu viagem. Mas não foi longe, porque queria ficar perto da mãe para o caso de ela precisar de sua ajuda, e foi descansar em Auchincruive às margens do Ayr, a cerca de três quilómetros da cidade do mesmo nome. Ali moravam uns parentes distantes, e ele pensou sobre a sorte que tinha por ter tantos laços de família, pois teria a quem recorrer caso precisasse de ajuda. O dono da propriedade era Sir Duncan Wallace e, claro, não poderia negar abrigo a um parente.
Mas Wallace corria perigo e tinha de tomar o máximo de cuidado. Talvez fosse bom dizer que ele era apenas um viajante cansado que pedia pousada por algumas noites antes de seguir caminho. Ninguém dali tinha visto Guilherme, de modo que poderia disfarçarse em outra pessoa e, se fizesse isso, Sir Duncan poderia oferecerlhe abrigo.
Não havia outra coisa para Guilherme fazer, a não ser aceitar aquelas condições. Queria alguns dias para que pudesse montar seu próximo plano de ação. Baliol era muito impopular, e Wallace gostaria de vê-lo substituído. Robert Bruce, pelo menos, tinha tanto direito quanto ele e era inimigo mortal de Baliol. Bruce era um homem velho, mas tinha um filho, e Robert Bruce Júnior tinha-se casado bem, pois ao fazê-lo adquirira as terras e o título de conde de Carrick. Tinha, até, um filho - outro Robert - que, segundo diziam, era um ótimo soldado e um homem ambicioso. Infelizmente, os Bruce tinham feito acordos com a Inglaterra; tinham jurado vassalagem em Carlisle, sobre a hóstia e a espada de Thomas Becket. Se os Bruce não estivessem tão dispostos a cumprir as ordens de Eduardo, se tivessem pegado em armas contra Eduardo, Guilherme teria ficado pronto para se colocar a serviço deles.
Mas não era assim. Não havia um exército regular na Escócia. Os únicos que protestavam eram aqueles que, como Guilherme Wallace, agiam por conta própria. Não adiantava. Ele devia formar um exército. Se pudesse! Em vez disso, tinha de fugir sorrateiramente com um nome fictício, esperando pela oportunidade que parecia que jamais chegaria.
Dominado pela dor da perda do pai e do irmão, frustrado pelo fato de ser um fugitivo, ele se enfurecia, esbravejava e sofria em silêncio, enquanto se perguntava o que poderia fazer em seguida e para onde deveria ir.
Tão frustrado estava ele por se esconder em casa de Sir Duncan, que achou irresistível o ímpeto de andar pelas redondezas e, certificando-se de que não chamava atenção com seus trajes, muitas vezes fazia expedições até a cidade. Quando via os soldados ingleses lá, tinha grande dificuldade em se conter, mas ao pensar que se se fosse descoberto e apanhado aquilo pouco adiantaria para a Escócia, era muito cuidadoso.
O governador de Ayr era Lord Percy, que estava ansioso por lembrar aos escoceses que era ele quem mandava. Seus soldados ingleses estavam em evidência por toda a cidade e gostavam muito de mostrar aos escoceses o quanto eram superiores. Gostavam muito de desafiá-los para demonstrações de força, nas quais era aconselhável deixar que ganhassem.
Caminhando pelas ruas um dia, Guilherme chegou a um pequeno grupo que assistia a um homem que era um verdadeiro gigante, nu da cintura para cima, exibindo braços musculosos e grandes músculos.
O homem chamava atenção para o seu belo físico. Era inglês, bradava. Havia muitos iguais a ele na Inglaterra. Haveria um só escocês que se comparasse a ele? Se houvesse, que se apresentasse.
- Dois de vocês se adiantem e eu lhes mostro que posso levantar os dois ao mesmo tempo do chão. Apresentem-se. Apresentem-se. O quê, estão com medo?
Agarrou dois jovens boquiabertos e, levantando-os do chão, atirou-os de modo que caíram contra o muro áspero. A multidão teve um sorriso afetado, e os dois rapazes se ergueram arranhados e sangrando e escapuliram o mais depressa possível.
- Bravos escoceses! - bradou o gigante. - Vocês ficam aí parados, estupefatos. Ninguém mais vai me desafiar? Pois então vejam, eu vou desafiar vocês. Eis aqui um belo porrete. Me dêem um groat e em troca terão oportunidade de me darem uma pancada nas costas nuas. Vocês vão ver que, para mim, será como se uma mosca tivesse pousado nelas. Venha, você...
Ele escolheu um rapaz que estava na multidão e que, acanhado, ofereceu o seu groat. O gigante pegou a moeda, examinou-a, balançou a cabeça e colocou o porrete nas mãos trémulas do escocês. A multidão ficou boquiaberta enquanto o escocês dava o golpe. O gigante voltou a cabeça.
- Você me bateu? Ora, ora, meu rapazinho escocês, eu não tinha certeza. Pensei que uma leve brisa tinha me tocado, nada mais.
A multidão riu, e o embaraçado escocês escapuliu depressa, tendo sofrido a perda da sua moeda e da sua dignidade.
Guilherme, observando, sentiu as palmas das mãos comicharem. Estudou o gigante. Um homem forte, sim, mas era tão forte quanto ele. O gigante era alto, mas Guilherme também era e tinha menos carne, o que significa que era mais ágil. Por Deus, valia um groat aplicar nele um golpe de que ele se lembraria durante meses.
Ele se adiantou.
- Ah - bradou o gigante. - Aqui está outro bravo escocês.
- Tome o groat. Me dê o porrete - replicou Guilherme.
- Claro, claro, meu belo cavalheiro. Eis o porrete. Venha, estou pronto.
Guilherme ergueu o porrete; toda a sua força estava concentrada nos braços quando ele o arriou nas costas do gigante. Houve um estalo; o gigante cambaleou; caiu para a frente. Sua coluna estava quebrada.
Houve um grito de terror. Os soldados que assistiam cercaram o herói deles. Cercaram Guilherme, também.
- Meu Deus, ele está morto - disse alguém. Eles apertaram o cerco a Guilherme. - Você o matou.
- Num combate justo - respondeu Guilherme.
- Seu... escocês!
- Seu... inglês!
Aquilo foi o sinal. Eles teriam agarrado Guilherme, mas ele foi rápido demais para eles. Derrubou dois com o porrete que levava e depois, atirando-o para o lado, tirou a adaga do cinto. Em pouco tempo cinco deles jaziam nas pedras da pavimentação... mortos.
Ele sabia que tinha de fugir. Precisava achar um cavalo, sair em disparada e ir o mais longe possível daqueles homens enraivecidos.
Mas não podia. A multidão estava muito compacta. As pessoas o cercaram. Todos queriam dar uma olhadela no homem que matara o gigante.
Voltou-se para lutar, mas havia ingleses demais contra ele. Deu um pontapé e um homem caiu de costas contorcendo-se de dor, mas havia outro em seu lugar.
Ele foi agarrado e levado embora.
- Para a cadeia - cantavam eles. - Atirem-no na prisão.
Foi uma felicidade não saberem quem era ele, caso contrário teriam pensado num fim cruel para ele. Naquele momento, ele era apenas um escocês que fora desafiado e matara o desafiante e depois abatera outros no combate. Aquele tipo de lutas sangrentas que acabavam em morte era bem comum. Mas ele matara ingleses e era escocês, e por isso deveria ser metido na cadeia até que decidissem o que fazer com ele.
A velha cadeia de Ayr era um lugar repugnante. A cela era tão pequena, que ele, por ser alto, não podia ficar em pé. Não havia luz, e ele, que estava acostumado ao ar puro, achava o lugar intolerável. Mal podia mexer-se; o cheiro do local o deixava enjoado; os ratos apareciam e o observavam. Na obscuridade, ele via seus olhos amarelos. Sabia que estavam esperando até que ele ficasse fraco demais para lutar contra eles e, então, iriam atacá-lo.
Ficou desesperado. Seu belo sonho desaparecera; fora varrido para longe por causa de uma briga nas ruas de uma cidade. Que tolo tinha sido! Nunca deveria ter desafiado o gigante; nunca deveria ter perdido o controle e matado aqueles ingleses. Devia ter aprendido a lição com o filho de Selby.
Não conseguia conter a fúria. Sentia demais a humilhação de seus compatriotas. Era devido àquele seu fervor que jurara dedicar a vida à causa de seu país; e por isso ali estava... naquela temível prisão. E como poderia fugir dela? Uma vez por dia, sua comida era empurrada através de uma grade. Era sempre arenque em decomposição no sal, tirado do barril... incomível, a não ser por um homem morto de fome; e com o arenque vinha um pouco de água... só o suficiente para mante-lo vivo. Não fosse isso, e teria acreditado que haviam esquecido dele.
A princípio, ele tentara pensar num meio de fugir. Batera nas paredes de pedra com os punhos, até ficarem feridos; tentara abrir à força as barras de ferro da porta, mas nem mesmo a sua força conseguira alguma coisa. Então, com base na dieta de arenque fedorento e água, suas forças começaram a ser solapadas e o desespero tomou conta dele.
É o fim, pensou. É isso, então.
Certa vez, enquanto estava ali estirado, a porta se abriu e uma lanterna brilhou sobre o seu rosto. Ele ouviu duas vozes.
- Não pode durar muito mais tempo - disse uma delas.
- Só mais um dia - disse a outra.
A luz se apagou. Ficou ali deitado. Tentou interpretar o que queriam dizer, mas estava cansado demais. Mais tarde, ele mesmo se despertou. Então, estava morrendo. Era isso que queriam dizer. Iriam tirá-lo daquele inferno... quando estivesse morto, e ele não queria outra coisa tanto quanto queria sair dali.
Estava delirante, sem ter certeza de onde estava e, no entanto, um pensamento continuava a martelar-lhe a cabeça. Só seria tirado daquele lugar se estivesse morto e por isso precisava morrer... e se não estivesse morto, precisava fingir que estava. Era urgente sair dali.
A luz estava ali. Ele ficou imóvel, os olhos semicerrados.
A voz disse:
- Dessa vez, ele se foi.
Alguém cutucou-o com o pé. Ele não se mexeu. Semiconsciente, um pensamento lhe ocorria repetidas vezes: só vou sair daqui quando estiver morto... eu devo estar morto...
- vou segurá-lo pelas pernas... Você pega pelos ombros... Ele estava vagamente consciente. Estava saindo da cela; estava deixando a miséria, o inferno na Terra; enganara os ratos; nunca mais tornaria a sentir o gosto de arenques guardados em barris.
- Por cima do muro... na estrumeira... - disse a voz. Bendito ar puro. Intoxicou-o; estava desmaiando com a alegria em respirá-lo. Estava voando pelo maravilhoso, estonteante, doce ar puro... e então perdeu a consciência.
Acordou. Anoitecia e ele se encontrava num quarto pequeno, deitado numa cama de rodinhas. Tudo tinha um perfume doce. Foi a primeira sensação que teve.
Pensou: então, eu morri e vim para o céu.
Então, fechou os olhos.
Ouviu vozes.
- Ele vai se recuperar.
- Ele é forte como um touro.
- Nunca pensei que pudesse... depois do estado em que ficou. Estavam falando sobre ele. Abriu os olhos para a luz do dia.
Uma jovem estava de pé ao lado de uma janela e a luz brilhava em seu rosto. Teve a certeza, então, de que tinha ido para o céu, porque ela parecia um anjo. Seus
longos cabelos caíam em duas grossas tranças, uma das quais lhe caía sobre o ombro direito; a túnica, com largas mangas até os cotovelos, era azul e por baixo dela uma saia amarelo-ouro quase da cor dos cabelos; os olhos eram azuis e as faces, rosadas.
- Ele está olhando para nós - disse a jovem. - Está acordado.
Ele ouviu-se perguntando:
- Quem... é você?
Ela se deslocou para o lado da cama.
- Mamãe - chamou. - Mamãe, venha cá. Eram duas mulheres. Mãe e filha.
- Onde estou...?
- Em lugar seguro e bem - disse a jovem. Ela se aproximou da cama e sorriu para ele.
- Você é bonita - disse ele.
A mulher mais velha levou uma taça de consome aos lábios dele, e ele bebeu sofregamente.
- Está vendo, filha, ele agora está tomando. Ele olhou de uma para a outra.
- Vocês parecem... contentes - disse ele com voz fraca.
- Pensávamos que você fosse morrer - respondeu a jovem.
Elas não o deixavam falar muito, mas aos poucos ele ficou sabendo a respeito delas.
Ele devia a vida, uma vez mais, à governanta de seu tio, que o fizera sentar-se ao tear dela e tecer quando tinham ido à procura dele. Ela mandara o sobrinho descobrir o que acontecera com ele e, quando ouvira a descrição do rapaz que matara o gigante nas ruas de Ayr, soubera que era ele. Fora atirado na prisão, e ela mandara um recado para sua irmã que morava em Ayr e pedira que descobrisse tudo que pudesse. Ellen, filha da irmã, era uma jovem boniI ta, amiga de muitos homens na cidade - ingleses e escoceses. Ficara intrigada com a história do jovem que estava preso, e quando lhe disseram em segredo que ele era Guilherme Wallace, que estava se tornando uma espécie de lenda, ficara muito agitada e decidira-se a fazer o possível para ajudá-lo.
Quando ia à cidade, ficava rondando os portões da prisão. Os guardas tinham muito prazer em conversar com ela. Ellen era conhecida como uma jovem muito atraente que, embora não concedesse seus favores a qualquer um, era muito generosa para aqueles de quem gostasse. Era muito cortejada e ela e a mãe viviam bem no chalé delas, graças às boas coisas que os admiradores levavam para ela. Assim, quando ela perambulava por perto dos portões da prisão, os guardas gostavam muito de conversar com ela, e então obteve informações sobre o matador do gigante e soube que agora estava numa cela na qual, diziam eles brincando, não podia mais matar ingleses. Sabia que ele estava para morrer. Quando morresse, iriam jogá-lo na estrumeira e, quando o jogassem, ela, em atenção à tia, apanharia o corpo e, se fosse possível, lhe daria um enterro decente.
Elas ficaram esperando; sabiam que era ao anoitecer que os corpos eram jogados fora e viram aquele ser atirado; apanharam-no e o levaram para casa e lá, para espanto delas, descobriram que ainda havia vida nele. O tratamento secreto agradou à natureza de Ellen. Adorava intrigas. Além do mais, percebia que quando tinha saúde Guilherme Wallace devia ter sido uma figura de homem realmente muito bonito.
Ela e a mãe disputavam entre si a honra de cuidar dele. Primeiro, limparam a sujeira da prisão, o que não foi fácil.
- Ele é tudo o que dizem dele - disse Ellen, e a mãe concordou.
As duas orgulhavam-se em conseguir alimentos nutritivos para ele e, aos poucos, fizeram com que recuperasse a saúde. Ficaram encantadas por terem representado um pequeno papel na preservação da vida do homem que o povo dizia que bem poderia ser o salvador de seu país.
Sir Guilherme Wallace. Quando seu nome era mencionado, os escoceses se alegravam. Um dia Guilherme Wallace iria liderá-los contra os ingleses.
Assim que ele passou do ponto crítico, as duas viram que Guilherme viveria, pois a recuperação era rápida, e quando ele soube o que acontecera ficou profundamente emocionado.
- É bom ter amigos - disse ele. - Ellen, você poderia ir para a cadeia pelo que fez por mim.
- A nossa Ellen teria encontrado um jeito de fugir - disse a mãe, carinhosa. - A nossa Ellen tem amigos.
Ellen riu, e Wallace ficou imaginando como seria ela. À medida que os dias se passavam, ele pensava muito. Ela se sentava ao lado de sua cama e lhe contava como o alimentara e que em mais de uma ocasião, quando ele ficava angustiado, ela se deitara ao lado dele na cama e acalmara o seu delírio.
- Aquilo parecia confortá-lo - disse ela.
- Não posso imaginar um consolo maior - replicou Guilherme.
- Você parecia uma criança - disse ela. - Era difícil acreditar que este era o grande Wallace.
- Eu era uma criança - disse ele -, inteiramente dependente de sua bondade.
Ela sacudiu a cabeça e, inclinando-se sobre ele, beijou-o.
- Ellen, eu ainda dependo de você.
Havia algo de ardente em relação a Ellen - ardente e generoso. Aquela era a essência mesma da atração que ela exercia. Ellen amava com facilidade, embora sem profundidade; mas quando amava, entregava-se facilmente.
Foi inevitável que quando a saúde de Wallace melhorou os dois se tornassem amantes.
A mãe sabia, mas para ela, conhecendo Ellen, aquilo fora inevitável desde o começo. Ellen sempre tivera amantes desde os quinze anos. com ela, era perfeitamente natural. Não era uma prostituta e em geral arranjava um amante de cada vez. Aquilo fazia parte de sua natureza serena. Nunca perguntava "O que vou conseguir com esse relacionamento?", mas aceitava o que viesse com a mesma generosidade com que dava.
Guilherme ficou encantado por ela. Estava contente por ainda se sentir muito fraco para deixar o chalé e dar prosseguimento à sua missão, pois podia distrair-se e ficar com a consciência tranquila. Era a primeira vez que havia uma coisa que ele queria fazer em vez de lutar contra os ingleses. Estava impressionado consigo mesmo.
O relacionamento deles seria passageiro. Os dois sabiam disso e aceitavam a situação, mas ambos queriam que continuasse em frente, e em cada um deles o golpe da separação causaria uma certa dor. Os corações não iriam partir-se - ambos sabiam disso. O coração de Ellen tinha uma grande capacidade de recuperação e o de Guilherme estava entregue a uma causa. Mas isso não significava que não desejassem muito que aquela agradável situação continuasse para sempre.
Entre sessões de relações sexuais, Guilherme falava com ela sobre seus planos. Dizia que ela podia ajudá-lo. Confiaria nela. Ellen conhecia muita gente; sabia o que se passava na cidade; podia tirar segredos dos ingleses, pois naturalmente eles ficavam tão encantados por ela quanto os escoceses.
- Você terá a sua parte no plano de libertar a Escócia - disse ele.
Ellen lhe disse que seria um prazer, mas na realidade estava mais ansiosa por satisfazer o amante e a si mesma do que preocupada com a difícil situação da Escócia. Gente como Ellen sempre encontraria um jeito de vida confortável, independente de quem fosse o governante.
Mas ela gostava de Guilherme Wallace. Ele era diferente de qualquer um dos amantes que tivera antes e enquanto estivesse com ela, seria toda sua. Ela trazia fragmentos de notícias da cidade. Seus amigos, muitas vezes, davam-lhe notícias de interesse. Aquilo era um consolo para Guilherme. Ele achava que, no final das contas, não estava perdendo tanto tempo assim.
Havia alguns amigos com os quais Guilherme queria entrar em contato. Eram dois jovens irlandeses - um chamado Estêvão, o outro, Karlé, que ele ficara conhecendo fazia muito tempo e que tinham sido inspirados pela sua conversa de salvar a Escócia. Enquanto ficara de cama, fisicamente exausto, sua mente estivera ativa. Precisava reunir homens como ele. Era loucura envolver-se em brigas com os ingleses, especialmente quando podiam ter resultados quase fatais. Devia reunir um grupo forte e entrar em combate contra os ingleses. Um pequeno grupo de amigos poderia tornar-se o núcleo de um exército. Queria conversar sobre isso com Estêvão e Karlé; e se Ellen pudesse investigar o paradeiro deles e trazê-los até ele, seria um começo.
Aquilo poderia não ser a tarefa difícil que aparentava a princípio, porque tinha certeza de que as notícias de suas proezas tinham chegado até os dois. Iriam fazer perguntas à governanta de seu tio e, como ela sabia muito bem que eram seus bons amigos, poderia mandálos até onde ele estava.
Sobre tudo isso ele podia conversar com Ellen e, com o passar de cada dia, suas forças aumentavam e os dois sabiam - embora alegrando-se com a recuperação dele - que aquilo significava o fim do idílio. Aquilo dava um sabor agridoce ao relacionamento. Ellen sabia que não podia durar. Seus amigos na cidade já estavam reclamando que a viam pouco e perguntando por que ela ficava em casa. Não seria possível guardar por muito mais tempo o segredo de que abrigavam um jovem em casa. Ellen sabia viver o presente. Estivera fazendo isso a vida toda.
Finalmente, ela conseguiu levar Estêvão e Karlé para falar com Guilherme, e ele se alegrou muito ao vê-los. Os quatro conversaram sobre as injustiças dos ingleses e o quanto Selby ainda estava enfurecido com a morte do filho e jurara recompensar quem levasse Guilherme Wallace até ele, morto ou vivo.
- Então sou um fora-da-lei - bradou Guilherme, soltando uma gargalhada.
- Não brinque com isso - pediu Ellen.
- Que outra coisa isso é, senão uma piada? - perguntou ele.
- Não foi uma piada quando o mantiveram na prisão de Ayr - lembrou-lhe Estêvão.
- Não sabiam que eu era Guilherme Wallace.
- Graças a Deus - replicou Ellen.
Ela levou cerveja e pão para eles, que continuaram a conversar sobre como iriam conseguir homens para formar um exército.
- É disso que precisamos - bradou Guilherme. - Armas e homens!
Houve uma grande agitação no pequeno quarto do sótão do chalé, ao qual se chegava através de um alçapão, o lugar ideal para esconder alguém. Ali chegou-se a um acordo segundo o qual Estêvão e Karlé deveriam percorrer a cidade fortificada, tendo o cuidado de não se meterem em encrencas, e descobrir quando haveria a entrega de suprimentos, o que acontecia com frequência.
- Nosso primeiro plano - disse Guilherme - seria atacar de emboscada um desses carregamentos. Se tivéssemos sucesso, poderíamos pegar muitas das coisas de que precisamos. Isso seria um começo.
- Precisamos de mais homens - disse Estêvão. - Mas não deve ser difícil encontrá-los. Parece que agora existem muitos escoceses à procura de um líder.
- Procurem por aí - disse Wallace. - Encontrem homens para formar um grupo, mas precisamos ter certeza de que são de confiança. É melhor ter apenas um pequeno grupo de escoceses leais do que um exército e um traidor entre nós. Vamos capturar um dos comboios ingleses e, se isso for bem-sucedido, capturaremos outro e mais outro. Isso nos deixará equipados com armas e com o necessário para o combate. O primeiro vai ser fácil, porque vamos pegá-los de surpresa.
E assim planejaram com cuidado.
Ele se despediu de Ellen.
- Você vai voltar - disse ela.
- Isso mesmo. vou voltar. Acho que estarei frequentemente precisando do seu consolo especial. Aí... se possível... você vai me achar à sua porta.
Guilherme recuperara as energias e jamais esqueceria que devia a vida a Ellen e à mãe dela. Tinham-no retirado da fedorenta estrumeira, e ele tremia ao pensar no estado em que devia estar quando o encontraram. Haviam-no alimentado, mimado e tinham sido boas amigas para ele, e Ellen também fora sua amante. Devia muito às duas e era sincero quando dizia que jamais esqueceria sua dívida para com elas.
Os irlandeses, Estêvão e Karlé, tinham sido ativos em seus esforços e encontraram cinquenta homens que estavam prontos a servir Guilherme Wallace, jurando que o seu desejo sincero era expulsar os ingleses da Escócia.
Além do mais, tinham descoberto que o capitão Fenwick iria dirigir um comboio passando por Loudoun em direção a Ayr e que naquele comboio havia cavalos, alimentos e armas que estavam sendo levados para lorde Percy, o governador, em Ayr.
Se pudessem capturá-lo, seria um começo, pois, com aqueles bens nas mãos, poderiam dar início à formação do exército. Se conseguissem, haveria tal alarido sobre o caso que haveria uma corrida de homens para unirem-se a Wallace. Eles iam ver.
com grande exultação, Wallace reuniu homens na floresta, onde acamparam durante a noite. Enquanto anoitecia, conversou com eles. Falou sobre o que a Inglaterra fizera aos galeses e disse que todos tinham de se unir para evitar que a mesma humilhação caísse sobre a Escócia. Tinham conhecimento dos arrogantes ingleses nas cidades fortificadas. O rei deles, o velho Toom Tabard, escolhido por Eduardo da Inglaterra, estava agora em mãos inglesas, completamente subserviente a eles. O pai e o irmão de Guilherme tinham sido mortos pela companhia do capitão Fenwick, de modo que aquilo parecia um sinal vindo do céu. O capitão Fenwick estava, agora, sendo entregue em suas mãos - juntamente com os suprimentos e a munição de que precisavam para iniciar a campanha.
Estavam todos com ele, até o último homem - todos leais à Escócia. Não havia um só que não se mostrasse pronto e disposto a dar a vida por aquele país.
Ao amanhecer, o comboio apareceu. Wallace aguardou a aproximação e observou que havia em torno de duzentos homens protegendo-o. Duzentos contra cinquenta! Do lado de Wallace, no entanto, estava a surpresa, que sempre era útil. Esperava que nenhum de seus homens se acovardasse diante daqueles soldados bem equipados, montados
em seus esplêndidos cavalos, enquanto eles contavam apenas com um modesto equipamento e estavam a pé.
Eles saíram da floresta. Ele ouviu Fenwick gritar:
- Em guarda! É o bandido.
O bandido era Wallace, e Fenwick estava exultante. Que glória, para ele, poder capturar o homem e levá-lo para lorde Percy!
Então, viu os homens surgindo da floresta e, embora fossem mais do que ele pensara a princípio, formavam um bando irregular. De que serviriam eles entre soldados treinados?
À frente dele estava um homem que, sem dúvida alguma, era Wallace - alto, aspecto distinto, bem-apessoado, e líder sob todos os aspectos.
Wallace reconheceu Fenwick e partiu direto em sua direção.
- Atacar! - gritou Fenwick, e os cavalos galoparam em direção aos homens de Wallace.
Wallace atravessou com a lança o corpo de um cavaleiro. A lança se partiu e ele sacou a espada da bainha. Voltou-se para Fenwick, berrando:
- Assassino! Isto é pelo meu pai!
Antes que Fenwick pudesse erguer o braço, a espada de Wallace perfurou-lhe o coração e ele caiu do cavalo. Uma grande euforia tomou conta de Guilherme. Seu pai estava vingado. A Escócia também devia ser vingada. Ele agia como um homem inspirado. Depois, disseram que Deus enviara anjos para proteger os escoceses. Não era fácil imaginar que poderia ter acontecido o contrário.
Muitos dos cavalos dos ingleses jaziam contorcendo-se no chão enquanto a batalha continuava. Guilherme, berrando palavras de estímulo para seus seguidores, escapou milagrosamente de ser atingido, embora às vezes tivesse sido por muito pouco. Antes da batalha acabar, mais de cem corpos ingleses jaziam no campo de Loudoun.
Aqueles que tinham sido destinados a proteger os comboios tentaram entrar na luta e isso deu aos escoceses a oportunidade de pegar o butim.
Os ingleses perderam o ânimo e os que restaram, vendo o comboio perdido e tantos companheiros mortos e feridos, pegaram os cavalos que sobravam, para fugir dali.
Foi realmente um triunfo. Os cavalos de sela foram levados para a floresta e suas cargas foram examinadas com alegria.
- Isto é um sinal do céu! - bradou Guilherme. - Hoje, demos início à expulsão dos ingleses da Escócia.
Não ousavam ficar na floresta de Loudoun, pois sabiam que haveria uma retaliação imediata. Precisavam esconder o butim e encontrar um quartel-general onde pudessem proteger os espólios de sua vitória.
- É da máxima importância guardarmos os nossos segredos disse-lhes Guilherme. - Estejam certos de que eles vão reforçar a guarda depois disso. E virão à nossa procura, especialmente à minha. Mas lembrem-se: este é um começo glorioso. Vimos que Deus está do nosso lado. Agradeçamos a Ele essa vitória, e quando acabarmos levaremos o nosso butim para um lugar seguro, e lhes juro que depois disso escoceses leais virão em grande quantidade para a nossa bandeira.
Eles se escondiam na floresta durante o dia e viajavam à noite. Guilherme decidiu que a floresta era o melhor lugar para o seu quartelgeneral. Oe vez em quando, alguns deles iam até as cidades para ouvir as conversas e voltavam para informar que por toda a parte o assalto ao comboio era discutido e o nome de Wallace estava em todas as bocas.
- Há um brilho nos olhos dos escoceses quando o seu nome é mencionado - disseram a Guilherme.
- Isso é bom, mas precisamos ter cuidado com os traidores. Podemos estar certos de que os ingleses vão colocar espiões por toda a parte.
- Lorde Percy está furioso - foi o relatório. - Ele repreendeu os guardas da prisão de Ayr por jogarem por cima do muro o que pensavam ser o seu cadáver. Ele os chama de idiotas porque, primeiro, não averiguaram quem você era e, segundo, não se certificaram de que estava morto.
Guilherme ficou muito satisfeito; sua cabeça zunia de planos.
- Um começo - bradou ele. - Estamos em ação.
Nas semanas seguintes, eles fizeram incursões à cidade; atacaram bandos de ingleses e tiraram deles o que puderam. Ele estava começando a fazer um estoque de munição. Eles tinham "ganhado", como diziam, belos cavalos. Tinham armas de todos os tipos. E também não precisavam passar fome.
Guilherme não queria que se demorassem demais num só lugar, porque achava perigoso, e viviam mudando de um lugar para outro. Ele tinha confiança em seus homens, especialmente em Estêvão e Karlé, que se tornaram seus amigos mais leais. Isso não era tudo. Seus tios - e outros membros de sua numerosa família que eram idosos demais para unir-se a ele - mandavam-lhe dinheiro e bens para a causa. Ele não era, em absoluto, apenas o bandido que podia importunar os invasores; era um nome a ser respeitado.
- Talvez, dentro em pouco, entremos numa batalha de verdade.
Deslocando-se de floresta em floresta, eles se aproximaram de Ayr, e ele pensou logo em Ellen e seu desejo por ela foi tão forte que achou difícil resistir. Não havia motivo para que não se disfarçasse e entrasse sorrateiramente no chalé, depois que escurecesse. Poderia tornar a sair antes do amanhecer.
Ele iria. Não conseguia parar de pensar em Ellen e continuaria pensando até que os dois tivessem estado juntos. Convenceu a si mesmo que seria loucura deixar-se ficar obcecado por ela. O melhor era vê-la e acabar com a sua ânsia.
Precisava disfarçar-se e resolveu vestir-se de padre. Ninguém molestaria um padre, e seria a última profissão que estaria ligada a Guilherme Wallace. A ideia o divertiu, e então a colocou em prática.
A ideia foi infeliz. Porque quando se aproximava da casa, foi visto por um dos admiradores de Ellen. O homem ia visitar Ellen, mas quando viu um padre dirigindo-se à casa, parou, por não querer ficar face a face com o homem santo que, desconfiava ele, poderia estar indo repreeender Ellen pela vida que levava.
O padre bateu à porta. Deixaram-no entrar. Sem dúvida Ellen não o deteria por muito tempo. Ele esperaria até que o homem saísse.
Enquanto isso, Wallace foi recebido com surpresa por Ellen. Depois tirou o hábito, e ela estava em seus braços, enquanto riam da eficiência do disfarce.
- E você veio vestido de padre! - Para eles parecia uma grande piada. - E de tal maneira que pensei que você fosse da igreja.
Ele disse que a vontade de estar com ela fora tão grande, que ele tinha de correr o risco de ir procurá-la.
Ellen disse que esperava que um dia ele a procurasse e que seria sempre bem-vindo.
Os dois subiram para o sótão em que ela e sua mãe o tinham abrigado todas aquelas semanas e deitaram-se juntos na cama de rodinhas, como tinham feito antes.
Mais tarde, ele disse-lhe que estava com seus homens na floresta próxima e que planejavam ficar por lá alguns dias.
- Então, é bem possível que eu receba outra visita sua, cavalheiro.
- É bem possível - replicou ele.
- Talvez amanhã à noite?
- Por que não?
- vou esperar por você.
- Você ainda é minha amiga de verdade, Ellen?
- Até nós dois morrermos - respondeu ela.
E então os dois se possuíram repetidas vezes, mas ele estava precavido porque o primeiro traço de luz estava no céu. Não queria ser visto dentro ou perto da cidade de Ayr à luz do dia porque, por melhor que fosse o disfarce, havia um preço pela sua cabeça.
Enquanto isso, o homem da cidade esperava do lado de fora da casa de Ellen que o padre saísse. Ele se perguntava por que o padre não saía. Um padre... passar a noite na casa de uma mulher leviana! Era inacreditável!
Sentiu um impulso de bater à porta para descobrir o que se passava, mas decidiu não bater. Iria esperar ali até a saída do padre, e então o seguiria.
Estava vigiando quando a porta se abriu e o padre saiu. Ellen estava com ele - a bela Ellen - com os cabelos caindo pelos ombros e um robe solto que mal cobria a sua nudez. Ela e o padre se abraçaram de um modo que não deixava dúvida alguma quanto ao seu relacionamento, e depois o padre ergueu o longo hábito e correu.
O homem o seguiu até a entrada da floresta. Viu-o arrancar o hábito. Havia algo de familiar no homem que surgiu.
Podia ser o... Wallace!
O que devia fazer? Havia um preço para a cabeça de Wallace. Que riqueza, que glória para o homem que o colocasse nas mãos de seus inimigos!
A noite não saíra como ele esperava. Não tivera os encantos da doce Ellen. Mas talvez houvesse uma maneira melhor de ela ter sido passada, e era aquela.
Ellen abriu a porta. Dois guardas entraram na casa.
- O que querem os senhores? - perguntou ela.
- Queremos a senhora, dona.
- O quê? - quis saber ela, achando que eles tinham ido para possuí-la à força. Contra aquilo, ela lutaria com todas as forças. Gostava de homens; gostava dos prazeres que tinha com eles; mas jamais devia ser possuída à força, se pudesse evitar.
Mas estava errada. Eles estavam em outra missão. Deveria acompanhá-los, disseram, porque os chefes deles tinham algo a lhe dizer.
Ellen foi levada à presença do capitão Heron e seu ajudante, Butler. Os dois a examinaram friamente, sem nada daquela admiração à qual ela estava acostumada.
- A senhora mantém boas relações com o traidor Wallace disse o capitão.
- Wallace? - ela franziu o cenho. - Quem é ele?
- Vamos, dona, não vai adiantar. Ele é seu amante. Dormiu na sua cama à noite passada. Foi disfarçado de padre. Sabemos disso.
- Os senhores estão enganados.
Um dos guardas pegou-lhe o braço e torceu-o para trás. Ela gritou de dor.
- Como se atrevem - começou ela. Seu rosto foi esbofeteado.
Aquilo, para Ellen, que nunca tivera nada a não ser as mãos desejosas de homens a tocando, foi um choque violento. Viu, então, que estava numa encrenca séria.
- Escute aqui, mulher - disse o capitão -, sabemos que você é amiga de Guilherme Wallace. Sabemos que ele a visita. Não negue. Se esconder alguma coisa de nós, será prejudicial para você. Sabe o que fazemos com mulheres como você? vou lhe dizer. Vamos enrolá-la num fardo de feno e tocar fogo nele.
- Não poderiam fazer isso - gaguejou ela.
- Não poderíamos? Veremos. Tragam o feno. Era verdade. Eles o tinham pronto.
- Seria um desperdício de uma carne tão agradável assim - disse o capitão com ironia. - Vamos, seja sensata, mocinha. Wallace a visitou ontem à noite disfarçado de padre. Quando ele vai voltar?
- Ele... não vai voltar.
- Ele apareceu ontem à noite, não foi?
Ela não falou, e ele fez um sinal para que trouxessem o feno.
- Foi... foi - disse ela, rápido. - Ele veio ontem à noite.
- E quando vai voltar?
Ellen ficou calada. Eles a agarraram e dois deles atiraram o fardo de feno a seus pés.
- Hoje à noite - bradou Ellen. - Ele vem hoje à noite. Eles a soltaram.
- Quando ele chegar - disse o capitão -, você vai mante-lo lá. Tire as roupas dele... Isso não será difícil, tenho certeza. Então, quando ele estiver na sua cama, antes de juntar-se a ele coloque uma lamparina na janela. Será o nosso sinal para irmos prendê-lo.
Ela gaguejou:
- Não posso fazer isso...
- Vai fazer - disseram-lhe. - Caso contrário, sabe o que a espera. Cumpra com o seu dever e não nos esqueceremos de você. Ficará rica. Não nos esqueceremos. Há um alto preço pela cabeça dele. Está na hora de uma mulher como você arranjar um marido, para que não tenha de depender de qualquer homem simpático que se aproxime de você. Entregue-nos Wallace e o próprio lorde Percy vai querer agradecer-lhe. Vai encontrar um homem que se case com você. Um cavalheiro, no mínimo, e será um homem de sua escolha. Assim, está vendo, dona, um grande bem pode lhe acontecer... um grande bem ou uma morte cruel. Lembre-se.
Ellen voltou pensativa para casa. Casamento com um bom cavalheiro. Uma fortuna. Nunca mais perambular pela cidade devolvendo os olhares que lhe eram dirigidos... à procura de um cavalheiro bonito. Um marido fixo, um homem que lhe pudesse dar vestidos finos... isso em troca de trair Wallace.
Sabia o que tinha a fazer. Todos tinham medo dele. Queriamno sem as roupas, para que pudessem prendê-lo com facilidade. Foi assim que Dalila traiu Sansão.
Ellen esperou por Guilherme. Ele veio, conforme o combinado. Ela abriu a porta e ali estava o seu padre.
- Foi perigoso vir - disse ela.
- E eu não iria correr perigo por uma noite com você? Vale a pena, bela Ellen.
Ela o conduziu ao quarto. Seu coração batia apressado. Dali a pouco estaria acabado. Pensou nele tal como estivera quando o levaram para casa tirando-o da estrumeira.
A mãe dela dissera: "Ele é Guilherme Wallace, o maior homem da Escócia"; e as duas tinham-se orgulhado dele. Ela se orgulhara dele. Sua mãe, agora, estava dormindo em seu quarto. Sabia, é claro, que homens visitavam sua filha. Aquilo era um meio de vida e lhes trazia conforto. Não dissera à mãe que Wallace tinha ido à noite anterior. Teria dito, claro, mas eles a tinham levado para ser interrogada e, quando voltara, não quisera alarmar a mãe.
Os dois foram para o sótão. Seria tudo muito fácil. Ellen podia fingir ignorância. Mas ele diria: "Por que colocou uma lamparina na janela?", e ela responderia:
"Porque quero ver você. Eu o vejo muito pouco. Quero alegrar os olhos em você enquanto posso."
Então, pouco depois viriam para pegá-lo...
Ellen o amara à sua maneira leviana e fácil, como amara muitos homens, mas nunca um igual a Guilherme Wallace. Não gostava de pensar em homens sendo torturados. Os homens não tinham sido feitos para isso. Por que não podiam todos viver confortavelmente juntos? Havia tanta coisa boa na vida!
Guilherme estava ali, nu, deitado na cama dela. A hora era aquela. Colocar a lamparina na janela... e esperar.
Não podiam estar longe, agora. Estavam lá fora olhando para a janela dela, à espera do sinal.
- Não posso fazer isso - bradou ela, de repente. Sentou-se na cama e cobriu o rosto com as mãos.
- O que você tem, Ellen?
- Eles estão vindo para prendê-lo. Ameaçaram me queimar num fardo de feno se eu não entregar você a eles. Estou com medo... mas-não posso fazer isso.
Guilherme tinha saído da cama.
- Eles vêm me pegar! Quando?
- Agora. Não há tempo. Estão esperando pelo sinal. Num segundo ele percebeu a situação. Achou a resposta, como ela sabia que acharia.
- Tire a roupa, Ellen.
Ela tirou, e Guilherme vestiu a roupa dela. As peças eram muito pequenas, claro, mas ele cobriu a insuficiência delas com uma grande capa, como fizera com um xale junto ao tear. Depois, colocou na cabeça um dos chapéus dela.
- Eles vão me matar - disse ela.
- Não vão, não. vou amarrar você ao balaústre da cama. Diga a eles que desconfiei do plano e fiz você se despir e me dar a sua roupa. Depois, vesti a sua roupa e amarrei você. Para que não pudesse dar o sinal. Agora, eu vou embora. Não há nada a temer. Verei você outra vez dentro de pouco tempo.
Ele saiu do chalé. Correu gritando para os guardas com uma voz de falsete que se parecia extraordinariamente com a de Ellen. Dois dos homens apareceram. Ele apontou para o chalé.
- Ele está lá. Está nu... Entrem lá e prendam-no.
O alarme foi dado. Os dois guardas não iam entrar sozinhos. Eles conheciam Wallace. O mais rápido que puderam, formaram um grupo e invadiram o chalé.
Ellen contou-lhes que estava seguindo as instruções quando Wallace de repente a agarrara e a amarrara. Contou tão bem a sua história, e estava tão atraente semidespida e angustiada, que a desamarraram e garantiram-lhe que nada de mau lhe aconteceria, antes de saírem para pegar o petulante fugitivo. Antes de se reunirem, ele chegara ao seu cavalo, desatrelara-o e saiu a galope para juntar-se ao seu fiel bando na floresta.
Aquilo era um aviso. Não podia continuar deixando à sorte a tarefa de tirá-lo de situações como aquela. Podia muito facilmente ter sido o fim. Teria sido fácil Ellen colocar a lamparina na janela e eles entrarem e o pegarem.
Se o tivessem apanhado, o que estaria acontecendo a ele naquele momento? Seria o fim do seu sonho, como estivera muito perto de ser quando o tinham metido na cadeia.
Precisava ter cuidado. Não devia se envolver naquelas situações imprudentes.
Graças a Deus, Ellen fora fiel a ele no final - mas os céus sabiam o quanto ela estivera perto de traí-lo. Ameaçaram queimá-la
- e era uma sentença que teriam cumprido, também.
Ele discutiu o assunto com Estêvão e Karlé, que ficaram horrorizados. Haveria um clamor público contra ele maior do que nunca, de modo que precisava ficar sem chamar atenção por algum tempo. Deveriam sair daquele lugar de imediato e encontrar outra floresta para protegê-los.
Guilherme concordou, e então saíram da floresta a toda velocidade e seguiram em direção a Lanarkshire.
Lá, ele e seus homens ficaram na obscuridade durante um certo tempo, e os ingleses se enganaram ao pensar que o fato de quase ter sido capturado fizera com que ele se moderasse a ponto de seu único desejo ser manter-se afastado. Quando nenhum comboio foi assaltado durante algumas semanas, correu um boato de que Guilherme morrera afogado ao tentar atravessar o rio Forth perto de Stirling, pois se dizia que se ele tivesse atravessado pela ponte que havia lá não podia deixar de ter sido visto.
Mas ele gostava de ir à cidade e achava difícil ficar longe dela, e quando estavam acampados perto de Lanark, muitas vezes ia disfarçado, às vezes de peregrino, às vezes de agricultor. Gostava de sentar-se nas tabernas e ficar ouvindo a conversa.
Foi assim que ouviu falar na impopularidade do xerife Heselrig que, segundo lhe disseram, era um homem tão severo quanto os que se podia encontrar no país inteiro. O rei Eduardo devia ter mais cuidado em relação aos homens que enviava para proteger as cidades fortificadas, porque um número muito grande deles era do tipo que provocava revolta aonde quer que fosse.
- Fale-me desse Heselrig - disse ele. - Diga o que ele fez para gerar tanto ódio nos habitantes da cidade de Lanark.
- Fale baixo, cuidado com o que diz - foi a resposta. - Fale em sussurros.
Ele baixou imediatamente a voz e seu informante continuou:
- Há uma bela donzela - a herdeira de Lamington - que mora aqui. Ela é famosa tanto pela riqueza como pela beleza.
- Fale mais sobre ela.
- O xerife a persegue. É uma moça valente e não concorda com as exigências dele.
- E o que é que ele exige?
- A mão dela para o filho.
- O quê?! Uma boa jovem escocesa casar-se com um inglês!
- Sim, se ela for bastante rica.
- E ela é muito rica.
- Herdeira do velho Hew Bradfute. Hew morreu faz três anos e o jovem Hew deveria ter herdado... e teria herdado... se tivesse vivido.
- O jovem Hew...?
- O irmão da beldade. Ele encontrou a morte numa noite escura... Seu corpo foi achado num beco. Uma briga, é o que dizem, mas o que se sussurra...
- Sim, diga o que se sussurra.
- Quem é você? Você faz perguntas demais.
- Só um homem com uma pequena terra a cultivar que vem à cidade de vez em quando e gosta de um pouco de conversa. Vamos, meu senhor, fale-me sobre o jovem Hew e sobre como o senhor acha que ele foi morto.
- Oh, não cabe a mim dizer, senhor. É só uma coisa que está na cabeça... só isso.
- Vamos, conte mais.
- Bem, por aqui se sussurra que o xerife Heselrig, interessado no dinheiro dos Bradfute, teve a ideia de que se este pertencesse à donzela, seu filho poderia casar-se com ela e, com isso, o dinheiro passaria para a família dele. Isso não seria possível enquanto o jovem Hew vivesse, pois era o herdeiro natural e por direito do pai.
- E como vai o caso?
- Ela, Marion Bradfute, é uma donzela audaciosa e valente. Jura que não quer nada com o filho do xerife.
- Eu gostaria de vê-la.
- Então, deve ir à igreja num domingo. Ela está sempre lá.
A história da brava jovem escocesa e do impertinente xerife inglês agradou à imaginação de Wallace. Não confiava naquele xerife. Mais cedo ou mais tarde, iria obrigar a moça a aceitar seu filho.
No domingo seguinte, ele estava na igreja. Não precisou perguntar quem era Marion Bradfute. Era óbvio. Estava ricamente vestida, como convinha a uma herdeira, e era realmente bonita. Ele nunca vira uma jovem tão bonita. Ellen, que parecera tão desejável, era de uma beleza banal ao lado dela.
Marion ficou ciente do exame dele e enrubesceu um pouco, mas ficou claro que o jovem lhe causara uma certa impressão.
No domingo seguinte, ele estava na igreja outra vez; notou que Marion sussurrava com a aia e calculou que as duas estavam falando nele. Quando elas saíram da igreja, Guilherme as seguiu a uma distância discreta. Ás duas passaram por um portão, além do qual ficava a bela mansão que despertara a cobiça do xerife. Ele bateu ousadamente ao portão.
O portão foi aberto por um homem idoso que perguntou o que ele queria. Guilherme respondeu que queria falar com a sra. Bradfute sobre um assunto urgente. Quem era ele?, foi a pergunta. Ele respondeu que diria aquilo à sra. Bradfute e que acreditava que ela, então, saberia quem era ele.
O velho abanou a cabeça e afastou-se, deixando Guilherme do lado de fora do portão. Momentos depois, a aia que acompanhara sua senhora à igreja saiu. Não pareceu muito surpresa ao vê-lo. Elas deviam ter sabido que ele as seguira.
Pediu que Guilherme entrasse e ele a seguiu para dentro da casa.
No salão, com o teto abobadado e uma mesa alta numa ponta da plataforma, Marion Bradfute esperava por ele.
- Quem é o senhor? - perguntou ela. - E por que veio aqui? Ele hesitou muito pouco e disse:
- Sou Guilherme Wallace.
Os olhos dela se arregalaram, e ele viu como eram belamente azuis, destacados por longas pestanas pretas. Ela sorriu de repente.
- Eu acho que sabia. Seja bem-vindo. Eu gostaria de conversar com o senhor.
Ela correu os olhos à sua volta.
- Vamos para o solário - disse ela. E pediu à aia que levasse refrescos para os dois.
Marion seguiu à frente pela escada que se assemelhava a uma escada de mão, até o solário, um aposento ensolarado, como o nome sugeria, devido às duas grandes janelas salientes que havia de cada lado. Era realmente um imponente palácio, do tipo que ele raramente vira na Escócia.
A jovem foi até a janela e sentou-se, dando a entender que Guilherme podia sentar-se a seu lado, o que ele fez.
- O senhor sabe a meu respeito?.
- Sei que se chama Bradfute, famosa pela beleza.
- E pela minha riqueza - respondeu ela. - Passei a ter medo disso.
- Também sei que está com um problema. Tenho conversado nas tabernas e estou ciente do seu problema.
- O que o senhor, o herói da Escócia, está fazendo em tabernas?
- Deixando passar o tempo até que possa me levantar e expulsar os ingleses do país.
- O senhor veio aqui disfarçado.
- Isso é necessário, senhora. Há uma recompensa pela minha cabeça e a senhora está sendo imprudente ao me deixar entrar em sua casa.
- De certa maneira, há um preço pela minha. Sir Guilherme Wallace, há muito que o admiro, juntamente com milhares de escoceses.
- Quero mais dos escoceses do que admiração, senhora. Quero que se juntem à minha bandeira. Quando tiver um exército, prometo-lhe que a humilhação da Escócia vai acabar.
- O senhor vai dominar os ingleses, eu sei. Sinto orgulho por ter conversado com o senhor.
- Nunca vi uma moça tão bonita quanto a senhora - replicou ele.
Ela sorriu, satisfeita.
- É a minha fortuna que o xerife quer para o filho dele.
- Ouvi dizer que a senhora está resistindo a ele.
- Estou, mas tenho muito medo dele. Acho que ele matou meu irmão.
- Ouvi dizer isso, também.
- Eu me pergunto que artimanha ele vai usar para me fazer cair.
- A senhora está cercada por bons criados?
- Estou, estão com a minha família há muitos anos. E odeiam os opressores ingleses.
- Ele a ameaçou?
- Não. Eu o tenho mantido afastado com uma conversa astuta. Não disse que não me casarei com o filho dele... mas estou decidida a não fazer isso.
- vou reunir uma força e entrar na cidade.
- O senhor tem essa força?
- Tenho seguidores... que ainda não formam um grupo suficientemente grande. Mas chegará o momento em que terei um exército a me seguir.
Ela estendeu a mão; ele a tomou e a beijou.
- Fico muito satisfeita por ter vindo. Já sinto menos medo. Ela se levantara, dando a entender que estava na hora de ele ir. Não queria fofocas entre os criados - muito embora confiasse neles.
Ele percebeu que tinha que se retirar, apesar de querer ficar.
- Eu voltarei. Posso vir amanhã? Nós discutiremos esse assunto em mais detalhe e se precisar de mim com urgência, mande um homem em quem confie à floresta de Lanark. Lá, ele me encontrará.
Ficou impressionado por ter confiado tanto nela. Mas depois compreendeu, porque não podia parar de pensar nela.
No dia seguinte, tornou a visitá-la e os dois discutiram os problemas dela em detalhe. Ele falou com entusiasmo em seus planos e contou as aventuras em que se envolvera.
Ela ouviu, fascinada. Então aquelas lendas que ouvira sobre Guilherme Wallace eram verdadeiras.
Ao chegar o fim da semana, os dois estavam apaixonados.
Os dois caminhavam juntos no jardim cercado.
- Sabe que amo você - disse Guilherme. Ela confirmou com a cabeça.
- E você? - perguntou ele.
- Eu te amo - respondeu ela.
- Que prazer, isso... estar juntos! Quem dera que pudéssemos ficar juntos sempre, mas como não é possível, devemos aproveitar ao máximo o tempo que pudermos passar juntos.
Mas ela não era nenhuma Ellen.
- Se nos casássemos, você não poderia ter essa mesma vida - lembrou ela.
Casamento! Ele não havia pensado em casamento. Como um homem dedicado como ele podia se acomodar numa vida normal de casado, com esposa e filhos?
Ele ficou em silêncio, e ela disse:
- Ah, vejo que não quer se casar comigo.
- Quem dera que pudesse. Mas sou um homem dedicado a uma causa, e a vida para a mulher que se casasse comigo não seria boa.
- Então - replicou ela, com firmeza -, devemos dizer adeus, pois embora eu o ame sinceramente, jamais seria sua amante. Se não pudermos nos casar, para nós está tudo acabado. Não podemos nos encontrar assim, se o nosso amor não puder ser consumado.
Guilherme mergulhou na mais profunda melancolia.
- Oh, meu Deus - bradou ele -, se eu não tivesse jurado expulsar os ingleses do país... como me sentiria feliz em me casar com você! Mas jurei solenemente que não descansarei enquanto não tiver salvo a minha pátria.
- Eu entendo muito bem - disse ela, triste - O casamento não é para você, Guilherme Wallace, e como nenhum outro caminho me serve, vamos nos despedir. Que seja rápido. Não adianta prolongar.
- Jamais a deixarei para o filho do xerife. Ela riu com amargura.
- É estranho que aquele a quem odeio esteja tão ansioso por se casar comigo e aquele a quem amo me rejeite em troca de uma causa. Adeus, Guilherme.
- Não - bradou ele. - Isto não é adeus. vou proteger você. Se precisar, basta mandar me chamar. vou vingar o seu irmão. vou ocupar Lanark e expulsar o xerife Heselrig dela. Eu voltarei.
Ela sacudiu a cabeça, triste, e ele se afastou dali e galopou de volta para a floresta.
Ele estava se sentindo um desgraçado. Estava melancólico. Perdera o interesse pela vida.
Estêvão e Karle se mostravam preocupados com ele. Imploravam para que ele dissesse o que estava pensando.
Acostumado como estava a deixar que eles partilhassem de suas confidências, contou-lhes a história toda, que ouvira falar em Marion e tinha ido à igreja para vê-la, falara com ela e apaixonara-se por ela.
- É perigoso envolver-se com mulheres - lembrou-lhe Estêvão. - Lembre-se de Ellen.
- Ah, eu me lembro de Ellen. Era uma mulher maravilhosa. Eu jamais poderia me arrepender de minha amizade por ela.
- E agora, é Marion Bradfute. Você zomba do perigo, Guilherme.
- Ajo como tenho que agir. Tendo ouvido falar numa bela mulher em dificuldades, o que eu poderia ter feito? O irmão dela morto por instigação do xerife Heselrig. Eu lhes digo: não vou descansar enquanto não arrancar o sangue dele.
- Você disse que não era prudente preocupar-se com essas pequenas aventuras. Disse que vai ficar escondido até poder reunir uma força para trabalhar conosco. Isto está acontecendo... aos poucos. Guilherme Douglas mandou avisar que está vindo juntar-se a nós e que tem uma força considerável. Sir João Menteith também se juntará a nós. Temos de ser pacientes, Guilherme, e não vai demorar e teremos uma força suficiente para enfrentar os ingleses.
- Não se trata de uma pequena aventura, coisa nenhuma. Eu amo Marion Bradfute.
- Há pouco tempo, você amava Ellen e, com o máximo de indiscrição, visitava-a e por pouco não perdeu a vida.
- Marion não é igual a Ellen. Ela se recusa a ser minha amante. Quer casamento... ou nada.
- Como você poderia se casar?
- Foi o que eu disse a ela. Eu estaria sempre deixando-a sozinha.
- Talvez - disse Estêvão - seja possível fazer com que ela entenda isso.
Os outros dois olharam para ele, assombrados.
- É - prosseguiu ele -, suponhamos que Guilherme se case com essa mulher. Isso resolveria o problema dos dois. O filho do xerife, então, não poderia casar-se com ela, e como poderia reclamar, se ela já tivesse um marido? Ela sabe quem Guilherme é. Vai compreender que ele tem uma missão a cumprir. Estou chegando à conclusão de que poderia ser bom Guilherme ter uma esposa. Ela seria uma mulher em quem ele poderia confiar, o que não ocorreria em relação a uma amante, caso ele não se casasse.
Guilherme ficou irradiante. Claro que era possível. Ela iria compreender que sendo quem ele era, não poderia passar a ter uma vida normal de casado. Não seria por muito tempo. Depois que a Escócia estivesse livre, os dois poderiam fazer planos juntos, constituir uma família e voltar à vida tranquila.
Eles discutiram o caso e, quanto mais conversavam, mais plausível ele parecia.
No dia seguinte Guilherme cavalgou até a mansão dos Bradfute e pediu a Marion que se casasse com ele.
Até o final daquela semana, os dois se casaram. Um padre fora levado até a casa e lá, no solário em que os dois tinham conversado fazia tão pouco tempo, a cerimónia foi realizada com apenas poucos criados como testemunhas.
Durante vários dias, os dois ficaram na mansão. Guilherme era um marido orgulhoso e feliz. Tinha por esposa a moça mais bonita que já vira, e que o adorava. Ele era o grande Wallace, já um herói. Marion lhe disse que queria unir-se a ele na luta, queria fazer o que pudesse para ajudar. Sabia que haveria momentos em que ele teria de ir para longe dela. Iria suportar sua ausência com coragem; faria o possível para ajudar. Estava ficando tão entusiasmada pela causa quanto ele. E sentia orgulho dele. Tinha a certeza de que ele seria o general cujo nome ficaria na história como o homem que levara a liberdade ao seu país.
Guilherme relutava em deixá-la, mas sabia que precisava voltar à floresta e que enquanto estivesse em casa dela era importante que sua presença fosse mantida tão em segredo quanto possível. Quem sabia o que aconteceria se Heselrig descobrisse que não só Guilherme Wallace estava entre eles, mas que se casara com a herdeira que ele queria para o filho?
Por isso, ele voltou para a floresta. Ficou contente ao descobrir que João Menteith estava lá com alguns homens. João estava ansioso por saber de tudo o que se passava e disse que havia sondado uns amigos seus e que em breve haveria um exército de tamanho suficiente para tornar possível um ataque.
O xerife Heselrig foi bater ao portão, e recusar-lhe a entrada valia mais do que a vida do porteiro.
Ele entrou na casa dizendo aos criados que fossem buscar a patroa.
Marion foi falar com ele, o coração batendo acelerado de medo e raiva ao ver aquele homem. O sorriso dele foi bem agradável. Até ali, ele evitara ameaças e tentava conquistá-la pela lisonja.
Ele não confiava no povo do lugar. As pessoas eram astutas, elogiavam-no só para agradá-lo, mas ele achava que seria preciso muito pouco para fazer com que se revoltassem. Se obrigasse Marion a se casar com seu filho, aquilo poderia ser a centelha que acenderia a fogueira. Ele precisava de homens e armas. Aquele bandido do Wallace tinha devastado os comboios. Ele ainda não estava em condições de forçar a moça. Mas pensou: por Deus, estou chegando perto.
Curvou-se para ela, que lhe devolveu friamente o cumprimento.
- Parece bem de saúde, sra. Bradfute - disse ele.
- Obrigada, senhor, estou bem de saúde.
- Tamanha beleza e vivendo sozinha!
- Vivo como prefiro - respondeu ela.
- A senhora precisa de um marido. Muita gente tem comentado isso.
- Obrigada, senhor, mas eu conheço melhor minhas necessidades.
- Ora vamos, senhora, não seja esquiva. Sabe que meu filho está louco de amor pela senhora.
Ela ficou calada.
- A senhora vai aceitá-lo - disse ele. Ela continuou sem dizer nada.
Ele quis esbofeteá-la, chamar seus homens, arrastá-la até o padre. Ele se esforçara muito para arranjar o casamento que desejava. Tudo sairia bem; bastava ela, aquela tolinha, dizer sim.
- vou mandar meu filho vir visitá-la amanhã.
- Não estarei recebendo amanhã. Tenho outros planos.
- Depois de amanhã, então.
- A situação é a mesma... e em todos os dias em que seu filho resolver me visitar.
- A senhora é descortês, minha senhora.
- Digo o que sinto.
- Vai mudar de opinião. Tenho sido leniente demais com a senhora. - vou escolher meu próprio marido.
Havia algo de triunfante nela enquanto pronunciava aquelas palavras, e o xerife fez uma pausa. Tinha havido mexericos... os criados sempre bisbilhotavam. Ele não acreditava... não, partindo da virtuosa Marion. Fora sussurrado que um homem estava frequentando a casa. Alguém o vira. Devia ser uma das criadas prostitutas que arranjara um amante. Deus sabia que aquilo era bem comum.
E no entanto... ela estava com uma aparência que disparou o sinal de alarme em sua cabeça.
Amanhã. Tinha de ser amanhã.
Ele se curvou e retirou-se. Agora, ela estava com medo. Notara a decisão nos olhos dele. Estava cansado de esperar. Iria cometer algum ato de desespero se ela não agisse.
Ela agiu sem demora e mandou um dos criados a cavalo até o esconderijo secreto do marido.
Foi ao cair da noite que Guilherme entrou na cidade a cavalo. Dessa vez, sem disfarce.
Não poderia haver dúvida de quem ele era, já que seguia à frente de suas tropas. Guilherme Wallace, o herói da Escócia.
As pessoas corriam para as ruas.
- Wallace está aqui - bradavam elas. - Finalmente, ele veio. Os sentinelas o viram. Deram o alarme.
- Boa gente - bradou Guilherme. - Venho libertá-los de suas correntes. Basta de escravidão. Juntem-se à minha bandeira e expulsaremos os ingleses de Lanarkshire.
Mas o povo tinha medo. Sabia o que acontecera antes a rebeldes escoceses. Era morte de uma maneira horrível. Fora aplicada a Davydd do País de Gales e agora era a reconhecida recompensa pela traição. E lutar pela Escócia significava traição aos olhos dos ingleses.
Por isso, as pessoas esperavam, observavam e não mostravam aderência a qualquer dos dois lados, e se seus corações estavam com os escoceses, não fizeram tentativa alguma de unir-se a eles.
Pouco depois as ruas estavam fervilhando de soldados ingleses - homens treinados, enquanto que os de Wallace não eram, e nem mesmo a fé e a crença deles numa causa justa podiam fazer frente àquela disciplina e àquelas armas superiores.
Os ingleses não levaram muito tempo para fazer os escoceses baterem em retirada. Wallace recusou-se a recuar e ficou com um pequeno grupo, e eles estavam perto da casa de Marion. Os outros tinham fugido de volta para a floresta. Marion abrira os portões e estava olhando e quando viu os ingleses avançando sobre o marido e os poucos homens que continuavam com ele, berrou para ele:
- Depressa... Entrem e depois eu fecho os portões! Aquilo poderia salvar-lhes a vida.
Wallace percebeu. Berrou para os homens:
- Façam o que ela disse.
Eles obedeceram com muito prazer. Guilherme entrou atrás e Marion trancou o portão depressa.
Eles poderiam derrubá-lo, mas iria demorar e, àquela altura, os escoceses teriam tido oportunidade de fugir.
Guilherme a abraçou.
- Você nos salvou, meu amor - bradou ele, mas ela o afastou com um empurrão.
- Resta pouco tempo. Vocês precisam ir embora. Venham. vou lhes mostrar um caminho pelo jardim, por onde poderão fugir para a floresta.
Ela estava certa, claro. Não demoraria muito para que os ingleses derrubassem o portão e entrassem em grande número.
Eles a seguiram pelo gramado. Marion abriu uma porta no muro e eles saíram.
Os ingleses desferiam repetidos golpes no portão. Ela entrou em casa e subiu para o solário. Agora eles podiam entrar. Guilherme e seus homens estavam a salvo, a caminho da floresta.
Apanhou um bordado e tentou se concentrar, mas as mãos tremiam. Estava alerta, prestando atenção ao som dos ingleses entrando na casa.
Não teve que esperar muito. Ouviu o grande grito quando o portão cedeu, grito que foi seguido pelo barulho de passos ligeiros no pátio.
Agora eles estavam dentro da casa. Ela ouvia as vozes. Seria a qualquer momento.
Alguém estava subindo a escada. Ela imaginou quem seria e estava certa. Heselrig em pessoa.
- Onde está ele? - perguntou ele. - Onde está o traidor Wallace?
Ela se levantou de um salto e ficou de pé em frente a ele.
- Muito longe do seu alcance - bradou ela.
- Você o tem aqui.
- Procure. Não vai achá-lo nunca.
- Por Deus, você o deixou entrar pelo seu portão e trancou o portão para nós não entrarmos. Isso é traição.
- Não acho que seja, senhor.
- Mas eu acho. Eu a teria matado com a minha espada agora mesmo, não fosse o fato de que meu filho vai se casar com você.
- Isso ele não vai fazer, nunca.
- Sua tola. Não me irrite agora. Eu poderia feri-la agora. Seja sensata. Case-se com o meu filho e esqueceremos sua conduta esta noite.
- Nunca a esquecerei enquanto viver. Eu me orgulho dela.
- Você está louca.
- Não, não estou. Estou feliz porque esta noite salvei a vida do meu marido.
- Seu marido! Está dizendo...
Ela agora não se importava. Estava orgulhosa de Wallace, orgulhosa de si mesma. Queria que o mundo todo soubesse.
- O senhor está falando com Lady Wallace, xerife. Mostre o devido respeito, eu lhe peço.
Ele a fitou sem acreditar.
- Acha que vou me casar com seu filho quando existe Wallace? Há duas semanas que sou mulher dele. Você perdeu a sua fortuna, Heselrig.
A assombrosa verdade atingiu-o como um golpe de espada. Ele sabia que ela não estava mentindo. Houvera mexericos. Um homem andara visitando-a. Wallace! O homem procurado! E ele o deixara escapar por entre os dedos. Ele deixara que ela escapasse por entre os dedos.
Aquilo não aconteceria outra vez.
O xerife atirou-se em direção a ela, a espada pronta para atacar.
Marion olhou para ele com uma certa surpresa quando a lâmina furou-lhe o corpete. Então, ela estava caindo e seus últimos pensamentos foram: "Eu morri por Guilherme Wallace."
Guilherme foi despertado de seu sono. Karlé estava lhe dizendo que havia uma mulher que queria falar com ele. Karlé parecia perturbado. Aquilo significava encrenca, disso Guilherme sabia.
A mulher ficou em pé à sua frente, os olhos arregalados de horror, a boca retorcida de dor. Ele a reconheceu como sendo a ama pessoal de Marion.
Quando o viu, ela cobriu o rosto com as mãos e chorou em silêncio.
- O que foi? - bradou Guilherme. - Por favor, diga. Sua senhora...
A mulher baixou as mãos e olhou para ele com olhos sem expressão.
- Morreu, meu senhor.
- Morreu! - Ele não acreditava. Não podia acreditar. Era demais para suportar.
- Os homens entraram... depois que os senhores tinham ido embora. Heselrig estava à frente deles. Foi até o quarto dela. Ela disse ao xerife que era sua esposa... e ele atravessou o corpo dela com a espada.
Ele não conseguiu falar. Não conseguiu se mexer. Estava aturdido demais com a dor que o dominava. A censura era o sentimento principal. Jamais deveria tê-la envolvido em seus assuntos. Ele devia ter ficado para protegê-la.
Aquilo teria significado captura, dizia o seu senso comum, e de que valeria você para ela se fosse feito prisioneiro deles?
Mas morta! Não vê-la nunca mais. Sua esposa de algumas semanas.
Karlé estava ao seu lado.
- É uma notícia terrível - disse ele.
- Não pode ser verdade. Deve estar errada.
Fez-se silêncio, rompido apenas pelo gorjeio dos pássaros e pelo súbito gorgolhar de um riacho enquanto escorria por sobre as pedras.
- É verdade - disse Karlé. - Temos que aceitá-la. Venha comigo. Fale comigo. Veremos o que se pode fazer.
Ele ficou observando a mulher virar-se e afastar-se, triste.
- Marion está morta - disse Guilherme, perplexo. - Nunca mais a verei.
- Você vai se recuperar da dor - disse Karlé, delicado. Lembre-se que existe a causa.
Guilherme voltou-se para ele, zangado.
- Acha que algum dia vou esquecê-la? Minha mulher... Marion... Ela era tão bonita... era tudo o que eu queria...
- Lembre-se de que o que você mais deseja é liberdade para a Escócia.
- Eu só quero ela... a salvo e bem nos meus braços.
- Isso é hoje - replicou Karlé. - Mas há o amanhã. Gui lherme, isso foi desastroso desde o início. Alguma coisa parecida com isso tinha que acontecer. Você escolheu a vida perigosa e precisa encará-la.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, voltou-se para Karlé.
- Restou uma coisa - disse ele. - Vingança. Sim, é por isso que viverei agora. Minha espada não ficará feliz em sua bainha enquanto eu não tiver o sangue dele. Vingança - gritou ele, com voz de trovão. - Vingança!
Ele não queria ouvir. Formavam uma boa companhia. Tinham falhado antes por serem muito poucos. Mais homens tinham-se juntado ao grupo. Agora, estavam prontos para entrar na cidade.
- Heselrig é meu. Ninguém deve matá-lo. Quero o sangue dele. Ele estava vivendo para o momento em que atravessaria aquele corpo com sua espada, em que Heselrig deveria morrer.
Planejou com cuidado. Precisavam vencer. Jamais teria um momento de paz enquanto não tivesse vingado a morte de Marion. Mas tanto Estêvão e Karlé o tinham alertado, ele tinha que planejar com cuidado. Daquela vez, tinham de vencer.
Entrariam na cidade às escondidas, à noite. Iriam até a casa de Heselrig. O mais provável era que ele estivesse na cama - tanto melhor.
Wallace iria dividir as forças. Mas ele, com homens escolhidos, deveriam pegar Heselrig.
Estava escuro quando entraram na cidade. Não havia sinal de atividade. Só alguns guardas para darem o alarma, mas foram logo despachados antes que pudessem emitir um único som.
Entraram nas ruas. Silêncio total. Tudo saíra segundo os planos.
Ele estava parado diante da porta da casa de Heselrig. Bateu com autoridade.
- Abram... abram, é assunto de interesse do rei.
Ele soltou uma gargalhada, exultante. Era mesmo assunto de interesse do rei, porque ele ia ficar com um xerife a menos depois daquela noite.
As trancas foram retiradas. A cara espantada de um dos guardas olhou para ele por um breve espaço de tempo antes de ser derrubado ao chão.
Wallace começou a subir a escada gritando:
- Xerife. Apareça. É um assunto urgente.
Heselrig apareceu no alto da escada, um robe atirado apressadamente em torno do corpo.
- Quem vem lá? - perguntou ele, atemorizado. Wallace estava diante dele.
- A morte - respondeu ele e, erguendo a adaga, enterrou-a no coração do xerife.
Por um momento, Heselrig pareceu assustado. Depois, gritou: "Socorro! Assassinos..." enquanto caía ao chão, o sangue jorrando da boca.
Guilherme curvou-se sobre ele e esfaqueou-o várias vezes.
- Por Marion - bradou ele. - Pelo meu amor perdido. Ouviu-se um som acima dele. Ele ouviu uma voz.
- Papai, o que aconteceu? Onde está o senhor? Guilherme ergueu-se rindo no íntimo. O filho! Aquele que pretendera tornar-se marido de Marion!
Vamos dar uma olhada nesse bravo rapaz, pensou ele. O rapaz apareceu na escada. Olhou para o corpo do pai e gritou. Guilherme pegou-o pelo braço e viu o terror saltar para os olhos do rapaz.
- O que...? - gaguejou ele. - Quem...?
- Wallace - respondeu Guilherme -, marido de Marion Bradfute. Ela foi assassinada pelo seu pai. Ele pagou o preço, e você também vai pagar.
Ergueu a adaga.
Os corpos sem vida do xerife e do filho jaziam lado a lado na escada.
Houve gritos na cidade.
- Heselrig está morto! O tirano foi abatido. Wallace está aqui.
As pessoas saíram correndo para as ruas. Algumas levavam armas que tinham conseguido esconder. Era chegada a hora. O xerife já não podia causar-lhes nenhum mal, e Wallace estava ali.
Houve matança nas ruas de Lanark aquela noite, e os ingleses, que tinham sido apanhados de surpresa, foram derrotados. Quando amanheceu, Guilherme Wallace conquistara sua primeira cidade para a Escócia. Os ingleses que não foram mortos tinham fugido. Wallace fora em busca de vingança e também conseguira uma vitória.
Fora um sucesso inesperado.
Precisavam aproveitá-lo ao máximo. Ele fortificou a cidade, com medo de que os ingleses voltassem. Os cidadãos estavam com ele. Lutariam com Wallace contra o opressor. Heselrig, o tirano, estava morto e já não podia fazer-lhes mal.
Eles se uniram em torno de Guilherme Wallace, chamando-o de salvador, de libertador deles.
Aquilo era um começo. Wallace matara Heselrig e tomara Lanark. Por todo o país houve um chamado às armas. Finalmente havia uma esperança de expulsar os ingleses. Nem mesmo Wallace, em seus sonhos mais alucinados, imaginara tamanho sucesso.
Era exatamente daquilo que ele precisava para desviar o pensamento da sua angústia; podia atirar-se à luta; era magnífico. Por todo o país falava-se sobre Wallace. Ele se tornara uma figura lendária e dizia-se que os ingleses tremiam diante da menção de seu nome.
Foi aclamado como comandante dos exércitos escoceses. Declarou que agia em nome do rei João Baliol, a quem chamava de prisioneiro dos ingleses, e um número cada vez maior de pessoas corria para a sua bandeira.
Guilherme Douglas uniu-se a ele e, juntos, tomaram Scone. Invadiram os montes Lennox. Voluntários entravam aos milhares para o exército vitorioso.
No espaço de meses, toda a Escócia estava livre e os escoceses tinham, até, feito incursões além-fronteira, a Westmorland e Cumberland.
Era essa a situação quando Eduardo voltou da França, livre dos compromissos por lá e casado com a irmã do rei da França.
Decidiu de imediato que precisava subjugar a Escócia para sempre.
A RAINHA MARGUERITE estava viajando em direção ao norte, vindo de Canterbury, onde parara para fazer oferendas no santuário de St. Thomas. Estava grávida e encantada com o seu estado. Fora uma proeza ter concebido tão cedo, e rezara para que St. Thomas lhe desse um menino saudável e, ao mesmo tempo, preservasse a vida dela.
Eduardo estava marchando para o norte. Ele lhe dissera que gostaria que ela ficasse perto dele, tal como sua primeira mulher sempre estivera; e ela, que queria igualar-se ao máximo àquela primeira e adorada esposa, estava preocupada em não fracassar no seu dever.
Se pudesse dar a ele um menino, ficaria encantada. Até a santa Eleanor só lhe deixara um filho entre todas aquelas filhas, embora tivesse tido vários que viveram pouco tempo e depois morreram.
Pobre Eduardo, sabia que ele tinha grandes preocupações. Seu filho Eduardo estava se mostrando muito desregrado para a tranquilidade do pai e da nação. Tinha havido reclamações sobre a vida que ele levava com os companheiros que escolhera, e o rei confidenciara a ela que tinha horror de pensar no que poderia acontecer quando ele morresse e o filho subisse ao trono.
Ele dissera que gostaria de passar mais tempo com o filho Eduardo. Mas sempre havia negócios urgentes para prender-lhe a atenção. Ele tivera o problema na França e agora, assim que voltara para casa, ficara sabendo que aquele arrogante Guilherme Wallace estava criando problemas na Escócia.
O assunto era muito grave e o deixara muito deprimido. Marguerite pensava na grande alegria que o rei teria se ela pudesse mandar-lhe o recado de que tinham um filho homem.
Ficara muito impressionada com a grandiosidade de Caníerbury e ouvira atentamente o abade, que lhe contara como St. Thomas fora morto pelos cavaleiros do rei e que o lugar em que aquilo acontecera se tornara sagrado. Ele lhe contara que milagres tinham sido realizados ali sobre as pedras em que o sangue do mártir caíra, e ela se ajoelhara e pedira ao santo que olhasse por ela e lhe desse um filho homem.
De Canterbury, a rainha e sua comitiva seguiram para o norte e atravessaram o Humber e entraram em Yorkshire. Ela se dirigia ao castelo de Cawood, uma sé interiorana pertencente ao arcebispo de York, mas devido a alguns atrasos na viagem, chegou à conclusão de que seria imprudente ir mais adiante e foram descansar numa pequena aldeia às margens do Wherfe chamada Brotherton.
Ficou provado que ela tivera razão em dar urca parada, pois não estava lá há mais do que poucos dias quando começou a sentir as dores.
Recolheu-se ao leito, porque a criança estava prestes a nascer.
Houve uma grande alegria quando ela nasceu, porque era o tão esperado menino.
- vou chamá-lo de Thomas - disse a rainha - porque sei que é a St. Thomas que devo esta grande alegria.
E assim a criança recebeu o nome de Thomas e uma mensagem foi enviada ao rei para dizer-lhe que a rainha dera à luz um menino sem risco algum.
Eduardo recebeu a notícia com prazer. Estava em York e pronto para marchar contra a Escócia. Sete mil homens a cavalo e oitenta mil a pé, sob o seu comando competente, iriam, em breve, pôr Wallace para correr.
Era um bom agouro, disse ele, ter nascido um menino e saudável. Era a resposta do céu a suas dúvidas sobre se devia ter-se casado outra vez. Eleanor, no céu, olhava para ele com aquela meiga compreensão que mostrara para com ele durante a vida deles.
Assim que a rainha ficasse em condições de viajar, ele queria que ela levasse o filho para o castelo de Cawood e, lá, ele poderia vê-los antes de partir para a Escócia.
Marguerite recuperou-se depressa do parto e ficou ansiosa por partir, e em poucas semanas estava a caminho de Cawood, aquele castelo que ficava situado na margem sul do Ouse e que os arcebispos de York tinham usado como residência no século X. Como a maioria dos castelos, ele tinha pouco conforto a oferecer, mas como se estava no auge do verão, eles sofriam mais com o cheiro das privadas do que com o frio.
A visita de Eduardo foi rápida, porque tinha muita coisa na cabeça. Era deprimente ver que depois de todos os seus esforços Wallace conseguira reunir a Escócia e desafiar sua supremacia.
Mas ficou encantado com o filho e disse a Marguerite que nada lhe teria causado mais prazer e dado maior ânimo para o que havia pela frente do que a visão dela com o filho deles.
- Majestade - respondeu ela com timidez -, eu disse que ele vai se chamar Thomas, mas se quiser...
- Você quer - disse ele, afetuoso -, e portanto o nome dele será Thomas. Quanto a mim, acho que numa fase como esta é bom homenagear o santo de Canterbury. Talvez eu precise da ajuda dele.
Ela ficou logo preocupada.
- Mas você vai dominar os escoceses rapidamente.
- Dominá-los, sim, mas rapidamente, quem pode dizer? Esse tal de Wallace conquistou a imaginação do povo. Eles o transformaram em herói. Nunca é fácil conquistar um herói nacional, como acontece com uma pessoa que seja desprezada. Baliol foi fácil. Um homem fraco. Esse Wallace é diferente. Mas não tenha medo, quando o nosso próximo filho nascer já terei dominado os escoceses e ensinado a eles o que significa zombar de mim.
E então ele a beijou com ternura e falou-lhe sobre seus planos, como fazia com Eleanor; e ela ouviu com atenção, tão dócil e com tamanha adoração, que podia ter sido a sua primeira mulher que estava ali sentada.
Ele se juntou aos seus exércitos e marchou através da fronteira. Não houve resistência. Mas os escoceses tinham devastado o interior, de modo que não havia provisões. Como era um bom general, ele previra isso e mandara que navios subissem o Forth com o que o exército deveria precisar.
Os navios demoraram a chegar, e ele ficou muito aflito. Um número muito grande de exércitos fora derrotado por falta de suprimentos.
Ele tomou Edimburgo e ficou ali à espera, e só em fins de julho os navios começaram a chegar.
Chegaram, também, alguns de seus espiões que tinham percorrido o país disfarçados de pedintes e mascates. Traziam notícias para ele. Os escoceses, sob o comando de Wallace, estavam em Falkirk.
- Vamos atacar logo - disse Eduardo, e liderou seu exército até Linlithgow Heath, para aguardar o momento de entrar em ação.
Já anoitecera quando ele cavalgou em volta do acampamento para se certificar de que estava tudo bem e dar ânimo aos homens. Sempre fora assim. Sabia que eles olhavam para ele. Quando viam sua figura alta montando seu cavalo, uma força nova tomava conta deles. Acreditavam que em combate ele era invencível. Ele sabia que aquela crença precisava ser mantida e, com um inimigo como Wallace, que teria um efeito semelhante sobre os homens dele, mais do que nunca era importante mante-la.
Aqueles homens o seguiriam aonde quer que ele fosse, e se lhes dissesse que a vitória era possível, não importava as adversidades que enfrentassem, eles iriam acreditar.
No entanto, o rei não acreditava que enfrentasse adversidades preocupantes agora, porque muito embora Wallace tivesse criado uma aura em torno de si, aquilo não poderia enfrentar uma aura correspondente de um rei que se mostrara um grande guerreiro durante muitos anos e chefiava um exército bem disciplinado. Aos escoceses devia faltar a experiência dos homens de Eduardo. Eles tinham derrotado as tropas das cidades fortificadas, mas aquilo não representava o exército inglês. Wallace era um bravo. Eduardo o respeitava. Ele compreendia Wallace. Mas se o capturasse, não mostraria clemência. Não era boa técnica de estadista mostrar clemência pelo homem que era responsável pela sua expulsão da Escócia.
Seu filho deveria estar com ele agora. Sentia-se decepcionado com o filho Eduardo. Estava se mostrando indigno da coroa. Ele pensara nisso desde que pegara nos braços o seu jovem filho Thomas. Apenas um bebezinho. Muitos anos se passariam antes que ele chegasse à maturidade. E naquele ínterim havia Eduardo, que não tinha vontade alguma de aprender a ser rei; preferia passar frivolamente o tempo com companheiros iguais a ele. Cometera um erro ao mandar o filho de Gaveston para morar com ele. O rapaz o estava dominando, Eduardo o seguia como se fosse um escravo, como se os papéis dos dois tivessem sido invertidos. O rei recebia más informações dos guardiães dos dois.
Eduardo, que em breve faria dezessete anos, já não era um menino. Tinha idade suficiente para mostrar uma certa maturidade. Oh, sim, o rei estava muito preocupado com Eduardo. Não podia conversar com Marguerite sobre ele. De certo modo, seria uma deslealdade para com Eleanor, mas talvez Marguerite ouvisse histórias sobre o comportamento do enteado. Se ouvia, era delicada demais para confirmar.
Ele precisava parar de se concentrar nos assuntos de família. Tinha que pensar numa batalha.
Amanhecer. Os trompetes soavam. Os homens estavam acordando e havia aquela agitação por todo o acampamento antes de uma batalha. O cavalo do rei estava folgazão aquela manhã. Ele ficara assustado com o som dos trompetes e parecia contrariado com a agitação e a atividade à sua volta.
O cavalariço do rei estava esperando quando Eduardo saiu.
Havia em Eduardo uma satisfação sinistra. Aquele era o dia em que ele começaria a acabar com a lenda de Guilherme Wallace.
Ia pular para a sela quando o cavalo se voltou de repente. Eduardo foi atirado ao chão e o cavalo, tentando afastar-se, escoiceou o rei nas costelas.
A dor foi súbita e forte, e com ela veio o medo, porque sentira que fraturara um osso.
Oh, Deus do céu, pensou, num dia como este!
Aquilo seria considerado um mau agouro. Entrariam em combate dizendo a si mesmos que Deus se voltara contra eles. As histórias que tinham ouvido sobre o invencível Wallace eram verdadeiras. Eles entrariam em combate... sem o rei... e Wallace sairia triunfante.
Nunca, disse Eduardo para consigo mesmo. Levantou-se um pouco abalado. Colocou a mão sobre um dos lados. A dor o fez estremecer. Suas costelas pareciam quebradas.
Seu cavalariço disse:
- Vossa Majestade está ferido.
- Não - resmungou o rei. - Não diga isso. Não foi nada. Traga o cavalo de volta. Foram os trompetes que o assustaram.
O cavalo foi trazido. Ele acariciou-lhe a cabeça.
- Não precisa ter medo, meu amigo - murmurou ele. - Não precisa ter medo.
E pensava: oh, Deus, como pode o Senhor fazer isso comigo? Primeiro, o Senhor favorece esse tal de Wallace, e agora quebra minhas costelas logo na hora em que preciso liderar meus homens em combate. Mas o Senhor não vai me derrotar. Vai ser preciso mais do que costelas quebradas para fazer isso.
- Ajude-me a montar - disse ele. O cavalariço ajudou. Ele ficou ali montado por um segundo e depois seguiu em frente.
- Pronto! - berrou ele. - O que estão esperando?
A cavalaria escocesa deu meia-volta e fugiu; os arqueiros os perseguiram, mas a infantaria ficou firme. Eduardo era invencível; montado com firmeza na sela, não dava sinal algum de que suas costelas quebradas
estavam provocando uma agonia enquanto berrava suas ordens e seus homens sempre o viam na frente de batalha.
Nada podia opor-se a ele. Os escoceses eram ardentes no que se referia a patriotismo; acreditavam que Wallace poderia levá-los à vitória. Mas aquele era o poderoso Eduardo, cujo nome causaralhes pânico, assim como o de Wallace os enchera de orgulho.
Ele estava ali em pessoa - o grande rei diante do qual Baliol se curvara e o jovem Bruce não erguera a mão. Só Wallace resistira a ele. Mas nem mesmo Wallace era um adversário à altura de Eduardo Plantageneta.
Foi uma derrota amarga para os escoceses. Vinte mil deles morreram, enquanto que poucas vidas inglesas foram perdidas em troca.
Tinham sentido o poder de Eduardo e lembravam-se dele de antigamente. Ele conquistara o País de Gales e jurara fazer o mesmo com a Escócia. Nem mesmo Wallace era adversário para ele.
Os enlameados escoceses fugiram de volta para as montanhas que serviam de fortaleza, e Eduardo avançou para Stirling.
Os escoceses tinham tomado a precaução de arrasar a terra, mas os ingleses decidiram descansar um pouco ali. O rei precisava recuperar-se da contusão.
Primeiro providenciou a defesa do castelo e deu ordens para que seus homens espionassem o que se passava na área, atacassem onde fosse necessário e trouxessem o butim que pudesse ser encontrado.
Enquanto isso, ele precisava recolher-se ao leito, com o seu médico de plantão. As desprezadas costelas quebradas precisavam consolidar-se o mais depressa possível.
Quinze dias se passaram até que ele pudesse montar um cavalo, e o incidente o envelhecera bastante, mas a esplêndida vitalidade, que era mais mental do que física, estava de novo com ele. Era como se ele desafiasse o destino a prejudicá-lo enquanto ele tinha trabalho a fazer.
O rei dominara a região abaixo do Forth; e não tinha dúvidas de que Wallace estava reorganizando seus exércitos ao norte; mas Eduardo sabia que, se avançasse, o problema de abastecimento seria grave, e ele não tinha intenção de cometer aquele erro típico de um general menos competente.
Marchou através de Clydesdale em direção a Ayr, com a intenção de entrar em Galloway, mas uma vez mais o fantasma da falta de equipamento e alimentos surgiu à sua frente. Não sabia se seria bem-sucedido. Além do mais, alguns dos lordes estavam ficando impacientes. Entre eles, os condes de Hereford e Norfolk. Os homens e cavalos deles estavam ficando exaustos; eles diziam que precisavam de um descanso depois de uma campanha daquelas; mas o rei desconfiava que eles estavam decepcionados porque não tinham recebido nenhuma área de terra ou nenhum castelo em pagamento de sua fidelidade ao seu rei. Eduardo iria lembrar-se disso; mas ao mesmo tempo, condes descontentes podiam ser um risco tão grande quanto a falta de suprimentos. Ele precisava convencer-se de que havia esmagado a rebelião de Wallace e deveria demorar algum tempo até que os escoceses pudessem reunir um exército, devido às perdas sofridas.
Ele guarneceu as cidades abaixo do Forth e mandou uma delegação a certos lordes escoceses, ordenando-lhes que tivessem um encontro com ele. Wallace não estava entre eles. Reuniram-se numa conferência, e Eduardo prometeu-lhes uma trégua temporária até a festa de Pentecostes. Eles aceitaram ansiosos, já que precisavam de tempo para se reorganizar. Eduardo também precisava de tempo.
Voltou para Londres.
A rainha estava grávida de novo. Aquilo era promissor. Tal como sua antecessora, ela era fértil.
Joanna, a condessa de Gloucester, e o marido, Ralph Monthermer, estavam na corte, e a filha do rei e sua jovem mulher tinham algo em comum, porque Joanna também estava esperando um filho.
Não podia ter havido duas mulheres menos parecidas do que a delicada jovem rainha e a viva Joanna.
Mas o rei achara que seria bom as duas estarem juntas num momento como aquele, e naturalmente nem mesmo Joanna podia desobedecer um chamado do rei. Além disso, Ralph queria ficar na corte. Ele estava encantado porque encontrara boa vontade por parte do rei, que perdoara totalmente o casal pelo casamento secreto e concedera a Ralph o grande favor de permitir que ele caçasse nas florestas reais e levasse a quantidade de caça que quisesse. Aquele era o maior dos favores, pois Eduardo era tão dedicado à caça quanto tinham sido tantos de seus ancestrais.
Ralph estava muito contente com a vida. Grandes honras lhe tinham sido concedidas por ser marido da princesa; o rei gostava dele; e Joanna estava tão obcecada por ele, naquele momento, quanto estivera quando se casara com ele.
Ele era, naturalmente, um dos mais bonitos homens da corte, e Joanna nunca, nem por um só momento, se arrependera de seu casamento apressado. Ela não gostava de ter filhos e estava um pouco descontente porque estava esperando um para outubro e dizia que era cedo demais depois de Mary.
Era irritante ter as atividades limitadas e ver que esperavam que ela se sentasse e conversasse sobre bebés com a jovem rainha que Joanna, intimamente, achava muito chata.
Quanto a Marguerite, sabia falar sobre pouca coisa que não sobre o bebé que estava para chegar e o outro filho já nascido.
Ela esperava que fosse um menino. Acreditava que o rei queria muito filhos homens mas, claro, ele era tão bom que jamais demonstraria sua decepção se fosse menina.
- Claro que ele não vai ficar decepcionado se for menina disse Joanna. - Meu pai ama as filhas... mais do que os filhos. Ele adorava minha irmã Eleanor e tem sido muito complacente comigo. Por outro lado, está sempre se decepcionando com Eduardo.
- Eduardo dá a ele grandes motivos para ficar triste. Joanna, o que você acha de Piers Gaveston?
Joanna sorriu no íntimo.
- Muito inteligente - disse ela.
Sua irmã Elizabeth também se encontrava na corte. Ela perdera o marido fazia quase dois anos e, depois de um intervalo adequado, voltara para a Inglaterra. Tinha havido rumores de que o conde da Holanda fora envenenado; ele tivera muitos inimigos e, como morrera de disenteria - como acontecera com tanta gente -, talvez isso tivesse acontecido.
No entanto, como todas as filhas de Eduardo, ela jamais quisera sair da Inglaterra e se sentia contente por estar de volta. Confidenciara a Joanna que quando tornasse a se casar seria na Inglaterra.
- Você se casou - disse ela. - vou fazer o mesmo.
- Talvez precise de um pouco de astúcia - replicou Joanna.
- Então, vou pedir que você me ajude.
Joanna soltou uma gargalhada e disse que sua inteligência estava à disposição da irmã.
Depois, as duas conversaram sobre sua irmã Margaret, que fora menos feliz do que elas. Sob todos os aspectos, Margaret tinha que aturar muita coisa do duque João de Brabant.
- Ele enche seus palácios com os seus filhos bastardos - disse Joanna. - Eu não aguentaria isso.
- É fácil dizer isso quando não tem que enfrentar o problema.
- Margaret sempre foi muito dócil. Se eu fosse ela, pediria ao nosso pai que usasse sua influência sobre o marido dela e fizesse com que ele parasse de andar atrás das mulheres.
- Você acha que ele iria parar?
- Pelo menos teria de namorar em segredo, o que não ficaria bem para um governante. Mas Margaret está com os bastardos lá e os trata com respeito.
- Ela sempre foi delicada e amorosa. E agora que tem um filho, acho que se sente bastante feliz.
- Para mim, não seria suficiente. Mas a nossa irmã Margaret parece a rainha. Ela se contenta com pouco. Ela tem o jovem Thomas, que considera a criança mais perfeita que já nasceu, e agora haverá o novo filho. Eu não ficaria surpresa se o jovem Thomas seguisse o caminho dos nossos irmãos João e Henrique. Ele tem uma aparência delicada.
- Oh, você acha?
- Sem dúvida, e não gosto da ama-seca francesa dele.
- Ela pareceu muito agradável.
- Acho que um príncipe da casa real devia ter uma ama-seca inglesa. Não queremos costumes franceses aqui.
- A rainha parece satisfeita com ela.
- Claro que está. Elas conversam em francês o tempo todo.
Isso faz com que ela se sinta em casa. Mas não acho que seja boa para o menino, que tem realmente uma aparência delicada.
Estava claro, pensou Elizabeth, que Joanna adquirira uma antipatia em relação à ama-seca francesa do meio-irmão delas, mas era verdade, no entanto, que o jovem Thomas estava dando sinais de uma certa fraqueza.
Joanna chamava muito a atenção de Elizabeth para isso. Ela ficava irritada com a maneira de a rainha se preocupar exageradamente com pequenos detalhes em relação aos filhos. Joanna tinha pouco tempo para os seus. Dizia ela que para as crianças contratavam-se babás e, se estas fossem inglesas boas e experientes, em geral corria tudo bem.
O rei foi visitar a família. Uma curta pausa, pensou ele, antes de voltar para a Escócia, o que parecia ser inevitável dentro de certo tempo. Não esperava que reinasse a paz por muito mais tempo; de qualquer modo, estava decidido a subjugar a Escócia como fizera com o País de Gales.
Elizabeth achou que o pai parecia mais velho e cansado. Ela soubera que ele quebrara as costelas e entrara em combate, o que era uma característica dele, claro, e embora aquilo tivesse resultado na vitória de uma batalha, era evidente que não lhe melhorara a saúde. Por ser tão vigoroso, às vezes esquecia a idade que tinha.
Joanna, preocupada com seus interesses, não percebera que o rei parecia cansado e velho.
Perguntou a ele o que pensava do jovem Thomas. Não achava que o menino estava pálido, e já tinha reparado na tosse dele?
O rei ficou horrorizado. Percebera aqueles detalhes e tentava convencer-se de que Thomas estava sofrendo dos males da infância e que quando crescesse aquilo passaria. Foi o que disse a Joanna.
- Acredito que o mesmo se disse a respeito dos nossos irmãos João e Henrique - insistiu Joanna. - Sei o que há de errado com o Thomas. É a ama-seca francesa. Ela o trata como se ele fosse um inválido; ela o alimenta demais. Está trazendo costumes franceses para a sua corte.
- Acha mesmo que pode ser isso? - murmurou Eduardo.
- Majestade, eu sou mãe.
E era, pensou ele, mas se dizia que não era uma boa mãe. Deixava muito os filhos com as amas - até mais do que o necessário - para que pudesse ficar constantemente em companhia do marido.
Era verdade que Eleanor deixara os filhos para acompanhá-lo nas batalhas, e ele sempre a considerara a melhor das mães. Marguerite talvez tivesse que fazer o mesmo se irrompesse a guerra escocesa.
Ele observou a ama-seca francesa. Joanna plantara sementes de dúvida em seu coração.
Falou com Marguerite sobre o assunto.
- Querida - disse ele -, não acho que a ama-seca francesa seja a melhor para Thomas.
- Oh, mas ela o adora.
- Talvez seja por isso que faça demais as vontades dele.
- Quer que eu fale com ela...?
- Não, meu amor. vou providenciar uma ama-seca inglesa. Joanna conhece exatamente a mais indicada.
- Mas...
Ele deu-lhe um tapinha na mão.
- A ama-seca francesa será mandada de volta para a França. vou recompensá-la bem, para que tenha boas recordações de sua estada na Inglaterra.
Marguerite teve dificuldade em conter as lágrimas, mas conseguiu, porque sabia que Eduardo não gostava delas. Queria protestar. Joanna provocara aquilo. Mas como poderia ela criar problemas entre o rei e as filhas?
O que poderia fazer, a não ser aceitar a decisão? Respeitava demais o marido para contrariá-lo, e não queria ofender Joanna.
Por uma estranha coincidência, quando a nova ama-seca chegou a saúde de Thomas começou a melhorar. Joanna ficou triunfante e estava sempre comentando as faces rosadas do jovem Thomas. Ele perdeu por completo a tosse, dizia ela. E lembrava ao rei que fora a responsável por aquela feliz situação.
A pobre Marguerite sentia-se triste e solitária sem a ama-seca, porque tinha sido muito reconfortante conversar, às vezes, soore a sua terra natal.
Então, a corte transferiu-se para Woodstock, porque ficara muito quente e o ar de lá era considerado bom. No dia 5 de agosto, Marguerite deu à luz mais um menino. A este, deu o nome de Edmund.
Dois meses depois, no dia 4 de outubro, nasceu o filho de Joanna. Recebeu o nome de Thomas. Joanna ficou encantada por aquela coisa maçante ter acabado e deixou a corte para voltar para Gloucester.
A princesa Elizabeth estava decidida a seguir o conselho de sua irmã Joanna. Sentia-se muito feliz por retornar à Inglaterra e confidenciara à irmã que iria procurar um marido bonito e casar-se com ele antes que o pai lhe arranjasse algum príncipe estrangeiro.
- Você sempre disse que como nos casamos uma vez por motivos de Estado, na segunda vez deveríamos escolher com base no amor.
- Eu disse, e sempre direi - afirmou Joanna.
- Você nunca se arrependeu.
- Nunca - declarou Joanna; e Elizabeth pensou que Ralph Monthermer devia ser um homem muito fora do comum para ter conquistado de tal maneira a afeição de sua caprichosa irmã.
Joanna era jovem e bonita, mas havia horas em que Elizabeth achava que o rubor de suas faces era um pouco vivo demais e os belos olhos brilhantes demais. Parecia haver tanto fogo em Joanna que ele a estivesse consumindo.
Mas Elizabeth estava preocupada com seus assuntos no momento para pensar muito na irmã. Encontrara o homem com quem queria se casar. Era Humphrey de Bohun, o conde de Hereford e Essex e juiz do tribunal de cavaleirismo da Inglaterra. Era, também, jovem e muito rico, espirituoso e alegre. Assim que Elizabeth o viu, decidiu que era ele que queria.
O rei, a princípio, não estava inclinado a concordar com o casamento, porque as filhas deviam ser bons objetos de barganha, mas quando ela o lembrou de que ele permitira que Joanna usasse de sua livre escolha, era difícil resistir. No entanto, se ele tivesse retrucado, dizendo que Joanna casara sem o seu consentimento, aquilo poderia ser um convite para que ela fizesse o mesmo. Os acontecimentos representavam uma carga muito pesada para ele. Sofria de dores nas costelas, pois nunca se recuperara totalmente daquele acidente. Os médicos diziam que ele não devia ter entrado em combate naquele estado e que não era de surpreender que ainda sentisse dores.
O rei estava cansado das encrencas provocadas pelos escoceses, que estavam longe de ser resolvidas. Deplorava o fato de não ter podido completar a conquista. Nunca estava certo sobre quando Wallace iria tornar a aparecer e expulsar os ingleses das cidades fortificadas. Neste caso, sua breve vitória teria sido em vão.
Estava muito velho e cansado para entrar em conflito com as filhas. Gostava de vê-las felizes. Para ele era um assombro Joanna ter feito o casamento perfeito do ponto de vista dela. Talvez fosse melhor as princesas permanecerem na Inglaterra, em especial quando, como elas lhe lembravam, tinham casado uma vez por interesse do Estado.
Elizabeth estava atraente e bela, apaixonada. Ele tinha a sua boa rainha Marguerite e estava feliz com ela. Queria que as filhas também fossem felizes. Na verdade, sentia-se contente por não ter conseguido ficar com a bela Blanche. Ela não poderia ter combinado com ele tão bem quanto Marguerite. Sua rainha era dócil e carinhosa. Blanche, sem dúvida, teria sido mais exigente. Como ele, que tivera tanta sorte com suas duas rainhas, podia negar a felicidade às filhas?
Num dia nublado de novembro, o casamento de Elizabeth e Humphrey de Bohun foi celebrado em Westminster.
Elizabeth estava radiante, sem dúvida, com sua coroa de ouro incrustada de rubis e diamantes, e foi grande a alegria em toda a cidade. Era nitidamente um casamento por amor, e o povo gostava de pensar que suas princesas não tinham que deixar o país por terem se casado.
Joanna e Elizabeth estavam, agora, felizes; Margaret tinha seus problemas, mas estava longe de casa e ele acreditava que, ficando mais velha, ela agora tivesse condições de cuidar de si mesma; a pobre da Mary parecia contente no seu convento, com o consolo de que não teria que pensar num período de penitência quando ficasse mais velha, como faziam tantas mulheres; se ela não tivera uma vida familiar feliz na Inglaterra, pelo menos tinha certeza de um lugar no céu. O pequeno Thomas estava crescendo - ele agora tinha uma ama-seca inglesa -, e o jovem Edmund estava indo bem. O rei tinha uma bela família... com uma única exceção.
Sim, era verdade. Justamente aquele que deveria ter-lhe dado o maior prazer causava-lhe a maior angústia. Seu filho Eduardo.
Muitas vezes, ele dizia para si mesmo: "Deus queira que eu não morra já. Deus ajude a Inglaterra se meu filho for o rei."
Ele tinha o dever de viver, conquistar a Escócia e tornar a Inglaterra um grande país e manter o jovem Eduardo longe do trono até que ficasse mais maduro, mais apto a governar.
Eduardo já não era um menino; logo faria vinte anos. Um homem. No entanto, como era frívolo! Raramente tamanho talento fora desperdiçado, porque a Eduardo não faltava, em absoluto, inteligência. Era alto, bonito, e tinha capacidade. Infelizmente, era preguiçoso e frívolo, e gostava de pregar peças grosseiras nas pessoas que às vezes causavam aflição aos que o cercavam. Houvera reclamações que perturbavam o rei, porque tinham fundamento.
Ele pensava com frequência no bebezinho que apresentara aos galeses. Que menino encantador ele tinha sido, e como o rei e Eleanor tinham ficado contentes com ele! Mas alguma coisa saíra errada em algum ponto. Seria por que Eleanor acompanhara o marido nas viagens, quando devia ter dado mais atenção aos filhos? Teria ele falhado de algum modo?
Ele agora lamentava ter dado ao filho Piers Gaveston como companheiro de brincadeiras. Quisera apenas homenagear o filho de Gaveston. Gaveston fora um bom e leal cavaleiro da Gasconha que servira bem ao seu rei, de modo que quando morrera deixando um filho criança, Eduardo o levara para a ala infantil real e ele fora criado lá.
Eduardo e o jovem Gaveston tinham-se tornado muito amigos. Os dois eram inseparáveis, e Eduardo parecia gostar mais dele do que de qualquer outra pessoa.
Não era um relacionamento que o rei gostasse de ver. Ele precisava fazer alguma coisa.
O jovem Eduardo tinha de acompanhá-lo quando ele fosse à Escócia.
Chegara a hora de fazer a guerra contra a Escócia. O rei começava a sentir o peso da idade. Estava avançando pela casa dos sessenta e não queria admitir que ficava exausto mais depressa do que jamais ficara nos bons tempos.
Ele estava obcecado pelo seu sonho de unir Inglaterra, Escócia e País de Gales; e o desejo ficara carregado de uma febril determinação, porque o tempo estava se esgotando.
Houve pouca oposição no sul, e ele marchou através de Edimburgo e Perth e avançou para o norte até Aberdeen. Em Moray, os proprietários de terras submeteram-se a ele, e a única cidade que não lhe caiu com facilidade nas mãos foi Stirling. Como sempre, o pesadelo da campanha era o medo de ficar sem suprimentos medo que sempre devia afetar um comandante quando o seu exército se encontrava longe da base.
Ele ia fazer um tratado com a Escócia e, com essa finalidade, convocou todos os lordes para St. Andrews, mas havia um com quem não entraria em acordo algum. Esse homem era Guilherme Wallace.
Eduardo pensara muito em Wallace. Sabia que ele estava escondido em algum lugar. Acreditava compreender bem o homem, pois ele não era diferente dele. Wallace era tenaz, um patriota. WalJace jamais faria um acordo e, enquanto vivesse, seria um perigo.
Eduardo queria Wallace entregue a ele. Queria ver Wallace agrilhoado. Jamais descansaria enquanto não tivesse a cabeça de Wallace espetada num poste sobre a ponte de Londres, como fizera com a de LIewellyn e de Davydd. Aquela era a maneira de subjugar um povo. Matar seus líderes e humilhá-los. E o que poderia ser mais prejudicial a um herói do que ter a cabeça separada do corpo e colocada num ponto em que todos pudessem escarnecer dela?
Eduardo deixara muito claro que não haveria trégua com Wallace. com aquele homem, teria de ser rendição incondicional. Ele dera a entender que iria fazer valer a pena um dos companheiros de Wallace entregar-lhe o líder.
Wallace tornara-se um fantasma que assombrava os sonhos de Eduardo. Vivia escondido em algum lugar, e as montanhas da Escócia ofereciam um refúgio seguro. Não era fácil caçar um homem por lá. A qualquer momento, Wallace iria levantar-se e havia, evidentemente, um fogo no homem, uma aura de heroísmo e liderança que inspirava os homens. Eduardo queria homens inspirados do seu lado, não do inimigo.
Sabia o que significava, para os homens, seguir um líder. Ele mesmo era um exemplo disso. Teria vencido aquela batalha se não tivesse montado em seu cavalo, ignorando as costelas quebradas, e seguido à frente de seus homens? Tinha certeza de que a batalha teria sido perdida caso tivesse seguido o conselho de seus ajudantes e chamado os médicos. Soldados eram supersticiosos; andavam à procura de presságios. Ouvindo as lendas de seu ancestral, Guilherme, o Conquistador, ele sabia o valor que aquele grande homem dera à superstição. Jamais deixara que ela agisse contra ele e, mesmo quando parecia que estava, encontrava um jeito de garantir aos que o cercavam que se tratava, na verdade, de um bom presságio que eles estavam presenciando e torcia a argumentação para fazer com que se realizasse. A vitória tinha de estar na mente dos homens, se quisessem conquistar.
Ele iria subjugar a Escócia, e dentro de pouco tempo; mas não enquanto Guilherme Wallace vivesse.
Havia muitos escoceses que não eram de todo leais à causa escocesa. Alguns teriam trabalhado com ele se tivessem achado que poderiam obter alguma vantagem. Os escoceses deveriam conhecer melhor do que ele os esconderijos nas montanhas. Alguns poderiam, até, saber o paradeiro de Wallace.
Eduardo rebuscou em sua mente para encontrar o homem que achasse mais apto para a tarefa e, depois de muito pensar, surgiu o nome de Sir John Menteith.
Menteith era um homem ambicioso que ficara um curto espaço de tempo preso na Inglaterra. Eduardo o soltara sob a condição de que o acompanhasse à França e servisse com ele contra os franceses. Depois que Menteith voltara para a Escócia, unira-se a Wallace e perseguira os ingleses. Ele era um homem que tinha pouca dificuldade em trocar de lado e gostava de seguir os vencedores. Eduardo deprezava homens assim, mas teria sido tolice não admitir que tinham sua utilidade.
Chegara aos ouvidos de Eduardo que Wallace estava na área de Dumbarton e que era quase certo que tinha uma amante por lá. As mulheres tinham representado um certo papel na carreira de Wallace. Certa vez, quase fora capturado na casa de uma prostituta; e depois o caso de Lanark acontecera porque o xerife Heselrig matara outra de suas mulheres.
Talvez fosse melhor procurá-lo por intermédio de uma mulher.
Quando estava em St. Andrews, Eduardo mandou chamar Menteith e, levando-o para um aposento privado, sondou-o sobre a questão de Wallace.
- Meu lorde Menteith - disse ele -, tenho pensado muito naquele traidor Guilherme Wallace e meu desejo é levá-lo perante a Justiça. O senhor sabe que ele é um homem com o qual não farei acordo algum. Eu o quero... morto ou vivo.
- Senhor meu rei - replicou Menteith -, Wallace é escorregadio como uma enguia. Não deve ser fácil prendê-lo.
- Não. Se fosse, já o teríamos feito muito antes. Mas o homem é um fugitivo, escondido nas montanhas, à espera do momento em que possa me atacar pelas costas. Parece que está escondido em algum lugar na área de Dumbarton. Acredito que ele não gosta de ficar muito tempo longe das cidades, porque gosta muito de mulher. O que tem a dizer, Menteith?
- Acredito, majestade, que tem havido algumas aventuras amorosas na vida dele.
- Então, pode estar certo, ele não vai querer isolar-se por completo do contato com aquele sexo. Creio que houve uma ocasião em que quase foi apanhado visitando uma prostituta.
- Isso mesmo, majestade.
- Estou disposto e dar o cargo de xerife de Dumbarton a quem eu considerar digno de exercê-lo... Dumbarton é uma bela cidade, um belo castelo.
Como os olhos de Menteith cintilaram! Ele é o homem que eu quero, pensou o rei.
- Claro, se o rebelde estivesse numa determinada área, seria dever daquele que em breve seria o seu xerife entregá-lo a mim.
Menteith sacudiu a cabeça.
- Mas é uma tarefa difícil, senhor rei.
- As tarefas difíceis cabem aos que são dignos de ocupar um cargo elevado. A partir do momento em que tiverem mostrado o seu valor, as honrarias vão até eles.
- Vossa Majestade me enche de vontade de servi-lo bem.
- Não se esqueça, Menteith, de que seu dever é este.
- Não esquecerei meu dever, senhor.
- Nem as recompensas do dever. Se me trouxer Wallace, ficarei grato. Mas eu o quero... e quero em breve. Enquanto ele viver escondido, jamais poderemos ter certeza de quando e onde vai se levantar com tolos o seguindo.
Menteith curvou-se e retirou-se, a cabeça cheia de planos.
A ideia lhe ocorreu de repente, quando pensou no que o rei lhe dissera. Por intermédio de uma mulher, sim. Devia haver uma mulher na vida de Wallace. Era quase certo que ele fosse a Dumbarton ou a algum lugar parecido durante a noite, para visitar uma mulher.
Então, lembrou-se de Jack Short, um de seus criados, assim chamado devido à sua baixa estatura - um homem magro mas resistente, com penetrantes olhos que viam tudo. Menteith o usava de vez em quando para alguma tarefa repugnante. O homem tinha poucos escrúpulos, e ele e o irmão - já falecido - fariam qualquer coisa se a recompensa fosse suficientemente boa. Jack Short era um homem que sabia o que estava acontecendo. Fazia questão de saber. Sabia ser plausível; tinha uma língua untuosa e, por estranho que parecesse, inúmeras pessoas não conseguiam perceber a sua falsidade.
Havia uma pessoa da qual Jack Short realmente gostara. Era seu irmão - outro tão parecido com ele que muitas vezes os dois eram confundidos um com o outro. O irmão fora morto numa rixa, e seu assassino tinha sido Guilherme Wallace. Jack Short odiava Guilherme Wallace.
Portanto, era uma excelente escolha.
Menteith mandou chamá-lo e explicou o que queria.
- Jack - disse ele -, se eu puder entregar Wallace a Eduardo, serei recompensado e o mesmo acontecerá com quem me ajudar. Creio que você poderia ser útil para mim neste caso e isso seria muito benéfico para você... sem contar com a satisfação da vingança.
- Ele matou meu irmão - disse Jack Short, os olhos brilhando no rosto normalmente frio. - Ele estava perto de mim quando morreu. Wallace ergueu a espada e cortou a cabeça de meu irmão. Foi tarde demais para chegar até ele, mas por Deus, se...
- Esta é a sua oportunidade. Veremos como vamos fazer isso. Vingança, e recompensa por ela. Boa combinação, hein, Jack?
Guilherme Wallace estava, de fato, vivendo numa cabana abandonada nas montanhas perto de Glasgow. com ele estavam alguns de seus amigos, Karlé e Estêvão, aqueles dois fiéis esteios, entre eles. Wallace sempre dizia que preferia ter vinte homens em quem pudesse confiar do que mil em quem não pudesse.
Estava triste pelo caminho que as coisas tinham tomado. Eduardo mudara tudo. Deveria ter sabido que Eduardo era um inimigo que merecia respeito. Ele podia ter conquistado os outros: tinha conseguido, até que Eduardo chegou, com seus exércitos e sua habilidade militar. Eduardo era uma lenda. O mesmo acontecia com Wallace. Eram dois homens fortes ficando cara a cara, mas Eduardo era o rei de um grande país e tinha as armas, os homens - tudo que tão lamentavelmente faltava a Wallace.
Mas ele não iria se desesperar.
Um dia, prometeu a si mesmo, iria derrotar Eduardo.
Enquanto isso, nada havia a fazer, a não ser esperar e traçar planos com seus bons amigos. Conversavam sobre tornar a reunir um exército, sobre marchar contra Eduardo. Aprenderiam as lições da derrota, pois havia mais a aprender nelas do que na vitória.
Às vezes, ele ficava impaciente. Então, Karlé o acalmava. Karlé, Estêvão! Como eram e tinham sempre sido bons amigos!
Mas ele estava escondido. Odiava entrar sorrateiramente em Glasgow à noite; queria disfarçar-se e ir de dia. Mas era perigoso. Ia à noite à casa de uma mulher. Era bem bonita e generosa e, embora não o conhecesse como Wallace, às vezes achava que ela dês confiava que ele fosse aquele grande guerreiro.
Uma noite, enquanto estava com os amigos em torno da fogueira que tinham acendido na cabana, eles conversaram sobre o que um deles ouvira naquele dia em Glasgow - que Eduardo estava em St. Andrews e que muitos dos senhores feudais escoceses estavam jurando vassalagem a ele. Aquilo deixou Wallace furioso. Como os escoceses podiam esquecer tanto de seu país a ponto de curvar-se para Eduardo!
E enquanto estavam ali sentados, um dos guardas entrou com uma figura baixa e enlameada envolta numa capa em frangalhos.
- Encontrei-o rondando perto daqui - disse o guarda. - Por isso, o trouxe até o senhor, porque ele disse que o conhecia e queria se oferecer ao senhor.
- Você me conhece, homem - disse Wallace. - Chegue para perto da fogueira e deixe-me olhar para você. Como se chama?
- Jack Short - disse o homem. - Eu conheci o senhor antes, Sir Guilherme.
Wallace disse:
- Eu me lembro de que nunca vi homens tão baixos quanto você... e não havia um irmão?
- Sim, um irmão. O senhor o matou.
- Eu o matei? Então, ele era um inimigo da Escócia.
- Não era, não, senhor. Meu irmão era um bobo. Mas queria lutar pela Escócia. Estava lá num dos ataques, mas se perdeu na batalha. O senhor acredita que ele estava do lado deles. Eu juro que não estava.
- Por que vem aqui?
- Tenho procurado pelo senhor por todo lado. Queria lhe dizer que meu irmão não era traidor. Quero fazer com que o senhor compreenda isso.
- Eu matei seu irmão. Então, se ele não era um traidor, você deve me odiar por isso.
- Não, senhor. Ele, o meu irmão, era fraco da cabeça. O senhor nunca teria matado ele... se soubesse. Ele queria servir à Escócia e servia... mas sua cabeça era confusa e ele não sabia para que lado virar. Não tinha certeza de quem era o inimigo. Por isso, venho para lhe dizer que ele não era um traidor e para servir o senhor com a minha vida.
Guilherme disse:
- Então você se considera um lutador?
- Não. Sou tão baixo quanto meu irmão, mas a minha cabeça não é confusa como a dele era, pobre rapaz. Não sei lutar... embora pudesse ser de alguma utilidade num campo de batalha. Mas sei pescar e cozinhar numa fogueira e ajudar um cavalheiro a se vestir.
- Aqui, cada um de nós cuida de si mesmo, Jack Short.
- Mas será mais fácil o senhor dedicar a atenção para assuntos de maior importância, senhor, se eu fizer coisas para o senhor. Estive pescando hoje à tarde e trago peixe bom comigo. Deixe eu cozinhar ele para o senhor e vai provar a minha perícia.
Guilherme achou divertido.
- Por que não? Iríamos gostar de uma refeição saborosa, hein, Karlé?
Karlé estava pensativo. Preocupava-se demais com tudo, pensou Guilherme. Procurava perigo em todas as poças e árvores.
- Vamos! O peixe, Jack Short, e você vai ficar comigo e será meu criado. Que acha disso?
Jack Short ajoelhou-se e beijou a mão de Guilherme.
Ele era bom. Não havia dúvidas quanto a isso. A vida era mais fácil com ele. Tinha um talento para pegar e cozinhar peixe. Ia até a cidade e voltava com as provisões de que precisavam.
- Isso evita que nos arrisquemos - até mesmo Karlé admitiu. Um dia, Jack Short disse a Guilherme:
- Meu senhor, jamais devia ir a Glasgow. Sua amante devia vir aqui.
Ele sabia, claro, por que Guilherme fazia suas visitas noturnas. Podia-se ter a certeza de que Jack Short sabia de tudo.
- O que - bradou Guilherme -, você ia querer nós todos traídos?
- Deus não permita que um dia isso aconteça. Só quero tornar a coisa mais fácil para o meu senhor.
- Você torna realmente a vida mais fácil para mim, Jack disse Guilherme. - Lamento o que fiz ao seu irmão.
- Foi culpa dele. Não... culpa dele, não... da loucura dele. Esqueça, meu senhor. Porque encontrei a alegria ao servir o senhor.
Jack se deitava aos pés do seu senhor e falava sobre as notícias que obtivera em Glasgow. Falava sobre as mulheres que via lá.
- Tem uma - disse ele - de cabelos claros e faces rosadas, com brilhantes olhos azuis e uma língua ferina. Foi ela que me chamou mais a atenção.
Ele observava o patrão. Sabia, pelo sorriso de Sir Guilherme, que era ela a tal. Descobrira onde ela morava. Se ao menos pudesse seguir Wallace até lá uma noite daquelas, seria bom, mas precisava ter cuidado, porque Karlé era um homem desconfiadíssimo.
O que tinha de descobrir, agora, era quando Wallace ia visitar a mulher, e ele nem sempre dizia. Jack Short fazia suas perguntas com astúcia, por tabela. Mas tinha de descobrir a hora exata. Não podia haver engano. Se alguma coisa desse errado e ele fosse apanhado como espião, Menteith iria matá-lo, mesmo que os homens de Wallace não o fizessem, e jamais desfrutaria da recompensa que lhe fora prometida.
Foi pescar e demorou a voltar. O fogo custou a pegar.
- Depressa, homem - disse Wallace -, eu vou à cidade esta noite.
O coração de Jack bateu acelerado. Servi-los de peixe... e depois pegar um dos cavalos e ir a galope até a cidade. Sabia o que tinha a fazer; Menteith e seus homens estavam esperando na cidade, prontos para o dia.
Ele escapuliu, a princípio conduzindo o cavalo, para que não o ouvissem,
Na cidade, Menteith ficou contente ao vê-lo.
- Hoje à noite - bradou Jack Short. - Ele vem hoje à noite. Menteith disse:
- Para a casa da mulher? Vamos pegá-lo quando ele entrar.
Karlé tinha um sexto sentido no que se referia ao seu amo.
- Não gosto dessas idas à cidade - disse ele.
- Eu gosto - respondeu Guilherme.
- Será que você não pode passar sem mulher?
- Não, Karlé. Elas me reanimam. Elas tornam mais brando esse terrível exílio.
- Elas já foram sua ruína antes.
- Nunca. Sei que escapei por pouco da casa de Ellen. E Marion... Foi por causa dela que tomamos Lanark, lembre-se.
- Tome cuidado.
- Não há perigo.
- Não vá esta noite.
- Tenho de ir. Eu disse que iria. Ela vai estar esperando.
- Talvez ela possa arranjar outro amigo.
- Esta noite é minha. Ela é fiel a mim quando estou lá. Karlé soltou uma gargalhada e disse:
- Neste caso, vou com você.
Aquilo não era uma coisa fora do comum. Muitas vezes, quando ele visitava a mulher, Karlé ia junto. Ficava sentado lá embaixo e conversava com a criada e, em geral, bebia um pouco da cerveja feita em casa e, talvez, comia um pedaço de pão e bacon.
Por isso, seguiram em direção à cidade, deixando os cavalos atrelados na floresta. Silenciosa e rapidamente, foram para a casa da mulher.
A porta estava aberta, mas eles não viram nada de estranho naquilo. Guilherme presumiu que, por estar à sua espera, ela a tivesse deixado entreaberta.
Empurrou a porta para abri-la. Os dois estavam cercados. Karlé tentou sacar a adaga, mas foi tarde demais. Caiu sangrando no chão. Wallace foi agarrado. Não queriam matá-lo.
Eduardo o queria vivo.
Foi uma humilhação total seguir a cavalo em meio dos homens de Menteith, as mãos agrilhoadas - um prisioneiro.
Jack Short os traíra. Fora enganado por aquele simples estratagema. Sempre fora descuidado. Mas o maior de todos os traidores tinha sido Menteith. Ele não iria enfurecer-se com Jack Short, que pouco importava. O criminoso era Menteith. Ele traíra a Escócia. Isso sim, importava. E Karlé - adorado Karlé -, morrera por ter insistido em acompanhá-lo.
E ele era prisioneiro do poderoso Eduardo, que jamais o soltaria.
Ele tem medo de mim, pensou Wallace, exultante. Tem mais medo de mim do que de ninguém mais. Sabe que jamais poderá estar a salvo na Escócia enquanto eu viver.
E assim o levaram para Londres, onde foi instalado numa casa em Fenchurch Street.
Não o deixaram lá por muito tempo e logo chegou o dia em que foi levado a Westminster Hall para responder às acusações feitas contra ele.
O julgamento foi curto. Julgaram-no traidor do rei Eduardo.
- Isso eu nunca fui - disse ele -, porque nunca o reconheci como meu soberano.
Ele enfrentou tudo com desassombro. Sua força, sua vitalidade, sua aura de grandeza deviam impressionar todos que o vissem. Mas era prisioneiro de Eduardo, que estava decidido a fazer com que nunca mais ele levantasse um exército contra o rei.
Chegou o dia da sentença. Seus crimes foram enumerados. Sedição, homicídio, depredações, incêndios e delitos graves. Atacara oficiais do rei e matara Sir Guilherme Heselrig, xerife de Lanark. Invadira os territórios do rei de Cumberland e Westmorland.
- Sua sentença é que o senhor seja levado de Westminster para a torre e da torre para Aldgate e então, passando pelo centro da cidade, para os olmeiros em Smithfield, e pelos seus homicídios e delitos graves na Inglaterra e na Escócia será enforcado e estripado e, por ser um fora-da-lei, decapitado e depois seu coração, seu fígado e seus pulmões serão queimados e sua cabeça será colocada sobre a ponte de Londres à vista dos viajantes por terra e pelo rio, e pedaços de seu corpo serão pendurados em patíbulos em Newcastle, Berwick, Stirling e Perth, para aterrorizar todos os que por ali passarem.
Guilherme ouviu quase impassível. Aquela era a morte dada aos traidores do rei, e o rei iria dizer: "Este homem, para mim, foi um dos maiores traidores que já existiram."
No 23? dia de agosto, a bárbara sentença foi executada com uma crueldade revoltante. Muitas pessoas se reuniram nos olmeiros de Smithfield para vê-la.
Nenhum grito escapou de Guilherme Wallace. Sabia que não estava derrotado. Sua fama continuaria a viver depois dele e seria uma inspiração para todos os que se preocupavam com a liberdade da Escócia.
A Morte do Rei
WALLACE ESTAVA MORTO. Ninguém deveria adivinhar o quanto Eduardo se sentia aliviado. Porque um traidor recebera o devido castigo, pouco se deveria comentar. Eduardo temia o espírito de Wallace, porque sabia que os escoceses continuariam a cantar sobre ele; continuaria como o herói deles. Mas estava morto e não se temia os mortos - por mais que a morte os glorificasse - como se temia os vivos.
Ele iria providenciar um torneio. Deveria haver comemorações. Teriam uma festa da Távola Redonda e os grandes cavaleiros do país estariam presentes. Qualquer uma das pessoas capaz de lembrarse do espetáculo sangrento que tinham presenciado em Smithfield iria esquecê-lo ao participar da alegre festa em Westminster.
A cabeça do herói olhava para eles lá de cima. Mas todos deviam saber que fora um traidor. Na Escócia seria diferente. Eduardo se perguntava o que o povo achava em Newcastle, Berwick, Stirling e Perth, onde partes do outrora grande Wallace estavam expostas.
Mas não queria pensar naquilo. Havia motivos para comemorar.
Marguerite engravidara de novo. Ele agradecia a Deus pela sua rainha. Era sempre muito delicada, tolerante, compreensiva. No ano anterior, Blanche, a quem ele dera o coração, tinha morrido e ele ordenara que se fizessem orações pela sua alma em Canterbury, porque fora irmã de sua adorada consorte. Sentia-se muito contente pelo fato de o destino ter sido bom e ter-lhe dado Marguerite. Poderia estar chorando pela sua rainha, agora, se tivesse se casado com Blanche.
O torneio encantou a todos que dele participaram e, no mês de maio, Marguerite deu à luz outro filho.
Dessa vez foi uma menina, e Eduardo mostrou-se muitíssimo satisfeito. Tinham dois meninos e agora ele queria uma menina, e a sua querida, bondosa e prestativa Marguerite lhe dera a menina.
- Quero pedir um favor - disse ele, sentado ao lado da cama dela. - Você me concede, minha rainha?
- Está concedido antes de ser pedido - respondeu ela.
- Ele pode não lhe agradar.
- Se ele o agrada, majestade, estou certa de que vai me agradar.
Como era dócil! Como ficava ansiosa por torná-lo feliz! Oh, que dia feliz aquele em que recebera Marguerite!
- Você se importaria se chamássemos esta filha de Eleanor? Ela hesitou, e ele pensou: ah, eu pedi demais.
Então, ela disse:
- Você não ficaria triste ao se lembrar...? Ele tomou-lhe a mão e a beijou.
- Como poderia ficar triste, quando tenho a melhor mulher do mundo?
Uma rápida oração por Eleanor. Não queria menosprezá-la, queria apenas consolar aquela rainha que estava viva. Mandaria dizer orações pela alma de Eleanor e colocar flores aos pés de todos os seus cruzeiros.
Ele disse:
- Eu amei bastante três, todas Eleanores... minha mãe, minha filha e minha rainha. Deus levou-as todas, mas me enviou a minha Marguerite, que não me tem dado outra coisa senão alegria desde a primeira vez em que vi seu rosto.
Aquilo foi o suficiente para Marguerite. A pequena Eleanor foi batizada na capela real de Winchester, pois a corte estava lá na ocasião. Depois do batizado, a menina, deitada em seu berço de luxo coberto de arminho e uma colcha de ouro, foi mostrada aos nobres.
Eduardo estava encantado com ela. Adorava as filhas. Todas o encantavam. Seus filhos eram adoráveis, mas no fundo do coração era das meninas que mais gostava.
Aquilo o fez pensar no filho mais velho. Perguntava-se como ele e Eleanor podiam ter tido um menino como aquele.
Aquilo trouxe de volta o incómodo pensamento de que muito em breve teria de tomar alguma providência com relação a Eduardo.
No solário de sua mansão de Clare, em Gloucester, Joanna estava sentada em companhia de suas amas enquanto um dos menestréis tocava para distraí-la. Parecia em reflexão profunda enquanto ele dedilhava o alaúde e cantava as canções favoritas de sua senhora - em geral, falando de amor e paixão.
Enquanto assistia ao rapaz com atenção intermitente, perguntava-se como ele se saíra na corte de seu irmão, para onde ela o enviara para tocar alguns de seus mais recentes poemas. Eduardo gostara dele, o mesmo acontecendo com seu amigo Piers Gaveston. Na verdade, bastava Gaveston gostar de alguma coisa para se ter certeza de que Eduardo também gostaria. Ele era controlado por aquele rapaz, e Gaveston sabia disso. Vivia pedindo favores e sendo atendido.
O rei não gostava disso e comentara com ela. O jovem Eduardo simplesmente não se importava. Ele seria rei um dia, e Gaveston o estava sempre lembrando disso.
Joanna deu de ombros. Eduardo seria muito diferente do pai. Estava certa de que ele nem sempre iria querer partir para aquelas guerras enfadonhas. Por que um homem não podia gozar a vida? Por que tinham de estar sempre pensando nessa ou naquela conquista?
Era devido à guerra de seu pai que Ralph estava fora de casa naquela ocasião. Ela se melindrava com aquilo, pensando no seu atraente marido lá longe, no norte, possivelmente na Escócia. Eduardo dissera que como ele recebera as glórias do cavaleirismo, devia honrá-las. Não era justo eles ficarem separados. Joana estaria com ele, agora, mas o marido partira muito depressa, a serviço do rei, e ela ficara muito surpresa, nos últimos dias, com a letargia que parecia ter tomado conta dela. Queria estar com Ralph, Deus sabia disso, mas a ideia da viagem a amedrontava. Era estranho, porque antes nem ligava para as viagens. Teria ido à Terra Santa com o marido - como outras mulheres já tinham ido - caso preciso. No entanto, nos últimos dias aquele cansaço a dominara.
Talvez finalmente estivesse ficando velha. Estava com 35 anos. Já não era muito jovem. Lembrara-se disso no ano anterior, quando sua filha mais velha, Eleanor, casara-se com Hugh lê Despenser. Eleanor tinha apenas treze anos, mas ter uma filha casadoura fazia com que ela percebesse que estava realmente envelhecendo.
Era uma canção dolente que o menestrel estava cantando. Fez com que ela voltasse ao passado. Ouvira-a pela primeira vez quando era mulher de Gilbert. Ela estava sorrindo. Como aquele velho ficara apaixonado por ela! Não havia coisa alguma que não fizesse por ela, e como Joanna ficara contente com a morte dele e lá estava o Ralph...
- Nós vamos nos casar - murmurou ela. - Pouco me importa o que meu pai vai dizer...
Estava de volta ao passado... à agitação daquela época... sua determinação de desafiar o rei... os primeiros momentos de paixão com o homem que desejara com tamanha fúria... Ditoso, revigorante, estimulante, arrebatador... tudo com que sonhara.
- Ralph - sussurrou ela. - Você devia estar aqui neste momento... Você devia tê-lo desafiado... ter-se recusado a me deixar...
Uma das damas inclinou-se para ela.
- A senhora disse alguma coisa?
Ela não ouviu. Não viu a mulher. Escorregara para a frente na cadeira, porque o cenário à sua volta desaparecera de repente, e ela estava mergulhando na escuridão.
- A senhora está passando mal - disse a ama, olhando assustada para os menestréis.
Eles largaram seus alaúdes e correram para ela. Ergueram-lhe a cabeça e fitaram seu rosto que tinha uma expressão estranhamente distante.
Um dos menestréis disse, num tom de espanto:
- A senhora está morta.
O rei não podia acreditar. Ficou doente de tanta dor. Joanna, sua bela filha... morta! Mas ela tão cheia de vida, a mais animada de todas as suas filhas! com Joanna, nunca se pensava em morte.
Ele estava velho; Joana era muito jovem. Sua filha. E tinha morrido como a irmã Eleanor. Elas eram jovens demais para morrer.
Alguns dos filhos tinham morrido e suas mortes não tinham sido inesperadas. Tinham estado doentes desde o nascimento. Mas Joanna...
Sentia-se cansado e enfastiado e muito, muito triste.
Precisava escrever para o bispo de Londres e dizer-lhe que sua querida filha Joanna partira para junto de Deus. Deveria haver missas particulares e preces pela alma de sua filha. Joanna precisaria de uma certa intercessão junto ao céu, pois desconfiava que ela não estava de todo livre de pecado. E também não lhe tinham dado tempo de se arrepender antes de ser levada.
Eduardo enviou cartas a todos os prelados do reino.
- Rezem, rezem - mandava ele -, rezem por minha filha Joanna.
Eduardo despertou de sua dor. Sentia-se enjoado e doente. Vivia pensando em como era anormal o fato de Joanna estar morta e ele continuar vivo.
Não podia faltar muito, para que ele fosse chamado.
Olhou para o futuro. A Escócia ainda precisava ser conquistada. Quem iria pensar que demoraria tanto? Mas agora Wallace estava morto. Poderia então completar a conquista antes de morrer? E se pudesse, será que o jovem Eduardo poderia mante-la? Oh, Deus, por que o Senhor me deu um filho assim? O Senhor me deu boas filhas e meu filho... meu filho mais velho... o único de Eleanor que ficou vivo... não está apto a usar a coroa.
Precisava falar com o filho. Precisava imbuí-lo de um senso do dever. Reis sem valor representavam um perigo para si mesmos e para o país. Lembrem-se, oh, lembrem-se do meu avô João. Que desgraça ele trouxe à Inglaterra... e a si mesmo! E meu pai - meu adorado pai -, não tinha os dons que fazem um rei!
Ele os tinha. Seria falso negá-lo. Ele conquistara o País de Gales; fizera o melhor possível na França. Não teria medo de colocarse ao lado de seus ancestrais. O grande Guilherme, Henrique I e II. Não, ele seria incluído ao lado deles.
A morte o assustava. Quem poderia dizer quando ela chegaria? Chegava de forma inesperada para algumas pessoas, para sua querida filha Joanna, por exemplo; e para um velho como ele, a visita já estava atrasada.
Mandou chamar Eduardo.
O menino ficou ali à sua frente. Menino! Ele era um homem.
Fora há 22 anos que ele nascera em Caernarvon e seu pai tivera muitas esperanças felizes para ele. Era bonito - e muito parecido com o pai na juventude -, os mesmos membros compridos, o mesmo cabelo cor de linho, o porte ereto. Mas o que lhe faltava? Aquela virilidade que o pai tivera, aquela masculinidade essencial. Eduardo possuía uma qualidade quase feminina. Aquilo deixava seu pai profundamente chocado. Os homens não iriam respeitá-lo; não iriam segui-lo num combate.
Por onde começar? Como explicar a arte de ser rei a uma criatura daquelas? Muitas vezes, falara com ele sobre a necessidade de agradar aos súditos e que, mesmo assim, ele precisava ser implacável. Ele próprio fora enérgico de vez em quando. Aplicara castigos severos àqueles que o tinham ofendido. Tinha sido necessário, sempre dissera isso a si mesmo. Um rei precisava ser respeitado por intermédio do medo.
O jovem Eduardo estava elegante. O rei perguntou-se se as roupas tinham sido desenhadas por Piers Gaveston. Seu longo casaco solto era de um azul-escuro, preso ao pescoço por um magnífico broche de safira. As longas e amplas mangas caíam com graça e os sapatos tinham uma ponta mais longa do que se usava normalmente. Os belos cabelos louros eram mantidos para trás por fitas de ouro cravejadas de mais safiras.
"Bonito como uma moça!", pensou o rei, com repugnância.
- Eduardo - disse ele -, eu gostaria de falar com você. A morte de Joanna me deixou profundamente chocado.
- Como a todos nós - falou o príncipe com sentimento. Joanna fora sua irmã favorita e tendia a rir das proezas dele como ele rira das dela.
- A morte vem depressa em alguns casos e demora-se em outros. Mas no devido tempo chegará para todos nós. Quero que esteja preparado, Eduardo.
Começou a falar sobre a necessidade de manter os galeses sob controle. Eles jamais poderiam sentir-se seguros lá. Precisavam, sempre, ter certeza de que suas defesas estavam intactas.
A Escócia era, naturalmente, a principal preocupação.
- Mas agora Wallace está morto - disse o príncipe. - Nunca mais vai tornar a nos preocupar.
- Wallace continua vivo na memória do povo. Estão compondo canções sobre ele, agora. Ele se tornou uma lenda. Tome cuidado com as lendas. Dentro em breve estarei partindo para o norte.
Preciso salvaguardar o que conquistei. Não confio nos escoceses. Aqueles que juraram vassalagem poderão voltar-se contra nós.
Uma branca e magra mão adornada de jóias tocou os lábios do príncipe quando ele abafou um bocejo. Já tinha ouvido aquilo tudo antes. Depois que o rei se fosse, não haveria toda aquela preocupação com os escoceses. Piers e ele tinham conversado muitas vezes sobre isso. Depois que o rei se fosse...
A voz continuava, monótona. Era preciso fazer isso e aquilo. O príncipe não estava prestando atenção e, quando o rei fez uma pausa, disse:
- Tenho um pedido a fazer, majestade. O rei abriu mais os olhos.
- Que pedido é este?
- Desde que o senhor colocou Piers Gaveston morando conosco, nós nos tornamos amigos muito chegados.
- Sei muito bem disso, e talvez a amizade tenha se tornado firme demais.
- O senhor sempre disse que não há amigos que cheguem para uma pessoa.
- Se forem bons e leais, é claro que não.
- Piers é bom e leal. Ele vive para mim, papai. Só pensa no meu conforto. Eu quero recompensá-lo.
- Ele tem a sua recompensa. Tem apoio da realeza. Vive na casa real. O que mais pode um homem pedir?
- Eu gostaria de mostrar meu reconhecimento, e há uma coisa que ele muito deseja. Prometi fazer o possível para consegui-la para ele.
- E que coisa é essa?
- Ponthieu.
- Ponthieu! O que quer dizer? Piers Gaveston quer Ponthieu!
- Prometi a ele que iria consegui-la para ele. Querido papai, não me decepcione.
- Decepcioná-lo! Eu lhe digo uma coisa, tenho tido pouca coisa, exceto decepções, de você. Ponthieu! A herança de suamãe passar para esse... esse... aventureiro!
- Majestade, por favor, não fale assim de Piers.
- Devo lembrá-lo, meu senhor, de que falo de meus súditos como quiser. Não! Não! Não! Gaveston jamais ganhará Ponthieu enquanto eu viver. E deixe que lhe diga, não gosto desse homem. Tenho ouvido dizer que ele exerce um forte e crescente controle sobre você. Isso é comentado em sussurros e envergonha o nosso nome real. Não, senhor. Vá dizer a ele que não! E que considero as pretensões dele insolentes. É melhor
ele tomar cuidado. Quanto a você, vai seguir comigo para a Escócia, e muito em breve, eu lhe prometo. vou levá-lo para longe de seus companheiros extravagantes. vou transformar você num homem.
O príncipe ficou pálido de medo e raiva, mas sabia que os acessos de raiva do pai - embora raros - eram terríveis. Sabia, também, que precisava ir embora antes que a fúria total do rei estourasse sobre ele.
Depois que ele saiu, Eduardo deixou-se cair na cadeira. Estava doente de raiva e apreensão.
O que posso fazer com ele?, perguntava-se. Por que ele cresceu desse jeito? Meu filho... e de Eleanor. Dei tudo a ele. Os melhores tutores... os melhores instrutores! Ele foi treinado na guerra. Se fosse um bobo e não tivesse talento, seria compreensível. Mas não. Ele podia ter sido inteligente. Poderia ter sido um rei digno...
E agora...
Era preciso agir.
Piers Gaveston devia ser banido imediatamente. Aquela amizade precisava ser cortada; e ele iria conseguir um compromisso do aventureiro - e do príncipe - de que eles jamais deveriam tornar a se encontrar sem o seu consentimento.
Eduardo marchava em direção à Escócia acompanhado por um príncipe carrancudo. Gaveston fora banido e o príncipe dizia consigo mesmo que jamais perdoaria o pai por tirar-lhe a pessoa que mais amava no mundo. Havia um consolo para o príncipe. O velho parecia mais doente a cada dia que passava. Não podia durar muito tempo mais. Não estava em condições de marchar para o norte. Por que não deixava aqueles casos para os generais?
O rei estava preocupado demais para perceber a depressão do filho.
Um novo perigo surgira na Escócia.
Robert de Bruce, neto do pretendente conde de Carrick, que por alguns anos mantivera relações de amizade com Eduardo, deixara a corte inglesa e fora para a Escócia. Em determinada época, ele fora um dos adeptos de Eduardo, que notara logo o talento do homem.
Agora, estava na Escócia, e Eduardo adivinhava com que objetivo. Muitas vezes ele se perguntara o que aconteceria com a Escócia quando seu filho fosse rei e acreditara que muitos dos escoceses que fingiam amizade pela Inglaterra naquele instante mudariam de posição quando um rei forte fosse substituído por um rei fraco.
Então Bruce estava na Escócia. O que significava isso? Ele ficaria sabendo em breve. Bruce fora para Scone, onde fora coroado rei da Escócia pelo bispo de St. Andrews.
Para Eduardo, estava claro que Bruce estivera esperando pela sua morte, acreditando que seria mais fácil derrotar Eduardo, o filho, do que Eduardo, o pai, o que lamentavelmente era, achava ele, uma conclusão sensata. Mas Bruce decidira não esperar mais.
Bruce devia ter visto a cabeça de Wallace apodrecendo na Ponte de Londres.
- Por Deus - disse Eduardo -, ainda não estou morto e, antes de morrer, vou colocar a cabeça desse traidor ao lado da de Wallace.
Não gostava daqueles heróis. Wallace tinha sido um deles. Ele acreditava que Bruce seria outro.
- Oh, Deus, dê-me forças - rezava ele. - Deixe-me terminar essa tarefa antes de partir.
Mas Deus não ouvia. A cada dia, ele ficava mais fraco. Tinha ódio de admitir, mas cavalgar o deixava exausto e, quando só podia viajar cerca de seis quilómetros num dia, tinha que parar de fingir e aceitar a liteira que aqueles que o cercavam o aconselhavam a usar.
Pararam para descansar em Burgh-on-Sands e todos viram e até o rei teve que concordar - que ele não podia ir mais adiante.
Mandou que lhe dessem um quarto do qual pudesse ver o Solway Firth. Sabia que jamais deixaria aquele leito. Iria morrer na Inglaterra, vendo aquele braço de mar que separava a Inglaterra da Escócia.
Os escoceses iriam receber a notícia de que ele estava em seu leito de morte. Aquilo iria enchê-los de alegria. Eduardo também ficaria contente. Oh, Deus, proteja a Inglaterra com meu filho Eduardo como rei.
Sua querida rainha iria chorar a sua morte; o mesmo aconteceria com as filhas. Havia algumas pessoas que o amavam.
Mas ele precisava pensar no futuro. Faltava pouco tempo. Ele vira o sol nascer, mas era bem provável que não o visse se pôr.
Mandou chamar o filho. A vista estava falhando um pouco. O padre deveria ir vê-lo; mas ele tinha o seu dever antes.
- Eduardo, meu filho...
- Papai.
Ele via o filho através de uma névoa - bonito, alto. Podia terse saído um belo rei. Onde foi que erramos?, perguntava-se Eduardo. Onde, oh, onde?
- Eduardo - disse ele -, tome conta de seus meio-irmãos e de sua irmã.
- Vou tomar, papai.
- Depois que eu partir, quero que mande um grupo de cavaleiros à Terra Santa. Cometi muitos erros na vida... - A voz dele extinguiu-se. Pensou que estava olhando para a ponte de Londres e vendo a cabeça de Wallace... ou seria a de Llewellyn ou de Davydd? Ele tinha sido impiedoso em combate. Matara muita gente. Ordenara que seus inimigos fossem enforcados, estripados e esquartejados, como acontecera com Wallace. Um exemplo para outros, dissera ele. Outros tinham sido amarrados a rabos de cavalos e arrastados até a forca. A morte de homens corajosos constituíra-se num espetáculo para o povo. Ele mandara construir uma jaula para a condessa de Buchan, que agira contra ele e tivera o infortúnio de ser capturada, e a condenara a permanecer ali como um animal selvagem até que ele desse a ordem para que a soltassem, o que jamais fizera.
Lembrou-se desses fatos enquanto jazia na cama. Eles eram inimigos da Inglaterra, e ele tinha vivido pela Inglaterra. Mas precisava mandar aqueles cavaleiros à Terra Santa para agradar a Deus, a fim de que Ele perdoasse seus pecados.
- Meu coração deverá ser tirado do meu corpo e os cavaleiros deverão levá-lo com eles.
- Sim, papai - disse Eduardo, respeitosamente. - Isso será feito.
- Prossiga com a guerra escocesa, Eduardo. Continue do ponto em que parei. Deus acha melhor levar-me antes de eu terminar minha tarefa. Ele a deixou para você. Leve meus ossos com você nas batalhas. Leve-os sempre à frente do exército quando ele marchar. Eu estarei lá. Os escoceses vão saber que meus ossos estão com meu exército, e isso vai implantar o terror nos corações deles.
- Assim será feito - disse Eduardo.
Ele estava pensando. Mais uns dias, e serei rei. Piers, meu Gaveston, meu primeiro ato será trazer você para perto de mim. Como se estivesse lendo os pensamentos dele, o rei disse: jamais chame Gaveston de volta sem o consentimento da
nação.
Eduardo não respondeu. Não se devia fazer promessas a um moribundo.
O rei não percebeu. A luz se apagava depressa.
Ele estava murmurando alguma coisa. Eduardo curvou-se bem para junto dele, para ouvir.
- Coloque meus ossos numa rede... leve-os à frente do exército... Que os escoceses saibam que estou lá... e conduzirei meu exército à vitória.
Naquela noite, o fim chegou. Eduardo o Primeiro estava morto e começara o reinado do segundo Eduardo.
Jean Plaidy
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