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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ELA e ELE / George Sand
ELA e ELE / George Sand

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O século XIX continuava nos ribombos dos entrechoques e das convulsões revolucionárias, como fora o século XVIII, quando a Revolução Francesa levou de roldão as muralhas das masmorras políticas e feudais. Nos oratórios e nos templos, rezava-se pela salvação de um mundo em convulsões inéditas.

Embora não haja, aparentemente, nenhum paren­tesco entre tantos acontecimentos importantes, o sumo dessas manifestações repousa num denominador comum: a posse de uma nova concepção de liberdade, em anta­gonismo ao que adviera, no desenrolar dos séculos. Fatos e figuras movem-se ao sopro dos novos ventos. Os homens estão cansados de certas limitações, manti­das pelos tempos antigos. A era científica e libertária das condições humanas, que iniciara a sua caminhada em 1789, com a queda da Bastilha, acende o rastilho das mais estranhas aspirações e conduz os homens para novos horizontes. Tanto os práticos economistas como os gênios da arte começam a encarar a vida sem os véus das confinações anteriores. Já se acentuara, pouco antes, o reatamento com as formas pagas, através dos mantos aveludados e bordados de ouro da chamada época renascentista. Havia de viver-se, diziam aqueles homens, no clima natural da espécie, na posse dos sen­tidos, na exuberância dos instintos, sem grades e grilhões.

O clima em que Flaubert e Sand escrevem estas duas obras-primas confirma o que estamos dizendo. Ema Bovary e Teresa Jacques, as duas heroínas dos dois romances, encarnam todo o protesto de inúmeras gerações, que foram esmagadas pelo que certos homens têm de mais abjeto. E esse clamor humano, que deu às letras universais jóias de incomparável beleza, só foi possível, no ritmo dos tempos, pela convencional liber­tação daquelas amarras, que começa com a revolução cultural da Enciclopédia, estruturada por Bacon, na Inglaterra, em 1728, e Diderot, na França, em 1781.

Esse movimento do intelecto não se fazia, somente, para orientar os corações humanos no sentido do apri­moramento individual e social, ou como um libelo contra as incompreensões, a exemplo de Flaubert e de Sand, mas era um movimento demolidor, que procurava atingir as muralhas da Idade-Média, responsáveis pela imersão de muitas gerações sob os véus e mortalhas, algumas, até, como diziam, antinaturais. E da necessidade desse novo mundo, que prometia mil prazeres voluptuários e sensoriais, os homens passaram, não, apenas, a demolir aquelas estruturações antigas, mas a negar o que po­deria haver de transcendente na marcha de uma civili­zação. Essa liberdade, no entanto, conseguida em nome de tantos símbolos, ofuscou os homens. Cegou-os. E sem uma luz interior, sem uma diretiva espiritual, os homens mergulharam na antropologia darwinista e no realismo literário de Zola, que continuava, no plano das letras, o tanta demolidor dos novos líderes.

Sem buscarem uma finalidade transcendente, sem a qual tudo é pequeno e precário, os homens achegaram-se ao existencialismo de Sartre, do seu "Néant", o "Nada" do após-guerra, em pleno século XX, o século super-bélico e ultra-sônico — os frutos sazonados e dolorosos de uma civilização sem temores!

Tais são as fórmulas que esses homens muito prá­ticos e objetivos oferecem a esta pobre humanidade, assustada, desprotegida e infeliz.

Nestas páginas de intensas emoções, quis a sua autora configurar o amor de uma mulher excepcional por um homem de gênio, sacrificando-se até ao limite das possibilidades femininas. Seria Lourenço o grande Alfred de Musset, ao qual se refere, em seu prefácio, o escritor Jacob Penteado, quando apresenta ao público brasileiro a obra "Os dois amores", edição do "Clube do Livro", de março de 1963?

Aquele idílio dessa extraordinária mulher, que ca­minhava para o altar dos sacramentos, retratará, total­mente, a vida de Amandine Aurore, a genial escritora francesa? Ou desejarão estas páginas confirmar as de Flaubert, na defesa do que as mulheres têm de mais puro e de mais belo, que é a própria essência do amor? Que personagens se escondem e se ocultam sob as más­caras dos poemas e das novelas?

Embora não encontremos as mesmas linhas de uma obra como "Madame Bovary", aqui, estão, nestas fa­mosas páginas, o que mais freme e palpita em nossos corações: os personagens incógnitos, que não sabemos como surgem e como se desempenham no palco da nossa vida quotidiana.

Estaremos nós todos incluídos no devotamento de Teresa e nas encruzilhadas de Lourenço? Ricardo Palmer é um homem ou é um símbolo? Os persona­gens que se movem pelos capítulos deste admirável livro são reais, fictícios, imaginários? Existem nas volutas da arte ou nas lágrimas de nossos olhos? São cria­turas verdadeiras, ou são figurações enevoadas, fruto dos caprichos da arte e da carpintaria romanesca? Como seremos, vistos pelos escritores, nós outros, que não somos criações fantásticas, mas sangramos na legi­timidade de nossos sonhos e de nossos anelos? Fica­remos, realmente, iguais a Lourenço, à Teresa, a Palmer? Ou esses personagens são meras especulações do inte­lecto, figurinos das vias e dos salões, vivendo o minuto emocional que lhes atribui o seu criador literário? E como serão os verdadeiros personagens, que, incógnitos, sem roupagens teatrais ou intelectuais, vivem, de fato, em nós mesmos?

Estas perquirições levariam os monólogos e diálogos ao tablado de mil suposições. O que é, certamente, verdadeiro e autêntico é aquilo que George Sand pôs em seu romance e que o leitor encontrará ao longo dessas formosas páginas: a beleza literária, vestindo de flores as espirais de um coração feminino, amando e chorando, na glória e no sofrimento, que tal é o destino luminoso e amargo das mulheres e das mães.

 

 

 

 

Minha cara Teresa,

Como você não me permite chamá-la de senhorita, vou dar-lhe conhecimento de importante novidade no mundo da arte, como diz nosso amigo Bernardo. Fique sabendo que isto não soa bem, mas o que lhe vou contar, também, não tem som, nem tom.

Imagine que, ontem, após tê-la aborrecido com a minha visita, ao regressar, encontrei um lorde britânico... Na ver­dade, talvez não seja lorde, mas trata-se, sem dúvida, de um inglês, que me perguntou na sua linguagem cheia de reticências:

— O senhor é pintor?

— Sou, sim, mylord*.

 

* Lorde, título dado, na Inglaterra, aos pares do reino e aos membros da Câmara Alta, aportuguesamento do inglês lord; milorde, nome que se dá aos lordes, ou pares da Inglaterra, quando se lhes dirige a palavra, adaptação do inglês mylord. (Nota do " Clube do Livro")

 

— Pinta também retratos?

— Pinto, sim, mylord.

— Pinta as mãos?

— Sim, mylord e, também, os pés.

— Então, quer fazer o meu retrato?

— Seu retrato?

— Por que não?

Estas palavras foram pronunciadas no tom mais do que amável o que impediu que ^ eu tomasse o tal indivíduo por um imbecil, tanto mais que ele é um homem magnífico. É a cabeça de um súdito do imperador Adriano sobre os ombros de... um inglês. É tipo grego da melhor época, num busto, vestido com toda a correção, à moda britânica.

— Palavra de honra! — disse-lhe eu, o senhor é um belo modelo, não há dúvida e eu teria muito prazer e bastante pro­veito em fazer um estudo de seu corpo. Mas não posso fazer o seu retrato.

— Por que?

— Porque não pinto retratos.

— Oh!... Será que, na França, é preciso tirar patente desta ou daquela especialidade, no domínio das artes?

— Não, senhor, mas o público não nos permite acumu­lar... Ele quer saber no que ê que se apóia a nossa arte, so­bretudo quando somos moços. Se eu tivesse a infelicidade, eu que sou ainda bastante jovem, de fazer um bom retrato seu, teria grande dificuldade em conseguir êxito na próxima expo­sição, em que entrassem outras obras que não fossem retratos. Da mesma maneira que se eu conseguisse, apenas, fazer um retrato medíocre, ficaria proibido de tentar fazer outros. De­cidiriam que não possuo talento de retratista, declarariam que eu teria sido um presunçoso em arriscar-me a tal empresa.

Contei ao inglês outras muitas coisas de que você tem conhecimento, o que o fez arregalar os olhos e rir bastante. Percebi, claramente, que as minhas razões lhe inspiraram, apenas, a mais absoluta indiferença.

— Encurtemos razões, — atalhou o inglês — o senhor o que não gosta é do retrato.

— Como? Diga antes que não me arrisco ainda a fazer retratos, que os não saberia pintar, visto que ou se trata de uma especialidade que não admite o exercício de outras ou é uma perfeição c, assim sendo, pelo que se diz, ê a coroa do talento. Certos pintores, incapazes de compor seja o que for, podem copiar fielmente e com agrado o seu modelo vivo. Esses têm um êxito garantido, por muito pouco que saibam apresen­tar o seu modelo sob o aspecto mais favorável e por maior destreza que demonstrem cm saber vesti-lo a seu modo, rigo­rosamente de acordo com a moda. Mas quando se é apenas um pobre pintor de mentira, muito moço c muito discutido, como tenho a honra de ser, não se pode lutar contra os mestres do ofício. Confesso que nunca estudei, conscienciosamente, as pregas de um traje preto, nem a expressão particular de deter­minada fisionomia. Sou um modestíssimo estudioso de atitudes, de tipos e de expressões.

Portanto, não me peça aquilo que um dia, talvez, possa vir a fazer, se por acaso me tornar semelhante a um Rubens ou a um Ticiano, porque então saberia permanecer poeta e criador, unindo e comprimindo, sem esforço e sem receio, a forte e a majestosa realidade. Infelizmente, o mais provável é que venha a ser qualquer coisa como um bobo ou um animal. Leia tal e tal escritor; eles disseram o mesmo em seus folhetins.

Imagine, Teresa, que eu não disse ao meu inglês uma só destas palavras; nada do que lhe estou escrevendo. Quando se fala por conta própria, tudo se arranja, mas tudo quanto me foi possível dizer-lhe para desculpar-me de não saber pintar retratos, de nada serviu. O que disse de melhor foi "por que diabo não se dirige à senhorita Jacques?"

O inglês proferiu três: Ohs!. Depois, pediu-me o seu endereço e foi-se embora sem fazer o menor comentário, deixando-me confuso e irritado por não ter permitido con­cluir a minha dissertação a respeito do retrato. Porque, final­mente, minha boa Teresa, se esse belo inglês for hoje à sua casa, como desconfio e se ele lhe repetir tudo quanto acabo de escrever-lhe, ou seja, aquilo que não lhe disse sobre os simples ''fazedores" e os grandes mestres da pintura, que irá você pensar deste seu ingrato amigo? Que ele a classifique entre os primeiros e a julgue incapaz de fazer outra coisa a não ser retratos bonitos e que agradem a toda gente!... Você sabe, perfeitamente, que para mim você não c a senhorita Jacques, que faz retratos parecidos com o original, mas um homem superior que se dissimula numa mulher e, sem nunca ter freqüentado a academia, adivinha e sabe fazer que se des­cubra um corpo e uma alma num busto, à maneira dos grandes escultores da antigüidade e dos grandes pintores da Renascença.

Mas, não digo mais nada. Você não gosta que se fale o que se pensa a seu respeito, dando a entender que toma h do isso por elogios. Você, Teresa, é muito orgulhosa.

Hoje, sinto-me muito triste, sem saber porquê. Almocei muito mal, agora, pela manhã... jamais comi pior desde que arranjei uma cozinheira. Além disso, impossível conseguir bom fumo. O monopólio envenena-o. Depois, trouxeram-me um par de botas novas que absolutamente não me servem nos pés... E depois, chove... E depois, que sei eu? Os dias, desde algum tempo são longos como os dias sem pão, — não lhe parece? Não, você não acha, não. Você desconhece o estar mal disposto, o prazer que enfada, a amofinação que embriaga, o mal sem nome de que a outra noite eu lhe falava, nesse pequeno salão lilás, onde tanto gostaria de estar neste momento. Porque o dia de hoje está horrível para a pintura e, não podendo pintar, teria o prazer de importuná-la com a minha tagarelice.

Por conseguinte, não a verei, hoje. Você tem aí uma família insuportável, que a subtrai à convivência, de seus amigos mais queridos. Esta noite, portanto, serei tentado a cometer alguma tolice indescritível... É esse o efeito da sua bondade sobre a minha pessoa, minha querida e grande cama­rada. Quando a não vejo fico tão louco e tão vazio que sinto absolutamente a necessidade de atordoar-me, com riscos de escandalizá-la... Mas, fique sossegada; não lhe contarei depois o que fiz no meu serão...

Seu amigo e criado, Lourenço

 

Ao senhor Lourenço de Fauvel,

Antes de mais nada, meu caro Lourenço, rogo-lhe, se o que tem por mim alguma amizade, que não faça tão frequentemente tolices, que lhe prejudiquem a saúde. As outras são-lhe permitidas. Você vai pedir-me que lhe cite algumas dessas tolices e eu fico bastante embaraçada, porque, cm questão de tolices, conheço muito poucas, que não lhe sejam prejudiciais. Resta, porém, saber o que você entende por tolice. Se se trata dessas intermináveis ceias de que o outro dia me falou, creio que elas o matam e isso me causa aflição. Em que pensa você, destruindo assim, alegremente, uma existência tão pre­ciosa e tão bela? Mas, eu sei que você não quer saber de sermões, por isso limito-me ao pedido.

Quanto ao seu inglês, que, por sinal é americano, acabo de vê-lo e como não verei você esta noite, nem talvez amanhã, aliás, com grande tristeza minha, devo dizer-lhe que procedeu muito mal, não querendo fazer-lhe o retrato. Ele lhe oferecia muito dinheiro de que você precisa, justamente para não fazer tolices, na esperança de um golpe de sorte, que não chega nunca para as pessoas de imaginação, uma vez que tais pessoas não sabem jogar, perdem sempre.

Você acha que sou positiva demais, não é verdade? Isso pouco me importa. Aliás, se examinarmos mesmo por alto a questão, todas as razões apresentadas por você ao americano e a mim mesma não valem dois vinténs.

Diz você que não sabe fazer retrato. É possível, talvez, seja mesmo verdade, mas se fosse preciso fazê-lo sob as con­dições do êxito burguês... Mas, o senhor Palmer não exigia de maneira alguma que assim fosse. Você tomou-o por um merceeiro e enganou-se, redondamente. É um homem de opinião e bom gosto, conhece a arte e sente entusiasmo por você. Pode julgar se o recebi bem! Animei-o, também, prometendo-lhe que faria todo o possível para que você se resol­vesse a pintar-lhe o retrato.

Depois de amanhã, portanto, falaremos sobre este assunto, porque tenho hora marcada, esta noite, com o referido senhor Palmer, a fim de que ele me ajude a pleitear sua própria causa e consiga a sua promessa.

A respeito disto, meu caro Lourenço, distraia-se da melhor maneira do desejo de ver-me durante dois dias, o que não lhe será difícil, pois você conhece muita gente de espírito e vive no mais belo dos mundos. Por manha parte, sou, apenas, ama velha pregadora que lhe deseja muito bem e lhe suplica que não se recolha tarde, todas as noites, e o aconselha a não come­ter excessos, não abusando de coisa alguma. Você não tem o direito de fazê-lo: o espírito obriga...

Sua colega, Teresa Jacques

 

à senhorita Jacques,

Minha querida Teresa, vou partir, dentro de duas horas, para um passeio no campo, em companhia do conde de S... e do príncipe D... Teremos lá ao que me asseguram, mocidade e beleza... Prometo-lhe e juro-lhe que não cometerei tolices, nem beberei champanha.

Certamente, eu preferiria passear pelo seu grande estúdio e discutir no seu salãozinho lilás. Mas, visto que você está em retiro juntamente com os seus trinta e seis primos da província, não há de certamente notar a minha ausência. Você terá a deliciosa música da pronúncia anglo-americana durante toda a tarde. Ah! Esse bom senhor Palmer chama-se Dick, não c verdade?

Creio que Dick é um diminutivo familiar de Ricardo, mas verdade seja que em questões de linguagem eu conheço apenas mal e mal o francês. Relativamente, ao retrato, não se fala mais nisso. Você é mil vezes maternal, minha boa Teresa, ao pensar nos meus interesses, em detrimento dos seus. Embora você tenha uma bela clientela, a sua generosidade não lhe per­mite ficar rica e mais algumas notas de banco estarão melhor em suas mãos do que nas minhas. Você sabe empregá-las em ações felizes, ao passo que eu, como você diz, atirá-las-ia ia ao jogo de cartas...

Por outro lado, nunca estive menos bem disposto para a pintura... Para isso, são necessárias duas coisas que você possui: a reflexão e a inspiração. Compreendo perfeitamente o que me falta. Ainda não vivi bastante e parto por três ou quatro dias com a senhora Realidade, que me aparece sob a imagem de várias ninfas do corpo de bailado da Ópera. Espero que, ao regressar, seja o homem mais satisfeito deste mundo, quer dizer, o mais insenbilizado e o mais razoável...

Seu amigo, Lourenço

 

Teresa compreendeu, logo à primeira vista, o despeito e o ciúme, que haviam ditado aquela carta.

— Todavia, ele não está apaixonado por mim. Oh! Não! Certamente, ele jamais se apaixonará por alguém e muito menor por mim.

Voltando a lê-la e a meditar sobre ela, Teresa receava iludir-se, tentando persuadir-se a ,si mesma de que Lourenço não correria perigo algum a seu lado.

— Mas, que perigo? — interrogava-se. — Sofrer por um capricho não satisfeito? Será que se sofre muito por um capricho? Não sei coisa alguma; nunca tive um capricho.

Eram cinco horas da tarde. Teresa pôs a carta no bolso, pediu o seu chapéu e deu licença a seu criado por vinte e quatro horas, fez diversas recomendações à sua velha e fiel Catarina e tomou um carro de praça. Duas horas mais tarde, regressava com uma delicada mulherzinha, um pouco curva, e tão perfeitamente dissimulada que o seu semblante nem foi visto pelo cocheiro. Fechou-se em casa com essa misteriosa criatura e Catarina serviu-lhes um bom jantar.

Por .seu lado, Lourenço preparava-se para partir para o campo. Mas, quando o príncipe D... veio buscá-lo, no seu carro, Lourenço disse-lhe que um negócio imprevisto o obri­gava a demorar-se ainda umas duas horas em Paris, ficando de encontrar-se com ele, à tardinha, na sua casa de campo.

Todavia, ele não tinha negócio algum a tratar. Vestira-se apressadamente, penteando-se com cuidado todo particular. Em seguida, pondo o paletó numa poltrona, deitou-se na cama.

— Mas, por que será que ela me fecha a sua porta durante dois dias? Há nisso qualquer coisa escusa. E quando me fixa uma entrevista para o terceiro dia é para que eu vá encontrar em sua casa um inglês ou americano, que não conheço. Mas o que me parece certo é que ela conhece esse Palmer, a quem trata, aliás, pelo nome de batismo. Mas, então, por que foi que ele me pediu o seu endereço? Por que tal idéia? Mero disfarce? Mas por que dissimularia ela comigo? Não sou noivo de Teresa, não tenho direito algum sobre ela. O namorado de Teresa! Jamais o serei certamente. Deus me livre! É cinco anos mais velha... Talvez, ainda mais... Quem sabe a idade de uma mulher, justamente daquela de que ninguém sabe coisa alguma? Um passado assim misterioso deve por força ocultar alguma tolice enorme, quem sabe se não será qualquer mancha grave. E é com isso, presumida, beata ou filósofa... quem sabe? Fala de todas as coisas com uma tolerância, uma imparcialidade, ou um desinteresse... Quem sabe se acredita ou não, que deseja, que ama, ou mesmo se é capaz de amar?

Mercourt, jovem crítico de um jornal, amigo de Lourenço, entrou no apartamento.

— Soube que você ia partir para Montmorency; por isso, não faço mais que entrar e sair só para pedir-lhe um endereço — o da senhorita Jacques.

Lourenço estremeceu.

— E que diabo quer você da senhorita Jacques? — per­guntou, procurando papel para enrolar um cigarro.

— Eu? Nada... quer dizer, sim, desejaria conhecê-la, porque só a conheço de vista e de renome. É para uma pessoa que deseja fazer um retrato que lhe peço o endereço dela.

— Conhece de vista a senhorita Jacques?

— Conheço. Presentemente, seu nome é bastante conhe­cido e célebre. E quem é que a conhece e não a aprecia? Ela é digna disso...

_ Acha?

— Acho, sim, e você?

— Eu? Não sei. Amo-a bastante, não me sinto compe­tente, nem idôneo.

— Então, ama-a tanto assim?

— Como lhe digo. A prova é que não a cortejo.

— Vê-a muitas vezes?

— Algumas.

— Então, é seu amigo?... Sincero?

— Bem, sou-o um pouco. Por que motivo está sorrindo?

— Porque não acredito em nada do que me está dizendo. Aos vinte e quatro anos, homem nenhum pode ser amigo desinteressado e sincero de uma mulher... bonita e jovem.

— Ora, essa! Ela não é assim tão jovem, nem tão bonita como você está dizendo. É uma boa colega, que não desagrada à vista. Todavia, não aprecio o seu tipo e tenho de perdoar-lhe o fato de ser loura. Não gosto de louras, a não ser em pintura.

— Ela não é assim tão loura. Possui olhos de um negro aveludado e doce...

— Bonitas palavras... Você gosta das mulheres de estatura alta?

— Ela não é assim tão alta. Tem pés e mãos pequenos. É uma mulher no verdadeiro sentido da palavra. Nisso, reparei bem, porque me sinto apaixonado...

— Que idéia!

— Isso pouco lhe deve importar, pois se ela é assim tão feminina, como não lhe agrada?...

— Meu caro, se ela me amasse eu me esforçaria por ser melhor para com ela, melhor do que tenho sido. Mas não me sentiria apaixonado. Esse é um estado de espírito que não me seduz. Portanto, não teria ciúmes. Continue, pois, as suas intenções, como melhor lhe parecer.

— Eu? Se tivesse tempo de procurá-la... No fundo, sou semelhante a você, Lourenço, — inclinado .à paciência; sou de um mundo que passou e de um tempo em que nunca falta o prazer... Mas, uma vez que estamos falando a respeito dessa criatura e como você a conhece, diga-me, pois... Mera curiosidade, juro: ela é viúva ou...

— Ou quê?

— Quero dizer se ela é viúva de algum namorado ou de um marido?

— Não sei nada disso.

— Sabe o que por aí dizem?

— Não; não me interessa o que podem dizer?

— A prova é que isso o interessa... Dizem que ela é casada com um homem rico e nobre.

— Casada...

— No civil e no religioso; não é possível outra coisa...

— Tolice! Se fosse casada, usaria o nome e o título do marido.

— Pois bem; aí é que está o mistério. Quando me sobrar tempo, hei de procurar descobri-lo, e então dir-lhe-ei do que .se trata. Mas aquela cabeça... é magnífica, soberba. Quem será? Deixe-me ver?

— É apenas um esboço...

— E não se compromete a pessoa a quem se assemelha...

— Então, parece-se com alguém?

— Ora essa! Brincadeira de mau gosto! Julga que não será capaz de reconhecê-la? Meu caro, você quis brincar comi­go, pois nega tudo, até as coisas mais simples. Você é o namorado dessa mulher!

— A prova é que vou partir para Montmorency! — disse, friamente, Lourenço, pegando no chapéu.

— Isso não impede!... respondeu Mercourt. Lourenço saiu e Mercourt, que havia descido juntamente com ele, viu-o tomar um carro de praça. Lourenço, porém, mandou seguir para o Bosque de Bolonha. Jantou sozinho num pequeno café e ao cair da noite regressou, a pé, imerso nos seus sonhos.

No bairro dos Campos Elíseos daquele tempo, de edifícios menos suntuosos e menos habitado do que atualmente, havia quarteirões novos, onde se alugavam, ainda, a preços razoáveis, pequenas casas com seus jardinzinhos de caráter muito íntimo.

Numa dessas casas, caiadas de branco, muito limpas, no meio de maciços de lilases em flor e por trás de uma sebe de espinheiros, fechada por uma parede de estacas pintadas de verde, morava Teresa. Era no mês de maio. O tempo magnífico. Às nove horas, o jovem encontrou-se atrás dessa sebe, na rua deserta e semi-acabada, onde não havia ainda candeeiros de gás e vicejavam as urtigas e outras ervas daninhas.

Lourenço não sabia como se encontrava ali. Sentia-se em­baraçado. A sebe era bastante espessa. Voltou-se sem ruído, sem perceber outra coisa senão folhas levemente douradas por uma luz que ele julgava colocada no jardim, sobre a pequena mesa junto à qual tinha o hábito de fumar, quando passava a tarde em casa de Teresa. Fumava-se no jardim ou tomava-se, algumas vezes, chá.

Teresa anunciara que estava à espera de uma família inteira da província e ele ouvia, apenas, o sussurro misterioso de duas vozes, uma das quais lhe parecia ser a de Teresa. A outra falava em tom mais baixo. Seria a voz de um homem?

Lourenço sentiu uma zoeira nos ouvidos até que, finalmente, escutou ou julgou escutar as seguintes palavras de Teresa:

— Que me importa tudo isso? Só tenho um amor neste mundo e esse amor é você!

— Agora — dizia Lourenço, deixando precipitadamente a pequena rua deserta e regressando à cidade, agora estou tran­qüilo. Teresa tem um namorado. Efetivamente, não tinha motivos para confiar-me tal segredo. Mas, também, não era obrigada a falar nesse assunto em todas as ocasiões, de ma­neira a fazer-me acreditar que não era nem desejava ser de ninguém. É como certas mulheres: primeiro e acima de tudo tem necessidade de mentir. Que me importa? Todavia, mal diria eu... É mesmo preciso que eu tenha a cabeça, sem o confessar, cheia dela, para ficar assim à escuta, no mais vil dos misteres, quando não se trata de ciúme... Não posso, todavia, arrepender-me. Isto salvar-me-á de uma grande miséria e de um logro: desejar uma mulher que nada possui de mais desejável do que muitas outras, nem sequer a sinceridade.

Mandou parar um carro e dirigiu-se a Montmorency. Prometia a si mesmo passar ali oito dias e antes de quinze não voltaria a pôr os pés em casa de Teresa. Entretanto, demorou-se no campo apenas quarenta e oito horas e na ter­ceira noite estava à porta de Teresa, precisamente no mesmo instante em que ali chegava Ricardo Palmer.

— Oh! — exclamou o americano, estendendo-lhe a mão — encantado em tornar a vê-lo.

Lourenço não pôde deixar de dar-lhe a mão, perguntando-lhe ao mesmo tempo porque se sentia tão satisfeito por encontrá-lo.

O estrangeiro não prestou a menor atenção ao tom um tanto impertinente do artista.

— Estou muito contente porque gosto de você, — res­pondeu o outro com irresistível cordialidade, — e gosto de você porque o admiro muito.

— Como? Você, também? — perguntou Teresa, admira­da, olhando para Lourenço. — Já não contava com você esta noite!

Lourenço julgou discernir um desusado tom de frieza nessas simples palavras.

— Ah! — respondeu ele, em voz baixa — creio que vim perturbar uma deliciosa conversa particular.

— Que é tanto mais cruel para você, — tornou Teresa, no mesmo tom jovial, — uma vez que parece querer poupar-me a essa conversa.

— Se você contava com isso, por que não me mandou um recado?" Devo ir-me embora?

— Não, fique. Tenho de resignar-me a suportá-lo, ex­clamou, sorrindo.

O americano, depois de ter cumprimentado Teresa, abrira a carteira e procurara uma carta que lha entregou. Impassível, Teresa correu os olhos pela carta, sem fazer algum comentário.

— Se deseja responder a essa carta, tenho um portador para Havana...

— Muito obrigada, — respondeu Teresa, abrindo a ga­veta de um pequeno móvel que lhe estava à mão. — Não vou responder-lhe.

Lourenço, que acompanhava todos os seus gestos, viu que incluía aquela carta junto a diversas outras e uma delas, pela forma e pelo sobrescrito, chamou-lhe a atenção; era a que ele mesmo havia escrito a Teresa na véspera. Sem saber por que sentiu-se interiormente chocado por ver essa carta junto daquela que Palmer acabava de entregar-lhe.

Deixa-me ficar aí, pensou ele, — misturado com os seus admiradores abandonados!... Todavia, não tenho di­reito a essa distinção. Nunca lhe falei em amor.

Teresa começou a falar com o Sr. Palmer a respeito do retrato. Lourenço espiava os mais insignificantes olhares, as mais leves inflexões de voz de ambos, imaginando a cada instante o temor secreto de vê-lo ceder. Mas a insistência de Palmer era de tão boa-fé que ele logo censurou as próprias suspeitas. Se Teresa mantinha relações com esse estrangeiro, livre e sozinha como vivia, aparentemente nada devia a quem quer que fosse, e como nunca se preocupava com o que poderiam dizer a seu respeito, precisaria por acaso do pretexto de um retrato para receber em sua casa e durante muito tempo o objeto do seu amor ou da sua fantasia?

Como se sentia calmo, Lourenço não tinha razões para deixar de manifestar a sua curiosidade.

— Então, você é americana? — perguntou a Teresa que, de quando em quando traduzia para o senhor Palmer, em inglês, as respostas que ele parecia não compreender bem.

— Eu? — respondeu Teresa. — Não lhe disse já que tenho a honra de ser sua conterrânea?

— É que você fala tão corretamente o inglês!

— Como é que você sabe se falo bem inglês, visto que não entende essa língua? Mas já vejo o que é; você é muito curioso. Pergunta você se é de ontem ou de há muito que conheço o Sr. Ricardo. Pois bem; pergunte-lhe.

Palmer não esperava uma pergunta que Lourenço não es­tivesse imediatamente decidido a fazer-lhe. Respondeu-lhe, portanto, que não era a primeira vez que vinha à França; que conhecera Teresa muito moça, ainda, em casa de uns seus parentes. Mas não lhe referiu quem fossem esses parentes. Teresa costumava dizer que não chegara a conhecer pai, nem mãe!

O passado da senhorita Teresa Jacques era um mistério impenetrável para as pessoas da sociedade que iam posar para ela e para o pequeno número de artistas que ela recebia em particular. Tinha vindo para Paris, não se sabia de onde, nem quando, nem com quem. Havia, apenas, uns dois ou três anos que se tornara conhecida, em conseqüência de um retrato que pintara e que tinha sido examinado por algumas pessoas de bom gosto, sendo logo assinalado como obra de mestre. E foi assim que de uma clientela e existência pobre e obscura, passara subitamente a gozar de grande reputação e de vida folgada e cômoda.

Dizia, sempre:

— Não está em jogo a minha pessoa. Nada tenho a contar. Só tive desgostos em minha vida, dos quais não mais me recordo, nem tenho tempo para neles pensar. Presentemente, sinto-me feliz, pois trabalho não me falta e, acima de tudo, gosto de trabalhar.

Por mera casualidade e em conseqüência de relações de artista para artista, em determinada reunião, que Lourenço chegara a travar conhecimento com a senhorita Jacques.

Apresentado como gentil-homem e artista de nomeada num mundo frívolo, Lourenço tinha, aos vinte e quatro anos, a experiência das coisas, experiência que nem todos possuem aos quarenta. Por esse motivo, era ele de melindres fáceis, afligindo-se por motivos fúteis. Mas, não possuía a experiência do coração, que não se adquire na promiscuidade. Graças ao seu alarde de ceticismo, deduzira que Teresa tinha como namorados todos quantos tratava como simples amigos. Foi preciso ouvi-los, pouco a pouco, a afirmar a pureza de suas relações, para chegar a considerá-la como pessoa que podia ter tido suas paixões, mas longe de galanterias de qualquer espécie...

No fundo, consistia nisso toda a verdade. Mas o amor insinuara-se no seu coração moço e já se viu como Lourenço se debatia contra a invasão de um sentimento que desejava ainda ocultar a seus próprios olhos e a Teresa, tanto mais quanto experimentava esse sentimento pela primeira vez em sua existência.

Ante a insistência de Palmer para fazer-lhe o retrato, argumentou:

— Mas, afinal, porque insiste o senhor numa coisa que, provavelmente, não será muito boa, quando conhece a senho­rita Jacques, que, certamente, não se recusará fazer um traba­lho excelente?

— Ela recusa — respondeu Palmer, muito ingenuamente, não sei bem porquê. Prometi a minha mãe, que tem a fraqueza de achar-me bonito, um retrato de mestre. Esse o motivo por que me dirigi ao senhor como a um mestre idealista. Se recusar, terei então o desprazer de não satisfazer o desejo de minha mãe e o aborrecimento de ter de procurar outro artista.

— Isso não lhe causará muita demora... Não faltam artistas mais competentes que eu!...

— Não creio. Mas, admitindo mesmo que eu encontre outro artista, estou certo de que ele não disporá de tempo, no momento, para fazer-me o retrato e tenho pressa em enviá-lo quanto antes a seu destino. É para festejar o meu aniversário natalício, que ocorrerá dentro de quatro meses, e o transporte demorará pelo menos uns dois meses.

— Quer dizer, Lourenço — aparteou Teresa — que é forçoso que você faça esse retrato em seis semanas, quando muito, e, como sei o tempo de que você pode dispor, teria de começar amanhã mesmo. Vamos; estamos entendidos: pro­mete fazer o retrato, não é verdade?

Palmer estendeu a mão a Lourenço, dizendo:

— Eis o contrato, devidamente assinado. A senhorita Jacques foi quem fixou as condições. A que horas pretende começar, amanhã?

Combinada a hora, Palmer pegou no chapéu e Lourenço viu-se obrigado a fazer o mesmo, como demonstração de res­peito por Teresa. Palmer, porém, não prestou atenção ao caso e retirou-se, depois de ter apertado, sem a beijar, a mão de Teresa.

— Quer que eu vá? — perguntou Lourenço.

— Não é preciso — respondeu Teresa. — Todas as pessoas que recebo me conhecem bastante. Somente, você terá que sair, hoje, quando forem dez horas. Nestes últimos tempos, temos ficado a conversar até quase à meia-noite, e como não consigo dormir logo, sinto-me muito cansada.

— Se eu fosse presunçoso, isso me causaria vaidade.

— Mas, graças a Deus, você não é presunçoso; deixe que os tolos o sejam. Agora, vejamos, mestre Lourenço; apesar das felicitações, vejo-me obrigada a censurá-lo e repreendê-lo. Dizem que você não trabalha.

— Você é muito boa, Teresa. Já sei. Quer que eu ganhe a minha vida, apesar de toda a ojeriza ao trabalho, que tenho.

— Não me estou envolvendo com os seus meios de exis­tência. Não tenho o direito. Não tenho a sorte ou... a falta de sorte de ser sua mãe. Mas sou sua irmã... em Apolo* e é impossível deixar de afligir-me com essa sua pre­guiça.

* Apolo é uma das principais divindades gregas, o deus do dia, da poesia, da música, das artes. (Nota do "Clube do Livro").

 

— Mas que é que isso lhe pode fazer, Teresa? — per­guntou Lourenço num misto de prazer e despeito que ela bem percebeu, obrigando-a a responder com a sua habitual fran­queza.

— Escute, meu caro Lourenço — disse ela — explique-mo-nos. Tenho por você muita amizade.

— Isso me envaidece, mas desconheço-lhe os motivos. Nem sequer sirvo para ser seu amigo, Teresa! Não creio mais na amizade do que no amor entre um homem e uma mulher.

— Você já me disse isso, mas para mim é indiferente que acredite ou não. Eu acredito naquilo que sinto, e sinto por você interesse e afeição. Sou assim; não posso ter perto de mim um ser qualquer sem a ele me ligar, desejando que seja feliz. Então, costumo fazer aquilo que está ao meu alcance, sem esperar qualquer recompensa. Ora, você não é um ser qualquer, mas um homem de gênio e, além disso, espero, um homem de coração...

— Eu, um homem de coração? Sim, se você por essa palavra compreender o que todo mundo compreende. Sei bater-me em duelo, pago as minhas dívidas, defendo a mulher a quem dou o braço. Mas, se julga que possuo um coração cheio de ternura, ingênuo, amoroso...

— Sei que pretende ser velho, acabado e corrompido. Mas as suas pretensões nada valem, nada significam. É uma atitude muito na moda nos dias que correm. Em você é uma doença dolorosa ou imaginária, mas que passará, quando quiser... Você é um homem de coração, um homem de es­pírito e isso, justamente, porque sente um vácuo no coração. Alguma mulher há de aparecer para preencher esse vácuo — caso ela o compreenda e você o permitir. Mas isto está longe do assunto. Estou falando ao artista, não ao homem e este só se sente infeliz dentro da sua personalidade, porque o ar­tista não está satisfeito consigo mesmo.

— Bem, Teresa, está enganada, acudiu, vivamente, Lou­renço. É exatamente o contrário do que está dizendo. É o homem que sofre no artista e o abafa também. Não sei o que fazer da minha pessoa. O tédio mata-me, Mas, tédio de quê? — dirá você. Tédio de tudo. Não sei como você, criatura aplicada e calma, durante seis horas de trabalho, dar umas voltas pelo jardim, atirando migalhas de pão aos pássa­ros, e, depois, recomeçar o trabalho durante mais quatro horas, sorrindo à noite a dois ou três importunos semelhantes a mim, por exemplo, à espera da hora de dormir. Para mim, o sono é mau, os passeios são agitados, o meu trabalho é febril. A invenção perturba-me e faz-me tremer. A execução, sempre muito lenta a meu capricho, provoca-me incríveis palpitações de coração e é chorando, esforçando-me por não gritar que dou à luz a idéia que me embriaga, mas da qual me sinto mortalmente envergonhado e aborrecido no dia seguinte, pela manhã.

Eis o que se passa na minha vida, quando me deixo do­minar por esse artista gigante que está em mim e do qual este pobre homem, que lhe fala, arranca uma a uma, pelas tenazes de sua vontade, magras cartilagens semimortas. Por­tanto, Teresa, o melhor é eu continuar a viver como tenho imaginado, que faça excessos de toda ordem até matar este verme roedor, a que os meus semelhantes chamam modesta­mente "inspiração" e que eu qualifico sem cerimônia de minha enfermidade.

— Então, fica entendido que você trabalha para o suicídio de sua inteligência? Pois bem. Não acredito numa única de suas palavras. Se alguém lhe viesse amanhã propor ser o conde de S... ou o príncipe D... com os milhões de um e os belos cavalos do outro, você responderia, falando de sua pobre palheta, tão desprezada: "devolva-me o meu miolo de pão".

— Minha desprezada palheta? Você não me compreende, Teresa. Ela é um instrumento de glória, bem sei, e aquilo que se chama glória é o apreço que se concede ao talento, mais puro e primoroso do que aquele que se outorga à fortuna. Gosto tanto de mim como qualquer outro. Amo a mim mesmo de todo coração, juro por Deus! O que eu digo é que a minha palheta, instrumento de glória, é o meu suplício, uma vez que não sei trabalhar sem sofrer. Então, procuro na desordem, não a morte do meu corpo ou do meu espírito, mas o relaxamento ou deterioração dos meus nervos. É somente isso, Teresa. Que é que existe nisso que não seja razoável? Só trabalho mesmo um pouco quando me sinto desfalecer de fraqueza.

— É verdade, — disse Teresa, — já o observei e admi­ro-me disso como de uma curiosa anomalia. Mas tenho muito medo de que essa maneira de produzir dê cabo da sua existência e custa-me acreditar que suceda de outro modo... Responda-me a esta pergunta: não é verdade que você começou a sua vida pelo trabalho e pela abstinência e sentiu, então, a necessidade de atordoar-se, a fim de poder repousar, não é?

— Não, ao contrário. Quando saí do colégio, já gostava da pintura, mas não acreditava que me visse jamais obrigado a pintar, Julgava-me rico. Meu pai morreu e não me deixou senão coisa de trinta mil francos, quantia essa que me dei pressa em gastar, para ter, ao menos, um ano agradável na vida, Quando me vi sem um vintém, peguei no pincel e de­diquei-me à pintura dos nus, que atualmente constitui o maior êxito. Agora, durante alguns meses ou semanas a fio, dou-me ao luxo e aos prazeres, até esgotar-se o meu dinheiro. Quando nada mais resta, sinto que isso é melhor para mim, pois sinto-me ao mesmo tempo sem forças e sem desejos. Então, volto ao trabalho com raiva, com dor e em delírio e, concluída a tarefa, recomeça o repouso e a prodigalidade.

— Há muito tempo que leva essa vida?

— Na minha idade, não seria possível viver dessa forma por muito tempo. Há, apenas, uns três anos...

— Oh! para a sua idade, é demais! Além disso, começou mal, deitou ao fogo à sua vitalidade antes que ela se mani­festasse em toda a sua pujança. Bebeu vinagre .para não crescer. Entretanto, sua cabeça desenvolveu-se e, com ela, malgrado isso tudo, o seu gênio criador. Mas é possível que o seu coração se haja atrofiado; talvez, por isso, não chegue a ser um homem ou um artista completo.

Estas palavras de Teresa, pronunciadas com tranqüila tristeza, irritaram Lourenço.

— Nesse caso, — disse ele, — você me despreza?

— Não — respondeu ela, estendendo-lhe a mão — sinto, simplesmente, pena de você!

E Lourenço viu duas grossas lágrimas deslizando, lenta­mente, pela face de Teresa. Essas lágrimas produziram-lhe uma reação violenta. Com o rosto banhado em copioso choro, deitou-se aos pés de Teresa, dizendo como criança que se arrepende:

— Ah! Minha pobre e querida amiga! — E tomando-lhe as mãos: — você tem razão de lastimar a minha atitude. Preciso disso; sinto-me infeliz, tão infeliz que tenho vergonha de dizê-lo. Aquilo que tenho no peito, em lugar do coração, está incessantemente clamando por qualquer coisa que não sei bem o que seja e ignoro o que devo dar-lhe para apaziguá-lo. Amo a Deus e, todavia, duvido. Amo todas as mulheres e, todavia, desprezo-as a todas. Permita-me dizer-lhe isto a você que é minha colega e minha amiga: às vezes, surpreendo-me quase a amar até à idolatria uma cortesã, enquanto aos pés de um anjo me sentiria talvez mais frio do que o próprio már­more. Tudo é perturbação nos meus conhecimentos, nas mi­nhas noções das coisas, tudo, talvez, esteja transviado nos meus instintos. Se eu lhe disser que não mais acho encanto e prazer no vinho...

Que quer que eu faça, Teresa? Não tem pena de mim?

— Certamente, tenho pena de você, meu pobre amigo — disse Teresa, enxugando-lhe os olhos, com o lenço, — mas que adianta?

— Se você me amasse, Teresa. Não retire as mãos. Não é que permitiu que eu me tornasse uma espécie de amigo?

— Disse que o amava e você respondeu-me que não podia acreditar na amizade de uma mulher.

— Mas acreditava, talvez, na sua. Você tem um coração de homem, pois tem a força e o talento de um coração mas­culino. Dê-me a sua amizade.

— Mas eu não lhe retirei essa amizade — respondeu Teresa. A amizade de um homem deve possuir maior rudeza e autoridade, virtudes de que não me sinto dotada. Sinto-me mais capacitada, mesmo contra a minha vontade, de lastimar o seu destino do que, propriamente, o censurar. Já vai ver porque. Prometi a mim mesma que haveria de humilhá-lo, hoje, deixando-o furioso contra mim e contra você, e, em vez disso, estou chorando e isto não resolve coisa alguma.

— Essas lágrimas são boas — tornou Lourenço; elas foram um refrigério para um terreno sáfaro. É possível que o meu coração floresça, agora, neste terreno, regado por você. Teresa, você já me disse certa vez que eu me vangloriava diante de si daquilo que deveria fazer-me corar e que eu era semelhante ao muro de uma prisão. Só se esqueceu de que atrás desse muro existe um prisioneiro. Se eu conseguisse abrir a porta, você poderia vê-lo. Mas a porta está fechada e o muro é de bronze. A minha vontade, a minha fé, a minha expansibilidade, a minha palavra, nada é capaz de atravessar esse muro. Terei, então, de viver e morrer assim? Para que cobrir de pinturas fantásticas as paredes do meu cárcere, se não vejo a palavra amar escrita em parte alguma?

— Se bem o compreendo — disse Teresa, numa expressão absorta — você julga que a sua obra necessita de ser aquecida pelo sentimento.

— Não pensa da mesma forma? Não estará aí, justa­mente, o sentido de todas as suas queixas?

— Não é, precisamente, assim. Existe, apenas, excesso de fogo na sua execução. Eu tenho tratado sempre com res­peito essa exuberância da mocidade que produz os grandes artistas e cuja beleza impede a qualquer entusiasmo investigar ou expurgar os defeitos... Em vez de achar o seu trabalho frio e vazio, sinto-o ardente e apaixonado. Mas esperava en­contrar em você a sede de uma paixão. Estou vendo, agora, que ela reside no desejo da alma. Sim, — acrescentou Teresa, sonhadora, como se procurasse romper o véu de seu próprio pensamento — o desejo pode converter-se numa paixão.

— Em que está pensando? — perguntou Lourenço, acompanhando-lhe o olhar absorto.

— Estou perguntando a mim mesma se deve combater essa força que está dentro de você e se, ao convencê-lo de que seja feliz e calmo, não lhe estou roubando o fogo sagrado. Penso, todavia, que a inspiração não pode ser para o espírito uma situação duradoura e que deve cair sobre nós e oprimir-nos, quando vivamente expressa durante um período de febre. Que lhe parece? Aquilo que chamamos as diversas maneiras dos mestres não será a expressão das sucessivas transformações do nosso ser? Aos trinta anos, poderá alguém aspirar a tudo, sem nada apertar nos braços? Não lhe é imposto o dever de ter uma certeza, uma estabilidade sobre qualquer ponto? Você está na idade das fantasias; cedo, virá a idade da luz. Não é seu desejo fazer progressos?

— Mas será que isso depende de mim?

— Certamente, se você não se esforçar para perturbar o equilíbrio de suas faculdades. Você não me convencerá de que o esgotamento seja o remédio da febre, e não, simples­mente, o resultado final.

— Nesse caso, qual o remédio que me aconselha?

— Sei lá. Talvez, o casamento.

— Que horror! — exclamou Lourenço, soltando uma risada. E sempre a sorrir, sem saber a razão do corretivo, acrescentou:

— A não ser que seja com você, Teresa. Não acha que é uma idéia?

— Muitíssimo interessante — respondeu ela, — mas de todo impossível!

A resposta de Teresa, tranqüila e sem apelação, im­pressionou Lourenço e as palavras que ela pronunciara num arrebatamento afiguraram-se-lhe, subitamente, um sonho enter­rado... Aquele espírito forte e arrebatado desejava, sempre, qualquer coisa em que entrasse a palavra impossível e era justamente essa a palavra que Teresa acabara de pronunciar.

Logo depois, voltaram-lhe as veleidades amorosas, con­juntamente com suas suspeitas, o seu ciúme, a sua cólera. Até então o encanto da amizade como que o embalara e em­briagara. Subitamente, tornou-se frio e amargo.

— Ah! com efeito! — disse, apanhando o chapéu para retirar-se — essa é uma palavra que ocorre sempre na minha vida a propósito de tudo, no final de qualquer gracejo, como conclusão de qualquer coisa séria: impossível! Você não co­nhece um inimigo dessa ordem, Teresa. O seu amor é tran­qüilo. Você tem um namorado ou um amiguinho, que não é ciumento, porque ele a julga fria e sensata. Isso faz-me pensar que o tempo caminha e que os seus trinta e seis primos estão talvez lá fora, à'espera de que eu me retire...

— Que está dizendo? — perguntou Teresa espantada. Quais são as idéias que o aborrecem? Sobreveio-lhe algum acesso de loucura?

— É assim de vez em quando — respondeu Lourenço, retirando-se. — Deve perdoar-me tais acessos...

 

No dia seguinte, Teresa recebeu de Lourenço seguinte carta :

"Minha boa e querida amiguinha: Como a deixei, on­tem? Se alguma enormidade lhe disse, queira esquecê-la. Não tive consciência do que disse. Tive uma ofuscação, uma tontura, que não se dissipou ainda. Achei-me diante da porta da minha casa, de carruagem, sem que me fosse possível re­cordar-me da maneira como chegara até ali.

Isso acontece-me, freqüentemente, minha querida amiga, de tal maneira que a minha boca pronuncia uma palavra, en­quanto o meu- cérebro pensa noutra. Tenha dó de mim e perdoe-me. Sinto-me doente. Você tinha ramo; a vida que estou levando é detestável.

Com que direito me atrevo a dirigir-lhe perguntas? Fa­ça-me, porém, essa justiça: nos três primeiros meses que se passaram desde que você me recebeu em sua intimidade, ê a primeira vez que isto!acontece. Que me importa que você seja noiva, casada ou viúva... Você não quer que ninguém saiba. Mas será que eu procurei saber? Já lhe dirigi alguma pergunta a tal respeito?

Ah! Teresa, ainda agora, de manhã, reina o caos na minha cabeça e, entretanto, sinto que estou mentindo, ora não desejo de forma alguma mentir-lhe. Sexta-feira, à noite, tive o primeiro acesso de curiosidade a seu respeito. O de ontem foi o segundo, mas garanto-lhe que será o último e para não se tratar mais do caso, quero confessar-lhe tudo.

Eu estive, efetivamente, em frente de sua casa, quer dizer junto à grade do seu jardim. Olhei para dentro e não vi nada. Pus-me a escutar e escutei... Mas que lhe interessa isto? Ignoro como ele se chama, não lhe vi o rosto... Sei que você é minha irmã, minha confidente, minha consolação, meu amparo na vida. Sei que, ontem, eu chorava a seus pés e você enxugava as minhas lágrimas com seu lenço. Sei que você é sensata, laboriosa, tranqüila, res­peitada; ê livre, amada e feliz; você dispõe de tempo e tem caridade bastante para lastimar a minha sorte, para saber que eu existo e desejar tornar melhor a minha existência. Quem a não a abençoasse seria um ingrato e, por mais miserável que eu seja, não quero ser ingrato. Quando deseja rece­ber-me? Talvez a ofendesse, Teresa! Era o que faltava. Irei esta noite à sua casa? Se você me responder que não, irei para o inferno!"

 

Quando o seu criado regressou, entregou-lhe a resposta de Teresa: "Venha esta noite".

Esse recado deixou-o a tremer como uma criança. Nunca ela lhe tinha escrito naquele tom. Era a sua despedida que ela lhe ordenava que fosse buscar? Ou seria para um en­contro de amor que o chamava? Essas três palavras secas ou inflamadas teriam sido ditadas pela indignação ou pelo delírio?

Chegou o senhor Palmer e Lourenço, muito agitado e preocupado teve de começar-lhe o retrato. Tinha pensado em interrogá-lo com muita habilidade, arrancando-lhe todos os segredos de Teresa, mas não encontrou uma única palavra para entrar no assunto.

Finalmente, Lourenço, depois de acalmar-se, conseguiu examinar a fisionomia plácida e pura do estrangeiro. Era de perfeitas linhas, o que, à primeira vista, lhe dava um as­pecto inanimado, peculiar às fisionomias regulares. Exami­nado melhor, descobria-se certa delicadeza no seu sorriso e certo fogo no seu olhar. Enquanto fazia estas observações, Lourenço estudava a idade do seu modelo.

— Perdão, — disse, subitamente, — desejaria e preciso saber se o senhor é ainda um moço um pouco fatigado, ou homem já maduro e extraordinariamente bem conservado. Tenho-o observado bastante, mas confesso que não o com­preendo bem.

— Tenho quarenta anos — disse Palmer com simplici­dade.

— Viva! — exclamou Lourenço, — O Senhor goza de uma saúde de ferro.

— É, realmente, muito boa! — disse Palmer.

E retomou a sua posição cômoda e seu sorriso tranqüilo. Não pôde resistir ao desejo de fazer-lhe outra pergunta:

— Então, conheceu a senhorita Jacques muito moça ainda?

— Quando a vi, pela primeira vez, tinha quinze anos. Lourenço não teve coragem de perguntar-lhe em que ano.

Parecia-lhe que, ao falar de Teresa, o sangue lhe afluía às faces. Mas, afinal, que lhe importava a idade de Teresa? O que ele desejaria saber era a história de sua vida. Ela, pelas aparências, não devia ter mais de trinta anos. Palmer poderia, pois, ter sido outrora simplesmente um seu amigo.

Finalmente, caiu a noite e o artista, que não costumava ser muito pontual, viu que chegara a hora em que Teresa costumava recebê-lo, habitualmente. Contrariando os seus há­bitos, viu-se no jardim, despreocupado, passeando um pouco aflito.

Logo que ela o viu, foi ao seu encontro e pegando-lhe na mão, num gesto mais autoritário do que afetuoso, disse-lhe:

— Se você é um homem digno, vai dizer-me tudo quanto ouviu através destes arbustos! Vamos; fale, estou escutando.

Sentou-se num banco, irritado com aquele acolhimento pouco habitual, tentou causar-lhe certa inquietação com res­posta evasiva. Ela, porém, logo o desanimou numa atitude de descontentamento, e numa expressão estranha, que lhe era completamente nova. O receio de causar-lhe aborrecimento fez que Lourenço lhe contasse sem rodeios, simplesmente, a verdade.

— Então — disse ela, — foi somente isso que você ouviu? Eu estava dizendo a certa pessoa que você nem pôde perceber quem fosse: "você é agora o meu único amor na terra"?

— Então, foi a sonhar que ouvi essas palavras? Quase creio que sim, Teresa. Basta que assim o ordene.

— Não, você não estava sonhando. Eu disse mais ou menos essas palavras. E que foi que me responderam?

— Não ouvi resposta alguma, — disse Lourenço sobre o qual as palavras de Teresa tinham produzido o efeito de uma ducha fria. — Nem sequer o tom da voz com quem você estava falando. Agora, está .sossegada? Não faço a menor suposição. Só pensei no senhor Palmer.

— Ah! — exclamou Teresa, com ar de grande satis­fação — então, pensou que fosse o Sr. Palmer?

— Por que não poderia ser ele? Seria uma injúria pen­sar que se reatasse subitamente uma velha amizade?

— Efetivamente — respondeu Teresa, que não parecia disposta a negar coisa alguma. E por que me espionava? Explique-me essa fantasia.

— Teresa! — exclamou vivamente, o moço, disposto a libertar-se de um resto de sofrimento. Diga-se que tem um namorado e que esse namorado é o senhor Palmer e eu a estimarei, verdadeiramente, e falar-lhe-ei com a maior fran­queza. Pedir-lhe-ei perdão dos excessos de minhas loucuras e nunca mais terá motivo para censurar-me. Vejamos: quer que eu seja seu amigo? Apesar de meus defeitos, sinto a necessidade de ser seu amigo e serei capaz de o ser. A única coisa que lhe peço é que use comigo de franqueza.

— Meu querido menino, você fala-me como a uma don­zela namoradeira, que procurasse retê-lo junto dela e tivesse qualquer falta a confessar-lhe. Eu não posso aceitar esta situação, que absolutamente não me convém. O senhor Palmer não é e jamais será para mim mais do que um amigo a quem muito estimo, com o qual, entretanto, nem sequer chego a formar a mínima intimidade. É isto o que devo dizer-lhe; nada mais. Meus segredos, se os tivesse, não carecem de expansão e peço-lhe que por eles se não interesse além dos limites que desejo manter. Não tem, portanto, o direito de interrogar-me. É você quem deve responder. Que estava você fazendo aqui há quatro dias? Por que me espionava? Qual é o excesso de loucura que eu devo conhecer — que eu devo conhecer e julgar?

— O tom em que me fala é pouco animador. Por que hei de confessar-me agora, desde que você não se digna tra­tar-me como bom camarada, não depositando confiança na minha pessoa?

— Não confesse coisa nenhuma — tornou Teresa, levantando-se, — isso prova que você não é merecedor da estima que lhe tenho testemunhado e que, procurando conhecer os meus segredos, não retribui coisa alguma, absolutamente.

— Quer dizer, — disse Lourenço — que você me ex­pulsa, que entre nós está tudo acabado?

— Sim, tudo acabado; adeus! — concluiu Teresa em tom severo.

Lourenço saiu, furioso, sem poder articular palavra. Mas não tinha andado ainda trinta passos, quando voltou para dizer a Catarina que se havia esquecido de um recado de que o tinham encarregado junto de sua patroa. Teresa es­tava sentada no pequeno salão. A porta que dava para o jardim permanecia aberta. Teresa, aflita e abatida, parecia mergulhada em profundas reflexões. O acolhimento que lhe fez foi extremamente frio.

— Ah! voltou? — perguntou, — de que foi que se es­queceu?

— Esqueci-me de dizer-lhe a verdade.

— Não quero ouvi-la.

— Entretanto, pediu-me que lhe dissesse.

— Eu julgava que o senhor a pudesse dizer, espontanea­mente ...

— Podia, .sim, e devia. Fiz mal em não lhe dizer toda a verdade. Vejamos: Teresa, você admite que seja possível a um homem da minha idade poder ver você sem sentir-se imediatamente apaixonado?

— Apaixonado? — perguntou Teresa, franzindo as so­brancelhas, — Quando você disse que não podia ser de mulher nenhuma, você não fez pouco de mim?

— Absolutamente, não! Disse, apenas, aquilo que eu pensava.

— Então, você estava enganado, pois agora se confessa apaixonado. Tem certeza?

— Por amor de Deus, não se zangue dessa maneira... Não é bem assim. Idéias de amor passaram-me pela cabeça, pelos sentidos. Você tem tão pouca experiência para julgar isso impossível?

— Estou na idade da experiência, — respondeu Teresa. — Há muito que vivo sozinha; não tenho experiência de certas situações. Admira-se? Mas é pura verdade. Embora tenha sido enganada, tenho bastante simplicidade... como toda gente diz. Você disse-me centenas de vezes que me respeitava demais para ver em mim simplesmente uma mulher e isto porque você não amava as mulheres senão com muita grosseria. Eu sentia-me, pois, ao abrigo do ultraje dos seus desejos e, entre todas as coisas que eu prezava em você, era a sua sinceridade que mais apreciava.

— Eu disse isso de boa-fé. Será que tenho culpa ter vinte e quatro anos e você ser bonita?

— Ainda sou bonita? Julgava que não.

— Não sabia. No começo, não achava... Depois, um belo dia, você aparece-me assim. Foi sem desejar que expe­rimentei tal sedução. Foi tão sem querer que me senti des­culpado. Devolvi a Satanás aquilo que a Satanás pertencia, isto é, a minha pobre alma, e somente trouxe a César o que era de César — o meu respeito e o meu silêncio. Todavia, desde há uma semana que essa emoção me volta em sonhos, dissipando-se logo que me encontro a seu lado. Dou-lhe a minha palavra, Teresa, quando a vejo, quando você me fala, sinto-me calmo. Depois, não sei que sopro da primavera passa no inverno do meu pobre coração e tenho a impressão de que você é quem cria essa aragem de primavera em mim. É você,

Teresa, com esse seu culto por aquilo a que chama de ver­dadeiro amor! Seja como for, isto dá que pensar!...

— Creio que você está enganado. Nunca falo de amor...

— Sim, bem sei, você tem a esse respeito uma opinião formada. Leu algures que falar de amor era já amar ou ser amado... Mas o seu silêncio tem grande eloqüência, suas reticências são febris e sua excessiva prudência possui uma atração diabólica.

— Nesse caso — tornou Teresa, — não nos vejamos mais.

— Por quê? Que lhe pode interessar que tenha tido algumas noites de insônia, se somente você poderia tranquilizar-me e fazer-me como eu era dantes?

— Que é necessário fazer para reconquistar essa tran­qüilidade?

— É isso mesmo que eu lhe pedia: que me dissesse que pertence a alguém. Eu me daria por satisfeito e, como sou muito orgulhoso, ficaria curado como se me tocasse a varinha mágica de uma fada.

— E se eu lhe disser que não pertenço a ninguém, que não desejo amar a ninguém, isso não seria suficiente?

— Não! Eu teria a fatuidade de acreditar que você podia ter mudado de parecer...

Teresa riu de boa vontade.

— Bem, disse ela, sinta-se curado e restitua-me essa amizade que me envaidecia, em lugar de um amor do qual eu teria de envergonhar-me. Amo a alguém.

—i Isso não basta, Teresa! É preciso que me diga a quem ama!

— Você acredita que esse alguém seja você mesmo, não é verdade? Pois bem, tenho um companheiro. Está satis­feito, agora?

— Perfeitamente e beijo-lhe as mãos em sinal de reco­nhecimento pela sua franqueza. Seja boa, Teresa, e diga-me se é ou não Palmer?

— Isso é impossível; eu mentiria.

— Então..,

— Não é pessoa que você conheça. É um ausente...

— Que, todavia, por aqui aparece algumas vezes...

— Assim parece, pois você surpreendeu-me num desabafo.

— Obrigado, Teresa, obrigado. Agora fico inteiramente à vontade. Sinto-me firme na terra que calco aos pés. Sei quem você é, quem eu sou, e preciso dizer-lhe que gosto mais de você assim. Você' é mulher, não é mais uma esfinge. Por que não me disse isso há mais tempo?

— Então, sente-se assim dominado pela paixão? — per­guntou Teresa em tom escarninho.

— Talvez. Daqui a dez anos, eu lhe direi e então rire­mos os dois.

— Bem; está combinado. Boa-noite!

Lourenço deitou-se perfeitamente tranqüilo e desenganado. Desejara essa criatura com veemente paixão, sem se atrever a deixar que ela o percebesse. Não era seguramente uma boa paixão. Nela se misturavam a vaidade e a curiosidade.

Acordou calmo e triste. Lastimava a sua quimera, a sua bela esfinge, essa esfinge que lia em sua alma com atenção complacente, que o admirava, que o repreendia asperamente, encorajando-o e lastimando-o, ao mesmo tempo, sem jamais revelar qualquer coisa do seu destino, deixando-lhe apenas pressentir os tesouros de afeição, de devotamento e de amor. Era dessa forma que Lourenço gostava de interpretar o si­lêncio de Teresa e certo sorriso, semelhante ao da Gioconda, que lhe aflorava aos lábios, todas as vezes que blasfemava na sua presença. Nessas ocasiões, parece que ela lhe dizia: "Eu seria capaz de descrever o paraíso em comparação com este inferno mau, mas este pobre louco não me compreen­deria.:."

Revelado o mistério de seu coração, Teresa perdeu, ime­diatamente, o seu prestigio aos olhos de Lourenço. Era uma mulher como as outras. Ele sentia-se mesmo tentado a re­baixá-la na sua estima, e embora ela nunca se deixasse in­terrogar, desejaria acusá-la de hipócrita e afetada.

Essa situação durou uns três dias. Lourenço preparava diversos pretextos de desculpa, se por acaso Teresa lhe pedisse

contas de todo o tempo que esteve ausente. No quarto dia, sentiu-se dominado por uma depressão inexplicável. Em ne­nhum de seus amigos, ele encontrava aquela bondade, aquela paciência, aquela delicadeza com que Teresa costumava curá-lo desses aborrecimentos, procurando distraí-lo de .suas preocupa­ções, indagando da causa e do remédio do seu sofrimento — ocupando-se dele, numa palavra. Só ela sabia o que convinha dizer-lhe e parecia compreender que o destino de um artista como ele não era um caso de pouca importância, sobre o qual um espírito elevado tinha o direito de pronunciar-se. Se era infeliz, pior para ele...

Lourenço correu à casa de Teresa tão alvoroçadamente que se esqueceu do que desejava dizer-lhe como desculpa. Teresa não se mostrou descontente, nem surpreendida com o esquecimento do seu amigo e não lhe fez pergunta alguma, de maneira que evitou que ele lhe mentisse. Irritou-se com isso, observando que sentia, agora, mais ciúmes por ela do que antes.

— Certamente viu o companheiro — pensou, — para assim ter-se esquecido de mim...

Entretanto, não lhe revelou o seu despeito e controlou-se com mais cuidado, a fim de que Teresa se iludisse com a sua atitude.

Teresa percebera perfeitamente o amor daquele moço e não mais tinha qualquer dúvida a respeito. Amava-o since­ramente. Queria-lhe um bem enorme. Artista entusiasta, sob uma aparência calma e reflexiva, dedicava uma espécie de culto a esse gênio sofredor e transviado..,.

Se tivesse a certeza de não despertar nele qualquer desejo material, acariciá-lo-ia como filho. Em certos momentos, vi­nha-lhe mesmo à ponta dos lábios a tentação de tratá-lo por tu com todo o carinho. Existiria amor nesse sentimento maternal? Existia, certamente, sem que mesmo Teresa o sus­peitasse. Mas a mulher verdadeiramente casta, que tem vivido a maior parte do tempo trabalhando, sem deixar-se dominar pelas paixões, consegue guardar durante muito tempo em segredo um amor de que tomou a resolução de defender-se. Quando Lourenço encontrava a tranqüilidade e bem-estar a seu lado, ela achava, também, meio de atenuar-lhe os sofri­mentos, sentindo que ele seria incapaz de amar conforme ela entendia. Passada a crise, gabava-se de ter encontrado num inocente logro o meio de prevenir-se contra o seu estratagema.

Todos esses sofrimentos e perigos de um e outro eram ocultos e como que disfarçados sob hábitos de alegria trocista, que é o sinete indelével dos artistas franceses. É uma se­gunda natureza pela qual somos censurados pelos estrangeiros do Norte. É esse hábito, ou melhor, essa segunda natureza, entretanto, que torna encantadoras e delicadas as nossas rela­ções e nos defende, muitas vezes, contra muitas loucuras. Procurar o lado ridículo das coisas. Zombar dos perigos em que a alma se encontra empenhada é procurar afrontá-la, semelhante aos soldados que vão rindo e cantando para as linhas de fogo. Ridicularizar um amigo é muitas vezes sal­vá-lo de uma vileza em que nossa alma deveria comprazer-se. Finalmente, quando motejamos de nós mesmos, preservamo-nos de uma estulta embriaguez do exagerado amor-próprio.

Certa manhã, ficou concluído o retrato de Palmer e Teresa enviou da parte de seu amigo uma apreciável soma que o jovem artista prometeu deixar de lado para qualquer eventualidade, um caso de doença ou uma despesa obrigatória e imprevista.

Lourenço, ao pintar-lhe o retrato, ligara-se de amizade ao americano. Descobrira nele qualidades que, efetivamente, ele possuía: justo, correto, generoso, inteligente, instruído. Era um homem rico, cuja fortuna lhe adviera do comércio. Tinha viajado bastante, durante a sua juventude. Aos trinta anos, tivera o bom senso de, verificando ser bastante abonado, desejar viver por si próprio.

Palmer era um filósofo tolerante, de hábitos rígidos con­sigo mesmo, mas bastante compassivo e tolerante com os ou­tros. Pelas suas idéias, senão pelo seu caráter, assemelhava-se à Teresa e quase sempre estava de acordo com ela. Lourenço sentia-se um pouco enciumado com aquilo que Palmer chamava sua "imperturbável unidade de espírito" e como isso era, apenas, um ciúme intelectual, não gostava de queixar-se à Teresa. ...

— A sua definição não procede — dizia ela — acho Palmer muito calmo e perfeito para mim.

 

Certo dia, a pedido de Palmer, Lourenço foi ao Hotel Maurice, onde residia o americano, a fim de convencer-se de que o retrato estava convenientemente emoldurado e embalado. Fecharam o engradado e Palmer escreveu, a pincel, o endereço de sua mãe. Depois, quando conduziam a encomenda, Palmer apertou a mão do artista, dizendo-lhe:

— Devo-lhe o grande prazer que vai ter minha mãe. Agora, quer conversar um pouco? Queria dizer-lhe uma coisa.

Passaram para um salão, onde Lourenço viu muitas malas de viagem.

— Parto amanhã para a Itália — disse Palmer, ofere­cendo-lhe excelentes charutos e um pavio de estearina para acendê-los, embora ele não fumasse. Não quero ausentar-me sem falar-lhe de um assunto delicado, tão delicado mesmo que se me interromper eu não seria capaz de encontrar pa­lavras convenientes para dizê-las em francês.

— Prometo-lhe que ficarei mudo como um túmulo, — disse Lourenço, sorrindo, admirado e um tanto inquieto com aquelas palavras.

Palmer prosseguiu:

— Você gosta da senhorita Jacques e eu creio que ela também gosta de você. É possível que venha a ser o seu namorado. Você prometeu-me que não diria uma palavra. Não lhe estou pedindo ou perguntando coisa alguma. Creio que você merece a honra que lhe reconheço, mas penso que não conheça suficientemente a senhorita Teresa. É o que receio, em conseqüência de algumas perguntas que você me fez a respeito de Teresa e, também, em virtude de certos assuntos, que têm sido tratados diante de nós ambos, no que lhe diz respeito e em razão dos quais tenho reparado que você fica emocionado tanto ou mais do que eu. É a prova de ignorar muita coisa a .seu respeito. E eu, que sei de tudo, quero dizer-lhe para que a sua dedicação pela senhorita Jacques se baseie na estima e na confiança de que ela é mere­cedora.

— Um momento, Palmer — exclamou Lourenço que ardia de curiosidade, mas sentia-se dominado por um generoso escrúpulo: — É com permissão ou por ordem da senhorita Jacques que vai contar-me essas coisas a seu respeito?

— Nem uma, nem outra coisa, — replicou Palmer. Te­resa nunca lhe contará a sua vida.

— Então, não diga nada. Não desejo saber senão o que ela quiser que eu saiba.

— Muito bem! — tornou Palmer, apertando-lhe a mão, mas se aquilo que tenho a dizer-lhe a justifica de toda e qualquer suspeita?

— Então, qual o motivo pelo qual ela o oculta?

— Porque é generosa para com os outros.

— Nesse caso, o senhor pode falar, — disse Lourenço que não podia conter-se.

— Não direi nomes seja de quem for, — prosseguiu Palmer. — Dir-lhe-ei, apenas, o seguinte: numa grande cidade da França havia um rico banqueiro, que seduzira certa moça, bondosa e ingênua, preceptora de seu filho. Com ela, teve ele uma criança que nasceu há vinte e oito anos, no dia de São Tiago, e que, registrada no cartório da municipalidade, como filho de pais desconhecidos, recebeu como nome de fa­mília o prenome de Jacques. Esse filho... é Teresa!

A preceptora recebeu do referido banqueiro um dote e casou-se, cinco anos mais tarde, com um de seus auxiliares, homem honesto, que não desconfiava de coisa alguma. O acordo realizou-se sob o maior sigilo. A criança foi levada para o campo; o pai encarregou-se disso. Em seguida, entrou para um convento, onde lhe foi dada esmerada educação, sendo ali tratada com todo o cuidado e carinho. Nos primeiros tempos, sua mãe via freqüentemente a menina. Mas ao con­trair o casamento, o marido suspeitou de qualquer coisa. Pe­diu demissão do emprego que exercia em casa do banqueiro, indo com a esposa para a Bélgica, onde arranjou nova colo­cação e enriqueceu. A pobre da mãe teve que ocultar as lágrimas e obedecer a seu esposo. Essa mulher vive ainda, mas sempre longe de sua filha. Tem outros filhos, é de uma conduta irrepreensível desde que se casou com o funcionário do banco. Mas nunca se sentiu feliz. O marido tem-lhe muito amor e muito cuidado com ela, mas sem deixar de ser ciumento.

Tudo parecia indicar que o tempo chegasse a provocar a confissão da pobre criatura e o perdão da outra. Isso, em geral, acontece nos romances, mas nada existe de menos lógico do que a vida real. E assim esse lar continua a viver per­turbado, como no primeiro dia: — marido apaixonado, in­quieto, rude, e a esposa arrependida, porém, muda e sofredora.

Nas difíceis circunstâncias em que se encontrava, Teresa não pôde, portanto, contar com o apoio, com os conselhos e a consolação de sua mãe. Todavia, esta dedica-lhe entranhado amor, tanto mais profundo quanto sabe que ela é obrigada a vê-la, em segredo, às escondidas, quando vem sozinha a Paris, onde passa somente um ou dois dias, como aconteceu ultima­mente. Só passados alguns anos foi que ela conseguiu ar­quitetar alguns pretextos, obtendo do marido essas raras per­missões.

Teresa adora a sua mãe e jamais confessaria qualquer coisa que pudesse comprometê-la. É esse o motivo pelo qual você nunca ouviu da boca de Teresa qualquer palavra de censura às mulheres.

Agora, vou contar-lhe a história da condessa das ... três estrelinhas. Creio que é assim vocês dizem, quando não que­rem nomear as pessoas por seu nome. Essa condessa que não usa o seu título nem o nome de seu marido, é, também, Teresa.

— Então, ela é casada? Não é viúva?

— Calma! É casada e.... não é. Vai ver. Teresa tinha quinze anos quando seu pai, o tal banqueiro ficou viúvo e livre. Seus filhos legítimos estavam todos estabelecidos. Era • homem excelente e, apesar do erro de que lhe falei e que não desculpo, era impossível deixar de apreciar homem dotado de espírito e generosidade. Mantive com ele as melhores re­lações e foi ele quem me contou a história do nascimento de Teresa e, uma vez por outra, levava-me ao convento, onde a filha se achava internada. Era esta já a esse tempo uma bela menina, instruída, amável e cheia de sensibilidade. Creio que ele desejava que eu viesse a pedi-la em casamento. Mas, naquele tempo, o meu coração não estava livre... de outra maneira... Mas, assim, eu não podia pensar em tal coisa...

Então, ele pediu-me informações acerca de um moço de origem ibérica, de família nobre, que possuía grandes proprie­dades em Havana. Era um belo rapaz, que freqüentava a casa do banqueiro. Eu já encontrara esse moço em Paris, mas não o conhecia pessoalmente, e por isso, abstive-me de | formular opinião a seu respeito. Era um jovem sedutor, mas fosse pelo que fosse jamais me fiaria nele. Era o conde das três estrelinhas e com ele realizava-se um ano mais tarde o seu casamento com Teresa.

Nisto, tive eu de ir à Rússia. Quando regressei, o ban­queiro tinha falecido de uma apoplexia e Teresa estava casada com o referido moço, positivamente, um louco para não dizer um infame. Era já casado em Havana, quando teve a au­dácia de casar com Teresa.

Não me pergunte como foi que o pai de Teresa, homem de espírito e com grande experiência da vida, se deixou en­ganar assim, a pressa de vê-la casada facultou o equívoco. Confiou no Conde, que era uma pessoa polida.

Nos últimos anos de sua vida, o banqueiro tinha caído em novas leviandades, o que levava a crer que seu espírito já se achasse comprometido. Ele fizera um dote a Teresa, em vez de torná-la sua herdeira. Teresa não quis entrar em litígio, embora contasse com grandes probabilidades de êxito. Viu-se, pois, completamente arruinada, justamente no momento em que ia ser mãe. Nessa mesma época, chegava à sua casa certa mulher, exasperada, que reclamava os seus direitos e estava decidida a provocar um escândalo: era a primeira, a única esposa legítima de seu marido. Teresa demonstrou uma coragem não comum. Tranqüilizou a criatura e conseguiu dela a promessa de que não lhe moveria processo algum. Obteve do Conde o compromisso de que se uniria novamente à sua esposa legítima, regressando em sua companhia para a Europa.

Dadas as circunstâncias do nascimento de Teresa e do segredo que seu pai desejara envolver as testemunhas de sua paixão, o seu casamento realizara-se, também, no estrangeiro a portas fechadas e fora, também, no exterior que o jovem casal tinha vivido esse tempo. Essa sua vida tinha sido bas­tante misteriosa. O Conde, receoso de vir a ser desmascarado, se voltasse a aparecer na sociedade, fazia crer que Teresa tinha uma verdadeira paixão pelo isolamento e a jovem esposa, confiante e crédula, achava muito natural que seu marido via­jasse em sua companhia e sob nome suposto, a fim de passar despercebido.

Quando Teresa descobriu o horror de sua situação, foi fácil amortalhar tudo em silêncio. Consultou discretamente um advogado e tendo-se certificado de que o seu casamento era nulo, mas que seria preciso um processo de julgamento para rompê-lo, caso quisesse entrar na posse da sua plena liberdade, tomou naquele momento uma resolução inabalável: — a de não ser livre, nem casada, a fim de não macular o nome do pai de seu filho num escândalo e numa condenação infamante. A criança tornava-se, assim, e verdadeiramente, um filho natural. Mas seria muito melhor que não tivesse um nome e ignorasse para sempre as circunstâncias de seu nascimento a ter de reclamar um nome desonrando seu pai. Teresa gostava ainda, ao que parece, desse infame. Ela confessou-me que ainda o amava e ele tinha por essa mulher uma paixão estranha. Ocorreram lutas pungentes, cenas incríveis em que Teresa se debatia com energia superior à sua idade, muito acima da fragilidade do seu sexo. A mulher, quando é heróica, raras vezes o é pela metade...

Finalmente, saiu vitoriosa. Conservou o filho, expulsou o culpado, que partiu em companhia de sua rival, que, apesar de seus ciúmes, reconheceu a magnanimidade de Teresa, che­gando a beijar-lhe os pés, ao retirar-se com o marido.

Depois disso, Teresa mudou de país e de nome. Fez-se passar por viúva e resolveu esquecer as poucas pessoas que tinha conhecido, começando a viver para seu filho com ver­dadeiro entusiasmo. Era para ela tão querido esse menino que pensava consolar-se com ele de todos os seus sofrimentos.

Mas esta última felicidade não devia durar por muito tempo. Como o Conde possuía uma grande fortuna e não tinha filhos da primeira mulher, Teresa viu-se obrigada a aceitar, a pedido do próprio Conde, uma pensão razoável com a qual pudesse educar convenientemente o seu filho.

Mas logo que o conde reconduziu a esposa à cidade de Havana, abandonou-a de novo. Voltou à Europa e foi lan­çar-se aos pés de Teresa, suplicando-lhe que fugisse com ele e com o filho para outro extremo da terra. Teresa foi ine­xorável. Refletira muito e orara. Seu coração tinha endu­recido, após tanto sofrimento. Já não amava o Conde. Jus­tamente por causa do filho não queria absolutamente que aquele homem se tornasse o senhor de sua vida; perdera o direito de .ser feliz, mas não o de respeitar-se e ser respeitada. O Conde ameaçou deixá-la sem recursos. Respondeu que não tinha receio de trabalhar para viver. O miserável re­correu, então, a um meio infame. A fim de obrigá-la a ren­der-se e vingar-se de sua resistência, raptou a criança e desa­pareceu. Teresa tentou seguir o filho, mas ele tomou caminho incerto, de sorte que não conseguiu localizá-lo.

Foi nesse momento que a encontrei na Inglaterra, deses­perada e cansada, morando num albergue. Estava quase louco e tão devastada pela desgraça que me custou reconhecê-lo.

Consegui-lhe a promessa de descansar um pouco, deixando-me agir.

As minhas pesquisas foram de um êxito deplorável. O Conde embarcara para a América e a criança falecera, ao chegar, devido a excessos de fadiga.

Quando levei essa infausta notícia ao conhecimento de Teresa, fiquei espantado com a calma revelada pela infeliz. Durante oito dias, dir-se-ia que era mais pessoa morta do que viva. Finalmente, derramou abundantes lágrimas e veri­fiquei que estava salva. Vi-me obrigado a deixá-la. Disse-me ela que desejava fixar residência, onde se encontrava. Como eu me inquietasse a respeito dos seus meios de subsistência, ela enganou-me dizendo-me que sua mãe não lhe deixava faltar coisa alguma. Mais tarde, porém, vim a saber que sua mãe fora impedida de auxiliá-la, pois não dispunha de quais­quer recursos de suas economias domésticas, pois era obrigada a prestar contas de tudo quanto gastasse. Ela não ignorava, aliás, a desgraça de sua filha. Teresa escrevia-lhe em se­gredo, mas ocultava-lhe os seus sofrimentos para não lhe causar aflição.

Teresa vivia na Inglaterra, ganhando a sua vida dando lições de francês, desenho e música, pois era talentosa, possuía boa cultura e muita coragem para tirar proveito de seus conhe­cimentos, sem ver-se obrigada a recorrer à piedade alheia.

Ao fim de um ano, regressou à França, fixando resi­dência em Paris, cidade que até então lhe era estranha e onde não conhecia ninguém. A esse tempo, contava vinte anos, pois tinha-se casado aos dezesseis. A sua beleza não era tão fascinante como outrora e foram precisos oito anos de repouso e resignação para recuperar a sua saúde e a mansa alegria de antigamente. Durante todo esse tempo, via-a, ra­ramente, pois era obrigado a constantes viagens. Encontrei-a sempre altiva e digna, trabalhando com indefectível coragem e ocultando a sua pobreza sob um milagre de ordem e asseio, não se queixando nunca de Deus ou de pessoa alguma, não desejando, porém, falar do passado, acariciando algumas vezes as crianças, em segredo, deixando-as logo, quando alguém olhava para ela, receando, sem dúvida, que a vissem emo­cionada.

Há três anos que eu a não encontrava, e quando vim pedir-lhe que fizesse o meu retrato, procurava justamente endereço dela, quando você me falou a respeito de Teresa. Como havia chegado na véspera, ignorava ainda que ela con­seguira, finalmente, êxito artístico, o seu bem-estar, a cele­bridade. Ao encontrá-la assim, compreendi que essa bela alma, tão oprimida pelo sofrimento, podia ainda viver, amar, sofrer e ser feliz. Deve, portanto, fazer também o possível para que ela o seja, pois bem o conquistou. Se você está certo de que a não fará sofrer, prefira fazer saltar os miolos a ter de voltar esta noite à casa de Teresa. É o que desejava dizer-lhe.

— Um momento, — disse Lourenço, vivamente comovido — vive ainda esse conde das três estrelinhas?

— Infelizmente, ainda vive.

Lourenço, ao ouvir esta narração de Palmer, pensara casar com Teresa. A declaração comovera-o. As inflexões monótonas e algumas bizarras transposições de Palmer, que fora inútil reproduzir, haviam dado à viva imaginação do ouvinte estranha e terrível sensação. Tão estranha e terrível como o destino de Teresa. Essa filha sem pai, essa mãe sem filho, essa mulher sem marido não estaria sujeita a uma des­graça excepcional? Que tristes idéias não devia ela ter guar­dado do amor e da vida. A esfinge reaparecia diante dos olhos deslumbrados de Lourenço. Agora, Teresa parecia-lhe mais misteriosa do que nunca. Ter-se-ia ela consolado para sempre de tantos desenganos ou teria ao menos sentido um instante de consolo?

Lourenço abraçou, efusivamente, Palmer, dizendo-lhe sob juramento que amava Teresa e se fosse amado por ela, recordar-se-ia, em todas as horas de sua vida daquela hora que vinha de escoar-se no tempo e da revelação que acabava de ouvir. Depois, prometendo a Palmer que não daria a entender que conhecia a história da senhorita Jacques, voltou para casa e escreveu-lhe:

 

"Teresa,

Não acredite numa só das palavras que lhe tenho dito nestes últimos meses. Não creia no que lhe disse, quando você teve receio de ver-me apaixonado. Não estou apaixo­nado. Amo-a, loucamente, perdidamente. B absurdo, ê in­sensato, é miserável. Mas eu que não acreditava poder ou jamais escrever a uma mulher as palavras "eu a amo", acho agora estas palavras frias e "moderadas demais para explicar o que existe entre nós. Não posso viver mais com este se­gredo que me sufoca e que você não quer adivinhar. Tenho tentado deixá-la cem vezes e fugir para o fim do mundo, para poder esquecê-la. Ao cabo de uma hora, porém, estou novamente à sua porta e, muitas vezes, à noite, devorado pelo ciúme, quase furioso contra mim mesmo, peço a Deus que me cure deste meu mal. Mostre-me esse homem nos seus braços, Teresa, o seu namorado, ou então goste de mim. Alem desta solução, não encontro senão uma terceira — a de que me mate para acabar com isto. Ê covarde e estúpida esta ameaça banal.

Teresa, não creia que eu seja um corrupto! Você sabe, perfeitamente, que no fundo da minh'alma não se encontra lama. Do abismo a que me havia atirado contra a minha vontade, sempre tenho invocado o céu. A seu lado, sinto-me casto semelhante a uma criança e, algumas vezes, você não receou pegar em suas mãos minha cabeça, como se fosse beijar-me na fronte. E você dizia: "Cabeça má; o que merecia era apanhar um pouco!" E, entretanto, em vez de bater-me, você esforçava-se para que nela penetrasse o sopro puro e ardente do seu espírito. Pois bem; você não teve muito êxito. E agora, que acendeu o fogo sagrado sobre o altar, volta-se e diz: "Confie a guarda deste fogo sagrado a outra! Case-se, ame uma bela moça, que lhe seja bem dedicada. Tenha filhos, ambição por causa deles, ordem, felicidade do­méstica, sei lá o quê? Tudo, exceto a fuinha pessoa!"

Eu, Teresa, sinto que ê a você que amo apaixonadamente e não a mim mesmo. Desde que a conheço, você tem-me feito acreditar na felicidade. Não pergunto a mim mesmo se o seu amor será a felicidade para mim. Sei, apenas, que ele será a minha vida e que, boa ou má, ê essa vida ou essa morte a única coisa que preciso," Lourenço

 

Teresa sentiu-se profundamente abalada com esta carta que a feriu semelhante a um raio. A palavra paixão causa­va-lhe revolta.

— Paixões para mim! — dizia ela a si própria. — Então, ele acredita que eu não sei o que venha a ser isso e que vou voltar a essa beberagem envenenada! Que fiz eu que lhe tenho dado tanta ternura e tantos desvelos para que me pro­ponha, à guisa de agradecimento, o desespero, a febre e a morte?...

Mas, apesar de tudo — pensava, — esse infeliz não tem culpa. Não sabe o que quer, nem o que deseja. Como farei para acalmá-lo e desviá-lo de uma fantasia que o torna infeliz? A culpa é minha, ele tem razão em dizê-lo. Desejando afas­tá-lo da libertinagem e da licenciosidade, habituei-o a uma dedicação honesta. Mas ele é homem e julga incompleta a nossa amizade. Por que me enganou? Por que me declarou que se sentia tranqüilo a meu lado? Que devia eu fazer para reparar a loucura da minha inexperiência? Não tenho sido bastante fiel ao meu sexo no sentido da persuasão. Não tenho procurado compreender que a mulher por mais enfastiada que esteja da vida é sempre capaz de perturbar o cérebro de um homem...

Sozinha no seu estúdio, ia e vinha, dominada por um mal doloroso, olhando ora para a carta fatal, que deixara sobre a mesa, como se não soubesse o que fazer dela, sem se decidir a reabri-la ou destruí-la, ora a olhar para o seu trabalho inter­rompido no cavalete. Ela trabalhava justamente com entu­siasmo e prazer no momento em que lhe haviam entregue aquela carta, que trazia sua dúvida, sua desordem e seus temores. Era semelhante à miragem que fizesse ressurgir no horizonte tranqüilo e nu, todos os espectros de suas antigas desgraças. Cada palavra escrita naquela folha de papel era semelhante a um grito de morte, ouvido no passado, como profecia de novas desventuras.

Teresa procurou recuperar a serenidade, voltando a pin­tar. Era o grande remédio contra todas as agitações da sua vida, mas, naquele dia, o remédio não surtiu o mínimo efeito. O medo que essa paixão lhe inspirava atingia no mais puro e mais íntimo santuário de sua vida. — "Duas felicidades perturbadas ou destruídas" — dizia ela, pondo de lado os pincéis e olhando para a carta — "o trabalho e a amizade".

O resto do dia passou-se sem ela resolver coisa alguma. No seu espírito, havia, apenas, um ponto claro: — a resolução de dizer não. Mas queria que fosse um não de verdade e não queria dizê-lo depressa, com essa rudeza assustadiça das mulheres. A maneira de proferir esse não sem apelo que não devia deixar lugar para qualquer sentimento, nem para espe­ranças, era para Teresa um problema difícil e cheio de amar­gura. Aquela recordação era o seu próprio amor. Quando há um morto querido a enterrar ninguém se decide a deitar um pano branco sobre o seu rosto, atirando-o em seguida à fossa comum. Desejar-se-ia, preferentemente, embalsamar o corpo do morto querido num túmulo previamente preparado, onde pudesse ser visto de tempos a tempos e diante do qual fosse fácil orar pela sua alma.

Chegou a noite sem Teresa haver encontrado um expe­diente para recusar-se e não o fazer sofrer muito. Catarina, que a viu jantar sem vontade, perguntou-lhe, bastante inquieta, se estava doente.

— Não! — respondeu Teresa. Apenas, preocupada.

— A senhora trabalha muito, — tornou a boa velha, — nem pensa em viver.

Teresa ergueu um dedo no ar. Era o gesto, cuja signi­ficação Catarina conhecia e queria dizer: "Não tratemos de tal assunto".

A hora em que Teresa recebia o seu pequeno número de pessoas amigas, havia algum tempo somente era aproveitada por Lourenço. Embora a porta se mantivesse aberta para quem desejasse entrar, Lourenço vinha sozinho, ou fosse porque os outros estivessem ausentes (era a época de ir ou ficar no campo), ou fosse tivessem sentido em Teresa certa preocupação, um involuntário desejo mal dissimulado de conversar exclusi­vamente com Lourenço.

Lourenço chegava às oito horas. Teresa olhou para o relógio, dizendo de si para consigo:

— Não dei resposta. Hoje, certamente, ele não virá. Sentiu no coração um grande vácuo e refletiu:

— Não convém mesmo que ele volte aqui.

Como passar essa longa noite que ela costumava preencher a conversar com seu jovem amigo, realizando alguns esboços ou qualquer trabalho feminino, enquanto ele fumava, estendido indolentemente nas almofadas do diva? Pensou fugir ao tédio, fazendo uma visita a sua amiga que morava no bairro de Saint-Germain, em companhia da qual ia, às vezes, ao teatro. Mas essa amiga recolhia-se cedo ao leito e decerto já seria tarde, quando Teresa chegasse à sua casa. O percurso a seguir era longo e as carruagens andavam a passo lento. Além disso, era preciso vestir-se e Teresa, que estava de chinelas, como em geral os artistas que trabalham com afinco e não suportam coisa que os moleste, tinha preguiça de fazer quaisquer pre­parativos para uma visita. Atirar aos ombros um xale e mandar a carruagem de aluguel seguir pelas aléias desertas do Bosque de Bolonha?

Teresa tinha ali passeado, assim, em companhia de Lou­renço, quando, nas tardes de calor, sentia necessidade de ar fresco sob as árvores do grande parque parisiense. Para qualquer outra pessoa, tais passeios redundariam num compromisso, mas Lourenço guardava religiosamente o segredo de sua con­fiança. E os dois compraziam-se na excentricidade dessas misteriosas entrevistas, como de qualquer coisa que ficasse já longe no passado e num suspiro disse a si mesma que jamais elas se repetiriam:

— Foi nos bons tempos! Nada disso poderia recomeçar para ele que sofre, nem para mim que presentemente o não ignoro...

Eram nove horas, quando, finalmente, se dispunha a dar uma resposta a Lourenço. Nesse instante, o som da campainha a fez estremecer. Era ele! Teresa levantou-se para dizer a Catarina que dissesse que ela havia saído.

Era, apenas, outra carta de Lourenço... Teresa lastimou interiormente que não tivesse sido ele. Essa carta con­tinha apenas as seguintes palavras:

"Adeus, Teresa! Você não me ama e eu amo a você como uma criança!"

Estas duas linhas fizeram-na estremecer da cabeça aos pés. A única paixão que ela jamais procurara extinguir em seu peito era o amor materno. Essa chaga, aparentemente fechada, sangrava sempre como um amor que não foi saciado.

— Como uma criança! — repetiu Teresa, apertando entre as mãos convulsas, com um arrepio estranho o bilhete de Lou­renço. Ele ama-me semelhante a uma criança! Saberá o mal que assim me fez, recordando-me? Adeus! Meu filho, tam­bém, já sabia dizer adeus, mas não me disse quando o leva­ram. Eu o teria ouvido e agora nunca mais o tornarei a ouvir...

Estava excitadíssima e desatou num choro convulso.

— A senhora chamou-me? — perguntou-lhe Catarina, entrando na sala. — Mas, meu Deus, que é que a- senhora tem? Agora está chorando como dantes!...

— Nada, nada, deixe-me... — respondeu Teresa. — Se alguém vier visitar-me diga que fui ao teatro. Quero ficar sozinha. Sinto-me doente,

Catarina saiu e foi para o jardim. Tinha visto passar Lourenço a passos furtivos, ao longo da sebe.

— Não fique assim com essa cara aborrecida — disse Catarina ao jovem. Não sei porque é que a patroa está chorando, mas deve ser por culpa sua. O senhor é quem a faz sofrer. Ela não quer vê-lo. Venha daí pedir-lhe perdão!

— Ela está chorando? — perguntou o moço. Por que será?

E de um pulo atravessou o pequeno jardim, indo cair de joelhos aos pés de Teresa, que estava soluçando no salão nobre, a cabeça entre as mãos.

Lourenço teria ficado louco de alegria ao contemplá-la na­quela posição, se realmente fosse o libertino que, por vezes, parecia desejar ser. Mas, no fundo do coração era profunda­mente bondoso. Teresa possuía sobre ele a secreta influência de fazê-lo voltar à sua natureza verdadeira. As suas lágrimas produziram-lhe uma dor real e profunda. Lourenço supli­cou-lhe que esquecesse mais essa loucura sua e dominasse a crise com a doçura de seu raciocínio.

— Só desejo o que você deseja, — disse Lourenço e, visto que você chora a nossa amizade morta, juro-lhe que a farei renascer, sem lhe causar qualquer desgosto. Mas, veja, minha boa e doce Teresa, irmã querida: sejamos francos; não mais me sinto com força para enganá-la. Tenha a bondade de aceitar o meu amor como triste descoberta que tenha feito e como um mal de que queira curar-me pela sua paciência e bondade. Para consegui-lo, envidarei todos os meus esforços, dou-lhe a minha palavra. Seja para mim como uma irmã de caridade que não se limita a tratar de uma ferida, mas se esforça igualmente por reconciliar uma alma com o céu. Teresa, não retire as suas mãos cheias de lealdade, não desvie a cabeça, tão bela na sua dor. Não me levantarei de seus pés sem que você haja permitido ou ao menos perdoado o ser tão amada por mim.

Teresa devia aceitar a sinceridade destas palavras, porque Lourenço estava de boa-fé. Repeli-lo seria antes uma confis­são da viva ternura que por ele sentia. Mostrou-se corajosa e talvez, o fosse, sinceramente, porque ainda se acreditava forte. Romper naquele momento teria sido provocar reações terríveis, emoções que seria melhor acalmar. Isso poderia levar ainda alguns dias.

Acalmaram-se, pois, um e outro, auxiliando-se mutuamente a esquecer o temporal que desabara. Esforçaram-se até para rirem dele, para poderem tranqüilizar-se a respeito do futuro. Como quer que fosse, porém, a sua situação estava essencial­mente mudada e a intimidade havia dado um passo de gigante. O receio de perder-se fez que um se aproximasse do outro e jurando que nada havia mudado entre eles quanto à amizade, transparecia em todas as suas palavras e em todas as suas idéias uma espécie de cansaço que era já o abandono do amor.

Catarina, ao trazer o chá, acabou de aproximá-los ainda mais por suas ingênuas e maternais preocupações.

— Seria muito melhor — disse à Teresa — que a senhora comesse uma asa de frango* do que engolir num estômago vazio este simples chá. O senhor sabe, senhor Lourenço, que a patroa não chegou a comer quase nada, no jantar? — terminou ela, dirigindo-se a Lourenço.

 

* Quase todos os escritos em torno de George Sand (Amandine Aurore Lucie Dupin, baronesa de Dudevant), a imortal autora destas admiráveis páginas, se referem à predileção dela pelas asas de frango, como elegante motivo de uma alimentação descuidada, que levou Frederico Chopin, um dos gênios da música universal, seu companheiro e noivo, a um estado de tuberculose que acabou por matá-lo em plena mocidade. A sugestão de Catarina comprova o que estamos dizendo. Julgavam autores e personagens daquele tempo (como muitas pessoas, ainda hoje, julgam) que asas de frango fossem alimento especial e completo, quando não passam de apetitosos motivos de elegância ali­mentar, sem dar ao organismo os elementos indispensáveis a uma saúde normal, como os hidratos de carbono (massas, pão, batatas, macarrão, doces, arroz etc.), proteínas (carne, peixe, fígado, miúdos, queijo, leite, ovos etc.), gorduras (banha, manteiga, toucinho, azeite, óleos etc.) e vitaminas (complexos), encontradas nas frutas de estação e nas verduras cruas. Essa alimentação variada dá ao nosso orga­nismo o suficiente para alcançarmos, em média, aquelas imprescindíveis calorias diárias (2.500 a 3.000). O frango tem um teor muito baixo de proteína em virtude de ser alimento muito rico em água, mais ou menos 65 por cento. (Nota do "Clube do Livro").

 

— Pois bem, nesse caso, vamos cear depressa! Não diga que não, Teresa. Você deve alimentar-se. Que seria de mim se você ficasse doente?

E como Teresa recusasse, porque efetivamente não tinha fome, ele reclamou, a um sinal de Catarina para que insistisse, dizendo que ele mesmo estava com fome, o que era verdade, porque, efetivamente, não tinha jantado.

Como Teresa lhe oferecesse o jantar, comeram ambos, pela primeira vez, o que na vida solitária e modesta de Teresa não era um fato sem importância. Comer em comum, à mesma mesa, é uma fonte de intimidade e num sentido mais elevado, como a própria palavra indica, uma verdadeira comunhão.

Lourenço comparou-se, imediatamente, ao filho pródigo, sorrindo, para quem Catarina se dera pressa em matar o novilho gordo. E esse novilho gordo, que revestira a forma de um frango, emprestou muita alegria aos dois convivas.

Mas aquilo era muito pouco para o apetite do rapaz, tanto que Teresa ficou preocupada. O bairro não oferecia nenhum recurso e Lourenço não quis que Catarina se incomodasse com eles. Depois de demorada procura, descobriu-se no fundo de um armário um pote de geléia, presente de Palmer. Teresa não reparara ainda no presente. Lourenço evocou logo a recor­dação do excelente Dick, pessoa de quem tivera a tolice de ter ciúmes e a quem estimava agora de todo o coração.

No dia seguinte, Lourenço enviou-lhe flores magníficas, acompanhadas de um bilhete, cheio de ternura, doce e respei­toso, que a deixou comovida. Considerava-se o mais feliz dos homens. Não desejava outra coisa além do seu perdão. Acei­tava todas as privações, todos os rigores, desde que não lhe fosse proibido ver e ouvir a sua amiguinha. Ele sabia muito bem que Teresa não lhe podia oferecer o seu amor, o que não o impedia de dizer logo em seguida: "Não é indissolúvel o nosso santo amor?"...

Nada é mais perigoso como essa intimidade em que faze­mos a promessa de não nos atacar, mutuamente, quando uma das partes não inspira à outra qualquer repulsa física.

 

Após dolorosa meditação, Teresa disse a Lourenço:

— Desejo aquilo que você deseja, pois chegamos ao ponto em que o erro a cometer consiste na reparação de uma série de erros cometidos. Tenho sido culpada em relação à sua pes­soa, por não ter tido a prudência egoísta de fugir de você. ]y[as é muito melhor que eu seja culpada, permanecendo sua companheira, à custa do meu descanso de espírito e do meu orgulho.

Escute — continuou, segurando entre as suas mãos a mão de Lourenço com toda a força — não retire nunca esta mão e aconteça o que acontecer seja bastante honrado e firme para não se esquecer de que antes de ser sua namorada, tenho sido sua amiga verdadeira. Desde o primeiro dia de sua paixão, tenho repetido isto à minha alma. Se tiver de sofrer, devido ao seu caráter ou ao seu passado, que seja... Sentir-me-ei recom­pensada se o livrar do suicídio que você estava prestes a reali­zar, quando o conheci. E se o não fizer, pelo menos eu terei me esforçado nesse sentido e Deus me perdoará uma abnegação inútil, pois sabe que é sincera esta oferenda.

Lourenço sentira-se cheio de entusiasmo, reconhecimento e fé, nos primeiros dias desta união. Elevara-se acima das suas forças, tinha arroubos religiosos, bendizia sua querida ami­guinha por haver-lhe dado, finalmente, a oportunidade de conhe­cer o verdadeiro amor, casto e nobre, amor com que ele sonhara tanto e do qual se julgara para sempre deserdado, aliás por culpa exclusivamente sua.

Teresa acreditou, firmemente, em tudo isso e entregou-se à alegria de haver dado toda essa felicidade e restituído toda essa grandeza a uma alma privilegiada. Esqueceu todas as suas apreensões, considerando-as sonhos vãos, levados a sério. Um e outro escarneceram de tais sonhos.

Teresa rejuvenescera uns dez anos. Agora, parecia uma criança, mais ainda do que o próprio Lourenço. Não sabia o

que imaginar para tornar-lhe a vida de tal forma que ele não sentisse sequer o vinco de uma folha de rosa.

Pobre Teresa! A sua embriaguez não durou sequer oito dias completos. O sétimo dia da sua felicidade foi, irrevo-gàvelmente, o derradeiro. Circunstâncias fortuitas tinham concorrido para prolongar essa eternidade de alegrias, que durou uma semana. Durante esse tempo, nenhum dos amigos íntimos de Teresa fora visitá-la e ela não tivera nenhum tra­balho urgente.

Lourenço prometia voltar ao trabalho desde que lhe fosse possível retomar a posse do seu estúdio, onde os operários procediam a certas reparações. Como o calor estava excessivo, ele propôs a Teresa passarem oito dias no campo, em pleno bosque. Era o sétimo dia. Viajaram e chegaram à noite num hotel, de onde saíram, após o jantar, e encaminharam-se à flo­resta, num passeio agradável. A noite estava magnífica, com um luar esplêndido. Tinham alugado cavalos e um guia, porém, este logo os aborreceu com seu pretensioso palavreado. Percorreram umas duas léguas e encontravam-se ao pé de um grupo de rochedos conhecidos de Lourenço. Este propôs que despedissem o guia, regressando ambos a pé, embora fosse já bastante tarde.

— Não sei porque não passamos a noite aqui na flo­resta, — disse Teresa. Não há lobos, nem ladrões. Descan­semos aqui enquanto você quiser e se preferir não voltemos mais, se for de seu agrado.

Ficaram sós e ocorreu um fato bizarro, quase fantástico. Tinham subido ao cume de um rochedo, onde se sentaram no musgo espesso e seco. Lourenço contemplava o céu ad­mirável, onde a lua amortecia a claridade das estrelas. So­mente duas ou três de primeira grandeza brilhavam ainda acima do horizonte. Deitado de costas, Lourenço contemplava, maravilhado, o firmamento.

— Desejaria saber o nome da estrela que está quase por cima da minha cabeça e que parece olhar para mim.

— Chama-se Vega! — respondeu Teresa.

— Então, você é assim tão sábia que conhece o nome de todas as estrelas?

— Quase. Não é difícil e num quarto de hora você saberá tanto como eu. Quando quiser aprender...

— Não, obrigado. Prefiro ignorar os seus nomes, para nomeá-los conforme me der na fantasia.

— Tem razão.

— Prefiro passear ao acaso sobre essas linhas traçadas no alto e fazer combinações de grupos, de acordo com a minha imaginação, a caminhar pela vontade dos outros. É possível, todavia, que esteja errado. Você gosta dos caminhos abertos e amplos, não é verdade?

— Anda-se melhor, porque são melhores para os pés. Eu não possuo como você botas de sete léguas... Não te­nho asas para voar...

— Veja se arranja asas para levar-me até lá. Mas não falemos em separar-nos. Essa palavra seria capaz de fazer chover...

— Quem pensa nisso? Não repita essa palavra terrível.

— Não, não pensemos nisso, — exclamou Lourenço, levantando-se bruscamente.

— Aonde vai? — perguntou Teresa.

— Não sei — respondeu ele. — Ah! Sim, a propósito... Existe por estas bandas um eco extraordinário. A primeira vez que vim aqui com... Você, certamente, não deseja saber como se chamava a moça, não é verdade? Senti o mais vivo prazer ao ouvi-la daqui, enquanto ela cantava lá em baixo, na colina que nos fica defronte.

Teresa não disse palavra. Sentiu que essa recordação de uma das suas más companhias não devia ser revelada nessa contingência romântica.

Lourenço perguntou-lhe se queria também cantar para ele.

— Não posso — respondeu, docemente, a companheira. — Há muito que não montava a cavalo; agora, sinto-me um pouco fatigada.

— Se não está cansada demais, Teresa, faça um pequeno esforço. Dar-me-ia tanto prazer.

Teresa era orgulhosa demais para demonstrar ciúmes. Mas sentia um certo pesar. Voltou-se e fingiu que estava tossindo.

— Vamos — disse Lourenço, sorrindo, — você é mulher fraca. E uma vez que não acredita no meu eco, quero que ao menos escute o meu. Fique aqui, enquanto eu subo acolá. Espero que não terá medo de ficar só durante cinco minutos.

— Não! — tornou Teresa em tom frio. Absolutamente, não tenho medo.

Para subir até ao alto rochedo, era preciso descer um pequeno barranco, que o separava do lugar onde se encon­trava. Mas esse barranco era mais fundo do que parecia.

Quando Lourenço, depois de ter descido até ao meio, viu quanto restava ainda para chegar ao ponto indicado, parou, receando deixar Teresa sozinha durante muito tempo. Gritando por ela, perguntou-lhe se o não havia chamado.

— Não, absolutamente! — gritou ela, por sua vez, desejosa de não contrariá-lo.

É impossível explicar o que se passou então no cérebro de Lourenço. Tomou essas palavras por uma expressão dura e começou a descer agora devagar e distraído.

Teresa acompanhou com o olhar o vulto de Lourenço, que ia pelo declive do rochedo, até ele se perder entre as sombras espessas do barranco. Agora, já o não via e admirava-se do tempo que lhe seria preciso para voltar a aparecer sobre a vertente do outro montículo. Sentiu-se dominada por uma forte apreensão. Podia ser que Lourenço houvesse caído nalgum precipício. Os seus olhos interrogavam a profundida­de do terreno, eriçado de grandes rochas sombrias. Ia erguer-se e gritar por ele, quando um grito de inexprimível angústia subiu do vale até seu ouvidos, — grito rouco, medroso, de­sesperado que lhe causou arrepios, fazendo-lhe eriçarem os cabelos.

Então, atirou-se como uma flecha na direção da voz angustiosa. Tratava-se de um rápido declive sobre o qual escorregou diversas vezes, por cima do musgo, rasgando o vestido nos espinhos. Chegou sem saber como até onde estava Lourenço. Encontrou-o de pé, desvairado, e agitado por um tremor convulso.

— Ah! fez bem em vir! Julguei que morreria aqui so­zinho!... E acrescentou em voz rouca e brusca:

— Vamo-nos embora daqui!

Conduziu Teresa pelo caminho, seguindo ao acaso, mal podendo compreender o que lhe havia sucedido. Finalmente, ao cabo de um quarto de hora, acalmou-se e sentou-se numa clareira. Não sabiam onde se encontravam. O chão estava semeado de pequenos rochedos chatos, semelhantes a pedras tumulares. Entre elas, brotavam aqui, acolá, pequenos zimbros que podiam tomar-se à noite por ciprestes.

— Meu Deus! — disse Lourenço, subitamente, — será que estamos num cemitério. Porque me trouxe aqui?

— Isto é apenas um lugar inculto, no meio do bosque — respondeu ela. Já temos atravessado à noite lugares se­melhantes a este. Voltemos para a sombra das grandes ár­vores.

— Não, deixemo-nos ficar aqui — respondeu Lourenço. Já que o destino me lança nestas idéias de morte, tanto faz combatê-las como esgotar todo o seu horror. Tudo quanto abala fortemente a imaginação é um prazer. Quando uma cabeça rola no cadafalso, a multidão vai contemplá-la e acha tudo natural. Não são, apenas, as emoções suaves que nos fazem viver; precisamos, também, das emoções fortes, que nos fazem sentir a intensidade da vida.

Ficou assim falando ao acaso, durante alguns instantes, sem que Teresa se atrevesse a interrompê-lo, esforçando-se embora por distraí-lo.

Ela percebia, perfeitamente, que ele acabava de sofrer um acesso de delírio. Lourenço tivera uma alucinação. Dei­tado sobre a erva do barranco, seu cérebro fora vítima de forte tontura. Tinha ouvido o eco sozinho e esse canto era uma canção obscena. Depois, ao procurar erguer-se, apoiando-se nas mãos, a fim de observar o fenômeno, viu passar ao lado, no mato, um homem a correr, muito pálido, com as roupas dilaceradas e os cabelos em desalinho.

— Vi-o, perfeitamente, — explicou Lourenço — e tive tempo para raciocinar e ver que se tratava de um passeante atrasado, surpreendido e perseguido por ladrões. Cheguei a procurar a minha bengala para socorrer o pobre do homem, mas a bengala tinha-se perdido entre as ervas e o homem avançava sempre em direção ao lugar, onde eu me encontrava. Quando se aproximou, vi que era um bêbado e não estava sendo perseguido. Passou perto de mim, lançando-me um olhar estúpido, feio, fazendo uma careta de ódio e desprezo. Então, tive medo, escondi o rosto no chão, porque vi que esse homem... era eu mesmo... Sim, era o meu espectro, Teresa! Não fique assim assustada. Era eu mesmo, com vinte anos mais, as feições cavadas pela orgia ou pela doença, a boca embrutecida. Então, disse a mim mesmo: Oh! meu Deus! será então assim que ficarei quando tiver mais idade?... Esta noite tive péssimas recordações, que revelei em pa­lavras, embora contra a minha vontade. Será possível que carregue sempre dentro em mim esse velho de que acredi­tava já achar-me livre? O estro da libertinagem não quer largar-me e vem sempre ridicularizar-me e gritar: "É tarde demais!"...

Então, ergui-me para ir ao seu encontro, Teresa. Que­ria pedir-lhe perdão das minhas torpezas, suplicando-lhe que me acudisse. Mas não sei durante quantos minutos ou sé­culos fiquei voltado para mim mesmo, sem poder avançar, se você não tivesse, afinal, aparecido. Reconheci-a, imediata­mente, e não tive medo de você, Teresa. Senti-me logo liberto da minha obsessão.

Era difícil saber, quando Lourenço falava dessa maneira, se contava alguma proeza ou se realmente havia surgido no seu cérebro uma alegria fruto de suas amargas reflexões, se uma imagem entrevista num sonho de quem está estremunhado. Jurou, todavia, que não sonhara na relva, que não adormecera na relva e tinha noção exata do lugar em que se encontrava e do tempo que se ia passando, o que era aliás muito difícil de verificar-se. Teresa perdera-o de vista e para ela o tempo parecera-lhe naturalmente longo. Pergun­tou-lhe se estava sujeito a tais alucinações.

— Sim, — respondeu Lourenço, — na embriaguez. Mas há quinze dias não tenho sentido outra embriaguez senão a que deriva da sua presença. Desde que você me pertence, não me embriago senão com o seu amor...

— Quinze dias! — exclamou Teresa, admirada.

— Não, — corrigiu o rapaz, — menos que isso. Você está vendo que não estou ainda bom da cabeça... Caminhe­mos; isso me fará bem.

— Mas, você, precisa de repouso. Seria melhor que pen­sássemos em regressar ao hotel.

— Muito bem; então, que fazemos?

— Estamos seguindo direção oposta, voltando as costas ao nosso ponto de partida.

— Quer que passe novamente por esse maldito rochedo?

— Não; tomemos à direita.

— É exatamente ao contrário.

Teresa insistiu. Lourenço não quis desistir e chegou até a ficar zangado, falando em tom irritado, como se estivesse discutindo.

Teresa cedeu e acompanhou-o aonde ele queria ir.

Sentia-se esmagada de emoção e tristeza. Lourenço aca­bara de falar-lhe num tom que ela jamais falaria ao dirigir-se a Catarina, mesmo quando a boa velha lhe causasse certa impaciência. Perdoava, porém, a Lourenço, porque com­preendia que ele estava doente. Mas esse estado de excitação dolorosa em que ele se encontrava não deixava de causar-lhe tanto maior inquietação...

Devido à obstinação de Lourenço, perderam-se na floresta, caminhando durante quatro horas e regressando somente ao romper do dia.

A marcha na areia fina foi penosa e muito lenta. Te­resa mal podia arrastar-se. Lourenço que se sentia reanimado com o violento exercício, não pensava em moderar os seus passos. Caminhava sempre na frente, afirmando que desco­brira o bom caminho. Perguntando-lhe, de vez em quando, se sentia cansada, não previa que ao responder-lhe negativa­mente, ela desejava poupar-lhe o desgosto de ser causa do seu aborrecimento.

No dia seguinte, Lourenço não se lembrava já do incidente. Todavia, essa estranha crise abalara-o fortemente. Mas é próprio dos temperamentos nervosos refazerem-se rapidamente dos seus excessos. Teresa chegou até a observar que, no dia seguinte a essas terríveis experiências, era ela que estava fatigada, enquanto ele parecia revigorado.

Teresa não dormira, preocupada, esperando vê-lo acome­tido por qualquer grave sintoma. Mas, Lourenço, depois de ter tomado um banho, sentiu-se logo bem disposto, pronto para recomeçar o passeio da véspera.

A triste impressão deliu-se rapidamente do espírito de Teresa. Regressando a Paris, pensou mesmo que nada hou­vesse mudado entre ambos. Mas, naquela noite, Lourenço teve o capricho de fazer a caricatura de Teresa ao lado da sua, ambos errantes sob o luar, pela floresta, ele com ar assustado e distraído, ela com o vestido rasgado pelos espi­nhos, o corpo consumido de fadiga. Os artistas estão muito acostumados a verem-se caricaturados uns pelos outros; Te­resa não se ofendeu vendo a sua. Mas, embora tivesse tanta facilidade e espírito na ponta do seu lápis, por coisa alguma deste mundo desejaria fazer a caricatura de Lourenço, mas sentiu-se bastante aborrecida quando o viu esboçar em forma caricatural aquela cena noturna, que lhe torturara a alma. Parecia-lhe que certas dores espirituais não podem, nunca apresentar-se com um sentido ridículo.

Lourenço, em vez de assim o compreender, realizou o trabalho ainda com maior ironia. E escreveu por baixo do desenho: "Perdido na floresta" e por baixo da imagem de Teresa: "O coração tão dilacerado como o vestido". À composição deu o título: "Lua-de-mel num cemitério".

Teresa esforçou-se por sorrir. Gabou o desenho que revelava a mão de artista consumado e não fez reflexão ne­nhuma a respeito do assunto. Teresa fez mal. Teria agido melhor se exigisse de Lourenço que não desbaratasse a sua alegria ao acaso.

Tendo sido advertida por dois ou três fatos daquela na­tureza, Teresa perguntou a si própria se a vida doce e metódica que desejava dar ao seu amigo seria, realmente, a medida higiênica, que convinha a essa organização excep­cional.

Tinha-lhe dito:

— Você há de aborrecer-se, às vezes, mas o tédio funda-se no desvario. E quando a saúde se restabelecer, você se divertirá aos poucos e conhecerá a verdadeira alegria.

As coisas corriam, porém, em sentido contrário. Lou­renço não confessava o seu tédio, mas era-lhe impossível suportá-lo e ele o manifestava em caprichos amargos e bi­zarros. Acostumara-se a uma existência de altos e baixos constantes.

— Você é feliz, — dizia ele a Teresa, — despertando todas as manhãs com o coração no mesmo lugar. Eu perco o meu, enquanto durmo. É semelhante à touca de dormir que minha pajem me punha na cabeça, quando eu era criança. Ora, ela a encontrava a meus pés; ora, no chão.

Teresa compreendeu que a serenidade não podia mesmo atingir de repente essa alma perturbada e que era necessário acostumá-la aos poucos, gradativamente. Para isso, era pre­ciso impedi-la de voltar algumas vezes à vida ativa.

Estudou-lhe os gostos e as fantasias e ficou surpreen­dida ao verificar que não era muito difícil satisfazer-lhe os caprichos em muitas coisas. O rapaz desejava avidamente diversões imprevistas. Não era preciso levá-lo a passear por encantamentos irrealizáveis; bastava conduzi-lo para onde encontrasse um divertimento com o qual não contasse. Se, em vez de fazer que ele jantasse em sua casa, Teresa lhe anunciasse, pondo o chapéu na cabeça, que iriam jantar num restaurante qualquer e se, em vez de irem a tal teatro, aonde ela tinha vontade de ir, ela lhe pedisse, subitamente, que a levasse a um espetáculo completamente diverso, ele se mos­trava encantado com a inesperada distração, nela encontrando o maior prazer; obedecendo, porém, a um plano qualquer, previamente traçado, experimentava um insuportável mal-estar. Teresa resolveu, portanto, tratá-lo como criança em convalescença à qual nada se recusa, sem prestar a menor atenção aos inconvenientes que daí resultassem para ela.

A primeira e mais grave era comprometer a sua repu­tação. Diziam que era mulher de tino e prudência.

Quando a viram na rua, de braço dado com Lourenço, começaram a admirar-se e a censura foi tanto mais severa, quanto se sabia que havia já bastante tempo ela procurava evitar esse procedimento. Lourenço era muito estimado entre os artistas, mas era bem reduzido o número de amigos, que entre eles tinha. Sabiam que ele era homem de mau gosto para poder surgir assim como gentil-homem entre os elegantes de outra classe. E, por outro lado, os amigos que possuía nesse outro mundo não compreendiam, nem acreditavam na sua conversão.

Para aqueles, que não queriam condenar Teresa, a paixão violenta de Lourenço parecia, apenas, um ato de libertinagem de que ele era suficiente hábil para libertar-se, quando se sentisse cansado.

Assim, Teresa ficou desconsiderada em virtude da esco­lha que acabara de fazer e de que, afinal, ela não pretendia fazer alarde.

Com a desconsideração, logo chegou para Teresa o mo­mento de novo sacrifício: o da sua segurança doméstica; até, então, ganhara bastante com o seu trabalho, tendo vida folgada. Isso era devido a seus hábitos morigerados, muita ordem nas suas despesas e perseverança no seu trabalho. O imprevisto, que encantava Lourenço, trouxe-lhe a primeira tortura. Ela ocultou-lhe essa tortura, não desejando recusar-lhe o sacrifício desse tempo precioso, que constitui o mais valioso capital do artista. Mas, tudo isso não era senão a moldura de um quadro bem mais sombrio e sobre o qual Teresa colocava um véu tão espesso, que ninguém punha em dúvida a sua desgraça e os seus amigos, escandalizados e penalizados de sua situação, afastavam-se dela, dizendo:

"Teresa está embriagada. Esperemos que abra os olhos, o que não tardará muito."

E tudo sucedia de uma só vez. Teresa adquiria todos os dias a triste convicção de que Lourenço já não gostava dela ou a amava tão pouco que não existia naquela união qualquer esperança de felicidade para um ou para outro.

 

Havia muito que Lourenço desejava visitar a Itália. Era esse o seu sonho de infância. Alguns trabalhos, que conse­guiu vender de maneira inesperada, levaram-no a pensar na realização dessa viagem. Pediu a Teresa que o acompanhasse, mostrando-lhe, orgulhoso, a pequena fortuna e jurando-lhe que, se por acaso ela recusasse acompanhá-lo, ele não faria a viagem. Ora, Teresa sabia perfeitamente que ele não renunciaria à viagem sem queixas e censuras, por isso tratou, por seu lado, de arranjar dinheiro, empenhando seus traba­lhos futuros.

No fim do outono, partiram para a Itália. Lourenço tinha alimentado grandes ilusões a respeito desse país, acre­ditando encontrar no mês de dezembro a primavera com que sonhara. Teve uma desilusão; suportou um frio bastante intenso durante a travessia de Marselha para Gênova. Esta última cidade agradou-lhe, extraordinariamente. E, como ha­via ali muita pintura a ver, o que constituía o principal obje­tivo da viagem, resolveu ali permanecer por um ou dois meses. Alugou um apartamento mobiliado.

Ao cabo de oito dias, Lourenço tinha visto tudo quanto havia para ver-se. Teresa não fazia senão pintar, pois não podia viver sem isso. Para conseguir ganhar alguns mil francos, teve de comprometer-se com um negociante de qua­dros, fazendo-lhe várias cópias de obras inéditas que ele dese­java em seguida mandar gravar. O trabalho não era desa­gradável. Como homem de bom gosto, o negociante havia-lhe indicado diversos retratos de Van Dyck, um em Gênova, o outro em Florença. Copiar esse mestre era uma especiali­dade, graças à qual Teresa havia desenvolvido o seu próprio talento e tinha obtido algum dinheiro antes de ganhar a vida por sua própria conta. Para começar, todavia, era ne­cessário conseguir autorização dos donos dessas obras-primas. Embora se houvesse dedicado diligentemente a essa tarefa, passou-se uma semana antes de conseguir fazer a cópia desejada.

Lourenço não se sentia absolutamente disposto a fazer cópias fosse do que fosse. A sua individualidade era muito pronunciada e muito ardente para esse gênero de trabalho. Lourenço contava, então, apenas, vinte e cinco anos e podia ainda aprender. Na sua opinião, Teresa via, também, nessa oportunidade, um meio de aumentar os seus recursos pe­cuniários.

Deixou, pois, Teresa absorta diante do seu modelo, iro­nizando um pouco a respeito do trabalho de Van. Dyck*, que ela ia fazer, tentando mesmo desanimá-la da tarefa penosa, que decidira empreender. Depois, começou a vadiar pela ci­dade, muito preocupado com o emprego das seis semanas, que Teresa lhe pedira para concluir a sua obra.

 

* Antão Van Dyck, famoso pintor flamengo, nascido em Antuér­pia (Bélgica) e falecido em Londres (1599-1641). Retratista notável, filiado à escola de Rubens, célebre pintor do século XVI. (Nota do "Clube do Livro").

 

Não tinha ela, decerto, tempo a perder, visto os dias de dezembro na Itália serem curtos e sombrios e a sua instalação material não lhe permitia todas as comodidades do seu estúdio de Paris. Um mau dia, uma grande sala, nada ou pouco aquecida e uma multidão de ociosos em viagem, sob pretexto de contemplarem a obra-prima, colocavam-se na sua frente e importunavam-na com as suas reflexões. Resfriada, doente, tolerante, entristecida, preocupada, sobretudo, com o tédio que via desenhar-se nos olhos de Lourenço, Teresa regressava para encontrá-lo de mau-humor ou para esperá-lo até que a fome o obrigasse a voltar ao apartamento. Não se passavam dois dias sem que ele a censurasse por ter aceito um trabalho embrutecedor e não lhe propusesse abandoná-lo. Não havia dinheiro para ambos? E por que era então que Teresa se recusava a partilhar com ele esse dinheiro?

Teresa pensava certo. Ela sabia que o dinheiro não durava nas mãos de Lourenço. Talvez, não tivesse com que regressar à França, quando se sentisse cansado da Itália.

Ele viu que Teresa tinha razão e resolveu trabalhar. Abriu as suas caixas, procurou um local propício e fez vários esboços. Mas, ou fosse pela mudança de seus hábitos, ou fosse pela visão recentíssima de tantas e tão diferentes obras-primas, que o haviam comovido e cuja composição lhe era preciso assimilar, o fato é que se sentia imobilizado por mo­mentânea impotência, caindo num desses abatimentos contra os quais se sentia incapaz de reagir sozinho. Precisava de emoções vindas do exterior.

Subitamente, no meio dessas vagas e tumultuosas aspira­ções, um mau pensamento sobreveio-lhe, sem o desejar.

Quando penso que, outrora, a menor loucura bastava para reanimar-me! Teria eu necessidade de um ideal como Teresa? Como, pois, convencer-me de que a beleza moral e física é necessária no amor? De resto, existirá uma ver­dadeira beleza para os sentidos? A verdadeira não é aquela que agrada? Aquela de que nos sentimos saciados é como se jamais tivesse existido. Aliás, ainda existe prazer na mudança e nisso consiste, talvez, um dos segredos da vida. Mudar é renovar-se. Poder mudar é ser livre. Será que o artista nasceu para o cativeiro e não é o cativeiro senão a fidelidade que se guarda ou, apenas, a fé prometida?

Lourenço deixou-se assaltar por esses velhos sofismas, sempre novos para as almas transviadas. Experimentou bem depressa a necessidade de revelá-lo fosse a quem fosse, até mesmo a Teresa. Tanto pior para ela, se Lourenço não via senão a sua pessoa.

À noite, a conversa começava sempre desta maneira:

— Como esta cidade é aborrecida!

Uma noite, ele acrescentou:

— Aparentemente, todos, aqui, devem aborrecer-se. Eu não gostaria de ser o modelo que você copia. Esta pobre e formosa condessa de vestido ouro e negro, que está aí, dependurada há duzentos anos, se é que os seus doces olhos não a condenaram a ver a própria imagem encerrada neste país tão monótono...

— E, todavia, — contestou Teresa — ela conserva o privilégio de sua beleza, o acontecimento que sobreviveu à morte, eternizado pela mão de um grande artista. Por mais seca que esteja no fundo do seu túmulo, tem, ainda, namo­rados sobre a Terra. Todos os dias, vejo moços que, em­bora insensíveis ao merecimento da pintura, ficam em êxtase diante dessa beleza, que parece respirar e sorrir, numa calma triunfante.

— Ela parece-se com você, sabe, Teresa? Tem um quê de esfinge e eu não me admiro de que você, se tenha apaixonado pelo seu sorriso misterioso. Dizem que os artistas criam, sempre de acordo com a sua natureza... É muito natural que você tenha escolhido os retratos de Van Dyck para seu aprendizado. Ele fazia-os pomposos, delicados, elegantes e orgulhosos como o seu modo de ser...

— Que cumprimentos! É melhor parar porque vem chegando a zombaria...

— Não, não estou rindo. Você bem sabe que já não sorrio. Junto de você é preciso levar tudo a sério. Con­formo-me com essa ordem; digo, apenas, uma coisa, aliás triste: é que a sua defunta condessa deve estar bastante enfastiada de parecer sempre bela, sempre do mesmo jeito. Uma idéia, Teresa! Um sonho fantástico que me vem pre­cisamente do que você dizia ainda agora. Escute:

Um rapaz, que possuía algumas noções de escultura, ficou vivamente apaixonado por uma estátua de mármore que ornamentava a tampa de um túmulo. Tomou-se de tal obses­são que um belo dia ergueu a pedra tumular, a fim de verificar o que restava da mulher encerrada no fundo do sarcófago. E achou o que não podia deixar de encontrar; a múmia! Recuperou, então, a razão, abraçou o esqueleto, exclamando: "Amo-te mais, assim! Pelo menos, és qual­quer coisa que teve vida, enquanto eu estava cativo de uma pedra que nunca teve consciência de si mesma!"

— Não compreendo! — comentou Teresa.

— Nem eu, mas é possível que em amor a estátua seja aquilo que se constrói na cabeça, e a múmia, ao contrário, o que se oculta no coração.

Certa vez, ele esboçou a figura e a atitude de Teresa, sonhadora e triste, num álbum que ela folheou, em seguida, e no qual encontrou uma porção de esboços de mulheres, em posições impertinentes, cujos tipos descarados a fizeram corar... Eram os fantasmas do passado, que povoavam novamente a imaginação de Lourenço e se haviam colado, contra sua vontade, sobre as folhas brancas do álbum.

Sem dizer palavra, Teresa rasgou o esboço em que figurava em tão vergonhosa companhia, atirou ao fogo a figura de papel, fechou o álbum, tornando a colocá-lo sobre a mesa. Depois, sentou-se perto do fogo, estendeu os pés e quis falar de outra coisa.

Lourenço disse-lhe:

— Você é muito orgulhosa, querida! Se tivesse quei­mado todas as folhas desse álbum, que lhe desagradam, dei­xando, apenas, a sua imagem, eu compreenderia e ter-lhe-ia dito: "Fez muito bem"; mas retirar a sua imagem, deixando as outras, isso significa que jamais me disputaria em con­fronto com outrem...

— Disputei-o à libertinagem — respondeu Teresa — jamais o disputarei a qualquer uma dessas vestais.

— Isso é orgulho, — repito! Não é amor!

— Você não estará cansado de amar uma estátua? Será que a múmia não se encontra em seu coração?

— Ah! você tem boa memória para as palavras. Meu Deus! Que é uma palavra? A gente pode interpretá-la à vontade. Com uma palavra, pode enforcar-se um inocente. Vejo que é preciso ter cuidado com o que se diz a você. O mais prudente seria, talvez, deixarmos de conversar.

— Já chegamos a esse ponto, santo Deus? — perguntou Teresa, desfeita em lágrimas.

Efetivamente, tinham chegado a isso. Foi em vão que Lourenço, aflito com o seu choro, lhe pediu perdão por fazê-la chorar. A cena triste recomeçou no dia seguinte.

— Então, que é que você quer que eu faça nesta detes­tável cidade. Quer que eu trabalhe? Eu, também, tenho desejado trabalhar, mas não posso! Não nasci como você com uma pequena mola de aço no cérebro, a qual basta apertar o botão para o fazer funcionar à vontade. Eu sou um criador. Grande ou pequena, fraca ou poderosa, a mola não obedece a coisa alguma e entra a funcionar, quando lhe apraz, ao sopro de Deus ou do vento, que passa. Quando estou aborrecido, em qualquer parte, sou incapaz de realizar algo.

— Como se explica que um homem inteligente se abor­reça, — perguntou Teresa, — a não ser quando está privado de luz e de ar, no fundo de uma enxovia? Então, não exis­tem nesta cidade que no primeiro dia tanto o encantou, nem belas coisas para ver, nem passeios interessantes pelos arre­dores, nem bons livros para consultar, nem pessoas inteli­gentes com quais se possa conversar?

— As coisas belas aqui ficam fora da minha visão. Não gosto de passear só. Os melhores livros irritam-me, quando me dizem o que não estou em vias de acreditar. Quanto às relações, é certo que tenho comigo cartas de apresentação, mas como você deve saber, não posso fazer uso dessas cartas.

— Não sei por quê!

— Porque, naturalmente, os meus amigos da sociedade recomendam-me a pessoas de elite. Ora, estas pessoas não vivem em quatro paredes, sem pensar em diversões. E como você não pertence a essa sociedade ou a essa elite, Teresa, e como não me poderia acompanhar, terei de deixá-la sozinha.

— De dia, pois sou forçada a trabalhar lá embaixo, neste palácio...

— De dia, pagam-se visitas e organizam-se projetos para a noite. É a noite que a gente se diverte em toda parte. Não sabia?

— Bem, nesse caso, saia algumas vezes, à noite, visto ser preciso. Vá a bailes, às reuniões. O que unicamente lhe peço é que não jogue.

— Mas é isso o que não posso prometer-lhe. Em so­ciedade, quase todos se entregam ao jogo e às mulheres.

— Então, na sociedade, os homens arruínam-se no jogo e na galanteria?

— Aqueles, que não fazem uma coisa, nem outra, abor­recem-se, ou a sociedade deles se aborrece. Não sou conversador de salão e não me sinto por enquanto bastante fútil para ficar a escutar o que os outros dizem, sem dizer palavra. Vejamos uma coisa, Teresa: você quer que eu me atire a essa sociedade, com todos os seus riscos e perigos?

— Por enquanto, não! — respondeu Teresa. Mais um pouco de paciência. Ah! Não estou ainda preparada para perder você tão cedo.

O tom doloroso e o olhar dilacerante de Teresa irritaram Lourenço mais do que nunca.

— Você sabe — disse ele — que me leva sempre a admitir o seu ponto-de-vista, com a menor lamentação e abusa da sua força, Teresa. Será que não vai arrepender-se um dia, vendo-me doente e exasperado?

— Já disso estou arrependida, visto que lhe causo ta­manho aborrecimento! — respondeu ela. Por isso, faça como entender.

— É assim que me abandona ao meu destino? Já cansou de lutar? É você agora quem não mais me ama!

— Escute! — disse ela, erguendo-se; partamos amanhã, aconteça o que acontecer. Aqui, você acaba maluco! Talvez, seja pior, mas irei até ao fim da minha tarefa.

Ouvindo estas palavras, Lourenço ficou furioso. Então, ela havia-se imposto uma tarefa e cumpria friamente um dever? É possível que tivesse feito alguma promessa à Virgem...

E apanhou o chapéu com um ar de supremo desdém e aquele rompante que lhe eram peculiares, e retirou-se sem dizer aonde ia.

Eram dez horas. Teresa passou a noite numa horrível e profunda tristeza.

Lourenço regressou de manhã e fechou-se no quarto, batendo fortemente a porta. Ela nem se atreveu a aparecer-lhe, com receio de irritá-lo ainda mais e retirou-se sem ruído para o seu canto. Era a primeira vez que acontecia isso.

No dia seguinte, em vez de voltar ao seu trabalho, Teresa fez as suas malas e preparou-se para viajar. Lourenço acordou às três horas da tarde e perguntou-lhe, sorrindo, o que estava pensando fazer. Recuperara a sua boa disposição moral... Passeara toda a noite, sozinho, pela praia. Refletira, e estava agora mais calmo.

— Esse vasto mar, monótono e ruidoso, tornou-me impa­ciente — disse, com jovialidade. Esta manhã estou bem dis­posto. Não quero viajar. Dê-me um abraço, Teresa, e não falemos da tolice de ontem à noite. Tire essas malas, de­pressa, que eu as não veja mais. Elas parecem uma censura e, agora, não a mereço.

Uma surpresa veio distraí-los. Palmer chegara pela manhã a Gênova e vinha convidá-los para jantar. Lourenço mostrou-se encantado. Ele que tinha sempre atitudes bastante frias em presença de outros homens, atirou-se ao pescoço do americano, dizendo-o enviado por Deus. Palmer sentiu-se mais surpreendido do que lisonjeado com o caloroso aco­lhimento.

Bastou-lhe um rápido olhar a Teresa pára convencer-se de que aquilo não era a expansão da felicidade. Todavia, Lourenço não lhe falou a respeito do seu tédio e Teresa ficou bastante surpreendida de ouvi-lo elogiar a cidade e a terra. Chegou a dizer que as mulheres eram encantadoras. De onde as conheceria ele?

Quando bateram oito horas, pediu o seu sobretudo e saiu. Palmer quis retirar-se, também.

— Por que não se demora mais um pouco com Teresa? _— perguntou-lhe Lourenço. Isso, certamente, lhe agradaria. Aqui* vivemos em completo isolamento. Não me demorarei mais de uma hora. Espere por mim para o chá.

Eram onze horas da noite e Lourenço não regressara, ainda. Teresa estava muito abatida, fazendo esforços vãos para ocultar a sua inquietude. Mas, sentia-se sobretudo per­dida. Palmer compreendeu tudo, mas agiu como se nada percebesse, e retirou-se.

Lourenço chegou logo depois e sentiu a emoção de Teresa; ridicularizou as preocupações da pobre criatura, num tom que afetava não provir do ciúme.

— Lourenço, não me faça sofrer inutilmente. Pensa que Palmer me está fazendo a corte? Vamos embora? Já lhe propus isso!

— Não, minha querida, não sou a tal ponto absurdo. Visto que você tem uma companhia e me permite sair um pouco por minha conta, tudo está muito bem e estou' disposto a trabalhar.

— Farei o que você quiser — respondeu Teresa. Mas se você assim se alegra em virtude dessa companhia, tenha a bondade de não referir-se a tal pessoa da maneira como o fez ainda há pouco. Isso me seria difícil de suportar.

— Por que diabo se está zangando? Que disse eu de ofensivo ou inconveniente? Você tornou-se de uma suscetibilidade, minha boa amiguinha! Que mal haveria se o bom Palmer estivesse apaixonado por você?

— Existiria, sim, em você deixar-me a sós com ele àquela hora... Se você pensasse no que está dizendo...

— Ah! Existirá algum mal em abandonar você ao perigo? Bem vê que o perigo existe, segundo a sua própria maneira de pensar, o que prova que eu não me estava en­ganando,

— Seja! Nesse caso, passemos juntos os nossos serões sem receber ninguém. É isso o que deseja? Está combinado?

— Você é boa, minha querida Teresa! Perdoe-me. Fi­carei a seu lado e veremos o que você quer. Será um bom e agradável acordo.

Efetivamente, Lourenço parecia voltar ao que era. Co­meçou um bom trabalho no seu estúdio e convidou Te­resa para ir vê-lo. Passaram-se alguns dias numa perfeita calma. Palmer não reaparecera, mas Lourenço, dentro em pouco, aborreceu-se daquela vida regular e foi à procura do americano, acusando-o de haver abandonado os seus amigos. Porém, mal ele chegou, a fim de passar as primeiras horas da noite com os dois, Lourenço achou logo um pretexto para sair, ficando fora até à meia-noite.

Passou-se, assim, uma semana. Depois, mais outras; Lourenço passava uma noite com Teresa e logo a seguir três ou quatro na rua. E que noites aquelas! Ela preferi­ria a solidão. Aonde ia ele? Nunca o soube. Não apa­recia na sociedade. O tempo úmido e frio não lhe permitia passear à beira-mar. Todavia, subia freqüentemente a bordo de uma barca e recebia lições de um pescador que ia procurá-lo no ancoradouro. Efetivamente, a sua roupa cheirava a alcatrão. Dizia que se sentia bem disposto para o trabalho no dia seguinte, com a excitação dos nervos refeitos.

Teresa já não o procurava no seu estúdio. Ele mostrava-se indignado, quando ela pretendia ver o seu trabalho.

Duas ou três vezes, passou a noite toda fora de casa. Teresa não podia habituar-se à inquietação, que lhe causavam essas ausências. Não era possível segui-lo à noite pelas ruas da cidade, cheias de marinheiros e aventureiros de todas as nações. Por coisa nenhuma deste mundo o mandaria acompa­nhar de perto. Entrava no seu quarto sem fazer ruído e contemplava-o depois a dormir. Lourenço parecia exausto de fadiga. Era, provavelmente, a luta desesperada contra si mesmo em que ele procurava apagar, com bastante exer­cício físico o seu excesso de reflexão.

Certa noite, Teresa notou que as roupas de Lourenço estavam cheias de lama e rasgadas, como se ele se tivesse empenhado em luta corporal e tivesse sofrido alguma queda. Aterrorizada, viu uma pequena mancha de sangue no tra­vesseiro. Lourenço recebera uma ligeira incisão na testa. Como ele dormia um sono profundo, tentou ver se no peito tinha qualquer outro ferimento. Ele, porém, acordou e ficou furioso. Ela procurou fugir, mas ele segurou-a, vestiu um roupão, fechou a porta e numa grande agitação a passear pelo apartamento, fracamente iluminado, externou finalmente, todo o sofrimento que tinha acumulado na sua alma:

— Chega! Sejamos francos. Já não nos amamos e jamais tornaremos a amar-nos. Enganamo-nos um e outro. Você precisava de um servo, de um escravo. Julgou que o meu caráter infeliz, as minhas dúvidas, o meu tédio, o meu aborrecimento de uma vida de excessos, minhas ilusões a respeito do verdadeiro amor, tudo isso me colocaria às suas ordens e que eu jamais poderia corrigir-me.

Para levar a cabo tão arriscada empresa, você deveria possuir um caráter mais feliz, mais paciência, mais docilidade e sobretudo mais espírito. Você não tem espírito, Teresa! Não pretendo ofendê-la ao dizer isto. Você é de uma só peça, monótona, teimosa e vaidosa até ao excesso de sua pretendida moderação, o que é apenas a filosofia das criaturas de visão estreita e de faculdades tacanhas. Eu, eu sou um louco, um inconstante, um ingrato, tudo o que você quiser.

Pálido, amargo, irônico e furioso, os cabelos em desalinho, a camisa rasgada e a fronte ensangüentada, Lourenço era tão terrível e era tão horrível vê-lo e ouvi-lo que Teresa sentiu que todo o seu amor se transformava em ódio. Tão desesperada estava naquele instante que nem tinha medo. Deixava-o desabafar essa torrente de blasfêmias e dizendo consigo mesma que aquele insensato era capaz de matá-la, aguardava com desprezo glacial e uma absoluta indiferença os excessos do seu paroxismo de raiva.

Mas Lourenço calou-se; não teve mais forças para falar. Teresa levantou-se e sem lhe ter respondido uma única pa­lavra, sem lançar-lhe um olhar, retirou-se para o seu aposento.

 

Lourenço não refletia sobre uma só das expressões que dizia à Teresa; naquele momento, não pensava no que falava. Não se recordou mais de coisa alguma depois de adormecer de novo e se alguém o tivesse acordado e lho recordasse teria negado tudo.

Negaria redondamente tudo. Havia, porém, algo ver­dadeiro: — no momento estava cansado do seu amor sublime e aspirava fortemente aos funestos arrebatamentos do passado. Era o castigo do mau caminho pelo qual tinha enveredado ao começar a vida, castigo cruel, é certo, e do qual se com­preendia que ele se queixasse energicamente, ela que não premeditara coisa alguma e que se havia atirado, a rir, num abismo, de onde julgava poder sair quando lhe aprouvesse. Mas, o amor é regido por um código que parece basear-se como todos os códigos sociais na fórmula terrível: a ninguém é permitido ignorar a lei! Efetivamente, tanto pior para aqueles que a ignoram. Se a criança se atira às garras da pantera, julgando poder acariciá-la, a pantera não tomará co­nhecimento da inocência da criança. Devorará a criança, pois não depende de seu instinto ter de poupá-la. São da mesma natureza os venenos, o raio, o vício — agentes cegos da lei que o homem deve conhecer e combater.

No dia seguinte à crise de que falamos, só restava na , mente de Lourenço a consciência de ter tido com Teresa uma explicação decisiva e uma vaga idéia de tê-la visto resignada. Tudo caminha, talvez, para o melhor, pensou ao encontrá-la tão calma como a deixara antes. Havia, entretanto, motivos para recear a sua palidez.

— Não é nada — disse Teresa, tranqüilamente. É um resfriado, que me cansa bastante mas não passa disso. De­saparecerá com o tempo...

— Bem, Teresa! Você é quem deve decidir. Separa-mo-nos com zanga ou despeito, ou permanecemos juntos como outrora, na mesma base de amizade?

— Não tenho despeito algum — respondeu ela. Perma­necemos amigos. Fique aqui se tal lhe agrada. Eu termino o meu trabalho e dentro de quinze dias volto para a França.

— Mas, daqui a quinze dias terei de ir morar noutra casa? Não receia que se venha a saber do que se passou?...

— Faça como lhe parecer melhor. Temos aqui nossos apartamentos independentes um do outro. Apenas, o salão é comum. Ora, eu não preciso dele. Ficará para você.

— Não, peço-lhe que fique com ele. Você não ouvirá os meus passos, quando eu entrar ou sair. Se o proibir, não porei aí os pés.

— Não lhe proíbo coisa alguma! — tornou Teresa. A não ser de deixar de acreditar um instante que sua amiga está infinitamente acima de quaisquer desilusões. Ela espera poder ser-lhe ainda útil, quando sentir a necessidade de sua afeição.

Teresa estendeu a mão a Lourenço e foi trabalhar.

Lourenço não a compreendia. Tamanho domínio sobre si mesma parecia-lhe uma coisa que não sabia explicar. Ele não conhecia a coragem passiva e as resoluções silenciosas. Acreditou que ela fosse capaz de recuperar o seu império sobre ele e desejasse reconduzi-lo ao amor pela amizade. Prometeu a si mesmo ser invulnerável a toda fraqueza e, para ficar mais senhor de si mesmo, resolveu tomar qualquer pessoa como testemunha do seu rompimento. Foi ao encontro de Palmer, narrou-lhe a infeliz história do seu amor e concluiu:

— Se você ama Teresa, meu caro amigo, segundo acre­dito, faça que ela o ame. Não posso ter ciúmes. Ao contrá­rio. Como eu a fiz infeliz e como você será bom para ela — disso tenho a certeza — você me libertará de um remorso que não desejo fique a pesar-me na consciência.

Lourenço ficou surpreso com o silêncio de Palmer.

— Será que, falando desta maneira, o ofendo? — tornou Lourenço. Não é, entretanto, a minha intenção. Tenho por você muita amizade, estima e até mesmo respeito. Se censura em tudo isso a minha conduta, fale com franqueza, diga-me o que se lhe oferecer. Isso será melhor do que essa atitude de indiferença ou de desdém.

— Não sou indiferente, nem aos desgostos de Teresa, nem aos seus, — respondeu Palmer. Quero, apenas, poupar-lhe conselhos e censuras que viriam tarde demais. Eu acre­ditava que vocês dois tivessem sido feitos um para o outro. Agora, convenço-me de que a maior felicidade para um e para outro, — a única certamente — está na separação. Quanto aos meus sentimentos pessoais a respeito de Teresa, não lhe reconheço o direito de dirigir-me qualquer palavra a tal respeito.

— É justo — declarou desembaraçadamente Lourenço. Compreendo, perfeitamente, o que acaba de dizer-me. Vejo que doravante serei demais e creio que farei melhor em ir-me embora para não tornar-me impertinente aos outros.

E partiu, efetivamente, depois de despedir-se friamente de Teresa, dirigindo-se à Florença com a resolução de atirar-se ao meio social ou ao trabalho, segundo o seu capricho.

Sem dúvida, Teresa fez mal em não permitir que ele visse quanto era profunda a ferida que • lhe havia causado. Mas tinha muita coragem e era orgulhosa. Uma vez que compreendia dever ser essa a cura de um mal desesperado, não devia recuar diante dos grandes remédios e das operações cruéis. Era preciso fazer sangrar abundantemente esse co­ração em delírio, carregá-lo de censuras, devolver-lhe afronta por afronta, sofrimento por sofrimento. Ao ver o mal prati­cado, Lourenço, talvez, fizesse justiça a si próprio. Era possível que a vergonha e o arrependimento salvassem a sua alma do crime de assassinar o amor a sangue-frio.

Após três meses de inúteis esforços, Teresa sentia-se desanimada.

"Visto que ele é incurável" — pensou — "de que serve fazê-lo sofrer? Ele não via que eu não podia fazer coisa alguma? Quando eu lhe disse para voltar à sociedade, teve medo do meu ciúme e atirou-se a uma vida misteriosa e grosseira; voltou para casa com a roupa rasgada e o rosto sujo de sangue!"

No dia em que Lourenço partiu, Palmer perguntou à Teresa:

— Bem, minha amiga, que pretende, agora, fazer? Devo correr atrás dele?

— Não, absolutamente, não! — respondeu ela.

— Quem sabe se o não traria de volta...

— Eu ficaria desolada.

— Então, não gosta mais dele?

— Não, absolutamente não gosto!

Seguiu-se um instante de silêncio. Depois, Palmer so­nhador, voltou a falar:

— Teresa, tenho uma notícia extremamente grave a comunicar-lhe. Estou hesitando, porque receio causar-lhe uma grande emoção a mais e você parece-me pouco dis­posta...

— Perdoe-me, meu amigo. Estou horrivelmente triste, mas sinto-me absolutamente calma e preparada para tudo.

— Pois bem, Teresa; fique sabendo que, presentemente, está livre. O conde das três estrelas morreu.

— Eu já o sabia. Há oito dias que sabia disso.

— E não disse nada a Lourenço?

— Não.

— Por quê?

— Porque, no mesmo instante, se manifestaria nele uma reação... Você bem sabe como o imprevisto o transtorna e apaixona.

— Então, já o não estima?

— Eu não disse isso, meu caro Palmer! Lastimo-o, não o acuso. Talvez, outra mulher consiga torná-lo bom e feliz.

Provavelmente, a culpa é tanto minha como dele. Seja como fôr, não devíamos e não devemos procurar amar-nos um ao outro. j

— E, agora, Teresa, não imagina tirar alguma vantagem da liberdade que lhe é restituída?

— Que vantagem posso eu retirar daí?

— Pode contrair novas núpcias e conhecer as alegrias da família.

— Meu caro amigo, tentei duas vezes em minha vida e você está vendo a situação em que me encontro. O meu destino não é ser feliz, e é tarde demais para procurar o que fugiu das minhas mãos. Tenho mais de trinta anos!

— É justamente porque você conta trinta anos que não pode prescindir do amor. Você acaba de sofrer o enlevo da paixão e é justamente nessa idade que as mulheres não podem fugir ao amor. Porque foi excitada e não foi amada, é por não ter sido suficientemente amada que a inextinguível sede de felicidade vai despertar no seu ser, conduzindo-a talvez de decepções em decepções, até abismos mais profundos do que aquele de onde saiu...

— Esperemos que não.

— Sim, Teresa, você espera, no entanto, mas está iludida! É preciso ter medo da sua idade, da sua sensibilidade, da calma ilusória em que você imerge num momento de abati­mento e cansaço.

— Afinal, Palmer você julga-me perdida porque me sinto infeliz. Isso é muito cruel e faz-me compreender vi­vamente quanto tenho descido...

E pôs as mãos no rosto e chorou, amargamente. Palmer deixou-a chorar, vendo que as lágrimas lhe eram necessárias; ele mesmo tinha provocado aquela crise. Quando a viu mais calma, disse-lhe:

— Teresa, causei-lhe muita aflição, mas você deve per­doar as minhas intenções. Gosto de você, aliás, sempre gostei, não com aquela paixão cega, mas com toda a fé e devotamento de que sou capaz. Mais que nunca vejo em você uma nobre existência prejudicada e esmagada pelos erros dos outros.

Consinta em casar comigo, Teresa e faça-o, imediatamente, sem receios, sem escrúpulos, sem falsa delicadeza, sem desconfiança de si mesma. Dou-lhe a minha vida e só peço que acredite em mim. Sou bastante forte para aturar lágrimas que a ingratidão do outro lhe tem feito verter ainda. Jamais lhe censurarei o passado e tornarei o seu futuro tão tranqüilo e seguro que nunca o vento da tempestade a arran­cará de mim.

Palmer continuou a falar durante muito tempo ainda com aquela abundância de sentimento que Teresa ainda nele não tinha descoberto. Tentou defender-se, mas essa resistência era apenas, na opinião de Palmer, um resto de doença moral que devia combater em si mesma. Sentia que Palmer dizia a ver­dade, mas sentia igualmente que ele assumia para com ela uma enorme responsabilidade.

— Não é de mim mesmo que tenho receio, — disse ela. Não posso amar mais a Lourenço e não mais o amo. Mas o mundo, sua mãe, sua pátria, a honra do seu nome? Decaí, como você disse há pouco e sinto-o perfeitamente. Não tenha pressa, Palmer. Estou assustadíssima diante do que você quer afrontar por minha causa.

No dia seguinte e nos quatro dias que se seguiram, Palmer insistiu com mais energia. De manhã à noite, sozinho com ela, apelou para todas as forças da sua vontade para convencê-la. Ver-se-á, depois, se Teresa tinha ou não razão para hesitar. O que mais a inquietava era a precipitação de Palmer, forçando-a a prender-se numa promessa.

— Você tem receio das minhas reflexões — dizia ela. — Não tem em mim a confiança de que se orgulha.

— Creio na sua palavra — respondeu o americano. A prova é que lhe peço que me dê a sua palavra. Mas não sou obrigado a acreditar que você me ame. Você nem sabe que nome dar à sua amizade.

Teresa sentia-se magoada, quando Palmer aludia a seus interesses. Via muita abnegação em Palmer e não podia admitir que ele acreditasse fosse ela capaz de aceitar essa abnegação sem retribuí-la. Subitamente, teve vergonha de si mesma nesse combate de generosidade sem exigir dela outra coisa senão que aceitasse o seu nome, e sua fortuna, a sua proteção e o afeto de toda a sua existência.

No coração de Teresa, renasceu a esperança. Aquele homem, que ela tomara por um ser positivo, revelava-se por um aspecto tão imprevisto a seus olhos, que seu espírito ficou impressionado e como que reanimado na sua agonia. Era se­melhante a um raio de sol no meio de uma noite, que julgara ser eterna.

No momento em que, desesperada, ia maldizer do amor, ele obrigou-a a acreditar nesse mesmo sentimento e a encarar o seu desastre como um desastre comum do qual o céu desejava indenizá-la. Palmer, que era de uma beleza fria e regular, transfigurava-se a cada instante. Sentiu-se emocionada e dei­xou arrancar de sua alma a promessa que ele tanto desejava.

Subitamente, recebeu uma carta, cuja letra lhe pareceu desconhecida, tão desfigurada estava. Teve certa dificuldade em decifrar a assinatura. Com o auxílio de Palmer, conseguiu finalmente, ler estas palavras:

"'Joguei e perdi. Tive uma companheira. Ela enganou-me e eu matei-a. Tomei veneno. Vou morrer. Adeus, Te­resa. Lourenço".

— Partamos! — disse Palmer.

— Oh! meu amigo, eu o amo! — disse Teresa, atirando-se aos braços do americano. Agora, sinto quanto você é digno de ser amado!

E partiram naquele mesmo instante. Viajando toda a noite por mar, chegaram a Livorno e, ao entardecer, estavam em Florença. Encontraram Lourenço numa estalagem. Não estava morrendo, mas encontrava-se num acesso de febre cere­bral tão violento que quatro homens não conseguiam dominá-lo. Ao ver Teresa, reconheceu-a e agarrou-se a seu vestido, gri­tando que o queriam enterrar vivo. Agarrou-a com tanta força que ela caiu por terra: sufocada. Palmer afastou-a do quarto, desfalecida. Mas, ela voltou ao cabo de um minuto e, com uma perseverança que chegava a ser prodigiosa, passou vinte dias e vinte noites à cabeceira daquele homem que já não amava. O enfermo quase a não reconhecia senão para carre­gá-la de injúrias grosseiras, e, sempre que ela se afastava um instante, chamava-a, dizendo que ia morrer.

Não tinha, felizmente, assassinado mulher alguma, nem tomado qualquer espécie de veneno. Talvez, nem perdera di­nheiro no jogo, nem feito nada daquilo que escrevera a Teresa, no paroxismo do delírio e da febre. Já nem se lembrava dessa carta da qual ela receava falar-lhe. Quando voltava a ter consciência de si mesmo, ficava horrorizado com o desequilíbrio de sua razão.

Teve, ainda, outras alucinações sinistras, enquanto lhe durou a febre.

Teresa não o deixava um instante, embora Palmer tentasse convencê-la de que necessitava de descansar. Ela, porém, con­vencida de que Deus a encarregara de salvar aquela existência frágil, resistiu e com efeito contribuiu para a sua salvação.

Certa manhã, Lourenço despertou como que de uma letargia, mostrando surpresa ao ver Teresa e Palmer a um lado e outro do leito. Estendeu a mão a um e perguntou-lhes onde estava e de onde tinham vindo.

Teresa dormia, agora, vinte e quatro horas a fio. A natu­reza recobrou os seus direitos, logo que a inquietação desapa­receu. Pouco a pouco, Lourenço compreendeu até que ponto ela se mostrara dedicada e descobriu na sua fisionomia tantos indícios de fadiga quantos havia de sofrimento. Como estava muito fraco para ocupar-se de qualquer coisa, Teresa insta­lou-se a seu lado, ora lendo para ele, ora jogando baralho,, ora levando-o a passear de carruagem. Palmer estava sempre pre­sente.

Um dia, ele disse a Teresa, num momento em que se encontrava a sós com ela:

— Quando será que esse bom Palmer nos fará o favor de ir-se embora?

Teresa viu que persistia uma lacuna no seu cérebro e não deu resposta. Então, ele fez um esforço sobre si mesmo e acrescentou:

— Você acha que sou ingrato, minha amiga, falando desta maneira de um homem que se dedicou tanto a mim quanto você. Mas não deixo de compreender que foi justamente para não deixar você sozinha que ele se encerrou neste quarto de doente. Teresa, você pode jurar-me que foi somente por minha causa?

Teresa sacudiu a cabeça e tentou falar de outra coisa, mas Lourenço voltou ao mesmo assunto no dia seguinte e dis­se-lhe com verdadeira surpresa:

— Mas afinal, aonde vamos, Teresa? Não estamos bem aqui?

— Meu caro, — respondeu Teresa, — você fica aqui. Os médicos dizem que precisa ainda de uma ou duas semanas antes de poder fazer qualquer viagem sem perigo de recaída. Eu regresso à França, Terminei o meu trabalho em Gênova e não tenho presentemente a intenção de demorar-me na Itália por mais tempo. (

— Muito bem; você é livre, mas se você quer voltar para a França, sinto-me tão livre como você para desejar a mesma coisa. Não seria possível esperar-me mais por uma semana?

Ele punha tanta candura no esquecimento dos seus agravos e mostrava-se tão infantil que Teresa chorou ao recordar-se de outros tempos. Recomeçou a tratá-lo com intimidade e disse-lhe com a maior doçura e consideração que era obrigada a deixá-lo por algum tempo.

— Por quê isso? — perguntou Lourenço, será que já não nos amamos?

— Isso seria impossível, — respondeu Teresa, — mas teremos sempre um pelo outro uma grande amizade. Causa­mos um ao outro muito sofrimento, e sua saúde, neste momento, seria incapaz de suportar contrariedades. que passe algum tempo, para esquecermos tudo.

— Mas eu já esqueci tudo — exclamou Lourenço. — Não me recordo de mal que você me tenha feito. É preciso que me perdoe tudo e me leve consigo. Se me deixar aqui, morrerei de aborrecimento.

Teresa não ousava pronunciar a palavra fatal. Esperaria que Palmer viesse interromper aquele diálogo e assim pudesse evitar uma cena perigosa para o convalescente. Mas não foi possível. Ele atravessou-se na porta, não deixando Teresa sair do quarto. Caiu a seus pés num grande desespero:

— Será possível que você me julgue capaz de recusar dizer-lhe uma palavra. Mas não o posso fazer. Essa palavra não traduziria a verdade. O amor não mais existe entre nós.

Lourenço levantou-se, furioso. Não compreendia que ti­vesse podido matar esse amor no qual pretendia não acreditar.

— Então, é Palmer? — gritou, quebrando a chaleira na qual lhe tinham trazido a tisana. Então, é ele? Diga, quero saber! Quero saber a verdade. Morreria disso, bem sei, mas não quero viver enganado!

— Enganado! — exclamou Teresa, segurando-lhe as mãos, a fim dele não se ferir com as unhas. — Enganado? Será que eu lhe pertenço? Será que desde a primeira noite que você passou fora de casa, em Gênova, depois de ter-me dito que eu era o seu suplício* o seu algoz, não temos sido estra­nhos um ao outro? Se você; não compreende o sentimento que me trouxe para junto do seu leito de agonia e me reteve a seu lado, para auxiliar a sua cura com cuidados maternais, é porque você, Lourenço, não compreendeu nunca o meu cora­ção. Este coração — prosseguiu, — batendo no peito, — tal­vez não seja tão orgulhoso, nem tão ardente quanto o seu. Mas como você disse muitas vezes, ele permanece sempre no mesmo lugar. O que ele amou jamais pode deixar de amar, mas não se iluda, não se trata do amor como você imagina, desse amor que você me inspirou e no qual, loucamente, ainda deposita esperança. Esse amor acabou. Nem os meus sentidos, nem o meu cérebro já agora lhe pertencem. Recobrei o domínio de mim própria e da minha vontade. Posso, agora, oferecer tudo a quem o mereça. A Palmer, por exemplo, você nada teria a objetar, você que o procurou certa manhã para dizer-lhe: "console Teresa; faça-me este favor!"

— É verdade... é verdade!, — exclamou Lourenço, jun­tando as mãos trêmulas. Eu disse isso. Tinha esquecido. Agora me lembro!...

— Então, não o esqueça mais, — disse Teresa e saiba meu amigo que o amor é flor muito delicada para poder reani­mar-se, depois de calcada aos pés. Não pense mais em pro­curá-lo no meu coração. Procure-o noutra parte. Você encon­trará de novo o amor no dia em que for digno dele. A minha ternura de irmã e de mãe, apesar de tudo, permanecerá sempre ao seu dispor. Mas isso é outra coisa. É a piedade — não o oculto — e digo-lhe isto, precisamente, para que você não procure mais reconquistar um amor que seria tão humilhante para você como para mim. Se quer que esta amizade se torne suave e terna, chegou a ocasião de merecê-la. Sirva-se dela, deixe-me sem fraqueza e sem amargura, mostre-me a sua fisio­nomia calma de homem generoso e brioso e não essa cara de criança que chora sem saber porquê.

Teresa falava, ainda, quando Palmer entrou. Lourenço atirou-se ao pescoço do americano chamando-lhe meu irmão e meu salvador. E, apontando para Teresa:

— Ah! meu amigo, você se lembra do que me disse, no Hotel Maurice, a última vez que nos vimos em Paris?: "Se você não pensa que possa torná-la feliz, prefira dar um tiro na cabeça a voltar à casa dela!" É o que eu devia ter feito, mas não fiz. E agora, ela está mais desfigurada do que eu. Pobre Teresa! Foi oprimida e, apesar disso, veio arrancar-me ao leito de morte, quando deveria maldizer-me e abando­nar-me!

O arrependimento de Lourenço era sincero. Palmer sen­tiu-se vivamente impressionado. Quando se encontrou só com Teresa, disse-lhe:

— Não creia, minha amiga, que eu tenha sofrido com a sua solicitude para com Lourenço. Compreendi muito bem a sua atitude: você; quis curar a alma e o corpo. Venceu. Ele está salvo. Agora, que pretende fazer?

— Deixá-lo para sempre — respondeu Teresa; pelo menos, só tornar a vê-lo daqui a muitos anos. Se ele voltar para a França eu permanecerei na Itália, e se ele ficar na Itália, eu voltarei para a França. Não lhe disse já que era esta a minha resolução? E foi justamente por ser uma resolução inabalável que adiei um pouco a despedida. Eu sabia que ele teria uma crise forte e não desejava deixá-lo nesse estado.

— Refletiu bem sobre esse ponto? — perguntou Palmer. — Tem certeza de que no último momento não cederá?

— Estou certíssima.

— Esse homem parece-me irresistível na dor. Seria capaz de arrancar piedade das entranhas de uma pedra. Entretanto, se você se render a Lourenço, você está perdida e ele com você... E se ainda o ama, lembre-se de que não pode salvá-lo, a não ser abandonando-o.

— Sei disso, — respondeu Teresa, — mas que me diz, então? Já se esqueceu de que lhe empenhei a minha palavra? Está, também, doente?

Palmer beijou-lhe a mão, sorrindo. A paz tinha voltado ao seu coração.

No dia seguinte, Lourenço veio dizer-lhe que desejava ir à Suíça, onde terminaria a sua convalescença. O clima da região não lhe convinha. Era verdade. Os médicos aconselha­ram-no até a não esperar pelo verão. Ficou resolvido que se separariam em Florença. Teresa, segundo parecia não tinha formulado outro projeto senão o de ir aonde Lourenço não fosse.

Mas, ao vê-lo tão abatido da crise da véspera, prome­teu-lhe que passaria ainda uma semana em Florença, a fim de impedi-lo de partir sem estar inteiramente refeito de suas energias.

Essa semana foi, talvez, a melhor da vida de Lourenço. A ternura tinha-o vencido, penetrando a fundo na sua alma, invadindo-a por assim dizer. Não deixava um instante os seus dois amigos, passeando com eles, indo com eles de car­ruagem aos Cascines, nas horas menos freqüentadas pela mul­tidão, comendo com eles, sentindo uma alegria infantil a almo­çar no campo, procurando recuperar as forças, fazendo um pouco de ginástica, em companhia do americano, acompanhan­do Teresa ao teatro e fazendo que Palmer, o grande turista, lhe traçasse o itinerário da sua viagem à Suíça.

Chegou o dia da partida. Lourenço tinha feito os seus pre­parativos de viagem com melancólica alegria. Gracejava com a sua roupa, com a sua bagagem, com o ar exótico que iria certamente ter com uma capa impermeável, que Palmer o obrigara a aceitar e que era, então, uma novidade; gracejando com a algaravia do doméstico italiano que Palmer lhe arranjara e que era o melhor homem do mundo; aceitando, reconhecido e submisso, todas as atenções extremas de Teresa, Lourenço tinha os olhos rasos de lágrimas e um sorriso nos lábios. Na noite anterior ao dia da despedida, teve um acesso de febre. O carro que devia conduzi-lo em pequenas jornadas estava parado à porta do hotel. A manhã estava fresca. Teresa inquietou-se.

— Vá com ele até Spezzia — disse Palmer — É lá que ele deve embarcar. Eu irei encontrá-la nessa cidade, no dia seguinte ao do embarque de Lourenço. Acabo de encontrar negócio importante que me vai demorar aqui durante umas vinte e quatro horas.

Surpreendida com tal resolução e com essa proposta, Tere­sa recusou partir com Lourenço.

— Suplico-lhe que o faça! — disse Palmer, vivamente. — É-me impossível seguir com vocês.

— Muito bem, meu amigo, mas não é indispensável que eu vá com ele.

— É preciso, sim!

Teresa acabou por acreditar que Palmer julgava necessá­ria essa prova. Ficou muito admirada e ficou inquieta com isso.

— É capaz de dar-me a sua palavra de honra de que tem aqui um negócio importante?

— Sim! — respondeu Palmer. — Dou-lhe a minha pala­vra de honra.

— Pois bem, então, eu fico também.

— Não, é preciso que parta.

— Não estou compreendendo.

— Explicar-lhe-ei tudo mais tarde, minha amiga. Creio em você como creio em Deus. Você vê. Tenha confiança em mim. Parta com Lourenço.

Teresa fez, às pressas, a sua maleta que atirou para dentro da carruagem, tomando depois o seu lugar, ao lado de Lourenço. E, no instante da partida, gritou para Palmer:

— Tenho a sua palavra de honra, Palmer! Você deverá encontrar-se comigo dentro de vinte e quatro horas!

 

Obrigado, efetivamente, a permanecer em Florença, afas­tando-se de Teresa, Palmer ao vê-la partir, sentiu um pro­fundo golpe no coração. Entretanto, o perigo que ele receava não existia. A cadeia rompida não podia reatar-se. Lourenço, na certeza de que não havia perdido o seu coração, tentou readquirir a sua estima. v

Durante esses três dias de intimidade, Teresa sentiu-se feliz ao lado de Lourenço, vendo abrir-se nova era de delicados sentimentos, uma estrada inexplorada. Saboreava a doçura de amar sem remorsos, sem inquietação, um ser pálido e fraco que era, por assim dizer, uma alma apenas e persuadia-se de que se encontrava novamente no paraíso das essências puras, como se sonha viver depois da morte.

Foi a dez de maio que chegaram a Spezzia, pequena cidade pitoresca, meio genovesa, meio florentina, ao fundo de

uma enseada azul e tranqüila, com o mais lindo céu. Não era, ainda, a estação das férias. A região parecia encantada. O tempo era ameno, delicioso. Ao contemplar aquela água tranqüila, Lourenço que se sentira fatigado com os solavancos do carro resolveu prosseguir a viagem por mar. Um pequeno barco partia de Gênova duas vezes por semana. Teresa ficou contente por saber que não seria naquela noite a hora da partida... Eram mais vinte e quatro horas de repouso para o doente. Mandou reservar-lhe um beliche naquele barco para o dia seguinte, à noite.

Embora fraco, ainda, nunca Lourenço se sentira tão bem disposto. Tinha um sono e um apetite de criança. Essa doce languidez dos primeiros dias de cura completa davam à sua alma uma deliciosa perturbação. Sentia e acreditava-se radi­calmente transformado para sempre. Nessa renovação da sua vida, parecia não mais ter a faculdade de sofrer. Deixava Teresa, entre as suas lágrimas, numa alegria triunfante. Sen­tia a necessidade de imolar-se ao ponto de dizer à Teresa que devia amar a Palmer, que era o melhor dos amigos e o mais sábio dos filósofos.

— Não me diga nada, Teresa! Não me fale a seu res­peito ... Não me sinto ainda bastante forte para ouvir-lhe dizer que o ama... Mas saiba que eu o amo também. Que poderia dizer de melhor?

Teresa não pronunciou uma única vez o nome de Palmer. E no momento em que Lourenço, menos heróico, a interrogou diretamente, ela respondeu-lhe:

— Cale-se, Lourenço! Guardo um segredo que só mais tarde lhe direi. Esse segredo não é o que você pensa. Não seria capaz de adivinhá-lo, nem é bom tentar...

No último dia, percorreram de barco a enseada de Spezzia. De vez em quando, abicavam à margem, a fim de colherem belas plantas aromáticas que cresciam na areia e até mesmo nos remoinhos das ondas indolentes e preguiçosas.

O dia passou como um sonho, resumindo as mais ternas emoções de suas vidas.

Lourenço tornou-se pensativo e triste ao cair da tarde, vendo de longe a fumaça do "Ferruccio", o barco que devia conduzi-lo no dia seguinte e essa fumaça preta passava por sobre a alma do convalescente. Teresa procurou distraí-lo até ao último instante e perguntou ao barqueiro se havia ainda alguma coisa interessante a ver-se na baía.

— Há, sim, senhora! — respondeu o barqueiro. Há a ilha Palmaria* e a pedreira de mármore; se quiser ir até lá pode tomar esta embarcação, que, antes de entrar no mar largo, pára em frente da ilha, em Porto Venere. A senhora tem muito tempo para subir a bordo.

 

* Palmaria, ilha no golfo de Gênova, famosa pelo seu mármore Preto, raiado de ouro. (Nota do "Clube do Livro".)

 

Fizeram-se conduzir até à ilha Palmaria, bloco de már­more, caindo a pique sobre o mar e que se abaixa num declive suave e fértil, do lado do golfo. Existem aí algumas habitações a meia-encosta e dois palacetes sobre a praia. A ilha fica plantada semelhante a uma defesa natural à entrada do golfo, cujo canal é muito estreito entre a ilha e o pequeno porto, outrora consagrado à deusa Vênus, de onde lhe ficou o nome.

Não existe coisa alguma nesse pequeno burgo que justi­fique a poesia do nome. Mas a sua situação, sobre os rochedos escalvados e batidos pelas vagas agitadas, as primeiras do grande mar, que se abisma pelo canal, é das mais pitorescas.

Foi da pedreira de mármore da ilha Palmaria, do outro lado do estreito canal, que Lourenço e Teresa contemplaram esse conjunto admirável. O sol poente projetava sobre os primeiros planos uma tonalidade avermelhada.

Lourenço mostrou-se surpreendido com o espetáculo, que abarcou num olhar de artista, em que Teresa viu refletir-se, como num espelho, todos os fogos do céu abrasado.

— Graças a Deus, eis o artista que desperta! — excla­mou ela.

Efetivamente, desde que caíra enfermo, Lourenço não tivera ainda um único pensamento para a sua arte. Como a pedreira não lhe oferecesse senão um interesse de momento, ou seja o de ver grandes blocos de mármore preto com veios cor de ouro, ele mostrou desejos de subir pelo declive rápido da ilha para, lá de cima, contemplar a plenitude do mar. £ avançou por um bosque de pinheiros, caminho emaranhado e difícil, até uma extremidade em que subitamente se viu como que perdido no espaço. O rochedo estava mal seguro no mar que lhe foi roendo a base, quebrando-se aí as ondas num estampido formidável. Lourenço, que não pensava fosse aquela escarpa tão íngreme, teve uma sensação de vertigem e teria rolado para dentro do abismo, não fosse a intervenção de Teresa, que o forçou a escorregar para trás. Nesse movi­mento, ela viu-o dominado por imenso terror, o olhar desvai­rado, como já uma vez o tinha visto no bosque, nos arredores de Paris.

— Que é isso? — perguntou, aflita, Teresa. Ainda um sonho?

— Não! Não! — respondeu Lourenço, agarrando-se a ela com toda a sua força. Não é um sonho, é a própria reali­dade, é o mar, o mar terrível que me vai arrebatar! É a imagem da vida em que vou recair. É o abismo que se vai abrir entre nós, o seu ruído monótono, infatigável, odioso, que eu ia ouvir, à noite, no ancoradouro de Gênova e que ululava blasfêmia a meus ouvidos.

— Lourenço! — gritou-lhe Teresa, sacudindo-o com for­ça, — Lourenço, você ouve o que eu lhe digo?

Ao reconhecer a voz de Teresa como que ia despertando em outro mundo. E voltou-se surpreendido ao verificar que a árvore a que se agarrara era, apenas, o braço trêmulo e cansado de sua companheira.

— Perdão! Perdão! — exclamou, passados instantes. É o último acesso. Não é nada. Vamo-nos embora. Partamos.

Desceram, rapidamente, a encosta por onde tinham subido. O "Ferruccio", chegava a todo vapor do fundo de Spezzia.

Lourenço subiu ao barco, certo de que Teresa ficaria na praia da ilha e que esse barco voltaria a buscá-la, logo que ele estivesse a bordo do navio. Mas ela saltou a seu lado; queria certificar-se de que o doméstico que devia acompanhar Lourenço viera com as bagagens, e sem esquecer coisa alguma. —: Você tem a bolsa de Lourenço? — perguntou-lhe Tere­sa. — Sei que o encarregou de todas as despesas da viagem. Quanto lhe deu ele para guardar?

— Duzentas liras florentinas, mas penso que ele guardou a sua carteira.

Teresa examinara os bolsos da roupa de Lourenço, en­quanto ele dormia, e encontrou a carteira. Estava quase intei­ramente vazia. O rapaz gastara quase tudo em Florença e os gastos da sua doença haviam consumido as suas reservas.

O dinheiro que confiara a Vicentino, o doméstico, pare­cia-lhe dever durar bastante, mas na realidade era pouco mais do que o necessário para chegar à fronteira. Teresa, diante tal imprevidência, entregou a Vicentino tudo quanto possuía no momento.

Teresa foi ver o seu beliche, muito cômodo, mas chei­rando horrivelmente a peixe.

Um jovem, cuja roupa de viagem e cujas maneiras aris­tocráticas contrastavam com as dos outros passageiros, pela maior parte comerciantes de azeite ou pequenos negociantes costeiros, passou ao lado de Lourenço e exclamou, reconhe­cendo-o:

— Ah! é você?...

Apertaram as mãos num gesto de frieza. Era, entre­tanto, um dos seus velhos camaradas de sua vida de estróina. Lourenço, em vez de alegrar-se com o encontro, mandou inti­mamente para o diabo aquela testemunha importuna de seu último adeus à Teresa. O Sr. de Vérac — era assim que se chamava o velho amigo de Lourenço — conhecia Teresa. Tendo, respeitosamente, saudado a pintora o Sr. de Vérac de­clarou ter sido uma boa sorte para ele ter encontrado ali a bordo do "Ferruccio" dois bons companheiros de viagem como Teresa e Lourenço.

— Mas, eu não vou viajar! — disse Teresa. Eu fico.

— Como? Aqui? Em Porto Venere?

— Não, na Itália.

Afastou-se, discretamente, mas ficou a observar de viés os adeuses dos dois. De pé, na escada, Teresa empurrada pelos outros viajantes que se abraçavam ruidosamente, en­quanto a campainha de bordo tocava, deu um beijo fraternal na fronte de Lourenço. Ambos choraram. Em seguida, ela desceu para a barca e dirigiu-se para a sombria escadaria de rochas chatas, que dava entrada para o pequeno porto de Venere.

Lourenço ficou admirado de vê-la tomar essa direção, em vez de regressar a Spezzia.

Ao cabo de uns dez minutos, o "Ferruccio" deu a volta ao promontório, depois de ter alcançado um pouco esforçada-mente o mar. Lourenço lançou um último olhar para o ro­chedo triste e viu na plataforma do velho forte em ruínas uma silhueta, cuja cabeça e cabelos agitados pelo vento eram ainda dourados pelos raios do sol. Era Teresa. Lourenço agitou os braços com entusiasmo.

De Vérac olhava para Lourenço, pasmo. E Lourenço, que era o homem mais suscetível do mundo, a respeito do ridículo, não se incomodava, chegando mesmo a demonstrar uma espécie de orgulho.

Quando a costa desapareceu nas brumas da noite, Lourenço estava sentado num banco ao lado de Vérac.

— Vamos! Conte-me essa estranha aventura. Todos os seus amigos de Paris, ou melhor, a cidade inteira de Paris vai perguntar-me qual foi o desenlace de suas relações com a senhorita Jacques, que também se acha um pouco em evidência. Que vou responder?

— Que você me encontrou muito triste e apalermado. Tudo quanto eu lhe disse se resume em poucas palavras.

— Então foi você quem primeiro a abandonou a ela? Para você, é melhor assim.

 

Era noite, quando Teresa perdeu de vista o "Ferruccio". Despediu a barca que tinha alugado pela manhã em Spezzia, mas no momento de regressar percebeu a extrema penúria em que se encontrava. Tinha recursos para quatro ou cinco dias. A respeito de jóias, possuía um relógio e uma corrente de ouro. Poderia servir de caução até receber dinheiro de seu trabalho ou de alguma remessa, que estava esperando. O essencial, agora, era atravessar a noite em Porto Venere.

Passando na frente de uma dessas portas abertas da pe­quena cidade, Teresa avistou um interior que se lhe afigurou mais limpo que os outros e de onde vinha um cheiro de azeite menos ácido. À soleira da porta, estava sentada uma pobre mulher de fisionomia agradável e honesta, a inspirar confiança. Teresa conseguiu entender-se com essa criatura, que lhe perguntou, delicadamente, se estava à procura de alguém. Teresa entrou, olhou em redor e perguntou se era possível encontrar ali um quarto, onde pudesse passar a noite.

— Sim, certamente, um quarto melhor do que este, onde a senhora estará mais tranqüila do que numa estalagem, onde ouviria os barqueiros a cantar a noite inteira. Mas, eu não sou estalajadeira e, a fim de evitar-me dificuldades, a senhora dirá em voz alta, amanhã, de maneira a ser ouvida no meio da rua, que já me conhecia antes de vir aqui.

— Está bem; quer mostrar-me esse quarto?

Subiram alguns degraus e Teresa encontrou-se num apo­sento vasto, de onde o olhar abrangia imenso panorama sobre o mar e sobre o golfo. Teresa ficou com esse quarto, que se tornou um refúgio para a sua alma atribulada. No dia seguinte, escreveu à sua mãe:

 

"Querida mamãe: Eis-me tranqüila, há uma dúzia de horas e em plena posse da minha liberdade, não sei durante quantos dias ou anos.

Esse amor fatal que tanto inquietava a senhora não pros­seguiu e não se reatará. A este respeito, pode ficar sossegada. Acompanhei o meu doente; embarquei-o, ontem, à noite. Se não lhe salvei a alma — e por isso não posso lisonjear-me— consegui, ao menos, melhorar a sua situação e fiz penetrar nesse coração por alguns instantes a doçura da amizade. Se anteriormente pudesse ter acreditado nisso, estaria para sempre a salvo de tempestades.

Agora é preciso que lhe fale a respeito de Palmer. Quer a senhora que eu me case com ele. Ele quer casar e eu tam­bém. Desejei, sim, que isso se realizasse, mas será que ainda o deseja? Sinto, ainda, certos receios e alguns escrúpulos. Talvez, a culpa seja dele próprio. Ele não pôde ou não quis ficar comigo nos últimos momentos que passei junto de Lou­renço. Deixou-me sozinha durante três longos dias, os quais eu sabia e que realmente foram sem perigo para mim. Toda­via, existe de sua parte como que um certo desinteresse ou uma discrição excessiva que só pode partir dos bons senti­mentos de tal homem, mas que, entretanto, dão margem a algu­mas reflexões.

Estou, hoje, hesitante, pois me parece que ele se arrepende. Será sonho da minha parte? Por que seria que ele não pôde acompanhar-me até aqui? Por que esse capricho ou essa impos­sibilidade na última hora? Obstáculo imprevisto? Parece que o intuito dele foi submeter-me a uma prova, o que me humilha.

Ou, talvez, quisesse voltar atrás e dissesse a si mesmo o que eu lhe dizia no principio para dissuadi-lo de pensar em mim.

Encontro-me aqui num simples e magnífico pequeno porto de mar, onde espero com paciência a última palavra do meu destino. É possível que Palmer se encontre em Spezzia, a três léguas daqui. Sinto-me admiràvelmente bem. Tenho de­baixo dos olhos o mais admirável dos mares e sobre a minha cabeça o mais formoso céu, que se possa imaginar. Não me falta coisa alguma. Estou em casa de pessoas muito respeitáveis; ê possível que amanhã lhe volte a escrever; ame sem­pre a sua Teresa, que a adora".

 

Efetivamente, desde a véspera, Palmer encontrava-se em Spezzia. Chegara uma hora antes da partida do "Ferruccio". Não tendo encontrado Teresa no hotel e havendo-se informado de que ela havia conduzido Lourenço a bordo, à entrada do golfo, ficou à espera. Bateram as nove horas e viu o bar­queiro, que contratara pela manhã, chegar sozinho. Este tinha bebido inteirinha uma garrafa de Chipre, que Lourenço lhe tinha oferecido, depois de haver jantado sobre a relva, em companhia de Teresa.... Recordava-se, perfeitamente, de ter conduzido o senhor e a senhora até a bordo do "Ferruccio", mas não se recordava de ter trazido, depois, a senhora para Porto Venere.

Se Palmer o tivesse interrogado calmamente, teria desco­berto imediatamente que as idéias do barqueiro não eram nada claras e a sua informação deixara muito a desejar. Mas Palmer, com seu ar grave e impassível, irritava-se facilmente e era muito apaixonado. Acreditou que Teresa tinha partido com Lourenço, sem se atrever a confessar-lhe a verdade. Entrou, pois, no hotel, deu o dito por não dito e passou uma noite terrível.

Levantou-se muito cedo e foi passear pela orla do golfo, dominado por idéias trágicas, de suicídio, que, entretanto, logo se transformaram numa espécie de desprezo por Teresa.

Acabrunhado por tais reflexões, Palmer viu aportar bem perto do ponto, onde estava, uma chalupa pintada de preto, sob o comando de um oficial de marinha. Os oito remadores que faziam deslizar o barco rapidamente sobre as ondas tran­qüilas, ergueram, rapidamente, os remos brancos, em conti­nência; com uma precisão toda militar.

O oficial desembarcou e dirigiu-se a Palmer, que o reco­nhecera de longe. Era o capitão Lawson, comandante de uma fragata americana, que havia um ano estava em cruzeiro pelo Mediterrâneo e fazia ponto no golfo.

Era um dos amigos de infância .de Palmer, que havia entregado a Teresa uma carta de recomendação para o caso dela querer visitar o navio e percorrer a enseada. Lawson levou Palmer para almoçar a bordo. A fragata devia ter­minar o seu cruzeiro no fim da primavera. Palmer pensou que poderia aproveitar a oportunidade de regressar aos Estados Unidos. Parecia-lhe que tudo estava rompido entre ele e Teresa.

Havia já três dias que se demorava mais a bordo do navio americano do que no seu quarto do hotel da Cruz de Malta e foi aí que, certa manhã, à hora do almoço, ouviu de um guarda-marinha, que se tinha apaixonado, desde a véspera, por certa mulher que devia ter vinte a trinta anos vista a uma janela, sentada a fazer renda.

A renda de fios de algodão constitui o trabalho de todas as mulheres do povo em toda a costa genovesa.

O jovem marujo contou ainda que interrogara a respeito dessa senhora o estalajadeiro de Porto Venere, o qual lhe informara que aquela senhora estava ali, há uns três dias, morando em casa de uma velha senhora do lugar, que a fazia passar por sua sobrinha.

De posse destas informações, o jovem marujo deu-se pressa em ir à casa da velha senhora, pedindo-lhe que alojasse em sua casa um de seus amigos de quem estava à espera. Contava obter quaisquer informações a respeito da desconhe­cida, mas a velha mostrou-se impenetrável e até incorruptível.

Pelo retrato que o guarda-marinha fez da criatura, Pal­mer pressentiu que bem podia ser Teresa. Mas que fazia ela ali? Por que se ocultava em Porto Venere? Sem dúvida, não estava sozinha. Lourenço devia achar-se escondido em qualquer canto.

Fez-se conduzir, imediatamente, a Porto Venere, onde não teve dificuldade em descobrir Teresa. A explicação foi viva e franca. Os dois eram sinceros demais para desconfiarem um do outro. Ambos confessaram o excessivo capricho recí­proco.

— Minha boa amiga — disse Palmer — parece que você nie censura sobretudo por havê-la abandonado num momento de perigo... Mas eu não acreditava nesse perigo!

— Você tinha razão e eu lhe agradeço, mas, então, por que se mostrava tão triste e como que desesperado ao ver-me partir? Não me encontrando, supôs que eu tivesse partido e que seria inútil procurar-me.

— Escute — disse Palmer — deixando-a partir sozinha com Lourenço não era meu intuito submetê-la a uma prova. Só Deus sabe quanto sofri. Depois, quando supus que você tivesse, efetivamente, partido com ele, todas as fúrias do infer­no me assaltaram o coração.

— Pois é disso que eu o censuro! — disse Teresa.

— Mas que quer você, Teresa? Tenho sido tão odiosa­mente enganado em minha vida!

— Eu também tenho sido muito enganada e acreditava em você, apesar de tudo...

— Não falemos mais nisto, minha boa amiga. Sinto pro­fundamente ter sido obrigado a contar-lhe algumas vezes o meu passado. Você é capaz de acreditar que esse passado possa influir no meu futuro e, como Lourenço, eu lhe faça pagar todas as traições de que tenho sido vítima. Vamos refletir, Teresa. Você está aqui num lugar triste. Vamos expulsar todos os pensamentos tristes. Venha para Spezzia.

— Não! — disse Teresa. — Vou ficar aqui.

— Como? Que é isso? Despeito entre nós ambos?

— Não, não, meu caro Palmer! — disse ela, estendendo-lhe a mão. — Afastemos a idéia de casamento e perma­neçamos simplesmente amigos. Retomo, provisoriamente, a minha palavra até poder contar com toda a sua estima, con­forme acreditava possuí-la. Se não quer sujeitar-se a uma pequena prova, separe-mo-nos, imediatamente. Juro-lhe que na situação em que me encontro, não desejo dever-lhe o mais pequeno favor. A minha posição é a seguinte: estou aqui hospedada e alimentada sob promessa, porque não possuo coisa alguma. As últimas moedas que tinha confiei-as a Vicentino, para os gastos da viagem de Lourenço, o estróina. Sei fazer renda mais depressa e melhor do que as mulheres deste lugar. E enquanto espero de Gênova o dinheiro que me é devido, vou ganhando aqui dia a dia, o que me serve, ao menos para recompensar a minha boa estalajadeira; não experimento cons­trangimento algum neste estado de coisas, que deve durar até que me chegue o meu dinheiro. Então, verei qual a resolução que devo tomar. Regresse a Spezzia e volte ver-me, quando quiser. Conversarei com você, fazendo renda...

Palmer foi obrigado a aceitar esta imposição e subme­teu-se de boa vontade. Sentira que seu erro molestara Teresa e esperava recobrar-lhe a confiança.

 

O dinheiro que Teresa esperava não chegou senão ao cabo de quinze dias. Durante esse tempo, ela fez renda, com uma perseverança que desolava Palmer. Quando, finalmente, se viu de posse de algumas notas de banco, pagou, generosamente, à sua estalajadeira e resolveu sair com Palmer, a passear um pouco à margem do golfo. Mas quis ficar ainda algum tempo em Porto Venere, sem saber o motivo por que se sentia presa daquela maneira a tão triste e modesta residência.

Há situações morais, que se revelam melhor, quando não se definem. Era com sua mãe que Teresa se expandia em suas cartas.

 

"Encontro-me, ainda, aqui — escrevia ela à sua mãe, no mês de julho — apesar do calor sufocante. Estou retida como a concha a este rochedo, onde jamais cresceu uma árvore, mas sobre o qual sopram brisas suaves e tonificantes. O clima ê rude, mas sadio, e a visão continua do mar, que antigamente me era insuportável, tornou-se, agora, de qualquer maneira, indispensável para mim.

Algumas vezes, eu e Palmer paramos horas inteiras nos cimos arborizados dos arredores. Lá de cima, mergulha-se numa infinidade de terras cultivadas e recortadas, aqui e além, por uma tal qual regularidade geométrica, por acidentes estra­nhos. Para além dessa imensidade, desenrola-se a perder de vista a imensidão azul do mar. Desse outro lado, o horizonte parece ser sem limites. Do lado do norte e de leste, são os Alpes marítimos, cujos píncaros, em linhas atrevidas, estavam ainda cobertos de neve, quando aqui cheguei.

Mas já não se trata dessas savanas de estepes em flor e arbustos com urzes brancas, que exalam um perfume tão fino e tão fresco nos primeiros dias de maio. Então, isto aqui era um verdadeiro paraíso terrestre.

Mas existe um verdadeiro flagelo em Spezzia: os mos­quitos, pr o criados nas águas estagnadas de um pequeno lago, vizinho da cidade e dos imensos pântanos, que a lavoura está, aos poucos, disputando às águas do mar. Aqui, não são as águas das terras, que nos molestam. Nada de insetos, por conseguinte, nem um talo de erva. Mas que nuvens de ouro e púrpura! Que tempestades sublimes, que calmarias solenes! O mar é uma tela que muda de cor e expressão, a cada minuto, de dia e de noite. Existem, aqui, precipícios cheios de clamo­res, todos os soluços do desespero, todas as imprecações do inferno aí se reúnem e, da minha pequena janela, eu ouço dentro da noite essas vozes do abismo, que bramam numa bacanal sem nome, ou cantam hinos selvagens e temíveis nas suas horas paradas.

Agora, estou gostando de tudo isto, quando eu tinha, no entanto, preferências campestres e gostava dos pequenos recan­tos verdes e tranqüilos. Será que foi porque neste meu amor fatal, adquiri o hábito de amar as tempestades e sentir a necessidade do rumor? É possível;: nós, as mulheres, somos criaturas tão estranhas! Devo confessar-lhe, querida mamãe: foram necessários muitos dias para habituar-me ao meu suplí­cio. Não sabia o que fazer de mim. Não tinha mais a quem servir e de quem cuidar... Não queria falar-lhe, senão deste país, dos seus passeios, das minhas ocupações, do meu triste aposento sob o telhado, ou melhor, sobre o telhado, e onde gosto de ficar sozinha, ignorada, esquecida do mundo, dos deveres, sem clientes, sem negócios, sem, obrigações, sem fazer outro trabalho alem daquele que me interessa...

Se eu lhe disser em que ponto se encontram o meu coração e a minha vontade, a senhora ficará ainda mais inquieta. Pois bem; saiba que estou disposta a casar-me com Palmer, a quem amo, realmente, mas não fixei até agora a data do casa­mento. Receio, por mim e por ele, do dia seguinte ao da realização desse vínculo indissolúvel. Já não estou na idade das ilusões e depois de uma vida como a minha, contam-se por cem anos os anos de experiências e de terrores. Creio que estou absolutamente desligada de Lourenço; agora, porém, já não me sinto independente dele. Depois da sua doença, do seu arrependimento e de suas cartas, adoráveis de doçura e abnegação, cartas que ele me vem escrevendo nestes dois últi­mos meses, sinto que um grande dever me liga a esse moço infeliz e não desejaria melindrá-lo por um abandono completo. É, todavia, o que pode acontecer no dia imediato ao do meu casamento, Palmer teve um momento de ciúme, e com razão, e esse momento pode repetir-se, no dia em que eu tiver o direito de dizer: "Eu quero". Não amo Lourenço. Juro que não. Preferiria morrer a vir a amá-lo de novo. Mas, no dia em que Palmer quiser romper o afeto por uma alma desprotegida que sobreviveu no meu coração, talvez deixe de amar Palmer. É como se a mãe tivesse de abandonar um filho! Tenho dito tudo isto a Palmer e ele compreende, por­que ê um grande filósofo".

Teresa recebeu de Lourenço, naquela mesma ocasião, uma carta tão ardente e tão apaixonada que a deixou inquieta.

 

"Ah! Teresa — escrevia ele, — eu a censurava outrora por amar castamente e ter sido mais feita para o convento do que para o amor. Como foi que pude dizer semelhante barbaridade? Depois que tento voltar à minha vida de prazeres fugazes, sou eu que me sinto tornar-me casto como uma criança e as mulheres, que vejo, dizem-me que sou bom para tornar-me frade.

Teresa, se você não pertence a Palmer não pode pertencer senão a mim. Foram maus todos os nossos dias? Não houve entre eles, também, alguns belos e felizes? Você sofreu muito e está vivendo. Eu, que a fiz sofrer, morro por causa disso. Já não expiei bastante? Já transcorreram três meses de ago­nia para a minha alma!..."

 

Teresa resolveu responder-lhe, dizendo-lhe que amava Pal­mer e esperava amá-lo sempre, mas sem aludir ao casamento, que não podia resolver-se a considerar como resolução já assente.

 

"Fique sabendo, escrevia-lhe ela, — que não foi com a intenção de castigá-lo que ofereci o meu coração e a minha vida a outro. Acredite, meu. caro menino, que ao cuidar de você, durante a sua doença fui, apenas, uma irmã de caridade! Será sempre assim. Todas as vezes que, sem faltar ao que devo a Palmer, puder servi-lo, cuidar de sua saúde, como sua irmã ou como sua mãe, estarei a seu lado. Foi justamente por não se opor a isto que pude amar Palmer e é por isso que o amo. Se me fosse preciso passar dos seus braços para os de seu inimigo, eu teria horror de mim mesma. Mas é justa­mente o contrário que acontece. Foi em virtude de um jura­mento mútuo, que fizemos, — o de velarmos sempre por você e nunca abandoná-lo — que eu e Palmer unimos as nossas mãos."

 

Teresa mostrou essa carta a Palmer, que se sentiu viva­mente emocionado e mostrou, também, desejos de escrever de sua parte, em que lhe fez as mesmas promessas de constante e verdadeira afeição.

Lourenço aguardou novas cartas. Recomeçara para ele um sonho que vira desaparecer. A princípio, impressionou-se, mas resolveu sacudir esse pesar que ele não tinha forças para suportar. Operou-se, então, dentro dele uma dessas revoluções súbitas e completas, que eram, ora um flagelo, ora a saúde de sua existência. E escreveu à Teresa:

 

"Bendita seja Você, minha irmã adorada! Sinto-me feliz e orgulhoso de sua fiel amizade. A sua amizade e a de Palmer comoveram-me até às lágrimas.

Minha querida Teresa, meu caro Palmer: vocês dois são os meus anjos da guarda. Vocês me trouxeram a felicidade. Graças a ambos, em suma, sinto agora que nasci para uma vida diferente daquela que tenho levado. Estou renascendo, sinto o ar do céu descer para os meus pulmões, estes pulmões que sentem a avidez de uma atmosfera pura.

Vou amar! Sim, já estou querendo bem... Amo uma bela jovem, que nada sabe até agora do meu amor e perto da qual sinto um prazer misterioso — o prazer de guardar o segredo do meu coração e de me parecer e tornar tão ingênuo, tão alegre e infantil quanto ela própria."

 

Era mais ou menos deste teor todo o conteúdo da carta de Lourenço. Ao receber esse hino de alegria e de reconhe­cimento, Teresa sentiu pela primeira vez a própria felicidade. Estendeu as mãos a Palmer e perguntou: — Ah! sim! Onde e quando no.s casaremos?

 

Ficou decidido que o casamento se realizaria na América. Palmer teria uma imensa alegria de apresentar Teresa à sua mãe e receber sob suas vistas a bênção nupcial.

A Fragata "Union" fazia os seus preparativos para a partida. O capitão Lawson oferecera-se para conduzir Palmer e sua noiva.

Tendo-se preparado para embarcar a 18 de agosto, Teresa recebeu uma carta de sua mãe a qual lhe suplicava que, primeiramente, fosse a. Paris, mesmo por uma demora de um dia. Tinha que ir à capital francesa tratar de certos negócios de família e ela não podia saber quando Teresa re­gressaria da América.

A pobre senhora não se sentia muito feliz com os seus outros quatro filhos, aos quais o exemplo de um pai descon­fiado e de mau temperamento tornava insubmissos e frios para com ela. Por isso, adorava Teresa, que sempre havia sido uma filha terna e amiga dedicada. Queria abençoá-la e beijá-la, quiçá pela última vez, pois sentia-se velha, doente e cansada de uma existência sem segurança e sem conforto familiar.

Palmer ficou mais contrariado por essa carta porque não podia confessar a sua contrariedade.

Embora tivesse admitido com satisfação mais ou menos aparente a certeza de uma amizade duradoura entre ele e Lourenço, Palmer não deixava de mostrar-se inquieto, pen­sando nos sentimentos que ele poderia despertar em Teresa, logo que ela o tornasse a ver. Eram esses os seus pensamentos, quando a fragata norte-americana fez troar no golfo de Spezzia a salva de seus canhões em despedida, durante todo o dia 18 de agosto.

Cada uma dessas explosões fazia-o estremecer; na última, torceu os dedos a ponto de fazê-los estalar.

— Que é isso, santo Deus? — exclamou Teresa, olhando para ele com atenção? Que pressentimento o oprime?

— Sim, é isso mesmo! — respondeu Palmer. Um pres­sentimento! Por Lawson, meu amigo de infância. Não sei porquê... Sim, é um pressentimento!

— Julga que lhe vai acontecer alguma desgraça no mar?

— Talvez! Quem sabe? Enfim, você não ficará exposta a essa desgraça, porque vamos a Paris.

— A "Union" passará por Brest, onde deverá demorar-se uns quinze dias. É lá que devemos embarcar?

— Sim, caso daqui até lá não aconteça alguma catástrofe. Palmer ficou triste e abatido, sem que Teresa conseguisse adivinhar o que nele se passava. Como poderia ela adivinhar? Lourenço achava-se longe, em Baden, numa.estação de águas e estava também preocupado com os seus projetos de casa­mento, segundo escrevera.

Partiram no dia seguinte, pela posta*, sem se deter em parte alguma, penetrando na França por Turim e monte Cenis. A viagem foi extraordinariamente triste. Palmer via em tudo prenúncios de desgraça, dando mostras de su­perstições e fraqueza de espírito, que não faziam realmente parte de seu caráter. Teresa nunca o vira assim. E não pôde deixar de dizer-lho. Ele respondeu-lhe com uma palavra insignificante, que não dizia coisa alguma, mantendo a sua fisionomia sombria e com tais sinais de cólera que ela teve medo dele e medo do futuro...

 

*Mala-posta, antiga diligência, que transportava as malas do correio e alguns passageiros. (Nota do "Clube do Livro").

 

Enquanto Teresa e Palmer entravam na França pelo monte Cenis, Lourenço regressava a Paris, procedente de Ge­nebra, chegando a Paris, algumas horas antes de seus amigos, repassado da mais viva angústia.

Descobrira, finalmente, que para fazer que ele viajasse durante alguns meses, Teresa se havia desfeito de tudo quanto possuía. Por intermédio de uma pessoa que tinha passado nessa época pela cidade de Spezzia soubera que a senhorita Jacques vivia em Porto Venere em situação mais que precária, fazendo renda para pagar à estalajadeira as seis libras por mês que havia combinado.

Humilhado, arrependido, irritado e aborrecidíssimo, Lourenço procurava alguém que o pudesse informar a res­peito da situação atual de Teresa. Ele sabia que ela era por demais altiva para aceitar dinheiro de Palmer e confessava a si próprio que se Teresa não houvesse recebido o pagamento de seus trabalhos de pintura em Gênova, devia ter vendido os seus móveis em Paris.

Lourenço correu aos Campos Elíseos, tremendo de receio de encontrar pessoas desconhecidas já morando na pequena casa da qual não se aproximava nunca sem que o coração lhe palpitasse violentamente no peito. Ignorava o próximo casamento de Teresa e até mesmo se ela se sentia livre para realizar esse casamento. A última carta, que ela lhe escrevera sobre o assunto, chegara de Baden, no dia seguinte da sua partida.

Foi com extrema alegria que viu a velha Catarina abrir a porta da casa. Saltou ao pescoço da velha, mas ficou repenti­namente consternado vendo o semblante triste da mulher.

— Que vem aqui fazer? — perguntou Catarina de mau modo. Não sabe que a senhorita chega, hoje? Não pode deixá-la sossegada? Quer provocar nova desgraça? Disseram-me que vocês se haviam separado e confesso que fiquei muito contente com a notícia. Porque, depois de ter gostado tanto do senhor, confesso que o detestava agora. O senhor era o causador de todas as suas dificuldades. Vamos, não fique à espera da senhorita, a não ser que tenha o propó­sito de fazê-la morrer!

— Você disse que ela chega, hoje? — exclamou Lourenço, repetidas vezes.

Lourenço sentia-se dominado por uma singular emoção. Perguntava a si próprio por que seria que Teresa regressava a Paris, sem tê-lo prevenido. Viria com Palmer? Esse brusco e misterioso regresso não significaria uma ruptura com Palmer?

Semelhante idéia foi ao mesmo tempo motivo de júbilo e horror. Mil emoções opunham-se e contradiziam-se no seu cérebro, agitando-lhe os nervos. Num momento, esqueceu-se, insensivelmente, da realidade e figurou-se-lhe que aqueles móveis cobertos de tela cinzenta eram os túmulos de um cemi­tério. Sempre tivera horror da morte e contra a sua vontade pensava incessantemente nela, vendo-a em redor de sua pessoa, sob as mais variadas formas. Julgou-se envolto naquelas mor­talhas e ergueu-se com medo, exclamando:

— Quem foi que morreu? Teresa? Palmer? Vejo-o, sinto-o... Alguém morreu nesta região onde acabo de entrar. Não, foi você! — respondeu ao eco da própria voz, falando a si mesmo — foi você que viveu nesta casa os melhores dias da sua vida e agora volta inerte, abandonado, esquecido, seme­lhante a um cadáver!.

Catarina, sem ele dar por isso, voltou ao aposento, levantou as telas, espanou os móveis, abriu as janelas e as persianas, colocou flores nos grandes vasos da China, nas consolas doura­das. Depois, abeirando-se dele, perguntou:

— Que está o senhor fazendo, aqui?

Lourenço despertou do seu sonho e, olhando em redor, numa alucinação, viu flores reproduzidas nos espelhos, os móveis com incrustações de cobre e tartaruga, que brilhavam ao sol e todo aquele ar de festa que se seguira, como por magia, ao aspecto fúnebre da ausência que, efetivamente, tanto se assemelha à morte.

A sua alucinação tomou novos rumos.

— Que é que eu faço aqui? — perguntou, com ar sombrio, sim, que estou eu fazendo aqui? Hoje é dia de festa em casa de Teresa. É um dia de esquecimento e embriaguez, e, certa­mente, não é a mim — um morto — que ela espera... Que faz um cadáver nesta câmara nupcial? Que dirá ela, ao ver-me aqui? Dirá como você, pobre velha: "Saia daqui! seu lugar é no túmulo!"

Parecia delirante de febre. Catarina teve pena.

— Está louco! — pensou. De resto, sempre o foi... E quando ia dizer-lhe algumas palavras com doçura, a fim de afastá-lo, ouviu o rumor de uma carruagem, que para­va à porta da rua. Na alegria de tornar a ver Teresa, Catarina esqueceu-se de Lourenço e correu a abrir a porta.

Palmer viera em companhia de Teresa, mas, desejando desembaraçar-se logo da poeira da viagem e não querendo deixar a Teresa o encargo de despedir a carruagem, subiu novamente e mandou o cocheiro seguir para o Hotel Maurice, dizendo à Teresa que lhe mandaria as malas dentro de duas horas, quando voltaria para cear com ela.

Teresa abraçou a sua boa Catarina e, perguntando-lhe como havia passado durante todo aquele tempo, entrou em casa com essa curiosidade impaciente, inquieta e alegre que se sente ao tornar a ver um lugar, onde se viveu durante muito tempo, de maneira que Catarina não teve oportunidade de in­formar-lhe que Lourenço estava lá e ela surpreendeu-o pálido, absorto e como que petrificado no sofá do salão. Ele não ouvira o ruído da carruagem, nem o bater das portas, preci­pitadamente abertas. Estava mergulhado nos seus lúgubres devaneios, quando a viu diante dos olhos. Lourenço, soltando um grito, atirou-se-lhe ao pescoço, abraçando-a, sufocando-a, caindo quase sem sentidos a seus pés.

Foi necessário desapertar-lhe a gravata e fazer-lhe cheirar um frasco de éter. A sua respiração era arquejante e as pulsações do coração tão violentas que todo o seu corpo parecia sacudido por fortes comoções elétricas.

Assustada, ao vê-lo assim, Teresa julgou que ele tivesse recaído doente. Todavia, o frescor da mocidade depressa lhe voltou às faces e ela notou que ele tinha mesmo engordado. Lourenço jurou que nunca se sentira tão bem disposto. Sentia-se feliz ao vê-la tão formosa, como no primeiro dia que a conhecera. Ajoelhou-se diante dela e beijou-lhe os pés, dando as mais vivas provas do seu respeito e da sua adoração. Tão vivas eram essas efusões que Teresa chegou a inquietar-se, julgando dever lembrar-lhe que dentro em breve teria de seguir novamente viagem, a fim de casar-se com Palmer.

— Como? Que está dizendo? — gritou Lourenço, pálido como se um raio lhe tivesse caído aos pés. Partir?... Casar!... Como? Por quê? Será que estou sonhando, ainda?

— Sim! — respondeu Teresa, escrevi-lhe a esse respeito. Então, não recebeu a minha carta?

— Partir!... Casar! — repetia Lourenço. Mas você dizia antigamente que isso era impossível. Lembre-se!

— O conde das três estrelinhas morreu; agora, estou livre.

Lourenço ficou tão aturdido com semelhante revelação que se esqueceu de todos os seus projetos de amizade frater­nal e desinteressada. O que Teresa previra em Gênova reali­zava-se, agora, nas condições mais singulares.

Então, formou uma idéia exaltada da felicidade que teria sido sua se houvesse se tornado esposo de Teresa, como devia ser, e derramou lágrimas abundantes. Sua dor era tão sincera e profunda que Teresa não pôde deixar de compartilhar sua aflição. Nunca tinha podido ver Lourenço sofrer sem sentir em si como que toda a compaixão da maternidade. Tentou em vão deter as próprias lágrimas, Não se iludiu, porém; esse desespero de Lourenço outra coisa não era senão... uma vertigem! Mas essa vertigem refletia-se sobre os seus nervos e os nervos de uma mulher como Teresa são as próprias fibras do coração.

Finalmente, conseguiu acalmar o jovem, fazendo-lhe aceitar o seu casamento como a melhor das soluções para um e outro.

Palmer entrou sem que se ouvisse o rumor de seus passos. Sem qualquer premeditação, vinha desconfiado. Parou à porta da sala e reconheceu a voz de Lourenço.

— Eu estava bem certo disto! — disse ele de si para consigo, desabotoando a luva, furioso. E bateu à porta.

— Entre! — gritou Teresa, admirada de que alguém lhe batesse à porta da sala. Ao ver Palmer, ficou pálida. O gesto do americano era mais eloqüente do que todas as palavras. Ele suspeitava dela. Palmer notou essa palidez, sem com­preender-lhe a causa. Viu que Teresa havia chorado e que Lourenço tinha a fisionomia alterada.

O primeiro olhar que ambos trocaram foi de ódio e pro­vocação. Depois, indecisos, dirigiram-se um para o outro, mal sabendo se se estenderiam as mãos num cumprimento cordial, ou se estrangulariam um ao outro.

Lourenço foi, no momento, o melhor e mais sincero dos dois, pois seus movimentos espontâneos redimiram as suas culpas. Abriu os braços e abraçou efusivamente Palmer, sem procurar ocultar-lhe as lágrimas, que recomeçavam a sufocá-lo.

— Que vem a ser isto? — perguntou Palmer, olhando para Teresa.

— Não sei! — respondeu ela com segurança. — Acabo de dizer-lhe que estamos de viagem marcada para casar-nos. Isso o tornou muito pesaroso. Diga-lhe, Palmer, que, perto ou longe, gostaremos sempre muito dele.

— É uma verdadeira criança cheia de mimo! — disse Palmer. — Ele devia saber que só existe uma palavra e que acima de tudo desejo a sua felicidade. Será preciso levá-lo para a América, para ele deixar de afligir-se e de chorar?

Estas palavras foram pronunciadas em tom indefinível de amizade paternal, num misto de certo amargor invencível.

Teresa compreendeu. Pediu a Catarina o xale e o chapéu e disse a Palmer:

— Vamos todos jantar no restaurante. Catarina só es­perava por mim; o jantar não chega para nós quatro.

— Quer dizer, para nós três, disse Palmer em tom sempre meio amargo.

— Mas eu não vou jantar com vocês dois — disse Lourenço, que compreendera o que se estava passando no espírito de Palmer. Eu vou indo embora. Voltarei, depois, para apresentar as minhas despedidas. Em que dia vão partir?

— Dentro de oito dias! — respondeu Teresa.

— Oito dias, pelo menos, acrescentou Palmer, olhando para ela, de modo estranho. Mas, não é motivo para não jantarmos hoje os três. Dê-me esse prazer, Lourenço. Depois do jantar, daremos algumas voltas de carruagem, pelo Bosque do Bolonha. Peço-lhe que aceite o convite.

— Já estou comprometido — explicou Lourenço.

— Bem, — tornou Palmer, liberte-se desse compromisso. Aqui, tem papel e tinta; escreva.

O americano falou num tom tão decidido que mais parecia absoluto. Lourenço acreditou que fosse esse o seu tom acos­tumado de sinceridade e franqueza. Teresa teria bem desejado que ele mantivesse a recusa e, assim, num rápido olhar, lho fez compreender. Mas Palmer não o perdia de vista e dir-se-ia disposto a interpretar tudo da maneira mais desfavorável.

O jantar foi de uma tristeza mortal. Embora Palmer, que assumira o papel de anfitrião, intimamente desejasse e fizesse o possível para servir aos convivas as iguarias e os vinhos mais finos, tudo lhe parecia amargo. Lourenço, apesar de seus vãos esforços para reviver a situação de espírito que gozara em Florença, no dia subseqüente à sua moléstia, entre aquelas duas pessoas, não quis acompanhá-los no passeio pelo Bosque de Bolonha.

Palmer, que, para atordoar-se, bebera um pouco mais, além de seus hábitos, insistiu de maneira particularmente irritante.

— Não se obstine assim; Lourenço tem motivos para recusar. No Bosque de Bolonha, em carro descoberto,, ficare­mos à vista de toda gente e poderemos encontrar pessoas que nos conhecem. Essas pessoas não são obrigadas a saber em que situação excepcional nos encontramos e poderiam até pensar a nosso respeito coisas muito desagradáveis.

— Bem, então voltemos para casa, — disse Palmer. Depois, eu sairei a passear sozinho; sinto necessidade de ar fresco.

Lourenço esquivou-se, vendo que Palmer tinha intenção reservada de deixá-lo a sós com Teresa, naturalmente para observá-los ou surpreendê-los. Regressou a casa, oprimido por uma grande tristeza, dizendo a si mesmo que, talvez, Teresa não se sentisse muito feliz.

Passaram-se, rapidamente, os oito dias seguintes, dias que fizeram que, de hora em hora, mais periclitasse o romance heróico sonhado mais ou menos fortemente por esses três amigos.

A mais enganada fora Teresa, pois após temores e pre­visões prudentes, resolvera comprometer a sua vida, e fossem quais fossem as injustiças de Palmer, ela desejava e devia manter a sua palavra.

Palmer desembaraçou-se de tudo isso, após uma série de suspeitas mais ultrajantes pelo silêncio do que todas as injúrias de Lourenço.

Certa manhã, Palmer, depois de ter passado a noite toda no jardim da casa de Teresa, ia saindo quando ela lhe surgiu do lado do gradil, obrigando-o a parar.

— Muito bem! Você esteve de atalaia durante seis horas e eu o estava vendo do meu quarto. Agora, está realmente bem convencido de que ninguém veio esta noite à minha casa?

Teresa estava irritada e, entretanto, ao provocar a expli­cação que Palmer lhe recusava, esperava ainda inspirar-lhe confiança. Ele, porém, compreendeu-o de outro modo.

— Vejo que você se cansa de mim — uma vez que exige uma confissão, após a qual eu seria desprezível a seus olhos. Será que a tenho injuriado e vexado com sarcasmos amargos? Já lhe escrevi volumes de ultrajes para no dia seguinte vir chorar a seus pés e fazer-lhe promessas delirantes, sem o propósito de torturá-la no dia seguinte? Tenho-lhe feito per­guntas indiscretas? Por que não dormiu tranqüilamente esta noite, enquanto eu estava sentado num banco, sem perturbar o seu sono com gritos e lágrimas? Não lhe será possível per­doar-me um sofrimento de que, talvez, eu me envergonhe e que, ao menos, tenho o orgulho de desejar e saber esconder? Você perdoou muito mais do que tudo isso a alguém que não possuía, entretanto, a mesma coragem.

— Eu não lhe perdoei coisa alguma, Palmer. Quanto a esse sofrimento que você confessa e acredita ocultar tão bem, saiba que ele é claro a meus olhos como a luz do dia, e sofro mais do que você, por isso. Fique sabendo que ele me humilha profundamente e que, nascido de um homem forte e prudente como você, me fere cem vezes mais intensamente do que os ultrajes de uma criança em delírio, que é Lourenço.

— Sim, isso é verdade, — respondeu Palmer. Assim, agora, está melindrada por minha culpa e irritada contra mim. Pois bem, tudo está acabado entre nós. Faça por mim o que fez por Lourenço: conserve-me a sua amizade.

— Então, abandona-me dessa maneira?

— Sim, Teresa. Mas, não se esqueça de que quando você se dignou comprometer-se comigo, eu já havia posto a seus pés o meu nome, a minha fortuna, toda a minha consideração. Só tenho uma palavra e manterei o que prometi. Casemo-nos aqui, sem ruído e sem alegria, aceite o meu nome e a metade dos meus rendimentos. Depois...

— Depois? — perguntou Teresa.

— Depois, eu partirei; irei abraçar minha mãe e você ficará livre!

— Isso não passa de ameaça de suicídio, o que você me propõe...

— Não, palavra de honra! O suicídio é uma vileza quando se tem mãe semelhante à minha. Vou viajar; vou recomeçar a minha volta pelo mundo e você nunca mais tor­nará a ouvir falar de mim.

Teresa ficou revoltada com semelhante proposta.

— Isso poderia parecer-me uma brincadeira de mau gosto, Palmer — disse ela, — se eu não o conhecesse e não tivesse na conta de homem sério. Quero acreditar que você me há de julgar incapaz de aceitar esse nome e esse dinheiro que me oferece como solução de um caso de consciência. Não volte jamais a fazer-me semelhante proposta, Palmer; isso me ofenderia.

— Teresa! — exclamou Palmer com violência, apertando-lhe o braço até fazê-la sofrer. — Jure, pela memória de seu filho, que você perdeu, que não ama Lourenço e eu imediatamente caio a seus pés, a pedir-lhe perdão da minha injustiça.

Teresa retirou o braço magoado e fitou Palmer em silêncio. Sentia-se ofendida até ao âmago do coração, em virtude do juramento que ele lhe exigia e encontrava nisso a fórmula mais cruel e mais brutal do que o mal físico que acabava de sofrer.

— Meu filho! — exclamou ela, finalmente, — com voz abafada de soluços na garganta, — juro por ti, que deves estar no céu, que homem algum jamais aviltará tua pobre mãe!

Teresa ergueu-se e refugiou-se no seu quarto, fechando-se por dentro. Percebia um futuro horrível com um homem que sabia tão bem dissimular ou incubar um ciúme profundo. Ela meditava sobre a horrível existência de sua mãe com um marido que sentia ciúmes do seu passado e dizia a si mesma, e com razão, que depois da desdita de ter suportado uma paixão como a de Lourenço, seria verdadeiramente uma coisa insensata acreditar na felicidade com outro homem.

Palmer, com o seu temperamento e com o seu orgulho não podia esperar tornar Teresa feliz, depois do que acabava

de suceder. Via que nunca se curaria do seu ciúme e continuava a acreditar que esse ciúme tinha algum fundamento. Eis uma carta que ele escreveu à Teresa:

 

"Minha boa amiga, perdoe-me se tenho sido motivo de aborrecimento. Mas não posso deixar de reconhecer que a ia arrastando a um abismo de desespero. Você ama Lourenço. Sempre o amou, talvez mesmo contra a sua vontade e há de amá-lo sempre, provavelmente., Ê o seu destino. Quis afastá-la desse amor; você, também, o quis. Reconheço, também, que você ao aceitar o meu amor foi sincera e o fez a fim de corres­ponder ao meu afeto. Alimentei em mim muitas ilusões. Mas, cada dia que se passava, depois dos acontecimentos de Florença, eu sentia que essas ilusões iam desaparecendo. Se ele continuasse a ser ingrato, eu estaria salvo, mas o seu reconhe­cimento e o seu arrependimento acabaram por enternecê-la. Até eu mesmo fiquei emocionado, esforçando-me, todavia, em manter-me perfeitamente tranqüilo. Mas foi debalde. Houve, então, entre vocês dois, por minha causa, sofrimentos que nunca você me confessou, mas que eu adivinhei. Ele ia readquirindo a sua paixão e você, defendendo-se por todos os meios, lasti­mava o fato de pertencer-me. Foi, então, que você teve de retirar a sua palavra. Eu estava pronto a devolvê-la. Deixei-a livre para seguir com ele até Spezzia. Por que o não fez?

Perdoe-me se a censuro por ter sofrido muito para tor­nar-me feliz e unir-me a você. Também combati muito, juro-o por Deus. Agora, se quer aceitar ainda toda a minha dedicação, estou pronto para lutar e sofrer ainda. Veja se quer sofrer, também, e se, acompanhando-me até à América, espera curar-se dessa paixão infeliz que a ameaça com um futuro deplorável. Estou pronto a levá-la comigo.

Mas não falemos mais em Lourenço — isso eu lhe su­plico — e não me culpe por ter descoberto a verdade. Fiquemos sempre amigos; venha morar com minha mãe. E se, dentro de alguns anos, não me julgar indigno de si, aceite o meu nome

e sua estada na América sem jamais ter a intenção de regressar à França.

Ficarei à espera de sua resposta nestes oito dias, em Paris.

Ricardo".

 

Teresa rejeitou essa oferta, que era uma ofensa ao seu amor-próprio. Ainda amava Palmer embora se sentisse ofen­dida por ser assim recebida, sem ter de exprobrar-se pelo confrangimento de seu coração. Via, também, que não poderia refazer qualquer espécie de convívio com ele, sem que isso contribuísse para fazer durar um suplício que ela já não sentia forças para dissimular. Sua vida, dali por diante, seria uma luta ou uma amargura de todos os momentos.

Deixou Paris, em companhia de .sua criada Catarina, sem dizer a ninguém aonde ia e encerrou-se numa pequena casa de campo, na província, que alugou por três meses.

 

Palmer partiu para a América, levando dignamente uma profunda ferida na alma, não admitindo de maneira alguma que se houvesse enganado.

Acreditara-se capaz de curar Teresa daquele amor fatal e com sua fé exaltada havia conseguido esse milagre. Mas perdia o fruto desse milagre, no momento de o recolher, porque lhe faltara a fé durante a última prova.

Se Palmer fosse um homem verdadeiramente forte, ou se a sua força tivesse sido mais ponderada e serena, poderia salvar Teresa dos desastres que pressentia na sua vida. Assim ele deveria ter agido, porque ela confiara na sua pessoa, com urna sinceridade e um desinteresse merecedores de solicitude e respeito. Muitos homens, porém, que possuem a aspiração e a ilusão da sua força, têm, apenas, energia e Palmer era do número daqueles sobre os quais a gente pode enganar-se por muito tempo. Todo o seu mal estava em acreditar na duração inabalável daquilo que em sua personalidade não passava de um esforço de sua vontade.

A princípio, Lourenço não teve conhecimento da partida; de Palmer para a América. Ficou consternado ao saber igualmente que Teresa havia viajado sem se despedir. Rece­bera dela apenas estas três linhas:

"Você foi, na França, o único confidente do meu proje­tado casamento com Palmer. Esse casamento desfez-se. Guardemos agora esse segredo. Parto.”

 

Escrevendo estas poucas e frias palavra a Lourenço, Te­resa experimentava uma espécie de amargura contra ele. Não era essa criança fatal a causa de todas as suas desgraças e de todos os seus aborrecimentos na vida?

Durante os três meses que se seguiram à partida de Palmer, Lourenço continuou a mostrar-se digno da amizade de Teresa. Descobrira o lugar do seu retiro, mas nada fez para perturbar o seu sossego.

Escreveu-lhe, queixando-se, docemente, da frieza de suas despedidas, censurando-a por não ter confiança nele, nos seus aborrecimentos e por não o haver tratado como irmão. Depois, vinham certas perguntas às quais Teresa se vira for­çada a responder. "Palmer faltara-lhe ao respeito? Era preciso exigir dele uma reparação? Cometi alguma imprudência que a magoasse? Tem qualquer censura a fazer-me? Não creio, meu Deus! Se sou causa de sua dor, responda-me aspera­mente e permita-me que chore consigo".

Teresa justificou o procedimento de Ricardo Palmer, sem querer dar qualquer explicação. Na sua generosa atitude de não permitir qualquer nódoa sobre a lembrança de seu ex-noivo, ela deixava acreditar que a ruptura advirá unicamente de sua parte.

Isso era, talvez, restituir a Lourenço esperanças que ela jamais tivera a intenção de confiar-lhe, mas há situações em que, faça-se o que se fizer, se procede desastradamente e se corre fatalmente para a própria destruição.

Lourenço recomeçou a trabalhar com ardor, artista genial que era, com a resolução de nunca mais voltar a cair na depressão. Seu coração sangrava, recordando-se das privações que Teresa havia sofrido para animá-lo, o bom ar e a saúde, numa viagem à Suíça. E resolveu livrar-se o mais depressa possível dessa obrigação.

Teresa sentiu logo que a afeição do seu pobre menino, como sempre o intitulava, lhe era grata e que, se pudesse continuar assim, ela teria o mais puro e o melhor sentimento de sua vida.

Teresa animava Lourenço com respostas maternais, aconselhando-o a que continuasse a trilhar a senda do trabalho, que ele afirmava ter novamente tomado.

Essas cartas eram muito doces e resignadas, de uma ter­nura casta. Mas Lourenço não teve dúvida em verificar que nelas se manifestava uma tristeza mortal. Teresa dizia achar-se um pouco enferma e vinham-lhe idéias fúnebres, das quais ela sorria com amargura e melancolia. Estava, realmente, enfer­ma. Sem amor e sem trabalho, sentia-se devorada pelo tédio. Levara consigo pequena soma em dinheiro, que era o resto do que havia ganho em Gênova. Economizava, rigorosamente, esses recursos, a fim de permanecer no campo o maior espaço de tempo possível. Ficara com horror de Paris. Também era possível que pouco e pouco sentisse um certo desejo de rever Lourenço, modificado e submisso, corrigido de seus erros, como se concluía de suas cartas.

Esperava que ele se casasse. Como já certa vez tivera essa veleidade, era bem possível que essa idéia lhe voltasse ao espírito, e ela animava-o em tal sentido. Ele, ora, dizia que sim; ora, que não.

Teresa esperava, naturalmente, que algum indício do seu velho amor voltasse a aparecer nas cartas de Lourenço. Essa recordação voltava, com efeito, até certo ponto, mas era agora com extrema delicadeza e as suas alusões a um sentimento mal abafado eram, apenas, manifestações de uma ternura suave, de uma sensibilidade expansiva, uma espécie de piedade filial e entusiasta.

Quando chegou o verão, Teresa, esgotados todos os seus recursos, viu-se obrigada a regressar a Paris, onde tinha sua clientela. Não comunicou o seu regresso a Lourenço, pois não desejava vê-lo desde logo. Mas, fosse por estranha pre­monição, ele passou pela rua pouco freqüentada em que ficava a casa de Teresa.

Vendo as venezianas abertas, entrou, louco de alegria, uma alegria ingênua, quase infantil, que teria tornado ridícula e pretensiosa toda desconfiança e reserva.

Lourenço esperou que Teresa acabasse de jantar, suplicando-lhe que fosse à noite à sua casa para ver uma tela que acabara de pintar e a respeito da qual desejava saber a sua impressão, antes de expô-la ao público. Estava já vendida e paga, mas se ela notasse qualquer reparo, ele trabalharia ainda alguns dias no quadro, aperfeiçoando-o.

Passara o tempo deplorável em que Teresa não entendia daquilo e tinha a compreensão tacanha e realista dos pintores de retratos e era ainda incapaz de compreender uma obra de imaginação etc. Ela agora era a sua musa e a sua potência inspiradora. Sem o auxílio de seu divino sopro, ele nada poderia realizar. Com os seus conselhos e palavras de anima­ção, o seu talento cumpria todas as promessas.

Teresa esqueceu o passado e, sem embriagar-se com o presente, julgou não dever recusar aquilo que um artista jamais recusa a um colega. Tomou uma carruagem e, de noite, foi à casa de Lourenço.

O estúdio estava iluminado e o quadro concluído, deslum­brante de luz. Essa tela era um belo trabalho. Aquele estranho gênio era capaz de realizar, quando repousado, rápidos progressos que nem sempre conseguem obter os que trabalham com afinco e perseverança.

Havia, porém, em conseqüência de suas viagens e de sua enfermidade, o espaço de um ano, na execução do seu trabalho. Dir-se-ia que, devido à reflexão, ele se sentia liberto dos defeitos de sua primitiva exuberância. Havia adquirido, ao mesmo tempo, outras qualidades que, aparentemente, ninguém acreditaria fossem apanágio de sua natureza, como a correção do desenho, a suavidade e delicadeza dos tipos, o encanto da execução, tudo, enfim, que dali por diante devia agradar ao público, sem prejudicar o seu merecimento junto dos seus colegas de arte.

Teresa sentiu-se enternecida e encantada, exprimiu-lhe em termos eloqüentes a sua admiração. Disse-lhe palavras capazes de fazer renascer nele o nobre orgulho de seu talento sobre as más atrações do passado. Não encontrou coisa alguma a notar ou corrigir naquele trabalho e aconselhou mesmo Lourenço a não fazer qualquer retoque.

Modesto nas maneiras e na linguagem, Lourenço tinha ainda mais orgulho do que Teresa desejava atribuir-lhe. No fundo do coração, sentia-se embriagado com os seus elogios. Sentia, perfeitamente, que de todas as pessoas que podiam apreciá-lo era ela a mais atenciosa e a mais competente. Vol­tava-lhe, também sentia, aquela imperiosa necessidade de que ela compartilhasse de suas alegrias e de seus tormentos de artista, e a esperança de ser um mestre, quer dizer, um homem, coragem que somente ela era capaz de dar-lhe nos seus desfalecimentos.

Quando Teresa acabou de analisar durante muito tempo o quadro de Lourenço, voltou-se a fim de examinar certa figura para a qual o artista chamara a sua atenção, dizendo-lhe que certamente iria ficar ainda mais satisfeita. Mas, em vez de uma tela, Teresa viu sua mãe, de pé, sorridente, à entrada do quarto de Lourenço.

A senhora C..., viera a Paris, sem saber ao certo em que dia Teresa deveria chegar. Tinha negócios muito sérios a tratar. Seu filho ia casar-se e achava-se desde algum tempo em Paris.

A mãe de Teresa sabedora de que sua filha reatara suas relações com Lourenço e temendo por seu futuro, viera surpreender Lourenço com a intenção de dizer-lhe tudo aquilo que a mãe dedicada e amorosa pode dizer a um homem, a fim de impedir-lhe que viesse a causar a infelicidade de sua filha.

Lourenço tranqüilizara a pobre mãe inquieta e conseguira que ela se demorasse, dizendo-lhe:

— Teresa vai chegar. Será a seus pés que eu quero jurar que sempre serei para ela o que ela quiser, seu irmão, seu noivo, seu esposo, e, em qualquer caso, seu escravo sempre!

Para Teresa, foi agradável surpresa encontrar sua mãe que tão cedo não esperava tornar a ver. Abraçaram-se, cho­rando de alegria. Lourenço conduziu-as a um pequeno salão todo enfeitado de flores, onde foi servido o chá, aliás com muito luxo. Lourenço era rico; acabara de ganhar dez mil francos. Sentia-se feliz e orgulhoso em restituir a Teresa tudo quanto ela havia gasto com ele. Foi em todos os pontos de vista adorável, naquela noite. Ganhou o coração da filha e a confiança da mãe e além do mais teve a delicadeza de não dizer a Teresa uma única palavra de amor. Ao beijar as mãos juntas das duas criaturas, exclamou com sinceridade que era esse o mais belo dia de sua existência e que nunca se sentira tão feliz e tão satisfeito consigo mesmo.

A senhora C..., foi a primeira que, ao termo de alguns dias, abordou com Teresa a possibilidade de casamento. A pobre senhora, que sacrificara tudo à consideração exterior e que, apesar de seus desgostos domésticos, acreditava ter pro­cedido bem, não podia tolerar a idéia de ver sua filha abando­nada por Palmer. Pensava que dali por diante Teresa tinha razão para proceder outra escolha. Lourenço atingira o clima da celebridade e seu nome estava muito em voga. Nunca o seu casamento seria mais aconselhável e adequado. O jovem artista estava redimido de seus erros e caprichos. Teresa tinha sobre ele uma influência que havia dominado as maiores crises da sua agitada e penosa transformação. Parecia tornar-se um dever para ambos reatar uma cadeia que nunca chegara a romper-se completamente e por mais que fizessem, dali por diante, jamais conseguiriam quebrar inteiramente.

Lourenço desculpava-se dos erros do passado com argu­mentos muito curiosos. Fora Teresa quem principiara por estragá-lo com excessos de doçura e resignação. Se desde a sua primeira ingratidão ela se houvesse mostrado ofendida poderia tê-lo corrigido de maus hábitos contraídos numa vida dissipada, cedendo aos seus caprichos e arrebatamentos.

Sem esse amor malogrado, jamais Palmer teria a idéia de casar com ela. E o esforço que ela fez para comprometer-se com ele não passava de uma reação de desespero. Lourenço nunca chegara a desaparecer de sua vida. O argumento que Palmer fora levado a empregar para convencê-la .era um per­pétuo retorno a essa funesta amizade amorosa que ele desejava fazer que ela esquecesse, e ele sentia-se fatalmente arrastado a lembrar-lhe incessantemente essa presença.

Além disso, a volta à amizade, após o rompimento, fora para Lourenço verdadeiramente um retorno à paixão, enquanto para Teresa não fora senão uma fase de dedicação, mais delicada e mais terna do que o próprio amor.

Ela havia sofrido o abandono de Palmer, mas com sere­nidade. Ainda tinha forças contra a injustiça e pode mesmo dizer-se que nisso consistia toda a sua força.

Lourenço estava condenado a uma fatalidade inexorável, como ele próprio confessava nos seus momentos de lucidez. Dir-se-ia que nascido da fusão de dois anjos, sugara o leite de uma fúria e desse leite ficara-lhe no sangue um lêvedo de arrebatamento e desespero. Era dessas naturezas vulgares, que não serão, talvez, tão comuns na espécie humana e nos dois sexos, e que, com todas as sublimidades da idéia e todos os transportes do coração, não conseguem atingir o clímax de suas faculdades sem imediatamente caírem numa espécie de epilepsia intelectual.

Além disso, à semelhança de Palmer, ele queria ousar o impossível que é enxertar a felicidade sobre a desesperança e experimentar as alegrias celestes da fé conjugai e da amizade santa sobre as ruínas de um passado, recentemente reduzido a escombros.

Eram necessários serenidade e recursos para curar essas duas almas ensangüentadas das feridas que haviam recebido. Teresa desejava esse repouso com a angústia de um terrível pressentimento e Lourenço acreditava ter vivido dez séculos durante os dez meses de sua separação. Tornava-se doente com o excesso de um desejo d'alma que era de natureza a provocar em Teresa maior espanto do que um impulso dos sentidos.

Infelizmente, foi pela natureza desse desejo que ela se deixou tranqüilizar. Aparentemente, Lourenço estava regene­rado ao ponto de reintegrar o amor moral no lugar que ele deve ocupar em primeira linha. Encontrava-se só com Teresa, sem todavia inquietá-la, como outrora, com seus arrebatamentos.

Ele sabia falar-lhe, durante horas inteiras, com uma afeição quase sublime e sentia, afinal, que o seu gênio se dilata­va e alçava vôo para regiões superiores. Impunha-se ao futuro de Teresa, mostrando-lhe incessantemente que tinha de realizar, para si mesmo uma tarefa sagrada, a de subtrair-se aos enlevos da mocidade, às más ambições da idade madura e ao egoísmo mesquinho da velhice. Falava-lhe dele próprio e sempre dele próprio. Por que não? Não falava tão bem? Por causa dela, seria um grande artista, um grande coração, um homem su­perior. Ele lhe devia isso porque fora ela quem lhe salvara a vida. E Teresa com a natural ingenuidade dos corações meigos chegava a achar esse raciocínio ou esse argumento irrefutável, transformando em dever aquilo que a princípio lhe fora implorado como perdão.

Teresa chegou, portanto, a reatar essa cadeia fatal, tendo, somente, a feliz intuição de adiar o casamento, pois desejava tirar a prova da resolução de Lourenço sobre esse ponto, re­ceando por causa dele um compromisso irrevogável. Se se tratasse, apenas, da sua pessoa, a imprudência ter-se-ia reali­zado para sempre.

A primeira felicidade de Teresa não durara uma semana; a segunda, não chegou a durar vinte e quatro horas. As reações de Lourenço eram rápidas e violentas, resultado de suas próprias alegrias. Quando dizemos "suas reações", Teresa dizia "suas retratações" e a palavra era verdadeira. Ele obe­decia à necessidade inexorável de certos adolescentes de matar ou destruir aquilo que lhe agrada apaixonadamente. Obser­vam-se esses instintos cruéis em homens de caracteres muito diferentes. A história qualificou-os de instintos perversos.

Seria mais justo, porém, chamar-lhes instintos pervertidos por qualquer moléstia cerebral, contraída no meio em que esses homens nasceram.

Os homens de gênio são, também, reis no ambiente em que se desenvolvem. Chegam mesmo a ser reis tirânicos e absolutos, embriagados pelo poder. A sede de domínio tortu­ra-os e a alegria de um comando seguro e garantido chega a exaltá-los até à loucura.

Assim era Lourenço no qual se combatiam dois seres per­feitamente distintos. Parecia que duas almas disputavam o cuidado de animar o seu corpo. Elas entregavam-se a uma luta furiosa, procurando uma dominar e repelir a outra. Em meio a esses desencontrados excessos, o infeliz perdia o seu livre-arbítrio e sucumbia esgotado, cada dia, com a vitória do anjo e do demônio que dentro de si se digladiavam.

— Sim, — dizia ele à Teresa, — eu sofro o fenômeno que os teólogos chamam de possessão. Há dois espíritos que se apoderam de mim. Será realmente bom um deles e o outro será mau? Não creio. Aquele que é motivo de inquietação para si, o cético, o violento, o perverso, não pratica o mal senão porque não está em seu poder praticar o bem como ele o entenderia... Eu desejava ser calmo, filosófico, alegre, tole­rante. Mas o outro não quer que seja assim, quer realizar o seu papel de anjo bom, deseja ser ardente, entusiasta, dedi­cado, exclusivo. E como o seu opositor o ridicularizaria, como procura negá-lo e feri-lo, ele torna-se, por vezes, sombrio e cruel, de sorte que os dois anjos que vivem dentro em mim chegam a conceber um verdadeiro demônio.

Lourenço dizia-o e escrevia à Teresa sobre tão curioso assunto coisas belas e terríveis, que davam a impressão de verdadeiras e pareciam acrescentar novos direitos à impuni­dade que parecia relativamente reservada à Teresa.

Tudo aquilo que Teresa receara ter de sofrer por causa de Lourenço, se viesse a ser a esposa de Palmer, ela teve de experimentar por causa de Palmer, ao voltar ao convívio com Lourenço. O amargurado ciúme retrospectivo, o pior de todos porque se prende a tudo sem poder certificar-se de coisa alguma, começou a roer e oprimir o cérebro do infeliz artista. A lembrança de Palmer tornou-se o seu espectro e o seu vam­piro. Obstinou-se em querer que Teresa lhe contasse todos os pormenores de sua vida em Gênova e em Porto Venere, e como a isso ela se recusasse, ele acusou-a de ter querido enganá-lo desde aquela época esquecendo-se de que naquela ocasião Teresa lhe havia dito em carta que amava a Palmer e logo a seguir informando-o de que ia casar com ele. Lourenço responsabilizava-a por ter sempre conservado em suas mãos firmes e pérfidas a cadeia da esperança e do desejo que a ela o prendia.

Teresa mostrou-lhe toda a sua correspondência e ele teve de reconhecer que ela lhe havia dito oportunamente tudo quanto a sua lealdade lhe exigira que dissesse para afastar-se dele.

Parecia que depois de tais explicações e quando Lourenço se dizia pronto a assinar com sangue e lágrimas o que havia dito, e quando a calma devia renascer e começar a felicidade, nada disso se verificava. Devorado por cólera secreta, Lou­renço, no dia seguinte, voltava às suas perguntas, aos seus ultrajes e aos seus sarcasmos. Passaram-se noites inteiras em discussões deploráveis, noites em que se diria ter ele absoluta necessidade de exercitar o próprio gênio a chicotadas, ferindo-a e torturando-a, para torná-lo fecundo em maldições de uma eloqüência espantosa e atingir nele e em Teresa os limites do desespero.

Depois dessas tempestades, parecia que nada mais lhes restava fazer do que se matarem simultaneamente. Era o que Teresa sempre esperara, pronta para esse sacrifício, porque estava horrorizada da vida.

Mas Lourenço não chegara ainda a tal pensamento. Exaus­to, pegava no sono e o seu anjo bom parecia voltar a em­balar-lhe o sono, esboçando no seu semblante o sorriso divino das visões celestes. Regra invariável, absurda, incompreen­sível, nessa estranha associação o sono operava uma transfor­mação em todas as suas resoluções. Se adormecia com o espírito cheio de ternura, despertava sequioso de combate e violência. Reciprocamente, se amaldiçoava na véspera, acudia no dia seguinte a abençoar.

Teresa por três vezes o deixou e fugiu para longe de Paris. Três vezes, ele a seguiu, obrigando-a a perdoar o seu desespero. Logo que ele a perdia, voltava a adorá-la e reco­meçava a implorar o seu amor com todas as lágrimas de um arrependimento exaltado.

Teresa era miserável e sublime nesse inferno em que mergulhara, fazendo o sacrifício da própria vida. Levou a sua abnegação até às imolações, que faziam tremer os seus amigos.

O que prendia Teresa a Lourenço era essa imensa piedade, de fundo maternal, cujo hábito imperioso se contrai com os seres aos quais muito se tem perdoado. Dir-se-ia que o perdão gera o perdão até à saciedade, até à imbecilidade da fraqueza. Quando a mãe chega à conclusão de que o seu filho é incorrigível, nada mais tem a fazer senão aceitar tudo ou aban­doná-lo. Teresa enganara-se todas as vezes que tinha pensado haver curado Lourenço pelo abandono. É verdade que ele voltava sempre melhor, mas isso era sob a condição de esperar pelo perdão. Quando mais não o esperava, atirava-se perdidamente à preguiça e à desordem. Ela, então, voltava a acolhê-lo, conseguindo que ele trabalhasse durante alguns dias. Mas era bem alto o preço que ela pagava em comparação do pouco bem que ele chegava a dar-lhe.

Entretanto, Teresa nessa piedade que ele implorava tão ardentemente para logo depois sentir-se ofendido, quando ela a concedia, fermentava um respeito entusiasta e, talvez, mesmo, um pouco fanático pelo gênio do artista.

 

Certa noite, Lourenço manteve tão longa e incompreensível discussão que ela deixou de prestar ouvidos às suas palavras e adormeceu, sentada numa poltrona. Ao cabo de poucos instantes, ligeiro atrito fez que abrisse os olhos. Lourenço tinha atirado ao chão qualquer coisa de brilhante: era um punhal.

Teresa sorriu e tornou a fechar os olhos. Compreendia, um pouco vagamente e como através do véu de um sonho, que ele tinha pensado, no seu desespero, em matá-la. Naquele momento, porém, tudo era indiferente para Teresa: descansar de viver e de pensar fosse por intermédio do sono ou da morte, seria o que o destino quisesse. O que ela desprezava era a morte, mas Lourenço julgou que era a ele que ela des­prezava e, finalmente, deixou-a.

Três dias depois, Teresa resolveu realizar um empréstimo que lhe permitisse fazer uma longa viagem. Aquela vida de tempestades morais e aflições de toda ordem matava o seu trabalho e arruinava-lhe a existência.

Foi ao mercado das flores e comprou uma roseira branca. Enviou a planta a Lourenço, sem ter dado o nome do ofertante. Era o seu adeus!

Ao regressar a casa, encontrou aí, também, uma roseira branca, sem o nome do remetente. Era o adeus de Lourenço! Os dois partiriam, mas ficaram!

A coincidência dessas duas roseiras comoveu Lourenço até às lágrimas. Correu à casa de Teresa e encontrou-a a dar a última demão aos seus embrulhos e às suas malas. Mandara reservar passagem para o expresso das seis da noite. O lugar de Lourenço estava também, reservado no mesmo trem e na mesma carruagem. Um e outro tinham pensado em tornar a ver a Itália, mas, indo cada um para seu lado...

— Então, vamos juntos! — exclamou Lourenço.

— Não, não; eu não vou mais! — respondeu Teresa.

— Teresa, por mais que nós queiramos, esta cadeia ja­mais se romperá. É loucura pensar nisso ainda. Meu amor tem resistido a tudo quanto pode dissipar um sentimento e aniquilar uma alma. É indispensável que você me queira tal qual sou ou então que morramos juntos. Quer amar-me dessa maneira?

— Eu o desejaria, mas em vão! — respondeu Teresa. Não posso mais. Sinto o coração destroçado; penso que está morto.

— Pois bem f então, quer morrer?

— Tudo me é indiferente! — respondeu Teresa. Você bem sabe. Mas, com você não desejo, nem a vida, nem a morte. '

— Ah! você acredita na eternidade do nosso eu. Não quer encontrar-me na outra vida! Pobre mártir; compreendo tudo...

— Nunca mais nos encontraremos, Lourenço! Cada alma obedece ao seu núcleo de atração. Sinto que o descanso me chama, e você será sempre e em toda parte atraído pela tem­pestade.

— Quer dizer que não tem merecido o inferno?...

— Nunca o mereci, você... você terá outro céu...

— Se você me abandona, que me resta neste mundo?

— A glória, quando você deixar de procurar a embria­guez dos sentidos!

Lourenço ficou pensativo. Repetiu várias vezes a palavra glória. Depois, ajoelhou diante do fogão, reavivou o fogo, como costumava fazer, quando queria ficar a sós consigo mesmo. Teresa saiu para dar contra-ordem à viagem. Sabia, perfeitamente, que Lourenço não deixaria de acompanhá-la.

Quando regressou, encontrou Lourenço muito alegre e bem humorado.

— Este mundo — disse ele — não passa de comédia sem graça alguma. Mas para que querer elevar-se acima deste viver, quando não sabemos o que existe mais para cima, se é que alguma coisa existe? A glória da qual você ri, inti­mamente, eu a compreendo muito bem...

— Não rio da glória dos outros...

— Os outros, quais?.

— Aqueles que nela acreditam e a amam.

— Deus sabe se creio nela, Teresa, e não zombo da glória como de uma farsa. Mas, pode-se muito bem amar uma coisa, cujo pequeno valor não se ignora, gostamos de um cavalo arisco que nos quebra o pescoço, gostamos do tabaco que sabemos ser um veneno, uma peça mal escrita e amamos a glória que é, apenas, uma mascarada. A glória! Que é que ela representa para um artista vivo? Artigos dos jornais, elogios que ninguém lê, porque o público só se diverte com as críticas acerbas e quando colocamos o nosso ídolo contra a luz, ninguém mais faz caso dele. Além disso, grupos que se comprimem e se sucedem diante de uma tela pintada; de­pois, encomendas monumentais que nos arrebatam nas asas da alegria e da ambição e nos deixam quase mortos de fadiga, sem termos realizado o nosso ideal... Depois, a academia...

E Lourenço entregou-se ao mais amargo dos sarcasmos, terminando com estas palavras:

— Não importa! É essa a glória do mundo! A gente detesta essa glória, mas é impossível passar sem ela, pois não existe nada melhor!

O diálogo continuou até à noite, trocista, filosófico e, a pouco e pouco, inteiramente impessoal. Dir-se-ia, ao ver e ouvir aquelas duas criaturas, que eram dois pacatos amigos, que jamais se tinham indisposto um contra o outro.

Essa estranha situação repetira-se, várias vezes, durante a sua grande crise. É que, quando os corações ficavam em silêncio, as suas inteligências combinavam entre si e enten­diam-se, ainda.

Logo depois, sozinha, Teresa escalou, pela milésima vez em si mesma, o abismo deste destino misterioso. Que faltava, na verdade, a Lourenço para ser um dos mais belos destinos humanos? Apenas, uma coisa: a razão. Mas, que é a razão? perguntava Teresa a si mesma. Como é que o gênio pode existir sem ela? Será que por ser uma tão grande força é que ele pode matá-la e sobreviver-lhe? Ou será que a razão nada mais é que uma faculdade isolada e cuja união com as outras faculdades nem sempre é necessária?

Caiu numa espécie de devaneio metafísico. Sempre lhe havia parecido que a razão era um conjunto de idéias e não uma simples particularidade. Que todas as faculdades de um ser bem organizado lhe emprestam e fornecem alternadamente qualquer coisa; que ela era a um só tempo um meio e um fim; que nenhuma obra-prima poderia isentar-se de sua lei e homem algum podia ter valor real, depois de tê-la resoluta­mente calcado aos pés.

Repassava em sua memória a visão dos grandes artistas, analisando, também, a vida dos artistas contemporâneos. Em tudo, via a regra da verdade associada ao sonho da beleza e em tudo, também, muitas exceções, muitas incongruências, anomalias medonhas, figuras radiantes e fulmíneas, semelhantes à de Lourenço. As aspirações para o sublime constituíam uma doença do tempo e do meio em que Teresa se encontrava. Era qualquer coisa de febricitante, que se apoderava da mocidade e fazia que ela menosprezasse as condições da felicidade normal e ao mesmo tempo os deveres da vida cotidiana.

Pela força dos acontecimentos, a própria Teresa sentia-se atraída sem o haver previsto, nem desejado, para esse círculo fatal do inferno humano. Ela tornara-se a companheira, a metade intelectual de um desses loucos sublimes, de um desses gênios extravagantes. Suportava o contragolpe dessas dores pungentes, sem lhes compreender a causa e poder encontrar um remédio para elas.

Entretanto, Deus ainda se encontrava nessa alma rebelde e torturada, pois em certas horas Lourenço tornava-se bom e entusiasta, o que provava que a fonte pura da inspiração sa­grada não se havia exaurido. Não estava em presença de um talento esgotado, mas sim, talvez, ainda, de um homem genial. Seria necessário abandoná-lo à obsessão do delírio e ao embrutecimento da fadiga?

Por todos os motivos, tanto os da amizade como os da razão, o mundo censurava-a pelo fato de repreender-se e corri­gir-se. Aí estava, com efeito, o dever, segundo o mundo, e cujo nome em semelhante caso equivale ao da ordem geral do interesse da sociedade: "Continue pelo bom caminho, dei­xando perigar aqueles que dele se afastam". E os outros postulados oficiais acrescentavam: "Os sábios, os prudentes e os bons, para a felicidade eterna, os cegos e os rebeldes para o fogo eterno". Portanto, ao sábio pouco ou nada in­teressa que o insensato pereça!

Teresa revoltou-se contra essa conclusão.

— No dia em que eu me julgar a criatura mais perfeita e mais preciosa e a mais excelente da terra — pensou ela — admitirei a sentença de morte de todas as demais criaturas! Mas, se chegar a ver esse dia, não serei mais louca que todos os loucos? Para trás a loucura da vaidade, mãe do egoísmo! Sofra-se ainda por outrem! Sofra-se por quem precisa de nós!

Era quase meia-noite, quando Teresa se ergueu da pol­trona, onde se afundara inerte, e prostrada, quatro horas antes. Acabavam de tocar lá fora a campainha. Um mensa­geiro trouxe uma caixa de papelão e um bilhete. A caixa continha um dominó e a máscara de cetim negro. No bilhete, estas poucas palavras, escritas pela mão de Lourenço: "Senza vedere, senza parlare".

Sem ver e sem falar... Que significavam aquelas pa­lavras? Desejaria ele que Tereza fosse ao baile de máscaras, intrigando-a com uma aventura banal? Desejaria ainda tentar fazer que ele a amasse sem se reconhecer? Seria uma fan­tasia de poeta ou um insulto de libertino?

Teresa entregou à empregada a caixa de papelão e recaiu na poltrona. Mas a perquirição do seu espírito não mais a deixou refletir. Não era seu dever tentar tudo no mundo para arrancar essa vítima da alucinação infernal?

— Irei — disse ela — e segui-lo-ei a passo e passo. Verei a sua vida fora de mim e saberei o que existe de verdadeiro nas torpezas que ele me conta, até que ponto ele ama, ingênua ou fingidamente, o mal, e se tem verdadeiramente gostos de­pravados ou se procura, apenas, distrair-se. Sabendo tudo quanto tenho desejado ignorar a seu respeito, assim como a respeito deste mundo mau, e tudo quanto o afasta enfadado de suas recordações e da minha imaginação, descobrirei, talvez, um meio secreto, um subterfúgio para arrancá-lo a essa voragem... e pô-lo no trabalho criador.

Teresa lembrou-se do dominó que Lourenço lhe mandara e ao qual quase não deitara os olhos. Esse dominó era de cetim. Mandou buscá-lo, colocou a máscara, disfarçou cui­dadosamente os cabelos, muniu-se de uns laços de fitas de diversas cores, a fim de mudar a sua aparência física, no caso em que Lourenço conseguisse descobri-la sob esse dis­farce... E, chamando uma carruagem foi, resolutamente, ao baile da Ópera...

Ela nunca havia posto ali os pés. A máscara parecia-lhe uma coisa insuportável e sufocante. Nunca havia apren­dido a disfarçar a voz, nem" desejara ser adivinhada por nin­guém. Deslizou silenciosamente pelos corredores, procurando os cantos mais isolados. Esperava ficar inteiramente só e livre, no meio da multidão agitada...

Naquela época, não se dançava nos bailes de máscara da Ópera; o único disfarce permitido era o dominó preto. Era, pois, uma sombra e grave confusão aparente, com suas intrigas, tão pouco morais como as outras reuniões dessa espécie, mas, imponente de aspecto, contemplada do alto. Depois, subita­mente, de hora em hora, uma orquestra barulhenta tocava quadrilhas desenfreadas, como se a administração, em luta contra a polícia, tentasse a multidão a violar a sua proibição. Mas ninguém aí parecia cogitar disso. O negro formigueiro continuava a caminhar lentamente e a cochichar no seio dessa algazarra.

Ficou tão impressionada com o espetáculo que, por alguns momentos, se esqueceu onde estava, acreditando-se no mundo dos sonhos tristes. Procurava Lourenço e não o encontrava.

Finalmente, aventurou-se pelo salão do teatro, onde se conservavam, sem máscara, nem qualquer outro disfarce, os homens mais conhecidos de Paris inteira. Quando acabara de dar uma volta e ia retirar-se, ouviu pronunciar o seu nome a um canto da sala. Voltou-se e viu sentado entre duas mu­lheres mascaradas o homem a quem tanto quisera. Esse ho­mem tinha na voz um não sei quê de mole e picante que denota a fadiga dos sentidos e a amargura do espírito.

— Mas, então — perguntava uma das mulheres — Você, finalmente, abandonou a sua famosa Teresa? Parece que ela o enganou, na Itália e você não queria acreditar...

Teresa sentiu-se mortalmente tocada ao ver o doloroso romance da sua vida sujeita a semelhante interpretação, no­tando, ainda, que Lourenço sorria e respondia ao que elas diziam, afirmando-lhes que não sabiam o que estavam dizendo e falando-lhes de outra coisa, como se não houvesse sentido a menor indignação, lembrança ou inquietação, em virtude daquilo que acabava de ouvir. Teresa jamais acreditara que, pelo menos, ele não fosse um amigo. Lourenço permaneceu sentado, onde estava, escutando ainda. Sentiu que um suor amargo lhe colava a máscara ao rosto.

Entretanto, Lourenço não dizia às pequenas que o ro­deavam senão aquilo que pudesse ser ouvido por toda gente. Pairava, divertia-se com a tagarelice das mulheres e respondia a suas perguntas como um homem de sociedade. Elas não tinham espírito algum; por duas ou três vezes, ele bocejou, tentando dissimular o seu enfado... Entretanto, continuava ali.

Esta situação durou bem uns quinze minutos. Teresa permanecia no mesmo lugar. Lourenço dava-lhe as costas. O banco do teatro em que ele se sentara estava colocado no desvão de uma porta de cristal, revestida de estanho, a qual estava fechada à sua frente. Quando um grupo de pessoas, errando pelos corredores externos, parava diante dessa porta, os vestidos e os dominós formavam um fundo opaco e a vidraça transformava-se em negro cristal, refletindo a imagem de Teresa, sem que ele o percebesse. Lourenço pôde, assim, vê-la em diversos intervalos, sem julgar que fosse ela. Mas, pouco a pouco, a imobilidade daquele rosto mascarado começou a inquietá-lo e ele disse às mulheres, apontando para ela no sombrio espelho:

— Não acham aquela máscara horrível?

— Será que lhes causamos medo?

— Não, você, não — disse ele, dirigindo-se a uma delas. Eu sei como é o seu nariz debaixo desse pedaço de cetim.

Uma fisionomia que não se adivinha, nem se decifra, que não se conhece e fixa a gente como uma pupila ardente... Vou-me embora. Estou farto disto.

— Quer dizer, replicaram as mulheres, que está farto de nós?

— Não! — respondeu. Estou farto do baile. Aqui, a gente sufoca. Vamos ver cair a neve lá fora? Vou até ao Bosque de Bolonha.

— É de morrer...

— Bem, vocês querem vir comigo?

— Palavra de honra que não!

— Querem vir assim de dominó, ao Bosque de Bolonha? — perguntou Lourenço, erguendo a voz.

Um grupo de figuras negras precipitou-se semelhante a um bando de morcegos ao redor de Lourenço.

— Quanto vai custar isso? — perguntou uma das mu­lheres.

— Você fará o meu retrato? — perguntou outra.

— A pé ou a cavalo? — perguntou uma terceira.

— Cem francos por cabeça — respondeu Lourenço e apenas para passear, ao lugar, com os pés na neve. Eu as acompanharei de longe, para ver o efeito?... Quantas são?

— perguntou ao cabo de poucos minutos. — Dez! Quase nada! Não importa, vamos!

Três delas ficaram, dizendo: — "ele não tem vintém, o mais que nos poderia suceder seria apanhar uma pneumonia".

— Vocês ficam? — perguntou Lourenço. Restam sete, número cabalístico, os sete pecados mortais. Viva Deus! Es­tava com receio de aborrecer-me; eis uma idéia que nos salva!

Vamos e venhamos — pensou Teresa — um capricho de artista! Ele lembra-se de que é pintor. Nada se perde!

Seguiu a estranha companhia até ao peristilo, para con­vencer-se de que, efetivamente, a idéia fantástica ia ser posta em execução. Mas o frio fez que recusassem e Lourenço deixou-se convencer que convinha renunciar ao seu plano. Alvitraram que ele transformasse o passeio numa ceia geral.

— Isso, palavra, não! — exclamou Lourenço. Vocês são medrosas e egoístas. Vou em boa companhia. Tanto pior para vocês.

Mas elas trouxeram-no de volta para o salão do teatro e aí se instalaram ao seu lado outras jovens de suas relações e um tropel de moças inconvenientes. — Uma conversa tão viva, tão cheia de belos projetos que Teresa, vencida pelo tédio, se retirou, achando que era muito tarde. Lourenço amava o vício. Ela nada mais podia fazer por ele.

Lourenço amaria com efeito o vício? Não, o escravo não ama o jugo, nem o chicote, mas quando se torna escravo por .sua própria culpa, quando deixou que lhe tomassem a sua liberdade, por falta de coragem e prudência, habitua-se à ser­vidão e a todos os seus sofrimentos, justificando um dito profundo de um escritor antigo, segundo o qual, quando Jú­piter reduz um homem a esse estado lhe tira metade de sua alma.

Ao retomar Teresa a carruagem para regressar à casa, um homem loucamente apaixonado atirou-se a seu lado... Era Lourenço. Reconhecera-a no instante em que ela deixava o salão do teatro, com um gesto involuntário de horror do qual, aliás, não tivera consciência.

— Teresa! — disse. Voltemos ao baile. Quero dizer a todos esses homens. "Sois uns brutos!" E a todas aquelas mulheres: "Sois infames!" Quero proclamar o seu nome, o seu nome sagrado, diante dessa turba ignóbil, rolando a seus pés, mordendo o pó e invocando sobre a minha pessoa todos os desprezes, todos os insultos, todos os opróbrios! Quero fazer a minha confissão em voz alta, em meio a essa turba imensa mascarada, como faziam os primeiros cristãos nos templos pagãos, repentinamente purificados pelas lágrimas da penitência e lavados pelo sangue dos mártires...

Esta exaltação continuou até Teresa tê-lo conduzido à porta de sua casa.

— Sou eu quem o faz louco — pensou consigo mesma Teresa. E em voz alta: ainda há pouco, faltavam-me ao respeito como se tratasse de uma miserável! E essas palavras não o despertavam. Tornei-me para você uma espécie de vingador espectral. Não era isso o que eu queria. Separemo-nos, portanto; já, agora, só lhe posso causar mal!

 

Tornaram, entretanto, a ver-se no dia seguinte Lourenço suplicou a Teresa que lhe concedesse um último dia de con­versa fraternal e passeio burguês, amigável, afetuoso, tranqüilo.

Mas a borrasca surdiu terrível, no dia seguinte — tem­pestade sem causa aparente, sem qualquer pretexto e absolu­tamente idêntica às que se formam durante o verão, pelo único motivo de ter havido bom tempo na véspera... Depois, dia a dia, tudo ficou sombrio e foi como que um fim do mundo, como um contínuo dardejar de relâmpagos no seio das trevas.

Uma noite, ele entrou muito tarde em casa de Teresa, num estado de completa alucinação. E sem saber onde estava, sem lhe dizer palavra, deixou-se cair sobre o sofá e ador­meceu. Teresa passou para o seu estúdio e pediu a Deus com ardor e quase desespero que a livrasse de tal suplício. Estava desanimada. Esgotara-se tudo. Chorou e orou durante toda a noite. Surgiu o dia, quando ela escutou tocar a campainha da porta. Catarina dormia e Teresa acreditou que algum transeunte se houvesse enganado, errando de casa. Tocaram, novamente. Uma, duas, três vezes. Teresa foi espreitar pela clarabóia da escada, que dava para a porta de entrada e viu um menino de seus dez a doze anos, cuja roupa demonstrava achar-se em situação próspera. Seu rosto, erguido para ela, afigurou-se-lhe angelical.

— Que quer, meu amiguinho? — perguntou-lhe Teresa. — Está perdido neste bairro?

— Não, senhora, — respondeu a criança. Mandaram-me aqui. Estou à procura da senhorita Jacques.

Teresa desceu, abriu a porta ao rapazinho, olhando pra ele com extraordinária emoção. Parecia-lhe já tê-lo visto ou que ele se parecia com alguém que ela conhecia e cujo nome não podia recordar. A criança parecia, também, perturbada e indecisa.

Conduziu-o ao jardim para interrogá-lo, mas foi ele quem a interrogou primeiro:

— Então, a senhora — disse ele, tremendo — é a senhorita Jacques?

— Sou eu mesma, meu filho. Que deseja? Que posso fazer por você?

— Tem de receber-me e conservar-se em sua companhia, se assim quiser...

— Então, quem é você?

— Sou filho do conde das três estrelinhas...

Teresa conteve um grito e o seu primeiro gesto foi de repelir a criança. Mas, repentinamente, sentiu-se impressio­nada com a fisionomia daquele menino e de um rosto por ela pintado, ultimamente, contemplando-o num espelho, para en­viá-lo a sua mãe e esse rosto era... era o dela mesmo.

— Espere! — exclamou, tomando o menino nos braços, num movimento convulso. Como se chama?

— Manoel.

— Oh! meu Deus! quem é sua mãe?

— É... recomendaram-me que não lhe dissesse assim de repente... Minha mãe, é, em primeiro lugar, a condessa das três estrelinhas, que ficou em Havana. Ela não gostava de mim e dizia-me, muitas vezes: "Não sou tua mãe; não és meu filho; não sou obrigada a amar-te." Mas o meu pai gostava de mim e dizia sempre: "És meu, somente. Não tens mãe." Depois que meu pai morreu, há uns dezoito meses, a condessa disse-me: "És meu e vais ficar comigo." Isso porque meu pai lhe deixara dinheiro, mas com a condição de que eu passasse por ser filho de ambos. Entretanto, ela continuava a não gostar de mim e eu aborrecia-me bastante com ela, até que um senhor dos Estados Unidos, que se chama Ricardo Palmer, foi certa vez reclamar-me... A condessa disse: "Não, não o quero". Então, o senhor Palmer per­guntou-me: "Queres que eu te leve à presença de tua verdadeira mãe? Ela acredita que tenhas morrido e ficará cer­tamente muito contente se tornar a ver-te." Eu respondi: "Sim, certamente!" Então, o senhor Palmer apareceu à noite num barco, pois nós morávamos à beira-mar... e fui levado por ele, docemente, muito docemente e navegamos até um grande navio... E depois atravessamos todo o mar imenso e eis-me aqui!

— Você está aqui — exclamou Teresa que conservava o menino de encontro ao peito, num grande abraço e, trêmula de alegria, mantinha o menino num único e ardente beijo, enquanto ele falava. Onde está esse senhor Palmer?

— Não sei — respondeu a criança — Ele trouxe-me até à porta e disse-me: "Toca a campainha". Depois, não o tornei a ver.

— Vamos procurá-lo. Não deve estar longe!

E, em companhia do menino, Teresa encontrou Palmer que se conservava a pequena distância à espera de certificar-se de que o menino tinha sido reconhecido por sua mãe.

— Ricardo! Ricardo! — gritou Teresa, atirando-se aos pés do americano, no meio da rua ainda deserta, coisa que teria feito ainda mesmo se estivesse cheia de gente. — Você é Deus para mim!

Não pôde proferir outras palavras, sufocada pelas lágri­mas da alegria.

Palmer conduziu a jovem através das árvores dos Campos Elíseos e fez que ela se sentasse. Foi preciso nada menos de uma hora para ela serenar e se tornasse dona de si mesma, para que pudesse acariciar seu filho, sem receio de sufocá-lo.

— Agora — disse Palmer — a minha dívida está saldada. Você deu-me dias de esperança e de felicidade e eu não queria deixar de pagar essa dívida. Entrego-lhe toda uma existência de ternura, porque este menino é, verdadeiramente, um anjo. Custa-me bastante ter de separar-me dele. Privei-o de uma herança, por isso devo-lhe outra em retribuição. Você não tem o direito de opor-se a isto. Tomei este expediente c os meus interesses estão consolidados. Ele tem no bolso uma carteira, cujo conteúdo lhe assegura o presente e o futuro. Adeus, Teresa! Conte sempre comigo. Sou amigo para a vida e para a morte!

E Palmer afastou-se, feliz. Tinha praticado uma boa ação.

Teresa nunca mais quis pôr os pés na casa em que Lou­renço dormia.

Tomou um carro, depois de ter enviado um recado à sua casa, a fim de dar instruções a Catarina, instruções que es­creveu num pequeno café, onde almoçou com seu filho.

Passaram o dia todo a correr Paris, aparelhando-se para uma longa viagem. À noite, Catarina foi encontrá-los, carre­gando os embrulhos que fizera durante o dia. E Teresa foi ocultar seu filho, sua felicidade, seu repouso e seu trabalho, sua alegria e sua vida, no interior da Alemanha. Sentia uma felicidade egoísta, plena, imensa. Não pensou mais no que Lourenço se tornaria sem ela. Era mãe e a mãe relegara o passado com aquele homem.

Lourenço dormiu o dia todo e despertou em plena solidão. Levantou-se, maldizendo Teresa por ter saído a passeio sem cuidar do seu jantar. Admirou-se por não encontrar Cata­rina. Mandou a casa ao diabo e foi jantar no restaurante.

Só ao cabo de alguns dias, conseguiu compreender o que acontecera, quando viu que a casa onde morara Teresa fora alugada, os móveis encaixotados ou vendidos e percebeu que tinha esperado semanas e semanas, meses e meses sem uma palavra de Teresa. Lourenço perdeu, completamente, a es­perança de revê-la e não pensou em mais nada senão em atordoar-se naquela triste vida.

 

 

                                                                 George Sand

 

 

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